Você está na página 1de 120

Ficha Técnica

Título original: That Part Was True


Título: A M ulher dos Cabelos Loiros e o Homem do Chapéu
Autor: Deborah M cKinlay
Traduzido do Inglês por Helena Ruão
Capa: M aria M anuel Lacerda
Imagem da capa: Irene Lamprakou/arcangel-images.com
ISBN: 9789892328010

Edições ASA II, S.A.


uma editora do Grupo LeYa
R. Cidade de Córdova, n.º 2
2160-038 Alfragide – Portugal
Tel.: (+351) 214 272 200
Fax: (+351) 214 272 201

© 2014, Deborah M cKinlay


Publicado por acordo com Grand Central Publishing,
Nova Iorque, NI, EUA.
Todos os direitos reservados de acordo com a legislação em vigor
edicoes@asa.pt
www.asa.leya.com
www.leya.pt
Para o meu pai
O meu agradecimento a Alexandra Machinist
e a Deb Futter.
Caro Mr. Cooper,

Julgo que talvez fosse mais fácil contactá-lo por e-mail, mas o esforço exigido pela
escrita manual vai dar-me o incentivo de que preciso para escolher cuidadosamente as
palavras, uma vez que estou ciente de que escrevo a um autor.
Gostaria de lhe dizer que adorei o seu livro «Cartas Mortas». A cena em que o Harry
Gordon come o pêssego (“inclinando-se e segurando na gravata de seda verde com um
braço enquanto o sumo lhe batizava o outro punho da camisa”) introduziu um momento de
verão num dia chuvoso inglês. E recordou-me também do prazer quase decadente que
advém de comer fruta bem amadurecida... infelizmente, uma raridade.
Com os melhores cumprimentos,
Eve Petworth
Cara Ms. Petworth,

Obrigado pelas palavras amáveis. É sempre um prazer receber os comentários de um


leitor e um prazer ainda maior que tal aconteça por carta. (Infelizmente, uma raridade).
Concordo consigo sobre a fruta. Normalmente, nós também só temos a que parece de
plástico. Li certa vez que a fruta verde só é boa para aquilo a que vocês, britânicos,
chamam compota. Eu não faço compotas, mas a sua carta fez-me pensar sobre o valor do
esforço na concretização de algo, por isso decidi experimentar.
Atenciosamente,
Jackson Cooper
CAPÍTULO 1

– O lá-á!
Jack conhecia aquele «olá» e, em qualquer outra altura, ter-lhe-ia deixado os cabelos em
pé, mas às cinco da tarde de um dia passado a pensar maioritariamente no recente colapso do seu
segundo casamento, qualquer distração era bem-vinda. Era Lisa Milford, que morava do outro lado
da rua, na Sea Lane.
– Jackson, acabei de saber de ti e da Marnie – disse ela.
Entrou diretamente pela porta da cozinha, tal como já fizera tantas outras vezes. Lisa era muito
faladora e, no passado, encontrara em Marnie uma boa ouvinte.
– Lamento muito – disse ela.
Era evidente que Lisa estivera a jogar ténis porque ainda usava um vestido de ténis. Era uma
morena maneirinha e vistosa e naquele vestido daria a impressão de ser uma boneca, não fossem os
leves salpicos de sardas nos braços nus.
Jack, contente por ser salvo da companhia de si próprio, sorriu e cumprimentou-a calorosamente,
mais do que alguma vez fizera. Até àquele momento, Lisa Milford havia sido um elemento
periférico na sua vida, como o fraco zumbido de máquinas à distância... facilmente ignorado.
Hoje, porém, ficaram à conversa um tempo em pé e, em seguida, sentaram-se na cozinha, em
cadeiras de madeira, virados um para o outro, afastados da mesa, os pés alinhados, torsos
relaxados, em conversa amena, como amigos, pais ao portão da escola, unidos pela forte goma da
experiência partilhada; o marido de Lisa tinha-a deixado no verão anterior, depois de um longo
caso amoroso.
Jack achou que o mínimo que podia fazer era oferecer-lhe uma bebida.
E depois outra.
E então, mesmo no caso de uma faladora, ao que parecia, o cérebro de Jack desligou-se e a
Natureza levou o seu canto de sereia para outras partes da anatomia dele.
Lisa, que se sentia sozinha, e que há quase três anos se apercebia do efeito magnético da presença
de Jackson Cooper, derreteu-se toda em resposta ao primeiro e mais leve sinal de demora de uma
mão na sua cintura; portanto Jack não teve de ser particularmente ativo no encontro que se seguiu ao
roçar acidental dela enquanto ele lhe servia o terceiro copo de vinho. Uns minutos mais tarde, na
sala a que o agente imobiliário se referira como «sala do jardim» e à qual mais ninguém se referiu
especificamente, quando Jack a reclinou habilmente num divã revestido a tecido azul e branco no
qual Marnie gostava de se deitar para assistir ao pôr do sol, as mãos impecavelmente cuidadas de
Lisa encontraram o peito dele com ávido e nada desprezível entusiasmo.
Embora aquele envolvimento resultasse apenas de um interesse instintivo, Jack teria avançado de
bom grado, não fora Lisa ter emitido, no momento em que se contorceu para remover a última e
ténue barreira, um modesto riso de menina. O som perfurou-o como uma agulha. O bom senso
imperou. Ou melhor, não. A Natureza que tomara conta das suas capacidades físicas e mentais
abandonou-o de repente.
A princípio, esta alteração não foi notada por Lisa. Ela virou-se para ele novamente e avançou,
plena de intenção fervorosa. Mas, a pouco e pouco, a respiração dela abrandou e tornou-se regular.
– Ja-ack? – Ela afastou-se um pouco e olhou para ele.
Jack, encontrando-lhe o rosto, olhou-a nos olhos e o que viu foi uma mulher, uma mulher vulgar,
humana de mais. Desistindo, ergueu-a pelas ancas e sentou-se.
– Desculpa, querida – disse, afastando o cabelo da testa e tirando-a do caminho ao levantar-se.
Lisa, de pé, nua, tremendo ligeiramente, disse baixinho: – Não te preocupes, Jack. Eu não sou
gay.
Jack ficou a olhar para ela sem responder.
– A Marnie provavelmente sempre foi – acrescentou rapidamente, compreensiva, esperava ela. –
Não é possível tornar uma pessoa gay, ela simplesmente é assim.
Jack, sem palavras, apertou as calças e foi buscar o vestido de ténis.
– Obrigada – disse Lisa, quando ele lho entregou; mas, em vez de o vestir, segurou-o com uma
das mãos, amarfanhado, contra os seios. – Talvez devêssemos ir para minha casa, relaxar no jacuzzi
a beber qualquer coisa – sugeriu ela, inclinando-se na direção dele e levando quatro dedos
carinhosos e incentivadores à face dele.
Jack, afastando-lhe os dedos pelo pulso como se estivesse a desembaraçar-se de uma lagarta na
salada, libertou-se do abraço. – Hoje não vai acontecer – disse ele. Depois sorriu, para suavizar a
situação, aliviado por ver Lisa fazer por fim um movimento para se vestir. Parecia pequena e
vulnerável ao inclinar-se para pegar na roupa interior.
– Sinto muito, querida... combinamos alguma coisa mais para o fim da semana. Eu ligo-te.
– Prometes?
– Prometo – respondeu ele.
Ela ainda alisava o vestido de ténis nas ancas quando ele abriu a porta.

Muito mais tarde, e muito mais embriagado, Jack tirou um postal da gaveta de cima da grande
secretária em carvalho do seu gabinete. Era uma imagem do mar, uma massa de glorioso azul-
turquesa. Porém, os olhos recaíram num barco vermelho, de traços quase indistintos, no canto
superior direito. Era uma imagem apelativa, uma reprodução de uma pintura a óleo da autoria de
outra das suas vizinhas: Julie Hepplewhite. Ela era dona de um atelier/galeria em Melon Walk. O
tipo de lugar que ultimamente parecia proliferar nos Hamptons, e especialmente em Grove Shore,
manifestamente pitoresco e um pouco afetado, embora a galeria de Julie, chamada The Gallery on
Melon, fosse melhor do que a maioria, pensou Jack. Pelo menos ela sabia pintar.
Mas agora, olhando para o seu trabalho, depois de ligar o interruptor de um candeeiro de
secretária, nenhum traço apaixonado de Julie, da própria Julie, lhe vinha à memória. Tratara-se de
uma conquista banal, o contraponto do embrulhanço abortado de hoje, o resultado sem esforço do
vaguear tardio de regresso a casa depois de uma festa, tão rotineiro como atar os cordões dos
sapatos. O episódio já fora esquecido por ambos. Na galeria, quando Jack entrava sem pressas
atrás da multidão de turistas, num sábado qualquer, para examinar as paredes sem compromisso e
escolher alguns postais, Julie sorria e dizia «Olá, Jack» ao registá-los e ele respondia com outro
«Olá, Julie». Banal.
Jack virou o postal, pegou numa caneta preta de uma lata de café vazia que continha, como
sempre, uma dúzia delas, e escreveu:
Cara Eve Petworth,
É cozinheira?
Jack Cooper

Nas profundezas da Inglaterra rural, numa casa que parecia saída de um anúncio às paisagens
rurais inglesas, Eve Petworth deslocou uma moldura de prata com uma fotografia perfeitamente
disposta uns centímetros para a esquerda, a fim de colocar um solitário de cristal em cima do piano
raramente usado. Aproximou as flores amarelas breve e distraidamente do rosto. Foi um gesto vago;
estava absorta e não prestou grande atenção ao aroma. De qualquer forma, o cheiro daquelas rosas,
Golden Celebration, como poderia ter dito a qualquer pessoa, era-lhe tão familiar como o de cera
de abelha ou o de folhas de louro ou o de casca de limão. Eve virou-se e observou Izzy.
Izzy, que tinha entrado na sala atrás da mãe, atravessou-a com passos decididos, abriu o fecho da
janela e escancarou-a como se fosse voar através dela.
Eve esperou com resignação, ela momentaneamente a criança e Izzy a mãe, que Izzy lhe dissesse
o que fazer. Não precisou de esperar muito.
– Vamos beber um Campari – anunciou Izzy. A luz do sol atrás dela realçava-lhe o cabelo louro.
Um louro indomável, pensou Eve, imensamente dramático quando comparado ao seu castanho-
avermelhado desmaiado.
– Está bem – respondeu. Odiava Campari.

Mais tarde comeram faisão estufado. Eve, que tirara o prato pré-preparado do congelador nessa
manhã, retirou-o do recipiente plástico e reaqueceu-o sem cerimónias, ignorando a etiqueta na parte
superior que dizia, na sua própria letra, «O molho precisa de ser apurado». O molho precisava
realmente de ser apurado, pensou assim que o provou. Tirou um pouco de sal com uma colher do
pratinho de prata à sua frente e espalhou-o pela comida, mas não melhorou muito.
Izzy não fez comentários sobre o molho, aventando apenas uma leve e quase inconsciente
desaprovação pelo facto de faisão estufado ser um prato invernoso, pouco apropriado para um
almoço de junho. Ela tinha razão, é claro, mas Eve descobrira que a vontade de cozinhar para
aquela ocasião especial a abandonara. Estavam a celebrar o aniversário da morte da mãe de Eve,
avó de Izzy. Virginia Lowell tinha morrido numa tarde luminosa e fresca como aquela, há
exatamente doze meses. Tinha sido ideia de Izzy celebrar o dia.
– Eu vou aí, mãe – dissera ela, quase aos gritos, ao telefonar de Londres na semana anterior.
Eve conseguia ouvir o trânsito atrás dela e imaginou Izzy, vestida com algum traje muito
profissional e muito na moda, apressando-se de um compromisso importante para outro,
progredindo de forma constante e com distinção.
– Devíamos, pelo menos, almoçar juntas. Não podemos deixar passar a ocasião como se fosse um
dia normal.
Eve percebera o tom reprovador e concordara, tal como sempre fazia com Izzy, que desligara,
deixando Eve pendurada ao telefone. O plano estava definido.
Agora Izzy virava-se para a cabeceira da mesa. Ela trouxera um pequeno retrato da avó do quarto
onde passara a infância e que ainda usava nas visitas, apoiando-o contra a cadeira, como um
fantasma ali presente, uma coroa de flores num santuário, a olhar por elas enquanto comiam. Ela
ergueu o copo de vinho num brinde ao rosto cheio de vivacidade e disse: – Tchim-tchim, querida –
reprimindo uma lágrima que ameaçava cair com o seu estoicismo habitual.
Eve sabia bem que Izzy ficara não só com o coração partido, mas chocada com a morte da avó;
muito pouco acontecia a Izzy que Izzy não quisesse que acontecesse.
– Mas ela era muito nova – protestara sem cessar, quando Eve lhe telefonara a dar a notícia,
apesar de Virginia ter quase oitenta anos. Não que Virginia alguma vez admitisse publicamente a
sua idade. E ninguém que a conhecesse lha teria dado; ela fora uma beldade até ao fim.
Quando morreu, já Virginia vivia com Eve, a sua única filha, há sete anos, mas a casa de Eve,
apesar dos seis quartos, quatro casas de banho, ampla cozinha e várias salas, nunca acomodara as
duas com facilidade. Era uma questão de personalidade. Virginia era uma mulher com uma
personalidade que valia por quatro. – Eu fiquei com a tua parte, querida – dissera ela mais do que
uma vez a Eve porque, além de ser linda, muito inteligente e amante das coisas boas da vida, a mãe
de Eve era uma cabra.
Eve, cujo marido cedo desaparecera do mapa, assim como Virginia previra, ficara a tomar conta
da mãe, incansável e obediente, doando a tal tarefa a sua liberdade, a sua confiança e a sua
autoestima. Mas essas eram coisas que Virginia lhe roubava desde o dia em que nascera e, em
especial, desde a morte por ataque cardíaco do pai de Eve, uma tragédia que a mulher rapidamente
adotara como sua, independentemente do já tenso casamento que vivia, quando Eve tinha cinco
anos.
A viuvez de Virginia fora anfitriã de uma série de amantes e, transitoriamente, de um segundo
marido, mas o seu verdadeiro afeto só fora despertado por Izzy, em quem se espelhava. Hoje, Izzy
queria sentar-se lá fora a beber o aperitivo, e quando Eve explicou que o mobiliário de jardim
ainda estava pegajoso, pois tinha sido pintado de fresco no dia anterior, ela disse: – Devias ter
mandado fazer isso na Páscoa – com um tom de voz que parecia ressuscitar Virginia do túmulo.
Ao pensar no passado na tranquilidade formal da sala de jantar, Eve não conseguia lembrar-se de
um único desentendimento sério entre a sua mãe e a sua filha. Houvera muitas discussões, dias em
que ambas vinham queixar-se a ela, estridentemente, das falhas da outra. Mas essas histerias
terminavam sempre tão repentina e irracionalmente como tinham começado. E Eve passava a ficar
em desvantagem e a ser ignorada, mais uma vez.

Depois de uma fatia de tarte de limão, mais de acordo com a estação, e de um recordar
cuidadosamente neutro, por parte de Eve, pelo menos, das muito diferentes experiências com
Virginia enquanto tomavam café, Izzy foi visitar uma antiga amiga de escola e Eve, aliviada,
arrumou a cozinha.
Gwen estava de folga nesse dia, por isso Eve passou a louça por água e colocou-a na máquina de
lavar. Tê-lo-ia feito mesmo que Gwen lá estivesse. Gwen dizia muitas vezes que não sabia por que
razão Eve lhe pagava, uma vez que havia tão pouco para fazer. Mas, na verdade, ambas sabiam
porque Eve pagava a Gwen para vir da vila três vezes por semana. Pagava-lhe pela companhia,
pela sua companhia agradável e incondicional.
Assim que a cozinha ficou arrumada e bonita, um reflexo da própria Eve, embora nunca reparasse
nisso, ela sentou-se à mesa da cozinha junto à janela com vista para a ameixeira e tirou o postal de
Jackson Cooper, de Jack, da parte de trás da pasta de couro castanha onde guardava recortes de
receitas, lendo-o novamente.
Depois foi para a biblioteca, sentou-se à escrivaninha, onde se sentara para escrever os convites
para o batismo de Izzy, para assinar os papéis do divórcio e para fazer a lista de comida necessária
para o funeral da mãe, e levantou a tampa do fino computador azul que Izzy lhe oferecera no Natal
anterior. Havia um endereço de e-mail de contacto no site.

Caro Jack Cooper,


Não, eu não cozinho profissionalmente.
Eve Petworth

Por amor, então?


Jack

Pelo reconforto, método e bem-estar. E o Jack?

Por amor.

Jack levou a cerveja aos lábios e fez uma careta. – Não continues a comprar esta porcaria, Dex. E
se o fizeres, não a tragas para minha casa. Traz cerveja europeia, que sabe a cerveja. Esta coisa
sabe a mijo.
– Não me massacres muito hoje, Jack.
Jack, percebendo afavelmente a deixa, disse: – OK, eu mordo o anzol.
– Ando a cismar numa coisa – disse Dex, dando um gole descontraído na cerveja.
– Amor ou dinheiro?
Dex riu-se. – Achas que tudo vai dar sempre a isso?
– Sim, na ausência da morte, peste e guerra. Por outro lado, há a hipótese de eu ser apenas uma
pessoa extremamente superficial.
– Na verdade, a minha vida amorosa encontra-se num momento de acalmia – respondeu Dex,
consultando o relógio. – Mas isso só acontece há catorze horas, por isso não vou deixar-me afetar
ainda. E a minha situação financeira continua a mesma, ou seja, pouco sólida.
– Precisas de ajuda nisso?
Dexter Cameron ergueu os ombros num gesto descontraído e elegante. Um gesto ensaiado, afinal
era ator. – Não, obrigado... viver nas lonas é como carregar um objeto pesado: a gente acostuma-se
à postura.
– Pronto, está bem, já sabes que se precisares está lá.
– Eu sei que está – disse Dex.
Jack bebeu ao amigo. Em seguida, para corrigir a sensação de desequilíbrio que havia sido
introduzida, perguntou: – Como está a Brooke?
– Está com dezassete anos, é ainda mais bonita do que a mãe e anda a avaliar faculdades como
alguém faz quando tem por onde escolher.
– Dezassete?
– Dezassete.
Brooke, a dinâmica descendente de um dos romances insubstanciais de Dex, era ainda criança
quando ele e Jack se conheceram. A mãe mudara-se para o Novo México logo após o segundo
aniversário da filha, mas Dex mantivera sempre o contacto e visitava-a com regularidade.
– Ainda lhe ligas todas as terças-feiras?
– Sem falta.
– És um bom homem.
Foi a vez de Dex erguer o copo. Fê-lo e a conversa poderia ter ficado por aí. Eram dois homens,
amigos há muito tempo e que, logo de início, tinham encontrado um inquestionável, e só levemente
competitivo, à-vontade na companhia um do outro. Eram capazes de ficar ali sentados, como tantas
vezes fizeram, a olhar para nada em particular, a conversar sobre nada em particular. A maré subia
e o som ritmado das ondas na praia junto à casa chegava até eles. Mas Dex disse: – És tu; é contigo
que ando preocupado.
Jack, apanhado na ratoeira e detetando um nível inquisitivo que não queria abordar, não
respondeu e foi até à cozinha, onde despejou o resto da cerveja e tirou outra do frigorífico. Quando
voltou para a sala, viu que Dex tinha apoiado os pés descalços numa mesa baixa junto às portas
envidraçadas abertas e, mostrando-lhe a garrafa, disse: – Para que saibas: cerveja CHECA. Devias
informar-te mais.
Mas os olhos de Dex indicavam que não ia deixar o amigo desviar o assunto assim tão
facilmente.
– Eu... estou... bem – disse Jack, com uma alegria forçada, mas a voz e o movimento ao sentar-se
ao lado de Dex numa cadeira de espaldar alto traíram a insinceridade subjacente.
– O que é que se passa com a Marnie?
Uma brisa suave agitava levemente as cortinas brancas de musselina. Jack, de olhos fixos nelas,
respondeu: – Não sei nem quero saber.
– Queres, sim.
– Não, Dex, não quero. – Pousou a cerveja na mesa que apoiava os pés de Dex e levantou-se
outra vez, voltando um momento depois com uma taça de madeira cheia de frutos secos. Pousou-a
junto à cerveja com força, expulsando-lhe os pés, como quem quer pôr um ponto final.
– Então ela está a viver com aquela outra tipa, ou quê? – perguntou Dex.
– Ela está a viver com aquela outra tipa. O nome dela é Carla. É uma bibliotecária do Wisconsin.
Agora vamos mudar de assunto.
Dex inclinou-se para frente e pegou num punhado de frutos secos, sem tirar os olhos de Jack. Nos
quinze anos que o conhecia nunca o vira assim: em baixo. Dex era o que ficava em baixo, o que se
embebedava, o que fazia loucuras. Atirou alguns frutos secos para a boca e exclamou: – Uau, isto é
muito bom! O que lhes fizeste? – Abriu a mão, olhou-os com admiração e depois comeu o resto.
– Envolvi-os em manteiga derretida, mel e sal... até parece que te importas. Limita-te a comê-los.
Dex sorriu e olhou para o horizonte; Jack fez o mesmo.
Pouco depois, Dex perguntou: – Andas a escrever? – Embora soubesse que não.
– Vamos mudar de assunto – disse Jack pela segunda vez.

Mais tarde, Jack aqueceu óleo e manteiga numa frigideira de ferro fundido e esperou até que
começasse a fumegar. Em seguida, deixou cair dois bifes na frigideira e virou-os. Ele tinha passado
os bifes levemente por farinha e esta ajudou a espessar o molho. Tirou a carne da frigideira, e esta
do fogo, e abriu mais a janela da cozinha antes de adicionar uma generosa porção de vinho tinto ao
molho usando o grande copo pousado no balcão. Então levou a frigideira novamente ao lume, para
reduzir o líquido, e enquanto esperava, bebeu o resto do conteúdo do copo. Ficou a olhar um
momento para a paisagem tão familiar com o relvado cor de esmeralda, arbustos baixos de
hidrângeas e mar, mas sem ver. O que via era o seu quinquagésimo aniversário a vir direto a ele
como um comboio de mercadorias.

Eve encontrara aquele postal três anos antes, numa penosa viagem de três dias à Cornualha que
fizera com a mãe. Tinham ficado num hotel agradável onde a comida era excelente, mas para
Virginia nada estava ao seu gosto. À exceção da meia hora diária que passava a namoriscar o
jovem empregado envergonhado que lhes trazia os cocktails das seis da tarde, ela havia sido uma
péssima companhia. Certa tarde, Eve, passeando ao longo da pitoresca baía enquanto Virginia
dormia uma sesta, tinha comprado o postal e uma pequena caixa de caramelos ricamente embalada.
Não porque tivesse qualquer propósito específico, mas porque se sentira inibida ali sozinha na loja.
Oferecera a caixa a Gwen e guardara o postal na escrivaninha, pronto para uma ocasião que nunca
surgira.
Agora ficou impressionada com a semelhança entre a imagem no seu postal e a imagem no postal
que Jack Cooper lhe enviara, uma imagem que lhe era agora extremamente familiar. Virou os dois
postais e comparou os nomes dos artistas, mas, aparentemente, não havia nenhuma ligação. Então
abriu o seu postal ainda em branco e escreveu:

Caro Jack,
O que disse sobre a fruta verde é quase tudo verdade. A fruta para a compota deve estar
madura, mas não demasiado. Se assim for, a compota não liga bem. Espero que decida fazer
compota. No inverno, na ausência de pêssegos, as compotas deixam entrar alguma luz.
Eve

Meteu o postal no envelope, escreveu o endereço e deixou-o pousado na escrivaninha. Pediria a


Gwen para trazer alguns selos no dia seguinte.
Ouvia vozes no andar de cima. Izzy e o namorado, Ollie, tinham chegado já tarde na noite
anterior. Eve tinha ido para a cama, deixando-lhes pratos de frango frio e salada, para o caso de
quererem cear, mas ainda os ouvira chegar: o baque das portas do carro e a voz brusca de Izzy a dar
instruções a Ollie acerca da bagagem, sem qualquer consideração pela hora avançada.
Agora Izzy deleitava-se na sua banheira de pés preferida, na grande casa de banho junto ao
corredor, e conversava. A voz de Izzy continha autoridade, pensou Eve, mesmo ali deitada, nua,
numa banheira perfumada com óleo de amêndoas doces. Com quase vinte e oito anos, ela era
avaliadora de arte numa importante casa de leilões. Fizera o tipo de carreira que as pessoas
classificam como «meteórica». Eve supôs que aquela voz a tinha ajudado a conseguir um bom lugar.
«Tudo nela é persuasivo» disse para si mesma ao levantar-se, atravessando depois o corredor e a
cozinha e saindo para o jardim pela porta das traseiras. Queria apanhar uns pés de hortelã para o
cordeiro que ia assar mais tarde para o almoço.

– Mas o que é que ela faz o dia todo? – Izzy pôs um pé fora da banheira, pousando-o no tapete
branco e fofo. Depois passou o outro pé num movimento elegante de animal a saltar um obstáculo e
pegou numa toalha.
– Ela é voluntária naquela loja, não é?
– Muito de vez em quando. Não me parece que a Cruz Vermelha dependa muito do trabalho dela.
– Tem amigos? Joga bridge ou assim?
– Agora já não. Ela costumava ter algumas ocupações dessas, mas acho que já não. Hoje em dia
acho que só passa as horas a mexericar no jardim.
– Ela ainda não é velha – comentou Ollie, inclinando o queixo para se barbear. – E é bonita.
Talvez tenha um homem.
Se Izzy tivesse respondido, em vez de se limitar a mostrar uma reação, como era sua tendência,
podia ter visto, no círculo que Ollie limpara com a palma da mão para desembaciar o espelho do
vapor, que ele sorria quando baixou a cabeça para passar a lâmina de barbear por água. Mas ela
não o fez.
– Não sejas ridículo, Ollie – repreendeu-o ela, prendendo a toalha sobre o peito e lançando a
cabeça para a frente para enrolar o cabelo noutra. – Francamente! Que disparate.

Eve temperou e picou a hortelã, deixando-a numa infusão de água e açúcar. Depois deslocou uma
jarra de margaridas para o centro da mesa da cozinha e colocou individuais de cortiça para um
pequeno-almoço informal. Pela janela, mesmo ao fundo do jardim, onde a zona arborizada se
aproximava da casa, ela viu uma dedaleira branca. Eve adorava dedaleiras brancas, o seu pender
indolente, o seu brilho desafiador entre as primas roxas mais comuns. Ficou a olhar para ela e uma
espécie de união silenciosa floresceu entre elas por um momento até Izzy e Ollie aparecerem,
vestidos como sempre se vestiam quando a visitavam, com roupas caras e escolhidas a dedo para o
campo, que consistiam em calças de ganga e camisolas folgadas.
Eve percebeu imediatamente o motivo da viagem repentina. Izzy usava um anel de noivado.
Apercebendo-se do olhar da mãe, ela esticou a mão, exibindo o anel.
– Tcharan! – exclamou ela com extravagância, embora o gesto e o agitar dos dedos que o
acompanhou estivessem repletos de insegurança. Mas, subitamente, com um ar extremamente
sincero, ela deixou cair o braço e deixou escapar: – Quem me dera que a Gin-gin estivesse aqui. O
casamento não será o mesmo sem ela.
A declaração abafou os votos de felicidades de Eve, que ficou sem saber como responder ao
desabafo da filha, por isso pediu a Ollie que fosse buscar uma garrafa de champanhe e ocupou-se a
espremer laranjas para o sumo.
Izzy, recuperando rapidamente, sentando-se e voltando a encontrar a segurança entre a
sinceridade e o seu sucedâneo, continuou: – E não precisas de perguntar. Não estou.
Eve lavou as mãos, livrando-as dos restos de sumo de laranja, e guardou as cascas para
cristalizar. Na verdade, não lhe ocorrera que Izzy pudesse estar grávida. Izzy conhecia as
circunstâncias do casamento de Eve porque Virginia lhe contara... quando ainda era demasiado
nova, na opinião de Eve. Mas também pensara que o conhecimento podia servir, pelo menos, para
desencorajar Izzy a casar-se apenas por esse motivo. Não que Izzy o fizesse, percebia agora. Os
tempos eram diferentes e Izzy era diferente. Diferente de Eve.
– Recuso-me a atravessar a nave da igreja a bambolear-me como um hipopótamo – anunciou Izzy,
a despropósito, mas ainda assim confirmando o pensamento de Eve.
Eve não respondeu. Terminado o assunto, fez o brinde depois de Ollie ter aberto o champanhe,
dizendo novamente: – Parabéns. A muitos anos de felicidade. – Ergueu o copo para os dois jovens
rostos. Talvez jovens de mais, pensou, e, no entanto, mais velhos do que eu era.

– Ele vai pôr-se a andar antes de a lua de mel terminar – dissera Virginia.
Eve ouvira o clique da caixinha dourada de pó compacto através da porta do cubículo da
belíssima casa de banho do restaurante onde Simon Petworth, o seu futuro marido donairoso
oferecera o jantar de comemoração do noivado a um grupo de amigos e familiares.
– Oh, não sei – respondera Dodo, a única amiga próxima de Virginia: – Ela é muito bonita. E é
sempre muito difícil adivinhar quando se trata de pessoas introvertidas.
Eve, sustendo a respiração por medo de ser descoberta, o que teria feito aquele medonho ouvir
por acaso tornar-se ainda mais medonho, conseguia imaginá-las, muito sérias nas suas reflexões, a
ajeitar os cabelos e a aplicar o batom.
– Acredita em mim, eu sei o que estou a dizer – continuara a voz de Virginia. – Ele é daqueles
que não consegue mantê-lo dentro das calças e ela é tão excitante como repolho cozido.
Eve, com dezanove anos de idade e nove semanas de gravidez, achara-se prestes a desmaiar ali
mesmo, mas não o fizera. Resignara-se, em vez disso, ao ouvir o som da risada da mãe à rápida
perda de afeto do seu futuro marido. Como um pássaro cujo coração cede antes de o gato o matar.
CAPÍTULO 2

J ack, relaxado pelo luar, pela bebida em excesso e pela longa conversa filosófica noite dentro
com Dex, disse: – Ela tinha um Ford.
O assunto da partida de Marnie viera novamente à baila e desta vez ele não resistira. – Achei que
tinha um ar demasiado caseiro. O carro da amante da tua mulher deveria ser estrangeiro. Uma coisa
de bom gosto, não achas?
– Um Porsche – sugeriu Dex.
– Exatamente. Aquele era uma carrinha; e tinha um autocolante que dizia: «Eu coração livros.»
Ambos ficaram a matutar naquilo um momento.
– Foi quando soube que, na verdade, não me importava o suficiente – disse Jack –, quando
percebi que o elemento da situação que achava mais ofensivo era o autocolante «Eu coração
livros».

No dia seguinte, encontravam-se ambos sem palavras, ocupados com o consumo de Bloody Mary
medicinais acompanhados de bacon e panquecas no alpendre das traseiras, desfrutando do sol do
fim da manhã, quando uma leve voz feminina flutuou até eles vinda do lado da casa.
– Olá!
Apesar de não reconhecer a voz, Jack ficou tenso. Há duas semanas que andava a estacionar o
carro na garagem em vez de o deixar na rampa de entrada com as chaves na ignição, como sempre
fazia, só para evitar Lisa, e até agora tinha conseguido. Ela já deixara uma mensagem no seu
telefone e há duas noites tentara entrar pela porta da cozinha; encontrando-a trancada, contornara a
casa e pusera-se a espreitar por baixo da persiana de uma das janelas da frente.
Alertado pelo rumorejar das folhas, Jack atirou-se instintivamente para o chão, rolando para trás
de um sofá de três lugares. Ali deitado, de costas, sem mexer um músculo, plenamente consciente
do seu ser físico, respirando o mínimo possível e sentindo as picadas das fibras do tapete, deu-se
conta de que aquela não era maneira de um homem adulto viver.
– Adrienne! – exclamou Dex, subitamente desperto. – Tinha-me esquecido.
– O intervalo na vida amorosa acabou?
– Não o meu, caro amigo. O teu.
– Olá? – Ouviu-se novamente, uma voz desta vez mais alta, clara, mas não insistente, como um
espanta-espíritos no mar.

Era uma mulher alta de cabelo cor de areia, que usava calças brancas largas de linho e uma
camisa de um azul muito claro que poderia ser de um homem não fora assentar-lhe na perfeição.
Quando tirou os óculos escuros e sorriu ao ser apresentada, ele notou que os olhos e a camisa eram
exatamente da mesma cor. Ela parecia um elemento perfeito da Natureza... madeira flutuante. Muito
diferente de Lisa. Não foi uma comparação que Jack tivesse de fazer de memória porque Lisa
seguira Adrienne desde a entrada da casa até ao alpendre.
– Sou a Lisa – disse ela, apresentando-se com leveza, embora parecesse nervosa, como alguém
que, tendo entrado cheia de confiança numa ponte, agora se visse menos firme do que o esperado.
Há dias que andava a observar a casa de Jack, de forma inconscientemente compulsiva, à espera de
ver sinais de vida, sinais de Jack, embora o pensamento de realmente o ver lhe provocasse um nó
no estômago. Desde aquele momento abreviado nos braços dele, a agradável paixoneta de há muito
transformara-se em esperança atroz. Num impulso, chamara a mulher loira, que vira a contornar a
parede lateral da casa dele e agora ali estava ela. E lá estava ele: todo cheio de si, iluminado e
bonito de mais.
– Olá – cumprimentou ela.
– Olá – respondeu ele numa voz que não deixava transparecer nada.
– Sou a Adrienne – disse a mulher loira.
Jack apresentou Lisa a Dex e perguntou a todos o que queriam beber.

– Tenho uma amiga que é modelo – disse Lisa.


Rick, o filipino que tratava da casa de Jack, veio limpar a mesa e, quando ele se inclinou diante
dela, Lisa arrastou a sua cadeira ligeira e automaticamente para mais perto de Jack. Foi um
momento em que nada era óbvio, mas muita coisa percetível. Dex olhou de Jack para Lisa e
novamente para o amigo, mas foi o olhar de Rick que Jack evitou. Rick conseguia fazer uma
expressão impassível que dizia tudo, e Jack não queria ouvir.
O comentário de Lisa pairou um momento no ar até que Adrienne, entendendo de repente, disse: –
Oh, não, eu não sou modelo. Sou fotógrafa. – Dex dissera que eles se tinham conhecido numa sessão
fotográfica.
– Ela fez os fotogramas daquela curta-metragem que fiz em março – acrescentou ele.
– A que fizeste no Canadá? – perguntou Jack.
– Sim. Ela é espetacularmente boa.
Jack e Lisa olharam para Adrienne, mas ela quase não reagiu.
– Cada fotograma tinha uma... qualidade especial – Dex continuou. – Bela. Nunca óbvia.
Jack apanhou-se a observar Adrienne, à procura de algum sinal de uma relação entre ela e Dex
que fosse além da admiração profissional. Não viu nenhum. Também não viu Lisa, a mastigar com
delicadeza um talo de aipo, observando-o atentamente.
– Tentei captar o sentido da obra – respondeu Adrienne em voz suave. – E os atores... fiquei
muito impressionada com o elenco em particular, e com a intensidade que deste ao trabalho. Foi
incrível.
A conversa desviou-se para filmes e Jack ficou abismado com a mudança que via em Dex. Ele
levava o seu trabalho de ator muito a sério. Ficava diferente quando falava sobre o assunto: parecia
focado.
Lisa, aproveitando-se do emparelhamento da conversa, inclinou-se e virou-se para Jack. A visão
que aquele ângulo lhe oferecia dela, dos olhos grandes e do decote, era em parte infantil e em parte
materna. Jack achou-a uma combinação inquietante.
– Como estás? – perguntou ela.
Na intensidade daquele olhar, Jack sentiu-se como se sofresse de uma doença grave,
possivelmente terminal. – Vamos todos a pé até ao Mama’s comer caranguejo? – sugeriu ele em
resposta, num tom demasiado alto. Teve de se levantar e bater palmas como um idiota para que a
letra dissesse com a careta.

Mais tarde, na casa de banho dos homens do Mama’s, Dex comentou: – Desde quando andas a dar
em cima daquela tal de Lisa?
– Eu não estou a dar em cima da Lisa – respondeu Jack, ensaboando as mãos.
Dex ergueu uma sobrancelha desconfiada.
– É um mal-entendido – disse Jack, puxando uma toalha de papel do dispensador, secando as
mãos e atirando o papel para o caixote do lixo de plástico.
– Já tive mal-entendidos assim – disse Dex. – Graaande confusão.
Começaram a encaminhar-se para a mesa, mas Jack parou de repente junto a um vaso de palmas.
Conseguia ver as duas mulheres sentadas ao ar livre, na esplanada, à sombra do toldo listrado. –
Nunca mais vou conseguir livrar-me dela – disse ele em tom sombrio.
Dex também parou. Olhou na mesma direção de Jack. Lisa conversava animadamente enquanto
Adrienne brincava com um gressino que não estava a comer.
– Já devias saber que não se faz merda no jardim de casa, não é?
Jack suspirou. – Vou ter de vender a minha casa.
– Não me parece. – Dex riu-se. – Se continuares a ignorá-la, ela acaba por entender. Vais ter de
andar a verificar se o teu carro tem dispositivos incendiários durante um tempo, mas ela há de
conseguir perceber.
Jack passou a mão pelo rosto.
– Mas se tivesses esperado – continuou Dex –, em vez de te atirares à primeira coisa que te
cheirou bem, velho assanhado, terias visto que sou capaz de te arranjar a mulher perfeita para
ultrapassares essa crise de achares que tornas as mulheres lésbicas. A Adrienne é a mulher perfeita
para isso, não concordas?
– Eu não sei bem com o que é que estou a concordar – disse Jack. – Anda por aí muita treta.
– A Adrienne é uma pessoa com classe – retorquiu Dex, virando-se para ele de dedo indicador
estendido. – Não estragues tudo.
Jack ficou momentaneamente hipnotizado, chocado pela troca de papéis entre ambos. Era trabalho
de Jack dizer a Dex para não estragar tudo. Sempre fora assim. E, no entanto, lá estava ele, o que
costumava ser o mais estável da dupla, a agachar-se atrás de sofás e a curar ressacas, enquanto Dex
aparentemente ganhava juízo. E ele tinha razão, Adrienne era uma pessoa com classe.
– Estudei na Escola de Design de Kingston – disse ela uns minutos mais tarde, quando ele lhe
perguntou sobre a sua formação durante o café, que ela havia recusado a favor de mais água.
– É uma excelente escola – disse Jack.
– E deves ter sido uma excelente aluna, também, aposto – acrescentou Dex.
Lisa, oferecendo a Adrienne o prato de macarons que havia sido servido com o café, disse: – É
servida? – Agitou levemente o prato de forma ilógica e imediatamente desejou não o ter feito.
Incomodada pela calma glacial de Adrienne, horrivelmente desconfiada da sua situação em relação
a Jack, mas temendo ao mesmo tempo ter a certeza, ela foi-se tornando cada vez mais volúvel
durante o almoço. Estava ciente disso. Mas não conseguia parar.
– Não, obrigada – agradeceu Adrienne, devolvendo o sorriso de Lisa com outro amável, embora
sem brilho. Também não tinha comido caranguejo.
Enquanto comia o seu, Jack pusera-se a pensar, como sempre fazia, na cozinha do Mama’s. A
dona servia caranguejo há vinte anos, sem aparente diminuição de entusiasmo. Ainda era possível
saborear o amor que era posto na sua comida. Ela e Hatty, que geria o pequeno café na South Street,
estavam entre as poucas pessoas de Grove Shore que entendiam esse ingrediente essencial da
cozinha, pensou Jack. Muitos, demasiados até, ofereciam apenas pratos imaculados com bastante
precisão. Mas o toque do Mama’s havia sido desperdiçado em Adrienne.
– Sou vegetariana – explicou ela quando fizeram o pedido, acrescentando, desnecessariamente –,
não como animais.
– Eu sofri de um distúrbio alimentar durante algum tempo – anunciou Lisa em resposta –, mas
encontrei uma terapeuta excecional. Curou-me num ápice. – Foi uma brincadeira, mas a forma
inoportuna e hesitante com que foi dita estragou-a. Ela estalou os dedos, e no silêncio gerado pelo
comentário, o som perpetuou-se.
Para salvar a situação, Dex riu-se. E Lisa, concedendo-lhe em troca um débil sorriso de gratidão,
ergueu o copo e deu mais um sério passo em direção à total embriaguez.

A certa altura, algures entre a conversa sobre a Escola de Kingston e a segunda anedota
demasiado longa sobre Hollywood de Dex, que fez Lisa abrir um sorriso forçado e desconfortável
enquanto Adrienne brincava, impassível, com o copo de água, Jack sentiu o seu humor esmorecer.
Andava a trabalhar muito pouco desde que Marnie o deixara e a beber de mais, o que nunca era
uma boa combinação. Mas foi várias horas depois que chegou ao fundo do poço.

Terminado o café, caminharam todos de volta ao longo da praia até casa, Adrienne levando as
sandálias de couro cru pelas tiras, balançando-as nos dedos longos.
Lisa, cuja tendência para a tagarelice finalmente se extinguira pelo álcool, pela atitude de
camaradagem casual de Jack em relação a ela e pela sarcástica voz interior que a atormentava
acerca dos seus trinta e oito anos de idade e estatuto de solteira, emudeceu e deixou-se ficar para
trás. Jack, apercebendo-se disso, consciente de um crescente latejar na têmpora esquerda e uma
sensação grogue de arrependimento e inutilidade da ressaca vespertina, ficou espantado com a
tristeza que via no contorno descaído do pequeno maxilar dela. Estendeu a mão para a puxar de
volta para o grupo e deixou o braço pousado nos ombros dela, um gesto carinhoso, preguiçoso, que
durou o suficiente para reacender a chama dentro dela.
Quando chegaram aos degraus de madeira que iam desde a praia até às traseiras do jardim de
Jack, o desejo de os subir sozinho era quase esmagador, mas Lisa, estimulada por um renovado
otimismo, avançou, célere, à frente dele, o pequeno traseiro arrebitado, como um alperce envolvido
nuns corsários justinhos, quase ao nível do nariz dele ao subir o primeiro lanço íngreme das
escadas. Dex deu também passagem a Adrienne. Jack resignou-se a suportar o resto da noite, mas
tinha perdido todo o interesse.
Já dentro de casa, Adrienne fez menção de partir, mas Dex desencorajou-a, puxando uma cadeira
para ela no mesmo alpendre onde eles se encontravam quando ela chegara. Já passava das cinco da
tarde e Jack, em busca de alívio e solidão, retirou-se para o único lugar onde sabia poder sempre
encontrá-los: a cozinha.
– Precisa de alguma coisa, chefe? – perguntou Rick.
– Não, Rick, está tudo bem. Porque não folgas o resto do dia?
Rick olhou para o patrão, desconfiado. Mas ele olhava para Jack daquela maneira muitas vezes,
por isso Jack ignorou.
– Leva o resto do pernil, se achas que a Christa pode dar-lhe uso.
Ambos sabiam que Christa lhe daria bom uso. A mulher de Rick alimentava a própria família e
cerca de meia dúzia de outras, tanto quanto Jack sabia: primos, amigos, um fluxo constante de
parentes à procura de trabalho nos Estados Unidos.
– OK, chefe – disse Rick. Tirou o casaco branco que sempre usava em casa de Jack e colocou-o
no cabide pendurado num gancho do lado de dentro da porta da despensa. Depois tirou o pernil do
frigorífico e embrulhou-o.
– Não se esqueça que as empregadas vêm limpar amanhã de manhã – avisou ele.
– Não – respondeu Jack. Era o tipo de coisa de que se esquecia sempre de imediato.

Jack queria recuperar a sobriedade. E achou que Dex e Lisa também o deveriam fazer. Ouvia-os a
rir-se lá fora e sabia que Dex tinha aberto outra garrafa de vinho. Adrienne era a única ainda em
plena posse das suas faculdades. Ela não era uma pessoa fácil de imaginar em qualquer outro
estado, pensou Jack.
Pegou em dois grandes pães de um cesto, pousou-os numa tábua de cortar e ligou o forno. Tinha
algum queijo provolone, podia fazer crostini para ajudar a absorver a bebida e, mais tarde,
ratatouille. Adrienne poderia comer, se ficasse.
– O meu pai compra todos os teus livros – disse ela da porta, onde aparecera silenciosamente,
como uma sombra.
Jack tinha começado a fatiar o pão. Suspirou interiormente. Externamente, sorriu.
– Ele adora-os – continuou Adrienne.
– Agradece-lhe por mim – respondeu Jack, esperando pelo pedido de um exemplar autografado.
– Vais manter o teu género de escrita?
Era uma pergunta relativamente inocente, a pergunta errada, mas o tipo de pergunta que as
pessoas lhe faziam constantemente. Jack já encaixara piores, e de pessoas menos inteligentes do que
Adrienne. Mas aquele não era um bom dia. Aliás, não tinham sido umas boas semanas.
– Não – respondeu ele deliberadamente. – Vou escrever umas cenas literárias tão eruditas que
todos os críticos em Nova Iorque que me odeiam vão precisar de dicionários de sinónimos. – A sua
expressão manteve-se inalterada, mas não havia dúvidas da veemência do seu tom.
Adrienne endireitou o corpo encostado à ombreira da porta. – Eu quis dizer... – começou ela,
devagar, escolhendo as palavras.
Jack pousou a faca e interrompeu-a. – Eu sei o que quiseste dizer. Quiseste dizer: Agora que já
ganhei uns milhões, porque é que não escrevo alguma coisa de jeito?
– Não... – disse ela, ainda a pensar.
– Sim – interrompeu ele novamente. – Sim, o que quiseste dizer foi porque é que eu não escrevo
algo que prove que sei escrever. Algo que demonstre que não sou simplesmente um medíocre
qualquer que teve sorte em ser conivente com os gostos de maridos entediados em férias e de
idiotas analfabetos incapazes de pronunciar o nome «Proust».
Adrienne olhou para ele com firmeza. – O meu pai não pertence a nenhuma dessas categorias –
respondeu.
A razoabilidade da resposta não fez nada para acalmar Jack. – Ouve – disse ele, mostrando agora
abertamente a irritação, permitindo-se mergulhar de cabeça na pura agressividade que parecia
sempre tão incrivelmente justificada no momento. – Eu não preciso de elogios em segunda mão. «O
meu pai adora os seus livros. A minha avó adora os seus livros». Passo a vida a recebê-los de
pessoas que sentem a necessidade de colocar alguma distância entre o tipo de coisas que escrevo e
o tipo de coisas que têm nas suas mesinhas de cabeceira para se lembrarem de que eram capazes de
citar quatro linhas de Eliot na faculdade. – Voltou a pegar na faca e a cortar o pão. O movimento
oscilante metálico da lâmina, tenso contra a tábua, ecoava o estado de espírito de Jack.
Adrienne observava em silêncio.
Lisa, que a certa altura se materializara atrás dela, ficou também a observar em silêncio, mas só
um momento. Empurrou Adrienne ao passar, atravessou a cozinha em passos rápidos e abraçou Jack
pela cintura, por trás, num gesto protetor. Tinha ouvido o bastante da conversa para perceber o
assunto na sua generalidade, se não na sua especificidade. – O Jack é um grande escritor – disse
ela.
Espetando a faca na tábua de tal modo que a deixou a balançar, Jack rodou nos calcanhares para
encarar Lisa e arrancou-lhe as mãos com rudeza. – Lisa, queres, por favor, deixar-me em paz? –
gritou.
Lisa estava embriagada, mas não tanto. Deu meia-volta e saiu pela porta da cozinha sem olhar
para trás.
Adrienne observou Jack mais um momento e então, também sem palavras, foi pegar nas suas
coisas e despedir-se de Dex. Depois de se ter ido embora, quando Dex veio ter com ele à cozinha,
Jack ergueu a faca na direção dele, em jeito de aviso, mas não os olhos. Dex respeitou-o.

Um estafeta bateu à porta e Gwen atendeu.


– Poderia dizer-me onde fica a Marsh Farm? – perguntou ele enquanto ela assinava a entrega da
encomenda.
Gwen deu a informação. Depois de a carrinha dar meia-volta no piso de cascalho e se afastar da
entrada tão silenciosamente como de costume, ela foi à biblioteca entregar a encomenda a Eve.
Ao ver o pacote Eve perguntou-se, com uma certa esperança, se seria algo de Jack Cooper. Mas
claro que não era. Depois de Gwen ter saído para acabar de passar a ferro, repreendeu-se enquanto
retirava do pacote uma capa de argolas preta com uma etiqueta que dizia «Casamento» e um bilhete
de Izzy.
«Podes ver que destaquei as coisas que estão na tua lista», Izzy havia escrito. «São,
principalmente, telefonemas, e-mails, verificar preços e disponibilidade, esse tipo de coisas.» O
tom dela implicava coisas simples, coisas que Eve seria capaz de fazer, ao contrário de outras
coisas, mais importantes, que não seria capaz.
Eve folheou a pasta, reparando nas tarefas destacadas. Era capaz de as levar a cabo, mas um
cenário mais abrangente começava a tornar-se claro pela primeira vez desde que Izzy e Ollie a
tinham informado do casamento iminente. O casamento. Uma sensação de alarme começou a
instalar-se-lhe no fundo do estômago. Um casamento, um grande casamento, se bem conhecia Izzy.
Pessoas e festas... tudo aquilo que Eve passara os últimos anos a evitar; aliás, para ser sincera, que
tentava evitar já bastantes anos antes disso. O género de coisas que Virginia costumava fazer. E até
Eve era capaz de admitir que fazia bem. Muito melhor do que ela alguma vez seria capaz.

– O stress é para desempregados, vítimas de repressão e de racismo. E para cobardolas – disse


Jack. – Homens saudáveis, brancos, da classe média americana não têm direito a isso.
Jim riu-se e olhou para Jack, do lado oposto da secretária, a quem tratava as pequenas maleitas
há vinte anos.
– Bem, alguma coisa se passa – disse ele. – A tua pressão arterial está muito mais elevada do que
o habitual e a erupção pode ser viral, ou algum tipo de dermatite de contacto, talvez uma alergia,
mas essas coisas tendem a ser exacerbadas pelo stress.
Jack tinha acabado de abotoar a camisa. A erupção, uma pequena zona de pontos vermelhos no
peito, havia diminuído consideravelmente ainda antes de a ter mostrado a Jim, casualmente, no
decorrer de uma consulta de rotina. Mas mencionara-o assim mesmo porque estava acostumado a
ter o tipo de corpo vigoroso, musculoso, bonito e fiável que raramente trai ou surpreende uma
pessoa, ainda que levemente.
Jim terminou de escrever uma receita de hidrocortisona leve e entregou-lha. – Tira umas férias.
Vai pescar – aconselhou ele.
Jack riu-se. A pesca era a prescrição de Jim para a maioria dos males. E muitas vezes
funcionava.

Jack caminhou de regresso a casa a sentir-se melhor. Não tinha havido nenhuma menção ao clima
tenso da tarde anterior. À noite, depois de fazer as crostini, ele e Dex tinham comido quase em
silêncio e, mais tarde, ele servira o ratatouille com Rioja. Ficaram a ouvir Duke Ellington e foram
para a cama cedo.
Dex dormira até tarde. E ao encontrá-lo na cozinha, quando saiu do escritório, Jack notou que o
sono lhe fizera bem. Dex era oito anos mais novo do que Jack. Uma boa noite de sono apagava os
anos. Jack percebeu que chegara ao ponto em que precisava de pelo menos três.
Junto ao carro, atirando o saco para a bagageira, Dex disse: – Diz-me que parta uma perna.
– Parte uma perna – repetiu Jack maquinalmente.
Dex entrou no carro e disse através da janela aberta: – Tenho uma segunda audição para uma
coisa boa. – Rodou a chave na ignição e meteu a primeira.
Olhando para o rosto do amigo, Jack viu novamente aquela determinação intencional. – Parte uma
perna – disse, desta vez com sinceridade. Deu uma pancada no capot do carro e, no vazio da
reverberação, sentiu-se ridículo.

Mas agora, caminhando de volta, tudo se acalmava um pouco dentro dele. Talvez Jim estivesse
certo e só andasse stressado. Que diabos, estas coisas aconteciam a homens de meia-idade. Só
precisava de sossegar. Regressar ao trabalho. Entrar numa rotina. Não era como se sentisse
verdadeiramente a falta de Marnie.
Jack ajeitou o chapéu, um panamá já gasto de que não era capaz de se separar, para se defender
do calor do verão e pensou no seu casamento de sete anos com Marnie. Era inacreditável que
tivesse durado sete anos. Desde logo começara com pouco empenho da sua parte, e provavelmente
da dela, também, pensava agora, a julgar pelo desfecho; embora ainda lhe custasse a acreditar que
tivesse sido tão ingénuo acerca do assunto «Carla». Nunca lhe teria ocorrido que Marnie andasse a
lamber a relva, ou fosse qual fosse a expressão correta para sexo lésbico, a uma bibliotecária do
Wisconsin em férias. Muito menos que o deixasse por ela. As pequenas paixões de Marnie sempre
lhe pareceram tão triviais: a olaria, o cultivo de ervas aromáticas, o livro infantil... adoráveis, mas
triviais.
Percebeu que naqueles últimos meses com Marnie, talvez anos, se deixara cair num estado de
assumida superioridade, pouco atrativa, mas viciante.
Nesse momento pensou no pai, como sempre fazia quando tentava encontrar as melhores
qualidades em si mesmo, que certa vez o tinha visto dirigir-se vagarosamente até à linha de partida
de sprint, quando tinha catorze anos, com um ar excessivamente confiante e depois o vira derrotado
por um até então despercebido magricela de doze anos. Mais tarde repreendera Jack por amuar.
– Filho – dissera ele –, em tudo há talento. Mas não é possível identificá-lo à primeira vista e
nada consegue cegar mais uma pessoa para a possibilidade da sua existência como a arrogância.
Jack preparava-se para protestar, mas a expressão do pai silenciara-o.
– Por isso, Jack, da próxima vez que estiveres a sentir-te superior, deita-te até que passe.
Jack gostaria de dizer que nunca tinha esquecido aquelas palavras, nem o olhar sábio do pai
quando as dissera. Mas não era verdade, pensou, pois fizera-o.
Durante algum tempo contentara-se com uma mulher que não apresentava desafios. Ele era
Jackson Cooper: escritor de sucesso, um bom cozinheiro e, no cômputo geral, um tipo fantástico.
Não era assim? Todos o diziam.
Jack abanou a cabeça em autocrítica, dirigiu uma pequena oração de desculpa ao pai, prometendo
fazer melhor, e, em seguida, mais aliviado, entrou no novo French Market.
Tal como suspeitava, o interior era astuciosamente típico, mas tinha as suas vantagens,
evidenciando-se o aroma a queijo e, mais ao fundo, o do pão. Foi passando por entre as fileiras de
objetos concebidos mais para exibição do que para consumo: garrafas de vinagre gourmet com
formas bizarras, frascos cheios de frutas inchadas, como partes do corpo humano conservadas em
formol, e massas com cores incongruentes; encontrando o que queria, um frasco de molho de soja e
um pote de mostarda de Dijon, foi para o balcão, onde pagou a um jovem de cabelo espetado.
– Como está, Mr. Cooper? – perguntou o rapaz, entregando a Jack as compras num saco de papel
requintado.
Jack, ainda perdido numa névoa de pensamentos, deve ter parecido distante quando respondeu: –
Bem. Muito bem, obrigado.
O rapaz riu-se.
– Sou o Josh – disse ele. – Josh Hapwell. Cortei a relva de sua casa durante três verões.
Jack olhou com atenção para o jovem enquanto guardava o troco no bolso. – És aquele miúdo de
ar enfezado?
O jovem riu-se de novo. Jack calculou que tivesse uns vinte anos.
– Sou. Agora sou o gerente, aqui.
Jack sorriu. – Ai, sim? – Lembrou-se de Josh a ajudar o pai no jardim. Era um miúdo esquelético
e tímido para a sua idade. A certa altura, o pai havia deixado de ir e Jack quase não voltara a ver
Josh desde então.
– Sim, senhor – disse Josh. – Portanto, se eu puder ajudar em alguma coisa, é só dizer.
– Há uma coisa que podias fazer por mim, Josh.
Do lado de dentro do balcão, Josh olhou-o com ar solícito.
– Não voltes a tratar-me por «senhor».

Já em casa, Jack pegou numa das duas cervejas geladas que Rick lhe deixava sempre no
frigorífico nas tardes de verão e preparou uns ovos cozidos com atum. Comeu no alpendre, leu
durante algum tempo e depois escreveu a Eve:

Nunca lave os mirtilos antes de os armazenar. Deterioram-se muito depressa se o fizer. E


compre-os azuis. Azuis como o azul do ocaso nas noites de verão: azul retinto.

Pousou a caneta e pensou nela, tentando imaginá-la.


De pele clara, com cerca de cinquenta e cinco anos. Magra e banal. As mulheres que liam os seus
livros tinham a pele clara, cinquenta e cinco anos e eram magras e banais. Escolhiam os livros dele
depois de serem descartadas pelos maridos e ficavam surpreendidas por gostarem muito das
histórias. Embora os elogios de Eve tivessem um quê de diferente, pensou. Não continham má
vontade. Não havia um «Não é mau» na primeira carta dela. E a maneira como escrevera sobre
comida. Havia ali algo que mexia com ele.
«Jack», assinou, voltando a sentir-se, pela primeira vez em semanas... calmo, equilibrado.
Precisava de pedir desculpa a Lisa, e prometeu que o faria. Sentia-se mal por toda a situação. Mas
ia escolher o momento certo, para que ela não achasse que era uma abertura para algo mais. Queria
ser franco com ela, correto e franco. Foi buscar a segunda cerveja e levou-a para o escritório. Iria
ler o que escrevera pela manhã e ligar ao seu agente. Responder a alguns e-mails. Iria ganhar juízo.

– Estou? – Jack pegou no relógio da mesa de cabeceira e viu as horas enquanto acendia o
candeeiro: três da manhã. – Marnie?
– Jack, eu...
– Marnie, são três da manhã!
– Desculpa, Jack, nem reparei. Não estou com a cabeça no lugar. – Estava a chorar. O som,
ricocheteando de satélite em satélite, fluindo através de fios, cruzando fronteiras estatais, ecoou
acusador nos seus ouvidos. Ele sentou-se na beira da cama e suspirou. – O que aconteceu, querida?
Houve um pulsar, uma pausa para ela se recompor. Então: – Nós sempre fomos amigos, Jack.
– Fomos? – perguntou ele, em tom fatigado e demasiado sincero.
Marnie, passando das lágrimas à acidez com uma brusquidão para a qual nenhum homem está
preparado, especialmente às três da manhã, retorquiu com força e rapidez: – Bem, eu tentei ser tua
amiga, Jack. Foste tu que sempre me afastaste, não o contrário.
Jack suspirou novamente. – Marnie, eu não sei o que queres de mim agora.
Mais uma pausa. Aparentemente, Marnie também não sabia. Os satélites e os fios permaneceram
abertos entre ambos, vivos e expectantes.
– Ouve, Marnie. Acho que talvez devas falar com alguém; um psiquiatra ou um especialista
qualquer. Não posso ser eu a dar-te conselhos. Realmente não posso.
– Essa é boa!
Que inferno, tinha caído que nem um patinho. Agora ninguém a poderia parar.
– Tu é que precisas de um psiquiatra, Jack. Eu posso estar um pouco descontrolada de momento,
mas pelo menos conheço as minhas emoções. Sei que tenho alguns problemas, admito. Mas tu é que
guardas tudo dentro de ti, que não sabes o que queres e te recusas a falar sobre o assunto. Talvez se
tivesses sido capaz de falar comigo, de te ter aberto comigo, não estivéssemos nesta confusão, Jack.
Já pensaste nisso? Alguma vez te ocorreu que a culpa de tudo isto também tenha sido um pouco tua?
Já assumiste alguma quota-parte de responsabilidade no fracasso do nosso casamento, Jack? Porque
eu não estou preparada para assumir toda a culpa. Fui eu que saí, sim, mas tu levaste-me a isso,
Jack. Não tive escolha. – A voz fraquejou e ela começou a soluçar.
Jack esperou. Depois disse: – Querida, está tudo bem. Percebo que estás esgotada. Precisas de
descansar. Ligo-te daqui a uns dias. Tenta dormir um pouco... está bem?
– Estou esgotada, é verdade – disse ela por fim. As lágrimas foram diminuindo, ela fungou, mas
não fez nenhum gesto audível para desligar e Jack achou melhor não tomar a iniciativa para não dar
origem a uma nova explosão da parte dela.
Três horas da manhã, pensou, e estou sentado na beira da minha cama, de cuecas, a ouvir uma
mulher fungar.
CAPÍTULO 3

Z ona de Sal, e acima, em letras maiores, Jackson Cooper. Na verdade dizia «Coop», porque o
«er» estava tapado por um autocolante dourado proclamando o seu estatuto de best-seller. A
capa exibia também uma ilustração, em azuis melancólicos profundos e anis sombrios, de um
homem com uma arma, de pé, sobre uma bela mulher. Uma bela mulher morta.
Eve achou a capa do livro intencionalmente masculina e, quanto a ela, escusada, perguntando-se
vagamente como seriam decididas estas coisas: capas, títulos, etc. Nunca pensara nisso antes.
Certamente não pensara nisso quando levara para casa, da Cruz Vermelha, o primeiro romance de
Jack (não o primeiro escrito por ele, mas o primeiro que ela lera).
Eve, que lia muito desde a infância e avidamente, mesmo que a seleção não fosse particularmente
ampla, sentia-se cansada naquele dia, um dos poucos que tinha passado na loja nos últimos seis
meses. Era uma sexta-feira e o fim de semana desenhava-se longo e solitário à sua frente, mas ela
não queria gastá-lo na companhia de uma outra mulher, fictícia, infeliz no amor ou a lutar
airosamente com a vida. Queria uma companhia com energia, uma história em que não tivesse de
investir muito esforço ou que a fizesse chorar. Já tinha tirado dois livros de bolso da prateleira
«Livros», mas ambos estavam muito maltratados e a exsudar o cheiro leve e doentio a mofo, e já
sabia que nenhum deles a iria entusiasmar.
Foi então que uma mulher, desgrenhada mas atraente, apareceu à porta da loja e disse em voz
alta: – Fizemos uma arrumação geral! – Como se fosse uma declaração algo cómica. Deixou cair
uma pilha de livros e um saco de plástico a abarrotar de bugigangas no chão e saiu a correr porque
tinha o carro parado em segunda fila.
Olhando para ela e aceitando a doação com um pequeno sorriso, Eve saiu de trás do balcão para
recolher os objetos e pensou: é uma mulher casada; com um marido e uma família barulhenta e,
provavelmente, um cão. Era fácil imaginar a mulher a queixar-se de todos eles, com aquele género
de prazer alegre que as queixas de pessoas que não têm de que se queixar está sempre infundido.
Pegou no livro de Jack do cimo da pilha de coisas que a mulher já não queria e segurou-o contra o
peito, fechando as duas mãos, enquanto observava o carro a afastar-se, como se quisesse apanhar
um pouco daquela diligência alegre. Depois meteu-o na carteira e, obedientemente, colocou uma
libra na caixa registadora para cobrir o seu custo.
Tinha lido o Cartas Mortíferas quase de uma assentada, permitindo-se o grande luxo de dois
capítulos no banho, uma pequena desobediência, o tipo de coisa que Virginia a teria repreendido
por fazer, apesar de todas as suas autoindulgências. Depois sentara-se na cama, as costas apoiadas
em duas almofadas, enquanto o herói de Jack, Harry Gordon, um detetive de humor cáustico com um
paladar gourmet e talento para a observação se digladiava com uma sogra cruel, uma ex-mulher
suicida, as forças tradicionais da Lei e a sua consciência ao longo de trezentas páginas.
A princípio lera com rapidez, como que agarrada a um veículo em movimento, levada pelo ritmo
da trama. Mas depois abrandara, de propósito, para apreciar a escrita, o humor nas frases breves,
as descrições evocativas das refeições e dos cenários. Sentira o calor quando havia calor, e o medo
quando havia medo, e a solidão que estava subjacente na história que saía das páginas. Tinha
conseguido fazer o que as boas histórias sempre conseguiam: fazê-la esquecer-se dela própria.
Eve pousou o copo e pegou no Zona de Sal da mesinha ao lado do sofá. Na contracapa havia uma
fotografia de um homem, nos seus trintas, talvez, um homem robusto e bem-parecido, vestindo uma
camisa azul ligeiramente aberta no pescoço e calças de sarja. Tinha o cabelo castanho-claro, um
sorriso relaxado e olhos da cor de um céu primaveril, com rugas nos cantos. Estava bronzeado. Já
naquela altura parecia tão confortável na própria pele como um velho Labrador, dez anos antes de
ela ter ouvido falar dele. Jack. O seu Jack.
– Afasta isso se estiver no teu caminho, mãe. É do Ollie.
Eve apressou-se a pousar o livro. – Jackson Cooper – disse, demorando-se no nome, como se
fossem palavras estrangeiras que tivesse o cuidado de pronunciar corretamente.
– Jackson Cooper? – repetiu Ollie, entrando na sala e sentando-se com uma bebida. – A série do
Harry Gordon. Fizeram filmes a partir dos livros.
– Filmes?
– São filmes de gajos. Para tipos brutos e mulheres nervosas – Izzy explicou à mãe.
– Tu gostaste do último – contestou Ollie.
– Não gostei nada – respondeu Izzy, tentando arranjar posição no sofá. Soltou um pequeno
resmungo como se as almofadas tivessem a intenção de a irritar.
Ollie despenteou-lhe o cabelo e depois alisou-lho novamente, invadindo temporária mas
suavemente aquela fina carapaça.
– Gostaste, sim – insistiu ele.
Os dois riram-se. Uma madeixa de Izzy, que ficara fora do lugar, ainda se agarrava ao seu rosto.
Eve ficou contente ao ver que ela não a retirou. Sentia-se emocionada por testemunhar um momento
tão alegre entre eles. Tinham ido lá passar a noite para que Izzy pudesse discutir os planos do
casamento com ela. Eve não estava muito entusiasmada.
Ollie, o hóspede adicional, um amortecedor entre as duas mulheres, deixou-se cair numa
poltrona, todo ele charme descontraído e desalinho cativante, e disse: – Estes palitos de queijo são
fantásticos, Mrs. P. Devia receber um prémio.
Eve sorriu. Pelo menos a visita deles dava-lhe a oportunidade de ter para quem cozinhar, algum
propósito. A casa não suportava mais a sua esmerada domesticidade; já estava muito bem decorada.
Tinha uma estufa cheia de mobiliário Lloyd Loom recém-pintado, um armário de roupa branca
perfeitamente organizado e uma despensa repleta de compotas e conservas. Não havia um grão de
pó nos abajures de seda, as revistas pousadas nas otomanas estavam simetricamente empilhadas e
as pratas polidas, embrulhadas e rotuladas no aparador de pau-rosa. A mesa de jantar jorgiana que,
com as abas abertas, sentava confortavelmente doze pessoas, brilhava com um esplendor vigilante.
A casa de Eve era uma perfeita casa de família, mas sem família.
Ela ofereceu a Ollie um mosaico requintado de hors d’oeuvres e ele pegou delicadamente numa
tarte de tomate em miniatura com dois dedos e segurou-a contra a luz.
– É como uma joia – disse. Em seguida, atirou-a ao ar e apanhou-a com a boca, como um
rapazito, o cabelo castanho aos caracóis a precisar de um corte.
Ele é bem-parecido, pensou Eve, e amável. Virginia, que vira Ollie duas vezes antes de morrer,
havia-o declarado «manejável». Fora um elogio, mas Eve captara a crítica velada, não tanto pela
escolha, mas mais pelas suas habilidades de manobrar os homens. Teria Simon sido manejável? Ou
amável? Não se lembrava. Ficara tão ofuscada pelo romance que não tinha prestado muita atenção à
sua personalidade. E então, num ápice, ele fora-se embora. Tentou não pensar nisso.
– Como chamas à tua mãe, Ollie? – perguntou. A perspetiva de ser chamada Mrs. P. para o resto
da vida não lhe agradava minimamente.
Ollie riu-se. – Eu trato-a por mãe, mas ela fica furiosa. Ela gostava que os filhos a tratassem por
Adele e que fingíssemos ser sobrinho e sobrinha. Ela consegue enganar toda a gente quando diz que
tem trinta e nove anos, exceto quando eu e a Cassie estamos com ela. – Cassandra era irmã de
Ollie, dois anos mais velha e pintora. – A Cassie faz-lhe a vontade, é claro. Eu sou a ovelha negra.
O ouvido apurado de Eve para as nuances captou de imediato o tom de insegurança. – Ela deve
ter muito orgulho de ti – disse, consciente de a frase ser um chavão sem sentido. A sua própria mãe
nunca sentira orgulho dela.
– Oh, eu não teria tanta certeza. Ela acha o meu trabalho muito chato. O mundo da banca
empresarial não é exatamente a onda dela. A Cassie é a única que está à altura das expectativas
dela.
Eve queria tranquilizá-lo, transmitir algo amável e encorajador, mas não queria dizer mais nada
que não fosse sincero. Ela própria tinha ouvido comentários suficientes desse género de pessoas
bem-intencionadas, pais de colegas de escola, até do próprio marido. As pessoas são extremamente
avessas a aceitar a ideia de que uma mãe, logo uma mãe, não seja capaz de amar um filho, mas Eve
sabia que era possível e, naquele momento, sentindo-se cheia de compaixão, mais, de empatia por
Ollie, ficou perplexa por não pensar nos sentimentos da sua própria mãe em relação a ela, algo que
já aprendera a aceitar, embora nunca tivesse compreendido completamente, mas na sua própria
relação com Izzy.
Será que amava Izzy? Lembrou-se do seu nascimento e em como não estava de todo preparada,
do terror que sentira quando aquele bebé a gritar lhe tinha sido colocado nos braços. As
dificuldades na amamentação e as noites sem alegria e sem dormir. Mais tarde lera sobre depressão
pós-parto e tivera a certeza de que era disso que tinha sofrido. Ninguém lhe falara no assunto na
altura.
Eve pensou sobre a forma como Gwen lhe falara das visitas que fazia às filhas após os bebés
delas, netos de Gwen, terem nascido. Como contava cheia de entusiasmo a Eve que limpava o pó ou
separava a roupa para lavar enquanto a recém-mamã aproveitava o raro momento de descanso. Que
deixara um guisado ou um pastelão no frigorífico. Eve sabia que não era esse tipo de mãe para Izzy.
Seria esse o desejo de Izzy?
Ollie interrompeu-lhe os pensamentos. – Espero que a conheça antes do casamento. De vez em
quando ela aparece para fazer compras – disse, com uma risada suave.
Eve perguntou-se o que Adele acharia de Izzy quando se conhecessem. Parecia-lhe possível que
ela não aprovasse a escolha do filho. A sua filha tinha a personalidade forte da avó, mas era
convencional. Como eu, pensou Eve, estranhamente contente. Sorriu para Ollie, dando-se conta pela
primeira vez que Izzy seria provavelmente um navio robusto no mar instável da vida dele. Esperava
que a relação deles desse certo. E também esperava que quando deixasse de funcionar, ninguém
saísse muito magoado.

– Mas, mãezinha, claro que tens de vir – disse Izzy na manhã seguinte, servindo-se de chá. Ela
estava encostada ao fogão Aga, que Eve mantinha aceso durante todo o ano. Virou-se, com a caneca
cheia na mão, e ergueu-a até ao nível dos olhos, observando Eve por cima do rebordo com uma
expressão de quem pretendia enfraquecer o inimigo.
– A viagem deve ser de mais de cento e sessenta quilómetros – contrapôs Eve.
– Cento e trinta e oito. Partimos daqui a meia hora e voltamos para o jantar. Amanhã, o Ollie e eu
levantamo-nos cedo e regressamos a Londres. Se quiseres, podes preparar-nos um pequeno-almoço
género piquenique, para levarmos na viagem. Mete uns destes. – Eve tinha feito rolos de canela, e
Izzy fez um gesto para o que tinha na mão.
– Izzy, tu e o Ollie são perfeitamente capazes de escolher o vosso local de casamento. Não
precisam de mim para isso.
– Pois não, mãe. Mas é isso que as mães fazem, não é? – Uma pequena mostra de emoções que
ela decidiu oferecer. – A Gin-gin teria gostado de vir – disse. Mas a sua melhor provocação nunca
conseguia o tipo de reação de Eve que teria sido capaz de instigar na avó.
Eve, limpando os restos de canela e migalhas do balcão para a palma da mão, respondeu
simplesmente: – Sim, calculo que sim. – Mas ela sabia que o fraco argumento a fizera perder.

O dia prometia calor. Eve vestiu uma lingerie simples, de algodão branco e renda, e um vestido
azul-claro com um decote quadrado e sem mangas. Os seus braços eram magros e bronzeados pela
jardinagem que ainda fazia. O que ela mais gostava de fazer, arrancar as ervas daninhas, regar e
podar, era trabalho leve. Deixava o resto para Mr. Feltnam, que trabalhava para ela há anos e não
precisava de receber instruções, algo que era um alívio para Eve, pois ensinar os outros nunca fora
o seu forte.
Usara aquele vestido poucas vezes e, ao correr o fecho nas costas, em frente ao espelho de corpo
inteiro no pequeno quarto de vestir retangular adjacente ao quarto, mirou-se com ar crítico. Em
seguida, penteou o cabelo com uma escova de prata, herdada de uma avó do lado do pai que nunca
havia conhecido, mas que, nas duas fotos que existiam dela, tinha uma semelhança impressionante
com Eve: delgada, de olhos amendoados, com maçãs do rosto altas e pescoço longo.
O vestido combinava com ela, via que sim, mas não tinha a certeza se lhe conferia autoridade, o
tipo de autoridade que ela associava às mães de noivas. Abriu o fecho e despiu-o, deixando-o
deslizar pelas pernas até ao chão. Voltou a colocá-lo no cabide acolchoado e tirou de outro uma
saia branca que combinou com um conjunto de camisola e casaco de malha cor de limão e um colar
duplo de pérolas. Não gostava particularmente de pérolas, mas elas ajudavam um pouco no sentido
de alcançar a aparência que ambicionava: a de pessoa capaz.

A mulher elegante de fato cujo trabalho era fazer-lhes a visita guiada a Hadley Hall e salientar
detalhes como quais os melhores lugares para receber os convidados, para tirar fotografias e muitas
outras coisas com que Izzy parecia tão familiarizada, era formidável, mas nada comparável a Izzy,
notou Eve.
A certa altura, Ollie piscou de forma teatral a Eve e disse: – Ainda bem que não cabe a nós
decidir, Mrs. P., senão o resultado era uma tenda no relvado com peixe e batatas fritas.
Eve sorriu (ele era realmente cativante) e respondeu: – Eu gosto muito de peixe e batatas fritas. –
Sentia-se aliviada. A viagem até lá, com música no carro e uma paragem para tomar café, por sinal
horrível, e comprar pacotes de rebuçados de menta fora tranquila, agradável até. Estava
esperançosa.
– Ollie, estás a prestar atenção? – repreendeu Izzy num tom seco.
– Sim, minha amada, a cada palavra.

Na viagem de regresso pararam numa aldeia próxima. Izzy queria ver pousadas para os amigos
que ficariam após a boda. Eve ficou espantada com a quantidade de pormenores em que ela já tinha
pensado. Ainda faltavam seis meses. Era para ser um casamento de inverno.
– Na neve – dissera-lhe Izzy ao telefone.
– Não sei se podes contar com neve – sugeriu Eve timidamente. Izzy, já de si intimidante, ficava
ainda pior quando se tratava dos planos de casamento.
– Bem, não posso propriamente contar com sol em julho – respondeu ela. Haviam tido duas
semanas de chuva. Enquanto falavam, lá fora, no Dorset, a chuva caía a potes, por isso Eve
concordou com a filha e escreveu subtilmente numa página da pasta do casamento: encomendar
neve.
Agora Izzy pousava a volumosa pasta de argolas em cima da mesa de madeira com bancos
corridos no exterior do pub da aldeia. Estava um dia lindo, o céu suavizado por nuvens de algodão:
um dia inglês. E o pub, tal como os arredores, era perfeito como um postal, com o seu pequeno e
bonito jardim. Ollie foi lá dentro comprar as bebidas e Izzy, sentando-se depois de tomar algumas
notas na secção «Alojamento», disse: – Achas que deveria trazer o papá aqui antes de reservar?
Eve ficou chocada de mais para responder.
Izzy, embora insensível por natureza, talvez se tenha apercebido, porque quando continuou, a voz
saiu-lhe num tom algo apologético. – Afinal de contas é ele que vai pagar.
– Ai vai? – respondeu Eve num tom débil, enquanto se inclinava e mexia na carteira debaixo do
banco, tentando ganhar tempo.
– Pois claro que vai.
– Falaste com ele?
Houve uma pausa antes de Izzy responder: – Telefonei-lhe a dizer que tinha ficado noiva.
Eve ficou a ver uma abelha gorda passear-se ao longo do rebordo da mesa.
– Achei que ele podia querer saber – terminou Izzy. O tom de voz deixava transparecer um certo
desafio. Eve não tinha a certeza a quem era destinado.
– E ele... quis? – ela perguntou em voz baixa.
– Oh, sim! Ficou encantado, absolutamente encantado.
– Que bom. – Eve sentiu a respiração acelerar.
– Sim, e disse que me ajudava com as despesas. Foi por isso que pensei que ele pode querer ver
Hadley Hall. Percebes... antes do dia.
Pela primeira vez, Eve deu-se conta de que Simon poderia estar no casamento. Com a mulher.
Não a mesma pela qual a tinha deixado; já havia mais uma desde então. Mas lá estaria, com a
mulher... Simon, o pai, o anfitrião; uma novidade e uma estrela aos olhos de Izzy. E ela, Eve, seria o
que sempre fora: o pano de fundo. Sentiu-se esmagada. O grande e escondido bloco de pedra do
passado havia-se soltado novamente e abatia-se sobre ela.
– Trouxe-lhe uma sidra, Mrs. P. – disse Ollie, ao chegar com três copos apertados alegremente
entre as mãos.
Eve limitou-se a assentir com a cabeça em concordância e não respondeu. Todo o contentamento
do dia havia-se esfumado. Tentou recompor-se, mas não parava de imaginar Simon alinhado para
receber os convidados, maravilhoso no seu fato de cerimónia. Ele sempre fora muito atraente. Ela
fora uma idiota por não ter pensado nisso antes. Uma completa e total idiota.
Levantou-se de repente, com a intenção de se refugiar na casa de banho, mas esbarrou no copo,
vertendo sidra na saia.
– Oh, mãezinha! – exclamou Izzy, a tensão apertando-lhe a voz, que saiu como um guincho.
Nesse momento um grande grupo de pessoas de ar elegante e bem vestidas chegou ao jardim. O
barulho do vidro e a exclamação de Izzy chamaram a sua atenção. Eve, tentando desesperadamente
limpar a bainha da saia, sentia todos os olhos postos nela. O sangue subiu-lhe ao rosto e sentiu as
têmporas a escaldar. Inclinando-se para a frente para se proteger da visão dos outros, percebeu que
não era capaz de ver claramente. Consciente de que uma ária caótica de vozes dissonantes e
atormentadoras se agigantava no seu cérebro, continuou a abanar freneticamente o tecido leve ao
nível dos joelhos. Até deixar de ser capaz de recuperar o fôlego, completamente incapaz. Sabia que
ia desmaiar, que ia cair no relvado daquele jardim subitamente apinhado, à frente de todos. Um
curto lamento escapou-se-lhe dos lábios, um ruído alto e selvagem, como o grito distante de uma
ave marítima.
– Mãe? Mãezinha?!
– Mrs. P.?
Eve ouvia as vozes, mas não era capaz de responder.
– Eu sou médico – disse uma voz de homem. – É a sua mãe, não é? Como é que ela se chama? –
Era um homem de meia-idade que usava uma camisa de golfe. Izzy deixou que ele a afastasse de
Eve, que tinha caído com uma perna dobrada para trás, parecendo as silhuetas desenhadas a giz dos
velhos filmes policiais da televisão.
– O nome dela é Eve. Mãe...?
A respiração de Eve era agora incontrolável; ela parecia estar a sufocar, e tentava
desesperadamente respirar.
– Eve? Chamo-me Matt. Sou médico. Consegue ouvir-me?
Conseguia. Virou o rosto para ele com olhos aflitos.

Talvez ela não tivesse a pele clara. Talvez fosse morena e rechonchuda. Tudo nela era
reconfortante. O nome simples, as receitas, a maneira como escrevia. Escrevia bem, de forma clara
e direta, mas por vezes quase lírica. A sua amiga gastronómica. Às vezes parecia-lhe a sua melhor
amiga. O carneiro resulta bem com ameixas, dissera ela.
Gostei muito de saber das ameixas, escreveu ele. Eve tinha-lhe falado da árvore do seu jardim.
Via-a da janela da cozinha, marcando-lhe as estações do ano. Não suportava o desperdício, dissera
ela, e talvez o amor à cozinha tivesse começado ali. Nunca gostara de ver a fruta, a fruta bela,
madura e esplêndida, de aveludado suave, caída e abandonada a apodrecer. Queria fazer alguma
coisa daquilo. Gostava de ver os frascos de compotas e conservas a forrarem-lhe a despensa.
Sentia um verdadeiro prazer nisso, na sua regularidade. E, claro, o sabor. Quanto mais depressa
fosse cozinhada após a apanha, melhor era o sabor. A intensidade do sabor perdia-se tão depressa.
Percebo o que quer dizer acerca do efeito da proximidade no sabor, escreveu ele:

Acontece o mesmo com o peixe. Eu costumava ir a Nantucket no Ano Novo, pouco antes
do último mergulho. Pouco antes de a água ficar demasiado fria para os mergulhadores. Ia
lá só para comer vieiras. As últimas são tão saborosas e límpidas ao mesmo tempo.

Já passava da meia-noite. Ele jantara tranquilamente sozinho num pequeno restaurante italiano na
cidade vizinha; comera esparguete com amêijoas, bebera uma Fernet Branca com o proprietário e,
ao regressar a casa por volta das dez, sentira vontade de trabalhar. Era uma sensação boa, que
aproveitou. Mas acabou por não fazer nada. Ligou o computador, levantou o ecrã e levou a mão ao
teclado tão familiar, mas não no seu estilo usual, rápido, pesado e ritmado, típico de um escritor
sólido de quarenta e nove anos de idade e muito bem-sucedido. Não no seu estilo habitual. Mais
como uma criança a pegar num caranguejo. Como se o perigo espreitasse. Escreveu algumas
palavras e parou. Ficou imóvel por um momento, lutando contra a branca. Então, sacudiu os dedos
de propósito e decidiu que era apenas tarde, estava cansado, e releu a carta de Eve sobre as
ameixas. Era a sua preferida até ao momento, a mais longa.
Era curioso como aquelas missivas de Eve, tão recentes, se estavam rapidamente a tornar parte
do tecido da sua vida. Quando as lia sentia-se ele próprio. A melhor versão de si próprio. Detetou
na folha de cabeçalho cor de marfim o leve aroma fresco de ervas.
Queria solidificar a amizade. Aprofundá-la. Por isso, à uma da manhã, escreveu:

Eu sou melhor na cozinha do que na maioria das outras coisas. Na escrita sou capaz de
cruzar a linha da meta razoavelmente bem, mas não num estilo particular. No entanto, com
pessoas tenho tendência para tropeçar no primeiro obstáculo. E quando digo pessoas,
quero dizer mulheres. Só agora começo a tomar consciência de como sempre falho com
elas. Esta tomada de consciência talvez sirva para corrigir um pouco da minha dívida para
com o seu sexo.

Assinou, levou a carta e o copo vazio para a cozinha e foi-se deitar.

– A boa notícia é que o seu coração está bem. – A médica sorriu para Eve ao dizê-lo. Tinha uma
pele cor de caramelo e uma delicada corrente de ouro ao pescoço, que brilhou contra o
revestimento azul pardo municipal do quarto do hospital.
– Sim, obrigada – disse Eve, esforçando-se ao máximo para retribuir o sorriso. O que ela
pensava era «Se fosse o meu coração, pelo menos alguma coisa poderia ser feita acerca disso».
– Mas de qualquer maneira deve consultar o seu médico de família o quanto antes. Ele certamente
quererá mandar fazer mais exames para descobrir o que é a causa dos seus sintomas.
«O que é a causa?», pensou Eve, repetindo mentalmente a ligeira incorreção frásica. «O que é a
causa?»
– Sim – respondeu.
– Hoje fizemos apenas um eletrocardiograma – continuou a médica. – Isso significa que apenas
sabemos que não há perigo imediato de um ataque cardíaco. Mas, para já, não tem outros sintomas
de problemas cardíacos. Os pulmões também estão limpos. Sente algum mal-estar neste momento?
Eve queria gritar «Sim! Um extremo mal-estar», mas limitou-se a responder: – Não.
A médica olhou-a com ar compreensivo. – A ansiedade pode, por vezes, dar origem a este tipo de
sintomas. O seu médico pode ajudá-la relativamente a isso. Há muita coisa que pode ser feita –
disse ela.
– Sim, sim, obrigada. – Eve levantou-se para sair, pegando na carteira, de repente terrivelmente
pesada, preparando-se para enfrentar Izzy e Ollie, que a esperavam lá fora. A médica, aproveitando
a deixa, levantou-se também e acompanhou-a até à porta.
– Eu estou bem. Só não tenho dormido em condições – Eve explicou no corredor, onde Ollie e
Izzy se encontravam agora de pé junto às cadeiras de plástico rígido. Ao levantar-se, Ollie arrastara
a sua, deixando marcas no chão. – E talvez estivesse também um pouco desidratada.
– Graças a Deus! – exclamou Izzy, para logo depois dizer: – Agora vamos apanhar um trânsito
horrível no caminho de regresso.

Jack desejava não ter escrito aquelas coisas a Eve; à luz do dia soavam pretensiosas. Mas agora
era tarde de mais. Rick tinha visto a carta endereçada pousada na mesa da cozinha e pusera-a no
correio. O Rick era um génio a lavar coisas e a expedir coisas pelo correio.
Raios, pensou Jack, assim que percebeu que não havia volta a dar; era capaz de estragar tudo com
uma mulher mesmo sem a conhecer. Sentia-se irracionalmente deprimido com a possibilidade de
dar cabo da sua relação com Eve. Havia algo nela que fazia com que quisesse agradar-lhe. Não se
sentia assim há muito tempo; nos últimos quinze anos tinham sido as mulheres a tentar agradar-lhe a
ele. Poucas o tinham conseguido.
Decidiu ir ao Hatty’s para se animar e já estava pronto para sair quando ouviu passos na varanda
da frente. Estacou, prestes a esconder-se, contando que fosse Lisa; então, envergonhado, decidiu ter
uma atitude adulta e falar com ela. Respirou fundo e foi à porta.
– Desculpa, estavas a escrever? Estás a escrever, não é?
– Não – respondeu Jack, apanhado de surpresa.
– Eu vim pedir desculpa – disse Adrienne.
– Pedir desculpa?
– Sim. Senti-me pessimamente depois da minha visita. Pôr-me a fazer-te um interrogatório sobre
a tua escrita. A verdade é que eu sei que isso não se faz. Sei que nunca se pergunta a um artista
sobre o seu trabalho. Foi muito indiscreto da minha parte.
Jack ficou demasiado espantado com aquela declaração para responder. Precisou de uns
momentos para recuperar.
– Por isso – continuou ela com toda a serenidade – decidi vir cá pedir desculpa.
Jack desviou rapidamente o olhar na direção de um bengaleiro de ferro fundido que estava ao
lado da porta e que continha uma pequena coleção de bengalas excêntricas e uma sombrinha de
papel japonesa. Nunca gostara dele.
– Se não me falha a memória – disse ele, olhando-a novamente –, eu é que fui o idiota.
Ela não respondeu, apenas o encarou com um leve sorriso. Era ainda mais atraente do que ele se
lembrava.
– Vieste com amigas? – perguntou ele, olhando para além dela e pensando que ia ver um par de
mulheres à espera da amiga, naquela pose típica das jovens, anca para o lado e cabelo preso com
os óculos escuros. Não havia nenhuma.
– Não, vim de carro de propósito para te ver – respondeu ela, virando-se ligeiramente e
indicando com a mão um jipe preto estacionado junto ao passeio.
Jack não sabia o que dizer, por isso sugeriu que ela o acompanhasse num passeio a pé até à
cidade para um café e ela aceitou.
Pelo caminho falaram sobre Dex, o assunto que ambos tinham em comum.
– Fico feliz por ele – disse Adrienne. – É tão talentoso. – A segunda audição tinha corrido da
maneira que Dex esperava.
– Ele teve um cheirinho deste tipo de sucesso há cerca de dez anos, mas, por algum motivo,
desvaneceu-se – contou Jack, pensando no Dex dessa altura. Sempre fora o mesmo com ele, com
Jack. Mas com outras pessoas, quando os primeiros grandes papéis começaram a chegar, e com eles
a notoriedade, ele emanava uma intensidade viva. Uma energia palpável. Ao falar com ele esta
semana ao telefone, a ouvi-lo contar as novidades com o som de um bar ou uma festa em pano de
fundo, Jack detetara novamente essa energia. Sentia inveja disso.
– Ele nunca parou de trabalhar – disse. – Insistiu sempre. – Começava agora a perceber a
verdade do que dizia.
Seguiu-se um breve silêncio enquanto caminhavam, sentindo o passeio quente sob os pés e o sol
na cabeça, passando por meia dúzia de casas dispersas com telhado de ripas, dois edifícios
históricos em tijolo, nos quais havia bandeiras hasteadas, e um parque. Mais adiante passaram sob
os toldos das delicadas lojas coloniais do centro, repletas de barcos de madeira, camisolas às
riscas e fatos de banho elaborados.
– Adoro o mar – disse Adrienne a certa altura.
– Eu também. Mas gostava mais deste pequeno pedaço quando era menos embonecado.
Ela soltou uma risada e Jack sentiu o ego inchar. A necessidade de prender a atenção de uma
mulher... a atenção de uma mulher bonita. Velhos hábitos.
– Hoje em dia tudo parece demasiado perfeito – disse ele. – Começa a parecer artificial.
Ambos pararam quando uma senhora de idade, muito ágil e extremamente bronzeada lhes
bloqueou o caminho. Estava inclinada para a frente, um saco de plástico a proteger-lhe as mãos e os
anéis. Perto dela um bichon frisé esperava, a arfar; a língua era da cor de rebuçado de morango, a
mesma cor do batom da dona.
– Não há lixo nas ruas – comentou Adrienne depois de passarem.
– Não, mantêm-no todo dentro de casa.

A Hatty fazia o café da maneira que Jack gostava, sem nada que Jack não conseguisse identificar.
Gostava de poder pedir um café e saber que viria numa chávena de porcelana grossa, que cheirava
a café e que tinha aspeto de café. Quando ela o via chegar, servia-o do café que fazia para ela na
cozinha, diretamente do recipiente de vidro, e entregava-lho com um largo sorriso. – E a senhora, o
que deseja? – perguntou ela.
– Oh, eu também vou tomar um café – respondeu Adrienne.
Jack ficou satisfeito. Observou-a a levar a chávena à boca e a beber.
– Foste uma daquelas crianças apaixonadas por livros, que sempre quiseram escrever, Jack? –
perguntou ela, e logo de seguida uma leve sombra cruzou-lhe a expressão, preocupação de se ter
desviado mais uma vez para território desconfortável.
Jack sentiu-se envergonhado por perceber que a fazia sentir-se assim. Não suportava a presunção
e, embora houvesse certos rituais que respeitava para proteger a sua vida profissional, não era um
escritor que se considerava um artista. Poder-se-ia dizer até que a sua presunção estava em tentar
fingir o contrário. Tentava, talvez até em excesso, dar a impressão de ser um simples trabalhador.
Um comerciante, ou um professor do ensino secundário, como o pai.
– Na verdade, eu queria ser jornalista – disse ele. – Achava que ia descobrir alguma notícia
sobre um grande negócio ou sobre o governo que iria mudar o mundo.
– E descobriste?
– A maior parte do meu trabalho consistia em fazer a cobertura de desporto. E de pequenos
crimes. E de exposições caninas.
– Então começaste a escrever ficção?
– Sim, mas não muito bem. As exposições caninas ainda não me tinham arrancado completamente
a nobreza de espírito, então despedi-me do jornal, sentei-me e matutei, roí uma caneta Bic e deitei
cá para fora um monte de balelas armadas em Joyce. E então, quando isso não atraiu a atenção da
comunidade literária internacional, passei a balelas armadas em Hemingway.
Ela riu-se.
– A minha pobre mulher foi obrigada a pagar as contas e a aturar todos os meus clichés e
vaidade. Acabou por ganhar juízo e deixou-me por um pediatra, um tipo realmente sensato. Vivem
no Connecticut. Felizes para sempre. Três crianças e um belveder. Assim, pelo menos, não preciso
de me sentir muito mal em relação a isso.
– A Marnie foi a tua segunda mulher, então?
Jack interrompeu o movimento de levar o café aos lábios.
– O Dex falou-me dela – explicou Adrienne.
– A Marnie foi a minha segunda mulher... dois falhanços. Aparentemente, não reúno as qualidades
necessárias para marido.
– Tens filhos?
– Não. Provavelmente foi melhor assim. Acho que também não teria as qualidades necessárias
como pai, e essa seria uma culpa bem mais difícil de carregar.
Assim que o disse arrependeu-se. Era um tom demasiado sério para uma conversa de café com
uma jovem que era praticamente uma estranha. Preparou-se para algum comentário delicodoce,
típico de muitas mulheres, como «Oh, quanto a isso não sei...», uma dessas meias respostas
coquetes. Todavia, não foi isso que recebeu.
– Sim – disse ela muito séria. – Concordo.

Já em casa, despediu-se de Adrienne cá fora. A despedida foi um pouco tensa, de pé junto ao


carro. Então, mesmo antes de dar a volta ao capot para entrar para o lado do condutor, ela esticou-
se e deu-lhe um beijo leve e singelo no rosto. – Até à vista, Jack – disse por cima do ombro. – Fico
feliz por ter vindo.
– Eu também – disse ele.
CAPÍTULO 4

J ack ainda se encontrava junto ao passeio quando Lisa passou no seu descapotável, com o
tejadilho aberto, e virou para a entrada da sua garagem com uma guinada imprudente. Foi difícil
a Jack não chegar à conclusão de que a manobra, assim como o ar descontraído com que saiu do
carro e fechou a porta com um floreio, não tivesse sido feita com ele em mente. Fora. De qualquer
forma, invadido por um objetivo e um sentido de decência depois da visita de Adrienne, atravessou
a rua e o relvado da casa dela e chamou-a.
– Lisa!
Ela virou-se imediatamente, os saltos desmentindo a expressão de indiferença no rosto.
– Jack? – Ela trazia um saco de compras de uma boutique da cidade. Jack reconheceu o nome,
comprara lá presentes para Marnie algumas vezes, cujo rosto se iluminava sempre que via o saco.
Agora Lisa erguia-o à frente do corpo, como um escudo.
– Lisa, eu queria pedir-te desculpa. Não devia ter falado contigo daquela maneira – disse Jack,
alcançando-a já na entrada de casa.
– Pois não, não devias – disse ela.
Ela inclinou a cabeça para trás para lhe dirigir um olhar zangado, parecendo querer espremer a
coisa, pensou ele, extrair dele uma desculpa ainda mais elaborada. Preparou-se para isso. Mas
Lisa, muito consciente de que Jackson Cooper era um homem atraente, de posses e solteiro, e ainda
por cima um homem de quem ela realmente gostava (uma espécie rara que ela procurava
incessantemente), sorriu, baixando o saco de compras para o peito ser novamente o centro das
atenções, e disse num tom de aceitação: – Nós bebemos de mais.
Naquele momento ela mostrou-se mais bonita e mais real do que alguma vez fora, pensou Jack.
– Muito obrigado, Lisa – respondeu ele. «Vamos ser só amigos» ficou implícito nas palavras.
Percebendo isso, e com raiva de si mesma por estar a ignorá-lo, Lisa disse: – Queres entrar? Está
a ficar muito calor e pretendo passar a tarde na piscina. – Uma última e subtil tentativa de sedução.
A casa de Jack não tinha piscina. Os proprietários anteriores, um casal muito idoso que já tinha
cada qual a sua enfermeira sueca na altura em que lha venderam, não aprovava banhos de piscina.
Atribuíam a sua longevidade, noventa e seis, ele, e noventa e três, ela, aos banhos no mar, descendo
em passo instável para um mergulho matutino todos os dias, de março a outubro, todos os anos,
desde que compraram a casa em 1956. Jack pensou neles, visualizando os seus pequenos corpos
enrugados nos fatos de banho pretos, ela com uma touca de borracha na cabeça, ambos com toalhas
à volta da cintura, abrindo caminho pela areia. Que inferno, pensou, ainda não queria ser velho.
«OK, está bem» ouviu-se mentalmente a responder. Mas a voz não o traiu. – Obrigado, mas não
posso – disse com toda a delicadeza possível.
Lisa, reconhecendo a derrota na gentileza masculina, voltou a baixar o saco das compras, os seios
e as esperanças e resignou-se a mais uma longa noite de telefonemas frívolos e a folhear revistas.

Cara Eve,
Sinto que posso ter ultrapassado algum tipo de limite na nossa amizade. Não me
respondeu desde que mencionei a minha vida pessoal e pergunto-me se prefere manter as
nossas conversas (que é como eu encaro a nossa troca de correspondência) no tema que nos
apresentou: comida. Por outro lado, esta conjetura pode ser narcisismo puro (sou propenso
a isso) e a sua falta de resposta pode não ter nada a ver comigo.
Por isso, depois de ter ponderado as duas opções, decidi arriscar: gostaria de se
encontrar comigo? A minha sugestão é um local neutro... Paris. Podíamos lá passar uns
dias a comer. Talvez em outubro, depois de as multidões desaparecerem... e de os
americanos se irem embora. Não se preocupe com os detalhes, bilhetes, etc. Se confiar em
mim, eu trato de tudo. (Naturalmente, a Eve tratará do seu alojamento.) Poderíamos
encontrar-nos em algum lugar maravilhosamente iluminado e incrivelmente aromático.
Serei o homem do panamá.
Jack

Eve estacionou o carro no parque de estacionamento contíguo ao novo centro comercial. O centro
comercial já tinha cerca de oito anos, mas ainda era conhecido como «novo» pela maioria das
pessoas de Sudbury e, provavelmente, continuaria a ser até que houvesse outro novo. Teria
preferido vir de autocarro, não porque gostasse de andar de autocarro (nem pensar, Eve tinha
aversão a qualquer tipo de transporte público), mas porque lhe parecia um pouco sem tato trabalhar
numa loja de caridade e conduzir um Bentley.
O Bentley tinha sido comprado pela mãe alguns anos antes e Eve herdara-o e mantivera-o,
vendendo o seu pequeno e querido Mitsubishi por insistência de Izzy. Izzy não queria desfazer-se
de nada que pertencera à avó.
Eve teve de dar duas voltas ao parque de estacionamento até encontrar um lugar onde conseguisse
fazer a manobra com facilidade e depois atravessou a ponte a pé e desceu a High Street até à loja
da Cruz Vermelha.
– Olá, desaparecida – saudou Geraldine. Era verdade que, ao longo dos últimos doze meses, a
participação de Eve tinha sido pouco frequente e sentiu-se mal por isso.
– Desculpa, eu sei que não tenho sido grande ajuda, Geraldine – disse ela.
– Não te preocupes – disse Geraldine alegremente. Ela vestia um conjunto extraordinariamente
colorido, várias das peças feitas, aparentemente, por ela, e usava o cabelo caído pelas costas numa
longa e descuidada trança. Dirigiu-lhe um sorriso amplo. Era a pessoa mais feliz que Eve já
conhecera.
– Estás aqui agora – disse ela. – Faço um chá? Acabei de separar estas. – Indicou uma pequena
pilha de roupas de bebé no chão ao lado dela. – Por tamanhos e afins. Uma mulher trouxe-as esta
manhã. Estão todas em perfeitas condições. Olha! – Ela puxou um babygrow do monte e mostrou-
lho.
Eve concordou que parecia imaculado e sugeriu: – Eu faço o chá. Estás com as mãos ocupadas.
Trouxe uns biscoitos de gengibre.
– Que bom!
Eve achou o entusiasmo sincero na voz de Geraldine profundamente comovente. Tomara a
decisão certa ao vir.
– O chá até sabe melhor quando és tu a fazê-lo – disse Geraldine quando Eve reapareceu na sala
com as chávenas.
– Eu trouxe um pouco de chá avulso. Usei-o em vez das saquetas – disse Eve.
– Não é só isso. É o teu toque. Eu nunca tive esse jeito para a cozinha. Se não é preciso uma
tesoura ou um abre-latas, não o consigo cozinhar – disse ela com uma risada.
Eve também se riu, pousando a chávena para ajudar com as roupas de bebé. Já tinham terminado
quando uma mulher entrou com uma menina de cerca de dois anos num carrinho, que dirigiu os
olhitos muito abertos, por trás do copo de bebé, a Eve.
– São todas grandes de mais para ti, macaquinha – disse a mãe, mexendo nas pilhas que
Geraldine e Eve tinham feito. – Mas são bonitas. – Sorrindo para as duas, comentou: – É que eu já
tenho dois na escola. Já fechei a loja.
Eve sorriu para ela. Reparou que tinha pés de galinha nos cantos dos olhos e que o cabelo lhe
escapava do gancho de plástico na parte de trás. Usava calças de ganga e um impermeável azul-
marinho que já vira melhores dias. Foi conduzindo o carrinho, com as pegas vergadas pelo peso
dos sacos de compras, ao longo das prateleiras de roupas, pilhas de livros e bricabraques e
finalmente aproximou-se do balcão com uma T-shirt de criança e dois livros, um infantil em forma
de relógio e o outro de capa mole volumoso. Era um dos livros de Jack.
– O meu namorado gosta destes – disse ela.
No carrinho, a menina tinha adormecido. O copo estava abandonado no colo e a cabecita
descansava encostada à armação de metal. Inclinando-se para pegar no copo e metendo-o num dos
pesados sacos de lona, a mãe perguntou: – São bons?
– São – respondeu Eve. – São muito bons.
Lá fora tinha começado a chuviscar e a mulher puxou a sombrinha do carrinho com força para a
abrir. Depois puxou o próprio capuz para cobrir a cabeça e fez uma careta de desagrado. A pele
dela, sombreada pela cor escura, parecia pálida, como lençóis usados em demasia.
Jackson Cooper vive a cinco horas de avião daqui, num outro universo, pensou Eve.

Eve ficou o dia inteiro na loja e fechou-a na vez de Geraldine, que tinha ensaio do coro às
quintas-feiras e que agradeceu por poder sair mais cedo.
– Dá-me tempo para comer uma lata de baked beans antes de ir – brincou ela.
Eve ficou contente por compensar a falta de assiduidade, mas também queria provar algo a si
mesma. Queria provar que era capaz de enfrentar a vida. Que era capaz de estar fora de casa e
enfrentar a vida. Essa fora a verdadeira razão por que viera.

A loja manteve-se tranquila na última meia hora e Eve gostava da companhia de Geraldine, mas,
mesmo assim, sentiu-se cansada na viagem de regresso a casa. A ideia do casamento e das
responsabilidades inerentes estavam a começar a mantê-la acordada à noite. A viagem a Hadley
Hall tinha sido um fracasso estrondoso e ela sabia que o pior ainda estava para vir. Conduzia
lentamente, ao ritmo normal ditado pelas filas de trânsito do final do dia, mas, no seu peito, uma
pequena, nervosa e errática batida começou a fazer-se sentir, como o agitar da roupa molhada
pendurada no varal num dia ventoso.
Gwen estava à sua espera quando entrou pela porta da cozinha.
– Não gosto de regressar a uma casa vazia – disse ela quando Eve protestou por ela ficar até tão
tarde. Já passava muito das seis. – Fiz uma empada de frango. A minha massa não é tão boa como a
sua, mas está quentinha. Sente-se – disse ela. – Vou pôr a chaleira ao lume.
Apesar da curta ausência, Eve sentia-se como se tivesse estado fora eternidades, por isso
sugeriu: – Não, não, Gwen. Deve haver Chablis na despensa. Vou abrir uma garrafa. Acompanhas-
me num copo?
Gwen pareceu surpreendida e Eve estava ciente de que era um desvio da norma, mas subitamente
isso não a incomodava.
– Por favor, Gwen, só um copo. Eu sei que tens de ir para casa.
Reagindo talvez à profundidade de sentimento na voz de Eve, Gwen concordou e foi buscar o
vinho.
– Não, a sério, deixa-me tratar disso – insistiu Eve. – Senta-te na estufa. O fim de tarde é tão
agradável lá.
Porém, Gwen esperou que Eve abrisse a garrafa e colocou dois copos num pequeno tabuleiro
lacado.
– Oh, Céus! – exclamou Eve ao vê-lo. – Não me deixes levar isso; vou deixá-lo cair. – E desatou
a chorar.
Eve raramente chorara na vida, e as poucas lágrimas que derramara tinham-lhe escapado, fluindo
e não irrompendo. Certa noite, logo depois de Simon a ter deixado, ela vagueara, sem sono, até ao
quarto de Izzy e sentara-se ao lado do berço, na poltrona de amamentação com o encosto em
capitoné, a observar o seu bebé a dormir no escuro sem lhe tocar, e vertera um pequeno rio de
lágrimas. Mas fizera-o em silêncio e com lassidão. Na verdade, quando a ama se aproximara dela,
sobressaltada pela figura em camisa de noite branca, e dissera «Posso ajudá-la, Mrs. Petworth?»,
Eve estava suficientemente recomposta para responder: «Não, obrigada, Kate. Só vim espreitá-la.»
E Kate, acendendo uma luz suave, ocupara-se dos seus afazeres sem se aperceber sequer das
profundezas de dor que aquele quarto ainda alojava.
Mas agora Eve chorava desesperadamente, como se a alma lhe estivesse a ser arrancada. E
Gwen, com o seu típico jeito de mulher maternal equilibrada e bondosa, pousou uma mão
reconfortante no braço dela e deixou-a chorar. Por fim, quando Eve se acalmou um pouco,
conduziu-a com todo o carinho até à estufa.
Gwen sentou Eve numa cadeira de vime, entregou-lhe um copo e, em seguida, sentou-se também,
em frente a ela. Por um momento beberam o vinho em silêncio, mas então Gwen disse: – Bem, essa
estava à espera há um bom tempo.
Eve olhou para ela interrogativamente, esgotada. Pousou o vinho e pôs-se a deslizar mão pelo
tampo de vidro da mesa ao lado dela.
– Há cerca de vinte anos, julgo eu – continuou Gwen.
Eve sentiu algo, não nítido, mas distante assomar-lhe aos lábios, alguma afirmação de negação,
algum comentário que restabelecesse a relação empregada/patroa entre elas. Começou a endireitar-
se na cadeira, mas depois deixou-se murchar outra vez e fechou os olhos. Uma lágrima solitária e
límpida deslizou-lhe pela face. Quando falou a voz ainda estava muito emocionada: – Gwen, estou
numa confusão total. A minha vida é uma confusão total.
– Estou a ver – disse Gwen.
Subitamente consciente do ambiente circundante, a estufa arejada de teto inclinado e o jardim
imaculado para além dela, Eve apressou-se a dizer envergonhada: – Oh, eu sei... eu sei que sou uma
pessoa terrivelmente privilegiada.
Gwen levantou a mão. – Mas está sozinha – disse, com firmeza. – Passou anos a ser um pau-
mandado da cabra da sua mãe. Sinto muito por falar assim, mas sejamos francas, a mulher era uma
cabra, a forma como a tratava. E agora, agora que finalmente se livrou dela, está a deixar que a sua
filha a humilhe sempre que pode. O que precisa é de ter amigos seus. Não de mais plantas, nem de
mais livros de receitas. Amigos, pessoas de carne e osso que lhe deem valor. É uma das pessoas
mais inteligentes, bonitas e amáveis que conheço, e passa a vida aqui sentada sozinha noite após
noite a desperdiçar a sua vida.
Lá fora, o céu começava a tornar-se leitoso com o crepúsculo. Gwen insistiu: – Além do mais, é
uma mulher muito bonita, com um corpo espantoso. Podia arranjar um homem bom.
Eve começou a chorar de novo, mansamente, mas descobriu que, apesar disso, ainda era capaz de
falar. – Gwen, o problema é que eu não posso... mesmo se tivesse amigos... eu não posso ir a lado
nenhum, eu tenho uns... ataques.
Gwen assentiu. – Como aquele dia no jardim das alfazemas – disse ela, calmamente.
– Como nesse dia, no jardim das alfazemas.
No dia antes do funeral da mãe, Eve decidira fazer scones com alfazema, porque Izzy estava para
chegar e porque precisava de se ocupar com alguma coisa. Algo que pudesse fazer sem pensar.
Andava a sentir-se muito em baixo. Não especificamente por causa da perda da mãe, Eve não era
hipócrita, mas, nessa perda, muitas outras perdas vieram ao de cima. Nas primeiras horas após a
morte de Virginia uma grande dor amorfa tinha tomado conta dela.
Além disso havia que tratar do funeral, cozinhar para o velório em casa. A vida de uma mulher
festeira e especialista em casamentos sucessivos tende a não aquecer o lugar no que respeita a
amizades duradouras, mas ainda havia que contar com o médico de Virginia, com Geraldine, com
um vizinho de Eve, com um antigo namorado de Virginia cujo nome Eve não reconhecia, mas que
vira o anúncio no The Telegraph e tinha telefonado, e ainda Dodo, uma velha amiga de Virginia dos
tempos de boémia, para acompanhar a família no luto.
Dodo havia dito que ficaria no hotel The George, apesar de Eve lhe ter feito um convite bastante
cordial para que dormisse lá em casa. «Não», insistira ela. «Eu gosto do meu próprio espaço.»
Fora a primeira coisa saída da boca de Dodo com a qual Eve era capaz de se identificar.
Mas então, no momento em que se inclinava para cortar a primeira haste do raminho de alfazema,
usando um avental branco por cima do vestido e do casaco de malha, ocorrera-lhe de repente que,
se aquele sujeito, o antigo namorado, Ted, Ned?, tinha visto o anúncio do jornal, então outros
amigos de Virginia poderiam tê-lo visto também. Talvez um monte de gente aparecesse no dia
seguinte, afinal de contas, pessoas que não conhecia, de Londres.
Eve imaginara então uma multidão de mulheres inteligentes e intemporais com bronzeados
perfeitos e joias cobertas pelo seguro a chegar com os respetivos maridos autoconfiantes. Maridos
que a massacrariam com aquele tipo de perguntas que os maridos autoconfiantes se sentiam sempre
compelidos a fazer às pessoas: «Então, o que faz por aqui o dia todo, Eve?» «Trata do jardim
sozinha, é isso?» Não importava que se esquecessem automaticamente das respostas, ela ainda teria
de dar algumas. Era uma cogitação apavorante. As mulheres começariam a compará-la com a mãe.
«Ninguém diria que é filha de Virginia, não acha?»
De repente sentiu-se prestes a desmaiar e levantou-se de um salto, mas ato contínuo baixou a
cabeça novamente para se livrar da sensação. No entanto, a tontura continuou e com ela veio um
aperto no fundo da garganta. Sentou-se na gravilha, ainda húmida da manhã, com a tesoura no colo,
à espera de recuperar. Mas isso não acontecera. O coração parecia cravar-se-lhe nas costelas como
se fosse explodir. O céu do princípio da manhã, banal e sem cor, parecera afundar-se e envolvê-la.
Naquele instante, Eve pensara que ia morrer. Que afinal não teria vida sem a mãe. Sem direito a
vida para desfrutar da sua casa, para ler na cama, se assim o desejasse, para usar o cabelo solto
sem atrair comentários negativos. Gwen, encontrando-a ali, pálida e a tremer, temera o pior,
também. Mas, mais tarde, no consultório médico em Sudbury, os sintomas de Eve haviam sido
atribuídos a um esgotamento. O diagnóstico fora confirmado na semana seguinte, quando exames
mais pormenorizados do hospital local atestaram que ela estava de perfeita saúde.
– Isso ainda acontece, não é? – perguntava Gwen agora.
– Sim.
– Eu já me tinha questionado sobre isso.
– Esta semana, com a Izzy e o Ollie. Foi medonho. Eu não posso continuar assim, Gwen.
Simplesmente não posso.
– Pois não – concordou Gwen –, não pode.

A verdade é que Izzy estava tão nervosa por ver o pai como a sua mãe. Vira-o duas vezes em
dezassete anos e, se tinha passado mais algum tempo digno de nota com ele antes disso, não era
capaz de se lembrar. Enquanto esperava por ele, inquieta, no átrio do imponente hotel no centro de
Londres onde ele sugerira que almoçassem, foi subitamente atingida pelo medo de não o
reconhecer.
– Izzy – disse uma voz nas suas costas.
Ela virou-se e lá estava ele. Exatamente o mesmo. Extremamente atraente e muito bem vestido.
Mais grisalho, mas exatamente o mesmo.
– Peço desculpa se te fiz esperar – disse ele, olhando para o relógio.
– Não. Eu é que cheguei muito cedo – disse ela.
Ele sorriu.
– Pensei em tomarmos uma bebida antes de irmos para a mesa... se quiseres. – De repente ele
também parecia inseguro, e isso fê-la relaxar um pouco.
– Claro! Porque não?
– Acompanha-me, então. – Ele afastou-se para a deixar passar. Atravessaram uma entrada em
arco, passando a uma grande sala de tetos altos com chaises-longues e cadeiras de rebordo
dourado lindamente estofadas que se agrupavam à volta de mesinhas de chá redondas, estilo
Chippendale. – Um cocktail de champanhe, minha querida? – perguntou ele, recuperando o charme
e a serenidade ao sentarem-se.
– Sim, obrigada.
– Vamos – disse ele, acomodando-se e ajeitando o casaco –, fala-me desse sujeito. Ele merece-
te?
A primeira resposta de Izzy foi nervosa, de rapariguinha. Ela queria impressioná-lo com Ollie.
Mas depois conteve-se. Quem era aquele homem para questionar as suas escolhas? Tinha-a
abandonado quando ela era criança e quase não tentara manter contacto com ela desde então.
Postais no Natal e nos aniversários acompanhados de presentes exorbitantes e sem significado.
Não, ela não iria aceitar aquilo.
– Somos muito felizes – respondeu. A bebida chegou, e ela ergueu-a e bebeu com os lábios
apertados.
– Ainda bem – disse Simon, avaliando-a. Ela era bonita, pensou, mas faltava-lhe o encanto da
mãe. Eve tinha aquele ar suave, como uma aguarela. Izzy era toda ela ângulos. Como a avó.
– Os meus pêsames pela morte da tua avó, Izzy – disse ele em voz firme.
Izzy não afrouxou nem um pouco. – Obrigada – respondeu, pousando o copo.
– E a tua mãe, como está? – prosseguiu Simon.
Izzy encarou-o; havia sinceridade no tom dele. – Ela está... ela está bem – respondeu, sentindo
uma estranha lealdade para com Eve, não querendo revelar muito sobre ela àquele homem, um
desconhecido.
A voz do pai interrompeu-lhe os pensamentos.
– Estou tão feliz por me teres ligado, Izzy – disse ele, inclinando-se ligeiramente na direção dela,
como se fosse pegar-lhe na mão.
Izzy, porém, ainda se sentia na defensiva. – Bem, não podia esperar que fosses tu a ligar-me.
Simon Petworth pareceu magoado. Mas conteve-se.
– Não... pois não, tens razão. Eu não te teria ligado. Mas isso não significa que não queira saber
de ti, que não fique feliz por te ouvir. Vai parecer banal, eu sei, mas pensei muito em ti nestes anos
todos.
Izzy ficou chocada por perceber o quanto desejava que isso fosse verdade. Tentou contrariar a
sua fraqueza com um comentário viperino.
– Pois soa, muito banal, infelizmente.
– Sim. Enfim, vamos tratar de comer e depois podemos falar sobre o casamento. Eu sei que te
desiludi em muitos aspetos, Izzy, mas garanto que farei o meu melhor para assegurar que tenhas o
casamento dos teus sonhos. – Ele levantou uma mão de forma elegante e num ápice um empregado
de uniforme ricamente ornamentado trouxe-lhes as ementas.
Izzy relaxou um pouco quando abriu a dela. Comida era um território conhecido.
O empregado de mesa, que havia cumprimentado o pai pelo nome, disse: – Hoje temos
carpaccio, minha senhora. E também bisque de lagosta. Ou se preferir algo mais leve, talvez um
consommé.
Seguiu-se uma discussão animada antes de ela se decidir por ovos de codorniz e vitela.
– Muito bem, minha senhora – disse o empregado, como se tivesse sido um prazer servi-la. Então
virou-se para o pai dela para tomar nota do pedido, uma salada de favas e linguado antes de o
sommelier ser chamado. Assim que o vinho ficou resolvido, era hora de irem para a mesa.
Sentados na sala de jantar opulenta, Simon olhou para a filha com carinho e disse: – Vejo que a
tua mãe te criou com o amor pela comida. Cozinhas tão bem como ela?
– Eu não cozinho – respondeu. E então, de repente, farta de todo aquele assunto parental, farta
dos dois, ela disse: – E foi a Gin-gin que me criou. A minha mãe sempre se manteve fora da
equação. Não tão longe como tu, é verdade, mas, ainda assim, fora dela.
Simon Petworth olhou para aquela jovem impressionante que era do seu sangue e a sua expressão
suavizou-se. – A tua mãe é uma mulher extraordinária, Izzy. Não existe um átomo nela que não seja
honrado e, a menos que tenha mudado muito, eu duvido que alguma vez tenha sido deliberadamente
cruel contigo ou com qualquer outra pessoa.
Izzy foi apanhada de surpresa. Ele falara com ela em tom duro. Soava como... um pai.
– Bem, não – disse ela, fazendo uma pausa enquanto os ovos de codorniz eram colocados à sua
frente com cerimónia. Depois de o vinho branco ser servido, ela continuou: – Cruel não, apenas...
bem, ela não parecia muito interessada em mim. Não da mesma maneira que a Gin-gin.
– A Gin-gin – Simon repetiu o nome, obviamente controlando-se – era a tua avó e eu entendo que
tivesses um grande carinho por ela.
Izzy estava prestes a retorquir, mas a expressão dele fê-la retrair-se.
– Mas nesse aspeto estavas sozinha. Mais ninguém a suportava. Se ela foi boa contigo fico
contente, pode servir como uma certa absolvição depois da morte, mas ela nunca foi boa para a tua
mãe. Na verdade, sinto uma grande vergonha quando penso que permiti que ela tratasse a tua mãe
da maneira como fez e que a abandonei a essa sorte. Sinto-me tão mal por isso como por te ter
abandonado. Virginia Lowell era uma mulher calculista, tirana e cruel que tratava a filha como
escrava. Suspeito que Eve simplesmente deixou a mãe assumir a tua educação porque estava
demasiado apavorada para fazer qualquer outra coisa.
Terminado o discurso, ele começou a comer de forma metódica, o ar carregado como uma nuvem
entre eles.
Foi Izzy que quebrou o silêncio.
– Eu gostaria de fazer a boda em Hadley Hall – disse ela.
– Muito bem – disse Simon. – Por mim, tudo bem. Trata de tudo o que quiseres e manda-me a
papelada. O que desejares, eu aceito.
Izzy sentia-se perturbada. Não estava acostumada a sentir-se perturbada e não gostava. Talvez o
seu rosto mostrasse o desnorteamento.
– Sinto muito, Izzy – disse o pai. – Eu compreendo que gostavas muito da tua avó.
– Eu amava a minha avó – corrigiu Izzy.
– Sim, amavas a tua avó. Mas agora já és uma mulher e talvez não tarde muito que tenhas os teus
filhos. Tenta compreender a tua mãe. Todos nós lhe devemos isso.
Izzy baixou o garfo lentamente e olhou para o homem que tinha feito tal declaração.
– Se gostavas tanto dela porque é que a trocaste por aquela... – reprimiu a expressão que a avó
costumava usar.
Simon também pousou os talheres e encarou a filha. – Eu não tenho desculpas. Razões, talvez; eu
era jovem e arrogante, e sem ninguém que me orientasse. Perdi os meus pais na adolescência, como
certamente sabes.
Izzy sabia e confirmou com um breve aceno de cabeça no momento em que os pratos das entradas
foram levantados da mesa.
– Eu arrependo-me... bem, não posso dizer que me arrependo de tudo, porque se eu não tivesse
feito o que fiz não teria os meus filhos, e não posso dizer que me arrependo deles.
Houve outro silêncio, ligeiramente mascarado pela chegada dos pratos principais, o arranjar
cirúrgico do linguado na mesa de apoio e o servir de mais vinho. Simon percebeu que a menção aos
filhos tinha sido imprópria, cruel até, e Izzy ficou perplexa com o quanto o comentário a tinha
magoado. Uma coisa era ele ter-lhe negado a paternidade, mas tal negação tornava-se ainda mais
brutal quando combinada com a recordação de que ele não a tinha infligido aos filhos do segundo e
terceiro casamentos. Rapazes. Talvez ele só se interessasse por rapazes, pensou ela.
Simon recomeçou a falar assim que os empregados deixaram a mesa. Izzy olhava para o prato
com uma expressão alheada e não pegou nos talheres, por isso ele também não.
– Eu sou um pai melhor para os meus filhos do que sou para ti.
– Tu és um pai para os teus filhos – salientou Izzy.
A correção fez Simon estremecer, mas aceitou. A música da pequena orquestra no salão onde eles
tinham bebido o aperitivo flutuava até eles. – Sim – disse baixinho. – Izzy, eu acho que tu e a tua
mãe têm razões de sobra para me detestarem. Eu compreendo isso. Mas também espero que esta
reunião, e a minha ajuda com o casamento, sirva para corrigir um pouco os erros. Já não sou novo e
a vida ensinou-me algumas lições, e eu gostaria de te compensar da melhor forma possível.
Izzy lutava contra as lágrimas e, para mascarar a perda de compostura, finalmente pegou no garfo
e na faca. O pai seguiu-lhe o exemplo e, sem tirar os olhos dela, comeu um pouco de peixe. Izzy,
lentamente, meteu uma garfada de vitela entre os lábios pálidos.
– Está de acordo com os padrões da tua mãe? – Ele sorriu gentilmente. – Ela sempre foi uma
cozinheira maravilhosa.
– Ainda é – disse Izzy, o ambiente suavizando-se levemente entre ambos.
Um pouco mais tarde, depois de uma conversa ligeira acerca do trabalho de Izzy e do trabalho de
Ollie e da família de Ollie, Izzy perguntou: – Quem é que vais trazer ao casamento? Suponho que
venhas ao meu casamento? – O sorriso era nervoso.
– Tu é que decides, Izzy. Embora eu sugira que se quiseres conhecer a tua ma... – interrompeu-se
antes de dizer madrasta – a Laura e os rapazes, seria melhor fazê-lo antes do casamento. Os
casamentos podem ser ocasiões avassaladoras. Eu sou perito nessa matéria – acrescentou.
Surpreendentemente, os dois riram-se.

Depois de o pai a ter acompanhado ao táxi, evitando diplomaticamente um beijo demasiado


íntimo ou um aperto de mão demasiado formal e preferindo tocar-lhe ternamente no braço em
despedida, Izzy tirou o telemóvel da carteira e ligou à assistente a informá-la, estranhamente, de que
não iria voltar para o escritório. Sentia-se mais agitada e mais insegura do que em algum outro
momento na vida.
CAPÍTULO 5

– N ãoLosgosto disto – disse Jack calmamente a Dex. Estavam sentados no bar de uma piscina, em
Angeles.
– Não gostas do quê? – perguntou Dex enquanto observava desinteressadamente o triângulo
verde-limão que finalizava a visão das longas costas de uma loira que passava.
– De me sentir sem rumo – disse Jack.
– Eu não tenho problemas com isso – respondeu Dex, virando-se para ele.
Jack riu-se. – Tu não estás sem rumo. És um «talento em ascensão». Até os chefes de sala nos
restaurantes sabem o teu nome.
– Já passei da idade de «talento em ascensão» – disse Dex. – Sou mais um «sucesso meteórico».
Ambos soltaram uma gargalhada. Dex estava na Califórnia para reuniões e outras coisas, às quais
Jack não estava propriamente atento, relacionadas com o seu novo filme. Ele estava muito ocupado,
mas a viver num bom hotel, e Jack, por capricho, tinha apanhado um avião para se juntar a ele
durante o fim de semana que acabara por se transformar numa semana. Uma semana durante a qual
não tinha escrito uma palavra, embora fosse sua intenção.
Brooke, a filha de Dex, tinha aparecido de repente, na sua adolescência efervescente, para passar
alguns dias; depois de ela partir, estimulado pela jovialidade da visita, Jack tinha decidido
trabalhar. Mas sentia a falta de Brooke. Não tanto de Brooke em si, que mal conhecia, mas da sua
energia, da afinidade brincalhona entre ela e Dex. Ficara enfeitiçado, queria fazer parte dessa
energia, queria que Brooke gostasse dele. Talvez estejamos formatados, pensou mais tarde, para
desejar que os jovens gostem de nós, para querermos estar perto deles. Talvez o prazer que
retiramos da sua ingenuidade contagiosa nos impulsione a protegê-los: um yin e yang evolutivo.
Na ausência de Brooke, Dex voltara a estar menos presente e Jack prometeu a si mesmo que iria
escrever. Mas, embora não fosse seu estilo amachucar as páginas em bolas e atirá-las de forma
dramática para o cesto dos papéis, teve vontade de o fazer um par de vezes nos últimos dois dias.
No quarto ao lado do de Dex, com vista para a piscina, a vontade regressara. A comparação era
difícil de evitar. Ali estava Dex, a avançar com a sua carreira, e ali estava ele, a olhar para um ecrã
em branco, como um palerma. Isso fê-lo sentir-se inadequado, uma sensação que lhe era
desconhecida. Uma das muitas que experimentava recentemente.
– Decidi fazer uma pausa na escrita depois de terminar este – anunciou, embora não tivesse
decidido realmente até o ter dito. Não sabia o que mudara. Mas alguma coisa mudara.
Inegavelmente. O romance, este novo, não estava a progredir. Já não estava a progredir mesmo
antes de vir para Los Angeles. Fora uma das razões por que viera e decidira ficar. Para escapar à
aceitação real do bloqueio da escrita. Mesmo quando escrevia, o processo seguia, pela primeira
vez, contra a maré, em vez de sentir o empurrão nas costas. O que viria primeiro, perguntou-se, o
fracasso ou a sensação de fracasso?
– Acho que esta série de livros já deu o que tinha a dar – disse ele.
Dex levou as mãos aos lábios em forma de concha e falou com numa voz de trailer de filme: –
Seis bestsellers, três adaptações cinematográficas.
– Este não me está a sair com tanta facilidade. E, de qualquer maneira, não estou interessado em
fazer produção em série. Não quero lançar para o mercado um monte de porcaria só porque é
popular.
Dex rodou as pernas para encarar Jack. Tirou os óculos de sol e limpou-os com toda a calma na
camisa, pensativo. Então deu uma pancada na cabeça de Jack, não com força, mas retumbante.
– Ouve uma coisa, Coop, meu grande idiota. Eu é que sou o autoindulgente desta parelha. Sou
ator, estou destinado a ser autoindulgente. Tu, por outro lado, és um tipo às direitas. E também és
extremamente talentoso. O que escreves é popular porque é bom, porque és um bom contador de
histórias e as pessoas gostam de uma boa história. Tu entreténs as pessoas, Jack, e isso não é uma
porcaria. É importante. É preciso talento para isso. É um talento que tu tens, e se não o quiseres
usar mais, se preferires ficar sentado à sombra da bananeira durante os próximos vinte anos ou
arranjares algum passatempo inócuo para preencheres a tua velhice, vai em frente. Tens dinheiro
que chegue para nunca mais trabalhares, esse é um luxo a que te podes dar, mas não te ponhas com
lamúrias. Comigo não, pelo menos.
– Com lamúrias?
– Estavas a lamuriar-te.
A música no bar estava alta, e o sol da Califórnia fazia brilhar a pele de todas as pessoas
elegantes. Dex parecia mais jovem a cada dia que passava. Tinha um ar vibrante, pensara Jack
assim que chegara, vibrante e cheio de propósito.
– Se queres mesmo alguma coisa que te afaste a mente dos problemas inexistentes, ali a pequena
Hailey tem um fraquinho por ti – disse ele, acenando com a cabeça na direção de uma morena
bonita que dançava, vestida com uns calções muito curtos, do outro lado da piscina. Hailey
levantou o cabelo com uma mão, mostrando o braço magro e nu, e voltou a deixá-lo cair pelos
ombros. Depois olhou para Jack e sorriu... uma papoila, abrindo-se para o sol.
Jack retribuiu o sorriso, mas foi um sorriso sem promessas. – Miúdas como a Hailey fazem parte
do problema, Dex. Eu simplesmente já não tenho arcaboiço para elas.
– Há comprimidos que resolvem isso, caro amigo.
Jack riu-se. A viagem até à Costa Oeste tinha sido boa num aspeto: lembrara-o de que, embora
ainda receasse a velhice, a verdade é que não queria ser mais novo. A juventude era agradável de
ver, era bom ter por perto, mas era igualmente complicada de se viver. O que ele queria, dera-se
conta, era o que achava que os cinquenta anos deviam englobar: filhos, talvez, uma Brooke só sua.
E uma mulher. Não como Marnie, mas um casamento na verdadeira aceção da palavra. Como o
casamento dos seus pais. Queria isso. Queria o que poderia ter tido com Paula, anos antes, se
tivesse tido a maturidade e a inteligência suficientes para o perceber. Um relacionamento com uma
mulher com quem pudesse conversar. Queria uma amiga. E queria alguma segurança. Não deveria
ser uma pessoa mais segura de si ao atingir a meia-idade? Não era essa a compensação que se
recebia pela flacidez no traseiro e pela dependência de óculos para ler?
Dex, observando-o como se soubesse o que ele estava a pensar, disse: – Vou repetir porque ainda
me pareces determinado a evitar a possibilidade de uma solução disponível: porque não a
Adrienne?
– Talvez te surpreendas ao saber que estive a pensar exatamente o mesmo. Porque não a
Adrienne? – disse Jack.
Gwen tinha feito questão de não sair de perto de Eve enquanto ela marcava a consulta no médico,
entregando-lhe a agenda telefónica de couro vermelho que tinha na secretária já propositadamente
aberta na letra «D». Mas Eve teria marcado a consulta de qualquer maneira. Já estava farta. A
conversa com Gwen tinha aberto nela a possibilidade de obter ajuda, conseguira rasgar mais a
fenda estreita no muro de desespero pela qual ela nunca conseguira arrastar-se sozinha. Queria
pedir ajuda. Queria ir ao casamento da filha e comportar-se como a mãe da noiva, tanto por Izzy
como por ela própria. Nunca fizera o suficiente por Izzy, limitara-se a recuar, deixando a mãe e as
amas assumirem a responsabilidade. Devia isso à filha. Teve de repente a perfeita consciência
disso. Ela devia a Izzy uma mãe.

No consultório, o jovem médico interino sorriu calorosamente para Eve quando ela entrou. Não
devia ser muito mais velho do que Izzy, e tinha a camisa a escapar-lhe das calças. – O que posso
fazer por si? – perguntou ele, como se já soubesse.
– Eu tive um ataque de pânico – disse Eve com firmeza.
– Hum, hum. Vejo aqui na base de dados os resultados de uns exames feitos no... ano passado e
depois houve a visita ao hospital há umas semanas. Está correto?
– Sim. Não há nada de propriamente errado comigo – disse Eve.
O médico olhou para ela.
– É apenas ansiedade. Eu fico terrivelmente ansiosa. Mas sinto-me como se... – Ela parou de
falar.
Ele olhou-a um momento e depois voltou a concentrar a atenção no computador. – É certo que os
resultados que aqui temos dos exames que fizemos depois do seu último episódio e agora deste
mais recente não sugerem nenhuma causa física óbvia. Não há irregularidades no coração e os
pulmões estão limpos. Não tem histórico de asma? Ou historial na família?
– Não, nenhum.
– Nenhuma tosse seca ou eventuais episódios de falta de ar?
– Não.
– Muito bem. A ansiedade ou o stress podem estar na raiz dos seus sintomas. Vou reencaminhá-la
para alguém com quem poderá falar sobre isso. A terapia é frequentemente muito útil nestes casos.
Entretanto, um curto tratamento com medicação também poderá ser extremamente eficaz.
– Sim – disse Eve, embora parte dela ainda quisesse negar tudo e recuar para a forma tipicamente
inglesa de lidar com os problemas que lhe fora infundida. E embora soubesse que teria
argumentado, se tal assunto viesse à baila, que as doenças emocionais e mentais mereciam o mesmo
tipo de tratamento que as doenças físicas, ainda assim preferia estar a tratar-se de um braço partido.
– Sim – suspirou. – Sim, qualquer coisa que possa ajudar é muito bem-vinda.

– Bem, as melhoras não chegam de um dia para o outro. Sabe disso, não sabe?
– Sim, Gwen, sei.
– Mas já foi um belo começo. – Gwen sorriu.
– Espero que sim – respondeu Eve.

Cara Eve,
Já não sei de si há duas semanas. Não, isso não é verdade. Não sei de si há dezassete
dias. Oito desses dezassete dias passei-os na Califórnia, em Los Angeles, para ser mais
preciso, com um amigo. É um velho amigo, mas é mais jovem do que eu em praticamente
todos os aspetos, e está à beira, acho eu, de um enorme sucesso. Sinto alguma inveja.
Trouxe laranjas e a minha intenção é transformá-las em compota. Parece-me uma
recordação apropriada, algo dourado e resplandecente, com um toque subtil de amargor. O
problema é que não sei como, mas apostaria todo o laranjal em como a Eve sabe. Talvez me
diga como fazer.
Jack
P.S.: Esqueça aquela tolice do encontro em Paris. Eu sempre parti do princípio que
tivesse mais de quarenta anos, como eu, e que fosse solteira, como eu.

Caro Jack,
Qualquer bom livro de receitas contém certamente uma receita de compota. Não há
grande diferença entre elas, embora, como na maioria das coisas, e na cozinha, em
particular, haja sempre uma dose de experimentação inicial para depois podermos
acrescentar o nosso cunho. Eu prefiro fatiar a fruta em vez de a cortar aos pedaços e, de
vez em quando, substituo o açúcar branco por açúcar mascavado. Acho que é capaz de
gostar disso. O resultado é um sabor mais forte, mais masculino, de alguma forma.
Eve
P.S.: Tenho mais de quarenta anos e sou solteira, tal como supôs. Não creio que qualquer
pessoa que me conheça pudesse assumir outra coisa e não me surpreende, mesmo que não
nos conheçamos, que tenha partido do mesmo princípio. Imagino que seja algo muito óbvio
em mim. Ultimamente, porém, tenho lutado para reverter isso, só um bocadinho, levando a
que uma pequena parte de mim, uma parte até então desconhecida, pusesse em hipótese
viajar para Paris para comer. Na companhia de um amigo, ainda que muito recente.

Cara Eve,
Esta coisa da compota não é para fracos (classe na qual me incluo). Adquiri um livro de
receitas para a hora do chá, publicado pela Hodder (Londres, 1965), num pequeno
alfarrabista perto de minha casa. A livraria e um café, dos quais sou um cliente fiel, estão
entre as poucas coisas por aqui que ainda possuem um pouco de salero. Moro perto do mar,
mas a cidade foi toda restaurada e nada parece enferrujar. A livraria é boa, porém, e é
gerida por um tipo às direitas. Gostaria de lhe dizer que ele soprou o pó da capa do livro,
mas isso não aconteceu. Nem sequer precisou de um daqueles escadotes periclitantes para
o ir buscar. Estava mesmo ali, junto à caixa registadora, mas parece-me um bom livro. 1965
foi o ano da publicação de «O Homem da Pistola Dourada», de Ian Fleming, e eu
provavelmente devo a minha carreira a esse livro, por isso tenho fé. Ando agora à procura
de frascos de 8 onças. A fruta pesa pouco mais de 5 libras, então acho que devo precisar de
uns quinze frascos. Aí na vossa terra ainda se usam «libras» ou já se renderam ao sistema
métrico?
Jack

O país já adotou o sistema métrico, mas eu continuo a dizer «libras». Tenho, como já
mencionei, mais de quarenta anos, quarenta e seis, na verdade. Um ano para lá do ponto
médio crucial, o declínio. O ano que faz toda a diferença. Tal como a variação genética de
2% faz a diferença entre as pessoas e os macacos.
Compre frascos de tamanhos diferentes. Vai precisar de alguns pequenos para os restos
da panela. E não faça a esterilização no micro-ondas; não é perfeita o suficiente.
O que pode dizer-me sobre o atum?
Eve

Pão fresco. Cebolas vidalia. Cerveja.


Jack

Não creio que a minha filha vá querer cerveja para o seu jantar de noivado. Ela é muito
chique e muito coca-bichinhos.

Lima. Wasabi. Rosé.


Uma filha. Um casamento. A sua vida tem uma circularidade que falta na minha. Invejo-
a.
Mais lhe digo: «coca-bichinhos» é de longe a melhor palavra com que me deparo há
muito tempo.

Eve achou o conceito de Jackson Cooper ter inveja dela ridículo.

Izzy tinha mantido um contacto regular com o pai desde aquele almoço. Ele telefonara-lhe no dia
seguinte e tudo fora caminhando a partir daí. Mas ela não mencionara o facto à mãe. Não sabia o
que a impedia. Na verdade, mal discutira o assunto com Ollie. Sentia-se estranhamente culpada,
mas, ao mesmo tempo, feliz. Era desconcertante. Por um lado, o vínculo com o pai estava a tornar-
se mais forte e, por outro, aquela invasão de novos sentimentos também a fizera ciente de uma nova
crueza no que dizia respeito à sua infância. Uma sensação de luto pelo que não tivera. Izzy era uma
jovem que nunca fora verdadeiramente criança; nunca pensara em si mesma como criança. A avó,
que tinha sido, de longe, a influência mais forte da sua infância, sempre a tratara como adulta. Ela
sempre quisera ser adulta. Mas ultimamente havia momentos em que desejava ser uma menina, estar
nos braços de alguém e ser reconfortada como uma menina.
Na verdade, tudo mudara de repente. Agora tinha um pai que agia como pai, e uma mãe que agia
como... Izzy não era capaz de explicar como é que Eve andava a agir, mas certamente o seu
comportamento não era o típico de Eve.
– Não vejo qual é o problema – disse Ollie. Estavam a comer tapas num bar barulhento perto do
escritório de Izzy.
– Ela mudou.
– Mudou para melhor? Ou para pior?
– Mudou, simplesmente.
– Sê mais específica.
– Ontem à noite, por exemplo, quando lhe telefonei por causa do fim de semana, havia música a
tocar ao fundo.
– Ui, isso é muito suspeito!
– Não te ponhas a brincar, Ollie. Tu sabes o que quero dizer. – Ela picou uma rodela de chouriço
picante do prato mas, em seguida, rejeitou-a em favor de um pedaço de lula. – Era jazz – disse ela,
metendo em seguida a lula na boca e fazendo uma careta.
Como reação à expressão mais suave, na verdade uma tranquilidade geral que observava em Izzy
nos últimos tempos, Ollie sorriu e disse: – Talvez ela esteja feliz.
Izzy fez outra careta.

– Mãe, estive com o pai.


– Pai? – repetiu Eve, a palavra tão fora de contexto que por momentos não compreendeu o que
Izzy quis dizer.
– O meu pai – explicou Izzy suavemente.
– Ai sim? – disse Eve. A sensação de aperto atacou-lhe o peito, mas ela concentrou-se no
tiquetaque do grande relógio da cozinha, tal como a terapeuta, com quem já tivera duas consultas, a
aconselhara a fazer. Era um daqueles relógios de estação e o tiquetaque ressoava. Eve concentrou-
se o mais que pôde naquele som. Sabia que não podia deixar-se ficar sem respiração. Tique...
inspirar, taque... expirar.
– Fomos almoçar – disse Izzy, numa espécie de confissão. – Foi, como dizer... esclarecedor. Em
alguns aspetos, pelo menos. Noutros foi muito perturbador.
– Sim – disse Eve, tentando ela própria não se sentir perturbada. – Bem, acho natural que possas
querer vê-lo. O casamento é uma grande mudança na vida e... sim, consigo compreender. – Estava a
tentar. A tentar entender o ponto de vista da filha.
– Deve ter sido muito difícil para ti. Quando ele se foi embora.
Eve suspirou e fechou os olhos um instante. – Sim, foi. Muito difícil. Para ti também.
Izzy mostrou a sua surpresa.
– Ele nunca foi... – Eve queria escolher as palavras certas, queria avançar com cuidado neste
novo território muito frágil. Prosseguiu como se pisasse cristal. – Ele nunca foi um daqueles pais
que fazem coisas pelo bebé; um desses pais modernos que mudam fraldas e assim. Acho que te deu
banho apenas uma vez.
No meio daquela tensão, ambas sorriram levemente. Uma bola de sabão a subir.
– Mas quando ele chegava a casa tu corrias sempre para ele. Corrias para ele com os teus
bracinhos gorditos muito esticados para que ele te pegasse ao colo. «Papá» foi a tua primeira
palavra.
Izzy apercebeu-se mais uma vez da falta de fiabilidade de tantas coisas que julgava conhecer. Ali
estava outra ponta desfiada.
– Eu nunca tive braços gordos – disse ela.
Eve, grata, riu-se. Queria perguntar como estava Simon. Não queria perguntar como ele estava.
Simplesmente não sabia o que dizer.
– Ele falou com muito carinho de ti – disse Izzy.
Eve ficou ainda mais confusa. Izzy tinha-a vindo visitar sem Ollie. Combinara encontrar-se, no
dia seguinte, com a sua amiga de infância, Amy, que ia ser a dama de honor. Mãe e filha estavam
agora sentadas à mesa da cozinha; duas mulheres que se conheciam ainda menos, ao que parecia, do
que imaginavam.
Eve disse: – Devo ter um armagnac. O que me dizes?
– Oh, sim, por favor – disse Izzy na sua voz normal. – E algumas dessas amêndoas doces.
A ordem, no entanto, estava longe de ser restaurada.

– Olá! – cumprimentou Adrienne. Estava um frio invulgar para setembro e ela vestira-se como se
já fosse outono. Fazia-a parecer mais velha. – Espero não ter chegado muito cedo. Costumas
trabalhar de manhãzinha cedo, não é? – Era quase meio-dia.
– Normalmente – respondeu Jack.
– Vim direta para cá assim que saí do estúdio.
– Ainda bem – disse Jack, abrindo um armário no corredor da frente, pegando no chapéu de uma
prateleira e vestindo uma jaqueta leve.
Ela olhou para o chapéu e sorriu.
Jack sorriu também e deu uma pancadinha afetuosa na aba já puída.
– É uma espécie de velho amigo – explicou ele.
– Bem, qualquer amigo de Jackson Cooper é meu amigo também.
Ele gostou de como o seu nome soava na voz dela. Estava feliz por lhe ter ligado. Feliz por ela
ter sugerido vir novamente. Feliz por ela manter tudo informal e vagaroso. – Porque não vou ter
contigo quando terminar, à hora de almoço? – sugeriu ela.
– Sim, isso seria ótimo – respondera ele.

Caminharam algum tempo sem falar e então ele disse: – Como vai o negócio da fotografia?
– Muito bem. Este retrato que fiz foi para a revista Vanity Fair.
Jack parou de andar, forçando-a a parar e a olhar para trás para ele.
– Isso é coisa de crescida, miúda.
– Eu sou crescida, miúdo.
– Ai és?
– Tenho trinta e cinco anos. Divorciada. Giro bem o dinheiro, sou dona do meu apartamento. E
sei dizer sete coisas em suaíli.
Jack soltou uma risada. – Acredito em tudo, exceto na parte dos trinta e cinco anos.
– Pois estás enganado, porque eu não menti sobre isso.
Ele riu-se de novo. – Estou francamente surpreendido por teres trinta e cinco anos. Achava que
estavas nos vinte e muitos.
– Bem, imagino que ser escritor não se sobrepõe a ser homem, não é? Os homens nunca acertam
na idade das mulheres.
Jack parou um momento, a pensar. – No verão passado fui a uma festa em Moby Harbor e passei
a noite inteira a tentar impressionar uma rapariga que vim a saber era uma adolescente – contou. –
A minha mulher odiou-me por isso e eu fiquei horrorizado comigo mesmo. Duas circunstâncias que
parecem ter-se tornado permanentes.
Estavam quase a chegar ao Hatty’s. Nenhum dos dois dissera para onde pretendia ir, mas agora
ali estavam eles.
– É à fronteira entre a autoaversão e a autocomiseração que tens de estar atento – disse ela.
Jack concordou com a cabeça. Pois era.
– Olhem só: é a menina bonita – disse Hatty.
– Esta é Adrienne, Hatty.
– Menina bonita, nome bonito. Ela tem tuuudo. – O riso de Hatty vibrou, como o chocalhar de
pedras num tambor.
Jack e Adrienne riram-se também.
– Trinta e cinco anos é uma boa idade – disse Jack quando se sentaram. – Embora trinta e oito
anos seja ainda melhor. Aos trinta e oito ainda somos jovens, mas começamos a ter uma ideia real
de nós próprios, se tivermos vivido um pouco. O problema é que os trinta e oito desaparecem.
– Eu não penso na idade, só no que estou a fazer. Em trabalho, principalmente. Penso muito no
meu trabalho.
– Isso é bom – disse Jack. – O trabalho é a essência. Não acredites em nada dessas tretas de
irmos atrás dos nossos sonhos e desperdiçarmos o nosso tempo a imaginar como nos sentimos
acerca de tudo. O melhor a fazer é trabalhar. Não vamos acertar na lua com um arco e uma flecha. –
Soava moralista, até para si mesmo. – Desculpa – disse. – O meu quadragésimo nono aniversário
acabou de passar por mim a correr e deu-me para filosofar.
– Quarenta e nove? Achava que estavas nos vinte e muitos – brincou ela.
Ele riu-se. – Só acho que... não sei, são os cinquenta. É o momento de fazer um balanço. E o meu
inventário parece-me muito desfalcado.
– Seis bestsellers e uma peça de teatro. Não me parece assim tão pobre.
– Acho que estou a vê-lo da perspetiva dos dois divórcios e do bloqueio de escritor.
– Bloqueio de escritor. Isso existe mesmo?
– Não. É treta.
Hatty trouxe a comida, mas Adrienne continuou a olhar para ele. Ela interrompeu o gesto de pegar
numa alcaparra do prato e perguntou: – É mesmo? – realmente interessada numa explicação.
– É uma expressão útil, mas o bloqueio não é realmente psicológico. Pelo menos não no meu
caso. Acontece mais ou menos nesta zona. – Ele indicou o cotovelo esquerdo com o garfo que
estava na mão direita e, em seguida, deu uma palmada na testa. – O material que começa aqui não
consegue passar pelo cotovelo nas condições que eu quero. Não é que eu não consiga escrever. O
problema é que estou à espera de pôr os meus pensamentos grandiosos no papel de modo tão
pungente e erudito como soam na minha cabeça. Deparo com estes obstáculos de vez em quando,
quando parto do princípio que o que escrevo não vai precisar de revisão. É por isso que, no meu
caso, é treta. Tudo precisa de revisão.
– Tudo.
– Tudo: biografias, armários, livros de endereços, amizades, ficção, vida.
Ela sorriu para ele e ambos se concentraram em comer durante algum tempo até que ela pousou o
garfo com carácter definitivo, embora o seu prato ainda estivesse meio cheio.
– Como é que sabias da peça? – perguntou ele.
– Eu vi-a. Há muito tempo, num pequeno teatro em Newbridge. E gostei. Gostei muito, na
verdade.
– Ah! Quem diria! – Houve um momento de silêncio. Ele queria mudar de assunto. – Imagino que
não vou conseguir convencer-te a comer uma tarte de sobremesa? – perguntou.

Ela não entrara com ele em casa. Despediram-se novamente junto ao carro. Ali, de pé, ela não o
olhara com aquele ar de enternecimento com que as mulheres às vezes se despediam. Esta mulher
era segura de si. Tranquila e segura. Tomando a iniciativa do beijo de despedida, Jack sentira-se
igualmente tranquilo e seguro de si.

Cara Eve,
Esta é uma carta difícil de escrever. E imagino que talvez seja difícil de ler. Há tanta
coisa que gostaria que ela dissesse, mas não tenho a certeza se irei encontrar as palavras
certas. Espero que talvez as consigas encontrar escondidas nas minhas palavras.
Escrevo para pedir perdão. Aí está, não foi assim tão difícil. E, no entanto, precisei de
mais de vinte anos. Nunca o disse. Não a ti. Digo-o agora. Sei que me comportei de forma
abominável no fim do nosso casamento e fico chocado agora, quando penso em como eras
jovem. Mais jovem do que a Izzy é hoje, e ela parece-me, apesar de toda a autoconfiança e
competência, pouco mais do que uma criança.
Não cheguei a esta conclusão de ânimo leve, como podes imaginar. Foste sempre muito
inteligente e, suspeito, muito mais ciente da maioria das coisas do que os outros pensam.
Também me lembro de ti como uma pessoa boa; completa e fundamentalmente boa. Farei o
meu melhor para seguir o teu exemplo a partir de agora. Tenho cinquenta anos. Estou velho
de mais para ser insensato e jovem de mais para não aproveitar o melhor que puder os
anos que restam, a mim e à minha família. Espero que a Izzy passe agora a fazer parte
dessa família e, para que tal venha a ser um sucesso, acho que tu e eu precisamos de
estabelecer pelo menos uma relação civilizada, de preferência uma que seja amigável.
Espero que consigas pensar na minha proposta com carinho.
Afetuosamente,
Simon

Mãezinha,
Aqui estão as provas dos convites. Parecem-me muito elegantes. Vais querer passar a
noite no hotel? O Ollie e eu pensámos em ficar. Diz-me, para eu reservar o teu quarto
quando reservar o nosso.
Izzy

Cara Eve,
As mulheres gostam de que cozinhem para elas? Eu sempre desconfiei que, na realidade,
preferem aperaltar-se e ir comer a algum restaurante chique. A Eve parece-me ser um dos
exemplos mais inteligentes da sua espécie e eu pensei que podia dizer de sua justiça.
Jack

Querida Marnie,
Escrevo-te porque falar nunca foi o nosso ponto forte. Já não sei ao certo qual era, mas
qualquer que fosse, já se perdeu. Desde a nossa ainda recente separação tenho descoberto
que sou menos feliz e mais virado para o futuro do que pensava ser. Ou, pelo menos, estou
mais consciente de ambos os estados do que alguma vez estive durante o nosso casamento.
Viver contigo foi uma experiência de «carácter imediato» e acho que esse é o tipo de
experiência que mais se adequa a ti, Marnie; talvez durante algum tempo também se tenha
adequado a mim, mas esse tempo já vai longe. Sinto-me mais em paz com isto do que
alguma vez pensei que estaria, ainda que também arrependido e apologético. Imagino que,
do teu ponto de vista, viver comigo devesse ser muitas vezes intolerável. Sou uma pessoa de
trato difícil, por vezes impossível, e das coisas que poderia mudar a meu respeito, diria que
essa não é uma delas. Com base nisso, sugiro que tornemos a nossa separação permanente.
Sou avesso a envolver advogados, mas se tiver de ser, será.
O teu, de coração,
Jack

Bela mulher de cabelos loiros,


Aparece no sábado. Eu cozinho.
O homem do chapéu
CAPÍTULO 6

S imon Petworth assinou o bilhete para Laura com as suas iniciais e desenhou um coração mais
ou menos tosco, tal como sempre fazia. Depois estendeu uma manta de tricot macia sobre ela e
colocou o bilhete onde ela o pudesse ver ao acordar. Com um dedo sobre os lábios, pediu silêncio
aos filhos. Tinham oito e dez anos e não teriam sido tão fáceis de calar, não fosse a doença da mãe
ter-se tornado uma presença de peso naquela casa. Uma presença de que estavam bem cientes. Por
isso foi fácil convencê-los a sair do quarto onde ela dormitava agora num sofá Chesterfield.
Ed, o mais velho, e o mais sossegado e sensível dos dois, olhou para o pai. – Ela está bem? –
perguntou.
– Está, sim; um pouco cansada, só isso.
Simon colocou a mão na nuca morna e delgada do rapaz e olhou para a mulher adormecida,
sentindo-se cheio de amor e, por momentos, cheio de medo do que todos eles poderiam ter perdido.
Ela tinha sobrevivido. A operação fora um sucesso e os médicos tinham-lhe assegurado que havia
boas razões para ter esperança. Até Laura estava esperançosa. Mas, para ele, Simon, o sinal de
perigo ainda tocava. Nunca mais tomaria a família como garantida.

– Estás a prestar atenção ao que estou a dizer, mãe?


– Claro que estou – disse Eve, ciente da mentira. Aqueles telefonemas de Izzy eram constantes
agora, sempre por causa do casamento. Sempre com um nível de pormenor para o qual Eve não era
capaz de desenvolver o mesmo nível de entusiasmo vibrante e esperado.
– Pareces distraída – disse a voz de Izzy.
Eve reagiu. – Desculpa, não queria estar. Estava só... o Ollie cozinha?
– O Ollie? Deves estar a brincar. Não. Ele sabe fazer esparguete à bolonhesa. Até não é mau, mas
eu proibi-o de o voltar a fazer nos próximos tempos porque a cozinha fica a parecer o cenário de
um massacre. É um típico homem na cozinha. Sabes como é, ketchup por todo o lado, usa todas as
panelas e tachos que existem.
Eve não achava que houvesse muitas panelas no apartamento de Izzy e veio-lhe de repente o
pensamento do pouco que sabia acerca do modo como os homens cozinhavam. Muitas das coisas
que ela achava «viris» tinham sido simplesmente aprendidas em romances, programas de televisão
ou filmes. Lembrou-se de que Tim Spence cozinhara para ela uma vez. Com uma certa habilidade e
uma certa inibição penosa. Tudo na sua relação com Tim Spence, um solteiro do clube de bridge,
havia sido penosamente inibido. Uma circunstância exacerbada pelos comentários lascivos da mãe
quando Eve regressava a casa depois de estar com ele, nos poucos encontros que tiveram. A coisa
tinha sido de curta duração, começando desde logo sufocada e terminando, tão inepta como
começara, num quase silêncio de derrota acompanhado de scones algo ressequidos num salão de
chá excessivamente decorado à beira-rio. Desde esse dia, mais de uma vez Eve se escondera num
qualquer vão de entrada para evitar o pobre Tim. Pobre Tim... subitamente apercebeu-se de que
deveria ser assim que muita gente pensava nela. Pobre Eve.
– Mãe, mãezinha...?
– Sim, estou aqui, desculpa.
– Recebeste as provas do convite?
– Sim, recebi.
– E os menus de amostra? – A voz de Izzy era incisiva. Ela estava com receio de que a mãe se
deixasse escorregar, não para o mundo da lua, mas para aquela leve distração para a qual ela tinha
propensão. Izzy ficava extremamente irritada com as leves distrações.
– Sim – respondeu Eve em tom firme, esperando cortar o mal pela raiz.
– Que bom. Ainda bem. Vejo-te no próximo sábado, então.
– Sim, no sábado.

Eve discutiu a carta de Simon com a terapeuta. Não era sua intenção. O tipo de terapia que fazia
não incidia no seu passado. A princípio Eve ficara feliz por isso, aliviada por não ter de reviver a
solidão da infância que tinha o dom de lhe provocar um nó aflitivo na garganta. Embora, por breves
momentos, se tivesse perguntado se não seria disso que precisava. Mas também se perguntara se
tudo aquilo não iria ser um desperdício de tempo.
Na primeira consulta, Beth, a psicoterapeuta, não parecia reunir o género de características que
Eve procurava... esperava alguém simples e sincero que deixasse transparecer a promessa de uma
solução prescritiva e sem conversa fiada, mas quando Beth a mandara entrar assim que ela batera à
porta, foi recebida por uma mulher de ar desalinhado e aparência nervosa, cujo casaco de lã
pesado, que fora um dia azul-marinho, lhe caía pingão dos ombros. Mas, então, os olhos de Beth
encontraram os dela, atentos e inteligentes. A partir de então, ela fazia sempre Eve sentir-se como
poucos o fizeram; como se ela tivesse o seu interesse total.
Em vez de temer as sessões de psicoterapia, Eve começou a ansiar por elas. E as técnicas que
Beth lhe ensinava para lidar com a ansiedade, ansiedade essa que Beth parecia aceitar, de forma
tranquilizadora, como importante, mas, no entanto, normal, eram realmente eficazes. Por exemplo,
Eve tinha conseguido entrar numa loja, a pequena boutique que vendia roupas de senhora, quando
antes apenas conseguira ficar a admirar a montra. Sempre achara que numa loja como aquela, uma
loja pequena e exclusiva, uma mulher teria de saber o que queria, estar confiante nas escolhas que
fazia, ser o tipo de mulher que Eve não era. Mas certa tarde, recentemente, quase sem pensar, ela
entrou e fez uma compra: um lindo vestido de linho, cinzento-claro, com debrum branco no decote e
nos bolsos. Com o vestido dentro de um saco cor-de-rosa e preto que anunciava a sua visita, Eve
saíra da loja sentindo-se quase eufórica.
Mas a carta de Simon fora um baque e fizera-a fraquejar. Ao lê-la veio ao de cima, não um
sintoma que aprendera a reconhecer como de um ataque real, mas aquele triste sentimento de perda
bem conhecido. Perda do amor, perda do passado que poderia ter tido, e também agora a potencial
perda de Izzy. A casa de Simon, a família de Simon, a mulher de Simon; tudo isso seria mais
emocionante do que qualquer coisa que ela, Eve, pudesse ter para oferecer. Izzy, e também Ollie,
quereriam passar os Natais lá, os almoços de domingo. Eve imaginou refeições animadas numa sala
de jantar encantadora. Muita conversa alegre, muitos risos e muitas pessoas. Mas ela não. Não Eve.
Simon pedia-lhe perdão e autorização, mas não a queria a ela. Como nunca quisera, aliás. Como
nunca ninguém quisera. Tentou calar aquela voz de autocomiseração, mas era muito difícil e fora
por isso que, quando Beth hoje lhe perguntara «Então, como vão as coisas, Eve?», daquela forma
maravilhosamente intencional em que era perita, ela desatara a chorar. Não como havia chorado
naquela noite com Gwen, não de forma descontrolada, mas uma espécie choro mais lento, de
aceitação. De luto.

Eve escreveu que achava que as mulheres gostavam que alguém cozinhasse para elas. Mas que o
uso de panelas era um problema. Jack riu-se. Também recebera notícias de Dex nesse dia, uma nota
no verso de um cartão do estúdio:

Estava a pensar em ti. Especificamente naquela coisa que fazes aos frutos secos. Se
alguma vez descobrires como fazer o mesmo a uma mulher diz-me.

– Tudo bem, chefe? – perguntou Rick, na cozinha, enquanto tirava do saco de compras sumo de
laranja, jornais e café.
– Tudo bem – respondeu Jack, ainda a sorrir. Então, folheando um livro de receitas vegetarianas
que comprara no dia anterior, pensando na chegada de Adrienne e bebendo do copo que Rick lhe
tinha estendido, continuou a sorrir. – Tudo bem – repetiu.

– Quero assegurar-te que substituí o caldo de galinha pelo de legumes – disse ele a Adrienne
mais tarde. – Fiquei tentado, admito. Mas cingi-me aos teus princípios. De qualquer forma acho que
não afeta muito o sabor.
– Não – disse ela, metendo outra garfada à boca e mastigando-a antes de continuar: – Durante
todo o meu tempo na faculdade quis ser escritora.
Jack pousou o garfo. Justamente quando estávamos fora de perigo, pensou. Esperou pela
descrição das histórias que escrevera em menina, os artigos que ela havia publicado na revista da
escola secundária, as ideias para um romance, o manuscrito que ia terminar assim que tivesse
tempo.
– Mas tentei e percebi que não tinha talento – continuou ela. – A parte de ter a ideia é
relativamente fácil, mas a execução é um pesadelo. Desde então que sinto uma enorme admiração
pelos escritores.
Mais uma vez fizera mau juízo dela. Tinha de parar com aquilo. Ela era maravilhosa. Levantou-
se, deu a volta à mesa e, segurando-a pelos ombros, fê-la levantar-se da cadeira e beijou-lhe o
pescoço e depois os lábios macios, sem batom.
– Vamos pôr esses «escritores» no singular – disse ele.

Se fosse possível fazer amor com uma cascata, a sensação seria como Adrienne. Límpida e
cintilante, pura e de movimento rápido mas constante. Como algo impossível de parar ou de
segurar; algo fluido. Ao contrário de Lisa, pensou Jack, deitado ao lado de Adrienne, que dormia
um sono leve e silencioso, tal como ele imaginara. Como teria sido Lisa? Como um caramelo?
Fechou os olhos por breves instantes, tentando afastar a imagem. Era capaz de se pôr a evocar estas
palermices metafóricas durante horas. Elas tinham-no ajudado a suportar muitos jantares de
convívio, servindo também de muleta para começar a escrever em certas manhãs, quando as
palavras lhe saíam pesadas e duras. Embora ultimamente nem esse truque lhe valesse.
Sacudiu o pensamento da mente e levantou-se, agradecendo a Deus em silêncio por nada mais o
ter deixado ficar mal. Não queria uma repetição do «problema Lisa», que era como passaria a
pensar no assunto. Entrou na casa de banho, bebeu um pouco de água e agradeceu a Deus mais uma
vez, em voz alta, apenas para selar o acordo; voltou para o quarto e observou o sono de Adrienne.
A pele dela era como uma daquelas estátuas que se via nas fontes europeias, alva e fria.

– Olá – disse ela, afastando-se ligeiramente dele pela manhã e sorrindo.


– Olá.
– Fizeste um intervalo no trabalho?
– Talvez volte mais para o fim do dia. Agora não.
– Também costumas escrever à noite?
– Sim. Nunca foi meu hábito. Sempre tive o mesmo padrão, agarrei-me a ele por superstição,
acho. Levanto-me, tomo café, trabalho duas horas, tomo mais café, trabalho mais uma hora, depois
almoço. Mas ultimamente... – Encolheu os ombros.
Ela observava-o com atenção. Aquele aparente fascínio com o seu trabalho era novidade para
ele. Paula costumava apoiá-lo, mas era cética, e Marnie... bem, quem é que sabia o que se passava
na cabeça de Marnie?
Depois de Adrienne se vestir foram dar um passeio pela praia. Havia outros a fazer o mesmo,
donos de cães, casais e famílias com crianças aos ombros. Estava uma linda manhã, o céu alto e
limpo. Ao lado dele, Adrienne andava a passos largos, a marcha de uma atleta. Apesar da noite
juntos, ela mantinha um ar estranhamente intocado. Havia algo nela que evocava uma sensação de
distância. Ele abraçou-a enquanto se dirigiram até à zona de areia molhada pelo mar. Ela não falou,
o que se adequava ao estado de espírito de Jack. Era fácil estar ali com ela, pouco exigente. O rosto
dela em descanso era sereno, sério.
– Estás a imaginar fotografias? – perguntou ele por fim.
– Fotografias... sim, suponho que sim. Mas mais do que as paisagens, por mais bela que esta seja,
são as pessoas que atraem o meu olhar de fotógrafa – disse ela, virando-se para ele e estudando-lhe
o rosto com um olhar profissional.
Jack riu-se. – Eu sou avesso a fotógrafos – alertou. – Exceto em circunstâncias especiais –
completou, cingindo-a mais contra si.
De volta à casa, ele serviu-lhe pão fresco fofinho, colocou um pedaço de manteiga num prato e
duas tigelas pequenas ao lado. – Compota – anunciou. – És a minha primeira cliente.
– Foste tu que fizeste? – perguntou ela com uma ligeira expressão de incredulidade.
– Com estas mãos.
– Estou impressionada.
– Pois, eu também.
Riram-se.
– És mesmo um cozinheiro, não és?
– Não entendi a pergunta.
– Bem, é só que parece que conheço um monte de gente que faz muita coisa pela metade. Dizem
que são jardineiros ou pintores ou poetas ou o que seja, mas a verdade é que não o praticam
realmente. Parecem mais... brincar a essas coisas.
– Bem, eu brinco com o casamento e a religião, mas quando se trata de cozinhar não estou para
brincadeiras.
Ela sorriu. – E a escrever?
– Aaah, a escrever... – Ela olhava-o com a mesma intensidade. – Eu costumava pensar que levava
isso muito a sério – disse ele.
– E agora?
Ele abriu o frigorífico e tirou alguns ovos. – Não sei. – Virou-se para ela com um ovo em cada
mão. – Acho que posso ter fracassado. Eu tinha uma rotina que foi eficaz durante um tempo, mas
que agora deixou de ser. Não sei se é o trabalho, se sou eu, ou o quê. – Estendeu-lhe um ovo. Ela
abanou a cabeça. – Quero que alguma coisa mude, mas não tenho a certeza do quê.
Ela olhou-o, cautelosa. – Queres dizer que não sabes se queres escrever de forma diferente, ou
queres dizer que não sabes se queres escrever?
Ele sorriu, pousou os ovos, pegou numa maçã da fruteira ao lado dele e atirou-lha. Ficou
impressionado com o movimento lânguido com que ela a apanhou. Adrienne pousou a maçã e ficou
a olhar para ele.
– Eu não sei o que quero – continuou ele, encolhendo os ombros. – Sou um trabalho em curso,
querida.
– O que significa isso? – ela quis saber, não correspondendo ao tom de voz dele; arrancou um
canto minúsculo do pão, barrando-o lentamente com manteiga.
– Significa que sou um risco – disse Jack. Aquela não era uma conversa que queria continuar. –
Sou um risco e sou um idiota egocêntrico. Já me foi dito por várias mulheres perfeitamente
sensatas, e o conselho que te posso dar é: nunca me deixes aproveitar para falar de mim próprio.
Porque quando começo nem sempre sei como parar.
Ele aproximou-se dela e beijou-lhe o cimo da cabeça, como que a terminar aquele tema de
conversa. Mas ela colocou o pedaço de pão, agora coberto com um montículo escuro de compota,
na boca e olhou para ele como se continuasse a conversa mentalmente.
Jack esperou, infantilmente, por um elogio à compota. Não houve nenhum.

Izzy disse com entusiasmo e desenvoltura: – Olha para isto, mãezinha.


Era uma fotografia de minidoses de peixe e batatas fritas, servidas em pequenos embrulhos feitos
de jornal. – Não é fabuloso?
Eve examinou a fotografia e, na verdade, achou a ideia muito interessante. As doses tinham fatias
de limão minúsculas e cones de papel com sal.
– O que me preocupa é se são servidas demasiado cedo. Elas precisam de ser servidas muito
rapidamente, para se manterem estaladiças – disse ela, baixando os óculos de leitura.
– Oh, sim, eu sei, mas estamos a falar do Connor. Eles organizam as melhores festas, por isso não
acho que vá ser um problema.
Elas estavam a discutir a festa de noivado de Izzy, que eclipsara, pelo menos temporariamente, a
conversa sobre o casamento. Aliás, Eve achava que a ideia da festa de noivado parecera surgir do
nada, depressa ganhando proporções gigantescas, como um tornado. Era para ser realizada no
Connor, o grandioso hotel onde Izzy se encontrara com o pai para almoçar, embora nunca tivesse
partilhado essa informação com Eve. Como se o facto de estar a organizar uma festa para oitenta
pessoas no hotel mais palaciano de Londres fosse algo absolutamente normal. Ou, pensou Eve,
como se não devesse à própria mãe qualquer explicação. Talvez não devesse.
Todavia, aquelas discussões relativas às festas de casamento e de noivado, em especial sobre a
comida, haviam pelo menos servido para abrir caminho a Eve para falar com Izzy mais livremente
do que nunca. Era uma área onde a filha mostrava respeito por ela. Izzy parecia genuinamente
agradecida pelas suas opiniões e procurava-as. Algo se alterava entre as duas, uma mudança para
melhor, num lento gotejar, como geleia filtrada por musselina. Eve pensou que talvez a terapia a
estivesse a ajudar na relação com Izzy, mas não era só isso, algo também se passava com Izzy.
Talvez o casamento, Ollie e, embora ela nunca o fosse admitir, o diminuir da influência da avó
contribuissem para a mudança.
Eve pousou os óculos em cima de uma das revistas que subitamente estavam espalhadas pela casa
toda – revistas de noiva, de casamento – e alisou o cabelo com as mãos. Ainda não estava
habituada ao novo comprimento.
– Fá-la parecer anos mais jovem – dissera a rapariga que lho cortara no pequeno e luminoso
cabeleireiro de Sudbury.
Izzy, no entanto, olhara desconfiada para o corte pelo queixo, exibindo um ar quase infeliz. Esta
última mudança da mãe parecia atingi-la como uma agressão. E agora Eve estava prestes a
introduzir um outro elemento anómalo, um ainda mais tumultuoso.
– Recebi uma carta do teu pai – anunciou ela.
Izzy demorou um pouco a levantar os olhos da revista. – Ai sim?
A atitude fez Eve lembrar-se de uma situação em que Izzy, com cerca de oito anos, tinha roubado
umas trufas da despensa e as comera à pressa, escondida atrás da porta. Depois aparecera com a
boca e o queixo ainda sujos de chocolate. Mas quando lhe perguntaram se as tinha comido,
respondera «Não!», abanando a cabeça enfaticamente com aquela mesma expressão: de culpa.
Subitamente, Eve sentiu-se muito mal. Porque é que uma filha se sentiria culpada por ver o próprio
pai? Por querer vê-lo? Ela não tinha roubado nada, simplesmente aceitara o que era seu por direito.
– Ele mostrou vontade de passar mais tempo contigo e eu queria saber como te sentes em relação
a isso – disse Eve de mansinho.
Izzy pousou a revista e passou as mãos pelos olhos; era um gesto simples, mas revelador de um
cansaço mais profundo. Em Izzy era levemente chocante. Ela nunca parecia outra coisa que não
perfeitamente controlada ou, pelo menos, não até recentemente.
– Estás bem, querida? – perguntou Eve, sentindo uma onda de grande ternura. Tentou contrariar a
subida interior daquela dor, a dor que sentira quando se fora abaixo naquela noite em frente a
Gwen, uma dor nascida de carregar um fardo demasiado pesado durante muito tempo. Muitas coisas
pesadas, esmagadoramente pesadas. Como fora egoísta ao não perceber que talvez Izzy tivesse o
seu próprio fardo para carregar. Ela parecia sempre tão brusca.
Izzy começou a chorar.
Eve levantou-se, aproximou-se da filha e, seguindo o exemplo de Gwen em relação a ela, deixou-
a chorar e esperou.
Izzy, recuperando rapidamente o controlo, mostrou timidez pelo ataque de choro. Com mãos
atrapalhadas remexeu nos bolsos do casaco de malha comprido à procura de um lenço de papel, um
casaco cor de azeitonas verdes, que combinava com os seus olhos. Levantou-se sem dizer nada e
foi à cozinha. Eve ouviu o abrir da torneira.
No regresso, Izzy parou e encostou o corpo esguio à ombreira da porta, bebendo um gole de água
antes de se virar e pousar o copo em cima do guarda-louça, junto à porta da despensa, onde Eve
guardava as jarras. Em seguida, assoou o nariz num guardanapo de papel e voltou a assumir a
mesma posição à porta.
– Imagino que estejas chateada – disse ela na defensiva.
Eve ficou chocada. – Porque é que achas que ficaria chateada?
– Por eu o ver muitas vezes. Ao Simon... ao paizinho.
Paizinho, como aquela palavra ainda soava incongruente, pensou Eve. Embora «pai» fosse
igualmente inadequado; demasiado íntimo, por demais sugestivo de um relacionamento longo e
irrefutável, um tipo de relacionamento que progredira através de miminhos no colo, beijos
brincalhões nas bochechas e, mais tarde, impertinências e galhofadas. O tipo em que peças de teatro
natalícias e recitais de dança da escola já tinham aberto o caminho para o maior espetáculo de
todos: o casamento. Izzy tinha perdido tanta coisa, e Simon também. E Eve. Eve perdera todas essas
coisas também. Fora com Virginia que Izzy as partilhara. Eve tinha a dolorosa lembrança daquela
vez na escola, num dia aberto aos pais, em que uma outra mãe a confundira, a ela, Eve, sempre a
reboque de Virginia, com a ama. Ela tinha falhado com a filha tanto quanto Simon.
Nem ela nem Izzy falaram por um momento, e então Eve disse: – Izzy, queres passar mais tempo
com o teu pai?
Izzy deixou-se escorregar pela ombreira da porta e sentou-se no pequeno degrau que separava a
cozinha da estufa. Dobrou os joelhos e, abraçando-os, apoiou neles o queixo.
– Eu costumava sonhar que ele viria buscar-me – disse ela baixinho. – Costumava pensar que ele
viria e que seria um homem bem-parecido e amável. – Fez uma pausa para assoar o nariz
novamente. – E depois, bem, agora que ele veio... vejo que é tudo isso. – Levantou a cabeça para
olhar para a mãe.
– É? – perguntou Eve.
– Sim, é. Ele é exatamente como o imaginei, mas em vez de isso me fazer feliz, deixou-me tão...
triste. Triste e confusa. Não sei explicar. Tudo mudou. Mudou quem eu pensava que era. Porque não
é só ele. Se fosse só ele seria uma coisa, mas não é. Ele tem uma família – terminou, quase sem
fôlego. Depois, num tom subitamente apologético, disse: – Desculpa, calculo que sejas tão avessa à
ideia quanto eu. – A voz voltou a endurecer quando o disse, o que apagou um pouco o raro e
luminoso rasgo de introspeção e compreensão para com os sentimentos de Eve.
Eve ficou a pensar um momento e então disse: – Na verdade, eu não me importo. Ou, pelo menos,
não me importo tanto quanto pensava. Tanto quanto me teria importado se fosse antes. Ainda me
sinto um pouco confusa em relação a isso, também.
– A mulher dele teve cancro – disse Izzy. – Cancro da mama.
– Entendo.
– Mas agora já está bem. Ou, pelo menos, eles acham que ela vai ficar bem.
– Deve ter sido um período muito difícil para eles.
– Eu acho que ele a ama muito, a ela e aos rapazes. Ama-os verdadeiramente. Quando me contou
sobre o cancro, estava com lágrimas nos olhos. Lágrimas reais. Achei que ele fosse deixar-se ir
abaixo ali mesmo, mas então mostrou-me fotografias de todos eles, dos filhos mais novos e do outro
rapaz do segundo casamento. Estavam todos juntos numa praia qualquer... numa praia... a passar
férias! Porque é que ele nunca quis levar-me de férias? Porque é que ele não me amava a mim? –
Ela gritou a palavra, com o rosto dilacerado pela dor e virado para o teto.
Eve sentiu o grito nas profundezas do seu ser; lá bem no fundo, em alguma parte visceral de si,
até então negada ou desligada. A parte do amor de mãe. Do amor maternal animal, que não se
ligara, nem acendera, ou fosse lá o que fosse que devia ter acontecido quando Izzy nascera e que
Eve calara com apatia desde então. Levantou-se, foi para junto da filha e envolveu-a nos braços,
sentindo as lágrimas dela molharem-lhe o algodão da blusa.
– Oh, minha querida menina! Nós desiludimos-te tanto – disse.
CAPÍTULO 7

J ack picou um pouco de funcho, colocou-o numa taça de cristal lapidado e acrescentou limão e
açúcar, vinagre e natas. Depois juntou os temperos e guardou a taça no frigorífico.
Escrevera a Eve:

Tenho andado a cozinhar para uma vegetariana. É um desafio, mas acho que sou capaz
de estar à altura. Hoje em dia prefiro estas pequenas colinas, estes outeiros. Quando sou
confrontado com uma montanha a transpor, acabo sempre a dar um pontapé na maldita
coisa. Talvez eu já tenha passado o tempo das grandes escaladas. Vejo-me a preferir ficar
por aqui, nas terras baixas, contentando-me com alguns desafios menores que me lembram
que ainda estou vivo. Quero descansar um pouco.
Já decidiu se vai fazer um jantar sentado na festa de noivado? Ou as bebidas e canapés
venceram? Eu não conheço bem Londres, mas já ouvi falar do Connor. Muito distinto,
pensei, todo chique. Aposto que as pessoas dessa cozinha são perfeitamente capazes de dar
a volta a um blini.
Jack
Envio-lhe, espero que ileso, um frasco da minha geleia de malaguetas preferida. Sirva
com bolinhos de milho. Vai agradecer-me.

Eve rodou o frasco de geleia de malaguetas na mão e ficou maravilhada com a cor, um âmbar
avermelhado e perfeitamente translúcido quando o ergueu à luz da janela da cozinha. Em seguida,
pousou o frasco e pensou na vegetariana de Jack. Não sabia porque se preocupava com a
vegetariana de Jack. E, de facto, tinha dificuldades em admitir para si mesma que o fazia. Mas era
verdade.
Dantes pensara muito pouco na vida romântica de Jack, possivelmente porque ela própria não a
tinha, concluiu com uma ponta de reprovação. Mas, apesar desse vazio, estava convencida logo à
partida que a vegetariana representava exatamente isso: um romance, uma nova mulher na vida de
Jack. Deu por si à procura de uma menção deles como casal. Jackson Cooper devia ser o tipo de
pessoa, achava ela, que era convidada para estreias de filmes e afins; festas que vinham descritas
ao pormenor nos jornais. Ela não se imaginava a viver num mundo desses, mas também nunca teria
sido capaz de se imaginar a conhecer alguém que vivia nesse mundo.
Mas a verdade é que não conhecia Jack, corrigiu-se. Não verdadeiramente.

O que Eve não sabia é que, apesar de ser frequentemente convidado para o género de eventos que
ela tinha mentalmente invocado, Jack raramente comparecia. Havia-se fartado alguns anos antes
daquele tipo de vida social, embora ainda a tivesse mantido um bom tempo após o enfado se ter
instalado. Marnie adorava as festas e as pessoas. Jack não. Há vários anos que Jack sonhava com a
solidão, e talvez com o tipo de mulher capaz de olhar para ele por cima de um livro, de vez em
quando, e sorrir.

Eve ocupou-se com os preparativos para a festa de noivado de Izzy e Ollie, embora não houvesse
muito para ela fazer assim que a ementa ficara decidida: bebidas e canapés.
– Ela vai ter uma dama de honor para esse tipo de coisas – disse Gwen com severidade quando
viu Eve a enfiar convites nos envelopes. Ela tinha razão, Amy estava a mostrar-se perfeitamente
competente.
– A Amy está muito ocupada a organizar a viagem de despedida de solteira – insistiu Eve.
Gwen retorquiu com impaciência: – Eu casei com o vestido da minha mãe e foi a minha tia que
fez o bolo. Os jovens hoje em dia querem tudo. E não julgue que é só o casamento. Eles estão à
espera de começar a vida de casados já com tudo. Todas as coisas que trabalhámos a vida toda
para conseguir.
– Eu não, Gwen – disse Eve.
Mas Gwen já se dera conta do seu erro. – Eu só queria dizer...
– Eu sei o que quiseste dizer. Tu e o George trabalharam arduamente a vida inteira. Eu admiro
isso. Levei muito tempo a perceber que fui apaparicada em muitos aspetos. Não lhe dei o devido
valor. Desperdicei o meu tempo a pensar em tudo o que não tive, sem nunca pensar no que tive.
– Sempre foi muito generosa comigo e com a minha família – disse Gwen. – E agora faz
voluntariado. Isso tem valor. Muito valor.
Eve sorriu. Há cerca de um mês que ia trabalhar para a loja da Cruz Vermelha uma ou duas vezes
por semana. Mas de repente deu um salto, deixando cair a caneta, e exclamou: – Oh, não! – E
correu para a cozinha.
– Os biscoitos de manteiga – disse ela em voz alta, metendo as mãos numas luvas de forno
xadrez. Tirou um tabuleiro de metal do forno. – Salvos! – anunciou, mostrando o tabuleiro a Gwen,
que havia ido atrás dela. – Graças a Deus! A Geraldine adora biscoitos de manteiga.
O seu cabelo, no novo estilo solto, tinha-lhe caído sobre o rosto. Ela afastou-o para trás e riu-se.
Gwen achou que ela parecia não só mais jovem, mas muito bonita.

Jack pretendera servir a salada de funcho com uma sopa de feijão branco e raviolis recheados
com puré de abóbora manteiga. Tivera um grande prazer em planear o menu, gostava de ter de
cozinhar dentro desses novos parâmetros. Mas, então, Adrienne chegara e presenteara-o com duas
maçarocas.
– Podemos comê-las esta noite – dissera ela, pousando-as no balcão da cozinha, com as folhas a
descascar e já secas.
Jack tivera a impressão de que ela não estava a fazer uma sugestão ou à espera de resposta. Ele
olhara para o milho e conscientemente não reagira. Adrienne tinha resistido até ao momento à sua
comida. Comia da mesma forma contida com que fazia tudo o resto. Não exatamente desprovida de
prazer, mais sem necessidade. Decidira cozinhar o milho.
– Deixaste-me dormir outra vez – dizia ela agora, ao entrar na cozinha. O cabelo caía-lhe liso e
suave pelos ombros, como se tivesse acabado de ser escovado. Tinha sempre aquele aspeto.
– Porque não haveria de o fazer? É um sábado à noite, no final de setembro. É exatamente o
género de coisa que nós, idiotas preguiçosos da classe média dos países de primeiro mundo,
podemos dar-nos ao luxo de fazer.
– Estás a fazer pouco de mim, Jackson?
– Não, querida – disse ele, dando-lhe um beijo na testa. – A troça é de muito mau gosto numa
pessoa como tu.
– Não devias dar-te a todo este trabalho.
A cozinha estava cheia de vapor e desarrumada pelo trabalho de cozinhar.
– Quem disse que era para ti? – brincou ele.
Ela riu-se.

– Não falamos o suficiente de ti – disse Jack, mais tarde, enquanto viam o sol iniciar o seu
majestoso mergulho no horizonte. Tinham vestido camisolas para comerem ao ar livre.
Adrienne virou-se e olhou para ele, perplexa.
– Estou a aprender – disse ele.
– De que parte queres falar?
– Como eu disse, estou a aprender.
Ela riu-se. – És bom a cortejar, não és?
– Tive três irmãs mais velhas e uma série de tias, por isso já dominava a arte no jardim de
infância. É a falar com as mulheres que nunca fui bom. Sempre consegui o que queria delas sem
isso, acho. – Ele abriu um largo sorriso, em parte para mascarar o tom de confidência.
– E agora? Estás a conseguir o que queres?
Ele puxou-a para si. Ela inclinou-se num abraço ágil.
– Pareço estar – respondeu ele.
Ele serviu o milho primeiro e viu como ela levantou o seu contributo para a refeição com uma
mão prudente; em seguida, correu a faca com precisão ao longo de duas filas de grãos, que caíram
numa pilha no prato. Pousou a maçaroca e começou a comer os grãos, um a um, com cautela, como
se fosse algo que saboreava pela primeira vez.
– Fui convidada para a inauguração de uma galeria na quarta-feira. Queria saber se gostarias de
ir até à cidade para me acompanhares – disse ela.
Jack tinha pegado na sua maçaroca e estava prestes a dar uma mordida. A manteiga escorria-lhe
pelos dedos. Queria dizer que não, mas a palma de uma mão imaginária ergueu- -se-lhe no cérebro.
Para, avisava. Ele gostava daquela mulher; o que é que lhe custava fazê-la feliz?
– E porque não? – respondeu. – Queres pôr um pouco de manteiga nisso? – Ele empurrou o prato
na direção dela, mas ela recusou.
– Na verdade, eu digo que sou vegetariana, mas estou a considerar abandonar todos os produtos
de origem animal – declarou ela.
– Acho que não era capaz de fazer isso – disse ele devagar. Não havia desafio na sua voz.
Adrienne não lhe suscitava desafio. – Acho que não conseguia limitar as minhas escolhas
alimentares, mesmo sendo capaz, quanto mais não seja intelectualmente, de aceitar o conceito.
– Não. Eu também não te pedi isso. – O tom dela, embora não de adversária, assumira uma
espécie de superioridade moral silenciosa.
Jack soltou uma gargalhada. – Querida, fazes vir ao de cima o que há de melhor em mim, não
posso negar. Mas eu sou mais carne vermelha.
Ficou aliviado quando ela sorriu.

A inauguração da galeria estava repleta de estrelas; o artista era muito bem relacionado e a sua
carreira estava em ascensão. Adrienne era a responsável pelo retrato no catálogo. Quanto a Jack,
essa era a parte mais interessante da noite. Achou o trabalho pouco original e a multidão
desinteressante. Mas Adrienne parecia estar a divertir-se e ele pôs um sorriso por causa dela. Ela
estava deslumbrante num vestido verde simples que lhe realçava o pescoço comprido e a
translucidez da pele. Não o espantou nada que os outros fotógrafos, amontoados lá fora no passeio,
a tivessem fotografado ao entrar.

Olhando para o ecrã do computador, Eve achou que Adrienne (Adrienne Charles, dizia a legenda)
parecia um salgueiro, um salgueiro na primavera. Jack tinha exatamente o mesmo ar com que surgia
nas capas dos livros: descontraído, bronzeado, bem-parecido e másculo. Muito másculo.

Fui a uma festa em Nova Iorque esta semana, escreveu ele:

Era do pessoal das artes. Jantámos com alguns deles depois. Todos teceram grandes
elogios à comida («fusão japonesa», mas que diabos é isso?). Eu apostaria muito dinheiro
em como nenhum deles sabe para que serve um batedor. Ainda anda a pensar em ideias
para a festa?

Não, não andava.


Andava, no entanto, a considerar o facto de a sua amizade com Jack ser na verdade muito mais
vazia do que se convencera que era. Alguma coisa mudara com aquela fotografia, aquela imagem
em tempo real dele com a mão pousada, de forma tão sugestiva, no braço de uma jovem e bela
mulher. Fora substituída por algo a que ela estava bem mais habituada, a sensação de permanecer
nas sombras enquanto outra pessoa brilhava.

Hoje em dia já não tenho um grande interesse pela vida na cidade, Jack escreveu:

mas tenho sido lembrado nas últimas semanas do que é comer numa. O que é podermos
pegar no telefone e ter alguém a bater à nossa porta minutos depois a entregar um
recipiente com ensopado de amêijoas frescas. O que é ter tudo o que quisermos servido a
qualquer hora. É o paraíso. Bem, pelo menos para mim, mas acho que talvez a Eve partilhe
algumas das minhas noções de paraíso. Na minha imaginação, a Eve é por vezes uma
mulher roliça, mas outras vezes, de figura franzina. A sua cozinha tem uma delicadeza que
eu associo à leveza; todavia, as suas descrições de comida estão impregnadas do género de
amor que sugere um bom garfo. É um bom garfo, Eve? Ou coloca coisas belas em lindos
pratos, dispondo-os diante dos seus amigos e familiares como oferendas? Testamentos do
seu amor.
J

Eve não respondeu a esta missiva. Cinco dias depois recebeu esta:

Apague da memória aquele último monte de disparates. Não quero ser intrometido. Acho
que estou a ficar pomposo. Vou fazer cinquenta anos daqui a poucos meses. Talvez a
pomposidade faça parte.

Se as visitas de Jack à cidade eram impulsionadas pelo prazer de ir a restaurantes, eram também
de certa maneira desvirtuadas pela falta de prazer de Adrienne nesse mesmo passatempo. Ele
levara-a ao Lucio’s, onde ela, depois de um breve folhear, pousara a ementa e pedira uma salada e
uma água mineral. O empregado de mesa, que lhes havia descrito as sugestões do chef com
solenidade religiosa, repetira o pedido de Adrienne em voz alta, o rosto inexpressivo, antes de se
virar para Jack com um ar que, acompanhado do mais subtil erguer de sobrancelha, parecia dizer
«Bem, senhor, eu tentei».
A partir daí, Jack passara a dar preferência a almoços extravagantes, sozinho, enquanto Adrienne
estava no estúdio. À noite iam juntos a algum restaurante local, onde ele fazia um pedido modesto e
a ouvia falar sobre o seu dia, ou então preparava qualquer coisa simples na minúscula cozinha de
casa dela, que era tão clinicamente imaculada e ostensivamente equipada como a de qualquer
pessoa que não cozinha.
Os dois haviam criado a rotina de ele a visitar duas noites durante a semana e ela ir passar os fins
de semana a casa dele. Até ao momento não houvera complicações. Um passeio descontraído ao
longo de uma grande avenida.

Uma noite, a caminho do apartamento de Adrienne com uma seleção de mercearias feita por Jack,
ela disse: – Não tenho a certeza de que a fotografia seja uma arte.
– Claro que é – respondeu Jack. Mas a expressão dela, de perfil, era séria. – Tudo é arte, se for
feito da maneira certa – confirmou.
– Gosto dessa ideia, Jack, mas não sei se é verdade. Talvez seja apenas uma questão de
semântica. Talvez precisemos de palavras melhores, definições mais adequadas para as palavras,
mas algumas coisas têm alma e outras não. Algumas coisas exigem um tipo de resposta instintiva.
Eu não tenho isso. A minha abordagem é muito científica.
Ela fizera esta afirmação no seu habitual tom comedido, sem quebrar o passo uniforme a que ele
se acostumara ao caminhar ao lado dela, mas ele apercebeu-se, não obstante, de algum sentimento.
Uma profundidade de sentimento que nunca sentira nela antes, pensou.
– Percebo o que queres dizer – disse ele. – Eu também não tenho.
– Tens, sim.
– Não, acho que tenho andado à procura disso ultimamente, mas a alma, definitivamente,
abandonou-me.
– Talvez, ultimamente – concordou ela. Abrandou um pouco o passo e continuou: – Eu não te
disse nada, porque sei que não devia, mas noto que não tens trabalhado. Espero não ter sido a causa
da tua distração. Não quero distrair-te, Jack.
Tinham chegado ao prédio de Adrienne e pararam ao fundo dos três degraus estreitos que
separavam a porta da frente e o apertado hall de entrada da rua.
– Tu não me distrais, Adrienne. Tu... – O que recebia ele de Adrienne?, pensou. – Tu equilibras-
me. És como uma paisagem longa e agradável de mar tranquilo.
Ela abriu um sorriso desapaixonado. – Isso é bom. Mas eu vi aquela peça de teatro que
escreveste, Jack. És um artista. E eu sei que é um tema sensível, mas espero que consigas voltar a
fazer algo desse género.
– Claro – disse ele, consciente de uma vontade de querer fugir... uma sensação que tivera muitas
vezes na vida, mas não nestas últimas semanas com Adrienne. Por hábito, usou o seu tom
brincalhão, a sua primeira defesa com as mulheres. – Claro! Só queria saber amarrar-me bem ao
mastro antes de me aventurar nas ondas outra vez.
Ela sorriu, mas não se riu.

As gargalhadas de Ollie eram demasiado altas. Ele estava embriagado, ou a caminho disso,
pensou Eve com desânimo. Ela própria já bebera dois cocktails de champanhe, ambos consumidos
a grande velocidade e segurando o pé do copo com ambas as mãos e com tanta força que corria o
risco de o partir. Não devia preocupar-se. Não devia. «Dois ovos», recitou baixinho. «Cento e
quinze gramas de manteiga». Na ausência do tiquetaque de um relógio, Beth tinha sugerido que
concentrar-se numa receita que soubesse de cor podia ajudá-la a recompor-se. Cento e setenta
gramas de açúcar... pensou Eve. Mas, então, duas coisas aconteceram. Ollie soltou uma gargalhada
e Simon Petworth apareceu. A festa de noivado de Izzy estava a começar a aquecer. Das duas
coisas, a primeira era a que continha maior perigo.
A chegada de Simon não se tratara de uma emboscada. Ele e Izzy, com o consentimento de Eve,
tinham-na ensaiado. Izzy queria Simon na sua festa, e Eve compreendera que Izzy gostaria de ter lá
os pais, embora achasse desconfortável pensar em si mesma e em Simon dessa forma, como uma
entidade. Tinha sido tão bem sucedida em dissociar-se dele, e do curto casamento, nos anos de
permeio desde que ele partira. E agora, este novo Simon, com as suas preocupações de carne e
osso, parecia-lhe diferente do carismático mas desprendido homem de que ela se lembrava; para
ser sincera, o homem que sempre parecera à parte dela, mesmo antes de a ter deixado. Quando
pensava nos dois juntos, como casal, via-se como uma jovem tontinha, muito mais insegura do que
Izzy, uma jovem desesperada por algo ou por alguém mais forte a que se agarrar.
Ocorreu-lhe agora que Ollie poderia estar a fazer a mesma coisa com Izzy. Era um pensamento
desagradável, mas que, surpreendentemente, a acalmou. As suas próprias preocupações alarmantes
foram levadas pela corrente por outras novas e mais poderosas em relação à filha. Olhou para
Ollie, ainda de sorriso muito aberto, apertando mãos e sacudindo-as com demasiado fervor,
beijando muitas jovens bonitas em belos vestidos de forma excessiva. Observava-o com tanta
atenção que desviou os olhos da entrada do ex-marido e quando se apercebeu ele estava ao lado
dela.
– Olá, Eve – cumprimentou ele. A voz não tinha mudado. Mas é claro que não. Porque haveria ela
de imaginar que sim? Nada no seu físico havia mudado. A remodelação fora processada a um nível
mais elementar.
– Não vou ficar muito tempo – disse ele. Pretendia tranquilizá-la, supôs, de que cumpriria o
acordado, o compromisso, a favor dela, de que chegaria um pouco mais tarde e sairia mais cedo,
para não tomar a festa de assalto, expressão dele. Viria sozinho, sugerira ele a Izzy, de modo a não
perturbar a mãe e evitar a «tomada de assalto da festa». Os amigos dela, explicara ele com
sensatez, podiam ficar curiosos sobre um pai que aparece naquela altura do campeonato e não era
esse o objetivo da reunião. Ele ia pagar a festa de noivado, é claro, com a mesma generosidade
mãos-largas que mostrava nos preparativos para o casamento. Tinha-se oferecido para se encontrar
com Eve em privado mais cedo, mas ela recusara.
– Olá, Simon – disse ela, finalmente. Trocaram olhares um instante, ambos mergulhando
brevemente no passado, mas com imagens diferentes em mente. Cada um algo apologético,
imaginando-se com mais culpa do que provavelmente tivera. Cada um atribuindo menos culpa ao
enorme peso das circunstâncias do que era realmente apropriado.
– Eve, eu... – começou ele.
– A Izzy já te viu – cortou Eve em tom leve, como se estivesse a falar com uma das crianças que
entravam na loja.
Izzy aproximou-se, cautelosa, sem saber como se comportar ao ver os pais juntos. Eve sentiu-se
inundada de compaixão por ela. Não era surpreendente que a filha fosse uma pessoa tão decidida.
Mas ela era também frágil. Não dura como Virginia e como, para sua vergonha, Eve imaginara. Esta
noite, em particular, ela parecia tensa. Usava um vestido novo maravilhoso, um vestido justo cor-
de-rosa que lhe assentava muito bem, mas parecia frágil dentro dele. Sob a maquilhagem notavam-
se umas leves olheiras. Ela olhou de um dos pais para o outro, e Simon, parecendo também
perceber o nervosismo da filha, dirigiu-lhe um sorriso paternal e disse: – Estás muito bonita, minha
querida. Estás a gostar da tua festa?
Esta última pergunta, notou Eve, denotava preocupação. Ficou satisfeita. Talvez a presença de
Simon fosse positiva. Talvez, afinal de contas, em vez de lhe roubar alguma coisa, ele viesse
acrescentar. Ela tinha feito um péssimo trabalho na educação de Izzy, percebia agora. Talvez se
Simon tivesse realmente desenvolvido um sentido de dever para com a filha, ele viesse a ser não
uma ameaça, mas um aliado.
O sorriso que Izzy mostrou por fim parecia forçado. – Oh, sim, está tudo maravilhoso. Obrigada –
disse ela. – Muito obrigada. E a ti também, mãezinha. Obrigada por tudo.
Eve e Simon sorriram para ela, juntos. Dois cantos de um triângulo.
Ollie veio juntar-se a eles. – Olá, como vai? – cumprimentou ele.
Tanto Eve como Izzy olharam para Ollie, nervosas, mas ele pareceu ficar mais sóbrio sob o olhar
fixo de Simon.
– Prazer em vê-lo novamente – disse ele em tom decidido, muito aprumado e estendendo uma
mão firme, que Simon aceitou.
– Boa noite, Ollie. – Eles haviam sido apresentados num breve encontro na semana anterior.
Ollie, dirigindo-se ainda a Simon, mas tomando o braço de Eve, disse: – Venho só roubar a minha
futura sogra um bocadinho, se não se importa. Gostaria que ela conhecesse alguns dos meus amigos.
Eve perguntou-se se eles também tinham planeado aquilo, delineado a saída dela, e descobriu que
não se importava se assim fosse.
Simon sorriu em assentimento e disse: – Fiquei muito feliz por te ter visto, Eve – quando Ollie se
virou para a levar dali.
– Sim – respondeu ela. – E eu a ti. – Sentia-se como se tivesse acabado de matar um dragão.
Ollie, conduzindo Eve até ao pequeno aglomerado de jovens ali próximo, apresentou-a a cada um
deles. Eram colegas de trabalho, pessoas secundárias, educadas e apresentadas de forma algo
constrangida. Noutras partes da sala, velhos amigos, amigos mais próximos, o pessoal antigo da
escola, da infância e dos primeiros tempos em Londres, mostravam-se descontraídos e riam-se,
planeando já onde iriam mais tarde.
Eve cumprimentou toda a gente e, então, no pequeno intervalo que se seguiu, Ollie pegou noutra
bebida de uma bandeja que passava e engoliu-a de um trago. A mão que agarrava o cotovelo de Eve
ao conduzi-la pela sala voltou a apertar-se e então, de repente, como se as suas cordas tivessem
sido cortadas, ele largou-a e apoiou todo o seu peso contra uma consola art déco situada entre os
dois arcos da passagem que conduzia ao bar do salão de receção principal. O grande vaso de flores
lá pousado balançou.
– Merda – disse ele, recompondo-se logo de seguida. – Desculpe, Mrs. P., estou um pouco tenso.
Eve olhou-o calmamente. – Sim, pois estás – disse ela.
– Eu sei, desculpe. – Levou a mão à boca como se quisesse retirar o palavrão e adotou a
expressão de um rapazinho endiabrado de onze anos de idade.
– Não há muito que me choque, Ollie – disse Eve. – E certamente não a linguagem. Eu cresci
agarrada às saias de uma mulher cujo vocabulário metia qualquer estivador no chinelo. Hoje só
estou preocupada contigo e com a Izzy. Os dois parecem estar... tensos.
Ele voltou a dar uma daquelas gargalhadas sonantes. – Sim, estamos tensos – respondeu Ollie.
Era a primeira vez que se dirigia a Eve em tom rude e ambos estavam cientes disso.
– Desculpe, Mrs. P. – disse ele, voltando a soar como normalmente. – É esta coisa do casamento.
Ele parecia tão jovem naquele fato elegante. Era curioso o facto de as pessoas parecerem sempre
mais novas quando se vestiam com roupa de pessoas mais velhas, pensou Eve. – Eu sei – disse ela
com carinho. – Eu sei.

No final da noite Eve despediu-se de Izzy com um beijo leve, mas compreensivo, e disse-lhe que
fosse descansar. Simon já se tinha ido embora. Ela observara a retirada estratégica dele com uma
surpreendente falta de sentimento; uma estranha e exaltante falta de sentimento. Subiu no elevador
do hotel até ao quarto que Izzy tinha reservado para ela, sentou-se na beira da grande cama, que
tinha sido habilmente aberta, e olhou-se no espelho comprido do toucador no lado oposto. Estava
exausta, mas tinha conseguido. Havia viajado até Londres e conseguido aguentar uma festa inteira.
Encontrara Simon. Estivera ao lado da filha, como qualquer outra mãe faria. Tirou os sapatos e
massajou os pés. Doíam-lhe, mas, mesmo assim, ela sentia vontade de dançar.
CAPÍTULO 8

– S erá– que podes não fazer isso, querida?


Desculpa, não fazer o quê?
– Não desfazer o pão nessas bolinhas pequeninas que parecem caganitas de rato.
Adrienne olhou para as mãos, como se elas tivessem vida própria, e parou de enrolar pedacinhos
de pão em bolinhas que deixava cair no pratinho de apoio.
– Isto incomoda-te? – perguntou ela, virando a palma da mão e mostrando uma das bolinhas,
como se fosse algo frágil e precioso, uma pérola.
– Sim, incomoda.
– É apenas um hábito, acho. Faço sempre isto.
– Eu sei que fazes.
– E isso incomoda-te?
– Hum, hum.
– Mas nunca disseste nada.
– Talvez tenhamos chegado àquela fase do «Incomoda-me que gostes de transformar o pão em
caganitas de rato».
– Não acho que o problema seja o pão, Jack.
– Acredita em mim, é o pão.
– Não acho que seja, Jack.
Jack olhou por cima do ombro, esperando, embora por outras razões que não a fome, que o
empregado chegasse com a sua curgete recheada. Mas nenhum sinal dele. Tinham ido comer a um
restaurantezinho bem iluminado, com chão de tijoleira. Chamava-se The Glass House, escolha de
Adrienne. A curgete parecera a Jack a única coisa passível de ser comida que não lhe provocaria
uma forte reação intestinal. Fizera um comentário nesse sentido a Adrienne, mas ela mantivera o ar
sério fixo na ementa, deslizando um dedo tranquilamente pelas letras em itálico.
Quando o empregado veio, demasiado amistoso, como um pregador leigo a pairar sobre eles na
sua T-shirt preta e barba por fazer, ele e Adrienne ficaram cerca de cinco minutos em intensa
discussão sobre o que escolher até que ela pedira uma salada, como quase sempre fazia.
– Só isso? – perguntou Jack, incrédulo, depois de o empregado pegar nas ementas, fechando-as
com um estalido floreado, e se afastar, com um ar muito satisfeito e ridículo para alguém cuja vida
era aliciar pessoas com feijão-manteiga, pensou Jack.
– O que queres dizer? – perguntara Adrienne.
– Vinte minutos de discussão e pedes uma salada?
– Não foram vinte minutos – respondeu ela. E começou com a coisa das bolinhas de pão.
Agora, ela encarava-o com olhos francos. – Acho que o problema é maior do que isso, Jack.
– Eu não acho.
– É um problema de comida.
– Bem, julgo que deve haver algum membro do reino animal que come caganitas de rato, mas
para mim não se trata de um problema de comida. Trata-se de um problema de caganitas de rato.
Incomoda-me que transformes o pão em caganitas de rato. Embora... – ele pegou no pão, que era
maçudo, castanho e repleto de sementes e grãos, e tomou-lhe o peso com as mãos. – Não sei, talvez
esse seja o melhor uso para ele. – Fez uma pequena bola e sorriu. – Como correu a sessão
fotográfica? – perguntou, desistindo e mudando de assunto.
Adrienne esfregou as mãos, expulsando migalhas invisíveis, e respondeu: – A sessão correu bem.
– Sem crianças? Sem cães? Sem divas?
– Um senhor muito simpático e muito velhinho. Um astrónomo. Ganhou o Pulitzer.
– Que bom. Bom para ele.
– Jack, acho que precisamos de falar sobre este problema da comida.
– Não há nenhum problema de comida.
– Sim, Jack, há. Tu tens um problema com a comida. Estás obcecado com comida. E isso está a
sugar-te a criatividade. Não escreves e andas obcecado por comida. É uma espécie de...
transferência; estás a transferir o teu talento para a escrita, a tua capacidade de engendrar coisas
com palavras, para engendrar coisas com alimentos. Isso preocupa-me, Jack.
– Preocupa-te?
– Sim. – Ela estendeu a mão e pousou os dedos delicadamente sobre os dele. – Acho que está a
impedir-te de escrever.
Jack ficou a olhar para ela. Sabia que parte da culpa da conversa era dele. Fora ele que reabrira
o caminho.
Tinha feito uma coisa estúpida. Deixara Adrienne ler algo que ele tinha escrito. Entregara-lhe as
páginas com um guião em mente que sabia ser impossível de ela perfilhar. Era algo que tinha
escrito naquela manhã, trabalho que noutros tempos teria considerado apenas palha e que poria de
lado algum tempo até voltar a pegar nele, extrair talvez uma frase e descartar o resto. Mas no seu
recente estado de espírito, mais inseguro, andava a remexer no material que escrevia e, nessa
preocupação, a perder o fio à meada. Sabia disso, sabia que a resposta era afastar-se, mas não fora
capaz de o fazer. Passava a vida a espicaçá-lo, como a um dente incomodativo, e depois metera
Adrienne ao barulho. Estúpido.
Ela olhara para o trabalho e lera-o rapidamente; em seguida, olhara novamente para ele, à
procura de algo.
É uma mulher muito inteligente, pensou. Ele tinha feito Manhattans e bebeu um gole do dele.
– Do que é que estás à espera, Jack? – perguntou ela.
– À espera? – disse ele, a repetição como o leve disparo de uma arma para iniciar uma
discussão.
Mas ela não lhe deu ouvidos. – Não sei – disse, medindo o impacto de cada palavra antes de a
pronunciar – se estás à espera de uma crítica ou de... – Fez outra pausa e bebeu um gole da sua
bebida.
Ele não a ajudou.
– Reafirmação – concluiu em tom suave. A voz dela soava estranhamente afetuosa.
Ironicamente era aquele afeto que o impelia... um puxão repentino para cima. Se ela tivesse
respondido com rispidez, ele ter-se-ia deixado levar, permitindo-se ser arrastado por uma torrente
insensata de irritação.
– De reafirmação, naturalmente.
Ele levantou-se, atravessou a sala, tirou-lhe as folhas de papel da mão e beijou-a. – Eu sou
sedento por palavras de louvor. Particularmente daqueles de quem gosto.
Adrienne, parecendo pouco convencida, mas salva da situação, sorriu e disse: – Esta bebida é
muito boa.
– Ah! – exclamou ele, retribuindo o sorriso, pousando o seu copo e caindo de joelhos à frente
dela. – Agora vais ver o efeito que algumas gotas de lisonja podem ter num homem carente.

– Podes pensar em jejuar – dizia Adrienne agora – como forma de retomares o contacto com a tua
verdadeira escrita. Como um processo de purga; de limpar todo o ruído da mente e do corpo para
que as novas ideias possam fluir livremente.
A refeição deles chegou. O empregado pousou a salada de Adrienne na frente dela, como se fosse
uma salva de pedras preciosas. Ela esboçou um sorriso vagaroso em resposta. Então, para espanto
de Jack, retomou a conversa: – Sim, um jejum – disse, como se tomasse uma decisão importante. –
Podíamos ambos fazê-lo.
– Querida, asseguro-te que não estou a ponto de desistir do puro e simples prazer de comer para
o caso de a musa ser uma maldita anorética.
– Eu não sou anorética, Jack.
Jack olhou para ela, atingido por uma série de entendimentos súbitos: primeiro, que o que ela
tinha dito era verdade; Adrienne comia sem fervor, mas comia. Segundo, que ela havia forçado o
salto por cima da barreira de segurança entre a terceira e primeira pessoas, o que, por sua vez, os
levava mais longe no território «casal» e nas respetivas profundezas da revelação. E ainda algo
mais. – Pois não – apressou-se ele a dizer. – Mas tu queres ser a musa, não é? Foi isso que
aconteceu com o tal fulano? O Terry?
– Terrence – corrigiu Adrienne. O ex-marido, um cantor e compositor razoavelmente bem-
sucedido. Ela ficou a pensar um momento. – Quando nos casámos, sim, ele disse que eu o inspirava.
Mas não sei se usaria o termo «musa».
– Eu usaria – disse Jack. – E acho que há mulheres de carne e osso que acreditam sinceramente
que o são. Que são capazes de inspirar arte. É nisso que acreditas, Adrienne? Achas que podes
inspirar-me?
– Estás a gritar, Jack.
– A verborreia tem esse efeito em mim. O mesmo acontece com esta porcaria. – Ele inclinou o
prato na direção dela. O prato era um grande quadrado branco que continha quatro pequenas
curgetes arranjadas num ninho feito com algo que parecia feno amarelo no centro. A voz dele
ergueu-se novamente ao dizer: – De repente estou cheio de vontade de ir à procura de um sítio onde
depois de abaterem algum animal chifrudo de grande porte mo sirvam com uma faca afiada e um
acompanhamento de bolas de massa frita.
Quando o empregado veio levantar o prato intocado de Jack, Adrienne sorriu em jeito de
desculpa e disse: – Ele está a ter um dia mau.

Vai precisar de ameixas de um vermelho muito escuro, escreveu Eve:

As ameixas-de-damasco são as melhores; pique-as muito bem e depois é só deixá-las


embebidas em gin com açúcar até ao Natal. É um pouco tarde para abrunhos, o sabor leva
mais tempo a desenvolver-se e nas ameixas é mais fácil. Às vezes adiciono uma gota de
essência de amêndoa.
A festa de noivado correu muito bem, obrigada por perguntar. Os canapés estavam
impressionantes e tinham um aspeto maravilhoso. Acho que quando se trata de comida de
festa, a aparência é tão importante quanto o sabor. A comida festiva é o beija-flor dos
alimentos, não acha?
Acabei de me dar conta que foi mais ou menos pelas ameixas que começámos. Parece ter
sido há tanto tempo.
Eve
Esta é uma ideia posterior, mas não menos pensada por isso: envio-lhe a minha receita
de bolo de Natal da avó. Ela não era minha avó. Era a avó de uma amiga minha de escola
chamada Erica. A Erica foi viver para a Austrália e nós perdemos praticamente o contacto,
exceto na altura do Natal, quando os postais por via aérea e esta receita voltam a unir-nos
brevemente. Certa vez fiz os meus biscoitos de gengibre (a que poderá chamar bolachas)
para a avó de Erica e ela deu-me esta receita em troca. Na altura fez-me sentir como se eu
fosse uma neta muito querida, e tenho o mesmo maravilhoso sentimento de pertença de
cada vez que faço o bolo, na época do Natal. Talvez comece também a fazê-lo, Jack, mas
não se sinta obrigado. A receita é um simples presente. Venho-me sentindo um pouco
melhor ultimamente, por muitas razões, como há muito tempo não me sentia, e acho que as
suas cartas fazem parte disso.
Eve
Acabei de reparar que a receita pede Golden Syrup. Talvez eu tenha de lhe enviar algum,
pois os substitutos são sempre complicados (misturar açúcar caramelizado, vinagre, xarope
de milho) ou inadequados (mel).

Obrigado, amiga. Fiquei sensibilizado com o presente da receita de bolo. Fá-lo-ei se


puder enviar-me o melaço de cana (que já me intriga).
Tem razão quando diz que as ameixas parecem já ter sido há muito tempo. Também me
parece ter sido há muito tempo a última vez que falámos de Paris. Ando com muita vontade
de comer dessa forma hedonista que Paris tão maravilhosamente permite. É possível
comermos o que quisermos em Nova Iorque e, em Itália, as papilas gustativas parecem
ganhar asas, mas Paris é o sítio ideal para a autoindulgência e eu estou a precisar de uma
fatia disso agora. Natas, carne, mioleira, caracóis ao alho, tarte tatin, profiteroles. O que
me diz? Talvez pudéssemos ir no Ano Novo. Nessa altura já terá passado a festa de
casamento e a autoindulgência sabe sempre melhor quando está frio.
Jack

Eve tinha escrito a Jack sobre o bolo de Natal sentada na grande cama do hotel, ainda sentindo a
suave efervescência do rescaldo da festa. Queria conversar com um amigo. Contar a alguém
próximo como tinha corrido a noite, mas percebera que os anos de isolamento lhe tinham custado
bem mais do que a família. Talvez pudesse ter escrito a Erica, reacendendo o afeto que existira um
dia entre elas, mas recostando-se nas gordas almofadas, admitiu que não era com Erica que queria
falar, mas com Jack.
E assim fez, divorciando a missiva da imagem que tinha agora na cabeça de Jack com o seu belo
salgueiro, ou sereia. Era isso que ela parecia – Adrienne Charles – uma sereia. Mas isso não tinha
importância nenhuma, disse a si mesma. A sua relação com Jack, a amizade, era uma coisa
diferente. Uma relação casta, ainda que afetuosa, baseada num interesse mútuo. Não havia mal
nenhum nisso, fossem quais fossem as ligações amorosas que Jack pudesse ter.
Foi dormir com a imagem que Jack descrevera, dos dois, na cabeça. Os dois em Paris. A comer.
A falar de culinária. Porque não?, pensou. Ela havia superado tanto, porque não continuar a
marcha?

Jack tinha-se ido embora de Nova Iorque na noite anterior, após uma conversa tensa com
Adrienne. Bem, tensa do lado dele, porque, do lado dela reinava uma calma irritante. Jack dissera
que o melhor era ir-se embora cedo, mas que daí a um ou dois dias lhe telefonaria para saber se ela
gostaria de passar o fim de semana em casa dele. Afinal, tinham tido a primeira discussão.
– Sim, acho que esse é um bom plano – concordou ela, olhando para ele, compreensiva. Como se
ele estivesse a relatar um incidente embaraçoso do qual ele se tinha saído muito mal, pensou.
Já em casa, escreveu:

Eve,
Ao longo destes últimos meses, a Eve tem sido a minha pedra de conforto. Como um
daqueles seixos de praia que encontramos no bolso do casaco durante o inverno, em que o
simples ato de deslizar o polegar e o indicador nele nos presenteia com a brisa do mar e
uma paz interior. Preciso disso. Um dos meus livros chamava-se «Zona de Sal». O título foi
escolhido por causa do leito do lago estéril em que a história se situava, mas ultimamente
parece-me uma metáfora para a minha vida. A Zona de Sal: é muito difícil cultivar seja o
que for em sal. A única coisa que floresce em meu redor é a Eve. As suas cartas enchem-se
de vida a cada dia que passa. Desejo-lhe toda a alegria.
Jack
Pense em Paris. Eu vou pensar.

Dex,
Será um grande prazer ver-te, amigo. Mas não deixes que isso te suba à cabeça. A
Adrienne pode cá estar. Tenho-me encontrado algumas vezes com ela. Mas, pensando bem,
ela também pode não estar.
J

És mesmo cão. Ela nunca me falou de ti.


Ela também nunca me fala de ti.

Nenhuma mulher sensível se poria a falar de mim contigo, Coop. Seria muito
desmoralizante, se é que me faço entender.

Pois, pois. Tu não és Dexter Cameron, a estrela de cinema, em minha casa, caro amigo.
Até sábado.
Jack

Jack terminou esta troca de mensagens com um sentimento de satisfação. Um fim de semana com
Dex. Sem necessidade de organização. Sem melindres. Sem feminilidades delicadas para enfrentar.
Com Dex, até mesmo os desentendimentos tinham um ritmo colaborativo e compreensível.

– O Dex vem cá este fim de semana.


– Teria sido bom vê-lo – disse Adrienne. Jack imaginava-a com o telefone ligeiramente afastado
da orelha. Não queria que ela viesse, já que Dex vinha, mas agora que ela dissera que não iria,
sentiu-se desapontado.
Adrienne, reagindo ao silêncio, disse, como se estivesse a responder a algo que não chegara a ser
perguntado: – Nós nunca fomos um casal. O Dex e eu.
Jack riu-se. – Eu sei disso.
– Oh! – exclamou ela. – Ainda bem.
Era um fragmento de insegurança, subtil, mas mais um indício de que o ritmo fácil dos primórdios
do romance ficava para trás. Ele sabia que tinham chegado àquela fase em que a relação, para
poder crescer, teria de perder o brilho da novidade. Seria necessário tirar um pouco do lustro para
chegar aos acordos e compromissos mais desinteressantes que estão por baixo. Ele não sabia se
estava pronto para o esforço que isso exigia. Mas também não estava pronto para a perder
completamente. Quando lhe disse que ligaria em breve, foi sincero.

– Ainda andas a esconder-te da vizinha? – perguntou Dex, de cerveja na mão e apontando para o
rótulo. – CHECA – disse ele. – Não digas que não faço nada por ti.
– Devidamente notado – disse Jack. – Não. Ela já passou a outra. Agora arranjou um bilionário
alemão.
– Elas costumam fazer coisas dessas.
– Passou por aqui a exibi-lo na semana passada – disse Jack. – Para eu ver que ele era real.
Dex soltou uma gargalhada. – E era?
– Ninguém seria capaz de se inventar assim. – Era bom estar com Dex. Podia respirar fundo. – O
que me dizes de irmos até Dobb’s Creek por uns dias?
– Parece-me excelente – respondeu Dex.
Assim, fácil.

Caro Jack,
Li o «Zona de Sal» e gostei muito. Lamento ouvir essa nova interpretação do título.
Sempre o imaginei... embora eu diga imaginei, naturalmente já vi fotografias de Jackson
Cooper, o escritor, mas voltando ao assunto, sempre pensei em si como uma pessoa
prolífica, uma pessoa bastante exuberante com a vida. Embora, pensando de forma mais
lúcida, perceba que retirou as mesmas falsas conclusões sobre mim. Não tenho nada de
roliço, Jack. Sou uma solteirona em muitos aspetos, apesar do meu casamento precoce (que
foi breve) e da minha filha. Fechei-me para a vida e usei a regularidade da vida doméstica,
e da cozinha em particular, o adicionar de uma medida de leite à farinha, como forma de
manter o controlo sobre mim e sobre o que me rodeia. Porém, decidi tentar abraçar um
pouco de imprecisão. Mas sou capaz de partir alguns ovos ao fazê-lo.
Eve

– Então, diz-me a verdade, como é que vai a vida?


– Sobre rodas.
Estavam os dois num pequeno bar de madeira, com paredes apaineladas e luz difusa, numa
cidadezinha tranquila, a meio caminho de Dobb’s Creek. As mesas exibiam pequenos grupos de
apetrechos: frascos de molho, saleiros com sal grosso e pimenteiros e tacinhas com cubos de
açúcar que serviam de apoio às ementas.
– Olha para isto – Jack disse, pegando numa. – Uma ementa onde se pode enfiar os dentes:
hambúrgueres, queijo grelhado e brownies com chocolate quente. – Em seguida perguntou: – Como
estás?
Dex tirou um palito do invólucro de papel e brincou com ele no lábio inferior um momento.
– Diferente.
Jack levantou os olhos para o encarar.
– Desta vez é diferente. – Ele pousou o palito. – Não sei, eu achava que não ia ser, mas é. Mais
real, de alguma forma.
Jack sabia que ele estava a referir-se à vez anterior, quando havia sido descrito no The New York
Times como um dos melhores jovens atores da sua geração. O período de escassez viera mais tarde,
nos seus trinta e tal anos.
– Ou talvez só tenha amadurecido. – Ele riu-se. – Como tu.
Um dos acordos tácitos na amizade de Dex e Jack fora sempre o de nunca falarem de trabalho de
forma direta. Em vez disso falavam sobre o trabalho de outras pessoas, dissecando livros ou filmes,
sentados durante muito tempo a beber café ou vinho ou com um prato de massa em frente, a crítica
indo da mais leve à mais viperina. Jack achava sempre aquelas noites confortáveis e satisfatórias,
tão confortáveis e satisfatórias como qualquer outra noite da sua vida. Mas agora percebia que
talvez as coisas não tivessem sido tão confortáveis para Dex naqueles anos que estivera afastado da
ribalta. Jack sempre compreendera a falta de dinheiro e uma certa frustração de Dex, mas aquela
ânsia de praticar o seu ofício, de ser ator, e o fardo dessa ânsia, ele carregara-os sozinho, deu-se
conta.
– Não, tu lutaste por isso. Ao pé de ti pareço um menino – disse ele.
Dex exibiu um daqueles famosos sorrisos, lento e cativante.
– Levanta-te – disse Jack. – Vou dar cabo de ti na mesa de bilhar antes de comermos, para ver se
não ficas insuportável.
Comeram bife e sobremesa e depois, quando duas jovens da terra de ar ávido, saias curtas e tops
a mostrar o umbigo entraram, Jack deixou Dex ao cuidados delas e caminhou de volta ao longo da
rua principal da pequena cidade. Haviam reservado dois quartos num sítio chamado Robinson Inn,
e fora a entusiástica mulher que lhes fizera o check-in que lhes dissera para comer no pequeno e
mal iluminado bar. – Não há muito por onde escolher aqui, mas também não é preciso. Não vai
arranjar melhor do que a comida de lá. E não se esqueça de experimentar a tarte de pêssego.
Ela ainda estava acordada quando Jack entrou e atravessou o átrio, sentada numa saleta ao lado, a
ver televisão com a porta aberta.
Ele sorriu-lhe e disse: – Tinha razão acerca da tarte. Aquela crosta... – e estalou um beijo nas
pontas dos dedos.
Ela devolveu o sorriso. – O segredo é a gordura vegetal da Crisco – disse ela.
– Ai sim?
– Hum, hum. Mas não diga a ninguém que lhe contei.
Jack deu umas pancadinhas no nariz em concordância e subiu.

Já no quarto, pensou em ligar a Adrienne, mas acabou por ficar apenas a pensar nela. Na viagem
de carro Dex apenas chegara a aflorar o assunto e Jack não tinha entrado em detalhes, porque,
acima de tudo, ainda não tinha a certeza dos seus próprios sentimentos. O que sentia por Adrienne
era diferente do que sentira pelas outras mulheres; ela não fazia despertar nele o afeto paternal que
sentira por Marnie, nem o amor operático e dorido da juventude que chegara a sentir por Paula.
Nem era pura luxúria o que o atraía, embora achasse muito sedutora aquela aura constante de
distanciamento dela.
Serviu-se de uma bebida da garrafa que trouxera. Talvez a queira porque não tenho a certeza se
ela me quer. Sorriu para si mesmo ao admiti-lo. – Não consigo evitar – disse ele em voz alta. –
Simplesmente não sou capaz de me conter.
Tirou os sapatos e deitou-se na cama com as pernas esticadas e cruzadas. Sabia bem estar longe,
estar isolado. Não queria falar com Adrienne naquele momento, e ela também não era o tipo de
mulher que mantinha um homem preso a um calendário de obrigações. Talvez fosse outra parte da
atração dela. Ela nunca o havia censurado por não telefonar. Era a primeira vez que tal lhe
acontecia.
Bebeu um gole de whisky e ficou a olhar para a reprodução emoldurada de uma ave selvagem
indefinida na parede oposta. Não era bonita, mas pertencia ali. Talvez ele e Adrienne também
pudessem pertencer um ao outro, se ele cedesse um pouco. Talvez ela até pudesse ser uma espécie
de musa. De muitas maneiras, ela só dissera coisas sobre a sua escrita que ele já dissera a si
mesmo. Precisava de escrever melhor ou deixar de escrever de todo.
Terminou a bebida num último grande gole e levantou-se para se despir. Esperava que Dex não
tentasse esgueirar-se com aquelas duas miúdas pela senhora lá em baixo. Se o fizesse, o serviço da
manhã seguinte não seria propriamente atencioso. Que inferno, pensou, talvez eu não esteja talhado
para andar em viagem com uma estrela de cinema. Nesse momento teve a absoluta convicção de
que era para aí que Dex se dirigia. Para o estrelato.

– Parece...
– Mais nova – disse Eve e sorriu.
Beth riu-se. – Sim, é isso. É verdade. Parece mais jovem.
Eve estava ciente de que os ponteiros do relógio de parede atrás de si se moviam. Era um
pensamento que a acalmara quando tivera a primeira sessão com Beth: o avanço do tempo. Agora
sabia que eles marcavam os seus últimos cinquenta minutos de terapia. Estava finalmente a soltar as
amarras.
– Como se sente agora? – perguntou Beth.
– Sinto-me... sinto que não estou curada.
Beth assentiu com a cabeça, observando-a, incitando-a com o próprio silêncio a continuar.
– Acho que o que eu quero dizer é que percebo agora que não vou ficar completamente curada,
apesar de ser isso que esperava quando cá vim a primeira vez. Eu queria ser «arranjada».
– Sim – disse Beth.
– Como um tubo a vazar ou um pneu furado.
Beth sorriu e uma leve vontade de permanecer no porto seguro daquele sorriso abalou Eve, mas
não a dominou. – Foi uma grande revelação para mim, compreender que «ser arranjada» não é o
principal.
– Não.
– Acho que nunca me ocorreu o facto de eu poder ter os recursos para enfrentar alguns dos meus
problemas sozinha. Talvez seja um pouco ridículo.
– Ridículo?
– Só quero dizer que se eu tive capacidade de resolver estas coisas... estas barreiras emocionais
que me mantiveram tão afastada da vida, durante todo este tempo...
– Talvez não tivesse essa capacidade antes – disse Beth. – Talvez precisasse de ajuda. De
orientação.
– Sim – respondeu Eve. Sorriu. – A Beth deu-me isso.
– Considero que foi um esforço conjunto – disse Beth. – Mas também acho que o tempo
desempenha um papel muito importante. Por vezes, as circunstâncias convergem de modo a que uma
porta seja aberta.
– Isso pode ser verdade. Mas precisei de um ano para sequer considerar viver de forma diferente
da que vivia quando a minha mãe ainda cá estava. Ela morreu e eu limitei-me a continuar, como se
ela ainda estivesse lá, a dizer-me o que fazer. – Eve franziu o sobrolho. O tema ainda a afetava.
– Na minha experiência, Eve, a lógica é um adversário extremamente fraco quando se trata de
educação. A Eve tinha muita coisa para superar e precisava de algumas ferramentas. Vai continuar a
precisar dessas ferramentas. Mas elas estarão lá quando tiver de as usar.
– Sim. – Eve sorriu. Sentia uma imensa gratidão relativamente a Beth, que sabia estar apenas a
fazer o seu trabalho, mas que, no entanto, fora sempre extremamente compreensiva. O tempo da
consulta estava quase a terminar. – Vou a Paris – disse ela. – Encontrar-me com o meu amigo Jack.
Eve contara a Beth muito pouco sobre Jack. Ela provavelmente acha que ele não passa de um
simples correspondente sem importância, pensou. Não se importava. Só o mencionara como uma
maneira de se mostrar menos perdida.
– Paris. – Beth sorriu. – Isso é maravilhoso.
Ao ouvir a reação dela, Eve percebeu que o dissera em voz alta para o tornar realidade. Para ela
própria acreditar. Queria muito acreditar que era capaz de o fazer.
CAPÍTULO 9

– O uviEvedizerfoiquepoupada
é uma excelente cozinheira, Eve.
de responder porque uma das crianças levantou o garfo como uma
espada e gritou: – En garde! – para o irmão, que respondeu com o mesmo entusiasmo.
– Meninos! – repreendeu Simon. À simples reprimenda, eles pousaram os garfos e voltaram a
sossegar, mantendo-se sentados como desde que tinham chegado, de forma cordial e obediente ao
fundo da mesa.
– Eles vinham confinados no carro – disse Laura à laia de desculpa.
– Eu reparei que há um parque aqui perto – sugeriu Eve, contente por poder pisar um terreno mais
prático. – É já na próxima rua, vi quando estávamos a chegar.
– Ah, que bom! – Laura sorriu, consolidando aquela união frágil. – Eles podem libertar alguma
energia antes da viagem de regresso.
Ela era uma mulher encantadora, pensou Eve. Uma mulher encantadora a viver a vida
maravilhosa que poderia ter sido dela. O pensamento não ficara muito tempo a povoar-lhe a mente
porque Eve, embora fosse uma pessoa dada à introspeção, possivelmente à depressão e certamente
à apreensão, não tinha tendência para a amargura.
– Acho que foi muito corajoso da sua parte fazer isto, Eve. A Izzy tem sorte em ter uma mãe tão
altruísta. – Ambas olharam para Izzy, sentada entre os meios-irmãos e o pai. Em frente aos rapazes,
e à esquerda de Eve, Ollie contava-lhes piadas e eles riam-se com gosto.
– Não tenho assim tanta certeza – disse Eve. Era difícil não sentir simpatia por Laura. – A
situação também deve ser um pouco desconfortável para si.
– O meu problema foi sempre a Fiona.
Houve um breve silêncio quando Laura mencionou Fiona, a mulher pela qual Simon deixara Eve.
Mais tarde, Virginia tinha aconselhado Eve a continuar simplesmente com a vida, ter o mínimo
contacto possível com Simon e nunca, sob quaisquer circunstâncias, encetar qualquer contacto com
«Aquela Mulher».
– Ela tornou os nossos primeiros anos tão difíceis – disse Laura. – Mas havia o Tim, o filho
deles, e ele é um rapaz tão bom. Suponho que o vá conhecer antes do casamento.
– Sim – respondeu Eve. – Acho que isso já está programado. – Nunca lhe teria passado pela
cabeça, mas sorriram uma para a outra. Afinal de contas eram apenas duas mulheres, pensou Eve. O
facto de terem casado com o mesmo homem não precisava de ser um obstáculo à amizade. E
olhando para a mesa viu uma família, uma família algo desorganizada, verdade, mas ainda assim
uma família.
– E agora há a Izzy – disse Laura. – Deve ter muito orgulho dela.
– Sim, tenho – respondeu Eve, sentindo-se de repente preenchida com essa verdade,
ensoberbecida.
Laura suspirou. À sua frente os meninos ainda se riam. Ollie tinha transformado uma faca de
manteiga num bigode e Izzy repreendia-o no mesmo tom que o pai havia usado pouco antes.
– No final, tudo se resume a isto, não é verdade? – disse Laura. – Às crianças. Temos apenas de
tentar fazer o que é melhor para os nossos filhos.
– Sim. – Eve encarou-a. Ela tinha grandes olhos castanhos, acolhedores e simpáticos, irradiando
tanta maldade como uma corça. – Embora eu não fosse tão sábia acerca disso quando Izzy tinha a
idade dos seus filhos. Quem me dera ter sido.
Laura esticou a boca num trejeito. – Eu também não fui, durante muito tempo – disse ela. – Ainda
há um ou dois anos eu andava a desperdiçar energias a sentir ciúmes de Fiona. Ela tinha o hábito de
ligar a qualquer hora do dia ou da noite para pedir coisas a Simon: dinheiro, principalmente. Mas o
que ela queria mesmo era a atenção dele. Não estou a dizer que deixei de a achar uma provação,
ainda acho, mas eu gosto mesmo muito do Tim e, bem, estive doente.
Eve assentiu com a cabeça, mostrando que sabia.
– Descobri que todos os clichés são verdadeiros – continuou Laura em tom sóbrio. – Após este
tipo de experiência ficamos realmente com a noção do que é mais importante, pelo menos eu fiquei.
E parece que o Simon chegou às mesmas conclusões. Isso costuma acontecer. – Ela olhou para ele,
incapaz de esconder o brilho do amor da sua expressão, mas então pareceu recompor-se, consciente
da pessoa com quem estava a falar.
Eve estendeu-lhe a mão. – Compreendo. Eu própria tive uma espécie de aviso desse género
recentemente.
A comida chegou finalmente e os rapazes ficaram ao rubro quando viram uma grande taça de
batatas fritas aos palitos.
– Eu espero que nós... – Mas Eve não precisou de terminar a frase, porque Laura fê-lo por ela.
– Havemos de conseguir que resulte – disse ela. Inclinou-se e, esticando dois dedos, roubou uma
batata frita a um dos filhos, fazendo depois uma careta em resposta à indignação fingida dele;
voltando-se para Eve, concluiu: – Nós somos os adultos. É a nossa função.

De regresso a casa depois de saírem do restaurante, que ficava a meio caminho entre Londres e a
casa de Eve no Dorset, Izzy disse: – O meu tamboril estava excelente.
– Estava tudo muito bom – disse Eve. – Parabéns. Foi tudo realmente muito bom.
– Achei o serviço um pouco lento – disse Izzy.
– Isso é verdade – concordou Eve, aplacando Izzy, que parecia tão nervosa como antes do
almoço. Eve pensara que Izzy tivesse relaxado um pouco, uma vez que o encontro decorrera sem
problemas, mas não. Estava irritadiça desde que entraram no carro, virando-se para trás no banco
do passageiro para ter conversas vagas com Eve sobre trivialidades.
Ollie disse: – São bons miúdos, não são? Aqueles rapazes, o Ed e o Felix. E achei que se
portaram muito bem, ali sentados durante toda a refeição. E foi muito longa.
Izzy, pela primeira vez, ficou em silêncio.
– A Izzy também foi sempre muito bem comportada à mesa – comentou Eve, querendo fazer algo
pela filha, mas preocupando-se, no momento em que disse as palavras, se ambos não teriam posto
Izzy e os filhos de Simon no mesmo grupo: irmãos a serem comparados. Mas Izzy, ainda
aparentemente perdida nos seus pensamentos, não reagiu.
Ollie, apercebendo-se da pausa na conversa, ligou o rádio do carro. Ficaram a ouvi-lo em
silêncio durante os quase cinquenta quilómetros seguintes.
Foi uma noite tranquila. Eve fez omeletas e comeram enquanto viam um filme ligeiro que Ollie
escolhera. Ela e Izzy mantiveram-se em conversa amena mesmo depois de o filme ter começado.
Izzy tinha tido uma prova do vestido.
– Ainda tem de ser apertado um pouco – disse ela.
– Bem me pareceu que tinhas perdido peso – respondeu Eve, tentando que não soasse como uma
crítica.
– Todas as noivas perdem – respondeu Izzy em tom prosaico.

Viram o filme todo, e quando Eve decidiu subir, Ollie e Izzy estavam esticados no sofá, a folhear
revistas e meio atentos às notícias, por isso Eve não teve a certeza se não estaria a sonhar quando
foi acordada algumas horas mais tarde por vozes alteradas. Vinham do andar de baixo e a sua
primeira reação foi levantar-se. Partiu do princípio de que tinha acontecido alguma coisa
alarmante, mas então percebeu que as vozes eram de discussão. E uma discussão aos gritos.
Já sentada na cama, Eve ficou parada, muito quieta, com os pés descalços pousados no chão, já
completamente desperta, preocupada se eles se teriam apercebido de que ela estava acordada. Não
queria que eles se sentissem espionados. Lentamente, como uma intrusa no seu próprio quarto,
voltou a deslizar para a cama e tapou a cabeça com a almofada. Não queria ouvir. Mas ainda assim
ouvia; as barreiras físicas, como a roupa da cama, o tapete e o chão não eram suficientes para
abafar a turbulência emocional lá de baixo.
– Oh, isso é tão típico teu, Ollie – Eve ouviu Izzy gritar. – Não passas de uma criança!
– É isso mesmo, Izzy. Diz-me que sou criança. Essa é a tua melhor defesa, não é? Eu sou uma
criança grande. Não é muito original, pois não? – As palavras de Ollie, embora menos estridentes,
eram suficientemente iradas para serem tão audíveis como as de Izzy.
Agora era a voz dela que se elevava novamente, primeiro apenas mal-humorada – Mas é
verdade! – e depois subindo para um rugido: – É verdade!
Ela soava totalmente descontrolada. Eve estava tão preocupada que voltou a sentar-se, achando
que talvez devesse intervir, para logo depois chegar à conclusão que não. Não podia. Pela primeira
vez justificava-se a distância. Tinha de os deixar encontrar o próprio caminho. Era assunto deles.
Desejou nem sequer saber de nada.
Ouviu-se um estrondo e, em seguida, os gritos diminuíram, mas o coração de Eve ainda batia com
força. Acalma-te, pensou, acalma-te. Tudo vai ficar bem.

Na manhã seguinte a casa estava muito calma. Enquanto tomava banho e se vestia, Eve pensou na
agitação da noite anterior. Provavelmente seria de se esperar, concluiu, tal como a perda de peso de
Izzy. Aquele nervosismo todo devia ser típico das vésperas do casamento. Pensou também que,
mesmo pondo de parte os aspetos práticos do casamento, que Izzy assumira, tal como todas as
noivas modernas, Izzy e Ollie ainda tinham de lidar com as complexidades adicionais: a integração
de Simon, das respetivas mulheres e filhos nas suas vidas. E a falta de envolvimento da mãe de
Ollie, que ainda nem sequer tinha confirmado se iria ao casamento, embora a irmã de Ollie, Cassie,
tivesse insistido que sim. – Tu sabes como é a mãe – teria ela dito a Ollie. – Ela gosta de fazer
entrada de diva.
Eve desejou poder aliviar-lhes a carga de alguma forma. Mas não conseguia pensar em nada que
fosse de grande ajuda. Decidiu fazer papas de aveia para o pequeno-almoço. As manhãs estavam a
ficar frias e Izzy adorava papas de aveia.

Caro Jack,
Muitas vezes as pessoas expressam preocupação pela nossa solidão. Sempre conheci essa
preocupação na minha vida, sempre me encontrei no seu lado desconfortável e torturante.
Mas, por vezes, a solidão é um luxo enorme, especialmente quando assente em conforto
material, como a minha tem sido. Ultimamente tenho saltado mais vezes para fora da
gaiola dourada que eu própria construí, mas não tenho a certeza se já estou completamente
equipada para voar livremente. Ao contrário do Jack, que viveu no mundo e que usou essa
experiência de vida como combustível para o trabalho. Sinto um profundo respeito pelas
duas coisas.
O outono já chegou e o jardim parece nu depois da poda das árvores; também temos tido
muito vento, por isso as árvores foram prematuramente despidas. Talvez o mundo exterior
possa esperar um pouco mais por mim. Esta manhã vou fazer mingau de aveia, para o
manter longe. Sou tradicionalmente puritana quanto à mistura dos ingredientes (água, sal e
uma mexida rápida no sentido dos ponteiros do relógio), mas não me oponho à adição
posterior de açúcar.
Eve

– Já alguma vez comeste o tradicional mingau de aveia, Dex? Feito com água e sal?
– Não.
– Eu também não.
Estavam a comer fatias douradas num snack-bar de beira de estrada. A empregada de mesa veio
servir mais café e sorriu para Dex. Ele voltava a ter aquela aura de fama. Parecia acompanhá-lo
para todo o lado. As mulheres sempre se tinham interessado por ele, mas agora pareciam cola.
– O que é mingau? – ele perguntou, fazendo deslizar a caneca na mesa para o reabastecimento de
café. – Obrigado, querida.
A jovem, de uns dezanove anos, talvez, já confiante na sua feminilidade, voltou a abrir um largo
sorriso e afastou-se.
– Se eu chamasse «querida» a uma mulher que não conheço com esse olhar estampado na cara, de
certeza que ficava sem um olho – comentou Jack.
Dex encolheu os ombros.
– Mingau é aveia. Aquilo a que chamamos papas de aveia, também se pode chamar «mingau». Na
Escócia fazem-nas com água e adicionam sal.
– Então porque não disseste papas de aveia? E porque queres saber se já comi isso?
– Estava aqui a pensar numa coisa.
Dex pousou o café. – Lérias!
– Lérias para ti também – disse Jack.
– Mingau. E aquela coisa de laranja... a compota.
Jack não respondeu.
– Que história é essa de ultimamente te dar para a cena britânica?
– Não me parece que uma pergunta sobre mingau e uma porção de compota de laranja constituam
uma «cena britânica».
Mas Dex, já embalado e decidindo aproveitar os seus dotes de representação, disse: – Constitui,
sim. E houve ainda aquela outra coisa do pudim de Natal da avozinha.
Jack tinha encomendado um pudim de Natal a partir de um catálogo recomendado por Eve. Ela
dissera que eram tão bons quanto os dela e que, de qualquer modo, já era tarde de mais para
embeber a fruta. Ele tinha mostrado o catálogo a Dex, dizendo: – É isto que te vou enfiar goela
abaixo este ano. – Já tinham passado muitos Natais juntos.
– Qual é o problema com a empada de Natal? – protestara Dex.
– OK, o que é que se passa? Quem é a gaja? – perguntava ele agora. Parou de brincar com os
pacotes de adoçante, espalhando-os pela mesa como uma sequência de cartas vencedora e olhou
para Jack.
– Dexter, há coisas que eu faço, não muitas, é verdade, mas algumas coisas, que não estão
relacionadas com mulheres. Cozinhar é uma delas.
– Cozinhar é uma coisa. Um súbito interesse por tudo o que é britânico é outra. Há uma gaja
metida ao barulho.
– Ela não é uma gaja.
– Ha, ha! Apanhei-te!
– É uma amiga.
– Uma amiga britânica.
– Uma cozinheira. Uma amiga da culinária.
– E onde é que conheceste essa amiga da culinária britânica?
Jack fez uma breve pausa e então disse: – Não a conheci.
– Não a conheceste?
– Não. Nós... correspondemo-nos. É muito cortês. Nós escrevemos um ao outro sobre comida.
– Porra, Jack! Não me digas que te inscreveste num desses sites de engate. Isso é coisa de
falhados.
– Não estou num site de engates e Eve não é uma falhada, nem eu.
– Andas a mandar mensagens a uma gaja qualquer que nunca viste sobre a merda do mingau.
– Não ando a «mandar mensagens»; um ou outro e-mail, mas a maioria são cartas. Tudo muito
elegante.
– Muito triste. Pelo menos sabes como ela é, já lhe viste a cara?
– Não. Não me interessa a aparência dela. Nós somos apenas amigos, falamos de comida. É...
– Triste.
– É agradável. É profundamente agradável.
– Falas com ela ao telefone, qualquer coisa do século vinte e um?
– Não. Cheguei a pensar nisso uma vez, mas o número dela não vem na lista. E mudei de ideias
mais tarde. Eu gosto das cartas.
– Ah, que lindo serviço! Não tarda nada ela vai querer conhecer-te e tu acabas à espera dela
debaixo do Big Ben durante duas horas com um exemplar dos sonetos de Shakespeare na mão e uma
rosa vermelha na lapela.
Jack pegou na carteira do bolso de trás das calças e deixou um par de notas em cima da mesa.
– A Adrienne sabe dessa treta da amizade culinária? – perguntou Dex.
Pousando o saleiro nas notas para que não voassem, Jack disse: – Comida e Adrienne são duas
coisas mutuamente exclusivas. De qualquer forma, enganas-te quanto ao Big Ben. É na Torre Eiffel.
– Meu Deus! – exclamou Dex. – Apanhei-te na hora certa.

Ollie não quis papas de aveia. Desceu antes de Izzy e recusou a oferta de Eve. Só quis café. Ela
ficou contente por vê-lo a servir-se. Não porque lhe poupava o trabalho, mas porque era prova do
à-vontade que sentia em casa dela. Ela queria que ele se sentisse bem em sua casa.
– Está bem, querido – disse ela.
Sorriram timidamente um para o outro. Era a primeira vez que ela o tratava por outra coisa que
não Ollie.
Ele bebeu o café rapidamente e depois disse que ia à cidade comprar o jornal. Uma tarefa
masculina, um pretexto para se afastar. – Precisa de alguma coisa, Mrs. P.?
– Não – respondeu ela. Era verdade, não precisava.
Ollie pegou no casaco pendurado nas costas da cadeira e vestiu-o. O colarinho de bombazina
ficou levantado de um lado. Eve lutou contra a vontade súbita de o endireitar. A porta fechou-se
atrás dele com um clique exaurido.
Quando o carro se afastou Izzy entrou na cozinha, ainda por vestir, usando um roupão que tinha
desde os tempos de escola. O cabelo não fora penteado. Apresentava um ar exangue. Aceitou as
papas de aveia e colocou as duas mãos em torno da tigela, como se o seu calor pudesse aquecê-la
por dentro, depois usou uma colher para espalhar natas e açúcar mascavado por cima e começou a
comer em silêncio enquanto Eve preparava um novo bule de chá.
– Calculo que nos tenhas ouvido – disse Izzy.
Pousando o bule de chá na mesa, Eve não negou, embora tivesse preferido fazê-lo.
– Tivemos uma discussão – explicou Izzy desnecessariamente.
– Têm muita coisa com que lidar neste momento – respondeu Eve.
– Pois temos. – Izzy serviu-se de chá e acrescentou leite de uma leiteira azul e branca. – Isto era
da Gin-gin, não era? – perguntou, olhando para o objeto.
– Sim, era. Trouxe-a daquele último apartamento que ela teve em Primrose Hill.
– Sinto tanto a falta dela. – Izzy pousou a leiteira, ficando a olhar para ela com ar grave. – Estou
farta de ouvir que ela era uma cabra. Tenho saudades dela.
Eve pensou um momento, à procura dos recursos certos. Queria reagir da mesma maneira que
Gwen e Beth haviam reagido com ela em momentos como aquele. Queria poder oferecer um
consolo firme, nem muito vigoroso, nem muito complacente.
– Não me surpreende – disse ela com delicadeza.
Izzy levantou os olhos. Eles piscaram com um tique nervoso de inquietação, mas a voz era firme.
– Mas tu odiava-la, não é? E o meu pai também a odiava. O Simon... ele disse que ninguém gostava
dela exceto eu.
Eve suspirou e agarrou-se rapidamente à rocha da objetividade. – Ela era uma mulher difícil.
Uma mulher muito difícil, e uma mãe difícil, mas isso não diminui a relação que tiveste com ela.
Vocês tiveram uma relação muito própria e isso foi importante na tua vida. Ainda é. Não gostaria de
pensar que te fiz sentir como se não devesses amá-la só porque eu não pude.
O estranho é que aquela era a primeira vez que Eve admitia verdadeiramente, que dizia em voz
alta, que não amara a mãe. O facto de as crianças amarem os pais era algo tão intrínseco que ela
nunca o expressara. Dizer aquelas palavras era uma libertação. Pousou a mão no ombro de Izzy e
sentiu-o frágil sob a grossa flanela do roupão. – Vou tentar ajudar de todas as maneiras que possa –
disse ela.
Izzy não respondeu, mas cobriu a mão de Eve por breves instantes com a sua, um gesto pelo qual,
deliciada pelo afeto momentâneo, Eve ficou tão grata que quase chorou. Então, afastou-se e ocupou-
se a arrumar a mesa do pequeno-almoço e a alinhar ingredientes no balcão da cozinha.
– O que vais fazer? – perguntou Izzy.
– Tarte de abóbora.
– Isso é tão americano! Acho que nunca comi.
– Não, nem eu, por isso mesmo... bem, pensei que seria bom ter algo diferente. Algo novo.
– É tudo novo, não é? – disse Izzy, levantando-se e atravessando a cozinha até ao lava-louça,
onde lavou a tigela vazia com ar distraído. – É tudo novo.

– OK, então essa tipa escreve-te uma carta na qualidade de fã e depois começam a trocar
correspondência acerca de papas de aveia e agora vão encontrar-se em Paris para partilharem o
amor mútuo por crepes, é isso?
– Mais ou menos.
Estavam de volta à estrada. Jack conduzia, aliviado pela impossibilidade de contacto visual.
– E é tudo muito honesto? Nada de obsceno?
– Nada de obsceno.
– É uma loucura, Jack. – Ele estendeu a mão para voltar a guardar um mapa no porta-luvas. – Eu
consigo perceber o atrativo... a questão da estranha misteriosa e tudo o mais, mas é uma loucura.
Esse tipo de coisa nunca dá bom resultado na vida real.
– A vida real é um conceito sobrevalorizado.
– A verdade é que concordo contigo. Mas isso não muda o meu ponto de vista sobre o assunto.
Tens-me parecido seriamente abalado nos últimos tempos. Não acho que penses da mesma maneira
que pensavas até há uns meses. E acho que essa coisa de... namoriscar com uma mulher que nunca
conheceste e que provavelmente nunca conhecerás faz parte disso. Parte dessa fase de... sei lá...
turbulência mental por que estás a passar.
– De repente as pessoas estão muito interessadas em dizer-me aquilo por que estou a passar –
disse Jack.
– Bem, talvez as «pessoas» consigam ver coisas que tu não consegues.
– Como por exemplo?
– Como, por exemplo, que andas um bocado à nora e não é por causa da Marnie. Quer dizer, acho
que a separação te afetou, mas não de forma profunda. Acho que nunca a amaste.
Jack ficou espantado. Não pelo facto em si, mas por Dex o dizer em voz alta. – Era assim tão
óbvio?
– Sim. Pelo menos para mim. Para ela também, provavelmente.
– Estou farto de fazer as mulheres infelizes, Dex. – Jack suspirou, recostando-se no assento.
Seguiam por um trecho longo e reto de estrada, portanto o carro praticamente avançava sozinho. – É
uma estupidez e muito cansativo. Estou velho de mais para isso.
– E a Adrienne? – perguntou Dex.
– O que é que tem a Adrienne?
– Bem, ela é uma mulher atraente, Jack. Eu falei com ela, ela gosta de ti. Porque não ficas com a
Adrienne por uns tempos? Aproveita para encontrares o teu caminho. Talvez devas mesmo consultar
um psiquiatra ou algo assim. Tenho é a certeza de que não vais chegar mais perto do que queres se
te puseres a correr atrás de uma solteirona inglesa solitária em Paris. Isto é, se é que ela é uma
solteirona inglesa solitária. Pode muito bem ser um velho devasso e gay em Marrocos a tentar dar-
te a volta. Que inferno, Jack! Não me obrigues a apanhar um avião até lá para identificar o teu
corpo numa morgue qualquer.
Jack sorriu mas não respondeu. Estacionou o carro numa área de descanso vazia. – Vamos esticar
as pernas? – perguntou.
– Está bem.
Jack saiu do carro e encostou-se a ele, observando, para lá da estrada que se estendia até ao
horizonte, as folhas ainda brilhantes de um bordo sacarino. Dex, saindo também, deu a volta ao
carro e encostou-se ao lado dele. Depois cruzou os braços e inclinou-se levemente para o lado.
Ficaram ali, na tranquilidade fria e cortante, a fundir o calor dos braços com os dos casacos
pesados de outono, e a jovialidade galhofeira em que a amizade quotidiana de ambos assentava
dissipou-se. Jack sentia emanar de Dex, não o afeto meloso, e muitas vezes embriagado, que haviam
expressado um pelo outro ao longo dos anos, mas a sinceridade pura e profunda da preocupação.

Jack falara a Dex de Eve em parte para o ouvir dizer o que dissera. O que Jack tinha quase a
certeza que diria: que era tudo uma loucura. Porque, às vezes, à luz do dia, Jack também pensava
assim. Havia um quê de estranho na sua relação com Eve. Não na relação em si, mas na
dependência que sentia em relação a ela, uma estranha.
Mais tarde, quando pararam para abastecer, Dex entrou para ir à casa de banho e tomar café e
Jack estacionou e telefonou a Adrienne.
– Olá, querida.
– Jack?
– De quem estavas à espera?
Ela riu-se com ligeireza. Jack ouvia o zumbido incessante do trânsito na estrada atrás de si, para
além da barreira protetora de edifícios, painéis publicitários e sinais de trânsito.
– Bem, eu não estava particularmente à espera do teu telefonema. Achei que tivessem renunciado
a mulheres, sabes, uma coisa do tipo homens na estrada?
– Sim, realmente é uma viagem alimentada a testosterona.
Ela riu-se novamente. Soava bem.
– Tenho saudades tuas – disse ele. Via Dex caminhar de regresso ao carro.
– Isso é bom.
– Apareces no próximo fim de semana?
– Hum... sim, acho que sim. Liga-me quando chegares a casa; nessa altura já sei com certeza.
A incerteza dela fazia com que ele a quisesse ainda mais.

Dex abriu a porta e entrou no carro. Trazia um jornal que mostrou a Jack, batendo com a mão
numa fotografia sua. Era um artigo sobre o novo filme.
– Foi a Adrienne que tirou essa fotografia? – perguntou Jack, voltando a sentar-se no banco do
condutor.
– Não, é uma fotografia publicitária – respondeu Dex. – As da Adrienne são muito melhores.
– Ela é boa, não é?
– Claro que é. Não achas que te fazia o arranjinho com uma inútil qualquer, pois não?
Jack riu-se e respondeu: – Não. Não acho.

– É arriscado – disse Gwen. – A gente lê sobre isso constantemente. Os maluquinhos que há na


Internet.
– Ele não é maluquinho, Gwen.
– Bem, as pessoas também não pensam que os maluquinhos são maluquinhos, não é? Esse é o
problema.
– O nome dele é Jackson Cooper. Ele é um escritor muito conhecido.
– Ele diz que é.
– Bem, vou ficar a saber, não é?
– Como?
– Se eu vir um homem que se parece com Jackson Cooper, vou saber que é ele.
– Pode ser um maluquinho na mesma. Há muitas pessoas famosas que não batem bem da bola.
– Talvez seja verdade – disse Eve. Sabia que Gwen era a voz da razão na sua vida e que o que
dizia era extremamente razoável. Era exatamente o que ela teria dito a outra pessoa: Não sejas tola.
– Não queira meter-se num avião e viajar para um país estrangeiro só para conhecer um
maluquinho qualquer – disse Gwen. – Se é por isso, há muitos no White Horse num sábado à noite,
caso esteja interessada.
Eve pensou nessa conversa enquanto terminava de fazer a tarte. Depois de meter a carne de porco
no forno, sentou-se a ler os suplementos das artes dos jornais do dia anterior. Havia um artigo sobre
um novo filme que ia estrear na primavera. Leu-o, ignorante da relação entre o ator de beleza
estonteante nas fotografias e ela mesma.
CAPÍTULO 10

– E u bem disse que estava com saudades tuas.


– Agora acredito.
À luz do fim de tarde, os traços dela ficavam mais suaves, indefinidos, de modo que o nariz
preciso e a linha perfeita do lábio pareciam menos esculpidos, como se a cera moldada na
perfeição do rosto dela tivesse começado a derreter. Isso deixava-o emocionado. Deslizou um dedo
pelo braço dela e acariciou a cavidade alva do interior do cotovelo, permitindo-se cair,
momentânea e destemidamente num estado de adoração.
– No outro dia tivemos um percalço – disse ele em voz calma.
– Sim – concordou Adrienne, com clareza, mas sem veemência.
– Não quero que isso aconteça novamente. Pelo menos gostaria de o evitar, tanto quanto possível.
– Ele beijou-lhe o ombro.
Adrienne mexeu-se, desprendendo a mão das costas nuas dele. O movimento despertou-lhe não só
a pele recém-exposta, mas o resto do corpo. Ele rolou na cama e sentou-se. O quarto familiar, o
amarelo dourado da roupa de cama desfeita e o início da fina rachadela a um canto do teto voltaram
ao centro da sua atenção.
– Queres um copo de vinho? – perguntou ele.
– Pode ser – respondeu ela, sorrindo e sentando-se também. Os seios pequenos e bonitos
emergiram dos lençóis e ficaram ali, a pairar, trémulos como a luz sobre diamantes. Ela fê-lo
pensar, como sempre, em coisas puras, em água.
– Fica – disse ele. – Eu vou buscar.
Ela ajeitou a almofada, recostou-se nela e sorriu.
Quando ele voltou com os copos e a garrafa, sentou-se aos pés da cama e olhou para ela.
Brindaram um ao outro, erguendo ligeiramente os copos.
– És uma mulher muito bonita – disse Jack.
– Obrigada – respondeu ela, sem reservas, aceitando o elogio como aceitaria um comentário
sobre a sua altura. O à-vontade com que ela se sentia na própria pele contrastava também com as
outras mulheres com quem Jack se envolvera, mulheres mais neuróticas... mais esfuziantes, mais
engraçadas, mais sexy, até, de maneira mais óbvia, mas neuróticas. Jack começava a perceber que
já tinha neuroses que chegasse. Não precisava de mais.
– Estava a pensar nos feriados que se avizinham – disse ele. – Pensei em dar uma festa aqui no
Dia de Ação de Graças. Não dou uma festa para amigos e vizinhos há uns tempos e estou em dívida
com algumas pessoas.
– Hum, hum – foi a resposta dela.
– Estás por cá? Queres vir? Tinha pensado que podias ficar algum tempo, talvez passares cá uma
semana ou assim?
Foi só mais tarde que se apercebeu de que ela não havia respondido à sua pergunta sobre a Ação
de Graças. Na sequência da pergunta, ele tinha-lhe retirado o copo das mãos, pousando-o na
mesinha de cabeceira, ao lado do relógio de viagem em couro que tinha sido do seu pai. Em
seguida, acariciara aqueles seios fantásticos e atrevidos e fez amor com ela de novo, lentamente,
quase com deferência. Já era noite quando desceram depois de tomarem banho e de se vestirem.
– Então, o que me dizes? – perguntou ele ao sentarem-se para comer. Foi um jantar simples, uma
cedência a ela. Se as coisas não resultassem com Adrienne, ele sabia que a culpa seria só dele. Ela
era uma mulher adulta, uma mulher talentosa, atraente e sem complicações. Decidiu que ia tentar a
sua sorte.
– Costumo passar o feriado de Ação de Graças com o meu pai, Jack. Em São Francisco – disse
ela.
Ele esperou por um convite, sabendo interiormente que na verdade não queria um, mas ainda
assim sentindo-se levemente desanimado por não o receber.
– Ah, com certeza. Compreendo. Talvez o Natal, então.
– Claro – respondeu ela.
– Ou o Ano Novo – sugeriu ele, querendo uma resposta definitiva. Querendo que ela se
comprometesse com alguma coisa... com ele. Ela parecia estar a flutuar ali perto, mas fora do seu
alcance. Aquela falta de disponibilidade dela começava a perturbá-lo.
– O Ano Novo – disse ela, sorrindo. – Ainda falta muito para isso.

Eve,
Concordo consigo no que toca às vantagens da solidão, embora os escritores nunca
estejam realmente sozinhos. Ainda assim, as minhas primeiras experiências neste mundo
foram felizes e acho que fomentaram a minha confiança neste lugar. Estamos a chegar à
época do ano em que a afeição desmedida nos é tradicionalmente imposta pela cultura e
pelas empresas de postais, mas devo dizer que entro nela de livre vontade. Morro de amores
pela grande ave e pelos rostos radiantes. E pelos inhames doces (receita em anexo).
Bom Dia de Ação de Graças, Eve.
Jack

Jack, não consegui arranjar inhames, mas fiz peru em honra do seu feriado; apenas o
peito, em manteiga e vinho Marsala. Estou aqui a pensar se esta combinação poderá
funcionar com pato. Resultaria muito rico em sabor, mas com legumes simples cozidos e
nabos para cortar a doçura é capaz de funcionar. O que acha? Geralmente sou preguiçosa
com pato e limito-me a arranjar os peitos e a fazer um molho com xerez, sumo de laranja e
compota de laranja. Mas talvez se justifiquem algumas experiências. A propósito, se
pretender assar um inteiro, seque a pele com um secador de cabelo. Fica quase tão
estaladiça como se o pendurar.
E... fiz uma tarte de abóbora, não no dia devido, mas umas semanas antes, quando tive
alguns rostos, não muito radiantes, mas, ainda assim, rostos com quem a partilhar. Gostei
bastante, mas as abóboras aqui são um pouco farinhentas e sem cor, por isso tive de ir à
procura das enlatadas. Anexei uma receita de bolo de abóbora do tempo da guerra de que
acho que vai gostar. Inclui essência de coco, que não devia conter originalmente, mas
tirando isso, acho que é fiel à época. Era assim que se desenrascavam nessa altura.
Especialmente cá.
Espero que esteja tudo bem consigo.
Eve.

Jack achou a despedida ligeiramente formal, mais parecida com o tom das primeiras cartas. Ela
não mencionara Paris, e ele ficou secretamente aliviado por o plano ter sido aparentemente
arquivado. Afinal, Adrienne podia não gostar da ideia, nunca se podia apostar nas reações das
mulheres quanto a este género de coisa. Ele poderia convidá-la, obviamente. Adrienne poderia
acompanhá-lo a Paris. Podiam ambos conhecer Eve. Mas, mesmo ao desenvolver este raciocínio,
sabia que era um absurdo. Eve era uma coisa à parte. Fora sempre algo à parte, pensou. Uma coisa
separada do resto da sua vida.
Ele respondeu:

Está tudo bem comigo. E obrigado pela receita do bolo de abóbora. Pretendo
experimentá-la.
Jack

Jack foi a casa de Lisa passar a Ação de Graças. Ela tinha organizado uma festa cujo serviço de
catering era feito por uns tipos quaisquer de Nova Iorque, e passara a maior parte do tempo colada
ao seu bilionário alemão, um indivíduo alto com um maxilar que parecia uma bigorna e uma
personalidade a combinar.
Os filhos adolescentes do bilionário alemão também lá estavam. Eram três. Olhavam para Lisa
com um nível de aversão que chegava a ser palpável. Por sua vez, Lisa olhava para eles como se
fossem crianças do pré-escolar. E falava com eles da mesma maneira. Sem dúvida desejava que o
fossem. Jack, agora distante e imbuído da benevolência que a culpa é capaz de gerar num homem,
sentiu pena dela. Da sua nova perspetiva compreensiva, Jack via que se o bilionário alemão tivesse
chegado com apenas uma menina pequena às costas, Lisa poderia ter tido uma chance, poderia ter
conquistado uma menina com bugigangas e brincadeiras. Jack percebeu de repente que muitos dos
atributos mais irritantes de Lisa se dissolveriam em resposta à ação calmante do afeto constante,
transformando-se em diversão. Foi com agrado que viu o bilionário observar a forma como ela
circulava pela sala a conversar com os convidados com a expressão de um rapaz que tinha
apanhado uma borboleta num frasco.
– Esta é Bitsy – dizia ela agora a Jack, com um olhar que sugeria estar a fazer-lhe um favor; o seu
novo estatuto de emparelhada tornava-a graciosa.
Bitsy, uma divorciada de dentes protuberantes que já fora casada com um político proeminente,
sorriu para Jack. Estava acompanhada por uma filha de dezassete anos, toda atiradiça, que parecia
ter atraído a atenção de um dos filhos do bilionário. Ela também sorriu para Jack, que já estava à
procura de uma saída. Assim que o filho do bilionário conseguiu introduzir-se desajeitadamente no
grupo, ele desculpou-se, agradecido.
– Uma espécie de circo, não? – disse, animado por encontrar refúgio na forma de um velho
amigo, Henry Franklin, que estava encostado a um canto, ao lado de um expositor embutido tão
carregado de bugigangas, porcelanas e jigajogas caríssimas como o resto da casa. Hoje, com as
velas, flores, uma profusão de decorações próprias do feriado e da animada multidão elegantemente
vestida, o efeito era caleidoscópico. Henry observava o evento com uma expressão que Jack achou
resumir os seus próprios sentimentos: algures entre o fascinado e o horrorizado.
– Principalmente chimpanzés e palhaços – respondeu Henry.
– Como vai, Henry?
– Nunca pior, meu caro Jackson. Como vais?
– A divorciar-me da número dois. A chegar aos cinquenta. Em busca do sentido da vida.
– Para de procurar. Ele vai surgir quando menos esperares.
Jack riu-se.
– De qualquer forma – continuou Henry –, não vale a pena afligires-te com os cinquenta. Não há
nada de errado com os cinquenta, exceto a velocidade a que os sessenta se aproximam. – Ele bebeu
um gole da sua bebida. – E não queiras saber dos setenta e dos oitenta. Esses filhos da mãe
apanham-nos desprevenidos.
Os dois desataram a rir.
– Lamento não ter aparecido mais vezes desde que... – Jack hesitou e disfarçou com um gole da
bebida, um Campari com gasosa inspirado na ocasião. Lembrou-se novamente da sua recente falta
de caridade.
– Desde que a Suzanna morreu – terminou Henry.
– Desde que a Suzanna morreu – repetiu Jack.
– Bem, sem a Suzanna eu não sou tão interessante.
– Não? – perguntou Jack muito sério.
– Não. E estou mais magro.
– Ela era a melhor cozinheira que conheci.
– Ela dizia o mesmo sobre ti.
– A sério?!
– A sério.
Henry vestia o seu habitual casaco de tweed e um laço bordeaux. Olhava para Jack não como um
pai, mas talvez como um daqueles sábios professores universitários que temos tendência para
recordar com carinho depois de nos formarmos. – Então porque é que não cozinhas hoje em dia? Eu
tinha alguma esperança de receber um convite. Na verdade, a única razão pela qual aceitei este,
além do facto de me ter salvado de me enfiar num avião e ir para a casa da minha filha ser tratado
como um velhinho durante três dias, foi encontrar-te e pedir-te que cozinhes uma boa posta de carne
de vaca no Natal.
– Ando a cozinhar menos nos últimos tempos, Henry – disse Jack. – Acho que cozinho como
outras pessoas bebem: para esquecer.
– Disparates! – disse Henry. – Alguma mulher anda a vender-te gato por lebre.
– Henry, é a segunda pessoa em dois meses que me acusa de ser incapaz de pensar sem a
influência de uma mulher.
– Incapaz, não, Jack, reticente.
A risada de Lisa veio lá do fundo. Jack estremeceu involuntariamente.
– Mas porque é que diz isso? Considero-me um homem independente.
– Sim, bem, depois dos cinquenta isso é uma estupidez. Quando os homens se põem a dizer essas
coisas só significa que fazem o que as mulheres lhes dizem, como qualquer outro idiota, mas depois
põem as mulheres a chorar e enganam-se a pensar que são heróis. Felizmente, os homens
inteligentes, se são heterossexuais, dois campos nos quais te incluo firmemente, acabam por
ultrapassar essa ideia de que são independentes das mulheres. Levei muito tempo a descobrir o
quanto precisava da Suzanna e que não queria voltar a fazê-la chorar.
– Fico espantado por alguma vez ter feito a Suzanna chorar. Eram o casal mais feliz que já
conheci.
– Talvez fosse da cozinha.
– Talvez.
– Não desistas da cozinha, Jack, e não desistas da ideia de que uma boa mulher, a mulher certa,
ainda possa existir para ti. Muitos homens da tua idade juntam as trouxas com alguma anémona
insípida, ou pior, com uma enfermeira, só porque têm medo. Têm medo de vaguear por aí sozinhos
com a gravata manchada de ovo, à espera que o carteiro os encontre mortos à porta depois de
tentarem fazer chichi ao ar livre numa noite gelada. Jack, se não encontrares a mulher certa, vive
sozinho e escreve e cozinha muito. É nisso que és bom e, no fim de contas, são as coisas em que
somos bons que nos dão alegria, que nos permitem ser nós mesmos. Eu já estou para lá de velho,
Jack, olha que eu sei. Agora convida-me para o Natal e vai buscar-me outra bebida. E tem cuidado
com aquela dos dentes saídos com a pequena Lolita a reboque. Ela põe-te o jugo em três tempos,
antes que consigas dizer «pensão de alimentos».

No dia seguinte Jack levantou-se tarde. O mar e o céu pareciam ter-se fundido num tom de aço e
caía uma geada forte. Ele acendeu a lareira e pôs música. Então, numa cozinha despojada de
pretensão ou desperdício, fatiou seis cebolas e colocou-as numa frigideira pesada com um pouco de
manteiga derretida em lume baixo. Consciente da agradável sensação de contentamento (Jack
achava o processo de caramelizar cebolas tão reconfortante como um banho quente), deixou a
caçarola e a manteiga a fazerem o seu trabalho e foi sentar-se junto à lareira com um livro.
Era um romance curto, moderno e contemporâneo, presente de Adrienne. Ela tinha-o enviado por
correio expresso com um bilhete: «Jack, tens de ler isto. Adrienne». Tens de ler. Se Jack levantou
uma sobrancelha à ênfase, voltou a baixá-la deliberadamente. Pronto, está bem, ia lê-lo.
Sentou-se com um copo de Pernod e apoiou os pés calçados com mocassins no tecido bordado já
gasto do seu repousa-pés preferido. O cheiro da cebola chegava até ele, e Jack inspirou o aroma
doce. O fogo fazia os barulhos caseiros costumeiros e os sons de um conhecido pianista flutuavam
até ele, agrupando-se ou dispersando-se, vindos do outro lado da sala da coluna de som ao canto.
Ele abriu o presente de Adrienne com cuidado, como se estivesse a levantar uma pedra, e depois
abriu um pouco mais a lombada com o polegar para poder ler só com uma mão.
Ao fim de ter lido cinco páginas, Jack pôs-se a pensar no que diria a Adrienne. Ela tinha
telefonado para se certificar de que o livro chegara, e mostrara a clara intenção de discutir o
conteúdo com ele. Leu mais cinco páginas. Então levantou-se e foi mexer as cebolas com uma
espátula de madeira, embora não houvesse necessidade. Voltou a pegar no livro pela terceira vez,
levantando-o e analisando-o como um velho olha para o relógio. Passou os olhos por mais algumas
páginas. A esta altura já a sua falta de interesse era suficientemente intensa para começar a dar cabo
do prazer do aroma a cebola.
Fechou o livro, olhou para a capa um instante (uma bela imagem de uma folha delineada a preto),
depois levantou-se e voltou para a cozinha. Abriu a tampa do caixote do lixo com o pé e deixou
cair o livro lá dentro. Em seguida, terminou de beber o Pernod.
De olhos postos no horizonte plano e nos flocos adocicados de geada que vestiam a orla da
paisagem novembrina, Jack chegou à conclusão de que a falta de maus hábitos não ia ser suficiente
para manter o seu relacionamento com Adrienne. E também sabia, sem sombra de dúvida, que isso
era o fundamental. Ela não tinha deméritos óbvios e ele andava a portar-se muito bem. Mas uma
noite qualquer, em breve, ele ia querer sair para comer um bom bife e falar sobre ostras, ou esticar-
se a ler um livro de ficção de má qualidade com ela por perto e, embora soubesse que Adrienne não
iria reclamar nem discutir sobre essas coisas, podendo mesmo conceder-lhe uma espécie de
permissão silenciosa, isso não seria suficiente. Entre eles pairaria um perigo constante, cheio de
cedências espinhosas. A negociação iria esgotar ambos. Não valia a pena. Ele ia ter de encarar o
verdadeiro celibato. Não brincar a esta coisa da vida de solteiro, mas o celibato puro e duro. Ia ter
de viver consigo próprio e ver se se dava bem assim.
Adicionou um pouco de tomilho à cebola, partiu três ovos para uma tigela e juntou natas, sal e
pimenta.
Eve fez a cama com a mesma precisão com que fazia tudo o resto, retirando o mesmo prazer da
superfície alisada que sentia quando via as filas de frascos de conserva rotulados e datados na
despensa. Sentia um contentamento profundo e muito pouco usual; tinha o fim de semana todo para
si. Gostara das visitas de Ollie e Izzy, muito mais frequentes nos últimos tempos, mas Eve sempre
achara o sossego restaurador. Só o pensamento de poder estar sozinha um fim de semana inteiro
numa casa bem abastecida, apenas com a companhia de um livro e uma lareira, fazia-a sentir-se
calma e protegida de turbilhões repentinos. Apesar do progresso que já alcançara, ainda precisava
destes pequenos oásis.
Desceu e preparou um segundo bule de chá e uma torrada, que barrou com manteiga enquanto
aguardava a infusão do chá pousado na ponta do seu fogão Aga. Espalhou um pouco de compota de
amora silvestre que sobrara do ano anterior na torrada, cortou-a na diagonal e colocou-a num prato
de porcelana que combinava com o bule, a chávena e o pires. Era o seu serviço preferido:
passarinhos exóticos pareciam brincar por ali, a plumagem com os seus tons de rosa e laranja muito
vivos atenuados por verdes plácidos.
Ajeitou as coisas do pequeno-almoço num tabuleiro que levou para a biblioteca, onde já tinha
acendido a lareira. Serviu-se de chá, sentou-se e abriu o livro. Um de Jack. Ainda via a leitura
matutina como um ócio, mas Beth tinha-a ensinado a deixar-se levar por alguns.
Lá fora estava um dia pesado, chuvoso com nuvens baixas. Ela levantou-se e foi acender mais um
candeeiro, colocando em seguida um pouco de música. Às 9h38 de uma manhã de sábado chuvosa
de novembro, Eve Petworth, vestida com uma saia de lã pelo joelho e uma camisola de caxemira
bege, estendeu os braços para um amante imaginário e, lenta e graciosamente, os pés a deslizar com
leveza no tapete turco como se fosse parquet, fechou os olhos e dançou.

Jack acordou às 04h44. Levantou-se, foi encher um copo com água à torneira da casa de banho e
bebeu. Voltou para a cama, mas o sono escapava-se-lhe. Ficou deitado um bocado, deixando os
olhos acostumarem-se à escuridão, fixos num gancho junto à porta do quarto onde costumava estar
pendurada uma fotografia que Marnie tinha retirado e que Jack nunca se dera ao trabalho de voltar a
preencher. O gancho vazio, imbuído da tristeza da hora, assumia uma importância incómoda que
tomou conta dele por breves instantes, para depois se condensar e se concentrar num desconforto
físico no peito. Sentou-se na cama e a sensação de desconforto melhorou, para depois se
intensificar novamente, avivada pela falta da luz do dia. Levantou-se e pôs-se a andar de um lado
para o outro, pressionando o esterno e desejando que acalmasse. Devia ser azia. Foi à casa de
banho e tomou Alka-Seltzer. Às 5h15 voltou para a cama.
Era escusado.
Sentou-se e acendeu a luz; em seguida, levantou-se, vestiu um roupão xadrez, desceu e preparou
um café, ficando a olhar para as janelas escuras e sentindo-se triste. Não estava doente nem estava
falido, e quando acabasse com Adrienne, como sabia que acabaria por fazer, deixaria de poder
atribuir a culpa das suas habituais insuficiências a uma terceira pessoa. Se seguisse o conselho de
Henry e se limitasse a caminhar até à velhice, ou mesmo a cruzar o limiar sozinho, ia ter de assumir
a responsabilidade por tudo. Por tudo. Raios, pensou. Ei-la, por fim. A idade adulta.

Às vezes acordo durante a noite, e quando isso acontece, gosto de leite e biscoitos. Não
sei se para esses lados do mundo existe o mesmo hábito. Naqueles filmes britânicos de
baixo orçamento, mas de grande qualidade de representação, nunca vi ninguém a levantar-
se a meio da noite e a ir buscar leite e biscoitos; uma falha, na minha opinião. Talvez tenha
a ver com as restrições financeiras, ou serão outras restrições britânicas? De qualquer
forma, hoje acordei a meio da noite e caramba... não havia um único biscoito. Então fiz
alguns. Biscoitos de amendoim. Era uma receita da minha avó. Envio-lha, não só porque
lhe devo uma avó, mas porque acho que esta avó em particular teria aprovado os seus
scones de alfazema. O que digo eu... aprovado? Ela teria ficado em êxtase. Assim como com
o doce de pétalas de rosa. Ela teria convidado todas as mulheres da região para se gabar.
Uma receita inglesa. Ela achava que tudo o que era inglês explodia de classe. Começo a
pensar que ela tinha razão.
Jack
A propósito, eu ponho sempre um pouco de sal nos amendoins depois de os assar.

– O que estás a fazer?


– Nada de especial.
– Bem, eu estava a pensar ir aí... Jack?
– Hum?
– Devo ir aí?
– Eu não estou... hum...
– Foi só uma ideia.
– Talvez seja melhor eu ir ter contigo.
– Jack. Estás a tentar acabar comigo?
Adrienne fizera a pergunta com uma total falta de histeria. Porque não podia ele simplesmente
dizer que sim, pensou Jack. Porque era um covarde. Porque não estava pronto para o vazio que o
rompimento da relação iria deixar. Porque Adrienne se iria embora sem tretas. Tinha a certeza
disso; ela não era como as outras mulheres. Não haveria telefonemas às duas da manhã cheios de
recriminações, nem haveria destroços femininos reveladores espalhados pela casa. Ela
simplesmente desapareceria.
– Estou só ocupado, Adrienne. Ninguém disse nada sobre acabar seja o que for. Não entendo
porque é que as mulheres têm de dramatizar a mais pequena alteração a um plano. – Assim que
disse isto percebeu como estava a ser extremamente injusto. Mas já lhe escapara, portanto o melhor
era não dar parte de fraco. – Eu quero trabalhar. Tu é que estás sempre a insistir comigo para
trabalhar.
Houve um momento de silêncio, da parte dele espesso de um ludíbrio inconfessado que ela cortou
de um só golpe.
– Jack, se esta relação não é o que queres prefiro que mo digas. Não estou nada interessada numa
dessas conversas de separação chapa cinco num lugar público. É o tipo de coisa que os homens
imaturos fazem para se protegerem da histeria das mulheres imaturas. Jack, eu espero que nenhum
de nós se encaixe nessa categoria.
Ele conseguia sentir a acusação vinda do outro lado da linha, por mais ponderada que fosse.
Deixar uma mulher inteligente como ela era um processo mais frio, mais consciente do que o tipo
de operação toca e foge em que caíra nos últimos anos. Seria necessário muito cuidado para este
novo tipo de partida. E então, no seu rasto, ele seria deixado, não a chafurdar no fracasso escuro e
bafiento, mas, ao contrário, iluminado pelo brilho intenso, límpido e direto da responsabilidade.
– Querida – disse Jack –, só não estou com espírito para socializar. Vejo-te na quinta-feira.
Falaremos nessa altura.
– Tudo bem, Jack.
– Até quinta, então.
– Até quinta.
Jack desligou, ciente da armadilha que tinha montado para si mesmo.

Certa vez fui a Itália passar uma lua de mel. Digo «uma lua de mel» porque em muitos
aspetos me sinto desligada de toda a experiência, embora tenham sido, posso admiti-lo
agora, as duas semanas mais felizes da minha vida. Foi a primeira vez que ganhei
consciência da vida, suponho, particularmente da culinária. Eu tinha chegado (calculo que
não ficará chocado) ao ponto da gravidez em que a fome se torna esmagadora e as semanas
de náuseas e medo são subitamente substituídas pelo abraço grato da gula.
E do amor. Havia disso, também.
Mais tarde, quando tudo desapareceu – a minha rotundidade otimista e a disponibilidade
para a alegria – quando tudo me foi arrancado, eu tentei esquecer: a luz do sol nos meus
braços, a brisa a agitar as videiras, a música que tocava na esplanada do restaurante
espetacular onde soube pela primeira vez o que a salva é capaz de fazer à manteiga. De
muitas maneiras, e durante muitos anos, consegui.
Então, ao ler o seu livro (o primeiro, «Cartas Mortas», sobre o qual lhe escrevi acerca
daquela cena com o pêssego) tudo voltou. Mas veio de uma fonte diferente, uma fonte mais
segura, mais divertida do que a minha própria memória aos retalhos. E fiquei imensamente
grata... por aquele momento de profundo prazer, sentido sem nenhum tormento a
acompanhá-lo. Foi por isso que escrevi. Embora, se tivesse esperado mais um dia,
provavelmente não o tivesse feito. A precipitação – fatal para o risoto – foi-me favorável.
A sua amiga,
Eve

Jack pousou a carta de Eve, leve como uma pena, no colo e colocou a palma da sua mão no papel,
como que protegendo a confissão nua naquelas palavras pungentes e sinceras; tão lindas e
comoventes como a luz que atravessa um vitral, e pensou: foi a mim que o seu momento de
precipitação favoreceu, Eve, a mim.

– Não vou deixar que faças isso, Jack.


– Fazer o quê, exatamente? – Jack encostou-se ao balcão da cozinha de Adrienne. Uma cozinha
que só tinha sido usada para cozinhar por Jack, e da forma mais limitada possível.
– Sabotares-te a ti mesmo.
– Sabotar-me a mim mesmo.
– Para de repetir o que eu digo. Sabes muito bem o que quero dizer. – Ela bebeu um gole de
vinho, serena. Jack achava essa característica por si só muito apelativa. Um apelo a que estava a
tentar não ceder. Tinha ido até à cidade, reservado um quarto de hotel e tentado convencer Adrienne
a encontrar-se com ele em algum lugar, mas ela insistira para que ele fosse ter com ela ao
apartamento. Ele bebeu, também, sentindo-se derrotado.
– Estás a sabotar-te a ti mesmo e olhar em volta à procura de algum problema externo. Estás a
tentar encontrar alguma fonte externa para os teus problemas, mas ela não existe, Jack.
Jack suspirou. – Adrienne, até podes ter razão. Na verdade, tenho fortes suspeitas de que tens
razão, mas isso não muda o facto de eu precisar...
– Esse é o problema, não é? Tu não sabes o que precisas de fazer. Mas eu sei, Jack. Precisas de
escrever. Precisas de escrever algo real. Podes parar de protestar acerca disso. Eu sei. Eu sei que
queres escrever algo de que realmente te orgulhes. É isso que tenho tentado fazer, Jack. Ajudar-te a
escrever.
Ela levantou-se e, pousando uma daquelas mãos perfeitas no peito dele, olhou-o nos olhos. Foi o
gesto mais profundamente amoroso que ela lhe oferecera em toda a relação. Ele sentiu mão quente
através da camisa e o desejo subiu dentro dele como uma serpente ao som da música. Com ambas
as mãos, ele segurou-a pelos ombros com firmeza e lentamente fê-la dar um passo para trás antes
que pudesse agir em conformidade com o que sentia.
Ela entendeu.
– Faz como quiseres, Jack – disse ela.

Já era tarde e ele estava com fome. Andou pela cidade, sentindo a ferroada do início de
dezembro através do sobretudo. A aproximação do Natal começava a sério e as ruas estavam cheias
das multidões que se preparavam para as férias. Havia luzes brancas nas árvores e decorações
douradas nas montras das lojas e pequenos grupos de pessoas alegres a entupir os passeios,
vestidas para sair à noite.
Jack decidiu ir comer e tentar não pensar. Foi a pé até ao Lucio’s. Pelo caminho deu uma nota de
cinquenta dólares a um tipo que estava à entrada de uma porta, que olhou para ele com a mesma
suspeita com que olhou para a nota, antes de encolher os ombros, meter o dinheiro no enorme
sobretudo militar que usava e sorrir. Era um sorriso louco, maníaco. Agradeceu a Jack com um
toque num chapéu imaginário e Jack ficou grato por aquele momento de excentricidade num dia até
aí plúmbeo.

– O que queres, Jack?


– Mais pão.
– Sempre com a resposta na ponta da língua.
– Agora parecia a Suzanna, Henry.
– Sim, bem, acontece.
– Nunca aconteceu comigo.
– Talvez nunca tivesses querido.
A casa de Henry tinha uma vista ainda melhor do que a de Jack. E mais livros e mais quadros.
Era a casa de um homem de idade que lera muito, que ouvira muita música, que admirara uma
grande quantidade de quadros bons e conhecera um pouco da vida.
– Agora quero. Pergunto-me porque nunca procurei esse tipo de relação com uma mulher. Sempre
escolhi mulheres de quem não poderia ser amigo.
– Se te serve de consolo, tenho reparado que muitas mulheres fazem a mesma coisa.
– Ai, sim?
– Claro! As que são tão estúpidas como tu.
Jack colocou a mão no queixo e voltou a retirá-la, pousando-a aberta na toalha de mesa e ficando
a estudar as pontas dos dedos. – Eu sei que é um bocado piroso ter este tipo de crise aos cinquenta
anos – disse ele. – Mas aqui estou eu, um verdadeiro cliché.
Henry, observando-o, disse: – Ouve, Jack. Tenho oitenta e dois anos e o que aprendi
essencialmente é que há imensas coisas que não sei, mas digo-te isto de graça: se ficas à espera que
a vida venha e te arranque da cama de manhã, vais esperar muito tempo. Tens de contribuir com
alguma coisa, Jack. Traça um plano, escreve, cozinha, viaja, faz alguma coisa que queiras fazer,
porque o «ai de mim» adora um espaço em branco.
– É um bom amigo, Henry, e eu tenho sido muito negligente consigo.
Henry encolheu os ombros e sorriu. A empregada entrou para retirar os pratos de sopa. – Tens
saúde e bons amigos, Jack. A maior parte do tempo isso é o suficiente.

Cozinhe brevemente ao vapor uma batata aos cubos e um pouco de cebola em manteiga
sem sal e depois coza-a em caldo de galinha antes de adicionar as folhas de alface picadas
(alface de corte); em seguida, desfaça tudo em puré. Pode adicionar manjericão fresco, se
quiser, ou engrossar com um pouco de natas ou manteiga batida, às vezes faço isso, mas
acho que a batata é suficientemente cremosa. Muitas vezes as pessoas têm dificuldade em
identificar o sabor, mas é delicioso e muito prático. Detesto encontrar alfaces murchas que
ficaram esquecidas na parte inferior do frigorífico, e se já não é possível reavivá-las em
água gelada, esta é uma boa maneira de as aproveitar. Ocorre-me, ao escrever isto, que
uma grande parte da minha vida foi tão murcha e solitária como essas alfaces esquecidas.
Pergunto-me se um mergulho em água gelada seria capaz de me reavivar.
Eve
Jack só tinha alface romana, por isso não fez a sopa, mas pensou que a faria assim que tivesse
oportunidade.

Gosto da ideia do mergulho em água gelada, ele escreveu:

mas temo que já não é possível eu ser reavivado. Entretanto lhe digo que o meu prato de
sobras favorito é fricassé de peru. É uma coisa grosseira com pó de caril falsificado. A
minha mãe costumava fazê-lo. Só tentei fazê-lo depois de ela morrer. E nunca ultrapassei o
facto de ela ter morrido. Faço-o quando pensar nela me deixa desolado ou alegre. Sabe a
casa.
Jack
CAPÍTULO 11

– E u não estou a falar em acabar, Ollie. Estou a falar em adiar...


– A mim parece-me acabar.
Izzy começou a chorar. Estava sentada no pequeno sofá que comprara para o nicho da janela
poucos meses depois de se mudar para o apartamento dela, a chorar. Não podia acreditar que
estava a chorar outra vez.
Ollie também não. Detestava aquilo; detestava a desolação que nublava aqueles olhos até então
cintilantes. Preferia a raiva de Izzy. De longe. Sabia o terreno que pisava quando Izzy estava
zangada; era como uma estrada a direito. Gostava disso. Nunca se sentia inseguro, nem mesmo face
ao pior do seu mau génio. Mas este novo abismo para o qual ela os conduzia era obscuro e
insondável. Deixava-o desencorajado. Deitou as mãos ao alto, exasperado, na esperança de
provocar nela uma reação de pura indignação, e disse: – Chega de lágrimas, Izzy, andas a assoar o
nariz há dois meses.
– E tu andas emocionalmente distante há dois meses.
Ollie suspirou, mas também sentiu algum alívio; nas atuais circunstâncias, a impertinência
constituía um progresso. – O que queres dizer com emocionalmente distante, Iz? Que treta é essa?
De onde tiraste essa ideia?
– Não sei – disse ela tristemente.
Ollie sentou-se, novamente desestabilizado, deixando-se cair os últimos centímetros. Tinha um ar
exausto. Estavam a discutir desde o pequeno-almoço e já eram onze horas. Tudo começara por
causa das torradas. Izzy queixara-se que ele nunca fazia as torradas e, então, como ele não fizera
nada para remediar a situação nem para negar a acusação, ela avançara para «É isto que devo
esperar estando casada contigo?», com uma rapidez que deixara Ollie atordoado. Era uma manhã de
sábado e ele estava levemente ressacado. Dada a maneira de ser de Izzy, ele sabia que era um risco,
mas voltou a cair no hábito de arrebatar a torrada que ela já tinha feito e barrá-la com a deliciosa
compota de groselha da mãe dela, trincando-a com ar desajeitado.
– Provavelmente – respondera ele.
Izzy pegara na tábua de pão, ainda com meio pão de forma, e atirara-a para a outra ponta da
cozinha. Isso fora por volta das nove da manhã e desde então não haviam progredido um milímetro.
– Iz – disse ele –, porque não vais tomar um banho e vestir-te e saímos os dois para almoçar?
Mas Izzy voltou a olhar para ele com aqueles olhos opacos, os olhos que o assustavam, e abanou
a cabeça.
– Vai tu – disse ela sem rodeios. – Liga ao Rob, ou a alguém, se quiseres. Eu só quero ficar
sozinha.

Estranho como é poderoso e ilógico o conceito de identidade. Ser escritor faz parte de
quem sou, e apesar de não ter de o fazer, se não o fizer há uma parte que falta. Tentei
preencher essa lacuna com outras coisas, uma delas é cozinhar, outra são as mulheres.
Cozinhar ajuda, as mulheres nem por isso... pelo menos não aquelas a que me tenho unido.
Mas também que tipo de mulher vai querer um homem a quem lhe falta uma parte? Um
elemento essencial. Além disso, estou a engordar. A comida precisa de ser produzida e
consumida numa atmosfera de bem-estar ou alegria, caso contrário transforma-se em
adiposidade.
Dois bons amigos, muito inteligentes, que conduziram as suas vidas muito bem disseram-
me recentemente que tivesse paciência. Como não há duas sem três, gostaria de saber se a
Eve vai dizer-me o mesmo.
O seu amigo em dificuldades,
Jack

Eve já tinha lido a carta de Jack um total de seis vezes. A primeira vez que a abriu leu-a três
vezes e, mais tarde, voltou a lê-la duas vezes. Agora acabara de a ler mais uma vez. Não podia
acreditar que alguém, fosse quem fosse, e muito menos alguém talentoso, bem-sucedido e perfeito
em tudo aquilo que ela não era, lhe pedisse opinião. Nem conseguia definir o sentimento de
realização que lhe proporcionava, a confiança.
Foi para a cozinha e preparou para si um almoço elaborado e extravagante. Uma sopa cujos
ingredientes especiais, aipo-rábano e uma trufa negra, encomendara a um fornecedor de Londres.
Para seu deleite, tinham chegado no dia anterior.
Colocou o aipo-rábano cortado a cozinhar em lume brando com um pouco de leite e voltou a
pensar em Jack. Um escritor. Um verdadeiro escritor. Uma espécie até então misteriosa para ela.
Conhecera vagamente uma mulher, anos antes, que tinha escrito um romance, mas que acabara por
ser um caso de sucesso passageiro, não uma carreira. Eve tinha lido o romance, mas não conseguia
lembrar-se da história. Os livros de Jack eram muito mais tocantes. Os personagens eram reais. O
leitor criava uma ligação com eles. Quando não estava a ler, pensava neles. Depois de terminar o
livro, não queria ler sobre qualquer outra pessoa durante um tempo. Ela não conseguia perceber por
que razão Jack iria querer parar de fazer isso. Mas provavelmente devia haver muita coisa que não
entendia sobre a vida criativa; a dela era tão circunspecta e prosaica.
Quando terminou de almoçar, no lugar que havia posto para si com o cuidado meticuloso de um
criado vitoriano, o céu tinha clareado e ela decidiu ir dar um passeio. Já tinha passado a altura do
ano de apanhar cogumelos, o seu género de passeio preferido, e o bosque estava pantanoso, mas
podia ficar-se pelos caminhos, subir à parte mais alta e ficar a ver a paisagem, onde se incluía a sua
casa e o jardim de inverno, e pensar sobre o que dizer a Jack. Era importante para ela, muito
importante, avançar com cuidado neste novo passo da amizade. Uma bela amizade. Uma amizade
que, tal como a sopa de aipo-rábano e trufa, era sumptuosamente decadente e só sua.

Eve já havia vestido o casaco e posto o cachecol quando o telefone tocou; esteve quase para não
atender. Mas acabou por fazê-lo; primeiro pensou que era engano, ou um daqueles telefonemas a
pregar partidas, mas depois reconheceu a voz de Izzy entre os soluços.
– Izzy?
– Acabou tudo, mãe. Cancelei o casamento.
– Oh, Izzy! – disse Eve.
– Mãezinha, podes vir até cá, por favor?
– A Londres?
– Sim, a Londres. Já. – A voz dela foi-se abaixo outra vez.
Odiando-se por isso, Eve hesitou.
– Por favor, mãe. Eu não posso tirar férias do trabalho, mas se pudesses ficar comigo alguns dias
e ajudares-me a...
– Claro! Claro que vou – disse Eve. – Vou hoje à tarde.

Havia um comboio às 16h30 que podia apanhar se fosse de carro até Westcastle. Chegaria por
volta das sete da tarde e podia apanhar um táxi na estação até casa de Izzy. Mas enquanto fazia as
malas, Eve pôs-se a pensar que se calhar chegava a Londres e a tempestade já tinha passado. Fora
isso que Gwen dissera quando ela lhe telefonara a informar que ia para lá.
– A nossa Carly fez exatamente a mesma coisa – garantiu ela a Eve. – Rompeu o noivado com o
Ben duas vezes antes de fazer o caminho até ao altar. Pôs o pai a subir pelas paredes.
– Espero que tenhas razão – disse Eve.
– Eu já passei por três. Honestamente, é dar-lhes o dinheiro das passagens de avião e deixá-los
fugir. É bem mais fácil e simples.

Nem passara pela cabeça de Eve que o comboio pudesse estar apinhado de gente. Era tão raro
viajar num domingo à tarde, viajar de todo, aliás, que esse tipo de coisa não lhe ocorria.
Evidentemente era a última semana de algum tipo de férias da escola, pois havia famílias e
estudantes a apinhar as plataformas. No comboio não havia lugares sentados. Quando o comboio
arrancou, ela ficou prensada contra uma grande mala preta de plástico que alguém tinha pousado de
lado no porta-bagagens a abarrotar junto às portas. Estava cheia de calor e desconfortável no seu
casaco de inverno. Tirou as luvas e enfiou-as no bolso, mas até isso era difícil. Mal havia espaço
para mexer os cotovelos.
– É das tarifas de fim de semana – ouviu uma mulher reclamar em voz alta. – Não devia ser assim
em primeira classe.
Uma mulher com uma criança viu Eve e, pegando na filha, acenou-lhe. – Chloe, tira as tuas coisas
– disse ela.
A menina, de cerca de três anos, pegou no livro de pintar com relutância, pousado na mesinha à
frente do seu assento, no preciso momento em que um homem de rosto largo e agressivo a empurrou
e se especou na frente de Eve, forçando-a ainda mais contra a massa de bagagens e fazendo-a sentir
as tiras grossas de uma mochila volumosa espetarem-se-lhe nos gémeos. O peito do homem, envolto
em nylon acolchoado, bloqueou a visão e a passagem de Eve. Encurralada, ela tornou-se consciente
do calor mole do aperto em torno dela e do cheiro azedo de algo que alguém aparentemente comia
mais adiante no corredor da carruagem. Estas foram as suas últimas perceções cognitivas.
Foi uma mulher mais velha. Uma mulher mais velha e organizada, com um lugar reservado e
quatro sanduíches de presunto e queijo muito bem embaladas num saco de papel reciclado, que
soube o que fazer.
– Respire, minha querida – disse ela. – Isso mesmo, respire.
Eve deixou a mulher cobrir-lhe a boca e o nariz com o saco de papel, agora vazio, embora por
momentos tivesse ficado aterrorizada ao pensar que a mulher estava a tentar sufocá-la. Alguma
coisa estava. Sentia-se como se estivesse num sonho, embora reconhecesse muito bem os sintomas.
O saco de papel ajudou e a respiração ficou mais regular, mas ainda se sentia terrivelmente mal.
Continuou a sentir-se muito mal e, aparentemente, a evidenciar isso, dada a preocupação da
jovem mãe. Eve tinha sido ajudada a sentar-se no banco ao lado dela. – O que é que ela tem? –
ouviu a menina perguntar. Mas a mãe, sentando a criança no colo, fê-la calar-se e concentrou a
atenção da miúda na janela.
Depois disso, Eve fingiu dormir durante a maior parte da viagem.
– Vai ficar bem? – perguntou a mulher que a tinha ajudado quando o comboio finalmente
abrandou, anunciando a chegada a Londres com um chiar lamuriento. Eve, sem escolha, mexeu-se.
– Sim – respondeu, embora soubesse que estava longe de ser verdade. Começou a pegar nas suas
coisas. – Obrigada. Muito obrigada. Não sei o que me deu. Talvez tenha sido fome – mentiu.
A mulher olhou para ela como se não acreditasse, mas sorriu. – Cuide-se, então – disse ao
levantar-se, pegando na maleta cheia de autocolantes e virando-se para sair.
Eve esperou até que todos tivessem saído, acenando um fraco adeus à mãe e à menina. A menina
parou e olhou para ela por cima do ombro. O casaco tinha um capuz debruado a pelo que lhe
escondia o queixo. A mãe puxou-a pela mão para a apressar.
Eve deixou-se ficar mais um minuto na carruagem vazia. Em seguida, foi até ao porta-bagagens
buscar o seu saco, que estava caído no chão. Ainda tinha as pernas bambas e sentia-se
profundamente doente.
– Acalma-te – disse em voz alta, embora soubesse, pelas sessões com Beth, que este era o tipo de
raciocínio bem-intencionado a que a aflição não prestava atenção. Desejou poder ir para casa. Ir
para casa, trancar a porta e ficar sentada em silêncio, sozinha, mas não podia.

Izzy ainda exibia um ar desalinhado quando a mãe chegou. Ela sabia disso e sabia que a mãe não
aprovaria. Ou achava que sabia, não tinha bem a certeza, e a sua insegurança estava a alimentar
ainda mais a tendência para dramatizar. Izzy sentia que a sua vida estava em crise e que um pouco
de drama, alguma preocupação substantiva, abertamente manifestada a um nível que a avó sempre
fora capaz de acompanhar de maneira tão fácil e notória, seria curativa.
Eve estava muito pálida quando chegou ao apartamento de Izzy e pagou o táxi com mãos trémulas.
Ainda era acometida por umas ondas de... não eram propriamente náuseas, mas a sensação de estar
prestes a desmaiar tomava conta dela de longe a longe. Estava muito abalada. Teria gostado de ir
direta para o quarto de hóspedes, onde ia dormir pela primeira vez, deitar-se sobre a colcha cor de
marfim, onde havia pequenas pilhas da roupa de verão de Izzy e uma jaqueta para dar, e enterrar a
cabeça na almofada.
Izzy não ofereceu nada para beber à mãe, por isso, depois de arrumar as coisas, Eve foi até à
cozinha, encontrou um pouco de chá de camomila e ambas, mãe e filha, ficaram sentadas em
silêncio um momento a bebê-lo. Izzy, tendo-se levantado apenas para carregar no botão que abria a
porta quando Eve tocara, tinha voltado a sentar-se com ar melancólico no pequeno sofá já marcado
pelo seu peso.
– Não vais perguntar-me porquê? – disse ela algum tempo depois, com uma voz rabugenta, que
Eve reconhecia desde a infância.
Eve pousou o chá à sua frente, numa mesinha coberta de livros e revistas e uma pequena coleção
de caixas de bugigangas. – Queres contar-me? – perguntou, mas faltava força à própria voz.
– Só estou farta disto tudo – disse Izzy.
– Farta?
– Sim, farta de fazer tudo sozinha. Da sensação de que eu é que sou a mãe.
– É assim que te sentes? Desculpa.
– É óbvio que é assim que me sinto. – Ela levantou-se com um pequeno salto e começou a andar
nervosamente à volta da sala. – Ter de organizar estes encontros acolhedores entre ti e o meu pai.
Ter de me sentar com a segunda mulher dele e com os filhos, como se fossem da minha família.
Pessoas que nunca conheci na vida. É o meu casamento e o passado está a tomar conta dele. O teu
passado.
– Sim – disse Eve, pegando no chá novamente e virando a chávena cuidadosamente no pires. –
Posso imaginar como isso te faz sentir.
– Podes? Não sei se podes. És tão má como o Ollie. Metidos no vosso mundinho, como sempre.
Aposto que já trataste de voltar para aquela tua loja de caridade. Essa coisa de voluntariado que
tratas como se fosse um trabalho a sério. Aposto que nem querias vir.
Eve foi atingida pela verdade da acusação.
– Quem me dera que a Gin-gin estivesse aqui!
Eve percebia que a intenção de Izzy era magoá-la. Mas ficou surpreendida por ela não o ter feito.
Ainda assim, a brusquidão das palavras sacudiu-a um pouco, e ela lembrou-se, pela primeira vez
desde aquele momento terrível no comboio, de algumas das coisas que tinha aprendido nas sessões
com Beth. Endireitou-se e não reagiu à agitação de Izzy.
– Imagino que já tenhas conversado com o Ollie sobre tudo isso – disse ela, mantendo a voz
baixa e firme.
– Bem, isso serve bem para mostrar que não o conheces nem um pouco. É impossível conversar
com o Ollie, absolutamente impossível. Ele nem sequer telefona à mãe para saber se ela vem ao
casamento.
Aquilo fazia sentido para Eve. Dois filhos de famílias disfuncionais que se tinham encontrado um
ao outro.
– Izzy, achas que pode ser o casamento e toda esta questão da família que está a incomodar-te?
Ou será que simplesmente não te queres casar?
Izzy parou de andar de um lado para o outro e olhou para a mãe como se nunca tivesse
considerado a possibilidade de as duas coisas não estarem relacionadas.
– Se não conseguimos organizar um casamento em conjunto, o que dizer sobre os próximos sabe
lá Deus quantos anos?
– Eu só acho que...
– O quê, mãe? O que é que tu achas? Eu estou interessada. Estou fascinada, na verdade. Quer
dizer que vais arriscar a dar uma opinião? A mostrar alguma personalidade? A tomar uma posição?
A agir como mãe? O quê?
Eve olhou para a filha furiosa diante dela, e decidiu que aquele era um momento que se vinha
delineando há muito tempo. Um que lhe era devido. E, naquele preciso momento, um que
absolutamente não era capaz de enfrentar. Levantou-se e saiu da sala. Foi para o quarto onde a sua
mala ainda se encontrava ao lado de uma mesa pintada com uma cadeira a combinar e acendeu o
candeeiro da mesinha de cabeceira. Depois fechou a porta e arrastou a cama até lá, bloqueando a
porta e criando um refúgio que a fizesse sentir-se segura; deitou-se e, abraçando o próprio corpo,
deixou-o tremer. Ficou assim várias horas. Foi uma noite muito longa.

De manhã, Eve acordou e olhou para o relógio na mesinha de cabeceira: 7h14. Sentia-se sem
vida. Ouviu Izzy andar pela casa, depois a água a passar nas canalizações e por fim, lá longe, uma
chaleira a ferver. Esperou, rígida e enrolada como uma concha, pelo bater da porta da frente.
Ouviu-o trinta e cinco minutos depois, mas manteve-se quieta por mais alguns minutos. Então, no
silêncio, cautelosa e frágil, pôs os pés no chão, como se duvidasse que ele fosse capaz de a
suportar, levantou-se e inclinou-se para puxar o fundo da cama e desbloquear a porta.
Eve fez chá, mas não o bebeu. Vinte minutos depois fez outro, mas também não o bebeu. Tomou
banho, sem lavar o cabelo, e vestiu-se, mas os botões do casaco de malha ficaram descasados. Por
volta do meio-dia deu conta que o casaco estava mal abotoado, mas não corrigiu a situação. À uma
hora da tarde deitou uns cereais numa tigela e comeu-os com os dedos, escolhendo passas e nozes e
uns pequenos pedaços que poderiam ser alperces secos. Comeu sentada à mesa da cozinha de Izzy,
que estava coberta com um oleado aos quadrados. Do lado de fora ouviu a torre de uma igreja tocar
o quarto de hora e olhou na direção do som. Os telhados de telha estendiam-se acima dos
minúsculos jardins das traseiras encharcados e a abarrotar de mobiliário de exterior e suportes de
vasos ao abandono no inverno londrino. O céu exibia a mesma cor que tinha às nove da manhã.
Desistiu de comer os cereais e limitou-se a olhar pela janela.
A pouco e pouco, o céu escureceu completamente, e o mesmo aconteceu à cozinha, mas Eve não
acendeu a luz, embora se tenha levantado e deitado os restos de cereais, de aveia e as migalhas de
trigo torrado, no caixote do lixo elegante da cozinha de Izzy. Em seguida, foi para a sala de estar de
Izzy e sentou-se no recanto onde Izzy passara a maior parte do dia anterior e ficou a ver as luzes
acenderem-se, lentamente, nos outros edifícios ao longo da rua. Não foram muitos. Era uma zona
onde residiam maioritariamente jovens e pessoas trabalhadoras e a rua só se enchia de raparigas
nas suas botas de inverno, rapazes de casacos a abanar, táxis a passar e pessoas à procura das
chaves muito depois das seis da tarde.
Izzy chegou a casa às 19h15. Quando acendeu a luz e viu a mãe, quieta como uma estátua, gritou.
– Desculpa, Izzy. – A voz de Eve veio, uniforme e distante, do outro lado do abismo.
– Eu... achei que já não estivesses cá.
Izzy tinha deixado o casaco e carteira junto à entrada, mas ainda usava uma longa écharpe preta.
Agarrou as franjas contra o peito, embora não estivesse frio no apartamento; o aquecimento tinha-se
ligado automaticamente. Eve ouvira o clique e o arrancar da caldeira.
– Se quiseres que me vá embora, eu vou – disse Eve.
Izzy não respondeu. Ainda estava de pé à entrada. Parecia muito cansada. O preto da écharpe
drenava qualquer resquício de cor que houvesse no seu rosto e as sombras em meia-lua que lhe
acentuavam os olhos nos últimos meses tinham-se tornado semicírculos escuros e fundos.
– Mas gostaria de dizer uma coisa primeiro. E agradecia que me ouvisses.
Izzy sentou-se, como que involuntariamente, numa cadeira no canto oposto à mãe e esperou.
– Obrigada – disse Eve. – Quero dizer que sei que não fui uma boa mãe para ti, que não fui
sequer uma mãe para ti. Cozinhei para ti e vesti-te, mas esse foi basicamente o grau da minha
participação na tua infância.
Izzy não falou, mas olhou para Eve com olhos que concordavam com o que ela havia dito.
– Deixei que uma série de amas e de escolas e... a Gin-gin, a minha mãe, te educassem porque
não me sentia preparada para isso. Desde o dia em que nasceste eu senti que eras demasiado...
vigorosa para mim e que, além disso, educar uma criança seria impossível para alguém com as
minhas limitações.
Izzy parecia chateada, mas apenas tanto quanto a sua exaustão permitia, quando disse: – Que
limitações, mãe? Nunca te faltou dinheiro. Nunca precisaste de trabalhar. Eu sei que estavas
sozinha, mas podias ter conseguido.
– Sim, tudo isso é verdade.
As emoções de Izzy dispararam e ela sentou-se. – Tu não foste à entrega de prémios – disse ela
num tom tranquilo. – Eu fui a melhor aluna e tu perdeste a entrega de prémios. A Gin-gin estava lá.
A Gin-gin estava lá na primeira fila, toda bem vestida, a lançar vivas e a bater palmas como uma
foca, mas tu não estavas lá, nem o meu maldito pai. E agora, nem tu nem ele são capazes de dizer
uma coisa boa sobre ela. Querem os dois brincar às famílias felizes no meu casamento, quando tudo
o que eu quero é a Gin-gin. Não quero casar-me sem ela. Quero que ela me ajude a escolher o
vestido, me diga que batom usar e que insista que o Ollie não é suficientemente bom para mim.
Eve inclinou-se para frente, apoiando os cotovelos nos joelhos. – É exatamente isso que ela faria.
– Sim, eu sei. – As forças começaram a fugir a Izzy novamente. – Era isso que ela faria – disse
com um suspiro final.
Seguiu-se uma longa pausa. Quando Eve voltou a falar, a voz era muito suave. – Quando eu tinha
dezasseis anos, um rapaz chamado David Pelham convidou-me para sair. Ele era alto e muito bem-
parecido, irmão de um amigo de alguém que eu conhecia na escola. Fomos ao cinema. Foi tudo
muito casto, ele era tão tímido como eu, mas eu gostava dele. Quando ele me trouxe a casa, a Gin-
gin e a amiga dela, Dodo, estavam à janela e vi-as. O David inclinou-se para me dar um beijo de
despedida, mas eu tinha tanto receio que elas gozassem comigo que lhe dei um empurrão. Saí a toda
a pressa do carro, tentando escapulir-me, mas tropecei no caminho da entrada e caí de joelhos.
Ouvi-as a rirem-se. Se eu fosse como tu, confiante como tu és, teria simplesmente beijado o rapaz e
depois entrado calmamente e perguntado para onde estavam elas a olhar. Mas eu não era como tu e
então fugi. Nunca mais saí com ninguém até conhecer o Simon no meu último ano em Cambridge, e
ele parecia não se importar que eu fosse tímida. Pelo menos, não no início. Eu estava tão
determinada a ficar com ele que fui para a cama com ele no nosso primeiro encontro. E quando me
apercebi, tu já estavas a caminho e a Gin-gin disse-lhe que ele tinha de se casar comigo. E ele
assim fez. Mas não durou muito, como sabes. Depois disso, tu tornaste-te a minha desculpa para não
sair de casa, e a timidez aumentou. Tornou-se algo maior e mais monstruoso e em breve fiquei
incapaz de ir fosse aonde fosse sem uma sensação de... terror. Terror absoluto. Tenho ataques de
pânico. Não posso prevê-los, eles simplesmente tomam conta de mim. Aparecem do nada e deixam-
me sem sentidos.
– Como naquele dia no bar? – perguntou Izzy, compreendendo subitamente.
– Sim, como naquele dia no bar.
– E foi por isso que não foste ver-me receber o prémio?
– Sim. E várias outras coisas que já deves ter esquecido, ou coisas que não pareciam
importantes, como festas de aniversário e afins, quando eras mais nova.
– E tens esses... o que são... ataques?
– Sim.
– Tens tido os ataques estes anos todos e nunca fizeste nada por isso.
– Não, pelo menos, não até agora. E é por isso que quero pedir-te desculpa. Eu deveria ter feito
alguma coisa... por tua causa.
– Mas podes... podes curar-te, ir a um psiquiatra ou algo assim, ou tratar-te com medicamentos?
– Há muita ajuda, sim. Mas para este género de coisa não há cura ou, pelo menos, não da mesma
maneira como se cura um braço partido. Aprende-se a lidar com o problema. Pensei que tinha
conseguido na tua festa de noivado.
– Estiveste muito bem. Parecias bem.
– Sim, foi por isso que pensei que já tinha superado, mas não é verdade. Ontem no comboio
voltou a acontecer.
– Talvez só precises de mais ajuda.
– Sim, talvez precise. Mas, Izzy, não estou a contar-te isto para te sobrecarregar. Estou a contar-te
porque quero explicar a razão pela qual nunca fui de grande utilidade para ti. Ou, pelo menos, parte
da razão pela qual nunca fui de grande utilidade para ti. – Eve desviou o olhar lá para fora, para
além das cortinas ainda abertas, para as luzes amarelas das outras casas, outros aposentos, alguns
dos quais conteriam, sem dúvida, os seus próprios dramas, cenas ou adversidades de longa data,
entre o cozer das ervilhas e o ver televisão, mas depois, repelindo qualquer fuga à sinceridade,
voltou a encarar Izzy. – A ansiedade não justifica tudo – disse abertamente. – Depois de algum
tempo tornou-se mais uma desculpa, mas eu era uma mãe incapaz de outras formas, por outras
razões. Eu sei disso.
Izzy sustentou o olhar da mãe, mas não respondeu.
– Mas vou começar por aí, pelo óbvio, e quero garantir-te que vou prestar mais atenção, porque
vejo que precisas de mim. Não sei se alguma vez conseguirei ser uma mãe na verdadeira aceção da
palavra, mas vou apoiar-te de todas as maneiras que puder. E quer decidas casar ou não com o
Ollie, eu vou estar sempre ao teu lado. Tu és minha filha e eu amo-te muito. Amo-te tanto que sinto
uma gratidão sincera para com a minha mãe por te ter proporcionado um pouco de felicidade.
Houve uma pausa. Eve estava ciente do ritmo da sua respiração, bem como a de Izzy.
– Eu percebo que para as outras pessoas ela pudesse ter sido um pouco avassaladora – disse Izzy,
de olhos postos no tapete. Pertencera a Virginia e era lindíssimo, azul esverdeado.
Eve, que também estava a olhar para o tapete, levantou os olhos. – Sim, mas ela não foi assim
para ti, e tu amava-la, por isso tens todo o direito de sentir falta dela agora. E quanto ao resto, ao
teu pai, à tua família adotiva ou seja qual for o termo apropriado, deves ser tu a escolher a forma
como queres abordar isso. Sei que é uma situação desconcertante, mas hoje em dia não é assim tão
incomum. Não acho que nenhum de nós queira estragar o teu casamento.
– Eu sei que não.
– Sabes?
Izzy suspirou. Um suspiro profundo, de libertação. – Sim.
Olharam uma para a outra um momento com um espírito de boa fé.
– Queres uma bebida? – perguntou Izzy.
– Sim, por favor.
Izzy trouxe a garrafa, uma taça de azeitonas e algumas batatas fritas e entregou um copo à mãe.
– És muito equilibrada, Izzy.
– Sou?
– És. Eu sei que provavelmente dou a ideia de que não presto atenção, mas reparo muito em ti, e
essa é uma das tuas qualidades.
– Não me sinto muito equilibrada agora – disse ela, mas sorriu levemente e atirou o cabelo para
trás com a mão.

Eve ficou com Izzy até o final da semana e, na sexta-feira, Izzy ligou a Ollie e disse-lhe para não
se preocupar, que tudo ficaria bem e que ia passar alguns dias a casa da mãe. Viajaram juntas de
comboio, Izzy tratando Eve todo o caminho como se ela fosse de porcelana. Eve ficou feliz por
isso, embora o comboio não estivesse cheio e ela se sentisse relativamente calma. Ligara a Beth de
Londres, marcando hora para segunda-feira, e Izzy dissera que ia ficar e levá-la à consulta.
Já em casa, comeram um empadão de carne que Gwen tinha descongelado.
– Acho que ainda não compreendo completamente – disse Izzy.
Tinham decidido comer à frente da lareira, em tabuleiros. Izzy puxou uma mesa para a frente da
sua cadeira e pousou nela o tabuleiro. – Isto é, eu consigo entender que a timidez possa ser...
paralisante, suponho, mas não vejo como pode fazer uma pessoa desmaiar.
– É o medo – explicou Eve lentamente. – Medo do que pode acontecer. Eu não sei, acho que eu
própria ainda estou a começar a compreender.
– Mais alguém sabe? Sobre esses... sobre o teu...
– A Gwen. E acho que a Geraldine suspeita.
– Na loja.
– Sim. Não costuma haver muita gente lá, mas quando isso acontece eu fujo sempre lá para trás.
E, por vezes, há semanas em que não sou capaz de todo.
Izzy fez que sim com a cabeça, absorvendo a informação, e, pegando num frasco de molho inglês,
sacudiu-o sobre a carne.
– Agora fez clique – disse ela baixinho.
– Fez clique?
– Todas as peças estavam separadas, mas agora algumas estão a voltar a encaixar no seu devido
lugar.
– Vai ser uma imagem diferente quando o puzzle acabar.
– Sim.

Alguns velhos amigos de Jack quiseram visitá-lo por uns dias, e ele deixou-os. Agora, a dois
terços da invasão de dois dias, como Jack a via, Andy Berkow encontrava-se com ele na cozinha, a
dizer: – Pois então, eu li que pretendes matar o Harry Gordon. O que estás a pensar escrever a
seguir?
Nessa altura, Jack não estava com um cutelo de carne na mão, o que, do ponto de vista de Andy,
era uma coisa boa.
Tal era a essência da vida social, pensou ele mais tarde... disparates sem sentido. Ainda assim, a
casa parecia silenciosa e abandonada depois de Andy e a mulher, Sue, terem partido. Apesar do seu
desejo de ver as costas aos convidados, insistiu para tomarem mais um café. No vazio que
deixaram, telefonou a Dex.
– Vou partir para a floresta, como um macho, para ver se me encontro.
– Os machos não se encontram, Jack. Isso é coisa de mulheres.
– Sim, bem, talvez elas sejam mais sábias.
– Pode ser, caro amigo. Mas escuta, vê se não te passas da cabeça por lá. Espero que não
regresses a entoar cânticos ou alguma coisa do género.
– Não prometo nada, Dex. Mas se eu começar a ter uma vontade irresistível de me despir e de me
sentar de pernas cruzadas por longos períodos, eu ligo-te.
– Há ursos, Jack. Há ursos e tipos que conseguem falar sem mexer os maxilares, há pessoas
casadas com as próprias avós nesses montes.
– Quando voltar ligo-te.

Cara Eve,
Vou partir por um tempo e não terei acesso a um computador. Vou para uma cabana que
pertence a um amigo meu. Vou para lá tentar terminar este livro. Não, vou para lá terminar
este livro. E fazer um trabalho digno, sem distrações. Depois vou voltar e aprender a ser
um homem de cinquenta anos, com um pouco de dignidade e estilo. O meu amigo que é
dono da cabana, Henry, tem ambos em fartura. Espero ser contagiado por um pouco dessas
qualidades. Parto na terça-feira. Vou perguntar ao Henry se a cabana tem endereço postal.
Eu só tenho as direções até lá que, na maioria, dizem: seguir em frente.
J

Caro Jack,
Nos últimos tempos tenho ficado espantada por o trabalho mental ser tão exaustivo.
Fisicamente desgastante, quero dizer. É estranho que o corpo possa ficar tão esmagado
pela atividade do cérebro. Atrevo-me a dizer que deve haver uma explicação científica
envolvendo adrenalina ou algo assim, mas, em todo o caso, acho que deve ter cuidado com
isso. Porque se a sua intenção for levar a cabo essa grande proeza de escrever o livro, vai
precisar de sustento fortificante.
Envio-lhe uma receita de caldo escocês; aquece, é nutritivo e ainda fica melhor ao ser
reaquecido. A preparação é um pouco morosa, mas depois disso é só deixar cozinhar. Talvez
o mesmo aconteça com o seu livro.
Boa sorte!
Eve

Vou fazer o caldo, mas se o aroma for tão poderoso, pungente e saboroso que faça com
que uma data de ursos saia disparada da floresta e faça de mim jantar, a culpa vai ser sua.
J
P.S.: Se eles deixarem um osso da coxa, não muito roído, use-o para fazer caldo.
Há mesmo ursos?

Sim.
CAPÍTULO 12

– S erá– uma... espécie de recaída? – perguntou Eve.


Pode ser uma maneira de o descrever – respondeu Beth. – Foi isso que sentiu?
– Não tenho a certeza. Na altura pareceu-me igual, as palmas das mãos a suar, a dificuldade em
respirar... o medo.
– Hum, hum.
– Mas depois foi diferente.
– Sim.
– Depois, no dia seguinte, senti uma determinação absoluta de não deixar que acontecesse
novamente. De enfrentar tudo de forma honesta e não simplesmente de me convencer, como fazia
antes, que o tinha vencido.
– Ainda se sente assim?
– Sim, sinto.

Eve,
Quando eu era miúdo tinha medo de cobras. Não quero apenas dizer que ficava nervoso
ao pé delas. Quero dizer com medo, um medo profundo, visceral. Recusava-me a ir acampar
com o meu pai por causa disso. E eu adorava acampar.
Então, uma noite, ele apanhou-me sozinho e arrancou-me a verdade. E depois de lhe ter
contado, ele explicou-me que muitas pessoas têm medo de coisas, medos para os quais não
há nenhum motivo racional. Disse-me que isso vem de uma parte antiga do cérebro que faz
com que até mesmo os habitantes da cidade se assustem com o som de um galho a partir. E
é por isso, disse ele, que às vezes temos simplesmente de nos tornar amigos desse medo.
Porque podemos ter de conviver com ele por um bom tempo.
Jack
Ainda não há ursos.

Caro Jack,
Eu sabia que se lhe contasse o Jack iria entender. Como é que eu sabia disso?
Eve
Ainda tem medo de cobras?

De vez em quando, e de muitas outras coisas. Mas vou acampar sempre que tenho
oportunidade*.
* Devo dizer que tais oportunidades foram esporádicas, a ponto da não existência, desde
1987, mais ou menos.
Comecei a entender que não tenho medo das pessoas ou da vida. O que eu tenho medo é
da minha reação a elas. Tenho medo é de mim mesma.
Eve

É por isso que é tão importante passar pelo processo de travar amizade com o medo. A
propósito, assei um pernil de porco. Faz-me o mesmo que o caldo de carne, chama por mim
quando as minhas mãos abandonam o teclado. Mas, neste momento, acho que é melhor
comer do que corrigir em demasia, por isso deixo-me levar pelo chamamento do pernil.
(Definitivamente acho que é um pernil de fêmea... doce e gorduroso).
J

Veja o bolo 2 4 6 8. Quando o meu cérebro não me deixa em paz, às vezes consigo distraí-
lo de um ataque em força recitando a receita. Pode experimentar quando as suas mãos
abandonarem o teclado.
Eve

Funciona. O demónio atacou-me às 11 horas da manhã: «Nunca vais conseguir terminar


este livro. Nunca vais conseguir terminar este livro.» Mas eu retaliei. 2 ovos, disse eu, e
toma lá mais 4 onças de manteiga e 8 onças de farinha, cabrão. (Desculpe-me o vernáculo,
estou a ser fiel ao teor da cena.) Então voltei a pôr as mãos no teclado e insisti durante
mais uma hora.
É uma pessoa maravilhosa, Eve. As suas cartas, que me fazem andar quase um quilómetro
para as ir buscar, são um ponto ainda mais alto na minha vida aqui. Parece-me que está
feliz. Comemore. Faça uma fornada destes biscoitos de parmesão e deite abaixo alguns com
o seu xerez. Porque se não aproveita os bons tempos, amiga, eles passam por si a voar.

Está certo ao dizer que devemos comemorar a felicidade. Nunca tinha pensado nisso
dessa maneira. Pergunto-me por que razão os exemplos negativos me têm sido muito mais
acessíveis. A autocomiseração, por exemplo, sempre me foi mais fácil do que o júbilo. Mais
fácil, mas com um preço bem mais alto.
Eve
Fiz os biscoitos de parmesão. Estavam divinais.

Há a tristeza e há o suplício, Eve. O suplício é aquela substância amarga concebida por


nós próprios. O seu fardo é a tristeza, uma tristeza opressiva que fico contente por saber
que está a desbastar, mas o suplício não é do seu feitio. E recordou-me para que não o
tornasse do meu. Obrigado.
Jack

Izzy pegou no livro da pilha de coisas que Eve embrulhava, sentada no chão, com os rolos de
papel e a fita-cola ao lado.
– Esse é o tipo de quem o Ollie gosta tanto.
– Sim. Este é para ele.
– Eu acho que ele já os tem todos.
– Este está autografado.
– Oh, ele vai adorar isso – disse ela, baixando-se para se sentar no chão, também, esticando
depois as pernas e recostando-se contra a base de uma cadeira. As cores do seu rosto tinham
voltado. Voltara a ter o seu ar normal, mas mais caloroso, mais à vontade na sua pele.
– Comprei esse tobogã para o Ed e para o Felix – disse ela em voz baixa.
Eve olhou para ela. – Foi muito querido da tua parte, Izzy. Muito querido.
Izzy sacudiu a cabeça, afastando o elogio, mas notava-se que ficara contente. – E isto. – Ela
esticou-se para pegar num saco e entregou a Eve uma caixa forrada a couro para homem. As iniciais
de Ollie tinham sido gravadas a ouro. – É o meu presente de casamento para ele – disse ela.
– Então já decidiste?
– Sim.

O que comeu no dia do casamento? Espero que tenha sido sumptuoso, e que me descreva
tudo com todos os pormenores. Estou preso em casa por causa da neve e a sobreviver a
feijão e bacon.
J

Os seus frutos secos com mel (muito populares), aperitivos de queijo cheddar crocantes
(idem), molho de cebola, cogumelos com queijo de cabra. Cavala em conserva. Ganso,
recheio de cebola e aipo, batatas e pastinagas assadas, nabos e cenouras cozidas, couve-
roxa com especiarias, couves-de-bruxelas, alperces de conserva, chantilly, manteiga de
brandy e pudim de Natal. Chocolates e gelado de coco. Menu escolhido, na sua maioria,
por voto popular, uma vez que não estaremos todos juntos no Natal. Coloquei moedas no
pudim, para as crianças. Brindámos ao Ollie e à Izzy com um Sauternes fabuloso que o
Simon trouxe.
Foi maravilhoso, Jack.

A Izzy estava tão linda que nem tenho palavras para descrever. A mãe do Ollie sempre
apareceu, e não era tão assustadora como eu temia. Além dela e da irmã do Ollie e da
nossa família algo confusa (o Simon, a Laura e os meninos), estavam apenas os melhores
amigos do Ollie e da Izzy. Todos fizeram uma paragem no pub no regresso, para me darem
tempo de terminar os preparativos. A Gwen ajudou, é claro, e trouxe uma das filhas. O
marido da Gwen, George, estava no pub quando a Izzy entrou com o seu longo vestido de
veludo e bouquet. Ele contou que todos se levantaram e aplaudiram. E tinham razões para
isso.
Foi o dia mais feliz da minha vida. Mas não deveria ter sido. O nascimento dela é que
deveria ter sido, mas talvez os prazeres tardios sejam mais doces para quem espera.
Espero que as coisas estejam igualmente felizes desse lado.
Eve

Mãezinha,
Obrigada por tudo. Vamos escrever todos os dias.
Beijos da Izzy (e do Ollie)

Minha querida Eve,


Foi um casamento perfeito. Todos nós adorámos. Os rapazes ficaram particularmente
contentes com os doces. Como faz o caramelo? É delicioso. Obrigada por tudo.
Com amor,
Laura

Eve,
Sei que a Laura te escreveu a agradecer, mas este é um agradecimento só meu. Não pela
comida e pela hospitalidade, que foram perfeitas, mas pela tua abertura relativamente a
mim e à minha família para o bem da nossa família. És um exemplo para todos nós.
Simon

«Fim», Jack escreveu a Eve. «Paris?»

– Às vezes sinto-me capaz de ir. Sinto que podia ser a mulher que ele pensa que sou. Mas não sou
capaz.
–Não? – perguntou Beth.
– Não sei. Talvez...
– Mas gostaria?
– Há muitas coisas que eu gostaria de fazer e ir a Paris encontrar-me com Jack é uma delas, mas
quando tento imaginar-me num aeroporto ou numa cidade estrangeira, sozinha, não me sinto capaz.
– Bem, já fez grandes progressos noutras coisas para as quais não se sentia capaz há um ano.
– Eu sei. Eu sei disso. E talvez um dia consiga.

Querida Eve,
Está mesmo terminado. E sabe que mais? O Harry Gordon não está. Vou mantê-lo por
mais um ano. Ele deve a sua vida a si.
Eu tinha começado a ficar cínico acerca do meu trabalho e, pior, acerca dos meus
leitores. Foi um erro e típico de mim, não deles. A Eve fez-me voltar a olhar para tantas
coisas com olhos de ver…
Jack

Fiquei feliz pelo facto de Harry não ficar com a ruiva, escreveu ela:
embora não tenha a certeza se seja isso que deva dizer. O que quero dizer é que, solteiro,
ele pode concentrar-se no trabalho. Eu sei que é uma ideia impopular, mas, na minha
opinião, válida. Não é o amor que distrai as pessoas. Acho que o amor pode ser um grande
estimulante, mas o lento esvair do amor, ou pior, do falso amor, é desgastante. E, além
disso, acho que o Harry não é do tipo casadoiro, mas a ruiva certamente que sim, por isso
em breve tornar-se-ia um falso amor. Porque é que estou a dizer isto? Foi o Jack que o
escreveu. Deixei-me levar pela história e esqueci-me disso. Desculpe.
Muito obrigada, Jack, por me ter deixado lê-lo. Não foi apenas o facto de ter adorado o
livro (que adorei), mas saber que mais ninguém o leu tornou a experiência ainda mais
preciosa.
Eve
Esta semana cozinhei alho francês em vinho tinto e caldo de carne e comi-o frio. Tão
bom como o seu romance.
Ainda não menciono Paris. O Jack sabe porquê.

Li a sua carta e entendo a sua preocupação. Depois do episódio no comboio certamente


sente que um aeroporto seria uma provação. Não vale a pena recordá-la de que eu poderia
ir ter consigo ou que a Eve poderia esperar até Izzy regressar da lua de mel e levá-la
consigo, porque eu sei que já pensou nisso.
Também sei que tem um guião na cabeça de como tudo deverá acontecer neste nosso
encontro. Eu sei porque também tenho um, tenho-o há algum tempo. Então, o que vou fazer
é isto: no dia 28 vou apanhar um avião. E no dia 29 vou estar na Pont du Sud às 6h da
tarde e pedir dois kirs. Se não aparecer, eu bebo o seu e brindo a si, querida amiga.

Eve deu um salto e atravessou a sala como um gamo a fugir do esconderijo, pondo os braços à
volta da filha, que chorava, tal como ela. Na porta da cozinha, Gwen, com as mãos nas ancas,
sorria. Ollie mantinha-se ao lado dela com um ar um tanto acanhado.
– De quanto tempo?
– Dez semanas. É um pouco cedo para anunciar ao mundo, mas nós queríamos que soubesses.
Enfim, eu sei que vai dar tudo certo. Simplesmente sei.
– Aconteceu-me o mesmo com a Carly – disse Gwen. – Eu sabia. Mas também sabia que ela ia
ser um menino.
Todos desataram a rir e sentaram-se, Eve ao lado de Izzy com a mão no joelho dela. – Dez
semanas?
– Sim – disse Izzy, encontrando os olhos da mãe, partilhando o entendimento e depois
confirmando: – Sim. Eu estava. Na altura ainda não sabia ou, pelo menos, fingia que não sabia.
Embora no momento em que proferi os meus votos, me ter parecido que estava a falar pelo bebé
também. Foi estranho.
– Então não foi... planeado? – perguntou Eve suavemente.
– Não.
– Não foi planeado – repetiu Eve, quase para si mesma: – Isso é...
– Muito pouco típico de mim – interrompeu Izzy.
– Sim.
– Eu sei. Mas eu ando muito pouco típica, não achas?
Eve tirou a mão do joelho e levou-a à face da filha. Acariciando aquele rosto tão amado, não
respondeu.

Ela não ia. Se já tinha pensado nisso, agora não ia. Jack tinha sido um amigo, um amigo
maravilhoso durante um tempo, mas a relação era uma miragem. Não precisava de entrar nela só
para mais tarde a sentir dissolver-se. Para concluir que não havia nada de realmente sólido ali.
Nada comparado com isto. Comparado com a família. Comparado com o amor.

Ele enviou-lhe um postal da Pont du Sud. Não tinha nada escrito. Ela também não respondeu.
CAPÍTULO 13

C ara Eve,
Escrevo para lhe enviar o meu novo endereço.
Não, não é verdade, escrevo porque sinto que é a coisa certa a fazer. Não teria
dificuldades em encontrar-me, se assim o desejasse, e, de qualquer modo, já me mudei há
seis meses. Mas queria contar-lhe, durante todo este tempo e durante todos os meses
anteriores, acerca de Paris e agradecer-lhe por não ter aparecido. Pode parecer-lhe
estranho, mas acho que vai entender porque a Eve permanece, na minha cabeça, pelo
menos, a Boa Entendedora.
Tomou a decisão certa. Naquela época, eu ainda andava perdido, à caça de alguma coisa.
Não percebi isso na altura, e teria lutado contra essa noção com unhas e dentes se ma
tivessem colocado nesses termos, mas eu ainda andava à procura de algo físico à qual
engatar a minha vida. Eu costumava fazer isso com as mulheres e ainda não estava
completamente curado do vício; Deus sabe que havia uma grande hipótese de ter tentado
algumas dessas antigas táticas consigo. Se o tivesse feito não estaria a escrever esta carta
agora. E certamente a Eve não estaria a lê-la.
Naquela noite, quando soube que não iria aparecer assim que o porteiro me entregou a
mensagem, fui para o nosso ponto de encontro e bebi o seu kir, tal como disse que faria. E
depois comi. Pedi para ficar com a ementa, como um turista, para poder enviar-lha mais
tarde, e agora, finalmente, faço-o, mas julgo que gostaria de saber o que é que eu pedi;
afinal, estava a comer por nós os dois.
Comecei pelas alcachofras e depois evitei o tártaro de atum, embora tivesse ficado
tentado, a favor da lagosta. Foi o estragão que me conquistou. Não consigo resistir-lhe e
ultimamente tenho experimentado fazer uma versão minha do molho de mostarda e de
estragão que irei enviar-lhe se estiver interessada. Mas voltando ao nosso jantar: depois
da lagosta serviram-me uma pequena perfeição de sorvete de maçã verde e pensei em si.
Uma coisa tão pequena, mas com um ar tão requintado, e eu pensei, a Eve aprovaria isto.
Fez-me lembrar o seu comentário sobre a comida festiva e os beija-flores. Além disso, a
maçã era Granny Smith e eu lembrei-me que tinha especificado essa para a sua couve-roxa
com especiarias. «Não ficam empapadas», disse. Tinha razão. Depois comi costeleta de
vitela acompanhada de espinafres. Se tivesse estado lá, eu teria insistido para que
escolhesse o coelho porque queria provar o molho, mas não estava. Não estava. Depois
disso, descansei um pouco, num estado algo melancólico, antes de ser apresentado aos
queijos. Mas não pude ficar melancólico muito tempo, porque o empregado apresentou-os
com um entusiasmo contagiante. Não vou aborrecê-la com os detalhes, eram todos
franceses, todos completamente curados, todos deliciosos. Os vinhos, também,
naturalmente. Terminei com ameixas fritas – em sua honra, é claro. E uma aguardente – de
pera. Espero que aprove.
Gostaria de lhe dizer que regressei ao hotel mais tarde com as golas do casaco
levantadas, que fiquei a olhar para o Sena na noite betuminosa e que tive algum tipo de
epifania sobre o meu futuro (algo que certamente escreveria para um dos meus heróis, não
para mim), mas não foi assim. Fui a pé para o hotel e pensei um pouco mais em si e muito
em mim, como tem sido meu longo hábito, mas principalmente senti apenas que tinha dado
início a algo. E tinha.
Quando cheguei a casa, depois de mais seis dias a comer maravilhosamente e a dar bons
passeios, vi que Grove Shore pertencia ao antigo eu. Não era capaz de ver o meu reflexo
numa vitrina sem dar de caras com os meus erros. Estou a usar esta palavra de forma
bastante melodramática, é verdade, mas o que quero dizer é que me tinha deixado cair
numa espécie de vida dilatória lá e acho que quando nos aproximamos da meia-idade ou
nos reerguemos ou nos rendemos a um deslizamento bastante rápido. Então decidi dar uso
aos músculos e parti para norte. Precisei de seis meses para me mudar completamente e
tive algumas despedidas tristes, mas assim que o pior ficou feito a mudança foi suave.
Comprei uma casa de bom tamanho, de telhado de ripas, com oito mil metros quadrados de
terreno, aqui em cima. Ainda tenho vista para o mar, mas ele retribui o meu olhar com mais
atitude. Os passeios são melhores, mas os invernos são mais rigorosos.
Poderá ficar surpreendida (não, não fica) ao saber que também me tenho interessado
pela jardinagem. Lembro-me de que mencionou o seu jardim uma ou duas vezes, mas eu
nunca mostrei interesse pelo assunto, por isso a Eve deixou-o morrer, como correspondente
altruísta que é. Pois bem, se agora escrever sobre ele, ficarei feliz em aborrecê-la com o
meu novo interesse. Acho que o cultivo de vegetais poderá vir a tornar-se um dos meus
grandes amores, embora eu tenha herdado um gato dos proprietários anteriores desta casa
(que foram viver para Itália, por isso já percebe que este é o tipo certo de casa) e ele tem
reivindicado um grande pedaço dos meus afetos.
Quando não estou a cultivar tomates, ou preso pelo raramente concedido mas todo-
poderoso peso do Major Tom no meu colo, estou a escrever ou a andar e, aqui está a
reviravolta na história, duas vezes por semana ajudo numa escola secundária local. Por
estas partes, não são muitos os miúdos que sabem o que é a fome ou a doença, mas alguns
deles têm dificuldades sérias com a leitura, que eu considero vir em terceiro lugar. A escola
precisava de voluntários para ler com eles. Eu sou um deles. (A Mrs. John Elliot-Carson é
outra. Mas ela é uma outra história que irei contar-lhe um dia, se quiser ouvir.)
Maioritariamente, leio com um rapaz chamado Ethan, que tem quinze anos e é muito
nervoso. Demo-nos logo bem e fico feliz por dizer que o nervosismo dele acalma um pouco
quando estamos juntos.
Agora pode ver o tipo às direitas que me tornei na sua ausência.
A verdade é que estamos extraordinariamente felizes aqui, o Major Tom e eu, e até
deposito as minhas esperanças em Ethan. Digo «extraordinariamente» porque penso
constantemente que antes de completar cinquenta e um anos eu não me tinha apercebido de
quais eram os verdadeiros ingredientes para a felicidade. Acho que cada um de nós
encontra a sua própria receita e eu encontrei a minha. Espero que a Eve a tenha
encontrado também.
Jack

Eve abriu o seu exemplar do livro Negócio Fechado na página de dedicatória. «Para Eve»,
dizia. «Para Eve». Já olhara para ela várias vezes, mas ainda se sentia invadida pela emoção.
Então pousou o livro, ainda aberto, na mesa em frente a ele.
Ele ergueu brevemente o olhar ao pegar no livro e sorriu. – Gostaria que o dedicasse a alguém
em particular? – perguntou, tal como havia perguntado às cento e cinquenta pessoas que a
precederam na fila. Tinham sido uma multidão ordeira, pensou Eve, independentemente daquilo que
as pessoas diziam sobre os nova-iorquinos.
– Poderia escrever apenas «Do Jack» aqui, por baixo da dedicatória? – pediu ela.
Desta vez, ele não olhou para cima e passou um momento antes de ele falar.
– Não – respondeu ele. – Vou escrever «Do Jack, com todo o meu amor».

Biscoitos de amendoim da avó Cooper


• 85g de manteiga
• 1 chávena pequena de açúcar
• 1 ovo
• 1 chávena generosa de farinha
• 1 colher de chá de fermento em pó
• 1 colher de sobremesa de cacau
• 1 chávena de amendoins (Ela gostava de os assar no forno primeiro. Eu também.)

Bata a manteiga e o açúcar; adicione o ovo batido; em seguida, misture a farinha peneirada, o
fermento e o cacau; por último, adicione os amendoins já frios.
Disponha colheradas do preparado no(s) tabuleiro(s) e leve ao forno a 350° durante cerca de 15
a 20 minutos.
Sirva com leite.

Bolo de Natal da avó


• 227g de sultanas
• 454g de groselhas
• 227g de passas
• 113g de cerejas cristalizadas
• 113g de cascas de laranja cristalizada
• 113g de amêndoas peladas
• 340g de farinha
• Raspa da casca de um limão
• 4 ovos
• 4 colheres de sopa de leite
• 227g de manteiga
• 227g de açúcar mascavado
• 1 colher de sopa de Golden Syrup
• 2 a 4 colheres de sopa de xerez ou brandy
• 1 colher de chá de canela
• 1 colher de chá de mistura de especiarias*
• ½ colher de chá de sal

Misture os frutos secos, cerejas, cascas de laranja e amêndoas. Polvilhe com um pouco de farinha
e adicione a raspa de limão. Bata os ovos com o leite. Bata a manteiga e o açúcar até ficar cremosa
e, em seguida, adicione o Golden Syrup. Alternadamente, misture na farinha (já com o sal e as
especiarias) o ovo e leite já batidos. Envolva os frutos na mistura. Adicione o xerez ou o brandy.
Forre uma forma metálica redonda de 22 centímetros ou uma retangular de 20 centímetros com
uma camada dupla de papel vegetal (a forma deverá ter 8 centímetros de profundidade).**
Cozinhe no forno a 300°C durante uma hora e meia. Em seguida, reduza para 250°C e deixe
cozinhar mais uma hora e meia.
Armazene, pelo menos, durante três semanas.

* A mistura de especiarias consiste principalmente em canela, noz-moscada e pimenta da


Jamaica. Basta usar o tipo de especiarias de que gosta na sua tarte de abóbora.
** Eu faço sempre isto, por superstição, principalmente, mas talvez não precise.

Você também pode gostar