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Umas semanas depois vi, uma tarde, Lucille diante da livraria com duas
raparigas de que se havia feito amiga. Riam-se e agitavam pequenos sacos
de plástico brancos na brisa de verão.
Pouco depois, como que por uma maravilhosa casualidade, despediram-
se e Lucille permaneceu um pouco mais diante da montra a ver os livros.
Enfiei as mãos nos bolsos das calças e aproximei-me dela devagar.
– Olá, Lucille – disse com a maior naturalidade possível, e ela voltou-se,
surpreendida.
– Oh, Jean-Luc, és tu! – respondeu. – Que fazes aqui?
– Pois… – Brinquei com a ponta da minha sapatilha direita no chão. –
Nada de especial. Só estou a dar uma volta.
Pus-me a olhar para o seu pequeno saco branco, pensando com
desespero no que poderia dizer a seguir.
– Compraste um livro para as férias?
Ela abanou a cabeça, e o seu cabelo comprido e brilhante revolteou no
ar como finos fios de seda.
– Não, papel de carta.
– Ah! – As minhas mãos fecharam-se dentro dos bolsos das calças. –
Gostas… eh… de escrever cartas?
Ela encolheu os ombros.
– Sim, muito. Tenho uma amiga que vive em Paris – disse com uma
ponta de orgulho.
– Oh, que bom! – balbuciei, esticando os lábios com um gesto de
aprovação. Para um rapaz da província, Paris estava tão longe como a lua.
E, para além disso, nesse momento eu não fazia ideia que um dia iria lá
viver e que, como galerista não de todo fracassado, passearia pelas ruas de
Saint-Germain como um verdadeiro homem do mundo.
Lucille fitou-me inclinando a cabeça para o lado e os seus olhos azuis
lançaram faíscas.
– Gosto ainda mais de receber cartas – disse. Soava a um convite.
Esse foi o instante que ditou o meu enterro. Fitei os olhos sorridentes de
Lucille e, durante uns segundos, deixei de ouvir o seu palavreado, pois no
meu cérebro ia tomando forma uma ideia grandiosa.
Escrever-lhe-ia uma carta. Uma carta de amor como o mundo jamais
havia visto. A Lucille, a mais bela de todas!
– Jean-Luc? Eh, Jean-Luc! – Olhou-me com reprovação e franziu os
lábios. – Não me estás a ouvir!
Desculpei-me e perguntei-lhe se queria ir comer um gelado comigo.
«Porque não?», disse, e sentámo-nos na geladaria que havia nessa mesma
rua. Lucille estudou com atenção a lista não demasiado longa, passou as
folhas para trás e para diante e, por fim, pediu uma Coup mystère.
É curioso como mais tarde se recordam todos esses detalhes totalmente
insignificantes. Por que motivo se fixam na memória essas coisas tão
pouco importantes? Ou no final possuem uma transcendência que num
primeiro momento não captamos?
A Coup mystère, na realidade um pequeno recipiente de plástico
rematado na ponta com gelado de baunilha e noz e que se podia retirar
diretamente da grande arca frigorífica, servia-se nos cafés numa elegante
taça prateada.
Em qualquer dos casos, tudo soava mais prometedor do que era… Mas
o que é que não iria soar prometedor nessa tarde de verão na qual o ar
cheirava a alecrim e flor-de-baunilha? Lucille estava sentada diante de
mim com o seu vestido branco, remexia o gelado com a colher comprida e
deu um gritinho de alegria quando chegou à fantástica capa de merengue
e, logo a seguir, à bola de pastilha elástica que havia no fundo.
Procurou pescar a pastilha redonda e acabámos a rir imenso porque o
objeto vermelho e resvaladiço escorria uma e outra vez da colher até que
Lucille meteu os dedos na taça com decisão e levou a pastilha à boca com
um «Finalmente!» triunfal.
Eu olhava fascinado. Lucille disse muito contente que era o melhor
gelado que tinha comido desde há muito, fazendo rebentar um grande
balão de pastilha elástica diante da boca.
E quando, por fim, a acompanhei a casa e percorremos os caminhos
poeirentos de Les Mimosas um ao lado do outro, eu tinha quase a
sensação de que ela me pertencia.
Não sei porque é que, naquela tarde, tive de rondar tão de perto a casa de
Lucille. Talvez tudo tivesse corrido de outra forma se eu não tivesse
dirigido os meus passos impacientemente em direção a Les Mimosas,
onde ela vivia.
Ia precisamente a virar pelo pequeno caminho de areia, ao longo do qual
havia um muro alto de pedra quase oculto pelas mimosas de tons
dourados, quando ouvi o riso de Lucille. Fiquei imobilizado. Escondido
atrás do muro, as costas apoiadas na pedra áspera, inclinei-me um pouco
para diante.
E então vi-a. Lucille estava deitada de barriga para baixo à sombra de
uma árvore, as suas duas amigas à esquerda e à direita. As três soltavam
risinhos alegres e pensei com certa benevolência que, por vezes, as
raparigas podem ser bastante simples. Mas então comprovei que Lucille
tinha algo na mão. Era uma carta. A minha carta!
Fiquei imóvel, agachado por baixo de cascatas de ramos de mimosas, e
apertei as mãos contra a pedra quente, negando-me a aceitar a imagem que
se me havia gravado na retina com dolorosa nitidez.
Todavia, era verdade, e a voz clara de Lucille, que soou de novo mais
forte, cravou-se-me no coração como um pedaço de cristal.
– E ouçam isto: «E assim ponho o meu coração ardente nas tuas
mãos…» – leu exagerando a entoação. – Não é de começar a gritar?
Elas começaram a rir e uma das amigas rebolou-se na manta, agarrou a
barriga com as mãos e gritou:
– Socorro, fogo, fogo! Bombeiros, bombeiros! Au secours, au secours!
Incapaz de me mover, fiquei a olhar para Lucille que, nesse momento,
se dedicava a revelar alegremente e sem compaixão os meus segredos
mais íntimos, a trair-me, a destroçar-me.
Ardia-me todo o corpo, mas não saí dali a correr para me salvar.
Invadiu-me um sentimento quase autodestrutivo, queria ouvir tudo, até ao
final amargo.
Entretanto, as raparigas já tinham recuperado do seu ataque de riso.
Uma, a que havia gritado pelos bombeiros, arrancou a carta das mãos de
Lucille.
– Deus meu, como escreve! – gritou. – Que presumido! «És o mar que
me transborda, és a rosa mais bela do meu… arbusto?»… Oh là là! Que
significa isso?
As raparigas começaram a dar gritinhos e eu corei de vergonha.
Lucille voltou a pegar na carta e dobrou-a. Era evidente que a haviam
lido toda e se haviam divertido muito.
– Quem sabe de onde a terá copiado! – exclamou muito altiva. – O
nosso pequeno grande poeta!
Por um momento pensei sair do meu esconderijo para lançar-me sobre
elas, abaná-las, gritar-lhes e pedir-lhes explicações, mas reteve-me uma
última réstia de orgulho.
– E – perguntou por fim a outra amiga, juntando-se à conversa –, o que
vais fazer agora? Vais sair com ele?
Lucille brincou com o seu cabelo dourado de fada e eu contive a
respiração enquanto esperava pela minha sentença de morte.
– Com Jean-Luc? – disse, aumentando o volume. – Estás louca? Que
vou fazer com ele? – E como se isso não fosse suficiente, acrescentou: –
Ainda é um miúdo! Não quero saber como beija, que nojo! – Estremeceu.
As raparigas gritaram de entusiasmo.
Lucille soltou uma risada, um pouco demasiado forte e estridente,
pensei, e então despenhei-me, um Ícaro a afundar-se nas profundezas.
Tinha querido tocar o sol e tinha-me queimado. A minha dor era
infinita.
Sem dizer absolutamente nada, afastei-me, percorri o caminho de volta
a cambalear, aturdido pelo cheiro das mimosas e a crueldade das
raparigas.
O perfume das mimosas ainda hoje me desperta sentimentos não muito
agradáveis, mas em Paris essas delicadas plantas encontram-se entre o
suprassumo das floristas, embora não sejam muito apropriadas para uma
jarra.
As palavras de Lucille ressoavam nos meus ouvidos. Nem sequer me
apercebi das lágrimas que me escorriam pelas faces. Ia cada vez mais
depressa até que comecei a correr.
Como é essa frase que se diz e que soa tão bem? A toda a gente se parte
o coração alguma vez, e a primeira é a que mais dói.
*
Poucos dias depois fomos para Sainte-Maxime para casa da irmã da minha
mãe, onde passámos as nossas férias de verão. E quando a escola
recomeçou voltei a sentar-me ao lado do querido e velho Étienne, meu
amigo de sempre, que havia regressado de férias totalmente recuperado.
Lucille, a bela traidora, cumprimentou-me com a pele bronzeada e um
sorriso. Disse que aquilo das Îles d’Hyères não tinha podido ser, por
desgraça, porque já tinha outros planos. A amiga de Paris, blá blá blá. E
entretanto eu já tinha partido. Olhou-me com uma expressão inocente.
– Está bem – limitei-me a dizer. – Era apenas um capricho.
Voltei-me de imediato e deixei-a ali, com as suas amigas. Eu tinha
crescido.
Olhei para o relógio. Uma hora. Marion estava atrasada, como sempre.
Com cuidado, retirei a proteção e endireitei Le grand rouge, uma
composição gigantesca em vermelho, que era a peça central da exposição
cuja inauguração deveria começar às sete e meia.
Julien estava sentado com um copo de vinho tinto num dos sofás
brancos e fumava o seu enésimo cigarro.
Sentei-me ao seu lado.
– Então? Nervoso?
O seu pé direito, enfiado numa sapatilha Van aos quadrados, não parava
de se mexer.
– Claro, pá! Que pensavas? – Deu uma passa profunda e o fumo
ascendeu diante do seu rosto juvenil. – É a minha primeira exposição a
sério.
A sua franqueza desarmava-me sempre. Sentado entre as almofadas,
com a sua camisa branca pouco chamativa, as suas calças de ganga e o seu
cabelo loiro e curto, tinha algo de Blinky Palermo em jovem.
– Vai correr mal – disse eu. – Embora já tenha visto lixo pior.
Isso fê-lo rir.
– Eh pá, tu sabes mesmo dar alento! – Apagou o cigarro no pesado
cinzeiro de cristal que havia numa mesinha junto ao sofá e, num salto,
pôs-se de pé. Percorreu como um tigre todas as paredes das salas da
galeria, circundou as vitrinas protetoras e contemplou os seus quadros de
cores brilhantes e de grande formato. – Ei, não são assim tão maus! –
opinou finalmente cerrando os lábios. Retrocedeu uns passos. – Se bem
que ter-nos-ia sido útil mais espaço. Então tudo teria ficado melhor. –
Gesticulou com as mãos no ar, com dramatismo. – Espaço… superfície…
extensão.
Eu bebi um gole de vinho tinto e reclinei-me no sofá.
– Sim, sim. Da próxima vez arrendamos o Centro Pompidou – disse, e
recordei-me como Julien tinha aparecido na minha galeria alguns meses
antes. Era o último sábado antes do Natal, toda a Paris resplandecia em
prata e branco. Excecionalmente, não havia filas diante dos museus, tout
le monde andava à caça de presentes e também na minha loja a campainha
havia tocado o dia inteiro.
Tinha vendido três quadros relativamente caros, e não a clientes
habituais. Estava claro que as celebrações iminentes tinham despertado
nos habitantes de Paris interesse pela arte. Seja como for, já estava a
fechar quando de repente apareceu Julien à porta da Galerie du Sud, nome
com que havia batizado o meu pequeno templo da arte na rue de Seine.
Não gostei especialmente, podem crer. Não há nada mais exasperante
para um galerista que os pinta-monos que se apresentam sem terem
marcado uma reunião, abrem as suas grandes pastas e querem mostrar-nos
o que eles pensam ser arte contemporânea. E todos (todos!) – salvo
algumas exceções – pensam mais ou menos que são o próximo Lucien
Freud.
Na verdade, devo a Cézanne ter ficado a conversar com aquele jovem
que levava um gorro enfiado até às sobrancelhas e no qual, desde esse dia,
depositei grandes esperanças.
Cézanne é – como já mencionei – o meu cão, um dálmata de três anos
muito vivaz e, como é fácil de adivinhar e apesar de ter de lutar
diariamente com a arte contemporânea, nutro uma paixão discreta pelo
pintor francês com o mesmo nome, esse genial precursor da modernidade.
Para mim, as suas paisagens são únicas, e a minha maior felicidade seria
possuir um Cézanne autêntico, mesmo que fosse o mais pequeno de todos.
Estava pronto para me desfazer de Julien à porta quando Cézanne saiu a
ladrar da sala interior, patinou pelo pavimento liso de madeira e lançou-se
sobre o jovem da parca lambendo-lhe as mãos com fervor sem deixar de
ganir.
– Cézanne, fora! – gritei, mas Cézanne não me ligou, como sempre.
Infelizmente está muito mal-educado.
Foi talvez um certo espanto que me fez prestar atenção ao jovem que
agora se entretinha com o meu cão.
– Comecei nos bairros suburbanos… com os grafitos. – Sorriu. – Era
muito excitante sair à noite com os sprays. Os viadutos das autoestradas,
as fábricas antigas, os muros dos colégios e até um ou outro comboio. Mas
agora pinto sobre tela, não se preocupe.
Meu Deus, um grafiteiro, era só o que me faltava! Suspirando, abri a
pasta que me estendeu. Folheei a alegre mescla de esboços, grafitos
pintados e fotografias dos seus quadros. Por azar, o seu estilo não era mau.
– E? – perguntou impaciente, e acariciou o pescoço de Cézanne. – O
que acha? Naturalmente, os quadros ganham muito ao natural, só faço
grandes formatos.
Assenti e o meu olhar cravou-se num quadro chamado Coração de
morango. Era um coração grande que tinha a textura de um morango e no
centro uma concavidade quase impercetível. O Coração de morango jazia
sobre um fundo de pequenas folhas verde-escuras e compunha-se de, pelo
menos, trinta tonalidades diferentes de vermelho. Uma vez, o meu amigo
Bruno, que é médico e hipocondríaco confesso, mostrou-me uma imagem
digital do seu coração, um filme feito num centro de diagnóstico. (O seu
coração estava são como uma maçã!) Na realidade, aquele músculo vital
parecia-se mais a uma fruta do tipo morango que aos corações e
coraçõezinhos que vemos pintados por todo o lado.
De qualquer maneira, o «coração» do quadro do jovem artista tinha algo
tão orgânico-frutal que não sabia se estava a ouvir o seu latejo ou, talvez,
se lhe devia dar uma mordidela. A imagem estava viva, e quanto mais a
observava, mais gostava.
– Isto parece interessante. – Dei uns pequenos golpes com o dedo na
fotografia. Gostaria de ver o original.
– Está bem, sem problema. Mede dois por três metros. Está pendurado
no meu estúdio. Pode passar para o ver quando quiser. Ou prefere que o
traga aqui? Também não teria qualquer problema. Posso trazê-lo ainda
hoje!
– Santo Deus, não! – Desatei a rir, mas o seu entusiasmo comoveu-me.
– É acrílico? – perguntei para não cair no sentimentalismo.
– Não, óleo. Não gosto dos quadros em acrílico. – Olhou um momento
para a fotografia e a sua expressão endureceu-se. – Deixei-o quando a
minha namorada me deixou. – Bateu no peito com a mão esquerda. – Uma
enorme dor!
– E… ANE é você? – perguntei sem ligar à sua confissão enquanto
apontava para a assinatura.
– Sim, pá. C’est moi!
Olhei para o seu cartão de visita e levantei as sobrancelhas.
– Julien d’Oviedo? – perguntei?
– Sim, é o meu nome – confirmou. – Mas assino como ANE. É do
tempo dos grafitos, sabe? A Arte Necessita de Espaço. – Sorriu. –
Continua a ser o meu lema.
Fechei a porta da galeria uma hora mais tarde do que o previsto, não
sem ter prometido a Julien que depois do Ano Novo passaria pelo seu
estúdio.
– Genial, pá, é o meu melhor presente de Natal! – disse quando nos
despedimos. Apertei-lhe a mão e ele subiu de um salto para a sua bicicleta
e eu segui com Cézanne pela rue de Seine abaixo para tomar algo em La
Palette.
Jane comprou nesse mesmo dia o Coração de morango e pagou por ele
uma soma considerável em dólares.
Julien ficou louco de contentamento quando lhe comuniquei
pessoalmente a notícia. Deu-me um abraço espontâneo com as mãos
manchadas de tinta e as suas marcas ficaram imortalizadas para sempre no
meu precioso jersey de caxemira azul-claro. Mas quem sabe, talvez esse
jersey que não sabia nada de arte e que por azar era o meu preferido,
venha um dia a ser muito valioso, uma espécie de ready-made que
documenta o momento mais feliz da vida do artista. Em tempos em que
tudo pode ser arte e até os excrementos enlatados de um artista italiano se
leiloam na Sotheby’s de Milão como Merda di artista por somas incríveis,
nada me parece impossível.
Seja como for, nessa feliz tarde de janeiro eu e Julien tomámos umas
bebidas no seu estúdio sem aquecimento e, umas horas mais tarde, já nos
tratávamos por tu e acabávamos a noite num bar.
No dia seguinte, o jovem e esperançado artista chegou um pouco
ressacado à Galerie du Sud e naquele instante planeámos a exposição «A
Arte Necessita de Espaço» que eu tinha agora de inaugurar dentro de um
quarto de hora.
Onde se havia metido Marion? Desde que tinha um namorado
motoqueiro já não se podia confiar nela. Marion estudara arte e estava a
fazer um estágio na minha galeria. E era de facto muito boa, caso
contrário não me teriam já faltado pretextos para correr com ela.
Marion organizava os eventos mais complicados sempre a mascar
pastilhas elásticas e tratava todos os clientes nas palminhas. Tão-pouco eu
era capaz de resistir ao seu encanto indolente.
Lá fora retumbou uma vibração intensa. Um instante depois a porta
abriu-se e Marion entrou fazendo barulho com os sapatos de salto alto e
enfiada num vestido de veludo vergonhosamente curto.
– Já cheguei! – disse resplandecente e com umas denunciantes faces
coradas, endireitando o diadema que apanhava a sua grande melena loira.
– Marion, um dia destes despeço-te! – disse. – Não tinhas que estar aqui
há uma hora?
Sorrindo, tirou uma penugem branca do meu casaco escuro.
– Ah, Jean-Luc, vamos, acalma-te! Está tudo controlado. – Deu-me um
leve beijo na face. – Não te zangues, mas realmente não consegui chegar
antes.
Começou de imediato a dar indicações às raparigas do catering e
perguntou: «Mas… que fizeram aqui?», e esteve a arranjar o gigantesco
ramo de flores da entrada até que, finalmente, correspondeu ao seu sentido
estético.
Duas horas depois sabia que a exposição seria um êxito. A galeria estava
cheia de pessoas que conversavam animadamente, bebiam champanhe
sentadas nos sofás ou davam a sua opinião ao artista, levando logo a
seguir um canapé à boca com a ponta dos dedos. Tinha acudido todo o
mundo da arte, três jornalistas da cultura, alguns bons clientes… e
também havia algumas caras novas.
O barulho animado que reinava nas duas salas da galeria era
ensurdecedor, em fundo Amy Winehouse cantava «I Told You I Was
Trouble» e a jornalista do Le Figaro estava enlouquecida com Julien.
Despertaram grande interesse Le grand rouge e L’heure bleu, um
monumental nu feminino que não se destacava do conjunto da
composição azul até se observar o quadro com mais atenção.
Havia um bom ambiente. Só Bittner, um colecionista muito influente
que tinha uma galeria em Düsseldorf e que participava na organização da
Art Cologne, andava de um lado para o outro, criticando.
Conhecíamo-nos há muitos anos, e tal como cada vez que vinha a Paris,
eu encarreguei-me de lhe fazer uma reserva no Duc de Saint-Simon e
garantir que ocupava o seu quarto preferido. Como eu alojava com
frequência os meus clientes procedentes do estrangeiro neste hotel, tinha
bons contactos na receção, sobretudo desde que ali trabalhava Luisa Conti,
sobrinha do proprietário cuja família residia em Roma.
– Monsieur Kört Wittnär? – Tinha-me dito pelo telefone como se se
tratasse de um extraterrestre.
– Karl. – Repliquei com um suspiro. – Karl. E o apelido é Bittner, com
B. – Já me tinha acostumado a que Luisa Conti, um exemplo de elegância
apesar da sua juventude ao trajar um conjunto de casaco escuro e óculos
escuros Chanel, confundisse e trocasse frequentemente os nomes dos seus
hóspedes.
– Ah! Entendu! Monsieur Charles Bittenär! Porque é que não me disse
antes? – Notei um pico de censura na sua voz, mas evitei fazer qualquer
comentário. – O quarto azul… eh… bien, sim, é possível.
Pude ver mentalmente Mademoiselle Conti sentada atrás da mesa antiga
da receção, com a sua caneta Waterman verde-escura que, como todas as
Waterman tende a deixar borrões –, escrevendo conscienciosamente o
nome Charles Bittenärr no livro de registo, e tive que sorrir.
A minha relação com Bittner era ambivalente. Na realidade, gostava
desse homem, que era cerca de dez anos mais velho que eu e cujo cabelo
escuro um pouco comprido o fazia parecer um habitante do Sul. Mas no
fundo temia ficar de mal com ele. Admirava a sua constância, o seu olfato
certeiro, e odiava a sua insuportável arrogância. E para além disso
invejava-o por causa dos dois Yellow cabs de Fetting e de um quadro de
Rothko que possuía.
Deteve-se diante de Unique au monde, um desenho muito plano em tons
de azul e verde e fez cara de quem tivesse trincado um limão.
– Não sei – ouvi-o dizer à mulher de cabelo escuro que estava ao seu
lado –, não está… bem feito. Simplesmente não está bem feito.
Karl Bittner fala francês com fluidez, e odeio as suas frases assassinas.
A mulher colocou a cabeça de lado.
– Bem, eu creio que possui algo – disse pensativa, e bebeu um gole da
sua taça de champanhe. – Não sente essa… harmonia? Como um encontro
pacífico de terra e mar. Parece-me muito autêntico.
Bittner pareceu vacilar.
– Mas será também inovador? – replicou. – Que significa essa fuga para
o monumental?
Decidi unir-me a eles.
– É um privilégio da juventude. Tudo tem que ser grande e atrevido.
Fico contente por ter podido vir, Karl. E vejo que se está a divertir. – Olhei
para a mulher que estava ao seu lado com um fato saia-casaco creme. Os
seus olhos azuis faziam um contraste sensacional com o cabelo preto. –
Enchanté! – disse com uma leve inclinação.
Antes que a beleza morena pudesse responder ouvi uma voz exaltada
que gritava o meu nome.
– Jean-Luc, ah, Jean-Luc, mon très cher ami! – Era Aristide Mercier,
um professor de literatura da Sorbonne que andava sempre muito elegante
com o seu colete amarelo-canário e que agora atravessava a sala voando
até mim. Aristide é o único homem que conheço a quem fica bem o
amarelo-canário. O seu olhar poisou um instante com admiração no meu
lenço antes de pespegar-me dois beijos nas faces.
– Oh, très chic! É da Etro? – perguntou sem esperar uma resposta. –
Meu querido Duc, isto é absolutamente genial, sinceramente super!
A linguagem de Aristide está pejada de superlativos e pontos de
exclamação, e lamenta que eu – à son avis – goste do sexo «equivocado».
(«Um homem com o teu gosto, é uma lástima!»)
– Estou contente por te ver, Aristide! – Dei-lhe umas palmadinhas
amistosas no ombro. Embora nunca venhamos a formar um casal, gosto
muito do meu velho amigo Aristide. Tem um humor maravilhoso e nunca
deixa de me surpreender a facilidade com que se move entre a literatura, a
filosofia e a história. As suas aulas são sempre muito concorridas,
cumprimenta os que chegam atrasados com um aperto de mão e tornou-se
famoso por ter dito que se conforma que os alunos levem para casa das
suas aulas apenas três frases.
Aristide sorriu.
– Vejo que já os conheces! Non? – passou o braço pelo ombro da
morena desconhecida, a qual era evidente que tinha vindo com ele. – Esta
é a minha querida Charlotte! Charlotte, este é o dono da casa, o meu velho
amigo e galerista preferido Jean-Luc Champollion. Naturalmente que não
renunciou a dizer o meu nome completo.
A mulher morena estendeu-me a mão. Era quente e firme.
– Champollion? – perguntou, e eu sabia o que vinha depois. – Como o
famoso egiptólogo Champollion, o da Pedra de Roseta…
– Sim, esse mesmo – interveio Aristide –, Jean-Luc. Tem um parentesco
com ele!
Aristide estava radiante, Bittner sorriu com sarcasmo e a mulher que eu
já sabia chamar-se Charlotte levantou as suas sobrancelhas bem perfiladas.
Fiz um gesto de recusa.
– Um parentesco muito afastado, tudo muito confuso…
Mas à margem do que eu dissera, Charlotte interessou-se por mim, não
se afastou ao longo de toda a tarde e depois de quatro taças de champanhe
contou-me que estava casada com um político e que se aborrecia
soberanamente.
Vinte minutos mais tarde estava num táxi que me devia levar até à Gare du
Nord. Tínhamos atravessado a Pont du Caroussel e estávamos a passar
diante da pirâmide de vidro, que brilhava ao sol da manhã, quando me
recordei da carta de Charlotte.
Sorrindo, tirei-a do bolso e abri o envelope. Essa mulher era muito
tenaz. Mas encantadora. Na era dos e-mails e dos sms uma carta escrita à
mão tinha algo de excitantemente antiquado, sim, algo de íntimo. À parte
os postais que me mandavam alguns amigos em viagem, há muito tempo
que não encontrava uma carta pessoal na minha caixa do correio.
Acomodei-me e dei uma vista de olhos às duas folhas de letra delicada.
Então dei um salto tal que o taxista me olhou pelo retrovisor. Observou a
carta na minha mão e retirou as suas próprias conclusões.
– Tout va bien, monsieur? Tudo bem? – perguntou com aquela mistura
tão especial de intromissão sem rodeios e experiência quase omnisciente
que carateriza os taxistas de Paris quando estão a ter um dia bom.
Eu assenti desconcertado. Sim estava tudo bem. Tinha uma carta de
amor linda nas minhas mãos vacilantes. Dirigida a mim, sem sombra de
dúvida. Parecia que vinha diretamente do século XVIII. E estava claro que
não era de Charlotte.
Mas o que mais me desconcertou foi o facto de a autora não ter revelado
a sua identidade. Eu não sabia quem era, mas ela parecia conhecer-me.
Ou tinha-me escapado alguma coisa?
Que início! Estaria alguém a rir-se de mim? É sabido que alguns amigos
me chamam «Jean-Duc», mas quem escreve uma carta assim?
Não sei como começar esta carta, que é – sei-o com a certeza de uma mulher que ama – a
mais importante da minha vida.
Não posso esquecer os seus belos olhos azuis que tanto me revelaram de si, e eles levam-
me a considerar cada uma das minhas palavras como algo valioso, a meter-me nos seus
pensamentos e sentimentos com a sublime esperança de que essas finas partículas de ouro
do meu coração caiam também no seu coração e pousem no seu fundo para sempre.
Surpreendo-o assegurando que desde o primeiro instante senti que você, querido Duc,
era o homem de que sempre andei à procura?
Não creio. Deve tê-lo ouvido centenas de vezes, e a verdade é que não é algo muito
original. Para além disso, estou certa que saberá por experiência própria e nada
desdenhável, que muitas vezes o tão citado «amor à primeira vista» dá lugar num espaço de
tempo surpreendentemente curto a um grande desencanto.
Portanto, restar-me-á alguma palavra de amor ou pensamento apaixonado que não tenha
sido escrito ou pensado antes por outrem? Temo que não.
Tudo se repete, está usado e só causa espanto quando observado de fora. E, no entanto,
tudo parece novo quando é experimentado por nós, e a sensação é tão enoveladoramente
bela que se acredita ter descoberto o amor.
Por isso tem que me desculpar, estimado senhor, se recorro a outro tópico porque eu
própria o vivi assim e não de outra maneira: a primeira vez.
Jamais esquecerei o dia em que o vi pela primeira vez. A sua imagem causou-me o
impacto de um raio, um raio que cai sem que se ouça o trovão. Sem que mais ninguém note
nada.
Mas eu não podia afastar os olhos de si. O seu aspeto descuidado mas ao mesmo tempo
elegante fascinou-me, os seus olhos claros brilhantes prometiam-me uma mente desperta, o
seu sorriso estava feito para mim… e jamais verei umas mãos masculinas mais belas.
Mãos como as que às vezes, admito com um sorriso, sonho acordada durante a noite.
No entanto, esse momento tão sumamente feliz para mim ficou turvado pela bela mulher
que se encontrava ao seu lado e que resplandecia por cima de tudo como o sol e em cuja
presença eu me senti uma insignificante baronesa vestida de luto. Era a sua mulher? A sua
amante?
Observei-o com medo e inveja, querido Duc, e de seguida descobri que tinha sempre uma
mulher bela ao seu lado ainda que – e desculpe que seja tão direta – não seja sempre a
mesma…
…e de seguida descobri que tinha sempre uma mulher bela ao seu lado ainda que – e
desculpe que seja tão direta – não seja sempre a mesma…
Sorri ao ler de novo aquelas palavras. Quem quer que as tivesse escrito
tinha sentido de humor.
Não me compete a mim julgar a razão pela qual isso é assim, embora me anime a
apaixonar-me um pouco mais porque está claro que não tem namorada, como se costuma
dizer.
Não sei quantas horas passaram desde então… A mim parecem-me milhares… e ao
mesmo tempo uma única e interminável. E ainda que a sua atitude despreocupada para com
as damas pareça indicar que não leva demasiado a sério os assuntos do coração ou talvez
não possa (ou não quer?) decidir-se, vejo em si um homem com um grande coração e
sentimentos apaixonados que só estão à espera de ser acesos – disso estou certa – pela
mulher adequada.
Deixe-me ser essa mulher e não se arrependerá!
Ainda me palpita o coração quando recordo essa infeliz história que por um breve e
maravilhoso instante nos aproximou tanto que as nossas mãos se roçaram e senti o seu
hálito na minha pele. A felicidade estava muito perto e teria gostado de o beijar. (Noutras
circunstâncias tê-lo-ia feito!) Você estava tão confuso e apesar de tudo comportou-se de
maneira tão cavalheiresca… se bem que a mim me correspondesse culpa de igual maneira.
Quero mostrar-lhe o meu agradecimento por isso, ainda que de certeza não sabe neste
momento do que estou a falar.
Perguntar-se-á quem lhe escreve. Não lhe vou dizer. Ainda não.
Responda-me, Lovelace, e procure descobrir. É possível que esteja à sua espera uma
aventura amorosa que o converta no homem mais feliz que alguma vez se viu em Paris.
Mas devo preveni-lo, querido Duc. Não sou tão fácil de conseguir como outras.
Desafio-o para o mais delicado de todos os duelos e estou impaciente por saber se aceita
este pequeno desafio. (Aposto o meu dedo mindinho que sim!)
À espera da sua resposta, com os meus melhores desejos,
La Principessa
4
Após uma tarde esgotante nas salas da Galerie du Sud, onde Marion e
Cézanne nos cumprimentaram muito alegres e o meu cliente chinês
contemplou todos os quadros novos com um sorrido imperturbável (os
seus comentários foram desde «tlés intelessant» até «supelbon»), ele por
fim foi-se embora com um par de folhetos e a sua pequena mala de rodas
prateada para o Hôtel des Marronniers, um pequeno e encantador
estabelecimento que está praticamente na rue Jacob, ou seja, ao virar da
esquina, que entusiasma de igual modo europeus e asiáticos.
A localização não poderia ser melhor. Tranquilo, no coração de Saint-
Germain e com um pátio interior no qual crescem rosas aromáticas e se
ouve o burburinho discreto de uma velha fonte, colocada ao centro. Nesta
época do ano é o suprassumo para as pessoas românticas que, para além
disso, podem contemplar a partir do quarto andar as torres de Saint-
Germain-des-Prés. É preferível que não sejam muito corpulentas.
Os quartos têm as paredes forradas a papel, móveis antigos… e são
claustrofobicamente pequenos. Portanto, nada adequados para o típico
americano do Midwest, pois quando se mede mais de um metro e oitenta o
conforto da cama é bastante limitado.
Como eu não sou nenhum gigante, esse problema não se me coloca, mas
há alguns anos cometi o erro de instalar no Marronniers Jane Hirstman e
Bob, o seu novo marido, que mede dois metros. Bob, que normalmente
ocupa sozinho uma cama king size, ainda continua traumatizado pelo seu
«romantic disaster» na «caminha dos anõezinhos da Branca de Neve».
Deixei-me cair com um suspiro no meu sofá branco e afaguei o pescoço
suave de Cézanne abismado nos meus pensamentos. A falta de sono da
noite anterior começava a cobrar o seu preço, já para não falar dos
acontecimentos das últimas horas, por muito agradáveis que fossem.
Marion tinha-se ido embora há dez minutos com o seu tipo da Harley
Davidson e eu tinha, finalmente, o meu primeiro momento de sossego.
Pela terceira vez nesse dia tirei do bolso a carta da Principessa e
desdobrei as suas folhas amachucadas.
Telefonei a Bruno.
Quando, seja por que motivo for, a vida de um homem ameaça tornar-se
complicada, ele necessita de três coisas: uma tarde relaxada no seu bar
favorito, um copo de vinho tinto e um bom amigo.
Ainda que não tenha dito, pelo telefone, grande coisa, algo parecido a
«Vamos tomar um copo, tenho uma coisa para te contar», Bruno entendeu
de imediato.
– Dá-me uma hora – disse, e só o facto de pensar nesse homenzarrão
com a sua bata branca foi algo sumamente tranquilizador. – Apanho-te na
galeria.
Bruno é médico, está há sete anos apaixonado pela sua mulher,
Gabrielle, e muito entusiasmado com a sua filha de três anos. Quando não
endireita narizes partidos ou demasiado grandes e alisa com injeções de
botox as frentes enrugadas das senhoras da sociedade parisiense é também
um jardineiro apaixonado, hipocondríaco e um adepto da teoria da
conspiração. Vive com a família numa casa com jardim em Neuilly, tem
um consultório de sucesso na Place de Saint-Sulpice e é tão pouco versado
em arte moderna como em literatura experimental.
E é o meu melhor amigo.
– Obrigado por teres vindo – disse-lhe quando uma hora mais tarde
entrou na Galerie du Sud.
– Fico contente por te ver. – Deu-me umas palmadinhas no ombro e
percorreu com o olhar profissional de médico todo o meu corpo. – Não
dormiste muito e pareces de bom humor – concluiu o diagnóstico gratuito.
Enquanto pegava na minha gabardina, Bruno folheou o catálogo de uma
exposição de Rothko que havia sobre a mesa.
– Que vês de especial nisto? – perguntou abanando a cabeça. – Dois
quadrados vermelhos, até eu podia pintar isto!
Sorri.
– Por amor de Deus, limita-te aos teus narizes! – repliquei empurrando-
o em direção à porta. – O valor de uma obra de arte não se pode apreciar
até se estar diante dela e se nota se te diz alguma coisa. Viens, Cézanne! –
Saí para a rua, fechei a porta da galeria à chave e baixei a persiana.
– Que disparate! O que pode dizer-me um quadrado vermelho? – Bruno
soltou um resfôlego depreciativo. – Bem, se ao menos fossem os
impressionistas, esses sim, convencem-me, mas todos estes mamarrachos
de hoje em dia… Quero dizer, como é que podes avaliar atualmente o que
é «arte»? – Pude ouvir as aspas claramente.
– No preço – respondi-lhe com secura. – Ao menos é o que diz Jeremy
Deller.
– Quem é Jeremy Deller?
– Vamos Bruno, esquece! Vamos ao La Palette. Há coisas mais
importantes na vida que a arte moderna. – Ajustei a trela à coleira de
Cézanne que olhou para mim como se a última frase se lhe referisse.
– Nisso estou totalmente d’accord – disse Bruno, e deu-me umas
palmadinhas de aprovação no ombro. Avançámos juntos pela tarde tépida
de maio até chegarmos ao meu bistrot favorito, no final da rue de Seine,
com as paredes cobertas de quadros, os clientes incorrigíveis sentam-se a
fumar no terraço seja qual for a temperatura, o robusto empregado brinca
com as raparigas giras e diz-lhes que esteve casado com elas numa vida
passada.
Respirei profundamente. Independentemente daquilo com que cada um
se depare na vida, é estupendo ter um bom amigo.
Uma hora mais tarde já não pensava que era estupendo ter um bom amigo.
Estava sentado com Bruno numa mesa de madeira escura, diante de uma
garrafa de vinho tinto e discutíamos tão acaloradamente que alguns
clientes nos olhavam inquietos.
Na verdade, eu só estava à procura de um bom conselho. Tinha contado
a Bruno a aventura da noite anterior, a noite de amor fracassada com
Charlotte, a chamada de pânico de Soleil… e naturalmente que falara da
estranha carta de amor que havia ocupado os meus pensamentos durante
todo o dia.
– Não tenho a menor ideia de quem poderá ter escrito esta carta. Achas
que devo responder? – perguntei-lhe, mas na verdade só queria ouvir um
«sim».
Em vez disso, Bruno franziu o sobrolho e começou com as suas
especulações de teórico da conspiração.
Disse que era bastante suspeito que a remetente da carta não tivesse
revelado a sua identidade. As cartas anónimas não devem ter resposta de
nenhuma forma, isso estava claro.
– Quem sabe que tipo de psicopata se esconde por trás! – Inclinou-se
para diante com olhar conspirador. – Conheces aquele filme em que
Audrey Tautou interpreta uma louca que se apaixona por um homem
casado e cuja mulher está grávida e que depois acaba em cadeira de rodas
porque ela lhe quebra um jarrão pesado na cabeça?
Eu abanei a cabeça horrorizado. Não me tinha ocorrido pensar nisso. Só
conheço Amélie e nesse tudo acaba bem.
Bruno reclinou-se satisfeito na cadeira.
– Meu pobre amigo, conheço as mulheres e digo-te: cuidado!
– Sim, pois! – repliquei. – Eu também conheço um pouco as mulheres.
– Mas não esse tipo de mulheres. – Bruno quase que sussurrava. – Eu
vejo todos os dias quem entra e sai do meu consultório. Crê-me, a maioria
está louca. Uma acredita ser a rainha da noite, a outra pensa que é uma
princesa. Ninguém quer envelhecer e todas se veem demasiado gordas.
Lembras-te daquela que operei ao nariz e que não parava de me telefonar
porque estava convencida que me tinha apaixonado por ela? – Bruno
lançou-me um olhar cheio de significado. – Sabes como podem chegar a
ser as mulheres quando se lhes mete uma ideia na cabeça? Responde-lhe e
nunca mais te conseguirás livrar dela!
– Na verdade, Bruno, estás a exagerar. É a carta de uma mulher que se
apaixonou por mim. Porque é que iria ser uma psicopata? Para além disso,
a carta não me obriga a nada. É mais… uma proposta encantadora, para
não dizer irresistível. – Sublinhei as minhas palavras com um bom gole de
vinho e pedi uma salad au chèvre. A discussão tinha-me aberto o apetite.
– Humm... é uma proposta encantadora. – Bruno repetiu as minhas
palavras com uma expressão pensativa. Naturalmente que o que também
poderia ser… – começou a dizer, e eu suspirei interiormente.
Enquanto comia a minha salada, Bruno desenvolveu uma nova teoria
que quase fez com que me engasgasse com o queijo de cabra temperado.
Naturalmente, também podia ser que por trás se escondesse uma
empresa fraudulenta que dessa maneira tão supostamente pessoal
procurava conseguir endereços de correio eletrónico para converter a
vítima (eu) num distribuidor porno ou de Viagra ou para recrutar gente
para agências de contactos por internet.
– Respondes a esse endereço e de seguida bombardeiam-te com ofertas
da Bielorrússia – preveniu-me, e fez um silêncio momentâneo. – E se tens
muito má sorte… – fez uma pausa carregada de maus augúrios – para
além dessa carta esconde-se, talvez, um cornudo que se entreterá a infetar
o teu computador com um vírus ou a esvaziar a tua conta bancária.
– Bruno, já chega! – disse enfadado, e pousei bruscamente os talheres
sobre a mesa. – Às vezes parece que estás louco! Pensava que me poderias
ajudar a pensar quem poderia ser essa Principessa. Em vez disso, começas
a dizer todas essas coisas esquisitas. – Fiz uma breve pausa. – Máfias da
internet, que ridículo! E mandam cartas escritas à mão, em papel feito à
mão, a centenas de casas? Nem sequer chegou pelo correio! – Estendi a
mão até ao meu casaco que estava pendurado nas costas da cadeira, e
agarrei na carta. – Olha, por favor! «Para o Duc», pôs no envelope, para o
Duc! – Olhei para Bruno com ar triunfal. – Muito poucas pessoas me
chamam assim, ou seja, tem de ser alguém que me conhece pessoalmente.
E não me lembro de ter entre os meus conhecidos nenhum psicopata, à
parte talvez o meu melhor amigo.
Bruno sorriu. Agarrou então no envelope azul-claro que estava entre nós
como se fosse um pedaço de céu.
– Posso?
Assenti. Bruno leu as linhas e fez silêncio.
– Mon Dieu – murmurou então.
– O quê? – perguntei com brusquidão.
– Nada… é só… puf! Esta é a carta de amor mais bonita que alguma vez
li. É uma pena que não me tenha sido dirigida. – Os seus olhos castanhos
lançaram-me por um momento um olhar sonhador. – Que sorte que tens!
– Sim – anuí satisfeito.
– Mas tem de haver alguma pista! – Bruno passeou de novo o seu olhar
de diagnóstico pelo papel, e então perguntou confuso: – Tens a certeza de
que esta carta era realmente para ti?
– Bruno, estava na minha caixa do correio! No envelope está o meu
nome. E não conheço nenhum outro «Duc» que viva na minha casa.
– Mas no fim põe «Responda-me, Lovelace». Lovelace, não Jean-Luc.
– Sim, sim – repliquei impaciente.
– Lovelace é o protagonista de um romance, podes esquecer isso.
Bruno elevou as suas sobrancelhas espessas.
– E que faz esse Lovelace?
– Bem, ele… seduz as mulheres.
– Ah… bon… Lovelace. – Os olhos de Bruno brilharam. – Portanto a
Principessa considera-te um sedutor, um Don Juan… – Não, não –
prosseguiu quando lhe fiz um gesto de recusa –, isso poderia ser a chave
de tudo. E se olhasses para a tua agenda para veres se há alguma mulher
que não tenha conseguido tudo o que queria? Uma que tenhas recusado?
Uma a quem tenhas partido o coração? – Sorriu.
– Não sei. É possível. Também pode ser alguma com quem nunca
estive.
– Ou há muito, muito tempo.
– Vamos Bruno, isto não é um conto.
– Mas parece: «Ainda me palpita o coração quando recordo essa infeliz
história que por um breve e maravilhoso instante nos aproximou tanto que
as nossas mãos se roçaram…» – leu Bruno. – Que história infeliz é essa de
que fala? E porque é que ela também tem culpa e tu te comportas de
maneira cavalheiresca? – Olhou-me com cara de ânimo. – Pensa um
pouco! Não te diz nada?
Eu abanei a cabeça e escutei o meu interior. Não me dizia nada.
– Que é feito daquela morena com quem estiveste há uns meses? Não
era um pouco antiquada e sonhadora?
– Coralie? – Por um momento vi surgir diante de mim o cabelo curto e
revolto de Coralie e a sua face pálida de olhos grandes e interrogadores
quando me dizia durante a noite: «je te fais un bébé, non?»
– Bem, não é que fosse antiquada – repliquei – queria mudar-se de
imediato para minha casa e queria ter um filho…
– Que inconcebivelmente horrível! – disse Bruno com ironia.
– Bruno, queria ter um filho três horas depois de nos termos conhecido!
Era uma espécie de ideia fixa. Era adorável, mas não falava de outra coisa.
E quando ficou claro que eu não queria nenhum bebé, ou pelo menos não
tão depressa, foi-se embora muito ofendida e com um olhar triste.
– Mas sentiste-te aliviado, não? – Bruno riu-se, compadecendo-se de
mim.
Encolhi os ombros.
– Curiosamente, fiquei com má consciência. Coralie tinha algo que fazia
com que, como homem, te sentisses sempre culpado. Como um
cabritinho, sabes? Que para além disso quando olha para a ementa de um
restaurante necessita de conselho porque não consegue decidir por si o que
comer.
Bruno assentiu.
– Essas são as piores de todas. Crês que pode ter sido ela a escrever a
carta?
– Não, não é tão inteligente para fazer algo assim. Na verdade não tem
nenhum sentido de humor.
– É pena. – Bruno esvaziou o seu copo. – Temo que esta noite não
possamos resolver o mistério da Principessa. Talvez possas continuar a
procurar no teu cérebro para ver se te recordas de outros encontros
desafortunados com mulheres. Não creio que possam ter existido assim
tantos! – Piscou-me o olho e chamou o empregado. – À parte isso, podes
responder à carta e colocar as tuas perguntas. Contas com a minha bênção!
E mantém-me ao corrente! Que assunto tão emocionante!
Quem alguma vez tenha remexido num contentor do lixo sabe do que falo
quando digo que, em comparação, as duras escavações do túmulo de
Tutankámon foram uma aventura romântica. Com as pontas dos dedos fui
desenterrando latas de tomate vazias, garrafas de vinho, artigos de higiene
usados, pacotes de batatas fritas amachucados, frascos de paté e os restos
mortais de um coq au vin. Porém apesar de ter deixado de chover e a lua
envolver tudo numa luz amarela suave, a minha incursão estava isenta do
prazer que deve ter sentido Schliemann perante as suas descobertas.
Contudo, a minha tenacidade foi recompensada. Depois de vinte
angustiantes minutos a remexer no lixo tinha em mãos um papel
amarrotado que surpreendentemente havia sobrevivido à sua excursão às
profundezas de Paris sem sofrer, com exceção de uma casca de batata que
se lhe pegara, grandes danos. Com um suspiro de felicidade guardei o meu
tesouro no bolso, quando um objeto duro vindo do nada se estampou sobre
o meu crânio.
Caí ao chão como uma pedra. Quando voltei a abrir os olhos ouvi uma
voz a lastimar-se por cima de mim. Pertencia a um fantasma vestido de
branco que se inclinava sobre mim e que não parava de gritar: «Oh, meu
Deus, oh meu Deus, Monsieur Champollion, lamento muito, lamento
muito!»
Demorei alguns segundos a perceber que era Madame Vernier quem
estava ao meu lado em camisa de noite.
– Monsieur Champollion? Jean-Luc? Está bem? – voltou a perguntar
com voz sumida, e eu assenti sem saber o que dizia. Levei a mão à zona
da cabeça que me doía e senti um galo.
Fiquei a olhar para a minha vizinha como se, com a sua camisa de noite
vaporosa e o cabelo solto, fosse uma aparição.
– Madame Vernier – murmurei desconcertado. – Que se passou?
Madame Vernier agarrou-me a mão.
– Oh, Jean-Luc – disse entre soluços, e dei-me conta que era a segunda
vez que me tratava pelo nome. No meu estado não me teria surpreendido
nada que nesse momento ela confessasse que era a remetente secreta da
carta («Há muito tempo que te amo, Jean-Luc… sempre tive a esperança
que Cézanne nos unisse para sempre…»).
– Perdoe-me, por favor! – A vizinha em camisa de noite parecia
totalmente fora de si. – Ouvi ruídos no pátio, mesmo debaixo da minha
janela, assomei e vi um homem a trepar aos contentores do lixo. Pensei
que fosse um ladrão. Ainda lhe dói? – Ao seu lado estava um pequeno
haltere.
Soltei um gemido.
«Galerista morto enquanto remexia nos contentores do lixo», passou-me
pela cabeça. Na verdade tinha muita sorte em poder continuar a pensar em
alguma coisa e não em estar a flutuar no nirvana.
– Está bem, não foi para tanto – tranquilizei Madame Vernier, que
continuava aferrada à minha mão.
– Quel cauchemar, que pesadelo! – sussurrou. Pregou-me um susto de
morte! – De imediato, mudou o seu olhar de preocupação e observou-me
com uma expressão severa. – Que fazia a estas horas nos contentores do
lixo, Jean-Luc? Surpreende-me… – Olhou para alguns restos que me
tinham caído ao chão enquanto remexia e desatou a rir. – Não será o
senhor um vagabundo que procura comida no lixo, não?
Abanei a cabeça, senti uma dor horrível. A minha vizinha tinha uma
energia surpreendente.
– Só estava à procura de uma coisa que tinha deitado fora sem querer. –
Considerei que lhe devia uma breve explicação.
– E então? Encontrou-a?
Assenti. Era uma e meia quando abandonámos a cena do crime e
Madame Vernier deslizava pelas escadas diante de mim como uma
pequena nuvem branca.
FALA COMIGO.
CINCO MINUTOS!
TUDO SE ARRANJARÁ!
Por baixo desenhei um pequeno boneco que era suposto ser um Jean-
Luc suplicante. Poucos segundos depois abriu a porta muito devagar.
Que devo dizer… os artistas são seres muito especiais! Juntamente com
o seu instinto criativo possuem espíritos muito sensíveis e uma segurança
em si próprios terrivelmente instável que é preciso reforçar
continuamente. E um galerista que trabalha com «artistas vivos» tem,
sobretudo, de ser capaz de uma coisa: aguentá-los.
Ao meu lado ouviu-se um miar apagado. Olhei para baixo. Dois olhos
verdes e brilhantes miravam-me fixamente. Pertenciam a Onionette, que
significa «cebolinha». E Cebolinha é a gatinha de Soleil. Ainda não
descobri porque é que o pequeno animal tem o nome de uma liliácea, mas
por que razão é que Soleil haveria de ter um gato chamado Mimi ou
Foufou? Isso seria demasiado normal.
«Onionette», sussurrei surpreendido, e acariciei o pelo tigrado do felino,
que não parava de ronronar. «De onde vens?»
Onionette esfregou-se um par de vezes nas minhas pernas e logo
desapareceu no pequeno terraço, separado do pátio interior, que pertencia
ao estúdio de Soleil. Assomei-me pelo espaço que havia de um dos lados
entre a sebe e a parede e, através da porta de correr em vidro, pude ver o
quarto de Soleil.
A divisão estava às escuras, as persianas a meia altura e não pude
perceber se Soleil dormia na sua cama improvisada, um enorme colchão
simplesmente colocado no chão.
– Soleil? – Dei uns pequenos golpes no vidro, e então empurrei
suavemente a porta de correr. Deslizou como se lhe tivesse dito «Abre-te
Sésamo!» e surpreendeu-me a despreocupação de Soleil. No mais
profundo do seu ser continuava a viver na natureza intacta das ilhas das
Índias Ocidentais onde tinha sido criada.
Contive a respiração e dei-me conta da escuridão tranquila do quarto.
– Soleil, está tudo bem? – disse em voz baixa, e apercebi-me do cheiro
quase irreal e ao mesmo tempo embriagante a aguarrás, canela e baunilha
que inundava o espaço. Era como se me permitisse o acesso clandestino a
um harém oriental.
Deslizei em silêncio até à cama, que estava ao fundo do enorme espaço
de pé-direito alto. E ali estava Soleil, estendida sobre os lençóis brancos
como uma figura de bronze. Completamente nua. Um raio de luz débil que
entrava pela porta aberta que dava para a cozinha iluminava a sua cara
com suavidade e o seu peito subia e baixava com a mais bela regularidade.
Num primeiro instante senti-me aliviado. Mas de imediato enfeitiçado.
Observei Soleil adormecida e de repente tudo me pareceu tão irreal como
se estivesse a sonhar. Dei-me conta que o meu olhar se demorava
demasiado sobre esse corpo lindo.
Que fazia eu ali? Entrava em casas alheias e olhava para mulheres nuas!
Soleil dormia como uma deusa, não se passava nada e eu já não estava ali
para lhe salvar a vida mas sim como um voyeur.
Afastei o olhar e ia começar uma retirada em silêncio quando o meu
tornozelo tocou num objeto. A garrafa de vinho vazia que se encontrava
no chão virou-se com um forte estrondo que, no silêncio da noite, soou
como se se tivessem desmoronado as muralhas de Jericó.
Estremeci.
A figura de bronze tinha-se mexido e olhava para o lugar em que eu
estava.
– Está aí alguém? – A voz de Soleil soava estremunhada.
– Sou eu, Jean-Luc! – respondi a sussurrar. – Só queria ver se estavas
bem. – Ao fim e ao cabo era a verdade.
Os olhos de Soleil brilharam. Não parecia surpreendida pelo facto de o
seu galerista e agente estar em plena noite diante da sua cama. Sentou-se
com a naturalidade de uma criança. Os seus seios pequenos, arredondados
e de cor café com leite vibraram ligeiramente, teria de tapar os olhos para
não ver.
Com grande frieza concentrei o meu olhar na sua cara e assenti com
amabilidade, como um médico a fazer uma visita.
– Vieste! – disse feliz, e estendeu-me a mão.
– Naturalmente – disse atrevendo-me a dar um passo em frente. –
Estava preocupado… a tua voz soava muito mal.
Peguei na mão de Soleil e teria gostado de a consolar com um abraço,
como teria feito uma boa amiga, mas não me pareceu de todo apropriado à
vista dos seus ombros nus. Assim, mantive-me por um momento inclinado
de uma maneira bizarra sobre ela. Apertei-lhe a mão para lhe dar ânimo
antes de a soltar com suavidade.
– Lamento não ter vindo antes. Voltarei amanhã à tarde, prometo. E
então falaremos sobre tudo.
Soleil concordou. O facto de ter ido a sua casa a meio da noite por estar
preocupado pareceu enchê-la de satisfação.
– Sabia que não deixarias de vir – disse. Depois soltou um suspiro. – Ai,
Jean-Luc! Passaram-se tantas coisas, estou tão confusa…
Haveria alguém no planeta capaz de entender essas palavras melhor que
eu?
– Tudo se arranjará – disse-lhe cheio de empatia e referindo-me em
parte a mim mesmo. – E agora continua a dormir.
Soleil voltou a deitar-se e tapou-se obedientemente com o lençol.
Acariciei-lhe o cabelo com suavidade e endireitei-me.
– Obrigada, Jean-Luc, continua tu também a dormir – murmurou.
Sorrindo, saí pela porta do terraço.
Eram quatro e vinte. Dado que não tinha pregado olho toda a noite não
se podia falar de «continuar» a dormir. Mas sim de dormir «finalmente».
E nada me iria impedir. Nem um terramoto. Nem um amigo com
problemas. Nem a Principessa em pessoa.
Tinha telefonado a Marion para lhe pedir que uma vez na vida fosse
pontual, abrisse a galeria e estivesse no seu posto na rue de Seine até ao
meio-dia. Telefonara a Madame Vernier para lhe pedir que tomasse conta
de Cézanne (se tocasse no alto que tinha na cabeça parecia-me que ela me
devia esse pequeno favor). Pensava descer até à boulangerie e comprar
um… não, dois croissants recém-saídos do forno e sentar-me no meu
escritório com um petit noir bem forte e com muito açúcar e depois… E
depois!
A perspetiva de responder à carta da Principessa e entrar em contacto
com essa desconhecida, seguramente tão misteriosa quanto bela, que me
fazia elogios tão misteriosos que até o meu melhor amigo me invejava,
pôs-me de muito bom humor.
Mas quando uma hora mais tarde, já sentado diante do meu pequeno
portátil branco e depois de ter escrito o endereço de e-mail da Principessa,
não soube lá muito bem como começar.
Assunto? Que deveria por no local «Assunto»? De certa maneira, essas
categorias modernas que devem resumir o conteúdo de algo escrito numa
linha não eram muito adequadas para as cartas de outros tempos.
A sua carta de quinta-feira? Impossível! Resposta à sua carta? Soava
pouco engenhoso. Para a Principessa? Bem, para quem deveria ser?
Reli outra vez a carta da Principessa, perdi-me entre as suas linhas e
encontrei a palavra que me parecia mais adequada.
Assunto: Seduzido!
Satisfeito, reclinei-me sobre as costas da cadeira, bebi um gole de café e
pensei se devia começar a cara com «Estimada Senhora» (soava a mulher
de idade?), «Querida Principessa (demasiado normal) ou «Queridíssima
Principessa» (demasiado pretensioso).
Já me tinha decidido por «Belíssima Principessa» quando o telefone
tocou. Praguejando em voz baixa agarrei no auscultador.
– Sim, diga? – disse com brusquidão.
– Jean-Luc? – Surpreendentemente não era Soleil.
– Que se passa, Marion?
– Estás de mau humor? – perguntou.
Se há alguma coisa que odeio nas mulheres é essa mania de responder a
uma pergunta com outra pergunta.
– Não, estou de muito bom humor – limitei-me a responder.
– Pois não parece – insistiu Marion. – Passa-se alguma coisa?
Suspirei.
– Marion, por favor, diz-me o que pretendes, estou a fazer… uma coisa
e tenho de me concentrar.
– Ah, bom! Porque é que não disseste?
Revirei os olhos.
E então?
– Telefonou a tal Conti do Hotel. Ouvi-a a mascar pastilha elástica.
Alguém perguntou por ti.
Encanta-me a precisão das mensagens de Marion.
– Quem? Foi Monsieur Bittner? – Ter-me-ia dito que queria reunir-se
comigo no fim de semana para falar de Julien? Tinha de prestar mais
atenção. As coisas começavam a fugir ao meu controlo.
– Non, não era o nosso amigo alemão. Era uma mulher: Une dame,
segundo me disse Mademoiselle Conti.
– E… essa mulher tem um nome? – perguntei já nervoso.
– Não. Sim. Não sei… agora que dizes… Não me lembro que
Mademoiselle Conti tenha mencionado qualquer nome…
Marion pareceu estar a pensar e eu suspirei. Claro que Mademoiselle
Conti não mencionou nome nenhum! Para quê? Para que serviam os
nomes quando se trabalha num hotel?
«Tenho uma excelente memória para caras, mas para os nomes não dou
uma para a caixa», rezava a sincera desculpa da rececionista cada vez que
trocava ou se esquecia de algum nome.
– É melhor ligares e perguntares-lhe. – Marion já tinha falado bastante e
começou a despachar.
Antes que pudesse dar por terminada a conversa, ouvi um estrondo
ensurdecedor do outro lado da linha e depois o som da campainha da
porta. Marion deixou escapar um grito de alegria.
– Tenho de desligar. Até logo!
Abanando a cabeça, pousei o auscultador e decidi passar mais tarde pelo
Duc de Saint-Simon para falar pessoalmente com Mademoiselle Conti.
Mas agora tinha algo mais importante para fazer. Desliguei todos os
telefones e pus-me a pensar.
Como é que se escreve a uma pessoa que não se conhece, da qual não se
tem nenhuma imagem, que deu alguns indícios enigmáticos, que se tenta
em vão decifrar, mas que escreveu com tanto amor e disse coisas tão
bonitas sobre nós que gostaríamos de a conhecer?
Enquanto estava sentado diante do computador e olhava para o ecrã
vazio, no qual à parte «Belíssima Principessa» não havia escrito mais
nada, senti-me como um escritor de romances diante da famosa página em
branco.
Não é que tivesse medo, mas cada vez exigia mais a mim mesmo. Dei-
me conta então que a carta da Principessa era para mim uma verdadeira
armadilha, uma armadilha supostamente maravilhosa, porém, tinha
desvalorizado o assunto.
Não queria apenas descobrir quem era essa mulher que me provocava
com palavras atrevidas, mas também queria ser engenhoso, encantador,
perspicaz, expressivo e não queria ser ridículo sob nenhum aspeto. E para
além disso, há que lembrar, já não tinha nenhuma prática no que respeita a
cartas privadas.
Depois de sete cigarros e três petit noirs, que arrefeceram antes de os
beber, o «trabalho» ficou terminado. O meu dedo indicador tremeu uns
segundos sobre a tecla «enter» e tenho de admitir que me senti
estranhamente excitado quando a premi.
Tinha respondido. A minha carta voava pelo espaço virtual de forma
irremediável, à velocidade da luz muitos, muitos quilómetros ou talvez
muito poucos, até alcançar o seu destino.
A aventura tinha começado.
6
Assunto: Seduzido!
Belíssima Principessa:
Quem quer que a senhora seja, a que aponta com flechas douradas ao meu coração – pois
ainda não se pode falar de pequenas partículas de ouro pousadas suavemente no seu fundo
–, deve saber que a sua carta, para mim tão surpreendente, surtiu o efeito desejado.
De qualquer maneira, não deve ainda esfregar as mãos, pois pode ser que necessite de
novo dos seus belos dedos, seja para voltar a escrever-me seja para fazer com eles outras
coisas que, por motivos de decência, não gostaria de detalhar aqui (e se neste momento
enrubesce, tal é a minha doce vingança dos seus sonhos noturnos com os olhos abertos nos
quais as minhas mãos desempenham sem o saber um atrevido papel).
Se lhe respondo agora, com dois dias de atraso imperdoável, tal deveu-se a que,
independentemente dos motivos, a minha vida, sempre harmoniosa, converteu-se num
torvelinho frenético que me tem deixado sem fôlego.
Desde essa manhã em que, há dois dias, retirei da caixa do correio o seu envelope azul-
claro, que os acontecimentos se têm sucedido e não tive um momento de tranquilidade, para
não falar da falta de sono e, por favor, deve crer em mim quando lhe garanto que este é o
meu primeiro instante de paz.
A sua carta surpreendeu-me e fascinou-me ao mesmo tempo.
Desde quinta-feira que não consigo deixar de pensar em quem se esconde por trás da
Principessa. Será uma mulher que conheço? E se assim é, desde quando? E até que ponto?
O meu cérebro trabalha febrilmente e não obtém nenhum resultado. Pois a senhora oculta-
me tudo, exceto as suas palavras, que estão cheias de insinuações veladas e promessas
incríveis.
Que devo pensar, Principessa? Saia do seu esconderijo. Gostaria de me tornar no homem
mais feliz que Paris e, até, o mundo, alguma vez viu! Porém, a felicidade não se faz apenas
de palavras, mas também de atos que eu ficaria encantado de levar à prática se tal me fosse
permitido.
Gostaria de me ter beijado quando as nossas mãos se roçaram? Mon Dieu, quem escreve
assim deve beijar muito bem! Estava eu tão cego que deixei simplesmente passar esse
momento? Estou a começar a ficar zangado comigo por não a ter beijado. Como terá
reparado (e a sua indireta de haver sempre uma mulher diferente ao meu lado não é apenas
indiscreta, mas também descarada), sou um homem que se sente atraído por mulheres, o que
não considero um delito. Não obstante, é evidente que algo muito importante escapou à
minha atenção: a senhora! Um erro imperdoável, a meu ver!
E agora castiga-me fazendo-me sentir uma grande curiosidade. Sabe coisas sobre mim e
eu, pelo contrário, não sei nada de si, e passados dois dias tal parece-me quase
insuportável.
Devo ir buscar os meus antigos álbuns de fotografias para a encontrar? Até onde devo
conduzir os meus passos? Para diante, para trás… ou numa direção completamente
diferente?
Ainda que se esconda por detrás de palavras afiadas, delas se depreende uma mulher que
ama, ou que, pelo menos, está apaixonada e, por isso lhe peço, não, exijo-lhe, minha bela
inacessível, que preste tributo ao seu coração e ao Duc e me dê ao menos um pequeno
indício (a que pode seguir-se um jantar num restaurante adequado e para o qual desde já a
convido).
Principessa! Há dois dias que sigo pelo mundo sem poder concentrar-me porque já não
consigo tirá-la da cabeça. Não compareço aos encontros marcados, não presto atenção,
esqueço-me de comer, e a senhora é o meu enigma preferido! Mas isso era o que pretendia,
não era?
Seduziu-me, e agora sinto curiosidade por saber até onde me quer levar. Se não fosse o
homem que sou, não saberia o que imaginar.
Com isto aceito o seu desafio, um Duc sabe utilizar bem o seu florete e não teme nenhum
duelo por mais duro ou fácil que seja.
Mas gostaria muito de a prevenir, Principessa: posso ser muito tenaz e não vai escapar-
me com facilidade!
À espera de notícias suas ainda hoje, cumprimenta-a com grande impaciência (que me
deve desculpar),
Ai, que orgulho desmesurado! Que estúpido que eu era! Como me tinha
sobrevalorizado a mim próprio! Se tivesse podido ver o futuro, o que só
em alguns casos é vantajoso, teria desfeito de imediato o sorriso de
satisfação.
Mas naquele instante continuei a olhar para a minha carta e estava a
pensar a que restaurante poderia levar a Principessa caso eu gostasse tanto
dela como da sua epístola, quando um suave «Pling!» me anunciou um
novo e-mail.
A Principessa tinha respondido!
Não era eu um tipo genial, certo do seu triunfo e cujas esperanças se
tinham tornado realidade? Não. O coração batia-me com força quando as
linhas pretas se materializaram diante do ecrã.
A sua linda carta acabou de chegar, li-a com o coração a palpitar, e ainda que neste
momento não tenha tempo, já que devo tratar de assuntos urgentes, gostaria de o libertar da
sua impaciência, não da sua incerteza no que respeita à minha pessoa, e sei que isso o vai
deixar zangado.
Tenha paciência, Lovelace! Se demonstrar ser digno de mim obterá tudo o que deseja,
inclusive o meu nome!
Sinto-me sumamente feliz por me ter respondido, celebro a nossa troca verbal, pois à
vista da sua primeira carta comprovo que está à altura das circunstâncias
Não me passou despercebido que o senhor é um homem de bom gosto, mas causa-me uma
certa mágoa que ache atraentes as mulheres belas (e que em certas ocasiões também goste
de as despir) já que, mon cher monsieur, não prevejo partilhá-lo com ninguém. Sabia que
conhecia bem os quadros, mas surpreendeu-me e fascinou-me que soubesse utilizar as
palavras com tanto primor.
Gostaria de saber mais coisas de si, e o senhor também deve saber o género de mulher
que sou. Pouco a pouco, passo a passo, primeiro de forma vacilante, depois com febril
impaciência, iremos despojando-nos das nossas capas até que nada fique oculto e estejamos
diante um do outro tal como a natureza nos criou: nus!
Esta noite sonhei tanto consigo, querido Duc!
De imediato estava você diante da minha cama, acariciava-me a pele, roçava-me com a
maior delicadeza… Tenho de ter cuidado em não perder a cabeça, embora tema já a ter
perdido.
As suas palavras provocam no meu coração tanta confusão como a sua imagem, que
aparece com tanta nitidez diante dos meus olhos que parece que consigo tocá-la.
Pensa que eu consigo concentrar-me em alguma coisa?
Como gostaria de poder neste instante agarrar na sua mão e passear consigo nesta bela
manhã de maio ao longo do Sena, que brilha ao sol como uma fita prateada. Cézanne
correria impaciente diante de nós e teria de nos esperar mais à frente pois pararíamos em
cada ponte para nos beijarmos. Admita que isso seria infinitamente mais bonito que todas as
coisas que temos que fazer!
Sorrindo, abanei a cabeça. Esta mulher sabia realmente como fazer com
que um homem mostrasse os seus sentimentos. Os meus dedos voaram
sobre o teclado enquanto escrevia uma resposta imediata, que esperava
que chegasse de seguida à atarefada Principessa.
Assunto: Protesto
Cara Inconcentrada:
(Os meus conhecimentos de italiano são escassos e não sei se esta palavra existe, mas soa
muito bem.)
Por favor, não permita que interrompa a sua falta de concentração! Há que manter-se pouco
concentrada. Passeemos mentalmente ao sol. Claro que admito que isso seria muito mais
bonito do que concentrarmo-nos em qualquer outro assunto da vida quotidiana. Pois com
cartas tão sedutoras tudo o mais já carece de importância.
De qualquer modo, devo fazer uma objeção: beijarmo-nos em cada ponte que cruza o
nosso belo Sena… não, não gosto disso, protesto!
Por que motivo é tão avara com os seus beijos, Principessa? Seja esbanjadora e deixe de
os contar! Nesse passeio pela Primavera gostaria de a beijar sempre que queira. E não
tenha qualquer dúvida de que a si também lhe agradaria. Nenhuma mulher alguma vez se
queixou nesse sentido, e posso dizê-lo sem a incomodar.
Se ao menos soubesse que bela flor estou a beijar?!
É por demais evidente que a si lhe causa enorme prazer fazer-me esperar que tal ocorra!
Não seja tão malvada!
Não sei que delito cometi para que me trate deste modo, na sua primeira carta
mencionou um «encontro infeliz», mas dê-me por favor o mais insignificante de todos os
indícios e eu deixá-la-ei tranquila por agora.
Ou sente medo ante o terrível gigolo que considera que sou?
O seu Duc
Teria apostado não apenas o dedo mindinho mas sim a mão inteira que a
Principessa não iria deixar a última frase por comentar.
Exato! Poucos minutos depois chegava com um «Pling!» uma nova
mensagem à minha caixa do correio. Desta vez eram poucas linhas.
Intrigado, abri o e-mail. Ainda que pareça mentira, esta pequena esgrima
fazia-me sentir em forma.
Medo? Tem um conceito demasiado elevado de si próprio, meu querido amigo! Não é assim
tão terrível. E resisto aos seus beijos magistrais dos quais ainda nenhuma mulher se
queixou. Não corresponde à essência de uma Principessa ser só mais uma. Isso deve ser
tomado em consideração, como tal, se quer ter alguma coisa comigo, tem de lhe ocorrer
algo melhor para me convencer.
Mas dado que não me parece querer dar qualquer margem para respirar, algo que neste
momento necessito com urgência, coloco-lhe uma pequena adivinha com a qual quero
responder ao seu desejo urgente de ter um «indício insignificante»:
Não vou revelar mais nada! Ao fim e ao cabo, o senhor leva no sangue a capacidade para
desvendar escritos crípticos, não é certo, Monsieur Champollion?
La Principessa
P.S.: o seu italiano pode ser muito rudimentar, mas a palavra que menciona existe
realmente.
A Principessa revelou ser uma sabichona! Gozava comigo, provocava-
me e ria-se de mim. Quase me pareceu ouvir um riso cristalino quando li o
parágrafo irónico «o senhor leva no sangue a capacidade para desvendar
escritos crípticos, não é certo, Monsieur Champollion?»
E de certa maneira apreciei. Parecia que já a conhecia, apesar de não
saber sequer que aspeto tinha.
O pequeno enigma que tinha concebido generosamente para mim não
me serviu para avançar um único passo. Bem, ao menos sabia que era
alguém que via e conhecia. Ainda que sem a ver ou conhecer
verdadeiramente. Pois isso era o que dizia o dístico sofisticado da minha
pequena esfinge que – era claro – continha um certo tom de recriminação.
Com essa pista entraram em linha de conta muitas das mulheres em meu
redor. Na verdade até podia ser Odile, a filha do padeiro que sempre me
vendia os croissants com um sorriso tímido. Uma rapariga jovem, uma
que não faz ondas que – quem sabe – talvez ocultasse um espírito
romântico no coração. Nem sequer podia excluir Mademoiselle Conti.
Alguma vez tinha considerado com seriedade o que escondia essa pequena
governanta que lidava com clientes impertinentes? Recordei de imediato a
alusão a Cézanne. Seria essa uma pista segura? Charlotte não podia ser,
tinha uma letra diferente ainda que tivesse sido a única a chamar-me «meu
pequeno Champollion» e a ter brincado com a Pedra de Roseta.
Pensativo, imprimi as cartas. O meu amigo Bruno não se afastou muito
da verdade quando afirmou que se podia tratar de uma mulher à qual eu
não tinha prestado atenção suficiente. Deixei os pratos no lava-loiça,
agarrei nos papéis e saí em direção à Galerie du Sud.
Eram onze e meia e eu também tinha assuntos do dia a dia para tratar.
7
De todas as namoradas que tive, June Miller foi a mais ciumenta. Não que
às vezes não tivesse motivos para o ser, pois quando nos conhecemos
ainda havia outra mulher na minha vida, Hélène.
Na verdade tínhamo-nos separado de forma amistosa. Hélène tinha-se
ido embora de um dia para o outro com um arquiteto que se revelou ser
um tipo estupendo, mas nem sempre fácil, e de vez em quando ela
telefonava-me, e sempre que June sabia disso, havia discussão.
«Fuck! Que quer essa mulher? Vê se te deixa em paz de uma vez por
todas!», gritava furiosa, e atirava o meu telefone pelo quarto fora.
Existem poucas mulheres que quando se convertem em feras continuam
a ser atraentes. June era uma delas. Continuava linda mesmo encolerizada.
Os seus caracóis castanhos caíam-lhe pelos ombros nus e os olhos verdes
brilhavam com vigor. Eu agarrava-a pelo braço e voltava a metê-la na
cama.
– Vem cá, minha pequena gata selvagem, comme tu est belle, que linda
que és! – sussurrava-lhe ao ouvido. – Esquece a Hélène. É uma velha
amiga, mais nada. E tem problemas com o marido.
– So what? E a ti que te importa? Que conte os problemas a uma amiga,
não a ti! That’s not okay! – June cruzava os braços com teimosia. Agora
penso que em parte tinha razão, mas naquele momento o facto de Hélène
continuar a confiar em mim alimentava o meu orgulho masculino.
June tinha olhos de lince, não lhe escapava nada e controlava cada um
dos meus passos com ciúme. Sobretudo desde que encontrou o cartão de
La Sablia Rosa na minha carteira.
La Sablia Rosa é a loja de lingerie de Paris, um pequeno espaço na rue
Jacob, mesmo ao lado de uma das melhores editoras de França. Quando se
está à procura de alguma coisa especial em matéria de lingerie, ali
encontra-se com certeza.
Quando já namorava há duas semanas com June e a minha vida decorria
basicamente entre o quarto e a galeria, uma vez vi uma camisa de noite de
seda incrível na montra de La Sablia Rosa. Um petit rien curto, sem
mangas, com flores delicadas, como que feito para uma fada da primavera.
Ao princípio queria um apenas para June e escolhi o tamanho M. Mas,
entretanto lembrei-me entretanto que Hélène fazia anos em breve.
Telefonei-lhe e a sua voz soou muito triste. E então pareceu-me uma boa
ideia comprar também uma camisa de noite a Hélène. Como forma de
consolo, pelo seu aniversário e como despedida pelos belos momentos que
tínhamos passado juntos.
As vendedoras francesas de lingerie não se surpreendem com nada.
Quando disse à vendedora já de certa idade de La Sablia Rosa que queria
um tamanho abaixo, ao princípio entendeu-me mal e agarrou no de
tamanho M para tornar a pendurá-lo.
– Se não ficar bem à senhora, pode vir trocar – disse madame, e
aproximou-se da montra para retirar a peça do manequim.
– Ah, non madame, j’ai besoin des deux, precisava dos dois. –
Expliquei-lhe apressadamente. – Um S e um M. São duas senhoras… por
assim dizer – acrescentei com um sorriso estúpido. Nem Woody Allen
teria feito melhor.
Madame voltou-se e sorriu com satisfação.
– Mais, monsieur, c’est tout à fait normal, não há nenhum problema –
disse, envolveu com cuidados as duas camisas de noite em papel de seda e
fez-me dois lindos saquinhos que inicialmente entusiasmaram as
presenteadas.
A Hélène, com a emoção, vieram-lhe as lágrimas aos olhos quando
acariciou a delicada peça de flores e disse: «Que amável da tua parte!»
June soltou um grito de alegria, deu-me um beijo e de seguida tirou a
roupa para representar o conto das estrelas caídas do céu. Dançou
entusiasmada por toda a casa. Mas três dias mais tarde a fada da primavera
transformou-se numa deusa vingadora.
Para abreviar: a June não lhe pareceu tout à fait normal quando
descobriu na minha carteira o talão de compra das duas camisas de noite
idênticas em dois tamanhos diferentes. E que ainda por cima o mais
pequeno dos dois tenha sido destinado à sua predecessora fez-me receber
uma torrente de insultos e uma bofetada sonora.
Devo admitir que a história das duas camisas de noite não foi uma boa
ideia. June acabou por me perdoar. A zanga passou-lhe com a mesma
rapidez com que tinha começado.
Mas o meu faux-pas na La Sablia Rosa preparou o terreno para a terrível
cena que se seguiu uns meses mais tarde nos salões do Duc de Saint-
Simon.
Foi o momento mais penoso e absurdo da minha vida e ainda hoje me
sinto mal quando me recordo.
E ainda que dessa vez, juro-o, fosse totalmente inocente, June
abandonou-me.
As aparências jogavam contra mim. Uma tarde tinha levado Jane
Hirstman ao Duc depois de um encontro de trabalho. Estava muito
nervosa porque o seu namorado (o tipo de dois metros do Midwest que
não cabia nas «caminhas dos anões da Branca de Neve», lembram-se?)
tinha regressado ao seu país antes de tempo a seguir a uma discussão. June
tinha ido por uns dias a Deauville com uma amiga de Londres. Perguntei a
Jane se íamos tomar alguma coisa, sem nenhuma intenção, apenas porque
me dava pena. Ela assentiu e limitou-se a dizer «Double», com o que se
referia a um whisky duplo. Depois de vários doubles levei-a até ao seu
quarto. Jane Hirstman não é o tipo de mulher que chora e se lamenta
quando alguma coisa não lhe corre bem na vida e pediu-me que ficasse
um pouco com ela. E assim fiz.
Não se passou mais nada.
Deitei-me um pouco a seu lado, apertei-lhe a mão e disse-lhe que tudo
ia correr bem. Eu iria para casa assim que ela adormecesse. Mas acabei
por me sentir terrivelmente cansado e acabámos os dois adormecidos, um
ao lado do outro, como se fôssemos irmãos.
Mas na manhã seguinte, antes que pudesse abrir os olhos, ouvi a voz de
June.
– Salaud! – gritou. – Cela suffit! Já chega! – E não, não era um
pesadelo. Aos pés da cama king size estava June, pálida de raiva e olhava-
nos com ódio, a mim e à desconcertada Jane. – Não posso acreditar! –
continuou gritando. – Sinceramente não posso acreditar!
Antes que pudesse abrir a boca para explicar, ela cortou-me a palavra.
– Não, poupa-te às explicações. Não quero mais nada. Acabou!
Levantei-me de um salto, na verdade estava vestido, mas isso não
pareceu impressionar June.
– June, por favor… – e de seguida pronunciei a coisa mais estúpida que
dizem os homens: – Isto não é o que parece.
Ainda que dessa vez fosse verdade.
June resfolegou de raiva e dirigiu-se para a porta que estava aberta de
par em par.
– Não se passou absolutamente nada!
Descalço, corri atrás dela pelas escadas abaixo até à receção.
– Jane é uma antiga conhecida, ontem à noite não estava bem…
– Jane não estava bem? – repetiu num tom perigosamente baixo, e logo
de imediato gritou com tanta força que a sua voz retumbou por todo o
hotel: – JANE NÃO ESTAVA BEM?! Pobre Jane! É outra das tuas ex-
namoradas às quais ofereces camisas de noite para as consolar? Desta vez
de tamanho L?! – Passou a resfolegar diante da receção, onde
Mademoiselle Conti estava por trás da sua secretária com uma face
impávida.
– June, por favor… tranquiliza-te… espera…
Consegui agarrá-la pelo braço e então escorreguei para o chão de pedra
polida. Deve ter sido muito ridículo, e nesse momento paguei por todos os
meus pequenos pecados.
June tinha chegado ao final do quinto ato com um dramatismo próprio
de Shakespeare.
– Fuck off! – Cuspiu-me essas palavras antes de sair a correr debaixo de
chuva. E isso foi a última coisa que ouvi de June Miller.
Endireitei-me como pude e o meu olhar pousou em Mademoiselle
Conti, que se tinha convertido na testemunha muda da minha grande
humilhação. Para minha indignação, ainda por cima reparei que estava a
ficar vermelho como um tomate. Luisa Conti estava ali sentada, com o seu
fato impecável, o seu penteado impecável, sem fazer qualquer gesto. Ela
era perfeita, não lhe sucediam tais coisas, e a sua impassibilidade própria
de Branca de Neve provocou-me.
– Não seja tão neutra! – gritei-lhe, e vi com satisfação que estremecia.
Dirigi-me então para a entrada e fiquei um pouco a olhar para a chuva sem
saber o que fazer.
June tinha-se ido embora.
Quando me voltei, reparei que Mademoiselle Conti não estava à
secretária. Todo o hotel parecia morto, como se contivesse a respiração.
Ouvi então passos na escada. Virei-me bruscamente porque pensei que
fosse Jane e choquei com Mademoiselle Conti que subia vinda da cave
com um monte de pratos de porcelana nas mãos. Vi em câmara lenta como
a loiça caía ao chão e se fazia em mil pedaços.
Nessa altura podia-se comprar no Duc de Saint-Simon – e só ali! – a
baixela Eugénie, que se fabricava em Limoges expressamente para o
hotel. Muitos clientes aproveitavam para comprar o valioso souvenir
decorado em tons bordeaux e dourados.
Fiquei a olhar para o monte de cacos a seus pés como se fosse Hamlet a
olhar para a caveira. Aquilo era o final apoteótico de uma representação
horrorosa.
– Oh, não! – Mademoiselle Conti contemplou perplexa a porcelana
partida. – Uma baixela tão cara! – Agachou-se e começou a apanhar os
bocados a toda a pressa. – Meu Deus, que azar! Vou ter problemas.
Eu despertei da minha letargia.
– Espere, eu ajudo-a – disse, e ajoelhei-me a seu lado. – Tenha cuidado,
as bordas são muito afiadas.
Os nossos olhares cruzaram-se por um instante enquanto recolhíamos
tudo sem falar. Que se podia dizer?
– Foi culpa minha – disse por fim envergonhado, e olhei fixamente para
o bocado de porcelana belamente decorado que tinha na mão. Uma e outra
vez via diante de mim June enfurecida, as suas palavras ainda ressoavam
nos meus ouvidos. Nesse momento teria gostado que a terra se abrisse e
me engolisse. Pus-me de pé e tentei sorrir, mas nem sequer isso me saiu
bem. – Bem, vê-se que hoje não é o meu dia!
Luisa Conti também se tinha levantado. Fitou-me durante uns segundos
em silêncio, mas os seus olhos ocultos atrás dos óculos escuros não
deixavam ver o que estava a pensar. Provavelmente estava aborrecida com
o idiota que perturbava a distinta paz do seu hotel. Entretanto, passou as
mãos duas vezes pela saia azul-escura e disse-me:
– Sinto muito por si. – Parecia sincera, mas talvez apenas soubesse
controlar-se muito bem.
– Não, não! – Levantei as mãos num gesto de recusa. – Sou eu quem
sente. Pagarei a baixela partida, não se preocupe. Porei tudo em ordem.
Um leve sorriso passou pelo rosto de Mademoiselle Conti, mas eu tinha
conseguido ver. Pelo menos fizera alguma coisa bem, por insignificante
que fosse.
Nesse triste dia de março a bela e ciumenta June não saiu apenas a toda
a pressa do Duc de Saint-Simon, mas também da minha vida. As minhas
tentativas de voltar a conquistá-la, ao início suplicantes e amargas, depois
vagas e sem entusiasmo, foram em vão.
Miss June encerrou-se num silêncio glaciar.
Pouco tempo depois soube, por uma amiga, que tinha regressado a
Londres.
Passara um ano desde então. Porém, o tempo não cura só as feridas,
também nos faz ver o passado de uma forma especial. Chega um momento
em que apenas se recordam as coisas boas que se perderam para sempre.
Tinham-se perdido?
Seria possível que June tivesse regressado ao local onde a nossa história
terminara de um modo tão abrupto? Tinha podido mais a razão do que a
raiva? Ao fim e ao cabo, a autora das cartas admitira que também tinha
sido «culpa sua».
Pensativo, sorri ao couro verde que cobria a secretária. Na minha
próxima carta iria fazer um par de perguntas à Principessa…
Belíssima Principessa:
Teu, Jean-Luc
Assunto: Rumpelstiltskin
Querido Duc:
Foi realmente uma boa tentativa a que fez para descobrir a Principessa, mas temo que esteja
equivocado. E agora, tal como Rumpelstiltskin diz à filha do rei, eu também lhe respondo
com satisfação: «Não, não, não, esse não é o meu nome.»
É possível que me sinta um bocadinho ciumenta – com um homem como você isso é algo
normal – e de facto tenho lingerie lindíssima que foi comprada em La Sablia Rosa, mas o
senhor, mon chevalier, não ma ofereceu nem a viu posta (o que suponho que seja uma pena
para si), essa delicada roupa interior que mostra mais do que esconde.
E aí acabam as coincidências com a dama por si mencionada.
Não sou June.
Permaneçamos por enquanto na Principessa.
Conheço bem o Le Petit Zinc, embora não seja o meu restaurante preferido, mas
infelizmente tenho de declinar o seu insistente convite (que teria apreciado muito embora na
realidade não tenha sido dirigido a mim, mas sim à dama pela qual erroneamente me
tomou) com uma negativa.
Partilhar consigo uma refeição é tentador, ainda que por enquanto me pareça algo
prematuro, e de qualquer maneira não poderia aceitar já que amanhã tenho de levar uma
querida amiga ao comboio. Parte para Nice e segundo uma velha e boa tradição, antes
tomaremos algo no Le Train Bleu.
Portanto, o meu bem-estar corporal está atendido, e acredito que o seu também.
Dormi estupendamente, acordei cedo, agradeço-lhe do coração o seu cumprimento
noturno que, como poderá apreciar com facilidade, acabei de receber e desejo-lhe que passe
um domingo muito agradável.
Creio que em breve ouviremos falar um do outro.
A sua Principessa
P.S.: Está muito dececionado porque não sou June? É bonito manter uma correspondência
consigo, e desejo apenas uma coisa: que continue.
Assunto: Dececionado!
P.S.: Não deve em absoluto preocupar-se com June, mas em todo o caso deve fazê-lo com
Rumpelstiltskin. Ou esqueceu-se de como termina o conto?
Espero que não se destrua a si mesma por causa da raiva quando eu descobrir finalmente
o seu nome. Tem que mo prometer!
*
– Porque não vai com a sua sobrinha à inauguração da nossa exposição no
dia oito de junho? Gostaria muito que fosse. – Mastiguei um pouco do
meu steak au poivre e espetei com o garfo um par de batatas fritas
alongadas.
– Oh, sim Jane, temos de ir! – exclamou Janet entusiasmada. – Nesse
dia ainda vamos estar em Paris, não?
Jane sorriu satisfeita perante o entusiasmo da sobrinha.
– Creio que isso se pode arranjar. Quem vai expor?
– Uma artista muito interessante das Índias Ocidentais, Soleil Chabon,
já expôs há dois anos na Galerie du Sud. E desta vez pensámos numa
coisa muito especial, uma apresentação nos salões do Duc de Saint-
Simon, que podemos alugar para essa ocasião.
– Isso parece fantástico! What a very special place!
Os nossos olhares cruzaram-se por um instante, e tive a certeza que Jane
pensou naquela manhã no Saint-Simon em que June apareceu aos gritos
diante da sua cama. Jane sorriu e bebeu um gole de vinho branco do seu
copo.
– Sempre gostei de me hospedar ali, tem-se a sensação de estar noutro
século – disse a Janet. – Vais gostar.
Noutro século… enquanto Jane descrevia o hotel à sobrinha, eu comecei
a pensar noutras coisas. A minha pequena amiga de outro século não tinha
vindo, ou, pelo menos, eu não a tinha visto. Pensativo, dirigi o olhar até à
enorme janela diante da qual estávamos sentados e olhei para baixo, para
os carris. Na plataforma 3, um comboio esperava para sair. Os últimos
passageiros entravam com as malas, um homem abraçava uma mulher,
mãos agitavam-se a dizer adeus. A saudade flutuava como uma pequena
nuvem branca sobre a plataforma.
Há alguma imagem que melhor descreva uma despedida do que um
comboio a partir? Deixei vaguear o olhar até ao final da plataforma e ri-
me do meu repentino ataque de filosofia. Ao contrário dos aeroportos, as
estações de comboios põem-me sempre um bocado sentimental.
E então, pouco antes de partir o comboio da plataforma 3, vi ao fundo
duas mulheres que estavam de pé junto à sua bagagem. Uma delas tinha
uma melena escura que lhe chegava aos ombros e um vestido vermelho
que o vento movia em redor das suas pernas esbeltas. A outra estava de
costas para mim. Levava um conjunto saia-casaco de cor clara. E o cabelo
liso e loiro chegava-lhe quase até à cintura. Virou-se um pouco para o
lado, disse alguma coisa à amiga, e um raio de sol deslumbrante acariciou
por um instante a sua silhueta juvenil. A luz confundiu-se com o seu
cabelo sedoso e pareceu atravessá-la, e eu fiquei sem respiração.
O tempo parou. Não, foi até ao passado, voou até ao mar azul, através
dos anos, meses e dias, até chegar a esse momento do verão em que um
estúpido rapaz de quinze anos se apaixonou pela miúda mais gira da
turma.
Olhei fixamente para a plataforma, o meu coração começou a palpitar, e
logo se cortou a imagem. Indignado abanei a cabeça.
Um empregado passou por diante das duas mulheres e ajudou um
senhor de idade a subir a bagagem para o comboio. Elas afastaram-se para
um lado. Então soou o sinal, as portas fecharam-se automaticamente, e o
comboio pôs-se em movimento.
As duas mulheres tinham desaparecido como se nunca tivessem
existido.
Mas eu estava certo de que durante uma fração de segundos tinha visto
Lucille.
Uma hora mais tarde estava sentado no metro. Segurava numa trela e no
final da mesma estava Cézanne, deitado a meus pés, manso como um
cordeirinho e sem deixar de me fitar.
Depois de uma alegre excursão pela Gare de Lyon onde, segundo
algumas testemunhas, não se tinha coibido de levantar a pata em cada uma
das palmeiras grandes das plataformas, começando de súbito a correr em
direção à entrada, onde ao que parece encontrara algo interessante e tinha-
se posto a ladrar aos taxistas que aguardavam na rua. Um deles havia
chamado a polícia da estação e foi ali que recuperei o meu cão.
Jane e Janet, que desde o seu balcão da janela dispunham de uma vista
privilegiada, observaram entre atónitas e divertidas um polícia de
uniforme a atravessar a estação com um dálmata. Minutos depois apareceu
um louco (eu) que se pôs a gesticular e a dar gritos.
E então as duas mulheres começaram a bater no vidro e eu fui a correr
ao restaurante e daí à polícia.
– C’est votre chien? Este cão é seu? – perguntou o homem uniformizado
de muito mau humor. Cézanne começou a abanar a cauda, louco de
contentamento, quando me viu.
– Sim, sim! – assenti. – Cézanne, que fizeste? Disse-te que ficasses à
minha espera. – Afaguei-lhe a cabeça.
– Tem de vigiar melhor o seu cão, monsieur, a sua conduta foi muito
irresponsável. Na estação, os cães têm sempre que ir presos pela trela.
Lançou-me um olhar duro. – Teve sorte de não ter acontecido mais nada.
Assenti sem dizer nada. Há que saber quando guardar silêncio.
Teria feito sentido dar alguma explicação sobre as situações excecionais
que às vezes nos obrigam a deixar o cão sozinho durante um momento
porque a trela se prendeu numa palmeira acorrentada? Não!
Monsieur Sou-Eu-Quem-Manda-Aqui entregou-me uma folha e eu
assinei. Paguei a multa sem protestar, e Cézanne e eu saímos em
liberdade.
10
Tinha tido domingos melhores na minha vida, mas também piores, pensei
enquanto saía com Cézanne da estação de metro de Odéon para a luz clara
de uma tarde soalheira de primavera em Paris.
Era preciso ser justo: a operação Train Bleu tinha fracassado, mas agora
tinha a certeza tranquilizadora de que Jane Hirstman não era a Principessa
(algo que antes jamais havia tomado em consideração, mas que podia ter
ocorrido). E parecia-me interessante que houvesse duas mulheres junto ao
comboio com destino a Nice, uma das quais tinha o aspeto que poderia ter
hoje Lucille, o que aumentava um pouco mais o círculo de suspeitas. E
Cézanne corria saudável e alegre a meu lado, o que podia considerar-se
um pequeno milagre tendo em conta o tráfego que há sempre em frente à
Gare de Lyon.
Decidi estar grato, apesar de sentir um certo cansaço enquanto avançava
pelo boulevard Saint-Germain e entrava no Cour du Commerce Saint-
André.
Na passagem cheia de pequenas lojas e cafés reinava um grande bulício,
e deixei-me arrastar por ele. Passei diante de uma loja de presentes muito
especiais, onde havia candeeiros antigos, barcos piratas e relógios com
caixa de música, por diante de Le Procope, um dos restaurantes mais
antigos de Paris, e de uma loja linda de bijuteria que tinha o nome sedutor
de Harém e reunia todos os tesouros do Oriente. Os adornos brilhavam
com cores brilhantes através das montras, para a qual olhava, como
enfeitiçada, uma jovem com o cabelo apanhado e uma túnica verde-
esmeralda. Um casal de namorados deteve-se também diante da montra, e
a rapariga da túnica afastou-se um pouco e voltou-se para mim.
– Bonjour, Monsieur Champollion!
Fez um leve movimento com a cabeça e sorriu com timidez.
Devo admitir que depois dos acontecimentos desse domingo já nada me
surpreendia. Nem sequer que uma desconhecida se dirigisse a mim na rua
tratando-me pelo meu nome. Sentia-me como um príncipe encantado de
um conto de fadas que encontrava mulheres que lhe colocavam enigmas
para logo desaparecerem, quando e como queriam.
Olhei para a rapariga da túnica verde.
Parecia-me familiar, ainda que não soubesse quem era.
Nunca vos sucedeu que, por exemplo, durante as férias, digamos que na
praia, apareça a professora primária do vosso filho? Em vez de estar na
sua sala de aula, como sempre, surge num cenário completamente
diferente, composto de céu e mar, e vocês ficam a olhar para ela
fixamente, sentem que conhecem aquela cara de algum lado, mas ao
retirá-la do seu contexto habitual o cérebro já não consegue ordenar a
imagem. O melhor exemplo do nosso pensamento em rede.
A jovem ajeitou uma madeixa de cabelo atrás da orelha e corou.
– Olá, Odile – disse eu.
Continuei a andar e eram quatro e meia quando entrei num café em cuja
esplanada, rodeado por alguns jovens, estava uma personagem própria de
Cocteau. Cézanne ladrou de alegria e puxou pela trela, e eu também me
alegrei… e saudei Aristide, que estava sentado com alguns alunos à
sombra de um toldo branco e se encontrava, sem dúvida, no seu elemento.
– Salut, Jean-Luc! Que surpresa maravilhosa! – Aristide Mercier
cumprimentou-me com o seu entusiasmo habitual. – Vem, senta-te
connosco!
Sorri e aproximei-me da pequena mesa redonda na qual havia alguns
copos e taças vazias.
– Também fico contente por te ver, mas não quero incomodar.
– Mas não, não, não incomodas, de todo! – Aristide pôs-se de pé para
puxar uma cadeira. – Toma, senta-te na nossa modesta tertúlia e dá-lhe o
glamour que falta. Mes amis… – o professor abriu os braços com um
gesto dramático – este é o meu amigo Jean-Luc Champollion, conhecido
por «o Duc».
Os estudantes riram-se e exclamaram «Oh, Oh!», alguns aplaudiram.
Eu deixei-me cair na cadeira com um sorriso irónico e pedi um café.
Enquanto ouvia como Aristide falava – no seu estilo antiquado e algo
afetado – com palavras eufóricas «do melhor galerista de Saint-Germain e
do seu famoso antepassado; um homem de gosto refinado e
perigosíííííssimo encanto» (aqui Aristide piscou-me um olho), tive uma
suspeita.
Uma ideia que era tão absurda que ainda hoje me dá vergonha. Mas
nesse domingo, devem desculpar-me, encontrava-me num estado em que
tudo parecia possível.
Tinha desenvolvido uma espécie de mania da perseguição. Ainda que
não me sentisse perseguido, mas mais o perseguidor.
Suspeitava de toda a gente. E durante um quarto de hora suspeitei
inclusive do meu velho amigo Aristide Mercier.
E se estava a gozar comigo? A sua cortesia algo antiquada, os seus
conhecimentos literários, as suas piadas irónicas sobre a simpatia que
sentia por mim. O eterno perdedor… Não encaixava tudo na perfeição
com o modo como as cartas estavam escritas?
Tinha partido do princípio de que era uma mulher – a Principessa! –
quem escrevia aquelas cartas maravilhosas carregadas de engenho, humor
e amor. Mas quem garantia que não se tratava de uma armadilha?
Inquieto por causa dessa nova e horrível ideia, remexi o meu café e já
não tirei olho de Aristide, o Príncipe, que sem dúvida atribuiu o meu
interesse repentino ao seu discurso brilhante sobre Les fleurs du mal de
Baudelaire.
Umas nuvens cinzentas cobriram o sol. O céu escureceu, uma rajada de
vento dispersou as cinzas dos cinzeiros e no fim ficámos apenas eu e
Aristide sozinhos na mesa redonda do café, sem contar com Cézanne, que
descansava com todo o seu peso a meus pés.
– Bem, meu querido Jean-Luc, como vai a vida? – perguntou Aristide
com amabilidade. E esse foi o momento em que me expus ao ridículo.
– Pois a minha vida é agora um pouco peculiar – disse, e lancei ao
desconcertado Aristide um olhar penetrante. – És tu quem me está a
escrever aquelas cartas assinadas pela Principessa?
Aristide fitou-me como se o próprio E.T. tivesse aterrado diante dele.
– Cartas de princesas? – disse. – Que cartas de princesas?
– Não me estás a escrever caras que começam com «Querido Duc» e
acabam com «A sua Principessa»? – insisti. – Aristide, aviso-te que se
esta é uma das tuas piadas intelectuais, não acho graça nenhuma.
– Meu querido amigo, parece-me que estás um pouco louco.
Com essas palavras, Aristide chamou-me à realidade à velocidade da luz
e enviou a minha suspeita para uma galáxia longínqua.
– Estás bem, Jean-Luc?
Não tinha ouvido hoje essa frase?
– Não percebo do que estás a falar nem do que me acusas – prosseguiu
Aristide muito ofendido. – Podes ter a amabilidade de me explicar?
Olhei para Aristide sem saber o que dizer e corei como um tomate.
– Bah, esquece isso! – disse. – Foi um mal-entendido.
– Não, não, Jean-Luc, não vais escapar assim tão facilmente. Agora
quero saber o que se passa! – Aristide olhou-me com uma expressão séria
e inflexível. – Alors?
Torci-me como um verme na pequena e incómoda cadeirinha do bistrot.
– Ai… Aristide… acredita… não vais querer saber!
Aristide piscou os olhos.
– Oh, sim, claro que quero saber!
Nesse momento tocou o meu telemóvel. Agarrei-me a ele como se fosse
a minha salvação.
– Sim? – disse agradecido através do sistema alta voz.
– E então? – inquiriu alguém do outro lado da linha.
– Bruno! Posso ligar-te mais tarde?
– É Soleil?
– Não, não é Soleil. Pelo menos não estava no Le Train Bleu.
– Então quem é?
– Bruno… – Notei que os olhos escuros de Aristide se fixavam em mim,
que me trespassavam como se fossem dois raios laser. – Bruno… estou
aqui… com Aristide…
– Com Aristide? Porquê com Aristide? E que se passa com a
Principessa? – Bruno gritava cada vez mais alto, estava certo de que
Aristide podia ouvir. – Já sabes quem é a Principessa?
– Não, Bruno, não sei – lancei com brusquidão. – Ouve, ligo-te mais
tarde, de acordo?
Desliguei e guardei o telemóvel no bolso.
– Vamos, vamos – disse Aristide com um leve sorriso. – Então o nosso
bom Duc está apaixonado… por uma Principessa! Felicidades! – Acendeu
um cigarro e ofereceu-me outro a mim. – Vamos, dispare, meu querido
Duc…!
Suspirando, peguei num cigarro, e Aristide reclinou-se expectante na
cadeira.
– Em primeiro lugar não estou apaixonado – disse. – Em segundo lugar,
nem sequer sei quem é essa mulher.
E em terceiro lugar contei a Aristide Mercier o que me tinha sucedido.
Estive sentado no café com Aristide, a falar, até às oito e meia. Mais uma
garrafa de merlot foi a responsável pelo entusiasmo crescente com o qual
discutimos outros detalhes e possibilidades. Eu tinha aceite a oferta do
meu amigo e marcámos para a quinta-feira seguinte. E o professor
prometeu deitar um olhar literário-detetivesco às caras de Madame-
Bergerac-la-Principessa, do qual esperava algum resultado. A seguir fui
pela rue des Canettes sentindo-me bastante inquieto. A questão do nariz
não me saía da cabeça.
– Deixa que as coisas sigam o seu curso, tudo se arranjará – tinha-me
dito Aristide aos despedir-se de mim com uma pequena pancada jovial nas
costas. – Meu Deus, se eu recebesse umas cartas assim desfrutaria de cada
momento do dia – acrescentou revirando os olhos.
Para Aristide era muito fácil dizer que o importante era o caminho, não
a meta. Mas eu era o hámster na roda que dá voltas e voltas sem chegar a
lado nenhum. E não queria desfrutar de cada momento do dia sem
conseguir dormir à noite. Eu queria… clareza.
Quem era a Principessa? Seria uma mulher horrível com um nariz
enorme? Ou era a incrível Lucille de beleza celestial?
Depois de outra garrafa de vinho tinto parecia-me bastante provável que
fosse Lucille, que voltava à minha vida depois de vários anos. Nos filmes
acontecem sempre essas coisas. E agora eu já não era um miúdo estúpido,
mas sim um homem que não tinha de provar nada e que – como é óbvio –
também sabia beijar!
Abri a porta com energia, atravessei o pátio na penumbra, passei diante
dos contentores do lixo e subi as escadas até à minha casa. Lucille, se é
que era ela, ia ficar surpreendida!
Assunto: Em pessoa!
Depois de uma jornada tão agradável como excitante, regressei de novo aos meus
aposentos.
Agradável porque passei o dia na companhia da minha amiga, excitante porque ela se
confundiu com a hora de saída do seu comboio e a viagem à Gare de Lyon foi muito
apressada, pelo que não tivemos tempo de desfrutar de um pequeno refresco no Le Train
Bleu.
E com isso faço-lhe uma pergunta que me tem em pulgas desde o meio-dia de hoje.
Foi imaginação minha, mon cher ami, ou vi-o em pessoa na Gare de Lyon? Será possível
que tenha corrido abatido pela plataforma na qual poucos minutos antes a minha amiga
tinha subido para o comboio com destino a Nice?
Por outras palavras: pode ser, querido Duc, que me esteja a seguir às escondidas?
É evidente que foi um erro da minha parte falar-lhe sem reservas dos meus planos para
domingo. Paga-se assim a confiança de uma dama? Deveria ter vergonha!
Doravante terei de ser mais precavida, mas como ia imaginar que o senhor, um Duc, se
atreveria a espiar-me como se fosse um paparazzo?
Por que razão não pode aceitar sem mais que eu determinarei o momento em que nos
veremos face a face? Para bem dos dois. Confie em mim, rogo-lhe!
Tive de esperar tanto, estou há tanto tempo a ansiar pelo momento em que poderei
abraçá-lo, mas o senhor estava sempre ocupado com outros assuntos (ou devo dizer com
outras damas?), por isso deve permitir-me mais umas cartas e explicações antes de me
entregar a si por completo.
Aceito encantada o seu convite para me levar ao meu restaurante favorito, depressa nos
sentaremos ali um em frente do outro, diante de uns pratos deliciosos e não demasiado
pesados e de um vinho tinto suave, e então veremos até onde nos leva a noite e o estado de
ânimo… Posso assegurar-lhe que será muito mais longe do que o senhor considera próprio
da minha fantasia.
Também fico encantada de lhe revelar o nome do meu restaurante preferido: é Le Bélier,
um restaurante discreto na rue des Beaux-Arts. Encontra-se num hotel que noutros tempos
foi um pavillon d’amour (que apropriado!) e as pequenas e cómodas poltronas e sofás de
veludo vermelho-escuro parecem feitos para uma aventura galante.
Se neste mesmo instante estivesse sentada ali a seu lado, se os nossos joelhos se roçassem
e as nossas mãos iniciassem um jogo delicado por baixo da toalha branca, ocorrer-me-iam
os piores pensamentos, asseguro-lhe!
Mas aconselho-o a que não se deixe cair todas as noites por Le Bélier com a esperança
vã de me encontrar ali. Prometo que só irei a esse templo do amor consigo.
E não, não vou morrer de raiva tal como Rumpel-stiltskin, quando o senhor pronunciar o
meu nome pela primeira vez. Surpreender-se-á tanto quando conhecer por fim a sua
Principessa, mon Duc…! E quando imagino que então poderei beijá-lo no mais delicado
abraço de que sou capaz, estala-me o coração.
E se nesse momento alguma coisa ficar em pedaços, será em todo o caso um tecido que
não poderá resistir à impaciência dos seus dedos.
Agora deixo-o nos braços da noite, querido Duc!
Hoje há lua cheia e sonharei consigo. Acredito que me desculpe por não me ter deixado
«apanhar» na estação.
A sua Principessa
Belíssima Principessa:
Adoro a ideia das mulheres que não dormem à noite e que sonham com os olhos abertos!
Nada é mais excitante que o céu noturno pleno de possibilidades que se abre diante de nós.
E deixe-me dizer-lhe a esse respeito: ainda não se sonhou sonho mais belo! Sim, admito,
mal posso esperar para pronunciar o seu nome, sussurrá-lo ao seu ouvido uma e outra vez
até que a senhora por fim se renda e seja minha por inteiro.
Para mim será um prazer levá-la a jantar ao seu pequeno templo do amor quando quiser.
Mas será então seduzida sem piedade… sobre o veludo vermelho ou sobre os suaves
almofadões de um grand lit, e isso será a única coisa que poderá decidir.
Devo dizer-lhe que o meu restaurante favorito também é Le Grand Bélier!
Vou lá com frequência, da última vez fui com um colecionador chinês, e aí pensei em si,
pois foi nesse dia que recebi a sua primeira carta, que tive de ler várias vezes. Portanto, a
sua carta de amor (posso chamá-la assim?) esteve comigo no Le Bélier, o que considero um
bom sinal – eu, que não acredito em sinais –, pode ver como me mudou.
A mim nunca me teria ocorrido espiar uma mulher como se fosse um marido ciumento,
mas sim, admito-o, hoje ao meio-dia fui à Gare de Lyon, que vergonha! Para poder
descobri-la.
Por favor, perdoe-me! Foi o desejo impaciente de por fim a ver, ainda que não o tenha
conseguido.
Em troca encontrei-me por uns maravilhosos momentos com o meu passado, discuti com
o meu melhor amigo e refleti sobre o insuficiente que é às vezes o olho humano.
Querida Principessa, nesses momentos encontro-me num estado bastante estranho e não
sei se posso confiar na minha própria perceção.
Mas ao menos sei, minha bela desconhecida, que esteve na Gare de Lyon ao mesmo
tempo que eu. Esteve muito perto de mim, como diz, e sinto-me feliz, pois às vezes tenho
medo de que, na realidade, nem sequer exista.
Confiarei em si, esperá-la-ei, e estou encantado por continuar a escrever-lhe cartas que
confortem o seu coração e o seu espírito. Responderei a todas as perguntas sim, submeter-
me-ei contrafeito à sua determinação temporal ainda que não lhe veja nenhum sentido já
que, queridíssima Principessa, sou apenas um homem.
Mas hoje surgem-me dúvidas, não em relação ao seu belo espírito, à sua alma que inspira
e está cheia de inspiração, mas sim… como devo imaginá-la?
É alta, baixa, magra, gorda, tem cabelo escuro, loiro, será ruiva? Com que olhos me
fitará ternamente quando pronunciar o seu nome? Serão claros como o céu, verdes como a
água de uma lagoa ou escuros como uma castanha?
Por favor, desculpe a minha insistência. Se me conhece, e é evidente que me conhece
muito bem, deverá saber que gosto dos mais variados tipos de mulheres, mas após uma
conversa com um amigo que é professor de literatura e ao qual contei o meu segredo de uma
forma não totalmente voluntária, colocou-se a questão de se a senhora – tal como Cyrano
de Bergerac – não se esconde atrás de palavras bonitas pelo mesmo motivo pelo qual ele
odiava a luz do sol. Será a senhora assim tão feia?
Eu só consigo imaginá-la muito bela!
Madame Bergerac, por favor, confirme-me de imediato que o tamanho do seu nariz está
dentro de uns limites razoáveis.
Para que nada obstaculize os nossos beijos apaixonados.
Nisso confia,
O seu incorrigível Duc
Parecia incrível, mas nessa noite dormi pela primeira vez em vários dias.
Dormi profundamente, sem sonhar, sem incidentes incómodos nem visões
angustiantes de mulheres com narizes grandes.
Quando acordei chegou-me do exterior o bulício de uma qualquer
manhã parisiense, um raio de sol entrou curioso pelas cortinas de seda
azul e espreguicei-me por um momento na cama com a satisfação de quem
dormiu bem.
Decidi renunciar aos croissants de Odile e desfrutar em troca de um
pequeno-almoço ligeiro no jardim de inverno do Ladurée. A essa hora tão
matinal ainda estava vazio e tranquilo e era muito agradável sentarmo-nos
nesse pequeno oásis, debaixo das palmeiras e diante das trepadeiras de
tons verde-claro e turquesa pálido. E reparar nas hordas de miúdas
japonesas que faziam fila para levar uma bonita caixa cor-de-rosa pálido
ou verde-tília dos doces macarons que se exibiam na vitrina.
Vesti-me, arrumei um pouco a casa, abri uma lata de comida para
Cézanne. E pensei que tinha de ir urgentemente às compras.
Olhei várias vezes para a secretária onde repousava o meu portátil
fechado. A Principessa teria respondido? Dei voltas em torno da pequena
máquina branca como um gato que cerca um rato, queria guardar o melhor
para o fim.
Até que me sentei e abri-o.
A Principessa não tinha respondido. Eram oito e meia e não havia
mensagens para o Duc.
Não podia acreditar. Estaria ainda a dormir? Provavelmente nem sequer
tinha lido a minha carta da noite anterior. Ao fim e ao cabo não podia
pensar que toda a gente passe o dia e a noite a olhar para o computador só
porque eu o fazia. Ou será que Madame Bergerac se tinha ofendido por eu
ter duvidado da sua beleza? Seria a minha última frase assim tão
descarada? Teria cometido um erro terrível?
O meu desassossego crescia minuto a minuto. E se agora a Principessa
me ignorasse e não voltasse a escrever-me?
Tentei com a hipnose à distância.
«Vamos, Principessa, escreve-me!», sussurrei, mas esperei em vão um
suave «Pling!» que anunciasse a chegada de uma mensagem nova.
Quem chegou foi Cézanne que entrou na sala de estar a correr e sem
parar de ladrar. Levava a trela na boca. Tive de desatar a rir. Havia vida
para além da Principessa. E estava a dar-me os bons-dias.
– Está bem, Cézanne, já vou! – Devagar e com alguma resignação
fechei o portátil.
Quando depois de um longo passeio com Cézanne e um pequeno-
almoço no Café Ladurée entrei muito decidido na rue du Seine para
começar um novo dia, não imaginava que na galeria me esperava uma
surpresa picante.
Se está tão ansioso diante do computador à espera de uma resposta minha, não posso fazer
outra coisa senão escrever-lhe quanto antes.
Eu também estou contente por a questão do nariz estar clarificada, e gostaria de dissipar
qualquer réstia de dúvidas que ainda possa ter: não tenho nada a ver com uma rã horrível!
Se o seu olhar não tivesse estado tão desviado ter-se-ia dado conta há tempos. Algumas
coisas só se captam num segundo olhar, que às vezes é mais profundo do que um primeiro.
Encanta-me que o meu golpe ousado tenha surtido efeito. E, como suporá, não foi por
casualidade que escolhi precisamente Miss O’Murphy. Já sei que tenho de dar um pouco de
alimento não apenas aos seus ouvidos mas também aos seus olhos, mon Duc, e deve
desculpar-me por ter eleito um motivo que aviva as suas fantasias eróticas, apesar de
protestar «pela comida do faminto».
E não, não tenho medo. Nem da prazenteira vingança que me prometeu na sua última
carta nem de cumprir a doce promessa que lhe enviei com o quadro de Boucher.
Espero impaciente pelas duas.
Agora vou consigo, meu doce Duc, os seus desejos são ordens para mim. Esta noite é só
nossa!
Deixe que a sua mão deslize por todos os sítios permitidos e não permitidos, e em breve,
no momento que me pareça adequado, pegarei nessa mão e pô-la-ei entre as minhas coxas…
Durma bem!
La Principessa
Não sei onde se tinha acumulado todo o meu sangue quando cheguei ao
final dessa carta. Afastei-me da borda da secretária, reclinei-me na
poltrona e soltei com força todo o ar que tinha nos pulmões. Era incrível!
Essa carta era muito pior que a imagem mais atrevida de qualquer pintor,
chamasse-se ele Boucher ou não. Agarrei no copo e esvaziei-o de um
trago. Não podia pensar em dormir. Mas jurei a mim mesmo que a
Principessa também não iria pregar olho nessa noite «que era só nossa».
Dispunha-me a escrever-lhe uma carta que ia superar em muito a dela.
Ia ser como uma sombra ardente para ela e assegurar-me que se revirasse
inquieta por entre os lençóis até que se fizesse dia.
Os meus dedos voaram pelo teclado, escrevi sem parar até ao fim. Então
detive-me um instante, apertei lentamente a tecla que enviava a carta, e
um sorriso verdadeiramente triunfal iluminou a minha cara.
Carissima!
Não sei como a devo castigar por essa incrível observação com a qual finaliza a sua última
carta. Estou completamente fora de mim!
«…e então pegarei nessa mão e pô-la-ei entre as minhas coxas…» Uma coisa assim não
se pode dizer sem ser castigada, sem dar ao seu combatente amoroso a possibilidade de
igualar o ataque.
Daí o meu castigo: essa mão que dirigiu com tanta destreza vai mostrar-lhe o que é o
desejo, prometo-lhe.
Ainda não tem a menor ideia de que essa mão é capaz de provocar em si o mais profundo
gemido que alguma vez deixou escapar… algo muito especial. Pedirá a redenção aos
gritos… e eu não a concederei.
Não apagarei o seu fogo, não ouvirei as suas súplicas, submetê-la-ei às mais doces
torturas. E só muito, muito tempo depois, após a sua completa capitulação, quando eu
decida, a mão que chamou finalizará a obra que fará a sua felicidade total.
Ainda hoje não sei como aguentei as duas semanas seguintes. Ficaram
marcadas pelos preparativos da exposição, que se devia inaugurar em
inícios de junho, e pelas duzentas e vinte e três mensagens que troquei
com a Principessa.
No que me diz respeito, posso afirmar que durante as noites preenchidas
pelas nossas palavras ternas e excitantes e os mais belos sonhos não dormi
bem.
A pequena caixa do correio do meu computador tinha-se convertido na
minha prisão, que não queria abandonar porque tinha medo de perder
alguma carta da Principessa. Assim, ia de um lado para o outro como
Mercúrio, o mensageiro alado. Ia trabalhar à galeria e, se não fosse
Marion, a felicidade ter-me-ia feito esquecer de alguns encontros. Os
convites chegaram da gráfica e revelaram-se corretos. Tínhamos escolhido
como motivo dos cartões o quadro da mulher que quer alguma coisa mas
não sabe como consegui-lo, e o entusiasmo de Soleil não conhecia limites.
Fui várias vezes a casa dela para contemplar os quadros novos, que
normalmente pintava de noite e ajudei-a quanto pude sempre que precisou
de um conselho. Acompanhei Jane Hirstman e a sua entusiasta sobrinha,
que não teve quaisquer constrangimentos em me tratar por Jean-Luc, a
uma exposição de arte moderna no Grand Palais. Apresentei-me um par de
vezes no Duc de Saint-Simon para acertar os detalhes da exposição com
Mademoiselle Conti, que me pareceu menos formal e um pouco mais
acessível do que de outras vezes. Os seus cumprimentos eram cada dia
mais amáveis, acariciava o pescoço de Cézanne e dava-lhe uma taça com
água enquanto decidíamos onde colocar ou pendurar alguma coisa. E
quando se inteirou de que «Monsieur Charles» também vinha à exposição
e que precisaria do seu quarto, lançou-me um sorriso realmente radiante.
– Smile and the world smiles at you – trauteei, e embora nesses dias
dormisse menos que Napoleão nos seus melhores dias, percorria as ruas
de Paris animado e de muito bom humor.
Um dia combinei encontrar-me com Bruno no La Palette. Tinha-me
perdoado os gritos ao telefone, e insistiu em pagar a sua aposta, apesar de,
naturalmente, lamentar que a bela Soleil não fosse a mulher que
procurávamos. Na sua opinião teríamos feito um casal fantástico.
Continuámos a elucubrar um pouco mais diante de uma garrafa de
Veuve Cliquot e a seguir senti-me inquieto porque queria voltar para junto
da minha máquina maravilhosa para ler ou escrever cartas. Havia dias em
que saía a correr da galeria para a rue des Canettes só para ver se tinha
chegado correio para mim, e Marion apoiava a mão na sua pequena
cintura e olhava-me abanando a cabeça.
– Emagreceste, Jean-Luc, tens de comer – disse Aristide piscando os
olhos quando na sua jeudi fixe me pôs no prato a terceira fatia de tarte
tatin. – Vais precisar de forças.
Os restantes convidados riram-se sem saber muito bem porquê. Como
sempre, reinava um ambiente relaxado à mesa, mas devo admitir ter
ficado algo surpreendido que um pouco antes da sobremesa Soleil Chabon
e Julien d’Oviedo trocassem os números de telemóvel e se olhassem nos
olhos com demasiada intensidade.
Admito que senti uma levíssima mágoa, mas só uma muito pequena,
quando vi os dois jovens a descer as escadas entre risos, e conjeturei se
Soleil teria reiniciado a sua produção de figuras de pão.
Mas depois ajudei Aristide a lavar a loiça e voltei ao meu tema favorito.
Com algum receio, entreguei as cartas da Principessa ao meu amigo perito
em literatura, ainda que reconheça ter omitido algumas mensagens
particularmente picantes. Há muito que as cartas com a Principessa
tinham ultrapassado o limite da decência, se bem que também
comentássemos outros assuntos que por vezes eram muito engraçados e
divertidos e outras também muito pessoais, mas, infelizmente, por parte da
Principessa nunca suficientemente claros para me permitirem a mim,
vulgar mortal, tirar alguma conclusão.
Numa dessas noites sem dormir tínhamos falado dos «primeiros
amores» e eu, fazendo um esforço, contei à Principessa com todos os
detalhes a infeliz história que nem sequer os meus melhores amigos
conheciam. Se Lucille era a Principessa – uma opção que ainda estava
latente num recanto do meu coração, embora não o tivesse dito a Bruno
porque não queria voltar a discutir com ele –, por fim saberia realmente o
que se passou naquela época. Mas fosse quem fosse a mulher que ouviu a
minha confissão, reagiu com incrível ternura.
«Nenhuma carta de amor alguma vez foi escrita em vão, querido Duc,
nem sequer a sua» escreveu a Principessa. «Estou certa de que a sua
amiguinha sem coração hoje vê as coisas com outros olhos. De certeza
que essa foi a primeira carta que recebeu, e pode acreditar que ainda hoje
a conserva – esteja ou não casada – e às vezes ainda a tira com um sorriso
de uma caixa como se fosse um tesouro e pensa no rapaz com o qual
comeu o melhor gelado da sua vida.»
Meu querido Duc, advirto-o de que se volta a beijar essa bela americana no futuro terá de
renunciar à nossa correspondência… já vi bastante e marco desde já uma distância entre
nós.
A sua desgostosa Principessa
Marion achou que eu tinha muito mau aspeto (não estás doente, Jean-
Luc?). Soleil fitou-me com compaixão e perguntou se queria que me
fizesse uma figurinha de pão. Madame Vernier opinou que eu trabalhava
demasiado. Foi quando me surpreendeu a tentar abrir a sua caixa do
correio com a minha chave. Ofereceu-se para ficar com Cézanne se
necessitasse de algum tempo para mim.
E até a própria Mademoiselle Conti, a quem cumprimentei apressado
quando nessa mesma semana voltei ao hotel com Monsieur Tang porque
ele tinha gostado de um quadro me perguntou muito preocupada se estava
tudo bem.
– Não – disse. – De todo. – Encolhi os ombros e sorri forçadamente. –
Desculpe.
A minha infelicidade não se escondia de ninguém.
Assunto: Rendo-me!
Querida Principessa:
Ainda não me perdoou, e eu já não sei o que fazer. Com o seu silêncio feriu o meu coração,
o meu sistema imunitário e anímico está destroçado, e se EU lhe causei qualquer dano com
o meu descuido, pode estar certa de que A SENHORA me faz cem, não, mil vezes pior ao
manter-se silenciosa e distante.
Desculpo-me, peço-lhe perdão, arrependo-me terrivelmente de ter tido um momento de
debilidade e ainda que parecesse uma desculpa estúpida, aquele beijo não era para mais
ninguém senão para si!
Não vou deixar de a assediar com os meus rogos, pois não posso crer que aquilo que de
tão maravilhoso existe entre nós terminou. Não pode ser, não deve ser assim.
Só penso em SI!
Há poucas semanas eu era um galerista mais ou menos respeitável, hoje as suas palavras
e as suas cartas transformaram-me numa pessoa cujos sentimentos parecem mover-se numa
única direção… até si.
Quem diria?
Devo dizer-lhe que não posso descrever com palavras o quanto sinto a falta da nossa
troca de missivas. E eu? Não sente a minha falta? Esqueceu tudo o que imaginámos, os
nossos belos sonhos, as nossas ilusões? Já não significam nada?
Principessa, sinto muito a sua falta! Quero estar por fim consigo!
Sim, sinto curiosidade por si, admito. Mas não é a curiosidade do voyeur, não é uma
curiosidade que sirva apenas a minha própria satisfação. Não é uma curiosidade por
resolver um enigma que acabe com tudo.
Anseio com desespero amá-la como nunca ninguém a amou e respeitou.
Porque devo conformar-me com menos se a senhora é tão infinitamente rica, tão
insondável e inesgotável?
E como nunca a poderei conhecer de todo, não tem de se preocupar. Continuará sempre a
manter o mistério, disso estou seguro, manterá o mistério do seu poder sobre mim, com o
qual me pode dar e tirar tudo.
Nunca na vida tive ninguém tão perto de mim!
E tal como Cyrano de Bergerac, com o qual nestes dias me sinto identificado se bem que
o meu nariz não seja tão grande quanto o dele, afirmo solenemente: se não a vejo em breve,
o amor e a pena consumir-me-ão de tal maneira que os vermes do meu túmulo irão apenas
desfrutar de uma refeição frugal.
Assim, aqui está a minha redenção sem limites, assinada sexta-feira, 13 de junho, pouco
antes do amanhecer:
Amo-a!
Senti-me bem ao sentir como o líquido escuro e doce que bebi em grandes
tragos descia pelo meu corpo, mas tão-pouco me fez despertar por
completo. Sentia-me tão agitado como o esfregão de Marie-Thérèse que,
ao acabar de limpar, ela torce com força para espremer até à última gota.
Quando voltei ao computador, e me deixei cair na poltrona, estava
terrivelmente cansado.
Mas logo me senti desperto e feliz, e teria arrancado de raiz todas as
árvores do Jardin du Luxembourg!
A Principessa tinha respondido!
Nunca tinha aberto um e-mail com tanta pressa, nunca tinha lido com
tanta avidez. Quando vi o assunto parou-se-me o coração, mas de seguida
sorri com alívio e senti grandes ânsias de continuar a ler.
Reli o e-mail da Principessa dez, quinze vezes, não podia deixar de o
fazer. Era como se alguém tivesse iluminado a noite com um grande sol, e
de facto quando li a carta pela última vez, o sol já entrava pela janela e
refletia-se na minha secretária.
Não, não pode ser que os vermes dos cemitérios de Paris não tenham nada para comer no
seu corpo e acabem por morrer de inanição, reconheço. Os pequenos animaizinhos devem
refastelar-se com um banquete quando o senhor, meu querido Duc, chegue ao seu túmulo
feliz e bem alimentado. Mas isso será dentro de muitos e muitos anos, pois eu não estou
disposta a renunciar à sua companhia.
Ai, meu querido Duc! Brinco, mas na verdade tenho o coração a transbordar.
Tenho de admitir que a sua última palavra me deixou sem fala. Jamais na minha vida
recebi uma carta assim. As suas palavras percorreram o meu corpo como uma corrente de
calor e chegaram até aos capilares mais finos.
Foi o melhor presente que me podia ter dado, e com isso não me refiro à rendição sem
condições de um Duc que sabe manejar com destreza o seu florete, mas sim ao seu coração.
O seu maravilhoso coração ferido pelas flechas do amor.
Aceito-o de bom grado.
E agora que ouvi por fim as palavras que abriram a última câmara do meu temeroso e
orgulhoso coração, devo dizer-lhe que, desgraçadamente, esta será a última carta que a
Principessa escreve ao Duc.
O nosso jogo terminou, e o Duc e a Principessa terão que despojar-se dos seus disfarces,
dar as mãos, beijar-se e iniciar juntos um passeio pela vida real, seja qual for.
Assim digo-lhe «Adieu», mon Duc, e sussurro com carinho o teu nome: Jean-Luc
querido!
E agora ouve bem: vou colocar-te uma última adivinha que te levará até à tua
Principessa, que fechará esta conta de correio eletrónico quando tiver enviado este e-mail.
Não vamos precisar mais dele.
Encontrar-me-ás no fim do mundo… se bem que o fim do mundo não é sempre o final do
mundo. Procura-me lá dentro de três dias, 16 de junho, à hora azul.
Despeço-me até então, com o mais delicado de todos os beijos, pela última vez como
A sua Principessa
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Esse beijo que eu tinha esperado com mais desejo que nenhum outro; esse
beijo que tinha sido preparado durante tanto tempo por uma mão delicada;
esse beijo que foi o mais bonito que alguma vez vivi, não queria terminar.
O Duc tinha encontrado por fim a sua Principessa. Debaixo de um
mosquiteiro, nalgum ponto no final da rue du Bac, dois amantes estavam à
margem do tempo.
E se Aristide não me tivesse entretanto telefonado, talvez se tivessem
esquecido de nós na Au Bout du Monde. A encarregada da livraria teria
apagado as luzes, teria fechado a loja e nós nem sequer teríamos dado
conta.
Mas separámo-nos a contragosto e atendi o telefone.
– Sim, que se passa? – perguntei quase sem fôlego.
– Jean-Luc, já sei! Je tiens l’affaire! – exclamou o meu amigo, e não me
dei conta de que tinha usado as mesmas palavras que o meu famoso
antepassado quando decifrou a Pedra de Roseta no ardente Egito. –
Encontrei uma frase na primeira carta da Principessa que, agarra-te, está
retirada textualmente de um romance de Barbey d’Aurevilly. Chama-se A
cortina vermelha e sabes quem tinha esse livro na sua mesa e o estava a
ler? Não vais adivinhar!
Aristide fez uma pausa muito teatral, e eu afastei a Luisa uma madeixa
do seu cabelo despenteado, e o suave suspiro que soltou quando eu não
pude aguentar mais e rocei impaciente a sua boca com os meus lábios só
eu ouvi.
– É Luisa Conti! Luisa Conti é a Principessa! – Aristide gritou tanto que
Luisa também ouviu.
Afastei-me um instante dela e ambos sorrimos com cumplicidade.
– Eu sei, Aristide, eu sei – disse.
Epílogo