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Revisão Textual:
Roberta Pitta
Diagramação e Ilustração:
Franklin Tandy
Seleção de Contos:
Leandro Pedro
Elton Pinheiro
Ano 2021
1° edição
COVEIRO RAIMUNDO - Fernanda Munhão 4
SOPA DE PEDRA - Fernanda Munhão 7
A COBRA QUE MAMA - Juliana Costa 11
COMO A CUTIA PERDEU O RABO - Juliana Costa 14
MINHOCÃO DO PARI - Alicce Oliveira 18
O MACACO E A HORTA DA ONÇA - Glauter Barros 23
A VELHA MAIS VELHA
QUE O BARRACO VELHO - Marco Antônio Reis 28
O SAPO COM MEDO D’ÁGUA - Augusto Pessôa 32
O SAL - Augusto Pessôa 36
SANGUINÉL - Fabiolle Longhi 39
MARIAZINHA, VOU TE PEGAR! - Fabiolle Longhi 42
A LENDA DA BERNÚNCIA - Nana 45
A REDE DO ZÉ PEDRO - Kelly Faro 48
A LENDA DA VITÓRIA RÉGIA - Josi Oliveira 52
CURUPIRA, CORPO DE CRIANÇA - Ana Helena Lima 58
HISTÓRIA DO BOI BUMBÁ - Márcia Bittencourt 62
NOSSA TERRA - Ruth Marinho 67
A NOIVA DO TRAPICHE - Marisa Maia 73
NO NINHO DAS OROPÉNDULAS - Maria Cândida 77
NAS ASAS DA MATINTA - Thaiane Leal 81
COVEIRO RAIMUNDO
Fernanda Munhão
No tempo em que o mundo era mundo, havia o
coveiro Raimundo. Cadavérico, Raimundo cochilava no
cemitério:
Raimundo, Raimundo!
Levanta, vagabundo.
Raimundo, Raimundo!
Chegou mais um defunto.
Até as caveiras já o conheciam e instintivamente
repetiam:
Raimundo, Raimundo!
Levanta, vagabundo.
Raimundo, Raimundo!
Chegou mais um defunto.
Mas um belo dia, tudo aconteceu. Inevitavelmente,
Raimundo morreu:
Bem-vindo, bem-vindo!
Bem-vindo, Raimundo.
Bem-vindo, bem-vindo!
Chegaste ao nosso mundo.
E no cemitério, Raimundo enturmou-se e até pela sua
vizinha apaixonou-se. Era uma caveira alta e
desdentada, que por Raimundo ficou louca e
encantada.
Raimundo, Raimundo!
Seu olhar é tão profundo.
Raimundo, Raimundo!
Bem-vindo ao nosso mundo.
E com a tal caveira, que era uma gracinha, Raimundo
teve as suas caveirinhas.
- Mamãe, mamãe! Eu quero mamadeira!
E a mãe:
Não chateia, não chateia! 4
Não tenho peito, sou caveira.
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SOPA DE PEDRAS
Fernanda Munhão
Dia desses, um homem estava caminhando pela
estrada. Seus pés doíam muito, mas seu estômago doía
muito mais.
Ele caminhou por um minuto, por meia hora, por
doze horas, por um dia inteirinho. Já estava anoitecendo
e ele, enfim, procurava um lugar para descansar.
Foi aí que ele se deparou com uma porteira sem
cadeado. Achou que aquilo parecia um convite. E
entrou. Foi chegando e logo avistou uma casa, uma
porteira, uma mulher e uma espingarda. A mulher
estava toda brava por ele ter invadido o sítio. E ele logo
respondeu:
- Calma, Dona! Eu sou de paz! Eu só quero um
lugarzinho pra passar a noite.
- Tá certo, mas vou logo avisando que não vai se
fartar da minha comida. E se quiser dormir, tem que ser
lá fora com as vacas e as galinhas.
- Não se preocupe, senhora. Ali, junto com as
galinhas, tá bão demais. Mas, por acaso, a senhora tem
uma panela e um tantinho de água pra eu fazer a minha
tradicional sopa de pedra?
- Sopa de pedra?
- Sim, sopa de pedra. E não pode ser com qualquer
pedra. É essa pedra aqui! Essa pedra que o meu avô deu
pro meu pai, que deu pra mim e um dia eu darei pro meu
filho, com muito orgulho.
- Hummm... me deu até vontade de tomar.
- Mas por isso não, minha senhora! Vamo ali no
canto, eu acendo uma fogueira, coloco a sua panela
emprestada, um tantinho de água e a senhora, além de
comer, me vê preparando a sopa. E olhe que eu não sou
de preparar na frente de ninguém. É receita de família.
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A mulher, muito curiosa, topou a ideia. O homem
pegou a panela, acendeu a fogueira, colocou a água e
com todo o cuidado colocou a tal da pedra.
Experimentou e:
- Hummm... que vai ficar uma delícia. Mas parece que
tá faltando alguma coisa. Peraí... Já sei! Se tivesse um
pedacinho de cenoura, essa sopa ia ficar muito mais
gostosa. Por acaso a senhora tem...
Um pouquinho de cenoura...
Um pouquinho de cenoura...
Bota a pedra no meio,
E um pouquinho de cenoura.
A mulher, meio ressabiada, mas também curiosíssima
para experimentar a tal da sopa, foi logo dizendo:
- Eu tenho lá dentro! Vou buscar!
E trouxe a danada da cenoura. E ele pegou o seu
canivete, picou bem picadinho e provou.
-Hummm... que essa sopa vai ficar boa demais, sô!
Mas, peraí! Nessa sopa tá faltando é uma batata. Por
acaso a senhora tem...
Um pouquinho de batata...
Um pouquinho de batata...
Bota a cenoura no meio,
Bota a pedra no meio,
E um pouquinho de batata.
A mulher não pensou duas vezes e foi logo trazendo
as batatas. Ele descascou, enfiou as batatas e a sopa deu
aquela encorpada, um caldo grosso.
Ela, por sua vez, tinha feito cara de desconfiada, mas
a sua barriga começava a roncar com aquele perfume que
subia da sopa e resolveu continuar por ali.
-Hummm... tá quase boa. Mas tá faltando ainda um
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pedacinho de toucinho pra dar aquele gostinho de
carne. Aí sim, ia ficar show.
Um pouquinho de toucinho...
Um pouquinho de toucinho...
Bota a batata no meio,
Bota a cenoura no meio,
Bota a pedra no meio,
E um pouquinho de toucinho.
A mulher saiu correndo para buscar. E trouxe até uns
gominhos de calabresa.
- Agora sim! A sopa tá pronta!
A mulher trouxe os pratos, as colheres, a concha e ele
finalmente serviu a sopa. Mas, enquanto ele se deliciava
com o seu prato, ela se atentou para a pedra que estava
no fundo da panela.
- Mas, moço, e a pedra? O que é a que a gente faz com
a pedra?
- E a pedra, minha senhora, eu tiro da sopa, lavo bem
lavadinha e guardo no bolso. Que ainda vai servir pra
sopa de amanhã.
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Por: Juliana Costa
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MINHOCÃO DO PARI
Alicce Oliveira
Lá no caminho da chácara do seu Chico, na
comunidade do Pari, dois compadres se encontraram:
- Como vai compadre? Como tem passado? Como
vai a família, os filhos, a criação? Tudo bem por aqui na
comunidade?
- Tudo bem compadre. Por aqui tudo tranquilo!
O outro compadre disse meio em segredo:
- Compadre, espia aqui, o senhor já ouviu falar de
uma história, que se alguém pegar uma cabeça de porco
e for ali à barranca do rio Cuiabá e jogar a cabeça lá
dentro do poço, naquele rebojo d’água, o senhor vai ver
sair lá de dentro um bichãããããooo?!
- Ihhhh, compadre! Não acredito nisso não. Isso é
lenda, é causo que o povo inventa.
- Bom, se o senhor não acredita, o que eu posso fazer?
Já vou embora compadre até mais ver.
E foi assim que aconteceu, o compadre foi embora e
o outro compadre ficou pensando, caraminholando,
matutando. Mas esqueceu do causo e foi trabalhar como
sempre fazia lá na comunidade.
Passou uma semana... Duas semanas... E lá pela
terceira semana, a comunidade resolveu matar um
porco. Todos se reuniram para auxiliar no preparo do
suíno. O compadre que estava ali ajudando, quando
olhou para o lado, viu a cabeça do porco e lembrou-se da
história que seu compadre havia contado. É hoje que
vou tirar esta história a limpo, pensou ele.
O compadre olhou para um lado, olhou para outro e
não viu ninguém por perto. Pegou a cabeça do porco e
foi até a barranca do rio, onde havia o poço do tal do
rebojo d’água. Chegando lá, ergueu e jogou a cabeça do
porco no poço. 18
De repente, o compadre olha e solta uma gargalhada e
diz para si mesmo:
- Hahahaha! Tá vendo? Não aconteceu nada. Sabia
que o meu compadre estava dizendo lorota, conversa
para boi dormir. Quer saber? Vou voltar para casa que eu
tenho mais o que fazer.
Dizendo isso, o compadre voltou para casa. Como já
era tarde e o povo da comunidade dormia cedo
antigamente, todos foram dormir e o compadre com sua
família também.
Quando foi lá pelas tantas horas da madrugada o
compadre acorda com um barulho lá no quintal.
- Mulher! Ô mulher, acorda! Tá ouvindo um barulho
no quintal?
- Ah, marido! Não estou ouvindo nada não. Você está
tendo é pesadelo.
- Não mulher é um barulho estranho. Espia. Escuta!!!
O que será?
- E eu vou saber? Por que você não vai lá ver o que é?
Você não é o valentão aqui da região? Vai lá, homem!
- É, sou corajoso e vou mesmo.
O compadre levantou-se, pegou o lampião e foi bem
devagar. Abriu a porta e viu que era noite de lua cheia.
Percebeu que o barulho vinha do lado do rio Cuiabá. O
compadre foi em direção ao rio. Quando chegou perto,
ele olhou para o alto e viu que as copas das árvores
estavam todas balançando. O compadre, já meio
assustado, foi se aproximando e quando ele olhou o rio,
percebeu que as águas estavam aumentando,
transbordando.
O compadre, já meio com medo, foi se afastando.
Quando ele abaixou o lampião para iluminar a barranca
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do rio, perto do poço, viu que a terra estava rachando.
O compadre, desesperado, saiu correndo, chegou à casa,
bateu a mão na porta e chamou todo mundo:
- Mulher do céu! Vamos embora minha gente. Corre!
Corre que o rio está transbordando. Depressa! Pega as
crianças, o cachorro, gato, galinha, papagaio, chama os
vizinhos. Vamos embora que o mundo está acabando.
As pessoas correram assustadas. Foi a maior gritaria e
confusão na comunidade. As pessoas foram para a
estrada e depois entraram em uma mata. Ficaram lá até
o dia amanhecer. Quando voltaram viram que não havia
mais casas nem árvores. A terra havia rachado ao meio e
engolido tudo que encontrou pela frente. De repente
ouviram um grito:
- Pai! Mãe! Socorrooooooooooooooooo...
- Mulher do céu, é nosso filho que está gritando lá na
barranca do rio Cuiabá! Vamos lá, minha gente!
Depressa.
Quando chegaram perto do menino, ele estava
paralisado e apontava o dedo para o chão. Quando
foram ver, era a cabeça do porco só no osso. De repente,
ouviram das profundezas da terra o barulho estranho
novamente. O povo assustado foi pegando o que sobrou
de suas casas e saiu caminhando pela estrada.
Dizem que foi neste dia, exatamente nesse dia que
surgiu a lenda do minhocão do pari. E foi assim que esta
história aconteceu, rio acima, rio abaixo e quem gostou,
que conte mais quatro.
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Por: Alicce Oliveira
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O MACACO E A HORTA DA ONÇA
Glauter Barros
Era uma vez uma onça. E essa onça tinha uma casa na
mata. Todo dia a onça cuidava muito bem da casa e,
também, de sua horta no fundo do quintal.
Um certo dia, a onça acordou com uma preguiça
danada. Deitou-se em sua rede na varanda e começou a
balançar. A preguiça era tanta que a onça foi ficando por
ali por vários e vários dias. Não se levantava para nada,
nem para cuidar da horta.
E sem a onça cuidar da horta, logo nasceram e
espalharam-se entre as verduras, urtigas, que são plantas
que dão uma coceira danada quando alguém encosta.
Foi aí que a onça ficou com mais preguiça ainda. Ter
que capinar a horta com aquelas urtigas? Nem morta, ela
pensou.
Como ela não queria trabalhar, ela prometeu dar uma
vaca como prêmio para quem tirasse as urtigas da horta.
Ela pediu ao papagaio, o rei da oratória, que
anunciasse o desafio por toda a mata. Sim, era um
desafio, pois a onça determinou que o bicho que
tentasse ganhar a vaca, teria que capinar sem se coçar.
A bicharada fez fila na frente da casa da onça. O
primeiro da fila era o compadre jabuti, que foi falando:
- Comadre Onça, vim tirar as urtigas da sua horta e
ganhar a vaca que a senhora prometeu.
A onça falou bocejando:
- Uaaaaahhhhh!!! Pode começar o serviço, Jabuti.
Sabe a condição, né? Não pode se coçar!
O jabuti pegou a enxada e começou a capinar. Estava
até animado, mas foi só encostar um pouquinho na
urtiga que sentiu a coceira. Começou a se contorcer.
Virava de um lado para outro sem parar. Mas a urtiga
tanto pinicava que ele não suportou e... Se coçou!
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A onça que lá da rede observava tudo, falou:
- Não vale, Jabuti! Você se coçou. Tá fora!
A segunda a se candidatar foi a capivara. Botou a
enxada nas costas e foi para o meio da horta. Mas
coitada dela, em menos de cinco minutos ela já não
estava aguentando de tanta coceira. A onça não deixou
por menos, falando com deboche:
- Mas já, Dona Capivara? Desistiu tão cedo, que pena!
Achei que a senhora estava indo tão bem. Tá fora!
O terceiro animal a tentar ganhar a vaca foi o
porco-espinho. Coitado dele, foi o que mais sofreu. Em
pouco tempo de trabalho ele começou a se coçar e
acabou se furando todo, com os próprios espinhos. E a
onça só na rede, rindo até não poder mais.
- Huá... huá... huá... huá... Perdeu, Porco-espinho. Tá
fora!
Um a um, os bichos da mata tentaram faturar aquele
prêmio. Pela horta da onça passaram o grilo, o galo e até
o jacaré... E a onça só falando: “Tá fora!”.
Um dia apareceu o macaco, chegando como quem
não quer nada, com cara de malandro, e perguntou:
- Dona Onça, o trato ainda está de pé? Se eu capinar
todas as urtigas da sua horta, a senhora vai me dar
aquela bela vaquinha?
- Sim, Macaco. – Falou a onça. – Mas nenhum animal
conseguiu até agora. Você acha que esse seu couro fino
vai aguentar?
- Eu confio no meu taco, Dona Onça!
O macaco então pegou uma boa enxada, foi na
direção da horta e viu bem satisfeito que parte do serviço
já tinha sido adiantada pelos outros animais. Ainda
faltava mais da metade, mas ele estava confiante em
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ganhar o prêmio prometido.
Começou a trabalhar, mas não demorou muito e já
estava incomodado com as pinicadas. Só que ele não
queria perder a vaca e ficou só pensando uma forma de
enganar a onça.
Aí ele teve uma ideia. Chamou a onça e perguntou:
- Dona Onça, essa vaca que eu vou ganhar, ela é
malhada?
A onça, sem entender nada, respondeu:
- Uaaahhh! É sim, Macaco.
- E uma das manchas dela é aqui?
E botou o dedo na perna, aproveitando para dar uma
coçadinha. A onça não percebeu nada e disse:
- Ela tem uma mancha na perna sim, mas por quê?
- Por nada, por nada.
O macaco voltou ao serviço. Logo depois, para dar
mais uma coçadinha, o macaco chamou de novo a onça
e perguntou:
- Dona Onça, a vaca tem também uma mancha bem
grande aqui? – apontando para a barriga.
- Não, não... É mais para cima.
- Aqui?
- Para baixo!
- Aqui?
- Mais para esquerda, Macaco!
- Ali?
- No pescoço!
- Nas costas?
- Estúpido! Mais para cima!
- Mais pra baixo?
- Atrás!
- Onde?
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- Na paaataaa!!!
De coçadinha em coçadinha o macaco conseguiu dar
fim em todas as urtigas que haviam se espalhado pela
horta. E assim, faturou o prêmio: ganhou a vaca!
O macaco foi embora, montado na vaca e rindo da
peça que pregou na onça.
E ela está até hoje pensando como é que o danado do
macaco tirou todas as urtigas da horta sem se coçar.
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A VELHA MAIS VELHA QUE
BARRACO VELHO
Marco Antônio Reis
Em uma cidade do interior, não muito longe daqui,
havia um homem que tinha acabado de se mudar. Um
homem nem bonito, nem feio. Nem velho, nem novo.
Nem rico, nem pobre. Nem gordo, nem magro.
Este homem tinha se mudado para uma cidade
estranha, para um bairro estranho, para uma rua
estranha que se chamava “rachafora”, mais conhecida
como “meteopé”. Na rua “rachafora” parecia que quem
morava, já tinha ido embora, não se via nem alma
penada.
Só num barraco velho era que se via uma velha, mais
velha que o barraco. Essa velha, mais velha que o
barraco velho, estava sempre na janela com um sorriso
velho, sem dente e com um nariz… com um nariz que
parecia um bico de tão pontudo. A velha mais velha que
o barraco velho ficava observando a rua o dia inteiro e
assim permaneceu, até que anoiteceu.
A noite chegou, o homem nem gordo nem magro já
estava cansado de tanta mudança que arrumou. Então
pegou o bolo que tinha, comeu e se deitou. E antes de
cochilar, ouviu três batidas na porta. Quando abriu, era
a velha mais velha que o barraco velho, que lhe disse:
- Sou Matinta Pereira, Pereira Matinta. Me dê um
bolo que estou faminta!
E ele respondeu:
- Bolo que é bom, acabou de acabar. Volte amanhã
que lhe dou Ingá.
A velha, mais velha que o barraco velho, foi embora.
O homem, nem bonito, nem feio ficou ofendido. Onde
já se viu pedir comida assim, à meia-noite? No dia
seguinte, continuou a arrumar as mudanças até dar
meia-noite, quando ouviu novamente três batidas na
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porta:
- Sou Matinta Pereira, Pereira Matinta. Cê não me deu
bolo, me dê o ingá!
E ele respondeu:
- Ingá que é bom, só faz pra sujar. Volte amanhã que
lhe dou peroá.
O homem ficou incomodado achando a velha mais
velha que o barraco velho muito velha e, realmente, lhe
daria o peroá. Mas naquela loucura de mudança, o
esqueceu fora da geladeira. À meia-noite, três batidas e a
velha falou, ainda com a porta fechada:
- Sou Matinta Pereira, Pereira Matinta. Cê não me deu
bolo, não deu um ingá, só resta agora me dar peroá.
Ressentido, o homem disse-lhe:
- Peroá que é bom, deixei estragar. Volte amanhã que
lhe dou… caviar!
O homem já assustado ofereceu caviar para tentar
agradar, mas quando foi pegar, acabou lembrando que
havia esquecido o caviar na casa de sua mãe. Quando
pensou que não, envolvido com a mudança, a velha
socou a porta três vezes mais forte e gritou:
- Sou Matinta Pereira, Pereira Matinta. Cê não me deu
bolo, nem deu um ingá, nem quando implorei, tu me
deu peroá. Te peço agora, me dê caviar.
O homem chorando, sem abrir a porta respondeu:
- Caviar que é bom, só ano que vem. Volte amanhã
que lhe dou o que tem.
O homem então preparou um banquete para a velha,
pensou que a velha deveria estar mesmo com fome por
ficar insistindo tanto. Aguardou a chegada da velha mais
velha que o barraco velho, que bateu três vezes na porta,
mas quando abriu…
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- Sou Matinta Pereira, Pereira Matinta. Cê não me deu
bolo, não deu um ingá, nem quando implorei, tu me
deu o peroá. Voltei outro dia nem tinha caviar. Não vem
que não tem, não vou aceitar. Só resta a ti, pra eu
devorar!
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O SAPO COM MEDO D’ÁGUA
Augusto Pessôa
Dizia-se por aí, que havia um menino muito levado.
Mas muito levado mesmo. O menino era uma
verdadeira peste. Vivia aprontando.
Um dia, a mãe dele estava arrumando a casa e o
menino só aprontando. Até que ela não aguentou:
- Ai, meu filho, sai! Vai brincar lá fora! Tenho tanta
coisa para arrumar! Sai! Vai lá pra fora!
O menino saiu, mas saiu querendo fazer uma
maldade. A casa dele ficava à beira de um grande lago. O
menino ficou andando por ali, procurando alguma coisa
para aprontar. Até que viu um sapo descansando bem na
beira do lago. Era um sapo grande e gordo. O menino
correu e pegou aquele bicho. Ficou com ele entre as
mãos e disse:
- Sapo feio! Sapo horroroso! Eu vou fazer uma
maldade contigo, sapo medonho!
E o pobre do bicho ficou pensando num jeito de se
livrar daquilo. E o garoto continuava:
- O que eu vou fazer, sapo? O que eu vou fazer? – até
que ele teve uma ideia. – Já sei! Já sei, sapo feio! Sapo
horroroso! Eu vou te furar todo com um espinho!
E o pobre do sapo desesperado não sabia como se
livrar daquilo:
- Ai, meu Deus, o que eu faço? O que eu faço? – e o
sapo também teve uma ideia. – Já sei!
O bicho olhou bem na cara do menino e começou a
rir enquanto dizia:
- Vai me furar com espinho? Hahahahahahaha! Que
delícia! Vou ficar todo furadinho! Que maravilha!
Hahahahahahaha!
O menino não gostou:
- Esse sapo gosta de ser furado! Assim não tem graça...
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Tenho que pensar em outra coisa... Já sei! Eu vou
enterrar você, sapo feio! Sapo medonho! Vou enterrar
você todinho!
O sapo olhou para o menino e começou a rir:
- Vai me enterrar? Hahahahahahaha! Que delícia!
Que delícia! A terra caindo em cima de mim!
Hahahahahahaha! Adoro! Adoro!
O menino ficou chateado:
- Esse sapo gosta de ser enterrado! Assim não tem
graça! Tenho que pensar em outra coisa... Já sei! Eu vou
queimar você, sapo feio! Vou queimar você todo, sapo
horroroso!
O sapo olhou para o menino e começou a rir mais
uma vez:
- Vai me queimar? Hahahahahahaha! Que delícia!
Adoro! O fogo queimando minha pele!
Hahahahahahaha! Muito bom! Adoro!
O menino ficou mais chateado:
- Mas esse sapo gosta de tudo! Assim não dá! Tenho
que pensar em uma coisa bem horrível! – o garoto olhou
para o lago enorme e teve uma ideia. – Já sei, sapo feio!
Vou jogar você no lago, sapo horroroso!
O sapo olhou para o menino com cara de desespero e
começou a implorar:
- Não! Por favor! No lago não! Pelo amor de Deus! No
lago não!
O menino ficou feliz:
- Ah! Sapo danado! Vou jogar você no lago! Eu vou
jogar!
O garoto esticou bem o braço e jogou o sapo com
toda força. E o bicho foi rodando e voando para o lago.
Caiu bem no meio e foi lá no fundo. Depois subiu, ficou
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bem na superfície, olhou para o menino e deu uma
gargalhada:
- Hahahahahahaha! Você me jogou no lago!
Hahahahahahaha! Você me jogou no lago!
O sapo pode ser feio, medonho e horroroso, mas
burro ele não é. E acabou a história.
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O SAL
Augusto Pessôa
Um rei, que tinha três filhas, perguntou a cada uma
delas, como gostavam dele. A mais velha respondeu:
- Quero mais a meu pai, do que a luz do Sol.
Respondeu a do meio:
- Gosto mais de meu pai, do que de mim.
A mais moça respondeu:
- Quero tanto a meu pai, como a comida quer o sal.
O rei não gostou da resposta da mais nova. Achou
que a filha não gostava dele. E sem pensar na bobagem
que estava fazendo a expulsou do palácio.
Ela foi muito triste por esse mundo. Caminhou
bastante, até que chegou no palácio de um jovem rei.
Querendo trabalhar, ela se ofereceu para ser cozinheira.
E assim foi feito. Todo mundo ficou encantado. Além de
cozinhar muito bem, a nova cozinheira do palácio era
linda que dava gosto de ver.
Um dia, durante o jantar, foi oferecido um pastel
feito pela menina para o jovem rei. O monarca ficou
encantado por aquela iguaria tão gostosa. Lambendo os
beiços o jovem disse:
- Quem fez essa maravilha? Preciso conhecer que
mãos mágicas criaram essa delícia!
E os criados apresentaram a cozinheira ao jovem rei
que ficou encantado por sua beleza. Os dois
conversaram bastante e o monarca se encantou com a
doçura e inteligência da moça. De encantado, o rei ficou
apaixonado. Sem se conter pediu a moça em casamento.
A jovem também gostou do monarca, que além de
bonito era muito gentil. Mas ela teve uma ideia e disse
ao rei:
- Aceito me casar, mas tenho três pedidos para fazer.
O jovem rei estranhou e quis saber os pedidos de sua
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amada. E ela disse:
- Primeiro, todos os reis de outros reinos devem ser
convidados para a festa. Segundo, eu mesma farei o
banquete. E terceiro, só aparecerei na festa ao final do
banquete.
E assim foi combinado. Para a festa foram convidados
todos os reis de outros reinos, inclusive o rei que era pai
da menina. A princesa cozinhou o jantar, mas de
propósito, na comida do rei, seu pai, não botou sal.
Durante o jantar, todos comiam com vontade.
Menos um convidado, o rei, pai da princesa. Por fim, o
dono da casa perguntou o motivo daquele rei não
comer. E ele respondeu:
- É porque a comida não tem sal. Não tem sabor!
Nesse momento a princesa veio da cozinha vestida de
noiva e explicou:
- Isso é para o senhor entender a minha resposta,
minha vida sem o senhor é como comida sem sal. Não
tem sabor!
O rei reconheceu que era sua filha e pediu-lhe muitas
desculpas. Pai e filha fizeram as pazes. A Princesa
casou-se com o jovem rei e eles viveram muito felizes.
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SANGUINÉL
Fabiolle Longhi
Minha avó contava que existia um homenzinho
vermelho, da cabeça aos pés, que pegava e sumia com as
crianças. Levava para o mato e ninguém as encontrava,
até que ele quisesse ou que fosse a hora certa.
Os adultos poderiam até passar pelo mesmo lugar
onde elas estavam escondidas, mas não as enxergam, a
menos que ele quisesse.
Ele não machuca as crianças, porém, ninguém sabe o
que faz, se brinca com elas ou promete alguma coisa.
Tem feições de uma pessoa, mas é um ser pequeno e
todo vermelho, com um chapéu também vermelho.
Dizem que se alimenta do sangue do pescoço dos
cavalos. Monta neles e os faz correr a noite inteira. Pela
manhã, quando as pessoas os encontram estão fracos e
cansados, com a crina cheia de tranças e com sangue
escorrendo pelo pescoço.
Somente as crianças enxergam o Sanguinél. Ele
costuma ficar nas estradas, no meio ao mato.
Esperando...
Os pais previnem as crianças para não irem para o
mato sozinhas.
Algumas crianças são encontradas à beira de
precipícios, outras no meio da estrada. Nem todas sabem
dizer o que aconteceu durante o tempo que estiveram
com o Sanguinél.
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Por: Fabiolle Longhi
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MARIAZINHA, VOU TE PEGAR!
Fabiolle Longhi
Toda criança adora ouvir histórias de assombração,
isso é um fato quase que comprovado! Bom, pelo menos
é o que dizem.
Lá em casa não era diferente, quando reunia os
irmãos, na calada da noite, eu, a mais nova entre sete,
ficava apavorada e radiante com todas as histórias que
contavam. Uma mais assustadora que a outra.
Meus irmãos, por serem bem mais velhos do que eu,
já conheciam e sabiam contar várias histórias que um
dia ouviram dos meus pais, tios, primos e avós.
Morávamos em uma casa de madeira, lá longe,
depois que passava a ponte do rio, seguia mais um
pouco. Quando chegava na árvore tombada, virava à
esquerda e logo se via o portão. Era uma casa grande,
mas bem simples, com poucos móveis e muito espaço
para brincar.
Em volta havia muitas árvores que, à noite, me
davam um medo danado. Quando ventava então,
parecia que elas se transformavam em monstros gigantes
balançando seus braços de um lado para o outro.
Quando chovia eu corria para a cama dos meus pais
ou de uma das minhas irmãs. Eu fechava bem os olhos e
enfiava a cabeça embaixo das cobertas.
E foi em uma noite assim, chuvosa e com muitos
raios, que eu conheci a história da “Mariazinha, vou te
pegar”.
Sempre gostei de histórias de assombração. Gostava
do arrepio que sentia atrás do pescoço só de ouvir. Mas
essa em especial me fazia perder o sono e suar frio.
Meu irmão começou a contá-la com um ar de
suspense, falando baixo, quase sussurrando. Todos se
aproximaram e fizeram silêncio para ouvir:
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- Mariazinha, tô abrindo a porta do cemitério...
Mariazinha, tô atravessando a rua... Mariazinha, tô
passando a ponte... Mariazinha, cheguei na árvore...
Mariazinha, tô chegando perto da tua casa...
Mariazinha, abri o portão... Mariazinha, tô entrando...
Mariazinha vou te pegar... Mariazinha, TE PEGUEI!
Vocês devem imaginar que na última frase meu corpo
já estava completamente gelado e paralisado de medo
que nem conseguia gritar.
Meus irmãos riam, pegavam suas cobertas e
apagavam as luzes para dormir. Eu logo corria para cama
de algum deles.
Essa história me assombrava por dias, não colocava o
pé fora de casa sozinha por nada nesse mundo. Mesmo
não me chamando “Mariazinha” eu morria de medo de
encontrar com essa tal assombração saída do cemitério,
que queria me pegar!
43
A LENDA DA BERNÚNCIA
Nana
Dizem que essa história aconteceu lá pelas bandas de
Itajaí, em Santa Catarina. Meu avô, que era
caminhoneiro e viajava pelo Brasil todo, contava essa
história para os netos toda vez que fazíamos alguma
má-criação.
Havia um fazendeiro muito rico e festeiro que vivia
recebendo as guardas de folia na sua porta. Ele dizia que
em sua fazenda morava um bicho que parecia um
dragão. Mas também parecia um lagarto. Mas também
parecia um jacaré... e era enorme!!! Gigante!!! Tinha uma
boca com dentes muito afiados... uns noventa dentes,
mais ou menos.
Esse bicho era conhecido como Bernúncia e aparecia
sempre que uma criança fazia má-criação, respondia a
mãe ou desrespeitava o pai. Quando essa criança saía, a
Bernúncia estava na porta da casa esperando a criança e
de repente... NHAC! Engolia a criança sem nem mastigar
“procaso” de ter que vomitar de volta o malcriado
quando aprendesse a lição.
Dizem que existe até uma música que as mães
cantavam pra chamar a Bernúncia para os filhos:
A Bernúncia é bicho bravo e eu te digo por que é.
A Bernúncia é bicho bravo e eu te digo por que é.
Olê, olê, olê, olê ,olá
Arreda do caminho que a Bernúncia vai pegar.
As crianças da região tinham muito medo e preferiam
se comportar, ao ter que dar de cara com aquele
bicho-papão na porta de casa. E quando a Bernúncia
engolia uma criança, ela ficava presa na barriga dela até
aprender a respeitar pai e mãe. E só depois de se acalmar
que ela vomitava a criança de volta, mas antes ela tinha
que falar:
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- Pode passar dona Bernúncia? Olê, olê, olá.
E meu avô falou que, mesmo ela sendo de longe,
pegava menino malcriado de qualquer lugar, bastava a
mãe cantar.
Eu que nunca quis arriscar!
Por: Nana
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A REDE DO ZÉ PEDRO
Kelly Faro
Zé Pedro era conhecido no Vilarejo onde morava
como um caboclo macho. Não tinha medo de nada que
pudesse surgir em sua frente, visse o que visse.
Costumava repetir pelos cantos:
- Matinta que me enfrentar pelo mato vai levar uma
surra até dizer já chega!
Sua esposa o aconselhava:
- Zé Pedro, Zé Pedro... Não brinque com essas coisas!
– fazendo o sinal da cruz dizia – Deus nos defende do
mal, mas não podemos aborrecer os seres da mata! Ah,
Zé... Tu não sabes o que te espera. Não sejas “prosista
homi”.
Zé nem ligava. Continuava a falar, esbravejar e
maldizer. Até que um dia foi pescar. Já passava de
meia-noite quando ouviu um choro de criança pequena.
O choro foi ficando mais forte e intenso e com ele veio
um assobio fraco: fiiiiti. Logo, ele percebeu que se tratava
de coisa amaldiçoada, como costumava falar ao se referir
aos encantados. Zé Pedro se aquietou no seu casco, até
que a Matinta passou voando por cima dele, com uma
criança chorando no colo, agarrada a ela. Zé Pedro,
movido pelo seu ego de caboclo macho, gritou:
- Vai dar de mamar pru teu filho sua mardita! Tua
criança tá com fome! Vai ensinar o que presta pro teu
filho, amardiçoada!
Ele ouviu mais um assobio: fiiiiiti. E dessa vez ele
sentiu um arrepio. Um tremor tomou conta do seu
corpo. O choro da criança já não estava tão alto, na
verdade parecia que já havia se acalmado. A Matinta
seguiu seu caminho, cumprindo seu fado e Zé Pedro
voltou para sua casa. Ele não estava se sentindo muito
bem, uma 48
sensação de assombro e febre o consumiam.
Ao chegar a sua casa não conseguiu entrar, pois já
estava muito mal. Deitou-se ali mesmo, numa rede velha
que ficava na varanda da sua casinha de madeira. Já
estava queimando de febre, quando ouviu passos se
aproximando de sua rede. Pensava ser sua esposa, que
percebendo sua falta no quarto poderia ter ido até a
varanda. Mas não era. Zé não conseguia se mexer e nem
falar, estava assombrado. Até que os passos cessaram e
uma mulher tenebrosa parou rente a rede de Zé Pedro.
Era a Matinta. Ela sentou-se com ele e começou a
perguntar-lhe:
- Quem tá cum fome hein? Quem não cuida do filho
hein?
E lambuzava-o de leite materno. Revirava-o e
soprava-lhe por todos os orifícios, como se quisesse lhe
dar uma lição, dizendo com voz baixa e tenebrosa:
- Cuida da sua vida Zé Pedro, do meu fado cuido eu!
E jogando-o da rede, começou a embalar-se sozinha,
cantando:
- A rede do Zé Pedro é boa pra mim. A rede do Zé
Pedro é boa assim.
Pela manhã, sua esposa o achou quase morto, cheio
de leite materno, exalando um pitiú terrível. Ela logo
pensou, foi amaldiçoado! Chamou a benzedeira para
tentar reanimar o marido. E depois de muitas rezas e
orações a benzedeira constatou que era um caso sem
jeito. Zé Pedro faleceu três dias depois, definhando em
sua rede, sem poder falar nem fazer suas necessidades
fisiológicas, porque Matinta soprou seus orifícios. Todos
do vilarejo viram e velaram seu corpo.
49
Por: Kelly Faro
50
A LENDA DA VITÓRIA RÉGIA
Josi Oliveira
Dizem que, há muito tempo, em uma tribo
Tupi-Guarani, os indígenas acreditavam que a lua, na
verdade, era o Deus Jaci.
Naiá era uma jovem que não era a mais linda da sua
aldeia. Não! Não era! Havia outras jovens extremamente
bonitas e que, ao olhá-las qualquer ficaria admirado com
a beleza de seus corpos e cabelos. Elas até pareciam uma
obra de arte.
Mas Naiá... Ah! Naiá... Fisicamente, Naiá tinha uma
beleza comum. Seus cabelos eram pretos feito o pelo do
macaco aranha, seus olhos negros feito a noite,
sobressaíam na sua pele cor de caramelo. Naiá era o sol e
a lua. Era a ventania e a brisa. Era a correnteza e o
remanso. Era o céu e a terra. Era o quente e o frio.
Naiá era vaidosa e enfeitava seus cabelos com flores
caídas no chão, porque se negava a arrancá-las da
natureza. E quando descalça, caminhava com seus pés
sujinhos de terra. Tornava-se tão naturalmente bela, que
até as flores lhe abriam caminho, só para admirar o
jeitinho que só ela tinha de caminhar.
Ela banhava-se nos rios, nos igarapés e o sol e o vento
faziam questão de secar-lhe o corpo com raios e brisa
suave.
Suas orelhas eram ornamentadas com brincos de
penas azuis, amarelas, vermelhas e alaranjadas, porque
galos de serra, sanhaçus, araras e xexéus gentilmente lhe
davam.
E seu sorriso? Ah! Era arrebatador! E ela sorria sempre!
Não havia quem não se alegrasse na sua presença. E
quando falava, todos ficavam atentos, pareciam até que
estavam ouvindo e admirando o uirapuru cantar.
52
A menina moça era fascinada pela lua. Desde bebê
embalada na rede ou nos braços de sua mãe, seus
olhinhos ficavam fascinados com o brilho da lua e
formas que vez ou outra mudavam.
O cacique tupi guarani, bom contador de histórias
que era, um dia perguntou a Naiá:
- Naiá, você sabe como surgiram as estrelas?
- Não. – respondeu Naiá.
Então ele contou:
- Contam que lá do céu, há milhares de anos, Jaci
observava, todas as noites, as indígenas aqui da terra e
ficava inebriado com tanta beleza. Sentindo-se sozinho
na imensidão do céu, resolveu descer até a terra, escolher
a mais linda e transformá-la em estrela para viver com
ele lá no firmamento. A cada primeira noite de lua cheia,
Jaci descia à Terra e levava consigo a sua predileta do
momento. As indígenas, depois que ouviram a história,
ficaram morrendo de medo! E das suas ocas já nem
saíam em noite de lua cheia. Não queriam, de jeito
algum, viver com Jaci lá no céu. Menos uma, Naiá!
Naiá depois de ouvir a história decidiu seu destino!
Seria ela uma estrela brilhante do céu. Se já era fascinada
pela lua, agora estava apaixonada.
Ela contemplava a lua todas as noites, fosse qual fosse
a sua fase. Mas em noite de lua cheia... Quando ela
notava que o sol já ia dar lugar para a lua no céu, ela com
seus passinhos ligeiros, corria para banhar-se no igarapé.
Banhada e penteada, se perfumava e saía a caminhar
para ser vista e escolhida por Jaci para ser estrela do céu.
A vida de Naiá estava toda nas mãos da lua. Cada
segundo, cada minuto, cada hora, cada dia e cada noite
era para Jaci que ela vivia. 53
Mas tudo em vão! Jaci não a notava. Jaci não a
desejava. Jaci não descia à terra para buscá-la. Jaci a
ignorava e desprezava.
Durante o dia, os bravos guerreiros da tribo que
enxergavam Naiá linda e interessante, a cortejavam e
propunham casamento, insistiam e disputavam seu
amor. Mas Naiá os desprezava, porque ela só queria ser
estrela lá do céu. Ser uma estrela de Jaci!
Mesmo sentindo-se desprezada, ela não desistia. A
cada primeira lua cheia, se fazia mais bonita e atraente
para Jaci notá-la. Os minutos, as horas, os dias, os meses,
os anos se passaram e Jaci não descia à terra. Naiá, que
agora já era mulher adulta, foi ficando triste,
melancólica, decepcionada, desesperançosa. Pouco
comia, pouco dormia e não conseguia enxergar beleza
em nada.
Mesmo com seu corpo e alma doentes, ela cumpria
seu ritual nas noites de lua cheia, porque a esperança do
coração de uma mulher demora a morrer.
Nas noites de amargura doída, ela subia num
açaizeiro de frutas roxas, roxas como sua alma. E de lá,
invejosa que se sentia, contemplava aquelas estrelas que
tiveram a sorte que nunca foi dela.
Ela sofria muito, muito mesmo. Tinha noites que
nem com o sono ela se acertava! Ela engolia suas
lágrimas e implorava ao Deus do sono que lhe
emprestasse um pouquinho do sono dele para que
pudesse descansar.
Numa noite, fraca que estava, seu corpo sucumbiu e
ela desmaiada caiu à beira de um igarapé. Todos os seres
daquela mata sabiam do sonho de Naiá. Então, os
vagalumes vendo Naiá ali adormecida, se fizeram de
54
para seu cabelo enfeitar e brilhar. Eles pensaram, quem
sabe Jaci acredita que as estrelas fugiram do céu, desce
para buscá-las e leva Naiá junto?
Naiá despertou com seus cabelos brilhando. Não
podia acreditar no que estava vendo... Não podia ser! Ela
tinha esperado tanto! O seu coração parecia que ia saltar
pela boca. Sentiu um frio na barriga, suas pernas
amoleceram, suas mãos tremiam.
Era ele! Sim! Sim! Jaci! Jaci estava ali aos seus pés! A
lua estava ali e tinha vindo buscá-la.
Ainda sonolenta, mas tomada de paixão e alegria,
entrou nas águas para abraçar e beijar seu único amor!
O que Naiá não percebeu foi que as águas claras e
mansas do igarapé apenas refletiam a lua, que do céu
nunca saiu.
Naiá se afogou e para a superfície não voltou.
Jaci neste momento, apenas neste momento,
percebeu a existência de Naiá. Enquanto ela se debatia
naquelas águas, ele não percebeu a beleza física do corpo
de Naiá, mas reconheceu a pureza e verdade do amor
que ela sentia por ele.
Naquela noite, naquele igarapé, Jaci e todos os seres
da mata souberam que o destino de Naiá não estava no
céu. Estava nas águas que refletiam o clarão do luar.
Jaci decidiu transformar Naiá em uma estrela! Mas
não uma estrela brilhante do céu. Ele a transformou em
flor estrela das águas! A grande flor da Amazônia: a
VITÓRIA-RÉGIA.
Naiá é a estrela das águas da Amazônia. É tão linda
quanto às estrelas do céu, mas com um perfume
inconfundível de flor que só abre suas pétalas ao luar.
Contaram-me, mas não sei se é verdade...
55
Contaram-me que Jaci, todas as noites, até hoje, se
reflete nas águas do igarapé para ficar juntinho da sua
vitória régia Naiá.
56
CURUPIRA, CORPO DE CRIANÇA
Ana Helena Lima
Quando a mata ainda era verde e os rios corriam,
costurando todo o chão das florestas, em cristalinas
águas, nasceu do ventre da terra, de pele preta, matéria
orgânica, curumim, curumirim: Curupira, corpo de
criança! Sua mãe sussurrou-lhe por entre os cabelos de
folhas, aquelas vermelhas, caídas. Seria protetor,
disse-lhe a terra, ainda úmida pelo orvalho do
amanhecer, do amanhecer de uma nova vida: protetor
da natureza.
Com a ajuda do vento que cantava por ali, brincando
de esconder com as copas e os troncos das árvores, a mãe
terra dividiu a proteção que havia gerado, ventando-a
pelos quatro cantos desse planeta. E assim, Curupira,
criança preta, já não era um, eram muitos, eram todos. E
em cada dobrinha do tempo, em cada remanso, em cada
enseada, acomodou-se. Para crescer forte, destemido,
trilhar caminho, fazer jornada.
Curupira andava então, por onde quer que se pudesse
imaginar. Em toda floresta, olhando bem, por entre os
bichos, podia-se encontrá-lo. Assobiando como os
pássaros, saltando como os macacos, olhando longe,
com seu olhar felino, atento, olhos de menino, de
menina, olhos de criança.
Vento de mudança
Curupira vigiava o coração de todos, pois natureza
não era só floresta, natureza estava em todo lugar.
E então, para indicar nova direção, seus pés virou
para trás. Caminhou caminho oposto, caminho de volta
para casa. E com os passos assim virados, acabava
confundindo os que vinham para fazer o mal, que,
perdidos entre as suas razões, começavam a se
questionar, para onde mesmo que eu devo andar?
58
Dos que matavam os animais sem ter fome; dos que
taxavam e poluíam as águas, gerando a sede; dos que
queimavam e derrubavam, causando destruição,
arrancando sombras, tirando o fôlego; desses todos, e de
muitos outros, Curupira fazia-se saber. Marcava-lhes a
alma com assobio ancestral. É preciso caminhar
caminho novo. É preciso caminhar caminho novo. É
preciso caminhar por um caminho novo.
Mulher, homem, criança, é tudo ser vivente,
igualzinho borboleta, jabuti, fruto e flor.
Somos natureza!
Todos nós.
E Curupira, corpo de criança, sempre soube disso.
Curupira já sabia e hoje veio nos contar: somos
natureza viva, a cantar e a dançar!
59
Por: Ana Helena Lima
60
HISTÓRIA DO BOI BUMBÁ
Márcia Bittencourt
Dizia o povo mais antigo, que mulher buchuda, que
está esperando bebê, quando tem vontade de comer
uma coisa e não come, o bebê nasce com a cara daquela
coisa que ela não comeu.
Pois é, aconteceu numa fazenda no nordeste
brasileiro, e dizem que foi verdade o que vou contar
agora.
O dono dessa fazenda era muito rico, tinha muito
boi, muita vaca. A fazenda era enorme. Mas daquele
tanto de boi que ele tinha um deles era especial, era o boi
preferido, o Boi Bumbá. O fazendeiro gostava tanto
desse boi que mandou fazer para ele uma capa toda
bordada, enfeitada com pedras brilhantes, flores, rendas
e fitas. E ainda contratou um empregado só para cuidar
dele, o Mateus. Mateus tinha uma esposa, que se
chamava Catirina, que estava buchuda, esperando o
primeiro filho do casal.
Todos os dias, Catirina ia lá aonde Mateus estava
cuidando do boizinho do patrão para dizer que queria
comer alguma coisa meio estranha. Tinha dia que
Catirina queria comer galinha ao molho pardo com doce
de leite. Outro dia queria bucho de cabrito com
jerimum. E, todo dia, era algo diferente. Mateus largava
tudo que estava fazendo e ia providenciar o que Catirina
tinha vontade de comer. Deus que me livre do filho deles
nascer com cara de comida, né? Até que um dia Catirina
chegou dizendo que queria comer língua de boi. Ah,
Mateus achou fácil de resolver. Afinal o que não faltava
naquela fazenda era boi, não é mesmo? Até que, Catirina
completou que queria comer a língua do boizinho do
patrão, o Boi Bumbá.
– Vixe em cruz! – disse Mateus. – Se eu tirar a língua
62
do boizinho do patrão ele me esfola vivo!
Mateus ficou arretado demais da conta! Se não desse
a língua do boizinho pra Catirina comer o filho deles
nasceria com cara de língua. Filho com cara de língua
Mateus não queria, de forma nenhuma. Alguma coisa
ele tinha que fazer. E foi aí que Mateus tomou uma
decisão: tiraria a língua do boizinho para Catirina comer.
Se você pensa que Mateus era bobo, lhe digo, era
não... Mateus teve uma ideia brilhante, pegaria no curral
outro boi, igualzinho ao boizinho do patrão, daria um
belo banho nele, colocaria a capa bordada, os enfeites
nos chifres e tudo mais e o patrão nem iria desconfiar. E
assim ele fez. Catirina comeu a língua do boizinho, que
estava uma delícia, Mateus ficou feliz, não iria ter um
filho com cara de língua e tudo estava na mais perfeita
ordem.
O patrão, todos os dias acordava cedo e a primeira
coisa que fazia era ver o seu boizinho. E assim ele fez no
dia seguinte. Chegando lá, viu que o boizinho estava
diferente, o olho do boi não brilhava como o olho do
seu boizinho, o chifre tinha algo esquisito, o rabo... Ah,
o rabo... não era o rabo do boizinho!
– Mateeeeeeus! – gritou o patrão.
Mateus tremia do dedão do pé até o último fio do cabelo.
O patrão estava muito irado. E deu para Mateus um
ultimato. Que trouxesse até o dia seguinte o seu
boizinho de volta.
E agora, o que fazer? Ficou pensando Mateus. Só Deus
para ajudá-lo nesse momento. Foi quando lembrou de
Deus que Mateus pensou também em chamar o padre
para fazer umas rezas. Quem sabe assim o boizinho
viveria outra vez? Ele aproveitou chamou também o 63
pastor, o pajé, o pai de santo... E foi tanta reza, tanta
pajelança e oração que de repente o boizinho começou a
se mexer, e foi se levantando, ficando em pé. O boizinho
do patrão ficou vivinho da Silva de novo!
O patrão ficou tão feliz que até perdoou Mateus pelo
ocorrido e ainda fez uma festa enorme em comemoração
ao renascimento do boizinho. Convidou o povo de toda
a redondeza para cantarem e dançarem. Dizem que a
festança durou muitos dias e o patrão nunca mais se
separou do seu boizinho. E, até hoje, sempre nos meses
de junho ou julho a festa do Boi Bumbá se repete Brasil
afora.
Assim me contaram essa história, que eu contei para
você. Se é verdade eu não sei, mas sei que foi assim.
Ah! O filho de Mateus? Nasceu! Lindo!
E não nasceu com cara de língua não.
64
Por: Márcia Bittencourt
65
NOSSA TERRA
Ruth Marinho
Em um lugar da África, uma tribo chamada Woyo se
despede do seu lugar, pois aquela região já está seca e
infrutífera. Era uma manhã de sol forte, a tribo junta
todas as suas forças e pertences e vai embora. Eles
caminhavam de frente para a sua aldeia, porém, de
costas para seu próximo destino.
Quando o filho mais moço da linhagem dos
Ma-Ngoyo, corre até um pequeno embondeiro e ali
começa a cavar. Todos param e o observam. Sua mãe, em
um gesto inicial de tentar chamá-lo, logo é interrompida
por sua avó, sendo ela, entre todos, a única que não
apresenta o semblante de questionamento.
Duane, o filho mais moço da linhagem dos
Ma-Ngoyo, arranca o seu adorno do pescoço, um colar
que seu pai ensinou-lhe a fazer antes de sua morte. Foi
nesse colar que o pai de Duane havia colocado muitas
histórias de sua tribo, histórias que havia aprendido
também com seu pai, o rei Ma-Ngolo, avô de Duane. O
colar continha outros mistérios. Duane ainda não tinha
o entendimento sobre eles, mas os sentia,
principalmente quando sua tribo ritualizava, dançava e
representava, cultuando seus antepassados e
agradecendo à fertilidade da terra. Eram esses os
momentos em que Duane se entregava àquela dança, e
não sabia explicar como sentia e o que sentia em seu
corpo. Ouvia vozes, gestos, ações. A sua consciência
queria explicar a todos o que acontecia, mas era o seu
corpo todo que o explicava. E quanto mais aquilo
acontecia, mais ele se entregava àquele misto de dança e
representação, sempre envolto por um êxtase, que se
acalentava todas as vezes que seu avô, o Ma-Ngolo,
também entrava na roda e, com ele, dançava. 67
Duane, ao enterrar o colar, lembrou-se de tudo isso e
saudou aquela terra que havia dado tudo que pôde a sua
tribo, ali era onde estavam as suas raízes. A tribo partiu
dando as costas para seu destino e olhando fixamente
para a pequena planta de embondeiro. Duane juntou-se
à tribo, que em um só gesto, virou-se. E caminharam
todos, em um mesmo ritmo e respiração, agora de frente
para o próximo destino; com incertezas, mas com força
e determinação, seguiram.
Quando o tempo havia cumprido sua promessa,
quando a terra que era fértil e havia se tornado infértil, a
mesma terra passou a ser fértil novamente. Uma tribo
que vinha de outras terras, logo sentiu o cheiro de terra
fértil. E achou o lugar que a tribo Woyo havia habitado.
E o povo, recém chegado, pediu licença aos deuses da
natureza para ali habitar. A permissão dos deuses chegou
em forma de chuva. Então, os mais velhos se reuniram
com a nova rainha, Nzola, e decidiram por ali ficar,
entendendo as boas-vindas.
Essa tribo estava cansada. Havia acabado de perder
uma guerra na batalha pelas terras em que habitava e,
por isso, eles estavam ali conquistando outro espaço. A
tribo estava triste por ter deixado suas origens, em outro
lugar, e por ter perdido muitas vidas durante a guerra.
Esses povos foram, portanto, bem recebidos pela
natureza, mas não a agradeciam.
Com o passar do tempo, as folhas começaram a cair
das árvores; as frutas e animais, pareciam se esconder;
ninguém entendia o que estava acontecendo. Os mais
velhos alertavam a rainha que aquilo não era um bom
sinal. A rainha começou a se preocupar, mas não sabia
bem o que fazer. Ela seguiu seu próprio coração, coisa 68
que sempre fazia, mesmo sendo uma rainha muito
jovem.
Na noite de reunião da tribo, sentia-se perdida. A
reunião foi em silêncio: não se tinha palavras com som,
só com olhar. Terminou pouco antes do nascer do sol. A
rainha estava com o olhar distante, buscando em seus
pensamentos um sentido. Olhava fixamente para a terra,
onde estava um fruto do embondeiro.
Perdendo-se em seu próprio olhar, distanciando-se e
perdendo-se de si, por um instante teve um misto de
sonho e visão. Foi até o barro e começou a manuseá-lo,
até que, aquele barro molhado com suas lágrimas, deu
forma a um boneco, um boneco de barro. Quando
terminou, todos estavam em silêncio. Ao construir
aquele boneco, ela lembrou de tudo o que fizeram em
suas terras de origem: plantavam, cuidavam da terra,
dançavam e festejavam sempre. E ali, já não faziam mais.
Então, se levantou, pegou o boneco que acabou de
construir e foi plantar a semente da fruta que acabara de
comer. E todos a seguiram, confiantes de sua sabedoria.
No entanto, a rainha estava sendo levada por seu
próprio coração e não tinha certeza do que iria fazer.
Começou a cavar e plantar a semente e regou a terra com
as suas lágrimas. Naquele momento, outras pessoas já
estavam fazendo a mesma coisa. Com parte da terra
molhada por suas lágrimas, a rainha cobriu seu próprio
corpo. E o seu povo fez o mesmo, se banhavam com a
argila. Já não se sabia o que era gente e o que era boneco
de argila.
Já não se sabia o que era gente e o que era boneco de
argila. E foi em um monte daquela terra que a rainha,
Nzola pegou em um colar que estava misturado 69
com a lama e, nesse momento, todos ficaram
apreensivos. O coração da rainha disparou quando
sentiu sua força. Era o colar de Duane, da linhagem dos
Ma-Ngoyo, da tribo Woyo, que habitou aquelas terras. A
rainha olhou fixamente para o colar. Parecendo que já o
conhecia, levada por um impulso, pendurou o colar no
pescoço do boneco que havia construído.
Naquele momento, o boneco ganhou força e vida. O
boneco de argila tinha consciência e queria explicar a
todos o que acontecia, mas era o seu corpo todo que
explicava. Quanto mais isso acontecia, mais ele se
entregava àquele misto de dança e representação. E
começou a saudar e a agradecer à natureza, como se
estivesse ensinando àquela tribo. A rainha e todos da
tribo, lembraram-se de como plantavam, colhiam e
agradeciam. E os que não sabiam começaram a aprender;
e os que não se lembravam, começaram a se recordar.
Um grande encontro entre o que faziam junto com a
rainha e o que se recordavam com o boneco. Depois que
o boneco de argila ganhou vida e se juntou àquela tribo,
tudo mudou.
70
Por: Ruth Marinho
75
NO NINHO DAS OROPÉNDULAS
Maria Cândida
Há muito tempo, as águas doces do Rio Amazonas
serpenteiam pela América, tecendo rastros de histórias.
Contam que dois irmãos machiguenga, que viviam
na floresta amazônica peruana, eram valentes e muito,
muito bonitos. Estavam sempre juntos.
Numa manhã clara de sol, um dos irmãos propôs:
- Vamos pegar ovos de oropendola? Quero presentear
minha amada, com os mais bonitos e brilhantes que
encontrar.
Seu irmão sorriu, mas sentiu uma corrente de água
amarga descer-lhe lentamente pela garganta, inundando
seu coração de inveja e ciúme.
Ele estava apaixonado por sua cunhada, sem que o
irmão percebesse. E pensava no dia em que a teria nos
braços, só para ele.
Durante toda a caminhada, as unhas-de-gato,
verdejantes, pareciam agarrar-lhe a pele, como se
quisessem impedi-lo de prosseguir.
Assim que avistaram as árvores cheias de ninhos
dependurados, prepararam a escada feita de fibras.
Enquanto seu irmão subia com destreza, seduzido pela
beleza dos ovinhos que daria a sua amada, ele disfarçava,
subindo vagarosamente.
Quando viu o irmão no galho mais alto, com
agilidade, saltou para o galho mais próximo e retirou a
escada, deixando o irmão sozinho naquela lonjura
enorme do chão, naquela lonjura dolorida do laço
familiar.
Como não conseguia descer da árvore, passou dias e
noites com fome e frio. Às vezes, até se esquecia do seu
infortúnio, observando o ir e vir das oropendolas aos
ninhos, para alimentar seus filhotes. Então, esforçava-se
77
para não as espantar e nem para apoderar-se daqueles
ovos que aquietariam sua fome. O fio de sua vida, não
demoraria, estava por findar-se.
Foi então, que uma oropendola bem jovem, sentiu
pena dele e disse:
- Vem, comigo! Eu te levo para o meu ninho.
O machiguenga sentiu muita vergonha de si mesmo,
porque o ninho para o qual a oropendola o convidara,
era um dos quais planejara tirar os ovos.
Muito amedrontado e com o coração pulsando de
agradecimento, saltou nos galhos, com muito cuidado,
guiado pelo pássaro. Ao chegarem, o indígena tocou no
ninho e quando deu por si, já estava lá dentro. Sentiu-se
tão confortável que nunca mais quis sair.
Transformou-se em ave oropendola de linda
coloração amarela. E até hoje, vive com as aves cantando
alegremente na Floresta Mãe, alimentando-se das
riquezas do maior rio do mundo.
Essa lenda navegou de água em água e quem a ouviu,
me contou aqui no Brasil.
78
Por: Maria Cândida
79
NAS ASAS DA MATINTA
Thaiane Leal
Reza a lenda que nas florestas da Amazônia existe um
pássaro mal assombrado, com um assobio agudo e
estridente. Esse pássaro é conhecido como a temida
Matinta Perera. Contam que Matinta Perera é um
pássaro que se transforma em velha ou em bruxa e que
ela gosta de ficar assobiando no telhado das casas das
pessoas. Dizem também que, se um dia, a Matinta
resolver assombrar a sua casa, é preciso colocar, na porta,
um presente para ela. No dia seguinte ela aparece
transformada em velha para buscar o presente e só assim
para de te assombrar. Lá nas terras da Amazônia, eu ouvi
muitas histórias arrepiantes de Matinta, mas escolhi
uma para contar.
Era uma vez um moço violeiro muito talentoso. Tudo
quanto era festejo, forró, carimbó, ele era chamado para
tocar. Quando ele chegava, pegava sua viola e começava
a tocar. Ninguém ficava parado e o povo todo começava
a dançar. E tinha mais, esse moço era muito bonito.
Havia muitos corações apaixonados por ele. Mas, o
violeiro não se interessava por ninguém. Ele só gostava
de tocar a sua viola.
Um dia, ele foi convidado para tocar em um carimbó
em uma cidade do outro lado do rio. Horas antes do
carimbó, ele se arrumou, se perfumou e foi embora. Mas,
quando chegou na esquina, lembrou-se que esquecera a
coisa mais importante: a sua viola! Voltou correndo para
buscá-la, mas isso fez com que o violeiro se atrasasse e
perdesse o último barco que atravessava o rio. Ele ficou
ali parado na beira do rio sem saber o que fazer, quando
de repente... ele ouviu um assobio fino! O moço ficou
todo arrepiado, porque sabia que esse era o canto da
Matinta Perera. Ele olhou para um lado, olhou para o
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outro e quando olhou para atrás... ele viu! Ele viu uma
mulher vindo na sua direção. E pela primeira vez na sua
vida, o violeiro sentiu o seu coração batendo mais
rápido. Ele ficou encantando com aquela mulher. Ela,
então, olhou dentro dos olhos dele e disse:
- Se você quiser, posso te ajudar a atravessar o rio.
Você quer?
E o violeiro disse:
- Sim, eu quero!
Nesse momento a mulher começou a rodar e a se
transformar. Os seus pés e mãos transformaram-se em
garras. O vestido transformou-se em penas e a boca virou
um bico. Ela transformou-se em Matinta Perera. O
violeiro subiu nas suas costas e os dois atravessaram o
rio. Quando chegou do outro lado, Matinta pousou e o
violeiro desceu. Quando ele foi agradecer, Matinta,
misteriosamente, desapareceu na noite escura. O
violeiro finalmente conseguiu chegar no carimbó e
tocou sua viola a noite inteira. E enquanto tocava e o
povo dançava, ele só pensava na Matinta Perera! O dia
raiou, o carimbó acabou e ele só pensava na Matinta
Perera.
Passaram-se dias, semanas, um mês e o violeiro só
pensava na Matinta Perera. Ele estava apaixonado pela
Matinta Perera. Um dia, com o peito apertado de
saudade, ele foi até a beira do rio, exatamente no lugar
onde conheceu a Matinta. E começou a tocar uma
canção que fez para ela. Não demorou muito, ele ouviu
novamente aquele assobio. Era ela! Matinta pousou, o
violeiro novamente subiu nas suas costas e os dois foram
embora pela noite escura.
Depois desse dia, nunca mais ninguém viu o violeiro
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de novo. Ele desapareceu e alguns até dizem que ele se
casou com Matinta Perera. Mas tem gente que diz que é
mentira. Tem gente que diz que é invenção. Mas tem
gente que jura que viu e guarda essa história no coração.
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Seleção e Curadoria dos Textos
Elton Pinheiro
Leandro Pedro
Ilustração e Design:
Franklin Tandy