Você está na página 1de 82

Emerald tem uma playlist.

Para escutar, escanei o


código abaixo ou clique aqui
A cidade estava gelada naquela noite. Era a segun-
da semana de novembro e já dava para sentir o ar seco
corando suas bochechas. Ela olhou sobre o ombro
esquerdo para garantir que nenhuma alma que ainda
ousasse estar na rua àquela hora estivesse prestan-
do atenção nela. Depois da espiada discreta, voltou
a marchar em direção ao seu destino. A barra estava
limpa. Ajeitou a bolsa no ombro e virou à esquerda
em um beco pouco iluminado. Subiu um lance de
escada de metal e abriu a pesada porta de madeira.

— Amiga da Dorothy? — um homem de meia


idade perguntou.

Ele estava em uma escrivaninha e, para qualquer


um que entrasse ali por engano, ele estava apenas
fazendo hora extra em um emprego bastante digno,
a julgar pelas roupas.

— A melhor — ela respondeu com um sorriso se-


dutor. — Como está o movimento hoje?
— Meio fraco, mas entraram algumas mulheres
novas — ele respondeu elevando duplamente as
sobrancelhas.

Ela inclinou a cabeça e deixou escapar uma inter-


jeição de contentamento antes de caminhar até uma
segunda porta.

— Divirta-se, Angie! — ele disse.

— Obrigada, Thomas — Angie respondeu e aden-


trou a porta que dava acesso ao bar clandestino.

Angie vivia em Nova York havia três anos; se


mudara logo depois de o país entrar oficialmente na
guerra. Ela sempre soube que gostava de mulheres,
também sempre soube que por isso precisaria se afas-
tar da família e de sua cidade natal. Ninguém, no
estado inteiro de Nebraska, a entenderia e, sendo ho-
nesta, nem ela queria que eles a entendessem. Daquele
lugar, Angie só queria distância.

O bar, como Thomas já havia alertado, estava


vazio. Talvez fosse o frio, Angie pensou. Ela gostava
de Nova York, mesmo no frio. Havia morado alguns
meses em Nova Orleans, mas não havia conseguido se
habituar com a cidade, nem com aquela umidade toda.

Não, não. Nova Orleans não era para Angie. Ela


gostava de Nova York. Mesmo no frio.

— Angel! — a bartender, uma mulher em um terno


masculino, exclamou ao vê-la.
— Noite tranquila, Jackie? — Angie perguntou e
se sentou no bar.

— Muitas convocações essa semana — ela


respondeu.

Angie virou-se para a pista e notou que de fato


havia bastante mulheres, porém, poucos homens. A
guerra não perdoava ninguém.

— Qualquer hora dessas alguém acerta uma bomba


na cabeça do führer, eu espero.

Jackie concordou com a cabeça e algo que soou


como um “uhum”. Aquele era um tema sensível para
todos, e o melhor que faziam era não falar muito a
respeito.

Mas Angie gostava de se manter positiva e acre-


ditava que não demoraria muito para os Aliados
colocarem o Eixo e os Nazistas para correr. O negó-
cio já se arrastava por quase cinco anos, pelo amor
de Deus!

Talvez ela fosse muito otimista e talvez fosse um


otimismo ingênuo, mas não gostava de se deixar levar
muito tempo pelos pensamentos negativos. Sabia que
não ajudaria em nada.

— O de sempre? — Jackie perguntou.

— Duplo, com gelo.


A bartender assentiu com a cabeça e começou
a preparar o drink. Elas não conversaram mais por
vários minutos. Angie era uma das frequentadoras
mais assíduas do Emerald, e se tivesse que classificar
as coisas, diria que Jackie era sua amiga mais próxima.

Angie era uma pessoa sociável e expansiva, porém


não era uma pessoa fácil de conviver por muito tempo.
Ela tinha muitos conhecidos, mas acreditava não ter
muitos amigos.

Então, Jackie era provavelmente a sua amiga mais


próxima, mesmo que fosse comum as duas ficarem
em silêncio por vários minutos, com Angie apenas
ouvindo a banda tocar no palco no outro lado do bar
e Jackie preparando os drinks.

— Hm… com licença — uma jovem se aproximou


do balcão e chamou Jackie com certa timidez — eu…
eu gostaria de um Martini, por favor.

— Clássico ou seco, querida? — Jackie perguntou.

— Hmm, clássico?

— Isso foi uma pergunta?

— Clássico! — ela falou com um pouco mais de


convicção.

Jackie sorriu e balançou a cabeça de leve, diver-


tindo-se, mas imediatamente começou a preparar o
drink.
Angie perdeu alguns segundos observando a moça
— não eram muitos lugares que ela podia olhar com
calma para outra mulher sem chamar atenção. A jovem
em questão devia ter uns três anos a menos que Angie
e parecia recém-chegada à cidade grande. Tudo nela
denotava ter vindo do interior. Embora Angie admi-
tisse que tinha um certo charme caipira no vestido
simples e no cabelo sem corte preso apenas por dois
grampos.

Ela parecia nervosa e tamborilava os dedos no


balcão enquanto Jackie terminava de preparar os dois
drinks.

Apesar de ser mais seguro olhar para uma mulher


em um lugar como aquele, não significava que Angie
fosse invisível, e a jovem logo percebeu que era ob-
servada. Angie, no entanto, não se abalou e seguiu
observando-a; ela tinha olhos cor de mel e cabelo
castanho claro. Tinha alguma coisa de adorável na
maneira que ela se remexia na banqueta tentando
não se afetar com a intensidade do olhar de Angie.

— Prontinho, Angel! — Jackie disse ao colocar um


uísque na frente de Angie e outro drink na frente da
moça. — E um Martini Clássico.

— Obrigada — a mulher disse à Jackie.

— Obrigada, querida! — Angie também agradeceu.

A jovem deu um gole na bebida, e Angie não pôde


evitar sorrir com a maneira que ela inclinou a cabeça
e fechou os olhos, apreciando o sabor da bebida. Algo
de adorável, sem dúvidas.

— E o que traz uma moça como você até aqui? —


Angie perguntou como se elas já estivessem no meio
de uma conversa.

A jovem olhou para os lados para ter certeza de


que era mesmo com ela que Angie falava. Depois de
mais um gole, respondeu:

— Hum… — ela hesitou —, eu achei que fosse


óbvio.

Angie soltou uma gargalhada honesta com o co-


mentário. Sim, de fato, bastante óbvio.

— Eu quis dizer à Nova York, querida.

— Oh! — Suas bochechas coraram em um tom


de escarlate e ela tentou disfarçar com mais um gole
de Martini. — Sim, é… eu ainda estou descobrindo
essa parte.

— Uma decisão impulsiva?

— Algo assim.

— E há quanto tempo você chegou?

— Duas semanas — ela disse, balançando a cabeça


em afirmação, encarando a taça de Martini à sua
frente. Ela parecia um passarinho que se perdeu de
seu bando e que agora tentava voar sozinho.

— Bom — Angie disse com energia, estendendo a


mão —, nesse caso, bem-vinda à Nova York!

A moça abriu um meio-sorriso e a cumprimentou


com um aperto de mão.

— Obrigada…

— Angie! Angela Parker. Mas quase todos me


chamam de Angie.

— Mary Ann Keller. Mas todos me chamam só de


Mary.

— Prazer em conhecê-la, Mary — Angie disse, com


um sorriso. — E, se me permite, como você conhe-
ceu esse lugar? A Jackie aqui — Ela apontou para a
amiga — é bastante dedicada em manter a privaci-
dade do bar.

— Ah! — Mary se ajeitou mais uma vez. — Eu…


eu ouvi falar.

— Ouviu?

— É que… é que eu comecei a trabalhar nas docas


e tem umas mulheres que… hmm… não são muito…
muito iguais as outras, eu acho, e pensei que talvez
elas pudessem ser como eu… Aí um dia eu as ouvi
falando desse lugar…
— E elas te passaram o endereço?

— Na verdade, eu as segui até aqui e fiquei obser-


vando as pessoas entrarem.

Angie soltou uma gargalhada com a confissão.

— E como você conseguiu a senha?

— Eu meio que me expliquei pro moço e ele foi


muito gentil.

— Thomas é mesmo um bom sujeito — Angie


disse. — Mas você não deveria sair falando essas
coisas para estranhos sem ter certeza, pode acabar
encrencada.

— Ah, não, não… eu expliquei sem explicar, se é


que você me entende…

Angie pensou que se a moça tivesse sido tão elo-


quente com Thomas como estava sendo naquele
momento, ele deveria tê-la deixado entrar por pura
pena.

— Creio que sim. E você gostaria de dançar?

O convite pareceu pegar Mary de surpresa e seus


olhos se arregalaram ligeiramente antes de perguntar:

— Com… com você?

— A não ser que você prefira dançar com o Thomas,


mas já vou logo avisando que mulheres não são a
preferência dele.

— Não, quero dizer, sim. Eu adoraria dançar com


você… só fiquei… hmm… Quero!

Angie sorriu e deu mais um gole no seu uísque


antes de se levantar. Ela estendeu a mão para Mary
que, embora se sentisse um tanto tímida, aceitou.

O Emerald estava com um movimento abaixo dos


outros dias, ainda assim era muito raro a pista estar
vazia. Por isso, Mary e Angie tiveram que desviar de
alguns casais antes de encontrarem um espaço.

Angie podia sentir a mão de Mary suando contra a


sua e sorriu para si mesma. Ela tinha uma queda por
mulheres tímidas e sem traquejo social.

As poucas vezes que havia tentado sair com mulhe-


res mais sedutoras e altivas tinha sido um desastre.
A personalidade muito parecida com a sua sempre
acabava trazendo à tona o pior lado de Angie. O lado
competitivo e orgulhoso.

Mas ela tinha a impressão de que Mary poderia ter


o efeito oposto nela. Que poderia expor o seu melhor
lado, seu lado protetor e leal. Ainda era cedo demais
para saber, é claro, mas ela sentia seu coração leve-
mente acelerado quando parou em meio a pista de
dança e puxou a jovem para perto de si.

— Ah, meu Deus, me desculpe! — Mary exclamou


quando pisou no pé de Angie.
— Está tudo bem — Angie disse com um sorriso
estampando o seu rosto. — Deixa que eu guio.

Então levou a mão à lombar de Mary e a puxou


para mais perto, até a distância entre elas deixar de
existir. Angie era uma mulher alta de quase um metro
e setenta e cinco, e Mary deveria ter uns dez centíme-
tros a menos. Ainda assim, seus corpos pareceram
se encaixar perfeitamente.

Angie pegou a mão esquerda de Mary na sua di-


reita e, ao som do jazz que tocava no bar, conduziu
a dança.

— É a primeira vez que você dança com uma


mulher?

Mary apenas assentiu, ela ainda não conseguia


olhar Angie nos olhos, mas Angie não se importava,
sabia que em algum momento a jovem iria relaxar e,
no que dependesse dela, Mary poderia tomar o tempo
que fosse necessário.

A banda, formada por cinco músicos, tocava I’ll Be


Seeing You da Billie Holiday, e os casais aproveitavam
a pausa das canções mais agitadas para dançarem
com as bochechas coladas.

Não era o caso de Angie e Mary, embora não fosse


por falta de vontade de uma das partes. Mas como
Angie sabia que não deveria tentar forçar nada, apro-
veitou a música mais lenta para conhecer melhor a
jovem.

— E de onde você veio, Mary?

— Kansas.

Angie soltou uma risada da coincidência, antes de


anunciar:

— Bem-vinda ao Bar das Esmeraldas, Dorothy!

Mary abriu um sorriso, o primeiro que não estava


encoberto pelo seu nervosismo, e seus olhos dança-
ram pelo rosto de Angie, finalmente encontrando os
olhos dela.

Encarando-a pela primeira vez, Mary pôde notar


que por trás do batom vermelho sedutor, do cabelo
loiro e do jeito decidido de falar, Angie tinha olhos
gentis e um sorriso doce, e ela sentiu seu corpo rela-
xar aos poucos na presença da desconhecida.

Era, de fato, a primeira vez que dançava com uma


mulher, mas estaria mentindo se falasse que nunca
havia imaginado ou sonhado com aquele momento.
Então fez uma nota mental para aproveitar a noite e
não pensar demais.

Angie era diferente de todos os parceiros de dança


que Mary já havia tido, seu toque era mais suave e
gentil e ela não a puxava como se estivesse condu-
zindo uma empilhadeira como os homens do Kansas
faziam. Ela também tinha um cheiro muito mais
agradável que eles. Era um cheiro floral, doce sem
ser enjoativo e que combinava muito com ela.

Mas a principal diferença — e a que Mary mais


havia tentado adivinhar como seria — era a forma do
corpo colado ao seu.

Tudo em Angie era mais agradável do que os anti-


gos parceiros masculinos de Mary, desde a suavidade
do tecido do vestido que Angie usava, até as suas
curvas delicadas e a maciez da mão que segurava a
sua.

Angie era uma mulher com muito mais curvas do


que Mary. Isso era algo que ela nunca havia sentido
falta em si mesma, mas estava descobrindo gostar
muito em outras mulheres.

Ela sentiu suas bochechas corando quando o pen-


samento de explorar essas curvas com a mão livre
surgiu na sua mente.

Sua parceira de dança pareceu notar seu rubor e


esboçou um sorriso de lado. Mary teve a impressão
de que ela a puxou para ainda mais perto, mas como
a música já havia mudado e agora era um pouco mais
agitada, era difícil afirmar se havia sido de propósito.
Fosse como fosse, o movimento fez com que os seus
bustos se tocassem e uma sensação nova surgisse no
estômago de Mary.

Ela tentou descobrir se Angie também havia


sentido, afinal era a primeira vez que dançava com
uma mulher e não sabia o que era normal sentir. Mas
Angie não demonstrava muito mais do que o sorriso
de satisfação que já preenchia o seu rosto desde que
começaram a dançar.

Era um sorriso meio de lado, de alguém que sabia


o que estava fazendo e gostava dessa posição. Mas
não era de uma forma pedante. Era de uma maneira
que denotava satisfação em poder apresentar um novo
mundo. Mary tinha que admitir que achava aquilo
muito atraente.

O momento foi quebrado quando duas mulheres


colidiram com elas, fazendo-as tropeçarem e se dis-
tanciar ligeiramente. O casal estava tão entretido
explorando a boca uma da outra que nem se abalou
com o impacto.

Angie estudou os olhos arregalados de Mary ao


ver a cena e teve certeza de que era a primeira vez que
a jovem via duas mulheres se beijando. Tinha algo
de adorável, mas intenso no jeito que ela encarava o
casal ao lado.

— Não estamos mais no Kansas, Dorothy — Angie


sussurrou no ouvido de Mary, que se virou rapida-
mente, encontrando mais uma vez os olhos pretos de
Angie, em seguida seus lábios vermelhos.

Mary parecia, segundo Angie, um tanto assusta-


da. Interessada, mas assustada. E por mais que sua
vontade mais genuína fosse imitar o casal ao lado e
puxar a jovem à sua frente para um beijo, ela sabia
que devia ir com calma.

Para tentar aliviar a tensão — e os seus impulsos


— Angie aproveitou o ritmo animado de In The Mood
para dar um rodopio, arrancando uma risada de Mary.

A jovem começou a se soltar ao ritmo animado


do swing e elas passaram a dançar um pouco mais
soltas. Mary se mostrava uma boa dançarina apesar
do nervosismo inicial. Angie gostava muito disso.

— Eu não entendi esse negócio de “Amiga da


Dorothy” — Mary disse depois de mais alguns passos.

— É como se fosse um código secreto. Igual aque-


les que usam na guerra — Angie explicou. — Para
que a gente possa reconhecer pessoas iguais a gente,
entende?

— Como mulheres que gostam de mulheres?

— E homens que gostam de homens — ela com-


pletou. — Se você é amiga ou amigo da Dorothy você
é um dos nossos, mas se você não é, nunca vai saber
o que a expressão quer dizer…

— É uma maneira de perguntar de forma discre-


ta, então?

— Isso mesmo.
— Mas porque a Dorothy?

— Pra ser sincera eu não tenho certeza, mas acho


que tem a ver com o fato de ela ser amiga daqueles que
são diferentes e vistos com maus olhos. Como nós.

Mary assentiu com a cabeça de forma lenta, assi-


milando as novas informações.

— Por isso o nome desse bar é Emerald? Por causa


da Cidade das Esmeraldas?

— Acho que sim, Jackie é grande fã do Mágico de


Oz.

— Então a senha para entrar aqui é só falar que


“sim”? Que eu sou amiga da Dorothy?

Angie apenas assentiu com um sorriso, satisfeita


em saber que Mary tinha a intenção de voltar mais
vezes ao Emerald.

***

Angie já havia perdido as contas de quantas mú-


sicas haviam dançado juntas quando decidiram se
sentar em uma mesa para descansar os pés e beber
alguma coisa. Ela foi até o balcão pegar as bebidas.

Por mais que o bar estivesse a apenas três metros


de onde estavam sentadas e o pedido não fosse demo-
rar mais do que cinco minutos, Angie não conseguia
evitar olhar de tempos em tempos para a mesa e se
certificar que Mary ainda estava lá.

Angie estava intrigada com a jovem. Ao mesmo


tempo que Mary era como um filhotinho aprendendo
a andar sozinho, ela parecia absolutamente segura
de quem era e do que queria, e a cada música trans-
parecia mais confiança. Essa dualidade provocava em
Angie um desejo de conhecer cada vez mais a fundo
a complexidade que era Mary.

— Uma Coca-Cola com rum para você — ela infor-


mou, entregando o copo para Mary — e um uísque
para mim.

— Obrigada — a jovem respondeu. — E você vem


muito aqui?

Angie se sentou e apoiou os cotovelos na mesa.

— Venho quase toda a semana desde que me mudei


para Nova York há uns três anos.

— Então você deve ter saído com várias mulheres…


— Mary tentou soar casual, mas Angie sentia ela ba-
lançando as pernas por debaixo da mesa.

— Algumas — Angie respondeu. — Mas não


venho aqui apenas por isso, venho para poder me
sentir à vontade e não receber cantadas de homens
a cada dois minutos.

A jovem balançou a cabeça de forma compreensi-


va, entendendo muito bem o que Angie queria dizer.
Uma mulher sem aliança em um bar ou restaurante
era como um pedaço de carne no meio de urubus,
ainda mais uma como Angie.

— Os homens devem se jogar aos seus pés — Mary


comentou.

— Por que você acha isso?

— Porque você é assim… hmm… linda e sexy e…

— Você me acha sexy?

Mary desviou os olhos de Angie para o copo nas


suas mãos, sentindo-as suar ligeiramente.

— Acho.

Angie não conseguiu conter o sorriso convencido


que se formou no seu rosto.

— Obrigada — ela disse, bebendo um gole do


uísque. — Mas, sim, os homens são uns tolos in-
convenientes a maior parte do tempo, e sempre que
posso evito o convívio com eles em bares. Gosto de
vir aqui porque não preciso ficar fingindo e pensando
em cada resposta que tenho que dar… É como umas
férias para o meu cérebro.

— Entendo — Mary respondeu de maneira vaga,


e Angie notou que algo a incomodava.

Aquele certamente era um tema em comum para


qualquer mulher lésbica naquela idade. Ou em qual-
quer idade!

Angie se lembrava muito bem da sua mãe repetin-


do dia após dia que ela precisaria se casar logo ou
nenhum homem a iria querer mais. Mas agora, com
trinta anos, Angie ainda recebia cantadas pratica-
mente toda semana.

— E o que você fazia no Kansas, Dorothy? Trabalhava


na fazenda dos seus tios?

— Do meu pai — Mary admitiu. — A gente plan-


tava milho.

— É terrível, você não acha? A vida na fazenda? A


minha família é do Nebraska, também plantam milho.

Mary apenas concordou com a cabeça e uma risada


irônica. Terrível era uma maneira gentil de colocar as
coisas.

Ela sabia que aquele estilo de vida deveria ser bom


para algumas pessoas, ela mesma conhecia mulheres
que adoravam, mas certamente não era para ela.

Certamente.

O silêncio que se seguiu após a pergunta foi a res-


posta de Angie.

O silêncio, no entanto, não era constrangedor,


muito menos desconfortável. Elas apenas escutavam
a música ao vivo e bebericavam seus drinks.

— E Nova York tá sendo o que você esperava? —


Angie perguntou em um tom grave.

Dessa vez, Mary não desviou os olhos, e Angie


pôde notar que as suas pupilas quase encobriram todo
o castanho da íris.

— Está!

— Fico feliz em ouvir isso — Angie falou, em se-


guida bebeu um gole do uísque. — Bom, se você
me dá licença um minuto, eu preciso retocar o meu
batom.

— Eu também preciso — Mary disse.

Angie examinou o rosto praticamente sem maquia-


gem da jovem e inclinou a cabeça.

— Eu também preciso ir ao toalete — ela explicou.

Exatamente naquele momento a banda fez uma


pausa, deixando um silêncio estranho, então Angie
se apressou em se levantar e falar para Mary a seguir.
Ela as guiou até o banheiro feminino à direita da pista
de dança.

O local estava vazio e Mary logo entrou em uma


das cabines. Já Angie abriu a bolsa com calma atrás
das suas maquiagens para retocar não apenas o batom
vermelho, mas também o pó de arroz e o rouge das
bochechas.

Por alguma razão, Angie sentia seu coração ligei-


ramente acelerado enquanto checava no espelho se
não havia nada borrado. Não sabia direito porque se
sentia assim, estava acostumada a primeiros encon-
tros e conhecer pessoas novas. Mas tinha algo em
Mary, ela não sabia explicar, que a fazia sentir bor-
boletas no estômago mesmo sem a conhecer direito.

O som da trava da cabine se abrindo a trouxe de


volta ao momento. Enquanto Mary lavava as mãos,
Angie aproveitou para se certificar mais uma vez de
que o batom não estava borrado.

Ela teve a impressão de que não era a única que


estava nervosa, pois podia ver, através do espelho,
que as mãos de Mary tremiam enquanto as secava
no papel-toalha.

Angie nunca foi mulher de pensar demais antes


de tomar alguma atitude e certamente não começa-
ria naquele momento, então, não querendo deliberar
demais, caminhou para mais perto de Mary, deixan-
do-a quase encurralada.

— Você… você precisa do papel? — Mary gaguejou.

Angie apenas balançou a cabeça de forma negativa


e deu mais um passo na direção dela.

Mary se manteve imóvel, dando a Angie a respos-


ta que ela procurava. Angie levou uma mão ao rosto
de Mary e, sem hesitar, colou seus lábios aos dela.

Foi um beijo breve. Um convite. Quando se afastou


viu os olhos fechados de Mary se abrirem lentamente
e encararem os seus pelo que pareceu uma eternida-
de. Mas assim que a surpresa inicial passou, Mary
puxou Angie pelo pescoço e pelo cinto do vestido e
a beijou de novo.

Dessa vez era um beijo de verdade e não demorou


para Angie sentir a língua de Mary na sua. Ela sabia
que Mary nunca havia beijado uma mulher, mas a
inexperiência em nada a atrapalhava. Pelo contrário,
era a surpresa da descoberta que tornava aquele beijo
ainda melhor.

Uma exclamação escapou dos lábios de Mar y


quando sua cabeça colidiu com o porta-papel na
parede. Angie se afastou para ver se ela estava bem,
mas não teve tempo de perguntar nada antes de Mary
atacar sua boca mais uma vez.

O banheiro tinha uma luz branca desagradável, a


parede na qual Mary estava encostada era gelada e
o ambiente tinha um cheiro de desinfetante que não
era nada sexy, ainda assim, de alguma maneira, era
o melhor beijo que Angie já tinha experimentado.

— Você… — Angie tentava falar por entre o beijo,


mas Mary a interrompia com a sua boca — você
quer… você quer ir pra minha casa?
Foi só nesse momento que Mary realmente parou
de beijá-la.

Angie não sabia por que tinha oferecido.

Ela não era moralista, muito menos puritana, ainda


assim, nunca tinha convidado uma mulher para a sua
casa depois de apenas um beijo.

Os olhos cor de mel de Mary eram praticamente


pretos naquele momento e Angie engoliu em seco,
sentindo o nervosismo fechar a sua garganta.

Mary não respondeu nada, apenas assentiu com


a cabeça.

***

Angie tinha certeza de que, em algum momento, no


percurso de táxi do Emerald para o seu apartamento,
Mary mudaria de ideia e iria embora.

Ela tinha certeza!

Estavam sentadas cada uma em um lado do banco,


olhando pela janela e tentando de alguma forma evitar
que o taxista notasse a tensão entre elas. Tensão essa
que, Angie arriscaria dizer, podia ser notada até do
topo do Empire States Building.

O pensamento de Angie foi interrompido quando


sentiu a mão de Mary encontrar a sua no assento vago
entre elas e com o polegar acariciar o dorso. Naquele
momento, ela sabia que era a forma de Mary lhe dizer
que ainda não havia desistido.

Ainda. Pensou Angie.

Entretanto, para a sua surpresa, Mary não mudou


de ideia e enquanto Angie destrancava a porta do
seu apartamento no Brooklyn, ela sentia seu coração
bater na garganta e a adrenalina preencher suas veias.

Assim que fechou a porta, se virou para a convi-


dada e um sorriso malicioso se formou no seu rosto.

— Você quer beber alguma coi… — mas Angie não


conseguiu terminar a frase antes dos lábios de Mary
voltarem a grudar nos seus. — Deixa pra lá.

Angie enlaçou Mary pela cintura, trazendo-a para


mais perto.

A impressão que ela teve de Mary no bar, de que


ela parecia segura do que queria, se mostrava corre-
ta e Mary não hesitou nem por um segundo quando
Angie a conduziu até o quarto.

O barulho da via movimentada, três andares


abaixo, podia ser escutado através da janela, mas não
pareceu incomodar nenhuma das duas; e foi apenas
quando Angie fechou a porta e elas se afastaram por
um milésimo de segundo que Mary transpareceu, pela
primeira vez, o nervosismo que sentia.

Angie lhe ofereceu um sorriso gentil antes de


puxá-la devagar pelos pulsos para junto de si e a
beijar. Dessa vez de forma mais lenta, dando a Mary
a chance de acalmar o coração que batia de forma
frenética e também de recuar se ela quisesse.

Com a mesma calma, Angie começou a abrir os


botões do vestido de Mary e, a cada novo botão
aberto, ela roçava seus dedos sobre a pele macia e
ligeiramente arrepiada pelo toque.

Quando Angie finalmente abriu o último botão e o


vestido caiu aos pés de Mary, Angie pôde vê-la pela
primeira vez. Ela usava lingerie branca simples que
realçava o seu tom de pele oliva, e Angie notou que
o vestido fazia um excelente trabalho em esconder a
beleza do seu corpo.

Ela esboçou o mesmo sorriso de lado, aquele que


Mary já estava se acostumando, e a empurrou pelos
ombros na direção da cama.

Sem perder tempo, tirou o seu próprio vestido, se


juntando a Mary. Suas bocas se encontrando meio
segundo depois.

Tinha algo de singular naquele encontro que Angie


não sabia descrever exatamente, mas era excitante e
novo. Ela podia sentir no seu íntimo e na forma como
seu corpo clamava por mais contato.

Ela não sabia o que era, mas queria sentir mais.

Por isso, decidiu que deveria tirar o resto de tecido


que as separava, começando pelo sutiã de Mary.

— An… Angie?

— Hmm? — a resposta veio em meio a um gemido,


enquanto Angie traçava beijos no ombro dela e bai-
xava lentamente a alça do sutiã.

— É a primeira vez que eu faço isso com uma


mulher…

Angie pausou, com a sua mão esquerda ainda segu-


rando a alça da lingerie branca. Ela pôde notar que a
respiração de Mary também cessou por um segundo,
como se ela esperasse pela reação.

Angie, é claro, já sabia disso, mas ouvir Mary ad-


mitir em voz alta, a fez sentir um anseio ainda maior
em fazer aquela mulher se sentir desejada! E era isso
que ela iria fazer.

Ela esboçou um sorriso gentil e plantou um beijo


delicado na ponta do nariz de Mary.

— Eu sei — disse antes de continuar de onde havia


parado.

Mary sentiu o ar que estava preso em seus pul-


mões escapar e o nervosismo ceder lugar à pressa e
ao desejo.

Ela nunca havia se sentido assim. Nunca havia


sequer imaginado que poderia se sentir assim. Seu
corpo clamava pelo toque de Angie e, quando sentiu
a boca dela mais uma vez na sua pele, qualquer res-
quício de insegurança já havia se dissipado.

Mary nunca havia sido tocada dessa forma antes.

Nunca nem havia desejado ser tocada assim por


outra pessoa. Mas naquele momento, ela achava que
poderia morrer se Angie parasse.

Foi ali, sob o toque de Angie, que Mary finalmente


descobriu que o que buscava quando fugiu do Kansas
não era um devaneio.

Não era errado ou impossível.

Não era um crime ou um pecado.

O que ela procurava era aquilo!

E aquilo, ela tinha certeza, não era errado. Ela tinha


certeza porque ela podia sentir.

***

Um movimento ao seu lado fez com que Angie


acordasse.

Antes mesmo que ela tivesse tempo de relembrar


a noite anterior, um par de olhos cor de mel estava
fixo nela e, acompanhando o olhar, surgiu um sor-
riso tímido.
— Bom dia — Angie disse de forma sonolenta,
retribuindo o mesmo sorriso.

— Bom dia!

— Você dormiu bem?

Mary assentiu e alargou ainda mais o sorriso. Os


seus olhos tinham um brilho diferente sob a luz do
dia e as bochechas estavam coradas pelo calor gerado
pelos dois corpos nus dividindo o cobertor de lã. Ela
estava adorável, Angie pensou.

Apesar disso, ela podia ver que Mary não sabia ao


certo como agir, então achou por bem assumir o con-
trole, puxando-a pela cintura e a trazendo para junto
de si para plantar um beijo de bom-dia.

Com a maciez dos lábios de Angie relembrando a


noite anterior, Mary se sentiu relaxando.

— Você está com fome? — Angie perguntou.

Mary balançou a cabeça de forma negativa.

— Por mim, podemos ficar na cama mais tempo…


— ela sugeriu, surpresa com a própria ousadia.

Ela não era exatamente uma pessoa extrovertida,


mas Angie tinha um talento especial para deixá-la à
vontade. E a verdade era que o corpo quente e macio
de Angie contra o seu era uma experiência nova e
inebriante para Mary e ela não queria que acabasse
tão cedo.

Angie não conseguiu conter um risinho.

— Eu adoraria — ela disse, plantando mais um


beijo nos lábios de Mary. — Mas, infelizmente, eu
tenho que trabalhar.

— Mas é sábado.

— Eu sei — ela plantou mais um beijo — mas eu


trabalho em uma loja em Manhattan e eles abrem
todos os dias. Minhas folgas são quinta e domingo.

— Que pena!

O sorriso que estampava o rosto de Angie era pra-


ticamente permanente agora.

— Mas podemos nos ver hoje de novo lá no Emerald


se você quiser — ela sugeriu.

Por alguma razão, Angie sentia-se um pouco mais


insegura do que de costume ao convidar uma mulher
para um segundo encontro.

— Não vejo a hora — Mary respondeu com um


sorriso que fez a insegurança de Angie sumir como
mágica.

Poucas mulheres conseguiram deixar Angie assim,


se sentindo como uma colegial descobrindo o amor.
Mas ela gostava dessa mudança, era algo revigorante.
Infelizmente, Angie não estava mentindo quando
disse que precisava se levantar para ir trabalhar, então
foi isso que fez. Mary, por insistência de Angie, ficou
na cama mais um pouco.

Angie não conseguia tirar o sorriso do rosto en-


quanto tomava um banho quente e se preparava para
o novo dia. Às vezes a vida pode trazer surpresas en-
cantadoras, ela pensou.

Assim que saiu do banho, não encontrou Mary na


cama, entretanto pôde sentir o cheiro de café fresco
vindo da cozinha. Terminou de se vestir e seguiu na
direção do cheiro.

— Espero que você não se incomode — Mary


disse quando Angie chegou à cozinha. — Eu queria
te ajudar a não se atrasar.

Mary estava com o vestido da noite anterior, mas


os cabelos ainda estavam bagunçados e o rosto leve-
mente marcado pelo travesseiro, e Angie pensou que
poderia se acostumar muito facilmente com manhãs
como aquela.

— É claro que não me incomodo — respondeu,


deixando um beijo na bochecha da jovem e pegando
a caneca de café que ela oferecia.

Tiveram que tomar o café com certa pressa, porque


Angie não tinha muito tempo, ainda assim, Mary
pensou que foi o melhor café da manhã que tomou em
semanas. E antes de deixarem juntas o apartamento,
combinaram mais uma vez de se verem naquela noite,
então trocaram um último beijo.

***

Angie passou o dia todo apenas esperando a hora


de encerrar o seu expediente na Macy’s para poder
se arrumar e ir ao Emerald.

Aquela noite não estava tão gelada quanto a anterior


e por isso a rua estava um pouco mais movimentada.
De qualquer forma, Angie estava mais do que acos-
tumada a manter a discrição, e teve certeza de que
ninguém a viu adentrar a pesada porta de madeira.

— Amiga da Dorothy? — Thomas perguntou.

— Muito — ela respondeu com uma piscadinha.


— Você sabe se a Mary já chegou?

— Quem?

— A moça com cara de que veio do interior e não


sabia a senha ontem…

— Ah! Sim, sim… simpática ela — Thomas disse.


— Não a vi hoje ainda.

Angie apenas assentiu e se encaminhou até a porta


de acesso ao bar.

— Divirta-se — ela ouviu a voz de Thomas


encoberta pelo som do swing que vinha do palco.

Ela caminhou até o bar e esperou Jackie terminar


de atender os outros clientes antes de pedir o seu
uísque de sempre. Diferente da noite anterior, o bar
estava cheio, afinal era sábado.

— Esperando alguém, Angel? — Jackie perguntou


quando Angie olhou sobre o ombro esquerdo pela
terceira vez.

— Marquei de encontrar a Mary aqui hoje — ela


respondeu, pegando o uísque que a bartender a ofe-
recia. — Obrigada, querida.

— Quem? — Jackie repetiu a pergunta de Thomas.

— A garota que eu dancei ontem… do Martini


clássico.

— Pelo jeito a noite foi boa!

Angie não era uma mulher de corar com esse tipo


de comentário, mas não conseguiu evitar um sorrisi-
nho escapando de seus lábios.

— Então a noite foi boa.

Era como dizia o velho ditado: uma imagem vale


mais do que mil palavras. E o sorriso estampado no
rosto de Angie respondia a pergunta de Jackie melhor
do que qualquer palavra teria feito.
— Aquelas mulheres estão te chamando — Angie
disse, inclinando a cabeça para as duas mulheres na
outra ponta do bar que de fato estavam esperando
serem atendidas.

Jackie soltou uma risadinha e sacudiu a cabeça,


sabendo que Angie estava fugindo da conversa.

— Depois você vai me contar essa história — Jackie


anunciou antes de sair.

Angie apenas soltou uma risada.

Ela adorava Jackie, mas a verdade é que não estava


com pressa nenhuma de dividir Mary ou o que quer
que estivesse acontecendo entre elas. Ela seguiu be-
bendo seu uísque enquanto observava o bar ficar cada
vez mais cheio.

Já fazia quase dez anos que ela havia saído do


Nebraska e já havia morado em vários lugares antes
de se encantar definitivamente por Nova York, mas
ver o Emerald lotado de pessoas como ela, ainda era
algo que a deixava maravilhada.

Por muito tempo ela havia pensado que estava so-


zinha no mundo, mas aquele lugar e aquelas pessoas
eram a prova de que não estava. E ela valorizava imen-
samente ambos.

Na sua visão panorâmica, Angie viu uma mulher


de cabelos castanhos se aproximando e sentiu seu
coração acelerar de repente.
Quando ela se virou, entretanto, viu que não era
Mary. Angie olhou o relógio que usava no pulso, já
fazia mais de uma hora que ela estava ali e já passa-
ra quase quarenta minutos da hora que combinaram.

Aos poucos o bar foi enchendo mais e mais e as


banquetas ao lado de Angie foram sendo todas ocu-
padas. A cada vulto que ela via indo na sua direção,
ela virava cheia de esperança apenas para descobrir
mais uma vez que não era Mary.

Depois de o bar encher, ele começou a, inevitavel-


mente, esvaziar, até restar apenas ela e Jackie.

— Deve ter acontecido algum imprevisto — Jackie


disse, trocando o copo vazio de uísque na frente de
Angie por um cheio.

— Uhum.

— Você sabe que por mim você pode ficar até a


hora que quiser, não é? — Jackie disse em um tom
gentil. — Mas eu tenho que te avisar que daqui a
pouco vai começar a ficar mais difícil conseguir táxi.

— Eu já estou indo… — ela disse, pegando a bolsa.


— Quanto eu te devo?

— Hoje é por conta da casa.

Angie não contestou, entretanto, tirou algumas


notas da bolsa e colocou no balcão. Devia ser sufi-
ciente, ela pensou. Jackie sacudiu a cabeça, mas sabia
que era melhor não falar nada.

***

Angie voltou ao Emerald todos os dias na semana


seguinte e na seguinte e na seguinte. E nada.

Logo veio o Natal e com ele o ano novo e Angie foi


perdendo as esperanças de voltar a ver Mary.

Era como se a mulher tivesse sumido no ar.

Àquela altura, ela estava confiante de que a guerra


chegaria ao fim antes de Mary retornar ao Emerald.

Era a última semana de janeiro e o frio castigava


a cidade. A nevasca insistente caía havia horas, en-
cobrindo tudo de branco. Angie decidiu passar no
Emerald depois do trabalho, porque ficar em casa lhe
parecia uma escolha tão deprimente quanto aquele
clima.

Como era de se esperar, o bar estava com baixo


movimento.

Não que Angie se importasse, muito pelo contrá-


rio, ela até preferia. Na verdade, ela só queria uma
distração para não ficar olhando pela janela e pen-
sando em uma mulher que ela viu uma única vez dois
meses antes.

Ali pelo menos tinha a Jackie, tinha outras pessoas


conhecidas. Tinha música e tinha bebida.
— Achei que não encontraria ninguém aqui hoje
— uma jovem de batom vermelho e cabelo loiro,
que deveria estar na casa dos vinte anos, disse ao se
sentar ao lado de Angie.

Ela era bonita, Angie não podia negar. Muito


bonita.

— Certamente não é o melhor clima para sair de


casa.

— Qual a sua desculpa? — a mulher perguntou.

— Eu gosto da música — Angie disse, achando


melhor manter a conversa no campo menos pessoal
possível. — E a sua?

A mulher loira deu de ombros. Ela tinha um sorri-


so sedutor que Angie conhecia muito bem já que ela
mesma o usava com frequência.

— Eu gosto de dançar.

— Então este é o lugar certo. Porque o Louis e


o resto da banda — ela apontou para a banda que
tocava swing no palco — são excelentes.

— Você parece conhecer bem este lugar… vem


muito aqui?

— Às vezes.

— Estou na cidade de passagem, sou de Los


Angeles — Ela disse. — Vim aqui por indicação de
uma amiga.

Não que Angie tivesse algum preconceito com cali-


fornianos, mas agora que a mulher havia comentado,
Angie achava que ela tinha uns trejeitos um tanto
afetados, como se estivesse atuando em um filme
hollywoodiano.

Angie apostaria qualquer coisa que ela era aspi-


rante à atriz.

— Eu quero um Dry Martini, querida — a loira


disse para Jackie. — Três azeitonas.

Jackie apenas assentiu antes de começar a prepa-


rar o drink.

— E o que te traz à Nova York? — Angie perguntou.

— Vim encontrar um amigo que é diretor na


Broadway…

— Você é atriz? — Angie perguntou.

— Sou.

— Eu já vi você em alguma coisa?

— Eu só estive em algumas peças de teatro por


enquanto, mas talvez logo me veja em algum cinema
— ela disse elevando uma sobrancelha com confiança.

Bingo.
— Bom, eu te desejo boa sorte com o tal diretor
— Angie respondeu.

— Um Dry Martini — Jackie voltou, oferecendo a


bebida para a moça.

— Obrigada, querida — ela agradeceu e bebericou


seu drink.

Louis e a banda começaram uma nova canção e a


loira, que Angie ainda não sabia como se chamava,
se virou para ela.

— Você quer dançar?

A moça era simpática, Angie não iria mentir, e


muito bonita. Mas a verdade é que, naquela noite,
Angie não tinha a menor vontade de dançar com ela.
Ou com ninguém.

— Eu agradeço o convite, mas hoje meus sapatos


estão me matando — mentiu.

— Oh, que pena…

Angie viu, com o canto de olho, que uma conhe-


cida sua passava.

— Sabe quem adora dançar — Angie disse, segu-


rando a conhecida pelo braço e a puxando para perto
das duas. — Henrietta aqui.

Henrietta era a criatura mais simpática que já havia


pisado na terra e não poderia ser mais comunicativa.
Angie adorava ela, sabia que seria um ótimo par para
a loira sem nome.

— Henri, esta é… Desculpa, qual o seu nome, que-


rida? — Angie perguntou.

— Marcella — ela respondeu.

— Essa é a Marcella e ela está atrás de uma par-


ceira de dança, mas eu estou com os meus pés muito
doloridos hoje. O que você acha, Henri, você poderia
dançar com ela?

Henrietta vestia um terno masculino e tinha o


cabelo curto penteado com gel. Os imensos olhos
azuis pareciam refletir todas as luzes do bar e o seu
bom humor era sempre contagiante. Marcella com
certeza estaria em melhor companhia com Henri do
que com Angie.

— Ah, Angie, o que eu não faço por uma amiga —


ela disse em tom de brincadeira, já estendendo a mão
de forma galante para Marcella. — Mademoiselle?

Marcella abriu um sorriso antes de aceitar a mão


de Henrietta e juntas seguirem até a pista.

Angie também esboçou um sorriso franco, feliz


por ter feito uma boa ação.

— Eu sei o que você tá fazendo — Jackie disse, se


apoiando sobre o balcão.
— O quê? — Angie perguntou com a expressão
inocente que Jackie sabia muito bem ser falsa.

— Você está fugindo de qualquer mulher que de-


monstre o mínimo interesse em você.

— Não diga absurdos.

— Você mal a conhecia, Angel… — Jackie acusou,


e Angie sabia exatamente de quem ela falava, e não
era de Marcella. — Está na hora de seguir em frente.

Angie não respondeu, apenas deu um gole no seu


uísque e voltou sua atenção para a banda do Louis.

***

Angie bateu a porta do seu apartamento com força


e jogou as chaves sobre o aparador. Ela estava furiosa.

Estava furiosa com ela mesma! O que era a pior


parte.

Estava irritada por ainda estar esperando.

Jackie tinha razão: ela mal conhecia Mary.

Era ridículo se importar tanto. Era ridículo esperar


algo de alguém que ela nem sabia se poderia esperar.
Era ridículo estar decepcionada.

Àquela altura ela nem queria mais olhar na cara de


Mary, porque ela tinha, acima de tudo, amor-próprio,
mas ainda assim queria vê-la de novo… o que era
contraditório demais para Angie conseguir entender.

Pelo menos era quarta-feira e no dia seguinte seria


a sua folga. Folga essa que ela pretendia usar para não
pensar nisso. Iria ficar no seu apartamento lendo um
livro ou mesmo fazendo tricô — coisa que ela odiava
fazer — se fosse preciso.

E foi isso mesmo que ela fez. Acordou mais tarde


do que de costume, preparou seu café da manhã
com calma, ligou o rádio e escolheu um livro da sua
estante.

Apesar de demorar para conseguir engatar a leitu-


ra, quando se deu conta já estava na página cinquenta.
Mas foram duas batidas fracas na porta que a fizeram
colocar o livro de lado.

Não era incomum alguma das vizinhas bater na


sua porta nos seus dias de folga para vender algum
produto de catálogo ou mesmo pedir algum ingre-
diente emprestado.

Mas não era nenhuma vizinha.

Quando Angie abriu a porta, deu de cara com o


rosto coberto de sangue e hematomas que a encarava
de forma assustada.

— Mary?

— Esse era o único endereço que eu conhecia — ela


falou com a voz fraca.

Angie puxou ela pelos pulsos para dentro de casa


e fechou a porta. Agora que podia ver os ferimentos
de Mary com calma, Angie notou que ela estava com
o nariz sangrando, tinha dois hematomas grandes nas
bochechas, em um deles havia também um corte que
sangrava um pouco, e estava com o supercílio aberto.

Angie desceu os olhos pelo corpo de Mary e notou


também que estava com os pulsos e braços roxos, e
soltou o pulso que segurava, com medo de machucar
ainda mais.

Em vez de perguntar o que aconteceu, Angie con-


duziu a jovem até o sofá e buscou um kit de primeiros
socorros. Ela tentava acalmar os inúmeros pensamen-
tos desordenados, focando na tarefa que tinha pela
frente.

Mary também não falou mais nada, apenas deixou


que Angie cuidasse dos ferimentos.

Com todo cuidado possível, Angie levou uma das


mãos à bochecha de Mary e, com a outra, umedeceu
um algodão no antisséptico para limpar o corte. Antes
mesmo de encostar na pele de Mary, Angie franziu a
própria testa, quase sentindo a dor da outra. A pacien-
te, no entanto, apenas fechou os olhos brevemente e
soltou um gemido.

Durante todo o processo, ela podia sentir os olhos


curiosos de Mary cravados no seu rosto, mas Angie
se dedicava exclusivamente à tarefa de enfermeira.
Não tinha tempo para pensar em mais nada.

Ela podia sentir que o rosto de Mary estava quente.


Sentia a mão que amparava sua bochecha esquentan-
do com o contato, mesmo com a neve caindo na rua
e o apartamento em uma temperatura ligeiramente
fria, porque a calefação estava com problema.

Assim que acabou, relutou em interromper o con-


tato, mas não tinha mais desculpas para continuar,
então guardou os apetrechos no kit e deixou os algo-
dões de lado para jogar fora.

— Obrigada.

A voz de Mary era quase inaudível, mas Angie


ouviu assim mesmo.

— O que aconteceu?

Angie apoiou os cotovelos sobre as coxas, incli-


nando o corpo para perto de Mary, oferecendo a ela
toda a sua atenção.

Mary se remexeu na poltrona na diagonal de Angie,


demonstrando todo o desconforto que sentia.

— Eu… eu… — ela gaguejou. Então respirou fundo


antes de começar de novo. — Eu vim para Nova York
à procura de algo que eu não tinha mais em casa. Na
verdade, à procura de algo que eu nunca tive em casa.
Eu vim atrás de liberdade.

Mary fez uma pausa, e Angie notou que a histó-


ria seria mais complexa do que um simples “eu me
acidentei”, ou “me envolvi em uma briga”. Por isso,
decidiu que talvez fosse melhor não interromper e
deixar que Mary contasse tudo que parecia estar en-
talado há um certo tempo.

— A minha mãe morreu quando eu era criança e fui


criada pelo meu pai e o meu irmão — ela continuou.
— Mas eu nunca tive uma boa relação com o meu
pai, nunca consegui explicar para ele as coisas que
me faziam feliz e as que não faziam. E ele nunca se
preocupou em entender. O único que me entendia era
o Howie, meu irmão. Mas ele não tinha coragem de
enfrentar meu pai, assim como eu também não tinha.

“Há uns sete meses meu pai começou a insistir


que eu estava ficando muito velha e precisava me
casar. Eu protestei, falei que não queria, que não iria.
Mas ele já tinha até o noivo escolhido: um veterano
de guerra que tinha sido mandado de volta para casa
com honras por ter salvado não sei quantos homens.
Ele tinha sido ferido, por isso tinha recebido libera-
ção. Meu pai tinha certeza de que um soldado daria
conta de mim e da minha rebeldia.

“Eu fiz de tudo para conseguir impedir, mas eles


me obrigaram. Os dois. Na verdade, os três, porque
Howie me convenceu de que seria o certo para deixar
nosso pai feliz e que a vida de casada não seria pior
do que a vida com o meu pai. Então eu me casei.

“Eu vivi dois meses com o Mark antes de perceber


que pior ou melhor, não importava, porque era tudo
uma grande mentira. Aquela não era eu e aquela vida
não era minha. Percebi que iria morrer aos poucos se
continuasse lá. Foi nesse dia que eu resolvi fugir e
vir para cá.

“Howie era o único que sabia que eu iria fugir, e


quando cheguei aqui, escrevi para ele contando como
eu estava e deixando o meu endereço para que ele
pudesse me escrever também.

“Ele me contou que meu pai e Mark estavam fu-


riosos comigo, mas eu não dei bola. Eu já sabia disso,
mas como não pretendia voltar, o problema não era
mais meu.

“É claro que eu estava enganada.

“Depois daquela noite que nós… hmm… dormi-


mos juntas, eu cheguei na pensão em que moro e dei
de cara com o Mark me esperando. Não sei como ele
conseguiu o meu endereço. Não sei se Howie deu a
ele ou ele encontrou… e naquele momento não me
importava. O que importava era que ele tinha me
achado.

“Foi por isso que não fui naquela noite!”

Angie não sabia o que falar. Mal sabia o que pensar.


Mas em vez de fazer as mil perguntas que flutu-
avam na sua mente, ela apenas esperou que Mary
continuasse.

— Ele queria me levar para o Kansas imediatamen-


te — ela continuou. — Mas eu insisti em ficarmos em
Nova York, falei que tinha um emprego. No Kansas, eu
era uma dona de casa, porque desde o casamento eu
não estava mais trabalhando na fazenda do meu pai.
Expliquei para ele que não era muito dinheiro, mas po-
deríamos juntar um pouco e investir em alguma coisa.
Eu estava tentando me agarrar a qualquer chance de
não precisar voltar.

“Para a minha surpresa, ele aceitou ficar alguns


meses aqui. A verdade é que eu acho que ele também
não gostava do Kansas. Então por um tempo eu ia
trabalhar e ele saía para conhecer a cidade e, creio eu,
as mulheres. Eu, claro, não me importava, até preferia.
Assim ele não precisaria exigir nada de mim.

“Mas nenhuma farsa dura para sempre, e logo per-


cebi que o nosso acordo não iria funcionar por muito
tempo. Mark nunca foi um cavalheiro, mas até então
também não tinha sido violento. O problema é que
sem nada para fazer, ele começou a beber e eu, que
já estava cansada daquela situação, não tinha mais
paciência para ele.

“Nós brigávamos quase todos os dias. E hoje ele


decidiu que a única solução era voltar para o Kansas.
Eu bati pé e falei que nunca mais voltaria para lá e
que ele poderia voltar sozinho, que era um favor que
me fazia. Foi quando ele me acertou no rosto pela
primeira vez.

“Eu tentei revidar, mas ele é um homem forte, é


um soldado, então ele me bateu de novo e de novo.
Sinceramente, nem sei se era de mim mesmo que ele
estava com tanta raiva, mas eu estava ali e ele estava
descontando. Até que eu consegui me soltar e acer-
tei ele com o primeiro objeto que alcancei, acho que
era uma frigideira de ferro, mas para ser sincera, nem
olhei, apenas vi que ele caiu desmaiado, peguei a
minha bolsa e uma muda de roupa e corri para en-
contrar um táxi.

“Esse era o único endereço que eu sabia de cabeça!”

Quando Mary acabou, Angie notou que ela pare-


cia insegura e, provavelmente, envergonhada. Então
ela esticou os braços para pegar as mãos de Mary
nas suas.

— Você pode ficar aqui o tempo que você precisar.

— Eu não quero ser um incômodo.

— Você não é um incômodo, Mary. E você não


pode voltar para a pensão antes de ter um plano!

— Um plano? — Mary perguntou, sem entender.

— Uma forma de se livrar dessa situação de uma


vez por todas.
Mary não disse nada, apenas encarou Angie de
forma pensativa. Ela não tinha certeza se Mark iria
tentar “caçá-la”. No fundo, ela tinha a impressão de
que ele havia se arrependido do casamento. Mas tinha
medo de que talvez o seu pai insistisse que ele o
fizesse.

— Você não precisa pensar nisso hoje — Angie


falou, acariciando as mãos sob as suas. — Hoje você
só precisa descansar.

E foi isso que Mary fez.

Sempre com supervisão de Angie, que não a deixava


fazer nada que exigisse esforço. Elas não conversaram
muito mais ao longo do dia, embora suas mentes es-
tivessem um turbilhão.

Foi apenas à noite, enquanto Angie preparava a


cama para dormirem, que ela se lembrou de como as
coisas haviam “terminado” entre elas. Foi só naquela
hora que ela lembrou que, na prática, elas não eram
nada uma da outra. Nem amigas, na verdade. Porque
mal se conheciam.

Mas Angie não sentia como se Mary fosse uma


estranha. No fundo, ela sabia que não era. Então ig-
norou esses pensamentos e decidiu que o status do
relacionamento era algo para se preocuparem mais
tarde. Antes disso, elas tinham coisas mais impor-
tantes para resolver.
A segunda noite que dormiram juntas, foi bem
menos interessante que a primeira. E embora agora
as duas estivessem vestidas, o clima era mais cons-
trangedor do que quando não estavam.

Deitadas, lado a lado, de barriga para cima e com


as mãos entrelaçadas sobre o próprio peito, nenhuma
das duas sabia exatamente o que falar.

Mary sentia-se mal em incomodar Angie, e Angie


sentia-se mal por não saber como fazer com que Mary
se sentisse à vontade.

— Você gostaria de continuar em Nova York?


— Angie perguntou, depois de vários minutos
desconfortáveis.

— Sim — Mary respondeu de maneira acanhada.

— Então eu acho que eu tenho uma ideia.

Pela primeira vez, Mary se virou para Angie, fican-


do de lado na cama. Angie aproveitou a mudança e
fez o mesmo.

Mary não verbalizou nada, mas Angie podia ver a


pergunta estampada nos seus olhos cor de mel.

— Você vai descobrir quantos amigos Dorothy re-


almente tem.

Mary franziu a testa, confusa sobre o significado


daquilo. Ela tentava não deixar a esperança preencher
o seu peito, pois não saberia se iria aguentar se não
funcionasse.

— Eu tenho que falar com algumas pessoas primei-


ro, para ver se meu plano é viável — Angie continuou
—, aí amanhã eu te explico tudo, pode ser?

Angie tinha um tom tão gentil, que era impossível


para Mary não concordar com qualquer coisa que ela
falasse. Além disso, podia notar a preocupação de
Angie em não dar a ela falsas esperanças e, por esse
motivo, Mary era muito agradecida.

Depois disso, não tardou até o sono alcançar as


duas, que dormiram naquela posição, uma de frente
para a outra.

Em algum momento, ao longo da noite, a mão de


Angie encontrou a de Mary no espaço entre os seus
rostos.

***

Pela manhã, Angie acordou e não perdeu tempo em


se levantar. Ela precisava falar com Henri e teria que
encontrá-la antes do serviço. Por sorte, sabia exata-
mente onde a amiga estaria naquela manhã.

Ela já estava vestida e pronta para sair quando


Mary acordou. Angie pôde notar que ela parecia per-
dida e confusa.

— Pode voltar a dormir — disse. — Eu vou ter que


sair mais cedo. Tem comida na geladeira. Pode ficar
à vontade.

— Não, espera…

— Você pode ficar aqui, Mary. Ou melhor, você


deve ficar! Não vai fazer nenhuma besteira e estragar
tudo, está bem?

Mary sabia exatamente qual a besteira que não


deveria fazer: não deveria tentar voltar até a pensão
em que morava. Mas Angie não esperou que ela res-
pondesse, apenas avisou que voltaria às 17h e saiu
pela porta.

***

Henrietta era motorista de uma magnata “soltei-


rona” da família Astor. Todas elas sabiam o que isso
significava, mas, para a sociedade nova iorquina, era
melhor usar eufemismos.

Angie sabia que a amiga chegava ao Waldorf-


Astoria por volta das oito da manhã para esperar a
patroa. E como esperado, lá estava ela dentro de um
Cadillac Fleetwood, em frente ao grandioso hotel.

Angie ajeitou o vestido e caminhou até o carro.

***

Pelo resto do dia, Angie só conseguia pensar em


Mary e na situação que ela estava passando. E também
na vontade que tinha de poder voltar a beijá-la.

Mas ela sabia que era egoísmo pensar nisso


quando a jovem estava praticamente refugiada na sua
casa, então tentava não se ater muito tempo nesses
devaneios.

No seu intervalo, aproveitou para colocar a outra


parte do plano em ação e redigiu uma carta que pos-
taria assim que acabasse o expediente. Com sorte,
Jo a receberia dentro de poucos dias.

Apesar de tudo, até que o dia passou rápido. A


loja estava bastante movimentada para a época do
ano e Angie teve pouco tempo para ficar a sós com
os seus pensamentos.

Como teve que comprar selos e postar a carta para


Jo, Angie chegou alguns minutos mais tarde do que
havia avisado, mas assim que entrou em casa, um
cheiro delicioso a alcançou.

Mary estava na cozinha, com duas panelas no fogo e


usando o avental que Angie não usava há tanto tempo
que nem lembrava mais que tinha. A jovem estava de
costas e ainda não tinha notado a sua presença.

— Que cheiro maravilhoso é esse?

— Aaah! — Mary deu um salto. — Que susto!

— Desculpa — Angie disse com um sorriso e ca-


minhou até perto do fogão. — O que você tá fazendo?
Não precisava cozinhar.

— É a minha forma de agradecer por você ter me


recebido… É guisado e batatas cozidas, espero que
você goste.

— Se for tão bom quanto o cheiro, você não precisa


se preocupar. Tinha tudo isso na minha geladeira? —
Angie perguntou, preocupada que se tivesse carne,
deveria estar vencida há… meses, talvez.

— Não, comprei na mercearia ali na esquina.

— Você não deveria ter saído…

— A minha pensão ficava no Bronx, Angie. Não


acho que o Mark estaria por coincidência na sua
esquina.

— Tem razão… mas tome cuidado quando sair.


Pelo menos, até tudo estar resolvido.

A verdade era que Mary esteve apavorada durante


todo o tempo fora, mas ela queria poder fazer algo por
Angie como agradecimento, então foi mesmo assim.

— Eu prometo.

Angie não sabia direito o que fazer com as mãos,


seus instintos a mandavam usar para puxar Mary para
junto dela e lhe tascar um beijo, mas ela sabia que não
deveria, então decidiu usá-las para preparar um drink.
Ela pensou que Jackie iria estranhar ela não apa-
recer dois dias seguidos. Depois lembrou que Henri,
com certeza, iria deixar Jackie a par de tudo.

Preparou um uísque e o ofereceu para Mary, que


aceitou apesar de não saber direito se gostava da
bebida.

— E você… hmm… você vai me contar o seu plano?

Angie deu um gole no próprio drink antes de as-


sentir com a cabeça.

— Primeiro, eu preciso saber se você realmente


tem a intenção de ficar aqui e não quer mesmo voltar
para casa ou para o seu marido…

— Tenho!

Angie não conseguiu conter o sorriso se formando


no canto do seu lábio.

— Bom, nesse caso, acho que vamos ter que en-


ganar o Mark.

— Como?

— Em um momento que ele não estiver na pensão,


você vai até lá pegar as suas coisas e avisar a dona da
pensão que você está se mudando para Nova Orleans.

— Eu não quero me mud…

— Você não vai se mudar — Angie se adiantou em


explicar. — Mas ele vai achar que você se mudou,
você vai até passar o endereço para a dona da pensão
falando que ela pode mandar qualquer correspon-
dência para lá. Pode até informar seus superiores nas
docas quando for pedir demissão.

— Demissão?

— Você não vai poder voltar lá se estiver morando


em Nova Orleans. Além do mais, você iria ser demi-
tida de qualquer forma faltando dois dias seguidos
sem avisar.

— Eu não sei se estou entendendo…

— Quando o Mark se der conta que você fugiu, ele


vai tentar descobrir para onde você foi, vai assuntar a
dona da pensão, vai tentar achar você no trabalho. E
eles irão falar que você está na Louisiana. Assim ele
terá até um endereço para ir atrás de você.

— Tudo bem, mas ele não vai demorar muito para


perceber que eu não fui para lá.

— Pelo contrário. Você vai passar o endereço da


pensão que eu morei em Nova Orleans, que é geren-
ciada pela Josephine, uma amiga minha e da Dorothy
— Angie explicou com uma piscada.

Mary estava começando a entender melhor o plano.

— Eu escrevi para ela hoje — Angie continuou.


— Se ele for até lá, ela irá falar que você esteve na
pensão, passou poucas noites e seguiu para o Texas e
que de lá iria atravessar para o México… Se ele quiser
tentar caçar você no México, bom, boa sorte para ele.
Mas eu apostaria que ele vai voltar para o Kansas e
falar que não encontrou você.

Mary não disse nada, ainda tentando absorver a


ideia e entender os detalhes.

— Você acha que vai funcionar? — ela perguntou


depois de alguns minutos.

— Acho — Angie respondeu. — Você não é a


primeira de nós tentando se livrar de um marido
indesejado.

— Você já fez isso antes?

— Não esse plano exatamente, mas já estive em


outros esquemas. Precisamos nos ajudar, Mary, nin-
guém mais vai fazer isso por nós.

Mary assentiu, com uma sensação agridoce no


peito.

— Mas eu ainda não entendi como eu vou ter cer-


teza de que Mark não estará na pensão.

— Que tal eu te explicar os detalhes enquanto jan-


tamos esse guisado que está com um cheiro incrível?

Angie explicou passo a passo como iriam proceder


e Mary escutou tudo atentamente, ao mesmo tempo
impressionada e assustada com a situação em que
estava metida.

Naquela noite, não foi tão desconfortável dividir


a cama, porque falaram sobre o plano de Angie até
ambas pegarem no sono.

Mary sonhou com uma manhã de sol no Central


Park.

Estava sentada perto do lago sul, tomando um


sorvete, ela ouvia as crianças correndo em direção
ao zoológico, os patos grasnando e os passarinhos
cantando.

Quando olhou para a direita, viu que não estava so-


zinha; ao seu lado estava Angie, em um vestido floral
de verão. Ela tinha um sorriso convidativo e Mary se
perdeu nele. Pensou que deveria ser primavera, pois
o parque estava todo florido e colorido.

Mary se sentia feliz, mais feliz do que se lembra-


va de já ter sentido. Ela se aproximou de Angie para
capturar seus lábios e coroar aquela manhã com um
beijo, mas antes que pudesse, o céu fechou.

Ela se virou para olhar os arredores e tudo ficou


escuro, como se estivesse em preto e branco, e ela
não estava mais no Central Park. Estava na estação de
trem no Kansas, e à sua direita não estava mais Angie
e, sim, Mark, seu marido. Ele a puxou pelo braço, gri-
tando que a levaria de volta para casa.
Mary acordou assustada.

Logo percebeu que não estava no Kansas e que


o braço sobre a sua cintura não era de Mark. Angie
dormia sonoramente, mas diferente da noite anterior,
que elas dormiram cada uma em uma extremidade da
cama, naquela noite, Angie abraçava Mary por trás,
de forma protetora.

Mary não sabia se havia sido intencional ou se


Angie a havia abraçado durante o sono, mas o que
importava era apenas a sensação de segurança e as
borboletas que ela sentia no estômago por estar sendo
abraçada por Angie.

Respirou fundo, deixando o pesadelo ser esquecido


enquanto se aconchegava ainda mais contra Angie,
que, mesmo dormindo, se ajustou ao corpo de Mary,
a abraçando mais forte.

Em poucos minutos, estava dormindo de novo e,


dessa vez, seus sonhos se mantiveram coloridos.

***

— Você é a primeira mulher motorista que eu co-


nheci — Mary falou para Henri enquanto esperavam
Mark deixar a pensão.

Henrietta, Angie e Mary haviam se encontrado logo


cedo. Aquele era o dia de folga de Henri e ela prome-
teu que ajudaria no plano de Angie.
Elas estavam estacionadas perto da pensão em que
Mary morava em um Ford Tudor, carro de Henrietta.

— Não existem muitas mesmo — ela disse, olhan-


do Mary pelo retrovisor. — Mas a srta. Astor queria
uma mulher, além disso ela gosta que, em determi-
nadas situações, ela pode me apresentar como um
homem e evitar perguntas.

— Você não parece um homem — Mary contestou.


— Quero dizer, você tem cabelo curto e veste terno,
mas não parece com um homem.

— As pessoas veem o que elas querem ver, querida.

Angie assentiu deixando uma interjeição sarcás-


tica escapar. Aquela era uma verdade absoluta, ela
pensava.

— Mas eu acho muito legal que você seja motoris-


ta — Mary disse. — Eu nem sei dirigir.

— Você também não sabe, não é, Angie? — Henri


perguntou à amiga que assentiu. — Eu posso ensinar
vocês se quiserem.

— É sério? Seria incrível! — Mary disse animada,


e Angie lançou um sorriso grato para a amiga por ter
sido responsável por isso.

— Obrigada, Henri, acho que vamos aceitar.

— É aquele almofadinha ali? — Henrietta perguntou


ao ver um homem de cabelos castanhos penteados
para o lado sair pela porta da pensão.

Mary se abaixou no carro, deixando apenas os


olhos de fora para checar.

— É!

— Ele tá vindo para o lado de cá, fica abaixada aí,


Dorothy — Angie falou.

— Eu achei que o nome dela fosse Mary — Henri


disse.

— É Mary.

— Você a chamou de Dorothy.

— Eu sei.

— Você sempre confunde os nomes das suas


namoradas?

— Eu não confundi o nome dela — Angie excla-


mou. — É um apelido… e ela não é minha namorada.

Angie e Henri estavam muito ocupadas acompa-


nhando cada passo dado por Mark para notar a cara
de decepção de Mary no banco de trás do Ford.

— Ele já foi — Henri falou. — É a sua vez, Mary…


Dorothy… como você prefere, querida?

— Pode ser Mary — Mary disse. Ela gostava que


apenas Angie tivesse um apelido exclusivo para ela.

— Eu vou ficar na porta — Angie explicou. — Se


por acaso ele voltar mais cedo, a Henri vai dar um
sinal de luz e eu vou lá dentro buscar você, ok?

Mary assentiu, tentando não pensar na possibili-


dade de Mark voltar.

Mary não demorou muito tempo para pegar suas


coisas. E antes de ir, ela verificou seu esconderijo se-
creto debaixo de um dos tacos do piso e encontrou
um bolo de dinheiro.

Ela sorriu para si mesma por Mark não ter achado,


e colocou o maço de notas na bolsa.

Na saída, fez o que Angie instruiu e deixou o ende-


reço de Jo como local aonde ela estava indo. Pagou o
que devia e saiu, encontrando Angie no lado de fora
da porta.

— Pegou tudo?

Mary assentiu com vigor e, apesar da apreensão,


tinha um sorriso no rosto.

Henri também sorria quando as duas voltaram.

— Liberdade — ela exclamou para Mary, assim que


entrou no carro. — Parabéns!

— Obrigada!
— Obrigada pela ajuda, querida — Angie falou
para Henri.

— Para onde, madames?

— Para as docas — Angie instruiu.

Lá Mary pediu demissão e passou o mesmo en-


dereço como referência. As três passaram o resto da
manhã juntas, já que Mary e Angie convidaram Henri
para um brunch no Emerald como forma de pagamen-
to pelo favor.

O Emerald não era exatamente um local de funcio-


namento diurno, mas Jackie sempre estava lá, e não
se importava em recebê-las.

Elas sabiam que em qualquer outro lugar, Mary


provavelmente não se sentiria segura, sabendo que
Mark estaria a sua procura.

Jackie, que já sabia do plano, apenas perguntou se


tudo havia transcorrido bem. Tanto ela quanto Henri
não mencionaram nada sobre os hematomas no rosto
de Mary, que mesmo com a maquiagem aplicada pela
Angie, ainda eram visíveis, mas ambas sentiram a
mesma sensação de raiva e nojo que sentiam sempre
que uma delas era violentada.

— Você não deveria estar trabalhando, Angel? —


Jackie perguntou.

— Eu troquei a minha folga de quinta.


Foi a primeira vez que Mary parou para pensar que
Angie teve que mudar a sua rotina para ajudá-la. Ela
não sabia se se sentia lisonjeada ou envergonhada de
estar atrapalhando tanto.

— E o que vocês vão querer?

Henri não se fez de rogada e pediu logo um café


da manhã completo. Mary e Angie trocaram um olhar
engraçado antes de fazerem os seus pedidos.

Quando viram, já era quase duas da tarde e Henri


as levou de volta para a casa.

***

A porta do apartamento de Angie se fechando


indicava que Mary e Angie estavam sozinhas pela
primeira vez em horas naquele dia.

Mas dessa vez, embora o clima ainda estivesse es-


tranho entre elas, nenhuma das duas titubeou antes
de abrir os braços e compartilhar um abraço.

Angie envolvia Mary pela cintura, erguendo-a no


ar, enquanto a jovem a abraçava pelo pescoço. Era
um abraço comemorativo e aliviado, mas o cheiro
do perfume floral de Angie, fazia o coração de Mary
acelerar no peito.

Ela sentiu a suas bochechas se tocarem enquanto se


afastavam, e Mary engoliu em seco quando notou o
rosto de Angie tão perto do seu. Inconscientemente,
ela umedeceu os lábios e sentiu sua respiração mais
pesada de repente.

Angie limpou a garganta, antes de se afastar.

— Eu te falei que ia dar tudo certo!

Mary quase podia ouvir o próprio coração se par-


tindo, mas tentou não deixar transparecer, afinal,
Angie já estava fazendo muito por ela. Era injusto
exigir ainda mais.

— Você estava certa.

Elas passaram o resto do dia apenas fazendo con-


jecturas de como e quando Mark iria descobrir, e
qual seria a sua reação. Angie tinha certeza de que o
plano daria certo. Mary, por outro lado, receava que
tivessem deixado alguma ponta solta e que ele pu-
desse, de alguma forma, chegar até a casa de Angie.

Mas elas não ouviram notícias dele naquele dia,


nem no seguinte e nem no seguinte.

A rotina não mudou muito nas semanas que se se-


guiram. Angie ainda tinha que trabalhar e Mary ainda
tinha medo de sair de casa.

A única coisa que mudou, é que Mary passou a


notar que todas as noites, Angie a abraçava no meio
da madrugada. Ela não sabia se Angie fazia isso de
forma consciente, nem se percebia que fazia, porque
sempre que Mary acordava pela manhã, Angie já havia
levantado. Mas era a parte preferida do dia de Mary.

O único problema era que a cada noite que sentia o


corpo de Angie se moldando ao seu, ela se lembrava
daquela primeira noite e de como ela queria poder ter
Angie toda para ela de novo. Era como uma tortura.

— Ele não vai te achar aqui — Angie disse para


Mary, duas semanas após ela ter “fugido” para Nova
Orleans.

Mary se remexeu na poltrona perto da janela, que


espiava com frequência agora. Era quinta-feira e o dia
de folga de Angie e elas haviam acabado de tomar o
café da manhã juntas.

— Nós devíamos sair hoje — Angie sugeriu. —


Caminhar um pouco pela cidade, você precisa de ar
fresco.

Mary olhou para ela um pouco assustada. A verda-


de é que até para ir à mercearia da esquina ela estava
com medo naquelas semanas.

— E se a gente encontrar com ele?

— Tem sete milhões de pessoas nessa cidade,


Dorothy. Ele não vai te achar por acidente.

Mary ainda não parecia convencida, mas Angie


sabia que ela teria que enfrentar o seu medo, senão
nunca mais sairia de casa. Ela se levantou do sofá em
que estava e se sentou no braço da poltrona de Mary,
pegando a mão dela entre as suas.

— Eu vou estar com você o tempo todo.

Era impressionante como Angie a fazia se sentir


muito mais segura. E ela tinha razão, Mary precisa-
va sair de casa, então apenas assentiu com a cabeça.

Angie convenceu Mary a irem ao Central Park e,


uma hora depois da conversa, elas já estavam cami-
nhando pelas ruas do parque.

Os primeiros sinais de que o inverno estava acaban-


do e cedendo lugar a primavera já eram perceptíveis: o
céu estava em um tom de azul intenso, o clima ameno
e as pessoas animadas e falantes.

Quando Mary notou que caminhavam para o lado


sul do parque, e para perto do zoológico, ela sentiu
seu coração acelerar com a lembrança do pesadelo
que havia tido semanas antes e que havia se repetido
outras duas vezes depois.

Angie, que estava alheia ao medo de Mary, conti-


nuava falando animada sobre um espetáculo que elas
deveriam assistir na semana seguinte no Biltmore.

Mary respirou fundo e tentou se concentrar na voz


de Angie, que normalmente a acalmava.

— A gente pode ir pelo lado de lá? — Mary pergun-


tou quando chegaram em uma bifurcação, apontando
para a Center Drive em vez da East Drive, que levaria
ao zoológico.

— Claro! — Angie disse, e continuou a falar ani-


mada sobre o espetáculo. — Eu assisti ano passado
com Jackie e Henri, e tenho certeza de que você vai
adorar, se passa em uma fazenda e tudo.

— Como era mesmo o nome? — perguntou, dessa


vez tentando prestar atenção de verdade.

— Oklahoma!.

— Eu adoraria assistir com você — Mary comen-


tou e como recompensa recebeu um largo sorriso de
Angie.

Elas andavam lado a lado e vez ou outra, Mary


sentia a mão de Angie roçar na sua. Assim como os
abraços que recebia à noite, ela não sabia se era in-
tencional ou não, mas lamentava não poder pegar a
mão de Angie.

Passaram a manhã toda no parque e, para o alívio


de Mary, o céu não fechou, nem o parque ficou preto
e branco e nem Mark apareceu. O pesadelo havia sido
apenas isso. Um pesadelo.

Angie, por outro lado, Mary esperava que não fosse


apenas um sonho. Um sonho lindo e inalcançável.

Nos primeiros dias em que ela bateu na porta de


Angie, havia muita coisa acontecendo e ela sabia que
seria uma péssima ideia envolver Angie ainda mais
na sua história. Sabia que seria egoísta da sua parte
exigir ainda mais coisas dela.

Mas agora, que já haviam passado semanas, Mary


pensava mais e mais em voltar a beijar Angie. Pensava
mais e mais em se declarar para ela. Pensava mais e
mais nela.

Pensava tanto nisso, que achava que poderia ficar


louca se não tomasse alguma atitude.

O problema era que Mary era nova nisso tudo e não


sabia direito como agir. Além do mais, ela se sentia
abusando da hospitalidade de Angie para ter cora-
gem de pedir mais.

Naquela noite, no entanto, quando sentiu o braço


de Angie envolvendo seu corpo, como já havia se tor-
nado comum, e a respiração dela na sua nuca. Mary
decidiu que, pela sua saúde mental, não passaria do
dia seguinte.

Ela iria falar para Angie como se sentia e arcaria


com as consequências fossem quais fossem.

***

Sexta-feira, Angie chegou em casa enquanto Mary


terminava o jantar.

Essa virou uma rotina para elas, mesmo Angie fa-


lando que Mary não precisava preparar o jantar, nem
cuidar da casa como estava fazendo desde que se
hospedou lá. Mas Mary se sentia melhor em ser útil,
e a ideia de fazer algo para agradar Angie a deixava
feliz. Especialmente quando Angie fechava os olhos
depois da primeira garfada, apreciando os sabores
do que quer que Mary tivesse preparado. Mary havia
passado a vida tendo que cozinhar para o pai e o
irmão, e ela se garantia muito bem em uma cozinha.

— Nossa, que cheiro bom! — Angie disse, cami-


nhando até o fogão, mas, em vez de se inclinar sobre
o fogão para sentir melhor o cheiro da sopa, como
Mary achou que ela faria, Angie se inclinou na dire-
ção dela e plantou um beijo na sua bochecha. — Eu
só vou trocar esse vestido, porque esse cinto está me
apertando o dia todo!

Então saiu, como se nada tivesse acontecido, dei-


xando Mary com as bochechas ardendo de tão quente
e o queixo levemente caído. Mary levou a mão ao
local em que segundos antes estavam os lábios de
Angie, como se pudesse guardar a sensação por mais
tempo. Se aquilo não era um sinal de que ela deve-
ria sim seguir seu plano e falar para Angie como se
sentia, ela não sabia mais o que poderia ser.

— Eu tenho novidades — Angie exclamou anima-


da, assim que voltou para a cozinha. — Abriu uma
vaga para trabalhar no estoque lá na loja, eu disse que
tinha alguém para indicar… se você tiver interesse,
eu posso conseguir uma entrevista para você!

— É sério? — Mary respondeu animada. — Seria


ótimo!

Por mais que Mary gostasse de cuidar da casa de


Angie, ela sabia que precisava trabalhar de verdade
e sabia também que teria que achar um apartamento
para ela.

Ela tentava não pensar muito nisso, porque a ideia


de não dormir mais com Angie fazia seu coração se
apertar no peito. Mas ela sabia que era a coisa certa
a fazer.

— Amanhã mesmo vou falar com o meu gerente


— Angie respondeu animada, antes de dar a primeira
colherada na sopa de legumes. — Hmmm! Isso está
uma delícia!

Mary sorriu para si mesma, como sempre fazia


quando conseguia arrancar essa reação de Angie.
Enquanto jantavam, Angie contava sobre como era
trabalhar na Macy’s e sobre o emprego que Mary iria
tentar a vaga.

Apesar de feliz, Mary estava tensa, pensando o


tempo todo em como abordar o tema. Depois do
jantar, ambas estavam na sala tomando um drink,
que Angie jamais dispensava, e ouvindo a rádio pre-
ferida delas.

— Você está estranhamente calada hoje, Dorothy.

— Você quer dançar? — Mary disparou meio mi-


lésimo de segundo depois do comentário de Angie.
— Hmm… agora?

— Por que não? — Mary sentia as mãos suando.

— É claro — Angie respondeu simplesmente. —


Mas se eu soubesse que você queria dançar, teria
sugerido irmos ao Emerald, pelo menos tem música
ao vivo.

— Eu… hmm… eu queria ficar sozinha com você!

Angie abriu um sorriso que era ao mesmo tempo


gentil e prepotente, de uma forma que apenas ela po-
deria fazer. E que Mary adorava. Angie deu um gole
no seu uísque e o colocou na mesa de centro antes de
se levantar e estender a mão para Mary.

— Senhorita!

Angie as conduziu até o tapete no meio da sala,


onde havia mais espaço.

— Você está na WABC-FM, fique agora com o ro-


mantismo de Only Forever de Bing Crosby — elas
escutaram o radialista anunciar antes das primeiras
notas no violino preencherem o espaço.

Um sorriso de lado se formou no rosto de Angie,


o que fez com que o nervosismo de Mary dissipasse
só um pouco.

Igual à noite em que se conheceram, Angie con-


duziu a dança, com uma mão na cintura de Mary e a
outra segurando a sua mão direita.

— Eu estava pensando… — Mary ensaiou falar


enquanto a música estava na parte instrumental. —
Eu estava pensando…

— Sim? — Angie tentou ajudar.

Mary soltou um suspiro alto.

— Por que isso é tão difícil?

— Isso o quê?

— Isso! Falar o que eu sinto!

Foi apenas naquele momento que Angie começou


a entender para onde a conversa estava se dirigindo,
e, embora estivesse dançando com Mary ao som de
uma das músicas mais românticas do mundo, sentiu
uma certa aflição se apossar dela.

— E o que você sente, Dorothy?

Mary não sabia exatamente o que falar, nem como


falar, mas sabia que deveria ser naquele momento.

— Quando você não está aqui, eu fico contando


os minutos para você voltar — ela confessou em um
sussurro. — E quando você está, fico só pensando
em te beijar!

Angie não falou absolutamente nada por alguns se-


gundos, apenas continuou a conduzir a dança. Mary
começou a sentir o coração acelerar.

— Você… hmm… não vai… não vai dizer nada?

Angie finalmente abriu um sorriso de lado, o


mesmo que Mary conheceu naquela primeira noite
no Emerald, então inclinou Mary, a amparando pela
cintura, e lhe plantou um beijo.

No segundo que Mary sentiu novamente os lábios


suaves de Angie nos seus, ela fechou os olhos.

O que, a princípio, era um beijo delicado, logo virou


um beijo cheio de saudade e sentimentos reprimidos
por meses. Nenhuma das duas precisaria falar mais
nada, então deixaram que suas emoções e desejos as
guiassem.

Mary sabia que nunca mais conseguiria ficar tanto


tempo sem sentir o gosto de Angie de novo. E, no
que dependesse dela, nunca mais precisaria!

***

A vida não poderia estar melhor. Mary tinha um


emprego novo, uma namorada, amigas que a enten-
diam e a aceitavam, novos sonhos e objetivos.

Um mês havia se passado desde que Angie e ela


haviam oficializado a sua relação e duas semanas
desde que ela havia começado no emprego novo.
Sinceramente, ela achava que a vida não poderia ficar
melhor.
Elas chegaram juntas em casa em uma terça-fei-
ra, e Mary foi direto para a geladeira ver o que elas
poderiam comer enquanto Angie checava as cartas
que haviam tirado da caixa do correio no saguão do
prédio.

— Mary, vem cá! — Angie chamou.

O tom da sua namorada e o uso do seu nome em


vez do apelido que ela adorava, fez com que Mary
não perdesse nem um segundo.

— O que foi?

— É uma carta da Jo! — ela disse, transparecendo


a apreensão que sentia.

Mary sabia exatamente o que aquilo significava.


Ela se sentou no sofá e puxou Angie pelo pulso para
se sentar ao seu lado.

— Leia! — ela disse para a namorada.

Angie passou os olhos pelo texto, que não era


muito longo. Então limpou a garganta antes de ler
em voz alta:

“Querida, Angie
Como você havia alertado, o senhor Mark Scott Keller
esteve aqui atrás de sua esposa, Mary Ann. Informei-
lhe que a jovem havia se hospedado aqui, mas que
seguira para o Texas e que de lá partiria para o México.
Devo dizer que ele não pareceu muito feliz com a
notícia, e fico feliz pela moça estar longe dele.
Ontem estive na estação e conversei com Gary,
um amigo de Dorothy que trabalha lá. Ele verificou
os nomes dos passageiros e me disse que o sr. Keller
comprou uma passagem para Wichita, Kansas, e
partiu no mesmo dia.
Fico feliz em poder ajudá-la e espero poder rever você
em breve.
Com carinho de sua amiga,
Jo.”
— Ele voltou para casa — Mary exclamou.

— Eu te falei que o plano ia funcionar! — Angie


gritou, visivelmente aliviada com as palavras que lera.

Mary pulou com os braços abertos sobre a na-


morada que a amparou. Mary sentia pela primeira
vez, talvez na sua vida toda, uma sensação plena de
liberdade.

Os lábios de Angie a enchendo de beijos pelo rosto


e boca era apenas a coroação desse sentimento.

— Temos que comemorar de verdade — Angie


anunciou.
Mary Ann concordou e em pouco mais de uma
hora, estavam no Emerald.

— Um brinde! — Angie entoou.

Mary, Angie, Jackie e Henri brindaram todas juntas


a boa-nova.

Beberam a espumante especial que Jackie tinha


para momentos como aquele, então Mary convidou
sua namorada para dançar.

— Obrigada por ter estado ao meu lado todo esse


tempo — Mary disse com sinceridade enquanto dan-
çavam ao som de Frenesi de Artie Shaw.

— Eu queria estar ao seu lado, Dorothy!

— Eu nem sei como te agradecer.

— Você não precisa me agradecer. Ver você assim


feliz é o suficiente.

Mary respirou fundo antes de falar aquilo que sabia


ser o certo, mas que de alguma maneira não parecia
certo.

— Angie… eu estava pensando, talvez seja a hora


de eu procurar um apartamento.

— Quê?

— Eu não quero ficar abusando da sua bondade,


querida.
— Você não está abusando de nada, meu amor,
eu quero você lá!

— Mas…

Era óbvio que Mary não queria deixar o aparta-


mento, estava apaixonada por Angie, mas não queria
parecer abusada.

— Se faz você se sentir melhor, podemos dividir


as contas e o aluguel. Dessa forma, o apartamento
será nosso, não meu. O que você me diz?

— Você quer isso de verdade? — Mary perguntou,


sentindo uma lágrima se formar junto com a esperan-
ça que preenchia seu peito.

— Mais do que qualquer coisa! — Angie afirmou,


antes de se inclinar sobre Mary e lhe beijar os lábios.

Fim.

Você também pode gostar