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Editor Patrícia Azevedo


Assistente Editorial Larissa Araújo Mafra
Revisão Maciel Salles
Ilustrador Dri K. K Design
Imagem www.shutterstock.com/2346234

Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa


(1990), em vigor
desde 1° de Janeiro de 2009.
Os personagens e as situações desta obra são reais apenas no universo da ficção; não
se referem a pessoas
e fatos, e sobre eles não emitem opinião.
É proibida a reprodução total e parcial desta obra, de qualquer forma ou por qualquer
meio eletrônico,
mecânico, inclusive por meio de processos xerográficos, incluindo ainda o uso da
internet, sem permissão
expressa da Editora, na pessoa de seu editor (Lei 9.610 de 19/02/1998).

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Capítulo I
Um sorriso pela manhã
A garota carregava um livro. Não um livro qualquer, mas sim um
livro de contos com uma capa azul aveludada. Lilly Talbot parecia flutuar
conforme caminhava, a barra do vestido cobrindo os tornozelos,
arrastando-se pelo chão empoeirado da rua principal, o livro contra seus
seios já tão grandiosamente apertados pelo corselete. Ela deteve-se por
um instante, parando no momento em que uma carruagem passou em sua
frente, os ventos abafados do horizonte sendo jogados contra seu rosto,
lançando os cabelos tom de amêndoa fresca para trás, os cascalhos
estalando conforme o pisotear dos cavalos arfantes de olhos penosos. O
cocheiro chacoalhava as rédeas ao mesmo tempo em que tentava manter
seu chapéu preso em sua cabeça. Ela certificou-se de que nada mais iria
cruzar a rua e, assim, aproveitou para alcançar a calçada do outro lado,
seguindo seu caminho, desviando das rachaduras.
Puxando a barra de seu vestido, Lilly passou por uma possa d’água
que fora formada pela tempestade violenta da noite anterior, que para
nada servira, a não ser para aumentar ainda mais o calor costaneiro.
Algumas crianças corriam ao arredor, molhando-se na biqueira de uma
casa elevada que estava sendo limpa por uma governanta de cabelos
longos, jogando a água dos baldes contra o piso do segundo andar,
vendo-a escorrer até o ralo, percorrer a calha e finalmente sair pela
biqueira na direção das cabeças quentes e sorrisos sardentos das
crianças; as mãos para cima, gritos estridentes e risadas travessas. Elas
poderiam brincar nas próprias ondas do mar se os pais permitissem, mas
o sal grudava na pele e a água estava quente, então, a biqueira no centro
de Eastbourne lhes fora mais atraente. Ela passou um pouco mais
distante delas, não sentindo os respingos caindo sobre a saia,
preocupando-se mais em proteger seu livro.
Assim que conseguisse se sentar, iria começar a viajar pelas
palavras minuciosamente escolhidas pelo autor. Talvez lesse o conto do
Herói Perdido ou quem sabe... Um Canto de Outono? Eram tão belas as
estrofes que lhe encantavam a alma e a faziam andar com mais vigor,
ansiosa pela leitura. Lilly continuou seu caminho, o corpo decorado por
um vestido longo, drapeado e bege, que lhe cobria os pulsos. Ela queria
poder agradecer pela chuva anterior, mas nem mesmo aquela tempestade
conseguia abafar as ondas calorentas que subiam em espirais.
Lilly contornou à direita, cruzando a rua novamente com passos
rápidos, evitando que um homem de aparência miserável batesse seu
carrinho de madeira contra suas pernas. Andando por mais alguns
instantes, ela alcançou a loja que tanto queria chegar. Ficava perto dos
portos, onde o horizonte do mar se fazia enigmático, com o sol expondo-
se logo acima e refletindo em suas camadas azuladas. Era uma espécie
de boulangerie que a mãe tanto se orgulhava de falar. Usava o termo em
francês todas as vezes, vangloriando-se de viagens que fizera pelo
continente europeu antes da filha nascer. De alguma forma, Lilly sabia que
ela não fazia por mal, mas não conseguia deixar de se sentir atingida por
aqueles comentários e, embora fosse um prazer da mãe comentar sobre,
a garota resguardava a si mesma um prazer próprio; ela se sentava ali,
todas as manhãs, com um bom livro enquanto tomava alguns goles de
chá com leite fresco.
Para a mãe, a boulangerie era um lugar incrível no imaginário. Para
Lilly, era no presente.
A delicadeza da mão da garota tocou o vidro embaçado da porta da
entrada e abriu passagem para o interior do local, um sino anunciando
sua chegada. O estabelecimento em si não tinha nada de tão refinado ou
inovador: apenas um balcão empoeirado, recheado de pães frescos e
alguns doces, algumas mesas com toalhas de renda francesa e garrafas
de bebidas sem os rótulos, próximos ao moedor de café e dos bules de
chá sempre fervorosos e cheios de vapor. Lilly segurou a saia de seu
vestido ao sentar-se, próxima a uma das janelas que lhe dava uma vista
privilegiada do porto, o livro ainda firme em seu braço esquerdo enquanto
um atendente lhe alcançava.
— Se me permite adivinhar, senhorita, diria que gostaria de um

chá com leite? — indagou um homem com cabelo lambido e olhos


pequenos, a barba por fazer e as sobrancelhas despenteadas.

— Se me permite dizer, talvez me conheça melhor do que eu


mesma, Jim.
O rapaz sorriu, encantado por estar falando com uma mulher tão
linda quanto Lilly Talbot. O rosto arredondado da garota imitava porcelana
pura, assim como a simetria perfeita de suas sobrancelhas, os olhos
arredondados e curiosos em harmonia com seus lábios quase sempre
rosados. O rubor de suas bochechas estava constantemente presente na
palidez de sua pele, um contraste mais do que notável com as madeixas
volumosas que lhe caíam pelo pescoço.
Jim se afastou e, minutos depois, voltou com uma pequena xícara
de porcelana, colocando-a na frente de Lilly e dizendo que se precisasse
de algo bastava chamá-lo. Ela o agradeceu com cordialidade.
Soltando uma lufada de ar e relaxando os ombros, a garota abriu
as páginas de seu livro azul, folheando-as, de olhos fechados esperando
que seus dedos lhe indicassem o que poderia ler, mas ela abriu os olhos
cedo demais, no exato instante em que um rapaz entrou no lugar, o rosto
firme, cabelos bagunçados e o suor exalando de seu corpo, gotas e mais
gotas caindo sobre suas roupas grudadas no corpo magrelo, mas firme,
de braços contornados e dedos machucados, com pontas vermelhas tom
de sangue. Ela sentiu seu rosto queimar por alguns segundos, não
percebendo que o fitava descaradamente.
Lilly agitou os cílios e focou no livro à sua frente, desejando que o
rapaz não tivesse notado sua indelicadeza. Mas fora tarde e, segundos
depois, os passos dele já se arrastaram até ela.
— Posso me sentar com você? — perguntou. A voz era

suave, mas carregava o cansaço do trabalho. — Todas as mesas estão

cheias... — Ele pareceu acanhado.

— Mas é claro... — Ela olhou para os lados de forma discreta,


como se confirmasse o que ele estava dizendo e, no mesmo instante,

percebeu que todos os outros lugares — ou ao menos a maioria deles

— estava desocupada. Ela sentiu o rosto queimar mais uma vez, o


sangue afluindo até suas bochechas.
O rapaz já estava com as mãos cruzadas sobre a mesa quando ela
retomou a atenção para ele. O modo como a luz incidia pelo vidro,
contornando seu maxilar, tornava seu rosto devastadoramente perfeito, as
gotículas de suor pendiam pelos fios loiros, escuros, e ameaçavam cair
sobre os olhos tom de café, lustrosos, algumas queimaduras rosadas ao
redor do pescoço roçavam na gola da camisa.
— Creio que o senhor faltou com a verdade — ressaltou ela
com o cenho franzido enquanto endireitava a postura, o corselete
tornando suas costas firmes e pressionando suas costelas.

— Tem razão.
Ela surpreendeu-se ao vê-lo admitir, arregalando os olhos e
arrancando um sorriso travesso do rosto dele. Os dentes não eram
alinhados, na verdade, beiravam até mesmo tons de amarelo, mas foi um
dos sorrisos mais lindos que ela já vira.
— E ainda admite?
— Um homem deve assumir seus atos, não?

— E orgulha-se de mentir? — continuou ela, respondendo


com outra pergunta, vendo-o desafiá-la com o olhar.
Jim surgiu de repente, quebrando aquela intensidade tão
sustentada pelos olhos dele, dando ao estranho uma sacola com gelo.
Lilly baixou o olhar, tentando focalizar seus pensamentos nas doces
palavras do livro, mas ela sentia que ele ainda a encarava, como se
estudasse sua natureza, quase como se a analisasse. Ela ergueu os
olhos por um instante e acabou cruzando sua visão com a dele,
erubescendo, fazendo-a esquivar o olhar, tímida.
— Qual o seu nome, madame? — Ele abriu a sacola com gelo,
apanhou alguns cubos, colocando-os sobre uma pequena trouxa que ele
formara com uma flanela que tinha no bolso, e os levou até o pescoço. Ele

tinha o típico odor de suor, embora se misturasse com o sal marinho. —


Isto é, se me permite perguntar.
Sua voz soava um tanto aveludada e a encantou assim que a ouviu
pela segunda vez, os lábios quase não se mexiam, como se estivessem
acostumados a falar tais palavras para as garotas com que cruzava.
— Lilly... Lilly Talbot.

— Lilly Talbot... — Ele repetiu e, com um sorriso presunçoso, a


encarou, o polegar direito mexendo no lábio inferior enquanto, com a outra
mão, segurava os cubos contra as queimaduras.

— O senhor está machucado?

— Queimado acho que seria a termologia correta — retrucou,


embora não quisesse parecer rude. O gelo começava a derreter contra o

toque de sua pele quente. — Ossos do ofício, eu suponho.


— Com que trabalha? — Ela perguntou por mera educação,
apesar de já ter seus palpites.

— Jura que com a minha conjuntura atual, ainda não conseguiu


decifrar?
Ela não conseguiu controlar um pequeno sorriso em seu rosto.
— Eu trabalho no porto, senhorita Talbot.

— Mas tem um repertório de um homem de negócios —


ressaltou ela.

— Só porque trabalho num porto não posso ter educação?


Ela engoliu em seco e então percebeu que, de fato, havia sido
preconceituosa. Se bem que os poucos homens do porto com quem já
vira seu pai conversar, bem... não eram sinônimos de gentileza e boas
maneiras.
— Desculpe-me. — Ela disse e, assim, baixou os olhos para o
livro mais uma vez. Mas, droga, a intensidade com que ele a olhava ainda
a distraía, e aquela beleza áspera atraiu seus olhos mais uma vez,
fazendo-a fechar a capa do livro, pois não conseguia concentração o

suficiente para focar seus pensamentos nele. — Por que está me


olhando assim?

— Não é nada...

— Então por que está me encarando?

— É raro ver uma mulher lendo um livro.


Ela ergueu uma das sobrancelhas.
— Só por que sou mulher não posso ler um livro?
O rapaz sorriu e seus olhos brilharam enquanto ele esfregava o
gelo contra o pescoço, uma trilha curta e úmida formando-se além da
flanela.
— Touché.
Lilly revirou os olhos, estupefata com tudo aquilo, e fez menção de
levantar. Afinal, o que estava fazendo? Nada se sabia sobre ele e, até
então, aquele flerte inesperado... Bom, ao menos ela pensou que estavam
flertando. Algo nos olhos dele, no modo como as palavras escapavam por
entre os lábios finos, como seu corpo se movia...
— Não precisa ir embora... — disse, e a garota apenas
umedeceu os lábios. Ele era um galanteador, e ela não seria a sua
diversão do dia. Sabia como os homens do porto eram. Sedentos para se
deitarem com mulheres e abandoná-las quando zarpassem novamente.

— Não quero que minha peculiaridade por leitura te distraia


demasiadamente, senhor...

— Campbell. Lucian Campbell. — Ele estendeu a mão até ela,


esperando que lhe retribuísse o movimento, entretanto ela apenas fitou os
machucados de seus dedos rapidamente e respondeu:

— Foi um prazer, senhor Campbell.


Então, Lilly saiu pela porta da boulangerie, o vestido esvoaçando
com seu caminhar, deixando que o barulho do pequeno sino ecoasse por
seus ouvidos até que chegasse em casa.

***

— Mamãe? — chamou a garota ao entrar pela porta da frente.

— Já estou de volta.
— Estamos na sala, querida. — Uma voz responde, elevando
os sentidos de Lilly, fazendo-a seguir o som até a sala de jantar, onde o
café da manhã está exposto, e as janelas, abertas, fazem as cortinas de
renda dançarem suavemente, o bafo do exterior fazendo a maquiagem da
mãe manchar aos poucos. Até o final do dia, o contorno de seus olhos tão
perfeitamente alinhados já teria se formado em olheiras grosseiras.
Sua mãe estava sentada no lado esquerdo da mesa, passando
geleia de amora contra um daqueles pães macios que a garota nunca
lembrava o nome. A faca repousa ao lado do prato e a mãe a observa por
baixo dos longos cílios. A casa era uma construção rusticamente bela,
com tijolos vermelhos e grandes janelas quadrangulares, todas com
varandas em formato circular, o pé direito do andar inferior, com no
mínimo três metros, parecia suficientemente grande para suportar a altura
do pai, que passava dos 192 centímetros. Lilly puxara à mãe, e tinha sido
acolhida pela delicadeza de ter um metro e sessenta e cinco e, ainda
assim, conseguia parecer suntuosa em qualquer vestido que colocasse.
— Olá, mamãe...

— Saiu cedo demais, minha menina. — A mãe sorriu e


convidou-a a se sentar à sua frente. A empregada veio lhe servir chá com
leite logo depois que ela se sentou e, apenas nesse instante, ela percebeu
que nem ao menos chegou a tocar na bebida que pedira na boulangerie.
Tudo culpa de Lucian Campbell e seu olhar penetrante.

— Como assim?
A mãe engoliu em seco e a saliva pareceu dolorosa de descer,
como se engolisse algo tão duro quanto uma das pílulas que um médico
lhe receitara para quando tivesse enxaqueca. A mãe pressionou as
têmporas e respirou fundo.
— Seu pai gostaria de conversar com você.
Lilly contraiu os ombros e tentou manter-se inexpressiva, mas o
brilho em seus olhos mudou, fazendo a mãe prosseguir:
— Sabe que ele se preocupa. — Então, não como uma
represália, mas como um aviso, a mãe repousou os olhos sobre o livro de

capa azul, que a garota rapidamente colocou sobre o colo. — Sabe que
andar com esses livros só pode piorar as coisas, não sabe?

— Eu só estava lendo... — admitiu ela, um ar de inocência


dobrando sua voz na metade.

— Lilly... — Ouvir a mãe dizer seu nome com tamanha


preocupação em tão poucas letras fez a garota estremecer, erguendo o

livro novamente e escorregando-o por sobre a mesa. — Lembre-se do

que conversamos. — A mãe arregalou os grandes olhos azuis, que a

filha não chegou a herdar, e eles quase saltaram de seu rosto. — Você
poderá ler, porém dentre minhas restrições. Se seu pai descobre o que

anda fazendo... — A mulher olhou de esguelha para a serviçal, que está


parada, inerte, próxima a uma das diversas plantas que a senhora Talbot

espalhava pelos cantos da casa. — Alga, poderia, por favor, regar as


plantas do jardim externo?

— Sim, senhora — respondeu a mulher, que tinha os cabelos


presos por uma faixa branca que ia de orelha a orelha e um vestido preto
que lhe cobria todo o corpo.
Lilly soltou uma lufada de ar e o colo dos seios seguiu seu
movimento conforme os ombros caíam.
— Ajuste a postura — corrigiu a mãe dela quando a serviçal
não mais estava ali, e Lilly a obedeceu de imediato.

— Ele não irá descobrir, mamãe.

— Acho que a boulangerie não é a melhor das opções para


você se encontrar, minha filha. Se estivéssemos na França, aí tudo bem,

mas agora que somos três, está muito caro para ir. — A mãe gesticulou
com as mãos perto das sobrancelhas desenhadas, que abriram em arcos

perfeitos conforme a expressão dela se alterava. — Eu só não quero


que se machuque, querida.
A senhora Talbot franziu os lábios num sorriso decadente.
— Papai não irá me machucar. Ele não seria capaz.
E algo nos olhos da mãe a fez pensar o contrário por uma fração de
segundos.
— Às vezes me esqueço do quanto você cresceu, minha

menina. — A senhora Talbot se levantou, caminhou até o lado da garota,


apoiou sua mão sobre o ombro da filha e a beijou delicadamente na
bochecha com os olhos marejados. Era mais do que claro, para a mãe,
que o marido poderia machucar a filha. Afinal, nem todos os machucados

se resumem ao físico. — Agora vá, deve falar com seu pai. Ele está no
escritório.
Se você dissesse o nome Willian Talbot em qualquer lugar do
centro de Eastbourne, as pessoas se exaltariam. Talbot!? O Talbot das
embarcações Talbot!? A questão é: o pai de Lilly comandava os centros
comerciais de pesca, sendo o responsável por quase mais da metade do
suprimento de peixe de todo o local. Mas, ainda assim, Lucian Campbell
não se exaltou e nem ao menos pareceu surpreender-se com o
sobrenome dela. Talvez isso, essa pequena mudança na rotina, tenha
feito com que ela se interessasse ainda mais por ele. Porque, sim, Lilly
não conseguiu parar de pensar na profundez daquele olhar e no quão
lindo ele ficara ao sorrir para ela. Mas nem mesmo o pensar nele a
acalmou o suficiente enquanto subia os degraus forrados de carpete
italiano, passando ao lado das fotografias escuras da família.
Numa delas, estava apenas a garota e a mãe, porque, aos seis
anos, seu pai se ausentou por sete meses. Ela não o viu por todo este
tempo, embora desejasse que estivesse bem. Ao retornar, o homem
parecia desolado. Ele disse à esposa que os piratas haviam saqueado o
barco em que estava, e que fora difícil se comunicar com outro. Lilly ouvira
toda a conversa quando menor, e a palavra “pirata” permaneceu em seu
consciente por uma semana inteira, ficando escondida atrás da porta do
escritório, a mesma na qual dava duas batidas e pedia permissão para
entrar.
— Sim, entre! — chamou a voz do pai, grave e rouca, sério e
impassível.
Lilly abriu a porta ouvindo seu ranger delicado, o peso da madeira
pura forçando seus braços. O escritório de seu pai era um local de janelas
altas e retangulares, com uma cortina esverdeada que tampava a
passagem da luz, a não ser em suas beiradas, nas quais um feixe ou
outro conseguia escapar. Havia livros no lado direito e ainda mais livros no
lado esquerdo. Seu pai simplesmente a mataria se descobrisse que
entrava ali, escondida, para apanhar livros desde pequena, segurando o
peso das páginas com bracinhos frágeis quando tinha sete anos.
Ela caminhou até ele, o vestido raspando pelo piso forrado de um
carpete vinho. Lilly parou na frente da mesa na qual o homem se escondia
atrás de pilhas de uma papelada complicada demais para ela, ele diria.
— O senhor queria me ver, papai? — Ela disse sem olhar
diretamente em seus olhos, sentando-se na frente dele, colocando as
mãos sobre as camadas de tecido e sentindo sua maciez.

— De fato, minha filha. — O homem empurrou uma pilha de


sua papelada para o lado, revelando suas faces brancas e pálidas,
sobrancelhas grossas, grisalhas, escondendo profundos olhos castanhos;
os lábios quase sempre retraídos nunca ousavam dizer “eu te amo”. Ele
tinha uma pena na mão, a qual havia molhado a ponta num tinteiro,

inundando a ponta esbranquiçada com uma negritude berrante. — Mas


deveria lembrar de pedir permissão para se sentar antes de fazê-lo, de

fato. — Ele a repreendeu com o olhar e a garota não ousou cruzar


olhares com o pai, apenas assentindo e pedindo desculpas pela distração.
Lilly fincou as unhas sobre a pele dos dedos.
— Minha querida Lilly... — Ele começou, colocando a pena de
lado e esperando que ela olhasse para ele, fitando-a diretamente quando

o fez. — Acredito que já saiba o motivo de estar aqui.

— Não sei, na verdade. — Ela sentiu o rosto esquentar e as


pontas de seus dedos se dobraram na saia do vestido. Sua mente voou,
tentando entender o motivo daquela conversa. Teria ele descoberto sobre
os livros? Sua mãe também seria punida?

— Você já está para completar dezessete anos, minha menina.

— Ele sorriu — Já está na hora...


Ela semicerrou os olhos e o fitou com a cabeça inclinada.
— Hora...? — perguntou, instigando-o a continuar.

— Você já foi apresentada à sociedade, minha filha, mas


nenhum pretendente, de fato, estava aos seus pés. Ao nível do seu
sobrenome
Aquele maldito sobrenome.
— Está na hora de encontrar um marido, Lilly — afirmou ele
seriamente e sem frescor algum na voz.
Ela ergueu-se num salto, punhos cerrados, a cabeça latejando e o
cenho franzido conforme a respiração tornava-se mais dolorida.
— Não! — Foi a primeira coisa que saiu de sua garganta
quase como um grito. Sua mãe parou de se movimentar no andar de
baixo, ouvindo-os com orelhas de morcego.

— Sente-se, Lilly. — O pai fez um gesto com a mão, indicando

a cadeira novamente. — Isso não foi um pedido.


Ela sentiu as bochechas queimando, o sangue fluindo de forma
fervente a ponto de ser incômodo.
— Lilly... sente-se! — ordenou mais uma vez, e o medo que
outrora ela sentira já havia sido trocado por indignação.

— Não!

— Isso é necessário, minha filha. Sabe disso.

— Você não irá fazer isso comigo! — Ela se virou, começando


a caminhar pelo meio do escritório. Passos firmes. O vestido raspando no
carpete de um lado para o outro.

— Se não conhecer um marido, irá morrer de fome! As pessoas


começarão a criar histórias, minha filha...

— Deixe que criem! — esbravejou a garota e, no mesmo


instante, ela colocou a mão sobre as costelas, o corselete prejudicando o
respirar violento, fazendo dele uma espécie de punição para seus nervos
exaltados. Mas ela pouco ligou. Aquilo não podia estar acontecendo. Não
era aquilo que ela planejava para si mesma.

— A sociedade não funciona da forma que queremos, Lilly.


Deve se adequar a ela.

— Você não fará isso comigo... — Seus olhos se tornaram

marejados. — Não pode...

— Estaremos dando um baile daqui a duas semanas. — Ele


estirou as mãos gordas e grosseiras atrás das pilhas de folhas

amareladas, os dedos bem separados. — Sugiro que esteja pronta para


receber seus pretendentes.
Ela estava ofegante, os olhos fixos em seu pai e na incredulidade
que sentia ao ver que, nos olhos dele, aquilo não era algo tão horrível.
Lilly se virou, as lágrimas de decepção rolando livremente por seu rosto,
umedecendo suas narinas ao passo que ela corria para seu quarto,
batendo a porta atrás de si enquanto desejava desfazer-se tal qual as
ondas que arrebentavam na costa.
Capítulo II
O livro e a maré
Lilly acordou com o sol do fim da tarde banhando seu rosto,
aquecendo-a de forma sutil, os primeiros vestígios do vibrante crepúsculo
que nascia no horizonte começavam a surgir bravamente, dominando a
pureza do azul com suas tonalidades alaranjadas para, então, mais tarde,
perderem-se no brilho das estrelas. Ela dormira por quanto tempo? A
garota ergueu o rosto do travesseiro frio de lágrimas, alguns fios de seu
cabelo grudados na bochecha. O que seu pai estava pensando? Como
poderia deseja-la tão... infeliz? A privara de ler. A privara de escolher seu
destino. Casar-se? Aquilo não era o que ela queria, ao menos não sem o
amor que ela vira em tantas páginas dos contos que lia. Bom, provável
que fosse esse o motivo dele tanto querer afastá-la da literatura.
Os livros libertam aqueles aprisionados pela realidade que vivem.
A garota se espreguiçou, erguendo-se enquanto as molas da cama
rangiam, apoiando o peso de seu corpo com os cotovelos e respirando
fundo. Ouviu a movimentação no exterior diminuir. Talvez já fossem cinco
e meia, não saberia dizer. Mas as sombras em seu quarto já haviam
crescido, isso era um fato. Finalmente, andou até a porta de madeira,
passando sobre o tapete avermelhado, vendo seu reflexo na penteadeira
de madeira de carvalho que ficava no lado oposto à sua cama, decorado
com seda e lençóis beges. Lilly encostou seu rosto sob a madeira da
porta, tentando ouvir alguma coisa, seus dedos hesitantes a respeito de
tocar ou não a maçaneta.
Se a garota abrisse a porta, talvez tivesse de enfrentar seu pai
novamente. Se ficasse ali, passaria fome e nunca seria quem realmente
desejava. Tomando forças com um inspirar profundo, ela optou pela
primeira opção. Demorou alguns segundos para que Lilly finalmente
abrisse os olhos, mas quando o fez se surpreendeu de não ter visto nada,
apenas o breu do corredor com todas as velas apagadas.
— Mamãe? — Ela chamou, hesitante, enquanto permitia que
as sombras contornassem seu corpo, descendo os degraus da escadaria
principal de sua casa, que ficava colada ao lado da parede. Um corrimão
gorducho feito de madeira velha servia de apoio para suas mãos

delicadas. — Papai? Alga?


Por que estava tudo tão escuro?
Ela caminhou até a cozinha; sabia que a mãe guardava velas no
armário superior, apanhando uma delas e uma caixa de fósforo, riscando-
o e observando o fogo aquecer a cabeça do palito enquanto tentava
acender a parafina. Com um estalo sublime, a vela acendeu e a escuridão
sentiu-se ferida. As janelas estavam tampadas pelas cortinas no instante
em que Lilly se virou, a vela em um suporte metálico que impedia que a
cera quente tombasse sob a pele delicada da garota. Colocando a única
fonte de luz sobre a mesa, ela empurrou os tecidos que tapavam a janela
para os lados e, agora, somente os tons do crepúsculo ali havia. Anoitecia
rápido, ela notou.
Ao tornar a virar-se, seus olhos focaram num bilhete sobre a mesa,
em sua outra extremidade, afastada da vela.

Querida Lilly,
Fomos ao teatro e voltaremos após o cair da noite, mas não precisa
esperar-nos acordada. Espero que, até amanhã de manhã, já tenha se
acalmado e esteja disposta a conversar
Mamãe.

Ah, sim. Aquela era noite de teatro. Com tudo o que acontecera
pela manhã, Lilly se esquecera por completo de que, todas as terças-
feiras, os pais iam assistir a uma das novas peças que o teatro municipal
exibia. Ela olhou para cima, para a sombra que se formava, fugindo da
luz. Seu estômago roncou nesse momento, dolorido, avisando-a de que
precisava ser alimentado.
Agora, com a vela acesa e as cortinas abertas, a garota vasculhava
os armários. Um saco de biscoitos e um peixe velho enfurnado em sal.
Era tudo o que havia ali, e a ausência de Alga ainda era um mistério.
Talvez mamãe a tenha dispensado mais cedo, ela pensou.
Lilly respirou fundo, apanhando a vela e subindo as escadas
novamente apenas para, em seguida, caçar algumas moedas que tinha
guardado em seu quarto, num canto escondido de sua penteadeira.
Aproveitando que já estava ali, ela trocou de roupas, sentindo o alívio do
corselete desgrudando de seu corpo e permitindo que seus seios
tivessem o caimento natural, o frescor repentino do ar tocando o suor da
pele enquanto ela colocava sobre seu corpo um vestido rosa com
arabescos brancos em suas mangas. A garota se olhou no espelho por
alguns instantes, observando a palidez de seu pescoço enquanto jogava
suas madeixas castanhas por cima dos ombros.
Lilly desceu os degraus da escada, apagou a vela e saiu em
direção à rua, algumas moedas numa bolsinha feita à mão e um falso
sorriso de donzela estampado em seus lábios finos como folhas no
inverno.
No caminho à boulangerie, Lilly ainda tentava decidir o que
comeria. Talvez comprasse um pão, mesmo este já estando envelhecido.
Sua ideia foi destruída ao ver uma placa de fechado estampando a
fachada da padaria mais próxima à sua casa. Sua segunda opção fora
mexilhões fritos, que um homem gordinho e baixinho passou oferecendo
aos berros, mas eles não lhe agradavam, então ela decidiu apenas voltar
para casa. Uma viagem perdida, ela pensou, mas algo cintilou em seu
olhar, o reflexo do mar chamando por ela para um detalhe inesperado
naquela figura sempre tão nova. A garota olhou para os dois lados e
atravessou a rua, estreitando seus olhos na direção da maré, e ela viu
uma figura estranha nas ondas salgadas.
Lilly acelerou o passo em direção à grade que separava as rochas
da praia de um canteiro de flores e a calçada. Ela abriu o portão,
apressada e, logo em seguida, sentiu o pisar duro contra o cimento batido
e cascalhos ser substituído pelas pequenas pedras que formavam a praia,
sentindo a brisa salgada tomando seu corpo, refrescando o colo de seus
seios e seu pescoço, tornando-o esguio conforme lançava os cabelos
para trás e as ondas levemente batiam contra seus sapatos brancos,
próximos à orla, onde a figura ainda misteriosa pareceu se aproximar dela.
Lilly não se importou com o sal que impregnara seu calçado. Ela apenas
queria apanhar aquilo que boiava na superfície, que lutava para não se
perder na vastidão azul do mar. Um livro. Ela avistou um livro sobre as
ondas calmas.
Como se o objeto quisesse ser salvo, ele flutuou até a garota,
encaixando em seus dedos como uma luva rendada que ela guardava no
armário de casa, próximo à penteadeira.
Ela riu. O que acabara de fazer? Estava ali, sozinha, no meio do
anoitecer, agarrada a um livro encharcado que ela nunca vira antes. A
ideia fez sua mente descansar e gargalhar. Um sorriso abriu em seu rosto
ao dedilhar a capa, sentindo sua maciez úmida e tão frágil. Lilly virou o
livro, procurando por seu título, contudo nada havia ali. Ela sorriu
novamente e deixou escapar uma risada, não acreditando que quase
entrara na água por um livro.
Lilly passou a mão esquerda por sobre a barra de seu vestido,
alinhando-o enquanto se levantava, a saia arredondada cobrindo seus pés
encharcados conforme voltava a tocar as rochas.
— Ei! — Um homem a chamou, fazendo-a arregalar seus
olhos num súbito, o coração acelerando.
Não, não podia ser seu pai. Teria ele já saído do teatro? Não... sua
voz não era tão aveludada quanto aquela...
— Coloque esse livro de volta no lugar dele, sua ladra! — A
voz a acusou.
Lilly estreitou seu olhar por entre a noite anil, tentando olhar pela
luz da lua que acabava de se fixar no alto do céu enegrecido. Era um
rapaz alto e de cabelos escuros, com uma palidez estranhamente bela...
suas bochechas ficaram vermelhas e seu sangue ferveu ao reconhecê-
lo... era ele... Lucian, o rapaz que a abordara no café mais cedo e distraíra
sua leitura.
— Ladra? — Foi a única coisa que ela pôde indagar ao vê-lo
se aproximando dela numa velocidade indelicada demais, com sua blusa
branca aberta, sem o botão que a manteria fechada, grudando em seu
peito e um par de calças esburacadas e um cinto de couro ao redor da
cintura fina.

— Por acaso esse livro é seu? — Ele indagou e, como um


reflexo, ela colocou o livro atrás da saia de seu vestido.

— Não — respondeu de queixo erguido, as bochechas ardidas


de calor como se o desafiasse, como se quisesse saber como ele poderia
estar envolvido com aquele livro.

— E você o pegou mesmo assim? Não vejo argumentos muito

favoráveis a você, senhorita. — Lucian retrucou, o olhar fixo nos dela


enquanto o pé direito chutava uma rocha na direção do mar. Havia algo
em sua voz... uma segurança petulante que quebrava o escudo que Lilly
tentava criar, e isso fazia seu sangue acelerar em suas veias, tornando
sua respiração ofegante. Mais ofegante do que ela gostaria de admitir.
— Ele estava boiando sobre as ondas. — A garota tentou dizer
de forma firme, mas sua voz saiu num tom mais baixo do que o esperado.
Ela estava hesitante? Por quê? Lilly não sabia o que estava acontecendo
com seu corpo.

— E só por isso não tem dono? — retorquiu, andando até ela,


sua respiração colada ao seu rosto enquanto o rapaz se debruçava contra
o corpo da garota, deixando-a perplexa, um cheiro de alcatrão e hortelã
inundando suas narinas. Lilly ficou paralisada, observando as pequenas
gotas de suor que escorriam pela nuca queimada do rapaz. Num
movimento rápido, Lucian apanhou o livro das mãos dela, colocando-o
contra seu peito numa posição protetora e defensiva.
Lilly franziu o cenho e o observou folheando o livro, os olhos fixos
nas páginas ainda molhadas e tão facilmente desmancháveis, a rapidez e
indelicadeza de seu ser pareciam corrosivas a um livro tão delicado.
— Se tiver um dono, então ele é um imbecil... — Suas
palavras voaram diretamente para a garganta dele.
Lucian ergueu uma sobrancelha.
— E por que diz isso? — Ele bateu a capa do livro, fechando-o
num baque surdo e molhado, erguendo uma de suas sobrancelhas
despenteadas.

— Que tipo de monstro deixaria um livro à beira do mar? —


Como uma resposta, uma marola tentou alcançá-los, passando por
algumas rochas, mas perdendo suas forças antes que tocasse a barra do
vestido dela, desfazendo-se em pequenas faixas de sal.

— Ele pode ter caído... — Lucian justificou.


— Então o dono é desastrado.
Ele sorriu com o canto dos lábios. Seria ele tão presunçoso e
cínico? Ela sentia uma chama crescente em seu peito, uma inquietação
que o rapaz provocava sobre ela.
— Você é a garota do café, não é?
Lilly deixou uma lufada de ar escapar e, com a voz seca e cética,
respondeu:
— Que bom que lembra de mim, senhor Campbell. — Ela
virou-se, esticando o braço direito e apanhando o livro das mãos dele e
começando a se distanciar, a barra do vestido sendo molhada por uma
onda insistente, que minutos atrás não alcançara o tecido macio e caro.

— Então você lembra o meu nome! — Lucian parecia


satisfeito consigo mesmo enquanto enfurnava as mãos nos bolsos gastos,
os cabelos loiros escuros despenteados num topete improvisado pelo suor
do trabalho.

— Receio que ter uma boa memória seja um de meus atributos,


não que isso seja algo bom, já que o senhor se contradiz a cada
segundo...

— Como é? — Ele continuou a acompanhá-la mesmo quando

Lilly apertou seus passos. — Está tentando fugir? — O loiro riu. —


Olha, se conseguir fugir nesses saltos que as madames usam, então vou
ficar impressionado.

— Você disse que não gostava de ler e, logo em seguida,

aparece com um livro. — Ela se virou, ignorando a última fala dele,


parando na frente de seu corpo, fazendo-o dar dois passos para trás,
surpreso.

— Na verdade, senhorita Talbot, eu disse que era um tanto

incomum uma mulher ler. Nunca disse que não gostava de fazê-lo. —
Ele tentou apanhar a capa do livro, no entanto a garota desviou de seu
golpe, jogando seu corpo para o lado, os ombros indo para trás e as
clavículas sendo desenhadas pelo suave luar. Uma onda bateu contra
uma rocha, a espuma borbulhando como uma espécie de sinal de que, um

dia, uma onda estivera ali. — Talvez sua memória não seja tão boa

quanto pensa — desafiou-a.


Lucian tentou outra investida, mas falhou previsivelmente.
— Não... eu me lembro muito bem do seu tipo...

— Meu tipo? — Ele inclinou a cabeça e semicerrou os olhos.


Parecia curioso, ou ao menos sarcástico e orgulhoso o bastante para fingir
tal. Argh, os nervos dela já o repeliam com toda a força com que a atraíam
até ele.
A noite estava calma, serena, com poucas nuvens cinzentas, o que
tornava a lua ainda mais presente no céu com poucas estrelas e ondas
sutis, quando ela respondeu:
— Perspicaz... debochado... promíscuo... Acha que pode pôr
todos aos seus pés...
Ele sorriu. Dentes brancos à mostra.
— Promíscuo!? — Os olhos dele pareceram surpresos. —
Para uma dama, seu repertório é muito afiado.

— E para um cavalheiro, está sendo grosseiro.


— Não sou eu que estou dizendo grosserias — retrucou ele
tão rápido quanto ela lhe respondera, aquele maldito sorriso estampado
em seu rosto enquanto a garota engolia em seco, querendo retrucar, mas
as palavras travando em sua garganta por saber que ele estava certo.

— Não gosto que me rotulem, senhorita Talbot. — Sua voz soou quase

provocativa. — Ainda mais por aqueles que me conheceram por um


único dia.
Ela sentiu o rosto corar ao vê-lo analisando seus lábios
entreabertos, que puxavam o ar em curtas frações de segundo, a falta de
palavras deixando-a nervosa. Lilly sentiu o livro queimar em suas mãos,
como se desejasse ser aberto.
— Agora, devolva-me o livro. — Ele deu de ombros, agitando
os cílios e franzindo os lábios displicentemente.

— Não... — Ela deu um passo para trás ao vê-lo esticar o


braço.

— É o meu livro, Talbot. — Sua voz era firme e convicta do


que dizia.
Lilly o encarou, duvidosa, uma sobrancelha erguida.
— Sem o senhorita?

— Talvez ladra caiba melhor — provocou e os olhos dela

arderam. — Se não acredita em mim, olhe a folha de rosto e veja se


estou mentindo.
Hesitante e um tanto impulsionada pela ideia e o prazer que seria
desmascará-lo, Lilly trouxe o livro para frente de seu corpo, abrindo-o,
folheando as primeiras páginas até que seus dedos pararam na folha de
rosto, tão fina quanto as páginas de uma Bíblia.
— O que eu deveria ver?
No entanto, nenhuma resposta veio ao seu encontro. Nesse
instante, Lucian apanhou o livro das mãos dela, mas Lilly o segurou com
força, sendo puxada para frente junto às milhares de palavras escondias
por entre páginas banhadas em sal. Ele se desequilibrou, rindo, e deixou
uma exclamação grosseira escapar de sua boca enquanto caíam sobre as
rochas surpreendentemente confortáveis.
Lilly não teve tempo de reação, apenas sentiu seu corpo
pressionado pelo dele, seus narizes quase se tocando, os lábios ardendo
em brasa como se quisessem ser tocados, a respiração tão próxima que
chegava a provocar a pele. Ela observou seus olhos castanhos serenos,
tão belos e profundos quando aquele vasto oceano. Lucian engoliu em
seco e olhou para a garota, o braço apoiado ao redor dela, uma pequena
volta do seio da senhorita Talbot saltando do breve decote, fazendo-o
corar. Ela era linda. Seus lábios tom pastel se harmonizavam com seus
longos cabelos castanhos. Lilly sentiu-o se movimentando, aproximando
seu rosto do dela, o hálito da garota imitando flores na primavera com
gracilidade.
— Lilly! — Uma voz familiar soou atrás dela. — O que acha
que está fazendo!?
Lucian saltou de cima da garota, apanhando o livro rapidamente,
colocando-o no cós das calças e ficando de pé.
— Quem é você? — A mãe da garota começou a indagar aos
gritos, ajudando Lilly a se levantar. Usava um vestido amarelo tão feio
quanto sua maquiagem, mas tinha brincos de pérolas tão claras quanto as
conchas perdidas em meio às ondas, além de um casaquinho preto que

em nada lhe favorecia. — O que fez com a minha filha?


De repente, um vulto vestido de preto e de aparência pesada
passou no meio delas, agarrando Lucian pelo pescoço e lhe socando o
rosto, sem nem ao menos dar-lhe a chance de explicar. Mas, afinal, o que
ele diria?
— Papai! — Lilly berrou. — Não o machuque!
O homem gordo e de barba grisalha estava, agora, em cima de
Lucian, prendendo-o contra as rochas com um simples segurar de seu
pescoço, seu traje social deixando-o ainda mais roliço. Uma fina faixa de
saliva escorria pelo rosto do senhor Campbell, misturando-se com os
primeiros tons de vermelho do sangue que saía de sua gengiva
machucada.
— O que está fazendo aqui tarde da noite, Lilly!? — O pai

indagou com a ferocidade de uma besta. — Vá para casa!


Conversaremos mais tarde!

— Não... — Ela protestou enquanto sua mãe tentava embalar

a garota até em casa. — Largue-o! — Lilly se desvencilhou da mãe e


se agachou ao lado do pai, tentando olhar em seu rosto vermelho,

apoiando suas mãos sobre os ombros do homem. — Ele não me fez


nada.

— E o que foi aquilo que eu vi!?


A mão grosseira de seu pai apertou-se envolta ao pescoço dele e
Lucian grunhiu, o cenho franzido e o livro machucando sua lombar.
— Pare, por favor... Não vê o que está fazendo!?
De repente, Lilly não se conteve e empurrou seu pai para o lado
com todas as forças que tinha em seu corpo, fazendo-o perder o equilíbrio
enquanto observava Lucian retomar o fôlego. O velho caiu sentado,
estupefato.
— Como ousa me desacatar assim, Lilly!? — Ele esbravejou.

— Saia da frente!

— Não! — Lilly se ergueu num salto, protegendo Lucian.

— Lilly, escute seu pai... — A mãe suplicou.

— Mas ele não me fez nada, mamãe! — A garota fitou os

olhos do pai. — Eu caí, papai, foi apenas isso.

— Quer que eu acredite que você caiu e, de repente, ele estava


em cima de você?
Lilly engoliu em seco.
— Eu o puxei comigo durante a queda.

— E de onde você o conhece? Como estava aqui com ele?

Deveria ter ficado em casa! — O pai a bombardeou com frases ríspidas.

— Eu o encontrei por acidente na praia...

— Por que estava na praia? Por que saiu de casa?

— Não havia nada para comer...

— Compramos biscoitos, querida, especialmente para você. —


A mãe explicou, fazendo os músculos de Lilly tensionarem-se ao se
lembrar do saco amassado que encontrara no armário da cozinha.
Lilly teve de mentir:
— Não os encontrei. Senti fome e saí para comprar algo...

— O que esperava encontrar na praia?


Os olhos da garota ficaram marejados ao entender que, para
protegê-lo, precisava contar algo a seu pai. Mas... por que ela deveria
fazer isso? A garota olhou por sobre o ombro, o rosto confuso de Lucian
Campbell atrás dela, os cabelos bagunçados e a gengiva machucada, o
colarinho da camisa todo desmantelado e os olhos tentando entender o
que ela estava fazendo. Lilly já sabia a resposta. O protegeria porque,
simplesmente, ele a fez sentir algo que ninguém jamais fizera.
— A princípio, nada. Estava apenas divagando, pensando no
que poderia encontrar para jantar, mas então avistei um livro boiando
perto da margem, eu o apanhei e, quando me levantei, acabei tropeçando

e caí sobre alguém... Lucian... — Ela olhou para ele. — O nome dele é
Lucian.
O pai pareceu ainda mais furioso ao ouvir o nome do rapaz; era
possível ver as narinas dilatadas e os punhos cerrados. Agora que já
estava de pé, sua altura descomunal afligiria a qualquer um, embora cada
parte do corpo dela estivesse disposta a lutar.
— Não há por que machucá-lo por um erro que eu cometi,

papai. — Ela não saiu da frente do rapaz, pelo contrário, estendeu sua
mão para ajudá-lo a levantar, vendo-o grunhir conforme as pernas se
esticavam e ele pressionava as costas da mão direita contra o lábio
inferior, dolorido.

— Essa sua... essa sua compulsão por leitura... Irá morrer por

causa disso! — O pai berrou enquanto a mãe caminhava até ele, os

cabelos presos num penteado alto nem se moviam com os ventos. —


Você começa a ler, cria fantasias... histórias que não irão se realizar!

— Acalme-se, meu marido. — A mãe pediu, apoiando sua

mão sobre o peito cansado do homem. — Lembre-se do coração...

— Cale a boca, mulher! — retorquiu ele conforme os grossos

braços gesticulavam por entre as sombras da praia. — Você nunca mais


lerá um livro, Lilly Talbot! — Ele ordenou enquanto as lágrimas rolavam
pelo rosto da garota, as sobrancelhas formando um arco enquanto o

coração adoecia. — Eu a proíbo!

— Meu amor... — A mãe chamou.

— Não comece, Célia! Já tomei minha decisão...


Lucian mantinha a cabeça baixa e as mãos atrás das costas, sem
jeito, sem saber o que fazer. Ele queria fazer algo, de fato, mas não sabia
se iria apenas piorar as coisas para a garota.
— Ela precisa acordar para a realidade! — Ele esbravejou
pela última vez e a agarrou pelo braço, tão forte quanto um alicate que
seu polegar fez a pele doer, caminhando para longe de Lucian,
arrastando-a sobre as pedras enquanto ela olhava por sobre os ombros
uma última vez, os cabelos sendo vítimas da brisa do mar enquanto Lilly o
observava até perdê-lo de vista.
Capítulo III
Proibição

— O que você estava pensando!? — William Talbot lançou


sua filha para dentro de casa, vendo-a lutar para se manter em pé,
tropeçando na saia de seu vestido, contraindo os músculos e apoiando na
parede do corredor da entrada.

— Amor, pare! — Sua mulher pediu, mas a raiva que tornava


o rosto dele vermelho puro era mais poderoso do que a voz dela.

— Onde estava com a cabeça!? — Ele esbravejou enquanto

as lágrimas já rolavam pelo rosto de Lilly. — O que estava fazendo

naquela praia!? — Ela não respondeu, apenas se encolheu contra o

papel de parede florido. — Alga! — Ele chamou pela serviçal. —


Alga! Merda, não se encontra ninguém nessa casa!?

— Eu já lhe disse tudo... — Lilly tentou arrumar forças para


falar, esticando seu corpo, passando a mão sob o vestido, a voz
embargada pelas lágrimas enquanto lembrava de endireitar a postura e

erguer o rosto. — Papai, por favor, fique calmo. Nada aconteceu.

— Nada aconteceu!? — Ele repetiu e sua voz saiu esganiçada

e perplexa. — O que aconteceria se descobrissem que minha filha está


saindo com um vagabundo qualquer!? Vendo-o na calada da noite!?

— Não foi isso o que aconteceu, papai! Nos esbarramos por

acaso... — Lilly suplicava, as pontas das unhas fincando entre o tecido,


próximas a uma mesa de madeira envernizada que ficava na entrada da
casa, quase sempre com um vaso decorado com as mais belas tulipas.
Naquele dia não havia nada na entrada que não fossem as lágrimas da
garota.

— É claro! Devido a essa sua estúpida mania de leitura!

— William, acalme-se, por favor. — Célia andou até a frente


dele, tirando seu casaquinho medíocre, jogando-o sobre a mesa enquanto
segurava o rosto do marido com as mãos, mas os olhos dele não
conseguiam focar nos dela. Estavam fixos e doentios demais com sua

atenção em Lilly. — Fale mais baixo, os vizinhos podem ouvir...

— Dane-se! — Ele respondeu com a raiva estalando sob a


saliva que escapava por entre o trincar de seus dentes conforme William
esbofeteava o rosto de Célia com as costas da mão. Lilly gritou ao ver a
mãe tombando sobre o lado direito de seu corpo, os olhos brilhantes,
assustados, o queixo tremia e a bochecha direita já ardia, avermelhada.

— Meu amor, vamos dormir. — Ela tentou chamá-lo


novamente, as mãos na frente do corpo, protegendo-se de qualquer outro
tapa que ele lhe desse enquanto ainda estava de joelhos. Ela não
chorava, contudo as lágrimas a corroíam por dentro enquanto Lilly tinhas

as mãos contra o abdômen, tentando controlar sua respiração. — Por


favor...
As sombras abafavam tudo. Lilly não viu a vermelhidão do tapa no
rosto de sua mãe, mas no dia seguinte veria o arroxeado que se formou
embaixo de seus olhos, como as manchas de um cadáver. Talvez fosse
verdade. Talvez sua mãe já estivesse morta por dentro. Talvez todas elas
estivessem. Todas as mulheres que se dobravam pelos homens. Que se
submetiam aos seus desejos irrevogáveis e temiam os tabefes violentos,
como aquele que estalou e repercutiu no eco da casa.
— Não, mulher! Isso vai acabar hoje!

— Deixa-a pensar, querido. — A mãe suplicou com as mãos


unidas, como se implorasse a Deus.

— Ela poderia ter arruinado tudo! — Ele olhou para a filha, os

olhos castanhos embaçados pela fúria. — Acabado com uma reputação

de anos, e tudo por causa desses seus estúpidos livros! — William


Talbot soltou-se dos braços de sua mulher, que o agarravam pelas vestes,
correndo para o andar de cima.
A garota segurou a barra do vestido, passando pela mãe, que
finalmente desabou a chorar, curvando-se em direção ao tapete da
entrada, como um animal indefeso, mas cheio de fúria e arrependimento,
gritando angustiada enquanto amaldiçoava a si mesma com xingamentos
horríveis ao mesmo tempo em que Lilly os ouvia estarrecida, subindo de
dois em dois degraus, passando pelas patéticas fotos de uma família feliz.
— Papai, aonde está indo!? — Ela indagou ao vê-lo entrar em
seu quarto, os passos furiosos e os braços gesticulando violentamente.
Os olhos dele brilharam na escuridão, doentios.

— Sei que há livros aqui!


Ela franziu o cenho e sentiu o coração dilacerando-se em seu peito
ao vê-lo apanhar um livro que ela escondia embaixo de sua cama,
erguendo o acolchoado e apanhando a lomba de um volume de capa
rosa, com letras pequenas e um título em prata.
— Papai, por favor... — Sua voz suplicou, agachando-se igual

a mãe fizera, o vestido contornando seu formato no chão. — Não faça


isso...
Ele rangeu os dentes e dilatou as narinas, fitando o formato do livro
como se fosse uma cobra venenosa, perigosa demais para ser mantida
viva.
— A minha palavra é a lei dentro desta casa. — A outrora
violenta e elevada voz deu lugar a uma estarrecedora e calma sinfonia

cruel conforme ele abria o livro. — E se eu digo que minha filha não irá

ler nada, é isso o que acontecerá! — Com um puxão, William rasgou


uma das páginas.

— Não! — Ela gritou do fundo de sua alma, esticando seu


braço, entretanto sem coragem o suficiente para erguer-se e apanhar o
exemplar das mãos dele. Temia uma bofetada. Um tapa como aquele que

a deixara quase inconsciente quando menor. — Pare, por favor! — A


dor seguiu o som afiado das folhas de papel sendo arrancadas uma por
uma pelos dedos furiosos de seu pai.

— Isso é para o seu bem! — disse por último, agarrando os


braços dela, puxando-a para cima e descendo até o primeiro andar, onde
sua mãe ainda chorava com a cabeça na direção do chão, as mãos

apertando o rosto e borrando os olhos contornados. — Por Deus, Célia,


o que está fazendo aí?
A mulher ergueu as mãos em defesa e olhou para ele.
— Recomponha-se, caramba! Acenda a lareira! — ordenou

ele, e a mãe, hesitante e dolorida, ergueu-se. — Ande logo!


A mulher arqueou as sobrancelhas e correu para a cozinha,
encontrando a caixa de fósforos em cima da pia, apanhando-a com dedos
trêmulos e acompanhando-os até a sala de estar, ateando fogo numa
madeira que já repousava ali por dois dias, acumulando pó em suas
farpas.
— Não, papai! — A garota implorou, mas assim que as
labaredas ardentes começaram sua dança voraz, o livro de capa rosa foi
arremessado em meio às chamas, sua capa sendo devorada pelo fogo,
que iluminava as prateleiras e a caça empalhada que havia pendurada
sobre a parede da sala, o sofá esticado forrado por couro enquanto o
maior tapete da casa, recheado de desenhos abstratos, era vítima das
fagulhas revoltosas que estalavam na lareira conforme a capa escurecia e
as palavras eram devoradas.

— Isso é para o seu bem, minha filha. — Ele conseguia


justificar as lágrimas de Lilly, que refletiam o brilho das labaredas, seu
rosto sendo aquecido enquanto as mãos sustentavam o peso de seu
corpo. Uma dor atingiu suas costas e perfurou seu abdômen, fazendo-a
cair de joelhos, a lombar dolorida enquanto o peito parecia abrir-se em
dois. A dor de ver aquilo que se ama ser perdido.

— Eu sei que você tem mais livros nessa casa. —


Primeiramente ela achou que ele teria dito isso como ameaça, mas na

verdade ele queria dar-lhe um aviso. — Eu vou encontrá-los, garota, e


vou queimar um por um nem que isso leve uma eternidade!
A garota continuava a chorar, as lágrimas rolando por suas
bochechas rosadas que outrora sorriam em frente às ondas do mar
sereno que batia na costa. Ela queria ir embora dali. Queria poder
mergulhar em seus livros. Nadar em suas palavras. Beber de suas
histórias e, como um veneno cruel, nunca mais voltar. Com tal
pensamento, ela olhou para seu pai.
— Por que o senhor é tão cruel? — Ela indagou com a voz
bêbada de sofrimento, a mãe assistindo-os de canto, colada ao batente da
porta.

— A realidade é fria, garota. Não há lugar no mundo para

sonhadores. — Ele saiu da sala, subindo para o segundo andar. Sua


mãe apareceu atrás dela, abraçando-lhe os ombros enquanto pedia-lhe
desculpa pelo pai, o rosto dolorido tocando as bochechas de Lilly,
umedecidas pelas lágrimas. Logo depois, Célia também subiu, deixando
que a garota ficasse ali, sozinha, observando as chamas transformando
as páginas finas em cinzas, a visão um tanto embaçada pelas gotas de
sal.

***

Lilly só conseguiu adormecer depois que as aves que habitavam o


telhado de sua casa ajeitaram-se em seus ninhos, aprumando suas penas
enquanto acariciavam os filhos com seus bicos alaranjados.
As lágrimas que escorreram pelo rosto da garota só pararam de
rolar quando as primeiras pinceladas de um amanhecer dourado pintaram
a parede direita de seu quarto. Ela piscou seus olhos rapidamente,
sentindo a secura das lágrimas ainda em suas feições, como uma espécie
de cola sentimentalista.
Ela forçou-se a se levantar, a cabeça pesada conforme colocava
um vestido azul, um corset um tom mais claro harmonizando com o tom
esbranquiçado de sua pele. Lilly desceu as escadas hesitantemente,
atenta a cada degrau, a cada som, temerosa de que pudesse ouvir os
estalos da lareira que lhe atormentaram pelo resto da noite anterior, sem
dirigir uma palavra sequer a seus pais, saindo pela porta da casa com
passos duros, despercebida, que enfrentaram um chão de
paralelepípedos prensados, próximo aos cascalhos da rua.
Caminhando pelas ruas de Eastbourne, o cheiro de peixe invadiu
suas narinas, trazendo lembranças antigas, tão antigas quanto o mar. A
mãe de Lilly sempre a levara para a beirada da água, observando-a
cavoucando as pequenas pedras atrás de uma única concha que, quando
encontrada, seria dada a ela. Célia sorria ao ver a filha correndo a seu
encontro, as pequenas pernas cobertas por meias de seda que o suor do
trabalho de seu marido conseguiu comprar. Ela era muito grata por tudo o
que tinham, logo, optara por se submeter aos comandos de William, que
em pouco tempo tornou-se o homem mais influente no mercado de
pescaria inglesa. Lilly não conseguia se imaginar que nem a mãe. Se
submeter aos cuidados daquele homem? Daquela fera sem um coração
palpitante? Jamais.
Contendo novas lágrimas, Lilly preferiu distrair-se com o voo das
aves que saíam dos telhados das casas, voltando seus peitos penosos
em direção ao sol quando pousavam sobre as tendas que ofereciam
pescados, aproveitando para aquecerem-se e também para apanhar os
peixes de vendedores despercebidos. Se preparou para atravessar a rua,
esperando pela passagem de uma carruagem escura, cavalos bem
tratados e com crinas reluzentes e um cocheiro vestido com trajes novos e
lustrosos. Assim que a carruagem passou, Lilly o viu.
Lucian estava do outro lado, entrando na boulangerie que ela ia
todas as manhãs. Seu coração se acelerou ao lembrar-se da noite
passada. Seu toque súbito, a queda, as ondas batendo suavemente na
costa... A garota sentiu o peito inflar enquanto segurava a saia de seu
vestido, virando-se rapidamente para ir embora às pressas, esbarrando
num homem mais alto que ela, com trajes azul-marinho. Seu chapéu de
três pontas tombou ao chão, suas bordas decoradas de branco sujando-
se com a poeira e a imundice do chão.
— Perdoe-me, senhor. — Lilly se abaixou no mesmo instante,
apanhando o chapéu e devolvendo ao homem, sem raciocinar muito, não
associando tais vestimentas ao cargo que ele exercia. Apenas precisava
sair dali. Não poderia permitir que Lucian a visse. Não agora. Não
enquanto ela ainda permanecia tão confusa dentro de si mesma.

— Não tem problema, senhorita. — O dono sorriu para ela, os


lábios finos abrindo espaço para uma fileira alinhada de dentes perfeitos e
surpreendentemente claros, tão belos quanto seus olhos esverdeados,

que penetraram na alma da garota. — Eu devo ter errado meu caminho.

Peço desculpas. — Ele fez uma curta reverência para ela.

— Não, de maneira alguma... eu só estava... — Ela olhou para


trás, mirando no estabelecimento do outro lado da rua, as janelas sempre

embaçadas pela maresia. — Não sei onde estava com a cabeça.

— Ficaria confortável se eu a levasse para casa?

— Oh, não será necessário. — Ela sentiu as bochechas


corarem, tímida.

— Por favor, eu insisto. — Ele estendeu a mão coberta por


uma luva branca, com as palmas já acinzentadas devido o constante

manuseio de um timão livre de cupins. — Permita-me me apresentar! —

E le sorriu novamente. A respiração de Lilly se acelerou. — Sou o


capitão Sebastian Pelletier, a comando da empresa Talbot’s. É um prazer
conhecê-la, senhorita...
Sem perceber, a boca da garota entreabriu num formato oval,
surpresa, as sobrancelhas em arcos idênticos. Ele trabalhava para seu

pai. Só de pensar no rosto do velho, enfurecido — e, ao mesmo tempo,

tão satisfeito ao queimar aquelas páginas — , seus punhos se cerraram.


Seu pai parecera até mesmo feliz ao vê-la chorar pelo livro.
Houve uma época, talvez quando Lilly tinha seus oito anos, ela não
sabia ao certo, mas a garota ainda se lembrava perfeitamente bem da
emoção que sentira, da tamanha felicidade com que abraçara uma
pequenina boneca de pano de cabelos trançados e vestido rosa. Mesmo
pequena, ela pressionava a boneca com uma força surpreendente,
esmagando-a contra seu peito apenas para, depois, correr aos braços dos
pais, abraçando-os. Talvez, naquela época, pela sua inocência quanto ao
mundo, ela tenha considerado a si mesma uma pessoa feliz. Mas, agora,
os sentimentos eram mistos e, ainda assim, seu corpo parecia atraído ao
olhar de Lucian Campbell, embora as grandes íris esverdeadas do capitão
à sua frente lhe causassem arrepios.
— Talbot. — Ela disse por entre os lábios. — Lilly Talbot.
Sebastian endireitou-se, corrigindo sua postura, os olhos tão
surpresos quanto os dela. Ele tinha ombros largos, que se tornaram mais
definidos com sua vestimenta tão etérea.
— Senhorita Talbot, mil perdões. Não a reconheci.
Lilly esboçou um sorriso amarelado enquanto colocava os fios de
seu cabelo castanho tom de amêndoa queimada para trás.
— Meu pai é seu chefe, mas não precisamos de tamanha

formalidade. — Ela sorriu para mostrar que estava confortável com a


situação, todavia Sebastian permaneceu rigidamente ereto.

— Insisto que me permita acompanhá-la até sua casa. — Ele

estendeu o braço para ela. — A não ser que estivesse indo a algum
outro lugar. Se for o caso, ainda gostaria de acompanhá-la.
Lilly olhou de esguelha novamente para a boulangerie. Lucian
estava sentado próximo a uma das janelas, um copo vazio sendo utilizado
como uma espécie de entretenimento banal. Ele parecia decepcionado.
Frustrado, no mínimo. Talvez estivesse esperando por ela, porém a ideia
pareceu improvável demais ao seu pensamento e ela não quis ir até ele,
embora seus sentidos a dissessem para ir.
— Estava indo a algum lugar, senhorita?
Lilly virou-se, os olhos serenos ao dizer:
— Não. Na verdade, estava justamente indo para casa.

***

Ela subiu os quatro degraus que separavam a construção dos


Talbot’s e a calçada lisa e cimentada. No mesmo instante em que
alcançaram o lugar, a garota pôde ver Alga saindo da casa, os olhos
vermelhos, chorosos, enquanto levava uma pequena maleta nas mãos.
Ela parou por um segundo, a faixa branca novamente em sua cabeça
enquanto o nariz escorria e ela dizia adeus a Lilly, mas algo fez a garota
pensar que, na verdade, a serviçal estava fitando Sebastian. Estranhando
tudo aquilo, a garota empurrou a porta entreaberta e assistiu ao momento
em que sua mãe se aproximou da porta com passos agitados.
— Ah, Lilly! — Célia exclamou ao ver a filha parada na sua

frente. — Já está de volta...


A garota viu o quão sobrecarregado de maquiagem estava o lado
direito do rosto de sua mãe, e mesmo assim não era o suficiente para
cobrir o hematoma arroxeado que surgia embaixo de seu olho. Lilly forçou
um sorriso.
— O que aconteceu com Alga, mamãe?

— Hmf! — A mulher bufou enquanto cruzava os braços.


Naquele dia, usava um vestido marrom, de gola alta, com mangas

compridas o bastante para alcançarem a metade das mãos. — Eu a


contratei para trabalhar e lhe fazer companhia quando não estivéssemos,
não para deixá-la sozinha nas noites de teatro.
Então, Sebastian pigarreou atrás dela, tímido e desconfortável com
a situação, fitando as botas lustrosas e o piso batido da entrada quando
Lilly anunciou:
— Acabei cruzando com o senhor Pelletier, mamãe. — A
garota virou seu corpo, dando a oportunidade de Sebastian entrar no

campo visual de sua mãe por completo. — Ele me trouxe de volta para
casa.

— Foi uma honra, se me permite dizer, senhorita Talbot. — Ele


fez uma nova e curta reverência.

— Creio já tê-lo visto antes, meu rapaz. — A mãe saiu de


dentro da casa, atravessando o batente da entrada e deixando o tecido de
seu vestido exposto aos raios do sol que já se punha tão presente por
entre o céu limpo. Ela tinha uma espécie de echarpe enrolada em sua
cabeça, contendo seus cabelos.
— De fato é muito possível, senhora Talbot. — Ele subiu os
degraus rapidamente, apanhando a mão da mãe de Lilly e beijando-a

rapidamente, demonstrando respeito e sua extrema gentileza. — Sou


um dos empregados de seu marido. Permita-me me apresentar

devidamente. — Ele se endireitou, e isso fez as bochechas de Lilly

queimarem e erubescerem. Ele era, indubitavelmente, belo. — Sou o


capitão Sebastian Pelletier, capitão do navio Sereia Escarlate.
O rosto da mãe da garota pareceu clarear.
— Ah, sim! Agora me lembro de onde já o havia visto! O senhor
é o filho de Reneé Pelletier, estou correta?
Sebastian colou os lábios num sorriso e assentiu.
— Entre, meu rapaz, entre! — convidou Célia, no intuito de
guiá-los para dentro.

— Acredito que ele esteja ocupado, mamãe. — Lilly se

antecipou, o coração acelerado. — Não é verdade, senhor Pelletier?

— Ela olhou para ele, uma mistura de desejos explicitamente vistos em


seus olhos amendoados.

— Na verdade, tal encontro me foi muito oportuno. — Ele

olhou para Lilly, tentando decifrá-la. — Há dias precisava encontrar-me


com o senhor Talbot. Cheguei de viagem há dois dias e há assuntos que
precisam ser tratados em particular. Por acaso ele se encontra?
Lilly engoliu em seco e fechou os olhos. Não queria que Sebastian
falasse com seu pai. Não queria que ele tivesse nenhum tipo de vínculo
irremediável com aquele velho monstro barbudo. Mas ele era o capitão de
um dos navios atracados no porto. Ela não podia fazer nada.
— Ah, sim! Mas é claro... — A mãe virou-se e olhou na
direção da cozinha, observando o balde cheio de água e a vassoura
velha, já carcomida por cupins, que Alga deixara encostada na mesa

antes de ser demitida. — Ele está em seu escritório. Lilly, poderia


mostrar o caminho, por favor?

— Mamãe... — Ela tentou protestar, entretanto Célia apenas


ergueu sua mão direita, indicando que ela não deveria questionar.

— Mostre ao senhor Pelletier o escritório de seu pai, querida.

— Ela não disse mais nada, apenas se virou e andou com passos
rápidos até a cozinha, onde tentou esconder a vassoura atrás da porta
que dividia o ambiente da sala de estar com o da cozinha.
Lilly ainda estava na rua, seu vestido começando a pesar-lhe sobre
as pernas.
— Acho que invertemos os papéis — brincou com um sorriso
galanteador e os olhos verdes brilhando com a claridade, como
esmeraldas líquidas.

— Siga-me, senhor Pelletier. — Ela manteve a formalidade,


não ousando chamá-lo de Sebastian, mas não conseguiu conter um
sorriso com o canto dos lábios.

— Achei que não haveria formalidades entre nós, até há pouco.

— Ele sussurrou para a garota enquanto subiam as escadas forradas por


um carpete amarronzado.

— Isso foi antes de entrar em minha casa. — Ela segurava a


barra de seu vestido azulado com os dedos trêmulos e hesitantes, o
coração ainda saltando em seu peito como espirros de água fervente.
Com três batidas na porta envernizada, Lilly abriu-a, girando a
maçaneta, permitindo que Sebastian entrasse, segurando seu chapéu
com a mão direita enquanto dizia:
— Senhor Talbot, é um prazer revê-lo.
O homem olhou para ele sob seu par de óculos bifocais um tanto
embaçados, surpreso. A barba, já beirando o grisalho, estava começando
a alcançar a altura de seu pescoço. As cortinas esverdeadas estavam
abertas, permitindo que a luz entrasse obliquamente pelas janelas
retangulares que ficavam atrás da mesa em que William Talbot se
sentava.
— Capitão Pelletier! — O homem gordo exaltou, ajeitando
seus trajes formais que lhe eram justos na barriga. Um terno preto e uma

camisa social branca, o que destacava sua gravata azul-marinho. — É

uma surpresa vê-lo aqui tão cedo. — Ele tinha uma pena na mão direita,
que molhava num tinteiro quadrangular. William parou de escrever,
batendo a ponta da pena contra a superfície da mesa, evitando borrar o

papel. — Creio que, em meus registros, seu retorno só ocorreria daqui

uma semana. — O velho colocou a pena ao lado da folha em que


escrevia, juntando suas mãos, entrelaçando os dedos sobre a forma oval

de sua barriga e fitando-o de maneira a convidá-lo a se sentar. — Não


esperava vê-lo esta manhã.
Sebastian relaxou os ombros.
— De fato, foi apenas o acaso que me trouxe aqui, senhor.
William franziu o cenho. Ele desaprovava veemente acasos.
— Encontrei-me com sua filha ainda mais cedo, senhor —
explicou Sebastian e, apenas neste instante, o velho Talbot enxergou sua
filha na passagem da porta. O encarava com desgosto e uma dor que
vinha da alma.

— Ah... — William estalou a saliva em sua boca. — Pode

fazer o favor de fechar a porta, minha querida? — Ele pediu, e Lilly


engoliu em seco enquanto sentia a maçaneta fria contra os dedos, até o

click sonoro da porta ecoar em seus ouvidos. — Sente-se, meu rapaz,


sente-se.
Sebastian agradeceu, puxou uma das cadeiras e sentou-se sobre
ela.
— Gostaria de tomar alguma coisa?

— Não, obrigado.

— Um marinheiro em retorno nunca deveria negar uma dose de


bebida, senhor Pelletier.

— Creio que sou mais produtivo quando sóbrio — justificou.

— Há algum tempo que gostaria de discutir com o senhor a situação do


Sereia Escarlate.
William ergueu uma sobrancelha.
— De fato espero uma excelente justificativa para o seu retorno
prematuro, senhor Pelletier.
Os olhos de Sebastian demoraram-se mais entre o piscar, tensos,
hesitantes de se dirigir ao seu superior com notícias desagradáveis.
— Há duas semanas, ainda estávamos no Oceano Atlântico,
tentando alcançar o mar do Norte para seguir em direção à Dinamarca,
senhor. — Sebastian começou, apreensivo, as palmas das mãos

suando. — Quando nos abordaram...

— O que quer dizer com abordaram, senhor Pelletier?

— Piratas, senhor. — Sebastian engoliu em seco, sentindo o

suor escorrendo pela nuca. — Piratas nos atacaram. Creio que tenham
vindo pelo English Channel, e quando os percebemos já era tarde.
Ordenei que os marujos fizessem o contorno a Oeste, mas havia rochas
demais que poderiam ameaçar a estrutura do Sereia Escarlate. Eles nos
interceptaram, ameaçando disparar os canhões, e subiram a bordo.

— Você permitiu que subissem? — A desaprovação da voz de


Talbot era notável.

— Não poderia colocar em risco a vida dos meus companheiros,


senhor.

— Há canhões em seus navios justamente para isso, senhor


Pelletier. Para afundarem esses malditos piratas antes que eles o façam

primeiro! — William socou a mesa com punhos cerrados e os olhos

fuzilando o capitão à sua frente. — A vontade que tenho é de que


Eastbourne tivesse punições tão severas para os que praticam pirataria
quanto Londres.

— Recebeu cartas da capital, senhor?

— Piratas são mortos e suas cabeças são expostas em estacas

em meio à cidade. — William sorriu com os lábios colados enquanto ele


se reclinava em sua cadeira, jogando seu peso para trás, a cadeira
rangendo como se reclamasse de sua banha, comprimida pela camisa de
botão feita da mais alta seda. Ele colocou a mão sobre sua barriga e o

sorriso se desfez. — O que eles levaram?

— Nada.
O velho Talbot franziu o cenho, confuso.
— Então não houve perdas?

— Não materiais. Nos interceptaram cedo demais, senhor, e


ainda estávamos com os peixes na embarcação. Se estivéssemos
voltando da Dinamarca, teriam levado o pagamento, mas...

— Diga de uma vez, capitão.

— Três marujos foram mortos, como um aviso.

— Aviso?

— De que se ameaçássemos continuar, eles afundariam cada


barco.
Talbot inflou o peito e as narinas dilataram conforme ele levantava,
sua altura jogando sombras sobre Sebastian, que permanecia duro em
sua cadeira.
— Disse que desconfia que eles vieram pelo English Channel,
não é?

— Sim, senhor.

— Acha que eram franceses? — O homem se virou e cruzou


as mãos atrás das costas, permitindo que a luz do exterior banhasse seu
rosto enquanto as cortinas levemente esvoaçavam com o vento que
entrava pela janela.
— O sotaque era perceptível, senhor.

— Isso é uma declaração de guerra, só pode! — concluiu o


velho, os ombros tensionados enquanto Sebastian o observava por trás,

atento. — Sinto que sua tática não tenha funcionado. É realmente uma

pena, senhor Pelletier. — Ele disse com a voz seca e sem emoção,

observando os olhos cabisbaixos de Sebastian ao se virar. — Mas não


irei interromper as minhas negociações por causa de piratas. Se eles o
abordarem novamente, exijo que os ataque! Temos frotas o bastante para
derrotá-los pelo cansaço.
Sebastian endireitou-se.
— Senhor?

— Veio até aqui e espero que não seja apenas para me dar a

notícia de que falhou como capitão, senhor Pelletier. — Os olhos


severos brilharam conforme ele se inclinou sobre a mesa, uma mão
apoiada em cada lado.

— Eu... gostaria de pedir novos marinheiros, senhor.


William tossiu.
— Não posso fazer isso.

— Meu senhor, preciso de mais homens para suportar uma


viagem tão longa quanto a que fizemos. Ainda mais pelo risco de perdê-
los pelo caminho, seja por piratas, seja por doenças...

— Você precisa que sua tripulação confie no senhor novamente,


e não de novos marinheiros. Estamos no que dizem ser a Era de Ouro dos
piratas, capitão Pelletier. Eles têm números impressionantes, devo admitir.
Não posso arriscar colocar mais homens de confiança em risco, meu caro.
Seria simplesmente ilógico.

— Ao menos permita que Lucian volte, senhor.


William semicerrou os olhos, as faíscas voando de suas pupilas em
direção a Sebastian.
— É engraçado o senhor dizer que encontrou com minha filha,

senhor Pelletier. — William se levantou, ficando de costas para ele


enquanto fitava uma Eastbourne em desenvolvimento, as chaminés das
casas acesas e uma névoa dissipada pelos raios fracos do sol tapando

miseravelmente uma parte do horizonte. — O senhor Campbell também


teve seu caminho cruzado com o de Lilly.
Sebastian enrijeceu-se.
— Senhor?

— Lucian não voltará para um navio desta companhia, senhor


Pelletier. Quero que isso fique bem claro entre nós dois. Caso contrário,
nossos interesses serão conflituosos e não poderemos mais trabalhar
juntos. Entende isto?
Sebastian não respondeu.
— Está claro, senhor Pelletier!? — William engrossou sua voz.

— Sim, senhor.

— Ótimo. — O velho Talbot caminhou até sua cadeira,

puxando-a para se sentar novamente. — Agora, vamos a um assunto


que me preocupa ainda mais.
— E que assunto seria, senhor? — Sebastian soltou o ar que,
sem perceber, prendera, a tensão começando a deixar seu corpo através
de gotículas de suor que escorriam pelas suas costas.

— O que achou de minha filha, senhor Pelletier?

— Perdão? — Sebastian fechou as mãos em seus joelhos,


hesitante de ter entendido errado.

— Por favor, senhor Pelletier. Pode ser sincero comigo. Sei que
minha filha é de encher os olhos, todos dizem isso.
Sebastian baixou o olhar por alguns segundos, analisando o
carpete vinho-tinto, os pés cobertos por sapatos sociais lustrosos, quase
como piche, de bico quadrangular.
— Ela tem uma beleza... inquietante, senhor.
Lilly mordiscou o lábio inferior. Mantinha o ouvido colado à porta já
havia algum tempo, os seios comprimidos pelo corset azul-claro, as mãos
espalmadas na passagem com tamanha delicadeza que pareciam ter sido
moldadas junto à madeira, alguns fios de seus cabelos caíam-lhe ao lado
de seu rosto, a respiração calma e os olhos arregalados, ouvidos atentos
a cada som.
— Inquietante? — William jogou-se para trás e, mais uma vez,

colocou a mão sob sua barriga. Olhos analíticos. — O que lhe faz
pensar isso?
Sebastian tentou esconder um sorriso, falhando miseravelmente,
fazendo o pai perguntar:
— O que há de engraçado, meu caro?

— Não é nada, senhor.

— Então apenas responda à minha pergunta, senhor Pelletier.


— Sua filha tem algo... diferente. Não poderia dizer muito, já que
os poucos instantes que passei com ela foram breves, porém admito que
foram agradáveis.
William ajeitou-se na cadeira, abaixando-se com um grunhido na
direção de uma gaveta próxima a seus pés, a qual abriu e apanhou um
convite cor de pergaminho apático. Ele o escorregou pela mesa.
Sebastian se levantou e o apanhou.
— Já que achou a companhia de minha filha agradável, não há
por que não vê-la novamente.

— Senhor? — Sebastian mantinha o chapéu contra o corpo e


o convite em sua mão esquerda.

— Estou convidando-o para um baile que darei daqui duas


semanas. Uma mera cordialidade para que minha filha possa ter a chance
de ser escolhida por um cavalheiro à altura de sua honra.
Sebastian agradeceu pelo convite e acrescentou, um tom suave em
suas palavras:
— Será um prazer revê-la.
William não disse mais nada, apenas voltou sua atenção aos
papéis e ao tinteiro, a pena encaixando novamente em sua mão enquanto
ele escrevia, com movimentos rápidos, cartas que deveriam ser entregues
para Raymond, um de seus fornecedores de redes.
Quando a porta do escritório se abriu, Lilly fingiu estar vindo de seu
quarto, cabeça baixa, os cabelos ajeitados sobre os ombros.
— Senhorita Talbot. — Ele chamou sua atenção, vendo-a ali,
como se estivesse, de fato, prestes a sair de seus aposentos.
Lilly ergueu a cabeça, os lábios colados num sorriso.
— Senhor Pelletier.
— Obrigado pela companhia — agradeceu o capitão de olhos
verdes com uma última e breve reverência, girando nos calcanhares logo
em seguida e descendo as escadas.
Capítulo IV
Jardim
O jardim botânico de Eastbourne ficava duas ruas abaixo de seu
píer. Ele se estendia durante um quarteirão, decorando a rua com sua
beleza envidraçada, lotado das mais diversas flores, desde uma tulipa até
a mais exótica petúnia. Lilly caminhava com as mãos dentro do bolso de
seu casaco, colado ao seu corset amarelo-pastel. As solas de seus
sapatos de bico fino batiam contra a passarela de metal que divida o lugar
em dois pisos, o vento sempre desafiando a estrutura com pequenos
balanços. A construção era feita, primordialmente, de extensas janelas de
vidro, que tornavam o local uma estufa por si só, o ar abafado e úmido lhe
sufocando aos poucos, mas a beleza de cada pétala a distraía e a
sensação passava de maneira tão rápida quantos as refrescantes e
súbitas correntes de ar, que corriam por entre algumas janelas abertas.
— Não podíamos ter vindo outro dia, certo? — indagou
Heather, os braços colados ao redor do corpo, disfarçando o suor que lhe
escorria pelos braços e testa, fazendo os fios de seu cabelo grudarem em
seu rosto chapado.

— Eu apenas estava... com vontade de vir aqui — respondeu


a garota, os cabelos castanhos presos num coque alto, deixando seu
pescoço mais esguio naquela roupa.

— Você conheceu um rapaz, não foi? — Heather brincou, seu


queixo quadrado indo para frente conforme ela ria. Seus olhos eram
esverdeados, assim como as diversas folhas que acompanhavam as
flores. Seus cabelos castanhos também estavam presos num coque alto.
— Não disse isso. — Lilly tentou desviar a mente da garota
enquanto virava à esquerda, passando pelo meio do segundo piso,
observando as pessoas no andar de baixo. Eram poucas, de fato, mas
uma mais peculiar que a outra. Havia um casal de idosos, caminhando
com os braços entrelaçados enquanto a esposa admirava, encantada, as
amostras de sulcos extraídos das plantas, expostos em armários de
madeira. O outro era o curador do local, sempre com suas roupas bem
alinhadas e cabelo lambido para trás. Não foram poucas as vezes em que
ele cruzou com Lilly no piso inferior, quando ela parava para observar as
tulipas e perdia-se entre as horas. Por fim, uma mãe tentava explicar para
a filha qual era o nome de determinada flor e o porquê de a chamarem
assim, no entanto a menininha parecia mais interessada era na passarela
que se estendia sobre sua cabeça, já que os olhos delas se cruzaram e
Lilly lhe deu um sorriso.

— Mas não precisa. — Heather riu novamente, apanhando o


braço da garota com o seu. As costas delas suavam e o coração de Lilly,
por mais surpreendente que fosse, não batia assim tão rápido. Talvez

estivesse ficando comum conversar sobre cavalheiros, afinal. — Está


mais do que óbvio!

— Duvido que, de fato, esteja — provocou Lilly, um sorriso


escondido no canto dos lábios enquanto revirava os olhos na direção do
teto transparente, a luz do sol refratando em sua superfície e formando um
breve arco-íris.
— É claro que está! Afinal, por que me chamaria, aqui, numa
quinta-feira?
A risada das duas, ainda que sutil, dominou todo o local,
tamborilando por entre a botânica, o que fez com que os olhos zangados
do esposo da senhora do piso inferior voltassem-se a elas, conforme
ambas desciam a escada a fim de voltarem para o primeiro nível; o
pedaço de tecido marrom pregueado dos ombros à bainha na parte de
trás do vestido de Heather arrastando-se pelos degraus, as pregas largas
enviesadas em seu decote não contendo os seios da garota, deixando-os
saltados naquela figura sem forma, com as mangas partindo do ombro,
etéreas no topo e mais largas nos cotovelos. A amiga demorou mais
tempo para conter sua risada. O sorriso de Lilly se apagou mesmo depois
de terem deixado o casal para trás.
— O que foi?

— Papai... — Aquela palavra bastou para Heather, que


explodiu em sensações confusas:

— Sabe que já mandei o seu pai ao inferno e o mandaria de


novo!
Lilly olhou de esguelha para ela, hesitante, conforme a amiga
continuou:
— Perdoe-me, Lilly, mas sabe o que acho dele. Onde já se viu
queimar livros? É realmente um homem banal.

— E ainda há o baile... — Ela sussurrou envergonhada.

— Baile? — Heather indagou, surpresa. — Não me contou


sobre um baile.
— Apenas não queria contar sobre isso numa carta. Papai

poderia ler... — explicou enquanto as narinas tentavam se acostumar


com o forte cheiro silvestre que ali havia. A presença de terra recém-
umedecida refrescando o corpo dela.

— Viu, Lilly? Ele controla a sua vida! — Heather retomou a


sua raiva contra William.

— Como todos os homens controlam a vida de todas nós.

— Mas ele é seu pai, deveria querer o seu melhor.

— E um marido não?
Heather ergueu uma sobrancelha enquanto engolia em seco.
— Sabe o que quis dizer. O senhor Talbot...

— Já é o bastante, Heather! — interrompeu Lilly com rapidez


enquanto colocava-se na frente da amiga, um par de orquídeas pendendo
para perto de seu rosto como se quisessem beijá-la delicadamente, quase

roçando sua pele. — Por favor, não vamos falar dele.

— Achei que este tópico acabaria por entrar em nossa conversa


uma hora ou outra, Lilly. Apenas acho que ele deveria parar de destruir
você.

— O que quer dizer?

— Lilly... — Os olhos da garota tornaram-se penosos enquanto


fitavam a filha de um velho cruel e inescrupuloso, sabendo do quanto ela

se corroía, todas as noites, enquanto tentava dormir. — Você não está


feliz.
A garota agitou seus cílios e o nome de Lucian surgiu em sua
mente com uma força que ela jamais sentira. Não fora felicidade o que

sentira com ele, mas algo na impetuosidade de seus atos — no modo

como olhava para ela, como sorria —, de fato a fizera se sentir, no


mínimo, diferente, e isso já era o máximo para chamar-lhe a atenção. Lilly
baixou seus olhos, porém Heather era mais baixa que ela e seus olhares
ainda se cruzavam, um lago esverdeado misturando-se com tons
achocolatados.

— O baile acontecerá daqui duas semanas. — Lilly endireitou-


se, colocando os ombros para trás, as costas se esticando conforme
voltavam a andar pelo jardim.

— Queria poder dar um baile. — Heather admitiu de forma


quase triste.
A família Fetherstone havia herdado pouco dinheiro com o passar
das gerações. Pelo que Lilly sabia, eles possuíam um imóvel alugado e
uma pequena tenda na qual vendiam peixes velhos. O homem mais rico
da família alcançava, todo final de mês, uma quantia de setecentas libras.
Nada impressionante, todavia o suficiente para manter suas filhas numa
escola de etiqueta decente enquanto seu filho aprendia a arte dos
negócios.
Heather Fetherstone tinha um irmão e uma irmã. O primeiro tinha
sobrancelhas grossas e divertia-se dizendo que matara diversos cervos
com o pai em caçadas anuais, embora fosse devotamente apaixonado por
números, e tivesse, como ele mesmo se orgulhava em dizer, o objetivo de
tirar a família do meio do povo imundo. Ao jantar, colocava os cotovelos
sobre a mesa e pouco se importava com a presença das moças que
visitavam a casa. Heather era a irmã do meio, enquanto Julliet se ocupava
do terceiro cargo, tendo nascido sob o frio de um outono cruel. Seus olhos
não vieram verdes, como os do pai, mas sim castanhos, puxando-os da
mãe, tão dóceis e gentis quanto poderiam ser.
— Você poderia vir ao baile, se quiser. É mais do que bem-

vinda. — Lilly a convidou com a voz um tanto abatida, pensando que lhe
foram atribuídos tantos privilégios, e ela os detestava de alguma forma.

Sentiu-se ingrata naquela hora. — Sabe disso.

— Eu iria até sem um convite, senhorita Talbot. — Heather riu


novamente enquanto carregava a voz ao pronunciar o sobrenome da

garota. — Eu também queria convidar-lhe para ir a um lugar comigo... Se


estiver disposta.

— Diga-me. — Lilly sorriu. — Sei que adoraria ir.

— Na verdade, talvez nem tanto. — Os ombros da amiga


encolheram-se no pescoço atarracado e ela exibiu um sorriso frágil e

nervoso. — Gostaria que fosse comigo até a propriedade do senhor


Denver.
Lilly bufou, tentando manter o seu sorriso, mas falhando
miseravelmente.
— Sabe que não posso, Heather.

— Sei que Gayle estará lá, mas August também. E eu queria


muito visitá-lo.

— Heather, eu...

— Por favor, Lilly! Sabe como é difícil alguém gostar de mim, e


eu tenho certeza de que ele me ama!
Por um breve momento, a garota lembrou-se do quanto Heather
entregava-se aos sentimentos. Sem medo. Tinha muito amor para dar, só
precisava de alguém a quem dar, e August Denver, aos olhos de Lilly, lhe
era uma boa opção. Só que havia um empecilho chamado Gayle.
— Quando? — perguntou, hesitante.

— Já tem compromisso? — retrucou Fetherstone rápido


demais, evidentemente preocupada em perder sua companhia.

— Não, mas ainda assim preciso saber a data.

— Provável que no sábado. Você poderia? Preciso enviar uma


carta anunciando nossa ida.
Com um olhar penoso e sereno, Lilly concordou com a breve
viagem até o extremo norte de Eastbourne, tendo apenas que avisar seu
pai que passaria uma tarde fora. Ele não ficaria feliz em saber disso, mas
se dissesse que iria a um chá da tarde com Heather, talvez ele se
alegrasse, pensando que a amiga poderia colocar certo juízo em sua
cabeça. Ela omitiria o nome de Gayle Denver, é claro, já que isto ainda lhe
causava enojamentos.
Era mundialmente conhecida a má fama da família Denver, graças
ao seu filho mais novo. Numa tarde de verão, Gayle e um grupo de
amigos invadiram uma casa para meninas, onde roubaram suas
vestimentas íntimas. Um ato estúpido e miseravelmente elaborado pela
mente masculina? Sim, mas tal evento acarretou numa série de outros
ainda piores.
Dois anos depois, Gayle conhecera Lilly. Seus olhos brilharam ao
ver a garota. Tão bela, frágil... solteira. Ao repousar o olhar sobre as mãos
dela, ele já havia feito sua escolha. Na tarde em que se conheceram,
depois de tomar chá ao lado de Heather e August, ele tentou apanhá-la
um seio. A garota protestou e, como resultado, sofreu uma segunda
investida, apenas para, em seguida, derramar chá quente sobre as mãos
de Gayle, que gritou em meio ao susto e ao ardor enquanto duas bolhas
formavam-se em sua pele. Ela prometera a si mesma que nunca mais
visitaria os arredores de sua casa, no entanto ali estava ela, fazendo uma
segunda promessa, a qual corrompia a primeira. Talvez o ser humano
viesse a sempre ser assim. Compromete-se a uma promessa apenas para
destruí-la no futuro em prol de outra, dizendo a si mesmo que é para o
bem do próximo para que assim sua mente possa descansar. Um ciclo
vicioso e autodestrutivo se usado de maneira indevida.
— Por favor, tente ir! — insistiu a garota, apanhando o braço
de Lilly novamente, passando sua mão direita por baixo do braço da

garota e repousando os dedos sobre sua cintura. — Mas, então... —


Heather pareceu quebrar a linha de lembranças de Lilly com sua voz

suficientemente maliciosa — ... não pense que fugiu de meu assunto.

— Como assim?
Heather riu antes de responder:
— Quem foi o rapaz que você conheceu?
Elas passaram ao lado de um exibidor de madeira e porta de vidro,
onde os idosos outrora estiveram, os sulcos perfeitamente organizados
em frascos pequenos que se empoeiravam, assumindo diversas cores,
desde um verde-lodo até o mais puro branco. Embaixo delas, em outra
prateleira, havia pequenos pacotes, fechados minuciosamente por linhas
prateadas, que guardavam sementes a serem plantadas no decorrer do
ano. O calor era propício a muitas delas, mas havia flores que se
desenvolviam melhor no frio. É curioso o modo como alguns se adaptam
mais a determinado tipo de ambiente. Vivem mais. Crescem mais. Se
libertam mais. Bom, talvez os humanos devessem aprender um pouco
com as flores.
— É um lorde? Duque?
Mas antes de responder, por algum motivo, outro nome veio à sua
mente que não o de Lucian, levando-a a responder:
— Ele é um capitão, na verdade.
Heather arregalou os olhos, seu sack dress marrom tirando-lhe a
forma enquanto ela respirava fundo e arregalava os olhos, surpresa.
— Será que seu pai o conhece?
Lilly deixou uma risada curta escapar enquanto fios de seu cabelo
tombavam nas laterais do rosto.
— Na verdade, ele foi até minha casa ontem de manhã.

— Ontem!? Por que não fiquei sabendo disso antes!?

— Porque a carta que lhe escrevi demorou para chegar.


Heather bufou, insatisfeita e com os lábios formando um beicinho
conforme iam em direção à saída do jardim.
— Então já é oficial? — Perguntou, finalmente.

— O que seria oficial?

— Você irá se casar?

— Por Deus, não. — Lilly retorquiu, entretanto a ideia de


desposar lhe era cada vez mais imposta. Todos os dias, a cada olhar sem

alma que recebia de seu pai. — Ainda não.

— Ainda...
Lilly bufou.
— Se dependesse de meu pai, já estaria casada há mais de
dois anos.

— Eu gostaria de me casar. — Heather admitiu enquanto


dava passagem para um grupo de crianças, acompanhadas de sua
professora esguia, que pulavam animadas pelo passeio enquanto os
vestidos delas raspavam na calçada, os cascalhos sempre estalando,
como se reclamassem por serem pisados todos os dias.

— Espere um pouco. — Lilly franziu o cenho, um ar brincalhão


em seu rosto que surgiu conforme a manhã encontrava seu fim e os sinos

da igreja preparavam-se para anunciar o meio-dia. — É por isso que


está me levando à casa dos Denver?
Heather arregalou os olhos e colocou a mão sobre o colo dos seios
dramaticamente, até mesmo dando dois passos para trás enquanto lutava
para não rir e dizia:
— Ah, não, fui descoberta!
Capítulo V
A indelicadeza de um cavalheiro
O dia seguinte decorreu de forma surpreendentemente graciosa,
assim como o anterior. Lilly quase não vira seu pai e isso lhe serviu como
um descanso, até que, quando já havia anoitecido e seus pratos haviam
sido recolhidos pelas duas novas empregadas da casa, o senhor Talbot
prontificou sua gratidão pela filha ter parado de reclamar a respeito do
baile na próxima semana. Mal sabia ele que esta seria a conversa que
acompanharia as garotas em sua viagem até a propriedade dos Denver
na manhã de sábado. Antes que ele deixasse a mesa, Lilly disse, numa
espécie de soluço apressado, que gostaria de participar de um chá da
tarde com Heather Fetherstone no final de semana. Ele questionou seus
motivos, e no final cedeu, convencido pela voz de sua esposa. Lilly fez
uma anotação mental de agradecer sua mãe antes de repousar, dando-
lhe um beijo no rosto que não mais manchava-se com os tons de roxo da
bofetada que levara, mas que se desfazia em tons de amarelo.
Agora, na manhã de sexta-feira, com um vestido vermelho-vinho
recheado das mais diversas rosas douradas bordadas em seu tecido
pesado, um pequeno bustle tornando-a mais curvilínea nos quadris, com
mangas médias, lisas e que mostravam um punho cheio de rendas, Lilly
caminhava na direção da boulangerie em frente ao porto, a mistura do sal
na brisa que batia contra seu rosto refrescava seus sentimentos um tanto
embaçados. Ela abriu a porta e foi recebida pelo toque do sino
enferrujado. Jim veio atendê-la de prontidão.
— Senhorita Talbot! — O atendente sorriu, animado, ao se
aproximar, a beleza estonteante da garota naquela manhã atraindo seus
olhos gentis. A garota ajeitou o colo de seu vestido enquanto olhava para

ele, retribuindo o sorriso. — Está tudo bem? Não esperava vê-la hoje.

— E por que não? — respondeu, seus dentes perfeitos ainda


alinhados em um sorriso.

— Não tivemos a honra de sua presença em dois dias, achei

que estivesse ocupada. — Ele disse com um final vago, como se


esperasse que ela lhe desse informações.

— Acabei perdendo a hora, apenas isso. — Ela respondeu


enquanto analisava a janela embaçada ao seu lado, dando vista para os
mastros dos navios, onde homens de aparência sofrida puxavam as
cordas de suas velas principais, preparando para talvez mais um ano em
alto-mar, isso se tivessem sorte, é claro.

— Ah, sim, perdoe-me a indiscrição. Não queria parecer rude.

— Jim ficou vermelho e Lilly sorriu novamente, mostrando que estava


tudo bem.

— Me traria um chocolate quente, Jim? Estou precisando de um


esta manhã.
De fato, a brisa acordara com um aspecto um tanto mais fresco
naquela manhã, e a garota achou oportuno uma bebida mais quente.
— Já trarei. — Ele anunciou enquanto retornava para detrás
do balcão velho, a pintura esverdeada descascando enquanto doces
brilhantes se exibiam dessa vez. Feitos de pão, mel, açúcar importado e
outros, levavam pequenas frutas azuladas e redondas, que Lilly nunca
comera.
O local estava tranquilo aquele início de dia, e a garota correu os
olhos pelo chão de madeira esburacada enquanto procurava por algum
sinal do senhor Campbell. Como se atendendo aos pedidos de sua mente,
só que não aos de seu coração, ele não estava ali. Talvez ele tivesse sido
apenas uma coincidência. Mas duas vezes? Talvez ele passasse a ser
uma memória, uma peculiaridade de seu passado. Se ela não o visse
mais, ao menos não haveria problemas relacionados a seu pai. Ao menos
fora o que ela pensara.
— Aqui está. — Jim entregou a bebida fumegante, que teve
sua fumaça dançando em espirais até a altura do nariz da garota, sua
delicadeza misturando-se em tons escuros que, em breve, lhe aqueceriam
o corpo. Antes de deixá-la sozinha, o atendente retirou algo de dentro do
avental branco que usava e colocou sobre a beirada da mesa. Estava
embrulhado em jornal e tinha um formato comum aos olhos de Lilly.

— Jim... — Ela o chamou depois de bebericar o chocolate

quente e vê-lo se afastar com demasiada pressa, quase temeroso. —


Acredito que isto lhe pertença... — Ela se levantou, segurando a barra
de seu vestido enquanto apanhava o embrulho. O peso, o formato… Era,
sem dúvida alguma, um livro, e a frase de Jim apenas serviu para
confirmar isso:

— Ah, perdoe-me, estou um tanto avoado. Este livro foi deixado


por um cavalheiro na manhã de ontem, para a senhorita.
O coração de Lilly parou em seu peito, os lábios entreabrindo-se
enquanto a respiração tornava-se fraca e ela empalidecia.
— E poderia me dizer o nome do cavalheiro? — Ela indagou,
as palavras travando em sua garganta, já conhecedoras da resposta.
— Lucian. Lucian Campbell, senhorita Talbot.
Agora, Lilly tocava o embrulho como se este lhe causasse
queimaduras tão profundas que alcançavam sua alma. Ela já sabia que
era um livro, mas não aquele. Não o que ela encontrara nas ondas. Não o
que havia feito cair embaixo do corpo dele. Não aquele maldito livro!
Entre os rasgos do papel do jornal barato, a capa azul começou a
se revelar, o cheiro de sal e mar evidente, misturando-se ao do chocolate
de forma sutil, que ainda fazia-se presente no paladar da garota, seco
pela surpresa, as sobrancelhas erguidas em arcos alinhados enquanto ela
lia um pequeno bilhete que fora grudado sobre a capa:

Senhorita Lilly Talbot,


Perdoe-me pelo inconveniente da noite passada, espero que
acredite quando digo que não queria nada mais do que apanhar meu livro,
isso lhe garanto. Jamais imaginei que nosso encontro ao acaso acabasse
por lhe prejudicar. Sinto muitíssimo. Como prova de meu arrependimento,
estou lhe dando o livro que pateticamente tentou roubar de mim.
Cordialmente,
Lucian Campbell.

O rosto de Lilly queimou em indignação, e os lábios uniram-se


enquanto ela contraía o maxilar, incrédula. Ele ainda tivera coragem de
chamá-la de ladra mesmo em uma carta pobremente escrita.
— Jim. — Ela chamou e o rapaz apareceu quase de imediato.
A garota baixou o livro enquanto arrancava o bilhete exasperada,

amassando-o entre os dedos. — Sabe onde posso encontrar o senhor


Campbell?

***
Lucian corria de um lado para o outro, seus cabelos dourados
grudados na testa com seu suor salgado, reluzente ao sol forte. Ele pulou
da proa em direção ao convés, as cordas maltrapilhas balançando como
serpentes no ar enquanto as botas dele batiam contra a madeira.
— Controlem as cordas, homens! Se não o fizerem, o navio

sairá antes da hora! — Ele berrou como uma espécie de incentivo e


aqueles ao seu arredor pareceram aumentar o esforço. As veias saltavam
em seus braços, esverdeadas, formando trilhas inimagináveis enquanto
Lucian trincava os dentes e controlava as cordas, enroscando-as no
corpo, sentindo cortar a pele.

— Lucian, apanhe esta aqui! — berrou um homem de pele


morena, lançando uma corda marrom na direção dele. O rapaz a
apanhou, colocando-a sob o ombro apenas para, depois, prendê-la em
sua cintura.

— Calma, homens. — Ele gritou enquanto sentia as correntes


frias do mar diminuindo o movimento das velas. Seu interior era gélido,

sua superfície era morna. No calor, era um atrativo a qualquer um. —


Calma!
De repente, os ventos intransigentes acalmaram-se e o tumulto
apaziguou-se. Lucian estava ofegante, as mãos apoiadas em suas calças
esburacadas enquanto a camisa amarelada grudava em seu peito. Ele
desamarrou a corda da cintura e a prendeu numa das estacas que
ficavam na borda do navio, assim como os outros homens faziam,
tentando controlar sua respiração. O sol bateu obliquamente sobre seus
olhos, cegando-o por um momento, fazendo-o cambalear para trás antes
de desembarcar, passando por uma prancha improvisada que testava o
equilíbrio de todos os marinheiros.
Enfim, já em solo do porto, onde seu suor corria livremente em
direção ao piso de madeira falha, e o peito dolorido conseguia finalmente
perder a excitação, Lucian a avistou, passos firmes cobertos por aquele
tecido tão ridiculamente pesado e quente e um livro azul entre os dedos
delicados, os cabelos castanhos tom de amêndoa queimada voando na
frente do rosto conforme os ventos a alcançavam enquanto a cintura era
perfeitamente delimitada, as mangas rendadas esvoaçando sob seus
braços como linhas embaraçadas. Seus olhos carregavam lágrimas de
puro nervosismo e indignação.
— Senhorita Talbot... — Lucian tentou sorrir, mas antes que
pudesse, Lilly atirou o livro aos seus pés, a capa abrindo-se com o
impacto, deixando as folhas expostas aos respingos de água salgada,
violentamente viradas pelo vento que não lhes demonstrava respeito.

— Por quê? — Ela indagou, as mãos cerradas enquanto


parava a menos de um metro dele.

— Perdão, senhorita, mas não entendo o que está querendo


dizer.
Lilly aproximou-se dele por fim, sentindo seu cheiro; puro suor e
sal. Ela franziu o cenho enquanto mordia o lábio inferior, o maxilar
escorregadio e o sol tornando os fios de seu cabelo em um bronze
brilhante.
— Por que me mandou este livro?
Lucian ergueu um braço e coçou a nuca, abaixando-se conforme os
joelhos dobravam e ele apanhava o exemplar azulado, os olhos um tanto
envergonhados enquanto as palavras começavam a sair de seus lábios
de forma acanhada e hesitante:
— Achei que o quisesse.

— Não quero nada que venha de você, senhor Campbell. —


Tendo dito isso, Lilly girou nos calcanhares e começou a se distanciar
antes mesmo dele se reerguer, os ombros rígidos e a postura de uma
garota digna do beijo do sol, que aquecia suas feições palidamente
esculpidas.
Lucian olhou na direção do navio. Alguns marinheiros riam da
situação, debochando com sorrisos largos. Ele revirou os olhos, os lábios
franzidos em reprovação enquanto fitava a figura vermelha da garota
distanciando-se, fazendo-o correr atrás dela, a tensão da força que fizera
nas cordas colocando os músculos de seu corpo à prova enquanto a
alcançava. Aquele seria um longo dia. Quando finalmente se aproximou,
ele desacelerou o passo o bastante para conseguir acompanhá-la, mas a
firmeza em seu caminhar era tanta que ambos praticamente corriam, as
mãos dele dentro dos bolsos enquanto mantinha o livro preso embaixo do
braço.
— Não seria mais prudente se andássemos devagar? — Ele
cuspiu as palavras em meio ao exalar do ar, inspirando profundamente

logo em seguida. — Ei, espere um pouco, senhorita Talbot!

— Achei que tivesse deixado claro meus interesses... —


retrucou Lilly enquanto olhava para os lados, certificando-se que nenhuma
carroça vinha naquele momento.

— Achei que não houvesse interesses de sua parte. — Ele riu,


os dentes, um tanto tortos, iluminados pelo sol.

— Foi o que quis dizer, senhor Campbell.


Agora, eles caminhavam pelas calçadas do lado oposto ao porto,
onde o cheiro de peixe constante e mexilhão frito embrulhava os
estômagos das grávidas que por ali passavam, as ostras sendo abertas
no instante em que eram compradas, prontas para o consumo.
— Aceite o presente, senhorita Talbot. — Ele colocou o livro
contra o corpo de Lilly, fazendo-a parar num súbito instante, os olhos
arregalados.

— Agora o oferece? Achei que eu fosse uma ladra aos seus

olhos. — Ela se desvencilhou dele, continuando seu caminho, passos

firmes e rápidos. — Não precisava ter escrito bilhete tão odioso, senhor
Campbell.

— Seria melhor se ambos aceitássemos que estivemos errados.


Lilly parou novamente, agora por vontade própria, virando-se
enquanto fitava os olhos confusos do homem à sua frente. Ela deveria
contar a ele? Deveria falar sobre seu pai e o fogo que devoraria todas as
palavras que estivessem naquelas páginas agora secas? Ter apanhado
de William Talbot não fora o bastante? E quando a última pergunta surgiu
em sua mente, foi apenas aí que ela notou o arroxeado em seu queixo,
perto das queimaduras de sol. O lábio estava ferido também, não só das
mordiscadas constantes que ele dava quando fazia força, mas também do
punho de seu pai. Por que raios ele se colocaria em risco novamente
apenas para vê-la ler?
— Por mais que eu gostaria de aceitar o livro, senhor Campbell,

não tenho a permissão para tal — respondeu dolorosamente enquanto


eles encostavam na fachada da única loja fechada, com portas de
madeira forradas de tábuas pregadas com pregos tortos e enferrujados.
Algo se movia no interior, pequenas patinhas de roedores nervosos.
Lucian deixou escapar uma curta risada e coçou a nuca.
— O que é engraçado? — Ela indagou.

— Você pode ficar com o livro, senhorita Talbot. Eu estou lhe

dando. — Lucian esticou o livro até ela novamente.

— Não, realmente não posso. — Como se as palavras a


queimassem, ela deu dois passos para trás e ele inclinou a cabeça para o

lado, curioso e confuso. — Se meu pai o encontrar, se ele ao menos


descobrir que estamos tendo esta conversa...

— Ele não irá.


Lilly ergueu seus olhos, focalizando-os na perfeição da forma do
rosto de Lucian, desde suas sobrancelhas grossas até a pequena
abertura de seus lábios tão convidativos, o maxilar definido por um brilho
salgado que incidia sobre suas cabeças. Inspirando para arranjar forças,
Lilly admitiu:
— Meu pai, caso ainda não tenha assimilado o sobrenome, tem
o controle sobre estes portos, senhor Campbell. Talvez haja algum espião
neste exato momento nos vigiando.

— Acredita mesmo nisso? — Ele indagou abruptamente,


interrompendo-a. Agora, havia algo em sua voz. Quase uma... excitação.

— Sim — respondeu, desconfiada.

— Então temos que ir! — Ele sorriu enquanto esticava sua


mão e entrelaçava seus dedos na mão dela, algumas rugas de sol
contornando seus lábios conforme ele ia puxando-a para longe, correndo
por entre as calçadas abarrotadas, desviando de animais e crianças,
desafiando as armadilhas que eram as saias rechonchudas das mulheres,
enquanto as madeixas da garota eram jogadas para trás e ela sentia o
rosto queimar, nervosa, sem ter tido tempo de assimilar o que estava
acontecendo.

— Lucian, pare! — Lilly pediu em meio a uma risada. Rir foi a


única coisa que conseguiu fazer enquanto sentia as pernas não mais
tentando impedi-lo, e sim correndo junto a ele, vendo os rostos das
pessoas como borrões com olhos curiosos e julgadores. Mas por um
momento, ela não pensou em nada. O que eles estavam fazendo!? O que
ela estava fazendo!?

— Não podemos parar! — As gargalhadas dele esquentaram

o peito da garota, seu rosto tão inocente, risonho e travesso. — Podem


estar nos vigiando! Precisamos ir para um ponto cego!
Sem perceber, Lilly começava a subir o Beachy Head, o mais alto
penhasco marítimo de giz de toda a Grã-Bretanha, suas mãos suavam e
ele parecia não se importar. As pernas já doíam. O vestido grudava ao
corpo. E seu coração batia como nunca antes. Era acelerado, fervoroso, e
a adrenalina a fazia sorrir perdidamente enquanto fitava os olhos dele. O
mar arrebentava contra a costa com mais força, mas as pedras abaixo
chegavam a quase convidar as ondas para tomar chá junto às algas que
grudavam em sua superfície esbranquiçada; uma relação tão bela quanto
odiosa, já que as respostas do mar nunca eram positivas.
— Lucian, pare! — Ela riu uma última vez antes de vê-lo
cambalear e cair sentado sobre a grama morna, as mãos se separaram e
ele as colocou sobre a barriga enquanto reclinava para trás, desafiando-a
com o olhar a deitar-se com ele. Inesperadamente, como tudo naquela
manhã, os dedos de Lilly desejavam tocar nos dele mais uma vez. A
aspereza, embora ferida, ainda assim era convidativa, e enquanto
sentava-se na metade do morro, ao lado dele, as pernas de Lilly vibravam

conforme ela as abraçava com os braços. — Não deveríamos estar


aqui.

— Não deveríamos fazer muitas coisas nessa vida, de fato,

senhorita Talbot. — Lucian apoiava-se nos cotovelos, as costas jogadas


para trás enquanto o sol ocupava-se da função de secar suas vestes

encharcadas de suor. — Mas dane-se tudo isso.


Lilly o fitou, primeiramente, abismada com o vocabulário, deixando
escapar uma risada apenas para, em seguida, manear a cabeça de um
lado para o outro, a ideia do perigo afetava cada célula de seu corpo,
lançando cada vez mais adrenalina em suas veias.
— Pode abrir os olhos, senhorita Talbot.
Ela disse que não, incapaz de acreditar em tudo aquilo, temerosa
de que, se o fizesse, tudo seria apenas parte de um sonho e ela teria
adormecido ao lado da lareira, e agora acordaria suja pela fuligem que um
dia formara as páginas de seu livro.
— Por que não? — Contudo, a voz dele era tão real que lhe
causava arrepios. No bom sentido.

— Tenho medo de que, se o fizer, irei ver meu pai em minha

frente. — Ela admitiu, as lágrimas começando a surgir em seus olhos.

— Ou ver uma lareira que já se apagou.


De olhos fechados, ela sentiu a respiração dele mais perto de seu
rosto ao dizer:
— Permita-se apreciar a vista, Lilly Talbot.
E aquela foi a primeira vez que ele a chamou sem cordialidade
alguma, apenas para que ela pudesse abrir os olhos e ver tudo aquilo que
se escondia na escuridão do medo. Com uma elevação de mais de 160
metros, a vista se tornava magnífica, com o som das batidas das ondas ao
fundo enquanto a movimentação da cidade se tornava num amontoado de
borrões quentes. Os telhados de ardósia marrom tornavam-se ardidos
com o sol, que assistia ao dançar infinito do mar conforme a brisa atrás
deles tomava seus cabelos na direção oposta. Ela sorriu com tudo aquilo,
a pele morna, as costas banhadas pela luz enquanto o azul do céu
tornava-se uma grande tela intocada pelas nuvens brancas e fofas, que
faziam-se ver de tão longe, perto do contorno da costa de Sealsey Bill. O
ar limpo delirava os pulmões da garota enquanto o perfume de grama
fresca flutuava até ela.
— Este lugar é lindo. — Sua voz trêmula adquiriu coragem.

— Lucian... quero dizer, senhor Campbell...


Então, ela virou-se na direção dele e o rosto de Lucian estava mais
perto do que nunca. Um rosto belo que beirava o inumano, os olhos tão
intensos, vasculhando a garota com toda a sua peculiaridade, astúcia e
indiscrição. Todos os valores que ela aprendera desmontaram-se em seu
olhar. Porque ele estava gostando dela não pelo ideário social de
perfeição. Lucian Campbell estava gostando de Lilly pelo que ela era.
Pelas suas risadas curtas, seu temperamento volátil e o modo como seus
olhos eram tão curiosos ao olhá-lo, mordiscando o lábio inferior, nervosa,
assim como ele, incerto de como prosseguir, sentindo o leve aroma
perfumado do pescoço dela, naquelas vestes tão belas e com o rosto
corado.
— Ainda deseja manter tal regra social entre nós? — Ele
perguntou, mas em sua voz havia o medo de quebrar aquele momento tão
perfeito.
— É uma questão de respeito... — justificou ela, igualmente
incerta de como continuar, perdida entre as nuances de seus olhares.

— Sei que me respeita, Lilly. Assim como lhe respeito.


A garota baixou a cabeça e sorriu, as bochechas rosadas e
quentes enquanto ela tocava as pontas dos dedos, o vestido vermelho
com suas rosas douradas balançando conforme o vento.
— Possui irmã, senhor Campbell?
Ele riu.
— Não precisa me chamar pelo sobrenome, já disse. Sinto-me
até mesmo desconfortável ao ouvi-lo.

— É um belo sobrenome — ressaltou ela, o olhar descendo


pelo pescoço dele, onde um colar de cordão frágil repousava, embora não
houvesse pingente algum à vista.

— É um sobrenome pobre — contrapôs, atraindo atenção dela


novamente para seu olhar.
Lilly respirou fundo enquanto cravava as mãos na grama, revirava
os olhos e os ombros relaxavam.
— Você revira seus olhos de forma eloquente, senhorita Talbot

— retrucou, usando a formalidade com seu sarcasmo afiado. — Isto


representa uma excessiva falta de educação.
Lilly arregalou os olhos, inconformada.
— Atreve-se a me julgar?

— Sim. — Ele admite como se não houvesse problema, uma


exacerbada autoconfiança flutuando de seu sorriso encantador.
— A partir dos sete anos, tive de aprender a como me portar em
eventos da companhia de papai. Apanhe sempre os talheres de fora para
dentro. Nunca coma demais. Lembre-se de sorrir. Uma boa impressão lhe

garante um bom casamento. — Sua voz perdeu a animação. —


Acredito que esteja bem mais preparada que o senhor no quesito
educação, senhor Campbell.
Sério, com as sobrancelhas quase juntas e o olhar carregado de
preocupação, Lucian respondeu:
— Acredito que esteja presa, senhorita Talbot.
A garota concordou com seus olhos e uma mordia no lábio inferior,
as palmas das mãos continuavam a suar.
— Talvez eu precise te libertar — finalizou e ela sorriu
acanhada.

— Não estou presa, senhor Campbell.

— Então aceite o livro... — Lucian insistiu, recolocando a capa


azulada sobre o colo dela, mas recebendo como resposta o cerrar de
punhos da garota, que socaram a grama ao lado de seu corpo.

— Eu realmente não posso.


Lucian sentou-se com a coluna reta, os olhos castanhos analisando
a capa aveludada, ainda um tanto úmida pela água do mar.
— Assim como não poderia sair correndo com um estranho.
As íris castanhas queriam acreditar nele. Queriam arriscar, porém
aquilo era tudo tão irreal, tudo tão... diferente.
— É por isso que não devemos ter conversas como esta. —
Ela tentou retomar o que dizia, e ele a deteve antes que pudesse.
— O que acontecerá se você levar o livro?
Uma decepção criou um tijolo na garganta de Lilly, que desceu até
seu estômago, revirando-o.
— Papai o queimará.

— E?

— Fará apenas isso — mentiu a garota, sabendo que ele


poderia fazer muito pior, lembrando do modo como ele esbofeteou a mãe,
o corpo voando ao chão enquanto ela começava a chorar e gritava do
fundo de sua alma.

— Senhorita Talbot... — Ele a chamou, observando os olhos


marejados de Lilly, brilhantes pelas lágrimas que tentavam saltar por entre

seus cílios. — Gostaria de lhe propor algo.


Ela fungou, uma lágrima escorrendo por sua bochecha. Lucian,
com a maior calma que ela já o vira ter, levou seu polegar até o rosto dela,
enxugando aquela pequena gota de sal, admirando o rosto dela, tão belo
e tão triste, um espírito audacioso que parecia ter desacreditado em tudo
aquilo que já lhe disseram uma vez.
— Vejo que ama ler e... — Ele riu, nervoso, lambendo os
lábios e franzindo a testa, como se não entendesse o que estava prestes

a dizer. — E eu tenho mais livros.


Ela franziu o cenho, o que o levou a continuar:
— Você deveria parar com isso de julgar as pessoas, senhorita
Talbot.

— Não estou te julgando.


— Então por que o seu olhar parece perguntar “como um
marinheiro pode gostar de ler”?

— Na verdade, só gostaria de entender aonde está tentando

chegar, senhor Campbell. — Lilly inclinou o rosto assim como ele fizera
instantes atrás, apoiando a bochecha esquerda sobre os joelhos,
analisando-o curiosamente.

— Nas viagens que já fiz, os livros eram minha melhor


companhia. Poderia estar com fome, há três semanas no mar e com
queimaduras muito piores dos que as que você está olhando.
Ela sentiu-se repreendida, pega num ato que não deveria ser feito.
Mas não se preocupou, apenas devolveu um sorriso com os lábios
colados como resposta, e aquilo pareceu suficiente para ele.
— Não se acanhe agora, senhor Campbell. — Ela insistiu, a
fim de que ele continuasse.

— Os livros fazem com que viajemos a outros lugares. Que


conheçamos coisas nunca vistas e que possamos sentir coisas novas sem
nem sairmos de onde estamos.
Ela permaneceu quieta, encantada com a forma como ele
declarava tudo aquilo sem um mínimo de sarcasmo e com toda a
franqueza de seu coração.
— Só porque está presa aqui, Lilly, não significa que não possa

conhecer coisas novas. É tudo uma questão de perspectiva. — Lucian


se ajeitou, penteando os cabelos inutilmente, já que aquele amontoado

embaraçado jamais se ajeitaria com um simples passar dos dedos. —


Façamos o seguinte: eu lhe trarei os livros e você poderá lê-los. Leve o
tempo que precisar.

— Não posso ficar com eles, Lucian.

— Eu sei disso, por isso os levarei até aquele café que nos
encontramos pela primeira vez.

— Boulangerie. — Ela o corrigiu e ele ergueu uma


sobrancelha.

— Está mesmo me corrigindo, senhorita Talbot?


E ela esboçou um sorriso tímido, querendo cobrir o rosto com os
braços, envergonhada, mas então ela reergueu os olhos e seus olhares
se cruzaram novamente. Ele se lembrava de como se conheceram por
mais breve que tenha sido aquele encontro. Lucian realmente lembrava.
— E ficará apenas assistindo-me ler? — Lilly indagou, uma
risada doce acompanhando uma brisa que descia o morro, acariciando a
grama sem pressa.

— Considero olhar para a senhorita como uma forma de

passatempo. — Ele sorriu, os olhos brilhando intensamente, curiosos

por si só. — Acho que há muito que ainda não conhece, e não é certo
uma pessoa se privar de tais coisas.

— E por que não?

— Porque só temos essa vida, senhorita Talbot, então


precisamos criar memórias boas o bastante para que, no dia de nossa
morte, possamos vê-las e ter orgulho disso, até mesmo das escolhas mais
banais que fizemos.
Ela sentiu os cabelos caindo sobre os ombros quando olhou para
ele.
— Para um marinheiro, tem uma lábia muito boa, senhor

Campbell. — Ela o provocou, assim como ele fizera dias atrás, e Lucian
lembrou disso, porque um sorriso estampou-se no mesmo instante em seu
rosto.

— Já imaginou o quão patético seria se vivêssemos apenas de

bailes da elite e chás da tarde? — zombou ele enquanto negava

veemente com sua cabeça. — A vida é muito mais do que isso, Lilly.
Temos de saber viver.
E então, ela permitiu-se dar uma última olhada na vista daquele dia,
desde a espuma das ondas até os telhados pontudos e o calor que subia
em espirais nos cascalhos estaladores.
— Nós temos que saber viver. — Ela repetiu, virando-se para
ele com um brilho no olhar que o fez sorrir ao dizer:

— Então aceita minha proposta, senhorita Talbot?


Capítulo VI
A arte de comer com as mãos
Na manhã de sexta-feira., Lilly manteve os olhos baixos, temorosa
de que, se os erguesse na linha do horizonte, pincelado do mais pálido
amarelo, um sorriso abrir-se-ia num piscar de olhos. Seu coração
palpitava sob o vestido de linho azul, com sua cintura império alcançando
a base de seus seios enquanto as pequenas mangas bufantes faziam
cócegas em seus braços. Com rapidez, a garota prendera suas madeixas
amendoadas com uma fita azul-celeste enquanto descia as escadas.
— Já vai, minha filha? — indagou Célia, surpreendendo a
garota, que parou segundos antes de tocar a maçaneta da porta da frente.

— Assustou-me, mamãe.
A mulher estava sentada com os olhos na direção da janela da
sala, a qual permitia a entrada oblíqua de uma luz fraca dos primeiros
raios de sol, suficientemente quentes para Lilly e o bastante para refletir o
rosto em demasia maquiado, com lábios vermelhos cor de sangue, de sua
mãe, que trajava sabe-se lá que modelo de vestimenta rendada, tão
perdida em camadas que tornava-se uma poluição ao olhar. Célia tinha
agulhas na mão direita, espetadas em pequenos suportes de algodão feito
por ela mesma, o tecido rosado na outra mão já possuía bordados e
arabescos em suas extremidades.
— O que a senhora está fazendo? — Lilly perguntou,
aproximando-se com passos leves e quietos, que não abafaram os leves
ruídos que vinham da cozinha, onde os novos criados ainda lutavam para
se acostumar com o novo espaço de trabalho.
— Teremos um baile em apenas nove dias, minha filha —
admitiu com certo cansaço, desejando que a filha não começasse uma
discussão. Estava sem forças para ganhar qualquer protesto naquele

momento. — Creio que vá querer estar vestida de forma... adequada,

pelo menos. — Célia pareceu suspirar por entre o fim da frase, como se
o evento fosse um fardo para ambas, os ombros abaixando com o
movimento.

— Não precisa reformar este vestido.


Os olhos da mulher estavam marejados, brilhosos das lágrimas
enquanto seus lábios falavam:
— Queria poder acabar com esse baile, minha cara Lilly. — A
filha andou até a frente da mãe, ajoelhando-se perante ela, o vestido
protegendo seus joelhos do toque direto com o tapete, afagando suas

mãos e entrelaçando os dedos. — Queria que...

— Não há necessidade disso, mamãe. — Lilly fechou os olhos

e baixou o rosto, um pesar surgindo em suas têmporas. — Não precisa


se desculpar.

— É claro que preciso. — Ela respondeu conforme engolia em


seco e fungava o nariz, afastando as mãos das da filha, usando uma delas
para apoiar seu queixo contra a parte superior da cadeira.
Lilly uniu os lábios e forçou um sorriso, levantando-se enquanto
alisava o tecido de suas vestes.
— Estou indo para o café, mamãe. — A garota voltou para a

porta. — Quer que eu traga alguma coisa?


— Não, não será necessário. — A mãe deu um sorriso
amarelo, querendo que aquela conversa tivesse tomado outro rumo. Havia
tanto que Célia gostaria de dizer à filha, mas o medo de ser ouvida por
William, que se trancafiava naquele maldito escritório, era o bastante para
conter o seu ímpeto. Constantemente algo travava em sua garganta,
como se ela soubesse que aquelas eram as palavras certas a serem ditas,
porém no final a mulher não se forçava a expeli-las. Palavras que ela
guardaria para mais tarde, talvez, se o momento fosse oportuno. Se não
houvesse o medo do marido.
Com o coração batendo tão violentamente quantos as primeiras
ondas da maré, Lilly fechou a porta atrás de si e permitiu-se que seu corpo
fosse envolvido pela atmosfera quente do exterior, seus pés tentando não
tropeçar um no outro durante o caminhar, enquanto animava-se com a
ideia de rever aqueles olhos tão intensos, talvez tomar uma xícara de chá
e mergulhar nas palavras de um livro. Mas, acima de tudo, saber que teria
companhia ao fazê-lo era o que mais lhe aquecia o coração.

***

A boulangerie estava praticamente vazia naquela manhã, tendo


seu espaço refrescado por uma brisa suave que entrava na porta aberta e
presa por uma corda prestes a arrebentar. Lilly começou a caminhar para
dentro do local no momento em que um estalo surdo ocorreu, as fibras
que sustentavam a abertura da passagem se rompendo, a porta de vidro
vindo em sua direção, e tudo o que ela pôde fazer foi erguer seus braços
sobre seu rosto, protegendo-se, as pernas paralisadas enquanto os olhos
fechados tornavam-se doloridos e preparados para o choque grosseiro.
Hesitante, ela permitiu-se ver novamente, baixando seus braços,
sentindo a brisa salgada grudando sobre sua pele enquanto o rosto de
Lucian tomava forma, os olhos arregalados e a boca permitindo seu
respirar; seus cabelos loiros estavam bagunçados e os botões de sua

camisa cinzenta estavam — como sempre — abertos, revelando pelos


rasos em seu peito, que cresciam em direções opostas, deixando
pequenas falhas.

— Lilly... — Ele deixou escapar por entre os lábios


amanhecidos, percebendo quem havia salvo daquele vidro pesado, que
agora empurrava para trás e fazia questão de amarrá-lo com um pano que
encontrara numa mesa próxima, atando nós fortes que só um marinheiro

conhece. — Perdão... senhorita Talbot — zombou ele.


Lilly ainda estava paralisada enquanto fazia um gesto com a
cabeça, fitando a ponta de seus pequenos saltos azulados.
— Você veio... — Ele disse por fim, quase como se
assimilando as próprias palavras, um tom surpreso que fez os cílios da
garota se agitarem.

— Esperava que eu não viesse?


As bochechas de Lucian esquentaram, o sangue tornando-as
avermelhadas enquanto os inúmeros pedidos de desculpas de Jim pelo
incidente voavam por trás do galpão e dominavam a atmosfera daquele
lugar.
— Não é isso... — começou ele, incerto de onde terminaria.

— Então o que seria? — Lilly o provocou, segurando a barra


de seu vestido enquanto se punha a sentar, as mãos sobre o colo e o
olhar furtivo desafiando Lucian.

— Não estou acostumado a ver uma dama quebrando as


regras.
A boca de Lilly ficou seca e áspera, a língua colando-se ao céu
da boca enquanto o maxilar endurecia e ela se lembrava. Era inverno e
ela já tinha oito anos, estavam voltando de uma festa dada pela família
Porter, na qual ela quebrara as regras que as boas meninas devem seguir.
Garotas não podiam brigar. Não podiam contestar. Deveriam sorrir e
concordar, preocupadas demais em agradar quem quer que fosse. Mas
naquela noite, ela desobedecera as duas primeiras, dando um tapa contra
o rosto de um menino que puxara uma das tranças de seu cabelo, vendo-
o atrapalhar-se no próprio pisar e caindo sobre o traseiro enfurnado em
calças de linho, enquanto suas costas batiam contra o pé da mesa e um
vaso tombava, estilhaçando-se; cacos de porcelana voando pelo saguão e
o som tamborilando pelas paredes, os olhos dos convidados tornando-se
a eles. O nome dele era Gean, e ele chorava como um mimadinho que
era. E ela ainda estava de pé. Mas isso não durou muito tempo.
Envergonhados pelos olhares que a filha desobediente atraíra, William e
Célia decidiram retirar-se da festa às pressas. Se somente a mãe lhe

tivesse reprimido, como ela de fato fizera — dizendo que não era certo

revidar —, teria bastado. Mas não. O senhor Talbot já via o problema


surgindo e, decidido a cortar o mal pela raiz, dera-lhe um tabefe que a
arremessara contra o acolchoado e arrancara um grito da mãe, que
também recebera um tapa.
— Não queria fazer isso, minha filha. — Ele dissera enquanto
ela chorava, o medo e a dor da pele ardida fazendo seu corpo encolher-se

entre o tecido do vestido. — Mas deve aprender a se portar como uma


dama. A honrar seu sobrenome.
Os olhos assuados o fitaram pelo resto do trajeto, molhados pelas
gotas de sal que escorriam rapidamente pelas bochechas vermelhas
enquanto a mãe lutava para também não desabar, apenas fitando o
exterior da carruagem, como se aquilo não tivesse acontecido. Como se
nada nunca acontecesse.
Mas, agora, uma outra voz chamava por seu olhar.
— Senhorita Talbot? — Lucian indagou. — Lilly? —
Apenas quando ele a chamou pelo nome, a garota pôde despertar do
transe cruel que sua mente lhe fizera mergulhar. Ela piscou rapidamente,
observando-o empurrar o livro sobre a mesa de madeira, a capa azulada
desejando o toque dos dedos da garota.
Com certa hesitação, a garota apanhou o livro, a mente ainda um
tanto incerta. Lucian franziu o cenho. Parecia de certa forma entretido com
ela, uma curiosidade peculiar brilhava em seus olhos tão escuros quanto a
casca de uma árvore.
— O que está pairando, senhor Campbell?
Ele tomou-se de surpresa, o ar escapando-lhe dos pulmões
enquanto dizia com a voz exacerbada de um charme que apenas ele
tinha:
— É apenas difícil de acreditar que estou sentado na frente de
uma ladra.
Ela revirou os olhos displicentemente apenas para, em seguida,
focar sua atenção no exterior, rápido o bastante para se certificar que
ninguém os observava de fora. Mas alguém o fazia, ela só não pôde vê-lo,
pois sua figura escondia-se quase por completo atrás de caixas
empilhadas próximas a um armazém, onde homens descarregavam sacos
de cimento. Agora, Lilly já abria a capa do livro, sem perder seu contato
visual com Lucian.
— Achei que já tivéssemos superado isso, senhor Campbell. O
livro não possui dono algum.
Ele se levantou, arrastando sua cadeira com a perna enquanto
contornava a mesa e seus lábios fizeram menção de contra-argumentar,
de dizer algo que seu corpo já lhe pedia há certos instantes, mas como o
homem que lhe ensinaram a ser, ele resguardou aquilo que sentia.
Guardou tão belas palavras, por ora. Todavia, engraçada é a vida, que
prega peças no coração daqueles que amam.
— Creio que terei de deixá-la aqui por algumas horas, senhorita.
Ela franziu o cenho e ele respondeu sem que ela precisasse
perguntar:
— Sou um marinheiro e há trabalho a ser feito. — Lucian

suspirou. — Um novo navio atracou no porto e temos de descarregá-lo,


mas até a hora do almoço eu retornarei. Okay?

— Okay. — Ela disse, tímida, enquanto o observou saindo do


estabelecimento, o sol da manhã iluminando seus ombros conforme
caminhava na direção de um dos navios. Não havia mais nada que
impedisse Lilly e, assim, finalmente, ela se permitiu sorrir, sem vergonha,
apenas rindo consigo mesma enquanto acariciava a primeira página do
livro, amarelada e enrugada devido à água do oceano.
Com o calor afluindo por seu rosto conforme o sol incidia
diretamente sobre sua cabeça, formando sua sombra sobre as páginas,
Lilly, com tranquilidade, folheou as primeiras folhas, fechando seus olhos
enquanto permitia que seus dedos flutuassem pela finura e suavidade do
papel, até senti-los parar. Ali. Aquela seria a primeira página que leria.
Torcendo para que as palavras não tivessem sido apagadas pela água,
Lilly abriu o livro sobre a mesa de madeira, surpreendendo-se com o que
leu.

A beleza que encontrei pelo mundo


Seria pecaminosa
Se comparada à perfeição que encontrei em seu olhar.
Envolvi-me com sua cintura,
Ó, minha amada,
Serei seu, agora e eternamente.

Aquilo a congelou por alguns segundos conforme ela umedecia os


lábios e lia as estrofes uma segunda vez. Era um livro de poemas.
Belíssimos poemas que ela não podia privar-se de ler. Lilly olhou ao redor
uma segunda vez, sentindo uma onda de medo percorrendo seus braços.
Será que algum homem que trabalhasse para seu pai estava ali? Bom, ela
não via ninguém... não... Havia apenas um velho tomando chá com a cara
enfurnada num jornal e Jim, sempre limpando seu balcão com um pano
velho e esburacado.
Ela voltou sua atenção para o texto. Era tão lindo. Quem quer que
o tivesse escrito estava perdidamente apaixonado e talvez aquelas
palavras tivessem mais a ver com ela do que a garota poderia imaginar.
Ao pensar naquele amor, Lilly olhou em direção ao porto, onde gaivotas
batiam suas asas tão brancas quanto as nuvens, grasnando acima das
cabeças daqueles que trabalhavam, e onde o marinheiro de sobrenome
Campbell não parava de pensar na garota que estava na boulangerie.

***
Sem nem ao menos perceber, a hora do almoço já se aproximava
e, com isso, a volta de Lucian se tornava cada vez mais provável e

iminente e, apesar de já saber que ele voltaria — ou ao menos acreditar

nisso com todas as forças de seu corpo — , ao invés de ser uma


decepcionante obviedade, ela não conseguia conter-se de nervosismo. É
algo humano, a incerteza, e com isso Lilly erguia os olhos todas as vezes
que ouvia o sino da entrada tocando, entretanto ele nunca anunciava a
chegada do único marinheiro que ela gostaria de ver naquele dia.
Enquanto fitava a capa azulada do exemplar, a garota sentiu algo
crescendo dentro dela; uma fera adormecida com a leveza do bater de
asas de uma borboleta despertava de um sono profundo, embrulhando
seu estômago e fazendo com que ela desejasse estar perto de Lucian
simplesmente para acalmar seu coração inquieto.
Com um baque surdo, Lucian jogou seu corpo na cadeira à frente
da garota num instante de devaneio, o que o fez indagar:
— Você é sempre tão distraída?
Lilly quis sorrir, mas o comentário tão adocicado que saiu dos lábios
dele a fez apenas bufar e observá-lo friamente.
— Você é sempre tão arrogante? — retrucou, e ele, diferente
dela, riu; os braços cruzados sobre o peito e um sorriso em seu rosto,
contornado pelas gotículas de suor que escorriam de sua testa. Sua
respiração indicava cansaço, os músculos contraídos ainda não haviam
percebido que o trabalho havia tido uma pausa.

— Já o leu por completo? — Lucian indagou minutos depois


de pedir que Jim encerrasse os pedidos da mesa, dizendo para colocar na
conta de um capitão não-sei-qual-o-nome.

— Não — respondeu ela, e manteve o queixo erguido, embora

estivesse confusa com o que ele estava fazendo. — Eu não consumi


nada, senhor Campbell, não precisa se preocupar em pagar.

— Não consumiu nada ainda — retorquiu com um sorriso


travesso.

— E o que quer dizer com isso? — A pergunta dela abafou-se


com a dele:

— Não terminou de ler o livro, mas atrevesse a dizer que é uma


leitora?

— Pelo menos não saio por aí acusando os outros de furto.


Ele riu mais uma vez.
— Está com fome, senhorita Talbot?

***

A gritaria ao redor do homem que vendia tiras de peixe frito na


cozinha de sua casa era tremenda. Vozes e mais vozes farfalhando
furiosamente, zangadas pela espera, insatisfeitas pela fome enquanto um
homem de bigode engraçado, possivelmente o dono, junto ao seu filho
mais novo, com agilidade entregavam retângulos compridos, porém
estreitos, dourados e fumegantes, o óleo escorrendo em direção ao papel
em que vinham, organizados numa pequena cesta trançada.
— Fale para mim novamente a sua patética desculpa para não

ter terminado o livro, senhorita Talbot — pediu enquanto enfiava as mãos


nos bolsos e aguardava o pedido que fizera ser entregue.
— Eu me permito viajar por entre as palavras, senhor Campbell.

— Lilly justificou-se pela segunda vez. — Creio que um homem como o


senhor não entenderia.

— Um homem como eu? — Ele indagou, uma dúvida mais


profunda do que gostaria de demonstrar. O que ela pensava a respeito
dele?

— Se diz um leitor, mas não se permite a viagem — explicou


ela com o virar do rosto na direção dele, o movimento de seus cabelos

fazendo-os recair sobre o ombro direito. — Se ler um livro muito


rapidamente, não o aprecia como deve.
Lucian riu e, logo em seguida, ouviu seu nome sendo chamado por
entre a multidão. Ele abriu espaço por entre as pessoas, empurrando-as
para o lado e ouvindo xingamentos em sua direção enquanto apanhava a
cesta e a trazia colada ao corpo, os olhos de quem ainda aguardava na
fila seguindo as fatias douradas e oleosas enquanto seu olfato fazia seus
estômagos roncarem. Dentro daquele lugar que eles chamavam de
cozinha, mas que antes deveria ter dado lugar a uma sala de estar, os
homens suavam e empurravam as mangas de suas camisas para cima,
alargando-as. Quando ele voltou para a frente dela, estava ofegante e
tinha uma excitação no olhar que a fez rir. Lucian ainda sorria, fitando a
primeira tira de peixe que apanhou e levando-a à sua boca voraz, os
dedos lubrificando-se do mais puro óleo.
— E o que tais viagens lhe permitiram imaginar, senhorita

Talbot? — perguntou depois que acabou de mastigar enquanto lambia as


pontas dos dedos com pequenos estalos dos lábios.
Ela mordiscou o interior de sua bochecha, endireitou os ombros e
preparou-se para responder, mas, antes que o fizesse, a garota arregalou
os olhos e assistiu à multidão se aglutinando ainda mais.
— Está apaixonado.
O marinheiro parou, uma tira de peixe ainda presa aos lábios
enquanto os olhos brilhavam, hesitantes, desafiando-a a continuar, e ao
mesmo tempo receosos de ela já ter exposto seu coração.
— O que quer dizer? — Ele conseguiu perguntar por entre o
mastigar, controlando a voz para evitar um gaguejo.

— Que talvez o eu lírico esteja apaixonado e que talvez não


devesse falar com sua boca cheia, senhor Campbell.
Ele ergueu uma sobrancelha.
— Talvez devesse parar de ser tão educada e permitir-se se
divertir.
Ela baixou o olhar e o canto de seu lábio levantou-se num sorriso
acanhado.
— Diversão não faz parte de minha rotina.

— Bom, deveria... — Ele olhou para baixo, medindo as últimas

tiras de peixe. — Vejo que não tocou ainda em nossa refeição

puramente saudável — zombou e ela sorriu, nem imaginando o que ele

faria a seguir. — Te desafio a comer esta tira de peixe. — Lucian


apanhou um dos empanados alaranjados e o direcionou a ela.

— O quê? — Ela hesitou, perdendo seu sorriso e dando um


passo para trás.

— Está fugindo? — brincou, as sobrancelhas quase unindo-se

enquanto seus olhos tentavam entendê-la. — Permita-me dizer que não


está envenenada — caçoou ele. — Vamos, não seja uma garotinha
mimada.
Lilly estreitou os olhos.
— Quebre seu código social e coma esta tira de peixe com suas

próprias mãos, senhorita Talbot — disse Lucian com pausas pontuais em


suas duas últimas palavras, o que fez com que o coração da garota se
acelerasse.
Rindo, Lilly apanhou o peixe, a gordura escorrendo por seus dedos
conforme ela o levava até os lábios delicados, mordendo-o com certo
receio de como seu corpo reagiria àquilo, mas o sabor da fritura saciou a
fome discreta da garota. No final, quando a tira dourada ficara apenas em
sua memória, ela olhou para seus dedos. Brilhosos. Escorregadios. Os
lábios tinham o óleo da fritura enquanto a garota os mordiscava por entre
a risada longa e pura.
— O senhor só pode ser louco.
Lucian deu de ombros, como se estivesse acostumado a ouvir tal
elogio.
— Se acha que comer com as mãos é loucura, aguarde para o
que preparei para hoje à noite.

— Hoje à noite? — Ela semicerrou os olhos e uma fagulha


saltou na direção dos dele enquanto seus dedos inclinavam-se para
apanhar um novo pedaço de peixe.

— Gostaria de convidar-lhe a... uma noite no convés, senhorita


Talbot.

— Isso parece deveras inapropriado, senhor Campbell.


Ele riu depois de pensar no que disse.
— Todas as sextas-feiras, depois do cair da noite, os marujos e
os homens do porto confraternizam juntos no convés. Bebemos, jogamos
e dançamos.

— Lucian, eu não sei...

— Vamos, por favor. — Ele tocou o seu pulso direito enquanto


os lábios abriam-se num sorriso, recuando logo em seguida, pensando ter
cruzado a linha limite que havia entre eles. Mal ele sabia que, com aquele
toque, liberara uma corrente de uma loucura apaixonante inesperada em
Lilly. Já havia quebrado suas regras de etiqueta, já havia desobedecido
seu pai, então por que não iria com aquele rapaz numa festa no convés?

— Mas... é que eu não sei se vou conseguir não rir ao te ver


dançar.
E a boca de Lucian escancarou-se em um arco surpreso, uma
mistura de provocação e indignação que fez seu corpo responder:
— Como ousa, senhorita Talbot?
E então, em meio a uma risada, ela apanhou a cesta com a última
fatia frita de peixe.
— Lilly...

— Perdeu a formalidade? — brincou enquanto escondia a


cesta atrás do corpo.

— Não se deve brincar com a fome de um cavalheiro.


Mas ele via nos olhos ardilosos dela o quanto ela queria um
desafio. Meu Deus, Lilly Talbot era, de fato, irrevogavelmente apaixonante!
E, agora, com uma investida patética, ela rodopiou, distanciando-se dele,
olhando por sobre o ombro para ver se Lucian a seguia enquanto
acelerava os passos; a última fatia dourada daquele peixe frito
repousando na cesta entre seus dedos. E ele a seguiu, divertindo-se ao
vê-la correndo à sua frente à medida que suas mãos tentavam apanhá-la
e puxá-la para perto. A cada vez que a garota olhava para trás, com os
fios de seus cabelos contornando seu rosto e o seu sorriso mais puro, ele
tinha certeza. Caramba, ele seguiria Lilly onde quer que ela fosse!
Capítulo VII
Brisa de sal
Para certo alívio da garota, anoiteceu rapidamente, o crepúsculo
dominando os céus por alguns instantes antes de as estrelas e o azul da
noite recaírem sobre o porto de Eastbourne, com seus navios balançando
conforme pequenas ondas arrebentavam contra seus cascos, cordas
firmes e grosseiras sustentando suas velas fechadas e as âncoras
jogadas ao mar prendiam-se numa mistura de areia e pedras.
Lilly forçava os olhos para enxergar seu relógio pendurado sobre a
penteadeira. Já eram seis horas. As vendas fechavam e as pessoas se
recolhiam, e podia-se ouvir uma música abafada e razoavelmente distante
que fez o coração da garota palpitar. Seria aquela melodia estranha e
descompassada que Lucian dissera dançar? E enquanto ela o imaginava
atrapalhando-se nos próprios pés, a porta de seu quarto se abriu,
arrastando-se pelo chão e rangendo nas fechaduras.
— Lilly? — A voz da mãe chamou e a garota sabia que não
poderia fingir estar dormindo. A mãe já a havia visto.

— Sim, mamãe?
A mulher fez menção de entrar nos aposentos da filha, carregando
um pequenino candelabro, onde uma vela acesa tornava o colo dos seios
da mãe mais quente do que deveria, ainda que estivessem cobertos com
uma camisola de tecido fino e, como sempre, importado, mas deteve-se
com o pé esquerdo ainda no batente enquanto dizia:
— Você está feliz?
Aquela pergunta fez o sorriso no rosto de Lilly fraquejar. Não
esperava por aquilo, e uma súbita melancolia acometeu seu corpo assim
como as sombras de seu quarto, que se esgueiravam pelo chão, fugindo
da luz bruxuleante da vela.
— O que quer dizer, mamãe? — indagou a garota apenas
para ganhar tempo. Queria dizer que os únicos momentos em que
realmente estava feliz eram com Lucian. Mas, como sua mãe reagiria?
Como ela ficaria ao saber que sua filha estava planejando fugir pela janela
de seu quarto para encontrar com um rapaz que conhecera no porto
assim que ela fechasse a porta novamente?

— Sei que tudo pode parecer injusto, minha garota. — Célia

engoliu em seco e agitou seus cílios. — Mas, na vida, não escolhemos


quem vamos amar.
Lilly permaneceu quieta, encolhida sobre a cama, escondendo seu
vestido por debaixo das cobertas, deixando que a mãe continuasse sem
que ela tivesse de dizer algo.
— Eu aprendi a amar seu pai, com o tempo. E... — Os olhos
profundos e doídos de sua mãe fitaram-na mesmo em meio à escuridão,

tristonhos, porém com um breve relance de esperança. — Só quero que


saiba que só queremos o melhor para você, minha filha.
As sobrancelhas da garota curvaram-se e ela franziu o lábio inferior
enquanto ouvia a mãe encostando a porta de seu quarto ao dizer:
— Durma bem, Lilly.
Mas ela estava longe de ir dormir.
Assim que a porta se fechou com um encaixe sonoro, a garota
arrancou as cobertas de cima de seu corpo, lançando os pés na direção
do assoalho, apanhando um par de saltos vírgula, encaixando-os sobre os
dedos cobertos pela meia-calça branca, que sequer apareceria naquela
noite, já que Lilly escolhera pontualmente um vestido longo que, embora
não se arrastasse pelo piso de madeira, era suficientemente longo para
cobrir até a metade de seus saltos. No cair da noite, o tecido verde-escuro
assemelhava-se às vinhas que se enroscavam no jardim dos fundos antes
de serem arrancadas pelas mãos do jardineiro que seu pai contratava
mensalmente. Ela escancarou as janelas, sentindo o ar abastado de sal
envolvendo seu pescoço desnudo enquanto ela mirava a descida que
teria de fazer. Eram apenas dois andares. A garota desceria na frente da
janela da cozinha, onde nenhuma luz parecia resplandecer.
Lilly só não podia fazer som algum.
Quieta, ela retirou os lençóis de sua cama, o algodão macio
acariciando seus dedos enquanto ela torcia para que seus nós fossem
fortes o bastante para sustentá-la em sua descida. Seria arriscado e seu
coração batia aceleradamente conforme ela prendia, por fim, a ponta
inicial do lençol contra o balaústre de sua cama.
A garota tentou não pensar na altura à qual estava se dispondo a
cair caso algo desse errado. Começou sentando-se na beirada de sua
janela, metade do corpo para fora do quarto enquanto as pernas
balançavam, prendendo-se ao lençol esticado até perto do cimento batido.
Se caísse, os ossos de seu rosto poderiam rachar. Seus braços se
quebrariam, ou talvez as pernas, e o medo começou a dominar seu corpo,
lançando adrenalina em suas veias enquanto o suor fazia-se presente por
toda a sua nuca, grudando os fios de seu cabelo contra o pescoço esguio.
Os dedos seguraram o tecido com mais força e ela apertou os olhos,
lançando-se para frente, sentindo o corpo abandonando a beira da janela
enquanto as pernas apertavam-se contra o lençol. Ela sentiu a gravidade
puxando-a para baixo, no entanto seu corpo não se mexia.
Quando Lilly finalmente abriu os olhos, percebeu que tinha forças o
suficiente para se sustentar abaixo da janela, de onde não descera mais
do que alguns centímetros. Tentando se lembrar do modo como os
marinheiros pareciam escorregar rapidamente pelas cordas dos mastros
sem se machucarem, a garota começou a permitir que suas mãos se
movessem e o tecido parecia faltar-lhe, assustando seu coração na
iminência de cair. Ela podia ouvir o ranger do balaústre, da madeira
entalhada torcendo-se com seu peso. Tinha de ser mais rápida. E seu
corpo deve ter entendido isso como um alerta, porque, nesse instante, as
mãos simplesmente soltaram-se do tecido e ela lutou para conter o grito
que subiu por sua garganta quando a lateral de seu corpo atingiu o
cimento.
Ela grunhiu e praguejou, arregalando os olhos enquanto percebia o
que havia dito. Xingar não era um hábito praticado por garotas educadas.
Ao menos não ao olhar da sociedade. Ela sentiu o ombro direito doer
enquanto fitava as estrelas, uma vastidão confusa conforme ela se
levantava, a torre de tecido balançando conforme o vento. Não poderia
puxá-la, senão o balaústre poderia quebrar e acordar seu pai. Mas
também não poderia deixá-la simplesmente ali pendurada, ou poderia?
Lilly não teve muita escolha e apenas se levantou, batendo as mãos
contra a saia de seu vestido enquanto cambaleava para além da
propriedade de sua família. É, seria uma noite e tanto...

***

— Boa noite, senhorita Talbot.


Quando ela avistou Lucian sob a luz do luar, toda a dor que sentia
na lateral do corpo parece diminuir. Não passara por completo, mas
tornou-se tolerável na companhia dele que, como um cavalheiro,
ofereceu-lhe o braço enquanto começaram a caminhar na direção de um
dos navios atracados ao porto. Ela seguiu pela praia, observando a orla
tranquila até avistar o calor de uma lanterna de cerâmica, suspensa pela
mão esquerda do senhor Campbell, que, naquela noite, parecia mais bem
vestido do que nunca, com calças sem furos, um cinto em sua cintura, os
botões de sua camisa quase totalmente fechados e algo tão
surpreendente que fez até mesmo Lilly ressaltar:
— Você se penteou!
Lucian a olhou de esguelha, o cenho franzido assim como os lábios
enquanto estendia a lanterna à frente deles.
— Eu me penteio — retorquiu com um sorriso incrédulo.

— Não disse que não o fazia, só que não é algo recorrente.

— Aposto que fugir de casa também não lhe é recorrente —


caçoou e ela riu.

— De fato que não.


Quando a lua, já sem timidez, se expunha no céu escuro, eles
alcançaram o navio mais alegre daquele cais, onde a música, de fato, era
estranha aos ouvidos da garota, e onde risadas grosseiras e elevadas
escapavam para além das bocas embebidas por álcool, misturando-se
com sons mais agudos de curtas gargalhadas dadas pelas mulheres que
ali estavam. Havia uma pequena e estreita passarela, íngreme e indecisa,
que dava acesso ao convés do navio. Ela hesitou por um momento.
— Não se preocupe. — Ele disse, repousando a mão contra as

costas dela. — Estou bem atrás de você.


Lilly respirou fundo e encaixou o primeiro pé sobre a madeira, seu
corpo voltando para trás, fazendo-a lançar seu peso para frente a fim de
manter o equilíbrio, sentindo o tecido balançar ao redor à medida que os
ventos a atingiam.
— Não se preocupe, está indo bem, agora é só subir —
brincou, mas ela não conseguiu rir, estava compenetrada na água que
batia contra o casco. De repente, quando ela caminhou, o agitar das
águas fez seu corpo oscilar e balançar, e seu coração saltou até o
pescoço enquanto ela sentia desprendendo-se da passarela. Com um
grito, sentiu alguém segurando-a pelo pulso e puxando-a para cima, na
direção do convés.

— Opa, seria uma queda feia. — Ela ouviu a voz dizer e,


quando abriu os olhos, deparou-se com um homem de pele tom de ébano,
lustrosa e linda, com olhos carinhosos e um nariz grosseiro, com mãos

ásperas, mas que acolhiam. — Lucian! — Ele chamou com um berro

assim que o viu embarcar. — Isso é jeito de tratar uma dama!?

— Que bom que não sou só eu que se surpreende. — Ela


deixou escapar por entre os lábios, colocando as mãos sobre os joelhos e
respirando profundamente, retomando a calma enquanto o homem, que
lhe ajudara, ria em um som contagiante que a fez sorrir enquanto passava
alguns fios de seu cabelo por trás da orelha.

— Deixe-me adivinhar, senhorita Talbot? — Ele perguntou e


ela endireitou-se, cumprimentando-o conforme ele lhe estendia a mão.

— Sinto muito, mas não sei o seu nome.

— Não me surpreende que Lucian não tenha falado sobre mim

— zombou, estreitando o olhar na direção do loiro, que estendeu as


mãos na frente do copo em modo de defesa depois de abandonar a
lanterna sobre uma caixa mofada, próxima à passarela.

— Senhorita Talbot, este é Henry James. Henry James, esta é a


senhorita Talbot.
O homem de quase dois metros apertou a mão de Lilly com
delicadeza e ela sorriu para ele.
— Quer dizer que tem comentado sobre mim para seus

companheiros, senhor Campbell? — Ela perguntou, recusando-se a


perder a oportunidade de vê-lo ficar vermelho. De fato, seu rosto
erubesceu.

— O que posso dizer...? — Ele deu de ombros, um sorriso


acanhado que ela ainda não havia visto em seu rosto.

— Nós não o deixamos esquecer de você, também —


completou Henry com outra gargalhada, batendo contra o ombro de Lilly,

que se assustou de repente e riu de si mesma. — A gente te viu jogando

o livro nele — explicou e a garota ergueu as sobrancelhas, surpresa.

— É bom saber que tiveram uma ótima primeira impressão

sobre mim — brincou, olhando ao arredor.


O piso do convés rangia a cada passo vacilante de um marinheiro
que já bebeu por demais, lanternas de cerâmica espalhadas por todas as
extremidades do convés e é impressionante o quão iluminado elas
permitiram aquele lugar ser, aquecendo a madeira enquanto alguns
conversavam aos berros, outros, assim como Lucian lhe dissera,
dançavam, próximos a um trio que tocava com instrumentos improvisados.
Ela pôde reconhecer uma espécie de gaita de fole, uma flauta e um
violão. Aquilo a encantou tanto quanto a majestosa altura dos mastros, tão
altos que pareciam rasgar a noite, como se tentassem caçar as estrelas.
— Lilly. — Lucian a chamou com um sussurro próximo ao seu
ouvido, o único modo de ouvir algo ali sem ter de gritar. Ela se virou e ele
estendia sua mão a ela, com Henry distanciando-se dele a passos leves.

— Quer conhecer o resto do pessoal?


— Claro — respondeu com um sorriso. Não conseguia parar
de sorrir.
Eles cruzaram o convés, passando pela cabine que dava acesso
aos aposentos inferiores e alcançando a proa do navio, onde um grupo
dispunha-se em uma roda, baldes enferrujados sendo usados como
cadeiras desconfortáveis enquanto eles escondiam cartas de baralho em

suas mãos, colando-as quase em seus peitos, ora largos ora esguios —
uma variação da forma humana que os tornava interessantes por
excelência. O que tinha o nariz mais avantajado e que usava óculos
bifocais, talvez o mais velho ali, se chamava Thadeo, e ele tinha, segundo
Lucian, uma mania compulsiva de ficar mascando tabaco. O segundo foi
Morty, que tinha cabelos tão longos quanto os dela e que fitava os outros
quase como inimigos, rindo da desgraça alheia quando eles erravam a
jogada e tinha de apanhar uma carta do monte de cartas colocado no
centro deles. Depois foram os irmãos Duart e Gabe, gêmeos fraternos,
que se diferenciavam somente por um deles ter uma cicatriz no pescoço,
resultado de um acidente que Lucian disse que explicava mais tarde. Por
fim, passaram por Henry, o único de pele verdadeiramente escura, e
depois terminaram com Lucian, que arrastou um balde metálico e pediu
para que ela se sentasse, batendo sobre a superfície enquanto um
homem tropeçava atrás deles e caía de cara contra o convés, sua caneca
com rum voando no lado oposto.

— Eu não vou jogar — protestou ela enquanto assistia Lucian


rindo do homem que, agora, se levantava com esforço, procurando pela
caneca.

— Ah, vai sim.

— Lucian, não — disse seriamente, sem sorrir.

— Sente-se, senhorita Talbot.

— Eu disse não.

— Sente-se.

— Está bem — respondeu ela enquanto respirava fundo,


segurando a barra de seu vestido e ajeitando-a com violência depois de
sentar-se.
Após alguns segundos, o jogo aparentemente terminou e Duart
comemorou excessivamente, pequenas quadras espalhadas à sua frente.
As ágeis mãos de Morty apanharam todos os montes e os embaralharam
num só, enquanto ele começava a distribuir sete cartas para cada um e
mascar o tabaco em sua boca com mais violência. Lilly engoliu em seco
ao apanhá-las, sentindo, num súbito, o calor do corpo de Lucian contra o
seu, enfiando seu rosto por sobre o ombro dela, fazendo-a rir, incrédula,
ao perguntar:
— O que está fazendo?

— Bom, creio eu que não seja conhecedora deste jogo,

senhorita. — Ele a fitou, mas não afastou seu rosto, permitindo que seus
lábios estivessem tão perto do rosto dela que até mesmo sua respiração
se tornava um toque acessível. Ela pairou por alguns segundos, as
belezas de seus traços rústicos enquanto os cabelos penteados lhe
atribuíam um maxilar mais rígido, simétrico e que refletia o luar.
— E por isso achou que poderia esgueirar-se por sobre meu

pescoço, senhor? — Retorquiu, estreitando o olhar, esperando pela


resposta dele, que veio no mesmo instante:

— Exatamente.
Ela riu, balançando a cabeça de um lado para o outro enquanto
todos olhavam para eles, fazendo-a corar, franzir os lábios e fitar as cartas
em suas mãos.
— Vamos lá, vamos ganhar desses escrotos. — Lilly disse,
forçando a última palavra a sair de sua garganta e deixando uma curta

risada escapar quando Lucian a estranhou com o olhar. — O que está


olhando?
— Você.
— E por quê?
— Porque me surpreende cada vez mais.
Gabe pigarreou, impaciente, e recebeu olhares de reprovação de
todos os outros, até mesmo de Thadeo, que o encarou por sobre os
óculos.
— Okay, explique-me.
— Vai entender melhor na prática — inferiu Henry com um

piscar do olho direito, começando o jogo. — Gabe, você tem um quatro?

— Por que começou comigo? — Protestou o garoto.


— Porque você ganhou a última.
— Mas...
— Para de enrolar e me dê logo seu quatro.
E, a contragosto, o garoto de pele queimada e olhos profundos, tal
qual seu irmão, passou, escorregando pelo ar, a carta pedida, e Henry a
encaixou em meio às que tinha na mão.
— Se quiser, já pode começar a me explicar o jogo. — Ela
sussurrou para Lucian, enquanto Henry continuava com suas perguntas.

— Ah, desculpe, estava entretido. — Ele pigarreou e ajeitou seu


corpo e, nesse momento, ela percebeu que ele também estava sentado

em um balde amassado. — O objetivo é bem simples, você precisa


fazer o maior número de quadras que conseguir.
— Quadras são conjuntos, certo?
— Isso. Você faz uma quadra quando tem, por exemplo, quatros
reis em suas mãos, mas não vale fazer sequência.
— Okay, acho que eu entendi até aí. — Ela manteve os olhos
atentos e percebeu o momento em que Henry, por algum motivo, parou de

pedir por mais cartas, o que a levou a perguntar: — O que aconteceu?


— Ele errou.
— Isso era para ter deixado meus pensamentos mais claros,

senhor Campbell? — ironizou ela e ele sorriu com os lábios colados.


— No jogo, você deve pedir as cartas que precisa para fazer uma
quadra. Olhe em suas mãos, escolha alguém no círculo, e pergunte. Se a
pessoa tiver o que você pediu, ela é obrigada a lhe entregar, se não, você
compra uma carta do monte central e passa a vez.
Ela engoliu em seco enquanto franzia o cenho. Parecia complicado,
todavia estava disposta a tentar. Esteve em contato com baralhos no
máximo duas vezes na vida, e, de verdade, ela não ligava para o jogo,
mas tê-lo ali, tão perto de seu rosto... Valia a pena tentar.
— Mais alguma regra? — perguntou quando viu que Thadeo a
encarava, malicioso ao perguntar:
— Senhorita Talbot, teria um três?
Ela olhou em suas mãos e nelas havia um único três, de espadas.
— Você não pode mentir — sussurrou Lucian uma última vez e,
como reposta, ela entregou a carta ao homem mais velho, com a testa
avantajada tal qual o seu nariz.
— Por acaso a senhorita teria mais um três?
E, com um sorriso confuso, ela respondeu:
— Não.
E o mais velho praguejou, dizendo que estava na vez dela de pedir
as cartas. E Lilly, de fato, entendeu o jogo, apanhando e perdendo cartas,
baixando duas quadras que Lucian ressaltou quando ela mesma já estava
um tanto perdida entre os naipes.
— Ei, prove isso. — Ele chegou com uma caneca ao lado dela,
momentos depois, estendendo-a em sua direção enquanto Gabe parecia
começar a discutir com Morty por algum motivo que ela não ouvira. O
convés ficou mais calorento com o tempo, conforme mais e mais pessoas
aderiam à música e deixavam seus corpos dançarem livremente, entre
risadas e bebidas, passadas erradas e o balanceio das ondas.
— O que é?
— Só prove — mandou, insistindo que ela apanhasse a
caneca.
Era alcóolico, disso Lilly tinha certeza. Levou o recipiente aos
lábios, sentindo sua grosseria contra a delicadeza de seu corpo enquanto
a bebida invadia sua boca, descendo por sua garganta, queimando e
fazendo seu interior arder em meio ao calor enquanto um gosto adocicado
ficava em sua língua.
— Deixe-me adivinhar: rum?
E ele sorriu ao responder:
— Como eu digo, você me surpreende cada vez mais.
Mas antes que ela pudesse protestar algo, um estrondo ecoou
atrás dela, fazendo com que Lilly encolhesse seu pescoço entre os
ombros e visse o exato momento em que Gabe arremessou suas cartas
contra Thadeo e lançou-se contra Morty, rolando pelo piso do convés, uma
expressão zangada e mimada em seu rosto à medida que ele tentava
dominar o corpo do outro embaixo de si próprio.
— Ah, de novo não. — Lucian reclamou enquanto jogava a
cabeça para trás e recostava-se contra a borda do navio. Lilly caminhou
até ele, temerosa de vê-los se batendo com tanto afinco.
— Isso acontece sempre?
— Sempre — respondeu por entre uma lufada de ar de
desdém. Ambos assistiam enquanto Morty desviava dos punhos do rapaz
e facilmente voltava a se levantar, empurrando o outro com a sola de suas

botas. — Acontece que Gabe é um garoto mimadinho! — Lucian


elevou o tom de voz propositalmente, expondo um sorriso malcriado em
seu rosto enquanto Gabe respondia:
— Vá se foder!
— Ei! — Henry impediu o garoto de prosseguir até Morty
novamente, sua mão direita aberta contra o peito do garoto, que não se
encolheu, apenas o fitou zangadamente, o nariz curvando-se conforme o

cenho se franzia. — Temos uma dama aqui.


A consideração que todos estavam tendo por Lilly a fez corar
novamente, e, quando o garoto brigão a fitou, ela exibiu um sorriso tímido
com os lábios colados.
— Quanta consideração comigo, Henry — protestou uma
mulher atrás dele, de seios avantajados, roupas um número maior, mas
com um queixo e orgulho tão largos que lhe atribuíam um ar de
superioridade informal.

— Annabela, você sabe que só tenho olhos para você... — O


marujo de pele escura inclinou-se no intuito de beijá-la, entretanto ela
desviou de sua investida e caminhou até Lucian e Lilly com certo rancor
em seu olhar. A garota fitou o loiro, e ele parecia tenso em seu lugar.
— Devia avisar à princesinha aí que marujos são assim mesmo

— anunciou a mulher de cabelos tom de fogo, as mãos na cintura e uma


pinta sobressaindo em sua bochecha direita. Apesar de sua voz estar
afiada o bastante para cortar alguém, as palavras pareceram soltas no ar,
já que Campbell revirou os olhos e Lilly não manteve um contato visual.

— Idiotas? — perguntou Lucian, recebendo um olhar


desaprovador e confuso de Henry, que cruzou os braços, mas não
discordou.

— Impulsivos. — Ela corrigiu e ele, finalmente, lhe encarou no


fundo de seus olhos contornados por um lápis preto.
— Eu tenho certeza de que conhece muito sobre o impulso do

que há nas calças dos marujos, Annabela. — O modo como aquela


frase emanou dos lábios dele e a atingiu na alma foi quase teatral,
permitindo que Lilly visse o exato momento em que ela cerrasse os
punhos e rangesse os dentes.

— Lucian — alertou Henry —, por que não deixamos tudo

isso para lá, hein? — O homem aproximou-se por trás da mulher,


abraçando-a pela cintura e sentindo seus cabelos bem penteados contra a
pele de seu pescoço morno.

— Não precisamos. — Lucian largou da borda do navio e se

endireitou. Lilly o observou, curiosa. — Se eles querem brigar, que ao

menos briguem com honra. — Por um curto momento, ele fitou a garota
Talbot por sobre seu ombro, um sorriso levado no rosto enquanto

perguntava: — Já assistiu a uma luta de espadas?

***

Os músicos detiveram-se por um instante, entretidos. Os que


dançavam interromperam-se, surpresos. Lilly simplesmente estava
encantada na mesma medida em que sentia o medo correndo por seu
corpo. Uma série de sons ecoavam, cortando a melodia das ondas que
quebravam na costa, o choque das lâminas de prata que rasgavam o ar
conforme Gabe, Morty e Thadeo lutavam. Eles eram bons, isso era
notável, mas chegou um instante em que Lucian não se conteve, a
excitação em seu olhar implorando para entrar no duelo e sendo atendido
quando Henry chegou com mais três espadas, que pegou nos aposentos
inferiores, a cabeça quase raspando no teto antes de sair.
O moreno aproximou-se da garota.
— Sei que parece complicado...
— No mínimo perigoso. — Ela se antecipou enquanto assistia
Lucian partindo contra Morty, os cabelos do outro voando ao passo que o
loiro se esquivava de seu golpe.
— Basta saber como empunhar uma espada — Henry falou,
cruzando os braços sobre o peitoril, respirando profundamente enquanto
via o rosto de Annabela fixo em Lucian. Lilly também percebia o olhar
ininterrupto da mulher. Nesse instante, as lâminas reluziram à luz das
velas de cerâmica e Lucian caiu de costas contra o convés. O coração de
Lilly saltou e ela sentiu como se o estômago revirasse conforme Gabe
subia em cima dele, rindo até o instante em que Morty o agarrou pelo
colarinho, arremessando-o para o outro lado, tirando a lâmina do garoto
com um golpe lateral, lançando a espada para cima e aparando a
investida.
— Por que todos parecem ir para cima dele, meu Deus? —
Perguntou a garota, abismada.
— Lucian é o melhor no duelo de espadas.
— É por isso que Annabela o olha tão atentamente? — Os
olhos amendoados da garota fitaram o marujo ao seu lado, a cabeça
inclinada para cima a fim de conseguir um contato visual decente,
assistindo ao momento que ele maneou a cabeça de um lado para o
outro. Parecia... doloroso. Algo dentro dele doía ao responder:
— É complicado.
— Se me dissesse o contrário, diria que era louco.
Ele franziu o cenho.
— Perdão?
— Tudo é complicado, Henry.
E o marujo teve de concordar com ela, fitando-a com curiosidade
enquanto continuava:
— Lucian e Annabela flertaram por um tempo..., mas ela se

apaixonou por ele. Não... — Henry deteve-se e coçou a nuca, as unhas


raspando a pele enquanto Lucian, já de pé, brandia sua espada contra um

quarto cavalheiro, que entrara na luta. — Quer dizer, Annabela o amou.


O amou de verdade.
Então Lilly fitou a mulher do outro lado, que suspirava conforme o
loiro se movia, atenta e com as sobrancelhas arqueadas, como se
estivesse arrependida de algo.
— E ela ainda o ama.
— Sim — admitiu o homem, com pesar. — Porque o amor

não se pode forçar, ele só... acontece. — Agora, Henry fez questão de
que Lilly o olhasse atentamente, como se fosse lhe contar um segredo

descarado. — E ele aconteceu com o Lucian, Lilly.


O modo como ele disse aquelas palavras fez o rosto dela corar.
Não havia ironia nem sarcasmo. Ele falava a verdade. Então, aquilo
significava que ele também a amava!
Sim, Lilly Talbot sabia que o amava, porque há inúmeras nuances
de amor, e dizer eu te amo pode ser algo que assusta o mais bravo dos
homens, mas não ela. Não mais.
— Mas... o amor também aconteceu com você, não foi? — Ela
perguntou, fugindo da possibilidade de Henry perguntar quais eram seus
sentimentos por Lucian. Lilly podia amá-lo, só que ele ainda não sabia
disso, e não queria que outra pessoa, que não ela, contasse.
— É muito perspicaz, garota. — Ele reconheceu com os lábios
colados. — Não me surpreende que o tenha cativado. — Henry respirou
fundo. — E, sim, aconteceu comigo também.
— Annabela...
— Estar fadado a amar alguém que não lhe ama do mesmo modo é
tão terrível quanto ser devorado pelas sereias.
— Sereias? — Lilly ergueu as sobrancelhas, surpresa. — Acredita
nisso?
— Em mulheres que conquistam homens com suas lábias e os
levam à ruína? Sim. Em mulheres-peixe? Não. Nunca vi algo do tipo, mas
já vi homens arrasados.
— Lucian? — Ela perguntou enquanto inocentemente o olhava
golpeando Gabe nas costas, com a lateral da lâmina, não permitindo um
corte direto da pele, apenas uma ardida estalada.
— Não. — Henry engoliu em seco e seu pomo de adão subiu e
desceu pelo seu pescoço. — Sabe por que gostei de você, Lilly Talbot?
Ela franziu o cenho enquanto o som dos batimentos do seu
coração era abafado pelo metal.
— Porque Lucian jamais conhecera o amor, não em sua pureza.
Não até você chegar.
Ela sorriu, acanhada, colocando fios de seu cabelo atrás da orelha
enquanto não mais assistia à luta, voltando seu rosto na direção do mar, a
lua resplandecendo sobre a maré.
— Nem dos pais? — perguntou, mas logo em seguida deu de
ombros. — Bom, acho que o amor de família está em falta atualmente,
não é? — disse ela, franzindo os lábios logo em seguida, pensando no
modo com que seu pai lhes tratava e em como o olhar da mãe já não mais
tinha paixão, apenas medo e hesitação.
Mas Henry não respondeu, pelo contrário, pareceu nervoso
conforme os olhos se arregalavam e ele pigarreava. Havia algo que ele
não queria lhe contar e, antes que ela pudesse insistir naquela pergunta, o
marinheiro já havia se afastado, dizendo que iria pegar uma nova caneca
de rum.

***

Já podia-se ver a fraca luz do amanhecer, as pequenas pinceladas


de laranja surgindo no horizonte tão distante e refletindo nas pequenas
pedras da praia, pela qual Lilly e Lucian andavam, lado a lado, na
iminência do toque de suas mãos, do calor de seus corpos.
— Espero que tenha se divertido hoje. — Ele disse enquanto
chutava uma das pedras, vendo-a quicar até que uma marola a cobriu.
— Foi... interessante. — Ela respondeu com um sorriso no rosto. —
Apesar de não o ter visto dançar.
— Não gostou?
— Não disse isso.
— Mas também não disse que gostou.
— E é tão importante que eu diga?
— Claro!
— Por quê?
— Porque quero impressionar você — admitiu o loiro, os olhos
fixos no rosto pálido da garota, o tom de leite de sua pele tão presente
quanto as gaivotas que começavam a acordar nos telhados.

— Eu adorei esta noite, Lucian. — Lilly o fitou, os olhares se


intercruzando enquanto ele exibia seus dentes em um sorriso. Contudo, o
fato de Henry ter deixado algo tão vago, porém implícito, na conversa que
tiveram, ainda repercutia no fundo da mente da garota. Apesar disso, ela
deixou aquilo de lado por um instante. Permitiu-se admirá-lo. Admirar a
vista. Iria aproveitar aquele momento e todas as sensações que
percorriam seu corpo, porque... em momentos líquidos, os sentimentos
são os mais concretos. — Mas não diria que um navio é o meu lugar
favorito.
— Não?
— Não estou acostumada com o balançar das ondas.
— Eu diria que você é apenas mimada, senhorita Talbot — caçoou
ele no exato momento em que alcançaram a quadra na qual a casa dos
Talbot ficava. Ela sentiu que seu tempo estava acabando. — Mas então,
diga-me, qual o seu lugar favorito?
— Nós estamos nele. — Admitiu a garota com o encolher dos
ombros e o pentear dos cabelos e, por alguns segundos, Lucian olhou ao
redor, percorrendo desde as tendas e lojas ainda fechadas até o mar, que
se agitava aos poucos.
— O seu lugar favorito é a praia? — Ele deixou a pergunta escapar
quase com uma inconformidade admirável.
— Não me julgue, senhor Campbell.
— Não estou, é só que... — Mas então ela lhe lançou um olhar
que dizia por si próprio pare de mentir, o que o levou a sorrir, acanhado.
— Está bem, eu estou te julgando.
E isso arrancou uma risada dela que ecoou pelo vento quente que
os acolhia de vez em quando, abraçando e puxando seus corpos cada
vez mais perto.
— Que espécie de cavalheiro é você?
— Do tipo único, é claro.
E ela mordiscou os lábios antes de continuar, o coração palpitando
pelo que estava prestes a fazer:
— E não permite a uma dama que ao menos justifique sua
resposta?
— Você pode até tentar.
— Deite-se, senhor Campbell.
Ele arregalou os olhos e franziu o cenho.
— Acho que não entendi...
— Deite-se! — ordenou novamente e Lucian jogou seu corpo
contra as pequenas pedras, tão confortáveis de se deitar. Ele a fitava de
um ângulo no qual as pinceladas de laranja já alcançavam sua silhueta.
Lilly respirou fundo enquanto se agachava ao lado dele, o vestido
cobrindo as pernas conforme ela apoiava as mãos nas rochas, reclinando-
se logo em seguida. Aquelas pequenas superfícies ainda mornas e com o
sereno do mar aquecendo suas costas no mesmo ritmo que os cabelos
dela formavam um travesseiro para seu rosto e ela tornava a olhar para
ele.
— E... isso justifica exatamente por...?
— Olhe para cima. — Ela disse.
E os dois fizeram isso. No céu, no ponto mais alto, as estrelas
ainda brilhavam, a mistura dos tons quentes e frios numa valsa de cores
que consumiam os pequenos detalhes. As nuvens retomavam suas
formas e pareciam crescer e as estrelas iam dormir enquanto ouviam
Lucian dizer:
— Uau.
E, com aquela pequena expressão, o coração de Lilly se aqueceu,
os lábios finos sorriram e as últimas estrelas sumiram. Agora, a garota
voltou a fitá-lo, o contorno de seu rosto, de seu nariz perfeitamente
alinhado com o queixo, do tom achocolatado de seus olhos e o modo
como os fios dourados pareceram se aquecer. Era irrevogavelmente
verdadeiro o amor que ela sentia por ele. E enquanto se distraía com sua
beleza, o rosto do rapaz voltou-se na direção do dela. Corpos tão
próximos. Respirações pesadas. Os olhos brilhantes tornando-se as
estrelas da alma daqueles que amavam em uma praia deserta, onde as
ondas arrebentavam contra a costa e desatavam por entre as rochas.
— Permite-me dizer algo, senhorita Talbot?
Lilly engoliu em seco e maneou a cabeça de cima para baixo,
sentindo o cabelo acompanhando o movimento, as bochechas corando
por ouvi-lo chamar por ela ali, tão perto.
— Você é mesmo uma ladra.
Então, com um gesto lento, Lucian envolveu a cintura da garota
com suas mãos, os dedos pressionando o tecido, puxando-a para ainda
mais perto enquanto ela colocava sua mão contra o pescoço dele,
levando seu rosto na direção de seus lábios, sentindo seu toque. O gosto
das ondas estava neles, e ela permitiu-se perder naquela maré de
sensações à medida que as mãos dele contornavam cada curva de sua
perfeição, deliciando-se com seus cabelos, sentindo seus lábios colados,
as línguas tocando uma na outra, tornando a respiração deles irregular,
falhando conforme o desejo de que ele a tocasse por completo subia por
seu corpo e aquecia suas bochechas. Lilly firmou os dedos contra a nuca
dele, sentindo suas veias antes de permitir-se respirar.
— Isso foi... — Ele disse, mas não havia nada a ser dito ali, a
mistura de sensações, de desejos e de amor tornava qualquer tentativa de
fazer o contrário numa espécie de ofensa. A perfeição do que sentiam não
poderia ser colocada em meras palavras. — O que está a observar,
senhorita? — indagou o loiro sem tirar a mão dos cabelos dela, o mar de
chocolate de seus olhos variando em incontáveis nuances.
— O mar...
— O que tem ele?
— Sempre o achei... sublime.
— Como?
— Tudo se pode perder no mar, mas nada se pode ter — afirmou,
todavia sem interromper aquela visão tão perfeita que seus olhos
permitiram-se ter, imaginando o que Lucian poderia estar pensando
através de seu olhar abrasador e lábios colados num sorriso indecente. —
Mas, agora, sei que isso não é verdade.
— De fato que não. — Ele afagou seu rosto, o carinho de seu olhar
ajudando a garota a controlar sua respiração. — Eu tenho você. E você
me tem.
Lilly sorriu, o rosto quente e os cílios se agitando conforme o piscar.
— O livro que resguardou com tanto apreço esta manhã, Lilly. Tal
obra, perdida entre as ondas, me levou até você.
Em um novo momento, a garota percebeu que o mar achocolatado
dos olhos dele agora estava agitado, confuso, como se tentasse entendê-
la.
— No que está pensando, senhorita Talbot?
— É errado sentir-me tão viva? — questionou ela, mordiscando
o lábio inferior, nervosa de certa forma.
— Não, de forma alguma. Errado seria esquecer-se de se sentir

assim. — Lucian negou veemente, o olhar sério e as sobrancelhas

alinhadas. — Você é a paixão mais ardente que me acolheu, Lilly.


Ela riu e o loiro lhe retribuiu um sorriso largo o bastante para
reconfortá-la.
— Então eu não seria louca se lhe dissesse que o amo, senhor
Campbell?
— Na verdade, isso lhe faria a mais louca.
E a garota sorriu com os lábios colados, o olhar desconfiado
sabendo que ele ia se justificar:
— Mas talvez nós dois sejamos loucos.
Lilly sentiu o coração bater pesadamente em seu peito e a
respiração voltou a se acelerar. O suor escorria pela parte de trás de seu
corpo, mas ela só conseguia focar nos lábios dele, que diziam as mais
belas palavras:
— Eu te amo, Lilly. — Lucian sorriu. Puro. Inocente. — E te
amarei até que a última onda arrebente na costa ou que meu coração
deixe de bater.
Ela repousou a palma de sua mão contra o rosto dele, os olhos
marejados enquanto o queixo tremia ao mesmo tempo que as lágrimas
ameaçavam escorrer pelo seu rosto, ambos com suas bochechas
ruborizadas e os corações em batidas incessantemente aceleradas, em
novas melodias outrora nunca descobertas. Lucian ainda a admirava, o
olhar brilhante refletindo a luz pálida do sol que nascia na costa da
Inglaterra.
— Acho que somos dois loucos, então. — Lilly disse.
— Os mais loucos — finalizou ele com um sorriso, enquanto
ainda sentia o suave sabor de baunilha dos lábios da garota, inclinando o
rosto na direção de seus lábios.
Naquela manhã, sob uma brisa de sal intransigente e as pinceladas fugazes de
um sol ainda fraco, Lilly Talbot se permitiu perder-se em meio aos lábios de Lucian
Campbell.
Capítulo VIII
A propriedade dos Denver
Lilly tinha dificuldade em esconder o sorriso. Embora tivesse
dormido o mínimo para que não se atrasasse para o chá que marcara com
Heather, e ainda estivesse minimamente apresentável, a garota ainda
conseguira cobrir as olheiras com maquiagem, e a alegria em seu rosto
servia como distração para qualquer um que olhasse para ela. Tivera de
entrar pelos fundos e, talvez por pura sorte, não acordou ninguém, nem
mesmo quando a escada rangeu sob seus pés.
— Aproveite o dia. — A mãe lhe disse logo depois de dar-lhe
um beijo na testa. Na saída em direção à rua, a garota ouviu os passos
abafados e pesados de seu pai descendo os degraus, o que a fez se
apressar ainda mais, fechando a porta atrás de si logo em seguida.
A carruagem já está ali, com a insígnia da família Denver
estampada em sua porta, o cocheiro pisava sobre os cascalhos da rua e o
cavalo tinha um pelo tão escuro quanto os cabelos da garota. Ele a
ofereceu ajuda para entrar e Lilly impulsionou o corpo para dentro,
sentindo o ar um nível mais abafado do que o exterior quando o criado
fechou a passagem atrás dela.
— Meu Deus, Lilly, você não dormiu nada?
Aparentemente, seu sorriso e maquiagem não eram tão bons para
os olhos detalhistas de Heather Fetherstone.
— Há muito que eu devo lhe contar — disse enquanto os
eixos da carruagem rangiam conforme o cocheiro gritava num instante,
anunciando sua partida.
Ao longe, ela podia sentir o pai observando-a por entre uma fresta
das pesadas janelas, olhos semicerrados, forçando a vista enquanto Célia
dizia:
— Por Deus, William, não consegue deixar de ser você mesmo
nem por um segundo?
O pai fechou as cortinas para bufar zangadamente, o rosto
vermelho ao passo que caminhava até a esposa, sentada na sala de
jantar, onde os novos criados aguardavam por suas ordens. Até então, já
havia uma pequena broa de milho em seu prato.
— Aonde ela está indo? — perguntou o homem, apoiando as
mãos sobre a mesa, batendo-as e fazendo a madeira tremer.

— William...

— Eu te fiz uma pergunta.


A mãe, vencida e desistindo de uma briga pela manhã, respondeu:
— Ela está indo para o chá da tarde com a senhorita
Fetherstone, não se lembra?

— Deveria?

— Sim. — A mãe bateu as mãos contra a mesa, imitando o

marido. — Se quer demonstrar o mínimo de interesse pela segurança


dela, então sim, ou só se preocupa com nossa filha quando o que ela faz
afeta a sua companhia?
Naquele instante, Célia preparou-se para um tapa, o rosto já
doendo antes mesmo do tabefe, que nunca chegou, pelo contrário, foi
descarregado contra a louça de porcelana que havia em sua frente, os
estilhaços surgindo quando o prato se chocou contra a parede. A nova
criada esquivou-se e, com um grito súbito, arregalou os olhos.
— Cale a boca e limpe isso! — ordenou ele enquanto voltava
para seu escritório, as mãos esticando as barras do fraque.
Mas Lilly estava longe e não soube de nada daquilo. No momento,
preocupava-se apenas com o chacoalhar da carruagem conforme as
rodas passavam por cima de rochas que não deveriam estar na estrada,
mas sim ao seu arredor, como uma espécie de decoração antiquada que
indicava um caminho um tanto sinuoso até a propriedade dos Denver, e
também com a expressão mais do que surpresa, beirando a indignação,
que Heather tinha em seu rosto assim que ela terminou de contar o que
acontecera na noite anterior.
— Você o beijou?
Lilly fez que sim.
— Lilly Talbot, quem é você? — A amiga chafurdou-se no
acolchoado do assento, as mãos sobre o colo enquanto os cabelos
moldavam o rosto redondo.

— Não haja como se nunca tivesse feito isso.

— Ainda não!

— Mas o August...

— Educado demais para isso — reclamou ela, fitando além do


vidro da carruagem, assistindo aos vastos campos pelos quais elas

passavam. — Mas não o culpo. E, talvez, até goste disso. — Os olhos

da garota voltaram-se para Lilly. — Mas me diga: como é?

— O beijo?

— Não, colocar um corset. Claro que é o beijo! — retorquiu


com sarcasmo e Lilly lhe respondeu com os lábios colados em um sorriso
acanhado, o rosto tornando-se quente subitamente enquanto lembrava
das mãos dele percorrendo seu corpo, a cintura moldada em seus dedos
enquanto suas línguas se tocavam.

— Foi... bom.
Heather pareceu decepcionada.
— Jura? É só isso o que tem a me dizer?

— E o que exatamente eu deveria lhe contar?

— Lilly, eu não quero somente a história, eu quero saber o que

você sentiu. Ele te beijou, caramba! — Heather bateu as palmas das

mãos contra seus joelhos. — Desculpe, mas não é como se isso


acontecesse todo dia.
E a garota, antes de responder, apenas deu de ombros.
— Não sei se consigo descrever. Foi como se... o ar parasse por
alguns instantes, temeroso de estragar o momento. Como se o peito
desatasse em chamas e ao mesmo tempo não ardesse enquanto nossos
lábios se tocavam.

— Isso foi bem...

— Ridículo?

— Intenso — corrigiu Heather com o erguer do indicador,


como uma professora que corrige a garota que não se senta com a

postura ereta. — Diria até mesmo que está apaixonada.


E então Lilly corou.
— Eu disse que o amo, Heather.
A amiga pareceu empalidecer à medida que a carruagem
chacoalhava e fazia a curva na estrada de terra, adentrando a área mais
ao norte.
— Ele também disse que te ama, não foi? Eu vejo isso nos seus
olhos.
Acanhada, a garota colocou os fios do cabelo atrás da orelha e
sorriu na direção de seu colo.
— E eu só recebo uma carta — reclamou a amiga, parecendo
afundar ainda mais no assento, as camadas de seu vestido azul
amontoando-se sobre seu corpo baixinho.
Assim que entraram em seu transporte excessivamente caro e
elegante, a garota Fetherstone disse que aquele fora um charme a mais
imposto a elas através de uma carta escrita por August Denver, numa letra
cursiva digna de apreciação. A garota não pôde deixar de compará-la aos
garranchos de Lucian Campbell, tão mal escritos na carta guardada,
agora, numa das gavetas de sua penteadeira.
— Ao menos a caligrafia dele é excelente. — Lilly brincou e
Heather deixou uma risada curta escapar de sua garganta.
Enquanto subiam uma pequena elevação de terra e as rodas da
carruagem pareciam ranger com o peso delas, a garota pensou, com a
mão direita servindo de apoio para seu queixo e os olhos fitando a vista
tão ensolarada, que havia aceito a proposta de Lucian, e seu coração
parecia mais do que satisfeito, já que iria encontrá-lo todas as manhãs na
boulangerie e ainda por cima iria ler o livro do eu lírico apaixonado. Ela o
entendia mais do que nunca. Porém, com o trepidar da carroça, todos os
riscos vieram à sua mente. Seu pai poderia descobrir, puni-la até o dia em
que se casasse, garantindo que ficasse trancada em seu quarto como
uma das personagens de um livro que lera uma vez. Lilly não duvidaria
que ele fizesse isso, até mesmo sabia dos seus espiões particulares,
fossem da polícia, fossem pequenos vendedores. Assobiavam o que quer
que William Talbot quisesse como gaivotas grasnadoras, ansiosas por
peixes. Mas Lilly pouco se importara sobre o que ele faria a respeito dela.
Lucian era sua verdadeira preocupação. O que seu pai poderia fazer com
ele? Enquanto repassava a conversa, entre seu pai e Sebastian, que
ouvira escondida atrás da porta, a garota ressaltou em sua mente o fato
de Lucian já ter trabalho para a companhia de sua família. E William o
havia demitido por motivos que ela ainda desconhecia, no entanto a
garota imaginava que talvez o tivessem desagradado por demais. Então,
o que ele seria capaz de fazer se soubesse do que aconteceu na noite
passada?
Uma pedra maior do que as outras fraquejou a roda da carruagem
e lançou Lilly para a direita, o rosto quase batendo contra o vidro
enquanto seu braço era comprimido pelo peso de seu corpo, despertando-
a de seus pensamentos.
— Ele é um rapaz excepcionalmente perfeito, Lilly! — Heather,
aparentemente, já havia superado o fato de nunca ter ido além do toque
dos lábios de seu amado sobre as costas de sua mão e, agora, exaltava
todas as vantagens explícitas em August, desde seus cabelos tons de

terra molhada até sua profunda personalidade. — Tão educado, gentil...

— Com grandes propriedades — lembrou a garota, não


conseguindo se conter.

— Lilly! — Heather riu, seu corset, um tom mais escuro do que


o saião do vestido, contraindo suas costelas, pressionando-as contra seu
diafragma, o que dificultava sua respiração, mesmo que breve e sucinta.

— Sabe que é verdade.

— Não me casaria por dinheiro.


— Desde que sua mãe não ouça... — Lilly riu novamente, seu

rosto esquentando conforme a carruagem diminuía a velocidade. —

Acho que já estamos perto... — A animação em sua voz diminuiu.

— Obrigada por me acompanhar, Lilly. — Heather tocou a


mão da garota, inclinando-se no assento, como se aquilo fosse acalmá-la.
Pensar em Lucian, apesar dos possíveis futuros imprevistos, era tão
reconfortante e libertador; pensar no que poderiam fazer juntos era ótimo,
mas manter-se presente naquele exato momento, imaginando as mãos de
Gayle vindo em sua direção, já embrulhava seu estômago.

— É claro... — A amiga forçou um sorriso enquanto ouvia o


relinchar do cavalo ao parar na frente da propriedade.
Era uma construção imponente, ela tinha de admitir, construída há
mais de vinte e cinco anos com uma fonte preparando todas as suas
expectativas para o interior da casa. Na estátua, um anjo tenta acertar,
fervorosamente, o coração de uma mulher com seios desnudos, que sorri
ao mesmo tempo que tenta correr, um vaso em suas mãos do qual corre
uma fina corrente de água cristalina, o pórtico logo atrás já exibindo a
riqueza da família, com seus adornos feitos em mármore.
— Sejam bem-vindas à propriedade Denver, senhoritas. — O
cocheiro disse assim que abriu a porta, estendendo sua mão coberta por
uma luva cinza para que elas apoiassem o seu peso enquanto desciam,
os pés tocando pequenos cascalhos. Heather desceu primeiro e tapou a
luz do sol que incidia sobre seu rosto colocando a mão direita para cima.
Logo depois, Lilly desceu e o vestido arrastou-se para fora da carruagem,
que voltou a andar, indo em direção ao estábulo da família.
Depois de ficarem sozinhas, de frente para tamanha exibição de
dinheiro, elas caminharam até a porta da mansão, feita em verniz com
arabescos góticos. August e Gayle Denver estavam ali, as mãos atrás das
costas e os ombros retos, cartolas pretas em suas cabeças enquanto uma
gola branca tocava seu queixo, os fraques escuros perfeitamente
alinhados no corpo, os coletes cinzentos por baixo e os queixos erguidos.
Lilly respirou profundamente antes de olhar para eles, segurando a barra
de seu vestido, indo atrás de Heather, evidentemente muito mais
animada, enquanto subiam a escadaria principal e adentravam a sombra
do pórtico.
— Senhorita Fetherstone — August a reverenciou, a cartola
deixando sua cabeça e sendo colocada embaixo do braço esquerdo,
revelando seus cabelos castanhos iluminados pela luz do sol daquela
manhã.

— Senhor Denver. — Heather respondeu, excitada e alegre


pelo cortejo, as mãos apanhando o tecido de seu vestido azulado
enquanto cruzava as pernas. Ela estava apaixonada, assim como Lilly.
Sempre lhe falaram que ela era uma garota observadora,
perspicaz, detalhista... demais. O demais sempre acompanhava qualquer
tipo de elogio, revelando uma imperfeição naquilo que era falsamente
considerado perfeito. Ela é linda, a maioria dizia, mas em algum momento
da conversa conseguiam encaixar aquela palavra odiosa. Todos têm a

quantidade exata do que realmente é em seu ser — nada é, de fato,


demais. Lilly franziu o cenho e ergueu o olhar assim que Heather
pigarreou. August estava se reverenciando, mostrando cordialidade.
Apressada, Lilly cruzou as pernas e demonstrou respeito, o vestido em
tons de amarelo, recheado de rosas vermelhas bordadas em suas
extremidades, sendo agarrado por seus dedos delicados, a pele de seus
braços roçando contra a renda da manga enquanto ela voltava a se
endireitar, os cabelos caindo sobre os ombros.

— Irmão, não dirá olá para as moças? — August indagou,


olhando para seu semelhante, que se recusava a sustentar um contato
visual formal. Queria ter ações de um homem, contudo a mente era de
apenas um garoto. Talvez esse seja o problema de muitos dos rapazes;

crescem no meio das pernas — às vezes nem tanto assim — e


esquecem de crescer na mente.

— A ideia imprudente de trazê-las aqui foi sua, meu irmão. —


Gayle direcionou seus olhos esverdeados para Lilly, as palavras ardilosas

bem direcionadas. — Não partilho de seu pensamento de boas-vindas.


Heather colou seu corpo no da garota, tocando sua mão,
entrelaçando seus dedos, mostrando que estava ali, junto a ela.
— Então para que esperou junto a mim, irmão? — August não
elevou o tom de sua voz, mas havia algo na intensidade de suas palavras
que certamente mudara, assim como o erguer de uma de suas
sobrancelhas tão bem desenhadas.

— Para ver se eu viria, senhor Denver. — Lilly se antecipou,


observando Gayle fechando seu rosto. Se ele queria enfrentá-la, então ela

também o faria de queixo erguido. — Acredito que seja a minha

presença aqui que perturbe os pensamentos de seu irmão. — As

palavras afiadas voaram na direção do pescoço do irmão mais velho. —


Não que ele já não seja altamente complexado com o questionamento de
todas aquelas vozes em sua mente.
Lilly soltou sua mão das de Heather, seu vestido bordado
arrastando-se atrás de seu caminhar, raspando sobre o mármore da
entrada, ditando seus passos. Ela passou por August, parando na frente
de seu irmão. Gayle ergueu seu olhar, mantendo um contato visual direto
com os olhos provocativos de Lilly, mas não sendo firme o bastante para
tê-lo por mais de alguns segundos.
— As vozes na sua cabeça se chamam pensamentos, senhor

Denver — caçoou ela, um sorriso atrevido no canto de seu lábio direito,


tentando imaginar o que Lucian pensaria se a ouvisse retrucar daquela

maneira. Provavelmente ele iria rir. Ele tinha um humor peculiar. — Sei
que não está tão acostumado com a presença deles. É perfeitamente
compreensível, no seu caso.
Heather riu, mas conteve-se, levando sua mão sobre a boca para
esconder seu riso, porém, ao observar a expressão satisfeita de August,
ela relaxou e deixou que seus ânimos, junto às regras de etiqueta,
suavizassem enquanto apanhava o braço dele.
— Acredito que devemos entrar. — August anunciou enquanto

as faíscas ainda voavam entre os olhos de Lilly. — Não concorda,


senhorita Talbot?

— Sim, é claro, é uma ótima ideia. — Lilly apoiou a mão sobre


o colo do vestido e desviou de Gayle, girando nos calcanhares, a barra da
saia seguindo seu movimento e cobrindo os sapatos lustrosos do irmão,
que permaneceu imóvel mesmo depois deles terem entrado, as pilastras
do pórtico servindo como sua única companhia.
— É de meu pensar que as senhoritas sejam apreciadoras de
chá. Estou correto?

— Sim, senhor. Adoramos chá. — Heather sorriu enquanto


caminhavam para dentro, a boca um tanto seca enquanto imaginava se
aquele seria o dia em que dariam o primeiro beijo. Queria sentir o frio da
barriga de Lilly. Queria sentir o queimar do amar por entre seu corpo, que
desata num toque dos lábios.
O interior da mansão fazia jus à sua imponente entrada. O piso,
assim que o convidado caminhava para além da porta, era feito de
mármore branco, o que refletia sua própria imagem, uma espécie de
espelho opaco, que deixava suas formas embaçadas, como se fossem
desenhadas pela visão de um bêbado errante. Havia duas escadas nas
duas paredes principais, que guiavam para os quartos da família Denver,
os quais se encontravam numa plataforma elevada feita de verniz e que
poderia ser alcançada se você subisse seus vinte degraus perfeitamente
alinhados. Olhando para a direita, era possível ver uma sala de jantar
impecável, com seu lustre de mais de mil pérolas decorando de forma
sublime o ar luxuoso e ostentoso que a família desejava criar. Mas, se
olhasse para a esquerda, teria uma vista da sala de leitura, muito
valorizada por August. As mãos de Lilly suaram, desejando apanhar
aqueles livros e mergulhar em suas páginas velhas e amareladas, um mar
de tinta negra que era capaz de deixar a alma da garota tão branca
quanto as nuvens daquela tarde.
August as guiou pelos corredores largos da casa, os quais
tomavam forma pelas paredes forradas de um tecido vinho até sua
metade, de onde começava a decorrer uma tinta branca de aparência
fresca, que servia como uma espécie de fundo para os diversos quadros
pendurados.
— Vejo que é um apreciador de arte, senhor Denver. — Lilly
parou e observou uma pintura de um homem alto, musculoso, corpo
desnudo, de costas para o espectador, fitando o sol de um amanhecer
numa colina verdejante, as formas de suas coxas cobertas por um lenço
discreto. O calor daquela obra flutuou pelo ar até atingir a garota.

— Na verdade, minha mãe apreciava muito estes quadros. —


Ele ressaltou sem parar seu caminhar, acariciando a mão de Heather
enquanto falava, a pequena mulher sentindo suas bochechas
esquentarem. Lilly continuou caminhando, cabeça baixa enquanto fitava o

chão, agora feito de madeira. — Chegamos, senhoritas.


Os olhos da garota se iluminaram ao ver o grandioso jardim
daquela casa, com uma fonte cinzenta assim como a da entrada, alguns
pássaros pairavam sobre a borda arredondada, bicando a água, jogando-
a contra seu corpo com seus bicos nervosos para se refrescar. Um deles
passou voando diretamente contra a cabeça de Lilly, o que a fez se
abaixar.
— Perdoe-me pelos pássaros, senhorita Talbot. — August

desculpou-se, embora não houvesse nada que pudesse fazer. — Mas

minha mãe nunca achou certo ferir os animais. — Bom, talvez ele
soubesse o que fazer, afinal ao passar por um dos corredores, Lilly não
pudera deixar de notar a coleção de armas expostas numa prateleira
protegida por uma tela de vidro.

— Não há problema algum. — Ela sorriu enquanto andava na


direção de uma mesa de metal, pintada de branco, colocada sobre a
grama fofa que acolheu os pés dela com suavidade, os pequenos saltos

encaixando-se perfeitamente. — Na verdade, aprecio muito os pássaros.

— Ah... sim? — August franziu o cenho antes de estalar os


dedos, chamando por um homem esguio e sisudo que Lilly não percebera
que estivera ali. Novamente, a perfeição nas roupas se fizera presente,

desta vez no serviçal. — Pode trazer-nos o chá, Steve.

— Sim, meu senhor. — O homem respondeu, suas


sobrancelhas grossas e grisalhas sem se movimentar. Lilly não pôde
deixar de compará-lo a um personagem de um livro que lera certa vez,
escondida em meio à madrugada, em seu quarto, lendo sobre um homem
que perdera sua humanidade, tornando-se uma espécie de sugador de
sangue horrendo. Ela baixou os olhos quando ele retornou, temendo que
ele pudesse ler seus pensamentos, mas a figura esguia estava focada
demais em carregar aquilo que trazia nas mãos enrugadas.
O teapot no qual o chá viera era feito de cerâmica, com arabescos
em prata decorando suas extremidades, enquanto algumas flores
dominavam o resto do corpo do objeto, com sutileza em seu tamanho, e
fumegava pelo seu bico de cisne, espirais de fumaça entrelaçando o ar ao
seu arredor e subindo até perderem-se de vista.
— Servida, senhorita? — ofereceu o velho mordomo, seus
olhos sendo mais dóceis do que Lilly imaginara. Tons de chocolate. Assim
como os de Lucian. Ela disse que sim e, em poucos segundos, o líquido
fumegante já estava pronto para ser colocado em seus lábios, tendo sido
misturado com uma dose de leite e um fio de mel, que August disse ter
sido cultivado pelos apicultores da família.
Ela ergueu a pequena xícara até a altura dos lábios, o líquido
quente e seu aroma adocicado encantando o corpo dela enquanto seu
sabor invadia seu paladar. Não havia nada tão bom quanto chá quente e
leite fresco. A harmonia dos contrastes. A garota fechou os olhos por
alguns segundos e pensou em como apreciar cada momento estava lhe
fazendo tão bem. Lucian lhe ensinou isso. O local não precisa mudar para
que seja perfeito. O modo como você o enxerga é que pode te
surpreender.
Satisfeita com o novo gosto em sua boca, Lilly abriu os olhos e
olhou na direção de Heather. A amiga estava feliz, com um sorriso que ia
de um canto ao outro de seus lábios, o olhar brilhando enquanto fitava
August, que falava com tamanho controle, como se soubesse exatamente
o que dizer e quando dizer, tornando tudo ainda mais agradável.
— Lilly? — chamou Heather, atraindo a garota para a

conversa deles. — Você está bem?


O breve momento de devaneio talvez não tivesse sido tão breve
quanto ela pensara.
— Estou, é claro... — A garota sorriu, percebendo que havia
ficado encarando o pequeno pão doce que estava na sua frente, num
prato de cerâmica sobre uma toalha branca, que cobria a mesa. O velho
mordomo estava ao seu lado, perguntando se desejava um pouco de
geleia de amora para acompanhar o doce. Ela aceitou, incerta do que
fazer por um momento, retomando os pensamentos logo que August
retomou a fala:

— Chegou à minha atenção uma carta particularmente


interessante outro dia, senhorita Fetherstone.
Heather franziu o cenho enquanto colocava um pequeno pedaço do
pão doce em sua boca, o açúcar que havia sobre a massa grudando
sobre seus lábios. O homem deteve-se por um momento, esticando seu
polegar e limpando as extremidades dos lábios finos da garota. Lilly a
assistiu corar tanto quanto cobre em brasa.
— S-Sobre o que era? — Ela indagou por entre um gaguejar
ao acabar de engolir, seguindo as regras de uma boa dama. Não coma
muito. Ouça mais do que falar.

— Um baile... — Ele começou. Lilly arregalou os olhos e

sentiu seu coração parar. — Um baile feito pelo senhor William Talbot.
Heather olhou para Lilly, que tentava engolir um novo gole do chá,
mas que agora, com aquela maldita frase dita, parecia serragem em sua
boca e tornava-se intragável. Ela deixou a xícara de lado.
— Perdoe-me por isso, senhor Denver. — Foi a única coisa
que conseguiu escapar dos lábios da garota Talbot, tão impassíveis que
conseguiam esconder a dor que ela sentiu em seu coração. O que tivera
fora um sonho perfeito demais, e aquela era a realidade. O baile ainda ia

acontecer. Ela ainda seria forçada a casar, de fato. — Meu pai acredita
que seja melhor que eu arranje um marido o mais rápido possível.

— Então não devo ir à recepção de seu pai?


Lilly tentou sorrir, contudo os lábios falharam. O pai,
aparentemente, havia enviado o convite para toda a alta sociedade. As
chances de impedi-lo agora eram praticamente nulas.
— Na verdade, sua presença seria muito apreciada. —
Respondeu com cordialidade, afinal, estava nas propriedades dele e
Heather seria eternamente grata pela oportunidade de poder passar uma
noite inteira com August Denver.
— Nesse caso... — Ele recomeçou, mas Heather o
interrompeu num súbito momento.

— Você irá? — No instante em que perguntara, percebeu o


quanto havia sido rude, as mãos suando sob seu colo enquanto virava seu

rosto na direção do de August. — Desculpe-me.

— É claro que irei. — Ele sorriu para ela enquanto os cabelos

caíam sobre a testa. — Mas somente se você for a minha companhia.

— August inclinou seu rosto, segurando sua mão e beijando-a com


delicadeza.
Capítulo IX
Uma curva na estrada
O retorno da viagem ocorreu na mais profunda melancolia, a
decepção nos olhos daqueles que estavam apaixonados, mas tinham de
se distanciar por um tempo, tornando-a entediante e desconfortável, no
bafo quente que se assolou com a chegada do anoitecer. Lilly só
conseguia pensar no quanto estaria encrencada se não chegasse em
casa antes das sete da noite e, quando partiram da propriedade dos
Denver, já deveria ser por volta das vinte para as seis. Seria um horário
apertado e o cocheiro parecia saber disso, brandindo seu cumprido
chicote, berrando ao cavalo para que acelerasse. De fato, era uma região
mais perigosa do que o centro. Todas as estradas eram, já que as
sombras que ali recaíam pareciam as mais densas de toda a extensão de
Eastbourne, tanto que a carruagem fizera apenas uma única parada,
acendendo uma pequena lanterna de cerâmica que, agora, balançava ao
lado do rosto daquele que guiava a carruagem, já cansado.
O silêncio dentro da cabine era estarrecedor, quase sufocante. Por
algum motivo, nenhuma das duas conseguia olhar diretamente nos olhos
da outra. Lilly tinha medo de fitar Heather e encontrar aquele olhar
penoso, de quem sabe o quanto é doloroso não ter o destino em suas
mãos, e a amiga também não o queria fazê-lo, pois dentro de si ainda
sentia-se um tanto deprimida por não ter conseguido um beijo antes dela,
por mais fútil que isso pudesse ser. Entretanto, quando a senhorita Talbot
fez menção de lhe dizer algo, foi nesse instante que um estalo metálico
soou no exterior.
A carruagem trepidou, sua roda sendo arremessada por entre os
campos que, agora, tinham árvores de troncos grossos e folhas
pequenas. O cavalo, em meio ao relinchar, sentiu as patas falharem com o
peso descompensado e, em meio aos gritos delas, a carruagem tombou
para a esquerda, o corpo de Lilly esmagando-se com o próprio peso
enquanto Heather tentava se segurar em meio ao ar, falhando
miseravelmente e sentindo a testa chocando-se contra o vidro, que trincou
de imediato.

***

Ela acordou com a visão embaçada, alguns fios de seu cabelo


enroscados contra os cílios, mas ainda assim ela podia ver o rastro de
sangue que escorria da testa de sua amiga, desacordada. Cada parte de
seu corpo doía e os ouvidos zuniam, não distinguindo os gritos que
vinham do lado de fora. O vidro estava rachado e apontava para a terra,
que entrava por suas falhas, aos poucos, sorrateira. Lilly esforçou-se para
olhar para cima, movendo seu corpo com cuidado para não se cortar, e a
carruagem estava de uma maneira que ela nunca vira.
A única saída dali era a porta que, agora, encontrava-se alguns
metros acima de sua cabeça. Antes de mover-se novamente, certificou-se
de que todo o seu corpo estava apto para tal, ou ao menos tivesse o
mínimo de força para tentar sair.
— Heather? — Ela perguntou num sussurro enquanto o
zunido em seus ouvidos começava a diminuir, tornando-se quase o som
de uma abelha próxima demais. Lilly passou a ponta dos dedos contra o
rosto da amiga e o indicador tingiu-se de vermelho. O corte não parecia
profundo, mas a pancada que sofrera fora o suficiente para desacordá-la.

— Heather? — Ela chamou novamente e, nesse instante, a audição


voltou por completo e os berros do exterior assustaram seu corpo.
— JE T'AI DIT DE NOUS AMENER LA FILLE, ENCULÉ! —
Um homem berrou grosseiramente e o coração de Lilly acelerou-se. Não
era inglês o que falava. O que estava acontecendo? Quem estava
gritando? Seria um ladrão de estrada?
Mas antes que a mente pudesse tentar formular qualquer hipótese
ao menos plausível, ela ouviu passos subindo pela lateral direita da
carruagem, os pés contra o metal, e, logo em seguida, a passagem se
abriu. O cocheiro estava ali, seu bigode grisalho bagunçado, um olho
inchado e o lábio cortado, ainda sangrando, o ar melancólico em seu
semblante fez as sobrancelhas de Lilly arquearem, fitando Heather e
pensando que, talvez, o suposto ladrão no exterior não soubesse que
havia duas mulheres na carruagem, afinal, ordenara que ele entregasse a
garota a eles. No singular. Pensando em manter a amiga inconsciente a
salvo de quem quer que fosse, Lilly engoliu em seco e, quando o serviçal
dos Denver a fitou novamente, ela apontou para a garota ainda deitada e
pediu, através do gesticular da mão, para que ele não dissesse nada.
— Pourquoi es-tu si lent? — Uma segunda voz ecoou pela
estrada, cobrando pela demora. Havia mais deles. O corpo de Lilly
encheu-se de adrenalina, o medo correndo pelas veias enquanto se
endireitava, as pernas esticando-se com dor conforme o cocheiro lhe
esticava a mão. Ela a apanhou, encaixando os pés contra o acolchoado e
impulsionando-se para cima enquanto ambos grunhiam e o ar quente
acolhia seu pescoço em uma brisa que lançou seus cabelos para o lado.
A visão era assustadora. Havia pelo menos cinco homens ali,
armados, ora com adagas francesas que refletiam a luz do crepúsculo, já
em seu fim, ora com pistolas devidamente apontadas para os rostos
deles, em volta da lanterna de cerâmica, ainda acesa, que a carruagem
carregava. Lilly encolheu as pernas e o vestido arrastou-se pelo metal. Ela
não olhou para dentro da carruagem novamente, temerosa deles
desconfiarem de algo.
— Mas ela é deveras adorável, não? — anunciou o homem de
voz mais grave, que tinha uma longa barba nojenta, crespa, os fios
revoltosos enquanto o indicador os enrolava ainda mais.
O cocheiro ajudou-a a chegar no solo e, agora, eles estavam ali,
parados a alguns metros de homens desconhecidos, de corpos
corpulentos e traços rudes, como se a natureza tivesse sido desleixada ao
moldá-los. Não houve apresentações, é claro, mas ainda assim, com uma
intimidade excessiva, um dos homens apareceu ao lado dela e agarrou-
lhe a nuca, arremessando Lilly contra a terra empoeirada, caindo de
joelhos de frente para as botas gastas que o barbudo usava. Logo em
seguida, o corpo do cocheiro também tombou ao seu lado.
— Bonsoir, ma chérie. — O ladrão dobrou os joelhos e ficou
na altura dos olhos dela. Tinha um sorriso horrível, com dois dentes de

latão, e os olhos eram pura malícia e fúria. — Pourriez-vous nous aider?

— Elle ne parle pas votre... — começou o cocheiro no instante


em que Lilly paralisou, sem entender o que o homem havia perguntado.
Sabia que o idioma era francês, mas o pouco que sabia não lhe ajudou
em nada e, agora, o mesmo homem que os empurrou contra o chão
ressurgia, chutando o rosto do serviçal, que voou para trás, cuspindo
sangue em meio à poeira.

— Arretê ça! — Ela implorou, tentado formular frases em sua

mente, aflita, para que eles parassem. — J-Je ne parle pas fraçais —

gaguejou como resposta e os homens, atrás do barbudo, riram. —


Vocês falam inglês?
A contragosto, o barbudo entornou o nariz e pigarreou, erguendo-
se, as mãos grosseiras apoiando sobre seu cinto enquanto os olhos dela
ficavam numa altura nada agradável, tão próxima à braguilha dele, que
fedia a sal de bacalhau. Com um gesto quase imperceptível, ele ordenou
que um de seus companheiros viesse até ali, apontando para ela algumas
vezes enquanto falavam algo que ela não conseguia ouvir. Lilly percebeu
o momento em que seus olhos se cruzaram com os do novo indivíduo, tão
alto que as sombras causadas pela fraca luz quente lhe cobriam mais do
que os outros, a cabeça protegida por um chapéu pontudo e a gola de sua
jaqueta erguida até a altura do queixo, mas ainda assim ela reconheceu
algo em suas feições. Algo familiar demais, que faria com que alguém
fosse morto naquela noite.
— O que queremos é bem simples. — O novo homem
começou a dizer, seu inglês saindo por entre os lábios, surpreendendo a
garota. O modo como as palavras emanavam de sua boca, carregadas
demais, fizeram-na pensar que ele estava engrossando a voz para não
ser reconhecido. Ela tinha certeza de que já o vira antes, só não
conseguia lembrar onde. O medo, a angústia e aflição que percorriam seu

corpo eram o suficiente para suprimir qualquer memória. — Onde estão


as cartas de corso?

— O quê?

— Temos motivos para acreditar que a senhorita as detém.

— Mas...

— Entregue-nos! — ordenou uma última vez e Lilly franziu o


cenho.
— E-Eu não sei do que está falando. — Lilly olhou de um lado
para o outro, desde o rosto assustado do cocheiro ao seu lado, passando
pelos homens e recaindo sobre a vastidão de sombras que serpenteavam
os campos da estrada.
Então, o ladrão à sua frente endireitou-se, esticando as pernas
enquanto o barbudo ressurgia atrás dele, colocando a mão direita sobre
seu ombro e cochichando algo que ela não entendeu, mas o movimento
em seguida fez o coração dela saltar até sua garganta e travar o ar em
seus pulmões.
— Senhorita Talbot. — O homem de pele escura recomeçou,
palavras suaves enquanto seu líder erguia sua pistola e a engatilhava.

— É a última vez que irei perguntar: onde estão as cartas de corso?


O suor escorria pelas costas dela e os cabelos lhe caíam sobre os
ombros, o âmago do desespero surgindo em seu corpo conforme o
cocheiro encolhia-se entre seus ombros, chorando, as lágrimas saltando
dos olhos enquanto a garota tentava pensar em uma resposta que os
agradasse o bastante para, ao menos, não os matar.
— Eu não...
Mas no mesmo instante em que o barbudo ouviu-a dizer aquela
negação, seu dedo gordo puxou o gatilho, a bala disparando do cano,
quente e sedenta, voando na direção da testa do cocheiro, que partiu-se
enquanto o projétil arrebentava as fibras de sua cabeça, arremessando-a
para trás, respingos de vermelho inundando, em uma explosão, o lado
esquerdo do rosto de Lilly, que gritou assustada, as mãos tremendo
enquanto a sensação pegajosa grudava em sua pele. O corpo tombou ao
seu lado, um baque surdo em meio às risadas dos homens.
— Desculpe-me, mas o meu dedo é muito pesado —
vociferou o barbudo na direção dela, um arranhar do inglês que, apesar de
imperfeito, causava temor, fazendo com que arrepios percorressem o

corpo da garota. — O que você dizia? — A arma voltou-se para ela.


Lilly ainda permanecia estupefata, as mãos não paravam de tremer
e os olhos apenas enxergavam borrões assustadores. Havia um homem
morto ao seu lado, agora.
— Apenas nos entregue as cartas e tudo termina — disse o
moreno.
Contudo, o modo como ele terminou aquela frase fez seu corpo
estremecer. O que terminaria? Supondo que ela entregasse o que eles
queriam, os homens iriam matá-la? Bom, se essa era a única opção que
lhes vinham à mente, então poderiam fazê-lo, porque ela não fazia a
menor ideia do que eles pediam.
— Peut-être que c'est à l'intérieur de le chariot — sugeriu o
homem que lhes empurrou, mordendo o lábio violentamente enquanto
fitava Lilly com um desejo tão forte e maligno que iluminava seus olhos.
O barbudo agachou ao lado dela, o peso de seu corpo sobre seu
joelho enquanto o rosto dele se aproximava do da garota, os respingos de
sangue quase tocando os fios crespos enquanto o hálito intragável de
tabaco e rum invadia as narinas dela, que não conseguia fitá-lo
diretamente nos olhos, trêmula pelo sangue salpicado que escorria em
sua pele.
— Se nós revistarmos a carruagem, e as cartas estiverem lá...

— Ele se ergueu novamente. — Você morre. — E, logo em seguida,


ele chutou o rosto do cocheiro, já sem vida, apático, mas ainda com uma
faixa fina escorrendo de sua testa.
Por alguns instantes, ela permaneceu quieta, as costas arqueadas
à medida que ele caminhava com passos arrastados na direção da
carruagem. Nesse exato momento, o nome de Heather explodiu na mente
da garota e ela sentiu os batimentos mais uma vez acelerarem. Precisava
criar uma distração. Precisa resolver aquilo. Talvez se... e, sem pensar por
uma segunda vez, ela apenas lançou-se para trás, agarrando as pernas
do homem, fazendo-o cair.
— SALOPE! — Ele berrou assim que seus braços bateram
contra a terra. Ela não sabia o que significava, mas com certeza não era
agradável.
Apenas quando seus dedos estavam tocando as botas dele, foi que
Lilly percebeu o que havia acabado de fazer. E, no instante que ele se
voltou para ela, a garota apenas soube que era o seu fim.
— Você é tão idiota quanto seu pai. — O barbudo agarrou os
cabelos dela, cada fio entrelaçando seus dedos e fazendo-a grunhir com
um puxão forte que expôs seu pescoço à luz da lua. Ele iria cortar sua

garganta... talvez. — Eu poderia te matar aqui e agora, sua vadia! — O


ladrão fez questão de dizer cada palavra no idioma da garota para que

cada fibra de seu corpo sentisse medo. — Mas, antes, vou deixar que
meus companheiros se divirtam com você.
E então ele deu alguma ordem que ela não conseguiu ouvir.
O medo silenciou seus ouvidos.
Lilly sentiu seu braço sendo puxado para trás, arrastando-a pela
terra.
O homem ria.
As pernas dela chutavam o ar em meio ao tecido do vestido, que
desfiava.
O ladrão mais alto pareceu incomodado, porém nada fez.
Ela sentiu o coração doer tanto quanto seu seio direito, apanhado
descaradamente por um deles.
A garota gritou, o agudo cortando o véu quente da noite, e foi aí
que tudo mudou. Ele pareceu surgir das sombras. Ninguém ouviu os
cascos de seu cavalo, muito menos o engatilhar de sua pistola. Mas
ouviram os tiros. O primeiro dilacerou o olho esquerdo do homem que
agarrava a garota, tombando-o em agonia. Lilly empurrou para longe o
ladrão que agarrava seu seio enquanto ele estava distraído, mas não por
muito tempo, pois um segundo projétil disparou pela noite, arrebentando
sua cabeça. Novos respingos vermelhos mancharam a terra.
O corpo do animal surgiu na frente dela. Forte. Firme. Os pelos
castanhos e lisos. A crina perfeita enquanto Sebastian Pelletier
empunhava sua pistola em meio às sombras com uma mira quase
perfeita. Mas fora esse quase que fizera o ladrão moreno escapar, o braço
sangrando por uma bala que lhe pegou de raspão.
— Fique perto de mim. — Ele ordenou ao pular do cavalo, sua
farda branca perfeitamente colada ao corpo enquanto os olhos verdes
procuravam pelo perigo. Não precisaram se esforçar muito, pois o
barbudo já estava de pé, brandindo sua pistola na direção deles enquanto
gritava. Sebastian a empurrou com seu corpo, indo para a direita, o projétil
passando por eles e acertando o último companheiro do ladrão.

— Evany! — O homem disse, a dor e a surpresa em sua voz


tornando-se uma fúria que a garota temeu com cada músculo. O homem
que ele acertara caiu de joelhos, assistindo seu peito inundando-se com
um vermelho rubro antes de tombar.
Com um grito feroz, o barbudo se arremessou na direção de
Sebastian, a espada ainda na bainha enquanto Lilly separava-se dele, os
braços sustentando o corpo na queda enquanto o capitão esmurrava o
rosto do ladrão, até mesmo agarrando a barba dele e a utilizando como
arma, lançando o rosto dele contra a terra. Mas Pelletier não deu nem ao
menos uma chance de ele revidar. Apanhou a espada do próprio homem
e, com ela, apunhalou suas costas, o metal atravessando as costelas e
perfurando os órgãos em um grito agoniante, que se desfez na calada da
noite.
Lilly quis vomitar, e foi exatamente o que fez, um líquido gosmento
e espumoso saindo de sua boca e escorrendo em uma faixa fina até o
solo.
— Senhorita Talbot. — Sebastian apareceu ao lado dela
novamente, as mãos, protegidas por luvas tão alvas quanto leite,

cuidadosas ao tocá-la, certificando de que já havia parado de vomitar. —


Está bem? Foi machucada?
Ela não conseguiu responder de imediato, assistindo a uma trilha
de sangue vindo em sua direção. A garota respirou fundo e disse que
estava bem. Assim, ele a ajudou a se erguer, as pernas doloridas
enquanto o ar noturno não parecia o suficiente para seus pulmões
doloridos.
— Quem eram...?

— Ladrões. — Ele disse antes dela terminar a pergunta.

— Perdoe-me, capitão, mas cheguei a essa conclusão muito

antes do senhor. — Ela retorquiu e os olhos tom de esmeralda

pareceram ficar sérios. — Quis dizer quem, de fato, eles eram.

— Como assim?

— Suas identidades. — Lilly colocou a mão sobre o esôfago,


sentindo a respiração se acalmando enquanto caminhava até um dos

mortos. — Duvido que meros ladrões de estrada falassem francês.


— Eles eram franceses? — Sebastian pareceu surpreso ao
ficar do lado dela, o cadáver com a cabeça arrebentada separando-os.

— Sim.

— E o que queriam? — Ele perguntou severamente enquanto


se agachava, procurando por alguma coisa que os ajudasse a identificar o
homem, mas nada foi encontrado.

— Eles disseram algo... sobre uma carta de corso.


Então, o capitão congelou, um movimento curto o suficiente para
não ser percebido caso ela não estivesse tão atenta nele. O modo como
seu maxilar enrijeceu e as sobrancelhas se alinharam... Ele sabia do que
ela estava falando.
— O senhor sabe o que é, não sabe? — Lilly inferiu enquanto
ele voltava a se endireitar, batendo as luvas contra as pernas e assistindo
ao cavalo aproximar-se da carruagem tombada.

— Não devemos falar disso aqui. — Sua voz pareceu fria. —


Obviamente não é seguro. — O homem girou nos calcanhares em seus
coturnos lustrosos e fez menção de caminhar até o animal, todavia a
garota o deteve, segurando seu braço com os dedos delicados, mas que o
prenderam firmemente enquanto dizia:

— Eles sabiam exatamente quem eu era, senhor Pelletier. —


Os olhos dela, tão temerosos, também suplicavam para que ele lhe

explicasse o que estava acontecendo. — Creio que não haja mais um


lugar seguro.

***
Não fora fácil trazer Heather de volta à consciência. Na verdade,
fora necessário que Sebastian pegasse seu cantil e aproximasse o álcool
das narinas dela e, ainda assim, os olhos da garota abriram-se
hesitantemente. Tampouco tiveram tempo para explicações, apenas
montaram no cavalo junto a Sebastian, o capitão carregando a amiga de
Lilly no braço esquerdo enquanto conduzia o animal com o direito e,
embora tivessem se distanciado dos corpos que ficaram na estrada,
abandonados aos corvos, a garota ainda sentia como se a morte
estivesse perto de sua silhueta, à espreita.
O cavalo foi guiado até uma pequena taverna mais ao sul, próxima
da entrada de Eastbourne. Heather precisava de cuidados médicos e a
viagem seria árdua demais para ela para ser feita por completo, assim
Lilly e Pelletier concordaram em fazerem uma pequena pausa. Agora,
enquanto limpava o sangue de seu rosto com um lenço que o homem
tirara do bolso de sua farda, a garota pensava em como seu pai se
zangaria. No quanto iria gritar... e até mesmo talvez...
— Lilly. — Sebastian a chamou, tocando-a suavemente no
braço, vendo-a dar um pulo para trás, assustada. A ideia de o pai bater-

lhe que nem quando menor ainda a assombrava. — Oh, perdoe-me,


senhorita Talbot, não era minha intenção assustá-la.

— Está tudo bem. — Ela disse, embora era óbvio que não

estivesse. — O que queria me dizer?

— A dona da estalagem conseguiu um quarto para nós. — Ele


olhou para trás, assistindo à outra garota, sentada, as mãos cobrindo o
rosto confuso, suado e dolorido, enquanto a mente não raciocinava direito.

— Paguei para que fiquemos aqui até amanhã, até que eu consiga trazer
um médico para ela. — Os olhos dele tornaram-se afáveis ao ver o
estado de Lilly, com seus cabelos desgrenhados, as sobrancelhas

arqueadas e o medo ainda exposto em seu olhar. — Realmente acredito


que deveríamos comer alguma coisa e passar a noite por aqui. O que
acha?

— Não...

— A viagem é mais perigosa durante a noite. — Ele explicou


com olhos calmos e convidativos.

— Meu pai me mataria.

— Se chegar agora, a reação seria diferente? — Provocou ele


e, por alguns instantes, ela sentiu os punhos cerrarem enquanto respirava
fundo.

— Eu só... — A garota umedeceu os lábios e sustentou o peso


do corpo contra a perna direita.

— Façamos o seguinte: comemos algo por enquanto, passamos

a noite aqui e... eu lhe explico o que são as cartas de corso — propôs,
vendo-a arregalar os olhos ao ouvir as últimas palavras, o luar fraquejando

com algumas nuvens que lhe tapavam o brilho. — Depois, a levarei para
casa e explicarei tudo o que ocorreu ao seu pai, está bem?
Ela disse que sim. De fato, tanto fazia se chegasse agora ou mais
tarde, a reação de seu pai seria a mesma, e Lilly sabia que não tinha,
como sempre, outra escolha.

***
As estalagens não eram lá essas coisas e, possivelmente, aquele
fosse o lugar mais grosseiro e inóspito a uma dama da alta sociedade que
Lilly já entrara. Era feito de rochas, das mais diversas, com paredes
decoradas por bandeiras coloridas, o ar era uma mistura de alcatrão,
fumaça de charutos e lúpulo, o qual inundava as canecas de madeira que
homens grosseirões agarravam com tanto fervor enquanto riam, as mãos
apoiadas nas barrigas gordas conforme a única mulher, a esposa do
estaleiro, lhes servia uma nova rodada. Sebastian os apresentou à
esposa, Alberta, que indicou a eles onde dormiriam, mas que só estariam
autorizados a subir para os quartos quando todos já tivessem ido embora.
Lilly estranhou, mas na atual conjuntura não puderam praguejar muito, já
que conseguiram convencer a mulher a permitir que ao menos Heather já
ocupasse o quarto. De cara feia e resmungando, ela pediu para que
aguardassem enquanto subia os degraus tortos e desaparecia no andar
superior, voltando alguns minutos depois, pedindo para que ele levasse a
garota para cima.
— A senhorita me espera aqui? — Ele perguntou por mera
formalidade, já que Lilly não sairia daquele lugar. Na verdade, seus pés
até mesmo pareciam congelados naquele pequeno quadrado sem poeira
que ela encontrara entre as tábuas que formavam o piso.

— Ei, garota. — Um bêbado chamou por ela quando

Sebastian subira e Lilly virou-se num salto, ainda arisca. — O que é isso
em sua saia?
Hesitante, os olhos dela fitaram o vestido e os respingos vermelhos
do sangue daqueles que morreram ainda estavam ali, manchando o
tecido perfeito e as rosas bordadas.
— É apenas tinta de meu atelier, senhor — respondeu em
uma mentira, a voz mais firme do que pensou que sairia enquanto já
assistia, para seu alívio, ao retorno de Sebastian, as luvas brancas
penteando os cabelos para trás enquanto a guiava para uma mesa mais
ao longe, escondida no canto da taverna, longe dos beberrões.

— O que ele lhe perguntou? — Sebastian inqueriu assim que


se sentaram, tão afastados que raramente ouviam o homem que tocava
sua viola no outro extremo, um pequeno chapéu esverdeado em sua
cabeça afundada.

— Quem?

— O homem na mesa.

— Queria saber sobre o meu vestido. — Ela jogou a parte


manchada na direção da luz quente do lugar, iluminado por uma pequena
lareira e lanternas de cerâmica presas no alto, entre as vigas nas quais as
aranhas teciam suas teias.

— Droga. — O capitão reclinou sobre sua cadeira, as pernas


se abrindo debaixo da mesa enquanto apertava os olhos com a ponta dos

dedos. — Sinto muito que isso tenha acontecido, Lilly.


A garota, ainda que distraída pelo modo como aqueles que ali

frequentavam interagiam — entre gritos, risadas e socos —, notou


algo de diferente em sua voz. Como se ali houvesse culpa ou
ressentimento, levando-a a perguntar:

— O que quer dizer?

— Que os ladrões tenham lhe atacado.


Ela estreitou o olhar e os cílios quase embaraçaram.
— O que estava fazendo por aquela região, senhor Pelletier?
O homem estranhou a falta de delicadeza em sua voz.
— Perdão?

— Como sabia que eu estava passando por ali?

— Na verdade, não sabia. — Ele corrigiu enquanto umedecia


os lábios e fitava as mãos diante a mesa de madeira que os separava.

— Tinha assuntos a resolver com o Lorde Gahland, e a propriedade dele

pode ser acessada pela mesma estrada. — Os olhos esverdeados

refletiram a luz alaranjada e brilharam. — Agora diga-me: O que você


estava fazendo naquela estrada?

— Heather convidou-me para um chá da tarde na propriedade


dos Denver, apenas isso.
Agora, ela pareceu relaxar. Não. O que estava pensando?
Sebastian... o modo como disse sinto muito, como se tivesse alguma
culpa... Não, ele não teria planejado o ataque, afinal, ele mesmo a
protegera. Mas talvez as coisas tivessem saído um tanto do controle e...
— Lilly?
A garota agitou os cílios rapidamente e olhou para ele, as mãos
suando enquanto o capitão parecia ter chamado mais do que três vezes
por seu nome.
— Você está bem? — Ele continuou.

— Estou cansada... confusa...

— Vou pedir algo para comermos. — Ele olhou ao redor

rapidamente e o movimento não parecia que acabaria tão cedo. —


Aparentemente, teremos de esperar um tanto mais que o desejado.

***
A taverna permaneceu quente e úmida mesmo quando metade
daqueles que uma hora a ocuparam já tinha ido embora. A garota
esforçava-se para comer, mexendo com certa ânsia aquele purê e
ervilhas, vendo sua textura gosmenta misturando-se com o molho do
peixe, que parecia ter caído no chão empoeirado e depois cozido.
— Por onde a senhorita quer que eu comece?

— As cartas de corso me parecem uma ótima sugestão —


disse depois de apanhar um pouco da batata amassada e levar aos
lábios, sentindo um gosto razoavelmente agradável, mas que fora repelido
pelas suas entranhas na mesma hora.
Sebastian respirou fundo e uniu as mãos, deixando seu prato de
lado, a farda branca pesada em seus ombros.
— As cartas de corso são artimanhas utilizadas a fim de manter

a supremacia dos mares, senhorita Talbot — explicou, palavras baixas


enquanto os olhos percorriam o lugar, temerosos de que alguém os
estivesse ouvindo.

— Creio que não entendi.

— Está a par de que nós, ingleses, temos a maior frota


mercante, certo?
Ela fez que sim.
— Porém, — prosseguiu o capitão — é de se esperar que
tivéssemos uma competição, cedo ou tarde. Frotas asiáticas competem
conosco a cada dia, até mesmo a dos franceses, embora de forma mais
sutil.
Lilly ouvia tudo aquilo e assimilava cada informação, entretanto a
firmeza do olhar dele era estonteante o bastante para distraí-la por alguns
segundos, o modo como seus lábios finos se moviam pela barba por fazer.
— As cartas de corso nos permitem... interceptar outros navios,
senhorita Talbot.

— Interceptar? — Indagou enquanto franzia o cenho. Já tinha


alguma ideia do que aquilo se tratava.

— Pirataria, se preferir. — Ele reclinou-se em seu assento,


lábios para dentro enquanto os dedos batiam sobre a madeira.

— Piratas? — Ela sorriu com estranhamento. — Mas eles


são mortos todos as semanas em Londres. Está em todos os jornais e...

— Os jornais mostram aquilo que nos favorecem, Lilly. — Ele


explicou, a voz calma enquanto a dona do lugar reaparecia com duas
cervejas, levando até fanfarrões que agora discutiam em uma mesa

próxima à deles. — Os piratas que são mortos nunca são ingleses.

— Mas isso é a mais pura hipocrisia!

— Você não faz ideia.


E aquela frase a fez se perguntar se havia mais que ele sabia. Era
óbvio que sim, mas estaria disposto a contar a ela?
— Mas, Sebast... — Ela deteve-se por alguns segundos e

sentiu o rosto queimar. — Senhor Pelletier, o que isso tem a ver com
meu pai?

— Eu não sei.
O olhar dela o reprimiu, evidentemente desacreditada.
— É plausível que desconfie de mim, senhorita Talbot, mas
realmente não tenho conhecimento sobre o porquê pediram pelas cartas
quando a atacaram.

— Eles eram franceses. — A garota se lembrou do modo


como palavras grosseiramente ditas escapavam da boca do barbudo, que
agora estava morto, sangue saindo por sua boca enquanto os olhos
vidrados fitavam a poderosa escuridão do vazio. – E, como você mesmo
disse, os piratas mortos não são ingleses.

— No que está pensando, senhorita Talbot?

— Que talvez... — Ela ergueu uma das mãos, os olhos fitando

as vigas no teto enquanto pensava. — É apenas uma teoria, mas...


Londres orgulhosamente batalha contra a pirataria, se conseguissem a
prova das cartas de corso, então toda a figura de justiça que a capital
construiu seria desfeita.
Sebastian permaneceu quieto, as sobrancelhas grossas
perfeitamente alinhadas enquanto os olhos pareciam afundar em seu
rosto entre as sombras conforme as luzes diminuíam na cera diminuta.
Considerando a ideia dela, ele permitiu que a garota continuasse:
— E se Londres mentiria sobre o combate à pirataria, por que
não mentiria sobre sua frota?

— Perdão?

— Poderiam questionar ainda mais o poder da marinha inglesa,

senhor Pelletier. — Lilly terminou com um movimento de cabeça,


observando os últimos dois homens saindo do local, empurrando um ao
outro antes de passarem pela porta apertada que era o acesso ao lugar.
Ele pigarreou, o tecido roçando em seu maxilar antes de
prosseguir:
— É deveras inteligente, senhorita Talbot. — Sebastian franziu

o cenho. — Se importaria se eu levasse tal hipótese para seu pai?


A garota arregalou os olhos.
— Por favor, não...

— Ele perguntará o que houve. O motivo do atraso e o motivo


de sua amiga não estar bem. Terá de contar a ele.

— Dou a permissão para que o senhor fale sobre o que eu

disse, mas omita o meu nome. — Os olhos da garota brilharam instantes

antes da dona da taverna, Alberta, aparecer do lado deles. — Não me


envolva com o trabalho de meu pai.

— Já estamos fechados — declarou a mulher, parada feito


uma estátua ao lado deles, as mãos na cintura e panos presos no avental

do trabalho. — Creio que a amiga de vocês já deva estar dormindo, e

aconselho que façam o mesmo. — Os olhos da esposa do estaleiro


repousaram sobre o prato praticamente intocado de Lilly e, com desprezo,
ela fitou a garota.

— Já iremos subir. — Sebastian afirmou e a mulher saiu


arrastando os pés, sem questionar, possivelmente com o orgulho sendo
sustentado pelo dinheiro que o capitão havia lhe dado para passarem a

noite. — Pelo seu olhar, creio que ainda não esteja satisfeita com minhas
respostas.
Lilly sentiu os ombros relaxarem enquanto permitia que o ar, que
ela nem percebera que estava prendendo, saísse de seus pulmões.
— Acho que só preciso molhar o rosto um pouco. — Ela se

levantou, o vestido segurado pelas mãos. — Creio ter visto um poço


aqui ao lado, antes de entrarmos.

— Lilly...

— Não vou demorar — retorquiu rapidamente, baixando o


rosto ao passar por Alberta, direcionando-se à porta e sentindo a noite
acolhendo seu corpo mais uma vez.

***

A garota sentia o corpo fraquejar. Às vezes, o joelho falhava e ela


tropeçava, ou então os pulmões puxavam mais ar do que o necessário e
tornavam seu respirar ardido. Agora, Lilly estreitava os olhos enquanto
apoiava-se na borda daquele poço rochoso, onde vinhas se entrelaçavam
entre as falhas das rochas e um balde marrom boiava ao fundo. As
sombras eram tantas que ela não conseguia ver seu reflexo, mas
agradecia por isso, pois tinha certeza de que estava assustadora. Ela
sentia os fios de seu cabelo duros como galhos ressecados, as pálpebras
arranhavam ao piscar e os lábios estavam machucados.
Tudo surgia em flashes em sua mente. O sangue. Os gritos. O
trotar do cavalo. O modo como Sebastian pulou dele para protegê-la e a
poeira erguida por suas botas rodopiou no ar.
— Droga. — Ela passou as mãos contra a testa enquanto
endireitava-se, começando a puxar o barril para cima, pesado demais
para seus braços cansados, forçando-os novamente.
Conforme a corda felpuda enroscava-se entre a roldana, Lilly ainda
sentia o medo em seu corpo. Um aviso iminente da natureza silenciosa. O
vento não uivava. As folhas não quebravam. Somente o estranho e agudo
ruído do metal enferrujado repercutia pelo ar. Como Sebastian poderia ter
estado lá? A pergunta ainda brilhava em seus pensamentos. De fato, a
propriedade dos Gahland se dava pelo mesmo acesso que a dos Denver,
mas acreditar que tudo aquilo fora uma mera coincidência fazia os nervos
de Lilly queimarem. Por outro lado, negar tal fator seria o mesmo que dizer
que Lucian havia planejado o primeiro encontro deles na praia. Era muito
a se pensar e, finalmente, ela apanhou o balde, cheio até suas
extremidades, uma água escura que lembrava piche, refletora dos céus.
Lilly respirou fundo e formou uma concha com as mãos, sentindo o
contato frio e úmido, os dedos submergindo apenas para erguerem-se
logo em seguida, trazendo a água contra seu rosto, esfriando suas
bochechas e desembaraçando seus cílios. Ela fechou os olhos e arqueou
as costas para frente, a dor em sua lombar relaxando enquanto os
músculos se alongavam.
Finalmente, quando ela voltou a enxergar, os olhos direcionados
para a barra do vestido, algo lhe chamou a atenção. Era uma pequena
poça, mas não era água. Era grudenta e cheirava a metal. Ela reconheceu
na hora o que era, já que sua pele se manchara dele momentos antes.
Sangue.
Aflita, o rosto virou de um lado para o outro no mesmo instante,
procurando por quem quer que fosse o dono daquele rastro. Só que nada
apareceu de primeira, o coração saltando contra o peito de Lilly e os
batimentos e o correr do sangue de suas veias tornando-se um som
absurdamente alto à medida que a garota lembrava do único ladrão que
escapara da mira de Sebastian. E se ele estivesse ali?!
De fato, ele estava.
Parecia que estava morto, e embora o movimento de seu peito
fosse sutil demais pra ser visto pelas sombras, os olhos doentes ainda
piscavam, cansados e amarelados. Lilly o encontrou depois de alguns
minutos, seguindo a trilha que o sangue que escorria de seu braço deixara
sobre a mistura de cimento e grama. O homem escondera-se nos fundos
da estalagem, próximo de onde dois cavalos dormiam, presos a estacas
de madeira.
Lilly se aproximou hesitante, a respiração pesada enquanto os
olhos permaneciam estáticos, as mãos na frente do corpo enquanto o
vestido se arrastava e ela o ouvia praguejando entre sussurros. Pelo visto,
pela quantidade de sangue que manchava suas roupas, o tiro que
Sebastian lhe acertara não fora tão superficial assim, e pedaços do projétil
fincaram-se na carne.
Quando a garota se aproximou mais, os olhos tornaram-se para ela
e seus ombros voaram para trás. Naquelas condições, demasiadamente
debilitado, ele não poderia lhe fazer nada, mas ainda assim ela preferiu
permanecer a uma distância considerável.
— Lilly... — Ele disse seu nome e, no mesmo instante, como
se flashes explodissem novamente em sua memória, uma mistura de
sensações embrulhou seu estômago em níveis de inconformidade. Ela já
sabia quem ele era.

— Henry...
Capítulo X
Aquilo que os olhos não podem ver
As risadas calorosas que dominavam a sala de jantar de Célia
Talbot não conseguiam aquietar o ego inflado de Helga Deadland, uma
viúva com posses ao sul, considerada por muitos uma rica sortuda. Seus
cabelos ruivos queimavam tão ardentemente quanto o fogo da lareira da
sala de estar, onde William andava de um lado para o outro, tenso, um
leve ressonar abafado entre as palavras gordurentas da mulher, seus
lábios salivavam por boatos que seriam espalhados a todos o mais rápido
possível. Seu vestido preto não conseguia ocultar seus seios
exacerbadamente grandes, que atraíam olhares, considerados por muitos,
indesejáveis, mas não para Helga Deadland. A mulher vangloriava-se de
seus dotes, exibindo-os sempre que podia; suas curvas sempre inchadas
devido ao constante hábito de comer doces recheados e frango frito, mas
sem perder a classe, é claro.
Numa noite, Helga sentira-se solitária. O marido havia falecido há
duas semanas quando a mulher caminhara escondida até a cozinha,
fugindo de seus funcionários, começando a cortar pedaços de um bolo de
creme com morangos frescos. Naquela noite, o bolo deixou de existir em
questão de horas. Célia sentia pena da viúva algumas vezes, contudo, na
maior parte do tempo, a personagem gorda e risonha que Helga criara
apagava todo esse sentimento.
— Acredita que, então, o senhor Lasston apanhou uma garrafa

de vidro e quebrou-lhe na cabeça do displicente? — A frase foi seguida


por uma risada longa e exagerada, a garganta arranhando um pouco.
Célia colou os lábios e tentou sorrir, mas estava apreensiva. Não dormia
havia horas, e as olheiras animalescas não conseguiam ser cobertas pela
maquiagem.
Embora a amiga tentasse fazer a senhora Talbot sorrir, nada
acalmava o medo em seu peito de que algo tivesse acontecido com sua
filha. A mesa do café da manhã estava montada, com tantas frutas
vermelhas, pães doces e sucos frescos, tudo preparado para a chegada
da filha. Mas ela não estava ali. Ninguém sabia onde ela estava.
— Creio que isso não seja nada bom para a reputação da

senhora Lasston... — Célia tentou dizer, apenas para tentar manter a


mente distraída, mas fora interrompida.

— De maneira alguma! Lasston é um oficial. Ninguém tem mais


autoridade do que ele!

— Então achou certo o que ele fez? — Célia franziu o cenho.

— A única coisa certa que eu sei é que o deixaria entrar em

meu quarto a qualquer hora. — Mais uma longa risada nervosa, as


bochechas corando, temendo que seu humor malicioso não melhorasse a
atmosfera tátil daquele lugar àquela hora da manhã.
Os passos de William arrastavam-se pesadamente pelo tapete
importado e o som parecia tão alto quanto o grasnar das gaivotas do
porto.
Célia olhou para a mesa de madeira na qual um prato de porcelana
repousava, contendo alguns doces que ela fizera questão de comprar. A
fome parecia faltar em seu estômago, que repudiava a mínima ideia de
provar um daqueles pequenos cones durante aquela conversa, algo que
não acontecia com Helga, que até mesmo perguntou:
— Vai comer este aí? — indagou a viúva já esticando seu
braço rechonchudo para apanhar um doce quadrado, feito de banana e
coco.

— Não. Fique à vontade.


Enquanto mastigava, Helga limpou os dedos no vestido antes de
dizer:
— Soube que sua linda filha está à procura de um marido... —
A mulher sorriu maliciosamente enquanto repousava as mãos sob o colo.
Como de costume, o ar era quente, mas a tensão que pairava no ar
parecia esquentar ainda mais cada fibra de seus corpos, como madeira
em brasa. O suor escorria pelas costas e os fios dos cabelos grudavam
contra o pescoço, escapando dos cachos.
— Na verdade, a ideia foi de William — admitiu Célia quase
com vergonha, seu rosto esquentando não por causa das velas.

— Não acha que Lilly poderia estar com um pretendente?


Célia arregalou os olhos, assustada, de repente, olhando por sobre
os ombros, seus cabelos castanhos caindo na direção da cintura como
num amontoado de folhas secas; sua postura dura e etérea no instante
em que ela franziu o cenho, os olhos refletindo o brilho da prataria da
casa. Ela apoiou as mãos sobre a mesa de madeira, engolindo em seco.
— Não entendo o que quer dizer.

— Ora, você não sabe? — Helga indagou, gostando de sentir


o prazer do poder de saber algo que alguém desconhecia, ainda mais que
poderia envolver um possível escândalo familiar.
A ausência de uma reposta fez a gorda viúva continuar:
— Há muitos boatos correndo por aí a respeito de sua filha.
E ouvir tais palavras fez o corpo da mãe tremer sobre a cadeira, as
pernas bambas, embora não fizessem esforço algum, e as pontas dos
dedos chegaram a tremer e esbarrar nos talheres intocados.
— Boatos?

— Dizem que Lilly, sua filha, foi vista outro dia perto do porto...

— Os grandes e rechonchudos olhos de concha da mulher


escancararam-se quando os lábios permitiriam que a frase escapasse,
quase como se ela estivesse querendo certificar se a garota era, de fato,
filha de Célia. A mãe sentiu-se ofendida, mas estava preocupada demais

para expor isso. — Dizem que ela correu em direção ao Beachy Head

com um homem. — Helga apanhou outro doce do prato de Célia e


ergueu as mãos para o alto, como se disser que “dizem” tirasse toda sua
culpa de estar perpetuando boatos.
A mãe tentou manter uma expressão séria e contida, mas por
dentro se desmontava em lágrimas. O que Lilly estava fazendo que não
lhe contava? Onde ela estava? Será que estava bem? E o medo só
inflamava cada vez mais no peito da mulher.
— Q-Quem... — Célia pigarreou por entre o gaguejo. — ...
está dizendo estas coisas?

— Os homens do porto. As mulheres na velha galeria... Dizem


que Lilly estava bem receptiva ao banqueiro...

— Um banqueiro? — Uma luz acendeu-se na mente de Célia.

— Está falando do filho dos Trian? — A ideia de chamar o cocheiro e


pedir para que corresse com ela até a propriedade da família Trian fez seu
peito se acalmar por um breve segundo, mas então ardeu ainda mais em
ansiedade, aguardando a confirmação de uma mulher que perdera o
marido recentemente e precisava de atenção.
— Jonathan? — Helga jogou o corpo para trás enquanto seu

rosto assumia uma careta estranha. — Por Deus, não... Eu mesma

bateria na sua filha se ela estivesse com ele. — Zombou, as risadas


tentando preencher um vazio eterno em sua alma. Se ela soubesse da
violência que ambas já sofriam em casa, não teria feito escárnio disso.

— Então, qual era o nome do banqueiro? — A mãe insistiu.


Precisava saber. Se a filha estava perdida, tinha de começar a procurá-la
por algum lugar, mesmo que a ideia de Lilly mentindo sobre algo para
encontrar alguém ainda parecesse absurda em sua mente.

— Isto é o que estou tentando descobrir, minha querida Célia.

Tenha certeza que, assim que eu o fizer, lhe avisarei. — Ela se levantou,
arrastando a cadeira com seu enorme traseiro. Na verdade, tudo nela era

enorme, desde seu gordo pescoço até seus tornozelos grossos. — Mas
não se preocupe tanto assim, afinal, ela está com um banqueiro! Bom...

— Ela pensou por alguns segundos. — ... apesar que eles têm contas
bancárias grandes demais se comparadas aos seus...
Mas graças aos céus Célia não teve de ouvir o final daquela frase
maliciosa demais para uma manhã costeira. Os sons de galopes contra
cascalhos mornos abafaram a voz da mulher e fizeram a senhora Talbot
saltar de sua cadeira, correndo na direção da porta da entrada, onde
William já havia se prontificado. Ambos se olharam, mas sem palavras
entre si, e abriram a porta rapidamente, o calor da manhã envolvendo-os
enquanto a figura de Lilly surgia na frente deles, montada em um cavalo
de pelagem branca, tão macia quantos as nuvens dos céus, Sebastian
Pelletier guiando o animal com maestria enquanto fazia-o parar na frente
da casa.
— Ah, meu Deus, Lilly! — Célia agarrou as dobras do vestido e
correu os degraus da entrada, sentindo os pés esmagando os cascalhos
enquanto a garota escorregava de cima do cavalo e grunhia enquanto os

braços da mãe apertavam-lhe o corpo dolorido e exausto. — Você...

você voltou. Você está bem. — As lágrimas mornas tocaram o pescoço


da garota, que fitava o pai, um olhar severo, frio e duro, que se esforçava
para forjar uma preocupação enquanto uma figura gorda surgia atrás dele,
devorando algo que parecia um scone.

— Está tudo bem, agora, mamãe. — A garota disse,


afastando-a de seu corpo enquanto desejava que a mulher não olhasse
para baixo e visse os respingos de sangue.
O rosto da mulher inchava conforme as lágrimas continuavam a
rolar, as mãos dela segurando o contorno do rosto da filha, a vista
tornando-se vermelha enquanto o cenho franzia-se ao dizer:
— Eu fiquei tão preocupada. Pensei... — A voz travou em sua

garganta. — Pensei...
Lilly exibiu um sorriso amarelo, olheiras profundas em seu rosto
abatido enquanto os fios dos cabelos emaranhados eram levados com o
vento.
— Estou bem, mamãe. — A garota reforçou, mas todo o medo
na alma da mulher ainda a faria chorar muito.
William desceu dos degraus, sorrateiro, os passos com baques
surdos.
— Creio que haja um motivo para tal atraso — vociferou ele.

Célia o fitou, inconformada com tamanha frieza. — Estou certo, senhor


Pelletier?
O cavaleiro no corcel branco saltou contra os cascalhos, a
respiração pesada e o suor brilhando em sua testa, tornando a pele
oleosa, os olhos esverdeados refletiam o fraco brilho do sol por entre suas
nuances.
— De fato, senhor. — Ele coçou a nuca, hesitante. — Mas

creio que não seja um assunto a ser tratado perto de damas. —


Sebastian fitou a curiosa figura atrás de seu empregador, que se
esgueirava por sobre o ombro, tentando ouvir algo. Helga era patética.

— Oh, p-por favor, senhor Pelletier. — Célia enxugou as


lágrimas rapidamente, mesmo sabendo que elas continuariam a escorrer.

— N-Não há necessidade disso. — Ela endireitou-se, os ombros para

trás e o rosto erguido. — Conte-me o que aconteceu.

— Poderia entrar — sugeriu Helga, que em nada pertencia


àquele lugar, mas que se sentia confortável o bastante para fazer tal

convite. — Estávamos no desjejum quando chegaram.

— Seria melhor se conversassem a sós. — Lilly interveio

antes de William responder, vendo-o analisando-a, curioso. — Deixe que

o senhor Pelletier descanse, por hoje. — Ela colocou-se na frente do


pai, sabendo que aquilo era uma atitude estúpida. Mas ela também sabia
que ele não iria agredi-la enquanto membros que não eram da família

ainda estivessem ali. — Ele já fez muito.


Quase como se estivesse decepcionado, ele baixou os grandes
olhos verdes na altura dos olhos dela. De fato, eram belos. Mas não a
entendiam agora, assim como não a entenderam antes. Ele estava ali, tão
perfeitamente vestido, com o sol contornando os traços de seu rosto e
esquentando a pele, os lábios finos entreabertos, como se quisessem
dizer algo, porém não conseguissem. Não havia mais nada a ser dito. Lilly
não conseguia mais olhar para ele sem lembrar do modo como agira na
noite passada.
Henry estava ali, na frente dela. Sangrava. Os olhos doentes
fitando a garota. Ainda devia haver algum resquício de força em seu corpo
que o permitia catapultar palavras por entre os lábios. O homem suava
muito, e ela via isso pelo modo como a luz do luar refletia em sua testa
oleosa.
— Por quê? — Foi a única coisa que ela conseguiu perguntar
ao ladrão sem chorar. Ele havia sido um dos culpados. Ele havia
machucado Heather e a vira quando estava sendo arrastada para o meio
daqueles homens nojentos e nada fizera. Emoções demais, para uma
garota que fora ensinada a nada demonstrar.

— Lilly...

— Eu já sei que você sabe quem sou — retrucou em meio a


sussurros zangados, que rangiam os dentes e faziam-na quase morder a

língua enquanto os olhos tornavam-se brilhosos. — Apenas me diga o


motivo...

— E-Eu... eu não queria — gaguejou enquanto permanecia


deitado, as costas contra a madeira do estábulo, onde os cavalos
dormiam calmamente, os rabos abanando moscas e o cheiro de esterco e

feno misturando-se ao do suor e sangue do homem. — Mas...


precisava...
Lilly engoliu em seco ao vê-lo gemer quando tentou se mexer, a
ferida em seu braço aumentando com o movimento.
— Te ofereceram dinheiro?

— Ouro — respondeu por entre uma lufada de ar e o fechar

dos olhos. — Muito ouro...


Mas, Henry não abriu mais os olhos. Parecia estar dormindo, o
peito ainda arfava lentamente e as pontas dos dedos se mexiam em
reflexos involuntários de quem já perdera muito sangue.
— Henry. — Ela chamou, hesitante de que estivesse morto.

Não. Ele respirava. — Henry, acorde! Você precisa ficar acordado! —


Lilly olhou por sobre o ombro direito, os cabelos caindo para a frente do
corpo enquanto ela se certificava de que ninguém os via. Ela deu dois
passos para frente, aproximando-se dele. Pensou não haver perigo.

Novamente, estava errada. — Henry...


E o homem reabriu os olhos aos poucos, as pálpebras arranhando
a vista quase como se grãos de areia estivessem embaixo delas. Os
lábios deles rachavam-se e a boca estava seca, o frio percorria cada
centímetro de seu corpo com calafrios que assustavam sua alma
enquanto ela curvava as sobrancelhas.
— Vo-Você... precisa... falar com... com o Lucian. — A cada
pausa que ele deu naquela frase, o coração da garota parou, como se ele

não fosse conseguir começar uma nova palavra logo em seguida. — E-


Ele... pode... explicar...
Os olhos ela, melancólicos, sentiam as lágrimas em seus cílios
enquanto as costas nadavam no suor, o corselete apertando as costelas e
tornando o fato de estar agachada num ato doloroso. Quando a noite
voltou a ficar silenciosa e os batimentos de Lilly tornaram-se
ensurdecedores naquela tensão do âmago da morte, foi aí que ele, num
súbito, apertou seu pulso e a puxou para perto, arrancando um curto grito
da garota.
— Peça desculpas ao Lucian, por mim. — E essas foram as
últimas palavras que ele disse antes de arregalar os olhos, fitando por
cima o ombro da garota, quase como se mirasse a lua, e saltando para
cima dela num último surto de força. Ela deixou um curto grito escapar de
sua garganta, rasgando o véu noturno enquanto sentia as costas batendo
contra a grama e o cimento e ouvindo um tiro logo em seguida.
O projétil não errou, desta vez, e partiu a testa de Henry ao meio,
lançando seu corpo para trás, fazendo-o tombar contra a madeira do
estábulo, onde os cavalos relincharam violentamente, puxando as correias
que os prendiam ali, assustados.
— Não... — Lilly deixou escapar enquanto olhava para trás e

assistia Sebastian guardando a pistola em seu cinto. — Sebastian...

— Você estava certa, Lilly. — Ele respirou fundo, os olhos


tensos enquanto o maxilar enrijecia e o homem mordia o interior de sua

bochecha. — Não há lugar seguro.


O capitão caminhou até ela, os passos arrastados até alcança-la,
assistindo-a no levantar.
— Não... Não precisava...

— Lilly...

— Você atirou nele. — Ela engoliu em seco enquanto a

aparência do homem tornava-se cansada. — Você o matou.

— Ele atirou-se sobre você...


— Ele estava ferido, Sebastian. — Ela soltou-se dele, dando
um passo para trás, olhando por sobre o ombro na direção dos cavalos,

que não conseguiam se acalmar. — Não poderia me machucar mesmo


se quisesse.
Pelletier levantou uma das sobrancelhas, tão grossas, mas tão
perfeitamente alinhadas.
— Acredita mesmo nisso?
Lilly cerrou os punhos no tecido do vestido, sem saber como
responder.
— Não poderia correr o risco de vê-la se machucar.

— E por isso matou outro homem? Matou em meu nome? —


retrucou enquanto ele ameaçava voltar para dentro das estalagens.

— Ele era um pirata, senhorita Talbot. — A formalidade

ressurgiu em sua voz. — A senhorita mesma chegou a essa conclusão


há poucas horas.

— E apenas por isso ele deixa de ser um homem?


E então algo mudou nos olhos dele, como se a neve caísse sobre a
vastidão verde dos campos que eram seus olhos.
— Piratas foram os responsáveis pelas mortes de companheiros
meus, senhorita Talbot. A cada pirata morto, um novo nome é honrado.

— Não há honra em matar, senhor Pelletier. — Lilly sentiu a


saliva arranhar sua garganta enquanto engolia por entre o agitar dos
cílios, o rosto erguido e a pele ainda mais pálida diante do luar.

— E a senhorita acha que há honra em nada fazer? —


retrucou rispidamente, a gola alta de sua farda roçando contra seu
pescoço enquanto os cabelos caíam sobre a testa, despenteados pelo
suor e, embora olhasse diretamente para o mar amendoado dos olhos
dela, Sebastian não podia ver o medo que a garota sentiu naquele
momento. Não do homem morto com um tiro na cabeça, mas do próprio
capitão. Porque ele, apesar de ser um capitão, a enxergava com olhos de
homem, céticos, apesar de outrora singelos, e as profundezas da alma de
uma mulher jamais seriam vasculhadas por aqueles que não sabem
navegar entre suas nuances.
Capítulo XI
Ausência
A mãe, Célia, penteava os cabelos da filha como se eles lhe
fossem a coisa mais preciosa. Elas estavam no quarto de Lilly, sentadas
em cadeiras acolchoadas de frente para a penteadeira da garota, onde
um espelho ovalado refletia seus ombros desnudos, o pescoço esguio e
as bochechas rosadas, ressaltando desde suas olheiras, que pareciam
insistentes em permanecer em seu rosto, até suas clavículas. Já fazia dois
dias que ela retornara. Era uma manhã quente de terça-feira, e o suor
escorria pelas costas da garota enquanto a mãe, com uma escova
redonda, respirava pesadamente.
— Sei que há algo lhe incomodando, mamãe. — A garota
ressaltou, fitando o reflexo da mulher. Ela usava um vestido longo,
azulado, com rendas até o colarinho, no entanto os olhos pareciam
centrados demais no movimento da escova que nem se ergueram para
olhar Lilly.
Haveria um silêncio excruciante entre elas se não fossem os sons
do exterior, suaves, o arrebentar das ondas contra a costa, o modo leve
do bater das asas das gaivotas e os gritos abafados de homens ao longe.
Por um instante, enquanto baixava o olhar para seu colo coberto por
tecidos perolados, a garota fitou as mãos e pensou se Lucian sentia falta
de seu toque. Já havia dias que não se viam. Mas a recorrência de seu
nome à sua mente também lhe trouxe o nome de Henry e o modo como
Sebastian o baleou na cabeça. Uma hora ou outra, teria de enfrentar.
Fosse o marinheiro ou o capitão. Eles lhe deviam respostas, e seu
coração a cobrava a cada segundo que se arrastava por aquelas tardes,
onde perguntas e mais perguntas lhe foram jogadas. Onde o pai
desconfiou de cada palavra. Onde a mãe a olhava numa mistura de pena
e desconfiança por algo que a garota ainda nem sabia, contudo estava
prestes a descobrir.
— Diga-me o que é, mamãe. — A garota insistiu, colocando o
corpo levemente para frente, sentindo a escova errando seus cabelos.
Célia ergueu o olhar pelo reflexo do espelho.
— Não é nada.
Lilly franziu o cenho e mordiscou o lábio.
— É evidente que é algo.
A mãe soltou uma lufada de ar, contornando a cadeira da filha e
repousando a escova sobre a penteadeira, apoiando a mão logo em
seguida para servir de sustento ao corpo.
— Preferiria aguardar um pouco mais para discutirmos isso,
Lilly.

— Você diz isso como se eu já soubesse do que se trata,

mamãe. — A garota virou seu rosto na direção da mulher e assistiu ao

momento em que uma lágrima escorreu do rosto de Célia. — Não chore.

— Lilly se levantou, surpresa pela repentina reação. — Poxa, diga-me o


que lhe aflige, mamãe!
A mulher enxugou a lágrima com certa raiva, os dedos firmes
contra a pele sempre coberta de maquiagem. Numa curta fração de
segundo, ela apanhou a mão da filha e a apertou, o queixo franzido e as
sobrancelhas arqueadas.
— Eu fiquei com tanto medo, Lilly. — A mãe começou a dizer
e a filha fez menção de abraçá-la, entretanto Célia a interrompeu antes

que conseguisse, erguendo a mão contra seu peito. — Mas... — Algo


nos olhos da mãe pareceu mudar. — Você não mentiria para mim, não
é, Lilly?
A garota franziu o cenho, sentindo sua respiração pesar sobre seu
peito.
— O que quer dizer, mamãe?

— Aonde você foi no sábado, Lilly?


A garota inclinou o rosto, confusa.
— Eu saí com Heather.

— Não minta, Lilly.


Ela arregalou os olhos ao perguntar de volta:
— E por que a senhora acha que estou mentindo?
Célia pareceu hesitar alguns segundos, engolindo em seco antes
de prosseguir:
— Helga Deadland me disse que você foi vista com um rapaz
outro dia, perto do porto.
E aquela frase foi o suficiente para gelar o corpo da garota, que se
inundou em calafrios de temor. Se a mãe sabia dela e Lucian, seu pai
também já saberia? Porém, não tinha como saber se ela tinha cem por
cento de certeza sobre o que falava, afinal, sua fonte era Helga, e a
mulher era um poço de desconfiança ambulante.
— E, por causa de Helga Deadland, você acha que estou
mentindo?
A mãe pareceu pensar alguns segundos, mas a garota continuou
antes mesmo dela responder.
— Eu saí com Heather, mamãe, ou acha que tudo o que contei
até agora foi encenação?
Lilly se ergueu, os ombros sentindo a luz batendo contra eles e
delineando seu corpo naquele vestido conforme os punhos se fechavam
em incredulidade.
— Acha que Heather está fingindo que está machucada? Que
ela não está de cama em sua casa? Que o sangue que cobriu a barra de
meu vestido era mentira!?

— Chega, Lilly.

— Você queria a verdade, mamãe. — Ela continuou, ignorando


a ordem da mulher, sentindo as veias de seu pescoço saltando a cada

palavra. — Aguente-a, então.


Célia ergueu os olhos para a filha, arregalados pela sua atitude.
— Por que é tão difícil vocês estarem do meu lado? — Lilly
terminou, sentindo as narinas dilatarem e a língua ressecando enquanto a
mãe lutava para sustentar seu olhar fragilizado.

— Eu sempre estou do seu lado...

— Acho que, então, não sou eu que estou mentindo, mamãe

— retrucou a garota, virando-se para a penteadeira, seu reflexo um tanto


turvo enquanto ela respirava fundo e alisava a região de seu ventre,
tirando as dobras que surgiram quando estava sentada. Ela girou nos
calcanhares, a barra cobrindo os pés da mãe, e fez menção de caminhar
até a porta.

— Aonde pensa que vai?

— Vou à boulangerie, mamãe.


— Não! — A voz dela sobressaiu um tom, repercutindo pelo
quarto numa súplica que fez a garota olhar por cima de seus ombros e
responder:

— Entendo o medo que está sentindo, mamãe. Eu, de fato,

poderia estar morta. — A garota engoliu em seco. — Mas ao me


casar, não sentirei nada diferente.
Célia levou a mão ao seu peito teatralmente, como se aquilo lhe
partisse a alma enquanto franzia os lábios, que cuspiram palavras fracas:
— N-Não diga tolices, Lilly.

— Só eu sei o que esse casamento significa para mim. — Ela


sentiu o pesar daquilo recaindo sobre sua lombar e endireitou seu rosto de
frente para a porta ainda fechada, a mão repousando sobre a maçaneta

fria. — Então permita que eu seja livre nesses últimos dias.

***

O balcão empoeirado da boulangerie, surpreendentemente, estava


sendo limpo por Jim, que mantinha os olhos baixos, quase tímidos. Ela,
após caminhar para dentro do estabelecimento, temerosa, pensou que,
talvez, a boca de Helga Deadland fosse maior do que qualquer um
pudesse imaginar, e que a notícia de seu incidente já havia se espalhado
por todo lugar. Se Lilly estivesse certa quanto a isso, então tudo o que
ocorreu poderia ter sido distorcido em mentiras calorosas demais. Fofocas
e mais fofocas sobre como a pobre senhorita Talbot havia sido violentada.
Como ela, desesperadamente, caminhou até em casa com os pés
sangrando e lágrimas nos olhos. A garota pensava em possibilidades
cada vez mais horrendas para uma nova versão, o que a fez permanecer
estática ao sentar-se sobre o banco próximo à janela, os olhos fixos nas
rachaduras da mesa de madeira, que formavam rabiscos abstratos, tão
semelhantes ao sangue que escorrera da cabeça de Henry.
A ideia dela era a de confrontar Lucian. Pedir por explicações,
mas... Ela parou seus pensamentos por alguns segundos, olhando ao
arredor. Estava mais movimentado do que outros dias, com homens
gorduchos sentados em banquetas enquanto uma idosa permanecia na
outra extremidade. Se realmente o confrontasse, pensou a focar sua
atenção novamente em seus pensamentos, o que ela diria?
E, a cada vez que a porta de vidro se abria e o pequeno sino
enferrujado pela maresia tocava, ela olhava por sobre o ombro na
esperança de vê-lo, mesmo que seu coração parasse a cada som e o
pescoço se tornasse dolorido. Contudo, Lucian não apareceu no café. Na
verdade, Lucian nunca mais apareceu ali. Mas ela não sabia disso, e seus
olhos continuavam a procurá-lo, mesmo quando saiu da boulangerie.
Estavam marejados, vasculhando os rostos que não lhe diziam nada. O
coração se apertava.
O que estava acontecendo? Seu mundo girava e as razões e os
sentidos pareciam, simplesmente, desaparecer... e, embora fosse um dos
dias mais quentes daquele verão, um arrepio percorreu o corpo dela. A
cada passo, a cada arrastar da barra de seu vestido e a cada arder da
pele dos ombros desnudos, o tempo parecia se arrastar por ela, rindo.
Rindo da futilidade de suas ações. Rindo do modo como ela ainda insistia
em procurá-lo. A manhã tornou-se tarde, e as pernas dela já estavam
cansadas de tanto caminhar, alcançando conforto no arrebentar das
ondas contra a costa do Beachy Head, onde agora ela estava sentada, os
braços segurando os joelhos na altura de seu peito enquanto as casinhas
de tetos de ardósia refletiam as ondas de calor.
Lilly, hesitantemente, baixou as mãos até a grama e a sentiu
fazendo cócegas contra suas palmas, fechando os olhos por alguns
momentos, lembrando do modo como o loiro a beijara. Como tocara sua
cintura conforme os lábios pressionavam os dela. Como a fizera rir. Pode
soar irracional, mas ela desejou que aquelas memórias a submergissem
em infindáveis níveis, até que tocasse o fundo daquele oceano que um dia
lhe fizera feliz. Mas ela voltou a abrir os olhos e a realidade lhe pareceu
fria demais. Uma lágrima escorria por sua bochecha queimada pelo sol.
Algo estava errado.
Lucian não estava ali.

***

Retornar para casa antes do anoitecer foi uma tarefa que lhe
pareceu ainda mais difícil, no entanto nada poderia prepará-la para aquele
maldito jantar, onde os olhos de William Talbot pareciam tão fixos nela
quanto a certeza que já crescia em seu peito de que Lucian Campbell
havia mentido.
Sim. Era isso o que ela formulava em sua mente. Afinal, por que ele
sumiria? Não o via há alguns dias porque sua mãe insistia em deixá-la em
casa, mas hoje, quando finalmente saiu, ele não apareceu. Não estava
esperando por ela. E sua ausência repentina coincidiu com a morte de
Henry e com o ataque à carruagem. Se tudo fosse uma mera
coincidência, então o destino era um ser cruel que colocava pinças em
ferimentos abertos.
William pigarreou, deixando de lado os talheres com os quais
despedaçava seu bacalhau. Lilly não havia tocado no peixe. Célia
continuava a beber pequenas goladas de vinho, quieta.
— Eu não te reconheço mais, Lilly. — Ele começou,
chamando a atenção da garota, que virou seu rosto lentamente na direção
dele, os olhos inchados de quem havia chorado, mas tentava disfarçar.

— Eu fiz algo errado?


Só faltou que ele risse na cara dela, com um sorriso em seu rosto e
olhos sarcásticos. No entanto Célia o reprimiu, fuzilando-o com um olhar
que a mãe raramente demonstrava. A garota fungou o nariz antes dele
continuar:
— Não, minha filha — respondeu com uma carranca, embora
ainda houvesse uma vontade crescente dentro de seu corpo de sacudi-la

pelos ombros. — Mas preocupa-me ver o modo em que está.


Lilly engoliu em seco e baixou os olhos, franzindo o cenho,
apanhando o talher, fincando-o lentamente contra o peixe em seu prato,
servido com batatas amassadas e uma porção de legumes feitos na
manteiga. O cheiro era maravilhoso, e atiçaria a garota se ela não
estivesse coberta por incertezas difíceis de engolir.
— Desculpe se não consigo sorrir o tempo inteiro — retrucou
ela com os lábios, mesmo assim as palavras saíram leves, desfazendo-se
como poeira.

— É exatamente isso, Lilly. — Ele prosseguiu, mexendo na

base de sua barba. — Ultimamente anda tão... sem vida.


E foi aquela palavra que fez a garota entender tudo o que se
passava naquele jantar, onde candelabros acesos iluminavam os rostos
doloridos. Célia havia falado com seu pai. Só assim ele poderia estar
preocupado com esse assunto. Mas a mãe ter comentado sobre a
conversa que tiveram naquela manhã, antes dela sair de casa, não
poderia significar que melhoras viriam. Na verdade, conforme William
retomava sua fala, a garota percebeu que nunca seria assim.
— Nenhum pretendente irá se interessar por você se continuar
assim.
Lilly engoliu em seco, impassível.
— Já parou para pensar que eu vivo por mim, e não por eles?
O velho franziu o cenho e Célia colocou sua mão sobre as dele.
— Você age como se fosse a única que tem que passar por

isso, Lilly. — Ele manteve a voz calma, mas a raiva estava ali. Sempre

estava. — Uma mulher deve se casar.

— Deve se casar com que ama. — Ela retrucou.

— Deve se casar com quem pode lhe proporcionar uma boa

vida — corrigiu Célia, e o olhar da garota resignava incredulidade. Como


ela havia dito naquela manhã, a mãe não sabia escolher um lado, e no
final nunca estava com ela.

— Temos dinheiro o suficiente para eu ter uma boa vida.


O punho de William bateu contra mesa e os talheres tremeram. A
garota endireitou sua postura e o fitou, desafiando-o a continuar. Foi o que
ele fez.
— Eu tenho dinheiro, garota — vociferou o velho enquanto
batia com o indicador gordo contra o peito, coberto por seu terninho justo

demais enquanto ele estudava a reação dela às suas palavras. — Você


tem um dote que eu posso fornecer. Sem isso, você não é nada.
Ela quis chorar. A mente confusa. O peito com uma sensação
estranha de perda e controle. Mas ela não lhe deu esse prazer. Pelo
contrário, a garota retorquiu com fervor:
— E depois você ainda pergunta o porquê de eu não parecer
viva?
Célia respirou fundo, esfregando as têmporas com a ponta dos
indicadores.
— Lilly, seu pai está tentando chegar... — A mãe travou por
alguns segundos quando o marido a fuzilou com olhares de fera, que

variavam a cada segundo. — Quer dizer... ele... — As palavras


pareceram perder-se em sua boca e ela simplesmente calou-se.

— Eu já tenho um pretendente para você, Lilly.


A garota não sabia exatamente qual a reação que ele esperava que
ela tivesse. Talvez William pensasse que ela fosse gritar, chorar, lançar
seu prato em sua direção, dizer o quanto aquilo era injusto. Mas não.
Tanto já havia acontecido e aquilo não parecia plausível. Aquele era seu
destino, querendo ou não. Assim, fadada a não ter controle algum, ela
simplesmente perguntou:
— Quem seria?
E os olhos de William se arregalaram em surpresa, apesar de a voz
permanecer a mesma.
— Depois dos devidos acontecimentos e de uma longa

conversa com ele, Lilly. — O pai respirou fundo e Célia baixou o olhar,

afundando-se em seus ombros. — Creio já ter tido provas o suficiente


de que Sebastian Pelletier não só tem capacidade de lhe proteger, como
também não poupa esforço algum para tal. E sendo um capitão tão
próximo a mim, sei que lhe dará uma boa vida.
A garota fitou as mãos embaixo da mesa, pinçando seus dedos
com as unhas, sentindo a pele formando leves cortes superficiais, mas
que ardiam.
— Vocês irão se encontrar amanhã, minha filha. Tem ingressos
para irem a uma corrida de cavalos. Por você, tudo bem?
Lilly assentiu sem olhá-lo. A pergunta era obviamente retórica, já
que a veemência em sua voz era tão firme que ela sabia que, mesmo que
não concordasse, seu pai não mudaria de ideia. Se Sebastian era seu
pretendente, que fosse então. Agora, ela via naquilo tudo uma
oportunidade de obter respostas. Respostas que estavam sendo negadas
a ela. Talvez ele soubesse algo sobre o senhor Campbell. Talvez,
indiretamente, ele a levasse até Lucian. E, com tal possibilidade em
mente, a garota respirou fundo, sentindo a pele ainda ardida do sol
enquanto reerguia o rosto, fitando o rosto do pai ao responder:
— Sim.
Capítulo XII
Nada sabemos sobre o amor
O hipódromo que havia em Eastbourne ficava à beira do extremo
norte da cidade, onde o mar não era visto e onde os ventos pareciam
consideravelmente mais quentes. De dentro da carruagem que Sebastian
Pelletier enviara até ela, Lilly não parava de pensar que, a qualquer
segundo, uma das rodas se despedaçaria e ela viveria os horrores
daquela maldita noite. Mas nada aconteceu. O cocheiro não teve a
cabeça partida por um projétil. Os cavalos não fugiram. O sangue de um
ladrão não banhou sua pele e a noite não parecia estar pronta para pôr
fim àquela belíssima tarde, onde o céu tingiu-se em tons de azul fresco.
Pelo contrário, naquele dia, a tarde pareceu durar mais do que as outras.
A carruagem trepidou rapidamente e a garota cravou as unhas no
banco de couro instantes antes de sentir o cocheiro parar.
— Senhorita. — Ele a chamou, estendendo sua mão para que
ela saísse da carruagem, seu longo vestido azul arrastando-se até o solo
empoeirado enquanto a figura do capitão formava-se à sua frente.

— Capitão Pelletier. — Ela fez um breve cumprimento com a


barra do vestido e ele sorriu. Usava um fraque escuro, beirando o tom de
piche, que protegia um colete cinza-chumbo sobre uma camisa social
cinza-claro. Ele estava lindo, ela não conseguiu negar, com os cabelos
penteados à escovinha e com os dentes levemente expostos por entre os
lábios finos, o curto movimento de seu rosto fazendo os grandes olhos
verdes se iluminarem.
— Senhorita Talbot. — O homem colocou-se ao lado dela e
ofereceu seu braço. Ela o aceitou com cordialidade e ambos começaram a
caminhar na direção do hipódromo.
Era uma construção enorme que abrigava egos ainda maiores
daqueles que por eles passavam, fosse segurando suas taças de
champanhe ou suas xícaras de porcelana perfeitamente esculpidas,
apostando fortunas em cavalos que, se não estivessem tão bêbados, eles
saberiam que não teriam chance de ganhar a corrida. O local se estendia
por incontáveis metros e compunha-se em tons marmorizados,
principalmente em sua fachada, por onde eles entraram, seguindo uma
pequena trilha formada por flores coloridas.
Lilly sentia todos os olhos atentos neles e isso fez com que o suor
aumentasse em suas costas, o corselete parecendo ainda mais apertado
em suas costelas conforme mulheres a fitavam com uma mistura de pena
e inveja. Talvez invejassem a companhia com que estava, afinal, quem
não notaria um homem de um e oitenta e sete com um sorriso galanteador
e olhos tão belos quanto esmeraldas?
Mas a garota não estava ali para flertes supérfluos. Ela sabia que
queria repostas, e tentaria consegui-las.
— Já havia vindo aqui alguma vez, senhorita? — Ele
perguntou, como se sentisse a relutância dela em seus passos enquanto
alcançavam o corredor principal, onde as tribunas eram divididas
conforme os ingressos. Ou melhor, conforme o quanto alguém estivesse
disposto a pagar.

— Não... — respondeu enquanto fitava o teto que abrigava


suas cabeças, com desenhos bucólicos que levaram horas para serem

pintados. — E o senhor?
A pergunta pareceu pegá-lo de surpresa enquanto Sebastian
entregava os ingressos para um rapaz de pele escura e olhos afundados
no rosto.
— Creio já ter vindo aqui algumas vezes. Não me recordo —
disse enquanto o garoto abria passagem para eles, retirando uma
pequena corda avermelhada que separava a área onde ficariam.

— Como não consegue se recordar de tamanha beleza? —


indagou enquanto ainda se perdia entre os tons do painel pintado no teto.

— Depois que se viaja o mundo, senhorita Talbot, certas


paisagens deixam de ser tão belas.
Ela franziu o cenho.
— O que quer dizer?

— O painel pintado acima, por exemplo. — Ele olhou


rapidamente para o teto, como se apenas fosse certificar o que diria a

seguir. — É inspirado nos campos de tulipas holandesas. Veja. — Ele


parou o leve caminhar por um segundo, seu indicador apontando num

canto da pintura. — Ali está um moinho de vento.


E, de fato, lá estava a pequena construção, pintada com traços
delicados, mas por pincéis duros, que arranharam a estrutura.
— Perdão, mas ainda não entendi o que quis dizer —
ressaltou com um sorriso tímido conforme voltavam a caminhar. Não
queria dizer a ele que moinhos não eram uma exclusividade holandesa.

— Quero dizer que, pessoalmente, os campos são muito mais


bonitos.
— Imagino que sejam — finalizou ela e, logo em seguida, uma

ideia veio à mente. — O senhor viaja muito, pelo que vejo.

— Gostaria que não fosse a trabalho — admitiu enquanto


viravam à direita, alcançando uma passagem em arco, a qual dava um
acesso privilegiado às tribunas especiais, que tinham uma vista
panorâmica através de longas janelas de vidro.

— Então viaja apenas para os compradores de papai?


Ele disse que sim e, após isso, ela não focou mais em sua voz. A
vista era estonteante, com uma pista enorme e ovalada exposta no centro
da construção, separada por cercas de madeira enquanto os galopes dos
cavalos maltratavam a terra poeirenta, suas longas pernas lustrosas com
os músculos marcados deixando um rastro alaranjado sobre o ar,
dançando em fileiras que subiam com o calor, os jóqueis em brilhantes
selas curvados na direção da crina lustrosa dos animais de puro-sangue,
enquanto algumas pessoas escondiam-se com pequenas sombrinhas na
arquibancada externa, próximo à banda que tocava, surpreendentemente,
de forma animada. As únicas vezes em que a garota tivera a oportunidade
de ouvir bandas, elas eram sempre melancólicas e funerárias. Mas aquela
era diferente. O dia era diferente e ela, querendo ou não, também.
— É lindo, não é? — perguntou Sebastian sem olhar para Lilly,
seu reflexo surgindo como um fantasma fugaz enquanto os grandes olhos
verdes percorriam cada local, atento às patas dos cavalos.
Por certo tempo, eles apenas ficaram ali, parados, um ao lado do
outro, os ombros dela desnudos naquele vestido que pressionava seus
seios para cima, os cabelos caindo em ondas sobre as costas abertas
enquanto a cauda do vestido parecia ser a maior daquele lugar, atraindo
ainda mais olhares, tanto de serviçais que serviam champanhe em longas
taças como também daqueles que as bebiam. Contudo, Lilly não se
importou com eles, na verdade, estava mais preocupada era com o modo
que agira para com Sebastian, o que a levou a dizer:
— Senhor Pelletier — chamou, virando seu rosto na direção do
dele, vendo-o fazer o mesmo.

— Sim? — A voz dele soou aveludada e ela analisou seus


olhos, como estavam diferentes de dias atrás.

— Sinto que lhe devo desculpas.


O capitão franziu o cenho, as sobrancelhas perfeitamente alinhadas
unindo-se em um ponto.
— Senhorita?

— Eu lhe julguei mal. — Ela voltou seu rosto para frente mais
uma vez. Os cavalos arrumavam-se com seus jóqueis nas baias de

largada para uma nova corrida. — Tudo o que fez naquela noite foi para

me proteger. E eu... — Os olhos de Lilly brilharam ao mesmo tempo que


ficavam marejados.

— Não precisa pedir desculpas, Lilly. Não há nada a ser


desculpado.

— Mas eu sinto que há. — Ela insistiu, virando todo o corpo


desta vez, o vestido quase não se movendo e a respiração doendo com o
corselete apertado por fitas atrás da cintura.

— Tudo isso é por causa da proposta de seu pai, senhorita

Talbot? — Os olhos dele pareceram sérios, mas ainda eram receptíveis


o bastante para a garota continuar.
— Meu pai gosta de tratar de assuntos que me envolvam como

negócios, então creio que possamos chamar assim. — Ela retorquiu


enquanto umedecia os lábios, atenta a ele. Queria ver suas expressões.
Entender o que poderia se passar na mente dele. Mas era algo tão
patético quanto negar que ela amava outro.

— Sei que este casamento não é de seu agrado, senhorita

Talbot. — Ele não esforçou um sorriso. — E não posso culpá-la.


Ela não disse nada, então ele continuou:
— Mas não é nada oficial.
Lilly travou uma risada em sua garganta, curta e cruel, que a
corroeu.
— Se meu pai já falou com o senhor, então é mais do que
oficial.

— Não, Lilly. — Ele tocou a mão dela de repente e, no mesmo


instante, um tiro cortou o ar, os cavalos largando avidamente enquanto os
homens em cima deles acotovelavam-se para melhorar suas posições.

— Na verdade, ele quer oficializar neste sábado, em seu baile.


A garota fechou os olhos por uma fração de segundo. O leve toque
dos dedos dele contra os dela. Uma pele áspera, mas que acolhia. Igual à
de Lucian. E o nome dele surgiu em sua mente mais uma vez, lembrando-
a do motivo de estar ali. Tinha de inserir o nome do marujo naquela
conversa, mas como?
— Porém creio que eu venha a desapontá-lo.
Ela arregalou os olhos, curiosa.
— Por que diz isso?
— O senhor Talbot é um mercador muito engenhoso e
conseguiu estabelecer uma rede de negócios muito grande, de fato, mas
temo que a mente dele não seja mais a mesma e ele esteja esquecendo

algumas coisas. — Ele forçou um sorriso amarelado. — Eu disse que


iria ao baile, senhorita Talbot, só que dois dias depois houve complicações
com outro navio e eu terei...

— Complicações? — Ela ressaltou o eufemismo. — O que


quer dizer?
Sebastian olhou ao arredor, certificando-se que ninguém estava
próximo o bastante para ouvi-los.
— Piratas, senhorita Talbot. — Ele respondeu por entre o

soltar de uma lufada de ar que fez seus ombros relaxarem. — Ataques


estão se tornando cada vez mais comuns e, aparentemente, atacaram
outro navio que ia em direção à Suíça.
O assunto pareceu se construir sozinho e ela podia ver nos olhos
dele que Sebastian sabia que ela ainda não havia esquecido o que
acontecera noites atrás. Ele até mesmo podia enxergar o momento em
que sua bala atingira a testa de Henry.
— Então, você não irá no baile, pois...

— Pois tenho que apaziguar as coisas com os compradores

dinamarqueses e suíços — explicou ele e, como reação, ela apertou sua


mão.

— Tome cuidado, está bem?


E, com aquela frase inesperada, ele exibiu um sorriso sincero que
fez suas bochechas corarem enquanto sentia-a afastando suas mãos.
— Eu realmente sinto muito que tenha que passar por tudo isso,
senhorita Talbot.

— Não é como se eu fosse a única — retrucou, lembrando


das palavras do pai.

— Mas se torna ainda mais árduo de assistir sabendo que você


ama outro.
E o coração de Lilly apertou-se em seu peito.
— É tão óbvio assim?
Sebastian sorriu.
— O amor é uma coisa engraçada, senhorita Talbot.

— Acha mesmo?

— Acho. — Ele colocou as mãos nos bolsos e respirou firme.

— Dele nada sabemos até que o sentimos.


Ela sentiu cada palavra tocando seu corpo em pequenos níveis de
ternura. Era difícil imaginá-lo como um assassino quando, ali, se mostrava
tão diferente.
— Só desconheço o cavalheiro que tem a honra de ter seu

coração — finalizou o capitão.


E a garota deixou escapar uma risada discreta, mas que o fez rir
também.
— O que foi? — perguntou o capitão enquanto os cavalos
completavam uma volta.

— Eu só... — Ela sorriu para ele. — Não sei mais em quem


confiar.
Ele engoliu em seco.
— Senhorita?

— Vai me dizer que os boatos sobre o que ocorreu noites atrás


ainda não lhe alcançaram?

— A senhorita já os ouviu?

— Não.

— Então como sabe que há? — Ele franziu o cenho. — Na


verdade, não ouço notícias nem mesmo da família Fetherstone.
E o sobrenome da amiga fez a garota afundar ainda mais em si
mesma. Queria tanto respostas, mas não fazia a menor ideia de como
consegui-las. Ela sentia-o guiando a conversa, e seu corpo não se
importava com aquilo. Entretanto, se quisesse saber o que aconteceu com
Lucian e o que ele tinha a ver com Henry, então precisaria ser mais direta.
— Eu sinto os olhares, senhor Pelletier. — Ela olhou ao
arredor, os rostos ricos e pomposos de dondocas ricas e seus maridos

velhos passando à sua frente. — Sempre estão nos observando.

— É difícil encontrar olhos que não se atraiam por sua beleza.


Lilly arqueou as sobrancelhas.
— Acaba de saber que realmente amo outro, mas ainda é
galanteador?

— Ah, perdoe-me. — Ele pareceu empalidecer. — Só


estava tentando ser gentil.
E ela exibiu um sorriso, acalmando-o.
— Senhor Pelletier, sei que lhe disse que já havia feito muito e
até mesmo faltei com a gentileza quando me levou à minha casa na
manhã depois do ocorrido. — Os grandes olhos amendoados fitaram-no.

— Mas preciso que me ajude com mais uma coisa.

— Claro. — Ele deu de ombros. — Do que precisa?


Ela respirou fundo, pensando antes de continuar, considerando se
aquela era a escolha certa a se fazer. Lucian ainda estava desaparecido e
o baile que condenaria sua vida já se aproximava tal qual uma
tempestade que eles ainda desconheciam. Era isso. Ela não viu outra
opção.
— Preciso que o senhor me ajude a encontrar Lucian Campbell.
Lilly não sabia qual reação esperar vindo de Sebastian, mas o
modo como ele reagiu, como se não entendesse ou não se importasse, foi
algo que a fez dar um passo para trás.
— Como assim?

— Lucian Campbell. Eu sei que o conhece.

— Sim, eu conheço. Trabalhei junto a ele por um tempo para

seu pai — explicou, ainda com o olhar confuso. — Mas o que quer
dizer com encontrar?
A garota engoliu em seco e apertou a barra do vestido com os
dedos.
— Há alguns dias que ele não mais vai ao porto... — Ela

esforçou-se para não gaguejar. — Poderia me ajudar a saber o porquê?


Sebastian franziu o lábio inferior, coçando a nuca.
— É ele que detém o seu coração, não é?
E ela sentiu os batimentos acelerarem, a respiração pesada, o
pescoço marcado pelo brilho do suor.
— Lilly, eu... — Ele deteve-se por alguns segundos. — Ele
não te contou, não é?

— Sebastian, por favor... — Ela implorou.

— Lucian está em casa, Lilly. — Ele cuspiu a frase


rapidamente.

— Como assim?
O modo como o capitão relutava com cada frase, com cada
movimento, agora... o coração dela parava. Havia segredos que ambos
tinham, mas que ela ainda não sabia.
— Acho melhor que você mesma pergunte. — O pomo de
adão de Sebastian subiu e desceu por seu pescoço enquanto gritos
eclodiram das gargantas de quem assistia à corrida, eufóricos com o
resultado final, rostos sorridentes que exibiam os dentes com bocas largas
e gargalhadas, enquanto os que perderam as apostas que fizeram
apanhavam mais champanhe. Mas Lilly só tinha olhos para Pelletier,

atentos, suplicando por alguma explicação. — Eu posso te levar até ele.


Capítulo XIII
A casa dos sonhos perdidos
Eles chegaram ao local no início do fim da tarde, quando aquela
imensidão azul que era o céu começou a tingir-se com camadas de
laranja conforme o sol se punha ao longe. Lilly não sabia ao certo o que
estava esperando encontrar quando Sebastian lhe disse que Lucian
estava em casa, mas a visão que teve definitivamente não era algo
passível de ser imaginado.
Todo o local era plano, com um capim tão alto que entrava por
debaixo do vestido dela e pinicava suas pernas. À sua frente, a
personificação de uma casa dos pesadelos se formava, horrenda e
quebrantada, com vinhas escapando aos montes pelas janelas
estilhaçadas do segundo andar, companheiras de trepadeiras que
choravam até o primeiro piso, onde um dia houve uma porta, mas que
agora o batente já havia sido devorado por cupins.
A cada passo, o coração dela parava.
Sebastian estava atrás da garota.
Um arrepio percorreu sua espinha quando, finalmente, alcançaram
os degraus que levavam para dentro da casa; na soleira de madeira
podre, as sombras do interior eram tantas que tornava-se difícil de
enxergar, mas algumas faixas finas do sol que se punham ainda entravam
pelas falhas do teto, loteado de vigas e teias de aranha que formavam
desenhos abstratos antes de penderem em direção ao piso quebradiço.
Com a coragem que tinha dentro de si, a garota segurou a barra do
vestido azulado, dando o primeiro passo e entrando naquele local que
fazia os pelos de seu corpo eriçarem, a nuca nadando em calafrios
enquanto ela cruzava o umbral e sentia os passos de Sebastian parando
atrás de si.
— Acho que... é melhor que você fale com ele sozinha. — A
voz do capitão soou como um sussurro entre a frieza daquele lugar, que
parecia ser intocado pelo calor do exterior.

— O que quer dizer?

— Lucian não gosta que muitas pessoas venham aqui. — Ele

engoliu em seco. — É melhor que vocês fiquem a sós.


Ela parou por alguns segundos, respirando fundo pela boca
entreaberta conforme os olhos se adaptavam às sombras.
— Mas...

— Está com medo? — Ele perguntou e as palavras fizeram


uma corrente percorrer cada parte de seu corpo, no entanto a garota
ignorou o que ele dissera, engolindo em seco, sentindo o pescoço
endurecer e os ombros irem para trás em defensiva ao mesmo tempo que
ela perguntava:

— E onde ele está?

— Está no quarto dos fundos. — Sebastian respondeu

calmamente. — É só seguir em frente, vai encontrá-lo.


A garota maneou a cabeça positivamente.
— Como sabe que ele está aqui?
O capitão hesitou alguns segundos antes de responder,
umedecendo os lábios.
— Porque foi aqui que Lucian cresceu.
E então ela franziu o cenho, sentindo o queixo tremer sem saber o
motivo.
— Estarei na frente da casa, se precisar de mim.
Com passos tranquilos, ele andou até o exterior e sentou-se sobre
a beirada da porta, a madeira rangendo com a adição de seu peso
enquanto os ventos de fim de tarde afagavam seus cabelos.
Agora, sozinha, ela sabia que tinha de ir até o fim. O que estava
acontecendo? Onde ela estava? O local já com aparência tão decrépita,
como se a madeira estivesse inchada e prestes a rachar sob os pés dela a
cada passo, não lhe passava imagem alguma e todas as sombras
tornavam a descoberta ainda mais difícil. Mas Lilly não se importou. Se
Lucian estava ali, então que seja. Ela iria vê-lo. Precisava de respostas e,
a cada vez que adentrava ainda mais a casa, mais perguntas surgiam.
Finalmente, depois de passar pelas curtas faixas de sol que
entravam obliquamente pelo teto esburacado, a garota chegou ao
aposento que Sebastian lhe dissera. Se aquilo era um quarto, ela sentia
pena de quem ali dormia. As paredes estavam em ruínas, a tinta
descascada se acumulava no chão enquanto a estrutura quebradiça se
revelava, ameaçando a queda do teto, onde haviam crescido vinhas que
se infiltraram na madeira como animais selvagens. Ela engoliu em seco e
deteve-se por um instante, uma brisa tomando seus cabelos momentos
antes dela vê-lo ali, abaixado, as costas curvadas para frente enquanto as
pernas ficavam largadas no chão, próximas a duas garrafas vazias que
ela não teve certeza do que eram. Os olhos dele estavam doentes, fitando
o nada, quase não se mexendo conforme ela se aproximou dele.
— Lucian? — Lilly chamou, a voz um tanto trêmula enquanto
assistia-o lentamente erguer o rosto, a barba por fazer e os cabelos

despenteados. — Meu Deus... — A garota se agachou, dobrando os

joelhos e sentindo o vestido pesando sobre as pernas. — O que


aconteceu?

— Hã? — Ele a fitou com agressividade, as feições cansadas

enquanto esforçava os braços a se moverem, o ombro estalando. — O


que quer dizer?
Ela franziu o cenho e colocou fios de seu cabelo atrás da orelha,
respirando fundo, sentindo o hálito dele carregado de rum numa mistura
salgada que lhe ofendeu as narinas.
— Você... olhe como está...
Lucian deu de ombros.
— Nunca viu um homem beber? — Retrucou grosseiramente
e ela recuou, ainda agachada.
A garota não entendia o que estava acontecendo. Aquele não era o
homem que conhecera dias atrás, que lhe fizera sentir tanto em tão pouco
tempo, que a desafiara a fazer coisas meramente mundanas e simples
sem se importar com o que os outros pensariam. Agora, ele estava em
frangalhos, a mente em diferentes camadas de ressaca.
— E-Eu... — Lilly não sabia como prosseguir, vendo-o daquele

jeito, desacreditado e tão diferente. — O que é aqui? — Foi a única


coisa que conseguiu perguntar, por fim.
E, por entre um arroto que formou uma nuvem de cheiro asqueroso
no ar, Lucian respondeu:
— Perdoe-me, esqueci que a senhorita está acostumada com
moradias da primeira classe.
Lilly arregalou os olhos, incrédula.
— Lucian...

— Seja bem-vinda à minha casa. — Ele ergueu os braços,


cobertos por uma camisa de malha branca, que tinha manchas de suor,
como se fosse um mestre de picadeiro, sarcasticamente vangloriando-se

daquele lugar inóspito. — Bom, ao menos ao que um dia foi ela.


A garota não sabia como reagir a tudo aquilo.
— O que era aqui?
Lucian ergueu uma sobrancelha e a sua vontade de rir estava mais
do que evidente em seu rosto suado.
— Nunca deve ter passado na frente de um orfanato antes, não
é mesmo?
E então, os olhos marejaram-se e as lágrimas subiram por todo o
seu corpo, dando-lhe um frio na barriga que o fez tremer inteiro. Lucian
era órfão, e saber disso fez seu coração doer, mas antes mesmo que Lilly
pudesse dizer algo, ele continuou:
— Pelo amor, Lilly Talbot, tire esse olhar de pena da sua cara.
E, num súbito, ela sentiu os cílios se agitarem, uma única lágrima
escorrendo.
— Por que está aqui, Lucian? — A voz dela endureceu
conforme ela tirava a gota salgada de seu rosto com o dedo indicador.

— Sabe... — Ele a fitou, a mão direita erguendo uma das


garrafas vazias por entre os dedos, apontando na direção da garota como

se a estivesse oferecendo. — Você nunca vai entender como é não ter


uma família.
Lilly estreitou o olhar, atenta a cada palavra. Ela tinha mais do que
certeza que poderia se machucar caso se permitisse ouvir ao que ele
tinha preso no peito. Mas se era isso que o deixaria melhor, se ele
precisasse gritar, quebrar garrafas, afundar-se em lágrimas logo em
seguida, então era isso que ela o deixaria fazer, mesmo que saísse ferida
em sua alma. Porque ela o amava. E amar também implica em ouvir.
— Você não sabe o que é não ter uma família — vociferou por
entre os dentes, virando a garrafa nos lábios, irritando-se logo em seguida
ao perceber que estava vazia, deixando que caísse de suas mãos e

tamborilasse pelo assoalho rachado. — Mas crescer aqui... — Os

olhos dele iluminaram-se com lágrimas — ... sem um carinho de mamãe.


Sem um puxão de orelha de papai. Por favor, Lilly, só vá embora.

— Deixe-me ajudá-lo, Lucian.

— NÍNGUEM PODE AJUDAR, LILLY! — esbravejou ele de


volta e o coração da garota saltou em seu peito. Ela percebeu uma
movimentação no exterior e torceu para que Sebastian não entrasse. Não

naquele momento. — PORQUE EU NÃO TENHO MAIS CINCO ANOS!


Ela franziu o cenho.
— Você veio para cá quando tinha cinco anos?!
Ele mordeu o lábio inferior na iminência de sangrar.
— Me largaram aqui quando eu tinha cinco anos. — Lucian
corrigiu com o arregalar dos olhos.
Ela assistiu-o se levantar e, por instinto, fez o mesmo, o suor frio
descendo por suas costas.
— Mas por que veio aqui, se as memórias lhe causam tanta
dor?
Lucian deixou um riso escapar de sua garganta, curto e grosseiro,
quase sarcástico.
— Dizem que se deve olhar para o passado se quiser respostas

sobre o que lhe ocorre no presente. — Novamente, ele ergueu os


braços em formato de cruz e girou em seus calcanhares, o queixo erguido

em direção às vinhas no teto. — É isso o que estou fazendo.


Ela apenas respirou fundo, deixando que ele continuasse, as
palavras escapando em meio à embriaguez enquanto ela lutava para não
demonstrar a pena que sentia em vê-lo naquele estado. Seu coração se
apertava cada vez mais.
— Não sei se já lhe contei, Lilly, mas já trabalhei para seu pai.

— Ele focou os olhos envidraçados pelo álcool no rosto da garota, pálido

e tenso. — Quer saber o motivo de eu ter sido demitido? Quer saber o


motivo de eu ter vindo para cá?
A respiração dela apareceu condensar em meio ao ar, tornando-se
dolorosa.
— Eu matei cinco pessoas, Lilly. — Ele inclinou-se na direção
dela, mas a garota manteve-se firme no lugar, sentindo o rosto dele

próximo do seu. — Cinco! — ressaltou o loiro antes de se afastar


novamente.

— Não...

— SIM! — Ele a interrompeu com um grito. — Sim, Lilly, eu


as matei.

— C-Como? — Ela gaguejou a pergunta.

— Até dias atrás, eu jurava que não havia tido culpa alguma...,
mas os relatórios não mentem.

— Relatórios? — Ela sibilou, no entanto ele não a ouviu.

— Neles está escrito que as cordas do mastro principal não

estavam amarradas. Então, eu não as amarrei direito. — Novas lágrimas

surgiram nos olhos dele. — Eu deveria ter amarrado. Nós estávamos em


alto-mar, uma tempestade estava chegando e Sebastian mandou que
prendêssemos as cordas. — O loiro umedeceu os lábios e enfiou as

mãos por entre os fios suados e embaraçados. — Eu prendi. Ele viu que
eu prendi. Mas, quando a tempestade chegou, as cordas apareceram
soltas e a lona do mastro se desprendeu em meio ao vento e à chuva,
enrolou-se como uma cobra e empurrou alguns marinheiros para o alto-
mar.
Sem perceber, a garota soltou o ar que prendia em seu peito, os
olhos umedecidos por lágrimas que entendiam o quão destruído ele
estava.
— Eu jurava que as havia prendido. Eu vi! — Ele gesticulou

com as mãos. — Mas o imediato disse que não. E Sebastian... teve que
concordar com ele.

— Por quê? — Lilly deu um passo para frente quando viu-o

virando de costas. — Se Sebastian havia visto que você as amarrou...

— Se ele contrariasse o imediato tendo tido cinco baixas, seu


pai o demitiria.

— Mas...

— O mundo não funciona como gostaríamos, Lilly! — retrucou

ele rispidamente, silenciando-a. — E eu aceitei a escolha de seu pai.


Sebastian manteve a posição. Eu segui com a minha vida. Até observar
os relatórios.

— Que relatórios, Lucian?

— Toda viagem traz um relatório — explicou. — Ficam


guardados no livro de bordo do capitão, que é entregue ao dono da
companhia.

— Papai. — Ela disse e, naquele instante, seu coração doeu


ainda mais.
William Talbot poderia ter descoberto sobre ela e Lucian e, se de
fato houvesse feito, então ela tinha certeza que ele não pouparia esforços
para separá-los, mesmo que isso significasse arremessar um homem
diretamente à sua ruína.
— Quando eu era menor, correndo por esses cômodos, sendo
uma peste para as irmãs gêmeas que cuidavam de nós, eu sonhava em
ser um capitão. Vestir fardas brancas, longos chapéus e andar com uma

espada na cintura. Para um pequeno órfão, isso parecia muito bom. —


Ele sorriu, cabisbaixo, e ela acompanhou as nuances de seu olhar com o

seu próprio. — Não tínhamos muito, no entanto éramos unidos. Para


você ter noção, dei minha melhor camisa a Henry quando...

— Henry? — Ela perguntou, ouvindo o sonoro tiro que cortara


o véu da noite dias antes. Não teria coragem de contar a ele que o amigo
estava morto. Que ele havia lhe dito para pedir perdão, por ele, antes de
morrer. Não conseguiria vê-lo sofrer ainda mais.

— Ele também esteve aqui. Cresceu comigo, tendo chegado

dois anos depois. — Lucian fungou. — Queríamos crescer na vida.


Imaginávamos como seria quando frequentássemos grandiosos bailes,
dançando com belas mulheres e tomando champanhe. Talvez fumando
charuto, quem sabe. Falaríamos de política e o quanto era difícil ser
patrão. Mas nada daquilo se realizou e, olhando para trás, percebo que

éramos apenas dois garotos numa casa de sonhos perdidos. — Então o


loiro chutou a garrafa de vidro com toda a força que teve, a ponta de sua
bota surrada arremessando o objeto contra a parede, que tremeu
enquanto estilhaços voavam aos montes e Lilly dava um salto para trás.
Ela soube que não tinha mais tempo. Os passos de Sebastian já vinham
ecoando pelos rangidos do corredor no instante em que Lucian perguntou:

— Como me achou?
E, então, como uma obra cruel e fria do destino, Sebastian surgiu
atrás da garota, sua roupa impecável, o rosto firme e os olhos atentos aos
movimentos do outro, os cabelos penteados e as mãos tocando os braços
de Lilly ao perguntar:
— Está tudo bem?

— Sim. — Ela respondeu, erguendo o olhar rapidamente. —


Está sim.

— Eu ouvi algo se quebrar.

— Pode colocar a culpa em mim, senhor. — Lucian inferiu, as


palavras cortando sua garganta enquanto mais lágrimas brotavam em
seus olhos, mas elas não caíam, como se a raiva as mantivesse ali,
embaçando o olhar.

— Lucian... — Ele começou a dizer, todavia o homem o


interrompeu de imediato:

— Vão embora.

— Não. — A garota deu um passo para frente e Sebastian


tocou sua mão, chamando-a:

— Lilly.
— Solte-me, Sebastian.
E ele a obedeceu de imediato, observando-os atentamente
conforme Lucian voltava a se sentar ao lado da última garrafa, que ainda
não havia sido despedaçada.
— Deixe-nos ajudar, Lucian.
O loiro maneou a cabeça de um lado para o outro, franzindo o lábio
inferior.
— Quer me ajudar? — Seus olhos tornaram-se frios e fitaram-

na diretamente na alma. — Então deixe-me sozinho.


E, sem saber o que mais poderia fazer, Lilly Talbot engoliu seu
orgulho, voltando aos braços de Sebastian, caminhando junto a ele até o
exterior já enegrecido pela noite que se aproximava, abandonando Lucian
na cada dos sonhos perdidos onde as aranhas ainda teciam suas teias
por entre as vigas.
Capítulo XIV
Expectativas
Parecia que ela mal havia fechado os olhos na noite passada
quando chegou em casa. Os pais lhe fizeram perguntas sobre como havia
sido a corrida e Sebastian até mesmo tomara um pouco de conhaque com
William em seu escritório enquanto a garota retirava-se para seus
aposentos. Não queria falar mais nada. A mente chacoalhava como os
cascos dos navios atracados no porto, arremessando pensamentos de um
lado para o outro. Lucian estava destruído. E vê-lo daquele jeito, sem
saber como ajudá-lo, também a destruiu. No fim, Lilly apenas deitou-se
sobre a cama depois de banhar-se e adormeceu.
Mas ao acordar, os olhos queriam pregar-se de novo e as olheiras
tornaram-se amigas de suas feições sonolentas. Era quarta-feira. A
semana passava rápida demais e cada dia que se esvaía era uma
sentença a mais para seu derradeiro fim. Tantas garotas sonham em se
casar, mas Lilly Talbot sonhava em ser livre.
A garota se esforçou para fora da cama, colocando os pés contra a
madeira enquanto faixas de luz entravam obliquamente pela janela aberta
e as cortinas dançavam no ar. Mais um dia. Menos um dia. Tudo variava
com a perspectiva pela qual se olhava.
Espreguiçando-se e caminhando na direção de seu guarda-roupa,
Lilly pensou no que poderia dizer a Heather quando a visitasse naquele
dia. Não recebera notícias da família Fetherstone e, depois do ocorrido no
último dia, achou que deveria fazer uma visita à amiga, mesmo que ela
ainda estivesse desacordada. Será que ainda estava? Ela não saberia
dizer. O sufocamento de informações a devorava por dentro em meio às
incertezas.
Depois de apanhar um vestido esverdeado de mangas rendadas e
de prender os cabelos com grampos prateados, a garota se dirigiu para o
andar de baixo, passando na frente do escritório de seu pai e
agradecendo por ele praticamente morar ali, enfurnado entre seus papéis,
seus relatórios...
E foi nesse instante que ela se deteve, os pés firmes no chão
enquanto os olhos fitavam a porta de madeira. Lucian havia dito que
encontrara um relatório, e que ele ficava nos cadernos de registro dos
donos da companhia. Então, o caderno estava ali dentro, naquela sala,
guardado por um velho urso rabugento e violento. Se ela tivera que tomar
uma dose de coragem para beijar Lucian Campbell, então para invadir o
escritório de seu pai teria de tomar o dobro.
— Está tudo bem, minha filha? — perguntou a mãe na beira
da escada no andar inferior.

— Eu? — Lilly pareceu avoada e seus cílios se agitaram


conforme ela dava uma última olhada na porta do escritório antes de
descer os degraus, segurando a barra pesada do vestido para não

tropeçar. — Estou sim. E você?


Célia pareceu surpresa com a pergunta e as palavras travaram em
seu pescoço.
— E-Estou — respondeu, por fim.

— Que bom. — A filha forçou um sorriso amarelado.

— Vai sair?
A mãe parecia cabisbaixa e mexia em seus dedos, pinçando-os
levemente com as unhas.
— Há algo que queria me contar, mamãe? — Lilly perguntou,
franzindo o cenho.
— Seu pai... — Ela umedeceu os lábios. — ... ele não está
gostando dessas suas saídas diárias, Lilly.
A garota engoliu em seco.
— Diga a ele que estou indo visitar Heather.

— Ele não quer que você saia.

— Então por que não é ele quem está aqui me dizendo isso?

— retorquiu a garota e a mãe pareceu ferida, baixando o rosto. Lilly

caminhou até ela e lhe deu um pequeno beijo na testa. — Eu te amo,


mamãe.
E, assim, a garota deixou a casa.

***

A propriedade dos Fetherstone não era de muitos galanteios e sua


construção demonstrava que o interior em nada iria lhe surpreender, com
suas paredes perfeitamente retas e frias, com janelas quadrangulares
muito menores do que as de Lilly, mas que tinham cortinas tão longas que
se tornavam cafonas. Por dentro, ela era aconchegante, entretanto
pecava em excessos. Excessos de mobília, de flores, de incenso. Até
mesmo no quarto em que Heather estava, o aroma de incenso e água
marinha se fazia presente, embrulhando o estômago de Lilly, que via a
amiga ali, dormindo.
Ela estava encolhida em sua cama, embaixo de um lençol leve o
bastante para ser discreto, mas que grudava no formato de seu corpo em
meio ao suor. Havia um enorme hematoma na testa dela, onde chocara-se
com o vidro da carruagem, mas que já começava a se desfazer em tons
de amarelo-pastel. Seus cabelos estavam soltos e formavam uma
segunda almofada contra sua cabeça.
— E há quanto tempo ela está assim? — Lilly perguntou à
senhora Fetherstone sem tirar os olhos da amiga.

— Desde que chegou — admitiu com pesar.


Tracy Fetherstone era uma mulher baixinha com curvas largas, de
uma pele tão clara quanto a espuma do mar e que sempre utilizava
brincos brilhantes em suas pequenas orelhas. Os olhos eram idênticos
aos da filha e o marido era quase tão baixo quanto ela, no entanto
raramente estava em casa, sempre perdido em bares pela cidade ou
caçadas com o filho, conseguindo dinheiro em jogatinas e vendas de
pelagem enquanto a esposa ocupava-se lavando os trajes de capitães.
— Ela está melhorando — acrescentou a mulher. — O
médico disse que é normal que ela continue sonolenta.

— Mas... Heather fala com vocês? — Agora, Lilly fitou o rosto


redondo da mulher e percebeu que os olhos dela estavam marejados.

— Às vezes, quando não está dormindo. — A mãe baixou o

olhar. — Estamos vivendo um dia de cada vez, Lilly, mas o doutor disse
que as expectativas e chances de melhora são boas.
E então a garota tocou a mão de Tracy, apertando-a com carinho e
vendo um sorriso no rosto da mulher, os lábios colados sem exibir dente
algum.
— Obrigada por vir. — A mãe fungou o nariz e secou as

lágrimas rapidamente. — Já está na hora de acordá-la para o café da


manhã. Pode fazer isso, querida?
Lilly disse que sim com o balanço da cabeça e, enquanto
observava a mãe da amiga distanciando-se em direção à cozinha, se
levantou, caminhando até o lado oposto da cama, hesitante de tocar os
braços desnudos da garota. Quando o fez, sentiu o quão fria ela estava,
mas mesmo assim Heather abriu os olhos lentamente, as pálpebras
parecendo arranhá-los.
— Bom dia. — Lilly exibiu um sorriso acanhado, as
sobrancelhas arqueadas enquanto a amiga agitava os cílios, focando sua
visão. Ela não respondeu, apenas moveu a cabeça lentamente na direção
da garota.

— Lilly? — A garota pareceu em dúvida e a amiga pensou se


deveria fechar uma das cortinas para diminuir um pouco a claridade que
ofuscava sua visão.

— Sim — disse com um novo sorriso.

— O quê...?
Mas antes que Lilly ouvisse a pergunta, ela colocou as costas da
mão direita contra a testa da amiga. Fervia como o chá quente em uma
chaleira. Calafrios percorriam seu corpo e ela suava frio.
— Desculpe-me. — Heather deixou escapar por entre o sibilar
dos lábios e Lilly franziu o cenho, afastando a mão de sua testa para ver
seu rosto abatido.

— Pelo quê?

— Pelo... — A amiga pareceu engolir com dificuldade. — ...


pelo acidente.
E a imagem da testa de Heather sangrando inconsciente enquanto
o vidro rachava-se em formato de teia e a terra seca tentava entrar na
carruagem tombada surgiu na mente de Lilly.
— Contaram-lhe o que aconteceu?
Heather maneou a cabeça lentamente de cima para baixo, os olhos
fechados enquanto o rosto tão pálido não conseguia corar.
— A... carruagem... se partiu.
E então Lilly deteve-se por um segundo. Talvez Sebastian não
tivesse contado à senhora Fetherstone sobre o ataque dos ladrões para
não assustá-la ainda mais. Não seria a garota que contaria detalhes
horrendos, então.
— Não precisa pedir desculpas por isso. — Lilly correu os
olhos de cima para baixo, desde a cabeceira de madeira que formava as

costas da cama até os olhos apáticos de Heather. — Não foi sua culpa.

— Eu que... lhe chamei...

— E foi um prazer estar com você, Heather. — Lilly apanhou


sua mão, os dedos gelados tocando sua palma, movendo-se lentamente,
acompanhando o tom baixo da voz das duas.

— V-Você se machucou? — gaguejou a amiga, hesitante.

— Não.

— Que bom.
A mãe dela retornou num súbito, uma bandeja metálica jazia em
suas mãos, com uma espécie de mingau ou qualquer outro alimento
pastoso, com uma xícara de chá quente.
— Como está se sentindo, minha filha? — A mãe perguntou
enquanto servia a garota por cima de seu corpo.

— Sinto... frio.
E a mãe dela pareceu não entender, com o tamanho sol que estava
lá fora e os ventos quentes, então Lilly explicou:
— Creio que ela esteja com febre, senhora Fetherstone.
— Febre? — A mãe olha desesperadamente para a filha. —
E o que fazemos?

— Sinto muito, mas eu não sei. — Lilly admitiu com o franzir


do lábio inferior.

— Acha que a febre vai passar?

— Talvez. — A garota deu de ombros, mas logo em seguida


temeu ter sido rude.

— E se...
Mas Heather interrompeu a mãe:
— Não se preocupe tanto, mamãe. — A filha forçou um sorriso

em seu rosto doente. — E-Eu vou ficar bem.

— Sim. — Tracy ergueu o rosto em direção ao teto e respirou


fundo. Quando uma faixa fina de luz refletiu em seus olhos, Lilly percebeu

que ela se esforçava para não chorar. — Sim, você vai.


E, por um breve momento, tudo se manteve em silêncio, o leve
sugar da pasta por entre os lábios de Heather enquanto ambas a
observavam. Lilly tentava encarar aquilo com a maior normalidade
possível, mas a verdade é que ela não via a amiga assim tão cansada e
abatida desde quando ela pegara uma infecção quando mais nova. A
amiga já havia lutado e vencido antes. Então, agora não seria diferente,
certo?
— Vou deixá-las sozinhas um pouco. — Tracy quebrou a

surdez do ambiente. — Preciso terminar de lavar as fardas e...

— Eu cuido dela. — Lilly sorriu uma última vez e a mãe


desapareceu pelo corredor segundos depois.
— N-Não consigo dizer... do que é isso. — Heather chamou a
atenção da amiga, uma colher metálica apanhando pequenas camadas

cremosas que mais pareciam areia. — Acho que é... aveia, não sei.

— Você nunca gostou de aveia — ressaltou Lilly.

— Acho que é por isso que não estou gostando disso —


finalizou e, por alguns momentos, ela conseguiu rir, embora a cabeça

doesse com pontadas firmes, fazendo-a deter-se. — Não fique só

parada aí, Lilly. — Os olhos da garota fitaram os dela. — Conte-me


sobre seus dias.

— O que quer saber? — perguntou enquanto apertava a ponta


dos dedos sobre o colo do vestido verde, a luz da manhã contornando
seus ombros e criando sombras em seu corpo.

— O marinheiro, eu acho... — As palavras escaparam por

entre uma lufada de ar. — Aquele que você estava conhecendo... —


Heather franziu o cenho. — Não me lembro o nome.

— Lucian. — Lilly engoliu em seco ao chamar por ele, quase


como se o invocasse. Se tivesse tal habilidade, talvez o fizesse, já que
seu coração se apertava a cada segundo imaginando a solidão na qual
ele se afundava naquela casa quebrantada.

— Lucian. — Um sorriso surgiu no canto dos lábios da amiga,

que tinha alguns fios de cabelo grudados em sua testa brilhante. — É


um nome muito bonito.
— August também é. — Lilly ergueu uma sobrancelha,
esperando que o rosto de Heather corasse, mas a única coisa que ela fez
foi forçar um sorriso fraco, que desapareceu de forma tão rápida quanto
surgiu.

— Ele me trouxe flores. — Ela respirou fundo. — Visita-me


todos os dias.

— Fico feliz em saber.

— Achei que... depois do acidente, ele nem fosse vir.


Lilly franziu o cenho.
— E por que achou isso?

— Porque é difícil saber quando alguém está te amando tanto


quanto você o ama.
A garota baixou os olhos e fitou o chá, apanhando a xícara e
levando-a aos lábios, sentindo o gosto suave da camomila.
— Nada sabemos sobre o amor até que sentimos — afirmou
Lilly, lembrando das palavras de Sebastian.

— E você ama... o Lucian?


Lilly queria dizer que a pergunta a pegou de surpresa, mas era
pateticamente óbvio que a amiga a perguntasse isso cedo ou tarde. A
garota já tinha a resposta:
— Sim.
Todavia, Heather não se deu por vencida e, mesmo em meio ao
rosto empalidecido e as bochechas sem vida, ela estreitou o olhar e
inqueriu:
— Então por que tem esse olhar?
A garota Talbot não soube como responder.
— Até parece que caiu de uma carruagem — zombou a amiga
e Lilly lhe olhou com reprovação, ainda que seus lábios estivessem
contendo um sorriso.

— Eu sinto que... — Ela deteve-se, decidindo recomeçar. —


O baile já é nesse final de semana, Heather. — Lilly fitou-a com um olhar

penoso. — Sinto que minha vida está se perdendo para sempre.


Fetherstone manteve-se quieta, respirando tranquilamente sob os
lençóis, seu olhar indicando que a garota deveria prosseguir.
— Eu amo Lucian, Heather. — Lágrimas surgiram
abruptamente em seu olhar, ardendo em meio aos tons de castanho-

chocolate. — E saber que estou sendo condenada a uma vida sem ele é
arrasador.
O som que a amiga emitiu fez o coração de Lilly saltar em seu
peito. Assemelhava-se a uma risada, mas misturava-se entre uma tosse
arrastada que a fez saltar da cama, endireitando-se, as clavículas
definidas pela luz enquanto os cabelos caíam sobre seus ombros e os
olhos arregalavam-se.
— O que foi? Parece que nunca me ouviu rir.
Lilly fechou os olhos, tentando acalmar a dor que surgia em sua
testa, desacelerar o coração e dizer:
— Eu achei que... — As palavras sumiram em seus lábios.

— Que eu ia morrer — completou Heather, mas de forma


alguma estava triste. Na verdade, seus olhos quase brilhavam de
excitação.

— Por que está me olhando assim? — Lilly estranhou.


— Porque você sempre reclama do seu destino, Lilly, mas
esquece que a única responsável por ele é você.
A senhorita Talbot manteve-se de pé, o vestido caindo sobre o
corpo enquanto as têmporas doíam e as palavras desciam amargas por
sua garganta.
— Entendo que... — Heather tossiu. — Entendo que não é o
que quer, Lilly, mas, ao mesmo tempo que lhe ouço reclamar, não a vejo
fazendo nada para que seu destino mude.

— E-Eu... — Lilly sentiu como se as palavras fossem poeiras

em sua boca, que nada formavam. — Tudo o que está acontecendo...


Não diz respeito a mim.

— É óbvio que diz respeito a você, Lilly. — Heather agitou os

cílios e engoliu em seco, apanhando a xícara e chá novamente. — Éa


sua vida, afinal de contas.

— Mas há tanta pressão. Tantas... — A garota ergueu o rosto,


os olhos fitando a imensidão do teto como se procurassem pela palavra.

— Expectativas.

— Não podemos viver com as expectativas dos outros, Lilly.

— A amiga bebericou o chá novamente, já morno, sentindo seu sabor

adocicado invadir sua boca rachada. — Já temos nossas próprias.


Antes que Lilly pudesse continuar, Heather ergueu sua mão, as
pontas dos dedos tremiam com os calafrios e ela sabia que precisava abrir
os olhos da garota. Assim, ela disse:
— Pare, Lilly. Pare! — pediu em um tom baixo. — Todos nós
conseguimos arranjar desculpas para não fazer aquilo que nos assusta.
Naquele instante, foi impossível evitar de pensar no medo que
Lucian deve ter sentido crescendo naquele orfanato. O medo de não ser
amado. O medo de não ter seus sonhos realizados. O medo de não ser
nada para ninguém, nem para si mesmo.
— Mas se você realmente o ama, se você realmente quiser
Lucian ao seu lado e ter uma vida com ele...
Lilly fitou o rosto de Heather uma última vez.
— ... então confronte o seu medo e lute pelo seu amor.
Capítulo XV
Confronto e desejo
Quando o sol amanheceu na quinta-feira, Lilly tinha mais certeza do
que nunca que o tempo parecia se esvair pelas ondas da maré, que se
mantinha alta, perfeita para que os navios desatracassem do porto e
partissem rumo a destinos inimagináveis. Ela também partiria para a
incerteza de seu destino naquela manhã, quando saltou de sua cama,
vestiu-se com um vestido cinza com detalhes em branco e disparou pelo
corredor de sua casa, os passos amaciados pelo carpete enquanto descia
os degraus. A garota só precisava passar pela porta da frente, mas ela
estava sendo guardada por um lobo velho que a encarou furiosamente,
fazendo-a deter-se dois degraus antes do piso inferior, como se já
sentisse um tapa ardendo em seu rosto.
— Lilly Talbot! — William chamou por ela quase com pontadas
de ódio enquanto mantinha as mãos atrás das costas, como se tivesse de

segurá-las para não estapear todos que ali moravam. — Aonde pensa
que vai?
Ela escorregou a mão pelo corrimão e alcançou o andar principal,
hesitante, a respiração doendo não pelo corselete que lhe apertava as
costelas, mas pelo medo que já começava a percorrer seu corpo.
— Vou à boulangerie, papai — mentiu.

— Não, você não vai. — Ele retrucou com seriedade. — Eu


sei que está me escondendo algo, Lilly...

— Eu...
— Não me interrompa, garota! — A voz do pai sobressaltou o
tom dela, um berro que tamborilou pelas cortinas até alcançar a mãe dela,
que estava na sala de jantar. Célia se levantou, agarrando as dobras de
seu vestido azul que mais parecia o embrulho de um bombo, e os
alcançou, perguntando:

— Querido, o que está fazendo?

— Conversando com nossa filha.


Lilly engoliu em seco, todavia manteve seu olhar fixo nos de seu
pai.
— Lilly? — A mãe chamou por ela, estranhando a situação.

— Ela está nos escondendo algo, Célia — vociferou o pai,


mantendo seu olhar severo no mesmo nível do da filha. Nenhum deles

queria perder aquela luta. — Dizendo que vai todas as manhãs a essa
boulangerie, mas deve ficar se esfregando com algum rato do porto.

— William! — Célia o chamou com tamanha reprovação que


teria surpreendido sua filha, se ela não estivesse tão tensa e preocupada
em controlar sua respiração. O nervosismo era tanto que ela temeu
desmaiar, porém, ciente do que estava prestes a fazer, ela deu um passo
à frente.

— E se eu estivesse, o que faria? — perguntou, as palavras


ditas longe, mas que alcançaram a alma do pai.

— Não ouse...

— O quê, papai? — Lilly aproximou-se o bastante para que a


barra de seu vestido tocasse e cobrisse os pés dele em suas camadas,
erguendo o rosto, fitando-o de baixo, vendo sua figura assustadoramente

alta e sabendo que tinha de enfrentá-lo. — Prender-me-ia para sempre?

— Se fosse necessário, sim.


Lilly sentia cada fibra de seu corpo fortalecendo. Toda angústia.
Toda raiva. Todo o medo que sentira a cada tapa que lhe fora dado
enquanto crescia. Tudo se resumia a um único nome: Lucian. Não ia
desistir. Não agora. As sensações saltavam dentro de si como catapultas
e as palavras não travavam em sua garganta, na verdade quase saíam
aos tropeços de tanto tempo que foram guardadas, e os olhos dela
ardiam, brilhantes com lágrimas. Tolos são aqueles que acham que
lágrimas são fraquezas que dizem respeito às mulheres. Não. Lágrimas
são as forças da alma, que se exaltam pelo nosso respirar, que arde na
esperança de um dia poder ver o sonho que nos surge todas as noites
quando deitamos nossas cabeças sobre um confortável travesseiro.
Lágrimas são a pureza de nosso olhar, que sabe as lutas que devem ser
enfrentadas. Lágrimas são nossas reações ao medo de perder aqueles
que amamos. Tolos são os homens que acham que elas representam a
fraqueza.
Não.
Por tudo que se permitem sentir, as mulheres são os seres mais
fortes. E coitado do homem que tentar limitar o destino delas.
— E por quê? — Lilly continuou, os seios presos contra o
tecido enquanto o cenho se franzia.

— Porque um pai deve proteger a sua filha.

— Você protege a si mesmo, papai, porque não ama ninguém.

— Lilly! — A mãe a alertou, assistindo ao modo como as veias


saltaram no pescoço do marido.
— Chega, mamãe — respondeu calmamente. — Ele pode
viver em seu mundo de mentiras, se quiser, mas se acha que irá me
arrastar para ele eternamente, então está muito enganado.
O rosto de William tornou-se vermelho e as narinas dilataram
conforme o respirar pesava sobre seus ombros.
— Não, papai, não estava por aí me esfregando com ratos do

porto. — Os olhos dela arderam ainda mais. — Mas se quisesse, eu o


faria. Assim como eu leio os livros, que tanto tenta me proibir de fazê-lo.
Então, a enorme palma da mão dele cortou o ar, preparada para
atingi-la. Um tabefe tão forte que a teria arremessado no chão. Mas ela
simplesmente uniu os lábios num sorriso antes de dizer:
— Bata.
Ela pôde ver o quebrantar dos olhos do homem, confuso, mas
ainda tentando não demonstrar.
— Ande — insistiu a garota, a mão tão perto de seu rosto

enquanto o suor descia pelas suas costas. — Não irá mudar nada,
porque um tapa pode me machucar, de fato, mas nunca vai destruir o que

sinto. — Ela inflou o peito com o máximo de ar que pôde, sentindo-o

doer. — Ao menos, não ao que lhe diz respeito. — Lilly tensionou o


maxilar, mantendo os pés firmes e cerrando os punhos por entre as

camadas de tecido. — Porque eu não sinto mais nada pelo senhor.


Queria que fosse possível dizer que a garota ou até mesmo a mãe
sentiram pena do velho, que teve seu peito estraçalhado por aquela frase,
no entanto nenhuma das duas, de fato, sentiu alguma coisa. Lilly
permaneceu quieta enquanto via-o se destruir à sua frente, baixando a
mão devagar, colando-a ao lado do corpo enquanto o queixo tremia e dor
surgia em seu olhar.
— Mas nem por isso — Lilly agitou os cílios, sentindo toda a
atmosfera recaindo sobre seu corpo enquanto soltava o ar que prendia em

seu peito — ignoro o fato de que as consequências de minhas ações


também recaem sobre seu nome, papai.
Àquela altura, William não tinha mais o que dizer e seus olhos
perdiam-se em camadas tênues de fúria, dor e mágoa.
— E eu prometo ao senhor que sei o que estou fazendo. — A

garota engoliu em seco. — No entanto não mais serei infeliz apenas


porque o senhor deseja isso.

***

A garota nunca pensou que o peso que carregaria em seu peito


seria ainda maior do que o das duas espadas que levava nas mãos. Sim.
Ela fora até o porto, procurando por Annabela e, ao encontrá-la, não foi
fácil omitir o fato de que Henry estava morto. Mesmo que ela estivesse
apaixonada por Lucian, ela também amava Henry, e seus olhos brilharam
em tristeza e desapontamento quando Lilly não soube dizer onde ele
estava.
— Mas ele deve estar em algum lugar, certo? — insistiu a
mulher baixinha, nervosa, as mãos suando enquanto os cabelos eram
levados pela brisa do porto, que parecia mais movimentado naquele dia
com a elevação da maré.

— Sim. — Lilly forçou um sorriso amarelado. — Ele deve


estar bem.
— E Lucian? — A voz dela manteve o mesmo nível de

preocupação ao perguntar. — Tem notícias dele? Ambos sumiram quase


ao mesmo tempo.

— É sobre isso que vim falar com você.


E ela poderia ter contado, nesse instante, toda a verdade. Sobre
como a cabeça de Henry explodira com um tiro. Como Lucian estava se
decompondo aos poucos naquela casa velha. Contudo, a garota apenas
disse que o marinheiro estava com problemas e que ela sabia como
ajudá-lo, mas para isso precisaria de Anna e, ainda que relutante, a
mulher concordou, subindo ao navio e retornando minutos depois com
duas espadas, entregando-as com estranheza para a garota.
— Tem certeza do que está fazendo? — perguntou ela
enquanto assistia Lilly lutando para mantê-las embaixo dos braços.

— E-Eu... — As espadas escorregaram e quase cortaram seu


corpo. Anna as apanhou antes que caíssem.

— Leve-as nas duas mãos, é mais fácil e tem menos risco de se

cortar — explicou com as sobrancelhas arqueadas e o sol refletindo em

seus olhos. — Não faço ideia do que você esteja fazendo, garota,
todavia tome cuidado.

— Obrigada.
E agora ela já estava ali, parada enquanto o cocheiro da carruagem
que chamara a deixava para trás, com os cascos do cavalo batendo
contra a terra poeirenta enquanto ela caminhava em direção ao mato alto,
que entrava por debaixo de sua saia e pinicava os tornozelos enquanto a
casa se exibia tão horrenda quanto da última vez, com seus vidros
estilhaçados e trepadeiras choronas, com o teto falho que permitia que
faixas oblíquas de sol iluminassem o interior frio. Ela tinha um plano, só
não tinha a menor ideia de como executá-lo.
Conforme procurava pelo loiro pelos cômodos da casa, Lilly temeu
que já tivesse sido tarde demais. Temeu que o encontrasse pendurado
com uma corda no pescoço como uma velha senhora que perdeu seu filho
e, com ele, sua vontade de viver. Temeu que as moscas já estivessem
sobre seu corpo e que nada fosse mudar o fato de que ela nunca o veria
novamente. Entretanto, ela começou a subir as escadas para o segundo
degrau, a madeira inchada pela infiltração rangendo sob seus pés
enquanto o vestido pesava em seu corpo e se arrastava em meio às
farpas e poeira.
O segundo piso era ainda mais assustador. Horripilante, por assim
dizer. Fez os pelos do corpo dela se eriçarem enquanto crateras se abriam
no chão mais à frente. Havia três portas e duas delas estavam caídas de
seus batentes. Lilly sabia que ele estava na que permanecera fechada.
Quase como um grunhido metálico, a porta se abriu.
E lá estava o loiro, a mesma camisa, a mesma calça, os mesmos
cabelos despenteados, a barba já pontuada em seu rosto e os olhos ainda
doentes. O homem virou seu rosto na direção dela, vendo-a ali, parada,
num vestido cinza e duas espadas nas mãos enquanto o cabelo recaía
sobre os ombros. Lucian franziu o cenho e ressaltou:
— Achei que queria me ajudar.

— É o que vim fazer. — Ela deu dois passos para frente, os


olhos percorrendo o ambiente que se assemelhava a um novo quarto,
com beliches metálicas enferrujadas e carcomidas, um colchão que já
estava sem espuma, um quadro caído no outro extremo e uma grande
janela sem vidro, que permitia que o ar quente entrasse.

— Então você é burra.


Lilly deteve-se, ofendida e confusa.
— Como é?

— Eu disse que, para me ajudar, tinha de me deixar sozinho —


retorquiu novamente com a raiva da culpa em sua voz, a saliva escapando
por entre os dentes.

— Às vezes a ajuda que precisamos é aquela que não


queremos.
Cambaleante, Lucian se levantou, grunhindo enquanto os músculos
das pernas se esticavam e a luz que incidia atrás de si esquentava seus
ombros.
— A questão, senhorita Talbot, é que não quero e nem preciso
de sua ajuda.
E ela sentiu como se seu coração fosse despedaçado por garras
tão afiadas que também alcançavam sua alma e, embora sentisse tal dor
e os olhos ardessem com o brilho das lágrimas súbitas, ela manteve-se
firme, a mão direita fechando-se em torno da bainha da espada enquanto
ela arremessava a outra na direção dele, o cenho franzido e os cílios
formando sombras em suas bochechas. A espada estalou contra a
madeira e o metal pareceu tremer.
— Eu sacrifiquei tudo por você. — Ela começou a dizer, as
palavras tropeçando em sua língua e escapando por entre os lábios

úmidos. — Eu arrisquei tudo.

— Não pedi que fizesse isso.


Ela sentiu a respiração aumentar e a raiva surgiu em seu corpo.
— Esse não é você, Lucian. Você é bom, gentil, me mostrou um
mundo inteiramente novo sem que eu nem mesmo saísse de Eastbourne.
O loiro baixou o olhar na direção da espada.
— E com que intuito você trouxe essas armas? — Os olhos
achocolatados a encararam e Lilly ergueu sua espada.

— Quero fazer um acordo.


Ele estreitou o olhar, duvidoso, os cílios se agitando.
— Se eu o derrotar... — Ela sentiu o ar faltar em seu peito.

— ... você me deixa ajudá-lo a sair daqui.

— E se eu vencer? — O loiro dobrou os joelhos e seus dedos


encaixaram na bainha de couro marrom, erguendo a espada junto a si.
Os olhos dela arderam antes de responder:
— Eu lhe deixo sozinho, para sempre.
Lucian deu de ombros e não conteve uma curta risada sarcástica,
que escapou de sua garganta.
— Acho que a senhorita não tem ideia da eternidade que para
sempre significa.

— Sei muito bem a eternidade em que vivi infeliz até te

conhecer. — Ela engoliu em seco, a emoção sobressaindo suas

palavras. — Mas também sei a eternidade que cada segundo de

felicidade ao seu lado durou. — Lilly tensionou os dedos contra a

espada e rangeu os dentes. — E são por esses momentos que eu vou


lutar.
E então Lilly partiu para cima dele, a espada cortando o ar que
cheirava a mofo e fazendo-o dar um passo para trás. Até aquele
movimento, Lucian não havia percebido o quão sério ela falava, mesmo
com a dor e o medo em seu olhar. Ele começou a andar para o lado e ela
o seguiu, ambos formando um círculo de pegadas enquanto ele decidia o
que fazer, analisando os movimentos dela.
Por fim, Lilly apenas jogou os cabelos para o lado e investiu
novamente, a lâmina indo na direção dele, o estalo metálico das espadas
repercutindo pelas falhas da casa enquanto ele movia-se para o lado e a
empurrava contra a parede. A garota estatelou as mãos contra a estrutura
que, por pouco, não atingiu seu rosto.
— Nunca vai ganhar de mim se continuar tão desastrada.
Ela semicerrou os olhos, as narinas dilatadas enquanto as costas
doíam com aquele maldito corselete.
— E nunca será verdadeiramente livre se continuar preso ao
passado, Lucian.

— Livre!? — Ele gritou, gesticulando violentamente com a

espada. — E o que você sabe sobre ser livre, Lilly Talbot!?


Ela deu um passou para trás, hesitante, sentindo a madeira contra
seus ombros.
— É uma garotinha mimada que só reclama sobre as injustiças
de sua vida tão privilegiada! Sua maior prisão é um maldito casamento!
Você não sabe nada sobre o que é ser livre!
Com um grito e toda a raiva de seu corpo, ela lançou-se contra ele,
dois cortes no ar que o fizeram cambalear. Lilly girou o corpo, furiosa, as
pernas quase como em uma valsa antes dela chutá-lo contra o peito,
arremessando-o contra a beliche, que se desfez, o metal caindo sobre ele,
que tinha os olhos arregalados, surpreso de estar vendo-a debaixo,
deitado no piso.
Lucian não disse nada, apenas se reergueu, o olhar sério, fitando-a
com curiosidade enquanto a marca do salto ficava marcada em sua
camiseta branca. Ele ameaçou dar um passo para frente e Lilly colocou
seu pé de apoio para trás, lembrando-se de quando o vira lutar no convés.
A espada já pesava em seus braços e ela sabia que ele tinha razão. Não
ganharia dele. Lucian era o melhor naquela luta.
E assim, ele a atacou.
A espada passou perto do pescoço da garota, lançando-a para
trás. Dois passos. A espada ameaçou atingi-la no rosto e, num reflexo, ela
ergueu a sua, o metal pesando ainda mais enquanto o estalido ressoava
em seus ouvidos.
— Eu sei que está com medo, Lucian... — Ela disse após
bloquear um novo ataque, vendo a frustração dele de estar sendo mais
difícil derrotá-la do que ele desejava. Ela girou, a lâmina certando
superficialmente a bochecha dele, uma faixa fina de sangue começando a
escorrer enquanto ela sentia o coração saltando de seu peito, quase

arrebentando o corselete. — Mas pare...

— Aceita a derrota? — Ele exibiu um sorriso com os lábios


colados, ignorando o ardor do corte, e, nesse momento de distração, ela
abaixou-se e girou os pés, passando um deles por debaixo das pernas de
Lucian, vendo-o cair enquanto ela apontava a espada na direção de seu
pescoço e respondia:

— Nunca.
O homem franziu o cenho, suas pernas rapidamente erguendo-se
no ar e enlaçando a cintura dela, girando seu corpo para o lado e subindo
sobre a garota. Tão perto. Os rostos próximos o bastante para que as
respirações fizessem cócegas. Os seios dela tão apertados naquele traje
desejando que ele a tocasse. Por um momento, ela permitiu-se ver o quão
belo ele era, mesmo em meio aos pensamentos confusos e à indecisão de
como prosseguir. Então ela decidiu o próximo movimento.
Lilly lançou-se para o lado, copiando o movimento dele, assistindo
ao momento em que os botões de sua camisa arrebentaram e o peito dele
tornou-se uma obra aos seus olhos, os mamilos entumecidos conforme
ele respirava pesadamente, cansado.
— Por favor, não me obrigue a machucá-lo.
Os olhos dele então pareceram mudar enquanto a observava,
desde o modo como os ventos do exterior faziam os cabelos dela
tornarem-se dourados e recaírem sobre seu ombro esquerdo até o modo
como seus lábios lânguidos pareciam extremamente convidativos. Foi aí
que ela sentiu algo crescer embaixo dela, vendo-o engolir em seco,
hesitante.
— Você me disse uma vez que me amava, Lucian Campbell.

— A voz dela soou como poesia aos ouvidos dele enquanto seus olhos

pareciam curar-se com ela sobre seu corpo. Sobre seu colo. — Se isso
ainda for verdade...

— É verdade. — Ele disse, as palavras que outrora estavam

travadas em sua garganta repercutindo até os ouvidos dela. — Sempre


foi verdade.

— Então fuja comigo — sugeriu por entre uma risada. A ideia


mais estupidamente encantadora surgiu em sua mente e a excitação de
finalmente estar tomando conta de seu destino fazia seu coração palpitar.

— E para onde iríamos?


Delicadamente, de forma quase hesitante, ela tocou a pele dele, a
camisa aberta com os botões estourados revelando uma pele marcada
pelo sol, seca, avermelhada, mas tão bela. A garota olhou para as feições
dele e viu o quanto estavam tensas conforme suas mãos desciam ainda
mais, alcançando o cós da calça, retirando o restante da camisa branca,
sentindo o respirar dele contra seu abdômen, denso e sufocante,
desejando que ela continuasse, mas sem coragem para dizer, os dedos
dela dançando sobre sua virilha enquanto a calça pareceu abaixar-se
sozinha, passando a ponta do indicador contra os pelos aloirados.
— Vamos para onde quisermos.
Então ela o beijou, os lábios delicados e trêmulos tocando os dele,
ressecados e machucados, suas línguas acariciando-se rapidamente
enquanto as mãos dela subiam até seu peito e sentiam seu coração bater
violentamente. Um último golpe dela. Um golpe fatal que o fez se entregar
por inteiro.
Num salto, ele a segurou por entre as inúmeras camadas do
vestido, agarrando suas pernas e erguendo-se, atirando-a contra a
aspereza da parede. Era seu contra-ataque. Ele a queria por inteiro e o
desejo crescia em seu peito assim como em suas calças.
Ela o sentia. Cada centímetro de seu corpo sendo tocado pelas
mãos ásperas e feridas pelas cordas dos mastros enquanto ele dava um
jeito de encontrar os laços de seu corselete. Encontrando-os, desfazê-los
foi sua investida mais fácil.
— Vai dizer que me ama? — perguntou ele, deitando-a sobre
o que restou do colchão, que desabara no piso quando ela o lançou contra
a beliche. Era desregular e doía nas costas, mas Lilly não se importou
com isso. Queria senti-lo por inteiro. Saber que ele estava ali. Que tudo
era real.

— Ainda acha necessário que tal verdade lhe seja dita?


Ele sentiu as vestes dela soltando-se por debaixo de seu corpo
enquanto pesava suas mãos sobre sua cintura, tão linda, perfeitamente
esculpida naquela luz. A respiração dele era falha e desigual contra o
pescoço dela, as madeixas castanhas servindo como um travesseiro para
seu corpo. O calor inundando a silhueta da garota num nível a ponto de
tornar as roupas sufocantes demais para continuarem ali.
Lucian abriu as vestes dela que se soltaram, os dedos ásperos
atravessando sua pele quando as mãos dele abriram caminho para
dentro, as pontas parecendo mapear cada curva até o instante em que ele
lhe alcançou os seios e os exibiu à luz oblíqua da manhã, vendo-a ali,
ofegante, tendo de lembrar-se de respirar enquanto as clavículas
saltavam.
— Eu quero que você diga. — Ele sorriu, provocando-a.

— Eu te amo, Lucian Campbell.


Ele a beijou novamente, o fogo dentro de si aumentando a níveis
de labaredas consumirem cada músculo de seu corpo e o sangue fluir em
uma velocidade delirantemente excitante.
— Diga que fugirá comigo. — Agora ela pediu, tocando-lhe o
maxilar, vendo seus olhos sem dúvida alguma ao responder:

— Ficarei com você pela eternidade, Lilly Talbot.

Sem pressa alguma, sabendo que aquele momento — aquele

maravilhoso momento — estava sob seu controle, ela lançou-o para


trás, vendo-a sentar sobre suas pernas, curioso sobre o que ela faria. As
mãos da garota tocaram a braguilha dele e os olhos só conseguiam focar
no pequeno volume que se formara. Ela queria senti-lo dentro de si.
Quando finalmente o viu em toda sua beleza desnuda, os poucos
pelos fazendo cócegas em seus dedos, ela sentiu-o deitando novamente,
arrancando sua saia e vendo suas meias-calças tão brancas e coladas em
suas coxas, deliciando-se ao tirá-las, uma por uma, abaixando toda a
extensão delas, beijando o interior das pernas da garota, que soltava
pequenas lufadas de ar.
Lucian deu dois pequenos chupões no lado esquerdo do pescoço
de Lilly, apertando seus mamilos com delicadeza apesar da aspereza de
seus dedos e, antes de penetrá-la, ele a beijou, os lábios molhados
tocando-a verdadeiramente, sentindo suas línguas travando batalhas que
dançavam com o prazer que reverberou pelo corpo dela logo que ele a
penetrou. Uma súbita dor que era ignorada a cada beijo. A cada toque. O
colchão quase no mesmo nível do chão enquanto ela o sentia dentro de
si.
O marinheiro suava e os ombros ameaçavam falhar. Movimentos
incessantes que o cansavam na mesma medida que fazia seu corpo
tremer em prazer. Lilly segurou seu pescoço e o virou para o outro lado da
cama, seguindo seu movimento, ficando em cima dele. Lucian ainda
estava dentro dela.
Agora, novamente, ela tocou sua virilha, vendo-o encolher-se num
súbito.
— Está tudo bem? — Perguntou enquanto sentia-o entrando
novamente.

— Senti cócegas. — Brincou ele e ambos riram, ela vendo a


beleza em seu sorriso enquanto, com as mãos, apoiava-se em seu
abdômen, movimentos circulares do quadril permitindo que ele entrasse a
cada instante.
Ela segurou as mãos dele e as guiou até seus seios delicados e
alvos, sentindo a ponta de seus mamilos endurecidos. O rapaz soltava
curtas lufadas de ar conforme o movimento da garota se intensificava. Ela
se abaixou lentamente, sua nudez encostando à dele. Com a avidez de
seu desejo, ela sentiu-o apertando seu quadril, as mãos descendo por
suas coxas, apertando-as em uma massagem que a fez delirar. Ele a
agarrou pela cintura e a virou no colchão. Com menos calma desta vez,
Lucian mordiscou a ponta dos seios dela. Aquilo arrancou o pouco ar que
ainda restava em seus pulmões e novamente ela teve de lembrar de
respirar, jogando seu pescoço para trás enquanto ele a preenchia
novamente.
Ele franziu o cenho e mordiscou o lábio inferior, os olhos apertados
antes de fitá-la, tão bela abaixo de seu corpo, tão linda naquela luz e tão
perfeita em libertá-lo de seus próprios medos. A garota o beijou, unindo-se
a ele em seu orgasmo enquanto sentia cada músculo dele tremer junto
aos seus em camadas de júbilo que se tingiam nos tons acastanhados de
seus olhares. As bochechas queimaram com o sangue que fluiu cada vez
mais rápido por suas bochechas.
O rapaz caiu ao seu lado, o peito arfando violentamente enquanto
ele sentia os últimos resquícios do prazer e o coração batia na mesma
sintonia que o dela. Lilly esticou-se por sobre aquele colchão velho e
deitou seu rosto contra o peito dele, ouvindo as pancadas em seu peito
acalmando-se conforme ela sentia-o acariciando os seus braços.
— Não consigo entender como você consegue mexer tanto
comigo, senhorita Talbot.
Ela virou sua cabeça sobre seu ombro, fitando-o docemente, os
grandes olhos analisando suas feições agora tão calmas.
— Posso dizer o mesmo, senhor Campbell.
Ele inclinou-se e lhe deu um último beijo.
— Ainda está sangrando. — Ela ressaltou, vendo o corte que
permanecia vermelho.

— Foi um golpe muito bom — admitiu ele e a garota riu de


nervosismo.

— Desculpe-me.

— Não. — Ele maneou a cabeça de um lado para o outro. —


Eu que peço desculpas por ter sido um idiota.
— É, você foi um idiota — confirmou ela e ele a fitou surpreso,
mordiscando o lábio inferior.

— Mas acho que sou esperto o bastante para fugir com você.
Lilly riu, calorosa, sabendo que teria de explicar o plano que havia
em sua mente para ele logo em seguida, mas o momento era precioso
demais para ser danificado com detalhes tão peculiares. Ela só queria
permanecer deitada junto a ele, pele com pele, sem tecidos os separando,
os lábios colados e as respirações desreguladas. Ela queria se lembrar de
cada detalhe, desde o modo como os fios de seus cabelos se
embaraçavam com o suor até o modo como a luz reluzia nos olhos dele.
— Eu te amo, Lucian Campbell.
E ela já sabia a resposta dele.
— Eu te amo, Lilly Talbot.
Capítulo XVI
Despedida
Previsível era esperar que a casa dos Talbot se tornasse um campo
de guerra um dia antes do baile que anunciaria Lilly aos cavalheiros uma
última vez, e no qual também apresentaria seu pretendente, Sebastian
Pelletier, que não compareceria. O que iria acontecer, então? Era nisso
que Lilly pensava enquanto permanecia parada no corredor do andar de
cima, enquanto passos abafados e velozes corriam de um lado para o
outro, levando arranjos, preparando velas, limpando lustres e as janelas,
sacudindo as cortinas enquanto afastavam a mesa de jantar para tornar o
aposento numa espécie de salão. Se o homem que deveria desposar-lhe
não estava ali, então o que seu pai iria fazer?
Era quase irônico pensar nele estando de frente para seu escritório
vazio, que tinha a porta escancarada dessa vez. Ele saíra. Não dissera
para onde, como sempre, mas deveria ser algo importante, já que o velho
quase nunca deixava seus confortáveis aposentos.
O vestido ainda lhe pesava na cintura quando ela deu dois passos
e entrou no lugar.
Os pés foram acolhidos pelo carpete vinho e, embora todos
estivessem no andar de baixo, ela não conseguia parar de pensar no
quanto sentia-se vigiada. Um arrepio na espinha. Um formigamento no
estômago. Parecia que toda aquela atmosfera abafada a estivesse
repelindo para longe, as janelas altas e retangulares estavam com as
cortinas esverdeadas bem abertas, iluminando todos os livros amontoados
nas estantes, suas lombadas voltadas para a garota, porém sem exibir
título algum. No lado esquerdo, eles haviam sido nomeados, então talvez
aqueles sem nome seriam os relatos das viagens.
Ela estava certa.
A poeira que se levantou com o abrir da capa pesada rodopiou em
cortinas frágeis antes de aquietarem-se novamente sobre o carpete. Ela
apanhou um qualquer e, logo na primeira página, encontrou a data e o
nome da embarcação ao qual pertencia, acompanhado da assinatura do
capitão responsável. Se Lucian encontrara os relatos da noite do
incidente, então Lilly sabia que tinha de procurar pelo relato que dizia
respeito a Sebastian.
Dedilhando cada lombada antes de puxá-las, a garota sentia o
coração batendo forte em seu peito, denso, hesitante, temeroso de que
William retornasse cedo demais; e com a barulheira do andar inferior se
tornaria ainda mais difícil ouvi-lo se aproximando.
Mas ela continuou procurando. Livro atrás de livro. Relatório atrás
de relatório. A poeira já fazia seu nariz coçar no momento em que a garota
simplesmente sentou-se sobre a cadeira que ficava de frente para a mesa
de seu pai, fitando aquelas estantes com medo. Medo de estar errada.
Medo de não saber o que vinha depois. Contudo, ela já sabia o que
acontecia no presente e o que acontecera em seu passado.
Lentamente, ela virou o rosto para a direita, na direção da cadeira
de seu pai, fitando seu couro, lembrando do modo como o velho sentava-
se sobre ela, imponente, as mãos espalmadas na cadeira. Ela também se
lembrava do modo como se encolhia naquele mesmo lugar, temerosa das
broncas, mas ainda mais dos tapas que sempre vinham no final.
Houve um dia, que estava tão quente quanto aquele momento, e
ela tinha apenas nove anos. Sentou-se corretamente. O homem estava
atrás de sua mesa, gritando com ela. Mas a garota não sabia o que havia
feito de errado. Não entendia o porquê ele gritava tanto simplesmente
pelo fato dela ter se sujado. A cada palavra raivosa que ele cuspia de sua
garganta, ela fitava seus joelhos, sujos de terra e lama. Tentou ajudar um
cão que ficara preso embaixo de uma cerca de ferro que estava quebrada
e o prendeu ali. Ela teve de cavoucar a terra e o cachorro a assistiu em
silêncio durante todo o tempo. Mas o pai berrava tanto que o
coraçãozinho dela se apertava no peito, aflita ao vê-lo se levantar e ir até
sua direção, agarrá-la pelos ombros e sacudi-la.
A visão ficou embaçada.
Ela sentiu o aperto arroxeando sua pele.
Quis chorar.
O rosto dele era tão vermelho que parecia na iminência de explodir.
E foi aí que o tapa veio. Forte. Duro. Ardido. Arremessando-a junto
à cadeira na direção do carpete, os olhos atônitos e chorosos, o medo
assustando cada fibra de seu corpo enquanto ela chorava e ele gritava
para que Célia viesse apanhar a garota e tirá-la dali. Lilly ainda se
lembrava do modo como ele simplesmente cruzou as mãos atrás das
costas e fitou aquelas estantes, exatamente como ela fazia, esperando
por uma reposta que não vinha e seus ombros inclinavam para frente,
cansados, pensando no quão tola estava sendo, sozinha naquele
escritório abafado com um vestido amarelado que grudava em suas
curvas.
— Ah, Lilly! — A voz da mãe surgiu na porta de frente para ela, a
mão na maçaneta no intuito de fechá-la. — O que está fazendo, minha
querida?
— Hã? — A garota piscou rapidamente, focando na figura ali
parada em camadas e camadas de verde-escuro, com os cabelos presos
em cachos que caíam por seus ombros, os olhos tristonhos e um tanto
curiosos.
— O que está fazendo?
— Ah — Lilly deu de ombros e se levantou rapidamente. — Não é
nada. Eu vi a porta aberta e...
— Aqui está uma bagunça desde que Alga mexeu em tudo.
A garota estranhou o súbito nome da empregada que fora demitida
pela família.
— Alga?
— Sim. Seu pai a encontrou mexendo no escritório no dia em que
deveria limpar apenas o andar inferior. — Célia deu de ombros. — Ela já
havia quebrado alguns pratos também e ainda por cima te deixou sozinha
na noite de teatro, então achamos melhor demiti-la, por fim.
A mãe caminhou para dentro com passos lentos, os olhos
percorrendo o cômodo, checando-o na mente conforme as bordas de seu
vestido se arrastavam pelo carpete.
— Sabe que seu pai não gosta que entremos aqui quando ele não
está, Lilly — relembrou a mulher com o erguer de uma sobrancelha. —
Vamos, diga-me o que está acontecendo.
Lilly engoliu em seco e fitou-a com as sobrancelhas arqueadas.
— Você realmente ama o papai?
E teria sido mais fácil que a garota esfaqueasse a mãe em seu
peito do que vê-la com aquele olhar. Não era pena. Não era dor. Era a
mais pura frustração de estar se vendo na filha, infeliz e cansada, incerta
do que viria a acontecer.
— Eu aprendi a amá-lo, Lilly.
— Mas então não é amor — concluiu a garota e a mãe apoiou a
cintura contra a mesa de mogno, as mãos sobre o colo ao perguntar:
— E por que não seria?
— Se você tem de aprender a amar alguém, então é porque aquela
pessoa nunca deveria ter você.
E a mãe sentiu o coração apertando-se no peito e os olhos ardendo
em lágrimas que ela não deixaria que escorressem.
— Eu posso não ter amado seu pai como deveria. — Célia esticou
a mão e tocou o ombro da filha. — Mas amo de verdade a família que ele
me deu.
Entretanto, Lilly tinha tanto que gostaria de falar e, sabendo que
talvez aquela fosse sua última chance, a garota se ergueu de frente para
a mãe.
— Ama mesmo? — A voz dela secou. — Acha que somos uma boa
família?
— Claro, Lilly. — Célia afagou seu rosto, mas a garota se afastou
dela com um passo para trás.
— Que tipo de boa família tem um pai que bate na filha... — A mãe
franziu o cenho, algumas rugas nos cantos dos olhos tornando-se mais
aparentes. — ... e na própria esposa?!
Célia não soube como continuar, então deixou que a filha o fizesse:
— Não somos uma boa família. Nós somos infelizes, mamãe.
A mulher respirou fundo e ergueu a mão em meio ao ar abafado.
Algo trincou no piso inferior, contudo os olhos dela permaneceram
fechados, hesitantes de encarar a filha ao perguntar:
— Onde quer chegar?
Lilly não respondeu, apenas cravou as unhas em suas mãos.
— O que está tentando me dizer? — A senhora Talbot finalmente
abriu os olhos, vendo o momento em que Lilly envolveu-a com os braços,
tocando seu corpo, sentindo seu calor enquanto uma lágrima escorria por
sua bochecha vermelha.
— Entendo tudo o que já fez por mim...
A voz da garota, entrecortada pelo choro, fez um arrepio percorrer
o corpo da mãe, que a tocou com mais firmeza, os dedos apertando os
ombros desejando sempre poder sentir aquele perfume adocicado que
Lilly carregava. Desejando sempre poder ouvir sua voz. Mas por dentro,
algo em seu coração partia-se e ela irremediavelmente tinha a certeza de
que aquele espaço jamais seria curado. Uma ferida aberta dentro de seu
corpo que jamais iria sarar. Aquilo estava errado. Ela não entendia o que
estava acontecendo.
— ... e agradeço de todo o coração. — Lilly endireitou-se, sentindo
os dedos da mão soltando sua pele, os olhos confusos e brilhantes em
melancolia e dúvida. — Mas eu não serei infeliz.
A mãe sentiu o abdômen tremer e as pernas fraquejarem enquanto
a garota entrelaçava os dedos nos dela, os lábios franzidos enquanto o
queixo sacudia na tentativa inútil de não chorar.
— Terei coragem de seguir o meu amor. — A garota abraçou a mãe
uma última vez, tocando seus cabelos, sentindo seu rosto contra seus
ombros, percebendo o instante em que ambas choraram, os olhos
apertados até tornarem-se doloridos conforme seus peitos
despedaçavam-se. — Eu te amo, mamãe.
E, naquela fração de segundo, Célia Talbot percebeu que aquilo
era uma despedida.
Capítulo XVII
O silêncio de um beijo
Ele, August, não conseguira dormir.
Na noite passada, ficara horas acordado fitando o teto de seu
quarto enquanto o irmão já dormia, enfiado em cobertas que o mais velho
não entendia como não o sufocavam naquele calor, que entrava
suavemente pelas janelas que ele deixara abertas, permitindo que a luz
delimitasse seu corpo.
Sua mente preocupava-se com o modo como Heather lentamente
parecia se recuperar, até mesmo mais do que com o ataque em si, a febre
oscilando nos dias em que a visitou, sempre com uma caixa de chocolates
ou flores. Mas, agora, ele estava com ambos, carregando um em cada
mão conforme a carruagem chacoalhava, os cavalos maltratando a
estrada de terra até sentir os cascos sobre os ladrilhos, que os guiaram
até a casa da garota.
O novo cocheiro deteve a carruagem e o coração dele já batia
exasperado por debaixo das roupas alinhadas precisamente com seus
ombros, o fraque com os botões devidamente presos e um colete por
sobre a camisa branca.
— Como estou, irmão? — Atreveu-se a perguntar.
Como se fitar August fosse a tarefa mais árdua daquele dia, Gayle
Denver apenas virou o pescoço de maneira desleixada, as pernas abertas
e as mãos apoiadas sobre os joelhos, e respondeu:
— Parece um idiota.
Aquilo arrancou uma curta risada da garganta do irmão.
— Vindo de você, considero como o melhor dos elogios.
Então, o cocheiro apareceu ao lado dele, cabelos tão penteados
quanto os dos garotos, as mãos cobertas por luvas que ofereciam ajuda
para segurar os narcisos brancos. August saltou da carruagem, certificou
de que estava devidamente apresentável no reflexo da janela, de onde
via-se seu irmão claramente irritado, agradeceu ao serviçal e caminhou
até a entrada.
É curioso como encontrar quem amamos libera um nível tão grande
de adrenalina que nosso corpo entra em um estado de alerta constante,
como se para se certificar de que tudo está perfeito e nada irá atrapalhar.
Quando a mãe de Heather abriu a porta, após ouvir duas batidas suaves,
August jurou que ela conseguia ouvir o modo como seu coração
violentamente batia, ou talvez fosse o modo como seu rosto parecia tenso,
mesmo após tantas visitas.
— Senhora Fetherstone — cumprimentou com uma breve
reverência.
— Senhor Denver. — Tracy respondeu com um sorriso dócil
naquele rosto redondo, que se tornava ainda maior com a faixa que ela
prendera atrás das orelhas, decoradas com brilhantes brincos
arredondados, sobre o amontoado de cabelo. — A que lhe devo a visita?
E o garoto estranhou a pergunta, franzindo o cenho, não
conseguindo evitar que um riso nervoso escapasse de sua garganta antes
de dizer:
— O baile da senhorita Talbot é esta noite... — A voz perdeu a
certeza com que falava conforme as sobrancelhas da mulher se
arqueavam. — Achei que...
— Mamãe? Quem está aí? — Chamou a voz que tornava a
respiração dele falha. August engoliu em seco ao vê-la ali, parada mais ao
fundo do corredor, com um vestido que prendia em sua cintura e abria-se
em camadas breves, laços que decoravam as beiradas e olhos curiosos
que o avistaram rapidamente. — August...
— E-Eu sinto muito, filha... — A mãe começou a dizer, seu rosto
virando-se na direção dela. — Creio que a carta não tenha sido entregue
a tempo.
E ele engoliu em seco, as mãos fracas, quase como se aquelas
flores e o chocolate pesassem o mesmo que a carruagem, de onde quase
se ouvia os resmungos de Gayle, o vento silencioso passando por eles,
mas o ar tornou-se sufocante na medida que nenhuma brisa o aliviaria.
— Perdoe-me, mas acho que não estou entendendo.
Heather mordiscou o lábio inferior.
— Deixe que eu fale com ele, está bem? — disse enquanto
acariciava os ombros da mãe apenas para, em seguida, a mulher apanhar
as flores e o chocolate, mas não sem antes ressaltar:
— Ele lhe trouxe presentes, querida, não é adorável?
— Deveras — respondeu com um sorriso, vendo o modo como os
lábios dele também se mexiam em nervosismo.
A mãe deixou os presentes sobre a mesa da entrada e
desapareceu pelos fundos, coçando a testa.
— August, eu...
— A senhorita está linda. — As palavras simplesmente escaparam
dos lábios dele como um garotinho excitado. Há muito ele já queria lhe
dizer aquilo. — Ah, desculpe, não queria interrompê-la.
— Não tem problema, senhor Denver. — Finalmente, ela ergueu
seus olhos na direção dos dele, que brilhavam de felicidade em vê-la ali,
de pé, já tão forte, mas com feições ainda pálidas que beiravam ao tom da
espuma do mar, que nem a mãe. — É só que..., ai, isso me deixa tão
envergonhada...
— O que houve? — Ele tocou a mão dela. Estava morna, bem
diferente de dias atrás. — Não está melhor?
— Estou, é só que... não o suficiente para ir ao baile — admitiu
cabisbaixa, colocando fios de seu cabelo atrás da orelha, baixando o olhar
na direção dos sapatos lustrosos que ele usava. — O médico alertou-me
para não abusar em tudo o que fizesse, apenas como garantia.
— Eu entendo.
— Porém, ainda quero que vá ao baile.
August arregalou os olhos e ergueu uma sobrancelha, confuso.
— Tem certeza?
— Tenho. — A garota respirou fundo, pensando em Lilly. — A
senhorita Talbot precisará de sua companhia, precisará não só de um
cavalheiro, como também de um amigo.
Era inegável que ele se decepcionou, pelo menos um pouco, já que
ambos nunca tiveram a chance de dançarem em um baile devidamente.
Na verdade, naquele momento, passou pela mente dele que eles nunca
dançaram juntos.
— Mas... a senhorita está bem o bastante para uma valsa?
Ela sorriu com os lábios colados e voltou a fitá-lo, curiosa.
— É claro.
— Conceder-me-ia a honra de tal dança, portanto? — pediu com
uma reverência que a fez rir, nervosa, o estômago aflito, com calafrios que
percorriam o corpo enquanto Heather fitava por sobre seu ombro. Nenhum
sinal da mãe.
Ela não conseguiu parar de sorrir, e apanhou a mão dele com o
maior dos prazeres, sentindo-o puxá-la para perto, guiando-a em
movimentos curtos sobre a relva que cortava os cascalhos e formavam a
trilha para entrar em sua casa.
— Que música exatamente o senhor está tentando imitar? —
questionou ela depois de ouvi-lo cantarolando notas sem ritmo algum,
embora seus pés não parassem.
— Honestamente? Não tenho a menor ideia. — Ele riu também
junto a ela, e aqueles sons foram o bastante para que seus corpos
dançassem, os corpos unidos quase como um só em giros e toques
delicados.
Ela o via de baixo, o modo como o queixo saltava, iluminado pelas
estrelas, enquanto os fios de seu cabelo balançavam com os movimentos.
— Creio que esteja me guiando, senhorita Fetherstone — ressaltou
August quando percebeu que seguia os passos dela.
A garota mordiscou mais uma vez o lábio, um brilho inocente no
olhar enquanto o fazia rodopiar, arrancando mais risadas, que culminaram
em um abraço quente, envolvente, que nem mesmo Gayle conseguiria
estragar, os fios castanhos do cabelo dela como almofadas para o rosto
dele, acolhendo o homem que amou mais do que a própria vida, sentindo
seus batimentos desformes assumindo o mesmo compasso apenas para,
em seguida, se afastarem o bastante para falarem frente a frente, mas
não o suficiente para romper o contato.
— Sinto muito que sua noite tenha sido perdida, senhor Denver.
— E por que acha que ela foi perdida?
Ela franziu o cenho.
— Atreve-se em dizer o contrário?
— Eu estive aqui e pude vê-la — explicou conforme tocava sua
mão direita e guiava-a até seus lábios, um toque suave que ela tanto
desejava sentir. — Já é melhor do que qualquer outra noite.
Heather sentiu-o deixando sua mão contra seu peito, o toque macio
do tecido da camisa tornando-se quente, reflexo da pele que queimava
em excitação.
— Talvez ela possa ser...
Mas antes que ela concluísse sua fala, ele inclinou-se em sua
direção, fazendo com que a frase se esvaecesse em poeira conforme os
lábios dela focavam-se na proximidade dos dele.
August Denver, sempre tão gentil, não a beijou de forma diferente,
o toque tranquilo de seus lábios, sem pressa alguma, a mão direita
tocando a metade das costas da garota, que lhe acariciou o maxilar, a
nuca queimando e os olhos perdidos em nuances que Lilly descrevera,
mas que ela jamais imaginou que fossem tão intensas, porque quando há
amor, até o mais simples dos gestos torna-se grandioso.
E, no silêncio da noite, eles se beijaram pela primeira vez.
Se despediram apenas para, momentos depois, ele, como um
perfeito cavalheiro, prometer que iria escrever-lhe.
Heather sorriu uma última vez naquele momento, observando os
narcisos, tão delicados em seus tons alvos que se misturavam com o sutil
toque de amarelo em seu centro, que agora repousavam na entrada. Um
aroma agradável, tanto quanto a colônia dele, impregnado em sua pele
pelos toques.
— Ótima noite, senhor? — perguntou o cocheiro com um sorriso
amigável, olhos dóceis ao mesmo tempo que maliciosos.
August não tinha motivo algum para esconder o sorriso.
— Certamente, senhor Forman. — Ele olhou para trás, o tecido
raspando em seu pescoço antes de entrar na carruagem, a tempo de vê-
la ainda dançando, passos lentos, segurando o arranjo de narcisos, o
tecido do vestido fazendo-a flutuar, assim como ele flutuou nas camadas
daquele beijo. — Certamente.
Capítulo XVIII
Vestidos e Espumante
Forçar-se a sorrir é algo fútil e muito valorizado. Sorria se quiser ser
agradável. Sorria se quiser arranjar um marido. Instruções básicas que
são exigidas socialmente na maior parte do tempo às mulheres. Por quê?
Por que Lilly deveria sorrir no momento em que estava sendo vendida aos
olhos inescrupulosos de duques e lordes, dispostos a entregar-lhe uma
vida infeliz e rica, onde o dinheiro nunca faltaria, mas também nunca traria
sua verdadeira felicidade? Como fugir? Como escapar de um destino tão
presunçosamente selado pelos lábios ressecados da morte? Ela viveria,
teria filhos, dois ou três, talvez, então o marido iria se cansar dela e
começaria a traí-la todas as quintas-feiras com uma das empregadas. No
fim, o que sobraria a Lilly após a morte do velho nada mais seria do que
um filho bastardo, dor e um arrependimento enorme de não ter socado o
rosto de Gayle Denver enquanto o via caminhando para dentro de sua
casa, não desperdiçando seu tempo em cumprimentá-la.
— Senhorita Talbot, permita-me dizer que está estonteante. —
August surgiu logo atrás dele, os cabelos penteados em um topete, seu
fraque perfeitamente passado e justo em seu corpo, delimitando seus
traços e não deixando muito espaço para a imaginação. Seus olhos eram
dóceis e percorreram o vestido dela rapidamente, vendo seus tons de
champanhe, seus arabescos pintados às mãos e sua finalização em linho,
que caía em camadas e mais camadas até alcançar o tapete da entrada,
tapando seus pés presos em saltos beges.
Ele a cumprimentou com uma reverência e ela cruzou os joelhos
devagar, limitando-se a um breve movimento enquanto via-o sorrindo para
ela. A garota, com o nervosismo em todo o seu corpo, sentiu o rosto corar
com o olhar fixo dele, tocando as pontas onduladas de seu cabelo que
caía na altura de seus seios.
— Você está realmente linda — ressaltou e ela exibiu um sorriso
colado. — Já soube sobre a senhorita Fetherstone?
E então o rubor nas bochechas dela desapareceu por um instante e
suas pernas ameaçaram fraquejar, temendo pelo pior. Mas, vendo-a
naquele jeito, August Denver apenas cuspiu as palavras o mais rápido
que pôde:
— Ela está melhorando.
Lilly respirou fundo — ou ao menos respirou ao máximo que

aquele corset lhe permitia —, sentindo os seios pressionados pelo


decote que se prendia aos ombros enquanto os laços atrás de suas
costas permaneciam bem presos.
— É deveras um alívio saber disso. — Ela sorriu com os lábios
colados. — Obrigada por me contar, senhor Denver.
E, com um aceno da cabeça, ele se despediu dela antes de
adentrar a casa ainda mais, cumprimentando William, que estava logo ao
lado da garota, próximo a um dos inúmeros candelabros que eles
colocaram a fim de iluminar a casa, os filetes de cera escorrendo e o calor
aumentando.
— Que impertinência do filho dos Denver! — William praguejou
para si mesmo.
— Não lhe agradou, papai? — perguntou Lilly sem sorrir.
— Gayle ao menos deveria ter mostrado respeito a essa família.
Lilly lutou para não revirar os olhos, sentindo as entranhas
embrulhando-se enquanto assistia a um lorde de bigode engraçado,
evidentemente velho, com a luz da lua refletindo tênue sobre sua careca
lustrosa, os ombros curvados presos num fraque cinza-chumbo, com
olhos de rato e um nariz de gancho estampados em suas feições
cansadas.
— Sorria, filha. — William ordenou ao seu lado, a pança gorda
coberta por um traje preto que Célia havia comprado para o casamento

deles, muitos anos atrás. — Você conseguirá um ótimo marido, esta


noite! — Os olhos do velho Talbot percorriam a fila que se estendia pelo
exterior, procurando por Sebastian.
— Sou o Lorde Banshee, senhorita Talbot. — O velho caquético
apanhou a mão da garota, dando-lhe um beijo molhado demais que a fez
engolir em seco. — É um prazer finalmente conhecê-la.
— Lilly — O pai saiu de seu lado quase galopante de excitação,
envolvendo o lorde com o braço direito e apertando-lhe os ombros —,
permita-me lhe apresentar o dono da companhia Peixes Negros.
Banshee não perdeu a chance de se vangloriar:
— Os melhores peixes sempre caem na minha rede, senhorita
Talbot — aluiu ele com certa malícia em seu olhar, as velas refletidas no
brilho de sua lascívia.
— Acredito que já tenha dito isso a tantas mulheres que não passe
a ser significante, Lorde Banshee. — Lilly retrucou apenas para, em
seguida, sentir o pai fuzilando-a com a intensidade de um canhão, o
sorriso desaparecendo de seu rosto. — Se me dão licença, devo entreter
os cavalheiros esta noite — disse com displicência, tocando a lateral de
seu vestido e desvencilhando daquela conversa que William tentara
iniciar, caminhando para o interior da casa.
O lugar estava abarrotado. Em ordem de atender a todos que foram
convidados, com uma falsa elegância, a sala de jantar transformou-se em
um enorme salão, maior do que Lilly jamais havia visto ou sequer
imaginado que sua casa tivesse. Agora, no canto mais extremo do salão,
havia uma mesa de vidro decorada com arabescos de ouro, que subiam
como vinhas até sua superfície de vidro coberta por toalhas de renda,
exibindo pratos deliciosos que iam desde ostras frescas até camarões
fritos com alho e orégano, dispostos em longas travessas. Serviçais extras
foram contratados a fim de servir a todos com espumante da melhor
qualidade, servidos em longas taças cristalinas que passavam sendo
servidas em bandejas metálicas por garçons arrumados até o pescoço.
Lilly parou na frente de tamanho banquete, as mãos apoiadas no corset,
que comprimia suas costelas, um tom mais escuro que seu vestido,
tirando seu ar, a cauda do tecido champanhe chamando tamanha atenção
por sua leveza e, ao mesmo tempo, luxuosidade, sendo este decorado
com diversas camadas de tule transparente, que sobrepunha o linho, que
por sua vez lhe causavam um ar fantasmagórico e, ao mesmo tempo, uma
suavidade que lhe fazia parecer flutuar entre o salão.
— Boa noite, senhorita Talbot... — Uma voz soou por ela.
Uma voz conhecida.
Uma voz que já fora ouvida por entre o som do puxar de um gatilho.
Uma voz que lhe causou um arrepio.
A voz de Sebastian Pelletier.
Hesitante e com o agitar dos cílios, a garota girou em seus
calcanhares, observando o homem vestido em uma farda azul-petróleo, os
cabelos pretos penteados à escovinha, o queixo quadrangular exalando
um perfume de limão, resultado de uma loção que ele passara após retirar
a pouca barba que havia nascido naquela manhã, e os olhos verdes tão
refrescantes de se olhar quase como um vasto campo no nascer da
manhã.
— S-Senhor Pelletier. — Lilly sentiu um peso cair em seus ombros,
e sua boca secou. O que ele estava fazendo ali?
— Permita-me dizer que está deslumbrante.
Lilly forçou um novo sorriso que se desfez de forma tão rápida
quanto surgira, as inúmeras velas espalhadas pelo salão aquecendo seu
corpo, a cera branca escorrendo pelas extremidades frágeis de cada uma
delas, marcando o tempo daquele lugar em sua forma derretida. Ela ainda
o fitava, confusa, os olhos incrédulos e, em seu corpo, certo medo.
— Agradeço, senhor Pelletier. — A garota apanhou uma taça de
cristal de cima da bandeja de um dos serviçais sem esperar que ele
parasse, entornando-a diretamente em seus lábios, permitindo que as
bolhas e o álcool inundassem seu paladar. Ela sentiu o líquido
esquentando suas bochechas ainda mais. — Não gostaria de tomar algo?
— Creio que não seja muito bom.
Ela respirou fundo. Não ia participar de um joguinho dele. Havia
algo errado. Ele havia mentido. Seria uma armadilha de seu pai? Será que
ele já sabia de seu plano com Lucian?
— Por que está aqui, senhor Pelletier?
Sebastian sorriu, as sobrancelhas alinhadas e os dentes brancos
perfeitamente desenhados em seu rosto, como se já esperasse por
aquela pergunta. Ele sabia exatamente o que estava fazendo, mas, ainda
assim, respondeu:
— Não poderia perder a chance de vê-la tão bem arrumada.
Lilly não soube o que responder, apenas respirou fundo e sentiu os
olhos arderem conforme bebia o espumante até deparar-se com sua taça
vazia.
— Está tentando brincar com minha mente? — perguntou de forma
tão severa quanto seu olhar. O capitão franziu o cenho.
— Entendo que está confusa, senhorita Talbot...
— Indubitavelmente, estou confusa, senhor Pelletier — retorquiu,
interrompendo-o. — Disse-me que estaria a resolver complicações com
fornecedores de papai e, agora, está aqui.
— Sou uma companhia que lhe desagrada tanto? — Havia certo
descontentamento nos olhos dela, que obrigou a garota a respirar fundo
mais uma vez, endireitando suas costas antes de responder:
— Perdoe-me, senhor Pelletier, mas já vivo entre mentiras demais.
E assim, ela se afastou dele fitando o chão, que se tornava
dourado com as chamas das velas, alguns pequenos filetes brancos
haviam caído sobre o piso e serviam como armadilhas para os distraídos
enquanto a garota somente desejava desaparecer. O que estava
acontecendo? Onde estava Lucian? Por que Sebastian estava ali?
— Ora, ora, senhorita Talbot, bem que Heather comentou que a
senhorita sabe como fisgar um ótimo marinheiro! — August se aproximou
por trás da garota quando ela parou no outro extremo, onde Sebastian
não tinha mais visão alguma sobre ela.
— Perdão? — Disse ao não entender a pergunta, a mente ainda
confusa e aflita.
— Ah, peço desculpas se fui indelicado. — Um sorriso nervoso
surgiu no rosto dele, sempre tão gentil. — É que Heather estava
comentando sobre isso ontem.
— Ah, bem... — Lilly olhou na direção de onde Pelletier estava e,
de fato, ela não mais o conseguia ver e vice-versa. — Ele é um capitão —
corrigiu com um pequeno sorriso no canto dos lábios.
— Certo. — Ele deu uma piscadela para ela, mas quando a garota
não riu, ele se retraiu, as sobrancelhas franzidas em seu cenho. — A
senhorita está bem?
— Estou. — Ela forçou um novo sorriso. — É só que...não estou
acostumado com tanta atenção.
August engoliu em seco, seu pomo de adão subindo e descendo
por sua garganta, sabendo que havia algo por trás de tudo, mas, como o
cavalheiro que lhe ensinaram a ser, ele não insistiu, apenas continuou
fazendo-lhe companhia enquanto duques passavam pela frente deles,
ignorando-o por completo, focados nas curvas do corpo da garota, que
tinha os pensamentos numa batalha furiosa que se sobrepunham em
diferentes camadas de um oceano turbulento.
Lilly manteve seus olhos baixos. Geralmente, isso a ajudava a
pensar; no entanto, as luvas rendadas que cobriam suas mãos já haviam
sido desbravadas em cada centímetro e nada lhe disseram. Nada lhe
ajudaram a concluir sobre a súbita presença de Sebastian. E nada lhe
disseram sobre o motivo de Lucian não ter aparecido.
Ela ergueu os olhos.
É óbvio que ele não entraria pela porta principal. Papai o mataria e,
com o olhar furioso que tinha, agora, era mais do que provável que isso
acontecesse.
— Papai está bravo — disse sem rodeios, chamando a atenção de
August, que bebericava seu espumante.
Se as conversas fúteis e vazias de todas aquelas pessoas não
abafassem os berros que William lançava contra o violinista, todos se
assustariam com tamanha bestialidade por parte do homem. August podia
não entender suas palavras, mas de certo que se impressionou com o
modo como ele gesticulava violentamente, dessa vez contra o
violoncelista, todavia não fizera comentário algum. Achou que seria
indelicado.
Com a chegada de tantos instrumentos, o espaço tornou-se menor,
mas era de se esperar que um alvoroço por parte das damas, que ali
estavam, começasse; todas eufóricas com o simples vislumbre de
poderem ter uma dança com algum lorde.
— Creio que sua presença será muito requisitada agora, senhorita
Talbot — ressaltou ele e ela sentiu o suor em sua nuca, os cabelos
caindo-lhe sobre as costas e alcançando a metade da coluna em longas
ondas achocolatadas.
— Com sua licença... — Ela apanhou a bebida da mão dele e virou-
a em sua garganta instantes antes de seu corpo ser empurrado na direção
da fila, que se formava no centro do salão. Num movimento rápido, a
garota se desvencilhou da fileira de mulheres, porém, uma mão tocou seu
ombro antes que pudesse se afastar.
— Lilly... — Célia surgiu ao seu lado, seu vestido vermelho
queimado combinando com o tom caloroso das velas, o rosto por demais
branco e as bochechas excessivamente rosadas pelo blush. — Eu...
Num movimento involuntário, a garota apenas abraçou a mãe.
— Não diga nada.
— Seu eu não disser, o seu pai dirá. — A voz manhosa da mulher
traduzia seu coração partido em uma melodia triste.
Soltando-se do abraço, Lilly enxugou a única lágrima que escorrera
de seu rosto, endireitando sua postura, seus seios ameaçando saltar de
seu corset enquanto puxava a cauda do vestido.
— O que ele quer agora?
— Seu pai... tente entender...
A garota franziu o cenho.
— Apenas diga. — Insistiu Lilly num tom mais ríspido, não
escondendo a decepção que começava a sentir por saber, apenas pelo
modo como a mãe falava, que ela ainda estava de acordo com tudo
aquilo.
— William, quer dizer, seu pai, achou que você ficaria mais
confortável se pudesse ao menos escolher o seu marido.
Lilly arregalou os olhos, incrédula, mas antes que pudesse
protestar, a mãe continuou:
— Participe desta valsa. Ele a fez para você.
— C-Como...? — Os olhos dela percorreram todo o salão, uma
mistura de rostos felizes que não a entendiam. — Eu não...
— Seu pai convidou os capitães, lordes e duques para essa dança.
Participe dela e escolha com quem irá casar.
Lilly olhou para trás novamente, a fila de homens e mulheres já
pronta, as damas animadas e os cavalheiros arrogantes, acreditando que
o mundo era seu por terem dinheiro e uma beleza questionável. Como,
em algum lugar na terra, Lilly se contentaria com algum deles? Como ela
poderia encontrar o amor de sua vida numa dança que duraria alguns
minutos? A valsa fora criada para valorizar o amor e a sensualidade que
há em suas nuances. Naquele momento, para Lilly, a valsa se tornou o
caminho para sua ruína.
— Dance, minha filha... — Suplicou Célia, algumas lágrimas
escorriam pelo rosto quando ela entrelaçou seus dedos com os da filha.
— Depois de tudo que falamos ontem...
— Lilly...
— Enxugue suas lágrimas, mamãe — murmurou entre o ranger dos
dentes. — Uma dama não deve chorar, não é mesmo? Ensinou-me
perfeitamente bem a ser uma boneca a ser vendida.
— Do que está falando?
— Estou farta, mamãe! Pare com essa encenação!
A mulher fitou a garota, atônita, os olhos arregalados e marcas de
expressão inundando sua testa atolada de pó de arroz.
— Partirei esta noite, mamãe... — A respiração travou em seus
pulmões e o ar pareceu insuficiente para o corpo enquanto os olhos
ardiam em lágrimas e os lábios tremiam com tamanha inconsistência
emocional. Era demais para ela carregar sozinha. — ... e não voltarei
mais. — Lilly largou as mãos da mãe, trêmulas, e começou a se afastar,
entrando no meio da fila, os olhos firmes, tristonhos e tão frios que seriam
capazes de apagar todas as velas naquele salão.
A música, como em todas as aulas de dança que ela tivera com
Célia durante o passar dos anos, começou lentamente, tendo seu ápice
alguns minutos depois. A lentidão é óbvia, uma vez que os pares devem
se acostumar com seus parceiros. O homem com quem Lilly se
apresentava, com uma pequena reverência, era mais alto do que ela, com
uma barba áspera e tão vermelha quanto cobre. Seus olhos pareciam
gentis, mas seu toque era grosseiro e perturbador.
— Senhorita Talbot, é uma honra ter esta dança com você. — Ele
disse com sua voz grossa e firme, esperando uma resposta contente e
excitante que nunca viria dos lábios dela.
Primeiro, ele lhe apanhou o braço com um puxão que fez Lilly
arregalar os olhos. Todos giraram num círculo pequeno e bateram as
mãos numa palma conjunta. Agora, todos se afastavam, formando a fila
novamente. As damas caminharam com seus longos vestidos até ficarem
de frente para seus pares e mergulharam para baixo, deixando seus
cabelos tão perfeitamente penteados girarem em torno de seus corpos
quando voltaram para cima; Lilly não pôde deixar de notar a felicidade
com que as outras dançavam, os sorrisos largos em seus rostos fazendo
seu coração doer conforme sentia o homem ruivo medindo seu corpo com
seus olhos outrora gentis.
De repente, enquanto as sombras de seus cílios formavam figuras
sem forma sobre suas bochechas e seu corpo rodopiava, um raio pareceu
atingi-la ao ver uma figura entre a multidão, arremessando sua alma para
trás, os olhos incrédulos e os lábios entreabertos, as mãos paralisadas ao
redor do corpo e o corset tentando conter sua respiração acelerada
enquanto ela tropeçava nos próprios pés.
— Ah, perdoe-me. — Lilly desculpou-se ao sentir uma mulher
esbarrando contra seu braço, agitando seus cílios rapidamente enquanto
erguia o rosto, procurando por quem seus olhos achavam que tinham
visto.
— Ande logo, garota. Não me faça passar vergonha. – Ordenou o
ruivo enquanto apanhava sua mão, girando-a, seu vestido rodopiando em
seus pés. Dois passos para frente. Um para trás. Um novo giro. Lilly
achou ter visto o rosto dele de novo. Era impossível. Ele não estaria ali.
Não havia como ele ter entrado, não sem ela ter aberto as longas janelas
do fundo...
— A senhorita está bem? — Pela primeira vez, o ruivo com quem
dançava resolveu perguntar. — Parece-me demasiadamente distraída. —
Seu tom de reprovação constante fez a garota ter certeza de que
colocaria um fim àquilo naquele instante.
— Se me permite, dê-me licença. — Pediu a garota, mas sem
intenção alguma de esperar por uma resposta, enquanto agarrava a saia
de seu vestido, o tecido tocando os dedos trêmulos, caminhando entre
todos aqueles corpos dançantes, os pés firmes e o coração esmagando
seu peito.
De repente, num giro único, Lilly o enxergou de fato. Teve certeza
que era ele. O maxilar quadrado. Os olhos castanhos tão belos e
misteriosos quanto um oceano de chocolate amargo. O cabelo tornando-
se dourado com as velas, estando um tanto despenteado. A pele
avermelhada pelo sol sendo coberta por um terno preto que lhe fazia
parecer mais alto, perfeitamente alinhado em seus ombros.
A música parou por um tempo e o próprio ar pareceu congelar-se.
Cada movimento. Cada sensação. Tudo pareceu se amplificar enquanto
ela assistia-o vindo em sua direção, passos lentos, despretensiosos,
sabendo que ela o estava olhando. Lilly não disse nada, apenas
endireitou-se na frente dele, sentindo-o tomando sua cintura com as
mãos, seus dedos firmes puxando-a para perto, comprimindo seu corpo
no seu, seu hálito de sal misturava-se com a loção em seu rosto e seus
olhos desejavam tê-la para sempre.
— Senhorita Talbot... — disse ele, um calafrio percorrendo cada
nervo do corpo da garota enquanto os olhos permaneciam encantados de
vê-lo ali.
— Senhor Campbell. — Ela sorriu.
— Lilly. — Os dentes do marinheiro exibiram-se por entre seus
lábios finos com um sorriso travesso, algumas gotas de suor escorriam
por sua testa e a excitação em seu olhar o deixava ainda mais belo.
— Lucian. — Ela disse, o coração acelerando enquanto ele a
conduzia não naquela dança, mas sim por entre as batidas de seu próprio
coração.
Capítulo XIX
Um oceano de amor
— Ficará apenas olhando-me, senhor Campbell, ou irá me contar o
que está fazendo aqui? — Lilly perguntou por entre um sorriso enquanto a
nova música começava a ser tocada, os músicos aprumando seus
instrumentos e compostura.
— Perdão, mas é que... creio que nunca a tenha visto tão linda —
admitiu por entre uma risada, que foi alongada pelo doce som da voz de
Lilly. De tantos galanteios que recebera naquela noite, aquele foi o único
que lhe pareceu sincero. E era só isso o que importava.
— Como entrou aqui? — perguntou enquanto sentia seus pés se
movendo conforme as notas. — Papai permaneceu na recepção a noite
toda. — Ela franziu o cenho enquanto pensava, os olhos rápidos,
analisando as feições dele, tão belas à luz quente das chamas
bruxuleantes, que balançavam junto aos seus movimentos.
— Devo admitir que a segurança de William Talbot é muito precária
— zombou ele com carisma e ela o olhou com reprovação, mordendo o
lábio inferior.
— Conte-me, Lucian.
— Achei que ele mesmo tivesse lhe contado... — Agora, o loiro
estranhou o fato da garota realmente não saber como ele poderia estar
ali.
— Ele?
Antes de respondê-la, ambos deram dois passos para trás, um para
frente, e Lucian a girou, o vestido passando por sobre seus pés enquanto
assistia-a retornando para perto de seu corpo.
— Sebastian. — Ele afirmou, como se fosse uma constatação
óbvia.
— Mas... — Ela permitiu que seus olhos se distraíssem e
procurassem pelo capitão, porém não o via mais ali e, como se estivesse
lendo sua mente, Lucian inferiu:
— Se está procurando por ele, sinto desapontá-la em dizer que ele
não está mais aqui.
A garota franziu o cenho enquanto sentia os dedos dele
entrelaçando-se nos seus e seu coração se acelerou com tal movimento.
— Estou tão confusa.
— Imaginei que diria isso. — Ele sorriu, travesso, e ela lhe deu um
tapa sobre o peito. — Quando...você me ajudou a sair... — As palavras
travaram em sua garganta e ele engoliu em seco. — Você sabe de onde...
Lilly maneou a cabeça de forma a concordar com ele.
— Eu... sabia que precisaríamos de um barco, afinal, não há lugar
algum em terra que seu pai não iria nos procurar caso fugíssemos. — Ele
olhou para os lados, desconfiado de que pudessem estar sendo ouvidos,
mas a verdade era que todos estavam preocupados demais com
conversas baratas e espumante para que prestassem atenção no que
diziam. — Sebastian é o único capitão que poderia nos ajudar.
— E o capitão da companhia para a qual trabalha?
— Não. Ele não gosta muito de mim — admitiu, dando de ombros,
com um sorriso amarelado no rosto. — Na verdade, nem sei como a
senhorita gosta.
E, com uma resposta silenciosa, ela simplesmente lhe afagou o
rosto.
— Eu não gosto do senhor. — Os olhos de Lilly brilharam. — Eu o
amo.
Conforme ela baixou a mão pelo pescoço dele, seus dedos tocaram
o tecido de seu terno, tão liso e bem passado, certo em seus ombros, mas
com um bordado diferente em seu interior, que atraiu os olhos dela.
— Há algo escrito em seu colarinho? — Ela fez menção de
aproximar-se para ler, mas ele a puxou para perto, olhos nos olhos, o colo
dos seios dela saltando por cima do corset, brincando com o tecido que ia
até seus ombros enquanto ela sentia a respiração dele ainda mais densa.
Giraram em círculos arrebatadores. Ela levantava sua saia,
camadas e mais camadas de um tecido que parecia flutuar pelo ar, Lucian
tocava sua cintura de modo a nunca a deixar se afastar demais e, se o
fizesse, tendo a certeza de que retornaria. Olharam um para o outro,
excitados.
— Okay — começou ela, rindo por entre as palavras. — Devo
presumir que há algo que não queira que eu veja em seu colarinho.
Ele baixou o olhar, e deparou-se com os seios da garota saltando
em sua direção e, no mesmo instante, sentiu as bochechas corarem e
temeu ser indelicado, mas ao voltar seus olhos para cima e encarar os
dela, o sangue correu ainda mais forte por seu corpo.
— É só que... — A boca dele tornou-se seca. — Deixe-me terminar
a história, está bem?
Lilly fez que sim.
— No dia em que você pateticamente tentou ganhar a luta de
espadas...
— Eu ganhei aquela luta — ressaltou ela.
— Vai realmente me interromper? — Ele fingiu estar ofendido.
— Só se estiver disposto a continuar com tais calúnias.
Ele revirou os olhos. A música já estava chegando ao fim.
— Quando lutamos... — Ele corrigiu sua fala, mantendo-se neutro e
arregalando os olhos para ela, como se para se certificar que a garota
também estava satisfeita com tal sentença — ... decidimos que iríamos
pegar o barco, e Sebastian me pareceu a melhor opção. Fui até ele,
conversamos e ele me disse que estava para partir em uma viagem de
negócios. Disse que partiria no outro dia e...
— Ele lhe disse isso? — indagou apenas para se certificar.
— Sim. — Lucian franziu o cenho. — Por quê?
— Não é nada. — Ela sorriu com os lábios colados, tranquilizando-
se com o fato de Sebastian ter estado ali naquela noite e por seu pai não
ter nenhum envolvimento com aquilo.
— Bom — continuou —, eu tentei convencê-lo a atrasar a viagem
apenas por mais alguns dias, somente para que chegasse o dia de hoje,
mas ele disse que não... — Os olhos dele estreitaram-se e a fitaram. —
Até eu dizer que era para fugir com você.
Um arrepio percorreu a nuca dela e a dança terminou, com
calorosos aplausos que vinham de mãos cobertas por luvas de renda ou
então por cavalheiros que não tinham charutos entre os dedos.
Novamente, o ar pareceu parar, mas a atmosfera tornou-se fria e os
ventos mudaram de direção no exterior, quase como um aviso.
— O que quer dizer, Lucian?
— Sebastian disse que me devia uma por todo aquele, digamos,
incidente. Disse que irá nos ajudar.
— Se fosse por tal motivo, não acha que ele teria aceito antes?
Antes de dizer meu nome, ao menos?
Ele franziu o cenho, considerando aquilo, mas antes que dissesse
algo ela continuou:
— Eu não confio nele, Lucian.
— É a nossa única chance, Lilly.
— Mas... — Ela engoliu em seco, sentindo a saliva arranhar a
garganta.
— Foi ele que me ajudou a entrar. — O loiro tocou seus ombros
enquanto caminhavam lentamente na direção do buffet. — Ele que abriu a
porta dos fundos.
Ela franziu o cenho. Tudo estava tão estranho.
— Mas como ele poderia saber que há uma porta dos fundos,
Lucian?
Porém, o loiro deu de ombros, não sabendo como responder, e
aquilo apenas a afligiu ainda mais.
— Ei, o que foi? — perguntou enquanto tocava seu queixo com o
polegar, girando o rosto dela em sua direção.
— Não gosto disso. — Admitiu com medo em seus olhos. — Há
algo errado.
— É a nossa chance, Lilly, nossa única chance — frisou o loiro.
— Vai me dizer que ele também lhe emprestou essa roupa? —
zombou ela tentando relaxar, mas já sentindo a tensão nos tendões de
seu pescoço. — É por isso que não quer que eu veja o nome bordado
nela?
Lucian exibiu um sorriso acanhado, coçando sua nuca ao dizer por
entre o agitar dos cílios:
— Não exatamente. — Ele puxou sua gola, revelando um bordado
em cinza-chumbo, o qual lia-se: propriedade de Frederick Goutein. Lilly
arregalou os olhos, incrédula.
— Você está com a roupa do Lorde Goutein!? — exclamou alto
demais, fazendo-o rir enquanto mandava-a falar mais baixo. — Como!?
Onde ele está?
Ele a virou na direção do buffet, ambos de costas para uma nova
fila que se preparava para mais uma dança. Ombro com ombro.
Respirações pesadas. Lilly tentando conter sua risada enquanto ele sorria
atrevido.
— Tranquei-o no andar de cima. — Lucian sussurrou as palavras
em seu ouvido, inclinando-se para o lado apenas para, em seguida, rir da
forma mais pura que conseguia, olhos brilhantes e o ar enchendo seus
pulmões de uma inocência quase infantil. Lilly sentiu as bochechas
esquentarem e a vontade de permitir que seus lábios tocassem os dele
apenas aumentava.
— O senhor só pode estar louco.
— O amor nos faz fazer coisas do tipo.
Ela riu mais uma vez e os ombros foram para frente enquanto o
cabelo acompanhava o movimento.
— Mesmo? Vai jogar a culpa no amor?
— Hora, senhorita Talbot, o amor tem suas escolhas assim como o
oceano tem suas ondas.
Os olhos dela encantaram-se com um brilho que ele jamais vira e
ela tocou-lhe a mão.
— Acho que só precisamos ser corajosos o bastante para
desbravá-lo, então.
Lucian mordiscou o interior da bochecha, desejando tocá-la. Sentir-
se dentro dela mais uma vez. De beijá-la. Mas como um cavalheiro deve
ser, ele apenas ergueu a mão de Lilly na direção de seus lábios e a beijou
com delicadeza, uma onda eletrizante e quente percorrendo cada
centímetro do corpo dela logo em seguida.
— Está bem, Lucian. — Ela sorriu para ele. — Iremos com
Sebastian.
E o loiro sentiu a adrenalina correndo por seus músculos enquanto
o sorriso abria-se tanto que até uma faixa fina de sua gengiva apareceu.
Aquilo a fez rir e, logo em seguida, ela disse:
— Mas você sabe que uma hora ele terá de sair.
A garota apanhou um camarão.
— Ele quem?
— Lorde Goutein.
— Ah. — Ele arregalou os olhos e arqueou as sobrancelhas
enquanto ria. — Tem razão. — Num súbito, a agarrou pela cintura. —
Então, creio que seja nosso dever aproveitar todas as horas que ainda
nos restam. — Lucian tirou-a do chão com um único movimento, o ar
abafado lançando os cabelos de Lilly para o lado, os olhares ao seu
arredor julgando-a inescrupulosamente. Mas nenhum dele era tão severo
quanto o de William Talbot.
— Pare, Lucian. — Ordenou e ele a abaixou de imediato, confuso.
— Fique atrás de mim. — Pediu Lilly assim que seus pés tocaram o chão.
O pai a estava encarando, frívolo e imparcial, as mãos atrás das
costas.
— O que foi?
— Não deixe que eu saia da sua frente. — Ela sentiu a saliva
arranhando sua garganta enquanto as clavículas saltavam por entre o
respirar denso, pesado e nervoso, falho pelo medo. — Papai está me
olhando.
Lucian o observou por sobre o ombro da garota, fugaz o bastante
para não ser notado.
— É, está mesmo.
Ela revirou os olhos, mordiscando o lábio, nervosa.
— Ele não pode ver seu rosto.
— O que faremos?
— Darei uma volta pelo salão, fique aqui.
Enquanto distanciava-se dele e sentia o medo da possibilidade de
William deparar-se com Lucian, ela percebeu o quanto, de fato, tinha de
partir. O amor que desatava em seu peito era grande demais para
contentar-se com momentos fugazes de tensão absoluta. Ela precisava
dele, e deixar tudo o que um dia conhecera para trás era o único meio de
ficarem juntos. Assim, um alívio recaiu sobre os ombros de Lilly ao ver seu
pai se virando, as costas um pouco curvadas conforme ele apertava a
mão de um velho, cego de um olho. Agora, enquanto ela esforçava-se a
enxergá-los por entre as cabeças dançantes e as taças cristalinas, William
já subia os degraus que levavam ao seu escritório.
— Vai ficar tudo bem — disse quando retornou até ele, assistindo-o
sugar uma ostra e a saliva escorrendo pelo canto dos seus lábios. — Não
aprendeu a como comer ostras quando era menor? — debochou.
— A senhorita é muito metida — retrucou enquanto limpava seus
lábios com um guardanapo.
— Arriscou-se demais, senhor Campbell — admitiu seriamente
enquanto retornava à frente dele.
— Nós dois arriscamos — respondeu tão sério quanto ela.
Lilly baixou os olhos e perdeu-se em seus pensamentos enquanto
girava no lugar, o vestido dançando de forma leve e suave ao redor do
corpo, como um dente-de-leão que acabara de ser assoprado por uma
jovem garota incapaz de negar um amor tão peculiar e ardente quanto o
deles.
— Estou bonita mesmo? — Perguntou, travessa.
Lucian sorriu e inclinou seu rosto na direção do dela, fazendo
menção de beijá-la, os lábios entreabertos e a respiração acelerada. Por
mais que quisesse, Lilly baixou o rosto, sentindo o olhar de todos recaindo
sobre ela.
— Seja discreto, senhor Campbell.
Ele pigarreou.
— Mas é claro. — O loiro ajeitou seu colarinho, sentindo o calor
escorrer por seu pescoço em formas de gotas de suor. — Não há algum
lugar mais reservado para nós?

***

Os ventos que envolviam os braços desnudos de Lilly Talbot


estavam carregados com o sal da maré, e pareciam grudar em seus
cabelos como pequenas partículas brilhantes conforme ela caminhava de
um lado para o outro, pés nervosos e pensamentos agitados enquanto
seu coração se confundia com as conversas abafadas que lutavam para
cortar o silêncio da noite. As estrelas brilhavam tanto quanto a dúvida que
se formava como uma vinha feroz, envolvendo as incertezas da garota,
fortificando-as na medida que seu coração tentava destruí-las. Isso era
amor; a incerteza do que fazer defronte a alguém que lhe é capaz de tirar
o ar com apenas um sorriso e de te destruir com um piscar de olhos, mas
a eterna vontade de permanecer ao lado da peculiaridade encantadora
daquele ser que você não pode evitar amar.
— E para onde vamos? — Ela indagou numa espécie de sussurro
enquanto a ideia tornava-se cada vez mais clara em seu ser, fazendo as
vinhas fugirem de sua luminosidade, descendo até seu estômago.
— Se não me engano, Sebastian disse algo sobre Dina-alguma-
coisa.
Lilly esboçou um sorriso amarelado.
— Dinamarca?
— Isso!
O jardim dos fundos era tão calmo quanto a vastidão e negritude
dos céus que resolverem atingir um tom mais baixo do que o normal. As
estrelas brilhavam com uma maior intensidade enquanto as folhas do
jardim circundavam um quadrado fofo e macio de uma grama baixa e bem
cortada. O vestido champanhe transcorria por entre as finuras
esverdeadas, roçando-as com delicadeza, instantes antes dela se sentar
sobre a beirada de um canteiro.
— Você está com medo, não está? — Ele perguntou, chamando a
atenção dos olhos dela, brilhantes.
— E não deveria?
Ela engoliu em seco. As mãos apertaram o cimento batido do
assento.
— Na verdade, sim.
Lilly franziu o cenho enquanto assistia-o se sentando ao seu lado,
ombros colados enquanto o semblante dele permanecia sério ao dizer:
— Lilly, o medo vem da incerteza, e não há maior incerteza do que
ir embora de casa. — Ele olhou para frente, fitando os vidros do fundo, os
topos das cabeças passando em meio às velas e os gritos soando como
murmúrios. — Abandonar tudo o que conhecemos é realmente
assustador.
Uma lágrima escorreu no rosto dela e a garota sentiu as bochechas
tremerem conforme seus lábios tentavam formar palavras que chegavam
aos tropeços em sua garganta.
— V-Você teve medo quando saiu de casa?
— O orfanato não era minha casa, Lilly — respondeu secamente,
estalando os dedos, sentindo a palma da mão suar.
— Eu sinto muito. — Ela fungou.
— Não tem que sentir. — Ele olhou para ela, tão tristonha e incerta
enquanto seu coração se dividia entre a infelicidade conhecida e o
desconhecido apaixonante. — E quer saber por quê?
O rosto dela virou-se na direção dele e Lucian acariciou suas
bochechas coradas.
— Porque você me deu uma casa, Lilly. — A mão dele escorregou
pelo pescoço da garota, sentindo seus batimentos e sua respiração
elevando-se conforme os dedos repousaram sobre o colo do seio dela,
onde o coração lutava para ser ouvido. — Bem aqui.
Ela respirou profundamente conforme as lágrimas ressurgiam em
seus olhos.
— Apenas venha comigo. — Ele envolveu a cintura da garota e
puxou-a para perto. — Permita que eu te ame até o meu último respirar.
— E, num beijo, Lucian fez toda a incerteza desaparecer. As vinhas que a
amarravam sucumbiram ao brilho eterno de um amor inocente, o qual
jamais poderia ser retratado com tanta perfeição entre palavras, mas que
poderia ser para sempre lembrado pelos dois amantes, que jamais
esqueceriam o modo como as estrelas os observaram na noite em que se
entregaram por completo.

***

Então, era isso. Tinha de seguir seu coração enquanto corria de um


lado para o outro em seus aposentos, certificando se havia posto todo o
necessário em uma mala marrom ao mesmo tempo que Lucian a
esperava nos fundos, nervoso, as mãos enfurnadas nas calças.
Enquanto a adrenalina súbita fluía entre as veias da garota, seus
pensamentos não conseguiam evitar uma colisão, fazendo-a oscilar entre
a alegria da paixão e o medo. Com um sorriso, ela dobrou as mangas do
último traje que colocara na mala, correndo para sua penteadeira,
abrindo-a num movimento rápido, apanhando um colar de figura
deformada, mas que ainda assim conseguia lembrar um círculo de ouro
branco, que sua mãe lhe dera quando mais nova. Pronto. Essa seria a
última lembrança que queria ter da mãe, quando elas ainda riam e
confidenciavam segredos uma à outra, ou então quando ficavam até tarde
na frente do fogão a lenha, tentando criar uma mistura doce o suficiente
para passar em algumas frutas. Lilly colocou o colar sobre o pescoço e o
assistiu pender até a altura dos seios, as lágrimas de seu passado
inundando seus olhos enquanto a luz do luar pálido banhava suas
bochechas quentes, tornando-as tão alvas quanto leite.
Ela apanhou a mala e o peso de suas escolhas recaiu sobre seus
ombros mesmo antes de acontecer. Respirando fundo, Lilly abriu a porta
do seu quarto, andando em direção ao corredor sabendo que aquela era,
possivelmente, a última vez que caminhava por aquele lugar, o piso de
camurça amaciando o seu pisar, igual aos momentos em que tinha
vislumbres de sua infância, quando corria pela casa, gritando e rindo
enquanto sua mãe tentava apanhá-la para vesti-la de maneira adequada a
tempo de que ambas estivessem apresentáveis para a chegada de
William, e ainda assim, no final do dia, tudo o que ganhava do pai era um
olhar de reprovação. Tristemente, aquele era o único tipo de lembrança
que tinha com ele. Amarga. Fria. Quase como uma ferida exposta; difícil
de se olhar.
Agora, passando em frente ao escritório de seu pai, ela parou,
olhos fixos na porta de madeira pesada que os separava. Um fardo pesou
sobre o coração da garota. Ela não havia criado laços fortes o suficiente
para fazê-la chorar pela despedida com o pai, mas também não criara
nada tão efêmero que não a fizesse sentir-se chateada.
— Isso não faz sentido algum, William! — A voz de um homem
soou pela porta, abafada pela madeira e as vozes do piso inferior,
alcançando os ouvidos dela quase como um sussurro.
— Já lhe disse, Lorde Ferish! E direi quantas vezes eu precisar! —
Um tapa por sobre a mesa de mogno fez Lilly afastar-se da porta por um
momento. A voz de William ressoava tão forte quanto um trovão mesmo
por uma passagem fechada, o que a fez imaginar o que estaria levando-o
a tanta fúria.
— Piratas, Talbot!? Ó, pelo amor de Deus, nossos barcos são os
mais protegidos! — Uma terceira voz surgiu, mais nova e aparentemente
mais fina. — Se quisesse, poderia tê-los afundado!
William rangeu os dentes e franziu os lábios, as sobrancelhas
alinhando-se por sobre os olhos, tornando-os escuros e amargos.
— Ousa dizer que eu estaria compactuando com esses
maltrapilhos!? — Ele berrou no final.
— Não sabemos de nada, Talbot. — Ferish se posicionou
novamente. — Mas, pelo que ouvimos, uma terceira frota já foi abordada e
não houve perdas para os "piratas".
— Cavalheiros — Lilly ouviu-o se sentar —, a empresa Talbot já
está no ramo marítimo há mais de duas décadas. Seria imprudente
ameaçar-me de traição, a não ser que saibam arcar com as
consequências.
— Está nos ameaçando!? — Ferish exaltou-se, a voz tornando-se
esganiçada, soando menos raivosa do que deveria.
— Bom... — William tentou recomeçar, gabando-se através de
gestos calmos com as mãos, mas antes que pudesse sequer dar sentido à
sua nova frase, a terceira voz o interrompeu:
— Você irá falir se seguir este caminho, Talbot.
— Como ousa!? — O pai esbravejou.
— Falemos a verdade, o senhor já está velho. Não pode mais
comandar. Poderíamos alegar demência ou retardo e o Conselho
concordaria, na primeira carta, com o seu afastamento.
— Não podem!
— Na verdade, William — Ferish andou pelo cômodo
sorrateiramente, passos lentos e arrastados, acompanhados de sua
bengala —, podemos.
Não houve resposta. Lilly mantinha sua atenção tão afiada quanto
as vozes dos homens daquela sala.
— Todavia, se conseguir conter os tais "piratas", não iremos pedir
pelo seu afastamento.
— Consiga levar o novo carregamento até a Dinamarca e iremos
manter nosso contrato, caso contrário aguarde a nossa carta. — Alertou a
terceira voz, a qual Lilly não fazia ideia a quem pertencesse.
— Não há necessidade para tamanho alarde, cavalheiros. —
William endireitou os ombros e passou a mão em sua barba arredondada.
— Já me certifiquei de mandar meu melhor capitão para esta viagem.
— E quem seria? — Ferish fez questão de perguntar.
— Sebastian Pelletier. Esteve aqui momentos atrás, para cortejar
minha filha, já que lhe dei a honra de desposá-la, mas já está partindo.
— Ele deveria ter deixado o porto há três dias.
— O capitão me disse que houve problemas no casco do navio,
que estavam sendo reparados e que...
— Não foi ele que relatou novos ataques de piratas?
O rosto do velho empalideceu ao responder:
— Não.
— Sob o comando de quem estava a embarcação atacada?
Por um momento de dúvida, William fechou o cenho e, com
firmeza, mentiu:
— Lucian Campbell.
Lilly cerrou os punhos e sentiu o maxilar tenso. Ele não tinha o
direito de..., mas antes que seus pensamentos fossem concluídos, a
terceira voz recomeçou:
— Achei que o senhor Campbell havia sido demitido por
incompetência.
William pigarreou.
— Bom, acredito em segundas chances. — O senhor Talbot forçou-
se a dizer, o sangue em seus punhos fervendo.
— Nós não acreditamos em segundas chances, Talbot. — Ferish
retrucou secamente, a bengala levantada na direção de William, quase
como uma arma. — Se esse rapaz já fracassou uma segunda vez, não há
de ser uma mera coincidência.
— O que está alegando, meu pai? — Indagou a terceira voz, agora
clara na mente de Lilly como sendo o descendente de Lorde Ferish, Josh.
— Creio que possa haver alguém infiltrado em sua companhia,
William. — O velho de um olho só prosseguiu, apoiando ambas as mãos
naquele pedaço de madeira que o sustentava. — E se esse alguém está
envolvido com a queda dos lucros do Conselho Marítimo de Eastbourne,
bom, este homem sofrerá as consequências.
— O que está propondo? — William apoiou-se sobre a mesa, o
peso de seu corpo gordo sendo jogado para a direita.
— Devemos encontrar esse tal de Lucian Campbell e... —
pigarreou — dar um fim nisso.
— E se ele for inocente? — Josh indagou.
— Ele falhou conosco duas vezes, meu filho. Já é mais do que
poderíamos tolerar. — O velho olhou na direção de William. — Sabe onde
este rapaz estaria?
Lilly sentiu o coração se acelerar e cada sentido pareceu aguçar-
se.
— Na verdade, não sei.
E ela deixou uma lufada de ar escapar por entre os lábios
ressecados.
Mas então tudo aconteceu num súbito. Um estrondo aturdiu os
ouvidos de Lilly enquanto pedaços de madeira espalhavam-se pelo chão.
Ela olhou para trás, erguendo-se tão rápido quanto podia à medida que
apanhava a mala e segurava a barra de seu vestido a tempo de ver Lorde
Goutein que, agora, estava no chão, vermelho e raivoso com suas roupas
íntimas à mostra, os olhos cheios de fúria enquanto a garota descia as
escadas em direção ao saguão, pulando de dois em dois degraus e
pedindo aos céus para que não caísse.
— Nossa, Lilly, quer dizer... — August pigarreou — ... A senhorita
está bem? — Indagou ao sentir o corpo da garota trombando contra o
seu. — O que está havendo?
— Eu sinto muito. — Ela olhou por sobre o ombro, fitando o andar
de cima, assistindo aos pés dos homens descendo as escadas aos
tropeços, o lorde que tivera suas roupas roubadas guiando a todos, olhos
fixos na multidão enquanto as meias lhe escapavam nas canelas.
Naquela fração de segundo, a garota puxou August para si e
abraçou-o, sussurrando ao pé do ouvido dele:
— Cuide de Heather por mim. — E ela lhe deu um beijo na
bochecha, fugaz o bastante para deixá-lo surpreso. — Eu tenho que ir!
E, assim, ela disparou em meio às pessoas, a mala pesando em
seus braços enquanto ela abria seu caminho entre a multidão, os cabelos
voando atrás de seu pescoço conforme o respirar tornava-se incômodo.
— Lilly — Lucian parou-a num súbito, segurando-a pelos braços. —
O que está acontecendo?
— Você deveria estar lá fora! — exclamou surpresa.
— Eu só...
Mas ele fora interrompido:
— Ali!
Com os olhos arregalados, Lilly virou-se apenas para, em seguida,
enxergar Lorde Goutein em suas ceroulas amassadas, o indicador
apontado para Lucian, que estava atrás dela enquanto Lorde Ferish e
Josh ameaçavam se movimentar. William vinha logo atrás.
— Peguem-no!
***

Um fervor animalesco percorria cada milímetro do corpo deles.


Lucian e Lilly não esperaram que todos se acalmassem ou que
simplesmente voltassem a dançar. Não. O pensamento rápido os fizera
virar em direção à porta dos fundos, as pernas dando passos rápidos a fim
de chegar a tempo de saírem com certa vantagem, mas havia uma figura
na frente da passagem.
— Mamãe... — A garota sentiu as palavras travarem e os olhos
falaram por si, brilhantes em lágrimas de súplica enquanto a mulher
apenas erguia a mão em meio à atmosfera quase tátil e abria a passagem
para eles, segurando a maçaneta da porta como se fosse seu coração ao
dizer:
— Vão pela vilela, chegarão mais rápido.
Um arrepio percorreu o corpo da garota enquanto assistia à mãe
mantendo-se firme.
— Vão!
A garota apenas tocou o ombro da mãe e ambos saíram em
direção à noite numa corrida até o porto, onde os velhos navios estavam
atracados, os mastros retorcendo-se contra o vento intransigente.
Ela não conseguia evitar sorrir. Era natural, puro e simples, os
dentes brancos perfeitamente alinhados exibindo-se a todos aqueles que
parassem para olhá-los. Ainda era possível ouvir os sons dos passos
abafados dos homens que corriam atrás deles. Lucian a estava guiando,
sua mão direita segurando a dela com firmeza enquanto os olhos
permaneciam atentos ao caminho de paralelepípedos errantes. A cidade
dormia, contudo eles sentiam-se mais acordados do que nunca, cada
centímetro de seus corpos banhando-se em adrenalina naquele caminho
aparentemente infindável.
— Você confia no que sua mãe disse? — gritou ele por entre a
noite, olhando de relance por sobre o ombro.
E, pela primeira vez depois de muito tempo, a garota disse sem
hesitar:
— Sim.
Então Lucian também não hesitou, segurando a mão dela com
mais força enquanto iam para o meio da rua, passando de frente para
uma única taberna aberta, onde homens barbudos comemoravam sua
chegada à terra firme com bebidas e gritos eufóricos, até alcançarem uma
passagem estreita o bastante para ser sufocante.
— É por aqui? — Ela perguntou, o coração dolorido de seus
batimentos descontrolados. Lilly agradeceu em sua mente por aquela
pausa. Ela teve de se lembrar de respirar.
— É a única vilela que conheço que poderia dar acesso ao porto.
— Estão ali! — berraram ao longe e ambos olharam assustados, os
passos firmes dos homens aproximando-se em longas passadas e o ódio
em seus olhares. Lilly não mais via William junto deles.
— Vamos, então. — Afirmou ela e ele recomeçou a guiá-la, agora,
pela rua estreita, tão malcuidada que muitos deveriam ter ignorado sua
existência, com restos de papel amassado e alguns barris vazios que se
empilhavam ao fundo. Lilly espremeu seu vestido pela passagem
enquanto os sons dos pés dos perseguidores pareciam se aproximar cada
vez mais.
Eles foram rápidos o bastante para não só atravessarem, mas para
que também o loiro pudesse jogar os barris de madeira contra a
passagem, tapando-a novamente quase por completo, antes que os
homens chegassem. Lucian a encostou contra a parede, detendo-a por
alguns segundos, sentindo seus corpos unidos enquanto passos paravam
próximo demais.
— O que...? — Ela fez menção de perguntar em um sussurro, mas
Lucian tocou seus lábios com o indicador, pedindo para que ficasse em
silêncio.
— Mas para onde eles foram? — Ela ouviu Josh perguntar.
— Que tal essa passagem? — Sugeriu Goutein.
Lucian sentiu o suor escorrendo ao pé de seu cabelo em meio à
tensão.
— Não, está cheia de lixo bloqueando — resmungou Josh. — Verei
a taverna, então.
Eles aguardaram mais alguns segundos, esperando que o Lorde
Goutein aquietasse seus pés nervosos. Bom, eles não podiam julgá-lo,
afinal, estava só com suas roupas íntimas e em plena via pública.
— Lucian... — Ela o chamou por entre um sussurro e apontou para
longe. — Olhe.
E quando ele o fez, seu peito pareceu se abrir e relaxar, um peso
saindo de seus ombros. Agora, os mastros principais de todos os navios já
se tornavam visíveis, rasgando o céu negro com suas pontas de madeira
talhada de modo a sustentar o peso dos tecidos enormes que formavam
as velas.
— Vamos? — perguntou ele.
— Podemos respirar só mais um pouco? — Ela colocou a mão
sobre o diafragma, sentindo as costelas apertadas pelo corset e suor
escorrendo por seu pescoço enquanto as pernas pareciam recusar um
comando tão simples como andar. — Acho que não consigo correr,
Lucian.
Os olhos encheram-se de preocupação enquanto ele recuava até
ela, as mãos tocando seu rosto.
— O que foi?
— Pre-Preciso... descansar...
Ele olhou para trás, o peito ofegante enquanto a respiração
tornava-se pesada. O porto estava tão perto. Já dava para ouvir a maré
arrebentando contra a costa.
— Estamos tão perto, meu amor. — Ele tocou sua testa com a dela
e engoliu em seco, a boca ansiando por qualquer líquido que a
refrescasse enquanto as mãos moldavam o rosto dela, tão delicado
quanto porcelana.
Lilly grunhiu e forçou-se a continuar, os pés se arrastando numa
corrida mais lenta enquanto os homens voltavam a falar, suas vozes
tornando-se cada vez mais distantes. Então, após minutos que levaram
uma eternidade, o navio tornou-se a única coisa que os separava de uma
vida completamente diferente. Havia uma prancha, mal feita e tombada
para a direita, na qual Lilly apressou-se a subir, segurando as dobras de
seu vestido sabendo que Lucian estava logo atrás dela, os pés receosos
de falharem. À sua frente, o convés do navio a recebia de forma
agradável, uma figura com um sorriso amigavelmente preocupado
surgindo à sua frente.
— Bem-vinda à bordo, senhorita.
Sebastian estendia, agora, sua mão esquerda para ela, uma
sobrancelha erguida, ajudando-a subir ao convés daquela enorme
embarcação, seus cabelos escuros à escovinha e os olhos verdes
refletindo as águas que batiam contra o navio de forma suave, quase
como se estivessem acariciando a madeira e seus pregos.
— Sebastian. — Lilly deixou escapar por entre uma lufada de ar,
tentando não demonstrar que, no fundo de seus pensamentos, ainda
havia uma pontada de dúvida quanto a ele.
Assim que Lucian já havia embarcado e a passarela fora retirada,
Sebastian deu a ordem para que partissem, deixando os velhos tolos e
mesquinhos perdidos na madrugada, com seus rostos vermelhos como
pimentões e olhos tão pequenos que desapareciam nas sombras de suas
almas gananciosas.
— Lucian... — Ela chamou por ele quando sentiu o primeiro
balançar do navio, que a nada se prendia a não ser à coragem daqueles
que o comandavam.
— Sim. — Ele sorriu para ela, quase como se lesse o que estava
em sua mente. — Nós conseguimos, Lilly. — A garota sentiu sua mão
sendo tocada pelas de Lucian, que as puxavam para perto, gentil e
fervorosamente. — Nós conseguimos!
E, num beijo quente, os ventos salgados contornaram as silhuetas
dos amantes, perdidos demais entre sua paixão para sequer imaginar o
que lhes aguardava nas águas sombrias e azuladas que o oceano insistia
em açoitar contra o navio.
Capítulo XX
Armadilha
Era noite e o navio chacoalhava conforme desbravava as ondas.
Lilly estava com os braços apoiados na amurada, próxima às cordas que
levavam até as velas dos mastros, os cabelos sendo apanhados pela
brisa enquanto os olhos estreitavam-se por entre a noite, poucas
lâmpadas de latão iluminando a escuridão.
— Hey, senhorita Talbot. — Lucian a abraçou por trás, as mãos
envolvendo sua cintura enquanto marinheiros sonolentos caminhavam
errantes para as áreas inferiores do convés, a caminho de suas redes
penduras em ganchos velhos que arrebentariam a qualquer hora. — Não
acha que deveria estar dormindo?
Ela sorriu com os lábios colados e se virou, deparando-se com o
rosto dele tão próximo do seu, seu hálito escapando por entre os lábios
entreabertos na iminência de beijá-la, mas Lilly o deteve com o toque do
indicador em seu queixo, o que o levou a perguntar:
— Eu estou fedendo, não é?
E aquilo arrancou uma curta risada da garota, que chamou a
atenção de um marujo que descansava as pernas na outra extremidade, o
sono embaçando seus olhos que nada fitavam, seu traseiro preso em
meio a um amontoado de cordas.
— Não é isso... — Lilly voltou-se a se virar, fitando além da névoa
da noite que dançava sobre a superfície salitre do desconhecido. — É
que... há quanto tempo estamos no mar, Lucian?
O loiro franziu o cenho e desvencilhou sua mão da cintura dela,
encostando-se ao seu lado, os dedos entrelaçados e os olhos procurando
por aquilo que a garota tentava ver com tanto afinco.
— Quatro dias, eu acho. — Ele deu de ombros enquanto lambia os
lábios, o estômago roncando devido à última precária refeição que nada
mais fora que uma fatia de pão e um pouco de gim. — Por quê?
— Porque — Um calafrio percorreu o corpo dela e um rubor surgiu
em seu pescoço — acho que não estamos indo a lugar algum.
Nesse instante, Lucian franziu o cenho, as sobrancelhas unidas em
um único ponto enquanto ele olhava por sobre o ombro na direção de
Sebastian, que tinha as mãos firmes envoltas ao timão e o olhar no
horizonte escuro.
— Como assim?
Um raio cortou o ar de repente, iluminando os céus, espalhando-se
por entre as nuvens cinzentas que alertavam a vinda de uma tempestade.
— Acho melhor entrarmos — sugeriu ele, tocando-a no ombro,
entretanto a garota estava fixa em seu lugar.
— Lucian, ouça-me. — Lilly engoliu em seco e viu-o confuso. —
Tenho uma razão para acreditar que não deixamos a costa de
Eastbourne.
— Está bem. — Ele cruzou os braços visivelmente consternado. —
O que é?
Por mais que as palavras quisessem saltar por entre seus lábios, a
garota sentia medo. Medo de estar certa. Medo de terem caído em uma
armadilha.
— Todos os dias, depois do entardecer, quando o crepúsculo já
desapareceu dos céus, eu consigo ver o farol de Eastbourne.
— Não querendo soar grosseiro, mas faróis foram feitos para
serem vistos à distância.
Nesse instante, Lilly olhou para ele.
— Esse é o problema, não acho que estejamos longe.
Conforme uma fria garoa começava a cair das gordas nuvens
escuras que lhes cobriam como algodões velhos, por entre a escuridão da
noite que se abateu surgiu uma faixa bruxuleante no horizonte, tão fraca
que a própria névoa parecia encobri-la conforme a espuma salgada
banhava o fundo do navio.
— Ali! — Lilly apontou em direção à luz, os olhos tão atraídos por
ela quanto uma mariposa.
A faixa luminosa sumia e reaparecia num ritmo que só seria
interrompido com o amanhecer, quando o faroleiro apagaria sua luz,
incandescente pelo óleo de baleia que caía de um bolsão em pequenas
gotas, a luz refletida transversalmente por um enorme círculo feito de vidro
sustentado por vigas de metal que giravam em lados opostos, fazendo-a
surgir e desaparecer no horizonte de maneira fugaz, mas presente o
bastante para alertar os capitães de que a costa se aproximava.
— Espere... — Ele estreitou o olhar, passos abafados por rangidos
na madeira enquanto caminhava para a esquerda, as mãos escorregando
pela madeira até que ele se deteve na altura do tombadilho, esgueirando
metade de seu corpo para fora da embarcação, fazendo o coração de Lilly
fraquejar com a possibilidade de ele cair com o balanço das ondas.
Em nuances banhadas pela tonalidade azul do céu escuro, o farol
surgiu em toda a sua glória, com suas listras vermelhas tornando-se um
tom mais escuro enquanto o branco alternava entre um cinza pasteurizado
e o cerúleo. As mãos de Lucian fincara na madeira e pequenas farpas
entraram em sua pele rapidamente enquanto ele via a maneira como as
ondas batiam contra uma enorme estrutura de gesso que acompanhava a
fonte da luz.
— É o...
— Beachy Head. — Ela completou com a voz trêmula, passos
calmos tentando conter a adrenalina que já surgia em seu corpo até
alcançá-lo, tocando em seu ombro. — Nós não fomos a lugar algum,
Lucian. Nos distraímos um com o outro durante os dias e...
Mas o loiro não a ouvia mais. Estava surdo pela raiva e pelo fato de
tê-los colocado em um perigo ainda maior. Enraivecido, Lucian olhou de
esguelha para o capitão, que conversava com seu contramestre, o tom de
seus olhos escurecendo enquanto a fúria parecia dominar cada
centímetro de seu corpo e ele subia ao tombadilho de dois em dois
degraus.
— Espere! — Foi a única coisa que Lilly conseguiu gritar antes de
assistir ao punho dele chocando-se contra o rosto de Sebastian Pelletier,
um estalo repercutindo por entre o ar úmido, os pingos da garoa tornando-
se mais firmes e constantes enquanto um novo raio rasgava o horizonte.
Ao deparar-se com tamanha selvageria nos olhos verdes do
capitão que se recompunha, Lilly sabia que teria de agir rápido. Se Lucian
tivesse dado a ela uma chance de falar, a garota teria explicado seu plano
de ir para a sala do capitão e procurar pelos mapas, ao menos para
descobrir o que fariam. Mas, agora, Sebastian parecia quase dobrar de
tamanho em seu perfeito uniforme, que tinha as pontas balançando por
entre o vento enquanto o contramestre colocava-se defensivamente na
frente dele, a mão já tocando a bainha de sua espada.
— Acho que alguém bebeu demais. — Sebastian tocou o queixo
com os dedos e mexeu-o de um lado para o outro. Lilly pôde jurar que
ouviu-o estralando o maxilar, mesmo ela estando na metade dos degraus
que levavam ao timão.
— Maldito! — Lucian conseguiu desviar do contramestre antes
mesmo deste retirar sua espada, lançando-o na direção da beirada da
escada apenas para, em seguida, o loiro torcer o braço de Sebastian, que
grunhiu instantes antes de cerrar o punho esquerdo e acertar-lhe um soco
em seu nariz, os ossos tremendo com o impacto e os olhos lacrimejando
em meio à dor. — Mentiu para nós!
A garota sentiu um arrepio na boca do estômago quando a cara
feia do contramestre, que tinha um nariz amassado e olhos afundados na
cara, quase como covas feitas por corvos que devoravam os corpos em
decomposição daqueles que foram enforcados, fitou-a diretamente. Ela
soube que tinha que correr. Tinha de chegar à sala dos mapas. À cabine
de Sebastian. E foi isso que ela fez, virando-se e sentindo o vestido
champanhe pesando em sua cintura conforme buscava a entrada para os
aposentos de Pelletier.
Ela ouviu os passos firmes do contramestre seguindo-a, pulando os
degraus instantes antes dela fechar as portas de madeira, que tinham
vidros ondulados em tom de âmbar, permitindo que nada fosse visto. Em
instantes, o homem jogou seu ombro contra a passagem e Lilly sentiu o
corpo sendo arremessado para trás, mas ela conseguiu ser rápida o
bastante para apanhar a primeira coisa que viu em sua frente, acertando-
lhe na testa careca, vendo-o praguejar enquanto sangue surgia em cima
de sua sobrancelha e ele cambaleava para trás. Em seguida, ela
empurrou-o para fora com o objeto, fechou as portas, e trancou-a com
aquilo que segurava. Apenas quando deu dois passos para trás ela
percebeu que o que tinha em suas mãos instantes antes era uma arma.
Uma carabina.
O homem tentou forçar sua entrada novamente, no entanto a arma
o segurou. Passos corriqueiros surgiram embaixo de seus pés, nos níveis
inferiores do navio, e a poeira caía da madeira acima de sua cabeça
enquanto Lucian ainda lutava contra as investidas cada vez mais fortes de
Sebastian.
Lilly precisou tomar alguns segundos para lembrar de respirar, a
mão direita sobre o abdômen enquanto a outra tocava seu ventre. O local
era mal iluminado, com uma lanterna a óleo na outra extremidade,
apoiada em pilhas de caixas de madeira poeirentas, e alguns candelabros
indecisos quanto à sua postura, curvando-se para frente dependendo do
movimento do navio, que chacoalhava veemente, lançando a garota
contra uma pilha de livros organizados no chão, o que a fez tropeçar e cair
em seus joelhos, as mãos estiradas para que o rosto não fosse atingido,
no instante em que um barulho de pequenas garras ecoou da parede
oposta.
Ela olhou na direção do som.
O piso dos aposentos do capitão tinha paredes em tons de ébano,
que ficava abaixo do tombadilho, estava coberto por um tapete de
camurça abarrotado de quadrados, um colado no outro, formando uma
espécie de tabuleiro de damas vermelho e marrom — cores raras de se
ver em tecidos fabricados em Eastbourne. Seu estômago se embrulhava
conforme a vista estreitava-se até perceber um focinho curioso de um rato
cinzento que arranhava as paredes compulsivamente. Erguendo-se e
ouvindo o peso do contramestre mais uma vez contra a porta, ela
apressou-se a vasculhar as gavetas da mesa central, feita de mogno
importado, mãos rápidas que dedilhavam pergaminhos delicados. Era um
local luxuoso, se você considerar as atuais condições que os homens se
expõem perante o mar.
Respirando de forma baixa, a garota estreitou o olhar outra vez na
direção do roedor, que parecia desesperado pelo que quer que fosse. O
que ele estava tentando apanhar? Não havia nada ali. Erguendo-se e
fechando as gavetas, a garota ameaçou caminhar até ele, mas tropeçou
na barra de seu vestido e teve de se apoiar sobre a beirada da mesa, que
não se moveu.
— Droga! — Ela colocou a mão sobre a boca do estômago,
sentindo sua respiração densa, os cabelos caindo sobre os ombros e os
lábios secos enquanto ela tentava se recompor. — Concentre-se, Lilly.
Então, naquele instante, antes de tirar a mão de cima do móvel,
este rangeu de forma suave e baixa, porém alto o suficiente para que Lilly
o percebesse. A garota ajoelhou, olhos arregalados e dedos firmes na
beirada da mesa. A caneta-tinteiro rolou por sobre um pergaminho velho e
desgastado que estava em cima da superfície perfeitamente lisa do móvel
e tombou no chão, as últimas gotas de tinta manchando a camurça com
sua escuridão, que se espalhava como vinhas negras que desciam em
uma cascata.
Havia, agora, uma elevação no horizonte da mesa, uma espécie de
portinhola desenhada contra o móvel. Com a ponta de suas unhas, Lilly
cravou a forma que a figura tomava e, num único movimento, este soltou-
se em sua mão, revelando um pequeno buraco, estreito o bastante para
que nenhum rato entrasse e grande o suficiente para caber um
pergaminho enrolado.
A garota estava tensa demais para sorrir com a descoberta
enquanto sentia a finura do papel desenrolando em suas mãos, tomando
cuidado para que este também não se manchasse de tinta.
Era uma obra gráfica, sem dúvida alguma, com os mais belos
desenhos dos lugares pelos quais os marinheiros já haviam passado.
Havia uma sereia no canto direito do mapa, os braços estendidos e os
cabelos ao vento enquanto sua cauda repousava sobre uma rocha dura,
os seios desnudos expostos com traços tão delicados quanto os de seus
lábios. Lilly aproximou seu rosto do papel e o cheiro de tinta adentrou
suas narinas. Como era possível o cheiro dos pigmentos ainda estar ali?
Isso só seria possível se alguém o tivesse alterado há pouco tempo,
alguns dias, talvez. Ela soube que tinta a óleo era muito utilizada em
mapas ainda quando estava nos primeiros anos do colégio para moças de
Eastbourne, onde conhecera Heather. A amiga não se interessava pelas
aulas de arte, mas Lilly sempre se apaixonou por qualquer tipo de
representação que viesse da natureza humana, como os livros que lia
com tanto apreço ou então os desenhos nos quais ela perdia horas
observando, até que fosse mandada embora da sala de aula para que a
próxima turma pudesse entrar.
A garota apressou-se até um candelabro, ouvindo a garoa que se
transformara em chuva, e o apanhou com a mão firme, segurando seu
peso enquanto aproximava a luz das velas no papel, tomando cuidado
para que os filetes de cera não escorressem, iluminando-o, esperando ver
algo refletir sobre a superfície amarelada do pergaminho enquanto seu
rosto esquentava. E então, finalmente, algo se revelou. Com um brilho
fosco e praticamente seco, um tracejado preto se destacava entre todos
os outros. Lilly baixou a mão com o candelabro e o deixou sobre a mesa.
Dedilhando o mapa com a ponta do indicador, a garota traçou uma
rota desde as planícies litorâneas da costa do Sul da Inglaterra e cruzou o
oceano conforme a unha raspava o tracejado preto relativamente fresco
até alcançar o desenho de uma caveira quebrada, o sorriso de quem ela
pertencia ainda gravado nos ossos esburacados; num dos buracos dos
olhos, um tentáculo esverdeado saía, vulgar e ameaçador, com suas
ventosas gordas grudando no crânio. Ela engoliu em seco. Havia um X
marcado em tons de ocre sobre aquela caveira. Lilly continuou seguindo a
rota, o cenho franzido enquanto buscava um significado para aqueles
símbolos.
O som no exterior parecia mais agitado agora e um raio cortou os
céus, assustando a garota, fazendo-a esbarrar o cotovelo no candelabro,
derrubando as velas, que se apagaram parcialmente ao cair, algumas
fagulhas ainda servindo de ameaça para aquele tapete perfeito.
A garota voltou sua atenção ao mapa e seguiu a rota, tendo de
focar ainda mais a atenção a fim de enxergar apenas através da luz do
luar que entrava através das janelas panorâmicas que haviam atrás de si,
até um conjunto de ilhas das quais não se lembrava o nome. Novamente,
a caveira estava ali, com seu sorriso sarcástico e o tentáculo saltando do
buraco de seu rosto. Mais um X. E assim seguiu-se até que Lilly
encontrasse a quarta e última marcação, a qual terminava na frente da
costa francesa.
— Saint-Tropez — sussurrou para si mesma enquanto dedilhava o
nome em relevo da pequena comuna francesa, localizada na região de
Provence-Alpes-Côte d'Azur. — Piratas franceses. — Sem perceber, a
garota maquinava teorias em sua mente, encaixando as peças de flashes
de memória num quebra-cabeça horrendo que cada vez mais afligia seu
coração. — Henry... Ele não olhou para mim quando pulou em minha
direção... não — Ela descontraiu os lábios permitindo que uma curta
nuvem de ar escapasse por eles. — Ele olhou para Sebastian...
Um arrepio percorreu a espinha dela e seus cabelos tombaram na
direção do mapa estendido à sua frente.
— Papai discutia sobre... — Um relâmpago caiu atrás dela,
iluminando suas costas enquanto a chuva se tornava cada vez mais forte,
e um trovão estremeceu os céus logo em seguida. — ... ataques de
piratas. Eles ocorreram com Sebastian, e na maior parte dos casos as
missões fracassaram!
E então ela entendeu tudo, os olhos fixos em Côte d’Azur enquanto
as palavras secavam sua garganta.
— Mas, e se na verdade não tivessem? — Lilly ergueu as costas e
percebeu uma súbita calmaria no exterior, o barulho dos pingos grosseiros
batendo contra a madeira sendo o único som que se misturava com as
batidas de seu coração. — E se Sebastian tivesse sua própria missão?
Sim. Aquilo fazia sentido. Culpar os piratas, sendo que..., mas ela
acabou o pensamento em voz alta. Precisava admitir. Precisava ouvir.
— Ele mesmo é um pirata! — E, no final da frase, a epifania foi
inevitável, explodindo num fluxo de consciência surpreendente, cada parte
principal se encaixando. Henry a protegeu. Sebastian ia atirar nela,
naquela noite. Porque ele havia planejado o ataque.
E então o navio estremeceu com o ricochete de um canhão.
O coração dela disparou.
O silêncio logo em seguida era mortal, assim como a bola de
canhão que estraçalhou o tombadilho acima da cabeça da garota, uma
cortina de poeira e farpas escorreu pelo ar em direção ao seu corpo e
pedaços de tábuas caíram destroçados, arremessando-a no chão. A
atmosfera pareceu se dividir em duas e, de repente, Lilly Talbot sentia que
não conseguia respirar.
Capítulo XXI
Cordas
Alguns instantes antes
Por entre a chuva grosseira e amarga que escorria dos céus, ouviu-
se o som dos punhos de Sebastian esfolando o rosto de Lucian. Primeiro,
um soco certeiro em seu olho direito e outro logo em seguida em seu
queixo, o que fez seus dentes tremerem de dor e ele tombar de costas
sobre o piso do tombadilho, o pescoço envergando para trás enquanto o
capitão caminhava lentamente até seu corpo, as botas lustrosas tornando-
se ainda mais escorregadias com a água, mas ele não vacilou. Seus
cabelos pretos emaranhavam-se uns nos outros e caíam sobre seus olhos
esverdeados, que brilhavam a cada relâmpago fugaz que cortava o
horizonte.
— O que exatamente achou que estava fazendo, Lucian? —
perguntou calmamente e o loiro sentiu o peito pesado enquanto tentava
se reerguer, mas a sola da bota de Sebastian pressionou suas costelas
contra o piso, que rangeu com a pressão.
— Você mentiu para nós! — As palavras escaparam aos tropeços
por entre seus lábios enquanto Pelletier sorria, sarcástico.
— Bem-vindo à realidade.
— Eu levei a culpa pela noite do incidente do navio. — Os olhos
dele ardiam em lágrimas de ódio. — Mas eu deveria ter deixado você
levar a culpa!
— Eu salvei a sua vida — retrucou Sebastian com os olhos
arregalados enquanto se inclinava na direção de Lucian a cada palavra.
— Os marujos estavam desconfiando da sua pirataria e eu dei um fim
neles. Soltei as velas e as cordas.
— Eu não...
— O quê? — atiçou Pelletier enquanto retirava seu pé direito de
cima dele, caminhando para trás, assistindo-o sentar-se com as costas
apoiadas na amurada, as roupas já encharcadas grudando no corpo. —
Vai me dizer agora que não era um pirata? Encontrei você e Henry
tentando saquear o navio no primeiro dia que atraquei naquele maldito
porto. Eu dei uma chance a vocês...
Lucian grunhiu e se reergueu, ombros para trás e os cabelos
grudados na testa enquanto seu coração batia violentamente em seu
peito. Uma nova faixa de luz cortou os céus e as nuvens continuaram a
chorar.
— Deu uma chance a mim — corrigiu. — Nunca deixou Henry pisar
em um de seus navios.
— Não preciso de africanos imundos em minha tripulação.
Os dentes de Lucian rangeram e as palavras gritaram além de sua
garganta:
— Ele não é o seu escravo!
Sebastian quase riu, travando o movimento em sua garganta,
passando a mão em seus cabelos e dando de ombros ao retrucar:
— São todos negros, qual a diferença?
Incrédulo, as palavras amontoaram-se na garganta de Lucian
enquanto Pelletier continuava:
— Eu os encontrei e lhes dei diferentes oportunidades. Henry teve
sua chance, me ajudou e, no final, eu só tive de colocar um fim em tudo.
Um trovão fez o céu tremer e as nuvens choraram ainda mais.
— O que quer dizer?
— Henry está morto, Lucian. — Sebastian respirou fundo. — Eu o
matei.
A fúria que se alastrou pelo corpo do loiro era tanta que seu
coração pareceu saltar de seu peito em batidas incessantemente
dolorosas, os punhos cerrando-se e as unhas cravando na carne
enquanto os ombros endureciam. Nesse instante, o contramestre saltou
do chão e disparou atrás de Lilly, fazendo com ele desviasse sua atenção,
dando a chance de Sebastian chutá-lo no peito, suas costas envergando
para trás, a cabeça para fora do navio, sobre as ondas que se tornavam
turbulentas conforme a chuva se intensificava, molhando seu rosto,
esfriando seu corpo.
Lucian já havia se preparado para um novo golpe. Já podia sentir o
punho do capitão contra seu rosto, mas este nunca veio. Por algum
motivo, Sebastian congelou em seu lugar, os olhos fixos além do loiro e o
queixo tremendo ao dizer:
— Não. — O capitão deu dois passos para trás. — Aos seus
postos, homens!
Campbell grunhiu, girando seu corpo e apoiando as mãos na
amurada enquanto erguia seu rosto na direção daquilo que afligia a alma
de Sebastian, a correria se alastrando nos níveis inferiores. E então tudo
aconteceu num súbito. Uma bola de canhão arrebentou o tombadilho e o
chão pareceu sumir sob os pés dos homens. O timão estraçalhou-se,
voando pelos ares e atingindo um dos marujos que se encontrava no topo
da escada, arremessando-o ao chão, e agora o navio navegava à própria
vontade das ondas.
Quando Lucian abriu os olhos, sua visão estava turva. Parecia que
uma cortina de poeira havia se alastrado por seu rosto e um líquido
quente escorria pela parte de trás de sua orelha até a sua nuca.
Hesitante, movendo o corpo por entre as tábuas quebrantadas, ele levou
os dedos até a parte de trás da cabeça e, quando a trouxe para a frente
do rosto, assistiu-a vestida de vermelho. Vestida com seu sangue. O
homem grunhiu e, por entre o frenesi que havia afetado a todos, teve a
impressão de vislumbrar um corpo encolhido por entre a madeira.
Ele cambaleou com o rápido levantar, a mente confusa e os
ouvidos zunindo conforme ele se agachava.
— Lilly. — Lucian chamou por ela enquanto retirava os escombros
de cima da garota. — Vamos, levante.
A garota estava tão zonza quanto ele, confusa. Os cabelos
decoravam-se com farpas enquanto a pele havia se sujado com a poeira.
Ela tossiu e, quando ele fez menção de caminhar para além da madeira,
ela deixou escapar um pequeno grito, fazendo-o arregalar os olhos
apenas para, logo em seguida, a garota abaixar a cabeça na direção de
seu braço esquerdo, onde uma pequena lasca de madeira havia entrado e
de onde uma longa faixa carmesim escorria, alcançando seus dedos,
tocando-a suavemente como uma luva até pingar na direção do assoalho
trêmulo.
— O que está havendo? — perguntou enquanto ela respirava
fundo, tentando ignorar a dor.
— Lilly, seu braço... — A mente dele, aturdida pela explosão e pela
súbita queda, focalizou-se apenas no vermelho que escorria pelo braço
dela, ignorando até mesmo o calor que se alastrava pelo corte em sua
orelha.
— Precisamos parar o sangue. — Ela sentiu os dedos tremerem
quando tocou a ponta da lasca que lhe penetrou a pele. A princípio, nada
aconteceu, mas quando ela a puxou com força, um grito rasgou sua
garganta e o pedaço largou-se de seu corpo, o ar tocando o ferimento
enquanto ela sentia o suor frio. — Rasgue um pedaço da minha saia.
Ele não questionou, apenas ajoelhou-se e, com as mãos, rasgou
uma parte do tecido, assistindo aos tons de champanhe tornando-se tão
escuros quanto vinho conforme ele improvisava um torniquete ao redor do
braço dela.
— Acha que consegue se mexer?
Ela fez que sim e ambos deixaram os escombros para trás.
— Sebastian é um pirata — disse a garota enquanto tentavam não
esbarrar na correria que acometeu a todos. Homens dos mais diversos
tipos preparavam canhões e apanhavam espadas, adagas presas por
entre os dentes enquanto subiam aos mastros e prendiam as cordas. De
repente, uma ordem soou atrás deles e a âncora foi jogada ao mar.
— Vamos parar? — Lilly sentiu o coração apertando-se dentro do
peito e, nesse instante, Sebastian surgiu ao lado deles.
— Era isso que planejavam... — sussurrou o homem para si
mesmo, ignorando a presença deles. — Não era para ser deste jeito...
Nas cidades portuárias, eram comuns as histórias de piratas que
eram narradas por aqueles que sobreviveram a elas, ao menos, e já havia
se tornado mais do que conhecido que piratas são mais rápidos e
armados até os dentes, por isso tem tanto êxito em seus saques. Mas Lilly
jamais imaginou que veria um navio surgir de maneira tão veloz no
horizonte, estando lado a lado em questão de minutos, as bocas dos
canhões sedentas e inundadas de pólvora e mirando direto para eles.
— Estendam uma bandeira branca — ordenou Lucian, e os olhos
verdes de Sebastian fuzilaram-no com ódio. — Ou acha que sua
tripulação vai aguentar um ataque?
— Não vamos estender uma bandeira branca.
— Escute — Lucian soltou-se de Lilly e agarrou as vestes de
Pelletier com ambos os punhos, aproximando seus rostos de tal forma que
seus narizes quase se tocaram —, não me importaria em ver o seu
cadáver afundar por entre as águas, então não pense por um segundo
que estou fazendo isso para te proteger.
E quando o loiro soltou seu traje, os olhos maliciosos como
esmeraldas repousaram sobre Lilly, mais especificamente na fina faixa de
sangue que escorria aos poucos em seu braço, mas que era ameaçada a
desaparecer com os pingos de chuva.
— Tem razão. — Sebastian pigarreou enquanto puxava a gola de
seu uniforme para frente. Ele parou dois homens que passaram ao seu
lado. — Amarrem-nos.
E antes que eles pudessem fazer alguma coisa, os marujos
agarraram-lhe pelos braços, arrancando um grito da garganta de Lilly
enquanto Lucian tentava acertar Sebastian com os pés em pleno ar
conforme o capitão ordenava que uma bandeira branca fosse erguida.
Com o coração a galopadas ferozes, Lilly sentiu as mãos sendo
presas atrás do corpo, assim como as de Lucian, e em poucos segundos
ambos estavam presos ao mastro principal, uma corda grosseira
prendendo suas cinturas, as costas sendo forçadas a se manterem eretas
enquanto a chuva encharcava seus corpos e os cabelos grudavam em
seus pescoços.
Lucian queria pedir perdão a Lilly, os olhos cabisbaixos fitando as
pequenas gotas que escorriam da mão dela e se dissipavam tão
rapidamente nas poças de água que se formavam em locais dispersos do
navio, mas quando ele fez menção de falar algo, a garota antecipou-se:
— Acha que é a marinha inglesa?
O loiro voltou seu rosto para frente, fitando o navio diante deles,
com seus longos três mastros, bandeiras escuras que eram difíceis de
enxergar por entre a noite, mas que podiam ser ouvidas pelo bater dos
ventos. O pouco que se via era por causa das lanternas de latão que eles
também utilizavam, e estas pareciam fazer questão de ressaltar as
silhuetas dos homens que, a qualquer segundo, estavam dispostos a
atirar uma nova bala de canhão.
— Não.
E a resposta dele fez o corpo dela gelar.
— Quem será, então?
Lucian olhou para os lados até encontrar Sebastian, que se
mostrava tão tenso que seu maxilar parecia prestes a partir.
— Sebastian está com medo.
Lilly engoliu em seco.
— Seria tolo se não estivesse. — Ela tentou mexer as mãos atrás
de si, entretanto as cordas arranharam seu pulso e pareceram se prender
ainda mais. — Acho que este foi apenas um ataque de aviso.
O loiro franziu o cenho ao perguntar:
— Como assim?
— Não acha que se o objetivo do outro navio fosse nos afundar, ele
já não teria feito?
E de fato, ela estava certa.
— Henry está morto, Lilly. — Embora a voz de Lucian tenha soado
quase como um sussurro a ser abafado pela chuva, ela conseguiu ouvi-lo,
e sofreu por isso. Sofreu ao ver a tamanha dor nos olhos dele e sofreu
ainda mais por já saber disso. — Ele foi o mais próximo que eu tive de um
irmão...
As narinas dela arderam e as lágrimas surgiram em seus olhos
enquanto ela dava um jeito de escorregar seu corpo para perto do dele,
grunhindo à medida que sentia o ferimento arder assim que conseguiu
tocar seus dedos nele, acariciando apenas as costas de sua mão. Mas ela
queria que ele soubesse que eles ainda estavam juntos. Que ela ainda
estava ali, por ele.
— Eu sinto muito, Lucian — respondeu, sabendo que seria melhor
manter aquele segredo para si. — Sinto mesmo.
— E-Eu... — A voz dele soou entrecortada por algo que Lilly não
conseguiu reconhecer, o que a fez olhar na direção dele.
Lucian estava chorando.
— E-Eu... não posso... — O loiro fungou, as palavras parecendo
poeira em sua boca enquanto pingos de chuva contornavam seu nariz e
caíam em direção aos seus pés. — Eu não posso te perder também.
— Lu, acalma-se.
— Não posso... — As palavras saíram aos tropeços e os ombros se
debateram contra o mastro, as cordas justas em seu copo, pressionando a
pele enquanto ele violentamente tentava se libertar.
— Lucian!
— Eu não posso te perder!
E suas palavras cortaram a noite no exato instante em que eles
surgiram. Não foram vistos. Foram silenciosos em meio à noite turbulenta,
no entanto os corpos caíram firmemente sobre a madeira, botas pesadas
enquanto homens pareciam surgir dos céus, largando-se das cordas do
outro navio, que estava próximo o bastante para uma manobra como
aquela. Todos congelaram, o próprio ar tornou-se rarefeito e o ato de
respirar parecia quase impossível enquanto o capitão do outro navio
surgia diante de Lilly, passos lentos e arrastados, com o respirar pesado e
denso de um velho, a mão apoiada em uma pistola tão grande que batia
desde sua cintura até a metade de sua coxa, ao passo que a bainha de
sua espada tamborilava na outra extremidade do cinto. A figura usava um
chapéu de três pontas das quais goteiras pareciam se formar, os raios
tremeluzindo por entre os céus enquanto os gordos pingos daquela chuva
agourenta brilhavam em seus ombros.
— Não... — A voz de Sebastian surgiu por entre a noite enquanto
ele sentia as pernas tremerem, fracas pelo medo. — Não pode ser...
O homem gordo arrastou-se até a garota e Lucian ainda se debatia,
tentando se soltar agora mais do que nunca. A escuridão que recaía sobre
o rosto do misterioso capitão se desfez quando ele retirou seu chapéu e o
luar trouxe à luz suas feições terríveis, porém tão comuns à garota.
Os lábios de Lilly tremeram ao dizer:
— Papai...?
Capítulo XXII
As ondas que nos consomem
O medo que acometeu o corpo da garota a teria lançado num
frenesi caso as cordas não prendessem seu corpo ao mastro. Como era
possível?! Como William Talbot poderia estar ali, com botas tão pesadas,
os pingos da chuva atormentando suas vestes enquanto os cabelos
grudavam sobre a testa e os olhos fitavam-na com tanto desgosto? Mas,
em meio a certo repúdio, ela também pôde ver que ele tentava disfarçar o
elemento da surpresa. O modo como passou a agir depois que a viu fez a
garota entender que ele não a esperava ali. Então, se seu pai não tinha
vindo salvá-la, o que ele estava fazendo?
— Tem muita coragem de vir até meu navio, velho. — Sebastian
caminhou lentamente, passos hesitantes, a farda pesando em seus
ombros com a água que escorria dos céus enquanto os olhos
esverdeados demonstravam fúria e malícia. Lilly sabia que ele estava
tentando ganhar tempo.
— Seu navio? — O tom de William tornou-se debochado e ele
distanciou-se de Lilly. — O Sereia Escarlate é de minha propriedade.
Enquanto eles conversavam, Lucian continuava a se debater, os
braços firmes conseguindo afrouxar as cordas cada vez mais.
— É mesmo, William? — Sebastian estreitou o olhar e deu mais
dois passos, parando de frente para o velho, a barriga dele quase
encostando na figura perfeitamente ereta do outro. — Acho engraçado
você dizer isso.
O senhor Talbot manteve-se impassível e Lilly sentiu a respiração
pesar quando ele perguntou:
— Por que diria isso?
Sebastian sorriu. Parecia ensandecido pelo medo, tentava manter-
se no controle, mas, obviamente, ele não estava. O capitão ergueu os
braços ao seu arredor e rodopiou.
— Acho que já está na hora de dizermos algumas verdades, não
acha, Talbot?
Ele olhou de esguelha para Lilly, pensativo, e ela sentiu o coração
doer enquanto percebia as cordas afrouxando ao arredor de seu corpo. A
garota começou a se mexer tão rapidamente quanto Lucian, ajudando-o
enquanto os homens se distraíam.
— Está pronto para que Lilly saiba quem você realmente é? —
questionou Talbot com os dedos apertando a arma.
— E você, está? — retrucou Sebastian com uma leve pontada de
orgulho ao mesmo tempo que via William tornar-se vermelho, um raio
fazendo os céus tremerem enquanto as ondas pareciam surgir cada vez
mais violentas, quebrando contra o navio e fazendo-o chacoalhar.
— Diferentemente do senhor, não tenho nada a esconder —
declarou o velho suspirando ar salgado.
— Claro, porque os navios da marinha espanhola são dados de
bom grado aos ingleses — retorquiu enquanto espelhava o movimento de
William, colocando sua mão sobre a pistola presa em sua cintura.
Nesse instante, Lilly parou seu movimento, as cordas caindo, por
fim. Lucian tombou em posição de flexão, as mãos espalmadas na
madeira encharcada enquanto a garota colocava a mão sobre o abdômen,
respirando firme, as gotas da chuva escorrendo por seu rosto,
emaranhando seus cabelos conforme ela erguia os olhos na direção de
seu pai.
— Papai?
O velho olhou para ela e Lilly continuou:
— O que o senhor fez?
Ele respirou fundo, repousou as mãos sobre o cinto abaixo da
barriga roliça e virou o rosto na direção da filha.
— Fiz o que era necessário.
— Durante todo esse tempo... — Ela deu dois passos para frente.
Lucian ainda recuperava o fôlego, agora de joelhos. — Com tanto ódio
aos piratas... Sendo que você é um deles!
As nuvens de carvão pareceram enegrecer ainda mais e a fúria nos
olhos de William era tão firme quanto os raios que explodiram na noite.
— Eu não sou um pirata, minha filha.
— Mentira! — interveio Sebastian.
— Eu tenho as cartas de corso! — esbravejou o velho com a
intensidade de um trovão, as mãos violentamente gesticulando no ar. —
Eu tenho a permissão de saquear em nome da marinha inglesa! Eu tenho
as cartas que você tanto quis roubar! — E, nesse instante, William sacou
sua pistola e direcionou-a para a cabeça de Sebastian, a boca do cano
sedenta para lançar um projétil que lhe partiria o crânio, contudo o capitão
fez o mesmo movimento e, agora, o suor se misturava com a chuva no
colarinho do velho.
— Está em desvantagem, velho — vociferou Pelletier, mas William
o ignorou ao prosseguir:
— Você traiu a marinha inglesa trabalhando com os franceses!
Traiu a mim! — O indicador ajeitou-se com tranquilidade sobre o gatilho.
— Utilizou-se até mesmo de minha serviçal para apanhar os relatórios.
Lucian já estava erguido ao lado da garota e ouvir tais palavras
fragmentou seu coração. Pelletier havia pego os relatórios. Ele havia
ordenado que lhe entregassem a carta com as informações sobre aquela
noite. A fúria sobressaltou em seu pescoço e as veias tornaram-se
vívidas, porém ele nada fez, controlando seu impulso e evitando entrar no
meio da linha de tiro. Queria esmurrar Sebastian até vê-lo sangrar, mas,
se fizesse isso, naquele momento, morreria.
— Ah, chega de sentimentalismos, Talbot — retrucou o capitão,
sarcástico, enquanto sentia a arma pesada em sua mão direita, a
respiração densa e os olhos fixos em seu alvo. — São apenas negócios.
Lilly ameaçou caminhar na direção deles e Lucian tocou seu pulso,
o olhar pedindo para que ela ficasse ali, no entanto o semblante da garota
o fez deixá-la ir, a cauda do vestido se arrastando atrás dela, encharcada
enquanto ficava ao lado de seu pai, mas seus olhos fitaram os de
Sebastian.
— Você planejou o ataque à minha carruagem.
Sebastian fez um biquinho com o lábio inferior. Por alguma razão,
não havia mais medo em suas feições e isso fez o corpo de Lilly fraquejar.
— Meus parabéns — ironizou ele enquanto fingia bater palmas
para ela, a mão esquerda indo de encontro à direita, que ainda apontava a
arma firmemente.
— Você nos atacou... só para pegar as cartas.
— É óbvio que não. — Ele deu de ombros e franziu o cenho, como
se aquela possibilidade fosse absurda. — Eu mandei os ladrões pedirem
por elas, mas todos eles iriam morrer de qualquer jeito.
E então a garota entendeu o que ele fizera.
— Você planejou o ataque, para poder me salvar... — A voz travou
na garganta dela, palavras salgadas que amargaram sua boca. — Queria
que eu confiasse em você.
— Ah, Lilly, você chega sempre tão perto da verdade, mas nunca a
acerta totalmente. — Ele colocou o dedo próximo ao gatilho e o metal
pareceu esquentar em sua mão. — O que eu fiz estava muito além de
você.
— Ele queria a confiança de seu pai. — Lucian concluiu, chamando
a atenção deles. Lilly sentiu o coração bater mais forte, temerosa de que
as armas fossem viradas para ele.
— E eu consegui.
Num movimento súbito, William empurrou Lilly para trás de seu
corpo e Lucian fez menção de se movimentar, mas o velho direcionou a
arma para ele, fazendo-o parar com as mãos erguidas e, nesse instante,
Sebastian não vacilou. Ele puxou o gatilho.
O projétil foi certeiro, dilacerando a pele do ombro direito de
William, fazendo-o grunhir em agonia enquanto tudo parecia se acometer
em adrenalina. O mar mudou. Os marujos desembainharam suas espadas
e aqueles que tinham pistolas as engatilharam. O velho Talbot apertou a
mão esquerda contra o ferimento, sentindo o ardor da bala dentro da sua
pele, a carne machucada enquanto Sebastian ia até ele e chutava-lhe o
peito, arremessando para trás enquanto Lilly caía junto a eles.
— Lilly! — Lucian chamou por ela, ajudando-a a se levantar no
instante em que um dos invasores lhe chutou as costelas, lançando-o
para longe.
Tudo era um caos. Espadas brandindo em meio aos céus
recheados de relâmpagos. As visões turvas pelos pingos da chuva
enquanto as roupas pesavam nos corpos e os marinheiros viam seus
tecidos encharcando-se de sal e vermelho.
William rodopiou, evitando que a espada de Sebastian lhe partisse
a cabeça. O velho se ergueu, apontando a pistola novamente, mas o
capitão girou com a espada no ar e lhe cortou o braço, uma faixa
grosseira de sangue escorrendo por entre o rasgo da roupa enquanto ele
gritava.
Lilly se apoiou nas mãos e se levantou. Precisava de algo para se
defender. Para defender Lucian, que lutava para tirar o invasor de cima de
seu corpo. O loiro lhe socou o rosto, mas aquilo pareceu apenas enfurecê-
lo ainda mais e, agora, o outro empurrava-lhe a cabeça contra o assoalho,
batendo na madeira que rangia a cada pancada. Quando ele já se sentia
zonzo, a garota se lançou contra o homem.
O corpo dela tornou-se dolorido, o peso de si mesma pressionando
seu braço e fazendo-a sentir seus corpos se separando, o homem ficando
a alguns metros dela, olhos ensandecidos, o queixo com uma cicatriz que
escorria por toda a lateral direita de seu rosto, uma bandana presa em sua
testa e dentes de latão que refletiram quando um relâmpago reluziu por
entre a chuva.
Ele desembainhou a espada e investiu contra ela. A garota gritou,
saltando para o lado, vendo-o atrapalhar-se em seus próprios pés. Mas o
marujo estava longe de desistir, virando-se nos calcanhares, sorrindo
maliciosamente, sabendo de sua vontade de partir-lhe a carne. Lilly se
preparou para isso. Soube que iria morrer ali, mas reconfortava-se na
ideia de ter dado a Lucian uma chance. E então, ela fechou os olhos,
esperando que a lâmina cravasse em sua pele, e no instante em que
sentiu uma última pulsada de adrenalina por entre seu sangue, o metal
estalou acima de sua cabeça e cada nuvem iluminou-se com os raios.
Lucian estava de frente para ela, uma espada em punho enquanto
chutava as pernas do marujo, vendo-o cair de joelhos apenas para, em
seguida, ele girar o pulso, assistindo ao momento em que sua espada
cortou a garganta do invasor, que esbugalhou os olhos, os dedos quase
entrando na pele para tentar fazê-la parar de sangrar, mas então ele
tombou de lado e a chuva escorreu junto ao seu rio vermelho.
— Precisamos sair daqui! — Ele tocou o braço direito da garota e
ela sentiu como se seu coração voltasse a bombear, embora ela ainda
tivesse de lembrar-se de respirar, o ar travado em seus pulmões.
— Não temos para onde ir! — gritou ela em resposta enquanto
abaixavam por entre a investida de um marujo da tripulação de Sebastian.
Naquele momento, ambos eram seus inimigos.
— A costa! — Ele apontou com sua espada em direção ao
horizonte, onde o farol mantinha-se aceso. — Podemos ir até lá!
— Não vamos conseguir! — disse a garota enquanto olhava para o
lado, pequenas faíscas amarelas surgindo no navio que estava parado. —
Lucian, cuidado!
E, nesse instante, como um deus furioso prestes a castigar os
incrédulos, um raio atingiu a ponta do mastro principal, incendiando-o, e,
quase no mesmo instante, uma bala de canhão foi arremessada. Lilly
agarrou-lhe pela gola da camisa e jogou-lhe ao chão, o ferro destruindo a
viga-mestra do navio sem sequer hesitar, a madeira tombando em meio a
todos, pedaços do mastro sendo engolidos pela água negra enquanto a
garota se levantava, ajudando o loiro logo em seguida, as labaredas
dançantes aquecendo seu rosto e comprometendo todo o navio.
Ninguém saberia dizer como ou quando, mas em poucos segundos
a embarcação pareceu arder em cada centímetro com um fogo infernal.
— Precisamos ir até os botes! — sugeriu ela enquanto ele fitava as
chamas com horror, a testa suando e o rosto sujo de fuligem. — Lucian,
vamos!
Ela puxou-lhe a mão, sentindo o machucado em seu braço arder e
fisgar, no entanto a adrenalina permitiu que ela ignorasse os músculos
que pareciam questionar cada movimento.
A garota via apenas a silhueta de um único bote. O outro havia sido
destruído com a queda do mastro, que o estraçalhou. Eles saltaram os
corpos sem vida e desviaram das chamas, a espada na mão de Lucian
enquanto ela os guiava por entre a fumaça e a chuva.
Enquanto isso, por entre berros e grunhidos, Sebastian e William
ainda duelavam, agora com suas espadas, o velho lutando com toda sua
bravura para manter-se de pé enquanto Pelletier investia cada vez mais
violentamente.
— Não deveria ter vindo aqui — vociferou o capitão, amparando um
ataque de Talbot.
— E você não deveria ter me traído! — Um golpe. Sebastian o
bloqueou. — Não deveria ter se metido com minha família! — O segundo
golpe passou tão perto de seu rosto que o coração dele acelerou-se e ele
engoliu em seco, atacando-o em seguida, mas William o interceptou. E foi
aí que Sebastian vacilou.
O chão pareceu tremer embaixo de seus pés.
Um calafrio percorreu seu corpo.
Ele sentiu um ardor no meio do peito.
— Não deveria ter me desafiado — finalizou o velho, a ponta de
sua espada cravada no meio da caixa torácica de Sebastian, forçando-a
mais adentro, ouvindo o homem gritar enquanto seus ossos se rompiam e
cada cartilagem era cortada até que a ponta da lâmina tocou o exterior no
outro lado.
Sebastian caiu de joelhos, confuso. Não entendia a quantidade de
sangue que escorria por seu uniforme. Não entendia o sangue que tossia
e muito menos o porquê de estar sentindo frio em uma noite tão quente.
William segurou o cabo de sua espada, encaixando os dedos
perfeitamente enquanto fitava os olhos verdes de Pelletier, onde
pequenas veias estouravam em árvores abstratas.
— Todos os piratas têm o mesmo fim. — E, quando um relâmpago
pintou a noite em tons arroxeados, Talbot puxou a espada para fora do
corpo de Sebastian, que tombou, morto, um buraco em seu peito tão
profundo quanto o medo da morte, que ainda estava estampado em seu
olhar confuso, fixo ao nada, a chuva banhando seu corpo imóvel enquanto
o sangue escorria por entre as fendas da madeira.
Quando, finalmente, por entre as lágrimas grosseiras dos céus, Lilly
e Lucian alcançaram o bote, pequeno e estreito, pendurado para fora do
navio e sustentado por duas roldanas, com dois bancos em seu interior e
um par de remos, o suficiente para ambos, um canhão disparou de seu
navio, lançando-os para frente. A garota sentiu o corpo sendo catapultado
na direção do oceano, todavia a metade de suas costas bateu contra a
borda do navio e os músculos gritaram de dor enquanto Lucian rolava ao
seu lado. O tiro havia errado o outro navio.
Eles não iriam ter tempo de baixar o bote.
— Lucian... — Ela chamou pelo loiro enquanto apoiava-se nos
braços, fitando o local onde o balaústre caíra sobre seu corpo. Agora, o
velho William Talbot caminhava com seus passos arrastados na direção
deles, a espada sangrenta arrastando contra o piso molhado, formando
uma trilha disforme atrás de si. Um marujo da outra embarcação saltou na
frente dele, passando por entre as labaredas dançantes, tentando
surpreendê-lo, lançando a espada na direção de seu flanco direito, mas o
homem desviou do golpe com um único movimento e sua espada
decepou a mão do rapaz, que caiu gritando em agonia, os berros
rasgando sua garganta enquanto o sangue jorrava de seu pulso até ele
desmaiar.
Contudo, ele não respondeu coisa alguma. Lucian escorregou a
mão por entre a água que se acumulava na madeira, passando sob os
pingos que lhe refrescavam a pele ferida até encaixar seus dedos nos de
Lilly.
— Não! — suplicou ela mesmo sabendo que ele já estava decidido.
Pela primeira vez, Lilly fitou aquele sentimento que tantos falavam. Aquela
fração de segundo em que uma pessoa ama tão apaixonadamente a outra
que estaria disposta a dar a vida por ela. E ali estava Lucian, erguendo-
se, os joelhos doloridos enquanto ele reconquistava a espada caída e
posicionava-se na frente de Lilly, pés firmes, o rosto manchado pela
fuligem da madeira queimada ao mesmo tempo que a ponta da lâmina
direcionava-se a William.
— Vá para o bote — ordenou a ela.
— Não... — Lilly tocou-lhe a mão esquerda, não sabendo se o que
escorria por seu rosto eram lágrimas ou apenas pingos da chuva.
— Lilly. — O cenho dele formou um arco carinhoso com um sorriso
afável que de maneira alguma demonstrava preocupação. Lucian sabia o
que estava fazendo. E ele não precisou de palavras para que ela
entendesse que não devia questioná-lo. — Vá para o bote.
Sim. Eram lágrimas que escorriam por seu rosto.
William se aproximava cada vez mais, entretanto deteve-se a
alguns metros, fitando a ponta da espada de Lucian, o calor em seu
pescoço aumentando com as chamas famintas que cresciam a cada
instante sobre o mastro caído, as cordas como pavios que nunca
estourariam.
— O que acha que está fazendo, Campbell? — perguntou o velho,
os olhos direcionando-se para Lilly, que ainda estava dentro do navio. —
O que os dois acham que estão fazendo?
Ela engoliu em seco enquanto agarrava as cordas que sustentavam
o bote e lançava seu corpo para dentro dele, a pequena embarcação
balançando por entre os ventos e dando-lhe calafrios na boca do
estômago enquanto Lilly se sentava.
— Nós estamos indo embora. — Lucian retorquiu com firmeza, um
relâmpago rasgando os céus e tendo seu brilho refletido na espada ainda
em punho.
— Acha mesmo que, depois de tudo que ouviram aqui hoje,
simplesmente os deixarei ir?
— Certamente que não. — O coração de Lucian apertou-se dentro
de seu peito quando ele fitou de esguelha a garota. A única que ele, de
fato, já chegou a amar, com seu olhar preocupado e doce, com os cabelos
emaranhados pela chuva e o vestido grudado à cintura. Ele voltou sua
atenção ao velho.
Lucian não hesitou, formando um arco com a espada, passando
sobre sua cabeça e mirando o ombro do velho, que bloqueou o golpe com
astúcia e raiva, um grito horrendo saindo de sua garganta ao arremessar o
loiro para o lado, mas ele não caiu, apenas girou em seus calcanhares e
se recompôs a tempo de bloquear uma investida de William.
A cada estalo. A cada relâmpago. A cada tremeluzir das chamas. A
garota sentia-se cada vez mais apreensiva, as mãos na beirada do bote
incerta do que fazer. De como ajudar. Lucian era o melhor com a espada,
mas era o bastante?
E então o loiro pisou em falso, a espada do velho abrindo espaço
por entre a carne de sua costela direita, as fibras rompendo em um único
corte e o tecido de sua camisa tingindo-se de vermelho no instante em
que ele sentiu o joelho falhar, caindo em direção ao piso, pois William
agarrava-lhe os cabelos, cada fio preso como vinhas em seus dedos
grosseiros conforme o velho empurrava sua cabeça para trás, fazendo
com que o pomo de adão dele ficasse exposto aos pingos de chuva e ao
corte de sua lâmina.
— Papai! — Lilly chamou, travando o movimento do velho. Ela
praticamente se debruçava sobre o navio, embora mais da metade de seu
corpo ainda estivesse no bote, o qual os ventos faziam questão de tanto
chacoalhar. — Por favor, não...
— Tirar a vida de uma pessoa nunca é fácil. — Ele admitiu, quase
como se quisesse que ela tivesse pena de sua alma cansada, mas havia
uma tremenda falta de compaixão em sua voz e Lilly sentiu seus músculos
travarem, as unhas fincando na madeira enquanto o torniquete em seu
braço parecia pesar cada vez mais. — Mas admito que... — O velho deu
um último puxão nos cabelos de Lucian e então arremessou seu rosto
contra suas botas. — ... tirar a sua será a mais difícil.
Então, numa fração de segundo, William sacou uma segunda
pistola por detrás de seu casaco, lançando-o para trás, uma chuva
particular de gotas voando com o movimento enquanto ele direcionava o
cano para ela, os arabescos desenhados em seu cabo tornando-se
quentes com o toque da mão e, no instante em que o velho encaixou seu
gordo dedo no gatilho de prata, Lucian apanhou uma lasca de madeira
chamuscada e reuniu suas forças, gritando por entre a dor do corte
quando seus braços foram acima de sua cabeça e cravaram a ponta no
interior do olho de William.
Mas ele ainda puxou o gatilho.
O projétil foi errante e não dilacerou o coração da garota, mas sim
explodiu sobre a roldana à esquerda dela, arrebentando o metal enquanto
ele urrava e socava o ar com punhos ferozes, o sangue banhando parte
de seu rosto conforme ele chutava o peito de Lucian para trás e assistia-o
tombando, esgotado. Mas Lilly nada pôde fazer. Ela tentou gritar, mas o ar
travou em sua garganta quando o chão pareceu sumir debaixo de seus
pés, a mão direita erguendo-se no ar a tempo de agarrar a corda que
debateu-se violentamente, agora livre de sua roldana, sentindo o peso de
seu corpo puxando-a para baixo na direção das ondas negras de bocas
espumosas, o vestido esvoaçando pelo seu corpo, os olhos embaçados
pela chuva e o desespero finalmente irrompendo de seu peito em um
guincho que a fez morder o interior de sua bochecha, o gosto metálico do
sangue inundando sua boca enquanto os músculos de seu ombro
berravam contra ela.
O velho cambaleava de um lado para o outro, zonzo, as farpas
penetrando cada vez mais fundo o local onde um dia estivera seu olho.
Ele esbarrou sobre um conjunto de caixas e tombou, o braço esmagado
por seu próprio peso enquanto a mente parecia não entender como de
súbito sua visão havia sido reduzida a uma única vista. Mas quando os
dedos tatearam a cavidade de seu olho e a ponta de madeira surgiu, seu
corpo desesperou-se e William berrou. Guinchou como um porco
enquanto Lucian girava seu corpo, tentando fazer surgir forças em seus
braços para sustentarem seu ser.
— Você! — O velho chamou por ele em fúria assim que ficou de
joelhos. Lucian se ergueu vacilante, o balançar do navio desafiando seu
equilíbrio e sua mente fraca pelo sangue que escorria pela lateral do seu
corpo. De repente, uma chuva final de balas de canhão ecoou do outro
navio. Uma sinfonia cruel, que dilacerou o Sereia Escarlate e reduziu seu
interior a lascas, que cada vez mais eram engolidas pelo mar.
O loiro foi catapultado para frente e, no mesmo instante, seu braço
direito esticou-se para além do navio, apanhando a mão de Lilly no exato
segundo em que suas forças haviam se extinguido. Ela gritou, assustada
com a possibilidade de se afogar em ondas de sal e, logo em seguida,
sentiu seu corpo bater contra a lateral do navio, que se inclinava para trás.
— Argh! — Eles gritaram em conjunto quando ela rolou para dentro
do navio.
Novamente, ela precisou lembrar seus pulmões de respirarem, o
corset lhe machucava por demais, o peito dolorido e a mente aturdida
enquanto o fogo e a chuva dançavam numa luta que encontrava seu fim
por entre o oceano devorador.
— Lucian... — Ela pediu quando percebeu que o ar em seu corpo
não era o bastante. Ela estava se sufocando. — O... vestido...
Ele franziu o cenho por entre a dor, procurando por sua espada. Ele
a tocou, tirando-a de perto das chamas, sentindo-a quente, quase
queimando a pele quando em um golpe delicado ele partiu as amarras de
seu corset. Ela tombou com os braços abertos e uma bile viscosa
escorreu por entre seus lábios ao mesmo tempo que lágrimas rolavam
pelas bochechas, o corpo agora coberto apenas pelo tecido champanhe,
pesado pela água dos céus, enquanto o ar finalmente inflava seus
pulmões. E eles doíam.
— O navio... — Ele disse quando se deitou de novo, o olhar vago
pela noite outrora tão estrelada, mas que agora inundava-se em tons de
carvão e fumaça. — Está...
Ela já sabia que o navio afundava. As ondas invadiam cada
compartimento como se fossem células cancerígenas e devoravam as
madeiras, lançando-as para o fundo ao passo que ela arrastava seu corpo
ao lado dele, as mãos hesitantes ao repousarem sobre o corte em suas
costelas. Não era tão profundo quando parecia, todavia ele estava
perdendo sangue demais.
— Precisamos sair daqui. — Ela passou o braço dele por sobre
seus ombros e ele gritou. Ela o ergueu num único movimento, forçando
suas pernas e sustentado o peso dos dois, a lateral de seu vestido
manchando-se do vermelho que vinha de dentro da carne dele.
— Não... há... para onde irmos...
— O bote... — Ela olhou na direção de onde estava instantes antes,
mas a pequena esperança que ela tinha não estava mais ali, pois havia
sido arremessada pelos ventos violentos e, agora, o navio inclinava-se
cada vez mais, afundando pela sua metade como uma boca insaciável. —
Vamos...
Contudo, antes que terminasse, os dedos gordos e sujos de
sangue de William Talbot agarraram os cabelos dela e puxaram seu corpo
para trás por entre um grito. Lucian tombou, fraco.
— Não! — Ela gritou, as mãos na nuca onde a dor era maior, cada
fio sendo puxado pela raiva do velho enquanto a arrastava para longe. —
Lucian!
E então William parou, atônito ao perguntar:
— Lucian?
Lilly sentiu a respiração pesar; os seios acompanhando o
movimento e os olhos arregalados fitando-o de esguelha.
— Mesmo prestes a morrer, você chama por ele? — finalizou o
velho, quase estupefato com aquilo que ouvia.
Então, quando ela virou seu rosto na direção do dele, seu
estômago a reprimiu, revirando-se ao enxergar uma cratera de carne no
local onde seu olho estivera, as farpas de madeira saltando por entre o
sangue.
— Eu chamarei por ele pelo resto dos meus dias. — As lágrimas
arderam nos olhos dela e as narinas dilataram quando o pai puxou seus
cabelos novamente. O barco envergou mais, o ângulo tornando-se
perigoso para os pés, uma armadilha do próprio mar.
— Por quê? — O pai apontou a pistola para a cabeça dela, o cano
ainda quente tocando sua têmpora direita. — Por que desperdiçar suas
últimas palavras para alguém como ele?
O coração dela apertou no peito ao vê-lo ali, tão frágil, as costas
tensas e uma faixa fina carmesim escorrendo como uma trilha até seu
corpo ferido, os olhos embaçados por lágrimas e chuva; os lábios finos
tremiam com o frio em seu corpo. Ela só precisava de uma chance. Uma
chance de salvá-lo, do mesmo jeito que ele a salvara inúmeras vezes.
— Porque eu o amo.
E quando William engatilhou a arma, foi como se o mar engolisse o
navio. Uma sucção, que tamborilou pela madeira e fez William vacilar.
Mas ela não. Lilly acertou-lhe o rosto com a parte de trás da cabeça e
seus ossos doeram apenas para, em seguida, ela bater a mão contra seu
pulso, a arma tombando em meio ao ar até ser empunhada por ela, um
raio cortando as nuvens quando ela direcionou a mira para o peito de seu
pai, que se recompunha.
— Vai me matar, filha?
Lilly engoliu em seco, a chuva banhando os fios castanhos que
grudavam em torno do seu rosto ferido, sinuosos e dançantes, como se
estivessem agarrados a ela como ventosas embaixo das ondas salgadas
que engoliam o navio, paredes de água negra em ambos os lados quando
a garota encaixou o indicador contra o gatilho. A certeza que ele tinha
sobre a filha desapareceu e o fantasma de sua alma pareceu surgir diante
dele.
— Um capitão sempre deve afundar com seu navio — disse ela
com o coração partindo-se ao puxar o gatilho, o projétil certeiro contra o
coração dele, dilacerando seus batimentos enquanto ele tombava para
trás, os olhos revirando e o corpo sendo lançado sem vida sobre as
ondas, que o engoliram fervorosamente, mandando-o ao inferno dos sete
mares. Ela escorregou, caiu de joelhos sobre o vestido, largou a arma e
viu-a correr pela madeira e também desparecer.
Haveria tempo para se lamentar, mas não agora. Não. Naquele
instante, ela sabia que precisava tirá-los dali. O navio estava condenado à
maré, no entanto a garota estava disposta a enfrentá-la se isso fosse
salvá-lo.
Forçando-se a se levantar naquela inclinação e torcendo para que
seus pés não escorregassem, ela ajudou-o a se erguer de novo, vendo-o
tão pálido quanto as estrelas escondidas, seus traços apagados e os
olhos quase perdidos no horizonte.
— P-Preciso que fique comigo, está bem? — Ela chamou por ele,
passando a mão contra sua testa, tirando os fios de seu cabelo que
estavam grudados. — V-Vamos ficar bem...
Ela desejou que as palavras tivessem saído com mais certeza.
Não havia botes.
Não havia cordas que os arremessassem para o outro navio, que já
partia.
A única saída era bem clara, só que ela tinha revoltas turbulentas
que arrebentavam na costa.
Lilly os levou até a beirada do navio. O oceano estava tão violento
e a chuva o instigava a tornar-se ainda mais agressivo, e a água estava
tão negra que ela tinha certeza que nada enxergariam. As ondas os
consumiriam, assim como já haviam consumido os mortos. Mas a garota
precisava ter coragem. Por eles. Então, fitando as bolhas de sal que
espumavam por sobre a escuridão das ondas, Lilly apenas abraçou o
corpo de Lucian, sentindo seus batimentos suaves demais, o frio
percorrendo seu corpo em calafrios enquanto suas mãos quase não
tocavam os ombros dela. Então, em meio à noite, a luz do farol de
Eastbourne se iluminou. Era para lá que tinham que ir. Enquanto ela
enxergasse o farol e os mantivesse unidos, ainda haveria uma chance.
— Eu... confio... em você... — As palavras dele soaram como um
sussurro ao pé dos ouvidos dela.
— Eu te amo. — E ela lhe deu um beijo na bochecha e lançou seus
corpos para além do navio.
A maresia os envolveu antes que a água os submergisse. O ar
travou em seus pulmões. O impacto ameaçou separá-los, mas Lilly
agarrou as vestes dele com mais força, os dedos perdendo-se em
camadas de sua camisa enquanto ela lutava para manter os lábios
fechados, contendo sua vontade de gritar com o sal ardendo em suas
feridas. Lucian fazia o mesmo, todavia as bolhas escapavam por entre os
dentes e ela sabia que ele não iria aguentar muito tempo. Precisavam
subir. Precisavam de ar.
Naquela vastidão negra do oceano, nada se via. Era a mais
profunda penumbra do desconhecido, que poderia agarrar seus pés e
puxá-lo para as profundezas. Era o incerto e o horrendo. O mais puro
pavor enquanto ela forçava seus corpos para cima, as forças de seus
braços esgotando-se rápido demais.
Foi uma subida lenta e angustiante, aparentemente infindável, com
as ondas arrebentando sobre suas cabeças, a água puxando-os para
baixo, o sal irritando os olhos de Lilly, que não se acostumava com a
sensação da umidade da água do mar em sua boca. Os pulmões
queimaram por oxigênio e ela gritou, bolhas de ar subindo em direção à
superfície, desaparecendo rapidamente. Estavam perto. Ela só precisava
de mais alguns segundos, no entanto seu corpo parecia negá-los. A
tonteira começou a embaçar seus olhos. Lilly teve um breve lampejo de
uma faixa de luz próxima à superfície.
Capítulo XXIII
Luz
A luz do amanhecer ofuscou os olhos dela. A vista arranhou-se,
como se houvesse areia embaixo de suas pálpebras — talvez tivesse. A
cabeça estava afundada sobre um travesseiro e os cabelos caíam pelas
laterais, como uma almofada de chocolate endurecido, brilhantes de sal.
Lilly engoliu em seco e os ouvidos ouviram o som do mar. Parecia
distante, quase como se estivesse sendo ouvido de dentro de uma
concha, mas conforme os segundos se passavam, o som tornou-se cada
vez mais próximo, assim como o grasnar de algumas gaivotas que
sobrevoavam um céu extremamente ensolarado, pintado de amarelo e
azul, com nuvens tão macias que de forma alguma poderiam ser as
mesmas da noite anterior. A brisa entrava pela parede perto de sua cama
com grades. Era um quarto tão estranho, com a tinta descascando do teto
e a maresia infiltrada em cada objeto que ali havia. Pequenas garrafas
com navios artesanais dentro, que jamais afundariam. Conchas, das mais
diversas, organizadas em pequenas cestas que estavam no chão. O
lençol era liso e macio e o leve mexer da ponta dos dedos fez seu
estômago se embrulhar, dolorido, cada junta gritando em dor enquanto ela
forçava-se a se sentar.
Ela deve ter feito o movimento rápido demais, pois sua mente
rodou e seu corpo ameaçou tombar.
— Lilly! — Uma voz fina a acolheu com os braços, ajudando-a a se
recompor, as pernas da garota escorregando para fora da cama. —
Calma, está tudo bem, agora.
Os olhos dela ainda estavam turvos e ela lutou para focá-los no
rosto de sua mãe, que tinha os olhos tão abertos, assustados, fitando-a,
sem maquiagem alguma, os lábios franzidos em preocupação e as
sobrancelhas alinhadas em arcos de surpresa por vela acordada.
— Mamãe? — Ela perguntou, levando a mão esquerda na direção
do rosto da mulher, mas retraindo-se, sentindo uma fisgada no meio do
bíceps, grunhindo.
— Não se mexa — pediu a mãe, tocando o rosto dela com ambas
as mãos, levando a direita contra sua testa para ver se estava febril. —
Você vai ficar bem.
Ela sentiu o corpo ir para frente e respirou fundo, endireitando-se,
alguns fios de seu cabelo caindo sobre seus olhos antes de perguntar:
— Por que você está aqui?
Célia olhou para a filha, confusa e um tanto abalada pela pergunta,
e apenas continuou ali, sentada na beirada na cama, usando um vestido
verde-escuro e os cabelos tão despenteados quanto os da garota.
— Quer que eu vá embora?
Lilly franziu o cenho, cada parte do seu corpo estava dolorida e a
punia com um mínimo movimento. A garota maneou a cabeça em
negativa. Logo em seguida, com a voz abafada e exausta, perguntou:
— Onde está Lucian?
Os olhos dela pareceram mudar um tom e o coração de Lilly tremeu
em seu peito, a atmosfera parecendo congelar enquanto a incerteza lhe
dava calafrios que subiam pela sua espinha.
— Mamãe... — Ela recomeçou, as palavras tão secas quanto areia.
— Onde ele está?
Mas Célia parecia disposta a manter-se em silêncio, o que fez Lilly
erguer-se num salto, a vista escurecendo com esferas negras que
atrapalharam seu caminho para fora daquele quarto, com passos rápidos
o bastante para espantar Célia.
— Lilly, volte!
Ela simplesmente a ignorou, ouvindo seus passos a
acompanhando enquanto apoiava-se no batente da passagem de seu
quarto, que não possuía uma porta. Na verdade, Lilly deparou-se com um
curto corredor que não parecia possuir porta alguma, três cubículos
separados e visíveis de todos os ângulos. Olhando para a esquerda, ela
percebeu mais da luz que ofuscava seus olhos, clara demais, o céu
parecendo em tons exagerados e as pernas fraquejavam, o olhar
voltando-se para o interior rapidamente, ignorando os outros aposentos,
focando nos três cubículos. Principalmente no qual via-se uma figura
deitada, encolhida no canto de uma cama de molas, com um lençol ao
lado do corpo suado, o braço preso por uma tipoia improvisada, o rosto
arroxeado e o olho inchado, uma faixa larga o bastante para caberem as
duas mãos da garota envolvendo o torso dele. Lucian respirava
lentamente. Mas respirava.
Vê-lo ali a fez se acalmar. Sua alma poderia descansar. Ela havia
conseguido, mas como? E foi no instante que ela apoiou a cabeça contra
o batente, observando-o sonolento, dormindo, repousando para se curar,
que Célia apareceu ao seu lado, os olhos marejados e totalmente incerta
do que dizer, e então ela deixou que seu coração a guiasse, como via a
filha fazer. Ela permitiu que seus olhos se tornassem tão belos e
verdadeiros quanto os de Lilly e, assim, as palavras começaram a escapar
por entre seus lábios:
— Eu sei que não fui uma boa mãe, Lilly...
As palavras fizeram a garota franzir o cenho, respirando fundo,
virando seu rosto na direção da mãe, não ousando dizer uma coisa
sequer, permitindo que a mãe tivesse um momento em que fosse
totalmente verdadeira.
— Eu sei que deixei que seu pai batesse em você. — As lágrimas
surgiram em seus olhos como espinhos nascidos em rosas. — Eu não a
protegi quando deveria. E-Eu... Ah, Lilly, ele lhe causou tanta dor... —
Célia tocou o rosto da filha mais uma vez.
— Ele nos machucou, mamãe. — A garota acrescentou, sabendo o
quanto ambas haviam sofrido terrivelmente nas mãos daquele homem. —
Mas nunca mais irá nos machucar.
Célia pareceu confusa.
— Ele está morto, mamãe.
— Seria errado eu dizer que sinto alívio? — perguntou, manhosa, o
queixo tremendo logo em seguida enquanto ela erguia a mão na direção
da boca, temerosa das palavras que ela julgara como profanas. Lilly podia
ter dito sobre todas as noites que chorara sozinha em seu quarto, sobre
como a mãe, embora tivesse tentado deixá-la ler, não a protegera, mas
não havia um motivo para tal. Ambas erraram em diferentes momentos,
alguns erros maiores do que outros. E, sabendo disso, de toda a sua
peculiaridade falha, Lilly Talbot apenas tocou os ombros da mãe puxando-
a para um abraço, sentindo o coração de ambas bater contra as peles
quentes.
— Eu te perdoo, mamãe.

***

Depois de um tempo, quando o coração de Lilly acalmou-se em ver


Lucian por alguns instantes, ambas as mulheres caminharam em direção
a uma pequena sala de estar, ao lado da entrada iluminada, que jogava
sombras sobre o piso de madeira. Não havia livros, nem quadros e nem
longas mesas de vidro. Na verdade, tudo era tão modesto que Lilly
surpreendeu-se em ver a mãe ali, num estado tão diferente que ela jamais
vira.
— Não gostou da casa? — questionou Célia, sentada sobre uma
pequena poltrona de plástico que afundou seu corpo, as mãos unidas
sobre os joelhos e os cabelos caindo sobre os ombros ossudos, ao
perceber os olhos da filha percorrendo cada centímetro com estranheza.
— Onde nós estamos, mamãe?
Ela respirou fundo ao responder:
— Em Eastbourne.
Mas Lilly apenas duvidou com seu olhar, incitando a mãe a contar
mais do que a garota já desconfiava saber.
— Nós estamos em casa, Lilly — respondeu Célia com um sorriso
tímido por entre as rugas. — A nossa casa — frisou ela, e a garota não
conseguiu conter seus olhos de percorrerem cada canto novamente,
passando pelas pequenas rachaduras do teto até que os ouvidos se
distraíssem com o arrebentar das ondas, tão perto.
— Quer dizer...
Célia tomou coragem, inflando seus pulmões, as palavras
fomentando na boca do estômago antes de flutuarem pelos lábios:
— Eu construí esta casa, Lilly, para que pudéssemos... nos
proteger de... — O raciocínio deturpou-se com cada pancada que já
recebera em seu corpo. Com cada dor. Com cada hematoma. — Para
que...
— Para nos proteger de papai — completou Lilly, sentindo tanta dor
quanto Célia, vendo-a no momento em que reergueu o olhar úmido e
penado em sua direção.
— Sim. — A mulher enxugou as lágrimas com dedos rápidos. —
Sim, para nos proteger dele. — Célia fungou e engoliu em seco, a
garganta arranhando antes de continuar, inclinando-se para frente com as
costas descolando do plástico. — Você já veio aqui uma vez, Lilly.
A garota sentiu o ar de um instante para outro fraquejar em seus
pulmões.
— Eu lhe trouxe aqui na única vez em que tive coragem de deixar
seu pai — admitiu ela enquanto mordiscava o lábio inferior e esfregava
cada centímetro de sua mão esquerda com o polegar, nervosa. — Mas
você era tão pequenininha, e eu não tinha como... não tinha como te
sustentar... — Os olhos dela voltaram a arder e Célia precisou fitar o teto
para não desabar numa cascata de lágrimas. — Então, voltei com você
para casa.
— E papai te puniu por isso, não foi?
Isto, a mãe não precisou responder, o modo como seus ombros
tremeram e o assento pareceu engoli-la novamente já era o suficiente.
Lilly esperou a mulher se recompor, vendo-a dar pequenas batidinhas
contra a saia do vestido como se tirasse a poeira dela, antes de perguntar:
— Como eu cheguei aqui, mamãe?
Célia franziu cenho, confusa.
— Não se lembra de nada?
A garota maneou a cabeça negativamente e acrescentou:
— Como me encontrou?
A mãe cruzou uma perna sobre a outra e entrelaçou os dedos
ossudos.
— Houve o naufrágio do navio em que estavam fugindo, Lilly...
— Sim, sim, disso eu sei... — Ela antecipou-se, as costas para
frente enquanto os cotovelos apoiavam-se nas pernas, um leve ardor em
seu braço esquerdo, o que a fez olhar de relance para ele, vendo-o com
dois pontos feitos com uma linha escura. A mãe havia costurado seu
ferimento.
Célia decidiu tomar uma nova abordagem:
— Qual a última coisa de que se lembra, minha filha?
— De me afogar... — As palavras soaram tão firmes quanto os
trovões e raios da noite passada, que tamborilaram em seus ouvidos
naquele instante, arrepios percorrendo cada extremidade de seu corpo, os
olhos cegando-se pelas memórias, o ardor do sal em sua vista, as bolhas
escapando de sua garganta conforme o peso de seu corpo e o de Lucian
os puxava para baixo, para a vastidão negra do oceano profundo. Embora
estivesse naquela sala, seca e quente, na companhia de sua mãe, ela
sentia como se nunca tivesse saído de baixo das ondas, que contornavam
seu corpo, a sufocavam e afligiam seu coração. — ... e de ver uma luz por
entre a água salgada e negra... de nadar até ela... e de respirar.
Então, um relapso de memória atingiu-a num súbito e o corpo
sentiu uma brisa tomar seu tronco, tornando sensível o suor que escorria
devagar pela pele, assim como as gotas de chuva que tocaram seu rosto
quando ela emergiu por entre a noite, coroas de sal explodindo ao redor
de seu corpo, a mão direita puxava Lucian para perto de seu peito, os
cabelos grudados na turbulência zangada de um oceano sem fim
enquanto o navio afundava entre suas chamas, desaparecendo em
minutos e deixando-os sozinhos naquela imensidão furiosa, que os cobria
com ondas, forçando-os a respirar profundamente a todo instante, sem
saber se aquele seria seu último contato com o ar.
— Lembro de sentir o rosto de Lucian contra meu pescoço. Quase
não respirava e os olhos permaneciam fechados. — A visão de Lilly focou
no chão de madeira, como se estudasse cada milímetro de suas farpas e
poeira, mas na verdade ela via tudo como se estivesse acontecendo
naquele exato momento. — Lembro que o apoiei sobre meu seio e prendi
meu braço debaixo dos dele... E foi aí que eu vi a luz mais uma vez.
Célia mantinha-se tão atenta que a própria atmosfera se tornou
densa, beirando o tangível, sua respiração calma à medida que os
detalhes da filha faziam-na se arrepiar.
— Era a luz do farol, Lilly.
A garota fitou a mãe, despertando do seu transe em primeiro
instante, mas ainda ouvindo a batalha das ondas contra seus corpos, e os
raios rasgando os céus junto aos trovões que assustavam a alma, como
se fosse um segundo plano de sua mente.
— Muitas pessoas viram o fogo que veio do navio e correram para
a praia, na esperança de que houvesse sobreviventes. — Célia fitou os
olhos da garota, que pareciam tão distantes e ao mesmo tempo tão perto.
— Mas, você não estava na praia.
Lilly franziu o cenho, endireitando suas costas, sentindo a lombar
doer, totalmente exausta.
— Como assim?
— Assim como disse, você viu uma luz, o farol, e foi até ele.
E naquele instante, os olhos dela pareceram ofuscar-se com a
memória de como ela batia os braços em arco, puxando seus corpos para
além das ondas, estourando as bolhas de sal, sendo atraída pela luz
como uma mariposa, o coração doendo no peito cansado, que arfava
pesadamente conforme o cheiro de queimado distanciava-se e a costa se
aproximava.
A cada braçada. A cada respirar. Lilly sabia que seu corpo havia
chegado ao máximo. Não iria conseguir. Não dava mais. Exausta e sem
forças, a garota apenas abraçou o corpo de Lucian e permitiu-se chorar,
lágrimas que se misturavam em nuances de ternura, dor, tristeza e
esperança. Eles estavam tão perto. Faltava tão pouco. Mas a dor em seu
abdômen, em seus braços, o ardor do corte e a mente em badaladas...
Era demais para ela. E foi quando a noite se tornou mais silenciosa, com o
abater da chuva e a vinda de uma garoa, que a garota percebeu o quanto
Lucian precisava dela, com os olhos apagados em seus ombros,
perdendo sangue, a boca fria e arroxeada enquanto algumas veias
saltavam em seu pescoço pálido. Ele estava morrendo.
— Eu nadei até o farol. — Ela disse, engolindo em seco, fitando os
olhos da mãe e vendo em sua mente cada movimento. — Eu alcancei a
costa. Senti as pequenas pedras rolando pelo meu joelho e de repente
meu corpo já não estava sendo puxado pelo mar. — Lilly sentiu as
lágrimas em seus olhos, uma melancolia de memórias que pesavam em
seus ombros. — As mãos afundaram entre elas depois que o arrastei
junto a mim, e... me lembro de ter caído de costas, agora... olhei para ele
uma última vez... parecia que estava dormindo, e eu torci de verdade para
que estivesse... — A garota fitou a mãe. — Mas não consigo me lembrar
de mais nada.
Célia respirava pesadamente, atenta, deveras impressionada pela
força da filha, pelo modo como agira e pela mulher que ela havia se
tornado.
— Eu a encontrei desacordada. Os dois. — A mãe aprumou-se,
sentindo os ossos estalarem com o movimento. — Chamei por um
médico, que me ajudou a trazê-los aqui. Eu dei os pontos no seu braço,
como ele pediu, e ele cuidou do rapaz, disse que devemos dar a ele
apenas líquidos e ficar de olho para possíveis febres.
Lilly inclinou o corpo para o lado, tentando ter um vislumbre do
quarto em que ele estava, porém nada viu.
— E... ele disse se... Lucian ficará bem?
E a mulher hesitou antes de responder, os cílios se agitando ao
responder:
— Ele está em uma situação delicada, Lilly...
O coração da garota apertou-se e as narinas dilataram.
— ... ele perdeu muito sangue — terminou ela antes de se levantar,
a saia verde escorregando e pesando em sua cintura antes de Célia
colocar a mão esquerda sobre o ombro da filha. — Vamos torcer pelo
melhor.

***

O fim do verão ainda parecia distante mesmo conforme os dias


foram passando. Elas tiveram que se adaptar, é claro, Célia levando
novas trocas de roupa para Lilly, que se recusava a deixar aquela
pequena casa que fora construída a alguns metros do farol. Agora, ela
estava numa espécie de varanda, onde o sol banhava seu corpo, coberto
com um vestido de mangas leves, que descia etéreo mesmo por suas
curvas, sendo levado pela brisa quente junto a seus cabelos. Os olhos
fitavam o horizonte, tão calmo sobre o mar misterioso, que devorara um
navio e ainda assim parecia perfeitamente inalterado. Poderia se dizer
que ele era o mesmo, mas Lilly Talbot sabia que jamais voltaria a ser
como era antes.
Não.
Era impossível retornar àquela garota temerosa, com um pai
violento e com medo de seguir seus próprios sonhos. Essa figura já
estava longe. Agora, sabia quem era, e só tinha a agradecer a uma
pessoa por ajudá-la a ver seu próprio reflexo. Mas Lucian ainda
permanecia desacordado.
Como todas as manhãs, ela desapoiou-se da pequena cerca que
contornava a casa, elevada pelas pedras de giz que começavam a trilhar
o Beachy Head. Depois de alguns dias, a garota entendeu por que a mãe
construíra aquele porto seguro ali, já que aquela barreira naturalmente
encobria o esconderijo. Saber que estavam em terra firme e sem ameaças
externas acalmava a garota, mas vê-lo naquela cama, agora, com o rosto
suado, o peito desnudo respirando lentamente conforme a faixa em seu
dorso acompanhava o movimento, era assustador.
— Hey. — Ela disse quando se sentou na beirada da cama, uma
pequena bacia de água fresca e um pano limpo, o qual ela mergulhou no
líquido, os dedos delicados sentindo um breve arrepio. — Sou eu... — Lilly
tirou o tecido encharcado. — Vim lhe fazer companhia...
Ela levou a ponta do pano até a testa dele, tocando-o devagar, com
cuidado, vendo se alguma reação vinha de seu corpo, contudo nada
acontecia. Sua respiração não mudava e os olhos não se abriam. O tecido
o umedecia de um lado para o outro, limpando o suor e refrescando a
pele.
A garota desceu pelo contorno do maxilar dele, delineando seu
rosto assim como a própria luz oblíqua, que entrava pela janela. Lucian
era o mais belo dos rapazes que ela já vira, não por ser perfeito, mas por
ter sido verdadeiro. Sempre. Em cada momento. Ele nunca tivera medo de
ser quem era e de mostrar ao mundo. Nunca teve medo de simplesmente
agarrá-la pelas mãos e puxá-la correndo. Nunca teve medo de beijá-la.
Lucian proclamava seu amor para com o mundo e aos seus momentos a
todos a cada segundo, porque é assim que se deve viver. É assim que se
deve sentir. E, naquele instante, enquanto os olhos dela ardiam em
lágrimas e ela mordiscava o lábio inferior, refrescando o pescoço dele,
Lilly percebeu que seu maior medo era perdê-lo.

***

Num dos dias em que a garota se sentiu demasiadamente sem


esperanças, já passadas algumas semanas sem conseguir deitar a
cabeça contra um travesseiro e descansar, Célia decidiu passar a noite
com ela, ambas adormecendo na cama, a garota com a cabeça contra os
seios da mãe enquanto ela lhe afagava os cabelos. Aquela foi a primeira
noite em que Lilly realmente conseguiu dormir.
Quando acordou pela manhã, a mãe já não mais estava no quarto.
Lilly sentia o suor em seu corpo, pegajosa, o tecido das vestes grudado
em cada curva toda vez que ela se levantava, uma brisa arrebatando seus
cabelos enquanto a garota ouvia um tamborilar na cozinha. Era modesta,
de fato, com apenas um fogão a lenha e uma pia enferrujada pela
maresia, mas era o bastante para eles.
— Ah, já está de pé! — exclamou a mãe, virando-se com uma
frigideira na mão direita e uma espátula na outra, remexendo algo que
pareciam ovos. Lilly colou os lábios em um sorriso ao se encostar no
batente da porta. — Eu já servi uma sopa ao Lucian e estou fazendo um
desjejum para nós. Dormiu bem?
— Dormi — admitiu, caminhando até a pequena mesa de madeira
que ali fora disposta, então sentou-se sobre a cadeira, que rangeu com
seu movimento quando ela bateu a ponta dos dedos contra a superfície à
sua frente.
Algo em seu estômago pareceu remexer, dolorido, e o cheiro a
enjoou num súbito, carregado pela brisa que refrescou a pele.
— E a senhora? — Ela decidiu perguntar, tentando se distrair do
incômodo. Sua testa já estava tão suada assim? Por que a garganta
parecia seca?
— Bom, tirando esse calor... — Célia ponderou, erguendo as
sobrancelhas, mas Lilly não a viu fazer isso, pois estava de costas para
ela. — Creio que posso dizer que sim.
Porém, quando a mulher se virou para servir a filha com uma
pequena porção de ovos mexidos salpicados de salsinha, a garota não
estava mais ali. Parecia ter desaparecido como um fantasma, levada pelo
vento e a poeira dançante do lugar.
— Lilly? — chamou por ela, recebendo como resposta um grunhido
que ecoou do fundo da casa, abafado e denso, gosmento e um tanto
conciso.
Confusa, Célia andou com passos rápidos, tomando cuidado para
não pisar na barra de seu vestido amarelado enquanto as mãos
apoiavam-se na parede durante todo o caminho pelo corredor, até
alcançar uma pequena porta, que Lilly só fora descobrir no segundo dia
em que estavam ali, mas ela estava aberta, e a mãe pôde ver claramente
o modo como os braços da garota pendiam sobre a bacia, mãos tocando
a porcelana como uma criança que caíra e não conseguia se levantar, as
pernas dobradas embaixo das camadas da camisola que grudara em seu
corpo, os cabelos para trás e um líquido alaranjado escorrendo da sua
boca.
— Meu Deus, Lilly... — A mãe caminhou até ela e se ajoelhou,
apanhando os cabelos em um punhado, certificando-se de que eles não
tocassem o vômito, que sujou os cantos da boca da garota. — Respire
fundo... — Célia a abanava com a mão direita ao mesmo tempo em que
assoprava seu rosto. — O calor deve estar te fazendo mal.
De repente, a náusea pareceu passar, a mãe, então lhe entregou
uma toalha para que se limpasse, ajudando-a a se recompor, fechando a
tampa da privada para que ela tivesse um local para sentar.
— Como está se sentindo?
Lilly franziu o cenho, incerta de como algo que a incomodara tanto
pudesse ter desaparecido tão depressa.
— Eu... não sei...
Mas ela tinha um palpite.
— Será que foi algo que você comeu ontem à noite? Alguma ostra
estragada?
Pensar nas ostras ameaçou o retorno do enjoo, mas Lilly apenas
sentiu um arroto escapar por entre os lábios e ela, envergonhada, pediu
desculpas aos tropeços para a mãe.
— Não seja tola, não precisa pedir desculpas. — A mãe ainda
segurava os cabelos da filha, permitindo que a nuca refrescasse com seus
pequenos sopros enquanto Lilly tentava respirar fundo. — Eu fazia muito
pior quando estava grávida de você.
E embora a garota nada tivesse dito, ambas souberam na hora o
que estava acontecendo.
Lilly estava grávida.

***

A garota queria poder dizer que aquela criança dentro de si era sua
maior preocupação, que a vida que gerava dentro dela seria o seu maior
comprometimento, porém o modo como Lucian não parecia melhorar
abalava seu coração. Estava esperando um filho dele, um fruto de seu
amor, mas e se o responsável por isso não mais acordasse? E se ele
entrasse no sono profundo da morte, que lhe acolheria os braços e a
alma? Agora, a situação era completamente diferente e a preocupação a
enjoava ainda mais.
Ela caminhou até a cama dele, imaginando que os vestidos em
breve tornar-se-iam justos, que a euforia de Célia apenas aumentaria
quando a criança viesse ao mundo, mas como ele reagiria ao saber
disso? E se ele nunca soubesse daquela criança? E foi pensando nisso
que Lilly se sentou ao lado de Lucian, as molas rangendo, as camadas de
seu vestido azulado caindo junto aos lençóis em um arco até o chão,
enquanto ela tocava a lateral da mão dele e começava a falar:
— Eu... — A voz escapou incerta por entre os lábios delicados, o
sol tocando sua pele levemente. — ... queria que você pudesse abrir os
olhos, que pudesse conversar comigo... — Lilly teve de interromper-se,
respirando fundo pela boca, tomando o máximo de ar possível a fim de
controlar a sua vontade de chorar. — Estou com tanto medo, amor. — Ela
fechou os olhos com tanta força que as estrelas surgiram, mas nem isso
conteve as lágrimas, que começaram a rolar lentamente por seu rosto. —
E eu não sei se você está me ouvindo... Prefiro acreditar que está.
A brisa da janela era discreta, afagando o rosto dela de tempos em
tempos, brincando com alguns fios do cabelo dele, que brilhavam pelo
suor, bagunçados. Ela esticou a mão direita e os penteou, escorregando-a
por sua bochecha, os hematomas já desaparecendo de seu rosto.
— E-Eu... — gaguejou, pigarreando antes de respirar fundo e se
recompor. — Eu quero lhe contar uma história, está bem?
Os olhos dela repousaram sobre o peito dele, tão calmo com a
respiração leve, pequenos pelinhos revoltados crescendo na vastidão
branca e queimada de sol.
— Havia uma garota, e ela nunca sentiu como se pertencesse a
algum lugar. — Lilly fitava o rosto dele atentamente, como se aguardando
por uma reação. — Tinha tudo o que alguém poderia querer, contudo não
era aquilo o que ela queria. A garota só queria amar e ser amada. — A
voz fraquejou na última palavra e ela sentiu os lábios tremerem. — E ela
nunca achou que encontraria isso, até conhecer um rapaz que fez com
que ela desafiasse tudo o que conhecia. Acredita que ele a fez comer
peixe frito com as mãos? — Ela sorriu com os lábios colados, os olhos
vermelhos pelas lágrimas e as bochechas coradas, a voz chorosa e o
peito dolorido. — E ela realmente se apaixonou por ele e o amou, havia
aqueles dispostos a destruir tal sentimento, mas eles lutaram juntos. —
Ela fungou, enxugando as lágrimas num reflexo. — Além de ser amada,
ela queria ser livre, eu queria ser livre, Lucian... — Os olhos dela arderam
conforme embaçavam-se em gotas cristalinas. — E eu só tenho a
agradecer por ter me dado um mundo inteiramente novo dentro do que eu
já conhecia.
O mar de lágrimas em seus olhos a fez fraquejar, a mão dela
apanhando a dele com calma, a respiração acelerada e a cabeça
maneando de um lado para o outro, negando a possibilidade... A
possibilidade de Lucian...
— O médico disse que você tem até o baixar da maré para
melhorar, então, por favor, não desista! — suplicou a garota tentando
fazer com que as palavras não saíssem atrapalhadas entre seu choro. —
Você é o meu mundo, Lucian, por favor, não me deixe!
Ela apertou a mão dele e, em seguida, delicadamente, puxou-a
para seu ventre. O leve toque inconsciente contra o tecido beirando a pele
fez um arrepio percorrer o corpo de Lilly e a respiração doeu em suas
costas à medida que ela fechava os olhos e permanecia em seu escuro,
as lágrimas dividindo as bochechas e caindo na direção de seu vestido.
Hesitante, com o coração em sua mão, a incerteza na voz e os lábios tão
belos e delicados tremendo, ela disse:
— Não nos deixe.
E foi nesse instante.
Uma fração de segundo.
Talvez, se ela não estivesse tão focada no modo como seus dedos
encostavam contra seu ventre, ela não tivesse percebido. Foi um leve
movimento do indicador, uma força a mais, delicada, sutil, quase
imperceptível, o modo como Lucian formou um pequeno círculo sobre o
tecido, a pele dela queimando, desejando seu toque, e o ar travando em
seu peito enquanto ela abria os olhos, vendo a mão tentar se mover.
Ela percorreu o corpo dele com os olhos no mesmo instante em
que viu as pálpebras se moverem, calmas, sonolentas, a visão
demasiadamente confusa, o cenho franzindo e algumas gotas de suor
escorrendo pelas têmporas ao mesmo tempo que ele piscou algumas
vezes, focalizando a visão no rosto dela, que era delineado pela luz da
janela, os cabelos castanho-amendoados tornando-se quase dourados
com pequenas partículas de poeira flutuando pelo ar, um sorriso
formando-se em seu rosto manchado de lágrimas conforme ela
escorregava seu corpo para perto dele, os rostos se aproximando e a
respiração dele tornando-se mais firme.
— Lucian... — Ela sentiu a voz tremer e as palavras quase a
sufocaram em tanto sentimento no instante que segurava a mão dele com
mais força. Lentamente, ele retribuiu o movimento, olhos marejados e
tantas emoções passando pela sua mente ainda fraca.
— Lilly...
E a garota inclinou-se, os lábios tocando a testa dele, sentindo-o
quente, o coração acelerado e uma última lágrima escorrendo por sua
face. Ela sabia que tudo ficaria bem.
Epílogo
O amor que nos enlaça
Um ano depois
Foram meses turbulentos, Lilly tinha de admitir. Visitas médicas,
para ela e para Lucian, durante os três primeiros meses de sua gestação,
com Célia circulando-os como uma gaivota exacerbadamente
preocupada. Por mais incrível que pareça, a própria Lilly não estava, nem
mesmo quando sentiu o primeiro movimento dentro de sua barriga dias
depois. Eles viveram uma manhã de cada vez, um beijo a cada tempo,
pequenos toques, que se desatavam em trilhões de sensações assim
como o mar parecia acolher a costa. A maré baixou, e mais pedras
arredondadas surgiram próximas ao farol, escondidas e misturando-se
com a areia do fundo do oceano.
Nesse meio-tempo, o faroleiro veio a falecer, o que deu a Lucian
um novo trabalho. Ele sonhou em ser um capitão e, de fato, ele era,
guiando os navios em segurança, alertando sobre a chegada da encosta
de Eastbourne enquanto as estrelas o assistiam com louvor. Lilly ainda
conseguia subir os degraus até a última área da construção, no início do
quarto mês — uma escada em caracol que desafiava seu equilíbrio até
alcançar as grades que beiravam a ponta. As mãos dela tateavam o ferro,
temerosas pela altura, até alcançar Lucian, sempre de costas, os braços
apoiados na beirada e os olhos fitando um horizonte de possibilidades.
— Veio admirar a vista, senhorita Talbot?
Ela baixou os olhos, fitando o volume que surgiu em seu ventre, um
pequeno adorno formou-se no vestido bege que esvoaçava com o vento
quando a garota apoiou os braços que nem ele, mas com certa hesitação,
algo que não via em nenhum movimento do loiro.
— É muito lindo, aqui.
— De fato que é — respondeu, porém ele a fitava com paixão, os
olhos doces como sempre, e um sorriso travesso surgia em seu rosto,
analisando o modo como ela parecia tão animada a cada dia. Como se
tudo fosse, de fato, novo, mesmo que já tivesse sido visto milhares de
vezes. — Diga-me, senhorita Talbot, acha que é menino ou menina?
E ela riu, maneando a cabeça de um lado para o outro.
— Não irá parar com as formalidades? — perguntou, fitando o mar
abaixo de si, as rochas e a espuma que o decoravam, algumas algas
enroscadas em uma espécie de ninho. — Serei para sempre a senhorita
Talbot?
— Ao menos até me dizer a sua resposta...
E uma brisa lhe afagou o rosto quando ela o virou na direção de
Lucian, assistindo-o dobrar o joelho esquerdo, enfiando a mão direita
dentro do bolso de sua calça culotte e retirando uma pequena concha
rosada, grudada apenas em um pequeno ponto, formando asas de
borboleta em tons de leite em seu interior quando ele a abriu, um
pequenino anel que brilhava tanto quanto os olhos dele, recheados de
excitação, a lua ainda mais reluzente em seu sorriso e o coração dela
palpitando; o sopro dos ventos contornavam seus corpos como o amor
que os enlaça.
— Lilly Talbot... — Ele engoliu em seco, a emoção em sua voz
enquanto os fios de seu cabelo eram levados pelo suave toque dos ventos
daquela noite, a maré delicadamente formando uma trilha sonora que fez
Lilly encantar-se ainda mais, as estrelas sendo espectadoras de pedido
tão caloroso. — ... conceder-me-ia a honra de ser minha esposa?
As lágrimas em seus olhos surgiram conforme o palpitar de seu
coração. Ela não conseguia parar de sorrir ao responder:
— Eternamente.
Agora, meses depois, já com um garotinho tímido em seus braços,
envolto a uma camada de tecido de algodão, com olhos tão grandes
quanto os do pai e tão curiosos quanto os da mãe, Lilly e Lucian assistiam
o modo como o céu pintava-se em tons de azul, dissipando seu laranja no
horizonte de um oceano aparentemente sem fim, com pontos brilhantes
surgindo por entre as nuvens que desapareciam entre escuro, que
empalideceu seus rostos, contornando-os com uma espécie de aura
prateada enquanto ela encostava sua cabeça contra o ombro dele.
— Somos uma família de verdade, não somos? — perguntou ela,
fitando-o de baixo, vendo o delineado de seu maxilar à medida que o
rapaz baixava sua visão até a dela, seus lábios tão delicados e tão
próximos dos seus; o filho, resultado de seu amor incansável, repousando
em seus braços, iluminado pela luz do farol que começava a intensificar-
se conforme o óleo de baleia escorria do tonel acima, girando pelos ares,
como se anunciasse que aquilo não era um fim, mas apenas um começo.
— Somos — respondeu ele com a maior certeza de sua vida.
Nesse instante fugaz, quando os céus estavam silenciosos e o
horizonte tornava-se misterioso, engolido por ondas de sal, Lucian a
beijou, o toque dos lábios mais ásperos que o dela fazendo suas
bochechas esquentarem, e Lilly sentiu-se livre, o coração batendo forte e
o filho firme em seus braços, pois um amor verdadeiro não aprisiona,
liberta.
Agradecimentos
Sabe, infelizmente, é comum considerar o amor e a liberdade como
elementos opostos, como se um não pudesse existir junto ao outro,
porém, um amor apenas será verdadeiro quando este, mesmo que dentre
tudo o que você já conhece, conseguir te libertar e te levar a outros
lugares, e é em cima dessa ideia que o livro foi escrito, pois acredito
fielmente que o amor puro e inocente ainda existe.
Assim, há menções que não poderiam deixar de ser feitas:
primeiro, aos meus pais, que me mostraram o melhor exemplo de amor, e
minha irmã, que me apoiou em cada capítulo; segundo, à minha amiga
Raíssa Rusche, por toda a paciência que teve comigo durante o
desenvolvimento do livro e à Magda Ribeiro, que me acompanhou na
viagem a Eastbourne e estimulou a ideia desde o começo. Assim,
agradeço também a todo o pessoal da 3DEA Editora, que acreditou e
apostou em mim, dando-me a oportunidade de seguir com meu sonho.
Com a maior gratidão a todos vocês,
Gui Ribeiro

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