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Ficha Técnica

Título original: Du findest mich am ende der welt


Título: Encontras-me no Fim do Mundo
Autor: Bárbara Nortonde Matos
Tradução: Bárbara Villalobos
Revisão: Fernando Milheiro
Capa: Neusa Dias/Oficina do Livro, Lda.
ISBN: 9789897260520
QUINTA ESSÊNCIA
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2610-038 Alfragide – Portugal
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© Thiele Verlag; Título original: Du findest mich am ende der welt
(publicado pela primeira vez na Alemanha por Thiele Verlag); Publicado com
o acordo de Salmaia Lit.
Todos os direitos reservados de acordo com a legislação em vigor
E-mail: quintaessencia@oficinadolivro.leya.com
www.quintaessencia.com.pt
www.leya.pt

Esta edição segue a grafia do novo acordo ortográfico.


Às vezes olha-se para uma coisa cem, mil vezes,
antes de verdadeiramente a vermos pela primeira vez.
CHRISTIAN MORGENSTERN
1

A minha primeira carta de amor terminou em catástrofe. Eu tinha então


quinze anos e cada vez que via Lucille quase desmaiava de amor.
Chegou à nossa escola pouco antes das férias de verão, uma criatura de
outra galáxia. Ainda hoje, muitos anos depois, me parece que tinha uma
magia especial quando surgiu pela primeira vez diante de toda a turma
com um vestido azul-celeste vaporoso e sem mangas e o seu cabelo loiro
comprido emoldurando a pequena cara em forma de coração.
Estava muito tranquila, muito direita, sorrindo, a luz passava através
dela, e a nossa professora, Madame Dubois, percorreu a sala com um
olhar examinador.
– Lucille, de momento podes sentar-te ao lado de Jean-Luc, há um lugar
livre – disse finalmente.
Humedeceram-se-me as mãos. Um ligeiro murmúrio percorreu a sala e
eu fitei Madame Dubois como se fosse a fada boa dos contos. Poucas
vezes na minha vida tive essa sensação que só se experimenta quando a
felicidade nos invade de maneira totalmente imerecida.
Lucille pegou na sua mala e chegou quase levitando até ao meu banco, e
eu agradeci de todo o coração ao meu colega Étienne por ter sido tão
providencial ao sofrer uma complicada fratura de ossos no braço apenas
uns dias antes.
– Bonjour, Jean-Luc – disse Lucille muito educadamente. Eram na
realidade as primeiras palavras que pronunciava e o olhar franco dos seus
olhos claros, azuis como o mar, caiu sobre mim com o peso de uma
nuvem.
Aos quinze anos, eu não sabia que as nuvens pesam toneladas e não
podia sequer imaginá-lo uma vez que flutuavam no céu tão brancas e
ligeiras como algodão-doce.
Aos quinze anos eu não sabia muito.
Assenti, sorri, e procurei não enrubescer. Todos os demais nos fitaram.
Senti que o sangue se me acumulava ardendo nas faces, e ouvi os outros
rapazes rirem-se dissimuladamente. Lucille sorriu como se não tivesse
notado nada, o que muito agradeci. Sentou-se logo com toda a
naturalidade no lugar que lhe haviam atribuído e tirou os seus cadernos.
Amavelmente, afastei-me um pouco para o lado. Estava quase sem
respiração, mudo de felicidade.
A aula começou e, desse dia, apenas recordo uma coisa: a rapariga mais
gira da turma estava sentada ao meu lado e, quando se inclinava para
diante e se apoiava nos braços, eu podia ver a penugem suave e clara das
suas axilas e um pedaço diminuto da pele branca e delicada que ia até ao
seu peito, oculto sob o vestido azul-celeste.

Os dias seguintes foram um louco torvelinho de felicidade. Não falava


com ninguém, ia dar grandes passeios pela praia de Hyères, a pequena
cidade no extremo sul de França onde nasci, e lançava ao mar os meus
sentimentos transbordantes. Em casa fechava-me no quarto e ouvia música
a todo o volume até a minha mãe bater com força à porta e me perguntar
se tinha enlouquecido.
Sim, estava louco! Louco da forma mais bela que se pode imaginar.
Louco no sentido de louco. Nada estava no mesmo lugar, e eu ainda
menos. Tudo era novo, diferente. Com a ingenuidade e a paixão de um
rapaz de quinze anos, comprovei que já não era uma criança. Passava
horas e horas diante do espelho, esticava-me e observava-me de todos os
ângulos com olhar crítico, para ver se se notava.
Representava imperturbável milhares de cenas que a minha imaginação
febril criava e que acabavam sempre da mesma maneira: com um beijo na
boca vermelho-cereja de Lucille.
De súbito, só esperava pelo momento de ir de manhã para a escola.
Chegava um quarto de hora antes de o porteiro abrir a enorme porta de
ferro com a esperança infundada de me encontrar a sós com Lucille. Nem
uma só vez ela chegou tão cedo.
Recordo que um dia, na aula de matemática, deixei cair o lápis sete
vezes para debaixo do banco apenas para me aproximar um pouco mais da
minha amada, para roçá-la como que sem querer até ela, reprimindo um
risinho, afastar os pés e as suas delicadas sandálias para que eu pudesse
apanhar o que simulava estar à procura.
Madame Dubois lançou-me um olhar severo por cima dos seus óculos e
ralhou-me por não me concentrar. Eu limitei-me a sorrir. Que sabia ela?

Umas semanas depois vi, uma tarde, Lucille diante da livraria com duas
raparigas de que se havia feito amiga. Riam-se e agitavam pequenos sacos
de plástico brancos na brisa de verão.
Pouco depois, como que por uma maravilhosa casualidade, despediram-
se e Lucille permaneceu um pouco mais diante da montra a ver os livros.
Enfiei as mãos nos bolsos das calças e aproximei-me dela devagar.
– Olá, Lucille – disse com a maior naturalidade possível, e ela voltou-se,
surpreendida.
– Oh, Jean-Luc, és tu! – respondeu. – Que fazes aqui?
– Pois… – Brinquei com a ponta da minha sapatilha direita no chão. –
Nada de especial. Só estou a dar uma volta.
Pus-me a olhar para o seu pequeno saco branco, pensando com
desespero no que poderia dizer a seguir.
– Compraste um livro para as férias?
Ela abanou a cabeça, e o seu cabelo comprido e brilhante revolteou no
ar como finos fios de seda.
– Não, papel de carta.
– Ah! – As minhas mãos fecharam-se dentro dos bolsos das calças. –
Gostas… eh… de escrever cartas?
Ela encolheu os ombros.
– Sim, muito. Tenho uma amiga que vive em Paris – disse com uma
ponta de orgulho.
– Oh, que bom! – balbuciei, esticando os lábios com um gesto de
aprovação. Para um rapaz da província, Paris estava tão longe como a lua.
E, para além disso, nesse momento eu não fazia ideia que um dia iria lá
viver e que, como galerista não de todo fracassado, passearia pelas ruas de
Saint-Germain como um verdadeiro homem do mundo.
Lucille fitou-me inclinando a cabeça para o lado e os seus olhos azuis
lançaram faíscas.
– Gosto ainda mais de receber cartas – disse. Soava a um convite.
Esse foi o instante que ditou o meu enterro. Fitei os olhos sorridentes de
Lucille e, durante uns segundos, deixei de ouvir o seu palavreado, pois no
meu cérebro ia tomando forma uma ideia grandiosa.
Escrever-lhe-ia uma carta. Uma carta de amor como o mundo jamais
havia visto. A Lucille, a mais bela de todas!
– Jean-Luc? Eh, Jean-Luc! – Olhou-me com reprovação e franziu os
lábios. – Não me estás a ouvir!
Desculpei-me e perguntei-lhe se queria ir comer um gelado comigo.
«Porque não?», disse, e sentámo-nos na geladaria que havia nessa mesma
rua. Lucille estudou com atenção a lista não demasiado longa, passou as
folhas para trás e para diante e, por fim, pediu uma Coup mystère.
É curioso como mais tarde se recordam todos esses detalhes totalmente
insignificantes. Por que motivo se fixam na memória essas coisas tão
pouco importantes? Ou no final possuem uma transcendência que num
primeiro momento não captamos?
A Coup mystère, na realidade um pequeno recipiente de plástico
rematado na ponta com gelado de baunilha e noz e que se podia retirar
diretamente da grande arca frigorífica, servia-se nos cafés numa elegante
taça prateada.
Em qualquer dos casos, tudo soava mais prometedor do que era… Mas
o que é que não iria soar prometedor nessa tarde de verão na qual o ar
cheirava a alecrim e flor-de-baunilha? Lucille estava sentada diante de
mim com o seu vestido branco, remexia o gelado com a colher comprida e
deu um gritinho de alegria quando chegou à fantástica capa de merengue
e, logo a seguir, à bola de pastilha elástica que havia no fundo.
Procurou pescar a pastilha redonda e acabámos a rir imenso porque o
objeto vermelho e resvaladiço escorria uma e outra vez da colher até que
Lucille meteu os dedos na taça com decisão e levou a pastilha à boca com
um «Finalmente!» triunfal.
Eu olhava fascinado. Lucille disse muito contente que era o melhor
gelado que tinha comido desde há muito, fazendo rebentar um grande
balão de pastilha elástica diante da boca.
E quando, por fim, a acompanhei a casa e percorremos os caminhos
poeirentos de Les Mimosas um ao lado do outro, eu tinha quase a
sensação de que ela me pertencia.

No último dia de aulas antes das intermináveis férias de verão, escondi


uma carta na carteira de Lucille. O coração batia-me com força. Tinha-a
escrito com toda a paixão inocente de um rapaz que pensava ser adulto e
que estava, porém, muito longe de o ser. Tinha procurado metáforas
poéticas para descrever a minha amada, exprimira todos os meus
sentimentos com grande emoção, utilizara todas as palavras
grandiloquentes que existiam, confessara a Lucille o meu amor eterno,
havia plasmado todas as visões atrevidas do futuro e tão-pouco me
esquecera de uma proposta muito concreta: pedi a Lucille que, nos
primeiros dias de férias, fosse comigo às Îles d’Hyères, numa excursão
romântica à ilha Porquerolles na qual depositava grandes esperanças. Ali,
na praia deserta, pela tarde, oferecer-lhe-ia um pequeno anel de prata que
havia comprado no dia anterior com todo o dinheiro que consegui que a
minha bondosa mãe me adiantasse da mesada. E depois – enfim –,
chegaríamos ao beijo tão ansiado por mim, o qual selaria para sempre o
nosso amor juvenil e imortal. Para toda a eternidade.
«E assim ponho o meu coração ardente nas tuas mãos. Amo-te Lucille.
Por favor, responde-me depressa.»
Tinha passado horas a pensar em como acabar a carta. Riscara a última
frase uma e outra vez até que a minha impaciência foi mais forte. Não, não
queria esperar um único segundo mais do que o necessário.
Hoje não posso deixar de rir-me quando penso em tudo aquilo. Mas por
muito que queira distanciar-me daquele rapaz apaixonado e cheio de
entusiasmo, resta uma pontada de lástima, devo admiti-lo.
Porque hoje sou diferente, da mesma maneira que todos mudamos.
Porém, naquele dia cálido de verão que começou de forma tão
alentadora e terminou de modo tão trágico, eu rezava para que Lucille
correspondesse aos meus sentimentos exaltados. Evidentemente, as
minhas preces eram de natureza retórica. No fundo do meu coração estava
absolutamente seguro de uma coisa: eu era o único rapaz da turma com o
qual Lucille tinha comido uma Coup mystère.

Não sei porque é que, naquela tarde, tive de rondar tão de perto a casa de
Lucille. Talvez tudo tivesse corrido de outra forma se eu não tivesse
dirigido os meus passos impacientemente em direção a Les Mimosas,
onde ela vivia.
Ia precisamente a virar pelo pequeno caminho de areia, ao longo do qual
havia um muro alto de pedra quase oculto pelas mimosas de tons
dourados, quando ouvi o riso de Lucille. Fiquei imobilizado. Escondido
atrás do muro, as costas apoiadas na pedra áspera, inclinei-me um pouco
para diante.
E então vi-a. Lucille estava deitada de barriga para baixo à sombra de
uma árvore, as suas duas amigas à esquerda e à direita. As três soltavam
risinhos alegres e pensei com certa benevolência que, por vezes, as
raparigas podem ser bastante simples. Mas então comprovei que Lucille
tinha algo na mão. Era uma carta. A minha carta!
Fiquei imóvel, agachado por baixo de cascatas de ramos de mimosas, e
apertei as mãos contra a pedra quente, negando-me a aceitar a imagem que
se me havia gravado na retina com dolorosa nitidez.
Todavia, era verdade, e a voz clara de Lucille, que soou de novo mais
forte, cravou-se-me no coração como um pedaço de cristal.
– E ouçam isto: «E assim ponho o meu coração ardente nas tuas
mãos…» – leu exagerando a entoação. – Não é de começar a gritar?
Elas começaram a rir e uma das amigas rebolou-se na manta, agarrou a
barriga com as mãos e gritou:
– Socorro, fogo, fogo! Bombeiros, bombeiros! Au secours, au secours!
Incapaz de me mover, fiquei a olhar para Lucille que, nesse momento,
se dedicava a revelar alegremente e sem compaixão os meus segredos
mais íntimos, a trair-me, a destroçar-me.
Ardia-me todo o corpo, mas não saí dali a correr para me salvar.
Invadiu-me um sentimento quase autodestrutivo, queria ouvir tudo, até ao
final amargo.
Entretanto, as raparigas já tinham recuperado do seu ataque de riso.
Uma, a que havia gritado pelos bombeiros, arrancou a carta das mãos de
Lucille.
– Deus meu, como escreve! – gritou. – Que presumido! «És o mar que
me transborda, és a rosa mais bela do meu… arbusto?»… Oh là là! Que
significa isso?
As raparigas começaram a dar gritinhos e eu corei de vergonha.
Lucille voltou a pegar na carta e dobrou-a. Era evidente que a haviam
lido toda e se haviam divertido muito.
– Quem sabe de onde a terá copiado! – exclamou muito altiva. – O
nosso pequeno grande poeta!
Por um momento pensei sair do meu esconderijo para lançar-me sobre
elas, abaná-las, gritar-lhes e pedir-lhes explicações, mas reteve-me uma
última réstia de orgulho.
– E – perguntou por fim a outra amiga, juntando-se à conversa –, o que
vais fazer agora? Vais sair com ele?
Lucille brincou com o seu cabelo dourado de fada e eu contive a
respiração enquanto esperava pela minha sentença de morte.
– Com Jean-Luc? – disse, aumentando o volume. – Estás louca? Que
vou fazer com ele? – E como se isso não fosse suficiente, acrescentou: –
Ainda é um miúdo! Não quero saber como beija, que nojo! – Estremeceu.
As raparigas gritaram de entusiasmo.
Lucille soltou uma risada, um pouco demasiado forte e estridente,
pensei, e então despenhei-me, um Ícaro a afundar-se nas profundezas.
Tinha querido tocar o sol e tinha-me queimado. A minha dor era
infinita.
Sem dizer absolutamente nada, afastei-me, percorri o caminho de volta
a cambalear, aturdido pelo cheiro das mimosas e a crueldade das
raparigas.
O perfume das mimosas ainda hoje me desperta sentimentos não muito
agradáveis, mas em Paris essas delicadas plantas encontram-se entre o
suprassumo das floristas, embora não sejam muito apropriadas para uma
jarra.
As palavras de Lucille ressoavam nos meus ouvidos. Nem sequer me
apercebi das lágrimas que me escorriam pelas faces. Ia cada vez mais
depressa até que comecei a correr.
Como é essa frase que se diz e que soa tão bem? A toda a gente se parte
o coração alguma vez, e a primeira é a que mais dói.
*

Assim terminou a história do meu primeiro grande amor. O anel de prata


acabou nesse mesmo dia no fundo do mar, em frente à costa francesa. Eu,
com toda a fúria e o desamparo do meu coração ferido, lancei-me às águas
azuis que, nesse dia radiante – lembro-me perfeitamente – tinha a cor dos
olhos de Lucille.
Nessa hora tão escura, que era ainda mais dolorosa se comparada com a
alegria que reinava em meu redor, jurei a mim mesmo – e o mar infinito
foi minha testemunha, talvez também alguns peixes que ouviam
imperturbáveis as palavras em que jurei a mim mesmo – nunca mais voltar
a escrever uma carta de amor.

Poucos dias depois fomos para Sainte-Maxime para casa da irmã da minha
mãe, onde passámos as nossas férias de verão. E quando a escola
recomeçou voltei a sentar-me ao lado do querido e velho Étienne, meu
amigo de sempre, que havia regressado de férias totalmente recuperado.
Lucille, a bela traidora, cumprimentou-me com a pele bronzeada e um
sorriso. Disse que aquilo das Îles d’Hyères não tinha podido ser, por
desgraça, porque já tinha outros planos. A amiga de Paris, blá blá blá. E
entretanto eu já tinha partido. Olhou-me com uma expressão inocente.
– Está bem – limitei-me a dizer. – Era apenas um capricho.
Voltei-me de imediato e deixei-a ali, com as suas amigas. Eu tinha
crescido.

Não contei a ninguém a minha experiência, nem sequer aos meus


intranquilos pais que, nos horríveis dias posteriores, me viam atirado
sobre a cama a fitar o teto com os olhos muito abertos e procuravam
consolar-me sem pretender arrancar-me o meu segredo, algo que até hoje
lhes agradeço.
– Vai-te passar – disseram. – Na vida, umas vezes vai-se para cima,
outras para baixo, sabes?
Chegou um momento – por incrível que me parecesse – em que a dor
desapareceu e em que recuperei a minha antiga alegria.
No entanto, desde esse verão que mantenho uma relação algo
ambivalente com a palavra escrita. Ao menos quando se trata de amor.
Talvez por isso me tenha tornado galerista. Ganho dinheiro com quadros,
amo a vida, gosto de mulheres bonitas e vivo em perfeita harmonia com o
meu fiel dálmata Cézanne num dos melhores bairros de Paris. Não me
podia ter corrido tudo melhor.
A minha promessa de não voltar jamais a escrever uma carta de amor
foi mantida. Peço desculpa por isso.
Mantive-a até… bem, até que quase vinte anos mais tarde me sucedeu
uma história realmente incrível.
Uma história que começou há poucas semanas com uma carta
sumamente curiosa que apareceu uma manhã na abertura da minha caixa
do correio. Era uma carta de amor e virou do avesso todo o meu mundo
harmonioso.
2

Olhei para o relógio. Uma hora. Marion estava atrasada, como sempre.
Com cuidado, retirei a proteção e endireitei Le grand rouge, uma
composição gigantesca em vermelho, que era a peça central da exposição
cuja inauguração deveria começar às sete e meia.
Julien estava sentado com um copo de vinho tinto num dos sofás
brancos e fumava o seu enésimo cigarro.
Sentei-me ao seu lado.
– Então? Nervoso?
O seu pé direito, enfiado numa sapatilha Van aos quadrados, não parava
de se mexer.
– Claro, pá! Que pensavas? – Deu uma passa profunda e o fumo
ascendeu diante do seu rosto juvenil. – É a minha primeira exposição a
sério.
A sua franqueza desarmava-me sempre. Sentado entre as almofadas,
com a sua camisa branca pouco chamativa, as suas calças de ganga e o seu
cabelo loiro e curto, tinha algo de Blinky Palermo em jovem.
– Vai correr mal – disse eu. – Embora já tenha visto lixo pior.
Isso fê-lo rir.
– Eh pá, tu sabes mesmo dar alento! – Apagou o cigarro no pesado
cinzeiro de cristal que havia numa mesinha junto ao sofá e, num salto,
pôs-se de pé. Percorreu como um tigre todas as paredes das salas da
galeria, circundou as vitrinas protetoras e contemplou os seus quadros de
cores brilhantes e de grande formato. – Ei, não são assim tão maus! –
opinou finalmente cerrando os lábios. Retrocedeu uns passos. – Se bem
que ter-nos-ia sido útil mais espaço. Então tudo teria ficado melhor. –
Gesticulou com as mãos no ar, com dramatismo. – Espaço… superfície…
extensão.
Eu bebi um gole de vinho tinto e reclinei-me no sofá.
– Sim, sim. Da próxima vez arrendamos o Centro Pompidou – disse, e
recordei-me como Julien tinha aparecido na minha galeria alguns meses
antes. Era o último sábado antes do Natal, toda a Paris resplandecia em
prata e branco. Excecionalmente, não havia filas diante dos museus, tout
le monde andava à caça de presentes e também na minha loja a campainha
havia tocado o dia inteiro.
Tinha vendido três quadros relativamente caros, e não a clientes
habituais. Estava claro que as celebrações iminentes tinham despertado
nos habitantes de Paris interesse pela arte. Seja como for, já estava a
fechar quando de repente apareceu Julien à porta da Galerie du Sud, nome
com que havia batizado o meu pequeno templo da arte na rue de Seine.
Não gostei especialmente, podem crer. Não há nada mais exasperante
para um galerista que os pinta-monos que se apresentam sem terem
marcado uma reunião, abrem as suas grandes pastas e querem mostrar-nos
o que eles pensam ser arte contemporânea. E todos (todos!) – salvo
algumas exceções – pensam mais ou menos que são o próximo Lucien
Freud.
Na verdade, devo a Cézanne ter ficado a conversar com aquele jovem
que levava um gorro enfiado até às sobrancelhas e no qual, desde esse dia,
depositei grandes esperanças.
Cézanne é – como já mencionei – o meu cão, um dálmata de três anos
muito vivaz e, como é fácil de adivinhar e apesar de ter de lutar
diariamente com a arte contemporânea, nutro uma paixão discreta pelo
pintor francês com o mesmo nome, esse genial precursor da modernidade.
Para mim, as suas paisagens são únicas, e a minha maior felicidade seria
possuir um Cézanne autêntico, mesmo que fosse o mais pequeno de todos.
Estava pronto para me desfazer de Julien à porta quando Cézanne saiu a
ladrar da sala interior, patinou pelo pavimento liso de madeira e lançou-se
sobre o jovem da parca lambendo-lhe as mãos com fervor sem deixar de
ganir.
– Cézanne, fora! – gritei, mas Cézanne não me ligou, como sempre.
Infelizmente está muito mal-educado.
Foi talvez um certo espanto que me fez prestar atenção ao jovem que
agora se entretinha com o meu cão.
– Comecei nos bairros suburbanos… com os grafitos. – Sorriu. – Era
muito excitante sair à noite com os sprays. Os viadutos das autoestradas,
as fábricas antigas, os muros dos colégios e até um ou outro comboio. Mas
agora pinto sobre tela, não se preocupe.
Meu Deus, um grafiteiro, era só o que me faltava! Suspirando, abri a
pasta que me estendeu. Folheei a alegre mescla de esboços, grafitos
pintados e fotografias dos seus quadros. Por azar, o seu estilo não era mau.
– E? – perguntou impaciente, e acariciou o pescoço de Cézanne. – O
que acha? Naturalmente, os quadros ganham muito ao natural, só faço
grandes formatos.
Assenti e o meu olhar cravou-se num quadro chamado Coração de
morango. Era um coração grande que tinha a textura de um morango e no
centro uma concavidade quase impercetível. O Coração de morango jazia
sobre um fundo de pequenas folhas verde-escuras e compunha-se de, pelo
menos, trinta tonalidades diferentes de vermelho. Uma vez, o meu amigo
Bruno, que é médico e hipocondríaco confesso, mostrou-me uma imagem
digital do seu coração, um filme feito num centro de diagnóstico. (O seu
coração estava são como uma maçã!) Na realidade, aquele músculo vital
parecia-se mais a uma fruta do tipo morango que aos corações e
coraçõezinhos que vemos pintados por todo o lado.
De qualquer maneira, o «coração» do quadro do jovem artista tinha algo
tão orgânico-frutal que não sabia se estava a ouvir o seu latejo ou, talvez,
se lhe devia dar uma mordidela. A imagem estava viva, e quanto mais a
observava, mais gostava.
– Isto parece interessante. – Dei uns pequenos golpes com o dedo na
fotografia. Gostaria de ver o original.
– Está bem, sem problema. Mede dois por três metros. Está pendurado
no meu estúdio. Pode passar para o ver quando quiser. Ou prefere que o
traga aqui? Também não teria qualquer problema. Posso trazê-lo ainda
hoje!
– Santo Deus, não! – Desatei a rir, mas o seu entusiasmo comoveu-me.
– É acrílico? – perguntei para não cair no sentimentalismo.
– Não, óleo. Não gosto dos quadros em acrílico. – Olhou um momento
para a fotografia e a sua expressão endureceu-se. – Deixei-o quando a
minha namorada me deixou. – Bateu no peito com a mão esquerda. – Uma
enorme dor!
– E… ANE é você? – perguntei sem ligar à sua confissão enquanto
apontava para a assinatura.
– Sim, pá. C’est moi!
Olhei para o seu cartão de visita e levantei as sobrancelhas.
– Julien d’Oviedo? – perguntei?
– Sim, é o meu nome – confirmou. – Mas assino como ANE. É do
tempo dos grafitos, sabe? A Arte Necessita de Espaço. – Sorriu. –
Continua a ser o meu lema.
Fechei a porta da galeria uma hora mais tarde do que o previsto, não
sem ter prometido a Julien que depois do Ano Novo passaria pelo seu
estúdio.
– Genial, pá, é o meu melhor presente de Natal! – disse quando nos
despedimos. Apertei-lhe a mão e ele subiu de um salto para a sua bicicleta
e eu segui com Cézanne pela rue de Seine abaixo para tomar algo em La
Palette.

Nos primeiros dias de janeiro encontrei-me, de facto, com Julien d’Oviedo


no seu estúdio modesto do bairro da Bastilha. Contemplei os seus
trabalhos, pareceram-me bastante notáveis e, por fim, levei comigo o
Coração de morango e expu-lo na minha galeria para fazer um teste.
Duas semanas depois estava diante dele Jane Hirstman – uma
colecionadora americana que era, para além disso, uma das minhas
melhores clientes –, soltando fortes exclamações de admiração.
– It’s amazing darling! Just amazing!
Sacudiu os seus caracóis ruivos que flutuavam em todas as direções, o
que lhe dava um toque bastante dramático, retrocedeu um passo e
observou o quadro durante uns minutos com os olhos semicerrados.
– Isto é a defesa da paixão na arte – disse, finalmente, e os seus grandes
brincos de aros dourados vibraram a cada palavra. – Wow! I love it, it’s
great!
O quadro era de facto grande. Eu saiba que Jane Hirstman era fã dos
quadros de grande formato, uma loucura especial sua, embora esse não
fosse o seu único critério, pois ao longo dos últimos anos tinha adquirido
algumas pinturas nada insignificantes da Wallace-Foundation.
Voltou-se para mim.
– Quem é esse ANE? – perguntou com um olhar expectante. – Perdi
alguma coisa? Há mais coisas para ver?
Eu abanei a cabeça. Quase todos os colecionadores que conheço têm
algo de maníaco quando se trata de descobrir algo novo.
– Eu nunca lhe ocultaria nada, minha querida Jane! Trata-se de um
jovem artista parisiense que represento há pouco tempo – expliquei-lhe, e
decidi assinar de imediato um contrato com Julien. – ANE resume o seu
conceito de arte: a Arte Necessita de Espaço.
– Aaaah! exclamou. – A Arte Necessita de Espaço. Isso está bem, muito
bem – assentiu com aprovação. – A Arte Necessita de Espaço e os
sentimentos necessitam de espaço, é mesmo assim. Julien d’O… quê?
Bem, é indiferente… com este tem de fazer alguma coisa, Jean-Luc. Faça
qualquer coisa com ele, digo-lhe, o tipo promete. É o meu olfato que o
diz.
Quando Jane Hirstman punha em campo o seu nariz, que aliás era
bastante grande, tinha que a levar a sério. Já tinha farejado alguns quadros
que se venderam de imediato por grandes somas de dinheiro.
– How much? – perguntou, e eu dei-lhe um preço absolutamente
exagerado.

Jane comprou nesse mesmo dia o Coração de morango e pagou por ele
uma soma considerável em dólares.
Julien ficou louco de contentamento quando lhe comuniquei
pessoalmente a notícia. Deu-me um abraço espontâneo com as mãos
manchadas de tinta e as suas marcas ficaram imortalizadas para sempre no
meu precioso jersey de caxemira azul-claro. Mas quem sabe, talvez esse
jersey que não sabia nada de arte e que por azar era o meu preferido,
venha um dia a ser muito valioso, uma espécie de ready-made que
documenta o momento mais feliz da vida do artista. Em tempos em que
tudo pode ser arte e até os excrementos enlatados de um artista italiano se
leiloam na Sotheby’s de Milão como Merda di artista por somas incríveis,
nada me parece impossível.
Seja como for, nessa feliz tarde de janeiro eu e Julien tomámos umas
bebidas no seu estúdio sem aquecimento e, umas horas mais tarde, já nos
tratávamos por tu e acabávamos a noite num bar.
No dia seguinte, o jovem e esperançado artista chegou um pouco
ressacado à Galerie du Sud e naquele instante planeámos a exposição «A
Arte Necessita de Espaço» que eu tinha agora de inaugurar dentro de um
quarto de hora.
Onde se havia metido Marion? Desde que tinha um namorado
motoqueiro já não se podia confiar nela. Marion estudara arte e estava a
fazer um estágio na minha galeria. E era de facto muito boa, caso
contrário não me teriam já faltado pretextos para correr com ela.
Marion organizava os eventos mais complicados sempre a mascar
pastilhas elásticas e tratava todos os clientes nas palminhas. Tão-pouco eu
era capaz de resistir ao seu encanto indolente.
Lá fora retumbou uma vibração intensa. Um instante depois a porta
abriu-se e Marion entrou fazendo barulho com os sapatos de salto alto e
enfiada num vestido de veludo vergonhosamente curto.
– Já cheguei! – disse resplandecente e com umas denunciantes faces
coradas, endireitando o diadema que apanhava a sua grande melena loira.
– Marion, um dia destes despeço-te! – disse. – Não tinhas que estar aqui
há uma hora?
Sorrindo, tirou uma penugem branca do meu casaco escuro.
– Ah, Jean-Luc, vamos, acalma-te! Está tudo controlado. – Deu-me um
leve beijo na face. – Não te zangues, mas realmente não consegui chegar
antes.
Começou de imediato a dar indicações às raparigas do catering e
perguntou: «Mas… que fizeram aqui?», e esteve a arranjar o gigantesco
ramo de flores da entrada até que, finalmente, correspondeu ao seu sentido
estético.

Quando vi os primeiros convidados a aproximarem-se pela rue de Seine


virei-me para Julien.
– Showtime – disse. – Vamos!
As raparigas do catering serviram o champanhe nas taças e eu ajustei o
lenço de seda que levava ao pescoço e que considero mais confortável do
que as estranguladoras gravatas. Por causa desse acessório ganhei, entre os
meus amigos, a alcunha de Jean-Duc. Bem, há coisas piores.
Olhei em volta. Julien estava junto à parede do fundo da minha galeria,
com as mãos nos bolsos das calças, o seu gorro inevitável bem enterrado,
quase a tapar-lhe a cara.
– Vamos, vem para aqui! – disse-lhe. – É a tua festa.
Ele encolheu os ombros e aproximou-se devagar, como James Dean
num filme.
– Por favor, tira esse gorro de uma vez por todas.
– O que é que tens contra o meu gorro, pá?
– Por que insistes em te esconder? Já não és um grafiteiro dos subúrbios
nem vais jogar streetball.
– Ei, o que significa isso? Que agora me tornei de repente num maldito
burguês ou quê? Beuys também usava o seu…
– Beuys não era nem de longe tão giro como tu – interrompi-o. –
Vamos, fá-lo de uma vez por todas! Por mim, o teu velho mecenas.
Contrariado, tirou o gorro e atirou-o para trás do sofá. Abri a porta de
vidro, inalei o ar tépido de maio e cumprimentei os primeiros convidados.

Duas horas depois sabia que a exposição seria um êxito. A galeria estava
cheia de pessoas que conversavam animadamente, bebiam champanhe
sentadas nos sofás ou davam a sua opinião ao artista, levando logo a
seguir um canapé à boca com a ponta dos dedos. Tinha acudido todo o
mundo da arte, três jornalistas da cultura, alguns bons clientes… e
também havia algumas caras novas.
O barulho animado que reinava nas duas salas da galeria era
ensurdecedor, em fundo Amy Winehouse cantava «I Told You I Was
Trouble» e a jornalista do Le Figaro estava enlouquecida com Julien.
Despertaram grande interesse Le grand rouge e L’heure bleu, um
monumental nu feminino que não se destacava do conjunto da
composição azul até se observar o quadro com mais atenção.
Havia um bom ambiente. Só Bittner, um colecionista muito influente
que tinha uma galeria em Düsseldorf e que participava na organização da
Art Cologne, andava de um lado para o outro, criticando.
Conhecíamo-nos há muitos anos, e tal como cada vez que vinha a Paris,
eu encarreguei-me de lhe fazer uma reserva no Duc de Saint-Simon e
garantir que ocupava o seu quarto preferido. Como eu alojava com
frequência os meus clientes procedentes do estrangeiro neste hotel, tinha
bons contactos na receção, sobretudo desde que ali trabalhava Luisa Conti,
sobrinha do proprietário cuja família residia em Roma.
– Monsieur Kört Wittnär? – Tinha-me dito pelo telefone como se se
tratasse de um extraterrestre.
– Karl. – Repliquei com um suspiro. – Karl. E o apelido é Bittner, com
B. – Já me tinha acostumado a que Luisa Conti, um exemplo de elegância
apesar da sua juventude ao trajar um conjunto de casaco escuro e óculos
escuros Chanel, confundisse e trocasse frequentemente os nomes dos seus
hóspedes.
– Ah! Entendu! Monsieur Charles Bittenär! Porque é que não me disse
antes? – Notei um pico de censura na sua voz, mas evitei fazer qualquer
comentário. – O quarto azul… eh… bien, sim, é possível.
Pude ver mentalmente Mademoiselle Conti sentada atrás da mesa antiga
da receção, com a sua caneta Waterman verde-escura que, como todas as
Waterman tende a deixar borrões –, escrevendo conscienciosamente o
nome Charles Bittenärr no livro de registo, e tive que sorrir.
A minha relação com Bittner era ambivalente. Na realidade, gostava
desse homem, que era cerca de dez anos mais velho que eu e cujo cabelo
escuro um pouco comprido o fazia parecer um habitante do Sul. Mas no
fundo temia ficar de mal com ele. Admirava a sua constância, o seu olfato
certeiro, e odiava a sua insuportável arrogância. E para além disso
invejava-o por causa dos dois Yellow cabs de Fetting e de um quadro de
Rothko que possuía.
Deteve-se diante de Unique au monde, um desenho muito plano em tons
de azul e verde e fez cara de quem tivesse trincado um limão.
– Não sei – ouvi-o dizer à mulher de cabelo escuro que estava ao seu
lado –, não está… bem feito. Simplesmente não está bem feito.
Karl Bittner fala francês com fluidez, e odeio as suas frases assassinas.
A mulher colocou a cabeça de lado.
– Bem, eu creio que possui algo – disse pensativa, e bebeu um gole da
sua taça de champanhe. – Não sente essa… harmonia? Como um encontro
pacífico de terra e mar. Parece-me muito autêntico.
Bittner pareceu vacilar.
– Mas será também inovador? – replicou. – Que significa essa fuga para
o monumental?
Decidi unir-me a eles.
– É um privilégio da juventude. Tudo tem que ser grande e atrevido.
Fico contente por ter podido vir, Karl. E vejo que se está a divertir. – Olhei
para a mulher que estava ao seu lado com um fato saia-casaco creme. Os
seus olhos azuis faziam um contraste sensacional com o cabelo preto. –
Enchanté! – disse com uma leve inclinação.
Antes que a beleza morena pudesse responder ouvi uma voz exaltada
que gritava o meu nome.
– Jean-Luc, ah, Jean-Luc, mon très cher ami! – Era Aristide Mercier,
um professor de literatura da Sorbonne que andava sempre muito elegante
com o seu colete amarelo-canário e que agora atravessava a sala voando
até mim. Aristide é o único homem que conheço a quem fica bem o
amarelo-canário. O seu olhar poisou um instante com admiração no meu
lenço antes de pespegar-me dois beijos nas faces.
– Oh, très chic! É da Etro? – perguntou sem esperar uma resposta. –
Meu querido Duc, isto é absolutamente genial, sinceramente super!
A linguagem de Aristide está pejada de superlativos e pontos de
exclamação, e lamenta que eu – à son avis – goste do sexo «equivocado».
(«Um homem com o teu gosto, é uma lástima!»)
– Estou contente por te ver, Aristide! – Dei-lhe umas palmadinhas
amistosas no ombro. Embora nunca venhamos a formar um casal, gosto
muito do meu velho amigo Aristide. Tem um humor maravilhoso e nunca
deixa de me surpreender a facilidade com que se move entre a literatura, a
filosofia e a história. As suas aulas são sempre muito concorridas,
cumprimenta os que chegam atrasados com um aperto de mão e tornou-se
famoso por ter dito que se conforma que os alunos levem para casa das
suas aulas apenas três frases.
Aristide sorriu.
– Vejo que já os conheces! Non? – passou o braço pelo ombro da
morena desconhecida, a qual era evidente que tinha vindo com ele. – Esta
é a minha querida Charlotte! Charlotte, este é o dono da casa, o meu velho
amigo e galerista preferido Jean-Luc Champollion. Naturalmente que não
renunciou a dizer o meu nome completo.
A mulher morena estendeu-me a mão. Era quente e firme.
– Champollion? – perguntou, e eu sabia o que vinha depois. – Como o
famoso egiptólogo Champollion, o da Pedra de Roseta…
– Sim, esse mesmo – interveio Aristide –, Jean-Luc. Tem um parentesco
com ele!
Aristide estava radiante, Bittner sorriu com sarcasmo e a mulher que eu
já sabia chamar-se Charlotte levantou as suas sobrancelhas bem perfiladas.
Fiz um gesto de recusa.
– Um parentesco muito afastado, tudo muito confuso…
Mas à margem do que eu dissera, Charlotte interessou-se por mim, não
se afastou ao longo de toda a tarde e depois de quatro taças de champanhe
contou-me que estava casada com um político e que se aborrecia
soberanamente.

Quando pouco depois das onze foram embora os últimos convidados, só


ficámos nós os quatro: Bittner, Julien, eu… e a já um pouco tocada
Charlotte.
– E que fazemos agora? – cacarejou entusiasmada.
Bittner propôs que tomássemos um último copo no bar tranquilo do Duc
de Saint-Simon. Tinha a vantagem de poder retirar-se diretamente para o
seu quarto.
Eu cedi-lhe o assento dianteiro do táxi e apertei-me atrás com Julien e
Charlotte. Enquanto subíamos pelo boulevard Saint-Germain, notei de
imediato um delicado roçar. Era a mão de Charlotte que deslizava pelas
minhas pernas. Na realidade, eu não queria nada com ela, mas os seus
dedos confundiram-me.
Olhei para Julien. Porém, ele, eufórico da aceitação que tinha tido nessa
noite, inclinara-se para diante e conversava animadamente com Bittner.
Charlotte lançou-me um sorriso. Talvez tenha sido um erro, mas devolvi o
sorriso.

Na receção do Saint-Simon fomos saudados pelo porteiro da noite, um


tâmil de pele escura elegantemente vestido.
Descemos até ao pequeno bar que ocupa uma velha adega abobadada e
tivemos sorte: o barman ainda ali estava, a secar os últimos copos.
Quando nos viu, assentiu com amabilidade e assentámo-nos sob a abóbada
de pedra. Nas paredes estavam pendurados quadros antigos e espelhos de
moldura dourada; junto às confortáveis poltronas estofadas havia estantes
de meia altura cheias de livros e, como sempre que ali ia, não podia
resistir ao encanto algo vetusto desse pequeno refúgio na grande Paris.
Pedimos outra taça de champanhe, fumámos alguns cigarros porque
éramos os únicos clientes e pensámos que merecíamos (o camareiro fez
vista grossa e deixou-nos de passagem um cinzeiro sobre a mesinha),
falámos e Julien contou-nos algumas histórias da sua época de grafiteiro.
Bittner era quem mais se ria. Parecia já se ter curado da sua aversão
monumental.
Pouco antes da uma, o barman perguntou-nos se queríamos tomar mais
alguma coisa.
– Claro que sim! – exclamou Charlotte, que estava sentada ao meu lado
e não parava de mover, muito animada, o seu sapato de verniz preto. –
Apenas um copo de despedida, por favor!
Julien aceitou encantado, ele podia aguentar a noite toda, mas Bittner
tinha decaído na última meia hora e bocejava tapando a boca com a mão, e
eu devo admitir que já estava um pouco cansado. Apesar de tudo pedi uma
última rodada.
– Os seus desejos são ordens para mim, madame.
De qualquer maneira, Charlotte não teria aceitado um não.
Voltámos a brindar pela maravilhosa noite, pela vida e pelo amor
Charlotte, entornando a sua taça de champanhe precisamente nas calças de
Bittner.
– Ah, madame, c’est pas grave! – disse Monsieur Charles sem lhe dar
importância e sacudiu as calças molhadas como se estivesse apenas a tirar
um pelo. Porém, minutos depois despediu-se, agradecido por poder ir
meter-se na sua cama francesa algo antiquada.
– Vemo-nos! Bonne nuit! – Despediu-se de todos com um leve
movimento da cabeça e aproveitei para pedir a conta e os táxis.
Quando chegou o primeiro, Charlotte insistiu em cedê-lo a Julien, e
suspeitei que não sem motivo. E acertei, pois quando a quis instalar no
segundo táxi, ela empenhou-se em dizer que devíamos ir juntos, podia
deixar-me na rue des Canettes (vivo ali), na verdade ainda não queria ir
para casa.
– Mas, madame – protestei sem grande entusiasmo quando com
determinação feminina me agarrou pelo braço e me meteu dentro do carro.
– É muito tarde, o seu marido irá ficar preocupado…
Madame riu-se com sarcasmo e afundou-se no assento.
– Rue des Canettes, s’il vous plaît – indicou ao taxista, e olhou-se com
malícia. – Ah… o meu marido… deixe que eu me preocupe por ele! Ou
será que o esperam a si?
Eu abanei a cabeça sem dizer nada. Desde que me separara de Coralie
(ou ela tinha-se separado de mim?) em casa só estava Cézanne à minha
espera, o que sem dúvida tinha as suas vantagens.
Percorremos a rue de Saint-Simon em silêncio, passámos por diante de
La Ferme de Saint-Simon e tínhamos virado para o ainda muito animado
boulevard Saint-Germain quando voltei a sentir a mão de Charlotte nas
minhas pernas. Aproximou-se de mim e sussurrou-me ao ouvido que o seu
marido estava num congresso, que os seus filhos já eram maiores e que
seria a vida se não se pudesse desfrutar de vez em quando de um pequeno
bombom. Un tout petit bonbon!
Aturdido pelo álcool suspeitei que o bombom era eu e que essa noite ia
ser muito comprida.
3

Quando acordei na manhã seguinte tinha a sensação de me ter caído um


martelo na cabeça.
Há sempre um copo a mais do qual de imediato nos arrependemos.
Soltando um gemido, virei-me e procurei tateando o despertador. Eram
dez e um quarto e isso era horrível, muito horrível. Faltava uma hora para
que chegasse à Gare du Nord o comboio de Monsieur Tang, o meu cliente
chinês mais apaixonado por arte, e eu tinha prometido ir buscá-lo.
Esse foi o meu primeiro pensamento. O segundo foi Charlotte. Virei-me
e vi uns lençóis enrodilhados nos quais não havia nenhuma mulher.
Surpreendido sentei-me na cama.
Charlotte tinha-se ido embora. A sua roupa, que na noite anterior havia
distribuído por toda a casa enquanto cantava aos gritos, desaparecera.
Suspirando, afundei-me por um momento nas almofadas e fechei os
olhos. Mon dieu, que noite! Poucas vezes tinha passado uma noite com
uma mulher na qual tivesse dormido tão pouco e em que se tenha passado
também muito pouco.
Fui aos tombos até à cozinha onde Cézanne me saudou impaciente,
enchi um grande copo com água e procurei uma aspirina no armário.
– Sim, querido, já vamos à rua – prometi-lhe. Cézanne ladrou e abanou
a cauda. «Rua» era a única palavra à qual reagia sempre. Farejou a minha
perna nua e pôs a cabeça de lado. – Sim, a dama foi-se embora – disse, e
deixei cair três aspirinas no copo. Tendo em conta o meu estado e o pouco
tempo de que dispunha, alegrei-me em parte que assim fosse.
Quando entrei na casa de banho, a primeira coisa que vi foi uma nota
pegada ao espelho.

Meu querido Jean-Duc:


Fazes sempre esperar as mulheres até que adormeçam?
Devo-te uma, não te esqueças!
A tout bientôt…
Charlotte

Por baixo tinha carimbado um beijo com batom.


Sorri, descolei o papel do espelho e atirei-o para o cesto do lixo. Na
verdade, a minha última noite não se podia contar entre os melhores
momentos eróticos da minha vida.
Enquanto me barbeava, tive de pensar em como é que uma Charlotte
embriagada me seguira até casa sem deixar de tropeçar em si mesma e
como, por fim, havia caído em cima de Cézanne, que não parava de ladrar
entre os seus pés. Quis ajudá-la a levantar-se mas ela puxou-me pelas
calças e aterrei a seu lado na almofada.
– Monsieur Champollion, não seja tão impetuoso! – Desatou a rir e, no
momento seguinte, a sua cara estava demasiado próxima. Charlotte passou
os braços em volta do meu pescoço e deu-me um beijo quente na boca. Os
seus lábios abriram-se e, então, pareceu-me muito sedutora a ideia do
bombom e agarrei-me ao seu cabelo abundante, escuro, que cheirava a
Samsara. Rindo e dando trambolhões, conseguimos chegar ao quarto. No
caminho o fato de cor bege foi ficando pelo chão.
Acendi o pequeno candeeiro da cómoda que submergiu o quarto numa
luz suave e amarelada e voltei-me para Charlotte. Ela abanou as ancas de
forma provocadora e cantou: «Voulez-vous coucher avec moi… ce soiiir».
Atirou as suas meias de seda pelos ares. Uma caiu ao chão e a outra ficou
pendurada numa fotografia minha de criança que está na cornija da lareira
de mármore cobrindo com um véu elegante a cara do jovem loiro e torpe
que segurava com orgulho o guiador da sua primeira bicicleta enquanto
sorria para a câmara.
Vestida com a sua delicada lingerie castanha que, aparentemente, o seu
marido político não apreciava demasiado, deixou-se cair sobre a minha
cama e estendeu os braços na minha direção.
– Viens, mon petit Champollion, vem para aqui comigo – sussurrou e,
embora tenha soado champignon, não me importei. – Vem querido, vou
revelar-te os segredos da Pedra de Roseta…! – Rebolou-se na colcha,
acariciou o seu corpo esbelto e lançou-me um sorriso atrevido.
Como poderia resistir? Sou um homem!
Se apesar de tudo resisti foi de forma involuntária, pois no momento em
que me inclinava sobre ela para iniciar com pulso firme a aventura
arqueológica, o meu telemóvel tocou.
Procurei ignorá-lo, sussurrei à minha bela Nefertiti palavras insinuantes,
beijei-lhe o pescoço, mas quem tentava localizar-me a meio da noite não
pensava desistir e os toques do telefone soavam cada vez mais prementes.
Passaram-me de imediato pela cabeça visões angustiantes de acidentes
com mortos e atentados com vítimas.
– Desculpa-me um momento. – Com um suspiro, separei-me de
Charlotte, que protestou em voz baixa. Fui até ao cadeirão bordeaux para
o qual havia atirado o casaco e as calças e retirei o telemóvel do bolso.
– Oui, allô? – disse com voz apagada.
Respondeu uma voz afogada em lágrimas.
– Jean-Luc? Jean-Luc, és tu? Ainda bem que te encontrei. Porque é que
não atendias? Oh, meu Deus, Jean-Luc! – A voz do outro lado da linha
rompeu em soluços.
«Oh, meu Deus!», pensei também. «Por favor agora não!» Por um
momento amaldiçoei-me por não ter olhado para o ecrã, mas os seus
gemidos soavam mais dramáticos que de outras vezes.
– Soleil, querida, acalma-te! Que se passa? – perguntei com cautela.
Talvez tenha acontecido realmente alguma coisa e não se tratasse de uma
dessas crises criativas desesperadas que lhe davam cada vez que
definíamos a data de uma exposição.
– Não aguento mais! – choramingou Soleil. – Só pinto merdas! Esquece
a exposição, esquece tudo! Odeio a minha mediocridade, todas estas
coisas tão vulgares... – Escutei um ruído como se alguém tivesse dado um
pontapé a um boião de tinta e fechei os olhos quando me chegou ao
ouvido. Podia ver à minha frente a silhueta grande de Soleil com os seus
olhos escuros e os caracóis negros brilhantes que se moviam como chamas
em redor do seu belo rosto mulato e que faziam com que a única filha de
uma mãe sueca e pai caribenho tivesse realmente algo de sol negro.
– Soleil – disse com toda a serenidade de budista zen que era capaz, e
olhei intranquilo para a cama, onde Charlotte se tinha sentado e me
observava com interesse. – Soleil, nada disto faz sentido. És boa, digo-te.
És… sublime, a sério. És única. Acredito em ti. Ouve… – baixei um
pouco a voz –, agora não posso falar. Porque é que não te metes na cama e
amanhã passo…
– Soleil? Quem é Soleil? – perguntou Charlotte aos gritos da cama.
Ouvi do outro lado da linha Soleil inspirar com força.
– Estás com alguma mulher? – perguntou com desconfiança.
– Soleil, por favor, já passa da meia-noite. Olhaste para o relógio? –
repliquei sem responder à sua pergunta. Fiz um sinal a Charlotte para a
tranquilizar e apertei o telefone contra os lábios. – Amanhã falamos com
calma, sim?
– Porque é que sussurras dessa maneira? – gritou Soleil indignada,
começando de novo a soluçar. – Claro que tens uma mulher aí! As
mulheres são sempre o mais importante para ti, todas são mais
importantes que eu. Eu não sou nada, nem sequer o meu agente – eu – se
interessa por mim, e sabes o que vou fazer agora mesmo?
A pergunta ficou a pairar no ar, como uma ameaça de bomba.
Abandonado, escutei o silêncio horrível que se fez de imediato.
– Vou apanhar esta tinta preta e vou deitá-la em cima de todos os meus
quadros!
– Não! Espera! – Indiquei por gestos a Charlotte que se tratava de uma
emergência e que já iria ter com ela e, com um suspiro, fechei atrás de
mim a porta do quarto.
Demorei quase uma hora a acalmar a enfurecida Soleil. Segundo pude
perceber, enquanto ia intranquilo de um lado para o outro do corredor e as
tábuas de madeira rangiam sob os meus pés, não se tratava apenas de
dúvidas sobre o seu talento artístico como sucedia às vezes: Soleil Chabon
estava apaixonada. Por quem? Não podia dizer-me de modo algum. Não
era correspondida e tinha perdido a esperança. A dor tirava-lhe a
inspiração, ela era expressionista e o mundo, um túmulo negro.
A certa altura cansou-se de falar. Quando os seus soluços se tornaram
mais apagados, mandei-a com voz suave para a cama com a promessa de
que tudo se resolveria e que eu estaria sempre com ela.
Passava um pouco das quatro quando deslizei de novo até ao quarto
outra vez sem fazer barulho. A minha visita noturna estava deitada
atravessada na cama e dormia placidamente como Branca de Neve. Com
cuidado, empurrei um pouco para o lado Charlotte, que ressonava
suavemente.
– Dormir – murmurou, abraçou-se à almofada e enovelou-se como um
ouriço.
Podia esquecer a Pedra de Roseta. Apaguei a luz e em poucos minutos
estava também eu num sono profundo.

Os comprimidos contra as dores de cabeça começaram a fazer efeito.


Tomei outro café e quando, nessa quinta-feira memorável, desci as
escadas com Cézanne, sentia-me novamente bastante bem.
Há pessoas que asseguram que as mudanças fundamentais que ocorrem
na vida se anunciam de alguma maneira. Que há sempre um sinal, só há
que vê-lo. «Passei toda a manhã com uma sensação estranha», dizem
quando sucede algo decisivo. Ou: «Quando o quadro caiu da parede soube
de imediato que se ia passar alguma coisa.»
Para minha vergonha, tenho de reconhecer que sou desprovido dessas
misteriosas antenas esotéricas. Naturalmente que agora poderia afirmar
que esse dia que mudou toda a minha vida foi de certo modo especial.
Mas, em abono da verdade, tenho de admitir que na altura não suspeitava
de nada.
Não tinha nenhum pressentimento quando abri a caixa do correio. Nem
sequer quando descobri que o envelope azul pálido entre as numerosas
faturas o meu sexto sentido se ativou.
No envelope estava, numa letra bonita e arredondada: «Para o Duc».
Nesse momento tive de sorrir, pois supus que Charlotte havia deixado uma
carta breve de despedida antes de desaparecer. Nem por um instante me
ocorreu que as damas da alta sociedade não costumam levar sempre na
carteira papel de carta feito à mão.
Preparava-me para abrir o envelope quando entrou Madame Vernier
com um saco na mão.
– Bonjour, Monsieur Champollion. Olá, Cézanne – cumprimentou-nos
amavelmente. – Bem, o senhor tem ar de não ter dormido muito. Deitou-
se tarde ontem?
Madame Vernier é minha vizinha e vive sozinha numa casa gigantesca.
Rica e divorciada desde há três anos, essa mulher vive o aqui e agora
com uma despreocupação quase anacrónica. Anda à procura do segundo
marido. Ao menos foi o que me disse, ainda que não tenha pressa.
O que é bom no que respeita a Madame Vernier é que tem muito tempo
livre, adora animais e cuida de Cézanne quando vou de viagem. O mau é
que tem muito tempo livre e é capaz de enrolar durante horas quando
estamos com pressa.
Também nessa manhã se plantou diante de mim como neve recém-
caída. Eu observei, nervoso a sua cara alegre. Tinha aspeto de ter dormido
bem.
Foi só a mim que me pareceu que os seus olhos observaram com
interesse o envelope azul-celeste que eu segurava na mão? Antes que me
enredasse numa extensa conversa sobre noites excitantes ou cartas escritas
à mão apressei-me a guardar o correio no bolso.
– Pois, sim, sim, já é bastante tarde – admiti, e olhei para o relógio. –
Céus, tenho de ir ou vou chegar atrasado a um encontro. Bonne journée,
madame, até logo! – Dirigi-me a toda a pressa para a porta da rua puxando
Cézanne, que continuava a farejar os sapatos de Madame Vernier, e
carreguei no botão para a abrir.
– Um bom-dia também para si! – gritou ela. – Diga-me quando tiver
necessidade de ficar outra vez com Cézanne, já sabe que tenho tempo.
Fiz-lhe um aceno e saí a toda a pressa para a rua em direção ao Sena.
Cézanne tinha direito a seguir as leis da natureza.

Vinte minutos mais tarde estava num táxi que me devia levar até à Gare du
Nord. Tínhamos atravessado a Pont du Caroussel e estávamos a passar
diante da pirâmide de vidro, que brilhava ao sol da manhã, quando me
recordei da carta de Charlotte.
Sorrindo, tirei-a do bolso e abri o envelope. Essa mulher era muito
tenaz. Mas encantadora. Na era dos e-mails e dos sms uma carta escrita à
mão tinha algo de excitantemente antiquado, sim, algo de íntimo. À parte
os postais que me mandavam alguns amigos em viagem, há muito tempo
que não encontrava uma carta pessoal na minha caixa do correio.
Acomodei-me e dei uma vista de olhos às duas folhas de letra delicada.
Então dei um salto tal que o taxista me olhou pelo retrovisor. Observou a
carta na minha mão e retirou as suas próprias conclusões.
– Tout va bien, monsieur? Tudo bem? – perguntou com aquela mistura
tão especial de intromissão sem rodeios e experiência quase omnisciente
que carateriza os taxistas de Paris quando estão a ter um dia bom.
Eu assenti desconcertado. Sim estava tudo bem. Tinha uma carta de
amor linda nas minhas mãos vacilantes. Dirigida a mim, sem sombra de
dúvida. Parecia que vinha diretamente do século XVIII. E estava claro que
não era de Charlotte.
Mas o que mais me desconcertou foi o facto de a autora não ter revelado
a sua identidade. Eu não sabia quem era, mas ela parecia conhecer-me.
Ou tinha-me escapado alguma coisa?

Mon cher Monsieur le Duc!

Que início! Estaria alguém a rir-se de mim? É sabido que alguns amigos
me chamam «Jean-Duc», mas quem escreve uma carta assim?

Não sei como começar esta carta, que é – sei-o com a certeza de uma mulher que ama – a
mais importante da minha vida.
Não posso esquecer os seus belos olhos azuis que tanto me revelaram de si, e eles levam-
me a considerar cada uma das minhas palavras como algo valioso, a meter-me nos seus
pensamentos e sentimentos com a sublime esperança de que essas finas partículas de ouro
do meu coração caiam também no seu coração e pousem no seu fundo para sempre.
Surpreendo-o assegurando que desde o primeiro instante senti que você, querido Duc,
era o homem de que sempre andei à procura?
Não creio. Deve tê-lo ouvido centenas de vezes, e a verdade é que não é algo muito
original. Para além disso, estou certa que saberá por experiência própria e nada
desdenhável, que muitas vezes o tão citado «amor à primeira vista» dá lugar num espaço de
tempo surpreendentemente curto a um grande desencanto.
Portanto, restar-me-á alguma palavra de amor ou pensamento apaixonado que não tenha
sido escrito ou pensado antes por outrem? Temo que não.
Tudo se repete, está usado e só causa espanto quando observado de fora. E, no entanto,
tudo parece novo quando é experimentado por nós, e a sensação é tão enoveladoramente
bela que se acredita ter descoberto o amor.
Por isso tem que me desculpar, estimado senhor, se recorro a outro tópico porque eu
própria o vivi assim e não de outra maneira: a primeira vez.
Jamais esquecerei o dia em que o vi pela primeira vez. A sua imagem causou-me o
impacto de um raio, um raio que cai sem que se ouça o trovão. Sem que mais ninguém note
nada.
Mas eu não podia afastar os olhos de si. O seu aspeto descuidado mas ao mesmo tempo
elegante fascinou-me, os seus olhos claros brilhantes prometiam-me uma mente desperta, o
seu sorriso estava feito para mim… e jamais verei umas mãos masculinas mais belas.
Mãos como as que às vezes, admito com um sorriso, sonho acordada durante a noite.
No entanto, esse momento tão sumamente feliz para mim ficou turvado pela bela mulher
que se encontrava ao seu lado e que resplandecia por cima de tudo como o sol e em cuja
presença eu me senti uma insignificante baronesa vestida de luto. Era a sua mulher? A sua
amante?
Observei-o com medo e inveja, querido Duc, e de seguida descobri que tinha sempre uma
mulher bela ao seu lado ainda que – e desculpe que seja tão direta – não seja sempre a
mesma…

– Cochon! – Porco maldito! Senti uma sacudidela e o taxista esquivou-


se com uma travagem sonora a um autocarro que tinha mudado para a
nossa faixa sem ter assinalado a manobra. Por um instante fiquei sem
saber se se referia a mim. Assenti, ensimesmado.
– Idiota chapado! Viu isto? Condutores de autocarro! – O taxista deu
uns pequenos golpes na alavanca das mudanças, acelerou e ultrapassou o
autocarro, não sem deixar de gesticular com veemência e fazer sinais
eloquentes com os dedos através da janela aberta. – Tu es le roi du monde,
hein? És o rei do mundo, hem? – gritou ao condutor do autocarro, que lhe
fez um gesto de recusa. Os passageiros, turistas que faziam um percurso
pela cidade, olharam-nos surpreendidos. Em Londres não se veem coisas
assim. Eu olhei para eles como alguém que acabou de aterrar vindo de
outro planeta e não entende nada.
Mas logo baixei a cabeça, regressei a essa estrela que me tinha
apanhado na sua órbita de forma tão misteriosa e continuei a ler.

…e de seguida descobri que tinha sempre uma mulher bela ao seu lado ainda que – e
desculpe que seja tão direta – não seja sempre a mesma…

Sorri ao ler de novo aquelas palavras. Quem quer que as tivesse escrito
tinha sentido de humor.

Não me compete a mim julgar a razão pela qual isso é assim, embora me anime a
apaixonar-me um pouco mais porque está claro que não tem namorada, como se costuma
dizer.
Não sei quantas horas passaram desde então… A mim parecem-me milhares… e ao
mesmo tempo uma única e interminável. E ainda que a sua atitude despreocupada para com
as damas pareça indicar que não leva demasiado a sério os assuntos do coração ou talvez
não possa (ou não quer?) decidir-se, vejo em si um homem com um grande coração e
sentimentos apaixonados que só estão à espera de ser acesos – disso estou certa – pela
mulher adequada.
Deixe-me ser essa mulher e não se arrependerá!
Ainda me palpita o coração quando recordo essa infeliz história que por um breve e
maravilhoso instante nos aproximou tanto que as nossas mãos se roçaram e senti o seu
hálito na minha pele. A felicidade estava muito perto e teria gostado de o beijar. (Noutras
circunstâncias tê-lo-ia feito!) Você estava tão confuso e apesar de tudo comportou-se de
maneira tão cavalheiresca… se bem que a mim me correspondesse culpa de igual maneira.
Quero mostrar-lhe o meu agradecimento por isso, ainda que de certeza não sabe neste
momento do que estou a falar.
Perguntar-se-á quem lhe escreve. Não lhe vou dizer. Ainda não.
Responda-me, Lovelace, e procure descobrir. É possível que esteja à sua espera uma
aventura amorosa que o converta no homem mais feliz que alguma vez se viu em Paris.
Mas devo preveni-lo, querido Duc. Não sou tão fácil de conseguir como outras.
Desafio-o para o mais delicado de todos os duelos e estou impaciente por saber se aceita
este pequeno desafio. (Aposto o meu dedo mindinho que sim!)
À espera da sua resposta, com os meus melhores desejos,

La Principessa
4

«Maravilhosamente confuso»: são as palavras que melhor descrevem


como me senti durante o resto do dia.
Não estava em condições de me concentrar em nada: nem no taxista que
se impacientou quando não reagi ao seu segundo «Nous sommes là,
monsieur, chegámos!», nem em Monsieur Tang, que me esperava com
resignação oriental numa das plataformas com os belos candeeiros de bola
e sorriu com amabilidade quando entrei na Gare du Nord com dez minutos
de atraso, nem sequer na comida que partilhei com o meu convidado
chinês no Le Bélier, o meu restaurante preferido na rue des Beaux-Arts,
no qual se pode comer sentado em cadeirões de veludo vermelho, num
ambiente realmente principesco e cuja ementa me surpreende sempre com
a sua simplicidade minimalista.
Também nesse dia se podia escolher entre la viande (a carne), le poisson
(o peixe), les légumes (os legumes) e le dessert (a sobremesa). Escolhi
como entrada, simples e diretamente, l’oeuf, o ovo, o que me pareceu
muito sophisticated.
A simplicidade e qualidade dos pratos também convenceram o meu
amigo chinês, que demonstrou a sua aprovação. Depois falou-me com
entusiasmo do mercado da arte no país dos sorrisos e da sua última
aquisição numa casa de leilões belga. Monsieur Tang é aquilo que se
denomina um collectionneur compulsif, e podia ter-lhe prestado mais
atenção. Em vez disso remexi distraído os légumes do meu prato e
questionei-me porque é que na vida não podia ser tudo tão simples como a
ementa do Le Bélier.
Os meus pensamentos regressavam uma e outra vez à carta enigmática
que permanecia dobrada no bolso das minhas calças. Nunca tinha recebido
uma carta assim, uma carta que me provocava e emocionava e que – para
exprimir-me na linguagem da Principessa – me afundava num
desconcerto indizível.
Quem diabo era aquela Principessa que me oferecia com palavras
delicadas a aventura amorosa mais maravilhosa e ao mesmo tempo me
castigava como a uma criança pequena e «com os melhores desejos»
esperava uma resposta minha?!
Quando Monsieur Tang se levantou e se desculpou com uma leve
inclinação na minha direção para ir à casa de banho, aproveitei a ocasião
para tirar outra vez o envelope azul-claro do bolso. Voltei a mergulhar
naquelas linhas, que já me eram tão familiares como se eu próprio as
tivesse escrito.
Um golpe surdo fez-me estremecer como um ladrão apanhado em
flagrante. Monsieur Tang, que tinha regressado sem fazer ruído, como um
tigre, arrastou a sua cadeira e eu sorri apressado, dobrei a carta a toda a
pressa e guardei-a no bolso do casaco.
– Oh, por favor, desculpe! – Monsieur Tang parecia incomodado com a
sua suposta indiscrição. – Não queria incomodá-lo. Por favor, leia até ao
fim.
– Oh, não, não! – repliquei com um sorriso estúpido. – É só… A minha
mãe escreveu-me… Uma festa familiar… – Deus do céu, que disparates
estava eu a dizer? Um Deus benévolo teve compaixão de mim e mandou-
me o empregado vestido de preto que nos perguntou se queríamos mais
alguma coisa.
Agradecido, pedi le dessert, que era um crème brulée, e obriguei-me a
fazer um par de perguntas a Tang, que assentia com a compreensão
caraterística do sentido familiar dos chineses.
Enquanto simulava, com alguns «aaahs» e «ooohs», interesse pelas suas
explicações detalhadas sobre a afeição pelas túlipas na Holanda do século
XVII (como é que se tinha chegado a esse tema?), os meus pensamentos
giravam em torno da identidade da bela remetente da carta.
Tinha de ser uma mulher que eu conhecia. Ou ao menos que me
conhecia a mim. Mas, de onde?
Sei que pode soar algo arrogante, mas a minha vida está cheia de
mulheres. Encontramo-las por todo o lado. Flirta-se com elas, discute-se
com elas, trabalha-se com elas, ri-se com elas, passa-se várias horas em
cafés com elas… e de vez em quando, quando surge algo mais, também as
noites.
No entanto, esta carta não dava nenhum dado concreto que permitisse
deduzir quem era a caprichosa escritora. Porque era caprichosa, isso
estava bem claro.
No lado posterior da carta, muito abaixo, descobri um endereço de
correio eletrónico: principessa@google-mail.com.
Tudo sumamente enigmático. O secretismo da Principessa pôs-me
furioso, mas também me vieram à mente as suas palavras preciosas, pelo
que me senti fascinado.
– Monsieur Champollion, não está a prestar atenção – repreendeu-me
Tang com amabilidade. – Acabei de lhe perguntar o que está a fazer Soleil
Chabon e respondeu-me «Humm… sim, sim».
Céus, tinha de me concentrar outra vez!
– Sim… eu… eh… dor de cabeça – balbuciei e levei a mão à testa. –
Este tempo é-me fatal.
No exterior brilhava um suave sol de maio e o ar estava mais claro que
nunca em Paris.
Tang subiu as sobrancelhas, mas evitou com cortesia qualquer
comentário.
– E Soleil? Sabe, a jovem pintora caribenha – acrescentou como que a
modo de esclarecimento, pois era evidente que não confiava muito na
minha capacidade de associação.
– Ah, Soleil! – Sorri um pouco inquieto quando me recordei que tinha
prometido à pintora apaixonada que passaria hoje (hoje?!) para a ver. –
Soleil… está em pleno big bang criativo – disse, e pareceu-me que tendo
em conta o seu caráter explosivo não era nenhuma mentira. – Em junho
fará a sua segunda exposição, o senhor virá com certeza, não?
Tang assentiu e eu pedi a conta.

Após uma tarde esgotante nas salas da Galerie du Sud, onde Marion e
Cézanne nos cumprimentaram muito alegres e o meu cliente chinês
contemplou todos os quadros novos com um sorrido imperturbável (os
seus comentários foram desde «tlés intelessant» até «supelbon»), ele por
fim foi-se embora com um par de folhetos e a sua pequena mala de rodas
prateada para o Hôtel des Marronniers, um pequeno e encantador
estabelecimento que está praticamente na rue Jacob, ou seja, ao virar da
esquina, que entusiasma de igual modo europeus e asiáticos.
A localização não poderia ser melhor. Tranquilo, no coração de Saint-
Germain e com um pátio interior no qual crescem rosas aromáticas e se
ouve o burburinho discreto de uma velha fonte, colocada ao centro. Nesta
época do ano é o suprassumo para as pessoas românticas que, para além
disso, podem contemplar a partir do quarto andar as torres de Saint-
Germain-des-Prés. É preferível que não sejam muito corpulentas.
Os quartos têm as paredes forradas a papel, móveis antigos… e são
claustrofobicamente pequenos. Portanto, nada adequados para o típico
americano do Midwest, pois quando se mede mais de um metro e oitenta o
conforto da cama é bastante limitado.
Como eu não sou nenhum gigante, esse problema não se me coloca, mas
há alguns anos cometi o erro de instalar no Marronniers Jane Hirstman e
Bob, o seu novo marido, que mede dois metros. Bob, que normalmente
ocupa sozinho uma cama king size, ainda continua traumatizado pelo seu
«romantic disaster» na «caminha dos anõezinhos da Branca de Neve».
Deixei-me cair com um suspiro no meu sofá branco e afaguei o pescoço
suave de Cézanne abismado nos meus pensamentos. A falta de sono da
noite anterior começava a cobrar o seu preço, já para não falar dos
acontecimentos das últimas horas, por muito agradáveis que fossem.
Marion tinha-se ido embora há dez minutos com o seu tipo da Harley
Davidson e eu tinha, finalmente, o meu primeiro momento de sossego.
Pela terceira vez nesse dia tirei do bolso a carta da Principessa e
desdobrei as suas folhas amachucadas.
Telefonei a Bruno.
Quando, seja por que motivo for, a vida de um homem ameaça tornar-se
complicada, ele necessita de três coisas: uma tarde relaxada no seu bar
favorito, um copo de vinho tinto e um bom amigo.
Ainda que não tenha dito, pelo telefone, grande coisa, algo parecido a
«Vamos tomar um copo, tenho uma coisa para te contar», Bruno entendeu
de imediato.
– Dá-me uma hora – disse, e só o facto de pensar nesse homenzarrão
com a sua bata branca foi algo sumamente tranquilizador. – Apanho-te na
galeria.
Bruno é médico, está há sete anos apaixonado pela sua mulher,
Gabrielle, e muito entusiasmado com a sua filha de três anos. Quando não
endireita narizes partidos ou demasiado grandes e alisa com injeções de
botox as frentes enrugadas das senhoras da sociedade parisiense é também
um jardineiro apaixonado, hipocondríaco e um adepto da teoria da
conspiração. Vive com a família numa casa com jardim em Neuilly, tem
um consultório de sucesso na Place de Saint-Sulpice e é tão pouco versado
em arte moderna como em literatura experimental.
E é o meu melhor amigo.
– Obrigado por teres vindo – disse-lhe quando uma hora mais tarde
entrou na Galerie du Sud.
– Fico contente por te ver. – Deu-me umas palmadinhas no ombro e
percorreu com o olhar profissional de médico todo o meu corpo. – Não
dormiste muito e pareces de bom humor – concluiu o diagnóstico gratuito.
Enquanto pegava na minha gabardina, Bruno folheou o catálogo de uma
exposição de Rothko que havia sobre a mesa.
– Que vês de especial nisto? – perguntou abanando a cabeça. – Dois
quadrados vermelhos, até eu podia pintar isto!
Sorri.
– Por amor de Deus, limita-te aos teus narizes! – repliquei empurrando-
o em direção à porta. – O valor de uma obra de arte não se pode apreciar
até se estar diante dela e se nota se te diz alguma coisa. Viens, Cézanne! –
Saí para a rua, fechei a porta da galeria à chave e baixei a persiana.
– Que disparate! O que pode dizer-me um quadrado vermelho? – Bruno
soltou um resfôlego depreciativo. – Bem, se ao menos fossem os
impressionistas, esses sim, convencem-me, mas todos estes mamarrachos
de hoje em dia… Quero dizer, como é que podes avaliar atualmente o que
é «arte»? – Pude ouvir as aspas claramente.
– No preço – respondi-lhe com secura. – Ao menos é o que diz Jeremy
Deller.
– Quem é Jeremy Deller?
– Vamos Bruno, esquece! Vamos ao La Palette. Há coisas mais
importantes na vida que a arte moderna. – Ajustei a trela à coleira de
Cézanne que olhou para mim como se a última frase se lhe referisse.
– Nisso estou totalmente d’accord – disse Bruno, e deu-me umas
palmadinhas de aprovação no ombro. Avançámos juntos pela tarde tépida
de maio até chegarmos ao meu bistrot favorito, no final da rue de Seine,
com as paredes cobertas de quadros, os clientes incorrigíveis sentam-se a
fumar no terraço seja qual for a temperatura, o robusto empregado brinca
com as raparigas giras e diz-lhes que esteve casado com elas numa vida
passada.
Respirei profundamente. Independentemente daquilo com que cada um
se depare na vida, é estupendo ter um bom amigo.

Uma hora mais tarde já não pensava que era estupendo ter um bom amigo.
Estava sentado com Bruno numa mesa de madeira escura, diante de uma
garrafa de vinho tinto e discutíamos tão acaloradamente que alguns
clientes nos olhavam inquietos.
Na verdade, eu só estava à procura de um bom conselho. Tinha contado
a Bruno a aventura da noite anterior, a noite de amor fracassada com
Charlotte, a chamada de pânico de Soleil… e naturalmente que falara da
estranha carta de amor que havia ocupado os meus pensamentos durante
todo o dia.
– Não tenho a menor ideia de quem poderá ter escrito esta carta. Achas
que devo responder? – perguntei-lhe, mas na verdade só queria ouvir um
«sim».
Em vez disso, Bruno franziu o sobrolho e começou com as suas
especulações de teórico da conspiração.
Disse que era bastante suspeito que a remetente da carta não tivesse
revelado a sua identidade. As cartas anónimas não devem ter resposta de
nenhuma forma, isso estava claro.
– Quem sabe que tipo de psicopata se esconde por trás! – Inclinou-se
para diante com olhar conspirador. – Conheces aquele filme em que
Audrey Tautou interpreta uma louca que se apaixona por um homem
casado e cuja mulher está grávida e que depois acaba em cadeira de rodas
porque ela lhe quebra um jarrão pesado na cabeça?
Eu abanei a cabeça horrorizado. Não me tinha ocorrido pensar nisso. Só
conheço Amélie e nesse tudo acaba bem.
Bruno reclinou-se satisfeito na cadeira.
– Meu pobre amigo, conheço as mulheres e digo-te: cuidado!
– Sim, pois! – repliquei. – Eu também conheço um pouco as mulheres.
– Mas não esse tipo de mulheres. – Bruno quase que sussurrava. – Eu
vejo todos os dias quem entra e sai do meu consultório. Crê-me, a maioria
está louca. Uma acredita ser a rainha da noite, a outra pensa que é uma
princesa. Ninguém quer envelhecer e todas se veem demasiado gordas.
Lembras-te daquela que operei ao nariz e que não parava de me telefonar
porque estava convencida que me tinha apaixonado por ela? – Bruno
lançou-me um olhar cheio de significado. – Sabes como podem chegar a
ser as mulheres quando se lhes mete uma ideia na cabeça? Responde-lhe e
nunca mais te conseguirás livrar dela!
– Na verdade, Bruno, estás a exagerar. É a carta de uma mulher que se
apaixonou por mim. Porque é que iria ser uma psicopata? Para além disso,
a carta não me obriga a nada. É mais… uma proposta encantadora, para
não dizer irresistível. – Sublinhei as minhas palavras com um bom gole de
vinho e pedi uma salad au chèvre. A discussão tinha-me aberto o apetite.
– Humm... é uma proposta encantadora. – Bruno repetiu as minhas
palavras com uma expressão pensativa. Naturalmente que o que também
poderia ser… – começou a dizer, e eu suspirei interiormente.
Enquanto comia a minha salada, Bruno desenvolveu uma nova teoria
que quase fez com que me engasgasse com o queijo de cabra temperado.
Naturalmente, também podia ser que por trás se escondesse uma
empresa fraudulenta que dessa maneira tão supostamente pessoal
procurava conseguir endereços de correio eletrónico para converter a
vítima (eu) num distribuidor porno ou de Viagra ou para recrutar gente
para agências de contactos por internet.
– Respondes a esse endereço e de seguida bombardeiam-te com ofertas
da Bielorrússia – preveniu-me, e fez um silêncio momentâneo. – E se tens
muito má sorte… – fez uma pausa carregada de maus augúrios – para
além dessa carta esconde-se, talvez, um cornudo que se entreterá a infetar
o teu computador com um vírus ou a esvaziar a tua conta bancária.
– Bruno, já chega! – disse enfadado, e pousei bruscamente os talheres
sobre a mesa. – Às vezes parece que estás louco! Pensava que me poderias
ajudar a pensar quem poderia ser essa Principessa. Em vez disso, começas
a dizer todas essas coisas esquisitas. – Fiz uma breve pausa. – Máfias da
internet, que ridículo! E mandam cartas escritas à mão, em papel feito à
mão, a centenas de casas? Nem sequer chegou pelo correio! – Estendi a
mão até ao meu casaco que estava pendurado nas costas da cadeira, e
agarrei na carta. – Olha, por favor! «Para o Duc», pôs no envelope, para o
Duc! – Olhei para Bruno com ar triunfal. – Muito poucas pessoas me
chamam assim, ou seja, tem de ser alguém que me conhece pessoalmente.
E não me lembro de ter entre os meus conhecidos nenhum psicopata, à
parte talvez o meu melhor amigo.
Bruno sorriu. Agarrou então no envelope azul-claro que estava entre nós
como se fosse um pedaço de céu.
– Posso?
Assenti. Bruno leu as linhas e fez silêncio.
– Mon Dieu – murmurou então.
– O quê? – perguntei com brusquidão.
– Nada… é só… puf! Esta é a carta de amor mais bonita que alguma vez
li. É uma pena que não me tenha sido dirigida. – Os seus olhos castanhos
lançaram-me por um momento um olhar sonhador. – Que sorte que tens!
– Sim – anuí satisfeito.
– Mas tem de haver alguma pista! – Bruno passeou de novo o seu olhar
de diagnóstico pelo papel, e então perguntou confuso: – Tens a certeza de
que esta carta era realmente para ti?
– Bruno, estava na minha caixa do correio! No envelope está o meu
nome. E não conheço nenhum outro «Duc» que viva na minha casa.
– Mas no fim põe «Responda-me, Lovelace». Lovelace, não Jean-Luc.
– Sim, sim – repliquei impaciente.
– Lovelace é o protagonista de um romance, podes esquecer isso.
Bruno elevou as suas sobrancelhas espessas.
– E que faz esse Lovelace?
– Bem, ele… seduz as mulheres.
– Ah… bon… Lovelace. – Os olhos de Bruno brilharam. – Portanto a
Principessa considera-te um sedutor, um Don Juan… – Não, não –
prosseguiu quando lhe fiz um gesto de recusa –, isso poderia ser a chave
de tudo. E se olhasses para a tua agenda para veres se há alguma mulher
que não tenha conseguido tudo o que queria? Uma que tenhas recusado?
Uma a quem tenhas partido o coração? – Sorriu.
– Não sei. É possível. Também pode ser alguma com quem nunca
estive.
– Ou há muito, muito tempo.
– Vamos Bruno, isto não é um conto.
– Mas parece: «Ainda me palpita o coração quando recordo essa infeliz
história que por um breve e maravilhoso instante nos aproximou tanto que
as nossas mãos se roçaram…» – leu Bruno. – Que história infeliz é essa de
que fala? E porque é que ela também tem culpa e tu te comportas de
maneira cavalheiresca? – Olhou-me com cara de ânimo. – Pensa um
pouco! Não te diz nada?
Eu abanei a cabeça e escutei o meu interior. Não me dizia nada.
– Que é feito daquela morena com quem estiveste há uns meses? Não
era um pouco antiquada e sonhadora?
– Coralie? – Por um momento vi surgir diante de mim o cabelo curto e
revolto de Coralie e a sua face pálida de olhos grandes e interrogadores
quando me dizia durante a noite: «je te fais un bébé, non?»
– Bem, não é que fosse antiquada – repliquei – queria mudar-se de
imediato para minha casa e queria ter um filho…
– Que inconcebivelmente horrível! – disse Bruno com ironia.
– Bruno, queria ter um filho três horas depois de nos termos conhecido!
Era uma espécie de ideia fixa. Era adorável, mas não falava de outra coisa.
E quando ficou claro que eu não queria nenhum bebé, ou pelo menos não
tão depressa, foi-se embora muito ofendida e com um olhar triste.
– Mas sentiste-te aliviado, não? – Bruno riu-se, compadecendo-se de
mim.
Encolhi os ombros.
– Curiosamente, fiquei com má consciência. Coralie tinha algo que fazia
com que, como homem, te sentisses sempre culpado. Como um
cabritinho, sabes? Que para além disso quando olha para a ementa de um
restaurante necessita de conselho porque não consegue decidir por si o que
comer.
Bruno assentiu.
– Essas são as piores de todas. Crês que pode ter sido ela a escrever a
carta?
– Não, não é tão inteligente para fazer algo assim. Na verdade não tem
nenhum sentido de humor.
– É pena. – Bruno esvaziou o seu copo. – Temo que esta noite não
possamos resolver o mistério da Principessa. Talvez possas continuar a
procurar no teu cérebro para ver se te recordas de outros encontros
desafortunados com mulheres. Não creio que possam ter existido assim
tantos! – Piscou-me o olho e chamou o empregado. – À parte isso, podes
responder à carta e colocar as tuas perguntas. Contas com a minha bênção!
E mantém-me ao corrente! Que assunto tão emocionante!

Quando abandonámos o La Palette, já eram onze e meia. Uma chuva


ligeira caía sobre a cidade, e avancei pensativo com Cézanne pela rua
molhada ouvindo o som dos meus próprios passos. A noite estava muito
tranquila, não como a anterior. E se tinha sido Charlotte? Por muito
improvável que parecesse, o que se passara entre nós, ou melhor, o que
não se havia passado entre nós podia considerar-se um «encontro infeliz».
Ou, pelo menos, não terminara em consumação.
Senti a carta no meu bolso e decidi compará-la com o bilhete que tinha
encontrado colado ao espelho de manhã. E então se veria se o jogo da
Pedra de Roseta continuava.

Quando entrei no escuro pátio interior, a luz de Madame Vernier


continuava acesa, e ouvi uma música suave. Não era algo habitual, pois
Madame Vernier defendia com ardor que o saudável era adormecer antes
da meia-noite: tudo o resto era prejudicial para a pele.
– O senhor também devia cuidar de si, Monsieur Champollion – tinha-
me aconselhado uns dias antes quando regressava de um passeio longo
com Cézanne.
Subi devagar as escadas gastas que conduzem até à minha casa no
terceiro andar. Cézanne saltava contente a meu lado, ele era sem dúvida o
mais repousado dos dois. Abri a pesada porta de madeira e entrei no
vestíbulo. «Que dia!», pensei com a ingenuidade de quem quer desfrutar
de um momento merecido de tranquilidade na sua poltrona…. sem sequer
imaginar que a partir de então todos os dias iriam superar em excitação o
anterior.
Deixei-me cair na poltrona, estiquei as pernas e acendi um cigarro antes
de dar uma vista de olhos ao bilhete de Charlotte. Devo admitir que não
tinha grandes esperanças e pensava fazê-lo só pelo seguro. Deixei vaguear
os olhos pela sala de estar com satisfação. O sofá vermelho com as
almofadas de várias cores. A poltrona inglesa de couro castanho-escuro.
Os quadros antigos e modernos dispostos na parede numa combinação
bela e harmoniosa. A jarra de prata com os copos de cristal lapidado na
vitrina. As pesadas cortinas diante das janelas francesas que permitiam
aceder às pequenas varandas com balaústres de ferro forjado. O sol Luís
XVI de antiquário com o pequeno espelho redondo no centro, a
maravilhosa reprodução de O beijo de Rodin que estava sobre o móvel
para mapas no qual guardava litografias e que brilhava como se tivesse
sido acabado de polir. O meu pequeno reino, o meu refúgio, criado por
mim mesmo e que me servia para recuperar forças. Soltei um suspiro de
satisfação.
Tudo estava arrumado e limpo. Demasiado arrumado e limpo.
Foi então que me dei conta de que, na minha saída apressada, havia
deixado de manhã um certo caos atrás de mim. E apercebi-me que era
quinta-feira, o dia em que Marie-Thérèse vinha limpar a casa. Também me
lembrei que, com a pressa, me esquecera de lhe deixar dinheiro. E logo me
recordei de outra coisa!
Pus-me de pé de um salto e corri até à casa de banho. Invadiu-me um
cheiro a maçã e senti náuseas. Por azar, ao longo de vários anos nunca
conseguira que Marie-Thérèse renunciasse ao seu detergente favorito de
casa de banho. Acocorei-me e agarrei no pequeno cesto que havia por
baixo do lavatório. Estava vazio!
Apoiei-me no lavatório e fiquei a olhar para o sítio onde Charlotte havia
colado o pequeno bilhete com o beijo de batom antes que eu o deitasse no
lixo de forma mecânica e ele, com a ajuda da minha assistente
conscienciosa, tinha ido parar aos contentores de lixo do pátio.
Tentei convencer o homem pálido do espelho que evidentemente fazia
pouco pela sua «pele», de que o estudo grafológico teria sido, de qualquer
maneira, insignificante. Mas, no entanto, ele já não acreditava em mim.
Por azar acontece sempre o mesmo: quando se perde alguma coisa que
se pensava ter assegurada, converte-se no objeto de máximo desejo.
Quando alguém se lança sobre a carteira, os sapatos, o quadro ou o
candeeiro com um quebra-luz veneziano diante dos quais hesitamos, sabe-
se nesse preciso instante que era justamente isso de que se andava à
procura.
Estava de imediato certo que a letra da nota desparecida teria coincidido
com a da carta. E para além disso, não me tinha Charlotte deixado escrito
que me devia uma?
O cansaço desaparecera. Tinha de averiguar a verdade!

Quem alguma vez tenha remexido num contentor do lixo sabe do que falo
quando digo que, em comparação, as duras escavações do túmulo de
Tutankámon foram uma aventura romântica. Com as pontas dos dedos fui
desenterrando latas de tomate vazias, garrafas de vinho, artigos de higiene
usados, pacotes de batatas fritas amachucados, frascos de paté e os restos
mortais de um coq au vin. Porém apesar de ter deixado de chover e a lua
envolver tudo numa luz amarela suave, a minha incursão estava isenta do
prazer que deve ter sentido Schliemann perante as suas descobertas.
Contudo, a minha tenacidade foi recompensada. Depois de vinte
angustiantes minutos a remexer no lixo tinha em mãos um papel
amarrotado que surpreendentemente havia sobrevivido à sua excursão às
profundezas de Paris sem sofrer, com exceção de uma casca de batata que
se lhe pegara, grandes danos. Com um suspiro de felicidade guardei o meu
tesouro no bolso, quando um objeto duro vindo do nada se estampou sobre
o meu crânio.
Caí ao chão como uma pedra. Quando voltei a abrir os olhos ouvi uma
voz a lastimar-se por cima de mim. Pertencia a um fantasma vestido de
branco que se inclinava sobre mim e que não parava de gritar: «Oh, meu
Deus, oh meu Deus, Monsieur Champollion, lamento muito, lamento
muito!»
Demorei alguns segundos a perceber que era Madame Vernier quem
estava ao meu lado em camisa de noite.
– Monsieur Champollion? Jean-Luc? Está bem? – voltou a perguntar
com voz sumida, e eu assenti sem saber o que dizia. Levei a mão à zona
da cabeça que me doía e senti um galo.
Fiquei a olhar para a minha vizinha como se, com a sua camisa de noite
vaporosa e o cabelo solto, fosse uma aparição.
– Madame Vernier – murmurei desconcertado. – Que se passou?
Madame Vernier agarrou-me a mão.
– Oh, Jean-Luc – disse entre soluços, e dei-me conta que era a segunda
vez que me tratava pelo nome. No meu estado não me teria surpreendido
nada que nesse momento ela confessasse que era a remetente secreta da
carta («Há muito tempo que te amo, Jean-Luc… sempre tive a esperança
que Cézanne nos unisse para sempre…»).
– Perdoe-me, por favor! – A vizinha em camisa de noite parecia
totalmente fora de si. – Ouvi ruídos no pátio, mesmo debaixo da minha
janela, assomei e vi um homem a trepar aos contentores do lixo. Pensei
que fosse um ladrão. Ainda lhe dói? – Ao seu lado estava um pequeno
haltere.
Soltei um gemido.
«Galerista morto enquanto remexia nos contentores do lixo», passou-me
pela cabeça. Na verdade tinha muita sorte em poder continuar a pensar em
alguma coisa e não em estar a flutuar no nirvana.
– Está bem, não foi para tanto – tranquilizei Madame Vernier, que
continuava aferrada à minha mão.
– Quel cauchemar, que pesadelo! – sussurrou. Pregou-me um susto de
morte! – De imediato, mudou o seu olhar de preocupação e observou-me
com uma expressão severa. – Que fazia a estas horas nos contentores do
lixo, Jean-Luc? Surpreende-me… – Olhou para alguns restos que me
tinham caído ao chão enquanto remexia e desatou a rir. – Não será o
senhor um vagabundo que procura comida no lixo, não?
Abanei a cabeça, senti uma dor horrível. A minha vizinha tinha uma
energia surpreendente.
– Só estava à procura de uma coisa que tinha deitado fora sem querer. –
Considerei que lhe devia uma breve explicação.
– E então? Encontrou-a?
Assenti. Era uma e meia quando abandonámos a cena do crime e
Madame Vernier deslizava pelas escadas diante de mim como uma
pequena nuvem branca.

Cézanne, que estava adormecido sobre a sua manta no corredor, abanou a


cauda a cumprimentar-me quando regressei da minha aventura noturna. Já
tinha desistido de seguir o meu ritmo algo alterado de dia e de noite, os
meus horários de levá-lo a passear. Quando saía, saía. Budismo canino.
Por um instante, invejei-o pela sua vida sem complicações. Depois
inclinei-me sobre a minha secretária, alisei o bilhete amachucado de
Charlotte e pus a seu lado a carta da Principessa.
Não era preciso ser nenhum Champollion para comprovar que se tratava
de duas caligrafias totalmente diferentes. Uma era mais direita e com
traços angulosos, a outra inclinava-se ligeiramente para a direita e
mostrava traços arredondados, entre os quais se destacavam sobretudo o
B, o C, o D e o P.
Definitivamente, Charlotte não era a Principessa.
De repente a descoberta baixou o meu nível de adrenalina e isso fez-me
sentir de imediato terrivelmente mal. Doía-me a cabeça e descartei a ideia
de escrever à autêntica Principessa nessa mesma noite.
Para escrever uma carta em condições tinha de estar descansado e em
pleno uso de todas as minhas faculdades físicas e mentais. E estas tinham
sofrido muito nas últimas horas.
Fui a cambalear até à casa de banho e arquivei definitivamente o bilhete
de Charlotte no lixo. Depois, lavei os dentes. Era tudo o que podia fazer
nesse dia. Pensava eu.
5

Quanto tenho um dia bom pareço-me com o tipo do anúncio dos


Gauloises. Mas quando me dirigia para o meu quarto a altas horas da
noite, descalço e com o meu pijama às riscas azuis e brancas, já não tinha
nada em comum, sem contar com as riscas da roupa, com esse tipo de tão
bom humor que passeava satisfeito o seu cão com o slogan em fundo –
Liberté toujours.
Sentia-me como se tivesse cento e cinco anos e só queria uma coisa:
dormir! Mesmo que estivesse perante a princesa mais bela do mundo, tê-
la-ia repelido, morto de cansaço.
Quando vi piscar uma pequena luz vermelha na penumbra, pensei ao
início que era uma das consequências da pancada na cabeça. Mas tratava-
se apenas do gravador de mensagens, que desde o fundo do vestíbulo
lançava um sinal discreto a meio da noite. Apertei de forma mecânica o
pequeno botão redondo.
«Tem uma mensagem nova» gritou-me uma voz feminina automática ao
ouvido. E então ouvi outra voz feminina que fez com que um calafrio me
percorresse a espinha.
– Jean-Luc? Jean-Luc? Onde estás? É quase uma e não te encontro. O
teu telemóvel está desligado. – A voz soava nervosa. – Que estás a fazer
em plena noite? Não recebeste a minha mensagem? Devias ter vindo ver-
me! Importas-te assim tão pouco comigo? – Seguiu-se uma breve pausa e
a voz adquiriu então um tom histérico. – Jean-Luc, porque é que não
atendes o telefone? Já não aguento mais, não vou voltar a pintar nunca
mais. Nunca mais, percebes? – Após este anúncio dramático fez-se um
silêncio prolongado. E depois a tragédia continuou. – Está tudo escuro.
Tenho frio e estou sozinha.
As últimas palavras soavam realmente mal e a quatro copos de vinho,
no mínimo.
Caí pesado na cadeira que havia junto ao telefone e com um suspiro
tapei a cara com a mão. Soleil! Tinha-me esquecido completamente de
Soleil.
«Minha querida e pequena Soleil», sussurrei desesperado. «Por favor
perdoa-me mas agora não te posso telefonar. Realmente não posso. São
duas e um quarto e não podia aguentar uma hora terrífica ao telefone.» O
galo doía-me muito e queria que a minha pobre cabeça descansasse,
enfim, numa almofada macia, ansiando mergulhar na paz escura do meu
quarto.
Então, perguntei a mim próprio se seria má pessoa se deixasse toda a
noite sozinha com a sua desgraça essa criatura que duvidava do mundo e
de si mesma.
– Sou um porco! – murmurei. – Mas se não me meto agora mesmo na
cama vou cair morto aqui mesmo.
Soltando um suspiro, agarrei no auscultador e marquei o número de
Soleil Chabon.

Meia hora depois estava sentado num táxi a caminho do Trocadéro.


Já tinha lido que em determinadas circunstâncias o ser humano
desenvolve de imediato forças insuspeitas. Segue caminhando totalmente
esgotado pelo deserto do Sara, com a esperança de encontrar ainda um
oásis que lhe salve a vida. Pode estar três noites sem dormir e manter-se
desperto junto ao seu computador, graças ao café, para que o trabalho
esteja pronto uns minutos antes de terminar o prazo de entrega. Agarra-se
a uma corda mais meia hora do que é fisicamente possível quando por
baixo espera um rio cheio de crocodilos famintos. O homem é
surpreendente nas suas capacidades e experimentei na minha própria pele
os efeitos de uma descarga repentina de adrenalina.
Nervoso e inquieto, observei a Torre Eiffel à minha esquerda quando
percorríamos o Quai d’Orsay já deserto. Dei graças por conhecer bem
Paris e poder assim indicar ao taxista o caminho até à rue Augereau, uma
rua pequena perto do Champs de Mars.
– Tu dizer, eu conduzir! – O convite lacónico do condutor, cujo local de
nascimento devia estar em algum ponto do mais profundo Sudão, teria
sido demasiado para qualquer cliente que não conhecesse tão bem a
cidade.
– Poderia ir um pouco mais depressa? – perguntei ao homem negro que
levava um gorro bem enfiado. – Je suis pressé, tenho muita pressa.
Era evidente que o homem do continente africano não estava
acostumado a tais perguntas. Grunhiu alguma insolência no seu idioma,
mas carregou no acelerador.
– Trata-se de uma emergência! – disse, procurando motivá-lo.
Eu não sabia se se tratava de uma emergência. Só sabia que uma hora
depois de ter deixado a trágica mensagem no meu atendedor, Soleil já não
atendia o telefone. Tinha feito cinco chamadas seguidas sem êxito, e
portanto não esperei mais.
Era possível que tivesse simplesmente ido para a cama depois de
desligar o telefone, mas eu não queria ser o culpado da sua morte. A
consciência atormentava-me. E a noite trazia consigo o seu próprio
dramatismo.
O taxista travou a fundo diante do número que lhe havia indicado. Eu
tinha ido visitar Soleil várias vezes ao seu estúdio onde também vivia e
dormia.
Sem necessidade de pensar digitei a combinação que abria a porta da
rua. Atravessei de seguida a toda a pressa o pátio no qual cresciam
algumas árvores e detive-me quase sem fôlego diante da porta da sua casa.
Toquei à campainha com insistência e como não se passasse nada bati com
toda a força na porta com o punho.
– Soleil? Soleil, abre! Sei que estás aí!
Foi então que tive um déjà-vu. Há dois anos eu já tinha estado a bater
com toda a força nessa porta. Nessa ocasião, Soleil fez-se de morta
durante uma semana. Negava-se a responder-me. Enchi de mensagens o
seu atendedor, pedi que me telefonasse, mas não o fez. Não se dignou a
responder ao telefone e deixou-me de fora, diante da porta, como se não
estivesse ninguém. E tudo só porque tinha medo de me dizer que os seus
quadros ainda não estavam prontos.
Como estava preocupado e na verdade não faltava muito tempo, dessa
vez atirei por baixo da porta um papel com uma mensagem escrita em
MAIÚSCULAS:

FALA COMIGO.
CINCO MINUTOS!
TUDO SE ARRANJARÁ!

Por baixo desenhei um pequeno boneco que era suposto ser um Jean-
Luc suplicante. Poucos segundos depois abriu a porta muito devagar.
Que devo dizer… os artistas são seres muito especiais! Juntamente com
o seu instinto criativo possuem espíritos muito sensíveis e uma segurança
em si próprios terrivelmente instável que é preciso reforçar
continuamente. E um galerista que trabalha com «artistas vivos» tem,
sobretudo, de ser capaz de uma coisa: aguentá-los.
Ao meu lado ouviu-se um miar apagado. Olhei para baixo. Dois olhos
verdes e brilhantes miravam-me fixamente. Pertenciam a Onionette, que
significa «cebolinha». E Cebolinha é a gatinha de Soleil. Ainda não
descobri porque é que o pequeno animal tem o nome de uma liliácea, mas
por que razão é que Soleil haveria de ter um gato chamado Mimi ou
Foufou? Isso seria demasiado normal.
«Onionette», sussurrei surpreendido, e acariciei o pelo tigrado do felino,
que não parava de ronronar. «De onde vens?»
Onionette esfregou-se um par de vezes nas minhas pernas e logo
desapareceu no pequeno terraço, separado do pátio interior, que pertencia
ao estúdio de Soleil. Assomei-me pelo espaço que havia de um dos lados
entre a sebe e a parede e, através da porta de correr em vidro, pude ver o
quarto de Soleil.
A divisão estava às escuras, as persianas a meia altura e não pude
perceber se Soleil dormia na sua cama improvisada, um enorme colchão
simplesmente colocado no chão.
– Soleil? – Dei uns pequenos golpes no vidro, e então empurrei
suavemente a porta de correr. Deslizou como se lhe tivesse dito «Abre-te
Sésamo!» e surpreendeu-me a despreocupação de Soleil. No mais
profundo do seu ser continuava a viver na natureza intacta das ilhas das
Índias Ocidentais onde tinha sido criada.
Contive a respiração e dei-me conta da escuridão tranquila do quarto.
– Soleil, está tudo bem? – disse em voz baixa, e apercebi-me do cheiro
quase irreal e ao mesmo tempo embriagante a aguarrás, canela e baunilha
que inundava o espaço. Era como se me permitisse o acesso clandestino a
um harém oriental.
Deslizei em silêncio até à cama, que estava ao fundo do enorme espaço
de pé-direito alto. E ali estava Soleil, estendida sobre os lençóis brancos
como uma figura de bronze. Completamente nua. Um raio de luz débil que
entrava pela porta aberta que dava para a cozinha iluminava a sua cara
com suavidade e o seu peito subia e baixava com a mais bela regularidade.
Num primeiro instante senti-me aliviado. Mas de imediato enfeitiçado.
Observei Soleil adormecida e de repente tudo me pareceu tão irreal como
se estivesse a sonhar. Dei-me conta que o meu olhar se demorava
demasiado sobre esse corpo lindo.
Que fazia eu ali? Entrava em casas alheias e olhava para mulheres nuas!
Soleil dormia como uma deusa, não se passava nada e eu já não estava ali
para lhe salvar a vida mas sim como um voyeur.
Afastei o olhar e ia começar uma retirada em silêncio quando o meu
tornozelo tocou num objeto. A garrafa de vinho vazia que se encontrava
no chão virou-se com um forte estrondo que, no silêncio da noite, soou
como se se tivessem desmoronado as muralhas de Jericó.
Estremeci.
A figura de bronze tinha-se mexido e olhava para o lugar em que eu
estava.
– Está aí alguém? – A voz de Soleil soava estremunhada.
– Sou eu, Jean-Luc! – respondi a sussurrar. – Só queria ver se estavas
bem. – Ao fim e ao cabo era a verdade.
Os olhos de Soleil brilharam. Não parecia surpreendida pelo facto de o
seu galerista e agente estar em plena noite diante da sua cama. Sentou-se
com a naturalidade de uma criança. Os seus seios pequenos, arredondados
e de cor café com leite vibraram ligeiramente, teria de tapar os olhos para
não ver.
Com grande frieza concentrei o meu olhar na sua cara e assenti com
amabilidade, como um médico a fazer uma visita.
– Vieste! – disse feliz, e estendeu-me a mão.
– Naturalmente – disse atrevendo-me a dar um passo em frente. –
Estava preocupado… a tua voz soava muito mal.
Peguei na mão de Soleil e teria gostado de a consolar com um abraço,
como teria feito uma boa amiga, mas não me pareceu de todo apropriado à
vista dos seus ombros nus. Assim, mantive-me por um momento inclinado
de uma maneira bizarra sobre ela. Apertei-lhe a mão para lhe dar ânimo
antes de a soltar com suavidade.
– Lamento não ter vindo antes. Voltarei amanhã à tarde, prometo. E
então falaremos sobre tudo.
Soleil concordou. O facto de ter ido a sua casa a meio da noite por estar
preocupado pareceu enchê-la de satisfação.
– Sabia que não deixarias de vir – disse. Depois soltou um suspiro. – Ai,
Jean-Luc! Passaram-se tantas coisas, estou tão confusa…
Haveria alguém no planeta capaz de entender essas palavras melhor que
eu?
– Tudo se arranjará – disse-lhe cheio de empatia e referindo-me em
parte a mim mesmo. – E agora continua a dormir.
Soleil voltou a deitar-se e tapou-se obedientemente com o lençol.
Acariciei-lhe o cabelo com suavidade e endireitei-me.
– Obrigada, Jean-Luc, continua tu também a dormir – murmurou.
Sorrindo, saí pela porta do terraço.
Eram quatro e vinte. Dado que não tinha pregado olho toda a noite não
se podia falar de «continuar» a dormir. Mas sim de dormir «finalmente».
E nada me iria impedir. Nem um terramoto. Nem um amigo com
problemas. Nem a Principessa em pessoa.

Apesar da minha excursão noturna, poucas horas depois acordei


totalmente repousado. Devo dizer que me sentia muito melhor que na
manhã anterior. Talvez o meu corpo se estivesse a habituar a dormir
pouco. Se Napoleão tinha conseguido sair vitorioso das suas campanhas
com cinco escassas horas de sono, porque é que isso não seria também
válido para mim?
Era tudo uma questão de atitude.
Surpreendi-me a mim próprio a cantar no duche. Há milénios que não o
fazia! «J’attendrais…», gritei à cortina do duche azul-turquesa com
pequenas conchas brancas que se movia como o mar, e surpreendi-me
com o meu bom humor.
Era sábado de manhã, e por fim tinha tempo livre!

Tinha telefonado a Marion para lhe pedir que uma vez na vida fosse
pontual, abrisse a galeria e estivesse no seu posto na rue de Seine até ao
meio-dia. Telefonara a Madame Vernier para lhe pedir que tomasse conta
de Cézanne (se tocasse no alto que tinha na cabeça parecia-me que ela me
devia esse pequeno favor). Pensava descer até à boulangerie e comprar
um… não, dois croissants recém-saídos do forno e sentar-me no meu
escritório com um petit noir bem forte e com muito açúcar e depois… E
depois!
A perspetiva de responder à carta da Principessa e entrar em contacto
com essa desconhecida, seguramente tão misteriosa quanto bela, que me
fazia elogios tão misteriosos que até o meu melhor amigo me invejava,
pôs-me de muito bom humor.
Mas quando uma hora mais tarde, já sentado diante do meu pequeno
portátil branco e depois de ter escrito o endereço de e-mail da Principessa,
não soube lá muito bem como começar.
Assunto? Que deveria por no local «Assunto»? De certa maneira, essas
categorias modernas que devem resumir o conteúdo de algo escrito numa
linha não eram muito adequadas para as cartas de outros tempos.
A sua carta de quinta-feira? Impossível! Resposta à sua carta? Soava
pouco engenhoso. Para a Principessa? Bem, para quem deveria ser?
Reli outra vez a carta da Principessa, perdi-me entre as suas linhas e
encontrei a palavra que me parecia mais adequada.
Assunto: Seduzido!
Satisfeito, reclinei-me sobre as costas da cadeira, bebi um gole de café e
pensei se devia começar a cara com «Estimada Senhora» (soava a mulher
de idade?), «Querida Principessa (demasiado normal) ou «Queridíssima
Principessa» (demasiado pretensioso).
Já me tinha decidido por «Belíssima Principessa» quando o telefone
tocou. Praguejando em voz baixa agarrei no auscultador.
– Sim, diga? – disse com brusquidão.
– Jean-Luc? – Surpreendentemente não era Soleil.
– Que se passa, Marion?
– Estás de mau humor? – perguntou.
Se há alguma coisa que odeio nas mulheres é essa mania de responder a
uma pergunta com outra pergunta.
– Não, estou de muito bom humor – limitei-me a responder.
– Pois não parece – insistiu Marion. – Passa-se alguma coisa?
Suspirei.
– Marion, por favor, diz-me o que pretendes, estou a fazer… uma coisa
e tenho de me concentrar.
– Ah, bom! Porque é que não disseste?
Revirei os olhos.
E então?
– Telefonou a tal Conti do Hotel. Ouvi-a a mascar pastilha elástica.
Alguém perguntou por ti.
Encanta-me a precisão das mensagens de Marion.
– Quem? Foi Monsieur Bittner? – Ter-me-ia dito que queria reunir-se
comigo no fim de semana para falar de Julien? Tinha de prestar mais
atenção. As coisas começavam a fugir ao meu controlo.
– Non, não era o nosso amigo alemão. Era uma mulher: Une dame,
segundo me disse Mademoiselle Conti.
– E… essa mulher tem um nome? – perguntei já nervoso.
– Não. Sim. Não sei… agora que dizes… Não me lembro que
Mademoiselle Conti tenha mencionado qualquer nome…
Marion pareceu estar a pensar e eu suspirei. Claro que Mademoiselle
Conti não mencionou nome nenhum! Para quê? Para que serviam os
nomes quando se trabalha num hotel?
«Tenho uma excelente memória para caras, mas para os nomes não dou
uma para a caixa», rezava a sincera desculpa da rececionista cada vez que
trocava ou se esquecia de algum nome.
– É melhor ligares e perguntares-lhe. – Marion já tinha falado bastante e
começou a despachar.
Antes que pudesse dar por terminada a conversa, ouvi um estrondo
ensurdecedor do outro lado da linha e depois o som da campainha da
porta. Marion deixou escapar um grito de alegria.
– Tenho de desligar. Até logo!
Abanando a cabeça, pousei o auscultador e decidi passar mais tarde pelo
Duc de Saint-Simon para falar pessoalmente com Mademoiselle Conti.
Mas agora tinha algo mais importante para fazer. Desliguei todos os
telefones e pus-me a pensar.

Como é que se escreve a uma pessoa que não se conhece, da qual não se
tem nenhuma imagem, que deu alguns indícios enigmáticos, que se tenta
em vão decifrar, mas que escreveu com tanto amor e disse coisas tão
bonitas sobre nós que gostaríamos de a conhecer?
Enquanto estava sentado diante do computador e olhava para o ecrã
vazio, no qual à parte «Belíssima Principessa» não havia escrito mais
nada, senti-me como um escritor de romances diante da famosa página em
branco.
Não é que tivesse medo, mas cada vez exigia mais a mim mesmo. Dei-
me conta então que a carta da Principessa era para mim uma verdadeira
armadilha, uma armadilha supostamente maravilhosa, porém, tinha
desvalorizado o assunto.
Não queria apenas descobrir quem era essa mulher que me provocava
com palavras atrevidas, mas também queria ser engenhoso, encantador,
perspicaz, expressivo e não queria ser ridículo sob nenhum aspeto. E para
além disso, há que lembrar, já não tinha nenhuma prática no que respeita a
cartas privadas.
Depois de sete cigarros e três petit noirs, que arrefeceram antes de os
beber, o «trabalho» ficou terminado. O meu dedo indicador tremeu uns
segundos sobre a tecla «enter» e tenho de admitir que me senti
estranhamente excitado quando a premi.
Tinha respondido. A minha carta voava pelo espaço virtual de forma
irremediável, à velocidade da luz muitos, muitos quilómetros ou talvez
muito poucos, até alcançar o seu destino.
A aventura tinha começado.
6

Assunto: Seduzido!

Belíssima Principessa:

Quem quer que a senhora seja, a que aponta com flechas douradas ao meu coração – pois
ainda não se pode falar de pequenas partículas de ouro pousadas suavemente no seu fundo
–, deve saber que a sua carta, para mim tão surpreendente, surtiu o efeito desejado.
De qualquer maneira, não deve ainda esfregar as mãos, pois pode ser que necessite de
novo dos seus belos dedos, seja para voltar a escrever-me seja para fazer com eles outras
coisas que, por motivos de decência, não gostaria de detalhar aqui (e se neste momento
enrubesce, tal é a minha doce vingança dos seus sonhos noturnos com os olhos abertos nos
quais as minhas mãos desempenham sem o saber um atrevido papel).
Se lhe respondo agora, com dois dias de atraso imperdoável, tal deveu-se a que,
independentemente dos motivos, a minha vida, sempre harmoniosa, converteu-se num
torvelinho frenético que me tem deixado sem fôlego.
Desde essa manhã em que, há dois dias, retirei da caixa do correio o seu envelope azul-
claro, que os acontecimentos se têm sucedido e não tive um momento de tranquilidade, para
não falar da falta de sono e, por favor, deve crer em mim quando lhe garanto que este é o
meu primeiro instante de paz.
A sua carta surpreendeu-me e fascinou-me ao mesmo tempo.
Desde quinta-feira que não consigo deixar de pensar em quem se esconde por trás da
Principessa. Será uma mulher que conheço? E se assim é, desde quando? E até que ponto?
O meu cérebro trabalha febrilmente e não obtém nenhum resultado. Pois a senhora oculta-
me tudo, exceto as suas palavras, que estão cheias de insinuações veladas e promessas
incríveis.
Que devo pensar, Principessa? Saia do seu esconderijo. Gostaria de me tornar no homem
mais feliz que Paris e, até, o mundo, alguma vez viu! Porém, a felicidade não se faz apenas
de palavras, mas também de atos que eu ficaria encantado de levar à prática se tal me fosse
permitido.
Gostaria de me ter beijado quando as nossas mãos se roçaram? Mon Dieu, quem escreve
assim deve beijar muito bem! Estava eu tão cego que deixei simplesmente passar esse
momento? Estou a começar a ficar zangado comigo por não a ter beijado. Como terá
reparado (e a sua indireta de haver sempre uma mulher diferente ao meu lado não é apenas
indiscreta, mas também descarada), sou um homem que se sente atraído por mulheres, o que
não considero um delito. Não obstante, é evidente que algo muito importante escapou à
minha atenção: a senhora! Um erro imperdoável, a meu ver!
E agora castiga-me fazendo-me sentir uma grande curiosidade. Sabe coisas sobre mim e
eu, pelo contrário, não sei nada de si, e passados dois dias tal parece-me quase
insuportável.
Devo ir buscar os meus antigos álbuns de fotografias para a encontrar? Até onde devo
conduzir os meus passos? Para diante, para trás… ou numa direção completamente
diferente?
Ainda que se esconda por detrás de palavras afiadas, delas se depreende uma mulher que
ama, ou que, pelo menos, está apaixonada e, por isso lhe peço, não, exijo-lhe, minha bela
inacessível, que preste tributo ao seu coração e ao Duc e me dê ao menos um pequeno
indício (a que pode seguir-se um jantar num restaurante adequado e para o qual desde já a
convido).
Principessa! Há dois dias que sigo pelo mundo sem poder concentrar-me porque já não
consigo tirá-la da cabeça. Não compareço aos encontros marcados, não presto atenção,
esqueço-me de comer, e a senhora é o meu enigma preferido! Mas isso era o que pretendia,
não era?
Seduziu-me, e agora sinto curiosidade por saber até onde me quer levar. Se não fosse o
homem que sou, não saberia o que imaginar.
Com isto aceito o seu desafio, um Duc sabe utilizar bem o seu florete e não teme nenhum
duelo por mais duro ou fácil que seja.
Mas gostaria muito de a prevenir, Principessa: posso ser muito tenaz e não vai escapar-
me com facilidade!
À espera de notícias suas ainda hoje, cumprimenta-a com grande impaciência (que me
deve desculpar),

O seu Duc de Champollion

Satisfeito, reclinei-me na cadeira. Parecia-me ter dado à mensagem o


tom apropriado. A Principessa quer século XVIII? Pois aí tem o século
XVIII. Ela era a Principessa e eu o Duc. Se esse era o caminho para me
aproximar dela, não tinha nenhum inconveniente em recorrer a ele.
A arte de seduzir uma mulher consiste fundamentalmente em não
aceitar um não, em não descurar a atenção que se lhe presta e tratá-la
como uma rainha. Nesse sentido, segundo tinha comprovado, toda e
qualquer mulher era uma princesa. Cada mulher era um pequeno prodígio
e cada uma tinha os seus próprios caprichos, que era melhor satisfazer
com generosidade.
Sorri, agarrei satisfeito num pedaço do aromático croissant que Odile, a
robusta filha do proprietário da padaria me tinha embrulhado em papel
depois de eu, como todas as manhãs, lhe ter dito um pequeno piropo.
Acreditava estar muito próximo do meu objetivo. Depois dessa carta, ou
quando muito depois de mais uma, a Principessa dar-se-ia a conhecer.
Nenhuma mulher quer manter um segredo durante muito tempo, nem
sequer quando o segredo é ela própria. Isto iria eu desvendar com as mais
belas palavras, até que ela mostrasse a sua identidade e as suas armas.
E no fim eu ganharia o jogo!

Ai, que orgulho desmesurado! Que estúpido que eu era! Como me tinha
sobrevalorizado a mim próprio! Se tivesse podido ver o futuro, o que só
em alguns casos é vantajoso, teria desfeito de imediato o sorriso de
satisfação.
Mas naquele instante continuei a olhar para a minha carta e estava a
pensar a que restaurante poderia levar a Principessa caso eu gostasse tanto
dela como da sua epístola, quando um suave «Pling!» me anunciou um
novo e-mail.
A Principessa tinha respondido!
Não era eu um tipo genial, certo do seu triunfo e cujas esperanças se
tinham tornado realidade? Não. O coração batia-me com força quando as
linhas pretas se materializaram diante do ecrã.

Assunto: Sem concentração…

Meu querido Duc, o grande impaciente:

A sua linda carta acabou de chegar, li-a com o coração a palpitar, e ainda que neste
momento não tenha tempo, já que devo tratar de assuntos urgentes, gostaria de o libertar da
sua impaciência, não da sua incerteza no que respeita à minha pessoa, e sei que isso o vai
deixar zangado.
Tenha paciência, Lovelace! Se demonstrar ser digno de mim obterá tudo o que deseja,
inclusive o meu nome!
Sinto-me sumamente feliz por me ter respondido, celebro a nossa troca verbal, pois à
vista da sua primeira carta comprovo que está à altura das circunstâncias
Não me passou despercebido que o senhor é um homem de bom gosto, mas causa-me uma
certa mágoa que ache atraentes as mulheres belas (e que em certas ocasiões também goste
de as despir) já que, mon cher monsieur, não prevejo partilhá-lo com ninguém. Sabia que
conhecia bem os quadros, mas surpreendeu-me e fascinou-me que soubesse utilizar as
palavras com tanto primor.
Gostaria de saber mais coisas de si, e o senhor também deve saber o género de mulher
que sou. Pouco a pouco, passo a passo, primeiro de forma vacilante, depois com febril
impaciência, iremos despojando-nos das nossas capas até que nada fique oculto e estejamos
diante um do outro tal como a natureza nos criou: nus!
Esta noite sonhei tanto consigo, querido Duc!
De imediato estava você diante da minha cama, acariciava-me a pele, roçava-me com a
maior delicadeza… Tenho de ter cuidado em não perder a cabeça, embora tema já a ter
perdido.
As suas palavras provocam no meu coração tanta confusão como a sua imagem, que
aparece com tanta nitidez diante dos meus olhos que parece que consigo tocá-la.
Pensa que eu consigo concentrar-me em alguma coisa?
Como gostaria de poder neste instante agarrar na sua mão e passear consigo nesta bela
manhã de maio ao longo do Sena, que brilha ao sol como uma fita prateada. Cézanne
correria impaciente diante de nós e teria de nos esperar mais à frente pois pararíamos em
cada ponte para nos beijarmos. Admita que isso seria infinitamente mais bonito que todas as
coisas que temos que fazer!

A sua Principessa (que tenta voltar a concentrar-se no seu trabalho)

Sorrindo, abanei a cabeça. Esta mulher sabia realmente como fazer com
que um homem mostrasse os seus sentimentos. Os meus dedos voaram
sobre o teclado enquanto escrevia uma resposta imediata, que esperava
que chegasse de seguida à atarefada Principessa.

Assunto: Protesto

Cara Inconcentrada:

(Os meus conhecimentos de italiano são escassos e não sei se esta palavra existe, mas soa
muito bem.)

Por favor, não permita que interrompa a sua falta de concentração! Há que manter-se pouco
concentrada. Passeemos mentalmente ao sol. Claro que admito que isso seria muito mais
bonito do que concentrarmo-nos em qualquer outro assunto da vida quotidiana. Pois com
cartas tão sedutoras tudo o mais já carece de importância.
De qualquer modo, devo fazer uma objeção: beijarmo-nos em cada ponte que cruza o
nosso belo Sena… não, não gosto disso, protesto!
Por que motivo é tão avara com os seus beijos, Principessa? Seja esbanjadora e deixe de
os contar! Nesse passeio pela Primavera gostaria de a beijar sempre que queira. E não
tenha qualquer dúvida de que a si também lhe agradaria. Nenhuma mulher alguma vez se
queixou nesse sentido, e posso dizê-lo sem a incomodar.
Se ao menos soubesse que bela flor estou a beijar?!
É por demais evidente que a si lhe causa enorme prazer fazer-me esperar que tal ocorra!
Não seja tão malvada!
Não sei que delito cometi para que me trate deste modo, na sua primeira carta
mencionou um «encontro infeliz», mas dê-me por favor o mais insignificante de todos os
indícios e eu deixá-la-ei tranquila por agora.
Ou sente medo ante o terrível gigolo que considera que sou?

O seu Duc

Teria apostado não apenas o dedo mindinho mas sim a mão inteira que a
Principessa não iria deixar a última frase por comentar.
Exato! Poucos minutos depois chegava com um «Pling!» uma nova
mensagem à minha caixa do correio. Desta vez eram poucas linhas.
Intrigado, abri o e-mail. Ainda que pareça mentira, esta pequena esgrima
fazia-me sentir em forma.

Assunto: Uma adivinha

Medo? Tem um conceito demasiado elevado de si próprio, meu querido amigo! Não é assim
tão terrível. E resisto aos seus beijos magistrais dos quais ainda nenhuma mulher se
queixou. Não corresponde à essência de uma Principessa ser só mais uma. Isso deve ser
tomado em consideração, como tal, se quer ter alguma coisa comigo, tem de lhe ocorrer
algo melhor para me convencer.
Mas dado que não me parece querer dar qualquer margem para respirar, algo que neste
momento necessito com urgência, coloco-lhe uma pequena adivinha com a qual quero
responder ao seu desejo urgente de ter um «indício insignificante»:

Vê-me e não me vê.


Conhece-me e não me conhece.

Não vou revelar mais nada! Ao fim e ao cabo, o senhor leva no sangue a capacidade para
desvendar escritos crípticos, não é certo, Monsieur Champollion?

La Principessa

P.S.: o seu italiano pode ser muito rudimentar, mas a palavra que menciona existe
realmente.
A Principessa revelou ser uma sabichona! Gozava comigo, provocava-
me e ria-se de mim. Quase me pareceu ouvir um riso cristalino quando li o
parágrafo irónico «o senhor leva no sangue a capacidade para desvendar
escritos crípticos, não é certo, Monsieur Champollion?»
E de certa maneira apreciei. Parecia que já a conhecia, apesar de não
saber sequer que aspeto tinha.
O pequeno enigma que tinha concebido generosamente para mim não
me serviu para avançar um único passo. Bem, ao menos sabia que era
alguém que via e conhecia. Ainda que sem a ver ou conhecer
verdadeiramente. Pois isso era o que dizia o dístico sofisticado da minha
pequena esfinge que – era claro – continha um certo tom de recriminação.
Com essa pista entraram em linha de conta muitas das mulheres em meu
redor. Na verdade até podia ser Odile, a filha do padeiro que sempre me
vendia os croissants com um sorriso tímido. Uma rapariga jovem, uma
que não faz ondas que – quem sabe – talvez ocultasse um espírito
romântico no coração. Nem sequer podia excluir Mademoiselle Conti.
Alguma vez tinha considerado com seriedade o que escondia essa pequena
governanta que lidava com clientes impertinentes? Recordei de imediato a
alusão a Cézanne. Seria essa uma pista segura? Charlotte não podia ser,
tinha uma letra diferente ainda que tivesse sido a única a chamar-me «meu
pequeno Champollion» e a ter brincado com a Pedra de Roseta.
Pensativo, imprimi as cartas. O meu amigo Bruno não se afastou muito
da verdade quando afirmou que se podia tratar de uma mulher à qual eu
não tinha prestado atenção suficiente. Deixei os pratos no lava-loiça,
agarrei nos papéis e saí em direção à Galerie du Sud.
Eram onze e meia e eu também tinha assuntos do dia a dia para tratar.
7

Naquele sábado primaveril reinava uma azáfama buliçosa em Saint-


Germain. Os habitantes de Paris prosseguiam o seu caminho pelas
pequenas ruas cheias de turistas que se detinham diante de cada montra e
encostavam o nariz ao vidro. Casais de namorados passeavam de mãos
dadas pelos passeios estreitos. Os carros apitavam, as motos passavam
ruidosamente, diante de Les Deux Magots havia gente sentada ao sol
contemplando com satisfação a igreja de Saint-Germain-des-Prés.
Cumprimentavam-se, um beijinho à direita, um beijinho à esquerda,
falavam, fumavam, riam e remexiam os seus café crème ou os seus jus
d’orange. Toda a Paris parecia de bom humor, e isso era contagioso.
Desci animado pela rue de Seine, uma ligeira rajada de vento
despenteou-me, a vida era bela e estava cheia de maravilhosas surpresas.
Dois homens elegantemente vestidos saíam nesse momento da Galerie du
Sud. Riram e gesticularam com as mãos antes de desaparecerem na rua
seguinte.
Abri a porta da galeria. Num primeiro momento tive a sensação de que
não estava ninguém, mas acabei por ver Marion e fiquei sem fala.
Desta vez tinha-se mesmo passado!
Estava sentada num dos quatro tamboretes de bar forrados a couro que
havia na parte posterior diante de uma pequena barra a limar as unhas
enquanto cantarolava. As suas pernas compridas estavam tapadas apenas
com uns farrapos de pele de anta castanho-escuros que não era possível
perceber se compunham uma saia ou um cinto grande. A blusa branca que
tinha vestida era demasiado larga e permitia ver mais do que seria normal
numa praia do Havai.
– Marion! – gritei.
– Ah, Jean-Luc! – Contente, Marion deixou cair a lima das unhas e
desceu do tamborete. – Estou feliz por teres vindo. Bittner acabou de
telefonar para saber se podiam encontrar-se hoje.
– Marion, isto não pode ser – disse-lhe aborrecido.
– Então é melhor que lhe ligues quanto antes – respondeu Marion com
naturalidade.
– Refiro-me à tua roupa. – Olhei-a com incredulidade. – Francamente
Marion, tens de decidir de uma vez se queres trabalhar como animadora
no Club Med ou numa galeria. O que significa esse avental de couro?
Estás a brincar comigo, não?
– Gostas, não é verdade? Foi o Rocky que me ofereceu. – Girou sobre si
mesma. – Tens de admitir que me fica muito bem.
– Admito, mas não na minha galeria! – Procurei transmitir um pouco de
autoridade à minha voz. – Se desconcertas os nossos clientes a ponto de
não saberem se devem olhar primeiro para o teu decote ou para as cuecas
já não se vão interessar pelos quadros que temos pendurados.
– Que exagero, Jean-Luc! Primeiro não se vê a minha roupa interior, o
que é uma pena; segundo acabam de estar aqui dois italianos encantadores
que não se importaram com a forma como estava vestida. – Puxou um
pouco a saia para baixo e lançou-me um sorriso triunfal. Ao contrário, tive
uma conversa muito agradável e eles compraram o quadro grande de
Julien e querem vir buscá-lo na segunda-feira… aqui está! – Estendeu-me
um cartão de visita. – Os italianos é que sabem apreciar uma mulher que
se ponha gira.
– Marion! – Agarrei no cartão e ameacei-a com o indicador. Essa miúda
tinha sempre um argumento e fazia o seu trabalho muito bem. – Espero
que venhas para a minha galeria vestida de forma apropriada, com roupa
apropriada para os franceses de um certo nível, entendido? Se voltas a
aparecer com essa saia de stripper ocupar-me-ei pessoalmente de ti!
Ela sorriu e os seus olhos verdes brilharam.
– Ah, mon petit tigre, meu pequeno tigre, que medo que me dás… ainda
que… – Olhou-me de cima a baixo como se me visse pela primeira vez. –
Na realidade não seria má ideia. – Meteu um dedo na boca com um gesto
coquette e abanou a cabeça. – Não, temo que o Rocky não estivesse de
acordo.
– Bem, então tudo está claro – disse.
– Tudo claro, chefe! – repetiu Marion piscando-me um olho. E quando
se baixou para apertar o atacador do sapato direito e me mostrou o seu
pequeno traseiro, durante um instante de descontrolo tremeu-me a mão
direita e tive de me conter para não dar o açoite que essa descarada
merecia.
Esse instante passou rapidamente. Marion endireitou-se de novo,
ajustou a blusa e, por atenção para comigo, apertou um botão. Dei-lhe
algumas instruções: que visse qual a correspondência que restava, que não
fechasse a galeria antes das duas e, atendendo à proximidade da exposição
de Soleil – a última antes de começarem as férias de verão e de Paris ficar
deserta –, que telefonasse à gráfica que devia fazer os convites. No
momento de negociar o preço Marion era imbatível.
– Sim, sim, sim! – assentiu impaciente e pôs-me o auscultador do
telefone diante do nariz. – Mas não te esqueças de Bittner!
– Bittner? Ah, sim!
Apanhei Karl ainda no Duc de Saint-Simon (para ele o dia não começa
antes das onze), acedi a ir buscá-lo para tomarmos então algo juntos no La
Ferme e, quando desliguei, dei-me conta de que me tinha esquecido de
falar com Luisa Conti a respeito da mulher que perguntara por mim.
Só podia tratar-se de uma cliente que não tinha conseguido encontrar-
me na galeria. Ou escondia-se alguém por trás? Uma mulher que não se
queria identificar? Estava a começar a ver fantasmas por todos os lados.
Muito contente, Marion disse-me adeus com a mão através do vidro e
saí novamente para a rua. Acenei-lhe também. Apesar das nossas
pequenas discussões, era-me de alguma maneira tranquilizador vê-la tão
relaxada na loja enquanto metia uma pastilha elástica na boca.
Pois embora ainda tivesse a sensação de estar a perder em parte o
controlo da minha vida – já para não falar das mulheres, que pareciam
surgir de todas as esquinas para fazerem das suas comigo –, uma coisa
estava muito clara: Marion não era a Principessa. Marion era
simplesmente Marion. E eu estava-lhe imensamente grato por isso.
Quando entrei no Duc de Saint-Simon ainda estava imerso nos meus
pensamentos e nem de longe preparado para a cena grotesca que os meus
olhos surpreendidos viram. Desconcertado, fiquei parado.
Karl Bittner estava de joelhos diante da mesa da receção, normalmente
sem gente; melhor dizendo, estava de joelhos em frente de Mademoiselle
Conti, que nesse instante se dignou a soltar uma sonora gargalhada e a
retirar os óculos escuros por um momento.
– Espero não incomodar. – Devia soar anedótico, mas nem sequer a
mim me passou despercebido o tom ligeiramente enfadado da minha voz.
O que era isso? Será que estava ciumento de Bittner e da rapariga da
receção?
Bittner, ainda de gatas, voltou a cabeça na minha direção sem se alterar
e sorriu.
– Em absoluto, meu amigo. Estamos à procura da caneta de
Mademoiselle Conti.
Por um momento pensei que me ia pedir que participasse na busca, mas
era evidente que o animado «estamos à procura» não me incluía a mim e
também Mademoiselle Conti continuou a olhar para baixo muito
sorridente como se eu não existisse. Havia algo no ambiente, não sabia
bem o quê, um cheiro, um olhar… e por um breve instante senti que me
transportava ao Hyères da minha infância.
– Por favor, desculpe que esteja aqui no meio do chão – disse Bittner, e
meteu a mão debaixo do conjunto de gavetas da secretária antiga. Voltei
ao presente e soltei um suspiro. A situação não podia ser mais grotesca.
Era uma lástima que esse homem deitasse assim a perder todo o seu
charme!
Mas Luisa Conti não parecia encará-lo assim. Deu um pequeno grito de
alegria e replicou:
– Ah, eu não tenho nada contra os homens que se encontram a meus
pés!
– Devo voltar mais tarde? – perguntei.
– Ah, aqui está! – Sem prestar atenção às minhas palavras, Bittner tirou
debaixo da mesa a caneta de Luisa Conti e levantou-se com um
movimento ágil de pantera antes de a entregar à sua dona com um gesto
pomposo.
– Voilà!
– Merci, Monsieur Charles!
Monsieur Charles? Irritado, olhei para Mademoiselle Conti. Era
impressão minha ou ela tinha corado ligeiramente?
– Tratando-se de si é sempre um prazer. – Bittner fez uma pequena
reverência.
Pareceu-me que era preciso pôr fim a tanto arrulho e pigarreei para fazer
notar a minha presença.
Bittner voltou-se, e também mademoiselle voltou um instante os olhos
na minha direção. Em qualquer dos casos recordaram-se que eu estava ali.
– Então? Vamos?
Bittner assentiu. Nesse momento o seu telemóvel tocou. Retirou-o do
bolso do casaco e disse: «Sim?», e ouviu por um momento antes de o
tapar com a mão.
– Desculpe-me, Jean-Luc, vou demorar um pouco – disse em voz baixa
e saiu para o pequeno pátio interior do hotel.
Olhei através das portas de vidro brancas e vi que Bittner ia de um lado
para outro sem deixar de gesticular.
Virei-me então para Mademoiselle Conti. A sua cara tinha recuperado a
cor habitual, estava sentada na sua cadeira de couro atrás da secretária e
folheava o enorme livro da receção como se não tivesse sucedido nada.
– Ah, diga-me, Mademoiselle Conti!
– Oui, Monsieur Champollion? Que posso fazer por si? – Ajustou bem
os óculos escuros e olhou-me com a amabilidade profissional e severa de
uma freira que tem pouco tempo… e devo dizer que não soou tão amável
como o «Monsieur Charles» que tinha acabado de ouvir.
– Alguém me telefonou aqui para o hotel… uma mulher…
– Sim, exato. Esta manhã telefonou uma mulher a perguntar por si, mas
disse que não era nada de importante e que voltaria a ligar.
Baixou o olhar como se a questão estivesse encerrada.
– E como se chama essa mulher? – perguntei com interesse.
Mademoiselle Conti encolheu os ombros.
– Oh, para dizer a verdade não sei. Disse que voltaria a ligar, para a
galeria, e eu tinha muitas coisas para fazer. – Fez silêncio por um instante
e mordiscou a sua caneta. – Creio que era americana… uma tal June não-
sei-das-quantas.
June? June Miller tinha perguntado por mim?
Apoiei-me na secretária! Isso mudava tudo!
– Mademoiselle Conti, por favor, lembre-se! Conheço uma americana
que se chama Jane Hirstman. E conheço uma inglesa que se chama June
Miller. Por isso… quem é que perguntou por mim, Jane, ou June?
– Humm! – Mademoiselle Conti franziu as sobrancelhas, e olhou-me
com uma expressão desvalida. – June… Jane… é tão parecido, não
concorda? – Sorriu com timidez.
– Não, de todo – grunhi. – A não ser que se tenha o cérebro como um
passador.
O seu sorriso desapareceu. Mademoiselle Conti passou a mão pelo seu
cabelo escuro e brilhante, que estava, como sempre, apanhado na nuca.
Tocou nervosa no chignon, como que para se assegurar que cada cabelo
ainda estava no seu lugar. Quase me deu um pouco de pena. Não devia ter
dito aquilo do passador. Arrependido, olhei-a tentando pensar numa
desculpa rápida quando ela apoiou as suas mãos jovens na mesa e se
levantou.
– Bem, monsieur. – Mademoiselle Conti olhou através de mim. – Temo
que não possa prestar-lhe mais nenhuma ajuda sobre este assunto. –
Parecia muito ofendida. – É evidente que devia ter anotado corretamente o
nome dessa tal Jane… ou June, mas não sabia que era tão importante para
si. – Fez silêncio por um instante e acrescentou depois com frieza: – Em
todo o caso, para a mulher não parecia ser tão importante, nem sequer me
pediu que lhe entregasse nenhuma mensagem. Apesar disso considerei
adequado informá-lo do telefonema. Talvez tenha cometido um erro.
Suspirei.
– Por favor, Mademoiselle Conti, não queria dizer isso. Atuou
corretamente, e sem dúvida que não é culpa sua. – Passei a mão pelo
couro vermelho-escuro que cobria a secretária e pensei na misteriosa
Principessa e na «infeliz história» que não se ajustava a ninguém como se
ajustava a June. – Mas…
– Mas…? – Luisa Conti lançou-me um olhar interrogador, e decidi
convertê-la em minha cúmplice.
– Mas é que neste momento seria muito importante para mim saber se
tinha sido Jane ou June a perguntar. Não quero aborrecê-la com a minha
vida privada, mas seria muito importante para mim resolver uma questão
difícil. Uma coisa que não me sai da cabeça e que não me deixa dormir…
– Abri os braços e esperei.
Luisa Conti permaneceu calada, parecia pensar se devia aceitar a minha
tentativa de fazer as pazes. Finalmente disse:
– Conheço as senhoras?
– Claro que sim! – respondi com alívio. – Jane esteve aqui alojada
várias vezes, ainda que só uma desde que a menina trabalha aqui. Jane
Hirstman é aquela americana alta de caracóis ruivos como o fogo e voz
forte, uma boa cliente minha, recorda-se?
Luisa Conti assentiu.
– É aquela que acha tudo amazing?
Sorri.
– Essa!
– E June? É também uma boa cliente sua?
– Bem… eh… não. Na verdade, não.
Pensei com tristeza na bela June e como tudo tinha acabado entre nós.
– Ela esteve alguma vez aqui, no hotel?
– Bem, não se alojou aqui mas sim, esteve no hotel… não faz sequer um
ano, uma manhã de março, chovia muito… uma jovem inglesa
temperamental de caracóis castanhos… – Pigarreei apressado. – A menina
estava aqui, não me parece que se tenha esquecido. Houve… bem… uma
cena… pratos partidos.
Vi Mademoiselle Conti corar pela segunda vez nesse dia.
– Oh… aquilo! – Limitou-se a dizer, e soube que não se tinha
esquecido.

De todas as namoradas que tive, June Miller foi a mais ciumenta. Não que
às vezes não tivesse motivos para o ser, pois quando nos conhecemos
ainda havia outra mulher na minha vida, Hélène.
Na verdade tínhamo-nos separado de forma amistosa. Hélène tinha-se
ido embora de um dia para o outro com um arquiteto que se revelou ser
um tipo estupendo, mas nem sempre fácil, e de vez em quando ela
telefonava-me, e sempre que June sabia disso, havia discussão.
«Fuck! Que quer essa mulher? Vê se te deixa em paz de uma vez por
todas!», gritava furiosa, e atirava o meu telefone pelo quarto fora.
Existem poucas mulheres que quando se convertem em feras continuam
a ser atraentes. June era uma delas. Continuava linda mesmo encolerizada.
Os seus caracóis castanhos caíam-lhe pelos ombros nus e os olhos verdes
brilhavam com vigor. Eu agarrava-a pelo braço e voltava a metê-la na
cama.
– Vem cá, minha pequena gata selvagem, comme tu est belle, que linda
que és! – sussurrava-lhe ao ouvido. – Esquece a Hélène. É uma velha
amiga, mais nada. E tem problemas com o marido.
– So what? E a ti que te importa? Que conte os problemas a uma amiga,
não a ti! That’s not okay! – June cruzava os braços com teimosia. Agora
penso que em parte tinha razão, mas naquele momento o facto de Hélène
continuar a confiar em mim alimentava o meu orgulho masculino.
June tinha olhos de lince, não lhe escapava nada e controlava cada um
dos meus passos com ciúme. Sobretudo desde que encontrou o cartão de
La Sablia Rosa na minha carteira.
La Sablia Rosa é a loja de lingerie de Paris, um pequeno espaço na rue
Jacob, mesmo ao lado de uma das melhores editoras de França. Quando se
está à procura de alguma coisa especial em matéria de lingerie, ali
encontra-se com certeza.
Quando já namorava há duas semanas com June e a minha vida decorria
basicamente entre o quarto e a galeria, uma vez vi uma camisa de noite de
seda incrível na montra de La Sablia Rosa. Um petit rien curto, sem
mangas, com flores delicadas, como que feito para uma fada da primavera.
Ao princípio queria um apenas para June e escolhi o tamanho M. Mas,
entretanto lembrei-me entretanto que Hélène fazia anos em breve.
Telefonei-lhe e a sua voz soou muito triste. E então pareceu-me uma boa
ideia comprar também uma camisa de noite a Hélène. Como forma de
consolo, pelo seu aniversário e como despedida pelos belos momentos que
tínhamos passado juntos.
As vendedoras francesas de lingerie não se surpreendem com nada.
Quando disse à vendedora já de certa idade de La Sablia Rosa que queria
um tamanho abaixo, ao princípio entendeu-me mal e agarrou no de
tamanho M para tornar a pendurá-lo.
– Se não ficar bem à senhora, pode vir trocar – disse madame, e
aproximou-se da montra para retirar a peça do manequim.
– Ah, non madame, j’ai besoin des deux, precisava dos dois. –
Expliquei-lhe apressadamente. – Um S e um M. São duas senhoras… por
assim dizer – acrescentei com um sorriso estúpido. Nem Woody Allen
teria feito melhor.
Madame voltou-se e sorriu com satisfação.
– Mais, monsieur, c’est tout à fait normal, não há nenhum problema –
disse, envolveu com cuidados as duas camisas de noite em papel de seda e
fez-me dois lindos saquinhos que inicialmente entusiasmaram as
presenteadas.
A Hélène, com a emoção, vieram-lhe as lágrimas aos olhos quando
acariciou a delicada peça de flores e disse: «Que amável da tua parte!»
June soltou um grito de alegria, deu-me um beijo e de seguida tirou a
roupa para representar o conto das estrelas caídas do céu. Dançou
entusiasmada por toda a casa. Mas três dias mais tarde a fada da primavera
transformou-se numa deusa vingadora.
Para abreviar: a June não lhe pareceu tout à fait normal quando
descobriu na minha carteira o talão de compra das duas camisas de noite
idênticas em dois tamanhos diferentes. E que ainda por cima o mais
pequeno dos dois tenha sido destinado à sua predecessora fez-me receber
uma torrente de insultos e uma bofetada sonora.
Devo admitir que a história das duas camisas de noite não foi uma boa
ideia. June acabou por me perdoar. A zanga passou-lhe com a mesma
rapidez com que tinha começado.
Mas o meu faux-pas na La Sablia Rosa preparou o terreno para a terrível
cena que se seguiu uns meses mais tarde nos salões do Duc de Saint-
Simon.
Foi o momento mais penoso e absurdo da minha vida e ainda hoje me
sinto mal quando me recordo.
E ainda que dessa vez, juro-o, fosse totalmente inocente, June
abandonou-me.
As aparências jogavam contra mim. Uma tarde tinha levado Jane
Hirstman ao Duc depois de um encontro de trabalho. Estava muito
nervosa porque o seu namorado (o tipo de dois metros do Midwest que
não cabia nas «caminhas dos anões da Branca de Neve», lembram-se?)
tinha regressado ao seu país antes de tempo a seguir a uma discussão. June
tinha ido por uns dias a Deauville com uma amiga de Londres. Perguntei a
Jane se íamos tomar alguma coisa, sem nenhuma intenção, apenas porque
me dava pena. Ela assentiu e limitou-se a dizer «Double», com o que se
referia a um whisky duplo. Depois de vários doubles levei-a até ao seu
quarto. Jane Hirstman não é o tipo de mulher que chora e se lamenta
quando alguma coisa não lhe corre bem na vida e pediu-me que ficasse
um pouco com ela. E assim fiz.
Não se passou mais nada.
Deitei-me um pouco a seu lado, apertei-lhe a mão e disse-lhe que tudo
ia correr bem. Eu iria para casa assim que ela adormecesse. Mas acabei
por me sentir terrivelmente cansado e acabámos os dois adormecidos, um
ao lado do outro, como se fôssemos irmãos.
Mas na manhã seguinte, antes que pudesse abrir os olhos, ouvi a voz de
June.
– Salaud! – gritou. – Cela suffit! Já chega! – E não, não era um
pesadelo. Aos pés da cama king size estava June, pálida de raiva e olhava-
nos com ódio, a mim e à desconcertada Jane. – Não posso acreditar! –
continuou gritando. – Sinceramente não posso acreditar!
Antes que pudesse abrir a boca para explicar, ela cortou-me a palavra.
– Não, poupa-te às explicações. Não quero mais nada. Acabou!
Levantei-me de um salto, na verdade estava vestido, mas isso não
pareceu impressionar June.
– June, por favor… – e de seguida pronunciei a coisa mais estúpida que
dizem os homens: – Isto não é o que parece.
Ainda que dessa vez fosse verdade.
June resfolegou de raiva e dirigiu-se para a porta que estava aberta de
par em par.
– Não se passou absolutamente nada!
Descalço, corri atrás dela pelas escadas abaixo até à receção.
– Jane é uma antiga conhecida, ontem à noite não estava bem…
– Jane não estava bem? – repetiu num tom perigosamente baixo, e logo
de imediato gritou com tanta força que a sua voz retumbou por todo o
hotel: – JANE NÃO ESTAVA BEM?! Pobre Jane! É outra das tuas ex-
namoradas às quais ofereces camisas de noite para as consolar? Desta vez
de tamanho L?! – Passou a resfolegar diante da receção, onde
Mademoiselle Conti estava por trás da sua secretária com uma face
impávida.
– June, por favor… tranquiliza-te… espera…
Consegui agarrá-la pelo braço e então escorreguei para o chão de pedra
polida. Deve ter sido muito ridículo, e nesse momento paguei por todos os
meus pequenos pecados.
June tinha chegado ao final do quinto ato com um dramatismo próprio
de Shakespeare.
– Fuck off! – Cuspiu-me essas palavras antes de sair a correr debaixo de
chuva. E isso foi a última coisa que ouvi de June Miller.
Endireitei-me como pude e o meu olhar pousou em Mademoiselle
Conti, que se tinha convertido na testemunha muda da minha grande
humilhação. Para minha indignação, ainda por cima reparei que estava a
ficar vermelho como um tomate. Luisa Conti estava ali sentada, com o seu
fato impecável, o seu penteado impecável, sem fazer qualquer gesto. Ela
era perfeita, não lhe sucediam tais coisas, e a sua impassibilidade própria
de Branca de Neve provocou-me.
– Não seja tão neutra! – gritei-lhe, e vi com satisfação que estremecia.
Dirigi-me então para a entrada e fiquei um pouco a olhar para a chuva sem
saber o que fazer.
June tinha-se ido embora.
Quando me voltei, reparei que Mademoiselle Conti não estava à
secretária. Todo o hotel parecia morto, como se contivesse a respiração.
Ouvi então passos na escada. Virei-me bruscamente porque pensei que
fosse Jane e choquei com Mademoiselle Conti que subia vinda da cave
com um monte de pratos de porcelana nas mãos. Vi em câmara lenta como
a loiça caía ao chão e se fazia em mil pedaços.
Nessa altura podia-se comprar no Duc de Saint-Simon – e só ali! – a
baixela Eugénie, que se fabricava em Limoges expressamente para o
hotel. Muitos clientes aproveitavam para comprar o valioso souvenir
decorado em tons bordeaux e dourados.
Fiquei a olhar para o monte de cacos a seus pés como se fosse Hamlet a
olhar para a caveira. Aquilo era o final apoteótico de uma representação
horrorosa.
– Oh, não! – Mademoiselle Conti contemplou perplexa a porcelana
partida. – Uma baixela tão cara! – Agachou-se e começou a apanhar os
bocados a toda a pressa. – Meu Deus, que azar! Vou ter problemas.
Eu despertei da minha letargia.
– Espere, eu ajudo-a – disse, e ajoelhei-me a seu lado. – Tenha cuidado,
as bordas são muito afiadas.
Os nossos olhares cruzaram-se por um instante enquanto recolhíamos
tudo sem falar. Que se podia dizer?
– Foi culpa minha – disse por fim envergonhado, e olhei fixamente para
o bocado de porcelana belamente decorado que tinha na mão. Uma e outra
vez via diante de mim June enfurecida, as suas palavras ainda ressoavam
nos meus ouvidos. Nesse momento teria gostado que a terra se abrisse e
me engolisse. Pus-me de pé e tentei sorrir, mas nem sequer isso me saiu
bem. – Bem, vê-se que hoje não é o meu dia!
Luisa Conti também se tinha levantado. Fitou-me durante uns segundos
em silêncio, mas os seus olhos ocultos atrás dos óculos escuros não
deixavam ver o que estava a pensar. Provavelmente estava aborrecida com
o idiota que perturbava a distinta paz do seu hotel. Entretanto, passou as
mãos duas vezes pela saia azul-escura e disse-me:
– Sinto muito por si. – Parecia sincera, mas talvez apenas soubesse
controlar-se muito bem.
– Não, não! – Levantei as mãos num gesto de recusa. – Sou eu quem
sente. Pagarei a baixela partida, não se preocupe. Porei tudo em ordem.
Um leve sorriso passou pelo rosto de Mademoiselle Conti, mas eu tinha
conseguido ver. Pelo menos fizera alguma coisa bem, por insignificante
que fosse.
Nesse triste dia de março a bela e ciumenta June não saiu apenas a toda
a pressa do Duc de Saint-Simon, mas também da minha vida. As minhas
tentativas de voltar a conquistá-la, ao início suplicantes e amargas, depois
vagas e sem entusiasmo, foram em vão.
Miss June encerrou-se num silêncio glaciar.
Pouco tempo depois soube, por uma amiga, que tinha regressado a
Londres.
Passara um ano desde então. Porém, o tempo não cura só as feridas,
também nos faz ver o passado de uma forma especial. Chega um momento
em que apenas se recordam as coisas boas que se perderam para sempre.
Tinham-se perdido?
Seria possível que June tivesse regressado ao local onde a nossa história
terminara de um modo tão abrupto? Tinha podido mais a razão do que a
raiva? Ao fim e ao cabo, a autora das cartas admitira que também tinha
sido «culpa sua».
Pensativo, sorri ao couro verde que cobria a secretária. Na minha
próxima carta iria fazer um par de perguntas à Principessa…

– Jean-Luc… on y va? Então? Vamos? Ou, melhor, passa-mos o dia na


receção na companhia desta dama encantadora?
Senti uma mão no meu ombro e voltei à realidade. Bittner tinha acabado
a sua interminável conversa telefónica e voltara ao seu papel de sedutor.
– Na verdade, a dama encantadora não tem tempo – replicou
Mademoiselle Conti com desdém.
Bittner sorriu, e os seus olhos castanhos mantiveram-se fixos nela
demasiado tempo.
– Uma pena, uma pena. Talvez noutra ocasião?
– Talvez.
– Tomo isso como uma promessa.
Meu Deus, o que era aquilo?
Revirei os olhos e esbocei um sorriso forçado. Pela primeira vez na
minha vida tinha o duvidoso papel de «pau de cabeleira». Não era um bom
papel. Dir-se-ia que sobrar era demasiado para mim e, nesse momento,
propus-me lutar para que esse papel ingrato desaparecesse para sempre de
qualquer guião.
– Creio que deveríamos ir, senão a cozinha poderá fechar.
Nem sequer a mim escapou o quão pueris eram as minhas palavras, mas
tiveram o efeito desejado. Bittner dispôs-se a ir-se embora com um alegre
«Até logo à tarde!» e eu pude por fim perguntar-lhe de que estava à
espera.
– E? – Lancei a Mademoiselle Conti um olhar expectante. – Jane ou
June?
Ela encolheu os ombros.
– Na verdade não saberia dizer-lhe. Foi uma conversa muito breve. Mas
estou certa de que só pode ser uma das duas, June ou Jane.
June ou Jane. Que importava! Havia cinquenta por cento de
possibilidades de que tivesse a Principessa presa no anzol. O peixinho
ainda nadava seguro. Mas depressa o tiraria do fundo do mar trazendo-o
para terra.
8

À tarde dei um grande passeio com Cézanne.


Enquanto prosseguia por um dos caminhos de terra laterais que se
encontram ao longo das grandes árvores das Tulherias, já estava a
anoitecer e reparei como, pouco a pouco, a tranquilidade me invadia.
Aspirei a fragrância das flores dos castanheiros-da-índia, observei o meu
cão que trotava satisfeito diante de mim e, por um momento, tive a
sensação de fazer parte de um quadro de Monet, tão idílico era tudo.
Cézanne veio a correr até mim e saltou contente a meu lado. Eu sorri
agradecido. O melhor de um cão é que nos perdoa sempre e nunca fica
ofendido. Isso distingue-o de um gato ou de quase todas as mulheres.
Não tinha aparecido todo o dia, desde quinta-feira que quase ninguém
tinha podido falar comigo e, apesar de tudo, quando por volta das seis
toquei por fim à campainha da casa de Madame Vernier, ouviu-se dentro
um ladrar alegre e Cézanne saudou-me quase tão efusivamente quanto a
minha vizinha, que se interessou pelo meu golpe na cabeça e me
perguntou se podia fazer mais alguma coisa por mim.
Tive de pensar um pouco antes de adivinhar a que é que se estava a
referir. Levei a mão ao alto da cabeça fazendo um gesto de recusa como se
fosse um super-herói.
À vista de tudo o que havia ocorrido depois de o haltere de Madame
Vernier me ter batido na cabeça, essa pequena lesão carecia de
importância.
No Café Marly, que se encontra debaixo das arcadas do Louvre,
acenderam-se as luzes. Fora, na esplanada que dá para o parque, ainda
havia alguns clientes sentados. Uma brisa ligeira brincava com a bandeira
vermelha que está diante da parede de arenisco e na qual aparece o nome
do restaurante em carateres chineses.
Antes gostava de ir ali. Sobretudo à tarde, quando escurece, é mágico
ver a partir do restaurante as esculturas iluminadas do pátio interior do
Louvre.
Mas a magia necessita de um certo silêncio para ser percebida, e hoje
em dia não é fácil encontrá-lo no Marly. A música está demasiado alta,
ouvem-se gritos de clientes exaltados, e a ementa – uma curiosa mistura
de cozinha franco-italiana-tailandesa-americana na qual se destaca o
«hambúrguer» (comi melhores nas cadeias que todos conhecem, se bem
que a um preço muito mais baixo e sem desfazer nas suas diversas facetas
à la nouvelle cuisine) – não me convence de todo.
Eram as consequências da globalização? Ou tratava-se de uma piscadela
de olho inequívoca aos turistas do mundo inteiro?
Seja como for, isso não parece importar ao Louvre, a localização do café
é única e, quando nos aproximamos, como eu fazia nesse momento,
sentimos vontade de entrar e fazer parte dele.
Segurei Cézanne pela trela. Os taxistas que queriam ir para a outra
margem do Sena passavam diante da pirâmide de vidro estrepitando pelo
empedrado e atravessavam as arcadas do Louvre para chegar à Pont du
Caroussel. Eu também tomei esse caminho.
Nessa noite queria ir de imediato para a cama, naturalmente não sem
antes ver o meu correio para verificar se a ocupadíssima Principessa me
tinha enviado algum cumprimento.
Curiosamente, desde que suspeitava que era June quem se escondia por
trás de todo este assunto, sentia-me mais tranquilo, e nessa noite não iriam
ocorrer mais acontecimentos imprevistos, pelo menos era isso que parecia.
Depois de uma opulenta refeição com Bittner, que (a) queria fazer um
calendário com os quadros de Julien e (b) não me deixou em paz com a
sua «rapariga-da-receção-muito-agradável-e-não-está-nada-mal», apanhei
o metro para ir ao Champ de Mars ver Soleil Chabon, tal como tinha
prometido. Para minha surpresa, a porta abriu-se ao primeiro toque. Soleil,
fazendo honra ao seu nome, recebeu-me com uma túnica vermelha que
chegava ao chão e um sorriso radiante. Na sua cozinha diminuta preparou
com delicados movimentos um chá para dois, disse-me que a crise tinha
passado, e que nessa manhã se levantara muito cedo e voltara a pintar.
– Pobre! – disse. – Dei contigo em doido, mas a sério que pensei que já
não ia ser capaz de pintar mais nada. – Serviu o chá e sentou-se ao meu
lado no enorme sofá cinzento no qual já estava espraiada Onionette.
Soleil afagou-a um pouco.
– Fiquei muito contente por teres vindo – disse logo como se estivesse a
falar para a sua gata. – Significou muito para mim.
– Para mim também – disse eu. – É para isso que servem os amigos.
Estivemos sentados algum tempo no sofá e, entretanto, perguntei-me
qual a diferença entre a amizade e o amor e que papel desempenha o sexo
oposto em tudo isso.
– Tudo o resto está bem? – Não queria imiscuir-me na sua vida privada
mais do que o necessário.
Soleil virou a cara para mim.
– Sim – respondeu, e assentiu um par de vezes. – Muito, muito bem –
sorriu e, de seguida, pôs-se de pé de um salto. – Vem, tenho de te mostrar
uma coisa!
Atravessámos o seu estúdio passando em frente da cama desfeita junto à
qual eu tinha estado a noite anterior como um sonâmbulo e deteve-se
diante do seu cavalete.
E então? Que dizes?
Inspirei com força. O meu olhar deslizou pelo retrato de uma mulher de
pele clara com um vestido cor de vinho avermelhado. Estava de perfil
diante de uma cortina vermelho-escura e olha muito séria para uma parede
na qual havia muitos papéis pendurados. Na mão esquerda segurava um
copo de vinho que nesse momento levava aos lábios, que ainda estavam
fechados. O vinho do copo era da mesma cor dos lábios. Com a mão
direita, dirigida para o observador, tocava com um gesto quase infantil o
seu cabelo de abundantes caracóis pré-rafaelitas apanhado na nuca. Era
como se tivesse acabado de tomar a decisão de fazer alguma coisa. Ou
como se tivesse acabado de fazer alguma coisa. Estava decidida, só a mão
no cabelo parecia mais tensa. O quadro era magnífico.
– Soleil, é maravilhoso! – disse com voz apagada. – Quem é essa
mulher?
– É uma mulher que quer uma coisa mas que ainda não sabe muito bem
como alcançá-la – disse Soleil. – Tal como eu.
Assenti. Pensei na Principessa. Em June. E não apenas em June. A
mulher do quadro parecia dizer-me alguma coisa. Mas o quê?

Quando meia hora mais tarde Soleil me acompanhou contente à porta e


me voltou a assegurar que tinha recuperado a criatividade e que estava
muito feliz com a sua exposição, vi na sua cómoda algo que ao princípio
pensei ser um croissant seco. Agarrei-o e disse uma anedota sobre os
artistas pobres que não podiam comprar comida. Então vi que o suposto
croissant seco era na verdade uma pequena figura humana feita com miolo
de pão.
E essa figura tinha uma agulha cravada no centro do corpo.
– Que diabo é isto?
Soleil lançou-me um sorriso enigmático.
– Um boneco feito de miolo de pão – disse.
– Um homenzinho de pão? – Ri-me.
– Sim… vudu. – Com a sua túnica comprida, Soleil parecia uma grande
sacerdotisa africana. Agarrou na figura de pão e voltou a colocá-la sobre a
cómoda com muito cuidado. – Já sabes… tinha problemas sentimentais.
Estava muito mal. E então lembrei-me da magia dos bonecos. – Fez uma
pausa dramática e eu tentei em vão reprimir uma gargalhada. – Não, não
te rias! Já verás. – Olhou para o boneco de pão com uma expressão
fervorosa. – Cravei-lhe uma agulha no coração para que se apaixone por
mim.
– Caramba, Soleil, és uma autêntica bruxinha, metes medo! Mas não
preferes procurar um homem que te queira sem teres de recorrer a magia?
– Sorri. – De certeza que isso não funciona… ao menos aqui, na Paris dos
iluministas.
Soleil olhou-me, e os seus olhos escuros cintilaram.
– Creio que já funcionou – disse muito séria e enrolou um dos seus
caracóis negros com os dedos.
Meu Deus, às vezes Soleil era tão especial!
– Bem, então nada poderá correr mal. Espero ser convidado para o
casamento. – Abri a porta e abanei a cabeça com incredulidade. Bonecos
de pão! Francamente! É preciso ser-se muito ingénuo, estar muito
apaixonado para encher de agulhas um bocado de pão com a esperança de
que surta algum efeito!
Bem, cada um tem os seus rituais quando se trata de questões amorosas.
Uns lançam as suas preces ao universo, outros experimentam o elixir do
amor. Eu sou bem mais cético.
Quando ia sentado no metro a abarrotar de gente que cruzava Paris a
toda a velocidade por baixo de terra e me levava de regresso a casa, senti-
me contente por não ser o homenzinho de pão que estava agora sobre a
cómoda de Soleil com o coração perfurado. Quem sabe onde poderia a
bela sacerdotisa cravar as agulhas se o eleito a desdenhasse!
Assim, pensei com agrado em Soleil, doente de amor e um pouco
transtornada, sem imaginar que as redes prateadas de Circe também se
estreitavam cada vez mais em redor do meu coração.

Não havia notícias da Principessa.


Na verdade não esperava outra coisa, apesar de mesmo assim me ter
sentido um pouco dececionado. Em troca havia no atendedor uma
mensagem de Aristide, que me convidava para «um pequeno jantar entre
amigos» na quinta-feira. Não me surpreendeu que também tivesse
perguntado a Soleil e Julien se queriam ir.
As jeudi fixes de Aristide eram sempre muito divertidas e ligeiras, com
todo o género de convidados. Quando chegávamos, em princípio não
havia nada preparado, mas todos os convidados recebiam um copo de
vinho e uma faca e sentavam-se à enorme mesa da cozinha. Falavam,
discutiam, contavam anedotas sobre Monsieur «Bling Bling», como se
chamava a Nicolas Sarkozy por causa do seu gosto pelos acessórios caros,
enquanto descascavam espargos, batatas ou o que houvesse para o jantar.
Todos cozinhavam juntos, comiam juntos e Aristide fazia sempre uma
breve crítica aos livros recém-publicados enquanto preparava a sua
lendária tarte tatin pela via rápida, quer dizer, refogando as maçãs numa
frigideira com manteiga e açúcar em vez de deixar que se caramelizassem
lentamente no forno. Depois deitava a massa doce e dourada sobre o
folhado pré-cozinhado numa forma branca.
No final desses serões, saía-se com a agradável sensação de que não
apenas se tinha comido bem, mas também que se era um pouco mais
sábio.
Abri o frigorífico, untei um pedaço de baguette com um pouco de foie
gras que encontrei e servi-me um copo de vinho tinto. Parecia que, pouco
a pouco, a minha vida voltava ao normal.
Quando me sentei diante do computador, por um momento perguntei-
me como seria voltar a estar com June.
Um ideia tentadora, ainda que… vi os olhos de gata a soltarem chispas
enquanto me perguntava: «Quem é essa Soleil? E o que é que estavas a
fazer à noite no quarto dela? Tens alguma coisa com ela, eu sei…»
Sorri. Os ciúmes são o sal de uma relação, mas em excesso podem
chegar a converter-se num suplício.
Mas antes de pensar na hipotética reunião de antigas relações tinha de
ter a certeza de que era realmente June quem queria voltar a entrar na
minha vida e utilizava para tal métodos muito pouco convencionais.
Pensei no que deveria escrever. Então escolhi um assunto que tinha
quase todas as qualidades de uma contrassenha.

Assunto: La Sablia Rosa

Belíssima Principessa:

Depois de um dia cheio de voltas surpreendentes – e sobretudo cheio de recordações, – o


seu Duc dirige-se-lhe para lhe desejar uma noite prazenteira.
Na verdade não consegui resolver a sua pequena adivinha, embora me tenha aproximado
da solução por outros caminhos, segundo me parece. E temo que vai ter de retirar a
máscara porque a desmascarei graças a uma casualidade.
Escreve dizendo que teria muitas perguntas para me fazer. Eu pela minha parte só tenho
de lhe colocar três perguntas, embora esteja certo de que responderá a todas com um sim.
Será possível que o «encontro infeliz» que menciona na sua primeira carta tenha tido
lugar num velho hotel de Paris que faz jus ao meu nome?
Posso supor que a senhora – ainda que proceda do Norte – tenha um temperamento mais
próprio de um país do Sul e em certas ocasiões tende a sentir ciúmes (admito que é
lindíssima quando se põe furiosa, tenha ou não motivos)?
É possível que na sua cómoda haja lingerie de La Sablia Rosa que eu lhe ofereci há
algum tempo, quando cometi um erro estúpido, pelo qual quero desculpar-me novamente
com esta carta?
Por outras palavras: amanhã é domingo, eu não tenho que trabalhar, e SE ÉS TU, JUNE,
gostaria muito poder convidar-te a comer no Le Petit Zinc, o teu restaurante favorito. Creio
que temos muitas coisas para contar um ao outro.
POR FAVOR, DIZ SIM!

Teu, Jean-Luc

Tinha começado a tratá-la por tu a meio da carta, deixara o século XVIII


para chegar ao século XXI. E sentia mais do que curiosidade por saber o
que iria suceder.
Fiquei a olhar fixamente para o ecrã durante uns minutos com a
esperança absurda de que a Principessa respondesse de imediato mas,
naturalmente, ela levou o seu tempo.
Apaguei pois o computador, dei as boas-noites a Cézanne e fui para a
cama.
Passava pouco das onze, amanhã seria outro dia, far-me-ia bem dormir
um pouco. Fechei os olhos e vi June sentada no Le Petit Zinc diante da
coluna modernista pintada de verde-claro, levantando o seu copo e com
um sorriso nos lábios.
Duas horas mais tarde voltei a acender a lâmpada da mesinha de
cabeceira enquanto soltava um suspiro. Não ia ser assim tão fácil dormir
placidamente.
Tudo estava silencioso, mas era evidente que os últimos dias haviam
alterado o meu ritmo normal de sono. Tinha dado cerca de cento e trinta e
cinco voltas na cama para encontrar a posição mais confortável.
Acomodara várias vezes a almofada e dera um par de bocejos fortes para
me autossugestionar. Soletrara de trás para a frente a palavra
Checoslováquia como fazia o marido de Claudette Colbert no filme antigo
A oitava mulher do Barba Azul (uma cena que sempre me pareceu
divertidíssima), mas não serviu de nada.
Naturalmente, já tinha antes passado mais de uma noite sem dormir –
nas melhores ocasiões o motivo era uma presença feminina – e depois
adormece-se como uma pedra e acorda-se cheio de energia. As noites sem
dormir e sem sexo, pelo contrário, não são algo que qualquer homem
deseje.
Estava morto de cansaço, mas o meu cérebro não se tranquilizava.
Alguns neurotransmissores hiperativos saltavam de sinapse em sinapse e
faziam-me ver milhares de imagens novas.
Imagens de mulheres.
Mulheres que tinha conhecido. Mulheres que teria gostado de conhecer.
Iam surgindo na escuridão umas atrás das outras e dançavam diante do
meu nariz, inclusive Soleil com o seu homem de pão!
Levantei-me. Se ia continuar acordado de qualquer maneira, podia ver
no computador se tinha chegado alguma resposta.
Passava um pouco da uma, toda a gente parecia estar a dormir, e a caixa
de entrada do meu correio estava vazia. Olhei para o atendedor. Cézanne
estava no seu cesto, as patas traseiras tremiam de vez em quando e grunhia
muito baixinho. Também ele estava a dormir, possivelmente a perseguir
um gato em sonhos.
Alguns dos meus amigos dizem que quando não se consegue dormir
deve comer-se alguma coisa. Sei que Aristide se levanta quase todas as
noites e corta um pedaço generoso de um rolle chèvre que tem sempre na
despensa. Pareceu-me que o foie gras era tão bom quanto o queijo de
cabra.
Meti o último pedaço de baguette na boca, engoli-o com ajuda de um
bom gole de vinho tinto e voltei para o quarto. Estava certo de que agora
conseguiria dormir. Por fim!
Cinco minutos mais tarde, levantei-me a praguejar porque sentia uma
pressão na bexiga e não conseguia aguentar. Era demasiado novo para ter
problemas de próstata. Vi no espelho um homem pálido com o cabelo
loiro-cinza que eu, pessoalmente, não teria considerado jovem.
Voltei ao quarto a cambalear. Tudo tinha o seu fim. A vida, eu próprio…
mas também aquela maldita noite.
Atirei-me para a cama e experimentei uma nova tática.
De acordo, não ia conseguir dormir. Tinha ouvido que também se
descansa se simplesmente nos deitarmos e fecharmos os olhos. «Sem
stresse, Jean-Luc», ordenei a mim próprio «tranquilo, muuuuuito
relaxado.»
Relaxado-relaxado-relaxado. Respirei com o abdómen. Relaxado-
relaxado-relaxado…
Em algum momento adormeci.
Reparei então que, de imediato, Soleil se ajoelhava diante de mim com a
sua túnica vermelha e me cravava agulhas do tamanho de paus de mikado
no peito.
– Não escaparás, homenzinho de pão! – murmurou. – Não escaparás…!
– Os seus caracóis negros enrolavam-se no meu corpo como se fosse a
Medusa.
Gritei como o Drácula antes de lhe cravarem a estaca no coração.
– Soleil, não, o que é que estás a fazer!
– Já sabes quem é a Principessa, não sabes? – disse Soleil com um
silvo, e a sua boca pintada de cor de sangue mostrou um sorriso amplo. –
Já sei como conseguir-te! – Os seus grandes dentes brancos ficaram
suspensos a centímetros do meu pescoço e sentia o peso do seu corpo
como se fosse chumbo.
– Não Soleil, não o faças! – O pânico apoderou-se de mim.
Fazendo um esforço sobre-humano empurrei-a e levantei-me. Morto de
medo, levei a mão ao peito. O coração batia desenfreado, mas não toquei
em nenhuma agulha. Que alívio!
Aturdido, acendi a luz da mesa de cabeceira.
Que grande pesadelo!
Prometi não voltar a comer foie gras a meio da noite, diga Aristide o
que disser.
Eram seis, na janela chilreava um pássaro, uma cotovia, não um
rouxinol. Fui até à sala de estar e sentei-me à secretária. Abri o meu
portátil muito devagar, como se fosse o cofre de um tesouro. Desta vez
tinha mensagens novas.
E uma era da Principessa.
Estava impaciente por abrir a mensagem, mas ao ler o local do assunto
fiquei muito surpreendido.

Assunto: Rumpelstiltskin

Temi que isso não significasse nada de bom. Bom no sentido de «o


enigma está resolvido». Apesar de tudo, nessa carta a Principessa cometeu
um erro. Deu uma informação, e essa informação proporcionou-me uma
ideia.
Ainda que ao princípio, como é fácil de imaginar, a carta tenha sido para
mim uma grande deceção. Agora sei que – como nos bons romances
policiais – a primeira solução de um mistério não é necessariamente a
melhor, mas tinha acreditado estar tão perto do fim e agora tudo mudava
muito outra vez…
Em qualquer dos casos, podia apagar June da lista de suspeitos, isso
ficou extremamente claro logo a seguir à primeira frase.

Querido Duc:

Foi realmente uma boa tentativa a que fez para descobrir a Principessa, mas temo que esteja
equivocado. E agora, tal como Rumpelstiltskin diz à filha do rei, eu também lhe respondo
com satisfação: «Não, não, não, esse não é o meu nome.»
É possível que me sinta um bocadinho ciumenta – com um homem como você isso é algo
normal – e de facto tenho lingerie lindíssima que foi comprada em La Sablia Rosa, mas o
senhor, mon chevalier, não ma ofereceu nem a viu posta (o que suponho que seja uma pena
para si), essa delicada roupa interior que mostra mais do que esconde.
E aí acabam as coincidências com a dama por si mencionada.
Não sou June.
Permaneçamos por enquanto na Principessa.
Conheço bem o Le Petit Zinc, embora não seja o meu restaurante preferido, mas
infelizmente tenho de declinar o seu insistente convite (que teria apreciado muito embora na
realidade não tenha sido dirigido a mim, mas sim à dama pela qual erroneamente me
tomou) com uma negativa.
Partilhar consigo uma refeição é tentador, ainda que por enquanto me pareça algo
prematuro, e de qualquer maneira não poderia aceitar já que amanhã tenho de levar uma
querida amiga ao comboio. Parte para Nice e segundo uma velha e boa tradição, antes
tomaremos algo no Le Train Bleu.
Portanto, o meu bem-estar corporal está atendido, e acredito que o seu também.
Dormi estupendamente, acordei cedo, agradeço-lhe do coração o seu cumprimento
noturno que, como poderá apreciar com facilidade, acabei de receber e desejo-lhe que passe
um domingo muito agradável.
Creio que em breve ouviremos falar um do outro.

A sua Principessa

P.S.: Está muito dececionado porque não sou June? É bonito manter uma correspondência
consigo, e desejo apenas uma coisa: que continue.

Fiquei a olhar para o post-scriptum. Estava dececionado?


Claro que estava dececionado, mas se escutasse o meu interior, a minha
deceção não se devia necessariamente ao facto de June não ser a
Principessa. Parecia-se mais ao que sente um caçador depois de falhar o
alvo. Devo admitir que teria gostado de desvendar a identidade da
Principessa, vê-la capitular perante a minha sagacidade, e irritava-me
sobremaneira que essa pequena arrogante me tivesse em suspenso. Porque
é que não dizia de uma vez quem era? Que queria de mim? Teria gostado
de a deixar com a incerteza da sua última pergunta.
Mas o seu post-scriptum comoveu-me. Deixava transparecer uma certa
insegurança, inclusive medo. Não tinha escrito: «Espero que não esteja
demasiado dececionado por eu não ser June.» Ou: «Espero que a deceção
que sente por eu não ser June se mantenha dentro de limites suportáveis.»
Não, a sua pergunta era simples e sincera… e sem esse leve tom irónico
que sempre ressoava nas suas cartas.
… e desejo apenas uma coisa: que continue.
Não podia deixar essa frase sem resposta, era sinceramente demasiado
bela. Assim, voltei a escrever-lhe.

Assunto: Dececionado!

Claro que estou dececionado!


E depois fiquei dececionado porque recusou pela segunda vez o meu convite.
Estou terrivelmente dececionado porque me privou da contemplação da sua sedutora
roupa interior (e ciumento do homem que lha ofereceu e ante o qual, suponho, se terá
mostrado com essa vestimenta que pouco se poderá considerar como tal).
Ao contrário de si, eu passei toda a noite sem dormir e você, estimada senhora, é a
culpada disso.
Como castigo, deve indicar-me agora mesmo qual o restaurante em que mais gosta de
comer, pois em algum momento (muito em breve!) terá de jantar lá comigo, suponho que
estará de acordo.
Ainda que deseje que a nossa correspondência continue, isto não poderá prolongar-se
para sempre.
Eu pela minha parte também desejo que continue… mais para além das cartas e das
insinuações, mais para além das adivinhas e das palavras bonitas, mais para além do que a
sua imaginação talvez permita… por outras palavras, muito, muito para diante!
Por enquanto só posso acompanhá-la em pensamento ao encontro com a sua amiga,
desejar-lhe bon appétit e esperar o seu próximo billet-doux (já que sou paciente mesmo
quando tal me é muito difícil).
Cuide de si!
O seu Duc

P.S.: Não deve em absoluto preocupar-se com June, mas em todo o caso deve fazê-lo com
Rumpelstiltskin. Ou esqueceu-se de como termina o conto?
Espero que não se destrua a si mesma por causa da raiva quando eu descobrir finalmente
o seu nome. Tem que mo prometer!

Quando enviei a mensagem sentia-me muito animado, pois enquanto


escrevia tinha urdido um plano.
Não ia acompanhar a Principessa na sua refeição apenas com os meus
pensamentos, não, iria à Gare de Lyon para a ver no Le Train Bleu, o
restaurante da estação.
Estava certo de a poder reconhecer, já que, como ela própria me tinha
assegurado, eu já a tinha visto numa ocasião. Por outras palavras: se ao
meio-dia descobrisse no Le Train Bleu uma mulher que eu conhecia e que
estivesse ali a comer na companhia de outra mulher, saberia por fim que
era a Principessa.
Era genial! Tinha-me posto a aplaudir de alegria! No final tudo se
descobre… só há que ter a paciência de observar atentamente.

Quando ia com passos ligeiros com Cézanne pelo boulevard Saint-


Germain para apanhar o metro em direção à Gare de Lyon, o meu
telemóvel tocou. Levei-o ao ouvido e ouvi uma voz infantil a cantar ao
fundo antes de Bruno começar a falar.
– Comment ça va? Bem, como estás? – perguntou.
– Estupendamente – respondi. – Dormi pouco nas últimas noites, mas de
resto…
– Soa bem. E… que é feito dessa mulher misteriosa?
– Não vais acreditar, mas neste momento vou em direção ao Le Train
Bleu…
– Ao Le Train Bleu? Aquele restaurante para turistas? O que é que vais
lá fazer?
– Vou ver a mulher misteriosa!
Bruno assobiou.
– Em boa hora amigo! Isso é que foi rápido! E… quem é, afinal de
contas?
Tirei a trela a Cézanne para o afastar de um pilar publicitário no qual
queria urinar.
– Bem, ainda não sei.
– Oh! – Bruno pareceu confuso por um instante, mas logo acrescentou:
– Ooooh! – Tens um encontro às cegas?
– Não exatamente, estou mais a fingir ser Hercule Poirot.
Contei a Bruno em poucas palavras o que se tinha passado desde a nossa
conversa no La Palette. E dei-me conta de que tinham ocorrido várias
coisas. A excursão aos contentores do lixo e o meu encontro com o haltere
de Madame Vernier, a minha visita noturna a Soleil, a mulher que tinha
perguntado por mim no Duc, a minha suspeita de que June regressara, as
cartas que tinham andado de um lado para o outro, o pesadelo da figura de
pão… e a minha ideia grandiosa de surpreender a Principessa na estação.
– Dá graças por não ser June – disse Bruno com secura. – A coisa não
tinha funcionado bem entre vocês. Lembra-te de que estavam sempre a
discutir.
– Bem, sim – protestei. – June era um pouco fogosa.
– Antes um vulcão, se me permites. Sempre com as suas explosões e um
perigo para a vida!
Sorri.
– Também não era para tanto. Bruno, vou entrar no metro, telefono-te
mais logo.
Já ia a afastar o telefone do ouvido quando reparei que Bruno ainda
estava a dizer alguma coisa.
– O quê?! – gritei já nas escadas.
– Aposto uma garrafa de champanhe em como é essa pintora! – gritou
Bruno.
– Quem? Soleil? Está apaixonada por um idiota que não a merece.
E esse idiota és tu?
– Que disparates estás dizer, Bruno! Soleil é como uma irmã para mim –
disse impaciente. – Para além disso, tudo isto não se ajusta a ela. Não
escreve cartas de outros tempos. Faz homenzinhos de pão e pratica vudu.
– E tu estiveste à noite no quarto dela, e ela estava nua, e não se sentiu
incomodada, e no dia seguinte já lhe tinha passado a crise, e diz que a
magia funcionou.
– Tu estás a ver fantasmas.
– O que é que apostamos? – Bruno insistiu em manter a sua nova teoria.
– Está bem, se queres pagar uma garrafa de champanhe… – ri-me.
Bruno também se riu.
– Já veremos – disse.
9

A Gare de Lyon é a única estação de Paris na qual há palmeiras


verdadeiras nas plataformas. Palmeiras muito grandes, um pouco
poeirentas, não demasiado vistosas – nota-se a falta de sol – mas, apesar
de tudo, um tímido anúncio do Sul. Pois da Gare de Lyon partem os
comboios que vão para o Sul de França e para o Mediterrâneo.
Para além disso, no primeiro andar da Gare de Lyon encontra-se o mais
belo restaurante de estação do mundo: Le Train Bleu.
Chamado assim por causa do lendário comboio azul que circulou entre
Paris e a Costa Azul até aos anos sessenta, a sua sala gigantesca de quase
doze metros de altura, com as sumptuosas pinturas de teto que
representam as diversas etapas de uma viagem à costa mediterrânica, os
candeeiros e decoração dourados, as estátuas e as enormes janelas
arredondadas que permitem ver as ruas, respira a alma da Belle Époque.
Uma época na qual não se falava de turistas mas sim de viajantes, quando
o mundo era imensamente grande e cada um se aproximava do seu destino
com tranquilidade, vendo passar as paisagens que iam mudando, e em que
havia uma relação entre a distância e o tempo que se levava a percorrê-la,
não como hoje em dia, quando se pode voar quase para qualquer capital
do mundo num fim de semana, um duvidoso triunfo sobre o tempo e o
espaço, já que o corpo e o espírito precisam de se adaptar.
Eu não ia ali com frequência, na verdade só quando recebia convidados
que tinham ouvido falar do famoso Le Train Bleu. Então levava-os para
que o conhecessem e pedia o meu chateaubriand com molho bearnês, um
prato um pouco fora de moda e que já só se encontra nas ementas dos
restaurantes pós-modernos de Paris e que no Le Train Bleu preparam
muito bem.
Mas cada vez que entrava na enorme sala sentia-me impressionado pela
elegância e pela beleza que nela reinavam. Observava as pinturas murais,
nas quais se podem ver as pirâmides, o velho porto de Marselha, o Teatro
de Orange ou o Mont Blanc, e pensava com pena e alguma nostalgia no
incrível e já desaparecido luxo das viagens de outros tempos, tão
diferentes do que hoje denominamos «férias».
Tempi passati! O grande relógio redondo pendurado ao fundo do
restaurante marcava meio-dia e um quarto, e um ruído de vozes
ensurdecedor, anacrónico, enchia a grande sala.
Um grupo de turistas ocupava as filas de bancos de couro castanho-
escuro, entre os quais estavam as mesas de toalhas brancas, e lançavam-se
sobre o almoço que os empregados vestidos de preto lhes serviam em
enormes bandejas de prata. Era um grupo de holandeses bem alimentados
e de bom humor, que contrastava com a distinção plácida que reinava no
resto da sala: gritavam, gesticulavam com os garfos no ar, tiravam
fotografias, entornavam um ou outro copo de vinho, e soltavam
gargalhadas sonoras quando alguém fazia um brinde.
Fascinado, fiquei a olhar o conglomerado de bocas que se abriam,
cabeças que assentiam e braços que gesticulavam. Todos pareciam unir-se
numa única molécula vibrante. Levavam a roupa clássica dos turistas do
mundo inteiro: t-shirts sem mangas, calções e ténis Goretex que permitem
respirar e possuem uma sola tripla reforçada. Estavam a desfrutar muito,
mas aquilo não tinha nada a ver com a elegância dos viajantes.
Cézanne soltou alguns gemidos, deixou a língua de fora, e eu encurtei
um pouco a trela antes que se lançasse à perna seminua de algum
holandês. Cézanne adora a pele nua.
Percorri as diversas salas seguindo a grande passadeira vermelha e
observando as mesas à esquerda e à direita em busca de um rosto que me
fosse conhecido. Talvez tivesse ido demasiado cedo. Nenhum francês que
se preze almoça ao meio-dia.
A parte posterior do restaurante estava mais tranquila. Ali havia muito
poucas mesas ocupadas. Retrocedi por onde tinha vindo até chegar ao bar
que dá para as salas principais. Sentei-me numa das mesas baixas e pedi
um martíni para mim e uma taça com água para Cézanne. E esperei.
A Principessa viria?
Nervoso, bebi um gole e observei os homens que estavam sentados na
mesa ao meu lado, desfrutando de um pequeno-almoço tardio. Ainda que
de manhã só tivesse tomado um café, não tinha fome alguma.
Tentei imaginar que já estava diante da Principessa e lhe dizia qualquer
coisa, mas não era fácil imaginar algo quando não se faz qualquer ideia de
que aspeto tem a pessoa com a qual se pretende falar.
Lembrei-me então do que Bruno me disse. Tive de pensar no olhar que
me tinha lançado Soleil quando disse «creio que funcionou» e, nervoso,
mordisquei o lábio inferior. Por um momento vi diante de mim Soleil
adormecida, deitada sobre os lençóis brancos, em toda a sua beleza, e
senti-me de imediato estranhamente bem.
Não tinha a Principessa dito numa das suas cartas que sonhava comigo
e que à noite eu estava diante da sua cama? Reclinei-me na poltrona de
couro e fiquei a olhar para o vazio. Poderia ser? Bruno teria razão e seria
Soleil quem iria aparecer de um momento para o outro?
Em qualquer caso, tinha a sensação de que cada vez era menos capaz de
pensar com clareza. Por mim a Principessa também podia ser Madame
Vernier ou a caixa da secção de alimentação do Monoprix – ainda que não
tivesse sido essa a minha primeira escolha –, mas tudo era melhor que
aquela incerteza. Na verdade, cada mulher tinha o seu próprio encanto.
Pus-me em pé, tirei algumas moedas e deixei-as sobre a mesa. Fiz sinal
a Cézanne e voltei a dar uma volta pelo restaurante.
O grupo de holandeses tinha desaparecido. Só restavam algumas mesas
ocupadas e um suave murmúrio enchia de forma agradável o ambiente.
Olhei em direção à entrada onde uma família se encontrava diante do
balcão com o livro de reservas aberto enquanto a rececionista lhe indicava
uma mesa.
– Est-ce que je peux vous aider, monsieur? Posso ajudá-lo em alguma
coisa, senhor? – Um empregado que segurava na mão uma bandeja com
um jarro de água e dois copos apareceu diante do meu campo de visão e
olhou-me com uma expressão interrogadora.
Abanei a cabeça.
– Não, não, estou apenas à procura de uma senhora com a qual marquei
um encontro.
Avancei mais uns passos, mas o empregado seguiu-me como se fosse a
minha sombra.
– Reservou uma mesa, monsieur?
Voltei a abanar a cabeça, confiante de que o homem de preto me
deixaria em paz de uma vez.
– Quer deixar o seu casaco no bengaleiro, monsieur?
Detive-me de uma maneira tão brusca que o empregado tropeçou em
mim. O jarro não aguentou a travagem e ele perdeu o equilíbrio. Senti
alguma coisa húmida nas costas.
– Oh, meu Deus, desculpe monsieur! – Com um movimento rápido, o
empregado pousou num lado a bandeja e tirou um guardanapo de pano
com o qual se pôs com nervosismo a limpar-me o casaco. – Graças a Deus
que era apenas água! Mon Dieu, mon Dieu! Não prefere tirar o casaco,
monsieur?
Virei-me e lancei-lhe um olhar de ódio. Se voltasse a dizer «monsieur»
torcia-lhe o pescoço.
– Fico com o casaco vestido – grunhi, e meti as mãos nos bolsos do meu
trench com decisão. – E agora, se me dá licença, por favor. Tenho coisas
para fazer!
Dei uns passos, olhei em volta e constatei com satisfação que o
empregado, muito surpreendido, tinha ficado parado. Os seus olhos
tinham adquirido uma expressão de desconfiança. Provavelmente tomara-
me por um detetive privado desastrado que espiava pessoas infiéis, e eu
quase que começava a sentir-me assim.
O relógio marcava uma e cinco. Onde estava a maldita Principessa?
Voltei a inspecionar as mesas para ver se via alguma mulher conhecida.
E então também eu me detive muito surpreendido. Não podia acreditar no
que estava a ver!
Duas mulheres tinham-se sentado numa mesa por baixo do relógio da
estação. Uma era jovem com calças de ganga e o cabelo loiro apanhado
num rabo de cavalo – esta moveu-se alegremente quando agarrou na
ementa. A outra era uma ruiva chamativamente volumosa, e com uns
enormes brincos de argolas douradas.
Era Jane Hirstman, e fazia-me sinais com grande entusiasmo.
Eu não costumo rezar com frequência. Só quando tenho um problema
realmente grande me lembro que é possível que haja um deus que pode
evitar o pior quando se lhe pede com insistência.
Quando vi Jane tão contente a fazer-me sinais voltei a lembrar-me do
Pai Celestial.
«Bom Deus, por favor!», rezei para com os meus botões. «Que não seja
Jane! Por favor faz com que não tenha sido Jane a escrever aquelas cartas
maravilhosas! Não é possível! Não pode ser, pois senão…»
Bem, que podia suceder senão?
Senão derrubar-se-ia todo o belo castelo de fantasias que tinha
construído em torno da misteriosa Principessa, uma mulher especial, uma
Circe sedutora que era tão fascinante quanto erótica, inteligente e
persistente, e que estava perdidamente apaixonada por mim.
Mas era Jane quem estava ali sentada no Le Train Bleu, à hora de
almoço, na companhia de uma amiga que podia ser sua filha. Era
inconcebível! Dececionado, o meu coração encolheu como um balão que
perde de súbito todo o ar.
Jean-Luc! – gritou Jane sem deixar de me fazer sinais. – Iuhu, Jean-Luc!
– A sua cara tinha uma expressão radiante. – How are you?!
Eu assenti angustiado e aproximei-me lentamente da mesa.
– Olá… Jane. – Encolheu-se-me o estômago, mas consegui fazer um
sorriso forçado. – Que grande surpresa! Não… não sabia que estava em
Paris.
– Sim, foi uma decisão repentina – disse, e sorriu. – Pensava telefonar-
lhe. So good to see you my friend!
Pôs-se de pé e deu-me um beijo sonoro na bochecha. Eu estremeci mas
ela não notou.
– Por favor, sente-se e coma connosco. Ontem telefonei para o Saint-
Simon e perguntei por si, porque não o consegui encontrar na galeria. O
meu estúpido mobile não funciona, desapareceram todos os números. Por
isso veja lá, correu tudo bem! Eu chamo-lhe «transmissão de
pensamento»! – Olhou-me muito contente. – Bem, que faz você por aqui,
Jean-Luc?
Foi imaginação minha ou piscou-me o olho?
– Eu? Bem… eu… eh… – balbuciei com insistência. – Na verdade
estou à procura de alguém…
– Pois pode deixar de procurar, pois encontrou-nos a nós, darling, aaah.
– Jane riu-se da sua própria piada.
Era uma piada?
– Esta é a minha sobrinha Janet. Estuda História da Arte. – Jane apontou
para a jovem que estava a seu lado. – Janet, este é Jean-Luc, do qual te
falei muito. Tens de ver sem falta a sua galeria. Amazing, just amazing!
Vais gostar dos quadros.
Jane estendeu-me a mão com um sorriso.
– Disso estou certa! O galerista também me agrada – disse com
naturalidade.
Eu sorri incomodado. Ainda me encontrava dentro do meu próprio
filme.
– Janet, não ponhas o Jean-Luc em apuros! – disse Jane. – A minha
sobrinha é sempre muito direta – acrescentou dirigindo-se a mim.
– A sua sobrinha? – repeti eu como um idiota.
– Sim, a minha sobrinha. É a primeira vez que Janet vem à Europa,
chegámos há dois dias. Estamos hospedadas num apartamento no Marais e
estou a mostrar-lhe os encantos de Paris.
– Então não vai embora de comboio? A Nice? – insisti.
Jane fitou-me sem entender nada.
– Não, Jean-Luc, porque é que pergunta isso? – Sacudiu os seus caracóis
ruivos. – Só vamos comer enquanto admiramos um pouco o restaurante,
não vamos apanhar nenhum comboio.
– Eh… bem… este local é lindo! – exclamei com alívio. Sorri então
cheio de felicidade. A boa da Jane! Isso dava-me jeito. – Que ideia
magnífica!
Devo ter parecido um pouco chanfrado, porque Jane trocou um olhar
com a sobrinha como quem quer dizer: «normalmente não é assim».
Estendeu-me então a ementa e perguntou:
– Vai tudo bem, Jean-Luc?
Eu anuí, e dei graças a Deus por ter ouvido a minha súplica. Respirei
profundamente, suspirei sorrindo e olhei em redor mais relaxado.
Diante de mim estava sentada Jane que era apenas Jane e nada mais.
Estava com a sobrinha, que não era sua amiga e não queria apanhar
nenhum comboio para Nice. O mundo voltava a estar em ordem, a
Principessa não tinha aparecido, e eu senti de imediato uma fome canina.

*
– Porque não vai com a sua sobrinha à inauguração da nossa exposição no
dia oito de junho? Gostaria muito que fosse. – Mastiguei um pouco do
meu steak au poivre e espetei com o garfo um par de batatas fritas
alongadas.
– Oh, sim Jane, temos de ir! – exclamou Janet entusiasmada. – Nesse
dia ainda vamos estar em Paris, não?
Jane sorriu satisfeita perante o entusiasmo da sobrinha.
– Creio que isso se pode arranjar. Quem vai expor?
– Uma artista muito interessante das Índias Ocidentais, Soleil Chabon,
já expôs há dois anos na Galerie du Sud. E desta vez pensámos numa
coisa muito especial, uma apresentação nos salões do Duc de Saint-
Simon, que podemos alugar para essa ocasião.
– Isso parece fantástico! What a very special place!
Os nossos olhares cruzaram-se por um instante, e tive a certeza que Jane
pensou naquela manhã no Saint-Simon em que June apareceu aos gritos
diante da sua cama. Jane sorriu e bebeu um gole de vinho branco do seu
copo.
– Sempre gostei de me hospedar ali, tem-se a sensação de estar noutro
século – disse a Janet. – Vais gostar.
Noutro século… enquanto Jane descrevia o hotel à sobrinha, eu comecei
a pensar noutras coisas. A minha pequena amiga de outro século não tinha
vindo, ou, pelo menos, eu não a tinha visto. Pensativo, dirigi o olhar até à
enorme janela diante da qual estávamos sentados e olhei para baixo, para
os carris. Na plataforma 3, um comboio esperava para sair. Os últimos
passageiros entravam com as malas, um homem abraçava uma mulher,
mãos agitavam-se a dizer adeus. A saudade flutuava como uma pequena
nuvem branca sobre a plataforma.
Há alguma imagem que melhor descreva uma despedida do que um
comboio a partir? Deixei vaguear o olhar até ao final da plataforma e ri-
me do meu repentino ataque de filosofia. Ao contrário dos aeroportos, as
estações de comboios põem-me sempre um bocado sentimental.
E então, pouco antes de partir o comboio da plataforma 3, vi ao fundo
duas mulheres que estavam de pé junto à sua bagagem. Uma delas tinha
uma melena escura que lhe chegava aos ombros e um vestido vermelho
que o vento movia em redor das suas pernas esbeltas. A outra estava de
costas para mim. Levava um conjunto saia-casaco de cor clara. E o cabelo
liso e loiro chegava-lhe quase até à cintura. Virou-se um pouco para o
lado, disse alguma coisa à amiga, e um raio de sol deslumbrante acariciou
por um instante a sua silhueta juvenil. A luz confundiu-se com o seu
cabelo sedoso e pareceu atravessá-la, e eu fiquei sem respiração.
O tempo parou. Não, foi até ao passado, voou até ao mar azul, através
dos anos, meses e dias, até chegar a esse momento do verão em que um
estúpido rapaz de quinze anos se apaixonou pela miúda mais gira da
turma.
Olhei fixamente para a plataforma, o meu coração começou a palpitar, e
logo se cortou a imagem. Indignado abanei a cabeça.
Um empregado passou por diante das duas mulheres e ajudou um
senhor de idade a subir a bagagem para o comboio. Elas afastaram-se para
um lado. Então soou o sinal, as portas fecharam-se automaticamente, e o
comboio pôs-se em movimento.
As duas mulheres tinham desaparecido como se nunca tivessem
existido.
Mas eu estava certo de que durante uma fração de segundos tinha visto
Lucille.

– Não é, Jean-Luc? Jean-Luc? Que se passa? Parece que viu um fantasma.


Jane olhou-me com uma expressão interrogadora. Quanto tempo tinha
estado a olhar pela janela? Era igual.
– Pardon. – Deixei o guardanapo junto ao prato e levantei-me a toda a
pressa. – Perdão. Podem desculpar-me um instante? Eh… tenho que…
havia uma pessoa na plataforma… Volto em seguida! – Sorri, e senti-me
um pouco estúpido.
Dirigi-me para a porta ante o olhar surpreendido de Jane e Janet.
Cézanne, que tinha estado à espera pacientemente debaixo da mesa,
seguiu-me, dando latidos alegres e arrastando a trela pelo chão.
Agarrei-a à pressa e lancei-me pelas escadas do restaurante com o meu
cão. Cézanne farejou brevemente uma das pequenas palmeiras presas com
uma corrente que havia nuns vasos de barro ao pé das escadas.
– Cézanne, vamos! – gritei, puxando impaciente pela trela. O cão deu
um salto e soltou um gemido. O estúpido animal tinha ficado preso na
corrente e eu podia puxar a trela quanto quisesse que assim não iria nunca
sair dali.
– Fica aqui sentado, Cézanne! Senta-te! Ouviste?
Cézanne ganiu e sentou-se debaixo da palmeira.
– Já volto. Senta-te.
Furei por entre a multidão que arrastava as suas malas e que parecia ter
todo o tempo do mundo. Eu não tinha tempo. Tinha de alcançar a
Principessa!
Ao chegar à plataforma 3, parei de súbito e olhei em torno. À esquerda,
à direita, para diante… onde estava a mulher de cabelos de fada que tanto
me tinha feito recordar Lucille?
Percorri de novo toda a plataforma, observei as restantes e, dececionado,
decidi voltar.
Uma mulher de idade sem bagagem vinha na minha direção e os seus
olhos azul-claros fitaram-me com compaixão.
– Vous êtes trop tard, chega tarde, jovem, o comboio para Nice já partiu
– disse abanando a cabeça. – Acabei de lá deixar a minha filha.
Apertei os lábios e assenti com amargura. Trop tard!
Era verdade que tinha chegado demasiado tarde. E estava de novo ali,
de mãos vazias e um monte de perguntas.
Poderia ser Lucille a mulher que acabava de ver? Que probabilidades
havia de que uma rapariga declarasse, com trinta anos de atraso, o seu
amor a um rapaz que a certa altura rejeitou e ao qual envia agora cartas de
princesas?
Antes de isso acontecer as galinhas terão dentes.
A única coisa que estava clara nesse domingo era que ao meio-dia tinha
saído um comboio com destino a Nice.
E que as investigações de Hercule Poirot no caso da Principessa não
tinham ido muito longe.
Se Hercule Poirot tivesse prestado mais atenção teria visto uma jovem
com um vestido de verão que o observava do fundo da estação e que se ia
embora sem chamar a atenção.

Cézanne tinha desaparecido!


Observei atónito a palmeira que continuava ali, vazia, e solitária, com a
sua corrente. Olhei em volta. À direita, à esquerda, para diante… ia passar
o dia inteiro na mesma?
– Cézanne! – gritei, e lancei-me a correr pela estação. – Cézanne!
Meu Deus! Tinha esperança que não tivesse saído da Gare de Lyon e
que não estivesse debaixo das rodas de algum carro!
– Cézanne… Cézanne…. Cézanne! Onde estás Cézanne? – No meu
estado de pânico, não prestei atenção às pessoas que me lançavam olhares
de espanto. Algumas desataram a rir. Talvez se tenham convencido de que
os meus gritos marcavam o começo de um happening artístico.
– Procura no Musée d’Orsay! – gritou um homem que estava apoiado
num quiosque com uma garrafa de aguardente.
Umas raparigas com calças de ganga e mochilas às costas pararam e
olharam-me com expectativa. Ia fazer mais alguma coisa?
– Para onde é que estão a olhar? Cézanne é o meu cão! – disparei de
mau humor. Até que olhei para cima e vi Jane e Janet que estavam no
restaurante e batiam nos vidros da janela.

Uma hora mais tarde estava sentado no metro. Segurava numa trela e no
final da mesma estava Cézanne, deitado a meus pés, manso como um
cordeirinho e sem deixar de me fitar.
Depois de uma alegre excursão pela Gare de Lyon onde, segundo
algumas testemunhas, não se tinha coibido de levantar a pata em cada uma
das palmeiras grandes das plataformas, começando de súbito a correr em
direção à entrada, onde ao que parece encontrara algo interessante e tinha-
se posto a ladrar aos taxistas que aguardavam na rua. Um deles havia
chamado a polícia da estação e foi ali que recuperei o meu cão.
Jane e Janet, que desde o seu balcão da janela dispunham de uma vista
privilegiada, observaram entre atónitas e divertidas um polícia de
uniforme a atravessar a estação com um dálmata. Minutos depois apareceu
um louco (eu) que se pôs a gesticular e a dar gritos.
E então as duas mulheres começaram a bater no vidro e eu fui a correr
ao restaurante e daí à polícia.
– C’est votre chien? Este cão é seu? – perguntou o homem uniformizado
de muito mau humor. Cézanne começou a abanar a cauda, louco de
contentamento, quando me viu.
– Sim, sim! – assenti. – Cézanne, que fizeste? Disse-te que ficasses à
minha espera. – Afaguei-lhe a cabeça.
– Tem de vigiar melhor o seu cão, monsieur, a sua conduta foi muito
irresponsável. Na estação, os cães têm sempre que ir presos pela trela.
Lançou-me um olhar duro. – Teve sorte de não ter acontecido mais nada.
Assenti sem dizer nada. Há que saber quando guardar silêncio.
Teria feito sentido dar alguma explicação sobre as situações excecionais
que às vezes nos obrigam a deixar o cão sozinho durante um momento
porque a trela se prendeu numa palmeira acorrentada? Não!
Monsieur Sou-Eu-Quem-Manda-Aqui entregou-me uma folha e eu
assinei. Paguei a multa sem protestar, e Cézanne e eu saímos em
liberdade.
10

Tinha tido domingos melhores na minha vida, mas também piores, pensei
enquanto saía com Cézanne da estação de metro de Odéon para a luz clara
de uma tarde soalheira de primavera em Paris.
Era preciso ser justo: a operação Train Bleu tinha fracassado, mas agora
tinha a certeza tranquilizadora de que Jane Hirstman não era a Principessa
(algo que antes jamais havia tomado em consideração, mas que podia ter
ocorrido). E parecia-me interessante que houvesse duas mulheres junto ao
comboio com destino a Nice, uma das quais tinha o aspeto que poderia ter
hoje Lucille, o que aumentava um pouco mais o círculo de suspeitas. E
Cézanne corria saudável e alegre a meu lado, o que podia considerar-se
um pequeno milagre tendo em conta o tráfego que há sempre em frente à
Gare de Lyon.
Decidi estar grato, apesar de sentir um certo cansaço enquanto avançava
pelo boulevard Saint-Germain e entrava no Cour du Commerce Saint-
André.
Na passagem cheia de pequenas lojas e cafés reinava um grande bulício,
e deixei-me arrastar por ele. Passei diante de uma loja de presentes muito
especiais, onde havia candeeiros antigos, barcos piratas e relógios com
caixa de música, por diante de Le Procope, um dos restaurantes mais
antigos de Paris, e de uma loja linda de bijuteria que tinha o nome sedutor
de Harém e reunia todos os tesouros do Oriente. Os adornos brilhavam
com cores brilhantes através das montras, para a qual olhava, como
enfeitiçada, uma jovem com o cabelo apanhado e uma túnica verde-
esmeralda. Um casal de namorados deteve-se também diante da montra, e
a rapariga da túnica afastou-se um pouco e voltou-se para mim.
– Bonjour, Monsieur Champollion!
Fez um leve movimento com a cabeça e sorriu com timidez.
Devo admitir que depois dos acontecimentos desse domingo já nada me
surpreendia. Nem sequer que uma desconhecida se dirigisse a mim na rua
tratando-me pelo meu nome. Sentia-me como um príncipe encantado de
um conto de fadas que encontrava mulheres que lhe colocavam enigmas
para logo desaparecerem, quando e como queriam.
Olhei para a rapariga da túnica verde.
Parecia-me familiar, ainda que não soubesse quem era.
Nunca vos sucedeu que, por exemplo, durante as férias, digamos que na
praia, apareça a professora primária do vosso filho? Em vez de estar na
sua sala de aula, como sempre, surge num cenário completamente
diferente, composto de céu e mar, e vocês ficam a olhar para ela
fixamente, sentem que conhecem aquela cara de algum lado, mas ao
retirá-la do seu contexto habitual o cérebro já não consegue ordenar a
imagem. O melhor exemplo do nosso pensamento em rede.
A jovem ajeitou uma madeixa de cabelo atrás da orelha e corou.
– Olá, Odile – disse eu.

Enquanto trocava algumas palavras amáveis com a tímida vendedora da


padaria do meu bairro pensei, pela primeira vez nesses dias, que o olho
humano, por incrível que seja, só pode ver a superfície das coisas. Desliza
por cima delas guiado por uma perceção subjetiva que nos permite ver os
objetos só numa realidade muito limitada, a própria, que se compõe das
nossas expetativas e das nossas experiências.
Mas às vezes a luz incide a partir de outro ângulo e nega a nossa
realidade. E então a filha roliça do padeiro converte-se de imediato na
mulher que – porque não? – poderia ser uma princesa, uma rapariga
encantadora do nosso passado ou alguém em quem nesse momento nem
sequer pensamos.
«Vê-me e não me vê», tinha escrito a Principessa. A sabedoria das suas
palavras tinha algo de universal.
Porventura não vemos a maioria das pessoas sem as ver? E não é
verdade que é fácil passar ao lado de alguma coisa, por exemplo, da
pessoa que estamos à procura?
– Essa túnica fica-lhe muito bem – disse ao despedir-me de Odile. Ela
sorriu e baixou os olhos. – Sim, sim… parece uma princesa oriental.
– A sério… Monsieur Champollion…? – Odile abanou a cabeça, mas os
seus olhos brilhavam. – As coisas que diz! Bem… pois… obrigada. Vous
êtes três gentil. Um bom domingo! Até amanhã!
Deu uns passos e pendurou-se no braço de um jovem que tinha
aparecido à entrada da passagem com um jornal debaixo do braço e que se
havia aproximado dela.
– Até amanhã, bela rainha do Sabá! – disse em voz baixa, mas Odile
não me ouviu.

Continuei a andar e eram quatro e meia quando entrei num café em cuja
esplanada, rodeado por alguns jovens, estava uma personagem própria de
Cocteau. Cézanne ladrou de alegria e puxou pela trela, e eu também me
alegrei… e saudei Aristide, que estava sentado com alguns alunos à
sombra de um toldo branco e se encontrava, sem dúvida, no seu elemento.
– Salut, Jean-Luc! Que surpresa maravilhosa! – Aristide Mercier
cumprimentou-me com o seu entusiasmo habitual. – Vem, senta-te
connosco!
Sorri e aproximei-me da pequena mesa redonda na qual havia alguns
copos e taças vazias.
– Também fico contente por te ver, mas não quero incomodar.
– Mas não, não, não incomodas, de todo! – Aristide pôs-se de pé para
puxar uma cadeira. – Toma, senta-te na nossa modesta tertúlia e dá-lhe o
glamour que falta. Mes amis… – o professor abriu os braços com um
gesto dramático – este é o meu amigo Jean-Luc Champollion, conhecido
por «o Duc».
Os estudantes riram-se e exclamaram «Oh, Oh!», alguns aplaudiram.
Eu deixei-me cair na cadeira com um sorriso irónico e pedi um café.
Enquanto ouvia como Aristide falava – no seu estilo antiquado e algo
afetado – com palavras eufóricas «do melhor galerista de Saint-Germain e
do seu famoso antepassado; um homem de gosto refinado e
perigosíííííssimo encanto» (aqui Aristide piscou-me um olho), tive uma
suspeita.
Uma ideia que era tão absurda que ainda hoje me dá vergonha. Mas
nesse domingo, devem desculpar-me, encontrava-me num estado em que
tudo parecia possível.
Tinha desenvolvido uma espécie de mania da perseguição. Ainda que
não me sentisse perseguido, mas mais o perseguidor.
Suspeitava de toda a gente. E durante um quarto de hora suspeitei
inclusive do meu velho amigo Aristide Mercier.
E se estava a gozar comigo? A sua cortesia algo antiquada, os seus
conhecimentos literários, as suas piadas irónicas sobre a simpatia que
sentia por mim. O eterno perdedor… Não encaixava tudo na perfeição
com o modo como as cartas estavam escritas?
Tinha partido do princípio de que era uma mulher – a Principessa! –
quem escrevia aquelas cartas maravilhosas carregadas de engenho, humor
e amor. Mas quem garantia que não se tratava de uma armadilha?
Inquieto por causa dessa nova e horrível ideia, remexi o meu café e já
não tirei olho de Aristide, o Príncipe, que sem dúvida atribuiu o meu
interesse repentino ao seu discurso brilhante sobre Les fleurs du mal de
Baudelaire.
Umas nuvens cinzentas cobriram o sol. O céu escureceu, uma rajada de
vento dispersou as cinzas dos cinzeiros e no fim ficámos apenas eu e
Aristide sozinhos na mesa redonda do café, sem contar com Cézanne, que
descansava com todo o seu peso a meus pés.
– Bem, meu querido Jean-Luc, como vai a vida? – perguntou Aristide
com amabilidade. E esse foi o momento em que me expus ao ridículo.
– Pois a minha vida é agora um pouco peculiar – disse, e lancei ao
desconcertado Aristide um olhar penetrante. – És tu quem me está a
escrever aquelas cartas assinadas pela Principessa?
Aristide fitou-me como se o próprio E.T. tivesse aterrado diante dele.
– Cartas de princesas? – disse. – Que cartas de princesas?
– Não me estás a escrever caras que começam com «Querido Duc» e
acabam com «A sua Principessa»? – insisti. – Aristide, aviso-te que se
esta é uma das tuas piadas intelectuais, não acho graça nenhuma.
– Meu querido amigo, parece-me que estás um pouco louco.
Com essas palavras, Aristide chamou-me à realidade à velocidade da luz
e enviou a minha suspeita para uma galáxia longínqua.
– Estás bem, Jean-Luc?
Não tinha ouvido hoje essa frase?
– Não percebo do que estás a falar nem do que me acusas – prosseguiu
Aristide muito ofendido. – Podes ter a amabilidade de me explicar?
Olhei para Aristide sem saber o que dizer e corei como um tomate.
– Bah, esquece isso! – disse. – Foi um mal-entendido.
– Não, não, Jean-Luc, não vais escapar assim tão facilmente. Agora
quero saber o que se passa! – Aristide olhou-me com uma expressão séria
e inflexível. – Alors?
Torci-me como um verme na pequena e incómoda cadeirinha do bistrot.
– Ai… Aristide… acredita… não vais querer saber!
Aristide piscou os olhos.
– Oh, sim, claro que quero saber!
Nesse momento tocou o meu telemóvel. Agarrei-me a ele como se fosse
a minha salvação.
– Sim? – disse agradecido através do sistema alta voz.
– E então? – inquiriu alguém do outro lado da linha.
– Bruno! Posso ligar-te mais tarde?
– É Soleil?
– Não, não é Soleil. Pelo menos não estava no Le Train Bleu.
– Então quem é?
– Bruno… – Notei que os olhos escuros de Aristide se fixavam em mim,
que me trespassavam como se fossem dois raios laser. – Bruno… estou
aqui… com Aristide…
– Com Aristide? Porquê com Aristide? E que se passa com a
Principessa? – Bruno gritava cada vez mais alto, estava certo de que
Aristide podia ouvir. – Já sabes quem é a Principessa?
– Não, Bruno, não sei – lancei com brusquidão. – Ouve, ligo-te mais
tarde, de acordo?
Desliguei e guardei o telemóvel no bolso.
– Vamos, vamos – disse Aristide com um leve sorriso. – Então o nosso
bom Duc está apaixonado… por uma Principessa! Felicidades! – Acendeu
um cigarro e ofereceu-me outro a mim. – Vamos, dispare, meu querido
Duc…!
Suspirando, peguei num cigarro, e Aristide reclinou-se expectante na
cadeira.
– Em primeiro lugar não estou apaixonado – disse. – Em segundo lugar,
nem sequer sei quem é essa mulher.
E em terceiro lugar contei a Aristide Mercier o que me tinha sucedido.

– Que história tão fantástica, insólita e romântica! – disse Aristide quando


concluí o meu relato. Fez então um sinal ao empregado e pediu uma
garrafa de vinho tinto para os dois. Não me tinha interrompido uma única
vez, e ainda que em alguns momentos se tenha rido um pouco, voltava de
seguida a franzir a testa com uma expressão muito séria.
Quando, um pouco afogueado, cheguei ao meu último suspeito, a linha
dos seus lábios vibrou um instante, mas teve a amabilidade (Aristide é um
autêntico cavalheiro) de poupar-se qualquer comentário arrogante.
O empregado chegou com uma garrafa de merlot e abriu-a com um
trejeito exagerado. Serviu então o vinho em dois copos de balão e o som
suave fez com que esse dia agitado parecesse mais tranquilo. Aristide
reclinou-se na cadeira e olhou-me com uma expressão ausente.
– Sabes, Jean-Luc? Podes considerar-te afortunado. Quantas vezes
acontece nas nossas vidas aborrecidas alguma coisa que nos desperta e faz
crescer os nossos desejos com tanta força que tudo o mais passa para um
segundo plano? – Agarrou no copo e moveu-o em círculos.
– Pois neste momento gostaria que a minha vida fosse um pouco mais
aborrecida – repliquei com um desespero surpreendente.
– Não, meu amigo, não gostarias disso. – Aristide sorriu. – Encurralou-
te. O que te impede de pôr fim agora mesmo à troca de cartas com essa
misteriosa Principessa? Nada te obriga a participar no jogo. Podes deixá-
lo a qualquer momento, mas não o fazes. Essa Principessa, seja quem for
que se esconda por trás, provocou em ti algo que chega mais fundo que o
sorriso de qualquer mulher bonita que se cruza no teu caminho. Domina
os teus pensamentos, aviva a tua imaginação como nenhuma outra o fez, e
de súbito tudo é possível… – Fez uma breve pausa. – Bem… não tudo. –
Aristide, o Príncipe permaneceu uns segundos em silêncio, e depois fitou-
me e piscou-me o olho. – Juro-te que não vais ficar sossegado enquanto
não souberes quem é a Principessa. E sabes uma coisa? Comigo
aconteceria o mesmo. – Ergueu o copo. – À Principessa! Seja quem for!
– Seja quem for! – repeti, e as minhas palavras soaram como o conjuro
de uma missa negra.
– Mas, quem será? E que posso fazer para o descobrir? – perguntei ao
fim de algum tempo.
Pensativo, Aristide balançou o corpo.
– Como diz George Sand: «L’esprit cherche e c’est le coeur que
trouve». A razão procura mas é o coração que encontra. De qualquer
maneira, essa Principessa é uma mulher culta, pois elege o estilo da
literatura francesa do século XVIII para se camuflar. Talvez possas
mostrar-me um dias destes uma das cartas… na minha qualidade de
professor de Literatura, naturalmente. – Sorriu. – É possível que haja
alusões ou expressões que nos deem alguma pista.
– Mas porque é que se esconde por trás dessas cartas? – perguntei
cortando-lhe a fala com impaciência. – É ridículo!
– Bem, é óbvio que tem os seus motivos, e o misterioso é sempre mais
excitante que a verdade nua. Olha para ti! Todas as mulheres que conheces
ou já conheceste passaram a ter de imediato a magia do mistério. Vês
Soleil a dormir e perguntas-te se pode ser ela. Vês uma mulher loira numa
plataforma e crês estar a ver uma miúda por quem te apaixonaste há muito
tempo. E se amanhã a empregada gira do Les Deux Magots te sorrir um
pouco mais do que é habitual, vais de imediato olhá-la com outros olhos.
O mistério eleva o normal à categoria de extraordinário.
Escutei absorto o pequeno discurso de Aristide que tão bem descrevia o
estado em que me encontrava. O professor não se privou de dar um
pequeno exemplo.
– Imagina que te mostro uma laranja e ta ofereço. E agora imagina que
te mostro uma coisa que está envolta num pano e digo: «Tenho aqui uma
coisa muito especial e se adivinhares o que é, ofereço-ta.» A qual das duas
laranjas prestarás mais atenção?
Aristide fez uma pequena pausa retórica e refleti sobre o amor às duas
laranjas.
– Se depois da primeira carta tivesses ficado a saber que a Principessa
era, digamos, a filha do padeiro ou a tua vizinha, terias perdido o interesse
de imediato. Até a bela Lucille seria uma esfinge sem mistério. Mas assim
arde em ti a chama da incerteza e o fogo vai continuando aceso. Prestas-te
a esse intercâmbio de cartas, passas horas a pensar no que essa mulher te
escreve. Não te deixa tranquilo. E as suas cartas converteram-se na tua
droga diária.
Procurei protestar, mas não havia quem parasse Aristide.
– Devo dizer que gosto muito dessa Principessa. É uma mulher
inteligente, sabe como captar a tua atenção toda, como domar-te… e só
com o poder das palavras. É admirável! Lembra-me um pouco Cyrano de
Bergerac.
– Estás a referir-te a esse tipo de nariz grande que não se atrevia a
apresentar-se diante da mulher que amava porque pensava que era muito
feio e por isso limitava-se a escrever cartas de amor?
Aristide assentiu.
– Alguma vez leste as cartas originais? São incríveis! Incroyables!
Um calafrio percorreu-me de imediato.
– Não quererás dizer com isso que a minha Principessa é na verdade
mais feia que um pecado e que por isso se esconde por trás de tantas
palavras bonitas? – perguntei intranquilo. Devo admitir que essa
possibilidade não me tinha passado pela cabeça.
Aristides riu-se da minha cara de susto.
– Calma! Não creio que seja esse o motivo pelo qual joga às escondidas.
Em teu redor não há mulheres feias, pois não? – Aristide reprimiu um
risinho. – Pode ser que a Principessa tenha um nariz enorme, porque é que
não lhe perguntas? De certeza que saberá o que responder.

Estive sentado no café com Aristide, a falar, até às oito e meia. Mais uma
garrafa de merlot foi a responsável pelo entusiasmo crescente com o qual
discutimos outros detalhes e possibilidades. Eu tinha aceite a oferta do
meu amigo e marcámos para a quinta-feira seguinte. E o professor
prometeu deitar um olhar literário-detetivesco às caras de Madame-
Bergerac-la-Principessa, do qual esperava algum resultado. A seguir fui
pela rue des Canettes sentindo-me bastante inquieto. A questão do nariz
não me saía da cabeça.
– Deixa que as coisas sigam o seu curso, tudo se arranjará – tinha-me
dito Aristide aos despedir-se de mim com uma pequena pancada jovial nas
costas. – Meu Deus, se eu recebesse umas cartas assim desfrutaria de cada
momento do dia – acrescentou revirando os olhos.
Para Aristide era muito fácil dizer que o importante era o caminho, não
a meta. Mas eu era o hámster na roda que dá voltas e voltas sem chegar a
lado nenhum. E não queria desfrutar de cada momento do dia sem
conseguir dormir à noite. Eu queria… clareza.
Quem era a Principessa? Seria uma mulher horrível com um nariz
enorme? Ou era a incrível Lucille de beleza celestial?
Depois de outra garrafa de vinho tinto parecia-me bastante provável que
fosse Lucille, que voltava à minha vida depois de vários anos. Nos filmes
acontecem sempre essas coisas. E agora eu já não era um miúdo estúpido,
mas sim um homem que não tinha de provar nada e que – como é óbvio –
também sabia beijar!
Abri a porta com energia, atravessei o pátio na penumbra, passei diante
dos contentores do lixo e subi as escadas até à minha casa. Lucille, se é
que era ela, ia ficar surpreendida!

– Quem é Lucille? – perguntou Bruno. – Nunca tinhas falado dela até


agora.
Tinha acabado de encher o prato de Cézanne e dirigia-me para a minha
secretária quando algo vibrou nas minhas calças. Era o meu telemóvel,
que tinha posto em silêncio no café e de que não me voltara a lembrar. E
agora o meu melhor amigo queria que o pusesse ao corrente.
Expliquei-lhe em poucas palavras quem era Lucille e que pensava tê-la
visto na estação.
– Impossível! – disse Bruno.
Fiz de conta que não ouvi.
– Era outra loira qualquer – acrescentou Bruno sem compaixão. – Paris
está cheia de mulheres loiras. A maioria é pintada. Esquece a Lucille. Eh,
pá, isso passou-se há trinta anos. Trinta anos! Foste a algum encontro de
antigos alunos? Não?! – resfolegou pelo auscultador. – Acredita, hoje
Lucille está gorda que nem uma vaca, tem cinco filhos e usa o cabelo
curto.
– Mas poderia ser ela – insisti.
Bruno suspirou.
– Sim, também podia ser a Rapunzel, que está à tua espera na torre dos
desejos. Sê realista. Diz-me antes alguma coisa da outra, da morena.
– Não me fixei muito nela – repliquei com enfado. A figura de Lucille
banhada por luz ia-se afastando cada vez mais.
– Pois isso foi um erro – disse Bruno com ênfase. – E que se passa com
Soleil? A morena não seria Soleil?
– Não! Que fixação que tens por Soleil! É mais alta e tem o cabelo mais
escuro que o da mulher da estação.
– Como podes estar tão seguro? Disseste que as duas mulheres estavam
muito longe. Aposto que essa era Soleil!
Bruno insistia na sua ideia fixa, e eu soltei um gemido. O que é que se
estava a passar na realidade?
– Maldito sejas Bruno! Queres dar comigo em doido? Que se está a
passar? – gritei fora de mim. – Trata-se da tua aposta? É isso? Ofereço-te
o champanhe, quantas garrafas queres? Uma? Duas? Cem? Não era Soleil,
entendido? Tê-la-ia reconhecido. Tudo isso é ridículo! – gritei sem saber
muito bem porque é que de repente estava tão zangado.
– Está bem! – Bruno fez silêncio por um instante. – Então continua a
sonhar com a tua fada loira. Sabes uma coisa? Para mim é indiferente, mas
acho que tu não queres que seja Soleil. Ainda que seja a única que encaixa
realmente na história. Na minha opinião.

Dirigi-me para a secretária com má consciência. Agora, ainda por cima,


tinha discutido com Bruno. E tudo por causa de uma mulher! Uma mulher
que nem sequer sabia quem era. Uma bruxa com o nariz grande, talvez.
Estava nervoso, tenso e cansado. Não tinha vontade de nada. Teria
gostado de pôr fim a essa relação, que nem sequer o era, e esquecer-me da
Principessa. Fosse Soleil, ou Lucille, ou Mademoiselle Não-É-Esse-O-
Meu-Nome.
Quem quisesse alguma coisa de mim, que o dissesse pessoalmente. Que
me telefonasse e dissesse: «Olá, sou eu», e que não fosse tão cobarde a
ponto de se esconder por trás de cartas confusas.
Furioso, abri o meu portátil para enviar um e-mail à Principessa nesse
sentido.
Assunto: Última carta!
– Acabou-se! – murmurei, e soou quase como «Fora!», ou «Senta-te!».
Mas o meu coração, tenho de admitir com vergonha, obedecia-me ainda
menos que o meu cão. Em vez de se acalmar de vez, pôs-se a ladrar de
forma enlouquecida.
Pois, tal como o seu dono, tinha ouvido um suave «Pling!».
Na caixa de entrada havia uma mensagem da Principessa que abri
ansioso; sim, lancei-me sobre as palavras como se a minha vida
dependesse delas.
Ainda tinha de escrever muitas, muitas cartas à Principessa.
Já me tinha esquecido dessa famosa «última carta» de Jean-Luc de
Champollion.

Assunto: Em pessoa!

Meu querido Duc:

Depois de uma jornada tão agradável como excitante, regressei de novo aos meus
aposentos.
Agradável porque passei o dia na companhia da minha amiga, excitante porque ela se
confundiu com a hora de saída do seu comboio e a viagem à Gare de Lyon foi muito
apressada, pelo que não tivemos tempo de desfrutar de um pequeno refresco no Le Train
Bleu.
E com isso faço-lhe uma pergunta que me tem em pulgas desde o meio-dia de hoje.
Foi imaginação minha, mon cher ami, ou vi-o em pessoa na Gare de Lyon? Será possível
que tenha corrido abatido pela plataforma na qual poucos minutos antes a minha amiga
tinha subido para o comboio com destino a Nice?
Por outras palavras: pode ser, querido Duc, que me esteja a seguir às escondidas?
É evidente que foi um erro da minha parte falar-lhe sem reservas dos meus planos para
domingo. Paga-se assim a confiança de uma dama? Deveria ter vergonha!
Doravante terei de ser mais precavida, mas como ia imaginar que o senhor, um Duc, se
atreveria a espiar-me como se fosse um paparazzo?
Por que razão não pode aceitar sem mais que eu determinarei o momento em que nos
veremos face a face? Para bem dos dois. Confie em mim, rogo-lhe!
Tive de esperar tanto, estou há tanto tempo a ansiar pelo momento em que poderei
abraçá-lo, mas o senhor estava sempre ocupado com outros assuntos (ou devo dizer com
outras damas?), por isso deve permitir-me mais umas cartas e explicações antes de me
entregar a si por completo.
Aceito encantada o seu convite para me levar ao meu restaurante favorito, depressa nos
sentaremos ali um em frente do outro, diante de uns pratos deliciosos e não demasiado
pesados e de um vinho tinto suave, e então veremos até onde nos leva a noite e o estado de
ânimo… Posso assegurar-lhe que será muito mais longe do que o senhor considera próprio
da minha fantasia.
Também fico encantada de lhe revelar o nome do meu restaurante preferido: é Le Bélier,
um restaurante discreto na rue des Beaux-Arts. Encontra-se num hotel que noutros tempos
foi um pavillon d’amour (que apropriado!) e as pequenas e cómodas poltronas e sofás de
veludo vermelho-escuro parecem feitos para uma aventura galante.
Se neste mesmo instante estivesse sentada ali a seu lado, se os nossos joelhos se roçassem
e as nossas mãos iniciassem um jogo delicado por baixo da toalha branca, ocorrer-me-iam
os piores pensamentos, asseguro-lhe!
Mas aconselho-o a que não se deixe cair todas as noites por Le Bélier com a esperança
vã de me encontrar ali. Prometo que só irei a esse templo do amor consigo.
E não, não vou morrer de raiva tal como Rumpel-stiltskin, quando o senhor pronunciar o
meu nome pela primeira vez. Surpreender-se-á tanto quando conhecer por fim a sua
Principessa, mon Duc…! E quando imagino que então poderei beijá-lo no mais delicado
abraço de que sou capaz, estala-me o coração.
E se nesse momento alguma coisa ficar em pedaços, será em todo o caso um tecido que
não poderá resistir à impaciência dos seus dedos.
Agora deixo-o nos braços da noite, querido Duc!
Hoje há lua cheia e sonharei consigo. Acredito que me desculpe por não me ter deixado
«apanhar» na estação.

A sua Principessa

Diz-se sempre que as mulheres reagem às palavras e os homens, pelo


contrário, às imagens.
É possível que isto seja válido na maior parte dos casos, mas depois da
leitura desta carta eu era o exemplo vivo de que um homem pode reagir
com força às palavras.
Estava sentado diante do ecrã, cujas palavras evocavam na minha
cabeça imagens muito concretas e olhava-o como se fosse uma mulher
que acabasse de despir-se. Estava excitado, preso pela magia das palavras
e faltou muito pouco para me abraçar a essa máquina maravilhosa e
passar-lhe as mãos pelas costas.
O meu mau humor tinha desaparecido, os meus dedos deslizaram
apressados pelo teclado, tinha de responder a essa carta de imediato, tinha
de «apanhar» a Principessa antes que fosse deitar-se. E vi diante de mim –
apesar dos argumentos de Bruno – uma mulher de cabelos loiros
compridos nos quais gostaria de afundar o rosto.
O cheiro das mimosas e da flor-de-baunilha inundou de imediato o
quarto e a lua cheia que brilhava através das minhas cortinas era a mesma
que iluminava o quarto da Principessa.

Assunto: Por inteiro

Belíssima Principessa:

Adoro a ideia das mulheres que não dormem à noite e que sonham com os olhos abertos!
Nada é mais excitante que o céu noturno pleno de possibilidades que se abre diante de nós.
E deixe-me dizer-lhe a esse respeito: ainda não se sonhou sonho mais belo! Sim, admito,
mal posso esperar para pronunciar o seu nome, sussurrá-lo ao seu ouvido uma e outra vez
até que a senhora por fim se renda e seja minha por inteiro.
Para mim será um prazer levá-la a jantar ao seu pequeno templo do amor quando quiser.
Mas será então seduzida sem piedade… sobre o veludo vermelho ou sobre os suaves
almofadões de um grand lit, e isso será a única coisa que poderá decidir.
Devo dizer-lhe que o meu restaurante favorito também é Le Grand Bélier!
Vou lá com frequência, da última vez fui com um colecionador chinês, e aí pensei em si,
pois foi nesse dia que recebi a sua primeira carta, que tive de ler várias vezes. Portanto, a
sua carta de amor (posso chamá-la assim?) esteve comigo no Le Bélier, o que considero um
bom sinal – eu, que não acredito em sinais –, pode ver como me mudou.
A mim nunca me teria ocorrido espiar uma mulher como se fosse um marido ciumento,
mas sim, admito-o, hoje ao meio-dia fui à Gare de Lyon, que vergonha! Para poder
descobri-la.
Por favor, perdoe-me! Foi o desejo impaciente de por fim a ver, ainda que não o tenha
conseguido.
Em troca encontrei-me por uns maravilhosos momentos com o meu passado, discuti com
o meu melhor amigo e refleti sobre o insuficiente que é às vezes o olho humano.
Querida Principessa, nesses momentos encontro-me num estado bastante estranho e não
sei se posso confiar na minha própria perceção.
Mas ao menos sei, minha bela desconhecida, que esteve na Gare de Lyon ao mesmo
tempo que eu. Esteve muito perto de mim, como diz, e sinto-me feliz, pois às vezes tenho
medo de que, na realidade, nem sequer exista.
Confiarei em si, esperá-la-ei, e estou encantado por continuar a escrever-lhe cartas que
confortem o seu coração e o seu espírito. Responderei a todas as perguntas sim, submeter-
me-ei contrafeito à sua determinação temporal ainda que não lhe veja nenhum sentido já
que, queridíssima Principessa, sou apenas um homem.
Mas hoje surgem-me dúvidas, não em relação ao seu belo espírito, à sua alma que inspira
e está cheia de inspiração, mas sim… como devo imaginá-la?
É alta, baixa, magra, gorda, tem cabelo escuro, loiro, será ruiva? Com que olhos me
fitará ternamente quando pronunciar o seu nome? Serão claros como o céu, verdes como a
água de uma lagoa ou escuros como uma castanha?
Por favor, desculpe a minha insistência. Se me conhece, e é evidente que me conhece
muito bem, deverá saber que gosto dos mais variados tipos de mulheres, mas após uma
conversa com um amigo que é professor de literatura e ao qual contei o meu segredo de uma
forma não totalmente voluntária, colocou-se a questão de se a senhora – tal como Cyrano
de Bergerac – não se esconde atrás de palavras bonitas pelo mesmo motivo pelo qual ele
odiava a luz do sol. Será a senhora assim tão feia?
Eu só consigo imaginá-la muito bela!
Madame Bergerac, por favor, confirme-me de imediato que o tamanho do seu nariz está
dentro de uns limites razoáveis.
Para que nada obstaculize os nossos beijos apaixonados.

Nisso confia,
O seu incorrigível Duc

Enviei a mensagem antes que me ocorresse mudá-la. A minha amiga


platónica teria de se manifestar de alguma forma. Nenhuma mulher
permite que se suspeite que é feia.
Apesar de tudo estava pouco tranquilo quando me deitei na cama e
fiquei a olhar para o teto, que era um pouco mais pequeno que o céu
noturno cheio de possibilidades sob o qual se sonha tão bem.
Que iria eu fazer se a Principessa não fosse uma jovem bela e loira, mas
uma horrível princesa-rã?
Beijá-la, apesar de tudo?
11

Parecia incrível, mas nessa noite dormi pela primeira vez em vários dias.
Dormi profundamente, sem sonhar, sem incidentes incómodos nem visões
angustiantes de mulheres com narizes grandes.
Quando acordei chegou-me do exterior o bulício de uma qualquer
manhã parisiense, um raio de sol entrou curioso pelas cortinas de seda
azul e espreguicei-me por um momento na cama com a satisfação de quem
dormiu bem.
Decidi renunciar aos croissants de Odile e desfrutar em troca de um
pequeno-almoço ligeiro no jardim de inverno do Ladurée. A essa hora tão
matinal ainda estava vazio e tranquilo e era muito agradável sentarmo-nos
nesse pequeno oásis, debaixo das palmeiras e diante das trepadeiras de
tons verde-claro e turquesa pálido. E reparar nas hordas de miúdas
japonesas que faziam fila para levar uma bonita caixa cor-de-rosa pálido
ou verde-tília dos doces macarons que se exibiam na vitrina.
Vesti-me, arrumei um pouco a casa, abri uma lata de comida para
Cézanne. E pensei que tinha de ir urgentemente às compras.
Olhei várias vezes para a secretária onde repousava o meu portátil
fechado. A Principessa teria respondido? Dei voltas em torno da pequena
máquina branca como um gato que cerca um rato, queria guardar o melhor
para o fim.
Até que me sentei e abri-o.
A Principessa não tinha respondido. Eram oito e meia e não havia
mensagens para o Duc.
Não podia acreditar. Estaria ainda a dormir? Provavelmente nem sequer
tinha lido a minha carta da noite anterior. Ao fim e ao cabo não podia
pensar que toda a gente passe o dia e a noite a olhar para o computador só
porque eu o fazia. Ou será que Madame Bergerac se tinha ofendido por eu
ter duvidado da sua beleza? Seria a minha última frase assim tão
descarada? Teria cometido um erro terrível?
O meu desassossego crescia minuto a minuto. E se agora a Principessa
me ignorasse e não voltasse a escrever-me?
Tentei com a hipnose à distância.
«Vamos, Principessa, escreve-me!», sussurrei, mas esperei em vão um
suave «Pling!» que anunciasse a chegada de uma mensagem nova.
Quem chegou foi Cézanne que entrou na sala de estar a correr e sem
parar de ladrar. Levava a trela na boca. Tive de desatar a rir. Havia vida
para além da Principessa. E estava a dar-me os bons-dias.
– Está bem, Cézanne, já vou! – Devagar e com alguma resignação
fechei o portátil.
Quando depois de um longo passeio com Cézanne e um pequeno-
almoço no Café Ladurée entrei muito decidido na rue du Seine para
começar um novo dia, não imaginava que na galeria me esperava uma
surpresa picante.

Eram dez e um quarto, mas a persiana metálica da montra da Galerie du


Sud já estava subida. Não era frequente que de manhã Marion chegasse
antes de mim.
Entrei na galeria, deixei as chaves no móvel da entrada e pendurei o
casaco.
– Marion? Já chegaste? – gritei espantado.
O cabelo loiro de Marion apareceu por trás do pequeno bar. A minha
ajudante hoje era uma sophisticated girl enfiada numas calças de ganga
justas e numa camisa preta. Um fio de prata comprido e fino movia-se no
seu decote, e tinha apanhado o cabelo na nuca com um enorme gancho de
nácar.
– A quem madruga Deus ajuda – disse, e sorriu. Depois soltou um
bocejo sonoro. – Desculpa. Para ser sincera, a verdade é que esta noite
dormi muito mal. A lua cheia! E pensei que era melhor levantar-me. –
Agarrou em alguma coisa que tomei por publicidade e veio na minha
direção.
– Toma! Isto estava na porta esta manhã. – Estendeu-me um envelope
azul-claro com um olhar inquiridor, e a mim deu-me um aperto no
coração.
As cartas trazidas pelo carteiro caem numa ranhura diretamente na
entrada. Mas esta carta não tinha chegado pelo correio. Não tinha selo
nem direção.
No envelope só havia três palavras escritas com a letra que eu já
conhecia bem:
«Para o Duc».
– Para o Duc? – disse Marion. – Que significa isso?
Arranquei-lhe o envelope das mãos.
– Nada que interesse a uma rapariga curiosa – disse, e voltei-me para
me afastar.
– Oh! Tens uma admiradora secreta? Conta-me! – Marion seguiu-me
rindo-se e tentou arrebatar-me a carta. – Eu também quero ver a carta para
do Duc! – exclamou.
– Eh, Marion, está quieta! – Agarrei-a pelo pulso e guardei a carta no
bolso interior do casaco. – Bem – disse, dando-me uns pequenos golpes
no peito. – É a minha carta!
– Oh là là! Será que Monsieur Champollion se apaixonou? – Marion
soltou uma risadinha.
Para mim era igual.
Fui à casa de banho e fechei-me lá dentro. Porque é que a Principessa
me mandava agora uma carta verdadeira? Palpei o sobrescrito e pensei
notar alguma coisa mais dura que o papel. Seria uma fotografia? Sim,
estava certo que era uma fotografia! Dentro de segundos poderia ver o
retrato da mulher que tinha posto em andamento a maquinaria da minha
fantasia, que agora trabalhava no máximo da sua potencialidade.
Impaciente, abri o envelope e olhei com incredulidade para o que tinha
nas mãos.
– Maldita seja! – disse – E tive de desatar a rir.
A Principessa tinha-me mandado um postal. E nele via-se uma mulher
jovem, deitada de barriga para baixo num divã, numa pose provocadora.
Apoiava-se nos braços e deixava à vista do observador as suas belas costas
despidas, e que dizer do seu pequeno traseiro verdadeiramente adorável!
Parecia felizmente esgotada após um jogo amoroso que acabava de
finalizar e refastelava-se numas cómodas almofadas.
A jovem nua olhava em frente, a sua carinha delicada com o cabelo
loiro apanhado via-se de perfil. E tinha o nariz mais encantador que se
possa imaginar.
Eu conhecia o famoso quadro do século XVIII, Louise O’Murphy, de
François Boucher, que mostrava a jovem amante de Luís XV. Tinha estado
diante dessa pintura, que se encontra no Wallraf-Richartz-Museum de
Colónia. Uma cena feminina que não pode ser mais fascinante e atrevida.
Na parte de trás do postal, a Principessa só tinha escrito duas frases:

Será este nariz um estorvo para os seus beijos?


Se assim não for, espero-o… muito em breve!

«Pequena bruxa!» murmurei extasiado. «Esta irás pagá-la!»


– Jean-Luc, Jean-Luc, abre! – Marion bateu com força à porta da casa
de banho. Tens um telefonema!
Fiz desaparecer o postal no meu bolso e abri. Marion piscou-me um
olho e estendeu-me o telefone.
– Pour vous, mon Duc – disse a sorrir. – Parece que hoje estás muito
solicitado.
Sorri e tirei-lhe o telefone da mão.
Do outro lado da linha estava Soleil Chabon, muito contente, que ligava
de uma sapataria de Saint-Germain e que queria combinar comigo à hora
de almoço na Maison Chine para «tomar alguma coisa» e falar da
exposição.
Naturalmente, aceitei.
À tarde, tinha o estômago às voltas enquanto esperava na longa fila da
caixa do Monoprix com um carrinho de supermercado cheio até cima.
La Maison de Chine, um elegante restaurante minimalista da Place
Saint-Sulpice, é um pequeno templo oriental da tranquilidade no qual se
bebe chá verde em tacinhas minúsculas e se pescam com uns pauzinhos de
madeira pequenos pedaços seletos servidos em travessas de porcelana
branca. Não é o tipo de restaurante no qual um homem europeu fica
realmente saciado.
Com algum fascínio e incredulidade, tinha visto como Soleil Chabon
apanhava habilmente com os seus pauzinhos um par de rolinhos primavera
diminutos e um bocado de salada de couve e pouco depois dizia:
– Ufa, estou cheia!
Eu não podia dizer o mesmo. Mas, como sucede tantas vezes na vida, a
comida não era tudo.
Soleil disse-me que queria expor quinze quadros em vez dos dez
previstos. Não conseguia parar de trabalhar, tinha pintado mais um
quadro, estava de muito bom humor, e quando Soleil estava de muito bom
humor, podia ser muito divertida.
Assim, conversámos muito, rimos muito, e quando no fim do nosso
agradável encontro, que inclusive me fez esquecer por um momento o
postal da Principessa, lhe perguntei se havia novidades respeitantes à
figura de pão, fui surpreendido.
– Ah… esse! – disse Soleil, fazendo um movimento depreciativo com a
mão. – Um frouxo! Não soube aproveitar a oportunidade. – Olhou para
mim, sacudiu com enfado os seus caracóis negros e eu remexi-me
incómodo na cadeira. De súbito já não estava tão seguro de que a teoria de
Bruno não tivesse algum fundo de verdade.
– Veio visitar-me no sábado… – Soleil fez um sorriso muito revelador. –
Mas então… quando… como devo dizê-lo… estivemos juntos… a magia
desvaneceu-se de imediato. – Sorriu. – Uma catástrofe!
– E o homem de pão? – Devolvi-lhe o sorriso muito aliviado. Bruno
tinha perdido a aposta, isso estava claro.
– Agora flutua nos esgotos de Paris.
Quando Soleil se despediu de mim com um abraço, fiquei a olhar para
ela enquanto se afastava, até que a sua figura esbelta desapareceu por uma
pequena rua por trás da igreja de Saint-Sulpice.
Isto era como a canção infantil dos dez negrinhos. A certa altura restaria
apenas um.

Carreguei com os sacos das compras até casa. Preparei-me um pedaço


grande de boeuf numa frigideira e partilhei-o fraternalmente com Cézanne.
Telefonei a Aristide e contei-lhe como a Principessa tinha reagido à
«pergunta dos narizes».
– Deliciosa! – exclamou Aristide. – Cette dame est trop intelligent pour
toi! É demasiado esperta para ti.
Telefonei a Bruno e expliquei-lhe porque é que Soleil não era a mulher
de que estávamos à procura.
– Que pena! – disse Bruno. – Mas então… quem é?
Contei-lhe excitado a história do postal de Boucher, de Cyrano de
Bergerac e da questão do nariz.
– Bem, e...? – disse Bruno sem perceber nada. – O que é que te parece
tão excitante? Continuas sem saber quem é. Ou será que essa jovem nua se
parece com alguém que conheces?
Observei pela enésima vez o postal que estava sobre a minha secretária
ao lado do portátil aberto. Peguei no meu copo e bebi um gole de vinho
tinto. Conhecia alguma mulher que se parecia com a modelo de François
Boucher? Teria esse quadro sido eleito de forma arbitrária? A cena era
atrevida e sem dúvida que me queria provocar mas… havia para além
disso algum sinal oculto? Algum detalhe que me pudesse dar uma pista?
Os meus olhos deslizaram uma e outra vez pela descarada jovem nua do
quadro atrás do qual se escondia a Principessa, e tenho de admitir que não
era o seu nariz bem feito que acendia a minha imaginação.
Servi-me de outro copo de vinho e a Principessa recebeu então a
resposta que merecia.

Assunto: A nua verdade!

Minha belíssima Principessa:

Devo dizer que foi uma surpresa!


Que golpe tão ousado. Como pode mandar-me uma imagem assim? Como se atreve?!
Quando cedo pela manhã abri com febril impaciência a carta que me fez chegar tão
depressa, não podia crer nos meus olhos. É monstruoso o que está a fazer! Vejo que está a
fazer pouco de mim. Coloca ao faminto a comida diante do nariz.
A propósito! Acreditou que eu podia pensar por um segundo no seu nariz se me oferece o
corpo mais tentador alguma vez visto de um modo tão atrevido e cheio de encanto?
Mas respondendo à sua pergunta, que na verdade não o é, porque com ela está a brincar
comigo, não, um nariz assim não seria um estorvo para os meus beijos!
E independentemente de se parecer com a dama do quadro ou não, agora sei que irei
gostar de si. Alguém que elege e envia tais imagens promete ser qualquer coisa menos uma
rã horrível. Assim, confio na sua palavra!
E dado que a questão do nariz está resolvida de forma completamente satisfatória, devo
supor que me receberá em breve, muito em breve, nos seus aposentos, para me mostrar a
nua verdade.
Ou será quem tem medo?
Eu pela minha parte apenas posso esperar estender-me a seu lado e sussurrar
indecências no seu doce ouvido enquanto as minhas mãos deslizam lentamente pelas suas
costas até essa parte inominável do corpo que me oferece com descaramento.
E então, belíssima Principessa, pagará por me ter impedido de pensar noutra coisa que
não em si.
Pois era o que pretendia, não era? Que eu só penso em si!
Principessa! Diante de mim abre-se uma longa noite em que devo pensar sozinho na
minha cama, e como não posso tocar-lhe chego até si com as minhas palavras. Venha a
meus braços e responda-me!

Sentado diante do ecrã com grande impaciência,


O seu Duc

Enviei a minha carta à noite e reclinei-me na poltrona do meu escritório.


Devo dizer que fui o primeiro surpreendido com o que tinha escrito.
Animado pelo vinho, já estava convencido de ser o famoso Cyrano que
manda cartas umas atrás das outras a Roxanne, ansiosa por ouvir palavras
de amor. Ainda que a minha efusão verbal não tivesse a mesma qualidade
literária, no que respeita à paixão as minhas cartas não tinham nada a
invejar às do grande mestre.
Se uns dias antes alguém me tivesse dito que ia ter um intenso
intercâmbio de cartas com uma desconhecida, teria pensado que estava
louco.
Ao princípio fora o jogo que me tinha atraído. Mas pouco a pouco – por
muito incrível que tal possa soar – as minhas frases insinuantes tinham-se
independentizado, tinham-se afastado da minha cabeça, tinham adquirido
uma vida própria desenfreada, tinham-se enchido de emoções, e chegou
um momento em que sentia as palavras que escrevia.
Inquieto, pus-me de pé e dirigi-me até à estante. Na parte de baixo
estavam os meus antigos álbuns de fotografias. Tirei-os, sentei-me na
poltrona e folheei as páginas amarelentas. Não estava seguro, mas talvez
confiasse na possibilidade de encontrar uma antiga fotografia da turma na
qual aparecia Lucille. Dois anos depois daquele ano infeliz, Lucille, da
qual nem sequer sabia o apelido, tinha-se mudado para outra cidade com a
família. Pensativo, fechei o álbum. Ter-me-ia enredado no meu passado? E
se pudesse escolher, seria realmente Lucille a minha primeira opção? E
que Lucille seria então? A de antes ou a de hoje? Bruno tinha razão, as
pessoas mudam e as recordações não são sempre as melhores
conselheiras.
O vinho tinto tinha-me posto filosófico.
Creio que foi nessa tarde que decidi dar outro foco ao assunto. Claro
que sentia curiosidade pela mulher que me escrevia essas cartas, claro que
estava ansioso por descobrir quem era, que aspeto tinha, o que sentiria ao
tocá-la. Mas ao ver-me inquieto e estranhamente excitado, dando voltas no
tempo e entre as paredes forradas a papel do meu quarto, pela primeira vez
dei-me conta de que era a autora dessas cartas quem realmente me
interessava, sim, aquela que desejava, era indiferente como se chamava!
Tinha passado uma hora desde que mandara a minha última carta e já
havia olhado para o correio trinta e cinco vezes.
Quando parei pela trigésima sexta vez diante do computador, a
Principessa tinha respondido.
Assunto: Já vou…

Meu querido Duc:

Se está tão ansioso diante do computador à espera de uma resposta minha, não posso fazer
outra coisa senão escrever-lhe quanto antes.
Eu também estou contente por a questão do nariz estar clarificada, e gostaria de dissipar
qualquer réstia de dúvidas que ainda possa ter: não tenho nada a ver com uma rã horrível!
Se o seu olhar não tivesse estado tão desviado ter-se-ia dado conta há tempos. Algumas
coisas só se captam num segundo olhar, que às vezes é mais profundo do que um primeiro.
Encanta-me que o meu golpe ousado tenha surtido efeito. E, como suporá, não foi por
casualidade que escolhi precisamente Miss O’Murphy. Já sei que tenho de dar um pouco de
alimento não apenas aos seus ouvidos mas também aos seus olhos, mon Duc, e deve
desculpar-me por ter eleito um motivo que aviva as suas fantasias eróticas, apesar de
protestar «pela comida do faminto».
E não, não tenho medo. Nem da prazenteira vingança que me prometeu na sua última
carta nem de cumprir a doce promessa que lhe enviei com o quadro de Boucher.
Espero impaciente pelas duas.
Agora vou consigo, meu doce Duc, os seus desejos são ordens para mim. Esta noite é só
nossa!
Deixe que a sua mão deslize por todos os sítios permitidos e não permitidos, e em breve,
no momento que me pareça adequado, pegarei nessa mão e pô-la-ei entre as minhas coxas…

Durma bem!
La Principessa

Não sei onde se tinha acumulado todo o meu sangue quando cheguei ao
final dessa carta. Afastei-me da borda da secretária, reclinei-me na
poltrona e soltei com força todo o ar que tinha nos pulmões. Era incrível!
Essa carta era muito pior que a imagem mais atrevida de qualquer pintor,
chamasse-se ele Boucher ou não. Agarrei no copo e esvaziei-o de um
trago. Não podia pensar em dormir. Mas jurei a mim mesmo que a
Principessa também não iria pregar olho nessa noite «que era só nossa».
Dispunha-me a escrever-lhe uma carta que ia superar em muito a dela.
Ia ser como uma sombra ardente para ela e assegurar-me que se revirasse
inquieta por entre os lençóis até que se fizesse dia.
Os meus dedos voaram pelo teclado, escrevi sem parar até ao fim. Então
detive-me um instante, apertei lentamente a tecla que enviava a carta, e
um sorriso verdadeiramente triunfal iluminou a minha cara.

Assunto: A mão, a mão…

Carissima!

Não sei como a devo castigar por essa incrível observação com a qual finaliza a sua última
carta. Estou completamente fora de mim!
«…e então pegarei nessa mão e pô-la-ei entre as minhas coxas…» Uma coisa assim não
se pode dizer sem ser castigada, sem dar ao seu combatente amoroso a possibilidade de
igualar o ataque.
Daí o meu castigo: essa mão que dirigiu com tanta destreza vai mostrar-lhe o que é o
desejo, prometo-lhe.
Ainda não tem a menor ideia de que essa mão é capaz de provocar em si o mais profundo
gemido que alguma vez deixou escapar… algo muito especial. Pedirá a redenção aos
gritos… e eu não a concederei.
Não apagarei o seu fogo, não ouvirei as suas súplicas, submetê-la-ei às mais doces
torturas. E só muito, muito tempo depois, após a sua completa capitulação, quando eu
decida, a mão que chamou finalizará a obra que fará a sua felicidade total.

Durma bem você também, belíssima Principessa!


O seu Duc
12

Ainda hoje não sei como aguentei as duas semanas seguintes. Ficaram
marcadas pelos preparativos da exposição, que se devia inaugurar em
inícios de junho, e pelas duzentas e vinte e três mensagens que troquei
com a Principessa.
No que me diz respeito, posso afirmar que durante as noites preenchidas
pelas nossas palavras ternas e excitantes e os mais belos sonhos não dormi
bem.
A pequena caixa do correio do meu computador tinha-se convertido na
minha prisão, que não queria abandonar porque tinha medo de perder
alguma carta da Principessa. Assim, ia de um lado para o outro como
Mercúrio, o mensageiro alado. Ia trabalhar à galeria e, se não fosse
Marion, a felicidade ter-me-ia feito esquecer de alguns encontros. Os
convites chegaram da gráfica e revelaram-se corretos. Tínhamos escolhido
como motivo dos cartões o quadro da mulher que quer alguma coisa mas
não sabe como consegui-lo, e o entusiasmo de Soleil não conhecia limites.
Fui várias vezes a casa dela para contemplar os quadros novos, que
normalmente pintava de noite e ajudei-a quanto pude sempre que precisou
de um conselho. Acompanhei Jane Hirstman e a sua entusiasta sobrinha,
que não teve quaisquer constrangimentos em me tratar por Jean-Luc, a
uma exposição de arte moderna no Grand Palais. Apresentei-me um par de
vezes no Duc de Saint-Simon para acertar os detalhes da exposição com
Mademoiselle Conti, que me pareceu menos formal e um pouco mais
acessível do que de outras vezes. Os seus cumprimentos eram cada dia
mais amáveis, acariciava o pescoço de Cézanne e dava-lhe uma taça com
água enquanto decidíamos onde colocar ou pendurar alguma coisa. E
quando se inteirou de que «Monsieur Charles» também vinha à exposição
e que precisaria do seu quarto, lançou-me um sorriso realmente radiante.
– Smile and the world smiles at you – trauteei, e embora nesses dias
dormisse menos que Napoleão nos seus melhores dias, percorria as ruas
de Paris animado e de muito bom humor.
Um dia combinei encontrar-me com Bruno no La Palette. Tinha-me
perdoado os gritos ao telefone, e insistiu em pagar a sua aposta, apesar de,
naturalmente, lamentar que a bela Soleil não fosse a mulher que
procurávamos. Na sua opinião teríamos feito um casal fantástico.
Continuámos a elucubrar um pouco mais diante de uma garrafa de
Veuve Cliquot e a seguir senti-me inquieto porque queria voltar para junto
da minha máquina maravilhosa para ler ou escrever cartas. Havia dias em
que saía a correr da galeria para a rue des Canettes só para ver se tinha
chegado correio para mim, e Marion apoiava a mão na sua pequena
cintura e olhava-me abanando a cabeça.
– Emagreceste, Jean-Luc, tens de comer – disse Aristide piscando os
olhos quando na sua jeudi fixe me pôs no prato a terceira fatia de tarte
tatin. – Vais precisar de forças.
Os restantes convidados riram-se sem saber muito bem porquê. Como
sempre, reinava um ambiente relaxado à mesa, mas devo admitir ter
ficado algo surpreendido que um pouco antes da sobremesa Soleil Chabon
e Julien d’Oviedo trocassem os números de telemóvel e se olhassem nos
olhos com demasiada intensidade.
Admito que senti uma levíssima mágoa, mas só uma muito pequena,
quando vi os dois jovens a descer as escadas entre risos, e conjeturei se
Soleil teria reiniciado a sua produção de figuras de pão.
Mas depois ajudei Aristide a lavar a loiça e voltei ao meu tema favorito.
Com algum receio, entreguei as cartas da Principessa ao meu amigo perito
em literatura, ainda que reconheça ter omitido algumas mensagens
particularmente picantes. Há muito que as cartas com a Principessa
tinham ultrapassado o limite da decência, se bem que também
comentássemos outros assuntos que por vezes eram muito engraçados e
divertidos e outras também muito pessoais, mas, infelizmente, por parte da
Principessa nunca suficientemente claros para me permitirem a mim,
vulgar mortal, tirar alguma conclusão.
Numa dessas noites sem dormir tínhamos falado dos «primeiros
amores» e eu, fazendo um esforço, contei à Principessa com todos os
detalhes a infeliz história que nem sequer os meus melhores amigos
conheciam. Se Lucille era a Principessa – uma opção que ainda estava
latente num recanto do meu coração, embora não o tivesse dito a Bruno
porque não queria voltar a discutir com ele –, por fim saberia realmente o
que se passou naquela época. Mas fosse quem fosse a mulher que ouviu a
minha confissão, reagiu com incrível ternura.

«Nenhuma carta de amor alguma vez foi escrita em vão, querido Duc,
nem sequer a sua» escreveu a Principessa. «Estou certa de que a sua
amiguinha sem coração hoje vê as coisas com outros olhos. De certeza
que essa foi a primeira carta que recebeu, e pode acreditar que ainda hoje
a conserva – esteja ou não casada – e às vezes ainda a tira com um sorriso
de uma caixa como se fosse um tesouro e pensa no rapaz com o qual
comeu o melhor gelado da sua vida.»

Esta carta tão-pouco a mostrei a Aristide, ainda que não contivesse


nenhuma confissão erótica. As palavras da minha amiga desconhecida,
que eu já conhecia tão bem quanto os quadros da minha galeria, tinham-
me comovido e, curiosamente, fizeram-me perdoar a traição que tinha tido
lugar há muitos anos num caminho poeirento onde cheirava a mimosas.
Aristide prometeu dar uma olhada às cartas e avisar-me se descobrisse
alguma coisa chamativa. Também prometeu ir à inauguração da
exposição. Já bastante adiantada a noite, despedi-me e dirigi-me a toda a
pressa até casa para prosseguir os meus encontros postais.
Há quinze dias que Madame Vernier tinha ido para a sua casa de verão
na Provença, por isso o fiel Cézanne estava sempre a meu lado, fizesse o
que fizesse. Era com ele que mais falava da Principessa quando tarde após
tarde, noite após noite escrevia as minhas cartas, murmurava frases
passando da euforia ao nervosismo, e levava para a cama os e-mails
impressos da Principessa para os ler uma e outra vez e embriagar-me com
as suas frases.
Assim passou o tempo, não posso dizer se devagar ou depressa. Foi um
tempo à margem do tempo, e eu ansiava que chegasse o dia em que
escreveria à Principessa essa última cara na qual tinha colocado tantas
esperanças.

Então chegou o dia 8 de junho, um dia radiante e lindo.


Foi o dia em que estive a ponto de perder a Principessa para sempre.
Quando cedo pela manhã descerrei muito contente as cortinas do meu
quarto e vi o céu azul e sem nuvens, não havia nada que pudesse
pressagiar a catástrofe que ia ocorrer ao fim do dia na inauguração da
exposição.
E quando no momento culminante deste ato brilhante, cujo centro das
atenções foi Soleil Chabon com o seu vestido comprido vermelho-papoila,
beijei na boca uma mulher jovem, não podia imaginar que o Duc de Saint-
Simon iria converter-se novamente no cenário de um drama no qual eu
não era de todo inocente.
Ao princípio, tudo correu como sempre. Bem, não de todo como
sempre, pois por muitas exposições que se tenham organizado, há sempre
um momento de tensão nervosa que não desaparece até que todos os
convidados tenham um copo na mão, se tenha pronunciado um discurso
breve e alegre e que os jornalistas da cultura percorram toda a exposição
com semblantes sérios. Quando se atingiu esse ponto, já não pode
acontecer que o artista se descontrole no último minuto – levado por
dúvidas histéricas ou excitação máxima – e não queira estar presente.
E, então, da mesma maneira que a seguir a uma operação difícil o
cirurgião procura la petit mort nos braços de uma enfermeira, toda a
tensão desaparece tão repentinamente que às vezes podemos exceder-nos
e fazer coisas sem pensar.
Eu já tinha chegado ao hotel ao início da tarde para me encarregar dos
últimos preparativos. Aí tive de convencer uma nervosíssima Soleil a não
retirar das paredes alguns dos seus quadros à última da hora.
– C’est de la merde! – murmurou enquanto contemplava um dos seus
quadros, de que já não gostava. – Isto é uma merda.
Mademoiselle Conti tinha-me recebido muito nervosa no hall de
entrada. Com o seu vaporoso vestido império de chiffon azul-noite, que se
movia alegremente em redor das suas pernas nuas, não a reconheci até
olhar para ela pela segunda vez. Nas suas orelhas brilhavam umas safiras
em forma de gota, e nos pés tinha umas sabrinas prateadas, e quando se
aproximou de mim parecia uma pequena nuvem de tempestade.
– Monsieur Champollion, venha depressa, Mademoiselle Chabon
enlouqueceu! – exclamou.
Fui rapidamente ao salão onde estava pendurada a maioria dos quadros.
– Soleil, acalma-te! – disse com determinação, e afastei a artista do
motivo do seu desgosto. – Que é isto, realismo neurótico? – Soleil deixou
cair os braços e olhou-me como se fosse Camille Claudel pouco antes de
ser levada para o manicómio. – Os quadros são magníficos, nunca pintaste
nada melhor.
Soleil sorriu com desconfiança, mas sorriu.
No espaço de um quarto de hora tinha-a tranquilizado tanto que se
deixou levar até um dos sofás, onde lhe servi um copo de vinho tinto.
Mas o seu estado de ânimo recuperou-se por completo quando apareceu
Julien d’Oviedo. Pôde ver-se claramente como a menina acobardada
passou a ser uma rainha orgulhosa que recebeu o seu admirador com um
sorriso radiante. À parte este pequeno incidente, a tarde não podia estar a
correr melhor. Tinha ido gente de todo o lado: gente importante, gente
agradável, e os inevitáveis rats d’exposition, esses cromos que aparecem
em todas as inaugurações, estejam ou não convidados.
As salas estavam cheias de gente elegante que falava e ria, e no pátio
iluminado com grandes tochas, onde Marion havia garantido que
pusessem umas mesas com toalhas brancas, os fumadores deixavam cair
cinza dos seus cigarros com suaves golpezinhos enquanto conversavam.
Sorrindo, avancei por entre as pessoas.
Monsieur Tang, o meu colecionador apaixonado do país dos sorrisos,
estava encantado com Soleil, que parecia uma enorme flor vermelha e
conduziu-o pessoalmente de quadro em quadro sem que uma jornalista a
assaltasse com perguntas. Aristide deu-me uma palmada no ombro e
sussurrou-me ao ouvido que tudo estava soberbo. Bruno, com o seu
cocktail na mão, estava pensativo diante de um quadro intitulado
L’Atlantique Nord, e tinha superado momentaneamente a sua aversão à
arte moderna.
Por cima do murmúrio das vozes ouviam-se as exclamações de
entusiasmo de Jane Hirstman (Gorgeous! Terrific! Amazing!). A sua
sobrinha Janet deu-me um forte abraço ao cumprimentar-me. Nessa noite
estava impressionante – não posso dizer outra coisa – com um vestido
justo de seda verde-garrafa, cujas alças finas se cruzavam nas costas
deixando à vista a sua pele bronzeada. Com o cabelo apanhado parecia de
súbito muito mais velha que no nosso encontro casual no Le Train Bleu, e
aceitou com chispas nos olhos a taça de champanhe que lhe ofereci.
Bittner, o meu amigo alemão sempre tão crítico, tão-pouco tinha alguma
coisa a censurar. Passou diante dos quadros com um sorriso amplo, e
depois seguiu para a receção para sussurrar um par de elogios a
Mademoiselle Conti.
– Mademoiselle Conti, sabe que os seus olhos são exatamente da mesma
cor dos seus brincos? – ouvi-o dizer. – São como duas safiras! Não é
verdade, Jean-Luc?
Detive-me, e quando Luisa Conti se deixou convencer pelo encantador
«Monsieur Charles» e tirou os óculos escuros tive de reconhecer que tinha
razão: dois olhos azul-noite pousaram em mim durante uns segundos.
Depois Mademoiselle Conti voltou a pôr os óculos e sorriu a Karl Bittner,
que olhe ofereceu uma taça de champanhe.
– Está a exagerar, Charles! Merci, é muito amável. – Tirou a taça da
mão de Bittner.
Eu também queria dizer alguma coisa agradável.
– À mulher de olhos de safira que hoje evitou que acontecesse o pior! –
disse, e brindei com uma piscadela de olho a Mademoiselle Conti. – E
muito obrigado novamente pela sua amável colaboração em todo o
processo. Está tudo estupendo.
– Sim – disse Bittner, como se as minhas palavras fossem dirigidas a
ele. Apoiou-se com indiferença na secretária de antiquário e inclinou-se
tanto para a frente que a sua mão quase roçava o vestido de Mademoiselle
Conti. – Este lugar tem um ambiente realmente especial. Um
enquadramento esplêndido para os quadros de Soleil Chabon, que são –
assentiu com reconhecimento – realmente notáveis. Sem dúvida! – A
atenção de Karl Bittner deixou de se centrar em mim para passar para a
mulher que se encontrava atrás da secretária com as faces coradas. – Que
perfume maravilhoso é esse? Flor-de-baunilha?
Deixei os dois pombinhos, circulei pelas salas, bebi um gole de vinho
aqui e outro acolá, e saí por um momento para o pátio, que estava vazio.
Aproximei-me de uma das mesas redondas que estava próxima da
parede e olhei para o céu. Estendia-se sobre a cidade como uma abóbada
escura, e viam-se algumas estrelas, o que não é frequente em Paris.
Satisfeito, acendi um cigarro e soltei o fumo no ar da noite. Sentia-me
levado por uma onda de simpatia e cordialidade.
A vida em Paris era maravilhosa, o vinho tinha-me subido um pouco à
cabeça, e a carta que a Principessa me tinha escrito nesse dia e na qual
falava de «entrega total», «ânsias impossíveis de acalmar», e outras coisas
que não se podem contar, fazia-me sentir uma agradável inquietude que
não conseguia dominar.
– Tem um cigarro?
Uma mulher magra com um vestido verde-garrafa apareceu ao meu
lado. Era Janet. Uma madeixa que brilhava como bronze à luz das tochas
tinha-se soltado e caía sobre os seus ombros nus.
– Naturalmente… claro que sim. – Ofereci-lhe o maço e acendi um
fósforo. A chama vibrou um instante na obscuridade e vi a cara de Janet
muito próxima da minha. Agarrou-me a mão que segurava no fósforo,
inclinou-se para acender o cigarro, deu uma passa profunda, e então
aconteceu.
Em vez de soltar a minha mão, que continuava a segurar o fósforo
aceso, Janet apagou a chama com um sopro e puxou-me para ela sem dizer
uma única palavra.
Eu estava demasiado surpreendido para reagir. Cambaleei como um
embriagado enquanto essa americana me beijava, e quando dei conta da
língua de Janet na minha boca já era demasiado tarde.
Tudo o que se tinha acumulado no meu íntimo saiu nesse breve e
silencioso instante de uma paixão que queria desatar-se, ainda que com
uma pessoa diferente.
Aturdido, dei um passo atrás. Ouviu-se o ruído de uma porta, no pátio
ouviram-se alguns passos, e saímos das sombras da parede.
– Desculpe – murmurei.
Alguns convidados tinham saído para o pátio e riam-se.
– Não tem de me pedir desculpa. Foi culpa minha. – Janet sorriu. Estava
muito sedutora. Pensei na Principessa. Mas Janet não era a Principessa.
Não podia sê-lo, pois quando vi pela primeira vez a atrevida sobrinha de
Jane Hirstman no Le Train Bleu já tinha trocado várias cartas com a minha
desconhecida misteriosa, aquela que «conhecia sem a conhecer».
Em algum recanto remoto do meu cérebro soou um sinal de alarme.
Abanei a cabeça.
– Trago-lhe algo para beber?

A noite chegava ao fim.


Aristide Mercier estava diante da receção. Era um dos últimos a ir
embora, e estava a vestir o casaco.
– Foi maravilhoso, mon Duc! Quelle gloire enorme! Um serão
estupendo!
Eu pensava o mesmo. Quando me dirigi para o bengaleiro, vi de soslaio
como Aristide se despedia de Luisa Conti com uma leve inclinação e
agarrava num livrinho que havia junto ao livro de registos.
– Oh! Você lê Barbey d’Aurevilly? – perguntou surpreendido. – Que
leitura tão pouco habitual! A cortina vermelha… Uma vez fui a um
seminário sobre esta obra…
Ouvi ao longe como se iniciava uma pequena conversa na receção. Pus
a gabardina e guardei o maço de cigarros no bolso.
Pensei por um momento em Soleil, que um quarto de hora antes tinha
desaparecido, entre risos e sussurros, na obscuridade da rue de Saint-
Simon, pendurada nos braços de Julien d’Oviedo. Pensei em Janet, nos
seus lábios quentes na minha boca, e que graças a esse desportivismo tão
próprio dos americanos, não tinha levado a mal a minha rápida retirada.
Pensei que a Principessa teria reagido à resposta que eu redigira a toda a
pressa antes de sair para o Duc de Saint-Simon.
Então reparei num pequeno papel no meu bolso.
Pensei que seria a conta de algum restaurante e tirei-o com a intenção de
o amachucar e deitar no cesto dos papéis.
Como podia imaginar que tinha nas mãos a minha sentença de morte!
Olhei para o papel com incredulidade. Alguém me tinha deixado um
bilhete.
E esse alguém era a Principessa.

Meu querido Duc, advirto-o de que se volta a beijar essa bela americana no futuro terá de
renunciar à nossa correspondência… já vi bastante e marco desde já uma distância entre
nós.
A sua desgostosa Principessa

Necessitei de uns segundos para me dar conta do ocorrido.


A Principessa tinha-me visto a beijar Janet. Tinha-me apanhado em
flagrante e era-lhe indiferente que tivesse sido Janet a surpreender-me com
o seu beijo.
Por outras palavras: a Principessa tinha estado ali, na exposição,
naquelas salas.
Suspirei e deixei cair o papel. Maldita seja, maldita seja! Um segundo
depois, lançava-me sobre a receção, onde Aristide estava a fazer uma
pequena leitura privada a Mademoiselle Conti, que o observava
atentamente desde a sua poltrona.
– Mademoiselle Conti! – Até eu notei que me saiu da boca uma ordem.
– Viu alguém aproximar-se do meu casaco?
Dois pares de olhos atónitos cravaram-se em mim.
Aristide interrompeu a sua leitura e Mademoiselle Conti olhou para
mim surpreendida.
– O que quer dizer «aproximar-se do meu casaco?» – perguntou-me
muito devagar, como se falasse com um doente. – Há algum problema?
– Alguém meteu alguma coisa no meu casaco, sim ou não? – gritei-lhe.
Postei-me diante dela sacudindo um dos meus bolsos.
– Como é que vou saber? Não sou a encarregada do bengaleiro –
respondeu encolhendo os ombros.
Aristide levantou a mão com uma expressão séria.
– Acalma-te Jean-Luc! Que forma de te comportares é essa?
– Mademoiselle, por favor, lembre-se! – exclamei ignorando-o.
Cambaleei um pouco, sentia-me estranho, fosse pelo álcool ou pela
excitação repentina, e agarrei-me à secretária que poucas horas antes tinha
sido a testemunha muda do flirt primaveril entre Monsieur Bittner e
Mademoiselle Conti. Mas tinha mudado o tempo e agora um vento gelado
parecia varrer a receção. – A menina esteve aqui o tempo todo. Deveria ter
visto se alguém pôs alguma coisa no meu casaco! – repeti com teimosia e
gritando novamente.
Os olhos de Mademoiselle Conti brilharam por trás dos óculos como
dois diamantes negros.
– Monsieur, peço-lhe… O senhor está embriagado – disse com frieza. –
Não vi ninguém. – Abanou a cabeça com um gesto desaprovador, e os
seus brincos azuis moveram-se com agressividade. – Quem iria meter
alguma coisa no seu casaco…? Ou talvez queira dizer que alguém tirou
alguma coisa do seu casaco? Falta-lhe alguma coisa?
Olhei-a com raiva.
A Principessa tinha-me escapado. E estava muito zangada com o Duc,
isso estava claro.
Sentia-me inseguro e furioso ao mesmo tempo, sentia-me zangado
comigo mesmo e descarregava a minha raiva impotente sobre Luisa Conti,
a quem não parecia interessar todo aquele assunto, senão palavras
mordazes.
– Não, não me falta nada! E não vejo a diferença entre pôr ou tirar,
independentemente de ter bebido um copo de vinho a mais – grunhi. –
Não estou à procura de um ladrão, sabe?
Aristide seguia a nossa pequena discussão contendo a respiração.
– Não? – Mademoiselle Conti ergueu as sobrancelhas. – Então, o que
procura?
– Uma mulher! Uma mulher maravilhosa!? – gritei desesperado.
– Bem o senhor não tem problemas com isso, Monsieur Champollion. –
Luisa Conti sorriu, e posso jurar que foi um sorriso provocador, embora
Aristide tenha dito depois que eu o tinha imaginado devido à minha
agitação. – O mundo está cheio de mulheres maravilhosas – prosseguiu,
torcendo a faca que me tinha cravado no estômago. – Escolha uma!
Soltei um grito gutural. Faltou muito pouco para me lançar sobre essa
pequena bruxa que remexia na minha ferida com os seus alegres
comentários.
Então senti a mão de Aristide no meu ombro.
– Vamos, amigo! – disse com determinação, fazendo um gesto de
desculpa a Mademoiselle Conti. – É melhor que te leve a casa agora
mesmo.
13

Três dias depois estava de rastos. Aconteceu o que temia.


O pior não foi a horrível dor de cabeça com que acordei na manhã
depois da inauguração. Nem ter tido de telefonar nesse mesmo dia –
seguindo o conselho de Aristide – para o Duc de Saint-Simon a fim de
pedir desculpa a Mademoiselle Conti pelo meu comportamento inaceitável
(embora ela tenha reagido com bastantes reservas às minhas desculpas).
O que se revelou insuportável, o que me oprimia dia e noite e me enchia
de pânico era o facto de a Principessa já não responder às minhas cartas.
Não sei quantas vezes por dia voei até casa com a esperança de
encontrar um e-mail da Principessa na caixa de entrada. Acordava à noite
e corria até à sala de estar com a certeza repentina de que ela tinha
acabado de me escrever nesse instante. Cinco minutos depois, voltava para
a cama desiludido e não conseguia voltar a adormecer. Foi horrível. A
Principessa mantinha o silêncio e então ficou claro até que ponto me tinha
acostumado a receber as suas cartas, a esse intercâmbio de pensamentos e
sentimentos que tinha lugar todos os dias, sim, por vezes a toda a hora,
que iluminava e dava cor à minha vida e asas aos meus sonhos.
Sentia a falta das pequenas piadas e confissões, os grandes anúncios e as
propostas eróticas, nas quais umas vezes se antecipava uma, noutras o
outro; faltavam-me os mil e um beijos que voavam através da noite até
mim, as histórias que a minha Xerazade sabia contar, as imagens que
desenhava, a sua reprimenda zombeteira de «não seja tão impaciente,
querido Duc!».
Ao início não dei a suficiente importância ao assunto, admito. Sabia que
a Principessa se tinha zangado, mas acreditava ser capaz de a reconquistar
com palavras bonitas.
Respondi ao seu bilhete lacónico, naturalmente. Na manhã seguinte
sentei-me diante do computador e escrevi à furiosa dama um e-mail
engenhoso no qual lhe explicava que não tinha nenhum motivo para estar
ciumenta, que a bela americana não me interessava minimamente, que não
se tinha passado nada e que esse pequeno incidente era uma quantité
négligeable, «tem de acreditar em mim!». Sorri ao enviar o e-mail. Mas
nessa mesma noite já não sorria.
Quando compreendi que não ia receber qualquer resposta, atribui tudo à
tensão e excesso de álcool e reconheci que se passara alguma coisa, essas
coisas que acontecem às vezes, mas que não tinha nada a ver com ela, com
a Principessa, e pedi-lhe que não fosse tão teimosa e se mostrasse como a
pessoa generosa que eu tinha aprendido a apreciar reconciliando-se
comigo.
Tão-pouco recebi qualquer resposta a este e-mail. A Principessa
mostrava-se sumamente obstinada. Estatelei-me, mas também fiquei
furioso.
No meu terceiro e-mail expliquei-lhe que não se podia fazer uma
tempestade num copo de água, que a sua reação me parecia muito infantil.
Que ridículo encenar todo este drama! Assim, se quisesse, podia continuar
zangada, que pelo meu lado tinha coisas mais importantes para fazer do
que persegui-la para lhe pedir desculpa.
Depois deste e-mail senti-me bem durante uma hora. Conduzido pela
vaidade e pelo orgulho, fui dar um passeio com Cézanne e avancei com
passos decididos pelas Tulherias, que estava cheia de parzinhos. Mas
quando voltei a casa com as esperanças renovadas, com a ideia
equivocada de ter conseguido trazer a Principessa à razão, a caixa do
correio continuava vazia, e uma onda de tristeza varreu o meu orgulho.
Num quarto e-mail escrevi (sem muita vontade), que a Principessa
atirava as culpas para cima da pessoa errada: eu não tinha beijado a
americana, ela tinha-me obrigado a beijá-la (adieu, Casanova!), essa era a
verdade ainda que as aparências jogassem contra mim. Apesar de tudo
podia compreender o seu mal-estar e queria desculpar-me formalmente.
No quinto e-mail disse-lhe que tinha compreendido que com a
Principessa não se brincava com os beijos a outras damas, mas que já me
tinha feito esperar bastante, era um pecador arrependido, que não voltaria
a acontecer nada de semelhante, que havia aprendido a lição, «mas por
favor escreva-me outra vez e diga-me o que posso fazer para que me
perdoe, o seu infeliz Duc».
A Principessa continuou silenciosa. E devo admitir que eu estava
desesperado.
Telefonei a Bruno.
– Pois, meu velho! – disse pensativo. – Temo que tenhas metido a pata
na poça. Ficaste sem a dama. Por outro lado… – Fez uma pausa.
– Por outro lado o quê? – perguntei impaciente.
– Bem, no fundo não a conheces realmente, talvez seja melhor assim…
Soltei um gemido.
– Não Bruno, assim é uma merda! Telefona-me quando tiveres alguma
ideia, de acordo?
Bruno prometeu pensar em alguma coisa.

Marion achou que eu tinha muito mau aspeto (não estás doente, Jean-
Luc?). Soleil fitou-me com compaixão e perguntou se queria que me
fizesse uma figurinha de pão. Madame Vernier opinou que eu trabalhava
demasiado. Foi quando me surpreendeu a tentar abrir a sua caixa do
correio com a minha chave. Ofereceu-se para ficar com Cézanne se
necessitasse de algum tempo para mim.
E até a própria Mademoiselle Conti, a quem cumprimentei apressado
quando nessa mesma semana voltei ao hotel com Monsieur Tang porque
ele tinha gostado de um quadro me perguntou muito preocupada se estava
tudo bem.
– Não – disse. – De todo. – Encolhi os ombros e sorri forçadamente. –
Desculpe.
A minha infelicidade não se escondia de ninguém.

Na tarde do quinto dia da minha nova era combinei encontrar-me com


Aristide no Vieux Colombier para lhe contar as minhas penas.
– O que vou fazer? O que vou fazer? – Parecia um disco rachado.
– Pobre Jean-Luc, estás muito apaixonado por essa mulher! – disse
Aristide, e desta vez não o contrariei. – Insiste! – aconselhou. – Pede-lhe
desculpa mil vezes se cem não bastarem. Diz-lhe o importante que é para
ti. Uma mulher que te escreveu essas cartas não tem um coração de pedra.
Assim, nessa mesma noite sentei-me diante da pequena máquina branca,
que já odiava, e pensei no que poderia escrever para conseguir que a
Principessa me respondesse. Cézanne aproximou-se de mim e apoiou a
cabeça nos meus joelhos. Notava que eu estava triste e fitou-me com os
seus olhos de cão fiel.
– Ai, Cézanne! – suspirei. – Não podes escrever esta carta por mim? –
Cézanne soltou um ganido compassivo. Aposto que teria escrito a carta se
lhe tivesse posto o nome de Bergerac. Mas como não era assim, tinha de
me ocorrer alguma coisa a mim.
Olhei e voltei a olhar para o ecrã vazio. E então dei o meu melhor.

Assunto: Rendo-me!

Querida Principessa:

Ainda não me perdoou, e eu já não sei o que fazer. Com o seu silêncio feriu o meu coração,
o meu sistema imunitário e anímico está destroçado, e se EU lhe causei qualquer dano com
o meu descuido, pode estar certa de que A SENHORA me faz cem, não, mil vezes pior ao
manter-se silenciosa e distante.
Desculpo-me, peço-lhe perdão, arrependo-me terrivelmente de ter tido um momento de
debilidade e ainda que parecesse uma desculpa estúpida, aquele beijo não era para mais
ninguém senão para si!
Não vou deixar de a assediar com os meus rogos, pois não posso crer que aquilo que de
tão maravilhoso existe entre nós terminou. Não pode ser, não deve ser assim.
Só penso em SI!
Há poucas semanas eu era um galerista mais ou menos respeitável, hoje as suas palavras
e as suas cartas transformaram-me numa pessoa cujos sentimentos parecem mover-se numa
única direção… até si.
Quem diria?
Devo dizer-lhe que não posso descrever com palavras o quanto sinto a falta da nossa
troca de missivas. E eu? Não sente a minha falta? Esqueceu tudo o que imaginámos, os
nossos belos sonhos, as nossas ilusões? Já não significam nada?
Principessa, sinto muito a sua falta! Quero estar por fim consigo!
Sim, sinto curiosidade por si, admito. Mas não é a curiosidade do voyeur, não é uma
curiosidade que sirva apenas a minha própria satisfação. Não é uma curiosidade por
resolver um enigma que acabe com tudo.
Anseio com desespero amá-la como nunca ninguém a amou e respeitou.
Porque devo conformar-me com menos se a senhora é tão infinitamente rica, tão
insondável e inesgotável?
E como nunca a poderei conhecer de todo, não tem de se preocupar. Continuará sempre a
manter o mistério, disso estou seguro, manterá o mistério do seu poder sobre mim, com o
qual me pode dar e tirar tudo.
Nunca na vida tive ninguém tão perto de mim!
E tal como Cyrano de Bergerac, com o qual nestes dias me sinto identificado se bem que
o meu nariz não seja tão grande quanto o dele, afirmo solenemente: se não a vejo em breve,
o amor e a pena consumir-me-ão de tal maneira que os vermes do meu túmulo irão apenas
desfrutar de uma refeição frugal.
Assim, aqui está a minha redenção sem limites, assinada sexta-feira, 13 de junho, pouco
antes do amanhecer:
Amo-a!

Quero-te, sejas quem fores!


Jean-Luc

Começava a clarear quando, com o coração encolhido, enviei a carta.


Tenho de reconhecer que duvidei por um instante ao escrever a última
frase. Não porque não o sentisse de verdade, senão porque me
surpreendeu comprovar que nesta carta tinha utilizado pela primeira e
única vez em muitos anos a palavra amor. Sim, Aristide soube-o de
imediato, todos os que me viram nesse dia souberam de imediato, e agora
– por fim! – também eu sabia.
Temia que, se essa carta ficasse sem resposta, a mais bela história de
amor do mundo tivesse chegado ao fim sem remédio. Nesse caso, podia
atirar a pequena máquina branca ao Sena e entrar num mosteiro tibetano.
Mas antes de renunciar a tudo precisava de um bom café.

Senti-me bem ao sentir como o líquido escuro e doce que bebi em grandes
tragos descia pelo meu corpo, mas tão-pouco me fez despertar por
completo. Sentia-me tão agitado como o esfregão de Marie-Thérèse que,
ao acabar de limpar, ela torce com força para espremer até à última gota.
Quando voltei ao computador, e me deixei cair na poltrona, estava
terrivelmente cansado.
Mas logo me senti desperto e feliz, e teria arrancado de raiz todas as
árvores do Jardin du Luxembourg!
A Principessa tinha respondido!

Nunca tinha aberto um e-mail com tanta pressa, nunca tinha lido com
tanta avidez. Quando vi o assunto parou-se-me o coração, mas de seguida
sorri com alívio e senti grandes ânsias de continuar a ler.
Reli o e-mail da Principessa dez, quinze vezes, não podia deixar de o
fazer. Era como se alguém tivesse iluminado a noite com um grande sol, e
de facto quando li a carta pela última vez, o sol já entrava pela janela e
refletia-se na minha secretária.

Assunto: A minha última carta ao Duc!

Meu querido Duc:

Não, não pode ser que os vermes dos cemitérios de Paris não tenham nada para comer no
seu corpo e acabem por morrer de inanição, reconheço. Os pequenos animaizinhos devem
refastelar-se com um banquete quando o senhor, meu querido Duc, chegue ao seu túmulo
feliz e bem alimentado. Mas isso será dentro de muitos e muitos anos, pois eu não estou
disposta a renunciar à sua companhia.
Ai, meu querido Duc! Brinco, mas na verdade tenho o coração a transbordar.
Tenho de admitir que a sua última palavra me deixou sem fala. Jamais na minha vida
recebi uma carta assim. As suas palavras percorreram o meu corpo como uma corrente de
calor e chegaram até aos capilares mais finos.
Foi o melhor presente que me podia ter dado, e com isso não me refiro à rendição sem
condições de um Duc que sabe manejar com destreza o seu florete, mas sim ao seu coração.
O seu maravilhoso coração ferido pelas flechas do amor.
Aceito-o de bom grado.
E agora que ouvi por fim as palavras que abriram a última câmara do meu temeroso e
orgulhoso coração, devo dizer-lhe que, desgraçadamente, esta será a última carta que a
Principessa escreve ao Duc.
O nosso jogo terminou, e o Duc e a Principessa terão que despojar-se dos seus disfarces,
dar as mãos, beijar-se e iniciar juntos um passeio pela vida real, seja qual for.
Assim digo-lhe «Adieu», mon Duc, e sussurro com carinho o teu nome: Jean-Luc
querido!
E agora ouve bem: vou colocar-te uma última adivinha que te levará até à tua
Principessa, que fechará esta conta de correio eletrónico quando tiver enviado este e-mail.
Não vamos precisar mais dele.
Encontrar-me-ás no fim do mundo… se bem que o fim do mundo não é sempre o final do
mundo. Procura-me lá dentro de três dias, 16 de junho, à hora azul.

Despeço-me até então, com o mais delicado de todos os beijos, pela última vez como

A sua Principessa
14

Com o tempo sucede algo muito estranho.


Domina a nossa vida mais do que qualquer outra dimensão. Na verdade,
tudo gira em torno do tempo que temos, o tempo que não temos, o tempo
que nos resta. Esse é o tempo real. Um dia, dez meses, cinco anos. Mas
depois está também o tempo que percebemos, que é o irmão caprichoso do
tempo real. É o que faz com que uma hora de espera dure trinta e cinco
minutos e que, por outro lado, a hora que nos resta para fazer uma coisa
importante se veja reduzida num instante a oito minutos.
Escapa-nos, persegue-nos, e só existe um ponto no qual nós
controlamos o tempo. São esses escassos momentos em que estamos
imersos nele e por isso não o notamos. Então deixamo-lo em suspenso,
detemos todas as pequenas rodas de engrenagem que encaixam tão bem
umas nas outras, e vamos em ponto morto pela vida.
São os momentos do amor.
Não sei quanto tempo estive sem me mexer, comovido pela felicidade,
diante da carta da Principessa. A certo ponto dei um salto e dancei por
toda a casa como Zorba, o grego, ao mesmo tempo que soltava de vez em
quando um «Sim!» de triunfo.
Cézanne dava voltas em meu redor sem deixar de ladrar, compartilhava
a minha euforia, ainda que suponho por outros motivos.
E assim descemos as escadas loucos de contentes, atravessámos o
portão passando ao lado de Madame Vernier, que perante o meu bom
humor soltou um «Bonjour!» surpreendido, corremos aos ziguezagues
pelo parque e Marion, que me esperava na galeria, expressou
perfeitamente como me sentia.
– Meu Deus, Jean-Luc, como estás mudado! – disse. – És um homem
novo!
Sim, eu também o notava, era o eleito pelos deuses e tudo, tudo me iria
correr bem. Tinha resolvido de imediato o pequeno enigma da
Principessa, e tinha todo o fim de semana pra fazer as minhas
averiguações.
Se «o fim do mundo», o au bout du monde, não estava no fim do
mundo, como dizia a Principessa, decerto que estava em Paris. E então só
podia ser um café ou um restaurante que eu tinha de encontrar. Uma tarefa
muito simples para um descendente do famoso Jean-François
Champollion, pensei com orgulho.
Mas tinha-me enganado outra vez. Pela última vez.

Se os últimos cinco dias sem a Principessa tinham passado como os


últimos cinco anos de um velho solitário para quem o tempo não passa,
acabei por constatar com horror que os três dias que faltavam para o meu
encontro com a bela desconhecida se me escapavam por entre os dedos
como areia no deserto.
E quando segunda-feira pela manhã ainda não sabia onde ficava o fim
do mundo, onde tinha de me sentar ao anoitecer, à «hora azul» como tinha
escrito a Principessa, fiquei num pânico tal que tive de me conter para não
começar a deter as pessoas pela rua para lhes perguntar pelo Au Bout du
Monde.
Tinha procurado por todo o lado. Primeiro tirei muito convencido a lista
telefónica do pequeno armário do corredor, mas não aparecia nenhum Au
Bout du Monde. Telefonei para as informações e discuti com a mulher
impertinente do outro lado da linha porque me parecia que não procurava
com interesse suficiente. Recorri à pequena máquina branca no motor de
busca. Apareceram trezentas mil sessenta e duas entradas. Havia de tudo,
desde agências de viagens até bares de alterne. Mas não existia o que eu
procurava e tinham passado mais quatro horas.
Telefonei a Bruno, que ficou contente por mim pelo facto de a
Principessa ter pensado melhor, mas ele tão-pouco conhecia nenhum Au
Bout du Monde, apesar de ter tido a brilhante ideia de que se tratasse de
um bar, «pela hora azul, é a hora dos cocktails, não?». Não me serviu de
muito.
Marion pensava recordar-se que Au Bout du Monde era uma discoteca
que ficava no Marais. Julien d’Oviedo considerou ser o nome de um lugar
de encontro de artistas de grafíti nos subúrbios, e Soleil perguntou se não
me teria enganado e se se tratava na verdade de um lugar em Zanzibar. E
voltou a oferecer-se para me fazer um boneco de pão.
Aristide, em quem tinha colocado as minhas últimas esperanças, tinha
desaparecido, não consegui localizá-lo nem em sua casa nem no
telemóvel.
A solução do enigma veio de quem menos esperava.

Na segunda-feira marcada pelo destino, fiquei de me encontrar ao almoço


com Julien e Soleil no Duc de Saint-Simon para desmontar a exposição.
Restavam-me seis horas para encontrar o fim do mundo. E estava cada vez
mais nervoso. Mademoiselle Conti estava sentada na receção do hotel e no
meu desespero decidi perguntar-lhe também a ela.
– A Au Bout du Monde? – repetiu muito devagar, e eu já imaginava a
resposta. – Conheço bem. É uma pequena livraria especializada em
viagens que está muito perto daqui.
Fitei-a como se fosse a minha fada madrinha e sorri com incredulidade.
– Tem a certeza? – perguntei.
Ela riu-se do meu espanto.
– Claro que tenho a certeza, Monsieur Champollion, há alguns dias
encomendei ali uns livros. Se quiser posso acompanhá-lo até lá quando
acabar o que está a fazer.
– Obrigado! – exclamei com excessivo entusiasmo, e nesse momento
teria gostado de dar um abraço à pequena Luisa Conti, enfiada no seu fato
de casaco azul-escuro. Quem iria pensar que o fim do mundo estava tão
perto! A felicidade estava ao virar da esquina.
– Em breve vou deixar o Duc de Saint-Simon – disse Mademoiselle Conti
enquanto seguíamos pela estreita rue de Saint-Simon.
– Oh! – disse surpreendido. – Quero dizer… então?
Ela sorriu.
– O trabalho no hotel era provisório. Depois do verão irei por fim para a
Sorbonne. Literatura Francesa.
– Oh! – disse outra vez. Não era muito difícil perceber, mas nunca me
tinha ocorrido que a presença de Mademoiselle Conti na receção do Duc
de Saint-Simon fosse temporária. Bem, na verdade nunca tinha pensado
demasiado em Mademoiselle Conti, porque iria fazê-lo? Mas
impressionou-me que fosse para a Sorbonne. Imaginei a conversa animada
que ela tinha mantido com Aristide na noite da inauguração. Não, é
melhor não me lembrar dela!
– Ficou sem fala? – Mademoiselle Conti olhou-me com cara de
satisfação. Os seus olhos brilharam por trás dos óculos escuros. Pareceu-
me mais descontraída que o costume, talvez a perspetiva de ocupar o seu
novo lugar a tivesse posto de bom humor. Era evidente que pouco a pouco
todos iam tendo algum motivo para se alegrar.
– Não, não! – disse sorrindo também. – É estupendo. Só estou
surpreendido. Vou sentir a sua falta.
Olhei-a e pensei que ia ser assim. Seria estranho ir no futuro ao Saint-
Simon e ver outra mulher sentada na receção. Uma mulher que não
trocasse os nomes continuamente e que sempre sabia tudo melhor que
ninguém. Uma mulher que pudesse distinguir entre Jane e June. Uma
mulher que utilizasse uma caneta Bic em vez de uma caneta de tinta
permanente Waterman que deixa manchas de tinta. Ao fim e ao cabo,
tínhamos passado algumas coisas juntos durante este ano. Tive de sorrir.
Antes de cair no sentimentalismo, algo que atribuí à minha situação de
forte tensão emocional, acrescentei:
– E Monsieur Bittner… vai ficar muito triste!

Uns passos mais adiante olhei inquieto para o relógio.


Eram cinco e meia, ainda tinha tempo.
Tínhamos passado a tarde a embalar e a preparar os quadros. O tâmil
amável que fazia normalmente o turno da noite nesse dia tinha chegado
antes e deu-nos uma ajuda, e há um quarto de hora que Julien se tinha ido
embora na sua furgoneta. Soleil ia sentada ao seu lado muito feliz.
– Bonne chance! – sussurrou-me ao ouvido com dissimulação quando se
despediu. Vimo-la então a dizer adeus pela janela, até que Julien virou
pelo boulevard Saint-Germain. Fiquei a olhá-los emocionado, eu também
tinha borboletas no estômago.
Por fim, dirigia-me para o fim do mundo, até à minha bela
desconhecida! O coração batia-me com mais força a cada passo que dava.
De certo modo até me alegrava que Mademoiselle Conti estivesse
comigo. O discreto tac-tac dos seus saltos tinha algo de tranquilizador,
sim, dava-me segurança, e ajudava-me a enfrentar o caminho, que era
longo.
Entretanto, Luisa Conti ia-me falando de um livro sobre comboios
famosos e viagens de caminho de ferro que tinha encomendado na Au
Bout du Monde, e da viagem no Expresso do Oriente que ainda hoje se
pode fazer. Eu assentia contente porque os meus pensamentos estavam
noutro lado.
Comecei a ver a mulher loira da plataforma da Gare de Lyon, as frases
da última carta da Principessa apareceram diante dos meus olhos, frases
às quais faltava uma voz feminina, e tudo isto se misturou com a
tagarelice de Luisa Conti sobre uma viagem de Paris a Istambul.
Olhei o relógio com discrição. Tinham passado três minutos.
– Está muito longe? – perguntei.
Mademoiselle Conti abanou a cabeça.
– Não, estamos quase a chegar.
Soltei sem querer um suspiro, e a minha acompanhante voltou a menear
a cabeça, desta vez com um sorriso divertido.
– Que se passa hoje, Monsieur Champollion? Nunca o tinha visto tão
nervoso. A livraria está aberta até às sete.
Como era essa história de que o coração exaltado faz soltar a língua?
– Ai, Mademoiselle Conti, se soubesse! Não quero comprar nenhum
livro – ouvi-me a dizer.
E contei à jovem do fato de casaco azul que me olhava com atenção, o
que realmente procurava na Au Bout du Monde. As palavras brotavam por
si, os nervos faziam-me falar aos tropeções, e quando cinco minutos mais
tarde estávamos diante do fim do mundo, Luisa Conti tinha-se convertido
na minha melhor amiga.

– Meu Deus, que emocionante! – sussurrou enquanto eu abria a porta da


pequena livraria. – Espero que encontre o que procura.
Sorriu-me com cumplicidade. Entretanto desapareceu na parte posterior
da livraria para ir buscar o livro que tinha encomendado.
Inalei ar com força e olhei em redor.
A Au Bout du Monde era o mais oposto a uma livraria tradicional. Era
fascinante.
A primeira coisa que vi foi uma estátua, uma reprodução da altura de
um homem do David que está na Piazza della Signoria em Florença.
Havia pequenos sofás e mesinhas nas quais se podia tomar chá ou café,
naturalmente produtos de comércio justo. As paredes estavam cobertas de
estantes de madeira escura, os livros mais valiosos estavam guardados em
armários antigos envidraçados, e nos poucos espaços que ficavam livres
havia quadros de países distantes que provocavam uma certa nostalgia. Os
preciosos livros de fotografia que estavam espalhados pelas mesas não se
encontravam nas grandes cadeias de livrarias.
Mas o mais peculiar era o cheiro que havia na loja: cheirava ao Sul.
Passei diante das estantes cheias de livros, peguei num volume pequeno
– o relato de um inglês do século XIX que descrevia a sua viagem pelo
Nilo – e dei-lhe uma rápida vista de olhos enquanto olhava em redor
discretamente.
Não havia muita gente, e não se via nenhuma Principessa. Esperei, e de
vez em quando olhava para o relógio. Mas apesar da minha impaciência,
não podia escapar à aprazível magia que ali reinava. A encarregada da
livraria, uma mulher de idade com o cabelo grisalho apanhado e que
estava atrás do antigo mostrador a atender um estudante vestido com
calças de ganga e jersey, sorriu-me com amabilidade. Não tenha qualquer
pressa, parecia dizer o seu olhar.
Dirigi-me para a parte posterior da livraria.
Ante o meu olhar surpreendido apareceu um jardim de inverno. Num
canto, havia uma velha carruagem com assentos de veludo vermelho, nos
quais estava sentada uma mulher ruiva a ler. A seu lado, uma menina
pequena com um enorme laço branco no cabelo, e as duas, que deviam ser
mãe e filha, teriam sido um belo motivo para um quadro de Renoir. Mas
não as conhecia.
Noutro canto do jardim de inverno estava um enorme sofá branco com
muitas almofadas sobre o qual pendia um mosquiteiro de tecido claro, ao
lado de uma esbelta palmeira. Quase dava a impressão de que o sofá se
encontrava numa espécie de loja do Médio Oriente. Não era Lawrence da
Arábia quem estava ali a folhear um livro, mas sim Luisa Conti.
Olhou-me com uma expressão interrogadora, e eu encolhi os ombros de
forma quase impercetível. Dei então outra volta pela Au Bout du Monde.
Quando a campainha da porta tocou, olhei para a entrada muito excitado.
Era o estudante que saía para a rua com uns livros debaixo do braço.

– Se o puder ajudar só tem de me dizer – disse-me a amável encarregada


da livraria às sete menos um quarto. Decerto não lhe pareceu muito
normal que eu não parasse de vaguear diante das estantes com cara de
pena. De vez em quando dirigia-me ao sofá branco e falava um pouco com
Luisa Conti, que tinha ficado depois de eu, muito nervoso, lhe pedir.
Quando por fim a mãe ruiva se dirigiu para a caixa com a sua menina de
Renoir para pagar e só ficava um senhor de idade com bengala diante de
uma das estantes, sentei-me no sofá com Luisa Conti e fingi interesse pelo
seu livro com viagens lendárias em comboio, escrito pelo simpático
Patrick Poivre d’Arvor, que conhecia da televisão.
Era um livro que em qualquer outro momento me teria fascinado, com
as suas fotos preciosas e os seus desenhos antigos.
Mas nesse instante estava sentado ao lado de Luisa Conti, que a cada
momento me olhava com os olhos muito abertos, e os nervos impediam-
me de ter os pés quietos. Quase podia notar no meu corpo a passagem dos
minutos.
Tinha o coração nas mãos.
Então o senhor de idade despediu-se com um alegre «Au revoir» e a
campainha da porta soou pela última vez. Eram sete horas, e a Principessa
não tinha chegado.
Engoli saliva.
– Bem – disse olhando para Luisa Conti com olhos de pena. – Isto foi
tudo. – Procurei sorrir, mas o fracasso foi tal que Mademoiselle Conti
agarrou-me a mão.
– Ai, Jean-Luc! – limitou-se a dizer, e os seus dedos acariciaram as
costas da minha mão.
Baixei os olhos e observei a sua mão pequena e branca que queria
consolar-me. No dedo havia uma ligeira mancha de tinta que quase me fez
chorar de emoção.
– Talvez ainda venha – disse Luisa Conti com voz apagada.
Eu apertei os lábios e abanei a cabeça. Levantei-me e tentei sacudir toda
a dor.
– Bem – disse outra vez, lançando a Mademoiselle Conti um olhar de
pena. – Tem planos para esta noite?
Um serão com Mademoiselle Conti era a segunda melhor coisa que me
podia acontecer.
Luisa Conti pareceu vacilar.
– Na verdade, tenho um encontro – disse então, e na sua face apareceu
uma expressão sonhadora.
Claro, pensei. Todos têm o seu final feliz exceto eu. Diante de mim
materializou-se a figura de Karl Bittner. Ri-me. Soava como amargo.
– Bem espero que ao menos a pessoa com quem marcou seja pontual –
disse tentando dizer uma piada.
Luisa Conti sorriu.
Olhei para o chão e logo voltei a levantar os olhos.
Luisa Conti continuava a sorrir, sorria-me a mim, retirou muito devagar
os óculos e vi os seus olhos azul-safira, que brilhavam como um mar
silencioso e profundo. Vi o seu pequeno nariz reto, a sua pele clara e
transparente, na qual havia algumas sardas diminutas, vi a sua boca bem
delineada e vermelha como as cerejas e então soube.
O mundo começou a dar voltas, um torvelinho atravessou o meu
coração, na minha cabeça as imagens amontoaram-se.
A tinta no dedo, o infeliz encontrão, a porcelana partida. «A felicidade
estava muito perto». «Conhece-me e não me conhece». «Será este nariz
um estorvo para os seus beijos?»
Louise O’Murphy, Louise, Luisa.
Luisa, que estava na plataforma da Gare de Lyon com um vestido
vermelho que se movia com o vento; Luisa, que estava sentada atrás da
sua secretária e que via tudo; Luisa, que me tinha deixado uma pequena
nota no bolso do meu casaco e que me tinha posto tão furioso com as suas
observações que teria gostado de a fazer rodopiar.
Luisa que me tinha escrito todas aquelas cartas e que sabia onde estava
o fim do mundo.
– Meu Deus… Luisa! – sussurrei, e tremeu-me a voz. Tomei a sua cara
entre as minhas mãos. – És tu a pessoa de quem estou à espera?
Perdi-me naqueles olhos insondáveis, desejei aquela boca delicada, e
não esperei – peço desculpa – pelo impercetível gesto de afirmação de
Mademoiselle Conti.
Com um único e brusco movimento atraí-a para mim e quando os
nossos lábios se encontraram e senti a sua pequena língua, pensei uma
coisa tão tonta como: «Que curioso, esperava uma loira e encontrei uma
morena!»
E então deixei de pensar.

Esse beijo que eu tinha esperado com mais desejo que nenhum outro; esse
beijo que tinha sido preparado durante tanto tempo por uma mão delicada;
esse beijo que foi o mais bonito que alguma vez vivi, não queria terminar.
O Duc tinha encontrado por fim a sua Principessa. Debaixo de um
mosquiteiro, nalgum ponto no final da rue du Bac, dois amantes estavam à
margem do tempo.
E se Aristide não me tivesse entretanto telefonado, talvez se tivessem
esquecido de nós na Au Bout du Monde. A encarregada da livraria teria
apagado as luzes, teria fechado a loja e nós nem sequer teríamos dado
conta.
Mas separámo-nos a contragosto e atendi o telefone.
– Sim, que se passa? – perguntei quase sem fôlego.
– Jean-Luc, já sei! Je tiens l’affaire! – exclamou o meu amigo, e não me
dei conta de que tinha usado as mesmas palavras que o meu famoso
antepassado quando decifrou a Pedra de Roseta no ardente Egito. –
Encontrei uma frase na primeira carta da Principessa que, agarra-te, está
retirada textualmente de um romance de Barbey d’Aurevilly. Chama-se A
cortina vermelha e sabes quem tinha esse livro na sua mesa e o estava a
ler? Não vais adivinhar!
Aristide fez uma pausa muito teatral, e eu afastei a Luisa uma madeixa
do seu cabelo despenteado, e o suave suspiro que soltou quando eu não
pude aguentar mais e rocei impaciente a sua boca com os meus lábios só
eu ouvi.
– É Luisa Conti! Luisa Conti é a Principessa! – Aristide gritou tanto que
Luisa também ouviu.
Afastei-me um instante dela e ambos sorrimos com cumplicidade.
– Eu sei, Aristide, eu sei – disse.
Epílogo

Os personagens da trama deste romance são inventados.


Mas se algum leitor pensa que lhe lembra alguma coisa talvez seja pelo
facto de que a história que aqui se conta é verdadeira. Passou-se assim ou
de uma maneira muito parecida. Nem sempre é preciso viajar até ao fim
do mundo para encontrar a felicidade.
Os cenários do romance, os cafés, os restaurantes, os bares e hotéis
também existem na realidade.
O Duc de Saint-Simon mudou de proprietário. Que eu saiba, nunca foi
sede de nenhuma exposição, e infelizmente já não se pode comprar ali a
maravilhosa baixela que possui o antiquado nome Eugénie. Mas de vez
em quando aparece um jarro de leite ou uma chávena de café-crème na
bandeja de prata quando se toma o petit déjeuner no quarto.
A Au Bout du Monde chama-se na verdade Du Bout du Monde, e não
vende livros mas sim tesouros trazidos de todos os cantos do mundo.
Nesse mágico estabelecimento da rue du Bac podem encontrar-se,
deliciosamente misturados, móveis, estátuas, porcelana branca com
cabeças de anjos e velhas gaiolas.
E ao fundo, quando se chega ao pequeno jardim de inverno, junto a uma
palmeira que quase atinge o teto de vidro, através do qual se pode ver o
céu, há um enorme e cómodo sofá branco sobre o qual cai uma fina
mosquiteira de linho formando uma tenda fascinante.
Por que motivo o sei com tantos detalhes?
Bem… já estive sentado nesse sofá.
Com a princesa do meu coração.
E fui muito feliz.
Agradecimentos

Não só os artistas são seres muito especiais. Também as pessoas que


escrevem podem dar cabo dos nervos das pessoas que as rodeiam com as
suas contínuas mudanças de humor, entre a euforia total («Este romance
vai ser genial») e o desespero mais completo («C’est de la merde!»).
Quero agradecer à minha família e aos meus amigos por me terem
aguentado todo esse tempo, que para dizer a verdade foi um tempo à
margem do tempo. Sois fantásticos!
Que teria feito eu sem a vossa consideração, a vossa paciência, e os
vossos conselhos?
Um agradecimento especial ao meu editor alemão, que uma manhã me
animou a escrever este livro durante uma conversa inspirada no meu café
favorito. Sem ele a Principessa e o Duc teriam ficado numa gaveta da
minha secretária… e isso teria sido uma pena!

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