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CENAS PARA ADIAR O FIM DO MUNDO

Vídeo 1 – Prólogo

(
É o fim.
O mundo está acabando.
O mundo está acabando para os pobres,
para os negros, para as mulheres, para a
cultura, para as pessoas LGBTQIA+, para
todo mundo.
É possível parar o fim em todo o mundo?
Para os indígenas o mundo já acabou faz
tempo, e o pouco que sobrou dele ainda
padece.
Enfim.
É um fim econômico, político, jurídico,
cultural, midiático, social, ambiental.
Tudo.
É um fim disfarçado de normalidade.

1
A cura não foi descoberta e todas as
mazelas continuam a destruir o mundo na
mesma velocidade.
São cenas, são vozes, são gritos
desesperados que ainda tentam adiar o fim
do mundo.
Esta peça é um ensaio sobre os medos e os
fins
)

CENA 1
(
as pessoas mascaradas falam em vozes
abafadas
)

AS PESSOAS MASCARADAS
1) Gian - Nós temos saudades do antes. Nós temos vontade de sair fora.
Nós gostamos de ir ao centro da cidade. Somos gente que toca. Que
vaga em São Paulo e divaga em pessoas.

2) Carlos - Nós gostamos de abraço. Nós somos ansiosos. Na verdade,


nós nos apresentamos hoje como um mergulho em nós mesmos. Tem
dias que nós ficamos mais calmos.

3) Ana - Nós temos saudades de ver outras pessoas. Nós queremos ver as
diferenças. Nós sentimos saudade de estar vivendo. Nós não queremos

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nos ver chateados. Nós não podemos fazer teatro. Nós adoramos poder
ligar, abraçar e sair.

4) Gi - Nós gostamos de reclamar quando algo não é certo. Nós achamos a


quarentena nada de bom. Depois da quarentena, nós iremos nos
apresentar como pessoas bem mais calmas, como a Margarida.

5) Guilherme - Nós nos sentimos na obrigação de sermos responsáveis


conosco, com a nossa vida. Sem falar que é de grande valor o querer
aprender para sermos pessoas melhores na prática de qualquer coisa.

6) Juno - Nós achamos que saber viver é ter calma para todas as coisas.
Tudo tem seu tempo e agradecer o momento em que estamos, em que
vivemos, é fantástico. Nós amamos viver a vida com paixão, paz e
liberdade.

7) Letícia - Nós acreditamos que o pobre é sempre o que mais sofre. Se


nós fôssemos mais calmos, poderíamos ter evitado o game over da
consciência. Queremos dizer mais “eu te amo”, se beijar mais e não
brigar.

8) Mateus - Até saudade dos vizinhos nós começamos a ter. Nós


pensamos que tudo o que passou, todos os rolês, bebidas, lanches e
livros que lemos, foram poucos. Queremos mais rolês gratuitos, mais
amassos, menos brigas, mais paciência e compreensão com aquela
atendente.

9) Diniz - Nós não nos preocupamos em emagrecer ou engordar. Sobre


brigas não queremos nem falar. Falar mal de alguém não é mais a
nossa prioridade. Nós queremos estar logo em um churrasco, com uma
vacina e uma “breja” na mão.

10) Victor - Nós sentimos falta de ir em um restaurante. De correr pra pegar


a lotação lotada. Nós estamos tentando resistir a tudo. Nós queremos
conversar com pessoas diferentes. Nós sentimos saudades de ver os
amigos e os sobrinhos.

11) Wendel - Saudades de ir na Paulista. Nós queremos ter um olhar


diferente e sensível, para finalmente tirar a máscara e ser livre. Nós
ainda estamos escondidos atrás de máscaras.

12) Gabi - Sentimos saudades de passar um tempo na natureza, perto do


mar. Nós somos pessoas muito conectadas com quem a gente ama e
dividimos o tempo com elas. Os “crushes”. Os amigos. A família. Nós
temos ansiedade para que as máscaras não sejam mais necessárias.

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13) Gian - Nós somos pessoas que não veem a hora de poder se abraçar
depois de uma peça de teatro. Nós somos pessoas que amamos comer
Beirute na Paulista estando com a família.

14) Ana - A pandemia é um inferno. Nós deveríamos ter aproveitado as


coisas mais simples da vida. Nós teríamos aproveitado mais rápido.

ANUNCIAR:
CENA 2 – Sonhar é Possível? - Thiago

CENA 2
(
sonhar é possível?
)

CARLOS – Boa noite! Meu nome é Carlos Araújo, sou formado em teatro pelo
SENAC e em cinema pela American Film Institute que fica aqui em Los
Angeles, onde atualmente trabalho como ator. No momento também sou diretor
da minha própria escola de formação de atores, que fica na cidade de
Sacramento também aqui na Califórnia, onde ofertamos cursos de
interpretação para TV e cinema para jovens atores.

CORTA! No feriado, um jovem de 19 anos foi executado a tiros no interior de


São Paulo. (Gaby)

VICTOR – Boa noite! Meu nome é Victor Aquino, sou graduado em Música pela
UNESP e Artes cênicas pela USP. Trabalho como ator desde os meus 9 anos
de idade e já realizei 39 comerciais, 5 filmes e 10 séries. Além disso, sou
instrumentista, toco flauta, piano, violão, violino e saxofone. Recentemente
lancei 2 álbuns de estúdio, onde ambos venceram na categoria “Álbum do Ano”
no Grammy.

CORTA! Ano passado, um menino de 10 anos morreu no quintal de casa


durante operação da polícia. (Gi)
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ANA – Boa noite! Meu nome é Ana Araújo e eu sou formada em Artes Cênicas
pela Escola de Arte Dramática da USP. Tenho especialização em dramaturgia.
Minhas peças teatrais foram encenadas por toda a América Latina. Também
escrevo livros de suspense e fantasia, inclusive recebi o Nobel da Literatura e o
Prêmio Camões no ano passado. Além disso, também sou conhecida por ser
comentarista do Campeonato Brasileiro Feminino de Futebol.

CORTA! Ontem, uma jovem de 18 anos foi executada pela polícia militar com
um tiro na cabeça. (Gian)

WENDEL – Boa noite! Meu nome é Wendel Fernandes, tenho 37 anos e sou
graduado em Jornalismo pela Cásper Líbero, e pós-graduado em Jornalismo
Esportivo e Multimídias pela FGV. Atuo há 8 anos como repórter esportivo, e
tive o privilégio de realizar a cobertura da Copa do Mundo de 2018 aqui na
Rússia onde eu trabalho atualmente como stringer, representando o Brasil nas
coberturas esportivas.

CORTA! No final de semana, um jovem de 17 anos foi morto por uma bala
“perdida” no portão de casa. (Ana)

GIOVANNA – Boa noite! Meu nome é Giovana Gabrielle, sou atriz profissional,
formada pelo Senac e pela Universidade de São Paulo. Também sou
dubladora, cantora, humorista, palhaça e artista visual. Eu dublei diversas
animações da PIXAR e participei como atriz de diversas produções na Netflix e
na Globo Play. Eu tenho um canal no YouTube com mais de 1 milhão de
seguidores, onde eu faço humor e palhaçaria feminista.

CORTA! No começo do ano, uma jovem morreu estrangulada no litoral de São


Paulo. (Victor)

GUILHERME – Boa noite! Meu nome é Vanna. Sou uma Drag Queen
conhecida mundialmente. Vocês já devem ter me visto por aí, pois eu sou a
atual campeã da última edição do reality show RuPaul’s Drag Race. Tenho
mais de 20 milhões de seguidores nas redes sociais e atualmente sou
embaixadora da Mac Brasil e defensora dos direitos LGBTQIA+. Sou formada
em Artes Cênicas pela USP, pelo Senac e tenho pós graduação em direção
teatral.

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CORTA! Semana passada, uma travesti foi encontrada morta, boiando no rio
Tietê. (Juno)

GABY – Boa noite! Meu nome é Gabriely Maria. Eu sou formada em teatro pelo
Senac São Miguel Paulista e pela Escola de Arte Dramática da USP. Eu
também possuo licenciatura em teatro e atualmente realizo um projeto de
consciência corporal através da dança e do teatro, para crianças e jovens da
periferia da cidade. Tenho pós-graduação em comunicação das artes do corpo
pela PUC. Eu já atuei com a Fernanda Montenegro e já fiz parte do corpo de
baile da Rihanna e da Beyoncé.

(Os atores e atrizes realizam coreografia da música “Sweet Dreams”, da


Beyoncé).

Vídeo 2 – Coreografia Beyoncé

CENA 3
(
aqueles que viram o início do fim
)

HOMEM POBRE PRETO PERIFÉRICO – Eu num tô acreditando até agora. Eu


só tinha ido até ali, na padaria da esquina. Quando eu tava voltando pra casa,
escuto a sirene de uma viatura vindo na minha direção. Um dos policiais está
com os olhos fixos na sacola de pão. O que você tem aí, vagabundo? Pão, eu
respondi. Mentira! Abre essa sacola aí! Disse o policial com voz de quem não
gosta de gente como eu. Senhor, eu juro que é só pão! Gritei. Você tá surdo?
Gritou! Abre essa sacola, agora! Senhor, eu preciso ir. Aé? Vamos ver se você
não vai abrir essa sacola agora! O policial que tava no banco do passageiro
saiu da viatura com a mão direita na arma pendurada em seu cinto. Eu
comecei a correr, a correr, corria muito no sentido contrário. Eles corriam atrás
de mim com toda a fúria que se pode ter. Mas eu que já tava acostumado a
correr. De Polícia sem saber porquê. Não tinha medo. Só tinha raiva, e eu corri,
corri e quando eu não aguentava mais correr, eu cheguei numa praça! Numa
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pracinha. Meus olhos demoraram a se acostumar com aquela visão, sabe igual
quando você acaba de apagar a luz, não demora pra acostumar? Mas quando
eu me dei conta, já era costume, vi de longe uma montanha de corpos, pretos,
como eu. Quando olhei em volta, não tinha mais nada, só os corpos pretos,
periféricos, promissores, apodrecendo... Quando eu cheguei mais perto eu
reconheci que aqueles corpos caídos ali eram de Marcos Paulo Oliveira dos
Santos, Dennys Guilherme dos Santos Franca, Denys Henrique Quirino da
Silva, Gustavo Cruz Xavier, Gabriel Rogerio de Moraes, Mateus dos Santos
Costa, Bruno Gabriel dos Santos, Eduardo Silva, Luara Victoria de Oliveira...
(Vai dizendo outros inúmeros nomes) Mas tem gente que ainda insiste em dizer
que são apenas números. Eu nunca aprendi a contar.

MERENDEIRA DA ESCOLA – A história que eu vou te contar, eu não sei nem


direito como começa. Não sei nem se termina. Eu não sabia direito o que era
aquilo. Eu não sabia se era bomba, fogo de artifício, rojão, treme terra! Tudo!
Mas nunca imaginei que era o que era. Tiro! Mas não era só tiro, não! Era
fumaça, arma, metralhadora, espingarda! Tudo isso nas mãos dos menino! No
meu tempo era história, livro, desenho. E agora, revólver! Assim com qualquer
um! Eu só sei que de repente no meio daquilo tudo, eu vi fogo, gritaria, sangue,
desespero, tudo misturado e a mistura da merenda que tava no fogo, torrou!
Parecia até que era cena de filme, de novela, sei lá... Só sei que quando a
escola começou a desmoronar, sucatear, eu me ajoelhei e gritei: é o Fim do
Mundo!

PAI DE SANTO – Eu sempre morei aqui, nesse fim de mundo! Naquele dia eu
saí cedo de casa com tanta antecedência que parecia até que eu sabia o que
tava pra acontecer. Deixei uma vela branca acesa em cima do altar, era pra
Oxalá que eu rezava toda manhã! Uma vela que se acende é uma dor que se
apaga. Na rua meus guias já se preparavam pra me proteger. Haja fé pra
seguir por essas estrada. Odara ê! Reina firme na encruzilhada. Abra os
caminho! Naquele dia se fez noite quando ainda era tarde. Eu me lembro... O
imenso azul do céu de repente escureceu. E no relógio da cidade, onde tinha
uma propaganda de colchão, ainda marcava 3 horas. Mas já era tarde! Até que
de repente! Num ímpeto de violência e fúria, diversos RINOCERONTES
invadiram a cidade! Animais potentes e pesados. Eles corriam no sentido
contrário. Ninguém podia acreditar, Rinocerontes no centro de São Paulo!
Trogloditas que cheiravam a ódio... Acordaram o bêbado que sonhava na
calçada. Assustaram o cavalo do guarda. Invadiram a ciclo faixa. Passaram
pela prefeitura, driblaram a viatura! Passaram pelo minhocão na contramão.
Arrancaram o braço do ciclista! Derrubaram o violão do artista. Amassaram um
carro importado. Não deixavam nada pra trás. Laroyê Ina Mojubá! Pisotearam
nove adolescentes no Paraisópolis. Massacraram o entregador de aplicativo.
Cuspiram no Motoboy. O dia continuava escuro. Ah que saudade do azul.
Adakê Exú! Protege o povo, que o povo é o dono da rua! Ahhhh! Os

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rinoceronte arrastaram a mulher preta pelo asfalto! Derrubaram a criança do
nono andar do condomínio de luxo! Alvejaram 80 vezes o carro de família que
tava passando ali! Era tanta destruição, que eu só sei que no meio daquilo
tudo, eu eu vi uma luz amarelada, era a vela branca que deixei em casa, Oxalá
tava comigo! E se eu tô aqui pra contar essa história. É porque Exú também
tava firme na encruzilhada!

MULHER RIBEIRINHA – Naquele dia eu tinha acabado de almoçar, e resolvi


dar de cumê pras galinha. Eu nunca tive medo de morar aqui não, senhor.
Morar perto da Mineradora era bom. Eles davam emprego. Ajudava nóis... Mas
quando eu escutei o barulho do rompimento da barragem, eu tive medo. Eu
nunca tinha visto tanta lama. E era lama braba mesmo vindo na nossa direção.
Era lama, com terra, com árvore, levando tudo que tinha direito. Carregava
pedra, carro, tudo que passava na frente. A igrejinha da praça... Não sobrou
nada! Todas casa que ficava perto do rio... Não sobrou nada! Minha casa...
Levou 5 anos pra eu construir ela e ela foi embora em 5 segundos. Só deu
tempo d’eu sair... Depois que se acabou com tudo, ficou um silêncio tão
grande, mas tão grande, que a gente tinha a impressão de escutar gente
gemendo debaixo daquela lama.

DONA DE CASA – Naquele dia eu havia acordado com esperanças. Eu já não


sabia há quanto tempo a gente tava assim, de quarentena. Mas que diferença
isso fazia? Isso pra mim não era novidade, sempre vivi em isolamento social.
Sempre vivi presa dentro de casa. Falo isso pro Altamiro, ele ri na minha cara.
Meu quarto marido, Altamiro. Porra de marido. Ele diz: “quem mandou nascer
mulher? Mulher foi feita pra cuidar da casa, da cozinha, do marido!”. Só tem
homem vagabundo no mundo... Mas naquele dia eu saí de casa, depois de sei
lá quanto tempo assim, presa nessa gaiola chamada vida. Andei alguns
quarteirões e logo comecei a perceber que as pessoas não eram mais como
antes. Junto com esse vírus, uma onda de delírio se espalhou por toda cidade.
Agora, as pessoas tinham coragem de dizer barbaridades e de agir da forma
mais desumana. Debaixo da terra não estão apenas as vítimas de um vírus,
não, mas também daquilo que se aflorou com ele. Quem tinha ódio em suas
entranhas, se tornou uma pessoa odiosa, capaz de matar quem quer que
fosse. Quem tinha a soberba em suas entranhas, se tornou a pessoa mais
mesquinha, capaz de ver uma criança morrer de fome e dormir tranquila. Tudo
que elas tinham ali escondido pôde vir à tona. Pedófilos puderam sair dos
buracos, estupradores puderam assediar sem medo de serem punidos,
homofóbicos puderam violentar pois tinha sido autorizado, assassinos puderam
viver impunes. Ninguém mais tinha medo de nada. Até o Altamiro mudou... Ele
tinha parado de me bater depois que o delegado esfregou a Lei Maria da
Penha na cara dele. Mas agora, as leis não existem mais. A democracia não
existe mais. A civilidade já não existe mais. E ninguém sabe como tudo isso
começou. Ninguém mais se lembra quando começou. Se foi um vírus ou se foi

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um voto, se foi uma bactéria ou se foi uma facada, se foi uma ação humana ou
se foi a natureza. As coisas agora estavam todas contaminadas umas pelas
outras. Agora, vírus e política são praticamente a mesma coisa, pois ambos
matam com a mesma velocidade.

TRABALHADOR RURAL – Eita, eita. Que eu não sabia direito o que era
aquilo. Eu não sabia se era Tornado, Suriname, Tsunami, sei lá o nome, eu só
sei que de repente eu vi uma nuvem amarronzada que vinha lá de longe, eita
coisa esquisita da peste... Uma zoada, um barulho de zumbido nos meus
ouvido... Tipo barulho de motosserra, sei lá. Só sei que essa nuvem ia
chegando cada vez mais perto. E eu tava ali, no meio das plantação de milho,
que nem todo santo dia! Essa nuvem foi chegando, chegando... Quando eu dei
fé, era um exército de GAFANHOTO em cima de mim, em cima das plantação.
Aqueles bicho começaram a voar e a devorar tudo no meio daquela estranheza
toda. As árvore foram ficando sem nenhuma folha, uma caatinga só. Comeram
até as orquídea da Sarma! Esses gafanhoto devorava tudo mas não me
devorava. Não deixava nada no lugar. Comeram tudo! E depois que eles foram
embora, eu olhei praquela devastação toda, e a única coisa que eu senti, foi a
lágrima escorrendo lavando toda a sujeira daquela peste.

PESCADOR – Eita peste, história de pescador ninguém acredita, mas eu vi


com meus próprios olhos! E escutei com meus próprios ouvidos o ronco da
minha barriga de fome! Onde já se viu comer lata? Comer garrafa? Comer
isopor? Pois foi só isso que deu pra pescar naquele dia. Era mais um dia de
pescaria, igualzin todo santo dia. Armei minhas rede, meu ganha pão. E me
joguei no mar, na minha canoa. A brisa ventilava a alma e o mar abria a boca
cantando numa nota só, levano meu pensamento pro meio do oceano. E na
hora quando eu puxei a rede de volta, eu vi a coisa mais esquisita que eu já vi
em toda a minha vida. A água do mar, que antes era azulzinha, e quando
chovia ficava verdinha, e quando o sol esquentava ficava cristalina, tava preta!
Preta mermo! E era uma água grossa, borrachuda, que não tinha sabão que
fazia limpar da pele da gente. Quando eu olhei pra rede, em vez de peixe, tinha
sacola, lata, garrafa, plástico, canudo, vidro, tudo preto daquela tinta, daquele
óleo. Tinha tudo, menos peixe. No mar não tinha mais uma gota de vida, não
tinha mais água, tinha virado o maior esgoto do mundo. Tinha se acabado!

INDÍGENA – (Relata o início do fim em tom de revolta na língua nativa desta


terra).
Vídeo referência para criação dessa cena:
Espetáculo: SUBTERRÂNEO / A partir de 00:14:40 até 00:17:36
https://www.youtube.com/watch?v=miIrun2yGt8&t=1267s

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ANUNCIAR:
Cena 4 – Retrato da Paisagem no Pós – Thiago

CENA 4
(
retrato da paisagem no pós
)

PAI DE SANTO – Depois que tudo que sobrou foi escuridão e silêncio, eu me
coloquei a caminhar, e vi o que eu vi, eu me lembro... O rio que corta a cidade,
que antes era invisível, transbordou sua podridão nas venta do povo. Deu pra
ver um sofá navegando, um fusca afundando, e os defunto boiando, oh,
mamãe ora yê yê ô, venha nos proteger e nos guiar, ora yê yê ô!

(Entram outras vozes sobreviventes para narrar o retrato da paisagem no


pós).

VOZ SOBREVIVENTE 01 – Depois que tudo se aquietou, eu vi o ônibus


incendiado, no trem as pessoas lutando por um espaço. O homem na rua
ajoelhado, suplicando um trocado. Eu vi as poucas árvores que sobraram
agonizando no asfalto. Eu me lembro... (Letícia)
VOZ SOBREVIVENTE 02 – Depois que passou a ventania, eu vi o povo as 4
horas da manhã acordado, com currículo na mão, amassado. Ouvi o carro da
polícia com o barulho da sirene ligado. Eu vi os pombos, os mendigo, tudo
amontoado. Eu me lembro... (Victor)
VOZ SOBREVIVENTE 03 – Depois que passou o temporal, eu vi as casa tudo
embaixo d’água. Os ovo do mosquito da dengue tudo na água parada. No
pedacinho que sobrou de mata, a escavadeira limpou o terreno pra mais uma
empreitada. O céu que já não era mais azul, não tinha mais nenhuma revoada.
Eu me lembro... (Carlos)

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VOZ SOBREVIVENTE 04 – Depois que a explosão dissipou, eu vi as calçada
todo esburacada, as pessoa acelerada, correndo contra o tempo, correndo pro
mesmo lugar, pra centralizar. Eu vi o prédio da ocupação desmoronar, não tem
como vê o povo morrer e não chorar. Eu me lembro... (Gaby)
VOZ SOBREVIVENTE 05 – Depois que passou o terremoto, eu vi a cidade
com tanta gente, parecia um formigueiro, uma máquina de fazer dinheiro. Eu
que sonhava em ser médico ou engenheiro, me vi num labirinto, na rua, na
solidão, sem emprego. Eu me lembro... (Mateus)
VOZ SOBREVIVENTE 06 – Depois que o fogo se apagou, eu vi a cidade ainda
abafada pela fumaça de cigarro, indústria e caminhão, que também abafa a
mordaça que ganha, pela raça, o mais nobre cidadão. Eu vi o explorado e o
explorador que manda ter fé, pegar o mesmo metrô, na Sé! Eu escutei o choro
da travesti morta na Consolação, e entendi a contradição. Eu me lembro...
(Gian)
VOZ SOBREVIVENTE 07 – Depois que a água da enchente abaixou, o cheiro
de esgoto proliferou, eu vi as casas tudo cheia de terra, de grama, as capivara
tudo melada de lama. Eu vi a mãe chorando pelo menino que não foi
encontrado, a outra mãe gritando o filho preto, morto, discriminado. Eu vi os
helicóptero do prefeito, da televisão, tirando foto de longe, sem pisar nesse
chão. Eu me lembro... (Juno)
VOZ SOBREVIVENTE 08 – Depois que o morro desmoronou, eu vi gente
trabalhando dobrado, pra conseguir um bocado de terra, um pedaço de chão.
Eu vi gente ser explorada que nem condenado, carregando pesado, pra ganhar
meio salário e comprar seu pão. Eu vi a professora cansada, com a voz
detonada passando a lição. Eu me lembro... (Giovana)
VOZ SOBREVIVENTE 09 – Depois que o ciclone passou, eu vi os hospitais
tudo quebrado, os leito lotado, doente dormindo no gelado, no corredor
apertado onde pinga a goteira no chão. Eu vi os ônibus com o povo pendurado,
ar condicionado pifado, e o preço da passagem com adesivo novo colado.
Onde já se viu uma nota de 5 reais num pagar a condução? Eu me lembro...
(Wendel)
VOZ SOBREVIVENTE 10 – Depois que o colapso acabou, eu vi os bicho em
extinção tudo amontoado no camburão, eu vi as vaca pastando nas terra onde
antes era vegetação. No lugar que havia floresta, hoje há perseguição, grileiro
matando indígena só pra lhe roubar seu chão. Castanheiro, seringueiro tudo de
pistola na mão. Eu vi, Zé da Nana tá de prova, nesse lugar tem cova, gente
enterrada no chão. (Ana)

Vídeo 3 – Planeta Terra

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CENA 5
(
ideias para adiar o fim do mundo
)

(Os atores e atrizes têm uma conversa franca com a plateia,


compartilham as suas ideias para adiar o fim do mundo).

ANA – E se a gente parasse de matar gente? E se a gente parasse de matar a


natureza? E se a gente parasse de matar os povos originários da terra? Acho
que falta a gente valorizar o nosso canto no mundo, perpetuar nossas
memórias do jeito da mãe, da avó, da tataravó. E se a gente fizesse a receita
do bolo de fubá da bisavó e oferecesse pra quem tem fome comer?

GI – E se a gente abraçasse e olhasse todo mundo com amor no coração? E


se a gente, terminando essa apresentação, agisse? E se a gente deixasse a
luz do sol entrar? E se a gente virasse pro lado agora e olhasse nos olhos da
pessoa que está sentada do nosso lado nesse teatro?

GABI – E se a gente parasse de consumir em demasia e vivesse só com o


necessário? E se a gente parasse de desperdiçar? E se a gente ficasse mais
em silêncio olhando pro horizonte?

CARLOS – E se a gente tivesse menos opinião e mais escuta? E se a gente


parasse de comprar tanto carro e resgatasse as formas antigas de caminhar
sobre a terra? E se a gente desatasse os nós?

JUNO – E se a gente perdoasse? E se a gente lesse uma história para uma


criança hoje? E se a gente tivesse menos preguiça e lavasse a louça com
alegria? E se a gente respirasse mais?

WENDEL – E se a gente reaproveitasse a água da chuva? E se a gente


usasse essa água da chuva pra lavar o quintal e regar as plantas? E se a gente
comprasse a porra de uma bicicleta e andasse sorrindo mais?

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GIAN – E se a gente sonhasse mais? E se a gente ajudasse mais os amigos e
falasse daquela vaga de emprego que abriu? E se a gente fizesse mais amor e
mais atividade física? E se a gente visitasse ou ligasse mais pra nossa avó que
ainda tá viva? E se a gente fechasse as torneiras enquanto escova os dentes?
E se a gente andasse com uma caneca na bolsa?

MATEUS – E se a gente parasse de fabricar armas? E se a gente parasse de


construir bombas? E se a gente parasse de ser racistas, homofóbicos,
preconceituosos? E se a gente admirasse mais a perfeição do trabalho das
aranhas construindo as suas teias? E se a gente parasse de jogar a porra da
bituca de cigarro no chão? E se a gente parasse de envenenar os nossos
corpos?

VICTOR – A gente precisa de tanta roupa assim? E se a gente ao invés de


comprar um cachorro no Canadá adotasse um aqui? E se a gente lesse mais
poesia e observasse mais as montanhas? E se a gente lesse um livro de outros
assuntos? E se a gente desapegasse e doasse os livros que a gente já leu?

LETÍCIA – E se a gente parasse todas as atividades humanas de extração de


minério que incidem sobre os corpos dos rios até que eles voltassem a ter vida
novamente? E se a gente cobrasse as promessas de quem a gente elegeu? E
se a gente nas próximas eleições votasse numa mulher? E se a gente votasse
numa mulher preta?

DINIZ – E se olhássemos para o mundo com mais calma e carinho? E se a


gente não trabalhasse tanto e vivêssemos menos cansados, com mais tempo
livre? E se o dinheiro não fosse tão necessário? E se a gente abrisse as portas
dos nossos corações?

(Os atores e atrizes convidam a plateia para compartilhar as suas ideias


para adiar o fim do mundo).

GUILHERME – Alguém quer compartilhar alguma ideia para adiar o fim do


mundo?

(Conversam e escutam as ideias que vêm da plateia).

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Vídeo 4 – Ancestrais do Futuro

CENA 6
(
ancestrais do futuro
)

(Vozes e coralidades materializam o pedido dos ancestrais do futuro).

ANCESTRAIS DO FUTURO
1. Nós, que somos os ancestrais do futuro, nós que ainda estamos por vir,
que estamos no casulo quente e protegido da barriga das nossas futuras
mães... Nós queremos fazer alguns pedidos... (Ana)
2. Nós ainda vamos nascer e depois florescer nesta terra. Nós gostaríamos
que o mundo fosse um lugar possível de viver. Não queremos ter que
sobreviver num mundo sem oportunidades. (Carlos)
3. Nós queremos nascer e saber que teremos um teto, água e o alimento
necessário para nos dar a energia certa para viver nesse mundo. (Gi)
4. Queremos crescer num mundo em que todas as portas estejam
destrancadas. Queremos poder andar pelos lugares sem precisar
esconder as coisas que temos, sem precisar ter medo. (Juno)
5. Queremos viver num mundo sem preconceito, sem violência, sem
ignorância, sem arrogância e sem injustiça. (Gaby)
6. Nós que ainda vamos nascer, queremos que a nossa cor não nos
impeça de nada. Sabe, nós queremos ter orgulho de ser quem a gente
é. (Diniz)
7. Queremos nascer num mundo que ainda exista natureza, num mundo
que ainda existam animais, rios limpos, árvores em cada esquina, flores
em todas as ruas e ar puro, terapêutico. (Victor)

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8. Queremos respirar sem máscaras de oxigênio. Esse é o nosso pedido.
Queremos poder viver. Queremos poder brincar. (Wendel)
9. Queremos que a nossa família tenha tempo pra ficar com a gente.
Queremos que a nossa família seja alegre e goste de cantar e dançar a
vida em harmonia, mas também queremos que a nossa família saiba
ficar em silêncio apreciando uma xícara de chá. (Guilherme)
10. Nós, que vamos vir depois de vocês, gostaríamos de viver num mundo
em que as mulheres não fossem maltratadas, desrespeitadas,
violentadas. Em minha vida passada eu era mulher e... bom... agora eu
estou aqui... tentando de novo, me preparando pra renascer. (Letícia)
11. Nós que vamos nascer em breve, queremos que a nossa sexualidade
não seja antecipada. Queremos viver num mundo onde ninguém morra
por causa de ideologias ou dinheiro. (Gian)
12. Queremos aprender a cuidar do planeta. É o que pedimos. É o que
queremos. Paz. (Mateus).

Vídeo 5 – A Paz – Música Juno

(Performance musical a partir da música “A PAZ”, de Gilberto Gil).

FIM

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