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Depois da Terra™

Histórias de
Fantasmas

Paz

Robert Greenberger
Tradução
Rodrigo Santos
Copyright © 2012 by After Earth
Enterprises, LLC. Todos os direitos reservados. Utilizado sob autorização.
Todos os direitos desta edição reservados à
Editora Objetiva Ltda.
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TÍTULO ORIGINAL
Peace
CAPA
Trio Studio sobre design original de Dreu Pennington-McNeil
IMAGEM DE CAPA
Stephen Youll
COORDENAÇÃO DE TRADUÇÃO
Reverb Localização
REVISÃO
Joana Milli
COORDENAÇÃO DE E-BOOK
Marcelo Xavier
CONVERSÃO PARA E-BOOK
Abreu’s System Ltda.

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
G83p
Greenberger, Robert
Paz [recurso eletrônico]: Depois da Terra: histórias de fantasmas / Robert
Greenberger;
[tradução Rodrigo Santos]. – Rio de Janeiro: Objetiva, 2013.
Tradução de: Peace
Formato: ePub
Requisitos do sistema: Adobe Digital Editions
Modo de acesso: World Wide Web
33p. ISBN 978-85-8105-133-8 (recurso eletrônico)
1. Ficção americana 2. Livros eletrônicos. I. Santos, Rodrigo
II. Título. III. Série.
13-0340. CDD: 813
CDU: 821.111(73)-3
Sumário

Capa
Folha de Rosto
Créditos
Sumário
Mas ele me bateu!
Quem fez isso?
Diaz saiu
Meses depois
Você o quê?
Um a um
Ser um guardião
Eu estou
A cada passo
As ruas estavam
Ao dobrarem
 

— MAS ELE ME BATEU! — gritou o garoto de 6 anos.


Sua mãe, uma mulher de aparência séria e cabelos grisalhos,
abraçou a criança chorona, tranquilizando-a. Após alguns afagos,
chamou sua atenção gentilmente:
— O que foi que nós lhe ensinamos?
— A dar a outra face.
— E?
— Não revidar.
— Nunca.
— Nunca.
As mãos molhadas de suor seguravam com força as barras de
metal do trepa-trepa, recusando-se a deixar a gravidade vencer.
Kevin Diaz estava no meio do percurso, fazendo um bom tempo,
segundo suas estimativas, e estava determinado a terminar. Havia
uma aposta sobre seu desempenho e ele estava decidido a ganhá-
la de Katya.
Uma barra após a outra, ele percorreu o caminho pelo aparato
magneticamente suspenso. O teste da manhã era apenas um em
uma longa série de exercícios físicos e mentais nos quais ele
deveria apresentar desempenho excelente para passar para a Fase
2: um passo mais perto de se tornar um Guardião.
Diaz sempre quisera ser um Guardião, mais do que qualquer
outra coisa. Eles eram tudo o que ele nunca pôde ser. Quando
criança, o menino marchava ao lado deles nos desfiles, acelerando
as pernas curtas para acompanhar a precisão do pelotão. Quando
seus pais não estavam olhando, Kevin acessava a biblioteca de
imagens para ver clipes dos Guardiões em ação. Eles pareciam
estar em toda parte. É claro que havia perigo, mas também havia
emoção e aventura.
Ser um Guardião era tudo o que ele queria fazer e era tudo que
seus pais não queriam. Não combinava com os costumes da família.
A paz era uma lição passada desde a infância, que Kevin resistira a
aprender.
— Você gritou com a professora?
O pai dele caminhou pela cozinha, um percurso pequeno devido
ao pouco espaço. Ele estava claramente se controlando, recusando-
se a deixar a raiva e a frustração transparecerem. O que importava
era manter a calma e a paz de espírito.
— Ela não queria me ouvir — respondeu Kevin, então com
apenas 7 anos, no tom de voz mais baixo que conseguiu. Diferente
de seu pai, para ele, controlar-se era um problema. Acessos de
raiva e até brigas já haviam acontecido antes. E a cada vez, a
mesma cena se repetia.
— O que dá a você o direito de incomodar as pessoas? De
desrespeitar a sua professora? O que nós sempre lhe dissemos?
— Para ser humilde perante os mais velhos — respondeu o
garoto, mecanicamente.
— Você foi humilde?
— Não, senhor — admitiu Kevin.
— Kevin, a nossa família saiu da Terra decidida a ter um novo
começo. Nós juramos agir melhor, tanto como família quanto como
representantes da humanidade nas estrelas. Tem sido assim há mil
anos. Nossos ancestrais mantiveram esse ideal, independente do
que aconteceu. Quando os Skrel nos encontraram. Quando
enviaram os Ursas contra nós. Quando quase começamos uma
guerra civil. Nós sobrevivemos a muita coisa ajudando a colonizar
este planeta e a família Diaz...
— ...está determinada a ser humilde e adotar a paz e a
simplicidade — completou Kevin.
— Você demonstrou paz ou simplicidade?
— Não, senhor.
— Eu fui claro? Agora volte para o seu quarto, e nada de filmes
antes do jantar.

— QUEM FEZ ISSO?


O sangue escorria das narinas de Luis enquanto ele mantinha a
cabeça para trás, segurando um pedaço de pano contra o nariz para
estancar a hemorragia. A mãe dele segurava a outra mão. Ela
cuidaria do nariz do filho, mas Luis era um rapazinho orgulhoso e
insistiu em fazê-lo sozinho... apesar de ainda ser criança o bastante
para se reconfortar com a mão materna segurando a sua. Enquanto
isso, Kevin sentava-se ali perto, olhando triste para o rosto
machucado do irmão e encolhendo-se imperceptivelmente cada vez
que o pai, cada vez mais irritado, perguntava quem era o
responsável. No fim, Luis estava tão cansado que ignorou o antigo
código de honra de colégio, que desencorajava os alunos a
dedurarem os colegas de classe, independente da gravidade da
provocação.
— Colm — disse ele.
— Colm. Que Colm? — perguntou o pai de Luis e Kevin.
— Colm Delahantey. Nós... somos colegas.
— Kevin, explique o que aconteceu — perguntou a mãe deles. —
Eu não estou entendendo.
Segurando o choro, Kevin se aproximou dos pais e falou bem
baixo:
— Colm estava pegando no meu pé no pátio da escola. Ele
estava me seguindo, me xingando e tentando me fazer tropeçar. Eu
o ignorei. Exatamente como vocês me ensinaram. — Era visível a
luta para manter a voz sem amargura.
— Então, o que aconteceu? Ele bateu no Luis? — perguntou o
pai.
— Não... não foi assim. Luis viu o que estava acontecendo e se
aproximou. Ele pediu ao Colm pra parar, mas os amigos do Colm
começaram a provocar. Eles queriam briga.
— E por qual motivo eles queriam brigar?
— Eu não sei! — gritou Kevin, deixando escapar toda a frustração
guardada. — Ele é um monstro! É uma doença! Ele nasceu mau! Eu
não sei!
O pai, abalado pelo estouro do filho, amoleceu um pouco.
— Isso não deveria acontecer — respondeu ele, em um tom mais
suave.
— Não brinca... — disse Luis, e foi calado imediatamente pela
mãe enquanto ela trocava o pedaço de pano.
— Eu ainda não entendo. Esse garoto queria uma briga e você
aceitou?
— Não, pai, não foi assim — respondeu Luis. — Ele estava
perseguindo Kev, os outros estavam seguindo ele e estavam todos
procurando briga. Eu fui tentar impedir.
— Como vocês nos ensinaram — comentou Kevin novamente,
com um toque de sarcasmo que lhe rendeu um olhar de reprovação
do pai.
— Quem deu o primeiro soco? —perguntou o pai.
— Eu estava tentando afastar o Colm, mas os amigos dele nos
cercaram... alguém me empurrou contra ele. Ele pensou que eu
tivesse atacado e começou a bater — relatou Luis.
— Eu acho que o nariz dele está quebrado — avisou Marisa a
Juan Carlos. — Ele precisa de um médico.
— Então vamos, esse Colm pode esperar. — decretou o pai,
levantando-se.
— Pai, começou tudo por acidente, mas o Colm não quis ouvir.
Ele continuou batendo no Luis e eu fiquei só olhando. Não interferi.
Fiz do nosso jeito — disse Kevin.
— E você fez bem por não tornar uma situação ruim ainda pior —
respondeu o homem.
— Mas Luis está com o nariz quebrado e eu podia ter impedido
isso!
As sobrancelhas do pai se levantaram de maneira intrigada.
— Você tem certeza disso? Você sabe lutar?
— Não.
— Me parece que esse Colm sabe. É possível que nós
tivéssemos dois narizes quebrados hoje.
— Pai, isso está errado. Eu deixei meu irmão se machucar.
— Não, você impediu que as coisas piorassem. Quando você
estiver pronto, nós vamos ensiná-lo a desarmar um conflito.
— Eu não quero desarmar o conflito. Eu quero desarmar Colm.
Quero arrancar os braços dele!
Juan Carlos atravessou a pequena sala e segurou os ombros do
filho mais novo. Com uma voz surpreendentemente suave, ele
disse:
— Não, filho. Nós não lutamos. Nós não revidamos. Nós não
discutimos. Nós somos melhores do que isso. Nós vivemos nossa
vida em harmonia com o ambiente. Colm é um desordeiro e merece
uma punição, mas não com uma luta.
— Eu sei, é a nossa maneira. Mas quer saber, pai? Eu odeio a
nossa maneira.

cabine de teste com um sorriso enorme no rosto.


DIAZ SAIU DA
— Isso foi moleza!
Katya Ronaldo, magra, loira e linda, socou carinhosamente seu
braço. Ela estava na fila, esperando a chance de entrar na câmara
onde o conhecimento sobre a história da Terra e de Nova Prime era
testado, além de informações gerais sobre os Guardiões. A
linhagem dos Guardiões vinha da época em que a humanidade teve
que abandonar a Terra de vez. Diaz achava que conhecia tão bem
os fatos que se ofereceu para ser o primeiro no teste, querendo
acabar logo com aquilo.
Malcom Velan, o parrudo examinador, consultou um pequeno
tablet na mão esquerda e estendeu a direita para o garoto.
— Bom trabalho, você tirou a melhor nota do seu esquadrão.
Diaz deu outro sorriso enquanto apertava a mão estendida.
— A melhor até agora — acrescentou Velan, voltando a atenção
para o próximo cadete na câmara.
— Ótimo trabalho — elogiou Xan Minh. O garoto de 15 anos era
bem mais alto do que Diaz, o que lhe dava a vantagem nos testes
físicos. Mas a câmara era um teste mental, e nisso Diaz era
excelente. Normalmente, ele se contentava em ignorar os pais e
seus ensinamentos, mas controlar a respiração, criar um plano de
ataque e ter confiança em si mesmo certamente lhe dava vantagem
nas atividades mentais.
— É um dom — respondeu Diaz, olhando os rostos preocupados
dos que ainda iriam entrar na câmara. O teste oral aleatório durava
vinte minutos, a não ser que a inteligência artificial precisasse
verificar o conhecimento do candidato mais a fundo para chegar a
uma avaliação final. O processo era conhecido por durar em torno
de vinte e cinco minutos. O tempo mais longo foi de um cadete que
ficou por trinta e sete minutos e acabou repetindo a Fase 1. Diaz
entrou e saiu em vinte e um minutos, um recorde pessoal após
várias semanas de preparação.

MESES DEPOIS,
logo depois do fim dos sofridos testes da Fase 2, Kevin
Diaz rolou para fora da cama, com cuidado para não acordar Katya,
que estava adormecida ao seu lado. Era o grande dia e ele não
conseguia dormir. Estava empolgado demais com a cerimônia.
Sentia o pulso acelerado ao pensar nos eventos do dia. Tomou um
banho rápido e inspecionou cuidadosamente cada centímetro de
seu uniforme de Guardião. Enquanto polia uma abotoadeira com um
pedaço de tecido, Katya, ainda vestida com a camisa dele, chegou
sonolenta na sala.
— Você vai me deixar cega com o brilho dessas coisas —
murmurou ela, enquanto procurava algo pra beber.
— Só estou ansioso.
— Sério? Nem percebi — comentou ela, antes de dar um grande
gole. Balançou a cabeça, mas seu cabelo curto se recusou a mexer.
O ar, normalmente seco, estava relativamente úmido, algo incomum
naquela época do ano. Ela sempre usava o cabelo curto, até mais
curto do que pedia o regulamento.
— Vamos lá, vá tomar banho que eu preparo o café da manhã —
ofereceu ele.
— Eu posso desembalar a minha própria barra de proteína, mas
muito obrigada.
— Bom, então se apresse. Hoje é o grande dia.
— Não brinca. Eu já sei. Hoje nos tornaremos Guardiões. O
general-comandante em pessoa fará o discurso, e pode até nos dar
um tapinha nas costas. Eu já sei. Nossos pais estarão lá para bater
palmas e tirar fotos. Nós comemoraremos, especialmente os dez
por cento que ficaram com a melhor colocação.
Diaz queria ser o número um, mas teve que se contentar em
estar entre os dez melhores. Ele passou facilmente pelo teste da
câmara e pelos testes físicos. Ganhara a aposta e Katya teve que ir
a um encontro formal e usar um vestido pela primeira vez na vida.
Desde então, eles estavam juntos.
Porém, ele fora punido por Velan pelo “uso de força excessiva” no
estande de tiro. Em vez de acertar os soldados Skrel holográficos
um a um, ele disparara demais e um pouco sem precisão. Ele se
lembrava da torrente de adrenalina, da emoção da aventura e de se
deixar levar pelo calor da batalha. Velan gritara com ele por deixar a
arma falar mais alto. Diaz quase gritou de volta, mas o treinamento
fez com que ele segurasse a língua no último instante. Mais tarde,
na mesma noite, Katya comentou, implicante, como Diaz tinha
ficado vermelho que nem beterraba, de tanta raiva, e jurou ter visto
ondas de calor emanando da sua cabeça.
Aquilo acabara lhe custando o primeiro lugar, mas seu
autocontrole permitiu que ele se tornasse um Guardião.
Diaz foi até o armário, pegou as barras de proteína que Katya
gostava, além de uma fruta vermelha redonda, e colocou tudo na
mesa. Os outros cadetes finalmente estavam acordando, o que
significava que haveria uma corrida para os chuveiros e para o
refeitório. Acordar cedo tinha seus benefícios.
Por outro lado, acordar cedo significava ter que esperar mais
tempo pelo começo da cerimônia, e ele nunca fora muito bom em
esperar. Apressou Katya para que tivessem tempo de caminhar pelo
pátio, e assim gastar um pouco do nervosismo. Além do calor
abafado, havia muita ansiedade no ar. Não só os amigos e a família
participavam da cerimônia, mas muitos dos moradores da região
também apareciam. Ser um Guardião era um grande prestígio. E
também significava que eles talvez pudessem conhecer Cypher
Raige, o primeiro-comandante, talvez a pessoa mais famosa de
Nova Prime.
Diaz e Katya caminharam pelo pátio vazio. Ninguém estava
usando os equipamentos, não havia nenhum treinador gritando com
recrutas. O ar estava parado e o calor crescia. Nova Prime acabou
se revelando mais quente do que todos esperavam. As construções
nas montanhas, em forma de colmeia, ofereciam alguma trégua.
Mas, no campo de treinamento, o sol era cruel e fazia o suor
escorrer.
— Meu uniforme vai ficar murcho — reclamou ele, enquanto se
aproximavam do grande palco onde o evento ocorreria em uma
hora.
— Velan vai lhe dar uma reprimenda — implicou ela.
— Você acha mesmo?
— Claro! E depois vai fazer você dar quinze voltas, cem flexões e
costurar à mão um novo uniforme — anunciou ela solenemente. —
Tudo isso antes da cerimônia.
— Você esqueceu a parte de disciplinar os formandos
insubordinados — corrigiu ele, puxando-a pela cintura para perto.
Cheirou o cabelo dela com prazer e ficou feliz. Ela o fazia se
concentrar de uma forma que sua criação nunca conseguira.
Os dois tinham flertado desde o início, e o romance pegou fogo
rapidamente. Apesar de a fraternização ser malvista entre os
Guardiões, os cadetes tinham um pouco mais de liberdade, já que
dependiam da ajuda mútua durante o treinamento e as provas.
Velan deixou claro que, se os dois se tornassem Guardiões, eles
nunca seriam designados para o mesmo local ou tarefa, para que
ficassem o mais afastados possível e se mantivessem concentrados
no trabalho. Se isso não os detivesse, então seria permitido que
casassem algum tempo mais tarde.
Diaz corou ao pensar em casamento. Droga, ele só tinha 16.
Tinha a vida toda pela frente.

— VOCÊ O QUÊ?
Diaz nem conseguia ter certeza se era seu pai ou sua mãe
falando. Ele estava voltando do recrutamento pelo Corpo de
Guardiões, naquele que considerava como o dia mais orgulhoso de
sua vida. Com entusiasmo, ele correu para casa, entrou no
apartamento e fez o anúncio antes mesmo de dizer oi.
Eles estavam lendo. Eles sempre estavam lendo histórias sobre o
passado na Terra, sobre soluções pacíficas para problemas difíceis,
como quando a população quase se amotinou na arca Asimov, até
eles terem a ideia de ressuscitar os jogos olímpicos, redirecionando
a energia do povo. Tudo que a família dele buscara todos esses
anos era a paz elegante. Bom, exceto Kevin, que estava estourando
com entusiasmo.
Marisa, sua mãe, caiu na cadeira com a boca aberta, sem
produzir som algum. Juan Carlos esfregou as mãos e as colocou no
bolso bruscamente.
— Eu quero ser um Guardião.
— Meu filho — começou ela, hesitante. — Nós sempre quisemos
o melhor para você... mas as tradições da nossa família...
— Mas as tradições da família não significam nada para mim —
gritou ele. — Nunca significaram!
— Olhe como fala! — rebateu Juan Carlos. Ele era um pouco
mais velho do que Marisa e tinha cabelos prateados. Tinha o físico
certo para uma briga, mas com uma personalidade incrivelmente
pacífica. — Kevin, você tem rejeitado os nossos costumes por anos.
Houve brigas, incidentes que pensamos que você fosse superar
com a idade. Você precisa encontrar a paz interior da sua família, a
tranquilidade espiritual que poderá guiá-lo por toda a vida.
— Isso nunca funcionou, pai! Eu me meto em brigas, eu discuto
com as pessoas. Esse sou eu!
— Mas nós não somos assim. A vida simples, sem complicações,
funcionou por várias gerações e nós prosperamos como família.
Veja Luis, um arquiteto de sucesso que nunca apareceu com o nariz
sangrando.
— Não desde aquela briga.
Luis era quatro anos mais velho; ele tornara-se aprendiz aos 15 e
vivia longe de casa. Os irmãos não tinham nada em comum e
raramente mantinham contato. Sempre que discutiam, Luis saia pela
porta para evitar o conflito. Como fora ensinado. Mas por algum
motivo, essas lições nunca alcançaram Kevin.
— Não desde aquela época — concordou o pai. — Mas desde
aquele dia, você passou a ignorar nossas lições. Você só tentava
usar a razão depois de ter dado o primeiro golpe. Isso o tornou uma
pessoa melhor?
— Eu ainda estou crescendo. Não sei que tipo de pessoa eu vou
ser. Mas eu sei que vou ser um Guardião.
Com um suspiro profundo, o pai falou:
— Eu não sei que tipo de pessoa você vai se tornar. Tenho
bastante certeza de que nesse momento não é o tipo que eu gosto,
e isso me magoa.
— Olha... mãe, pai, talvez ser um Guardião seja o melhor para
mim. Eles têm treinamento e vou ter chance de fazer coisas boas.
— Nós treinamos você aqui — comentou Marisa, apontando a
casa simples e arrumada. — Não parece ter funcionado. Por que
você acha que eles vão fazer um trabalho melhor?
— Eu não sei! — gritou ele. — Mas vocês sabem que isso é o
que eu sempre quis.
— E nós sempre fomos contra — completou Juan Carlos. —
Ainda assim, você nos desafiou e se inscreveu.
— Eu não vou desistir — afirmou ele, rilhando os dentes para não
chorar.
— Ele se inscreve na primeira oportunidade que tem e espera o
nosso apoio — disse Marisa ao marido, com os olhos cheios d’água.
— Eu não vou impedi-lo — respondeu Juan Carlos. — Ele tomou
uma decisão e agora terá que viver com as consequências. Nós
também ensinamos isso a ele. Mas Kevin, nós não podemos apoiá-
lo nisso.
— Eu sei, pai. Mas eu quero que vocês tenham orgulho de mim.
— Eu não creio que isso seja possível — respondeu o pai, em
voz baixa.

UM A UM os cadetes passaram pela plataforma e receberam o distintivo


de oficial. Cypher Raige, resplandecente em seu uniforme todo
branco, sem sequer uma gota de suor apesar do calor, apertava a
mão e batia continência para cada um deles. Tudo era feito de
forma extremamente precisa e eficiente.
Diaz estava emocionado ao ver seus amigos passando um a um,
mas quando Katya parou, virou e deu um sorriso para a família, ele
sentiu-se embaraçado. Era uma atitude exibida e imprópria de um
oficial, mas também era um momento muito especial para ela e para
seus pais e irmãos. Ele procurou o irmão, achando que ele talvez
estivesse ali, mas fracassou na tarefa. E fracassar no dia da
formatura não era propriamente um bom sinal.
Kevin Diaz ouviu seu nome ser chamado e caminhou em direção
a Raige. Um aceno, a entrega do distintivo e a continência.
Segundos depois, tudo tinha acabado. Enquanto prosseguia pela
plataforma, olhou rapidamente para a plateia. Nem sinal de seus
pais ou de Luis.
Raiva e desapontamento lutavam dentro dele enquanto
caminhava de volta para seu lugar, enxugando dos olhos o que ele
jurava ser apenas suor.

SER UM era prestigioso, mas ninguém disse a Kevin o quão


GUARDIÃO
tedioso seria o trabalho. Havia patrulhas de rotina dentro e fora da
cidade, sempre alerta aos perigos. Durante os dois últimos anos ele
passara por vários postos da organização dos Guardiões,
aprendendo como funcionava cada divisão. Ele adorava a patrulha
aérea e esperava conseguir o brevê de piloto em breve. Detestava
patrulhar o perímetro da cidade, mas gostava de cuidar do arsenal e
praticar com alfanjes. Kevin continuou sonhando em ser designado
a uma das naves que faziam o trajeto até o ancoradouro em Lycia.
Naquele dia, Kevin andava pelo mercado, onde os Guardiões
estavam sempre presentes para manter a paz. As coisas podiam
ocasionalmente fugir do controle nas regiões periféricas, mas a
criminalidade dentro da cidade de Nova Prime era ridiculamente
baixa. Ele se contentou, então, em examinar os produtos à venda. O
design dos objetos lembrava as linhas retas e suaves que Luis
desenhava como arquiteto. Como já eram mais velhos, haviam
amadurecido e se falavam com mais frequência. As visões de
mundo dos dois ainda eram totalmente diferentes, mas sempre
encontravam algo em comum para conversar durante um almoço
ocasional.
Kevin sentia falta dos pais. Desde que eles faltaram à cerimônia
de graduação, os três quase não se falaram. O rapaz sempre
comparecia aos eventos de família, em datas festivas ou funerais,
mas eles se tratavam com frieza e distanciamento. Kevin se
lamentava por isso, mas via um abismo que não sabia como cruzar.
Sempre esperava que um de seus pais tomasse a atitude e acabava
ficando furioso consigo mesmo por ser um covarde.
Ele balançou a cabeça, tentando se livrar dos sentimentos,
quando o comunicador começou a tocar.
— Todos os Guardiões, atenção. Um Ursa foi avistado na parte
nor-nordeste da cidade. Estejam armados e atentos. Mais detalhes
a seguir.
— O que é armado e atento?
Kevin olhou para baixo e viu uma menininha de 4 anos usando
uma túnica roxa. O pai da menina estava tentando alcançá-la
quando Kevin se ajoelhou para responder à pergunta.
— O seu pai já te contou histórias assustadoras sobre os Ursas?
Ela fez que sim, com os olhos arregalados.
— Os Ursas são os monstros mais malvados e assustadores de
todos. Eles existem de verdade, mas não são vistos há muito tempo.
E você sabe por quê?
Ela balançou a cabeça lentamente.
— Porque os Guardiões os espantam toda vez que aparecem por
aqui. E você sabe o que eu sou?
— Um Guardião? — respondeu ela.
— Isso mesmo. E agora que eles voltaram, eu vou espantá-los
pra bem longe de você e da nossa cidade. Estar armado significa
que nós, Guardiões, usamos nossos alfanjes para proteger as
pessoas e matar monstros como o Ursa. — Nesse momento, ele
sacou a arma e segurou-a na frente da garota.
— E estar alerta significa que mantemos nossos olhos e ouvidos
abertos, procurando o Ursa, para podermos levar você para um
lugar seguro e manter o monstro afastado.
O pai pegou a menina no colo, acenando em agradecimento pelo
modo como Kevin lidou com a situação. Ele se sentiu bem, mas
estava preocupado. A última incursão desse tipo fora há cinquenta
anos. Uma centena dos monstros havia aparecido, depositados em
Nova Prime pelos Skrel, e os Guardiões perderam muitos bravos
soldados no evento. Quando tudo terminou, somente uma dúzia de
criaturas foi morta. Os Ursas restantes sumiram no deserto e, com
raras exceções, não foram vistos novamente.
Kevin ativou o alfanje, extremamente agradecido pelos avanços
da tecnologia, desenvolvida séculos antes de a humanidade
enfrentar o primeiro Ursa. Como as criaturas atacavam civis, armas
como bombas e granadas não podiam ser usadas. Ele se lembrava
de ter lido sobre um projétil incendiário que derrubou um quarteirão
inteiro durante a primeira infestação. Por causa disso, as poderosas
armas modulares foram criadas, refinadas e usadas para fazer o
trabalho com o mínimo grau de risco para qualquer coisa que não
fosse um Ursa. Ele estava com medo de que se tratasse de uma
nova linhagem, mais mortal do que a última, em vez dos Ursas
remanescentes. Os Guardiões esperavam informações detalhadas
do comando, mas até lá, ele tentou diminuir o passo ao caminhar
em direção à fronteira da cidade.

— EU ESTOU com medo, mãe — declarou Kevin, então com 4 anos de


idade, debaixo da cama.
Marisa se ajoelhou e olhou para ele com expressão sonolenta.
Era a terceira noite seguida que ela era acordada pelos pesadelos
dele.
— Eu estou aqui.
— Mas o monstro vai pegar você — choramingou ele.
— Você é um bebezão — reclamou Luis, debaixo do travesseiro.
— Calma, eu estou aqui e não vou deixar o monstro te pegar —
afirmou Marisa, tentando acalmar o caçula.
— Você não tem medo?
— De quê?
— De ele te matar.
— Todos nós morremos, mais cedo ou mais tarde. Se for para
acontecer aqui e agora, protegendo você, então que seja. Mas eu
prefiro não morrer, especialmente agora que estou vendo um canto
que me esqueci de limpar aqui embaixo.
— Onde você preferiria morrer?
— Na cama, segurando a mão de seu pai, quando estiver bem
velhinha. Daqui a muitos anos.
— Então você tem que se esconder.
— E deixar o monstro pegar você?
— Eu não estou mais ouvindo nada, você deve ter espantado ele.
— Bom saber disso. Significa que eu fiz o meu trabalho. E não
precisei de briga nem de violência. Nós deixamos a vida acontecer.
Ela o colocou de volta na cama, enrolou-o com o cobertor e deu-
lhe um beijo na testa. Ele voltou a ter sonhos mais agradáveis.

A , Kevin precisava se forçar a andar mais devagar, para


CADA PASSO

não parecer apavorado, apesar da adrenalina que corria em seu


sangue. Já havia respondido a emergências antes, mas nada
parecido com isso. Esse era o motivo pelo qual os Guardiões ainda
existiam, após mil anos fora da Terra. Eles mantiveram a paz
enquanto a colônia crescia e se tornava uma cidade e, depois,
várias cidades. Por fim, começaram a explorar mundos próximos.
Eram os Guardiões que mantinham a paz enquanto o Savant e o
Primus, os chefes das comunidades científica e religiosa de Nova
Prime, brigavam geração após geração (ou pelo menos era isso que
alguns Guardiões alegavam).
Agora era sua vez e ele ia deixar seus comandantes orgulhosos.
Enquanto passava pela cidade, Kevin viu que a notícia tinha se
espalhado e o pânico já estava começando a tomar conta da
população. Lojas estavam se fechando, as pessoas estavam se
escondendo em suas casas nas montanhas, uma sensação de
terror generalizada permeava o barulho da cidade. Ele avistou
outros dois Guardiões e lembrou-se do treinamento. Sempre que
possível, eles deveriam trabalhar em grupo, não sozinhos.
Um deles era Minh, que estava empunhando um alfanje de um
metro e meio. O outro era um desconhecido.
— Diaz. — Kevin acenou para Minh. O homem alto apontou para
o outro Guardião e disse:
— Tanger.
— O que nós sabemos?
— Não muito, Diaz. Nós estamos esperando a telemetria. Vamos
correr.
— Para onde?
— Para onde tiver ação — respondeu Minh, com um sorriso. Ele
parecia realmente empolgado com isso, sem transparecer qualquer
medo. Diaz só sentia a adrenalina pulsando nas veias e um
sentimento de desgosto. Os Ursas eram um exercício de
treinamento holográfico, não uma realidade de carne, sangue e
metal.
Enquanto caminhavam, as ruas ficavam mais vazias. Os sóis
criavam longas sombras escuras, dando ao lugar uma sensação de
deserto. Poucos minutos depois, os tablets passaram a informação
de que pelo menos uma dúzia de Ursas fora localizada, espalhada
perto da cidade e dentro também. As ordens eram para matar à
primeira vista e patrulhar o perímetro até segunda ordem.
— Você já viu um? — perguntou Minh.
— Só vídeos — respondeu Tanger. Kevin acenou, concordando.
— Eu também não. Mas as imagens gravadas são chocantes,
piores que qualquer filme que se possa imaginar.

AS quase vazias e o barulho de pânico diminuíra. Na


RUAS ESTAVAM

verdade, Diaz queria ouvir um som alienígena, algo em que ele


pudesse se concentrar e atacar. Ele queria matar um Ursa e fazer
história. Deixar seus pais orgulhosos.
Continuaram patrulhando as ruas cheias de areia. Diaz estava
agradecido pelos dois sóis estarem se pondo. Com a tensão e o
calor, o uniforme ficou desconfortável.
Olhou para a tela em busca de atualizações e gritou um palavrão.
— Nós perdemos três, a oeste daqui.
— Pegamos algum? — perguntou Tanger.
— Ainda não — respondeu, sombriamente.
As montanhas que compunham a cidade agora estavam atrás
deles e a vastidão árida do deserto estava à frente. Suas sombras
se alongavam conforme os sóis se aproximavam do horizonte. Três
horas tinham se passado desde o primeiro alerta e Kevin já estava
cansado. Tensão e cansaço era uma combinação ruim, mas, até
segunda ordem, eles teriam que permanecer de serviço.
O tédio da manhã havia desaparecido completamente enquanto
seus olhos buscavam sinal de movimento. Viu répteis na base da
montanha mais próxima e um pássaro azul voando ao longe. À
direita, os longos pedaços de tecido que protegiam os campos de
hortaliças dos sóis calcinantes. Pareciam diferentes tipos de
pimentas em um arco-íris de cores, onda após onda. Vê-las
amadurecendo o deixou com fome, mas ele sabia que precisava
conservar os pacotes de ração que trazia no uniforme.
— Guardiões! Dois Ursas na entrada sudoeste da cidade! Um
Guardião caído.
— Guardiões! Um Ursa entrou no parque e está sendo alvejado.
— Guardiões! Dois Guardiões caídos na entrada norte.
— Guardiões! Ursas avistados nos portões sul e oeste! Convergir
no alvo!
O ritmo estacado da voz desconhecida transmitia a urgência da
situação. Por dentro, Kevin sentia cada morte de Guardião,
alimentando uma fúria fervente que ele tentava conter.
— O portão oeste fica a apenas alguns quilômetros naquela
direção — apontou Minh. — Vamos pra lá.
Com os alfanjes em punho, o trio começou a correr rapidamente
na direção do Ursa mais próximo. Enquanto corriam, Kevin tentava
se lembrar de cada informação que tinha aprendido sobre as feras.
Eles os estudavam intensivamente e, apesar de Kevin conhecer a
história das criaturas de cor, não tinha certeza das habilidades da
geração atual.
— Esses malditos podem se camuflar, não é?
— Sim — confirmou Minh.
— Eles também podem cuspir uma gosma preta que paralisa o
alvo.
— Parece nojento — comentou Tanger.
— Está mais pra letal — corrigiu Minh. — E quando eles farejam
você, caçam você até a morte.
— Eles farejam o seu medo — adicionou Tanger. — Portanto,
fiquem frios.
— Nesse calor? — brincou Kevin, Mas ele sabia o que seu
companheiro queria dizer. Medo era uma emoção com cheiro, que
alguns animais, como o Ursa, podiam sentir. Ele não estava com
medo, mas ainda não estava encarando a fera. Em vez disso, ele
estava ansioso para encontrar um e lutar contra ele, usando o
alfanje para retalhá-lo. Três alfanjes, uma fera com seis patas, duas
para cada.
A cada rua atravessada, havia menos gente. Logo eles estavam
em uma cidade fantasma, e isso era obviamente bom. Kevin nunca
vira a cidade tão vazia e quieta. Ele queria ouvir alguma coisa,
alguma pista de para onde eles deveriam seguir. Em vez disso,
seguiram para a direção da entrada oeste da cidade.
Mais ou menos um quilômetro antes do destino, os rádios
começaram a transmitir novamente, relatando outras aparições em
locais mais afastados. Chegaram também notícias de que outro
Guardião havia morrido.
— Nós perdemos quantos? Seis? Oito até agora? — perguntou
Tanger.
— E aqueles malditos ainda estão por aí— concluiu Minh.
— Em que ponto as chances viram a favor deles? — perguntou o
mais velho.
— Isso não vai acontecer — respondeu Diaz, com uma certeza
que ele não sabia se realmente sentia. Não havia conforto na
companhia de outros dois Guardiões, já que o regulamento exigia
no mínimo oito membros, baseado na noção de que a união faz a
força. Mas Diaz não se sentia especialmente forte. — Alguém já
pediu reforços?
— Os mais velhos têm prioridade — disse Minh, fazendo uma
mesura exagerada.
Tangler rosnou e virou de costas para os outros para verificar se
mais tropas poderiam ser enviadas para reforçar a posição.
— O coronel Green disse que estão mandando mais gente, mas
há muita demanda com esses doze monstros espalhados pela
cidade — relatou Tanger.
— Claro, né, já que eles podem se misturar ao ambiente. Caçá-
los é bem diferente de praticar tiro ao alvo — comentou Diaz.
— É muita falta de consideração da parte deles — concluiu Minh,
ajustando o alfanje nas mãos.

AO DOBRAREM a esquina, uma sombra chamou a atenção de Minh, que


sinalizou com a mão rapidamente para que os outros parassem.
Com um gesto, ele apontou a sombra, mas ela se moveu rápido
demais. Kevin não conseguiu confirmar se era humano, animal ou
Ursa. Com um segundo gesto, todos diminuíram o volume dos
rádios para não chamar a atenção.
Lentamente, os Guardiões se aproximaram de uma esquina, com
todos os sentidos atentos em busca de algo para atacar, algum
indício de um predador por perto.
Um grito foi o indício que eles procuravam.
Os três começaram a correr, empunhando os alfanjes, que
zumbiam no ar quente e parado. As botas faziam barulho, mas eles
sabiam que não adiantaria tentar se esgueirar. Aquela era uma
missão de ataque, não de reconhecimento. Tanger contornou pela
direita, para ajudar a cercar o que quer que estivesse se
aproximando.
Kevin foi o primeiro a virar a esquina e se deparar com a origem
do grito. Uma mulher mais velha estava caída no chão, seu sangue
irrigando o solo, enquanto seus olhos se apagavam rapidamente.
Uma das pernas tinha sumido e a barriga estava rasgada e aberta.
Pedaços de entranhas ainda eram visíveis no meio de tanto sangue
e fragmentos, mas os órgãos em si pareciam ter sumido, sem
dúvida servindo de jantar para um Ursa. A fome de Kevin sumiu
rapidamente.
Enquanto Diaz prestava atenção na mulher, Minh girava
vagarosamente à procura do Ursa, com o alfanje na mão. Tanger
fazia o mesmo, um pouco mais afastado.
— Vejam — apontou ele, indicando marcas de sangue no chão
próximas à base da estrutura. A criatura tinha ido naquela direção,
provavelmente para comer.
Kevin tentou de lembrar-se dos hábitos alimentares dos Ursas,
mas não conseguiu. Só conseguia pensar na mulher morta.
Minh e Kevin se juntaram a Tanger, ouvindo somente o som da
própria respiração. O veterano indicou uma passagem aberta, onde
sangue e vísceras os esperavam como um capacho macabro. Todos
verificaram as armas, certificando-se que elas estavam
completamente ativadas. Tanger selecionou a configuração de foice,
e o metal assumiu a forma em meia-lua, refletindo a luz do sol
poente. Kevin tentou decidir rapidamente qual das dezenas de
formas iria usar, mas acabou optando pela lâmina básica. Milhares
de pedaços de metal inteligente se reconfiguraram para formar uma
espada afiada, pulsando com a energia de fissão nuclear. Depois
que o alfanje se reconfigurou, Kevin olhou para Minh e viu que ele
também havia escolhido a lâmina básica. Não precisavam de nada
especial: só cortar e estocar até a fera estar morta.
O fedor os atingiu antes do barulho de algo se alimentando.
Órgãos, matéria orgânica e sangue se misturavam para criar um
odor vil que obrigou Kevin a respirar somente pela boca. O cheiro foi
seguido pelo som de mastigação úmida do Ursa que devorava os
restos da refeição. A boca oval só possuía presas afiadas, mas elas
eram o suficiente para perfurar e rasgar órgãos humanos.
Kevin segurou o alfanje com mais força. O salão sombrio estava
despedaçado graças à entrada do Ursa. Kevin não tinha ideia do
propósito original do prédio, mas estava em ruínas e ficaria ainda
pior quando eles acabassem com a criatura. Por outro lado, o
espaço era confinado o suficiente para tornar o ataque triplo
simultâneo impossível. Tanger tinha um ano a mais do que eles,
portanto, Kevin esperou as ordens do veterano do trio. Ele estava
observando atentamente a área e gesticulando em direção à
criatura, avisando que somente um poderia atacar de cada vez. Ele
sugeriu que cada um atacasse e se retirasse, dando a vez para o
soldado seguinte, até que a criatura morresse ou saísse para um
local onde os três pudessem atacar simultaneamente.
Kevin não estava certo de que esse era o plano mais inteligente,
mas concluiu que qualquer plano era melhor do que plano nenhum.
A ponta de foice do alfanje de Tanger cortou o ar e os Guardiões
investiram, esperando que o elemento surpresa ajudasse. Em vez
disso, o som alertou o Ursa, que se virou de lado com uma pata
dianteira encolhida contra o peito evitando ser cortada. Com um
grito sobrenatural, a criatura se colocou com os seis membros no
chão e partiu para o ataque.
O corredor era largo, mas não o suficiente para que os quatro se
movessem facilmente. Minh e Kevin passaram pela porta, virando
rapidamente para atacar quando a criatura passasse. Tanger não
teve a mesma sorte.
Ele escorregou nos restos humanos, o que deu tempo suficiente
para o Ursa saltar sobre ele.
Kevin e Minh olharam horrorizados enquanto a criatura despejava
o infame líquido negro em Tanger e perfurava o uniforme com as
garras. O Guardião companheiro deles era um homem morto,
apesar dos gritos de dor indicarem que ainda não completamente.
Sem hesitar, com um urro de guerra, Kevin correu na direção da
fera e a golpeou com o alfanje, abrindo um belo talho no flanco da
criatura, ou foi o que ele pensou. Não houve sangue nem grito, mas
ele conseguiu chamar a atenção do monstro. Abandonando o
cadáver no chão, o Ursa correu na direção de Kevin. O Guardião
manteve-se firme, desejando ter tempo de reconfigurar o alfanje.
Mas não tinha. Em vez disso, deu um golpe usando as duas mãos
na direção do Ursa.
Isso pelo menos fez com que a investida da criatura fosse
interrompida, permitindo que Minh viesse pelo lado e a golpeasse.
Em vez de cortar o Ursa, a ponta do alfanje deslizou contra o metal
inteligente infundido na estrutura orgânica da criatura. A equipe do
Savant ainda estava tentando entender o metal alienígena, e como
ele fazia parte do Ursa, mas este não era o problema no momento.
A sobrevivência era a prioridade absoluta. Agora restavam só ele e
Minh, uma dupla de Guardiões do segundo ano, ambos torcendo
para chegar aos 17.
O Ursa se distraiu com o ataque de Minh, dando a Kevin uma
chance de atacar novamente. Com uma agilidade incrível, o Ursa
desviou-se do golpe e investiu contra Minh, fazendo com que ele
recuasse em busca de cobertura. O Ursa urrou na direção de Minh e
Kevin concluiu que o monstro havia marcado seu companheiro
como alvo. Minh era praticamente um homem morto.
Estranhamente, a mente de Kevin voltou a uma piada da época
de cadete. Quantos Guardiões são necessários para matar um
Ursa? Um, mas só se ele for Cypher Raige. Naquela época, o
primeiro-comandante era o único homem que conseguira matar um
Ursa sozinho. Bebendo até tarde, os cadetes se maravilhavam com
o feito, considerando as habilidades e a ferocidade da criatura.
Agora, Kevin desejava que o primeiro-comandante estivesse por
lá para dar uma ajuda.
— Puta merda! — gritou Minh, entendendo de repente o que
havia acontecido.
O Ursa correu a toda velocidade na direção de Minh, que recuou,
mas não foi rápido o suficiente por causa do espaço confinado.
Kevin viu que o amigo estava em apuros e atacou por trás, batendo
com toda a força. Desta vez, o alfanje cortou o couro, mas bateu
novamente no metal inteligente, o que tornou o esforço praticamente
inútil, apesar de ter irritado a criatura. O Ursa parou de perseguir
Minh e se virou para Kevin, como um tigre que é distraído por uma
mosca ao perseguir o jantar. Minh, por sua vez, estava devolvendo o
favor, flanqueando a criatura com o alfanje erguido.
Os minutos seguintes (ou seriam segundos?) foram uma mistura
rápida de golpes, aparos, esquivas e gritos alienígenas que feriam
os ouvidos de Kevin. Ele levou vários golpes de raspão nas pernas
e nos braços, deixando-o ferido e dolorido. Era como um impasse,
mas Kevin sabia que o vigor de um Ursa era maior do que o de um
humano. Ele podia cansá-los e, por fim, atacar.
Ficou aparente que a criatura furiosa tinha vantagem no espaço
confinado. Além disso, todos os moradores da área estavam em
perigo. Diaz se perguntou se eles sobreviveriam a um salto da
janela no final do corredor. Eles estavam somente um andar acima.
— Janela! — gritou ele.
— Você está maluco? — respondeu Minh, gritando para ser
ouvido sobre os sons da criatura.
— Desesperado para sobreviver e manter o desgraçado longe
das pessoas —, explicou Diaz. — Eu vou primeiro, ele vai seguir
você pra fora e talvez a queda o atrase.
— E me mate primeiro —Minh acrescentou. — Vai!
Diaz se virou e correu, sendo ignorado pelo Ursa, totalmente
concentrado em Minh, que continuou golpeando loucamente,
tentando partir os membros frontais da criatura. Kevin parou para
olhar para baixo e viu um cano por onde era possível descer
escorregando.
O próximo som que ele ouviu, quando saltava para o chão, foi o
grito do Ursa e o som de material de construção sendo quebrado.
Ele viu a cabeça de Minh na janela; Diaz gesticulou para que ele
pulasse para a esquerda. Sem hesitar, o Guardião saltou pela janela
e caiu no chão com um rolamento, perdendo o alfanje. Diaz correu
para pegar a arma no instante em que o Ursa atravessou a janela,
estourando a moldura e fazendo chover estilhaços na área.
Mihn já estava de pé e olhando ao redor, imaginando uma rota
para levar o Ursa para longe dali. Diaz jogou a arma para ele e viu
seu parceiro correr por entre dois prédios muito próximos um do
outro, de modo que o Ursa não passasse. A criatura continuou a
ignorá-lo enquanto farejava o ar em busca de sua presa.
Diaz notou que o ar havia começado a esfriar, pois um dos dois
sóis havia descido no horizonte. A criatura estava quase vencendo,
mas Kevin não queria morrer. Não ainda.
— Minh, onde está você?
— O prédio está vazio — respondeu ele pelo rádio. — Eu posso
tentar contê-lo até conseguirmos ajuda. Essa é a hora de você
encontrar alguém.
— Entendido — respondeu Diaz, mudando de canal para passar
sua situação para o comandante Isinbaeva.
Ele ouviu o Ursa atravessar uma porta — ou parede, ou alguma
coisa — e entrar no prédio procurando Minh. Diaz o seguiu,
mantendo as esperanças de que Mihn pudesse sobreviver.
Respirando pesadamente, Kevin se aproximou pela direita, com a
certeza de que sozinho não poderia matar a fera, mesmo enquanto
ela o ignorasse e se concentrasse apenas em criar uma abertura
maior para entrar no prédio.
Kevin encontrou um lugar longe da detecção do Ursa, que
continuou a atacar o prédio. Minh avisou pelo rádio que estava se
deslocando pelo interior da construção, tentando encontrar uma
saída que confundisse a criatura. Tudo o que precisava fazer era
continuar sendo um alvo móvel, mantendo o prédio como uma
barreira entre ele e o Ursa.
— Porém, seria bom se os reforços se apressassem — disse ele
a Diaz.
O Ursa conseguiu abrir uma entrada para o prédio, rugindo e
deixando uma trilha de escombros para trás. Quem quer que
morasse lá teria que fazer uma bela faxina, pensou Diaz, enquanto
se esgueirava por trás da criatura.
Em menos de quinze minutos, outros três Guardiões chegaram:
Carla Macionis, uma veterana com dez anos de serviço, que Kevin
nunca tinha visto antes; David Telgemeier, um Guardião grandalhão;
e Donald Varley, um homem magro e mal-humorado com apenas
alguns anos a mais do que ele. Após uma breve apresentação,
Kevin encontrou-se com eles na entrada destruída do prédio. Minh
conseguiu subir dois andares com a criatura em seu encalço.
O segundo sol estava quase se pondo e o céu estava
escurecendo rapidamente, o que só complicaria as coisas se o Ursa
escapasse do prédio.
— Quantas entradas? — perguntou Macionis. Varley consultou a
tela de seu computador e levantou dois dedos.
— Telgemeier, vá pela outra entrada. — Eles assentiram e
começaram a partir antes que Diaz interrompesse.
— A coisa está focada no Minh.
Os olhos de Macionis se alargaram com a notícia, e um dos
homens soltou um palavrão.
— Tudo bem, a prioridade ainda é conter e matar o bicho. Nós
vamos precisar de Minh como isca quando eu bolar um plano.
Ela pegou o rádio e o ativou.
— Mihn, aqui é Macionis. Você está bem? — Ela subiu a primeira
escadaria cuidadosamente, deixando Telgemeier no primeiro andar
como cobertura.
— Um banho quente seria bom. A coisa está chegando mais
perto e eu estou esgotado.
— Eu tenho um plano, mas você precisa ser veloz.
— Como um coelho — respondeu ele.
— Eu preciso que você se exponha; certifique-se de que o Ursa
está focado em você e depois leve-o para o silo de grãos que fica a
meio quilômetro da sua posição.
— É só isso? Eu consigo correr bem rápido. Por que não
acabamos com ele aqui?
— O primeiro-comandante estudou os ataques e acha que eles
estão com fome. Foi uma estação especialmente quente e as
presas normais deles devem ter diminuído. Essas criaturas são
máquinas de destruição que precisam ficar abastecidas. Se não
conseguir comer um humano suculento, ele vai atacar a próxima
coisa que estiver na frente. Além do mais, pode haver pessoas
escondidas em algum lugar do prédio e nós não temos tempo de
procurar.
— Eles duraram décadas lá fora — comentou Kevin.
— Nosso trabalho, Guardião, é encontrar e matar essas coisas.
Você está preparado para isso, Minh?
— Sem dúvida! — respondeu Minh, transparecendo mais certeza
do que ele realmente poderia ter.
— Aquela coisa é rápida, portanto, fique esperto. Tente mapear a
sua rota. Nós vamos tentar distraí-lo e atrasá-lo por trás.
Diaz rezou em silêncio, pedindo pela vida de Minh. Enquanto
corria, ele podia ouvir o Ursa subindo as escadas. Minh com certeza
já havia começado a se mover e então Diaz ouviu um rugido. Agora,
Minh estava exposto, com seu cheiro sendo levado pelo ar morno.
O tempo de planejamento de Macionis foi reduzido drasticamente
quando eles ouviram o som de tecido rasgando e algo batendo
contra um metal. Logo depois vieram os gritos, confirmando que o
prédio não estava vazio.
Macionis atravessou a porta e desceu a escadaria correndo,
seguida por Varley e com Kevin mais uma vez na retaguarda. O
rapaz tentou determinar de que altura os sons estavam vindo,
estimando que seriam do terceiro ou quarto andar.
Um dos gritos foi interrompido subitamente e seguido por outro.
Logo depois, o som inconfundível de choro.
Os Guardiões chegaram ao terceiro andar e viram duas patas
traseiras. O resto do animal estava dentro de um apartamento. Mais
uma vez, teriam que lutar corpo a corpo, como Kevin temia. Um
Ursa, civis, móveis, espaço confinado e três a cinco Guardiões.
Significava que ninguém teria vantagem. A ferocidade do Ursa
provavelmente ditaria o quão rápido a luta se transformaria em uma
carnificina.
Talvez pressentindo o perigo, o Ursa se virou rapidamente,
derrubando parte da parede com o movimento e colocando as patas
da frente no corredor. Ele rugiu para Macionis, que ficou firme
apontando o alfanje para a criatura.
Depois, Kevin jamais saberia ao certo quem investiu primeiro: a
líder do grupo ou o Ursa. Realmente não fazia diferença, pois a
mulher foi partida em dois antes que o novato pudesse se mover. O
torso dela foi arremessado pelo corredor, na direção dos outros
Guardiões, enquanto a parte inferior do corpo caiu no mesmo lugar,
com o sangue borrifando no Ursa e nas paredes.
Kevin imaginou que o urro da criatura era um grito de triunfo.
O som seguinte foi de seus colegas Guardiões finalmente
chegando ao corredor.
— Sua coisa feia dos infernos! — gritou Telgemeier e investiu
contra o Ursa, que estava de costas para ele, com a atenção voltada
para o apartamento. O soldado saltou na direção da criatura e
golpeou com o alfanje em forma de foice. Por incrível que pareça, a
arma cortou a pele, mas atingiu uma parte metálica. Ainda assim, a
criatura foi ferida e soltou um grito agudo de dor, estremecendo.
O Guardião caiu dolorosamente com um joelho no chão, mas
manteve a arma firme. O Ursa se virou na direção dele e, enquanto
se mexia no espaço apertado, Varley atacou. A criatura reagiu
cravando uma garra afiada em seu peito, prendendo-o na parede. O
alfanje caiu ao chão, ensopado no sangue do dono.
O Ursa ferido rugiu novamente e investiu na direção de Minh, que
recuou até encontrar a porta da escadaria de emergência. Ele
começou a subir rapidamente e atravessou tropeçando numa porta
de madeira fina que levava a outro apartamento. O Ursa o seguiu
pela escada, onde Kevin conseguia ouvi-lo subindo. Ele sabia que
havia apenas mais dois andares até o telhado. A escadaria era larga
o suficiente para não atrapalhar os movimentos da criatura. Kevin se
perguntou se o Ursa seria inteligente o suficiente para chegar ao
telhado e saltar para longe até que conseguisse se curar.
Ou será que ficaria à espreita? Afinal, tratava-se de um caçador.
Parecia programado para causar o máximo de dano. Provavelmente
correra para encontrar um espaço aberto onde teria espaço para
uma luta feroz, luta que os Guardiões estavam determinados a
conceder à criatura.
Em menos de um minuto, o monstro havia matado dois
Guardiões e recebera apenas um ferimento superficial. Diaz odiou a
si mesmo por ter ficado de fora do combate, em vez de ter seguido
seu instinto e lutado. O que o impedia de combater a criatura?
Medo? Ou seria algum vestígio de sua criação?
Minh se recuperou do tropeção e ativou o comunicador,
implorando a ajuda de mais Guardiões. As notícias do coronel
Green não eram nada boas. Três Ursas tinham sido avistados no
outro lado da cidade e um número desproporcional de Guardiões
fora redirecionado para lá. A impossibilidade de ver os Ursas o
tempo todo significava que os Guardiões precisavam se espalhar
pelo perímetro da cidade e pelo interior. Cada avistamento de Ursa
costumava vir acompanhado por relatos de Guardiões sendo mortos
ou mutilados, esgotando ainda mais os números de soldados. Minh
estar vivo até agora era um milagre.
Eles precisavam de um novo plano e Kevin Diaz estava sem
ideias.
Durante toda a sua vida ele se acostumara a atacar primeiro,
especialmente quando a atitude menos agressiva de seu irmão
falhava. Atacar primeiro, com força, e não dar chance para o inimigo
se recuperar. Ele usara essa estratégia em várias simulações e
sempre ficara satisfeito com o resultado.
Claramente aquela estratégia não estava funcionando na vida
real.
— O que faremos agora? — perguntou ele a Telgemeier, que
agora era o membro mais velho da equipe.
— Eu sei lá — respondeu ele, limpando o suor dos olhos. —
Seguir aquele maldito e matá-lo antes que ele pegue Minh. Ah, e
manter os cidadãos seguros.
— É uma tática meio simples, mas vai ter que servir — concordou
Diaz, soando um pouco entusiasmado demais para alguém que não
tinha conseguido muita ação durante a luta.
O som de caos e destruição pontuou a declaração do Guardião e
os dois olharam para cima, concluindo que a fera e seu colega
haviam chegado ao telhado.
— Ele provavelmente vai seguir Minh até o silo, já que está sem
comer há alguns... minutos — concluiu Kevin, sarcasticamente.
— Vamos ficar juntos.
— Isso não funcionou muito bem da última vez, e nós precisamos
continuar seguindo a criatura — respondeu Kevin, ignorando uma
ordem direta. Ele tinha que vingar alguns Guardiões e matar um
Ursa. De algum jeito.
— Minh, aqui é Kevin — chamou ele no comunicador. —
Mantenha o plano, leve o Ursa para o silo.
— É mais fácil falar do que fazer, mas vou dar um jeito —
respondeu Minh. — Desde quando você está no comando?
— Ninguém está no comando — rebateu ele. —Só estamos
seguindo ordens. Câmbio final.
Enquanto descia as escadas correndo, ele viu de relance os
cadáveres, os pedaços de Macionis, outrora uma companheira de
armas. Ele estava canalizando a fúria, tentando controlá-la e deixá-
la abastecer seus pensamentos no lugar do medo.
Dê a outra face.
A frase favorita de seus pais ecoou em sua mente, mas parecia
completamente inútil. Um Ursa simplesmente destruiria qualquer
face que visse.
— O maldito está no telhado comigo. Cadê vocês? — gritou Minh.
— Estamos chegando — respondeu Diaz, finalmente decidindo
tomar uma atitude, liderando Telgemeier no caminho para cima.
Quando chegaram ao telhado, viram que Minh decidira parar de
esperar e saltara para o próximo prédio, que tinha andaimes
montados para obras de manutenção. O Ursa não hesitou e saltou
atrás dele, mas não conseguiu alcançá-lo devido aos andaimes. Isto
deu ao Guardião tempo suficiente para chegar até a rua.
Diaz e Telgemeier não hesitaram. Voltaram correndo para o
prédio e desceram as escadas, torcendo para que Minh ainda
estivesse vivo quando chegassem.
O Guardião fora bem-sucedido, manobrando e correndo entre
estátuas, carros abandonados e até um poço. O Ursa simplesmente
seguia em linha reta, mas Minh ainda tinha a vantagem e conseguiu
entrar no silo sem problemas. Os outros seguiam logo atrás.
A noite começou a cobrir as ruas e as luzes automáticas se
acenderam, criando um novo padrão de sombras. O esquadrão
seguiu o mapa na tela e correu diretamente na direção do silo, que
era uma estrutura imensa. Os restos do cadáver de um jovem
marcava o caminho, mas os Guardiões não puderam parar para
examiná-lo. Um pouco mais à frente, estava o corpo de uma mulher.
Era difícil imaginar o que eles estavam fazendo do lado de fora, mas
claramente pagaram um preço muito alto por ignorarem as sirenes.
O fato de as vitimas não terem dado um grito de socorro o
incomodou, lembrando-o de como o Ursa podia ser furtivo.
O calor continuava a irradiar das ruas, apesar do ar refrescante, e
Kevin percebeu que não conseguiria sentir-se confortável.
Empunhando o alfanje, ele forçava seus pés a seguirem em frente,
sem deixar que Telgemeier se distanciasse demais.
Ele deu as costas para o casal, circulando lentamente a área,
procurando movimento. As ruas vazias se recusavam a revelar
qualquer coisa, e o ar estava parado. Dois cadáveres e ninguém
para velá-los. Isso seria um problema para depois. Ele se perguntou
quantos teriam sido mortos, quantos Guardiões tinham se
sacrificado protegendo a cidade. Eles tinham deixado duas pessoas
morrerem enquanto ele comia, e isso o incomodava profundamente.
Olhou para trás antes de seguir em frente.
Em cinco minutos eles perfizeram o perímetro do prédio sem
encontrar uma entrada óbvia. Havia bem pouco sangue, nada que
pudesse indicar que um Ursa estava lá.
Cansado, Diaz puxou a arma e entrou no silo. As luzes
automáticas se ativaram quando Minh entrou e ele pôde ver tonéis
com diferentes tipos de grãos, a maioria já processada. A entrada
levava a um armazém, que dava a Minh bastante espaço para se
esconder e confundir o Ursa. Telgemeier entrou também e Diaz se
posicionou na retaguarda. O estômago dele rugia, pedindo comida,
mas era preciso ignorá-lo e se concentrar em proteger as pessoas
que viviam na vizinhança. Isinbaeva deixou isso bem claro: proteger
as pessoas primeiro e matar o Ursa depois. Mas ele só conseguia
pensar nos corpos que ficaram para trás.
O primeiro som que ouviram foi o som de mastigação da criatura,
que havia parado para comer grãos crus. De alguma forma, ele
havia entrado no prédio e tinha parado para um lanche rápido antes
de matar Minh.
— Como aquela coisa pode ainda estar com fome? — perguntou
Telgemeier.
— Ele deve estar sem comer há muito tempo e agora está
armazenando energia. Nós não temos ideia do quanto eles
conseguem comer ou o quão rápido eles metabolizam a comida —
respondeu Diaz. — Além disso, se eles estão acostumados com
carne e sangue, grãos podem não ser o suficiente. Eles precisam de
um suprimento constante de combustível, como reatores.
— Eles vêm aqui há mais de meio século e nós ainda não
sabemos quase nada sobre eles, é isso?
— Eles estão sempre evoluindo —, lembrou Kevin. —Esses estão
por aqui há décadas, então sabe-se lá o quanto eles vivem ou como
eles se adaptaram ao ambiente.
— Obrigado, professor — falou Telgemeier, secamente.
Ele apontou para o interior do prédio, mostrando a trilha óbvia
deixada pelo Ursa. Era um caminho fácil de seguir.
— Tridentes, mas com quatro pontas — sussurrou ele. Os dois
ativaram a configuração e em segundos os dois alfanjes se
rearranjaram na forma de forcados. Quatro pontos de entrada eram
muito melhores do que três e poderiam causar muito mais dano.
Kevin respirou profundamente várias vezes, acalmando os
nervos, forçando-se na direção da fera.
De repente ele se viu liderando, com o outro Guardião ao lado.
Vários tipos de grãos que ele não conseguia identificar estavam
espalhados pelo chão. Canos, esteiras, fios, vários dispositivos
danificados tornavam a trilha fácil de seguir. Às vezes eles se
deparavam com alguns grãos ocres e amarelos sujos com o sangue
da criatura.
O que mais incomodava Kevin era o fato de não conseguir ouvir o
Ursa.
— Shhh! — disse Kevin. Ele escutou alguma coisa e parou,
esperando ouvir novamente. Sim, era isso, grãos sendo jogados e
remexidos por algo como uma monstruosidade de quatro patas.
Empunhando o alfanje, Kevin apontou na direção sudoeste. Seu
parceiro, banhado em suor, assentiu e seguiu em silêncio.
O Ursa não tinha se preocupado com camuflagem, simplesmente
abriu a tampa de um latão de grãos e começou a devorar o
conteúdo. A criatura brilhava, no que a luz refletia no metal
inteligente exposto, fundido ao couro endurecido, tornando-a um
alvo ideal. Diaz abriu os dedos da mão direita, sinalizando para que
Telgemeier se afastasse, contornando o enorme latão. Ele
permaneceu no mesmo lugar, com o alfanje energizado.
Minh ainda não estava visível e era arriscado demais usar o
rádio. Telgemeier seguiu pela direita, enquanto Diaz foi pela
esquerda e começou a escalar os outros latões, conseguindo uma
vantagem sobre a criatura, que parecia distraída. O jovem Guardião
estava na metade da escalada quando a criatura parou de comer e
levantou a cabeça. O Ursa farejou ou ouviu um deles. Kevin não
sabia ao certo como aquilo funcionava, mas o Ursa sabia que não
estava mais sozinho. Talvez tivesse farejado o rastro de Minh
novamente, ele pensou.
O Ursa saltou e disparou na direção do esconderijo de Minh. Diaz
e Telgemeier correram atrás dele, com os alfanjes em forma de
forcado preparados. Logo à frente, Diaz viu Minh em pânico,
escalando um dos latões, saltando para outro, tentando inutilmente
ser mais ágil do que a criatura. O Ursa estava se afastando da dupla
e chegando mais perto do alvo.
Minh tentou deter o salto do monstro com um golpe de alfanje,
mas o impulso da criatura era forte demais, e ele caiu sobre o
Guardião. O Ursa se levantou rapidamente, prendendo a vítima no
chão com as patas da frente. Minh gritou de dor e chutou com a
perna livre, mas a criatura se curvou e babou o líquido escuro
asqueroso em seu rosto, fazendo com que caísse em sua boca. Os
glóbulos negros queimaram e chiaram; era um ácido venenoso que
corroía a pele no primeiro contato.
Diaz sabia que Minh já estava morto, então esperou e observou
quando Telgemeier atirou o alfanje na criatura, torcendo para que a
inércia ajudasse a arma a se cravar na ameaça alienígena. O alfanje
perfurou a pele, mas não penetrou tão profundamente quanto
planejado. O Ursa ferido rosnou e virou-se para Telgemeier, que
agora estava desarmado. O fato de o monstro ter abandonado Minh
significava que ele estava morto.
O Ursa não estava suficientemente ferido para que seu ataque
contra Telgemeier fosse menos furioso. O Guardião estava gritando
algum xingamento até ser interrompidoao ter sua cabeça separada
do corpo com uma patada.
Com um novo rugido, o Ursa saltou para longe, passando de um
latão para o outro até os fundos do estoque. Diaz se assustou ao
avaliar o quão mais perigoso seria um Ursa ferido.
O Guardião novato ofegava, com o coração acelerado e o sangue
correndo com tanta força que dificultava sua audição. Sua equipe
fora dizimada facilmente e ele era o último sobrevivente. Não sabia
se novos reforços chegariam, mas sabia que teria que conter o
Ursa, para que não escapasse e ferisse mais inocentes. Ele poderia
morrer no processo... não, ele estava só se enganando. É claro que
morreria. Tinha que admitir que estava apenas atrasando a criatura
até chegarem reforços.
O Ursa certamente tinha algo em comum com os seres vivos de
Nova Prime: um animal ferido é um animal perigoso. Eles o haviam
machucado o suficiente para que sentisse dor. Quando o monstro
conseguisse controlar essa dor, provavelmente iria tentar se vingar.
Diaz precisava se esconder.
Ele se afastou cuidadosamente dos corpos e dos grãos
espalhados, procurando refúgio. Com passos lentos e calculados,
passou pelos enormes depósitos de grãos ainda não processados.
Estudou a área e viu um armário de manutenção. Tinha uma porta
de metal pesada e talvez fosse seguro até que a ajuda chegasse.
Não era um ato de covardia, mas de esperteza. Manter-se vivo até
que as chances estivessem a favor dele. Naquele momento, Diaz
era apenas comida de Ursa e isso não ajudava em nada.
Diaz não conseguia ouvir o Ursa e sabia que abrir a porta poderia
delatar sua posição, mas estava tão cansado e desgastado que
valia o risco. Por sorte, a manutenção da porta estava em dia e ela
não fez barulho ao se abrir. Porém, a tranca fez. Mas ele já estava
no interior. Estava seguro.
Só então Diaz conseguiu pensar nos eventos que transcorreram
nas últimas horas. Lágrimas escorreram pelo seu rosto e seu corpo
tremeu convulsivamente. Todo o treinamento do mundo não poderia
tê-lo preparado para aquilo. O Ursa era o tema de pesadelos,
histórias de crianças e filmes de terror para as massas. É claro que
todos sabiam que eles estavam lá fora, em algum lugar. Isso dava
às histórias mais senso de perigo.
Mas aqui, na cidade, matando abertamente? Isso era além do
imaginável.
Ele ia morrer e seus pais ficariam tão desapontados. Seus
pensamentos começaram a passar da luta para momentos mais
alegres. Kevin de repente estava relembrando a juventude, quando
a família se reunia para praticar meditação, em busca de
tranquilidade. As vozes de seu pai e de sua mãe soaram em sua
mente. A certeza de sua filosofia, a sensação de calma completa
que os cercava. Eram dias felizes, concluiu ele, aqueles partilhados
com toda a família. Tios, tias e primos, todos juntos em feriados e
aniversários. Ninguém brigava, ninguém discutia e a felicidade era
palpável. Os anciões explicavam a longa vida que tinham pelo jeito
simples do seu viver. Diaz queria muito ter uma longa vida no futuro,
mas agora isso parecia pouco provável.
Diaz continuou a permitir que sua mente fosse levada pelos anos,
antes do dia em que Luis o defendera. Ele se lembrou das lições
que o pai e a mãe repetiam a cada oportunidade. Frases simples,
exercícios simples, vida simples.
Em poucos momentos, Diaz se deu conta de que sua respiração
estava lenta e profunda. Ele estava praticando por condicionamento
a respiração controlada que fora parte de seu treinamento naquela
época. A infinidade de imagens horríveis que preenchia sua mente
sumiu, sendo substituída por dias felizes. Ele sentiu um sorriso e as
lágrimas secando no rosto. Concentrou-se nas faces dos pais,
brincando com seu irmão, como um símbolo da vida que Kevin
tentava preservar tão desesperadamente.
Uma onda de tranquilidade inundou Diaz, levando embora a
fadiga, a fome e a dor emocional que sentira nas últimas horas.
Apesar de ouvir o Ursa se movendo por perto, procurando-o, Diaz
se deu conta de que as lições tinham valor. Elas o renovaram, lhe
deram foco. Este era o lugar dele na ordem natural da vida e Diaz
se sentiu recomposto. Em paz. Se fosse morrer neste instante,
morreria sabendo que tentou dar o melhor que podia, honrando a
vida. Talvez não do mesmo modo que seus pais e seus ancestrais,
mas amando a vida em toda a sua intensidade.
Sem se dar conta, Kevin Diaz saiu do armário, caminhando
lentamente na direção da máquina de destruição. A criatura não o
ouviu, não o percebeu. O Ursa parecia nem ouvir o alfanje
energizado em forma de forcado.
Diaz ficou parado, estudando os movimentos da criatura com
olhar renovado. Ela se movia mais devagar, com um membro
definitivamente fora de sincronia com o resto do corpo. Aquele era
seu alvo, o ponto fraco que o Guardião estava procurando para
terminar o trabalho de seus companheiros.
Passo a passo, Diaz se aproximou. O Ursa continuou sem
percebê-lo. Por sua vez, o Guardião não sentia medo. Estava
supremamente confiante de que terminaria a missão. Morto ou vivo,
ele era parte de Nova Prime e Nova Prime era parte dele.
Abriu um sorriso alegre. Com um sentimento bobo de felicidade,
Diaz preparou o golpe, plantando firmemente os pés. Não havia
nenhum medo, nada em que os supersentidos do Ursa pudessem
se fixar. Ele estava efetivamente cegando-o, contanto que
mantivesse a calma e o autocontrole. Isso lhe daria uma vantagem
na batalha.
Então, com um golpe perfeito, Diaz atingiu o monstro distraído,
cortando as juntas enfraquecidas com as pontas do alfanje. A arma
perfurou profundamente, atravessando o que quer que servisse de
músculo, veias e tecido conjuntivo da criatura. A arma atingiu o osso
e Diaz a girou para causar o máximo de dano possível. Os braços e
pernas da criatura sacudiram para todos os lados. Um deles o
atingiu e o arremessou contra um contêiner metálico. A junta do
contêiner se rompeu, deixando escorrer uma onda de sementes
amareladas. Diaz sentiu dor com o impacto, mas se levantou
rapidamente e se equilibrou, esmigalhando sementes a cada passo.
Então ele avançou e atacou outra vez. Novamente, o alfanje
perfurou profundamente. Um líquido negro escorreu dos vários
ferimentos do Ursa. Com uma satisfação bizarra, o Guardião deu
três passos para trás, e sementes estouravam sob suas botas.
Diaz observou o Ursa se contorcendo de dor, e ignorou o rugido
sinistro da criatura. Em vez disso, reconfigurou sua incrível arma em
forma de lança. Posicionou os pés e, com as duas mãos, esperou
até que a criatura se virasse, com a boca aberta. O alfanje entrou
diretamente pelo palato, queimando quaisquer órgãos internos que
a criatura tivesse, e o cérebro.
Em sua convulsão de morte final, a criatura acertou Diaz
novamente, jogando-o para longe. A queda tirou o ar do Guardião.
Mais uma vez, ele se levantou e se afastou enquanto observava os
membros da criatura se movendo cada vez mais devagar, até
pararem de vez. O Ursa caiu para a frente, sobre um monte de
sementes que poderia mantê-lo saciado por dias. As sementes
continuaram vazando do contêiner, enterrando a criatura.
Após a morte da grande fera, Diaz suspirou e sentou-se ao lado
dela.
Foi exatamente lá que os Guardiões o encontraram, pouco
menos de uma hora depois. Foi levado para o hospital mais
próximo, onde os médicos o examinaram, deram soro e concluíram
que ele estava exausto e possivelmente em choque por causa da
batalha, mas basicamente intacto.
Diaz foi liberado na manhã seguinte e levado para o quartel
general dos Guardiões por uma espécie de guarda de honra. Todos
queriam ouvir a história de como ele conseguiu matar a criatura,
mas Diaz queria contá-la só uma vez. Ele esperou para falar
diretamente ao comandante. A história foi gravada como
testemunho, onde ele calmamente respondeu várias perguntas
enquanto seu alfanje era estudado, com a telemetria sendo usada
para corroborar o relato. Não que duvidassem dele.
Ele não era o primeiro Guardião a matar um Ursa sozinho.
Porém, isso era um feito muito raro. Realmente lendário.
Uma semana depois, após descansar e retornar ao trabalho,
houve uma cerimônia para honrar seu feito. A medalha que recebeu
reluzia na luz dos sóis da manhã, na frente de dezenas de
Guardiões. Na multidão, ele viu Katya, que parecia genuinamente
feliz em vê-lo. O enterro dos outros já havia ocorrido: Tanger,
Macionis, Varley, Telgemeier e Minh. E ele chorou em todos eles.
Mas esse era um momento de celebração para os Guardiões.
Pelo menos mais dois Ursas haviam morrido, reduzindo a população
deles em Nova Prime.
Ele não esperava que seus pais estivessem lá, ainda em protesto
por sua escolha de carreira, mas isso não o deixava mais triste. Eles
fizeram o trabalho deles, ele fez as escolhas dele e de alguma
forma, conseguira unir os dois e isso o ajudara a sobreviver à
provação. Por tudo isso, ele estava contente.
Kevin Diaz ouviu enquanto o comandante Isinbaeva relatava sua
história e depois, apertou a mão dele. Momentos depois, Cypher
Raige, o Fantasma Original em pessoa, lhe entregou a medalha.
Pouco depois de terminar seu relatório, as ações dele foram
consideradas como habilidades de Fantasma, o que ele negou. Mas
era certo que sua ausência completa de medo permitiu que se
tornasse invisível ao Ursa. De fato, ele era um Fantasma. O tipo
mais raro de Guardião.
— Parabéns — disse Raige. — Bem-vindo ao clube. — Diaz
havia ouvido pouco antes que um civil havia conseguido fazê-lo
também. Talvez houvesse esperança, afinal, de desafiar e erradicar
as criaturas.
Ele apertou a mão de Raige e se virou para a plateia para receber
os aplausos. Na lateral, mais ou menos no meio do público, Diaz
enxergou Luis e logo depois, seus pais. O aplauso deles pareceu o
mais intenso de todos.
Kevin Diaz estava em paz.

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