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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

CENTRO DE ESTUDOS GERAIS


INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA
FACULDADE DE DIREITO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA E DIREITO

CRISTINA LEITE LOPES CARDOSO

A prisão preventiva para a garantia da


ordem pública como dispositivo de
controle necropolítico

NITERÓI
2019
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
CENTRO DE ESTUDOS GERAIS
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA
FACULDADE DE DIREITO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA E DIREITO

Cristina Leite Lopes Cardoso

A prisão preventiva para a garantia da ordem pública como dispositivo de


controle necropolítico

Niterói
2019
Cristina Leite Lopes Cardoso

A prisão preventiva para a garantia da ordem pública como dispositivo de controle


necropolítico

Tese apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor, ao Programa de
Pós-Graduação em Sociologia e Direito, da Universidade Federal Fluminense - Niterói. Área
de concentração: Direitos Humanos, Governança e Poder.

Orientador: Prof. Dr. Luís Antônio Cunha Ribeiro

Niterói
2019
Ficha catalográfica automática - SDC/BFD
Gerada com informações fornecidas pelo autor

C268p Cardoso, Cristina Leite Lopes


A prisão preventiva para a garantia da ordem pública como
dispositivo de controle necropolítico / Cristina Leite Lopes
Cardoso ; Luís Antônio Cunha Ribeiro, orientador. Niterói,
2019.
240 f.

Tese (doutorado)-Universidade Federal Fluminense, Niterói,


2019.

DOI: http://dx.doi.org/10.22409/PPGSD.2019.d.08114278706

1. Prisão preventiva. 2. Ordem pública. 3. Racismo. 4.


Descolonização. 5. Produção intelectual. I. Ribeiro, Luís
Antônio Cunha, orientador. II. Universidade Federal
Fluminense. Faculdade de Direito. III. Título.

CDD -

Bibliotecária responsável: Josiane Braz de Assis - CRB7/5708


Cristina Leite Lopes Cardoso

A prisão preventiva para a garantia da ordem pública como dispositivo de controle


necropolítico.

Tese apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor, ao Programa de
Pós-Graduação em Sociologia e Direito, da Universidade Federal Fluminense - Niterói. Área
de concentração: Direitos Humanos, Governança e Poder.

Aprovada em __ de junho de 2019.

Banca Examinadora:

________________________________________________________
Prof. Dr. Luís Antônio Cunha Ribeiro
PPGSD - UFF orientador

________________________________________________________
Prof ª. Dra. Roberta Duboc Pedrinha
PPGDC - UFF

________________________________________________________
Prof. Dr. Nilton Silva dos Santos
PPGA - UFF

________________________________________________________
Prof. Dr. Nilo Cesar Martins Pompilio da Hora
FND - UFRJ

________________________________________________________
Prof.ª Dra. Vânia Siciliano Aieta
PPGD - UERJ

________________________________________________________
Prof. Dr. Antônio Eduardo Ramires Santoro (suplente)
PPGD – UFRJ

________________________________________________________
Prof. Dra. Maria Alice Costa (suplente)
PPGSD - UFF

Niterói, 2019
AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente àqueles que seguem sempre me incentivando e aguentando o


tranco quando as coisas se complicam: ao meu parceiro de vida Alex e ao meu irmão Ricardo.
Aos agregados deles dois, que sempre me fazem rir: Luisa, Sol e Teteu.
Às minhas amigas-irmãs: Schwesterchen Maira e Twisted Sister Renata, por também
estarem ao meu lado sempre, não importando a distância que nos separe.
Agradeço imensamente ao meu orientador, que me deu o que eu mais precisava: a
liberdade de pesquisar. Investiu no cavalo malhado, mesmo sendo o azarão e o viu cruzar a
linha, um pouco baqueado, mas com êxito em ter chegado.
Agradeço aos meus colegas de linha, Francisco que correu ao meu lado no sprint final;
Mari, que cedia a casa com litros de café, quilos de palhas italianas e muita filosofia; Carol
Pires que foi minha principal professora em todas as questões relacionadas à branquitude e
negritude. E, por fim, Anna Carolina, minha filha, parceira de escrita, de angústias, de
Agamben, de Mbembe, de sofrência e de histórias estapafúrdias que serviam para a trégua no
nosso mar de ansiedade.
Agradeço aos professores presentes na qualificação, que sorte eu tive de ter vocês
dois: Nilo Pompílio, meu primeiro professor de processo penal na FND, e Roberta Pedrinha, a
quem tanta admiração eu nutro e tenho a sorte de ter um destino que me coloca em vários
cruzamentos de vida com ela. E também aqueles que aceitaram a participação na defesa da
tese, pessoas cujo saber é notório, mas que além disso cultivam nos alunos a ética e o carinho.
Sim, nós orientandos fofocamos muito sobre nossos professores.
Agradeço aos mestres: Geraldo Prado por ter me apresentado a decolonialidade,
Orlando Zaccone pelo ―Indignos de Vida‖ que tanto agregou ao juntar Giorgio Agamben com
os autos de resistência, Aos desembargadores Siro Darlan e João Damasceno que franquearam
seus gabinetes para uma conversa recheada de bons conselhos e a cópia do livro do Sérgio
Verani que nem mesmo o próprio possuía, me senti lisonjeada. Ao Antônio Santoro, também
meu ex-professor na FND, a quem perturbei no final do percurso e ao Marcelo Semer que
cedeu sua tese para minha consulta, sem sequer me conhecer, apenas respondendo um e-mail
de uma estranha querendo falar de temas delicados em tempos sombrios. A gentileza de vocês
retrata o que é o ―ninguém solta a mão de ninguém‖.
Agradeço ao Antônio Carlos, meu ―ex-chefe‖, quase pai, pela força de sempre, aos
meus antigos colegas professores da Instituição em que lecionei onze anos: Felipe, Bruno,
Adinan, Luiz e João. Certamente esquecerei alguns sem querer e outros eu esquecerei de
propósito mesmo.
Agradeço à Ingrid (colega de FND) e aos nossos clientes que embolavam o meio de
campo, mas também traziam força para seguir sempre em frente.
Agradeço ao meu grupo do WhatsApp ―subversivos da tese‖, de ex-alunas, que tanto
ajudaram nas transcrições: Mylaine, Ticiane, Ismara e Karen. Aos ex-alunos que serão sempre
meus amigos: Aline Pires, Gisele, Taiara, Gilberto Santiago, Izabel Tininha, Suellen e Esther,
Gustavo, Daniel, Thiago Fidelis, Sebastião Telles e, sinceramente aqui ficará difícil nomear
todos, pois por onze anos eles me ensinaram muito mais do que eu poderia ensiná-los.
Agradeço aos meus pais, afinal eu estou aqui por causa deles e talvez tenha estudado
tanto também por causa deles. À minha mãe por me ensinar a resiliência e por cuidar da
Michelle, a gata caçula.
Agradeço aos mortos que tanto amo: meu avô que me mostrou a generosidade e a
perseverança, minha avó que me deu toda a força e o amor, aos filhos humanos que eu não
tive e às filhas gatas que perdi: Bibica e Filó.
Por fim, às companheiras de escrita, minhas filhas gatas Florinda, Fiona e Lola.
Sem todos vocês este trabalho não existiria.
A primeira condição para modificar a realidade consiste em conhecê-la.
Eduardo Galeano

Escrever é uma maneira de sangrar.


Conceição Evaristo
RESUMO

CARDOSO, Cristina Leite Lopes. A prisão preventiva para a garantia da ordem pública como
dispositivo de controle necropolítico.
Tese de doutorado. Orientação do Prof. Dr. Luís Antônio Cunha Ribeiro. Niterói: Programa
de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense, 2019.

A pesquisa visa verificar a relação entre práticas necropolíticas comumente utilizadas em


casos de estado de exceção e o nosso atual sistema penal, tomando por base o uso abusivo de
prisões cautelares, especificamente aquelas decretadas com fundamento na garantia da ordem
pública, principalmente considerando a política pública da guerra às drogas. Busca-se, através
de um referencial teórico originalmente eurocêntrico (pautado em Giorgio Agamben e Michel
Foucault), compreender os dispositivos de controle que colocam a nossa democracia com
práticas muito semelhantes às de regimes totalitários. Para tal exercício, considerando a
realidade brasileira cuja história traz a construção do mito da democracia racial escamoteando
o racismo estrutural gerador de flagrantes desigualdades, foi imperioso que o estudo fosse
feito sob a perspectiva do oprimido, levando-nos ao conhecimento de autores e autoras
decoloniais, intelectuais negros e negras, que viabilizaram um melhor enquadramento para a
compreensão das engrenagens operadoras de exclusão. Pretendi mostrar que quem recebe o
estereotipo do indesejável no Brasil é o negro, e esse fator é estruturante para que tenhamos
uma quantidade tão elevada de presos sem condenação definitiva, expondo a inter-relação
entre o homo sacer e as práticas de eliminação do sujeito impostas cotidianamente contra
aqueles que são enquadrados como potenciais violadores da ordem, demonstrando como e
porque os discursos de emergência promotores da expansão desenfreada do sistema penal
(oficial e subterrânea) operam estruturalmente (impregnados pelo racismo) para a
relativização de garantias processuais e aumento do controle daqueles marcados com uma
vida que vale menos, evidenciando as engrenagens da necropolítica.

Palavras-chave: Prisão Preventiva. Emergência Penal. Estado de Exceção. Necropolítica.


Decolonialidade. Racismo Estrutural
ABSTRACT

CARDOSO, Cristina Leite Lopes. The preventive detention for the guarantee of the public
order like a necropolitic device of control.

The research intend to verify the relationship between the commonly used necropolitics
practices in cases of state of exception and our current penal system, based on the abusive use
of provisional arrests, specifically those decreed based on the guarantee of public order,
especially considering the policy of the war on drugs. It is sought through an originally
Eurocentric theoretical framework (based on Giorgio Agamben and Michel Foucault) to
understand the control devices that put our democracy with practices very similar to those of
totalitarian regimes. For such an exercise, considering the Brazilian reality whose history
brings the construction of the myth of racial democracy to conceal structural racism that
generates flagrant inequalities, it was imperative that the study be done from the perspective
of the oppressed, bringing us to the knowledge of decolonial authors, black intellectuals, who
made possible a better framework for the understanding of the operative mechanisms of
exclusion. I wanted to show that the one who receives the stereotype of the undesirable in
Brazil is black, and this factor is structuring so that we have such a high number of prisoners
without definitive condemnation, exposing the interrelation between the homo sacer and the
practices of elimination of the subject imposed daily against those who are classified as
potential violators of the order, demonstrating how and why emergency discourses that
promote the unbridled expansion of the criminal system (official and underground) operate
structurally (impregnated by racism) for the relativization of procedural guarantees and the
rise of control of those marked with a life that is less worthing, evidencing the gears of the
necropolitics.

Keywords: Provisional arrests. Penal Emergency. State of Exception. Necropolitics.


Decoloniality. Structural Racism
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................... 12

1. A QUESTÃO PENITENCIÁRIA ATUAL ........................................................................... 19


1.1. O negro como criminoso em potencial .......................................................................... 23
1.2. Guerra às drogas instrumentalizando o grande encarceramento ................................... 24
1.3. O controle dos corpos femininos negros e das gerações futuras ................................... 29
1.4. Aprisionamento cautelar: a exceção como regra ........................................................... 30
1.5. Audiências de custódia no Rio de Janeiro: um substitutivo a serviço do sistema? ....... 32
1.5.1 O perfil dos presos atendidos pela Defensoria Pública nas audiências de custódia 40
2. PRISÕES CAUTELARES NO DIREITO PÁTRIO ............................................................ 45
2.1. Presunção de inocência e sua compatibilidade com as prisões cautelares .................... 47
2.2. Princípios regentes das prisões cautelares ..................................................................... 55
2.3. Aplicação da prisão preventiva...................................................................................... 60
2.3.1. Cabimento da prisão preventiva ............................................................................. 63
2.3.2. Pressupostos fáticos da prisão preventiva .............................................................. 66
2.4. Garantia da ―ordem pública‖ como fundamento da prisão preventiva .......................... 70
2.4.1. Origem da expressão ―ordem pública‖ ................................................................... 72
2.4.2. Ordem Pública na Legislação Pátria ....................................................................... 74
3. BIOPOLÍTICA: DE FOUCAULT A AGAMBEN ASSOMBRADOS POR SCHMITT .. 81
3.1. O método arqueológico: exemplos e ―não ditos‖ .......................................................... 82
3.2 Gênese da vida nua: quem é o homo sacer? ................................................................... 87
3.3. Dispositivos de segurança: a modulação em operação .................................................. 94
3.4. Prisão sem prévia condenação: a Schutzhaft como precursora do campo .................. 102
3.5. Construção da guerra civil permanente ou estado de exceção desejado ..................... 109
3.6. Conceitos indeterminados como estruturantes da lógica da decisão (soberano é quem
decide) ................................................................................................................................ 113
3.7. Fratura do povo: ―manda quem pode‖ ......................................................................... 116
4. INVERTENDO O OLHAR: RECONHECENDO A NECESSIDADE DE SE
PESQUISAR “AO CONTRÁRIO”: A COMPREENSÃO DO ENCARCERAMENTO
BRASILEIRO PELA DECOLONIALIDADE ....................................................................... 120
4.1. Explicando a história contada a contrapelos: epistemologia do oprimido .................. 122
4.2. A criminalização do negro ―esclarecida‖ com a criminalização da pobreza: ―presos são
quase todos pretos, ou quase pretos, ou quase brancos quase pretos de tão pobres‖ ......... 135
4.3. Selecionando o inimigo: porque todo camburão tem um pouco de navio negreiro .... 148
4.4. A necropolítica dos indignos de vida: Instituto Médico Legal ou o novo ―cemitério de
pretos novos‖ ...................................................................................................................... 157
5. O GRANDE ENCARCERAMENTO BRASILEIRO: SUAS BASES E NÃO
RUPTURAS ............................................................................................................................... 170
5.1. Racismo estrutural: não há cordialidade com racistas ................................................. 172
5.2 A lei de crimes hediondos e sua mitificação de emergência ........................................ 181
5.3. Substitutivos penais e seu uso ao avesso: novas leis ―pra inglês ver‖ ......................... 186
5.4. A engrenagem necropolítica da prisão cautelar: racismo estrutural, o projeto da guerra
às drogas e a garantia da ordem pública como dispositivo................................................. 192
CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................................... 206

REFERÊNCIAS ........................................................................................................................ 214


12

INTRODUÇÃO

A presente tese de doutoramento do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e


Direito da Universidade Federal Fluminense (PPGSD/UFF) teve como ponto de partida o
estudo do estado de exceção, proposto pelo filósofo italiano Giorgio Agamben (2004, pp. 12-
13), que, ao tratar acerca dos dispositivos de poder e segurança, concluiu que a atualidade não
é regida por um padrão de normalidade, mas sim por um verdadeiro estado de exceção, sendo
este um paradigma de governo. Este autor demonstra que o ordenamento criado com o
objetivo de conter a violência, guarda dentro de si mesmo o oposto através da suspensão de
direitos já garantidos dentro da própria sociedade, sendo um ponto nodal dessa fala a
verificação de qual sociedade ele está falando.
De toda forma, a premissa é a de que se permite, com uma aparente legalidade, a
criação de dispositivos através dos quais mecanismos de exceção coexistam com o Estado de
Direito e estes mecanismos poderão ter como destinatários desde adversários políticos ou até
mesmo categorias inteiras de cidadãos que pareçam inadequados à ordem vigente, como
ocorreu no Nazismo, que é por ele apontado como um caso limite. Assim, práticas utilizadas
como medidas de segurança tornam-se permanentes e, o que deveria ser a exceção – através
da suspensão de direitos – torna-se regra, com a anuência da própria sociedade.
A biopolítica, que, a priori, aparentaria servir à proteção da vida humana (e por isso
poderia ser compreendida como gestão da vida), ao contrário, se presta ao controle social
(gerenciando não apenas a vida, mas também quem pode ser deixado ao abandono – numa
gestão de morte - tanatopolítica) e assim, nota-se que o que tem sido observado é que o sujeito
escolhido para ser o inimigo é verdadeiramente eliminado da humanidade civil, tornando-se o
homo sacer agambeniano.
Ressalte-se que o apelo à manutenção da ordem pode ter seu pretexto modificado 1
(terrorismo, subversão política etc.), mas nunca o foco de controlar e governar as populações,
tornando-se uma técnica permanente e naturalizada, evidenciando o ponto de contato entre
esse paradigma e a constante utilização de normas penais de emergência ou, por que não, de
verdadeiras práticas de emergência no âmbito do Direito.
Assim, a partir dessa ideia, utilizando, inicialmente, como inspiração teórica, o modelo
proposto por Giorgio Agamben, surgiu meu interesse em pesquisar de forma mais profunda a

1
Vale acrescentar que Giorgio Agamben também faz uma interessante análise do que ocorreu nos Estados
Unidos, após o 11 de setembro, aplicando essa visão aos atos patrióticos. Ver: ―Como a obsessão por segurança
muda a democracia‖. Le Monde Diplomatique, 2014. Disponível em:
<http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1568>. Acesso em: 29 jul. 2014
13

relação entre o estado de exceção e o sistema penal brasileiro, buscando analisar e


compreender se é possível afirmar que a nossa atualidade jurídico-penal é regida pelo estado
de exceção como verdadeiro paradigma de governo.
Dentre as possíveis práticas de exceção, o estudo tem como parâmetro de análise as
decretações de prisões preventivas, havendo especial preocupação naquelas prisões cujo
fundamento se deu com base na ―garantia da ordem pública‖. Meu olhar foi mais cuidadoso
nas pesquisas acerca das audiências de custódia, principalmente no Rio de Janeiro, já que é
nessa audiência em que o juiz é impelido a decidir se concede liberdade ao sujeito preso em
flagrante ou decide por deixá-lo preso convertendo/convolando a prisão em flagrante em
prisão preventiva.
O que me despertou para o tema foi a significativa quantidade de prisões preventivas
(sem condenação definitiva, portanto) que ocorrem no Brasil, um dos países que mais
encarceram no mundo, tendo para grande parte delas a justificativa da garantia da ordem
pública, conceito que por sua vez é excessivamente subjetivo e elástico, não alcançando
definição uniforme nem na doutrina e nem na jurisprudência.
Conforme o Diagnóstico de Pessoas Presas no Brasil publicado em 2014 pelo
Conselho Nacional de Justiça, só o Estado do Rio de Janeiro tem 46% de seus presos em
situação de prisão provisória2. Já o percentual de presos provisórios a nível nacional é de
41%.
Note-se que a imprecisão da expressão ―ordem pública‖ possibilita a manipulação das
justificativas para a privação da liberdade dos indiciados e dos réus, podendo servir para
qualquer que seja o ―inimigo‖, surgindo daí a questão acerca da inter-relação entre o Homo
Sacer descrito por Giorgio Agamben e as constantes práticas de anulação do sujeito (e dos
direitos fundamentais).
Dessa maneira, abriu-se um vasto conjunto de ideias a ser estudado e que, no decorrer
da pesquisa, realizando a aproximação dos saberes da filosofia do direito à realidade jurídico-
penal, pode ser observado.
Não obstante, nas leituras do que deveria ser o fio condutor do meu referencial teórico,
ou seja, naquele início tradicional de estudo de prisões com autores eurocêntricos, percebi a
necessidade de inversão do olhar, tal qual já havia ocorrido no mestrado, sofri um puxão para
a História, porém não para a História Oficial com suas lacunas propositais, mas sim para as
Histórias e Memórias Subterrâneas, cujos autores foram oprimidos, havendo a necessidade de

2
Usarei os termos prisão preventiva e prisão provisória como sinônimos, eis que são situações sem julgamento
definitivo, cuja cautelaridade instrumental deveria se evidenciar ante a necessidade da constrição.
14

desmontar os saberes já construídos, para operar novos saberes com peças faltantes desse
grande quebra-cabeça epistemológico.
No caso presente, da tese, eu coloquei de lado sem tê-los abandonado, Michel
Foucault e Giorgio Agamben, para trazer um repertório de muitas vozes que ficavam à
margem (inclusive para mim) e que, vez ou outra, apareciam em minha vida (algumas vezes
por autores latino-americanos da criminologia), e que nesta pesquisa decidi utilizar para a
construção de um olhar epistemológico despraticante das normas eurocêntricas. Neste sentido,
o fenômeno do encarceramento em massa, ou seja, desse grupo de pessoas invisibilizado, ao
qual me propus a estudar, será visto (também) através de autores decoloniais.
A biopolítica (gestão da vida) e a tanatopolítica (gestão da morte), que antes eu lia
apenas pelo viés foucaultiano e agambeniano, foram observadas, por exemplo, pela
necropolítica de Achille Mbembe (2018), apenas para apontar um dos autores que hoje
entendo imprescindíveis no estudo do encarceramento brasileiro.
Essa virada de olhar tornou-se evidente quando percebi que o nosso inimigo já estava
posto desde 1500, quando os colonizadores chegaram ao Brasil. Foi ali em que o nosso
Lager3 surgiu com muros de oceano (Atlântico).
É obvio que nunca se nomeou (nem assim se reconhecerá, por ora) o Brasil como
Lager, tampouco o inimigo (negro) como inimigo. Contudo, o projeto genocida, assim não
nomeado, naquele momento teve início e o controle dos indignos, indesejáveis, dos homo
sacer, começou a ser feito, fosse para retirar-lhe a vida, fosse para geri-la como vida nua,
desde a percepção da vida biológica coisificada na escravidão negra até a vida que hoje
permanece aprisionada sem condenação definitiva.
Penso que a relevância da pesquisa é evidente, pois ao se entender a maneira como
atua o controle promovido pelo sistema penal, a forma como a sociedade com ele se relaciona
e de que modo ele é reproduzido, pode-se notar caminhos para a mudança, ou talvez, numa
visão mais pessimista (ou talvez, menos utópica), caminhos para que sejam evitados maiores
abusos e retrocessos.
No que diz respeito à viabilidade da tese, entendo que um dos principais objetivos do
PPGSD-UFF é a contribuição tanto para o aprimoramento da pesquisa no Direito, quanto à
presença da interdisciplinaridade, que permite dialogar com diferentes maneiras de se
compreender os fenômenos jurídicos, através de variados contextos teóricos.

3
Termo usado por Giorgio Agamben para nomear os campos de concentração cuja abordagem será feita no
capítulo 3.
15

Proponho aqui a provocação do pensar o incômodo com o real, como tantas vezes fiz
em minhas aulas de processo penal4, onde sempre iniciava os períodos letivos afirmando que
o estudo do sistema penal, especialmente do encarceramento brasileiro, deveria gerar
desconforto, já que estamos tratando de dores seculares.
Também afirmava que, se ao final do curso, o graduando se sentisse animado em
perpetuar esse status quo estrutural, era porque a minha matéria não havia sido compreendida,
pois nela nada havia de belo, ao contrário disso, seja qual fosse a posição do ator jurídico
dentro dessa estrutura, ele estará cercado de tragédias humanas por todos os lados. Como no
filme Matrix5: cabe a quem lê, decidir se deve ou não engolir a pílula vermelha para enxergar
a realidade.
Nesse desafio, tracei alguns objetivos, sendo o principal deles o de examinar, a partir
da governamentalidade presente na bio/necropolítica, se há e qual seria a relação entre os
dispositivos de controle típicos de estados de exceção e o uso das prisões preventivas para
garantia da ordem pública, conjugando o referencial eurocêntrico com o decolonial; Já, dentre
outros objetivos, pretendi explicar como a doutrina processual penal e a legislação trazem as
hipóteses de prisões preventivas, mais especificamente àquelas decretadas sob o argumento da
garantia da ordem pública; apontar dados acerca das prisões sem julgamento definitivo, bem
como problematiza-los; Analisar o discurso da criminalização da pobreza como apagamento
da criminalização do negro no contexto histórico brasileiro, verificar a construção do inimigo
na nossa sociedade, mostrar de que maneira a legislação de emergência se encaixa nesse
contexto e também pretendi compreender o modus operandi do estado de exceção como
paradigma de governo, bem como a inter-relação entre o homo sacer e as práticas de anulação
do sujeito (e dos direitos fundamentais) impostas como política de enfrentamento àqueles que
são enquadrados como potenciais violadores da ordem, contudo, inovando ao trazer para o
estudo a visão de autores sob o viés decolonial, principalmente valorizando a produção
acadêmica de intelectuais negros e latino-americanos.
Creio ser necessária a colocação de meu próprio local de fala quando decidi tocar na
temática racial, posto que como pesquisadora branca, necessitei enxergar os meus próprios
privilégios dentro dessa dialética. Percebi como imperioso, para futuros estudos, a
4
Fui professora de processo penal, criminologia, direito penal e metodologia por onze anos na mesma instituição
de ensino, cujo público era composto de alunos oriundos da periferia. Lá pude ver com meus próprios olhos os
enormes danos da política de branqueamento, a não percepção do racismo estrutural e o domínio do medo como
instrumento de cerceamento de Direitos.
5
O filme Matrix (1999) traz um futuro distópico no qual a vida percebida pelos humanos, é, na verdade, uma
simulação criada para subjugar a população, enquanto seus corpos são usados como fonte de energia. É através
da pílula vermelha (a azul deixa a pessoa na vida ilusória) que se permite enxergar a realidade, só que os que
assim o fazem são perseguidos.
16

compreensão da branquitude, já me afirmando hoje dentro de uma perspectiva de uma mulher


branca antirracista, me colocando como aliada nas demandas oriundas dos negros, cujo
protagonismo nas conquistas, cobranças e dores se dá exclusivamente por eles. Sendo branca,
jamais saberei o que é ser negra e, sendo branca em uma sociedade pautada pelo racismo em
suas estruturas, fui educada, ainda que de maneira inconsciente, para não os ver. Talvez, para
mim, esta tese tenha tido esse ponto como o mais importante: dentro de tanta teoria há algo
mais relevante e transcendente: a empatia.
Já considerando que uma hipótese pode ser entendida como uma afirmação provisória
a respeito de determinado fenômeno, uma suposição duvidosa, algo provável que pode
posteriormente ser confirmado ou refutado (GOLDENBERG, 2005), vejo como minha
principal hipótese a seguinte questão: As prisões preventivas, especialmente aquelas para
garantia da ordem pública, configurar-se-iam como ―dispositivo‖ especificamente sobre os
negros – categoria de cidadãos, cuja sociedade estruturada de maneira racista, rotula como
inimigos? Nessa busca, várias questões acabam tomando vulto como, por exemplo: Como
interpreta a expressão ordem pública? O que é dispositivo de controle e governamentalidade?
De que maneira os autores decoloniais contribuem para a compreensão de nossa sociedade? É
possível intercambiar conceitos entre autores eurocêntricos e decoloniais para a compreensão
das questões relacionadas às políticas relativas à segurança pública?
Quanto à metodologia utilizada, ante a vastidão conceitual exigida para a proposta,
optei por elaborar a pesquisa exclusivamente teórica, buscando, contudo, referencial de base
quantitativa (como, por exemplo, nos dados numéricos acerca das prisões) quanto qualitativos
(livros, produção acadêmica, cultural etc), posto que não os vejo como excludentes, mas
complementares – trata-se aqui de uma característica da linha de pesquisa da qual faço parte
no PPGSD.
O ponto de destaque metodológico se dá no giro decolonial, onde opto pelo olhar do
colonizado/oprimido acerca dos problemas apresentados. Tentei, não sei se com êxito,
amplificar o volume da fala dos colonizados, dos nossos vizinhos latino-americanos, das
negras e dos negros que efetivamente são responsáveis pela nossa existência enquanto país -
ainda que brutalmente arrancados de suas origens.
Em suma, pretendi amplificar a voz de brasileiros, tendo absoluta consciência que
deixo de fora falas oprimidas extremamente necessárias, como os povos originários, indígenas
brasileiros também invisibilizados. Neste trabalho não foi possível, pelo tempo, pelo fôlego,
pelas veias abertas, remexidas e doloridas. Talvez, quem sabe em um futuro próximo, em pós-
doutoramento. O futuro não nos cabe prever.
17

Fato é que, na academia, é hoje essencial o olhar para trás para não permitir que se
acabem ―com todos os ativismos‖. Afinal, se há a pretensão de igualdade material, antes de
tudo, é preciso o ajuste de foco para tirar o privilegiado do local onde ele mesmo se colocou,
viabilizando o respeito aos direitos fundamentais sem que tenhamos o povo fraturado.
A tese foi elaborada numa estrutura simples. No primeiro capítulo trago a questão
penitenciária atual, realizando breve crítica sobre a realidade retratada através do órgão
responsável pelas informações penitenciárias em contexto nacional (INFOPEN). Nele trago
pontos de relevo na construção da pesquisa, como o elevado quantitativo de negros, a
quantidade de presos em decorrência da guerra às drogas, o número elevado de prisões
cautelares e, de maneira específica: o funcionamento das audiências de custódia no Rio de
Janeiro, exclusivamente para retratar, dentro da especificidade de nossa cidade, quem é que se
prende e como se prende.
No segundo capítulo o intuito foi expor didaticamente como é possível se prender
alguém antes de uma sentença condenatória com trânsito em julgado, por isso o nome Prisões
cautelares no Direito Pátrio. Além disso, entendi ser de maior relevo o destaque à presunção
de inocência, garantia constitucional assegurada a qualquer acusado desde nossa Constituição
Democrática, e que, nos últimos anos, ante o obscurantismo vivido na seara penal, tem sido
objeto de ataque, bem como também destaco a ordem pública, cujo conceito pode ser tão
abrangente que se torna indeterminável.
O terceiro capítulo traz a abordagem original da pesquisa, eurocêntrica, acerca da
biopolítica: Biopolítica: de Foucault a Agamben assombrados por Schmitt. A ideia aqui era
trabalhar com a apresentação de conceitos-chave para posterior utilização.
É no quarto capítulo que se observa a virada dada no estudo como um todo. Segue-se
com o foco na prisão cautelar, contudo, há uma mudança de perspectiva para entender sobre
qual sociedade o sistema penal opera, razão pela qual o chamei de Invertendo o olhar:
reconhecendo a necessidade de se pesquisar “ao contrário”: a compreensão do
encarceramento brasileiro pela decolonialidade. Um fato que sempre me trouxe incômodo é
que, embora tenha havido nos últimos anos uma grande inserção social, paralelamente
também ocorreu o grande encarceramento brasileiro, parecendo haver algum elo perdido,
inexplicável nesse contexto. Experimentei, portanto, para entender nossas bases, uma
episteme oriunda do oprimido e assim, interdisciplinarmente, me aventurei em outros saberes
e pude ver a dor sob outras perspectivas. Busquei aqui observar como nossa História careceu
de cisão e reparação, eis que ela parece se repetir e se repetir permanentemente
metamorfoseando suas farsas.
18

Por fim, no grande encarceramento brasileiro: suas bases e não rupturas, eu trouxe
pontos-chave de todo o problema estudado, culminando com a observância de uma grande
engrenagem que parece explicar porque prendemos tantas pessoas sem condenação definitiva
e porque sempre temos o mesmo perfil sendo atingido pelo sistema que opera deixando
morrer, ainda que vivendo sob o rótulo de uma democracia cuja Constituição tem como
fundamento a dignidade e preza pela igualdade.
Como eu fazia em sala de aula, não tenho muita expectativa quanto a todas essas
linhas, mas se elas despertarem a empatia em quem as lê e a curiosidade de seguir em frente
na busca da dignidade, igualdade e respeito, penso que ela já teve alguma utilidade. Como a
utopia de Eduardo Galeano, talvez, essas linhas sirvam para isso, para que não deixemos de
caminhar.
19

1. A QUESTÃO PENITENCIÁRIA6 ATUAL

O sistema penitenciário brasileiro não operou significante alteração após o período


colonial e que até os dias atuais ainda há o reflexo dessa estagnação. Relaciona o
sistema de controle disciplinar à sociedade escravista da época, que, ameaçada por
agitações sociais, tinha razões para justificar a adoção de um modelo penal capaz
de disciplinar e principalmente vigiar determinados segmentos sociais.
Rodrigo Duque Estrada Roig

Neste capítulo pretendo tão somente apresentar algumas questões relativas ao sistema
carcerário com base nos dados fornecidos pelo Conselho Nacional de Justiça e também em
pesquisas já realizadas acerca do sistema prisional brasileiro observando que:
Os problemas no sistema penitenciário que se concretizam em nosso país,
devem nos conduzir a profundas reflexões, sobretudo em uma conjuntura em
que o perfil das pessoas presas é majoritariamente de jovens negros, de
baixa escolaridade e de baixa renda. Além da necessidade de construção
de vagas para o sistema prisional, em relação à qual, nos últimos anos, o
Governo Federal fez investimento recorde de mais de R$1,1 bilhão, é
preciso analisar a "qualidade" das prisões efetuadas e o perfil das
pessoas que têm sido encarceradas, para que seja possível problematizar a
"porta de entrada" e as práticas de gestão dos serviços penais, desde a baixa
aplicação de medidas cautelares e de alternativas penais até a organização
das diversas rotinas do cotidiano das unidades prisionais (INFOPEN, 2014,
p. 6) (Grifos meus)

Tal quadro será feito tomando por base, principalmente, dados extraídos do
INFOPEN7, e, com estas informações que irei posteriormente realizar os recortes relacionados
à raça e ao crime – no caso, especificamente, o tráfico de drogas.
É importante destacar que os censos penitenciários não abordam os mesmos
marcadores a cada vez que é realizado, motivo pelo qual, muitas informações serão retiradas
do INFOPEN de 2014, mais completo do que o de 2016.
Segundo o INFOPEN de 2016, o Brasil tinha, àquela época, 726.712 pessoas em
situação de privação de liberdade, sendo que o sistema prisional dispunha de 368.049 vagas,
havendo um déficit, portanto de 358.663 vagas, sinalizando a situação de superlotação.

6
Trata-se aqui de inegável homenagem ao autor Augusto Thompson na sua obra ―A Questão Penitenciária‖,
neste livro ele explica o fenômeno da prisonização, da gestão da vida em massa com o disciplinamento de
corpos, que faz com que o sujeito adequado à prisão torna-se inadequado à vida fora dela. A vida de quem se
encontra preso muda: a sua identidade passa a ser forjada por um linguajar próprio, por normas de conduta
necessárias à sobrevivência, hábitos alimentares e de sono também são alterados, além de uma constante
inferiorização e submissão.
7
―O INFOPEN é um sistema de informações estatísticas do sistema penitenciário brasileiro. O sistema,
atualizado pelos gestores dos estabelecimentos desde 2004, sintetiza informações sobre os estabelecimentos
penais e a população prisional‖ (INFOPEN, 2014, p. 8).
20

Em Junho de 2016, existiam 726.712 pessoas privadas de liberdade no


Brasil, sendo 689.510 pessoas que estão em estabelecimentos administrados
pelas Secretarias Estaduais de Administração Prisional e Justiça, o sistema
penitenciário estadual; 36.765 pessoas custodiadas em carceragens de
delegacias ou outros espaços de custódia administrados pelas Secretarias de
Segurança Pública; e 437 pessoas que se encontram nas unidades do Sistema
Penitenciário Federal, administradas pelo Departamento Penitenciário
Federal (INFOPEN, 2016, p. 07)

Tal quadro, que demostra agravamento em relação ao último censo penitenciário,


evidencia que as medidas alternativas à prisão cautelar, trazidas pela Lei 12.403/11, não
contribuíram no esvaziamento do sistema prisional, tendo o mesmo resultado não sido
apresentado com o advento das audiências de custódia, o que me faz crer que o problema não
está exatamente nos instrumentos existentes para que o cárcere seja evitado, mas muito mais
nos argumentos utilizados para que ele não seja a ultima ratio.
Vale sinalizar que, conforme o INFOPEN de 2014, o Brasil contava com 607.731
pessoas privadas de liberdade que, somadas as 147.937 que estavam em prisão domiciliar8,
totalizava 775.668 pessoas privadas de liberdade no Brasil.
Já conforme o último relatório, contávamos com 726.712 presos independentemente
da prisão domiciliar. ―Em junho de 2016, a população prisional brasileira ultrapassou, pela
primeira vez na história, a marca de 700 mil pessoas privadas de liberdade‖ (INFOPEN, 2016,
p.09).
Em comparação com dados de outros países, percebe-se que o Brasil detém a terceira
população carcerária do mundo, contradizendo a expressão popular de que ―ninguém vai
preso no Brasil‖ ou que ―o Brasil é o país da impunidade‖.
Em verdade, o país prende muito e a questão deveria ser direcionada a saber ―como‖ e
com ―quais fundamentos‖ essas prisões são efetuadas.
Assim, temos antes do Brasil em número de presos os Estados Unidos da América
com 2.228.424 presos e a China com 1.657.812 presos (INFOPEN, 2014, p. 12)
O Brasil aposta cegamente na aceleração do encarceramento, sendo o único,
entre os quatro países que mais prendem no mundo, que registrou uma
elevação da taxa de aprisionamento nos últimos anos, enquanto os demais
reduziram o número de presos por cem mil habitantes. Importante ressaltar
que este colapso do sistema penitenciário brasileiro foi muito bem
apresentado na ADPF 347, rel. min. Marco Aurélio, na qual o STF concedeu
a medida cautelar em 09.09.2015 para, entre outros pontos, estabelecer que
―Estão obrigados juízes e tribunais (...) a realizarem, em até noventa dias,
audiências de custódia, viabilizando a apresentação do preso perante a

8
O dado do CNJ está disponível em: <http://www.cnj.jus.br/images/imprensa/diagnostico_de_pessoas_
presas_correcao.pdf>. Acesso em:27/07/2017
21

autoridade judiciaria no prazo máximo de 24 horas, contando do momento


da prisão‖ (PAIVA, 2018, pp. 31-32)

Porém, o que me interessa é verificar os dados relativos àquelas pessoas presas sem ter
ainda sobre si a condenação definitiva, os ainda inocentes, que, escolhidos pelo Estado, tem
sua dignidade excluída ao serem inseridos em um sistema claramente inconstitucional, uma
vez que foi a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 que trouxe como
fundamento a dignidade da pessoa humana e vedou a aplicação de penas cruéis:
Artigo 5º, XLVII: são proibidas as penas:
(a) de morte
(b) de caráter perpétuo
(c) de trabalhos forçados
(d) de banimento e;
(e) cruéis.
(BRASIL, 1988)

Neste sentido, segundo o INFOPEN 2014 o Brasil tinha 41% de sua população privada
de liberdade sem ter sobre si uma sentença definitiva. Comparando com os três países que
estavam acima do nosso em número de encarceramento à época daquele censo, tínhamos os
Estados Unidos com 20,40% de sua população carcerária sem condenação definitiva e a
Rússia com 17,90%. A China não disponibilizou tais dados, motivo pelo qual não é possível
fazer a comparação. Considerando os 20 países9 que mais prendem no mundo apresenta-se a
seguinte situação:
O Brasil exibe, entre os países comparados, a quinta maior taxa de presos
sem condenação. Do total de pessoas privadas de liberdade no Brasil,
aproximadamente quatro entre dez (41%), estavam presas sem ainda terem
sido julgadas. Na Índia, no Paquistão e nas Filipinas, mais de 60% da
população prisional encontra-se nessa condição. Em números absolutos, o
Brasil tem a quarta maior população de presos provisórios, com 222.190
pessoas. Os Estados Unidos (480.000) são o país com o maior número de
presos sem condenação, seguidos da Índia (255.000) e da estimativa em
relação à China (250.000) (INFOPEN, 2014, p. 13)

Vale destacar que, pela Internacional Center for Prison Studies, entre 1995 e 2010, o
Brasil, dentre os vinte países analisados, foi o que teve a segunda maior taxa de variação de
aprisionamento no mundo, apenas perdendo para a Indonésia. Essa variação mede a
proporção em que a população prisional cresceu em relação à população total, em dado
período. Assim:
Nos últimos 14 anos a população do sistema prisional brasileiro teve um
aumento de 167,32%, muito acima do crescimento populacional, aumento
que reflete tanto ou mais a política criminal hegemônica dos agentes

9
Disponível em www.prisonstudies.org, acessado em maio de 2015 (maioria dos dados de 2013 e 2014).
22

públicos do que a mudança nas tendências de ocorrências criminais no país


(INFOPEN, 2014, p. 18)

O ponto importante é que, aqueles três países, apresentaram, nesse mesmo período,
uma redução dessa taxa (INFOPEN, 2014, p. 15). Relacionada à demografia dos Estados
observa-se o estado de São Paulo, com o maior número de presos, tem 240.061 pessoas
privadas de liberdade, montante que corresponde a 33,1% da população prisional do país
inteiro. Na sequência aparece: Minas Gerais, com 68.354 presos, Paraná com 51.700 presos e,
o Rio de Janeiro, com 50.219. Portanto, o nosso Estado ocupa o quarto lugar em número de
aprisionamento no Brasil (INFOPEN, 2016, pp. 09-10).
Conforme o último censo penitenciário (INFOPEN, 2016, p.14), 40% das pessoas
presas encontravam-se sem condenação definitiva. Ora, considerando que a prisão cautelar é
uma medida entendida por toda a doutrina como excepcional, tal número chama atenção e
gera, no mínimo, curiosidade: Que exceção é essa que tanto se aproxima da regra? Temos no
sistema, portanto, 60% de pessoas presas com condenação definitiva e 40% considerados,
pela letra constitucional, de inocentes presos, pessoas privadas de liberdade sem culpa. Havia,
em 2016, 292.450 pessoas presas antes de serem julgadas em primeiro grau, sendo que
parcela disso certamente poderia responder ao processo em liberdade.
Importante ressaltar que, de acordo com os achados da pesquisa ―A
Aplicação de Penas e Medidas Alternativas‖, realizada pelo Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA, por demanda do DEPEN, constatou-
se que 37% dos réus que responderam ao processo presos não foram
condenados a pena privativa de liberdade. (IPEA, 2015, p. 38)

Chama mais atenção quando se nota que, dentre as 27 unidades da federação, nove
Estados têm mais da metade de sua população prisional composta por presos provisórios,
nesses Estados a exceção virou a regra. São eles: Sergipe (65%), Maranhão (59%), Bahia
(58%), Piauí (55%), Pernambuco (51%), Amazonas (64%), Minas Gerais (58%), Ceará (66%)
e Mato Grosso (52%) (INFOPEN, 2016, p. 14). De todas as vagas existentes no sistema
carcerário brasileiro 49% existem para abrigar presos provisórios:
49% dos estabelecimentos prisionais no Brasil foram concebidos para o
aprisionamento de presos provisórios. As demais destinações se dividem
entre o regime fechado (24% das unidades), regime semiaberto (8%), regime
aberto (2%), destinados a diversos tipos de regime (13%), destinados ao
cumprimento de medida de segurança (2%), e aqueles destinados à
realização de exames gerais e criminológicos e os patronatos, que juntos
somam menos que 1% do total de unidades (INFOPEN, 2016, p. 17)
23

Também causa estranhamento que haja no sistema prisional brasileiro mais


estabelecimentos mistos (244,17%) do que para mulheres (107,7%). Isso significa que a
maioria dos estabelecimentos para o sexo feminino não foram projetados para esse fim.
A maior parte dos estabelecimentos penais foram projetados para o público
masculino. 74% das unidades prisionais destinam-se aos homens, 7% ao
público feminino e outros 17% são caracterizados como mistos, o que
significa que podem contar com alas/celas específicas para o aprisionamento
de mulheres dentro de um estabelecimento originalmente masculino
(INFOPEN, 2016, p. 19)

Ora, o artigo 5º, inciso XLVIII, da Constituição Federal de 1988 impõe que a pena
deverá ser cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a
idade e o sexo do apenado, sendo assim, inadequada a existência de estabelecimentos mistos
(INFOPEN, 2014, pp. 26 e 32 e INFOPEN, 2016, p.19).

1.1. O negro10 como criminoso em potencial

A maior parte da população carcerária do Brasil é composta por jovens, ou seja,


aqueles que têm entre 18 e 29 anos de idade. Tal perfil também se repete para a situação do
encarceramento feminino, havendo, no entanto, um percentual maior no número de homens
jovens presos (56%) do que de mulheres (49%). Vale deixar consignado que, segundo o
IBGE, 21% da população brasileira é jovem (INFOPEN, 2014, p. 49). O último censo traz
dado semelhante (55%), mas não traz da população carcerária feminina (INFOPEN, 2016, p.
30).
A partir da análise da amostra de pessoas sobre as quais foi possível obter
dados acerca da idade, podemos afirmar que 55% da população prisional é
formada por jovens, considerados até 29 anos, segundo classificação do
Estatuto da Juventude (Lei nº 12.852/2013). Ao observarmos a participação
dos jovens na população brasileira total, é possível afirmar que esta faixa

10
Preferi utilizar negro como termo, ao invés da expressão ―não branco‖ ou ―de cor‖. Explico-me: Num primeiro
momento compreendi que, conforme o olhar decolonial, que o critério do branco foi forjado pelo padrão
europeu-caucasiano e, dessa maneira, todos aqueles que não fossem brancos, já seriam tidos como inferiores, ou
seja, não brancos, servindo à nossa realidade de mestiçagem (BELLO, 2015, p.53). Posteriormente notei que há
feministas negras americanas que demarcam através da expressão ―de cor‖, o que entendi, na realidade brasileira
como pejorativo. Ao ler sobre branquitude notei que até o branco é também categorizado: havendo o branco-
branco e o branco. Por fim, conversando, com uma amiga e também doutoranda do PPGSD-UFF, Carolina
Câmara Pires dos Santos, coordenadora do Projeto de Pesquisa Anastácia Bantu, militante do movimento negro,
e, estudiosa de questões raciais, decidi que usaria o termo negro entendendo que o uso da palavra contribuiria
para retratar a questão e contribuir para reforçar o antirracismo. E pondo fim à minha ansiedade sigo com a
autoridade do negro, professor e militante Joel Rufino dos Santos: ―mulato é negro para todos os efeitos‖
(SANTOS, p. 51, 2015).
24

etária está sobre representada no sistema prisional: a população entre 18 e 29


anos representa 18% da população total no Brasil e 55% da população no
sistema prisional no mesmo ano (INFOPEN, 2016, p.30)

Já no que diz respeito à questão racial, merece destaque que a cada três presos dois são
negros. Enquanto o Brasil tem 51% de sua população composta por negros, no sistema
carcerário a porcentagem é de 67%. Fenômeno semelhante ocorre no encarceramento
feminino (INFOPEN, 2014, p. 50).
Vale destacar que o último censo não trouxe significante alteração, mas traz uma
importante informação ao esclarecer que, diferentemente do que ocorre com os dados do
IBGE que são pautados na autodeclaração, no caso do sistema penitenciário esse
cadastramento é feito pelo agente penitenciário responsável pela coleta do INFOPEN, método
que entendo ser muito equivocado, posto que, diante de uma população miscigenada, que
passou por todo um processo de branqueamento e apagamento de sua negritude, fica
excessivamente vulnerável tal ―catalogação‖ vir sem nenhum tipo de contextualização:
A partir da análise da amostra de pessoas sobre as quais foi possível obter
dados acerca da raça, cor ou etnia, podemos afirmar que 64% da população
prisional é composta por pessoas negras. Na população brasileira acima de
18 anos, em 2015, a parcela negra representa 53%, indicando a sobre
representação deste grupo populacional no sistema prisional (INFOPEN,
2016, p.32)

Quanto à escolaridade, oito em cada dez pessoas privadas de liberdade chegaram a


concluir o ensino fundamental. Isso mostra que a população carcerária além de jovem e negra
tem baixíssima escolaridade (INFOPEN, 2014, p. 51), evidenciando quem são os indesejáveis
de nosso tempo. Não há alteração marcante de tal quadro no censo mais recente, pois neste,
75% da população prisional do Brasil não teve acesso ao ensino médio, tendo concluído, no
máximo, o ensino fundamental.
No último censo da população carcerária consta 0% no item ―ensino superior
completo‖ delineando o que a criminologia crítica desde muito sinalizava: a prisão é feita para
o controle dos pobres (INFOPEN, 2016, pp. 34-35)

1.2. Guerra às drogas instrumentalizando o grande encarceramento

Segundo o INFOPEN de 2014, o tráfico de drogas é o crime de maior incidência,


respondendo por 27% dos crimes informados. Isso se dá como fruto de uma política de guerra
25

às drogas que fomenta o crescimento da população prisional nas últimas décadas,


principalmente no que tange ao aprisionamento feminino, o que será visto mais adiante. Em
seguida o crime de roubo computa 21% dos crimes praticados. Já o homicídio corresponde a
14% dos registros e o latrocínio a apenas 3% (INFOPEN, 2014, p. 69).
Entre os tipos criminais atribuídos à população carcerária, segundo as
grandes categorias do código penal brasileiro, destacam-se os crimes contra
o patrimônio, crimes contra e pessoa e crimes de relacionados às drogas que,
juntos, são responsáveis por 87% do encarceramento total (INFOPEN, 2014,
p. 32)

O quadro não sofreu alteração no último censo conforme pode ser observado abaixo:
Os crimes de tráfico correspondem a 28% das incidências penais pelas quais
as pessoas privadas de liberdade foram condenadas ou aguardam julgamento
em Junho de 2016. Os crimes de roubo e furto somam 37% das incidências e
os homicídios representam 11%. Ao compararmos a distribuição entre
homens e mulheres, no entanto, evidencia-se a maior frequência de crimes
ligados ao tráfico de drogas entre as mulheres. Entre os homens, os crimes
ligados ao tráfico representam 26% dos registros, enquanto entre as mulheres
esse percentual atinge 62% (INFOPEN, 2016, p. 43)

Ressalte-se que os indivíduos presos por tráfico de drogas não correspondem à


imagem disseminada de criminosos poderosos e violentos, estereótipo do discurso oficial.
Ao contrário disso, a política de repressão às drogas atinge majoritariamente homens e
mulheres pobres, de baixa escolaridade, que são presos desarmados, revelando, portanto, o
caráter seletivo de criminalização da pobreza, dos indesejáveis de nosso tempo (ZACCONE,
2015, p.12).
Na pesquisa conduzida pelo delegado de polícia Orlando Zaccone, em sua dissertação
de mestrado, ele explica que: após ser transferido da delegacia situada no bairro de
Jacarepaguá, região que abrange a Cidade de Deus (favela que se tornou famosa em razão do
filme de mesmo nome) para a delegacia situada no bairro da Barra da Tijuca, área de classe
média, verificou que, enquanto na primeira lavrava flagrante de tráfico de drogas diariamente,
durante o período de um ano na delegacia da Barra da Tijuca apenas lavrou um, dando a
impressão de que neste bairro não existe tráfico (ZACCONE, 2015, pp.12-13).
Assim, diante das estatísticas policiais no Estado do Rio de Janeiro, um pesquisador
poderia ser facilmente induzido a erro quando na verdade o que está exposto é a dupla
seletividade do sistema penal. ―Inicialmente o Estado define em lei as condutas consideradas
como crime, para, imediatamente após, selecionar as pessoas que irão responder por estes
fatos‖ (ZACCONE, 2015, p.13).
Na lição de Zaffaroni e Nilo Batista, o poder punitivo penal se traduz num
processo seletivo de criminalização que se desenvolve em duas etapas
26

denominadas, respectivamente, primária e secundária. A criminalização


primária, exercida pelas agências políticas (poder legislativo), é o ato e o
efeito de sancionar uma lei penal material que incrimina ou permite a
punição de certas pessoas. Trata-se de um programa de punição a ser
cumprido pelas agências de criminalização secundária (policiais,
promotores, juízes, advogados, agentes penitenciários). A criminalização
secundária é a ação punitiva exercida sobre pessoas concretas, que se
desenvolve desde a investigação policial até a imposição e a execução de
uma pena e que, necessariamente, se estabelece através de um processo
seletivo (ZAFFARONI e BATISTA, 2003, p. 43 apud ZACCONE, 2015,
pp. 15-16)

Augusto Thompson (1998, p.87) já afirmava que, em verdade, a polícia é quem


controla a atividade do judiciário, uma vez que depende do material dado por ela, é com base
nos autos de prisão em flagrante que esse aprisionamento significativo para o sistema
carcerário começa como política de combate às drogas. No mesmo sentido, Michel Foucault
(2008), tratando acerca da normalização, também dizia que a justiça estava a serviço da
polícia.
O processo, neste tipo de crime, não é o local onde se apura o fato
criminoso, mas simplesmente onde se repete o que foi documentado pela
polícia, como um teatro, onde o que está em jogo não é o fato, mas somente
o documento apresentado. Convalidando-se o auto de prisão em flagrante,
elaborado logo após a prisão do acusado, tem-se como comprovado o fato,
ou seja, o juiz, nos processos de tráfico de drogas, não é o juiz togado, mas o
policial na rua (VALOIS, 2016, p.459)

Dessa forma, o sistema opera ao contrário do que se propaga, não são os índices que
determinam a política, mas sim o oposto. É a política que determina os índices.
Há um enrijecimento do combate às drogas, a criação de um inimigo interno, a sua
estigmatização, o aumento do controle sobre este indivíduo (que poderá ser visto como o
homo sacer da biopolítica agambeniana), seu aprisionamento e, por fim, o judiciário
chancelando com uma suposta imparcialidade, a sua condenação. Neste sentido, elaborando
análise das decisões proferidas pelo Judiciário, trata a tese recentemente defendida por
Marcelo Semer, Sentenciando tráfico: pânico moral e estado de negação formatando o papel
dos juízes no grande encarceramento (2019). Tanto ela será utilizada, como outras pesquisas
feitas sobre diversos olhares nessa temática da chamada ―guerra às drogas‖.
Valo ressaltar que o próprio espaço das cidades pode ser um facilitador dessa
seletividade: ―As classes média e alta tendem a passar a maior parte do tempo em locais
fechados; os indivíduos marginalizados vivem a céu aberto‖ (THOMPSON, 1998, p. 60), o
espaço de circulação das drogas é visível no espaço público. Extensa pesquisa acerca da
segurança pública no Rio de janeiro foi formulada no doutoramento de Roberta Duboc
27

Pedrinha, culminando na publicação Criminologia, segurança pública e direitos humanos: um


estudo sociológico-criminal das violações e resistências: o caso alemão.
Portanto, a preocupação com a questão da segurança pública, da violência estatal, do
encarceramento, das mortes, tem sido objeto de estudo em diversas áreas do conhecimento
além do Direito. É não é novidade que o estereótipo do bandido aponta para o jovem negro e
favelado enquanto que os jovens mais abastados nunca são rotulados como traficantes, mas
sim como usuários.
Para Nils Christie, a guerra às drogas reforçou o controle do Estado sobre esses
indivíduos considerados perigosos, sendo que esses indivíduos apenas ocupam a ponta do
comércio de drogas, são em sua maioria pessoas que convivem desde sempre diante da
injustiça social, privados até mesmo de sua própria honra (CHRISTIE, 1998, p. 61 apud
ZACCONE, 2015, p.23). Neste sentido, também aponta Julita Lemgruber:
O segundo e assustador aspecto do estudo refere-se ao tráfico de drogas, pois
a prisão provisória é mantida até o julgamento quase que na integralidade
dos casos (98%). Portanto, aplicação zero da lei de medidas cautelas para o
crime que tem o maior aumento processual penal. Somente na última fase
desses processos, em cerca de 30% deles, é que há a soltura, já que a pena
imposta não é a prisão em regime fechado ou semiaberto. Pode-se afirmar
que os indivíduos que de algum modo tangenciam os crimes previstos na lei
de entorpecentes são os que exponencialmente representam o ―inimigo‖ nos
dias de hoje, e sabemos que os ―inimigos‖ são destituídos de natureza
humana, razão pela qual lhe são subtraídos os atributos da humanidade e por
consequência da cidadania. Importante lembrar que foi no período das
ditaduras da América Latina que se lançou fortemente a guerra contra as
drogas (LEMGRUBER, 2014, p. 04)

Dessa maneira, observamos que a política de combate às drogas é uma política de


combate aos indesejáveis e a fundamentação das decisões judiciais apenas traz o reflexo de
uma escolha de combate ao inimigo da vez, que é alcançado pelos braços do Estado pelas
mãos da polícia, quando não é morto pelas mãos da polícia. O Judiciário apenas chancela o
engodo, seja ele qual for, dando o caráter de um ―devido processo legal‖.
Fica fácil, apenas com o olhar debruçado pelas estatísticas que a preocupação do
Estado aqui não é controlar as drogas, mas sim controlar as pessoas. E o controle sobre as
pessoas atenderá a um critério seletivo. Mais para frente apresentarei de que forma é possível
estabelecer a relação entre esses sujeitos controláveis com a figura do homo sacer. Ou seja,
esses indivíduos que unicamente existem biologicamente e que são incorporados à sociedade
através da exclusão, vivem de maneira marginal, pois ficam à margem.
Tal condição ficou explicitada na pesquisa: Novas configurações das redes criminosas
após a implantação das UPPs realizada pelo Observatório de Favelas, organização não
28

governamental sediada no Complexo da Maré, um dos maiores conjuntos de favelas 11 do Rio


de Janeiro. A pesquisa demonstrou que a maioria dos jovens que entram para a atividade
relacionada ao comércio ilícito de drogas é negra, vinda de família numerosa chefiada
unicamente por mulheres, são de baixa renda, tiveram que abandonar os estudos por
necessidade, e antes de ingressar na atividade ilícita tentou exercer atividade laborativa lícita
(normalmente precária), mas, para ajudar financeiramente no sustento da família optaram pela
atividade criminosa.
Esse resultado reforça o que Vera Malaguti Batista (2009), há anos já dizia ao cunhar
o conceito da ―demonização‖ da juventude pobre do Rio de Janeiro. Juventude injustiçada
pelas regras de uma sociedade globalizada que não atende ao mínimo existencial para a vida
digna. A opção por esses supostos ganhos ―fáceis‖ é, na realidade, uma opção de vida
extremamente difícil, eis que o destino é precocemente traçado como ―vala ou cela‖.
E por isso são indignos de vida conforme o termo que intitula a tese de Orlando
Zaconne acerca daqueles mortos pelos braços do Estado (2015) e que, na minha leitura vejo
como ―indignos de vida digna‖. A escolha desse termo não é à toa, mas relaciona-se à vida
nua, biológica, a zoé de Giorgio Agamben (2014, p. 09). Para eles há ainda a permissão de
viver biologicamente, mas são descartáveis, a sua existência está num grau de indiferença que
hoje é extrema (Sobre)vivem, pelo que foi apresentado com os dados do sistema prisional, de
maneira marginal, alheios ao mínimo de dignidade, sendo, para a justiça penal 12, o alvo dessa
seletividade que exclui. O que apresentarei como necropolítica (MBEMBE, 2018), tem sido
nos últimos meses assustador, de maneira que tenho repetido que estamos assistindo a algo
como uma necropolítica maximizada13 em tempos bastante sombrios.

11
O Centro Universitário onde lecionei por onze anos fica no bairro de Bonsucesso, bairro situado entre os
maiores complexos de favelas do Rio de Janeiro (Maré e Alemão). Nesses anos, através de relatos de alunos,
muitos moradores desses espaços, pude notar a profundidade da segregação. Por diversas vezes tirei dúvidas de
processo penal relacionada à prisão de parentes de alunos, tive alunos presos e alunos mortos, alunos traficantes
e alunos policiais. Muitas alunas vítimas de violência doméstica. Com o tempo aprendi a linguagem, aprendi que
a mentira ―social‖ era necessária para um emprego: nunca falar que é ―da Maré‖, mas sim de Bonsucesso, nunca
falar que é ―do Alemão‖, mas sim da Penha. Aprendi a distinguir calibre de armas durante as aulas ouvindo tiros
(normalmente de Manguinhos). A violência é inerente àqueles espaços. No último semestre em que lecionei,
uma aluna moradora da Maré, após a aula, veio falar comigo dizendo que eu era uma inspiração por ser ―como
ela‖, dando a entender que eu era uma ex-favelada e que ―subi na vida‖. Expliquei a ela que eu não era, que era
apenas um exercício de empatia, mas que minha vivência jamais sentiu a dor por ela sentida. Foi lecionando que
aprendi o que é local de fala e o dito por essa aluna só fez com que eu me sentisse honrada.
12
Para Thula Pires Justiça Penal é ―toda a engrenagem formada pelo Poder Legislativo, Judiciário, Ministério
Público, Polícia, Sistema carcerário e demais agências formais de controle, que orientam suas ações para a
retirada do convívio social dos membros considerados ‗fora de lugar‘‖ (PIRES, 2018, p. 1061).
13
Matéria aponta que a superlotação aumentou e o número de presos provisórios voltou a crescer no Brasil
Disponível em: https://g1.globo.com/monitor-da-violencia/noticia/2019/04/26/superlotacao-aumenta-e-numero-
de-presos-provisorios-volta-a-crescer-no-
brasil.ghtml?fbclid=IwAR2CvaEt9w2Id3wZqKM3LLfMKHpQ7WuBuuYVbEoIY-CKU2gBMtmC5QJuyPw.
Noutro aspecto temos que o número de mortes por intervenção policial no RJ é o maior nos últimos 20 anos,
29

1.3. O controle dos corpos femininos negros e das gerações futuras

Nota-se que o encarceramento feminino obedece a padrões de criminalização muito


distintos do que o do público masculino. Enquanto 27% dos crimes pelos quais os homens
respondem estão relacionados ao tráfico, para as mulheres essa proporção alcança a ordem de
63%, ou seja, a guerra às drogas é causa geradora principal da exclusão da mulher preta e
pobre de seu espaço social, com todas as consequências daí advindas, posto que, muitas já são
mães ou estão grávidas na ocasião da prisão.
Juliana Borges em sua abordagem sobre o Encarceramento em Massa explica que:
Se, primeiro, o genocídio que acometia as mulheres negras passava mais por
outros âmbitos do sistema como negação de acesso à saúde, saneamento,
políticas de autonomia dos direitos sexuais e reprodutivos, a violência sexual
e doméstica, super exploração do trabalho, notadamente o doméstico, estas
violências vão, também, se sofisticando e tomando contornos cada vez mais
complexos, modificando-se do controle para o extermínio necropolítico (...)
A guerra às drogas entra em cena como o discurso de legitimação da ação
genocida do Estado (BORGES, 2018, p. 22)

Este trabalho ainda trará muitas vezes a fala desta autora em razão das discussões
históricas e interseccionais de gênero, raça, classe e aprisionamento. Ainda seguindo na
apresentação dos dados prisionais, em termos proporcionais, o número de crimes de roubo
registrados para homens é três vezes maior do que para mulheres (INFOPEN, 2014, p. 70).
A participação de mulheres na população prisional brasileira é, em geral,
pouco significativa. A média brasileira é 5,8% de mulheres presas para
94,2% de homens (...) o ritmo de crescimento da taxa de mulheres presas na
população brasileira chama a atenção. De 2005 a 2014, essa taxa cresceu
numa média de 10,7% ao ano. Em termos absolutos, a população feminina
saltou de 12.925 presas em 2005 para 33.793 em 2014 (INFOPEN, 2014, p.
39)

Em todo caso, é evidente que o ritmo de crescimento da população prisional feminina


no Brasil é acelerado. Enquanto a taxa total de aprisionamento aumentou 119% entre 2000 e
2014, a taxa de aprisionamento de mulheres aumentou 460% no período, saltando de 6,5

também noticiado em matéria disponível em: <https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2019/05/03/rj-bate-


recorde-na-apreensao-de-fuzis-em-2019-numero-de-mortes-por-intervencao-policial-e-o-maior-nos-ultimos-20-
anos.ghtml?utm_source=facebook&utm_medium=social&utm_campaign=g1&utm_content=post&fbclid=IwAR
1fSh9zC_vYV62qLRQqc7AIMv9lTOQS7nFrb8eElQ3PzcV2jVs4WQP5ARU> Acesso de ambas em
07/05/2019.
30

mulheres presas para cada 100 mil mulheres em 2000 para 36,4 mulheres presas para cada
100 mil mulheres em 2014 (INFOPEN MULHER, 2014, p.19)
Destaque-se também que, enquanto 52% das unidades masculinas são destinadas a
presos provisórios, apenas 27% das unidades femininas tem esse foco, sendo que só 34% dos
estabelecimentos femininos dispõem de cela ou dormitório adequado para gestantes e 32% de
berçário ou centro de referência materno infantil (INFOPEN MULHER, 2014, p. 20)
A cada dez mulheres presas no Brasil, três ainda não tem condenação, porém, não se
trata de um dado homogêneo, ao contrário disso:
Nota-se significativa heterogeneidade na distribuição, valendo notar que
apenas nos estados de São Paulo e Rondônia esse percentual se situa num
patamar abaixo de 20%. O baixo percentual de mulheres presas sem
condenação no estado de São Paulo, estado que concentra 39% da população
prisional feminina total, é responsável por situar o patamar nacional em
30%. Vinte e uma Unidades da Federação situam-se acima da média
nacional (INFOPEN MULHER, 2014, p.21)

Pelos dados fornecidos ao INFOPEN pelo Estado de Sergipe, nessa unidade da


federação 99% das mulheres presas na ocasião da pesquisa, ainda não tinham condenação.
Da mesma forma que temos para o aprisionamento masculino, aqui temos uma
população carcerária predominantemente jovem, eis que 50% das mulheres encarceradas têm
entre 18 e 29 anos (INFOPEN MULHER, 2014, p.22)
Temos ainda 68% da população carcerária feminina composta por negras sendo que no
Brasil os negros são 51% da população, o que ressalta o critério seletivo do aprisionamento
(INFOPEN MULHER, 2014, p. 24).
Já quanto à escolaridade a condição das mulheres encarceradas é ligeiramente melhor
do que a dos homens (50% das mulheres encarceradas não concluíram o ensino fundamental –
53% dos homens) (INFOPEN MULHER, 2014, p. 26)

1.4. Aprisionamento cautelar: a exceção como regra

A Associação pela Reforma Prisional (ARP) em conjunto com o Centro de Estudos


em Segurança e Cidadania (CESEC) realizaram importante estudo acerca da aplicação da
prisão cautelar no Estado do Rio de Janeiro (LEMGRUBER, 2014, p. 04).
31

Como apresentado, 40% da população carcerária é composta por presos cautelares,


sendo consideradas estas prisões tanto as de natureza temporária14 quanto as de natureza
preventiva.
De todo jeito, vale dizer que a utilização dessa medida extrema não tem
homogeneidade em nosso país, por isso vemos que enquanto no Estado do Amazonas tinha
77% de seus presos em prisão cautelar, no Estado de Roraima tinha apenas 5%.
No entanto, é fato que nove Estados têm mais que 50% de seus presos nessa situação
de exceção, evidenciando a naturalização em que a exceção é tratada.
No caso do Rio de Janeiro tínhamos 37% da população carcerária em caráter cautelar,
ficando esse Estado acima da média nacional (INFOPEN, 2016, p. 22). A pesquisa da ARP
com o CESEC trará para nos também importantes indicadores.
A pesquisa fez também uma breve abordagem do impacto da Lei 12.403/11 na
utilização das prisões cautelares e trouxe, como conclusão, que, embora tenha ocorrido uma
redução de seu uso, esta ainda é a medida preferencialmente aplicada. No período, pesquisado
ficou evidenciado que:
Uma parcela muito significativa das prisões provisórias foi imposta
abusivamente, isto é, em franco conflito com o princípio de
proporcionalidade entre medida cautelar e punição aplicada: nada menos de
42% dos acusados que foram mantidos presos após o flagrante terminaram
cumprindo penas diversas da prisão ou, quando muito, uma pena de prisão
em regime aberto; 6% foram absolvidos e 15% enquadraram-se em outras
situações processuais, como suspensão condicional do processo ou da pena,
extinção de punibilidade ou rejeição da denúncia (LEMGRUBER, 2014, p.
04)

Vale observar que, para as hipóteses de prisão pelo crime de furto, o impacto da Lei
12.403/11 foi visível, mas, em contrapartida praticamente todos (98%) os casos apresentados
como tráfico de drogas continuaram com a utilização da prisão preventiva.
Esse dado corrobora com a análise supracitada da política de combate ao tráfico de
drogas (ou política de controle de pobres), posto que, em um crime sem violência há mais
prisões preventivas do que em crimes de homicídio (91%) (LEMGRUBER, 2014, p. 19)
Na etapa em que a pesquisa cita as entrevistas com os juízes surgem como argumento
para a não concessão da liberdade o fato de que o crime de tráfico de drogas é um crime
equiparado a hediondo, que gera repercussão social, que atenta contra a ―ordem pública‖,
sendo que ele vem hipoteticamente acompanhado, quase sempre, de outros crimes, num
exercício de futurologia feito frequentemente pelos juízes.
14
Como a prisão temporária, prevista pela Lei nº 7.960, de 21 de dezembro de 1989, tem seu prazo de duração
previsto, não é ela que me chama a atenção, mas sim as prisões de natureza preventiva.
32

Não obstante ser evidente a margem de ambiguidade que a própria lei deixa para a
caracterização de quem é usuário ou traficante (LEMGRUBER, 2014, p. 30). Evidencia-se a
rotulação e estigmatização sobre aqueles que ―correspondem‖ à imagem do criminoso.
A garantia da ordem pública como uma expressão aberta, é funcional ao permitir
abarcar qualquer tipo de justificativa para se privar os imputados da liberdade, ainda que os
juízes estejam diante de provas inexistentes, permitindo o caráter seletivo segundo o perfil
socioeconômico dos acusados.
O tráfico de drogas ao ser demonizado e colocado como motivo de uma guerra faz
com que haja a necessidade de uma também demonização do inimigo, que é o público
principal de nossos cárceres: preto, pobre e favelado.

1.5. Audiências de custódia no Rio de Janeiro: um substitutivo a serviço do sistema?

A audiência de custódia é o direito daquele que vem a ser preso de ser conduzido à
presença de um juiz, no prazo de 24 horas, para que este possa, além de ouvi-lo, avaliar a
legalidade e a necessidade de uma eventual manutenção da prisão, convertendo (ou
convolando) a prisão em flagrante em prisão preventiva mediante a sua provocação em
respeito ao sistema acusatório (art. 310, II, parte inicial do Código de Processo Penal).
Em sendo essa prisão oriunda de um flagrante, as decisões que podem advir dessa
audiência são: o relaxamento de eventual prisão ilegal (art. 310, I, do Código de Processo
Penal); a concessão de liberdade provisória (art. 310, III, do Código de Processo Penal); a
substituição da prisão em flagrante por medidas cautelares diversas (artigos 310, II, parte final
e 319 do Código de Processo Penal).
O conceito de custódia se relaciona com o ato de guardar, de proteger. A
audiência de custódia consiste, portanto, na condução da pessoa presa, sem
demora, à presença de uma autoridade judicial que deverá, a partir de prévio
contraditório estabelecido entre o Ministério Público e a defesa, exercer um
controle imediato da legalidade e da necessidade da prisão, assim como
apreciar questões relativas à pessoa do cidadão conduzido, notadamente a
presença de maus tratos ou tortura. Assim, a audiência de custódia pode ser
considerada como uma relevantíssima hipótese de acesso à jurisdição penal,
tratando-se de uma das garantias da liberdade pessoal que se traduz em
obrigações positivas a cargo do Estado (PAIVA, 2018, p.43)
33

É através dessa audiência com o juiz, que este poderá avaliar também eventuais
ocorrências de tortura ou de maus-tratos, que porventura tenham ocorrido na ocasião da
prisão.
Embora não prevista no Código de Processo Penal, a audiência de custódia tem
amparo em diversos tratados internacionais de Direitos Humanos ratificados pelo Brasil. O
art. 7º, 5, da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), também chamada de
Pacto de San Jose da Costa Rica prevê que:
Toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à
presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções
judiciais e tem o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em
liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser
condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo.

No mesmo sentido, o art. 9º., 3 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos
(PIDCP) de Nova York, dispõe:
Qualquer pessoa presa ou encarcerada em virtude de infração penal deverá
ser conduzida, sem demora, à presença do juiz ou de outra autoridade
habilitada por lei a exercer funções judiciais e terá o direito de ser julgada
em prazo razoável ou de ser posta em liberdade. A prisão preventiva de
pessoas que aguardam julgamento não deverá constituir a regra geral, mas a
soltura poderá estar condicionada a garantias que assegurem o
comparecimento da pessoa em questão à audiência, a todos os atos do
processo e, se necessário for, para a execução da sentença.

A Convenção Europeia de Direitos Humanos (CEDH), em seu artigo 5º, 3 diz que:
‖qualquer pessoa presa ou detida nas condições previstas no parágrafo 1, alínea c, do presente
artigo deve ser apresentada imediatamente a um juiz ou outro magistrado habilitado pela lei
para exercer funções judiciais‖.
E, por fim, temos o artigo XI da Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento
Forçado de Pessoas15 que prevê que toda pessoa privada de liberdade ―deve ser apresentada
sem demora e de acordo com a legislação interna respectiva, à autoridade judiciária
competente‖.
Dessa forma, chama atenção o fato da tardia e não completa adaptação de nosso
Processo Penal aos tratados internacionais de direitos humanos, pois se entende que não há
discricionariedade neste sentido, não há margem de escolha para decidir o que deve e o que
não deve ser obedecido dentro de tais previsões.

15
Promulgada no Brasil pelo Decreto nº 8.766/2016.
34

Observa-se ainda que dentro das finalidades da utilização da audiência de custódia há,
além da adequação aos tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, a prevenção da
violência policial e da tortura:
Garantindo-se a apresentação imediata, ou, ainda, ‗sem demora‘, a audiência
de custódia pode eliminar – pelo menos – a violência policial praticada no
momento da abordagem no flagrante e nas horas seguintes, pois os
responsáveis pela apreensão/condução do preso terão previa ciência de que
qualquer alegação de tortura poderá ser levada imediatamente ao
conhecimento da autoridade judicial, da defesa (pública ou privada) e do
Ministério Público, na realização da audiência de custódia (PAIVA, 2018, p.
52)

Por última finalidade da audiência de custódia temos o propósito de evitar a


manutenção de prisões desnecessárias e ilegais. Sendo assim, além de controlar o auto de
prisão em flagrante ou o decreto ensejador da prisão, há um olhar para o futuro visando
verificar a necessidade e adequação da manutenção da constrição (BADARÓ, 2015, p.14)
É nessa finalidade, ―para o futuro‖, que cujo nosso foco se debruça na pesquisa.
Verificar quais motivos hoje são considerados justificadores para a manutenção da prisão por
garantia da ordem pública e de que forma esse fundamento tem sido utilizado no Rio de
Janeiro nas manutenções de prisões oriundas das audiências de custódia.
Embora o Brasil tenha aderido à Convenção Americana de Direitos humanos há mais
de 20 anos somente de alguns anos para cá se iniciou a implementação das referidas
audiências16.
Somente em 2015, em razão da superlotação das prisões brasileiras, o Conselho
Nacional de Justiça (CNJ), em parceria com o Ministério da Justiça em conjunto com o
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, através do Provimento Conjunto nº 03//2015,
trouxe para aquele Estado o projeto-piloto da Audiência de Custódia que consistiu na
apresentação, sem demora, a um juiz daquele que foi preso em flagrante, sendo este
acompanhado da Defensoria Pública ou de seu advogado constituído e de um membro do
Ministério Público.
Neste projeto também ocorreu a previsão da estruturação de centrais de alternativas
penais, centrais de monitoramento eletrônico, centrais de serviços e assistência social e
câmaras de mediação penal, tudo com o intuito de reduzir os danos gerados pela utilização da
prisão preventiva.

16
Sobre o tema audiência de custódia temos, além do projeto de novo Código de processo penal (projeto de lei
do Senado nº 156/2009 onde a audiência de custódia foi rejeitada), temos ainda o Projeto de Lei nº 554/2011,
também do Senado e duas propostas de Emendas Constitucionais nº 112/2011 e nº 89/2015. É, contudo o PL nº
554/2011 que está em estado mais avançado.
35

Lançado em 6 de fevereiro de 2015, o CNJ lançou o projeto Audiência de


Custódia, em São Paulo. No discurso, Lewandowski anunciou a intenção de
levar o projeto a outras capitais. O DMF já discutiu a proposta em AM, MT,
TO, PI, CE, DF, PB, PE, MG, ES, PR, SC, RJ e MA.
No dia 9 de abril, o CNJ, o Ministério da Justiça e o Instituto de Defesa do
Direito de Defesa (IDDD) assinaram três acordos que têm por objetivo
incentivar a difusão do projeto Audiências de Custódia em todo o País, o uso
de medidas alternativas à prisão e a monitoração eletrônica. As medidas
buscam combater a cultura do encarceramento que se instalou no Brasil.17

Após um breve período de teste, o Conselho Nacional de Justiça previu uma


unificação normativa acerca do tema através da Resolução 213 de 15.12.2015, que entrou em
vigor no início de 2016.
Alguns pontos merecem ser destacados nesta Resolução, sendo o primeiro deles a
garantia do preso de escolher seu patrono, não havendo a imposição da Defensoria Pública.
A escolha do seu defensor decorre de um ato de confiança do preso sendo um direito
tanto assegurado na Constituição da República Federativa do Brasil, como um desdobramento
do princípio da ampla defesa, quanto em tratados internacionais de Direitos humanos dos
quais o Brasil é signatário.
É após a lavratura do auto de prisão em flagrante, normatizado do nosso Código de
Processo Penal nos artigos 304 até 310 que terá início ao preparo da audiência de custódia.
Primeiramente caberá ao delegado comunicar o patrono do preso acerca do
comparecimento na audiência e, posteriormente, também a este caberá protocolar o auto de
prisão em flagrante no juízo correspondente em conformidade com o artigo 7º, §2º, da
Resolução 213 do Conselho Nacional de Justiça, verbis: ―a apresentação da pessoa presa (...)
acontecerá após o protocolo e distribuição do auto de prisão em flagrante e respectiva nota de
culpa perante a unidade judiciária correspondente‖.
Caberá às Secretarias de Administração Penitenciária e às Secretarias de Segurança
Pública a responsabilidade do deslocamento dos presos aos locais onde as audiências serão
realizadas (artigo 2º da Resolução 213 do CNJ) e, deverá haver prévia comunicação da defesa
e do Ministério Público para estarem presentes na audiência, sustentando Caio Paiva que seria
razoável um prazo de três horas para o possível deslocamento para o ato em conformidade
com a Resolução nº 04/2016 do Tribunal Regional Federal da 5ª Região (PAIVA, 2018,
p.148).

17
Disponível em: http://www.cnj.jus.br/sistema-carcerario-e-execucao-penal/audiencia-de-custodia/historico
Acesso em 24/03/2018.
36

Saliente-se que, de maneira alguma tal audiência poderá ser realizada sem a presença
da defesa técnica, e, caso o advogado constituído não apareça, deverá haver para o ato a
nomeação de Defensor Público ou de advogado ad hoc.
Destaca-se ainda a necessidade de que seja respeitada a prerrogativa dos Defensores
Públicos (LC80, artigos 44, VII, 89, VII, e 128, VI) e dos advogados (art. 7º, III, do EOAB)
de realizar a entrevista de maneira reservada, assegurando o direito do preso (PAIVA, 2018,
p.151).
Os juízes que presidem as audiências de custódia efetuam a coleta de dados do que
ocorre em tais audiências em um sistema eletrônico fornecido pelo próprio CNJ e previsto na
Resolução 213/2016, também há na resolução a previsão do que os juízes deverão fazer assim
que se iniciar a audiência:
Art. 8º Na audiência de custódia, a autoridade judicial entrevistará a pessoa
presa em flagrante, devendo:
I - esclarecer o que é a audiência de custódia, ressaltando as questões a
serem analisadas pela autoridade judicial;
II - assegurar que a pessoa presa não esteja algemada, salvo em casos de
resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física
própria ou alheia, devendo a excepcionalidade ser justificada por escrito;
III - dar ciência sobre seu direito de permanecer em silêncio;
IV - questionar se lhe foi dada ciência e efetiva oportunidade de exercício
dos direitos constitucionais inerentes à sua condição, particularmente o
direito de consultar-se com advogado ou defensor público, o de ser atendido
por médico e o de comunicar-se com seus familiares;
V - indagar sobre as circunstâncias de sua prisão ou apreensão;
VI - perguntar sobre o tratamento recebido em todos os locais por onde
passou antes da apresentação à audiência, questionando sobre a ocorrência
de tortura e maus tratos e adotando as providências cabíveis;
VII - verificar se houve a realização de exame de corpo de delito,
determinando sua realização nos casos em que:
a) não tiver sido realizado;
b) os registros se mostrarem insuficientes;
c) a alegação de tortura e maus tratos referir-se a momento posterior ao
exame realizado;
d) o exame tiver sido realizado na presença de agente policial, observando-se
a Recomendação CNJ 49/2014 quanto à formulação de quesitos ao perito;
VIII - abster-se de formular perguntas com finalidade de produzir prova para
a investigação ou ação penal relativas aos fatos objeto do auto de prisão em
flagrante;
IX - adotar as providências a seu cargo para sanar possíveis irregularidades;
X - averiguar, por perguntas e visualmente, hipóteses de gravidez, existência
de filhos ou dependentes sob cuidados da pessoa presa em flagrante delito,
histórico de doença grave, incluídos os transtornos mentais e a dependência
química, para analisar o cabimento de encaminhamento assistencial e da
concessão da liberdade provisória, sem ou com a imposição de medida
cautelar.
37

Após ouvir o preso, o juiz abrirá para perguntas ao membro do Ministério Público e à
defesa técnica, nesta ordem, não sendo, porém, permitido que sejam feitas perguntas acerca
do mérito dos fatos que possam implicar na imputação.
Por fim, será realizada a análise do artigo 310 do Código de Processo Penal para se
verificar se o preso deverá ter sua prisão relaxada, se deverá ser a ele concedida a liberdade
provisória sem ou com aplicação de medida cautelar diversa da prisão, ou
fundamentadamente o juiz poderá decretar a prisão preventiva oriunda da conversão do
flagrante, obedecendo ao artigo 312 do Código de Processo Penal.
Não obstante haver esforços no sentido da implementação das audiências de custódia
no Brasil, é fato que ela tem sido feita vagarosamente, muito embora já tenha até havido
determinação do Supremo Tribunal Federal, em decorrência de medida cautelar na ADPF nº
347, para que as audiências de custódia sejam realizadas em todo o território nacional no
prazo de 24h, a contar do momento da efetivação da prisão.
Ressaltando o fato de que tal determinação tem eficácia erga omnes e efeito
vinculante, ou seja, o mesmo Estado que visa combater o crime não consegue cumprir uma
determinação judicial que trata de disposição decorrente de diversos tratados internacionais de
Direitos Humanos (NEWTON, 2017).
Observando os dados fornecidos pelo Conselho Nacional de Justiça, desde a sua
implementação e considerando os Estados que aderiram ao projeto temos o seguinte quadro18:
Total no Brasil até junho/17:
Total de audiências de custódia realizadas: 258.485
Casos que resultaram em liberdade: 115.497 (44,68%)
Casos que resultaram em prisão preventiva: 142.988 (55,32%)
Casos em que houve alegação de violência no ato da prisão: 12.665 (4,90%)
Casos em que houve encaminhamento social/assistencial: 27.669 (10,70%)
(Grifos no original)

No Estado do Rio de Janeiro, a primeira audiência de custódia ocorreu no dia 18 de


setembro de 2015 e sua regulamentação se deu através da Resolução nº 29 do Tribunal de
Justiça do Estado de 24 de agosto de 2015.
Foi através desta Resolução que se criou as chamadas centrais de audiência de
custódia, conforme se lê no parágrafo primeiro de seu artigo primeiro: ―As audiências de que
trata o caput serão realizadas em Centrais de Audiências de Custódias CEAC's, que serão
instaladas nas dependências do Tribunal de Justiça‖.

18
Disponível em: http://www.cnj.jus.br/sistema-carcerario-e-execucao-penal/audiencia-de-custodia/mapa-da-
implantacao-da-audiencia-de-custodia-no-brasil. Acesso em: 24/03/2018.
38

A primeira audiência de custódia realizada no Estado do Rio de Janeiro foi celebrada e


noticiada na página do Tribunal de Justiça com uma decisão que permitiu que o acusado
viesse a responder à acusação em liberdade, verbis19:
A juíza Daniella Alvarez Prado, titular da 35ª Vara Criminal da Capital,
ouviu um detido, de 20 anos, acusado de tentativa de roubo de uma bicicleta,
e decidiu por sua liberdade provisória. O rapaz foi preso em flagrante nesta
quinta-feira, dia 17, na Vila do João, no Conjunto de Favelas da Maré, em
Bonsucesso, no subúrbio do Rio. Após verificar que o custodiado não sofreu
agressão física e que possui residência fixa, a juíza ouviu o promotor e o
defensor público. A magistrada decidiu pela liberdade provisória. ―Entende o
juízo que a custódia prisional não se mostra como meio eficaz a justificar o
tolhimento do direito constitucional à liberdade. A manutenção da prisão do
acusado potencializará os danos irreversíveis do nosso sistema carcerário,
tanto a ele quanto à sociedade, na medida em que as chances de
ressocialização são diminutas‖, declarou.

Embora tenha havido um grande engajamento inicial acerca do projeto e a Resolução


tenha sinalizado a necessidade de curso para capacitação de magistrados atuantes nesta seara,
não foram poucas as críticas sinalizadas ao processo de escolha destes que se dá conforme o
descrito abaixo:
Art. 9º - Caberá ao Presidente do Tribunal de Justiça designar os Juízes de
Direito que atuarão na Central de Audiência de Custódia, com ou sem
afastamento das suas funções, recaindo a escolha, preferencialmente, dentre
os que preencham os seguintes requisitos:
I - Juízes Titulares ou Regionais com competência criminal, há pelo menos 6
(seis) meses, excluindo se os de competência de Execuções Penais e Juizado
Especial Criminal;
II - Juízes que tenham participação regular em curso de capacitação
específico ministrado pela EMERJ, que terá validade de 1 (um) ano.
§ 1º O Tribunal de Justiça publicará edital de seleção dos Juízes que atuarão
nas CEAC's, indicando o número de vagas, conforme a necessidade de cada
Comarca.
§ 2º A designação de que trata o caput terá a duração de 4 (quatro) meses,
podendo haver a recondução, a critério da Presidência.
§ 3º Poderá ser designado, também pelo Presidente do Tribunal, um Juiz
Coordenador da CEAC, a quem competirá a gestão da serventia.

Vale trazer à baila a – hedionda - fala de uma magistrada que exerceu a função
judicante numa Central de Custódia no período de novembro de 2017 até janeiro de 2018:
A grande questão da audiência de custódia é a finalidade. De fato, não
esconderam que a finalidade era soltar presos em flagrante, o que por si só já
é um absurdo (…) Se a nossa mazela já era a impunidade, quando
concedemos liberdade a presos em flagrante legitimamos a delinquência, e
estimulamos a vingança privada. Em suma, audiência de custódia é uma
19
Disponível em:
http://portaltj.tjrj.jus.br/ca/web/guest/cluster?p_p_id=portletassessoriaimprensadestfototexto_WAR_portletassess
oriaimprensa&p_p_lifecycle=0&p_p_state=maximized&p_p_mode=view&_portletassessoriaimprensadestfotote
xto_WAR_portletassessoriaimprensa_jspPage=%2Fhtml%2Fview%2Fvisualizacao%2Fnoticia.jsp&_portletasse
ssoriaimprensadestfototexto_WAR_portletassessoriaimprensa_noticiaId=23112. Acesso em: 24/03/2018
39

bobagem criada pelo CNJ, por vaidade, e que tem por finalidade a soltura de
pessoas que foram presas em flagrante (ASSUNÇÃO, 2017, p.479)

A falta de compreensão da magistrada diante do Estado de coisas inconstitucional do


sistema carcerário brasileiro é assustadora, seus argumentos são baseados em senso comum.
E, lamentavelmente essa percepção não é isolada.
Em pesquisa realizada pela Fundação Getúlio Vargas ficou evidenciado que o Poder
Judiciário utiliza de maneira muito tímida as normas internacionais de proteção aos direitos
humanos acentuando a falta de efetividade e de identificação desses direitos, rotulados como
―proteção de bandido‖, ou até em linguagem chula como ―direitos dos manos‖. Chama
atenção na pesquisa os seguintes dados:
Constatar que 79% dos juízes entrevistados no Tribunal de Justiça do Rio de
Janeiro/RJ, conforme descrito ao longo do texto, não estão informados a
respeito dos Sistemas Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos é
intrigante. Ao se analisar que apenas 9% dos referidos magistrados utilizam
a Convenção Americana de Direitos Humanos, percebe-se que existe uma
distância enorme entre a teoria das normas e a prática da aplicação destas
(CUNHA e MIRANDA, 2010, p. 91)

Observe-se que a maior resistência na implementação das audiências de custódia se dá


justamente pela resistência ideológica dos aplicadores da lei (NEWTON, 2017) o que não é de
se estranhar, posto que o sistema penal desde a sua origem se mostra como um controle
seletivo daqueles que são considerados os inimigos da vez.
Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho (2012, p. 126) também chama atenção
para o olhar dos magistrados no momento judicante. Ele afirma que há no ato de julgar uma
―dimensão inconsciente que se projeta nas decisões‖ e que, do mesmo modo em que pode
aproximar da ideia de justiça, também pode afastar, não sendo necessariamente deliberada
má-fé do julgador, esse decisionismo inconsciente pode ser revelador de suas arbitrariedades e
no meu ponto de vista, é revelador do racismo impregnado em nossas instituições. A visão
equivocada e afastada do sistema acusatório20, que coloca os magistrados acima do bem e do
mal, ao contrário de trazer um fortalecimento à democracia, evidencia o oposto: uma
aproximação com práticas autoritárias.
São diversos os motivos que acarretam essa postura, sendo uma delas flagrante: a
maneira como os juízes são recrutados e formados nas escolas da magistratura colocando-os
num patamar de privilégio, privilégio branco, para que fique consignado. Tal realidade há
muito já era apontada por Maria Lucia Karam:
20
Considero o estudo de Geraldo Prado (2005) essencial para a compreensão do sistema acusatório adotado pela
Constituição de 1988. Segundo esse sistema o juiz deve se colocar de maneira equidistante e agir apenas quando
provocado, salvo se for para a tutela de garantias.
40

O distanciamento, o isolamento da magistratura, sua adesão a valores das


classes dominantes, levam a que sua atuação se paute pela lógica e pela
razão do poder de classe do Estado, desconhecendo as condições de vida e
os valores das camadas mais baixas e marginalizadas, bem como as culturas
alternativas, percebendo e julgando sua clientela dentro dos marcos de
referência da ideologia dominante (...) Essa organização da função judiciária,
tornam a magistratura um corpo isolado da sociedade, na qual o juiz,
encerrado em sua torre de marfim, nega todo aspecto político de sua
atividade, fechando-se a todo controle popular, indiferente à dinâmica das
lutas travadas na sociedade, às tensões que nela ocorrem (1993, pp. 105-106)

Um bom exemplo nos tribunais brasileiros da mitificação do juiz esta em um famoso


caso de um julgamento no Superior Tribunal de Justiça, quando o Ministro Humberto Gomes
de Barros, ao proferir o seu voto, afirmou:
Não me importa o que pensam os doutrinadores. Enquanto for ministro do
Superior Tribunal de Justiça, assumo a autoridade da minha jurisdição. O
pensamento daqueles que não são ministros deste Tribunal importa como
orientação (...). Decido, porém, conforme minha consciência. Precisamos
estabelecer nossa autonomia intelectual, para que este Tribunal seja
respeitado (...). Esse é o pensamento do Superior Tribunal de Justiça e a
doutrina que se amolde a ele. É fundamental expressarmos o que somos.
Ninguém nos dá lições. Não somos aprendizes de ninguém. Quando viemos
para este Tribunal, corajosamente assumimos a declaração de que temos
notável saber jurídico - uma imposição da Constituição Federal. Pode não
ser verdade. Em relação a mim, certamente, não é, mas, para efeitos
constitucionais, minha investidura obriga-me a pensar que assim seja
(BRASIL, STJ. AgRg nos ERESP 319.997-SC, Relator: Min. Peçanha
Martins, DJ 07/04/2003 p. 216)

Ora, o juiz não pode entender-se onipotente dentro do que se propõe ser uma
democracia, não pode achar que é ele o responsável pela justiça e pela segurança pública
tampouco dizer que uma regra prevista na Convenção Americana de Direitos Humanos é uma
―bobagem criada pelo CNJ‖.
Será diante dessa discrepância de pensamentos que pretendo verificar como têm
ocorrido as conversões das prisões em flagrante em prisões preventivas nas audiências de
custódia ocorridas no Rio de Janeiro, para tal intento utilizarei a pesquisa coordenada por
Julita Lemgruber, intitulada: Usos e abusos da prisão provisória no Rio de Janeiro:
Avaliação do impacto da Lei 12.403/2011, publicada em 2013. Afinal, a quem atende essa
garantia da ordem pública? Estaríamos diante de um dispositivo de segurança para justificar a
prisão daquele rotulado como inimigo social?

1.5.1 O perfil dos presos atendidos pela Defensoria Pública nas audiências de custódia
41

A Defensoria Pública do Rio de Janeiro acompanha diariamente a realização das


audiências de custódia e elabora relatórios anuais acerca do que ocorre nessas audiências: qual
o perfil dos presos e presas atendidos por aquela Instituição se houve ou não alguma prática
de violência por ocasião da prisão, bem como se a pessoa exercerá o Direito de responder ao
processo em liberdade.
Assim, do dia 18 de setembro de 2015 até 18 de setembro de 2016, 5.319 custodiados
foram entrevistados21 e ―a partir desses questionários, foi possível apresentar o perfil dos réus
atendidos pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro, bem como indicar o resultado da análise
da prisão feita pelo juiz‖ (DEFENSORIA PÚBLICA, p. 04)
Tal pesquisa acaba por trazer dados relevantes tanto para o incentivo da medida,
seguindo a sustentação de Caio Paiva (2018, pp.33-34) acerca da ideia de criminologia
cautelar, posto que, por mais libertários que sejamos, temos que lidar com a realidade de não
abolição do modelo prisional, portanto, tentar minimamente conter o poder punitivo (e
seletivo) é salutar, principalmente em um momento em que se vive uma redução de direitos
fundamentais e uma simpatia pelo autoritarismo. A ideia é tentar trabalhar com uma redução
de danos na utilização do aprisionamento visando assim dar efetividade aos Direitos
Humanos. Na lição de Eugênio Raul Zaffaroni temos que:
Não se trata de uma criminologia abolicionista, pois, como temos dito, isso
implica um projeto de nova sociedade que nós, criminólogos, não estamos
em condições de formular, ao menos enquanto tais (...) A criminologia
cautelar demandará um novo marco teórico, pois, para superar o
negacionismo e chegar à cautela, é necessário que reconheça que o poder
punitivo e o massacrador tem a mesma essência – a vingança – e, mais
ainda, que o massacre é o resultado do funcionamento do mesmo poder
punitivo quando pretende fazer a contenção jurídica ir pelos ares
(ZAFFARONI, 2013, pp. 262-263)

Nesse sentido, verificar que de 93,6% do total de presos que alcançaram a liberdade na
audiência de custódia, apenas 2,8% voltaram a ser aprisionados cometendo novo delito
demonstra uma visão que colide com o discurso de impunidade sustentado pela juíza
supracitada que afirmou que a audiência de custódia era uma bobagem:
Do total de casos analisados durante um ano de audiência de custódia
(5.302), apenas 142 réus retornaram à audiência de custódia após terem
comparecido pela primeira vez, isto é, somente 2,8% do total com
informação sobre a concessão ou não da liberdade provisória (5.059)
(DEFENSORIA PÚBLICA, p. 08)

21
Vale trazer a informação de que 34% do total de réus disseram ter sofrido agressão policial e grande parte
(1573 presos) afirma ter condição de identificar quem seriam os agressores (p.12)
42

Dos 5.302 casos analisados foi concedida a liberdade provisória para 1.710 deles, e a
ilegalidade da prisão em flagrante foi reconhecida em 82 casos onde ocorreu o relaxamento.
Sendo assim, 33,8% dos casos de prisão em flagrante resultaram em liberdade na ocasião da
audiência de custódia (DEFENSORIA PÚBLICA, p. 08).
Destaque-se que a capitulação apresentada nesse momento não é necessariamente a
capitulação que aparecerá na futura denúncia. Esse primeiro olhar é o que vem da delegacia,
documentado no auto de prisão em flagrante, e, pela pesquisa realizada na Defensoria Pública,
66% dos réus foram indiciados por crimes contra o patrimônio sendo que em 67,41% dos
casos de furto foi concedida a liberdade, enquanto no roubo esse percentual foi de 7,31%.
Já nos tipos penais da Lei de Drogas a pesquisa revela que a liberdade é dada em 41,61
dos casos, não havendo esclarecimento a quais modalidades de crime estão se referindo
(DEFENSORIA PÚBLICA, p. 10). Assim, pode ocorrer que em casos primeiramente
rotulados como tráfico de drogas sejam reavaliados no momento da realização da custódia.
Dos presos atendidos na audiência de custódia 73,63% se autodeclararam pretos ou
pardos, enquanto que 25,95% se autodeclararam brancos. Já afirmei anteriormente que
entendo mais acertado o critério de definição seguindo o parâmetro do IBGE com a
autodeterminação da cor, ciente, porém que muitas pessoas não sabem ―se autodeterminar‖ e
acabam por perguntar ―o que elas são?‖.
De toda forma, tal quadro apenas reforça o que já estava sinalizado no INFOPEN
(2014/2016) de que há evidentemente uma questão de racismo institucionalizado no sistema
prisional, sinalizando, em conformidade com a nossa história de escravidão, quem são
considerados como indivíduos perigosos, tal tema será mais à frente abordado com a questão
do racismo estrutural.
Desde já, contudo, chama atenção a percepção de que um preso branco tem uma maior
chance de soltura do que um preso negro conforme narrado abaixo:
Considerando os casos de autodeclaração de cor de maior incidência, pretos /
pardos e brancos, é possível indicar a proporção de liberdades concedidas
em cada um deles. Em 449 casos foi concedida a liberdade provisória aos
brancos, ou seja, 37,95%, enquanto os negros passaram a responder ao
processo em liberdade em 1.069 do total de 3.356 casos, o que corresponde a
31,85% (DEFENSORIA PÚBLICA, p. 14)

Apenas confirmando a seletividade já observada no país, no caso do Rio de Janeiro


68,17% dos presos tinham apenas o ensino fundamental e em sua maioria era composta por
jovens 83,58% entre 18 e 36 anos.
43

Faz, portanto todo o sentido o fato de termos 93,61% dos presos sendo assistidos por
Defensores Públicos (DEFENSORIA PÚBLICA, p. 06) durante a audiência de custódia, pois
tratamos do público alvo do sistema carcerário: o jovem, negro que não teve amplo acesso aos
direitos básicos fundamentais e não tem condição financeira de contratar advogado
particular22.
Merece destacar que dentre os 3.526 réus que responderam trabalhar antes de ser
preso, somente 418 disseram poder comprovar o vínculo, com carteira de trabalho assinada
(DEFENSORIA PÚBLICA, p. 16), ou seja, trabalhavam sim, mas assim o faziam na
informalidade.
No que tange ao aprisionamento feminino há realmente a necessidade de se valorizar o
impacto da audiência de custódia, uma vez que das mulheres que lá foram apresentadas,
68,11% alcançaram a liberdade.
De todos os entrevistados (5302) apenas 378 eram mulheres, o que representa 7,13%
apenas dos presos custodiados. A maior parte delas havia sido presa por prática de furto,
seguido pelos tipos penais da Lei de Drogas, portanto crimes que não são praticados com uso
de violência (DEFENSORIA PÚBLICA, p. 18).
Também é importante notar o fato de que a cada quatro mulheres presas, três são
mães, o que evidencia uma maior preocupação na questão do aprisionamento feminino, já que
os estabelecimentos penais, como vistos anteriormente, são planejados para homens
(DEFENSORIA PÚBLICA, p. 19)
Isso traz um maior peso quando a mulher presa encontra-se gestando ou tem o parto
no cárcere, pois há poucos locais adaptados para essa situação, não podendo a criança ser
afetada, sob pena de violar-se o princípio da intranscendência da pena, que não pode de
maneira alguma passar da pessoa do condenado, sem contar que, em considerando a prisão
cautelar, sequer haveria ainda uma pessoa condenada com trânsito em julgado.
Sendo assim, verifica-se, através desse relatório realizado pela Defensoria Pública do
Estado do Rio de Janeiro ao longo do período de um ano de realização de audiências de
custódia que:
Com a implementação do projeto, deixaram de ingressar no sistema
prisional, aproximadamente, dois presos por dia, o que corresponde a 18%.
Isso quer dizer que, apesar do índice de soltura ter diminuído entre os
relatórios, ainda é significativo que o réu possa comparecer a presença do
juiz para que a manutenção da sua prisão seja avaliada. Os questionários
permitiram, ainda, além do mapeamento da situação jurídica do réu, a

22
Isso também aparece na pesquisa coordenada por Julita Lemgruber, bem como a incidência de pedidos de
liberdade formulados por advogados particulares e pela Defensoria Pública.
44

análise do perfil social dos réus atendidos pela Defensoria Pública. Na


maioria, pretos/ pardos, com baixo grau de escolaridade, que trabalham no
mercado informal e praticaram crimes contra o patrimônio ou previstos na
Lei de Drogas.
Não é por acaso que apenas 6,39% são representados por advogado
particular, sendo a grande maioria atendida pela Defensoria Pública.
Percebe-se, portanto, que a redução do número de presos provisórios, que já
configura 41% do total de presos no sistema penitenciário do Rio de Janeiro,
ainda esbarra nas exigências legais, uma vez que indiretamente o Código de
Processo Penal determina, para garantir a conveniência da instrução
criminal, que o réu tenha residência fixa e emprego formal (DEFENSORIA
PÚBLICA, p. 23)

O olhar sobre o sistema prisional tem como foco analisar como os juízes atestam a
existência da ordem pública como motivadora de uma prisão cautelar, enquanto que no campo
da filosofia, pretendo, em primeiro lugar definir alguns conceitos, para depois relacionar o
aprisionamento cautelar com os chamados dispositivos de controle, bem como, verificar se há,
em nossas políticas de segurança, nitidamente refletidas no atuar do judiciário, uma relação
entre o homo sacer e a vida nua.
Noutro viés, ao longo da elaboração da pesquisa, foi evidenciada a necessidade de
observar a nossa história – notadamente da segurança pública – num viés decolonial, bem
como trazer pontos inerentes ao racismo na sociedade brasileira.
45

2. PRISÕES CAUTELARES NO DIREITO PÁTRIO

Another brick in the wall: o moedor de carne tritura a todos até formar uma massa
de carne uniforme e indistinta. Tritura inclusive os próprios professores dos cursos
de Direito, que sem formação pedagógica e pressionados pelas instituições em que
trabalham, raramente tem a chance de propor algo para além do já pensado. Os
mais qualificados são inclusive rotineiramente dispensados para promover a
desejada maximização dos lucros.
Alexandre Morais da Rosa & Salah Khaled Júnior

Antes de adentrar na teoria das prisões cautelares, essencial para a compreensão e


desenvolvimento desta tese, é importante esclarecer que, em regra, no estudo de qualquer
tema relativo ao Processo Penal, deve-se fazer a leitura jurídica de qualquer instituto a partir
dos postulados estabelecidos pela Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB/88),
no contexto dos direitos e garantias humanas fundamentais, adaptando o Código de Processo
Penal a essa realidade, ainda que, se preciso for, deixe-se de aplicar legislação
infraconstitucional defasada e, por vezes, nitidamente inconstitucional. Assim, e somente
assim, pode ser visualizado o que é chamado de Processo Penal Democrático.
Merece ainda ser destacado que, considerando que os princípios são as ideias
fundamentais que constituem o arcabouço do ordenamento jurídico, havendo conflito entre
uma regra e um princípio este prevalecerá (ao contrário do que está na Lei de Introdução às
Normas do Direito Brasileiro - LINDB), enquanto que havendo conflito entre dois princípios
a solução se dará através da ponderação.
Além disso, dentre os princípios constitucionais norteadores do Processo Penal, é
fundamental a compreensão do Princípio da Presunção de Inocência previsto no artigo 5º,
LVII da CRFB/88 que dispõe que: ―ninguém será considerado culpado até o trânsito em
julgado de sentença penal condenatória‖ (BRASIL, 1988). Para Aury Lopes Junior (2018, p.
581) tal princípio é fruto de uma opção protetora do indivíduo que figura como
investigado/acusado frente ao Estado configurando-se como regra de tratamento ao impor que
o indivíduo seja tratado como inocente. Ele explica que externamente ao processo visa evitar
a estigmatização com a exposição do sujeito na mídia e, internamente, além de colocar
integralmente o ônus da prova sobre o Ministério Público, também implica restrições ao uso
das prisões cautelares, compreendidas como aquelas que ocorrem anteriormente ao trânsito
em julgado de uma decisão penal condenatória (excepcionando-se a situação da prisão em
flagrante cuja natureza é precautelar).
46

Tal capítulo está apresentado no estilo de uma aula para graduandos de Direito,
portanto ele é mais frio e conteudista, embora baseado em autores com vieses críticos, como
por exemplo, Aury Lopes Júnior (2018) e André Nicolitt (2014).
É um capítulo nitidamente impregnado pelo modelo acadêmico atual, onde o professor
deixa de ser um intelectual crítico para ser um transmissor de matéria. Penso que esse modelo
tende a repetir um olhar ultrapassado e eurocentrado e, ao adentrar no estudo acerca da
decolonialidade, me deparei com um texto em que Enzo Bello elabora explicação sobre o
―modelo colonial de formação acadêmica‖, relacionando-o com:
O perfil de ensino jurídico imposto pela colonização europeia (sobretudo,
portuguesa e espanhola) na América Latina, de modo mecanicista e
ignorando as peculiaridades regionais. Este modelo é identificado por
diversos elementos comportamentais formalistas, como vestimentas,
vocabulário, ritualística, liturgia etc. Todavia, sua maior característica
reside na consideração da autoridade dos pensadores e juristas europeus
como única fonte legítima e válida de conhecimento capaz de ser difundida
entre os estudantes de direito e aplicadas no sistema judiciário.
Recentemente, o mesmo ―status‖ de oficialidade tem sido conferido aos
autores, teorias e conceitos oriundos dos Estados Unidos. Desse modo, a
maioria dos professores e pesquisadores brasileiros na área de direito
não se preocupa em produzir qualquer tipo de pensamento autêntico,
alinhado com a sua própria realidade, e persiste desconhecendo a
produção intelectual latino-americana (BELLO, 2015, p. 59) (Grifos meus)

Noutro norte, ainda tratando do ensino jurídico, observo que há uma tentativa vã de
imposição de metodologias tecnológicas (cuja marca está ligada evidentemente à economia
das Instituições de Ensino com profissionais gabaritados), tendo, de toda a forma, a visão dos
alunos como meros receptáculos de conteúdo, vítimas da violência simbólica das salas de aula
e docilizados para que se deem por satisfeitos apenas com as suas expectativas legalistas
preenchidas para uma futura aprovação no exame da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil)
ou em algum concurso público em que, nas maioria das vezes se decora o Direito e não se
questiona o Direito.
Alexandre Morais da Rosa e Salah Khaled Júnior são contundentes nessa crítica:
―graduação é lugar de feijão com arroz: os alunos somente podem se alimentar de ração
programática‖ (2014, p.118) Isso deixa o professor num dilema, pois se ele quiser ir além será
rotulado e estará indo contra as diretrizes da maioria das instituições de ensino privado23.

23
Em onze anos lecionando em uma instituição privada (autoproclamada filantrópica, porém obcecada com
alunos pagantes) tive tal cerceamento tanto pela coordenação ao trazer avaliação me considerando ―crítica‖ com
os conteúdos jurídicos, quanto pelo corpo discente (em sua minoria) que reclamava quando eu trazia olhares que
cruzavam com outras disciplinas, bem como escutei: ―A faculdade não quer doutores‖, pois geraria um custo
maior.
47

Há no Brasil mais faculdades de Direito do que no restante do mundo inteiro (ROSA,


KHALED JR., 2014, p.119), há uma produção em massa de cegueira normativa: a justiça é
cega e seus operadores também são treinados para sê-lo. O professor que foge ao modelo é
prontamente denunciado, inclusive pelos próprios colegas (ROSA, KHALED JR., 2014,
p.119) e despir-se desse modelo é muito difícil. O país passa por um momento de ataque às
Instituições Públicas de Ensino Superior24, o pensamento crítico tornou-se uma subversão. Se
de um lado há o desmonte das instituições públicas, de outro há o fomento das Instituições
Privadas, onde, reitero com conhecimento de causa: o foco não é o pensar criticamente, mas
cumprir o conteúdo dos manuais de Direito.
As linhas que se seguem terão muito desse modelo, são linhas de um mesmo conteúdo
falado e (re)falado ao longo de onze anos em sala de aula, onde eu era forçada a me docilizar
a toda a liturgia jurídica, ao preenchimento de documentos inúteis, a utilizar tecnologias
avançadas cujo alunado muitas vezes sequer tinha acesso e, por fim, ―depositar nos alunos‖
toda a ração programática que eu, rompendo com o padrão, incansavelmente levava, além
dela, o direito ―real‖, ou o ―não direito‖, com infindáveis críticas ao sistema de justiça. Ocorre
que aprendi na pele que violar a expectativa comportamental inerente ao professor de Direito
de uma Instituição de Ensino Privada é algo considerado muito grave. Tive aí dois caminhos:
Ou me tornaria mais um tijolo no muro ou estaria fora. A segunda opção ocorreu, da pior
maneira possível.

2.1. Presunção de inocência e sua compatibilidade com as prisões cautelares

Conforme anteriormente falado, o artigo 5º, LVII da CRFB/88 prevê que: ―ninguém
será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória‖ (BRASIL,
1988). Trata-se, portanto, do princípio reitor do processo penal almejando-se com ele a
proteção do indivíduo inocente, mesmo que para isso tenha-se que correr risco de não se punir

24
Recentemente além do anúncio de corte de verba às IES públicas (Corte de 30% da verba valerá para todas as
universidades federais, diz MEC), houve o incentivo à abertura de cursos nas IES privadas (MEC acelerou
credenciamento de novas universidades em 70% neste ano). Disponível em: <
https://educacao.uol.com.br/noticias/2019/04/30/mec-anuncia-corte-de-30-da-verba-para-todas-as-federais.htm>
e em < https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/eu-
estudante/ensino_educacaobasica/2019/04/22/ensino_educacaobasica_interna,750761/mec-acelerou-
credenciamento-de-novas-universidades-em-70-neste-
ano.shtml?fbclid=IwAR0jiV5jJEAhEHgrShTc6RfH9X7yQx355KZdPvMjIBgEystJFIwcfEJH2CU>. Acesso em:
08/05/20119.
48

um culpado. Trata-se de cláusula pétrea, não cabendo interpretação com o fito de reduzir o
seu alcance.
É interessante observar que, embora já se falasse de presunção de inocência antes da
Constituição de 1988, o seu significado não era tão restrito e evidente, o princípio era usado
para o momento da decisão e não como regra de tratamento, à luz da visão constitucional cuja
clareza e rigor emanam da redação do artigo 5º. Vale observar a trajetória histórica do referido
princípio:
Os escritores medievais fixaram a regra segundo a qual a absolvição por
falta de prova da culpabilidade trazia consigo uma presunção de inocência
do réu. Esse devia considerar-se inocente a não ser que (nisi) se provasse o
contrário. Em lugar de non liquet, o juiz deveria decidir por um libero,
absolvo, e esta absolvição levava a presumir a inocência. Ninguém seria tido
como culpado se não fosse provada a culpa: ―Omnis praesumitur bonus nisi
probetur malus‖. Essa regra foi acolhida pela Ordenação francesa em 1670.
Mas a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1791 foi mais
adiante e estatuiu no art. 9º: ―Devendo presumir-se que todo homem é
inocente até que ele seja declarado culpado...‖ (Tout homme étant presumé
innocent jusqu'a ce qu'il ait été declaré coupable) (TORNAGHI, 1992, pp.
12-13).

Hélio Tornaghi, embora não tivesse a mesma visão da melhor doutrina atual acerca
desse princípio – por motivos óbvios ante o período histórico por ele vivido - já trazia sua
visão crítica acerca da prisão cautelar. Ele afirmava que a prisão provisória não tinha
nenhuma relação com culpa, posto que não se tratava de pena e, tampouco, trazia viés
retributivo. Para ele o seu fundamento se daria nos exatos limites da necessidade devendo ser
compreendida como ultima ratio, já que, caso houvesse possibilidade de medidas menos
gravosas, estas que deveriam ser colocadas em prática (TORNAGHI, 1992, pp. 06-07). Nota-
se que a sua fala, embora dita há muitos anos, encontraria guarida nas propostas advindas da
reforma da Lei. 12.403/11.
Ele também denunciava os males gerados pela prisão: desde a difamação sofrida pelo
preso enquanto egresso na sociedade - o estigma - até aqueles de ordem econômica, já que o
preso tinha (e tem) a sua capacidade de trabalho aniquilada: ―O preso é homem que não
produz ou, pelo menos, não produz o que deveria produzir‖ (TORNAGHI, 1992, pp. 07-08).
Também apontava a preocupação com o gasto do Estado em mantê-lo, afirmando ser a prisão
provisória ―um dos males mais caros que o Estado se vê obrigado a pagar (pagar com
dinheiro, pagar realmente) para evitar um mal maior‖ (TORNAGHI, 1992, pp. 07-08).
André Nicolitt, magistrado do Estado do Rio de Janeiro, também delineia em sua obra
Manual de Processo Penal a trajetória histórica da presunção de inocência:
49

A origem histórica da presunção de inocência está inserta entre os postulados


fundamentais que orientaram as reformas do sistema repressivo no século
XVIII. Sua positivação primeira se deu com a Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão de 1789, precisamente em seu inc 9º, verbis "Todo
homem é considerado inocente, até o momento em que, reconhecido como
culpado, se julgar indispensável a sua prisão: todo rigor desnecessário,
empregado para efetuar, deve ser severamente reprimido pela Lei‖ (...)
Muitas Constituições deixaram de se utilizar da expressão presunção de
inocência, adotando a fórmula "não será considerado culpado". Assim,
ocorreu com a Constituição italiana e com a nossa Constituição de 1988 (...)
Por tal razão, passaram alguns a entender a consagração de um princípio da
"presunção de não culpabilidade", vendo no imputado uma espécie de
neutralidade nem seria culpado, tampouco inocente, o que encontra raízes na
escola técnico-jurídica de inspiração fascista (NICOLITT, 2014, pp. 148-
150).

Segundo ele, a doutrina contemporânea não distingue presunção de inocência e


presunção de não culpabilidade, como o conteúdo do artigo 5º é evidente, nitidamente
preservando a liberdade individual e vedando a antecipação de pena, sua interpretação é
deveras simplificada: ―se o sujeito “não é considerado culpado, só resta ser considerado
inocente‖ (NICOLITT, 2014, p. 150) (Grifos meus). A escolha constitucional de se ter a
liberdade como regra, na sua visão, permite ser a prisão cautelar a exceção de natureza
instrumental ―ligada à estreita necessidade de preservar o processo e sua efetividade‖
(NICOLITT, 2014, p. 726) e, uma vez que a própria prisão cautelar também tem respaldo
constitucional, não haveria incompatibilidade na convivência das duas normas.
A presunção de inocência integrar-se-ia ao princípio da prevalência do interesse do réu
(in dubio pro reo), garantindo que, em caso de dúvida, o seu estado de inocência estaria
resguardado. Este princípio ainda serve como reforço da intervenção mínima do Estado na
vida do indivíduo, uma vez que a reprovação penal somente alcançará aquele que for
efetivamente culpado.
Merece ainda destaque que a doutrina garantista de Luigi Ferrajoli (2014, p.711)
afirma que não deveria haver hipótese alguma de prisão anterior ao trânsito em julgado da
decisão condenatória - mas seu pensamento é minoritário.
Em sendo a prisão cautelar uma medida cautelar de natureza processual penal, me
parece mais apropriada a posição que defende o seu caráter instrumental no sentido dela servir
à tutela do processo, não sendo, portanto, incompatível com o princípio da presunção de
inocência, desde que não perca o caráter excepcional, sua qualidade de instrumento para a
preservação da produção da prova e da aplicação da pena, e se mostre necessária à luz do caso
concreto. É também nesse sentido a fala de Antônio Scarance Fernandes:
50

Se o réu apenas pode ser considerado culpado após sentença condenatória


transitada em julgado, a prisão, antes disso, não pode configurar simples
antecipação de pena, somente se justificando quando tiver natureza cautelar.
Em suma, qualquer prisão durante o processo, para não haver ofensa ao
princípio da presunção de inocência, deve ter natureza cautelar e não pode
significar antecipação de pena, pois esta, necessariamente, deve decorrer de
sentença condenatória transitada em julgado (FERNANDES, 2007, p. 328)

Portanto, sendo o processo cautelar de natureza instrumental, qualquer forma


satisfativa de tutela jurisdicional que se denomine cautelar será violadora do princípio da
presunção de inocência. Em artigo acadêmico que se encontra no prelo 25, Nilo César Pompílio
da Hora afirma que o conteúdo normativo insculpido no artigo 5º acerca deste princípio não
dá margem alguma à dúvida, pois notadamente ―condiciona o trânsito em julgado ao
reconhecimento da culpabilidade autorizadora da incidência da condenação penal‖ (2019, p.
05). Ele ainda mostra que a sua topografia na Constituição de 1988, como direito
fundamental, impediria a sua mitigação, eis que cláusula pétrea:
Ressalte-se que a sua localização como direito fundamental desautoriza
mutação até mesmo por via de emenda constitucional, consoante
previsão do art. 60, §4º, IV, da própria Constituição Federal, não sendo
possível perpetuar raciocínio apresentado como inovador quando do
julgamento do Habeas Corpus 126.292, em 17.02.2016, DJe de 17/05/2016 -
relatoria Ministro Teori Zavascki – STF (HORA, 2019, p. 05) (Grifos meus).

A decisão por ele criticada tornou-se conhecida por permitir a relativização da


presunção de inocência, considerando que uma condenação em segundo grau de jurisdição
(Tribunal de Justiça ou Tribunal Regional Federal) poderia ser executada imediatamente sem
a necessidade de trânsito em julgado. Também Lênio Streck26 (2016) entende que jamais
decisão em segundo grau poderia ser entendida como trânsito em julgado, já que não se trata
de decisão definitiva.
De todo modo, Nilo Cesar Pompílio da Hora aponta a inconsistência da decisão
proferida pelo Supremo Tribunal Federal, uma vez que noutro julgado acerca de tema não
afeto ao obscurantismo penal hoje tão presente em nossa sociedade, mas que tratava de
interesses que tocariam em direitos quiçá usufruídos até por membros daquela alta corte 27, a

25
Fruto de evento realizado na Universidade Federal do Rio de Janeiro tratando dos Aspectos Processuais Penais
do Projeto de Lei Anticrime em 2019. O texto submetido à publicação se intitula ―presunção de inocência e
execução provisória da pena‖.
26
Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2016-fev-25/senso-incomum-hermeneutica-positivismo-estado-
excecao-interpretativo>. Acesso em 25/07/2017.
27
A decisão tratava sobre a possibilidade de acumulo de cargos e o teto remuneratório e, segundo o autor, na
visão do STF ―retratada no recente julgado, não deve ser violada a cláusula pétrea do direito à remuneração pelo
trabalho desempenhado‖ (HORA, 2019, p. 11), ou seja, num momento a cláusula pétrea é respeitada e noutro é
violada.
51

decisão foi em sentido oposto, afirmando pela imutabilidade no sentido da não redução do
alcance de cláusula pétrea.
Ora, a rigidez constitucional não pode servir a uns em detrimento de outros, por mais
que haja em nossa sociedade desigual a naturalização de se atingir aqueles mais vulneráveis
como no conhecido dito popular ―la justicia es como las serpientes, solo muerde a los
descalzos‖28 Portanto, a presunção de inocência deve ser compreendida no sentido de que o
sujeito goza de um real estado de inocência, salvo se houver contra ele decisão condenatória
com trânsito em julgado. Na sequência da explicação sobre as prisões cautelares, temos que,
no processo penal, para que haja qualquer medida cautelar de natureza processual penal é
necessária a existência simultânea do fumus comissi delicti e do periculum libertatis abaixo
explicados:
O fumus comissi delicti é entendido como um requisito da prisão cautelar e deve ser
visto como a ―fumaça do cometimento do crime‖, ou seja, a probabilidade comprovada de sua
existência e de indícios de quem foi o seu autor. É o que no dia-a-dia forense é chamado de
―autoria e materialidade‖, não obstante nem todo crime ser considerado material. É a mínima
demonstração – probabilidade - do cometimento do delito por um determinado sujeito.
Já o periculum libertatis é, por sua vez entendido como o perigo gerado ao processo
ou a aplicação da pena, por exemplo, na hipótese de fuga, caso o suposto autor do crime
viesse a permanecer em liberdade. Segundo Aury Lopes Junior (2018, p. 584) trata-se do risco
gerado pela: ―frustração da função punitiva (fuga) ou graves prejuízos ao processo, em virtude
da ausência do acusado, ou no risco ao normal desenvolvimento do processo criado por sua
conduta (em relação à coleta da prova)‖. Observando a redação do artigo 312 do Código de
Processo Penal:
Art. 312. A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem
pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou
para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da
existência do crime e indício suficiente de autoria (Redação dada pela Lei nº
12.403, de 2011) (Grifos meus)

Observe, na primeira parte do artigo, que o legislador traz como fundamentos do


periculum libertatis: (a) a garantia da ordem pública, (b) a garantia da ordem econômica, (c)
assegurar a eventual aplicação da lei penal, (d) conveniência da instrução criminal. Porém, ao
se compreender que a prisão cautelar, medida coercitiva de caráter pessoal, cuja própria
28
A frase ―A justiça é como as serpentes: só morde os descalços‖ tanto é atribuída a um camponês de El
Salvador e reproduzida pelo mexicano José Jesus de La Torre Rangel (in Apuentes para una introduccion
filosófica al derecho. México, Editorial, Jus. 1992), quanto ao uruguaio Eduardo Galeano, citando um arcebispo
de San Salvador, Óscar Arnulfo Romero Galdámez. Um ditado popular que não se sabe de onde veio, mas que
serve a todos os colonizados latino-americanos. Seria coincidência?
52

natureza sinaliza a função instrumental ao processo, evidencia-se o grande equívoco de se


colocar os dois primeiros fundamentos eis que ambos tratam de antecipação de tutela, de
antecipação de pena, portanto inconstitucionais sob o filtro do princípio reitor da presunção de
inocência.
Já a segunda parte do artigo 312 do Código de Processo Penal ―quando houver prova
da existência do crime e indício suficiente de autoria‖ exige o já explicado fumus comissi
delicti.
A maioria dos autores diferencia as prisões em: prisão cautelar e prisão pena. Assim, a
prisão cautelar, em regra, seria toda aquela anterior à decisão com trânsito em julgado (salvo
na hipótese de flagrante delito – cuja natureza é precautelar), ou seja, aquela que ocorre antes
que haja uma decisão condenatória definitiva. Ela não teria por objetivo, como já dito acima,
a punição do indivíduo, mas sim evitar que a sua conduta venha a atrapalhar na apuração do
fato ou na aplicação da sanção penal.
Fugindo de seu caráter instrumental, ela também serviria para evitar que o indivíduo
viesse a praticar novos delitos, o que para mim, nada mais é do que a pura utilização da lei
para justificar o controle social.
De todo modo, para uma abordagem ampla, atualmente temos apenas duas
modalidades de prisões cautelares em nosso ordenamento: (a) a prisão temporária e (b) a
prisão preventiva.
Concordo com Aury Lopes Junior (2018, p. 600) quando ele afirma que a prisão em
flagrante teria um caráter precautelar em razão de sua precariedade, já que o legislador impôs
ao juiz, por força da redação do artigo 310 do Código de Processo Penal, a análise do
flagrante, decidindo pelo relaxamento, pela conversão (ou convolação) em prisão preventiva,
pela decretação de outra medida cautelar alternativa à prisão, ou pela concessão da liberdade
provisória com ou sem fiança. Neste sentido:
Art. 310. Ao receber o auto de prisão em flagrante, o juiz deverá
fundamentadamente: (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).
I - relaxar a prisão ilegal; ou (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).
II - converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os
requisitos constantes do art. 312 deste Código, e se revelarem inadequadas
ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão; ou (Incluído pela
Lei nº 12.403, de 2011).
III - conceder liberdade provisória, com ou sem fiança (Incluído pela Lei nº
12.403, de 2011).
Parágrafo único. Se o juiz verificar, pelo auto de prisão em flagrante, que o
agente praticou o fato nas condições constantes dos incisos I a III do caput
do art. 23 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código
Penal, poderá, fundamentadamente, conceder ao acusado liberdade
53

provisória, mediante termo de comparecimento a todos os atos processuais,


sob pena de revogação (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).

Vale observar que, desde a origem do Código de Processo Penal, o tema prisão
cautelar já foi objeto de diversas mudanças, contudo, a importância da última reforma
realizada pela Lei 12.403/11, destacou-se pela possibilidade da utilização pelo magistrado de
diversas medidas alternativas a prisão, previstas nos artigos 319 e 320 do Código de Processo
Penal. Vale dizer que até o advento dessa Lei o sistema cautelar brasileiro resumia-se à prisão
cautelar ou ao uso da liberdade provisória. Grosso modo, antes da Lei 12.403/11, só essas
duas situações eram possíveis: ou o imputado respondia preso, ou solto.
As poucas exceções vistas eram oriundas de um controvertido poder geral de cautela
do juiz penal. Controvertido porque, para parcela da doutrina processual (na qual eu
concordo), sequer existe poder geral de cautela no Processo Penal.
Até o advento da Lei n. 12.403, de 4 de maio de 2011, o sistema cautelar
brasileiro era, morfologicamente, bastante pobre, resumindo-se à prisão
cautelar ou liberdade provisória. Diante disso, começaram a surgir decisões
que, por exemplo, revogando uma prisão preventiva, impunham ―condições‖
ao imputado, tais como entrega de passaporte, restrição de locomoção, dever
de informar viagens etc. No mais das vezes, tais medidas vinham decretadas
a título de ―poder geral de cautela‖. Sustentávamos, antes da Lei n. 12.403,
de 4 de maio de 2011, a ilegalidade de tais medidas, por completa ausência
de previsão legal. A situação agora mudou em parte, pela consagração de
medidas antes desconhecidas, mas a impossibilidade de medidas atípicas
permanece (LOPES JR., 2018, p. 585).

Por isso que se falava, antes da referida Lei, à chamada bipolaridade do sistema
cautelar, porque ou o imputado ficava preso durante o processo ou, tendo sido preso em
flagrante legal, a contracautela utilizada seria a liberdade provisória. Numa linguagem muito
simplificada: ou ele estava preso, ou ele estava solto.
A invocação do poder geral de cautela realizada pelos juízes, para impor condições
que não dispunham de amparo legal ao imputado, se dava com base em uma criticada
aproximação automática entre categorias do processo civil no processo penal. Com base na
redação do artigo 798 do Código de Processo Civil de 197329, variadas vezes foram impostas
ao imputado medidas cautelares atípicas, com um argumento de justificação de que melhor
seria tal aplicação do que o uso da constrição da liberdade.
Ora, a crítica já era evidente: se no processo penal entende-se que a ―forma processual
é, ao mesmo tempo, limite de poder e garantia para o réu‖ (LOPES JR., 2018, p. 585), em não

29
Art. 798. Além dos procedimentos cautelares específicos, que este Código regula no Capítulo II deste Livro,
poderá o juiz determinar as medidas provisórias que julgar adequadas, quando houver fundado receio de que
uma parte, antes do julgamento da lide, cause ao direito da outra lesão grave e de difícil reparação.
54

havendo cabimento da prisão cautelar como ultima ratio, não deveriam os juízes buscar
solução intermediária não prevista em Lei que, de certa forma, ainda traria em si o
cerceamento de parcela de liberdade.
Nesse pensamento, ao invés de buscar um meio termo o certo seria, pela lei, deixar o
réu solto. Curiosamente sempre me chamou atenção que essa preocupação com o não uso da
prisão cautelar, por se tratar de medida gravosa, apareceu por diversas vezes em decisões que
determinavam a apreensão do passaporte dos imputados a fim de se evitar eventual fuga.
Esse pensamento contava inclusive com o apoio do Supremo Tribunal Federal,
sinalizando para mim a seletividade do sistema penal, pois para qualquer um que conheça o
sistema carcerário brasileiro saberá que o público alvo deste, mal tem carteira de identidade,
quiçá passaporte. Ou seja, o poder geral de cautela inexistente passou a existir para o
benefício daquele sujeito ―inadequado‖ ao sistema, seria cômico se não fosse trágico, mas a
exceção à regra sempre tem seus escolhidos.
Ademais, como visto no capítulo anterior acerca dos dados do sistema prisional, ficou
nítido que o uso da prisão cautelar em nada se aproxima de um uso excepcional, mas ao
contrário disso, seu uso é verdadeiramente banalizado para a contenção de uma camada da
população cujo estudo da biopolítica deixará mais evidente.
É fato que, após a Lei 12.403/11, os juízes passaram a contar com uma vasta previsão
de medidas alternativas à prisão cautelar, inovando com um modelo polimorfo30, em que há
uma gama de opções, que poderiam ser utilizadas de maneira isolada ou combinada de acordo
com a necessidade do caso, permanecendo, no entanto, a vedação às medidas cautelares
inominadas baseadas no (inexistente) poder geral de cautela do juiz penal.
Contudo, mesmo havendo tantas opções, ainda temos a prisão cautelar sendo utilizada
quase que como regra quando deveria ser a última das medidas aplicáveis, somente tendo
lugar quando se revelassem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da
prisão previstas nos artigos 319 e 320 do Código de Processo Penal. Portanto, basicamente
seguimos do mesmo jeito: ou o imputado está preso, ou está solto.

30
Jailson Carvalho da Silva e Paulo Silas Taporosky Filho (2015) apresentam, com base em análise
combinatória, que hoje poderíamos ter, só com lastro no rol taxativo do artigo 319 do Código de Processo Penal,
256 formas diferentes de proferir uma decisão de imposição de medidas cautelares diversas da prisão. Contudo,
na prática, temos pouca aplicação dessas medidas. Disponível em:
<http://justificando.cartacapital.com.br/2015/04/02/a-matematica-prova-o-quanto-e-bizarro-o-numero-de-
prisoes-preventivas/> Acesso em: 20/07/2017.
55

Vale destacar que, muito embora o argumento difundido acerca das novas medidas
alternativas à prisão previstas na Lei 12.403/2011 fosse a de minimizar31 a questão prisional
da superlotação, tal discurso não convenceu.
Esses ―substitutivos penais‖, da mesma forma que anteriormente foi a L. 9099/95
(festejada como instrumento de descarcerização), nada mais são do que o chamado fenômeno
da ―transcarcerização‖, ou seja, a expansão de processos multiformes de controle, como o que
hoje ocorre com a utilização de tornozeleiras eletrônicas.
Isso mostra que o controle social tem ganhado novas formas, novas nuances, mas
segue sendo controle e, verificando o crescente aumento da nossa população carcerária,
concluo que de ―nada adiantaram os mais variados substitutivos penais aplicados, ao longo do
tempo, no Brasil‖ (AMARAL e ROSA, 2014, p. 06). Ou seja, as medidas alternativas cujo
intuito era de reduzir os níveis de encarceramento, tem efeito inverso e ampliam o controle
penal:
A política dos substitutos penais – meios de defesa social, não esqueçamos
ao fundo -, assim, não elide a centralidade na punição do dispositivo da
prisão. O centro do ―arquipélago carcerário‖ é – pelo contrário, ao se
reproduzir sua lógica – relegitimado, reforçado e ratificado. São aditivos às
prisões que, quando não se tornam meros prolongamentos do
encarceramento, esgarçam a rede de controle social formal. Por um lado, a
rede de vigilância é ampliada; não se enfraquece a prisão que, por outra via,
acaba por sair revigorada em sua função (AMARAL e ROSA, 2014, p. 12).

Pessoalmente creio que, além da função de expansão penal, através de novos


controles, tais medidas servem também para, em momentos de extrema necessidade de se
desafogar o sistema penal, como por exemplo, por denúncias em órgãos internacionais de
proteção aos Direitos Humanos, ou ainda, em caso de rebeliões, a lei possa servir para
desafogar a superlotação, semelhante a uma válvula de escape. Numa linguagem popular,
seria como quando falamos que ―a água sai pelo ladrão‖ ao enchermos demasiadamente uma
caixa d‘água. Os substitutivos penais não parecem ter caráter humanitário, mas servem para
―sair pelo ladrão‖ quando a superlotação encontra-se impraticável.

2.2. Princípios regentes das prisões cautelares

31
Apenas para ilustrar, no site de notícias G1 foi feita matéria explicando que mais de 200 mil prisões seriam
revistas no Brasil com o advento da Lei. Disponível em http://g1.globo.com/brasil/noticia/2011/06/nova-lei-
deve-obrigar-revisao-de-mais-de-200-mil-prisoes-no-pais.html Acesso em 04/03/2018.
56

É comum a doutrina expor três características principais: jurisdicionalidade,


excepcionalidade e necessidade. Contudo, há obras, como a de Aury Lopes Junior (2018, pp.
587-600), e André Nicolitt (2014, pp. 724-783) onde o assunto é tratado de maneira mais
profunda, apontando outros princípios que se relacionam ao tema como, por exemplo: o
contraditório, a provisionalidade e a provisoriedade.
A jurisdicionalidade, prevista no artigo 5º, LXI, CRFB e nos artigos 283 e 315 do
Código de Processo Penal prevê que toda prisão cautelar só pode ser decretada ou convolada
por ordem judicial fundamentada conforme prevê o art. 93, IX, CRFB, por isso, essa
característica também é chamada de princípio da obrigatoriedade da fundamentação da prisão
cautelar. Não é possível, portanto que uma prisão seja determinada por qualquer outra
autoridade que não seja a judiciária competente para tal ato.
A prisão em flagrante, considerada como precautelar, também terá sua legalidade
controlada pelo juiz, porém em momento posterior, conforme prevê o artigo 310 do Código
de Processo Penal. Ela será comunicada ao juiz em dois momentos: imediatamente após a
detenção e ao final da lavratura do auto de prisão em flagrante, quando então todas as peças
do inquérito são encaminhadas ao juiz. Além disso, deverá, em respeito ao Pacto de São José
da Costa Rica e à recomendação do CNJ, ser realizada a audiência de custódia, possibilitando
ao preso, desde logo, o exercício de sua defesa.
Aury Lopes Junior (2018, p. 588) sinaliza que cotejando esse princípio com a
presunção de inocência não seria admissível a prisão cautelar, mas explica que, em nome de
uma suposta necessidade, ela seria justificável, criticando apenas o seu uso banalizado. De
outro lado, Luigi Ferrajoli (2014, p. 508) segue com o pensamento de não admitir a utilização
da prisão cautelar em nenhuma hipótese em razão desta afrontar com a inocência do acusado.
Para Aury Lopes Junior (2018, p. 588), qualquer ilegalidade deverá ser remediada pela
via do habeas corpus, art. 648, III, do Código de Processo Penal, mas para a maioria da
doutrina havendo ilegalidade, esta deverá ser sanada através de simples petição de
relaxamento de prisão com fulcro no artigo 5º, LXV, da CRFB.
A utilização da prisão preventiva só é possível quando inadequadas ou insuficientes as
medidas cautelares diversas da prisão. O correto seria que a utilização da prisão cautelar fosse
a ultima ratio do sistema, pois assim estaria sendo respeitada a excepcionalidade em
conformidade com o artigo 5º, LVII da CRFB/88 e os artigos 282, §6º e 310, II, do Código de
Processo Penal.
57

O problema é que no Brasil as prisões cautelares estão banalizadas e servem para


desempenhar um efeito sedante da opinião pública pela ilusão de justiça instantânea, assim a
teoria diz que a regra é a liberdade, mas a prática tende para o inverso.
Aury Lopes Junior (2018, p. 596) aponta uma falha do legislador ao especificar que o
artigo 282 do Código de Processo Penal apresenta um fundamento não consagrado na reforma
que é evitar a reiteração do crime. Também é nesse dispositivo que aparece de maneira
expressa os princípios da ―necessidade‖ e da ―adequação‖, o artigo segue abaixo transcrito:
Art. 282. As medidas cautelares previstas neste Título deverão ser aplicadas
observando-se a: (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).
I - necessidade para aplicação da lei penal, para a investigação ou a instrução
criminal e, nos casos expressamente previstos, para evitar a prática de
infrações penais; (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).
II - adequação da medida à gravidade do crime, circunstâncias do fato e
condições pessoais do indiciado ou acusado (Incluído pela Lei nº 12.403, de
2011).

De outro lado, a Lei nº 12.403/11 trouxe os quatro, já citados, fundamentos da prisão


cautelar, com a crítica acerca da garantia da ordem pública e econômica que nada tem a ver
com o caráter instrumental dessa medida.
Ressalta Aury Lopes Junior (2018, p. 596) que não deve ser admitida a expressão
―para evitar a prática de infrações penais‖ elencada no artigo supracitado como abrangida na
garantia da ordem pública, posto que este conceito é demasiadamente amplo, abarcando
qualquer tipo de intepretação. Ele segue explicando que a excepcionalidade deve ser vista
conjuntamente com a presunção de inocência, não se admitindo a inversão comumente
assistida de se prender sem subsídios suficientes para, após a liberdade ser cerceada, buscar-se
fundamentos de justificativa para a soltura. Não deve ser colocada na cautelaridade o caráter
de retribuição, posto que não se trata de pena, bem como não se admite a antecipação de
tutela.
Concordo com Aury Lopes Junior (2018, p. 597) quando ele afirma ser o o problema
cultural, e não legislativo, pois há uma falácia de que se prende pouco no País, que é o país da
impunidade e que a prisão, ao ser evitada, não cumpre o seu papel.
Infelizmente as prisões cautelares acabam sendo inseridas na dinâmica da
urgência, desempenhando um relevantíssimo efeito sedante da opinião
pública pela ilusão de justiça instantânea. O simbólico da prisão imediata
acaba sendo utilizado para construir uma (falsa) noção de ―eficiência‖ do
aparelho repressor estatal e da própria justiça. Com isso, o que foi concebido
para ser ―excepcional‖ torna-se um instrumento de uso comum e ordinário,
desnaturando-o completamente (LOPES JR., 2018, p. 597).
58

Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo32 traz a seguinte afirmação: ―no Brasil o imaginário


social ainda está em grande medida vinculado à prisão como sofrimento e vingança,
legitimando assim a falta de atenção do Estado‖ (2014). Ele ainda relaciona essa questão com
a obra Punição e Estrutura Social de Rusche e Kirchheimer (1999) onde os referidos autores
concluem que a prisão se legitima socialmente, cumprindo sua função retributiva e
intimidatória contra as classes populares, desde que as condições de vida nesta seja pior do
que as aquelas vividas pelos setores mais empobrecidos da classe trabalhadora. Desta feita,
não é à toa que temos presídios em condições desumanas sendo tolerados há tantos anos.
Já a necessidade do uso das prisões cautelares se dá em razão do chamado princípio da
proporcionalidade (EUA) ou razoabilidade (Alemanha) que deve nortear a conduta do juiz no
caso concreto, devendo ponderar a gravidade da medida imposta com a finalidade pretendida,
nunca perdendo de vista a clássica lição de José Frederico Marques no sentido de que as
―providências cautelares possuem caráter instrumental: constituem meio e modo de garantir-
se o resultado da tutela jurisdicional a ser obtida por meio do processo‖ (MARQUES, 1997, p.
31)
O artigo 282, §1º do Código de Processo Penal visa impedir que o imputado seja
submetido a uma medida mais gravosa do que a sanção porventura aplicada ao final do
processo. A adequação, por sua vez, informa que a medida deve ser apta aos seus motivos e
fins conforme prevê o artigo 282, II, Código de Processo Penal.
Jamais uma medida cautelar poderá se converter em uma pena antecipada e o fato da
lei falar em condições pessoais do indiciado ou acusado não significa que haja a
admissibilidade da aplicação do direito penal do autor. O difícil é conseguir dissociar as tais
condições pessoais num país em que a sociedade e o sistema prisional são nitidamente
racistas.
Obviamente, não é razoável prender quando a sentença definitiva prever pena mais
branda (como em um crime apenado com pena de multa). Se no futuro a pena a ser aplicada
for restritiva de direito, por exemplo, não tem cabimento se impor uma prisão cautelar, não
seria homogêneo é por isso também se fala de princípio da homogeneidade.
O artigo 282, §3º do Código de Processo Penal traz o princípio do contraditório no que
tange à sua utilização nas medidas cautelares diversas da prisão. Ele estabelece que o juiz, ao
receber o pedido de medida cautelar, determinará a intimação da parte contrária, porém não
explica o porquê de tal intimação, não obstante, em não havendo incompatibilidade com a

32
Disponível em: <http://zh.clicrbs.com.br/rs/entretenimento/noticia/2014/01/imaginario-social-brasileiro-ainda-
vincula-as-prisoes-a-sofrimento-e-vinganca-4387742.html> Acesso em: 20/07/2017.
59

medida, nada impede que esse contraditório seja exercido. Quanto à prisão, Aury Lopes
Junior (2018, p. 588) entende que o mais adequado seria conduzir o imputado para uma
audiência junto ao juiz que determinou a constrição, para que o juiz possa, após ouvir o
detido, reavaliar acerca da necessidade da medida o que se caracteriza como a já tratada
audiência de custódia. Se o fundamento da prisão for risco de fuga será talvez de pouca
serventia a existência do princípio do contraditório, mas de qualquer forma o ideal é que
sempre haja o seu exercício ainda que à posteriori.
Considerando que toda prisão cautelar é situacional, uma vez desaparecido seu suporte
fático corporificado no fumus comissi delicti e periculum libertatis, deve ela cessar. Trata-se
do chamado princípio da provisionalidade consagrado no artigo 282, §§4º e 5º do Código de
Processo Penal, merecendo lembrar que o atuar de ofício por parte do juiz deve ser vedado em
qualquer fase da persecução penal em respeito ao sistema acusatório (LOPES JR., 2018, p.
591).
Vale observar que a decisão que determina a prisão preventiva está submetida à
cláusula rebus sic stantibus justamente em razão da provisionalidade, ou seja, trata-se de
decisão que pode vir a ser alterada conforme dispõe o artigo 316, Código de Processo Penal:
―a prisão preventiva persistirá enquanto existirem seus motivos ensejadores, e, estes
desaparecendo, caberá ao juiz, revogá-la‖. Acaso, os motivos ressurjam, poderá, mediante
provocação, novamente decretar a prisão do imputado.
Já o princípio da provisoriedade é relacionado ao fator tempo, de modo que toda
prisão cautelar deveria ser de breve duração, ou seja, provisória. Sendo assim, toda
providência cautelar liga-se instrumentalmente, ao processo cujo resultado pretende garantir.
―Por essa razão, a medida cautelar tem sempre caráter provisório e interino, uma vez que é de
duração limitada‖ (MARQUES, 1997, p. 32) Reside aqui uma das maiores críticas à prisão
preventiva no Brasil, pois não há para ela prazo previsto em lei.
A jurisprudência já tentou construir limites globais a partir da soma dos prazos, poucas
decisões até admitiram considerar os prazos de forma isolada, mas a verdade é que não há
esse limite, já tendo inúmeros casos teratológicos como, por exemplo, de absolvição ocorrida
após o imputado permanecer durante doze anos preso cautelarmente33.
Na Lei 12.403/11 o legislador perdeu uma grande chance de estabelecer o prazo
máximo da prisão cautelar e a sanção de seu descumprimento. Da mesma forma lamentável a

33
Processo nº 0323693-83.2010.8.19.0001, Estado do Rio de Janeiro. Disponível em:
<http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI160497,81042-
Absolvido+homem+recebera+R+2+mi+apos+esperar+12+anos+por+julgamento> Acesso em 21/01/2018.
60

não inclusão do §7º do artigo 282 do Código de Processo Penal que trazia a necessidade de se
reexaminar a prisão preventiva decretada a cada 60 dias, ou em prazo menor, para avaliar se
persistiam seus motivos ensejadores. Seria o mínimo já que são hipóteses de réus sem
condenação definitiva.
Considerando que a prisão cautelar é exceção e deve ser usada tão somente enquanto
durar a necessidade de se garantir o processo, a ideia da provisoriedade também se encontra
ligada ao princípio da presunção de inocência, sendo assim:
A ausência, contudo, de uma disciplina sobre o tempo do encarceramento
preventivo (tempo que é, na verdade, o maior ônus a recair sobre o preso),
reflete negativamente, a uma só vez, sobre as garantias individuais do
investigado/acusado e a imperiosa necessidade de uma resposta penal célere
do Estado-juiz, como pilares da segurança jurídica e da confiabilidade do
sistema judiciário (...) A celeridade, diga-se, não é anseio externado apenas
pela Comissão de reforma do CPP. Trata-se de garantia prevista em
documentos internacionais e recentemente incorporada ao texto
constitucional brasileiro, no título dos Direitos e Garantias Fundamentais,
por via da EC 45/2004 (SILVA, 2006, p. 205)

Na Espanha, Alemanha, Portugal e na Itália a prisão cautelar tem previsão de


limitação temporal e/ou necessidade de reanálise (LOPES JR., 2018, p. 592) o que me parece
essencial para uma medida tão gravosa.

2.3. Aplicação da prisão preventiva

Importa assinalar que a prisão preventiva vem inserida no TÍTULO IX do Código de


Processo Penal, que trata DA PRISÃO, DAS MEDIDAS CAUTELARES E DA LIBERDADE
PROVISÓRIA. Neste título, inicialmente temos o CAPÍTULO I com disposições gerais. Após
o CAPÍTULO II abordando a prisão em flagrante (inclusive aí estando o artigo 310, II do
Código de Processo Penal que regula a situação da conversão/convolação do flagrante em
prisão preventiva) e, no CAPÍTULO III temos os artigos 311 até 316 do Código de Processo
Penal, dispondo sobre a prisão preventiva. O artigo 311 deste capítulo prevê que:
Em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal, caberá a
prisão preventiva decretada pelo juiz, de ofício, se no curso da ação penal,
ou a requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou
por representação da autoridade policial.

Merece crítica o dispositivo em razão da violação ao sistema acusatório, por permitir a


atuação do juiz, de ofício, mesmo estando já no curso da ação penal. Ora, a preocupação com
61

a função instrumental é de interesse do órgão acusador, até em razão da regra de tratamento


oriunda do Princípio da Presunção de Inocência.
Também é importante destacar que, o querelante que lá aparece, é aquele da ação
penal privada subsidiária da pública, não havendo possibilidade de termos a decretação da
prisão preventiva para crimes de ação penal privada em razão das penas inferiores ao patamar
disposto no artigo 313 do Código de Processo Penal, que ainda será apresentado.
Acaso estejamos diante de uma situação flagrancial, devemos ter por observância o
artigo 310 e seu inciso II, que prevê que o juiz deverá, ao receber o auto de prisão em
flagrante converter/convolar a prisão em flagrante em preventiva: ―quando presentes os
requisitos constantes do art. 312 deste Código, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as
medidas cautelares diversas da prisão‖. O momento para que isto ocorra, por si só, já dá
margem à discussão, pois a interpretação dos dispositivos legais, a saber, artigos 306 e 310,
do Código de Processo Penal, traria a dúvida se seria no momento em que o juiz é
comunicado ou se seria no momento em que este recebe o auto de prisão em flagrante.
Munido do auto de prisão em flagrante o magistrado já teria um melhor contato com
elementos de informação da dinâmica dos fatos, como por exemplo, o depoimento da vítima e
de testemunhas, porém, se o objetivo da lei era dar celeridade à apreciação de uma suporta
prisão ilegal, o momento da comunicação seria mais efetivo. A decisão que convola a prisão
precautelar do flagrante delito para a prisão preventiva deverá ser sempre fundamentada, e
essa conversão não pode ser dada de ofício34.
A partir da hora em que o Ministério Público também é comunicado da prisão, à luz
do que dispõe o artigo 306 do Código de Processo Penal, cabe a este provocar o Juízo para
que haja a conversão em prisão preventiva ou, para que se aplique alguma das medidas
cautelares, sob pena de se violar frontalmente o sistema acusatório e a imparcialidade do juiz,
que acabaria por ficar vinculado à capitulação estabelecida no relatório da autoridade policial.
Poderia o juiz analisar tão somente os requisitos legais da situação flagrancial e
remeter o auto de prisão ao Ministério Público, contudo, considerando que este já foi
comunicado, entendo que se permaneceu inerte é porque não teria interesse na conversão da
prisão em flagrante em preventiva.

34
Processo nº 0262604-83.2015.8.19.0001. Estado do Rio de Janeiro. Este processo trata de caso em que um juiz
efetuou a soltura de 203 presos indiciados que permaneceram detidos sem que o Ministério Público efetuasse
requerimento de convolação de flagrante para preventiva, tampouco de medidas cautelares alternativas à prisão.
Disponível em: http://emporiododireito.com.br/leitura/juiz-solta-203-presos-por-ausencia-de-requerimento-do-
ministerio-publico Acesso em: 21/02/2018
62

Ora, se ainda se trata de fase inquisitorial, deverá sempre haver o prévio pedido para
que a prisão venha a ser convertida e isso apenas se não for viável ao caso a utilização de uma
medida cautelar alternativa conforme as disposições dos artigos 319 e 320 do mesmo Código.
Há ainda entendimento de que o magistrado deve manifestar-se acerca da prisão em vinte e
quatro horas.
Vale dizer que, além dos requisitos previstos no artigo 312 do Código de Processo
Penal, é imprescindível que o juiz demonstre em concreto que a aplicação de outra medida
cautelar (mesmo que cumulativas) seja insuficiente, sendo necessária, portanto a custódia
cautelar. Se assim não o fizer, o decreto prisional será nulo por ausência de fundamentação,
cabendo, portanto, o relaxamento.
Temos, portanto, duas maneiras de chegar à prisão preventiva: uma delas pela análise
da situação flagrancial (prisão preventiva oriunda da conversão do fragrante delito) e a outra,
decretada, mediante requerimento em razão da necessidade do caso concreto (prisão
preventiva genuína).
Assim, no atual Processo Penal Brasileiro, para que haja prisão preventiva é necessária
a presença de dois elementos: fumus comissi delicti e periculum libertatis. O primeiro deve
ser compreendido como a prova mínima do suposto cometimento do crime conjugado aos
indícios da autoria. Já o segundo, por sua vez, é o perigo do suposto autor do crime
permanecer em liberdade (LOPES JR., 2018, pp. 583-584).
Assim, em nosso ordenamento há a presença de duas prisões de natureza cautelar: a
prisão temporária e a prisão preventiva, sendo a prisão em flagrante considerada de natureza
precautelar, em razão de sua precariedade, pois necessariamente sofrerá o controle judicial a
posteriori. O artigo 312 do Código de Processo Penal traz os requisitos do fumus comissi
delicti e os fundamentos do periculum libertatis.
Já sinalizei que, em se tratando de uma prisão cautelar, ou seja, aquela que serve de
maneira instrumental ao processo, cabível é a crítica aos fundamentos que a permitem para
garantia da ordem pública e da ordem econômica, posto que não relacionadas ao processo,
mas sim a ideia de controle social. Neste sentido é a fala de André Nicolitt:
Como reiteradamente afirmamos a prisão cautelar só é compatível com o
princípio da presunção de inocência quando tem por objetivo a preservação
do processo, pois do contrário transforma-se em antecipação de pena. O que
tutela, ou deveria tutelar, a ordem pública (prevenção geral e especifica) é a
pena. Usar a prisão processual para garantir a ordem pública é antecipar os
efeitos da pena, o que é inconstitucional. O mesmo se pode dizer em relação
à ordem econômica, pois toda prisão cujo objetivo transcenda a ordem
processual padece de inconstitucionalidade (NICOLITT, 2014, p. 751).
63

Assim, a prisão preventiva na letra da lei poderá ser decretada ou convolada como
garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou
para assegurar a aplicação da lei penal (periculum libertatis), quando houver prova da
existência do crime e indício suficiente de autoria (fumus comissi delicti) somados à
insuficiência da medida prevista no parágrafo único do artigo 312 do Código de Processo
Penal.
André Nicolitt elabora excelente explicação mostrando qual a ordem que deve ser
apreciada para que uma prisão preventiva possa ser aplicada, ele diz:
Cabimento (art. 313 do CPP), pressupostos (art. 312, segunda parte) e
fundamentos (art. 312, primeira parte). Lamentavelmente o CPP inverteu
a ordem dos artigos, dispondo primeiro sobre os fundamentos (art. 312,
primeira parte), depois sobre os pressupostos (art. 312, segunda parte) e por
fim o art. 313, sobre o cabimento. Antes de se verificar a presença dos
pressupostos fáticos (pressupostos e fundamentos), impõe-se conferir se a lei
prevê a possibilidade de prisão (cabimento) (NICOLITT, 2014, p. 743). Na
parte final do art. 312, do CPP encontramos os requisitos ou pressupostos da
prisão preventiva reunidos pela doutrina sob a expressão fumus boni iuris
(ou fumus commissi delicti), a saber: indícios de autoria e prova da
materialidade. Sem a prova de que o delito ocorreu (materialidade) e o
mínimo de elementos que possam tornar provável a sua autoria, não é
possível a prisão preventiva. Mas não basta apenas a presença desses
pressupostos, a lei exige, para além do juízo de probabilidade, um juízo de
necessidade da prisão; são os requisitos tratados por fundamentos. Para nós,
parece mais simples reunir os pressupostos e fundamentos sobre o título
pressupostos fáticos, que devem ser somados as hipóteses legais de
cabimento, ou simplesmente ao cabimento. Assim, sugerimos duas etapas
de análise, a saber, cabimento (art. 313 do CPP) e pressupostos fáticos
(art. 312 do CPP) (NICOLITT, 2014, pp. 748-749) (Grifos meus)

Para facilitar a fluidez na compreensão deste tema, principalmente considerando que


este texto não necessariamente tem como foco a leitura exclusiva por conhecedores do Direito
Processual Penal, decidi por seguir na ordem apresentada por André Nicolitt, sendo assim
primeiramente trarei hipóteses de cabimento e posteriormente os pressupostos fáticos
indispensáveis para a prisão cautelar. Ressaltando que eu entendo que o artigo 312 do Código
de Processo Penal não deveria ter sido totalmente recepcionado pela Constituição de 1988 por
trazer na garantia da ordem verdadeiro dispositivo de controle se furtando ao teor instrumental
de qualquer cautelar.

2.3.1. Cabimento da prisão preventiva


64

O artigo 313, do Código de Processo Penal traz quando cabe, quando a prisão
preventiva será admitida em cada um de seus incisos:
Art. 313. Nos termos do art. 312 deste Código, será admitida a decretação da
prisão preventiva:
I - nos crimes dolosos punidos com pena privativa de liberdade máxima
superior a 4 (quatro) anos;
II - se tiver sido condenado por outro crime doloso, em sentença transitada
em julgado, ressalvado o disposto no inciso I do caput do art. 64 do Decreto-
Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal;
III - se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher,
criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para garantir
a execução das medidas protetivas de urgência;
IV - (revogado).
Parágrafo único. Também será admitida a prisão preventiva quando houver
dúvida sobre a identidade civil da pessoa ou quando esta não fornecer
elementos suficientes para esclarecê-la, devendo o preso ser colocado
imediatamente em liberdade após a identificação, salvo se outra hipótese
recomendar a manutenção da medida.‖ (NR)

Conforme a previsão do inciso I caberá a prisão preventiva para os crimes dolosos


punidos com pena privativa de liberdade máxima superior a 4 (quatro) anos. A explicação
desse dispositivo é bem simples, ele visa harmonizar o ordenamento com a previsão já
existente acerca da substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direito à luz do
que dispõe o artigo 44, I, do Código Penal. Notadamente não seria homogêneo permitir-se a
tutela cautelar da prisão, quando esta se mostrasse mais gravosa que a reprimenda final. Isso
mostra que o princípio da homogeneidade tem carga normativa.
Quando se analisa a pena final para a verificação do cabimento da prisão preventiva
levam-se em conta as qualificadoras, bem como as causas de aumento e de diminuição35
elevando-se da maior fração e reduzindo da menor, já que o referencial do artigo é a pena
máxima. Este inciso também evidencia que é impossível o cabimento de prisão preventiva
para crime culposo.
No que tange as demais medidas cautelares previstas no artigo 319, caput do Código
de Processo Penal, embora haja resistência, prevalece entendimento no sentido de que elas
seriam aplicáveis tendo em vista a parte final da redação do artigo 313, parágrafo único do
Código de Processo Penal.
O inciso II, por sua vez, traz novamente o entendimento do não cabimento da prisão
preventiva para crime culposo e dispõe acerca da reincidência em crime doloso: ―se tiver sido
condenado por outro crime doloso, em sentença transitada em julgado, ressalvado o disposto
no inciso I do caput do art. 64 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código

35
Desconsideram-se as atenuantes e agravantes genéricas porque só repercutem na pena em concreto.
65

Penal‖. Tal inciso deve ser analisado conjuntamente com o inciso I, caso contrário haveria
uma presunção de culpa em razão da reincidência, que, além de reforçar a estigmatização,
reconheceria o fracasso da ressocialização em tese prevista na execução penal.
Já o inciso III do artigo 313, do Código de Processo Penal traz uma ampliação do
alcance das medidas protetivas para esses segmentos tidos como vulneráveis no contexto de
coabitação da violência doméstica (LOPES JR., 2018, p. 642), visando dar eficácia às
medidas protetivas. A ideia aqui foi de corrigir a distorção criada pela Lei Maria da Penha no
tocante ao art. 226, §8º da CRFB/88 que prevê a proteção integral à família e não somente à
mulher. Contudo, não se trata aqui de nova hipótese de cabimento de prisão preventiva para
toda e qualquer conduta que viesse a violar uma medida protetiva posto que sua análise deva
ser sistêmica respeitando-se o disposto no artigo 313, I, no tocante à pena máxima permissiva
da utilização da constrição da liberdade do imputado.
O inciso IV foi revogado e, por fim, o parágrafo único prevê que:
Também será admitida a prisão preventiva quando houver dúvida sobre a
identidade civil da pessoa ou quando esta não fornecer elementos suficientes
para esclarecê-la, devendo o preso ser colocado imediatamente em liberdade
após a identificação, salvo se outra hipótese recomendar a manutenção da
medida.

Tal dispositivo parece ser desarrazoado sob o prisma da necessidade e deve ser
interpretado conjuntamente com a Lei 12.037/09 que regulamentou a identificação criminal 36.
Sendo assim e conforme o exposto é importante ainda sinalizar que a legalidade de
uma prisão preventiva é valorada à luz do artigo 313 do Código de Processo Penal, somente
quanto à prisão genuinamente preventiva e sua ofensa importará em relaxamento da custódia.
Só após essa análise do artigo 313 do Código de Processo Penal é que se avaliará a
necessidade, em conformidade com o artigo 312 do Código de Processo Penal, hipótese em
que o pedido será de revogação no caso de prisão originariamente preventiva. Já em se
tratando de prisão preventiva oriunda da conversão flagrancial na forma do artigo 310, II do
Código de Processo Penal o pleito será de liberdade provisória na forma do artigo 321,
Código de Processo Penal.
Vale destacar que, a semelhança da legislação anterior, às restrições à imposição da
prisão preventiva não alcançam a prisão em flagrante convertida em preventiva, embora sirva
de argumento para atacar a sua necessidade com base no princípio da homogeneidade das

36
Se a identificação do indiciado se faz necessária há a possibilidade da condução coercitiva prevista no artigo
260 do Código de Processo Penal, contudo, deve ser respeitado o direito do sujeito de não fazer prova contra si, à
luz do Pacto de San José da Costa Rica em seu artigo 8, II, alínea g.
66

prisões cautelares, que passou a ter carga normativa por força do artigo 313, I do Código de
Processo Penal.
Desta feita, para a prisão em flagrante ser convertida em preventiva não se exigirá a
obediência ao artigo 313, do Código de Processo Penal, contudo, tal pensamento não é
uníssono, a doutrina parece, na realidade, não se importar muito com a técnica da redação
legal, havendo quem traga a conjugação entre os artigos 312 e 313 do Código de Processo
Penal (GONÇALVES e REIS, 2014, p. 388).
Finalizando quanto ao cabimento da prisão preventiva, temos o disposto no artigo 314
do Código de Processo Penal, prevendo que: ―A prisão preventiva em nenhum caso será
decretada se o juiz verificar pelas provas constantes dos autos ter o agente praticado o fato nas
condições previstas nos incisos I, II e III do caput do art. 23 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de
dezembro de 1940 - Código Penal‖. Ou seja, também não caberia preventiva nas hipóteses de
excludentes de ilicitude, pois na hipótese o fumus comissi delicti estaria a favor do acusado e
o processo serviria para comprovar essa fumaça de que o crime não existiu por ter havido uma
exclusão de ilicitude. Acaso tenha sido o sujeito preso em flagrante e o juiz decida por soltá-
lo, esta hipótese será de liberdade provisória vinculada, conforme o artigo 310, § único. Trata-
se de cautela do legislador buscando se precaver caso a valoração do juiz tenha sido
equivocada.
Após essa abordagem explanatória sobre como a nossa legislação prevê o
encarceramento cautelar, passo para a análise dos o aprofundamento do tema com a crítica ao
fundamento ―garantia da ordem pública‖.

2.3.2. Pressupostos fáticos da prisão preventiva

Para o entendimento dos pressupostos trago aqui novamente a dicção do artigo 312 do
Código de Processo Penal:
Art. 312. A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem
pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou
para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência
do crime e indício suficiente de autoria (Redação dada pela Lei nº 12.403,
de 2011) (Grifos meus)

Na parte final do artigo 312 do Código de Processo Penal, onde está escrito ―quando
houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria‖ está o que anteriormente
67

expliquei ser o chamado fumus comissi delicti, que simplificadamente pode ser lido como a
presença de indícios de autoria e prova de que o delito ocorreu. Ou seja, tem que ter um
mínimo de probabilidade de que houve crime e de que o sujeito de quem se pretende a prisão
é o seu suposto autor ou partícipe.
Já na parte inicial do artigo 312 do Código de Processo Penal temos as hipóteses de
periculum libertatis, sendo que não tenho na presente tese nenhum motivo para criticar tais
hipóteses - em que são abordadas a prisão preventiva por ―conveniência da instrução
criminal‖, ou ―para assegurar a aplicação da lei penal‖, eis que ambas reverberam a função
instrumental, merecendo sintética explanação.
A chamada ―conveniência da instrução criminal‖ tem por intuito garantir um processo
justo e livre de contaminação probatória. Basicamente visa a tutela da prova. Ela seria cabível,
por exemplo, quando o imputado destruísse documentos, alterasse o local do crime, proferisse
ameaças às testemunhas. Jamais pode ser usada com propósito diverso, como por exemplo,
para forçá-lo a confessar, a participar de ato probatório, a delatar algum coautor. Em todas
essas hipóteses seu caráter seria perdido e mais, poderia ocorrer com isso a violação ao Pacto
de São José da Costa Rica que trata do princípio da vedação a autoincriminação, também
chamado nemo tenetur se detegere. Além disso, é evidente que se a prisão for decretada
apenas por esse motivo, após a instrução criminal não deverá mais o imputado permanecer
preso (conforme já falamos acerca da cláusula rebus sic standibus).
Já a hipótese de prisão preventiva para ―assegurar a aplicação da lei penal‖ ocorre
quando há a necessidade da prisão para que se evite que o agente fuja e assim se resguardaria
a eficácia da sentença. Não há que se falar aqui em presunção de fuga, deve haver nos autos a
demonstração do risco. Isso pode ser criticado, pois novamente entra-se num campo
indeterminado de exercício de futurologia realizado pelo magistrado. Não obstante, este é um
fundamento que cumpre com a função instrumental da prisão cautelar.
O fundamento ―garantia da ordem pública‖ é o que será abordado com maior
profundidade, mas adianto que a crítica que será feita será no sentido de que, a partir da hora
em que se trata de um conceito vago e elástico, tudo poderá ser nele incluído, servindo à
vontade política do momento. É esse elevado grau de indeterminação e vagueza que impedem
que haja consenso quanto à sua caracterização tanto em nível doutrinário quanto
jurisprudencial.
Na elasticidade do termo, Roberto Delmanto Junior (2001, pp. 179-182) diz
que a prisão preventiva não pode servir para a ―salvaguarda da integralidade
física do próprio acusado‖, da mesma forma seria descabido para dar
―credibilidade ao Poder Judiciário‖. Acrescentando que - segundo o
68

pensamento majoritário - a prisão preventiva poderia ser decretada para


preservar a ordem pública: ―naqueles casos em que as peculiaridades sejam
repugnantes, situações em que se vislumbra maldade, sadismo, humilhação,
emprego gratuito de violência física ou psíquica etc‖ se distanciando,
contudo, de seu caráter instrumental e trazendo verdadeira ―presunção de
culpabilidade do acusado‖ (DELMANTO JR, 2001, p. 183)

Portanto, há discussão acerca da ordem pública como ensejadora da prisão preventiva


em razão da perturbação gerada pelo crime na comunidade, da drasticidade do crime, para dar
credibilidade às instituições reafirmando a crença no Poder Estatal.
Já se afirmou até que serviria para a garantia da integridade do imputado, argumento
inadmissível e revelador da incompetência do Estado. Não se pode cercear a liberdade de
alguém porque o Estado é incapaz de manter a ordem. Por fim, argumento bastante comum é
afirmar a sua necessidade para evitar a reiteração criminosa, como se possível fosse prever o
futuro.
A prisão por garantia da ordem pública é, geralmente, invocada para casos
em que o acusado vem reiterando a ofensa à ordem constituída. Não é fácil
justificar doutrinariamente esta prisão como cautelar. Parte da doutrina
entende que configura uma verdadeira medida de segurança e que, nela, há
antecipação da pena. Embora seja difícil afirmar a natureza cautelar da
prisão para garantia da ordem pública, é prevista nos mais diversos
ordenamentos para impedir o acusado de continuar a praticar delitos. O que
se tem feito é restringi-la aos crimes de maior gravidade (FERNANDES,
2007, p. 329)

A garantia da ordem pública, conforme traz Roberto Delmanto Júnior, também tende a
ser compreendida como um argumento destinado a impedir a reiteração criminosa, tratando-
se, portanto, de uma presente presunção de culpabilidade (DELMANTO JR., 2001, pp. 177-
178) Para este autor:
Com a referida presunção de reiteração, restariam violadas, portanto, as
garantias constitucionais da desconsideração prévia de culpabilidade
(Constituição da República, art. 5º, LVII) e da c/c os arts. 14, 2, do Pacto
Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, e 8º, 2, 1ª parte, da Convenção
Americana sobre Direitos Humanos) (DELMANTO JR., 2001, p. 179)

Importante destacar também que a discussão não se dá apenas no sentido de não haver
consenso acerca do seu conceito, mas também acerca da possibilidade de seu uso:
Não nos deparamos apenas com uma ausência de consenso, mas também
com uma serie de posicionamentos diferentes e diametralmente opostos,
desde a completa inconstitucionalidade dessa prisão, passando pela
exigência cumulativa de alguns requisitos como repercussão geral, gravidade
do crime e periculosidade do agente, chegando ao extremo de considerar
garantia da ordem pública a prisão de indivíduos considerados perigosos
(LIMA FILHO, 2013, p. 87)
69

Cada uma dessas situações será revista adiante posto que a garantia da ordem pública é
o fundamento que me despertou interesse para a relação com a biopolítica.
A ―garantia da ordem econômica‖ é fundamento de prisão preventiva incluída pela Lei
8.884/1994 (revogada pela Lei 12.529/201137) e se relaciona aos crimes38 que envolvam
golpes no mercado financeiro, donde se conclui que ocorreria quando houvesse a necessidade
de se prender o autor de fato que perturbasse o livre exercício de atividade econômica.
Vale lembrar que a ordem econômica tem tutela constitucional em seu artigo 170: ―A
ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por
fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social (...)‖
(CRFB/88), sendo conceito deveras amplo.
Luiz Régis Prado afirma que sendo um conceito também elástico, abrange também as
ordens tributária, financeira, monetária bem como crimes contra as relações de consumo
(PRADO, 2013, p. 39). Afirma-se que com a prisão pela garantia da ordem econômica se
evitariam perdas financeiras, bem como impossibilitaria a macula da credibilidade do sistema
financeiro. Ora, isso mostra, portanto que seu real objetivo não tem natureza cautelar ao
processo, mas sim a execução antecipada da pena.
É só olhar o público alvo do sistema penal narrado no capítulo anterior para que se
conclua que esse argumento é pouco usado e, na realidade parece ser mais um desdobramento
da ideia de controle da ordem pública.
Não será meu foco, na tese, analisar as críticas à garantia da ordem econômica, mas
apenas deixar consignado que tal motivo também foge a ideia instrumental de cautelaridade e
que, se a real preocupação fosse amenizar as perdas econômicas, o atingimento dos bens seria
de muito mais valia como na utilização do sequestro, bem como através de restrições
comerciais e não pela intervenção penal (LOPES JR., 2018, p. 651).
É fato que tanto a ―garantia da ordem pública‖ quanto a ―garantia da ordem
econômica‖ não apresentam natureza cautelar, mas sim ―policial ou punitiva‖. É esse o
pensamento de André Ribeiro Giamberadino (2008, 139) ao dizer que a real função da
―garantia da ordem‖ é a ―administração tecnocrática da punição pautada pela eficiência e pela

37
A Lei nº 12.529, de 30 de novembro de 2011 estrutura o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência; dispõe
sobre a prevenção e repressão às infrações contra a ordem econômica; altera a Lei no 8.137, de 27 de dezembro
de 1990, o Decreto-Lei no 3.689, de 3 de outubro de 1941 - Código de Processo Penal, e a Lei no 7.347, de 24 de
julho de 1985; revoga dispositivos da Lei no 8.884, de 11 de junho de 1994, e a Lei no 9.781, de 19 de janeiro de
1999; e dá outras providências.
38
Algumas leis esparsas (como a atual Lei Antitruste 12. 529/2011- art. 36 e ss. e a Lei 8.137/90) tutelam
justamente a questão da ordem econômica‖ (TAPOROSKY FILHO; OLIVEIRA, 2016, p. 01)
70

incapacitação dos socialmente perigosos‖, ou seja, algo inerente à ideia biopolítica que será
adiante exposta.

2.4. Garantia da “ordem pública” como fundamento da prisão preventiva

Como já afirmei, o fundamento da prisão preventiva baseado na garantia da ordem


pública previsto no artigo 312 do Código de Processo Penal evidencia elasticidade capaz de
gerar uma margem interpretativa que pode abarcar toda sorte de interesses, e, minha hipótese
sustenta justamente a dúvida se, tal expressão seria enquadrada como um dispositivo de
controle previsto em lei, pois é fato que, essa imprecisão autoriza a violação de direitos e
garantias constitucionais sob uso da constrição.
Fauzi Hassan Choukr (2015, p.01) explicita a inconstitucionalidade da garantia da
ordem pública com base na vagueza do texto, sobretudo no conflito com o princípio da
presunção de inocência, posto que tal medida não se coaduna com a ideia de cautelaridade,
mas sim de antecipação de pena.
Esclarece Luigi Ferrajoli que a prisão preventiva traz em si duas funções: uma função
de antecipação de pena onde ―primeiro se pune, e depois, se processa, ou melhor, se pune
processando‖ (FERRAJOLI, 2014, p. 716) e a segunda é a função inquisitória visando o
constrangimento do preso para confessar ou colaborar com o esclarecimento do caso
evidenciando a distorção no uso do processo. É esse mesmo autor que afirma que:
Toda vez que um imputado inocente tem razão de temer um juiz, quer dizer
que isto está fora da lógica do Estado de direito: o medo e mesmo só a
desconfiança ou a não segurança do inocente assinalam a função mesma da
jurisdição penal e a ruptura dos valores políticos que a legitimam
(FERRAJOLI, 2014, p.506)

Fauzi Hassan Choukr (2015, p.01) busca verificar a existência de um conceito de


ordem pública na jurisprudência, ou seja, responder à questão formulada por Patrick Mariano
Gomes (2013, pp. 15-20), que averiguou de que maneira o discurso utilizado na
fundamentação das decisões proferidas pelo STF acerca dessa modalidade de prisão fora
construído ao longo de 76 anos.
É fato que a expressão ―ordem pública‖ já percorreu diversas ondas democráticas e
autoritárias ao longo de sua existência, e que tal análise não pode deixar de levar isso em
conta.
71

Fauzi Hassan Choukr concluiu que, no que toca à prisão preventiva, em cinquenta
anos do uso da expressão, não houve coesão a respeito da formação de um juízo de valor do
que efetivamente ela significaria, e, sendo assim, diante da ausência de parâmetros, seu uso se
dá apenas retoricamente (CHOUKR, 2015, p.03).
Novamente aponto a repetição de alguns parâmetros vistos nas decisões como: reforço
na credibilidade na justiça, suposta periculosidade do agente, gravidade exacerbada do crime,
clamor público em razão da revolta da população, segurança do imputado e mera repetição da
fórmula legal. Neste mesmo sentido:
Em breve passagem pela jurisprudência de qualquer tribunal superior é
possível constatar várias possibilidades argumentativas, como por
exemplo, a repercussão nos meios de comunicação de massa que o fato tido
por delituoso causou, a gravidade abstrata do crime cometido, a segurança
do próprio acusado, a proteção das instituições ou a credibilidade do
Judiciário etc. Na doutrina, a maior parte dos autores, entre eles: Pacelli de
Oliveira, Júlio Fabbrini Mirabete e Giovanni Leone admitem o uso do
conceito, este último, conferindo expressamente à custódia cautelar
finalidade de prevenção especial. Entretanto, se constata, também, a
produção de estudos críticos sobre o tema como os de Antônio Magalhães
Gomes Filho, Odone Sanguiné e Aury Lopes Júnior (GOMES, 2013, p. 17)
(Grifos meus)

Aury Lopes Junior (2018, p. 649) critica a ideia do clamor público produzida pela
exploração midiática, onde primeiro se expõe e se explora o fato (opinião publicada) e, após
propagar-se o fato, inclusive com a proliferação do medo, argumenta-se que haveria o clamor
público, no entanto, percebe-se que tudo é fruto de uma manobra, não muito distante do que já
foi criticado por Gabriel Tarde39 e também na propaganda nazista.
Gabriel Tarde, na obra intitulada A Opinião e as Massas, traz um primeiro estudo
acerca do termo público como uma nova forma da relação social de massa distinguindo-o da
ideia de multidão (TARDE, 2005, p.05).
Segundo esse autor, o público envolve uma formação mental e social mais complexa
que a multidão, sendo esta mais restrita em termos de alcance. O público e a sua opinião
nasceram com o surgimento da imprensa, posto que foi através dela que se deu essa enorme
disseminação de informação (que não é necessariamente verdadeira). O que despertou meu
interesse neste autor foi que ele demonstrou que o público, por ser conhecido, é manejável
com maior facilidade, o que traz a possibilidade de relacionar essa questão com a ideia de
governamentalidade, que será apresentada mais a frente e de dispositivo.

39
Embora não tão falado o autor Gabriel Tarde (1843-1904) foi um sociólogo, jurista e criminólogo francês que,
inclusive teve divergências com o famoso criminólogo italiano Cesar Lombroso (1835-1909).
72

O público é mais disperso que a multidão, mais amplo, e, por isso, em momentos em
que há a incitação de ódio, o atuar do público é pior. ―O público, quando é criminoso, o é
mais por interesse de partido do que por vingança, mais por covardia do que por crueldade;
ele é terrorista por medo, não por acesso de cólera‖ (TARDE, 2005, pp. 45-53).
Essa força dos publicistas, daqueles que incutem e manipulam ideias – a mídia (e por
que não as atuais correntes de fake-news via redes sociais?) - se dá em razão do conhecimento
existente das vontades do público. Saber seus desejos e medos é essencial para explorá-los,
para angariar apoio a políticas que podem até mesmo atentar contra os próprios membros do
grupo, como ocorre como o que atualmente vemos no tocante à relativização de Direitos na
seara penal.
Essa versatilidade, essa facilidade de convencimento, possibilita que esse agrupamento
passe de uma situação de execração à adoração com facilidade e vice-versa, o que se
aproxima à crítica de Aury Lopes Junior (2018, p. 649) acerca da ideia da criação pela mídia
do alarde justificador do uso da garantia da ordem pública como fundamento da constrição
cautelar.

2.4.1. Origem da expressão ―ordem pública‖

Considerando tratar-se de um conceito indeterminado, fica evidente que ela pode


servir aos interesses políticos de uma época, podendo até restringir garantias. Patrick Mariano
Gomes diz que a reforma nacional-socialista ocorrida na Alemanha no período do entre
guerras, foi o que permitiu a mudança na legislação, trazendo a permissão para se efetuar a
prisão provisória lastreada na perturbação ou ameaça grave a segurança e ordem pública,
inclusive com autorização para suspender direitos fundamentais (GOMES, 2013, pp. 27-28).
Este autor baseia-se na fala de Giorgio Agamben na obra Estado de Exceção (2004)
que traça extensa análise histórica da utilização do artigo 48 entre os anos que vão de 1919 até
1933, esclarecendo que os deputados da Assembleia Nacional, ao elaborar a nova
Constituição, inseriram nesta o artigo 48 que dava ao presidente do Reich poderes
excepcionais que seriam definidos em lei.
Contudo, tal lei nunca fora criada, permitindo assim, que o presidente permanecesse
com poderes indeterminados consagrando assim a expressão ―ditadura presidencial‖ e foi
73

através do uso deste artigo que a República de Weimar vivenciou seus últimos anos em
regime de estado de exceção.
Foi assim que, dentro da lei, utilizando-se do artigo 48 da Constituição de Weimar,
que se permitiu o aprisionamento em massa daqueles que, àquela época eram considerados os
inimigos do estado alemão (AGAMBEN, 2004. pp. 28 e 29). Neste sentido também são as
palavras de Aury Lopes Junior:
Grave problema encerra ainda a prisão para garantia da ordem pública, pois
se trata de um conceito vago, impreciso, indeterminado e despido de
qualquer referencial semântico. Sua origem remonta a Alemanha na década
de 30, período em que o nazifascismo buscava exatamente isso: uma
autorização geral e aberta para prender. Até hoje, ainda que de forma mais
dissimulada, tem servido a diferentes senhores, adeptos dos discursos
autoritários e utilitaristas, que tão ―bem‖ sabem utilizar dessas cláusulas
genéricas e indeterminadas do Direito para fazer valer seus atos prepotentes
(LOPES JR., 2018, p. 648).

O artigo 48 da Constituição de Weimar previa que era possível a suspensão total ou


parcial dos direitos fundamentais pelo Presidente caso estivessem diante de ameaça grave à
segurança e ordem pública na República a fim de restabelecer à citada ordem e segurança.
Foi com reforma nacional-socialista de 1935 que o processo penal alemão
incorporou a permissão para se determinar o encarceramento provisório com
fundamento na excitação da opinião pública provocada pelo delito. O
contexto histórico do período entre guerras e a situação da Alemanha (que
vinha de derrota da primeira das grandes guerras mundiais), exigia que se
elegessem os culpados dessa derrota e do infortúnio do povo alemão e que
sobre estes recaísse a segregação, o isolamento e o banimento, que só as
prisões são capazes de realizar. As reformas legislativas que se sucederam na
Alemanha após a II Guerra retiraram do ordenamento legal a possibilidade
de se determinar a prisão para garantia da ordem pública (GOMES, 2013, p.
28)

Foi a reforma nacional socialista de 1935 que trouxe mais dois motivos ensejadores do
aprisionamento cautelar, o primeiro ligado à possibilidade de reiteração criminosa (motivo
eliminado em 1950) e o segundo com base na gravidade do crime e clamor público (motivo
eliminado em 1945) (BAROSIO, 1967, p.16 apud GOMES, 2013, p. 28).
Contudo, após inúmeras reformas, hoje, o Código de Processo Penal da Alemanha
exige para a prisão preventiva que a pessoa seja fundadamente suspeita do fato delitivo e que
exista um motivo para a prisão. Isto é, suspeita bem fundada, alto grau de probabilidade de
que o imputado tenha cometido o delito, o que, ainda abre brechas à decisionismos:
A ―forte suspeita do cometimento do delito‖ (dringender Tatverdacht),
prevista no §112 Satz 1, ocorre pela elevada probabilidade do acusado, na
qualidade de autor, co-autor ou partícipe, ter perpetrado um fato delituoso
previsto na ordem jurídica penal alemã. A probabilidade de existência de
―causas justificativas‖ (Rechtfertigungsgründe), de ―elementos de não
74

culpabilidade‖ (Schuldausschließungsgründe) ou de ―elementos de


inimputabilidade‖ (Strafausschließungsgründe) afasta a ―forte suspeita do
cometimento do delito‖ (dringender Tatverdacht) (Schlothauer StV 96, 393).
Em suma, é de se ver que o requisito exige uma ―elevada probabilidade‖
(hohe Wahrscheinlichkeit) do cometimento do delito, diferentemente de
outros ―graus de suspeita‖ (Verdachtsgrade) previstos no Código de
Processo Penal, como, por exemplo, a ―suspeita inicial‖ (Anfangsverdacht –
§§ 160 I, 152 II), a qual permite o início da investigação, e a ―suspeita
suficiente [de prática] do delito‖ (der hinreichende Tatverdacht – § 170 I,
203), cujo grau autoriza o oferecimento da denúncia e, consequentemente, a
abertura da audiência de instrução e julgamento (Hauptverhandlung)
(ALVES MACHADO, 2015, p. 13).

É necessário ainda que existam, como fundamento da prisão: perigo de fuga, de


ocultação da prova, gravidade do crime ou perigo de reiteração (COLOMER, 1985, p. 106
apud LOPES JR., 2018, p. 633)

2.4.2. Ordem Pública na Legislação Pátria

Patrick Mariano Gomes (2013, pp. 27-42) expõe a trajetória da expressão ―ordem
pública‖ na legislação processual penal pátria em sua dissertação Discursos sobre a ordem:
uma análise do discurso do supremo tribunal federal nas decisões de prisão para garantia da
ordem pública (2013). Ele explica que a ideia de segregar os ―indesejáveis‖ já se fazia
presente na primeira república:
Se for possível demarcarmos a entrada da garantia da ordem pública como
legitimadora do encarceramento provisório no ano de 1941, data da entrada
em vigor do novo Código de Processo Penal, historicamente, a lógica da
segregação e exclusão daqueles que rompiam os padrões estabelecidos, os
chamados indesejáveis do sistema, começa já na Primeira República
(GOMES, 2013, p. 29).

O Decreto nº 1.641, de 07 de janeiro de 1907, previa a expulsão de estrangeiros que,


por qualquer motivo, comprometessem a segurança nacional ou a tranquilidade pública
(NEDER, 1995, p.73), mas logicamente não eram apenas os estrangeiros que compunham a
gama de pessoas que não eram bem quistas por não se adequarem ao período de
modernização pós colônia.
A influência principalmente daqueles indivíduos oriundos da abolição da escravidão,
acabavam por formar essa população excluída e pobre. Neste sentido:
Uma outra face do que foi caracterizado como desordem urbana constitui-se
pela ação de centenas de indivíduos que, à margem do mercado de trabalho,
tornaram o furto, o roubo, a vagabundagem e a mendicância práticas
75

delituosas habituais do cotidiano carioca. Atentando de maneira flagrante


contra os valores tornados sagrados pela ordem capitalista em implantação,
eles eram uma ameaça constante à boa ordem buscada pelo regime;
concebida esta com o respeito às leis e à constituição e a ausência de atos ou
protestos que ameaçassem ou comprometessem a segurança individual ou de
propriedade (MENEZES, 1996, p.127 apud GOMES, 2013, p.31)

Ao afirmar que ―é importante pensar a ordem pública como discurso apto a se adaptar
pronta e facilmente a qualquer realidade política‖ (GOMES, 2013, p. 32) reforça a ideia de
que a expressão, embora restringida aqui para o estudo da prisão preventiva, não pode ser
descontextualizada de um processo histórico e arbitrário de contenção de indivíduos
considerados como indesejáveis (NEDER, 1995, p.73).
Eugênio Raul Zaffaroni afirmou que o Direito Penal do século XX acabou permitindo
que se considerassem alguns seres humanos como potencialmente perigosos e isso permitiu
que eles devessem ser ―segregados ou eliminados, coisificou-os sem dizê-lo, e com isso
deixou de considerá-los pessoas‖ (2014, p.18). No entanto, foi o alemão Günther Jakobs
(2009, pp. 40-41) quem desenvolveu detalhadamente a teoria que trouxe a diferença entre o
Direito Penal do Cidadão e o do Inimigo. Que entendo ser facilmente perceptível com o jogo
de palavras popularizado de que ―Direitos Humanos são para humanos direitos‖,
desumanizando o homem considerado ―de mau‖ em oposição ao ―homem de bem‖, que é o
padrão.
Merece destaque que o Direito Penal do Inimigo de Günther Jakobs (2009, pp. 40-41)
toma por base a suposta perigosidade do sujeito e permite que a punibilidade do sujeito se
adiante até o momento da preparação, estágio anterior à prática do delito, ou seja, a pena se
dirigiria a fatos futuros e não a fatos já ocorridos. Observa-se ainda que, conforme Eugênio
Raul Zaffaroni (2014, pp.13-16), que nas últimas décadas o poder punitivo tem se expandido,
tendo essa figura do inimigo ganhado destaque.
Eugênio Raul Zaffaroni (2014, pp.13-16) reforça a ideia de que emergências
justificadoras de estados de exceção não são fenômenos recentes e costumeiramente o que
seria algo pontual tem se convertido em exceção perpétua, principalmente na legislação
latino-americana, ressaltando que muito disso ocorre pela incapacidade dos Estados de não
realizares reformas estruturais.
De outro lado, a comunicação de massa, ao invés de informar, investe numa
propaganda que nada mais faz do que aprofundar preconceitos, corroborando com discursos
de ódio, relembrando o que foi dito acerca das opiniões das massas por Gabriel Tarde.
76

Eugênio Raul Zaffaroni ainda diz que, a questão da construção do inimigo, é


verdadeiramente de caráter político e que se tem duas frentes possíveis: a dos direitos
humanos de um lado e, do outro, a da repressão ao inimigo que, nas palavras do autor: ―arrasa
com os direitos humanos e, mais cedo ou mais tarde, acaba no genocídio‖ (2014, p. 17).
Ora, se a definição de criminoso é fruto de uma construção pautada pela seletividade, a
escolha de quem pode se tornar o inimigo público de uma época também o será. E é aí onde
há o risco: Afinal, quem serão os escolhidos a terem suas garantias reduzidas ou até mesmo
eliminadas?
Patrick Mariano Gomes, ainda na abordagem histórica, ressalta a importância do
Ministro da Justiça, Francisco Campos, como um dos ideólogos da base jurídica de
sustentação do Estado Novo, sendo ele responsável pela Constituição de 1937, bem como
pela reforma do Código de Processo Penal de 1941, marcados pela centralização do poder e
controle da sociedade de massas, nesse sentido:
O foco na defesa social se tornava o princípio cardeal de todas as mudanças
legislativas do período, o critério de maior repressão e restrição aos direitos e
garantias individuais, somado à ampliação dos fatos considerados como
crimes, possibilitavam ao Estado maior rapidez e facilidade na repressão aos
inimigos desta nova ordem política, instaurada em 10 de novembro de 1937
com a promulgação da Constituição (...) É claro, que toda essa ideologia no
pensamento jurídico foi influenciada pelo que ocorria na Europa,
principalmente na Itália e Alemanha, como já o dissemos com Schietti. A
Constituição de 1937, a primeira republicana com cariz autoritário, marca o
período histórico conhecido por Estado Novo, nome copiado da ditadura
fascista de Antônio Salazar em Portugal (GOMES, 2013, p. 35)

Com base na ideologia da ordem, a centralização e o forte controle foram possíveis


com uma grande repressão policial, onde medidas ilegais passaram a ser toleradas, como por
exemplo, longa permanência de pessoas presas para averiguação. Na verdade, o foco não era
o ato praticado, mas sim o sujeito considerado inadequado à sociedade, que à época do Estado
Novo era principalmente o ―comunista‖ (CANCELLI, 1993, p. 29 apud GOMES, 2013, p.
37).
Cabe lembrar que durante toda a história o medo sempre ganhou uma ―cara‖ – medo
dos negros, dos capoeiras, dos vadios, dos comunistas, dos traficantes, dos favelados, dos
presidiários – de maneira que o ―inimigo‖ é sempre definido pelo critério da exclusão social,
sendo aquele com o qual o grupo social dominante não se identifica, conforme explica Tomaz
Tadeu da Silva:
A identidade, tal como a diferença, é uma relação social. Isso significa que
sua definição – discursiva e lingüística – está sujeita a vetores de força, a
relações de poder. Elas não são simplesmente definidas; elas são impostas.
77

Elas não convivem harmoniosamente, lado a lado, em um campo sem


hierarquias; elas são disputadas (SILVA, 2000, p. 81)

Loïc Wacquant, prefaciando a obra de Vera Malaguti Batista, explica que esta
evidencia que o medo coletivo ―se transfigura em sentimento, em afeto, em política
econômica, em projetos de lei, em fragmentos discursivos, em cenários, em políticas
sanitárias‖ (BATISTA, 2003, p. 08). São as representações do medo impregnadas
principalmente na questão racial e da desigualdade social que se projetaram – e continuaram a
se projetar – na cidade em diversos campos, sendo óbvio o campo político numa
domesticação das classes pobres.
Ontem, como hoje, o ‗outro‘ assustador, sobre quem se desata a violência
física e simbólica concentrada do Estado, é uma massa enxameada e sem
rosto de marginais de pele escura, que deve ser retratada monocraticamente,
como inimigos diabólicos da nação, violadores congênitos daqueles códigos
morais, como consagrados pela lei criminal, para que possa ser seguramente
desconsiderada como expressão viva das mais profundas contradições
sociais da nação – como revelação e acusação encarnadas da traição da
sociedade, dos princípios liberais democráticos que ela mesma professa
(WACQUANT in BATISTA, 2003, p.10)

O controle da ordem pública, portanto, de maneira não oficial, uma vez que pela letra
da lei hoje não se evidencia (pois já se evidenciou – isso será visto mais adiante na abordagem
do racismo estrutural), se dá sistematicamente sobre esse principal alvo da política criminal:
os pretos e pobres, os nossos indesejáveis, aqueles que serão, conforme Giorgio Agamben, os
homo sacer (AGAMBEN, 2014).
Sendo assim, considerando que ―o sistema penal se resume num reflexo de valores da
classe dominante, servindo como instrumento de manutenção das desigualdades sociais e
controle das classes periféricas, ou seja, desfavorecidas‖ (SAMPAIO, 2004, p. 172). Não me
causa nenhum espanto que a prisão preventiva pudesse, fugindo à função oficial de servir ao
processo, servir para o controle da população indesejável.
Deste modo, mais do que uma mera necessidade processual penal, a questão
da ordem pública era mesmo uma concepção política de Estado, se constituía
uma das bases ideológicas de sustentação de um Governo que, dado o tempo
de permanência no poder, ficou conhecido pela historiografia como Era
Vargas. Assim, o poder punitivo servia para, não somente confirmar as teses
políticas e ideológicas de existência de um perigo geral (muitas vezes
externo) para o bem comum que representavam aqueles que discordavam do
projeto político posto − os inimigos da nova ordem −, como também, para
levar ao isolamento todo aquele que tentasse questionar a ordem vigente,
sendo que para isolar e segregar, nada melhor para este fim que as prisões
(...). Não se estranha, portanto, que diante deste conturbado contexto
social e político, o conceito de ordem pública, assim como ocorrido na
Alemanha em 1935, tenha se irradiado da política para a junção à
78

prisão provisória, prevista no art. 312 do Código de Processo Penal de


1941 (GOMES, 2013, p. 38) (Grifos meus)

A prisão preventiva para a garantia da ordem pública embora prevista no artigo 312 do
Código de Processo Penal, não encontrou até hoje definição na Lei, na doutrina, tampouco na
jurisprudência.
Essa modalidade de constrição não se coaduna de maneira alguma com a natureza
instrumental ao processo característica essencial das medidas cautelares e, se sua função
subterrânea não fosse tão legitimada pelas práticas, com a entrada em vigor da Constituição
da República Federativa do Brasil de 1988, ela deveria ter sido eliminada, numa adequada
leitura à luz do que dispõe a Carta Magna.
À ordem pública relacionam-se todas aquelas finalidades do encarceramento
provisório que não se enquadram nas exigências de caráter cautelar
propriamente ditas, mas constituem formas de privação da liberdade
adotadas como medidas de defesa social; fala-se, então, em ‗exemplaridade‘,
no sentido de imediata reação ao delito, que teria como efeito satisfazer o
sentimento de justiça da sociedade; ou, ainda, em prevenção especial , assim
entendida a necessidade de se evitar novos crimes (GOMES FILHO, 1991,
p. 67)

Vale destacar que diversas alterações já foram realizadas no texto legal inclusive
trazendo semelhantes defeitos, como por exemplo, flagrantes violações ao sistema acusatório
como a autorização do juiz decretar a prisão preventiva de ofício, no curso do processo
conforme a previsão da Lei 12403/11. É esse o pensamento de André Nicolitt:
Com a nova redação que lhe foi dada pela Lei 12.403/2011, proibindo o
decreto de prisão de ofício apenas na fase da investigação não resolve o
problema da violação ao sistema acusatório. Para nós o juiz não pode
decretar prisão ou qualquer medida cautelar de ofício, seja na fase de
investigação, seja no curso da ação penal (...). Quando a prisão cautelar é
dirigida a evitar a prática de infrações penais, ou tutelar a ordem pública, o
clamor público, a ordem econômica, assegurar a credibilidade da justiça, o
que se busca na verdade, diversamente da tutela do processo é o controle
social, a prevenção, geral ou específica, que é o objetivo da pena e não das
medidas cautelares (NICOLITT, 2014, pp. 751-752).

Tem-se assim que a prisão cautelar para garantia da ordem pública ingressou no
ordenamento através do Código de Processo de Penal de 1941, de inegável influência
nazifascista e, curiosamente, resistiu à Constituição Cidadã de 1988, bem como à reforma
operada pela Lei 12.403/11, o que me faz crer que em verdade há a permanência dos ideais de
controle social, possibilitando sempre a escolha do novo inimigo. Tal visão não encontrará
explicação no Direito, por isso a necessidade que senti para explicações vindas de outros
saberes. O Direito a detecta, mas não a explica, como podemos ver:
79

Ao que parece, os fatores demográficos e sociológicos projetam uma série de


estereótipos que se introduzirão normativamente na regulação dos requisitos
para decretar ou denegar a prisão provisória, como os antecedentes, a
periculosidade, o status de desempregado etc., que vão influenciar a praxe
das agências de controle social (Polícia, Promotores e Juízes), guiados pelas
teorias de ―todos os dias‖, de maneira que atuem seletivamente segundo a
classe a que pertence o imputado ou seu papel social e. por sua vez,
influenciando, juntamente com a opinião pública e os meios de
comunicação, as decisões dos juízes e tribunais. Portanto, a prisão provisória
envolve uma questão de classe social, porque o sistema jurídico a utiliza
como um meio de gestão da indigência, recaindo com mais frequência sobre
as pessoas de baixo status social (SANGUINÉ, 2010, p. 305)

Orlando Zaccone (2015), na obra Indignos de Vida, aborda através da ideia da


biopolítica e dispositivos de controle agambenianos os chamados autos de resistência40, onde
temos, através do sistema legal uma justificativa para a tanatopolítica, possibilitando que os
indesejáveis da atualidade sejam mortos por braços do próprio Estado.
Ele traz o perfil daqueles que o Estado tem ―autorizado‖ matar e, não é de se estranhar,
que o público alvo seja semelhante ao da minha tese, só que os indignos de vida de Orlando
Zaconne nunca poderão testemunhar o que viveram.
Enquanto ele abordou o genocídio da população jovem e negra nos chamados autos de
resistência, o meu foco está naqueles 41% de presos cuja condenação ainda não existe
definitivamente, cujo perfil se repete mostrando quem são os inimigos de nosso tempo
(negros, jovens, pobres). Sendo que estes, presos, seguem biologicamente vivos, em cárceres
insalubres, por tempo indeterminado pela lei. Para mim, com a licença poética de Orlando
Zaconne, chamo esses indivíduos não como ―indignos de vida‖ conforme os mortos dos autos
de resistência, mas sim como indignos de ―vida digna‖, uma vez que o preso tem em verdade
a preservação de sua vida biológica, mas paralelamente tem sua dignidade eliminada, sua
subjetividade, enquanto ser humano, deteriorada.
Conforme dados fornecidos pelo CNJ em junho de 2014, o Brasil já ocupava o terceiro
lugar no ranking dos 10 países com maior população prisional, perdendo apenas para os
Estados Unidos da América e para a China.
O país, segundo a pesquisa, conta com 715.655 indivíduos submetidos ao controle do
Estado (presos no sistema prisional somados aqueles submetidos à prisão domiciliar). Temos
567.655 indivíduos vivendo dentro dos cárceres e desses, 41% não tem condenação definitiva.

40
Em janeiro de 2016, através de resolução conjunta do Conselho Superior de Polícia e do Conselho Nacional
dos Chefes da Polícia Civil, a expressão ―auto de resistência‖ passou a ser chamada de ―homicídios decorrentes
de oposição à ação policial‖, contudo, seguirei usando a expressão mais conhecida e já simbolicamente ligada à
prática de execução sumária pelos braços do Estado.
80

No próximo capítulo, apresentarei conceitos relativos à biopolítica, notadamente


àqueles trabalhados por Michel Foucault e Giorgio Agamben, bem como alguns pontos da
criminologia crítica que desde há muito fala sobre a criminalização da pobreza, ou seja,
também mostrando o controle e contenção de uma população já considerada indigna de ter
―vida digna‖ e, contextualizando com a nossa História, procurarei demonstrar que o ―inimigo‖
está posto com as mesmas características, desde a origem de nosso país.
81

3. BIOPOLÍTICA: DE FOUCAULT A AGAMBEN ASSOMBRADOS POR SCHMITT

A segurança está entre aquelas palavras com sentidos tão abrangentes que nós nem
prestamos mais muita atenção ao que ela significa. Erigido como prioridade
política, esse apelo à manutenção da ordem muda constantemente seu pretexto, mas
nunca seu propósito: governar as populações.
Giorgio Agamben

Este capítulo visa, em sua primeira parte, explicar o método arqueológico de estudo
utilizado por Michel Foucault e por Giorgio Agamben e, em sua segunda parte, apresentar
alguns conceitos usados pelos autores, dentro do tema da biopolítica, para que seja possível
traçar a relação destes conceitos com a questão carcerária e da criminalização da pobreza
presente na realidade brasileira.
A assimilação desses métodos de estudo e a relação deles com a biopolítica será útil
para analisar o encarceramento cautelar brasileiro de uma maneira geral, e, de maneira
específica, observando as questões relativas ao tipo de crime praticado, bem como relativas ao
agente, como por exemplo, no que tange ao aumento do encarceramento feminino.
A compreensão dos conceitos da biopolítica também será imprescindível para verificar
se o excessivo número de prisões cautelares para ―a garantia da ordem pública no Brasil‖
corresponderia ao que Giorgio Agamben intitula como dispositivo em seu ensaio O que é um
dispositivo? (2016), sendo tal medida usada como uma prática permanente de controle sobre
uma categoria de cidadãos rotulados como inimigos onde o que era para ser exceção passa a
ser utilizado como um procedimento padrão permanentemente calcado numa
pseudonecessidade.
É preciso entender a relação entre o jogo processual e política. Sem isso a
leitura do processo penal e dos movimentos de recrudescimento é ingênua. O
processo pode cooperar com o controle social, mas não pode ser
subserviente a ele. Não pode ser um aliado de trincheira. Se assim se postar
perde a dimensão coletiva de garantia que a razão exige e que demarca o
próprio sentido da jurisdição no Estado democrático de Direito (ROSA,
KHALED JR., 2014, p. 27)

De todo modo, a adequada compreensão dos conceitos utilizados por Giorgio


Agamben e aqueles autores que o influenciaram, como Michel Foucault e Carl Schmitt, é um
primeiro passo necessário para a análise dos dados acerca da prisão.
82

3.1. O método arqueológico: exemplos e “não ditos”

Acerca do método arqueológico, é Giorgio Agamben quem afirma que paradigma é


exemplo. Ele explica que esse exemplo é como um fenômeno particular que valeria para todos
os casos a ele assemelhados. Ele afirma usar esse método com frequência, assim, o homo
sacer não seria apenas uma figura do direito romano arcaico, mas também o paradigma para a
compreensão do que ocorre na biopolítica atual.
Luis Antônio Cunha Ribeiro (2012, p. 01) se propôs a identificar as conexões entre o
método empregado por Michel Foucault e por Giorgio Agamben, inicialmente analisando o
método arqueológico em Michel Foucault, utilizando para tal intento prioritariamente a obra
Arqueologia do Saber.
Nesse método, a ideia de continuidade histórica deve ser suspensa para que o discurso
apareça como singularidade e, por isso, ele afirma que ―Foucault define sua empreitada com
uma análise histórica do discurso‖ (RIBEIRO, 2012, p. 03), onde haverá uma busca de novas
relações entre os enunciados e, posteriormente, o agrupamento de um conjunto de enunciados
denominado como formação discursiva.
Na busca por essa formação discursiva, o autor esclarece que Michel Foucault estava
interessado em identificar:
a) a maneira como discursos diferentes podem ser formados a partir de
regras análogas (isomorfismo arqueológico); b) a maneira como estas regras
funcionam, como operam, sendo esta maneira a mesma nos diferentes
discursos analisados ou não (modelo arqueológico); c) a maneira como
conceitos diferentes em discursos diferentes podem ocupar uma posição
análoga em sua respectiva positividade, em seu edifício discursivo (isotopias
arqueológicas); d) a maneira como a mesma noção pode ter um papel
diferente em discursos diferentes, como a noção de evolução, ou origem,
para a gramática e as ciências naturais (afastamento arqueológico); e) a
maneira como diferentes positividades podem se relacionar por subordinação
ou complementaridade (correlações arqueológicas) (RIBEIRO, 2012, p. 04).

Michel Foucault preocupa-se em buscar as regras de formação de enunciados para


compreender de que forma esses enunciados aparecerão como discursos. Ele diz que haverá
que se demonstrar que eles derivam do mesmo conjunto de relações.
Os conjuntos de enunciados ou as formações discursivas, junto com as
práticas discursivas que correspondem a cada um deles, incluídas as
instituições materiais que atualizam tais práticas, este conjunto mais amplo
de enunciados, como eventos, e coisas, como formações práticas e
instituições materiais, serão chamados arquivos (FOUCAULT, p. 160, apud,
RIBEIRO, p. 05)
83

A formação discursiva, dessa maneira, não pode ser entendida como o retrato de uma
era, ela não é tida como algo pasteurizado, ela traz singularidades, especificidades que devem
ser notadas exatamente no que ―não era dito‖, mas era comum a vários discursos dissonantes
acerca de um tema. Importava ao autor entender o porquê de alguns discursos serem
habilitados a excluírem outros e assim passarem a integrar os chamados saberes.
Luis Antônio Cunha Ribeiro (2012, p. 06) esclarece ainda que Foucault não se utilizou
do termo paradigma para não se confundir com as ideias de Thomas Kuhn, sendo Giorgio
Agamben (2008, p. 39, apud RIBEIRO, 2012, p. 07) responsável pela explicação e uso do
chamado método arqueológico paradigmático, trazendo, por exemplo, o homo sacer e o
estado de exceção como paradigmas:
Agamben afirma que o homo sacer, os campos de concentração, o
Muselmann e o Estado de Exceção são paradigmas neste sentido, mas
também a oikonomia trinitária e a aclamação. Entretanto, um aspecto, pelo
menos, nos chama a atenção. Se olharmos para a maneira como alguns
destes paradigmas são desenhados por Agamben, somos levados a olhar para
períodos de tempo muito longos. Teríamos que encontrar uma conexão entre
a antiga figura do homo sacer e o fenômeno contemporâneo da vida nua, ou
entre a aclamação romana de um Imperador e os processos de comunicação
de massa para a formação do consenso nas democracias contemporâneas, ou
para uma longa genealogia da oikonomia trinitária, desde Aristóteles,
passando pelo estoicismo, pelo neoplatonismo, pelo gnosticismo, por
Aquino, para chegar à economia liberal moderna (RIBEIRO, 2012, p. 07).

Michel Foucault (2008) apontou como fonte do governo moderno o poder pastoral,
enquanto Giorgio Agamben explicou essa origem na oikonomia trinitária, sendo influenciado
pela teologia política de Carl Schmitt (2006).
A reciprocidade existente entre o saber e o poder passou a interessar Foucault, tendo
ele dito no texto Sujeito e Poder que, ao estudar a objetivação do sujeito ao longo de mais de
vinte anos, acabou por envolver-se demasiadamente no estudo do tema poder. Isto se deu
porque o sujeito, tema geral de sua pesquisa, sempre acabava colocado em relações de poder
muito complexas (DREYFUS e RABINOW, 2013, p. 274).
Sua primeira obra a tratar do poder foi Vigiar e Punir (1998), em que ele inicialmente
aborda a Soberania Clássica, momento do Estado Absolutista aonde o soberano detinha o
poder de ―fazer morrer‖ aquele que viesse a se colocar como inimigo do rei.
O foco aqui ainda não era a gestão de massas, mas sim a punição daquele que viesse a
trazer incômodo ao poder real, através de leis e punições (sistema legal) que evidenciassem a
grandeza do poder do soberano através da espetacularização da punição.
Observa-se, contudo, que, nesta obra, Michel Foucault não se alonga nesse tema, mas
sim no chamado poder disciplinar, onde, utilizando-se de instituições totais (BENTHAM,
84

1987), o poder manifestava-se no disciplinamento dos corpos de um número determinado de


pessoas (sejam soldados, operários, doentes, clérigos, loucos ou presos), que eram
normalizados através de padrões comportamentais preestabelecidos, tendo seu tempo e espaço
monitorados através da tecnologia do panóptico benthaniano, considerado por Giorgio
Agamben como o primeiro paradigma foucaultiano:
Agamben parece escolher o Panopticon como um primeiro exemplo de
paradigma na obra de Foucault, mas ele rapidamente adiciona o grand
enfermement, a confissão, o inquérito, o exame, o cuidado de si e tantos
outros fenômenos históricos singulares que são tratados como paradigmas,
que vêm de um vastíssimo contexto problemático que, ao mesmo tempo, eles
constituem e tornam inteligível (RIBEIRO, 2012, p. 07) (Grifos meus).

No poder disciplinar, a constante ameaça de vigilância, dociliza os corpos em um


adestramento cadenciado, onde aquele que não se adequa (ou não se adestra) é considerado
como inapto. Seu apogeu deu-se nos séculos XVII e XVIII, e, na área penal, trouxe um
discurso de humanização das penas.
No entanto, deve-se notar que neste momento, o atuar sobre os corpos
(anátomopolítica) alcançava um número maior de indivíduos, mas ainda não se tratava da
ideia de gerir uma massa de pessoas, percepção trazida posteriormente com o estudo do
biopoder.
Foi na obra intitulada Segurança, Território e População (2008) que Michel Foucault
expôs, através de exemplos, toda a trajetória do poder até a tecnologia que possibilita a gestão
de uma massa de pessoas através dos chamados dispositivos de segurança.
Ele mostra que através das estratégias de um saber político, surge a chamada
governamentalidade, responsável pela regulação da população, ou seja, o exercício desse
controle.
Estabelece que a origem dessa governamentalidade remonta ao poder pastoral já que
este incidia mais sobre uma multidão que compartilhava de um objetivo comum – a salvação -
do que sobre um território delimitado (2008).
Foucault demonstra toda a sua argúcia ao trazer à tona os mecanismos e o
conjunto de procedimentos – que se articulam com as transformações
econômicas, políticas, sociais – e que assumem a função de gerir a vida
produzindo forças, nutrindo-as e fazendo-as crescer, para organizá-las e
ordená-las mais do que ceifá-las ou destruí-las – é a vida nua, é o ―biopoder‖
(FOUCAULT, 2008, apud CANELLAS, p. 02, 2010)

A partir do século XVIII, há a emergência de uma nova configuração que se opunha


ao poder soberano, ocorre uma inversão: não se trata mais de fazer morrer e deixar viver,
mas sim de fazer viver e deixar morrer.
85

É o dispositivo que aparece para o controle dessa massa denominada agora por
população, que será não mais adestrada conforme o poder disciplinar, mas sim gerida,
havendo assim, o caminhar do biopoder para a biopolítica.
Com o auxílio de outros saberes, como as ciências sociais e a estatística, os desejos da
população a ser gerida passam a ser conhecidos e, assim, o poder passa a ter a capacidade de
modulá-lo de acordo com o que se pretende.
A população crê ser livre em suas escolhas, mas não percebe que esse poder está a
operar de maneira mais profunda, pois ele traz a crença de que há um atuar livre dos sujeitos,
quando em verdade há um controle muito mais incisivo e capcioso das massas, um processo
de dessubjetivação, que nada mais é do que a biopolítica em operação através dos
dispositivos.
A mim interessa saber os pontos de semelhança entre Giorgio Agamben e Michel
Foucault, basicamente, de que maneira aquele compreendeu a fala deste, acerca do que é um
dispositivo:
O dispositivo tem natureza essencialmente estratégica, que se trata, como
consequência, de uma certa manipulação de relações de força, de uma
intervenção racional e combinada das relações de força, seja para orientá-las
em certa direção, seja para bloqueá-las ou para fixá-las e utilizá-las. O
dispositivo está sempre inscrito num jogo de poder e, ao mesmo tempo,
sempre ligado aos limites do saber, que derivam desse e, na mesma medida
condicionam-no (FOUCAULT, pp. 299-300, apud AGAMBEN, 2009, p.
28).

Vale ressaltar que há imprecisão do próprio Foucault sobre os conceitos biopoder e


biopolítica. Anna Carolina Cunha Pinto (2018, pp. 115-123), em sua dissertação, traçou
cronologicamente as obras foucaultianas evidenciando essa diferença. Segundo ela, foi no
primeiro tomo da obra História da Sexualidade (1988), cujo lançamento ocorreu em 1976,
posterior, portanto ao lançamento de Vigiar e Punir, de 1975, que o autor expos ambos os
termos:
Este biopoder, sem a menor dúvida, foi elemento indispensável ao
desenvolvimento do capitalismo, que só pôde ser garantido à custa da
inserção controlada dos corpos no aparelho de produção e por meio de um
ajustamento dos fenômenos de população aos processos econômicos (...); se
o desenvolvimento dos grandes aparelhos de Estado, como instituições de
poder, garantiu a manutenção das relações de produção, os rudimentos de
anátomo e biopolítica, inventados no século XVIII como técnicas de poder
presentes em todos os níveis do corpo social e utilizadas por instituições bem
diversas (FOUCAULT, 1988, p. 131) (Grifos meus)

Observe-se que é a compreensão desse poder, desse controle, dessa gestão ―invisível‖
entendida hoje como biopolítica, atuante sobre a população, que torna menos intrigante o
86

porquê de Giorgio Agamben (2014) falar de uma relação de íntima solidariedade entre as
democracias e os totalitarismos.
Daniel Arruda Nascimento (2012, p.187) explica essa relação: enquanto a palavra
―solidariedade‖ significa a ideia de um mútuo auxílio, já a palavra ―íntimo‖ significa aquilo
que de tão próximo que é, fica menos evidente. Ele afirma que:
Historicamente, a democracia vem como resposta a todo sistema e opressão
exterior ou interior. A sua instituição está ligada ao sentimento de liberdade,
evoca os valores da autodeterminação e autogestão, a cruzada de
concretização de princípios e ideais, tais como os cabedais de liberdade e
igualdade (NASCIMENTO, 2012, p. 187)

Além disso, este autor apresenta inúmeras características inerentes ao totalitarismo, já


evidenciando a percepção de que algumas delas aparecem também em diversas democracias,
o que por si só não explicaria ainda esta ―íntima‖ relação.
Uma possibilidade seria a ideia de que traços do totalitarismo permaneçam nas atuais
democracias de maneira mais ou menos intensas, exercendo o controle de massas, presente
justamente nos chamados dispositivos de segurança.
Parece-me que Giorgio Agamben também segue nesse sentido ao fazer a afirmação de
que talvez ainda estejamos vivendo sob o signo do fascismo e do nazismo, numa análise sob o
ponto de vista político (apud NASCIMENTO, 2012, p. 193).
Ora, a compreensão da dimensão da economia do corpo disciplinadora presente no
biopoder já indicava de maneira bem incisiva esse risco do controle da população. Mais uma
vez, remeto-me à fala de Anna Carolina Pinto:
Em artigo intitulado ―O conceito de biopoder hoje‖ Paul Rabinow e Nikolas
Rose atestam a imprecisão de Michel Foucault ao tratar destes conceitos no
começo de sua empreitada biopolítica Neste trabalho, os autores asseveram
que o biopoder foca em uma anatomia política do corpo humano que tem
como objetivo o aumento de suas forças e sua integração. Outro polo deste
poder se mostra através da regulação, uma biopolítica populacional que
cuida do corpo relacionado aos mecanismos da vida como nascimento,
morte, longevidade e etc. Da leitura que fazem de Foucault extraem que o
conceito de biopoder revela as tentativas racionalizadas de intervenção na
existência humana, enquanto o de biopolítica abrange estratégias que
atingem ―a vitalidade humana coletiva‖ (PINTO, 2018, p. 116)

Observa-se que os indivíduos que compõe essa massa não são vistos de maneira
personalizada, mas sim animalizada. A vida deles pode ser usufruída e controlada (inclusive
quanto à morte - ―fazer viver e deixar morrer‖): é a chamada vida nua, conceito esse que será
mais à frente aprofundado.
Foucault traça esse caminho entre o poder soberano e o governo dos homens (apud
AGAMBEN, 2014, p.10) evidenciando que essa tecnologia foi essencial para o
87

desenvolvimento do capitalismo (já que o indivíduo aqui é docilizado e anulado, tornando-se


uma engrenagem das relações de produção). Ele aponta duas diretrizes: o estudo das técnicas
políticas onde o Estado assume o cuidado da vida dos indivíduos, ou seja, a gestão da
população; e o processo produtor de subjetividade.
A exceção, por sua vez, é uma espécie da exclusão da norma. Ela é um caso singular,
excluído da norma geral. Mas o que caracteriza propriamente a exceção é que aquilo que foi
excluído não está, por causa disso, absolutamente fora da relação com a norma; ao contrário,
ela se mantém em relação com aquela na forma da suspensão.
A norma se aplica à exceção desaplicando-se, retirando-se desta. O estado de exceção
não é, portanto, o caos que precede a ordem, mas a situação que resulta de sua suspensão
(AGAMBEN, 2014, p. 24)
Em suma, a exceção – a seletividade que impõe o rigor para alguns e não para outros –
nada mais é do que a suspensão da regra, ou melhor, da norma sob um viés constitucional,
dando lugar à exceção – qual seja, para a minha tese, uma interpretação do Direito Penal de
maneira deturpada, elástica, utilizando a prisão para anular mais indivíduos do que a lei
normalmente permitiria. É justo por isso que há aquela necessidade de um conceito aberto,
elástico, incompatível com a proposta penal constitucional, mas bastante compatível com um
ideal de controle social com aparência de legalidade.
Assim, essa interpretação excepcional passa a ser utilizada como regra, sendo
naturalizada e justificada à luz da função oculta do direito penal que é realizar uma punição
seletiva dos pobres (WACQUANT, 2001, pp. 7-13), que, no caso brasileiro, não poderá ser
analisada sem seu viés interseccional, considerando os quase quatro séculos de escravidão
negra.
Novamente, chego a algo óbvio: a punição seletiva daquele que será considerado
como o homo sacer, também um conceito, que será a seguir apresentado.

3.2 Gênese da vida nua: quem é o homo sacer?

Giorgio Agamben (2014, p. 09) explica que a palavra ―vida‖ para os gregos trazia dois
significados: zoé e bíos. Zoé tinha relação com qualquer vida, seja ela humana ou animal,
enquanto que bíos trazia a relação com a vida de um indivíduo ou de um grupo em um ―bem
88

viver‖. Para a biopolítica, o interesse recai sobre a primeira – zoé - com a ideia de gerir uma
massa de pessoas.
Vale destacar que a politização da vida nua para Giorgio Agamben já existia desde o
poder soberano e que, para esse autor, a biopolítica não conseguiu estabelecer a articulação
entre zoé e bíos, mantendo a vida nua matável e insacrificável do homo sacer presente através
da exclusão.
Portanto, concluo que é plenamente possível a utilização de dispositivos de segurança
através dos quais mecanismos de exceção coexistam com o Estado de Direito (AGAMBEN,
2014, pp. 12-13).
A forma com que é estabelecida a aplicação da lei penal no Brasil, apresentada no
capítulo anterior, já evidenciou qual a vida que vale menos, quem é o homo sacer a ser
anulado, no caso penalizado com mais rigor pelos agentes políticos do Estado.
Essa anulação poderá ser através do excessivo uso da prisão cautelar – principalmente
com a cláusula aberta ―garantia da ordem pública‖, bem como poderá ser através da ―guerra
às drogas‖, que justifica o aumento do aprisionamento de comerciantes de drogas ilícitas e de
mulheres ocorrido nos últimos anos.
Vale dizer, a Lei de Drogas também tem cláusulas que permitem uma atuação bastante
discricionária tanto da polícia, quando do Ministério Público e dos Juízes. Há um sistema
inteiro disponível para colocar em prática a exceção do homo sacer:
Em que pese a expressiva participação de homens no contingente total de
pessoas privadas de liberdade no país, é possível afirmar que a população
absoluta de mulheres encarceradas no sistema penitenciário cresceu 567%
entre os anos 2000 e 2014, chegando ao patamar de 37.380 mulheres [...]. Já
a população de homens encarcerados cresceu 220% no mesmo período,
seguindo a tendência geral de aumento do encarceramento no Brasil. Se em
2000 as mulheres representavam 3,2% da população prisional, em 2014 elas
passaram a representar 6,4% do total encarcerado (INFOPEN –
MULHERES, 2014, p. 20)

Lembrando que tínhamos, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em


2014, 147.937 pessoas em prisão domiciliar. Se somássemos esse valor à população
encarcerada nas unidades prisionais – 627.731 pessoas, constata-se que naquele ano havia
cerca de 775.668 pessoas privadas de liberdade no Brasil, colocando o país com a marca da
terceira maior população prisional do mundo.
A criminalização da pobreza é um fenômeno que visa justamente a gestão da vida nua
dos miseráveis e, não à toa, temos, conforme dados disponibilizados pelo Levantamento
Nacional de Informações Penitenciárias – INFOPEN (2014, pp. 48-70), uma população
89

carcerária composta de jovens (31% entre 18 e 24 anos), negros (67%) e de baixa


escolaridade, em que 68% sequer concluíram o ensino fundamental.
Ressalte-se que 33% dessas pessoas foram presas pela prática dos crimes de roubo e
de furto, enquanto que os demais crimes sequer aparecem nas estatísticas, entrando numa
categoria indeterminada chamada de ―outros‖, que somam 11% dos apenados.
A rigor, não há como afirmar se havia alguém preso em razão de crimes contra a
ordem tributária e previdenciária na ocasião da pesquisa do INFOPEN, crimes praticados por
pessoas mais abastadas, de ―colarinho-branco‖. Isso obviamente não significa que ninguém
escapa ao pagamento de tributos, mas sim que as garras do Direito Penal são afiadas para
atingir apenas uma categoria de indivíduos.
Que fique claro que não compactuo com o recrudescimento das penas daqueles
considerados como menos reprováveis, ou alinho-me àqueles membros da chamada esquerda
punitiva que:
Distanciando-se das tendências abolicionistas e de intervenção mínima,
resultado das reflexões de criminólogos críticos e penalistas progressistas,
que vieram desvendar o papel do sistema penal como um dos mais
poderosos instrumentos de manutenção e reprodução da dominação e da
exclusão, características da formação social capitalista, aqueles amplos
setores da esquerda, percebendo apenas superficialmente a concentração da
atuação do sistema penal sobre os membros das classes subalternizadas, a
deixar inatingidas condutas socialmente negativas das classes dominantes,
não se preocuparam em entender a clara razão desta atuação desigual,
ingenuamente pretendendo que os mesmos mecanismos repressores se
dirigissem ao enfrentamento da chamada criminalidade dourada, mais
especialmente aos abusos do poder político e do poder econômico
(KARAM, 1996, pp. 79-80)

Ao contrário, pretendo apontar o quanto a nossa jovem democracia flerta com o


totalitarismo moderno, no qual a manutenção da ordem e o controle social podem ser
balizados de acordo com a necessidade do momento de combater o indivíduo tido como
indesejável, seja este um político de classe alta, seja este um criminoso ―normal‖, ou seja,
aquele que já tem seu destino traçado desde seu nascimento e que, na fala autobiográfica de
Celso Athayde (2005), ―já nasce com a cor de um condenado‖.
A crônica de Celso Athayde, intitulada ―Os neguinhos do Buzão‖ (ATHAYDE, 2005,
pp.74-77) é fundamental para a contextualização dessa frase. Nela, o fundador da Central
Única de Favelas (CUFA), narra um episódio de sua adolescência:
Ele conta que estava com um amigo branco, dentro de um ônibus, quando foi vítima
de preconceito racial ao ser insultado por uma passageira branca que, vendo dois policiais
entrando no coletivo, resolveu dizer que Celso Athayde estava junto com dois adolescentes,
90

também negros, que ―quase a assaltaram‖, mas conseguiram saltar, ou seja, na visão dela,
―fugir‖ do ônibus.
Na ocasião, Celso Athayde notou que absolutamente ninguém no ônibus interferiu na
fala da mulher e, apenas quando ele, então com 14 anos de idade, começou desesperadamente
a chorar explicando que nada tinha a ver com aquilo e que estava junto de seu amigo, que
como já dito, era branco, é que um dos policiais resolveu questionar não a ele, mas ao amigo,
se a justificativa era verdadeira.
Celso Athayde percebeu então que a fala com validade era a do branco e não a do
negro e só após esse amigo prestar explicações, a mulher arrependeu-se e pediu desculpas ao
amigo branco41 cuja fala era a ―legítima‖. Para a maioria, nada de anormal ocorreu, salvo para
o autor que afirma que:
Com esse episódio eu ganhei muitas coisas na vida. Ganhei, inclusive, a
consciência de que o maior preconceito se dá nas periferias, pois é lá que as
pessoas possuem o mesmo grau de escolaridade, o mesmo nível social, é lá
que as professoras são processadas por discriminação racial considerando
que isso não acontece em escolas de ricos, onde não estuda preto, é ali que
todos são quase iguais perante a lei, pois existe uma coisa que os difere. Um
tem a cor do poder e o outro da miséria. Perdi outras coisas também. Uma
delas foi a amizade do meu amigo William. É que ele contou para a mãe o
que tinha ocorrido, e ela determinou que ele nunca mais andasse comigo,
porque eu só arrumava confusão. Por esse episódio e outros eu vivia me
perguntando: por que eu tinha nascido condenado? (ATHAYDE, 2005,
p.77) (Grifos meus)

Não por acaso, temos também um número elevadíssimo de pessoas presas pelo crime
de tráfico de drogas (27%), sendo o crime que isoladamente mais prende no país, merecendo
destacar que esse tipo penal sequer envolve violência à pessoa.
A atual política de drogas rotula o traficante como o inimigo público, mas aqueles que
vão para os cárceres são apenas os de classes menos abastadas.
Já no que diz respeito ao aprisionamento feminino, como já dito, o recorte racial e de
classe também é evidenciado, a classe feminina perigosa é também formada por jovens,
negras, de baixa escolaridade e que praticaram, em sua maioria, crimes não violentos.
Temos que 50% das mulheres encarceradas têm entre 18 e 29 anos [...]. Em
relação à raça, cor ou etnia, destaca-se a proporção de mulheres negras
presas (68%) – duas em cada três presas são negras. Na população brasileira
em geral a proporção de negros é de 51%, segundo dados do IBGE [...]. Se
compararmos o grau de escolaridade de homens e mulheres encarcerados, é
possível notar uma condição sensivelmente melhor no caso das mulheres,
ainda que persistam baixos índices gerais de escolaridade (50% das mulheres

41
Impossível aqui não estabelecer relação entre o racismo estrutural e o patriarcado. É comum quando um homem aborda
uma mulher que está acompanhada, pedir desculpas ao acompanhante homem e não à mulher abordada, como se ela fosse
propriedade dele. No caso narrado, o negro também só ganhou legitimidade de fala após a chancela do branco.
91

encarceradas não concluíram o ensino fundamental – 53% dos homens)


(INFOPEN – MULHERES, 2014, p. XX).

Dessa maneira, evidencia-se a técnica permanente e naturalizada de exceção, que


utiliza o Direito Penal não como ultima ratio, mas como prima ratio para o inimigo eleito: o
jovem negro, pobre e de baixa escolaridade. E, nos últimos anos, para ―a inimiga eleita‖, com
esse aumento brusco no encarceramento de mulheres.
Estas pessoas assumirão a posição do homo sacer que será coisificado, despido de
humanidade, despersonalizado e rotulado como inimigo a ser aniquilado (Não obstante o
sistema penal ainda insista em apresentar-se hipocritamente como ressocializador – ora, no
máximo veremos a docilização de corpos como falava Michel Foucault).
Segundo Augusto Thompson, a primeira característica da imagem do criminoso é a
sua origem relacionada ao baixo status social, reforçando a ligação entre pobreza e crime, o
que acaba por justificar o tratamento de maior rigor do Direito Penal sobre eles: ―ao afirmar
que o criminoso é, caracteristicamente, pobre, abre-se facilmente a possibilidade de inverter
os termos da equação, para dizer: o pobre é, caracteristicamente, criminoso‖ (THOMPSON,
1998, p. 64). Por sua vez, Eugênio Raul Zaffaroni, seguindo a mesma linha de pensamento,
destaca que:
Quase todo o direito penal do século XX, na medida que teorizou admitindo
que alguns seres humanos são perigosos e só por isso devem ser segregados
ou eliminado, coisificou-os sem dizê-lo, e com isso deixou de considerá-los
pessoas (ZAFFARONI, 2014, p. 18).

O encarceramento em massa ocorreu em diversos países e o Brasil atualmente ostenta


os maiores índices do mundo. Há um aumento significativo de prisões de mulheres,
impactando diretamente nas estruturas familiares.
Para agravar o quadro, temos que: os substitutivos penais, ao invés de diminuir o
encarceramento, seguem abastecendo-o através de uma diversificação de controles, de
multiplicidade de dispositivos.
E, por último, mas não menos preocupante: houve um declínio do uso da ideia de
ressocialização como argumento, hoje se assume, de maneira ainda que escamoteada, que a
proposta é realmente a de isolar, neutralizar, conter o indivíduo.
As características do sistema conformam uma objetificação de corpos: para o
inquisidor, é necessário dispor do corpo do herege. Esse corpo é então
esquadrinhado, decomposto analiticamente e recomposto como objeto de um
saber possível, de acordo com a conformação dogmática de um conjunto de
verdades e saberes preestabelecidos (ROSA, KHALED JR., 2014, p. 28)
92

É o (a) jovem negro (a), pobre e de baixa escolaridade o (a) homo sacer brasileiro, são
eles os portadores da vida nua, são eles que deverão ser segregados, ainda que se crie uma
interpretação elástica do Direito Penal para que isso ocorra.
Cabe lembrar que isso se dá quando eles são assassinados pelos próprios braços do
Estado nos famigerados autos de resistência (não é exagero falar de genocídio da população
jovem negra no Brasil42) assunto muito bem exposto nas pesquisas de Orlando Zaccone
(2015), Indignos de vida: a forma jurídica da política de extermínio de inimigos na cidade do
Rio de Janeiro, e de Sergio Verani (1996), Globalização e Extermínio: assassinatos em nome
da lei).
A Anistia Internacional divulgou pesquisa, realizada em 2011, na qual
constatou que nos vinte países que ainda mantém a pena de morte, em todo o
planeta, foram executadas 676 pessoas, sem contabilizar as penas capitais
infligidas na China, que se nega a fornecer os dados. No mesmo período,
somente os Estados do Rio de Janeiro e São Paulo produziram 961 mortes a
partir de ações policiais, totalizando um número 42,16% maior do que de
vítimas da pena de morte em todos os países pesquisados e ainda superior ao
da letalidade da última guerra em nosso continente. Mas de que forma
estamos a legitimar e conviver com essas cifras, no marco de um Estado de
direito, se temos a pena de morte proibida (em regra) pela Constituição
Federal Brasileira? (ZACCONE, 2015, p. 21)

Para agravar o quadro dessas mortes pelos braços estatais, no dia quatro de fevereiro
de 2019, o Ministro da Justiça e ex-juiz Sergio Moro apresentou o seu ―Projeto de lei
anticrime‖ nitidamente atécnico, assumidamente criado para ―não agradar professores de
direito penal‖ (MARIANO, 2019, p. 08) e que não passa de um documento com ideias não
discutidas com nenhuma comissão de juristas. Nele há a seguinte sugestão de alteração do
Código Penal:
IV) Medidas relacionadas à legítima defesa:
Mudanças no Código Penal:
"Art.23
§ 1º O agente, em qualquer das hipóteses deste artigo, responderá pelo
excesso doloso ou culposo.
§ 2º O juiz poderá reduzir a pena até a metade ou deixar de aplicá-la se o
excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção." (NR)
"Art.25
Parágrafo único. Observados os requisitos do caput, considera-se em
legítima defesa:
I - o agente policial ou de segurança pública que, em conflito armado ou em
risco iminente de conflito armado, previne injusta e iminente agressão a
direito seu ou de outrem; e

42
Em conformidade com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2017 (FORUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA
PÚBLICA, 2017) 65,2% dos registros verificados se referiam à vítimas jovens com idade entre 18 a 29 anos e 16,6% tinham
entre 12 e 17 anos. Além de jovens, 76,2% eram negras. Tais dados serão aprofundados posteriormente na abordagem acerca
da necropolítica no capítulo 5 desta tese.
93

II - o agente policial ou de segurança pública que previne agressão ou risco


de agressão a vítima mantida refém durante a prática de crimes." (NR) (grifo
nosso)

Lênio Streck, observando o projeto, questiona já no título de sua coluna semanal Até
onde vamos antecipar a legitima defesa? (STRECK, 2019, p. 03). Diversos organismos
internacionais de proteção aos Direitos Humanos já criticaram as altas cifras de violência
policial no Brasil e a medida proposta, ao contrário de reduzir, poderá aumentar os números
de mortos tanto, do público que já é o alvo principal, quanto dos próprios policiais.
Segundo os dados divulgados acerca da letalidade violenta pelo Instituto de Segurança
Pública do Estado do Rio de Janeiro (ISP43), agentes do Estado mataram 160 pessoas em
supostos confrontos somente no mês de janeiro em 2019.
Sendo assim, em comparação com o mês anterior, dezembro de 2018, quando o Estado
ainda estava sob intervenção federal44, o crescimento de um mês para o outro foi de 82%.
Impossível, diante desses dados não trazer a fala da vereadora do Município do Rio de
Janeiro, assassinada com 13 disparos de uma submetralhadora, ao sair de um evento no centro
da cidade, junto com seu motorista Anderson Pedro Gomes, em 14 de março de 2018, em
circunstâncias ainda não totalmente esclarecidas Marielle Franco45:
As marcas dos homicídios não estão presentes apenas nas pesquisas, nos
números, nos indicadores. Elas estão presentes sobretudo no peito de cada
mãe de morador de favela ou mãe de policial que tenha perdido a vida.
Nenhuma desculpa pública, seja governamental ou não, oficial ou não, é
capaz de acalentar as mães que perderam seus filhos (FRANCO, 2014, p.
101)

A definição do inimigo público é fruto de uma construção pautada pela seletividade,


que no âmbito do Direito Penal é direcionada predominantemente para essa população que
não contará com o Direito Penal como ultima ratio.

43
Disponível em: http://www.ispvisualizacao.rj.gov.br/. Acesso em:06/03/2019.
44
Em 16 de fevereiro de 2018, através do decreto nº 9.288, o governo federal decretou uma intervenção na área
de segurança pública no estado do Rio de Janeiro. Como Interventor, foi designado o general do Exército, Walter
Souza Braga Netto, que teve comando direto sobre as polícias estaduais, Corpo de Bombeiros e sobre a
Secretaria de Administração Penitenciária até 31 de dezembro de 2018. O objetivo era de pôr fim ao grave
comprometimento da ordem pública no Estado, menos de um mês após a decretação, houve o assassinato da
vereadora Marielle Franco.
45
Acerca de quem ―é‖ a vereadora mais votada do Rio de Janeiro, optei por transcrever as palavras do site criado
em sua memória, e coloquei propositalmente o verbo no presente, porque sua luta pela igualdade continua:
―Marielle Franco é mulher, negra, mãe e cria da favela da Maré. Socióloga com mestrado em Administração
Pública. Foi eleita Vereadora da Câmara do Rio de Janeiro pelo PSOL, com 46.502 votos. Foi também
Presidente da Comissão da Mulher da Câmara. No dia 14/03/2018 foi assassinada em um atentado ao carro onde
estava. 13 Tiros atingiram o veículo, matando também o motorista Anderson Pedro Gomes. Quem mandou matar
Marielle mal podia imaginar que ela era semente, e que milhões de Marielles em todo mundo se levantariam no
dia seguinte‖. Disponível em: <https://www.mariellefranco.com.br/quem-e-marielle-franco-vereadora> Acesso
em: 28/02/2019
94

Para eles (negros, pobres, periféricos), e nos últimos anos também para elas (negras,
pobres, periféricas), a relativização de garantias, o rigor, a prisão (ainda que cautelar), a
indignidade, a morte.
Ressalte-se que Marielle Franco também era negra, pobre, oriunda da favela da Maré e
militante de Direitos Humanos, ou seja, ela também era homo sacer, e tudo indica que foi
justamente por sua luta política para a mudança desse status quo, que ela foi assassinada.
São esses os exemplos de vida nua, da vida que não vale. O mesmo se dará na questão
criminal, com o aprisionamento como prima ratio, são ―eles e elas‖ (e não ―nós‖ -
privilegiados) os homo sacer da vez.

3.3. Dispositivos de segurança: a modulação em operação

Giorgio Agamben explica que o foco de Michel Foucault na análise do dispositivo era
a de verificar como estes atuam nos jogos de poder. O termo dispositivo:
Nomeia aquilo em que e por meio do qual se realiza uma pura atividade de
governo sem nenhum fundamento no ser. Por isso os dispositivos devem
implicar um processo de subjetivação, isto é, devem produzir o seu sujeito
(...) Comum a todos esses termos é a referência a uma oikonomia, isto é, a
um conjunto de práxis, de saberes, de medidas, de instituições cujo objetivo
é gerir, governar, controlar e orientar, num sentido que se supõe útil, os
gestos e os pensamentos dos homens (AGAMBEN, 2009, pp. 38-39)

Para ele, quanto maior for a disseminação de dispositivos, maior será o processo de
subjetivação dos sujeitos, chamando de dispositivo qualquer coisa que possibilite controlar os
seres viventes, incluindo, por óbvio, não apenas as instituições totais, como a prisão, mas
absolutamente tudo que possa servir como algo que, inconscientemente, faça com que o ser
vivente ―se deixe capturar‖ (AGAMBEN, 2009, pp. 40-41): isso pode se dar com a
linguagem, com os computadores, com os smartphones, com as diversas redes sociais e é
facilmente detectável com a significativa disseminação de fake news.
Ele propõe como contradispositivo que ele chama de ―profanação‖, pois somente
através da profanação pode-se restituir ao uso comum dos homens o que havia sido
anteriormente capturado, gerido, governado.
Ocorre que essa percepção do dispositivo (e sua profanação) não é tão óbvia, posto
que todo dispositivo traz em si um processo de subjetivação.
95

O que define os dispositivos com os quais temos que lidar na atual fase do
capitalismo é que estes não agem mais tanto pela produção de um sujeito
quanto por meio de processos que podemos chamar de dessubjetivação. Um
momento dessubjetivante estava certamente implícito em todo processo de
subjetivação e o Eu penitencial se constituía, havíamos visto, somente por
meio da própria negação; mas o que acontece agora é que processos de
subjetivação e processos de dessubjetivação parecem tornar-se
reciprocamente indiferentes e não dão lugar à recomposição de um novo
sujeito, a não ser pela forma larvar e, por assim dizer, espectral. Na não-
verdade do sujeito não há mais de modo algum a sua verdade (AGAMBEN,
2009, pp. 46-47).

O ato de desumanizar já foi apontado anteriormente, trata-se do que Giorgio Agamben


denomina como vida nua. Como um possível resultado, a atividade da justiça penal se
(des)preocupa com o que o(a) acusado(a) fez, para atentar cuidadosamente para o que ele(a) é.
A escolha do inimigo tem caráter eminentemente político e nesse ponto, surge a
necessidade da compreensão da nossa história e do racismo estrutural presente em nossa
sociedade. Polariza-se a questão: de um lado os homens ―de bem‖ e de outro ―os inimigos‖.
Essa dinâmica, nas palavras de Eugênio Raul Zaffaroni: ―arrasa com os direitos humanos e,
mais cedo ou mais tarde, acaba no genocídio‖ (2014, p. 17).
É em decorrência da dessubjetivação que vem o que Giorgio Agamben chama de
―eclipse da política‖ onde os antigos polos – direita e esquerda - não têm muito a fazer, salvo
ser: ―aquele que aposta sem escrúpulos na dessubjetivação e aquele que gostaria, ao contrário,
de recobri-la com a máscara hipócrita do bom cidadão democrático" (AGAMBEN, 2009, p.
49).
Claramente tal constatação me atenção no que diz respeito à questão carcerária, pois as
taxas de encarceramento brasileiro não deixaram em nenhum momento de aumentar, mesmo
sendo perceptível nos últimos anos um maior acesso aos direitos sociais, o que deveria sugerir
o movimento oposto, ou seja, a redução de encarceramento, não se enquadrando nas
expectativas sugeridas pelos autores da criminologia.
Maurício Stegemann Dieter46 faz intrigante exposição em relação à questão do
encarceramento brasileiro. Ele mostra que grande parte das leis que propiciaram esse
aumento, como por exemplo, a Lei de Crimes Hediondos, L.8072/90, foi gerida durante o

46
Anotações feitas por mim da palestra ministrada em 11 de setembro de 2018 pelo Professor Doutor Maurício
Stegemann Dieter (USP) no Seminário ―Direito Humanos e Sistema Penal na América Latina: Levando a
Criminologia Crítica a Sério‖, realizado no Salão Nobre da Faculdade de Direito da Universidade Federal
Fluminense (Niterói/RJ) tendo como Presidente da Mesa: Prof. Dr. Taiguara Líbano Soares e Souza (UFF) e
como mediadora: Profa. Dra. Roberta Duboc Pedrinha (UFF).
96

governo de Fernando Henrique Cardoso, mas que, foi durante os governos petistas47 que tais
leis foram colocadas em prática, bem como houve um transbordamento da ideia de
militarização, inclusive nas guardas municipais. Patrick Mariano traz os seguintes dados:
De acordo com estudo da Associação Latino-Americana de Direito Penal e
Criminologia (ALPEC), o Código Penal brasileiro apresenta atualmente
1.688 hipóteses de crime. O estudo aponta ainda que, entre 1940 (data da
edição do Código Penal) e 1985 (fim da ditadura militar), foram editadas 91
leis com conteúdo penal, ou seja, uma média de 2.07 leis penais ao ano. Já
no período de março de 1985 a dezembro de 2011 foram editadas 111 novas
leis penais com conteúdo penal, o que resulta numa média de 4,27 leis penais
ao ano. Ou seja, o Brasil, após a democratização, criminalizou mais que
o dobro em praticamente metade do tempo, em comparação com o
período da ditadura militar (MARIANO, 2019, p. 04) (Grifos meus)

Maurício Stegemann Dieter sugere ainda que os marcos teóricos da criminologia,


ainda que aqueles da criminologia crítica, não dão conta de responder ao caso brasileiro. Por
exemplo, elaborando análise sintética de importantes criminólogos críticos, ele mostrou que
nenhum deles nos atende.
Neste ponto, ele traz discurso muito semelhante ao de Marcelo Semer 48, cuja tese de
Doutoramento intitulada Sentenciando tráfico: pânico moral e estado de negação formatando
o papel dos juízes no grande encarceramento, defendida em 2019 na Universidade de São
Paulo, ocorreu sob sua orientação.
David Garland (2008) teria seu estudo realizado a partir da Grã-Bretanha e dos
Estados Unidos havendo pontos comuns com o Brasil em decorrência da chamada ―guerra às
drogas‖. Contudo, hoje nós temos taxas de encarceramento ascendentes enquanto os Estados
Unidos tem suas taxas decrescentes (o que não significa necessariamente uma redução do
controle sobre pessoas estigmatizadas). Neste ponto é imperioso o estudo de Michelle
Alexander49 (2017) e Angela Davis (2018) acerca das prisões americanas.

47
Luiz Inácio Lula da Silva foi presidente do Brasil, governando o país em dois mandatos (2003/2006, e
2007/2011), segundo o Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD) o país neste período
avançou na redução da pobreza e distribuição de renda e segundo o Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento (PNUD) apresentou melhora em seu índice de desenvolvimento humano (IDH). Dilma Vana
Rousseff, por sua vez foi eleita presidenta governando o país de 2011/2014, sendo reeleita para exercer mandato
de 2015 até 2019, tendo sido este interrompido por um processo de impeachment em 2016.
48
Marcelo Semer (2019) elabora profundo estudo acerca dos modelos que estudaram a formação de
encarceramentos em massa, perpassando por diversos autores e concluindo que o Brasil se mantém não apenas
―como um dos líderes da população prisional em números absolutos‖, como também entre aqueles países em que
o crescimento prisional, segue fortemente em alta (SEMER, 2019, p. 453).
49
Vale dizer que Marcelo Semer em sua tese também se amparou na fala de Michelle Alexander, dizendo que é
ela quem ―apresenta o estudo mais próximo de um compartilhamento entre a visão de estrutura e a dos agentes,
na construção conjunta do encarceramento em massa, sob a ótica da segregação racial‖. De maneira bastante
sintetizada essa autora diz que não adianta apenas termos uma legislação segregacionista, bem como uma polícia
racista, o sistema ―só funciona na medida em que promotores e juízes também nele estejam inseridos‖ (SEMER,
2019, p. 457)
97

Não obstante, David Garland chamava muita atenção para a questão cultural o que
colide totalmente com a nossa realidade em razão da questão racial nos dois países ter sido
abordada de maneira completamente distinta.
Enquanto nos Estados Unidos operou uma enorme e explícita segregação (Era Jim
Crow50), aqui tivemos a miscigenação, o discurso da democracia racial e o não rompimento
da relação ―casa grande e senzala‖, tão bem explicitada na obra de Gilberto Freyre51.
Jock Young (2002), por sua vez, dizia que o encarceramento tinha relação com a
exploração da ―ralé‖ e, sendo assim, os inúteis que seriam presos. Basicamente Jock Young
trabalhou explicando o ―fenômeno da exclusão‖ na sociedade contemporânea e propôs como
solução, para que houvesse a pacificação social, a prática de políticas inclusivas. É estudo que
auxilia, mas também não abarca a realidade histórica brasileira.
Maurício Stegemann Dieter destaca que deve ser feita uma
observação/questionamento acerca dos governos petistas, uma vez que é inegável ter havido
significativo movimento de inclusão social e melhoria na distribuição de renda, não obstante
isso não tenha gerado efeito de desencarceramento, num oposto disso, o populismo penal
―virou moeda de uso corrente, tanto à esquerda quanto à direita, esvaziando o sentido de
limitação do poder de punir como tarefa primordial do direito e processo penal‖ (SEMER,
2019, p. 455).
Ainda, neste viés, a notável constatação de Marcelo Semer, novamente trazendo o
paradoxo do aprisionamento em massa brasileiro, que aparenta ser não meramente fruto de
sucessivos erros, mas sim de projeto, de política de Estado, de necropolítica:
Tampouco se pode sentenciar que a onda punitiva entre nós seja uma
consequência das políticas neoliberais e do desmantelamento dos
mecanismos de proteção social - eis que o maior crescimento52 no
encarceramento coincidiu, em certa medida, com os governos de centro-
esquerda, simultaneamente à implementação de instrumentos de
transferência de renda (SEMER, 2019, p. 470)

50
Teve início quando foram decretadas leis estaduais para os estados do Sul dos Estados Unidos da América
(que vigoraram entre 1876 e 1965). Essas medidas definiram que as escolas públicas e a maioria dos locais
públicos (entre eles, trens e ônibus) apresentassem instalações diferentes para brancos e negros. Disponível
em:https://www.infoescola.com/estados-unidos/era-jim-crow/ Acesso em 25/01/2019)
51
Gilberto Freyre (2006) publicou em 1933 a renomada obra Casa Grande & Senzala considerada um marco
para o avanço da ideia de democracia racial, eis que ao tratar da relação entre escravos, indígenas e colonos deu
a entender que não haveria no Brasil, em razão da grande – e pacifica - miscigenação, diferenças decorrentes de
questões raciais, afinal, ―somos todos brasileiros‖. Ele evidencia, contudo, a permanência da estrutura patriarcal
espelhada nos valores coloniais e peca ao ignorar fatos históricos como a resistência dos oprimidos e as
violências por estes sofridas. Em oposição ao pensamento desse autor vale observar Abdias Nascimento no livro
O Genocídio do Negro Brasileiro (2016)
52
Ele diz que entre 1990 e 2014 houve um crescimento superior a 500% no número de presos (SEMER, 2019, p.
470)
98

Vale destacar que essa inclusão foi bastante evidente no que tange ao acesso aos
estudos da população mais pobre, que passou a ter acesso às instituições de ensino superior de
maneira significativa, tanto pública (através de cotas reparadoras) quanto privada (através do
financiamento estudantil). Com precisão Juliana Borges explica essa trajetória:
A reordenação sistêmica e de pleno funcionamento da lógica racista ocorre
neste marco de 2006. E o mais importante, ainda a ser ressaltado, é que isto
ocorre, justamente, em um momento em que diversas eram as ações que o
Estado brasileiro passava a tomar que mudavam significativamente e
profundamente a vida da população negra no Brasil, com programas como
bolsa-família, expansão de vagas nas instituições de ensino superior públicas
e privadas (primeiras ações por cotas e Prouni), criação de empregos e
ampliação de crédito etc. Isso explicita os rearranjos estruturais em um país
que se forma sob desigualdades sociais baseadas na hierarquia racial
(BORGES, 2018, p. 20)

Parece-me, e nesse ponto concordo plenamente com o palestrante, que esse acesso
gerou um nítido incômodo com a mudança do perfil daqueles ―autorizados‖ a ter nível
superior53, evidenciando a cisão social.
A ―mensagem‖ que aflorava era de que esse ―povo‖ estava ocupando um espaço que
não era a ele pertencente e isso não se operou apenas no acesso aos estudos, mas também com
a própria capacidade de aquisição de bens de consumo.
Lembrava-me, ao longo da exposição do palestrante das análises de Gizlene Neder
(1997) e tinha a impressão de que era como se a chamada cidade quilombada estivesse
avançando por espaços proibidos e a tão falada cordialidade do brasileiro mostrasse a sua real
face reacionária.
Contextualizando esse fenômeno entendo ser simbólica a postagem54 que ―viralizou‖
nas redes sociais feita por Bruna Sena, 17 anos, negra, pobre, estudante de escola pública e
filha de caixa de supermercado, aprovada em 1º lugar no curso de Medicina da USP55 de
Ribeirão Preto. A sua polêmica comemoração foi dizer: ―A casa-grande surta quando a
senzala vira médica‖, o que para mim colocou em evidencia o que Giorgio Agamben
anteriormente abordou como: o eclipse da política.
A meritocracia é uma falácia. Eu consegui porque tive ajuda. Não dá para
igualar as pessoas que não tiveram as mesmas oportunidades. Eu me esforcei
muito, sim, mas não consegui só por causa disso, eu tive apoio. E é isso que

53
Durante os governos petistas houve um grande avanço na educação, principalmente com o PROUNI
(programa do Ministério da Educação, criado em 2004, que oferece bolsas de estudo integrais e parciais (50%)
em instituições privadas de educação superior, em cursos de graduação e sequenciais de formação específica,
destinado a pessoas de baixa renda e pessoas com deficiência, bem como com o financiamento de graduação na
educação superior FIES. Disponível em http://portal.mec.gov.br Acesso em 27/02/2019)
54
Postagem feita já em 2017, já após o impeachment da Presidenta Dilma Rousseff.
55
Bruna Sena teve apoio da mãe e de um curso preparatório popular. A USP somente aderiu à política de cotas
para alunos de escola pública e pretos, pardos e indígenas (PPI) no ano de 2018.
99

a gente tem que dar para quem não tem oportunidade. A gente perde muitos
gênios por aí, inclusive nas favelas porque não podem estudar. E eu
fiquei com muito medo de que minha postagem servisse de argumento para a
meritocracia (Bruna Sena em entrevista ao portal Saúde Popular. Disponível
em: https://saude-popular.org/)

Obviamente não há espaço para meritocracia sem que haja políticas inclusivas, uma
vez que a igualdade de condições sempre foi inexistente e os espaços acadêmicos sempre
foram um universo de uma classe privilegiada e que, neste exemplo, esse universo de
privilégio branco e abastado foi confrontado com a postagem da futura médica.
Nota-se que, ao se tentar estabelecer a necessária mudança cultural, o cinismo em
relação ao outro, ao diferente, às minorias aflorou. E isso consequentemente gerou a distorção
da fala da universitária, a fim de legitimar a meritocracia, desqualificando a desigualdade que
ainda persiste e que é contaminada pela falácia da democracia racial. Além, obviamente de
manifestações de cunho explicitamente racistas56.
Neste sentido, Marcelo Dias no Relatório Parcial da Comissão Estadual da Verdade da
Escravidão Negra no Brasil - OAB/RJ traz fala significativa:
Constatamos que a sociedade brasileira da alta modernidade tardia, ainda
vive fortemente assombrada pelo fantasma da escravidão. É como se o
espírito escravocrata insistisse em obsidiar e dominar o corpo pós-moderno
da sociedade (...) Quanto mais a juventude negra pretende se apresentar
como parte do presente pós-moderno para ocupar o seu lugar e tomar parte
ativa da vida social, tanto mais a elite branca dirigente a enxerga com olhos
desse passado escravista e fecha-lhe as portas para as oportunidades de
inclusão social (DIAS, 2016, p.02)

Ainda acerca da necessidade de um estudo criminológico brasileiro, Maurício


Stegemann Dieter mostra que as teses de Alessandro De Giorgi (2006) por sua vez, e
obviamente por seu locus de estudo, elabora análise debruçada sobre a realidade de países
extremamente industrializados, onde, com a redução dessa industrialização, haveria uma mão
de obra ociosa, que deveria ser contida através do encarceramento. E, novamente causa
estranheza com o ocorrido no Brasil, já que tivemos baixíssimas taxas de desemprego57, o que
também faz cair por terra a apropriação das teorias de Loïc Wacquant (2001 e 2003) acerca do
aprisionamento dos miseráveis.
Afinal, como foi possível, num país onde houve tanto emprego e acesso a direitos
mínimos fundamentais, termos ao mesmo tempo o maior encarceramento já visto? Ressalte-se

56
Essas diferenças serão vistas mais à frente, ao abordarmos o que é o racismo estrutural.
57
Pela Pesquisa Mensal de Emprego do IBGE (www.ibge.gov.br), a maior taxa de desemprego registrada no
período da atual metodologia - utilizada pelo instituto desde janeiro de 2002 - foi a do mês de abril de 2004
(13,1%) e a menor foi a de dezembro de 2014 (4,3%). No entanto a metodologia usada não é pacifica entre os
economistas. Ademais, não está nela avaliada a precariedade dos empregos.
100

que as taxas de encarceramento (e de desaparecimentos58) não eram tão elevadas no Brasil


sequer nos períodos ditatoriais.
Penso que há alguma lacuna ainda não esclarecida para o caso do encarceramento em
massa brasileiro e concordo novamente com a fala de Maurício Stegemann Dieter no sentido
de que os marcos teóricos hoje existentes não servem para nós porque eles não dão conta da
nossa realidade, há sempre algo que não fecha.
Embora haja o destaque na obra de Georg Rusche e Otto Kirchheimer (1999) no
sentido de que a punição não teria muita relação com o controle criminal, mas sim com a
regulação da mão-de obra, os autores trazem algo relevante ao apontar que a punição serve
para a tutela dos bens que importam ao grupo privilegiado, havendo verdadeira função de
domínio dos indesejáveis, ou seja, função política. Evandro Piza Duarte (2017, p.100)
esclarece que, embora Michel Foucault tenha levado em conta os estudos de Georg Rusche e
Otto Kirchheimer, ele não olhou para a perspectiva mundial dentro das dinâmicas existentes
entre as metrópoles coloniais e as colônias, restringindo-se à análise da questão nas
metrópoles seja França, seja Inglaterra.
Ora, as especificidades dos países colonizados trazem uma perspectiva de análise
distinta e no caso brasileiro bastante singular, já que a própria questão do racismo foi
propositalmente apagada.
Considerando que hoje já se assume a exclusão pela exclusão, cai por terra a ideia de
regulação. Há perguntas sem respostas: Como o nosso sistema contribuiu para essa realidade
excludente?
Percebe-se que, especificamente na questão criminal brasileira, optou-se pela
permanência, não havendo reformas estruturais. Ao contrário, aprofundaram-se preconceitos,
toleraram-se discursos de ódio, houve o recrudescimento do controle e hoje temos a terceira
maior população encarcerada do mundo daqueles ―indignos de vida digna‖, tornados sacros
pelo aprisionamento.
Observa-se cotidianamente que toda a engrenagem jurídica brasileira opera a serviço
da exceção tornada regra. O in dubio pro reo torna-se como trocadilho ―in dubio pro hell‖ na
fala de Alexandre Morais da Rosa e de Salah H. Khaled Júnior que explicam que o déficit de

58
Fábio Araújo defendeu na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) a tese de doutorado "Das
consequências da 'arte' macabra de fazer desaparecer corpos: violência, sofrimento e política entre familiares
de vítimas de desaparecimento forçado" afirma que houve uma mudança no perfil dos "desaparecíveis" Se no
regime militar eram principalmente jovens de classe média e estudantes que militavam em organizações de
esquerda, agora são os mais pobres e moradores das periferias. O caso ―Cadê o Amarildo?‖ foi um que ganhou
notoriedade, contudo até hoje o corpo do pedreiro não foi achado. Disponível em <https://oab-
rj.jusbrasil.com.br/noticias/100676382/luto-em-suspensao> Acesso em 09/01/2019.
101

efetividade dos direitos fundamentais é evidente e que os atores do sistema penal brasileiro
seguem flexibilizando garantias e consagrando o decisionismo em um real processo penal do
inimigo:
Que o CPP de 1941 seja autoritário e antidemocrático não é surpresa. Foi
inspirado na logica persecutória do fascismo italiano e elaborado num
período autoritário da história brasileira. O que impressiona é que seus ideias
ainda sejam reproduzidos e aceitos em pleno contexto contemporâneo
(ROSA e KHALED JR., 2014, p.15).

Numa trágica constatação ele assinala que o pior não são os equívocos técnicos, mas
sim ―o fascínio pela legislação infraconstitucional e seu persecutório projeto político-
criminal‖, ou às vezes nem isso, como já visto no ―projeto anticrime" apresentado pelo
Ministro Sergio Moro.
Não surpreende nesse contexto a advocacia criminal combativa sendo estigmatizada e
que o ―projeto anticrime‖ traga flagrante violação à inviolabilidade da comunicação entre
advogado e cliente ao prever a gravação de conversas entre estes, mesmo que o defensor não
seja sendo investigado.
Curiosamente nesse ponto, o Ministro Sergio Moro, ainda quando era juiz da 2ª Vara
Federal Criminal de Curitiba, já demonstrava ―um sentimento narcisista de onipotência, no
qual desaparece qualquer cautela e autocrítica‖ (CORDERO, 200, p. 23 apud ROSA e
KHALED JR., 2014, p.18), pois, desde 2007, quando era juiz, o Ministro Sergio Moro, já
violava a ampla defesa autorizando tais gravações:
Embora reconhecesse que a medida é de exceção, o atual ministro da
Justiça afirmou que sua manutenção era necessária devido ao ―perfil dos
criminosos nos presídios federais‖. ―Eles estão sob regime de exceção, todo
presídio de segurança máxima precisa ter controle do contato do preso com o
mundo exterior‖, disse (RODAS, 2019, p.04)

Com precisão, Rubens Casara (2017, p.95) explica que o que caracteriza o Sistema de
Justiça Criminal no Estado Pós-Democrático não é o autoritarismo ou mesmo o uso seletivo
do poder penal, e sim a ausência de limites ao uso desse poder.
Ele ainda afirma ser impossível pensar no funcionamento desse sistema de justiça sem
ao mesmo tempo analisar os meios de comunicação de massa (e aqui acrescento redes sociais
e WhatsApp) como produtores e propaladores de acusações, de provas e até mesmo de
julgamentos.
Segundo Rubens Casara: ―as formas e as categorias processuais penais, os direitos e as
garantias individuais passaram a ser percebidos como obstáculos transponíveis à eficiência
repressiva do Estado ou do mercado‖ (2017, pp. 157-158).
102

Neste sentido, se vê disseminada uma noção equivocada de que os direitos são


entraves à realização da justiça (leia-se punição) e um Poder Judiciário que deixa de ser
garantidor de direitos fundamentais para, exercer uma função política de cumprir a
expectativa dos consumidores do processo penal espetacularizado pelo medo.

3.4. Prisão sem prévia condenação: a Schutzhaft como precursora do campo

Na obra de Giorgio Agamben, Estado de Exceção (2004), o autor, ao introduzir a ideia


de estado de exceção permanente, expõe um momento mais recente da história onde pode ser
visualizada uma situação de prisão sem condenação.
Após o atentado de onze de setembro nos Estados Unidos59 foi editado o Patriot Act,
que permitiu a prisão do estrangeiro suspeito que gerasse risco à segurança dos Estados
Unidos, anulando-o, esvaziando qualquer estatuto jurídico a ele. Para Giorgio Agamben, essa
medida foi comparável às prisões dos judeus nos Lagers (campos de concentração).
Nem prisioneiros nem acusados, mas apenas detainees, são objeto de uma
pura dominação de fato, de uma detenção indeterminada não só no sentido
temporal mas também quanto à sua própria natureza, porque totalmente fora
da lei e do controle judiciário. A única comparação possível é com a situação
jurídica dos judeus nos Lager nazistas: juntamente com a cidadania, haviam
perdido toda a identidade jurídica, mas conservavam pelo menos a
identidade de judeus (AGAMBEN, 2004, p. 14)

Contudo, é na obra60 Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I, que ele aprofunda
a história da prisão, mas não a história da prisão como pena, mas como mera contenção. Ao
explicar a origem dos campos - o campo como nómos do moderno – ele afirma que estes não
nascem do direito ordinário, mas do estado de exceção (2014, pp. 162-163).
Foi nos campos onde se realizou a mais ―absoluta conditio inhumana que já se deu
sobre a terra‖ (AGAMBEN, 2014, 163), o que lá dentro aconteceu, supera o conceito de
crime, é além, é inominável.
Trata-se de fatos tão avassaladores que sua estrutura jurídico-política é frequentemente
desconsiderada. E é justo nesse ponto que Giorgio Agamben tem sua atenção localizada:

59
Os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001 foram uma série de ataques suicidas contra os Estados
Unidos coordenados pela organização fundamentalista islâmica Al-Qaeda em 11 de setembro de 2001. Foram
quatro aviões comerciais sequestrados, dois serviram para derrubar o World Trade Center em Nova Iorque, um
atingiu o Pentágono e o quarto avião não chegou ao alvo que seria o Capitólio.
60
Texto semelhante consta na obra Agambeniana ―Meios sem fim: notas sobre a política‖, 2015, pp 41-47.
103

Ao invés de deduzir a definição do campo a partir dos eventos que aí se


desenrolaram, nos perguntaremos antes: O que é um campo, qual a sua
estrutura jurídico-política, por que semelhantes eventos puderam aí ter
lugar? Isso nos levará a olhar o campo não como um fato histórico e uma
anomalia pertencente ao passado (mesmo que, eventualmente, ainda
verificável), mas, de algum modo, como a matriz oculta, o nómos do espaço
político em que ainda vivemos (AGAMBEN, 2014, p.163)

Ao afirmar que os acontecimentos no campo superam o conceito de crime e comparar


com a situação prisional brasileira, não há como não concordar que há nítidos pontos de
contato.
Isso fica evidenciado no reconhecimento feito pelo Supremo Tribunal Federal, na
arguição de preceito fundamental número 34761 que trata do estado de coisas inconstitucional
do sistema prisional brasileiro da qual destacamos alguns trechos:
O Plenário anotou que no sistema prisional brasileiro ocorreria violação
generalizada de direitos fundamentais dos presos no tocante à dignidade,
higidez física e integridade psíquica. As penas privativas de liberdade
aplicadas nos presídios converter-se-iam em penas cruéis e desumanas.
Nesse contexto, diversos dispositivos constitucionais (artigos 1º, III, 5º, III,
XLVII, e, XLVIII, XLIX, LXXIV, e 6º), normas internacionais
reconhecedoras dos direitos dos presos (o Pacto Internacional dos Direitos
Civis e Políticos, a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos e Penas
Cruéis, Desumanos e Degradantes e a Convenção Americana de Direitos
Humanos) e normas infraconstitucionais como a LEP e a LC 79/1994, que
criara o FUNPEN, teriam sido transgredidas62.

Reconhece-se que a violação a tais direitos repercute negativamente na sociedade


produzindo mais violência fomentando a reincidência: ―Consignou que a situação seria
assustadora: dentro dos presídios, violações sistemáticas de direitos humanos; fora deles,
aumento da criminalidade e da insegurança social‖. Além disso, nossa Corte Suprema
também afirmou que:
A responsabilidade por essa situação não poderia ser atribuída a um único e
exclusivo poder, mas aos três — Legislativo, Executivo e Judiciário —, e
não só os da União, como também os dos Estados-Membros e do Distrito
Federal (...) O Poder Judiciário também seria responsável, já que
aproximadamente 41% dos presos estariam sob custódia provisória e
pesquisas demonstrariam que, quando julgados, a maioria alcançaria a
absolvição ou a condenação a penas alternativas. Ademais, a manutenção de
elevado número de presos para além do tempo de pena fixado evidenciaria a

61
Vale ressaltar a crítica à conclusão dessa ADPF realizada por Rômulo de Andrade Moreira no artigo
intitulado: Uma vitória pírrica: o julgamento da ADPF 347. 2015. Disponível em:<
http://romulomoreira.jusbrasil.com.br/artigos/232387594/uma-vitoria-pirrica-o-julgamento-da-adpf-347> Acesso
em 06/02/2019
62
Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo798.htm> Acesso em:
02/02/2019
104

inadequada assistência judiciária. ADPF 347 MC/DF, rel. Min. Marco


Aurélio, 9.9.2015 (ADPF-347)63

O que ocorre dentro dos cárceres brasileiros também pode ser rotulado como
inominável e essa situação é permanentemente ―ignorada‖, para a solução da crise hoje
existente.
Não gera repercussão midiática casos como que recentemente chegou às instâncias
superiores (Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal) que negaram que um
preso provisório, com câncer e septuagenário em ter acesso ao seu direito líquido e certo de
ter acesso a exames e cirurgia que lhe dariam a chance minimizar suas dores e lhe daria a
possibilidade de sobrevida. Coube ao advogado, autor dos trechos abaixo descritos, dar a
notícia da negativa de tratamento, ou seja, avisar ao seu cliente que ele seguiria morrendo
dolorosamente e aos poucos, mesmo sendo um preso cautelar. Ele critica os juízes que:
Hipocritamente, travestidos de legalistas e sem assegurar sequer as ―Regras
de Mandela64‖, criticam regimes prisionais ditatoriais de países como Coreia
do Norte, Venezuela, Cuba, China e Rússia, como se Auschwitz-Bikernau e
Treblinka não fossem aqui e agora (...) Em sofisticado arremedo dos
idealizadores da década de 1940, a ―solução final‖ à brasileira é que, em
nossos campos de extermínio, uns matem os outros e que morram todos de
doenças ou por ordens das facções criminosas, toleradas pelo sistema, que
devem até ser vistas como ―úteis‖ pelos déspotas punitivistas na medida em
que asseguram eliminação dos ―indesejáveis‖. E todos o são‖! (...) Com o
respeito devido, qual a diferença de Guantánamo para o que eles
denominaram ―presídios de segurança máxima‖? (ASSAD, pp. 01-05, 2019)

Como antes já disse o Direito explicitado nas faculdades não adentra nessas questões,
apenas se o interessado resolver ―sair do Direito‖ irá encontrá-las. Os relatos da barbárie
aparecem na prática da advocacia, os livros são assépticos, apenas alguns sites abordam o
inconformismo com o atual sistema, ou em um ou outro caso teratológico (e são tantos!) que
o inominável é descoberto. Não obstante ser comum encarar essas situações como exceções
quando, na verdade são mais do mesmo.
As leis dão margem para que a exceção se opere, há sempre algo justificante para o
injustificável. É por isso que hoje penso que se há alguma mínima chance de melhora do
quadro ela deve ser trabalhada na base de formação dos operadores do Direito, desde o
graduando ao magistrado. Penso que deva ser considerada a experiência alemã para a redução
do encarceramento cautelar.

63
Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo798.htm> Acesso em:
02/02/2019
64
As Regras de Mandela compõe um tratado internacional sobre regras mínimas das nações unidas para o
tratamento de presos (CNJ, 2016)
105

Lá o entendimento foi de que ―seria mais recomendável atuar na formação do


magistrado, para reduzir a cultura do encarceramento‖ (ALVES MACHADO, 2015). Na
Alemanha, foi justamente esse o movimento feito para que se reduzisse o número de prisões
com o fundamento da garantia da ordem pública. Segundo Luís Henrique Alves Machado:
Imprescindível se faz ressaltar que os Direitos Processuais: alemão e
brasileiro estão alicerçados em princípios de natureza democrática, o que
permite a coincidência de ambos os sistemas jurídicos. Necessário, todavia,
sublinhar o empenho e o trabalho de conscientização da magistratura alemã
em conceber cada vez mais na prática forense a liberdade como regra e a
prisão como exceção, reduzindo ano após ano o número de presos
preventivos no país. De nada adiantaria possuir instrumentos legais que
garantissem a liberdade do acusado, caso o Poder Judiciário não
determinasse a utilização desse mandamento como prioridade absoluta. Seja
qual for a razão, chegou o momento de se averiguar o porquê da
recalcitrância da magistratura brasileira em não aplicar com maior
frequência as medidas cautelares diversas da prisão (2015, pp. 27-28)

Porém, o caminho que hoje vejo no Brasil, e especialmente no Rio de Janeiro, é


justamente o oposto, no sentido de ―combater o inimigo‖. Aqui, por exemplo, o atual
governador (2019-2022) e ex-magistrado Wilson Witzel65 enxerga como solução, não apenas
(e literalmente) ―o abate‖ do inimigo perigoso, bem como a construção de um presídio
vertical66.
O governador, portanto, opta por ignorar por completo a realidade dos efeitos dessa
política de extermínio, seja dos indignos de vida (ZACONNE, 2015), seja dos indignos de
vida digna: que são os encarcerados. Vale dizer que tal política genocida também ignora as
próprias forças do Estado, posto que transforma também em homo sacer as vidas daqueles
que tem que por em prática tais práticas, pois sempre vale lembrar: o policial do Estado do
Rio de Janeiro é o que mais mata no mundo, mas também é o que mais morre no mundo.
Apenas para ilustrar a realidade carcerária do país trago a seguir alguns exemplos: Em
2013, durante o governo de Tarso Genro (PT), durante o período 2011-2014, a OAB/RS levou

65
Wilson Witzel é ex-juiz federal, ex-fuzileiro naval e atual governador do Rio de Janeiro filiado ao Partido
Social Cristão (PSC). No dia 7 de outubro de 2018, no primeiro turno das eleições gerais no Brasil, Wilson
Witzel alcançou a marca de 41,28% dos votos válidos contra 19,56% votos válidos de Eduardo Paes, do DEM,
ex-prefeito do Rio de Janeiro, com ambos os candidatos indo para o segundo turno, quando se elegeu com
59,87% dos votos válidos, surpreendendo a todos, uma vez que nas primeiras pesquisas aparecia apenas com 9
por cento dos votos válidos.
66
Dentre as polêmicas declarações do governador Wilson Witzel há a que aborda a criação da ―Guantánamo
Carioca‖ e a frase: ―É só mirar na cabecinha e fogo!‖ Disponível em:
<https://ultimosegundo.ig.com.br/politica/2019-01-04/witzel-guantanamo-rio-de-janeiro.html> Acesso em
05/02/2019 e acerca da criação de presídio vertical com capacidade para cinco mil presos ao custo de oitenta
milhões de reais. Em 07/05/2019, ele foi denunciado pela Comissão de Direitos Humanos da Assembléia
legislativa do Rio de Janeiro em razão de sua política por recorde de mortes em ações policiais Disponível
em:https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2019/05/07/witzel-e-denunciado-a-onu-por-acoes-
policiais-com-mortes-no-rio-de-janeiro. Acesso em 09/05/2019.
106

a superlotação do Presídio Central de Porto Alegre à Comissão Interamericana de Direitos


Humanos (CIDH), órgão principal e autônomo da Organização dos Estados Americanos
(OEA) encarregado da promoção e proteção dos direitos humanos no continente americano,
por flagrante violação dos direitos dos presos.
Na ocasião, Tarso Genro anunciou a desativação do presídio com a demolição de seus
prédios. Contudo, no governo seguinte, de José Ivo Sartori (PMDB), durante o período 2014-
2018, este afirmou que o Presídio Central não seria mais demolido, mas, ao invés disso,
seriam feitos novos prédios para substituir a chamada pior prisão do Brasil67.
Destaque-se que ainda na gestão de José Ivo Sartori, o governo rio-grandense foi
novamente denunciado68, só que agora em razão da manutenção de presos em delegacias em
condições desumanas.
Já na gestão do atual governador, Eduardo Leite (PSDB - 2019-2022), este anunciou a
criação da Secretaria de Administração Penitenciária, para agilizar a construção de prisões a
fim de minimizar o caos de ausência de vagas naquele sistema prisional. Ou seja, são seis
anos em que apenas um Estado do Brasil fica inerte jogando com vidas. Essas questões
absurdas ocorrem no país inteiro.
Vindo para o Rio de Janeiro, em novembro de 2018, a Corte Interamericana de
Direitos Humanos (CIDH) também determinou que o Brasil adotasse imediatamente medidas
necessárias para proteger eficazmente a vida e a integridade pessoal de todas as pessoas
privadas de liberdade no Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho, situado em Gericinó 69, bem
como de qualquer pessoa que se encontre nesse estabelecimento, sejam funcionários ou
visitantes. Tal determinação foi em resposta à denúncia feita pela Defensoria Pública do
Estado do Rio de Janeiro também em decorrência da situação desumana presenciada naquele
espaço.

67
Ironicamente, já foi chamada de prisão modelo, quando inaugurada por Leonel Brizola em 1959. Disponível
em: <https://gauchazh.clicrbs.com.br/geral/noticia/2016/02/antes-condenado-presidio-central-ganha-nova-
sobrevida-4967362.html> Acesso em: 28/02/2019
68
Disponível em: https://www.jornaldocomercio.com/_conteudo/2017/02/geral/545470-governo-sartori-sera-
denunciado-por-violar-direitos-humanos-de-presos-em-delegacias.html Acesso em: 02/02/2019.
69
Por curiosidade, o bairro de Gericinó foi criado em 2004, pelo Prefeito Cesar Maia. Anteriormente a região
onde fica o complexo penitenciário era o bairro de Bangu. Atualmente, quem vai para lá pela Avenida Brasil
(direção do centro para a zona oeste) não tem referência (não há sinalização indicando: Complexo Penitenciário
de Gericinó ou Complexo Penitenciário de Bangu), há apenas uma placa sucinta, apontado para a direita, onde
está escrito ―PRESÍDIOS‖. Há lenda no sentido de que os moradores de Bangu clamaram por essa mudança de
nomenclatura, não queriam o estigma de presidiários, contudo, o aterro sanitário que fica colado ao complexo
penitenciário segue sendo chamado de ―Aterro Sanitário de Bangu‖. Parece-me no mínimo simbólico: é
preferível o lixo ao homo sacer.
107

Um recente episódio de superlotação noticiado se deu em Curitiba70. Lá, no 1º Distrito


Policial (DP), há oitenta e uma pessoas presas em local apropriado para oito. Sem espaço
apropriado para as mulheres, há cinco delas presas permanecendo o tempo todo algemadas.
Há presos doentes e há quem desmaie em razão do calor de 50 graus. Ou seja, o a conditio
inhumana (AGAMBEN, 2014, 163) é algo permanente e assim sempre foi.
É fato que a história dos cárceres brasileiros sempre foi relacionada a um quadro de
desrespeito ao ser humano, insalubridade e superlotação. Tomando por base o Estado do Rio
de Janeiro, a violação da dignidade sempre foi o retrato desses espaços.
Tive a oportunidade de fazer esse estudo durante o mestrado, onde analisei memórias
de presos que estavam cumprindo pena há muitos anos na Penitenciária Histórica Lemos
Brito, a antiga Casa de Correção da Corte (CARDOSO, 2008, pp. 55-67):
Cadeia Velha, Aljube, Calabouço e até mesmo a Casa de Correção, inaugurada em
1850, como a primeira unidade a trazer o panóptico benthaniano ao Brasil com a ideia de
―corrigir‖ o criminoso, apontam, desde o início, o fracasso (ou o êxito da exceção e
aniquilação do homo sacer) de nossas prisões.
Foi em razão da precariedade das condições da prisão do Aljube, onde ficavam muitos
presos provisórios que o Governo decidiu utilizar o segundo raio da Casa de Correção como
Casa de Detenção, ou seja, o que seria uma solução temporária acabou tornando-se definitiva
em 1856.
E esse não foi o único exemplo de improviso para o ―excedente humano‖: o Presídio
Evaristo de Moraes (Galpão da Quinta), situado em São Cristóvão, fica num galpão que
pertenceu à Secretaria de Transportes. Nesse espaço improvisado foram colocados presos
provisórios, em razão da superlotação destes no Presídio Hélio Gomes (que por sua vez
também era um ―anexo‖ da Casa de Detenção).
Assim, afirmo que a violação da dignidade humana sempre foi permanência em nossos
―campos‖. Nossos presídios foram, numa linguagem popular, uma sequência de
―puxadinhos‖71 para se depositar gente. Indo além, a própria História das Américas Latina e
da América do Sul, já foi uma história de exceção.

70
Disponível em:<https://www.tribunapr.com.br/noticias/seguranca/1o-dp-mantem-81-presos-amontoados/>
Acesso em: 02/02/2019.
71
No fim de 2018, o juiz Carlos Fernando Noschang Junior decidiu comprar dois contêineres para colocar
presos. Essa ―artimanha‖ custou R$ 70 mil da conta da Vara de Execuções Criminais Regional de Novo
Hamburgo_RS. Disponível em: <https://gauchazh.clicrbs.com.br/seguranca/noticia/2018/11/juiz-decide-
comprar-conteineres-para-abrigar-presos-e-desafogar-delegacias-do-vale-do-sinos-
cjo8r36v40ce001rxj5usmnxb.html> Acesso em: 28/02/2019)
108

As narrativas de Bartolomé de Las Casas (1474-1566) já denunciavam tal quadro na


obra O Paraíso Destruído: a sangrenta história da conquista da América (2001), razão pela
qual, senti a necessidade de fazer uma inversão do olhar, analisar a contrapelos, para um
melhor enquadramento da pesquisa.
Há discussão entre historiadores acerca do surgimento do denominado ―campo‖, se
seria obra de espanhóis sobre a população da colônia em Cuba (1896), ou se seria obra dos
ingleses no início do século XX, na Guerra dos Bôeres72, destacando-se que ambas as
situações são ligadas a guerras coloniais.
Nota-se, portanto, que o campo não tem origem no direito carcerário, mas sim decorre
de situações de exceção. Giorgio Agamben, que toma como paradigma o nazismo ao realizar
seu grande projeto homo sacer, explica detalhadamente de onde vem a ―prisão sem prévia
condenação‖ como custódia protetiva:
É sabido que a base jurídica do internamento não era o direito comum, mas a
Schutzhaft (literalmente: custódia protetiva), um estatuto jurídico de
derivação prussiana que os juristas nazistas classificam às vezes como uma
medida policial preventiva, na medida em que permitia ―tomar sob custódia‖
certos indivíduos independentemente de qualquer conduta penalmente
relevante, unicamente com o fim de evitar um perigo para a segurança
do Estado. Mas a origem da Schutzhaft encontra-se na lei prussiana de 4 de
junho de 1851 sobre o Estado de sítio, que em 1871 foi estendida a toda a
Alemanha (com a exceção da Baviera) e, ainda antes, na lei prussiana sobre
a ―proteção da liberdade pessoal‖ (Schutz der persönlichen Freiheit) de 12 de
fevereiro de 1850, que encontraram uma maciça aplicação por ocasião da
Primeira Guerra Mundial e nos conflitos que, na Alemanha, se seguiram à
conclusão do tratado de paz. É bom não esquecer que os primeiros campos
de concentração na Alemanha não foram obra do regime nazista, e sim dos
governos social-democráticos que, em 1923, após a proclamação do estado
de exceção, não apenas internaram com base na Schutzhaft milhares de
militantes comunistas, mas criaram também em Cottbus-Sielow um
Konzentrationslager für Ausländer que hospedava sobretudo refugiados
hebreus orientais e que pode, portanto, ser considerado o primeiro campo
para os hebreus do nosso século [século XX] (mesmo que, obviamente, não
se tratasse de um campo de extermínio) (AGAMBEN, 2014, pp. 162-163)

Ou seja, no caso do Lager nazista, a base não era o Direito comum, mas a detenção
preventiva (prussiana), uma medida de polícia preventiva que ocorria independentemente da
prática de crimes, da violação do Direito Penal, bastando que se entendesse que aquilo
pusesse ser interpretado como um risco ao Estado.

72
Confrontos ocorridos onde hoje é a África do Sul em que os colonos holandeses e franceses resistiram à
invasão britânica interessada na extração de ouro e diamante. Em decorrência dos dois conflitos os bôeres, como
eram chamados os holandeses e franceses, ficaram sob domínio britânico. Vide: ―Os bôeres tentaram, sem êxito,
continuar a luta através de guerrilhas. Mas a vingança dos britânicos foi terrível: 30 mil propriedades foram
incendiadas, plantações e animais mortos. Mulheres e crianças foram internadas em campos de concentração,
onde morreram aos milhares‖. Disponível em <https://www.dw.com/pt-br/1902-fim-da-guerra-dos-
b%C3%B4eres/a-834956> acesso em: 02/02/2019
109

O fundamento jurídico da Schutzhaft era a proclamação do estado de sítio ou


do estado de exceção, com a correspondente suspensão dos artigos da
constituição alemã que garantiam as liberdades pessoais. O artigo 48 da
constituição de Weimar proclamava, de fato: O presidente do Reich pode,
caso a segurança pública e a ordem sejam gravemente perturbadas ou
ameaçadas, tomar as decisões necessárias para o restabelecimento da
segurança pública, se necessário com o auxílio das forças armadas
(AGAMBEN, 2014, p. 163) (Grifos meus)

Já foi abordada anteriormente a questão relativa à prisão cautelar para a garantia da


ordem pública, onde destaquei a crítica de que tal argumento teria como natureza não a
cautela do processo, mas sim um viés policialesco ou punitivo visando a aniquilação daqueles
rotulados como ―socialmente perigosos‖ (GIAMBERARDINO, 2008, p.139). É nesse mesmo
sentido a lição de Luigi Ferrajoli na obra Direito e Razão, eis que o autor afirma que a
garantia da ordem pública tem natureza de medida de defesa social:
Assumiu explicitamente a natureza de uma medida de defesa social,
incluindo entre os seus pressupostos a periculosidade social do imputado:
precisamente o ―concreto perigo‖ que, ―pela específica modalidade e
circunstâncias do fato e personalidade do imputado... este cometa vários
delitos este cometa graves delitos com uso de armas ou de outros meios de
violência pessoal ou voltados contra a ordem constitucional (FERRAJOLI,
2014, p. 711).

Giorgio Agamben afirma que de 1919 até 1924 o estado de exceção foi proclamado
diversas vezes pelos governos de Weimar, mas que foi em 1933 que os nazistas:
Emanaram o Verordnung zum Schutz von Volk und Staat que suspendia por
tempo indeterminado os artigos da constituição que concerniam à liberdade
pessoal, à liberdade de expressão e de reunião, à inviolabilidade do domicílio
e ao sigilo postal e telefônico, eles não faziam mais, neste sentido, do que
seguir uma praxe consolidada pelos governos precedentes (AGAMBEN,
2014, p. 164) (Grifos meus)

Sendo assim, constato e concordo com Rubens Casara que o Holocausto aconteceu
―apesar do Estado de Direito, pois contou com a ajuda de juristas e juízes. O fascismo e o
nazismo serviram-se do direito. A opressão não é incompatível com o direito‖ (2017, p. 60).
Dessa maneira, fica patente que a prisão cautelar, essa custódia de indivíduos cujo objetivo é a
garantia da ordem, traz, na visão agambeniana, nítida confusão com o estado de exceção.

3.5. Construção da guerra civil permanente ou estado de exceção desejado


110

Quando ocorreu a suspensão de direitos fundamentais através do decreto denominado


Verordnung zum Schutz von Volk und Staat, não foi escrito nele, em momento algum, a
expressão ―estado de exceção‖ (Ausnahmezustand).
Foi através de um artifício linguístico, em não ―assumir-se como exceção‖ que se
promoveu a sensação de normalidade jurídica, tendo daí surgido a estranha expressão ―estado
de exceção desejado‖ (einen gewollten Ausnahmezustand), que utilizou, de maneira implícita
o artigo 48 da Constituição de Weimar, para, ao desaplicar direitos fundamentais previstos
nela mesma, implementar o Estado nazista (AGAMBEN, 2014, p. 164).
Foi dessa forma que a Schutzhaft foi desarticulada de sua origem excepcional e
colocada como algo normal, e foi daí que veio a ideia de ―prisão sem prévia condenação‖
como algo ―normal‖, possibilitando o surgimento do campo:
A novidade é que, agora, este instituto (Schutzhaft) é desligado do estado de
exceção no qual se baseava e deixado em vigor na situação normal. O campo
é o espaço que se abre quando o estado de exceção começa a tornar-se a
regra. Nele, o estado de exceção, que era essencialmente uma suspensão
temporal do ordenamento com base numa situação factícia de perigo, ora
adquire uma disposição espacial permanente que, como tal, permanece,
porém, estavelmente fora do ordenamento normal. Quando em março de
1933, coincidindo com as celebrações pela eleição de Hitler como chanceler
do Reich, Himmler decidiu criar em Dachau um ―campo de concentração
para prisioneiros políticos‖, este foi imediatamente confiado às SS e, através
da Schutzhaft, posto fora das regras do direito penal e do direito carcerário,
com os quais, nem então e nem em seguida, jamais teve algo a ver
(AGAMBEN, 2014, pp.164-165)

Concluo, com Giorgio Agamben, que a utilização desse dispositivo, o nascimento do


campo, seja ele onde for, marca o próprio espaço político da modernidade. O autor trouxe
como paradigma os campos de concentração, mas a realidade é que não há necessidade de
muros visíveis, tampouco de ser um espaço ―para essa finalidade‖ basta ser um espaço no
qual o ordenamento ―normal é de fato suspenso, e que aí se cometam ou não atrocidades não
depende do direito, mas somente da civilidade e do senso ético da polícia que age
provisoriamente como soberana‖ (AGAMBEN, 2014, pp. 170)
Por isso é possível se dizer que em determinadas regiões da cidade do Rio de
Janeiro73, com o argumento de segurança, haja a naturalização da despersonalização dos
indivíduos e da suspensão do direito autorizado na violação às suas residências.

73
Nesse ponto destaca-se a dissertação de Anna Carolina Cunha Pinto, mostrando através de gráficos do
Instituto de Segurança Pública, onde ocorrem as situações de maior incidência de autos de resistência e quem são
as principais vítimas: jovens negros, pobres e periféricos (PINTO, 2018, pp. 106-108).
111

Nesses espaços temos uma maior letalidade violenta, há a elasticidade da interpretação


legislativa e permite-se até que crianças indo para a escola tenham seu material escolar
revistado com o argumento da segurança.
Novamente merece destaque a citação da crônica de Celso Athayde (2005, p.77)
quando ele diz que o maior preconceito se dá na periferia, pois lá as diferenças aparecem, ―lá
que as professoras são processadas por discriminação racial considerando que isso não
acontece em escolas de ricos74, onde não estuda preto‖ (grifos meus) e finaliza ao falar que a
diferença que aparece na periferia é que lá ―um tem a cor do poder e o outro da miséria‖.
Ora, jamais uma prática invasiva como esta seria tolerada em alunos de escolas das
áreas nobres da cidade. Porém no Rio de Janeiro, crianças periféricas sabem o calibre das
armas pelo barulho dos disparos. Só algumas crianças obviamente.
Celso Athayde acaba trazendo em seu texto algo que ainda abordarei que é a questão
da interseccionalidade e do racismo estrutural, mas antes de chegarmos lá, ainda usando a
teoria de Giorgio Agamben (1995, p. 17), observo na crônica que o portador da ―cor da
miséria‖ é exatamente o portador da vida nua, daquele cuja vida insacrificável, é, contudo,
matável, podendo esse conceito de matável ser visto de diversas formas:
Seja com a morte da dignidade observada na biopolítica segregatória da cidade
(CUNHA E SILVA, 2011) onde aos portadores da vida nua não é permitido o acesso a
lugares pertencentes à elite.
Não é raro, no verão, que atos de revista sejam feitos de maneira generalizada em
jovens periféricos que iriam à praia. Até mudança em linhas de ônibus já ocorreram para
dificultar o ir e vir entre áreas nobres e áreas pobres da cidade (CARDOSO; PINTO, 2015),
bem como a proibição de ―rolezinhos‖ em shoppings centers espaço não pertencente a esse
―povo‖.
Em contrapartida, há a permissibilidade de atos atentatórios à dignidade nos espaços
segregados das favelas, verdadeiros campos, incluídos na cidade pela própria exclusão.
Essa exclusão possibilita que esses territórios estejam sempre ―a mercê de‖ algum
poder seja ele oficial ou não, como no controle exercido por facções criminosas, por milícias e
pela própria opressão estatal.
74
Vale consignar recentíssimo episódio em escola tradicional com viés dito progressista no bairro de
Laranjeiras, zona sul do Rio de Janeiro onde uma criança negra, após sofrer diversos episódios de racismo, teve
que se retirar da escola. É cômodo dizer que não há racismo em espaços não ocupados por negros. Disponível
em:https://ofertasglobo.oglobo.globo.com/garc/landing-
colunistas/index.html?campanha=nao&utm_origem=siteoglobo&utm_midia=barreiraPaywall&utm_campanha=
paywall_padrao&id_parc=6236&semtelaoferta=sim&url_retorno=https%3A%2F%2Foglobo.globo.com%2Fsoci
edade%2Fcaso-de-racismo-em-escola-privada-no-rio-leva-discussao-sobre-necessidade-de-contratar-mais-
professores-negros-23600547 Acesso em 07/05/2009.
112

Em razão do medo sacrifica-se o indivíduo que não é tido como cidadão, mas como
homo sacer.
Se a essência do campo consiste na materialização do estado de exceção e na
consequente criação de um espaço em que a vida nua e a norma entram em
um limiar de indistinção, deveremos admitir, então, que nos encontramos
virtualmente na presença de um campo toda vez que é criada uma tal
estrutura, independentemente da natureza dos crimes que aí são cometidos e
qualquer que seja a sua denominação ou topografia específica (AGAMBEN,
2014, pp.169-170)

Vale dizer que o indivíduo matável, o homo sacer, ainda pode ser interpretado como
aquele cujo aprisionamento é esperado, naturalizado, o público alvo do sistema penal.
Giorgio Agamben explica a dificuldade de se traçar o limite entre o que seria o
jurídico e o político numa teoria acerca do estado de exceção. Tal momento apresenta-se
como ―a forma legal daquilo que não pode ter forma legal‖ (AGAMBEN, 2004, p.12).
É fato que tal limite ganha maior relevo em momentos de crise política onde a
suspensão de direitos pode revelar qual o agir político que está em jogo e a quem ele visa
alcançar, quais os viventes que ficarão nessa camada borderline que liga a vida ao direito
através do abandono dessa própria vida.
A possibilidade de ―guerras civis‖ que operam a exceção de maneira intencional nas
―guerras civis legais‖ permitem modulações políticas a fim de alcançar um objetivo, ou até
reformular politicas visando a manutenção do status quo sob novas vestes.
Essa é uma hipótese que sustento, pois a questão racial que decorre de 388 anos de
escravidão no Brasil parece sofrer ―mudanças‖ apenas para a permanência da exclusão dos
não-brancos e, todas as tentativas de modificação desse status quo, acaba por gerar enorme
resistência daqueles que sempre foram privilegiados.
Verifica-se assim que o padrão de governo contemporâneo, inclusive de estados ditos
democráticos, utiliza como prática de governamentalidade essa suspensão do Direito que gera
um estado de exceção permanente.
Giorgio Agamben destaca que a escolha do termo estado de exceção não é neutra, pois
é justamente a ideia de suspensão que define seu conceito limite. Tal termo vem da doutrina
alemã não encontrando similaridade com o decreto de urgência italiano, o estado de sítio
francês ou a martial law e emergency powers ingleses (AGAMBEN, 2004, p.15)
É desde o início do livro Estado de Exceção que Giorgio Agamben apresenta a
distinção entre o estado de exceção real e o ficto, bem como o estado de exceção desejado.
113

Foi este estado de exceção desejado que permitiu o nazismo (AGAMBEN, 2004, pp.
13-14). O autor também apresenta o termo utilizado na Alemanha nazista: ―ditadura
constitucional‖, que nada mais é do que uma construção Schmittiana para justificar a exceção
desejada, a utilização de dispositivos para a governamentalidade (AGAMBEN, 2004, p. 17).
Vale dizer, a história de exploração do uso de mecanismos de prisão provisória
originalmente em normas excepcionais, como a Schutzhaft, é o que Michel Foucault e Walter
Benjamim chamam de uma prática presente num estado de exceção permanente.

3.6. Conceitos indeterminados como estruturantes da lógica da decisão (soberano é


quem decide)

Por que falei de uma construção Schmittiana? Porque foi Carl Schmitt quem trouxe a
ideia de que são os conceitos indeterminados no ordenamento que vão permitir que o direito
não esteja no centro e sim na decisão. O ordenamento como instrumento de guerra passa a ser
estruturado sobre a lógica da exceção que é a da decisão. Segundo Agassiz Almeida Filho:
Numa certa altura da sua Teologia Política, Schmitt faz um desvio em
direção à análise do art. 48 da Constituição de Weimar (1919), que tinha
como objeto, basicamente, a previsão de poderes extraordinários que
deveriam ser exercidos pelo presidente do Reich, quando necessário, sob a
supervisão do parlamento. Schmitt afirma que os poderes que o art.48 atribui
ao presidente do Reich e o controle a que se submete sua atuação é um típico
instrumento do Estado de Direito. Contudo, não fosse o sistema de controle,
o referido art. 48 realmente poderia ter dado origem ao verdadeiro exercício
do poder soberano: ―o conteúdo do art. 48 [...] outorga realmente plenos
poderes, de tal maneira que, se se pudesse exercer sem controle algum,
equivaleria a haver outorgado a soberania (ALMEIDA FILHO, 2014, pp.
103-104)

Ele traça a diferença ente uma ditadura comissária e uma ditadura soberana, sendo a
chave desses conceitos aquilo que é tido como o normal:
Tendo em vista que a norma não regula suas próprias condições de
aplicação, pode ocorrer que a situação normal exigida para sua incidência
não esteja disponível, necessitando-se, então, de uma força, consubstanciada
numa decisão, que irá restaurar a condição sine qua non da norma. Logo, a
norma é suspensa, para que sejam restabelecidas as condições concretas que
permitem sua incidência. É aqui que se insere o conceito de ditadura
comissária (MACHADO, 2013, p. 52)
114

Seria o comissário o legitimado para a suspensão da ordem vigente, é ele o senhor da


ação absoluta e, não obstante ser uma suspensão de uma ordem jurídica, ela segue sendo
constituída para a proteção de sua própria ordem constitucional.
Em contrapartida, apenas para conhecimento, o que Carl Schmitt entendia como
ditadura soberana nada mais era do que aquela existente não para a defesa da Constituição,
mas para dissolvê-la com a propositura de uma nova ordem jurídica, diferentemente do que
houve na Alemanha Nazista (MACHADO, 2013, pp. 53-54).
Para Carl Schmitt, o comando do Führer era a fonte primária e imediata do direito, de
maneira que a Schutzhaft sequer necessitava de fundamento jurídico. De qualquer forma,
entendo pertinente mostrar de que forma isso se construiu na Alemanha Nazista:
A modificação mais expressiva surgiu com a edição da ―Lei de alteração das
disposições do processo penal e da Lei de Organização Judiciária de 28 de
junho de 1935‖ (Das Gesetz zur Änderung von Vorschriften des
Strafverfahrens und des Gerichtsverfassungsgesetzes vom 28. Juni 1935), a
qual ampliou os fundamentos para a decretação da prisão preventiva. Até
então, a ordem de prisão somente poderia ser emitida desde que estivessem
conjugados os requisitos da ―plausibilidade da suspeita do delito‖
(dringender Tatverdacht) e da suspeita de fuga (Fluchtgefahr) ou do ―perigo
de conluio‖ (Kollusiongefahr). Em virtude da nova Lei, duas novas hipóteses
passaram a figurar expressamente no §112 Abs. 1 do Código do Império,
autorizando o decreto de prisão preventiva, a saber: o ―perigo de repetição‖
(Wiederholungsgefahr) e a ―gravidade do delito e o clamor [alvoroço]
público‖ (Schwere der Tat und Erregung der Öffentlichkeit‖). De se ver que
a introdução desse último fundamento, como anota a doutrina, era de índole
arbitrária, tendo em vista que o conceito poderia ser manipulado por
instruções apropriadas a qualquer momento para a imprensa, de acordo com
os desejos de quem estava no poder (ALVES MACHADO, 2015, p 08)

Não houve uma determinação para a criação dos campos, eles simplesmente surgiram
como um pedaço de território colocado fora do ordenamento jurídico normal, não sendo um
espaço externo.
Quem nele esteve, foi incluído pela própria exclusão, o que é capturado pelo
ordenamento jurídico é o próprio estado de exceção desejado: ―o campo é, digamos, a
estrutura em que o estado de exceção, em cuja possível decisão se baseia o poder soberano, é
realizado normalmente‖ (AGAMBEN, 2014, p.166)
Giorgio Agamben diz que: ―o campo é o próprio paradigma do espaço político no
ponto em que a política torna-se biopolítica (gerência do corpo biológico) e o homo sacer se
confunde virtualmente com o cidadão‖ (AGAMBEN, 2014, p. 167). Essa afirmação é feita em
razão do fato de que todos os habitantes do campo, seja ele um campo de concentração
nazista, seja Guantánamo, seja uma prisão brasileira insalubre, tem sua vida reduzida à vida
115

nua de maneira integral, ali o poder não encontra mediação, ali o ser humano é reduzido à
vida animal, sendo completamente despersonalizado, tendo toda a sua dignidade esvaziada.
Por isso, é fundamental não questionar como a humanidade fez o que fez, mas sim
perguntar: como juridicamente tamanha atrocidade foi e continua sendo possível? Como um
ser humano pode ser esvaziado de direitos até o ponto em que cometer contra eles qualquer
ato não mais se apresente como delito? (AGAMBEN, 2014, p.167)
No ensaio de 1933 em Estado, movimento, povo, ele equipara o conceito de
raça, sem o qual o estado nacional-socialista não poderia existir, nem a sua
vida jurídica seria pensável, aquelas cláusulas gerais e indeterminadas que
foram penetrando sempre mais profundamente na legislação alemã e
europeia do Novecentos. Conceitos como ―bom costume‖ –observa Schmitt
-, ―iniciativa imperiosa‖, ―motivo importante‖, ―segurança e ordem
pública‖, ―estado de perigo‖, ―caso de necessidade‖, que não remetem a
uma norma, mas a uma situação (...) Sob a ação destas cláusulas, que
deslocam certeza e calculabilidade para fora da norma, todos os conceitos
jurídicos se indeterminam (...) O caminho à frente parece condenar a um
mar sem limites e afastar-se sempre mais do terreno firme da certeza
jurídica e da adesão à lei, que é também, ao mesmo tempo, o terreno da
independência dos juízes (...) o corpo biopolítico (em seu dúplice aspecto
de corpo hebreu e corpo alemão, de vida indigna de ser vivida e de vida
plena) não é um inerte pressuposto biológico ao qual a norma remete, mas é
ao mesmo tempo norma e critério da sua aplicação, norma que decide o fato
que decide da sua aplicação (AGAMBEN, 2014, pp. 167-168) (grifos meus)

Nota-se que, ao vermos na legislação a garantia da ordem pública como um requisito


para que uma prisão cautelar seja efetuada, isso não é nada além de uma dessas cláusulas
gerais e indeterminadas que podem servir a qualquer senhor. Neste sentido:
Em verdade, ―a carência de taxatividade, que se apresenta na falta de
pressupostos e critérios de avaliação indicados pela lei, não é senão um
aspecto da tendenciosa estruturação das medidas restritivas de liberdade em
funções de imediata repressão‖. Não se pode deixar de considerar que, no
Brasil, é a partir da visão dos tribunais, heterogênea, porém
predominantemente conservadora, que se busca preencher o conceito de
―ordem pública‖. Pode-se dizer que ―além de prevenção do cometimento de
novos crimes, a medida serve para tranquilizar o meio social e restaurar a
credibilidade da Justiça‖ (GIAMBERARDINO, 2008, p. 142)

Tal crítica já havia sido citada no capítulo sobre prisão cautelar. Fauzi Hassan Choukr,
no artigo intitulado: A “ordem pública” como fundamento da prisão cautelar – Uma visão
jurisprudencial (2015) mostra que a jurisprudência acaba considerando a gravidade do crime,
o clamor público a credibilidade da justiça, o risco da reiteração criminosa, ou seja, diversos
fundamentos que ao mesmo tempo tudo e nada dizem.
Em suma, o Führer é a lei e a lei é aberta quando não poderia ser. Daí a dificuldade de
julgar, segundo os normais critérios jurídicos, aqueles funcionários que, como Adolf
Eichmann (ARENDT,1999), não haviam feito nada além de obedecer cegamente à lei, ainda
116

que banalizando o mal. Soberano é quem decide e essa decisão é a que determina quem tem a
vida nua.

3.7. Fratura do povo: “manda quem pode”

A cisão, ou fratura do povo pode operar em diferentes contextos históricos e


temporais, mas sempre com a mesma dinâmica de realizar a distinção entre um estado de
exceção real e um ficto ou desejado.
O uso dessa técnica biopolítica (ou tanatopolítica ou necropolítica75) que permite a
suspensão dos direitos, possibilita a dominação, cria, por estar externamente ao Direito, um
indivíduo-objeto, disponível, descartável ―juridicamente inominável e inclassificável‖
(AGAMBEN, 2004, p.13).
Essa fratura não equivale ao termo ―ao arrepio da lei‖ comumente usado no direito
porque, ao ser permitido pela situação emergencial76, ele encontra-se amparado pela lei
justamente através da sua exclusão, expondo a vida nua daqueles indivíduos atingidos,
daqueles homo sacer que foram e ainda são expostos ao longo da história da humanidade.
A compreensão do que vem a ser a fratura do povo, nesse contexto é de suma
importância, mas antes é preciso entender o que vem a ser um povo.
Toda interpretação do significado político do termo povo deve partir do fato
singular de que este, nas línguas europeias modernas, sempre indica também
os pobres, os deserdados, os excluídos. Ou seja, um mesmo termo nomeia
tanto o sujeito político constitutivo como a classe que, de fato, se não de
direito, está excluída da política (AGAMBEN, 2015, p. 35)

Giorgio Agamben (2015, p. 35) em nota de rodapé da obra Homo Sacer, chama
atenção ao discurso de Lincoln ao falar ―Government of the people by the people for the
people‖ colocando uma questão semântica que faz com que surja a dúvida: de que povo afinal
ele está falando? Ele citou povo três vezes na mesma fala. Por quê?

75
Esses conceitos serão aprofundados no próximo capítulo, mas desde já esclareço que este livro necropolítica
―baseia-se no conceito de biopoder e explora sua relação com as noções de soberania (imperium) e estado de
exceção‖ (MBEMBE, 2018, p. 7).
76
É interessante ressaltar que há uma prática comum de normas de ―emergência‖, muitas vezes ganhando
―nomes‖ dos casos que a geraram como uma resposta à sociedade no combate ao inimigo. Ver mais em Fauzi
Hassan Choukr acerca do Processo Penal ―de Emergência‖ (2009).
117

Jean Bodin, por seu turno, diz que o conceito de povo é duplo: ―ao peuple em corps
[povo como corpo político], como titular da soberania, corresponde o menu peuple [o povão],
que a sabedoria aconselha excluir do poder político‖ (AGAMBEN, 2015, p. 36)
Giorgio Agamben esclarece: ―Tudo advém, portanto, como se aquilo a que chamamos
povo fosse, na realidade, não um sujeito unitário, mas uma oscilação dialética entre dois polos
opostos‖ (2014, p. 173) não sendo, portanto algo casual, mas proposital.
De um lado o conjunto Povo como corpo político integral, de outro, o
subconjunto povo como multiplicidade fragmentária de corpos necessitados
e excluídos; ali uma inclusão que se pretende sem resíduos, aqui uma
exclusão que se sabe sem esperanças; num extremo, o Estado total dos
cidadãos integrados e soberanos, no outro, a reserva – corte dos milagres ou
campo – dos miseráveis, dos oprimidos, dos vencidos que foram banidos
(AGAMBEN, 2015, pp. 36-37)

Povo ―é aquilo que, para ser, deve negar, com seu oposto, a si mesmo‖ (AGAMBEN,
2015, p. 37), ou seja, para que haja um Povo (em letras maiúsculas propositadamente) é
preciso também haver em si a chamada fratura biopolítica fundamental geradora do povo
(agora com letras minúsculas).
É ela, a fratura biopolítica fundamental, que irá separar o soberano da vida nua, como
no trocadilho feito com o ditado popular ―manda quem pode, obedece quem tem juízo‖, ou
seja, manda quem pode e quem pode mandar é o soberano, portanto, é o soberano quem irá
decidir (e azar de quem figurar na posição do Outro dentro dessa dialética). Achille Mbembe
tece simples e clara compreensão disso na obra Necropolítica:
A percepção da existência do Outro como um atentado contra minha
vida, como uma ameaça mortal ou perigo absoluto, cuja eliminação biofísica
reforçaria meu potencial de vida e segurança, é este, penso eu, um dos
muitos imaginários de soberania, característico tanto da primeira quanto da
última modernidade (MBEMBE, 2018, p. 20) (Grifos meus)

É por isso, segundo explica Giorgio Agamben (2015, p. 35), que se diz que na
constituição da espécie humana, num corpo político, reconhecemos ―pares categoriais‖ que
definem essa estrutura política original como sendo: a) vida nua (povo) versus existência
política (Povo), b) exclusão versus inclusão e c) zoé versus bíos e, por que não: d) Uns versus
Outros?
Foi a partir da Revolução Francesa que o povo transformou-se nessa presença
embaraçosa, tornando a aparência da exclusão e da miséria intragáveis. Posteriormente, na
modernidade, deixaram de ser conceitos meramente econômicos e sociais para tornarem-se
categorias políticas: ―o nosso tempo não é senão a tentativa – implacável e metódica – de
118

atestar a cisão que divide o povo‖ (AGAMBEN, 2015, p. 39). Não obstante, foi no paradigma
da Alemanha nazista que:
A fratura, que acreditavam ter sanado eliminando o povo (os judeus que são
seu símbolo), reproduz-se, assim, transformando novamente todo o povo
alemão em vida sagrada votada à morte e em corpo biológico que deve ser
infinitamente purificado (eliminando doentes mentais e portadores de
doenças hereditárias) (AGAMBEN, 2015, p. 39)

Analogamente o filósofo conclui que na atualidade, o projeto capitalista que acaba por
banir as classes pobres, é o responsável não apenas pela reprodução dessa perspectiva, mas
também responsáveis por colocar todas as populações do terceiro mundo expostas e
transformadas em vida nua (AGAMBEN, 2015, p. 40).
Fecho, portanto, esse capítulo, com as seguintes observações: No que tange ao
método, aquele adotado por Giorgio Agamben se assemelha ao adotado por Michel Foucault,
não tendo esse último utilizado o termo paradigma, mas utilizado os enunciados, as
semelhanças nos ―não ditos‖, nos discursos que operam em semelhantes conjuntos de
relações.
Foi visto como se deu no tempo o estudo de Michel Foucault sobre: o poder soberano
com o seu ―fazer morrer e deixar viver‖, o poder disciplinar com a docilização dos corpos, a
padronização, a normalização, anulando as subjetividades e, por fim, a biopolítica, onde
através de dispositivos se estabelece o controle da população, havendo a inversão do que
ocorria com o poder soberano, já que para a biopolítica importa ―fazer viver e deixar morrer‖.
Também foi apresentada a biopolítica como regente das democracias contemporâneas,
onde há a disseminação da ideia de liberdade, mas que, em verdade, através de modulações, a
população (que acredita ser livre) é capciosamente conduzida evidenciando a
governamentalidade foucaultiana.
Essa condução das massas em Michel Foucault remonta ao poder pastoral, enquanto
que, para Giorgio Agamben, ela já estaria operando anteriormente.
O uso do método arqueológico, com os seus exemplos, por sua vez ajuda a enxergar o
quanto que os paradigmas usados por Giorgio Agamben acerca da vida nua, do homo sacer e
da exceção estão presentes em diversas políticas públicas de segurança, evidenciando o que
ele diz sobre a íntima relação entre as democracias e os totalitarismos.
Entendendo isso, conclui-se que o controle efetivamente pode operar de diferentes
formas, mas que em todas elas há algo comum: é possível se notar a aniquilação do indivíduo
e a possibilidade de não aplicação das normas em razão da excepcionalidade.
119

Seja ela de maneira explícita, como os Patriot Acts, após os atentados de 11 de


setembro nos Estados Unidos, onde até a prisão sem condenação é tolerada por tempo
indeterminado77.
Seja ela de maneira implícita, como na condução de políticas públicas de combate ao
crime, ou ao comércio de drogas ilícitas, na cidade do Rio de Janeiro, onde facilmente pode
ser observado: o apartheid urbano, o aprisionamento em massa, bem como o genocídio da
população jovem e negra78.
Esses paradigmas podem também ser utilizados em um viés histórico, como na
pesquisa acerca da escravidão, conduzida por Daniel Arruda Nascimento, que observa o homo
sacer nas senzalas brasileiras.
A tese tem por foco as prisões cautelares para garantia da ordem pública que, embora
devessem ser excepcionais, considerando a presunção de inocência prevista no artigo 5º,
LVII, da Constituição da República Federativa do Brasil, representam mais de 40% de nossa
população carcerária.
Creio que possivelmente, haverá a repetição dos enunciados evidenciando que o homo
sacer pode sim ser escolhido, modificado, rotulado, controlado, ao sabor da modulação da
vez, de acordo com o que interessar à biopolítica.
Porém, considerando a nossa história, senti a necessidade de realizar uma virada
epistemológica, em razão das especificidades de nossa História. Não vejo como utilizar
apenas autores que não viveram experiências semelhantes às aqui vividas, razão pela entendi
necessário o mergulho decolonial e um saber à brasileira.

77
João Ozorio de Melo explicita uma decisão da Suprema Corte que permite que até mesmo um cidadão
americano possa ser detido por tempo indefinido e sem julgamento caso seja considerado um ―extremista
doméstico‖, forma mais amena de chamar a seu próprio povo de terrorista. Como já exposto no trecho em que
tratamos de Carl Schmitt, a lei americana é vaga, servindo à vontade do soberano. Disponível em
<https://www.conjur.com.br/2014-mai-02/militares-podem-prender-cidadaos-americanos-processo-tempo-
indefinido> Acesso em 01/02/2019.
78
Roberta Duboc Pedrinha, no artigo intitulado ―Análise da gestão da segurança pública no Rio de Janeiro à luz
de Agamben‖ trata da legitimação do direito penal do inimigo pelas agências de segurança pública, bem como a
teorização do homo sacer na política do Rio de Janeiro. Ressalte-se que, em 2007 ela coordenava a Comissão de
Direitos Humanos e Assistência Jurídica da OAB/RJ quando houve uma chacina de 19 pessoas no Complexo do
Alemão. A autora da presente tese também compunha tal Comissão. A fim de não sermos coniventes com a
necropolítica ali presenciada todos os membros da CDHAJ renunciaram a seus cargos como ato político de
repúdio ao poder soberano da ocasião. Tendo esse ato sido reconhecido com a entrega da Medalha Chico
Mendes de Resistência pelo Grupo Tortura Nunca Mais - GTNM/RJ. Esse fato é narrado com riqueza na obra
Criminologia, segurança pública e direitos humanos: um estudo sociológico-criminal das violações e
resistências: o caso alemão (2018) fruto do doutoramento de Roberta Duboc Pedrinha.
120

4. INVERTENDO O OLHAR: RECONHECENDO A NECESSIDADE DE SE


PESQUISAR “AO CONTRÁRIO”: A COMPREENSÃO DO ENCARCERAMENTO
BRASILEIRO PELA DECOLONIALIDADE79

Eu tive uma namorada que via errado. O que ela via não era uma garça na beira do
rio. O que ela via era um rio na beira de uma garça. Ela despraticava as normas.
Dizia que seu avesso era mais visível do que um poste. Com ela as coisas tinham
que mudar de comportamento. Aliás, a moça me contou uma vez que tinha
encontros diários com suas contradições. Acho que essa frequência nos
desencontros ajudava o seu ver oblíquo. Falou por acréscimo que ela não
contemplava as paisagens. Que eram as paisagens que a contemplavam. Chegou de
ir no oculista. Não era um defeito físico falou o diagnóstico. Induziu que poderia ser
uma disfunção da alma. Mas ela falou que a ciência não tem lógica. Porque viver
não tem lógica – como diria nossa Lispector. Veja isto: Rimbaud botou a beleza nos
olhos e viu que a beleza é amarga. Tem Lógica? Também ela quis trocar por duas
andorinhas os urubus que avoavam no Ocaso de seu avô. O Ocaso do seu avô tinha
virado uma praga de urubu. Ela queria trocar porque as andorinhas eram
amoráveis e os urubus eram carniceiros. Ela não tinha certeza se essa troca podia
ser feita. O pai falou que verbalmente podia. Que era só despraticar as normas.
Achei certo.
Manoel de Barros

Inicialmente a pesquisa visava observar a governamentalidade e as noções de


biopolítica e tanatopolítica com amparo conceitual em Michel Foucault (2008) e Giorgio
Agamben (2004, 2014).
Contudo, tanto na análise acerca do encarceramento (INFOPEN, 2016) quanto na
análise acerca dos autos de resistência (VERANI, 1996; ZACCONE, 2015; PINTO; 2018),
tornou-se impossível não trazer as questões relativas ao racismo presentes na História e na
memória do país, principalmente aquelas versões subterrâneas, não oficiais, oprimidas,
considerando as características de nossa colonização:
A Colonização é um dos capítulos da historia da humanidade em que a
epistemologia tem progressivamente se colocado à sombra da deontologia e
tende cada vez mais a mergulhar num oceano de escuridão cognoscente.
Grande parte do que se estudou, do que se escreveu e do que se acreditou ser
a verdade sobre esse período não tem sustentabilidade nos fatos para se
manter como ciência ou como conhecimento científico (DIAS, 2016, p. 05)

Essa compreensão do passado é necessária para o futuro e, tanto a História Oficial,


quanto a memória, são objetos de escolhas comumente feitas pela fala do opressor. O que as
diferencia são:
A memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela
está em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do
esquecimento, [...] A história é a reconstrução sempre problemática e

79
Opto pelo uso do termo ―decolonial‖, sem o ―s‖ para evitar confusão com a ideia de ―descolonizar‖, já que a
ideia não é de reverter o que já está posto, mas sim trazer um movimento contínuo de olhar de outra posição, a
da epistemologia do sul, com a permanente intenção de despraticar as normas na escrita da História. Não há
como voltar no tempo, mas há como compreender os fatos de maneira diferente, ouvindo os oprimidos.
121

incompleta do que não existe mais. A memória é um fenômeno sempre atual,


um elo vivido no eterno presente; a história, uma representação do passado
[...] A memória emerge de um grupo que ela une, o que quer dizer, como
Halbwachs o fez, que há tantas memórias quantos grupos existem; que ela é,
por natureza, múltipla e desacelerada, coletiva, plural e individualizada. A
história ao contrário, pertence a todos e a ninguém, o que lhe dá uma
vocação para o universal. A memória se enraíza no concreto, no espaço, no
gesto, na imagem, no objeto. A história só se liga às continuidades
temporais, às evoluções e às relações das coisas. A memória é um absoluto e
a história só conhece o relativo (NORA, 1993, p. 09)

Michel Pollak entendia que privilegiando a análise das memórias de atores


marginalizados, excluídos, haveria o surgimento de memórias subterrâneas, evidenciando o
caráter opressor da memória oficial. Essa memória subterrânea seria uma forma de reabilitar a
periferia e a marginalidade, ressaltando que essa memória oficial para esses grupos
marginalizados nada teria de adesão afetiva, ao contrário, tal memória teria sido imposta
através da opressão (POLLAK 1989 apud CARDOSO, 2008).
Considerando a enorme dificuldade que o Brasil tem em lidar com o próprio passado,
não tendo havido uma discussão avançada acerca da reparação que deveria ser feita em
relação aos negros, que fica evidente ainda mais com a permanência de uma política de
exclusão que reflete na população marginalizada que é morta ou que é encarcerada.
Foi essencial trazer para a tese também o estudo acerca do racismo estrutural
(ALMEIDA, 2018 e BORGES, 2018), do racismo interseccional (CRENSHAW, 2004) e do
pensamento liberal brasileiro operando simultaneamente com a questão da escravidão (PENA,
2001 e PIRES, 2013).
O passado permanece presente na memória coletiva das classes e das
comunidades étnicas: a tradição dos vencedores e a tradição dos oprimidos
se opõem inevitavelmente. Durante séculos, a história ―oficial‖ da
descoberta da conquista e da evangelização não foi só dominante, como
também praticamente a única a ocupar o cenário político e cultural (LÖWY,
2011, p. 26)

Apenas dessa maneira entendo ser mais viável a compreensão da noção foucaultiana
de governamentalidade, num país que vivenciou 388 anos de exploração de indivíduos
arrancados de suas origens, cujo papel de coisa a ser explorada foi se remodelando século
após século, até chegar ao ponto em que, não mais servindo ao sistema capitalista (DUARTE
e CARVALHO, 2017), ingressariam na ―máquina de moer gente‖, que é o sistema punitivo
cuja ―exceção da exceção‖ vive (ou sobrevive) enclausurada, quando não assassinada80, pelas

80
Aqui ressaltamos novamente a pesquisa de Anna Carolina Cunha Pinto Da bio à tanatopolítica: extermínio e
seletividade do direito à vida da juventude negra, pobre e periférica da cidade do Rio de Janeiro, cujo mestrado
pude acompanhar no PPGSD. Algumas vezes conversamos sobre a obra O que resta de Auschwitz de Giorgio
122

mãos do Estado, anteriormente colonizador (ou conquistador – jamais descobridor), e que


sempre situou quem seriam os sujeitos matáveis.
Considerando que Michel Foucault tratava do fascismo europeu, seria inadequado que
apenas fosse feita a transposição de suas ideias eurocêntricas para a nossa realidade, já que
completamente diversa.
Daí a necessidade da utilização de um repertório teórico mais amplo, partindo de um
olhar epistemológico do sul (SOUSA SANTOS e MENESES, 2009) para realizar, aí sim, uma
aproximação com a já conhecida episteme europeia, sem prejuízo de uma bibliografia
relacionada às questões urbanas (NEDER, 1995 e 1997) e à criminologia crítica
(ZAFFARONI, 2014).
Por isso, fiz esse giro, a fim de estabelecer uma nova rota através de um olhar não
eurocêntrico, sem, contudo, querer descartar todas as contribuições do olhar que
originalmente me moldou.

4.1. Explicando a história contada a contrapelos: epistemologia do oprimido

Para Walter Benjamin ―A tradição dos oprimidos nos ensina que o estado de exceção
(Ausnahmezustand) em que vivemos é a regra‖, segundo ele, considerando que a empatia com
o vencedor traz benefícios aos dominadores – vale lembrar que é dele a contundente frase
―nunca houve um documento da cultura que não fosse simultaneamente um documento da
barbárie‖ - é importante desviar-se desse processo de aderir à história dos vencedores – sendo
assim, É de Walter Benjamin a proposta que a tarefa seria a de escovar a história a contrapelo,
observando o passado para que este seja citável, redimindo assim a humanidade81
(BENJAMIN, 2012, pp. 242-245).

Agamben (2008) e sobre a obra Os afogados e os Sobreviventes de Primo Levi, e observávamos que, se nosso
estudo fosse o nazismo, ela estaria falando dos mortos nas câmaras de gás, enquanto eu estaria falando dos
sobreviventes do Holocausto, como o próprio Primo Levi (2004) que testemunhou o indizível. Em parceria de
pesquisa apresentamos o trabalho Despraticando as normas: Encarceramento em massa e genocídio sob uma
ótica de exceção não eurocêntrica no III Seminário Internacional Pós-Colonialismo, Pensamento Descolonial e
Direitos Humanos na América Latina em 2018.
81
O Estudo aprofundado de Walter Benjamin nunca esteve nos meus planos, embora ele já tenha passado por
mim durante o mestrado em Memória Social (UNIRIO). Vejo muita relação entre os estudos lá realizados
através da metodologia da História Oral na construção da memória e na desconstrução da História Oficial. Noto
que isso se relaciona com a proposta benjaminiana de escovar a contrapelos, de inverter o olhar, de despraticar as
normas e, por que não - decolonizar?
123

Ora, meu pensamento vai ao encontro da fala de Marcelo Dias, quando este afirma que
destruir a continuidade histórica oficial é imprescindível para desconstruir aquilo que sempre
serviu de base para justificar a superioridade do opressor. Isso principalmente considerando a
realidade brasileira de praticamente quatro séculos de trabalho escravo: ―do século XVI, com
a escravidão africana e indígena, e do século XVII ao século XIX, com a escravização de
pessoas negras e origem africana‖ (DIAS, 2016, p. 01)
Michael Löwy, sociólogo brasileiro estudioso do marxismo, traz, através de sua
interpretação que:
A história deve ser escovada a contrapelos. A história da cultura como tal é
abandonada: ela deve ser integrada à história da luta de classes (...) O
historicismo cultural se identifica empaticamente (Einfühlung) (...) Ele
celebra as culturas dos senhores do passado e do presente. Elogiando as
classes dirigentes e lhe rendendo homenagens, ele as confere ―herdeiras‖ da
cultura passada (...) À medida que o diabo é o senhor do sucesso e do
progresso, a verdadeira virtude consiste em se opor à tirania do real
(Tyrannei des Wirklichen), em ―nadar contra as ondas da história‖
(BENJAMIN, 1981, p. 1240 apud LÖWY, 2011, pp. 21-22)

Assim, tanto a história oficial, quanto a memória merecem ser observadas através do
olhar daquele que foi oprimido, pois a versão do opressor é a que se torna oficialmente
conhecida. Isso se dá não só com a história e a memória, mas também com a cultura de um
povo e neste sentido, a ideia benjaminiana de escovar a história a contrapelo, ou, contá-la a
contrapelo, é justamente este ato de afastar-se do relato oficial. É o colocar-se à margem com
um ―olhar distanciado‖, situando-se ―do lado dos vencidos, judeus, párias, escravos,
camponeses, mulheres, proletários‖ (BENJAMIN, 1981 apud LÖWY, 2011, p. 23).
De certa forma, assim que tive meu primeiro contato com a visão decolonial, lembrei-
me justamente da fala de Walter Benjamin, bem como das discussões acerca da construção da
memória vistas já há muito tempo por ocasião de meu mestrado e notei que pontes poderiam
ser feitas entre esses saberes82. Conforme Boaventura de Souza Santos e Maria Paula de
Meneses, organizadores da obra Epistemologias do Sul (2009) a produção do conhecimento
cientifico utilizou ao longo da história um único modelo epistemológico compreendido como
válido cientificamente, esse modelo é aquele articulado pelo norte, notadamente o europeu
colonizador. Por causa disso, a expressão ―epistemologias do Sul‖, além de trazer todas as
faces desse mosaico cultural que é o mundo, também significa:

82
Gosto de observar como o processo de elaboração da tese, fez comigo uma viagem continental: comecei na
Itália, cruzei Alemanha e França, passei por Portugal, olhei para baixo e vi a África, olhei para frente e vi o
Atlântico. Percebi-me latino-americana pertencente a um espaço histórico colonizado cujas veias, ainda abertas,
sangram. Me junto àqueles com quem me identifico esperando que me reconheçam como aliada.
124

Uma metáfora do sofrimento, da exclusão e do silenciamento de povos e


culturas que, ao longo da História, foram dominados pelo capitalismo e
colonialismo. Colonialismo que imprimiu uma dinâmica histórica de
dominação política e cultural submetendo à sua visão etnocêntrica o
conhecimento do mundo, o sentido da vida e das práticas sociais (SOUSA
SANTOS e MENESES, 2009, p.183)

Segundo essa premissa, inconscientemente os oprimidos se moldam aos costumes dos


opressores obstaculizando o pensamento plural e crítico. Boaventura de Sousa Santos
(SOUSA SANTOS e MENESES, 2009, p.184) aborda o pensamento abissal, explicando que
de um lado está o Norte imperial, colonial e neocolonial e de outro o Sul colonizado,
silenciado e oprimido, e que esse pensamento abissal significa a impossibilidade da presença
simultânea entre os dois lados dessa linha.
O legal e o ilegal são as duas únicas formas relevantes de existência perante
a lei, e, por esta razão, a distinção entre ambos é uma distinção universal.
Esta dicotomia central deixa de fora todo um território social onde ela seria
impensável como princípio organizador, isto é, o território sem lei, fora da
lei, o território do a-legal, ou mesmo do legal e ilegal de acordo com
direitos não oficialmente reconhecidos (...). Tudo o que não pudesse ser
pensado em termos de verdadeiro ou falso, de legal ou ilegal, ocorria na
zona colonial (SOUSA SANTOS, 2010, p.26) (Grifos meus)

Ao confrontar o saber vindo do Norte com a multiplicidade de saberes do Sul,


reconhece-se, em primeiro lugar, o cruzamento de diversos saberes e culturas dos oprimidos
e, em segundo lugar, nega-se a ideia de uma única episteme (que seria aquela construída pelo
opressor, paralela à História Oficial).
Enzo Bello, no texto O pensamento descolonial e o modelo de cidadania do novo
constitucionalismo latino-americano (2015), explica que no final da década de noventa, um
grupo do qual Boaventura de Sousa Santos fazia parte, mas que era predominantemente
formado por acadêmicos latino-americanos, criou um projeto chamado Modernidade e
Colonialidade (M&C)83 que tinha por objetivo ―compreender o modo eurocêntrico de pensar
o mundo e o conhecimento, para então pensar e promover, de um ponto de vista externo esse
conhecimento‖.
O principal referencial teórico-metodológico do pensamento decolonial, segundo Enzo
Bello (2015, p. 50) é formado pelos autores: Aníbal Quijano (peruano), Frantz Fanon
(martinicano), Ramón Grosfoguel (porto-riquenho) e Walter Mignolo (argentino). A proposta
era de que pudessem trabalhar de maneira transdisciplinar, observando a América Latina

83
Os textos originários mais utilizados pelo grupo são os de Aníbal Quijano e Frantz Fanon, que,
respectivamente, apresentaram os referenciais da colonialidade do poder e da raça como critério fundamental de
construção do modelo do ―Ocidente‖, também chamado de sistema mundo moderno/colonial/global/patriarcal
(BELLO, 2015, p. 52)
125

como espaço epistemológico, alternando conceitos já enraizados eurocentricamente e, por


fim, assumindo suas posições políticas enquanto acadêmicos (2015, pp. 51-52).
A epistemologia do norte passa a ser rotulada de modelo colonial de formação
acadêmica. Ela estrutura seu poder e sua dominação pela desculturação e reculturação
hierarquizando a cultura através do critério racial.
Assim, quem não atendia ao padrão europeu já poderia ser considerado irracional,
portanto, passível de dominação (BELLO, 2015, p. 53). Essa visão é bastante complexa, pois
faz com que a identidade americana seja sempre considerada inferior e por isso, há essa
importância de se fazer o giro decolonial visando a liberação do conhecimento, conforme
sugeriu Walter Mignolo:
O exemplo por ele dado é o do conceito de ―emancipação‖. Como estas
noções não foram formuladas vislumbrando questões tipicamente latino-
americanas, propõe que seja adotada a expressão ―liberação‖. Com isso,
Mignolo quer instaurar uma ―desobediência epistêmica‖, que permita pensar
processos de superação das opressões sofridas pelos sujeitos colonizados e
seus saberes ofuscados, a partir do seu local de fala específico (MIGNOLO,
2010, pp. 95-97 apud BELLO, 2015, p. 54)

Dentro dessa desobediência epistêmica vejo a contribuição de Abdias Nascimento,


teórico negro brasileiro, que, ao trazer a visão do oprimido, desse local de fala emudecido,
rompe com a tradição (gerando com isso outra episteme) e emancipa a si e a tantos outros de
semelhante posição fronteiriça. Até porque se a modernidade é o sinônimo de progresso, ela
logo se revelaria hierarquicamente superior a todos que estão fora desse contexto e que
ficariam, portanto, em posição marginal, sendo visto como o Outro.
A ―colonialidade‖ expressa mais do que uma violência física do passado. Ela
inclui a violência simbólica que produz uma clausura da memória coletiva à
compreensão desse ato de violência. Tal fechamento não se apoia apenas na
imagem da Modernidade universal (o estereótipo do ―europeu‖ local que foi
universalizado), mas também na construção de discursos sobre a diferença
constitutiva do ―Outro‖. Discursos que passam a ser não somente dos
europeus, mas do próprio colonizado (DUARTE, 2017, p. 124)

Abdias Nascimento liberta, ultrapassa essa fronteira e segue ―em direção à


encruzilhada, espaço hibrido por natureza, de cruzamento, de saídas e chegadas, um lugar de
cruzamento de fronteiras, do vazio produtivo, do nada.‖ (KAWAHALA e GÓES, 2017, pp.
02-03).
Ocorre que é nesse nada, na zona colonial, do a-legal, que Edelu Kawahala, numa
representação da resistência negra diaspórica, surge com a proposta da ―epistemologia de
Exu‖, afirmando ser essencial que haja uma revisão epistemológica ―percebendo a realidade
brasileira, especificamente, a das periferias, onde as intersecções entre classe gênero e raça
126

são mais evidentes e determinantes dos lugares sociais‖ (KAWAHALA, ano, p. 59). Ela
propõe basicamente que esse escovar ao contrário venha, ainda que ―bagunçando tudo por
algum tempo‖, venha a reorganizar a produção do conhecimento nos países periféricos, sendo
verdadeira estratégia de superação da opressão.
Pretende-se que esse saber construído pelo olhar do oprimido, do homo sacer,
afastando-se do ―homem médio‖ do Direito, do ser humano universal cujo modelo é ser:
homem branco, cisgênero, heterossexual, europeu e cristão contribua para uma sociedade
capaz de transpor as consequências da América colonizada.
Muitos pesquisadores das mais diversas áreas do conhecimento têm
mapeado e sistematizado as principais contribuições teóricas, metodológicas
e conceituais de autores ainda pouco conhecidos, especialmente no âmbito
do Direito, em razão da sua marginalidade em relação aos pilares
referenciais do pensamento moderno (...) há algumas décadas, pensadores
latino-americanos, africanos e asiáticos têm buscado compreender esses
elementos a partir de lentes teóricas e conceituais próprias, calcadas nas suas
ancestralidades e culturas (BELLO, 2015, p. 50)

Não há definitivamente como pensar a sociedade brasileira sem pensar nas relações
raciais, menos ainda pensar a segurança pública sem o reconhecimento das interseções de raça
e gênero (CRENSHAW, 2004) e nesse sentido o conhecimento acadêmico pode ser criado a
partir dos espaços de resistência historicamente inferiorizados e estigmatizados. Afinal é:
A multiplicidade de saberes possibilita a superação do paradigma
universalista, tradicionalmente eurocêntrico e colonialista, pensar, portanto a
produção do conhecimento a partir da tradução cultural implica, sobretudo,
num trabalho político de descolonização do saber (KAWAHALA e GÓES,
2017, p. 02)

A ―descolorização‖ de pessoas negras, por sua vez, serviu como argumento para uma
igualdade inexistente. O apagamento da cultura originária faz parte da estratégia de
dominação. Especificamente no caso brasileiro, ao contrário do que ocorreu nos Estados
Unidos da América, houve um processo de branqueamento através da miscigenação. Através
da ideia de uma suposta superioridade branca, supunha-se que a mistura ―racial‖ tornasse a
população cada vez mais clara, apagando os ―defeitos inerentes às pessoas de cor‖. Sendo
assim, a mistura ―não produzia inevitavelmente ‗degenerados‘, mas uma população mestiça
sadia capaz de tornar-se sempre mais branca, tanto cultural quanto fisicamente‖
(SKIDMORE,1976, p. 81).
Basicamente, acreditava-se que os negros do Brasil seriam ―absorvidos‖ pelos brancos
– ou seja, um projeto de eliminação - e isso seria auxiliado pela enorme imigração europeia
fomentada em nosso país.
127

A tese do ―branqueamento‖ oferecia aos brasileiros uma explicação para o


que acreditavam estar, já em curso. Tomavam de empréstimo a teoria racista
da Europa e, em seguida, descartavam duas de suas principais presunções: o
caráter inato das diferenças raciais e a degenerescência dos sangues mestiços
– a fim de formular sua própria solução do ―problema negro‖
(SKIDMORE,1976, p. 94)

Esse era o pensamento da elite brasileira logo após a abolição (entre 1889 e 1914).
Não obstante, o maior seguidor de Cesare Lombroso, o maranhense Nina Rodrigues (1862-
1906), acreditava que essa teoria não alcançaria êxito no país (SKIDMORE,1976, p. 94)
No Brasil, a teoria social-etiológica lombrosiana, que vinculou de modo
indissolúvel, o negro ao criminoso, encontrou um campo fértil para sua
proliferação, resultando em inúmeras traduções mesmo antes da abolição da
escravatura quando o medo branco, da perda de sua hegemonia absoluta nos
espaços físicos, políticos e sociais, e da desestruturação da ordem social
fundante de uma nação excludente, se agigantava e mais ainda no pós-
abolição, quando o controle racial em termos preventivos acauteladores e de
monitoramento constante se fez imprescindível (GÓES, 2016, p.145)

Dentro dessa perspectiva Bartolomé de Las Casas (2001) já nos traz uma primeira
―contra epistemologia‖, pois ao fazer sua narrativa sob o olhar das populações originárias
oprimidas pelos espanhóis, ele já demonstrou onde era o Lager e quem eram os homo sacer.
Esse olhar para trás também aparece na análise de Eugênio Raul Zaffaroni acerca do poder
punitivo usado na periferia colonializada:
Nas sociedades colonizadas o poder punitivo ou repressor foi empregado
para convertê-las em imensos campos de concentração para os nativos (dado
que todos eram considerados biologicamente inferiores). O desavergonhado
lema escrito sobre as portas dos campos de concentração – O trabalho liberta
(Arbeit macht frei) – era uma síntese grosseira das premissas colonialistas:
os colonizados deviam trabalhar e submeter-se para aprender a serem livres
(ZAFFARONI, 2014 pp.46-47)

Isso também fica contundente na fala de Marcelo Dias: ―A destruição de vidas


africanas e simultaneamente de vidas indígenas foi em tal proporção e velocidade, que ainda
nos nossos dias não há critério de cálculos que possa nos colocar diante de números ao menos
aproximados‖ (DIAS, 2016, p. 40)
Não havia muro, mas havia um oceano, que ao ser ultrapassado, autorizava a conditio
inhumana, não sendo necessário o auxílio das lições de Günther Jacobs e Manuel Cancio
Meliá (2009) para apontar a construção do inimigo. A exceção aqui já estava posta naqueles
desumanizados, viventes nus originários ou homens mercadorias escravizados e desalmados
portadores apenas de sua vida biológica, de sua vida nua.
Os índios e os negros seriam, para as ―minorias ilustradas‖, nossos primeiros
delinquentes. Os índios cometeriam delitos devido ao seu atraso e
ignorância, segundo os ―especialistas‖ da época, em razão de características
128

congênitas que os impediam de se superar, e não à exploração de que haviam


sido objeto durante séculos (...). O mesmo ocorria com os negros, que além
disso foram objeto de atenção especial – de parte sobretudo dos médicos
legalistas – por praticarem suas religiões trazidas da África, consideradas
sintomas de patologia e expressão de bruxaria fomentadora da delinquência
(DEL OLMO, 2004, p. 175 apud GÓES, 2016, p.136)

Neste sentido, do lado de cá do Atlântico, a construção do inimigo já era previsível


antes mesmo do Brasil ser ocupado pelos Portugueses, uma vez que estes já se utilizavam da
escravidão negra para o enriquecimento de sua nação. Luciano Góes esclarece que as
primeiras pessoas escravizadas trazidas da África para Portugal foram desembarcadas em
144384, com a chancela da Igreja Católica, que repartia o lucro desse negócio através de bulas
papais. E que no Brasil os primeiros chegaram em 1516 para a extração de pau-brasil (2016,
pp. 149-151)
Portugal monopolizava o comércio de pessoas escravizadas na África, tornando tal
atividade com características empresariais, sequer havendo a necessidade de contagem desses
semoventes por números, mas sim por peso, como hoje se conta gado. No Brasil, conforme
Abdias Nascimento:
Por volta de 1530, os africanos, trazidos sob correntes, já aparecem
exercendo seu papel de força de trabalho; em 1535 o comércio escravo para
o Brasil estava regularmente constituído e organizado, e aumentaria em
proporções enormes (...) O africano escravizado construiu as fundações da
nova sociedade com a flexão e a quebra da sua espinha dorsal, quando ao
mesmo tempo seu trabalho significava a própria espinha dorsal daquela
colônia. Ele plantou alimentou e colheu a riqueza material do país para o
desfrute exclusivo da aristocracia branca (NASCIMENTO, 2016, pp. 57-59)

A impregnação de tal discurso é tão presente, que na onda de retrocessos da atual


política, não surpreende a fala racista de Jair Messias Bolsonaro, ainda durante o período de
sua campanha presidencial, quando afirmou em palestra: ―Eu fui num quilombo, o
afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada! Eu acho que nem para
procriador ele serve mais‖85.
Ou seja, quem hoje ocupa o mais alto cargo da nação em sua fala explicita todo o seu
racismo ao enxergar o negro como corpo colonizado, objetificado, explorado. Vale observar
que Jair Messias Bolsonaro sempre negou seu racismo apropriando-se da ideia de que há uma

84
Há divergência: segundo o Manual Jurídico da Escravidão de André Barreto Campello (2018), o primeiro
desembarque de quarenta escravos oriundos da África ocidental para terras portuguesas teria ocorrido um ano
antes, 1442. Idem em Agostinho Marques Perdigão Malheiro (1867, p. 02)
85
Disponível em: < https://veja.abril.com.br/brasil/bolsonaro-e-acusado-de-racismo-por-frase-em-palestra-na-
hebraica/>. Acesso em: 05/05/2019.
129

democracia racial no Brasil e que tudo em oposição a isso pode ser lido como vitimismo86.
Vera Malaguti Batista, com o olhar do Sul marginal, já havia afirmado:
Nós, na nossa margem, conhecemos essa empreitada, o imenso genocídio
iniciado na colonização, aprofundado no escravismo e eternizado pelo
capital. São as nossas veias abertas, homens animais, mercadorias ou
mercadorias animais. Está lá, em Galeano e em Darcy Ribeiro: a cada ciclo
econômico da colonização corresponde um moinho de gastar gente
(MALAGUTI BATISTA, 2011, p. 33)

A autora questiona a interiorização epistêmica do pensamento positivista, que fez com


que a América Latina se tornasse um gigantesco Lager concentrador de degenerados e
indesejáveis (MALAGUTI BATISTA, 2011, p. 46).
As práticas de seleção, identificação e condução dos escravos desde seu
primeiro ponto da África até a fazenda e daí em diante, era um verdadeiro
TRIBUTO AO SADISMO, com requintes de fazer corar de vergonha a
Himmler, Goebels, Mengele e seus carcereiros de Treblinka, fazendo o II
Reich parecer uma reunião de escoteiros diante do que acontecia no litoral
africano. À medida que os escravos chegam, vindos das terras interiores, são
postos todos numa cabana ou prisão, construída para esse fim, perto da praia;
e quando os europeus (nós) estão prontos para receber, são trazidos para um
terreiro amplo, onde os médicos a bordo, examinam minuciosamente os
homens e mulheres, os quais estão completamente nus. Aqueles que são
considerados em boa condição física são mandados para um lado, e os outros
separados (...) às vezes, a cada rejeição por parte do europeu, (nós) o
rejeitado é imediatamente morto pelo mercador africano que, irritado por ter
um produto seu recusado, às vezes oferece-o gratuitamente, apenas para não
adquirir fama de vendedor de produto estragado; se recusamos aceitar o
escravo, a título de presente, ele mata-o, para caracterizar que o mau produto
não existiu. Depois de aqueles terem sido assim aprovados e separados, cada
um dos outros, é marcado no peito com um ferro em brasa, recebendo o
estigma das companhias francesas, inglesas, espanholas ou portuguesas, para
que cada uma dessas nações possa distinguir os seus (FONSECA JR., 1988,
p. 103).

Segundo André Barreto Campello, o alvará de 1813 que regulava o transporte de um


navio negreiro (tumbeiro) previa que, em prol da saúde ficava proibida a marcação dos negros
escravos com ferro quente, por afrontar o sentimento de humanidade, devendo tal marca ser
substituída por uma manilha ou coleira, aí sim com a referida marca (CAMPELLO, 2018, p.
78)
O que se evidencia, de todo modo, é que essa apropriação do pensamento científico
europeu, no pensamento de Boaventura de Sousa Santos, permitiu a permanência estrutural da

86
Também durante à apresentadora Luciana Gimenez, da Rede TV, o presidente Jair Bolsonaro se referiu de
maneira chula à discriminação racial: "Essa questão de racismo, no Brasil é coisa rara o racismo. O tempo todo
jogar negro contra branco, homo contra hétero, pai contra filho. Desculpe o linguajar como presidente da
República, já encheu o saco isso aí, encheu o saco", disse. Disponível em:
https://www.brasil247.com/pt/247/midiatech/392734/%E2%80%9CEsse-neg%C3%B3cio-de-racismo-
j%C3%A1-encheu-o-saco%E2%80%9D-diz-Bolsonaro.htm> Acesso em:07/05/2019.
130

desigualdade, ao mesmo tempo em que se propagandeou o ideal igualitário da República. É


fato que:
O colonial constitui o grau zero a partir do qual são construídas as modernas
concepções de conhecimento e direito. As teorias do contrato social dos
séculos XVII e XVIII são tão importantes pelo que dizem como pelo que
silenciam. O que dizem é que os indivíduos modernos, ou seja, os homens
metropolitanos, entram no contrato social abandonando o estado de natureza
para formarem a sociedade civil. O que silenciam é que, desta forma, se
cria uma vasta região do mundo em estado de natureza, um estado de
natureza a que são condenados milhões de seres humanos sem
quaisquer possibilidades de escaparem por via da criação de uma
sociedade civil (SOUSA SANTOS, 2010, p. 28) (Grifos meus)

O olhar decolonial deste autor traz uma explicação de mais fácil compreensão da
permanência da ausência de humanidade daqueles que sempre foram os indesejáveis como
candidatos à inclusão social. O uso da história pela cópia, da história pelo centro do mundo
acaba por criar ―uma percepção falsificada da realidade concreta, que corresponde a um mito
que informa interesses específicos de práticas sociais de determinadas classes sociais‖
(CERQUEIRA FILHO e NEDER, 1987, pp. 11-52)
Evandro Piza Duarte, no texto Ensaio sobre a hipótese colonial, traz uma frase
contundente: ―A história pela cópia recusa o descentramento, pois se vê pelo espelho do
centro e se autocompreende como secundária‖ (CARVALHO; DUARTE, 2017, p. 91).
É preciso entender a própria Europa para que seja possível nos enxergar de nosso
próprio lugar, pois se tivemos a marca de sermos ―selvagens‖ em oposição a eles ditos
―civilizados‖, a imposição deles sobre nós sempre fará sentido dentro do caráter oficial.
Evandro Piza Duarte sugere que as permanências existentes no controle social hoje
vivido no Brasil podem ser entendidas pela própria história do racismo e que a ―hipótese
colonial‖, faria parte dessa construção do corpo negro como espaço de repressão, cuja cultura
jurídica não alcança (ou não quer alcançar) em termos de atuação policial: ―Esse processo
permite, paradoxalmente, que lentamente se produzam dois artefatos conceituais resultantes
de duas práticas da Modernidade: o indivíduo e a raça‖ (DUARTE, 2017, p. 124)
A teoria das raças, portanto, não criou as hierarquias raciais do colonialismo.
Em vez disso, organizou sua defesa como teoria política referente à
nacionalidade e cidadania, tornando-se matriz do Estado Autoritário nos
novos países independentes; orientou o Imperialismo dos países centrais e a
aliança com as elites locais; e, ao mesmo tempo, especializou-se como
discurso sobre o controle social, ou seja, deu origem à criminologia
(DUARTE, 2017, p. 155)

No caso brasileiro, atrelada à questão prisional, que é evidentemente intersecionada


pelo racismo estrutural, nota-se que o negro já teve utilidade como semovente para a
131

construção a acumulação da riqueza colonial, mas que hoje, esses ―Outros‖ vistos como
indesejáveis não têm mais função sequer como exército de reserva.
Merece destacar que esse escravo da modernidade, incluído no mercado como coisa,
difere das formas tradicionais de escravidão. Esvaziados de humanidade, tornam-se visíveis
apenas pelo medo, pela morte, pela prisão em conformidade com a necropolítica de Achille
Mbembe (2018).
A captura, a venda pública, o navio negreiro, a expatriação, a convivência
com desconhecidos em cultura e língua, os mecanismos de coerção e
violência foram imprescindíveis para a invenção moderna de um corpo em
que se pretendia reduzir a força de trabalho (DUARTE, 2017, p. 158)

As permanências dessas ideias são gritantes e, aparentemente, todas as vezes em que


se perturba essa estrutura de base racista, como, por exemplo, com a política de cotas
raciais87, o discurso da igualdade, da democracia racial vem à tona para desfazer o ―mal
entendido‖, afinal somos todos iguais.
A juventude negra no Brasil República continuou a ser olhada com aqueles
olhos do colonizador. A violência e o extermínio de jovens e crianças negras
mudaram de forma, mas nunca deixaram de existir (...) O mito da
democracia racial foi uma tentativa de construir um Brasil da alta
modernidade desconhecendo essa presença de afrodescendentes (DIAS,
2016, p. 39)

Tanto a venezuelana Lola Aniyar de Castro (2005, pp. 128-132) quanto o argentino
Eugênio Raul Zaffaroni (1993, p. 15) explicam como temos em operação dois sistemas: o
controle aparente e o controle subterrâneo:
O sistema subterrâneo opera nos diferentes níveis do sistema social. Isto é,
tanto nos mecanismos de controle formal como nos controle informal (...).
Em contrapartida, o sistema penal aparente criminaliza prioritariamente
condutas que são mais facilmente localizáveis no âmbito das classes
subalternas (...). No sistema penal subterrâneo há uma criminalização, de
fato, das dissidências ideológicas, operada pelos serviços de inteligência
policial que operam com uma certa discricionariedade, variável de acordo
com os diferentes regimes, e com uma autoridade sustentada na impunidade
de fato. As legislações contravencionais e de ―ordem pública‖, que são
fortemente seletivas (como as leis sobre drogas e álcool, prostituição,
vagabundagem, perturbação da ordem pública), assim como a ideologia da
―periculosidade ante-delictum‖, encaminham ao sistema penal aparente
membros das classes subalternas (desempregados e subempregados, isto é,
marginais, preferencialmente) (CASTRO, 2005, pp. 128-129) (Grifos meus)

87
O deputado estadual Rodrigo Amorim (PSL), que se tornou conhecido por quebrar uma placa de Marielle
Franco ao lado do atual governador Wilson Witzel, protocolou, no dia 06/05/2019, um projeto de lei que
pretende acabar com as cotas raciais em instituições públicas estaduais de ensino superior no Rio de Janeiro.
Disponível em:<https://extra.globo.com/noticias/deputado-que-quebrou-placa-de-marielle-quer-acabar-com-
cotas-raciais-nas-universidades-do-rio-23650916.html>. Acesso em 10/05/2019.
132

Eugênio Raul Zaffaroni explica que o sistema institucionalizado até hoje funciona com
agências que muitas vezes competem entre si. Diga-se de passagem, é notória a rivalidade
entre as polícias (ostensiva e investigativa), bem como entre a polícia investigativa e o
Ministério Público. O autor afirma também acerca da existência de um sistema penal paralelo,
subterrâneo88, mais discricionário e violento com condutas ilícitas e regulares.
Entendo ainda que não há óbice para que o atuar dos dois sistemas seja operado pela
mesma pessoa, como é o que ocorre nos chamados autos de resistência, posto que as mortes
são praticadas pelos braços armados do Estado89.
Em termos gerais, haveria um sistema penal de superfície, jurídico, legal,
igualitário, legitimado discursivamente, e um sistema penal policial, de
emergência, de exceção permanente, desigual, dos iniciados em suas regras,
sempre ocultadas no debate público (...) A hipótese de que o sistema jurídico
seria ―defeituoso‖ diante da realidade não explica as funções reais cumpridas
por esse sistema tal como se apresenta. O transito entre legalidade-
ilegalidade e público privado é constitutivo do modo de ação e das funções
cumpridas pelos sistemas penais latino americanos (CARVALHO;
DUARTE, 2017, pp. 96-97)

Não há falha, portanto, há sim o sistema operando como sempre operou, com funções
legítimas (para evitar a generalização), mas também com a função subterrânea
estruturalmente racista justificadora do atual quadro do sistema prisional, bem como tantos já
estudaram do genocídio da população negra e jovem.
No sistema penal aparente, a criminalização de indivíduos se produz como
efeito de condenação formal. No subterrâneo, existe uma criminalização
primária exercida através do estereótipo do delinquente (...). Outra forma
primária de criminalizar subterraneamente é através da manutenção da
marginalidade social, que priva as grandes massas de sua parcela de direitos
humanos individuais e sociais (CASTRO, 2005, p. 130) (Grifos meus)

Segundo Boaventura de Sousa Santos, ―a negação de uma parte da humanidade é


sacrificial, na medida em que constitui a condição para a outra parte da humanidade se
afirmar como universal‖ (2010, p. 28). Ele fala de Guantánamo como uma fratura, um não-

88
Percebi que aqui que se dava a minha maior dificuldade como professora, considerando que meu aprendizado
também foi a contrapelos, já que primeiro fui ao ―campo – presídio‖ tive o contato com os ―estranhos‖, encarei a
miséria do indizível e depois me apropriei do discurso teórico (que na atualidade está cada vez mais vazio). Nas
minhas aulas fazia o mesmo: apresentava o ―discurso oficial conteudista‖ como o capítulo 2 desta tese, mas
sempre levava junto o real e este machucava. Lembrei-me que antes da faculdade tive aula com um professor de
geografia política que em sua primeira aula colocou o mapa do Globo de cabeça para baixo e deu a aula inteira
desse jeito, eu fiquei fascinada: Oceania, África, América do Sul, tudo no topo, os explorados em cima, os
exploradores em baixo. Há aulas que marcam.
89
Quando ouvimos que a PMRJ é a que mais mata no mundo não é com base em achismos, é com base no que
gerou estatística. Não entram aí os casos de cifras ocultas justamente porque são ocultas, mas em relatos essas
mortes aparecem.
133

território em termos jurídicos e políticos, violador tanto de direitos humanos quanto de um


ideal democrático, sendo, portanto, paradigma do pensamento jurídico abissal.
O autor decolonial dá a entender, assim como Giorgio Agamben, que o Lager não
precisa de muros (ele pode ter muros como ocorre numa prisão), mas ele pode ser também
através de outras formas de discriminação, onde se colocam seres humanos como portadores
de vidas nuas, num gueto ―onde exploda a violência‖, ―em Trenchtown‖ ou ―na favela da
Maré‖, parafraseando a famosa música do grupo brasileiro Paralamas do Sucesso90.
Não à toa que Marcelo Dias afirma que a sociedade brasileira no período Imperial era
para os negros um cárcere a céu aberto e indica que, mesmo para os negros libertos, o modelo
colonial fazia com que ―as pessoas negras se sentissem num interminável campo de
concentração‖ (DIAS, 2016, pp. 78-80). Essa é a razão pela qual Boaventura de Sousa Santos
tanto interessa especialmente quando diz:
O meu argumento é que esta realidade é tão verdadeira hoje como era no
período colonial. O pensamento moderno ocidental continua a operar
mediante linhas abissais que dividem o mundo humano do sub-humano, de
tal forma que princípios da humanidade não são postos em causa por práticas
desumanas. As colônias representam um modelo de exclusão radical que
permanece actualmente no pensamento e práticas modernas ocidentais tal
como aconteceu no ciclo colonial (SOUSA SANTOS, 2010, p. 31)

E ele tem a mesma percepção de Giorgio Agamben ao afirmar que essa condição
excepcional se dá sem que haja a suspensão formal de direitos e garantias. É justamente a
ideia de que ―aquela situação é excepcional‖, que serve para justificar a sua própria regra:
―Direitos humanos são desta forma violados para poderem ser defendidos, a democracia é
destruída para garantir a sua salvaguarda, a vida é eliminada em nome da sua preservação‖
(SOUSA SANTOS, 2010, p. 36).
Boaventura de Sousa Santos apresenta sinteticamente três formas de fascismos
modernos. O primeiro: ―fascismo do apartheid social‖, onde a cartografia urbana aponta quais
áreas da cidade são as que seguirão o contrato social e quais são as consideradas ―selvagens‖
(ponto importantíssimo para a questão relacionada às vidas matáveis da periferia); o segundo,
o ―fascismo contratual‖, em que toca diretamente questões relativas aos direitos trabalhistas e
a privatização de serviços públicos essenciais; e, por derradeiro, o ―fascismo territorial‖, hoje
visto nas questões concernentes às populações indígenas, quilombolas e a movimentos sociais

90
―E a cidade / Que tem braços abertos num cartão-postal / Com os punhos fechados da vida real / lhes nega
oportunidades / Mostra a face dura do mal‖, é essa a cidade que tem a polícia que mais mata e que mais morre no
mundo. Cidade maravilha e purgatório de um dos países que mais aprisiona no mundo, como já visto no capítulo
acerca dos dados do sistema prisional.
134

como MST91 (Movimento Sem Terra) e MTST92 (Movimento de Trabalhadores Sem Teto),
afirmando ter convicção de estarmos vivendo um ―período em que as sociedades são
politicamente democráticas e socialmente fascistas‖ (SOUSA SANTOS, 2010, pp 37-39).
Para Lola Aniyar de Castro o estudo criminológico também deve levar em
consideração a realidade histórica e local, não devendo haver mera transposição de teorias
desenvolvidas na Europa ou nos Estados Unidos da América, uma vez que a criminologia é
legitimadora de controle social. Ela demonstra que a criminologia positivista é
verdadeiramente oriunda da ―escola clássica do direito penal, que fez a maior sistematização
controladora da ordem de que se tem memória no campo repressivo‖ (ANIYAR DE
CASTRO, 2005, p. 46) e, que, dentre suas técnicas, traria o uso do estereótipo do delinquente
como aquele sujeito de classe baixa (o que em nossa realidade histórica coincidiria com o
negro - tema que será melhor explorado adiante):
O estereótipo do delinquente (―igual à classe baixa delitiva‖) será
transmitido pelos portadores dos sistemas normativos: a Igreja, a família, a
literatura, os legisladores, os partidos, os sindicatos, a opinião pública,
através das chamadas teorias do senso comum (everyday theories) e também
pela mesma ciência que se apregoa objetiva neutra (ANIYAR DE CASTRO,
2005, pp. 47-48)

Ela afirma que houve o ―fracasso‖ na ressocialização apregoada pela criminologia


positivista, colocando aspas nesse ―fracasso‖, porque seu foco sempre foi o homem
delinquente quando deveriam ter ido além: nas estruturas, no exercício do poder, na reação
social, dentre outros fatores. Porém, de outro lado, sugere ter havido sucesso na empreitada se
considerarmos o cumprimento de seus fins implícitos:
Lograram cumprir seus fins implícitos: reproduzir o sistema de classes e
deixar a classe hegemônica de mãos livres para realizar seus objetivos
através da racionalidade do mercado; ratificas as teorias de senso comum, as
quais, ao separar as classes de delinquentes das classes não delinquentes,
consolidam a estratificação (ANIYAR DE CASTRO, 2005, pp. 48-49).

Hoje concordo com a visão de Lola Aniyar de Castro, no sentido de que o que temos
no sistema prisional atual é exatamente o que se quer ter no sistema prisional, mas antes já
acreditei também que esse malogro se dava porque o sistema estava falido, que era possível
com um ―bom presídio‖ se operar a ressocialização, bem como há muitos anos já acreditei nas
inúmeras desculpas para a realidade observada nas precárias e lotadas prisões brasileiras.

91
Disponível em: http://www.mst.org.br/ Acesso em: 24/02/2019.
92
Disponível em: <http://www.mtst.org > Acesso em: 24/02/2019.
135

Vejo o sucesso do modelo, enxergando que este, subterraneamente, visa exatamente à


permanência da exclusão, uma vez que o indesejado tem sido morto, desaparecido ou preso
com indubitável êxito. Destaco que:
O diferencial de Lola para a criminologia, na América Latina, consiste na
metodologia que exige construir-se em e para cada sociedade, em cada
momento histórico e em cada conjuntura específica. Afirma que: ―Apenas
uma criminologia desse tipo pode ser chamada, em nosso continente, de
latino-americana, por ter sido feita da América Latina para a América Latina
(...). A criminologia latino-americana é uma pesquisa sobre a realidade
sociopolítica do continente‖ (ANIYAR DE CASTRO, 1999 apud
SPONCHIADO e ALVES, 2016, p. 01)

De maneira precisa, ela explica que, quando os valores essenciais dos dominadores
correm risco, surge uma questão ―de ordem pública‖ e, portanto, de potencial criminalização
(ANIYAR DE CASTRO, 2005, pp. 41-66). Por essa razão, propôs em seus estudos fazer, na
América Latina, uma criminologia critica do controle social, permitindo sair do ponto de
repressão para uma criminologia da libertação.
Considerando a necessidade dessa contextualização histórica e local, senti a
necessidade desse olhar epistemológico do sul. Até mais que isso, por que não um olhar mais
palpável? Um olhar epistemológico do Brasil para o Brasil, da América-Latina para o Brasil,
da África para o Brasil. Uma episteme de dor (e resistência), que pela opressão secular não
pôde aparecer uma vez que ―a história dos afrodescendentes não é outra que a própria
Historia do Brasil nas páginas oficiais, entretanto ambas foram separadas uma da outra e
contadas apenas com os olhos e com as palavras do colonizador‖ (DIAS, 2016, p.37).
Evidentemente seria melhor que existissem categorias brasileiras, principalmente em
um momento político de extremo retrocesso e, por isso, conforme o poema supracitado: que
fosse possível transformar em andorinhas os urubus que hoje ainda sobrevoam essa
ancestralidade de seres humanos escravizados, corpos ainda supliciados, genocídios do
passado que ainda ocorrem no presente.

4.2. A criminalização do negro “esclarecida” com a criminalização da pobreza: “presos


são quase todos pretos, ou quase pretos, ou quase brancos quase pretos de tão pobres”

À semelhança do nazismo, o Império do Brasil foi um Estado autoritário,


que atribuía o destino das pessoas conforme a classificação racial em que
elas se encontravam (...) No caso de africanos e afrodescendentes, nunca
houve qualquer modalidade de reparação pelo Estado brasileiro (...)
Também esse processo igualmente violento demandou a força pública
136

do Estado para construir uma sociedade inclusiva, composta quase que


exclusivamente de pessoas brancas, importadas da Europa com o
proposito de substituírem pretos, pardos e indígenas nos papéis da sua
vida social. Aos substituídos restou a marginalização. Se no império a
ameaça era a pena de morte, ao longo da república houve uma transmutação
dessa ameaça para uma modalidade de morte sem pena (DIAS, 2016, p. 83)

É importante reconhecer como ocorreu a transformação do Brasil em relação à questão


racial e para isso utilizarei breves lições de Clóvis Moura (1994, pp. 50-82), para ele, houve
um primeiro momento que foi desde o período colonial até a extinção do tráfico internacional
de pessoas escravizadas em 185093, em que restaram estabelecidas duas classes antagônicas:
os senhores de escravos (classe dominante) e os escravos (classe dominada). O foco da
economia era a exportação, característica típica de colônias de exploração, cuja propriedade
primordial era o latifúndio e o povo escravizado resistia como podia as violências deste
modelo.
Já o momento secundário, o chamado de ―escravismo tardio‖ decorreria da extinção
do tráfico internacional e de uma modernização da produção, principalmente na região
sudeste, ou seja, região da Corte. Esse período foi até a abolição e apresenta reações de cunho
capitalista sobre nossa base econômica de cunho escravista. A pessoa escravizada tornou-se
mais cara pela proibição do tráfico internacional (que continuou ocorrendo de forma escusa e
com uma fachada que eram as popularmente chamadas leis ―para inglês ver‖).
O tráfico interno de pessoas escravizadas se acentuou entre as províncias,
principalmente do norte para o sul e, paralelamente, chegaram imigrantes europeus livres
fomentados pelo Estado para o projeto genocida de branqueamento. A legislação acerca das
pessoas escravizadas se alterou nessa fase e tornou-se mais protetiva, havendo algo mais
ordenado em termos de resistência com o apoio dos chamados abolicionistas. Foi a fase tão
bem narrada por Sidney Chalhoub em Visões da Liberdade (2011).
Essa transição também foi vista por Eugênio Raul Zaffaroni que traçou uma linha do
tempo entre o Brasil colonial (como instituição de sequestro) e posteriormente como um
espaço tomado pelas teorias lombrosianas adaptadas à realidade brasileira por Raimundo Nina
Rodrigues.
Ou seja, no Brasil havia um apartheid natural onde a prisão (propriamente dita) trazia
uma função coadjuvante. O país já era o Lager, portanto, não precisava de muros. Se,
porventura, fosse necessária a utilização deste tipo de segregação, nada mais seria do que uma

93
A Lei Feijó de 1831 foi a primeira a vetar o tráfico, como ela foi ignorada passou a levar a fama que alcunhou
a expressão ―lei para inglês ver‖. Somente em 1850, com a Lei Eusébio de Queiroz, o tráfico foi eficazmente
vedado.
137

―prisão de muros dentro de uma prisão sem muros‖, o que já apontaria para a transição da
ordem escravista para a capitalista (ZAFFARONI, 1991, pp. 63-77).
De toda forma, o trafico transatlântico de pessoas projetou a geografia humana do
Brasil, da colonização aos nossos dias (DIAS, 2016, p. 15) e é importante marcar que a
escravidão valeu-se da violência desde sempre e a afirmação às vezes feita de que africanos
―contribuíram‖ para esse quadro nada mais parece ser do que uma forma de tentar se esquivar
de uma culpa pertencente à Colônia Portuguesa e às elites brasileiras que dessa prática
repulsiva retiraram suas riquezas:
A captura de pessoas negras para serem escravizadas em Portugal e
Posteriormente nas Américas valeu-se da violência desde o inicio. Foi uma
pilhagem de seres humanos. O fato de esse negócio ter tido a ajuda pontual
de bandidos nativos não altera o elemento substancial desse fato histórico: os
traficantes eram caçadores de pessoas negras (...) Os próprios nativos que
chegaram a colaboram com esse negócio sujo também não dispunham de
outra alternativa; se não se comprometessem a buscar pessoas negras em
partes mais remotas do Continente africano eles próprios seriam o alvo do
tráfico e da escravização (DIAS, 2016, p. 12)

Vale ainda lembrar que: ―apesar do escravo ser uma propriedade privada, ele era
habitante da cidade e, consequentemente um cidadão comum sujeito às normas existentes e à
aplicação das penas aos infratores‖ (DUARTE, 2002, p.219) E com o passar do tempo:
O desmando senhorial é substituído/ complementado por uma prática
policialesca que transformava a polícia urbana no novo feitor. A rua
passa a integrar a periferia da propriedade privada desses senhores, um
espaço cotidianamente dominado pelo seu mando (DUARTE, 2002, p. 224)
(Grifos meus)

Foi visando observar os processos de dominação e mecanismos de controle da vida


que Michel Foucault voltou-se também para o fenômeno da raça. Ele dizia, ao abordar a
divisão entre ―quem exerce poder‖ e ―quem é objeto do exercício do poder‖ que o combate
não seria dado entre duas raças, mas:
A partir de uma raça considerada como sendo a verdadeira e a única,
aquela que detém o poder e aquela que é titular da norma, contra aqueles que
estão fora dessa norma, contra aqueles que constituem outros tantos perigos
para o patrimônio biológico (FOUCAULT, 1999, pp. 72-73) (Grifos meus)

É o ponto em que ele observa o surgimento do racismo de Estado que visava à defesa
de seu inimigo interior, o chamado inimigo doméstico.
Giorgio Agamben seguiu a mesma linha de raciocínio no livro O que resta de
Auschwitz (2008, p. 89). Nesta obra ele tratou do Muselmann, o morto-vivo, que sem
dignidade alguma transitava entre a fronteira de vida e de morte. O problema já apontado em
relação a esses autores é que o olhar deles é do norte para o norte, sem a visão decolonial.
138

Obviamente a teoria da soberania contribuiu para a compreensão tanto da


normatização penal europeia, quanto para o entendimento da escravidão moderna sendo que
sua expressão máxima reside justamente ―no poder e na capacidade de ditar quem deve viver
e quem deve morrer‖ (MBEMBE, 2018, p.1). Diante disso, a crítica esboçada por Evandro
Piza Duarte é muito acertada, posto que os autores europeus:
Ao darem as costas para a complexidade do escravismo, aceitam uma
submissão clássica da submissão pela coação, pura, direta, e por que não
dizer, simples. Acreditam e reproduzem momentos geracionais de poder na
Modernidade que estão distantes das novas narrativas contra hegemônicas,
produzidas pela crítica pós-colonial e do pensamento negro (DUARTE,
2017, p.176)

Ele mostra que o silenciamento acadêmico em questões relativas à racialização no


Brasil tem a ver com a política de branqueamento e o racismo incorporado institucionalmente.
Obviamente esse passado deveria ter sido devidamente analisado em termos de reparação,
contribuindo assim, para o rompimento com as práticas racistas presentes até hoje.
A abolição deveria ter sido acompanhada por uma reforma nas propriedades de terras,
tocando na questão dos latifúndios, bem como na distribuição de terras para todos aqueles que
descendessem da exploração da escravidão, da mesma forma que deveria ter havido, caso
efetivamente o animus fosse direcionado a uma sociedade igualitária, o acesso à educação e
ao exercício de direitos políticos para essa parcela - que inclusive era a maioria – da
população brasileira.
No entanto, essas ideias que foram ventiladas por alguns abolicionistas 94, antes mesmo
da Lei Áurea de 13 de maio de 1888, não prosperaram nem no período curto que restou de
monarquia, tampouco na república. E assim, a situação dos negros ―mudou, mas não mudou‖,
eles foram inseridos na falácia da democracia racial.
Se a proposta agora era que de todos os brasileiros se ―tornassem cada vez mais
brancos‖, isso significava que: a uma, o negro deveria não mais existir; a duas, ser negro não
era algo bom; a três, se ainda assim a cor fosse aparente, que seu comportamento fosse
docilizado ao ponto em que ele destruísse sua subjetividade e se tornasse um negro ―de alma
branca‖, conforme dito por Frantz Fanon (2008).

94
Em entrevista concedida à BBC Luiz Felipe de Alencastro, professor da Fundação Getúlio Vargas, em São
Paulo e autor do livro O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul, fala das lideranças negras no
movimento abolicionista como Luís Gama, André Rebouças, José do Patrocínio e explica que, embora a reforma
agrária não fosse pauta da maioria, André Rebouças, elaborou programa de imposto territorial para fazendas
improdutivas pretendia fazer cooperativas de pequenos camponeses. Joaquim Nabuco, nos anos 1880, foi porta-
voz dessas reinvindicações, que não alcançaram êxito em razão do movimento partidário da república ter se
aliado aos latifundiários.
139

Há também importantes estudos acerca da branquitude95, uma vez que, ao não se


manifestarem acerca do projeto de branqueamento, narcisicamente os brancos apoiaram-se
entre si para que sua posição privilegiada não fosse alterada. Nesse sentido é o pensamento de
Maria Aparecida Silva Bento em artigo intitulado Branqueamento e Branquitude no Brasil
(2014, pp. 45-46).
Muito se tratou da seletividade penal (THOMPSON, 1998), da punição aos pobres
(WACQUANT, 2001, 2003), mas não se tocou de maneira incisiva sobre a questão racial,
principalmente considerando o nosso processo histórico permeado pela experimentação de
dispositivos de controle. Ocorre que, ao se atribuir o mito da igualdade qualquer manifestação
apontando a segregação vira discurso sectário.
Evandro Piza Duarte (2017), assim como Michelle Alexander (2017), negra
estadunidense e estudiosa do sistema penal daquele país, cuja questão negra teve abordagem
muito diferente da brasileira, aponta para um mesmo norte que é o fato do sistema penal não
ter a raça como um fator externo, mas sim sendo ―prisão-raça‖ uma engrenagem de um
mesmo sistema. Talvez de maneira mais incisiva: o sistema penal é como é por causa da raça.
Numa perspectiva mais ampla (compreensiva), a racialização apresenta um
modo de ser de um grupo de sistemas penais ocidentais, ou seja, indica a
forma como sistemas penais foram historicamente concebidos como
―reguladores‖ e constituidores das ―diferenças raciais‖. Esse segundo
sentido, capaz de subverter um pouco as relações entre raça e sistema penal,
é o quebra-cabeça que poderia ser desmontado a partir de pesquisas que
considerassem a hipótese colonial (DUARTE, 2017, p.178)

A importação do pensamento colonial evidenciou a apropriação de técnicas e


dispositivos, sendo Raimundo Nina Rodrigues considerado o fundador de nossa criminologia
(no viés positivista), por ter sido o principal responsável pela tradução do pensamento
lombrosiano, ―copiando-o‖ e legitimando as práticas de controle racial de maneira científica.
É importante deixar destacado que Raimundo Nina Rodrigues, que por acaso era um
mulato claro (ou um quase branco), não acreditava que o branqueamento fosse ―opção‖, ou
seja, ele mesmo não se via como um mestiço. Ele ―pretendia a formalização de um apartheid
brasileiro baseado na cientificidade racial central‖ (GÓES, 2016, p. 23), Na visão dele não
deveria haver a mistura de raças, posto que isso, iria gerar um povo degenerado.
Esse processo conferiu nova legitimação ao projeto político histórico
brasileiro de extermínio e exclusão do negro ao potencializá-lo com um
ecletismo teórico-racial, criando uma teoria que considerou o negro e seus
descendentes (a maioria da população brasileira), nossos criminosos natos,

95
Lourenço Cardoso faz inclusive interessante distinção ao denominar ―branquitude crítica‖ aquela pertencente
ao indivíduo ou grupo de brancos que desaprovam ―publicamente‖ o racismo. E ―branquitude acrítica‖ a
identidade branca individual ou coletiva que argumenta a favor da superioridade racial (2014, p. 89).
140

reforçando, assim, as bases racistas do país ao conferir funcionalidade ao


racismo negado teoricamente pela jovem Republica (GÓES, 2016, p.22)

Para Evandro Duarte Piza (2017, pp. 106-107) a criminologia positivista também
ignorava o fator colonial e partia de uma ordem hegemônica branca, masculina, burguesa e
heterossexual. Desse ponto, o discurso positivista impunha uma ideologia que fazia com que
o homem escravizado - sujeito à violência da colonização – fosse confundido com alguém
portador de uma maldadeintrínseca.
De forma simbólica, o embranquecimento reforçou um cenário antagônico
onde a brancura estaria relacionada com a noção da bondade, inteligência e
humanidade. Em contrapartida, reforçava as condições da maldade,
ignorância e desumanidade na figura do negro. Se a escravidão
determinava uma natureza desumanizada da população cativa, o
branqueamento apresentou-se como uma possibilidade de a população negra
no período pós-abolição alcançar o status de humanidade.
Consequentemente, foi produzido sobre o povo afrodescendente o
patológico desejo de se “clarear”, de ser cada vez mais próximo do branco,
de alcançar a brancura e, simultaneamente, o sentimento de vergonha e ódio
da própria cor (MIRANDA et al, 2018, p. 57) (Grifos meus)

O que, em verdade, ocorre é que o processo pelo qual esse sujeito-colonizado passa,
faz com que ele perca a sua própria identidade. Isso poderá ser observado com a fala do autor
decolonial Frantz Fanon (2005, 2008) ao dizer que ―racismo e colonialismo deveriam ser
entendidos como modos socialmente gerados de ver o mundo e viver nele. Isto significa, por
exemplo, que os negros são construídos como negros‖ (2008, p. 15), ou seja, essa construção
social é geradora de uma verdadeira base de relações sociais.
Frantz Fanon foi um filósofo e psiquiatra francês, nascido na Martinica, ilha caribenha
ocupada pela França96 desde 1635. Sua obra mais conhecida é Pele Negra, Máscaras Brancas
que, de maneira enfática, demonstra que essa ideologia de democracia racial serve de apoio ao
racismo.
A fala supracitada do autor: ―negros são construídos como negros‖ tem relação com a
experiência vivida por ele de ser um homem francês, criado como francês, aculturado como
francês, intelectualizado como um francês, mas que, ao chegar na França, descobriu que o
―verdadeiro francês‖ era o branco colonizador97 e não um sujeito como ele: negro. O que
significa que ele foi alienado, pela colônia, de ser sujeito de sua própria história.

96
Até hoje a Martinica é uma possessão francesa, não sendo país independente.
97
Curiosidade de ―local de fala‖: tenho contato com franceses que descendem de colonizadores. Uma vez,
enquanto assistia tv, um programa de culinária com Olivier Anquier, chef de cuisinne, francês (nascido em Paris)
naturalizado brasileiro, ouvi: ―Não gosto desse rapaz porque ele finge ser francês, mas não passa de um
argelino‖. Ou seja, trata-se de algo arraigado, naturalizado. A pessoa que pronunciou a frase absurda foi criada
com a visão do colonizador e viveu durante a Guerra para a Libertação da Argélia, da qual Frantz Fanon
participou sendo membro da Frente de Libertação Nacional.
141

Ele explica que quem era enaltecido, considerado como o padrão de humanidade, era
aquele com características europeias, sendo o ―ser branco‖, a preponderante, além de todo o
resto componente dessa identidade como: língua, roupa e crença. Os países que foram
atingidos pelo colonialismo europeu, assim como o Brasil, vivenciaram (e vivenciam)
problemas similares, por isso a importância dessa virada decolonial.
Ao ―mascarar-se como francês‖, ou seja: ao embranquecer-se, Frantz Fanon se
protegia da realidade, mas ao mesmo tempo gerava danos em sua subjetividade, já que sua
negritude era repelida. Ora, não há como ―repelir a si mesmo‖. Quem assim o faz, ainda que
não perceba, está se odiando (FANON, 2008, pp. 11-31). Vale notar que, Raimundo Nina
Rodrigues adequou-se à sua ―máscara branca‖, e, assim, numa fantasia, ajudou na construção
do paradigma racial-etiológico brasileiro.
De início, vale anotar que a antropologia criminal central se orientava a criminalizar a
população sul-americana quase que em sua totalidade, sendo os índios e os negros os nossos
primeiros delinquentes (DEL OLMO, 2004, p. 175) e que no Brasil, a teoria lombrosiana
vinculadora do negro ao criminoso encontrou um terreno amplo para a sua assimilação,
mesmo antes de termos a abolição, isso ficava patente, por exemplo, na visualização de
direitos básicos:
Se a propriedade ou a casa eram, para o senhor, o ―asilo inviolável‖, para os
negros, na visão das elites, a casa era o local onde se escondiam os
criminosos, pelo que era deveria ficar sob os cuidados e a inspeção da
polícia. Casa e rua para os negros não se distinguiam: o negro era visto
sempre como estranho que circula nos espaços pertencente ao senhor, sob
vigilância. A liberdade de ir e vir aparece como corolário do estar ―a serviço
do senhor‖ (DUARTE, 2002, p. 262) (Grifos meus)

Contudo, foi após a escravidão que essa influência tornou-se ainda mais importante,
posto que, nesse momento de transição, o escravo deixaria de ser coisa e passaria a ser um
homem, porém esse homem tinha uma marca indelével: a sua cor onde a fórmula colonial
pode ser sintetizada: ―negro livre é negro suspeito. Suspeito de ser negro, negro escravo‖
(DUARTE, 2017, p. 164).
Essa questão até hoje reverbera com práticas policiais e racismo estrutural98.
Raimundo Nina Rodrigues foi justamente um dos principais, senão o principal estudioso à
época que quis, sem finalidade política, mas exclusivamente científica, se dedicar à questão
do negro e de sua descendência.

98
Desde as arbitrariedades cometidas com a invasão de residências em favelas com mandados ―genéricos‖ - o
que constitui um atuar jurídico subterrâneo já que a lei especifica que isso não é possível. Até algo mais
cotidiano: homem negro raramente sai de casa sem estar portando seus documentos.
142

De uma maneira paradoxal, ele, um mestiço, se engajou na demonstração da


inferioridade do negro e, contrariando a sua própria realidade, entendia que a mestiçagem, a
política de branqueamento, seria um fracasso.
Ao defender que as raças inferiores mereceriam um tratamento penal
diferente (mais rigososo pelo risco à sociedade branca oriundo dos conceitos
estabelecidos por Lombroso de primitividade, impulsividade e
imprevidência) dos normais, equiparou o negro africano (a raça pura mais
inferior) a uma criança grande (RODRIGUES, 1957, p. 114 apud GOÉS,
2016, p. 209)

Ele não via a raça negra pura como degenerada, mas apenas num patamar inferior à
branca, para ele danoso seria misturar as raças. Ora, óbvio que no Brasil essa visão seria de
problemática, posto que a mestiçagem99 entre nós sempre existiu, o próprio Raimundo Nina
Rodrigues era um mestiço e, na visão dele (que se enxergava como branco), caberia ao branco
a tutela do negro através da obediência e do temor. Basicamente a proposta era a de ―adestrar‖
esse ―ser inferior‖, mas como fazer isso aqui?
Já éramos a margem do mundo – e ainda somos, pois o centro é europeu. Segundo o
pensamento de Raimundo Nina Rodrigues a mestiçagem seria trazer para nós a iminência do
caos. Nesse sentido, a análise da subjetividade de Frantz Fanon, pareceu bem incorporada
pelo cientista brasileiro e, observando a visão psicológica social do racismo existente no
Brasil, Allan Vinicius Ferreira Miranda, Maria Thereza Toledo e Vanessa Menezes de
Andrade, fizeram distinta análise da fala de Frantz Fanon:
A partir do processo ―civilizatório‖ colonialista, vemos o surgimento de um
novo significado para os povos dominados a respeito de si mesmos: com a
imposição do saber europeu e a automática ligação a tudo aquilo que é
bom e desejado, as comunidades vítimas da violação europeia introjetaram
assim um novo autoconceito: passaram a se enxergar como ―nativos‖, e
consequentemente, ―não tão humanos‖, como os europeus eram
considerados. Esse ideal uma vez assimilado pelo negro o incitava a buscar
através da maior gama de recursos possíveis a brancura, seja no modo de
pensar, agir, comunicar-se, se relacionar afetivamente ou de conduzir seu
corpo: quanto mais próximo do que foi construído pelo europeu, mais
próximo da humanidade estaria. Logo, a vida do colonizado se definiria
nessa incansável busca: a busca de um ideal que o fazia renegar tudo o que
fora construído antes da colonização, para buscar sob o olhar do colonizador,
a condição de humano (FANON, 2008, pp. 11-126 apud MIRANDA et al,
2018, pp. 55-56)

Veja que Raimundo Nina Rodrigues copia exatamente os passos de seu mentor
italiano e também diz que a diversidade climática brasileira agravaria o problema, pois nosso
clima é muito mais parecido com o do continente africano do que com o europeu. Ocorre que,

99
Lilia Moritz Schwarcz afirma que em 1872, 72% da população brasileira era de mestiços (SCHWARCZ, 1996,
p. 172)
143

de outro lado, a política seguia em direção oposta visando acabar, ou apagar o negro
branqueando-o.
No plano de supressão da população afro-brasileira, durante o período da
Primeira República, especificamente em 1890 (dois anos após a abolição), o
projeto de branqueamento fundou um importante alicerce: o decreto-lei de nº
528100, instaurado pelo general Manoel Deodoro da Fonseca, através do qual
os portos dos ―Estados Unidos do Brazil‖ e as transportadoras marítimas
receberam o fomento à massificada imigração europeia e simultânea
restrição da entrada de imigrantes africanos e asiáticos (MIRANDA et al,
2018, p. 58)

Contudo, a política de branqueamento paradoxalmente não silenciou a fala do


cientista. Ao contrário, a fala deste foi muito útil para dar legitimidade (no padrão ―europeu‖)
para o controle dos negros, eis que cientificamente comprovados como degenerados.
As mulheres negras, principalmente as chamadas mulatas (cuja origem do nome vem
de mula: ou seja, uma cruza inadequada, uma cria já errada) não escaparam às suas análises,
sendo atribuido a elas práticas mágicas, perversões sexuais e tendência a destruir famílias
(RODRIGUES, 1957, p. 159). Em contrapartida, Abdias Nascimento mostrou todo
sofrimento dessas mulheres objetificadas para o deleite branco, vistas como animais
reprodutores ou fonte de dinheiro através da prostituição forçada. É ele que lembra do fatídico
ditado popular: ―Branca para casar, negra para trabalhar, mulata para fornicar‖
(NASCIMENTO, pp. 73-77).
Por tudo se conclui que Raimundo Nina Rodrigues deliberadamente imitou seu mestre
(branco) substituindo o estereótipo lombrosiano pela matriz racista. Não à toa, para ele, o
progresso estava no sul do país, mais frio, local de imigração ariana, a ―pequena Europa‖,
sugerindo o cientista que o Brasil deveria ter diversos códigos penais, tamanho o seu viés
eugênico. Ele conseguiu conciliar a violência contra o negro com a proteção ao branco.
Mesmo divergente em relação à posição política adotada, ao se manter fiel
em suas convicções teóricas, o autor potencializou e funcionalizou o
paradigma racial-etiológico colocando-o em consonância com a prática de
um sistema punitivistas alicerçado sobre o racismo, reforçando ambos, a
prática pela legitimação científica e o racismo pela prática discriminante, um
círculo racista perfeito, portanto, contribuindo para a manutenção
daquela ordem já extinta teoricamente, que já não devia ser declarada,
pois a politica de controle racial–social adotada era a de assimilação dos
negros e seus descendentes que, motivada pelo medo branco, pressupunha
a não nomeação do racismo101, o que significou seu silenciamento por sua

100
O Decreto nº 528, de 28 de junho de 1890 regulariza o serviço da introdução e localização de imigrantes na
República dos Estados Unidos do Brazil.
101
Impossível aqui não observar a potência de tal estrutura. Em pleno século XXI desconstruir práticas racistas é
algo árduo. Argumento comum daquele que se vê como ―não racista‖ é dizer: ―tenho um amigo negro‖.
Contudo, isso é tão enraizado, que um dos países que tem mais negros no mundo, elegeu um presidente
explicitamente racista.
144

redefinição a partir da abolição da escravatura (GOES, 2016, p. 228) (Grifos


meus)

Nada escapava ao cientista, até a religião dos negros denotava a inferioridade destes
pela incompreensão das abstrações monoteístas. O cruzamento de um negro com um branco
não traria a predominância do branco por ser superior, ao contrário o branco que seria
denegrido102 e somente em sua última obra ele acolheu a ideia da assimilação (GÓES, 2016,
p. 275).
Foi através da tradução marginal rodrigueana que se manteve legitimado no Brasil o
status quo hierárquico-racial, através da segregação dos indesejáveis contribuindo para o
branqueamento e consequentemente o genocídio negro.
Para tal intuito, Raimundo Nina Rodrigues fez algumas adaptações como a
mestiçagem como valor degenerativo descartando a ideia de estereótipo e se prendendo
apenas no fenótipo, assim o próprio cientista conseguia seguir com sua suposta branquitude,
não divulgando que ele mesmo também era mestiço.
Ele ajudou também a legitimar a violência contra os negros propagando após a
abolição a marca do negro como semovente103 a ser conduzido. Era o branco
hierarquicamente superior que iria ―cuidar‖ desse ser inferior, ainda que tivesse que guia-lo,
puni-lo ou segrega-lo:
Assim, por exemplo, atribuir ao Outro a violência exclui a violência que
define sua relação com o Outro, e por consequência desenvolve novas
formas de violência, fundadas em sua ―bondade‖. Não por acaso, uma
―fronteira‖ nunca é única; em vez disso ela se multiplica e intensifica para
dentro (prisões, bairros vigiados, campos de concentração etc) (...) Na
Modernidade, o Outro foi sendo confinado no espaço externo à razão,
passando a ocupar (ou ser alocado) no espaço da natureza. Tal espaço foi
definido, sobretudo, como o espaço da intervenção (DUARTE, 2017, p. 125)

O operar subterrâneo ganhou corpo com suas teorias e neste mesmo sentido temos que
―na economia do biopoder, a função do racismo é regular a distribuição da morte e tornar
possíveis as funções assassinas do Estado‖ (MBEMBE, 2018, p. 18).
A polícia, com a expertise de um cientista reconhecido internacionalmente, pode trazer
suas práticas arbitrárias contra o povo negro brasileiro e assim, o velho racismo seguiu com
novas amarras, lembrando Michel Foucault quando dizia que a prisão estava sempre se
reformando para garantir o seu próprio funcionamento e permanência.

102
Segundo o dicionário etimológico a palavra denegrir vem do latim denigrare que significa ―tornar escuro‖ ou
―manchar‖. Ela tem conotação negativa. Disponível em: https://www.dicionarioetimologico.com.br/denegrir/
Acesso em : 11/03/2019.
103
Embora não fosse exatamente um semovente como um animal, Assim que era visto enquanto propriedade.
Isso será esmiuçado mais à frente.
145

Vale dizer que Raimundo Nina Rodrigues, no fim de sua produção, suavizou o seu
racismo o que deu possibilitou que seus discípulos pudessem seguir com a política de
branqueamento, afinal, nem todos os mestiços teriam a ―alma negra‖ e aqueles cuja alma era
branca não deveriam carregar tão pesado fardo.
Isso contribuiu para a ideia do paraíso racial brasileiro, dessa técnica aniquiladora de
branqueamento que Abdias Nascimento em capítulo da obra O Genocídio do Negro
Brasileiro (2016, pp. 83-92) explica que nada mais foi do que uma estratégia de genocídio.
Embora à primeira vista possa parecer exagerado, se considerarmos as condições dos negros
no Brasil desde a chegada dos primeiros escravizados até os dias atuais, não soa absurda a
fala.
Contudo, não soa absurda apenas se quem lê não tiver caído justamente na armadilha
da falácia de que somos todos iguais e que não existe racismo, pois a chamada democracia
racial brasileira ―é capaz de distorcer a visão objetiva da realidade tanto de negros quanto de
brancos, ainda que de formas distintas‖ (MARTINS, 2016)
Para Evandro Duarte Piza, o ―pensamento racista de fins do século XVIII nada mais
fez do que consolidar discursivamente, do ponto de vista da ―Ciência‖, o que o pensamento e
a prática colonial já haviam criado‖ (PIZA, 2017, p. 125), sendo a nossa história produto de
estruturas propositalmente seletivas e excludentes, racialmente identificadas, posteriormente
apagadas para que houvesse uma única narrativa oficial: a da democracia racial.
Neste sentido, tem razão Joel Rufino dos Santos (1980) quando afirmava que no Brasil
falar sobre racismo era entendido como subversão e que o ―mito da democracia racial‖, foi
uma forma ―brasileiríssima‖, bastante eficaz de controle social que serviu para construir essa
estrutura cujo objetivo foi de manter a desigualdade social.
Essa desigualdade estrutural (ou como apresentarei mais adiante: racismo estrutural)
se apresenta desde uma piada de mau gosto até as mortes daquela que é a ―carne mais barata
do mercado‖, como diz a contundente letra do samba (de resistência) da Elza Soares: ―A
carne mais barata do mercado é a carne negra. Que vai de graça pro presídio. E para debaixo
do plástico. Que vai de graça pro subemprego. E pros hospitais psiquiátricos‖.
Joel Rufino dos Santos ainda explicava que não havia nenhum paradoxo no fato da
ciência já ter comprovado não haver raças e, não obstante, ainda termos ―questões raciais‖
como objeto de discussão. Isto porque essas questões estariam acobertadas de outras relações
que, em verdade, se configuravam como relações de dominação (SANTOS, 1996, p. 219).
146

Para tal compreensão primeiramente deve-se, e não vejo muita dificuldade nisso, a
partir da hora em que se vê a história escovada à contrapelos, afirmar que nossa estrutura
social é racista e excludente.
Também se deve entender que foi fruto de uma idealização a participação do negro no
espaço social, como se tivesse havido uma gentileza de contribuições e de trocas culturais
pacíficas para a construção de uma sociedade evoluída que teria exitosamente superado as
diferenças entre ―seres inferiores e superiores‖. Ora, o que se viu não foi nada além de
infiltrações/tolerâncias recheadas de estigmatização.
Explicarei melhor tamanha hipocrisia: vendeu-se a ideia de que a cultura negra foi
incorporada harmoniosamente com as demais culturas (sejam as indígenas, sejam as do
homem branco europeu), porém aprofundando-se apenas um pouco no tema, a máscara cai,
como por exemplo, o sincretismo religioso: Abdias Nascimento explica que os terreiros
tinham que ter registro (na polícia!) para funcionamento, e que sempre houve um ―desdenhar‖
das religiões de matrizes africanas, inclusive com suas entidades fetichizadas. O sincretismo
―é simplesmente uma máscara posta sobre os deuses negros para beneficiar os brancos‖
(NASCIMENTO, 2016, p.133).
Nota-se que uma frase comum, que ouvimos sem perceber a carga de racismo inserida
nela é: ―espiritismo é macumba de branco, enquanto umbanda é espiritismo de preto‖. Ora,
não há ―piadas‖ deste tipo depreciando o cristianismo por um motivo óbvio: ele é o
considerado ―padrão‖104. O branqueamento, em conjunto com o mito da democracia racial,
criou um grave problema para os negros, explicado por Joel Rufino dos Santos:
Frequentemente, lideranças de movimento negro são acusadas de "racismo
às avessas". A acusação tem algum fundamento uma vez que a tendência de
encarar a questão étnico-racial em separado, despegada da estrutura social e
das relações de poder político era, até recentemente, dominante entre aquelas
lideranças. Ora, num país de incrível pauperização, marcado por
insolúveis problemas sociais, a pretensão de destacar do social o que
quer que seja, suscita imediatas desconfianças.
As lideranças de movimento negro veem-se, assim, sistematicamente
obrigadas a combater em duas frentes: contra o mito da democracia racial
e contra o estigma de "racistas ao avesso". E o que é pior, com uma arma
duvidosa recolhida no arsenal oitocentista - a ideia de raça (SANTOS, 2016,
p. 219) (grifos meus)

Joel Rufino dos Santos traz para uma interessante explanação com o fito de propor
possibilidades de trabalhar com a questão negra no Brasil o filósofo Alberto Guerreiro Ramos
que afirma que:

104
Apenas para deixar consignado que o slogan do atual Presidente da República diz: ―Brasil acima de tudo,
Deus acima de todos‖, inimaginável seria algo como ―Oxalá acima de todos‖.
147

Desde que se define o negro como um ingrediente normal da população do


País, como povo brasileiro, carece de significação falar do problema do
negro puramente econômico, destacado do problema geral das classes
desfavorecidas ou do pauperismo. O negro é povo no Brasil (GUERREIRO
RAMOS, 1957, p. 157 apud SANTOS, 1996, p. 222) (Grifos meus)

Alberto Guerreiro Ramos faz a constatação essencial de que lutar contra o racismo
dependerá da afirmação da negritude, posto que ―negro é uma configuração social‖. Joel
Rufino dos Santos ressalta que o intelectual elaborou tal pensamento em 1956, bem antes do
aprofundamento dos estudos raciais no Brasil e segue trazendo as lições do colega:
Negro é uma configuração social, um lugar que pode ser ocupado mesmo
por não negros (assim como o lugar do branco pode ser ocupado por um
preto ou mulato). Como se descreve esse lugar?
As coordenadas para fixar o negro como lugar seriam: o fenótipo (crioulo), a
condição social (pobre), o patrimônio cultural (popular), a origem histórica
(ascendência africana) e identidade (autodefinição e definição pelo outro). A
coordenada mais fraca é o fenótipo, uma vez que a maioria da nossa
população tende para o escuro. Brasileiro é, como se deduz, o melhor
sinônimo de negro; e branco um sinônimo de não brasileiro (SANTOS,
1996, p. 223) (Grifos meus)

Esse raciocínio coloca a luta pelos direitos e pela inclusão do ―negro‖ como um
problema do Brasil de maneira bastante radical, posto que inverte a ordem: quem construiu o
Brasil foi o negro e sem ele o país não existiria. A luta pelos direitos dos negros é uma luta
que deveria ser lida como luta de qualquer brasileiro, posto que o Brasil é em sua maioria
composto por descendentes de negros que, em razão do instrumento de dominação exercido
pelo branqueamento, fez com que eles se tornassem (por exclusão) o não-branco. Repito que
o autor destaca que a luta pelo racismo impõe a afirmação da negritude o que me faz refletir
acerca de uma percepção embrionária do autor de uma visão interseccional entre negritude e
pobreza.
Veja que toda vez em que há a repulsa à política de cotas ―raciais‖ há também a
afirmação de as cotas deveriam ser apenas ―sociais‖ e não ―raciais‖ o que evidencia o atuar do
racismo estrutural impregnado com o discurso do branqueamento, do apagamento da cor e do
mito da democracia racial, motivo pelo qual a música de Caetano Veloso faz todo o sentido
quando diz que os nossos presos são ―quase todos pretos, ou quase pretos, ou quase brancos
quase pretos de tão pobres‖ (Grifo meu).
Temos aqui o agir perverso da biopolítica, que para Michel Foucault seria talvez
chamado - considerando nossa verdadeira história - tanatopolítica. Contudo, considerando o
olhar do nosso ponto de vista do sul colonizado, não tenho dúvida de que essa aniquilação do
ser vivente negro chama-se verdadeiramente: necropolítica (MBEMBE, 2018). Neste sentido:
148

Qualquer relato histórico do terror moderno precisa tratar da escravidão, que


pode ser considerada uma das primeiras manifestações da
experimentação biopolítica (...) De fato, a condição de escravo resulta de
uma tripla perda: perda de um lar, perda de direitos sobre seu corpo e perda
de estatuto político. Essa tripla perda equivale a uma dominação absoluta,
uma alienação de nascença e uma morte social (que é expulsão fora da
humanidade) (...) Como instrumento de trabalho, o escravo tem um preço.
Como propriedade, tem um valor. Seu trabalho responde a uma necessidade
e é utilizado. O escravo, por conseguinte, é mantido vivo, mas em ―estado
de injúria‖, em um mundo espectral de horrores, crueldade e profanidade
intensos (...) Avida do escravo, em muitos aspectos, é uma forma de morte
em vida (MBEMBE, 2018, pp. 27-29) (Grifos meus)

Essa instrumentalização permite que haja a divisão da espécie humana em diferentes


grupos em que uns devem viver e outros morrer e é nessa economia biopolítica de corpos e de
vidas, que o racismo aparece e encoraja a distribuição da morte.

4.3. Selecionando o inimigo: porque todo camburão tem um pouco de navio negreiro

O Rio de Janeiro está marcado por ter possuído o maior e também o mais
estudado mercado de escravos do Brasil (...) A ausência de liberdade do
escravo dizia respeito à liberdade de se autopertencer e de ter a posse
dos seus filhos. Diz respeito àquela liberdade de poder constituir uma
família que se mantivesse unida (...) A despeito de serem comercializados, a
natureza jurídica da condição de escravo não era a de coisa. Essa
condição de escravo era consubstanciadora de uma contradição inerente à
colônia e, posteriormente, ao Império do Brasil. O escravo era a um só
tempo objeto de direito e, contraditoriamente, sujeito de direito. Prova
disso é que escravos eram frequentemente julgados, tanto pelos tribunais da
Santa inquisição, como também pelos tribunais seculares (DIAS, 2016, p.
33) (grifos meus)

A obra de Sidney Chalhoub (2011), Visões da Liberdade, trata das últimas décadas de
escravidão na Corte, ou seja, no Rio de Janeiro. Ele problematiza e desmistifica a ideia de que
o escravizado era um sujeito completamente passivo, o que se depreende da construção de vê-
lo como coisa.
Na verdade, pensando exclusivamente no critério mercadológico ele até poderia ser
visto como coisa, mas, ao recortar apenas esse período, desde a chegada da família Imperial
até a abolição, ou seja, em somente algumas décadas de escravidão, muito se alterou na
sociedade escravista, bem como muitas nuances eram verificadas entre a escravidão no norte
em comparação com do sul do País, bem como a escravidão da cidade do Rio de Janeiro e a
escravidão das fazendas cafeeiras interioranas.
149

A investigação feita por Sidney Chalhoub foi através de processos criminais no


Primeiro Tribunal do Júri, onde havia como parte um negro (fosse esse escravizado ou
liberto), e também através de ações de liberdade movidas por escravizados através de
curadores, processos estes que se encontram no Arquivo Nacional (2011, p. 22). Nessa obra
ele mostra com casos reais o negro, com seu corpo colonizado, atuando como protagonista de
diversos tipos de resistências. Ele explora a transição, durante o período colonial, do negro
objetificado para o negro livre e igual.
Embora seja comum esse pensamento de que a pessoa escravizada era coisa, caso esta
pessoa viesse a se envolver em alguma prática penal ela já ganhava um status de pessoa, ou
seja, embora intitulado como semovente, sua vida distinguia da vida biológica de um cavalo,
por exemplo, que jamais seria réu em um processo. O escravizado, nessa seara, era visto como
alguém capaz de responder por seus atos.
Marcelo Dias (2015, pp. 143-144) destaca que na Constituição do Império do Brasil
(1824) já havia a previsão em seu artigo 179, inciso XIX de uma norma que ―insinuava‖ a
humanidade das pessoas escravizadas ao prever: ―Desde já ficam abolidos os açoites, a
tortura, a marca de ferro quente, e todas as mais penas cruéis‖. Era letra morta, norma
ineficaz, mas ao menos sinalizava que a pessoa escravizada era algo além de ―coisa‖.
Para este autor ―a condição de escravo era, na verdade, um estado civil‖ e esse
argumento ele retirou do conceito de cidadania incurso na Constituição do Império (artigo 6º,
inciso I) que considerava dentre os cidadãos brasileiros os ―libertos‖. Nesse sentido, haveria o
status libertatis o que geraria como conclusão que uma pessoa poderia ser: livre, liberta ou
escravizada (DIAS, 2015, p. 145).
Ele ressalta um equívoco comum acerca do período escravocrata que é o fato de
comumente se achar que pessoas escravizadas permaneciam permanentemente presas, o que
não reflete a realidade. A ausência de liberdade era uma condição de ―alteridade absoluta em
que se encontrava o cativo‖ o que implicava na ―ausência de ter liberdade de vida própria e de
ter o poder de conduzir o destino da vida de seus familiares‖ (DIAS, 2015, p. 146).
André Barreto Campello (2018) em seu Manual Jurídico da Escravidão: Império do
Brasil tece ampla explanação acerca do estatuto jurídico da pessoa escravizada (CAMPELLO,
2018, pp. 127-168). Ele deixa registrado que as regras aplicadas aos escravizados eram
sempre excepcionais ao direito comum e subsidiariamente se usava o Direito Romano.
150

Vale lembrar que o Brasil teve 388 anos de escravidão, sendo inicialmente sido
aplicada no Brasil as Ordenações Filipinas, sendo somente em 1871, criada a Lei do Ventre
Livre105 trazendo alteração específica no status daquele nascido de mulher escravizada.
A principal questão era: seu regime jurídico é de coisa (semovente) ou de pessoa?
André Barreto Campello responde: ―o escravo era res e personae ao mesmo tempo, desde que
se compreenda esse último termo não como sujeito de direito, mas como ser humano‖ (2018,
p. 132).
Eu iria além, essa compreensão de personae a que André Barreto Campello se refere,
atualizando num olhar biopolítico seria o equivalente ao portador de vida nua de Giorgio
Agamben. Para Achille Mbembe, no livro Necropolítica as olhos do conquistador, ―vida
selvagem‖ é apenas outra forma de ―vida animal‖, uma experiência assustadora, algo
radicalmente outro (alienígena), além da imaginação ou da compreensão (MBEMBE, 2018, p.
35).
Ele era uma quase-pessoa, um sujeito sui generis, a depender da conduta jurídica em
que ele estivesse envolvido e, até mais que isso, a depender do período de sua existência
nesses 388 anos. Abaixo coloco outra definição da natureza jurídica da pessoa escravizada:
Na classe dos bens móveis entram os semoventes, e na classe dos
semoventes entram os escravos. Posto que os escravos, como artigos de
propriedade, devam ser considerados coisas; não se equiparam em tudo aos
outros semoventes, e muito menos aos objetos inanimados, e por isso tem
legislação peculiar (FREITAS, 2003, p.35 apud CAMPELLO, 2018, p. 135)

André Barreto Campello explica, citando Conselheiro Joaquim Ribas, que o direito
exercido sobre a pessoa escravizada (dominica potestas) não eram somente ―a título de
dominus, mas também como potestas (CAMPELLO, 2018, pp. 131-132)
E o que isso significa? Isso significa que a pessoa escravizada era sujeita a uma dupla
sujeição: seja como coisa, seja como pessoa considerada incapaz. O pensamento corrobora
com o que Sidney Chalhoub trouxe em Visões da Liberdade (2011) no sentido de que:
A proporção, porém, que o direito estrito se foi aproximando do racional,
foi-se restringindo a dominica potestas, e paralelamente alargando a
capacidade dos escravos, esta instituição reconhecida como oposta à
natureza, e a liberdade como faculdade natural (RIBAS, 1982, pp 281-282
apud CAMPELLO, 2018, p. 132).

Novamente faço uma provocação com a citação: De que maneira houve essa restrição?
E essa resposta aparece com todas as formas de resistência explanadas no livro de Sidney
Chalhoub (2011), o reconhecimento, ainda que mínimo, de direitos foram conquistas de

105
Lei 2.040 de 28 de setembro de 1871.
151

muitos e de muitas pessoas não-brancas, libertas ou escravizadas que tiveram que encontrar
formas de agir contra o sistema vigente.
André Barreto Campello (2018, pp.155-157) explica que entre as pessoas escravizadas
não havia inicialmente a possibilidade de constituição de vínculos familiares pelo casamento.
Assim, dissolver vínculos originários de parentesco era algo comum tanto antes do embarque
no navio tumbeiro, quanto no momento em que eram vendidos.
A título de curiosidade, tenho, em acervo pessoal, o inventário datado de 1866,
referente à partilha de bens do Senador do Império, grande proprietário rural no Maranhão,
Ângelo Carlos Moniz106. Neste documento as pessoas escravizadas, que seriam partilhadas,
em decorrência da morte de seu senhor, eram elencadas como semoventes vinculados à
fazenda em que trabalhavam.
Contudo, a organização do acervo era realizada por famílias a partir da escrava mãe.
Só após a descrição de todos os escravizados membros das famílias, vinham,
sequencialmente, os escravizados órfãos e, por fim, os avulsos, em número reduzido.
No inventário, consta o nome da pessoa, a idade, a profissão, se portava alguma
doença e a sua origem – quando existente. Como se trata de inventário é possível traçar a
comparação dos valores de uma pessoa escravizada com um objeto (propriamente dito) como
uma joia ou um móvel. Estranhamente, não aparece na partilha nenhum animal, muito embora
o de cujus fosse proprietário de fazendas.
Apenas em 1869 foi proibida a venda de casais separadamente, bem como o filho do
pai ou da mãe, com exceção daqueles maiores de 15 anos e, posteriormente, com a já falada
Lei do Ventre Livre, em 1871 a proteção seguiu de maneira ampliada, já que os filhos
nascidos livres, até 12 anos deveriam acompanhar a mãe. Ressalte-se que para que houvesse
casamento o senhor deveria dar autorização e os filhos nascidos de mulheres escravizadas
também pertenciam ao senhor em respeito ao princípio do Direito Romano partus sequitur
ventrem.
Não há como elaborar aqui uma abordagem com a profundidade devida acerca do
tema da escravidão, mas considerando que o Brasil se utilizou dessas pessoas como mão-de-
obra desde os idos de 1500 e as principais alterações se deram nas últimas décadas dessa

106
Ângelo Carlos Moniz, filho de Raimundo José Moniz e de Anna Isabel Lamagnére Moniz, foi proprietário
rural e vice-presidente da província do Maranhão entre 1844 e 1846. Após, foi deputado e presidente da
Assembleia Provincial em 1847. Por fim, foi Senador do Império entre 1852 e 1863, ano do seu falecimento. Era
irmão de João Bráulio Moniz, jurista, que, por sua vez, foi eleito deputado para Assembleia Geral pelo Maranhão
por duas vezes entre 1826 e 1831 e, posteriormente integrou a Regência Trina Permanente, junto com o deputado
José da Costa Carvalho e o brigadeiro Francisco de Lima e Silva, entre 1831 e 1835, tendo sido um dos autores
do Código de Processo Criminal do Império (Lei de 29 de novembro de 1832) (SANTOS, 2016, p.60).
152

prática nefasta, sendo o país das Américas o último a abolir definitivamente o trabalho de
pessoas escravizadas, é possível, com base em alguns registros, tentar imaginar o indizível:
Antes de 1824, os navios negreiros entravam livremente no porto para
descarregar suas ―cargas‖ no centro do Rio (...) As autoridades alfandegárias
contavam-nos por sexo e anotavam o número de crias que acompanhavam
as mães. Depois que os importadores pagassem os impostos sobre todos os
escravos acima de três anos de idade, os africanos eram levados em grupos
para o local do leilão (...) Os que não fossem vendidos naquele dia eram
conduzidos para casas a fim de restaurarem a saúde e serem preparados
para venda.
No começo do século, os africanos eram desembarcados como tinham
viajado, isto é, sem roupa alguma (...) Depois da chegada da corte
portuguesa, o príncipe regente mudou essa prática e mandou que fossem
vestidos para a curta viagem até os armazéns da rua Direita e da rua do
Cano. O alojamento e o leilão de tantos africanos descarnados perturbava a
área do porto e o centro comercial da rua Direita. Além disso, a condição
estarrecedora deles dava uma imagem ruim da corte imperial para os
estrangeiros, que ficavam irados diante de visões tão ―confrangedoras‖.
Embora estivessem estabelecidos no distrito comercial havia catorze anos, os
negociantes de escravos foram proibidos de ali vender novos africanos,
sendo obrigados a mudar seus negócios para o Valongo (KARASCH, 2000,
pp. 73 e 74)

Tanto André Barreto Campello (2018) quanto Sidney Chalhoub (2011) contribuem
para a compreensão desse avanço de direitos conferidos aos escravizados. Embora não seja
algo falado nas tradicionais aulas de História, não era nada incomum o manejo das ações de
liberdade durante o período imperial.
As ações de liberdade107 eram ajuizadas, perante o Poder Judicial, por
terceiros, no papel de curadores de escravos, ou pelos próprios libertos, pelas
quais se deduzia a pretensão de obtenção da alforria ou a manutenção do seu
status libertatis. A pretensão de obtenção de liberdade era imprescritível.
Tais ações, com previsão expressa no art. 7º da Lei nº 2040, de 28 de
setembro de 1871, serviam de instrumento para que, recorrendo o Poder
judicial, por meio curador que lhe representava, o escravo viesse a obter a
alforria não aceita pelo seu senhor (CAMPELLO, 2018, pp. 150-151)

Conforme Agostinho Marques Perdigão Malheiro o magistrado deveria decidir


preferencialmente em favor da liberdade caso estivesse diante de situação em que o direito de
propriedade do senhor não fosse manifestamente evidente (como por exemplo: um indivíduo
que já vivesse como se livre fosse).
O ônus da prova recairia sobre o senhor, já que este estaria contra a liberdade e a
escravidão jamais deveria ser objeto de presunção. Vale destacar que, durante o curso do

107
O autor elenca as diversas ações de liberdade ajuizadas na época como: ações de manutenção de liberdade,
ações de ventre livre, ações de alforria para aqueles negros que chegaram ao Brasil após o trafico ser proibido,
ações de compra de alforria, merecendo destacar que sentença denegatória de liberdade nunca transitava em
julgado enquanto pretensão do senhor em ajuizar ação de escravidão tinha prazo prescricional de cinco anos
(CAMPELLO, 2018, pp. 152-155)
153

processo, o postulante à liberdade ficaria em um depósito controlado por pessoa idônea


(MALHEIRO, 1867, pp. 134-137)
Seguindo a linha de que para alguns atos da vida o escravizado era visto como pessoa
e assim respondia perante a justiça, é imperioso compreender de que maneira a legislação
penal foi estruturada para os atos praticados por uma pessoa nessa condição civil.
O período imperial do Brasil vigorava sob a égide das Ordenações Filipinas que trazia
em si a possibilidade da escravidão, o que não sofreu mudança estrutural sequer com a
Independência do país, posto que alicerçava toda a nossa economia. Com precisão Abdias
Nascimento diz:
O ponto de partida da classe dirigente branca foi a venda e compra de
africanos, suas mulheres e seus filhos; depois venderam o sangue africano
em suas guerras coloniais; e o suor e a força africanos foram vendidos,
primeiramente na indústria do açúcar, depois no cultivo do cacau, do fumo,
do café, da borracha, na criação do gado (NASCIMENTO, 2016, p. 147)

Embora fonte de riqueza, a escravidão também despertava medo, principalmente de


rebeliões orquestradas pelos escravizados. Isso se acentuou após a violenta revolução escrava
ocorrida no Haiti em 1791, sobretudo porque notícias do levante por aqui chegaram 108 e
ocorreu na Bahia aquela que ficou conhecida como a Revolta dos Malês109, que embora não
tenha alcançado êxito por causa de uma delação, gerou verdadeiro pânico no país inteiro.
Destaque-se que à época 28,2% da população de Salvador era composta por brancos, o
que, por si só, simbolizava o risco de que aqui ocorresse contra os senhores toda a barbárie
ocorrida no Haiti.
Vale lembrar que nada tinha de cordial na questão da escravidão: A pessoa que era
escravizada estava sempre à mercê das vontades de seu senhor, sendo assim, não apenas tinha
seu psicológico destroçado, mas também sua integridade física seja por longas jornadas de
trabalho (principalmente nas fazendas), ou mero arbítrio de maus tratos e violência praticada
sobre um indivíduo subjugado como mercadoria.
Em suma, quem (sobre)vivia à essas condições estava permanentemente sob o julgo da
inconstância senhorial, o que decerto também gerava medo. Esse medo poderia deslanchar em
violência contra o seu senhor o que não era nada incomum110. Segundo Jaime Pinsky:

108
André Barreto Campello diz que no Brasil logo após uma revolta em Salvador, no ano de 1814, os
escravizados falavam abertamente sobre ―o rei do Haiti‖ (CAMPELLO, 208, p. 180)
109
Ocorreu entre a noite do dia 24 e a madrugada do dia 25 de janeiro de 1835, em Salvador. Foi liderada por
escravizados de origem Nagô que tinham como objetivo a obtenção da liberdade (CAMPELLO, 2018, p.181).
Vera Malaguti Batista (2003), elaborou excelente obra acerca do medo tomando por base esse levante.
110
Dentre as pessoas escravizadas, ocorreram muitos casos de suicídio e notei que o padecimento por depressão
também parecia ser algo bem corriqueiro e que recebia o nome de ―banzo‖. Lembrei-me, que meu avô paterno,
nascido na Bahia em 1916, explicava que a palavra: ―banzo‖ significava ―saudade da África‖ e que ele aprendeu
154

―assassinatos de senhores, feitores e administradores [e de familiares, mulheres e crianças]


por parte de escravos foi uma constante no decorrer de todo o período escravista‖ (PINSKY,
1981, p. 57).
Ou seja, o escravizado vivia sob o medo constante das violências do seu senhor e os
senhores viviam sob o fantasma da ameaça de uma rebelião escrava. Obviamente todo esse
contexto refletiu na legislação.
Antes mesmo da Revolta dos Malês, o Decreto de 11 de abril de 1829 suspendia a
possibilidade da clemência imperial111, prevista no artigo 101, inciso VIII da Constituição de
1824, àquele escravo condenado à morte por ter atentado contra a vida de seu senhor.
Nesse sentido, André Barreto Campello diz: ―Se pudéssemos qualificar o conjunto de
normas penais aplicáveis às infrações cometidas pelos escravos, à luz das doutrinas modernas,
teríamos, sem dúvidas, a construção de um verdadeiro Direito Penal do Inimigo‖
(CAMPELLO, 2018, p. 174).
Considerando que o negro era tido como inferior, ressentido, bruto, animalizado e que,
ao contrário da história oficial, nunca foi submisso ao processo escravizador, fazia todo o
sentido que fosse tratado como um verdadeiro inimigo interno, conforme a fala de Agostinho
Marques Perdigão Malheiro: ―o escravo não é só reputado um inimigo doméstico, mas ainda
um inimigo público, pronto sempre a rebelar-se‖, dessa forma o sujeito escravizado passava a
ser construído como um ser humano animalizado que punha em risco a própria segurança da
nação, cabendo a esse homo sacer, um tratamento legislativo de exceção, tal qual hoje vemos
nas legislações de emergência.
Apenas para lembrar, a Revolta dos Malês ocorre em janeiro de 1835 e já em junho
promulga-se uma lei112 para o controle dessa ameaça. Ou seja, o inimigo já estava em
construção e a Revolta dos Malês apenas deu mais um empurrão.
Em 10 de junho de 1835, o Senado aprova uma legislação determinado que
quando fossem condenados à morte os escravos deveriam ser executados

isso com descendentes de pessoas escravizadas com quem conviveu. Hoje, vejo que o termo ganhou uma
conotação romantizada, e não sei se assim foi aprendido por esse meu avô, que embora tivesse nascido quase
vinte anos após a abolição, ainda teve em sua criação a presença de uma ―ama-de-leite‖ e de uma babá chamada
Dedé, provavelmente descendentes de pessoas escravizadas, cujas memórias são passadas através da história
oral.
111
Em 11 de abril de 1829, D. Pedro I, mesmo com suas prerrogativas de moderador e com a Lei de 6 de
setembro de 1826, espolia de seu direito de perdoar ou moderar, dali em diante, as penas impostas contra
escravos que matassem seus senhores. Diz ele que todas as sentenças contra escravos por morte feita a seus
senhores fossem de logo executadas, sem ter de irem à sua consulta (SANTOS, 2010, p. 5)
112
Lei nº 04 de 10 de junho de 1835: Art. 1º - Aos condenados, em virtude do artigo 4º da lei de 10 de junho de
1835, não é vedado o direito de petição de Graça ao Poder Moderador nos termos do artigo 101, parágrafo 8º da
Constituição e Decreto de 11 de setembro de 1826. Art. 2º - A disposição do artigo antecedente não compreende
os escravos que perpetrarem homicídios em seus próprios senhores, como é expresso no Decreto de 11 de abril
de 1829, o qual continua no seu rigor.
155

sem a interposição de qualquer recurso. Passou a estar presente a


discriminação mais odiosa que poderia existir que era a ausência do mais
amplo direito de defesa (DIAS, 2016, p.78)

De qualquer forma, voltando apenas alguns anos, é possível observar que foi o Código
Criminal do Império foi a primeira lei a enxergar de maneira explícita o negro escravizado
como um ser humano. Assim concluo que: para lucrar ele era coisa, para punir ele era pessoa,
portanto um semovente sui generis, visto como ―gente‖ no âmbito penal.
A pena de morte (...) no contexto do Código Penal de 1830 e do Código de
Processo Criminal de 1832, conforme presente nos debates do parlamento
daquela época adotava um nítido caráter de ameaça aos escravos e libertos.
Tínhamos nesse caso a adoção de uma legislação criminal e processual penal
como instrumento direto da subjugação da classe oprimida dos escravos e
libertos (DIAS, 2016, p 83)

De fato, no âmbito penal, se ele fosse vítima também teria o status de pessoa no
sentido de que, caso atentassem contra a integridade física do escravizado, isso não seria
considerado como crime de dano ―e sim ofensa física, para ser punido como tal, embora o
ofensor fique sujeito a indenizar o senhor‖ (MALHEIRO, 1867, p. 33). Afinal aquele que
atentou estaria ―estragando‖ a propriedade do senhor.
Da mesma forma, um escravizado, poderia ser testemunha, como mostra Sidney
Chalhoub ao explanar detalhadamente o (curioso e cômico) processo em que diversos negros,
que seriam comercializados, foram acusados de atentar contra a vida do vendedor de escravos
José Moreira Veludo. Nesse caso, o escravo Tomé113 (fiel a Veludo) prestou seu depoimento
com riqueza de detalhes (CHALHOUB, 2011, pp. 32-39).
Ao proprietário da pessoa escravizada também não era legalmente permitido que este
fosse autorizado a matá-lo, o que não significa que isso não fosse comum, sobretudo nas
fazendas afastadas do centro urbano. Ao contrário, portanto, de um semovente, como um
gado, o senhor que matasse uma pessoa escravizada poderia vir a responder pelo crime de
homicídio previsto no artigo 192 do Código Criminal do Império.
Portanto, a decisão sobre a vida ou sobre a morte o senhor não tinha, mas tinha
autorização para causas lesões, contando que fosse dentro do permitido pela lei. Era uma
espécie de crime justificado, cujo controle não era muito simples de ser feitos em fazendas

113
Por que cômico? No caso estudado, embora o comerciante Veludo tenha sofrido lesões extremamente graves
por tanto apanhar, ele ponderou e concluiu que entre ver seus algozes condenados ou vê-los absolvidos era
melhor, financeiramente falando, a segunda opção, já que poderia se desfazer de todos eles vendendo-os. Assim,
o próprio Veludo contrata um combatente advogado de defesa para seus algozes. Ocorre que, uma testemunha
ocular dos fatos era justamente o seu escravo Tomé, que para mostrar fidelidade ao seu senhor, prestou
depoimento com riqueza de detalhes quanto à conduta de cada um dos acusados. Obviamente isso complicou
sobremaneira a atuação da defesa, o que contrariava os objetivos de seu proprietário, ora vítima, o senhor
Veludo.
156

afastadas. Isso corrobora com a resistência dos negros citados por Sidney Chalhoub (2011)
que se rebelavam contra suas vendas para fazendas, onde, caso morressem em decorrência de
ferimentos causados por esse excesso, lá mesmo seriam enterrados, sem intervenção de
autoridade alguma (MORAES, 1986, p. 177).
Foi apenas com o Código Criminal do Império de 1830 que o número de açoites teve
limitação, para que fosse garantida a integridade física do objeto do senhor, sua força de
trabalho, verbis:
Art. 60. Se o réo fôr escravo, e incorrer em pena, que não seja a capital, ou
de galés, será condemnado na de açoutes, e depois de os soffrer, será
entregue a seu senhor, que se obrigará a trazel-o com um ferro, pelo tempo, e
maneira que o Juiz designar.
O numero de açoutes será fixado na sentença; e o escravo não poderá levar
por dia mais de cincoenta (IMPERIO DO BRAZIL, Código Criminal de
1830)

Posteriormente, o Imperador D. Pedro II, através da Lei nº 3.310 de 15 de Outubro de


1886 revoga o supracitado artigo 60 do Código Criminal, bem como as disposições acerca da
pena de açoites elencadas na famigerada Lei nº. 4 de 10 de Junho de 1835. Seu artigo 1º além
de revogar as penas de açoites esclarecia que a pessoa escravizada que viesse a ser condenada
teria um único futuro: a prisão.
Ao réo escravo serão impostas as mesmas penas decretadas pelo Codigo
Criminal e mais legislação em vigor para outros quaesquer delinquentes,
segundo a especie dos delictos commettidos, menos quando forem essas
penas de degredo, de desterro ou de multa, as quaes serão substituidas pela
de prisão (IMPERIO DO BRAZIL, Lei nº 3.310 de 1886)

Por fim, após a República, tivemos o Código Penal dos Estados Unidos do Brazil
(Decreto nº 847, de 11 de outubro de 1890), dois anos após a abolição da escravidão, onde
não mais se elencava as penas de açoites.
É importante deixar consignado que a pena de açoites nunca encontrou previsão legal
de aplicação para homens livres, apenas para escravos que após açoitados, acabavam por ter
que voltar de imediato ao trabalho, demonstrando que essa penalidade visava, além de gerar
dor, desmoralizar mais ainda aquela ―não-pessoa‖.
Essa pena poderia ser do modo judicial ou no âmbito doméstico, sendo a segunda
hipótese considerada pior, posto que de mais difícil controle (CAMPELLO, 2018, pp 192-
193). Até mesmo quando realizadas judicialmente, a ―perseguição‖ aos escravos era feita por
juízes de paz que despachavam de suas casas confundindo o ambiente privado com o público.
Nesse sentido, a punição de pessoas escravizadas flertava sempre com essa indistinção: ora,
157

os proprietários as puniam de maneira pessoal, ora as entregavam para que a punição fosse
feita pelo Estado, mesmo com acusações de âmbito particular (PINAUD et al., 1987).
Não pretendo me alongar com as indizíveis barbáries realizadas em nosso país ao
longo do período da escravidão, mas apenas sinalizar a forma como nosso país (não) soube
lidar com sua própria responsabilidade.
Hipocritamente, o período da escravidão foi romantizado, o negro foi rotulado como
inferior, mas forte para o trabalho, criou-se o mito da democracia racial e qualquer tentativa
de intervir nesse discurso para a ser lida como uma forma de sectarismo tendente à romper
com uma suposta ―sociedade cordial, pacífica e democrática‖ (mas que no Estado do Rio de
Janeiro em pleno século XXI, muda linhas de ônibus para impedir que esses indesejáveis
cheguem às áreas nobres da cidade). A segregação do negro no Brasil foi realizada de maneira
cruel e capciosa. Não obstante todo o discurso da cordialidade e da democracia racial
fortemente construído, sempre foi possível verificar a marca identitária do inimigo inclusive
nos processos:
Nos processos criminais os atores, réus, vitimas etc., eram denominados
pelos apelidos de pretos, pardos e brancos etc. Temos aqui também a queda
do mito de que a sociedade brasileira nunca teve em conta o fator raça. A
raça esteve sempre presente como fator de diferenciação das pessoas (...) A
marca da perseguição a jovens negros por forças policiais também foi um
aprendizado que remonta ao aparelho repressivo da sociedade Imperial
(DIAS, 2016, p. 79)

O que antes, de maneira simples Celso Athayde havia notado com sua experiência
naquele fatídico ônibus ao afirmar ―que alguns nascem com a cor de condenado‖ é o que hoje
ainda aparece como público alvo tanto dos autos de resistência, quanto do encarceramento em
massa, alimentado com a ―guerra às drogas‖.
O inimigo doméstico brasileiro sempre teve o mesmo perfil, sendo esse perfil
historicamente objeto de segregação, esquecimento e invisibilidade. Não se trata de mera
coincidência: o negro é o portador do estigma (THOMPSON, 1998), é ele quem tem a vida
nua, é ele o homo sacer (AGAMBEN, 2014), que será melhor compreendido com a
explicação do racismo estrutural de nossa sociedade.

4.4. A necropolítica dos indignos de vida: Instituto Médico Legal ou o novo “cemitério
de pretos novos”
158

Na entrada do cemitério murado havia um velho em trajes de padre que lia


orações pelas almas dos mortos, enquanto alguns negros perto deles estavam
cobrindo ―seus conterrâneos‖ com um pouco de terra. No meio do cemitério
havia uma ―montanha‖ de terra e cadáveres nus em decomposição,
parcialmente descobertos pelas chuvas. O ―mau cheiro‖ era ―insuportável‖
(KARASCH, 2000, p. 77)

Sítio Arqueológico do Valongo – onde a história brasileira tem seu espaço de memória
mais doloroso, desnudado pela força dos movimentos negros para sua reparação e para a luta
pela sua versão da História: o lado dos oprimidos, dos sobreviventes, de seus descendentes.
Aqui no Rio de Janeiro, no centro da cidade, próximo ao porto, há a marca do pior capítulo de
toda a nossa história: 388 de escravidão.
Em Auschwitz114, na Polônia, considerado como o símbolo máximo do genocídio
provocado pela Alemanha, paradigma de Giorgio Agamben (2004, 2008, 2014), há a
preservação da memória com o intuito de que ela não repita.
Na entrada de Auschwitz há um portão115 com a frase Arbeit macht frei (cujo
significado é: o trabalho liberta). Penso que se nós tivéssemos um portão representativo do
genocídio brasileiro, ele, com certeza, estaria situado no Valongo.
Embora, Hannah Arendt, em sua obra Origens do totalitarismo tenha afirmado ―não
haver paralelos à vida nos campos de concentração. O seu horror não pode ser inteiramente
alcançado pela imaginação justamente por situar-se fora da vida e da morte‖ (2012, p. 589).
Entendo que a experiência totalitária do terror possa sim, ter paralelos, faltando apenas para
seu reconhecimento uma abordagem decolonial.
Porém, segundo Eugenio Raul Zaffaroni, na obra A palavra dos mortos (2012),
destaca que a Holocausto ter ocorrido justamente no centro do mundo colonial pelo Povo tido
como o superior, de maneira orquestrada, fez de fato com que ele se tornasse um paradigma e
não fosse encoberto com as vestes coloniais, Achille Mbembe afirma que ―o Estado nazista
foi o mais completo exemplo de um Estado exercendo o direito de matar‖ (MBEMBE, 2018,
pp. 18-19), posto que os nazistas conseguiram colocar em prática, ao mesmo tempo, tudo que
já havia sido realizado em massacres, indo além, chegando a produzir sabão com os mortos e
a arrancar-lhes os dentes de ouro (ZAFFARONI, 2012, p. 362).

114
Konzentrationslager Auschwitz: era um grupo de 48 campos: de concentração (de trabalho) e posteriormente
também de extermínio.
115
Na verdade em todos os campos nazistas há essa frase. Em Sachsenhausen, campo situado nos arredores de
Berlim, quando visitei fui informada que um de seus diretores falava aos prisioneiros que a única forma de
escapar de lá era através da fumaça dos fornos crematórios. Esse campo, ao fim da guerra passou para o controle
russo, tornando-se o maior campo soviético.
159

Este autor faz importante observação no sentido de que se deve observas as situações
de mortes não necessariamente em decorrência de guerra, mas sim de massacres (preferindo
inclusive o uso da palavra massacre à palavra genocídio) 116, pois, a rigor, o que ocorreu na
América Latina e do Sul, não foi guerra, mas sim ocupação, invasão de território:
A exploração posterior se traduziu em trabalho escravo e transporte de
africanos indefesos, sem se importar com o custo em vidas humanas. Nossos
territórios foram enormes campos de concentração e trabalho forçado sob
controle territorial policial dos colonizadores; não houve guerras, não houve
forcas enfrentadas simetricamente armadas (ZAFFARONI, 2012, pp. 364-
365)

O cais do Valongo, embora não fosse o único local de entrada, foi o que propiciou o
maior desembarque e comércio de negros escravizados. Esse sítio arqueológico foi
considerado patrimônio mundial pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a
Ciência e a Cultura (UNESCO) e é:
O mais contundente lugar de memória da diáspora africana fora do
continente africano, testemunha material do tráfico transatlântico (...). Quase
um quarto de todos os africanos escravizados nas Américas foram trazidos
para o Brasil e, desses, 60 % entraram pelo Rio de Janeiro. A cidade pode
ser considerada o maior porto escravagista da História (...) Em torno do
Cais do Valongo ficavam os armazéns nos quais os cativos recém-
chegados eram expostos e vendidos, próximo ao Lazareto onde eram
tratados os que adoeciam na travessia e próximo do destino dos que morriam
ao chegar: o Cemitério dos Pretos Novos117. Essa região, portanto,
condensa em sua materialidade um conjunto de sítios118 de memória que
remetem à dor e sobrevivência na história de nossos antepassados
(IPHAN) (grifos meus)

No nosso Lager a céu aberto, via-se o comércio humano acontecer com a anuência do
Estado, que, além de cobrar pelos armazéns onde os cativos ficavam literalmente
―armazenados‖ até o momento de sua venda, também se tributava119 a venda de cada ser
humano, salvo crianças abaixo de três anos.
Submetidos a condições degradantes, tanto na travessia nos navios negreiros (ou
tumbeiros – o que me parece uma nomenclatura mais condizente), muitos chegavam mortos
116
Ele traz na obra aproximações de contagem de mortos do século retrasado onde se percebe que há um
apagamento dos casos não eurocêntricos: ―No Congo (1885-1908) 8.000.000; na Africa do Sul (hereros) (1904):
80.000; na Armênia (1915-1922):1.5000.000; na Ucrânia (judeus) (1918-1922): ente 100.00 e 250.00; na
Ucrânia por fome (1932-1933): seu numero causa as maiores dificuldades de cálculo, para alguns autores, supera
os 30 milhões; na União Soviética (1936-1939): 500.000; na Europa (judeus) (1933-1945): 6.000.000 (mais
5.000.000 de ciganos, gays, deficientes e outros); na Indonésia (1965):600.00; em Burundi 9hutus) (1965-1972):
entre 100.000 e 300.000; em Bangladesh (1971) 2.000.000; no Camboja (1975-1979): 2.000.000; em timor
(1975-2000): 200.000; em Ruanda (tutsis) (1994): 800.000‖ (ZAFFARONI, 2012, p. 348)
117
O cemitério dos Pretos Novos é o maior cemitério negro das Américas. Estima-se que lá tenham sido
enterradas cerca de 20 a 30 mil pessoas. Sua redescoberta deu-se, por acaso, em 1996 na reforma de uma casa.
118
Esse sítio arqueológico foi descoberto em 2011 durante a modernização da zona portuária.
119
Trata-se da sisa, o tributo cobrado por mais tempo no Brasil. A sisa incidia à razão de 5% sobre cada pessoa
comercializada, com mais de três anos de idade (DIAS, 2016, pp. 33-34)
160

ou morriam antes mesmo da venda, em razão de epidemias, e até do calor que a tudo
agravava. Para Marcelo Dias, as condições de vida no Valongo ―eram na verdade condições
de morte. Um terrível genocídio. Um holocausto do povo negro. A mortandade entre os novos
africanos tinha dimensões de epidemia permanente‖ (DIAS, 2016, p. 40)
Esses que morriam eram carregados por outros escravos ao cemitério dos pretos
novos, onde ficavam em covas rasas, que facilmente expunham os corpos em putrefação
durante períodos de chuvas.
Impossível não estabelecer aqui relação com o Sonderkommando nazista120. De
maneira bem sintética: Sonderkommando era um grupo escolhido dentre os próprios
prisioneiros dos campos de concentração cuja função era a de fazer o que os nazistas não
queriam fazer, como por exemplo, a limpeza das câmaras de gás e o enterro dos mortos. Seus
membros também eram sempre exterminados, às vezes por membros de seu próprio grupo, a
fim de manter o sigilo dessa função tenebrosa exercida nos campos, por isso há poucos relatos
desses sobreviventes, além obviamente da vergonha inerente ao fazer parte desse trabalho
―sujo‖, por mais que não houvesse opção.
Mas voltando a olhar para nós mesmos, a historiadora Mary Karasch explica que os
escravizados que resistiam ficavam armazenados bem próximo do cemitério: ―Os
sobreviventes eram abrigados tão perto do local de sepultamento de seus malungos
(companheiro de navio negreiro) que também deveriam ver os cadáveres de seus
conterrâneos‖ (KARASCH, 2000, p. 77)
Essa mesma autora, na sua obra sobre a vida dos escravos no Rio de Janeiro (2000),
efetua um dos mais profundos estudos sobre essa temática no período entre 1808 e 1850 e
esclarece que, em razão da legislação proibitiva à traficância de pessoas escravizadas, ficou
maior difícil o acesso às informações sobre esse mercado, principalmente após 1830 121, já que
passou a ser uma atividade ilegal. No entanto, na fase anterior é possível ir ao encontro de
registros que demonstram que:
Os novos africanos no Valongo constituíam um grupo mais homogêneo que
os vendidos em outros lugares: eram geralmente do sexo masculino, de 10
a 24 anos de idade (...) Os viajantes que visitaram o mercado de escravos
antes de 1830 confirmam a pouca idade dos novos africanos. No conjunto os
viajantes sugerem que as crianças em exibição no mercado tinham entre
cinco ou seis e dez anos, enquanto os adolescentes iam de onze ou doze a
quinze anos (KARASCH, 2000. pp. 67 a 69) (grifos nossos)

120
Creio que se Giorgio Agamben tivesse interesse, poderia fazer um projeto homo sacer mais elaborado em
nosso continente, mas isso não é um fracasso, afinal, na virada decolonial prefiro o Sul estudado pelo Sul.
121
O Cais do Valongo foi inclusive aterrado e em seu lugar foi feito, em 1843, o Cais da Imperatriz com a
finalidade de recepcionar a esposa de Dom Pedro II. Isso não significou que o comércio de pessoas escravizadas
não continuasse a ser realizado de maneira dissimulada.
161

Eugenio Raul Zaffaroni afirma que o fenômeno do colonialismo latino-americano


gerou algo chamado autocolonialismo, que nada mais é do que a permanência de massacres
pós-coloniais, calcados numa assimilação do Povo ao seu próprio colonizador, ―parecido e
próximo de nós‖ (ZAFFARONI, 2012, p. 367). Entendo que esse ―nós‖ citado pelo autor deve
ser lido como aqueles que detêm o poder, o Povo com letra maiúscula, o branco, ou o negro
que dentro de sua subjetividade se anulou a ponto de não enxergar em si a sua própria
negritude.
Anna Carolina Cunha Pinto elaborou profunda abordagem acerca do uso tanatopolítico
dos autos de resistência no Brasil, apontando inúmeros dados e analisando-os a partir do ano
2000 até o presente. Tal estudo encontra-se no capítulo chamado O Extermínio em Dados
(2018, pp. 86-108) e será por mim utilizado para demonstrar como o Brasil historicamente
tem a seleção de seu homo sacer.
Não é minha proposta repetir essa análise, mas apenas mostrar que há um padrão de
extermínio, corroborado pelo estado de maneira oficial (através dos autos de resistência122) ou
de maneira subterrânea (através da tolerância de grupos de extermínio – formados
historicamente com membros das forças policiais), nem adentrando na cifra oculta oriunda
dos inúmeros casos de desaparecimentos123 em que se sabe que foi extermínio, mas a ausência
de materialidade com o encontro do corpo atrapalha tal constatação de maneira definitiva
(vide o já citado ―Caso Amarildo‖).
Para a análise de dados Anna Carolina Cunha Pinto trouxe diversos indicadores como
o Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro, a Anistia Internacional (2015, 2017), a
organização Humans Rights Watch (2016), o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2017,
2018), dentre outros que apontam para a mesma situação: a morte de jovens negros no Brasil
é endêmica, ela apenas oscila em conformidade com a política do momento, mas ela é
tolerada desde que o primeiro africano pisou em terras brasileiras.
O Atlas da Violência 2018 é categórico ao afirmar que os negros são as
principais vítimas da ação letal das polícias (FÓRUM BRASILEIRO DE
SEGURANÇA PÚBLICA, 2018, p. 41). Esta é a cor da pele de 76,2%47 das
vítimas dos registros de auto de resistência de 2015 analisados, em 2016,

122
Atualmente chamado de homicídio decorrente de intervenção policial.
123
―Os massacradores temem os cadáveres. A Inquisição e os nazistas os reduziam às cinzas (...) Os cadáveres
tornam-se sagrados e geram lugares de culto‖ (Zaffaroni, 2012, p. 350). Observe que a Candelária, no Rio de
Janeiro, ficou marcada pela chacina de 1993 e a própria criação de disseminação da ―placa‖ em homenagem à
Marielle Franco onde se lê ―Vereadora, defensora dos Direitos Humanos e das minorias, covardemente
assassinada no dia 14 de março de 2018‖ e traz o código de endereçamento postal marcando o lugar de sua morte
(20260-080 – Estácio) é simbólico e gera incomodo a quem quer que tenha envolvimento no fato. Deixo aqui
também minha posição, creio que este caso especifico teve viés político em razão das pautas sustentadas pela
vereadora.
162

pela equipe do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, desta vez para a


publicação Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2017. Em 2015, em
todo o país, foram 4.222 mortos em decorrência desta hipótese de legítima
defesa mediante resistência à prisão (FÓRUM BRASILEIRO DE
SEGURANÇA PÚBLICA, 2017, p.7). Deste número, tem-se
especificamente, além do percentual acima acerca da cor, que 99,3% eram
do sexo masculino, 81,8% tinha entre 12 e 29 anos. Com base nestes dados
podemos afirmar que no Brasil a polícia mata, prioritariamente,
homens negros que são adolescentes ou jovens (PINTO, 2018, p. 98)
(grifos meus)

Michel Misse, coordenador do Núcleo de estudos da cidadania, conflito e violência


urbana (NECVU), da Universidade Federal do Rio de Janeiro e também autor do livro Autos
de resistência: uma análise dos homicídios cometidos por policiais na cidade do Rio de
Janeiro, afirma que ―Nenhuma polícia de país civilizado mata mais que a do Estado do Rio de
Janeiro‖ (MISSE, et al, 2015, p. 54).
Ele corrobora a seletividade da atuação policial sobre as populações pobres
(consequentemente negras em razão da ausência de reparação em nossa história) inicialmente
(começo do século XX), sobre demandas de origem moral como ocorria com o crime de
vadiagem.
Contudo, em razão do aumento de delitos contra a propriedade, surge de maneira
embrionária, dentro da própria polícia, os chamados grupos de extermínio (MISSE, et al,
2015, p. 55).
A necessidade do público por respostas rápidas como justiça e vingança nesse aspecto
é de relativa importância. Para Achille Mbembe o atuar político deve ser lido ―tanto como a
força móvel da razão quanto como a tentativa errática de criar um espaço em que o ―erro‖
seria minimizado, a verdade reforçada e o inimigo eliminado‖ (MBEMBE, 2018, pp. 22-23).
Assim, tanto a polícia agindo oficialmente de maneira arbitrária quanto a mesma polícia
agindo subterraneamente com o intuito de chegar aos mesmos fins, ou seja: acabar com o
inimigo, é tolerada.
Nesse ponto, José Cláudio Souza Alves, autor do livro Dos barões ao extermínio: uma
história da violência na Baixada Fluminense (2003), ajuda a compreender como começou
esse atuar paralelo:
A ação organizada dos matadores associa-se diretamente à ditadura militar.
Ainda nos anos 1950, integrantes de grupos como ―Homens de Ouro‖
(policiais protegidos por superiores com liberdade para agir arbitrariamente,
inclusive matar) ou mesmo policiais isolados ganharam notoriedade e fama
de ―justiceiros‖ na região assassinando bandidos (ALVES, 2007, p.37)
163

O estudo de José Cláudio Souza Alves foi realizado na Baixada Fluminense124, por ele
rotulada como:
Um imenso campo de concentração sem arame farpado. Ali, 2.500 pessoas
são assassinadas por ano, à razão de cinco a seis por dia. A média – 76
assassinatos por 100 mil habitantes – é bem superior ao número de
homicídios (50 por 100 mil habitantes) que caracteriza, conforme os padrões
da ONU, regiões conflagradas pela guerra (ALVES, 2007, p.36)

Ele explica que, embora houvesse participação direta de membros da polícia nas
execuções, também havia aqueles que financiavam a fim de ter garantia de proteção.
Obviamente, também era preciso o amparo político, que se fazia viável pela relação
com a ditadura: ―Conquistavam prestígio junto aos eleitores ao eliminar supostos marginais e
garantiam os lucros de comerciantes e empresários que financiavam suas campanhas
eleitorais‖ (ALVES, 2007, p.37):
O que a mídia chama hoje de ―milícias‖ nada mais são do que grupos de
extermínio que mudaram de nome. Encobrem os crimes praticados por
policiais, que passam a controlar o poder político e econômico nas favelas,
substituindo as facções criminosas (...) O poder político e econômico gerado
pelo crime aprofundou suas raízes ao longo do tempo, alterando a própria
realidade de funcionamento do estado e do mercado (...) Por trás do lema
utilizado por um político fluminense egresso dos grupos de extermínio
―bandido bom é bandido morto125‖, oculta-se não apenas o crime anunciado,
mas a aprovação da prática da execução sumária pelos que o elegeram
(ALVES, 2007, p. 39)

Embora o autor traga uma fala de 2007, ela parece ser extremamente atual, uma vez
que em nada difere do que hoje temos como milícias e suas promíscuas relações com políticos
(que inclusive lhes rendem homenagens). Não é poder paralelo, é mais complexo, é misturado
e nasceu do próprio Estado.
É justamente dentro do Estado que se aloja a estrutura de
funcionamento desses grupos criminosos, que vivem da economia gerada
por ações ilegais e violentas. Mas o lucro principal são as vantagens de
determinados grupos políticos na obtenção de votos. A atuação cada vez
mais violenta do aparato policial em comunidades pobres, em nome da
segurança dos cidadãos de bem, costuma agradar a classe média e,
consequentemente, rende dividendos políticos aos que a defendem Só que
nessas ações centenas de pessoas são mortas e feridas, milhares de crianças

124
Reúne oito municípios do Rio de Janeiro: Duque de Caxias, Belford Roxo, Mesquita, São Joao de Meriti,
Nilopolis, Nova Iguaçu, Queimados e Japeri, famosos pela violência.
125
O político fluminense, que bradava ―bandido bom é bandido morto‖ para ter êxito em sua eleição foi José
Guilherme Godinho, conhecido por Sivuca. Ele foi delegado, eleito deputado estadual em 1996 e foi presidente
da Scuderie Le Cocq, grupo criado para vingar a morte de Milton Le Cocq, policial que integrou a guarda
pessoal do Presidente Getúlio Vargas. Seu assassino, Manoel Moreira, vulgo Cara de Cavalo, foi morto por
Sivuca. As iniciais "E.M." no brasão significava "Esquadrão Motorizado", mas acabou tornando-se conhecido
por ―esquadrão da morte‖ cujo símbolo era uma caveira (coincidência ou não, símbolo do BOPE – Batalhão de
Operações Policiais do Estado). Um de seus membros de maior destaque foi o Mariel Araújo Mariscöt de
Mattos, conhecido em razão de seus diversos assassinatos.
164

ficam impedidas de ir às aulas e operários não conseguem chegar ao


trabalho, pois se o fazem arriscam-se a ser mortos (ALVES, 2007, p. 38)
(Grifos meus)

Nilo Batista, no texto Política Criminal com derramamento de sangue, explica que a
política criminal é parte da politica social (1997, p.129) e que essa indiferença ou até mesmo
incentivo – obviamente daqueles que clamam, mas jamais são o alvo - às rotinas policiais
(oficiais ou subterrâneas) de extermínio, sinaliza para algo que já faz parte do Povo fraturado
como técnica eficiente biopolítica (AGAMBEN, (2015, p. 35).
Quando a polícia executa (valendo-se de expedientes encobridores os mais
diversos, da simulação de confronto ao chamamento de autoria de gangues
rivais) um número constante de pessoas, verificando-se ademais que essas
pessoas tem a mesma extração social, faixa etária e etnia, não se pode
deixar de reconhecer que a política criminal formulada para e por essa
policia contempla o extermínio como tática de aterrorização e controle do
grupo social vitimizado (BATISTA, 1997, p.129) (Grifos meus)

De qualquer forma, esse é um dos olhares acerca das eventuais mortes: a que utiliza o
direito penal de maneira subterrânea com grupos de extermínio/milícias.
Já tomando por parte o discurso oficial, proponho voltar ao ponto em que falava da
polícia, atuando amparada num sistema que permite que ela mate de maneira sistemática.
Como amplamente analisado por diversos autores nas situações denominadas como autos de
resistência.
Neste sentido, foi o estudo da Anna Carolina Pinto Cunha (2018), da Ana Luiza
Pinheiro Flauzina (2006), do Orlando Zaccone (2015), do Sérgio Verani (1996) e o livro
jornalístico de Caco Barcellos (1997), bem como dois documentários: ―À queima-roupa‖
(2014)126 e ―Auto de resistência‖ (2018)127
Num primeiro momento, vale destacar de onde é que veio tal instituto:
O procedimento administrativo chamado ―auto de resistência‖ foi criado em
1969 pela Superintendência da Polícia do então Estado da Guanabara.
Utilizou-se, como base legal, o artigo 292128 do Código de Processo Penal
(1941), que autoriza o uso de meios necessários para ―defender-se ou para
vencer a resistência‖ à prisão em flagrante. Com a instituição do auto de

126
Partindo da Chacina de Vigário Geral de 1993, o documentário investiga a violência e a corrupção policial
praticadas no Rio de Janeiro nos últimos 20 anos. Uma dura apresentação dos fatos brutais mais marcantes por
meio de entrevistas com vítimas e familiares, imagens de arquivo e cenas ficcionais reconstruindo a memória dos
sobreviventes.
127
O filme acompanha a trajetória de personagens que lidam com essas mortes em seus cotidianos, mostrando o
tratamento dado pelo Estado a esses casos, desde o momento em que um indivíduo é morto, passando pela
investigação da polícia, até as fases de arquivamento ou julgamento por um tribunal do júri.
128
―Art. 292. Se houver, ainda que por parte de terceiros, resistência à prisão em flagrante ou à determinada por
autoridade competente, o executor e as pessoas que o auxiliarem poderão usar dos meios necessários para
defender-se ou para vencer a resistência, do que tudo se lavrará auto subscrito também por duas testemunhas‖
(Grifos meus)
165

resistência, dispensava-se a necessidade da prisão em flagrante dos


policiais ou mesmo de abertura de inquérito sobre o caso. A criação
desse procedimento coincide com a entrada da Policia Militar, antes uma
força auxiliar aquartelada, no policiamento ostensivo e cotidiano da cidade,
em substituição à antiga guarda civil (MISSE, et al, 2015, pp. 57-58) (Grifos
meus)

Portanto, o procedimento utilizado pelo Estado para autorizar que o agir policial possa
servir para a necropolítica, originou-se no período de ditadura militar. Não bastasse isso,
durante o mandato do governador Marcelo Alencar (1995-1999), no Rio de Janeiro, houve um
incentivo à essa prática com a instituição da popularmente chamada ―gratificação faroeste‖.
Neste sentido:
Vigia no Estado do Rio de Janeiro a ―gratificação faroeste‖ implementada
através do Decreto nº 21.753, de 8 de novembro de 1995, pelo governador
Marcello Alencar. Através deste decreto, Alencar estabeleceu a
incorporação, a título de prêmio, por mérito especial, de um pecúlio ao
salário do policial que prendesse ou matasse criminosos. A gratificação de
encargos especiais era incorporada individualmente após concessão
ordenada pelo secretário de segurança, o General Cerqueira, e variava de
50% a 150% dos vencimentos do servidor premiado (...). A gratificação
esteve em vigor até 1998 quando a Assembléia Legislativa do Estado do Rio
de Janeiro (ALERJ) a extinguiu (PINTO, 2018, p. 95)

Há um fato curioso bastante curioso nesse desenrolar da história: após a extinção da


gratificação faroeste, ao invés dos índices de letalidade oriundos de autos de resistência
reduzirem, ocorreu o oposto: eles aumentaram!
Anna Carolina da Cunha Pinto, que se debruçou sobre a análise de dados, explica que
o Instituto de Segurança Pública apenas passou a realizar a divulgação desses relatórios,
referentes à capital do Rio de Janeiro, a partir do ano 2000. Ela mostra que houve:
Aumento significativo destas mortes após o ano 2000: de 278 autos
registrados no ano em questão, este número aumenta para 381 em 2001 e
615 em 2002 (...) Em 2003 foram computados 798 homicídios decorrentes
de intervenção policial. Embora menor do que em 2003, o ano de 2004
também apresenta um número superior de autos de resistência comparado à
gestão anterior: 676. Novamente o número de autos de resistência aumenta
em 2005 ultrapassando, novamente, a marca de 700 homicídios ao serem
registrados 707 autos de resistência (PINTO, 2018, p. 102)

De 2006 até 2010 esse número passou de mil por ano, o que é um valor absurdo
considerando que não se teve (e não se tem!) uma real situação de guerra. O que se tem é uma
política voltada principalmente para o combate ao comércio ilegal de drogas, que, por sua vez,
gera a morte potencialmente de pessoas não–brancas, sejam cidadãos do povo sejam policiais.
166

É dessa maneira o Brasil consegue ser o líder em números ―da polícia que mais mata‖,
―da polícia que mais morre‖ e ―da polícia que mais se mata‖129, obviamente que cada situação
contando com suas particularidades. Havendo um ponto comum: o perfil dos mortos é o do
nosso homo sacer, desde que o Brasil é Brasil, e segue trazendo a ―carne mais barata do
mercado‖ para as covas ou para as valas. O pesquisador de violência, Ignácio Cano constata
que:
Não há dúvidas de que as vítimas civis da intervenção policial são
significativamente mais escuras que o restante da população. Brancos,
por exemplo, representam 60% da população da cidade, 51% das vítimas
acidentais, 43% dos opositores feridos e apenas 30% dos opositores mortos.
No outro extremo, pretos representam apenas 8% da população citadina, um
quarto das vítimas acidentais, 27% dos opositores feridos, 30% dos
opositores mortos. Assim, é três vezes mais provável que pretos sejam
feridos ou mortos pela polícia do que seria esperado pela porcentagem
geral desse grupo na população (CANO, 2014, pp. 26-27) (Grifos meus)

Michel Misse aponta que a redução no número de mortes em decorrência de autos de


resistência neste período podem ter ocorrido em razão da implementação das unidades de
polícia pacificadora (UPPs), sendo efeito decorrente da redução dos grupos revendedores de
drogas ilícitas, o que, consequentemente também reduziria as situações de confronto (MISSE,
et al, 2015, p. 57).
Isso, no entanto, não trouxe efetivamente uma situação de paz, pois além do
desaparecimento de pessoas (como o caso do Amarildo), houve exacerbado controle sobre
essas populações, como por exemplo, com revistas infundadas e toque de recolher, privando a
cultura na favela.
A vereadora Marielle Franco, moradora do Complexo da Maré (um dos locais
―pacificados‖), apontou em sua dissertação UPP- A redução da favela a três letras (2014) as
diversas opressões decorrentes do programa: ―De acordo com o ISP, dentre as 33 unidades
existentes no período, em 25 UPPs há casos de denúncias contra a atuação dos agentes‖
(FRANCO, 2014, p.79)
Também cabe ser considerado que, embora tenha havido a redução dos autos de
resistência, não se pesquisou se essas mortes foram compensadas por mortes causadas pelas
milícias (MISSE, et al, 2015, p. 57), que aumentaram sobremaneira a sua influência na cidade
e na política com o passar desses anos. De todo modo, os índices de morte voltaram a subir e,

129
Ver sobre dados referentes tanto às mortes causadas por policiais, quanto às mortes sofridas por policiais
dentro e fora de serviço (MARTIN, 2007) e ver o índice alarmante de suicídios entre os policiais militares do
Estado do Rio de Janeiro (MOREIRA; PICOLO, 2019)
167

impregnados pelo racismo estrutural regente de nossa Historia, seguimos com o mesmo perfil.
Enxergando o negro como inimigo interno:
Enquanto cerca de metade da população do Rio de Janeiro é negra,
negros somam mais de três quartos das pessoas mortas pela polícia em
2015. A maioria dessas vítimas eram jovens do sexo masculino. Um estudo
sugere que mais da metade dos membros da polícia militar do Rio de
Janeiro são negros e que um em cada seis cresceu em uma favela, onde o
percentual de moradores negros é mais alto do que em bairros mais
prósperos. Mas a diversidade racial na polícia não elimina a
discriminação no contexto de uma cultura que pode predispor policiais a
enxergarem jovens pobres negros como ameaças (HUMAN RIGHTS
WATCH, 2016, pp. 41-42) (Grifos meus)

Há, na realidade, a nítida sensação de que ainda existem ―capitães do mato‖, só que
fardados. Contudo, não há como atribuir todo esse peso de culpa sobre a Polícia Militar no
que diz respeito aos autos de resistência.
Orlando Zaccone no livro Indignos de vida (2015), conseguiu com propriedade
mostrar toda a engrenagem, todos os dispositivos que possibilitam esse quadro necropolítico.
Sérgio Verani, já havia feito algo parecido com o seu Assassinatos em nome da lei (1996),
contudo não pode, à época, aprofundar da maneira que Orlando Zaccone fez ao esmiuçar as
responsabilidades nas ―divisões de tarefas homologatórias da morte‖, lembrando a
banalização do mal de Eichmann em Jerusalém (ARENDT, 1999).
Parafraseando um dito popular: ―se todo mundo trabalhar direitinho‖, todos os autos
de resistência serão arquivados (o que talvez se torne mais fácil considerando a política do
atual governador Wilson Witzel, já falada anteriormente).
Orlando Zaccone (2015, p. 141) realiza a análise de 314 inquéritos provenientes de
situações caracterizadoras de supostos autos de resistência na cidade do Rio de Janeiro onde
os Promotores de Justiça se manifestaram pelo arquivamento, sendo que desses somente 8%
foram indeferidos, coincidentemente pelo mesmo juiz130 em atuação na 1ª Vara Criminal da
Capital (ZACCONE, 2015, p. 192).
Há um modus operandi para que esses arquivamentos ocorram e isso é bem retratado
por Michel Misse:
Em geral as testemunhas dos autos de resistência tendem a ser apenas os
próprios policiais envolvidos no homicídio (...) Esta formalização da
culpabilidade das pessoas mortas é o primeiro passo do processo – quase
sistêmico – de incriminação das vitimas, dando início à narrativa que
justifica o seu óbito (...) Compõem uma narrativa-padrão, que visa legitimar
a ação policial em legitima defesa: a declaração do policial militar passa a

130
Que é o juiz que participa do documentário ―Auto de Resistência‖ (2018), já falado anteriormente.
168

ser uma versão formulada pela Polícia Civil, ganhando o status de ―fato‖
(MISSE, et al, 2015, pp. 57-58).

Orlando Zaccone (2015, pp 164-165) observa que a construção da narrativa


justificadora da morte parte do pressuposto da vida que vale menos, da vida nua, que é a de
um ―possível‖ bandido.
Por isso, ele apontou que é praxe nesses inquéritos ter anexada a folha de antecedentes
do morto, mas não ter a de quem o matou e, também, caso haja a presença de outras
testemunhas, essas serão induzidas a falar não da ocorrência do fato gerador da morte do
suspeito, mas sim da ―construção do morto como inimigo‖, centrando-se em sua
caracterização moral: se trabalhava, se estudava, se usava drogas.
É comum entre policiais civis e militares de que bandidos ―merecem morrer‖
e de que a ação letal da polícia é justificável se o morro tiver tido, em algum
momento de sua vida, envolvimento com práticas criminosas (...) Há um
senso comum generalizado, não apenas entre policiais, mas entre atores das
demais instituições da Justiça Criminal e na opinião pública como um todo,
de que matar um criminoso não constitui crime (...) Para além de um
imperativo moral, ―matar bandido‖ aparece como uma obrigação funcional
do agente de segurança pública enquanto cidadão cumpridor de suas
atribuições, operando certa manutenção de posições de poder131 (MISSE, et
al, 2015, p. 59)

O documentário intitulado ―A Queima Roupa‖ (2015), traz em sua última cena uma
manifestação contra uma morte causada pela Policia Militar. Nela os moradores gritam ―Ô, Ô,
Ô / a Polícia Militar / matou um trabalhador‖, o que demonstra que os próprios oprimidos
seguem à risca a lição dos opressores.
Também há no documentário ―Auto de Resistência‖ (2018) filmagem em que policiais
são flagrados colocando o chamado ―kit bandido‖ ao lado de um indivíduo que foi executado.
Michel Misse (et al, 2015, p. 59) já havia afirmado em sua pesquisa que tanto policiais
quanto promotores comentam que é comum a utilização de material forjado para ―incriminar‖
o morto.
Dessa maneira, resta evidenciado que:
Mesmo na pós-modernidade a sociedade republicana e seu aparelho
repressivo continuam a enxergar os jovens negros dos dias atuais com os
olhos que eram olhados os jovens escravos e libertos, que representam

131
Abaixo transcrevo o que foi cantado no treinamento do BOPE que simboliza muito bem essa visão de
eliminar o inimigo: ―É o Bope preparando a incursão / E na incursão / Não tem negociação / O tiro é na cabeça /
E o agressor no chão. / E volta pro quartel / pra comemoração‖. Sim, a música fala em comemorar mortes numa
cidade que não está em guerra. A outra ganhou fama no filme Tropa de Elite: ―Homens de preto, / Qual é a sua
missão? / Entrar pela favela / e deixar corpo no chão‖. Novamente é bem fácil saber quem será morto.
Disponível em: <http://g1.globo.com/globo-news/noticia/2013/05/tropa-do-bope-canta-grito-de-guerra-que-faz-
apologia-violencia.html> Acesso em: 15/03/2019.
169

sempre uma ameaça em potencial. Mudaram-se os instrumentos de


contenção social da juventude negra. No Império, a pena de morte e as
constantes execuções de pessoas negras escravas. Na República, a morte sem
pena, uma vez que as forças policiais entram nas comunidades negras e
pobres atirando para matar indiscriminadamente (DIAS, 2016, p. 79) (Grifos
meus)

E assim, trago o destino daqueles rotulados como indignos de vida, já que - para o
homo sacer - o arquivamento será a tendência natural nos casos de autos de resistência: a
homologação da legitimidade da morte.
Por essa causa, enxergo no Instituto Médico Legal132 um novo cemitério dos pretos
novos, posto que é lá que os familiares do morto terão que buscar dentre tantos outros mortos,
para dar a dignidade de um enterro, para aquele cuja vida não vale.

132
Na Chacina das 19 pessoas ocorrida em 2007 no Complexo do Alemão, quando eu fazia parte da Comissão de
Direitos Humanos e Assistência Jurídica da OAB/RJ, presenciei a agonia de estar no IML acompanhando
familiares que ansiavam pelos corpos para que pudessem realizar o reconhecimento e o enterro, pois sempre
pairava sobre eles o medo do desaparecimento. Tal fato encontra-se narrado na obra Criminologia, segurança
pública e direitos humanos: um estudo sociológico-criminal das violações e resistências: o caso alemão (2018)
de Roberta Duboc Pedrinha.
170

5. O GRANDE ENCARCERAMENTO BRASILEIRO: SUAS BASES E NÃO


RUPTURAS

É verdade, tudo verdade. Aquela que se conta agora, não a que por muito tempo se
acordou, por mera conveniência do vencedor (...) Precisamos ir ao passado para
resgatar a origem, os vínculos biológicos e familiares, o sentimento de
pertencimento a esse mundo, restabelecer os laços partidos. No presente, devemos,
urgentemente, replicar a consciência e a defesa de ideais civilizatórios, a liberdade,
a igualdade, a fraternidade, o reconhecimento do outro, a dignidade da pessoa
humana, pressupostos de convivência pacifica entre os povos, para, assim, no
futuro, evitar que a barbárie se perpetue. A mesma que continua a vitimar e
encarcerar negros e pobres. A mesma que autoriza o Estado a pratica uma politica
perversa de segurança pública que vira o rosto para o massacre de jovens nas
favelas, comunidades e recantos abandonados do nosso país
Marcello Oliveira

Barbárie: palavra cujo significado133 vem cunhar a crueldade, a selvageria, o ato de


afligir a tranquilidade de determinado grupo. Quando tratamos da questão do grande
encarceramento brasileiro é preciso, para que se tenha um olhar mais apurado, revisitar os
episódios históricos e traumáticos ligados à questão da escravidão encarando as
consequências deste legado.
Mesmo que, sendo branca, eu não tenha escravizado ninguém, em razão de inúmeras
gerações que se passaram desde então, é necessária a reflexão acerca de nossas estruturas
pautadas pelas relações de dominação, da mesma forma que, o negro, mesmo não tendo sido
escravizado na atualidade, vive sob o reflexo de seus ancestrais que o foram sob o reflexo de
uma sociedade que o diminui enquanto humano e que, observando os índices de morte
violenta e de encarceramento, segue atuando de maneira necropolítica (MBEMBE, 2018),
neste sentido:
A percepção do modelo de supremacia branca pode ser evidenciada pelos
efeitos desproporcionais e violentos sobre corpos negros e indígenas, mas
deve ser igualmente percebida através do sistema de privilégios e vantagens
injustificáveis que beneficiam corpos brancos (PIRES, 2018, p. 1057)

Em suma, num país miscigenado, ainda temos o branco sendo a cor do privilégio e o
negro, sendo a cor da exclusão, algo impregnado na nossa história e na história de outros
países que viveram a escravidão sendo que, conforme diz a ativista Deborah Peterson
Small134, ―A repressão racial se dá, ainda hoje, pela via da Justiça. É uma forma de

133
Não se pretende aqui nenhuma aproximação com o conceito de barbárie Marxista.
134
Deborah Peterson Small, graduada em Direito e Políticas Públicas pela Universidade de Harvard, é uma
liderança na luta pela reforma das políticas de drogas e no enfrentamento ao racismo nos Estados Unidos da
América. É também fundadora da organização Break the Chains, que visa mostrar os efeitos nefastos da guerra
às drogas.
171

institucionalizar o racismo‖ (SMALL, 2016, p. 01). Neste mesmo sentido é a fala de Juliana
Borges:
O sistema de justiça criminal tem profunda conexão com o racismo, sendo o
funcionamento de suas engrenagens mais do que perpassados por esta
estrutura de opressão, mas o aparato reordenado para garantir a manutenção
do racismo e, portanto, das desigualdades baseadas na hierarquização racial
(BORGES, 2018, p.16)

Logicamente, para que haja o grande encarceramento nas proporções em que tem
ocorrido, há a necessidade de se reconhecer o funcionamento de dessas engrenagens, dos
dispositivos que surgem desde uma legislação permissiva para a exceção da barbárie até o
atuar policial, culminando com a responsabilidade do Poder Judiciário que chancela esse
encarceramento da juventude pobre e negra, afinal, ―Estados de exceção exigem também
juízes de exceção: se não fosse assim a exceção não confirmaria como desejável regra‖
(ROSA; KHALED JR, 2014, p.110).
Salo de Carvalho (2015), em artigo intitulado O encarceramento seletivo da juventude
negra brasileira: a decisiva contribuição do Poder Judiciário trata de sua pesquisa feita em
pós-doutoramento acerca dessa questão. Ele aborda as diversas responsabilidades que
viabilizaram o alcance da terceira maior população carcerária do mundo - notadamente tendo
a guerra às drogas como um excelente sistema de controle político e econômico das classes
menos favorecidas, onde não por acaso, situam-se os negros.
Marcelo Semer, por sua vez, traz a mais recente pesquisa empírica debruçada sobre
decisões judiciais acerca desse tema. Nela restou evidenciada, mais uma vez, que o sistema
penal opera tendo como ―cliente‖ preferencial o pobre. Ele observa que há em decorrência da
guerra às drogas, uma grande atuação policial na vigilância de rua, preferencialmente em
espaços já segregados, e que isso, na visão dele, ―tem tornado o encarceramento brasileiro
paulatinamente mais feminino - mantendo e aprofundando, todavia, a sobrerepresentatividade
negra nos cárceres‖ (SEMER, 2019, p. 457), apontando para a questão já estudada por
feministas negras acerca da interseccionalidade135.

135
Apesar de ter tido contato com obras acerca da interseccionalidade e verificar a questão atual acerca do
exacerbado encarceramento feminino, que ocorre muitas vezes pelo simples fato da mulher ter contato com
algum traficante, seja um companheiro ou parente, eu não tive como, em razão do tempo escasso, aprofundar
essa temática. Contudo, a leitura de Kimberle Crenshaw foi fundamental para entendê-la. Segundo essa autora:
O desafio – da interseccionalidade - é incorporar a questão de gênero à prática dos direitos humanos e a questão
racial ao gênero. Isso significa que precisamos compreender que homens e mulheres podem experimentar
situações de racismo de maneiras especificamente relacionadas ao seu gênero (...) A intersecionalidade sugere
que, na verdade, nem sempre lidamos com grupos distintos de pessoas e sim com grupos sobrepostos (...)
Precisamos, portanto, identificar melhor o que acontece quando diversas formas de discriminação se combinam e
afetam as vidas de determinadas pessoas (CRENSHAW, 2004, pp. 09-10)
172

Juliana Borges, que é justamente uma dessas feministas negras, por seu turno afirma
haver verdadeiro escamoteamento do preconceito, que é fundante desse sistema, tendo a Lei
de Drogas a engrenagem viabilizadora da realização de uma reordenação sistêmica a fim de
seguir com o projeto necropolítico de o aprisionamento – do homo sacer - conforme a lógica
racista (BORGES, 2018, p. 19).

5.1. Racismo estrutural: não há cordialidade com racistas

Nunca houve um Código Negro no Brasil, como em vigor em outras


localidades da América, isto é, um diploma jurídico único que viesse a
regulamentar o sistema de trabalho escravo, o tráfico, os órgãos
administrativos, bem como os castigos, estabelecendo sanções e multas pelo
seu descumprimento. Entretanto, isso não significa que não existia um
arcabouço jurídico que viesse a regulamentar as complexas situações
decorrentes das relações humanas presentes na exploração da mão de obra
escrava, bem como de seus conflitos (...) Havia um receio constante de que a
classe oprimida viesse a insurgir-se contra aqueles que possuíam os meios de
produção e contra o Poder Público. No caso da escravidão, o receio era
intensificado porque a violência estava umbilicalmente ligada à sua prática,
logo, a questão da segurança pública e o temos de rebeliões sempre
acompanharam a sua história (CAMPELLO, 2018, pp. 15-16)

Aníbal Quijano afirma que a colonialidade constituiu o padrão do poder capitalista


no mundo através da imposição de uma classificação racial/étnica e que isso foi mundializado
a partir da América, e que foi, sobretudo no Iluminismo, que se acentuou a ideia de que a
Europa era detentora do que seria o ponto mais avançado da espécie humana (QUIJANO,
2010, p. 75).
Da Europa se originava o ―padrão‖ e na Europa que surgiu a diferenciação da
população mundial entre ―inferiores e superiores, irracionais e racionais, primitivos e
civilizados, tradicionais e modernos‖. Ele destaca essa diferença até com as respectivas
ciências, eis que a ciência que estuda o Europeu se chama sociologia enquanto a ciência
direcionada ao não europeu se chama etnografia (QUIJANO, 2010, p. 99). O autor explica
ainda que, o que houve na América foi mundialmente imposto e que, antes da América, a cor
não era marca de classificação entre as pessoas.
A cor tornou-se o diferencial mais significativo por ser o mais visível e que foi dessa
forma que ―adjudicou-se aso dominadores/superiores ‗europeus‘ o atributo de ‗raça branca‘ e
a todos os dominados/inferiores ‗não europeus‘ o atributo de ‗raças de cor‘‖ (QUIJANO,
173

2010, p. 108). A herança dessa construção se faz presente na observação de que todos os
países cujas populações foram formadas (e vítimas) de relações racistas de poder, não
conseguiram sair da periferia colonial.
Ao considerar o branqueamento imposto na população brasileira como forma de
contenção e controle social, de maneira mais aguda como forma de extermínio (ainda que
extermínio da subjetividade), se nota que a nossa situação é substancialmente mais grave
posto que aqui o negro enxerga seu semelhante como inimigo. Frantz Fanon acertadamente
diz ―é o racista que cria o inferiorizado‖ (FANON, 2008, p. 90), esse autor em Pele Negra
Máscaras Brancas esmiúça a dor do perceber-se negro e do desejo incutido do
embranquecimento, posto que é a branquitude que traz para si a humanidade.
Como já foi observada, essa questão toca muito na construção de nossa sociedade,
motivo pelo qual entendo que a criminologia brasileira necessita sempre ser elaborada sob o
olhar decolonial, já que temos uma sociedade forjada em bases racistas e assim ela segue, seja
de maneira proposital e dissimulada. Seja sem notar seu próprio racismo, como tão bem
apresenta Geová da Silva Barros, em seu artigo Filtragem racial: a cor na seleção do
suspeito. Neste artigo, que teve por base uma pesquisa realizada com policiais militares de
Pernambuco, o autor expõe que os policiais priorizam a abordagem de negros e pardos, sem
sequer entenderem os porquês de assim fazerem, inclusive alguns dos entrevistados tiveram
essa percepção no curso das perguntas feitas pelo autor e se envergonharam ao não conseguir
explicar o que denota uma face explícita do chamado racismo estrutural, conforme aponta o
trecho abaixo:
Embora o racismo possua um caráter estrutural em nossa dinâmica social, o
surgimento da alguns componentes históricos, como a implementação da
política de branqueamento no Brasil no final do século XIX, assim como a
instauração de leis expressivas de combate ao racismo a partir da segunda
metade do século XX, desaguaram na criação de um estereótipo negativo
acerca do preconceito e da discriminação racial, e na formação de um
estigma designado a quem o pratica explicitamente. Dessa maneira, o
racismo passou a ser um elemento que, embora faça parte de nossas relações
sociais, é indesejado entre os grupos. Essa inadequação, por sua vez,
provoca no sujeito que manifesta o preconceito e/ou a discriminação
racial a automática negação de seus atos (MIRANDA et al, 2018, p. 55)
(Grifos meus)

Fato é que a suposta cordialidade brasileira desaparece exatamente no momento em


que estruturas são tocadas. Carlos Hasenbalg pontua que não há como se falar em democracia
racial num país que sequer chegou a ter instituições políticas democráticas e cultura política
democrática (SILVA; HASENBALG, 1992, p. 154). Sua crítica, embora feita há mais de 20
174

anos, encontra-se atual, mostrando que nesse aspecto, embora tenha havido avanços, ainda há
um longo caminho. Conforme sua fala:
A democratização das relações sociais no Brasil tem que necessariamente
passar por uma discussão pública desta questão racial que objetivamente
existe, mesmo quando as pessoas tendam a pensar que este problema não
existe. A definição da inexistência do problema é um fenômeno ideológico
que é contestado pelos fatos da sociedade brasileira (...). O que eu posso
dizer é que aqui as desigualdades raciais estão imbricadas com um forte
padrão de desigualdades sociais e econômicas (...). É óbvio e gritante para
quem presta um pouco de atenção, que, em qualquer contexto urbano,
metropolitano do país, a população negra e mestiça ocupa posições sociais
subordinadas. Mas isto é visto como algo que parece ―natural‖ (SILVA;
HASENBALG, 1992, p. 155).

Sempre é importante destacar que raça é uma construção política, não cabendo falar
em distinção biológica, tampouco cultural a fim de gerar diferentes formas de opressão entre
seres humanos, porém, a existência da distinção de em grupos pautados pela assimetria em
termos de oportunidades sociais, a existência dessa diferença é flagrante como fenômeno
social historicamente reproduzido. E, especificamente no que tange a questão entre raça,
crime e justiça, temos o racismo:
Frequentemente observado ao longo da história, seja pela ação do Estado
(legislação segregacionista) e de seus agentes; pela sua omissão (reprodução
de práticas institucionalizadas que geram distorções sociorraciais) ou pela
atuação de indivíduos ou grupos movidos por preconceito, gerando
discriminação, estigmatização, negação ou violação de direitos em diferentes
dimensões (ANDRADE; ANDRADE, 2014, pp. 257-258).

Ao distinguir os conceitos de preconceito, discriminação e racismo, Silvio Almeida


(ALMEIDA, 2018, p. 25) explica que o preconceito é relacionado aos estereótipos que podem
vir a gerar práticas discriminatórias. O negro foi estereotipado ao longo de nossa história.
Conforme aponta Lélia Gonzalez e Carlos Hasenbalg acerca da repressão policial: ―dado o
seu caráter racista (segundo a polícia, todo crioulo é marginal até que se prove o contrário),
tem por objetivo próximo a imposição de uma submissão psicológica através do medo‖
(GONZALEZ; HASENBALG 1982, p.16), e isso ocorreu de maneira flagrante na decisão
abaixo:
A vítima sobrevivente mencionou que realizou o reconhecimento do réu
entre outras fotos, entrando o delegado no Facebook do réu, voltou a
reconhecê-lo na delegacia e posteriormente em juízo. Em juízo, diga-se o réu
foi colocado entre outras pessoas e vítima e a testemunha X em nenhum
momento apresentaram (sic) qualquer hesitação no reconhecimento (...).
Vale anotar que o réu não possui o estereótipo padrão de bandido,
possui pele, olhos e cabelos claros, não estando sujeito a ser facilmente
confundido (Proc. nº: 0009887-06.2013.8.26.0114, TJSP) (Grifos meus)
175

Ou seja, há uma concepção de um ―suspeito‖ por excelência e ele não é branco e nem
tem olhos e cabelos claros. Trata-se do chamado tipo social negativo e esse recorte é feito
primeiramente pelo olhar racializado sendo especialmente difícil compreender que é esse
ponto que deve ser priorizado em detrimento da questão social - que também é grave - afinal,
já dizia Loic Wacquant (2001; 2003), dentre outros criminólogos, que a prisão existe para o
controle dos pobres.
Na verdade teríamos sobreposições de desvantagens, (intersecções) (CRENSHAW,
2004), onde a questão racial é marcada pela gradação da cor da pele e a questão social
atrelada à pobreza, ao não suprimento do mínimo existencial136. Contudo, também é certo se
afirmar que o racismo, por si só, já tem potencial de gerar a pobreza, uma vez que o negro
sempre está em situação de desvantagem. Importante a observação de Luciano Góes sobre o
tema:
Os obstáculos raciais são tantos quantos a defesa do mundo branco quase
perfeito necessita, eis que a liberdade negra está condicionada à redução de
hegemonia branca, que somente se mantém na exata medida em que nos
aprisiona, como restou explícita, e exitosa, a estratégia política que substituiu
as senzalas de um império escravagista pelas prisões de uma república
racista, de modo conciliatório e mantenedor de toda estrutura excludente
(GOES, 2018, p. 313).

De todo modo, esse cruzamento coloca o indivíduo embarreirado, sendo a raça


determinante como ―mecanismo de seleção social que determina numa medida bastante
intensa qual é a posição que as pessoas vão ocupar‖ (SILVA; HASENBALG, 1992, p. 155).
Silvio Almeida complementa esse raciocínio ao dizer que ―o sistema carcerário – cujo
pretenso objetivo de contenção da criminalidade é, na verdade, controle da pobreza, e mais
especificamente, controle racial da pobreza‖ (ALMEIDA, 2018, p. 63) (grifos meus).
A discriminação, por sua vez, se manifesta no ―tratamento diferenciado a membros
de grupos racialmente identificados‖, há, no caso, a relação de dominação no uso da força
para a contenção de quem não goza de privilégios. A discriminação se subdivide em direta e
indireta:
A direta seria a repulsa a grupos em ração da condição racial e a indireta seria de
maneira deliberada fingir que não há diferenças sociais significativas que coloquem o branco

136
Segundo Ricardo Lobo Torres: "O mínimo existencial não possui dicção constitucional própria, devendo-se
procurá-lo na ideia de liberdade, nos princípios da igualdade, do devido processo legal, da livre iniciativa, nos
direitos humanos, nas imunidades e privilégios do cidadão. Carece de conteúdo específico, podendo abranger
qualquer direito, ainda que não seja fundamental, como o direito à saúde, à alimentação, etc, considerado em sua
dimensão essencial e inalienável" (TORRES, 1989, pp.29-49).
176

em situação privilegiada invisibilizando o negro (colorblindness) (ALMEIDA, 2018, pp. 25-


26).
Por fim, racismo137 é: ―uma forma sistemática que vai se manifestar por meio de
práticas conscientes ou inconscientes que gerem desvantagens ou privilégios para indivíduos,
a depender do grupo ao qual pertençam‖ (ALMEIDA, 2018, p. 25), ou na definição de
Deborah Peterson Small:
O racismo é uma série de práticas e políticas que um grupo de pessoas faz
para impor a outro grupo de pessoas, e o resultado é a morte prematura. O
racismo leva à morte prematura. Não é um exagero dizer que o que está
acontecendo no Brasil é uma forma de genocídio. Não se trata apenas de
discriminação. É como nos Estados Unidos. Todas essas práticas do racismo
americano fazem com que os negros morram mais cedo. Nós morremos mais
cedo (SMALL, 2016, p. 06)

Destaque-se que é o racismo que ―leva a segregação racial, ou seja, a divisão espacial
de raças‖ (ALMEIDA, 2018, p. 27), como ocorreu no período Jim Crow estadunidense, no
Apartheid sul-africano e aqui no Brasil, de maneira mais dissimulada, nas favelas e periferias,
espaços onde o direito se esvazia em prol do discurso de defesa social.
É esse discurso, permeado por estereótipos, que faz com que no Brasil, os negros
vejam em outros negros, o inimigo interno hoje materializado no traficante de drogas.
Deborah Small, observando a política de pacificação no Estado do Rio de Janeiro 138, ressaltou
que ela era direcionada para as favelas, comunidades majoritariamente mestiças, e que tais
comunidades acabavam por tolerar, ou até apoiar essa política. Ela diz: ―Quem eles estão
‗pacificando‘? Os jovens negros. Nessas comunidades, o fato de as pessoas se sentirem ok
com isso é estranho para mim‖ (SMALL, 2016, p. 02) e conclui seu raciocínio já apontando
para a questão estrutural do racismo:
Você vai precisar se acostumar com o fato de que ser detido pela polícia é
um componente da sua vida. Porque essa é a maneira com que a sociedade se
estruturou. Isso tem menos a ver com crime e violência e mais a ver com o
jeito com que nossos países lidam com a subjugação. É assim: não temos
mais escravidão, mas continuamos tratando as pessoas como escravas,
continuamos perseguindo, apreendendo, acorrentando, restringindo

137
Conforme o Artigo 2º, § 2º da Declaração sobre a raça e os preconceitos raciais – 1978, da UNESCO: ―O
racismo engloba as ideologias racistas, as atitudes fundadas nos preconceitos raciais, os comportamentos
discriminatórios, as disposições estruturais e as práticas institucionalizadas que provocam a desigualdade racial,
assim como a falsa idéia de que as relações discriminatórias entre grupos são moral e cientificamente
justificáveis; manifesta-se por meio de disposições legislativas ou regulamentárias e práticas discriminatórias,
assim como por meio de crenças e atos antissociais; cria obstáculos ao desenvolvimento de suas vítimas, perverte
a quem o põe em prática, divide as nações em seu próprio seio, constitui um obstáculo para a cooperação
internacional e cria tensões políticas entre os povos; é contrário aos princípios fundamentais ao direito
internacional e, por conseguinte, perturba gravemente a paz e a segurança internacionais‖.
138
A chamada política de pacificação foi estudada por Marielle Franco na dissertação ―UPP – a redução da
favela a três letras: uma análise da política de segurança pública do estado do Rio de Janeiro‖ (2014).
177

seus movimentos, explorando suas forças de trabalho (SMALL, 2016, p.


02) (grifos meus)

Ocorre que há uma diferença relevante nessa questão que é o fato do brasileiro ter o
mito da democracia racial, sendo assim, o negro de pele escura morador de uma favela, tem
um vizinho pardo claro com traços indígenas, bem como tem uma vizinha nordestina, branca
de olhos claros, de ascendência holandesa, onde todos sofrem com mazelas sociais
semelhantes decorrentes da ausência do Estado com políticas sociais. E assim, é muitas vezes
o próprio povo massacrado139 que crê que a questão é só social e não racial, não dando conta
dos processos históricos que propiciaram essa situação, não dando conta de nossa sociedade é
e sempre foi racista.
Thula Pires (2018) recorda que em 1982, a capa de um Jornal de grande
circulação140, trazia uma fotografia onde um policial escoltava um grupo de negros amarrados
por uma corda pelo pescoço após a realização de uma blitz numa favela do Rio de Janeiro,
não muito diferente de uma pintura de Jean-Baptiste Debret141 (1768-1848) ao retratar a
sociedade brasileira no período colonial. Ela aponta, em um trabalho sobre a ditadura e a
questão racial, que:
No período que vai de 1964-1985, a população não branca que vivia no
território do que hoje se considera Estado do Rio de Janeiro passou por uma
série de violações de direitos humanos, perpetradas, sobretudo pelas Polícias
Civil e Militar (...) A realidade de negros e negras era, em regra, permeada
por ―blitz‖, prisões arbitrárias, invasões a domicílio, expropriação de lugares
de moradia (remoções), torturas físicas e psicológicas, além do convívio com
a ameaça latente dos grupos de extermínio. Uma política criminal enraizada
no colonialismo escravocrata, radicada principalmente nas favelas, subúrbio,
Baixada Fluminense e outras regiões periféricas do Estado (PIRES, 2018, p.
1063)

Essa divisão espacial, esse apartheid, no Rio de Janeiro, encontra-se tão evidente que
pode ser observado apenas cruzando túneis em direção à zona sul, zona próspera da cidade,
onde negros se fazem presentes apenas exercendo suas forças de trabalho. Ou indo em direção
à Barra da Tijuca, bairro planejado, formado por condomínios, verdadeiros enclaves
fortificados, bem como shopping centers (pseudo espaços públicos), onde todos são

139
Na Instituição de Ensino Superior onde lecionei nos últimos anos isso era muito evidente, como grande parte
dos alunos era oriunda da Zona Norte, muitos bolsistas moradores do Complexo do Alemão e da Maré, a sala de
aula era um território mestiço e muitos alunos afirmavam categoricamente que racismo não existia.
Curiosamente muitos ali não tinham por hábito frequentar a zona sul da cidade e se espantavam quando eu dizia
que quando fui aluna na UFRJ, minha turma de 120 alunos tinha apenas dois pardos e uma negra.
140
Jornal do Brasil publicou no dia 30 de setembro de 1982.
141
Sobre Debret e sua obra ―Viagem pitoresca e histórica ao Brasil‖ vale olhar o sítio: <https://ims.com.br/por-
dentro-acervos/viagem-pitoresca-e-historica-ao-brasil/.> Acesso em 23/04/2019.
178

monitorados e a população negra e empobrecida aparecerá habitualmente com sua força de


trabalho142.
O mito da democracia racial contribui no que Deborah Small assinalou como
autogenocídio: ―Um grupo de negros matando outro grupo de negros. Porque se convenceram
de que são inimigos. A sociedade não dá a mínima para nenhum dos lados‖ (SMALL, 2016,
p. 03), contudo, esse mito ganhou força:
Dizer que não há problema racial no Brasil é uma idealização que não foi
criada, mas foi codificada por Gilberto Freyre, na década de 30 e constituiu-
se numa espécie de mito nacional, gera a definição oficial da situação
brasileira. Esse mito ainda tem força, os brasileiros, particularmente os
brasileiros brancos, se aferram comodamente a esse mito143, há um certo
comodismo em aceitar esse mito, ou seja, as próprias pessoas se sentem
isentas de qualquer responsabilidade a respeito da situação social
desvantajosa de negros e mestiços (SILVA; HASENBALG, 1992, p. 154)
(Grifos meus)

Seguindo nesse breve estudo sobre racismo, Silvio Almeida também aborda a
importante distinção entre racismo individual, institucional e estrutural (ALMEIDA, 2018, p.
28): Para esse autor o racismo individual equivaleria a uma patologia de caráter individual ou
de um grupo isolado, não atribuível a sociedade como um todo, mas apenas a pessoas brancas
agindo contra indivíduos negros. Seria equivalente a um olhar limitado que deixa de
―considerar o fato de que as maiores desgraças produzidas pelo racismo foram feitas sobre o
abrigo da legalidade e com apoio moral de líderes políticos e líderes religiosos e dos
considerados homens de bem‖ (ALMEIDA, 2018, pp. 28-29), não cabendo aqui se falar em
uma sociedade racista, mas somente em pessoas racistas.
Já o racismo institucional apareceria com a hegemonia branca dominando as
instituições de maneira a dificultar ou até mesmo impossibilitar a ascensão de negros. Há aqui
a naturalização dos espaços de poder como pertencentes a homens brancos
heteronormativos144. Isso é notável ao olharmos a composição do Judiciário, do Ministério
Público, bem como de cargos elitizados (diretorias) ou que exijam alto nível de escolaridade
(ALMEIDA, 2018, pp. 30-31).

142
Foi nesse bairro que em 14 de fevereiro de 2019, um segurança de um hipermercado (EXTRA - Rede Pão de
Açúcar), estrangulou um jovem, permanecendo sobre ele deitado, mesmo com pessoas filmando e sinalizando
que o rapaz já se encontrava desmaiado. Destaque-se que tanto o autor quanto a vítima eram negros. Disponível
em: https://odia.ig.com.br/rio-de-janeiro/2019/02/5620839-jovem-foi-asfixiado-e-estrangulado-em-
supermercado-na-barra--aponta-laudo.html Acesso em: 23/04/2019.
143
Me chamou atenção esse trecho escrito em 1992 acerca da democracia racial porque ele também se ―encaixa‖
caso pensemos no atual Presidente da República, apelidado de ―mito‖, cujas falas racistas já foram expostas no
começo desta tese.
144
O privilégio branco não será explicito, ele aparece de maneira velada como, por exemplo, ao exigir, boa
aparência para um determinado cargo e essa boa aparência estar condicionada a ser uma vaga para brancos.
179

Vale aqui trazer a pesquisa feita por Juliana Borges que afirma que dentro do sistema
de justiça criminal brasileiro 84,5 % dos Juízes, Desembargadores e Ministros do Judiciário
são brancos e 15,4% negros, bem como 64% dos magistrados são homens. De outro lado,
tanto dentre homens quanto mulheres 67% da população carcerária é negra (BORGES, 2018,
p. 85). No Legislativo essa hegemonia também aparece e todas as vezes que ela é confrontada
há resistência. Nesta seara, impossível não se lembrar da atuação de Marielle Franco, por
juntar numa única pessoa toda a representatividade de alguém não ―permitida‖ no espaço
político.
Por fim, para compreender o racismo estrutural, é preciso olhar por outra perspectiva
e, para isso, Silvio Almeida elabora algumas questões: Por que temos o racismo institucional,
por que as instituições trazem essas barreiras aos negros? A resposta é simples: as instituições,
com suas regras e padrões racistas, encontram-se vinculadas à ordem social que ela visa
resguardar, sua estrutura de apoio é preexistente e culmina com uma conclusão que muitos
terão dificuldade de digerir: ―as instituições são racistas porque a sociedade é racista‖
(ALMEIDA, 2018, p. 34) (Grifos meus).
Ou seja, o racismo está por aí em toda a parte, as instituições somente o reproduzem.
Na nossa democracia racial o ―normal‖ é ser racista, mas ao mesmo tempo todos dirão que
não o são. Talvez seja isso o mais difícil, desnudar as estruturas. Como convencer a uma
sociedade que se vê igualitária, onde a mestiçagem foi projeto de governo, onde o próprio
negro oprimido por vezes insiste que a questão é social e não racial? Como convencer que a
bala perdida faz parte de uma política genocida que acerta ao branco e ao negro da favela,
mas que ainda assim elas têm seu alvo mais evidenciado na negritude?
Em resumo: o racismo é uma decorrência da própria estrutura social, ou seja,
do modo ―normal‖ com que se constituem as relações políticas, econômicas,
jurídicas e até familiares, não sendo uma patologia social e nem um
desarranjo institucional. o racismo é estrutural. Comportamentos individuais
e processos institucionais são derivados de uma sociedade cujo racismo é
regra e não exceção (ALMEIDA, 2018, p. 38).

A famosa fala de Angela Davis ―Numa sociedade racista não basta não ser racista. É
necessário ser antirracista‖ vem ao encontro do pensamento de Silvio Almeida ao dizer que ―a
única forma de uma instituição combater o racismo é por meio da implementação de práticas
antirracistas efetivas‖ (ALMEIDA, 2018, p. 37), pois não há como seguir defendendo a ideia
da cordialidade do brasileiro sendo este forjado pelo racismo estrutural.
Angela Davis demonstra que há uma maior chance de uma pessoa negra ir para a
prisão dos Estados unidos da América do que ter acesso à educação. Ela afirma que naquela
180

realidade estadunidense, embora não tivesse ocorrido nenhum debate quanto à eficácia da
prisão na redução de criminalidade ―o encarceramento em massa foi o programa social
governamental implantado de forma mais abrangente em nosso tempo‖ (DAVIS, 2018, pp.
11-12). Paralelamente temos o Brasil, em termos de política de exclusão, seguido os passos de
seu vizinho do norte. Ela acrescenta que:
Esse é o trabalho ideológico que a prisão realiza – ela nos livra da
responsabilidade de nos envolver seriamente com os problemas de nossa
sociedade, especialmente com aqueles produzidos pelo racismo e, cada vez
mais, pelo capitalismo global (...) A prisão se tornou um buraco negro no
qual são depositados os detritos do capitalismo contemporâneo (DAVIS,
2018, p. 17)

Toda política antirracista145 deve existir em nível institucional e político e,


principalmente, a Justiça Penal, no que tange ao Judiciário, Ministério Público e agências
policiais necessitam urgentemente de um processo psicoterapêutico para que consigam se
enxergar como um sistema racista.
Marielle Franco (2014) denunciou o controle militarizado nas favelas e apontou que
a ocupação desses espaços não foi com políticas públicas de oferecimentos de direitos146, mas
sim com mais uma investida contra seus moradores levando a eles repressão e punição em
nítido exercício necropolítico, à luz da fala de Achille Mbembe (2018). Afinal, onde a raça
define a vida e a morte, não tomá-la como elemento de análise denota ―falta de compromisso
com a ciência e com a resolução das grandes mazelas do mundo‖ (ALMEIDA, 2018, p.44).
Marielle Franco afirmou a permanência da ―lógica racista de ocupação dos presídios
por negros e pobres, adicionada do elemento de descartar uma parte da população ao direito
da cidade, continua marcando a segurança pública‖ (FRANCO, 2014, p. 126). E neste sentido,
temos que sempre que a demanda da população negra ganha destaque, sempre que a estrutura
que garante a supremacia branca é posta em questão: ―a indiferença em relação às precárias
condições de vida da população negra será substituída por uma oposição ativa baseada no
medo e no interesse próprio‖ (ALMEIDA, 2018, p.35).
O que a realidade mostra, segundo Angela Davis, é que a prisão, para um negro, é
um fato inevitável, sempre presente, em razão do ―criminoso‖ ser no imaginário coletivo

145
Deve haver engajamento na causa. A mera presença de pessoas negras e outras minorias em espaços de poder
e decisão não significa que a instituição deixará de atuar de forma racista (ALMEIDA, 2018, pp. 37-38).
146
É a crítica feita também por Juliana Borges: ―Este poder sobre corpos negros é exercido em diversas esferas.
Seja na total ausência de políticas cidadãs e de direitos, como falta de saneamento básico, saúde integral,
empregos dignos; seja pelo caráter simbólico da representação do negro na sociedade como violento, lascivo e
agressivo alimentando medo e desconfiança (BORGES, 2018, p. 54)
181

idealizado como ―pessoa de cor147‖, a complexidade da questão racial se dá justamente no


enfrentamento das estruturas (DAVIS, 2018, p. 16)
Assim, voltamos ao início: como lidar com um processo penal contaminado pelo
racismo estrutural que usa de artifício nele mesmo previsto para afrouxar a forma, que é
garantia, permitindo o uso desmedido da prisão cautelar? Um processo que traz a prisão com
lastro na garantia da ordem pública (conceito indeterminado que serve a qualquer senhor) e
naturaliza o inimigo negro - escapulindo dentre as condenações da máquina de moer gente um
ou outro ―branco quase preto de tão pobre‖, sendo o alvo certeiro – e não proposital - o negro?
Mais uma vez parafraseando Marielle Franco: Quantos mais precisarão ser condenados em
decorrência de engrenagens processuais balizadas pelo racismo estrutural?148

5.2 A lei de crimes hediondos e sua mitificação de emergência

Salo de Carvalho – dentre outros autores - aponta como marco do encarceramento em


massa no Brasil, a Lei nº 8072, de 25 de julho de 1990, conhecida como Lei de Crimes
Hediondos (sancionada pelo presidente Fernando Collor de Mello) que trouxe enorme
severidade a punição dos crimes nela elencados. Por exemplo, ela que trouxe a previsão de
pena em regime integralmente fechado, dispositivo que passou quinze anos em vigência até
que o Supremo Tribunal Federal viesse a declará-lo inconstitucional.
A hediondez significa o ato de excessiva gravidade e sua previsão constitucional
aparece como uma resposta ao clamor público inerente a toda legislação penal de emergência.
Sua origem remonta a uma resposta à população em razão do grande número de extorsões
mediante sequestro de pessoas da elite econômica e social do país 149 ocorridas no final da
década de oitenta (TOVIL, 2008, p. 03). Marcelo Semer aponta, acerca dessa repercussão,
que:

147
A terminologia ―de cor‖ é a comumente usada pelas militantes negras nos Estados Unidos da América.
148
―Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe? Postou vereadora um dia antes de ser
assassinada no RJ‖. Disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/quantos-mais-precisarao-
morrer-postou-vereadora-um-dia-antes-de-ser-assassinada-no-rj.ghtml. Acesso em 23/04/2019.
149
Dois casos de enorme repercussão contribuíram bastante para tal Lei em razão da exposição midiática: o
sequestro do empresário Abílio Diniz (ex-sócio do Grupo Pão de Açúcar) e também o sequestro do empresário
Roberto Medina (idealizador do ―Rock in Rio‖). Curiosamente considerando hedionda a prática de crime de
natureza patrimonial e deixando fora o homicídio qualificado, que apenas ingressou na referida Lei após o
assassinato de uma famosa atriz através da Lei nº 8.930, de 06 de setembro de 1994 (Sancionada por Itamar
Franco).
182

Pesquisas que analisaram o jornalismo serviram de ferramentas para que


pudéssemos consolidar a casuística do pânico moral que, afinal, é um
conceito com forte trânsito nas áreas ligadas à comunicação. Destaca-se aqui
a extensa cobertura das extorsões mediante sequestro que culminaram com a
resposta legislativa da criação da Lei dos Crimes Hediondos e suas
posteriores atualizações (SEMER, 2019, p. 462).

A sua base é constitucional e está inserida no artigo 5º, inciso XLIII da Constituição
da República Federativa do Brasil, norma esta de eficácia limitada e que foi regulamentada
primeiramente150 pela Lei nº 8072, de 25 de julho de 1990 (Lei de crimes hediondos) que ao
longo dos anos sofreu diversas alterações.
XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou
anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o
terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os
mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem.

Vale dizer que o crime de tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins (previsto nos
artigos 33, §1º e 34 da Lei nº 11.343/2006 – Lei de Drogas) é considerado assemelhado a
hediondo e se submete, portanto ao rigor desta Lei, cujo caráter é simbólico, excessivamente
repressivo, violador do devido processo legal e inútil no que tange à redução da criminalidade
dos crimes nela elencados.
Em termos político-criminais, a adesão explícita ao ―populismo punitivo‖
ocorre em 1990, com a publicação da Lei dos Crimes Hediondos. A referida
Lei representa o marco simbólico do ingresso do Brasil no cenário
internacional do grande encarceramento. Neste aspecto, é inegável a
reponsabilidade do Legislativo no aumento superlativo da população
carcerária brasileira, pois, a partir da Lei 8.072/90, o país aderiu à demanda
punitivista (CARVALHO, 2015, p. 631)

Luigi Ferrajoli (2014), na obra Direito e Razão, traz, com parâmetro do que foi vivido
na Itália, o caldo cultural de onde se origina nas sociedades esse clamor pela legislação de
emergência. Ele mostra que esse afã punitivo é notadamente alinhado ao risco, ainda que
ficto, de se abalarem as estruturas da sociedade.
Com tudo que já pude trazer, não há como não refletir acerca da capacidade midiática
de espetacularização dos casos que exigem a intervenção penal, bem como acerca da fratura
do povo e governamentalidade. Qual povo será o atingido em maior grau? O Povo ou o povo?
De que maneira os discursos são forjados para que tais leis tenham geralmente o apoio
popular ou passem com uma resistência facilmente reprimida? Não é coincidência a fala de

150
É imperioso deixar consignado que no que se refere ao terrorismo a regulamentação mais recente deu-se com
a Lei nº 13.260, de 16 de março de 2016 sancionada pela presidenta Dilma Roussef. O disciplinamento do
terrorismo e das organizações terroristas também foram objeto de crítica ante a amplitude do termo.
183

Leonardo Sica ao dizer que ―o atual quadro emergencial de clamor popular tem origens
históricas, baseadas na exclusão social e no conservadorismo‖ (SICA, 2002, pp. 78).
Quando há o fomento dessa emergência, há ao mesmo tempo a viabilidade da exceção,
da suspensão de Direitos Fundamentais, normalmente rotulados com obstáculos ao alcance da
Justiça - servindo aqui como roupa a ser vestida pela vingança (CHOUKR, 2009, pp. 48-49).
A cultura da emergência, ou da ―exceção desejada‖ propicia o uso do processo como
pena, daí faz sentido o enorme número de presos cautelares no país, tudo pela ordem, desta
forma ―as leis de emergência alargaram de maneira enorme o poder jurisdicional de
disposição, legitimando arbítrios e abusos‖ (FERRAJOLI, 2014, p. 747), as medidas
excepcionais passam a ser naturalizadas como se regras fossem, passando a incorporação
definitiva no arcabouço jurídico (AMARAL, 2005, p. 02), isso fica muito evidente no uso
desmedido da prisão cautelar, principalmente aquela cujo conceito é elástico – garantir a
ordem pública, temos a emergência permanente explicada por Giorgio Agamben (2004).
Se tivermos em xeque uma sociedade racista, estruturalmente racista, não é difícil
notar que a exceção ocorrerá em detrimento de direitos daqueles que já são o alvo: os
desfavorecidos, no nosso caso o negro, jovem e pobre, sendo efeito ricochete o atingimento
do seu oposto: o branco privilegiado ou, poderá haver também o discurso fomentador de um
encrudescimento generalizado, que Vera Malaguti já havia abordado no festejado texto A
Esquerda Punitiva. Para Luigi Ferrajoli:
A cultura de emergência e a prática de exceção, antes mesmo das
transformações legislativas, são de fato responsáveis pela involução do
nosso ordenamento jurídico punitivo que se expressa na reedição, em trajes
modernizados, dos velhos esquemas substanciais próprios da tradição penal
pré-moderna, bem como na recepção pela atividade judiciária de técnicas
inquisitivas e de métodos de intervenção que são típicos da atividade de
polícia (FERRAJOLI, 2014, p. 746).

Reforça-se o mito da prisão com capacidade dissuasória, um direito penal meramente


simbólico, mas que faz com que se tolere a punição lastreada na dúvida (ZAFFARONI,
prólogo, In ROIG, 2005, p. 12), o que se nota ao termos cerca de 41% dos presos no Brasil
sem condenação definitiva, ou seja, uma alegoria que, se mostra cruel e real no atingimento
de mais de 290 mil brasileiros presos em um ambiente ensejador da destruição da
subjetividade, da dignidade, permitindo apenas a vivência da vida nua.
Trata-se de política, não mais de gestão de vida, mas de necropolítica (MBEMBE,
2018) equivalente a um ―princípio normativo de legitimação da intervenção punitiva; não
mais jurídica, mas imediatamente política; não mais subordinada à lei enquanto sistema de
vínculos e garantias, mas à esta supraordenada‖ (FERRAJOLI, 2014, p. 747).
184

A emergência parece-me que, da mesma forma que a exceção, sobrepõe a razão de


Estado sobre a razão jurídica, sendo a primeira notadamente incompatível com a jurisdição
penal, mas afinada com a repressão política e com o arbítrio policial. Nesse norte:
―Razão de Estado‖ designa qualquer coisa além e diversa em relação ao
senso comum de ―razão‖: de um lado, porque alude a uma razão
autofundada, superior à razão que informa a outros interesses ou âmbito da
vida; de outro lado, porque se configura como razão não intersubjetiva,
embora, fora do alcance do povo detida exclusivamente por aqueles espíritos
―videntes‖ que são os ―homens de Estado‖. Assim, formulado, o princípio da
razão de Estado parece paradoxalmente dotado de uma força de uma
legitimação política maior que nas teorias do Estado absoluto ou totalitário:
seja porque Estado que a tutela é o Estado valorado como ―democrático‖ ou
―constitucional‖ ou ―de direito‖, seja governo, mas com medida excepcional
para afrontar o risco da sua eversão. Mas é claro que a contradição se dá em
termos: a ruptura das regras do jogo se dá, de fato, neste caso, invocado
a tutela das mesmas regras do jogo; o Estado de direito é defendido
mediante essa negação. A razão de Estado é por princípio guiada pela lógica
partida e conflituosa do amigo/inimigo, que, por sua vez, é incompatível
com a natureza da jurisdição, a qual exige imparcialidade do órgão judicante
e sua indiferença a qualquer fim ou valor, estranhos ao juízo (FERRAJOLI,
2014, pp. 752-753).

Considerando que o racismo estrutural produz, como reflexo da sociedade, o negro


como inimigo em potencial e, considerando que a emergência penal leva à punição do autor-
inimigo e não mais do fato-crime chegamos num ponto onde não há mais justificativas
cabíveis. A política de segurança pública, principalmente no Rio de Janeiro, reflete o que hoje
não mais se oculta: a aniquilação do inimigo151.
Para Luigi Ferrajoli a própria expressão ―direito de emergência‖ é uma contradição em
si, uma vez que se as práticas de emergência são politicamente legítimas, não há que se falar
em direito, mas sim de exercício da força para fins de defesa contra o inimigo (FERRAJOLI,
2014, p.767), dessa maneira, torna-se inevitável o retorno ao começo: há um atuar
necropolítico onde soberano é quem decide sobre a vida do homo sacer.
Uma vez aberto o caminho de emergência como necessário para a defesa do
Estado, dever-se-ia, ao menos ter a coragem e a honestidade de admitir que
uma tal proposta ao perigo subjetivo era uma resposta fora da lei como são
sempre as respostas de guerra, para não corromper desta maneira os
princípios garantistas do direito penal, é essencialmente um instrumento de
paz. Vice-versa, a tese dominante no mundo político e na cultura jurídica
é que o Estado de direito e as garantias foram plenamente respeitadas e
que o direito penal de exceção é perfeitamente coerente com a
Constituição. Este atrelamento tornou difícil o retorno à normalidade, tendo
de fato diminuído a diferença normalidade e exceção (FERRAJOLI, 2014, p.
768) (Grifos meus)

151
O governador do Rio de Janeiro, em 11 de abril de 2019, afirmou não fazer ideia do número de pessoas que já
foram abatidas por snipers. Disponível em:<https://oglobo.globo.com/rio/witzel-diz-nao-fazer-ideia-de-quantos-
foram-mortos-por-snipers-nao-faz-parte-do-meu-trabalho-acompanhar-23591525>. Acesso em: 14/04/2019.
185

Ora, em que outro momento a exceção esteve coerente com a Constituição através de
sua suspensão? Para Giorgio Agamben o momento paradigmático foi no nazismo, já para
autores descoloniais o olhar sobre ―quem e como‖ houve a colonização não deixou de ser uma
forma de suspensão - assim foi com o Brasil.
Se este sistema já operou explicitamente pela lógica da escravidão, passando
pela vigilância e controle territorial da população negra após a proclamação
da República, pela criminalização da cultura e apagamento da memória
afrodescendente, percorrendo a aculturação e assimilação pela mestiçagem e
apropriação, negação do acesso à educação, saneamento, saúde - questões
que permanecem, inclusive - hoje não temos um cenário de fim desta
engrenagem, mas de seu remodelamento (BORGES, 2018, p. 18)

Essa simbiose entre as práticas democráticas e totalitárias autorizou a jurisdição a gritar em


voz alta e clara que sim: ―os fins justificam os meios‖ e os dispositivos estão aí para isso
mesmo. Confunde-se tudo e o (suposto) inimigo se engana e muita vez clama por sua própria
aniquilação. Na conclusão de sua tese Marcelo Semer afirma que:
O fator que interfere nessa acomodação particular da onda punitiva é o
legado autoritário, a contribuição nativa (...) Da exploração colonial à
legislação absolutista, na longeva escravidão que ultrapassou a
independência e manteve marcas perenes aos períodos ditatoriais mesmo
após a proclamação da República, da contenção armada de revoltas
populares às conciliações oligárquicas que evitaram rupturas (...) A
legislação penal severa que tem brotado de forma compulsiva desde a
promulgação da Constituição cidadã, em 1988, é uma marca suficientemente
contraditória, como é o crescimento da violência de Estado no período pós-
redemocratização (SEMER, 2019, pp. 471-472)

Percebe-se que a questão nodal está além da lei, está na cultura dos agentes que atuam
no sistema penal como um todo, mas principalmente na cultura dos juízes152, consolidadas nas
praxes de um saber jurídico enviesado onde todos podem dizer que tem a autoridade da razão
com lastro no senso comum, matérias jornalísticas, manuais de cursos preparatórios e até
mesmo em sítios de informação geral como o Wikipedia153 conforme verificou Marcelo
Semer (2019, p. 479).
A sensação que se tem, para quem observa tanto obscurantismo operando nas
condenações criminais é que voltamos à Salém, caçando bruxas, com todo aparato

152
A postura dos juízes brasileiros, por exemplo, com a recepção da nova Constituição Federal em 1988 foi
muito resistente ao cipoal de garantias que emolduraram o texto – a aplicação dos princípios penais com um
sentido limitador ao próprio legislador, que se acostumou a chamar de hermenêutica constitucional, foi gradativa
e apenas parcial nas três décadas que nos separam da promulgação (SEMER, 2019, p. 449)
153
Trata-se de uma ―enciclopédia livre que todos podem editar‖. Ou seja, se todos podem editar, todos podem
escrever o que bem entenderem.
186

inquisitório154. Lamentavelmente, Juliana Borges destaca algo que eu já havia também


percebido acerca do grande encarceramento brasileiro, segundo a autora:
Isto ocorre, justamente, em um momento em que diversas eram as ações que
o Estado brasileiro passava a tomar que mudavam significativamente e
profundamente a vida da população negra no Brasil, com programas como
bolsa-família, expansão de vagas nas instituições de ensino superior públicas
e privadas (primeiras ações por cotas e Prouni), criação de empregos e
ampliação de créditos, etc‖ (BORGES, 2018, p. 20).

Vale deixar consignado que esse quadro já mudou em razão das últimas eleições. A
fala do atual Presidente, ainda em período de campanha, era de que iria acabar com todos os
ativismos. Pelo que tem sido apresentado nos primeiros meses de governo parece que sua
―promessa‖ não foi em vão155.
Nesse sentido, noto que ao invés das estruturas racistas terem se abalado com toda a
inclusão social vivida nos últimos anos elas parecem ter operado ao contrário e se fortalecido
ou talvez explicitado tudo o que vinha sendo ―tolerado‖ por uma sociedade racista habituada à
oposição entre a casa grande e a senzala e não preparada para a oposição entre a casa grande e
o quilombo.

5.3. Substitutivos penais e seu uso ao avesso: novas leis “pra inglês ver”

Salo de Carvalho esclarece de que maneira o Poder Judiciário opera legitimando o


grande encarceramento, que estruturalmente recai sobre o negro (2015, p.643). Ele traça todo
o processo de produção legislativa cujo mote era o de reduzir o encarceramento, mas cujo
efeito rebote foi o aumento do controle social sobre os indesejáveis, por isso vejo que todo
esse arcabouço legislativo nada mais foi do que novas ―leis para inglês ver‖.

154
O filme e o livro denominado ―As Bruxas de Salém‖ trata de caso real ocorrido em 1691 em Massachusetts
(EUA), em razão de pânico gerado por boatos acerca de bruxaria onde três mulheres da cidade acabaram sendo
julgadas e executadas. Recordo-me que em minhas aulas, chamava atenção dos alunos usando um antigo bordão
publicitário em que era dito ―não é feitiçaria, é tecnologia‖ para tentar mostrar para eles que a preocupação atual,
numa sociedade em que a informação corre descontroladamente por redes sociais e que há inúmeros mecanismos
de gravação de mídia, imagens, exames de dna, etc que deveríamos ter cautela, muita cautela com essas provas
para não acabarmos sendo seduzidos pelo senso comum demonizador de supostos autores de fatos criminosos.
155
Até publicidade de banco foi vetada porque pregava a inclusão com atores jovens e negros – ―Bolsonaro veta
vídeo 'diverso', e diretor do BB cai‖. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/brasil/bolsonaro-veta-campanha-
do-banco-do-brasil-marcada-pela-diversidade-diretor-exonerado-23621741>. Acesso em: 25/04/2019.
187

Trata-se, como será apresentado, de prática comum em nosso país, articulada e


direcionada para que a classe dominante não tenha suas estruturas afetadas, utilizando-se de
um conjunto legislativo sem efeitos práticos.
Num primeiro momento, com a contribuição de Salo de Carvalho apresentarei como
se deu esse continuum de ―desculpas legais‖ para o encarceramento seletivo através dos
chamados substitutivos penais, ou seja, ―diversificação processual, cautelares substitutivas e
penas alternativas‖ (CARVALHO, 2015, p. 643). Este autor explica:
Embora a reforma da parte geral do Código Penal, em 1984, tenha previsto
sanções alternativas à prisão, a efetiva aplicação dos substitutivos penais
ocorreu somente em 1998, com a edição da Lei 9.714, que ampliou os
requisitos que permitem ao juiz, na sentença condenatória, preterir a
privação da liberdade em prol das ―penas alternativas‖ (...).
Contudo, alguns anos antes, com a edição da Lei 9.099/95, houve uma outra
importante inovação legislativa, com a previsão de institutos processuais
diversificacionistas: composição civil e transação penal, aplicável aos crimes
de menor potencial ofensivo, e suspensão condicional do processo, cabível
nos casos de delitos de médio potencial ofensivo (termo utilizado para
identificar os crimes que admitem suspensão condicional do processo) (...).
A expectativa no campo político-criminal era bastante evidente: diminuição
do número de processos criminais (incidência da Lei 9.099/95) e redução do
número de prisões (incidência da Lei 9.714/98). Ocorre que nos primeiros
anos de aplicação dos novos estatutos a expectativa viu-se absolutamente
frustrada, pois o número de processos e de penas de prisão não apenas
não diminuiu como aumentou (CARVALHO, 2015, pp. 643-644) (grifo
meu)

Curiosamente, em 2011, tivemos o mesmo fenômeno com lei que objetivava reduzir a
utilização de aprisionamento cautelar trazendo inúmeras medidas alternativas ao uso dessa
constrição. Como já dito, no início dessa tese, essa lei que trouxe o sistema polimorfo, ou
seja, uma gama enorme de combinações para que os juízes evitassem o uso da constrição
maior, ultima ratio, em tese, de nosso sistema, não ―vingou‖, tornou-se ―lei para inglês ver‖.
E novamente Salo de Carvalho aponta a farsa:
Apesar das campanhas de pânico moral dos meios de comunicação, que
afirmavam que a nova lei colocaria em liberdade milhares de criminosos, os
dados demonstram que no primeiro ano de vigência do estatuto o número
de cautelares aumentou 6,3% (CARVALHO, 2015, p. 644) (Grifos meus)

Tais normas, ditas reformadoras, ao contrário de trazer soluções ao encarceramento,


trazem um efeito de reforço ao uso do cárcere. E é nesse sentido a crítica de Kenarik
Boujikian ao prefaciar pesquisa coordenada por Julita Lemgruber (2013) acerca dos impactos
da Lei 12.403/11, uma vez que se observou que ao mesmo tempo em que ela teria vindo com
um intuito de desencarcerar, ela acaba por dificultar, em alguns casos, a saída da prisão em
razão da necessidade do pagamento de fiança, coisa que outrora não ocorria. A magistrada
188

questiona: ―Radicalizamos mais a seletividade do direito penal, punindo ainda mais os mais
pobres?‖ (BOUJIKIAN, prefácio, LEMGRUBER et al. 2013, p. 03).
De certa maneira, a própria audiência de custódia156 pode vir a operar como um
reforço sistemático do encarceramento ao legitimar prisões ilegais como se fossem legais, ao
converter, dando um ar de legalidade instantânea, a um sem número de situações ditas
flagranciais, porém em desacordo com as previsões explicitadas do artigo 302 do Código de
Processo Penal.
Conversões estas que sempre vem acompanhada do fundamento de conteúdo
indeterminado que é a garantia da ordem pública, ultrapassando questões de fundo inerentes à
operacionalidade de um sistema estruturalmente racista.
Por mais triste que seja o diagnóstico, nas últimas duas décadas, as penas e
medidas alternativas se converteram em um conjunto de alternativas à
liberdade e não ao cárcere ou ao processo. Os dados permitem concluir que o
Poder Judiciário seguiu, apesar das inovações legislativas, determinando
prisões preventivas e condenando à prisão os “culpados de sempre‖
(juventude negra das periferias dos grandes centros urbanos) (CARVALHO,
2015, p. 645) (Grifos meus)

Cotidianamente a apropriação da ―forma como garantia‖ na prática do advogado


criminalista, é feita como um grande teatro facilitador do uso de dispositivos necropolíticos.
Como diz o ditado popular ―os fins justificam os meios‖, se vê que da forma dos atos
processuais se esvazia todo o conteúdo substancial de garantia ao indivíduo, e passa-se a usá-
los como ―fachada‖ para fornecer ao cárcere, ambientes máximos de eliminação da dignidade
da vida, o seu cliente preferencial.
Isso se torna bastante evidente com a questão atual e problemática dos
reconhecimentos pessoais que servem como fumus comissi delicti da prisão preventiva. Ora, à
luz do artigo 226 do Código de Processo Penal, o adequado seria que estivessem presentes
além do suspeito, no mínimo mais quatro indivíduos e que estes tivessem características
físicas similares evitando-se contrastes (LOPES JR. 2018, p. 490).
Porém, não nos surpreende, vermos a afirmação descabida de que se o sujeito
apresentado para o ato do reconhecimento for apresentado sozinho, seja algo: ―irrelevante,
pois o artigo 226 do Código de Processo Penal contém singela recomendação a respeito de
que o indivíduo seja apresentado ao reconhecedor em meio de pessoas assemelhadas‖

156
Ainda que tenha havido redução da população prisional cautelar entre 2014 e 2016 conforme aponta o estudo
de Taiguara Líbano Soares e Souza que afirma ter havido redução na ordem de 5% no Rio de Janeiro, após a
implementação das audiências de custódia no Estado (SOUZA, 2018, p. 208).
189

(BARBOSA, 2011, p. 176) (grifo meu). Portanto, o dispositivo prevê que será ele seguido -
apenas - quando houver possibilidade, é, portanto, em meu entender, ―lei para inglês ver‖.
Conclui-se então, que não se trata de medida indispensável ensejadora de nulidade do
ato quando não obedecida. A esquizofrenia da legislação parece deixar brechas propositais
para que se possa afirmar que foi tentado obedecer à forma, mas que, não sendo possível – e
nunca é – não haverá problema, pois o que vale é a intenção para o futuro ―livre
convencimento do julgador‖, princípio usado como justificativa para o arbítrio e o réu
estereotipado já chega ao processo condenado da mesma forma que já ocorria durante um
processo no período da escravidão, como o de um insurgente157, julgado em 1838 em que o
que ocorreu segundo Wilson Prudente, nada mais foi que um simulacro de processo: ―Os atos
processuais, não passaram de simples formalidades burocráticas, meramente justificadoras da
pena, que já estava decidida desde a notícia do crime‖ (PRUDENTE, 2009, p. 83)
De maneira intrigante o mesmo autor que fala da ―singela recomendação‖ ressalta que
é preciso cautela com o fator da deturpação da memória, o que reforça e evidencia a ideia de
que o respeito à forma deveria ser indispensável para o reconhecimento em sala de
manjamento. A lição que fica é: a observância do rito - com sua exceção - definitivamente não
garante substancialmente o exercício do direito de defesa. É neste sentido a fala de Fernando
da Costa Tourinho Filho:
De todas as provas previstas no nosso diploma processual penal, esta é a
mais falha, a mais precária. A ação do tempo, o disfarce, más condições de
observação, erros por semelhança, a vontade de reconhecer, tudo,
absolutamente tudo, torna o reconhecimento uma prova altamente precária
(TOURINHO FILHO, 2009, p. 645).

Porém, considerando a ―máquina de moer gente‖ que é o sistema penal, tudo,


absolutamente tudo, pode piorar e hoje o que vem ocorrendo com frequência é o
reconhecimento por meio de fotografia, muitas das quais circulantes em denúncias
―facebookianas‖ ou ―whatsappianas‖ não causando espanto recente decisão proferida em São
Paulo onde há a assunção de maneira explícita da figura que simboliza o inimigo, sendo fato
concreto que o racismo permeia todo o sistema jurídico penal, alinhando-se ao chamado
racismo estrutural:
A vítima sobrevivente mencionou que realizou o reconhecimento do réu
entre outras fotos, entrando o delegado no Facebook do réu, voltou a

157
Trata-se de Manoel Congo, líder da Revolta de Paty do Alferes que acabou sendo enforcado em 1839. A
revolta originou-se em razão do assassinato de um escravo cometido pelo capataz de uma fazenda sem que
houvesse providencia alguma tomada pelo senhor. Os escravos reunidos mataram o capataz e tentaram organizar
um quilombo. Contudo, Duque de Caxias, liderando os militares, assassinaram parte dos fugitivos e prenderam
os demais, dentre eles o líder Manoel Congo.
190

reconhecê-lo na delegacia e posteriormente em juízo. Em juízo, diga-se o réu


foi colocado entre outras pessoas e vítima e a testemunha X em nenhum
momento apresentaram (sic) qualquer hesitação no reconhecimento (...).
Vale anotar que o réu não possui o estereótipo padrão de bandido,
possui pele, olhos e cabelos claros, não estando sujeito a ser facilmente
confundido (Proc. nº: 0009887-06.2013.8.26.0114, TJSP) (Grifos meus)

Nesse sentido, toda a legislação que vem com o argumento de redução do


encarceramento e até mesmo a própria legislação procedimental garantidora do devido
processo legal, encontram argumentos permissivos de sua suspensão ou de sua aplicação
pouco efetiva, bem ao estilo das ―leis para inglês ver‖. Essa suspensão acaba ocorrendo, na
maioria das vezes sobre aquele que se encaixa no estereótipo do criminoso.
A posição precária no mercado de trabalho, as deficiências da socialização
familiar, o baixo nível de escolaridade, presentes entre os que ocupam uma
posição inferior na sociedade, são, não como se costuma apontar, causas da
criminalidade, mas sim características desfavoráveis, que, identificando seus
portadores com o estereótipos do criminoso, terão influência determinante
naquele processo de seleção dos que vão desempenhar o papel de criminosos
(KARAM, 1993, p. 58).

Ao longo de anos de estudo acerca do sistema carcerário nacional entendo que posso
afirmar: não cabe ingenuidade neste tema, é sempre importante demarcar que a prisão se
reformula permanentemente para que consiga seguir exercendo o controle das massas, o
controle dos indesejáveis e não adianta tentar maquiar com instrumentos substitutivos, pois
isso não irá diminuir os níveis de encarceramento no Brasil, ao contrário, a curva permanecerá
ascendente (AMARAL e ROSA, 2014, p. 09).
O que acaba ocorrendo é um simultâneo aumento de controle social dentro e fora do
sistema carcerário, já falado no segundo capítulo desta tese que é o fenômeno da
transcarcerização. É essa a percepção que Marcelo Semer teve em sua pesquisa, ao dizer que a
Lei 12.403/2011 acabou por ressuscitar entre os juízes o arbitramento de fiança, bem como
fez surgir a difusão do uso de tornozeleiras eletrônicas (SEMER, 2019, p. 450), ou seja: o que
era para amenizar o problema, serviu para piorar o controle. Ademais, Maria Lucia Karam
aponta para algo bastante grave que é o racismo impregnado no Poder Judiciário:
Ao tratar com indivíduos pertencentes aos estratos superiores e médios, os
juízes costumam experimentar um sentimento de incômodo, uma maior
preocupação em aplicar a pena, preocupação que não se manifesta quando se
trata de indivíduos dos estratos inferiores, aos quais a pena é aplicada sem
hesitações, pois menos comprometedora para seu status social, já baixo
(KARAM, 1993, p. 60).

Nesse sentido é impactante a frase de Michelle Alexander ao afirmar que na era do


encarceramento em massa o significado de criminoso em nossa consciência coletiva ―se
191

confunde com o significado de negro, por isso criminoso branco é embaraçoso, enquanto
criminoso negro é quase redundante‖ (ALEXANDER, 2017, p. 282), pois tal frase fica
evidente no julgado supracitado onde o Poder Judiciário diz que ―o réu não possui o
estereótipo padrão de bandido‖, pois de fato, não tem. A mesma autora ressalta que ―a
branquitude mitiga o crime, enquanto a negritude define o criminoso‖ (ALEXANDER, 2017,
p. 282)
Ao voltarmos para a História, a fim de compreender essa famosa expressão, temos D.
Pedro I firmando com a Inglaterra o Tratado de 23 de novembro de 1826158, equiparando o
tráfico de pessoas escravizadas com o ato de pirataria, gerando profundo incômodo dentre os
parlamentares brasileiros que afirmavam que isso violava a soberania do país e nenhuma tese
humanitária aquela altura soaria convincente. D. Pedro I encontrando resistência em suas
medidas alinhadas aos interesses Ingleses, já trazia medidas que detinham forma, porém não
substância.
Em abril de 1831 o Imperador do Brasil decide, num rompante, abdicar do trono em
favor de seu filho que contava com apenas cinco anos de idade, dando azo à regência trina
provisória posteriormente substituída pela regência trina permanente159 em julho de 1831 e,
em 07 de novembro deste mesmo ano, foi promulgada a primeira Lei brasileira que previa a
proibição do tráfico transatlântico de pessoas escravizadas, lei esta não efetiva, apenas ―para
inglês ver‖160, eis que o tráfico continuou a ser realizado no país.
Num efeito inverso, com a proibição houve o aumento do desembarque de africanos e
a alfândega arrecadava mais dinheiro com a ―mercadoria proibida‖ posto que mais rara e mais
cara pelo aumento dos riscos161. Marcelo Dias afirma que, ao invés de coibir o tráfico o
governo imperial acabou por incentivá-lo, e, até 1850, quando finalmente foi promulgada a
Lei Eusébio de Queiroz - proibindo definitivamente o tráfico internacional de pessoas
escravizadas - o que se teve foi o crescimento do número de africanos que entraram no Brasil
como escravos (DIAS, 2016, p.19). Sendo certo que:
Mais de 70% das vítimas que chegavam vivas nos navios negreiros tinham
até 18 anos de idade. Considerando que essa realidade persistiu durante o
Império é que afirmamos que o ouro amarelo do Tesouro nacional foi
formado com o vermelho do sangue das crianças africanas. Esse sangue
vermelho que tanto mais manchava o mar azul ou verde na medida em que

158
Essa medida entraria em vigor três anos após a ratificação do referido tratado (CAMPELLO, 2018, pp. 89-91)
159
Sendo um dos regentes Joao Bráulio Moniz, irmão de Ângelo Moniz, do inventário anteriormente citado,
onde as pessoas escravizadas aparecem separadas por famílias e designadas como semoventes.
160
Essa é a lei que originou uma das expressões mais populares no país, sempre utilizada quando se deseja fazer
referência, sobretudo, a dispositivos legais pouco ou nada efetivos.
161
Ressalte-se que, para que se evitasse a captura pelos navios ingleses, conforme a Lei britânica Bill Aberdeen
de 08 de agosto de 1845, muitos optavam por afundar a carga do navio tumbeiro evitando-se o flagrante.
192

tanto mais os navios negreiros passaram a ser interceptados pelos navios de


guerra da Inglaterra (DIAS, 2016, p. 17)

Após 1850, o que foi observado foi o aumento do tráfico interno de pessoas
escravizadas, mas a Lei ―para inglês ver‖, de 1831, trouxe um importante marco que foi:
comprovada a entrada em data posterior à ela, o africano deveria ser considerado livre. Vimos
que diversas ações de liberdade foram propostas neste sentido como bem apresentou a obra de
Sidney Chalhoub (2011).
Tendo o Brasil sido formado com uma ―população quase que inteiramente
transplantada‖ (DIAS, 2016, p. 28), com a classe dominante colonizadora branca em número
inferior à classe trabalhadora oprimida formada por negros e mestiços, escravos ou libertos,
compreende-se o discurso já explanado acerca da necessidade do mito da democracia racial,
bem como da produção do medo do homem ―de cor‖ e da necessidade do controle dos
indesejáveis, seja através da legislação de maneira explicitamente repressiva como na
criminalização da vadiagem e da capoeira, seja, com o decorrer dos séculos com leis de
emergência, cujo rigor é justificado pela defesa social e seja também, com todo o cinismo, das
leis desencarceradoras ―para inglês ver‖, bem como a utilização de brechas justificantes de
opressão sempre querendo ―fingir não ver‖ que da proibição nasce (ou fomenta-se) o tráfico,
seja qual for a ―mercadoria‖162.

5.4. A engrenagem necropolítica da prisão cautelar: racismo estrutural, o projeto da


guerra às drogas e a garantia da ordem pública como dispositivo

A droga vai se convertendo no grande eixo - o mais imperturbavelmente


plástico, capaz de associar motivos religiosos, morais, políticos e étnicos -
sobre o qual se pode reconstruir a face do inimigo (interno) também num
compatriota; no Rio de Janeiro, na figura de um adolescente negro e
favelado que vende maconha ou cocaína para outros adolescentes bem
nascidos. A severidade de nossa legislação (...) exprime não somente a
síndrome dos governos latino-americanos de serem ―mais drásticos que o
próprio governo norte-americano‖, mas também a funcionalidade mítica da
droga para o exercício daquele controle social penal máximo sobre as classes
marginalizadas, cujos filhos são recrutados para trabalhar nos arriscados
estágios da produção e comercialização de um produto cujo mercado está
condicionado por sua criminalização e cujos preços oscilam na razão direta
da maior ou menor eficiência das agências de repressão penal (BATISTA,
1997, p. 143) (Grifos meus)

162
Juliana Borges afirma que a elite colonial era composta por traficantes de homens e mulheres e que a ―mercadoria de
importância na constituição do que viria a ser a sociedade brasileira foi o corpo negro‖ (BORGES, 2018, p. 55)
193

Apresentarei de que maneira a guerra como projeto necropolítico se estabeleceu no


Brasil e de que forma a prisão sem condenação tem sido utilizada, com um ―pseudo‖ amparo
legal para o controle do inimigo.
Ressalto que, eu mesma, sempre observei a questão do aprisionamento de maneira
descontextualizada à relação racial, especificamente à nossa relação racial pautada pela
suposta democracia e igualdade. Nossos grandes autores, também parecem não terem tido o
foco voltado para essa questão embora ela lá sempre estivesse, como um exemplo disso,
transcrevo a fala de Maria Lucia Karam, autora cuja admiração nutro desde os tempos de
graduação:
A ―guerra às drogas‖ não se dirige propriamente contra as drogas. Como
qualquer outra guerra, dirige-se sim contra pessoas – nesse caso, os
produtores, comerciantes e consumidores das drogas tornadas ilícitas. Como
acontece com qualquer intervenção do sistema penal, os mais atingidos pela
repressão são – e sempre serão – os mais vulneráveis econômica e
socialmente, os desprovidos de riquezas, os desprovidos de poder. No
Brasil, os mais atingidos são os muitos meninos, que, sem oportunidades
e sem perspectivas de uma vida melhor, são identificados como
“traficantes”, morrendo e matando, envolvidos pela violência causada pela
ilegalidade imposta ao mercado onde trabalham. Enfrentam a polícia nos
confrontos regulares ou irregulares; enfrentam os delatores; enfrentam os
concorrentes de seu negócio. Devem se mostrar corajosos; precisam
assegurar seus lucros efêmeros, seus pequenos poderes, suas vidas. Não
vivem muito e, logo, são substituídos por outros meninos igualmente sem
esperanças. Os que sobrevivem, superlotam as prisões brasileiras
(KARAM, 2010, p. 02) (Grifos meus)

Esses meninos narrados por Maria Lúcia Karam são negros ou ―brancos quase negros
de tão pobres‖ como na música supracitada. Nossa principal questão relativa ao cárcere não é
a social, é a racial e essa compreensão exigiu de mim, além de muita leitura, coragem
alcançada com essas irmãs que hoje tenho para oferecer-me como aliada, porta-voz, mas
nunca como voz, pois jamais vivi a dor, tampouco a força de ser uma mulher negra no Brasil.
Particularmente eu precisei de duas mulheres negras para meu despertar acerca da
questão carcerária163, talvez pelo meu local privilegiado de fala. No entanto hoje, se eu tiver
que parafrasear Loic Wacquant, não hesitarei em dizer que a prisão, aqui no sul, no Brasil ex-
colônia, não é para o controle dos pobres, mas sim para o controle dos negros, que por uma

163
Após assistir o documentário ―A décima terceira emenda‖, li Juliana Borges e Michelle Alexander. A partir
delas segui, e, na sequência perderia de vista tanta potência feminina de ancestralidade: Angela Davis, Carla
Akotirene, Debora Small, Kimberle Crenshaw, Maria Aparecida Silva Bento, Ana Flauzina, Lelia Gonzalez,
Winnie Bueno, Marielle Franco, Thula Pires e, especialmente Carolina Câmara Pires, minha colega de
doutorado. Não vejo necessidade alguma de localizá-la em termos de importância e produção acadêmica, porque
para mim todas elas contribuíram para me mostrar o quanto nós brancos, as invisibilizamos.
194

consequência lógica e histórica são pobres, e não o inverso. Compreendi, através de Thula
Pires, que:
Não renunciar a categoria raça ajuda a entender melhor como funciona o
patriarcado, a cis/heteronormatividade, a luta de classes e as dinâmicas
institucionais (...) Ler processos históricos sem uma lente racializada
macula a interpretação do que passou, expropria do presente uma série de
referências e explicações e empurra ao futuro os mesmos desafios de
sempre. Ao contrário, busca-se racializar para politizar (PIRES, 2018, p.
1077) (Grifos meus)

A verdade é que a atual política de segurança, no que tange à chamada guerra às


drogas, se trata de exercício de necropolítica, e isso não cabe num Estado (que se diz como)
Democrático de Direito, expondo a permanência de um estado de exceção que permite (e
sempre permitiu) a eliminação dos indesejáveis, seja pela morte, aprisionamento ou
segregação (CARDOSO; PINTO, 2018) Com muito acerto Deborah Small fala que a
sociedade ―não se importa com os policiais negros que são mortos nem com os traficantes
assassinados pela polícia‖ (SMALL, 2016, p. 03), posto que a sociedade brasileira, embora
negue, é racista.
Quando optei por realizar a tese sobre prisões preventivas em razão do fundamento
garantia da ordem pública convertidas em audiência de custódia, à luz do previsto no artigo
310, II do Código de Processo Penal, cheguei a cogitar a realizar algum tipo de pesquisa de
campo para que o trabalho não ficasse apenas pautado na teoria, contudo, ao notar que
precisaria mergulhar nos estudos raciais e decoloniais para a verificação do uso de
engrenagens do processo como dispositivos, numa realidade histórica de 388 anos de
escravidão negra não reparada, vi que a análise só seria possível se eu abrisse mão do campo e
utilizasse material já consolidado em pesquisas.
Por esta razão, decidi consultar dados de quatro pesquisas acerca da prisão cautelar: A
primeira, já bastante citada no texto, trata-se do doutoramento de Marcelo Semer,
Sentenciando tráfico: pânico moral e estado de negação formatando o papel dos juízes no
grande encarceramento.164 Tese recentemente defendida em 2019. O autor, num ato de
extrema generosidade, me cedeu o original do texto ainda não revisado, que em breve se
tornará livro. As outras três pesquisas, por sua vez, foram conduzidas por professores de
instituições de ensino superior no Rio de Janeiro e são elas: Tráfico de drogas e

164
O autor se propôs a discutir o papel do juiz na formação do grande encarceramento no Brasil, a partir da
análise de decisões de tráfico de drogas, num trabalho hercúleo que culminou numa tese de 535 páginas onde
oitocentas sentenças de oito Estados brasileiros foram analisadas.
195

Constituição165, coordenada por Luciana Boiteaux (UFRJ); Excesso de prisão provisória no


Brasil166, coordenada por Rogério Dultra dos Santos (UFF) e, por fim Usos e abusos da
prisão provisória no Rio de Janeiro – Avaliação do impacto da Lei 12.403/2011 coordenada
por Julita Lemgruber (Universidade Cândido Mendes), obviamente na construção desse
pensamento há também a presença de Salo de Carvalho (2015) e Luís Carlos Valois (2016),
que já trataram exaustivamente sobre a questão das drogas e o encarceramento massivo.
A priori é importante destacar a origem167 desse projeto político. Luis Carlos Valois no
livro168 O Direito Penal da Guerra às Drogas, fruto de sua tese de doutorado, traça todo esse
histórico em mais de trezentas linhas, culminando com a evidência da importação do modelo
americano. Ele destaca a relação existente entre a produção do medo e o golpe empresarial-
militar de 1964 (VALOIS, 2016, pp. 344-365).
Eugenio Raul Zaffaroni, por seu turno, coloca a situação de maneira mais sintética: ele
aborda o tema chamando-o de periferia neocolonizada, em sua obra O inimigo no direito
penal (2014). Segundo sua fala, foi após a derrubada das repúblicas oligárquicas, no nosso
caso, da República Velha, e a ascensão dos populismos - que abriram espaço à setores
anteriormente excluídos através da política de bem estar social – que geraram a reação das
antigas oligarquias, que incomodadas, promoveram golpes. A partir disso, a regressão vivida
nesses países sedimentou o terreno para que os Estados Unidos interviessem provocando
novos golpes que ―instalaram fortes ditaduras e regimes militares que praticaram o terrorismo
de Estado com inusitada crueldade, em especial no Cone Sul169‖ (ZAFFARONI, pp. 49 e 50).
Foi desse caldo que surgiu aquele desdobramento já explicado (através de Lola Aniyar
de Castro) entre o sistema penal aparente e o subterrâneo. Para Eugenio Raul Zaffaroni esse
foi inclusive o caráter diferenciador desse tipo de regime com a ―montagem do mencionado
sistema penal subterrâneo sem precedentes quanto à crueldade, complexidade, calculadíssima

165
A pesquisa analisou dados coletados das sentenças judiciais e acórdãos de condenações por tráfico, na cidade
do Rio de Janeiro (foro central estadual e federal, Tribunal de Justiça e Tribunal Regional Federal da 2ª Região),
bem como nas varas especializadas do Distrito Federal, nas varas criminais federais do DF, nos Tribunais de
Justiça e Regional Federal da 1ª Região. A coleta foi de 07 de outubro de 2006 a 31 de maio de 2008. Luciana
Boiteaux constatou que a imagem aterradora do traficante está impregnada no senso comum, bem como nas
decisões, porém, analisando os casos ela notou que 84% dos réus eram primários.
166
A pesquisa focou em processos de furto, roubo e tráfico de drogas, transitados em julgado entre os anos de
2008 a 2012 em Santa Catarina e Bahia. Também teria o Rio de Janeiro, mas as dificuldades de acesso aos dados
tornou a missão inviável.
167
Isso remonta a uma política muito bem retratada de controle daquele a quem deve ser visto como inimigo e
isso fica claro em dois documentários de fácil acesso que são: ―A Décima Terceira Emenda‖ e o mais recente
―Baseado em Fatos Raciais‖, ambos disponíveis no NETFLIX.
168
Também utilizado por Marcelo Semer em sua pesquisa (SEMER, 2019, p. 148)
169
Numa acepção ampla: Argentina, Chile, Uruguai, Paraguai e brasil (abrangendo toda a região sul até São
Paulo).
196

planificação e execução, cuja analogia com a solução final é inegável‖ (ZAFFARONI, 2014,
pp. 50 e 51).
Bem como também foi a partir daí, que esses países foram pressionados para aderir à
chamada guerra às drogas numa versão ainda ligada à segurança nacional, que, no caso
brasileiro, flertava com o racismo estrutural escamoteado pelo discurso da democracia racial:
O traficante era um agente que pretendia debilitar a sociedade ocidental, o
jovem que fumava maconha era um subversivo, guerrilheiros eram
confundidos com e identificados a narcotraficantes (a narcoguerrilha) etc. À
medida que se aproximava a queda do muro de Berlim, tornou-se necessário
eleger outro inimigo para justificar a alucinação de uma nova guerra e
manter níveis repressivos elevados. Para isso reforçou-se a guerra contra
droga (ZAFFARONI, 2014, p. 51) (Grifos meus)

Creio que no Brasil, havia um adicional em decorrência de a questão racial ser muito
distinta da estadunidense. Enquanto lá o apartheid era evidenciado, por aqui, seguia-se com o
branqueamento genocida, a farsa da democracia racial, mas paralelamente com a presença do
medo branco existente desde o período colonial. Vale lembrar que esse medo, por aqui, já
desde cedo apresentou restrições atacando o ―fumo dos negros‖, ou seja: a maconha:
O medo branco, materializado nas insurreições, impôs a criminalização de
toda e qualquer manifestação ou ato que permitisse a reunião dos negros,
como o samba, a capoeira, as religiões de matrizes africanas, os curandeiros
(―médicos negros‖), e o uso do “fumo do negro” (maconha), introduzida
no país, de acordo com documento oficial de 1959 do Ministério das
Relações Exteriores brasileiro, pelos escravos, que trouxeram sementes
da planta escondidas nas Abayonis, inaugurando, assim, nossa ―guerra
contra as drogas‖ que ocupa nossa cruzada racial (GOES, 2016, p. 29)
(Grifos meus)

De todo modo, havia a necessidade de ser produzido esse inimigo, que aqui já estava
há séculos pronto. Considerando que inimigos, são destituídos de natureza humana, razão pela
qual lhe são subtraídos os atributos de cidadania, tínhamos, de maneira bastante adequada ao
exercício desse papel, o negro - que inclusive já havia sido suficientemente objetificado e
controlado. Kenarik Boujikian corrobora com Eugenio Raul Zaffaroni ressaltando que é:
Importante lembrar que foi no período das ditaduras da América Latina
que se lançou fortemente a guerra contra as drogas. Até hoje colhemos
tal fruto, ainda plantamos a mesma árvore e a regamos com o máximo
midiático possível. A pesquisa aponta bem a fervorosa utilização da
expressão “ordem pública” usada na lei, nas decisões e manifestações do
Ministério Público, tal como se empregava no período da ditadura
(BOUJIKIAN, prefácio, LEMGRUBER et al. 2013, p. 04) (Grifos meus)
197

Toda a trajetória da proibição e criminalização das drogas 170 foi abordada por Luís
Carlos Valois (2016, pp. 323-518), porém, nosso foco será voltado para o presente, com a
famigerada Lei de Drogas (Lei 11343/2006), já que foi desde a sua promulgação
estabelecendo ―nova conformação jurídica à criminalização do comércio e uso de drogas‖
(SOUZA, 2018, p. 347), que o encarceramento aumentou expressivamente. Segundo Juliana
Borges:
O tráfico lidera as tipificações para o encarceramento. 26% da população
prisional masculina está presa por tráfico, enquanto que dentre as
mulheres, 62% delas estão encarceradas por essa tipificação (...) O
crescimento abrupto acontece, exatamente, após 2006 e a aprovação da Lei
de Drogas. De 1990 a 2005, o crescimento da população prisional era de
cerca de 270 mil em 15 anos. De 2006 a 2016, ou seja, 8 anos, o aumento foi
de 300 mil pessoas (BORGES, 2018, p. 19) (Grifos meus)

Segundo Salo de Carvalho, ―os dados oficiais apontam que a imputação pelo art. 33 da
Lei de Drogas (tráfico) é, depois da imputação pelo art. 157 do Código Penal (roubo), a que
mais fomenta o encarceramento nacional (CARVALHO, 2015, p. 632).
A pesquisa coordenada por Julita Lemgruber aponta de maneira semelhante à minha
preocupação no início da tese (ainda sem o olhar decolonial e ligada à questão racial) quando
estava focada somente na verificação da engrenagem do uso da expressão ―garantia da ordem
pública‖ como dispositivo de controle Agambeniano através do encarceramento cautelar.
Contudo, embora ficasse evidente que o encarceramento em massa servisse para o
controle de pobres, foi somente após o contato com Juliana Borges e Michelle Alexander que
senti a necessidade de questionar o meu próprio olhar que durante todos esses anos viu a
questão prisional invisibilizando a questão racial.
Ao passar das décadas, esta criminalização vai se modificando e avançando
sobre outras características, inclusive sob o verniz de uma criminalização
da pobreza em um esforço de limpar o elemento racial como sustentação
do sistema de desigualdades brasileiro (...) Acreditar que o elemento de
classe não está informado pelo contexto e elemento racializado e colonial da
sociedade brasileira é invalidar que negros são 76% entre os mais pobres no
país, que 3 em cada 4 negros estão presentes entre os 10% com a menor
renda do país ou que, em 2015, negros recebiam, em média, 59,2% do
rendimento dos brancos, mesmo com políticas afirmativas e de incentivo
implementadas nos últimos anos (BORGES, 2018, pp. 80-83) (Grifos meus)

170
Vale dizer que a partir dos anos 1980, o tráfico de drogas já passou a ocupar lugar de destaque na agenda da
segurança pública. Com o advento em escala mundial da ―guerra contra as drogas‖, aumentou a demanda pelo
combate ao tráfico e à criminalidade de modo geral, ainda que isso implicasse o emprego de práticas arbitrárias
pelas autoridades. A opinião pública parece concordar que a solução para o problema precisa passar pela
suspensão dos direitos civis de uma série de indivíduos. Apesar de o problema da insegurança em muito
ultrapassar a sua relação com o tráfico de drogas, este passou a ser visto como o foco central e a origem da
questão da chamada violência urbana (MISSE, et al, 2015, p. 55).
198

Foi, principalmente com as lições de autoras negras que trabalhavam sob o viés racial,
que pude observar de maneira mais crítica o crescimento na taxa de encarceramento feminino,
pautado também na mesma engrenagem da Lei de Drogas, mas ainda ignorando (ou
invisibilizando) que essas mulheres eram negras (muitas grávidas cujos filhos já nascem
cativos).
Hoje questiono como eu (e tantos outros) deixei esse dado passar sem ser
problematizado? Como o principal – a questão racial - não aparecia de maneira contundente?
Várias dessas respostas encontram eco em algo óbvio: sou branca e tive a vida acadêmica
pautada em autores eurocêntricos171. Não é à toa que o despertar se deu com mulheres,
mulheres negras, em um momento em que todos os ativismos são colocados em xeque.
Se a negritude carrega o peso da dor, a branquitude carrega o peso do descaso e da
invisibilização do negro para a permanência de seu privilégio. Não basta mais a nós brancos,
sermos apenas aliados críticos. Devemos ser brancos antirracistas, provocadores do status
quo, sem que isso usurpe o protagonismo negro de sua árdua luta pela libertação colonial,
para o alcance da igualdade material democrática de fato e não apenas de direito conforme
prevê as linhas de nossa Constituição.
Precisei observar também algumas questões relativas à interseccionalidade de
feministas negras (CRENSHAW, 2004; AKOTIRENE, 2018), não perdendo o foco, porém,
da tendência ao pensamento abolicionista (DAVIS, 2018), ou, pelo menos, de um olhar da
criminologia cautelar (ZAFFARONI, 2012), eis que, conforme a fala de Angela Davis:
Alternativas que não combatam o racismo, a dominação masculina, a
homofobia, o preconceito de classe e outras estruturas de dominação não
levarão, em última análise, ao desencarceramento e não promoverão o
objetivo da abolição (DAVIS, 2018, p. 117)

Considerando que, no meu entender, a função da prisão é exercício de necropolítica172


e que todas as reformas acabam por estabelecer novas traduções das mesmas questões
estruturais, faz parte do processo ser a Defensoria Pública a principal atuante na defesa dos
presos na ocasião da realização da audiência de custódia.

171
Winnie Bueno, em breve artigo sobre a seletividade penal diz que: ―a abordagem sobre seletividade penal
passa, muitas vezes, em branco (literal e metaforicamente), consequência da força do mito da democracia racial
brasileira e dos discursos universalistas de classe. Há um senso comum que aponta que as violências e índices de
criminalização indevida estão mais relacionados com fatores sociais do que com racismo‖ (BUENO, 2017, p.
01)
172
Morte de presos por doenças cresce 114% em presídios do RJ em 7 anos: ―Dados da Secretaria de Estado de
Administração Penitenciária (Seap) apontam que, em 1998, o Rio tinha 18 mil presos. Passados 20 anos, esse
número saltou para 54 mil. Nesse mesmo período, o número de profissionais de saúde para atender os presos
caiu de 1,2 mil para 450‖. Disponível em: < https://www.topmidianews.com.br/policia/morte-de-presos-por-
doencas-cresce-114-em-7-anos-em-presidios/109760/>. Acesso em 24/04/2019.
199

Este momento processual deveria funcionar propiciando um grande


desencarceramento, mas ao contrário, nas decisões que convertem o flagrante em preventiva,
assim o fazem com base eu um exercício de futurologia, tendo como mote a cláusula onde
tudo cabe oriunda da Alemanha nazista: a garantia da ordem pública.
Os pretos, os pardos, quando os suspeitos de envolvimento com a baixa
criminalidade conhecem não apenas o peso da acusação o do Estado, como é
estreito o seu limite de defesa. Estes, em geral, não podem sustentar por
meios próprios uma defesa digna e bem articulada. Dependem de uma
Defensoria Pública, nem sempre tão bem estruturada em todas as regiões do
país. Na verdade defendem-se como podem. O contraditório e a ampla
defesa são princípios constitucionais que quase sempre não são colocados à
sua disposição. Sob esse ponto de vista, a República Democrática traz
algumas heranças do Regime Imperial de Exceção (DIAS, 2016, p. 118)

Vale destacar que ―a cor do suspeito é encoberta ou mascarada por outros standards
decisionais (atitude suspeita, presença em área de tráfico, antecedentes criminais)‖ que o
definirão como traficante ou usuário (CARVALHO, 2015, p. 633)
Na palestra de Maurício Stegemann Dieter abordada no terceiro capítulo dessa tese,
houve um dado de suma importância acerca da questão da guerra às drogas. Este professor
afirmou que o tráfico nada mais é do que uma escolha de criminalizar um negócio jurídico,
que seria perfeito, se a droga não fosse ilícita posto que não há violência no tráfico, mas sim
um comércio. E, é por essa razão que para ele qualquer discussão séria acerca do sistema
carcerário brasileiro, e aí estariam por óbvio incluídas as prisões sem condenação definitiva -
passaria pela descriminalização de todas as drogas, já que nosso encarceramento em massa
está localizado na lei de drogas. Essa realidade é bastante óbvia para quem tem o mínimo de
interesse em ver o problema de maneira séria sendo certo que:
Os impactos do proibicionismo se revelam cada vez mais atentatórios aos
direitos fundamentais, sem demonstrar resultados eficazes. A ―política
criminal com derramamento de sangue‖, além de produzir alarmantes
estatísticas de mortes por armas de fogo contribui para consolidar o grande
encarceramento no Brasil‖ (SOUZA, 2018, p. 347)

De maneira mais incisiva, Mauricio Stegemann Dieter diz que ―Juiz no Brasil não
pode ter poder porque eles não têm maturidade democrática para lidar com isso‖. Sua crítica
debruçava-se sobre o parágrafo 4º do artigo 33 da referida Lei, que estabeleceu excessiva
discricionariedade aos juízes ao dispor que cabe a eles decidir acerca da redução da pena do
traficante, de um sexto a dois terços, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes,
não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa, regra essa pouco
usada. Indo no mesmo norte Marcelo Semer afirma que:
200

Há um sentido de adesão, mas outro de resistência, na atuação dos juízes, de


modo que as alterações políticas podem explicar menos do que se supõe –
inclusive como consequência de mudanças legislativas. Foi assim que, de
certa forma, o aprisionamento referente ao tráfico de drogas cresceu com
a Lei 11.343, de 2006, quando os objetivos e as expectativas eram de
redução, ao menos em relação ao microtráfico. A mudança legislativa não
só não foi suficiente para estancar o crescimento das prisões dos pequenos
traficantes –ou das situações limítrofes entre o comércio e o uso- como ainda
o impulsionou fortemente (SEMER, 2019, p. 450) (Grifos meus)

Ora, Salo de Carvalho mostra claramente que o problema não reside apenas ali, mas
também na própria diferenciação entre quem deve ser rotulado como usuário ou como
traficante, eis que de um lado a Lei veda173 qualquer possibilidade de prisão àquele que é
processado por porte de drogas para consumo. E de outro, aquele que ganhará a pecha de
traficante terá o ―regime penal mais rigoroso possível, não apenas pela quantidade de pena174
aplicável, mas, sobretudo, pela sua equiparação constitucional aos crimes hediondos‖
(CARVALHO, 2013, p. 70).
Marcelo Semer observa ainda que os processos apresentam ―apreensões de quantias
relativamente modestas de droga (medianas respectivamente de 66,1g de maconha, 30,66g de
cocaína e 13,36g de crack), com 56% a 75% de apreensão das pequenas porções‖, mas que,
não obstante essa realidade tem-se a prisão em flagrante normalmente convertida em
preventiva (acima de 90%); sendo a prisão provisória durante o processo como uma regra. Ele
acrescenta que sobrevindo condenação, a pena mínima tem como causa não ser aplicada em
razão de um suposto desvio de personalidade, posto que o tráfico de drogas é algo tão nocivo
e o traficante tão desprezível, que o aprisionamento cautelar e definitivo se apresentam, na
visão da maioria do Judiciário paulista, absolutamente indispensáveis (SEMER, 2019, p. 459)
A esquizofrenia de critérios é tão absurda que, Luis Carlos Valois, em sua tese sobre
este tema, também demonstrou o nível de confusão para a caracterização do tráfico de drogas.
Ele mostra que sequer há um padrão acerca da maneira que se retrata a quantidade
apreendida, sendo até irônico, se não fosse tão trágico os efeitos dessa política de morte para a
sociedade:
Para indicar a quantidade de droga informada nos procedimentos
pesquisados, há que se abstrair a forma utilizada pela polícia para designar a
porção da droga. Por exemplo, quando em um processo há a informação da
apreensão de 150 pedrinhas de crack e em outro há informação de
apreensão de 5 pedras de crack, a quantidade de cocaína contida nas cinco
pedras pode ser maior que 150 pedrinhas, mas, dos autos de prisão em
flagrante não se tira essa informação, vez que os delegados de polícia

173
Aliás, ―a proibição da detenção, disciplinada no art. 48, §§ 1o, 2o e 3o, é uma regra inédita no ordenamento
nacional‖ (CARVALHO, 2013, p. 69).
174
A pena para o crime de tráfico de drogas varia entre 05 e 15 anos de reclusão.
201

dificilmente fazem menção ao exato volume da droga. Além da referência a


pedras e pedrinhas, há informações de tijolos e tijolinhos, pacotes e
pacotinhos, tubos e microtubos, buchas e buchinhas, porções e pequenas
porções. Diferenças regionais também são notadas: no Rio de janeiro há
sacolés de maconha, enquanto em Minas gerais há buchas da mesma planta
(VALOIS, 2016, p. 487) (Grifos do autor)

As perguntas que surgem são: Afinal qual é o critério? O que faz de alguém usuário e
o que faz de alguém traficante? E aqui reside já uma questão de relevo:
Segundo o art. 28, § 2º da Lei de Drogas, para determinar se a droga
destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da
substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a
ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos
antecedentes do agente. Embora o dispositivo seja destinado ao juiz, sabe-se
que a primeira agência de controle que é habilitada ao exercício
criminalizador é a policial (CARVALHO, 2013, p. 70)

O artigo, ao invés de definir com precisão, traz, na visão crítica de Salo de Carvalho,
metarregras que se fundamentam em determinadas imagens e representações sociais de quem
são, onde vivem e onde circulam os traficantes e os consumidores (CARVALHO, 2013, p.
71). Segundo esse autor, caberia pelo menos ao judiciário apontar diretrizes básicas no sentido
de reduzir tamanha vagueza (CARVALHO, 2015, p. 632). Contudo, me parece que tal
vagueza é proposital, pois é ela que viabiliza que da exceção se faça regra encarcerando, de
maneira exacerbada, a juventude negra periférica. O autor, afirma que na realidade estamos
diante de uma não regra:
Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à
natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em
que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à
conduta e aos antecedentes do agente. Trata-se, porém, de uma não-regra. Os
espaços de ambiguidade são tão grandes que é evidente perceber como a
espécie de imputação será definida pelas metarregras que compõem os
quadros mentais dos agentes do sistema punitivo, ou seja, pela pré-
compreensão e pela representação que os intérpretes-atores (policial,
promotor ou juiz) têm sobre quem é o traficante e quem é o usuário de
drogas (CARVALHO, 2015, p. 633) (Grifos meus)

Obviamente isso viabiliza toda gama de interpretação, trazendo para o presente a


―margem de decisionismo Schmittiana‖, afinal soberano é quem decide e a Lei de Drogas traz
uma margem deveras extensa (semelhantemente à ideia da garantia da ordem pública nas
prisões preventivas). Ademais, a legislação brasileira de drogas não define a quantidade de
substância que delimita a fronteira entre posse para uso e tráfico, delegando o desenho dessa
fronteira à avaliação casuística e subjetiva de policiais, promotores e magistrados
(LEMGRUBER; FERNANDES, 2015, p. 11). Merece destacar que nessa Lei há nos tipos
penais que diferenciam o usuário do traficante, condutas idênticas, ou seja, verbos idênticos:
202

Segundo a Lei de Drogas, configuram crime as condutas de adquirir,


guardar, ter em depósito, transportar ou trazer consigo drogas. Ambas
as condutas, porém, estão previstas nos tipos penais do art. 28 e do 33 da
Lei 11.343/06, ou seja, objetivamente a mesma conduta empírica pode ser
capitulada como ―consumo‖ (efeito legal: pena alternativa) ou ―tráfico‖
(efeito legal: reclusão de 05 a 15 anos) (CARVALHO, 2015, pp. 632-633).

Ora, o autor critica isso com razão: ―Estruturas normativas abertas, contraditórias ou
complexas‖ criam ―zonas dúbias‖ que são ocupadas pela lógica ―punitivista e encarceradora‖
(CARVALHO, 2013, pp. 68-69). Isso se torna aparente nos resultados da pesquisa
coordenada por Julita Lemgruber:
Não só a tipificação inicial do delito pela polícia pode ser falha e enviesada,
ou não conter elementos suficientes para identificar a natureza do fato, como
a própria prisão pode ter sido ilegal. Mas, conforme explicitam alguns juízes,
a dúvida e a ausência de provas, em vez de fazê-los pender para a concessão
de liberdade ao acusado, leva-os a optar pela manutenção da prisão
(LEMGRUBER et al, 2013, p. 21)

No caso brasileiro, essas estruturas, unidas ao fundamento da garantia da ordem


pública, servirão para o encarceramento de jovens negros e pobres, que vivem em situação de
vulnerabilidade e que, em grande medida, são consumidores e/ou pequenos comerciantes
(CARVALHO, 2015, p. 635). Note-se que:
O resultado da pesquisa Tráfico de drogas na cidade do Rio de Janeiro:
prisão provisória e direito de defesa mostrou que a Lei das Cautelares
trouxe, de fato, alguns avanços notáveis, mas que a prisão em flagrante por
tráfico de drogas continuava, na grande maioria das vezes, sendo convertida
de forma quase automática em prisão preventiva. E que isso tinha
fundamento numa visão demonizadora das drogas – consideradas inimigo
número um da ―ordem pública‖ – e no consequente superdimensionamento
da periculosidade das pessoas acusadas de tráfico, especialmente se pobres e
sem atestados de ―respeitabilidade‖ social (LEMGRUBER; FERNANDES,
2015, p. 04)

Ora, fica claro que isso acaba por perpetuar o controle necropolítico sobre os
indesejáveis cujo destino – que já foi comentado - é a morte (nos autos de resistência175) ou a
cela (com a opção de morrer aos poucos considerando o fracasso do sistema prisional em
âmbito nacional) e que esse inimigo, sempre teve sobre si a questão racial, diminuindo-o,
colocando-o em posição subalterna, estigmatizando-o como potencial criminoso e,

175
Imperioso destacar que temos atualmente o maior índice de mortes praticadas por agentes do Estado nos
últimos vinte e um anos, há, diariamente, cinco pessoas sendo assassinadas: a maior parte delas enquadra-se no
perfil: homem jovem e negro. Vive-se um momento em que se assiste à maximização da necropolítica. ―Polícia
do RJ matou 5 pessoas por dia em 2019, recorde dos últimos 21 anos‖ Disponível em<
https://exame.abril.com.br/brasil/letalidade-policial-no-rio-e-a-maior-dos-ultimos-21-anos/>. Acesso em:
15/05/2019.
203

principalmente não viabilizando a reparação devida pelo Estado Brasileiro pelos quase quatro
séculos de escravidão.
Lamentavelmente, mais uma vez - e parece estar sendo todo dia uma desagradável
surpresa - nessa toada de acabar com todos os ativismos, o deputado Luiz Philippe de Orleans
e Bragança (PSL-SP), trineto da Princesa Isabel (rotulada equivocadamente como a redentora
pelos opressores, obviamente), disse na Câmara dos Deputados, no dia seguinte ao aniversário
de 131 anos da Lei Aurea, que: ―Escravidão é um aspecto da natureza humana‖176.
Por fim, debruço-me sobre a pesquisa coordenada por Julita Lemgruber acerca dos
efeitos da Lei 12.403/2011 no Estado do Rio de Janeiro177. O foco da pesquisa era de que,
sobrevindo a ampliação das medidas cautelares com o advento da Lei, viabilizando um leque
de opções aos juízes responsáveis pela análise dos flagrantes, constatariam uma expressiva
redução na utilização da prisão preventiva, mas ao contrário do que se esperava, não foi o que
ocorreu ―Nada menos de 79% das 4.859 decisões judiciais conhecidas, relativas a flagrantes
de todos os tipos de crimes no ano de 2011, resultaram em privação da liberdade dos
acusados‖ (LEMGRUBER et al, 2013, p. 08).
Seus resultados mostram que até houve redução na utilização da prisão provisória
depois da vigência da Lei 12.403/2011, mas em um quantitativo tímido, tendo em vista a
vastidão de opções dadas aos juízes. Um argumento por eles sustentado é a falta de
aparelhamento do Estado, tornando parte das opções sem viabilidade de aplicação
(LEMGRUBER et al, 2013, p. 32).
Outro argumento comum para negar a liberdade (que é a regra, responder em
liberdade) é que haveria a ―falta de documentação que comprove residência e trabalho lícito
do réu‖ (LEMGRUBER et al, 2013, p. 09). Contudo, na prática vejo a utilização de modelos
trazendo exatamente o inverso: manifestando que a comprovação da residência e de trabalho
lícito não seria suficiente. Já no que tange à engrenagem encarceradora da guerra as drogas:
Nota-se que na quase totalidade dos casos de tráfico de drogas,
independentemente da gravidade da acusação (por exemplo, o fato de o réu
estar ou não vinculado a facção criminosa), a primeira decisão do juiz foi a
prisão preventiva: de 440 flagrantes de tráfico (sem associação com
outros crimes) distribuídos em 2011, apenas seis receberam outro tipo
de medida cautelar que não a prisão (LEMGRUBER et al, 2013, p. 09)
(Grifos meus)

176
Disponível em< https://www.revistaforum.com.br/video-escravidao-e-um-aspecto-da-natureza-humana-diz-
deputado-trineto-da-princesa-isabel/?fbclid=IwAR1JzZyjGwMgM_IXHjjdBGeGL0wTlZXt1pgiZiw-
ZDgTmB98AsSR5D8fXzs> Acesso em 15/05/2019.
177
A pesquisa coordenada por Julita Lemgruber ocorreu no Rio de Janeiro entre agosto de 2012 e março de 2013
e, através de entrevistas, trouxe a visão dos atores do sistema penal acerca da Lei das Cautelares (LEMGRUBER
et al, 2013, p. 29).
204

Acrescenta-se ainda que:


Se, no caso do furto, o impacto da nova lei é perceptível, ainda que não tão radical
quanto acreditam alguns dos operadores entrevistados, o tráfico de drogas representa
o extremo oposto: mesmo depois da entrada em vigor da Lei 12.403, praticamente
a totalidade dos casos (98%) continuou recebendo como primeira medida a
prisão provisória – um tratamento mais drástico até que o dispensado aos casos
de homicídio, em que 91 a 93% dos acusados permaneceram presos durante o
processo após a vigência da lei (LEMGRUBER et al, 2013, p. 19) (Grifos meus)

Já em relação ao conceito de garantia da ordem pública a pesquisa, na parte


relacionada às entrevistas, trouxe o que eu já havia imaginado. Esse conceito não existe
sequer dentre o pensamento dos magistrados, mas sua utilidade de contenção é incontestável:
Seja como for, a imprecisão do termo parece ter sua funcionalidade, pois
permite aumentar o leque de justificativas para privar os réus do direito à
liberdade processual mesmo quando facultada por lei e mesmo diante de
provas inexistentes, falhas ou ilegais. E preserva também o largo espaço de
aplicação seletiva da lei segundo o perfil socioeconômico dos acusados,
característica do sistema judiciário brasileiro desde o período colonial
(LEMGRUBER et al, 2013, p. 47)

Muitos juízes enxergam a L. 12.403/2011 como um ―desserviço à ordem pública‖, já


que ela estaria ―favorecendo a impunidade‖, nitidamente alinhando-se a uma visão do
processo penal desconcatenada com o ideal garantista trazido pela Constituição de 1988. Já no
que diz respeito àquele que deveria ser i fiscal da lei tem-se que ―tal como entre os juízes, há
entre os agentes do Ministério Público uma forte convicção de que a Lei das Cautelares vai
contra os anseios de proteção dos cidadãos, pois favorece a soltura de pessoas que, aos olhos
da sociedade, deveriam ficar presas‖ (LEMGRUBER et al, 2013, p. 34)
Embora os magistrados não conseguissem definir a ordem pública, nota-se que esse
argumento é constantemente utilizado e, para piorar, ainda trazem a justificativa da
demonização, demonstrando uma magistratura subserviente à política da guerra. Nesse norte
também alegam que, por ser crime hediondo, não caberia a liberdade provisória, pensamento
esse contra legem, posto que nada impeça (LEMGRUBER et al, 2013, pp. 30-33).
Tanto promotores como juízes justificam frequentemente o recurso à prisão
como necessário à ―garantia da ordem pública” – argumento que
aparece até mesmo em casos de baixíssima gravidade, como tentativa de
furto. Também é comum invocarem a gravidade abstrata do delito e, mais
ainda, os já mencionados argumentos da falta de documentação
comprovadora de residência fixa e trabalho, ou da existência de antecedentes
criminais – todos eles, como também já dito, em desacordo com os
princípios da presunção de inocência e do ônus da prova para quem acusa
(LEMGRUBER et al, 2013, p. 45) (Grifos meus)
205

Também, durante as chamadas audiências de custódia, verificou-se que juízes e


promotores tem grande afinidade de posições178. Ou seja, trata-se flagrantemente de um
sistema que opera de maneira harmônica tanto para homologar mortes (ZACONNE, 2015),
quanto para prender.
Por todo o exposto confirma-se que há uma inversão de valores inerentes ao processo
penal democrático. A regra é ignorada, na verdade invertida, posto que a dúvida, ao invés de
favorecer o réu, acaba por prejudica-lo. Esse fluxo é tão constante que há Defensores que
evitam fazer pedidos de liberdade já antecipando que serão negados, dessa forma, interpretam
que assim, o juiz dará mais crédito quando, porventura alguma solicitação nesse sentido for
feita. Ou seja, subverte-se o princípio da presunção de inocência e habitua-se á ideia de que o
normal é permanecer preso, muitas vezes invertendo o ônus da prova, incabível se tratando de
processo penal cuja natureza deveria ser a de proteger aquele considerado hipossuficiente ante
a máquina estatal.
Ao ajustar o foco, é fácil perceber o óbvio: a lei elástica dá ao soberano a decisão e
essa decisão reforça o estereótipo do inimigo e viabiliza a necropolítica que elimina o
indesejável, não importando como isso é feito.
Descarta-se a cifra oculta, coloca-se o negro na ―nova senzala‖, não para explorar sua
força de trabalho, mas para sumir com o excedente inútil ao capitalismo, cujo ápice
necropolítico se dá com o extermínio, seja eliminando a vida biológica, seja deixando-o como
homo sacer, destruindo sua dignidade através da prisão. A depender de como isso é feito,
colhe-se inclusive os espólios de guerra, ou seja, como eu dizia aos meus alunos, nada há de
belo a ser visto aqui.

178
Concordam inclusive que um dos impactos da Lei 12.403/2011 foi de dar mais trabalho em termos de
fundamentação para prender (LEMGRUBER et al, 2013, p. 43)
206

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O confronto, assim, deve ser direcionado à estrutura racista em sua


integralidade, na qual a interrupção do genocídio negro é primordial,
visceralmente ligada ao encarceramento em massa, eis que é a partir desses
instrumentos que a edificação racista se solidifica e se projeta para além do
nosso horizonte. Nessa mirada, sua demolição passa, necessariamente a
primeiro plano, pela alteração profunda da nossa política criminal de drogas,
pois, o percurso histórico de criminalização das drogas revela seus
fundamentos e funções racistas, acompanhando, passo a passo, a evolução
do sistema de controle racial brasileiro, mas não se finda com a mesma,
tendo em vista a demanda por ordem que programa os instrumentos
desumanizantes, substituindo, de modo sistêmico e cíclico, legitimações com
fins de perpetuação da hierarquia e hegemonia racial (GOES, 2018, p. 333).

Atualmente, conforme mostrei no primeiro capítulo desta tese, o sistema penal


brasileiro traz um real sistema de controle racial, de maneira explicitada nos dados oficiais do
Informativo do próprio Ministério da Justiça, posto que o público alvo do sistema penal é
negro: a cada três pessoas presas, na terceira maior população carcerária do mundo, duas
delas é negra. Isso, considerando estarmos em um país que teve uma política voltada para o
branqueamento, em que há uma dificuldade enorme em reconhecer a negritude tanto em si
quanto nos outros, pode estar sub-representado. Além disso, também nos últimos anos surgiu
a questão do avanço do encarceramento feminino, cujo quadro de controle racial é
assemelhado ao dos presos homens: a cada três mulheres aprisionadas, duas são negras.
Não obstante, termos presenciado um grande enfrentamento do racismo institucional
nos últimos anos, muito inclusive ligado às ações afirmativas de acesso à educação e aos
direitos mínimos fundamentais. É triste se reconhecer que no campo penal não houve esse
mesmo avanço (o que reverberaria numa redução de encarceramento). Não sei se cabe atribuir
isso de maneira exclusiva aos governos de ―esquerda‖, presentes nos últimos anos, mas posso
afirmar que o atual governo tem tudo para tornar a situação muito pior. Neste sentido, é certo
que quando a repressão aumenta e o cárcere agoniza, a carne que sangra é a negra. É o que
resta em um país que não reconhece seus próprios erros e assim não os repara.
Penso que a utilização do viés decolonial coloca sobre nós brasileiros uma necessidade
urgente de desconstrução, não importa se negro ou branco, uma vez que, se o negro brasileiro
encontra dificuldade de se reconhecer como tal, não dando conta, às vezes, de perceber as
nuances racistas existentes na sociedade (GOES, 2018, p.330), mais ainda o brasileiro branco,
207

que em razão de sua branquitude, goza de um local de privilégio (mesmo que este venha de
camadas mais pauperizadas), que é notadamente não reconhecido.
Recordo-me de uma aluna, hoje amiga, que viveu grande parte de sua vida na favela
de Acari e uma vez ela me disse que por causa de sua cor, sentia o peso da brutalidade policial
somente quando estava em seu bairro, em seu barraco, enquanto suas amigas negras
carregavam o peso da favela o tempo todo. Hoje vejo, e ela também, que sem querer
falávamos do racismo estrutural. Aquele peso não era o da favela, aquele peso era o da cor.
Portanto, é preciso que se reconheça, antes de qualquer coisa, que ―a raça, no nosso país, é
fator criminógeno e exterminante, mantenedores da nossa (sempre viva) gênese escravocrata‖
(GOÉS, 2018, p. 326).
A proposta da tese foi trazer uma abordagem acerca da prisão cautelar para garantia da
ordem pública como dispositivo, tendo a seguinte hipótese condutora: ―As prisões
preventivas, especialmente aquelas para garantia da ordem pública, configurar-se-iam como
“dispositivo” especificamente sobre os negros – categoria de cidadãos, cuja sociedade
estruturada de maneira racista, rotula como inimigos?‖
Era de suma importância que fosse compreendido por quem lê a pesquisa, de que
maneira que essa prisão (sem condenação definitiva) pode ocorrer sem que haja uma afronta à
legislação brasileira. Como podemos ter tantas prisões sem condenação? Por essa razão
expliquei como se dá a prisão cautelar no segundo capitulo deste trabalho, finalizando-o com
a crítica à garantia da ordem pública como fundamento, o que faz a ligação com o terceiro
capítulo sobre biopolítica.
Vele lembrar que, se na visão de Carl Schmitt (2006), o comando do Führer era a
fonte primária e imediata do direito, de maneira que a Schutzhaft sequer necessitava de
fundamento jurídico, por aqui temos um fundamento genérico, tão elástico que nada diz e
tudo diz ao mesmo tempo, viabilizando seu manejo de acordo com a vontade do soberano da
vez, ou da engrenagem soberana do sistema de justiça, já tão bem apresentada por Orlando
Zaccone em seu estudo sobre os autos de resistência (2015).
É realmente importante a compreensão dessa estratégia biopolítica que permite que a
exceção seja permanente. Carl Schmitt (2006) já apontava em sua obra Teologia Política, que
são os conceitos indeterminados que viabilizam o deslizar do direito para o momento da
decisão, e aqui, fazendo um paralelo, nota-se que no caso do encarceramento há uma ligação
direta com a política de segurança pública que é racista (sem se assumir), mas que de maneira
racista opera ao aderir à construção da guerra as drogas, que por seu turno traz outra abertura
interpretativa na definição entre o usuário e o traficante.
208

A priori, como já explicado, utilizaria referencial teórico lastreado na filosofia,


basicamente com Giorgio Agamben e Michel Foucault, e acreditei que um pouco de
criminologia me bastasse, mas, como afirmei, parecia que nada ―fechava‖. Foi nesse ponto
que a contribuição de Geraldo Prado se fez essencial, ao me abrir a porta do estudo
decolonial. Mauricio Stegemann Dieter e Marcelo Semer também ajudaram quando
mostraram que a minha sensação de que nada ―fechava‖ era pertinente.
A maneira de se estudar não estava sendo muito satisfatória porque dava sensação de
trazer mais do mesmo, como no poema que abre o quarto capítulo sobre a decolonialidade. Eu
estava junto com o ―sistema-mundo‖, vendo ―uma garça na beira do rio‖, logo eu, que fiz
mestrado em memória, tanto demorei a perceber que por aquele ângulo eu invisibilizava
exatamente o que queriam que eu não visse, mas tentei, dentro de um tempo exíguo,
―despraticar as normas e ver que era o rio que estava na beira da garça‖.
Porém ―o rio‖ não era ―um rio‖, era o Atlântico banhado de sangue negro. Fomos
colônia e a nossa fratura do povo que nos separa entre Povo e povo reside nisso: fomos
colônia, mas quanto há ainda de colônia em nós? Quem somos ―nós‖ e quem são ―os outros‖?
A realização de uma tese pode ser um exercício psicoterapêutico, creio que por isso
deixei duas epígrafes: ―A primeira condição para modificar a realidade consiste em conhecê-
la‖ de Eduardo Galeano e ―Escrever é uma maneira de sangrar‖ de Conceição Evaristo. Era
preciso olhar para a História para ouvir os oprimidos, mas também é preciso seguir adiante
escrevendo, mesmo que doa.
Sendo assim, enquanto os ventos parecem levar o Brasil para o abismo, eu mudo
rapidamente a direção das velas para tentar, com a ajuda desses autores, compreender o
indizível, porque fingir não ver 388 anos de escravidão é sim indizível.
Nesse ponto, entrou na tese a decolonialidade do saber, evidenciando o
reconhecimento de que a dominação epistemológica do sistema-mundo coloca sobre o Brasil
marginal, o Brasil do corpo colonizado, um saber oriundo de quem sempre se encontrou em
situação privilegiada de dominação, portanto, invisibilizando, destituindo de vontade (e de
saber) aquele cujo corpo foi colonizado – que, no Brasil, recaiu de maneira incisiva sobre o
negro179.
Não se trata apenas do local da produção do conhecimento, mas sim do conhecimento
contra-hegemônico como compromisso ético-político, é o pensar a partir da perspectiva
subalterna (GROSFOGUEL, 2010), como fica facilmente percebido na leitura do Genocídio

179
Já havia sinalizado que também reconheço aqui os povos originários, mas não era a proposta e nem cabia
neste trabalho.
209

do negro brasileiro (2016) de Abdias Nascimento. O que Abdias Nascimento (2016) fez,
assemelha-se ao que Frantz Fanon fez em Pele Negra, Máscaras Brancas (2008).
Vale ressaltar que, em ambas as leituras, há um claro desconforto gerado a quem lê.
Eu penso que isso se dá justamente por essa mudança de lugar epistêmico. Não esperamos ler
aquilo, ver aquilo, digerir aquilo, porque, principalmente considerando que a produção
acadêmica é predominantemente branca com base eurocêntrica, nós brancos (me incluo aqui
com inegável facilidade) temos que nos deparar com a posição que tanto negamos: a de quem
oprime.
Por fim, no quinto e último capítulo da pesquisa, procurei expor essas engrenagens,
cujo ápice me parece ocorrer com essa conjugação de racismo estrutural unido à guerra às
drogas e à possibilidade, pautada em uma cláusula aberta, de se prender sob qualquer
pretexto.
Acredito que a autora negra Michelle Alexander foi quem mais me gerou incômodo
com a sua obra A nova segregação: racismo e encarceramento em massa (2017), ao
demonstrar que a questão das drogas prega um discurso neutro, contudo mantenedor da
exclusão racial. Ela detalha o encarceramento em massa sendo originário direto do racismo, o
que veio a derrubar muros em meu próprio pensar. A autora narra no livro, redigido ao longo
de muitos anos, que essa construção (do racismo vindo primeiro e gerando a segregação) teve
a resistência de muitos, inclusive de seu marido, promotor de justiça, que não arredou pé e
permaneceu divergindo dela, ainda que a apoiasse no projeto (vale anotar mais uma vez a
admiração pelas intelectuais negras), mas não é difícil entender, é difícil acreditar: o racismo
faz o sistema carcerário ser o que ele é.
Penso que o cárcere não se resume a essa questão, mas a isso se presta com inegável
êxito, basicamente está ―a serviço disso‖, conforme já afirmava a abolicionista negra Angela
Davis:
As prisões cumprem, com louvor, suas funções enquanto fábricas de
desumanização, perfeitamente integradas às sociedades estratificadas nas
quais, o sempre sedutor, mercado de segurança recebe olhares atentos do
capitalismo (simbiótico ao racismo) que menosprezou o viés (in)correcional
para dar origem à ―complexos industriais prisionais‖ sob o qual brotam
vozes acaloradas em sua defesa, que atrelam a questão criminal à
responsabilidade individual, não correlacionando-a com a construção de
lugares pré-determinados de existência, como a racialização naturalizada do
crime e do cárcere que, para a população negra, se transformou em fato
inevitável d vida, como nascimento e morte‖ (DAVIS, 2018, p. 174)

O inimigo no Brasil, aquele que gera o medo, o que permite o uso da exceção, é, e
sempre foi, o negro. Tal construção teve viés até cientifico a fim de tentar justificar o
210

injustificável. Máscaras diversas foram e são usadas para confundir, mas por detrás delas a
chance de encontrarmos um negro é maior: um escravo fugido, um capoeira, um vadio, um
sambista, um macumbeiro, um subversivo, um ladrão, um funkeiro, um traficante, em suma:
um negro.
A sentença citada no quinto capítulo não deixa dúvidas: ―Vale anotar que o réu não
possui o estereótipo padrão de bandido, possui pele, olhos e cabelos claros‖. Portanto, a
contrario sensu o bandido é negro! A juíza assumiu o que tantos não assumem, mas que é
relatado pelo INFOPEN, mas também por Elza Soares, por Caetano Veloso ou pelo Rappa. A
realidade se escancara tanto quanto a ―normalidade de 80 tiros atingindo o carro de uma
família‖ ou um helicóptero efetuando disparos de fuzil em área residencial sendo tripulado
pelo Governador do Estado do Rio de Janeiro. O racismo no Brasil é agravado de maneira que
concordamos com a fala180 do antropólogo e professor da Universidade de São Paulo (USP),
Kabengele Munanga, quando este disse em evento em que era homenageado que o "racismo à
brasileira mata duas vezes" (2019).
O racismo presente em nossas estruturas sociais é interligado à falta de dimensão do
problema, eis que tivemos a política de embranquecimento e a criação da falácia da
democracia racial, sendo muito mais complicado lutar contra algo que ―não se vê‖ ou que
―finge-se não ver‖. Até mesmo o nosso racismo institucional não é assumido, não tivemos
Code Noir, tampouco Jim Crow. Porém, o racismo está presente ante a percepção do
privilégio branco.
O povo negro brasileiro tem menos escolaridade, acesso à saúde, maior desemprego e
salários mais baixos, pouca representatividade em cargos de poder e políticos, ademais é o
povo mais estigmatizado com o rótulo de criminoso. O cárcere é composto por maioria negra,
as vítimas do Estado armado são também em sua maioria negras. Ou seja, o corpo negro
colonizado é até hoje o corpo vigiado, cuja abordagem violenta é naturalizada como se fosse
exceção ou um efeito ricochete. O negro é ameaça, e ameaça ainda mais ao não estar
integrado à sociedade capitalista, ele é excesso que não consome.
Maria Lucia Karam, em 1993, já mostrava que essa falta de acesso à Direitos
Fundamentais retrata por si só um painel de violência perpretado pelo Estado. Embora
tenhamos assistido um período de inegável inclusão negra, muito ainda se faz necessário para
que efetivamente haja a quebra de estereótipos e uma mudança de padrão. No que tange à

180
Disponível em: http://bahia.ba/brasil/antropologo-homenageado-diz-que-silencio-e-marca-do-racismo-no-
brasil/?fbclid=IwAR1FtZNoo43YxD4f8OPTNz3sBY5P36ua3lWi9NAWR04ioQOWGRGfbVjO3Fs Acesso em:
17/05/2019.
211

segurança pública, a situação tornava-se mais aguda, uma vez que enquanto se avançava de
um lado, se retrocedia de outro.
Demonizar os Direitos Humanos e as garantias fundamentais serve a esse propósito,
mas isso se faz de maneira seletiva, a exceção irá pairar sobre aquele corpo colonizado,
objetificado, vigiado e matável. Creio que para haver uma mudança, primeiramente existe a
necessidade de se reconhecer esse quadro e nisso lembro-me da diferença da branquitude
crítica e da branquitude antirracista. Se o que se pretende é igualdade, não há mais como
tolerar racistas. Para tanto, repito, é preciso reconhecer a existência do problema nas práticas
diárias, principalmente exercendo a empatia com quem efetivamente vive o racismo.
Contribuindo com a construção de meu raciocínio, no sentido de compreender o
grande encarceramento – negro – noto que há na sociedade brasileira o equivoco de se crer
que através de leis rígidas virá a reboque a redução da violência, tendo esta sendo observada
como sinônimo de crime (KARAM, 1993). Ora, no campo penal, a grande violência é
perpetrada pelo próprio Estado.
O Brasil vive no campo prisional o reconhecimento de um Estado de coisas
inconstitucional, uma quantidade exacerbada de presos sem condenação, cujo fundamento é
baseado em futurologia, medo e mídia, onde tudo serve para garantir a ordem pública. Crimes
são criados e penas aumentadas como desculpas para solucionar o que já se sabe ser
insolucionável. O cárcere encontra-se superlotado e com isso, além de gerar a morte da
dignidade daquele que lá se encontra, pode gerar a morte biológica, ante a falta de condições
mínimas de assistência médica e insalubridade. Mulheres presas seguem a mesma rotina de
violações, com inegável piora quando grávidas ou recém-paridas. Do lado de fora, os
familiares sentem a pena passar da pessoa do condenado, pelo estigma e falta de assistência.
Na cidade, por sua vez, as abordagens em razão da guerra às drogas ignora a
segurança de quem vive nas favelas e na periferia. Nesses locais, cai por terra a
inviolabilidade de domicílio; ademais o projétil do fuzil transpassa as paredes de miséria sem
mandado judicial.
As leis criadas para amenizar o problema do encarceramento em massa tem em si a
hipocrisia, posto que não consideram o caldo de cultura de quem as opera. Vemos leis ―para
inglês ver‖ até os dias de hoje. A própria discricionariedade dada aos juízes para as situações
de tráfico, diferenciando o usuário, do micro traficante para o macro, deixam de forma clara,
que no fim de tudo a grande definição está inicialmente nas mãos dos dois guardas da esquina
e numa sucessão de chancelas: do Delegado, do Ministério Público e do Juiz como
mantenedores do sistema. Não há um culpado, mas há muitos cúmplices.
212

Marcelo Semer (2019) aponta em sua tese, a discricionariedade dada aos juízes e a
resistência desses em não usarem dos benefícios de redução penal para casos de micro tráfico
sem que haja um critério razoável. Ele chegou a ver juízes que disseram que o réu ―não
mereceria‖.
Vimos no último capítulo que a guerra às drogas é um projeto, cuja difusão de que o
tráfico corrói a sociedade foi convincente a ponto de até hoje, ainda haver quem sustente a
ideia de que a maconha é uma ―porta de entrada‖. Cria-se o inimigo público – o traficante
(normalmente negro) e cria-se o mito para a repressão, o ―político da necropolítica‖, como
hoje vemos de maneira tão explicita no Estado do Rio de Janeiro. Vale dizer que no presente
momento, temos uma tríade que mata de diversas formas, consubstanciadas em três chefes do
Executivo: cidade do Rio de Janeiro, Estado do Rio de Janeiro e Brasil.
No que tange ao aprisionamento em massa, segue-se com o discurso que viabiliza o
aumento do número de presos sem que haja a redução da violência oriunda da criminalidade.
O tráfico vira argumento, a ordem pública serve de fundamento, o inimigo é aprisionado,
como numa caça às bruxas na inquisição.
Marcelo Semer (2019), como mostrei no último capítulo, viu em sua pesquisa decisões
criminais fundamentadas em senso comum, como se qualquer pessoa presa com drogas
fizesse parte de uma grande estrutura de um negócio jurídico que poderia ser lícito, mas que
permanece ilícito. Paralelamente, nas decisões, conta-se muito com a palavra dos policiais,
fato já notado por Orlando Zaccone (2015) na ocasião de sua pesquisa acerca dos autos de
resistência.
É a proibição, a intervenção do sistema penal, que propicia a organização violenta do
comércio de drogas ilícitas. A violência daí derivada pesa não apenas na morte de inocentes
suspeitos, mas também na morte de quem atua como braço armado do Estado e, nesse
aspecto, é pertinente a colocação de Deborah Small quando diz: ―Até que ponto o governo
brasileiro e a sociedade esperam que os policiais continuem arriscando suas vidas e sendo
mortos em nome de uma guerra que ninguém acredita que pode ganhar?‖ (2016, p. 03). Essa
fala me remete muito à também dita por Marielle Franco, em publicação feita em rede social
antes de seu assassinato. A vereadora disse: ―quantos mais vão precisar morrer para que essa
guerra acabe?‖
Por fim, creio que com a presente pesquisa, de viés teórico interdisciplinar, pude
confirmar a hipótese pensada quando adentrei ao programa. A ordem pública presente nas
prisões preventivas pode ser considerada como um dispositivo, a própria origem da
―expressão‖ na Alemanha nazista remete a isso.
213

Porém, entendo que o trabalho de pesquisa efetivamente ganhou corpo com o viés
racial problematizado nessa questão. O dispositivo tem um alvo de governamentalidade, sabe-
se qual será o corpo a ser gerido ou deixado para morrer. Essa engrenagem necropolítica
ganha sentido com o olhar decolonial ao situar a fratura do povo e o locus de privilégio
branco.
A leitura provocativa, principalmente de autores latino-americanos, foi nosso foco, a
intelectualidade negra foi fundamental para essa tomada de consciência de que o sistema
carcerário é, aqui no Brasil, para o controle dos negros.
Portanto, concluo que: a garantia da ordem é um dispositivo, a guerra às drogas é um
projeto, a sociedade é racista e a aniquilação do negro pode vir com a morte ou com a prisão,
mesmo que sem condenação. Tudo isso, considerando o momento político presente, de
retração de direitos em que vejo que ―meus inimigos estão no poder‖. No que tange à seara
penal, de barbárie, de tragédia, de baixa perspectiva de um melhor futuro, eu só posso
concluir com a ajuda de Cazuza: Ideologia! Eu quero uma pra viver.
214

REFERÊNCIAS

AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução de Iraci D. Poleti. 1. ed. São Paulo:
Boitempo, 2004.

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AS BRUXAS DE SALÉM (filme). Direção: Nicholas Hytner. Baseado na peça de mesmo


nome de Arthur Miller. Produção: 20th Century Fox. 1996.

AUTO DE RESISTÊNCIA (documentário). Direção: Natasha Neri e Lula Carvalho.


Produção: Lia Gandelman e Joana Nin. 2018.

BASEADO EM FATOS RACIAIS (documentário). Direção: Fab 5 Freddy. Produção:


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Sério‖, realizado no Salão Nobre da Faculdade de Direito da Universidade Federal
Fluminense (Niterói/RJ) tendo como Presidente da Mesa: Prof. Dr. Taiguara Líbano Soares e
Souza (PPGDC/UFF) e mediadora: Profa. Dra. Roberta Duboc Pedrinha (UFF).

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