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— Tem razão.
Ela surpreendeu-se ao vê-lo admitir, arregalando os olhos e
arrancando um sorriso travesso do rosto dele. Os dentes não eram
alinhados, na verdade, beiravam até mesmo tons de amarelo, mas foi um
dos sorrisos mais lindos que ela já vira.
— E ainda admite?
— Um homem deve assumir seus atos, não?
— Não é nada...
***
— Já estou de volta.
— Estamos na sala, querida. — Uma voz responde, elevando
os sentidos de Lilly, fazendo-a seguir o som até a sala de jantar, onde o
café da manhã está exposto, e as janelas, abertas, fazem as cortinas de
renda dançarem suavemente, o bafo do exterior fazendo a maquiagem da
mãe manchar aos poucos. Até o final do dia, o contorno de seus olhos tão
perfeitamente alinhados já teria se formado em olheiras grosseiras.
Sua mãe estava sentada no lado esquerdo da mesa, passando
geleia de amora contra um daqueles pães macios que a garota nunca
lembrava o nome. A faca repousa ao lado do prato e a mãe a observa por
baixo dos longos cílios. A casa era uma construção rusticamente bela,
com tijolos vermelhos e grandes janelas quadrangulares, todas com
varandas em formato circular, o pé direito do andar inferior, com no
mínimo três metros, parecia suficientemente grande para suportar a altura
do pai, que passava dos 192 centímetros. Lilly puxara à mãe, e tinha sido
acolhida pela delicadeza de ter um metro e sessenta e cinco e, ainda
assim, conseguia parecer suntuosa em qualquer vestido que colocasse.
— Olá, mamãe...
— Como assim?
A mãe engoliu em seco e a saliva pareceu dolorosa de descer,
como se engolisse algo tão duro quanto uma das pílulas que um médico
lhe receitara para quando tivesse enxaqueca. A mãe pressionou as
têmporas e respirou fundo.
— Seu pai gostaria de conversar com você.
Lilly contraiu os ombros e tentou manter-se inexpressiva, mas o
brilho em seus olhos mudou, fazendo a mãe prosseguir:
— Sabe que ele se preocupa. — Então, não como uma
represália, mas como um aviso, a mãe repousou os olhos sobre o livro de
capa azul, que a garota rapidamente colocou sobre o colo. — Sabe que
andar com esses livros só pode piorar as coisas, não sabe?
filha não chegou a herdar, e eles quase saltaram de seu rosto. — Você
poderá ler, porém dentre minhas restrições. Se seu pai descobre o que
mas agora que somos três, está muito caro para ir. — A mãe gesticulou
com as mãos perto das sobrancelhas desenhadas, que abriram em arcos
se resumem ao físico. — Agora vá, deve falar com seu pai. Ele está no
escritório.
Se você dissesse o nome Willian Talbot em qualquer lugar do
centro de Eastbourne, as pessoas se exaltariam. Talbot!? O Talbot das
embarcações Talbot!? A questão é: o pai de Lilly comandava os centros
comerciais de pesca, sendo o responsável por quase mais da metade do
suprimento de peixe de todo o local. Mas, ainda assim, Lucian Campbell
não se exaltou e nem ao menos pareceu surpreender-se com o
sobrenome dela. Talvez isso, essa pequena mudança na rotina, tenha
feito com que ela se interessasse ainda mais por ele. Porque, sim, Lilly
não conseguiu parar de pensar na profundez daquele olhar e no quão
lindo ele ficara ao sorrir para ela. Mas nem mesmo o pensar nele a
acalmou o suficiente enquanto subia os degraus forrados de carpete
italiano, passando ao lado das fotografias escuras da família.
Numa delas, estava apenas a garota e a mãe, porque, aos seis
anos, seu pai se ausentou por sete meses. Ela não o viu por todo este
tempo, embora desejasse que estivesse bem. Ao retornar, o homem
parecia desolado. Ele disse à esposa que os piratas haviam saqueado o
barco em que estava, e que fora difícil se comunicar com outro. Lilly ouvira
toda a conversa quando menor, e a palavra “pirata” permaneceu em seu
consciente por uma semana inteira, ficando escondida atrás da porta do
escritório, a mesma na qual dava duas batidas e pedia permissão para
entrar.
— Sim, entre! — chamou a voz do pai, grave e rouca, sério e
impassível.
Lilly abriu a porta ouvindo seu ranger delicado, o peso da madeira
pura forçando seus braços. O escritório de seu pai era um local de janelas
altas e retangulares, com uma cortina esverdeada que tampava a
passagem da luz, a não ser em suas beiradas, nas quais um feixe ou
outro conseguia escapar. Havia livros no lado direito e ainda mais livros no
lado esquerdo. Seu pai simplesmente a mataria se descobrisse que
entrava ali, escondida, para apanhar livros desde pequena, segurando o
peso das páginas com bracinhos frágeis quando tinha sete anos.
Ela caminhou até ele, o vestido raspando pelo piso forrado de um
carpete vinho. Lilly parou na frente da mesa na qual o homem se escondia
atrás de pilhas de uma papelada complicada demais para ela, ele diria.
— O senhor queria me ver, papai? — Ela disse sem olhar
diretamente em seus olhos, sentando-se na frente dele, colocando as
mãos sobre as camadas de tecido e sentindo sua maciez.
— Não!
Querida Lilly,
Fomos ao teatro e voltaremos após o cair da noite, mas não precisa
esperar-nos acordada. Espero que, até amanhã de manhã, já tenha se
acalmado e esteja disposta a conversar
Mamãe.
Ah, sim. Aquela era noite de teatro. Com tudo o que acontecera
pela manhã, Lilly se esquecera por completo de que, todas as terças-
feiras, os pais iam assistir a uma das novas peças que o teatro municipal
exibia. Ela olhou para cima, para a sombra que se formava, fugindo da
luz. Seu estômago roncou nesse momento, dolorido, avisando-a de que
precisava ser alimentado.
Agora, com a vela acesa e as cortinas abertas, a garota vasculhava
os armários. Um saco de biscoitos e um peixe velho enfurnado em sal.
Era tudo o que havia ali, e a ausência de Alga ainda era um mistério.
Talvez mamãe a tenha dispensado mais cedo, ela pensou.
Lilly respirou fundo, apanhando a vela e subindo as escadas
novamente apenas para, em seguida, caçar algumas moedas que tinha
guardado em seu quarto, num canto escondido de sua penteadeira.
Aproveitando que já estava ali, ela trocou de roupas, sentindo o alívio do
corselete desgrudando de seu corpo e permitindo que seus seios
tivessem o caimento natural, o frescor repentino do ar tocando o suor da
pele enquanto ela colocava sobre seu corpo um vestido rosa com
arabescos brancos em suas mangas. A garota se olhou no espelho por
alguns instantes, observando a palidez de seu pescoço enquanto jogava
suas madeixas castanhas por cima dos ombros.
Lilly desceu os degraus da escada, apagou a vela e saiu em
direção à rua, algumas moedas numa bolsinha feita à mão e um falso
sorriso de donzela estampado em seus lábios finos como folhas no
inverno.
No caminho à boulangerie, Lilly ainda tentava decidir o que
comeria. Talvez comprasse um pão, mesmo este já estando envelhecido.
Sua ideia foi destruída ao ver uma placa de fechado estampando a
fachada da padaria mais próxima à sua casa. Sua segunda opção fora
mexilhões fritos, que um homem gordinho e baixinho passou oferecendo
aos berros, mas eles não lhe agradavam, então ela decidiu apenas voltar
para casa. Uma viagem perdida, ela pensou, mas algo cintilou em seu
olhar, o reflexo do mar chamando por ela para um detalhe inesperado
naquela figura sempre tão nova. A garota olhou para os dois lados e
atravessou a rua, estreitando seus olhos na direção da maré, e ela viu
uma figura estranha nas ondas salgadas.
Lilly acelerou o passo em direção à grade que separava as rochas
da praia de um canteiro de flores e a calçada. Ela abriu o portão,
apressada e, logo em seguida, sentiu o pisar duro contra o cimento batido
e cascalhos ser substituído pelas pequenas pedras que formavam a praia,
sentindo a brisa salgada tomando seu corpo, refrescando o colo de seus
seios e seu pescoço, tornando-o esguio conforme lançava os cabelos
para trás e as ondas levemente batiam contra seus sapatos brancos,
próximos à orla, onde a figura ainda misteriosa pareceu se aproximar dela.
Lilly não se importou com o sal que impregnara seu calçado. Ela apenas
queria apanhar aquilo que boiava na superfície, que lutava para não se
perder na vastidão azul do mar. Um livro. Ela avistou um livro sobre as
ondas calmas.
Como se o objeto quisesse ser salvo, ele flutuou até a garota,
encaixando em seus dedos como uma luva rendada que ela guardava no
armário de casa, próximo à penteadeira.
Ela riu. O que acabara de fazer? Estava ali, sozinha, no meio do
anoitecer, agarrada a um livro encharcado que ela nunca vira antes. A
ideia fez sua mente descansar e gargalhar. Um sorriso abriu em seu rosto
ao dedilhar a capa, sentindo sua maciez úmida e tão frágil. Lilly virou o
livro, procurando por seu título, contudo nada havia ali. Ela sorriu
novamente e deixou escapar uma risada, não acreditando que quase
entrara na água por um livro.
Lilly passou a mão esquerda por sobre a barra de seu vestido,
alinhando-o enquanto se levantava, a saia arredondada cobrindo seus pés
encharcados conforme voltava a tocar as rochas.
— Ei! — Um homem a chamou, fazendo-a arregalar seus
olhos num súbito, o coração acelerando.
Não, não podia ser seu pai. Teria ele já saído do teatro? Não... sua
voz não era tão aveludada quanto aquela...
— Coloque esse livro de volta no lugar dele, sua ladra! — A
voz a acusou.
Lilly estreitou seu olhar por entre a noite anil, tentando olhar pela
luz da lua que acabava de se fixar no alto do céu enegrecido. Era um
rapaz alto e de cabelos escuros, com uma palidez estranhamente bela...
suas bochechas ficaram vermelhas e seu sangue ferveu ao reconhecê-
lo... era ele... Lucian, o rapaz que a abordara no café mais cedo e distraíra
sua leitura.
— Ladra? — Foi a única coisa que ela pôde indagar ao vê-lo
se aproximando dela numa velocidade indelicada demais, com sua blusa
branca aberta, sem o botão que a manteria fechada, grudando em seu
peito e um par de calças esburacadas e um cinto de couro ao redor da
cintura fina.
incomum uma mulher ler. Nunca disse que não gostava de fazê-lo. —
Ele tentou apanhar a capa do livro, no entanto a garota desviou de seu
golpe, jogando seu corpo para o lado, os ombros indo para trás e as
clavículas sendo desenhadas pelo suave luar. Uma onda bateu contra
uma rocha, a espuma borbulhando como uma espécie de sinal de que, um
dia, uma onda estivera ali. — Talvez sua memória não seja tão boa
— Não gosto que me rotulem, senhorita Talbot. — Sua voz soou quase
— Saia da frente!
e caí sobre alguém... Lucian... — Ela olhou para ele. — O nome dele é
Lucian.
O pai pareceu ainda mais furioso ao ouvir o nome do rapaz; era
possível ver as narinas dilatadas e os punhos cerrados. Agora que já
estava de pé, sua altura descomunal afligiria a qualquer um, embora cada
parte do corpo dela estivesse disposta a lutar.
— Não há por que machucá-lo por um erro que eu cometi,
papai. — Ela não saiu da frente do rapaz, pelo contrário, estendeu sua
mão para ajudá-lo a levantar, vendo-o grunhir conforme as pernas se
esticavam e ele pressionava as costas da mão direita contra o lábio
inferior, dolorido.
— Essa sua... essa sua compulsão por leitura... Irá morrer por
cruel conforme ele abria o livro. — E se eu digo que minha filha não irá
***
estendeu o braço para ela. — A não ser que estivesse indo a algum
outro lugar. Se for o caso, ainda gostaria de acompanhá-la.
Lilly olhou de esguelha novamente para a boulangerie. Lucian
estava sentado próximo a uma das janelas, um copo vazio sendo utilizado
como uma espécie de entretenimento banal. Ele parecia decepcionado.
Frustrado, no mínimo. Talvez estivesse esperando por ela, porém a ideia
pareceu improvável demais ao seu pensamento e ela não quis ir até ele,
embora seus sentidos a dissessem para ir.
— Estava indo a algum lugar, senhorita?
Lilly virou-se, os olhos serenos ao dizer:
— Não. Na verdade, estava justamente indo para casa.
***
campo visual de sua mãe por completo. — Ele me trouxe de volta para
casa.
— Ela não disse mais nada, apenas se virou e andou com passos
rápidos até a cozinha, onde tentou esconder a vassoura atrás da porta
que dividia o ambiente da sala de estar com o da cozinha.
Lilly ainda estava na rua, seu vestido começando a pesar-lhe sobre
as pernas.
— Acho que invertemos os papéis — brincou com um sorriso
galanteador e os olhos verdes brilhando com a claridade, como
esmeraldas líquidas.
uma surpresa vê-lo aqui tão cedo. — Ele tinha uma pena na mão direita,
que molhava num tinteiro quadrangular. William parou de escrever,
batendo a ponta da pena contra a superfície da mesa, evitando borrar o
— Não, obrigado.
suor escorrendo pela nuca. — Piratas nos atacaram. Creio que tenham
vindo pelo English Channel, e quando os percebemos já era tarde.
Ordenei que os marujos fizessem o contorno a Oeste, mas havia rochas
demais que poderiam ameaçar a estrutura do Sereia Escarlate. Eles nos
interceptaram, ameaçando disparar os canhões, e subiram a bordo.
— Nada.
O velho Talbot franziu o cenho, confuso.
— Então não houve perdas?
— Aviso?
— Sim, senhor.
atento. — Sinto que sua tática não tenha funcionado. É realmente uma
pena, senhor Pelletier. — Ele disse com a voz seca e sem emoção,
— Veio até aqui e espero que não seja apenas para me dar a
— Sim, senhor.
— Por favor, senhor Pelletier. Pode ser sincero comigo. Sei que
minha filha é de encher os olhos, todos dizem isso.
Sebastian baixou o olhar por alguns segundos, analisando o
carpete vinho-tinto, os pés cobertos por sapatos sociais lustrosos, quase
como piche, de bico quadrangular.
— Ela tem uma beleza... inquietante, senhor.
Lilly mordiscou o lábio inferior. Mantinha o ouvido colado à porta já
havia algum tempo, os seios comprimidos pelo corset azul-claro, as mãos
espalmadas na passagem com tamanha delicadeza que pareciam ter sido
moldadas junto à madeira, alguns fios de seus cabelos caíam-lhe ao lado
de seu rosto, a respiração calma e os olhos arregalados, ouvidos atentos
a cada som.
— Inquietante? — William jogou-se para trás e, mais uma vez,
colocou a mão sob sua barriga. Olhos analíticos. — O que lhe faz
pensar isso?
Sebastian tentou esconder um sorriso, falhando miseravelmente,
fazendo o pai perguntar:
— O que há de engraçado, meu caro?
— E um marido não?
Heather ergueu uma sobrancelha enquanto engolia em seco.
— Sabe o que quis dizer. O senhor Talbot...
vinda. — Lilly a convidou com a voz um tanto abatida, pensando que lhe
foram atribuídos tantos privilégios, e ela os detestava de alguma forma.
— Heather, eu...
— Como assim?
Heather riu antes de responder:
— Quem foi o rapaz que você conheceu?
Elas passaram ao lado de um exibidor de madeira e porta de vidro,
onde os idosos outrora estiveram, os sulcos perfeitamente organizados
em frascos pequenos que se empoeiravam, assumindo diversas cores,
desde um verde-lodo até o mais puro branco. Embaixo delas, em outra
prateleira, havia pequenos pacotes, fechados minuciosamente por linhas
prateadas, que guardavam sementes a serem plantadas no decorrer do
ano. O calor era propício a muitas delas, mas havia flores que se
desenvolviam melhor no frio. É curioso o modo como alguns se adaptam
mais a determinado tipo de ambiente. Vivem mais. Crescem mais. Se
libertam mais. Bom, talvez os humanos devessem aprender um pouco
com as flores.
— É um lorde? Duque?
Mas antes de responder, por algum motivo, outro nome veio à sua
mente que não o de Lucian, levando-a a responder:
— Ele é um capitão, na verdade.
Heather arregalou os olhos, seu sack dress marrom tirando-lhe a
forma enquanto ela respirava fundo e arregalava os olhos, surpresa.
— Será que seu pai o conhece?
Lilly deixou uma risada curta escapar enquanto fios de seu cabelo
tombavam nas laterais do rosto.
— Na verdade, ele foi até minha casa ontem de manhã.
— Ainda...
Lilly bufou.
— Se dependesse de meu pai, já estaria casada há mais de
dois anos.
ele, retribuindo o sorriso. — Está tudo bem? Não esperava vê-la hoje.
***
Lucian corria de um lado para o outro, seus cabelos dourados
grudados na testa com seu suor salgado, reluzente ao sol forte. Ele pulou
da proa em direção ao convés, as cordas maltrapilhas balançando como
serpentes no ar enquanto as botas dele batiam contra a madeira.
— Controlem as cordas, homens! Se não o fizerem, o navio
firmes e rápidos. — Não precisava ter escrito bilhete tão odioso, senhor
Campbell.
— E?
chegar, senhor Campbell. — Lilly inclinou o rosto assim como ele fizera
instantes atrás, apoiando a bochecha esquerda sobre os joelhos,
analisando-o curiosamente.
— Eu sei disso, por isso os levarei até aquele café que nos
encontramos pela primeira vez.
por si só. — Acho que há muito que ainda não conhece, e não é certo
uma pessoa se privar de tais coisas.
Campbell. — Ela o provocou, assim como ele fizera dias atrás, e Lucian
lembrou disso, porque um sorriso estampou-se no mesmo instante em seu
rosto.
veemente com sua cabeça. — A vida é muito mais do que isso, Lilly.
Temos de saber viver.
E então, ela permitiu-se dar uma última olhada na vista daquele dia,
desde a espuma das ondas até os telhados pontudos e o calor que subia
em espirais nos cascalhos estaladores.
— Nós temos que saber viver. — Ela repetiu, virando-se para
ele com um brilho no olhar que o fez sorrir ao dizer:
— Assustou-me, mamãe.
A mulher estava sentada com os olhos na direção da janela da
sala, a qual permitia a entrada oblíqua de uma luz fraca dos primeiros
raios de sol, suficientemente quentes para Lilly e o bastante para refletir o
rosto em demasia maquiado, com lábios vermelhos cor de sangue, de sua
mãe, que trajava sabe-se lá que modelo de vestimenta rendada, tão
perdida em camadas que tornava-se uma poluição ao olhar. Célia tinha
agulhas na mão direita, espetadas em pequenos suportes de algodão feito
por ela mesma, o tecido rosado na outra mão já possuía bordados e
arabescos em suas extremidades.
— O que a senhora está fazendo? — Lilly perguntou,
aproximando-se com passos leves e quietos, que não abafaram os leves
ruídos que vinham da cozinha, onde os novos criados ainda lutavam para
se acostumar com o novo espaço de trabalho.
— Teremos um baile em apenas nove dias, minha filha —
admitiu com certo cansaço, desejando que a filha não começasse uma
discussão. Estava sem forças para ganhar qualquer protesto naquele
pelo menos. — Célia pareceu suspirar por entre o fim da frase, como se
o evento fosse um fardo para ambas, os ombros abaixando com o
movimento.
***
tivesse reprimido, como ela de fato fizera — dizendo que não era certo
***
Sem nem ao menos perceber, a hora do almoço já se aproximava
e, com isso, a volta de Lucian se tornava cada vez mais provável e
***
— Sim, mamãe?
A mulher fez menção de entrar nos aposentos da filha, carregando
um pequenino candelabro, onde uma vela acesa tornava o colo dos seios
da mãe mais quente do que deveria, ainda que estivessem cobertos com
uma camisola de tecido fino e, como sempre, importado, mas deteve-se
com o pé esquerdo ainda no batente enquanto dizia:
— Você está feliz?
Aquela pergunta fez o sorriso no rosto de Lilly fraquejar. Não
esperava por aquilo, e uma súbita melancolia acometeu seu corpo assim
como as sombras de seu quarto, que se esgueiravam pelo chão, fugindo
da luz bruxuleante da vela.
— O que quer dizer, mamãe? — indagou a garota apenas
para ganhar tempo. Queria dizer que os únicos momentos em que
realmente estava feliz eram com Lucian. Mas, como sua mãe reagiria?
Como ela ficaria ao saber que sua filha estava planejando fugir pela janela
de seu quarto para encontrar com um rapaz que conhecera no porto
assim que ela fechasse a porta novamente?
***
suas mãos, colando-as quase em seus peitos, ora largos ora esguios —
uma variação da forma humana que os tornava interessantes por
excelência. O que tinha o nariz mais avantajado e que usava óculos
bifocais, talvez o mais velho ali, se chamava Thadeo, e ele tinha, segundo
Lucian, uma mania compulsiva de ficar mascando tabaco. O segundo foi
Morty, que tinha cabelos tão longos quanto os dela e que fitava os outros
quase como inimigos, rindo da desgraça alheia quando eles erravam a
jogada e tinha de apanhar uma carta do monte de cartas colocado no
centro deles. Depois foram os irmãos Duart e Gabe, gêmeos fraternos,
que se diferenciavam somente por um deles ter uma cicatriz no pescoço,
resultado de um acidente que Lucian disse que explicava mais tarde. Por
fim, passaram por Henry, o único de pele verdadeiramente escura, e
depois terminaram com Lucian, que arrastou um balde metálico e pediu
para que ela se sentasse, batendo sobre a superfície enquanto um
homem tropeçava atrás deles e caía de cara contra o convés, sua caneca
com rum voando no lado oposto.
— Eu disse não.
— Sente-se.
senhorita. — Ele a fitou, mas não afastou seu rosto, permitindo que seus
lábios estivessem tão perto do rosto dela que até mesmo sua respiração
se tornava um toque acessível. Ela pairou por alguns segundos, as
belezas de seus traços rústicos enquanto os cabelos penteados lhe
atribuíam um maxilar mais rígido, simétrico e que refletia o luar.
— E por isso achou que poderia esgueirar-se por sobre meu
— Exatamente.
Ela riu, balançando a cabeça de um lado para o outro enquanto
todos olhavam para eles, fazendo-a corar, franzir os lábios e fitar as cartas
em suas mãos.
— Vamos lá, vamos ganhar desses escrotos. — Lilly disse,
forçando a última palavra a sair de sua garganta e deixando uma curta
menos briguem com honra. — Por um curto momento, ele fitou a garota
Talbot por sobre seu ombro, um sorriso levado no rosto enquanto
***
não se pode forçar, ele só... acontece. — Agora, Henry fez questão de
que Lilly o olhasse atentamente, como se fosse lhe contar um segredo
***
— William...
— Deveria?
— Ainda não!
— Mas o August...
— O beijo?
— Foi... bom.
Heather pareceu decepcionada.
— Jura? É só isso o que tem a me dizer?
— Ridículo?
maneira. Provavelmente ele iria rir. Ele tinha um humor peculiar. — Sei
que não está tão acostumado com a presença deles. É perfeitamente
compreensível, no seu caso.
Heather riu, mas conteve-se, levando sua mão sobre a boca para
esconder seu riso, porém, ao observar a expressão satisfeita de August,
ela relaxou e deixou que seus ânimos, junto às regras de etiqueta,
suavizassem enquanto apanhava o braço dele.
— Acredito que devemos entrar. — August anunciou enquanto
minha mãe nunca achou certo ferir os animais. — Bom, talvez ele
soubesse o que fazer, afinal ao passar por um dos corredores, Lilly não
pudera deixar de notar a coleção de armas expostas numa prateleira
protegida por uma tela de vidro.
sentiu seu coração parar. — Um baile feito pelo senhor William Talbot.
Heather olhou para Lilly, que tentava engolir um novo gole do chá,
mas que agora, com aquela maldita frase dita, parecia serragem em sua
boca e tornava-se intragável. Ela deixou a xícara de lado.
— Perdoe-me por isso, senhor Denver. — Foi a única coisa
que conseguiu escapar dos lábios da garota Talbot, tão impassíveis que
conseguiam esconder a dor que ela sentiu em seu coração. O que tivera
fora um sonho perfeito demais, e aquela era a realidade. O baile ainda ia
acontecer. Ela ainda seria forçada a casar, de fato. — Meu pai acredita
que seja melhor que eu arranje um marido o mais rápido possível.
***
mente, aflita, para que eles parassem. — J-Je ne parle pas fraçais —
— O quê?
— Mas...
cada fibra de seu corpo sentisse medo. — Mas, antes, vou deixar que
meus companheiros se divirtam com você.
E então ele deu alguma ordem que ela não conseguiu ouvir.
O medo silenciou seus ouvidos.
Lilly sentiu seu braço sendo puxado para trás, arrastando-a pela
terra.
O homem ria.
As pernas dela chutavam o ar em meio ao tecido do vestido, que
desfiava.
O ladrão mais alto pareceu incomodado, porém nada fez.
Ela sentiu o coração doer tanto quanto seu seio direito, apanhado
descaradamente por um deles.
A garota gritou, o agudo cortando o véu quente da noite, e foi aí
que tudo mudou. Ele pareceu surgir das sombras. Ninguém ouviu os
cascos de seu cavalo, muito menos o engatilhar de sua pistola. Mas
ouviram os tiros. O primeiro dilacerou o olho esquerdo do homem que
agarrava a garota, tombando-o em agonia. Lilly empurrou para longe o
ladrão que agarrava seu seio enquanto ele estava distraído, mas não por
muito tempo, pois um segundo projétil disparou pela noite, arrebentando
sua cabeça. Novos respingos vermelhos mancharam a terra.
O corpo do animal surgiu na frente dela. Forte. Firme. Os pelos
castanhos e lisos. A crina perfeita enquanto Sebastian Pelletier
empunhava sua pistola em meio às sombras com uma mira quase
perfeita. Mas fora esse quase que fizera o ladrão moreno escapar, o braço
sangrando por uma bala que lhe pegou de raspão.
— Fique perto de mim. — Ele ordenou ao pular do cavalo, sua
farda branca perfeitamente colada ao corpo enquanto os olhos verdes
procuravam pelo perigo. Não precisaram se esforçar muito, pois o
barbudo já estava de pé, brandindo sua pistola na direção deles enquanto
gritava. Sebastian a empurrou com seu corpo, indo para a direita, o projétil
passando por eles e acertando o último companheiro do ladrão.
— Como assim?
— Sim.
***
Não fora fácil trazer Heather de volta à consciência. Na verdade,
fora necessário que Sebastian pegasse seu cantil e aproximasse o álcool
das narinas dela e, ainda assim, os olhos da garota abriram-se
hesitantemente. Tampouco tiveram tempo para explicações, apenas
montaram no cavalo junto a Sebastian, o capitão carregando a amiga de
Lilly no braço esquerdo enquanto conduzia o animal com o direito e,
embora tivessem se distanciado dos corpos que ficaram na estrada,
abandonados aos corvos, a garota ainda sentia como se a morte
estivesse perto de sua silhueta, à espreita.
O cavalo foi guiado até uma pequena taverna mais ao sul, próxima
da entrada de Eastbourne. Heather precisava de cuidados médicos e a
viagem seria árdua demais para ela para ser feita por completo, assim
Lilly e Pelletier concordaram em fazerem uma pequena pausa. Agora,
enquanto limpava o sangue de seu rosto com um lenço que o homem
tirara do bolso de sua farda, a garota pensava em como seu pai se
zangaria. No quanto iria gritar... e até mesmo talvez...
— Lilly. — Sebastian a chamou, tocando-a suavemente no
braço, vendo-a dar um pulo para trás, assustada. A ideia de o pai bater-
— Está tudo bem. — Ela disse, embora era óbvio que não
— Paguei para que fiquemos aqui até amanhã, até que eu consiga trazer
um médico para ela. — Os olhos dele tornaram-se afáveis ao ver o
estado de Lilly, com seus cabelos desgrenhados, as sobrancelhas
— Não...
a noite aqui e... eu lhe explico o que são as cartas de corso — propôs,
vendo-a arregalar os olhos ao ouvir as últimas palavras, o luar fraquejando
com algumas nuvens que lhe tapavam o brilho. — Depois, a levarei para
casa e explicarei tudo o que ocorreu ao seu pai, está bem?
Ela disse que sim. De fato, tanto fazia se chegasse agora ou mais
tarde, a reação de seu pai seria a mesma, e Lilly sabia que não tinha,
como sempre, outra escolha.
***
As estalagens não eram lá essas coisas e, possivelmente, aquele
fosse o lugar mais grosseiro e inóspito a uma dama da alta sociedade que
Lilly já entrara. Era feito de rochas, das mais diversas, com paredes
decoradas por bandeiras coloridas, o ar era uma mistura de alcatrão,
fumaça de charutos e lúpulo, o qual inundava as canecas de madeira que
homens grosseirões agarravam com tanto fervor enquanto riam, as mãos
apoiadas nas barrigas gordas conforme a única mulher, a esposa do
estaleiro, lhes servia uma nova rodada. Sebastian os apresentou à
esposa, Alberta, que indicou a eles onde dormiriam, mas que só estariam
autorizados a subir para os quartos quando todos já tivessem ido embora.
Lilly estranhou, mas na atual conjuntura não puderam praguejar muito, já
que conseguiram convencer a mulher a permitir que ao menos Heather já
ocupasse o quarto. De cara feia e resmungando, ela pediu para que
aguardassem enquanto subia os degraus tortos e desaparecia no andar
superior, voltando alguns minutos depois, pedindo para que ele levasse a
garota para cima.
— A senhorita me espera aqui? — Ele perguntou por mera
formalidade, já que Lilly não sairia daquele lugar. Na verdade, seus pés
até mesmo pareciam congelados naquele pequeno quadrado sem poeira
que ela encontrara entre as tábuas que formavam o piso.
Sebastian subira e Lilly virou-se num salto, ainda arisca. — O que é isso
em sua saia?
Hesitante, os olhos dela fitaram o vestido e os respingos vermelhos
do sangue daqueles que morreram ainda estavam ali, manchando o
tecido perfeito e as rosas bordadas.
— É apenas tinta de meu atelier, senhor — respondeu em
uma mentira, a voz mais firme do que pensou que sairia enquanto já
assistia, para seu alívio, ao retorno de Sebastian, as luvas brancas
penteando os cabelos para trás enquanto a guiava para uma mesa mais
ao longe, escondida no canto da taverna, longe dos beberrões.
— Quem?
— O homem na mesa.
***
A taverna permaneceu quente e úmida mesmo quando metade
daqueles que uma hora a ocuparam já tinha ido embora. A garota
esforçava-se para comer, mexendo com certa ânsia aquele purê e
ervilhas, vendo sua textura gosmenta misturando-se com o molho do
peixe, que parecia ter caído no chão empoeirado e depois cozido.
— Por onde a senhorita quer que eu comece?
sentiu o rosto queimar. — Senhor Pelletier, o que isso tem a ver com
meu pai?
— Eu não sei.
O olhar dela o reprimiu, evidentemente desacreditada.
— É plausível que desconfie de mim, senhorita Talbot, mas
realmente não tenho conhecimento sobre o porquê pediram pelas cartas
quando a atacaram.
— Perdão?
noite. — Pelo seu olhar, creio que ainda não esteja satisfeita com minhas
respostas.
Lilly sentiu os ombros relaxarem enquanto permitia que o ar, que
ela nem percebera que estava prendendo, saísse de seus pulmões.
— Acho que só preciso molhar o rosto um pouco. — Ela se
— Lilly...
***
— Henry...
Capítulo X
Aquilo que os olhos não podem ver
As risadas calorosas que dominavam a sala de jantar de Célia
Talbot não conseguiam aquietar o ego inflado de Helga Deadland, uma
viúva com posses ao sul, considerada por muitos uma rica sortuda. Seus
cabelos ruivos queimavam tão ardentemente quanto o fogo da lareira da
sala de estar, onde William andava de um lado para o outro, tenso, um
leve ressonar abafado entre as palavras gordurentas da mulher, seus
lábios salivavam por boatos que seriam espalhados a todos o mais rápido
possível. Seu vestido preto não conseguia ocultar seus seios
exacerbadamente grandes, que atraíam olhares, considerados por muitos,
indesejáveis, mas não para Helga Deadland. A mulher vangloriava-se de
seus dotes, exibindo-os sempre que podia; suas curvas sempre inchadas
devido ao constante hábito de comer doces recheados e frango frito, mas
sem perder a classe, é claro.
Numa noite, Helga sentira-se solitária. O marido havia falecido há
duas semanas quando a mulher caminhara escondida até a cozinha,
fugindo de seus funcionários, começando a cortar pedaços de um bolo de
creme com morangos frescos. Naquela noite, o bolo deixou de existir em
questão de horas. Célia sentia pena da viúva algumas vezes, contudo, na
maior parte do tempo, a personagem gorda e risonha que Helga criara
apagava todo esse sentimento.
— Acredita que, então, o senhor Lasston apanhou uma garrafa
— Dizem que Lilly, sua filha, foi vista outro dia perto do porto...
para expor isso. — Dizem que ela correu em direção ao Beachy Head
Tenha certeza que, assim que eu o fizer, lhe avisarei. — Ela se levantou,
arrastando a cadeira com seu enorme traseiro. Na verdade, tudo nela era
enorme, desde seu gordo pescoço até seus tornozelos grossos. — Mas
não se preocupe tanto assim, afinal, ela está com um banqueiro! Bom...
— Ela pensou por alguns segundos. — ... apesar que eles têm contas
bancárias grandes demais se comparadas aos seus...
Mas graças aos céus Célia não teve de ouvir o final daquela frase
maliciosa demais para uma manhã costeira. Os sons de galopes contra
cascalhos mornos abafaram a voz da mulher e fizeram a senhora Talbot
saltar de sua cadeira, correndo na direção da porta da entrada, onde
William já havia se prontificado. Ambos se olharam, mas sem palavras
entre si, e abriram a porta rapidamente, o calor da manhã envolvendo-os
enquanto a figura de Lilly surgia na frente deles, montada em um cavalo
de pelagem branca, tão macia quantos as nuvens dos céus, Sebastian
Pelletier guiando o animal com maestria enquanto fazia-o parar na frente
da casa.
— Ah, meu Deus, Lilly! — Célia agarrou as dobras do vestido e
correu os degraus da entrada, sentindo os pés esmagando os cascalhos
enquanto a garota escorregava de cima do cavalo e grunhia enquanto os
garganta. — Pensei...
Lilly exibiu um sorriso amarelo, olheiras profundas em seu rosto
abatido enquanto os fios dos cabelos emaranhados eram levados com o
vento.
— Estou bem, mamãe. — A garota reforçou, mas todo o medo
na alma da mulher ainda a faria chorar muito.
William desceu dos degraus, sorrateiro, os passos com baques
surdos.
— Creio que haja um motivo para tal atraso — vociferou ele.
— Lilly...
— Lilly...
— Chega, Lilly.
***
***
Retornar para casa antes do anoitecer foi uma tarefa que lhe
pareceu ainda mais difícil, no entanto nada poderia prepará-la para aquele
maldito jantar, onde os olhos de William Talbot pareciam tão fixos nela
quanto a certeza que já crescia em seu peito de que Lucian Campbell
havia mentido.
Sim. Era isso o que ela formulava em sua mente. Afinal, por que ele
sumiria? Não o via há alguns dias porque sua mãe insistia em deixá-la em
casa, mas hoje, quando finalmente saiu, ele não apareceu. Não estava
esperando por ela. E sua ausência repentina coincidiu com a morte de
Henry e com o ataque à carruagem. Se tudo fosse uma mera
coincidência, então o destino era um ser cruel que colocava pinças em
ferimentos abertos.
William pigarreou, deixando de lado os talheres com os quais
despedaçava seu bacalhau. Lilly não havia tocado no peixe. Célia
continuava a beber pequenas goladas de vinho, quieta.
— Eu não te reconheço mais, Lilly. — Ele começou,
chamando a atenção da garota, que virou seu rosto lentamente na direção
dele, os olhos inchados de quem havia chorado, mas tentava disfarçar.
isso, Lilly. — Ele manteve a voz calma, mas a raiva estava ali. Sempre
conversa com ele, Lilly. — O pai respirou fundo e Célia baixou o olhar,
pintados. — E o senhor?
A pergunta pareceu pegá-lo de surpresa enquanto Sebastian
entregava os ingressos para um rapaz de pele escura e olhos afundados
no rosto.
— Creio já ter vindo aqui algumas vezes. Não me recordo —
disse enquanto o garoto abria passagem para eles, retirando uma
pequena corda avermelhada que separava a área onde ficariam.
— Eu lhe julguei mal. — Ela voltou seu rosto para frente mais
uma vez. Os cavalos arrumavam-se com seus jóqueis nas baias de
largada para uma nova corrida. — Tudo o que fez naquela noite foi para
— Acha mesmo?
— A senhorita já os ouviu?
— Não.
seu pai — explicou, ainda com o olhar confuso. — Mas o que quer
dizer com encontrar?
A garota engoliu em seco e apertou a barra do vestido com os
dedos.
— Há alguns dias que ele não mais vai ao porto... — Ela
— Como assim?
O modo como o capitão relutava com cada frase, com cada
movimento, agora... o coração dela parava. Havia segredos que ambos
tinham, mas que ela ainda não sabia.
— Acho melhor que você mesma pergunte. — O pomo de
adão de Sebastian subiu e desceu por seu pescoço enquanto gritos
eclodiram das gargantas de quem assistia à corrida, eufóricos com o
resultado final, rostos sorridentes que exibiam os dentes com bocas largas
e gargalhadas, enquanto os que perderam as apostas que fizeram
apanhavam mais champanhe. Mas Lilly só tinha olhos para Pelletier,
— Não...
— Até dias atrás, eu jurava que não havia tido culpa alguma...,
mas os relatórios não mentem.
mãos por entre os fios suados e embaraçados. — Eu prendi. Ele viu que
eu prendi. Mas, quando a tempestade chegou, as cordas apareceram
soltas e a lona do mastro se desprendeu em meio ao vento e à chuva,
enrolou-se como uma cobra e empurrou alguns marinheiros para o alto-
mar.
Sem perceber, a garota soltou o ar que prendia em seu peito, os
olhos umedecidos por lágrimas que entendiam o quão destruído ele
estava.
— Eu jurava que as havia prendido. Eu vi! — Ele gesticulou
com as mãos. — Mas o imediato disse que não. E Sebastian... teve que
concordar com ele.
— Mas...
— Como me achou?
E, então, como uma obra cruel e fria do destino, Sebastian surgiu
atrás da garota, sua roupa impecável, o rosto firme e os olhos atentos aos
movimentos do outro, os cabelos penteados e as mãos tocando os braços
de Lilly ao perguntar:
— Está tudo bem?
— Vão embora.
— Lilly.
— Solte-me, Sebastian.
E ele a obedeceu de imediato, observando-os atentamente
conforme Lucian voltava a se sentar ao lado da última garrafa, que ainda
não havia sido despedaçada.
— Deixe-nos ajudar, Lucian.
O loiro maneou a cabeça de um lado para o outro, franzindo o lábio
inferior.
— Quer me ajudar? — Seus olhos tornaram-se frios e fitaram-
— Vai sair?
A mãe parecia cabisbaixa e mexia em seus dedos, pinçando-os
levemente com as unhas.
— Há algo que queria me contar, mamãe? — Lilly perguntou,
franzindo o cenho.
— Seu pai... — Ela umedeceu os lábios. — ... ele não está
gostando dessas suas saídas diárias, Lilly.
A garota engoliu em seco.
— Diga a ele que estou indo visitar Heather.
— Então por que não é ele quem está aqui me dizendo isso?
***
olhar. — Estamos vivendo um dia de cada vez, Lilly, mas o doutor disse
que as expectativas e chances de melhora são boas.
E então a garota tocou a mão de Tracy, apertando-a com carinho e
vendo um sorriso no rosto da mulher, os lábios colados sem exibir dente
algum.
— Obrigada por vir. — A mãe fungou o nariz e secou as
— O quê...?
Mas antes que Lilly ouvisse a pergunta, ela colocou as costas da
mão direita contra a testa da amiga. Fervia como o chá quente em uma
chaleira. Calafrios percorriam seu corpo e ela suava frio.
— Desculpe-me. — Heather deixou escapar por entre o sibilar
dos lábios e Lilly franziu o cenho, afastando a mão de sua testa para ver
seu rosto abatido.
— Pelo quê?
costas da cama até os olhos apáticos de Heather. — Não foi sua culpa.
— Não.
— Que bom.
A mãe dela retornou num súbito, uma bandeja metálica jazia em
suas mãos, com uma espécie de mingau ou qualquer outro alimento
pastoso, com uma xícara de chá quente.
— Como está se sentindo, minha filha? — A mãe perguntou
enquanto servia a garota por cima de seu corpo.
— Sinto... frio.
E a mãe dela pareceu não entender, com o tamanho sol que estava
lá fora e os ventos quentes, então Lilly explicou:
— Creio que ela esteja com febre, senhora Fetherstone.
— Febre? — A mãe olha desesperadamente para a filha. —
E o que fazemos?
— E se...
Mas Heather interrompeu a mãe:
— Não se preocupe tanto, mamãe. — A filha forçou um sorriso
cremosas que mais pareciam areia. — Acho que é... aveia, não sei.
chocolate. — E saber que estou sendo condenada a uma vida sem ele é
arrasador.
O som que a amiga emitiu fez o coração de Lilly saltar em seu
peito. Assemelhava-se a uma risada, mas misturava-se entre uma tosse
arrastada que a fez saltar da cama, endireitando-se, as clavículas
definidas pela luz enquanto os cabelos caíam sobre seus ombros e os
olhos arregalavam-se.
— O que foi? Parece que nunca me ouviu rir.
Lilly fechou os olhos, tentando acalmar a dor que surgia em sua
testa, desacelerar o coração e dizer:
— Eu achei que... — As palavras sumiram em seus lábios.
— Expectativas.
segurá-las para não estapear todos que ali moravam. — Aonde pensa
que vai?
Ela escorregou a mão pelo corrimão e alcançou o andar principal,
hesitante, a respiração doendo não pelo corselete que lhe apertava as
costelas, mas pelo medo que já começava a percorrer seu corpo.
— Vou à boulangerie, papai — mentiu.
— Eu...
— Não me interrompa, garota! — A voz do pai sobressaltou o
tom dela, um berro que tamborilou pelas cortinas até alcançar a mãe dela,
que estava na sala de jantar. Célia se levantou, agarrando as dobras de
seu vestido azul que mais parecia o embrulho de um bombo, e os
alcançou, perguntando:
queria perder aquela luta. — Dizendo que vai todas as manhãs a essa
boulangerie, mas deve ficar se esfregando com algum rato do porto.
— Não ouse...
enquanto o suor descia pelas suas costas. — Não irá mudar nada,
porque um tapa pode me machucar, de fato, mas nunca vai destruir o que
***
seus olhos. — Não faço ideia do que você esteja fazendo, garota,
todavia tome cuidado.
— Obrigada.
E agora ela já estava ali, parada enquanto o cocheiro da carruagem
que chamara a deixava para trás, com os cascos do cavalo batendo
contra a terra poeirenta enquanto ela caminhava em direção ao mato alto,
que entrava por debaixo de sua saia e pinicava os tornozelos enquanto a
casa se exibia tão horrenda quanto da última vez, com seus vidros
estilhaçados e trepadeiras choronas, com o teto falho que permitia que
faixas oblíquas de sol iluminassem o interior frio. Ela tinha um plano, só
não tinha a menor ideia de como executá-lo.
Conforme procurava pelo loiro pelos cômodos da casa, Lilly temeu
que já tivesse sido tarde demais. Temeu que o encontrasse pendurado
com uma corda no pescoço como uma velha senhora que perdeu seu filho
e, com ele, sua vontade de viver. Temeu que as moscas já estivessem
sobre seu corpo e que nada fosse mudar o fato de que ela nunca o veria
novamente. Entretanto, ela começou a subir as escadas para o segundo
degrau, a madeira inchada pela infiltração rangendo sob seus pés
enquanto o vestido pesava em seu corpo e se arrastava em meio às
farpas e poeira.
O segundo piso era ainda mais assustador. Horripilante, por assim
dizer. Fez os pelos do corpo dela se eriçarem enquanto crateras se abriam
no chão mais à frente. Havia três portas e duas delas estavam caídas de
seus batentes. Lilly sabia que ele estava na que permanecera fechada.
Quase como um grunhido metálico, a porta se abriu.
E lá estava o loiro, a mesma camisa, a mesma calça, os mesmos
cabelos despenteados, a barba já pontuada em seu rosto e os olhos ainda
doentes. O homem virou seu rosto na direção dela, vendo-a ali, parada,
num vestido cinza e duas espadas nas mãos enquanto o cabelo recaía
sobre os ombros. Lucian franziu o cenho e ressaltou:
— Achei que queria me ajudar.
— Nunca.
O homem franziu o cenho, suas pernas rapidamente erguendo-se
no ar e enlaçando a cintura dela, girando seu corpo para o lado e subindo
sobre a garota. Tão perto. Os rostos próximos o bastante para que as
respirações fizessem cócegas. Os seios dela tão apertados naquele traje
desejando que ele a tocasse. Por um momento, ela permitiu-se ver o quão
belo ele era, mesmo em meio aos pensamentos confusos e à indecisão de
como prosseguir. Então ela decidiu o próximo movimento.
Lilly lançou-se para o lado, copiando o movimento dele, assistindo
ao momento em que os botões de sua camisa arrebentaram e o peito dele
tornou-se uma obra aos seus olhos, os mamilos entumecidos conforme
ele respirava pesadamente, cansado.
— Por favor, não me obrigue a machucá-lo.
Os olhos dele então pareceram mudar enquanto a observava,
desde o modo como os ventos do exterior faziam os cabelos dela
tornarem-se dourados e recaírem sobre seu ombro esquerdo até o modo
como seus lábios lânguidos pareciam extremamente convidativos. Foi aí
que ela sentiu algo crescer embaixo dela, vendo-o engolir em seco,
hesitante.
— Você me disse uma vez que me amava, Lucian Campbell.
— A voz dela soou como poesia aos ouvidos dele enquanto seus olhos
pareciam curar-se com ela sobre seu corpo. Sobre seu colo. — Se isso
ainda for verdade...
— Desculpe-me.
— Mas acho que sou esperto o bastante para fugir com você.
Lilly riu, calorosa, sabendo que teria de explicar o plano que havia
em sua mente para ele logo em seguida, mas o momento era precioso
demais para ser danificado com detalhes tão peculiares. Ela só queria
permanecer deitada junto a ele, pele com pele, sem tecidos os separando,
os lábios colados e as respirações desreguladas. Ela queria se lembrar de
cada detalhe, desde o modo como os fios de seus cabelos se
embaraçavam com o suor até o modo como a luz reluzia nos olhos dele.
— Eu te amo, Lucian Campbell.
E ela já sabia a resposta dele.
— Eu te amo, Lilly Talbot.
Capítulo XVI
Despedida
Previsível era esperar que a casa dos Talbot se tornasse um campo
de guerra um dia antes do baile que anunciaria Lilly aos cavalheiros uma
última vez, e no qual também apresentaria seu pretendente, Sebastian
Pelletier, que não compareceria. O que iria acontecer, então? Era nisso
que Lilly pensava enquanto permanecia parada no corredor do andar de
cima, enquanto passos abafados e velozes corriam de um lado para o
outro, levando arranjos, preparando velas, limpando lustres e as janelas,
sacudindo as cortinas enquanto afastavam a mesa de jantar para tornar o
aposento numa espécie de salão. Se o homem que deveria desposar-lhe
não estava ali, então o que seu pai iria fazer?
Era quase irônico pensar nele estando de frente para seu escritório
vazio, que tinha a porta escancarada dessa vez. Ele saíra. Não dissera
para onde, como sempre, mas deveria ser algo importante, já que o velho
quase nunca deixava seus confortáveis aposentos.
O vestido ainda lhe pesava na cintura quando ela deu dois passos
e entrou no lugar.
Os pés foram acolhidos pelo carpete vinho e, embora todos
estivessem no andar de baixo, ela não conseguia parar de pensar no
quanto sentia-se vigiada. Um arrepio na espinha. Um formigamento no
estômago. Parecia que toda aquela atmosfera abafada a estivesse
repelindo para longe, as janelas altas e retangulares estavam com as
cortinas esverdeadas bem abertas, iluminando todos os livros amontoados
nas estantes, suas lombadas voltadas para a garota, porém sem exibir
título algum. No lado esquerdo, eles haviam sido nomeados, então talvez
aqueles sem nome seriam os relatos das viagens.
Ela estava certa.
A poeira que se levantou com o abrir da capa pesada rodopiou em
cortinas frágeis antes de aquietarem-se novamente sobre o carpete. Ela
apanhou um qualquer e, logo na primeira página, encontrou a data e o
nome da embarcação ao qual pertencia, acompanhado da assinatura do
capitão responsável. Se Lucian encontrara os relatos da noite do
incidente, então Lilly sabia que tinha de procurar pelo relato que dizia
respeito a Sebastian.
Dedilhando cada lombada antes de puxá-las, a garota sentia o
coração batendo forte em seu peito, denso, hesitante, temeroso de que
William retornasse cedo demais; e com a barulheira do andar inferior se
tornaria ainda mais difícil ouvi-lo se aproximando.
Mas ela continuou procurando. Livro atrás de livro. Relatório atrás
de relatório. A poeira já fazia seu nariz coçar no momento em que a garota
simplesmente sentou-se sobre a cadeira que ficava de frente para a mesa
de seu pai, fitando aquelas estantes com medo. Medo de estar errada.
Medo de não saber o que vinha depois. Contudo, ela já sabia o que
acontecia no presente e o que acontecera em seu passado.
Lentamente, ela virou o rosto para a direita, na direção da cadeira
de seu pai, fitando seu couro, lembrando do modo como o velho sentava-
se sobre ela, imponente, as mãos espalmadas na cadeira. Ela também se
lembrava do modo como se encolhia naquele mesmo lugar, temerosa das
broncas, mas ainda mais dos tapas que sempre vinham no final.
Houve um dia, que estava tão quente quanto aquele momento, e
ela tinha apenas nove anos. Sentou-se corretamente. O homem estava
atrás de sua mesa, gritando com ela. Mas a garota não sabia o que havia
feito de errado. Não entendia o porquê ele gritava tanto simplesmente
pelo fato dela ter se sujado. A cada palavra raivosa que ele cuspia de sua
garganta, ela fitava seus joelhos, sujos de terra e lama. Tentou ajudar um
cão que ficara preso embaixo de uma cerca de ferro que estava quebrada
e o prendeu ali. Ela teve de cavoucar a terra e o cachorro a assistiu em
silêncio durante todo o tempo. Mas o pai berrava tanto que o
coraçãozinho dela se apertava no peito, aflita ao vê-lo se levantar e ir até
sua direção, agarrá-la pelos ombros e sacudi-la.
A visão ficou embaçada.
Ela sentiu o aperto arroxeando sua pele.
Quis chorar.
O rosto dele era tão vermelho que parecia na iminência de explodir.
E foi aí que o tapa veio. Forte. Duro. Ardido. Arremessando-a junto
à cadeira na direção do carpete, os olhos atônitos e chorosos, o medo
assustando cada fibra de seu corpo enquanto ela chorava e ele gritava
para que Célia viesse apanhar a garota e tirá-la dali. Lilly ainda se
lembrava do modo como ele simplesmente cruzou as mãos atrás das
costas e fitou aquelas estantes, exatamente como ela fazia, esperando
por uma reposta que não vinha e seus ombros inclinavam para frente,
cansados, pensando no quão tola estava sendo, sozinha naquele
escritório abafado com um vestido amarelado que grudava em suas
curvas.
— Ah, Lilly! — A voz da mãe surgiu na porta de frente para ela, a
mão na maçaneta no intuito de fechá-la. — O que está fazendo, minha
querida?
— Hã? — A garota piscou rapidamente, focando na figura ali
parada em camadas e camadas de verde-escuro, com os cabelos presos
em cachos que caíam por seus ombros, os olhos tristonhos e um tanto
curiosos.
— O que está fazendo?
— Ah — Lilly deu de ombros e se levantou rapidamente. — Não é
nada. Eu vi a porta aberta e...
— Aqui está uma bagunça desde que Alga mexeu em tudo.
A garota estranhou o súbito nome da empregada que fora demitida
pela família.
— Alga?
— Sim. Seu pai a encontrou mexendo no escritório no dia em que
deveria limpar apenas o andar inferior. — Célia deu de ombros. — Ela já
havia quebrado alguns pratos também e ainda por cima te deixou sozinha
na noite de teatro, então achamos melhor demiti-la, por fim.
A mãe caminhou para dentro com passos lentos, os olhos
percorrendo o cômodo, checando-o na mente conforme as bordas de seu
vestido se arrastavam pelo carpete.
— Sabe que seu pai não gosta que entremos aqui quando ele não
está, Lilly — relembrou a mulher com o erguer de uma sobrancelha. —
Vamos, diga-me o que está acontecendo.
Lilly engoliu em seco e fitou-a com as sobrancelhas arqueadas.
— Você realmente ama o papai?
E teria sido mais fácil que a garota esfaqueasse a mãe em seu
peito do que vê-la com aquele olhar. Não era pena. Não era dor. Era a
mais pura frustração de estar se vendo na filha, infeliz e cansada, incerta
do que viria a acontecer.
— Eu aprendi a amá-lo, Lilly.
— Mas então não é amor — concluiu a garota e a mãe apoiou a
cintura contra a mesa de mogno, as mãos sobre o colo ao perguntar:
— E por que não seria?
— Se você tem de aprender a amar alguém, então é porque aquela
pessoa nunca deveria ter você.
E a mãe sentiu o coração apertando-se no peito e os olhos ardendo
em lágrimas que ela não deixaria que escorressem.
— Eu posso não ter amado seu pai como deveria. — Célia esticou
a mão e tocou o ombro da filha. — Mas amo de verdade a família que ele
me deu.
Entretanto, Lilly tinha tanto que gostaria de falar e, sabendo que
talvez aquela fosse sua última chance, a garota se ergueu de frente para
a mãe.
— Ama mesmo? — A voz dela secou. — Acha que somos uma boa
família?
— Claro, Lilly. — Célia afagou seu rosto, mas a garota se afastou
dela com um passo para trás.
— Que tipo de boa família tem um pai que bate na filha... — A mãe
franziu o cenho, algumas rugas nos cantos dos olhos tornando-se mais
aparentes. — ... e na própria esposa?!
Célia não soube como continuar, então deixou que a filha o fizesse:
— Não somos uma boa família. Nós somos infelizes, mamãe.
A mulher respirou fundo e ergueu a mão em meio ao ar abafado.
Algo trincou no piso inferior, contudo os olhos dela permaneceram
fechados, hesitantes de encarar a filha ao perguntar:
— Onde quer chegar?
Lilly não respondeu, apenas cravou as unhas em suas mãos.
— O que está tentando me dizer? — A senhora Talbot finalmente
abriu os olhos, vendo o momento em que Lilly envolveu-a com os braços,
tocando seu corpo, sentindo seu calor enquanto uma lágrima escorria por
sua bochecha vermelha.
— Entendo tudo o que já fez por mim...
A voz da garota, entrecortada pelo choro, fez um arrepio percorrer
o corpo da mãe, que a tocou com mais firmeza, os dedos apertando os
ombros desejando sempre poder sentir aquele perfume adocicado que
Lilly carregava. Desejando sempre poder ouvir sua voz. Mas por dentro,
algo em seu coração partia-se e ela irremediavelmente tinha a certeza de
que aquele espaço jamais seria curado. Uma ferida aberta dentro de seu
corpo que jamais iria sarar. Aquilo estava errado. Ela não entendia o que
estava acontecendo.
— ... e agradeço de todo o coração. — Lilly endireitou-se, sentindo
os dedos da mão soltando sua pele, os olhos confusos e brilhantes em
melancolia e dúvida. — Mas eu não serei infeliz.
A mãe sentiu o abdômen tremer e as pernas fraquejarem enquanto
a garota entrelaçava os dedos nos dela, os lábios franzidos enquanto o
queixo sacudia na tentativa inútil de não chorar.
— Terei coragem de seguir o meu amor. — A garota abraçou a mãe
uma última vez, tocando seus cabelos, sentindo seu rosto contra seus
ombros, percebendo o instante em que ambas choraram, os olhos
apertados até tornarem-se doloridos conforme seus peitos
despedaçavam-se. — Eu te amo, mamãe.
E, naquela fração de segundo, Célia Talbot percebeu que aquilo
era uma despedida.
Capítulo XVII
O silêncio de um beijo
Ele, August, não conseguira dormir.
Na noite passada, ficara horas acordado fitando o teto de seu
quarto enquanto o irmão já dormia, enfiado em cobertas que o mais velho
não entendia como não o sufocavam naquele calor, que entrava
suavemente pelas janelas que ele deixara abertas, permitindo que a luz
delimitasse seu corpo.
Sua mente preocupava-se com o modo como Heather lentamente
parecia se recuperar, até mesmo mais do que com o ataque em si, a febre
oscilando nos dias em que a visitou, sempre com uma caixa de chocolates
ou flores. Mas, agora, ele estava com ambos, carregando um em cada
mão conforme a carruagem chacoalhava, os cavalos maltratando a
estrada de terra até sentir os cascos sobre os ladrilhos, que os guiaram
até a casa da garota.
O novo cocheiro deteve a carruagem e o coração dele já batia
exasperado por debaixo das roupas alinhadas precisamente com seus
ombros, o fraque com os botões devidamente presos e um colete por
sobre a camisa branca.
— Como estou, irmão? — Atreveu-se a perguntar.
Como se fitar August fosse a tarefa mais árdua daquele dia, Gayle
Denver apenas virou o pescoço de maneira desleixada, as pernas abertas
e as mãos apoiadas sobre os joelhos, e respondeu:
— Parece um idiota.
Aquilo arrancou uma curta risada da garganta do irmão.
— Vindo de você, considero como o melhor dos elogios.
Então, o cocheiro apareceu ao lado dele, cabelos tão penteados
quanto os dos garotos, as mãos cobertas por luvas que ofereciam ajuda
para segurar os narcisos brancos. August saltou da carruagem, certificou
de que estava devidamente apresentável no reflexo da janela, de onde
via-se seu irmão claramente irritado, agradeceu ao serviçal e caminhou
até a entrada.
É curioso como encontrar quem amamos libera um nível tão grande
de adrenalina que nosso corpo entra em um estado de alerta constante,
como se para se certificar de que tudo está perfeito e nada irá atrapalhar.
Quando a mãe de Heather abriu a porta, após ouvir duas batidas suaves,
August jurou que ela conseguia ouvir o modo como seu coração
violentamente batia, ou talvez fosse o modo como seu rosto parecia tenso,
mesmo após tantas visitas.
— Senhora Fetherstone — cumprimentou com uma breve
reverência.
— Senhor Denver. — Tracy respondeu com um sorriso dócil
naquele rosto redondo, que se tornava ainda maior com a faixa que ela
prendera atrás das orelhas, decoradas com brilhantes brincos
arredondados, sobre o amontoado de cabelo. — A que lhe devo a visita?
E o garoto estranhou a pergunta, franzindo o cenho, não
conseguindo evitar que um riso nervoso escapasse de sua garganta antes
de dizer:
— O baile da senhorita Talbot é esta noite... — A voz perdeu a
certeza com que falava conforme as sobrancelhas da mulher se
arqueavam. — Achei que...
— Mamãe? Quem está aí? — Chamou a voz que tornava a
respiração dele falha. August engoliu em seco ao vê-la ali, parada mais ao
fundo do corredor, com um vestido que prendia em sua cintura e abria-se
em camadas breves, laços que decoravam as beiradas e olhos curiosos
que o avistaram rapidamente. — August...
— E-Eu sinto muito, filha... — A mãe começou a dizer, seu rosto
virando-se na direção dela. — Creio que a carta não tenha sido entregue
a tempo.
E ele engoliu em seco, as mãos fracas, quase como se aquelas
flores e o chocolate pesassem o mesmo que a carruagem, de onde quase
se ouvia os resmungos de Gayle, o vento silencioso passando por eles,
mas o ar tornou-se sufocante na medida que nenhuma brisa o aliviaria.
— Perdoe-me, mas acho que não estou entendendo.
Heather mordiscou o lábio inferior.
— Deixe que eu fale com ele, está bem? — disse enquanto
acariciava os ombros da mãe apenas para, em seguida, a mulher apanhar
as flores e o chocolate, mas não sem antes ressaltar:
— Ele lhe trouxe presentes, querida, não é adorável?
— Deveras — respondeu com um sorriso, vendo o modo como os
lábios dele também se mexiam em nervosismo.
A mãe deixou os presentes sobre a mesa da entrada e
desapareceu pelos fundos, coçando a testa.
— August, eu...
— A senhorita está linda. — As palavras simplesmente escaparam
dos lábios dele como um garotinho excitado. Há muito ele já queria lhe
dizer aquilo. — Ah, desculpe, não queria interrompê-la.
— Não tem problema, senhor Denver. — Finalmente, ela ergueu
seus olhos na direção dos dele, que brilhavam de felicidade em vê-la ali,
de pé, já tão forte, mas com feições ainda pálidas que beiravam ao tom da
espuma do mar, que nem a mãe. — É só que..., ai, isso me deixa tão
envergonhada...
— O que houve? — Ele tocou a mão dela. Estava morna, bem
diferente de dias atrás. — Não está melhor?
— Estou, é só que... não o suficiente para ir ao baile — admitiu
cabisbaixa, colocando fios de seu cabelo atrás da orelha, baixando o olhar
na direção dos sapatos lustrosos que ele usava. — O médico alertou-me
para não abusar em tudo o que fizesse, apenas como garantia.
— Eu entendo.
— Porém, ainda quero que vá ao baile.
August arregalou os olhos e ergueu uma sobrancelha, confuso.
— Tem certeza?
— Tenho. — A garota respirou fundo, pensando em Lilly. — A
senhorita Talbot precisará de sua companhia, precisará não só de um
cavalheiro, como também de um amigo.
Era inegável que ele se decepcionou, pelo menos um pouco, já que
ambos nunca tiveram a chance de dançarem em um baile devidamente.
Na verdade, naquele momento, passou pela mente dele que eles nunca
dançaram juntos.
— Mas... a senhorita está bem o bastante para uma valsa?
Ela sorriu com os lábios colados e voltou a fitá-lo, curiosa.
— É claro.
— Conceder-me-ia a honra de tal dança, portanto? — pediu com
uma reverência que a fez rir, nervosa, o estômago aflito, com calafrios que
percorriam o corpo enquanto Heather fitava por sobre seu ombro. Nenhum
sinal da mãe.
Ela não conseguiu parar de sorrir, e apanhou a mão dele com o
maior dos prazeres, sentindo-o puxá-la para perto, guiando-a em
movimentos curtos sobre a relva que cortava os cascalhos e formavam a
trilha para entrar em sua casa.
— Que música exatamente o senhor está tentando imitar? —
questionou ela depois de ouvi-lo cantarolando notas sem ritmo algum,
embora seus pés não parassem.
— Honestamente? Não tenho a menor ideia. — Ele riu também
junto a ela, e aqueles sons foram o bastante para que seus corpos
dançassem, os corpos unidos quase como um só em giros e toques
delicados.
Ela o via de baixo, o modo como o queixo saltava, iluminado pelas
estrelas, enquanto os fios de seu cabelo balançavam com os movimentos.
— Creio que esteja me guiando, senhorita Fetherstone — ressaltou
August quando percebeu que seguia os passos dela.
A garota mordiscou mais uma vez o lábio, um brilho inocente no
olhar enquanto o fazia rodopiar, arrancando mais risadas, que culminaram
em um abraço quente, envolvente, que nem mesmo Gayle conseguiria
estragar, os fios castanhos do cabelo dela como almofadas para o rosto
dele, acolhendo o homem que amou mais do que a própria vida, sentindo
seus batimentos desformes assumindo o mesmo compasso apenas para,
em seguida, se afastarem o bastante para falarem frente a frente, mas
não o suficiente para romper o contato.
— Sinto muito que sua noite tenha sido perdida, senhor Denver.
— E por que acha que ela foi perdida?
Ela franziu o cenho.
— Atreve-se em dizer o contrário?
— Eu estive aqui e pude vê-la — explicou conforme tocava sua
mão direita e guiava-a até seus lábios, um toque suave que ela tanto
desejava sentir. — Já é melhor do que qualquer outra noite.
Heather sentiu-o deixando sua mão contra seu peito, o toque macio
do tecido da camisa tornando-se quente, reflexo da pele que queimava
em excitação.
— Talvez ela possa ser...
Mas antes que ela concluísse sua fala, ele inclinou-se em sua
direção, fazendo com que a frase se esvaecesse em poeira conforme os
lábios dela focavam-se na proximidade dos dele.
August Denver, sempre tão gentil, não a beijou de forma diferente,
o toque tranquilo de seus lábios, sem pressa alguma, a mão direita
tocando a metade das costas da garota, que lhe acariciou o maxilar, a
nuca queimando e os olhos perdidos em nuances que Lilly descrevera,
mas que ela jamais imaginou que fossem tão intensas, porque quando há
amor, até o mais simples dos gestos torna-se grandioso.
E, no silêncio da noite, eles se beijaram pela primeira vez.
Se despediram apenas para, momentos depois, ele, como um
perfeito cavalheiro, prometer que iria escrever-lhe.
Heather sorriu uma última vez naquele momento, observando os
narcisos, tão delicados em seus tons alvos que se misturavam com o sutil
toque de amarelo em seu centro, que agora repousavam na entrada. Um
aroma agradável, tanto quanto a colônia dele, impregnado em sua pele
pelos toques.
— Ótima noite, senhor? — perguntou o cocheiro com um sorriso
amigável, olhos dóceis ao mesmo tempo que maliciosos.
August não tinha motivo algum para esconder o sorriso.
— Certamente, senhor Forman. — Ele olhou para trás, o tecido
raspando em seu pescoço antes de entrar na carruagem, a tempo de vê-
la ainda dançando, passos lentos, segurando o arranjo de narcisos, o
tecido do vestido fazendo-a flutuar, assim como ele flutuou nas camadas
daquele beijo. — Certamente.
Capítulo XVIII
Vestidos e Espumante
Forçar-se a sorrir é algo fútil e muito valorizado. Sorria se quiser ser
agradável. Sorria se quiser arranjar um marido. Instruções básicas que
são exigidas socialmente na maior parte do tempo às mulheres. Por quê?
Por que Lilly deveria sorrir no momento em que estava sendo vendida aos
olhos inescrupulosos de duques e lordes, dispostos a entregar-lhe uma
vida infeliz e rica, onde o dinheiro nunca faltaria, mas também nunca traria
sua verdadeira felicidade? Como fugir? Como escapar de um destino tão
presunçosamente selado pelos lábios ressecados da morte? Ela viveria,
teria filhos, dois ou três, talvez, então o marido iria se cansar dela e
começaria a traí-la todas as quintas-feiras com uma das empregadas. No
fim, o que sobraria a Lilly após a morte do velho nada mais seria do que
um filho bastardo, dor e um arrependimento enorme de não ter socado o
rosto de Gayle Denver enquanto o via caminhando para dentro de sua
casa, não desperdiçando seu tempo em cumprimentá-la.
— Senhorita Talbot, permita-me dizer que está estonteante. —
August surgiu logo atrás dele, os cabelos penteados em um topete, seu
fraque perfeitamente passado e justo em seu corpo, delimitando seus
traços e não deixando muito espaço para a imaginação. Seus olhos eram
dóceis e percorreram o vestido dela rapidamente, vendo seus tons de
champanhe, seus arabescos pintados às mãos e sua finalização em linho,
que caía em camadas e mais camadas até alcançar o tapete da entrada,
tapando seus pés presos em saltos beges.
Ele a cumprimentou com uma reverência e ela cruzou os joelhos
devagar, limitando-se a um breve movimento enquanto via-o sorrindo para
ela. A garota, com o nervosismo em todo o seu corpo, sentiu o rosto corar
com o olhar fixo dele, tocando as pontas onduladas de seu cabelo que
caía na altura de seus seios.
— Você está realmente linda — ressaltou e ela exibiu um sorriso
colado. — Já soube sobre a senhorita Fetherstone?
E então o rubor nas bochechas dela desapareceu por um instante e
suas pernas ameaçaram fraquejar, temendo pelo pior. Mas, vendo-a
naquele jeito, August Denver apenas cuspiu as palavras o mais rápido
que pôde:
— Ela está melhorando.
Lilly respirou fundo — ou ao menos respirou ao máximo que
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A garota queria poder dizer que aquela criança dentro de si era sua
maior preocupação, que a vida que gerava dentro dela seria o seu maior
comprometimento, porém o modo como Lucian não parecia melhorar
abalava seu coração. Estava esperando um filho dele, um fruto de seu
amor, mas e se o responsável por isso não mais acordasse? E se ele
entrasse no sono profundo da morte, que lhe acolheria os braços e a
alma? Agora, a situação era completamente diferente e a preocupação a
enjoava ainda mais.
Ela caminhou até a cama dele, imaginando que os vestidos em
breve tornar-se-iam justos, que a euforia de Célia apenas aumentaria
quando a criança viesse ao mundo, mas como ele reagiria ao saber
disso? E se ele nunca soubesse daquela criança? E foi pensando nisso
que Lilly se sentou ao lado de Lucian, as molas rangendo, as camadas de
seu vestido azulado caindo junto aos lençóis em um arco até o chão,
enquanto ela tocava a lateral da mão dele e começava a falar:
— Eu... — A voz escapou incerta por entre os lábios delicados, o
sol tocando sua pele levemente. — ... queria que você pudesse abrir os
olhos, que pudesse conversar comigo... — Lilly teve de interromper-se,
respirando fundo pela boca, tomando o máximo de ar possível a fim de
controlar a sua vontade de chorar. — Estou com tanto medo, amor. — Ela
fechou os olhos com tanta força que as estrelas surgiram, mas nem isso
conteve as lágrimas, que começaram a rolar lentamente por seu rosto. —
E eu não sei se você está me ouvindo... Prefiro acreditar que está.
A brisa da janela era discreta, afagando o rosto dela de tempos em
tempos, brincando com alguns fios do cabelo dele, que brilhavam pelo
suor, bagunçados. Ela esticou a mão direita e os penteou, escorregando-a
por sua bochecha, os hematomas já desaparecendo de seu rosto.
— E-Eu... — gaguejou, pigarreando antes de respirar fundo e se
recompor. — Eu quero lhe contar uma história, está bem?
Os olhos dela repousaram sobre o peito dele, tão calmo com a
respiração leve, pequenos pelinhos revoltados crescendo na vastidão
branca e queimada de sol.
— Havia uma garota, e ela nunca sentiu como se pertencesse a
algum lugar. — Lilly fitava o rosto dele atentamente, como se aguardando
por uma reação. — Tinha tudo o que alguém poderia querer, contudo não
era aquilo o que ela queria. A garota só queria amar e ser amada. — A
voz fraquejou na última palavra e ela sentiu os lábios tremerem. — E ela
nunca achou que encontraria isso, até conhecer um rapaz que fez com
que ela desafiasse tudo o que conhecia. Acredita que ele a fez comer
peixe frito com as mãos? — Ela sorriu com os lábios colados, os olhos
vermelhos pelas lágrimas e as bochechas coradas, a voz chorosa e o
peito dolorido. — E ela realmente se apaixonou por ele e o amou, havia
aqueles dispostos a destruir tal sentimento, mas eles lutaram juntos. —
Ela fungou, enxugando as lágrimas num reflexo. — Além de ser amada,
ela queria ser livre, eu queria ser livre, Lucian... — Os olhos dela arderam
conforme embaçavam-se em gotas cristalinas. — E eu só tenho a
agradecer por ter me dado um mundo inteiramente novo dentro do que eu
já conhecia.
O mar de lágrimas em seus olhos a fez fraquejar, a mão dela
apanhando a dele com calma, a respiração acelerada e a cabeça
maneando de um lado para o outro, negando a possibilidade... A
possibilidade de Lucian...
— O médico disse que você tem até o baixar da maré para
melhorar, então, por favor, não desista! — suplicou a garota tentando
fazer com que as palavras não saíssem atrapalhadas entre seu choro. —
Você é o meu mundo, Lucian, por favor, não me deixe!
Ela apertou a mão dele e, em seguida, delicadamente, puxou-a
para seu ventre. O leve toque inconsciente contra o tecido beirando a pele
fez um arrepio percorrer o corpo de Lilly e a respiração doeu em suas
costas à medida que ela fechava os olhos e permanecia em seu escuro,
as lágrimas dividindo as bochechas e caindo na direção de seu vestido.
Hesitante, com o coração em sua mão, a incerteza na voz e os lábios tão
belos e delicados tremendo, ela disse:
— Não nos deixe.
E foi nesse instante.
Uma fração de segundo.
Talvez, se ela não estivesse tão focada no modo como seus dedos
encostavam contra seu ventre, ela não tivesse percebido. Foi um leve
movimento do indicador, uma força a mais, delicada, sutil, quase
imperceptível, o modo como Lucian formou um pequeno círculo sobre o
tecido, a pele dela queimando, desejando seu toque, e o ar travando em
seu peito enquanto ela abria os olhos, vendo a mão tentar se mover.
Ela percorreu o corpo dele com os olhos no mesmo instante em
que viu as pálpebras se moverem, calmas, sonolentas, a visão
demasiadamente confusa, o cenho franzindo e algumas gotas de suor
escorrendo pelas têmporas ao mesmo tempo que ele piscou algumas
vezes, focalizando a visão no rosto dela, que era delineado pela luz da
janela, os cabelos castanho-amendoados tornando-se quase dourados
com pequenas partículas de poeira flutuando pelo ar, um sorriso
formando-se em seu rosto manchado de lágrimas conforme ela
escorregava seu corpo para perto dele, os rostos se aproximando e a
respiração dele tornando-se mais firme.
— Lucian... — Ela sentiu a voz tremer e as palavras quase a
sufocaram em tanto sentimento no instante que segurava a mão dele com
mais força. Lentamente, ele retribuiu o movimento, olhos marejados e
tantas emoções passando pela sua mente ainda fraca.
— Lilly...
E a garota inclinou-se, os lábios tocando a testa dele, sentindo-o
quente, o coração acelerado e uma última lágrima escorrendo por sua
face. Ela sabia que tudo ficaria bem.
Epílogo
O amor que nos enlaça
Um ano depois
Foram meses turbulentos, Lilly tinha de admitir. Visitas médicas,
para ela e para Lucian, durante os três primeiros meses de sua gestação,
com Célia circulando-os como uma gaivota exacerbadamente
preocupada. Por mais incrível que pareça, a própria Lilly não estava, nem
mesmo quando sentiu o primeiro movimento dentro de sua barriga dias
depois. Eles viveram uma manhã de cada vez, um beijo a cada tempo,
pequenos toques, que se desatavam em trilhões de sensações assim
como o mar parecia acolher a costa. A maré baixou, e mais pedras
arredondadas surgiram próximas ao farol, escondidas e misturando-se
com a areia do fundo do oceano.
Nesse meio-tempo, o faroleiro veio a falecer, o que deu a Lucian
um novo trabalho. Ele sonhou em ser um capitão e, de fato, ele era,
guiando os navios em segurança, alertando sobre a chegada da encosta
de Eastbourne enquanto as estrelas o assistiam com louvor. Lilly ainda
conseguia subir os degraus até a última área da construção, no início do
quarto mês — uma escada em caracol que desafiava seu equilíbrio até
alcançar as grades que beiravam a ponta. As mãos dela tateavam o ferro,
temerosas pela altura, até alcançar Lucian, sempre de costas, os braços
apoiados na beirada e os olhos fitando um horizonte de possibilidades.
— Veio admirar a vista, senhorita Talbot?
Ela baixou os olhos, fitando o volume que surgiu em seu ventre, um
pequeno adorno formou-se no vestido bege que esvoaçava com o vento
quando a garota apoiou os braços que nem ele, mas com certa hesitação,
algo que não via em nenhum movimento do loiro.
— É muito lindo, aqui.
— De fato que é — respondeu, porém ele a fitava com paixão, os
olhos doces como sempre, e um sorriso travesso surgia em seu rosto,
analisando o modo como ela parecia tão animada a cada dia. Como se
tudo fosse, de fato, novo, mesmo que já tivesse sido visto milhares de
vezes. — Diga-me, senhorita Talbot, acha que é menino ou menina?
E ela riu, maneando a cabeça de um lado para o outro.
— Não irá parar com as formalidades? — perguntou, fitando o mar
abaixo de si, as rochas e a espuma que o decoravam, algumas algas
enroscadas em uma espécie de ninho. — Serei para sempre a senhorita
Talbot?
— Ao menos até me dizer a sua resposta...
E uma brisa lhe afagou o rosto quando ela o virou na direção de
Lucian, assistindo-o dobrar o joelho esquerdo, enfiando a mão direita
dentro do bolso de sua calça culotte e retirando uma pequena concha
rosada, grudada apenas em um pequeno ponto, formando asas de
borboleta em tons de leite em seu interior quando ele a abriu, um
pequenino anel que brilhava tanto quanto os olhos dele, recheados de
excitação, a lua ainda mais reluzente em seu sorriso e o coração dela
palpitando; o sopro dos ventos contornavam seus corpos como o amor
que os enlaça.
— Lilly Talbot... — Ele engoliu em seco, a emoção em sua voz
enquanto os fios de seu cabelo eram levados pelo suave toque dos ventos
daquela noite, a maré delicadamente formando uma trilha sonora que fez
Lilly encantar-se ainda mais, as estrelas sendo espectadoras de pedido
tão caloroso. — ... conceder-me-ia a honra de ser minha esposa?
As lágrimas em seus olhos surgiram conforme o palpitar de seu
coração. Ela não conseguia parar de sorrir ao responder:
— Eternamente.
Agora, meses depois, já com um garotinho tímido em seus braços,
envolto a uma camada de tecido de algodão, com olhos tão grandes
quanto os do pai e tão curiosos quanto os da mãe, Lilly e Lucian assistiam
o modo como o céu pintava-se em tons de azul, dissipando seu laranja no
horizonte de um oceano aparentemente sem fim, com pontos brilhantes
surgindo por entre as nuvens que desapareciam entre escuro, que
empalideceu seus rostos, contornando-os com uma espécie de aura
prateada enquanto ela encostava sua cabeça contra o ombro dele.
— Somos uma família de verdade, não somos? — perguntou ela,
fitando-o de baixo, vendo o delineado de seu maxilar à medida que o
rapaz baixava sua visão até a dela, seus lábios tão delicados e tão
próximos dos seus; o filho, resultado de seu amor incansável, repousando
em seus braços, iluminado pela luz do farol que começava a intensificar-
se conforme o óleo de baleia escorria do tonel acima, girando pelos ares,
como se anunciasse que aquilo não era um fim, mas apenas um começo.
— Somos — respondeu ele com a maior certeza de sua vida.
Nesse instante fugaz, quando os céus estavam silenciosos e o
horizonte tornava-se misterioso, engolido por ondas de sal, Lucian a
beijou, o toque dos lábios mais ásperos que o dela fazendo suas
bochechas esquentarem, e Lilly sentiu-se livre, o coração batendo forte e
o filho firme em seus braços, pois um amor verdadeiro não aprisiona,
liberta.
Agradecimentos
Sabe, infelizmente, é comum considerar o amor e a liberdade como
elementos opostos, como se um não pudesse existir junto ao outro,
porém, um amor apenas será verdadeiro quando este, mesmo que dentre
tudo o que você já conhece, conseguir te libertar e te levar a outros
lugares, e é em cima dessa ideia que o livro foi escrito, pois acredito
fielmente que o amor puro e inocente ainda existe.
Assim, há menções que não poderiam deixar de ser feitas:
primeiro, aos meus pais, que me mostraram o melhor exemplo de amor, e
minha irmã, que me apoiou em cada capítulo; segundo, à minha amiga
Raíssa Rusche, por toda a paciência que teve comigo durante o
desenvolvimento do livro e à Magda Ribeiro, que me acompanhou na
viagem a Eastbourne e estimulou a ideia desde o começo. Assim,
agradeço também a todo o pessoal da 3DEA Editora, que acreditou e
apostou em mim, dando-me a oportunidade de seguir com meu sonho.
Com a maior gratidão a todos vocês,
Gui Ribeiro