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feminino

abjeto 1
Link para o
espetáculo na
íntegra.

Texto criado dentro do núcleo de pesquisa “Feminino Abjeto 1”, do Grupo XIX de Teatro, sob minha orientação
no primeiro semestre de 2017. A direção e dramaturgismo são meus e os textos, das integrantes do processo.
Na primeira fase da pesquisa, o dramaturgismo contou com a importante contribuição da dramaturga e atriz
Tatiana Ribeiro. E agora, na fase de revisão dessa versão para a tese, contou com a colaboração de Ramilla
Souza. O elenco de Feminino Abjeto 1 é composto de performers (mulheres cis e duas pessoas não binárias),
são elas e eles: Ana Lais Azanha, Bruna Betito, Cibele Bissoli, Debora Rebecchi, Emilene Gutierrez, Florido, Gilka
Verana, Juliana Piesco, Leticia Bassit, Maira Maciel, Oliver Olivier, Ramilla Souza e Sol Faganello. A Iluminação
foi de Afonso Costa e Maíra do Nascimento.

A preparação de Stiletto foi de Kaval e a preparação de Haka de Allan Melo. Além das apresentações realizadas
na Vila Maria Zélia dentro da Mostra dos Núcleos de Pesquisa do Grupo XIX de Teatro, o “Feminino abjeto 1”
também compôs a ocupação como trabalho residente no Teatro do Centro da Terra entre 25 de agosto e 03
de setembro de 2017. O trabalho foi apresentado no Festival de Ribeirão Preto, depois em nova mostra no
Grupo XIX de Teatro e em 2018, cumpriu temporada no teatro de Contêiner. Foi ainda convidado a integrar a
“Mostra Libertária – poéticas dissidentes e corpos insurgentes” que aconteceu no Sesc Belenzinho em seis
apresentações acompanhada da oficina “Cenas e ob-cenas contemporâneas”. Integrou ainda o Festival FESTA
em Santos, que teve uma edição inteiramente dedicada ao feminino e criadoras mulheres, e participa da Mostra
Abjeta em fevereiro de 2019 no Teatro de Contêiner. Mostra esta idealizada por mim e pelas performers de
“Feminino abjeto 1” durante as manifestações do “#ele não”. Mais uma edição da Mostra Abjeta aconteceu em
novembro de 2020 em versão online.
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abjeto 1

Janaina Leite
+ feminino abjeto 1

4 "Quando voc
o que vo
feminino abjeto 1
cê me olha, 5

ocê vê?"
Janaina Leite
+ feminino abjeto 1

Quando você me olha


o que você vê?

“Quando você me olha o que você vê?”


pergunta a performer Sol ao público
que espera do lado de fora do teatro. Ela
6 pede que eles a acompanhem ao local da
apresentação. As 11 performers recebem
os espectadores posicionadas em uma
bancada grande com seus utensílios e
pratos. Muito barulho, gritaria. A música
“Organs” da banda Pussy Riot toca alto.
Cigarros são compartilhados, uma garrafa
de vinho corre de uma ponta a outra,
bebem cerveja, comem macarrão, falam,
falam, falam, entre si, com o público,
gritam, pedem coisas emprestadas, em um
telefone sem fio tentam falar com a outra
ponta, balbúrdia, peixe, leite condensado,
cinzas, picolé. A bancada se assemelha à
mesa da Santa Ceia. Cibele, vestida como
uma boneca, laço na cabeça, pés e braços
cortados, está sentada em uma plataforma
ao lado da mesa. Ela se se esforça para
subir na mesa sem pés e mãos. Consegue
e rola pela bancada suja. Comemoração.
Fim da música.
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A imagem da boneca com pernas e braços


cortados criada por Cibele teve duas fontes
de inspiração. A primeira é a lenda urbana de
que, na Deep Web, mulheres sequestradas
têm seus braços e pernas cortados, são
vendidas para homens como objetos sexuais
e guardadas em armários como bonecas. A
segunda é o filme Boxing Helena (1993), da
diretora norte-americana Jennifer Lynch. No
filme, a prostituta Helena sofre um acidente
de carro e tem suas pernas amputadas por um
cirurgião, que a mantém prisioneira.
Janaina Leite
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Minha relação [Da metade para o final do processo de criação, nomes de obras
e frases de Angélica Liddell foram utilizadas como disparadores

com a comida
criativos e passaram a estruturar os blocos dramatúrgicos do
experimento. São eles: Mi relación con la comida, Fuck you mother,
Yo no soy bonita e Que haré yo con esta espada.]

Cibele Oliver
8 (Canta) Eu trouxe um vinho, um cabernet sauvignon. É
Comecei a sangrar um vinho muito chique, mas a verdade é que eu
Mas eu fui em frente não entendo muito de vinho. Minha mãe está na
E passei a falhar plateia, ela sabe explicar melhor que eu.
Mas eu fui em frente
Verana
Já não dava mais nada Aqui eu tenho um peixe. Eu quero deixar claro que
Só aquela palpitação nunca gostei de ir ao açougue. O cheiro da carne
E os músculos tiveram cãibras morta. Também sentia não saber algo. O peso. O
Era um recorde imbatível preço.
E eu fui em frente, fui em frente, fui em frente...
Juliana
Boa noite! Essas aranhas são uma espécie de tarântula que
Meninas e menines, apresentem seus pratos! podem chegar ao tamanho de uma mão humana.
Depois de fritas, seu veneno torna-se inofensivo.
Daí você pode temperar com açúcar, sal, pimen-
ta, limão, o que preferir. Fica uma delícia.
Florido
Obrigado por lembrar de mim, Cibele. Aliás, eu Sol
gostaria de mandar um beijo para todos os via- Hoje vou servir a mulher de Ló. Antes de ela vi-
des aqui presentes. E dizer que no mundo são rar uma estátua de sal. Ela ainda bem doce. Você
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proibidos 14 agrotóxicos que seguem sendo per- pode morder ela bem de leve, lamber gostosin-
mitidos no Brasil. O meu prato é uma salada de ho. Ela é doce. Bem doce. Alguém aqui já chupou
repolho com limão que é muito boa para tratar uma buceta?
candidíase.
Debora Ana Laís
Yo traje huevos, este alimento ancestral. Porque (Amassando, batendo com força a massa do pão) 9
quién vino antes, el huevo o la gallina? Yo voy a É só fazer assim mesmo. É só assim.
preparar una receta muy tradicional de mi famil-
ia que se llama huevos revueltos. Pero la verdad
es que no me acuerdo bién como prepararla. En- Maíra
tonces, les pido permiso para llamar a mi mama (Nas mãos uma mistura de manteiga e farinha.
porque ella si lo sabe... (Pega o celular) Enquanto fala, bate obsessivamente essa mistura
que cai no chão e na mesa) E falando em truques
Letícia para molhos, eu vou contar uma dica que vai fi-
Primeiro, vou usar a casca do abacaxi. Usar nele car grudadinha na cabeça de vocês, não vão es-
mesmo. Sem descascar. Usar em meu benefício. quecer nunca. É uma dica pra dar liga a molhos,
O que sobrar podemos fazer um chá, de abacaxi sopas e cremes. Falam em liga nas receitas. Mas
mesmo, mas com o meu cheiro. O meu cheiro vou usar a minha palavra: amálgama. Acho mais
mesmo. cirúrgico, mais resistente com o tempo. No mol-
ho Roux, por exemplo, geralmente se utiliza man-
Débora teiga sem sal, crua ou clarificada e farinha de tri-
(Ao celular) Hola, mama. Mirá, estoy acá en una go. A regra é a seguinte: roux quente em líquidos
obra de teatro y me gustaria saber como hacer frios e roux frio em líquidos quentes. Qualquer
los huevos revueltos. Hay que romperlos, dale, um desses vai ficar bem grudadinho, um amál-
perfecto! Gracias, mama, te quiero mucho. gama. Como minha mãe quando me abraça. Eu
sinto o seio dela grudado no meu e vem uma sen-
Bruna sualidade a mais, um nojo, um ódio. É bem assim,
O importante é o formato do picolé. Os tamanhos não desgruda nunca.
Janaina Leite

mais confortáveis pra você chupá-lo. E fica a per-


gunta: morde-se ou chupa-se o picolé?
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Ramilla
Eu trouxe leite condensado. Porque leite condensado vai bem com tudo. Com peixe, com macarrão,
com ovo. Quando eu era criança, minha mãe comprava a lata de leite condensado e colocava na ge-
ladeira. Eu ia lá, fazia um furinho, bebia o leite condensado e colocava de volta na geladeira. Quando
ela percebia, o leite condensado já tinha acabado. Ela ficava com muita raiva. Nisso, eu tinha uns 8
anos. Que foi a idade que eu comecei a me masturbar. Eu ficava muito só em casa porque minha mão
trabalhava em horário comercial, de 8h às 18h. Eu ia pra escola e no outro horário, ficava sozinha em
casa. Então, eu tinha muito tempo pra explorar o que eu quisesse. Eu abria uma caixa de bijuterias que
ela tinha, eu acendia velas e, claro, eu explorava a minha buceta. Acontece que eu me masturbava e
eu gozava. Gozava assistindo sessão da tarde, gozava assistindo o programa da Angélica. Mas, em
algum momento disso, eu comecei a sentir uma culpa por esses orgasmos. Por essa coisa que eu
achava que só acontecia comigo, que eu não compartilhava com ninguém. Eu comecei a bloquear
esses orgasmos e, às vezes, eu tenho a sensação de que eu tive os melhores orgasmos da minha vida
aos 8 anos..

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Janaina Leite
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"Eu já tinha de
essa imagem
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entro de mim
m de horror."
"Eu era uma espécie de boneca sem mão nem pés, uma visão
de horror. Eu vi essa imagem, e soube que era da deep web, não 13
sei se são de verdade ou não, mas nas fotos eles prendem as
bocas das mulheres e elas ficam ali literalmente servindo os
caras de objeto de fetiche, foi o que me deparei de maior horror.
A pior imagem de abjeção que eu tive, e eu trabalhei com ela
desde o início. A hora que eu fui me colocar, a relação com a
minha mãe, foi um momento em que eu senti muita culpa. Por
que expor algumas questões da minha mãe foi muito difícil.
Porque eu sabia o que ela passou, eu já tinha conseguido fazer
uma curva de perdão em relação as dificuldades dela em ter
sido minha mãe, e minha mãe é uma mãe muito violenta e eu
acabei me deparando com algumas questões da minha própria
sombra. Enfim, é uma investigação da sombra, eu acabei
fazendo uma divisão entre minha mãe e um feminino próximo a
minha mãe, que eu coloquei como interlocutor que era a própria
Angélica Liddell. Então ela era uma espécie de mulher mega
artista que também me oprimia assim como a minha mãe. E
eu consegui trabalhar com um ser bufônico que era dividido
em dois. Havia o lado sombrio, e o lado que se colocava como
adestrada e vitimizada. Um ser bifurcado ali naquele começo.
Isso na verdade foi o mais surpreendente nesse sentido, de
desdobrar a sombra no relacionamento com o feminino e não
com o masculino."
Janaina Leite

(Cibele Bissoli fala sobre o processo de criação em entrevista para André Fisher em
live para o Centro Cultural da Diversidade no dia 01 de agosto de 2020)
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Fuck you
mother

Cibele não ser por esse comentário recorrente, ela quase


14 (Em um diálogo consigo mesma) Cibele, Cibele, não fala daquele dia. Evita até me dar parabéns no
Cibele, não se pode fazer mal a uma mãe, mas se meu aniversário, ela diz que não foi um dia mui-
pode fazer mal a uma mulher. (Respondendo) Eu to bom para ela. Mas, eu acredito que tenha sido
sei, Angélica. Sabe, eu sinto medo muitas vezes. muito nojento mesmo. Porque depois que eu na-
É um medo da vida. Mãe, não é você, é a mãe que sci, ela desenvolveu uma espécie de TOC, em que
eu trago dentro de mim, como você falou. De você ela lava as próprias mãos com água fervente, de
eu não tenho raiva, eu não guardo rancor. Mas, é novo e de novo, várias vezes ao dia, até deixar em
que esse processo pede. Desculpa. (Levando um carne viva, até expor o que está por dentro. E uma
tapa imaginário) Você me bateu de novo! Isso é vez só ela me disse que aquele foi o dia que ela se
muita falta de respeito! (Retrucando) Ah, Cibele… tornou quem ela é. Porque ela sentiu um choque
Confessa! Confessa! Mãe, eu quero te destruir. Eu tão grande de nojo e dor, grandeza, solidão, que
quero ser má, muito má. Eu estou sendo cruel? ela foi obrigada a virar o que ela é.
Ah, eu estou sendo cruel. Porque você é a origem
de tudo. (Ouve-se um barulho de vidro quebrando fora do
palco.)

Juliana Cibele
Era sua primeira gravidez e seu primeiro parto. Quem quebrou esse copo? Quem quebrou esse
Primeiro, ela achou que estava com indigestão; copo? Quem quebrou esse copo? Foi você? Foi
depois, que estava morrendo; depois, saiu uma você, sua vagabunda? Foi você quem quebrou
criança. Mas as crianças não nascem como nos esse copo? Quem quebrou? Quem quebrou?
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filmes, bonitinhas, enroladas na manta. Elas na- Quem quebrou esse copo?
scem cobertas de uma camada espessa de banha,
uma gordura esbranquiçada, com pedaços de (Cibele grita cada vez mais furiosa. As performers
mãe coladas nelas que foram arrancadas ao na- correm de um lado para o outro, subindo nas plata-
scer e essa gordura tem o pior cheiro do mundo. A formas e mamando nos seios umas das outras. As
“mães” consolam os “bebês”. Maíra dá o peito para
Cibele, calando-a.) 15

Maíra
Minha filha é assim. Chora desse jeito desesper-
ado quando tem fome. No começo, era fome de
peito. Agora, é fome de tudo que ela não pode ter.
Brinquedo, doce, minha carteira, fio, vidro, cadei-
ra. Eu tenho repetido nessas apresentações que
eu sou um amálgama feminino da minha mãe.
Durante esse percurso, eu engravidei e, agora ten-
ho uma filha de dois anos amalgamada em mim.
Eu gosto dessa palavra: amálgama. Ele começa
com a filha comendo a mãe pela placenta. De-
pois, pelo peito, assim se constituindo da matéria
da mãe. Só que esse processo é muito complexo.
Muitas vezes, a mãe se deixa consumir por inteira
e fica caquética e a filha pode receber elementos
tóxicos da mãe e ficar doente. E, nessa nutrição,
ao invés de crescer, eu sumo. Por um lado, pela
presença da minha mãe, amalgamada em mim,
e que me faz repetir coisas dela que eu abjeto e,
de outro, pela minha filha que me suga. Ela me
suga calorias e eu perco corpo. Me suga libido e
Janaina Leite

minha vagina fica desértica. Me suga tempo e eu


viro ausência.
Desde o início do processo
e apresentações, as atrizes
Maíra Maciel e Letícia Bassit
engravidaram e deram à luz.
Seus textos foram passando por modificações que
representavam as fases da gravidez, amamentação, cuidar dos
filhos, etc.

Versão original:

16 “Sou um amálgama feminino da minha mãe. Gostaria que essa frase fosse ape-
nas uma frase de efeito, mas não. Ela me confunde em tudo e quando eu falo
isso, também não se trata de um exagero. É tudo porque é esse muito inespecíf-
ico, é esse território sem fronteiras, sem palavras, sem limites, sem nomes pros
bois. Eu me transformei nessa mistura de comentários “inocentes” e inces-
santes que ela faz sobre mim. Ela me conta histórias sobre a minha infância e
a minha família e eu acredito nessas histórias porque a gente não se lembra da
nossa infância mais remota. Pra ela, nada está bom e eu nunca estou bem. De
novo, estou usando essas palavras absolutas e abstratas como nada e nunca.
E de novo afirmo que nada está bom pra ela mesmo. Não queria que esse texto
sobre a minha mãe tivesse esse tom de queixume raivoso. Quando a vejo de-
pois de um tempo de distância, grudo nela e sinto a necessidade da presença
dela, de ficar do lado, de fazer todas as coisas simples do dia a dia. Aí, vamos
ao mercado, lavamos a louça, tomamos café juntas e eu sinto um bem-estar
grande. Então, displicentemente, ela me abraça e me sufoca. E o repúdio. É um
instante, um abraço excessivo e sinto o exagero da carência que faz com que eu
seja engolida e devorada. Um abraço em que sinto o seio dela grudado no meu
seio e que vem uma sensualidade a mais, um nojo, um contato com o corpo da
minha mãe. Esses dois corpos colados um ao outro. Então, ela começa a repetir,
repetir, repetir. Repetir os mesmos comentários, as mesmas histórias, as mes-
mas opiniões. Repete sobre os cuidados, repete as histórias do meu avô, repete
feminino abjeto 1

as dicas para comprar passagem com milhagens, repete as queixas sobre o


meu pai, repete sobre a conspiração que existe na política e repete os consel-
hos de auto-ajuda. Ela repete sobre suas dores no corpo, sobre suas doenças e
que está cansada. Ela é superficial em tudo que diz, ela é inconsistente”
Versão "grávida":

“Eu tenho repetido nas nossas apresentações que sou um amálgama feminino da minha mãe.
E no percurso desse processo fiquei grávida e agora tem também um feto amalgamado em
mim. Eu gosto dessa palavra amálgama. Mas os efeitos que essa palavra provoca em mim
são devastadores. Eu fico fundida com minha mãe como se fossemos uma coisa só, mas na
verdade somos de matérias bem diferentes. E tem uma certa prisão nisso, uma imobilidade.
Um amálgama é duro. É sem saída.
E agora está pior, tudo é mais intenso por conta da bebê. Ela sente que tem mais direito sobre
mim e vai me dizendo muitas restrições e cuidados para eu não prejudicar o bebê. É uma mala
de comida congelada que ela me faz levar pra casa. Eu falo que não precisa de tanto, mas aí ela
já vira a cara e minha atitude é uma desfeita pra ela. Ela está sempre em cima, sendo solícita,
quer agradar, mas é um "agrado" que é uma imposição de um jeito dela. E assim, com essas
gentilezas, com essas "ajudas", ela me atropela e me faz sumir amalgamada nela. E eu sumo.
De um lado por ela e do outro pela criança amalgamada no meu corpo e que me suga. Suga
o ferro do meu sangue, suga o cálcio dos meus ossos e os neurônios do meu cérebro. E as
minhas formas de antes vão sumindo e eu assumo uma outra forma que é só barriga e peito. 17
Mas tudo é tão ambíguo e fluido na gravidez. Dar à luz a uma vida nova é ainda mágico pra mim;
traz uma ideia de renovação. E no fundo eu até penso que poderia me transformar ao ponto de
dissolver esses amálgamas e poder ensinar isso pra minha filha. Será que isso é possível? Será
que eu consigo sustentar isso?”

Janaina Leite
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18

Bruna
Minha mãe, jovem, 24 anos, no dia do seu casa-
mento civil. Eu odeio parecer cada vez mais
com ela. Ela não entende como se faz uma
maquiagem de gatinho. O traço do delineador
é reto e para cima, nunca para baixo. Porque
senão, fica um gatinho triste. Ela não percebe
que ela erra o contorno da boca ao passar o
batom. Eu já falei mil vezes. Vocês perceberam
que eu tenho um jeito de falar? Minha mãe fala
feminino abjeto 1

de uma forma muito chata. Nossa voz é pareci-


da. A voz da minha mãe é muito chata, aguda,
didática. Então eu vou imitá-la, em suas piores
pausas explicativas e em seu choro exagerado.
Desculpe, vai ser muito chato isso...
(Verana começa a cantarolar a música ‘Adiós a La Cibele
Mama’, de Charles Aznavour. As outras performers Vou tocá-lo.
a acompanham em coro baixinho.)
Bruna
“Ya están aquí, llegaron ya A cabecinha.
A la llamada del amor
Esta muriendo la mama Cibele
Todos al fin, llegaron ya Não, ele é homem, ele vai me machucar! Ele vai
De todas partes del pais me machucar!
Desde el mayor hasta el menor
Todos en torno a la mama”. Bruna
Olhei inteirinha, para ver se tinha algum… prob-
leminha.
Bruna
Quando eu fui para o quarto. Cibele
Vai, Cibele. Seja selvagem.
Cibele 19
Cibele, Cibele. Bruna
É uma sensação maravilhosa.
Bruna
Logo você veio, ficou o tempo todo comigo. Cibele
Vai Cibele, seja selvagem.
Cibele
Nós somos inocentes. Bruna
De poder (pausa, continua emocionada) dar a vida.
Bruna
Eu abri toda a sua roupinha. Cibele
Você foi muito domesticada.
Cibele
Nós somos inocentes. Bruna
(Muito emocionada) É um amor incondicional!
Bruna
Vi se tinha todos os dedinhos da mão. Cibele
Você foi muito domesticada.
Cibele
Todos aqueles onde a maldade cresceu eram ino- Bruna
centes. Nós somos inocentes. É uma sensação de realização, de perpetuação. É
bom demais ser mãe, viu? Obrigada por você ser
Bruna minha filha.
Janaina Leite

Do pé, orelhinha perfeita.


+ feminino abjeto 1

Verana
Essa era a música favorita da minha mãe. É uma
das poucas coisas que eu lembro sobre ela. Ela
não lembra de mim e eu não lembro mais dela. Ela
também não lembra mais que essa é sua músi-
ca favorita. Passei um bom tempo tentando não
esquecer de como ela era. Mas eu não consegui.
Eu costumava ter raiva dela ser semi-analfabeta
e ter aceitado as traições e ausências do meu Ouça aqui.
pai. Quando penso na minha mãe percebo que
não lembro de sua força, de seu carinho, de sua
alegria. Essas eram qualidades que eu só via no
meu pai. Por isso sempre quis ser como meu pai.

(Bruna chora alto, exagerado, copiosamente. Ci-


20 bele uiva.

A música Adiós a la mama toma o espaço....)

A música “Adiós a La Mama”, do cantor Charles Aznavour relata a iminência da morte


da matriarca da família, que reúne todos os filhos e netos em torno de seu leito:

“Ya están aquí, llegaron ya


A la llamada del amor
Esta muriendo la mama
Todos al fin, llegaron ya
De todas partes del pais
Desde el mayor hasta el menor
Todos en torno a la mama”.
feminino abjeto 1

A música foi trazida ao processo por Verana, como um dado biográfico de sua própria
mãe, que atualmente, devido à doença de Alzheimer, tem dificuldades em reconhecer a
própria filha.
Janaina Leite
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Eu não
sou bonita

22
feminino abjeto 1
[Yo no soy bonita, terceira e última parte da Trilogia da Desobediência, de Angélica Liddell.
No espetáculo autobiográfico, a autora relata um abuso sexual sofrido na infância. Durante
o processo, foi proposto ao elenco uma jam session com a presença de diversos elementos
ligados à beleza e feminilidade, como revistas pornôs, músicas sensuais, espelhos,
maquiagem. Ao mesmo tempo em que eram explorados cenas e textos construídos em
momentos anteriores do núcleo.]

Eu não sou bonita.


Performance de
Angélica Liddell.

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Sol
Quando você me olha o que você vê? Assim, à primeira vista, olhando
para o meu corpo, jeito, comportamento, escolhas.
Esse vestido, tá bonito? Formatura de direito, 2006, Curitiba, Paraná.

O que me difere?
Para além do que eu digo, o que me torna o que eu sou?
Ou ao dizer que sou, no que me torno?
Tá muito confuso?

Vocês já beijaram a boca de uma mulher?


Quem aqui nunca beijou uma mulher?
Querem beijar hoje?
Janaina Leite
+ feminino abjeto 1

Débora
Nós estávamos mais ou menos em 20 mulheres em um restaurante, numa espécie de casarão antigo. Era um
lugar meio descampado. Algumas de vocês estavam lá comigo. Lembro de olhar e ver o rosto de algumas,
além de outros rostos conhecidos de mulheres, todas jovens e bonitas. Tinha um grupo de homens, com ar-
mas, que nos ameaçavam, nós éramos reféns deles. As outras pessoas do restaurante não notavam esses
homens, somente nós. Naquele clima de tensão, em um certo momento, saímos pra nos arrumar e trocar
de roupa a pedido deles. Esses homens começaram a nos chamar pelos nomes. Cada um tinha escolhido
uma mulher. Eles sabiam nossos nomes. Uma hora olhei e vi que uma das mulheres, uma conhecida minha,
estava rindo e seduzindo esse homem. Eu ficava confusa, não sabia se ela realmente estava curtindo aquilo,
desfrutando, ou fingindo porque estava com medo. Então, um homem me chamou e, quando eu me aproximei
dele, vi que era o Murilo Rosa, aquele ator da Globo. Fiquei bem espantada e pensava o por quê de ele estar
participando daquilo. E também porque eu acho ele um cara bonito. Eu tinha muito tesão nele quando era
adolescente, principalmente quando ele fazia aquele personagem que era um cowboy. De repente, eu estava
em uma rua escura e vazia fugindo com muito medo. Um homem que não conheço e não lembro do rosto se
aproximou de mim com o pau pra fora e gozou em cima de mim. Eu tive ódio, medo, repulsa. Tentei agredi-lo.
Olhei em volta e vi que tinha um local aberto e iluminado. Corri pra lá. Quando entrei era um açougue. Tudo
24 estava muito limpo e organizado. Pedaços enormes de carne pendurados em uma vitrine limpa. No balcão, três
homens com roupas brancas de açougueiro muito limpas.

(Débora, que vestia um robe, se despe e revela um


maiô. Se posiciona, arruma o cabelo e aponta para
a parede, onde é projetado um clipe com fotos do
ator Murilo Rosa. Uma música começa a tocar.
Débora executa uma coreografia sensual para Mu-
rilo. Todas as performers juntam-se a ela e repetem
a mesma coreografia, que se transforma em gritos
histéricos de fãs, calcinhas jogadas na projeção.
A música muda, ouvem-se os gritos de guerra da
dança Maori, o Haka. Todas começam a executar o
Haka violentamente. Avançam para o público e sep-
aram-se em dois grupos, em torno das plataformas.
Em cima delas, está Débora e Emilene. As duas gri-
tam e ameaçam uma a outra. Os grupos afastam e
aproximam as plataformas com violência e barulho.
Na última vez, Débora e Emilene lutam corpo a cor-
po. Todas sobem nas plataformas e lutam de forma
feminino abjeto 1

caótica. Se batem, puxam cabelos, cospem umas


nas outras. A música muda novamente. Rebolados,
gemidos, lambidas, dança sensual novamente.)
Janaina Leite
25
+ feminino abjeto 1

(As plataformas são separadas. Em cima delas, sobram Bruna e Letícia, que executam duas cenas paralelas,
simultaneamente. O público é dividido.

Bruna deita-se em uma das plataformas, enquanto Cibele e Maíra comandam um jogo de dados. O público
deve rolar os dados e realizar com Bruna, sempre inerte, as ações apontadas, tais como chupar, lamber, morder,
ameaçar, intimidar, garganta profunda, etc. O prêmio, para o público, é um picolé.)

“Em 2017, decido fazer parte do núcleo de pesquisa


“Feminino Abjeto”, orientado por Janaina Leite. Eu
estava pesquisando o universo pornográfico naquele
26 momento e trabalhando em uma performance na
qual estou deitada em uma mesa, com vários picolés
espalhados pelo meu corpo. Há um dado com
instruções em suas seis facetas: “morder”, “chupar”,
“intimidar”, “lamber”, “bater” e, finalmente, “garganta
profunda” (título do filme mais famoso da atriz pornô
Linda Lovelace). Anos após o lançamento do filme,
Lovelace afirmou ter vivido antes, durante e depois
de sua realização. Na performance, o público é
convidado a jogar o dado e a realizar em mim a ação
indicada utilizando os picolés. Na mesma época,
havia também assistido “Que Farei Eu Com Esta
Espada?”, na Mostra Internacional de Teatro de São
Paulo e, se me permitem a metáfora, fui arremessada
da poltrona. Tinha algo ali que me incomodava, me
gerava náuseas, me enchia de prazer e me arrepiava
até o dedão do pé. Mulheres gritando, nuas, com
polvos gosmentos esfregando-se em seus buracos,
um canibal apaixonado, uma mulher-bufão ironizando
o Teatro “Político”. Parecia que tudo aquilo era tão
errado, quase um pecado, mas cruelmente real. Com
feminino abjeto 1

essa “espada” colocada explicitamente no palco,


entrei no núcleo de pesquisa, ainda conectada com o
universo da biografia de Linda Lovelace.”

(Depoimento da performer Bruna Betito sobre o processo)


(Letícia ocupa a outra plataforma, segurando uma faca e um abacaxi. As cenas acontecem simultaneamente.)

Letícia
"É a primeira vez que uso saia curta e salto alto. A revolução depende de poucos acessórios. Até hoje eu era uma
mulher quase transparente, cabelo curto, tênis sujo e, bruscamente, eu me torno uma mulher do sexo, do vício.
O efeito que isso provoca nos homens é quase hipnótico. Ser incrivelmente presente, detentora de um tesouro
furiosamente desejado no meio das minhas pernas, no meio das minhas tetas. O meu corpo ganha uma im-
portância extrema. E esse tipo de coisa não interessa somente aos tarados. Esse tipo de coisa interessa a quase
todo mundo: uma mulher com estilo de puta. Eu me tornei um brinquedo gigante. Jogar o jogo é suficiente, o
jogo da feminilidade."

Trecho do livro “Teoria King Kong”, de Virginie Despentes, 2016, p. 47 do capítulo “Dormindo com o
inimigo” no qual a autora relata sua experiência real como prostituta na França.

Eu vou parar por aqui. Em 2017 iniciamos esse processo e ficamos em cartaz em alguns espaços. Eu contin-
uava com esse discurso da puta, da prostituição fazendo um paralelo com o casamento que, muitas vezes, 27
é também um contrato econômico implícito. Aí eu tinha esse abacaxi, eu sentava nesse abacaxi, enquanto
cantava um samba no microfone. No meio desse processo todo, eu engravidei. De uma forma nada romântica,
pelo contrário, bem caótica, intensa, alguns diriam até sem amor nenhum, mas eu posso garantir que foi cheio
de amor. Continuamos em cartaz e eu, grávida, decidi que continuaria com o discurso da puta e o quebraria
revelando a minha barriga em cena, falando sobre a sombra da maternidade, da gestação, das dores, das
aflições, do medo, dessa relação parasitária que é carregar um ser dentro de você. Eu não conseguia mais
realizar a ação de sentar e me masturbar no abacaxi. Então eu passei a usar o abacaxi como uma bucha, eu
dizia que era importante esfregar o abacaxi no peito pra calejar o bico e facilitar a amamentação. Era o que o
médico dizia...Eu mostrava a minha barriga e perguntava pro público: “Você foderia com uma grávida?”, “Você
acha que esse filho é meu?”. Continuamos em cartaz e aí meu filho nasceu. Continuamos em cartaz e eu decidi
abandonar o abacaxi e entrar em cena com o meu filho comigo. Eu não tinha com quem deixar ele, então ele
estava sempre comigo. Entrei com ele em cena, amamentando e meu discurso passou a ser sobre o puerpério,
sobre o pós-parto, sobre o medo, o terrível, a sombra absurda desse momento que poucos falam e que precisa
ser dito! Eu fiquei sozinha com o meu filho, sozinha. Num momento que eu precisava de gente do meu lado,
me ajudando a levantar da cama, porque eu tava com um corte de sete camadas no meu ventre. Eu olhava pro
meu filho, um estranho familiar e eu não conhecia ele. Nem ele me conhecia...eu não sabia o que fazer com ele.
Hoje eu tô aqui com esse abacaxi na mão. Às vezes eu tenho vontade de voltar pra figura da puta, cantar um
samba no microfone e me masturbar no abacaxi. Eu não sei muito bem o que eu tô fazendo aqui agora, tô num
abismo, no vazio. Tô bem perdida. Eu tô escrevendo um livro. Eu moro sozinha com meu filho, numa casa de
muro baixo, só eu e ele. Uma casa de muro baixo que qualquer um pode pular e entrar. Eu tô com medo, nunca
senti medo mas agora eu sinto. Meu filho tá com seis meses e eu não sei quem é o pai do meu filho. Uma fila de
DNA. Resultado negativo. Restam duas possibilidades de paternidade. E os dois caras sumiram, não sei onde
Janaina Leite

eles estão. Eles dizem que um filho não interessa pra ele, um filho comigo não interessa pra eles. Eles dizem:
“Esse filho não é meu, eu não gozei”. Eu também não gozei. Esse filho não pode ser meu também, eu não gozei!
Eu também não gozei. Como esse filho pode ser meu se eu não gozei?
+ feminino abjeto 1

Devido a sua gravidez, no fim de 2017, Leticia também realizou modificações em


suas cenas. Além de incorporar a experiência de estar grávida, da expectativa
do parto e da amamentação, da convivência com o filho, a atriz também inseriu
e mudou ações cênicas. O abacaxi, presente desde o primeiro momento, foi
utilizado ora como objeto de masturbação, ora “como “algo áspero para calejar
o peito para a amamentação”, ora como bebê. Ao final da cena, ele sempre era
cortado e oferecido ao público. A experiência da maternidade (e da ausência do
pai de seu filho) reverberou profundamente na vida artística de Letícia. Em 2019,
ela lançou em forma de livro a dramaturgia “Mãe ou Eu também não gozei”.
Reproduzimos aqui a primeira versão do texto: “A angústia da puta é a mesma
que a minha. Não é fácil falar sobre isso. Já fui puta. Sou puta. Nunca serei puta.
Transformar o sexo em trabalho deve ser horrível. O sexo é a melhor coisa que
existe. É a coisa mais real. É o encontro com a verdade. A minha verdade. Já me
fiz puta só por curiosidade. Me fiz puta porque não cabia mais angústia dentro de
mim…precisava trepar muito e gozar muito para minha dor sumir. Já trepei com
muita gente por aí. Nunca trepei com amor. Não é fácil falar sobre isso. Mais
fácil minha buceta falar por ela mesma. Encosto o microfone no meu coração
28 para vocês e eu escutá-lo. Encosto o microfone na minha buceta pra vocês e eu
tentarmos escutá-la. Eu não ouvi nem meu coração nem minha buceta. Vocês
ouviram? Precisei falar, precisei das palavras da Angélica pra ter coragem de
dizer. Da próxima vez eu tento cantar.”
feminino abjeto 1
Ana Lais
Uma vez um poeta disse: "As muito feias que me perdoem, mas a beleza é fundamental. É preciso que haja
qualquer coisa de flor em tudo isso, qualquer coisa de dança, qualquer coisa de alta costura. Que a mulher seja
leve como um resto de nuvem, mas com olhos e nádegas. É gravíssimo o problema das saboneteiras; uma
mulher sem saboneteiras é como um rio sem pontes”.

Trecho do poema Receita de Mulher, de Vinícius de Moraes. As feias que me perdoem. Novos poemas II,
1959.

Ser bela para ti, esta é a minha liberdade. Minha liberdade consiste em nascer das tuas costelas. Tu, que és
semelhante a um deus. Mas na minha carne está a perversidade. E a minha alma é um pântano sombrio, onde
tudo que é podre e infecto se prolifera. Aquele que me penetra em arroubos de prazer, sente que me invade, é
como um inseto pousado na superfície desse pântano. E se eu te agarro com essas pernas flácidas, eu te pren-
do. Eu posso ver o teu sexo, rígido, púrpura. Mas tu não podes enxergar o núcleo escuro, silencioso do meu útero.
Tu te perdes aqui dentro. 29

Trecho da “Carta da Rainha do Calvário ao Grande Amante” em “Via Lucis” de Angélica Liddell.

Mas não te preocupe, que é só se perdendo nessa escuridão que tu chegas a ficar sobre as duas pernas e,
quiçá, contemplar a face de Deus.

(Ana Laís quebra um ovo na vagina.)

Janaina Leite
+ feminino abjeto 1

Juliana
Uma vez numa aula sobre tragédia grega, nos explicaram que os sacrifícios são uma forma de evitar perdas
maiores. Isso me lembrou da Tarantella, um pequeno descontrole, dentro de padrões, que evitam o Tarantismo,
a histeria total, a perda de controle da mulher. O tarantismo seria o fim da contenção. Uma forma de histeria
feminina atribuída à picada da aranha tarântula. Tarantella. Dança regional típica associada ao tarantismo com
movimentos abruptos e violentos, seria uma forma controlada de histeria, um momento de expurgo. Segundo
a crença popular, a toxina das tarântulas induziria à dança frenética - daí o nome tarantella. Esta é a primeira
dança surgida declaradamente de um ritual de expurgo.

O Tarantismo é considerado um fenômeno histérico convulsivo. Segundo a crença popular italiana do


século XIV, a picada da tarântula em mulheres levaria à manifestação de um delírio convulsivo que
induziria a vítima a uma dança frenética. A crença foi abordada no documentário, La Taranta (1962), de
Gianfranco Mingozzi. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=wmbXOdI1yhE>.

30 (Tarantela toca. Juliana dança freneticamente. As performers iluminam as vaginas acendendo e apagando as
luzes, enquanto executam movimentos abruptos e violentos. Blackout.)

Em 2017, o grupo realizou uma ocupação no


espaço cultural Centro da Terra, em São Paulo.
Além da apresentação do espetáculo, uma série
de performances foram feitas, chamadas de “Atos
Abjetos”. Entre elas, a atriz Juliana Piesco dançou
a Tarantella durante cinco horas seguidas.
feminino abjeto 1
Janaina Leite
31
+ feminino abjeto 1

Bruna Bruna
Tudo bem, Lorena? E então a senhora decidiu se livrar daquilo, ali
mesmo, da janela do seu carro?
Performer
Sim. Performer
Sim.
Bruna
A senhora então, só se lembra de que estava dirig-
indo para a casa de uma amiga?

Performer
Sim.

Bruna
E a senhora se aproximou de um sinal vermelho e,
como boa cidadã, parou o carro?
32
Performer
Sim.

Bruna
E foi então, que a senhora percebeu que tinha al-
guma coisa na sua mão esquerda…

Performer
Sim.

Bruna
E a senhora viu, então, que se tratava do pênis do
seu marido.
Lorena Bobbitt, equatoriana que vive nos
Performer Estados Unidos, decepou o pênis de seu
Sim. marido Jhon Bobbitt no ano de 1993. O caso
teve grande repercurssão midiática e Lorena
afirmou, em julgamento, sofrer abusos
Bruna
sexuais e psicológicos de seu marido. Em
E senhora ficou horrorizada. Correto?
2019, a Amazon lançou a série “Lorena”,
feminino abjeto 1

sobre o caso. A performer Bruna Betito criou


Performer a cena a partir de comentário feito pela autora
Sim. Camille Paglia no livro “Vamps e Vadias”, ed.
Francisco Alves, 1994. Capítulo “O Ano do
Pênis”, p.51.
Ramilla
Eu sonhei em ser estuprada por um amigo do
meu irmão. Tinha 13 anos e não era mais vir-
gem. Eu sonhei que eu ia estar saindo de uma
festa lá na cidade do interior onde eu morava.
Eu queria que fosse assim, que eu tivesse tão
bêbada que não sabia nem o que tava fazendo.
Ele se oferecendo gentilmente pra me levar pra
casa. Minhas amigas desconfiadas, mas não
fazendo nada pra impedir. Eu sonhei que eu ia
adormecer no carro e já ia acordar com ele em
cima de mim. Aí, eu ia gritar, eu ia gritar, eu ia
gritar, mas ele não ia parar. Ele não ia parar, ele
não ia parar. E depois de ele não parar e de eu
gritar por muito tempo, eu sonhei que ele ia me
virar de costas. E que essa ia ser a primeira vez
que eu faria sexo anal. A primeira vez que eu 33
daria o cu. E que a minha perna ia ficar toda en-
sanguentada. E que ele ia me deixar em casa, de
carro, ia olhar pra minha calça cheia de sangue e
dizer: fica tranquila, isso passa. E eu sonhei que
nesse dia, eu ia ser bonita. Porque eu sempre
quis ser bonita. Desde que eu nasci, desde que
a minha mãe reconheceu uma menina na mater-
nidade, desde que furaram minhas orelhas, eu
sempre quis ser bonita. Mas, bonita de verdade.
Não bonita de beleza interior, não bonita de arru-
madinha. Bonita de verdade. Não teve um dia na
minha vida inteira que eu não quis ser bonita. Eu
quero muito ser bonita. Mas, bonita de verdade.

Bruna
A Lorena, por exemplo, sugeriria cortar o pênis
deste homem. Não acho que a maioria das mul-
heres apoie tal ato de barbarismo, certo? Mas
em um certo sentido, a Lorena cometeu um ato
revolucionário. Uma das teorias mais polêmicas
do Freud é a inveja do pênis. Ou seja, para ele a
mulher sente-se como um ser incompleto, mu-
Janaina Leite

tilado. O que você faria se tivesse pau por um


dia?
+ feminino abjeto 1

34
feminino abjeto 1
Bruna 35

O motivo do menino urinar me parece bem notável. Uma menina urinando


não é algo de jocoso ou tocante. adesde sempre. Eles têm de aprender,
por exemplo, a apontar. É nesse momento que os rapazes aprendem
sobre linearidade, concentração e foco. Desde o começo da vida os
homens têm a ideia de construção, de algo que se constrói e que desaba.
Eles têm a ideia de algo que fica duro e mole e sobre o qual não se tem
o controle total.
Janaina Leite
+ feminino abjeto 1

36 Ouça "Ela é demais",


de Rick e Renner

Emilene
(Diante de um prato de macarrão e uma garrafa de cerveja) Com que mulher você quer dormir essa noite? Essa
noite? Você gosta de mulher loira? Mulher bela? Alguém que canta pra você? Você gosta de mulher magra,
aquela que tem o ossinho aparecendo? E gorda, que te sufoca no meio de tanta pele, volume, peso, corpo?
Você gosta de mulher triste, deprimida? Mulher romântica? Violenta? Mulher que sorri pra todo mundo, que
gargalha alto, mulher culta, que viaja o mundo, fala 5 línguas? Com que mulher você quer dormir essa noite?
Sabe, depois de tudo isso, eu fico olhando pra sua cara e tento imaginar o que você tá pensando sobre esse
exato momento, o que tá pensando sobre mim. Se está me olhando, me julgando, me achando uma idiota,
ridícula, uma coitada, carente que não sabe o que sente e muito menos sabe formular essas merdas todas.
E eu continuo falando umas coisas sem sentido só pra ter algum assunto que me comova e que faça você
lembrar de algo sobre nós. Eu te olho, eu julgo, eu continuo pensando e criando a porra desse espaço oco entre
a nós. Então eu continuo falando umas coisas na tentativa de explicar alguma coisa que eu não faço idéia do
que seja. Talvez seja só uma necessidade ridícula de viver, uma vontade de existir, de fazer a coisa certa na
hora certa e respirar em paz. Uma vontade de se conectar com o mundo e achar algum sentido pra fazer café.
Olhar no celular, tomar banho, ganhar dinheiro, um sentido pra dormir com você essa noite. Talvez eu continue
falando por uma vontade de ser alegre. Eu sou alegre, eu gosto muito de ser alegre com você! Olha só, eu até
fiz macarrão pra gente. Você sabia que não se pode colocar óleo na água pra ferver o macarrão? É alguma coi-
feminino abjeto 1

sa da química. O óleo cria uma camada em volta do macarrão e impede ele de entrar em contato com outras
coisas. Mesmo imerso na água, o macarrão fica seco por dentro, sem gosto e sem sabor. Engraçado isso né?
Eu sou alegre, eu quero muito ser alegre pra você! Eu só não quero que você me ache burra. Eu não sou burra.
E eu sei disso. Mas como eu faço pra fazer você saber que eu não sou burra se tudo o que eu faço é burro?
André F.: Você falou do masculino. Como ele aparece, se apareceu para vocês no processo em um
grupo constituído só por mulheres?

Emilene G.: Ah sim, ele está... até mesmo nessa ausência. Acho que esse masculino aparece numa
oposição de “outro” em relação ao feminino, e como essas forças se dão. E não como um outro
inimigo, sabe? Acho que está mais numa idéia de relação mesmo, do que está em jogo em mim.
Esse outro que me constitui, acho. Na minha cena, por exemplo, tem uma idéia de relação afetiva, de
relacionamentos. Na proposta eu tenho texto, num fluxo de pensamento, que eu digo a um homem,
um namorado, em uma mesa de jantar comigo. Ele não está lá na cadeira, mas o que eu digo e faço
na cena tem a ver com ele. De uma forma projetada, partindo de mim... Pensando os materiais como
um todo, acho que o masculino aparece também nas sexualidades ... a gente tem nosso muso Murilo
Rosa, a gente faz uma dança sensual só para ele! (risos)

(Emilene Gutierrez em entrevista para André Fisher em live para o Centro Cultural da Diversidade no dia 01 de agosto de 2020)

(Emilene levanta, termina sua cerveja e dança. A coreografia vai se transformando em movimentos sexuais, uma
mulher passiva com um homem invisível em cima dela fazendo movimentos mecânicos. No refrão, luz abre,
todas as performers estão executando os mesmos movimentos entre o cômico e o patético.
37
No fim da música, um clipe é projetado. Uma mistura de cenas de nascimento de bebês em novelas, filmes
pornôs heterossexuais e imagens da performer Verana nua, com uma maquiagem pesada, aplaudindo, rindo.
Em cena, Verana grita, geme, dança sensualmente, nua embaixo do vestido arrastão e com luz de boate. Todas
levantam e gritam em resposta, pulando com os braços para cima.)

A ação é uma referência ao espetáculo “Que haré yo con esta espada”, de Angélica Liddell.

Janaina Leite
+ feminino abjeto 1

Verana
Não é lindo meu vestido? Ele era de uma mulher muito querida que faleceu recentemente. Eu estava presente
no dia da partilha de seus pertences. Todos, os três filhos e a mãe dela concordaram que ele deveria ser meu.
Achei lindo ele não ter forro. Como considero essa uma ocasião muito especial, achei que deveria honrá-la.
Um brinde a ela onde quer que esteja. Nem sujeito, nem objeto. Não eu. Não isso. Mas tampouco nada. Um
“qualquer coisa”. Um peso de sem sentido que não tem nada de insignificante e que me esmaga na beira da
inexistência e da alucinação, de uma realidade que se eu a reconheço, ela me aniquila. O abjeto e a abjeção
são as minhas salva guardas. Este misto de julgamento e afeto, condenação e efusão, signos e pulsões.
Delineamentos de minha cultura.

(Verana bebe todo o vinho de uma vez só, deixando-o escorrer pelo seu corpo. Neste momento, performers es-
peram paradas, segurando bandejas e com os olhos e bocas cobertos por fita crepe, na qual estão desenhados
olhos e bocas. Oliver assume a cena e mostra a colagem que fez durante a apresentação. Ele está vestido com
roupas femininas e segura uma garrafa de vinho e uma taça nas mãos. Enquanto fala, bebe e oferece o vinho
para a plateia.)

38 Oliver
Quando vocês me olham o que vocês vêem? Vocês gostaram dessa roupa que eu escolhi pra hoje? Elas que-
riam que eu me vestisse de menino, que eu usasse coisas de menino, tipo as coisas que eu uso fora daqui, do
teatro, até falaram pra eu usar tipo cueca, terno, camiseta larga, que eu não estivesse de maquiagem, enfim,
para que vocês pudessem ver que eu não sou mulher, pra que vocês não se confundissem sobre isso, isso é
muito importante: que eu de fato gosto de me tratar no masculino e gosto mesmo. Mas, voltando pra essa
cena, o que eu pensei foi: por que que eu ia desperdiçar essa chance aqui dessa peça pra me vestir assim pra
vocês? Quer dizer, olha pra mim: eu não sou linda assim? Linda. Eu me acho muito bonita quando eu me visto
assim, bonitA, no feminino mesmo, porque é um tipo de beleza que só o feminino dá conta. Quando eu me
visto assim, eu sou muito bonita, eu me sinto invencível. Então eu pensei que já que isso aqui é teatro, e teatro
é fingimento, eu poderia fingir ser uma mulher muito bonita pra vocês. Eu sempre gostei de fingir ser uma
mulher muito bonita pras pessoas, porque aí eu sou algo, e não qualquer algo, mas algo inegavelmente belo,
incontestável, real, eu. Para as pessoas que não são mulheres muito bonitas no espelho deve ser mais fácil sair
do armário como um menino sem pau. Como eu poderia parar de sentir tesão por mim mesma para deixar ser
esse menino tão frágil, tão imbecil, incompleto, com disfunção erétil, espinhas, cheiro de suor e falta de pelos,
patético. Como eu poderia ser esse menino? Esse menino sem pau. Porque fora daqui eu fico tentando ser um
menino, eu acho, dá vergonha de dizer que é isso que eu tô tentando, porque é meio ridículo, ninguém me vê
como um menino. Eu me afogo no meio de tanta roupa de homem que nem cabe em mim, como uma criança,
não um homem, e nem uma mulher, mas uma coisa meio sem forma que não tem lugar. Então, eu pensei que
já que isso é teatro, e no teatro eu posso fingir ser o que eu quiser, é melhor eu ser uma mulher, essa mulher
que vocês tão vendo, essa mulher linda. Eu sinto tanto tesão por mim quando eu me visto assim. Eu me sinto
feminino abjeto 1

invencível. Eu, vestido assim, posso ter muito mais paus ao mesmo tempo em mim do que esses homens com
pau que eu não sou e que me acham bonita vestida assim, e que querem enfiar seus paus de homem dentro
de mim, tem. Eu, vestido assim, posso ser em paz o que eu nasci para ser: uma mulher, muito bonita. Normal.

(Oliver tira a calcinha, senta-se sobre a colagem e introduz um pênis de borracha em si mesmo.)
Trecho do livro de Julia Kristeva: Pouvoirs de l’ Horreur – Essai sur l’abjection, Éditions du Seuil, 1980.
Poderes do Horror - Ensaio sobre a abjeção (capítulo 1 - versão em português/pdf) disponível em;
<https://www.academia.edu/18298036/Poderes_do_Horror_de_Julia_Kristeva_Cap%C3%ADtulo_1>.
Acesso em: 18/07/2020.

A cena foi modificada por Oliver em 2019 depois de seu processo de


transição de gênero.

Aqui, a versão anterior: “A primeira vez que eu me lembro de me


entender como algo desprezível foi quando minha mãe começou a me 39
detestar, por detestar a si mesma, por ter depressão, talvez pânico, não
sei, nunca perguntei pra ela, também não sei se a depressão veio antes
do desprezo, ou se o desprezo veio em resposta à depressão, e se em
algum momento veio o pânico, o que faria sentido, porque afinal, ela
é minha mãe, e eu me pareço mais com ela do que gostaria. Eu tenho
pânico e eu tenho depressão, e eu acho que tenho pânico porque eu
tenho depressão, e eu acho que tenho depressão porque eu aprendi a
me detestar, e por me detestar eu desenvolvi o hábito de me envenenar
sempre, em algo como um meio termo entre uma cerimônia ritualística
e um costume vazio. Algo como uma tentativa covarde de sacralizar um
estado de negação, como se fosse bonito eu ser objeto do meu próprio
desprezo. É como se eu fosse a encarnação de tudo que há de mais
cruel e repulsivo no corpo de uma menina pequena e frágil e bonitinha, e
minha beleza e minha fragilidade são claramente parte da minha índole
má, são claramente uma armadilha para os homens que são induzidos
ao pecado e ao sofrimento. Eu não posso me relacionar com os homens
porque eu triunfo sobre as dores deles. Eu não posso me relacionar com
as mulheres porque eu triunfo sobre as dores delas. Eu não posso me
relacionar com a minha mãe porque eu triunfo sobre as dores dela. Eu
sou muito violenta. Eu sou o rei do sofrimento. Eu gosto de esmagar as
pessoas através do amor. Eu gosto de quando as pessoas precisam de
mim e eu esmago elas. Eu gosto de fazer as pessoas precisarem de mim
Janaina Leite

para eu esmagar elas e triunfar sobre elas, e eu triunfo sobre as dores,


eu abuso dos homens que me amam e das mulheres também e também
da minha mãe, eu sou muito violenta, eu sou o rei do sofrimento.”
+ feminino abjeto 1

40
feminino abjeto 1
O que farei com
essa espada?
“Eu encontro doçura em ser feita para o
Ramilla homem”. Trecho do texto “Carta da Rainha do
Minha mãe é louca, a maternidade deixou ela Calvário ao Grande Amante”, em “Via Lucis”
louca. Minha mãe não aguentou parir uma meni- (2015) de Angélica Liddell.
na. Tivesse sido eu um homem, seria mais fácil.
Meu pai nunca foi louco. Ao contrário, meu pai
nunca existiu. Em sua ausência, meu pai, um
pai qualquer, foi extremamente razoável. Minha 41
mãe podia ser um bicho no zoológico, enjaulada
e feroz, potencialmente perigosa, mijando em si Maira
mesma. E enquanto ela estivesse lá, eu encon- Eu sempre achei que seria uma menina, desde o
traria o papai. Pra aprender a ser razoável como o começo.
papai. Pra sentar no colo do papai. Porque o papai
é dono de tudo. Ele é dono da ausência e assim Letícia
ele se torna dono de tudo. Eu encontro doçura em Você pode me perdoar por isto?
ser feita para o homem. Para o papai. Pra chorar
no seu colo e contar que eu sou um pássaro. Sujo, Bruna
fedido, nojento e mutilado. Eu passei toda a sua vida tentando te perdoar.
Nem sempre eu consegui.
(Todas trazem seus restos de comida da cena ini-
cial e despejam em cima da colagem.) Emilene
Você é tão diferente de mim.
Emilene
Mãe, por que você não fez um aborto? Ramilla
Eu tenho patas. Patas de pomba.
Verana
Não sei, não tive coragem. Juliana
Talvez por isso. Quando elas apareceram?
Oliver
Você queria uma menina? Ana Laís
Janaina Leite

Eu tinha 15, mais ou menos. A idade que eu com-


ecei a me sentir velha.
+ feminino abjeto 1

Débora pegou o machado e cortou os pés da menina. E


Neste ano, você tentou nascer de novo. os sapatos continuaram dançando pela floresta
afora, felizes para sempre!
Florido
Você pode me perdoar por isto?
“Barba Azul” é um conto de fadas europeu que conta
a história de uma jovem mulher, que após ter casado
Ramilla com um homem de barba azul e aparência ameaçadora,
Eu pensei que podia tentar de novo a cada erro. descobre um quarto no castelo com os cadáveres de
Nascer outra vez a cada erro. Até ter uma vida em suas esposas anteriores. “Mulheres que Correm com os
que eu não falhasse em nada. Lobos,” de Clarissa Pinkola Estés. Capítulo 2 - A tocaia
do intruso: O princípio da iniciação, Editora Rocco,
Emilene 1992. p.53.
Eu nunca consegui isso.

Cibele Texto baseado no conto “Os sapatinhos vermelhos”,


Muitas vezes sonhamos romanticamente. de Hans Christian Andersen. Mulheres que correm
42 Algumas vezes ele vem, mas percebemos com os lobos, de Clarissa Pinkola Estés. Capítulo "La
Que há uma estranha barba azul. selva subterranea: A iniciação na floresta subterranea".
Trancado a sete chaves tem um cofre Editora Rocco, 1992. p.434.
Num porão escondido, dentro do seu coração
E uma voz em mim pergunta:
E aquela estranha barba azul.
Florido
Era uma vez uma menina sem mãos. Uma Bruxa (Voz em off) Ser andrógino, alienígena, nunca mais
as cortou na infância. Essa menina perambulava mulher. Com útero, nunca mais mulher. Porque na
faminta e, um dia, encontrou um par de sapatos: verdade eu não passo de um grande viado de bu-
vibrantes, brilhantes, bem vermelhos. Assim que ceta. Se ainda reside alguma mulher em mim, ela
a menina calçou os sapatos, seus pés não par- não passa de uma ceifadora de cabeças. Arran-
aram mais de se movimentar. E ela dançava em cando uma a uma com as próprias mãos. Diger-
êxtase, era seu momento de glória! Até que ela indo, deglutindo. Não há nada de feminino nisso.
quis andar para esquerda, e seus pés iam para Mas afinal, o que é feminino?
a direita. Quis andar em linha reta e seus pés fa-
ziam curvas. Então, os sapatos é que dominavam
a menina e não a menina os sapatos. E ela saiu (As plataformas giram cada vez mais rápido até se
dançando pela escada, pela estrada, atravessou encontrarem. Sol aparece ao fundo, na contra-luz,
os campos enlameados e penetrou na floresta so- nua, coberta de sangue, a mão enfiada na boca, ba-
turna e sombria. Na Floresta, ela passou pela casa rulhos guturais. Aproxima-se lentamente da mistu-
feminino abjeto 1

de um carrasco. E o machado começou a tremer ra de restos de comida no chão. Parte do elenco


na parede assim que pressentiu a presença da assume a postura de hienas, olham pra Sol como
menina. A menina então encontrou o carrasco e se fossem devorá-la, babam, fazem barulhos, ol-
gritou "socorro"! Tire esses sapatos dos meus pés, ham fixamente para ela. Sol deita-se em cima da
eu não aguento mais! E o carrasco, muito solícito, comida em posição fetal.)
Sol
Mãe, mãe, mãe… mão. Às vezes, eu penso em
você como um mistério, um fantasma, uma mão
assustadoramente idêntica a minha, a boca tam-
bém. Penso se hoje, aqui, convivo com as mes- 43
mas questões que você aí. Você era brava que eu
sei, fechando os olhos parece que sinto o cheiro
da casa e dos homens que viviam ali com você.
Me conta algum segredo. Alguma coisa só tua.
Qual a tua obsessão? Qual a tua obsessão?

(Maíra ajuda Cibele a despir-se da roupa de bon-


eca. Agora, ela tem braços e pernas e veste uma
roupa escura que cobre todo seu corpo. Levan-
ta-se em cima da plataforma. Florido a entrega,
ritualmente, a espada.)

Florido
Nem um grito de guerreira. Nem um pio de
galinha. Nem uma bufada ressentida. Nem uma
concentração heróica. Imperceptivelmente lenta,
profunda, de ar imperceptivelmente preso. Só im-
passível. Normal.

(Sol se despede da imagem/corpo da mãe ao


chão e se junta ao coro das hienas. Esperam em
posição de ataque. Cibele ergue a espada e crava
Janaina Leite

na “Mãe”. Ataque. Blackout. Sons guturais, elas


estraçalham a “Mãe”. A luz se acende brusca-
mente.)
+ feminino abjeto 1

Débora
O meu plano pra hoje era fazer uma dança. Uma dança selvagem. Eu ia explorar espirais, giros, 4 apoios. Mas
há uma semana eu descobri esse cisto no meu ovário direito. E a médica me recomendou não fazer atividades
físicas até que ele diminua. Ela me disse que ele é como uma bexiga cheia d’agua e que por isso ele pode girar
sobre o próprio eixo ou estourar. As especificações dela pra mim foram: Não girar. Não pular. Não andar de bici-
cleta. Não ficar de quatro. Só transar deitada e de barriga pra cima. Começo dizendo que nós estamos aqui,
neste lugar, vivas, passando por todas essas coisas juntas e juntos. E isso é sempre assombroso. Não precis-
amos nos preocupar em proteger, inventar ou conservar a beleza disso tudo. Porque ela já é e está. Sinto que
nossos desejos, palavras e dores anseiam pelo movimento. Mas ir só é possível quando se tem pra onde voltar.
E penso que estamos sempre voltando pra nós mesmas. O coração é uma semente inventada. Mas o óvulo
não. Ele existe. Nasce todo mês. Vive por 24 horas. E caso haja o encontro, uma pessoa talvez possa chegar a
vir ao mundo. E isso é terrível e lindo. Um útero é do tamanho de um punho. Uma pessoa já coube num útero.
Não cabe num punho. Outro dia eu estava lendo sobre o neutrino. Esse elemento demorou pra ser detectado
porque não tem propriedades físicas, campo magnético, massa, nada, e só pode ser detectado quando colide
com outro elemento que se anteponha a ele. Talvez estejamos sempre em busca desse elemento, o da colisão.
Eu não acredito que quando morremos deixamos de existir. Acredito que passamos para outra dimensão onde
44 já não é preciso esse corpo. Então talvez não haja alternativa senão viver esse, transitório, com intensidade e
coragem. Por que se era para nos conformar com tão pouco, porque nos deram essa janela, esse corpo? De
alguma forma ou de outra, todo o conhecimento vem do corpo, ele guarda pra si aquilo que o impressiona e
transforma a sugestão que o atiça em curiosidade, ato, transgressão, luta. Mas uma pessoa é muito mais que
um desenho físico, apesar de ser isso também. A criança, em certa altura, faz o reconhecimento de si mesma,
no sentido em que ela imagina sua imagem-espelho mais perfeita do que a experiência de seu próprio corpo.
Então agora, eu vou fazer a minha dança imaginada aqui pra vocês.

(Toca a música "Every breath you take", da banda The Police.)

“Um útero é do tamanho de um punho/Uma pessoa


já coube num útero, não cabe num punho”, trecho de
poema de Angélica Freitas no livro: “Um útero é do
tamanho de um punho”. Editora Cosac, 2012. p.54.
Ouça "Every breath
you take", de The
Police

(Debora faz uma dança imaginária completamente parada, apenas olhando para a plateia. Uma a uma, todo o
elenco se une a ela e faz o mesmo até o fim da música. Luz em fade out.)
feminino abjeto 1

Voz em off
Mãe, eu não quero envelhecer.
Você precisa. Eu não posso cuidar de você pra sempre.

(Blackout.)
"Ontem a gente falou desse elenco se dizer: as “abjetas”, isso de conseguir colocar esse lado de se
sentir abjeta, fortalece porque você esta falando do seu pior, você vai reconhecendo onde você cria
seus buracos, então isso te fortalece, nos dá um vínculo e uma intimidade muito grande quando
você se abre dessa forma. Eu já recebi o título de rainha das abjetas, porque ali eu acho que eu
pisei na jaca! Nesse sentido esse vínculo é muito verdadeiro, porque a gente fez uma oficina, uma
oficina curta, uma vez por semana por seis meses, o espetáculo é composto de cenas que foram
um cruzamento entre elas, numa dramaturgia de recorte. A força, a vontade de expressar isso é que
dá a grandeza da coisa. Eu vejo que a intenção da pesquisa traz a profundidade pro que a gente tá
fazendo, pro espetáculo. É um outro olhar que a gente deveria ter. Enfim, pode não ter uma resolução
estética pra alguns momentos, mas é fruto de uma pesquisa incrível. Esse orgulho da gente se sentir
parte, isso é muito do elo que a Jana faz. A Jana passa e muita gente a segue, porque ela dá esse
espaço de sermos todos construtores disso. Então eu sinto que tem a ver com esse amálgama que
a Janaina propaga."

(Cibele Bissoli em entrevista para André Fisher em live para o Centro Cultural da Diversidade no dia 01 de agosto
de 2020)

45

Janaina Leite
+ feminino abjeto 1

46

Ficha técnica.
Direção e concepção | Janaina Leite

Performers/autorXs | Bruna Betito, Cibele Bissoli, Débora Rebecchi, Emilene Gutierrez, Flo Rido,
Gilka Verana, Juliana Piesco, Letícia Bassit, Maíra Maciel, Oliver Olivier, Ramilla Souza e Sol
Faganello.

Assistência de direção | Tatiana Caltabiano

Dramaturgismo | Janaina Leite e Tatiana Ribeiro

Preparação Stiletto | Kaval

Preparação Haka | Allan Melo

Iluminação |Afonso Alves Costa Operação de som | Marina Meyer Fotografia | Laio Rocha
feminino abjeto 1

Câmera: Roberto Setton, Camila Couto e Vinicius Vitti

Edição: Sol Faganello


Para citar.
AZANHA, Ana Laís; BASSIT, Letícia; BISSOLI, Cibele; BETITO, Bruna; CALTABIANO, Tatiana;
FAGANELLO, Sol; FLORIDO; GUTIERREZ, Emilene; OLIVIER, Oliver; MACIEL, Maíra; PIESCO,
Juliana; SOUZA, Ramila; REBECCHI, Débora; VERANA, Gilka. Feminino abjeto 1. Material cri-
ado dentro do núcleo de pesquisa “Feminino abjeto - Um estudo teórico-prático sobre a obra
de Angélica Liddell” com direção de Janaina Leite, assistência de direção de Tatiana Caltabi-
ano e dramaturgismo de Tatiana Ribeiro, 2017.

47

Lista de referências
para o processo.
Eu Não Sou Bonita. Peça. Dramaturgia e direção de Angélica Liddell. Gravação na integra
disponível no Canal: <https://www.youtube.com/channel/UCH94QsDgG7toomHSix6cYsg>
Acesso em: 29/07/2020

O Que Farei Eu Com Esta Espada. Peça. Dramaturgia e Direção de Angélica Liddell. Trecho
disponível em: <https://youtu.be/9gGCj2qZgMs>. Acesso em: 29/07/2020

Lesões Incompatíveis Com a Vida. Angelica Liddell. Trecho disponível em: <http://violen-
taentrequatroparedes.blogspot.com/2009/11/lesoes-incompativeis-com-vida-de.htm-
l?m=1> Acesso em: 27/07/2020

Baise Moi. Filme pornô e de suspense dirigido por Virginie Despentes e Coralie Trinh Thi. O
filme narra a história de duas mulheres que iniciam um frenesi de violência e sexo contra
uma sociedade que as marginaliza. Trailer disponível em: <https://youtu.be/WnFZhG39OHI>
Acesso em: 27/07/2020
Janaina Leite

Elle. Filme de Paul Verhoeven, 2016. Trailer disponível em: <https://youtu.be/NHK7dH-


midYA> Acesso em: 27/07/2020
+ feminino abjeto 1

Galeria de imagens do fotógrafo Jan Saudek. Disponível em: <https://www.saudek.com/


en/jan/uvod.html> Acesso em 27/07/2020

Mulheres que Correm com os Lobos. Clarissa Pinkola Estés. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.

O Caráter Destrutivo, artigo de Walter Benjamin. Disponível em: <https://palavraguda.word-


press.com/2011/01/10/o-carater-destrutivo/> Acesso em: 27/07/2020. Rua de mão única
- Infância Berlinense: 1900. Walter Benjamin. São Paulo: Brasiliense, 1987.

Por Dentro do Garganta Profunda. Documentário sobre o filme Garganta Profunda. Trailer
disponível em <http://www.adorocinema.com/filmes/filme-59211/trailer-18534547/> Aces-
so em: 25/07/2020

Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade. Judith Butler. Rio de Janei-


ro: Editora Civilização Brasileira, 2003.

Programa Performativo - O corpo em experiência, de Eleonora Fabião: Revista do Lume #4.


48
Dez/2013. Disponível em :<https://gongo.nics.unicamp.br/revistadigital/index.php/lume/ar-
ticle/viewFile/276/256>Acesso em: 27/07/2020

Pussy Riot - Una Plegaria Punk. Documentário sobre o grupo Pussy Riot. Disponível em:
<https://youtu.be/ULK_mwgAfIU> Acesso em: 25/07/2020

Tarantism. Medical History #23, de Jean Fogo Russell, 1979. Disponível em: <https://www.
ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC1082580/pdf/medhist00097-0041.pdf>. Acesso em:
29/07/2020

Tarantism, A Rithm For Your Soul. Documentário sobre o Tarantismo. Trechos disponíveis
em: <https://youtu.be/E6fB4oInT7A> Acesso em: 27/07/2020

Teoria King Kong. Virginie Despentes. São Paulo: N1 Edições, 2016.

Um Guia Para Cura Através Do Campo de Energia Humana. Barbara Ann Brenan. São Paulo:
Pensamento, 1987

Um Útero é do Tamanho de um Punho. Angélica Freitas. São Paulo: Cosac Naify, 2012.

Vamps e Vadias. Camille Paglia. Lisboa: Relógio D'agua Editores, 1997.


feminino abjeto 1

Via Lucis, Angélica Liddell, Ed. Contienta me tienes, Madrid, 2015.

Discurso feminista normaliza violência contra prostitutas. Folha. Disponível em:


<https://m.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/08/1909641-discurso-feminista-normaliza-vi-
olencia-contra-prostitutas-diz-lider-de-grupo.shtml> Acesso em 25/07/2020
Nova boneca sexual tem modo que permite simular estupro. IG. Disponível em: <https://
delas.ig.com.br/amoresexo/2017-07-27/boneca-sexual-estupro.html> Acesso em:
25/07/2020

Iluminador para vagina é o novo hit de beleza. Revista Glamour. Disponível em: <http://
revistaglamour.globo.com/Beleza/Beauty-news/noticia/2017/07/iluminador-para-vagina-e-
o-novo-hit-de-beleza-entenda-o-que-o-produto-faz.html> Acesso em: 25/07/2020

Meninas fazem cirurgia estética na vagina ainda virgens. UOL. Disponível em: <https://
www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2017/07/19/o-padrao-de-beleza-chegou-a-va-
gina.htm> Acesso em: 25/07/2020

O único lugar que a mulher tem liberdade sexual é na cadeia, artigo de Dráuzio Varella. El Pais.
Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2017/07/05/politica/1499276543_932033.
html?id_externo_rsoc=FB_BR_CM> Acesso em 25/07/2020

Japoneses perdem esposas e encontram amor em bonecas de silicone. Globo. Disponível


49
em: <https://glo.bo/2tx5oRL> Acesso em: 25/07/2020

27 sobreviventes de estupro contam o que ouviram quando eram atacadas. Buzzfeed. Di-
sponível em: <https://www.buzzfeed.com/br/regajha/27-sobreviventes-de-agressoes-sexu-
ais-citando-as-p#.gf5YawWyAv> Acesso em: 25/07/2020

Camille Paglia no programa Roda Viva, exibido em 22/10/2015. Disponível em: <https://
youtu.be/KlYR1isM2o8> Acesso em 25/07/2020

Não é só o gênero que é socialmente construído, o sexo biológico também, artigo de


Anne Fausto-Sterling. Disponível em: <https://azmina.com.br/reportagens/nao-e-so-o-gene-
ro-que-e-socialmente-construido-o-sexo-biologico-tambem/> Acesso em: 25/07/2020

Os estupros fantasmas da Bolívia. Vice. Disponível em: <https://www.vice.com/amp/pt_br/


article/vv4b99/os-estupros-fantasma-da-bolivia> Acesso em: 25/07/2020
Janaina Leite
+ feminino abjeto 1

Apêndice.
Extras I
O que farei com essa espada?
Versão com cortes

Textos de Tatiana Ribeiro*


Fotos de Átila Calache **

*Ainda durante o processo de criação em 2017, a partir do mote “O que farei eu com essa espada?”, a atriz e
dramaturga Tatiana Ribeiro criou uma sequência de textos, cujos fragmentos, em parte, se encontram aqui adi-
ante, nos quais imagina de que forma cada uma ali no grupo se suicidaria e quais seriam suas palavras finais.
50 Com crueldade e humor Tatiana inventa, projeta, esses fins, seu próprio fim, em uma “cena” que ela, de fato,
executa. Em meio ao processo, recebo a notícia de que ela havia sobrevivido de uma tentativa de suicídio leva-
da a cabo exatamente nos termos em que ela havia criado na “cena”. Entendi que não era um texto, uma cena,
mas um programa, um plano. Que de maneira muito próxima do que ela mesma anteviu, previu, não culminou,
por muito pouco na sua morte. Tatiana não voltou ao processo depois dessa tentativa de abjetar-se para para
fora-dentro de si mesma. Não me cabe construir aqui nenhuma hipótese, sobre nada. Apenas dizer que o en-
contro com a própria abjeção não é nunca sem consequências. Apesar desse material ter deixado a estrutura
final do experimento junto com a autora, não posso não deixar registrada a sua contribuição, talvez de todas, a
mais... fronteiriça. Não sem perder o humor e a ironia que marca sua escrita e que gerou um texto como “Beta
Splender”, contemplado pelo edital de dramaturgia do CCSP. Vida longa à Tatiana e a todas elas e eles.

**As fotos que acompanham os fragmentos, por sua vez, foram tiradas durante um exercício em que foi propos-
to para as participantes que trouxessem a comida que mais detestassem. Fizemos um “pic nic” dos nossos
pratos mais intragáveis. Em roda, iríamos debater o filme “Elle” de Paul Verhoven (2016) que traz a história de
uma mulher que depois de ser estuprada, desenvolve uma relação com o estuprador, espécie de síndrome de
Estocolmo em que ela se liga ao violador e passa a atraí-lo, desejá-lo, até destruí-lo. Debate indigesto acom-
panhado de nossos pratos repulsivos. As fotos foram tiradas por Átila Caláche no momento em que cada
uma compartilhava suas impressões sobre o filme, degustando o prato escolhido. A questão do estupro era
debatida ali enquanto exercício de poder central na violência de gênero e violência de Estado de um lado, e de
outro, enquanto constitutivo da dinâmica psíquica heterossexual nos lugares mais inconfessáveis dos nos-
sos desejos. Para essa complexa discussão, nos foi central o livro “Teoria King Kong” de Virginie Despentes
no qual a autora diz “Nós nos obstinamos em fazer com que o estupro seja algo de raro e de periférico, algo
feminino abjeto 1

fora da sexualidade, evitável. Como se dissesse respeito apenas a uns poucos agressores e a umas poucas
vítimas, como se constituísse uma situação singular que não tivesse nada a ver com a normalidade. Sendo
que o estupro pelo contrário, se encontra no centro, no coração, na base de nossas sexualidades. Rito central
de sacrifício, desde a Antiguidade ele é onipresente nas artes, é representado nos textos, nas estátuas, nas
pinturas; é uma constante através dos séculos.” (DESPENTES, 2016, p.41)
F, 42 anos
Branca
Tiro no ventre
Manuscrito em tinta esferográfica azul
Trata-se de um risco inevitável, um risco que as mulheres devem levar em conta e aceitar correr se desejam
sair de casa e circular livremente. Se isso acontecer com você, levante a cabeça, dust yourself e dê a volta por
cima. E se te amedrontar demais é melhor ficar na casa do papai e da mamãe fazendo as unhas.
Mas eu estava fazendo as unhas. E era estuprada dentro da minha casa.

51

A.P.M.

F, 38 anos
Branca
Incisão no abdômen
Bilhete manuscrito com esferográfica preta
Mãe, a senhora sempre me pedia pra comprar algo no açougue. Pedia pra ir a padaria e quitanda também.
Eu ia. Mas quero deixar claro que nunca gostei de ir ao açougue. O caminho inteiro eu pensava numa história
pra justificar o motivo de chegar sem a carne. Sempre aquele bom dia, uníssono, de todos aqueles homens
vestidos de branco. Com rajadas de sangue pela roupa. Suas mãos. Eram mortas. De unhas bem curtas. Eram
pálidas, mesmo que a pele de alguns, escura. Eram pálidas e avermelhadas. Seus dedos se perdiam entre os
Janaina Leite

embutidos expostos na bancada de vidro. Eram sempre roliços, mortos, vermelhos. Carne. Morta. “Bom dia,
menina linda”. E as galochas brancas sujas de sangue. “Bom dia, o que vai querer?”. E quatro soldados de bran-
co atrás do balcão de vidro, sujos de sangue. Engolia. Era seco. Era vergonha. Sentia não saber algo. O peso. O
+ feminino abjeto 1

preço. “Mas já está uma moça”. E enquanto me olhava, enrolava habilmente num papel pardo, sujo de sangue,
a peça de carne. Estes grandes homens, sempre cordiais.
Pra quem matou seis, matar a si própria não é nada.
Estarei nua.
Vista-me com este vestido sem forro, da morta que eu herdei. Quero parecer leve. Suada. Como quem correu
muito.

52

G.V.
Carreguem meu celular e me enterrem com ele, com fones nos meus ouvidos. Deixem no aleatório. São as
músicas que quero ouvir.
A senha de desbloqueio do meu celular é: 156899
feminino abjeto 1
?
F, 26 anos Branca Ingestão de formicida bilhetes picados escritos a lápis
P.S. Não sucedido
Olha, as pessoas não te ouvem mesmo. Não te ouvem mesmo. Se eu vou escrever esse bilhete algumas pes-
soas vão ouvir. Ler. Roubaram meu casaco ontem. Roubaram meu celular semana passada. A pessoa estava
de bicicleta. É o Brasil né. Eu vou fazer isso porque não dá mais mesmo. Eu grito o tempo todo. E agora eu tô
aqui escrevendo e nem sei pra quem. Pra minha mãe que não é. Porque a minha mãe é foda. Ele sempre foi
foda. Eu quero continuar gritando. E meu bloco que tiraram aqui da mesa. Foi a minha mãe. E é isso. E meu pai
gritando pra eu comer esse ovo nojento. É isso. Daqui fico ouvindo ele gritando. Você é isso né mãe. Não con-
segui ser amada por você e procurei nos homens. Li isso em algum lugar. Desejamos ser amadas pela mãe,
procuramos esse amor nos homens. Nem sei se gosto dos homens. Eu não gosto dos homens. Mas também
né, eles são uns escrotos. Mas tem mulher que não vem não, gosta de uma coisa mais violenta. Dominadora
mesmo. É fetiche, né. É um jogo. Que ódio. Já tô toda borrada já de chorar. Mas eu vou conseguir. É só ficar
bem bem gelada. Mas olha não sei mesmo. Dislexia. E eu lá sabia o que era isso? Olha, talvez até desista. De
fazer sabe. Aí vão me dizer que é dislexia. Por onde vás? No has odiado? Essa faca que eu vou me cortar peg-
uem e cortem a língua daquela língua de trapo da Renata. Me sinto a Ofélia. E minha mãe nem sabe quem é.
Ela que é dislexa.

P.S. Desculpe os erros de português


53

O.L.

F, 29a, branca atirou carro no penhasco manuscrito em tinta esferográfica

Com luvas de homens vou esmurrar e estapear minha cabeça. Tapas e murros de punhos bem fechados.
Como pugilista vou me cansar em baile até cansada estar. Vou atirar minha cabeça contra uma parede próx-
ima.
Janaina Leite

Dor trasmutada em beleza e essa beleza anuncia meu amanhã.


+ feminino abjeto 1

E.G, 30a, branca, disparo com arma de fogo


Tenho que compreender o não compreendido aos outros. Tento sempre. Mas mesmo hoje me soa nativa a
fala dos pombos.
Existem muitas maneiras deu fazer isso. Enfaixo meu rosto e dou um tiro na minha cabeça. Assim não defor-
mo mais. A faixa ajuda. Se eu estiver muito feia, mantenham o caixa fechado. Nunca fui bonita de verdade.
Assim me protejo da maior deformação.

54

R.S

30a, branca, precipitação em queda livre, carta manuscrita em esferográfica verde


Mãe,
Dei uma olhada em algumas cartas de suicídio antes de escrever a minha. Elas são tão desconexas. Até
feminino abjeto 1

mesmo a de poetas. E este desencontro de ideias não vem da complexidade dos poetas, vem de um estado
confuso mesmo. Tem rasuras, mãe.
É um pouco caso. O pouco caso precisa ser pulsante em você pra você escrever uma carta desconexa em
rascunho.
Só pensava em te perguntar: você vai me machucar muito? A violência cansa, mãe.
A.L.A.
F, 37 anos
Negra
Calmantes e gás liquefeito de petróleo
Carta manuscrita em tinta esferográfica preta
Obs: Não sucedido. Colocou o gato para fora da casa, e ligou o gás. Vizinho encontrou o gato no corredor e
arrombou a porta ao sentir o cheiro de gás.

Vislumbrei cartas pra muitas pessoas. Fui até lá, ao que acreditava precisarem dizer. Inventei com os meus
inventos vividos. Acho que gastei a vontade de gastar.
Obrigada.
Tentei pagar todas as contas. Algumas realmente não tinha como.
55
T.R.

Janaina Leite
+ feminino abjeto 1

Extras II
Desdobramentos autorais – A
fertilidade do encontro com a
própria abjeção
Reúno aqui alguns trabalhos artísticos em teatro e performance derivados ou influenciados
pela experiência de “Feminino Abjeto 1”. Durante as manifestações do #elenão, o grupo de
mulheres e pessoas não-binárias integrantes do trabalho, idealizaram uma primeira mostra
que reunisse essas experiências interessadas pelas representações do feminino sob à luz
da abjeção. Antes dessa ocasião, havíamos apresentados os “Atos abjetos” como artistas
residentes no Teatro Centro da Terra em 2018, já um ensaio para essa radicalização autoral
das performers. A primeira “Mostra Abjeta” como foi chamada aconteceu entre 27.01 e
56 25.02 de 2019 no Teatro de Contêiner. Muitos dos trabalhos seguiram em processo, outros
surgiram, compondo uma nova “Mostra Abjeta” em novembro de 2020 em versão online. A
pequena amostragem que se segue dá provas da fertilidade que foi o encontro umas com
as outras, uns com os outros, e o encontro com nossas sombras e abjeções. São trabalhos
que enfrentam e celebram o abjeto em sua potencialidade de morte e ressurreição.
feminino abjeto 1
Tudo é lindo
em nome do amor
De Bruna Betito e Débora Rebecchi

57

O espetáculo é um mergulho nos clichês, na cafonice e na intensa presença do


estereótipo do amor romântico em nossas vidas. O esgotamento (em relação ao
tema e ao corpo físico das atrizes) dessas obviedades não traz a condenação das
mesmas, mas uma exposição do quão profundamente se está envolvido nelas. A
pesquisa tem início a partir de um interesse de Bruna na biografia da atriz Linda
Lovelace, que protagonizou o filme pornô Garganta Profunda. Anos depois da
gravação do filme, Lovelace declarou ter sido obrigada a gravá-lo, além de ter sido
vítima de diversos abusos. A pesquisa se desenvolveu até chegar aos mitos do
amor romântico, que são tema do espetáculo.
Janaina Leite
Mãe ou
Eu também não gozei
De Leticia Bassit

58

Letícia usa sua própria gravidez e maternidade como material de trabalho. Sobretudo,
o fato de ter engravidado sem ter certeza da paternidade do pai do seu filho, bem
como a recusa desses possíveis pais em fazer um teste de DNA. A vida da atriz é
colocada vividamente em cena e a maternagem é abordada também a partir de
suas sombras, da sexualidade do sujeito mãe, da misoginia presente até mesmo
nos pedidos de reconhecimento de paternidade na justiça. Em sua pesquisa no
feminino abjeto 1

núcleo “Feminino Abjeto”, Letícia abordava a relação da mulher com a prostituição,


a objetificação do corpo feminino também como uma escolha e a monetização
disso. Com a descoberta da gravidez, o tema se misturou à sua maternidade.
Salivas
De Emilene Gutierrez

Emilene flerta com a pornografia e com a


sexualidade da mulher em “Salivas”. Sua "persona"
em cena apresenta-se e diz "gosto muito de chupar
rolas". Já em “Feminino Abjeto”, Emilene traçava
uma relação com o masculino ou uma tentativa
de. A mulher, em parte passiva, em parte tentando
tomar as rédeas da situação, mas de qualquer
forma confusa nessa tentativa. Em “Salivas”, isso
parece alcançar um nível a mais quando a atriz
narra, um dia, ter engolido um pênis. O trabalho em
processo tem uma interlocução com o romance “A
Puta”, de Marcia Barbieri.

59

André: E como foi o núcleo depois, com relação aos seus projetos... esse feminino
abjeto ainda ficou em algo?
O núcleo foi super legal para mim, importante, porque me abriu uns caminhos de
criação, uns lugares por onde transitar, algumas vontades poéticas. O processo
me despertou uma janela, o interesse de pensar um “corpo abjeto”, nessa ideia de
identificação e repulsa. De olhar para aquilo que eu identifico e por outro lado aquilo
que me é estranho, e que eu “não gosto” ou que eu não vejo de forma nítida... Eu já
tinha umas vontades de trabalhar materiais relacionados ao universo erótico, sexual,
umas literaturas, imagens, fotografias, e relacionar alguns temas no corpo. Então
agora eu estou na criação, pesquisa enfim, desse projeto que estou chamando de
SALIVAS. Que tem a ver com desejos, com a idéia de um corpo-organismo, algo que
tenho pensado sobre impulsos “não domesticados”...
André: E por que Salivas?
Esse nome tem a ver tanto com o material biológico mesmo, a baba, as secreções,
lubrificações internas e externas que existem, independente do que eu penso sobre
elas... Elas existem porque o corpo está vivo, em movimento... E também, pensando
salivas como metáfora, símbolo de outras coisas, outras vozes possíveis, prazeres,
Janaina Leite

fome, aquilo que eu engulo, absorvo... algo por aí!


(Emilene Gutierrez em entrevista para André Fisher em live para o Centro Cultural da Diversidade no dia
01 de agosto de 2020)
Vaca
De Bruna Betito

"Feminino Abjeto foi a primeira vez que


pude experimentar na máxima potência a
performatividade, o depoimento e a interatividade
com a plateia, três pontos que se desdobraram
em meus trabalhos posteriores: “Tudo é Lindo
em Nome do Amor” (direção minha e de Débora
Rebecchi) e “Vaca” (solo autoral, ainda em
processo).
Sempre me vi como atriz e não como performer.
Depois deste espetáculo, me sinto como um híbrido
entre esses dois conceitos. Posso realizar ações
que não me parecem tão “teatrais”, mas também
não me sinto “eu mesma” enquanto as realizo. Não
temos personagens, somos a representação de
60nós mesmas, mas talvez exista ali uma persona,
uma outra Bruna, não sei. Não posso dizer que
estou apenas no depoimento e na autobiografia,
mas não estou profundamente numa ficção. É
como se a flexibilização dos termos também fosse
levada a um grau de potência que não tinha vivido
antes enquanto artista. É autoral, sou eu mesma,
mas também sou várias outras. Falo de mim, mas
também invento muitas coisas baseadas em fatos
reais."

(Depoimento da performer Bruna Betito)

A partir de um caso de traição presente em sua própria biografia, Bruna aborda o papel
da amante em “Vaca”. Dando continuidade à sua pesquisa sobre o amor romântico, a
atriz explora em si mesma a persona da “outra” e expõe todos os papéis envolvidos
nesse jogo: o marido, a esposa e a amante. Onde está a dor e o prazer em cada um
feminino abjeto 1

deles é o que entra em questão no trabalho.


Não ela: o que é bom está
sempre sendo destruído
De Oliver Olivia e Lucas Miyazaki

61

Ao longo do processo e apresentações de “Feminino Abjeto 1”, Oliver


entrou em questão com sua identidade enquanto mulher, passando
a se reconhecer como uma pessoa não-binária. A pesquisa sobre
performatividade de gênero que a peça propõe foi importante para
esse reconhecimento e, nessa esteira, elx passou a desenvolver
o trabalho Não Ela junto ao seu namorado Lucas Miyasaki, um
homem cisgênero. A peça é escrita a partir do ponto de vista desse
homem, endereçada a Oliver e performada pelos dois. O tema é o
relacionamento amoroso vivido por eles e envolve assuntos como
misoginia, transfobia e amor.
Janaina Leite
Ilariê
De Ramilla Souza

62

Ramilla tem um obsessão pela Xuxa


dos anos 90. Ela revisita suas memórias
de infância e a construção da própria
subjetividade a partir dessa referência
feminino abjeto 1
CHEF PSI -
Como comer como como
De Maíra Maciel

63

Chef psi é uma estranha psiquiatra e chef de cozinha que tenta


preparar o prato perfeito. Nessa preparação ela traz memórias
e pensamentos sobre o processo de transformação do animal
na comida e da comida no corpo das pessoas. Um solo em que
investiga sobre a fome, a gourmetizaçao do comer, o não comer,
metáforas relacionadas ao comer e ao alimento e a relação das
emoções com alimentação. O trabalho começou a ser desenvolvido
a partir da pesquisa com telenovelas no grupo “Imaginary Woman”
Janaina Leite

em que a questão de comer e ver TV foi o mote inicial.


Corpo errado
De Florido Fogo

Abrir os buracos da corpa para negar


a entrada das expectativas cisgêneras
koloniais. Ser sul. Já era de CISperar
que a corpa trans-monstra fosse criada
fetiche. Imagens de horror, deboches,
delírios e monstruosidades para acessar
dramaturgias da trans-fisicalidade
ancestro/futura e eufórica.
64
feminino abjeto 1
Imaginary Woman
De Gilka Verana, Juliana Piesco, Maíra Maciel, Ramilla Souza e Oliver Olívia

65

O projeto, que passou por uma abertura de processo,


era norteado por dois pólos: a telenovela e o cinema
pornô. A semelhança entre essas duas linguagens
do audiovisual era exposta em sua forma de gerar
ou fortalecer o imaginário social sobre a mulher.
A Cultura Pop na televisão brasileira, sobretudo
dos anos 80 e 90, era abordada a fundo em sua
objetificação do corpo da mulher. Para além disso,
a necessidade de ser bonita, de ser vista como bela
era colocada em questão.
Janaina Leite

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