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Depois da Terra™

Histórias de
Fantasmas

O Salvador
Michael Jan Friedman

Tradução
Rodrigo Santos
Copyright © 2013 por After Earth Enterprises, LLC. Todos os direitos reservados. Usado
sob autorização.
Todos os direitos desta edição reservados à
Editora Objetiva Ltda.
Rua Cosme Velho, 103
Rio de Janeiro – RJ – Cep: 22241-090
Tel.: (21) 2199-7824 – Fax: (21) 2199-7825
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Depois da Terra: Histórias de Fantasmas: O Salvador é um trabalho de ficção. Nomes,
lugares e incidentes são produtos da imaginação do autor ou usados de modo fictício.
TÍTULO ORIGINAL
After Earth: Ghost Stories: Savior
CAPA
Trio Studio sobre design original de Dreu Pennington-McNeil
IMAGEM DE CAPA
Stephen Youll
REVISÃO
Joana Milli
COORDENAÇÃO DE TRADUÇÃO
Reverb Localização
COORDENAÇÃO DE E-BOOK
Marcelo Xavier
CONVERSÃO PARA E-BOOK
Abreu’s System Ltda.

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
F946s
Friedman, Michael Jan.
O salvador [recurso eletrônico] : Depois da Terra : Histórias de fantasmas / Michael
Jan Friedman ; tradução Rodrigo Santos. - Rio de Janeiro : Objetiva, 2013.
recurso digital
Tradução de: After Earth : Ghost stories - Savior
Formato: ePub
Requisitos do sistema: Adobe Digital Editions
Modo de acesso: World Wide Web
56p. ISBN 978-85-8105-142-0 (recurso eletrônico)
1. Ficção americana 2. Livros eletrônicos. I. Santos, Rodrigo II. Título.
13-1814. CDD: 813
CDU: 821.111(73)-3
Capa
Folha de Rosto
Créditos
Jon Não Sabe
Quando Jon Acorda
Logo Depois
Na Manhã Seguinte
Ao Longo
Jon Está na Cama
Na Mesma Noite
É Uma Manhã
Jon é Liberado
Nesta Noite
Os Dias se Passam
Jon Tem Mais
Mais Tarde
Jon Está Sentado
Aluncinando?
Jon Está Confuso
As Ordens de Blackburn
Os Outros Guardiões
O Doutor Nizamani
Alguns Dias Após
Na Luz Dourada
O Segundo Sol
JON NÃO SABE onde está. Só sabe que está acordado e que há
alguém olhando para ele. Um rosto feminino familiar.
Há quanto tempo o rosto está lá? Jon não sabe dizer. Talvez
muito tempo, talvez não.
Um nome vem à sua mente.
— Doutora Gold — diz ele, com a voz estranha e embargada.
A expressão da mulher muda, a boca forma um pequeno sorriso
e as bochechas ruborizam sob os olhos verdes pálidos.
— Sim — responde a doutora Gold, em uma voz melodiosa —,
sou eu mesma. Você se lembra do seu nome?
— Blackburn. Jon Blackburn.
— Ótimo. Como você se sente, Jon?
Não é tão fácil para ele compreender a pergunta como deveria.
Não é uma pergunta difícil. É o que as pessoas perguntam umas às
outras todos os dias.
— Como eu me sinto? — repete ele.
— Você está sentindo algum desconforto?
— Minha cabeça parece estar flutuando. Tudo parece... Eu não
sei. Vago.
A médica coloca algo atrás de uma orelha.
— Ótimo. É assim que você deveria se sentir.
Deveria...? Por quê? Jon nem sempre se sentiu assim, não é?
— O que aconteceu? — pergunta ele.
— Você está no Centro Médico do Bairro Norte — explica a
médica. — Você passou por um procedimento cirúrgico. Consegue
se lembrar de alguma coisa?
Ele não se lembra.
— Que tipo de procedimento? Eu estava ferido?
— Não. — A doutora Gold aponta para uma tela holográfica, à
esquerda de Jon. Uma tela preta com linhas douradas ondulando.
— Nós fizemos uma cirurgia nas suas amígdalas cerebelosas. Você
se lembra do que são?
Jon pensa por um momento.
— Partes do cérebro.
— Isso mesmo. E você sabe por que nós operaríamos essas
partes?
Jon se concentra novamente. Mas ele não consegue pensar em
nada. Só um clarão de alguma coisa grande e branca se movendo
pela visão periférica.
A expressão da doutora muda novamente. A boca dela desfaz o
sorriso e as sobrancelhas se fecham.
— Está tudo bem, Jon. Vamos falar disso mais tarde. Por
enquanto, apenas descanse um pouco.
Jon começa a protestar, mas a doutora Gold gesticula com a
mão.
— Sem conversa — insiste ela. — Descanse.
Então, a médica mexe em alguma coisa na lateral da cama de
Jon e ele se sente muito sonolento. Ele vê o rosto da doutora
desaparecendo como um reflexo na água. Depois se sente caindo
em uma escuridão profunda.
QUANDO JON ACORDA novamente, ele sabe onde está e tem uma ideia
melhor do motivo de estar lá. A doutora Gold não está presente no
momento. Mas há um enfermeiro no quarto, um homem grande,
com cabelo escuro, que se aproxima para olhá-lo.
— Está tudo bem — afirma Jon. — Eu estou bem.
— Ótimo — responde o enfermeiro, apesar de sua expressão de
preocupação. — Eu vou chamar seu médico.
— Vá em frente — responde Jon.
O enfermeiro caminha até a porta, fica com a metade do corpo
para fora e chama alguém no corredor. Um momento depois, ele
volta para o quarto.
— Vai levar só alguns minutos — explica o enfermeiro.
— Tudo bem — assente Jon.
Estranho. Ele não sente mais o mesmo torpor, mas ainda se
sente diferente. Mais leve, de alguma forma, como se um peso
tivesse sido retirado de suas costas.
De repente, o enfermeiro fala novamente.
— Desculpe. Parece que vai levar mais um tempinho. Você se
importa de esperar?
Jon não se importa nem um pouco.
Ele recosta no travesseiro e se pergunta quanto tempo mais vai
demorar. Não que se importe. Ele só se ocupa indagando.
Apesar do que o enfermeiro disse, não demora muito até a
doutora Gold aparecer. Ela tem longos cabelos loiros. Coloca
algumas mechas atrás da orelha ao sentar-se à beira da cama.
— Está se sentindo melhor? — indaga a doutora.
Desta vez, ele sabia como responder.
— Minha cabeça não está mais flutuando.
— Isso é bom. Você se lembra de mais alguma coisa da cirurgia?
— Eu me lembro que você operou minhas amígdalas
cerebelosas.
— Na verdade, não fui eu. Foi o doutor Nizamani. Mas sim... suas
amígdalas...
— As amígdalas controlam o medo... — Jon se lembra de ouvir
alguém dizendo isso.
— Isso mesmo — confirma a doutora.
— Vocês queriam que eu ficasse sem medo. — Ele também se
lembra desta parte.
— Você também queria isso, Jon. Foi por isso que se ofereceu
como voluntário para a cirurgia.
— Eu... me ofereci?
A doutora Gold inclina a cabeça para o lado.
— Você se lembra dos Ursas, Jon?
Ele vê um clarão de algo grande e pálido novamente. Pálido
como uma barriga de peixe.
— Sim. Eles matam pessoas. São predadores.
— Isso mesmo. E nós os enfrentamos há anos,
intermitentemente. Nós acabamos com eles e uma nova onda
aparece, cada uma mais difícil de exterminar do que a última. Isso
lhe é familiar?
— Sim.
— Excelente. Você também deve lembrar que os Ursas desta
onda são caçadores melhores do que os que enfrentamos no
passado. Isso porque eles têm uma habilidade que nunca tiveram
antes. Eles percebem o nosso medo.
A doutora continua:
— Nós descobrimos que há certas pessoas que conseguem ser
invisíveis aos Ursas. Pessoas que não sentem medo em certas
circunstâncias. Nós os chamamos de Fantasmas. Infelizmente, só
há um punhado deles, e não podem estar em toda parte. É por isso
que ocorreram centenas de ataques fatais de Ursas só no último
ano.
Isso era muito? Jon não sabia.
— Então, nós nos perguntamos: por que não explorar a
possibilidade de criar Fantasmas? Em outras palavras, remover a
possibilidade de sentir medo. Nós testamos várias maneiras de
fazer isso, mas nenhuma delas conseguiu erradicar completamente
a resposta ao medo. Isso nos deixou com apenas uma abordagem:
a que nós tentamos no seu caso.
— Uma cirurgia — conclui Jon.
— Sim — confirma a doutora.
— Nas minhas amígdalas cerebelosas.
— Foi ideia do doutor Nizamani. Ele sabia que as amígdalas
eram responsáveis por processar as informações sensoriais e
reagir, criando o que o nosso cérebro conhece como medo. E ele vai
dizer que elas fazem isso por um bom motivo. Sem medo, nossos
ancestrais nunca teriam tido o bom senso de fugir de tigres-dentes-
de-sabre e outros predadores.
— Então, a ideia é ir contra a natureza. Isto é algo que nós nunca
fazemos por aqui quando podemos evitar. Mas os Ursas estão
cobrando um preço muito alto, Jon. Nós temos que tentar qualquer
abordagem que tenha chances razoáveis de sucesso. E nós
pensamos que se pudéssemos eliminar o seu medo...
— Eu poderia ser um Fantasma.
— Sim. E se funcionasse no seu caso, poderia funcionar com
outras pessoas.
Jon pensa no caso.
— E funcionou? — pergunta ele.
— O que você acha?
Ele examina o próprio estado mental.
— Eu não sinto nenhum medo. Porém, eu não acho que haja
coisa alguma nesta sala que me deixaria com medo. Não é?
— Não, não há — concorda a doutora.
— Então, afinal, eu estou invisível pros Ursas?
Ela dá de ombros.
— Só há uma maneira de descobrir. Mas antes, você precisa se
recuperar da sua cirurgia.
Ela começa a ir embora, Jon imagina que esteja indo ver outro
paciente.
— Você vai continuar me visitando? — pergunta ele.
A doutora para tempo suficiente para dizer:
— Enquanto você precisar de mim.
LOGO DEPOIS, Jon recebe a visita de outro médico: o que realizou a
cirurgia. O doutor Nizamani é um homem pequeno, com a cabeça
grande adornada por uma barba preta levemente grisalha. Tem uma
pequena espinha na parte esquerda do queixo. A boca do doutor
Nizamani, assim como a da doutora Gold, repuxa nos cantos. E,
também como a doutora Gold, ele pergunta a Jon do que ele se
lembra. Quando Jon responde, o doutor faz anotações em seu tablet
pessoal.
— Você está sentindo dores de cabeça? Algum outro
desconforto?
— Não — responde Jon.
— Ótimo. — O doutor Nizamani estuda os dados no holograma
ao lado da cama de Jon, abrindo uma tela depois da outra. Por fim,
ele diz:
— Eu quero que você caminhe até o final do corredor para se
exercitar um pouco. Seu enfermeiro, Marcus, vai acompanhá-lo.
Isso parece bom?
— Parece? — pergunta Jon. Ele não entende ao certo o que o
médico quer saber. — Você quer dizer...?
O doutor dá um tapinha nas costas de Jon.
— Não se preocupe. Basta caminhar.
Então, o médico sai. O enfermeiro com cabelos negros se
aproxima de Jon.
— Pronto pra caminhar? — pergunta ele.
Jon diz que está pronto. Com ajuda do enfermeiro, ele sai da
cama. Suas pernas estão fracas, ele treme um pouco.
Mas caminha.
Jon e Marcus caminham vagarosamente pelo corredor quatro
vezes. Então, Marcus coloca Jon de volta na cama.
— Bom trabalho — elogia Marcus, estendendo a mão.
Jon olha para a mão, se perguntando o que Marcus espera que
ele faça. Depois de um tempo, Marcus a abaixa.
— Tudo bem — diz ele.
Jon não tem ideia do que Marcus quer dizer.
NA MANHÃ SEGUINTE, Jon e Marcus caminham novamente. Depois, o
enfermeiro diz a Jon que ele pode fazer a refeição no refeitório, em
vez de ficar na cama.
O refeitório é composto de oito mesas retangulares. Está vazio,
exceto por dois outros pacientes sentados à mesa mais próxima da
janela.
Um deles é um homem alto, de cabelos claros e sem um dos
braços. A outra é uma mulher de pele escura, com uma longa trança
negra. O lado direito de seu rosto, incluindo um de seus olhos, está
coberto com uma bandagem.
Eles estão comendo em bandejas de cerâmica azuis. Jon vê mais
ou menos cinquenta dessas bandejas empilhadas perto de uma
parede, ao lado de um balcão de bufêque oferece mais ou menos
vinte opções de refeição, entre caçarolas, sanduíches, saladas e
sopas.
Marcus informa que voltará logo.
— Aproveite e bom apetite.
Jon pensa na escolha de palavras do enfermeiro. Aproveite? Ele
olha o bufê. Nada lhe chama a atenção. Mas ele sabe que precisa
comer.
— Ei — chama o homem de cabelos claros, com a voz ecoando
um pouco ao se dirigir a Jon, do outro lado da sala. — Eu tive a
mesma impressão da primeira vez. Pelo menos é quente.
Tive?
— Eu não...
— Tá tudo bem — disse a mulher de cabelos negros. — Depois
de um tempo por aqui, você fica mais confortável. Pega alguma
coisa pra comer e senta aqui com a gente.
Ela bate de leve no banco ao lado. Jon não entende por quê.
Seguindo as instruções dela, ele pega uma bandeja e coloca
comida. Depois, vai até uma mesa e se senta.
Mas antes de dar a primeira garfada, o homem de cabelos claros
fala:
— Se você quer ficar sozinho, nós entendemos. Mas preferimos
que venha se sentar conosco.
— Pode vir — comenta a mulher. — Nós não mordemos.
Jon não entende o motivo do comentário. Ele nunca achou que
ela mordesse.
— Ou nós podemos ir aí sentar com você — complementa o
homem.
Jon não faz objeções. Um instante depois, o homem e a mulher
levam as bandejas para a mesa dele e se sentam.
— Arvo — apresenta-se o homem — Arvo Lankinen. Prazer em
conhecê-lo.
— Eu sou Yada Srasati — diz a mulher. Ela olha para Jon por um
momento — Como está se sentindo?
— Minha cabeça não está mais flutuando — responde Jon.
— Flutuando? — A pele dela se enruga acima do nariz assim
como a da doutora Gold.
— Você quer dizer que a sua mente está limpa? — pergunta
Arvo.
Jon vira-se para ele.
— Sim. — Ele vê seus companheiros trocarem olhares, mas não
sabe por quê.
— Não tem problema — declara Yada. — Você passou por muita
coisa. Vai levar algum tempo até você voltar à ativa.
— É, acho que sim — responde Jon.
Continuando a conversa, ele descobre que Arvo e Yada são
Guardiões. Os ferimentos que carregam são resultado de encontros
com Ursas.
— Escuta — começa Arvo. — Eu quero dizer o quanto aprecio o
que você está fazendo. É um grande sacrifício, eu sei.
— Mas se der certo — adiciona Yada —, nós poderemos nos
livrar dos Ursas de uma vez por todas. E, se isso acontecer, haverá
menos tristeza no mundo. — Ela toca a bandagem que cobre seu
olho. — Muito menos.
Tristeza, pensa Jon. Ele também não sabe o que dizer quanto a
isso.
AO LONGO dos próximos dias, o doutor Nizamani é o único médico a
visitá-lo. Jon se pergunta onde estaria a doutora Gold. Certa manhã,
depois de checar as informações nas telas ao redor de Jon,
Nizamani diz:
— Estou liberando você pra fazer exercícios leves. Você sabe
onde fica a academia, não sabe?
— Sim — confirma Jon.
— Você pode usar todas as máquinas com símbolo verde, por
enquanto. As amarelas e vermelhas serão liberadas mais tarde.
Entendido?
— Sim — responde Jon. — Posso ir agora?
— É claro.
A academia fica no fim do corredor, à direita. Jon sabe disso, pois
passou por ela em suas caminhadas.
Ao entrar no recinto, ele vê Yada se exercitando. Ela está
correndo em uma esteira, com a trança saltitando.
Jon come com ela e com Arvo sempre que os vê no refeitório.
Para alguém de fora, parece que eles são amigos. Para Jon, eles
são apenas três pessoas que dividem a mesma mesa até a refeição
acabar. Às vezes, há um ou dois outros pacientes lá também.
Às vezes, não há ninguém e Jon come sozinho.
Uma atendente o conduz até um aparelho com o símbolo verde
antes mesmo de Jon pedir. Então, ele deduz que ela já recebeu
instruções do doutor Nizamani.
Quando Yada percebe que Jon está na sala, ela para de se
exercitar, pega uma toalha e caminha até ele.
— Jon — diz ela, secando a parte exposta do rosto —, senti falta
da sua companhia hoje de manhã, no café. Arvo foi dispensado,
sabia?
— Eu não estava ciente disso — diz ele.
— Não se preocupe, ele vem nos visitar de vez em quando. Eu o
fiz prometer.
Jon não entende por que ele deveria se importar ou por que Yada
pediria tal coisa a Arvo ou por que ele concordaria com isso. Porém,
Jon tem descoberto que há muitas coisas que ele não entende.
Enquanto ele e Yada conversam, mais dois pacientes entram na
academia. Um deles, um rapaz com a cabeça raspada e braços
grandes e musculosos, está entrevado em uma cadeira de levitação
magnética. O outro, que se move de modo desajeitado, está com
uma bandagem na linha da cintura.
Eles dizem ser novos no centro médico, mas sabem sobre a
cirurgia de Jon. Assim como Yada, Arvo e os outros Guardiões
feridos no hospital, eles agradecem a Jon por seu sacrifício. Eles
demonstram esperança de que sua coragem ajude a exterminar os
Ursas.
— Aposto que você mal pode esperar pra sair daqui — comenta o
homem na cadeira levitante.
Jon não entende qual seria a dificuldade de esperar. De qualquer
forma, ele não tem escolha na questão.
— Meus médicos não vão me deixar sair do centro médico até eu
estar pronto.
O homem na cadeira olha para ele por um instante. Então, a boca
se torce e ele diz:
— Malditos médicos!
Os outros abrem as bocas e fazem um som que Jon não
reconhece. Ou melhor, ele reconhece, mas não consegue dar um
nome para a coisa. Soa como ha-ha-ha-ha.
Yada parece perceber sua falta de compreensão. Ela olha para
os outros. Logo, todos param de fazer o som.
— Jon provavelmente tem uma série de exercícios pra fazer —
diz ela. — Vamos deixá-lo dar conta disso.
— Claro — concorda o homem na cadeira levitante. — Você não
pode caçar Ursas até estar em forma novamente, não é?
Jon presume que o homem está certo.
JON ESTÁ NA CAMA, começando a pegar no sono, cansado por causa
dos exercícios intensos, quando a doutora Gold entra na sala.
— Olá — cumprimenta ela.
Jon se senta.
— Eu não sabia se você ia voltar.
— Você não vai se livrar de mim assim tão facilmente. — Ela olha
o holograma com dados na lateral da cama. — Você falou com o
doutor Nizamani hoje?
— Hoje de manhã. Ele me liberou pra fazer exercícios.
— Ótimo. — Ela continua lendo os dados. — Isso significa que
você está progredindo.
— Eu tenho uma pergunta.
A doutora vira para ele.
— Pode falar, Jon.
Ele conta sobre o pedido de informações de Yada no outro dia, no
refeitório: Como você se sente?
— Eu não sabia como responder a ela — explica ele. — Ainda
não sei. Então, há pouco tempo atrás, na academia, alguém disse
alguma coisa e todos começaram a fazer um som. Eu também não
sabia o que pensar sobre isso.
A doutora inclina a cabeça.
— O que foi que a pessoa disse?
Jon fez o possível para replicar a ressalva.
— Malditos médicos!
Ela olhou para ele por um momento.
— O som era parecido com isso? — Ela recria quase
perfeitamente.
— Sim.
A boca dela se torce no canto.
— É risada, Jon. As pessoas na academia estavam rindo.
— Rindo. — Ele aponta para a boca dela. — E o que é isso?
— O que é o quê?
— Isso que você está fazendo com a boca. — Ele usa dois dedos
para empurrar os cantos da própria boca, imitando-a. — Isso. Eu
vejo o tempo todo.
As sobrancelhas da doutora Gold se juntam, sobre o nariz. Ela
coloca a mão sobre a dele e remove os dedos do rosto. Lentamente.
— Eu tinha medo que isso pudesse acontecer — diz ela. — Nós
tomamos todas as precauções, fizemos todos os testes que
pudemos em primatas e pessoas. Mas no fim das contas, nunca
havíamos feito este tipo de cirurgia em um humano.
— Você pensou que o que pudesse acontecer? — pergunta Jon.
— Não é só o medo que é controlado pelas amígdalas
cerebelosas, Jon. Outras emoções também estão conectadas a esta
parte do cérebro.
Jon tenta seguir a lógica da doutora.
— Você está dizendo que eu não estou mais em contato com as
minhas emoções?
— Eu estou dizendo que isto é possível. E mesmo que você
tenha perdido contato, pode ser apenas uma situação temporária.
Apesar do que parece ao doutor Nizamani, seu cérebro pode não ter
cicatrizado completamente ainda.
— E se já cicatrizou?
A doutora Gold não responde imediatamente.
— Então, eu sei que isso pode ser desapontador, mas a situação
pode ser permanente.
Jon pensa na possibilidade. Ele não se sente desapontado.
Ele não sente absolutamente nada.
NA MESMA NOITE, o doutor Nizamani também faz a mesma
observação de que Jon se distanciou de suas emoções.
— Isto é um desafio — explica ele. — Não só porque você está
incapacitado de sentir, mas você também é incapaz de entender as
emoções dos outros. Se você vai trabalhar com outros Guardiões,
precisa ter uma ideia do que eles estão sentindo.
— Como eu posso fazer isso? — pergunta Jon.
— Emoções são comumente refletidas nas expressões faciais. Eu
vou preparar um tutorial automatizado sobre o assunto. Será parte
de seu treinamento diário.
Jon concorda em treinar com o tutorial. Ele se pergunta o que
aprenderá.
É UMA MANHÃ especialmente morna no deserto. Jon recebeu
permissão do doutor Nizamani para sentar-se do lado de fora, no
pátio do centro médico, um lugar cheio de vasos de cerâmica
avermelhados com flores do deserto. Ele está observando o
segundo sol subir no horizonte quando recebe uma visita.
Não é nenhum de seus médicos, nem enfermeiros, e nenhum dos
Guardiões feridos. Esta visitante tem o rosto redondo e o cabelo
cacheado vermelho. Ela está vestindo um manto azul escuro,
fechado até a garganta. Ela pergunta:
— Você sabe quem sou eu, Jon?
— Sim — responde ele. — Seu nome é Polk. Você é a Primus. —
Ele a viu muitas vezes na tela do computador antes, mas nunca
pessoalmente. — Seu hálito cheira a canela — observa ele.
— Que... gentil de sua parte — agradece a Primus. — Você se
importa se eu conversar com você por um instante?
— Não, eu não me importo.
Os lábios dela se torcem nos cantos, mas agora ele sabe o que
isso significa. A Primus está sorrindo.
No curto tempo que Jon passou com o tutorial do doutor
Nizamani, ele aprendera a reconhecer meia dúzia de expressões
faciais. O sorriso era uma delas.
— Bom — prossegue a Primus —, você provavelmente está
achando que eu vim até aqui pra falar da sua decisão de se
submeter a uma cirurgia cerebral. Os céus sabem que eu expressei
minha opinião sobre o assunto para o primeiro-comandante quando
a ideia surgiu. Na verdade, eu falei com ele todos os dias, com ele e
com o Savant.
Jon não sabe o que dizer sobre isso.
— Como você pode imaginar — comenta a Primus, com a
expressão endurecendo —, eu fui totalmente contra isso.
Jon não tem imaginado nada hoje em dia. Ele só observa e
reage.
— Mas o que está feito, está feito — continua a Primus. — A
única coisa sobre a qual precisamos falar agora é o efeito da
cirurgia em você.
— Eu já debati os efeitos com meus médicos — indica Jon.
— Eu tenho certeza disso. Mas a preocupação deles e do
primeiro-comandante é quanto a sua utilidade como uma arma. A
minha preocupação é com a sua humanidade.
— Eu ainda sou humano — declara ele. — Só que eu fui alterado.
— Você foi alterado. Nisso, nós concordamos. Mas... — A Primus
balança a cabeça. — Sabe, Jon, todos nós nascemos com almas.
Você, eu e todos os outros. Mas a cirurgia para a qual você se
ofereceu parece ter separado você da parte que guarda os seus
sentimentos.
— Foi o que me disseram.
— Era exatamente o que eu temia. — Ela se inclina para a frente.
— Os sentimentos nos tornam o que somos, Jon. Você acredita
nisso?
— Eu nunca pensei sobre isso.
— Bom, é verdade. Sem compaixão, sem amor, nós não somos
diferentes de animais. Ou, pelo que me consta, das máquinas das
quais nos cercamos.
Jon não é um animal nem uma máquina. Ele se pergunta por que
a Primus diria uma coisa dessas.
— Esta não é a primeira vez que nos aventuramos neste novo
território, filho. A tecnologia conspira constantemente para nos privar
das qualidades que nos tornam humanos. Este desafio é apenas o
mais recente em uma longa história de desafios como esse.
— Mas eu sou um ser humano — insiste Jon.
— Não no modo mais importante — rebate a Primus. — Então,
por que eu estou aqui? Qual é o sentido se você não é mais uma
das criaturas escolhidas por Deus? O sentido, Jon, é que você ainda
pode ser redimido. Você ainda pode rezar aos céus, e eu digo
realmente rezar, para ser refeito à imagem que Deus intencionou
para você. E se fizer isso, eu posso ajudá-lo.
Jon não sente vontade de ser refeito a tal imagem, nem mesmo o
suficiente para perguntar sobre o que está envolvido no processo.
— Isso não será necessário.
A Primus se recosta na cadeira. Uma lágrima se forma no canto
de seu olho e escorre pelo rosto.
— Pois bem — consente ela, com a voz um pouco vacilante —,
você pode dizer isso agora. Mas pode chegar uma hora em que
você entenda o que fez, um momento no qual você tema pela sua
alma. E nesse...
— Eu estou além do medo — responde Jon.
A Primus olha para ele pelo que parece um longo tempo, com os
olhos úmidos cintilando. Então, sem dizer nada, ela se levanta e o
deixa lá sentado.
Tão sozinho quanto quando ela apareceu.
JON É LIBERADO para usar as máquinas com símbolo amarelo na
academia. Yada diz que está orgulhosa dele. Ela também diz que
deixará o hospital em breve.
— Eu não posso mais ir a campo — comenta ela —, mas ainda
posso fazer a diferença. Vou trabalhar na secretaria do primeiro-
comandante ajudando a educar o público sobre ataques de Ursas.
Ela sorri com a metade do rosto visível.
— Espero ouvir boas notícias de você — completa Yada.
Jon olha para ela até ela olhar para o outro lado. Agir diferente
disso é rude, ou foi o que lhe disseram. Então, ele começa a se
exercitar nas máquinas amarelas.
Elas exigem mais força do que as máquinas que ele usava antes.
No fim, ele se sente mais cansado. Porém, ele sabe que o exercício
é necessário para que ele possa sair do centro médico e fazer o que
esperam dele.
NESTA NOITE, Jon tem um sonho.
Há duas pessoas nele. Elas parecem familiares, mas por mais
que tente, ele não consegue identificá-las.
Ao acordar, ele ainda consegue vê-las. Uma delas é um homem
de aproximadamente 50 anos de idade, com um rosto comprido,
sobrancelhas negras e uma mecha grossa de cabelos grisalhos
prateados. A outra é uma mulher. Ela também tem
aproximadamente 50 anos, mas o cabelo dela é castanho claro,
com apenas alguns fios brancos.
Quando a doutora Gold vem vê-lo, ele descreve o sonho. Ela não
comenta imediatamente. Em vez disso, ela abre uma foto em seu
tablet e pergunta:
— São essas pessoas?
São elas.
— Quem são?
— Esses são seus pais, Jon. Adabelle e Gregory Blackburn.
Jon olha mais de perto. Ele já se viu em um espelho antes.
Procura algum traço de hereditariedade na foto e encontra.
— Você tem os olhos de sua mãe — comenta a doutora, como se
estivesse lendo a mente dele.
— Parece que sim — concorda Jon.
— E o queixo de seu pai. — Ela aponta para ele. — Está vendo a
covinha?
— Sim. Meus pais. — Ele olha para a doutora. — Eu posso vê-
los?
Como em outras ocasiões, as sobrancelhas dela se juntam,
fazendo uma ruga na pele. Ele sabe que esta é uma expressão de
consternação.
— Temo que não, Jon. Eles estão mortos. Morreram em um
ataque de Ursa há seis meses.
Ele olha novamente para o tablet
— Mortos — repete ele.
— Sim. Na verdade, foi a morte deles que despertou seu desejo
de se oferecer para esta cirurgia. Você disse que era a única
maneira de fazer a morte deles contar de alguma forma.
Jon continua a estudar a imagem no tablet. Ele não sente
nenhuma raiva agora. Mas algo, curiosidade talvez, o atrai para as
pessoas da foto.
— Sinto muito — declara a doutora Gold.
Jon reconhece a expressão dela como empatia.
— Suas condolências foram recebidas — responde ele.
OS DIAS SE PASSAM, uma alternação entre luz e sombra pontuada por
visitas do doutor Nizamani, da doutora Gold, e de outros médicos,
ocasionalmente.
Yada vai embora, como disse que iria. Os Guardiões feridos no
centro médico sorriem quando o veem, mas raramente falam
alguma coisa. Ele os ouve sussurrando algumas coisas:
— É o Blackburn, é melhor parar com as piadas, não podemos
magoar os sentimentos dele.
Na academia, Jon é promovido às máquinas vermelhas. Ele as
considera desafiadoras, assim como achou as verdes e as amarelas
no início. Mas Jon está cada vez mais forte. Ele pode ver isso. E
acredita que os médicos possam ver isso também.
Logo, ele estará pronto para o trabalho.
JON TEM MAIS um sonho.
Ele está de pé, no deserto, observando a Explorer I decolar de
uma base aérea do lado de fora da cidade, com destino a um
mundo em outro sistema solar. Jon tem 8 ou 9 anos de idade. As
mãos de seu pai estão em seu ombro.
— Queria que meu avô estivesse vivo para ver isso — comenta
Gregory Blackburn. — Se não fosse por ele, nada disso seria
possível.
A Explorer I brilha à luz do primeiro sol enquanto sobe a um céu
azul impecável, indo cada vez mais alto. Então, ela some.
Os pais do pai de Jon, o avô Masters e a avó Sheila, estão
fazendo sons de comemoração. Os pais de Jon estão se abraçando.
Eles estão sorrindo. Todos estão sorrindo. Agora ele sabe o que
significa. Eles estão felizes.
Quando Jon acorda, ele se encontra olhando para o teto do
centro médico, e não para o céu. O aeroporto, seus pais, seus
avós... tudo se foi.
Mas não foi só um sonho, conclui ele. Aquilo aconteceu. Ele
esquecera, mas agora se lembrava.
Aconteceu.
Jon pensa sobre o avô de seu pai. Será que eu já o conheci?
Será que eu sabia alguma coisa sobre ele antes da cirurgia?
Ele se veste e vai para a biblioteca do centro médico, onde se
senta em uma estação de trabalho perto de uma parede
transparente, ao lado de um corredor, e pesquisa a genealogia de
sua família.
Jon descobre que seu bisavô paterno, Elliot Blackburn, nasceu
em 883 DT. Quando adulto, ele se tornou o porta-voz de um grupo
de engenheiros que fez as apresentações ao Conselho Tripartite
defendendo a exploração dos sistemas estelares vizinhos. Afinal,
disseram eles, os Ursas têm sido causa de sofrimento há centenas
de anos. Fazia sentido tentar colonizar um planeta que seria uma
alternativa para aqueles que estivessem cansados da carnificina.
Elliot Blackburn morreu sem progredir muito em sua causa.
Porém, seu filho mais velho, Masters, continuou de onde seu pai
parou. Quando a Savant Ella Dorsey aprovou a ideia do programa
de colonização espacial em 951, foi devido aos apelos de Masters
Blackburn.
A ideia de Dorsey era contrariada pelo Primus, por motivos
religiosos, e pelo primeiro-comandante, por motivos desconhecidos
publicamente. Entretanto, o avô de Jon continuou a falar sobre
apoio à colonização com organizações profissionais e grupos
cívicos.
Finalmente, em 960, Brom Raige, que havia se tornado primeiro-
comandante no ano anterior, persuadiu o Conselho Tripartite em
favor do programa espacial.
As Indústrias Tähtiin, que trabalhavam de forma privada para os
Savant, possuíam um projeto de nave interestelar. Com o apoio do
Conselho, a Tähtiin começou a desenvolver o que chamaram de
Explorer I.
O pai de Jon, Gregory, tinha a Explorer I em mente quando entrou
no programa de terraformação da Escola Thermopoulos de
Engenharia da Universidade da Cidade de Nova Prime. Seu sonho,
disse ele em seu discurso, era preparar um lar para a humanidade
livre do medo que assolava Nova Prime há anos.
A mãe de Jon compartilhava este sonho, apesar de tentar um
caminho diferente. Inspirada por sua mãe, uma piloto Guardiã do
Esquadrão Varuna, Adabelle Bonnaire tornou-se a piloto mais jovem
da história dos Guardiões. O objetivo de Adabelle, de acordo com o
arquivo dos Guardiões, era pilotar a nave interestelar que iria para a
primeira colônia humana em quase mil anos.
Os pais de Jon se conheceram em uma conferência patrocinada
pelas Indústrias Tähtiin em 968. Gregory Blackburn tinha 25 anos na
época, um ano a mais do que sua futura esposa. Eles se casaram
um ano depois.
Nunca conseguiram realizar seus sonhos, pensou Jon. Sua mãe
não pilotou a Explorer I. O programa de terraformação de seu pai
não foi necessário. Porém, no aeroporto, eles estavam felizes pela
humanidade estar seguindo o curso no qual eles acreditavam.
Jon nunca quis ir para as estrelas. Seu objetivo, como Guardião,
sempre foi destruir a ameaça representada pelos Ursas em Nova
Prime.
Entretanto, ele tem algo em comum com seus pais: Tudo
começou ao desejar que a humanidade ficasse livre do medo.
MAIS TARDE na mesma manhã, Jon vê a doutora Gold. Ela sorri e
pergunta:
— Como está se sentindo?
Ele não sabe ao certo como responder a isso. Jon a lembra de
sua deficiência no campo das emoções.
A doutora fica vermelha.
— Desculpe. Acho que não pensei bem.
— Tudo bem — adiciona ele, lembrando-se que aprendeu que a
vermelhidão representa vergonha. — Essa é uma experiência tão
nova pra você quanto pra mim.
Ela sorri novamente.
— Obrigada pela sua compreensão. Deixe-me refazer a pergunta:
Você reparou alguma mudança no seu estado mental?
Ele verifica a si mesmo neste sentido.
— Eu tenho pensado muito, mais do que eu pensava antes.
Sobre a minha família, por exemplo. — Ele conta sobre o sonho do
aeroporto e sobre o que fez depois. — Eu me pergunto se não
estaria tentando substituir meus sentimentos com pensamentos.
— Isso é muito interessante — comenta a doutora.
Jon a olha.
— É mesmo?
— Bem, sim, é claro que é. — Então, adiciona: — Tudo que diz
respeito a você é interessante. — E ela se vira para verificar as
informações na tela holográfica.
Algo mudou na expressão dela, mas Jon não consegue decifrar o
quê. Seu tutorial não ensinava tudo.
— Há algo de errado? — pergunta ele, tentando adivinhar.
A doutora Gold balança a cabeça — uma resposta negativa,
segundo seu aprendizado — e diz:
— Está tudo ótimo. — Mas ela continua a estudar os dados.
Então, terminam as telas. Mas em vez de se virar novamente
para Jon, ela se vira para o outro lado.
Este comportamento também foi abordado pelo tutorial.
— Você está desconfortável — observa Jon.
— Não — responde a doutora. — Só estou cansada. Eu não
tenho dormido muito ultimamente.
Jon viu seus históricos. Ele também teve dificuldades para dormir
depois da morte de seus pais.
— A incapacidade de dormir pode advir de problemas emocionais
não resolvidos — afirma ele.
A doutora Gold olha para Jon.
— Onde você ouviu isso?
— Está anotado no meu histórico médico.
A doutora ri suavemente.
— Certo. Você é um cara esperto, Jon.
Seu histórico também confirma esta afirmação. Ele ficou em
primeiro lugar entre todos os cadetes nos testes de inteligência.
— Muito esperto — comenta ela. Depois, coloca a mão no ombro
dele e a deixa lá.
No tutorial, tal comportamento é descrito como indicação de
envolvimento emocional. Jon pergunta à doutora Gold se ele está
lendo o gesto corretamente.
Ela tira a mão.
— Você está ficando melhor em interpretar comportamentos, Jon,
mas neste caso, você está lendo coisas demais.
— Então você não está envolvida emocionalmente?
— Eu sou parte da equipe médica que cuida do seu caso — diz
ela. — Vamos deixar por aí.
Jon concorda em fazer isso. Afinal, ela é sua médica.
Assim como Jon aprendeu, ele não olha para o outro lado. Ele
pretende esperar até que ela o faça primeiro.
Mas ela continua olhando para ele por muito tempo.
JON ESTÁ SENTADO em sua estação de trabalho habitual na biblioteca
do centro médico, pesquisando mais informações sobre sua família,
quando sente uma mão em seu ombro.
Olhando para trás, ele vê um homem alto, de ombros largos atrás
dele.
— Se importa se eu interrompê-lo? — pergunta o homem.
— Não, senhor — responde Jon, levantando-se da cadeira.
Seu visitante é o primeiro-comandante Raige. Ele e Jon se
encontraram mais de uma vez antes da cirurgia de Jon. Isso
também está anotado em sua ficha.
Raige diz:
— É bom vê-lo novamente, Guardião. — Ele faz continência.
Jon sabe por quê.
— Vamos nos sentar — pede Raige. — Não faça cerimônias. —
Ele puxa uma cadeira da estação de trabalho ao lado e aponta a
cadeira de Jon.
— Você está fazendo uma coisa muito corajosa por nós,
Blackburn. Extremamente corajosa. Nós não teríamos escolhido
você se pensássemos que estivesse se precipitando. Mas você
ouviu todos os riscos envolvidos e se ofereceu assim mesmo.
— Como você deve saber, eu sou um dos maiores defensores
deste experimento. Não é só uma questão de termos mais um
Fantasma no campo de batalha, por mais valioso que isso possa
ser. Se funcionar, haverá muitos como você. Um exército de
Fantasmas. Esses Ursas são mais fortes do que todos os que
enfrentamos no passado. Mais letais. Nós precisamos tentar todas
as alternativas para impedir que as pessoas continuem morrendo.
Nesse momento, Jon olha por sobre o ombro de Raige e vê
alguém no corredor, do lado de fora da porta transparente. É a
doutora Gold, percebe ele. E ela está chorando.
Jon está familiarizado com esse comportamento. Afinal, foi o
primeiro que ele estudou. Mas por que a doutora está se
comportando assim? Na maioria das vezes, o choro reflete tristeza.
Será que a doutora Gold está triste? Por qual razão?
Se ela entrar, pensa ele, eu vou perguntar a ela. Mas ela
permanece no corredor. Jon continua a observá-la e a imaginar.
— Há algo de errado? — pergunta Raige. Ele olha para trás,
tentando ver o que Jon está vendo. — O que tem lá fora?
— A doutora Gold — responde Jon.
A testa de Raige fica franzida, refletindo um pouco de incômodo.
— Gold? — pergunta ele.
— Sim. Ela faz parte da minha equipe médica.
Raige balança a cabeça.
— Nunca ouvi falar em nenhuma doutora Gold. Talvez ela seja
nova.
— Ela está lá fora. — Jon aponta para o corredor, onde ela
continua chorando.
Raige olha para trás novamente e de volta para Jon.
— Espere um segundo — diz ele. Raige pega seu aparelho de
comunicação pessoal e digita uma sequência de números. — Eu
preciso de você aqui — diz ele no aparelho. — Agora.
Um minuto depois, o doutor Nizamani entra na biblioteca.
— Por que a doutora Gold está chorando? — pergunta Jon.
O doutor Nizamani olha para ele por um momento e se vira para
Raige.
— Gold?
— Eu achei que você soubesse quem é — diz Raige.
Nizamani olha para Jon novamente.
— Por que a doutora Gold está chorando? — pergunta Jon mais
uma vez.
O doutor Nizamani balança a cabeça.
— Não existe nenhuma doutora Gold.
ALUCINANDO? Pensa Jon.
— Não se preocupe. Isso não é inteiramente inesperado —
comenta o doutor Nizamani.
— Eu não estou preocupado — responde Jon.
Raige bate no ombro dele.
— Ele está falando comigo, Guardião. Mas eu também não estou
preocupado. Nem o doutor Nizamani... não é, doutor?
A boca do doutor se repuxa nos cantos. Um sorriso, pensa Jon.
Mas um mais rígido do que o normal.
— Isso mesmo — responde o doutor Nizamani. — Não há
motivos para nenhum de nós ficar preocupado. — Ele se senta na
beira da cama de Jon. — É perfeitamente natural. Você foi separado
de suas emoções. Agora, está encontrando outros meios de obter
apoio.
Jon não compreende.
— A doutora Gold — diz Raige — não é real.
— É provável — comenta o doutor — que você tenha criado ela a
partir de memórias de outras mulheres que conheceu na vida.
— Não é real? — pergunta Jon.
Ele procura a doutora Gold no corredor. Se conseguir convencê-
la a entrar no quarto, ficará óbvio que ela é tão real quanto Jon.
Mas ele não consegue encontrá-la. Ela se foi.
— Ele está bem — relata o doutor a Raige. — Não é nada
preocupante.
— Nossas expectativas são as mesmas? — pergunta o primeiro-
comandante.
— Exatamente as mesmas — confirma o médico.
— Expectativas? — pergunta Jon.
— De você ser capaz de se tornar um Fantasma — explica
Raige.
Mas isso não está na cabeça de Jon no momento. Ele não
consegue parar de olhar para o corredor vazio.
JON ESTÁ CONFUSO pela questão da existência da doutora Gold
Por um lado, ninguém parece conhecer uma médica chamada
Gold. O doutor Nizamani é especialmente enfático ao afirmar que
ela é produto da imaginação de Jon.
Por outro lado, Jon falou com ela. Ele dividiu seus problemas com
ela. Nessas ocasiões, ela pareceu tão real quanto o doutor
Nizamani ou qualquer outra pessoa.
No fim das contas, o resultado é o mesmo. A doutora Gold não
aparece mais para ver Jon. Passa-se uma semana e não há sinais
dela.
Isso não é um problema. Jon receberá alta em alguns dias. Ele
passa todo o tempo livre treinando para isso.
Jon estuda vídeos de encontros com Ursas. Treina com seu
alfanje, um modelo novo, aparentemente, e não o antigo que ele
usava. E em uma mesa com a equipe que lhe foi designada, ele
simula um cenário estratégico depois do outro.
Graças a sua familiaridade com expressões humanas, Jon
consegue entender vagamente o modo como seus companheiros de
esquadrão o veem. Eles o veem como sendo diferente do resto.
Uma adição valiosa, certamente, mas diferente.
O doutor Nizamani diz que a opinião deles sobre Jon mudará
quando estiverem no campo de batalha com ele. Até lá, eles terão
estabelecido um vínculo. Jon acredita na palavra do doutor.
Finalmente, Jon e seu esquadrão recebem uma missão. Ele está
curioso para saber se vai cumprir as expectativas do primeiro-
comandante Raige. É claro, ninguém saberá até ele encontrar um
Ursa.
AS ORDENS DE BLACKBURN levam ele e seu esquadrão a um prédio de
escritórios no lado sul da cidade de Nova Prime. No dia anterior,
uma das criaturas entrou no prédio e matou dois trabalhadores.
Raige e sua equipe de comando descobriram que os Ursas às
vezes retornam ao local de um abate recente. Eles esperam que
Blackburn e seu esquadrão encontrem a criatura quando ela
retornar para procurar mais vítimas.
Como líder do esquadrão, Jon conduz a equipe pelas portas
frontais e segue pelo corredor. Apesar do esforço de permanecerem
em silêncio, as botas fazem barulhos que ecoam de uma parede à
outra.
Os outros parecem incomodados pelo som. Jon sabe que o
barulho pode delatar a posição deles, mas não se incomoda com
isso.
Há um escritório à esquerda de Jon. Ele indica com um gesto que
vai entrar para olhar. Os outros assumem posições no corredor para
o caso de um Ursa aparecer repentinamente.
Jon abre a porta, mas não há nenhum Ursa do outro lado. A sala
está quieta e vazia. Porém, fica claro que um Ursa passou por lá um
dia.
Há sangue no chão. Uma boa quantidade de sangue, escuro,
com manchas secas por onde respingou e em poças maiores e
listras por onde os corpos dos trabalhadores foram arrastados pela
criatura.
Duas cadeiras foram viradas. Há sangue nelas também.
Saturria, um homem musculoso e baixo, xinga silenciosamente:
— Desgraçados.
Jakande, magro e ágil, dá um suspiro desgostoso. Apesar de
Tseng não fazer nenhuma das duas coisas, uma única lágrima
escorre por seu rosto. Ela a enxuga rapidamente.
Eles estão reagindo às evidências dos trabalhadores mortos,
percebe Jon. Mesmo sendo treinados para confrontar essas visões,
mesmo provavelmente já tendo visto pessoas mortas antes.
Jon não tem nenhuma reação.
Talvez por não estar distraído, ele escuta alguma coisa. Um som
arranhado. Ele reconhece como um dos sons que o Ursa faz com a
garganta.
Com um sinal de mão, Jon chama a atenção dos outros
Guardiões. Então, ele aponta a direção do som.
Os Guardiões se posicionam na sala. Sem fazer barulho, os
alfanjes assumem as formas que eles desejam: lanças, lâminas,
ganchos.
Os Guardiões aguardam, com as costas nas paredes e com os
olhos fixos na porta.
Todos menos Jon. Ele assume uma posição na entrada que não
bloqueia a porta, mas torna impossível que o Ursa não o perceba.
Isso, é claro, se ele for capaz de percebê-lo de alguma forma.
Quando o Ursa se aproxima, o som que ele emite muda, ficando
mais alto e grave. Mais assustador também, conclui ele, pela
expressão no rosto de seus companheiros.
Então, a criatura entra no corredor e Jon olha para sua forma
pálida e poderosa pela primeira vez. Ele consegue ver a enorme
bocarra, com duas fileiras de dentes prateados afiados. Ele
consegue ver as garras, afiadas o suficiente para rasgar metal, e
pode ouvi-las tocando o chão.
Apesar da aparente falta de órgãos sensoriais do Ursa, ele possui
muitos sentidos. Os cientistas humanos examinaram carcaças de
Ursas e identificaram órgãos que facilitam a audição, o olfato e o
tato. Eles só não encontraram um órgão de visão, levando-os há
muito tempo a concluir que a criatura não consegue enxergar.
Talvez seus criadores, os Skrel, também não consigam.
O Ursa, porém, mais do que compensa a deficiência com a
habilidade de perceber o medo. Este sentido é, de longe, o mais
preciso. É por isso que os Fantasmas são tão valiosos para a
colônia. Valiosos o suficiente para fazer o doutor Nizamani invadir o
cérebro de um homem e danificar permanentemente uma de suas
funções.
Os dados passados para Jon em cada uma das reuniões de
planejamento atravessam sua mente. Há mais uma informação
relevante: a habilidade do Ursa de se camuflar, usando células que
mudam a cor de sua pele. Mas esse espécime, como alguns outros
encontrados pelos Guardiões, não tenta se ocultar.
O Ursa simplesmente avança.
Jon consegue ouvir a respiração de seus Guardiões, rápida e
superficial, atrás dele. Aqueles Guardiões não são como ele. Eles
são disciplinados, mas estão com medo.
Porém, tudo o que fazem e como se sentem é irrelevante. Os
outros não são a missão. Ele é a missão.
Enquanto Jon observa, o Ursa prossegue pelo corredor de forma
lenta e fluida, apesar de sua anatomia alienígena. Ele não se desvia
para verificar as outras salas. Vai direto para aquela ocupada pelos
Guardiões.
Jon sai para o corredor, colocando-se no caminho da criatura.
Conforme a criatura se aproxima, Jon consegue ver o metal
inteligente se movendo em seu couro. É isso que torna a criatura tão
difícil de matar, mesmo quando um Guardião acerta um bom golpe
com o alfanje. Um golpe mortal só acontece ao acertar os pontos
vulneráveis superiores ou inferiores.
De repente, o Ursa solta um rugido que lembra um terremoto. Jon
sente o som nos ossos. A fera se aproxima cada vez mais, até estar
quase tocando-o.
Um cheiro metálico azedo se propaga de sua boca, como se
fosse sangue humano, só que mais concentrado. É o cheiro de seu
veneno, uma substância negra oleosa capaz de derreter pele, ossos
e até metal.
Ainda assim, Jon fica parado.
Se o Ursa perceber sua presença, ele morrerá rapidamente. A
criatura o dilacerará como fez com os trabalhadores.
Este resultado seria uma decepção para a equipe médica de Jon
e para o primeiro-comandante. Cypher Raige refutaria a hipótese de
que o medo pode ser removido cirurgicamente.
Porém, é um resultado que Jon pode ter que enfrentar.
De repente, o Ursa se encolhe e salta. Jon saca o alfanje,
sabendo que não adiantaria de muita coisa a uma distância tão
curta.
Mas não é Jon que o Ursa ataca. A criatura passa voando por
cima dele, pela porta da sala, com um dos outros Guardiões como
alvo.
Jon olha para trás e vê o Ursa dar uma patada em Saturria, ou
melhor, o local onde Saturria estava há uma fração de segundo.
Saturria rola pelo chão. Seus reflexos aguçados o salvam.
Mas eles não o salvarão uma segunda vez. Jon vê que o Ursa
tenta cercar o Guardião. Ele está fixado em Saturria, pensa Jon. E
continuará atrás dele até matá-lo.
O trabalho de Jon como líder do esquadrão é impedir que isso
aconteça.
Tseng configura o alfanje em forma de lança e tenta transpassar o
Ursa, mas a ponta resvala no metal inteligente do couro da criatura.
Ainda assim, acaba chamando sua atenção.
É toda a distração de que Jon precisa. Correndo pela sala, ele
salta nas costas do Ursa e encrava o alfanje em um ponto
desprotegido.
É um ponto pequeno, fácil de errar, mas ele acerta em cheio. O
Ursa ruge e tenta derrubá-lo, mas Jon continua se segurando. Ele
dá o comando e seu alfanje se transforma em uma lâmina. Então,
ele torce a arma dentro da fera, rasgando suas entranhas.
Em um espasmo de dor, o Ursa finalmente consegue derrubar
Jon, jogando-o contra a parede com uma força avassaladora. Mas o
dano foi causado. O Ursa não sobreviverá por muito mais tempo.
Sabendo que a criatura pode matar até mesmo com seus
espasmos, Jon ordena que seu esquadrão saia da sala. Então, se
junta a eles no corredor.
Através da janela da porta da sala, Jon vê o Ursa se debatendo
de dor, quebrando paredes, móveis e janelas. Depois de alguns
minutos, a criatura cai no chão e fica parada.
Jon ouve comemorações de seus companheiros. Ele entende o
motivo. Eles estão vivos e o Ursa está morto.
A missão não poderia ter sido melhor.
Jakande, Tseng e Saturria se cumprimentam. Os outros
Guardiões fazem o mesmo. Mas ninguém cumprimenta Jon.
— Estou satisfeito — declara Raige.
Jon olha para o primeiro-comandante atrás de uma mesa.
— Porque eu consegui desaparecer quando foi preciso.
— Isso mesmo. Nós temos trabalhado há séculos para tentar
achar um meio de derrotar essas feras e agora, finalmente, temos
uma resposta. Uma coisa é encontrar um Fantasma de vez em
quando, geralmente por acidente. Outra coisa é criar um sempre
que quisermos. Isso muda as probabilidades.
Jon entende de probabilidades. Elas podem ser descritas em
números, proporções, que são muito mais fáceis de compreender do
que esperanças e sonhos.
— Muda sim — concorda Jon.
— E você fez isso — afirma Raige —, porque teve a coragem de
arriscar algo que ninguém arriscou antes.
Jon está familiarizado com esse fato. Mais ainda, ele percebe o
que o primeiro-comandante está tentando fazer: incitar orgulho nele.
Porém, ele não sente orgulho.
— Nós temos outros voluntários esperando, querendo ter a
mesma chance que você. Mas nós não queríamos contatá-los antes
de saber se a cirurgia teria o efeito desejado. Agora que nós
sabemos que ela funciona...
— Vocês vão operá-los também — completa Jon.
Raige confirma com a cabeça.
Jon se pergunta se o primeiro-comandante vai pedir a ele que
fale com os voluntários. Ele acha que não. Após ver sua falta de
emoções, eles podem acabar desistindo da operação.
Mas ele não fala o que pensa.
OS OUTROS GUARDIÕES do esquadrão de Jon passam muito tempo
juntos. Ele percebe isso. Eles falam, riem e interagem no quartel.
Jon não sente vontade de participar de tais atividades. Ele se
mantém separado dos outros. Ele faz as coisas que foi treinado para
fazer: exercita o corpo e inspeciona seu alfanje. Quase nada além
disso.
Quando Jon come, está sozinho. E não permanece no refeitório.
Só fica o tempo suficiente para se alimentar e sai.
Certa vez, Jon viu uma mulher com cabelos loiros caminhando à
frente dele no corredor e acelerou o passo para acompanhá-la. Ela
se virou para vê-lo e os olhos dela não eram verdes. Não eram os
olhos da doutora Gold.
O DOUTOR NIZAMANI pergunta a Jon se ele está se dando bem com
seus companheiros de esquadrão. Jon diz a verdade.
Nizamani diz:
— O esquadrão está junto há mais de um ano. Você é um novato.
Dê tempo a eles.
Mas o tempo passa e Jon não interage mais com seus
companheiros Guardiões. Provavelmente interage menos. Tão
pouco, na verdade, que ele não acha que teria se importado se
todos tivessem morrido no ataque do Ursa.
Talvez, antes da operação, ele tivesse ficado triste por eles. Mas
não agora.
Perguntas aparecem na mente de Jon com frequência crescente.
Perguntas que Jon tem dificuldade de responder. Uma delas é por
que ele deveria matar os Ursas.
Eles representam uma ameaça à humanidade, isso é verdade.
Mas ele não é mais humano, até onde pode saber. Então, por que
deveria agir em nome da humanidade? O que torna os Ursas menos
merecedores de sobreviver do que os colonos que eles caçam?
Jon não sabe a resposta.
ALGUNS DIAS APÓS a primeira missão de Jon, ele e seu esquadrão são
enviados para uma usina de força no lado norte da cidade, onde um
Ursa atacou alguns trabalhadores.
Ao que tudo indica, o Ursa ainda está lá dentro. Os trabalhadores
que enviaram um pedido de socorro truncado também estão. Mas
ninguém sabe se ainda estão vivos.
A usina de força é um enorme monte laranja, projetado para se
integrar ao cenário avermelhado do deserto. Antes mesmo de Jon
desembarcar do transporte que o levou até o local, ele vê o buraco
aberto na lateral, por onde o Ursa entrou.
Jon começa a correr na direção do buraco enquanto sua equipe
ainda está desembarcando. Não há motivo para esperar por eles.
Neste momento, eles são só peso morto.
Jon entra e segue pelo caos criado pela entrada do Ursa. Dentro
da usina de força, está tudo fresco e silencioso, exceto por um
zumbido leve. Se o Ursa está presente, ele não está fazendo
nenhum alvoroço.
Isso sugere duas possibilidades: uma é que a criatura já capturou
sua presa. A outra é que ela percebeu a aproximação do esquadrão
de Jon e se camuflou para pegá-los de surpresa.
Jon toca no alfanje e o vê se transformar em uma lança. Sua
configuração favorita. A que ele sempre considera a mais útil.
Ele se lembra do layout da usina, que memorizara no caminho.
Ela tem dois corredores de acesso principais, perpendiculares, que
se cruzam no centro onde fica a câmara de energia.
Há portas nos corredores. Os trabalhadores podem estar
escondidos atrás de uma delas, pensa ele. Ou os restos deles
podem estar jogados em algum lugar. Ele não vê evidência de
sangue derramado no corredor. Mas isso não significa nada. O local
é amplo.
Ele se aproxima da câmara de energia, com os sentidos
preparados e o alfanje à mão. A câmara, que é feita de um material
cerâmico azul acinzentado, contém um aparato que usa campos
magnéticos para gerar plasma eletrificado, que é enviado para uma
série de conduítes subterrâneos.
A câmara tem uma janela pequena para cada corredor. Jon não
está atento a elas, então se surpreende ao perceber o movimento
em uma delas.
Um dos trabalhadores, pensa. Um homem. Mas Jon ainda está
muito longe para saber se o trabalhador está machucado.
Ao mesmo tempo, o trabalhador vê Jon. Ele faz sinal para alguém
dentro da câmara, que Jon não consegue ver. Um segundo depois,
dois trabalhadores aparecem na janela.
O cenário começa a se formar na mente de Jon enquanto ele
avança. Os trabalhadores se abrigaram na câmara. Ela os manteve
seguros. Mas eles não conseguem sair por medo da criatura.
Jon levanta as mãos, com as palmas para cima. Ele aprendeu
que esse gesto significa uma pergunta. Neste caso, a pergunta é:
onde está o Ursa?
Os trabalhadores retornam o gesto, dizendo que não sabem.
Ainda assim, eles têm linha de visão para todas as partes da
estação. Então, a criatura está camuflada. É uma informação
valiosa.
Agora eles estão em condições iguais, Jon e o Ursa. Nenhum dos
dois pode ser visto.
Infelizmente, a criatura nunca se revela até estar prestes a atacar.
Como os trabalhadores estão decididos a permanecer na câmara,
eles não se tornarão presas. Isso deixa apenas uma possibilidade.
Jon se vira para seus companheiros de esquadrão, que estão
seguindo atrás dele. Ele aponta para o mais próximo, Tseng, e diz:
— Você e eu vamos na frente. O resto do grupo fica aqui.
Jon não sabe se Tseng entende o que ele tem em mente. De
qualquer forma, ela não hesita. Percorre o corredor ao lado dele,
com o alfanje em forma de lança, como o dele.
O Ursa pode estar em qualquer lugar. Eles observam
cuidadosamente, procurando algum sinal dele. Porém, chegam à
câmara sem encontrar nada.
A câmara é circundada por uma faixa de piso aberto de mais ou
menos cinco metros de largura. É espaço suficiente para abrigar um
Ursa que estivesse monitorando suas presas, farejando seu medo
pela ventilação da câmara.
Esperando até elas saírem de lá.
Ele não precisa mais esperar, pensa Jon. Se ele estiver aqui ou
em qualquer lugar nos arredores, eu acabei de lhe dar outra opção.
Ele mal termina de pensar isso quando uma forma enorme se
materializa na frente deles. É um borrão de pele pálida e metal
inteligente azul. A criatura acerta Tseng antes que ela ou Jon
possam se mover.
Tseng voa para trás e escorrega pelo chão. Só para a dez metros
de distância.
Já está morta, com o peitoral afundado pelo impacto, quando o
Ursa parte na direção do corpo. Mas Tseng serviu ao propósito. Ela
tirou a fera do esconderijo.
Os companheiros de esquadrão de Jon vão atrás da criatura.
Eles brandem seus alfanjes. Mas não há muito espaço para
manobras no corredor. E não estão nem perto o suficiente para
cercarem o Ursa, como foram treinados para fazer.
Jon observa a criatura dar uma patada em Saturria e arrancar-lhe
o braço. Os outros dão cobertura enquanto Jakande tenta fazer um
torniquete.
Jon olha para o alfanje em sua mão. Ele pode ser capaz de matar
o Ursa com ele. Mas não sente nenhuma vontade de fazê-lo.
Seus companheiros Guardiões estão em perigo mortal, mas o
fato não o influencia em nada. Ele não é mais humano. A Primus
estava certa sobre isso. Agora ele vê. Ele tem tanto em comum com
Tseng, Saturria ou Jakande quanto com seu alfanje. Em outras
palavras, nada.
Então, Jon percebe que há alguém atrás dele. Virando-se, ele vê
a doutora Gold. Ela está usando o mesmo jaleco branco do hospital,
com o cabelo preso na orelha da mesma forma e com os mesmos
olhos verdes.
Os outros médicos insistiram que ela não era real, que era um
fragmento de sua imaginação. Mas ela parece real, tão real quanto
qualquer um dos Guardiões que o seguiram até lá.
— Doutora Gold — começa ele. — O que você está...?
— Jon — responde ela, com a voz urgente, mas musical, como
ele lembrava —, você precisa ajudar essas pessoas. Você precisa
matar o Ursa.
— Por quê? — pergunta ele.
As sobrancelhas dela se levantam.
— Porque eu estou pedindo a você.
Não é uma razão muito concreta. Mas como é a doutora Gold
pedindo, Jon aceita.
O Ursa está completamente alheio a ele. Jon aproveita o fato,
corre e ataca um dos pontos vulneráveis nas costas da criatura.
Ele erra de propósito.
Mas chega perto o suficiente para a criatura urrar de dor e raiva,
para prejudicá-la, retardá-la e forçá-la a se dar conta da ameaça
invisível atrás em vez de atacar as presas visíveis à frente.
O Ursa o derruba de suas costas, jogando Jon contra a parede.
Algo se quebra na parte lateral de seu corpo, mas ele consegue
ficar de pé.
— Saiam daqui! — grita ele, apesar da pressão da dor. — E tirem
os trabalhadores daqui também! — Ele se vira e gesticula para que
os trabalhadores na câmara fujam.
Eles obedecem, correndo uns por cima dos outros para sair da
câmara. Mas os Guardiões hesitam. Eles têm um trabalho a cumprir,
afinal.
Ele grita novamente:
— Saiam daqui!
Com relutância clara, eles seguem suas ordens. O Ursa se vira
para persegui-los, mas Jon não deixa. Ele pega o alfanje de Tseng
no chão e, sem parar de correr, salta para as costas do monstro.
Então, enfia o alfanje no centro do ponto vulnerável do Ursa.
A criatura se vira, querendo encarar seu atacante. Mas Jon ainda
está em suas costas. Ele transforma o alfanje em uma lâmina,
cortando o Ursa por dentro. Então, ele transforma a arma
novamente em uma lança e em lâmina novamente.
A cada transformação, a arma causa mais estrago,
enfraquecendo a fera. Finalmente, Jon arranca a arma de dentro da
criatura e enfia novamente, encravando ainda mais do que antes.
É um golpe fatal.
Com um som gutural, a criatura gira, pula e ataca o ar com as
patas da frente. Jon sai das costas dela, coloca as costas contra a
parede e escapa para que o Ursa não o mate com seus espasmos
moribundos.
No que parece uma tentativa de desalojar o alfanje, o monstro se
debate contra a parede. Mas acaba enfiando a arma ainda mais.
O Ursa enlouquece. Ele gira, se bate contra as paredes e urra
agonizando.
Jon não sabe como um ser humano completo, alguém ainda em
contato com suas emoções, veria o Ursa nesse momento. Uma
ameaça que precisa ser abatida antes que possa matar novamente?
Um animal que precisa ser abatido para parar de sofrer?
Um momento depois, a pergunta se torna inútil. O Ursa solta mais
um urro longo e sofrido. Depois, cai de lado, treme e morre.
Uma poça de veneno escorre de sua boca, formando um círculo,
derretendo violentamente o chão sob ela e criando uma fumaça
negra. Então, até a fumaça para.
Acabou.
Jon nunca esteve tão próximo de um Ursa morto. Ao vê-lo lá,
parado, Jon chega a uma conclusão: ele tem algo em comum com a
criatura. O Ursa é uma máquina biológica, para cumprir apenas um
propósito: matar. Ele também.
Ele também.
Jon procura a doutora Gold. Ela se foi. Por algum motivo, ele não
se surpreende.
Jon se avalia. Algumas costelas estão quebradas e metade do
rosto está ensanguentada por causa de um corte sobre o olho. Fora
isso, ele está incólume.
Mas a vitória não significa nada para ele. Vitória, derrota... São
simplesmente eventos insignificantes em uma série, atados uns aos
outros, todos sem nenhum significado.
Então, Jon ouve algo e percebe que não está sozinho. Primeiro,
ele pensa que os trabalhadores voltaram por algum motivo. Porém,
o som é muito alto e pesado. Há outros Ursas na usina.
Mais de um, pensa ele.
Mesmo que os Ursas não possam detectá-lo, seria muito difícil
para Jon acabar com todos. Não que ele se importe com o que eles
vão fazer com os Guardiões, com os trabalhadores ou com o resto
da população. Mas a doutora Gold parecia se importar.
E é por isso que ele, com a mão na costela, caminha até a
câmara de energia.
No caminho, ele passa por Tseng. Os olhos dela estão fixos nele.
Não parecem nada diferentes do que pareciam alguns momentos
antes. Mas há uma linha de sangue escorrendo da boca que
evidencia que ela está morta.
Ele segue para a câmara. A porta está aberta, os trabalhadores a
deixaram assim. Jon vai até o console e toca em uma série de
comandos, aumentando a pressão do campo magnético da usina
sobre o suprimento de plasma.
Nesse exato momento, os Ursas saem de suas camuflagens. Jon
estava certo. Há três deles.
Não percebem que ele está lá. Também não sabem o que ele
está planejando.
Uma luz de perigo vermelha se acende, pintando todas as
superfícies ao redor. Ele continua aumentando a pressão. Uma voz,
que ecoa por todo o ambiente, alerta sobre as condições da usina
chegando ao nível crítico, que resultará em autodestruição.
Jon não fica perturbado com isso. Na verdade, esse é justamente
o objetivo que ele busca.
NA LUZ DOURADA da manhã, com o ar frio passando pela pele, Cypher
Raige caminha pelos restos do que fora, até os eventos do dia
anterior, o local da usina de força do lado norte da cidade.
Raige fala bastante com os sobreviventes do esquadrão de
Blackburn. Todos dizem a mesma coisa, que Blackburn e o Ursa
foram destruídos na explosão.
A magnitude da explosão parecia confirmar o fato. Havia pedaços
de composto de cerâmica, pedaços da estrutura da usina, a
centenas de metros do local do prédio. Nada que fosse exposto a tal
descarga de energia poderia sobreviver.
Raige franze a sobrancelha. E ainda assim...
A equipe forense dos Savant descobriu pedaços de carne
contendo DNA de Ursa. Muita quantidade, na verdade. Nada
diferente do que Raige esperaria.
Mas por mais cientistas que os Savant colocassem no local,
ninguém conseguia encontrar traços de DNA humano.
Era intrigante, para dizer o mínimo. E Raige não gosta de ficar
intrigado. Especialmente quando se trata de um assunto tão ligado à
sobrevivência da colônia.
Ele pensou em aprovar quatro cirurgias parecidas com a de
Blackburn. Porém, dadas as circunstâncias misteriosas da morte de
Jon, ele precisará deixar as cirurgias em espera.
Uma pena, pensa Raige, mas o primeiro-comandante não tem
escolha. Até saber mais sobre a morte de Blackburn, ele não pode
permitir que outro Guardião faça a cirurgia.
É um acontecimento infeliz, assim como todo o cenário ao seu
redor. Ele tinha esperanças no programa de Nizamani.
Grandes esperanças.
O SEGUNDO SOL estava começando a se pôr no horizonte, sua
jornada terminada e cada pedacinho de pedra e grão de areia do
deserto tocado pelo fogo. As Montanhas de São Francisco no norte
reluzem como se fossem lava. Uma cadeia de montanhas muito
menor e mais distante ao sul parece agonizar.
Do ponto de vista de Jon em uma colina alta, é possível enxergar
milhas em todas as direções. O que ele não vê, e não quer ver, é
qualquer parte da cidade de Nova Prime.
Foi por isso que Jon caminhou até lá. Para ficar sozinho no
deserto, bem longe dos outros humanos. Longe de suas lutas, de
seus propósitos e de suas emoções.
Se ele tivesse parado antes de chegar a esse ponto, alguém
poderia tê-lo encontrado e tentado persuadi-lo a voltar. Mas não
mais. Ele estava fora do alcance, longe da ajuda deles. Estava
exatamente onde queria.
Jon levou dias para chegar a essa colina. No primeiro dia, ele
ficou sedento e faminto. No segundo dia, a fome e a sede pioraram.
No terceiro dia, foi difícil prosseguir.
Mas ele prosseguiu mesmo assim.
Um homem normal teria refutado a ideia de caminhar no deserto
sem água e sem comida. Um homem normal teria feito o necessário
para sobreviver.
Jon não tem necessidades. Ele não tem necessidade nenhuma.
Só tem preferências. Jon prefere escapar do modo como os
outros o olham. Ele está cansado de explicar sua falta de motivação
a eles. Não que os culpe. Ele era a esperança deles, afinal. Mas Jon
se tornou outra coisa, algo mais parecido com os Ursas que ele
deveria destruir. As pessoas precisam aceitar o fato de que sua
esperança estava errada.
Então Jon veio para este lugar sozinho, para deixar a natureza —
sua natureza — seguir seu curso. Para deixar o deserto levá-lo na
hora certa.
Ele deseja nunca ter se tornado um Fantasma? Nunca ter
passado pela cirurgia que deu a ele a capacidade de ficar invisível
aos Ursas, em troca de sua humanidade?
Certamente, sua vida seria diferente. Ele sabe disso, pensa nisso.
Mas não sente nenhum arrependimento pela decisão.
Ele não sente nada.
E na calma do deserto, sob o domo azul do céu, ele espera. Pelo
quê?
Por algo que pode não aparecer. Afinal, ele não pode controlar
sua vida. Nem o pouco que lhe resta. Enquanto olha a imensidão
escura, Jon sabe que pode nunca encontrar.
O céu fica negro. As estrelas aparecem. Ele cai de lado, fraco
demais para ficar de pé. Mas, de alguma forma, ele encontra forças
para se ajeitar.
Então, vê algo na distância.
Uma pequena figura, delineada na luz das estrelas. Uma mulher
com um jaleco branco. É uma vestimenta estranha para um deserto.
Ao se aproximar, ele reconhece o cabelo loiro da figura. Ele é
jogado pelo vento, obscurecendo o rosto dela. Mas só por um
momento.
Então, ele vê claramente e sabe que é ela.
Ele cai novamente de lado e o chão parece gelado em seu rosto.
Mas, dessa vez, ele não consegue se reerguer, por mais que tente.
— Está tudo bem — diz a doutora Gold, com a voz suave como o
vento. Ela se senta ao lado dele. — Não precisa se levantar por
minha causa.
— Eu não sabia se você viria — comenta Jon.
— Claro que sabia. Eu disse que não o abandonaria.
Ele percebe que ela está certa. Ele sabia. Sempre soube.
A doutora olha para as estrelas. Uma pequena luz reflete nos
olhos dela.
— É lindo aqui.
— É? — pergunta Jon.
— Acho que você vai ter que acreditar na minha palavra.
Ela coloca a mão sobre a mão dele. É quente e viva, bem mais
quente do que a dele. Houve um tempo em que ele teria amado este
toque. Ao menos, é o que ele acredita.
— Quanto tempo você pode ficar? — indaga ele.
— Enquanto você precisar de mim — responde a doutora.
Jon espera ela desviar o olhar, como aprendera em seu
treinamento.
Mas ela não desvia. Nunca.

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