Você está na página 1de 13
RAPSODIA XII Sereias. — Cila. — Caribdes. — Vacas de Hi SUMARIO: Uiisses, voltande d itha de Béia, presta honvas finebres a Elpenor. Circe prediz-Ihe os perigos que teré de afrontar durante a viagem de regresso a pdiria, De inicio, a viagem maritima corre sem inci- dientes. Chegando & regide das Sereias, Ulisses, depois de se fazer tar a0 mastro da nau e de ter tapado as orelhas dos companhei- os, owve impunemente 08 pérfides cantos delas. Tendo chegado ao estreito entre as dois escolhos, Ulieses, a conselho de Circe, man- tém-se mais préximo de Cila, para evitar Caribdes, Consegue sa- far-se incdlume, sem todavia evitar que Gila ihe arrebate seis com- Panheiros. Chegam & itha do Sol. Recordando aa recomendagées de Tirévias, Ulisses 96 se detém a instdneias de Euritoco, Vertos contrétios impedem que, durante um més, a nau possa sair do por- {fo de Messina. Entretanto, esgotam-se os mantimentos. Entée, en- quanto Utisses dorme, seuis homens matam e comem as vacas dé Hilio, Em represéilia, Zeus desencudeia a tempesiade ¢ langa um raio contra a nau. Ulises € 0 dinico que se salva do naufrégio; volta a Caribdes ¢ Ctla, transpie 0 estreito, voge @ deriva durante nove dias, até que 0 vento Sul o faz arribar a Ogigia, onde érecebi- do por Calipso. Quando a niau deixou a corrente do rio Oceano € enfrentou as vagas do mar de largos caminhos ¢ chegou a ilha de Eéia, onde reside a madruga- dora Aurora com seus coros, ¢ onde se ergue Hélio, logo puxamos a em- barcagio a areia, pusemos pé em terra e nos deitamos a dormir, aguar- dando a brilhante Aurora, ° Logo que surgiu a madrugadora Aurora de riseos dedos, enviei os comipanheiros ao palicio de Circe, a fim de trazerem 0 corpo som vida de Elpenor. Tendo cortado uns toros, no local mais elevado do promontério, incineramo-lo, com 0 coragdo angustiado e vertendo copiosas lagrimas. Depois que a chara consiimiu o cadaver e as armas do falecido, erigimos- The um timulo, no qual plantamos uma estela ¢, em cima desta, coloca- 187 ‘oie MPa OBRAS-PRIMAS. mos um ramo muito flexivel.* Estéivamos cumprindo todos os ritos, quando Circe, que nao ignorava nossa volta do Hades, se deu pressa em acorrer, ataviada, em companhia de escravas, que traziam pao, eame em abun- dancia © vinho tinto de igneos reflexos. Colocando-se no meio de nés a preclara deusa disse: “Infelizes, que em vida baixastes & morada de Hades, © que morrereis duas vezes, quando os demais homens s6 uma ver mor- rem, wamos, comei destes alimentos, bebei deste vinho, durante todo o dia, Lago que despontar a Aurora retomareis a viagem por mar. Mos twar-vos-ei a rota, dar-vos-ei todas as informagdes, de sorte que nenhum artificio funesto, no mar ou na terra, ves crie novos trabalhos”. Assim falou, ¢ nosso generoso coragiia Ihe obedeceu, Durante o dia iteiro, até ao pér-do-sol, ali ficamos, entre nds dividindo carnes em abun- dancia e saboroso vinho. Posto o sol ¢ sobrevindas as trevas, meus ho- ‘mens foram dormir junto das amarras; mas Ciree, tomando-me pela mio, foz-me sentar longe deles, deitou-se a meu lado ¢ interrogou-me sobre tudo quanto havia acontecido. Contei-Ihe tudo, como era de justia. En- to a preclara Circe me dirigiu estas palavras: “Toda esta primeira pro- vagdo esta concluida. Escuta agora 0 que vou dizer-te; alids, tim deus de novo te recordard isso mesmo. Chegarés, primeiro, a regio das Sereias, euja Go2)encanta todos os homens que delas ge aproximam. Se alguém, sem da por isso, delas se avizinha e as escuta, nunca mais sua mulher nem seus filhos pequeninos se reunirio em torno dele, pois que ficard cativo do canto harmonioso das Sereias. Residem elas num prado, em redor do qual se amontoam as ossadas de corpos em putrefagia, cujas peles se vao ressequind: Prossegue adiante, sem parar; com cera doce como mel amolecida tapa as orelhas de teus companheiros, para que nenhum deles possa ouvi-las. Tu, se quiseres, ouve-as; mas, que em tua nau ligeira te atem pés e maos, estando tu direito, ao mastro, por meio de cordas para que te seja dado experimentar @ prazer de ouvir a Sereias. Se acaso pedires ¢ instares com teus homens que te soltem, que cles te prendam com maior niimere de ligaduras. Em seguide, quando tiverem passado além das Sercias, nao te direi com precisdo qual das duas rotas deverds seguir; cabe a ti decidir ein teu cotagdo. Entretanto, vou falar-te a respeito de urha ¢ outra. De um lado, erguem-se rochedos a pique, de encontro aos quais vém quebrar-se, estrondosos, os vagalhoes de Anfitrite de olhos sombrios. “Planctas” 6 0 nome que Ihes dio os deu- 1 Seve cansiderar interpolado © episéde de Blpenor,o8 cinco verses anteriores server ape: ‘sas de ligacho, 158 I ODISSELA riba’ #8 Vaeas do mar ¢ os turbilhgos de fogo devorador arrehatam ag i abuas das embarcacdes © o8 curpoe der marinheiros. 86 uma nau de longo cturso conseguiu ultrapaced ie Argo, cantada & port Muver, que jamais se dissipa; munca em volta dele o céu meenttt® etistalino, quer no verse, quer no outono; ¢ nenhum mortal, y Vmesio que ti vesse vinte maos e vinte pés, conseguiria escalé-loou man. | & creas, 20 timo, pois que o rochedo é liso, dinars que aplainado, A meia 3 altura do escotho abre-se uma soturna, “averna, voltada para oeste, na | © diresio do Erebo: por esse lado, ilustre Ulisses, deves dirigir a bojuda i nav. Nenhum homem, por robusto que Seia. poderia, desde sua nau, atin. ( Destes dois rochedos, um toca o Yasto'céu com seu pico agudo; en: NrOrOSO, que ninguém se ale. : encontrasse, Tem dove pés, . penover de descomunal grandeca, cada um too ; cooks ermin® por uma eabeca medonha, eada uma das quais com uma goela de trés eéries de dentes, juntos, imbricados, cheios das trevas da morie. Metade do seu corpo se interna na coneavidade da caverna; es- mais corpulent, daqueles que Anfitrite de Sonorosos mugides alimenta Q. Sim nlimero indefinido, Nao ha marinheiros ‘ue se possam jactar de por ali tevem pasado, sem haverem perecido cy, i Ihagem, ¢ engole @ negra égua. Trés vezes com espantoso fragor. Nao esta ‘OBRAS-PRIMAS Porque nem sequer o Sacudidar da terra conseguiria salvar-te do infor- ‘tinio. Pelo que, apressa-te em fazer passar tua nau junto do escotho de Cila; pois, sem diivida, 6 proferivel que tenhas de deplorar seis homens. da tripulagio, a perdé-los todos ao mesmo tempo”. Assim falou Circe, e eu Ihe respondi: “Deusa, déclara-me, sem fingi- ‘mento de espécie alguma: caso eu lograsse evitar a funesta Caribdes, néo pederia atacar o outro monstro, quando este investisse contra meus. homens?” Assim falei; e a ilustre deusa me respondeu imediatamente: “Infeliz de ti, que 36 pensas em ages bélicas © em batalhas! Tu nem siante dos deuses cederias. Cila nao 6 mortal: é um flagelo imortal, um monstro pavoroso, terrivel, inatacdvel, do qual néo ha defesa possivel; 0 melhor é fugir dela. Se junto do rochedo perderes muito tempo em reves- ‘ir tue armadura, receio que ela, investindo contra ti com todas as suas. cabegas, te arrebate outros tantos homens, Navega, portanto, a toda ve- locidade ¢ chams em auxilio Crateis, a mie de Cila; foi ela que gerou este flagelo para os homens, e ela saberé impedir novo ataque. Chegards, em seguida, a ilha de Trindcia onde pastam, em grande niimero, as yacas € as anafadas ovelhas de Hélio, sete manadas de vacas ¢ sete belos reba- nhos de ovelhas, cada um cont cingiienta eabegas. Estes animais nao procriam, nem morrem. Suas pastoras so deusas, ninfas de belas tran- cas, Faetusa ¢ Lampécia, que a divina Nera teve de Hélio Hipérion. A veneranda mie, depois de as dar a luz e ter eriado, fixou-as na longingua ilha de Trindcia, para ai habitarem e guardarem as ovelhas e as reluzen- tes vacas do pai. Se lhes niio fizeres mal, e cuidares apenas do teu regres- 80, podereis ainda arribar a {taca, ndio sem primeiro sofrerdes provacdes; ‘mas, Se as maltratares, entdo prevejo a perda de tua nau e de teus ho- mens; ¢, embora evites a morte, 36 tarde e em misero estado voltarés & terra patria apés haver perdido todos os companheiros. Assim falou, ¢ logo surgi a Aurora de éureo trono, Entéo a deusa ilustre se retirou para o interior da ilha; ¢ eu, yoltando A nau, exortei os companheiros a que embarcassem e soltassem. as amarras da popa. Sem tardar, subiram a bordo, sentaram-se nos bancos, cada um em seu posto, © com os remos levantavam a espuma do mar, Pela ré de nossa nau de proa soinibria, um’ vento propicio enfunava as velas, excelente compa- nheiro, enviado por Cizce de belas trangas, a deusa terrivel dotada de linguagem humana. Postos em ordem os aprestos, permaneciamos sen- tados pela nau: 0 vento e o piloto nos guiavam. Com o coracdo angustia- do, disse entao a meus companheitos: “Amigos, os ordculos, que me fo- ram revelados por Circe, ilustre entre as deusas, nao devem ser conheci- 160 dos apenas por um ou dois de née; vou, ois, comunicé-los a todos, para que saibais 0 que nos pode Perder, © © que nos pode preservar da Quere fatal. Ordena-nos ela que, antes de mais nada, evitemos ne enfeiticadoras Sereias, sua voz divinal e seu prado florida; - Mas atai-me com lacos bem apertados, de sorte que permanesa imével, de é, junto ae mastro, ao qual deverei estar preso por cordss. Be wat perlir e ordenar que me desligueis, apertai-me com maior nirero de Jagos”, (__ Enquanto eu falava, expondo tudo em pormenor a meus companhei- | feat vm ns ae nt om alo id Slr Porque um vento favordvel Ihe apressava a marcha, Mas, de Tepente, cessou o vento e sobreveio w calmaria, tendo uma divindade adormecidy SELE [Ace as ondas. Meus homens, tendo-se levantado, enrolaram as velas ¢ Tanga: fam-has ne pordo; em seguida, sentando-se novamente, faziam saltar a mios ¢ 0s pés, pernianecendo eu direito junto ao mastro, ao qual me ataram com cordas. Depois, sentados, continuaram ferindo com oe re. mos 0 alvacento mar. Quando jé estdvamos a disténcia de alguém, gri tando, se fazer ouvir, redobraram de velocidade, mas a nati que voloz Singrava sobre ais ondas ¢ perto das Sereias nio Ihes passou despercobi. Thado e conhecedor de muitas coisas, porque nés sabemos tudo quanto, na extensa Troade, Argivos e Troianos sofreram por vontade dos deuses, bem como o que acontece na nutricia terra”. Assim elas cantavam, e suas Fos que me soltassem; eles, porém, curvados sobre os retios, continua- vent reeiende: ‘mas, imediatamente, Perimedes ¢ Eurflocs, tendo-ve le- vantado, Prenderam-me com lagos mais numerosos e os apertaram com mais forge. Depois que passamos as Sereias e nio mais Ihes ouvimos a ‘voz nem canto, meus fidis companheiros retiraram a cera, com que Ihes tapara os ouvidos, ¢ libertaram-me das cordas. 161 (OBRAS-PRIMAS Apenas abandonamos a ilha, enxerguei imediatamente, através da cerracéio do ar, enormes vagalhées e percebi-lhes o fragor. Meus homens se assustaram; os remos voaram-Ihes das méos ¢ cairam & tona da égua com um ruido surdo; a nan ficou parada, porque eles ndo mais manobravait os afiados remos. E eu, correndo de ponta a ponta da embareagdo, abeirando-me de cada um dos companheiros, os exortava com brandas palavras: “Amigos, jé temos a experiéncia dos infortiinios. A desgraga, que sobre nés impende, ndo é decerto maior de que quando © Cielope nos encerrou, com toda a violéncia de sua forga, no fundo de seu antro. Contudo, mereé de minha valentia, de meus eonselhos ¢ pru- éneia, logramos fugir dali, © disso, penso eu, estais bem lembrados. Agora, tende animo, e obedecei todos a6 que vou dizer: permanecei son- tados nos bancos, fori o mar com os remos, enterrando-os profunda- mente na agua; talvez Zeus consinta em que evitemos este perigo € nos salvemos da morte. Para ti, piloto, esta 6a minha ordem; grava-a no espirito, pois que tens em mios o leme da eéncava nau: afasta-a daque- Ta cerragio ¢ daquelas vagas; passa rente ao outro eseolho, nao auceda que, gem dares por isso, ela snia da linha, ¢ nos precipite a todos na desgraca”, Assim falei, ¢, sem tardar, todos obedeceram a minhas ordens. Nada mais thes disse a reepeito da inevitével praga de Cila, porque talvez eles, de medo, cessassem de remar e se fossem ocultar no fundo do porto. Todavia esqueci-me da penosa recomendagao de Ciree. Proi- bira.me ela que tomasse qualquer de minhas armas; mas eu, tendo revestide minha gloriosa armadura ¢ empunhando duas compridas lan- gas, fui postar-me no castelo da proa, donde esperava descobrir Cila, a moradora do rochedo, tio logo ela se manifestasse, investindo contra meus companheiros, a fim de os perder. Por mais que meus olhos se fatigassem, explorando em todas aa diregdes 0 bramoso rochedo, no ‘consegui lobrigé-la. Navogavamos, pois, ao longo do estreito, lamentando-nos. De um lado acha-se Cila e, do outro, a famosa Caribdes que com terrivel fragor engole a agua salgada. Quando a vomita, todo o mar entra a agitar-se, efervescente, como @ &gua de um caldeirdo em cima de uma fogueira: a espuma jorra até o alto dos escalhos ¢ reeai sobre os mesmos. Depois, quando de nove engole a dgua salgada, vemo-la borbotar toda, na pro- fundidade aparecendo por baixo 0 fundo de negra areia. Meus eompa- wiheiros, de pavor, s¢ tomaram livides. 162 ¢ ODISSEIA Temerosos da morte, encaxvamos Caribdes, Nesse momento, Cila arrebatou do eéncavo da nau seis de meus homens, os melhores pela t forca de seus bragos. Ao desviar a vista para a ligeira nau e para os companheiros, 96 distingui os pés e as mos destes levantados no ar: gritavam, chamando por mim, com o coragao alanceado de angiistia, pro- | ferindo, uma dereadeira vez, o meu nome. Assim como, quando um pes- { cador, instalado na saliéncia de um rochedo, atira aos peixinhos a isca enganadora na ponta de comprida vara ¢ lana ao mar um chifre de boi dos campos,' vemos que ele puxa para terra a presa palpitante; assim meus companheiros se debatiam, igados de encontro as pedras, ¢ Cila, & porta de seu antro, os devorava, enquanto cles, gritando, ¢ vitimas de horrivel angistia, estendiam para mim os bragos. Este, o mais lancinante espeticulo por meus othos presenciado durante minha penosa peregri+ . nacio por sobre as aguas do mar. Quando conseguimos fugir dos escolhos, da terrivel Caribies ¢ de Cila, em breve aportamos a ilha admirdvel do deus, onde se ericontra- vam as bonitas vacas de larga fronte e as numerosus e anafadas ovelhas de Hélio Hipérion. Vogava ainda no alto-mar, em minha nau escura, quando comecei a ouvir o mugido das vacas, dentro do cercado, ¢ 0 balido: das ovelhas. Acudiram-me ao espirito as palavras do cego adivinho Tirésias de Tebas, ¢ as de Circe de Eéia; ambos me haviamn insistente- i mente recomendado que evitasse a ilha de Hélio, encantador dos mor- | tais. Com 0 coragao angustiado, disse entio aos companheiros: “Amigos, apesar de vossos sofrimentos, escutai minhas palavras; deixai que vos \ Tevele as profecias de Tirésias ¢ de Circe de Eéia, que tanto me recomen- Garam que evitasse a ilha de Hélio, encantador dos mortais, Predisse- Tamome que, af, nos aguardava horrorosa desgraga. Pelo que, conduzi a ' nau a distancia da ilha”. { Assim falei, e 0 cotacdo se Ihes confrangeu. Imediatamente Euriloco me respondeu em ternios arrogantes: “Ee cruel, Ulises! Tua forsa per- manece intacta, ¢ teus membros nao sentem a fadiga; na verdade, tens um arcabougo de ferro. Nao permites que teus companheiros? exaustos de cansago e de falta de sono, ponhatnos pé em terra, nesta ilha cercada pelas ondas, onde preparariamos uma sueulenta ceia; ao invés, nos orde- as que, através da noite que em breve sobrevird, prossigarnos errantes 1 Versé obéciara © suepeito, Pedemos interpreté-to da sequinte mancira; ot o chifre de boi formando um tubo a2o, protege a extremidade da linha soitra a mordadura do peize; ou 0 chilre, puxade rapidamente e grande wobre si mesme, atrai @peine com aeu brilho. 163 ODISSEEA pois desejavam salvar a vida,’ Quando, porém, as provisiies de bordo se esgotaram, a necessidade os obrigow a irem cagar por aqui ¢ por ali, tomande peixes, aves, tudo quanto Ihes vinha & mao, servindo-se de Tecurvos anzdis, porque a fome thes torturava ¢ estémago. Entao, diris gi-me para o interior da ilha, a fim de orar aos deuses, na esperanca de gue um deles me indicasse o caminho do regresso a patria. E quando, depois de ter andado através da ilha, me encontrei longe dos compa- nheiros, lavei as maos e, num local abrigado do vento, orei a todos os deuses, moradores do Olimpo, os quais derramaram sobre minhas pal- pebras um sono agradével. Entrementes Euriloco comecava a dar « seus companheiros este funesto conselho: “Camaradas, tendes passado por muitos sofrimentos. Todos os géneros de morte sto adliosos aos infe- lizes mortais; mas nada ha mais lamentavel do que perecer de fome & deste modo cumprir sou destino, Eia, pois! Apoderemo-nos das mais anafadas vacas de Hélio e sacrifiquemo-las aos Imortais, senhores do vasto Olimpo. E, se chegarmos a [taca, terra de nossos pais, imediata- ‘mente construiremos um suntuose santuério a Hélio Hipérion, no qual colocaremos muitas e magnificas estétuas. Mas, s¢ ele, ressentido con- tra nés por causa de suas vacas de chifres direitos, se propuser destruir nossa nat, © os deuses nisso consentirem, prefiro acabar de uma ver com a vida, tragado pela ondas, a deixar-me morrer de inanigdo por longo tempo numa ilha deserts”, Assim falou Euriloco, ¢ os demais companheiros 0 aplaudiam. Ime- diatamente trataram de ée apoderar das mais anafadas vacas de Hélio, ‘que andavam perto, pois que as belas vacas de larga fronte e de reluzen- te pélo pastavam a curta distancia da nau de proa sombria, Tendo-as cereado, dirigiram preces aos deuses, depois de terem colhido as folhas tenras de um catwalho de elevada copa, visto jd nfo possuirem cevada branea a bordo da nau de sélidas bordagens. Feitas as preces, e uma vez dogoladas e esfoladas as vacas, separaram as coxas, que recobriram to- talmente de gordura, o em cima delas colocaram pedagos de carne en- sangiientada. A falta de vinho puro para derramar sobre as bferendas queimadas, fizeram a libagio com dgua © assaram todas as visceras, Depois de queimadas as coxas ¢ comidas as entranhas, trincharam 0 resto em postas e enfiaram-nas em espetos. 1 Sentide foxado no fim da Rapséelin XLV. Outed isterpretam: “apesit de’ teu! descjo de sustentar a vida" 165 ‘OBRAS-PRIMAS Sé entio o agradavel sono voou de minhas pdlpebras. Corri para a nau ligeira ¢ para a praia do mar. Ao chegar junto da nau bojuda, eheiro penetrante da gordura queimada envolveu-me, Soltando profin- do gemido, orei, em altos brados, aos deuses imortais: “Zeus Pai, e de- mais deuses bem-aventurados ¢ sempiternos, para meu inforttinio me infundistes um sono inexordivel, pois que, em minha auséncia, meus com: panheiros maquinaram monstruose crime”, Sem demora,' Lampécia de longo véu se apresentou a Hélio Hipérion, @ anunciar que Ihe tinhamos matado as vacas. Ele, imediatamente, de soragdo irzitada, disse na assembléia dos Imortais: "Zeus Pai e demais deuses bem-aventurados ¢ sempiternos, castigai os companheiros de Ulisses, filho de: Laertes, pela insoléncia de terem matado minhas vaca: ue eram toda a minha alegria, em minha ascensio ao céu constelado, ou quando, em meu ocaso, retornava do eéu terra. Se ndo sofrerem o devido castigo pela morte de minhas vacas, baixarei a morada de Hades © brilharei para os mortos", Zeus, o Amontoador de nuvens, lhe volveu em resposta: “Hélio, continua brilhande entre os Imortais, ¢ para os mortais sobre # terra produtora de trigo. Quanto a esses homens, em breve fulminarei a sua nau ligeira com meu filgide raioe a desmantela- rei em pleno mar vinoso”. Isto eu o soube, mais tarde, da boca de Calipso de bela cabeleira, a quem, segundo ela afirmava, 0 mensageiro Hermes havia referido tais discursos, Quando desci até @ nau ligeira e ao mar, aproximando-me de eada uum de meus companheiros, os repreendi. Nao havia, porém, possibilida- des de encontrar remédio, porque as vacasj estavamn mortas. Os deuses manifestaram-nos imediatamente certos prodigios: as peles dos animais mortos punham-se a andar, as postas de carne nos espetos, tanto as as- sadas como as cruas, mugiam; dir-se-ia a vor das préprias vaeas. Em seguida, meus fi¢is companheiros banquetearam-se durante seis dias, pois haviam tomado as mais nédias vacas de Hélio. Mas quando Zeus, filho de Crono, enviou o sétime dia, amainou o tempestuoso Noto; e nés, tendo embarcado, erguemos o mastro, igamos as brancas velas e fizemo- nos ao largo, 1 Jé oF Alexandnnes sondenavain os versas que se seguern: se Hélio va e ouve tudo, nile precisa da monsageira Lampéecia. A otimologia da palavra "Lampécia” mostra que sig 166 a ee f ‘ODISSEIA Mal tinhamos deixads a ilha, e no se enxergando nenhuma outra terra, mas somente céu e Agua, © filho de Crono fez pairar, sobre a cénca- Ya nau, uma nuvem sombria, que obscureceu 0 mar. Nao singrou, por Tongo tempo, a embareagio, porque, sébito, se levanton 0 Zéfiro sibilan- ‘to, em borrascoso turbilhio: a violéncia do vento quebrou ambos os estais: do mastro, que caiu para tris, a0 mesmo tempo que todos os aparelhos foram jogados na senting. 0 mastro, ao tombar sobre a popa, fenden 0 ernie do pilote, fraturando-lhe os ossos da cabeca, e ele, como um mer- gulhador, caiu do castelo, ¢ sua alma generosa se evolou das ossadas. Ao. mesmo tempo, Zeus fez ribombar 0 travdo e despediu seu raio contra a hau, a qual volteou sobre si mesma e se encheu de vapores de enxofre, enquanto meus companheiros, arremessadds da nau escura, giravam em tomo dela sobre o dorso das ondas, semelhantes a gralhas marinhas: ¢ 0 deus os privou do regresso a patria, Eu ia e vinha de uma a outra extre- midade da nau, quando um golpe de mar desconjuntou as tébuas do cavername; a quilha desprendeu-se ¢ foi arrastada pela vaga; o mastro soltou-se e foi quebrar-se de encontro a quilha, Mas ao mastro estava presa uma correia de antena; dela me servi para atar um ao outro 0 maatro ea quilha, e sobre eles me sentei, deixando-me levar pelos ventos funestos, Eno o Zéfire cessou de soprar com a violéncia de tempestade; mas logo sobreveio © Note, causa de novas inquietagdes para meu coracao, pois que me faria passer ainda uma vez pela mortal Caribdes. Durante a hoite inteira voguei sem rumo ¢, ao nascer do sol, cheguei ao escolho de Cila © 4 terrivel Caribdes. Encontrava-se esta engolindo a fgua salgada do mar; mas eu, atirande-me & alta figueira, a ela me agarrei como um moreego, sem contudo lograr firmar solidamente os pés nem subir pelo tronco, porque as raizes estavam muito abaixo de mim ¢ os ramos, com: pridos e grossos, elevavam-se fora do meu aleance, cobrindo com sua sombra Caribdes, Conservei-me agarrado, até que o abismo vomitasse de novo mastro e quilha, que, enfim, reapareceram, com grande alegria minha, Na hora em que 0 juiz, depois de dirimir muitas quefelas entre litigantes, se levanta e sai da 4gora para ir cear, ¢ que vi os madeiros sairem fora de Caribdes. Desprendi-me entéo e fui cair com fragor no meio do estreito, junto das compridas traves; ¢, sentando-me em cima delas, comecei a remar com as maos. O Pai dos homens ¢ dos deuses nao permitiu que Cila me avistasse; do contritrio, nde teria escapado a brus- ca morte. 167 a OBRAS-PRIMAS Desde ali, durante nove dias, as ondas me arrastaram; ao décimo dia, os deuses me levaram as proximidades da itha Ogigia, onde habita Calipso de belas trancas, a terrivel deusa dotada de linguagem huina- na, que me dispensou sua amizade e cuidades. Mas por que retomar esta narrative? Jé ontem a contei, em teu paléeio, a tie a tua nobre esposa. Nao gosto de repetir a deserig&e de aventuras jé suficientemen- te conhecidas. A forga de um caminho varia segundo se percorra a pé ou se sobrevoe em aeroplano. Do mesmo modo, o poder de um texto é diferente quando se Ié que quando se copia. Quem voa, sé vé como o caminho vai deslizando pela paisagem e se desvela ante seus olhos, seguindo as leis do terreno. Tao so quem percorre a pé um caminho infere sua autoridade e descobre como nesse mesmo terreno, que para o aviador nao é mais que uma planicie extensa, o caminho, em cada uma de suas curvas, vai ordenando a extensao das lonjuras, miradores, espagos abertos e perspectivas, como a voz de mando de um oficial faz sair aos soldados de suas filas. Do mesmo modo, sé o texto copiado pode dar ordens a alma daquele que nele trabalha, enquanto que o simples leitor nunca conhecera as novas paisagens que, em seu ser interior, vai convocando o texto, esse caminho que atravessa sua cada vez mais densa selva interior: porque o leitor segue 0 movimento de sua mente no voo livre do sonho, enquanto o copista deixa que o texto Ihe dé ordens. A pratica chinesa de copiar livros constituia, entao, uma garantia incomparavel de cultura literaria, e a copia, uma chave para penetrar nos enigmas da China. Walter Benjamin: Diregao unica. OBRAS-PRIMAS sobre o mar brumoso, longe da ilha. Sao filhos das noites os impetuosos ventos, destruidores de naus. E como esquivar-nos a brusca morte, se de stibito nos avossa uma tempestade, ou do Note ou do Zéfiro de sopro furioso, destes ventos que, num épice, desmantelam uma embarcagdo, a despeito da vontade dos deuses soberanos? Precisamos de ceder & negra noite. Preparemos a ceia junto da ligeira nau. Ao romper da alva, de novo ernibarearemos e nos faremos ae largo”. Assim falou Euriloco, por entre 03 aplausos dos demais companhei ros. Contudo, eu, conhecendo os males que um deus meditava, ergui a voz ¢ Ihe dirigi estas palavras aladas: “Euriloco, forgais-me a concardar, or eu estar 86 contra todos. Mas prestai-me todos solene juramento: se encontrarmos uma manada de vacas ou um rebanho de ovelhas, nenhum de vés, por louca temeridade, mate uma vaca ou uma ovelha; contentai: vos com comer os viveres, que a imortal Cinee nos deu’. Assith falei, ¢ cles sem tardar juraram abster-se do rebanho divino, como eu ordenara. Depois de haverem jurado ¢ conchuido o juramento, fundeamos a bein eonstruida nau no porto dominado por altas margens, perto de uma fonte de agua doce; meus companheiros desembarearam € cuidadosamente foram preparando a ceia. Uma vez satisfeito o desejo de beber ¢ de comer, lembrando-se dos companheiros arrebatados da cénca. va nau e devorados por Cila, puseram-se a chorar. E, enquanto chora- vam, sobreveio o agradavel sono. Paasados dois tereos da noite, jé os astros declinavam para o ocaso, quando Zeus, amontoador de nuvens, suscitou um terrivel Noto, um fu- racao indizivel, e cobriu de nuvens, a um tempo, terra e mar. Entio a noite baixou do céu. E quando surgiu a madrugadora Aurora de réseos dedos, ancora- mos a nau, depois de a termos arrastado para o interior de uma cdncava gruta, na qual as ninfas fortmavam seus bélos coros de danca e vinkham tomar assento. Ent&o reuni minha gente ¢ disse estas palavras: “Ami- gos, hé em nossa nau ligeira viveres e bebida; portanto, n&o toquemos nas vaeas, ndo va sueeder-nos alguma desgraga. Terrivel 60 deks a quem estas vacas ¢ anafadas ovelhas pertencem: Hélio, que tudo vé ¢ tudo ouve", Assim falei, e 0 eoragdo generoso de meus homens se deixou per- suadir. Todo um més, soprou incessantemente 0 Noto, sem que nenhum outro vento ce levantasse além do Euro ¢ do Noto. Enquanto teus com- panheiros dispunham de viveres e de vinho tinto, pouparam as vacas, 164

Você também pode gostar