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VOLUME 09: ADOLESCÊNCIA - O ARCO DA UNIVERSIDADE

(PARTE 2)

Índice
Ilustração de Capa
Ilustrações Coloridas
Créditos Tradução
Capítulo 01: O Segredo do Prodígio (Parte 01)
Capítulo 02: O Segredo do Prodígio (Parte 02)
História Paralela: Sylphiette (Parte 03)
Capítulo 03: O Noivo Insensível (Parte 01)
Capítulo 04: O Noivo Insensível (Parte 02)
Capítulo 05: A Máscara Branca (Parte 01)
Capítulo 06: A Máscara Branca (Parte 02)
História Paralela: Sylphiette (Parte 04)
Capítulo 07: Um Dia na Universidade de Magia
Capítulo 08: Sem Noção, Mas Perceptivo
Capítulo 09: Chuva na Floresta (Parte 01)
Capítulo 10: Chuva na Floresta (Parte 02)
Capítulo 11: O Empurrão Final
História Paralela: Sylphiette (Parte 00)
Capítulo Extra: A Ira do Cão Louco
Ilustração de Capa
Ilustrações Coloridas
MUSHOKU TENSEI
- Isekai Ittara Honki Dasu - Vol. 09

Rifujin na Magonote
Ilustrações por Shirotaka

Tradução para o Português Brasileiro por Tsundoku Traduções1.

Retirado do site:

“A Tsundoku Traduções é um site voltado à tradução e


publicação de Light Novels, Web Novels e Mangás para o português
brasileiro.

Surgimos em uma noite, quando certo alguém foi beber cerveja e


acidentalmente comprou um site, mas só apareceu para explicar a
situação dois dias depois. Com boa parte dos envolvidos sendo
conhecidos de longa data, buscamos criar um ambiente amistoso e
divertido onde, sem qualquer cobrança ou compromisso
estabelecido, divertimo-nos com a tradução e edição daquilo que
nos atrai, e justamente por ser algo de nosso gosto, atestamos a
plena qualidade de tudo que é aqui encontrado. Com plena
confiança nas habilidades de cada um de nossos membros,
focamos em obras que saem um pouco daquele clichê
extremamente batido, e às vezes não, cumprindo com nosso
objetivo, já que “Tsundoku” é a prática de acumular livros que
queremos ler e talvez não cheguemos a ler, e pretendemos oferecer
uma ampla gama de materiais para todos os públicos, desde que
adequem-se àquilo que é mais importante: nosso gosto.

Se tiver interesse em saber como nos apoiar nesta jornada,


sempre mantendo um alto nível de qualidade e uma boa frequência,
basta acessar Formas de Apoio.”

Como informado no link anterior, site do Padrim do grupo: Padrim


Tsundoku.
Capítulo 01:
O Segredo do Prodígio (Parte 01)
Cliff Grimoire, o neto do Papa reinante da Igreja Millis, era um
jovem prodígio com um talento especial para a magia. Infelizmente,
ele também era temperamental, egoísta e um fanfarrão pomposo.
Como resultado, não tinha nenhum amigo. Atualmente tinha
dezesseis anos; em outras palavras, atingiu a maioridade há pouco
mais de um ano. Mas ninguém apareceu para comemorar esse
marco com ele.

Ainda assim, o jovem tinha suas virtudes. Apesar de seus


discursos arrogantes, trabalhava duro para alcançar o sucesso, em
vez de confiar apenas em seus talentos naturais. Havia alguns, pelo
menos, que perceberam e o respeitavam por isso.

Cliff foi para a Universidade de Magia de Ranoa por um motivo


simples: se envolveu em uma horrenda luta pelo poder em sua
casa. Após a tentativa de assassinato de uma Criança Abençoada
perto da cidade de Millishion, há vários anos, um conflito interno da
Igreja Millis havia se tornado cada vez mais intenso e violento. O
avô de Cliff, que por acaso era o Papa, o mandou para o outro lado
do mundo para a sua própria segurança.

O garoto se lembrava perfeitamente das palavras de despedida


de seu avô: “Você tem potencial para algum dia ser um grande
homem, Cliff. Não se deixe levar; conheça suas falhas e trabalhe
para saná-las.”

O jovem sabia bem que muito se esperava dele. E, na época,


achava isso razoável. Afinal, ele era um prodígio. Talvez não tão
talentoso quanto a jovem e brilhante espadachim Eris, que ele vira
derrotando um grupo de assassinos treinados em um piscar de
olhos; mas, ainda assim, um prodígio. Ele sempre acreditou que
possuía dons especiais.

O Reino de Ranoa, que Cliff alcançou após uma longa e difícil


jornada, provou ser uma terra severa. A comida não era do seu
gosto, o clima era rigoroso e muitos dos habitantes locais se
comportavam de maneiras que considerava estranhas e
desagradáveis.

Ainda assim, ele acreditava que seu talento ajudaria a superar


qualquer desafio. Ele era um Aluno Especial, neto do papa e o
homem que um dia assumiria toda a Igreja Millis; isso com certeza
indicava que estava acima dos demais.

Para a surpresa de Cliff, entretanto, foi envergonhado em duas


ocasiões no seu primeiro ano na Universidade.

A primeira humilhação chegou pelas mãos de um jovem


chamado Zanoba Shirone. Tratava-se de uma Criança Abençoada,
agraciada com certos dons divinos desde o nascimento. Ele era um
indivíduo um tanto instável, sim. Mas sua força física era
genuinamente surpreendente. Certa vez, Cliff vira Zanoba agarrar
um homem com três vezes seu peso pela cabeça, erguê-lo do chão
e jogá-lo para o lado sem esforço.

Apesar de suas temíveis capacidades, o homem se matriculou na


Universidade de Magia, onde estudou feitiçaria como qualquer
outro. Pelos padrões de Cliff, seu progresso era dolorosamente
lento, mas não era como se uma Criança Abençoada precisasse
muito de magia. Na verdade, alguns estudiosos teorizavam que a
magia era originalmente desenvolvida pelos antigos como um meio
de ajudar as pessoas comuns a imitar os poderes divinos. E, é claro,
uma Criança Abençoada era uma manifestação humana desses
mesmos poderes. Quase não havia razão para um dos eleitos de
Deus brincar com o lançamento de feitiços.

Eventualmente, Cliff abordou Zanoba e pressionou-o por uma


explicação.

— Por que você está se preocupando em aprender magia,


Zanoba?

— Isso é bastante simples — respondeu o jovem. — Estou


perseguindo uma meta que significa tudo para mim.

Pegando uma caixa que carregava consigo, Zanoba pegou uma


única estatueta… sobre a qual começou a falar sem parar. A maior
parte desse monólogo não significava nada para Cliff, mas estava
claro que Zanoba não tinha nada além de elogios pela qualidade do
design e da fabricação da pequena estatueta.

— Desejo me tornar aprendiz do homem que fez esta estatueta e


espalhar estatuetas tão maravilhosas assim por todo o mundo. Para
que isso aconteça, vou ter que aprender a fazer estatuetas sozinho!
Antes de me reunir com o meu mestre, devo dominar ao menos os
feitiços básicos necessários a esse propósito. Eu sentiria vergonha
ao encará-lo de alguma outra forma! E, claro, morro de vontade de
criar algumas estatuetas com as minhas próprias mãos.

O homem tinha um sonho. Isso era algo que faltava ao próprio


Cliff. Ele havia desistido de seu próprio sonho há algum tempo.
Dada sua posição no mundo, não havia outra escolha a não ser
fazer isso. Mesmo assim… Zanoba era também uma pessoa de
certa importância. Como uma Criança Abençoada, carregava as
esperanças de seus compatriotas em seus ombros. Depois que ele
voltasse para Shirone, certamente não teria nenhuma liberdade real
para escolher seu próprio caminho na vida. E, ainda assim, se
agarrava a um fio de esperança – planejando de acordo com a
possibilidade de que algum dia poderia ser livre. Se ele tivesse a
chance, não hesitaria em escolher o seu próprio destino.

De qualquer forma, foram essas as impressões de Cliffe. Elas


eram baseadas em suposições que não eram totalmente precisas.
Ele não sabia nada sobre os eventos que aconteceram em Shirone,
ou sobre a posição real de Zanoba por lá. Ainda assim, sua
interpretação deixou uma profunda impressão. Ele se viu olhando
para Zanoba com verdadeiro respeito – até mesmo admiração.

— Afinal, quem é esse “mestre” de que você vive falando?

— Ele é um mago conhecido como Rudeus Greyrat.

Cliff ficou sem palavras. Rudeus Greyrat. Era um nome que ele
jogou em um canto sombrio da sua mente, desde aquele dia em que
foi rejeitado por Eris. Nunca poderia esperar ouvir isso novamente
em um lugar desses, dito por um homem que acabara por respeitar.

Foi um golpe duro em seu ego.

A segunda humilhação de Cliff chegou pelas mãos de duas


alunas mais velhas.
Como era de se esperar, ele acreditava ser o mago mais
poderoso matriculado na Universidade. Existiam muitas pessoas
que poderiam superá-lo em uma luta de curta distância, é claro, mas
ele, no mínimo, se considerava bem superior como mago. Afinal, era
um verdadeiro prodígio, enquanto os outros eram simples
estudantes. Mesmo os professores muitas vezes não eram páreo
para suas habilidades. Em suma, se considerava basicamente
invencível.

Levou dois meses para ser rudemente desiludido desta noção.


Sua derrota chegou pelas mãos de duas garotas do povo fera,
consideradas algumas das estudantes mais fortes da Universidade.
Seus nomes eram Linia e Pursena.

Era meio difícil dizer exatamente quem foi que começou com a
briga. Cliff era um jovem de língua afiada, e falou com elas com
clara arrogância. Naquela época Linia e Pursena estavam menos
agressivas que o normal, mas ainda não se dispunham a deixar um
primeiranista falar de um jeito desses com elas. Cliff não lembrava
direito nem do que disse para provocá-las. Mas lembrava muito bem
da luta em si. Ele tentou lançar um feitiço de nível Avançado;
Pursena disparou uma magia de nível Iniciante bem rápido,
interrompendo seu encantamento e restringindo os seus
movimentos. Linia então se aproximou e bateu nele até dizer chega.

Logo após essa derrota pública, Cliff retirou-se para seu quarto
para chorar sozinho. Ele disse a si mesmo que a luta não foi justa.
Afinal, esteve em desvantagem numérica. Não tinha realmente
perdido.
Mas alguns dias depois, soube que outro estudante chamado Fitz
havia derrotado Linia e Pursena em um instante. E essa notícia foi
um verdadeiro choque.

Sempre havia alguém melhor em algum lugar. Por mais óbvio


que possa parecer, até o momento Cliff ainda não havia aprendido
essa lição. O fato de que conhecia tantas magias de nível Avançado
não o tornava, só por isso, poderoso em combate. Isso também era
algo que ele havia acabado de começar a entender.

E passou por muitas dificuldades para encarar isso. No entanto,


a partir daquele dia, redobrou os seus esforços para melhorar a si
mesmo. Ele era orgulhoso demais para aprender com os seus
professores, que dirá com os outros alunos. Em vez disso, tentou
encontrar seus próprios meios para se melhorar. Foi complicado,
mas continuou, em uma constante e obstinada busca para eliminar
suas fraquezas.

Com o tempo, porém, chegou ao seu segundo ano na


Universidade… e recebeu mais uma sucessão de choques.

O primeiro choque foi a matrícula de Rudeus Greyrat.

O garoto vestia um robe cinza surrado e a incerteza em seu rosto


gritava que lhe faltava confiança. Ele era servil e submisso a todos
que encontrava, colocando-se para baixo em todas as
oportunidades; e também costumava olhar com malícia para todas
as mulheres próximas. Não havia nada de viril ou atraente nele.

Em outras palavras, era virtualmente o oposto do que Cliff


imaginara quando ouviu Eris e Zanoba falarem de “Rudeus”. Aquele
era mesmo ele? Não poderia ser uma outra pessoa com o mesmo
nome? Parecia ser algo bem possível.

Mas Zanoba reconheceu Rudeus como seu “mestre”, e o garoto


lembrava muito bem do que Eris falara. E assim, Cliff concluiu que
ele só podia ser uma fraude. De alguma forma, tinha enganado
Zanoba e Eris com um monte de mentiras e alguns truques
desonestos.

E as evidências pareciam apoiar essa teoria. Quando desafiado


por Linia e Pursena, o garoto instantaneamente se curvou e se
rebaixou para evitar um conflito. Se fosse um mago poderoso de
verdade, com certeza não teria hesitado em colocá-las em seus
lugares.

Assim sendo, Cliff concluiu que Rudeus seria muito em breve


exposto como uma enorme fraude. Linia e Pursena eram lutadoras
temíveis, e Zanoba era um jovem diligente com poderes divinos à
sua disposição.

Blefes e trapaças só poderiam levar uma pessoa até uma certa


altura em um ambiente como este. Corriam boatos de que Rudeus
havia derrotado Fitz. Mas isso provavelmente era algum tipo de mal-
entendido ou alguma mentira que o próprio Rudeus havia
espalhado. Se ele tivesse de alguma forma ganhado, devia ter
recorrido a algum truque sujo. Cliff se sentia bem confiante disso.

No entanto, Rudeus logo demonstrou que suas habilidades eram


reais. Ele podia lançar magias não verbais livremente. Em algum
momento, tornou Linia e Pursena em suas subordinadas leais e, de
alguma forma, ganhou ainda mais admiração de Zanoba. Até Fitz
parecia reconhecer suas habilidades: logo foram vistos estudando
juntos na biblioteca todos os dias. E apesar das habilidades óbvias
de Rudeus, Cliff o tinha visto frequentando aulas – palestras sobre
feitiços Divinos e de Barreira básicos. Ele não tinha nenhuma
necessidade real para aprender esse tipo de magia básica, com
certeza, mas parecia ter uma fome inata por todo tipo de
conhecimento.

Rudeus Greyrat era tão dedicado quanto Cliff, e


consideravelmente mais talentoso. Mais importante ainda, suas
realizações também eram muito mais impressionantes.

Isso normalmente seria muito doloroso para Cliff admitir. Mas, por
alguma razão, logo se viu capaz de aceitar os fatos. Talvez fosse
por já conhecer Zanoba e por ter sido derrotado por Linia e Pursena.
Podia admitir, pelo menos para si mesmo, que este Rudeus estava
destinado a coisas maiores do que ele.

Isso não significava que gostasse do garoto, é claro. Esse era um


assunto bem diferente.

O choque seguinte e final foi de natureza um tanto diferente.

Atingiu Cliff durante uma noite, sem qualquer aviso, quando


estava voltando para o dormitório e olhou para cima.

Se viu olhando para uma deusa. Ela estava encostada no


parapeito de uma janela com uma expressão apática, deixando seu
luxuriante cabelo dourado esvoaçar com a brisa. O sol poente
lançava um brilho vermelho em seu rosto bem simétrico.
Cliff ficou instantaneamente apaixonado. Ele se apaixonou à
primeira vista. Sempre fora atraído por esse tipo de beleza. Em seus
dias de infância, quando sonhava em viver como um aventureiro,
também se imaginava casando com uma mulher linda. Na verdade,
uma grande parte do motivo pelo qual Cliff desenvolveu tanto
interesse por aventuras era uma jovem Curandeira que às vezes
visitava o orfanato onde ele cresceu.

A mulher na janela de repente olhou em sua direção.

Com um sorrisinho, ela acenou com a mão.

Foi tudo tão… pitoresco. Tão perfeito. Cliff ficou profundamente


comovido.

Eu nasci para me encontrar com essa mulher, pensou. E ela


nasceu para me encontrar. Naquele instante, seu primeiro amor,
Eris, foi rebaixada ao status de uma conhecida em sua mente.

Ponto de Vista do Rudeus

Chegou a hora da minha aparição mensal na sala de aula. Eu


estava sentado à minha mesa, cercado por Zanoba, Julie, Linia e
Pursena. Era bom às vezes estar no centro do meu grupinho.

Como de costume, Linia estava recostada na cadeira com os pés


sobre a mesa, exibindo as coxas bem torneadas sem o menor sinal
de vergonha. Outra boa vantagem da minha nova posição era poder
vê-las de perto e pessoalmente em uma base regular.

— Você nunca para de olhar para as minhas pernas, Chefe —


disse Linia com um sorriso provocador. — Heheh. Acho que seu
coração pende um pouco para a promiscuidade, hein? Mas não
posso te culpar. Sou criminalmente sensual… Ehehehe. Pode ir em
frente, pode dar uma espiada aqui dentro… Myaaah! Tire a sua mão
daí!

Passei a mão por baixo de sua saia sem qualquer hesitação ou


constrangimento. Mas tatear as suas coxas só me fez sentir um
vazio profundo. Nada torna um homem mais infeliz do que sua libido
baixa.

— Mew?! Não fique todo desapontado! Foi você quem decidiu


me apalpar! Afinal de contas, o que é que há de tão ruim nas
minhas pernas?!

Para ser bem honesto, ultimamente tenho sentido mais prazer ao


tocar suas orelhas ou cauda. Acariciar algo peludo assim era ao
menos relaxante.

— Linia, você é uma grande idiota — murmurou Pursena,


mastigando uma coisa maior do que as minhas mãos. Aquela garota
parecia nunca parar de comer carne. Às vezes era seca, às vezes
grelhada, às vezes crua, mas sempre estava comendo ela de algum
jeito. Era uma garota durona e de cabeça fria, mas se balançasse
um pouco de carne na sua direção, trotaria na direção da pessoa
com o rabo abanando sem parar. Seu pelo era mais macio que o de
Linia e muito gostoso de acariciar. Mas, ao contrário de Linia, não
me deixava acariciá-la, a menos que eu primeiro oferecesse um
pouco de comida.

Por outro lado, se eu mostrasse um pouco de carne, ela me


deixaria fazer basicamente qualquer coisa que quisesse. A garota
parecia ter alguns pontos de vista bem antiquados a respeito de
castidade, mas eu estava um pouco preocupado com a
possibilidade de alguém tirar vantagem dela.

— Hmm… Mestre, olhe aqui — disse Zanoba. — Eu deixei o


ângulo deste tornozelo ruim, não é?

— Deixe-me consertar isso para você, senhor — ofereceu Julie,


olhando para a estatueta.

— Eu preferia que você me chamasse de Mestre, Julie. Também


lembre-se de chamar Rudeus de Grão-Mestre.

— Certo, Mestre.

Nosso príncipe residente parecia estar mais ou menos como


sempre. Ainda assim, parecia que tinha caído para o fundo da
hierarquia de nosso pequeno grupo. Ele acompanhou minha luta
com Linia e Pursena, mas eu basicamente acabei derrotando-as
sozinho. Linia demonstrava desdém ao compará-lo com uma hiena
se esgueirando na sombra de um leão.

De sua parte, porém, Zanoba parecia mais preocupado com seu


status como meu “primeiro aluno”. Claro, ele era tecnicamente a
quarta pessoa que eu ensinava, depois de Sylphie, Eris e Ghislaine.
Com Ghislaine, houve uma troca mútua de informações, então
provavelmente poderia retirá-la da lista… mas isso ainda deixaria
Zanoba no número três.

Quando mencionei isso, porém, ele pareceu tão inconsolável que


me arrependi na mesma hora. Para aliviar um pouco o golpe, disse
que ele era o meu primeiro aluno no ofício das estatuetas.
Julie, minha segunda aluna neste ofício, sempre ouvia as
enormes palestras de Zanoba sobre sua amada estatueta de Roxy
atentamente. Ele comunicava com suficiente paixão para que ela
entendesse o que estava sendo dito; percebi o crescente interesse
da garota em fazer estatuetas por conta própria. Ainda assim,
demoraria algum tempo até que ela pudesse discutir os pontos mais
delicados do design e da técnica da maneira que Zanoba e eu
discutíamos.

Porém, sendo tão importante quanto isso, ela começou a dar


seus primeiros passos desajeitados nos feitiços não verbais. Mestre
Fitz acertou em cheio quando sugeriu que aprender magia desde
cedo era a melhor maneira de dominar essa habilidade.

— Não pude fazer isso, Grão-Mestre…

— Tudo bem.

Apesar de todo o progresso de Julie, ela ainda era jovem e


cometia muitos erros. Desta vez, as pernas da estatueta estavam
inchadas como balões de água. Ela não tinha o controle necessário
para usar a magia da Terra com precisão em uma escala tão
pequena. Nunca fiquei bravo ou frustrado com ela, é claro. A
encorajava a continuar tentando, dizendo para não se preocupar
com os erros. O sucesso nunca chega fácil, e desistir após um único
fracasso é o caminho mais curto para se tornar um perdedor recluso
e mal-humorado.

— Acho que você ainda não está pronta para consertar os


bonecos, hein?

— Sinto muito…
Não importa com quanta gentileza eu falava com Julie, ela
sempre revelava medo no olhar ao me encarar. Pelo visto, eu a
intimidava.

— Meeeew… Tanto sono…

— Sim. Está ficando mais quente e tal.

— Ei, Chefe. Temos um ótimo local para cochilar de dia, sabia?


Que tal se depois te mostrarmos?
— Hmm? Posso fazer coisas pervertidas com você enquanto
você dorme, Linia?

— Você já pensou em qualquer coisa além de sexo, Chefe…?

— Não fale besteira. As estatuetas estão sempre em primeiro


lugar nos pensamentos do mestre.

— Ah, Zanoba, baixa a bola. Ninguém falou com você.

— Mas eu…

— Coloque uma meia na boca. Que tal você ir comprar carne pra
gente?

— Não falta muito para o professor chegar, mew.

— Então acho que é melhor ele andar logo.

— Mestre Zanoba, posso ir no seu lugar…

— Não vou deixar que uma garotinha como você faça essas
coisas. Por que não vou no seu lugar?

— Mew? Não seja ridículo, Chefe! Prefiro ir eu mesma!

— Ah, é? Bem, então pode ir.

— Meow?!

Nós cinco estávamos conversando bem alto. Imagino se isso era


muito irritante; afinal, não éramos as únicas pessoas na sala. Havia
um outro aluno na sala de aula. Ou seja, Cliff Grimoire, que estava
estudando sozinho durante toda a nossa conversa.
Ele, de repente, se levantou e virou em nossa direção, seus
ombros tremiam de fúria.

— Vocês podem, por favor, calar a boca?! Eu não consigo me


concentrar! Se vão ficar só brincando, então vão fazer isso em outro
lugar!

Fechei a minha boca na mesma hora. Zanoba também parou de


tagarelar e voltou a instruir Julie em silêncio.

Nossas duas ex-delinquentes, entretanto, optaram por interpretar


a explosão de Cliff como um desafio.

— Com quem você pensa que está falando desse jeito, criança?

— De agora em diante, seu dinheiro é para a minha carne!

Podia se esperar que elas hesitassem um pouco mais para


começar uma briga, já que as derrotei de forma sólida. Mas ouvi que
brigaram com Cliff logo após ele se matricular, e o derrotaram com
facilidade; depois disso, o garoto se dedicou de todo o coração aos
estudos.

Eu tinha que admirar um cara que usava seus contratempos


como motivação. Assediar um aluno tão diligente não seria correto.

— Sinto muito por isso, Cliff — falei, interrompendo. — Não quis


atrapalhar os seus estudos. De agora em diante vamos fazer
silêncio. Vamos lá, vocês duas. Silêncio. Silêncio!

— Se diz, Chefe, mew…

— Porra…
Linia e Pursena voltaram aos seus lugares, parecendo bastante
mal-humoradas.

— Hmph — bufou Cliff. — Bem, era isso que eu queria. Sério,


vocês são ridículos… Não posso acreditar que você carregou o
Zanoba para esse absurdo.

Linia e Pursena estalaram as línguas, claramente irritadas. Ainda


assim, eu não via motivo para mexer com alguém que estava
trabalhando tão duro para progredir na vida. Também não me
considerava nenhum preguiçoso, mas Cliff e eu estávamos
claramente seguindo por caminhos bem diferentes. Nunca seríamos
nada mais do que conhecidos.

Ou, ao menos, foi o que pensei na época.

✦✦✦✦✦✦✦

Uma semana depois, eu estava pesquisando sobre teletransporte


com o Mestre Fitz em uma de nossas sessões regulares na
biblioteca.

Nos últimos tempos, comecei a entender que o teletransporte


tinha certas semelhanças com magia de Invocação. Os círculos
mágicos utilizados eram muito parecidos e a cor da energia mágica
que liberavam quando ativados era quase idêntica.

Entretanto, seus aspectos eram completamente diferentes. Era


impossível invocar um ser humano. Simplesmente não havia
maneira conhecida de fazer isso, mesmo com as técnicas mais
avançadas e complexas. Era possível invocar diabos, espíritos e até
plantas, sim. Mas não uma pessoa. Vasculhei por incontáveis
registros, mitos e histórias antigas sem encontrar uma única
referência a alguém invocando uma pessoa. Havia muitas raças
neste mundo, incluindo as várias tribos da raça dos demônios, mas
essa regra parecia se aplicar igualmente a todos.

Isso não tinha nenhuma relevância direta para o que queríamos


saber, é claro. Talvez não fosse algo significativo. Mas havia algo
nisso que me incomodava. Não era possível invocar uma pessoa de
carne e osso. Muito justo. Mas e a sua alma?

Não expressei esses pensamentos, mas os arquivei em silêncio.


Se algum dia encontrasse um verdadeiro especialista no assunto,
teria que perguntar sobre a possibilidade de invocar o espírito de um
homem morto de outro mundo.

— Mestre Fitz, você poderia tentar descobrir se há algum


professor que saiba muito sobre Invocação para mim?

— Hã? Bem, claro. Mas não ensinam isso aqui, sabe? Nada fora
Encantamento, acho. Não tenho certeza se encontraremos alguém
que saiba sobre o tipo de coisa que estamos pesquisando…

Pensando bem, percebi uma nítida falta de aulas de Invocação


na lista de cursos oferecidos… embora Encantamento fosse
tecnicamente uma subcategoria disso, pelo que parecia. Eu tinha
lido algo sobre isso em um dos meus livros?

— Bem, não custa nada dar ao menos uma olhada e ver o que
consegue encontrar.

Para ser honesto, no momento, uma sementinha de incerteza


estava brotando dentro de mim. Mas não deixei isso transparecer, é
claro. Eu provavelmente estava enganado. O Incidente de
Deslocamento ocorreu quando eu tinha dez anos – uma década
inteira depois de reencarnar neste mundo. Essas duas coisas não
podiam estar conectadas, certo? Afinal, passaram-se dez anos sem
que nada acontecesse…

Com um sinal de ansiedade em minha mente, deixei a biblioteca


e me dirigi ao dormitório sob a luz do sol poente. A última neve
estava quase derretida; manchas de terra marrom-avermelhada
estavam visíveis no pátio e o caminho pavimentado por pedras
estava limpo. Enquanto seguia em direção ao meu destino, ouvi um
grito de algum lugar próximo.

— Volte aqui, seu merdinha!

— Você acha que vamos deixar você lançar um feitiço?!

No instante seguinte, um jovem saiu de trás de um prédio


escolar, seguido por um grupo de seis homens mais velhos que
obviamente o perseguiam. O jovem estava tentando ganhar
distância suficiente dos seus perseguidores para lançar um feitiço
Avançado, mas eles continuavam interrompendo o seu cântico. Ele
mudou para uma magia de nível Iniciante, tentando retardá-los, mas
não foi o bastante. O grupo de seis o alcançou e o derrubou no
chão, depois o chutaram com violência enquanto ele ficava em
posição fetal.

Pelo visto, tropecei com um caso de bullying no pátio da escola.


Só de assistir já era doloroso; não pude evitar de intervir.

— Ei, vamos lá. Parem com isso, rapazes — gritei enquanto


trotava. — Não precisam implicar com a pobre tartaruga.
Os seis valentões se viraram e olharam ferozmente em minha
direção. Eram todos um pouco mais altos do que eu, então acho
que estavam tentando me intimidar.

— Quem diabos seria você?

Depois de um momento, porém, um deles me reconheceu.

— E-ei, aquele é o Atoleiro…

— Atoleiro? Espera, tá falando do Rudeus?!

— Aquele Rudeus?! O cara que trancou a Linia e a Pursena em


um quarto e as adestrou?!

Ora, ora. Não houve nenhum adestramento, garanto.

— Essa história é pura conversa.

— Mas eu vi a Pursena abanando o rabo enquanto o chama de


Chefe…

— Ela abana o rabo para qualquer um com um pedaço de carne!

— Mas elas fazem o que ele manda, não é?

— Sim. Eu vi elas na aula com a cara toda desenhada.

— O que dizia mesmo? “Somos as escravas do Rudeus”, não


era?

— Bem, não me lembro exatamente o que era…

— Droga. Ele as espancou e depois escravizou?

— Cara, elas são princesas Doldia!


— O cara nem pensou nas consequências…

Depois de sussurrar esses rumores completamente imprecisos


em voz alta, o grupo de agressores engoliu em seco ao mesmo
tempo e olhou para mim com uma expressão de temor. Se
entreolharam, balançaram as cabeças e então voltaram a atenção
ao garoto deitado aos seus pés.

— Certo, criança. Por hoje vamos deixar você escapar.

Logo aproveitei o gancho desse comentário.

— Por hoje? Então vamos passar por isso amanhã de novo?


Estão planejando atacá-lo mais uma vez?

Os seis valentões fizeram uma careta de irritação.

— Tch…

— Olha, uh… Senhor Greyrat. Isso não tem nada a ver com
você, certo?

Caras como esse amavam falar essa frase. Sim, sim. Isso não
era da minha conta. Eu sabia disso mesmo antes de enfiar o meu
nariz.

— Não sei o que aconteceu, mas seis contra um não é uma luta
justa.

O grupo trocou olhares e balançou a cabeça. Com certeza eram


bons amigos, a julgar pela sua capacidade de se comunicarem em
silêncio.
— Certo. Tá bom. Vamos deixar a criança em paz — disse um
deles. — Mas, só para você saber, não é como se a vítima aqui
fosse ele.

Com isso, ele se virou e foi embora, indo para trás do prédio. Os
outros cinco o seguiram. Talvez tivessem uma pequena base de
operações estabelecida lá atrás ou coisa do tipo.

Assim que desapareceram, deixei um suspiro de alívio escapar.


Manter a calma enquanto seis pessoas me olhavam daquele jeito
não foi fácil. Elaborei algumas estratégias para lutar quando estava
em menor número, mas ainda assim precisava de algum esforço
para não me dar mal. Entretanto, eu não via problemas ao encarar
alguém no um contra um.

— Ei. Você está bem? — Fui até o garoto intimidado enquanto


ele lutava para se levantar. O rapaz limpou a poeira de suas roupas
e murmurou um encantamento rápido para um feitiço de Cura.
Neste lugar, até mesmo as crianças que eram intimidadas eram
magas aparentemente competentes…

O garoto se virou para mim. Era Cliff.

—…

Sério, a maioria das minhas interações com esse cara foram bem
desagradáveis. Sempre que esbarrávamos um no outro, ele era
abertamente hostil comigo. Provavelmente diria algo como “Não
pedi a sua ajuda!” e depois sairia em fúria.

— Eu não pedi… — No meio da frase, Cliff fez uma pausa e


franziu a testa, pensando. Depois de um momento, soltou um
suspiro. — Foi mal… Agradeço a sua ajuda, Rudeus.

— Eh? Não há de quê.

O jovem mago curvou-se um pouco para mim, depois se afastou


rapidamente. Fiquei lá e o observei partindo, me sentindo um pouco
assustado. Era verdade que saí em seu socorro, mas aquela
repentina mudança de atitude parecia muito estranha. Quase me fez
pensar que ele estava tramando algo.

Ainda assim, provavelmente era melhor não tomar conclusões


precipitadas no momento. Cliff foi hostil comigo por algum tempo,
mas nunca retruquei de volta. Talvez finalmente tivesse percebido
que eu não era um inimigo. Sério, não entendi por que decidiu me
odiar desde o começo, mas…

— Bem, que seja. — Dei de ombros e fui em direção ao meu


dormitório.

No dia seguinte, Cliff me pediu para falar com ele atrás do prédio
da nossa escola.

Ele estava irritado. Eu não fazia ideia do motivo, mas isso estava
na cara. Parecia que poderia acabar em violência, então ativei meu
Olho da Previsão de antemão e analisei os arredores com cuidado.
Eu também tinha uma boa quantidade de mana reunida em minha
mão direita esperando para ser usada.

Mas, sério. As tartarugas desses dias. Quanta ingratidão.

— Certo, aqui deve servir.


Depois de verificar se não havia mais ninguém na área, Cliff se
virou para mim. Seu rosto estava com um tom interessante de
vermelho.

Logo percebi que havia mal interpretado a situação. Ele não me


chamou ao lugar para lutar comigo. Estava, no mínimo, mais para
uma cena clássica de confissão de amor. Isso era um pouco
estranho. Verdade, ultimamente eu não tinha conseguido me animar
com as mulheres, mas isso não significava que estava disposto a
estudar toda a Anatomia Masculina.

É difícil ser sexy assim, heh heh.

— E-então, Rudeus, é o seguinte…

— Sim? — Eu já sabia como responderia, é claro. Dar uma


resposta clara e direta era importante. Íamos começar como amigos.
E também terminaríamos assim.

— Bem, eu me apaixonei por alguém — continuou Cliff, coçando


a bochecha enquanto estudava o chão, todo tímido.

— S-sério? — Cara, eu realmente teria que atirar neste pobre


soldado? Só de pensar nisso o meu estômago doeu. Não pude
deixar de pensar em como poderia ter reagido se ele fosse uma
garota… mas minha espada tinha suas preferências, e elas não
iriam mudar.

Para minha surpresa, entretanto, Cliff ergueu os olhos e apontou


para o lado.

— É aquela bem ali.


Ele estava indicando um prédio um pouco distante. Havia alguém
lá dentro, olhando por uma janela aberta. Seu longo cabelo loiro
esvoaçava com a brisa enquanto ela olhava para o sol poente com
uma expressão melancólica no rosto.

— Eu vi vocês dois conversando esta tarde. Você a conhece,


certo? Uhm… poderia nos apresentar?

— Er, claro…

A pessoa parada naquela janela era uma mulher que eu


conhecia muito bem. Era uma notória criadora de problemas, objeto
de incontáveis rumores – e uma predadora voraz que devorava seus
colegas estudantes com todo o vigor de uma súcubo.

Em outras palavras, era Elinalise Dragonroad.


Capítulo 02:
O Segredo do Prodígio (Parte 02)
Olá. Rudeus Greyrat falando.

Uh, então, aqui está o meu problema. Outro dia, meu colega de
classe Cliff Grimoire confidenciou-me seu amor por Elinalise e
perguntou se eu poderia apresentá-los.

Justo, certo? Conheço a Elinalise relativamente bem. Ela era


membro do grupo dos meus pais, e viemos para esta cidade juntos.
Além disso… Não sei muito bem sobre como funcionam os
romances neste mundo, mas Cliff está obviamente apaixonado e
quer muito expressar os seus sentimentos. Eu gostaria de ajudar,
caso possível.

É sério! Mesmo. Mas vamos recapitular o que já aprendemos


sobre Elinalise.

Elinalise Dragonroad é uma aventureira de rank S, guerreira da


linha de frente e aluna do primeiro ano da Universidade de Magia de
Ranoa. Sua idade é uma incógnita. Para minha surpresa, ela se
provou uma aluna diligente e tira notas excelentes. Ultimamente,
começou a integrar alguns feitiços de água de nível Iniciante ao seu
estilo de combate.

A maioria dos seus velhos conhecidos aventureiros parecia odiá-


la, mas ela é uma combatente altamente qualificada, uma pessoa de
bom coração… e um monstro na cama.

Isso. É aí que está o problema.


Elinalise sofre de uma maldição específica. Isso a força a obter
uma dosagem diária e regular de… fluidos corporais masculinos.
Por causa disso, evita se envolver com qualquer homem específico,
preferindo sobreviver com uma dieta constante de casos de uma
noite e aventuras casuais.

Ela também diz que possui vários filhos… embora nunca tenha
me contado muitos detalhes sobre a atual localização deles. Para
ser honesto, eu costumava me perguntar se a elfa só não os
abandonou na beira da estrada ou os vendeu para comerciantes de
escravos. Em algum momento, ela explicou que os cria até que
estejam prontos para se tornarem independentes, seja lá o que isso
signifique. Pelo visto, ficar grávida é algo relativamente raro para
Elinalise.

Mas vamos voltar ao assunto principal. Apresentar essa mulher a


Cliff, como uma potencial parceira romântica, é mesmo uma boa
ideia? Ele obviamente não faz ideia de que Elinalise é assim. Só de
ouvir o garoto falando sobre ela já me dá vontade de gemer de
desespero.

— Aquela beldade casta vista na janela se chama Elinalise


Dragonroad, correto? Um nome forte e adorável, adequado à sua
portadora! Ouvi dizer que é uma excelente aluna, mas isso não é
nenhuma surpresa. E como era uma aventureira até recentemente,
sabe como usar magia de forma eficaz em um combate real.

Até o momento, a única coisa que me fez querer revirar os olhos


foi aquela parte de beldade casta vista na janela. Para Elinalise,
uma janela é só um lugar conveniente para apoiar as mãos
enquanto oferece o traseiro para alguém. Mas Cliff com certeza não
acreditaria que sua deusa é sexualmente ativa.

— Existem rumores obscenos circulando sobre ela ter tomado


incontáveis estudantes como seus amantes. Imagino que alguma
pessoa invejosa esteja espalhando esta calúnia há algum tempo.

Essa é a sua interpretação da situação, e ele está se apegando a


ela com firmeza. Na verdade, aquela luta do outro dia foi um
resultado direto disso. Aqueles seis alunos estavam falando sobre
Elinalise – chamando-a de vadia que dava para qualquer um que
pedisse, e encorajando uns aos outros a ser o próximo. Cliff ouviu
aquilo e ficou muito chateado. Ele castigou aqueles rapazes por
falarem mal de alguém que não conheciam, tomando como base
nada além de rumores. Claro, aqueles homens provavelmente eram
conhecedores do que Elinalise fazia por aí, mas Cliff não tinha como
saber disso.

Todos os seis eram veteranos com alguns músculos em seus


corpos. E também eram delinquentes chegados que não gostavam
de ser repreendidos por pirralhos magricelas. Um deles retrucou
com aspereza: “Olha, cara, eu conheço um cara que fez com ela e
mais dois caras ao mesmo tempo esses dias. Tipo, todos de uma
vez. Que tal você só aceitar a realidade, hein? Se você pedir com
sinceridade, ela pode até tirar a sua virgindade.”

Indignado com este comentário vulgar e zombeteiro, Cliff


avançou com uma fúria cega, levantando os punhos para o grupo de
homens maiores. Ele se considera um lutador decente. Mas era
uma luta de seis contra um, com pessoas bem além da sua classe
de peso. Ele poderia ter alguma chance em um duelo mágico, mas
não em uma briga de curta distância. Para a sorte de Cliff,
aconteceu de eu estar por perto.

De certa forma, até que é uma historinha agradável. Faz a


pessoa apreciar a importância da busca por informações prévias – e
de ter uma mente aberta.

Ainda assim, uh… o que eu devo fazer?

Na verdade, não é como se devesse algum aviso ao Cliff.


Poderia só apresentá-lo a Elinalise e deixar que ela destruísse as
suas ilusões. O problema não é meu. Mas é mesmo certo só dar de
ombros e ir embora?

Elinalise poderia até me agradecer. Já que tem a tendência de


ser bem grata quando apresento algum homem. Nos últimos tempos
ela também tem estado particularmente focada em sua caça a
virgens. Os calouros desajeitados eram aparentemente charmosos,
e aqueles que falavam até pelos cotovelos eram “simplesmente
adoráveis”. Ela também adorava observar como aprendiam as
coisas novas e melhoravam com o tempo.

Acho que até posso entender o apelo nisso. Joguei muitos jogos
pornográficos com o tema de “treinamento” nos velhos tempos. Não
é querendo tirar uma conclusão precipitada, mas é quase certo que
o Cliff ainda é virgem. Elinalise provavelmente ficaria muito feliz ao
levá-lo para a cama.

Mas, e quanto ao Cliff?

Ele está construindo uma imagem significativamente imprecisa


dela. Se começarem a “sair”, logo perceberá a verdade. E se acabar
me culpando? E se decidir que armei uma armadilha para feri-lo?
Do meu ponto de vista, ele não teria ninguém além de si mesmo
para culpar, não importa o quê. Mas se eu só os apresentasse,
sabendo tudo o que sei, sinto que poderia ser ao menos um pouco
responsável pelas consequências.

Entretanto, recusar seu pedido na mesma hora não me parecia


uma boa opção. Cliff poderia tirar algumas conclusões ridículas a
partir disso. Pode até mesmo concluir que sou um rival pelo amor de
Elinalise. Sério, não me importaria de ter um caso com uma mulher
dessas se a minha condição algum dia fosse curada, mas
definitivamente não estou atrás dela. E com certeza não quero que
ele pense que estou.

O que diabos é suposto que eu devo fazer?

✦✦✦✦✦✦✦

Não conseguia pensar em nenhuma solução inteligente para o


meu dilema…

— Eu esperava ouvir o seu conselho a respeito de algo, Mestre


Fitz. Se você não se importar.

E então, durante uma de nossas visitas regulares à biblioteca,


após as aulas, me virei para meu amigo de confiança, Fitz.

— Certo. Que tipo de conselho?

— Bem… Acho que na verdade é um conselho de


relacionamento.
— O quê?! — Fitz se virou e se inclinou sobre a mesa. Havia um
tipo de careta no seu rosto. — V-você está apaixonado por alguém,
Rudeus?!

Fiquei um pouco surpreso com o quão interessado ele estava.


Apesar de seus enormes óculos escuros, senti como se pudesse ver
seus olhos brilhando de curiosidade. Mas isso talvez não fosse
estranho. A maioria das pessoas na idade de Fitz era relativamente
interessada em romances.

— Não. Na verdade, quem está é um amigo meu.

— Um amigo…?

— Isso mesmo.

— Uhm, certo. E-então continue.

— Resumindo, esse meu amigo se apaixonou profundamente à


primeira vista e…

— Amor à primeira vista? E você está me contando…? Espera,


não me diga que foi pela Princesa Ariel! I-isso não vai dar certo,
Rudeus. Digo, sei que ela é muito bonita, mas…

Seja lá qual fosse o motivo, Fitz parecia meio perturbado com


isso. As pessoas provavelmente se apaixonavam pela princesa com
bastante regularidade. Como um de seus guarda-costas, fazia
sentido que quisesse desencorajar isso.

— Não se preocupe. A Princesa Ariel não está envolvida nisso.

— A-ah. Certo, bem, isso é bom.


— Na verdade, conheço essa pessoa por quem meu amigo se
apaixonou, e ela tem alguns… problemas que me tornam relutante
em apresentá-la a ele como uma opção para um relacionamento.
Não tenho certeza se devo fazer isso ou não.

Agora havia uma expressão peculiar no rosto de Fitz. Ele levou a


mão à boca e me observava com atenção por trás de seus óculos
de sol.

— Seu amigo sabe sobre os problemas dessa mulher?

— Não, tenho certeza de que não sabe.

Hm…? Eu disse que era uma mulher? Será que a coisa sobre a
Princesa Ariel levou Fitz a pensar dessa forma? Realmente não
importava, já que Elinalise era uma mulher mesmo, mas…

Espera, ele ainda acha que isso é sobre mim?

— Desculpe repetir o que já falei, mas o meu amigo nesta


história não sou eu. Só estou comentando porque confio em você,
mas é o Cliff da classe especial.

— Ah! Sério? Sinto muito, acho que eu entendi errado…

Parecendo um pouco envergonhado, Fitz coçou a parte de trás


das orelhas de leve. Realmente não poderia culpá-lo. Afinal, pedir
conselhos para “um amigo” quando se é tímido demais para admitir
a verdade é algo meio clichê.

— De qualquer forma, como você acha que eu deveria abordar


isso?
— Uhm, bem… Acho que você provavelmente deveria contar
sobre os problemas dessa mulher a ele, certo? A menos que exista
alguma razão pela qual você não possa…

Fitz parecia estranhamente inseguro com esse conselho. Então,


mais uma vez, ele ainda era virgem, não era? Talvez não tivesse
muita experiência neste campo específico.

— Eu não hesitaria em contar, mas o Cliff tende a fixar umas


ideias na cabeça, sabe? Não acho que ele acreditaria em mim,
sério. Ele pode até concluir que estou mentindo por também estar
apaixonado por aquela mulher.

— Eh. É, acho que isso pode acontecer.

— Certo. Então, eu estava pensando que talvez poderia não ser


o melhor porta-voz dessa notícia, sabe?

Isso estava na verdade sendo de alguma ajuda. Meus


pensamentos estavam começando a se alinhar. Eu talvez pudesse
pedir para uma garota dar a notícia… talvez alguma em que Cliff
confiava? Para ser honesto, talvez seria ainda melhor se Elinalise
em pessoa contasse.

— Uhm… Então você não ama mesmo essa mulher, Rudeus?

— Nah. Ela é uma amiga, mas não consigo me imaginar saindo


com ela. — Claro, Elinalise parecia ser incrível na cama, então eu
não recusaria uma noite de diversão… mas entrar em um
relacionamento sério com ela não me parecia muito atrativo. Por
algum motivo, eu tinha a sensação de que ela me trairia dentro de
um ou dois dias.
— Entendo. Mas isso pode ser apenas com você, Rudeus. Cliff
pode acabar a amando, com os defeitos e tudo mais.

Isso parecia um pouco improvável. De todas as pessoas, um


cara que fantasiava com um casamento com uma anja pura e
inocente não me parecia uma boa combinação para Elinalise.

— Hmmm…

Apresentá-los seria mesmo uma boa ideia? Não conseguia me


decidir.

Depois de algum tempo de silêncio, Fitz falou mais uma vez, sua
voz soou como um murmúrio baixo.

— Uhm… Também me apaixonei por alguém, então posso


entender como ele se sente. Pelo que ouvi, a maioria das pessoas
também não consegue imaginar um namoro com a pessoa pela qual
me apaixonei… mas continuo amando.

Fitz estava apaixonado por alguém? Quem poderia ser?

A Princesa Ariel seria o chute mais óbvio, especialmente se


levando em conta a forma como ele reagiu quando eu toquei no
assunto. E acho que a maioria das pessoas teria dificuldades em se
imaginar “namorando” um membro da família real Asurana…

Não era como se realmente importasse quem era.

— É… meio difícil ficar de braços cruzados só olhando, ainda


mais quando você não pode dizer como se sente. — Em algum
momento o rosto de Fitz ficou vermelho. Seu rubor percorreu todo o
caminho até a ponta de suas orelhas. — Então, uh, acho que você
deveria apresentá-los. Dê a chance para que ele ao menos tire isso
do peito.

— Mas isso pode levar a todo tipo de problema no futuro.

— Bem, e o que você pode fazer? Depois de deixá-los juntos em


uma sala, o resto é com eles.

Ooh. Isso era verdade. Depois de marcar um encontro, cabia a


eles o que viria a acontecer. Em outras palavras, eu poderia lavar as
minhas mãos do assunto. Se pudesse deixar isso bem claro desde o
começo, seria ainda melhor.

— Então tá bom. Vou tentar trabalhar com algo de acordo com


isso. Obrigado pelo conselho, Mestre Fitz.

— D-de nada… Fico sempre feliz em ajudar…

Fitz ainda parecia um pouco incerto sobre tudo isso, mas eu me


decidi. Assim que saí da biblioteca, de canto de olho, vi ele caindo
de cara na mesa. Levando as coisas em consideração,
provavelmente era um pouco embaraçoso agir como um velho sábio
para dar conselhos ainda na sua idade. Mas, apesar de sua falta de
experiência com o mundo, ele sempre parecia ter algo perspicaz a
dizer. Eu era genuinamente grato a ele.

✦✦✦✦✦✦✦

No dia seguinte, chamei Cliff para uma conversa particular. Ele


foi me encontrar atrás do prédio da escola na hora marcada, a
expectativa brilhava em seus olhos.
— Estou disposto a te apresentar a ela — falei —, mas há algo
que quero deixar bem claro desde já.

— O que seria?

— Em primeiro lugar… como um aventureiro, estive em um grupo


com Elinalise por algum tempo. Acho que sei mais sobre ela do que
a maior parte das pessoas por aqui.

Os olhos de Cliff tremeram um pouco diante desse fato, um que


eu não havia mencionado anteriormente.

Continuei:

— Decidi não lhe dizer o que penso dela. Não é porque estou
tentando te enganar ou algo assim. Só acho que você precisa
conhecê-la pessoalmente, conversar com ela e então tomar as suas
decisões.

— O que você quer dizer?

— Basicamente, não quero que isso se torne um problema


futuro. Depois não venha reclamar para mim agindo como se eu
tivesse te enganado ou tentado te pregar uma peça, entendeu? —
Isso esperançosamente me ofereceria algum seguro se as coisas
acabassem desandando. Também funcionava como uma dica de
que ele poderia ter alguns problemas com isso.

— Eu não faria uma coisa dessas! Rudeus, sou um fiel da Igreja


Millis. Mostramos aos casamenteiros o devido respeito.

Interessante. Eles pensavam em unir pessoas como um ato


virtuoso? Eu mesmo não era um fiel, então não consegui entender a
referência. Deus, ajude-me…

— Bem, eu não pertenço à Igreja Millis, então não sei o que você
espera de seus casamenteiros. Só não venha gritando comigo se eu
fizer isso errado.

— Vamos lá. Eu não faria isso.

— Então tá bom. Lembre-se de que você está fazendo isso por


sua própria conta e risco, viu?

Cliff balançou a cabeça com impaciência.

— Estou perfeitamente preparado para uma possível rejeição!

Esse na verdade não era o pior cenário que eu tinha em mente,


mas que seja.

Encontramos Elinalise sozinha em uma sala de aula vazia.

Ela estava inclinada com os cotovelos apoiados no parapeito da


janela, mas pela primeira vez não havia ninguém sem roupas
parado atrás dela. A elfa estava só olhando pela janela,
evidentemente perdida em pensamentos.

Mas, claro, eu sabia no que estava pensando. Estava


impacientemente esperando o sol terminar de se pôr. Quando a
noite caísse, os bares da cidade abririam as suas portas. E dentro
desses bares, ela encontraria muitos homens procurando por
diversão. Esse era o único tipo de coisa em que ela pensava. Ainda
assim, da perspectiva de alguém que não a conhecia de verdade,
acho que ela se parecia muito com um anjo.
— Eh. Olá, Rudeus. Você veio mesmo me ver dessa vez? —
Elinalise olhou para mim com uma expressão de ligeira surpresa. Só
para esclarecer, eu não falava com ela com muita frequência desde
que nos matriculamos na Universidade. Às vezes, ela aparecia para
me encontrar na hora do almoço para saber como eu estava, mas
isso era tudo. — Hm? E quem é este jovem simpático com você?

Cliff apareceu por trás de mim, apertou o punho contra o


estômago e juntou os pés com cuidado. Esta era, presumivelmente,
uma saudação formal de Millishion.

— Elinalise, este é Cliff Grimoire. Ele é um aluno especial que


está cursando o segundo ano.

— Isso mesmo! Meu nome é Cliff, madame — disse Cliff em uma


reverência. — É um grande prazer te conhecer!

— Nossa, mas que jovem cavalheiro mais educado. Me chamo


Elinalise Dragonroad. Se não se importar com a minha pergunta, há
algo que eu possa fazer por você?

— Ele queria que eu o apresentasse a você, na verdade —


interrompi. — É por isso que estamos aqui.

— Isso é verdade — disse Cliff, assentindo com firmeza. —


Senhorita Elinalise, já vi seu rosto várias vezes, e sua beleza
sempre me deixa cativado! Eu apreciaria muito a chance de
conhecê-la melhor!

O silêncio caiu sobre a sala. Elinalise pareceu um pouco


surpresa. Depois de um longo tempo, ela se endireitou bem
devagar, me pegou pelo braço e me puxou para um canto da sala
de aula.

— Certo, Rudeus — sussurrou ela ao meu ouvido. — Quanto


você quer?

Demorei alguns segundos para processar o que ela quis dizer


com isso. Será que achava que eu cobraria pela entrega de um
novo brinquedinho? Ugh. Me senti enojado.

— Não quero dinheiro nenhum.

— Então o que é isso? O que você quer?

— Nada. Ele simplesmente se apaixonou por você, isso é tudo.

— Ah, por favor. Rudeus, você sabe como eu sou. Por que traria
um garotinho ingênuo como aquele para me conhecer? Você devia
sentir vergonha de si mesmo.

Huh. Eu nem sabia que você conhecia o conceito de vergonha. A


cada dia aprendo algo novo…

— Eu não menti para ele nem nada do tipo, Elinalise. Só estou o


apresentando a você, só porque ele me pediu.

— Sério?

— Isso é realmente tudo. Juro até pelo nome da Mestra Roxy, se


quiser.

Elinalise parou para pensar por alguns segundos, então franziu a


testa.
— Tá, bem… se isso for verdade, Rudeus, então é um problema.
Não quero lidar com ninguém que me leve a sério.

Admito que fiquei um pouco surpreso. Esperava que ela sorrisse


e dissesse que tinha um quarto em uma pousada exatamente para
esse tipo de situação.

— Você sabe sobre a minha maldição, não sabe? Não posso ter
uma relação exclusiva com ninguém. Isso não dá certo.

Não era que ela preferisse só sexo casual e fazer visitas a


bordéis. Elinalise realmente não tinha a opção de se envolver em
um romance, dada a natureza da sua maldição. Era por isso que
nunca deixava as coisas ficarem muito sérias com ninguém. Ela já
tinha me explicado isso tudo, não? Parecia que pensava nisso mais
do que eu imaginava. Pelo jeito, Cliff provavelmente iria embora
desapontado.

— Isso é uma pena. Então vá em frente e o rejeite.

— Tem certeza disso? Se eu fizer isso ele não vai ficar ressentido
com você?

— Está tudo bem. — Não era como se eu tivesse que me


preocupar com a minha reputação. Se ele voltasse a me odiar, eu
seria capaz de viver com isso. — Mesmo assim — acrescentei —,
tente dizer a verdade a ele, se puder. Não me use como uma
desculpa ou coisa assim.

— Então tá bom. Se você diz.

— Agradeço.
Com o fim de nossa pequena reunião, Elinalise se voltou para
Cliff. Ela era alguns centímetros mais alta do que ele. Cliff era, na
verdade, meio baixinho. Formariam um casal um pouco incomum…
não que isso me importasse, no caso de se darem bem. Só de ficar
na sala já estava começando a ser doloroso.

— Rudeus — disse Elinalise. — Acho que você deveria nos dar


um pouco de privacidade.

— Certo, claro. Perdão…

Na mesma hora caminhei para a saída. Não pude deixar de


sentir pena de Cliff, mas esse provavelmente era o melhor resultado
que se podia esperar. O maior obstáculo era a maldição de Elinalise,
mas ela já até gostava de sair brincando por aí. E Cliff era um
membro devoto da Igreja Millis, que preferia coisas chatas e
monogâmicas. Eram basicamente como água e óleo, desde o
começo.

— Uhm… obrigado, Rudeus! — disse Cliff quando eu saí da sala.

A gratidão em sua voz fez o meu peito doer.

✦✦✦✦✦✦✦

Uma semana depois, apareci na minha aula mensal e encontrei


um certo casal envolvido em uma demonstração pública e
descarada de afeto. Uma mulher alta estava sentada no colo do
namorado, olhando amorosamente em seus olhos.

— Uma vez que você memorizar todos os fenômenos físicos


fundamentais, a magia combinada não se prova tão difícil. Mesmo
que você ainda não possa usar duas escolas de magia, pode imitar
os efeitos de uma tirando vantagem das forças naturais.

— Que esperto! Você sabe mesmo de tudo, Cliff.

— Bem, eu não diria isso…

Eu conhecia as duas pessoas envolvidas. Eram Cliff e Elinalise.


Lentamente me aproximei e os encarei, com a cabeça inclinada.

— Hm? Ah, Rudeus! Mais uma vez, obrigado pelo outro dia! —
Cliff tentou se levantar para uma saudação, mas, graças à mulher
em seu colo, foi forçado a se contentar com um aceno de cabeça
em agradecimento.

— Por nada, Cliff. Elinalise, você se importaria de explicar a


situação?

De seu novo assento, ela sorriu gentilmente para mim.

— Bem, nós agora estamos namorando.

Ceeeeerto. Mas por quê? Isso com certeza não era como deveria
acontecer…

— Uh, isso não é… o que você decidiu de antemão, é?

— O que você quer de mim, Rudeus? A proposta dele foi tão


ousada e apaixonada! Ele devastou o meu coração na mesma hora!

Espera, a proposta dele? Em algum momento pulamos algumas


dezenas de passos ou fui só eu?

— Elinalise, vamos lá. Você está me deixando sem jeito.


— Vou repetir: Vou acabar com a sua maldição, não importa o
quê! Então, por favor… por favor, case comigo!

— Ei, para com isso!

— Ah, você também precisava ver ele na pousada naquela noite.


Tão inocente, tão ansioso… Ah não, só de lembrar estou ficando
com tesão…

— Vamos lá, sério… Elinalise, e-estamos em público…

O rosto de Cliff estava brilhando de tão vermelho. Apesar de


todos os seus protestos, ele não parecia particularmente chateado.

Bem, parabéns por perder a virgindade, eu acho. Isso tudo era


um tanto desagradável, mas não me incomodava muito, talvez
porque agora eu mesmo tinha pelo menos alguma experiência. Ou
talvez por ser conhecedor dos hábitos de Elinalise. Ainda assim…
estava claro que ela havia contado sobre a sua maldição. Era uma
razão bastante sólida para não começar um relacionamento
exclusivo com ninguém, e era definitivamente real, mas…

Por que diabos Cliff reagiu pedindo sua mão em casamento?

— De agora em diante, vou me conter o máximo que puder. Pelo


bem de Cliff, é claro.

— Eu te disse, não se force. É uma maldição, e não algo que


você pode controlar. E-equanto o seu coração for meu, nada mais
importa…

— Ah, Cliff… você sabe que é. Com os outros sempre foi só


físico… mas sou sua, de corpo e alma… — Elinalise se aninhou
contra Cliff, extasiada, enquanto ele suavemente acariciava os seus
cabelos. Um momento depois, estavam olhando nos olhos um do
outro. Rumo à pegação, é claro.

— Elinalise…

— Cliff…

Ótimo. Agora estão se beijando. Parece que esqueceram que eu


existia , então começaram a namorar descaradamente.

Era isso que Cliff queria? Ser esse cara? O cara dos “beijos na
sala de aula”? Senti que ele precisava repensar o assunto. Elinalise
estava dizendo todas as coisas corretas, mas não pude deixar de
sentir que ela o mantinha por perto como um lanchinho a tira colo. O
amor é cego ou o quê?

Respirei fundo, prestes a dizer o que estava em minha mente,


mas me forcei a parar. Concordei em apresentá-los com a condição
de que ninguém reclamasse do resultado. A essa altura meus
protestos seriam ridículos.

Olhei para o fundo da sala de aula e encontrei os outros três


totalmente desinteressados. Pursena estava mastigando um pedaço
de carne seca e Zanoba conversava com Julie a respeito de uma
estatueta que encontrou pelo mercado em um outro dia. Julie estava
ouvindo com atenção, nem mesmo olhando para o casal na frente.

Linia era a única que parecia estar incomodada. Ela estava com
uma carranca irritada. Me aproximei para falar primeiro com ela.

— Chefe, qual é o problema com aquela mulher? Só fiz um


comentáriozinho e ela começou a me chamar de uns nomes
nojentos…

— Para ser sincero, eu também não tenho certeza.

Esta com certeza era uma situação estranha, mas me dei um


momento para tentar entender as coisas. No outro dia, quando saí,
Elinalise estava determinada para dar uma rejeição firme e completa
a Cliff. E, pelo visto, começou a conversa com isso óbvio. Apesar de
tudo que se pudesse dizer sobre ela, a elfa era uma pessoa
honesta. Provavelmente contou todos os detalhes da sua maldição
a Cliff e explicou que os rumores eram de fato verdadeiros.

Mas, ainda assim, ele respondeu com uma proposta. Ao jurar


acabar com a sua maldição e pedir sua mão em casamento, ele
aparentemente a conquistou… de alguma forma. Eu não fazia ideia
de como esse plano havia brotado na cabeça dele. Seu processo de
pensamento a respeito disso era um verdadeiro mistério.

Mas, e se eu olhasse pela perspectiva de Elinalise? O jovem


havia prometido dedicar a sua vida a ela e ajudá-la a escapar da
sua maldição. Se alguém simplesmente falasse isso do nada em um
bate papo… funcionaria mesmo? Uma pessoa realmente se
apaixonaria, simples assim?

Mas eu podia até entender o raciocínio dela. A maldição a afligiu


por muitos, muitos anos. Não havia como dizer se Cliff seria mesmo
capaz de acabar com isso, mas ele prometeu fazer o possível para
que isso acontecesse. Era uma coisa que provavelmente significava
muito para ela. Mesmo que gostasse de suas escapadas noturnas,
a maldição provavelmente causava muita dor e tristeza.
Talvez não fosse algo tão simples. As promessas dele talvez
fossem o suficiente para conquistá-la. Mas havia mais do que isso,
certo? Cliff havia demonstrado alguma bravura e paixão reais.

— Ei, Chefe! Tive uma ótima ideia!

— Qual, Linia?

— Também devíamos começar a namorar! Mew! Vamos dar a


esses idiotas um gostinho do próprio remédio!

Essa claramente não era uma ideia na qual Linia havia pensado
muito, mas me vi tentado a fazer um pequeno experimento.

— Posso estar disposto a te dar uma chance — falei lentamente.


— Mas, primeiro, me diga algo. Se eu aceitar isso, você me ajudaria
a encontrar uma cura para a minha impotência?

— Hã?! — disse Linia… e todos os outros na sala, com exceção


de Elinalise.

Todas as cabeças viraram em minha direção. Cinco pessoas


aparentemente muito confusas me encararam em silêncio por vários
segundos.

O quê? Eu namorando com Linia seria algo tão estranho assim?

— C-C-Chefe… V-você, uh… ouviu a gente mais cedo ou coisa


do tipo…? — perguntou Linia, com a voz hesitante e nervosa.

— Do que você está falando?

— Bem, na hora do almoço, uh… eu e Pursena estávamos


conversando sobre a maneira como você nos amarrou e nos despiu,
mas nem acasalou com a gente, sabe? Mew… Estávamos
comentando que a sua salsicha não deve servir para nada.

Pequenas idiotas. Eu deveria ensinar uma lição a ambas…

Quando olhei para Pursena, ela desviou os olhos na mesma


hora.

— N-não estávamos tirando sarro de você nem nada assim,


Chefe. É que… você não tinha o cheiro de que estava interessado
enquanto nos tocava, sabe? Meio que percebemos que podia haver
algo de errado.

De repente, todos na sala de aula estavam olhando para mim


com pena em vez de confusão. Pelo visto, reagiram ao assunto da
impotência, não sobre eu namorar com Linia. Uma disfunçãozinha
erétil era mesmo tão incomum assim?

— Nós não íamos espalhar isso por aí, Chefe. Sério. E foi a Linia
quem falou sobre a salsicha. Às vezes ela é bem idiota.

— Pursena, calada! Você disse que ele é um covarde inofensivo


que não tem coragem de nos atacar!

— Aquilo foi um elogio, sua idiota.

— Mew?!

Balancei a minha cabeça assim que as duas começaram uma de


suas discussões habituais e me aproximei para tomar o meu lugar.

— Está tudo bem, sério. Não estou tentando manter isso como
um segredo nem nada assim.
— É-é! Quem liga se você é impotente, Chefe? Não é como se
fôssemos pensar menos de você! Mew!

— Certo. Você pode ser impotente, mas ainda é o chefe, Chefe!

Ótimo, muito comovente. Agora poderiam parar de repetir a


palavra “impotente”? Está começando a me afetar um pouco. No
final das contas, talvez fosse melhor se tivesse mantido isso em
segredo…

— Não deixe que isso te afete, Mestre! — disse Zanoba


alegremente, batendo-me no ombro. — Nós temos nossas
estatuetas! Vamos viver para o bem delas!

Julie inclinou a cabeça, incerta.

— Mestre, o que impo-tem significa?

— Bem, suponho que isso significa que você não pode


desempenhar o papel que se espera de um homem… mas isso não
importa tanto. Não influencia em nada na criação de estatuetas.

— Hmm…

Zanoba estava mesmo tentando me ajudar? Eu poderia dizer que


sua escolha de palavras estava sendo feita com muito cuidado…

— E eu aqui pensei que você era um completo tarado, Chefe…


Acho que você só estava procurando uma cura para a sua condição,
hein? Fez até uma lágrima escorrer dos meus olhos… meow.

— Vou ajudar de todas as formas que eu puder, Chefe. Contanto


que primeiro você me dê um pouco de carne.
A bichana e a cadela também mostraram algumas expressões
forçadas de simpatia. Entretanto, não estavam fazendo isso por
mim. Eu, ao menos, com certeza não estava começando a me
apaixonar por elas.

— Rudeus, se for de alguma ajuda, como parte do meu


treinamento, aprendi a ouvir confissões. Disseram que não tenho
muito talento para isso, mas posso ao menos conversar com você.
Me avise se precisar de alguém para te ouvir, certo?

Por outro lado, as palavras de Cliff pareceram calorosas e


genuínas. Bem, esse era o tipo de coisa que poderia conquistar o
coração de um homem. Pena que eu não era gay. Mas entendi
como Elinalise devia ter se sentido no outro dia.

Então, enfim. Cliff e Elinalise estavam agora em um namoro


oficial. Tive dificuldades para acreditar que Elinalise seria capaz de
resistir à vontade de sair fornicando por aí. E eu tinha certeza de
que Cliff não seria capaz de suportar isso por muito tempo. Por
enquanto estava tudo bem, mas o relacionamento com certeza iria
eventualmente se desintegrar.

Mas não é como se fosse eu quem diria isso, é claro.

Em uma nota diferente, os outros alunos especiais ficaram


cientes da minha condição. A conversa foi extremamente estranha,
mas ao menos me ofereceram cooperação.

Talvez tivesse dado o meu primeiro passo de verdade no


assunto. Talvez. Realmente queria cuidar disso para que eu
pudesse trocar um pouco de saliva com alguém.
História Paralela:
Sylphiette (Parte 03)
Hoje, enquanto seguia a Princesa por um corredor, ouvi alguém
falando por perto.

— Sério, Cliff, você precisa se animar um pouco!

— Olha, eu entendo a natureza da sua maldição. E eu gosto,


uh… de ser íntimo de você. Mas viemos aqui estudar, lembra? Se
passarmos todos os dias na cama, acabaremos como completos
depravados.

— Eu sei, eu sei. Primeiro estudamos e depois…

Eram Cliff e Elinalise – caminhando juntos, parecendo realmente


muito “íntimos”. Corriam boatos de que os dois estavam namorando,
o que a maioria das pessoas estranhou, já que Cliff era um jovem
muito sóbrio e Elinalise supostamente dormia com qualquer um. As
pessoas diziam que ela só estava brincando com ele, e Cliff era
ingênuo demais para perceber… mas ao vê-los pessoalmente
parecia que os seus sentimentos eram mútuos.

— Não posso dizer que esperava que aqueles dois se


apaixonassem — murmurou a Princesa suavemente, seguindo o
meu olhar. — Cliff sempre pareceu uma pessoa obstinada e séria.
Parando para pensar, recusou todas as tentativas que fizemos para
conquistá-lo. É difícil acreditar que acabou com uma elfa de
reputação tão infame.

A Princesa então voltou seu olhar para Rudy.

— Ele é mesmo impressionante, não é?


Ele estava com o novo casal e um sorrisinho estranho no rosto.
Elinalise, em retorno, estava mostrando um sorriso caloroso. A
expressão de Cliff era a menos calorosa, mas havia algo parecido
com respeito em seus olhos enquanto encarava Rudy.

Eu parecia me lembrar de Cliff desprezando Rudy. Mas agora


Rudy o ajudara a conquistar Elinalise, sua atitude pelo visto havia
mudado por completo.

Pensando bem… Rudy estava se envolvendo com alguma coisa?


Neste ponto, já devia ter conhecido algumas garotas bonitas. E
parecia ser amigável com algumas delas. De acordo com o
cavaleiro da Princesa, todo homem da linhagem Notos Greyrat era
um mulherengo nato. Ainda assim, eu não tinha ouvido nada sobre
Rudy estar namorando, ou mesmo dando em cima de alguém. E eu
também não tinha o visto flertando com ninguém.

Entretanto, era difícil acreditar que ele não estaria interessado


nesse tipo de coisa. Essa era a parte estranha. De volta a Buena
Village, depois de descobrir que eu era uma garota, ele com certeza
começou a me tratar de forma diferente.

Estava tentando se conter ou coisa assim?

Enquanto eu pensava nisso, Rudy por acaso olhou em minha


direção e acenou com um sorrisinho no rosto. Isso me lembrou
muito do garoto que conheci anos antes. Meu coração parecia ter
parado de bater.

Mas ele não estava acenando para mim. Eu sabia muito bem
disso. Estava acenando para Fitz, um dos ajudantes da Princesa .
Nos últimos meses Rudy tinha ficado muito amigo de Fitz. Ele pedia
todo tipo de conselho, e Fitz foi gradualmente conquistando a sua
confiança e amizade.

Em outras palavras, ele não estava acenando para mim. Não


sabia nem que eu estava aqui.

Tentando não me sentir muito triste com esse fato, fui atrás da
Princesa assim que ela saiu pelo corredor.
Capítulo 03:
O Noivo Insensível (Parte 01)
Passou meio ano desde que me matriculei na Universidade de
Magia de Ranoa. Era outono – a época da colheita. Nos Territórios
Nortenhos o outono nunca durava muito, mas era uma época muito
importante do ano, quando os alimentos eram preparados, colhidos
e armazenados para o doloroso inverno que chegaria. Existiam
alguns festivais que eram realizados em diferentes aldeias e
cidades.

Para o povo-fera, também era a época de acasalamento… um


evento cultural demorado e que chegava com um complicado
conjunto de regras e rituais. Todos eles estavam visivelmente
inquietos conforme a estação se aproximava, homens e mulheres.

Falando de forma relativa, não havia muitos de sua espécie


matriculados na Universidade. Talvez representassem 5% do corpo
discente, que tinha um total que chegava a cerca de 10.000
indivíduos. Isso colocava seus números em 500 ou mais – em certo
sentido, um grande grupo, mas não tão impressionante, dado o
tamanho do campus. Ainda assim, quando o outono começou,
pareciam estar por todos os cantos, travando duelos de um contra
um que normalmente envolviam um homem e uma mulher. Por
vários meses após o duelo, o casal ficaria coladinho. E,
eventualmente, se casariam. Quem ganhasse o duelo inicial
assumiria o papel de chefe do novo “bando” que formariam.

Essas regras não estavam gravadas em pedra nem nada assim.


Era só uma tradição antiga que era mais respeitada por alguns do
que pelos outros. Ainda assim, alguns do povo-fera realmente
viajaram de terras distantes para desafiar os alunos para um desses
duelos românticos.

Em outras palavras, havia um monte de estranhos vagando pelo


campus. Isso era algo que a administração costumava tentar evitar,
mas a temporada de acasalamento era um assunto muito delicado,
devido à importância disso na cultura do povo-fera. Qualquer
tentativa de banir suas tradições deveria resultar em verdadeiros
distúrbios. Como medida paliativa, a escola permitia que não-
estudantes do povo-fera entrassem em seu terreno sob o pretexto
de “aulas de auditoria”, desde que solicitassem a permissão com
antecedência.

Enfim… isso levava a Linia e Pursena.

As duas eram basicamente inalcançáveis para um cara comum


do povo-fera. Por um lado, deviam ser as duas lutadoras mais fortes
de toda a escola. E tão importante quanto isso, eram princesas
Doldia. Se propusessem a uma delas, lutassem e vencessem, se
tornariam candidatos a líder de toda a tribo. Não receberia o poder
de imediato, é claro. Mas quando chegasse a hora de escolher o
próximo líder, não havia dúvida de que seria bem considerado para
o papel.

Claro, Linia e Pursena tinham partido para esta terra distante


para estudar, não para encontrar um marido. Não podiam escolher
um parceiro sem antes consultar a família e, portanto, rejeitavam
categoricamente todas as propostas com as quais foram
bombardeadas após completar quinze anos.
Entretanto, apesar de seu desinteresse público pelo casamento,
no ano seguinte apareceram ainda mais pretendentes. As duas
eram muito populares. Pelo visto, alguns homens-fera tinham até
mesmo lançado alguns ataques furtivos sobre elas, tentando ganhar
a sua obediência à força. As duas derrotaram esses agressores com
bastante facilidade… mas quando o outono deste ano chegou,
decidiram se trancar no dormitório. Não era como se o dormitório
feminino fosse uma fortaleza impenetrável, mas qualquer homem
que tentasse entrar seria atacado por todas as residentes. Linia e
Pursena então permaneceram em seus quartos, até mesmo
matando as aulas.

Creio que, de certa forma, era uma licença médica. Afinal,


provavelmente deviam estar no cio. A ideia delas se contorcendo
em seus quartos enquanto miavam e latiam cheias de paixão era
excitante. Não que isso me deixasse afim de acasalar ou coisa
assim.

As duas tinham me enviado uma carta, cujo conteúdo dizia:


“Desculpe pelo incômodo, Chefe, mas por enquanto vamos deixar
as coisas com você.” Entretanto, eu não fazia ideia de como deveria
ajudar. Talvez só quisessem que eu respondesse por elas quando o
professor fizesse a chamada ou algo do tipo.

De qualquer forma, não eram apenas os do povo-fera que


estavam “no cio” durante a época do ano. O outono coincidia com
um aumento nos casos de violência sexual no campus, já que
algumas pessoas tiravam proveito de todo o caos. As regras rígidas
sobre quem poderia entrar em qualquer dormitório começaram a
fazer um pouco mais de sentido.
Quando eram duas pessoas do povo-fera no cio, poderia
descartar as agressões, considerando como fenômeno natural ou
cultural… mas, pelo visto, algumas das vítimas eram humanos do
primeiro ano que nem faziam ideia do que estava acontecendo.

Claro, as regras da escola proibiam este tipo de coisa. Para


manter as coisas sob controle, a administração colocava guardas de
segurança para patrulhar o campus. Duelos consensuais eram
permitidos, mas não era permitido simplesmente atacar alguém que
se recusasse a lutar. Esse era o limite traçado. O professor de
nossa turma até nos deu um aviso explícito sobre a situação,
dizendo para não levarmos nenhum duelo nesta época do ano como
casualidade. Ele também incentivou aqueles que não eram
confiantes em suas habilidades de autodefesa a andar o tempo todo
em grupos.

Na verdade, o Mestre Fitz também me disse para tomar cuidado.


Parecia pensar que algumas garotas poderiam me desafiar para um
duelo com falsos pretextos, alegando que elas só queriam duelar
com um mago poderoso. Seu conselho foi de recusar
categoricamente, ignorando suas tentativas de me provocar e
deixando a área o quanto antes, sem baixar minha guarda em
qualquer momento.

Garotas no cio, hein…?

Nos velhos tempos, eu poderia ficar tentado a duelar com cada


uma delas e formar um harém. Mas na minha atual condição, eu
estaria só esfregando sal nas minhas feridas. A temporada de
acasalamento era um evento do qual eu não participaria tão cedo.
Vou deixar isso para aqueles jovens ali. Está vendo? O garoto
humano e sua namorada elfa, que estão “estudando” enquanto ela
senta no colo dele? Aquela mulher fica o ano todo no cio.

Sério, aqueles dois nunca descansam. Eu podia praticamente ver


os corações flutuando sobre as suas cabeças. Mesmo assim… Cliff
era um cara muito mais novo, mas me parecia que Elinalise estava
o tratando da mesma maneira que tratava todos os seus outros
amantes. Eu não ia dizer nada, é claro, mas essa coisa toda ainda
me parecia uma farsa. Os dois iriam mesmo dar certo?

Em algum momento, enquanto eu observava Cliff e Elinalise se


divertindo, Zanoba se aproximou da minha mesa.

— Mestre, você não acha que está na hora de iniciar uma nova
criação?

— Uma nova criação, hein…? — Até alguns dias atrás, eu estava


trabalhando em uma estatueta de escala 1:8 de Eris, um tipo de
exercício terapêutico, mas acabei chorando tanto que tive que parar
no meio do serviço. Desde então, não consegui me motivar a fazer
nada. Eu tinha entrado em uma pequena crise sem nem perceber.
— Aham, acho que você tem razão. Alguma ideia?

— Fazer algum tipo de animal ou monstro talvez seja uma boa


mudança.

— Hmm, claro. Acho que um Wyrm Vermelho pode ser legal.

— Ah! De fato! Aquele monstro que você uma vez derrotou


sozinho, sim?
— Aham. A propósito, não foi fácil. Pensei que com certeza
morreria.

— Hahaha. Você é tão modesto.

— Mestre Zanoba, do que você está falando?

Julie parecia um pouco curiosa, então a contei toda a história da


minha batalha contra um Wyrm Vermelho errante durante os meus
dias de aventureiro. Em pouco tempo, seus olhos começaram a
brilhar e seu rosto ficou corado de excitação. As crianças deste
mundo pareciam adorar esse tipo de história. Isso era algo fácil de
esquecer, mas ela ainda tinha só seis anos.

— Hm, então tá. Por que não faço uma estatueta do Wyrm
Vermelho para você, hein Julie?

— O quê…? M-Mestre, e quanto a mim? Você não vai fazer nada


para mim?!

— Zanoba, você deveria ser meu aluno, certo? Que tal se você
me ajudar a fazer isso?

— Ah! Claro, Mestre! Vou ajudar de todas as maneiras que eu


puder.

Sério, esta vida não era ruim. Ultimamente eu não estava nas
melhores das minhas condições, mas pelo menos estabeleci uma
rotina decente. Minhas aulas de magia Divina e de Barreira de nível
Iniciante terminariam em breve, e eu tinha que decidir o que fazer
depois. Talvez Desintoxicação de nível Intermediário? Até o
momento eu tinha me saído bem com os feitiços de nível Iniciante.
Não parecia haver necessidade de aprender qualquer coisa mais
avançada do que isso.

Eu sempre poderia optar pela Cura Avançada. Mas, mais uma


vez, me senti relativamente satisfeito com meu atual nível de
especialização nisso. Os feitiços Intermediários eram o suficiente
para lidar com a maioria das situações.

E também havia os Encantamentos, com os quais eu nunca tinha


lidado antes. Era tecnicamente uma forma de magia de Invocação,
então talvez fosse algo mais relevante para a minha pesquisa. Pelo
que ouvi, porém, envolvia principalmente aprender como criar vários
implementos mágicos. Eu ainda não tinha certeza do que isso tinha
a ver com Invocação… mas pelos menos seria alguma novidade.

Claro, eu estava livre para não ir para nenhum tipo de aula nova.
No lugar disso, poderia só passar mais tempo na biblioteca.
Comecei a sentir que havia chegado a um gargalo ao pesquisar o
Incidente de Deslocamento, mas poderia ser interessante tentar
aprender mais idiomas. Se eu seguisse por esse caminho, poderia
tentar pedir para o Cliff me ensinar magia Divina enquanto… Mas,
nos últimos tempos, ele passava o tempo todo com Elinalise.
Provavelmente seria melhor deixá-los sozinhos por algum tempo. Eu
não queria me tornar um estorvo.

Talvez pudesse tentar ir em uma direção completamente oposta


e aprender algo não relacionado a magia. Andar a cavalo, para
começar, poderia ser divertido…

Os dias passaram pacificamente enquanto eu tentava me decidir.

✦✦✦✦✦✦✦
E então, de repente, as coisas não estavam mais tão pacíficas.

— Acho que você é o Rudeus Atoleiro, o aventureiro de rank A


que matou um Wyrm errante sozinho! Eu o desafio para um duelo
matrimonial, senhor!

No meu caminho para a biblioteca, me encontrei recebendo um


desafio.

Virei e me deparei com uma linda garota. Sua pele era


bronzeada e seu sedoso cabelo azul-escuro estava preso em um
rabo de cavalo bem cuidado. Ela parecia ter 17 ou 18 anos. Tinha
um rosto forte e digno, e seus lábios estavam franzidos com força,
poderia dizer à primeira vista que fazia o tipo de “lady guerreira”. Em
vez de um uniforme escolar, ela usara uma roupa leve de
espadachim, com um impressionante tom azul-profundo.

Seu busto era bem modesto, mas seus músculos eram


impressionantes. Não parecia uma fisiculturista nem nada assim,
mas era óbvio que estava em muito boa forma. Em sua cintura
estava uma espada longa e curvada – o tipo mais usado pelos
espadachins do Estilo Deus da Espada.

A garota estava olhando na minha direção.

Para ser mais preciso, estava encarando, surpresa, a pessoa


bem na minha frente – o grande e peludo homem-fera que acabara
de me desafiar para um duelo.

Aham. Esqueci de mencionar o homem-fera do tipo canino, um


dos musculosos, mas foi ele quem gritou. Não parecia nem um
pouco com um mago. A garota com a espada provavelmente só
estava passando. Dada a época do ano, podia ter pensado que ele
estava falando com ela.

— Uhm…

Bem, enfim. Por enquanto vamos esquecer a garota bonita.

Havia um problema bem mais básico. Eu era um cara, e esse


cara também era um cara, e o cara tinha acabado de desafiar outro
cara para um duelo entre caras. Isso foi um pouco estranho.

— Um duelo matrimonial? Tipo… uma daquelas coisas em que


depois você se casa?

— De fato!

Gaah…

— Sinto muito… Não sei se existe algum rumor ou coisa do tipo,


mas vou ser sincero. Não estou nada interessado nesse tipo de
experiência. Terei que recusar a sua oferta.

O homem-fera contraiu as orelhas.

— Você parece não entender a situação.

— Ah não, já é tarde demais? Sabe, na verdade, hoje eu tenho


aula de piano. Vou ter que sair, sinto muito…

Após recusar a oferta, me virei e comecei a me afastar,


ignorando a sua tentativa de continuar com a conversa. Em outras
palavras, segui o conselho de Fitz ao pé da letra.

— Espere aí!
Mas, para a minha surpresa, meu novo amigo peludo deu um
pulo, subiu vários metros acima da minha cabeça e pousou bem à
minha frente com um baque poderoso. O cara saltou igual um
mecha de Junta Reversa. Ele poderia ser como um Dragoon bem
sólido.

— Você não tem o direito de recusar. Meu nome é Brook Adoldia!


Vim duelar pela mão da Senhorita Pursena em casamento, para que
um dia possa me tornar o líder da minha tribo!

— Uh, a Pursena vai ficar descansando no dormitório até que


essa coisa toda de temporada de acasalamento acabe. Será que
você não poderia esperar?

— Mandei uma carta com antecedência à Senhorita Pursena,


informando as minhas intenções! Ela explicou que agora você é o
chefe da matilha dela. Fiquei sabendo sobre a sua destreza como
guerreiro por Sir Gyes, e ouvi dizer que até mesmo matou um
dragão errante sozinho. É claramente o homem mais forte desta
Universidade. Você deveria ser um oponente digno para mim!

Certo, eu não tenho nada a ver com isso… Sou um mago, não
um espadachim…

— O que acontece se eu recusar?

— Como líder da matilha, você é obrigado a lutar comigo! —


Precisei de um momento para tentar juntar as peças.

Depois que consegui derrotar Linia e Pursena em uma briga há


algum tempo, elas começaram a me chamar de chefe. Pelo visto,
era necessário derrotar o chefe de uma “matilha” se quisesse se
casar com alguém que pertencesse a ela. Então se esse cara me
vencesse em uma luta… seria capaz de reivindicar Pursena como o
prêmio?

Eu não tinha a menor intenção de ser o chefe de qualquer


matilha, mas senti que o cara não se importaria com isso. Isso era
algo primitivo do reino animal. Se eu perdesse a luta, perderia minha
posição de chefe e Pursena se casaria com esse cara peludo
aleatório.

— Então… à batalha!

Brook não esperou por nenhuma resposta minha. Uivando com


ferocidade, avançou contra mim.

— Atoleiro.

Como ele estava seguindo na minha direção em linha reta,


correu direto para o meu pântano…

— Canhão de Pedra.

E um projétil de pedra bem mandado o nocauteou.

Bem anticlimático. Parecia que latia mais do que mordia.


Basicamente o derrotei por reflexo ao invés de pensar no assunto,
mas, parando para pensar, não era como se eu tivesse muitos
motivos para deixar que vencesse. Para começar, Pursena não
parecia estar interessada em se casar com ninguém no atual
momento.

Bem, isso ao menos explicava aquela carta que elas me


enviaram. Eu não estava muito feliz com as duas jogando isso nos
meus ombros, mas poderia lidar com alguns desses caras sem
qualquer problema. Provavelmente não seria grande coisa.

Meus sentimentos a respeito do assunto mudaram nos minutos


seguintes, quando fui atacado em cinco ocasiões no meu caminho
para a biblioteca.

Parecia que metade da tribo Doldia estava esperando


ansiosamente por esse dia. Linia e Pursena estavam em alta
demanda. Afinal, o que havia de tão atraente naquelas duas? Seus
corpos, talvez? Mas isso não fazia muito sentido. Muitos desses
homens provavelmente nunca tinham as visto em pessoa. Devia ser
essa coisa toda de “princesa”. Afinal, o primeiro cara mencionou
algo sobre se tornar o líder da tribo.

Ser o número um era tão importante assim para eles? O que era
isso, uma tribo cheia de Starscreams?

Pelo jeito das coisas, tinham até elaborado uma ordem para me
desafiar. Um cara tentou entrar no meio do caminho e gritaram com
ele por “cortar a fila”. Talvez fosse mais uma daquelas traduções do
povo-fera ou coisa do tipo.

Por sorte, não chegaram a me perseguir biblioteca adentro. Acho


que a administração deixou claro que não tinham permissão para
invadir qualquer uma das instalações da escola… ou o povo-fera
também teria alguma regra antiga a respeito disso.

De qualquer forma, isso não me importava. Eu pelo menos


poderia conseguir me refugiar por algum tempo.

✦✦✦✦✦✦✦
Algumas horas depois, na caída da noite, Fitz também apareceu
na biblioteca. Seu olhar era um pouco reprovador.

— Essa é uma cena e tanto, Rudeus. O que você fez para


chatear aquelas pessoas todas?

— Nada. Só querem me derrotar para se casar com a Linia ou


Pursena.

— Espera, o quê?

Enquanto Fitz piscava, confuso, comecei a explicar todos os


detalhes desagradáveis sobre a minha condição de “chefe” e a
maneira como as tradições do povo fera pareciam funcionar.
Quando terminei, Fitz estava carrancudo.

— Isso não faz sentido algum. Você não é o líder da tribo Doldia
nem nada. Quem se importa se uma vez você as derrotou em uma
luta? Isso não significa que tem o direito de entregá-las como
prêmios para algum estranho qualquer.

Verdade. Se eu tivesse tanto poder sobre elas, não me


arranhariam no rosto toda vez que eu tocasse as suas pernas.

— Você está certo. Mas como faço para convencer as pessoas lá


fora?

Fitz colocou a mão no queixo e balançou a cabeça lentamente.

— Você tem todo o direito de apenas ignorá-los, sério… mas


pode ser mais difícil do que derrotá-los em uma luta. Assim devem
desistir e voltar para casa.

— Então, no final das contas, vou ter que duelar com eles…?
— Isso provavelmente seria o melhor.

Fácil para ele dizer. Eu não estava certo de quantas pessoas


estavam me esperando do lado de fora, mas, pelo som, estavam na
casa das dezenas. E, claro, era uma multidão de machões grandes
e fedorentos que queriam mandar na própria tribo. Eu teria que
deixar todos eles inconscientes.

— Realmente prefiro não adotar a violência como uma rotina


diária, sabe.

— Eu sei disso, Rudeus. Mas, a menos que você faça algo a


respeito, ficará preso aqui para sempre. Ah, e eles também podem
perder a paciência e invadir. Não queremos que baguncem a
biblioteca, queremos?

— Aham, acho que você tem razão. Ugh… exatamente o que eu


precisava, um torneio de luta contra uma horda de homens peludos
e suados… — Eu não conseguia encontrar nenhuma outra opção,
não importa o quanto tentasse. Isso soava como um pé no saco.

— Uhm, na verdade, não são só homens. Vi uma garota lá no


meio.

— Isso é sério? Ela é bonita?

— Rudeus… Por favor, não me diga que você vai aceitar esse
duelo.

— Não, não. Claro que não. Uh…

Balancei a minha cabeça, principalmente para que Fitz parasse


de me encarar. Mesmo assim, fiquei um pouco intrigado. Eu queria
ao menos saber como ela era. E onde tinha ouvido falar sobre mim.

— Só fiquei curioso, isso é tudo.

Quando alguém expressa interesse, é perfeitamente natural que


a pessoa também fique um pouco intrigada. Não era como se as
coisas pudessem ir muito longe até que minha condição fosse
curada, é claro.

— Eh? Você ficou curioso, hein? Hmm. — Por algum motivo, Fitz
parecia insatisfeito comigo. Ele tinha me feito um discurso sobre
aceitar duelos com outras garotas no outro dia, então…

Ah, talvez o Luke tivesse se metido em problemas parecidos em


algum momento, não? Aham, isso fazia sentido. Fitz devia ter sido
forçado a resolver as coisas, então ficou irritado ao me ver tratando
a situação de forma tão casual.

— Bem, isso não importa — falei. — Parece que todos os anos


isso causa bastante caos, hein? O conselho estudantil não pode
fazer nada?

— Não intervimos em nada relacionado à temporada de


acasalamento. Se tentássemos proibir, as coisas provavelmente só
iriam piorar.

Pelo que Fitz me disse, o conselho estudantil já ficava de mãos


cheias nesta época do ano. Durante esta época caótica,
concentravam a maior parte de suas energias na proteção dos
alunos menos proficientes em combate, fazendo coisas como
patrulha do campus em grupos pequenos e impedir qualquer
conduta inadequada que encontrassem antes que as coisas
saíssem do controle. Na verdade, Fitz estava escalado para
participar de uma dessas patrulhas naquela mesma noite.

— Então você está tentando proteger a paz, certo? Então poderia


me ajudar muito!

— Ah, por favor. Por que você não cuida disso sozinho, Rudeus?
Não acho que você precisa da nossa ajuda.

A voz de Fitz, por algum motivo, não estava muito amigável. Falei
algo que o aborreceu? Espera… ele talvez estivesse pensando no
que aconteceu durante o meu exame de entrada. Alegou que a
minha vitória não o incomodava, mas se eu começasse a fugir de
lutas como essas, as pessoas poderiam pensar que ele perdeu para
um covarde. Isso não seria nada bom para a sua reputação.

Fitz, recentemente, tinha me ajudado muito. Eu ainda não estava


lá muito entusiasmado com isso tudo, mas lhe devia algum esforço.

— Então tá bom. Pelo bem do seu bom nome, Mestre Fitz, irei
massacrar todos eles.

— O quê?! Não os mate , Rudeus!

— Foi só uma piada. Sinto muito.

As pessoas levavam esses duelos a sério, mas havia uma regra


tácita de que ninguém deveria morrer neles. Ainda assim, podia
haver um ou outro lutador poderoso esperando por mim no meio da
multidão. Eu não poderia ser descuidado.

Por fim resignado com o meu destino, saí da biblioteca pela


primeira vez em várias horas.
— Que merda é essa…?

Fui recebido por uma cena um tanto surpreendente. Dezenas de


corpos jaziam espalhados pelo chão, moles e imóveis. Parecia que
eu tinha entrado em um campo de guerra ou coisa do tipo.

Eram todos homens-fera de várias raças, formas e tamanhos.

Alguns usavam uniforme escolar, mas a maioria não.

Ah, espera. Também tem uma garota.

Era a espadachim que eu tinha visto antes. Ela tinha sido pego
no meio da confusão? Ou talveeeeeeez… estava o tempo todo
caidinha por mim?

Enquanto eu refletia sobre essa questão de extrema importância,


uma explosão de risadas cortou o ar.

— Bwahahahaha!

Um homem ergueu-se entre os caídos, segurando o último de


seus inimigos com uma das mãos.

— Dou crédito a vocês por me desafiarem, meus jovens amigos!


Foi uma decisão realmente ruim de sua parte, sim, mas uma
decisão corajosa! Os alunos desta “Universidade de Magia” com
certeza têm alguma coragem!

Fitz e eu ficamos congelados no lugar, boquiabertos graças ao


espanto. Após alguns segundos, finalmente consegui tentar soltar
um “Uhm…”

Jogando o último oponente de lado, o homem se virou para nós.


— Ohoh! Esses jovens disseram para derrotá-los se eu não
quisesse esperar a minha vez, então fiz isso! E agora você veio ao
meu encontro, conforme o cronograma! Excelente, excelente! Gosto
de homens que cumprem com a palavra!

Logo à primeira vista ficava óbvio que este homem era um


demônio. Sua pele era negra como obsidiana e tinha seis braços.
Os de cima estavam dobrados, os do meio apontados para nós e os
de baixo descansavam em seus quadris. Seus longos cabelos, que
iam até a cintura, eram de um interessante tom de roxo.

— Sou o Rei Demônio imortal, Badigadi!

Ele acabou de se chamar de Rei Demônio? Estávamos


pensando sobre o mesmo tipo de Rei Demônio? Tipo, o cara que sai
sequestrando jovens garotas das aldeias mais próximas para
satisfazer seus desejos perversos? O cara que pode fazer o que
bem entender, contanto que enfrente o “herói” que às vezes pode
aparecer para matá-lo?

Sim, provavelmente não.

A questão mais importante no momento era: o que diabos um Rei


Demônio estava fazendo ali?
— Vejo que você tem o Olho da Previsão, garoto! Então você
deve ser Rudeus Greyrat! Ouvi minha noiva falar sobre você, a
Imperatriz Demônio Kishirika!

Bem, no momento ele estava marchando em minha direção…

— Te desafio a um duelo!

Certo. Bem, ele ao menos sabia como ir direto ao ponto.


Infelizmente, eu ainda não fazia ideia do que diabos estava
acontecendo. Será que iria me deixar em paz se eu oferecesse duas
jovens donzelas ligeiramente peludas como sacrifício…?
Capítulo 04:
O Noivo Insensível (Parte 02)
A novidade se espalhou pelos países próximos à Universidade
de Magia de Ranoa com notável velocidade: Um Rei Demônio
apareceu.

Normalmente, a notícia sobre um Rei Demônio chegaria muito


antes dele. Mas este em particular se moveu tão rápido que só
descobriram no momento em que ele já estava cruzando os
territórios. Os governantes dessas nações entraram em um estado
de confusão e pânico.

Isso era compreensível. Como regra básica, os Reis Demônios


nunca se aventuraram além do Continente Demônio. Há muito
tempo houveram dentre eles aqueles guerreiros e agressivos, é
claro, mas, durante a Guerra de Laplace, séculos atrás, foram todos
praticamente exterminados. Os sobrevivente que agora governavam
o Continente Demônio eram pacíficos ou cautelosos por natureza e
desinteressados em conflitos.

hmmm, calma, deixa eu ver esse trecho aí do Fitz Entretanto,


independentemente de suas personalidades, esses reis ainda eram
poderosos o suficiente para assumir o controle de um pedaço de
terra no terrível Continente Demônio. Se um deles decidisse atacar
o território humano, o dano seria incalculável. Ranoa, Neris e
Basherant mobilizaram uma reação instantânea à chegada de
Badigadi, despachando todos os cavaleiros disponíveis para
interceptá-lo; eles também pediram pela assistência da Guilda dos
Aventureiros. Mas as suas forças ainda estavam a alguma distância
da Universidade de Magia.

Como um paliativo emergencial, as pequenas unidades de


soldados das Nações Mágicas já guarnecidas na cidade de Sharia
se juntaram a todos os aventureiros locais e membros da Guilda
Mágica e cercaram o campus. Se o pior acontecesse, receberam
ordens de atrasar o Rei Demônio até que as forças principais
pudessem chegar.

Entretanto, o propósito do Rei Demônio ao ir até o local seguia


sendo um completo mistério. E não era difícil identificar quem era
ele. Existia apenas um Rei Demônio com pele negra e seis braços:
Badigadi, o Imortal. Ele era um dos reis ancestrais que viviam desde
antes da Guerra de Laplace. Seu poder mais notável, como seu
nome sugeria, era a literal indestrutibilidade. Graças à sua natureza
pacífica, pouco se sabia sobre suas capacidades de combate, mas
alguns historiadores acreditavam que ele já havia lutado até mesmo
contra o próprio Laplace. Isso significava que mesmo o temível
Deus Demônio falhou em destruí-lo por completo.

Por que, do nada, essa pessoa apareceu na Universidade de


Magia de Ranoa? E por que vagou pelo campus, nocauteando tanto
os alunos inocentes quanto visitantes do povo-fera enquanto
caminhava?

Demoraria um pouco até que alguém soubesse as respostas


para essas perguntas.

Ponto de vista do Rudeus


Eu, no momento, estava parado no centro do Campo de
Treinamento Mágico Avançado da Universidade… que era o nome
que davam para um pátio vazio. Diante de mim estava o Rei
Demônio Badigadi. Mantive minha cabeça erguida e cruzei os
braços, tentando projetar um pouco de confiança, mas, para ser
bem honesto, eu estava meio que pirando. Mas alguém poderia me
culpar por isso? Quanta calma poderia manter ao ser encarado
dessa forma por um gigantesco demônio de seis braços?

Certo, tudo bem. Recentemente, passei a sentir que eu era muito


poderoso. Preciso admitir. Mas estávamos falando sobre um Rei
Demônio. Isso estava um par de níveis acima do que alguém muito
poderoso poderia lidar. Parecia que o universo estava me punindo
por ficar presunçoso. Eu queria fugir correndo para a colina, sério.

Olhei para trás e vi que atraímos uma enorme multidão de


curiosos. Parecia uma mistura equilibrada de alunos homens e
mulheres, e também um bom número de professores. Se eu der
meia-volta e correr, o que vão pensar de mim?

Refletindo, eu na verdade não dava a mínima para isso. Mas já


parecia ter perdido a minha chance de fugir.

Alguém de repente rompeu a multidão de espectadores e trotou


em minha direção enquanto corria. Era um velho que usava uma
peruca ligeiramente chamativa. Mas ela servia para ele.

— O Jenius me contou sobre a situação. Sinto muito, mas


poderia nos dar algum tempo? Estamos reunindo as nossas forças o
mais rápido possível.

Com isso dito, ele se virou e voltou para a multidão.


Afinal, quem deveria ser esse cara? Senti como se já tivesse o
visto em algum lugar. Bem, não estava lembrando onde, mas ao
menos entendi o que ele estava tentando me dizer. O vice-diretor
Jenius estava ciente da situação e iria me tirar dessa bagunça se eu
conseguisse enrolar por tempo suficiente. Às vezes era bom ter
contatos com pessoas influentes.

— Hrm — disse Badigadi, olhando-me com todos os braços


cruzados. — O garoto com certeza está demorando…

— Acho que não vai demorar muito — respondi.

No exato momento, Fitz estava procurando meu querido cajado,


Aqua Heartia. A meu pedido, Badigadi concordou em esperar até
que eu o tivesse em mãos. Eu não esperava que Fitz fosse demorar
tanto. O meu dormitório não ficava muito longe da biblioteca, e eu
tinha deixado o cajado de pé ao lado da minha cama, com um pano
sobre ele. Deveria ser fácil de encontrar.

— Mm. Corri para cá porque sei que vocês, humanos, estão


sempre com pressa, mas você parece estar bem tranquilo, garoto.
Não esperaria menos de alguém que intrigou a minha noiva.

— Sua noiva… com isso você quer dizer, uh… Imperatriz


Kishirika, sim?

— De fato — concordou Badigadi.

Claro, eu não tinha me esquecido da Imperatriz Demônio


Kishirika Kishirisu. Foi ela quem me deu o meu Olho Demoníaco. No
começo não acreditei que ela fosse a coisa verdadeira, e sua partida
foi tão abrupta que fiquei chocado demais para entender o que tinha
acontecido…

Ainda assim, por que diabos o noivo dela estava aparecendo


para lutar comigo neste momento, depois de tanto tempo? Com
certeza não estava procurando se casar com Linia ou Pursena.

— Sabe, sua Majestade, só tive uma breve conversa com a


imperatriz. Mesmo ela tendo me dado este Olho Demoníaco.

— Bem, ela está sempre falando sobre como você é


impressionante, garoto! Já faz muito tempo desde que ouvi ela falar
de alguém com uma voz tão entusiasmada. Sou um homem muito
tolerante, claro, mas admito que fiquei com um pouco de ciúme!

Ciúmes? Sério? Não era como se eu tivesse feito nada com ela,
certo? Por que ele estaria com raiva de mim? Foi por causa daquela
piada que fiz sobre querer fazer com ela? Mas aquilo não tinha
significado nenhum. E ela até me recusou porque tinha um noivo…
que seria esse cara. Certo.

— N-não há nada de especial em mim, isso te garanto — falei


com a voz mais calma que pude usar. — Sou só um projeto triste e
lamentável de homem, sério. Não posso imaginar por que um Rei
Demônio como você sentiria ciúmes de mim… a Imperatriz Demônio
deve ter exagerado um pouco.

Badigadi respondeu explodindo em gargalhadas, como se eu


tivesse contado uma piada verdadeiramente hilária.

— Bwahahahaha! Não precisa ser modesto, garoto! Já ouvi tudo


sobre você e esse surpreendente reservatório de mana que possui.
Surpreendente parecia uma palavra forte. Sim, estava ficando
óbvio que eu tinha muito mais mana do que a maioria das pessoas.
Mas com certeza não era nada impressionante o suficiente para
deixar um verdadeiro Rei Demônio com ciúmes… certo?

Pensando bem, entretanto, Kishirika também fez alguns


comentários a respeito disso. Quais foram as suas palavras exatas?
Tudo que eu conseguia me lembrar era dela gargalhando sem
qualquer motivo aparente…

— Uh… bem, sim. Parece que tenho um pouco mais de mana do


que a maioria das pessoas.

— Ahahahaha! “Um pouco mais”, eh? Sim, de fato! — Badigadi


começou a gargalhar por algum tempo. Depois, abruptamente ficou
em silêncio e caiu no chão com um baque forte. — Sente-se, garoto.

Sentei na mesma hora. Badigadi continuava enorme, até mesmo


sentado. Parecia que eu estava conversando com uma montanha
de músculos. Era uma pena que não fui abençoado com aquele tipo
de físico.

— Parece que você não entende o que significa ser chamado de


“surpreendente” pela Imperatriz Demônio Kishirika Kishirisu.

— Bem, então acho que não…

— Ela me disse que você tinha uma quantidade incrível de mana.


Até mesmo mais do que Laplace. E é a primeira vez que ela diz isso
sobre alguém.

Laplace? Tipo… o Laplace?


Pelo visto, eu tinha mais mana do que um Deus Demônio. Sério,
isso não me parecia verdade. Fazia muito tempo que eu não ficava
sem mana, é verdade, mas não era como se meu corpo estivesse
transbordando poder ou algo assim.

— O Deus Demônio Laplace tinha uma das maiores reservas de


mana da história. Em outras palavras, a sua também é uma das
maiores de todos os tempos.

— Ah, vamos lá. Isso não pode ser verdade.

Apesar dos meus modestos protestos, meu coração ainda pulou


de excitação. Afinal, eu estava conversando com um Rei Demônio,
alguém com séculos de experiência em batalha. Meio que parecia
que era um atleta profissional me dizendo que eu tinha “potencial”
ou coisa do tipo.

— Eu mesmo não sei a verdade sobre isso. Afinal, Kishirika


tende a de vez em quando ser um pouco desleixada. Existe a
chance de ela ter te julgado mal.

Enquanto dizia essas palavras, a expressão de Badigadi ficou


ligeiramente azeda. Será que estava lembrando de algum erro grave
que sua noiva cometeu no passado? Para ser honesto, ela parecia
ser o tipo de pessoa que cometia alguns erros descuidados.

— Bem, admito que fiz um esforço para aumentar minha reserva


de mana ao longo dos anos. Mas não sei nada sobre isso de ter
mais mana do que qualquer outra pessoa da história. Isso não
significa que, se treinasse como eu, qualquer um poderia quebrar o
recorde?
— Não. Normalmente, isso seria impossível.

Então talvez tivesse algo a ver com o fato de eu ter reencarnado


de outro mundo? Ou o Deus-Homem talvez tivesse “trapaceado”
para mim sem que eu percebesse…

— Há uma coisa que eu gostaria de lhe perguntar, sua


Majestade. Caso não se importe.

— O que é? Sinta-se à vontade para fazer qualquer pergunta.

— Uh, só para deixar claro, eu não sou um lacaio da pessoa que


estou prestes a nomear. Então apreciaria muito se você não me
atacasse do nada.

— Já concordei em esperar, garoto. Um Rei Demônio nunca


quebra uma promessa.

Sério? Bem, é bom ao menos perguntar. Vou acreditar na sua


palavra, viu? Sem violência, por favor…

— O nome Deus-Homem significa alguma coisa para você?

— Onde você ouviu esse nome, garoto…?

— Ele é alguém que às vezes aparece em meus sonhos.

Cruzando os braços, Badigadi começou a acariciar o queixo,


pensativo.

— Hmm, entendo. Seus sonhos, eh?

— Você sabe algo sobre ele, sua Majestade?

Badigadi parou por um momento, aparentemente imerso em


pensamentos, então balançou a cabeça.
— Não sei! Acho que já ouvi esse nome, mas não lembro onde!
Já devem ter passado ao menos alguns séculos desde que alguém
falou dele para mim.

— É mesmo? De qualquer modo, muito obrigado. — Alguns


séculos… isso é meio vago. Acho que ele não tem a melhor das
memórias…

— Sem problemas! Se eu me lembrar, te aviso! Bwahahahahaha!

— Aprecio isso.

— Você é tão chato, garoto. Ria comigo ao menos uma vez!


Bwahahahaha!

Badigadi com certeza parecia um homem que gostava da vida.


Eu não disse nada especialmente engraçado em toda a conversa,
mas ele nunca parou de rir.

Me peguei lembrando da noite em que conheci Ruijerd. Nossa


primeira conexão em um nível mais pessoal foi ao compartilhar uma
risada, não é? O riso talvez estivesse funcionando como um tipo de
linguagem comum. Se a pessoa com quem eu estava falando
estava rindo, provavelmente foi rude não reagir da mesma maneira.

Tudo bem então, vamos fazer isso.

— Bwaaahahahahahaha!

— Bom! É assim mesmo, garoto! É como Kishirika sempre diz:


ria primeiro, pense depois! Pensando bem, ela estava rindo da
última vez que morreu, não estava?! Bwahahahaha!
Badigadi riu mais uma vez. Apesar de sua aparência
assustadora, ele não parecia um cara tão mau.

Enquanto ríamos, o grupo de espectadores atrás de nós


começou a ficar um pouco turbulento. Me virei para ver o que estava
acontecendo. Parecia haver algum tipo de comoção no meio da
multidão. Eu mal conseguia distinguir os sons das vozes gritantes.

— Deixe-me ir! Preciso entregar o cajado dele!

— Já chega! Se você entregar, ele terá que começar o duelo!

— Mas e se o duelo começar de qualquer forma? Você vai só


ficar aqui e deixá-lo morrer?!

— N-não é isso que eu…

— Deixe comigo!

— Ah! Zanoba!

— Zanoba Shirone?! Solte-me! Solte… Ai! Ai, ai, ai!

Mestre Fitz de repente se libertou da multidão e correu em minha


direção com uma velocidade feroz. Esse cara tinha os pés muito
rápidos. Ele devia se mover umas três vezes mais rápido do que eu.
Talvez devêssemos pintá-lo de vermelho e colocar um chifre na sua
cabeça…

— Hah… hah… Desculpa, Ru… Rudeus. Os professores


tentaram me impedir… — Ofegante, Fitz parou na minha frente.
Estava abraçando o meu cajado.

— Você é, uh… um corredor e tanto, Fitz.


— Hein…? Hah… Não. É só que meus calçados são itens
mágicos…

Olhei para as botas que Fitz parecia estar sempre usando. Nem
tinha percebido que elas eram de natureza mágica. Sua capa
também devia ser encantada, não? Ele nunca a tirava, mesmo
quando estava bem quente.

— Sério mesmo? Esses óculos de sol também são mágicos?

— Hah… hah… Ah, eles. Sim, são… uh, espera. Foi mal, isso é
segredo… — Fitz riu baixinho e sorriu embaraçado.

Afinal, por que esse cara tinha que parecer tão fofo enquanto ria?
Ele estava fazendo algo de estranho com meus batimentos
cardíacos.

— Hah… Enfim, aqui está. Boa sorte, Rudeus… só não se force,


tá? Se perceber que não pode vencer, peça desculpas e fuja. Você
vai enfrentar um Rei Demônio. Ninguém vai te culpar. A sua vida é
mais importante do que o seu orgulho.

Balançando a cabeça, peguei o Aqua Heartia de Fitz. Já fazia um


tempo desde que travei uma batalha real com essa coisa em minhas
mãos. Vamos fazer o que pudermos, parceiro. Se conseguirmos sair
dessa inteiros, vou direto para casa e me casar com minha amada
Salada de Abacaxi…

Usando uma bandeira de morte qualquer só por fazer, puxei o


pano de Aqua Heartia. Fitz soltou um suspiro de surpresa. Um
pensamento malicioso surgiu na minha cabeça e me vi incapaz de
resistir.
— Fitz, dê uma olhada na pedra mágica no meu cajado… O que
acha?

— E-ela é bem grande…

Ah, nossa. Acho que algo lá embaixo deu um beliscão. O que


será?

Bem, chega de brincar.

Badigadi já havia se levantado e estava alegremente flexionando


todos os seis ombros. Consegui ganhar tempo suficiente? Parecia
improvável. Mas eu não fazia ideia de como deveria conversar com
ele por tempo suficiente para que todos os soldados da cidade
fossem reunidos, sério.

Fitz trotou de volta para a multidão, parecendo um pouco


relutante em me deixar. Pessoalmente, não me importaria se ele
ficasse por perto. Algum substituto poderia ser bom nesse momento.
Sério. Ajuda? Por favor?

— Está pronto, garoto?

— Para ser sincero, eu preferia passar mais algum tempo


jogando conversa fora…

— Bwahahahaha! Sobra tempo para fazer isso depois!

Isso significava que ele não iria me matar? Não, fazer suposições
não seria seguro. Esse cara parecia ser descuidado o suficiente
para acidentalmente destruir a minha cabeça, assumindo que
qualquer um com muita mana poderia levar um ou dois golpes.

Eu considerei dizer algo. Pedir um duelo não letal machucaria…?


Badigadi ficou ali casualmente, com as mãos na cintura. Pelo
jeito das coisas, não começaria me atacando. Talvez estivesse
esperando que eu sinalizasse o início da luta. Apenas por
precaução, ativei o meu Olho da Previsão.

— Hein…?

Para a minha surpresa, isso me mostrou… nada. Não havia


literalmente nada parado onde eu sabia que Badigadi estava.

— Por que você está tão surpreso, garoto? Ah, entendi. Você já
está testando o Olho Demoníaco que a Kishirika te deu, certo? Foi
mal, mas essas coisas não funcionam comigo. — Badigadi deixou
um suspiro de orgulho escapar ao anunciar isso sem qualquer
cerimônia.

Espera aí, é sério? O Olho Demoníaco é completamente inútil


contra ele? Acho que deveria ter esperado ao menos isso de um Rei
Demônio… Isso com certeza era um problema. Minhas chances de
evitar um golpe fatal haviam diminuído drasticamente. Eu não era
nada de especial, fisicamente falando; se ele me batesse no lugar
errado, isso poderia ser o meu fim.

— Sua Majestade…

— Badi já está bom. Permito que aqueles que riem quando eu


peço que me chamem por esse nome.

— Rei Badi, então. Tenho um pedido a fazer.

— Que tipo de pedido?


— Gostaria de pedir que poupe a minha vida, mesmo se eu
perder este duelo.

Badigadi voltou a cair na gargalhada.

— Bwahahahaha! Implorando por sua vida antes mesmo de


começarmos? Você nunca para de me divertir!

— Bem, uma vida é uma coisa trágica de se perder, não acha?


— falei.

— Ah, sim. Vocês, humanos, morrem com um espirro! Ouvi que


muitos de vocês sentem isso aí! — O Rei Demônio respondeu com
uma gargalhada. — Mas por que você tem tanta certeza de que vai
perder? Alguém poderia pensar que uma grande reserva de mana
daria a um homem ao menos alguma confiança.

— Há não muito tempo quase fui morto por alguém chamado


Deus Dragão. Provavelmente deve ser esse o motivo.

A risada de Badigadi parou abruptamente.

— O Deus Dragão? Você quer dizer Orsted? Você lutou com ele
e sobreviveu?

— Foi por um fio. Se ele não tivesse me poupado por algum


capricho, eu não estaria aqui.

O rosto do Rei Demônio de repente ficou muito sério. Isso


parecia menos do que ideal. Acabei baixando a minha guarda
quando ele não reagiu ao nome do Deus-Homem. E se fosse Orsted
que eu não devesse mencionar? Mas que descuido…
— Diga-me, garoto. Você foi capaz de ferir o Deus dragão na
luta, mesmo que pouco?

— Hã? Sim, eu acho. Consegui arrancar um pouco de pele da


palma da sua mão. Mas isso foi tudo.

Badigadi fechou a boca com força e olhou para mim com


ferocidade. O efeito foi ligeiramente intimidante.

Ah qual é, por que não começamos a rir de novo? Bwahahaha…

— Nesse caso, eu gostaria de fazer uma proposta.

— A-ah, sério? — falei com o máximo de humildade, observando


a expressão de Badigadi. — E qual seria?

— Você tem um golpe.

—…

— Acerte-me com a sua magia mais forte. Vou te dar uma


chance, nenhuma outra. Pode usar o feitiço que feriu o Deus
Dragão. Se conseguir perfurar minha aura de batalha e me
prejudicar, você vence. Se não me ferir, eu ganho. O que acha
disso?

Ooh. Isso me parece bom! Eu não podia desejar uma oferta


melhor, sério. Tipo, eu não precisaria levar nenhum soco no rosto?

— Uh, certo, mas isso não é meio unilateral?

— Unilateral? Unilateral, você diz? Hm, verdade! Muito bem. Se


você não puder me prejudicar com a sua magia, então vou te
acertar com um contra-ataque. Vai ser só um golpe, nada mais!
Droga. Acabei cavando a minha própria cova.

Um ataque desse monstro provavelmente seria o suficiente para


pulverizar o meu coração. Eu provavelmente deveria parar de tocar
no assunto antes que isso ficasse pior.

— Entendi. Então vamos seguir com esses termos.

— Muito bem!

Por fim, segurei o Aqua Heartia na minha frente e comecei a me


concentrar.

— Whooo…

Respirei longa e profundamente, depois comecei a reunir tanto


poder mágico quanto era possível no meu cajado. Iria lançar um
Canhão de Pedra, um dos feitiços que mais estava familiarizado.
Mas me certifiquei de que o projétil fosse muito mais duro do que o
que lancei em Orsted. Aquele feitiço eu lancei bem rápido, por puro
desespero. E eu não estava usando o meu cajado, só as mãos.
Desta vez, não precisava de pressa. Depois de juntar mana
suficiente, devo ser capaz de deixar o meu feitiço várias vezes mais
poderoso.

Projétil: Sólido e incrivelmente duro.

Criar a “bala” não era fundamentalmente diferente de como fazia


uma estatueta. Mas me concentrei completamente na dureza,
ignorando propriedades como resistência e resiliência. Moldei como
um parafuso, com uma ponta fina e estreita, e adicionei um padrão
de entalhes.
Modificações: Rotação rápida.

Quanto mais rápido girasse, melhor. Me concentrei até que


minha bala parecesse apenas um borrão.

Não fazia ideia de quantas rotações por segundo eu estava


buscando.

Velocidade: Máxima.

Essa era a parte mais crítica, então dediquei o máximo de mana


que pude a ela. Nunca antes usei tanta mana em um único Canhão
de Pedra. Dado o tempo que levou para a preparação, esta versão
do feitiço não seria muito útil em um combate real… e para a
maioria dos monstros, provavelmente seria exagero. Mas este
homem era um Rei Demônio. Poderia muito bem só dar de ombros
para isso. Eu esperava, no mínimo, arranhá-lo. Realmente não
queria que aqueles braços enormes acertassem o meu rosto.

— Então tá bom. Lá vai.

— Excelente! Me acerte!

Então disparei o feitiço.


Minha bala rasgou o ar com um som agudo. Não houve nenhum
coice; por algum motivo, isso nunca acontecia com magia. Mas a
falta disso não tornava o poder menos real.

A pedra bateu em Badigadi fazendo um estrondo enorme. Toda a


parte superior do seu corpo foi destruída; seus seis braços se
desintegraram na mesma hora. Sua metade inferior, ainda intacta,
disparou dezenas de metros para trás e caiu frouxa no chão.

— Hein…?

O que sobrou de Badigadi nem mesmo tremia. Eu estava


esperando que meu ataque apenas… ricocheteasse nele com um
“toink” ou algo assim. O que foi isso?

Lentamente, com medo, fui até o corpo de Badigadi e olhei para


ele. A parte intacta de seu corpo, por algum motivo, não sangrava.
Era assim que as coisas funcionavam com um Rei Demônio?
Levando em conta o quanto ele ria, percebi que não era muito
chegado em lágrimas… Mas talvez não houvesse qualquer líquido
no seu corpo.

— Hein…? — Espera, isso é sério? Isso não está acontecendo…


Ele morreu?

Eu ainda não tinha entendido o que aconteceu. Quando me virei,


encontrei a multidão de espectadores olhando para mim em
absoluto silêncio. Seus olhares me fizeram estremecer. Ninguém
estava sequer se movendo.

Engoli por reflexo. O som que minha garganta fez pareceu


estranhamente alto. Eu o matei mesmo?
Isso não pode ser verdade. Digo, vamos lá. Ele parecia tão
confiante.

Hã? Ele disse que era imortal, não disse? Ele disse que eu podia
acertar o meu melhor golpe!

E não parecia nada preocupado! Mas o que diabos?!

Eu precisava me acalmar. E me certificar de que entendia


exatamente o que fiz.

Devagar, com medo, me virei para mais uma vez olhar Badigadi.

— Bwahahahaha! Eu REVIVI!

Quase disparei outro Canhão de Pedra na mesma hora.

Badigadi estava bem na minha frente, mais uma vez vivo… e


com metade do tamanho de antes. Ele estava agora mais ou menos
com a minha altura, mas sua cabeça não tinha ficado menor. O
efeito era um pouco bizarro. Entretanto, isso não era tão importante
no momento.

— Ah. Você está vivo…

Isso com certeza era um alívio. Eu tinha me convencido de que


matei um homem, mesmo sendo sem querer. Que bom que não foi
uma luta contra um ser humano normal.

— Bwahahaha! Eu pensei que estava acabado, garoto! De


qualquer forma, agora tudo faz sentido. Foi sensato da sua parte
evitar uma batalha real. Se tivéssemos lutado seriamente, toda esta
área teria sido reduzida a um deserto árido! — Badigadi deixou uma
longa gargalhada escapar. Acho que ele considerou a ideia
divertida.

Nos próximos momentos, todos os seis braços apareceram


rastejando na terra em sua direção e juntaram-se ao seu corpo. Ele
estava ficando cada vez maior, embora ainda não tivesse voltado ao
normal.

— Você com certeza me fez voar por uma grande distância,


garoto. Parece que vai demorar algum tempo até eu voltar a ser o
que era! — Badigadi parecia inexplicavelmente animado com isso.
— Desta vez você ganhou, Rudeus! — continuou ele alegremente.
— Sinta-se à vontade para se chamar de herói!

— Não acho que vou fazer isso, mas, de qualquer forma,


obrigado.

— Então ao menos dê um grito de vitória para a multidão!


Bwahahaha!

Badigadi agarrou a minha mão direita, que ainda segurava o


cajado, e puxou-a para o ar, igual um juiz anunciando o vencedor de
uma partida de boxe.

— Uh…

Bem, tanto faz. Se ele diz que eu ganhei, então devo ter
ganhado.

— Eu ganheeeeeei!

Os espectadores responderam ao meu grito com silêncio total.


Por algum motivo, ninguém fez barulho.
Depois de um longo período, Badigadi acenou para si mesmo
com a cabeça.

— Eles não são muito divertidos, são? Bem, então tá bom. É


hora de você levar o meu soco.

— O quê?! — O acordo não era esse!

Antes que eu pudesse protestar, ele me deu um tapa na cara.


Com três punhos ao mesmo tempo.

Ainda estava segurando o meu braço, é claro, então não tive


chance de me defender. O golpe me deixou inconsciente.

Seu… mentiroso…

✦✦✦✦✦✦✦

Depois disso, Badigadi aparentemente saiu para algum lugar


com aquele cara da peruca, um homem bonito de meia-idade com
armadura e um velho com um robe. Parecia que os chefões tinham
algumas coisas para discutir em particular.

Quanto a mim, fiquei algum tempo na enfermaria até recobrar a


consciência. Assim que acordei, o Vice-Diretor Jenius me levou a
uma sala no Prédio dos Professores e me ofereceu um chá e
lanches enquanto eu me recuperava.

Ele não tinha muito a me dizer. Parecia que não tinha certeza
nem do que estava acontecendo. O Rei Demônio apareceu do nada,
vagou por aí nocauteando alguns alunos e homens-fera, me
desafiou para um duelo, permitiu que eu reivindicasse a vitória e
depois me nocauteou. Isso era tudo o que tínhamos, e não era o
bastante para dar sentido à situação. Ainda assim, parecia que
ninguém que Badigadi nocauteou tinha realmente morrido devido
aos ferimentos. Era suposto que ele era um cara pacífico por
natureza, então isso talvez fazia sentido.

Várias pessoas muito importantes estavam tentando descobrir


seus objetivos enquanto conversávamos. O cara da peruca era, na
verdade, o diretor desta escola. Levei um minuto para lembrar que
seu nome era Georg, um mago do Vento de nível Rei. Eu já tinha o
visto antes, na cerimônia de entrada. Juntando-se a ele em suas
conversas com Badigadi estavam o líder da Guilda de Magia e o
capitão dos cavaleiros da Nação Mágica posicionados nesta cidade.

— Mas devo dizer, Rudeus, que foi um esforço verdadeiramente


notável. Você derrubou um Rei Demônio com um único ataque
preventivo, e ele até o reconheceu como o vencedor! O diretor
acreditava que um aventureiro solitário como você só poderia nos
dar um pouco de tempo… mas ninguém poderia esperar isso! Ora,
você fez meu coração disparar pela primeira vez em anos!

Havia entusiasmo genuíno na voz do vice-diretor. Parecia que a


multidão não tinha ouvido minha discussão com Badigadi antes do
começo do duelo. Nada disso era tão impressionante quando se
considerava que ele me deixou dar o primeiro golpe, e eu nunca
estive em real perigo.

Jenius me bajulou por mais um tempo antes de finalmente me


deixar seguir o meu caminho. Ele disse para eu ficar no meu
dormitório até que estivesse tudo bem resolvido.
Assim que deixei o Prédio dos Professores, Zanoba apareceu
correndo ao meu encontro.

— Ah, aí está você, Mestre! Eu vi cada segundo do seu duelo.


Foi realmente impressionante! Mas suponho que deveria ter
esperado que você triunfasse.

Balancei a minha cabeça.

— Ele só deixou que eu treinasse com ele, isso foi tudo. — Meu
feitiço havia quebrado sua aura, é verdade. Mas ele nem mesmo
tentou fugir ou se defender. E dado o fato de que poderia se
regenerar completamente quando derrotado, eu não poderia
derrotá-lo em uma batalha real.

— Você é de longe muito modesto! — disse Zanoba com uma


risada. — Lutar de frente com um Rei Demônio já é impressionante
o suficiente, eu asseguro.

Quando olhei para Julie, ela parecia ainda mais assustada do


que o normal. Acho que foi um espetáculo horrível, mesmo de
longe. Com esperanças, eu não teria a traumatizado para o resto da
vida.

No caminho de volta para meu dormitório, encontrei Cliff e uma


Elinalise muito satisfeita.

— Olá, Rudeus. Que comoção toda foi essa que aconteceu?

— Uhm, o que vocês dois estavam fazendo pelas últimas horas?

— Ah, você sabe… isso e aquilo. Hehehehe.

Cliff ficou vermelho enquanto Elinalise ria.


— Você não precisa contar isso!

Parecia que os dois tinham se dado ao luxo de se divertir como


adultos durante todo o ataque do Rei Demônio à Universidade. Bom
para eles, eu acho.

— O Rei Demônio Badigadi apareceu do nada e me desafiou


para um duelo. Eu consegui vencer.

— Hein? — disse Elinalise, parecendo um pouco surpresa. — Ele


já chegou?

Já…? O que diabos você quer dizer com isso?

— Você sabia que ele estava vindo, Elinalise?

— Sim, sabia. Mas ele estava ficando com a tribo Ogro… e disse
que ficaria lá por algum tempo, então eu deveria vir sozinha.
Demônios como ele tendem a não prestar muita atenção na
passagem do tempo, sabe? Achei que ele ficaria lá por pelo menos
mais uma década, e só passaram dois anos desde que nos
separamos…

Qualquer um deveria ficar bem descuidado com o tempo depois


de viver alguns milhares de anos, não é? Sei que os anos passaram
mais rápido depois que passei dos 30 na minha outra vida… embora
isso não fosse exatamente digno de comparação.

— Em qualquer caso, ele não é um cara mau, é?

Balancei a cabeça.

— Ele parece um cara decente, aham. — Ele devia ser, no


mínimo, melhor que a maior parte da realeza. A sua personalidade
alegre também era meio cativante. Ele quebrou a promessa que fez,
mas contra-atacar depois de ter a cabeça explodida me parecia
justo.

— Uh, do que você está falando?

— Minha nossa. Você está com ciúmes, Cliff, querido? Não se


preocupe! Agora eu pertenço a você, de corpo e alma.

— Não é esse o p… Gah, pare de me agarrar. O Rudeus está


vendo…

— Então vamos mostrar uma ou duas coisinhas para ele…

Os dois começaram a se beijar, então dei de ombros e fui


embora. Quando fiz uma curva, ouvi Cliff protestar:

— Mas um Rei Demônio não iria aparecer aqui do nada!

Exato. Também penso assim, parceiro.

O Mestre Fitz estava me esperando na entrada do meu


dormitório.

Quando ele me viu, assumiu uma expressão difícil de se decifrar.


Será que isso era excitação? Suas bochechas estavam um pouco
coradas e suas mãos fechadas em punhos. Parecia quase como se
ele estivesse animado demais para expressar seus pensamentos
em palavras.

— Você é… Você é muito forte, Rudeus!

Uau. Hoje não está tão eloquente, hein?

— Nunca pensei que você o derrubaria com um único disparo!


— Bem, nós concordamos comigo dando o primeiro ataque, e o
poder disso determinaria o vencedor. Então resolvi usar o meu
feitiço mais forte.

— O feitiço mais forte? Mas foi o mesmo que você usou contra
mim no teste, não? Era uma versão melhorada?

— Aham, foi um Canhão de Pedra. Mas esse foi o mais poderoso


de todos.

— Então, mesmo um feitiço de nível Intermediário pode ter tanto


poder assim, desde que seja um verdadeiro mestre, hein…? — Com
um zumbido de admiração, Fitz virou-se para o lado e conjurou a
sua própria bala de pedra giratória. Depois de um momento, a
disparou; aquilo cortou o ar e penetrou no chão depois de alguma
distância.

— Bem, não tenho certeza se me consideraria um verdadeiro


mestre ou algo assim.

— Você não usa principalmente magia da Terra?

— Sim, eu acho. Por algum tempo, confiei mais nos feitiços de


Água, mas há alguns anos comecei a usar quase exclusivamente os
de Terra.

— Eu sabia! Você definitivamente fica melhor na escola conforme


a usa, certo?

Isso era verdade mesmo? Acho que parecia plausível. Para


começar, eu sentia que estava ficando cada vez melhor com as
estatuetas.
— Aham, imagino que sim… Acho que estou ficando ao menos
um pouco mais preciso.

— Você também pode usar mais mana enquanto faz isso!

— Claro, com certeza. Fazer aquelas estatuetas realmente exige


muito poder, sabe?

Fitz parecia estar realmente gostando dessa conversa. Pensando


bem, não tínhamos discutido magia assim com muita frequência,
não é?

— Ah, sinto muito por isso. Você deve estar cansado, certo? Eu
não queria te atrapalhar. Vá descansar um pouco.

— Uh, certo. Obrigado.

Com isso dito, Fitz se afastou e trotou em direção aos prédios da


escola. Eu meio que queria manter a conversa, mas ele
provavelmente estava ocupado. Após esse incidente, o conselho
estudantil devia ter muito com que lidar.

Por fim, estava de volta ao meu quarto. Encostei meu cajado na


parede. Este foi um dia bem longo, com um Rei Demônio e tudo
mais. A fadiga física e mental tomou conta de mim no mesmo
momento em que olhei para a minha cama.

Me deitei e relaxei.

✦✦✦✦✦✦✦

O mês seguinte passou sem intercorrências. Após algumas


negociações cuidadosas, os três membros das Nações Mágicas
decidiram reconhecer Badigadi como um convidado oficial do estado
pela duração de sua estadia em seus países. Badigadi, por sua vez,
se desculpou pelo aborrecimento que causou ao oferecer um de
seus braços à Guilda de Magia para que pudessem estudar a sua
imortalidade. E também concordou em trabalhar como professor
substituto de artes marciais para os cavaleiros alocados em Sharia.

Mas isso não era tudo…

Em nossa próxima sessão de estudos, minhas duas


subordinadas peludas estavam mais uma vez em seus assentos.
Badigadi havia lidado com todos os seus pretendentes, então era
aparentemente seguro para elas se aventurarem a sair para a aula
de novo.

— Você é o cara, Chefe! Obrigada de novo, mew. Em breve te


daremos algo pelo trabalho todo!

— Mas eu não esperava que um Rei Demônio fosse aparecer.


Somos sexy demais para resistir, hein? Muito bem por nos proteger.
Vou te dar permissão para apertar os seios da Linia.

— Agradeço. — Como recebi autorização, fui em frente.

— Myaaaaa! — Linia respondeu arranhando o meu rosto.

O que aconteceu com a minha permissão, hein? O que


aconteceu com aquela coisa de me dar algo pelos meus problemas?
Purrfeitamente atroz.

— Você é sempre tão… destemido com as mulheres, Mestre —


disse Zanoba, pensativo. — Entretanto, você nunca parece fazer
isso levando as coisas a sério…
— Ei! — sibilou Cliff. — Pare com isso, Zanoba! Você se lembra
da condição dele, não lembra?

— Ah, sim, é claro… Minhas desculpas.

Ultimamente, Cliff estava sentado perto de nós. Parecia que


Elinalise estava contando isso e aquilo sobre mim a ele. Eu não
sabia exatamente o que ela estava dizendo, mas não devia ser tão
ruim, já que Cliff agora estava muito mais amigável.

Aliás, todo mundo parecia estar assumindo que Eris tinha me


largado por causa da minha condição. Não que isso importasse,
claro. Eu já tinha esquecido tudo sobre ela. Sério!

E também, Cliff e Elinalise não estavam mais se agarrando em


público o tempo todo. E não parecia que tinham terminado. A cada
par de dias, eu notava Cliff tropeçando pelo caminho, igual um
zumbi. Elinalise com certeza estava mantendo as noites dele
ocupadas. Provavelmente tinham acabado de chegar a um acordo
para reduzir as demonstrações públicas de afeto.

Ainda assim, toda essa diversão não iria causar problemas para
os estudos de Cliff? Eu não iria me intrometer, é claro. A vida era
dele, e ele poderia viver como quisesse. Na verdade, eu estava com
inveja. Só um pouquinho.

— Grão-mestre, não tenho mana suficiente para endurecer esta


parte… Pode fazer isso por mim?

Julie trabalhava com dedicação em suas estatuetas, dia e noite.


Comecei a dar algumas dicas de como fazê-las à mão, ao mesmo
tempo que dava as aulas sobre o método mágico. Essa não era a
minha especialidade, então estávamos recebendo a ajuda de um
anão do mesmo ano que Zanoba.

Quanto ao Rei Demônio Badigadi… Eu ainda tinha apenas um


esboço muito vago da situação. Ele disse que tinha vindo porque
estava com ciúmes de mim. Isso significava que eu seria
parcialmente responsável por todos os danos causados? Eu queria
pensar que Jenius não decidiria isso. Afinal, foi ele quem me
recrutou.

Minha linha de pensamento foi cortada pelo som da porta da sala


de aula sendo aberta. Com exceção do Silencioso, todos os alunos
especiais já estavam em seus assentos. E era cedo demais para o
professor chegar. O Silencioso já tinha mesmo aparecido alguma
vez?

— Bwahahahahaha!

Uma gargalhada estrondosa ecoou pela sala de aula. Um


instante depois, ele entrou.

Sem um momento de hesitação, marchou até o pódio e olhou


para nós como um imperador inspecionando o seu domínio.

— Observem! Sou eu, Badigadi; o Rei Demônio imortal!

Isso está mesmo acontecendo? Ele está falando sério… vestindo


um uniforme escolar?!

O Rei Demônio Badigadi havia se matriculado formalmente na


Universidade de Magia de Ranoa para uma espécie de golpe
publicitário. Ele não estudava muito, é claro, mas tinha o hábito de
assistir às aulas e falar com os alunos que chamavam a sua
atenção… o que geralmente resultava em uma fuga desesperada
por ajuda. Aqueles que eram corajosos o suficiente para
permanecer por perto foram supostamente recompensados com
petiscos de seu vasto estoque de conhecimento, mas eram poucos
e distantes entre si.

De uma forma ou de outra, porém, as coisas chegaram a uma


conclusão relativamente pacífica.
Capítulo 05:
A Máscara Branca (Parte 01)
Recentemente, parece que algumas pessoas sentem medo de
mim. E, por “algumas pessoas” quero dizer basicamente todos os
alunos da Universidade de Magia.

No começo, só pensei que estavam todos me evitando por


alguma razão. Não é como se eu estivesse errado quanto a isso.
Caso em questão: às vezes eu me pegava andando por um corredor
em direção a um grupo de caras que pareciam durões vindo em
minha direção. Naturalmente, eu sairia do caminho para que não me
incomodassem, correto? Mas, por algum motivo, já estavam saindo
do meu caminho. Às vezes, até olhavam pela janela e falavam sobre
como o tempo estava bom, apesar do fato de estar nevando.

Eu ficava feliz por não estarem me incomodando, é claro. Mas,


em retrospecto, talvez estivessem pensando exatamente na mesma
coisa que eu.

Só descobri o que estava acontecendo depois de um incidente


que aconteceu quando eu estava voltando da minha aula de
Desintoxicação Intermediária durante uma tarde. Quando saí da
sala de aula após a palestra, avistei Goliade no corredor, lá do lado
de fora. Sim, aquela Goliade – a bola de destruição humana que me
acusou falsamente por roubar roupas íntimas no meu primeiro dia
desde que me matriculei. Ela me notou no mesmo momento em que
eu a notei. Nossos olhos se encontraram.

Nós dois éramos tecnicamente conhecidos e ela estava


estudando há mais tempo do que eu. Parecia que seria rude só ir
embora sem nem mesmo dizer olá… e senti que provavelmente
também deveria me desculpar por nosso último encontro.

Quando me aproximei, porém, Goliade, se contraiu e desviou o


olhar. Ela comprimiu os ombros largos para ficar o menor possível e
olhou para longe com uma expressão de medo, tentando de tudo
para não ser vista por mim.

— Uh, oi, Goliade. Queria falar com você sobre o que aconteceu
no meu primeiro dia aqui…

Quando comecei a falar com ela, a garota começou a tremer


igual a um cabritinho recém-nascido.

— Eu… Sinto muito por aquilo — guinchou ela com fraqueza. —


Sério… sinto muito mesmo. Por favor, eu não sabia…

Sua atitude parecia um pouco diferente da última vez que nos


encontramos. Na verdade, fiquei um pouco perplexo. Isso quase me
fez sentir como se estivesse a ameaçando ou coisa assim.

— Er… Eu ia, na verdade, te pedir desculpas. Eu não conhecia


as regras dos dormitórios na época, sabe? Não vou cometer aquele
erro de novo, então…

Enquanto eu tentava pensar no que dizer, um grupo de


espectadores começou a se reunir ao nosso redor.

— Ei, olha, é o Rudeus.

— Ele ainda guarda rancor pelo que aconteceu naquele dia?

— Ah, cara. Pobre Goliade…


— Foi ele quem quebrou as regras, certo? Que valentão…

— Cale a boca, idiota. E se ele te ouvir?

Os sussurros eram críticos comigo e direcionavam pena a


Goliade. E eu podia ver até lágrimas surgindo nos olhos dela. Eu
meio que também senti vontade de chorar, é sério. O que diabos
estava acontecendo? A maneira como estavam me olhando doeu
muito.

— O que é isso tudo, mew? Quem está brigando no corredor?

— Alguém está com energia pra caralho, hein?

No exato momento, Linia e Pursena apareceram. Elas abriram


caminho pela multidão e avistaram a mim e Goliade. Depois de
estudar o rosto choroso dela por algum tempo, as duas sorriram e
balançaram a cabeça uma para a outra, e então confiantemente
abriram caminho entre nós.

— Ei, Chefe. Por que não deixa por isso mesmo, mew? A
Goliade não queria te irritar, sabe. Poderia deixar essa passar, por
nós? Precisamos cuidar das outras garotas do povo fera.

— Vamos lá, Goliade, está tudo bem. Só não deixe o Chefe


bravo de novo, entendeu? Você teve sorte de que a melhor amiga
dele estava passando. Se não fosse por mim, ele ia te transformar
em picadinho.

— C-certo! Obrigada! — Goliade se curvou agradecida para as


duas, deu meia volta e se afastou bem rápido, parecendo
consideravelmente menor do que na verdade era.
— O resto de vocês também, xô, mew! — gritou Linia. — Isto não
é um show!

A multidão de curiosos, na mesma hora, se dispersou como um


ninho de filhotes de aranha. Soltei um breve suspiro de alívio. Mas
quando me virei para Linia e Pursena, esperando por algum tipo de
explicação, descobri que elas já tinham começado uma das sessões
da brincadeira que era a sua marca registrada.

— Certo, Pursena. Então, o que isso deveria significar?

— Do que você está falando, Linia?

— É óbvio que eu sou o braço direito do Chefe!

— E recentemente ele tem conseguido muitos lacaios novos.


Você é burra demais para manter as coisas funcionando direito.

— Mew?! Suas notas são tão ruins quanto as minhas!

— Vamos lá, vocês duas — interrompi. — As duas podem ser o


meu braço direito, certo?

— Mew, mas eu não entendo isso, Chefe. Precisamos manter


uma hierarquia!

— Isso mesmo. Isso é importante pra caralho.

Eu podia entender que o povo-fera gostava de hierarquias, mas


não me lembrava de ter estabelecido nenhum tipo de gangue, e não
me importava qual mão minha elas eram. Tirando isso, as duas
acabaram me salvando de alguns problemas. Deveria dar a elas
algo como prova da minha gratidão. Será que peixe cru e um
pedaço de carne resolveriam o problema?
— De qualquer forma, aquela Goliade com certeza foi estúpida
por te irritar, Chefe. O que ela fez com você, mew?

— Uh, ela me confundiu com um ladrão de calcinha no meu


primeiro dia aqui, mas…

— Hã? Eu lembro daquilo! Espera, então aquele ladrão de


calcinhas fantasma, foi você o tempo todo, Chefe?!

— Isso é tão confuso, cara.

De repente, as duas começaram a me encarar com desprezo nos


olhos. Que tal deixarem eu terminar o que tenho a dizer? Fui
falsamente acusado! Talvez devesse dar a elas uma segunda
porção de desespero e humilhação, e não peixe ou carne.

— Parando para pensar, acho que a Goliade passou algum


tempo se gabando daquilo. Ela disse que pegou um covarde do
primeiro ano com a mão na massa, mas o Fitz o protegeu. Parece
que a covarde agora é ela, hein? Hilário.

— Ela estava falando merda de você, e você ainda não fez


nada? Isso é muito gentil da sua parte, Chefe, mas devemos enviar
uma mensagem por causa disso. Cuidaremos de tudo, mew.

Isso soou meio ameaçador. As duas já não tinham passado da


fase de delinquentes?

— Não façam nada com ela, por favor. Não quero sair fazendo
inimigos por aí sem qualquer motivo.

— Pfft. Você precisa ser mais ambicioso, Chefe! Quem se


importa com inimewgos? Poderíamos governar todos os dormitórios
desta escola, só precisamos nos unir para derrubar a Ariel!

— Ela está certa, sabe. Você derrotou o Fitz, Chefe, então pode
conquistar a escola quando quiser.

O que havia com o povo-fera, para viver querendo tomar o


poder? Sério, eram todos um bando de Decepticons de fusível
queimado.

— Digamos que eu tome o poder sobre os dormitórios e tal. O


que eu faria com essa autoridade?

Eu não poderia me importar ainda menos em estar por cima das


coisas. Eu ficava basicamente o tempo todo tentando evitar
conflitos, e assumir uma posição de liderança meio que garantia que
alguém começaria a me odiar. Neste mundo, trilhar o caminho
errado na hora errada era o suficiente para levar a uma apunhalada
no coração. Ser amigável e respeitoso com todos que conhecesse
era mais seguro.

— Você pode fazer o que quiser, mew. Bem… Acho que você na
verdade não poderia fazer muita coisa com as garotas… aah, já sei!
Poderíamos te trazer um par de calcinhas de todas as garotas dos
dormitórios no começo de cada ano!

— Boa ideia. O Chefe adora calcinhas, tanto que até guarda uma
no quarto dele, certo? Ele ficaria super feliz.

— N-não, eu não…

Não era como se eu tivesse aquela porque eu amava calcinhas.


Digo, eu meio que gostava delas, claro… mas isso não significava
que queria um monte de calcinhas de garotas que nem conhecia,
certo? Eu conhecia a Goliade, e tinha certeza de que também não
queria a calcinha dela.

Então, mais uma vez, havia algumas garotas bem fofinhas que
às vezes apareciam andando pelo campus. Mas a maioria delas
nem era do meu tipo. Sinceramente… Não recusaria um par da
Linia e da Pursena. As duas tinham um cheiro ligeiramente
almiscarado, mas no final das contas, ainda eram garotas sexy. E o
cheiro da pele delas, de perto, também não era nada ruim.

Ainda assim… certo! Fitz. Fitz não gostaria que eu fizesse esse
tipo de coisa. Ou seja, fora de questão. Aqui vamos nós. O assunto
finalmente foi resolvido! Não voltarei a ser tentado. Sai, Satanás…

— Não estou nada interessado nas calcinhas de umas garotas


quaisquer. Se quiserem roubar roupas íntimas, façam isso por vocês
mesmas. Mas se causarem algum problema ao Mestre Fitz, não
contem com o meu apoio.

Nossa. Aqui vamos nós. Essa foi por pouco, garotas da


Universidade. Se não fosse pela minha condição, vocês poderiam
ter acabado em sérios apuros.

— Guh… B-bem, se você quer manter as coisas calmas, você é


que sabe, Chefe.

— Aham… Faremos o que você mandar.

De qualquer forma, esse incidente finalmente tornou a natureza


da minha situação mais clara para mim. Eu evidentemente era
temido por muitas pessoas. Não era difícil entender o porquê, uma
vez que percebi isso. Derrotei Fitz, que era o aluno mais poderoso
de toda a escola. Ganhei o domínio sobre todos os infames alunos
especiais. E então, derrotei um Rei Demônio com um único feitiço
em um duelo público. Não era nem remotamente surpreendente que
os outros alunos me considerassem intimidante.

Pelo que Badigadi me disse após o ocorrido, sua aura de batalha


não poderia ser penetrada por nada menos do que feitiços de nível
Rei ou técnicas de espada. Ou seja, precisaria estar no nível de um
Ruijerd ou Ghislaine da vida para ter alguma chance contra ele. Já
que confiava nisso para se proteger em combates, entretanto,
parecia ter dificuldades para derrotar pessoas acima desse nível.

Enfim… presumindo que ele estava me dizendo a verdade, então


o meu Canhão de Pedra com força total era tão poderoso quanto
um feitiço de nível Rei. Isso com certeza não era nada a ser
desprezado.

Claro, eu também era um verdadeiro canhão de vidro. Os


espadachins deste mundo podiam se revestir com o véu protetor de
uma aura de batalha sem sequer pensar em fazer isso, mas não
importa o quão duro eu treinasse, meu corpo nunca ganhou aquela
força e velocidade sobre-humanas que Eris e Ruijerd usavam com
tanta facilidade. Meus músculos ficavam maiores, mas isso era tudo.
Tudo o que eu realmente tinha ao meu favor era o meu poder de
ataque. Supostamente, eu tinha a capacidade de mana de um Deus
Demônio, seja lá o que fosse isso, e graças ao meu Olho da
Previsão, poderia enfrentar inimigos um pouco acima do meu nível.
Mas o meu próprio corpo permanecia completamente normal. Eu
basicamente não teria chance contra um adversário poderoso de
verdade.
Mas não poderia esperar que os alunos da Universidade de
Magia descobrissem isso tudo. Eles viram uma demonstração do
meu poder de fogo e deviam ter presumido que minhas habilidades
eram igualmente impressionantes em todos os aspectos.
Dificilmente poderia culpar um simples estudante por evitar alguém
“mais poderoso do que um Rei Demônio.”

— Mesmo assim, você precisa ter mais confiança em si mesmo,


Chefe! Aposto que isso ajudaria com a sua condição, mew!

— Aham. Mas assim que você conseguir colocar isso para


funcionar, pule na Linia, não em mim.

Confiança, hein? Era essa a causa verdadeira por trás dos meus
probleminhas? Isso, na verdade, parecia algo plausível. Perdi a
minha luta contra Orsted, fui dispensado pela Eris e depois ainda
estraguei as coisas com a Sara. Não consegui encontrar nenhuma
maneira de usar as minhas forças com eficácia e acabei
mergulhando no medo. Um pouco de confiança talvez fosse mesmo
o que eu precisava para superar esse obstáculo. E então, uma
chance de recuperar um pouco disso caiu no meu colo. Afinal,
estavam todos com medo de mim.

Só para tirar uma prova, tentei andar por um corredor lotado com
Linia e Pursena logo atrás de mim. A massa de corpos
magicamente se separou na minha frente.

Para mim era, com certeza, uma experiência totalmente nova.


Me senti como o diretor de um hospital fazendo as suas rondas, ou
talvez Moisés abrindo o Mar Vermelho. Era difícil não se gabar
disso. Saiam do caminho, crianças, este é o meu corredor…
No momento em que esse pensamento cruzou a minha mente,
parei no meio do caminho. E se os caras que me intimidaram na
minha vida anterior tivessem começado fazendo exatamente a
mesma coisa?

Essa percepção levou toda a diversão para longe da minha


mente na mesma hora. O que quer que eu tenha conquistado até
então nesta vida, o fato era que passei o tempo todo da anterior na
base de toda a hierarquia. Isso jamais mudaria, mesmo que minha
condição acabasse se curando sozinha. E se eu me esquecesse
disso, provavelmente acabaria repetindo os mesmos erros que
cometi no passado. Agora eu possuía uma visão mais positiva da
vida, claro, mas, lá no fundo, continuava sendo a mesma pessoa.
Não poderia me permitir esquecer disso.

Desta vez, não ia acabar me tornando um recluso.

✦✦✦✦✦✦✦

Um pouco depois disso tudo, fui para a biblioteca, continuando


com as minhas pesquisas de sempre.

Eu ainda estava me concentrando em Teletransporte e


Invocação, é claro. Quanto mais eu estudava isso, mais
semelhanças eu percebia. Atrair algo para você era
fundamentalmente diferente de enviar algo para outro lugar, mas em
muitos outros aspectos as duas coisas eram comparáveis. Parecia
que eu precisava fazer um esforço para realmente aprender a magia
de Invocação. Passei um bom tempo pensando nisso, mas não
havia um único professor especializado nessa disciplina em toda a
Universidade. Supostamente, existiam alguns membros da Guilda
dos Magos que podiam ao menos lançar os feitiços, mas mesmo
eles estavam, a maioria, só no nível Iniciante ou Intermediário. Tudo
o que podiam invocar eram familiares inofensivos e espíritos
obedientes e estúpidos. Eu queria aprender com um especialista de
verdade.

Existiam algumas pessoas na cidade que chegaram ao nível


Avançado na magia de Encantamento, mas isso parecia ser bem
diferente da Invocação convencional. Com certeza não seriam
capazes de me falar nada sobre Teletransporte. O vice-diretor havia
se gabado da qualidade do pessoal da Universidade, mas ele com
certeza só estava falando demais.

Então, mais uma vez, talvez fosse assim que as coisas eram. Eu
não tinha encontrado nenhum mago especializado em Invocação
durante meu tempo como aventureiro. Parecia possível que não
existissem muitos deles. Ou isso talvez fosse como Barreira e magia
Divina, que tinha todo o conhecimento monopolizado por algum país
específico.

Ainda assim, meio que senti como se tivesse conhecido ao


menos uma pessoa com algumas habilidades em Invocação. Mas
não conseguia lembrar quem era. Senti que lembraria se
encontrasse essa pessoa novamente. Eu devia já não a ver há
algum tempo, seja lá quem fosse.

Em qualquer caso, já tinha lido a maioria dos livros promissores


sobre magia de Invocação que estavam disponíveis na biblioteca.
Mas, para ser sincero, parecia que eu tinha chegado a um beco sem
saída. Estudar sozinho não iria me levar mais longe ainda.
Foi Fitz quem acabou encontrando um caminho a se seguir.

— Rudeus, finalmente encontrei alguém! Há uma pessoa aqui


que também está pesquisando magia de Invocação em um nível
avançado!

— Ooh! Sério?!

— Sim. Na verdade, descobri essa pessoa através do diretor e


do vice-diretor — disse Fitz com um sorriso ligeiramente malicioso.
— Quem você acha que é?

Bem, provavelmente não era um professor. Havia um punhado


de outros alunos tentando aprender Invocação da melhor maneira
que podiam, mas com certeza nenhum deles sabia nada mais do
que feitiços Avançados, na melhor das hipóteses. Assim sendo, qual
opção nos restava?

— Alguém da Guilda dos Magos, talvez…? — Não seria


surpreendente se tivessem alguns especialistas no assunto em
algum lugar. Algum de seus pesquisadores talvez estivesse
pegando algumas instalações da escola emprestadas para conduzir
os seus experimentos.

— Hmm, mais ou menos. Essa pessoa supostamente está


classificada como rank A na Guilda.

— Uau… — Com base no que aprendi sobre a estrutura deles,


um membro de rank A da Guilda dos Magos era o equivalente a um
gerente de filial, enquanto ser classificado como S significava que
fazia parte do grupo de liderança central. O Diretor Georg era um
membro classificado como S, e o vice-diretor era classificado como
B. — Isso não significa que está bem no topo da hierarquia?

— Sim. Isso é bem incrível, não acha?

Mesmo os membros de rank B tinham direito a algumas


vantagens muito boas. Se quisesse, poderia abrir uma escola para
magos em qualquer lugar que quisesse, e a Guilda oferecia apoio
logístico e financeiro.

— Então… quem é?

— Bem, acho que você já conhece ao menos o nome…

Eu conhecia? Senti que me lembraria de alguém tão importante


assim.

— Vamos lá, conte logo.

— Heheh. Então tá. Setestrelas Silente, da classe especial.

Ah. Agora faz sentido. Eu já tinha ouvido o nome, sim. E mais do


que só o nome. Também tinha ouvido falar sobre as coisas que essa
pessoa tinha conquistado nesta escola.

Em primeiro lugar, estavam as melhorias nos menus dos


refeitórios. Cuidou de providenciar um suprimento regular de comida
do Reino Asura, permitindo que usassem ingredientes que
normalmente nunca seriam vistos nos Territórios Nortenhos. Além
disso, apresentou ao mundo algo que chamaram de sopa de kerry,
que supostamente era uma invenção própria. Era uma coisa feita ao
cozinhar batatas, cenouras, cebolas e mais algumas coisas em uma
panela, com uma complexa mistura de especiarias para dar mais
sabor. Essa sopa grossa e de cor escura era comida com um
pedaço de pão. Era, basicamente, curry. O sabor era bem diferente
do curry que eu conhecia, é verdade, mas a ideia era bem
semelhante.

Também foi Silente quem propôs nossos uniformes escolares


oficiais. Parecia possuir conexões com designers e fabricantes de
Asura, e providenciou para que tudo fosse criado por lá. A
introdução de um uniforme universal permitiu à Universidade
apresentar seu corpo discente como um grupo unificado e com um
propósito em comum, em vez de uma caótica mistura de diferentes
tribos e raças que ocupavam o mesmo campus. Isso serviu para
melhorar significativamente a sua imagem pública.

Até os quadros-negros encontrados em todas as salas de aula


foram uma de suas inovações. Escrever em uma superfície
completamente preta com um pedacinho de calcário era um
conceito bastante simples, mas os professores acharam isso bem
útil.

Também existiam muitas outras melhorias que foram feitas por


suas sugestões, só precisava procurá-las. Contribuiu de várias
maneiras simples e sutis para a Universidade. Em reconhecimento a
essas realizações, a Guilda dos Magos concedeu-lhe um alto posto
em sua organização.

Com tudo isso dito… as suas “inovações” também eram muito


familiares. Podiam até parecer conceitos novos para o povo deste
mundo, mas não para mim. Eu podia até não ser a última bala do
tambor, mas já tinha algumas suspeitas. Pensei que conhecia as
origens de Silente.
Até este momento, porém, não tinha expressado as minhas
suspeitas. Não sei por quê. Talvez eu quisesse acreditar que eu era
especial. Talvez tivesse assumido que eu era totalmente único – a
única pessoa neste mundo com memórias de um outro. Mas, claro,
não havia nenhuma razão lógica para que fosse esse o caso.

Para ser honesto, fiquei com um pouco de medo da questão de


Silente. Esperava evitar um encontro com essa pessoa. Não queria
me encontrar com alguém que tivesse as mesmas vantagens que
eu e as usasse de forma melhor. Fiquei com medo de que me
perguntassem por que eu estava perdendo meu tempo com
brincadeiras enquanto podia ter feito muito mais. Sabia que ouvir
isso machucaria.

Mas quando ouvi Fitz falar o nome de Silente, logo decidi que a
hora havia chegado.

— Entendido. Obrigado, Mestre Fitz. Vou ver se consigo me


encontrar com essa pessoa.

Parando para pensar, provavelmente me tornei um pouco


arrogante. Conquistei a lealdade de uma Criança Abençoada,
derrotei as duas maiores delinquentes da escola, ganhei a simpatia
do principal gênio local e até mesmo fiz amizade com um rei do
Continente Demônio. Metade do corpo discente me olhava com
admiração. Eu estava tentando não deixar isso subir à minha
cabeça, mas acho que acabou acontecendo.

Mas ninguém poderia torcer o nariz para mim depois de tudo o


que fiz, certo?

✦✦✦✦✦✦✦
Descobri o paradeiro de Silente com o Vice-Diretor Jenius, não
tive problema algum. A escola lhe havia concedido um laboratório,
um que consistia de três enormes salas nos fundos do terceiro
andar do prédio de pesquisas principal. Silente passava quase todo
o tempo por lá, só saindo em ocasiões muito raras.

Decidi que seria bom ir sozinho em minha visita, por motivos os


quais não tinha certeza. Levar Fitz comigo talvez fizesse mais
sentido. Mas, de alguma forma, senti que precisava ir sozinho.

Parei diante da porta que levava aos seus aposentos para


respirar bem fundo e tentar acalmar os meus nervos. Eu não me
permitiria recuar, mesmo que Silente fosse o mesmo que eu.

Bati de leve na porta.

— Entre…

Havia um toque de irritação na voz que respondeu de dentro.


Lentamente, empurrei a porta aberta.

O fundo da sala estava dominado por inúmeras pilhas


espalhadas de livros e papéis. Instrumentos mágicos estranhos e de
propósitos sombrios estavam por todos os cantos; pedras mágicas e
cristais formavam montes gigantescos. Isso era um laboratório,
claro.

Alguém se sentava bem ao fundo deste espaço desordenado.


Quando se virou para mim, fiquei sem palavras.

— Ah… Nos encontramos de novo.

Era uma mulher. Uma mulher de cabelos negros.


Ela usava… algo de que me lembrava muito bem. Algo que
nunca esquecerei.

Uma máscara toda branca, quase sem detalhes.

— Gyaaaaaaaaaaaaah!

Fugi da sala, gritando aterrorizado. Era a garota da máscara.


Aquele que estava com Orsted. Eu não conseguia me lembrar do
nome dela, mas lembrava muito bem de Orsted. Orsted! Por que
Orsted?! Eu estava pronto para me encontrar com outra pessoa
reencarnada, mas não com Orsted!

O terror que senti quando ele me matou voltou à tona. O medo


com o qual fiquei quase entorpecido naqueles instantes finais me
oprimiu. Senti a dor de quando ele esmagou os meus pulmões.
Senti a impotência de vê-lo acabando com todos os meus ataques.
Senti o choque dele perfurando o meu coração. Senti… o terror de
encarar a morte de frente.

Tudo que consegui fazer foi fugir. E corri, e corri e corri. Eu não
fazia a menor ideia de para onde estava indo.

Quando me virei, entretanto, encontrei a garota me seguindo.


Não entendi o porquê. Eu não tinha acabado de fugir dela? Ela era
tão rápida assim?
Claro que não era isso. Eu só fui lento. Mal tinha chegado a
qualquer lugar, apesar do que a minha mente me dizia. Era só o
meu coração que estava disparando a duzentos por hora.

Corri para ainda mais longe, desesperado e sem jeito. Até que
tropecei e caí. Tropecei igualzinho um bêbado.

Eu tinha trabalhado tão duro nas minhas pernas para o caso de


algo assim acontecer, mas não estavam cooperando comigo.
Parecia quase que eu estava sonhando; minhas pernas balançavam
sem força embaixo de mim com cada um dos meus passos.

Silente continuava no meu encalço. Enfrentei um Rei Demônio


sem nem tremer, e ainda assim…

Olhei para o lance de escadas logo à frente. Fitz estava parado lá


em baixo. Ele me ajudaria. Me tiraria dessa. Senti até que relaxei
um pouco.

— Você não deveria gritar ao ver o rosto de alguém, sabe. Isso é


um pouco rude.

Alguém deu um tapinha no meu ombro. Quando me virei, dei de


cara com ela.

— Aheee!

Com um gritinho estranho, me contorci para trás, aterrorizado… e


caí escada abaixo, ficando inconsciente de uma forma ligeiramente
embaraçosa.

✦✦✦✦✦✦✦
Alguém estava suavemente acariciando a minha cabeça. Isso
era, por algum motivo, muito reconfortante. Parecia quase que as
mãos estavam emitindo algum tipo de energia curativa.

Olhei para cima, só para ter certeza, e me deparei com o rosto do


Mestre Fitz. Suas mãos estavam mais quentes do que eu esperava.
Também eram estranhamente pequenas, macias e femininas.

Por nenhuma razão em particular, estendi a mão para pegar uma


delas.

— Ah. Você acordou, Rudeus? Você realmente me preocupou,


sabe, do nada caindo da escada.

— Eu estava tendo um sonho terrível… Uma mulher com uma


máscara branca estava prestes a me matar.

— Err… — Fitz respondeu a isso com um sorrisinho estranho. Eu


não sabia dizer o por quê.

Aliás, eu não sabia nem onde estava. Era óbvio que não se
tratava do meu quarto nos dormitórios… ou mesmo os dormitórios,
aliás. Entretanto, eu já conhecia o lugar. Havia camas formando
uma fila atrás de Fitz…

Ah, certo. É a enfermaria.

Sentei e olhei lentamente ao redor do cômodo. O lugar parecia


quase vazio, exceto por Fitz, eu e o curandeiro residente.

Virei um pouco mais a minha cabeça…

— Gaaaah!
Sim, ela também estava presente.

A mulher de máscara branca estava sentada do outro lado da


minha cama.

Caí da cama e bati no chão com um baque doloroso. A mulher


respondeu com um suspiro irritado.

— Mas que rude. Afinal, por que você tem tanto medo de mim?
Da última vez eu salvei a sua vida, não foi? Ou… ah, espera. Você
estava quase morto, não estava? Então acho que não deve lembrar.

Isso resolvia tudo. Definitivamente era ela. Essa era


definitivamente a garota que estava viajando com Orsted.

— O… Onde está o Orsted?!

— Ele não está aqui — respondeu ela casualmente. — Ele é um


homem muito ocupado, sabe.

Ele não está aqui? Sério? Tipo, sério, sério? Não era como se ela
tivesse qualquer razão para mentir sobre isso, certo?

— E, de qualquer forma, eu não me preocuparia com ele. Ele não


virá atrás de você nem tão cedo.

— “Tão cedo”? Isso significa que em algum momento ele vai


voltar para me matar, ou o quê?

— Não acho que ele tenha planos de fazer isso… mas a


possibilidade existe. Depende tudo de você.

Eu, no mínimo, ainda não seria assassinado. Assim que esse


fato foi registrado, uma enorme onda de alívio tomou conta de mim.
Acho que sempre tomei decisões muito precipitadas.

— Uh, não estou conseguindo entender muito bem o que está


acontecendo aqui. Se importariam em explicar? — disse Fitz,
coçando as orelhas incerto enquanto se virava de mim para a garota
mascarada. — Em primeiro lugar, quem você é para o Rudeus?

— Somos completos estranhos — disse a garota mascarada sem


se conter.

Fitz estufou as bochechas, irritado.

— Nunca vi Rudeus desse jeito por coisa nenhuma. Você com


certeza fez algo com ele, não fez?

Seu tom estava estranhamente hostil. Ele estava idêntico a um


veterano protetor intervindo para proteger seu indefeso amigo do
primeiro ano. Honestamente, apreciei muito o seu apoio.

— Da última vez que nos encontramos, ele foi bastante


espancado pelo Deus Dragão. Imagino que esteja se lembrando
daquilo tudo.

— O Deus Dragão…? Uh, um dos Sete Grandes Poderes?

— Isso mesmo.

— Você é o Deus Dragão?

— Claro que não. Só viajamos juntos por algum tempo.

Respondendo às perguntas de Fitz em um tom desinteressado, a


garota mascarada puxou o cabelo para trás com uma das mãos. Eu
tinha acabado de notar, mas ela estava usando o uniforme da
Universidade de Magia.

— Mesmo assim, devo admitir que não esperava te encontrar por


aqui… — E então ela se virou para mim. Mesmo com a máscara, eu
poderia dizer que estava me observando fixamente. — Mas essa
talvez seja a natureza desta rota. Aquele encontro na Mandíbula
Inferior do Wyrm Vermelho estabeleceu o acontecimento para que
nos encontrássemos nesta escola.

Antes que eu pudesse tentar responder, a garota mascarada


enfiou a mão na capa e puxou um pedaço de papel.

— Vou te fazer mais algumas perguntas. Responda


honestamente, por favor.

Seu tom de repente se tornou tão imperativo que só engoli em


seco e concordei com a cabeça.

— Em primeiro lugar, isso te parece familiar?

Peguei o papel que ela me entregou. Alguém escreveu as


palavras “Shinohara Akito” e “Kuroki Satoshi” nele.

Em japonês.

Na mesma hora reconheci essas palavras como nomes. E, ao


mesmo tempo, percebi que o meu palpite inicial estava correto.

— Em segundo lugar, você pode entender o que estou dizendo?


Terceiro, qual destes dois é você?

Suas duas últimas perguntas também foram feitas em japonês.


Não podia haver dúvidas a este respeito. Ela era exatamente como
eu. Quanto aos nomes naquele pedaço de papel, porém, não
significavam nada para mim. Hesitei por um momento. Mas já tinha
me preparado para isso.

Lentamente, respondi em japonês:

— Não sou nenhum deles. Não reconheço esses nomes.

— Entendo. Mas você ao menos fala japonês.

— Huh? — disse Fitz, olhando confuso para o papel. — Qual…


língua vocês dois estão falando? Rudeus?

— Nós dois viemos do mesmo lugar, isso é tudo — disse Silente


calmamente.

— O quê? Isso não pode ser verdade!

Eu não tinha certeza do motivo de Fitz estar tão confiante quanto


a isso, mas esse ponto não era importante no momento.
Lentamente, ansiosamente, fiz a pergunta crucial.

— Então você é como eu?

Silente concordou.

— Isso mesmo. Fui jogada neste mundo do nada, sem qualquer


aviso.

Enquanto falava, ela estendeu a mão e tirou a máscara. E ao ver


o seu rosto, algo estalou dentro da minha cabeça.

Era a garota. A dos últimos momentos da minha outra vida. A


jovem colegial que estava brigando com um garoto e quase foi
atropelada por aquele caminhão. Ou, pelo menos, era alguém que
se parecia exatamente com ela.

Eu tinha certeza disso, mas algo nisso tudo parecia um pouco


estranho. Levei um momento para descobrir o porquê. Então
percebi que seu rosto continuava exatamente o mesmo.

Quinze anos se passaram desde aquele dia, mas ela não parecia
nada diferente. Isso era simplesmente bizarro. Ela não teria mudado
pelo menos um pouco em todo esse tempo?

Não… espera. Por que ela parecia não ter mudado nada? Se
tivesse reencarnado, deveria ter renascido em um corpo
completamente novo, assim como eu.

Antes que eu pudesse perguntar qualquer coisa, ela respondeu


às minhas perguntas de forma preventiva.

— Não sei como fui transportada para este mundo de pesadelos,


mas por enquanto estou presa aqui.

Se ela tivesse sido transportada, nossas situações seriam bem


diferentes. Eu havia reencarnado em um novo corpo, com apenas
as minhas memórias intactas. Mas, a menos que eu estivesse
entendendo mal, ela basicamente foi jogada nesse mundo, assim
como estava – com o mesmo corpo, com a mesma idade.

— Meu nome é Nanahoshi Shizuka, e sou japonesa.


Ultimamente tenho usado o nome Setestrelas Silente.

Confusão e dúvida rodaram em minha mente, se enredando em


meus pensamentos até que não consegui pensar em uma única
palavra para dizer. Mas meu silêncio não pareceu desencorajá-la.
— De onde você era, afinal? América? Ou talvez da Europa?
Você obviamente é Caucasiano, mas fala japonês… algum dos seus
pais é japonês? Ou você é um estrangeiro que vivia no Japão?

Senti que ela foi bem pontual com as suas perguntas, mas não
estava em forma de responder. Minha língua estava completamente
amarrada.

— De qualquer forma, este passo claramente é importante para


seguir em frente. Eu estava certa em deixar você viver. Suspeitei de
algo assim no mesmo momento em que Orsted disse que não te
reconhecia.

A garota começou a falar mais rápido, havia até um toque de


excitação na sua voz. Ela não parecia nem ter notado o fato de que
eu estava aturdido.

— Bem, vamos ver se podemos encontrar uma maneira de


trabalharmos juntos… Uhm, qual é o seu nome?

— R… Rudeus. Meu nome é Rudeus Greyrat.

— Esse é só o nome falso que você usa neste mundo, certo?


Estou falando do seu nome verdadeiro.

Eu não queria dizer o nome que usava na minha vida anterior.


Realmente, não queria nem um pouco.

Quando me calei, Nanahoshi assentiu de forma agradável.

— Ah, está tudo bem. Eu entendo. Você está desconfiando de


mim, não é? Com certeza posso entender isso, especialmente
depois do que aconteceu durante o nosso último encontro. Mas não
se preocupe… estamos do mesmo lado.

— Ainda assim, até agora eu não tinha certeza de que havia


mais gente como eu por aqui. Você é a primeira pessoa da Terra
que encontrei neste mundo, sabe? Isso é meio reconfortante.

Nanahoshi estendeu a mão em minha direção. Fitz franziu a


testa, mas ela nem pareceu notar.

— Vamos, juntos, encontrar um jeito de voltar para casa, tá?

De alguma forma, essas palavras cortaram por toda a confusão e


incerteza em minha mente. Uma resposta clara e definitiva chegou à
minha mente no mesmo instante: Não mesmo.

Empurrei a sua mão para o lado.

— Não quero voltar para aquele mundo nunca mais.

— Hã…? — Pela primeira vez em algum tempo, Nanahoshi ficou


sem palavras.

— Uhm… Rudeus, Silente… vocês dois, por favor, podem falar


em um idioma que eu possa entender? — Fitz, é claro, estava ainda
mais perdido do que antes.

O clima na enfermaria de repente ficou extremamente estranho.


Capítulo 06:
A Máscara Branca (Parte 02)
Nanahoshi Shizuka – cujos nomes em japonês significavam
literalmente “sete estrelas ” e “silente” – não era como eu. Em vez
de reencarnar neste mundo como um bebê, simplesmente apareceu
nele com o seu corpo original.

Já que ela revelou tudo isso para mim, também lhe contei a
minha história, explicando que renasci neste mundo ao invés de ser
transportado. Contei que morri em um acidente repentino, mas optei
por não dar todos os detalhes. Eu era muito feio na minha vida
anterior. Se ela lembrasse de como eu era, isso definitivamente não
ajudaria em nada quanto à sua opinião sobre mim. As aparências
importam, sabe?

Além disso, havia uma chance de que, de alguma forma, ela


tivesse acabado neste mundo por minha culpa. Eu não queria que
ela fosse atrás de mim por causa disso.

Passei algum tempo conversando com Nanahoshi, falando em


japonês novamente pela primeira vez em muito tempo. A essa altura
ainda não nos conhecíamos muito bem, então pedimos que o
Mestre Fitz ficasse conosco, como um observador, mas a conversa
em si foi toda em japonês. Me senti um pouco mal com isso. Ele
devia ter ficado bem entediado.

Bem no início da nossa conversa, Nanahoshi fez um tipo de


declaração.
— Não estou interessada neste mundo tedioso. Não pretendo
usar meu conhecimento para fazê-lo florescer, como em um ridículo
mangá ou uma light novel. Estou agindo exclusivamente para meu
próprio benefício, resumindo. Tudo que me importa é voltar para
casa o mais rápido possível.

Em outras palavras, as prioridades dela eram exatamente


opostas às minhas. Eu queria viver o resto da minha vida neste
mundo.

Não gostei de ouvi-la falar sobre o quão “tedioso” e “ridículo”


achava que isso era, mas podia entender como ela se sentia.
Resumindo, ela simplesmente não se encaixava nisso. Nunca
encontrou um lugar para pertencer neste mundo. Eu sabia como era
estar nessa posição e entendia a tentação de encarar tudo ao seu
redor como tedioso e desprezível. Eu não planejava tentar “corrigir”
o seu ponto de vista.

Ainda assim, Nanahoshi já estava desconfiada de mim. Minha


recusa precipitada em cooperar foi um erro. Eu poderia dizer que ela
estava escondendo algumas coisas de mim, o que fazia todo o
sentido, é claro. Seria estúpido colocar sua confiança em alguém
que poderia vir a ser um inimigo. Para ser sincero, também
continuava meio desconfiado quanto a ela.

Dito isso, parecia que eu poderia ter lidado com isso de um jeito
melhor. Se não tivesse saído correndo e gritando logo de cara, e
talvez tivesse lhe dito algo como “Vou ficar aqui, mas vou te ajudar a
encontrar um caminho de volta para casa”, ela poderia ter baixado
ao menos um pouco a guarda.
Ah, bem. Não adianta chorar pelo leite derramado.

Nanahoshi me disse que ela apareceu originalmente em algum


lugar no Reino Asura. Chegou especificamente no meio de um
campo vazio. Só depois que ela soube que estava em Asura. Não
havia nada ao seu redor e ninguém à vista. Mas não sabia o que
fazer. Só que, felizmente, Orsted apareceu e a tomou sob a sua
proteção.

— Por que Orsted estava lá?

— Não sei, mas não parece que foi ele quem me trouxe aqui…

No Reino Asura, Nanahoshi aprendeu sobre este mundo –


começando com a língua local, depois passando para o básico da
magia, o sistema econômico e o estilo de vida do povo. Nesse
aspecto ela era muito semelhante a mim.

Surpreendentemente, levou apenas um ano para dominar a


Língua Humana. Orsted foi amaldiçoado a ser odiado por todos que
o viam, então acho que ela precisava aprender a falar o mais rápido
possível, mesmo sozinha. A necessidade pode ser uma grande
motivação.

Nanahoshi passou, no total, dois anos em Asura. Naquela época,


ganhou dinheiro com seu conhecimento da culinária e das roupas
do nosso mundo, gastou esse dinheiro para obter poder e, em
seguida, usou esse poder para garantir fontes confiáveis de renda
contínua. Também garantiu que as pessoas soubessem que o Deus
Dragão, uma das Sete Grandes Potências, estava a apoiando. Com
alguma negociação hábeis da sua parte, foi o suficiente para
convencer alguns mercadores Asuranos poderosos a arranjar rotas
de distribuição estáveis para os seus produtos. Nesse ponto, já tinha
dinheiro suficiente para viver o resto da sua vida no luxo.

Foi muito bom ela ter aprendido a língua e construído uma base
financeira sólida. Mas esses foram apenas trampolins para seu
verdadeiro objetivo: voltar ao mundo ao qual pertencia.

Ela deixou Asura para trás e acompanhou Orsted em suas


viagens por um ano inteiro. Viajaram por todo o mundo em busca de
informações sobre como ela poderia retornar, e em busca dos dois
conhecidos que também poderiam ter sido enviados para cá.

Orsted tinha muitos inimigos, então aconteceram várias batalhas


ao longo do caminho. Mas em quase todos os casos, derrotou os
seus inimigos em um instante. Sua luta contra mim foi uma dessas,
é claro. Mas ela percebeu que havia algo incomum em mim e,
aparentemente, aconselhou Orsted a me reviver.

Ofereci meus sinceros agradecimentos por isso. No entanto,


chegando a esse ponto, eu teria morrido se Nanahoshi não tivesse
falado nada.

— Mas tenho que perguntar… qual é o problema de Orsted com


o Deus Homem? Fiquei realmente surpreso quando ele
simplesmente me atacou, sem mais nem menos.

— Não sei os detalhes, mas parece que eles possuem uma rixa.
Além disso, ele disse que é melhor eliminar os apóstolos do Deus
Homem rapidamente, porque causam todos os tipos de problemas
se você os deixar à solta.
Eu poderia viver sem as pessoas me matando por rixas das
quais nem fazia parte. E, para constar, também não era o “apóstolo”
daquele cara. Eu basicamente estive seguindo as sugestões dele
por algum tempo, claro, mas nós só nos víamos uma vez por ano ou
até nem tanto assim. Nosso relacionamento não era nem tão
próximo.

De qualquer forma… Nanahoshi viajou por todo o mundo,


encontrando todo tipo de pessoa ao longo do caminho. Orsted era
amplamente odiado, é claro, mas seu título era uma ferramenta
valiosa quando usado da maneira correta. Uma única carta assinada
pelo Deus Dragão era o suficiente para obter encontros pessoais
com magos famosos, cavaleiros de alto escalão e até monarcas.

— Você deu a volta ao mundo em um ano…? — Essa parte da


história me pareceu um pouco estranha. Afinal, levei três anos para
conseguir fazer isso.

— Sim. No entanto, usamos um método especial para viajar.

— Que tipo de método?

— Dispositivos de distorcimento, basicamente. Neste mundo,


eles os chamam de círculos de teletransporte. Já ouviu falar deles?

— Reconheço o nome, isso é tudo. — Onde eu já tinha ouvido


falar deles? Quando estávamos atravessando o Continente
Demônio, certo? Sim, foi Ruijerd quem me contou sobre eles. Isso
me lembrou… — Mas espera aí. Essas coisas não foram todas
destruídas há séculos?
— Alguns continuaram intactos. Estão escondidos em ruínas que
datam da Guerra Demônio Humano.

— Sério mesmo? Onde posso encontrar essas ruínas?

— Não posso contar. Orsted me pediu para manter isso em


segredo. O teletransporte é aparentemente uma forma proibida de
magia, então ele não queria que eu falasse sobre isso de forma
descuidada.

— Ah… Entendi.

— Em qualquer caso, eu estava apenas acompanhando ele. Não


me lembro da localização exata da maioria.

Em vez de viajar ao redor do mundo, basicamente fizeram seu


caminho de um círculo de teletransporte para o próximo algumas
dezenas de vezes. Então ela devia estar dizendo a verdade sobre
não saber a localização deles. Se alguém fosse teletransportado
para alguma terra desconhecida sem um mapa, não teria como
descobrir sua localização com precisão.

Ainda assim, seria bom rastrear pelo menos uma dessas


coisas… elas pareciam incrivelmente convenientes. Afinal, nunca se
sabia quando poderia precisar viajar meio mundo.

Enfim, de volta ao tópico principal:

Nanahoshi não encontrou as pessoas que procurava, mas


conheceu muitos outros personagens interessantes ao longo da sua
jornada. Eventualmente, um deles disse a ela: “Alguém pode muito
bem ter convocado você para este mundo.”
— Exatamente quem te disse isso…?

— Não posso dizer. Me pediu para não contar a ninguém que o


conheci.

— Por que isso?

— É para a minha própria segurança. Se as pessoas souberem


que você me encontrou, você se verá atormentado por enxames de
chacais gananciosos e famintos por poder. Seria sábio não
mencionar meu nome a ninguém se “preferir evitar isso”, em suas
palavras.

Aparentemente, este misterioso indivíduo sem nome era uma


autoridade de classe mundial em magia de Invocação, mas mesmo
ele não tinha nenhuma ideia de como uma pessoa viva de outro
mundo poderia ser invocada para este. Mesmo deixando de lado a
parte do “outro mundo”, era teoricamente impossível convocar um
ser humano de qualquer outro lugar.

Ainda assim, Nanahoshi tinha finalmente encontrado algo para


trabalhar. Ela decidiu estabelecer uma nova base de operações na
Universidade de Magia de Ranoa, onde poderia pesquisar sobre
Invocação como bem quisesse. Uma enorme doação de suas
economias foi o suficiente para ganhar um título de membro de rank
B na Guilda dos Magos e sua posição como uma estudante
especial.

Uma vez no campus, usou suas conexões no Reino Asura para


adotar os novos uniformes e várias outras melhorias. Ela até
providenciou uma reforma há muito esperada do currículo geral e
procedeu com atualizações nas ferramentas de ensino dos
professores. Em um piscar de olhos, ganhou o status de rank A na
Guilda. Tinham chegado até ao ponto de oferecer o rank S no caso
de ela estar disposta a compartilhar todo o conhecimento que
possuía, mas acabou recusando essa oferta.

— Desculpe por ficar repetindo, mas não estou nem


remotamente interessada em tornar este mundo melhor. Ou escalar
até chegar ao topo dele.

Por causa dessa atitude, nunca fez coisas que ela mesma não
usaria e também não as fornecia a outras pessoas. Para ser
honesto, isso me parecia meio frio. Tornar o mundo um pouco
melhor para todos não faria mal nenhum, certo?

Aparentemente sentindo minha discordância silenciosa,


Nanahoshi soltou um suspiro.

— Olha, nós não pertencemos a este mundo, certo? Se


tentarmos mudar a sua história de forma muito dramática, podemos
acabar sendo apagados.

— Apagados? Do que você está falando?

— Você não leu nenhuma ficção científica? E se houver algum


tipo de… força cósmica que tenta manter os eventos em seu
caminho da forma correta?

Assim que ela mencionou, lembrei de ter lido um mangá onde


esse era um dos pontos mais importantes da trama. Acho que
chamaram de “lei da causalidade” ou algo assim.

— Existe mesmo algo assim por aqui…?


— Não faço ideia. Mas não custa nada ser cuidadosa.

Senti que essas questões costumavam surgir mais em histórias


de viagens no tempo, onde as pessoas voltavam ao passado. Não
parecia algo com que precisássemos mesmo nos preocupar, já que
pousamos em um mundo totalmente diferente. Mas tanto faz. No
final das contas, isso era escolha dela.

Depois de ter garantido um espaço de pesquisa privado onde


ninguém jamais a incomodaria, Nanahoshi se dedicou a um estudo
intenso de magia de Invocação. Também escolheu usar um nome
falso, já que era famosa o suficiente para que as pessoas a
rastreassem para importuná-la. Mas Setestrelas Silente não parecia
uma escolha muito sutil. Eu teria optado por algo diferente de uma
tradução literal. Será que queria manter o nome semelhante o
suficiente para que seus dois amigos desaparecidos pudessem
reconhecer? Mas quem sabia se aqueles dois estavam mesmo por
perto? Nunca ouvi nada sobre nenhum deles.

Em qualquer caso, para aprender a magia de Invocação,


precisava começar se familiarizando com os círculos mágicos.
Enquanto magias mais dinâmicas, como elementais e de cura, eram
lançadas principalmente com encantações, precisava de círculos
para magia estática, como Barreiras e Invocação.

Nanahoshi devorou todas as informações que pôde encontrar


nos círculos mágicos, aprendendo tudo sobre os princípios por trás
deles. Em vez de recorrer aos professores para obter instruções,
aprendeu sozinha com base em livros e registros antigos.
— As pessoas deste mundo são muito… coladas no próprio
caminho, sabe? Suponho que faça sentido, dada a dureza daqui.
Mas estou procurando fazer algo totalmente sem precedentes,
então não posso esperar que alguém me ensine muito.

Hm. O que isso diz sobre mim? Eu aprendi quase tudo que sabia
sobre magia com as pessoas deste mundo… Mas isso talvez não
importasse muito. Eu não estava tentando realizar nada
revolucionário como ela estava.

— E, claro, não temos nenhuma mana — continuou Nanahoshi.


— É frustrante quando estão constantemente presumindo que você
tenha.

— Muh? — respondi feito um idiota. Ela não tem mana? O que?

— O quê? Falei algo estranho?

— Bem, na verdade, eu tenho mana. Posso lançar magia sem


nenhum problema. Na verdade, as pessoas costumam me dizer que
tenho uma capacidade de mana anormal.

Nanahoshi pressionou a mão contra a máscara. Não consegui


ver a sua expressão, mas era óbvio que essa notícia a chocou.

— Entendo. Suponho que você seja diferente porque reencarnou.


Minha capacidade de mana… é aparentemente zero.

Eu pisquei. Literalmente zero? Isso significava que não podia


usar magia alguma?

— A propósito, tudo neste mundo contém algum grau de mana.


Até os cadáveres têm um pouco. Mas viemos de um mundo onde
não existia, então achei que fazia sentido para mim não possuir.

Os cadáveres tinham mana? Isso era novidade para mim. Mas se


a magia fosse realmente uma parte tão fundamental deste mundo, a
falta dela não poderia causar… algum tipo de problema?

— Nesse caso, suponho que isso também não se aplique a você,


certo?

Com essas palavras, Nanahoshi mais uma vez removeu a sua


máscara. Foi estranho ver um rosto reconhecivelmente japonês de
novo depois de todo esse tempo. Ela não era uma supermodelo,
mas ainda era muito bonita. Eu tinha visto muitas pessoas lindas
desde que cheguei a este mundo, então meus padrões
provavelmente eram muito altos. Podia vê-la como uma das garotas
mais fofas da própria sala lá no Japão.

— Já se passaram cerca de cinco anos desde que cheguei a


este mundo, mas ainda não envelheci.

Cinco anos deveriam resultar em ao menos alguma mudança,


mas ela ainda parecia ter dezesseis ou dezessete anos. Seu corpo,
pelo visto, não estava envelhecendo mesmo.

— Bem… isso ao menos soa como um lado positivo.

Nanahoshi sorriu, então colocou a máscara de volta enquanto


soltava uma risadinha.

— Suponho que isso seja melhor do que envelhecer em um lugar


desconhecido…
Pensando bem, a minha versão que aparecia nos sonhos com o
Deus Homem também parecia nunca envelhecer. Talvez fosse
assim que funcionasse com pessoas chegadas de outros mundos.

— Mas não faço a menor ideia de por que não estou


envelhecendo. Isso é simplesmente bizarro.

— Só para constar, até agora estou envelhecendo normalmente.

— Certo. Suponho que a causa então seja algo inerente ao meu


corpo. Vou ter que investigar, se possível. Pode haver algo que eu
possa fazer quanto a isso.

Nanahoshi abriu um caderninho e escreveu uma breve nota. Ela


estava evidentemente registrando as coisas que descobria ou
quisesse estudar mais tarde.

— Certo, então, vamos voltar ao tópico principal.

Nanahoshi havia aprendido tudo sobre círculos mágicos. Eles


eram geralmente feitos ao pulverizar cristais mágicos e os
misturando com o pó de alguns ingredientes específicos para criar
uma tinta especial, que seria usada para desenhar padrões bem
específicos. Assim que a tinta se assentasse em uma superfície
adequada, ela seria absorvida, dificultando que fosse apagada.
Bombear mana na tinta aumentaria o poder da magia e produziria
um efeito específico determinado pela estrutura do círculo.

Como regra geral, a tinta mágica evaporaria após um único uso.


Muitas vezes eram necessárias coisas muito específicas para isso,
e a lista de ingredientes variava dependendo da natureza do feitiço.
Os feitiços de grande escala ou no nível Rei e superior, em
particular, exigiam o uso de alguns catalisadores muito incomuns.
Normalmente, seria necessário também o apoio financeiro de um
país para conseguir colocar as mãos em tudo que era preciso.

— Esses círculos de teletransporte nas ruínas também


desaparecem depois de um uso?

— Não, eles funcionam de forma diferente. Foram esculpidos no


local usando uma técnica especial.

Interessante…

Atualmente parecia que a norma era fazer os círculos mágicos


com tinta, mas, nos bons tempos, havia uma variedade muito maior
de técnicas em uso. Alguns desses métodos não foram totalmente
perdidos com o tempo. Seria possível, por exemplo, esculpir um
círculo mágico em pedra e bombear magia nele. A própria
Nanahoshi não podia usar esse método, então não havia passado
muito tempo estudando isso, mas era bem usado na criação de
implementos mágicos.

— Isso na verdade não é bem mais comum do que esse negócio


da tinta?

— Eu não posso usar a técnica, então não me importo com ela.

Círculos mágicos poderiam ser usados para quase qualquer tipo


de feitiço, desde que tivesse um bom padrão, a tinta certa e mana
suficiente, mas havia um grande problema. Os padrões eram
oralmente passados através das gerações, e a maioria deles se
perdeu ao longo dos séculos. E também não havia ninguém capaz
de inventar alguns novos. Se quisesse descobrir um “novo” círculo
mágico, a única opção seria encontrar algum pergaminho antigo
esquecido no fundo de algum tesouro real ou tropeçar em uma
gravura nas profundezas de uma ruína ancestral.

Este, na verdade, foi o modo como as coisas funcionaram por um


bom tempo… até que Nanahoshi chegou para movimentar as
coisas. Ela analisou os padrões dos círculos mágicos conhecidos,
elaborou suas próprias hipóteses e realizou incontáveis
experimentos. Eventualmente, obteve sucesso ao criar os seus
próprios padrões inovadores.

Isso tudo era bem impressionante. Quanto mais ela falava, mais
eu queria aprender. Mas antes que eu pudesse tocar no assunto,
Nanahoshi me desanimou.

— Não posso contar as minhas descobertas a qualquer um que


perguntar.

Eu queria protestar, mas ela ainda não tinha terminado.


Levantando a mão, fitou o meu rosto com calma.

— Vamos fazer um acordo.

Isso provavelmente era o que ela já vinha planejando há algum


tempo.

— Não tenho mana nem meios para me defender. Eu não


envelheço, mas tenho quase certeza de que não sou imortal.

— Certo.

— Para ser sincera, não suporto este mundo. Nada disso aqui
me parece real . A comida é horrível, o senso de moralidade é
bizarro e tudo é tão incrivelmente inconveniente. Eles nem têm
xampu por aqui, fala sério. E, o mais importante, todas as pessoas
de quem gosto estão no nosso mundo. Quero muito voltar para lá. E
quanto a você?

— Gosto muito deste mundo — respondi na mesma hora. — E


tenho mais amigos aqui do que naquele outro, pelo menos por
enquanto. Não quero retornar.

— Entendo. Você não tem uma família que deixou para trás ou
algo assim?

— Não tenho arrependimentos.

Eu nem queria pensar na minha vida antiga. Não queria mesmo.


Há quinze anos, decidi dar o meu melhor com a segunda chance
que recebi. Desde então aconteceu todo tipo de coisa – algumas
maravilhosas, outras dolorosas. Mas eu estava bem satisfeito com a
minha vida atual, mesmo levando tudo em consideração. Se alguém
tentasse me arrastar de volta para “casa” depois desse tempo todo,
eu não iria sem resistência.

— Entendo. Suponho que você deve ter vivido uma vida boa e
longa…

Nanahoshi estava interpretando a situação de um jeito um


pouquinho equivocado, mas, que seja. Não era como se eu tivesse
contado que eu era o fracassado fedorento que pulou na frente
daquele caminhão no último instante. Tudo que eu contei foi que a
minha morte foi acidental.
— Então os nossos objetivos aqui são claramente diferentes.
Mas podemos oferecer algo um ao outro, então vamos encontrar
uma forma de cooperar.

— Existe algo que eu tenho que você deseja?

— Você mesmo disse antes. Você tem uma capacidade de mana


de além da normal, certo?

Ela queria, dentre todas as coisas, a minha mana? Eu parecia


me lembrar de ter visto pilhas de cristais mágicos espalhados pela
sala dela… aquilo tudo não era o suficiente?

— Eu gostaria que você me ajudasse com os meus


experimentos. Em troca, vou te ensinar tudo o que quiser saber. Se
estiver procurando alguma resposta que eu não tenho, farei de tudo
para encontrá-la. Conheço muitas pessoas influentes e sou uma
pesquisadora bem qualificada. E também vou te ajudar de qualquer
outra maneira que puder, é claro.

— Então, o que você quer é basicamente uma relação de dar e


receber?

— Isso mesmo. É bem simples, na verdade.

Nanahoshi parecia uma pessoa muito inteligente e engenhosa.


Eu não tinha certeza de quanta ajuda realmente seria para ela. Mas,
talvez, estivesse apenas mostrando alguma compaixão por um
companheiro Terráqueo. Ela disse algo sobre estar feliz em
encontrar alguém do mesmo tipo.

— Certo, isso me parece bom. Eu aceito.


— Fico feliz por ouvir isso. Não mude de ideia depois, entendido?

— Um homem nunca volta atrás com a sua palavra.

— Heh… Devo dizer que é bom ouvir esse clichê japonês de


novo.

— Eu sei o que você quer dizer. Ninguém entende nenhuma das


minhas referências por aqui.

Nanahoshi pigarreou e se acomodou em seu assento. Ela tirou


os anéis do bolso e os colocou, um a um. Havia algum sentido nisso
tudo?

— Então devemos ir direto ao assunto? Tem algo que queira me


perguntar? Ouvi dizer que você está investigando o Incidente de
Deslocamento.

— Uh, quem te contou?

Lancei um olhar em direção de Fitz, que estava silenciosamente


sentado ao lado com uma expressão um pouco amuada no rosto.
Será que tinham conversado um pouco enquanto eu estava
inconsciente? Percebendo o meu olhar, ele inclinou a cabeça para o
lado, incerto.

— Hm? O que foi, Rudeus? Tem alguma coisa errada? —


perguntou Nanahoshi, ainda em japonês.

— Vamos falar logo sobre o Incidente de Deslocamento.


Nanahoshi, para isso, se importaria em falar na Língua Humana?

— Então vamos lá.


Fitz se moveu para perto de mim e se virou para Nanahoshi.
Desse ponto em diante, usaríamos uma linguagem que todos os
presentes pudessem entender.

— Não sei os detalhes do motivo por trás desse desastre —


começou Nanahoshi, ainda relutante. — No entanto, coincidiu um
pouco com o momento em que cheguei a este mundo.

Eu tive as minhas suspeitas, é claro, desde o momento em que


soube quando e onde ela havia chegado a este mundo. E ela sem
dúvidas soube através de Fitz que fui uma das pessoas afetadas
pela calamidade.

— Em outras palavras? — indaguei.

— O Incidente provavelmente foi um efeito colateral causado


pelo que me trouxe aqui. Ou seja… — Nanahoshi parou por um
momento antes de continuar. — Na verdade, isso aconteceu por
minha causa.

Certo. Nenhuma surpresa até aqui.

Eu já estava prevendo essas palavras há algum tempo.


Invocação e Teletransportação eram semelhantes em muitos
aspectos, e Nanahoshi aparentemente havia sido invocada no
momento em que fomos teletransportados. Tudo se encaixava
demais para ser só uma coincidência. Fiquei, no mínimo, aliviado
por o desastre não estar relacionado à minha chegada.

Fitz, entretanto, reagiu de maneira muito diferente.

Com um grito estrangulado de “Eu vou te matar!”, ele deu um


pulo e balançou o braço ameaçadoramente.
— O quê?! Você…?! — gritou Nanahoshi, erguendo uma das
mãos. Um de seus anéis brilhou intensamente e o feitiço de Fitz
falhou. O que foi aquilo?

Percebendo que sua magia não ia funcionar, Fitz saltou em


direção a Nanahoshi e começou a dar socos. Mas o segundo dos
anéis dela brilhou, e os punhos dele ricochetearam em algum tipo
de barreira invisível.

— Você… tem alguma ideia… do quanto sofremos?! Minha mãe


e meu pai… morreram por sua causa!

Aqueles anéis só podiam ser mágicos. Nenhum dos ataques de


Fitz estava acertando.

— Não fique aí parado, Rudeus Greyrat! — gritou Nanahoshi,


claramente perturbada. — Faça alguma coisa!

Dando um passo à frente, agarrei meu amigo ofegante pelo


braço antes que ele pudesse bater o punho contra a barreira de
novo.

— Acalme-se, Mestre Fitz.

— Você está falando sério, Rudeus? Ela já admitiu a culpa!


Como você pode ficar tão calmo?! Você… Você também sofreu, não
sofreu?!

Eu nunca tinha visto Fitz assim antes. Ele normalmente era tão
calmo. Mas, claro, seria difícil culpá-lo por perder o controle. Ele
perdeu todas as pessoas que amava naquele desastre. Após cinco
anos, devia já estar, de certa forma, aceitando toda a sua perda.
Mas isso não significava que pudesse ficar calmo quando
confrontado pela pessoa responsável por tudo.

Com base no que eu tinha ouvido até o momento, porém, o


Incidente de Deslocamento não foi culpa de Nanahoshi. Além do
mais, eu estava bem ali com ela no momento em que nós dois
fomos convocados para este mundo… embora não tivesse ideia de
por que ela apareceu dez anos depois de mim.

O ponto principal era: ela não escolheu ser trazida para cá.
Alguém tomou essa decisão em seu lugar.

Ah, certo. Estávamos conversando em japonês quando


discutimos isso, não é? Surpresa nenhuma que Fitz tenha entendido
mal. Ele não conhecia o contexto geral.

— Sinto muito, não explicamos isso com clareza suficiente. Ela


não veio para cá por vontade própria, Mestre Fitz. Ela também é
uma vítima.

— Uma vítima…? Espera… sério? — Fitz ainda estava ofegante,


mas parecia ter levado as minhas palavras ao pé da letra. Com um
longo suspiro, ele caiu de volta na cadeira.

— Sinto muito — disse Nanahoshi. — Eu poderia ter formulado


isso com mais cuidado. Minha intenção não era te magoar.

— Então tudo certo… Peço desculpas por tirar conclusões


precipitadas. — Fitz ainda não parecia completamente calmo. Ainda
havia, por exemplo, uma luz forte em seus olhos. Mas ele parecia
ter se controlado, pelo menos por enquanto.
Nanahoshi colocou aqueles anéis supondo que eu ficaria furioso
e tentaria matá-la? A garota tinha alguma coragem, eu precisava
admitir. Essas eram umas bugigangazinhas bem úteis. Para ser
sincero, eu queria um ou dois conjuntos desses para mim. Talvez
fossem o seu principal meio de autodefesa…

— De qualquer forma, não sei muito mais sobre o Incidente em


si. Fui invocada aqui por causa daquilo, mas não tenho ideia de
quem fez isso acontecer, quais foram seus motivos ou por que isso
levou a um desastre tão grande. Ninguém sabe.

— Orsted também não tinha teorias?

— Não. Ele só disse que foi algo imprescindível.

Bem, se um suposto deus não tinha descoberto nada,


provavelmente também não encontraríamos nenhuma resposta. Eu
parecia me lembrar do Deus Homem dizendo que a culpa era de
Orsted… mas graças àquela maldição, todos que se encontravam
com o Deus Dragão o odiavam. Senti que o Deus Homem também
podia estar sob os efeitos disso.

E, além disso, também tinham uma outra rixa, não? Ele podia só
ter culpado Orsted por ser o seu costume.

Se Nanahoshi estava ao menos me dizendo a verdade, então era


difícil imaginar que Orsted realmente tivesse desempenhado algum
papel na causa do Incidente. Por que a invocaria e então gastaria
tanto tempo ajudando-a a retornar para casa? Isso não fazia muito
sentido.

— Então por que você disse que aconteceu por sua causa?
— Bem, de certa forma, foi. E eu gostaria de esclarecer isso
agora mesmo. Eu não quero que ninguém use isso como desculpa
para depois ficar contra mim.

— Entendo…

Em vez de tentar esconder algo que poderia me colocar contra


ela, Nanahoshi disse a verdade sem qualquer rodeio, e então
explicou. Essa parecia ser a melhor abordagem, ainda mais quando
considerado o risco de eu descobrir alguma coisa no futuro.

Claro, eu ainda teria que manter em mente que existia a chance


de que ela ou Ortesd fosse um mentiroso muito habilidoso.

— Então isso é uma pena. Eu esperava que você tivesse alguma


ideia do que aconteceu.

— Receio que não. Mas tenho um plano para dar continuidade à


minha pesquisa.

— Se sua pesquisa progredir o suficiente, acha que descobrirá a


verdade por trás do Incidente de Deslocamento?

— Eu deveria ser capaz de explicar o que aconteceu ao menos


em um nível teórico…

Balancei a cabeça pensativamente. A maneira como ela


cuidadosamente esclarecia as suas promessas a fazia parecer de
alguma forma mais confiável.

— Mas para que isso aconteça, vou precisar de uma grande


quantidade de mana.

— Entendo. Acho que então sou o homem dos seus sonhos.


— Heh. É, suponho que sim.

Fitz fez uma careta enquanto falávamos. Tive a sensação de que


ele ainda não confiava completamente em Nanahoshi. Ainda assim,
nunca esperei que um cara tão bom e amigável como ele surtasse
daquele jeito. Ele tinha dito até que passou pelo Incidente sem
grandes problemas… mas eu não sabia que seus pais tinham
morrido. O mais inteligente provavelmente seria deixá-lo se acalmar
um pouco antes de dizer qualquer coisa.

— Certo, Nanahoshi. Preciso de um pouco de tempo para pensar


nisso tudo. Voltarei para te ver em alguns dias, pode ser? Até então
vamos trabalhar nos detalhes.

— Combinado. Então nos vemos.

Com essa última troca de palavras, deixei a enfermaria com o


Mestre Fitz no meu encalço.

✦✦✦✦✦✦✦

Depois que expliquei a situação de Nanahoshi a Fitz com mais


detalhes, ele finalmente pareceu se acalmar um pouco. Quando eu
contei que ela fora trazida a este mundo à força e estava
desesperada para voltar para casa, a sua raiva desapareceu.

Assim que terminei, entretanto, ele me fez uma pergunta um


pouco estranha.

— De qualquer forma, Rudeus… o que você acha dela?

A pergunta era um pouco complicada. Foi fácil para mim


acreditar na sua história, já que eu mesmo reencarnei, mas devia ter
soado bem estranho para Fitz. Pela maneira como Nanahoshi
falava, era óbvio que não se importava muito com este mundo ou
com o que acontecia às pessoas nele. Ela só queria dar no pé. Ao
contrário de mim, desde que chegou a este mundo ela só provou o
sucesso. Talvez todas as coisas lhe pareçam triviais. Eu não iria me
gabar de todo o meu trabalho duro ou algo assim… mas realmente
não gostei da atitude dela.

— Para ser honesto, há algumas coisas nela que eu não gosto


muito. Mas acho que é relativamente confiável.

— Hm… Certo. Então isso é bom.

Fitz sorriu um pouco sem jeito. Talvez estivesse planejando me


dar um sermão sobre confiar nas pessoas com muita facilidade,
caso eu tivesse respondido de forma diferente. Eu realmente não
sabia como Nanahoshi poderia ter elaborado um plano para me
enganar, considerando que a abordei primeiro… mas acho que sua
história era no mínimo muito difícil de acreditar.

— Você estava preocupado comigo, Mestre Fitz? Obrigado.

— Hein?! Não, eu… Eu não estava preocupado nem nada,


mas… de qualquer maneira, acho…

Ver esse cara inquieto assim foi estranhamente comovente.

Em qualquer caso, Nanahoshi e eu tínhamos estabelecido uma


parceria provisória.

Ainda havia dezenas de perguntas que eu queria fazer a ela, mas


não havia necessidade de apressar as coisas. Simplesmente teria
que trabalhar o meu caminho todo, passo a passo.
História Paralela:
Sylphiette (Parte 04)
Ultimamente, estava sentindo cada vez mais ansiedade com a
situação.

Silente acabou por ser uma garota. Isso, por si só, não foi uma
grande surpresa. Algumas das fontes da Princesa sugeriam que
esse poderia ser, de fato, o caso. Parando para pensar, muitas das
suas pequenas inovações eram coisas que qualquer mulher poderia
apreciar. Ela melhorou a nossa comida, as nossas roupas e o
sabonete que usávamos para limpar os nossos cabelos… uma vez
que percebessem que estava fazendo tudo por si mesma, fazia total
sentido.

Minha ansiedade, na verdade, não era em relação a ela. Era


mais em relação ao Rudy. Por alguma razão, ele parecia devotado à
Silente.

E já havia um monte de mulheres bonitas na sua vida. Linia,


Pursena… Elinalise agora era namorada de Cliff, claro, mas ainda
contava. Rudy nunca havia demonstrado muito interesse por elas.

Mas Silente era uma história diferente. Por alguma razão, ela era
especial para ele. Ela tinha um problema complicado com o qual
estava lutando, e ele queria ajudá-la. Isso provavelmente fazia parte
do motivo. Rudy gostava de ajudar as pessoas.

Mas não era só isso. Havia alguma conexão especial entre os


dois, uma que eu não conseguia entender. E isso com certeza
estava aproximando os dois. Provavelmente não tinham
sentimentos românticos um pelo outro. Não tive a impressão de que
Rudy tinha se apaixonado por ela. Mas o relacionamento deles
parecia mais… íntimo do que qualquer um dos outros. Eram ainda
mais próximos do que eu fui com Rudy nos tempos em Buena
Village? Talvez.

Desde que Rudy começou a ajudar nos experimentos de Silente,


ele passou a gastar menos tempo investigando o Incidente de
Deslocamento com o Fitz. E a passar mais tempo com ela, é claro.
E quando se passa tempo o bastante com alguém, não é incomum
que algo como sentimentos românticos surjam meio que do nada.

Na época em que ele fez amizade com Linia e Pursena, não


fiquei tão preocupada. Mas dessa vez, não era difícil para mim
imaginar a Silente levando-o embora. Isso fez meu coração latejar
de um jeito doloroso.

Eu odiava a Silente ou coisa assim? Não era como se


tivéssemos conversado muito. Eu não tinha motivos para odiá-la. Só
não queria que tomasse o Rudy de mim, só isso e nada mais. Ela
apareceu do nada, e começou a agir como se o conhecesse desde
sempre. Já até se sentava casualmente ao lado dele, como se
tivessem uma amizade de anos. Era o lugar onde eu deveria estar.

E não era eu que estava sentando lá, fato. Então, realmente não
poderia colocar isso para fora. Mas se ela iria reivindicar aquele
assento, queria que fizesse isso direito. Queria que primeiro
passasse muito e muito tempo com ele, e fizessem memórias
juntos. Ou isso, ou preferia que ela se afastasse. Assim, talvez
pudesse aceitar… o que quer que fosse.
— Uff…

Será que eu e Rudy realmente íamos só… nos separar assim? A


Princesa disse que eu poderia tomar o tempo que precisasse com
isso. Mas se não houvesse chance alguma, queria que Fitz parasse
de interagir com Rudy por completo. Nós seguiríamos caminhos
separados.

Mesmo que Fitz deixasse a sua vida de uma vez por todas, Rudy
continuaria se saindo muito bem, seguindo em frente, assim como
sempre fez. Silente tomaria o meu lugar para ela. E talvez
acabassem passando o resto das suas vidas juntos.

Eu não gostava desse pensamento… Nadica de nada.

Isso não estava indo nada bem. Mas o que eu deveria fazer?

A resposta era bastante óbvia. Tinha que contar quem eu era, e


então dizer como eu me sentia. Isso pelo menos serviria como um
passo, de uma forma ou de outra.

Mas não importava o quanto isso era óbvio, eu não conseguia


fazer as minhas pernas se moverem. O pensamento E se ele disser
não? ficava piscando na minha cabeça e me impedindo de me
mover.

Se não fizesse algo, com certeza me arrependeria. Mas eu não


tinha coragem de fazer o que precisava. Quando foi que me tornei
tão covarde? Eu costumava ser uma criança muito tímida, claro,
mas pensei que tinha conseguido mais coragem do que isso nos
últimos anos.
Será que, em algum momento, minha coragem caiu do meu
bolso?

Eu realmente queria que alguém a trouxesse de volta para mim.


Capítulo 07:
Um Dia na Universidade de Magia
Fazia um ano desde que me matriculei na Universidade de Magia
de Ranoa e tinha recém completado dezesseis anos. Neste mundo,
as pessoas realmente comemoravam apenas seu quinto, décimo e
décimo quinto aniversário, então eu meio que já tinha esquecido
tudo a respeito desse momento. Poderia relembrar a minha idade
conferindo no meu cartão de aventureiro durante todas as manhãs,
mas não era algo que eu tinha olhado com muita frequência nos
últimos dias.

E eu, de qualquer forma, não me importava muito. Idade é só um


número, certo?

Depois de conhecer Nanahoshi, minha rotina normal mudou um


pouco.

Começava os meus dias acordando bem cedo, me vestindo e


saindo para treinar. Era a mesma coisa de sempre, mas Badigadi às
vezes aparecia quando eu estava iniciando a minha prática com
espada. Mas ele não participava e nem dava conselhos. Na maior
parte do tempo só observava em silêncio com todos os braços
cruzados ou descansando em seus quadris, às vezes balançando a
cabeça pensativamente. Eu não fazia ideia de quais conclusões ele
estava chegando, já que nunca as compartilhava comigo. E também
não tentei iniciar nenhuma conversa. Se ele abrisse a boca,
provavelmente começaria a gargalhar alto o suficiente para acordar
toda a vizinhança.
Honestamente, eu não tinha certeza de como deveria interagir
com Badigadi. Ele parecia ser um cara legal, mas eu nunca
conseguia entender em que estava pensando. E ele era um Rei
Demônio de verdade, então queria evitar de acabar o irritando.

Uma manhã, porém, ele falou comigo pela primeira vez.

— Hm. Acho o seu treinamento fascinante, garoto, mas tenho


que perguntar… há algum sentido nisso?

Ai. Essa é uma maneira bem desanimadora de se começar uma


conversa.

— Uh, bem… Não acho que ficar em forma seja inútil, mas…

— Você tem uma quantidade absurda de mana — interrompeu


Badigadi. — Não entendo por que treinaria sem se cobrir com aura
de batalha.

E mais uma vez a aura de batalha. Eu já tinha ouvido essas


palavras várias vezes, mas todo mundo era sempre muito vago
sobre como deveria me “cobrir” com isso. Essa me parecia uma
oportunidade de ouro. Perguntar não machucaria, certo?

— Afinal de contas, exatamente o que é a aura de batalha?

— É mana! Nada mais, nada menos.

Pelo modo como Badigadi explicou, era basicamente uma


técnica que usava a mana dentro de si mesmo para melhorar
drasticamente as capacidades físicas do corpo, fortalecendo-se a
extremos antinaturais. Isso estava meio que dentro do que eu já
esperava ouvir.
— E como é que se faz isso?

— Só espalhe um campo de mana sobre cada parte do seu


corpo e o pressione firmemente contra você!

— Ooh.

Bem, isso soou como um conselho útil. A Universidade com


certeza precisava substituir os seus professores por um bando de
Reis Demônios. Depois de dominar isso, talvez poderia ganhar
alguns níveis de poder.

Tentei na mesma hora, fazendo as minhas melhores imitações


dos vários Super Saiyans e usuários de Nen. Mas não importa o
quanto eu manipulava a mana, não havia nenhuma mudança real
em minhas capacidades físicas. Às vezes parecia que estava
ficando mais forte, mas devia ser só o efeito placebo da ação.

— Bem, isso é estranho. Você não tem talento para isso, garoto!

Badigadi continuou apontando os motivos para o meu fracasso


sem quaisquer rodeios. Normalmente, a aura de batalha era algo
que as pessoas começavam a gerar automaticamente após passar
algum tempo fazendo treinamento físico. Por outro lado, coloquei
um bom esforço nisso, mas ainda não conseguia me cobrir com a
aura, nem quando tentava. Isso significava que eu só não levava
jeito para a coisa.

Esse tipo de coisa às vezes acontecia. Algumas pessoas


poderiam nunca gerar qualquer aura de batalha, não importa quão
intenso fosse o seu regime de treinamento.
— Bwahahaha! Mas não é como se você precisasse disso, é
claro! Laplace também nunca se cobriu com aura de batalha, mas
era verdadeiramente poderoso!

Quando falava sobre as minhas habilidades, Badigadi costumava


usar o Deus Demônio Laplace como um ponto de comparação.
Presumi que era porque ele também tinha uma enorme reserva de
mana.

— Você realmente conheceu Laplace, Sir Badi?

— Claro que sim! Ele aniquilou quase todo o meu corpo em um


único ataque. Depois daquilo precisei de algum tempo para me
recompor! Por um momento pensei até que ele tinha me matado
mesmo! Bwahahahaha!

Existe algum motivo para você parecer tão orgulhoso disso…?

Bem, ele lutou contra um oponente poderoso e sobreviveu para


contar a história. Talvez valesse a pena se gabar disso,
independentemente dos detalhes. De acordo com Badigadi, Laplace
era um sujeito extremamente sombrio, mas também era um mestre
no uso da sua mana.

— Se eu aprendesse a lutar como Laplace, ficaria mais forte?

— Não recomendo isso. Se você tentar usar a sua mana da


mesma forma que ele, explodirá seu próprio corpo em um instante.
Sabe, para começo de conversa, é bizarro que um humano tenha
tanta mana!

Canalizar muita mana de uma só vez parecia poder destruir um


mago de dentro para fora. Em um nível intuitivo, isso até que fez
sentido para mim. Infundir a si mesmo com magia era meio que
como esticar o braço até não conseguir mais. Se continuasse
forçando além desse limite, provavelmente acabaria com o
equivalente a um ou dois ossos quebrados.

Laplace, por outro lado, não só possuía um suprimento


gigantesco de mana, como o seu corpo também era robusto e
possuía a habilidade técnica para usá-lo. Em comparação, eu era
uma coisinha frágil e desajeitada. Não importa o quão duro eu
treinasse, nunca alcançaria o nível dele.

— Mas por que você quer ficar ainda mais forte, garoto?

— Por que? Bem, uh… Digo… — Alguém quase me matou há


não muito tempo. Eu queria ficar forte o suficiente para que aquilo
não voltasse a acontecer. Isso me parecia razoável…

— Conheci muitos homens que buscavam excessiva fama e


força, e isso nunca acabou bem. Veja o meu sobrinho, por exemplo.
Orgulhoso demais! Ficou um pouco mais calmo depois de quase
morrer, mas até aquilo estava obcecado pela ideia de se tornar o
homem mais forte do mundo. Existem coisas mais importantes na
vida do que isso, sabe?

— Tipo o que?

— Tipo mulheres! — disse Badigadi com um sorriso satisfeito. —


Assim que você conseguir uma, vai entender! Bwahahahaha!

Para ser justo, as pessoas que queriam o poder pelo poder em


geral eram vilões. Ao menos era assim que as coisas funcionavam
nos mangás que eu li na minha vida anterior. Mas não planejava
dedicar a minha vida à busca pelo poder nem nada assim. Ser forte
permitia ficar mais confiante, mas não tornava a pessoa melhor ou
mais feliz só por isso. Eu poderia entender por que alguém
priorizaria algo divertido como brincar com mulheres acima disso.
Graças à minha condição, porém, essa não era exatamente uma
opção.

— Isso me lembra, vossa Majestade…

— Sim? O que é?

— Por acaso você não saberia de uma cura para a impotência?

— Não…

Acho que nem mesmo os Reis Demônios sabem tudo.

Após terminar o treinamento, tomei um café da manhã rápido e


fui para a aula.

Minhas manhãs começavam com a magia de Desintoxicação


Intermediária. Mesmo no nível Iniciante, a Desintoxicação permitia
que a pessoa curasse uma enorme gama de doenças comuns e
purificasse o corpo da maioria dos venenos. Mas ao se tratar de
doenças raras, ou de um veneno usado por monstros de rank
elevado, precisava conhecer feitiços mais avançados, aqueles com
encantamentos específicos, que exigiam o uso de muita mana. As
aulas de Desintoxicação Intermediária e além eram principalmente
acerca desses feitiços ultra-direcionados.

Os encantamentos eram tão longos que davam até sono. Mesmo


no nível Intermediário, teria que entoar uma frase várias vezes mais
longa do que a usada para qualquer feitiço ofensivo. Os
encantamentos modernos eram considerados versões abreviadas
de frases mais antigas e menos refinadas… mas quando se entrava
nos níveis mais avançados de certas disciplinas, parecia que nunca
haviam sido encurtados.

E também existiam muitos deles para aprender. Para a


Desintoxicação Intermediária, precisava memorizar mais de
cinquenta encantamentos diferentes. Alguns dos venenos na
verdade eram criados, para a minha surpresa; talvez possuíssem
algum uso médico em determinados casos.

No nível Avançado, precisaria aprender mais de cem feitiços.


Depois de alcançar esse nível, precisaria de algumas habilidades de
memorização bem desenvolvidas.

No nível Santo, era suposto que existia a necessidade de


memorizar ainda mais coisas, mas a quantidade de mana
necessária para lançar um único feitiço aumentava dramaticamente.
E quanto aos feitiços de nível Rei e acima… era como olhar para
coisas pesquisadas e planejadas por uma nação inteira, e na
maioria dos casos guardadas como segredo de estado. Alguns
criariam venenos incuráveis no lugar de qualquer outra coisa, e isso
servia como uma ameaça aos outros países. Outros criavam
antídotos específicos para esses mesmos venenos. Era
basicamente uma espécie de corrida armamentista.

A propósito, o único feitiço de Desintoxicação de nível Divino do


qual ouvi falar era aquele que curava uma doença estranha e
terrível chamada de Síndrome da Petrificação. Se isso não fosse
tratado, iria lentamente transformando a mana contida no corpo do
indivíduo em uma pedra mágica. Apenas uma pessoa foi capaz de
usar o feitiço em questão. E isso era cuidadosamente guardado na
Grande Catedral de Millishion.

Só um adendo… conforme passava da Desintoxicação


Intermediária para a Avançada e continuava seguindo em frente, os
encantamentos ficavam cada vez mais longos. Com base no que vi,
um feitiço de nível Rei poderia exigir que um livro inteiro fosse
recitado em voz alta.

Meu novo cérebro não era nada ruim em lembrar das coisas,
mas isso ainda me parecia um trabalho bem difícil. Para ser
honesto, monges e sacerdotes pareciam nunca conseguir um
tempo. Não importa em que mundo estivessem, sempre tinham
cânticos tediosos para memorizar. Eu, pessoalmente, planejava só
carregar um livro com os encantamentos gravados.

Meu principal objetivo nesta aula era ver se poderia encontrar


algum feitiço que poderia curar a minha condição. Mas, pelo que o
professor me disse, não havia nada que pudesse me deixar mais
animado no nível Intermediário.

Nada surpreendente, sério.

Depois que a minha primeira aula acabou, chegou a hora do


almoço.

Fazia meses que eu comia do lado de fora, mas estava


começando a esfriar, então decidi criar um pequeno abrigo para uso
particular. Usei magia da Terra para cercar uma das mesas externas
com quatro paredes e um teto, então abri um buraco no meio da
mesa e acendi uma fogueira dentro dela. Depois de adicionar um
buraco para a saída da fumaça no teto, a minha cabaninha
aconchegante estava pronta. Sentar ao lado daquela mesa era
mesmo muito bom, já que o fogo aquecia a pedra toda.

Infelizmente, o Vice-Diretor Jenius logo apareceu e me deu uma


bronca. Em vez de fazer o meu próprio ambiente do lado de fora, fui
incentivado a usar o prédio que já estava construído. Decidi
começar a comer no primeiro andar do refeitório. Já esperava pelos
protestos de Zanoba, mas ele aceitou na mesma hora.

— Julie, de qualquer forma, não seria capaz de se sentar


conosco no terceiro andar. — Pelo visto, existia uma regra informal
por lá que ditava que os escravos não podiam usar as cadeiras. Isso
não se aplicava a outros lugares, é claro.

Zanoba não tratava Julie como uma escrava, mesmo com ela
tecnicamente sendo. Ele a considerava uma jovem aprendiz na arte
de fazer estatuetas, nada mais, nada menos. Dito isso, ela
continuava sendo a sua subordinada, então não era raro ver ele
dando alguma ordem. O tratamento dado aos escravos variava
muito neste mundo, dependendo de onde estava e de quem era o
dono. Eu não tinha certeza se o tratamento de Zanoba era bom ou
ruim. Ele ao menos não agia como se ela estivesse abaixo dos
humanos.

— Merda, aquele é o Rudeus…

— O que há com aquele cara, afinal? Como diabos ele tomou o


controle da classe especial em um único ano?

— Eu estava lá quando ele acabou com o Rei Demônio, cara…


ele usou só um feitiço…
Quando entrei no refeitório, a multidão se separou na minha
frente e ouvi murmúrios de todos os lados. Não me lembrava de
“tomar o controle” da classe especial, e meu único golpe em
Badigadi foi retribuído com três socos… mas tanto faz. Não era uma
sensação ruim, embora eu tivesse que me assegurar de que isso
não subiria à minha cabeça. Orsted me ensinou uma lição muito
dolorosa sobre os perigos de ficar confiante demais. Se meu ego
ficasse grande demais, eu acabaria voltando a sofrer.

Segui o caminho aberto pela multidão e me vi conduzido


diretamente a uma mesa no fundo do refeitório.

— Bwahahahaha! Vejo que finalmente ficou frio demais para


você comer lá fora, garoto!

Badigadi estava sentado lá. Por alguma razão, estava tomando


canecas enormes de uma bebida que definitivamente não era
servida no local. Julgando pelo tom avermelhado da sua pele negra,
provavelmente já devia estar até um pouco bêbado.

Os outros estudantes, parados a uma distância segura, olharam


para mim com expectativas. Seus olhos imploravam para que me
sentasse com Badigadi. Pelo visto, fui designado para uma certa
mesa devido a um consenso grupal.

A propósito, Cliff e Elinalise comiam no segundo andar.


Testemunhei os dois fazendo uma refeição juntos em certa ocasião,
e foi o suficiente para me fazer perder o apetite. Os dois passavam
o tempo todo alimentando um ao outro e trocando beijos
apaixonados, ignorando todo e qualquer olhar. Assistir aquilo me
deixou com uma sensação de vazio interno, então decidi manter
certa distância deles durante as refeições.

— Mestre, o que o Rei Demônio está bebendo? — perguntou


Julie, puxando a manga de Zanoba. — Isso parece muito bom.

— Bwahahaha! Você é uma anã, com certeza! De fato, esta


cerveja é da mais alta qualidade. Isso estava no esconderijo secreto
daquele homem com uma bola de pelo na cabeça!

Eu tinha ouvido falar que anões gostavam de beber, sim, mas…


Julie já tinha gosto por álcool? Senti que ela ainda era jovem demais
para isso, mas, pelo visto, eu era o único pensando assim.

— Hm. Sir Badi, se importaria se ela provasse um pouco?

— De forma alguma! Beber sozinho não tem graça, sabe?


Bebam tanto quanto quiserem! Bwahahahaha!

Julie pegou uma caneca que Badi havia enchido até a borda com
a cerveja e começou a beber cada vez mais. Será que isso era
mesmo uma boa ideia? Ela ainda devia ser um pouco jovem demais
para isso, não? Digo, é claro que sempre poderíamos usar magia de
desintoxicação no caso de ela ficar muito bêbada, mas, mesmo
assim…

Então, mais uma vez, aos meus sete anos de idade eu já dava
umas bebericadas. Ser contra isso talvez fosse hipocrisia da minha
parte.

— Hmm. Então eu talvez também queira uma caneca — disse


Zanoba.
— Você tem aulas hoje — lembrei. — Isso provavelmente não é
uma boa ideia.

— Ah. Se você diz isso, Mestre. Minhas desculpas, Sir Badi.

— Bwahahahaha! Vocês não podem nem beber quando sentem


vontade? A vida de um estudante deve ser infeliz!
Escutando essa conversa barulhenta, comi meu almoço e parti
para a minha próxima aula. Desta vez era um curso de Cura
Avançada, localizado em uma sala de aula do quinto ano.

Fiquei surpreso ao descobrir que Pursena também estava


assistindo essa aula. A parte mais surpreendente, para ser
específico, é que era apenas a Pursena. Linia estava vendo alguma
aula diferente. Pursena não costumava levar nada a sério. Mas,
para o seu crédito, prestava bastante atenção às palestras…
enquanto mastigava pedaços de carne seca, é claro.

Ainda assim, a maioria dos outros alunos tinha medo dela,


graças à sua reputação de delinquente, então ela costumava passar
quase o tempo todo sozinha. A garota tinha até problemas para
conseguir alguém para formar um par consigo nas sessões de
habilidades práticas. Graças a isso tudo, parecia genuinamente
grata pela minha companhia. Nesta tarde, chegou até a dizer: “Você
é o melhor, Chefe. Aqui, pode ficar com o meu bem mais precioso.”

O presente que recebi foi um pedaço de carne seca que já


estava meio comido. Pelos padrões dela, devia ser um gesto muito
especial. Aceitando com um aceno de cabeça, fui em frente e lambi
a carne toda, saboreando o gosto da garota-cadela. Pursena me
encarou com puro desgosto.

Ei, foi você quem me deu…

Quanto a Linia, ultimamente estava me enchendo de perguntas


sobre feitiços elementais. Parecia que estava sofrendo para
conseguir usar magias combinadas.
Este aparentava ser um enorme obstáculo para muitas pessoas
que concentravam os seus estudos em magia ofensiva. No
passado, Sylphie aprendeu com relativa facilidade, mas talvez fosse
uma daquelas coisas que ficava mais difícil conforme ia
envelhecendo.

Neste dia, tirei algum tempo para tentar falar um pouco sobre a
combinação de magia de fogo e água para Linia. Para ser honesto,
isso me despertou alguns sentimentos de nostalgia. Comecei
tentando explicar o ciclo de evaporação, condensação e
precipitação, mas o conceito parecia só a confundir.

— Mew? Mas se todo o oceano se transformasse em chuva, não


iria simplesmente desaparecer depois de algum tempo?

— Digo, a chuva volta para o oceano depois de cair, então não


existe perda líquida.

— Isso não é verdade, mew! — disse Linia, seu rosto brilhando


de triunfo. — Na Grande Floresta, a água penetra direto no solo!

— Claro, mas essa água ou é puxada de volta pelas plantas ou


começa a fluir no subsolo. Então, eventualmente…

Tentei dar o meu melhor para guiá-la e dar um passo de cada


vez, mas eu não parecia estar conseguindo convencê-la. Tudo o
que eu mais queria era que ela conseguisse entender que a água do
oceano evaporava, formava nuvens de chuva e depois voltava.
Depois de ter um bom entendimento intuitivo sobre isso, poderia
começar a colocar os princípios envolvidos em uso prático… mas,
claro, ainda não estávamos nesse ponto.
Ainda assim, Linia não era tão sem futuro quanto Ghislaine ao se
tratar de pensar nas coisas, então em algum momento deveria
acabar entendendo.

Pensando bem, porém… não havia nenhuma garantia real de


que o ciclo da chuva realmente funcionasse da mesma maneira
neste mundo, já que poderia invocar água com magia.

Enquanto ainda no tópico de magia elemental, devo mencionar


que a algum tempo aprendi o meu primeiro feitiço de magia de Terra
de nível Santo, a Tempestade de Areia.

Isso era basicamente uma versão mais poderosa do feitiço de


nível Avançado chamado Tempestade de Poeira. Isso podia até não
parecer tão impressionante à primeira vista, mas quando fiz um
teste, uma torrente incrivelmente feroz de areia e vento cobriu uma
enorme área ao meu redor. Qualquer pessoa ao alcance devia ficar
cega; até respirar era um sofrimento. E mesmo quando o feitiço
finalmente passava, todo o campo de batalha ficaria coberto por
enormes pilhas de areia instáveis e desmoronantes. Enquanto o
feitiço de Água, Cumulonimbus, envolvia uma manipulação
cuidadosa das nuvens de chuva e correntes de ar, a Tempestade de
Areia exigia que soprasse uma enorme quantidade de partículas
minúsculas. Parecia que a maioria dos feitiços neste nível envolviam
mudanças dramáticas no clima.

O professor que me ensinou o feitiço me advertiu várias vezes


para não o usar dentro de uma vila ou cidade, a menos que fosse
absolutamente necessário, visto que isso causaria sérios danos a
qualquer plantação na área. Esse devia ser um aviso padrão que se
esperava repetir ao ensinar algum feitiço elemental de nível Santo a
alguém.

Em qualquer caso, me tornei oficialmente qualificado como um


mago de Terra de nível Santo. Eu tinha um breve interesse de
chegar a esse nível também com os outros dois elementos, mas
isso no caso de ter tempo para encontrar professores dispostos a
me ensinar.

Aliás, o cara que me ensinou Tempestade de Areia ficou surpreso


ao saber que eu ainda não estava familiarizado com isso. Neste
ponto, minha magia não verbal já estava no nível Rei, então acho
que ele assumiu que eu já tinha dominado todos os feitiços abaixo
do nível Santo.

Badigadi chegou a me dizer que o Canhão de Pedra que disparei


contra ele estava na verdade no nível Imperial, se levado em conta
apenas o puro poder destrutivo. Isso significava que eu poderia me
considerar um mago de nível Imperador?

Quando perguntei isso ao professor, ele disse que eu poderia me


chamar de qualquer coisa que desse na telha. Sentindo um
pequeno deslocamento nessa observação, decidi não fazer isso. De
qualquer forma, era difícil imaginar que me apareceria algum bem
ao me autoproclamar um mago mestre.

No início da tarde, costumava ir ao laboratório de Nanahoshi. A


universidade a havia dado bastante espaço para trabalhar. Mas,
desde que encheu a primeira sala com um monte de lixo, na
verdade parecia um pouco apertado assim que entrasse.
Logo após essa área de armazenamento primária ficava a
câmara experimental, com paredes feitas de tijolos resistentes à
magia. E a sala além disso era o quarto de Nanahoshi. Ela parecia
estar mantendo um considerável estoque de comida em um canto, e
isso meio que me preocupou. Por que estava dormindo bem ao lado
da comida? E se isso atraísse ratos ou baratas?

Logo ficou óbvio para mim que a garota tinha as qualidades de


uma reclusa de primeira classe. E, isso vindo de mim, realmente era
alguma coisa. Eu também era estritamente proibido de colocar os
pés no seu quarto.

Quanto à natureza das minhas visitas… na maior parte do tempo


só ficava ajudando com os seus experimentos com magia de
Invocação. Meu papel era simples: canalizava mana para os
círculos mágicos que ela havia desenhado. Bastante simples, mas
havia uma tonelada deles. Ela estava testando todos os tipos de
coisas, até mesmo padrões que esperava que falhassem, em uma
abordagem de tentativa e erro. Nanahoshi tinha muito dinheiro para
gastar, mas isso não significava que poderia garantir um número
infinito de cristais mágicos para desperdiçar com esses
experimentos. O estoque disponível era sempre limitado, e se
tentasse comprar todos eles, logo atrairia um monte de inimigos.
Assim sendo, ela anteriormente hesitava em seguir em frente com
todos esses testes.

Tudo o que eu fazia era canalizar minha mana para um círculo


mágico atrás do outro, sem parar. Normalmente, não havia nenhum
resultado. A tinta mágica desapareceria, deixando apenas as linhas
que esboçou por baixo. No entanto, às vezes, algum deles sugava
uma enorme quantidade da minha mana, e algo estranho aparecia
do nada – normalmente era algo como a asa suja de um pássaro
preto ou a perna de algum inseto.

Quando perguntei a Nanahoshi se havíamos obtido sucesso, ela


respondeu:

— Claro que não.

A ideia era fazer dezenas de experimentos, tudo em busca de um


sucesso ao acaso ou pistas de princípios gerais a partir dos quais
ela poderia trabalhar. Mas isso com certeza parecia que ia levar um
tempinho.

— Qual é o exato objetivo desses experimentos?

— Eu quero aprender como convocar um ser humano do nosso


velho mundo. No momento, estamos testando as bases… para as
bases dos fundamentos… de uma teoria que pode nos levar até lá.

Uma vez que ela pudesse fazer um círculo mágico capaz de


convocar pessoas de um mundo diferente, poderia fazer um que
também poderia enviá-la de volta para casa. Possivelmente. Em
teoria. De qualquer forma, teríamos que passar por muitos estágios
preliminares antes de chegarmos perto disso. Este com certeza não
era um projeto de curto prazo.

— Certo, eu entendo o plano geral. Mas, se convocarmos alguém


da mesma forma que você foi convocada aqui, não vamos só
acabar causando mais um enorme desastre?

— Acredite em mim, não tenho intenção de criar um segundo


Incidente de Deslocamento. Mas se eu puder avançar alguns
estágios na minha pesquisa, devo ser capaz de formular uma teoria
sobre o motivo pelo qual aquilo aconteceu.

— Certo. Sei que em experimento as coisas falham o tempo


todo. Só toma cuidado, entendeu? Muita gente morreu por causa
daquela confusão toda.

— Não são apenas experimentos, Rudeus. As coisas sempre


dão errado, não importa o que façamos. Estou muito ciente dos
riscos, certo? É por isso que estou fazendo tudo com tanta cautela.

Eu não poderia dizer que concordava cegamente, mas entendi


que ela estava seguindo com algo lento e metódico. Se eu
aprendesse ao menos o básico, talvez fosse melhor.

— Sabe, eu gostaria de aprender um pouco de magia de


Invocação…

— Invocação é a minha área. Não posso sair por aí distribuindo o


meu conhecimento.

— Mas você não tinha dito que me ensinaria o que eu quisesse


saber?

Nanahoshi estalou a língua, irritada.

— Certo, tá bom. Assim que terminarmos este experimento,


responderei uma pergunta sua.

— Uma resposta para tudo isso? Você paga muito mal,


Nanahoshi.

— Assim que realmente terminarmos e eu voltar para casa, você


poderá ficar com todos os recursos, conhecimento e conexões que
eu deixar para trás — retrucou ela. — Então, por enquanto, tente ser
um pouco paciente.

Alguém parecia estar nervosinha. Em defesa dela, entretanto,


acho que não foi legal da minha parte começar a implorar por
recompensas enquanto ainda não tínhamos conseguido nada.

Antes de continuarmos, no entanto, Nanahoshi me entregou um


livro com o título Invocação de Sig.

— Se está interessado, então estude você mesmo.

Senti como se eu já tivesse visto o livro em algum lugar, mas não


me lembrava de ter lido. O aceitei com gratidão.

E assim seguiram os meus experimentos com ela.

A essa altura, parei de passar várias horas na biblioteca. Mas o


Mestre Fitz às vezes aparecia para se juntar a mim enquanto eu
visitava Nanahoshi. Enquanto o observava tentar ajudar em um dia,
percebi que esses experimentos eram, na verdade, um trabalho
muito cansativo. Ele ficou sem mana alguma depois de trabalhar
com apenas uns vinte pergaminhos.

— Isso é loucura, Rudeus. Ativar uma dessas coisas consome


tanta mana quanto lançar um feitiço de nível Avançado…

Fitz era um especialista em magia não verbal assim como eu,


mas estava evidente que sua capacidade de mana era bem menor.
E, pelo visto, ele tinha mais mana do que a maioria das pessoas. É
só que a minha reserva parecia assustadoramente grande. Eu meio
que gostaria que alguém pudesse de alguma forma converter isso
em números.
De qualquer forma, Fitz era um mago proficiente e sofreu com
essa tarefa. Isso era algo particular aos círculos mágicos de
Nanahoshi? Ou era só que a magia de Invocação consumia mana
demais? Ao contrário dos feitiços ofensivos, provavelmente ninguém
usaria uma dúzia de feitiços de Invocação diferentes em uma única
batalha ou coisa assim, então parecia razoável que pudessem ter
um custo de mana bem maior. Mas os pergaminhos não produzirem
nenhum efeito e ainda drenarem tanto poder de Fitz era um
absurdo. Talvez tivesse algo a ver com o fato de que estávamos
tentando invocar coisas de um mundo diferente.

— Sinto muito, Rudeus. Tenho que proteger a Princesa Ariel,


então não acho que posso ajudar com isso… Preciso manter um
pouco de mana para o caso de…

— Sim, é claro. Isso faz todo o sentido.

Por alguma razão, ultimamente Fitz parecia um pouco abatido.


Talvez estivesse se sentindo mal com isso tudo. Afinal, parecia ter
alguma confiança em seus talentos como mago. Todo mundo tinha o
seu orgulho. Isso não era algo em que eu prestava atenção, mas
para um jovem como ele, podia parecer a coisa mais importante do
mundo.

E Nanahoshi nem conversou muito com o Mestre Fitz quando ele


apareceu. Então, mais uma vez, tive a impressão de que Fitz
também não era um grande fã de Nanahoshi.

— Eu não sou… muito útil aqui, sou?

A voz de Fitz soou francamente abatida. Na mesma hora


balancei a minha cabeça.
— Isso não é verdade.

— Não é?

— Claro que não. Ter você por perto é reconfortante.

No passado, Fitz me ajudou de várias maneiras. Ele talvez não


pudesse ajudar muito nessa tarefa em particular, mas eu não queria
mandá-lo embora só porque não estava sendo útil para mim. Se ele
tivesse algo mais urgente para lidar, eu não o forçaria a ficar… mas
se estivesse pensando em ir embora porque não podia ajudar, o
encorajaria a reconsiderar.

— Por favor, continue vindo aqui comigo quando tiver tempo,


Mestre Fitz. Estamos procurando por respostas há meses, sabe?
Vamos seguir juntos em busca da verdade.

— Claro… Obrigado, Rudeus — disse Fitz com um sorriso


tímido.

Seu sorriso era realmente poderoso. Fitz devia ter só uns treze
anos no momento, mas alguns anos depois, deveria se tornar um
verdadeiro arrasador de corações. Para ser honesto… ele era tão
fofo que, ultimamente, era difícil para mim não responder a ele por
instinto, assim como fazia com as garotas.

Havia algo de errado com os meus olhos ou o quê? Será que eu


estava despertando para um interesse latente por homens?

Quando o sol se pôs, voltei para o meu dormitório com Fitz.


Iríamos nos separar um pouco antes do dormitório feminino, assim
como de costume.
— Ah, claro. Rudeus?

— Sim?

— Acho que a partir de agora, se quiser, pode pegar essa


estrada.

Fitz indicou o caminho à sua frente. Ele levava ao lugar onde fui
acusado de roubar roupas íntimas logo após me matricular na
universidade. Desde aquele dia, tive o cuidado de não vagar pelas
proximidades.

— Vamos lá, Mestre Fitz. Você está tentando me fazer ser


atacado por uma horda de garotas furiosas de novo?

— Hehe. Não sei se é isso que aconteceria desta vez. Você ficou
meio popular pelo dormitório feminino, sabe?

— Hã? Espera, sério? Agora sou como o príncipe do clube de


tênis?

— Tênis…?

Fitz parecia totalmente perplexo. Compreensível.

— Uh, bem — continuou ele —, as pessoas estão dizendo que


você é na verdade um cavalheiro. Você bate nos caras ruins, mas
nunca machuca os alunos normais, certo? Digo, você é forte o
suficiente para derrubar o Rei Demônio, e ele venceu todos aqueles
guerreiros do povo-fera sem nenhuma dificuldade, mas quando as
garotas o cercaram e começaram a te ameaçar, você não fez nada
com elas.
Ele só podia estar inventando isso, certo? Eu tinha ouvido a
maneira como as pessoas cochichavam sobre mim no refeitório. E
com certeza não existia nenhum fã-clube meu.

— Hehe. No começo ficaram todas com medo de você, é claro.


Mas Linia e Pursena andaram falando: Nosso chefe é um cara legal,
mew! Ele nunca surra os fracos!

Enquanto imitava a voz de Linia, Fitz usou as mãos erguidas


para fingir que eram orelhas de gato. Como posso dizer? Isso era
fofo. Injustamente fofo. Algo assustador e misterioso estava
acontecendo ao redor da minha virilha.

— Depois disso, a opinião delas sobre você melhorou muito


rápido. Digo, a sua roupa é um pouco velha, mas o seu rosto é meio
bonito, e algumas garotas gostam dessa sua aparência sombria. Ah,
e você não é um idiota insistente, mesmo sendo muito poderoso.

Hmm. Aquelas duas deviam ter feito um trabalho muito bom. Da


maneira como Fitz descreveu, também não mencionaram toda
aquela coisa de “impotência”. Em breve devo dar um bom bife para
Pursena. Mas, e quanto à Linia? Não sei nem o que ela quer.
Status? Honra? Dinheiro?

— É claro, algumas garotas ainda sentem medo de você. Tipo a


Goliade, por exemplo.

— Ah, é mesmo. Isso faz sentido. Afinal, ela que estava


comandando aquele grupo no meu primeiro dia. E esses dias eu
meio que a intimidei.
— Sério? Bem, Linia e Pursena também a importunam por causa
disso sempre que a vêem.

Hm. Isso podia explicar a reação dela quando eu tentei dizer olá.

— Você não intervém nem nada, Mestre Fitz?

— Não. Digo, bem, a culpa é dela. Foi ela quem decidiu que você
era um cara ruim, e nem tinha motivos para isso. Ela talvez aprenda
algo com isso.

Uau. Fitz podia ser duro quando queria. Eu podia entender o


ponto dele, mas a intimidação não era a resposta certa.

— Não acho que ela fez aquilo por mal. Tente não a incomodar
muito, certo? Eu agradeceria se também passasse essa mensagem
para Linia e Pursena.

Minha voz saiu mais severa do que eu pretendia. Fitz ergueu as


mãos em um gesto apaziguador, parecendo um pouco confuso.

— Ninguém está a incomodando, Rudeus! É mais como se às


vezes a provocassem. Não acho que ela esteja com medo ou coisa
assim, só um pouco exasperada.

Era meio difícil imaginar alguém tão fisicamente intimidante


quanto Goliade sendo a garota com quem todo mundo mexia…
mas, em qualquer caso, uma piada corrente como essa poderia
facilmente se transformar em bullying real, então ainda tínhamos
que tomar cuidado.

— Certo. Contanto que seja tudo diversão saudável, tudo bem.


Mas, para que fique registrado, não estou guardando rancor nem
nada. Poderia ficar de olho nas coisas e assegurar que isso não vá
longe demais?

— Você é mesmo um cara legal, Rudeus. Claro. Também vou


avisar a Goliade.

Essa última parte pode não ser necessária. A última coisa que eu
precisava era que ela me enviasse uma calcinha como um símbolo
da sua gratidão.

— Hehehe… — Com outro sorriso tímido, Fitz começou a andar


pela estrada enquanto eu continuava na encruzilhada.

Entretanto, depois de mais uns três passos, ele se virou para


olhar para mim.

— Uhm… como eu disse, está mesmo tudo bem se você quiser


começar a passar por aqui. Se você quiser.

— Está tudo bem — falei, adotando a minha melhor expressão


de cara legal. — Se consegui ganhar uma reputação decente por
aqui, é melhor não a arruinar me exibindo pela estrada como se
fosse o dono do lugar.

— Hã? Uh, c-certo. Claro. Acho que isso faz o seu estilo… —
Tropeçando um pouco nas palavras, Fitz cobriu a boca com uma
das mãos. Ele estava tentando não rir? Talvez o rosto de cara legal
ainda precisasse de algum trabalho. As pessoas sempre me diziam
que meus sorrisos eram meio perturbadores, mas eu vinha tentando
o meu melhor para melhorá-los. — Então tá, Rudeus. Nos vemos
depois.

— Certo. Nos vemos.


Com isso, nós dois seguimos caminhos diferentes. Por alguma
razão, porém, Fitz parecia um pouco triste enquanto se afastava.

Depois de jantar, dei a Julie sua lição diária de magia no quarto


de Zanoba.

Ela era uma criança estudiosa e inteligente que absorvia as


informações novas como se fosse uma esponja. Ela também era
bastante hábil, e podia usar seus dedos para fazer trabalhos
precisos quando a sua magia falhava. Não quero ser grosseiro nem
nada, mas Zanoba tinha conseguido uma verdadeira pechincha
quando a pegou.

Ainda assim, este era apenas o seu primeiro ano de treinamento.


Sua capacidade de mana era muito baixa para um trabalho
contínuo, e sua precisão também não era das melhores. Embora
fosse hábil com as mãos, só tinha começado a praticar com
ferramentas de escultura, então elas ainda lhe eram estranhas.
Ensiná-la a moldar seria um projeto a longo prazo.

Enquanto dava conselhos e explicações a Julie, também


trabalhei nas minhas próprias estatuetas. Ultimamente, comecei a
fazer uma em escala de 1/8 do Mestre Fitz. Mas como ele sempre
usava camadas de roupa e uma capa volumosa, era um pouco difícil
imaginar a forma exata do seu corpo. A maioria dos elfos que
conheci eram muito magros, com quase nada em termos de gordura
corporal… Poderia trabalhar partindo dessa suposição. O maior
problema, porém, era como lidar com as suas partes íntimas. Eu
estava em um verdadeiro conflito. Não queria colocar nada entre as
suas pernas, mas ele poderia ficar com raiva de mim no caso de eu
retratá-lo como uma garota. E eu realmente queria mostrar a
estatueta para ele depois que ficasse pronta.

— Se você quiser, Mestre, eu poderia me esgueirar sobre ele


quando ele menos esperar e arrancar as roupas para você —
ofereceu Zanoba generosamente.

— Obrigado, mas não.

Incidentalmente, Zanoba estava trabalhando em uma estatueta


de Wyrm Vermelho com a minha orientação e conselho. As partes
componentes desta estatueta eram todas bem grandes, então era
um bom projeto para ele. Ainda assim, ele não era o melhor com as
mãos, então o progresso era lento. Teríamos que fazer isso passo a
passo.

Antes de dormir, parei um pouco para ler.

Eu estava trabalhando no Invocação de Sig, o livro que peguei


emprestado de Nanahoshi. Era a história de uma bruxa chamada
Sig, que invocou muitos Diabos temíveis por vários motivos. No
final, usou uma oferenda enorme e uma grande quantidade de mana
para invocar uma criatura que era mais forte do que ela, que a
matou e devorou na mesma hora. Seu aluno, lamentando
amargamente por essa tragédia, jurou nunca invocar nada além da
sua capacidade de controle. Havia uma moral na história e tudo
mais. Parecia um conto de fadas.

Se alguém como eu, que tinha mais mana do que precisava,


invocasse a criatura mais forte que pudesse, havia uma boa chance
de que algo muito poderoso e perigoso para se lidar aparecesse.
Essa era ao menos uma lição importante. Teria que começar bem
devagar com essas coisas e ter certeza de entender os riscos antes
de fazer algo dramático demais.

Ainda assim, o livro não tinha nenhum detalhe concreto sobre


como os Diabos foram invocados, ou a natureza dos círculos
mágicos que a bruxa usava. Bem, na verdade não havia muito o que
estudar nele…

E assim, mais um dia típico na Universidade de Magia chegou ao


fim. Eu ainda não tinha encontrado nenhum meio de curar a minha
condição. Parecia quase que eu tinha perdido a minha chance e
passei para a próxima parte da história na mesma hora que conheci
Nanahoshi. A profecia do Deus Homem talvez tivesse me deixado
animado demais. Eu talvez devesse ter procurado pela resposta
com mais urgência e ter tentado todos os tipos de coisas…

Mas, por acaso, minhas preocupações se mostraram infundadas.


Pouco depois deste dia, as coisas avançaram rapidamente para
uma resolução inesperada.
Capítulo 08:
Sem Noção, Mas Perceptivo
O inverno havia chegado e a cidade de Sharia, no Reino de
Ranoa, estava coberta de neve. Graças aos famosos implementos
mágicos da cidade, as estradas e os principais caminhos foram
mantidos livres, mas enormes pilhas de neve logo se acumularam
nas laterais e atrás do prédio principal da escola.

Pouco depois do início desta estação, uma carta chegou até


mim. Era de um certo Soldat Heckler, aventureiro de rank S e chefe
do grupo Líder Escalonado, e me informava que Soldat tinha
acabado de chegar na cidade. Aparentemente, havia algum tipo de
conferência de clã acontecendo. Raio, o clã ao qual o Líder
Escalonado pertencia, foi oficialmente convocado para esta cidade
para lutar contra o Rei Demônio Badigadi. Mas quando esse pedido
foi cancelado antes da sua chegada, acabaram vagando pela cidade
por algum tempo, e eventualmente decidiram realizar seu encontro
anual do clã nesse lugar. Todo inverno, levavam dois ou três meses
para conversar sobre as coisas e fazer planos para o futuro.

Soldat era um aventureiro de rank S e membro da liderança do


clã. Decidir não comparecer à conferência não era uma opção,
então foi forçado a vir até o Reino de Ranoa. O homem não se dava
muito bem com o líder de seu clã e, honestamente, tinha receios por
causa disso. Ele estava convencido de que tinha alguns longos e
tristes meses pela frente. Mas então, em seu caminho, se lembrou
que seu velho amigo Atoleiro estava hospedado nesta cidade. Já
que o destino nos une de novo, podemos muito bem aproveitar a
chance para nos reconectar. Assim sendo, me enviou uma carta
com um convite para algum dia comermos juntos.

A ideia também me atraiu. Soldat era um cara legal e eu devia


muito a ele. Ele tinha um passado com Elinalise, então achei que
seria um pouco estranho apresentá-lo ao novo e dedicado
namorado dela… mas ele era feito de um material mais resistente
do que eu. Provavelmente superaria isso com bastante facilidade.

Com isso decidido, avisei Nanahoshi que faria uma pausa em


nossos experimentos no próximo dia de folga. Convidei Fitz para se
juntar a mim, mas ele franziu a testa e balançou a cabeça.

— Desculpe, tenho outra coisa para fazer nesta tarde. Estarei


protegendo a Princesa Ariel.

A vida de um guarda-costas não era fácil. Todo mundo podia ter


o dia de folga, mas ele ficaria de plantão do amanhecer ao
anoitecer. Que pobre coitado.

Não, não. Eu estava sendo rude com o Mestre Fitz. Ele só era
dedicado ao trabalho. Em qualquer caso, eu não poderia pedir que
ele abrisse mão de suas responsabilidades. Era uma pena que o
Mestre Fitz não pudesse ir, mas talvez fosse melhor assim. Parecia
que só Elinalise, Cliff e eu íamos nos encontrar com Soldat.

Quando o dia chegou, nós três caminhamos juntos para a Guilda


dos Aventureiros. As estradas da cidade estavam claras o
suficiente, mas sua superfície ainda estava branca e com uma
camada de neve pisoteada. O material era removido regularmente
ao longo do dia, mas as tempestades de neve sempre ficavam mais
intensas à noite, e a remoção de neve mágica da cidade não
conseguia acompanhar isso.

— Ei! Rudeus, está me ouvindo?

— O quê? Claro que estou ouvindo.

Nos últimos minutos, Cliff vinha se gabando de seus planos para


a sua própria pesquisa. Ele já vinha há algum tempo afundando em
intensos estudos sobre maldições, com o objetivo final de livrar
Elinalise. Mas as maldições existiam desde os tempos antigos e
eram um objeto de estudo contínuo ao longo de toda a história,
então se livrar de uma não era tão fácil quanto se imagina. Apesar
de toda a bravata de Cliff, seis meses de pesquisa dedicada ainda
não resultaram em nenhum grande sucesso.

— Isso não é difícil, trabalhar tão duro e não conseguir nenhum


resultado?

— Não estou nem um pouco preocupado — disse Cliff, sua voz


cheia de genuína confiança. — Eu sou um gênio, então
eventualmente vou descobrir algo!

Esse era um cara a se admirar. Eu sabia que jamais conseguiria


algumas coisas, não importa o quanto tentasse; provavelmente não
conseguiria me motivar a ficar batendo em uma barreira
intransponível como essa. Abrir caminho para uma nova fronteira
jamais alcançada era, na verdade, algo que só um “gênio” poderia
esperar fazer.

— Ainda assim, se você descobrir alguma coisa sobre maldições,


espero que compartilhe seu conhecimento comigo.
— Hm…?

Parei por um momento para pensar nisso. Senti como se tivesse


ouvido a palavra maldições aparecer algumas vezes durante minha
jornada do Continente Demônio para esta cidade.

— Uh, vejamos…

Exatamente onde foi que ouvi? Maldições, maldições… por


algum motivo, o som da palavra me fez querer estremecer de medo.
Provavelmente porque Orsted tinha algumas delas. Foi o Deus
Homem que falou sobre isso, certo?

Pensando bem, ouvi que o Deus Demônio Laplace também era


amaldiçoado. Ele supostamente a transferiu para as lanças que deu
aos Superds, condenando-os a séculos de perseguição.

— Bem, ouvi dizer que Laplace uma vez transferiu a maldição


dele para vários objetos e os usou para a transferir a uma certa tribo
de demônios.

— Objetos…?

— Certo. Para ser mais específico, as lanças que os Superds


usaram durante a Guerra de Laplace. Graças à maldição naquelas
armas, eles perderam a sanidade e acabaram ganhando a
reputação de assassinos inescrupulosos.

Cliff arregalou os olhos.

— O quê? Eu nunca ouvi sobre isso antes! Será que é verdade


mesmo?!
— Bem, ouvi isso de terceiros, então não posso afirmar com
certeza.

Foi o Deus Homem quem me disse isso, não? Sim, parecia isso
mesmo. Acreditar na sua palavra me parecia seguro. Eu não
conseguia imaginar o que ele ganharia ao me contar uma mentira
dessas.

— De qualquer forma, esse é um conceito muito intrigante. Eu


não sabia que era possível transferir uma maldição para um objeto.
— Cliff levou a mão ao queixo e acenou com a cabeça, pensativo,
aparentemente ponderando a respeito da ideia.

— Mas não sei como você faria isso. Sinto muito.

— Está tudo bem. Só saber que isso já foi feito é bem útil.

Mas alguém além de Laplace já tinha conseguido algo do tipo?


Parecia o tipo de truque maligno que se esperaria que um Deus
Demônio usasse, mas não me surpreenderia se houvesse algum
tabu antigo contra brincar com esse tipo de coisa.

Dito isso… Crianças Abençoadas e Amaldiçoadas supostamente


eram a mesma coisa, certo? Talvez houvesse um precedente de ao
menos tentar mover uma bênção para algum recipiente.

— Hmm. Cliff, você sabe se alguém já tentou transferir uma


bênção, em vez de uma maldição?

— Hm? O que uma bênção tem a ver com isso? — disse Cliff,
inclinando a cabeça com curiosidade.
Estranho. Parecia que nem estávamos falando sobre a mesma
coisa.

— Uh, bem, as Crianças Abençoadas são iguais às


Amaldiçoadas, certo? Todos nascem com algo esquisito em sua
mana, o que lhes dá poderes estranhos. A única diferença é se o
efeito passa a ser positivo ou negativo.

— Isso é novidade para mim…

Olhei para Elinalise em busca de reforços, mas ela também


estava olhando para mim com surpresa. Era óbvio que nenhum dos
dois tinha ouvido isso antes. Será que não era um fato conhecido?
Mas eu parecia me lembrar de alguém mencionando isso de um
jeito bem casual…

Espera, foi o Deus Homem também.

Isso era tudo informação dele, não era? Aquele cara precisava
parar de despejar conhecimento misterioso e obscuro em mim como
se isso não fosse nada.

— Mesmo assim, isso tudo é bem interessante… Objetos, eh?


Muito interessante, de fato… Eu talvez pudesse tentar isso… — Cliff
estava se contorcendo de empolgação. Ele parecia convencido de
que eu tinha dado uma pista importante. Para ser bem honesto,
acho que estava engolindo tudo o que eu disse com um pouco de
facilidade demais, mas, que seja.

De qualquer forma, parecia que as maldições tinham alguma


conexão com os chamados deuses deste mundo. O Deus Homem,
o Deus Dragão e o Deus Demônio tinham todos ao menos uma. E
então havia as Crianças Abençoadas, que eram supostamente de
alguma forma “divinos”. Havia alguma conexão significativa nisso,
ou era só coincidência?

— Obrigado, Rudeus. Acho que você me ajudou a ter uma ideia!

O rosto de Cliff estava cheio de otimismo e energia. Enquanto ele


estava nisso, talvez pudesse encontrar uma maneira de consertar a
“maldição” que afligia minhas partes íntimas.

— Ei, Atoleiro! Há quanto tempo!

Soldat e seus amigos me cumprimentaram com sorrisos


agradáveis; em poucos minutos, havíamos chegado a uma taverna
próxima e nos acomodado em torno de uma grande mesa.

Quando ouviram sobre o relacionamento de Cliff e Elinalise, os


membros do Líder Escalonado ficaram… chocados, para não dizer
mais.

— Mas que diabo? — soltou alguém, sufocando uma risada. —


Você vai mesmo se casar? E eu aqui pensei que você ia ser uma
vadia para o resto da vida.

Cliff explodiu de raiva, é óbvio. Mas Soldat e os outros acharam


isso simplesmente hilário, o que levou a fúria do garoto a novos
patamares. Por um momento, pensei que as coisas ficariam
complicadas. Por sorte, Elinalise de alguma forma acalmou o
namorado e, ao mesmo tempo, mudou de assunto. A mulher às
vezes era bem impressionante, especialmente quando se tratava de
controlar casos de raiva.
Pensando bem, nunca a vi ficando com raiva ou caindo em
prantos. Ela às vezes ficava mal-humorada, é claro, mas nunca
muito chateada. Paul era a única pessoa que mencionou odiar. O
que diabos meu velho fez com ela, afinal?

Enquanto eu refletia sobre isso tudo, o assunto de alguma forma


foi direcionado para a minha roupa. Estava usando o meu uniforme
escolar, assim como de costume.

— É engraçado ver você com essa roupa, Atoleiro! Te faz


parecer com qualquer novato aleatório!

Alguns alunos da Universidade de Magia criavam o hábito de vir


para a Guilda dos Aventureiros ainda usando seus uniformes, com
no máximo uma capa colocada sobre eles. Eram quase todos
novatos de rank F ou E, então não interagiam com o grupo de
Soldat com muita frequência. Mas às vezes, apareciam implorando
por um convite para o Raio.

— Hmm. Bem, se agora eu sou um novato, por que não ajo como
tal e carrego a sua bagagem para você?

— Hah! Boa tentativa, criança. Ninguém toca em nossas coisas


além de nós!

— Tá bom, tá bom. Parece que me lembro de você escondendo


todos os bens daquele dragão perdido…

— Ah, cara, aquele foi um dia e tanto…

Relembrar essas coisas era divertido. Quando derrubei aquele


Wyrm Vermelho, o grupo todo carregou a sua carne e escamas de
volta para a cidade, para que fosse tudo igualmente dividido.
— Ah, claro. Aliás, Atoleiro! Então, estávamos no Neris Tundra
no outro mês, e…

Desse ponto em diante, a conversa mudou de relembrar o


passado para histórias das aventuras recentes do Líder Escalonado.
Cliff ainda ficou algum tempo parecendo mal-humorado, mas à
medida que Soldat e os outros continuaram, seus olhos começaram
a brilhar de excitação. Pensando bem, no passado ele sonhava em
se tornar um aventureiro, certo? Acho que ele ainda é só um
adolescente. É fácil esquecer disso, dada a forma como Cliff
costuma agir.

— E no final pelo menos saímos de lá inteiros… Enfim, está na


hora de irmos para outro lugar, né? Onde vamos?

Todos nós terminamos de comer e a história estava acabando.


Parecia um bom momento para encontrar outra taberna e começar a
beber de verdade, mas… Um mensageiro do clã apareceu do nada,
logo quando estávamos saindo.

— Ei, Soldat. Acabaram de convocar outra reunião.

— O quê, de novo? Isso é sério? Já ficamos nisso pela manhã


toda!

— Sinto muito, mas é isso. Acho que hoje o líder está bem cheio
de energia.

Pelo jeito, Soldat estava sendo chamado para uma reunião


repentina de líderes de grupo, e recusar-se a aparecer não era uma
opção.
— Merda. Foi mal, Atoleiro. Eu estava ansioso para desperdiçar
o dia e encher a cara contigo, mas acho que não vai rolar. Vamos
continuar com isso outra hora, hein?

— Sem problemas, Soldat. Pode me enviar uma mensagem


sempre que estiver livre. — Com um aceno firme de cabeça, Soldat
desceu a rua a passos largos.

Qualquer que fosse o caso, tínhamos perdido o anfitrião da


nossa festa, então devia ser hora de encerrar o dia. Entretanto,
ainda estava no início da tarde – umas 14:30, no máximo. Se eu já
fosse para casa, ficaria com muito tempo para matar.

— O que vamos fazer agora? — perguntei, olhando pelo grupo.

— Bem, na verdade — disse Elinalise —, eu esperava que


pudéssemos ensinar uma ou duas coisas sobre aventuras ao Cliff.

— Ah, é?

Interessante. Elinalise devia ter percebido como o seu namorado


ficou animado com as histórias do Líder Escalonado e decidiu
mostrar o seu talento como aventureira.

— Aah, isso sim parece divertido. Educar um novato, hein?

— Podemos ir junto?

Os outros membros do Líder Escalonado também pareceram


aprovar a ideia. Depois de um pouco mais de conversa, todos
concordaram em dar a Cliff um gostinho da vida de aventureiro. A
ideia era aceitar um pedido para matar um monstro de rank A e dar
a ele alguma experiência real. Cliff estava meio mal-humorado com
a forma meio condescendente com que todos falavam dele, mas
sua empolgação pareceu superar isso.

— E quanto a você, Rudeus? — perguntou Elinalise.

— Bem… Acho que vou deixar para a próxima. — Eu poderia dar


alguns conselhos sobre como contribuir em um grupo com vários
magos a Cliff, mas, de alguma forma, não achei que ele gostaria de
receber uma palestra de alguém mais jovem. Em situações assim,
era mais fácil engolir o orgulho, já que todos os que estavam
ensinando eram mais velhos.

Além disso, passar alguns dias caçando um monstro ardiloso não


me parecia a melhor das ideias. Se eu não falasse com Nanahoshi
antes, poderia imaginá-la ficando muito, muito irritada. Apesar de
seu auto-imposto isolamento, a garota parecia estranhamente
faminta por qualquer companhia. Ela ficava mal-humorada toda vez
que eu passava um ou dois dias sem ajudar. Se queria ser uma
verdadeira reclusa, precisava aprender a saborear o estilo de vida
solitário. Claro, ela parecia sentir muita falta do Japão, então eu
conseguia entender os motivos para querer alguém com quem
conversar em sua língua nativa. Porém, como alguém que decidiu
continuar vivendo neste mundo, era difícil resistir a dizer para que a
garota começasse a sair do quarto com mais frequência.

— Então tá bom. Então você avisa a todos para onde estamos


indo?

— Claro, sem problemas. Tome cuidado, Elinalise. Vocês estão


com um iniciante, então não o arrastem para algum lugar muito
perigoso.
— Não se preocupe, Rudeus. Ao contrário de uma certa pessoa,
não estamos planejando desafiar um Wyrm Vermelho ou um Rei
Demônio.

Não era como se eu tivesse lutado contra Badigadi porque


queria, mas tá bom. Tanto faz.

Depois de me despedir, voltei sozinho para a Universidade.


Partindo do Distrito dos Aventureiros, precisava atravessar a praça
comercial central de Sharia. Quando entrei na área, o cheiro
tentador de espetinhos de carne grelhada soprou até mim. Olhei em
direção ao cheiro e descobri que vários mercadores montaram
barracas ao ar livre, apesar da neve em todo canto. Cara, deve ser
difícil fazer negócios nesse frio…

Ainda assim, eu tinha tempo livre para gastar. Eu poderia voltar


aos dormitórios, mas não tinha muito o que fazer por lá, fora
estudar, praticar e fazer estatuetas. Talvez acompanhar Cliff e os
outros teria sido algo mais inteligente do que ficar pensando muito
no assunto. Bem, tarde demais.

— Bom, já estou aqui. Olhar os arredores não vai fazer mal. —


Saí sem rumo pelas ruas do Distrito Comercial.

Não precisava de nada em particular, mas talvez encontrasse


algo interessante. Depois daquela discussão com Cliff, fiquei um
tanto interessado nos vários tipos de itens mágicos existentes.
Afinal, aquelas lanças amaldiçoadas que Laplace deu aos Superds
deviam ser implementos mágicos de algum tipo.

Até esse momento eu não tinha gasto muito tempo pensando em


itens mágicos, já que os que eram encontrados à venda eram
incrivelmente caros. Mas Fitz parecia se equipar com alguns, e
Nanahoshi tinha os seus próprios artefatos, também úteis. Sharia
era basicamente a cidade natal da Guilda dos Magos. Eu talvez
encontrasse algumas coisas interessantes à venda. Não estava
planejando comprar nada, mas olhar as vitrines não faria mal a
ninguém.

Incidentalmente, embora eu tenha a princípio confundido as duas


coisas, itens mágicos e implementos mágicos eram duas coisas
distintas. Os implementos mágicos eram objetos feitos pelo homem
com círculos mágicos gravados neles. Quando o usuário entoava
um encantamento específico, sua mana fluía pelo objeto e produzia
algum efeito. Desde que a mana do usuário não acabasse
esgotada, poderiam ser indefinidamente reutilizados. Os itens
mágicos, por outro lado, eram objetos infundidos com seu próprio
suprimento de mana. Eles eram ativados por meio de algum tipo de
gesto ou ação. Só podiam revelar os seus efeitos algumas vezes
por dia, mas seu suprimento interno de mana se regeneraria com o
passar do tempo.

Resumindo: os implementos mágicos poderiam ser usados


rapidamente e em sucessão, mas exigiam o uso de mana, enquanto
os itens mágicos tinham usos limitados, mas não exigiam nada do
usuário. Itens mágicos eram geralmente considerados mais práticos
e úteis, já que não precisava gastar sua preciosa mana ou
memorizar um encantamento para usá-los. Mas a maioria dos que
existiam foram encontrados nos labirintos, e os seus usos eram
meio que aleatórios. Assim sendo, aqueles com efeitos poderosos
tendiam a alcançar preços astronômicos. Aquelas botas que Fitz
usava, por exemplo, provavelmente valiam muito mais do que todos
os bens que eu possuía somados. E só para lembrar, algumas das
armas conhecidas como “espadas mágicas” foram feitas pelos
homens, mas também tinham as qualidades de um item mágico.

Claro, eu tinha mais mana do que suficiente para fazer o que


quisesse, então implementos mágicos também me serviam bem.
Mesmo aqueles que usavam muita mana para serem úteis para a
maioria das pessoas poderiam ser úteis para mim. Eu esperava que
em algum momento pudesse tropeçar em algo do tipo, algo
erroneamente classificado como um produto “defeituoso”, caso
procurasse o suficiente pelas lojas.

Mas então, enquanto caminhava por alguma rua aleatória, notei


dois rostos familiares.

— Hm?

Luke e Fitz estavam conversando na frente de um tipo de loja de


roupas. Fitz estava olhando para alguma bugiganga na vitrine com
uma expressão encantada no rosto. Luke também estava sorrindo,
embora parecesse ligeiramente exasperado. Ele já estava
carregando uma enorme sacola de compras em uma das mãos.
Parecia até que estavam em um encontro.

Fitz não disse que estaria protegendo Ariel? Não tem problemas
em os dois ficarem assim? Bem, tanto faz. Dizer pelo menos um oi
não custa nada…

— Boa tarde. Eu não esperava encontrar vocês dois aqui.

— O qu… Rudeus?!
Luke se virou, seu rosto endurecendo diante do choque. O
homem, como sempre, parecia não gostar muito de mim. Eu estava
tentando o meu melhor para não ser um pé no saco, mas acho que
nos últimos tempos acabei por receber atenção demais. Isso
provavelmente era uma fonte de irritação para eles. Entretanto, tudo
com o que eu me importava mesmo era manter uma boa relação
com Fitz.

— Hm…?

Fitz parecia, de alguma forma… diferente. Será que era a roupa?


Não. Era alguma outra coisa. Eu não conseguia definir o que era.

— Mestre Fitz, você mudou o seu visual ou algo assim?

Assim que as palavras saíram da minha boca, Fitz estremeceu e


olhou para mim com uma expressão de puro choque no rosto. Será
que é assim que normalmente ficava? Seu corpo também parecia…
de alguma forma um pouco mais arredondado.

Enquanto eu continuava a estudá-lo, Fitz desviou o rosto do meu.


Um instante depois, Luke se colocou entre nós dois.

— Olá, Rudeus. O que você está fazendo aqui? Podemos ajudar


em algo?

Parecia que ele estava escondendo Fitz de mim… como um


namorado superprotetor ou algo assim. Seu tom era calmo e,
embora seu olhar fosse afiado, não era abertamente hostil. Ainda
assim, havia uma tensão clara em sua voz. Será que o momento do
nosso encontro foi inconveniente?
Os dois estavam mesmo saindo em um encontro? Será que Luke
jogava para os dois lados, e ambos tivessem algo juntos? Tentar
manter isso em segredo até que faria sentido. Se descobrissem que
os guardiões de Ariel eram amantes, alguma agitação poderia ser
criada.

Mas não pensei que fosse esse mesmo o caso, claro. Só que,
por alguma razão, o pensamento me fez estremecer.

— Na verdade não. Acabei vendo vocês e resolvi passar para


dizer olá… Uhm, Mestre Fitz?

Fitz não olhava em minha direção já há algum tempo. …Hã? Ele


está me tratando com indiferença? Mas por quê? Será que foi algo
que eu disse?

— Entendo. Obrigado pelos cumprimentos. Devo lembrá-lo,


porém, de que Fitz não deve ficar conversando enquanto está
protegendo a Princesa. Tenho certeza que você entende.

Suas palavras foram superficialmente amigáveis, mas Luke


estava tentando me afastar. Ao menos uma coisa estava clara. Eu
com certeza apareci em um momento inconveniente. Ainda assim,
me ignorar desse jeito parecia muito chocante da parte de Fitz…

Ele ainda não estava nem olhando para mim. Bem, não. Ele às
vezes me lançava alguns olhares, mas não eram exatamente
amigáveis. Eu poderia dizer que ele estava de testa franzida. Sua
linguagem corporal deixou muito claro que estava impaciente pela
minha partida. Às vezes posso até ser meio desatento, mas até eu
pude ver que ele estava me esnobando.
— Qual o problema? — perguntou Luke calmamente.

— Não é nada. Por favor, desculpem-me.

Me virei e saí em silêncio. Acho que não deixei nada


transparecer, mas, por dentro, isso me destruiu. Ser evitado daquela
forma por Fitz doía tanto que eu mal conseguia pensar direito.

Eu tinha perdido todo o interesse em olhar as vitrines. Era hora


de ir para casa.

A estrada à minha frente estava coberta por uma camada de


neve ligeiramente suja. E estava nevando de novo, é claro.

Neste dia o vento estava muito frio.

Lentamente, voltei para o campus da Universidade.

Pensei um pouco nas coisas enquanto caminhava, mas não


consegui encontrar nenhuma explicação para o motivo de Fitz ter
me tratado daquele jeito. Pelo que me lembrava, não tinha feito
nada para aborrecê-lo. Eu meio que queria conversar com alguém.
Ou talvez só desabafar.

Zanoba estava na Guilda dos Magos, ajudando-os em sua


pesquisa sobre as Crianças Abençoadas. Ele provavelmente tinha
levado Julie consigo. Linia e Pursena eram, tecnicamente, uma
opção, mas eu não estava muito otimista de que levariam isso a
sério. Deveria acabar com elas tirando conclusões precipitadas e
me provocando sem parar. Elinalise e Cliff não eram uma opção, é
claro. Badigadi também não parecia estar pelo campus. E
Nanahoshi… meio que estava ocupada com seus próprios
problemas.
Não consegui pensar em ninguém a quem recorrer. Eu não tinha
muitos amigos.

No final, fui direto para a biblioteca. Em momentos assim, era


melhor sentar em um lugar quieto e se perder em um livro idiota por
um par de horas. Uma história de heroísmo ou aventuras poderia
cair bem. Será que alguma história sobre Badigadi e Kishirika foi
transformada em livro? Era esse o tipo de coisa que eu estava
querendo: a história de dois guerreiros incomparáveis, golpeando
magos lamentáveis enquanto gargalhavam…

Entrei na biblioteca, fazendo um aceno de leve com a cabeça


para o guarda. Nunca tivemos nenhuma conversa real, mas eu
aparecia com frequência o suficiente para que ele me deixasse
entrar sem me parar. Parei por um momento para tirar a neve das
minhas roupas, usei um feitiço não verbal para me secar
rapidamente e depois me dirigi para o meu lugar de sempre com um
pequeno suspiro de alívio.

O prédio estava, como esperado, quase vazio. Não existiam


muitos alunos que passavam os dias de folga na biblioteca. Neste
mundo, a literatura em geral não era tão ampla… afinal, a taxa de
alfabetização não era das mais altas.

— Hein…?

Fitz estava, de alguma forma, presente. Ele estava sentado à


mesa que geralmente compartilhávamos, lendo um livro com a
cabeça apoiada nas mãos e uma expressão um pouco entediada no
rosto.
— Ah! Olá, Rudeus. — Quando ele percebeu que eu estava me
aproximando, olhou para cima com seu sorriso tímido de sempre. —
Já voltou? Achei que você ficaria fora até tarde. Encontrou o seu
amigo?

— Uh, sim… — Me sentei do outro lado da mesa de Fitz e


estudei o seu rosto com bastante cuidado. Ele parecia… normal.
Suas roupas e maneirismos eram os mesmos de sempre.

Havia algo de muito estranho nisso tudo. Lá fora corri de onde


ele estava e fui direto para a biblioteca. O caminho que segui era,
resumindo, o mais curto de todos. E como diabos ele chegou na
minha frente?

— Uh, algum problema? Tem algo no meu rosto? — disse Fitz,


passando a mão ansiosamente pelo rosto.

Essa era a outra coisa, essa mesma. Por que ele estava agindo
assim? Tinha esnobado de mim há cinco minutos, mas agora
parecia totalmente relaxado e confiante.

— Por que você me ignorou daquele jeito?

A pergunta saiu da minha boca antes que eu pudesse me conter.


O sorriso de Fitz congelou. Depois de um momento, ele
cuidadosamente assumiu uma expressão séria.

— Bem, sabe… Na verdade, não devo falar com ninguém


quando estou de guarda. Sou o Fitz Silencioso e tal, lembra? Minha
voz é meio infantil, então as pessoas não me levam a sério quando
eu falo. Quando estou em público, principalmente quando estou
protegendo a Princesa Ariel, ela quer que eu fique o mais quieto
possível.

— Então é isso? Mas eu não vi a Princesa Ariel por lá.

— Ah, ela estava em uma das lojas de roupas. É um lugar em


que sabemos que podemos confiar. E Luke e eu não somos os
únicos guardas dela. Os outros estavam de vigia ao lado da
Princesa enquanto vigiávamos de longe. Uhm, mas não conte sobre
isso para ninguém.

As palavras de Fitz saíram suavemente, sem qualquer momento


de hesitação. Era quase como se ele já tivesse ensaiado tudo com
antecedência.

— Entendo. Bem, então sinto muito por te atrapalhar enquanto


estava trabalhando.

— Ah, está tudo bem! Também, sinto muito. Eu não estava


tentando ser rude nem nada.

Eu estava começando a ter uma ideia do que realmente estava


acontecendo. Não tinha como ter certeza absoluta, mas… era
provável que a Princesa Ariel de alguma forma tivesse assumido a
aparência de Fitz como um disfarce. Devia haver algum item ou
instrumento mágico de alguma forma envolvido nisso tudo. Ela não
tinha falado comigo porque sua voz não seria afetada pelos poderes
da coisa. Será que a cor dos olhos também não tinha mudado? Isso
explicaria por que Fitz ficou até com os olhos escondidos. Caso
contrário, a revelação de que Ariel precisava se disfarçar como se
fosse ele poderia ser perigosa.
Sim. Quanto mais eu pensava nisso, mais sentido parecia fazer.
O motivo pelo qual “Fitz” me evitou antes era bastante simples. Eu
era amigável o suficiente com a pessoa real e teria percebido
através de sua tentativa de imitá-lo.

Certo. Afinal, eu não tinha feito nada para que ele ficasse com
raiva. Essa me pareceu uma boa explicação. Vamos adotá-la.

— Ah, isso é um alívio. Achei que você agora me odiasse, Mestre


Fitz. Por um minuto fiquei muito preocupado.

— Ahaha… Não seja ridículo, Rudeus. Eu não poderia te odiar,


mesmo se tentasse…

Fitz coçou atrás das orelhas, envergonhado. Ele fazia esse gesto
o tempo todo, mas, ultimamente, meu coração disparava sempre
que isso acontecia. Afinal, por que uma pessoa tão adorável tinha
que ser um cara?

Supondo que fosse mesmo… Eu ainda queria acreditar no


contrário.

✦✦✦✦✦✦✦

Nos últimos tempos Fitz tinha ocupado muitos dos meus


pensamentos.

Como sempre, só nos encontrávamos uma vez a cada poucos


dias. E não era como se tivéssemos muito o que conversar quando
o fazíamos. Mas, mesmo assim, eu não conseguia parar de pensar
nele. Às vezes, me pegava lembrando dos pequenos gestos que ele
fazia. A maneira como coçava as orelhas. A maneira como se
espreguiçava ao terminar alguma tarefa. Outras vezes, pensava em
seu cheiro – a maneira como eu sentia seu cheiro quando ele
passava por mim no corredor. Acima de tudo, pensava em seu
sorriso. Aquele sorrisinho tímido dele se recusava a sair da minha
cabeça.

Isso não era diferente nos dias que eu não o via. Sempre que me
deparava com uma multidão de alunos, me descobria procurando
por ele.

Em minha defesa, devo dizer que Fitz quase sempre estava no


meio da multidão. A Princesa Ariel e seus lacaios eram famosos
nesta escola. Quando saíam para tratar dos assuntos do conselho
estudantil, um punhado de gente era atraída e formavam uma
imensa multidão de curiosos. E mesmo naquele grupo de pessoas
atrativas, Fitz, em particular, recebia muita atenção. O Fitz
Silencioso raramente falava em público, mas era um dos guardas de
maior confiança da Princesa e um dos magos mais habilidosos de
toda a Universidade. Não era de se surpreender que as pessoas se
interessassem nele.

Eu mesmo já era um dos interessados. Sempre que o via, meus


olhos pareciam segui-lo.

Eu reconhecia o que esses sintomas significavam, é claro. Eu


estava apaixonado. Me apaixonei por um cara. Presumindo que ele
fosse mesmo um, mas eu não estava totalmente convencido disso.

E esta parecia ser uma questão importante. Dependendo do sexo


dele, eu teria que aceitar o fato de que era gay, ou talvez bissexual.
Não que a curto prazo isso importasse, já que minha “condição”
ainda não havia sido curada.

Eu ainda meio que estava esperando que ele acabasse por ser
uma garota.

Assim que finalmente consegui admitir os meus sentimentos para


mim mesmo, comecei a reunir algumas informações sobre o
assunto.

A abordagem mais simples e ética seria perguntar ao cara em


questão, mas esse seria o meu último recurso. De acordo com tudo
o que eu sabia, ele podia ficar constrangido por causa de seu
encantador rosto feminino.

Comecei indo para o Edifício dos Professores. Se presumia que


existiam registros dos alunos em arquivos no escritório, com a
verdade verdadeira registrada neles. Eu esperava que tivessem
alguma política sobre a proteção da privacidade dos alunos, mas
talvez pudesse convencê-los a me ajudar ao menos desta vez.

Depois de alguma procura, consegui encontrar o professor


encarregado do quarto ano, que estava servindo como orientador de
Fitz. Apresentei a questão diretamente a ele.

— Você pode me dizer qual é o gênero do Mestre Fitz,


Professor?

— Não posso lhe dar nenhuma informação sobre Fitz.

— Tem certeza disso? Você não poderia quebrar uma regrinha,


só desta vez?
O professor se encolheu um pouco enquanto eu falava. Parecia
me achar um tanto assustador. Atualmente, muitos alunos ficavam
pálidos toda vez que me viam, mas eu não esperaria isso de um
membro do corpo docente. Talvez pudesse usar isso a meu favor.

— Se não pode ser flexível nesse caso, posso atirar um Canhão


de Pedra especialmente grosso no seu traseiro e podemos ver o
que acontece…

— Eee! Espera, eu… Eu…

— Hmm? Será que no lugar disso você prefere algum tipo de


explosão?

— S-sinto muito, mas não posso te dizer nada mesmo…!

O homem se provou um osso duro de roer. Bem, o corpo docente


ao menos não cedia a ameaças, e isso era algo bom.

— Eu só estava brincando, Professor.

Desistindo da abordagem baseada em intimidação, saí à procura


de Jenius. Se não conseguia obter nenhuma resposta daqueles que
ficavam por baixo, iria direto ao topo.

Encontrei nosso amado vice-diretor em meio a uma batalha


violenta com uma montanha de papéis. Dado o tamanho desta
universidade, deviam haver muitos formulários para assinar ao
longo dos dias. Me senti um pouco mal por atrapalhar, mas não era
como se isso fosse exigir muito tempo.

— Olá, Vice-Diretor Jenius.

— Ah. Bom dia, Rudeus.


— Você parece bem ocupado, devo admitir…

— Ah, nem tanto. Graças a vocês mantendo as crianças


problemáticas sob controle, minha vida tem ficado bem mais fácil.

Crianças problemáticas? Será que ele estava falando de


Badigadi e Zanoba…? Não era como se fossem crianças no
verdadeiro sentido da palavra.

— De qualquer forma, o que posso fazer por você?

— Na verdade, gostaria de pedir algumas informações sobre o


Mestre Fitz.

O Vice-Diretor franziu as sobrancelhas.

— Sinto muitíssimo, mas as pessoas que podem mandar deram


instruções bem rígidas a respeito dele e de seu empregador.

— É mesmo? — Fiquei um pouco tentado a dizer que não me


importava, mas algo a respeito da exaustão em seu rosto me fez
reconsiderar. A administração tinha os seus próprios problemas, é
claro. Podiam ter garantido algum tipo de suporte crucial ao aceitar
a segunda princesa e a sua comitiva. — Poderia ao menos me dizer
qual é o gênero de Fitz?

— O gênero…? Hmm… — Jenius me ofereceu um de seus


famosos sorrisos estranhos. Essa era a sua verdadeira
especialidade. Por cerca de um minuto, ele pensou no meu pedido.
Entretanto, quando esperando em absoluto silêncio, um minuto
pode parecer muito tempo. — Fitz… é um homem.

No final, essa foi a extensão da sua resposta.


No final das contas, eu ainda não tinha certeza sobre o gênero
de Fitz.

Jenius havia apoiado a história oficial, mas era óbvio que estava
sob pressão e pensou nisso por um tempo estranhamente longo.
Era difícil dizer se foi ou não sincero comigo. Claro, ele usou
automaticamente os pronomes “ele” e “dele” para Fitz, antes mesmo
de ouvir a minha pergunta… isso significava que me disse a
verdade?

Não, pensar demais não serviria de nada. De qualquer forma, eu


não tinha evidências para tomar uma decisão.

Sem perceber, fui até a biblioteca e marchei para a mesa onde


sempre estudava com Fitz. Sentei e soltei um suspiro leve. Afinal,
qual era o sentido em descobrir o gênero dele? Eu poderia pelo
menos dizer a ele como me sentia? Poderia confessar os meus
sentimentos? Eu, de todas as pessoas?

Em teoria, era melhor arrancar essas coisas do peito… mas a


ideia parecia meio errada. Eu não estava abordando isso da
maneira certa. Em primeiro lugar, o que eu queria que acontecesse
depois de confessar?

Isso era importante. Muito importante, na verdade.

Com a condição do meu corpo, eu não poderia ir muito longe.


Meu guindaste não queria se mover, mas não era como se eu
estivesse com falta de gasolina. Meu cérebro ficava o tempo todo
repleto de pensamentos sujos e malignos. Em algum momento eu
não seria mais capaz de me conter. Mas não seria capaz de fazer
nada quando tentasse. Isso soava como tortura.
Certo. Vamos deixar as palavras bonitas que as pessoas falam o
tempo todo de lado. Chega de eufemismos sobre meus
“sentimentos”.

Quero dormir com o Fitz. Quero fazer todo tipo de coisa com ele.
Quero provar. Quero tentar um pouco disso e um pouco daquilo…
bem, talvez isso esteja indo um pouco longe demais…

— Deus, eu gostaria de poder ao menos bater umazinha…

Assim que murmurei essas palavras para mim mesmo, uma mão
caiu no meu ombro. Me virei e olhei para cima, e me encontrei cara
a cara com Fitz.

— Bater uma o quê? — disse ele, inclinando a cabeça


curiosamente para o lado.

— Waaaagh! — Pulei de repente, enredando meus pés nas


pernas da minha cadeira.

— Whoa! Cuidado! — Fitz estendeu a mão e agarrou a minha,


tentando me apoiar. Mas não foi forte o suficiente para me puxar
para cima.

— Aaaah!

Acabamos caindo juntos, ainda enrolados na cadeira,


empurrando a mesa para trás enquanto nos esparrávamos.

E quando batemos no chão… Fitz caiu por cima de mim. Eu


estava deitado de costas, segurando-o em meus braços.

O rosto dele estava muito perto do meu.


Graças aos enormes óculos escuros, não pude distinguir muito
bem a sua expressão. Mas podia ver a ponta de seu nariz e seus
lábios finos a apenas alguns centímetros de distância. Senti o calor
e peso do seu corpo sobre o meu. Mas não era como se ele
pesasse muito.

Um cheiro agradável invadiu as minhas narinas. Era o cheiro de


Fitz, com uma intensidade maior do que qualquer outra que eu já
tinha experimentado antes. Eu poderia passar um dia inteiro
saboreando isso.

Meus braços, de alguma forma, envolveram-se em torno de seus


quadris e nádegas enquanto batíamos no chão. Sua cintura era
esguia e feminina. Seu traseiro não era exatamente redondinho,
mas era macio. A sensação, por si só, fez meu garotinho ficar de
pé… em sentido…

Puta merda.

— Ah! F-foi mal, Rudeus! — Ficando todo vermelho, Fitz logo


tentou se levantar e sair de cima de mim.

— Mestre Fitz… você na verdade é uma garota, não é?


Ele olhou para mim em choque, então ficou boquiaberto, sem
palavras, por alguns segundos, até que finalmente conseguiu
balançar a cabeça.

— N-não! Eu já falei, sou homem!

Pulando e ficando de pé, ele ficou alguns passos longe de mim,


então se virou e correu para a saída. Fitz havia deixado vários livros
sobre a mesa. Talvez estivesse pegando alguns documentos de
referência para alguma aula, igual no dia do nosso primeiro encontro
na biblioteca.

Mas neste momento havia algo ainda mais importante em minha


mente.

— Estou duro…

Depois de três longos anos sem qualquer sinal de vida, o júnior


finalmente estava mais uma vez saudando a bandeira. Após tanta
frustração e decepção, só tocar em Fitz me excitou.

Cautelosamente, abaixei uma mão para ter certeza de que não


estava apenas alucinando.

— Uau… Isso não é um sonho, é?

Neste momento, por fim entendi o significado por trás do


conselho do Deus Homem. Era por isso que ele me disse para dar
uma olhada pela biblioteca.

Dito isso… desde o início eu sabia que Fitz estava escondendo


as coisas de mim. Qualquer que fosse o seu gênero, se estava
escondendo alguma coisa, tinha que ser por um bom motivo. Eu não
queria estragar o seu disfarce com as minhas teorias e meus erros.

Eu estava apaixonado pelo Fitz. E Fitz queria ser conhecido


como homem. Nessas circunstâncias não seria justo priorizar os
meus sentimentos? Ou meus desejos, no caso?

Claro que não.

Eu não tinha o direito de expor os seus segredos, incluindo o seu


gênero. Na verdade, eu tinha a responsabilidade de respeitar seus
desejos e ajudá-lo a esconder o que quisesse. Essa parecia ser, na
verdade, a única forma de abordagem segura. Quanto mais eu
ficava tentado, mais pensava em me esgueirar e sussurrar: Vou
manter minha boca fechada, então venha ao meu quarto esta noite.

Merda. Agora estava imaginando Fitz tirando todas aquelas


camadas de roupas volumosas, uma a uma, enquanto eu olhava
das sombras. Não, não. Nããão! Pensamentos ruins! Pensamentos
muito ruins!

Ele… ou ela… Me ajudou tantas vezes, de tantas formas. Traí-lo


assim seria algo verdadeiramente imperdoável. Eu só teria que
tratá-lo da mesma forma que sempre fiz. E se ele parecesse em
risco de ser exposto, eu silenciosamente interviria para ajudar. No
meu primeiro dia na escola, ele fez o mesmo por mim, mesmo
provavelmente tendo sido uma jogada arriscada da sua parte.

— Mas espera aí. Se Fitz for mesmo uma mulher…

Nesse ponto, meu raciocínio seguiu pela tangente e memórias


vivas passaram pela minha cabeça.
Eu, de repente, comecei a me lembrar de todas as piadas sujas
que contei na frente de Fitz. Minha frase no mercado de escravos,
as coisas que falei quando capturei Linia e Pursena… meu deus, e
aquelas coisas que fiz ele dizer quando me entregou o meu cajado!

Me contorci de agonia por um tempo.

Assim que terminei essa deliciosa viagem pela estrada da


memória, descobri que meu soldadinho havia retomado seu estilo
de vida como um recluso. Não importa o quanto eu o incitava, ele se
recusava a acordar, que teimoso. Acho que ele ao menos não era
tão desagradável quanto o meu antigo, já que não começou a bater
no chão quando o atormentei.

Eu realmente queria dar umas sacudidas naquele idiota, pela


primeira vez em anos… mas, pelo visto, minha condição ainda
estava longe de ser completamente curada.

Ah, bem. Agora eu ao menos poderia ter esperanças. Não faz


sentido apressar as coisas. No momento, voltei para o meu quarto
para tentar fixar aquela sensação maravilhosa na minha memória.

✦✦✦✦✦✦✦

Na manhã seguinte, tive de fazer um grande esforço para colocar


meu corpo preguiçoso em uma posição sentada. Eu estava tão
preocupada com a breve recuperação do meu parceiro que não
consegui dormir direito. O garotinho em questão ainda estava,
infelizmente, se fingindo de morto.

Minha mente estava cheia de pensamentos e imagens de Fitz,


mas eu não tive a menor reação daquele traidor lá embaixo. Quando
ele iria parar de ficar de mau humor e me ajudar a liberar um pouco
do vapor que estava aumentando dentro de mim? Será que só as
memórias não eram o bastante para agradá-lo?

Eu ainda não sabia o motivo exato por trás do seu despertar, mas
algo a respeito do Mestre Fitz era obviamente a chave para curar a
minha condição. O Deus Homem esteve o tempo todo certíssimo.
Passaram meses e eu não percebi, mas o remédio do qual
precisava esteve sempre disponível.

Ainda assim, quando diminuí o ritmo para pensar sobre isso de


forma racional, um grande problema permaneceu. Como eu
conseguiria uma receita para o uso?

Eu não queria fazer nada que deixasse Fitz desconfortável ou


com raiva. Curar a minha condição era importante, mas manter a
confiança dele também era. Se fosse seis meses mais cedo e eu
pensasse que Fitz era uma garota, poderia ter cortejado de uma
forma mais agressiva, mas, a essa altura, eu já tinha sentimentos
genuínos por ele. Não queria mais repetir o erro que cometi com
Eris e partir cedo demais para o contato físico. Eu não queria que
Fitz saísse da minha vida sem dizer nada.

Ah. Então, agora, eu era o cara que contava com o guarda-


costas travestido de uma princesa para curar a minha impotência,
hein? Parecia um conceito divertido para um show. Se está
gostando disso, Deus Homem, que tal me dar uma gorjeta?

Com um sorrisinho sarcástico, rolei para fora da cama beliche


que ainda tinha só para mim e me espreguicei. Não consegui
suprimir um bocejo longo e alto; o dia com certeza seria longo.
Fui até o balde vazio que havia deixado em um canto do quarto e
o enchi de água morna. O rosto que me encarava lá de dentro era
relativamente bonito. Herdei uma boa mistura do visual mulherengo
e rebelde de Paul e as feições mais suaves da minha mãe. De
acordo com os padrões do meu mundo antigo, o resultado não era
ruim, mesmo não sendo o que as pessoas deste mundo
considerassem perfeito. Não importa quantas vezes eu olhasse para
esse rosto, não conseguia pensar nele como meu, mas já tinha me
acostumado a isso. Era melhor do que o último, e isso já era bom o
bastante para mim.

Mas isso atraía o Fitz? Isso era o mais importante.

Certo, chega. Não adianta nada ficar pensando nisso. Fitz era um
homem e eu não faria nada com ele. Por enquanto era essa a minha
posição oficial.

Quando comecei a lavar o meu rosto, percebi uma coisa no meu


queixo. Quando cutuquei, minha pele esticou um pouco com aquilo.
Era uma barba. Um único fio de barba.

— Acho que já estou chegando nessa idade, huh…

Os humanos deste mundo parecem não envelhecer de forma


muito diferente. Meu pai não fazia o tipo de cara peludo, então
demorou um pouco para aparecer qualquer coisa no meu rosto, mas
eu já tinha uns fios de cabelo crescendo em alguns outros lugares.

Mas não tinha certeza de como isso funcionava para as pessoas


das outras raças, assim como Fitz. Os elfos tinham alguma
diferença? Ele já tinha cabelo lá embaixo?
Hm…?

Algo a respeito desse pensamento por algum motivo me


incomodou. Senti como se estivesse prestes a me lembrar de algo,
mas isso não chegava à minha cabeça.

— Ah, tanto faz. — Com um encolher de ombros, arranquei o


cabelo do meu queixo.

Passaram-se dois dias sem qualquer progresso.

Não tive nenhum contato com Fitz nesse tempo. Eu não correria
o risco de fazer nada suspeito, como tentar rastreá-lo. Não há nada
para ver aqui, oficial. Estava tudo como sempre.

Na terceira manhã após o incidente, entretanto, encontrei Luke


esperando por mim no corredor do dormitório masculino. Não entrei
em pânico. Já esperava que isso acabasse acontecendo.

— Olá, Mestre Luke — falei tão brilhantemente quanto era


possível. — O que faz aqui a esta hora?

Luke não parecia muito animado. Algo na maneira como olhou


para mim sugeria que não estava de bom humor.

— Preciso conversar com você sobre o Fitz.

Como esperado. Mas eu já havia anteriormente elaborado uma


resposta para esse tipo de acontecimento.

— Não sei do que você está falando.

— Eh? É mesmo? — O tom de Luke era desafiador. Ele estava


procurando mais informações sobre o que havia acontecido no outro
dia? Será que esperavam esconder a verdade de mim no caso de
pressionarem com suficiente insistência? E eu estava bem em
deixar as coisas seguirem nessa direção, é claro.

Ainda assim, seria realmente tão problemático se eu soubesse o


segredo de Fitz? Talvez tivesse algo a ver com o fato de que eu
tecnicamente era um Greyrat. Neste momento os meus laços com a
família Boreas já tinham sido cortados, mas ainda não sabia o que
pensavam de Paul. Seja qual fosse o caso, achei que expressar as
minhas intenções com o máximo de clareza seria importante, já que
estava tendo a chance.

— Só reiterando, Luke… Não tenho intenção de torná-los meus


inimigos. Não sei nada sobre Fitz, ou quaisquer segredos que ele
possa estar escondendo.

— Você está disposto a fingir que não sabe de nada…? Por quê?

— Bem, neste momento eu não estou ligado às famílias Boreas


ou Notos. E o mais importante, irritar a Princesa Ariel seria um
pouco assustador.

Um olhar de pura surpresa passou pelo rosto bonito de Luke e


ele ficou em silêncio. Será que falei algo perigoso? Continuar
fingindo que eu não sabia de nada talvez fosse a coisa mais
inteligente a se fazer.

— De qualquer forma, isso é tudo o que tenho a dizer.

— Certo. Desculpe por incomodar…

Com essas últimas palavras, saí e deixei Luke de pé no corredor.


Após as minhas aulas do dia, fui até as salas de Nanahoshi para
nossos experimentos de rotina. Por alguma razão, porém, encontrei
Fitz parado do lado de fora.

Pelo que eu lembrava, ele não deveria aparecer para me ajudar


de novo pelos próximos dias, até que tivesse uma folga dos seus
deveres como guarda-costas da Princesa. Eu tinha quase certeza
disso. Mas ele apareceu do mesmo jeito, e devia existir alguma
razão para isso. E, provavelmente, tinha algo a ver com certos
eventos recentes. Fitz e Ariel não tinham motivo para acreditar na
minha palavra. Na verdade, tinham muitos bons motivos para
desconfiar de mim.

Em outras palavras, Fitz provavelmente estava presente para


ficar de olho em mim. Talvez quisesse confirmar se eu quis dizer
aquilo mesmo para Luke.

Mantive o silêncio por algum tempo e o rosto de Fitz foi ficando


visivelmente tenso. Após alguns minutos disso, Nanahoshi
murmurou: “O que houve? Vocês brigaram ou coisa do tipo?”
enquanto desenha um novo círculo mágico.

— N-não! Não brigamos nem nada!

A resposta de Fitz foi hilariante e estranha. Ele era tão adorável


quando ficava nervoso. Ainda assim, estava óbvio que ainda
duvidava de mim. Bem, como deveria ganhar a confiança de alguém
em uma situação dessas?

Me ajoelhar e oferecer algum tributo a Ariel talvez fosse a melhor


forma. Tudo que eu realmente conseguia pensar era em comprar
para uma bela caixa de doces ou algo assim para ele… mas dado o
quão cautelosos estavam sobre mim, isso poderia resultar em um
horrível tiro pela culatra.

— Olha, eu não me importo, de qualquer forma — disse


Nanahoshi, sua voz claramente irritada. — Só não me arrastem para
essa idiotice.

A garota tinha uma política rígida de evitar problemas enquanto


estivesse presa neste mundo. Fitz estava profundamente envolvido
com a realeza Asurana, e Nanahoshi com certeza não queria se
envolver em nenhum conflito entre nós dois. Claro, se ela saísse por
aí falando com as pessoas de um jeito tão rude, em algum momento
ainda conseguiria criar alguns problemas para si mesma. Mas agora
eu era basicamente a única pessoa com quem ela interagia, então
isso talvez não fosse grande coisa.

Bem, tanto faz. Se ela não queria se envolver com este mundo,
essa decisão era só sua. Eu não tinha direito algum de opinar a
respeito do assunto. Senti que tentar ser um pouco mais
extrovertido com ela não faria mal… mas a garota estava passando
todos os dias desenhando centenas de círculos mágicos sem parar.
Sugerir que devia reservar um pouco de energia para socializar
seria bem difícil.

— Tch…

Eu, normalmente, realizava esses experimentos enquanto


conversava sobre qualquer coisa com Fitz ou Nanahoshi, mas desta
vez estávamos todos em silêncio. O único som era o ocasional
estalo da língua de Nanahoshi. Para não dizer muito, vamos falar
que a atmosfera estava tensa.
— Bem, já chega… Terminamos por hoje.

Depois de algumas horas disso, Nanahoshi encerrou o dia, com


a voz baixa e cansada. Mais uma vez, não fizemos nenhum
progresso real.

Enquanto caminhávamos de volta para os dormitórios, Fitz e eu


ainda não conseguíamos iniciar uma conversa. Eu queria falar sobre
algo. Queria agir da mesma forma de sempre. Mas o que deveria
dizer?

Antes que eu pudesse pensar em qualquer coisa, chegamos à


bifurcação na estrada que levava ao dormitório feminino.

— Ei, Rudeus… — Fitz deu alguns passos à frente e falou


comigo em um tom estranhamente tenso.

— Sim? O que é?

Ele apertou a mão contra o peito. Era óbvio que diria algo
importante. Talvez algo sobre o seu gênero. Me preparei o melhor
que pude.

— Desculpa… Na verdade, não é nada. Tchau.

— Então tá bom. Até mais…

Fitz olhou para o chão enquanto se virava e trotava rapidamente


em direção ao seu dormitório. Exalando suavemente, o observei
partir com uma sensação desagradável em meu peito. Decidi não
causar nenhum problema que pudesse prejudicar a ele, mas… para
ser honesto, isso era um pouco difícil de suportar.
Capítulo 09:
Chuva na Floresta (Parte 01)
Era noite, mas ainda havia três pessoas na sala de conferências
dos alunos.

A primeira delas era uma beldade impressionante que chamava a


atenção em todos lugares que ia – Ariel Anemoi Asura. A segunda
era um jovem cavaleiro de rosto delicado, mas bonito, que
encantava mulheres com muita facilidade – Luke Notos Greyrat.

— Então, o que você queria discutir…?

Do outro lado da mesa estava um jovem com cabelos brancos,


usando óculos escuros e um uniforme escolar masculino. Seu nome
era Fitz. Ele levou as mãos à barriga e brincou com os dedos,
ansioso.

Ariel olhou para ele por um bom tempo. Mas ele não parecia
inclinado a falar, então ela continuou.

— Outro dia, Rudeus nos encontrou enquanto estávamos


fazendo compras. Ele achou “suas” ações bastante suspeitas, Fitz.

—…

— Não muito depois disso, ele o jogou no chão da biblioteca, e


depois disso você saiu correndo, declarando-se homem. Ou ao
menos é o que dizem os rumores.

—…

— Rudeus provavelmente acredita que isso seja uma mentira.


Ele teve a chance de tocar seu corpo por algum tempo, pelo visto.
—…

— No entanto, parece que não tem planos de contar a ninguém


sobre o seu segredo. Ele afirma ter medo de me antagonizar, mas,
dadas suas habilidades, isso parece altamente improvável. Acredito
que está simplesmente tentando fazer o que é esperado de um
amigo. Muito admirável, na verdade. — Ariel lançou um olhar
penetrante a Fitz. — A questão neste momento é… o que você vai
fazer?

Os ombros de Fitz se contraíram com o tom áspero de Ariel, mas


ele não respondeu.

— Acho que não tem problemas em tomar o tempo necessário


com isso — continuou Ariel. — Entretanto, já passou meio ano e
você não fez qualquer progresso. Pode me culpar por querer dizer
algo?

Ela esperou que Fitz respondesse. Graças aos grandes óculos


escuros que ele usava, não era possível ver o seu olhar. Mas ela
reconheceu a maneira como ele estava brincando com as pontas
dos dedos. Era um sinal revelador de que estava se sentindo
oprimido, algo que só fazia quando não conseguia pensar em nada
para dizer. Se ela deixasse que ele continuasse assim por muito
tempo, o garoto choramingaria algo como sinto muito ou preciso de
mais um pouco de tempo, em busca de adiar essa conversa.

E então, Ariel pressionou.

— Devo dizer, fico quase doente ao ver você hesitar assim.


Isso não era verdade. Ariel gostava de ver Fitz se contorcendo.
Ela ficava com um pouco de ciúmes de seus sentimentos por
Rudeus, mas com certeza não era contra isso. Entretanto, Rudeus
estava passando cada vez menos tempo com Fitz, graças à sua
nova amizade com Silente. E Fitz ficava a cada dia mais
melancólico. Isso era bem doloroso para ela assistir.

— Acho que está na hora de você ter coragem de dizer a ele


quem você realmente é, Fitz… ou melhor, Sylphie.

Fitz apertou os lábios “dele” com força e ergueu a cabeça para


olhar para Ariel. E um momento depois, tirou seus grandes óculos
de sol.

O rosto por baixo deles era nitidamente feminino. Seria, na


verdade, difícil confundir com o de um garoto.

Era o rosto de Sylphiette, amiga de infância de Rudeus.

— Princesa Ariel, eu… — começou ela, aparentemente pronta


para falar o que pensava… mas então parou quase na mesma hora,
parecendo que ia começar a chorar.

Isso foi o suficiente para denunciar algo a Ariel. Algo que já


suspeitava um pouco por muito tempo.

— Sylphie. Esta será a terceira vez que eu pergunto isso, mas…


Agora, há algo que você deseja fazer?

Havia. No entanto, Sylphie balançou a cabeça. O que ela queria


era impossível, por duas razões diferentes.
Em primeiro lugar, estava com muito medo. Sentia que Rudeus
podia ter esquecido de sua existência. Em segundo lugar, se
importava muito com os amigos à sua frente. Se escolhesse
perseguir este novo objetivo, isso poderia acabar em sua separação
de Ariel. Isso seria como trair ela e Luke – esses amigos que
lutaram ao seu lado, batalhando para sobreviver e alcançar o seu
objetivo. Juntas, essas dúvidas mantiveram Sylphie em silêncio.

Mas, desta vez, Ariel não aceitou um não como resposta.

— Sylphie… você salvou a minha vida muitas vezes — disse ela,


sua voz suave e gentil. — Se não tivesse caído do céu nos jardins
do Palácio Prata, eu teria morrido na hora. Também foi você quem
me protegeu dos assassinos que foram atrás de mim enquanto eu
dormia. E você lutou por mim, em números desesperadamente
inferiores, na Mandíbula Superior do Wyrm Vermelho. Nos últimos
anos, você me ajudou inúmeras vezes.

— Mas eu devia isso a você, Princesa Ariel… isso e muito mais.


Quando fui teletransportada para o palácio, não fazia a menor ideia
do que estava acontecendo. Se você não tivesse me ajudado…

Ariel balançou a cabeça.

— Qualquer dívida que você me devia foi mais do que paga


quando fugimos do Reino. Desde então, estamos em pé de
igualdade. Simplesmente tenho te manipulado para me servir.

— Você não está me manipulando! — gritou Sylphie, seus olhos


arregalados. — Eu quero te ajudar, quero porque somos amigas!
Em resposta, Ariel sorriu de satisfação e acenou um pouco com a
cabeça.

— Tenho certeza de que é verdade, sim. E, pelo mesmo motivo,


gostaria de te ajudar. Porque somos amigas, não somos?

— O quê…?

— Eu te conheço, Sylphie. Você deve estar se segurando por


minha causa, não é? Mas você não é minha serva, é minha amiga.
Não precisa colocar os meus objetivos em primeiro lugar e ignorar
os seus. Se houver algo que você deseja fazer, deixe-me e priorize
isso.

As amáveis palavras de Ariel foram o suficiente para abalar a


determinação de Sylphie. Porém, mesmo quando seu coração
vacilou, ela conseguiu gritar uma objeção.

— Mas isso significaria… trair você.

— É claro que não — respondeu Ariel firmemente. — Na


verdade, se eu te segurasse, eu que estaria te traindo.

Esta afirmação poderia não deixar de passar por um exame


minucioso no caso de ainda estarem no Reino Asura. Lá, Ariel era
uma princesa e Sylphie apenas a filha de um caçador de alguma
aldeia sem nome. Ela ganhou o título de Maga Guardiã, é verdade,
mas ainda estavam longe de ser de classes semelhantes.
Entretanto, este era o Reino de Ranoa, e Ariel estava,
essencialmente, exilada. Graças a isso, suas palavras soaram
verdadeiras.
Se ela tivesse dito algo parecido a Luke, ele sem dúvidas teria
veementemente se oposto. O rapaz tinha muito orgulho do seu
papel como servente de Ariel, e teria implorado para que ela desse
ordens e o usasse da forma que bem entendesse.

Sylphie, por outro lado, não tinha feito um juramento de lealdade


eterna. Mas ela considerava a princesa uma mulher digna do seu
serviço. Ela a respeitava tanto que teria obedientemente se
sacrificado caso Ariel assim ordenasse.

Entretanto, neste momento, não conseguia expressar esses


pensamentos. Principalmente graças a toda gentileza com que Ariel
falava.

— Diga-me, Sylphie. Você pretende fazer de mim uma traidora,


depois de tudo o que fiz por você?

— O quê? Não! — Surpresa com as palavras manipuladoras de


Ariel, Sylphie olhou para cima com os olhos arregalados. A princesa
encontrou seu olhar com uma expressão severa. Sylphie descobriu-
se querendo desviar os olhos, mas conseguiu resistir ao impulso.
Entretanto, não pôde evitar de engolir em seco enquanto fazia
barulho.

— Mostre alguma coragem e diga o que pensa. O que você quer


fazer agora?

— Bem… Eu… — Sylphie mordeu os lábios e apertou os


punhos.

Ela sabia o que queria fazer. Tudo o que precisava era da


coragem para expressar os seus sentimentos em palavras. Mas, em
algum ponto, perdeu toda a coragem. Mas desta vez, enquanto sua
boa amiga esperava pacientemente, conseguiu mais uma vez
encontrá-la.

— Eu quero… ficar com o Rudy.

— Muito bem. — Ariel sorriu para a sua amiga. Pela primeira vez,
não pareceu artificial. Este era o seu sorriso genuíno; um que
raramente usava. — Estou feliz por você finalmente dizer isso.
Persiga, em primeiro lugar, os seus próprios objetivos, Sylphie. Você
sempre pode retornar para me ajudar quando estiver preparada.

Havia bondade também no olhar de Luke.

— Ela está certa. Cuide primeiro dos seus assuntos pessoais e


só depois se preocupe com os nossos.

Ele, na verdade, tinha sentimentos um tanto conflitantes quanto a


esta situação. Mas estava feliz que sua amiga finalmente expressou
seus pensamentos verdadeiros, e queria confiar no julgamento de
Ariel.

— Mas… eu não acho que vou aguentar se Rudy não lembrar de


mim. — Ariel e Luke trocaram um olhar e sorriram ironicamente.

— Então, que tal pensarmos nessa parte agora?

Com essas palavras gentis de Ariel, uma conferência de


estratégia improvisada foi convocada no local.

✦✦✦✦✦✦✦

— Talvez seja melhor manter as coisas simples. Por que só não


diz a ele que você é a Sylphiette de Buena Village?
— Eu acho que isso é desaconselhável. Se ele não lembrou dela
depois desse tempo todo, o nome pode não surtir efeito.

Luke e Ariel pensaram um pouco sobre o que comentaram. Só


para ter certeza, havia uma boa chance de Rudeus não lembrar
mais de Sylphie. Fazia oito anos desde que se separaram, o que era
tempo mais do que suficiente para esquecer de uma amiga de
infância. Sylphie, no mínimo, não tinha ouvido Rudeus mencionando
seu nome nenhuma vez em um ano inteiro. Era difícil imaginar que
só o seu nome seria o bastante para refrescar a sua memória.

O que poderia fazer para que ele lembrasse dela? Era essa a
questão crucial.

Ariel tentou se colocar no lugar de Rudeus. Ela não se lembrava


dos nomes de todos os atendentes que a serviram oito anos no
passado, mas havia alguns que lembrava. Lilia, por exemplo, que
deixou a corte quando ela era ainda bem jovem. Ariel não lembrava
muito bem do rosto da mulher, mas lembrava da maneira como ela
lutou com um assassino para protegê-la.

— Sylphie, que tipo de memórias você tem com ele?

— Memórias?

— Sim. As pessoas se lembram de nós por nossas habilidades e


pelas memórias que compartilhamos. Essa é a razão pela qual os
nobres estão constantemente dando festas para se apresentarem.
Eles memorizam discursos floreados e praticam danças complexas
para deixar pelo menos alguma impressão na memória de seus
convidados. Existem muitas pessoas, sabe, então é impossível
lembrar de cada uma que já encontrou.
As habilidades de Sylphie com certeza eram bem distintas. Não
existiam muitas pessoas pelo mundo que podiam lançar magias não
verbais, e nenhuma era tão jovem quanto Sylphie ou Rudeus.
Entretanto, mesmo com esse benefício que também era uma dica
enorme, Rudeus não tinha pensado nela.

Existiam três razões para essa possibilidade.

Primeira, Rudeus tinha tendência para a autodepreciação. Ele


instintivamente acreditava que qualquer coisa que pudesse fazer era
fácil o suficiente para qualquer outra pessoa imitar.

Segundo, ele já havia encontrado Ruijerd, Kishirika, Orsted e


Badigadi. Seus encontros com esses indivíduos esmagadoramente
poderosos o deixaram com a impressão de que o mundo estava
cheio de pessoas muito mais fortes do que ele. Em sua mente,
parecia razoável que houvesse muitos feiticeiros capazes de lançar
magia não verbal por aí.

E, finalmente, havia a própria Ariel. Os feitiços não verbais de


Sylphie poderiam parecer mais incomuns caso ela fosse uma
estudante qualquer, mas ela era a guardiã de uma poderosa
princesa. Para Rudeus, fazia sentido que qualquer mago que servia
como guarda-costas real devia ser plenamente capaz.

— Memórias, hein? Uhm… Eu te contei sobre como eu


costumava ser intimidada, não contei?

— Sim. Você me contou que eram implacáveis com você graças


à cor do seu cabelo.
A propósito, Sylphie nunca revelou a Luke ou à princesa que seu
cabelo era originalmente verde. Temia que isso poderia fazer com
que a tratassem com suspeita. Não era que não confiasse neles. A
ideia de admitir isso era simplesmente assustadora, então decidiu
fingir que seu cabelo foi sempre branco. Depois que a mentira foi
divulgada, seria difícil voltar atrás. E o seu cabelo não mostrava
sinais de que voltaria à cor original, então realmente não precisava
mencionar o assunto.

Este devia ser o momento ideal para revelar a verdade até então
escondida… mas o bullying que sofreu na infância tinha deixado
uma impressão profunda em sua mente, e não tinha coragem de
fazer isso.

— A primeira vez que encontrei Rudy foi quando ele me salvou


daqueles valentões. É a principal memória que tenho dele.

— Hmm, entendo…

Ariel pensou sobre isso. Poderiam providenciar para que Sylphie


fosse atacada por um grupo de idiotas, dando a Rudeus a chance
de atacar e salvá-la?

Infelizmente havia um problema nesse plano. Sylphie era uma


maga poderosa. Ninguém saberia olhando para ela neste momento,
porém, em um combate real, ela era decisiva, rápida e mortal. Uma
quadrilha de bandidos comuns não duraria cinco segundos diante
dela. Rudeus bem provavelmente também conhecia essa força do
seu amigo. Havia algum inimigo em potencial com habilidade o
bastante para colocá-lo em algum perigo real?

A resposta era, ne verdade, sim…


A maioria dos aventureiros do clã Raio, conhecidos por sua
habilidade em combate, estava atualmente hospedada na cidade.
Pelo preço certo, provavelmente poderiam ser convencidos a fingir
que agrediriam Sylphie. Entretanto, existia o boato de que tinham
relações amigáveis com Rudeus. Alguém afirmou ter recentemente
visto o “Rudeus Atoleiro” tomando chá com Soldat do grupo Líder
Escalonado em alguma cafeteria. Elinalise Dragonroad e Cliff
Grimoire também estavam lá. Com base neste fato, contratar o Raio
não era uma opção adequada.

E Ariel achava que escolher algum grupo de aventureiros


aleatório para esse papel não seria aconselhável. Rudeus
provavelmente tinha mais conhecidos naquela comunidade do que
Ariel suspeitava. Mesmo que ela tentasse encontrar um grupo que
não o conhecesse, havia uma boa chance de que já tivessem se
encontrado em algum outro lugar.

Isso poderia complicar as coisas. E bagunçar tudo. Alguém


poderia acabar até se machucando, e ela com certeza não queria
correr esse risco.

— Você tem alguma outra memória com ele?

— Uhhh… Ah, sim. Uma outra coisa vem à mente…

O rosto de Sylphie ficou vermelho e ela parou por um momento


antes de continuar.

— No começo, Rudy pensava que eu era um garoto, sabe? Um


dia começou a chover enquanto praticávamos magia, então fui até a
casa dele para tomar um banho. Mas ele, uhm, começou a tirar as
minhas roupas…
No meio da sua história, Sylphie olhou para Luke. Ele
prontamente cobriu os ouvidos com as mãos. Podem dizer qualquer
coisa sobre o homem, mas ele conseguia entender um sinal.

— Uhm, e então… e-ele puxou minha calcinha… e viu minhas,


uh, partes íntimas. Foi assim que descobriu que eu era uma
garota… — Sylphie então passou a explicar como Rudeus passou
algum tempo deprimido por causa disso.

Ariel já tinha, na verdade, ouvido o suficiente a respeito desse


incidente. Para ele parecia possível que esses eventos tinham algo
a ver com a decisão de Rudeus de manter silêncio a respeito do
gênero de Fitz. Mesmo se ele não lembrasse muito bem de Sylphie,
aprendeu uma lição que ainda lembrava: não se deve expor as
pessoas à força e sem o consentimento delas.

— Essa é… uma bela história — disse Ariel, sorrindo. Por dentro,


entretanto, estava pensando: É isso. Só precisavam criar uma
situação idêntica e então fazer Rudeus despir Sylphie com as
próprias mãos. Com a excitação de ambos os lados aumentando,
ela poderia superar a ansiedade e deixar a verdade escapar. —
Muito bem. Vamos seguir com isso. — Ariel havia se decidido e não
haveria nenhum debate. — Luke, tire as mãos dos ouvidos. Agora
vamos discutir o nosso plano.

Nesse ponto, entretanto, a princesa se lembrou de seu segundo


maior problema: a tendência de Sylphie para a auto sabotagem. Se
não tomassem algumas precauções, a covardia dela condenaria o
plano ao fracasso.
— Antes de entrarmos em detalhes, porém, há um ponto que
quero ter certeza de que está claro.

— C-certo…

— Sylphie, você nos disse que queria ficar com Rudeus. Mas eu
gostaria de saber exatamente o que isso significa para você.

Sylphie considerou a pergunta. O que, exatamente, ela queria de


Rudy? O que ela queria fazer com ele? Bem, queria ao menos estar
ao seu lado. Ela estava apaixonada por ele já há algum tempo, e
esses sentimentos, após o reencontro, só ficaram mais fortes.

Mas às vezes também se entregava a algumas fantasias bem


específicas. Costumava, por exemplo, sonhar acordada sobre como
seria a vida deles depois de casados.

Nessas fantasias, a casa em que moravam era a mesma que a


família de Rudy possuía em Buena Village, ou pelo menos uma do
mesmo tamanho. Os dois compartilhavam a mesma cama,
naturalmente. Quando ela acordava todas as manhãs, Rudy estava
deitado ao seu lado. Ele a cumprimentava com um “bom dia” e um
beijo, depois se vestia e ia fazer o treino matinal.

Depois de descer as escadas, Sylphie tomava conta do café da


manhã. Afinal, era um dos seus trabalhos domésticos. Não era nada
muito sofisticado, mas Rudy tinha sempre um grande apetite, então
ela preparava bastante comida. Quando tudo ficava pronto, ele já
estava de volta. Comia tudo e dizia algo parecido com “deliciosa
como sempre” assim que terminava. Entretanto, ele não falava
enquanto comia. Sylphie o observava enquanto se alimentava,
servindo uma segunda porção sempre que ele pedia.
Assim que acabava o café da manhã, Rudy saía para trabalhar.
Ela entregava uma marmita e acenava um tchau, depois, saía para
se encontrar com a Princesa Ariel. Ambos tinham empregos, assim
como os pais de Rudy. Ela não tinha pensado em nenhum trabalho
específico para ele, mas era só uma fantasia, então isso não
importava tanto.

Quanto Sylphie terminava os seus trabalhos do dia e voltava para


casa, se encontrava com Rudy bem na entrada. Ele sorria assim
que a via, limpava a neve dos ombros dela e a puxava para um
abraço. Depois, entravam juntos e acendiam a lareira. Em pouco
tempo, ficavam com o banho pronto. Depois de se limparem e se
aquecerem, era a hora do jantar. Enquanto Sylphie cuidava disso,
Rudy fazia estatuetas perto da lareira ou coisa do tipo.

O jantar era um pouco diferente do café da manhã. Um dos


pontos era que Rudy ficava mais falante. Ele contava para ela tudo
sobre o seu dia e as coisas que vira no serviço. As suas histórias
eram sempre incríveis… incríveis demais para ela conseguir
imaginar. E ela ria das piadas e ficava impressionada com os seus
feitos.

Assim que terminavam a refeição, passavam algum tempo juntos


no sofá, pertinho da lareira. Sylphie se aninhava contra Rudy, e ele
passava o braço ao redor de seus ombros. Às vezes, conversavam;
às vezes não diziam qualquer palavra. Em pouco tempo,
começavam a se olhar nos olhos e a aproximar os seus rostos.
Quando Rudy pegasse Sylphie nos braços, suas sombras ficariam
sobrepostas, então ele apagava a lareira e a carregava para o
quarto.
Rudy às vezes é meio pervertido, sabe? Ele pode dizer “Quantos
filhos você quer ter?” ou algo assim. Mas então eu diria: “Quanto
você quiser me dar, Rudy!” Ele provavelmente ficaria rindo e diria
“Isso pode ser muito”, e então começaria a tirar as minhas roupas…
e então, eu diria “Então é melhor começar!” Hee hee hee!

— Hee hee hee…!

— Ahem.

— Gah! — Voltando à realidade graças ao pigarro diplomático de


Ariel, Sylphie parou com o seu monólogo interno, corou até ficar
vermelha brilhante e olhou para o chão enquanto brincava com as
orelhas.

— Pois bem — disse Ariel suavemente. — Agora pegue essa sua


fantasia e imagine outra mulher no seu lugar.

Sylphie tentou imaginar Nanahoshi assumindo o papel de esposa


de Rudeus. Ela se imaginou morando na casa ao lado, observando-
os pelas janelas enquanto passavam o dia juntos. Mas quando Rudy
e Nanahoshi a percebiam, sorriam um pouco e fechavam as
cortinas…

— Você não gosta dessa ideia, não é?

— N-não! Nem um pouco!

— Muito bem. — Com um aceno firme de cabeça, Ariel fitou os


olhos de Sylphie. — O sucesso ou fracasso dessa operação
depende inteiramente de seus esforços, Sylphie.

— C-certo!
No caso de isso não ser o suficiente, Ariel escolheu insistir no
ponto principal.

— Não vou permitir que você se acovarde de novo. Não desta


vez. Se voltar e disser que não teve coragem de falar o necessário,
nunca mais irei ajudá-la com isso. Na verdade, vou fazer pior do que
isso. Pela minha autoridade como Ariel Anemoi Asura, Segunda
Princesa do Reino Asura, vou proibi-la de voltar a entrar em contato
com Rudeus Greyrat.

Sylphie engoliu em seco. Ela entendia, é claro, que Ariel estava


apenas tentando empurrá-la para frente. Isso estava menos para
uma ameaça literal e mais para uma ordem para levar isso muito,
muito a sério.

Vendo a tensão no rosto de Sylphie, Ariel lentamente disse as


suas palavras finais sobre o assunto.

— Dê tudo de si nisso.

— Uh… sim, madame!

— Muito bom. — Ariel balançou a cabeça mais uma vez e


começou a traçar o plano.

Sylphie

Não perdemos tempo para colocar nossa operação em ação.

Estava na hora do almoço e eu estava no primeiro andar do


refeitório. O lugar estava lotado de alunos “comuns”: ex-
aventureiros, gente-fera, demônios e todos os tipos de pessoas.
Os alunos de nascimento nobre costumavam zombar
implacavelmente desse grupo sempre que tinham alguma
oportunidade. Mas a maioria dos seus insultos eram baseados em
nada mais do que preconceito. A Princesa Ariel achava isso um
absurdo; ela gostava de apontar que, há apenas quatrocentos anos,
algumas das tribos das quais eles agora tanto zombavam quase
levaram à derrota total da humanidade.

Mas não era como se isso fosse agora lá tão relevante.

Avistei Rudy sentado em uma mesa ao fundo, conversando


casualmente com um grupinho de amigos. Ele estava com Zanoba,
o Rei Badigadi e Julie, que estava sentada na outra extremidade da
mesa segurando um copo com as duas mãos e lançando olhares
aos outros três.

— Diga, Sir Badi. Em sua opinião, quais são as qualidades mais


importantes de uma estatueta?

— Precisam ser mais fofas do que a coisa real! E o mais


importante, devem ser sexy o suficiente para excitar qualquer um
que ver!

— Ah sim, o elemento erótico! Seus gostos são verdadeiramente


refinados, sua Majestade. Aqui, tome outra bebida…

Badigadi estava engolindo grandes quantidades de cerveja. Sua


pele escura parecia ligeiramente corada. Rudy e Zanoba
observavam com enormes sorrisos em seus rostos, enchendo as
suas canecas regularmente. Isso era estranho. Este refeitório
sequer servia álcool. Tinham saído para comprar um pouco?
— A propósito, Sir Badi, o que você pensaria sobre eu fazer uma
figura da Imperatriz Kishirika? Uma bem sexy, é claro.

— Você deseja retratar a minha noiva? Mas nem sabe como ela
é quando está crescida, garoto.

— É exatamente esse o ponto. Quando ela voltar ao normal, não


verá mais a encantadora versão em miniatura dela! É por isso que
precisamos preservar a sua aparência atual para a posteridade.

— Entendo! Você tem um bom argumento. A mulher às vezes é


um pouco descuidada, inclusive é conhecida por ter se matado de
uma forma bem abrupta. Imagino que cedo ou tarde ela vai voltar à
forma menor.

— Mas a decoração do castelo com certeza ficaria muito melhor


com uma exibição da Imperatriz Kishirika em várias idades!

— Você é um humano, garoto. Não viverá o suficiente para vê-la


em todas as suas idades.

— Certo, então o problema é esse. Se quisermos realizar esse


sonho, terei de passar minhas técnicas de confecção de estatuetas
para as gerações futuras. E é por isso que realmente espero contar
com o seu apoio, vossa majestade! Ehehehe.

— Bwahahaha! Apesar de todo o seu poder, você é


estranhamente bom com essas bajulações de vendedor! Eu aprovo
a sua ganância escancarada, garoto. Então, o que é que você
deseja? Dinheiro? Homens?

— Ah, não é nada disso. Só estava esperando que você pudesse


às vezes falar bem de mim…
Rudy estava mais uma vez com um sorriso maligno. Isso com
certeza o fazia parecer com um verdadeiro vilão. Ele não sorria com
muita frequência, mas quando o fazia, tendia a parecer assim. Essa
era uma coisa que não mudou desde que o conheci.

Havia também uma pessoa que sorria desse jeito na corte real –
um homem conhecido como Ministro Darius. Ele era o nosso inimigo
mortal e o responsável pela nossa expulsão do país. Mesmo o
sorriso dele parecendo com o de Rudy, nunca vacilei, desde quando
ele se voltou contra nós. Talvez fosse algo que fazia parte das
pessoas inteligentes.

Rudy e Zanoba pareciam realmente dedicados ao hobby de usar


a magia da Terra para fazer pequenas esculturas de pessoas. Para
mim, era difícil comentar sobre a qualidade do trabalho deles, mas
as estatuetas eram, no mínimo, muito detalhadas e precisas.
Quando Rudy me mostrou uma escultura de Wyrm Vermelho na
qual eles estavam trabalhando, fiquei seriamente impressionada.

Eles também estavam treinando Julie, que se provou ser uma


anã talentosa, para ajudá-los. E agora também estavam tentando
atrair um Rei Demônio para o negócio. Era óbvio que estavam
falando sério sobre este projeto. Eu queria me juntar e ajudar, já que
também era uma maga muito boa, mas essa não parecia ser uma
opção. Precisava guardar a minha mana para proteger a Princesa
Ariel.

— Olá, Rudeus.

— Ah! Olá, Mestre Fitz. — Quando chamei por ele, Rudy olhou
para mim com uma expressão satisfeita. Recentemente estive
agindo de um jeito meio estranho quando perto dele, mas não
parecia que estava desconfiando de mim ou coisa do tipo. Sério, às
vezes ele conseguia ser bem desatento.

Ainda assim… parecia uma prova de que confiava


completamente em mim. Isso me deixava feliz.

— O que posso fazer por você?

— Uhm… — Hesitei por um momento. Era meio difícil abordar o


assunto enquanto Zanoba e o Rei Demônio me observavam. — Er,
se importaria de dar uma volta comigo por um minuto?

— De forma alguma. Zanoba, pode cuidar do resto?

— Claro, Mestre! Deixe os detalhes todos comigo.

Rudy e Zanoba com certeza tinham se tornado próximos. Não


pude deixar de sentir um pouco de ciúme.

Conduzi Rudy para fora da sala de jantar e encontrei um local


tranquilo e isolado para conversar. Era hora de ir direto ao ponto.

— Vá em frente, por favor — disse Rudy. Ele parecia tão bonito


com aquela expressão séria no rosto. Isso não era justo.

— Uhm… na verdade, tenho um grande favor a te pedir.

— Tem? Bem, fique tranquilo! — disse Rudy, batendo o punho no


peito. — Vou fazer tudo o que puder, é claro!

— Espera um segundo. Ainda nem falei o que vou pedir…

— Se for para você, não vou recusar, Mestre Fitz. Bem, não vou,
a menos que seja completamente necessário.
Uau. Isso foi tão fofo, sério. Fez eu me sentir péssimo por
enganá-lo assim. Não conseguir contar sequer quem eu era já era
ruim o suficiente…

— Certo, então… lembra de quando eu te disse que a Princesa


Ariel estava passando alguns dias na casa de um nobre que ela
conhece? Bem, eles têm um guarda-costas lá, e ele parece ser
muito forte.

— Ah. Então quer ajuda para lutar com esse guarda-costas?

— O quê? Não, não!

— Ah, entendo. Então isso é bom. Não sou muito de lutar.

Não é muito de lutar…? Isso devia ser uma piada? Eu deveria


estar rindo? Bem, vamos continuar…

— A Princesa Ariel começou a ficar irritada com o quanto este


nobre se gabava desse guarda-costas. Ela insistiu que “seu Fitz” era
ainda mais forte.

— Ahah. Entendi.

— Então o nobre disse: “Meu guarda-costas enfrentou a Floresta


do Granizo com um grupo de apenas quatro pessoas, e voltou com
a flor que cresce nas suas profundezas”, em um tom bem orgulhoso
mesmo…

Rudy colocou a mão no queixo e acenou com a cabeça,


pensativo.

— Uma flor que cresce nas profundezas da Floresta do


Granizo… ela deve estar se referindo à Franja Congelada, certo? As
pétalas podem ser usadas para fazer um tônico poderoso, mas é
conhecida por crescer só por lá, e só no inverno.

Uau. Esse é o nosso Rudy. Ele sabia isso de cabeça? Ainda bem
que dedicamos algum tempo para fazer uma pesquisa e escolher
uma planta que realmente existia.

— A Floresta do Granizo é perigosa no inverno — continuou


Rudy —, mas se você entrar lá com um grupo de quatro
aventureiros de rank A, acaba não sendo nada tão impressionante.
Contanto que se movam todos com cuidado, pode pegar a flor sem
correr muitos riscos.

Ele continuou recitando os nomes dos vários monstros que


viviam na Floresta do Granizo: Vespas da Neve, Pumas Brancos,
Entes Mostarda e assim por diante. Fiquei um pouco impressionada
com a forma como tirou essa informação do nada. Como é que tinha
memorizado isso tudo?

— Uhm, certo. Enfim… A Princesa Ariel não conseguiu recuar,


então disse: “Fitz poderia fazer isso com um grupo ainda menor!” E
nem me consultou primeiro.

— Agora entendi. Então o problema é esse, huh? — Rudy


assentiu com um olhar de satisfação. — Vou entrar em contato com
um aventureiro amigo meu e pedir para que te venda as flores por
um bom preço. Esse nobre nunca saberá que você não foi lá.

— O quê?! Isso seria trapaça, Rudeus! Eu devia supostamente


fazer o trabalho!
— O poder é avaliado de muitas formas. E possuir conexões é
uma delas. Tenho muitos amigos aventureiros, e também sou seu
amigo. Você só estará usando os relacionamentos que estabeleceu.
Essa é uma maneira bem válida de fazer as coisas.

Ah, uau, olha só ele brincando com palavras. Do que é que está
falando?!

— Sinto muito, mas não posso fazer isso. Se a notícia acabasse


se espalhando, eu acabaria humilhando a Princesa Ariel.

— Hm, então tá. Então vamos nós mesmos buscar as flores.

Rudy mudou de ideia com bastante facilidade. A ideia de


enfrentar aquela floresta perigosa com um grupo de dois não
parecia intimidá-lo nem um pouco.

Ou assim pensei, até que a próxima frase saiu da sua boca…

— Me dê três dias e irei atrás de alguns caras que conheço. Com


um grupo de dez pessoas ajudando, isso deve ser bem simples.
Não se preocupe, o Líder Escalonado ainda está na cidade. Tenho
certeza de que consigo alguns deles para isso.

E então fiquei completamente perdida.

— O quê? Rudeus, não! Ariel disse que eu iria com um grupo


menor! Por que levaríamos dez pessoas conosco?

— Ah, não se preocupe com isso. Vão coincidentemente entrar


na floresta algumas horas antes de nós. Alguns deles talvez estejam
reunindo materiais por lá, e outros caçando monstros para um
serviço. Podem acabar cuidando de todas as ameaças pelo
caminho, mas nenhum deles vai tocar nas flores. Vamos pegá-las
sozinhos.

Uh… uau. Mas que sorrateiro. Era assim que os aventureiros


faziam as coisas?

Não, não. Rudy tinha sido um aventureiro por vários anos, e


aprendeu o quão perigosas as florestas eram. Só estava
preocupado com a possibilidade de eu me machucar, já que era
uma amadora nesse tipo de coisa. É, só podia ser isso.
Provavelmente.

— Olha, p-precisamos mesmo desse tanto de gente? Aposto que


eu e você poderíamos cuidar disso sozinhos, Rudeus.

— Ah, espera… Você só está pedindo para eu ser o seu guarda-


costas, Mestre Fitz?

Não foi isso que eu falei desde o começo? Bem, talvez não…

— S-sim, isso mesmo! Você pode me ajudar, Rudeus?

Rudy colocou a mão no queixo e pensou por um momento antes


de concordar.

— Então tá bom. Você já me ajudou de tantas formas, Mestre


Fitz. Não seria correto se eu recusasse.

— O-obrigado, Rudeus! Fiquei um pouco nervoso em ir lá


sozinho.

Apesar de alguns foras, consegui superar o primeiro obstáculo.


Porém, sério, parecia que ele aparecia com um plano novo sempre
que eu abria a boca. Rudy era mesmo fora do sério…
A operação passou para a sua segunda fase. Rudy e eu
estaríamos indo para a Floresta do Granizo. Isso ficava a cerca de
três dias de viagem, ao norte de Sharia, acabando bem na fronteira
com Basherant.

Eu parti com meu equipamento padrão de viagem, mas Rudy


parecia usar equipamento pesado. Estava carregando uma mochila
enorme, que parecia estar cheia de suprimentos e rações de
emergência. Eu disse que esperava que ele viesse de mãos vazias,
dado o quão forte era… mas ele respondeu: “Você não deve
subestimar os perigos de qualquer floresta. Existem alguns
monstros por aí que podem se esquivar de um Canhão de Pedra
mesmo no meio do ar.”

Isso me pareceu um completo absurdo, mas quando insisti no


assunto, Rudy disse que havia toneladas de criaturas assim nas
florestas do Continente Demônio. No começo presumi que devia ser
algum tipo de piada, mas seu rosto estava totalmente sério.

Os monstros que apareciam na Floresta do Granizo eram, na pior


das hipóteses, ameaças de rank B. Eu devia poder lidar com eles
sem problemas…

— Sinto muito, Rudeus. Parece que joguei todo o trabalho e


preocupação para você.

— Não precisa se desculpar. Quando você está em uma missão


de guarda-costas, isso faz parte do trabalho.

Espera. Se ele estava pensando nas coisas dessa forma… iria


me pedir dinheiro ou alguma outra coisa quando acabássemos?
— Uhm… então eu deveria pagar pelos seus serviços?

— Não seja bobo. Estou fazendo isso porque somos amigos.


Não quero nada.

Rudy, por alguma razão, enfatizou bastante a palavra “amigos”.


Eu não tinha certeza do que isso queria dizer.

— Digo, eu posso te pagar, caso queira. Isso não é grande coisa.


— Ariel me pagava um salário regular, mas não era dos mais altos.
Eu não tinha muito com o que gastar o meu dinheiro, então minhas
economias estavam se acumulando há algum tempo. Poderia pagar
ao menos por alguns dias do Rudy.

Ah, mas… ele supostamente já é um mago de nível Rei, certo?


E-eu tenho mesmo o suficiente?

— Heh. Eu não sou barato, sabe.

— B-bem, imagino que não, mas… — Por algum motivo, me


peguei lembrando do mercado de escravos e imaginando Rudy
subindo nu a um palco. Comprar ele… pode ser divertido…

Uma sensação estranha correu pela minha metade inferior. Senti


meu rosto esquentar de vergonha.

— Uh, de qualquer forma! Vamos começar!

— Certo.

Juntos, avançamos para a Floresta do Granizo.

À primeira vista, parecia um bosque perfeitamente comum, do


tipo encontrado em todos os Territórios Nortenhos. Estávamos
cercados por árvores altas cobertas de neve. Entretanto, havia
algum tipo de anormalidade mágica nesta área que fazia com que o
granizo caísse com bastante regularidade. Quando pisava na neve
do local, ela fazia um som bem distinto de esmagamento.

— As flores desabrocham em um penhasco do outro lado da


floresta. Vamos direto para lá enquanto limpamos a neve pelo
caminho. Siga-me e fique de olho em nosso entorno, por favor.

Com este anúncio, Rudy começou a marchar firmemente adiante,


derretendo a neve à frente enquanto avançava. Também tentei
ajudar, mas não consegui pegar o jeito. Eu tinha que assumir que
ele estava usando magia de fogo, dada o alcance limitado do
efeito… mas não era fácil gerar calor o suficiente para derreter uma
camada espessa de neve por todo o tempo. Se quisesse, poderia
fazer isso, mas me custaria muita mana. Rudy começou a gastar as
suas reservas de magia sem nem pensar.

A neve era profunda o suficiente para bater nos nossos ombros,


mas ele continuou limpando tudo enquanto avançávamos. No início,
fiquei preocupada com a possibilidade de as nuvens de vapor
d’água atraírem monstros, mas, de alguma forma, nenhum deles
estava aparecendo. Quando perguntei como ele estava fazendo
isso, Rudy disse que, se controlasse a temperatura com cuidado,
poderia aquecê-la apenas o suficiente para fazer a neve derreter
sem produzir nenhuma nuvem de vapor. Quanta prática seria
necessária antes que pudesse fazer algo assim?

Foco, Sylphie. Isso não é tão importante agora.


Estava na hora de começar com o plano. Respirando fundo,
apontei para o cajado que Rudy carregava.

— Lembro de ter levado isso para você no outro dia, Rudeus. É


um cajado incrível. Nunca vi um feito sob encomenda, ainda mais
com uma pedra mágica colorida e fora da corte real.

— Sim. A jovem senhora para a qual eu estava dando aulas


particulares me deu de presente no meu décimo aniversário.

Rudy parecia por algum motivo meio triste. Pensando bem, ele
nunca me falou muito sobre o que aconteceu enquanto dava aulas
particulares a essa jovem senhora. Ele parecia não querer falar
sobre ela. Por tudo o que ouvi, ela parecia ser uma garota bem
violenta… ele talvez tivesse algumas memórias ruins daquele tempo
da sua vida.

— Acha que eu poderia tentar segurar ele por um tempo? Só


tenho a minha varinha de iniciante, sabe. Sempre quis usar um
cajado desses.

— Sério? Achei que se o guarda-costas da princesa pedisse,


dariam a ele um bom cajado.

— Disseram que eu não precisava de um, já que podia lançar


feitiços não verbais. Uns mãos fechadas, hein?

Claro, essa não era a verdadeira razão para eu ter ficado com a
minha varinha por tanto tempo. Rudy me deu ela de presente, então
significava muito para mim. Era só um tipo comum de varinha. Mas
eu não poderia culpá-lo por não a reconhecer.

— Bem, vá em frente. Pegue bem no meio, aqui.


Por algum motivo apareceu um sorriso estranho no seu rosto
quando disse isso. Havia algo de engraçado que eu não estava
entendendo nisso? Sentindo-me um pouco perplexa, apertei o
cajado de Rudy em minhas mãos. Segurar essa coisa foi um pouco
estranho. Minhas mãos eram pequenas demais.

— Sim, é super grosso. Você não devia segurar com as duas


mãos?

— Talvez… Acho que queriam ter certeza de que eu poderia


continuar usando mesmo depois que crescesse.

— Hmm…

Sorrindo para si mesmo, Rudy retomou sua marcha à frente e as


tarefas de limpeza de neve. Eu o segui de perto, ainda segurando o
seu cajado.

Certo. Até agora tudo bem. Está na hora da próxima etapa…

Levando o anel que eu usava no meu dedo mindinho até a boca,


sussurrei a palavra-chave, “torre Vermelha”, tão suavemente quanto
pude. A pedrinha incrustada nele mudou de azul para vermelha.

Este anel era um dos implementos mágicos que a Princesa Ariel


sempre usava. Quando pronunciada a palavra-chave, a cor da
pedra mudava – e o mesmo acontecia na pedra do anel de meu
companheiro. O efeito não funcionava em distâncias muito grandes.
Mas, neste momento, o outro anel do conjunto estava esperando
pelo meu sinal, lá do lado de fora desta floresta.

Isso vai mesmo funcionar?


Olhei para o céu, nervosa, e esperei pelo começo do próximo
estágio do nosso plano.

Apesar da minha ansiedade, logo aconteceu. O céu começou a


ficar nublado com uma velocidade não natural. Até o momento
estava correndo tudo bem.

— Hm? — Não demorou muito para que Rudy percebesse a


mudança no clima. Olhando para cima, ele murmurou: — Nuvens de
chuva? Isso é estranho — para si mesmo.

Quase nunca chovia pelos Territórios Nortenhos nesta época do


ano. Assim sendo, o equipamento de proteção que a maioria das
pessoas usava não servia muito bem contra isso. O material pesado
que vestíamos era feito de pele de Ouriço da Neve. Era possível
tirar a neve dele antes que derretesse, então era bem útil no
inverno. Mas a chuva iria passar direto por isso. E uma vez que
ficasse encharcado, uma única rajada de vento ártico serviria para
congelar uma pessoa.

— Parece que vai chover, Mestre Fitz — gritou Rudy para mim,
franzindo a testa.

Quando algo assim acontecia, suas únicas opções reais eram


criar um abrigo improvisado no local ou se refugiar em uma caverna.
A última opção era considerada um pouco mais segura e confiável.
Rudy era muito bom em magia da Terra, é claro, mas não gostaria
de continuar gastando mana só para nos manter secos até que a
chuva parasse. Esse era um trabalho bem tedioso. E então, eu tinha
uma alternativa a oferecer.

— Uhm, vejamos. Olhando para o mapa, acho…


Há uma caverna logo à frente, então vamos nos abrigar lá…

Mas antes que eu pudesse pronunciar as palavras, Rudy


balançou a cabeça e interrompeu.

— Não se preocupe. Acabo com essas nuvens em um momento.

Ele então ergueu as mãos em direção ao céu.

Ah, merda!

Naquele instante, percebi que cometi um erro grave. Rudy era


um mago da Água de nível Santo; manipular o clima era algo quase
natural para ele. E a Princesa Ariel me disse que contratou dois
magos da Água de nível Avançado para esse trabalho, mas não
seriam páreos para o Rudy. Ele provavelmente nem suaria para
sumir com essas nuvens.

O que eu faço? O que eu faço? Se não chover, o plano todo vai


pelo ralo!

Agindo por reflexo, comecei a canalizar mana para o cajado que


segurava em minhas mãos. Eu podia o sentir amplificando o meu
poder em um grau notável. Eu talvez pudesse fazer isso.

— Hmmm? — Ainda com as mãos para cima, Rudy inclinou a


cabeça, perplexo. Provavelmente estava confuso com a recusa
teimosa das nuvens de se dispersarem. O que ele não sabia é que
eu estava lutando para mantê-las firmes. Não sei se Rudy não
estava dando tudo de si ou se o cajado me deu uma vantagem, mas
nós dois estávamos basicamente cancelando um ao outro. O que
significava que os dois magos de nível Avançado fora da floresta
poderiam manter o controle de tudo.
Sussurrando orações silenciosas para ninguém em particular,
canalizei mais e mais mana para cima. Visualizei as nuvens de
chuva ficando mais pesadas e se espalhando pelo céu. Fiz
exatamente como Rudy havia me ensinado – juntando umidade,
resfriando-a até condensar e deixando-a cair!

— Hmm… — Rudy voltou a franzir a testa. Um momento depois,


as primeiras gotas de chuva fria caíram sobre nós. — Sinto muito,
Mestre Fitz… Parece que hoje não estou com um bom
desempenho. — Ele parecia um pouco chateado com este
desenvolvimento, isso era compreensível.

— T-tudo bem, Rudeus. Provavelmente é porque eu estava


segurando o seu cajado.

— Mesmo sem meu cajado, eu deveria ser capaz de cuidar disso


sem problemas — murmurou ele, olhando para as mãos. — Acho
que faz um tempo que não faço isso… será que enferrujei? Ou
será…

Tive a impressão de que ele suspeitava que aquelas nuvens de


chuva pudessem ter sido criadas intencionalmente. Ainda assim,
nem devia ter pensado que eu poderia ter ativamente interferido em
sua tentativa de dispersá-las.

— Ah, bom. Não há muito que possamos fazer agora que está
chovendo. Há uma caverna à frente, não é? Vamos nos abrigar
nela.

— S-sim! Boa ideia!


Balancei a cabeça vigorosamente e voltamos a nos mover.
Nosso equipamento de Ouriço da Neve sugava água como se fosse
uma esponja. Em pouco tempo, estávamos ambos congelando de
frio.

Tudo de acordo com o plano.

— Ai está! — Finalmente, tremendo e encharcados, tropeçamos


para o nosso abrigo. Era uma caverninha natural, com não mais do
que dez metros de profundidade. E era, também, o nosso
verdadeiro destino.
Capítulo 10:
Chuva na Floresta (Parte 02)
Eu sabia, desde o início, que havia algo de estranho nisso.

Mestre Fitz esteve agindo de maneira estranha desde que me


chamou, e então os acontecimentos tomaram um rumo bem
estranho mesmo. Aquelas nuvens de chuva tinham se formado com
uma rapidez anormal. E as chuvas repentinas no inverno, nessa
floresta, eram muito, muito raras. Havia uma boa chance de alguém
ter criado a tempestade usando magia. Mas qual seria o sentido
disso? Por que… fazer chover sobre nós? Queriam tornar o nosso
objetivo ainda mais difícil? Quem faria isso? Será que a nobre
Princesa Ariel estava envolvida? Com que finalidade? Bem, isso
provavelmente era para impedir que Fitz pegasse a flor.

Mas se era esse o objetivo, por que só nos atormentar com um


tempo ruim? Uma chuva de flechas seria muito mais efetiva.

Mestre Fitz foi pego no meio de algo? Havia uma expressão


tensa no seu rosto, o que sugeria que a resposta era sim. Mas,
parando para pensar, ele também parecia estranhamente calmo.
Talvez já estivesse esperando que algo assim acontecesse.

Se fosse esse o caso, entretanto, eu não conseguia entender por


que não tinha me avisado antes. Poderia ele estar planejando me
assassinar? Isso também não fazia muito sentido. Se quisessem, a
essa altura ele já poderia ter me matado algumas vezes.

Mas que merda estava acontecendo?


Meus pensamentos estavam ficando ocupados enquanto eu
tentava acender uma fogueira que poderíamos usar para secar as
nossas roupas molhadas. Eu, felizmente, tinha pego um pouco de
lenha, para o caso de algo assim acontecer. Seria possível manter a
fogueira acesa usando nada além de magia, é claro, mas as
chamas seriam extintas caso eu precisasse voltar a minha atenção
a algum monstro que estivesse passando. Isso poderia ser perigoso,
já que nos privaria da nossa principal fonte de luz, e eu teria que
preparar outra depois. Carregar ao menos o básico consigo seria
muito mais inteligente.

— Certo, vou acender a fogueira…

Uma vez que a madeira estava toda preparada, a acendi. Assim


que tive certeza de que estava queimando bem, tirei o meu casaco
externo. A coisa estava toda encharcada; o exterior estava coberto
por uma fina camada de gelo. Eu ainda estava usando o meu velho
robe cinza por baixo, mas ele também estava encharcado. Pelo jeito
da coisa, até a minha cueca devia estar encharcada. Eu ao menos
estava com um conjunto de roupas reserva que poderia usar até as
minhas outras roupas secarem. Usando uma mistura de magia de
Vento e Água, cuidadosamente evaporei todo o excesso de umidade
existente. Mas não consegui forçar a saída de toda a água. Se eu
tentasse fazer isso, iria danificar, e muito, o tecido.

Depois de fazer tudo o que podia, preparei um varal simples


usando magia da Terra e pendurei tudo, exceto a minha cueca, para
secar.

Me virei para o fogo e me aproximei, mas a caverna ainda estava


congelando. Usei magia para selar a entrada da caverna. Claro, nos
trancar completamente ali dentro seria uma ótima forma para morrer
de envenenamento por monóxido de carbono, então abri um orifício
de ventilação no teto, para que a fumaça pudesse sair.

Ao menos deixei as coisas um pouco mais confortáveis. A


questão agora era o que fazer com a minha cueca. Ficar totalmente
nu na frente de Fitz poderia ser um pouco estranho.

Lancei um olhar em sua direção – e me deparei com ele


abraçando os ombros, tremendo feito vara verde e choramingando
baixinho. Ele tinha tirado o casaco externo, mas ainda estava
usando a capa e tudo que havia por baixo dela. Nesse ritmo o cara
acabaria com uma hipotermia.

— Não deveria, uh…

Você não deveria tirar tudo para secar? era a frase que eu tinha
em mente, mas me contive. Fitz podia alegar ser um jovem homem,
mas eu suspeitava que fosse na verdade uma garota escondendo a
sua verdadeira identidade. Tirar a roupa bem na minha frente podia
não ser uma opção. Mas esta era uma situação genuinamente
perigosa.

E agora? Hmm…

— Mestre Fitz.

— O… O que foi, Rudeus?! — respondeu ele, saiu um pouco alto


demais.

Ele, claramente, também percebeu o problema no qual se


encontrava. Isso não era nada bom. Eu precisava apresentar
alguma saída a ele.
— Sabe, uma garota que eu conheço me disse que os elfos têm
uma regra contra permitir que pessoas de uma raça diferente os
vejam nus. Por que não me viro e cubro meus olhos? Você pode
tirar as roupas, secá-las com magia e me dizer quando tiver
terminado.

— Huh?! — Fitz parecia mais do que um pouco surpreso. Isso


fazia sentido, visto que eu tinha inventado tudo na hora. Se existia
mesmo um tabu como esse, era um que Elinalise quebrava todos os
dias da sua vida. Entretanto, a desinformação na qual eu estava
escolhendo “acreditar” devia ser bem conveniente para Fitz, ele só
precisava jogar junto.

Me virei lentamente, fechei os olhos… e comecei a escutar com


atenção. Bem, não havia nenhuma razão para não aproveitar o som
dele se despindo. Minha imaginação cuidaria do resto.

—…

—…

Mas eu, por algum motivo, não estava ouvindo nada. Suas
roupas estavam molhadas, é claro, mas mesmo assim… tirá-las e
secá-las com um feitiço deveria produzir ao menos um indiciozinho
de som. Isso era realmente estranho. Ele tinha algum jeito de trocar
de roupa sem fazer barulho nenhum?

Pensando bem, na minha escola primária havia uma garota


capaz de colocar o maiô sem nem tirar a roupa primeiro. Aquele era
um truque bem legal. A escola não era equipada com vestiários,
então os garotos e as garotas eram forçados a trocar de roupa
juntos, ainda na sala de aula. Parando para lembrar, aqueles foram
bons tempos. Depois, quando a internet se tornou popular, me
deparei com uma explicação a respeito desse método furtivo de
troca de roupas. E acabei desenvolvendo um certo interesse por
truques desse tipo. Meu interesse neste assunto era completamente
acadêmico, é claro. Com certeza não envolvia nada sexual.
Provavelmente.

Se Fitz não tivesse tirado a roupa, então já devia estar


congelando. Com essa desculpa em mente, me virei bem devagar.

Meus olhos se encontraram com os do Mestre Fitz na mesma


hora. Ele ainda estava usando seus óculos escuros, mas eu poderia
dizer que ele estava olhando para o meu rosto. Dessa vez eu não
desviei o olhar. Principalmente porque seu rosto estava pálido de
dar medo.

— Mestre Fitz!

Ele ainda estava abraçando os ombros com os dois braços,


tremendo com ainda mais força do que antes. Não havia cor no seu
rosto. Era óbvio que ele estava congelando até os ossos.

No inverno, as temperaturas nos Territórios Nortenhos ficavam


quase sempre abaixo de zero. O simples fato de caminhar do lado
de fora já ia minando a temperatura corporal. Cacete, eu mesmo
ainda estava com muito frio. A temperatura na caverna estava
subindo aos poucos, mas com aquelas roupas molhadas, Fitz
estava basicamente se banhando em gelo.

Isso era perigoso ao extremo.


— Por favor, você precisa trocar essas roupas. Quer que eu faça
uma parede ou coisa do tipo? Ou se você quiser eu posso
simplesmente sair da caverna, o que acha? Sim, parece bom. Já
vou sair…

— Espera.

Quando me virei para a entrada, o Mestre Fitz me chamou. Ele


me encarou por um momento, ainda tremendo. E então, ficando de
pé com as mãos trêmulas, se aproximou lentamente e olhou para o
meu rosto.

—…

—…

Ele estava só… olhando para mim. Era como se ele quisesse
dizer algo. Mas o que era? O que ele estava tentando me dizer?

— Você, uh… você vai pegar um resfriado, Mestre Fitz…

— S-sim — respondeu ele, sua voz ainda tremendo. — V-você


está certo.

Neste momento eu já estava mais do que nervoso. Não


conseguia nem entender o que ele estava pensando.

— Você… tem que tirar essas roupas. Isso é perigoso. O


excesso de frio pode acabar te matando…

— Sim… Acho que, nesse ritmo, vou morrer… — Fitz acenou


com a cabeça, mas não deu sinais de tirar a roupa. Uh, não que eu
estivesse esperando que ele se despisse enquanto estava
assistindo, é claro.
Não sei de nada! Mestre Fitz é um garoto! Definitivamente não é
uma garota! É essa a minha posição oficial sobre o assunto, droga!
Eu precisava fechar os meus olhos, certo?

— Eu não consigo tirar isso sem ajuda. Faça isso por mim. — Do
que diabos ele estava falando?

— Bem, se você não consegue tirar, acho que terei que fazer
isso… — O que diabos eu estava falando?

Droga. Minhas mãos já estavam avançando. Primeiro toquei os


seus ombros. Eles estavam frios… magros e macios. Seu corpo, em
minhas mãos, parecia muito delicado.

— U-uhm, Mestre Fitz… para ser honesto, estou ciente do fato


de que você é uma mulher.

— Certo. Mas se você não tirar a minha roupa, posso morrer,


certo?

— C-certo…

Deixando a confirmação das minhas suspeitas de lado, isso não


fazia sentido. Eu não estava conseguindo seguir a linha de
raciocínio dela. E ela com certeza estava tramando algo. Será que
era algum tipo de golpe para depois fazer chantagens? Tipo, eu iria
tirar a roupa dela, e então algum cara assustador apareceria na
caverna, me diria que eu descobri demais e me levaria para ser
dissecado em um laboratório Asurano? Não que eu fosse reclamar,
já que estava prestes a fazer um “experimento” com Fitz…

Minhas mãos, que em algum momento criaram vida própria,


tiraram a capa grossa e abriram os botões da frente de suas roupas.
E então revelou uma camisa branca toda encharcada que estava
por baixo.

Não quero me repetir, mas era uma camisa branca. Como todo
mundo deve saber, as camisas dessa cor tendem a ficar
transparentes quando estão molhadas. Isso significava que eu podia
ver a roupa de baixo de Fitz – algo que parecia um sutiã esportivo,
para ser mais específico. E o conteúdo parecia ser… modesto. Mas
com o sutiã molhado firmemente agarrado à sua pele, não havia
como negar que estava mesmo ali. Fitz tinha um enchimento natural
do tipo que tende a cativar a mente masculina.

— Mestre Fitz…

— Qual é o problema, Rudy?

Quando ouvi aquele apelido familiar, senti uma velha memória


brotando lentamente em direção à superfície das minhas memórias.
Eu já tinha passado por algo bem parecido antes. Algo muito
parecido com isso.

— Uh… então, desculpe…

— Vá em frente.

Fitz estava brilhando de tão vermelho, corando até a ponta das


orelhas. Isso parecia até de alguma forma familiar. Tirei a sua
camisa branca e a pele pálida acabou exposta. Por um momento
fiquei só encarando seus ombros delicados e pescoço magro. Ela
era mais magra do que eu imaginava.

Vê-la assim de perto… e tocá-la… estava fazendo algum efeito


em mim. Algum cavaleiro invisível estava levantando a minha
“espada”, deixando ela firmemente apontada para cima, parecia até
parte de alguma cerimônia sagrada.

Isso era por causa de Fitz? Eu não conseguia definir exatamente


o que era, mas algo nela me deixou bem… excitado. Tive que lutar
contra uma vontade repentina de empurrá-la para o chão ali mesmo.
Dando o meu melhor para ignorar meus desejos, alcancei o cinto de
Fitz. Depois de alguns segundos barulhentos e desajeitados,
consegui tirá-lo. Estendi a mão para agarrar a calça em sua
cintura… e então uma imagem correu pela minha mente.

Eu já tinha feito algo assim, anos atrás. Eu devia ter uns cinco ou
seis anos, mas não me esqueci.

Quando baixei as calças de Fitz, me deparei com uma calcinha


branca. Ao contrário daquela primeira vez, não puxei a calcinha
junto com as calças. Dito isso… a calcinha estava tão encharcada
da água da chuva que parecia quase transparente. Eu estava vendo
coisas ou tinha uma curva suave bem ali…? Engoli em seco.

Fitz silenciosamente puxou suas pernas para fora da calça,


depois, sentou-se na minha frente com uma perna para cada lado.
Sentei-me de joelhos bem na frente dela. O chão da caverna era
duro e áspero, então minhas canelas começaram a doer quase na
mesma hora.

Mais uma vez estendi a mão para ela. E ela ainda estava com
aquelas luvas brancas e ensopadas nas mãos.

— Deixe-me… tirar isso também…


Ao tirar as luvas, descobri que suas mãos estavam marcadas por
uma velha cicatriz. Eu reconheci a mão.

Mas, como foi que isso aconteceu? Tá bom, tá bom. Ela uma vez
enfiou a mão em um fogão e acabou se queimando. Lembro que me
perguntei se aquele acidente tinha algo a ver com o seu esforço
para aprender magia de fogo.

— Rudy…

Fitz não estava mais olhando nos meus olhos. Seu olhar estava
ligeiramente curvado, assim como uma parte diferente do meu
corpo. A tenda que eu tinha recém-armado continuava firme e forte.
Fitz realmente fazia milagres.

— Ainda resta uma coisa.

Eu sabia que ela não estava falando da calcinha ou sutiã. Nesse


momento, finalmente entendi. Peguei seus óculos escuros e os tirei.

Por baixo, encontrei um rosto familiar – um que esperava ver.

Antigamente, eu pensava que aquele meu amigo cresceria e se


tornaria um verdadeiro arrasador de corações. Sylphiette era bonita
assim, mesmo quando eu ainda pensava nela como um garoto,
mesmo quando ainda era criança. E agora… tinha ficado ainda mais
bonita do que eu imaginava.

Suas feições podiam ainda ter um toque infantil. Porém, bonita


era a única descrição que se aplicava. Seus olhos eram claros e
afiados. Seu nariz era um pouco comprido e seus lábios
ligeiramente finos. Pensei ter visto uma semelhança com sua
companheira elfa, Elinalise… mas, de alguma forma, seu rosto era
muito mais amigável e cativante. Talvez tivesse herdado isso de
seus ancestrais humanos.

— Uh, Mestre Fitz…

— Sim, Rudy?

A maneira como ela inclinou a cabeça para ouvir, mesmo


enquanto corava, não havia mudado em nada. Por que diabos levei
tanto tempo para perceber isso? O cabelo? Sim. A cor do seu
cabelo estava diferente. Antes era verde, mas agora era todo
branco. Mas, claro, o cabelo das pessoas muda de cor o tempo
todo. Se quisesse, poderia até pintar.

— O seu nome verdadeiro… Por acaso é Sylphiette?

— Sim…

Fitz – ou melhor, Sylphie – sorriu toda tímida e acenou com a


cabeça.

— Sim… é. Eu sou a Sylphiette. Sylphiette… de Buena Village…

Depois de alguns poucos segundos, ela foi tomada pela emoção


e seu sorriso se desmanchou e desapareceu. Antes de desabar por
completo, ainda conseguiu se inclinar para frente e jogar os braços
ao meu redor.

— Eu finalmente… contei…

Seu corpo estava muito, muito frio.

Ficamos assim por alguns longos minutos.


Fiquei chocado, para não dizer mais. Mas, ao mesmo tempo,
estava começando a sentir que tudo finalmente começou a fazer
sentido.

Sylphie estava soluçando e fungando baixinho enquanto me


abraçava com força. Isso era, na verdade, bem parecido com o que
tinha acontecido da outra vez. Parecia que continuava sendo uma
bebê chorona.

Seu corpo também tinha ficado macio. Ela era tão magra que
seria normal pensar que não possuía uma grama sequer de
gordura, mas quando a abraçava, parecia que estava envolvendo
uma nuvem com os braços. Será que usava um amaciante nos
banhos ou o quê?

— Eu esperei… Esperei por você esse tempo todo, Rudy. Fiquei


em Buena Village e dei muito duro…

Eu sabia que isso era verdade. Paul já tinha me contado como


Sylphie passou o tempo depois que fui dar aulas para Eris. Sem
dizer nada de imediato, só balancei a cabeça. Ela reagiu me
apertando com ainda mais força.

Depois de um momento, Sylphie ergueu o rosto para olhar para


mim. As lágrimas e o nariz escorrendo estavam fazendo uma
verdadeira sujeira. Eu não tinha certeza do que dizer.

— Eu sempre…

Mas Sylphie sabia o que ela queria dizer. Ela me olhou bem nos
olhos e disse o que queria.

— Eu sempre te amei.
Tudo o que pude fazer foi olhar para ela com uma surpresa
estúpida e inexpressiva.

— Mesmo naquela época te amei muito, Rudy. E agora te amo


ainda mais. Pode não me deixar de novo… por favor? Quero ficar
com você para sempre…

Minha mente entrou em curto-circuito. Fiquei literalmente


atordoado.

Claro, lá nos velhos tempos Sylphie era muito apegada a mim.


Poderia dizer até que eu organizei para que assim fosse. Mas agora
as coisas eram diferentes. Eu passei um ano inteiro aprendendo a
confiar e respeitar o “Mestre Fitz”, considerando-o meu amigo e
igual. Ela já era independente, sustentando-se por si mesma. Eu
tinha um verdadeiro respeito por essa pessoa. Os sentimentos dela
por mim não eram apenas vestígios das minhas tentativas de
conquistá-la quando criança? Isso parecia possível.

Mesmo assim… Passei a confiar e acreditar genuinamente em


Fitz. Ela era uma pessoa inteligente e bem informada que ouvia os
meus problemas e me ajudava a refletir. E eu também não era o
único que ela levava em consideração. Havia também a Princesa
Ariel em quem confiava.

E ela estava me dizendo que me amava.

Uma sensação quente e agradável cresceu dentro do meu peito.


Ainda era difícil entender o fato de que Sylphie e Fitz eram a mesma
pessoa… mas eu estava tão feliz que sentia vontade até de dançar.
Por um momento, me peguei pensando em Eris. Eu cheguei a
dizer para ela que a amava? Em um certo ponto falamos sobre nos
tornarmos uma família, mas foi ela quem tocou no assunto. Eu não
conseguia lembrar o que foi que falei.

E quanto a Sara? Não, as coisas não foram tão longe assim com
ela. Sério, eu não tinha tanta certeza sobre realmente amar Sara.
Eu com certeza gostava dela e tentei levá-la para a cama… mas
senti que “amor” não era a palavra certa para descrever o que
sentia.

Então tá. E quanto a Fitz… ou Sylphie? O que eu pensava dela?

Para ser honesto, gostaria de pensar nisso com cuidado. Queria


verificar os meus próprios pensamentos e encontrar uma resposta
clara e precisa. Porém, a menos que lhe desse uma resposta
imediata… ela provavelmente fugiria de mim, assim como Eris fez.

Me descobri segurando Sylphie pelos ombros e colocando-a a


um braço de distância. Ela tentou resistir, mas foi um esforço muito
débil.

— Eu também te amo — falei.

O rosto de Sylphie já estava em completa desordem, mas estava


tudo bem. Acariciei a sua cabeça suavemente, então aproximei o
meu rosto do dela.

Seus lábios eram muito macios. Também ligeiramente viscosos


por causa da meleca toda, mas isso não importava. Quando o beijo
acabou, Sylphie finalmente parou de chorar. Ela ficou olhando para
mim atordoada, seu rosto ainda brilhando de tão vermelho.
Até eu perdi a capacidade de falar. Neste ponto, ainda bem, as
palavras já não eram mais necessárias.

Agora que tínhamos confirmado os nossos sentimentos um pelo


outro, o próximo passo era óbvio. Quando se está apaixonado, se
deve fazer amor, certo? Não quero parecer grosseiro nem nada
assim, mas meu amiguinho lá embaixo passou dois anos sem dar
sinal de vida, mas agora só faltava sair andando.

Sylphie não se opôs quando eu avancei. Ela me deixou deitá-la


de costas no cobertor próprio para acampamentos que eu trouxera.
Parecia que, desde o começo, estava preparada para isso. Talvez
tivesse organizado essa “missão” toda só para que pudesse me
contar a verdade em absoluta privacidade.

Mas não era a hora para pensar nessas coisas. Neste momento
eu só precisava ter certeza de que não estragaria tudo de novo.

— É a sua primeira vez, Sylphie…?

— Huh? Uhm, sim. É. Isso é um problema…?

— Claro que não.

Ainda assim… isso significava que eu tinha que ter cuidado com
ela. Se estragasse tudo, as coisas podiam acabar iguais à última
vez. Eu nunca mais queria me sentir daquele jeito. Ter sido deixado
por Eris já tinha sido ruim o suficiente… e depois aquilo com a Sara.
Eu não poderia estragar tudo. Simplesmente não poderia.

Lentamente, com bastante cuidado, me abaixei para tocar


Sylphie…
— Uhm, Rudy…?

E percebi que minha barraca tinha desarmado.

Passou uma hora inteira até finalmente desistirmos.

A chuva já tinha parado. Graças ao tempo todo que passamos


pressionados um contra o outro, nossos corpos se aqueceram
bastante. Nossas roupas também estavam quase secas.

No momento, porém, a única coisa que eu tinha era vontade de


chorar. Estava dolorosamente deprimido por minha incapacidade de
atuar em um momento tão crucial assim. Afinal, quantas vezes tinha
sentido essa agonia em particular? Isso parecia nunca ficar menos
terrível. E, desta vez, eu não estava lidando com uma garota de um
bordel ou uma aventureira com quem me dei bem em uma pousada.
Era alguém que eu realmente amava. Alguém com quem possuía
uma ligação especial.

Eu estava com medo de que Sylphie pudesse começar a olhar


para mim com decepção no rosto, soltando longos suspiros e saindo
da minha vida. E então, fiquei lá, tremendo sem parar enquanto
segurava a mão dela.

Sylphie, entretanto, não foi a lugar algum. Ela também parecia


chocada com essa reviravolta, embora não tão devastada quanto
eu. Ao menos havia a sombra de um sorriso no seu rosto.

— Isso não é culpa sua, Rudy. Meus seios são bem pequenos,
não são? Sei que não sou sexy nem nada…

— Não seja ridícula, Sylphie. Você é linda. A questão é… que


estou assim já faz três anos.
— R-Rudy…

Contei a história toda a ela. Toda a longa e humilhante história,


começando com aquele dia, há três anos, em que dormi com
alguém pela primeira vez. Até admiti que só estava na Universidade
de Magia graças à esperança de encontrar uma cura para o meu
problema, mas que ainda não tinha dado sorte.

— Envergonhar você era a última coisa que eu queria fazer,


Sylphie. Por favor, aceite as minhas desculpas.

Não havia nada de errado com o seu corpo, é claro. Só olhar


para ela já era excitante. Seus seios eram pequenos, sim, mas ela
era perfeitamente proporcionada. Ela era a perfeita definição de
beldade delicada – e eu era um grande fã de beldades delicadas.
Digo, ela era a única garota que me deixou em ponto de bala nos
últimos três anos. Claro que não era culpa dela. Eu era só um
covarde inútil.

— Não diga isso, Rudy! Não estou envergonhada, tá? Vamos,


volte ao normal.

A voz de Sylphie estava implorante e um pouco triste. Isso só fez


eu me sentir ainda mais patético.

— Eu adoraria voltar ao normal, é claro. Mas parece que,


infelizmente, não há nada que possa fazer a respeito disso.

— Não, não… — disse ela, as lágrimas escorriam pelo seu rosto.


— Eu só quis dizer para você parar de me pedir essas desculpas
formais…

— Ah, uh… certo, tá bom. Foi mal. Só fiquei meio para baixo.
Deus, eu simplesmente não consigo parar de estragar tudo.
Comecei a me curvar e desculpar por costume. Sempre que eu não
estava pensando direito, tinha a tendência de voltar a esse modo.

— Ainda assim, é estranho se eu for um pouco formal com


você…? Digo, estou te chamando de Mestre Fitz já faz meses.

— Sim, eu acho… quando você fala assim, parece que está


mantendo distância das pessoas.

Sério? Foi a primeira vez que ouvi isso. Eris e Ruijerd se sentiam
da mesma forma? E quanto a Zanoba? Bem, eu tinha a tendência
de mais mandar nele do que qualquer outra coisa…

— De agora em diante, quero que seja mais casual comigo.

— Como desejar.

— Certo, isso não é casual…

— Fala sério! Não pode dar uma folga ao menos com um como
desejar?

— Hehehe… bem, eu talvez abra uma exceção.

Essa conversa parecia estar ao menos melhorando o clima.


Ainda assim, já fazia um tempo que eu não era conscientemente
casual com alguém. Depois de vir a este mundo, fui sempre meio
que “educado demais”. Passei alguns anos à toa com Soldat e
companhia, mas então fui para a escola e pulei de cabeça nas
reverências e críticas.

Pensando bem, porém, havia uma outra exceção… Lá em Buena


Village, costumava ficar bem relaxado perto da minha amiguinha
fofa, Sylphie. Nesse caso, casual talvez fosse o nosso normal.

Por um tempo, ficamos só sentados, aninhados um no outro só


com as roupas de baixo, sem dizer nada em particular, apenas
ouvindo o crepitar do fogo. Quando virei um pouco o meu pescoço,
pude ter uma visão clara da clavícula de Sylphie. Seu sutiã estava
um pouco frouxo, então quando eu olhava desse ângulo, às vezes
vislumbrava uma coisa rosinha.

Depois de um tempo, porém, quebrei aquele silêncio agradável.

— De qualquer forma… posso te perguntar por que ficou esse


tempo todo travestida, Sylphie? O que aconteceu com você depois
do Incidente de Deslocamento?

Eu queria saber por que ela era a guarda-costas da Princesa


Ariel, por que tingiu o cabelo de branco e por que estava
escondendo a sua identidade. Não sabia se fazer essas perguntas
era correto, mas parecia que valia à pena tentar.

— Ah, claro. Uhm… por onde devo começar…? — Lentamente,


Sylphie começou a me explicar a sua história.

Ela começou com o seu treinamento em Buena Village e as suas


tentativas de tirar a minha localização de Zenith e Lilia. Elas
acabaram a treinando muito bem em magia de Cura e etiqueta,
respectivamente. Sylphie também mencionou que foi ela quem fez o
pingente que eu ainda estava usando.

— Então você mesma fez, hein?

— Por que você ainda tem isso, Rudy?


Há anos eu escondia o pingente em questão por dentro das
minhas roupas. Sylphie evidentemente o notou quando eu tinha
tirado as minhas roupas.

— Lilia me deu isso quando eu a encontrei. Mas não me disse


que foi você quem fez, Sylphie.

— Bem, ela provavelmente pensou que eu poderia estar morta.

— Ah, entendo. — Algumas pessoas podiam aceitar o ato de


carregar uma lembrança de um amigo morto, mas outras podiam
ficar só tristes e desconfortáveis.

— Uhm, se importa se eu continuar a minha história?

— Sinto muito por isso. Siga em frente.

Após o Incidente de Deslocamento, a vida de Sylphie deu uma


guinada acentuada para uma vida tempestuosa e dramática. Ela foi
jogada em um jardim do palácio real, junto com um monstro
perigoso logo abaixo dela. Depois de salvar a vida da Princesa Ariel,
algo que aconteceu por pura coincidência, recebeu o papel de Maga
Guardiã como recompensa.

Quando ela foi transportada, o seu cabelo de alguma forma


perdeu a cor original. Mas o povo da capital real tinha perspectivas e
ambições tão diferentes das quais estava acostumada, que ficava
com dor de barriga quase todos os dias. Ela foi forçada a cuidar de
todos os assassinos que foram enviados para matar Ariel, enquanto
os membros da família real e os seus apoiadores lutavam pelo
poder.
Por fim, foram expulsos da capital real e partiram em uma
jornada para a qual nenhum deles estava preparado. Aconteceram
traições, decepções e momentos de perigo desesperador. Mas, por
fim, chegaram à Universidade de Magia de Ranoa, onde
começaram a planejar o retorno… ponto esse em que eu apareci.

— Sei que a culpa não é sua, Rudy… mas quando você se


apresentou a mim como se fôssemos estranhos, senti um tipo de
choque.

— Sinto muito por isso. Mas, sabe, se você tivesse me dito quem
era você, isso não teria demorado tanto assim.

— Sim… v-você está certo, eu acho. Desculpa. A culpa é minha


por não ter dito nada, huh…? Eu realmente… sinto muito por isso…

As lágrimas de repente começaram a descer pelo rosto de


Sylphie. Ela parecia já estar angustiada com isso há algum tempo.
Não era como se ela tivesse negado a verdade só para mexer
comigo ou coisa do tipo. Minha intenção não foi criticar.

— Ei, eu também sinto muito. Tive um ano inteiro para perceber,


e não percebi.

Com base na história de Sylphie, ela estava escondendo a sua


identidade por um motivo, e parecia pensar que eu tinha esquecido
dela. E se eu tivesse a esquecido, existia o risco de eu contar a
verdade sobre ela a alguém, caso acabasse se abrindo para mim.
Afinal, eu tinha ligações com a família Boreas. Existia a
possibilidade de que eu me tornasse até mesmo um inimigo. Ficar
em silêncio foi provavelmente a decisão mais inteligente.
Além disso, durante o ano passado inteiro, não mostrei nenhum
indício de que estava em busca de Sylphie. Se ela pensava que eu
nem estava à sua procura, então não poderia culpá-la por hesitar,
certo? Sim, não poderia. Apareceram todos os tipos de
circunstâncias para atrapalhar. E, no final, ela se abriu para mim.
Era isso que realmente importava.

Passei meus braços pelos ombros de Sylphie e ela encostou a


cabeça em mim. Seu corpo ainda estava um pouco frio. Decidi
mantê-la pressionada contra mim até que esquentasse.

— Simplesmente não consegui juntar coragem, Rudy. E acho


que havia uma parte minha que gostava de como as coisas
estavam.

— Sim. Devo confessar que ser amigo do Mestre Fitz não foi
nada ruim.

Ela, entretanto, parecia estar começando a ficar preocupada. Já


existiam algumas garotas bonitas na minha vida, e Sylphie pensava
que alguma delas ia acabar me arrebatando, a menos que agisse
rápido. Graças à minha condição, esse cenário me parecia meio
improvável… mas nunca se sabe. Digamos que Nanahoshi me
encontrasse uma cura mágica ou coisa assim. Eu ficaria muito grato
a ela, certo? Nosso relacionamento talvez evoluísse de maneiras
inesperadas.

De qualquer forma, Sylphie decidiu arriscar tudo em uma grande


operação. Várias vezes me provei bem desatento e costumava
sabotar seus planos enquanto tentava ser atencioso. E da parte
dela, ela tendia a se acovardar no último instante. Mas, desta vez,
estava encurralada… e então estapeou a minha cara com a verdade
até que eu finalmente percebesse.

— Você é mesmo desatento, Rudy.

— Sim, me declaro culpado.

Uma vez fiz um juramento silencioso de que agiria como um


protagonista esquecido, mas, depois disso, não poderia mais
zombar daqueles caras. Às vezes, quando existem muitos fatores
complicados envolvidos, pode ser realmente difícil perceber que
alguém gosta de você.

Se eu estivesse um pouquinho mais excitado com isso tudo,


desde o início, talvez tivesse visto os sinais dela com um pouco
mais de clareza. Todos aqueles protagonistas idiotas com algum
harém também precisavam de alguma receita de Viagra? Isso, na
verdade, explicava muita coisa.

— Então, acho que acabei me jogando na sua armadilha, huh?

— Uhm, sim. Desculpa. Me sinto um pouco mal por ter te


enganado assim.

— Tudo bem. Não acho que teria funcionado, a menos que as


coisas fossem longe assim.

Do jeito como tudo estava indo, eu teria continuado fingindo para


sempre que Fitz era um homem, supondo que estivesse fazendo um
favor a ela. E, para ser honesto, eu não tinha certeza de quão bem
me lembrava da minha velha amiga de infância, Sylphie, antes de
ela me dar todas aquelas pistas.
— A propósito… a Princesa Ariel sabe que você está fazendo
isso?

— Ah, com certeza. Ela que planejou tudo.

— Sério mesmo?

— Aham.

Isso era um alívio. Se Sylphie estivesse agindo por conta própria,


continuar fingindo que não sabia a verdade talvez fosse o mais
seguro… embora o personagem de “Fitz” continuaria existindo em
qualquer que fosse o caso.

— Mas ela estava meio preocupada com isso tudo. Ela nunca
conseguiu descobrir quais eram os seus objetivos, ou no que estava
pensando. Acho que não faz ideia de que você só veio por causa do
seu, uh, problema.

Já corriam rumores sobre a minha condição, mas, pelo andar da


carruagem, ela provavelmente ignorou todos eles. A verdade às
vezes podia ser mais estranha do que a ficção.

— Hmm. Nesse caso, será que eu devo entrar no time dela?

Sério, eu ainda queria evitar me envolver em lutas perigosas pelo


poder. Mas se isso fosse ajudar Sylphie, ofereceria todo o apoio que
eu pudesse.

— A Princesa Ariel fez muito por mim, então, pessoalmente,


ficaria muito feliz em ter você ao lado dela… mas você não quer se
envolver na política Asurana, certo? Então não force a si mesmo,
Rudy.
Sylphie mais uma vez revelou um sorriso tímido para mim.
Quando não estava usando aqueles enormes óculos escuros sua
fofura realmente ficava cem vezes maior. Pela segunda vez no
mesmo dia, senti uma onda de calor na minha virilha. Incapaz de me
conter, me inclinei e lambi a sua orelha.

— Aah?!

— Whoops. Perdão. — O gritinho de surpresa de Sylphie


assustou o meu amiguinho desordeiro, que voltou à hibernação.
Nesses tempos eu realmente não estava conseguindo controlar a
minha libido. Ainda assim, perceber qualquer movimento ali embaixo
já era motivo de alívio. Eu parecia estar no caminho da recuperação.

Tudo graças à Sylphie, é claro.

— Obrigado, Sylphie.

— Huh? Pelo que…? — Ela inclinou a cabeça para mim,


confusa.

Ainda não tínhamos feito nada, mas isso, no momento, já era


bom o suficiente. Roma não foi construída em um único dia, certo?
Capítulo 11:
O Empurrão Final
Levou três dias para eu e Rudy voltarmos para a cidade de
Sharia. Depois disso, conversamos sobre todos os tipos de coisas.
Um dos tópicos principais da conversa era o que Rudy havia feito
nos últimos anos. Ele parecia ter sido abandonado por uma jovem
senhorita chamada Eris, o que o deixou meio traumatizado. Desde
então, esteve passando para apresentar algum “desempenho”
diante das mulheres.

Eu, na verdade, cheguei até a ouvir alguns rumores sobre essa


Eris Boreas Greyrat na corte real. As pessoas diziam que era
incontrolável e violenta, que era mais uma fera do que uma garota
de uma boa família. Mas, pelo que Rudy me disse, ela
provavelmente não era tão ruim quanto imaginei… mas, ainda
assim. Ele a escoltou do Continente Demônio até Asura, e então ela
o deixou de lado porque ele não era bom o bastante? Isso era
simplesmente inacreditável. Eu disse ao Rudy que se a
encontrasse, colocaria um pouco de juízo na mente dela. Mas ele
ficou branco feito papel e me disse que essa era uma péssima ideia.
Contou que Eris era uma espadachim altamente qualificada.

Não poderia dizer que saber disso me deixou muito feliz. No final
das contas, porém, foi só por Eris ter largado Rudy que nós
tínhamos nos reunido. Havia ao menos uma coisa boa nisso tudo.

Mas Rudy estava mesmo na universidade só por causa da sua


condição…? Ele não estava investigando o Incidente de
Deslocamento? Bem, talvez estivesse apenas perseguindo dois
objetivos ao mesmo tempo.

Por fim, chegamos aos portões da Universidade. Nesse ponto, eu


já estava de volta aos meus trajes habituais – os que usava quando
estava como “Fitz”.

— Então tá bom — falei. — Acho que vou reportar à Princesa


Ariel.

— Claro — disse Rudy, sorrindo e parecendo um pouco


envergonhado. — Eu… te vejo depois, certo?

Levei um momento para descobrir exatamente o que ele quis


dizer com isso. Então juntei todas as peças e o meu rosto ficou bem
quente. Até as minhas orelhas estavam voltando a corar.

— Sim… é claro!

Nós dois estávamos agora oficialmente namorando, não é?

Isso me fez muito feliz. Meu corpo parecia estar quase flutuando.
Nunca soube o que as pessoas queriam dizer quando mencionavam
“andar pelo ar”, mas agora entendia. Fui direto para a sala do
conselho estudantil para dar uma atualização do caso à Princesa
Ariel. Estava na hora do almoço, então era quase certeza de que ela
estaria por lá.

Pensei em todo tipo de coisa enquanto caminhava. Eu sempre


quis fazer tantas coisas com o Rudy. Tipo… fazer compras juntos na
cidade, por exemplo. Mas, para isso, eu teria que estar vestido
como garoto. As pessoas poderiam direcionar alguns olhares
engraçados ao Rudy.
A-ainda assim, isso não importava, certo? Não enquanto nós nos
amássemos.

Então, mais uma vez… os garotos tinham a tendência de pensar


no amor de uma forma bem física, não é? Luke sempre dizia: “Se
vocês não dormirem juntos, então acabarão se separando.”

Mas Rudy não parecia tão interessado assim no meu corpo… O-


o que eu devia fazer a respeito disso?

✦✦✦✦✦✦✦

Quando entrei na sala do conselho estudantil, a Princesa Ariel


deu uma olhada no meu rosto e suspirou.

— Vejo que parece não ter funcionado.

— Huh? Uhm, Princesa Ariel…?

— No início me parecia um plano perfeito, mas, parando para


pensar… mesmo que houvesse o risco de você congelar até a
morte, esperar que ele rasgasse a roupa de um amigo era
bobagem.

Ela parecia por algum motivo ter tomado uma conclusão


precipitada. Essa parte na verdade tinha corrido muito bem…

— Está tudo bem, Sylphie — interrompeu Luke. — Basta nos


dizer exatamente o que aconteceu, mantenha o máximo de calma
possível.

— Uh, certo. Princesa Ariel, o plano que você elaborou funcionou


muito bem.
A Princesa Ariel ergueu uma sobrancelha, surpresa, mas
conseguiu manter a voz firme.

— É mesmo? Então devo dizer que você não parece lá tão feliz.

— Uhm, sim. Quanto a isso…

— Sinto muito. Você pode explicar isso mais tarde. Comece o


seu relatório, por favor.

— Ah, certo.

Tentando manter a calma, descrevi o passo a passo e o resultado


da nossa operação. As coisas correram exatamente como o
planejado, quase do começo ao fim. Nos abrigamos na caverna e
dissemos o que sentíamos um ao outro enquanto ficávamos perto
da fogueira. Parando para pensar, parecia algo saído de um sonho.
Eu poderia inclusive dizer que estava voltando a corar.

Entretanto, a Princesa Ariel me encarava cada vez mais confusa.


Ela devia estar se perguntando qual era o problema.

— Então, uh… Rudy ficou um pouco deprimido depois disso. E,


na verdade, disse que veio para a Universidade para encontrar uma
cura para a sua condição.

— Espera, o quê?

— Huh? Uh, você sabe. Ele estava procurando uma maneira de


curar a sua, uh, impotência.

— Entendo. Perdão. Fiquei um pouco assustada, isso é tudo.


A Princesa Ariel pressionou a mão contra a boca, havia uma
expressão de descrença em seu rosto. Eu podia dizer o que ela
estava pensando: Eu tinha escutado os boatos, mas nunca pensei
que poderiam ser verdadeiros. Por que alguém se matricularia na
Universidade de Magia por um motivo desses? Este é um lugar para
aprender magia, não um centro médico.

— Devo dizer que estou um pouco desapontada com este


Rudeus. Um homem precisa mostrar um bom desempenho quando
isso é exigido, não é? Achei que ele só era desatento, mas não
esperava que fosse constranger uma moça desse jeito.
Especialmente uma que foi corajosa o suficiente para dar o primeiro
passo.

As Palavras da Princesa Ariel foram ríspidas, mas ela


provavelmente estava só tentando manter a calma e o controle. Ela
sabia que eu ficaria com raiva; e assim que isso acontecesse,
poderia assumir um tom calmante e apologético e levar a conversa
adiante sem revelar a sua própria confusão. Era um truque que ela
usava com bastante frequência.

Mas, para a minha surpresa, Luke interveio para objetar antes


que eu pudesse dizer qualquer coisa.

— Princesa Ariel, acho que você está sendo muito injusta. Às


vezes, um homem simplesmente não consegue evitar essas coisas;
Rudeus não fez uma escolha consciente de rejeitar Sylphie. Na
verdade, acho que isso explica por que ele tem estado tão hesitante
até agora.

— L-Luke…?
— Sempre me perguntei por que ele parecia tão inseguro. Pobre
homem. Deve ter vindo aqui por puro desespero, sem nenhuma
ideia de onde buscar por ajuda…

Luke às vezes podia ser rude e até mesmo frívolo, mas quase
nunca respondia à Princesa Ariel. Às vezes dava alguns conselhos,
mas não era do tipo que rejeitava as opiniões de sua soberana tão
categoricamente assim. Eu, na verdade, não conseguia me lembrar
dele falando com ela com tanta firmeza assim em nenhum
momento.

A princesa pareceu um pouco surpresa.

— Peço perdão… Acho que fui longe demais.

— Está tudo bem, Princesa Ariel. Eu não esperaria que uma


mulher entendesse essas coisas. — Com um pequeno aceno de
cabeça, Luke se virou para mim. — Sylphie, você quer curar a
condição de Rudeus?

— Huh? Uhm, é claro que sim. — Eu mesma fiquei o tempo todo


preocupada com isso. Mas, pensando bem, Rudy estava
obviamente deprimido com a situação. Ele começou a falar comigo
de um jeito bem formal, e eu vi algo parecido com medo no fundo
dos seus olhos. Suas mãos tremiam, e não era de frio. — Rudy
levou o que aconteceu muito a sério. Se houver algo que eu possa
fazer para ajudar, farei.

— Mesmo que seja difícil?

— C-claro. Farei tudo o que for preciso. — Há muito tempo, Rudy


me resgatou de uma situação realmente deplorável. Se possível,
queria retribuir aquele favor na mesma moeda.

— Muito bem então. Espere aqui, sim? Preciso te entregar uma


coisa. Por favor, me dê licença por um momento, Princesa Ariel. —
Sem mais explicações, Luke saiu rapidamente da sala do conselho
estudantil.

A Princesa franziu um pouco a testa enquanto o observava partir.

— Sinto muito, Sylphie. Eu não deveria ter dito aquilo sobre


Rudeus.

— Está tudo bem, não estou chateada. Na verdade estou um


pouco surpresa por Luke ter discordado de você desse jeito.

— Ele não faz isso com muita frequência.

Além disso, eu não esperava que Luke defendesse Rudy. Eu


tinha a impressão de que ele não gostava muito dele, e não parecia
ser o tipo de pessoa que ficaria ao lado de outra só por causa da
situação.

— De qualquer forma, isso soa como um obstáculo bastante


sério.

— Sim. O que devo fazer, Princesa Ariel…?

— Bem, Luke parece ter algum tipo de plano em mente… mas eu


conheço algumas curas para a impotência, se precisar.

— Sério?

— De fato. É aquele tipo de coisa que todo membro da família


real aprende.
Isso fazia sentido. Quando uma princesa se casava com alguém,
ter filhos era muito importante para ela. Mesmo se o marido tivesse
algum problema parecido ao de Rudy, ainda precisariam encontrar
uma forma de fazer as coisas acontecerem.

— Aprendi isso quando era bem jovem e, infelizmente, não


prestei muita atenção. Mas ainda lembro de algumas coisas. Em
geral, deve começar as coisas deixando-o bêbado.

— Sério? Hmm… — Me peguei lembrando do que tinha visto no


outro dia que fui ao refeitório. Rudy, Zanoba e o Rei Badigadi
estavam bebendo juntos e estavam todos de muito bom humor. Eu
não tinha muita experiência com o álcool, mas sabia que isso
tornava mais fácil para as pessoas se comportarem com mais
ousadia do que o normal. Resumindo, isso colocava a pessoa em
um estado alterado… mas se a condição de Rudy já era anormal,
então isso não o tornaria “normal”?

A Princesa Ariel começou a listar vários métodos específicos


para seduzir um homem. Em vez de curar a impotência física, a
maioria das suas dicas parecia sobre despertar o interesse do alvo.
Ainda assim, não duvidei de que seriam eficazes. A família real de
Asura se certificava de que todos os seus membros aprendessem
muito bem todos os tipos de coisas.

— Depois disso, você diz que está com calor e desliza o vestido
pelo ombro…

— Isso funcionaria mesmo?

— Ah, imagino que sim. Afinal, você é extremamente fofa.


Quando o clima estiver bom, tudo o que precisa é de uma boa linha
de chegada…

Quando Luke voltou, já tínhamos preparado toda a base do


plano. Ele nos ouviu em silêncio por alguns segundos, depois
abruptamente nos interrompeu.

— Que tipo de idiota reclama do calor neste tempo frio? Olha,


essa abordagem está toda errada. Sylphie não tem curvas o
suficiente para tentar um homem com o seu corpo.

— Ah…

Fiquei sem palavras, e a Princesa Ariel lançou um olhar de


desaprovação para Luke.

— Você precisava ser tão direto assim, Luke? A pobre garota


está muito preocupada com isso.

— Princesa Ariel, os homens da família Notos Greyrat são


tradicionalmente atraídos por mulheres com seios grandes… Para
exemplificar, eu mesmo não sinto atração alguma por Sylphie.

Os Notos Greyrats adoravam garotas peitudas. Isso era


conhecimento comum entre qualquer um que se associava à
nobreza Asurana, assim como o amor anormal da família Boreas
pelo povo-fera.

— E-então você está dizendo que não vou conseguir seduzi-lo


com o meu corpo?

— Você pode tentar: Mas isso não vai funcionar.

Devo admitir, ouvir isso machucou um pouco. Os insultos de


Luke costumavam não incomodar, mas no momento eu não estava
muito confiante na minha atratividade.

— Entretanto… se você convencê-lo a tomar isso, terá uma


chance.

Luke me entregou um frasquinho que cabia perfeitamente na


palma da minha mão. Olhei para aquilo, confusa.

— Que coisa é essa, Luke?

— Um afrodisíaco poderoso que revigora e excita quem o bebe.

— Um afrodisíaco?!

Luke assentiu profundamente.

— Foi feito anos atrás, na Região de Fittoa, com pétalas da flor


Vatirus. O seu método de fabricação era conhecido apenas pelo
prefeito de Roa, que acabou monopolizando a venda. Após o
desaparecimento da Região de Fittoa, a produção toda foi
interrompida. Receio que ninguém mais saiba como fazer isso. Em
outras palavras, é uma coisa muito rara. O atual preço disso passa
das cem moedas de ouro por frasco.

Na época em que Luke comprou uma unidade dele, ela custava


cerca de quinze moedas de ouro Asurano. Na época comprou cinco,
e já tinha usado duas. O efeito era supostamente incrível.

— Pensei em guardar isso para os dias chuvosos e vender para


o caso de precisar urgentemente de dinheiro. Mas vou te dar,
Sylphie.

— O quê? Você vai me dar uma coisa tão valiosa assim?


— Isso mesmo.

Com um breve aceno de cabeça, Luke começou a listar as várias


coisas das quais eu precisava estar ciente. Uma vez que um homem
tomava isso, sua libido basicamente chegava ao ápice. Se eu não
conseguisse o acompanhar, então era melhor também tomar um
pouco.

Além disso, se nós dois usássemos, a nossa primeira vez podia


não ser a ocasião gentil e romântica que eu poderia ter em mente.

— Luke… muito obrigada.

— Não precisa disso, Sylphie. Você já salvou a minha vida em


várias ocasiões.

Nós tínhamos formado um tipo de amizade estranha ao longo


dos anos. Eu estava agora profundamente grata por isso.

Entretanto, havia uma outra pessoa na sala, e ela não gostava de


ser deixada de fora de nada.

— Vocês dois se dão tão bem, não é? Suponho que também


devo contribuir.

Sorrindo como uma santa, a Princesa Ariel me entregou duas


moedas de ouro Asurano. Podia até não parecer muito, mas era o
suficiente para comprar quase tudo o que eu quisesse na cidade.

— Mas, Princesa Ariel! Este é o seu dinheiro pessoal, não é?

— Isso mesmo. Tudo o que ganhei neste mês.


Desde que chegamos à Universidade de Magia, tínhamos nos
esforçado muito para garantir recursos financeiros e já tínhamos
boas reservas financeiras. Mas esses eram os nossos fundos para a
guerra, reservados para os nossos planos futuros. Nós
mantínhamos isso separado do dinheiro para gastos do dia-a-dia. A
Princesa Ariel estava bem ciente do tanto que ela e Luke
costumavam ser descuidados com seus gastos, então concordou
em colocar um acesso restrito aos nossos fundos.

— Agora que as coisas chegaram a este ponto, é o máximo que


posso fazer para ajudá-la.

— Você já fez muito, Princesa Ariel… Sinto muito por todos os


problemas.

— Heh. Tão benevolente como sempre, vossa Alteza.

Parando para pensar, nós três acabamos nos empolgando um


pouco. Estávamos todos muito orgulhosos de nós mesmos por
colocar a nossa amizade em primeiro lugar. Ainda assim, esse
episódio serviu para nos aproximar. Isso tem que servir para algo,
não é? Nós três nos unimos para enfrentar um inimigo em comum: a
disfunção erétil do meu novo namorado.

— Boa sorte por lá, Sylphie.

— Muito obrigada! Eu vou conseguir!

Energizada pela longa batalha pela frente, saí da sala do


conselho estudantil cheia de confiança. Estava indo direto para o
distrito comercial de Sharia. Até uma loja de bebidas, para ser mais
exata.
✦✦✦✦✦✦✦

A noite tinha caído e eu estava em um corredor, levando duas


garrafas de um licor caro na minha bolsa. Para ser bem honesta, eu
não sabia muita coisa sobre álcool. Para começar, nunca tinha
bebido. E não fazia ideia do que Rudy gostava. Eu, entretanto,
estava confiante de que coisas tão caras assim não poderiam ser
tão ruins.

E também coloquei um conjunto de roupas íntimas novinho em


folha. Estava usando o conjunto que a Princesa Ariel tinha escolhido
para mim há algum tempo. Parecia uma boa hora para dar uma
noite de folga ao meu Corselet.

Claro, eu também tinha um frasquinho no bolso do meu uniforme.

— Certo… — Tudo pronto. Eu ficaria bem.

Ainda assim, tive que tomar um minuto para respirar longa e


profundamente. Mamãe e Papai… me deem a sua bênção, por
favor. Esta noite vou me tornar uma mulher…

Depois que finalmente preparei os meus nervos, estendi a mão e


bati na porta à minha frente. Havia alguma chance de Rudy ainda
estar com Zanoba a essa hora da noite? Não, não, isso ia dar certo.
Ele disse que tiraria a noite para descansar.

— Sim…? Ah, Syl… Mestre Fitz. Entre.

Quando Rudy abriu a porta, pareceu surpreso ao se deparar


comigo. A seu convite, entrei no seu quarto. Também tomei a
liberdade de fechar e trancar a porta atrás de mim.
— Qual o problema? — perguntou Rudy com uma voz gentil.

Nós dois concordamos que seria melhor tirar a noite para se


recuperar da nossa viagem, mas aqui estava eu, mesmo assim.

— Uhm… Na verdade vim para passar a noite.

— Oh… C-certo! Bem, então por que não se senta?

Tive a impressão de que Rudy queria fazer um comentário sobre


isso, mas guardou só para si e apenas me ofereceu uma cadeira.
Sua expressão parecia realmente… um pouco desencorajada. Eu
não estava atrapalhando nada, estava? Isso iria funcionar, certo?

Me sentei sem pressa, tirei os óculos escuros e peguei as duas


garrafas de bebida da bolsa. As coloquei na mesa, ao lado de um
lanche que preparei – algumas nozes misturadas com um tempero
picante. Também peguei um pouco de carne defumada, para o caso
de Rudy não gostar de nada.

— O que é isso tudo?

— Bem, pensei que poderíamos… comemorar o nosso


reencontrou ou algo assim, sabe?

— Certo, claro… Sim, realmente deveríamos comemorar a


ocasião, hein? — Coçando a bochecha, Rudy também se sentou.

Nesse ponto, percebi que não tínhamos copos. Isso era meio
problemático, a menos que começássemos a tomar direto da
garrafa. Preciso voltar e pegar alguns?

— Não se preocupe, tenho alguns copos. Tenho algumas coisas,


sabe. — De alguma forma lendo a minha mente, Rudy se levantou
com um sorriso torto e pegou um par de copos em uma prateleira
que estava no quarto.

Eles eram cinzentos e tinham a superfície completamente lisa.


Será que eram feitos de algum tipo de rocha? Pareciam um pouco
pesados. Tirando o peso, pareciam algo que um nobre Asurano
gostaria de ter.

— Isso parece caro.

— Na verdade, eu mesmo que fiz, usando magia da Terra. Acho


que isso torna o preço deles inestimável.

— Sério mesmo? Uau, isso é incrível. — Mas fazia sentido. Ele


era realmente bom com esse tipo de coisa, não era?

Abri a primeira garrafa e derramei um pouco do líquido âmbar em


nossos copos. Rudy cerrou um pouco os olhos enquanto observava.

— Isso parece ser bem forte.

— Sim. Não sei muito sobre bebidas, mas peguei algumas bem
caras.

— Tem certeza de que isso é uma boa ideia?

— Hm? Ah, está tudo bem. Afinal, esta é uma ocasião especial.

Ele estava preocupado com o quanto eu gastei? Então teria que


guardar segredo de que foi a Princesa Ariel quem deu o dinheiro
para isso. Conhecendo Rudy, ele provavelmente sentiria que devia
algo a ela.
De qualquer forma, servi as bebidas e peguei os nossos lanches.
Tudo bem até aí. O afrodisíaco… deveria fazer a sua aparição
depois. Certo.

— Bem, então vamos fazer um brinde. Pelo reencontro de dois


velhos amigos de Buena Village!

— E para o nosso futuro juntos, Sylphie…

— V-viva!

N-nosso futuro juntos…? Sério, às vezes o Rudy do nada falava


umas coisas bem embaraçosas. Sentindo que estava corando de
novo, tomei um enorme gole do meu copo…

E na mesma hora me engasguei.

O que foi isso? Minha garganta estava pegando fogo!

— Você está bem? Acho que talvez devíamos ter diluído um


pouco.

— Diluído… um pouco…?

— Quando estão bebendo algo tão forte, as pessoas costumam


diluir um pouco para deixar mais fácil de beber.

Espera, sério? Ninguém se incomodou em me contar isso. Rudy


tinha um sorriso ligeiramente travesso no rosto, e isso me irritou um
pouco.

— Bem, como eu iria adivinhar? Nunca tentei beber esse tipo de


coisa antes.
— Ei, eu não estou rindo de você nem nada. Espera um pouco,
tá? — Rudy colocou a maior parte do conteúdo do meu copo no
dele, depois convocou um pouco de água quente e fumegante no
meu. — Vá em frente, pode tentar.

Um pouco relutante, tomei um gole hesitante. O cheiro


dolorosamente forte que permaneceu na parte de trás do meu nariz
foi lavado, substituído por um aroma mais suave e agradável. Isso
era na verdade muito bom.

— Aliás… esse truque com água quente foi a razão para eu


começar a aprender magia com você, não foi?

— Hmm. Foi?

— O que, se esqueceu? Um daqueles valentões jogou água em


mim enquanto eu estava passando, e depois você lavou tudo.

Isso realmente despertou algumas memórias. Mesmo quando


criança, Rudy podia lançar magia combinada não verbal, sem nem
mesmo pensar duas vezes. Eu ainda não conseguia fazer igual ele;
precisava usar feitiços diferentes e sucessivos para produzir um
efeito parecido.

— Ah, claro. Nossa, isso desperta algumas memórias…

— Aham.

E assim começamos a lembrar dos bons e velhos tempos.


Minhas memórias de Buena Village estavam começando a ficar um
pouco confusas, mas quando começamos a conversar sobre o
assunto, lembrei de muitas coisas.
Jamais poderíamos voltar àquele período das nossas vidas. Por
um lado, Buena Village se foi para sempre. Aquela colina em que
brincávamos ainda estava lá, mas até a árvore tinha sumido. Mas
tinham sido bons tempos. Passava os meus dias brincando e
praticando magia sem me preocupar com o mundo, e o progresso
que eu fazia sempre me deixava muito feliz. Quando eu conseguia
melhorar as minhas habilidades ou aprender algo novo, ainda ficava
animada, mas, atualmente, costumava pensar em como poderia
usar o feitiço em uma batalha.

— Realmente sinto falta daqueles dias… — Quanto mais


conversávamos, mais tonta eu me sentia. Era essa a sensação de
ficar bêbada? Hmm. — Ah! Espera. Antes que eu esqueça…

Deixando a minha nostalgia de lado, peguei o frasquinho no


bolso da camisa e lentamente o coloquei sobre a mesa.

Rudy inclinou a cabeça interrogativamente.

— O que é isso?

— Uhm, bem… é um tipo especial de remédio. Para o seu


problema.

Eu estava realmente insegura a respeito da melhor maneira de


fazer Rudy tomar o afrodisíaco. Poderia ter misturado isso na sua
bebida sem que ele percebesse, mas me parecia um truque muito
desagradável para pregar em alguém que me importava. Então,
mais uma vez, assumir e admitir que estava com um afrodisíaco
poderia fazer com que ele interpretasse algumas coisas mal. Eu
também não gostava muito dessa ideia. Então decidi chamar de
“remédio”. Isso não era bem uma mentira.
— Sério…? Hmm. Sinto que já vi isso em algum lugar.

— Sim, é sério. Uhm, eu esperava que você provasse, Rudy.

Ele revelou um sorriso meio triste. Era óbvio que não estava
sendo otimista. Provavelmente tinha tentado todo tipo de suposta
cura, mas nenhuma tinha funcionado. Ainda assim, tomou um gole
do frasco sem falar nada, engolindo dois terços do conteúdo de uma
só vez. Fiquei um pouco surpresa com a rapidez que ele engoliu
todo aquele líquido rosado com aparência perigosa só por eu ter
sugerido. E se fosse veneno ou algo assim?

Oh. Eu tinha esquecido de dizer quanto devia tomar.

— Não tem problemas tomar isso com álcool, né? — perguntou


Rudy.

— Uhm, disseram que era melhor se misturasse com alguma


bebida. A-além disso, uh… pelo que ouvi falar, isso tem um efeito
bem rápido.

Já comecei a tirar a minha capa conforme falava isso. Isso me


deixou vestindo nada além da minha camisa e sutiã na parte de
cima do corpo. Sinceramente, senti até um pouco de frio. De acordo
com Luke, eu não precisava me preocupar em mostrar o meu
ombro, desde que ele pudesse ver o meu pescoço e meus seios
com clareza.

— Se começar a funcionar, bem… você não precisa se conter,


tá?

Rudy contraiu as sobrancelhas diante disso. Seu olhar estava


fixo na parte superior do meu corpo. Quando ele me olhava de um
jeito tão claro era meio constrangedor. Mas acho que eu estava… o
seduzindo, não é? Esperançosamente não estava parecendo uma
garota vergonhosa… Vai ficar tudo bem, certo? Ele não se
importaria, não é?

Senti que eu estava ficando mais nervosa do que ele. Para ser
sincera, eu esperava que o álcool me desse um pouco mais de
coragem do que isso.

Talvez precisasse me comprometer um pouco mais.

E-então tá… Com um pequeno aceno de cabeça, peguei o


frasquinho de afrodisíaco.

— O quê? Você também vai tomar um pouco, Sylphie? —


perguntou Rudy, compreensivelmente confuso.

Em vez de responder, drenei todo o líquido rosa que restou lá


dentro. Era espesso e ligeiramente amargo, mas misturei com um
pouco de álcool e mandei tudo para dentro.

Quase na mesma hora, pude sentir um calor estranho


aumentando na boca do meu estômago. Tentando me distrair,
peguei a tigela de nozes. Depois de comer três punhados, tomei
outro gole de licor. Agora meu primeiro copo estava vazio.

— Você não deve beber muito rápido, Sylphie. Pode acabar


passando mal.

— É, eu sei. Só estou um pouco nervosa, é só isso.

— Ah, é mesmo. Acho que é a sua primeira vez bebendo…


Rudy tomou um enorme gole da sua própria bebida enquanto
conversávamos. Ele não tinha colocado água no seu copo, então
não estava bebendo igual eu. Depois de alguns instantes, pegou a
garrafa e me serviu um pouco mais, diluindo o conteúdo em água
quente de novo.

Por algum tempo após isso, comemos e bebemos em silêncio. A


carne defumada acabou estando salgada demais e não muito boa,
mas, por algum motivo, eu não conseguia parar de dar algumas
mordidinhas. Depois de um tempo, todo o meu corpo começou a
ficar quente. A área logo acima das minhas coxas, em particular,
estava praticamente latejando. As coisas com certeza pareciam
estar funcionando.

Mas estava fazendo alguma coisa por Rudy?

Ele parecia o mesmo de sempre. Tão bonito quanto sempre.


Talvez, na verdade, mais bonito do que nunca.

Meus olhos continuaram buscando por partes dele nas quais eu


normalmente não prestava muita atenção. Seu pescoço, sua boca…
Eu estava começando a ficar meio travessa. Era só a minha
imaginação ou o rosto de Rudy estava ficando mais vermelho?

Nossos olhos se encontraram. Ele estava olhando diretamente


para mim. Era um olhar bem intenso. Dessa vez ele ficou algum
tempo sem desviar os olhos dos meus. Eu podia ouvi-lo respirando
com dificuldade.

Espera, não. Essa era eu, não era? Que embaraçoso. Mas não
era culpa exatamente minha, era? Eu tinha tomado aquele
afrodisíaco e minha cabeça estava girando por causa da bebida.
Isso significava que a culpa não era minha.

Isso aí. A culpa não era minha.

Eu estava com tanto calor.

Soltei o botão de cima da minha camisa, expondo ainda mais


pele. No começo achei que estava meio frio, mas agora eu estava
queimando. Rudy agora estava olhando para os meus seios, mas
não senti vergonha nenhuma.

Tomei outro gole do meu copo. O líquido quente desceu até o


meu estômago, espalhando ainda mais calor por todo o meu corpo.
Eu tinha acabado o meu segundo copo. Peguei a garrafa… só para
ser impedida.

— Ah… — Rudy estendeu a mão e agarrou a minha. Seu aperto


era forte o suficiente para que eu soubesse que ele não planejava
me soltar. Não que eu tivesse qualquer intenção de fugir dele, é
claro. — Sylphie…

Olhando para mim com os olhos injetados de sangue, ele se


levantou. Rudy deu a volta na mesa para ficar ao meu lado, ainda
segurando a minha mão. E então, um pouco hesitante, me puxou
para cima dele. Eu o deixei me puxar para fora da minha cadeira,
sem fazer nenhum esforço para resistir.

— Você, uh… não consegue se conter, hein?

Rudy assentiu silenciosamente. Ele deslizou a mão em volta da


minha cintura e acariciou a minha bunda, depois, puxou meu corpo
com força contra o dele. Algo muito duro estava pressionando
contra mim.

Deu certo. Ah, nossa. Deu certo.

O momento finalmente chegou. Era hora de fazer a última coisa


que eu e a Princesa Ariel tínhamos planejado.

— E-então tá. Vá em frente e me devore, Rudy…

No instante em que essas palavras deixaram a minha boca, ele


me empurrou para a cama. E então…
Rudeus

Abri os olhos e, enquanto estava na parte de cima, olhei para a


parte de baixo do beliche. Eu estava no meu quarto. Me lembrava
muito bem de todos os eventos da noite anterior.

Não muito tempo depois de começarmos a beber, de repente


fiquei tão excitado que não conseguia nem me controlar.
Praticamente me joguei em cima da Sylphie. Aquele “remédio” que
ela trouxe foi incrivelmente eficaz. Nunca imaginei que uma coisa
dessas existia, mas não conseguia afastar a sensação de que já
tinha visto a coisa em algum outro lugar.

Ah, certo… Era aquele afrodisíaco que eu tinha visto um


comerciante vendendo na cidade de Roa, não era?

Foi a primeira vez que experimentei o produto, mas era


incrivelmente potente. Meu homenzinho saiu da reclusão em frenesi,
pronto para mostrar toda a sua fúria. Quando a loucura finalmente
passou, eu estava tão cansado que parecia poder derreter e formar
uma poça. Estava claro que havia uma razão para que aquelas
coisas custassem dez moedas de ouro naquela época.

Por mais impressionado que eu estivesse, entretanto, também


me encontrei lutando para conter uma onda de medo e ansiedade.
Agi feito um louco na noite passada, sim. Mas me lembrava de tudo
o que fiz. Para ser honesto, eu tinha sido muito duro com Sylphie.
Ela fez de tudo para me acompanhar, mas estava claro que teve um
ou dois momentos de desconforto no começo. Afinal, era a primeira
vez dela.
E não reclamou nenhuma vez, nem pediu para ir mais devagar.
Era óbvio que ela estava se esforçando, mas continuava dizendo
estou bem, eu te amo, isso é muito bom, e começou a repetir as
mesmas coisas. E o jeito como ela sussurrava ao meu ouvido me
deixava ainda mais excitado. Eu não tinha pegado nada leve com
ela.

E foi só a segunda vez em minha longa vida que dormi com


alguém. Eu não estava nem um pouco confiante de que havia feito
um bom trabalho. Na verdade, estava convencido de que me
comportara ainda pior do que na primeira vez. Ainda pior do que me
comportei naquela noite.

E na manhã seguinte… Eris não estava deitada ao meu lado.


Lentamente, olhei para o lado. Meus olhos encontraram os de outra
pessoa.

— Bom dia, Rudy.

Sylphie estava lá. Sorrindo timidamente para mim.

Estendi a mão lentamente e toquei seu cabelo para confirmar


que ela não era só uma alucinação. Sylphie fechou os olhos e me
deixou acariciar sua cabeça com um olhar de prazer em seu rosto.
Seu cabelo era curto, mas também maravilhosamente sedoso.

Deixei a minha mão continuar se movendo – primeiro, descendo


por seu pescoço e seus ombros finos. Toda vez que eu os tocava
pareciam tão delicados.

Mas não parei por aí, é claro. Levei uma mão até os seus seios e
apertei.
— Hyaah! O q… Rudy! — Sylphie se encolheu de surpresa e me
lançou um olhar de protesto. Entretanto, não se afastou de mim.
Seu rosto ficou vermelho, mas ela me deixou continuar.

O peito dela era bem modesto. Não havia muito o que apertar.
Ainda assim, definitivamente havia uma suavidade bem distinta
envolvida pela minha palma. Por um momento, vi a imagem
fantasmagórica de um velho me levantando o polegar e gritando
algumas sábias palavras “Todos os seios são iguais!” para mim.

Obrigado, Velho Sábio Eremita. Quanto tempo sem nos vermos.

Muito bem, Sylphie estava deitada ao meu lado. Sem dúvidas


quanto a isso. E graças à suavidade do seu corpo, meu monólito
estava mais uma vez subindo em direção aos céus. Imponente e
viril, elevava-se acima de seus arredores, como devia ter sempre
feito.

Olhando admirado para baixo, eu estava convencido de algo


muito importante.

— Estou curado.

Abracei Sylphie. E a abracei com força. E comecei a chorar…


mas só um pouco.

— Uhm, Rudy…? O que você acha? Meu corpo é… bom, certo?

Talvez um pouco confusa com meu drama repentino, Sylphie


hesitantemente pediu uma explicação. Mas se ela tinha alguma
lembrança da noite passada, tinha que saber que essa pergunta não
precisava ser respondida.
— Obrigado. — Em vez de dizer algo que ela já sabia, apenas
expressei a minha gratidão. Era a única coisa que eu podia fazer
naquele momento. Minha mente estava cheia de felicidade e
vergonha. Tive medo de que, se tentasse falar, diria algo
extremamente idiota. Em vez disso, apenas a abracei com força,
querendo expressar a minha gratidão.

Minha luta finalmente chegou ao fim.


História Paralela:
Sylphiette (Parte 00)
Naquela noite, sonhei com o passado – com a chegada de Rudy
à Universidade.

Era o meu terceiro ano na Universidade de Magia de Ranoa.


Linia e Pursena se acalmaram após a derrota, e a Princesa Ariel
assegurou a posição de presidente do conselho estudantil. Esses
sucessos atraíram vários novos apoiadores para o nosso lado;
estava correndo tudo relativamente bem. A essa altura, havíamos
recrutado o maior número de alunos e professores influentes na
escola que era possível. Decidimos começar a atrair poderosos
aliados em potencial para a Universidade de Magia, e então
poderíamos tentar garantir a sua cooperação. E enquanto
trabalhávamos nisso, nos deparamos com algo totalmente
inesperado.

Nossa pesquisa nos levou a uma pessoa especificamente


conhecida como “Rudeus Atoleiro”. Na mesma hora eu soube que
só podia ser o Rudy. O Atoleiro era descrito como um jovem mago
que rapidamente alcançou o rank A na Guilda dos Aventureiros. Ele
só estava na região há alguns anos, mas as notícias sobre suas
façanhas já haviam se espalhado por todas as Nações Mágicas.
Sua especialidade era a magia de Terra. Pelos rumores era difícil
julgar quão poderoso realmente era, mas a maioria dizia que o
aventureiro poderia criar um pântano sem dizer qualquer palavra.

O feitiço não verbal era o detalhe que me convenceu de que só


podia ser ele. E, parando para pensar, Rudy também usou um feitiço
envolvendo lama quando nos conhecemos. E ele também poderia
usar magia de Água de nível Santo, então as pessoas tendiam a
esperar que ele confiasse só nisso. Mas ele preferia usar truques
inteligentes como se arremessar com ondas de choque ou convocar
pântanos para desacelerar os oponentes.

Contei à Princesa Ariel que o Rudeus Atoleiro era, quase que


com certeza, o garoto que me ensinou magia – meu velho amigo
que estava há muitos anos desaparecido.

— Bem, se ele é o verdadeiro, então com certeza seria bom se


ficasse do nosso lado…

Na época, a Princesa Ariel estava evidentemente cética em


relação ao Rudy. Isso era compreensível. Os rumores a seu respeito
pareciam bem duvidosos. Eram mais ou menos assim:

Rudeus Greyrat nasceu em Buena Village, localizada na Região


de Fittoa do Reino Asura. Com apenas três anos de idade, começou
a estudar com a maga da Água, Roxy Migurdia (embora naquela
época ela fosse apenas de nível Santo). Aos cinco anos, tornou-se
um mago da Água de nível Santo em pleno direito. Aos sete,
assumiu o cargo de tutor de Eris Boreas Greyrat, a filha do prefeito
da Cidadela de Roa; nos anos seguintes, transformou essa criança
selvagem e incontrolável em uma jovem respeitável. Depois disso,
desapareceu no Incidente de Deslocamento.

No passado, eu provavelmente nem levantaria a sobrancelha


diante dessas informações. Mas agora, depois do tempo que passei
morando no Palácio Prata e estudando na Universidade de Magia…
Eu tinha que admitir, parecia bizarro. Até mesmo fictício.
Claro, eu sabia que Rudy realmente havia estudado com Roxy e
que a respeitava muito. Eu nunca tinha conhecido ela, mas sabia
que havia passado algum tempo em Buena Village. Na verdade, a
varinha que eu carregava era uma que ela deu ao Rudy. A parte
sobre ele se tornar um tutor enquanto tinha sete anos também fazia
sentido; isso só podia ser de quando ele foi enviado por seus pais
para fora da aldeia.

— Confie em mim, Princesa Ariel, esta informação é precisa. É


definitivamente ele.

— Talvez. Mas devo dizer, com toda a honestidade, que esses


rumores são bem difíceis de se acreditar.

A Princesa Ariel e Luke não foram convencidos pelas minhas


afirmações. Acreditaram que eu não estava mentindo para eles,
mas também não acreditaram na história toda. Não poderia culpá-
los. Eu conhecia o Rudy pessoalmente, e isso tudo parecia loucura
até mesmo para mim.

— Em qualquer caso, um mago tão notável iria mesmo nos


emprestar a sua ajuda? Ainda mais um com laços com os Boreas
Greyrats?

Eu ainda não estava familiarizada com a teia emaranhada de


alianças e rivalidades que definia as famílias nobres de Asura.
Passei um ano inteiro na corte, e ainda havia muito a aprender. Mas
eu sabia muito sobre os vários ramos dos Greyrats. A família Boreas
era leal ao primeiro príncipe. Isso os tornava nossos inimigos. E se
Rudy trabalhava para eles, existia uma boa chance de que também
fosse nosso inimigo.
Dito isso, parecia óbvio que ele já havia cortado as suas relações
com essa família há algum tempo. Caso contrário, não faria muito
sentido que estivesse vagando pelos Territórios Nortenhos como um
aventureiro.

— Tenho certeza que se eu pedir ele vai ajudar…

Minha voz não estava particularmente confiante. Eu não


conseguia convencer nem a mim mesma de que isso era verdade.

Luke bufou, entretido.

— Com um peito tão plano, você não vai conseguir conquistar


nenhum homem dos Notos.

Cobri o meu peito com o braço e lancei um olhar zangado a ele.


Luke era sempre assim. Ele nunca perdia a chance de zombar de
mim e do meu peito plano. Segundo Luke, mulheres sem “seios
adequados” não eram nem mulheres, o que significava que eu era a
definição de não atraente. Não tenho certeza do que ele queria que
eu fizesse sobre isso. Eu tinha sangue élfico nas minhas veias, e
elfos simplesmente não eram muito voluptuosos.

Para tentar parecer justo, no final ele costumava suavizar o


golpe:

— Mas acho que é por isso que somos amigos.

Era bom saber que ele me considerava em termos amigáveis.


Ainda assim, os constantes insultos sobre a minha aparência não
estavam fazendo maravilhas à minha autoestima. Eu sabia que a
minha aparência não era tão notável se comparada com a da
Princesa Ariel, mas essa era uma barreira alta demais para superar.
— Não foi isso que eu quis dizer, Luke!

— Bem, então o que você quis dizer? Certamente não está


pensando em revelar a sua verdadeira identidade a ele.

— Huh? Ah… é mesmo. — Eu devia ser o Fitz Silencioso. Não


poderia sair por aí acabando com o meu disfarce… e agora?

— Ainda assim, fico muito feliz por você Sylphie — disse a


Princesa Ariel com um sorriso — Encontrar alguém que está
procurando por todo esse tempo deve ser maravilhoso.

Sério, a princesa era uma pessoa muito gentil. Às vezes


conseguia ser bem severa e passava muito tempo planejando todos
os tipos de tramas por baixo dos panos, mas lá no fundo tinha um
bom coração. Eu já sabia disso. Mesmo assim, não esperava pelo
que viria a seguir.

— Vou abrir uma exceção especial. Você pode revelar a sua


identidade a este Rudeus.

— Huh? — O que? Ela está disposta a desmascarar o Fitz


Silencioso?

— Mas, Princesa Ariel, o nosso plano todo pode desmoronar…

Eu estava consciente da importância do papel que


desempenhava para a nossa estratégia geral. Fitz era a
personificação viva do poder da Princesa Ariel. Ele era um homem
de origens misteriosas e notáveis habilidades mágicas que ficava
em silêncio ao lado dela, obedecendo todas as suas ordens. Isso
aumentava muito o mistério ao redor dela, e fazia parecer muito
mais intimidante.
Nos últimos anos, percebi que era poderoso o suficiente para
derrotar um mago ou espadachim comum com bastante facilidade.
Suponho que Rudy também tenha treinado muito. Eu ainda não
estava no nível Rei ou Imperador, muito menos à altura dos sete
Grandes Poderes, mas provavelmente poderia me defender diante
de um Santo da Espada. Eu não era rival para os guerreiros de nível
Rei que alguns dos outros candidatos ao trono tinham ao dispor,
mas era, no momento, a arma mais poderosa no arsenal da facção
da Princesa Ariel. Muitas pessoas na Universidade decidiram apoiá-
la porque ela conquistou a lealdade de alguém tão forte quanto
“Fitz”. Se o boato de que eu era na verdade só uma garota comum
de uma aldeia do interior vazasse, essas pessoas poderiam muito
bem abandonar o nosso lado.

Minhas habilidades, de qualquer forma, ainda eram reais, claro…


mas as pessoas nem sempre pensam nessas coisas de forma lá
muito lógica.

— Você já fez muito por mim, Sylphie. Devo a você, no mínimo,


um reencontro emocionante com o seu amigo.

— Mas…

— Se isso de alguma forma resultar em todos os nossos planos


indo por terra, estou disposta a aceitar o resultado — interrompeu
Ariel, sua voz firme e decisiva. — E, em qualquer caso, se vamos
convencer este jovem a ficar do nosso lado, quem seria melhor para
recrutá-lo do que uma amiga de infância?

— Agradeço, Princesa Ariel… — Hesitei por um momento, mas


acabei simplesmente expressando a minha gratidão. Era óbvio que
a princesa também visava algum lucro pessoal, mas isso não me
incomodou no momento.

O que Rudy pensaria quando me visse da forma atual, toda


crescida? Eu já estava ansiosa por isso.

Nosso plano de atraí-lo para a Universidade correu muito bem.


Passamos nossas informações sobre ele para a administração,
sugerindo que recrutá-lo poderia ser uma boa ideia. O Vice-Diretor
Jenius cuidou do resto sem nem pestanejar.

Alguns meses depois, o dia que eu tanto esperava finalmente


chegou. Eu estava em uma aula de habilidades práticas na sala de
treinamento, e então o vice-diretor entrou com alguém logo atrás
dele. Quando vi quem era, quase gritei de alegria.

É o Rudy! É o Rudy mesmo!

Não podia haver qualquer dúvida a respeito disso. Seu rosto


parecia um pouco mais sombrio do que antes, mas com certeza era
o Rudy. Não havia como se enganar.

Ah, uau! Ele está tão lindo!

Ainda podia ver os vestígios do garoto que eu já conhecia, mas


ele tinha crescido muito. Seus movimentos eram suaves e também
estáveis – era óbvio que tinha treinado muito. O robe que usava
estava um pouco esfarrapado, mas isso só acrescentava uma
sensação de perigo. Seria possível que ele passou por muitas
batalhas usando aquilo. E carregava um cajado como se fosse
extensão do seu corpo.
Enquanto caminhava para a área de prática, Rudy olhou ao seu
redor, estudando tudo com muito cuidado. Era algo que fazia
sempre, desde que éramos crianças. Naquela época eu pensei que
íamos nos casar, mas agora ele talvez esteja fora do meu alcance…
Quanto mais eu olhava para ele, mais quente ficava o meu corpo.

Tomada por um impulso repentino, dei um passo brusco à frente,


pronta para correr gritando o seu nome.

— Ru…

Mas assim que comecei a falar, congelei no local. Uma mulher


muito bonita entrou logo atrás de Rudy.

Espera… aquela é a esposa do Rudy?

Ela parecia ser uma elfa. Algo nela meio que me lembrava o meu
pai. Seu rosto era elegante e digno; parecia com uma rainha, ou
talvez uma nobre abastada. E estava se prendendo ao Rudy. Ele
parecia um pouco irritado com o comportamento dela, mas não
reclamou ou a afastou.

Huh…? Huh?

Enquanto eu olhava, atordoada e desnorteada, perdi a minha


chance de correr para cumprimentá-lo.

Poucos minutos depois, fui chamada para ajudar a administrar o


seu “exame de admissão”. Acho que queria verificar se ele era
mesmo capaz de lançar feitiços não verbais.

Nesse ponto, consegui me acalmar um pouco. Não era estranho


que Rudy tivesse uma linda mulher em sua vida, dado o quão bonito
ficou. Era isso o que eu disse a mim mesma. Não importava se ele
já estava casado. Realmente não importava. Afinal, nós dois éramos
apenas amigos. Por que isso seria um problema?

Eu teria que parabenizá-lo. Bem, não de imediato, é claro. Em


primeiro lugar, poderíamos comemorar por estarmos ambos vivos.
Mantendo esses pensamentos em mente, me preparei para a minha
primeira conversa com Rudy em muitos anos.

— Muito prazer em conhecer. Meu nome é Rudeus Greyrat. —


Eu congelei no lugar.

Um prazer… me conhecer? Huh? Uh… o quê? Sem chances.


Espera aí. Ele… esqueceu de mim?

— Desde que corra tudo bem, estarei no primeiro ano a partir do


próximo semestre. Se você achar que estou falhando em algum
ponto, espero que me ajude e oriente enquanto me encoraja.

— Ah… huh?

Depois de alguns momentos totalmente perplexos, por fim


lembrei que estava usando um enorme par de óculos escuro, tinha
cabelos agora brancos e estava vestida como um garoto. Além
disso tudo, passaram oito anos desde que nós dois nos separamos.
Com o passar do tempo fiquei muito mais alta. Seria tolice esperar
que me reconhecesse na mesma hora.

Dentro da minha cabeça, fui bem longe mesmo. Eu o reconheci,


então presumi que ele me reconheceria. Não pensei direito nisso, e
isso é tudo. Tudo que eu precisava fazer era tirar meus óculos
escuros e falar quem eu realmente era. A Princesa Ariel já havia
permitido. Eu não poderia fazer isso em público, mas depois poderia
chamá-lo para algum lugar mais privado.

Mas enquanto pensava nisso, outro pensamento correu pela


minha cabeça. Um bem horrível.

O Rudy não lembra mais de mim, não é…?

Assim que me permiti pensar isso, meu destino foi selado. Meus
óculos escuros não iam a lugar algum. E se eu revelasse o meu
rosto, dissesse o meu nome e ele ainda dissesse “Sinto muito, quem
é você mesmo?”

Só pensar nisso já era doloroso demais.

— Ah… hm? As, s-sim! — gaguejei, sem jeito. Todas as coisas


que planejei contar a Rudy caíram, espalhadas ao vento. Eu não
sabia mais nem o que dizer. E antes que eu tivesse a chance de
organizar os meus pensamentos, o exame começou.

Perdi o duelo. Rudy me esmagou.

Ele começou comprometendo a minha magia com um feitiço que


eu nunca tinha visto. Enquanto eu ficava indefesa, ele disparou um
Canhão de Pedra incrivelmente poderoso que passou roçando a
minha bochecha. Se quisesse, ele poderia ter me acertado, é claro.
Ele pegou leve comigo.

Todo o progresso que fiz como maga parecia completamente


irrelevante. Rudy já estava muito, muito à minha frente.

— C-como você fez aquilo? — Foi a única coisa que consegui


perguntar a ele.
— É chamado de Atrapalhar Magia. Não sabe fazer isso?

Nunca nem tinha ouvido falar. Devia ser algum feitiço secreto e
obscuro, transmitido entre os membros de alguma tribo específica
ou algo assim. Eu duvidava que alguém mais na Universidade
reconheceria o nome.

Rudy é incrível…

Eu sabia disso desde o início, é claro. Mas ele realmente


enfatizava isso. Não pude deixar de me sentir um pouco intimidada.
Trabalhei muito, por anos, para chegar onde estava, mas ele de
alguma forma evoluiu muito mais do que eu.

Enquanto eu olhava para Rudy, ele lentamente se curvou diante


de mim.

— Obrigado, senhor! Por perder propositalmente para que eu


pudesse me sair bem na frente de todos os outros!

— Hein?

E então fiquei ainda mais confusa do que antes. Rudy não estava
fazendo sentido algum. Eu não tive chance contra ele, e ele devia
saber disso. Mas do que é que estava falando? Totalmente
perplexa, apertei a sua mão assim que a ofereceu para mim. Não
parecia a mão de um mago – estava mais para a de um
espadachim. Havia calos onde bolhas se formaram e se romperam.
Rudy já devia ter passado mais tempo com uma espada na mão do
que até mesmo o Luke. E não era nem um espadachim.

Mesmo em meu estado de confusão, senti meu coração bater


mais forte do que antes. O calor de Rudy estava se espalhando pela
minha mão e me deixou irracionalmente feliz.

Mas ele continuou falando coisas que não faziam muito sentido.

— Eu com certeza te agradecerei apropriadamente mais tarde.

Mas do que ele estava falando? Eu realmente não entendi.


Sentindo que estava começando a corar, só balancei a cabeça.

Assim que ele saiu, mais uma vez lembrei que não fui
reconhecida. Tive que me esconder um pouco para chorar.

Um mês depois, vi o Rudy na cerimônia de entrada. Ele parecia


ainda mais afiado do que antes, agora que usava o nosso uniforme
escolar. Quando nossos corações se encontraram, meu coração
pulou uma batida.

Bem, ele se matriculou como um aluno especial. Provavelmente


não havia muito que pudesse aprender, então imaginei que não nos
encontraríamos com muita frequência. Depois do exame de entrada,
discuti o assunto com os outros e decidimos que, se Rudy não se
lembrasse de mim, não deveríamos abordá-lo de maneira muito
agressiva. A Princesa Ariel e Luke disseram todo tipo de coisa para
justificar a opinião que tinham, mas na maior parte do tempo só
pareciam chateados por Rudy ter me esquecido. Isso me animou
um pouco. Eu poderia dizer que se importavam comigo como amiga.

No final das contas, a princesa disse que deixaria o assunto por


minha conta. Parecia que não o recrutaríamos para a nossa causa
no mesmo instante, mas poderíamos sempre travar uma campanha
mais tranquila para o conquistar, assim como fizemos com muitos
outros. Ela acrescentou que “Fitz”, como um feiticeiro que dominava
a magia não verbal, era o mais adequado para o trabalho de
recrutamento. Parando para pensar nisso, acho que ela já sabia que
eu sentia algo pelo Rudy.

Mas como devo começar a falar com ele…?

Após a cerimônia, passei o resto do dia pensando nisso


enquanto assistia às aulas com a Princesa Ariel. Esperava-se que a
princesa fosse um exemplo para todos os alunos, então ela tinha
que manter as suas notas excelentes. Estar no topo poderia ser
difícil.

E, na Universidade, por algum motivo ensinavam magia


combinada de uma maneira muito diferente. Rudy tinha
supostamente aprendido com a sua mestra Roxy, que também
estudou nesta escola, então eu esperava que os métodos de ensino
fossem semelhantes. Mas senti que estavam tornando tudo muito
mais complicado. Ainda assim, eu ainda podia seguir os
ensinamentos de Rudy, então geralmente acabava aprendendo as
coisas em algum momento. A Princesa Ariel e Luke, por outro lado,
estavam sofrendo. Fiz o possível para ajudar, mas quando tentei
explicar as coisas do mesmo jeito que Rudy, isso muitas vezes os
deixava ainda mais confusos.

— Fitz, você poderia me trazer algo que possa ajudar na próxima


aula?

Quando as minhas explicações não eram o bastante, a Princesa


Ariel costumava pedir para passar pela biblioteca e procurar material
de referência útil. A biblioteca local tinha o seu próprio prédio, e não
havia muito tempo entre o intervalo das aulas. Mesmo assim, já
fazia três anos que eu a visitava, então tinha uma boa ideia de onde
encontrar os livros de qualquer tópico em particular. Só precisei de
um momento para imaginar onde encontraria o material de que ela
precisava.

Assim que cheguei lá, me movi rapidamente pelos corredores,


pegando um livro atrás do outro. Nesse ritmo, estaria de volta em
um instante.

Mas então vi um certo alguém parado em frente a uma estante


próxima e deixei um suspirinho de surpresa escapar.

— Ah!

Rudy também estava na biblioteca. Estive pensando em


encontrar uma desculpa para ir vê-lo nos próximos dias, mas o
encontrei por pura coincidência. O-o que eu falo?!

Conforme eu começava a entrar em pânico, Rudy olhou em


minha direção e me notou. E um momento depois, ele abaixou a
cabeça profundamente.

— Peço desculpas pelo outro dia. Minhas ações descuidadas


fizeram você perder um pouco de prestígio. Eu planejava te dar uma
caixa de doces, mas, infelizmente, como um aluno novo, tenho me
ocupado com muitas coisas…

— Guh?! N-não, está tudo bem, por favor, não se curve.

Rudy parecia ter a impressão de que eu estava chateada com


ele. Isso foi uma surpresa… mas explicava por que ele inventou
aquele absurdo depois do exame. Pensando bem, ele meio que me
envergonhou em público, não foi? Sim.
Isso talvez tivesse algo a ver com o motivo pelo qual a Princesa
Ariel também parecia tão chateada… Eu tinha assumido que não
tinha chance contra Rudy, embora não esperasse que ele me
vencesse de forma tão avassaladora. Mas a Princesa Ariel e Luke
provavelmente estavam um pouco abatidos com a minha derrota.

Entretanto, isso não era tão importante no momento. Eu teria que


pensar nisso depois.

— Rudy… um, quero dizer, Rudeus, certo? O que está fazendo


aqui?

— Só um pouco de pesquisa.

— Sobre o quê?

— O Incidente de Deslocamento.

Essas palavras me paralisaram por um momento. Havia alguma


chance de ele estar em algo parecido com o que eu estava?

— O Incidente de Deslocamento? Por quê?

— Eu morava na Região de Fittoa do Reino Asura e fui


teletransportado para o Continente Demônio após o incidente.

— O Continente Demônio?!

Mais uma vez, fiquei surpresa demais para encontrar palavras.


Eu já tinha ouvido falar do Continente Demônio, é claro. Era um
lugar supostamente árido, onde cada monstro era de rank D ou
acima. Alguns espadachins mais dedicados às vezes viajavam para
lá só para treinar, mas a maioria nunca voltava. As pessoas que
acabaram parando lá por causa do Incidente de Deslocamento não
teriam qualquer chance de sobrevivência. Mas Rudy retornou
inteiro.

— Sim. Demorei três anos para voltar para casa. Toda a minha
família já foi encontrada, mas ainda há uma pessoa que está
perdida. Esta parece ser uma boa oportunidade para fazer algumas
pesquisas.

— É por isso que você veio para esta escola?

— Isso mesmo.

Isso era incrível. Sinceramente incrível.

— Entendo. Afinal, você é incrível mesmo.

Ele passou três longos anos voltando do Continente Demônio. E


então, em vez de dar um grande suspiro de alívio, foi em busca de
outras pessoas, o que já era impressionante. Mas quando a
Universidade o procurou, aceitou o convite como uma chance de
aprender mais sobre o Incidente. Mas quanta determinação. Se eu
estivesse no lugar dele, teria desmaiado de exaustão no mesmo
momento que chegasse em casa e passaria dois anos inteiros em
um campo de refugiados.

— E o que, seu eu puder perguntar, você está fazendo aqui?

A pergunta me tirou do meu devaneio. Eu já tinha esquecido dos


livros de referência que deveria estar reunindo para a Princesa Ariel.
Eu queria continuar conversando com o Rudy, sério, mas não podia
deixá-la esperando. A aula iria começar em breve.
— Ah, sim. Estou pegando alguns documentos. Preciso ir. Nos
vemos por aí, Rudeus.

— Sim, claro, até mais.

Quando me virei para verificar o material que reuni, de repente


pensei em algo. Esta biblioteca era grande demais e tinha uma
tonelada de livros, mas aqueles com informações relevantes sobre o
Incidente de Deslocamento eram bem poucos. Rudy podia até ser
brilhante, mas rastrear as coisas que estava procurando devia exigir
algum tempo.

— Ah, claro. Você deveria ler um livro escrito por Animus sobre
teletransporte, chamado Uma Consideração Exploratória sobre
Teletransportação em Labirintos. É de não ficção criativa, mas é fácil
de ler.

Para começar, recomendei um livro que me ajudou a entender


um pouco sobre teletransporte. Era simples o suficiente para que
até mesmo uma criança tivesse uma noção básica das coisas. E
também mencionava alguns detalhes específicos que muitas vezes
eram tirados de livros mais avançados no assunto.

Sentindo-me um pouco satisfeita comigo mesma, deixei a


biblioteca.

Naquela noite, fui lavar algumas roupas íntimas. As roupas


íntimas da Princesa Ariel, especificamente.

Havia um motivo para esse trabalho recair sobre mim. Primeiro


de tudo, a roupa íntima da princesa era feita de um tecido
extremamente caro. E o fato de serem usadas por uma princesa
Asurana aumentava consideravelmente o valor. Em outras palavras,
poderia conseguir muito dinheiro ao vendê-las no mercado negro.
Bom, a verdade é que aconteceu um incidente não muito depois da
nossa matrícula. Algumas das suas calcinhas foram roubadas
depois que as enviamos para serem lavadas. Das cinco que foram
enviadas, quatro sumiram; três foram posteriormente vendidas, e o
aluno responsável ficou com uma para seus próprios fins
particulares. Algumas das garotas mais inocentes do nosso
dormitório gritaram de desgosto quando esse incidente foi à tona.
Mas, para a Princesa Ariel – que cresceu na corte real de Asura – e
eu, que servi como a sua assistente por um bom tempo, não foi tão
chocante. Naquele lugar existiam muitas pessoas que costumavam
fazer coisas muito mais depravadas com regularidade.

Isso não significava que a situação não era desagradável. Desde


então, lavar as roupas da princesa se tornou uma das minhas
funções oficiais. Ela hesitou a respeito de empurrar esse trabalho
para mim, mas eu poderia lavar as minhas próprias roupas ao
mesmo tempo, então não era um inconveniente tão grande.

A propósito, para disfarçar o meu gênero, passei a usar


exatamente o mesmo tipo de calcinha da princesa – só que de outra
cor.

Terminei de lavar as roupas do dia e me dirigi à varanda para


colocar as roupas de baixo para secar. O resto podia esperar, mas
queríamos tudo pronto para o dia seguinte. Mas assim que eu
estava começando a prender tudo no varal…

— Huh?
Por acaso olhei para a estrada e vi algo que me fez piscar de
surpresa. Havia um estudante do sexo masculino caminhando pela
calçada, embora o sol já tivesse se posto.

As regras do dormitório eram bem rígidas a respeito disso: os


homens não podiam andar por esse caminho depois de escurecer.
Ninguém queria ter as calcinhas roubadas e, embora ainda não
estivesse naquela época do ano, também era necessário levar a
temporada de acasalamento em conta. O que aquele garoto estava
pensando, aparecendo a esta hora? Talvez estivesse apenas
pegando um atalho no retorno ao seu dormitório. Mas, mesmo se
fosse esse o caso, ele provavelmente seria cercado pelo “comitê de
autodefesa” do primeiro andar, não iria demorar muito.

Será que devo avisá-lo? A primeira pessoa que avistasse um


garoto a esta hora faria um escândalo para que todo mundo
ouvisse. Se eu pudesse evitar, não deveria falar em voz alta, mas…

E-espera aí, estou vendo coisas?

Quando o garoto se aproximou, percebi que tratava-se do Rudy.


O que ele está fazendo aqui?!

Diante da surpresa, minhas mãos escorregaram. O par de


calcinhas que eu estava segurando caiu… direto na direção do
Rudy. No instante que passaram pelo seu rosto, ele pegou com um
rápido movimento de mão.

Ele é tão rápido…!

Ele nunca baixa a guarda, não é? A velocidade daquela reação


me entregou algo sobre o que foi preciso para atravessar o
Continente Demônio com vida.

Depois de alguns segundos, ele pareceu perceber que o que


estava segurando era uma roupa íntima. Ele olhou para cima, me
viu e ergueu a calcinha como se dissesse “você deixou isso cair”.
Foi um gesto lento e casual, muito diferente de seu anterior
movimento por reflexo.

Ah, claro! Ele acabou de se matricular! Ele não sabe!

Rudy era um aluno especial, e todo aluno especial tinha um


quarto só para si. Ouvi que eles também ficavam isentos de todos
os tipos de deveres típicos dos dormitórios… incluindo a
participação em reuniões nas quais explicávamos as regras locais.

Eu precisava avisar o quanto antes. Se ele ficasse do lado de


fora do nosso dormitório enquanto segurava uma calcinha, alguém
definitivamente iria entender tudo errado.

— Gyaaaah! Ladrão de calcinhas!

Quase na mesma hora os meus medos se tornaram realidade.


Uma garota gritou, o comitê de autodefesa que morava no primeiro
andar saiu correndo e Rudy foi rapidamente cercado. Bom, mas é o
Rudy… Ele deve conseguir se livrar disso.

Em vez de intervir de imediato, sucumbi a algum pensamento


otimista.

Eu estava um tanto interessada em ver como Rudy iria lidar com


a situação. Será que ele simplesmente derrotaria todas, igual
derrotou aqueles valentões de Buena Village? Ou será que
inventaria uma desculpa inteligente para se safar da situação?
Também existia a possibilidade de “assustá-las com um pouco de
magia”. E o clássico “sair correndo”.

Observei e esperei ansiosa… mas Rudy não fez muita coisa.


Uma garota chamada Goliade o agarrou pelo braço e ele apenas
olhou para ela com tristeza. Vê-lo assim me lembrou de quando eu
sofria bullying em Buena Village. De repente, senti um frio na boca
do estômago.

O que diabos eu estou fazendo?!

Amaldiçoando-me em silêncio, pulei da varanda e corri em


direção ao grupo.

— Eh, o que foi? Está planejando resistir? Quanta coragem para


um ladrão de calcinhas! Acha mesmo que pode lutar contra tantas
pessoas?

Estava escuro, então as outras não pareciam perceber, mas


Rudy fixou as pernas ao chão usando magia de Terra. Mas eu não
entendi o motivo para isso. Será que não existia nenhum? Digo, era
o Rudy. Era difícil imaginar que as suas pernas podiam estar
tremendo…

Mas mesmo quando esse pensamento passou pela minha


cabeça, lembrei de algo da minha infância. Quando Rudy perseguiu
Somal e os outros valentões, suas pernas tremiam. E então, um
pouco depois… após descobrir que eu era uma garota, quando as
coisas ficaram estranhas por algum tempo… ele tremeu um pouco
quando disse: “Sinto que você não gosta mais de mim, Sylphie.”
Sim. Ele estava assustado porque pensou que eu o odiava. Igual
qualquer garoto normal.

Ah…

Naquele momento percebi uma coisa. Algo que já devia ter


percebido. E eu estava agindo como se Rudy fosse especial só por
ele ser talentoso. Sempre senti que ele era anos mais velho do que
eu. Mas no final das contas tínhamos a mesma idade, não é? Me
peguei lembrando de uma pergunta que certa vez fiz ao meu pai, e
a promessa que fiz em resposta.

“Sylphie, você vai ficar sentada e deixá-lo te proteger para


sempre?”

Não. Eu ia ajudar o Rudy. Seria forte o suficiente para ficar ao


seu lado. Eu iria apoiá-lo, não importa o custo. Foi o que prometi
para mim mesma. Essa era a razão para ter trabalhado tão duro por
esse tempo todo, certo? Mas ele agora estava com problemas e eu
não tinha feito nada. Pior ainda, a bagunça era toda por minha
culpa!

— Espera! Não façam nada com ele!

Abri caminho até o meio do grupo e montei uma defesa vigorosa


para Rudy. Podia até ser a primeira vez que eu falava na escola,
exceto pelas minhas conversas com Ariel e Luke. Era desse tanto
que eu me apegava ao papel de Fitz Silencioso.

Entretanto, a garota segurando o braço de Rudy – Goliade – se


provou muito teimosa. Ela insistia que ele era um criminoso, embora
não tivesse feito nada de errado.
— Hm, é surpreendente que você tenha ido tão longe para
defender alguém. O que você diz deve ser verdade. Ainda assim,
permanece o fato de que este garoto violou as regras do dormitório.
Faremos dele um exemplo ao puni-lo… o quê?!

No instante em que ouvi a palavra arremetendo a uma punição,


algo estalou dentro de mim. Eu não ia deixar que usassem alguém
de quem eu gostava como exemplo só porque ele não teve sorte.
Peguei a minha varinha, apontei para Goliade e comecei a canalizar
mana.

— Não acabei de dizer que ele não fez nada de errado? Chega.
Agora solte a mão dele.

— S-senhor… Fitz?

— Ou vocês gostariam de ser enviadas ao consultório médico?

Quando no Reino Asura, aprendi a fazer esse tipo de ameaça


com o Luke. Ele sempre disse que a habilidade de blefar era
importante, então trabalhei bem duro nela. Durante a nossa jornada
de Asura a Ranoa, tentei fazer isso algumas vezes quando nos
deparamos com grupos de bandidos. Luke sempre me provocava,
dizendo que minha voz era infantil demais para fazer qualquer coisa.

Desta vez, porém, eu parecia ter conseguido o efeito desejado.

— Tch… certo, já entendi. — Goliade finalmente soltou o braço


de Rudy e saiu, resmungando alto. Com a partida da líder da
gangue, as outras garotas também se dispersaram.

— Uff… aquela garota. Se ela ao menos escutasse.


Eu já sabia como Goliade era, e ela não era uma pessoa má nem
nada assim. Mas o povo-fera tendia a levar as regras muito a sério e
aplicá-las a qualquer custo. Não eram flexíveis nessas questões.

Mas nada disso importava. Precisava me desculpar com Rudy.


Afinal, foi tudo basicamente culpa minha.

— Desculpa. Se eu não tivesse deixado essa roupa de baixo cair,


isso nunca teria acontecido.

— Você não fez nada de errado. Inclusive me ajudou. — A voz


de Rudy soou de alguma forma estranha. A rigidez usual de seu tom
havia desaparecido. Olhei para o rosto dele e percebi que ele estava
me olhando de um jeito diferente. E então todas as peças se
juntaram.

Ele ainda está desconfiando de mim, não está…?

Parando para pensar, desde o início a sua atitude pareceu um


pouco estranha. Para começar, se curvou na minha frente. Mas
finalmente entendi. Isso fazia sentido, é claro. Eu agora era o Fitz
Silencioso, não a sua velha amiga. Por que não desconfiaria de
mim?

Mas eu parecia ter ganho ao menos um pouco de confiança. Isso


me deixa meio feliz.

Se eu não tivesse estragado tudo, nada disso teria acontecido,


mas parecia que nós dois acabamos ficando um pouco mais
próximos.

Aproveitei a oportunidade para explicar as regras do dormitório


ao Rudy, avisando-o sobre a estrada ficar fora dos limites após o pôr
do sol. Conforme eu suspeitava, parecia que ninguém havia lhe
contado isso. Ele balançou a cabeça enquanto eu falava.

— Fico realmente grato, Mestre Fitz. — E, com essas palavras,


voltou a curvar a cabeça.

Vê-lo agindo com tanta gratidão parecia um pouco estranho. Na


época em que eu era intimidada, nossas posições eram
completamente invertidas. Eu já o tinha agradecido com tanta
educação? Achei algo a respeito disso estranhamente engraçado.

— Ahaha, é meio estranho ouvir você me agradecer.

— Eh? Por que seria?

Quase disse: Bem, porque na primeira vez que nos


encontramos… No último momento, porém, hesitei. Eu queria
mesmo revelar a minha identidade? Ao pensar nisso, a ansiedade
dentro de mim aumentou. Se ele dissesse “Sinto muito, mas não
lembro de você”, isso já machucaria demais.

De qualquer forma, me convenci de que isso não importava. E


daí se ele não lembrava de mim? Poderíamos começar do zero,
como um quadro em branco. Eu poderia deixar o passado de lado e
conhecer quem ele era agora. Isso me parecia ser bom o suficiente.

E então, tudo que eu disse foi “Isso é segredo”. Rudy apenas


piscou, confuso.

Depois disso voltei ao dormitório. Claro, primeiro pedi para Rudy


devolver a calcinha. Ele a pegou no ar, e não estava suja nem nada,
é claro, mas Rudy era um homem. Fiquei um pouco desconfortável
em fazer a Princesa Ariel usar roupas íntimas que ele segurou nas
mãos.

— Acho que preciso lavar de novo, huh…?

Segurando a calcinha sob a luz do corredor, congelei no lugar.


Afinal, não era da Princesa Ariel. Era minha. Rudy ficou segurando
por… um bom tempo, não foi?

Demorou um tempinho até eu conseguir parar de me contorcer


de vergonha.

Levou pelo menos mais um mês até começarmos a estudar o


Incidente de Deslocamento juntos.

✦✦✦✦✦✦✦

Quando acordei do meu sonho, encontrei Rudy ao meu lado.

— Wargh…

Não pude deixar de soltar um gritinho. Isso, felizmente, não o


acordou. Ele estava profundamente adormecido e possuía uma
expressão de paz no rosto. Eu já tinha o visto assim em Buena
Village… mas foi a primeira vez que tive a chance de vê-lo, adulto,
dormindo assim.

Um adulto, huh…?

A palavra me fez pensar no que havíamos feito na noite anterior.


Quando olhei para o cobertor, descobri que estávamos sem roupa
nenhuma. A agradável ebriez da sonolência deu lugar ao
constrangimento, e de repente fiquei consciente da dor que existia
entre as minhas pernas.
Nós realmente fizemos…

Era algo com que sonhei por anos, isso para não incluir os
detalhes e cenários. Mas agora era realidade. Quanto mais eu me
lembrava da noite anterior, mais queria apertar o travesseiro contra
o meu peito e rolar na cama dando chutinhos, com uma mistura de
vergonha e êxtase.

Gah…

Enquanto eu cobria o rosto com as duas mãos, acidentalmente


bati com o cotovelo no ombro de Rudy. Por nenhuma razão em
particular, pressionei minha bochecha contra aquele ombro. Rudy,
de longe, parecia magro, mas na verdade tinha um corpo
surpreendentemente musculoso. Ele era agora grande o suficiente
para me envolver toda com os seus braços.

Agh! Pare!

Eu realmente precisava colocar esses pensamentos sob controle.


Meu rosto iria colocar fogo em algo.

Me afastei do Rudy. Mas enquanto eu me movia, ele franziu a


testa.

— Mm… — Ele estava fazendo careta enquanto dormia, parecia


até que estava sentindo alguma dor. Quando segurei a sua mão
com a minha, porém, a sua expressão se suavizou. Nesse ponto,
ele finalmente abriu os olhos. E depois de olhar para o teto por
alguns segundos, lentamente se virou para mim.

— Bom dia, Rudy. — Quando falei com ele, uma clara expressão
de alívio se espalhou por seu rosto. Cerca de dois segundos depois,
ele estendeu a mão para mim e agarrou os meus seios. — Hyaah! O
q… Rudy!

Não dei um soco nele nem nada assim. Principalmente porque


meio que gostei dessa sensação.

Depois de me apalpar um pouco, Rudy me abraçou com força e


murmurou “Estou curado” com uma voz cheia de sentimentos. Eu
não entendi o que ele quis dizer na mesma hora. Mas havia também
uma outra coisa em minha mente.

— Uhm, Rudy…? O que você acha? Meu corpo é… bom, certo?


— Fiz minha pergunta, toda tímida, meu coração disparando de
ansiedade. Senti que agora estava provavelmente tudo bem. Mas
ainda queria ouvir a sua resposta.

— Obrigado. — Isso foi tudo que o Rudy disse.

Na caverna eu não entendi por que ele me agradeceu, mas


dessa vez entendi. Desta vez, fui capaz de ajudá-lo. Em alguns
aspectos eu talvez não fosse igual a ele. Mas ainda conseguia
apoiá-lo.

De nada.

O sonho que persegui por tantos anos por fim se realizou.

A partir de então, Rudy e eu éramos um time.


Capítulo Extra:
A Ira do Cão Louco
O lugar conhecido apenas como Santuário da Espada ficava no
extremo norte, em uma região dura e implacável, coberta de neve
durante o ano todo. Era o lugar onde o primeiro Deus da Espada
escolheu estabelecer a sua escola, e onde passou seus últimos
anos treinando os seus alunos. Nos tempos modernos, era o destino
preferido de muitos espadachins, homens e mulheres, e um lugar de
onde saíam muitos novos talentos. Qualquer pessoa que realmente
desejasse estudar o caminho da espada era encorajada a fazer ao
menos uma peregrinação a tal destino.

Um enorme número de jovens mestres em formação se reunia


continuamente no local. Muitos deles eram jovens que revelaram os
seus talentos com a lâmina ainda na adolescência. No momento,
existiam três verdadeiros prodígios hospedados no Santuário da
Espada, cujos talentos superavam todos os seus outros iguais.

Em primeiro lugar, estava a filha do atual Deus da Espada – Nina


Falion. Ela tinha dezoito anos, mas, mesmo aos dezesseis, era
chamada de um talento incomparável. Ela já havia alcançado o rank
de Santa da Espada. A maioria das pessoas acreditava que ela com
certeza se tornaria uma Rei da Espada antes dos vinte, e aos vinte
e cinco, uma Imperador da Espada. Nenhum outro aluno do
Santuário era tão estimado.

Em segundo lugar, havia o primo de Nina, Gino Britz. Gino era o


segundo filho da família Britz, um ramo do clã Falion, que liderava a
Escola do Deus da Espada. No momento, ele tinha quatorze anos.
Ganhou seu título de Santo da Espada na tenra idade de doze anos,
e se tornou o aluno mais jovem a realizar tal feito. Enquanto ainda
estava um passo atrás da sua prima, não havia como dizer qual dos
dois acabaria se revelando superior.

E, finalmente, havia Eris Greyrat.

Eris era uma jovem de dezessete anos que causava terror nos
corações de todos que encontrava – um cachorro louco conhecido
por ferir cruelmente qualquer um que a irritasse. Ela tinha chegado
ao lugar há dois anos, acompanhada por sua professora, a Rei da
Espada Ghislaine.

Essa garota era, em todos os aspectos, absolutamente inflexível.


Ela, todo santo dia, se submetia a uma rotina de treinamento brutal,
que desafiava a morte, torturando o próprio corpo sem qualquer
piedade. Sua chegada ao Santuário da Espada foi memorável. Isso
é tão verdade que continuou sendo um tópico de discussão bem
popular, mesmo após anos do acontecido.

Aproximadamente Dois Anos Atrás

Quando entraram no Salão Efêmero do Santuário da Espada,


indo à audiência com o Deus da Espada, Eris seguiu os passos de
Ghislaine. O salão estava cheio de alunos de alto nível do Estilo
Deus da Espada, todos Santos da Espada ou até acima. Nina e
Gino estavam entre eles. Ignorando todos que a cercavam, Eris não
abaixou a cabeça enquanto se aproximava do Deus da Espada –
tampouco se ajoelhou.

— Não tenho interesse em um peso leve feito você!


E as primeiras palavras que ela disse a Gall Falion, conhecido
por ser o mais forte espadachim vivo, foram impensavelmente
rudes.

— O quê?! Como você ousa insultar o mestre!

— De joelhos, garota! Você não conhece os nossos princípios?

— O que você está ensinando a esta desmiolada, Senhorita


Ghislaine?!

Os Santos da Espada começaram a se mover, seus rostos


contorcidos de tanta raiva. Mas então o Deus da Espada disse
“Sentem”, e ficaram todos em silêncio. Gall Falion iria matar aquele
vira-lata insolente. Estavam todos acreditando nisso. Ninguém
jamais havia falado com ele de forma tão arrogante e partido do
lugar com vida. Até mesmo Ghislaine, que era famosa pela sua
insolência, estava olhando para Eris com uma expressão de
choque. Suas orelhas e cauda estavam eretas.

Mas, por alguma razão, o Deus da Espada estava simplesmente


sorrindo.

Só ele entendia o que a pequena besta à sua frente estava


procurando neste lugar. Só ele entendia por que ela insultaria um
homem que acabara de conhecer. Isso era por que ela estava
tentando provocá-lo.

E então, um sorriso apareceu em seu rosto ao falar com ela.

— Aah, eu gosto desse olhar em seus olhos, garota. Diga-me…


quem é que você quer matar?
Eris respondeu na mesma hora, decidida:

— O Deus Dragão. O Deus Dragão Orsted!

Todos no salão reconheceram as palavras Deus Dragão. Mas


nenhum deles havia, jamais, escutado o nome Orsted – com uma, e
não mais do que isso, exceção.

— Haaahahahaha! — Batendo nos joelhos, o Deus da Espada riu


sem parar — Bem, cacete. Comparado com Orsted, acho que sou
um peso leve mesmo! Você quer matar aquele velho bastardo, hein?
E eu aqui pensando que era o único!

Os outros espadachins presentes assistiram ao espetáculo


bizarro com a respiração presa. O Deus Espada estava rindo. Ele
havia sido insultado, provocado por uma garotinha, e estava rindo.
Isso era incompreensível.

Mas o Deus da Espada entendeu algo que eles não entenderam.


Esta garota queria matar o Deus Dragão Orsted. Isso significava
que queria se tornar no mínimo a pessoa mais forte do mundo.

— Mas, sabe… — De repente, sua risada parou. Por um


momento, o silêncio caiu sobre o Salão Efêmero. — Falar é fácil,
garota. Você consegue fazer isso?

— Conseguirei — respondeu Eris de uma só vez. Não havia


nenhum indício de hesitação ou dúvida em sua voz ou em seus
olhos.

Os cantos da boca do Deus da Espada se curvaram para cima.

— Bom. Então vejamos a sua espada. Gino, dance com ela.


— Hein?! S-sim, senhor! — Gino Britz pôs-se de pé ao chamado
do tio, com o coração batendo forte. A garota não era muito mais
velha do que ele, mas, de alguma forma, fez seu tio rir com as suas
piadas insolentes. Ele agora tinha a chance de humilhá-la.

— Esse garoto é meu aluno mais jovem — disse o Deus Espada.


— Você é um pouco mais velha do que ele, e ele ainda é um
molenga, mas não é nada ruim com uma espada.

Sem dizer qualquer palavra, outros dois Santos da Espada


jogaram espadas de madeira para Gino e Eris.

— Muito bem. Começaremos em…

— Raaaaah!

No instante em que pegou a sua espada, Eris golpeou Gino com


violência. Pego totalmente desprevenido, ele não teve tempo para
se defender. A espada de madeira atingiu seu pulso direito e a
espada caiu das suas mãos. Antes que ele pudesse entender
qualquer coisa, ou até se render, Eris o derrubou com um segundo
golpe. A absoluta violência do seu avanço foi tanta que Gino sentiu
que havia sido atacado com uma espada de verdade. Ele perdeu a
consciência na mesma hora.

— O qu…?!

A maioria dos presentes no Salão Efêmero ficou chocada demais


até mesmo para falar. Isso era um absurdo. Inimaginável. Um duelo
só deveria começar quando ambos os combatentes estivessem se
encarando bem no centro do salão. Gino não tinha nem olhado na
direção de Eris. Os Santos da Espada consideraram seu ataque
repentino um ato de covardia sem igual. Nina estava entre eles, é
claro. Ficou enraivecida ao ver o seu primo e colega abatido por um
ataque tão furtivo e cruel.

Havia quatro presentes, entretanto, que viam a situação de uma


forma diferente: um Rei da Espada, dois Imperadores da Espada e o
próprio Deus da Espada.

— Ah, sim. Viu o que eu quero dizer? O garoto é um molenga,


não é?

— Pois é.

Eris balançou a cabeça com desdém, deixando seu cabelo curto


balançar para frente e para trás. Mas seus olhos observavam os
movimentos de todos os outros presentes com cuidado. A garota
estava pronta e esperando pelo ataque de qualquer um. Estava
totalmente ciente do seu entorno, e seu corpo estava tenso,
preparado para se mover a qualquer momento.

O Deus da Espada não condenou as suas ações. Simplesmente


chamou o seu aluno caído de “molenga”. Se alguém abaixava a
guarda enquanto segurava uma espada na mão, não poderia culpar
ninguém além de si mesmo pelas consequências. Só um tolo iria
desconsiderar a possibilidade de um ataque repentino. Esta era a
mensagem não citada.

— Certo. Você é a próxima, Nina. Desta vez, comecem quando


estiverem no centro do salão. Não há nada de errado com ataques
furtivos, garota, mas eu gostaria de ver como você lida com alguém
que já se preparou.
Enquanto o Deus Espada falava, Nina se levantou e um dos
Santos da Espada jogou uma espada de madeira para ela. Quando
a pegou, olhou de volta para o homem que a havia jogado. A
espada era estranhamente pesada. Possuía um cerne de metal.

O Santo da Espada que jogou a arma acenou com a cabeça,


quase imperceptivelmente. Mate essa forasteira atrevida.

Tremendo um pouco, Nina acenou de volta.

Ela era uma Santa da Espada de pleno direito. Já tinha tirado


outras vidas. Usar uma espada de madeira com o cerne de metal
era covardia, talvez, mas a garota foi a primeira a violar as regras
locais. Dada a humilhação que Gino acabara de sofrer, ela merecia
esse destino.

As duas ficaram algum tempo se encarando no centro do salão e


assumiram as suas posições.

— Comecem!

Ao sinal de um Santo da Espada próximo, Nina balançou a sua


lâmina. Ela praticou as formas do estilo Deus da Espada por
dezenas de milhares de vezes. Sua execução era perfeita. Iria
derrubar aquela garota ruiva e atrevida com o mesmo estilo que ela
ousou insultar de forma tão descarada. Sua raiva e determinação a
tornaram ainda mais rápida do que de costume.

As espadas se encontraram.

Com um estalo seco, a espada de madeira de Eris foi reduzida a


pedaços.
A vitória de Nina estava próxima. Tudo o que precisava fazer era
acertar um golpe cruel na cabeça da garota enquanto ela ficava
estupefata.

Mas assim que começou a se deleitar com a sua vitória, um


punho acertou o seu rosto.

E depois foi um soco no queixo. E quando começou a cambalear


para trás, levou um chute que a fez voar para o chão. A garota de
repente estava em cima dela. Antes mesmo de Nina entender o que
estava acontecendo, seus braços foram presos sob as pernas de
Eris. Olhando para cima, ela viu um demônio com sede de sangue,
cujos braços eram brandidos em sua direção.

— P-pare! Pare! Já chega!

No momento em que os Santos da Espada finalizaram a luta,


Nina já havia levado pelo menos uma dúzia de socos na cara. Seu
nariz estava sangrando sem parar, vários dos seus dentes tinham
quebrado e ela estava completamente inconsciente. Uma poça de
um líquido quente espalhou-se no chão, bem na parte inferior do
seu corpo.

Eris se levantou sem pressa e pegou a espada de madeira


suspeitosamente pesada de Nina.

— Hmph. — Bufando, chutou a sua inimiga inconsciente para


onde Gino estava deitado. — Você tem alguém aqui que não seja
um molenga?

— Como… Como você ousa! — Desta vez, os Santos da Espada


perderam a paciência. Gritos de “Covarde!” chegaram de todo o
salão. Aqueles classificados como Rei da Espada e acima,
entretanto, friamente desprezaram seus alunos furiosos. Eles
compreenderam quem é que estava correto. Eris estava, mais uma
vez, justificada. Um verdadeiro duelo não termina quando uma
espada é quebrada. Termina quando o espadachim está quebrado.

— Desculpe garota. Acho que te subestimei um pouco. Vou eu


mesmo brincar com você.

Mas quando o próprio Deus da Espada se levantou, os dois


Imperadores da Espada no salão olharam para ele com surpresa em
seus rostos.

— Com certeza não há necessidade de você lidar com isso


pessoalmente, Mestre.

— Ghislaine poderia… Ah, mas suponho que a garota seja sua


aluna. Então eu deveria?

Ignorando essas palavras, o Deus da Espada pegou a sua arma.


Sua lâmina era real.

Ao ver isso, Eris deu um pontapé no chão, pulando para trás,


para onde, havia deixado a sua própria espada. Ela agarrou a
parceira que a acompanhou por toda a viagem e rapidamente a tirou
de sua bainha.

— Não fique muito nervosa, garota. Vou te dar uma vantagem…


Ah, ei. Bela espada essa que você tem aí. Não é de Julian?

— Eu não sei. Ganhei de um membro da tribo Migurd.

— Ah, certo. Bem… esta aqui também é de Julian, na verdade.


O Deus da Espada deliberadamente desembainhou a sua arma.
Sua lâmina brilhou com uma luz dourada misteriosa. Esta era uma
das Sete Lâminas do Deus da Espada. Era também uma das 48
espadas mágicas criada por Julian Harisco, um artesão lendário do
Reino Demônio, feita com ossos do Rei Dragão Kajakut. Era
conhecida como Corta-Vento.

O Deus da Espada a segurou em sua mão, relaxado, deixando


pender para baixo. Os Santos da Espada assistiam com a
respiração presa. Gal Falion quase nunca empunhava uma espada
nua, exceto em seus duelos de simulação com os Imperadores da
Espada.

Depois de um momento, ele casualmente murmurou três


palavras:

— Certo, vamos lá!

Quase na mesma hora, Eris foi enviada voando pelo ar. Seu
corpo bateu nas portas de entrada do Salão Efêmero e continuou
voando, caindo em uma enorme pilha de neve lá do lado de fora.

O Deus Espada ficou onde ela estava antes, perfeitamente


imóvel, sua espada toda estendida. Nenhum dos presentes viu o
seu movimento.

— Esplêndido!

— Surpreendente!

— Esplêndido, Mestre!
Os Santos da Espada ao seu redor elogiaram a sua habilidade
fervorosamente. Este não era o poder da espada. Foi a sua própria
aura de batalha esmagadora que fez Eris sair voando. Todos
acreditavam que a intrusa descarada devia estar morta.

— Ugh… guh…!

Mas então ouviram gemidos do lado de fora do salão e também


os sinais de algo debilmente se movendo na neve. Ela tinha de
alguma forma sobrevivido a um ataque do Deus da Espada? Não,
não era isso. Ele só pegou leve com ela. Mas, claro, não havia
necessidade de Gall Falion levar aquela vira-latas a sério. Agora
simplesmente a baniriam do Santuário e a atirariam na neve.

Porém, as próximas palavras do Deus da Espada traíram todas


as expectativas.

— Ghislaine, cuide dos ferimentos de Eris. A partir deste


momento, ela é uma Santa da Espada. A partir de amanhã irei
treiná-la.

Os sorrisos desapareceram dos rostos dos Santos da Espada.


Isso significava que a garota se tornaria uma estudante pessoal do
Deus da Espada. Não aparecera nenhum estudante tão honrado
desde a própria Ghislaine.

— Mas que absurdo! Santo da Espada é um título especial,


concedido apenas àqueles que dominam a técnica Espada de Luz!
Aquela garota não é nada mais do que uma selvagem viciosa…

Um homem levantou a voz em objeção, apenas para ficar em


silêncio quando o Deus da Espada virou a lâmina em sua direção.
— Ela derrubou duas crianças que sabem a Espada de Luz. Para
mim isso é bom o bastante.

— Mas Mestre…

— Olha, você não consegue ser um Deus da Espada


memorizando uma coisa ou outra, certo? Sou um cara especial, mas
não há nada de especial no meu título. Por que o seu deveria ser
diferente?

— Minhas desculpas, Mestre Falion… — O Santo da Espada


ficou em silêncio. Ele percebeu que estava falando por puro ciúme.
Todos aqueles na sua posição sabiam que tais emoções só serviam
para diminuir a velocidade das suas lâminas.

No entanto, isso foi um mal-entendido da parte deles. O estilo de


combate do Deus da Espada era alimentado por emoções e desejos
crus. Quando usado da forma correta, até mesmo a mais horrível
das motivações poderia tornar a sua espada mais rápida e mortal.

Mas é claro, Gall Falion não tinha intenção de revelar essas


verdades cruciais para cada aluno que vagasse por seus salões.
Aqueles que precisavam ouvir essas coisas não lucrariam em nada
com esse conhecimento.

E, assim, de uma forma bastante memorável, Eris alcançou o


rank de Santo da Espada.

Dias Atuais

Nina, desde o início, odiava Eris. Compreensível, talvez,


considerando que a garota a espancou tanto que ela se mijou na
frente de todos os seus colegas estudantes. Ela foi envergonhada.
Humilhada.

Eris não era nada além de um cão selvagem vagando pelas ruas.
Quando sua espada não estava à altura da tarefa, ela atacava com
os punhos, feito uma criança birrenta. Tal comportamento era
indigno de qualquer aluno de seu estilo, que dirá então de um Santo
da Espada. Essa era a verdadeira opinião de Nina a respeito do
assunto, e ela a compartilhava livremente com quem quisesse ouvir.

Por quase dois anos, mal tinha conversado com Eris. Na


verdade, havia trabalhado com Gino para garantir que nenhum dos
alunos mais jovens lhe desse algum tempo livre.

Entretanto, Eris passava a maior parte de seu tempo em um


treino obstinado com a Rei da Espada Ghislaine. As duas
compartilhavam até mesmo o quarto. Ela não tinha nenhuma
conexão com Nina ou os outros, e não precisava conversar com
eles. E com certeza não fazia nenhum esforço para mudar isso. As
únicas palavras que trocavam eram insultos sarcásticos, sempre
que se enfrentavam nos treinos mensais aos quais todos os alunos
internos eram obrigados a comparecer.

As duas estavam empatadas nessas competições. Nina, ao


menos, acreditava que mais ganhava do que perdia. Contanto que
existissem regras adequadas em vigor, onde uma espada caída ou
danificava indicava o fim do duelo, ela se considerava superior a
Eris.

Levaria um pouco mais de tempo para que ela percebesse que


esses mesmos pensamentos eram o que definiam um “molenga”, de
acordo com as palavras de Gal Falion. Nesse momento, ainda
carecia de experiência real.

Aos olhos dos outros, Eris e Nina eram rivais. Mas, no que dizia
respeito a Eris, Nina não valia nem o pensamento.

Um dia, no final do verão, Nina estava conversando com algumas


garotas da sua idade. O assunto acabou se encaminhando para
romances – quais alunos elas achavam bonito e quais garotas já
haviam passado a primeira noite na cama com alguém.

Nina, desde sempre, devotou a sua vida à espada; era difícil se


imaginar buscando um relacionamento com alguém. Ela sempre
achava essas conversas estranhas. O único garoto de quem era
próxima era o seu primo mais novo, Gino, mas tinham sido criados
como irmãos. A ideia de tomá-lo como um parceiro romântico só
servia para deixá-la desconfortável. Ela iria continuar vivendo pela
espada. Se acabasse se distraindo, Eris com certeza a deixaria para
trás – e não havia nada que ela odiasse mais do que perder para
aquela garota.

Eris, por pura coincidência, passou enquanto a conversa


continuava. Havia fumaça saindo do seu corpo. Ela obviamente
estava treinando duro enquanto todas as outras conversavam.

Nina sentiu uma pontada de ansiedade em relação a isso. E


então, chamou por ela por puro reflexo.

— Hmph. Você já fez alguma coisa fora treinar? Desse jeito vai
continuar virgem até morrer, tenho certeza. É uma pena que a sua
espada não possa te aquecer à noite!
Essas eram as grandes palavras de alguém que não tinha
experiência nenhuma. Mas Nina as escolheu com cuidado, já que
com certeza teriam a magoado. Ela assumiu que teriam os mesmos
efeitos sobre Eris.

— Heh! — Para a sua surpresa, no entanto, Eris simplesmente


se engasgou de tanto rir. O olhar presunçoso em seu rosto fez Nina
empalidecer.

— O-o que?

— Desculpe, mas eu não sou virgem. — Sua voz estava


ligeiramente orgulhosa e havia um toque de rubor em seu rosto.
Nina e as outras, na mesma hora, souberam que a garota não
estava blefando.

— O quê?! Você não pode estar falando sério! Quem foi? Quem
é que dormiria com você?! — Incapaz de disfarçar o seu choque,
Nina pressionou Eris por detalhes, seu tom de voz perturbado.

— Um cara que conheci quando éramos jovens.

Normalmente, Eris mal trocava palavras com as outras pessoas.


Mas, quando se tratando desse jovem, poderia tagarelar um pouco.
Ela falou sobre como cresceram juntos, como viajaram pelo
Continente Demônio e voltara à sua terra natal. Falou sobre como
se encontraram com o Deus Dragão, em quem ele conseguira
acertar um golpe. E falou sobre como passaram uma noite juntos.

Explicou que queria ficar mais forte por causa dele.

Foi uma história sincera, contada com a paixão de uma garota


completamente apaixonada. Isso deixou Nina atordoada. Ela foi
derrotada. Totalmente derrotada. Na habilidade com a espada talvez
fossem equiparadas. Mas ela era mais velha do que Eris. E Eris
tinha um namorado.

A única defesa que lhe restava era negar toda a existência desse
sujeito.

— Você… Você está muito cheia de si, Eris! O Pai diz que o
Deus Dragão é protegido por algum tipo de Aura Dracônica
Sagrada. Um feitiço comum não iria sequer arranhá-lo! Você
inventou isso. Este homem nem existe, não é? Admita agora, antes
que você realmente se envergonhe!

— Eu não estou mentindo, e Rudeus não é comum. É por isso


que não estou apta a ficar com ele, sabe? Tenho que ficar muito
mais forte…

Enquanto falava, Eris cerrou os punhos. Havia um fogo


queimando dentro de seus olhos. Ela de repente deu as costas para
Nina e as outras e caminhou de volta ao Salão de Treinamento,
onde esteve até então treinando.

Nina observou a sua partida em silêncio, espantada. Eris era a


última pessoa que ela esperava estar à sua frente neste
departamento. A notícia a respeito da existência desse namorado a
deixou tonta.

Aquele cão selvagem tinha um parceiro, e Nina não. Isso soava


completamente ridículo. Só podia ser mentira. Este Rudeus não
devia nem existir.
Com base nessa suposição, Nina usou o seu próximo dia de
folga para viajar até a cidade mais próxima, onde pagou para um
corretor de informações procurar informações sobre esse Rudeus
Greyrat. Ela esperava – ou imaginava, pelo menos – que ele não
encontrasse nada, visto que Rudeus só podia ser fictício. Mas, para
a sua surpresa, não demorou muito para que ele apresentasse um
relatório.

Rudeus Greyrat: nascido em Buena Village, Região de Fittoa,


Reino Asura. Aos três, começou a estudar com a maga de nível Rei
Roxy Migurdia. Aos cinco, se tornou um mago da Água de nível
Santo. Aos sete, assumiu o cargo de tutor de Eris Boreas Greyrat,
filha do prefeito da Cidadela de Roa. Depois disso, desapareceu no
Incidente de Deslocamento. No entanto, mais tarde reapareceu na
parte norte do Continente Central, ganhando um nome para si
mesmo como o aventureiro “Rudeus Atoleiro”. Ele estava
atualmente residindo na Cidade Mágica de Sharia. A Universidade
de Magia de Ranoa o convidou para se matricular como um aluno
especial. Além disso, ele era respeitado por muitos de seus
companheiros aventureiros. Rumores diziam que até mesmo tinha
matado um dragão errante com uma só mão.

O resultado final era bem simples: tratava-se de uma pessoa


real, não um príncipe fantasioso criado pela imaginação de Eris.
Nina achou esse fato deprimente. Mas, ao mesmo tempo, não ficou
tão impressionada. Suas conquistas até a idade de sete anos eram
incríveis, sim, mas no final elas não serviram de muita coisa. Não
houve qualquer menção sobre ter passado do nível de Santo, e
ganhava a vida como um aventureiro comum. O apelido “Atoleiro”
também não lhe parecia nenhum elogio. Seus talentos
evidentemente desapareceram após deixar a infância.

Essa linha de pensamento a levou a uma ideia deliciosamente


perversa.

Como Eris reagiria se ela rastreasse este Rudeus, o espancasse


em um duelo e o arrastasse até o Santuário como o seu prisioneiro?
O olhar em seu rosto deveria ser impagável.

O plano a atraiu muito, então o colocou em ação. Nina era tão


impetuosa quanto seu pai costumava ser. Naquele mesmo dia
preparou as malas para a viagem, subiu em um cavalo e partiu para
o Reino de Ranoa.

Seu destino felizmente não estava tão distante. No inverno a


viagem poderia ser um desafio, mas nesta época do ano era bem
tranquila. Com um dos melhores cavalos do Santuário da Espada à
sua disposição, poderia fazer a viagem de ida e volta em menos de
três meses.

A jornada de seis semanas de Nina até Sharia transcorreu sem


contratempos, e ela chegou à Universidade de Magia dentro do
prazo. O que encontrou por lá a surpreendeu um pouco.

Nina, com toda a honestidade, sempre desprezou os magos.


Pensava neles como fracotes arrogantes que sentiam que
resmungar alguns encantamentos os tornava fortes. Mas dentro da
Universidade de Magia, muitas das pessoas que vagavam eram
homens musculosos. Parecia haver um número estranhamente alto
do povo-fera, e a maioria estava vestida como guerreiros.
Ela viu alguns pedestres menores que usavam robes ou algum
tipo de uniforme bonito. No geral, entretanto, havia muito mais
pessoas musculosas do que o imaginado. Obviamente treinavam os
seus corpos com tanta seriedade quanto as suas mentes.

Nina se sentiu um pouco envergonhada por sua própria


ignorância. Durante todos os seus dezoito anos, aparentemente
criou preconceitos injustos em relação aos magos.

Depois de passar algum tempo olhando em volta, ela se


aproximou de um homem que por acaso estava passando. Ele era
um jovem homem-fera musculoso que se vestia de um jeito bem
parecido com um guerreiro. Quando ela perguntou onde poderia
encontrar o Rudeus, o homem-fera disse que estava à procura da
mesma pessoa – e tinha uma boa ideia de onde encontrá-lo.

Que conveniente, pensou Nina, e seguiu com ele.

Em pouco tempo, o homem-fera avistou um garoto de uniforme.


Rudeus parecia mais ou menos como Nina havia imaginado. Ele
não era tão magro nem parecia tão fraco quanto esperava, mas com
certeza não era intimidante. E, embora o seu rosto não fosse feio, a
sua linguagem corporal insegura o tornava muito desagradável. Um
bom par para aquela sarnenta da Eris.

Então, tudo bem, hora de dar um pau nele…

Mas antes que ela pudesse falar, o jovem homem-fera caminhou


até Rudeus e começou a gritar.

— Acho que você é o Rudeus Atoleiro, o aventureiro de rank A


que matou um Wyrm errante sozinho! Eu o desafio para um duelo
matrimonial, senhor!

Nina ficou, para não dizer muito, surpresa. O homem-fera não


mencionou nada sobre desafiar Rudeus para um combate individual.

— Sabe, na verdade, hoje eu tenho aula de piano. — Rudeus,


por sua vez, recusou o duelo da maneira menos masculina possível.
Mas o jovem homem-fera lançou algumas justificativas confusas,
pulou bem na frente dele e atacou instantaneamente.

Nina presumiu que Rudeus seria dilacerado em questão de


segundos. O homem-fera era um lutador claramente competente,
embora talvez não no nível dela, e Rudeus era um mago. Cada
espadachim pelo mundo sabia que essa era uma classe indefesa a
ataques próximos. Não havia nada que um mago pudesse fazer
quando alguém pulasse nele.

E, ainda, as coisas de alguma forma acabaram de uma forma


bem inesperada. Rudeus derrotou o jovem homem-fera em um
piscar de olhos. A luta durou, pelas contas de Nina, três segundos.
Se piscasse os olhos, poderia não ter visto. Sem nem mesmo olhar
para trás, Rudeus afastou-se, deixando seu inimigo inconsciente
jogado no chão.

Demorou alguns minutos para Nina se recuperar dessa


surpreendente sequência de eventos. Ela precisou gastar algum
tempo perguntando por aí de novo, mas eventualmente soube que
Rudeus estava agora na biblioteca.

No momento em que conseguiu a localização e se dirigiu para lá,


deparou-se com um grande grupo de gente-fera fazendo uma fila
ordenada do lado de fora do prédio. Nina achou isso curioso, mas
claramente não tinha nada a ver com ela. Marchou direto para a
entrada.

Mas quando passou pela multidão, um homem-fera a chamou.

— Você também deseja desafiar Rudeus para um duelo?

— Uh, sim… isso mesmo — respondeu ela sem nem pensar.

— Então vá para o final da fila! — gritou o homem. — Você não


pode chegar cortando!

Parecia que toda a fila de pessoas desejava desafiar Rudeus


para um duelo. Confusa e surpresa, Nina se virou e foi para a parte
de trás… Parecia haver pelo menos trinta pessoas à sua frente.

Enquanto ela ia para o seu lugar, um homem-fera perto do


começo da fila gritou:

— Foi mal, criança. Isso é uma pena.

Ela não sabia o que isso queria dizer.

Em qualquer caso, esperar parecia ser sua única opção, então


esperou. A manhã deu lugar à tarde, mas Rudeus não deu nenhum
sinal de que sairia.

E então ele apareceu.

Um demônio com pele obsidiana e músculos proeminentes de


repente apareceu ao lado deles, olhando para o grupo com um
sorriso arrogante no rosto

— Hoho! Para que é que serve essa fila, amigos? Por acaso é
algum festival?!
— Esta é a fila para aqueles que desejam desafiar Rudeus
Greyrat para um duelo!

— É mesmo?! E vocês são tantos! Bwahahaha! Pelo que vejo o


garoto é bem requisitado! Sou um homem paciente, é claro, mas
existe alguma forma de eu conseguir ser o primeiro da fila?!

O povo-fera não gostou muito dessa pergunta. Gritos de “Entre


na fila!” e vários outros insultos choveram de todas as direções.
Nina também ficou furiosa. Ela percorreu um longo caminho e
estava pacientemente esperando. E aproveitou e também gritou
para o demônio esperar pela sua vez, assim como todos os outros.

Mas então, em meio a toda a algazarra… um idiota disse algo


que definitivamente não deveria.

— Você quer ser o primeiro, grandão? Então é melhor derrotar


todos os que chegaram aqui primeiro!

— Bwahahahaha! Que adorável! Gosto de como isso soa! Então


venham todos de uma vez. Como recompensa pela ousadia, vou
deixar que me ataquem uma vez antes de eu sair esmagando todos!

A inacreditável arrogância contida nessa observação deixou


todos loucos de fúria.

— O que você pensa que acabou de dizer?!

— Você vai se arrepender disso, seu cabeça de merda!

Movendo-se quase ao mesmo tempo, todos do povo-fera


partiram ao ataque, ansiosos para ensinar uma lição ao idiota
pomposo. Antes que ela começasse a entender o que estava
acontecendo, Nina se viu entrando no meio da multidão.

Resumindo: ela foi derrotada. Humilhada.

Conseguiu acertar o demônio com a Espada da Luz, e tinha


intenção de matá-lo. Mas ele só deu de ombros. A lâmina sequer
penetrou a sua pele. Ela fez um corte superficial, mas a ferida
cicatrizou bem diante dos seus olhos.

— Sou o Rei Demônio imortal, Badigadi! Bwahahaha! Vou


conceder o título de Herói a qualquer um que me derrotar!

Comparado com muitos dos outros, o esforço de Nina foi


bastante respeitável. Mas o Rei Demônio estava em um nível
completamente diferente. Antes que ela pudesse sequer pensar em
algum tipo de plano, ele a pegou, jogou-a brutalmente no chão e
quebrou a sua amada espada.

Enquanto ela ficava deitada e gemia de dor, sua mente ficou


repleta de terror e perplexidade. Por que estava lutando com um Rei
Demônio no pátio de uma escola de magos? O que um governante
do Continente Demônio estava fazendo nesse lugar?

É claro, estava todo mundo pensando exatamente a mesma


coisa.

Poucos momentos após a derrota de Nina, Badigadi acabou com


todo o restante do povo-fera. De alguma forma, embora a maioria
estivesse gravemente ferida, ninguém morreu. Ele tinha pego leve
com todos.
No momento em que percebeu isso, Nina derramou lágrimas
amargas que pingaram em seus punhos trêmulos. Mas não
importava o quão profunda fosse a sua frustração, ela não podia
fazer nada agora que sua espada fora perdida.

— Que merda é essa…?

Naquele exato instante, Rudeus saiu da biblioteca. Ele passou


algum tempo conversando com o Rei Demônio, depois foram para
outro lugar.

Fazendo uma careta, Nina se forçou a se levantar e arrastou seu


corpo machucado atrás deles. Rudeus e o Rei Demônio estavam
parados no centro de um enorme pátio aberto, avaliando um ao
outro. Eles pareciam estar conversando sobre algo. Ela às vezes
conseguia ouvir algumas risadas estrondosas, mas era impossível
compreender a discussão.

O duelo por fim começou depois que um garoto estranhamente


rápido levou um cajado para Rudeus.

Nina viu tudo, do início ao fim. Não era como se tivesse


demorado muito. Rudeus pegou o cajado, tirou o pano que o cobria,
murmurou algumas palavras e o apontou para o inimigo. E uma
fração de segundos depois, toda a parte superior do corpo do Rei
Demônio explodiu de uma só vez.

O homem havia derrotado um oponente com o qual Nina não


conseguia sequer competir. O homem amado por sua odiada rival, o
homem que ela assumiu ser um inútil, destruiu um Rei Demônio
com um único golpe. E Eris estava tentando chegar ao seu nível.
Diante desses fatos, sua mente ficou vazia graças ao choque.
Ela não se lembrava do que aconteceu depois. Antes que
percebesse, estava de volta ao lombo de seu cavalo, retornando ao
Santuário da Espada.

Mas quando chegou lá, e viu Eris brandindo sua espada, sempre
focada, Nina sentiu algo. Algo que nunca antes tinha sentido.

✦✦✦✦✦✦✦

Depois daquele fatídico dia em Sharia, Nina Falion virou a página


de sua vida.

Começou a se dedicar ao treinamento com ainda mais vigor do


que antes e passou a carregar uma segunda espada, para o caso
de a primeira ser quebrada. E também parou de zombar de Eris por
sua tendência de partir para a briga com os punhos. Ela ficou mais
distante das outras garotas da sua idade, de quem nunca tinha sido
muito próxima.

E quando viu Eris, cuja determinação parecia nunca enfraquecer,


seu olhar não era mais tão duro quanto antes.

Com o tempo, as duas se tornariam verdadeiras rivais. Mas,


bem, isso é uma história para outra hora.

Aliás…

Rumores dizem que o Deus da Espada, que estava afiando sua


espada com entusiasmo depois de ouvir sobre a chegada do Rei
Demônio, a embainhou com uma expressão desapontada depois
que Nina relatou o que tinha acontecido.
Notas

[←1]
Meus agradecimentos ao grupo Tsundoku Traduções.

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