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HALUHALUNEKISU
À PROCURA POR ALTERNATIVAS DESCOLONIAIS NO BRASIL
NITERÓI
2018
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HALUHALUNEKISU
À PROCURA POR ALTERNATIVAS DESCOLONIAIS NO BRASIL
NITERÓI
2018
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HALUHALUNEKISU
À PROCURA POR ALTERNATIVAS DESCOLONIAIS NO BRASIL
(A) Aprovada
(B) Aprovada com restrição
(C) Reprovada
Niterói, _____/_____/_____.
BANCA EXAMINADORA
AGRADECIMENTOS
Esse estudo não seria possível sem a ajuda de algumas pessoas. Por isso, gostaria de
agradece-las. Poder relembrar o início do sonho em realizar o mestrado me remete à Cuiabá,
cidade na qual morei a maior parte de minha vida. Lá, pude contar com o apoio de pessoas
fundamentais ao meu processo de amadurecimento e entrada no Mestrado do Programa de
Pós-graduação em Direito Constitucional da UFF (Universidade Federal Fluminense). Por
isso, agradeço a Fabiane Lumi Kuroyanagi, Thayná Albuquerque Silva, Rafael Madalozo,
Ricardo Madalozo, Felipe Rodolfo, Diogo Diógenes, Clarinda Costa.
Aos professores do PPGDC-UFF, em especial a minha orientadora, Giulia Parola,
pelo apoio e orientação cautelosa. Ao meu co-orientador, Enzo Bello, pelas reflexões e
incentivos. Ambos foram de suma importância em meu processo de amadurecimento da
escrita.
Agradeço aos professores da banca, Manuel Carballido e Fernando Dantas pelos
direcionamentos e por terem aceito ir até o final da análise desse estudo, estando presentes na
qualificação e defesa.
A todos os meus coelgas de turma, pelo convívio e troca de experiências, em especial
à Larissa única de Paula Couto, ao poeta Lucas Pontes, à Bianca Toledo (bibir), Felipe
Romão, Wilson e Tadeu Eccard, Eduardo Langoni, Rodrigo Pereira, Cecília Pires, Greyce
Dan, Karina Freire, Pablo Gadea, Anne Oliveira, Rafael Tristão, Fabio Santana.
Aos colegas do grupo de estudos Inpodderales (Laboratório de Inovação, Pesquisa e
Observação em Direito, Democracia e Representações da América Latina e Eixo Sul) que
compartilhei importantes momentos no ano de 2018, em especial a Ilana Aló, Lilian Balmant,
Samir Zaidan, Fernanda Lage.
Aos funcionários e funcionárias da UFF, Carla, Lilian e, principalmente, à Mirian e
ao Eric por toda a ajuda, desde o processo seletivo.
Ao PPGDC-UFF pela estrutura institucional, pelo ensino e por ter-me proporcionado
bolsa de estudos durante grande parte dessa trajetória, em especial à professora Clarissa
Brandão.
À Faperj (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro) e Capes
(Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) pelo auxílio financeiro,
fundamental à viabilização e bom andamento desta pesquisa.
Aos amigos do Rio de Janeiro, Rosana Soriano, Fredson Carneiro, Vinícius
Rodrigues, Maria Luiza Paiva, Mirian Murad, Mirts Sants, Patricia Magno, Roberta
6
Damasceno, Amanda, Aline, Luciana Magalhães, Victor Antoun, Yasmin Menezes, Lara
Queiroz, Sofia Marques de Carvalho, Cilda de Carvalho.
À minha família, meu bem maior: Meus pais, Anna e Eduardo, por todo apoio,
dedicação e carinho. Vocês são meu elo com o que há de mais belo nessa vida. Ao meu irmão
Theo, a quem sempre recorro com afeto, buscando uma brincadeira ou conselho. À minha
cunhada, Carla Barzsina, por todo o companheirismo e sabedoria. Minha tia Márcia e prima
Carolina, pelos eventuais refúgios em Juiz de Fora. Ao meu tio Danton, pelo exemplo de
grandeza e sensibilidade.
Ao meu Sol, presente em todos os momentos, de alguma forma, não importa a
distância ou a circunstância, Igor de Carvalho.
Sem vocês nada disso seria possível! Obrigada.
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RESUMO
RESUMEN
El estudio objetiva analizar las epistemologías del Sur como potenciales desmistificadores del
derecho. Para ello, se pregunta: ¿el derecho es un instrumento que oprime o descoloniza el
Sur? ¿Es posible una fundamentación del derecho a partir de las epistemologías del Sur ?; si
es así, sería la constitución un instrumento basilar para tanto ?; y, aún, cuáles cosmovisiones
podrían ser traídas para demostrar el potencial de las epistemologías del Sur para la ruptura
paradigmática jurídico-constitucional? La búsqueda de esas respuestas evidenció los dilemas
de la modernidad y la necesidad de reevaluar elementos que subsidian la consolidación del
proyecto de vida moderno. Haluhalunekisu: en busca de alternativas descoloniales en Brasil,
aborda un tema basado en la idea de desvelar las epistemologías de los pueblos
subalternizados, delimitándose a los indios Nambiquara, para demostrar sus potenciales para
una quiebra jurídico-paradigmática. El sesgo interdisciplinario posibilitó reflexiones, con base
en el campo sociocultural crítico y antropológico, que apuntaron a la universalización de la
epistemología del Norte, a través de fórmulas constitucionales, revelando una estrategia
colonial y de imperialidad.
ABSTRACT
The study aims to analyze South epistemologies as an unveil way of the law. For that, it is
asked: is law an instrument that oppresses or decolonizes the South? Is it possible to provide a
legal basis from the epistemologies of the South? if so, would the constitution be a
fundamental instrument for this? and, further, which worldviews could be brought to
demonstrate the potential of the epistemologies of the South for a legal-constitutional
paradigmatic breaking? The search for these answers highlighted the dilemmas of modernity
and the need to reassess elements that support the modern life project consolidation.
Haluhalunekisu: the search of decolonial alternatives in Brazil, approaches a theme based on
the idea of unveiling the subalternized peoples epistemologies, delimiting the analyzes on
Nambiquara Indians, to demonstrate their potential for a legal-paradigmatic break. Based on
critical and anthropological socio-historical field, the interdisciplinary bias result on
reflections about the universalization of the North epistemology as a colonial and imperial
strategy.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 11
REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 95
11
INTRODUÇÃO
1
“Epistemologias do Sul” é inspirado no livro de Boaventura de Sousa Santos (2014), “Epistemologies
of the South: justice against epistemicide”.
2
Ainda que se utilize o termo “Sul”, geograficamente, o estudo se limita a análise de questões ligadas à
América Latina, embora mencione países da África e Ásia em notas de rodapé, sem maiores aprofundamentos.
3
Para Carballido (2013, p. 136), “[...] el capitalismo no debe ser considerado solo como un sistema
económico, tal y como hace el análisis clásico de la economía política, ni tampoco como un sistema cultural, en
la línea de los estudios poscoloniales anglosajones. Como propone el grupo de investigación
modernidad/colonialidad assumimos el capitalismo como una ‘red global de poder’ que integra procesos tanto
económicos como políticos y culturales.”
4
Dussel (1977), Flores (2009), Santos (1997; 2000; 2010a; 2010b; 2014), Quijano (2005), Carballido
(2013) compõem o arcabouço teórico utilizado para desenvolver o embasamento científico deste estudo. Isso
porque são de significativa influência no rumo teórico da pesquisa que trata da colonialidade, pluralismo
jurídico, epistemologias do Sul, direitos humanos, lutas sociais, América Latina. Esses estudos também foram
utilizados para analisar a epistemologia constitucional ocidental de viés positivista e pós-positivista, de forma a
evidenciar as matizes do direito e suas principais incongruências.
12
aspectos ocultados na realidade, mas sobretudo, abrir portas para uma nova dimensão: a do
reconhecimento de que a epistemologia do Norte é uma forma de experiência e que é possível
buscar viver a vida de diferentes maneiras.
A abordagem aqui defendida pode ser sintetizada como um aprender com o Sul,
usando uma epistemologia do Sul, pois é a partir desta que se torna possível evidenciar a
necessidade de um novo paradigma para se desenvolver na relação com o Norte. Não se trata
de inverter a situação a favor do Sul global, como se estivesse a ensinar o Norte, como este o
fez primeiramente. É muito mais que isso, pois trata-se de ter a criatividade de sermos capazes
de construir um novo momento histórico.
Haluhalunekisu: à procura por alternativas descoloniais no Brasil, aborda um tema
baseado na ideia de desvelar as epistemologias dos povos subalternizados, delimitando-se aos
Nambiquara5, de forma a demonstrar seus potenciais para uma quebra jurídico-paradigmática.
Nesse sentido, pensou-se na possibilidade de vir a servir como meio de reflexão sobre
alternativas jurídico-constitucionais brasileiras, por meio de cosmologias indígenas, bem
como no necessário fortalecimento de lutas sociais. Isso porque são os movimentos sociais
que dão origem à transformação do direito. Também tem por escopo romper com as amarras
do colonialismo que nos rodeiam e que utilizam formas de opressão e ocultamento de grupos
marginalizados, levando-os ao extermínio.
Objetivando colmatar a investigação científica ora proposta, o estudo utilizou de
pesquisa bibliográfica de caráter interdisciplinar, direcionado à análise das epistemologias
jurídicas do Sul e do Norte. Para tanto, foi imprescindível se recorrer a uma pesquisa da
experiência histórica do direito, essencial à compreensão do contexto colonial em que se
insere o Sul. Assim, evidenciou-se, a partir de fontes escritas, consequências repercutidas
entre os Nambiquara e que refletem a necessidade por uma busca descolonial do ser, do saber,
do viver e do direito.
A metodologia implica na consciência da adoção de uma postura político-sociológica
perante a realidade. (GUSTIN; DIAS, 2006). Nesse sentido, o estudo adotou como vertente
teórico-metodológica o caráter crítico-metodológico, pois entende o direito como uma
linguagem repleta de significados. Nessa linha de pensamento, optou-se pela vertente
5
A 1ª Reunião Brasileira de Antropologia, ocorrida no Rio de Janeiro em 1953, aprovou uma convenção
para uniformizar a grafia dos nomes tribais brasileiros. Neste estudo, portanto, os “nomes tribais se escreverão
com letra maiúscula, facultando-se o uso de minúscula no seu emprego adjetival” e “não terão flexão portuguesa
do número ou gênero, quer no uso substantival, quer no uso adjetival”. (SCHADEN, 1976, p. XII). Ainda que
não abordado por Schaden (1976), o presente estudo aplica a mesma uniformização da grafia para as demais
etnias, ainda que não sejam brasileiras. As localizações dos grupos Nambiquara são baseadas nos estudos de
David Price (1972; 1976; 1983; 1989) que assim os distinguem. A bibliografia consultada quer utiliza
“Nambikwara”, quer utiliza “Nambiquara”. O presente estudo optou por adotar a segunda forma.
13
Sabedorias são passadas por meus pais a mim, baseadas na vivência deles de cerca de
10 (dez) anos ininterruptos entre esses índios. Idas a aldeias dos Nambiquara me permitiram
contato maior com suas cosmovisões. Recebê-los em minha casa corroborou a formação de
um vínculo de amizade e admiração. A última vez que os vi, em julho do presente ano, ainda
encarcerados no presídio de Cáceres, em Mato Grosso, após serem algemados nas mãos e pés
em decorrência da interdição da BR 364, fortaleceu a convicção pela escolha desse tema, bem
como em tentá-los ajudar e estar junto, de alguma forma. A trajetória Nambiquara ensina,
sobretudo, acerca da resiliência em viver e descolonizar-se. Busco, juntamente a eles,
descolonizar-me, enquanto mulher, latino-americana, encontrando aqui minha função como
pesquisadora do direito.
Quem são os Nambiquara? Essa resposta vai além da descrição de sua cosmovisão.
Se tratando de um povo latino-americano, ou seja, colonizado e subalternizado, é necessário
compreender a dinâmica de dominação empregadas por políticas governamentais de
apropriação de suas terras. Por isso, o Capítulo 1, denominado “Os Nambiquara e os
Kwajato”, demonstrou o processo e as consequências da chegada dos não índios (kwajato) em
lugares visíveis e invisíveis do território tradicional Nambiquara, retratando a reação dos
índios ao movimento das frentes de expansão econômico-culturais.
Price (1972), Roquette-Pinto (1935) e Rondon (1947; 1922) corroboraram à
descrição das consequências da entrada da Comissão Rondon, dos seringueiros, dos
seringalistas e dos missionários no território tradicional Nambiquara. Os estudos de Costa
(2002; 2009) possibilitaram demonstrar a perda territorial ocorrida de 1942 até 1968.
Posteriormente a esse marco temporal utilizado pela autora, o presente estudo aborda demais
eventos de potencial impacto na vida dos Nambiquara, a saber, a construção da Pequena
Central Hidrelétrica, PCH Juína 117, no rio Juína, um dos limites da Terra Indígena
Nambiquara e a prisão de índios Nambiquara em decorrência de fechamento da BR 364, em
junho desse ano.
O processo de ocupação das terras tradicionais Nambiquara pelos kwajato (não
índios) possui questões comuns às ocorridas com outras etnias latino-americanas, interferindo
em suas vidas cotidianas, privando-os de suas melhores terras, de serem livres e culturalmente
distintos. Para compreender essa situação, o referido capítulo descreveu o processo histórico
de dominação que recai sobre os Nambiquara, desde o contato com a sociedade não indígena.
Demonstrou-se que, por meio do direito, foi concedido poderes ao governo para usufruir do
território tradicional Nambiquara e reordená-lo de acordo com interesses socioeconômicos. A
15
6
Concepção de vida digna que abrange seres humanos e inumanos, em uma perspectiva para além dos
interesses econômicos e individuais, característicos da modernidade.
16
Nambiquara, a partir de sua vivência entre eles, sobretudo utilizando de entrevistas a esses
índios.
O estudo objetivou compreender e dar visibilidade à Haluhalunekisu. Isso porque a
figueira Haluhalunekisu permite pensar em uma perspectiva epistemológica brasileira de
relação de respeito e integralidade entre todos os seres. Diante de todas as formas de poder
que incidem sobre os Nambiquara, a cosmovisão e proteção à Haluhalunekisu é o que os
fazem resistir. Para compreender a cosmovisão Nambiquara, é importante conhecer práticas
de seu cotidiano. Isso porque seu modo de viver está estritamente relacionado à existência dos
espíritos ancestrais e seres inumanos. Trata-se de uma visão interpretada sobretudo pelo olhar
e intervenções do wanintesu (pajé).
Observa-se que a preocupação com a destruição ambiental/espiritual da Terra é
comum em diferentes cosmovisões que povoam o planeta. Finalmente, começam a ser
entendidas como meios de reflexão jurídico-epistemológica. A consagração constitucional das
epistemologias do Sul é capaz de estabelecer uma nova forma de relação com a natureza, não
podendo ser ignorada pelos tribunais, legisladores, políticas públicas e pelos debates
acadêmicos. Como resultado, o trabalho apontou reflexões acerca das origens, limites e
possíveis alternativas ao direito, tendo as epistemologias do Sul função primordial para se
pensar outras realidades.
17
Quem são os Nambiquara? Essa resposta vai além da descrição de sua cosmovisão. É
necessário compreender a dinâmica de dominação e apropriação de suas terras pelos kwajato
(não índios). Esse longo processo interfere em suas vidas cotidianas, privando-os de suas
melhores terras, de serem livres e culturalmente distintos. Para compreender essa situação, o
presente capítulo descreve o processo histórico de dominação que recai sobre os Nambiquara,
desde o contato com a sociedade não indígena.
A luta do povo Nambiquara encontra como obstáculo as engrenagens do capitalismo
que opera em uma sociedade atravessada pela colonialidade em suas diversas dimensões. A
dominação colonial (QUIJANO, 2009) atravessa sua existência como mais uma forma de
manutenção do status quo que marginaliza e invisibiliza.
não se autodenominam Nambiquara, ainda que acreditem ser “uma unidade maior e até
homogênea” (COSTA, 2002, p. 41), mesmo com suas diferenças geográficas, dialetais,
econômicas e culturais. Isso porque, sua cosmovisão explica que, originariamente, foram
todos retirados do interior de uma grande pedra preta e destinados a viver nas regiões
mencionadas alhures.
[...] embora esses grupos não sejam politicamente unificados sob um mesmo
chefe e algumas vezes cheguem até a lutar abertamente entre si, eles se
consideram um só povo ou, conforme as palavras de Júlio Wakalitesu, ‘nós
podemos falar um com o outro e saímos do mesmo buraco da montanha de
pedra’. (OBERG, 1953, p. 96).
8
A autodenominação dos grupos Nambiquara carece de pesquisas linguísticas para entendimento de seus
significados. A grafia dos nomes variam, bem como sobre a existência dos grupos. As terminologias aqui
adotadas são baseadas nos estudos empíricos mais recentemente encontrados, ou seja, de Costa (2002; 2009) e
FERNANDES SILVA (1999). Para mais informações sobre a grafia, consultar: Roquette-Pinto (1935), Rondon;
Faria (1948), Price (1972; 1976), Holanda Pereira (1973), Rodrigues (1986).
19
que significa Água Fresca ou Fria). Os Sawentesu, nas matas a Oeste das nascentes do rio
Juína (Sisunjausu). (COSTA, 2002; 2009).
Os Nambiquara da Serra do Norte localizam-se, em sua maioria, nas adjacências das
nascentes dos rios Roosevelt e Jiparaná. Os grupos Sabanê, Txawenté, Txawanté, Yalakunté
ou Lacondê, Yalakaloré e Latundê, encontram-se na Terra Indígena Pyreneus de Souza, na
divisa entre Mato Grosso e Rondônia. Os grupos Hinkatesu ou Manduca continuam habitando
seu local de origem, no Vale do rio Doze de Outubro (Walukatuyausu), em Mato Grosso.
Mais à Sudoeste da Serra do Norte, entre os rios Cabixi e Piolho, estão os Mamaindê e os
Negarotê, estes, amigos dos Kithaulhu e outrora hostis aos outros grupos do Nambiquara do
Cerrado.
No Vale do Guaporé encontram-se os grupos: Aikkutesu, Nantesu, Qalisattesu,
Yxotxusu, Elahitxansu, Alantesu (povo do pequi), Alakatesu, Waikatesu (antes chamados
Manairisu ou Wanailisu) e Wasusu. Separados dos demais grupos por fazendas, próximo ao
município de Vila Bela da Santíssima Trindade, encontram-se os Katitaulhu (assim
denominados pelos Wasusu, seus adversários). Este grupo subdivide-se nos Galitsu,
Haluhwaisu, Waihlatisu ou Wailatesu, Sayulikisu, Wanunsu e Hahaintesu. (COSTA, 2002,
2009).
De acordo com Rodrigues (1986), a família linquística dos Nambiquara não possui
ligação com quaisquer outras da América do Sul. Constitui-se de três línguas: Sabanê
(Nambiquara da Serra do Norte), Nambiquara do Norte (também dos Nambiquara da Serra do
Norte) e Nambiquara do Sul (dos Nambiquara do Vale do Guaporé e da Chapada dos
Parecis).9
As primeiras referências sobre os Nambiquara datam do século XVIII, quando as
bandeiras paulistas alcançaram o Oeste mato-grossense, em decorrência da descoberta de
ouro. As minas do Mato Grosso e os 4 (quatro) arraias mineiros: Santa Anna, São Francisco
Xavier da Chapada, São Vicente e Nossa Senhora do Pilar foram instauradas nos rios Sararé e
Galera, afluente do rio Guaporé, território tradicional Nambiquara.
9
Para mais dados sobre a família linguística Nambiquara, ver: Kroeker (s/d); Price (1976; 1978);
AGOSTINHO DA SILVA (1975).
20
Dados levantados por Costa (2002; 2009) apontam que raramente a cartografia dos
séculos XVIII e XIX faz menção ao espaço Nambiquara. Essa omissão, muitas vezes, é
“intencional ou do cartógrafo ou mesmo daquele que solicita seus serviços.” (COSTA, 2009,
p. 35). Esse modo de interpretação de territórios revela uma prática do poder voltada à
dominação.
Os primeiros contatos foram registrados por Antonio Pires de Campos, por volta de
1723, no Brasil colônia. Nessa época, até meados do século XX, os Nambiquara eram
chamados de “Camararés, Cavihis, Cabixis, Cabixi-u-a-jurury, Beiços de Paus, Maimbarés,
Nenê, Orelhudo, Tamarés, Tamararé, Tagni, Tapanhunas, Uaikoákoré e Uaintaçu”. (COSTA,
2002, p. 61).10 A designação mais comum era Cabixi. Daniel M. Cabixi, líder da etnia Pareci,
do grupo Cozárini, esclarece que seu sobrenome foi dado no batizado realizado pelo Padre
João Dornstander e que os membros de sua família e demais índios Pareci não possuem tal
sobrenome.
No século XIX, foi criada a Diretoria Geral dos Índios, em Mato Grosso. O relatório
de Joaquim Alves Ferreira, então diretor dessa instituição, enumerou 33 (trinta e três) “nações
indígenas”, identificando os lugares em que habitavam, bem como o número de indivíduos
pertencentes a cada uma. Entre elas, encontravam-se os Cabixi e os Nambiquara, localizados,
respectivamente, nos “Campos e terra dos Parecis” e no “Rio do Peixe, confluente do Arinos”.
(RELATÓRIO, 1848, p. 14). Price (1972, p. 5-6) também discorreu sobre a falta de clareza da
utilização do termo Cabixi.
The etymology of the term Cabixi is obscure. Von den Steinen equates it
with Cavihi, the name of a tribe reported as living to the north of the Pareci
in the 1720 (von den Steinen 1894:245; Campos 1862:445-446). Campos
description of the Cavihi makes it clear, however, that this tribe was not the
10
Serra (1797a; 1797b) registrou sua passagem pelas terras Nambiquara, em 1797, mencionando-os como
Cabixi, ao trazer a informação de que habitavam a Chapada dos Parecis até as cabeceiras dos rios Guaporé,
Sararé, Galera, Piolho e Branco. Também denominados de Nhambiquaras, Cabihis, Cabixis bravos (Campos,
1862) e Cabixi mansos (REGO, 1899). Cabixi é um rio que nasce em terras mato-grossenses, afluente do
Guaporé. No século XIX, a denominação dada aos indígenas comumente baseava-se na cartografia, de acordo
com os pontos geográficos. O mesmo ocorre com o termo Parecis, homônimo à cordilheira ou Campos dos
Parecis, o que faz com que, algumas vezes, indique a presença de índios Pareci na região
21
Nambiquara. It is more probable that the group in question were Tupi, and
that Cavihi is a bad transcription of kagwahív, the Tupi word for people.11
Daniel M, Cabixi afirma que tem “quase que certeza absoluta que os Cabixi talvez
nunca existiram. Talvez existiram, sim, na imaginação dos exploradores e dos historiadores.”
(COSTA, 2002, p. 73).
Com a criação da Diretoria Geral dos Índios, em Mato Grosso, a política indigenista
desse período consistiu em “integrar” o índio ao sistema de produção nacional.12 No entanto,
os Nambiquara não se enquadravam a esse molde econômico, além de recusarem a
estabelecer relações amistosas com os kwajato.
11
“A etimologia do termo Cabixi é obscura. Von dem Steinen iguala-o a Cavihi, nome da tribo citada
como morando ao norte dos Pareci, por volta de 1720. [...] a descrição de Campos dos Cavihi torna claro que
essa tribo não era Nambiquara. É mais provável que o grupo em questão fosse Tupi, e que Cavihi seja uma má
transcrição de Kagwahiv, palavra Tupi usada para designar gente”. (Tradução livre).
12
Sobre a política indigenista do século XIX, consultar Cunha (1987; 1992a; 1992b) e Rocha (1998).
13
Para mais informações sobre a presença de outras pessoas que não Nambiquara em seus territórios nesse
período (início da década de 1770), tais como de índios Paresi e de escravos negros fugitivos dos arraiais das
minas de Mato Grosso que moravam no Quilombo Quariterê, consultar Sá (1975).
22
Será manso ou bravo? Coitado! Por outro lado, o homem branco, apavorado,
gritou, se debateu. Eles pensaram que o estranho ser estava possuído e
amarraram-no a um pé de árvore. Ofereceram-lhe frutas e mel. O homem
aquietou-se. Os índios acharam graça, se divertiram. Poucos dias depois, os
índios soltaram o pobre homem que, desesperado, correu ainda abalado.
Pensaram os índios tratar-se de mais um mistério. (COSTA, 2002, p. 97-98).
Somente no século XIX, entre 1843 a 1847, aparecem breves referências acerca da
presença dos índios Nambiquara, principalmente na região do Vale do Guaporé, nas
localidades próximas às minas de ouro. Na segunda metade do século XIX, a poaia
(Cephaelis ipecacuanha), espécie de árvore localizada nas matas correspondentes ao Vale do
Guaporé até Vila Bela da Santíssima Trindade, tornou-se outro interesse de exploração das
terras tradicionais Nambiquara.
Foi nessa época que houve as primeiras tentativas de confinamento dos Nambiquara.
Em 1852, a Diretoria Geral dos Índios da Província de Mato Grosso 14 fundou a aldeia Santa
Ignez, povoada pela etnia Guaraio15, localizada entre os rios Sararé e Galera. Entre os
objetivos da fundação estava a de atrair os índios Nambiquara para um único lugar, uma
tentativa fracassada.
14
Maria do Carmo Rego, esposa do Coronel Rafael de Mello Rego, então presidente da Província de Mato
Grosso, em seus estudos etnográficos, distinguiu os Índios Nambiquara e Pareci denominando-os, à época, de
Cabixi bravos e Cabixi mansos, respectivamente (REGO, 1899). Sobre as diferenciações entre Cabixi manso e
Cabixi bravo, ver também Price (1972, p. 3).
15
“Julga-se que estes índios são oriundos da huma aldeia da Provincia Boliviana.” (IHG-MT, LIVRO DE
REGISTRO, 1860-1873, p. 83-84; Documento avulso na Lata 1864, Diretoria Geral dos Índios apud COSTA,
2002). No IHG-MT, outro documento informa sobre a “fundação de um aldeamento denominado Páo Cerne na
margem esquerda do Guaporé para os índios Guarayos, como a Vice-Presidencia da Provincia havia proposto”.
(IHG-MT, Pasta 132, Documento 861; Pasta 138, Documento 894, Pasta 139, Documento 931 apud COSTA,
2002).
23
entre os rios Juruena (Sakaiyausu) e Guaporé. Nesse período, surgiram maiores referências
sobre os Nambiquara, bem como de outros povos indígenas próximos à região.
Para incentivar o povoamento e a economia na fronteira nacional, nos primeiros anos
do século XX, Cândido Mariano da Silva Rondon foi encarregado pelo governo federal de
ligar Cuiabá aos territórios do Amazonas, Acre, Alto Purús e Alto Juruá, através da linha do
telégrafo, cruzando as águas das bacias Platina e Amazônica, Juruena (Sakaiyausu) e
Guaporé. (GAGLIARDI, 1989).16
Partindo de Brotas (hoje município de Acorizal), Mato Grosso, de 1907 a 1915, a
Comissão Rondon instalou várias estações telegráficas em territórios tradicionais
Nambiquara: Pontes e Lacerda, Nambikuáras, Utiariti, Juruena (Major Amarante) e Pyreneus
de Souza, em Mato Grosso; Vilhena e José Bonifácio, em Rondônia. Em Campos Novos,
também em região dos Nambiquara, foi aberta uma invernada (espécie de fazenda, com casas,
currais, gado e pastos cercados) destinada a acolher tropas que vinham do rio Juruena
(Sakaiyausu). De acordo com Roquette-Pinto (1935), médico da Comissão Rondon que
percorreu o território Nambiquara após o contato, a invernada tornou-se grande ponto de
atração para os Nambiquara, momento em que foram registrados inúmeros rios.
Price (1983) trouxe a narrativa de V.17 Kithaulhu, falecido 1976, sobre quando viram
pela primeira vez os trabalhadores da Comissão Rondon, ao roçarem e atearem fogo para
limpar o espaço, bem como ao abrirem picadas para fincarem os postes e esticarem o cabo de
aço das Linhas Telegráficas. Para os índios que os observavam de longe, a comissão estava
fazendo uma grande roça.
Concomitante à instauração das linhas telegráficas, os seringueiros também
percorriam o território Nambiquara.18 Nessa época, os Nambiquara eram conhecidos como
antropófagos e arredios. Foi somente com a passagem de Rondon pelas aldeias Nambiquara,
ao observar que não possuíam esse hábito, que essa fama acabou. Entretanto, os seringueiros
inicialmente preferiam manter distância em relação às aldeias e evitavam o contato físico. De
acordo com Rondon (1922, p. 80-81),
16
Para mais dados sobre esse tema, consultar Bigio (1996), Machado (1994), Ramos Costa (1985), Maciel
(1998).
17
Os Nambiquara não pronunciam mais o nome da pessoa que venha a falecer. Por isso, Costa (2002;
2009) abrevia alguns nomes, indicando que o índio faleceu posteriormente à entrevista.
18
A chegada dos seringueiros nas terras Nambiquara, em 1942, trata-se de um dos eventos mais marcante
na memória dos Nambiquara do Cerrado (COSTA, 2002).
24
Mas, não eram somente os kwajato que acreditavam que os Nambiquara fossem
antropófagos, a recíproca também ocorria. Daniel Wakalitesu conta que
Rondon quando passou, papai contou. Também jogô açúcar, sal. Jogô tudo
fora [o pai de Daniel]. Assim que contava mamãe. Mamãe contava. Aquele
tempo que Rondon passou. Diz que deixava carne seca. Mamãe jogava fora.
Ficava com medo. Pensava que era carne de gente. Sal, nunca vi. Açúcar
também, nunca vi. Diz que café. – Ah! Joga isso fora, inimigo da gente!
[imitando o tom de voz de sua mãe] Assim que fala. Leite de vaca? Achava
que era leite de gente, não bebe não. (COSTA, 2002, p. 66).
Para Murillo de Campos, médico que integrou a Comissão Rondon de Mato Grosso
ao Amazonas,
19
O termo surgiu por volta da primeira metade do século XX. Remete aos trabalhadores que exerciam a
atividade de extração da borracha. Com base no decreto-lei nº 4.756, Milhares de trabalhadores foram
selecionados e encaminhados para Belém, Pará, para, em seguida, chegavam aos seringais. Ao encardo da
SAVA (Superintendência de Abastecimento do Vale Amazônico e a RDC (Rubber Developmente Corporation)
se encarregaram de fornecer gêneros essenciais aos seringalistas, os donos dos seringais. (NEELMAN;
NEELMAN, 2015).
26
Banco da Borracha que, em 1950 foi incorporado ao Banco de Crédito da Amazônia S. A.20
Na década de 1940, o Estado de Mato Grosso recebeu incentivos do Banco de Crédito da
Amazônia S. A., motivo pelo qual seringueiros adquiriram seringais próprios ou arrendados, a
fim de explorar a borracha bruta. Assim,
Com isso, parte dos “soldados da borracha” percorreu trechos da Linha Telegráfica e
se instaurou nas matas ciliares dos Nambiquara do Cerrado. No período da extração da
borracha, existem relatos de que seringueiros abusaram sexualmente de mulheres
Nambiquara, entre elas meninas, “presenteando-as em seguida com açúcar, rapadura, leite,
fumo, sacos de algodão empregados na embalagem do açúcar e que depois de vazios serviam
para a confecção de vestidos” (COSTA, 2002, p. 133). Fuado Sawentesu narrou o contato de
seu povo com esses trabalhadores, bem como de levas posteriores:
20
O Banco de Crédito da Amazônia S. A. foi anteriormente denominado Banco da Borracha. Além de
oferecer financiamento aos produtores, recebeu grande parte da produção. Isso porque deteve o monopólio da
compra, bem como do transporte e venda, comprando grande parte da produção dos seringalistas de Mato
Grosso.
27
beirando o Juruena. Chegou dele chamá Marco da Luz. Benedito vem com
ele. Vem descendo, encontrá meu pai. Passou Linha Telegráfica, deslocá,
segui prá Campos Novos. Lá juntá seringueiro, onde tem madeiro. Aí
começá. Depois, mais ou menos um ano passá por aí, vem outra equipe.
Propício que vem prá cá direto Formiga, chefe dele, Propício, ficá em
Cuiabá. Peão de Propício, Fuado (seringueiro); motorista, Jami; também
motorista dele é Rodolfo, não dá maldade prô índio. Invadí Bacaiuval, aldeia
do Milton, Barro Branco prá descê até Tuyalsu. Aí, depois, desse meio
também, veio garimpeiro. Um velho, Vicente. – Você conhecê pedra bem
brilhante? (mudando o tom de voz, para diferenciar da sua) Takokanisu
(Guaporé, na minha língua). Pessoal do Propício foi prá Alvorada, trabalhá
lá. Barracão Jorge, aldeia Negarotê. Agora virá Fazenda Noroagro. Aí
começá confusão. Dois mil quilos de borracha. Caminhão esperá Juruena,
Juina, prá pegá borracha. Lombo do burro, até Juruena. Poaia – estrada de
tirá poaia, daqui prá capoeira do Uirapuru. Branco resolve abriu (estrada).
Xikalutaetekisu (Comodoro). Pai do Milton, B., irmão do Manu, P. Irmão do
Manu, B. correu no mato, dispensô, correu no mato. Benedito, Mineirinho
vai atrás dele. Índio dá chicote nele. Baiano, esse daí tem dó dos índios. Ele
salvô os índios. Aí começou confusão. Aí todo mundo (os índios) dispensô
seringueiro. (COSTA, 2002, p. 114-115).
Irmão de Luiz, Bugre. Filho de Vitório. Tem dois filhos: Bugre e Luís
Abreu. Pai, Vitório. Mãe dele não tava não. Tava lá Campos Novos. Só esse.
Então, seringueiro, barra do Mutum, Mané Cavaquinho, Francisco...
Francisco Cunha, esse homem, chama Cunha, seringalista homem.
Francisco. Tava lá em baixo de Mutum, é... montou barracão, com mulhé
dele, tirá borracha. Então, lá em baixo, perto de mim, um só Mané,
seringueiro, um só, tirá estrada. (COSTA, 2002, p. 120-121).
Ayres da Luz, filho de Marcos da Luz21, conta que seu pai “não via com bons olhos
os índios que lhe causava muitos aborrecimentos, ao devastarem as nossas roças, seringueiros
e barracões. Papai não os amava, mas não os caçava; deixava essa tarefa a outros que
considerava malucos”. (LUZ, 1982, páginas não numeradas). Ayres da Luz e seu irmão,
Nilson da Luz, acompanhavam seu pai no seringal Ayres também foi nomeado professor pelo
governo de Mato Grosso (Decreto nº 7614, de 12 de abril de 1950), a fim de que ministrasse
aulas para mais de 100 (cem) alunos na Escola Rural Mista Nhambiquara, localizada em
Campos Novos. De acordo com Nilson da Luz,
[...] cada um tinha seu seringal: Marco da Luz, que era mineiro, Juina Mirim,
Campos Novos e Veado Preto, Pimenta Bueno e Riozinho, em Rondônia;
Junqueira, que comprou o seringal do meu pai; Propício Loureiro, Renato e
Biratan Spinelli [fora dos limites demarcados], Canguru, Amil Furtado [este
último, fora dos limites demarcados]. (COSTA, 2002, p. 121).
21
Costa (2002) informa que o seringalista Marcos da Luz tinha como prática levar os índios para conhecer
Cuiabá, hospedando-os em sua casa, localizada no Coxipó, ocasião em que eram batizados e os tomava como
afilhados. Durante a permanência dos seringueiros e missionários no território Nambiquara, a convite destes,
índios eram levados de suas aldeias para estudar e morar em municípios.
22
Conhecido como Capitão J. K. Wakalitesu, nasceu por volta de 1903, na aldeia Dihetyawsu (córrego da
formiga tacuá). Era casado com L. A., C. W. e J. K.. Gozava de prestígio entre os Nambiquara e até mesmo
entre os Paresi. “Percorria o território tradicionalmente ocupado por outros grupos como os Halotesu, Kithaulhu
e Sawentesu sem que houvesse conflito algum.” (COSTA, 2002, p. 129). O índio Nambiquara V. Y. o definiu
como “um capitão grande e muito bom; nenhuma gente estranhava K. e, nesta região, ele mandava em tudo;
todos estavam no braço dele” (HOLANDA PEREIRA, 1994, p. 3). Foi um chefe político e espiritual que, de
acordo com Holanda Pereira (1994, p. 4), possuía todas as características essenciais para exercer tal tarefa:
“hábil, astuto, inteligente, interessado, sábio, prestigioso, generoso e organizador”. “Quando algum Nambiquara
se queixava de não possuir uma espingarda, J. K. Wakalitesu se encarregava de resolver o problema. Saía em
busca da arma, assaltando os barracões dos seringueiros. [...] o xamã evoca o espírito desse Wakalitesu para
fazer uma cura na aldeia.” (COSTA, 2002, p. 129).
30
[...] saí para campear os bois que estavam no pasto e me perdi. Andei assim
perdido uns oito dias. Para comer, eu olhava o que os macacos comiam, ou
porque via comendo ou porque via restos caídos no chão. Dormia no chão
mesmo. Certo momento achei um trilho e o trilho foi dar numa roça. Era
roça do povo Nambikwára. [...] Aritoá? Aritoá! – respondi, sem entender que
perguntava meu nome. Bateu no peito dele e disse: - Eu J.! Eu Amorim! –
disse, batendo no meu peito mesmo. J. então disse: -Medo cabou! Medo
cabou! Disse eu. Contei que estava perdido. Os Nambiquara me deram o que
comer dois dias, principalmente mandioca. Depois de dois dias chegaram
dois seringueiros à minha procura. Vinham batendo o meu rasto. Na entrada
da roça deram três tiros. Os índios já foram procurar arcos e flechas, quando
J. me perguntou: - Nenê? Nenê – respondi e emendei: Eles vêm me
procurando. J. recebeu também os dois seringueiros e deu de comer para nós
das coisas da maloca, principalmente beiju grosso, como é o costume deles.
O beiju é assado no borracho. Depois de dois dias, J. pegou o secretário dele
e mais duas mulheres que ele tinha e nos levou até a cabeceira da Água
Quente. Ali convidei para ir até a sede no Buriti. Foram conosco. Antônio
Junqueira estava ali e como recompensa do trabalho deu um boi para J. J.
mandou guardar o boi e foi à aldeia chamar os companheiros para comerem
o boi. Comeram e gostaram muito. Tanto assim, que J. foi mostrar onde
havia seringa. Mostrou dezoito estradas. Ele mostrava os rumos e chegava
até às cabeceiras. Depois desse serviço, J. recebeu como pagamento de
Antônio Junqueira uma espingarda cartucheira calibre 16, norte-americana.
Como munição recebeu um quilo de chumbo, uma lata de pólvora, duzentos
cartuchos e quinhentas espoletas, tudo procedente do exército, material de
primeira qualidade. Primeiro, Antônio Junqueira ensinou a encher um
cartucho e deu o tiro. A seguir, J., sozinho, preparou um cartucho também e
deu o tiro. Gostou por demais. Saiu e foi embora contente. Quando a
munição acabava ia pegar mais no barracão. Assim, o ano de 1944 terminou
com 22 estradas de alta produção. (COSTA, 2002, p. 126-127).
Geraldino Aguiar, seringueiro de Propício Loureiro, conta que a produção era de 950
a 1.110 quilos por mês. (COSTA, 2002). Outro seringalista foi Antônio Cezário Miguel
Áschar, conhecido como Canguru. Possuía um local chamado Barracão Queimado, situado
em terras Nambiquara da Chapada dos Parecis (atualmente, nos limites da Terra Indígena
Nambikwara). O barracão era a central de abastecimento de todos os seringais.
Esses dados são referentes aos seringais que Canguru possuía na região
compreendida de Pontes e Lacerda a Vilhena, o equivalente a 1.400.000 (um milhão e
31
quatrocentos mil) hectares. Permaneceu na região de 1951 até 1974. Esse seringalista
explorou os arredores das aldeias Campos Novos e dos rios Piolho, Cabixi, Sabão e Galera
(denominações de seus seringais), localizados do outro lado da BR 364, na Serra do Norte e
Vale do Guaporé. (COSTA, 2002). Sérgio Canongia, seringalista que adquiriu, através de
compra, parte dos seringais de Canguru, contou que
[...] tirava 20, 18 toneladas por ano. Eu tirava pouquinho. [...] Uma barra de
borracha dá mais ou menos 50, 60 quilos. [...] propriamente não fui quase
seringalista, fui mais colonizador. [...] Meu interesse era compra e veda de
terra. [...] Ah! Lá tem um detalhe: só podia titular 2 mil hectares, né? Por
causa da faixa de fronteira, né? 2 mil hectares. Eu vendia título prás pessoas.
Muita gente. Eu fui lá... Calcanhoto S.A. Indústria e Comércio e
Agropecuária. Fui a primeira... projeto SUDAM, autorizado pelo governo
federal. Quando nós começamos o processo, não era nem SUDAM, era
SPHEVEA. Depois que foi transformada em SUDAM, né? Era um grupo de
Caxias do Sul, liderado por Mandeva Calcanhoto. Uma bela de uma
indústria! (indústria) de madeira. Beneficiamento de madeira. (Localizada)
no (rio) 12. Não chegava a ser no 12 de Outu bro. [...] Rio Mutum. Eu titulei
aqui (mostrando no mapa). 100 mil hectares. Aqui 30 mil desse lado (do
outro lado da BR 364, no Vale do Guaporé) e aqui 70 mil ... hectares (no
cerrado). (COSTA, 2002, p. 136).
Esse história tá com muito sofrido memo. Eu não quero falá! Tudo morreu.
Triste. Triste memo. Meu mãe, meu irmão, tudo acabou. Esse muito... sofre
muito. Não sei... tá fazendo padre! [...] Primeiro padre bom, né? Aí tô esse
33
conto miçangui, roupa, camisa, é... ferramenta, tudo, tudo bom, né? O
primeiro fazê bastante. Andá com cana, melancia, outra semente, caju,
abacaxi, mandioca, galinha. Tudo criado! Tudo! Boi, vaca, bezerro.
Tudo,tudo. Tudo tem. Então, índio, padre quando... índio não sabe. [...] Só
índio aí roubá, comê frango, galinha, frango, outra semente, outra coisa.
Tudo roubá. Cana... tudo roubá. Frango, tudo as coisas. Tudo roubá. Roubou
tudo. Não é um não! Aí, dez matá um frango, dez cana, tuuudo comê, todo
dia, toda noite, todo dia, toda noite. Ah! Índio tá roubaram tudo nesse
minhas coisa. Então, pensá padre ficou feio: - Ô índio, não mexê. Mexê
nessas coisas. Eu tenho veneno. Tá vendo? Bem venturado lá. Quando mexê
bastante, esse padre estourou, nesse mundo. Cabô! Não tem índio. Primeiro
escutá. Depois, matá bezerro. Bezerro chegá terrero comê com massa, tudo,
eu sei. [...] Mas, um rapaz novo. Mostrô prô’cê. – Vocês muiiitas coisas.
Muiiito assim. Mas, agora nesse, mas agora estourou, ocê pode ver. É
mentira, ninguém morreu tudo. Ninguém memo. Mentira cabô, morreu tudo.
Lá morreu tudo, nesse mundo! Mentira cabô. Nesse dia, hoje memo... jogou
no meio de terrero. Mas, estourou. Mas, rapaz novinho correu lááá onde lá
maloca. Fumaça de veneno (outro índio, não pude identificá-lo). Fumaça.
Cheiroooso brabo! Chegou. Olha, mas agora padre jogou nesse índio moço.
Mas, agora, morreu tudo! Aí, vai chega logo... tudo. Cabô tudo. Aí vento prá
cá. Fumaça vem atééé... onde está índio de... Sabanês, ééé Cabixi, Paresi,
Mamaindê, Mamairisu, daqui, Halotesu... Tudo, tudo, tudo, tudo. Ninguém
sobrou. Ninguém maloca, nem escondeu. Tá escondê tá assim memo.
(COSTA, 2002, p. 107).
24
Uma epidemia de sarampo, em Novembro e Dezembro de 1945, foi devastadora. Relatórios deram
conta de uma morte em Pyreneus de Souza e Campos Novos, três na Mata da Canga, cinco no Juína, [...] 13 no
34
Camararé [...], e 20 no Juruena, incluindo homens, mulheres e crianças, apenas quatro foram enterrados, sendo o
restante comido por abutres e cães. (Tradução livre).
25
O SIL chegou ao Brasil em 1956. Possui sedes em Brasília, Cuiabá, Porto Velho, Belém e Manaus. Em
1975 declarou possuir 63 bases no Brasil. Para saber mais sobre a atuação do SIL no Brasil, ver Magalhães
(1981), Oliveira (1981), Seeger (1981) e Leite (1981). Há também o site oficial, https://www.sil.org/.
26
Costa (2009, p. 42) relata que os índios Nambiquara do Cerrado, durante suas entrevistas a campo
realizadas entre 2000 e 2007, “ao se referirem a algumas histórias da Bíblia, demonstraram-se surpresos e
incrédulos em relação aos episódios milagrosos, estarrecendo-lhes a barbárie da condenação de Jesus Cristo à
pena de morte pela crucificação. [...] Dizem ser relatos ilusórios, tanto quanto pensam os não indígenas,
kajantisu, sobre suas narrativas mitológicas. Determinadas passagens bíblicas chegaram a despertar-lhes riso
durante as pregações proferidas pelos religiosos, como, por exemplo, a ressurreição de Lázaro, a multiplicação
dos pães e dos peixes.”
27
O Museu Nacional e, mais tarde, a Universidade de Brasília recebiam resultados das pesquisas do SIL,
em decorrência de convênio estabelecido estre essas instituições. Posteriormente, a recém-criada FUNAI
também estabeleceu convênio com a SIL direcionado à implantação de ensino bilíngue nas comunidades
indígenas. “A FUNAI resistiu o quanto pôde para impedir a transferência da política educacional do Estado para
as mãos de um órgão particular e estrangeiro.” (OLIVEIRA, 1981, p. 66).
35
Nesses meados dos anos 50 todos nós acreditávamos que o SIL, malgrado a
natureza missionária de seus integrantes e a ideologia catequética da
entidade, poderia ser orientado de modo a criar no Brasil uma tradição de
trabalho na lingüística descritiva (tagnêmica) dos idiomas tribais. Os
Professores Darcy Ribeiro, então no Museu do Índio, e Luiz de Castro Faria,
do Museu Nacional, foram praticamente os inspiradores desse convênio no
que diz respeito à vinculação exclusiva dos lingüistas do SIL a tarefas
estritamente científicas. (OLIVEIRA, 1981, p. 66).
Ele quer que tudo povo do Camararé virá crente. Batizaram quarenta
pessoas. Sábado, Domingo, não deixa cantá cultura. Proibiu. Não deixa furar
[ritual de iniciação da puberdade masculina, quando perfuram o septo nasal e
o lábio superior]. Não deixa cantá, usar colar preto. Fez fogo, juntou material
[dos índios] que usa: colar, cocar, flauta sagrada, cabaça, pintura, madeira.
Põe fogo na Casa da flauta. Põe fogo. Enfeite de nariz é pecado. [...] Ali
Camararé vira cidade. Casa de zinco, todos, todos, todos eles. Até o fim
começou morrer. V. Kithaulhu morreu, mordida de cobra cascavel. Tudo foi
batizado no Camararé. Foi sorte que minha mulher não foi batizada. [...] E
morreram tudo por causa de batismo. Batizado crente é perigoso. Esse
Parente, louco demais. Esses índios Camararé perderam dois anos de cultura.
(COSTA, 2002, p. 125).
Essa política possibilitou que particulares vendessem terras ditas devolutas, sendo
que as mesmas eram habitadas por indígenas. Assim, imensas glebas foram entregues a
36
Todo mundo fez isso. O Antônio Junqueira, quem mais outro... o... no
Formiga [rio], Propício, né? Marcos da Luz. Porque a borracha... ficou um
preço vil, né? Não valia mais nada, né? E veio aquela fase da colonização!
[...] Vendi terra prá muita gente! Eu vendi... aqui dentro tem um pessoal,
chama Gleba Natal, que eu titulei. Título de 30.000 hectares... no Doze de
Outubro [na região dos Nambiquara do Cerrado]. Na beira da estrada. Mas, o
pessoal do Presidente Pru... nunca chegou a tomar posse. Quem comprou de
mim foi o Morimoto, Nomura, o... Caprioli, isso tudo no Vale [do Guaporé].
No campo, no campo eu vendi uma gleba lá no... Primavera, chama-se Gleba
Primavera. Eu vendi no Primavera. 186.000 hectares. Primavera. (COSTA,
2002, p. 137).
A Gleba Continental, por exemplo, tinha como principal objetivo a venda de terras.
Localizava-se ao Sul da Terra Indígena Nambiquara, próximo ao córrego Água Limpa,
afluente do Juína (Yalauliyausu). Sua extensão era de 58.800 (cinquenta e oito mil e
oitossentos) hectares. Foi extinta em 1977 em decorrência de denúncias efetuadas pela
FUNAI. Lourenço Kithaulhu e Lídio Halotesu relataram que
28
CAMPOS (1955) demonstra que, em 1955, as terras de Mato Grosso encontravam-se loteadas entre 22
companhias e que cada uma recebia, no mínimo, 200.000 (duzentos mil) hectares. A venda pelo Estado de Mato
Grosso de lotes para pessoas físicas e jurídicas era realizada sem nenhum critério técnico, beneficiando a
especulação, a fraude e a violência. Entre essas companhias estavam a Industrial Colonizadora Continental S. A.
(Decreto nº 1.822, de 25 de março de 1954) e a Colonizadora Camararé Ltda (Decreto nº 1.671, de 10 de
setembro de 1973). Ambas exploraram seringais e venderam glebas correspondentes a território dos Nambiquara
do Cerrado a terceiros.
37
Não tinha só seringueiro aqui não. Tinha a Gleba Continental. O Dr. Nelson
era o dono, povo do Porto Estrela. Isso foi acontecido em 54. 5 de janeiro de
57 a gleba estava abandonada. Tinha promessa de colocar escola, saúde.
Tiravam madeira da área. Fizeram casa, serraria, casa. Dono da Gleba
Sérgio; gerente Dr. Nelson. [...] Pessoal do Dr. Nelson não é bom prá nós.
Foi Dr. Nelson que abriu Gleba Continental. [...] Fomos com Polícia Federal.
Frito chegou, falou prá ele, Geraldino, sair. Larga café, tudo saí. Polícia
Federal foi acudí, apoiá nós. Tiremos Geraldino com Ari, Frito, Polícia
Federal dois. Aí, nós tomamos terra. Que terra deles nada!!! (COSTA, 2002,
p. 140).
Nessa mesma época, havia a Gleba Boqueirão. Sua extensão era de 2.991 (dois mil
novecentos e noventa e um) hectares, com 10.000 (dez mil) pés de café. Localizava-se cerca
de 20 (vinte) quilômetros da aldeia Serra Azul, pertencente a Ademar Geraldo Pereira César,
apelidado de “Mineiro Louco”, comprada de Nelson Moreira, da Gleba Continental,
registrada no Instituto Brasileiro de Reforma Agrária (IBRA), atualmente, INCRA. Nelson
Moreira, além de vendas, arrendava parte das terras para finalidades agropastoris. (JOSÉ DOS
SANTOS, 1975).
Menno Kroeker, um dos primeiros linguistas a chegar às terras Nambiquara, relata
que os índios Nambiquara que trabalharam na gleba,
[...] às vezes, fazendo roças. Geralmente, esse tipo de trabalho. Eles não
gostavam de ser serventes, esse tipo de trabalho. Mais na roça, no campo,
caçando. (Pagavam os índios) com mercadoria, em dinheiro não. Eles não
tinham jeito de usar dinheiro. Comida. Depois que começaram também com
pólvora, chumbo, quando começaram a usar chumbeiro. (COSTA, 2002, p.
141).
[...] Primeiro civilizado chegou seringueiro, coisa pouca, açúcar nada, foi
embora. Depois veio a estrada grande. Quando a gente viu os tratores,
máquinas grandes e chamamos os Alantesu lá embaixo os Hahaintesu e nós
viemos no campo até perto do Uirapuru e ficava vendo pensando o que era.
Depois chegou com facão fazendo picada, derrubada e depois veio caminhão
leva amburana, Araputanga e nós ficamos olhando e não sabia porquê.
Conversava com os civilizados e eles não entendiam e dava açúcar e
caminhão ia embora. (ALMEIDA, 1987).
29
Agente financiador do Programa Integrado de Desenvolvimento do Noroeste do Brasil (Polonoroeste),
que promoveu diversas ações para ocupação da fronteira Oeste do Brasil, promovendo o asfaltamento da BR
364, que liga as cidades de Cuiabá e Porto Velho. O financiamento foi de US$ 411 milhões. Em menos de 10
anos, foram afetadas diversas estruturas sociais, culturais e ambiental da região, resultando em altos índices de
desmatamento e não atingindo os objetivos propostos. Diversas entidades fizeram campanhas nacionais e
internacionais exigindo sua paralisação. (http://www.ibama.gov.br ).
39
[...] as terras arenosas dos campos cerrados da Chapada dos Parecis, que
representam boa parte do território atualmente habitado pelos Kithãulhu,
Halotesu, Sawentesu, Wakalitesu, Niyahlosu, Siwaihsu e Hinkatesu e eram
consideradas improdutivas, foram destinadas também aos grupos
Nambiquara da Serra do Norte (Mamaindê e Negarotê) e Vale do Guaporé
(Wasusu e Alantesu). Para tanto, foi necessário elaborar um discurso que
justificasse tais ações. (COSTA, 2009, p. 23).
Alantesu ficá embaixo do Posto. Caçou, Caçou não achou bicho. Cansou e
retornou aldeia dele. Caminhão do Gustavo e Frito [Fritz] ajudá com
Eduardo, ajudô tranferência. Seu Eduardo ajudô índios voltarem. Hahaintesu
só veio prá visita. Quem morá prá experimentá é Wasusu e Alantesu. Por
isso meu povo não esquece Wasusu e Alantesu. Tá bem ligado! (COSTA,
2002, p. 55-56).
30
Existem relatos auferidos por Costa (2002) de que empresas empregavam o desfolhante químico
Tordon-155, conhecido como Agente Laranja, produzido pela Dow Química, e empregado na guerra do Vietnã.
O Tordon-155 era jogado por pequenos aviões para o desmatamento que atingiam indistintamente toda a região
do Vale do Guaporé, inclusive roças indígenas. Esse produto foi proibido pelo governo federal em 1977, quase
10 (dez) anos depois da demarcação da Reserva Indígena Nambikwara.
41
Quem perdeu mesmo foi povo do Erdo, Daniel, Milton, Lídio (Halotesu e
Wakalitesu). Daqui prá Juína, até linha telegráfica prá lá de Juruena. Campos
de Júlio é terra de Wakalitesu. Juína, Juruena, é terra dos índios, nosso
mesmo. Não perde. Quem mais perdeu mesmo é povo do Milton. Halotesu e
Wakalitesu perdeu mesmo! Juruena prá cá da banda do Utiariti era terra de
Júlio. Aldeia de Júlio perdeu mesmo. Mas, cemitério dele eu conhece. Está
prá cá da linha telegráfica, onde não tem reserva. Halotesu chama
Sawentesu, porque fica no meio do mato. Quem perdeu terra foi esse
Marieta. Aldeia Jacaré, prô fundo chama aldeia Yaitulentsu, prá lá é região
do Kithaulhu, prá lá da linha telegráfica. Junto, emendado, terra de
Kithaulhu e Sawentesu. Padronal prá cá, povo de Sawentesu, Padronal até
12, prá lá prô fundo, Kithaulhu. (COSTA, 2002, p. 54).
32
Na Lagoa dos Brincos, os Mamaindê e Negarotê coletam uma concha que é utilizada para confecção de
brincos, de uso masculino e feminino.
43
sagrados, somente foram demarcadas no decorrer dos anos 1980 e 1990. Na Lagoa dos
Brincos, os Mamaindê e Negarotê coletam uma concha que é utilizada para confecção de
brincos, de uso masculino e feminino. Com relação à Terra Indígena Pequizal, esta
Do imenso território tradicional com áreas contíguas, que outrora abrigava todos os
grupos Nambiquara, alguns deles hoje extintos, o pouco que resta está agora dividido em 9
(nove) áreas, algumas não contínuas: Terra Indígena Pyreneus de Souza, com 28.212,2761
44
hectares; Terra Indígena Nambikuara, com 1.011.961,4852 hectares; Terra Indígena Vale do
Guaporé, com 242.593 hectares; Terra Indígena Lagoa dos Brincos, com 1.845 hectares;
Terra Indígena Taihãtesu, com 5.362 hectares; Terra Indígena Pequizal, com 9.886,8211
hectares; Terra Indígena Sararé, com 67.419,5158 hectares; Terra Indígena Tirecatinga, com
130.575 hectares e Terra Indígena Tubarão-Latundê, com 116.613,36 hectares. (COSTA,
2002).
Toda essa teia de relações que permeia os grupos Nambiquara das 3 áreas geo-
culturais e suas consequências no mundo visível e invisível é fixada na lembrança de lugares e
objetos presentes em suas memórias. São organizadoras de referências identitárias que
contribuem ao fortalecimento da luta e união entre os grupos Nambiquara. Fuado Sawentesu
conclui sobre essas relações que “o branco esquisito memo. Algum vem de longe. O índio
não! Daqui memo. Não adianta conta qual dia Nambiquara vem mora aqui. Não existe. É
daqui memo!”. (COSTA, 2002, p. 146). No entanto, para os índios Nambiquara, a chegada
dos Kwajato, os comedores de feijão,
[...] quando quer começar época de chuva, dois, três dias, um Curiango
começa cantar a noite toda, [chuva] está longe; quando dez cantam, aí vou
plantar roça; quando quero fazer roça bem grande, aí começa flor do campo,
que vocês chamam de Primavera, vou roçar pau fino. Quando roça, flor
amarela. Curiango [canta] para queimar. Ele canta muito por causa de
Aleluia [insetos isópteros ou cupins que abandonam suas colônias para o voo
nupcial], filhote de cupim, difícil catar. Quando saem voando, se alimentam
de filhote de cupim. Marimbondo leva-o [filhote de Aleluia], faz farinha. É
bem gostosa. (COSTA, 2009, p. 128).
[...] na época da seca, período que Nambiquara anda mais, ele andava muito
atrás de fruta, coró. Passava uma semana, um mês. Depois voltada. Na época
da seca, nem casa fazia! Ia de um lugar para o outro. [...] quando acabava
mel, ia para outro lugar. Hoje não. FUNASA não aprova projeto para aldeia
de pessoal que anda muito. (COSTA, 2009, p. 268).
33
No dia 16 de agosto de 2017, o Supremo Tribunal Federal (STF) indeferiu ação do governo de Mato
que, com base na tese do marco temporal, negava a ocupação pelos Nambiquara de suas terras tradicionais, bem
como exigia indenizações da União por ter supostamente criado reservas indígenas sobre terras devolutas que
46
não seriam de ocupação tradicional (glebas Nambikwara, Salumã e Tirecatinga). (Disponível em:
http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ACO366VotoMMA.pdf ).
34
A Sema (Secretaria de Estado e Meio Ambiente) emitiu a licença para a construção da hidrelétrica. (
https://terrasindigenas.org.br/es/noticia/137880?fbclid=IwAR3J35cXN5W7s5SKed3Trpk9wvwTAhyIu_8oYFP
WkJ4TQYx6I_5Xok3GPyI )
47
É sabido que, não raramente, o direito legitima práticas opressoras. O caso dos
Nambiquara demonstra isso. Existe um avanço das lutas sociais ao longo da história, por
outro lado, o colonialismo adquire novas roupagens que atuam cegamente em benefício de
interesses econômicos e culturais. Diante deste emblema, faz-se necessário indagar: existe um
direito latino-americano ou somos replicadores de epistemologias e fórmulas ocidentais? Um
direito descolonial é possível?35
A teologia da libertação (DUSSEL, 2007; BRAGATO; CASTILHO, 2014;
FAGUNDES, 2015) e a teoria da dependência (DOS SANTOS, 2015) relacionam-se com as
questões por de trás dessas indagações. Para a teoria da dependência (DOS SANTOS, 2015),
a caracterização dos países do Sul em "atrasados" ou “subdesenvolvidos” decorre dessa
estratégia que acaba por estabelecer uma relação de dependência entre países "centrais" e
países "periféricos". Um olhar de viés crítico sobre essa questão permite compreender o
projeto de vida moderno que se pauta em uma metodologia orientada na divisão entre um
centro econômico, tecnológico e cultural avançados versus uma periferia subordinada e
dependente. Isso resulta na colonialidade do ser, do saber e do poder.
Portanto, “[...] é tempo de aprendermos a nos libertar do espelho eurocêntrico onde
nossa imagem é sempre, necessariamente, distorcida. É tempo, enfim, de deixar de ser o que
não somos.” (QUIJANO, 2005, p. 126). Os países latino-americanos precisam deixar de se
espelhar em conjuntos de instituições, normativas, ideologias do Norte global e voltarem-se
para si mesmos, o que significa lidar com seus próprios problemas, os quais são distintos dos
países ex-colonizadores. A autodeterminação interna é tão importante quanto a
autodeterminação externa.
Para orientar esse desvelar do Sul, teorias críticas latino-americanas muito
contribuem ao pensamento descolonial, pois permitem uma reflexão dos mais variados temas
e formas de conhecimento, demonstrando a possibilidade e existência de pressupostos
filosóficos, políticos e metodológicos contra-hegemônicos. As principais referências teóricas
do pensamento descolonial advém do Projeto M&C (Modernidade e Colonialidade),
35
São exemplos de pessoas que buscaram o desvelar do indivíduo e do mundo latino-americano: Gustavo
Guterres, Camilo Torres, Arturo Roig, Horacio Cerutti, Enrique Dussel, Milton Santos, Darcy Ribeiro, Paulo
Freire, Florestan Fernandes, Orlando Fals Borda, Celso Furtado, José Julián Martí Pérez, Mercedes Sosa,
Augusto Boal, Glauber Rocha, Mario Benedetti, Ernesto Sabato, Gabriel García Márquez, Jorge Amado, Pablo
Neruda, Rubén Darío, Oscar Correa. Esses pensadores comumente são criticados por buscarem uma filosofia
periférica não universal, diferentemente da filosofia local grega alemã, europeia que, por outro lado,
majoritariamente é tida como uma fórmula superior e universal às sociedades.
49
composto por estudos de Aníbal Quijano, Enrique Dussel, Catherine Walsh, Boaventura de
Sousa Santos, Freya Schiwy, José Saldívar, Nelson Maldonado-Torres, Fernando Coronil,
Javier Sanjinés, Margarida Cervantes de Salazar, Libia Grueso, Marcelo Fernádez Osco,
Edgardo Lander, Arturo Escobar. De acordo com Escobar (2003, p. 53), os estudos do grupo
são orientados pela
O direito natural racionalista dos séculos XVII e XVIII, também faz parte
deste processo, na medida em que serviu para legitimar, quer o despotismo
iluminado quer as ideias liberais e democráticas que conduziram à
Revolução Francesa, partindo, portanto, do modelo de racionalidade
descrita. Portanto, há contrariedade entre os direitos naturais tidos como
universais como forma de emancipação social. Dessa forma, tanto a virada
Kantiana, como o raciocínio iluminista, o constitucionalismo liberal e,
posteriormente, a internacionalização dos direitos humanos fazem parte da
mesma faceta colonizadora. O aprimoramento dos direitos humanos por
meio do Welfare-State serviu como forma de gestão capitalista, pois ao
Estado providência coube a gestão das desigualdades e à teoria dos direitos
humanos a gestão da exclusão.
36
Lenio Streck (2012) parte da premissa de que o neoconstitucionalismo emergiu a partir da Segunda
Guerra Mundial, preferindo denominá-lo de “Constitucionalismo Contemporâneo”. Existem três marcos do
processo evolutivo do direito constitucional contemporâneo: histórico, filosófico e teórico. O marco histórico
corresponde à Lei Fundamental de Bonn (Constituição Alemã, 1949), efetivada anteriormente aos direitos
fundamentais contidos na Constituição Italiana, de 1948, por meio da instauração do Tribunal Constitucional
Federal, em 1951, ocorrendo a reconstitucionalização no Brasil em 1988; o filosófico diz respeito ao ideal pós-
positivista. Quanto ao teórico, relaciona-se à matéria de aplicação do direito constitucional, e demonstra três
relevantes características: “o reconhecimento da força normativa da Constituição, a expansão da Jurisdição
Constitucional e o desenvolvimento de uma nova dogmática de interpretação constitucional” (BARROSO, 2005,
p. 6).
37
Adjetivo muito utilizado por Santos (2000) para descrever o pensamento moderno ocidental. De acordo
com ele, a epistemologia ocidental baseia-se em um sistema de distinções entre visível e invisível que dividem a
realidade social em dois universos distintos: “deste lado da linha” e “do outro lado da linha”. A distinção ocorre
na medida em que “o outro lado da linha” desaparece como realidade, se produzindo apenas como ausência,
invisibilidade, inexistência. A característica principal desse pensamento é a impossibilidade da co-presença dos
51
dois lados da linha. As representações mais cabais são o conhecimento e o direito modernos. Eles formam as
duas principais linhas abissais globais dos tempos modernos e são interdependentes.
38
Importante mencionar que os direitos são comumente mencionados direcionando-os ao “indivíduo” ou
“homem”, como uma suposta “generalização”, sendo que na verdade
52
O que caracteriza o humano não é sua estrutura, mas suas diferenças oriundas de
características sócioculturais. Sem ele é um objeto, um vazio. Dessa forma, portanto, não
existe “dignidade humana”, nem “direitos humanos” universais. Mas dignidades e concepções
de direitos daquilo que cada cultura entende por universal. Isso significa que toda cultura e
saber são incompletos e diferentes, evidenciando a premissa de diálogo e tradução. É
necessário uma hermenêutica intercultural de suspeição contra supostos universalismos ou
totalidades. Na ausência de um princípio dessa vertente,
conhecimentos fazem parte de uma amálgama, uma “ecologia de saberes” (SANTOS, 2010a,
p. 137).
Resulta daí que a nossa necessidade radical seja dupla: por um lado, a
necessidade de reinventar um mapa emancipatório que [...] não se converta
gradual e insidiosamente em mais um mapa de regulação; por outro lado, a
necessidade de reinventar uma subjectividade individual e colectiva capaz de
usar e de querer usar esse mapa. Esta é a única maneira de delinear um
trajecto progressista através da dupla transição, epistemológica e societal,
que começa agora a emergir. (SANTOS, 2000, p. 330).
39
Nesse sentido, terá papel primordial a “filosofia do não” (BACHELARD, 2010), que se trata de uma
concepção que não se apega à vontade de objetividade e conceitos rígidos de subjetividades, tendo como
finalidade o questionar, o duvidar, o criticar. Isso porque evita associar-se à ciência positiva e linear.
40
A transição epistemológica que ocorre entre o paradigma dominante da ciência moderna e o paradigma
emergente é designado por Santos de “Conhecimento prudente para uma vida decente” (SANTOS, 2004).
54
conservador por um senso comum, novo e descolonial. De acordo com Lander (2012, p. 238),
isso implica em
Asumir criticamente los derechos humanos nos debe llevar no sólo a ver si
un determinado derecho está siendo garantizado, sino a un análisis de
nuestra sociedad, intentando determinar qué causas estructurales (modelo de
civilización, relaciones sociales de producción, sistemas socio-culturales,
formas de organización política) establecen una determinada configuración
que hace imposible la vida digna para todos y todas (incluida la naturaleza).
Este análisis no niega acciones específicas más sectoriales, sobre derechos
concretos, pero exige una comprensión del conjunto capaz de orientar una
práctica realmente transformadora.
Como consequência, não há mais definições dos núcleos dos direitos, pois são
diversas as concepções culturais, de forma a entrelaçá-las, bem como as possíveis acepções do
que se entende por Bem-viver ou vida digna, configurando um sistema de alternativas.
Portanto, é preciso
41
O “Criterio de Riqueza Humana”, formulado pela teoria crítica dos direitos humanos de Flores (1989, p.
126, apud CARBALLIDO, 2013, p. 144) defende la necesidad de que los seres humanos, individual y
colectivamente, estén en condiciones de reaccionar frente al entorno de relaciones en que viven, contando con
los recursos materiales e inmateriales necesarios para poder formular y construir mundos de vida a partir de sus
particulares y diferenciadas concepciones de dignidad. Así, el elemento paradigmático de los derechos humanos
lo conformaria ‘la facultad para gozar del desarrollo de las capacidades humanas objetivadas social e
institucionalmente y para apropiárselas, es decir, para ponerlas en práctica siempre de un modo renovado’.
Coherentemente con su afirmación de los derechos humanos como produtos culturales a través de los cuales se
restablece el circuito de reacción cultural frente a aquellos contextos socio-históricos que niegan el acceso a los
bienes, tanto materiales e inmateriales, necesarios para la vida humana, el Criterio de Riqueza Humana ofrece un
postulado concreto de acción”.
55
habrán de llevar a cabo. Por eso, las reflexiones que siguen pretenden ofrecer
algunos aportes para pensar y actuar una teoria anticapitalista de los
derechos humanos. (CARBALLIDO, 2013, p. 139).
42
Denominação utilizada por Viciano Pastor e Martinez Dalmau (2011), considerados por Brandão (2015,
p. 12) como “percursores do desenvolvimento teórico do Novo Constitucionalismo” a trabalhar “a partir da
teoria da Constituição”. Existem outras denominações a esse marco constitucional, como: constitucionalismo do
Sul (PISARELLO, 1999); constitucionalismo plurinacional comunitário (CHIVI VARGAS, 2009); novo
constitucionalismo indigenista (RAMÍREZ, 2009); constitucionalismo mestiço (BALDI, 2009);
constitucionalismo da diversidade (UPRIMNY, 2011); constitucionalismo experimental ou transformador
(SANTOS, 2010b); neoconstitucionalismo transformador (ÁVILA SANTAMARIA, 2011, inspirado em
Boaventura de Sousa Santos); novo constitucionalismo indoafrolatino-americano (QUADROS DE
MAGALHÃES, 2010); constitucionalismo plurinacional e democracia consensual plural do novo
constitucionalismo latino-americano (QUADROS DE MAGALHÃES, 2011); constitucionalismo andino ou
constitucionalismo pluralista intercultural (WOLKMER, 2011); constitucionalismo pluralista (YRIGOYEN
FAJARDO, 2011); constitucionalismo indígena (CLAVERO, 2011); constitucionalismo ecocêntrico (MORAES;
FREITAS, 2013); nuevo constitucionalismo social comunitário desde América Latina (RAMOS MAMANI,
2014); novo constitucionalismo pluralista latino-americano (BRANDÃO, 2015).
56
43
O pós-colonialismo é um período posterior à colonização, com a declaração de independência dos
países, mas ainda marcado por forte dependência entre colonizadores e ex-colônias.
44
Descolonialismo trata-se de um pensamento crítico baseado na noção de ruptura de todas as formas de
colonialismo existentes no pós-colonialismo, a exemplo da teoria crítica clássica eurocêntrica. Walter Mignolo e
Catherine Wash adota a terminologia “decolonialismo”. Enrique Dussel, Anibal Quijano, Castro Gomes são
exemplos de autores críticos que buscam uma perspectiva latino-americana. A busca por essa teoria crítica
baseada na identidade latino-americana resulta na averiguação de características marcantes de nosso continente:
alteridade, pluralidade e interculturalidade.
57
45
Walsh (2008, p. 140) esclarece que o prefixo “multi” designa várias culturas singulares em relação entre
elas, prevalecendo uma dentre elas. Esse prefixo tem suas raízes em países ocidentais. O prefixo “pluri” indica
uma convivência de culturas em um mesmo espaço territorial. Já a interculturalidade trata-se de um conceito
mais amplo, pois indica “un proceso y proyecto social político dirigido a la construcción de sociedades,
relaciones y condiciones de vida nuevas y distintas”.
59
o que vem a ser legal/ilegal é o que o Estado assim o estabelece oficialmente. De acordo com
Wolkmer (2001, p. XVI), é necessário levar em conta critérios mais importantes, quais sejam:
“a multiplicidade de manifestações ou práticas normativas num mesmo espaço sócio-político,
interagidas por conflitos ou consensos, podendo ser ou não oficiais e tendo sua razão de ser as
necessidades existenciais, materiais e culturais”.
Partindo dessa premissa, as epistemologias indígenas possibilitam uma revisão
crítica de dogmas constitucionais ocidentais tidos como intangíveis, mostrando uma
alternativa ao desenvolvimento econômico, político e social dominantes. É por isso que as
atuais constituições da Bolívia (2007) e do Equador (2008) rompem com modelos ocidentais
ao incorporar saberes não liberais seus textos, tais como o Sumak Kawsay e o Suma Qamaña46
que objetivam proteção à Pachamama. Assim, inserem-se no paradigma do Novo
Constitucionalismo Latino-Americano por proporcionarem um giro paradigmático, ao afastar
o modelo constitucional ocidental antropocêntrico para vigorar um biocêntrico de dignidade47.
O artigo 275 da Constituição do Equador é um exemplo disso, ao dispor que:
De acordo com esses dizeres, o que se entende por progresso não é aquele trazido
propriamente pelo conhecimento do Norte global, que na verdade assinala a crise no
desenvolvimento econômico-social-ambiental por possuir caráter puramente liberal. Na
46
Sumak Kawsay e Suma Qamaña são valores indígenas que não possuem tradução nas línguas coloniais.
O significado mais próximo seria Buen Vivir. No entanto, não possuem conotação a um viver bem utilitarista.
Sumak Kawsay foi consagrada pela Constituição equatoriana. Trata-se de uma expressão Quéchua, idioma
tradicional dos Andes. Sumak significa o ideal, o belo, o bom, realização, plenitude; Kawsay quer dizer viver,
vida digna, harmonia e equilíbrio entre o universo e o ser humano. A postura biocêntrica do Equador, ao
reconhecer a Natureza como sujeito de direitos, demonstra uma alternativa ética de aceitar que o meio ambiente
possui valor intrínseco, ontológico. (ACOSTA, 2016). O Suma Qamaña é uma expressão similar, mas da etnia
boliviana Aimará. Refere-se ao Buen Vivir, relacionada à ideia de olhar o passado, viver o presente, para projetar
o futuro como sonho de vida plena. (ZAFFARONI, 2010). A constituição boliviana não possui caráter
biocêntrico, pois, embora outorgue ideais não liberais, também abarca a clássica ideia do progresso baseado na
apropriação da Natureza. Ainda assim, no processo que quebra paradigmática, são as constituições mais
avançadas nesse sentido.
47
Segundo Zaffaroni (2012), o biocentrismo afirma o direito à dignidade de todos os seres vivos,
incluindo os não humanos, sendo, portanto, uma alternativa ao modelo normativo antropocêntrico.
60
concepção do Buen Vivir, avanço civilizacional é aquele que proporciona garantia de vida aos
seres humanos e inumanos, bem como às futuras gerações48, de forma a alcançar equidade
intergeracional a todos os seres vivos. Essa ética se aproxima das propostas da
sustentabilidade forte49 e da ecologia profunda que reconhecem a interdependência entre
homem-natureza (BOSSELMANN, 2015). No entanto, diferem-se muito pelo fato da primeira
ser fortemente marcada por um viés liberal e a segunda restrita a uma concepção ocidental da
Natureza.50 Por meio das epistemologias do Sul é possível apreender uma nova perspectiva de
vida.
Sendo assim, a positivação do Sumak Kawsay e do Suma Qamaña instauram um
novo marco epistemológico constitucional. A inserção de cosmologias indígenas em textos
constitucionais faz com que os países ameríndios tendam a atender aos anseios da América
Latina. As constituições da Bolívia e do Equador ao inserirem práticas e saberes indígenas –
Sumak Kawsay e Suma Qamaña – cumprem com dois objetivos essenciais:
Acosta (2016, p. 29) explica que o Bem Viver trata de uma “filosofia de vida”, um
48
Importante mencionar que a justificativa de proteção à Natureza baseada no direito intergeracional e na
sustentabilidade não são suficientemente capazes de garantir-lhe direitos ou assegurar vida a todos os seres, pois
o “montante” natural que se deve deixar às gerações futuras é subjetivo e insuficiente para prever suas
necessidades no futuro. Quanto à sustentabilidade, Bosselmann (2015) tece relevante crítica ao princípio, por
este ser fortemente marcado por um viés liberal. Além do mais, ambos, direito intergeracional e sustentabilidade,
possuem como finalidade à proteção ambiental interesses antropocêntricos.
49
A sustentabilidade forte trata-se de uma abordagem ecologista de desenvolvimento sustentável e difere-
se da sustentabilidade fraca que coloca em paridade de importância a sustentabilidade ambiental, a justiça social
e a prosperidade econômica.
50
Não é o objetivo do presente estudo o aprofundamento dessas questões, limitando-se a mencionar que
muitas das tentativas de fundamentação dos direitos da Natureza encontram-se dentro do paradigma da
modernidade (kantiano, antropocêntrico, liberal ou ocidental). Noções e termos, contidos nessas tentativas, estão
muito ligados a uma concepção ocidental do direito e da Natureza, não possibilitando distintos significados,
como o fazem as epistemologias do Sul. O mesmo pode-se dizer com relação aos “bens comuns” que, de acordo
com Svampa (2016, p. 140-141), “a referência em torno dos bens comuns aparece intimamente associada à de
território. Assim, não se trata exclusivamente de uma disputa em torno dos ‘recursos naturais’, mas de uma
disputa pela construção de um determinado ‘tipo de territorialidade’ baseado na proteção do ‘comum’
(patrimônio natural, social e cultural)”. Portanto, “bem comum”, ainda que se mostre um instrumento eficaz ao
direito à autonomia e ao território de povos tradicionais, está distante da proteção da natureza como um fim em
si mesma. A própria noção de “injustiça ambiental” (FENSTERSEIFER, 2010) não remete à injustiça à Natureza
em si, pois relaciona-se à degradação e poluição ambiental que afeta, principalmente, indivíduos e grupos sociais
de baixo poder econômico.
61
suplentes. Pelo menos dois magistrados serão oriundos do sistema indígena camponês
original, por autoidentificação pessoal. Por fim, os eleitos cumprirão mandatos de seis anos,
sem direito à reeleição.
A eleição do Tribunal Constitucional por meio de sufrágio universal, algo já pensado
por Kelsen, trata-se de um método de escolha único na região e no mundo, com características
regionais. No passado, na América Latina, o sufrágio para eleger juízes foi implementado no
México, na Constituição de 1857, na Nicarágua e em Honduras, no século XIX. No entanto,
hoje não existe outro país em que juízes dos tribunais são eleitos por meio do sufrágio
universal. Além disso, qualquer mudança feita na constituição boliviana de 2009 deverá
passar por referendo popular. Só assim as constituições podem ser consideradas realmente
democráticas: se a Constituição é a vontade do povo soberano, só o povo soberano – e não os
poderes constituídos - pode modificá-la (ERREJÓN; SERRANO, 2012, apud DALMAU;
SILVA JÚNIOR, 2011).
Essa ampliação dos poderes constitucionais, instituindo mecanismos de atuação
popular com legitimidade para reforma constitucional, proporciona a integração de
sociabilidades até então invisibilizadas. Assim, supera-se a lógica da democracia
essencialmente representativa de legitimidade participativa que se esgota no ato da eleição de
seus representantes; combate os excessos de regulamentação da modernidade, por instituir
outros parâmetros do que se entende por legal/ilegal; afasta as tendências hegemônicas da
ordem ocidental global. Consequentemente, há uma quebra do padrão de juridicidade que
reproduz o monismo jurídico, ao negar que o “Estado seja o centro único do poder político e a
fonte exclusiva de toda produção do Direito.” (WOLKMER, 2001, p. XV). Nesse mesmo
percurso, Tapia (2007) entende que o Estado assume uma postura correspondente à realidade
social e com a insurgência das demandas da população, configurando uma nova ordem
jurídica amplamente plural.
Dessa forma, ocorre a necessária redefinição não somente das funções do direito,
como também das concepções hegemônicas de direitos fundamentais, rompendo com a antiga
dicotomia entre estes e os direitos humanos advindos do Ocidente, redefinindo, inclusive, a
base do constitucionalismo moderno: a dignidade humana (FLORES, 2009). Isso porque a
dignidade é aquilo que cada povo entende por mais essencial, o que justifica a necessária
redefinição dos pressupostos básicos do jusnaturalismo racionalista-contratualista, face sua
íntima relação com o colonialismo. Como consequência, não há mais definições dos núcleos
dos direitos, pois são diversas as concepções culturais, de forma a entrelaçá-las, bem como as
63
Isso porque, além da não adoção de epistemologias do Sul, inexistiu participação ou consulta
popular para ativação do poder constituinte durante o processo de elaboração, bem como na
ratificação do projeto final da Constituição, o que configura um déficit de legitimidade
democrática.51 Além disso, o contexto histórico-social em que se deu sua elaboração foi logo
após um intenso período de ditadura militar, tendo representantes militares participado do
processo constituinte. “A despeito de recentes tragédias ambientais e do crescimento da
consciência sobre a imprescindibilidade da preservação do meio ambiente em todo mundo, a
agenda legislativa brasileira parece andar na contramão da história.” (AVZARADEL;
TAVARES, 2017, p. 186).
Em termos epistemológicos brasileiros, existem diversas cosmovisões indígenas
capazes de proporcionar um giro jurídico-paradigmático, em sentido similar ao Buen Vivir.
Dentre as tantas epistemologias, encontra-se a da etnia Nambiquara. Os Nambiquara vivem
em pequenas aldeias, organizando-se de forma a não degradar nem desrespeitar os demais
seres da Natureza. Se atentam a não cansar o solo destinado às roças de toco e a não esgotar
os recursos naturais da coleta, da caça e da pesca, atividades que nutrem a vida material e
espiritual.
Para fins deste estudo, qual seja, demonstrar a importância das epistemologias
constitucionais do Sul, volta-se a análise para o último ciclo de Yrigoyen Fajardo (2011),
especificamente no que tange às cosmologias andinas adotadas pelas constituições do
Equador (2008) e da Bolívia (2009). Isso porque essas constituições, ao utilizarem de
epistemologias indígenas, possibilitam uma revisão crítica de dogmas constitucionais
ocidentais tidos como intangíveis e mostram alternativas contra-hegemônicas ao
desenvolvimento econômico, político e social dominantes.
O reconhecimento da Natureza como sujeito de direitos demonstra que o meio
ambiente possui valor intrínseco, ontológico, com um fim em si mesmo. Portanto,
diferentemente de concepções liberais, a proteção da Natureza não se justifica para fins da
51
A falta de participação popular no processo de elaboração e aprovação de normas é uma problemática
frequente em vários países do globo, bem como em âmbito internacional. Acerca de questões ambientais, Parola
(2013, p. 15) defende a necessidade de inclusão, em âmbito internacional, de participação democrática
deliberativa e participativa, bem como de mecanismos nos quais “citizens have real possibility to participate [...]
public should be involved directly in environmental decision-making.” “cidadãos tenham realmente a
possibilidade de participar [...] o público deve estar envolvido diretamente na tomada de decisões ambientais”
(Tradução livre).
65
os animais são gente, ou se vêem como pessoas. Tal concepção está quase
sempre associada à idéia de que a forma manifesta de cada espécie é um
envoltório (uma ‘roupa’) a esconder uma forma interna humana,
normalmente visível apenas aos olhos da própria espécie ou de certos seres
transespecíficos, como os xamãs. Essa forma interna é o espírito do animal:
uma intencionalidade ou subjetividade formalmente idêntica à consciência
humana, materializável, digamos assim, em um esquema corporal humano
solto sob a máscara animal. (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 351).
O direito pode ser uma ferramenta para colonizar e descolonizar. Como o foco do
estudo está voltado à procura por alternativas descoloniais ao direito, é necessário analisar e
questionar o direito positivo e toda a tradição do formalismo jurídico, bem como o projeto
monista estatista. Nesse sentido, a teoria crítica deve debruçar-se a repensar as estruturas e
institutos jurídico-estatais, bem como a quem representam, a quais necessidades contemplam
e quais interesses atendem.
Para isso, mostra-se essencial uma análise do direito, desde aquele ensinado dentro
das faculdades de graduação e pós-graduação, até aquele empregado por agentes estatais, de
forma a buscar alternativas contra-hegemônicas acerca do direito e seus beneficiados. Assim,
é possível formar advogados, juízes, procuradores, promotores, mulheres e homens, em geral,
mais comprometidos e atentos às questões e interesses populares ligados aos subalternizados,
aos pobres, aos indígenas, aos quilombolas, aos afrodescendentes. Portanto, é necessário
consolidar um ensino acadêmico desenvolvido para a praxe, que compreenda análises críticas
de conjunturas, comprometido com as questões latino-americanas e voltado à
instrumentalização das lutas sociais.52
A partir do estudo epistemológico do constitucionalismo, é possível conhecer as
origens histórico-sociais do direito, demonstrando as razões pelas quais encontramo-nos nesse
estado de coisas. Do mesmo modo, trata-se de saber que na origem do que hoje entendemos
52
Para mais dados sobre o ensino crítico do direito, ver os estudos de Bello; Engelmann (2015), Siqueira
(2016), Veronese (2017), Veronese; Fragale Filho (2015), Japiassú (1976), Bello; Oliveira (2015), Nobre (2003),
Falbo (2015), Bello (2015), Castro-Gómez; Grosfoguel (2007), Quijano (2005).
67
por direito encontra-se uma ideologia que legitima práticas e distribuições de poder. Portanto,
a historicidade contida na epistemologia constitucional se mostra uma ferramenta
imprescindível, no sentido de que desistoricizar significa atingir a identidade dos povos. A
invisibilização da história da América Latina, das suas lutas sociais e das suas epistemologias,
por meio de duvidosas noções de neutralidade, imparcialidade, universalidade, racionalidade,
coloniza o latino-americano, deixando oco e passível de dominação e não-identificação.
Portanto, “Historizar é humanizar; e nada no humano é estático ou procede de alguma ordem
transcendental.” (FLORES, 2009). Isso porque, todo fenômeno social decorre de uma causa
histórica.
53
Protestos indígenas da década de 1990 que exigiam a convocação de uma assembleia constituinte para
elaborar uma Constituição que declarasse formalmente os Estados como multiculturais e pluriétnicos. (LLASAG
FERNÁNDEZ, 2014).
69
institutos normativos pautados em uma teoria política incompatível com a realidade política
dos países latino-americanos.54 (LLASAG FERNÁNDEZ, 2014).
O projeto era consciente de que alternativas poderiam ser encontradas em
epistemologias marginalizadas, excluídas e invisibilizadas, em especial, as dos movimentos
indígenas. Foi a pressão popular que conseguiu que se instituísse esse processo de refundação
dos Estados, ou seja, de transformação dos Estados coloniais, capitalistas, patriarcais e
monoculturais em Estados plurinacionais e interculturais, inaugurando o marco constitucional
de transição que concebe a organização social, política e econômica com características
latino-americanas. As epistemologias do Sul constitucionalmente reconhecidas significam a
abertura para compreensão da identidade de seu próprio povo e a existência de outras formas
de conceber o mundo e de reger relações.
A constituição pode ser um instrumento transformador da realidade, mas há
pressupostos que devem ser considerados e analisados. Para tanto, sua concepção e
fundamentos devem estar atrelados ao contexto de lutas sociais de movimentos latino-
americanos, bem como à análise crítica das epistemologias que é possível abarcar, tanto as do
Sul quanto às do Norte global. Isso é possível por meio de análises históricas, uma vez que
desistoricizar implica conceber o direito apartado da realidade, como fórmula pura, neutra,
imparcial, universal, racional. A epistemologia ocidental invisibiliza a história, as suas lutas
sociais e as epistemologias latino-americanas. Esse ocultamento resulta na colonização e
opressão da América Latina, de forma que ignorar ou desprezar as epistemologias do Sul
implica em deixar o latino-americano oco e passível de dominação e não-identificação.
De acordo com Freire e Faundez (1985), mesmo após séculos da chegada do
colonizador, este deixa sua herança cultural e ideológica embrenhada na mente do dominado,
de forma a fazer parte dele. Essa redução a uma única forma de ver a realidade é denominada
pelo argentino Mignolo (2009) de “privilégio epistémico da modernidade”, geradora e
mantenedora da colonialidade do conhecimento e da subjetividade do ser. Portanto, como já
foi dito, “Historizar é humanizar; e nada no humano é estático ou procede de alguma ordem
transcendental.” (FLORES, 2009). Todo fenômeno social decorre de uma causa histórica.
Assim, mostra-se exequível a apropriação e reformulação do direito por grupos
subalternizados para se defenderem, inclusive, do próprio direito. Portanto, a resposta dada
pelas lutas sociais demonstra que não é necessário que a América Latina abdique de
54
A exemplo disso, pode-se citar a forma geográfica ocidental com que os países são divididos. Os países
latino-americanos não se inserem nesse ideal liberal de Estado-nação, ainda que constituições latino-americanas
concebam seus Estados nacionais como monoculturais. Isso porque, na prática, os Estados são heterogêneos e
pluriculturais, principalmente em decorrência do grande número de etnias neles presentes.
70
A experimentação do mundo está ligada a modos de ser, fazer, viver e conhecer que
resultam em diferentes formas de relações entre os seres humanos com os espaços. Nossos
problemas sociais são epistemológicos a partir do momento que a ciência passou a estar na
orifem deles. “Daqui decorre a necessidade de uma crítica epistemológica hegemónica e a
necessidade de invenções credíveis de novas formas de conhecimento.” (SANTOS, 2000, p.
117). O ideal de modernidade influencia todo o mundo e implica na formulação de normas de
comportamento, atitudes e valores pautados na racionalidade do saber e do viver do Norte
global, de característica iluminista, antropocentrista, racionalista, universalista, capitalista,
individualista.
É justamente essa atenção à “colonialidade do poder” (QUIJANO, 2005) que permite
conhecer os povos do Sul e, com ela, nossa própria identidade brasileira. A democratização no
Brasil não se sustenta em teses de matrizes europeias orientadas por ideais da modernidade,
mas em interpretar corretamente (ou seja, à nossa maneira – a do Sul) nossas estruturas
societárias e perspectivas históricas latino-americanas, de forma a sulear o caminho para o
projeto de descolonização.
A identidade que se pauta na concepção colonial moderna, reserva lugar de privilégio
material e simbólico apenas aos povos de aparência branca ou descendência europeia,
impondo, também, inferioridade e desqualificação aos povos não brancos, entre eles, os
indígenas. Essa concepção se fundamenta no “racismo epistêmico” (GROSFOGUEL, 2011, p.
346), versão mais antiga de racismo que compreende os não-ocidentais enquanto seres de
incapacidade racional-epistemológica. Nesse sentido, é necessário que se fortaleça o ideal de
justiça cognitiva. (BALDI, 2014). De acordo com Santos (2000, p. 31),
fazer, viver e conhecer. Nesse sentido, o presente capítulo almeja conhecer a cosmovisão
Nambiquara.
Eles contam que no início do universo, houve um dilúvio56 ocasionado pela ação do
espírito Waluru, destruindo o mundo. Tempos depois, o Sol, iraladndekisu, e a lua, ilakisu,
reapareceram. Não existiam mais humanos, apenas animais. No entanto, no interior de uma
montanha em formato de pedra, habitava a etnia Nambiquara. Esses índios viviam em
constante alegria, fartura de alimentos e desconheciam a doença e o envelhecimento.
Do lado de fora, habitavam animais e outras espécies de seres vivos que podiam
ouvir vozes que vinham do interior dessa montanha. Alguns, aguardavam que alguém saísse.
O macaco japuçá, hosxasitisu, esperou tanto que a pelagem de seu lombo chegou a ficar
avermelhada. Resolveu chamar a cutia para roer a pedra com seus dentes afiados. Porém, não
resistiram à solidez. Pediu à anta que, inutilmente, tentou quebrá-la. O tatu canastra, com seu
casco áspero, saiu ferido ao tentar lixá-la. O urubu, com voos longínquos, não conseguiu
perfurá-la com seu bico. Foi quando a andorinha da mata, kualihahaitalisu, uma mulher-
espírito, também curiosa para descobrir quem habitava aquela enorme pedra, com uma lança,
55
Metáfora utilizada por Le Goff (1996, p. 429) ao se referir a homens pertencentes à sociedades ágrafas,
“especialistas da memória, genealogistas, guardiões dos códices reais”. Segundo o autor, a memória coletiva é
característica de povos de cultura oral.
56
A água está muito presente nas narrativas Nambiquara, ora como indicativo de morada de espíritos, ora
em cataclismos, que podem ser consultados, principalmente, nas obras de Costa (2009) e Holanda Pereira
(1983).
73
voou longe adquirindo embalo, quando conseguiu abri-la. Dela saíram várias pessoas que
foram morar em determinadas direções apontadas pela andorinha. (COSTA, 2002; 2009).
Fontes orais trazidas por Oberg (1953, p. 96) contam que foi “um pica-pau preto e
branco” o responsável por quebrar a “pedra preta chamada yahaindurukatsu, situada ao norte
da linha de telégrafo, perto de Campos Novos [...].” Holanda Pereira (1983) faz referência a
essa montanha, como sendo a responsável Halukitakalosu, espírito da Mulher Beija-flor, por
abri-la com uma espada. “Não é beija-flor, é igual a beija-flor. Essa mulher ainda existe no
mundo. É bonita e nunca fica velha. Não mora definitivo. Não tem lugar certo para morar.
Dona andarilha. Gosta muito de movimento. Onde tem movimento, ela está.” (COSTA, 2009,
p. 257). Com relação aos Nambiquara do Vale do Guaporé, estes se originaram de cavernas
que denominam de “buracos dos espíritos”, local para ondem regressam após a morte. Essa
caminhada de volta da “alma/sombra/espírito é feita através do xamã”. (VALADÃO, 1998,
páginas não numeradas).57
Para os Nambiquara, “montanhas” (talensu)58 ou “buracos” existentes em seu
território são moradas de “donos” de determinadas espécies de animais. Para os Enawene-
Nawe, “[...] o complexo de morros que formam um continuum entre as nascentes dos rios
Preto/Adowina e Arimena/Olowina, abrigo das falanges espirituais de todos os clãs: sem
dúvida, um dos marcos topográficos mais importantes da cosmologia enawene.” (MENDES
DOS SANTOS, 2006, p. 61). Não foram apenas os seres humanos que saíram da pedra. A
morada os animais, Kaiwasxisu (kaiwa, que significa animais; sxisu, que significa casa), era
um buraco do qual fugiram. Esse buraco localiza-se no campo, Yawensu, próximo à aldeia
Camararé, na Chapada dos Parecis e, segundo Mané Manduca,
[...] próximo à aldeia Vinte, onde assoprou os animais. O dono sempre não
trazia carne de anima, só de cobra. O dono foi embora. O outro começou a
soprar na boca do buraco e começou a soprar e foi saindo e não conseguiu
mais, saiu tudo que bicho. O dono ficou bravo. Às vezes, tem um dono para
cada animal tem o chefe de tudo. Cada animal não tem responsabilidade
enorme que atinge todos. Aí tem um chefe maior. (COSTA, 2009, p. 241).
57
Para saber mais sobre os rituais fúnebres Nambiquara, consultar Costa (2009), Valadão (1998), Holanda
Pereira (1974).
58
Para os Bororo (autodenominados Boe), localizados ao Sudeste da Terra Indígena Nambikwara, as
montanhas também possuem significado, a exemplo do morro Toroári, que salvou o índio Meríri Poro de uma
grande inundação que ocasionou a morte desse povo, segundo a cosmovisão dessa etnia. Para mais dados,
consultar Albisetti; Venturelli (1969).
74
A cartografia apresentada por Costa (2009) expõe lugares espirituais, habitados por
diversas entidades que interagem entre si e com os índios, com pontos de vistas e perspectivas
próprias. Invisíveis aos olhos comuns, se mostram ao wanintesu (pajé)60 com hábitos
antropomórficos correspondentes às cosmovisões reveladas pela tradição oral. Animais se
59
Os Rikbaktsa, moradores da região da bacia do rio Juruena, ao Noroeste de Mato Grosso, descrevem um
lugar perigoso próximo a um paredão de pedra, localizado no rio Arinos, cerca de 7 (sete) horas de caminhada da
Aldeia São Vicente. Nesse local mora um espírito que cuida dos bichos, mandando-os de tempos em tempos.
Para saber mais, consultar Athila (2006). Os Kaiabi do rio dos peixes, também em Mato Grosso, acreditam que
“todos os animais juntos têm um chefe, ou então uma senhora, dona, que é uma velha, a owi. Para saber mais
sobre a cosmovisão dos Kaiabi, consultar Grunberg (2004).
60
Embora não seja comum, o pajé pode ser uma mulher, wanintakalosu (COSTA, 2009, p. 326).
75
veem e são vistos como gentes numa relação de predação, onde a perspicácia de um grilo
pode dominar uma onça. Assim, o mundo Nambiquara concebe diferentes perspectivas: o que
se apresenta como larva de carniça aos olhos humanos, para o urubu é igual ao amendoim que
o índio come. (COSTA, 2009). Esses seres, que são bons, atasu, (nome atribuído
genericamente aos espíritos maus) ou os dois, “desconhecem as linhas demarcatórias impostas
pela FUNAI e, assim, chegam até às cidades, auxiliando e influenciado os kwajantisu.”
(COSTA, 2009, p. 250).
O foco das atenções dos Nambiquara são as “Montanhas Sagradas” ou “Casa das
Almas”, walakatata, um complexo de morros que abriga espíritos ancestrais e outros seres.61
Localizada entre as nascentes dos rios Preto/Adowina e Arimena/Olowina, os Nambiquara do
Cerrado acreditam que é para lá que suas essências/almas seguem após a morte.62
Os Nambiquara do Vale do Guaporé creem que após a morte, o wanintesu (pajé) é
responsável por conduzir a alma do falecido até as cavernas, diferentemente dos Nambiquara
do Cerrado que creem que estas devem ser conduzidas às montanhas sagradas. (MIGLIÁCIO;
ÓPPIO-FIORINI, 1988). MILLS, antropólogo da FUNAI, ao realizar pesquisa arqueológica
nas cavernas Abrigo do Sol, Abrigo Guanabara e Abrigo Wasusu, em território tradicional dos
grupos Wasusu, no Vale do Guaporé, constatou que
Pode ter sido há 9, 10 ou 35 mil anos antes de Cristo. Numa data assim
remota foi que, emergindo de estreitas e escuras grutas, cobertos de terra e
cinza, surgiram os primeiros seres humanos e habitaram o Vale do Guaporé,
no centro-oeste brasileiro. Esse começo de mundo repete a história dos
índios Nambikwara que ali vivem há pelo menos 200 anos e que, fiéis a seus
antepassados, ainda se cobrem de terra e cinza e realizam seus rituais
sagrados nas inúmeras cavernas espalhadas pela região. (MINISTÉRIO DO
INTERIOR, 1982, p. 12).
Os resultados dos estudos de Miller, baseados no teste de Carbono 14, apontam que a
presença dos índios Nambiquara remete a 12.000 anos de idade. (PUT-TKAMER, 1979, p.
72). Assim como ocorrem nas cavernas localizadas no território tradicional dos índios do Vale
do Guaporé, denominados “Buracos dos Espíritos”, o mesmo ocorrem
61
As terras tradicionais Nambiquara abrangem mais de 36 Montanhas Sagradas. O presente estudo opta
por trazer as consideradas mais importantes aos Nambiquara, bem como algumas não contempladas pela
demarcações efetuadas pela FUNAI. Para mais dados sobre elas, consultar Costa (2009).
62
Os Nambiquara do Vale do Guaporé creem que após a morte, o wanintesu (pajé) é responsável por
conduzir a alma do falecido até as cavernas, diferentemente dos Nambiquara do Cerrado que creem que estas
devem ser conduzidas às montanhas sagradas. (MIGLIÁCIO; ÓPPIO-FIORINI, 1988).
76
[...] com as Montanhas Sagradas dos grupos do Cerrado, nessas áreas, num
raio aproximado de 5 km, é proibido caçar, pescar ou coletar, sendo o acesso
permitido a poucas pessoas. Sua localização acha-se ao longo das encostas
da Chapada dos Parecis, desde as proximidades do rio Piolho, ao Norte, até
as cabeceiras do rio Vai-e-vem, ao sul. Nessa faixa, cada um dos grupos tem
sua respectiva gruta, na qual vivem os espíritos de todos os seus
antepassados. (COSTA, 2009, p. 246).
Wasakalentsu, Casa das Almas, para o lado da aldeia Vista Alegre. Aí tem
muito morro. É buracão fundo! Tem a Montanha do Tucano e a do Besouro.
Indo para a direção do [rio] Camararé, é tudo sagrado, morador de espírito.
Outra é Kalitensu [fora dos limites da Terra Indígena Nambiquara]. Casa das
Almas dos Manduca. Aí tem duas: tem a casa dos animais, Kaiuasisu. O
espírito dos animais mora com os animais. O pajé entra na casa, conversa
com ele e pede para liberar os animais. A outra casa é Waninthalosu. Só tem
alma boa. É diferente; é separado. Essa é só pajé e espíritos dos Manduca,
segundo pesquisa do finado meu pai. Existe também a Tulahulentsu é a casa
dos animais, que já é no campo. A Yalanahaytesu fica perto da cabeceira da
aldeia Serra Azul. Tem a Yaitulhu. Tem a Kalintsu, guariroba do campo, tem
lá em cima da pedra. Natureza, natureza mesmo. Perto da lagoa Yaytulentsu
tem a Tainkaientsu. Tem a Kalulutensu, que passa perto da cabeceira do
Primavera, próximo ao caminho do Propício [seringalista]. Passa, saiu ali no
Titensu. De Kalulutensu dá para ver campo de soja. Tem casa dos animais,
Kalensu. (COSTA, 2009, p. 249).
Para além do rio Juína, um dos limites da Terra Indígena Nambiwara, localiza-se a
Montanha Sagrada Alakakatsu, fora do território demarcado pela FUNAI. Orivaldo, João
Maxixe e Jorge Halotesu contam que ela é habitada por “espíritos da natureza”. De acordo
com eles,
Passa a ser o protetor do pajé. A onça vai ser dele. Cada pajé tem sua onça.
Quando o pajé consegue pegar a onça que está no centro [da Montanha
Sagrada], lá dentro ela é agarrada como se fosse um cachorrão. Lá fora, ela
some e se transforma em dente de onça, unha ou ponta do rabo. A onça é a
mágica do pajé! Quando o pajé chega na aldeia, a música aparece na mente
do pajé. A onça está dentro do corpo do pajé. O pajé consegue chegar rápido
na caverna. É um passo para ele, que consegue ir atrás dos pensamentos.
(COSTA, 2009, p. 343).
[...] por exemplo, que bicho que Estevão [Halotesu] matou ontem à noite, o
que ele pegou. Se eu souber, eu posso entrar. Tem gente quer entrar, mas
fica brincando com mulher. Só com a minha mesmo. Brincadeira só de falar,
não pode tocar. O capitão Júlio [Katukolosu] tinha três mulheres, mas ele
tinha conversa dura e o povo acreditava nele. (COSTA, 2009, p. 248).
3.3 Wanintesu
63
Os raios são espíritos maus de cobras com cabeça de ferro, oriundas de dentro da Montanha
Salitanukatesu, enviadas quando os espíritos habitantes dela estão bravos.
64
“A reciprocidade na aldeia é um dos princípios essenciais ao fazer parte do grupo. A falta de
generosidade indica má educação, avareza. Estar em uma aldeia implica permuta constante, e todos sabem quem
deve a quem.” (COSTA, 2009, p. 59).
79
[...] antigamente, uma pessoa era cacique e pajé. Tudo junto! Forte mesmo!
Depois, bem depois, os padres do CIMI [Conselho Indigenista Missionário]
que moravam junto com Nambiquara, dividiram o poder de pajé e o poder de
cacique da aldeia. Ficou separado: um para ser pajé, outro para ser chefe da
aldeia. [...] Eu não! Eu sou igual antigo: sou pajé e sou chefe da minha
aldeia! (COSTA, 2009, p. 288).
Para se tornar um wanintesu, o índio ou índia deve externar essa vontade aos demais
integrantes da aldeia, que será analisada por um pajé experiente. É necessário que abdique da
‘vida de branco’ que vem levando nos último tempos. Estar envolvido com
as coisas do mundo sagrado requer de um wanintesu um comportamente
diferenciado devendo o interessado direcionar seus interesses aos problemas
rotineiros da aldeia. Não é comum a presença constante de um wanintesu nas
cidades. Na concepção de [Mané] Manduca, isso ocasionaria uma grande
interferência em suas ações, principalmente para visualizar e manter contato
com os espíritos, sejam eles do bem ou do mal. [...] Afastado da maior parte
das atividades desempenhadas pelo sexo masculino, principalmente daquelas
voltadas à agricultura, o wanintesu reserva grande parte de seus dias a
percorrer uma extensa área, a organizar cerimônias de cura e a manter
contato com entes de seu mundo religioso – ‘as almas da natureza’ – os
espíritos sobrenaturais – e os ‘espíritos de uma pessoa que morreu’ – as
almas de seus ancestrais. (COSTA, 2009, p. 263 e 264).
espíritos ancestrais ou da natureza. [...] são nossos parentes e pajé quase não
caça, porque caça é gente. [...] Quando a pessoa é pajé, não encontra caça, é
pessoa mesmo. Às vezes, parece filho dele mesmo, só para escapar. Quando
começa a virar pajé, difícil comer caça. Dificilmente encontra animal: cobra
se transforma em gente para enganar pajém mas, não isso a qualquer hora.
(COSTA, 2009, p. 276).
da gruta, ele fala: - acende a lâmpada aí. Na verdade, ele está falando para o
peão dele acender o raio. Eu sou desconhecido, novo e eles não me
conhecem. Quando ascende a lâmpada, ele estoura você! Agora, se tem
conhecido lá dentro, algum que chama você de neto, parente, ele aceita você.
Na montanha, lá dentro, tem muita massa de pequi. Lá, eles têm muito
pequi. Ele fornece para você e não pode comer bastante, senão morre lá
dentro, porque ultrapassou a quantidade de comer. Tem que comer pouco.
(COSTA, 2009, p. 279).
[...] vai até Haluhalunekisu para buscar sabedoria para curar doentes.
Qualquer sabedoria de cura, de bicho, de fruta, de vida. [...] Várias
orientações que busca [...], traz orientação de diversos animais, diversos
insetos. Tudo, tudo, tudo! Assim que esse pajé volta de Haluhalunekisu para
este mundo, aqui na terra, aparecem vários tipos de bichos, vários tipos de
insetos, vários tipos de frutas, marimbondo. Enfim, ele traz desse lugar.
(COSTA, 2009, p. 305).
Também possuem objetos que são guardados dentro de si, a exemplo de um colar.
Milton Halotesu conta que
A seguir a trilha de Costa (2009, p. 317), “O wanintesu precisa buscar esses objetos
na Montanha Sagrada, onde espíritos ancestrais e sobrenaturais o guardam.” Os wanintesu
podem receber diversos castigos, podendo enfurecer Dauasununsu, o deus supremo
Nambiquara, moradir da Figueira sagrada, Haluhalunekisu, que pode pegar de volta toda
aquela sabedoria, principalmente se praticar adultério, deixando sua esposa-humana e esposa-
espírito muito tristes.
Além de sua esposa humana, unem-se a uma mulher-espírito, se essa o escolher,
tendo a liberdade de deixá-lo se ele lhe causar alguma dor, não satisfazerem seus gostos
alimentares ou em decorrência de condutas ruins como relacionamentos extraconjugais. Ela
nunca morre, não envelhece, nunca se casam. Dessa união ela se torna mulher-pajé,
wanintakalosu, e ensina músicas e conhecimentos fitoterápicos ao wanintesu. Se dá muito
bem com a esposa-humana do pajé, pois ambos sabem que sua companhia traz proteção
contra espíritos sobrenaturais maléficos. As relações sexuais entre o pajé e a mulher-espírito
proporciona fartura à aldeia, bem como o nascimento de uma criança-onça que acompanhará
o pajé até sua morte, momento em que ambos passarão a habitar a Montanha Sagrada.
O repertório musical do wanintesu é extremamente vasto e poderoso. Isso porque, de
acordo com Jonatas Kithãulhu,
O canto chama o espírito curador para ver que doença é. O espírito fala para
o pajé que doença ele tem. Tem próprio colar dele. Esse colar que ele tem no
corpo vai curar o doente. O canto vai chamar o espírito que chega e vai
examinar o doente. (COSTA, 2009, p. 304).
82
Para o wanintesu, possuir uma onça gerada da relação sexual com sua
esposa-espírito indica que ele dispõe também de sua proteção e tem acesso,
durante as sessões de cura, principalmente aos conhecimentos fitoterápicos
que ela poderá lhe ensinar. (COSTA, 2009, p. 343).
65
Para mais dados sobre as práticas de cura entre os Nambiquara, consultar Lévi-Strauss (1975).
83
[...] viu o espírito da cachoeira. Marquinho [seu filho] que viu primeiro. Eles
foram espiar o espírito. Anael e Marquinho [seus filhos] correram. Eu
conversei com o espírito que não veio para matar, mas para pescar. Tocar
flauta de nariz ele gosta, ele aparece. Se gritar na beira do rio, ele vem [imita
o som do espírito da cachoeira]. Ele não gosta da cor vermelha, branca. Ele
gosta da cor preta. Ele não corre, mas quando mergulha, sai igual peixe. Ele
não gosta de sol. Igual peixe, quando sai fora d’água, ele morre. (COSTA,
2009, p. 216).
A maioria dos nomes dados aos rios pelos Nambiquara remete a espécies de vegetais
frutífero ou não que se associam às mulheres-espíritos.
[...] ‘todo rio tem espírito de peixe’, ‘toda cachoeira tem animal’, essa
hidrografia encantada representa a morada de muitos seres sobrenaturais, em
especial, do casal de peixes Kikayãulhu e Kikayãuli. Essa espécie pode estar
em vários córregos e rios, pois lhe cabe a capacidade da reprodução. [...] se
sai fora d’água, ele morre. [...] Tem mão de gente. É perigosa. Se ela morrer,
morre peixe, seca água, diminui água. Tem homem e tem mulher. Ela é dona
do rio, do peixe, tracajá e jacaré. Também gosta de água suja. O pajé pode ir
lá para cantar para ele para não ficar triste, mas é muito perigoso. (COSTA,
2009, p. 216-217).
66
Na cosmovisão dos índios Kaiabi, moradores das terras próximas aos rios Teles Pires, dos Peixes e do
Xingu, em Mato Grosso, a água também são moradas de seres inumanos. Para saber mais, consultar Grunberg
(2004, p. 202).
84
O canto do pajé alegra Kikayãuli, pois “ao agredir sua morada com a derrubada das
matas próximas às corredeiras e cachoeiras, ele pode ficar triste e vir a falecer.” (COSTA,
2009, p. 217). A morada preferida de Kakayãuli são as cachoeiras. Segundo Orivaldo
Halotesu (COSTA, 2009, p. 217),
[...] é parecida com gente e seu pé é parecido com lobó [peixe]. Tem mão de
gente. É perigosa. Se ela morrer, morre peixe, seca água, diminui água. Tem
homem e tem mulher. Ela é dona do rio, do peixe, tracajá e jacaré. Também
gosta de água suja. O pajé pode ir lá para cantar para ele para não ficar triste,
mas é muito perigoso.
Além desses seres, os Nambiquara também temem o casal de espíritos Kikiãulhu que
habitam pequenos córregos.
67
Sobre os demais seres habitantes das águas dos territórios Nambiquaram, como o Alaaintzu ou
Alaatasu, o Alutzu, o Uakanázu, os Kikiãulhu, o Uakalatasu, o Podntzu, o Ualuru, a Alunlahatasu, Tihatasu,
consultar Costa (2009) e Holanda Pereira (1973).
85
no rio Juína, Sisunjausu (rio da Água Fria ou rio da Bunda Fria), abaixo da
foz do córrego Água Bonita, Wasakikuyausu, que quer dizer rio do Coró
Taturana, [...] tem cachoeira bem braba! Odair [genro de Paulo César
Sawentesu e filho de Fuado Sawentesu], pequeno ainda, Evaristo [seu filho],
eu pai, Reginaldo, eu. Arrasta barco, passou bem grande, cabelo meio preto,
sentado no meio da pedra, no meio do rio. Depois de remar para chegar lá
[na pedra], não achar nada. [...] meu nariz saiu sangue. Me assustou. Pássaro
bem grande. Eu estava pensando urubu. Todo mundo está enxergando. Me
assustou mesmo. Quase desmaiei. Meu nariz ficou com cheiro de sabonete,
perfume, gosto ficou ruim. Por isso, pessoal tem medo de pescaria. Agora eu
fiquei teimoso ao entrar na cachoeira também. Se arara vermelha sai debaixo
da cachoeira, você não fica vivo. Nunca encosto nessa cachoeira! (COSTA,
2009, p. 221).
Os Nambiquara optam por construir suas casas longe das águas, se instalando no
campo e também pelo hábito de dormirem diretamente no chão. Isso impede que seus filhos
cheguem facilmente às águas e também como uma forma de respeito à morada desses
espíritos.
3.5 As plantas
68
Existe a Moça do Pequi ou Mulher do Pequi que, de acordo com Price (1989, p. 686), é “[...] uma jovem
bonita que mora na Aldeia dos Espíritos, com outros Espíritos Eternos.”
87
Lá tem muita gente! Tem vários bichos lá! Tem urubu. Ele faz sacanagem.
Urubu come carne de carniça, carne estragada: boi morto. Onde tem lixo, ele
pega também. Mas, significa que urubu não come carne estragada não! Ele
come carne boa. Ele tem mapa dele. Ele sabe onde tem carne estragada.
Quando tem visão do urubu, se carne carniça, se onça comeu bicho, ele vai
certinho. Urubu come carniça, mas não come carne estragada. Aquela larva
tem bastante em cima da carniça. Igual castanha de amendoim do índio.
Mas, se comer, faz mal. Só urubu pode comer. (COSTA, 2009, p. 200-201).
70
Oberg (1953, p. 99-100) relata sobre a existência desse gavião, Tauptu. Segundo ele, Tauptu “[...] é um
imenso gavião com enormes asas, rabo e garras, que vive pousado em uma árvore feita de ossos humanos. Essa
árvore [lúlukatsu] situa-se na praia de um lago raso no céu. Quando o tauptú defeca à noite, o resultado são
estrelas cadentes. Um pequeno pássaro vermelho [dinínuwa], que vive com taúptu, urina no lago e, quando o
lago enche, a urina transborda e cai sob a forma de chuva. O tauptú não provoca doença diretamente, mas
quando as pessoas ficam doentes, ele começa a devorar-lhes a carne até mata-las e depois leva seus ossos para
seus próprios domínios no céu.” Miller (2007, p. 155-156) relata que em cima da halohalodu, também da espécie
Figueira, “[...] o ‘dono’ do gavião [kokadadu] faz seu ninho com os restos dos ossos e dos cabelos que ele rouba
dos Mamaindê. Os Mamaindê dizem que o xamã deve ficar sempre atento ao canto do gavião real. Quando o
gavião canta à noite, o xamã deve ir até a grande Figueira e chupar seu tronco, retirando possíveis larvas que
possam fazê-lo apodrecer. Assim, ele evita que a Figueira caia, o que faria o céu tombar sobre os Mamaindê”.
89
poderes junto a Dauasununsu, além de receber os nomes das crianças que estão para nascer,
possui a tarefa de limpeza da Haluhalunekisu.
Os Nambiquara entendem que o tatu causa desordem terrestre que necessita ser
combatida, a fim de que os buracos na terra possam ser fechados e, com isso, evitada a
catástrofe que está por vir.
90
[...] fica fazendo buraco, minando água. Não tem forma de gente. É diferente
de tatu canastra. Mas, é esquisito demais. A unha dele é grande, grande e
transparente, igual arroz, igual caranguejo, igual gilete. Sai cortando,
cortando planta no fundo da terra e fica desmoronando. (COSTA, 2009, p.
210).
ser realizada com alegria! Essa perspectiva de conceber a realidade aponta a necessidade de se
refletir sobre as relações sociais, deixar o subalterno falar (SPIVAK, 2014), compreender e
respeitar outras formas de ser, fazer, viver, em busca pela descolonização do Brasil.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
epistemologia ocidental? Daí a grande contradição entre democracia e constituição, pois não
possuem a mesma identidade (América do Sul versus importação de fórmulas “neutras”,
“universais”, ocidentais). Enquanto a América do Sul ocultar sua identidade, deixar-se
dominar e colonizar pelos ideais e pelos interesses do Norte, não será possível a alteridade, a
pluralidade de visões de mundo e a interculturalidade.
As constituições da Bolívia e do Equador são uma verdadeira tentativa de responder
a essas questões e solucionar o dilema jurídico-social da modernidade: a herança colonial e
imperial. Ainda que a América Latina utilize de um instrumento de origem ocidental para
descolonização, a constituição, é possível proporcionar rupturas paradigmáticas. Isso porque,
ainda que a constituição seja um instrumento advindo do Norte, esta pode ser descolonial e
apontar uma possível relação entre epistemologias, demonstrando seus potenciais e limites
para atuação na realidade. Além disso, o Novo Constitucionalismo Latino-Americano, no qual
se inserem essas constituições, não advém das elites políticas e de dogmas contidos em
doutrinas de professores de direito. Ao contrário, são modelos originados das lutas sociais de
povos subalternizados e com projetos que refletem epistemologias das camadas sociais
oprimidas, vulneráveis, marginalizadas, invisibilizadas. Portanto, o constitucionalismo pode
ser transformador do status quo, desde que os povos se organizem politicamente para que o
seja. A constituição por si e entregue aos juízes e às autoridades estatais não possuem tal
potencial. A mobilização jurídica só será emancipatória se estiver a par da realidade social.
Para tanto, é necessário que o sistema normativo também esteja. Isso é possível por meio de
uma mobilização político-social (FLORES, 2009) pautada na descolonização do poder, do
ser, do saber e do viver (QUIJANO, 2005).
A descolonialidade revela o homem latino-americano oculto, oprimido, colonizado e
dependente do sistema em que vive. O Novo Constitucionalismo Latino-Americano permite,
pela primeira vez a nível epistemológico-constitucional, que se pense o mundo a partir de sua
própria localidade. Portanto, para contrapor ao sistema colonial imposto, a cosmovisão
indígena mostra-se um eficaz instrumento para se desenvolver uma cultura jurídica latino-
americana própria, aquém do etnocentrismo.
A história da humanidade é composta por constantes construções e desconstruções.
Encontramo-nos em um interregno, um momento de transição em que o antigo modelo
constitucional de base europeia mostra-se ineficaz para solucionar questões sociais e um novo
paradigma ainda não fora consolidado, embora se constate sua emersão e emergência. Esse
caminho deve ser construído assumindo nossa história, aquela que não foi e evita ser contada.
Isso implica, também, em assumir nossa realidade e pluriculturalidade. Trata-se de pensar
94
uma teoria crítica desde o Sul (BALDI, 2015) e de viés periférico, que reflita anseios e
identidades subalternizadas, das minorias, dos indígenas, dos afrodescendentes, dos sujeitos
que mais sofrem com a colonialidade. É por meio desses anseios e visões de mundo que se
pode concretizar um novo, pautado, por exemplo, no paradigma do Sumak Kawsay, Suma
Qamaña e Haluhalunekisu, pois “[...] é preciso imaginar muito para ‘viver’ um espaço novo.”
(BACHELARD, 1978, p. 331).
Essa análise foi proposta devido ao potencial opressor do direito, demonstrado com
base nos acontecimentos entre os Nambiquara, bem como na própria trajetória do direito ao
longo da história. Foi demonstrado que instrumentos do direito, tais como constituição,
direitos humanos, dignidade humana, podem descolonizar, desde que reflitam a memória de
povos subalternizados. A cosmovisão torna possível que os Nambiquara mantenham vivas
memórias, pois é nelas que se tornam possíveis o sentimento de pertença ao grupo e de
compreensão acerca da vida, potências geradoras de uma memória coletiva.
Haluhalunekisu permite pensar em uma perspectiva epistemológica brasileira de
relação de respeito e integralidade entre todos os seres. Diante de todas as formas de poder
que incidem sobre os Nambiquara, a cosmovisão e proteção à Haluhalunekisu é o que os
fazem resistir.
95
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