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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE


FACULDADE DE DIREITO
PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO STRICTU SENSU EM DIREITO
CONSTITUCIONAL
NÍVEL MESTRADO

LOYUÁ RIBEIRO FERNANDES MOREIRA DA COSTA

HALUHALUNEKISU
À PROCURA POR ALTERNATIVAS DESCOLONIAIS NO BRASIL

NITERÓI
2018
2

LOYUÁ RIBEIRO FERNANDES MOREIRA DA COSTA

HALUHALUNEKISU
À PROCURA POR ALTERNATIVAS DESCOLONIAIS NO BRASIL

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Direito Constitucional, na área de
Teoria e História do Direito Constitucional e Direito
Constitucional Internacional e Comparado, oferecido
pela Universidade Federal Fluminense, como
requisito parcial à obtenção do título de Mestre em
Direito.

Orientação: Professora Doutora Giulia Parola


Co-orientação: Professor Doutor Enzo Bello

NITERÓI
2018
3

LOYUÁ RIBEIRO FERNANDES MOREIRA DA COSTA

HALUHALUNEKISU
À PROCURA POR ALTERNATIVAS DESCOLONIAIS NO BRASIL

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Direito Constitucional, oferecido pela
Universidade Federal Fluminense, como requisito
parcial a obtenção do título de Mestre.

(A) Aprovada
(B) Aprovada com restrição
(C) Reprovada

Niterói, _____/_____/_____.

BANCA EXAMINADORA

Professora Doutora Giulia Parola


Orientadora

Professor Doutor Enzo Bello


Co-orientador

Professor Doutor Manuel Eugenio Gandara Carballido


Membro externo - Universidad Pablo e Olavide, Espanha

Professor Doutor Fernando Antônio de Carvalho Dantas


Membro externo - Universidade Federal de Goiás
4

Dedico esse estudo ao herói Nambiquara, Júlio Katukolosu,


e aos povos indígenas do Brasil que resistem dentro e fora de suas aldeias.

Arquivo da OPAN (Operação Amazônia Nativa - Cuiabá-MT), autoria desconhecida.


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AGRADECIMENTOS

Esse estudo não seria possível sem a ajuda de algumas pessoas. Por isso, gostaria de
agradece-las. Poder relembrar o início do sonho em realizar o mestrado me remete à Cuiabá,
cidade na qual morei a maior parte de minha vida. Lá, pude contar com o apoio de pessoas
fundamentais ao meu processo de amadurecimento e entrada no Mestrado do Programa de
Pós-graduação em Direito Constitucional da UFF (Universidade Federal Fluminense). Por
isso, agradeço a Fabiane Lumi Kuroyanagi, Thayná Albuquerque Silva, Rafael Madalozo,
Ricardo Madalozo, Felipe Rodolfo, Diogo Diógenes, Clarinda Costa.
Aos professores do PPGDC-UFF, em especial a minha orientadora, Giulia Parola,
pelo apoio e orientação cautelosa. Ao meu co-orientador, Enzo Bello, pelas reflexões e
incentivos. Ambos foram de suma importância em meu processo de amadurecimento da
escrita.
Agradeço aos professores da banca, Manuel Carballido e Fernando Dantas pelos
direcionamentos e por terem aceito ir até o final da análise desse estudo, estando presentes na
qualificação e defesa.
A todos os meus coelgas de turma, pelo convívio e troca de experiências, em especial
à Larissa única de Paula Couto, ao poeta Lucas Pontes, à Bianca Toledo (bibir), Felipe
Romão, Wilson e Tadeu Eccard, Eduardo Langoni, Rodrigo Pereira, Cecília Pires, Greyce
Dan, Karina Freire, Pablo Gadea, Anne Oliveira, Rafael Tristão, Fabio Santana.
Aos colegas do grupo de estudos Inpodderales (Laboratório de Inovação, Pesquisa e
Observação em Direito, Democracia e Representações da América Latina e Eixo Sul) que
compartilhei importantes momentos no ano de 2018, em especial a Ilana Aló, Lilian Balmant,
Samir Zaidan, Fernanda Lage.
Aos funcionários e funcionárias da UFF, Carla, Lilian e, principalmente, à Mirian e
ao Eric por toda a ajuda, desde o processo seletivo.
Ao PPGDC-UFF pela estrutura institucional, pelo ensino e por ter-me proporcionado
bolsa de estudos durante grande parte dessa trajetória, em especial à professora Clarissa
Brandão.
À Faperj (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro) e Capes
(Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) pelo auxílio financeiro,
fundamental à viabilização e bom andamento desta pesquisa.
Aos amigos do Rio de Janeiro, Rosana Soriano, Fredson Carneiro, Vinícius
Rodrigues, Maria Luiza Paiva, Mirian Murad, Mirts Sants, Patricia Magno, Roberta
6

Damasceno, Amanda, Aline, Luciana Magalhães, Victor Antoun, Yasmin Menezes, Lara
Queiroz, Sofia Marques de Carvalho, Cilda de Carvalho.
À minha família, meu bem maior: Meus pais, Anna e Eduardo, por todo apoio,
dedicação e carinho. Vocês são meu elo com o que há de mais belo nessa vida. Ao meu irmão
Theo, a quem sempre recorro com afeto, buscando uma brincadeira ou conselho. À minha
cunhada, Carla Barzsina, por todo o companheirismo e sabedoria. Minha tia Márcia e prima
Carolina, pelos eventuais refúgios em Juiz de Fora. Ao meu tio Danton, pelo exemplo de
grandeza e sensibilidade.
Ao meu Sol, presente em todos os momentos, de alguma forma, não importa a
distância ou a circunstância, Igor de Carvalho.
Sem vocês nada disso seria possível! Obrigada.
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RESUMO

O estudo objetiva analisar as epistemologias do Sul como potenciais desmistificadores do


direito. Para tanto, indaga-se: o direito é um instrumento utilizado para oprimir ou
descolonizar o Sul? É possível uma fundamentação do direito a partir das epistemologias do
Sul?; se sim, seria a constituição um instrumento basilar para tanto?; e, ainda, quais
cosmovisões poderiam ser trazidas para demonstrar o potencial das epistemologias do Sul
para uma quebra paradigmática jurídico-constitucional? A busca por essas respostas
evidenciaram os dilemas da modernidade e a necessidade de reavaliarmos elementos que
subsidiam a consolidação do projeto de vida moderna. Haluhalunekisu: à procura por
alternativas descoloniais no Brasil, aborda um tema baseado na ideia de desvelar as
epistemologias dos povos subalternizados, delimitando a análise aos índios Nambiquara,
localizados ao Sul de Rondônia e Oeste de Mato Grosso. O viés interdisciplinar possibilitou
reflexões, com base no campo sócio-histórico crítico e antropológico, que apontaram a
universalização da epistemologia do Norte, por meio da importação de fórmulas
constitucionais, revelando uma estratégia colonial e de imperialidade.

PALAVRAS-CHAVE: Constitucionalismo. Descolonialismo. Epistemologias do Sul.


Haluhalunekisu. Nambiquara.
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RESUMEN

El estudio objetiva analizar las epistemologías del Sur como potenciales desmistificadores del
derecho. Para ello, se pregunta: ¿el derecho es un instrumento que oprime o descoloniza el
Sur? ¿Es posible una fundamentación del derecho a partir de las epistemologías del Sur ?; si
es así, sería la constitución un instrumento basilar para tanto ?; y, aún, cuáles cosmovisiones
podrían ser traídas para demostrar el potencial de las epistemologías del Sur para la ruptura
paradigmática jurídico-constitucional? La búsqueda de esas respuestas evidenció los dilemas
de la modernidad y la necesidad de reevaluar elementos que subsidian la consolidación del
proyecto de vida moderno. Haluhalunekisu: en busca de alternativas descoloniales en Brasil,
aborda un tema basado en la idea de desvelar las epistemologías de los pueblos
subalternizados, delimitándose a los indios Nambiquara, para demostrar sus potenciales para
una quiebra jurídico-paradigmática. El sesgo interdisciplinario posibilitó reflexiones, con base
en el campo sociocultural crítico y antropológico, que apuntaron a la universalización de la
epistemología del Norte, a través de fórmulas constitucionales, revelando una estrategia
colonial y de imperialidad.

PALABRAS CLAVE: Constitucionalismo. Descolonialismo. Epistemologías del Sur.


Haluhalunekisu. Nambiquara.
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ABSTRACT

The study aims to analyze South epistemologies as an unveil way of the law. For that, it is
asked: is law an instrument that oppresses or decolonizes the South? Is it possible to provide a
legal basis from the epistemologies of the South? if so, would the constitution be a
fundamental instrument for this? and, further, which worldviews could be brought to
demonstrate the potential of the epistemologies of the South for a legal-constitutional
paradigmatic breaking? The search for these answers highlighted the dilemmas of modernity
and the need to reassess elements that support the modern life project consolidation.
Haluhalunekisu: the search of decolonial alternatives in Brazil, approaches a theme based on
the idea of unveiling the subalternized peoples epistemologies, delimiting the analyzes on
Nambiquara Indians, to demonstrate their potential for a legal-paradigmatic break. Based on
critical and anthropological socio-historical field, the interdisciplinary bias result on
reflections about the universalization of the North epistemology as a colonial and imperial
strategy.

KEYWORDS: Constitutionalism. Decolonialism. South Epistemologies. Haluhalunekisu.


Nambiquara.
10

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 11

1. QUEM SÃO OS NAMBIQUARA? ............................................................................. 177


1.1 Os Nambiquara e os primeiros contatos com os kwajato ................................................... 17
1.2 Ocupação territorial Nambiquara........................................................................................22
1.3 A BR 364 e o confinamento dos Nambiquara....................................................................35
1.4 Os Nambiquara e a atual conjuntura...................................................................................42

2. PODE O DIREITO SER DESCOLONIAL? UM CONVITE A REFLEXÕES


ACERCA DOS LIMITES E ALTERNATIVAS AO DIREITO ........................................ 48
2.1 Pode o constitucionalismo ser descolonial? ....................................................................... 49
2.2 Podem os direitos humanos e a dignidade humana serem descoloniais? ........................... 51
2.3 O Novo Constitucionalismo Latino-Americano: Um passo rumo a um direito descolonial?
.................................................................................................................................................. 55
2.4 A Natureza como sujeito (de direitos) ................................................................................ 64
2.5 A importância do protagonismo social para emersão de um direito latino-americano ...... 66

3. HALUHALUNEKISU: À PROCURA POR ALTERNATIVAS DESCOLONIAIS NO


BRASIL ................................................................................................................................... 71
3.1 Origem dos seres (in)humanos ........................................................................................... 72
3.2 Montanhas sagradas, a Casa das Almas..............................................................................75
3.3 Wanintesu ........................................................................................................................... 78
3.4 Os seres das águas .............................................................................................................. 83
3.5 As plantas ........................................................................................................................... 85
3.6 Haluhalunekisu: a abóboda celestial .................................................................................. 87

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 92

REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 95
11

INTRODUÇÃO

O estudo objetiva analisar as epistemologias do Sul1 como potenciais


desmistificadores do direito. Para tanto, considera-se a historicidade crítica como elemento
fundamental, de forma a demonstrar o direito como fenômeno social e não como uma ciência
pura, neutra, imparcial e mitificada. Nessa trilha, o viés interdisciplinar possibilitou reflexões,
com base no campo sócio-histórico crítico e antropológico, que apontaram a universalização
da epistemologia do Norte, por meio da importação de fórmulas constitucionais, revelando
uma estratégia colonial e de imperialidade. Portanto, o estudo busca explorar o direito por
meio de suas características socio-político-geográfico-culturais e explicar sua
incompatibilidade com a realidade do Sul global.
Diante dessas questões, indaga-se: o direito é um instrumento utilizado para oprimir
ou descolonizar o Sul? É possível uma fundamentação do direito a partir das epistemologias
do Sul?; se sim, seria a constituição um instrumento basilar para tanto?; e, ainda, quais
cosmovisões poderiam ser trazidas para demonstrar o potencial das epistemologias do Sul
para uma quebra paradigmática jurídico-constitucional? A busca por essas respostas
evidenciaram os dilemas da modernidade e a necessidade de reavaliarmos elementos que
subsidiam a consolidação do projeto de vida moderno. Também foi demonstrado que não
estamos diante de uma crise do direito (a exemplo do Estado de Exceção e do ativismo
judicial), mas de limitações constantes em suas próprias características epistêmicas.
Fala-se aqui do Sul2 como metáfora do sofrimento humano provocado pelo
capitalismo3 e colonialismo globais que, como foi demonstrado, advém da importação de
fórmulas e pensamentos de origem epistêmica ocidental.4 A elaboração do presente estudo foi
objetivando desenvolver um tema de maneira crítica. A mera descrição dos fenômenos, por si
só, não logra essa abordagem. Por isso, a teoria crítica permitiu não só descobrir os diferentes

1
“Epistemologias do Sul” é inspirado no livro de Boaventura de Sousa Santos (2014), “Epistemologies
of the South: justice against epistemicide”.
2
Ainda que se utilize o termo “Sul”, geograficamente, o estudo se limita a análise de questões ligadas à
América Latina, embora mencione países da África e Ásia em notas de rodapé, sem maiores aprofundamentos.
3
Para Carballido (2013, p. 136), “[...] el capitalismo no debe ser considerado solo como un sistema
económico, tal y como hace el análisis clásico de la economía política, ni tampoco como un sistema cultural, en
la línea de los estudios poscoloniales anglosajones. Como propone el grupo de investigación
modernidad/colonialidad assumimos el capitalismo como una ‘red global de poder’ que integra procesos tanto
económicos como políticos y culturales.”
4
Dussel (1977), Flores (2009), Santos (1997; 2000; 2010a; 2010b; 2014), Quijano (2005), Carballido
(2013) compõem o arcabouço teórico utilizado para desenvolver o embasamento científico deste estudo. Isso
porque são de significativa influência no rumo teórico da pesquisa que trata da colonialidade, pluralismo
jurídico, epistemologias do Sul, direitos humanos, lutas sociais, América Latina. Esses estudos também foram
utilizados para analisar a epistemologia constitucional ocidental de viés positivista e pós-positivista, de forma a
evidenciar as matizes do direito e suas principais incongruências.
12

aspectos ocultados na realidade, mas sobretudo, abrir portas para uma nova dimensão: a do
reconhecimento de que a epistemologia do Norte é uma forma de experiência e que é possível
buscar viver a vida de diferentes maneiras.
A abordagem aqui defendida pode ser sintetizada como um aprender com o Sul,
usando uma epistemologia do Sul, pois é a partir desta que se torna possível evidenciar a
necessidade de um novo paradigma para se desenvolver na relação com o Norte. Não se trata
de inverter a situação a favor do Sul global, como se estivesse a ensinar o Norte, como este o
fez primeiramente. É muito mais que isso, pois trata-se de ter a criatividade de sermos capazes
de construir um novo momento histórico.
Haluhalunekisu: à procura por alternativas descoloniais no Brasil, aborda um tema
baseado na ideia de desvelar as epistemologias dos povos subalternizados, delimitando-se aos
Nambiquara5, de forma a demonstrar seus potenciais para uma quebra jurídico-paradigmática.
Nesse sentido, pensou-se na possibilidade de vir a servir como meio de reflexão sobre
alternativas jurídico-constitucionais brasileiras, por meio de cosmologias indígenas, bem
como no necessário fortalecimento de lutas sociais. Isso porque são os movimentos sociais
que dão origem à transformação do direito. Também tem por escopo romper com as amarras
do colonialismo que nos rodeiam e que utilizam formas de opressão e ocultamento de grupos
marginalizados, levando-os ao extermínio.
Objetivando colmatar a investigação científica ora proposta, o estudo utilizou de
pesquisa bibliográfica de caráter interdisciplinar, direcionado à análise das epistemologias
jurídicas do Sul e do Norte. Para tanto, foi imprescindível se recorrer a uma pesquisa da
experiência histórica do direito, essencial à compreensão do contexto colonial em que se
insere o Sul. Assim, evidenciou-se, a partir de fontes escritas, consequências repercutidas
entre os Nambiquara e que refletem a necessidade por uma busca descolonial do ser, do saber,
do viver e do direito.
A metodologia implica na consciência da adoção de uma postura político-sociológica
perante a realidade. (GUSTIN; DIAS, 2006). Nesse sentido, o estudo adotou como vertente
teórico-metodológica o caráter crítico-metodológico, pois entende o direito como uma
linguagem repleta de significados. Nessa linha de pensamento, optou-se pela vertente
5
A 1ª Reunião Brasileira de Antropologia, ocorrida no Rio de Janeiro em 1953, aprovou uma convenção
para uniformizar a grafia dos nomes tribais brasileiros. Neste estudo, portanto, os “nomes tribais se escreverão
com letra maiúscula, facultando-se o uso de minúscula no seu emprego adjetival” e “não terão flexão portuguesa
do número ou gênero, quer no uso substantival, quer no uso adjetival”. (SCHADEN, 1976, p. XII). Ainda que
não abordado por Schaden (1976), o presente estudo aplica a mesma uniformização da grafia para as demais
etnias, ainda que não sejam brasileiras. As localizações dos grupos Nambiquara são baseadas nos estudos de
David Price (1972; 1976; 1983; 1989) que assim os distinguem. A bibliografia consultada quer utiliza
“Nambikwara”, quer utiliza “Nambiquara”. O presente estudo optou por adotar a segunda forma.
13

jurídico-sociológica, pois propõe compreender o fenômeno jurídico no ambiente social mais


amplo, de forma a analisar o direito como variável da sociedade em seus aspectos
sociocultural, político e antropológico.
Para realizar uma análise da problemática jurídica relacionada ao tema, a pesquisa
adotou o viés jurídico-exploratório-descritivo, de forma a ressaltar suas características e
explicar suas raízes. Também é descritiva, no sentido de propor o desvelar de diversos
aspectos, relações e níveis do problema jurídico. Para tanto, foram utilizadas fontes diretas,
tais como livros, artigos científicos, teses e dissertações relacionadas à área do direito;
constituição (principalmente a da Bolívia e Equador), legislação, jurisprudência, bem como
fontes indiretas, como obras de sociologia, história, antropologia, geografia, ante a
importância do caráter interdisciplinar.
A análise da juridicidade da relação social entre os Nambiquara, possibilitada por
uma sólida fundamentação empírica quantitativa e de sentido epistemológico crítico,
demonstrará novos alcances do direito. O levantamento de dados em órgãos públicos, como a
FUNAI (Fundação Nacional do Índio) e OPAN (Operação Amazônia Nativa), ambas em
Cuiabá, Mato Grosso, bem como bibliotecas particulares, permitiram maior apreensão da
investigação da problemática de pesquisa aqui elencada.
Conseguir captar o pensamento indígena Nambiquara sobre sua história e realidade
não é uma tarefa fácil, pois exige familiaridade e a sensibilidade em se compreender a
interpretação de eventos, palavras, concepções. Conhecê-los desde minha infância permitiu-
me uma certa segurança em optar por realizar uma pesquisa científica baseada estritamente
em fontes escritas, ainda que algumas de caráter etnográfico.
Desde pequena, contos para dormir sobre princesas foram substituídos pelas
aventuras de seres encantados do mundo Nambiquara e as histórias do herói Júlio Katukolosu.
Também haviam histórias tristes, tais como a do sarampo e a da fome, decorrentes da invasão
e do reordenamento territorial Nambiquara empregado pelo governo. A maioria dessas
histórias não tinham final, tratavam-se da buscas constantes desses índios por suas terras, por
descolonizarem-se, por serem respeitados e não mais subjugados em sua cultura, vivência,
saberes, território. Daí a constatação, ante ao desconforto gerado por essas histórias, de termos
um direito, muitas vezes, utilizado para oprimir; um direito que se pretende representar
pessoas, falar por elas a fim de protegê-las, quando que, de fato, não as escuta, as silencia,
coloca-se extremamente distante de relacionar-se com a realidade; um direito que não se vê
parte de um mesmo elo.
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Sabedorias são passadas por meus pais a mim, baseadas na vivência deles de cerca de
10 (dez) anos ininterruptos entre esses índios. Idas a aldeias dos Nambiquara me permitiram
contato maior com suas cosmovisões. Recebê-los em minha casa corroborou a formação de
um vínculo de amizade e admiração. A última vez que os vi, em julho do presente ano, ainda
encarcerados no presídio de Cáceres, em Mato Grosso, após serem algemados nas mãos e pés
em decorrência da interdição da BR 364, fortaleceu a convicção pela escolha desse tema, bem
como em tentá-los ajudar e estar junto, de alguma forma. A trajetória Nambiquara ensina,
sobretudo, acerca da resiliência em viver e descolonizar-se. Busco, juntamente a eles,
descolonizar-me, enquanto mulher, latino-americana, encontrando aqui minha função como
pesquisadora do direito.
Quem são os Nambiquara? Essa resposta vai além da descrição de sua cosmovisão.
Se tratando de um povo latino-americano, ou seja, colonizado e subalternizado, é necessário
compreender a dinâmica de dominação empregadas por políticas governamentais de
apropriação de suas terras. Por isso, o Capítulo 1, denominado “Os Nambiquara e os
Kwajato”, demonstrou o processo e as consequências da chegada dos não índios (kwajato) em
lugares visíveis e invisíveis do território tradicional Nambiquara, retratando a reação dos
índios ao movimento das frentes de expansão econômico-culturais.
Price (1972), Roquette-Pinto (1935) e Rondon (1947; 1922) corroboraram à
descrição das consequências da entrada da Comissão Rondon, dos seringueiros, dos
seringalistas e dos missionários no território tradicional Nambiquara. Os estudos de Costa
(2002; 2009) possibilitaram demonstrar a perda territorial ocorrida de 1942 até 1968.
Posteriormente a esse marco temporal utilizado pela autora, o presente estudo aborda demais
eventos de potencial impacto na vida dos Nambiquara, a saber, a construção da Pequena
Central Hidrelétrica, PCH Juína 117, no rio Juína, um dos limites da Terra Indígena
Nambiquara e a prisão de índios Nambiquara em decorrência de fechamento da BR 364, em
junho desse ano.
O processo de ocupação das terras tradicionais Nambiquara pelos kwajato (não
índios) possui questões comuns às ocorridas com outras etnias latino-americanas, interferindo
em suas vidas cotidianas, privando-os de suas melhores terras, de serem livres e culturalmente
distintos. Para compreender essa situação, o referido capítulo descreveu o processo histórico
de dominação que recai sobre os Nambiquara, desde o contato com a sociedade não indígena.
Demonstrou-se que, por meio do direito, foi concedido poderes ao governo para usufruir do
território tradicional Nambiquara e reordená-lo de acordo com interesses socioeconômicos. A
15

falta de demarcação também apontou uma ferramenta utilizada à fragilização da


sobrevivência dos índios às custas do progresso desenvolvimentista.
Ao constatar os interesses de dominação e opressão aos Nambiquara legitimados
pelo direito, o Capítulo 2, denominado “Pode o direito ser descolonial? Um convite à
reflexões acerca dos limites e alternativas ao direito”, objetiva demonstrar a essência
epistemológica do direito, desde sua origem, apontando-a como um instrumento utilizado ao
benefício de interesses econômico-culturais. Além disso, aborda as constituições da Bolívia e
do Equador como buscas por ressignificação do direito, por meio de cosmovisões indígenas.
As epistemologias do Sul possibilitaram novas reflexões jurídicas acerca do alcance
do que se entende por constitucionalismo, direitos humanos, dignidade humana e a natureza,
concebendo outras formas de direito. Essa repercussão no âmbito jurídico-social foi abordada
pelo presente estudo no marco do Novo Constitucionalismo Latino-Americano, no qual as
constituições referidas alhures estão inseridas. Para tanto, utilizou-se de análises de filósofos,
sociólogos, juristas, antropólogos. Para não restringir seus campos de atuação, já que são
muitos os alcances de seus escritos, cito aqui alguns dos principais referenciais teóricos desse
capítulo: Santos (1997; 2000; 2004; 2010a; 2010b; 2014), Carballido (2013), Bragato e
Castilho (2014), Brandão (2015), Wolkmer (2001; 2010), Ávila Santamaria (2011), Yrigoyen
Fajardo (2011), Acosta (2016), Viveiros de Castro (2002).
O estudo entende que o Novo Constitucionalismo Latino-Americano trata-se de um
processo de transição jurídico-social rumo à descolonialidade. No Brasil existem diversas
cosmovisões indígenas que remetem ao Buen Vivir6 adotado pelas constituições da Bolívia e
Equador. Dentre as tantas, existe a Haluhalunekisu, pertencente à cosmovisão Nambiquara,
etnia que habita o Oeste de Mato Grosso e o Sul de Rondônia, entre as cabeceiras dos rios
Tapajós e Guaporé, áreas de abrangência da Amazônia Legal. Sem que se objetive tornar
unitárias ou homogêneas as ricas concepções de vida – já que o Novo Constitucionalismo
Latino-Americano prima pela expressão somatória de diferentes perspectivas.
O Capítulo 3, “Haluhalunekisu: à procura por alternativas descoloniais no Brasil”,
objetiva demonstrar outra concepção sobre a realidade, bem como a forma como os
Nambiquara se relacionam com a natureza. Nesse sentido, foram utilizados os estudos de
Holanda Pereira (1973; 1974; 1975; 1983; 1994), Costa (2002; 2009), Price (1972; 1983;
1989; 1978; 1976), Lévi-Strauss (1975, 1979). Isso porque abordam a cosmovisão dos

6
Concepção de vida digna que abrange seres humanos e inumanos, em uma perspectiva para além dos
interesses econômicos e individuais, característicos da modernidade.
16

Nambiquara, a partir de sua vivência entre eles, sobretudo utilizando de entrevistas a esses
índios.
O estudo objetivou compreender e dar visibilidade à Haluhalunekisu. Isso porque a
figueira Haluhalunekisu permite pensar em uma perspectiva epistemológica brasileira de
relação de respeito e integralidade entre todos os seres. Diante de todas as formas de poder
que incidem sobre os Nambiquara, a cosmovisão e proteção à Haluhalunekisu é o que os
fazem resistir. Para compreender a cosmovisão Nambiquara, é importante conhecer práticas
de seu cotidiano. Isso porque seu modo de viver está estritamente relacionado à existência dos
espíritos ancestrais e seres inumanos. Trata-se de uma visão interpretada sobretudo pelo olhar
e intervenções do wanintesu (pajé).
Observa-se que a preocupação com a destruição ambiental/espiritual da Terra é
comum em diferentes cosmovisões que povoam o planeta. Finalmente, começam a ser
entendidas como meios de reflexão jurídico-epistemológica. A consagração constitucional das
epistemologias do Sul é capaz de estabelecer uma nova forma de relação com a natureza, não
podendo ser ignorada pelos tribunais, legisladores, políticas públicas e pelos debates
acadêmicos. Como resultado, o trabalho apontou reflexões acerca das origens, limites e
possíveis alternativas ao direito, tendo as epistemologias do Sul função primordial para se
pensar outras realidades.
17

1. QUEM SÃO OS NAMBIQUARA?

Quem são os Nambiquara? Essa resposta vai além da descrição de sua cosmovisão. É
necessário compreender a dinâmica de dominação e apropriação de suas terras pelos kwajato
(não índios). Esse longo processo interfere em suas vidas cotidianas, privando-os de suas
melhores terras, de serem livres e culturalmente distintos. Para compreender essa situação, o
presente capítulo descreve o processo histórico de dominação que recai sobre os Nambiquara,
desde o contato com a sociedade não indígena.
A luta do povo Nambiquara encontra como obstáculo as engrenagens do capitalismo
que opera em uma sociedade atravessada pela colonialidade em suas diversas dimensões. A
dominação colonial (QUIJANO, 2009) atravessa sua existência como mais uma forma de
manutenção do status quo que marginaliza e invisibiliza.

1.1 Os Nambiquara e os primeiros contatos com os kwajato7

Os Nambiquara vivem na fronteira com a Bolívia, ao Oeste de Mato Grosso e ao Sul


de Rondônia, atualmente entre as cabeceiras dos rios Juruena (Sakaiyausu) e Guaporé. Essa
região abrange 3 (três) áreas distintas: Chapada dos Paresis, Vale do Guaporé e Serra do
Norte, todas inseridas na Amazônia Legal. Cada área geográfica possui diversos grupos, cada
qual com hábitos culturais diferenciados. Os grupos que habitam essas regiões são formadas
por pequenas unidades políticas independentes e economicamente auto-suficientes. O
território tradicional Nambiquara é circundado ao Norte pelos povos Rikbaktsa, Enauenê-
Nauê, Menku e outros; ao Sul e a Leste pelos Haliti (Paresi); e a Oeste pelos Aikanã e Cinta-
Larga, em Rondônia.
O nome Nambiquara é de origem Tupi-Guarani. Nambi, significa orelha; quara, furo.
Está relacionado ao hábito de furarem o lóbulo de suas orelhas. É empregado genericamente a
todos os grupos dessa etnia que, de acordo com Rondon (1947, p. 45), há “muito tempo
conhecido e lhes foi dado pelos sertanejos. Não sabemos ao certo a sua denominação
própria.”
Clássicos da etno-história registram os Nambiquara como um povo que dorme no
chão em meio às cinzas, como também são identificados pelas outras etnias vizinhas. Lévi-
Strauss (1979) descreve-os como “a expressão mais comovente e mais verídica da ternura
humana.” Os índios gostariam de ser conhecidos pelos nomes de seus próprios grupos, já que
7
Kwajato (COSTA, 2002, p. 39) ou kwajantisu (COSTA, 2009, p. 249) é um termo Nambiquara
utilizado para designar os brancos ou não índios, que significa comedores de feijão.
18

não se autodenominam Nambiquara, ainda que acreditem ser “uma unidade maior e até
homogênea” (COSTA, 2002, p. 41), mesmo com suas diferenças geográficas, dialetais,
econômicas e culturais. Isso porque, sua cosmovisão explica que, originariamente, foram
todos retirados do interior de uma grande pedra preta e destinados a viver nas regiões
mencionadas alhures.

[...] embora esses grupos não sejam politicamente unificados sob um mesmo
chefe e algumas vezes cheguem até a lutar abertamente entre si, eles se
consideram um só povo ou, conforme as palavras de Júlio Wakalitesu, ‘nós
podemos falar um com o outro e saímos do mesmo buraco da montanha de
pedra’. (OBERG, 1953, p. 96).

É por meio dessa cosmogênese que os Nambiquara explicam a diversidade de seus


grupos, bem como a região em que vivem.

[...] O urubuzinho pegou a espada de madeira, voou bem lá para cima,


desceu de lá e bateu a espada de madeira com toda a força na pedra, igual a
um raio. Agora a pedra rachou no meio e as duas bandas caíram de lado. Os
nambikwára apareceram, mas surdos por um tempo, por causa da pancada na
pedra. Os animais voltaram para ver. [...] O urubuzinho tirou um casal de
nambikwára novo da pedra e fez um ranchinho para o casal. Depois tirou
outros casais mais velhos e mandou cada grupo morar em seus lugares. Mas
ainda restou gente lá dentro da pedra e hoje ainda está lá. (HOLANDA
PEREIRA, 1983, p. 10-11).

Com relação à denominação específica de cada grupo, está relacionada à região


geográfica de origem, a comportamentos, aspectos do chefe do grupo, aos hábitos
alimentares, a características de seu corpo ou, ainda, a uma atividade que o grupo exerce que
se distinga da dos demais.8 Os Nambiquara que moram na Chapada dos Parecis, conhecidos
por Nambiquara do Cerrado, localizam-se nas as cabeceiras do rio Juruena (Sakaiyausu) e
Guaporé, no Oeste de Mato Grosso até o Sul de Rondônia.
Os índios Nambiquara do Cerrado dividem-se entre os grupos: Wakalitesu (povo do
jacaré), Kithaulhu, Halotesu (povo do campo) e Sawentesu (povo da floresta). Os Wakalitesu
habitam a Terra Indígena Tirecatinga e a Terra Indígena Nambiquara. (COSTA, 2002). Os
Kithaulhu (povo do marmelo), habitam o vale do rio Camararé (Waihhalxiyausu, que
significa taquara para ponta de flecha). Os Halotesu, nos rios Formiga e Juína (Yalauliyausu,

8
A autodenominação dos grupos Nambiquara carece de pesquisas linguísticas para entendimento de seus
significados. A grafia dos nomes variam, bem como sobre a existência dos grupos. As terminologias aqui
adotadas são baseadas nos estudos empíricos mais recentemente encontrados, ou seja, de Costa (2002; 2009) e
FERNANDES SILVA (1999). Para mais informações sobre a grafia, consultar: Roquette-Pinto (1935), Rondon;
Faria (1948), Price (1972; 1976), Holanda Pereira (1973), Rodrigues (1986).
19

que significa Água Fresca ou Fria). Os Sawentesu, nas matas a Oeste das nascentes do rio
Juína (Sisunjausu). (COSTA, 2002; 2009).
Os Nambiquara da Serra do Norte localizam-se, em sua maioria, nas adjacências das
nascentes dos rios Roosevelt e Jiparaná. Os grupos Sabanê, Txawenté, Txawanté, Yalakunté
ou Lacondê, Yalakaloré e Latundê, encontram-se na Terra Indígena Pyreneus de Souza, na
divisa entre Mato Grosso e Rondônia. Os grupos Hinkatesu ou Manduca continuam habitando
seu local de origem, no Vale do rio Doze de Outubro (Walukatuyausu), em Mato Grosso.
Mais à Sudoeste da Serra do Norte, entre os rios Cabixi e Piolho, estão os Mamaindê e os
Negarotê, estes, amigos dos Kithaulhu e outrora hostis aos outros grupos do Nambiquara do
Cerrado.
No Vale do Guaporé encontram-se os grupos: Aikkutesu, Nantesu, Qalisattesu,
Yxotxusu, Elahitxansu, Alantesu (povo do pequi), Alakatesu, Waikatesu (antes chamados
Manairisu ou Wanailisu) e Wasusu. Separados dos demais grupos por fazendas, próximo ao
município de Vila Bela da Santíssima Trindade, encontram-se os Katitaulhu (assim
denominados pelos Wasusu, seus adversários). Este grupo subdivide-se nos Galitsu,
Haluhwaisu, Waihlatisu ou Wailatesu, Sayulikisu, Wanunsu e Hahaintesu. (COSTA, 2002,
2009).
De acordo com Rodrigues (1986), a família linquística dos Nambiquara não possui
ligação com quaisquer outras da América do Sul. Constitui-se de três línguas: Sabanê
(Nambiquara da Serra do Norte), Nambiquara do Norte (também dos Nambiquara da Serra do
Norte) e Nambiquara do Sul (dos Nambiquara do Vale do Guaporé e da Chapada dos
Parecis).9
As primeiras referências sobre os Nambiquara datam do século XVIII, quando as
bandeiras paulistas alcançaram o Oeste mato-grossense, em decorrência da descoberta de
ouro. As minas do Mato Grosso e os 4 (quatro) arraias mineiros: Santa Anna, São Francisco
Xavier da Chapada, São Vicente e Nossa Senhora do Pilar foram instauradas nos rios Sararé e
Galera, afluente do rio Guaporé, território tradicional Nambiquara.

Após a descoberta do ouro nessa região, uma parcela da população indígena


Pareci foi escravizada, enquanto que os grupos Nambiquara do Vale do
Guaporé, mais próximos aos arraiais, continuavam, de certa maneira,
protegidos através da representação do índio selvagem e antropófago.
(COSTA, 2002, p. 42).

9
Para mais dados sobre a família linguística Nambiquara, ver: Kroeker (s/d); Price (1976; 1978);
AGOSTINHO DA SILVA (1975).
20

Dados levantados por Costa (2002; 2009) apontam que raramente a cartografia dos
séculos XVIII e XIX faz menção ao espaço Nambiquara. Essa omissão, muitas vezes, é
“intencional ou do cartógrafo ou mesmo daquele que solicita seus serviços.” (COSTA, 2009,
p. 35). Esse modo de interpretação de territórios revela uma prática do poder voltada à
dominação.
Os primeiros contatos foram registrados por Antonio Pires de Campos, por volta de
1723, no Brasil colônia. Nessa época, até meados do século XX, os Nambiquara eram
chamados de “Camararés, Cavihis, Cabixis, Cabixi-u-a-jurury, Beiços de Paus, Maimbarés,
Nenê, Orelhudo, Tamarés, Tamararé, Tagni, Tapanhunas, Uaikoákoré e Uaintaçu”. (COSTA,
2002, p. 61).10 A designação mais comum era Cabixi. Daniel M. Cabixi, líder da etnia Pareci,
do grupo Cozárini, esclarece que seu sobrenome foi dado no batizado realizado pelo Padre
João Dornstander e que os membros de sua família e demais índios Pareci não possuem tal
sobrenome.

[...] Então, os historiadores, na época, né? Denominaram os índios é, por


diversos nomes inclusive, Cabaçais, né? ou Cabixis, né? São dois termos que
vão surgir nessa época. Só que, em nenhum registro histórico diz, com
afirmativa 100% correta, se realmente houve esse grupo ou foi uma
denominação criada para nominar essas. (COSTA, 2002, p. 64-65).

No século XIX, foi criada a Diretoria Geral dos Índios, em Mato Grosso. O relatório
de Joaquim Alves Ferreira, então diretor dessa instituição, enumerou 33 (trinta e três) “nações
indígenas”, identificando os lugares em que habitavam, bem como o número de indivíduos
pertencentes a cada uma. Entre elas, encontravam-se os Cabixi e os Nambiquara, localizados,
respectivamente, nos “Campos e terra dos Parecis” e no “Rio do Peixe, confluente do Arinos”.
(RELATÓRIO, 1848, p. 14). Price (1972, p. 5-6) também discorreu sobre a falta de clareza da
utilização do termo Cabixi.

The etymology of the term Cabixi is obscure. Von den Steinen equates it
with Cavihi, the name of a tribe reported as living to the north of the Pareci
in the 1720 (von den Steinen 1894:245; Campos 1862:445-446). Campos
description of the Cavihi makes it clear, however, that this tribe was not the

10
Serra (1797a; 1797b) registrou sua passagem pelas terras Nambiquara, em 1797, mencionando-os como
Cabixi, ao trazer a informação de que habitavam a Chapada dos Parecis até as cabeceiras dos rios Guaporé,
Sararé, Galera, Piolho e Branco. Também denominados de Nhambiquaras, Cabihis, Cabixis bravos (Campos,
1862) e Cabixi mansos (REGO, 1899). Cabixi é um rio que nasce em terras mato-grossenses, afluente do
Guaporé. No século XIX, a denominação dada aos indígenas comumente baseava-se na cartografia, de acordo
com os pontos geográficos. O mesmo ocorre com o termo Parecis, homônimo à cordilheira ou Campos dos
Parecis, o que faz com que, algumas vezes, indique a presença de índios Pareci na região
21

Nambiquara. It is more probable that the group in question were Tupi, and
that Cavihi is a bad transcription of kagwahív, the Tupi word for people.11

Daniel M, Cabixi afirma que tem “quase que certeza absoluta que os Cabixi talvez
nunca existiram. Talvez existiram, sim, na imaginação dos exploradores e dos historiadores.”
(COSTA, 2002, p. 73).
Com a criação da Diretoria Geral dos Índios, em Mato Grosso, a política indigenista
desse período consistiu em “integrar” o índio ao sistema de produção nacional.12 No entanto,
os Nambiquara não se enquadravam a esse molde econômico, além de recusarem a
estabelecer relações amistosas com os kwajato.

A dificuldade de capturar os índios, entre eles os Nambiquara, para emprega-


los como mão-de-obra no trabalho das minas, corroborou a necessidade de
se importar escravos comercializados pela Companhia de Comércio do
Grão-Pará e Maranhão. Forçados a trabalhar nas minas dos arraiais, os
escravos de origem africana, quando podiam, fugiam para as matas do
Guaporé, indo se aquilombar em território Nambiquara. Uma das formas
encontradas para o seu provimento de alimentos era o saque de aldeias,
ocasião em que raptavam mulheres. A existência entre quilombos
possibilitou o contato entre os escravos negros, crioulos, caburés, índios
Cabixi, Nambiquara e Paresi. (COSTA, 2002).13

Em 1748, a Coroa Portuguesa criou a Capitania de Mato Grosso, em razão do grande


volume de ouro oriundo das minas do Mato Grosso. Para tanto, foi necessária uma política de
entendimento com as colônias espanholas, pois essas regiões também estavam sob o domínio
dos espanhóis. A Coroa portuguesa ordenou a D. Antonio Rolim de Moura a instauração de
sede administrativa da nova Capitania entre as margens do rio Guaporé, ponto estratégico
para a exploração. Assim, nasceu Vila Bela da Santíssima Trindade, ponto mais avançado de
produção aurífera na região pela Coroa Portuguesa. (BANDEIRA, 1988).

Todas as vezes que os Nambiquara narram a história do primeiro encontro


de seus pais com os kwajato em suas terras, um clima de descontração toma
conta da noite. Risos entremeiam a narrativa. Contam que, andando pela
mata, perceberam barulhos, com certeza oriundos da presença de alguém.
Mais adiante, encontraram um homem diferente. De imediato, ficaram
assustados e o tomaram como espírito. Observaram seu jeito. Repararam.

11
“A etimologia do termo Cabixi é obscura. Von dem Steinen iguala-o a Cavihi, nome da tribo citada
como morando ao norte dos Pareci, por volta de 1720. [...] a descrição de Campos dos Cavihi torna claro que
essa tribo não era Nambiquara. É mais provável que o grupo em questão fosse Tupi, e que Cavihi seja uma má
transcrição de Kagwahiv, palavra Tupi usada para designar gente”. (Tradução livre).
12
Sobre a política indigenista do século XIX, consultar Cunha (1987; 1992a; 1992b) e Rocha (1998).
13
Para mais informações sobre a presença de outras pessoas que não Nambiquara em seus territórios nesse
período (início da década de 1770), tais como de índios Paresi e de escravos negros fugitivos dos arraiais das
minas de Mato Grosso que moravam no Quilombo Quariterê, consultar Sá (1975).
22

Será manso ou bravo? Coitado! Por outro lado, o homem branco, apavorado,
gritou, se debateu. Eles pensaram que o estranho ser estava possuído e
amarraram-no a um pé de árvore. Ofereceram-lhe frutas e mel. O homem
aquietou-se. Os índios acharam graça, se divertiram. Poucos dias depois, os
índios soltaram o pobre homem que, desesperado, correu ainda abalado.
Pensaram os índios tratar-se de mais um mistério. (COSTA, 2002, p. 97-98).

Somente no século XIX, entre 1843 a 1847, aparecem breves referências acerca da
presença dos índios Nambiquara, principalmente na região do Vale do Guaporé, nas
localidades próximas às minas de ouro. Na segunda metade do século XIX, a poaia
(Cephaelis ipecacuanha), espécie de árvore localizada nas matas correspondentes ao Vale do
Guaporé até Vila Bela da Santíssima Trindade, tornou-se outro interesse de exploração das
terras tradicionais Nambiquara.

A prática de saquear as aldeias a fim de obter alimento, juntamente com as


novas atividades econômicas, além de levarem ao extermínio grande parcela
de sua população, contribuíram para a redução paulatina de seu extenso
território tradicional. (COSTA, 2002, p. 46).

Foi nessa época que houve as primeiras tentativas de confinamento dos Nambiquara.
Em 1852, a Diretoria Geral dos Índios da Província de Mato Grosso 14 fundou a aldeia Santa
Ignez, povoada pela etnia Guaraio15, localizada entre os rios Sararé e Galera. Entre os
objetivos da fundação estava a de atrair os índios Nambiquara para um único lugar, uma
tentativa fracassada.

1.2 Ocupação do território Nambiquara: Linha Telegráfica, seringalistas e


missionários

Ao final do século XIX, a política de colonização, com base na Lei nº 102, de 10 de


julho de 1895, objetivava a “ocupação dos espaços poucos povoados”. Para tanto, “o governo
estadual incentivou a indústria extrativa, no caso, a poaia, a erva mate e o látex.” (COSTA,
2002, p. 46). Por meio de concessões de vastos domínios, instaurou-se diversos seringais,

14
Maria do Carmo Rego, esposa do Coronel Rafael de Mello Rego, então presidente da Província de Mato
Grosso, em seus estudos etnográficos, distinguiu os Índios Nambiquara e Pareci denominando-os, à época, de
Cabixi bravos e Cabixi mansos, respectivamente (REGO, 1899). Sobre as diferenciações entre Cabixi manso e
Cabixi bravo, ver também Price (1972, p. 3).
15
“Julga-se que estes índios são oriundos da huma aldeia da Provincia Boliviana.” (IHG-MT, LIVRO DE
REGISTRO, 1860-1873, p. 83-84; Documento avulso na Lata 1864, Diretoria Geral dos Índios apud COSTA,
2002). No IHG-MT, outro documento informa sobre a “fundação de um aldeamento denominado Páo Cerne na
margem esquerda do Guaporé para os índios Guarayos, como a Vice-Presidencia da Provincia havia proposto”.
(IHG-MT, Pasta 132, Documento 861; Pasta 138, Documento 894, Pasta 139, Documento 931 apud COSTA,
2002).
23

entre os rios Juruena (Sakaiyausu) e Guaporé. Nesse período, surgiram maiores referências
sobre os Nambiquara, bem como de outros povos indígenas próximos à região.
Para incentivar o povoamento e a economia na fronteira nacional, nos primeiros anos
do século XX, Cândido Mariano da Silva Rondon foi encarregado pelo governo federal de
ligar Cuiabá aos territórios do Amazonas, Acre, Alto Purús e Alto Juruá, através da linha do
telégrafo, cruzando as águas das bacias Platina e Amazônica, Juruena (Sakaiyausu) e
Guaporé. (GAGLIARDI, 1989).16
Partindo de Brotas (hoje município de Acorizal), Mato Grosso, de 1907 a 1915, a
Comissão Rondon instalou várias estações telegráficas em territórios tradicionais
Nambiquara: Pontes e Lacerda, Nambikuáras, Utiariti, Juruena (Major Amarante) e Pyreneus
de Souza, em Mato Grosso; Vilhena e José Bonifácio, em Rondônia. Em Campos Novos,
também em região dos Nambiquara, foi aberta uma invernada (espécie de fazenda, com casas,
currais, gado e pastos cercados) destinada a acolher tropas que vinham do rio Juruena
(Sakaiyausu). De acordo com Roquette-Pinto (1935), médico da Comissão Rondon que
percorreu o território Nambiquara após o contato, a invernada tornou-se grande ponto de
atração para os Nambiquara, momento em que foram registrados inúmeros rios.
Price (1983) trouxe a narrativa de V.17 Kithaulhu, falecido 1976, sobre quando viram
pela primeira vez os trabalhadores da Comissão Rondon, ao roçarem e atearem fogo para
limpar o espaço, bem como ao abrirem picadas para fincarem os postes e esticarem o cabo de
aço das Linhas Telegráficas. Para os índios que os observavam de longe, a comissão estava
fazendo uma grande roça.
Concomitante à instauração das linhas telegráficas, os seringueiros também
percorriam o território Nambiquara.18 Nessa época, os Nambiquara eram conhecidos como
antropófagos e arredios. Foi somente com a passagem de Rondon pelas aldeias Nambiquara,
ao observar que não possuíam esse hábito, que essa fama acabou. Entretanto, os seringueiros
inicialmente preferiam manter distância em relação às aldeias e evitavam o contato físico. De
acordo com Rondon (1922, p. 80-81),

Os Nhambiquaras começaram por ficar melhor conhecidos. A terrivel


sentença que os condemnava como antropophagos, ficou exuberantemente
demonstrado ser injusta e descabida. Nas muitas aldeias por nós visitadas e

16
Para mais dados sobre esse tema, consultar Bigio (1996), Machado (1994), Ramos Costa (1985), Maciel
(1998).
17
Os Nambiquara não pronunciam mais o nome da pessoa que venha a falecer. Por isso, Costa (2002;
2009) abrevia alguns nomes, indicando que o índio faleceu posteriormente à entrevista.
18
A chegada dos seringueiros nas terras Nambiquara, em 1942, trata-se de um dos eventos mais marcante
na memória dos Nambiquara do Cerrado (COSTA, 2002).
24

cuidadosamente examinadas, nunca descobrimos o menor indício do infando


costume; nos entulhos em que lançam restos das suas refeições, só
encontramos ossos de animaes, caroços e cascas de fructas e espinhas de
peixes.

Mas, não eram somente os kwajato que acreditavam que os Nambiquara fossem
antropófagos, a recíproca também ocorria. Daniel Wakalitesu conta que

Rondon quando passou, papai contou. Também jogô açúcar, sal. Jogô tudo
fora [o pai de Daniel]. Assim que contava mamãe. Mamãe contava. Aquele
tempo que Rondon passou. Diz que deixava carne seca. Mamãe jogava fora.
Ficava com medo. Pensava que era carne de gente. Sal, nunca vi. Açúcar
também, nunca vi. Diz que café. – Ah! Joga isso fora, inimigo da gente!
[imitando o tom de voz de sua mãe] Assim que fala. Leite de vaca? Achava
que era leite de gente, não bebe não. (COSTA, 2002, p. 66).

Além desse suposto costume, descaracterizado por Rondon, os Nambiquara eram


comumente vistos pelos kwajato como “incapazes, preguiçosos, como homens sem alma,
justificando, assim, principalmente, a presença de instituições religiosas junto às comunidades
indígenas” (COSTA, 2002, p. 66). Esses adjetivos pejorativos ainda permeiam o imaginário
dos kwajato, ainda que de maneira não tão explícita como em relação a antes.

A resistência dos grupos Nambiquara a qualquer tipo de contato inter-étnico


e a associação de sua imagem a um índio agigantado, erradio, ladrão, hostil,
animal, antropófago e tantos outros atributos, foram as grandes guardiães
dos territórios Nambiquara e que contribuíram para retardar o contato com a
sociedade nacional. (COSTA, 2002, p. 97).

A expedição Rondon e os seringueiros contavam com a mão-de-obra Paresi e de seus


conhecimentos quanto à região, inclusive onde localizam os seringais. Como consequência,
houve o abandono temporário de suas aldeias e roças e, segundo dados da Comissão Rondon
(RONDON, 1947), o endividamento dos índios Pareci nos seringais dos rios Sacre e
Papagaio. Os Pareci recrutados para trabalhar nas Linhas Telegráficas foram, posteriormente,
designados à tarefa de guarda-fios e telegrafistas. Em 1908, as trilhas abertas pelos Paresi
eram as mesmas utilizadas pelos integrantes da Comissão Rondon e pelos seringueiros. Essa
etnia denominava os Nambiquara de Uaicoacore (aquele que dorme no chão) e,

Contrariamente aos Paresi, seus inimigos tradicionais, os Nambiquara não


possuíam, ainda, armas de fogo. Diversos grupos Nambiquara estavam em
guerra com os seringueiros, e inclusive saqueavam seus barracões e
roubavam seus pertences. Nesse contexto, as armas de fogo eram muito
importantes para garantir a defesa do território e a integridade física dos
grupos. Além dos seringueiros, a Comissão Rondon percorria esse mesmo
território. Os Nambiquara evitaram ao máximo o contato com os integrantes
25

da Linha Telegráfica, inclusive, confundindo-os com os seringueiros.


(COSTA, 2002, p. 96).

Para Murillo de Campos, médico que integrou a Comissão Rondon de Mato Grosso
ao Amazonas,

Os Nhambiquaras não cessam de manifestar o seu desagrado pela presença


de seringueiros no Tyra-sê. Amassam as canequinhas, roubam apetrechos,
derrubam arvores na estrada, atiram pedras, etc. Á noite, se approximam dos
ranchos, imitando passaros e outros animaes, que não têm hábitos nocturnos.
Tudo fazem sem que sejam vistos. (CAMPOS, 1936, p. 62).

No mesmo sentido é o relato de Levi-Strauss sobre a relação dos Nambiquaras com


os telégrafos:

Todas as manhãs, o telégrafo conhece uma vida efémera: trocam-se notícias,


um determinado posto assinalou as fogueiras de um bando de índios hostis
que se preparam para o exterminar; noutro, dois Paressi desapareceram há
vários dias, vítimas, eles também, dos Nambikwara, cuja reputação na linha
está solidamente determinada e que os enviavam, sem dúvida, na invernada
do céu. [...] Pois os Índios exercem no pessoal da linha uma espécie de
fascinação mórbida: representam um perigo cotidiano, exagerado pela
imaginação local; e, ao mesmo tempo, as visitas feitas pelos seus pequenos
bandos nómadas constituem a única distracção, mais ainda, a única ocasião
de um contacto humano. Quando se verificam uma ou duas vezes por ano, as
chalaças trocam-se entre os massacradores em potência e os candidatos a
serem massacrados, no inverossímil calão da linha, composto ao todo de
quarenta palavras seminambikwara, semiportuguesas. (1979, p. 268-269).

Com a criação do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), em 1910, a política


indigenista objetivou dar assistência às populações indígenas e assegurar o avanço das frentes
expansionistas, principalmente nas regiões de conflitos entre índios e kwajato.

Entre os anos de 1910 e 1967, alguns grupos Nambiquara, principalmente os


da Serra do Norte, receberam assistência do Serviço de Proteção aos Índios,
que procurava discipliná-los para trabalhos agro-pastoris, desconhecendo e
desconsiderando por completo sua organização social. (COSTA, 2002, p.
49).

Com a Segunda Guerra Mundial, houve a intensificação da extração do látex na


Amazônia, inclusive no território tradicional Nambiquara, por meio do trabalho dos soldados
da borracha19. A extração da borracha entre 1942 e 1968 foi financiada, principalmente, pelo

19
O termo surgiu por volta da primeira metade do século XX. Remete aos trabalhadores que exerciam a
atividade de extração da borracha. Com base no decreto-lei nº 4.756, Milhares de trabalhadores foram
selecionados e encaminhados para Belém, Pará, para, em seguida, chegavam aos seringais. Ao encardo da
SAVA (Superintendência de Abastecimento do Vale Amazônico e a RDC (Rubber Developmente Corporation)
se encarregaram de fornecer gêneros essenciais aos seringalistas, os donos dos seringais. (NEELMAN;
NEELMAN, 2015).
26

Banco da Borracha que, em 1950 foi incorporado ao Banco de Crédito da Amazônia S. A.20
Na década de 1940, o Estado de Mato Grosso recebeu incentivos do Banco de Crédito da
Amazônia S. A., motivo pelo qual seringueiros adquiriram seringais próprios ou arrendados, a
fim de explorar a borracha bruta. Assim,

Em 1942, motivados pelos incentivos proporcionados pelo Banco de Crédito


da Amazônia S/A, surgem novos seringalistas, reativando os antigos
seringais e penetrando em novas áreas: (a) uma ao norte, delimitada pelo
Juruena e Tapajós, até as proximidades da divisão com o Pará e (b) outra a
noroeste, nas regiões do Rio Sangue, Juruena, Galera, Campos Novos e
Vilhena. (BARROS, 1977, p. 27).

Milhares de seringueiros foram transportados para os seringais por seringalistas que


não possuíam abastecimento necessário à manutenção. De acordo com fontes documentais,

[...] não dispunham nem de médico [...]. E o resultado desastroso, não


tardou. A fome e a epidemia encarregaram-se de aniquilar muitas vidas. [...]
não terminada a safra de 1944, começa a abandonar os seringais, a grande
maioria dos seringueiros caminhando a pé, através de algumas centenas de
quilômetros para alcançar esta Capital, doentes, famintos, maltrapilhos.
(OFICIO, 1953 apud COSTA, 2002, p. 114).

Com isso, parte dos “soldados da borracha” percorreu trechos da Linha Telegráfica e
se instaurou nas matas ciliares dos Nambiquara do Cerrado. No período da extração da
borracha, existem relatos de que seringueiros abusaram sexualmente de mulheres
Nambiquara, entre elas meninas, “presenteando-as em seguida com açúcar, rapadura, leite,
fumo, sacos de algodão empregados na embalagem do açúcar e que depois de vazios serviam
para a confecção de vestidos” (COSTA, 2002, p. 133). Fuado Sawentesu narrou o contato de
seu povo com esses trabalhadores, bem como de levas posteriores:

Foi no rio Juruena (Tikalentsu). Lá que apareceu o primeiro seringueiro.


Finado S. Halotesu e P. Halotesu. Dois, três seringueiros por aí. Valdemiro,
seringueiro. Siqueira também aí apareceu lá na aldeia também. J. K.
Wakalitesu, ele trouxe um seringueiro pesquisador, José Mineiro. Trouxe lá
de baixo. Aldeia chamava Kweyentsu, aldeia Halotesu, povo do Antônio
(Wakalitesu). José Mineiro veio de Utiariti prá cá. Na época, fica todo
mundo bobeando. Pesquisô, pesquisou, voltou prá Cuiabá. J. K. Wakalitesu
e J., pai de Estevão, deslocou prá Cuiabá. Aí chegou muito seringueiro. Aí
começou invadi. Acampá lá Juruena, lá acampamento, lugar de seringueiro
acampá. Aí começou invadi seringueiro. Meu pai Aristides, foi caçá no
Juruena, prá pescá. Aí vai enxergá fumaça bem grande. Meu pai ficá
assustado. Ele tá sabendo voz de branco prá vim prá cá. Vem deslocar,

20
O Banco de Crédito da Amazônia S. A. foi anteriormente denominado Banco da Borracha. Além de
oferecer financiamento aos produtores, recebeu grande parte da produção. Isso porque deteve o monopólio da
compra, bem como do transporte e venda, comprando grande parte da produção dos seringalistas de Mato
Grosso.
27

beirando o Juruena. Chegou dele chamá Marco da Luz. Benedito vem com
ele. Vem descendo, encontrá meu pai. Passou Linha Telegráfica, deslocá,
segui prá Campos Novos. Lá juntá seringueiro, onde tem madeiro. Aí
começá. Depois, mais ou menos um ano passá por aí, vem outra equipe.
Propício que vem prá cá direto Formiga, chefe dele, Propício, ficá em
Cuiabá. Peão de Propício, Fuado (seringueiro); motorista, Jami; também
motorista dele é Rodolfo, não dá maldade prô índio. Invadí Bacaiuval, aldeia
do Milton, Barro Branco prá descê até Tuyalsu. Aí, depois, desse meio
também, veio garimpeiro. Um velho, Vicente. – Você conhecê pedra bem
brilhante? (mudando o tom de voz, para diferenciar da sua) Takokanisu
(Guaporé, na minha língua). Pessoal do Propício foi prá Alvorada, trabalhá
lá. Barracão Jorge, aldeia Negarotê. Agora virá Fazenda Noroagro. Aí
começá confusão. Dois mil quilos de borracha. Caminhão esperá Juruena,
Juina, prá pegá borracha. Lombo do burro, até Juruena. Poaia – estrada de
tirá poaia, daqui prá capoeira do Uirapuru. Branco resolve abriu (estrada).
Xikalutaetekisu (Comodoro). Pai do Milton, B., irmão do Manu, P. Irmão do
Manu, B. correu no mato, dispensô, correu no mato. Benedito, Mineirinho
vai atrás dele. Índio dá chicote nele. Baiano, esse daí tem dó dos índios. Ele
salvô os índios. Aí começou confusão. Aí todo mundo (os índios) dispensô
seringueiro. (COSTA, 2002, p. 114-115).

Como mencionado alhures, nessa época, havia grande incentivo financeiro à


exploração dos seringais, sendo a Segunda Guerra Mundial a fase mais intensiva da extração
da borracha no Vale do Juruena e seus afluentes. Nesse período, seringueiros guerreavam
contra os índios Nambiquara que tentavam impedir a entrada em seus territórios. Os grupos
Nambiquara dessa região foram capturados e obrigados a se tornarem seringueiros, de uma
forma ou de outra. Também era comum trabalharem na abertura de estradas, na edificação de
acampamentos onde moravam os seringueiros, em roças que abasteciam os seringais, além de
caçar e pescar para os seringueiros. Quando recebiam pagamento, geralmente se dava por
meio de “mercadorias, principalmente armas de fogo e munição.” (COSTA, 2002, p. 119),
sendo esta uma estratégia à sobrevivência dessa etnia. Isso porque, conforme estudos
realizados por Costa (2002), os índios Nambiquara permitiram, de certa forma e por algumas
vezes, o contato e atuação dos kwajato em suas terras, pois almejavam obter armas de fogo e
munição.

[...] em busca de armas de fogo e munição, após vários conflitos, os


Nambiquara permitiram que os seringueiros percorressem suas matas para a
extração de látex. Os seringueiros, ao invadirem as terras Nambiquara, foram
envolvidos numa rede de aliança e de comércio que se deu principalemtne
através da troca de mão-de-obra por armas de fogo, entre outros objetos,
além de alimentos. Os conflitos eram frequentes e a colheita do látex não
dependia apenas da vontade do seringueiro, mas de sua habilidade em
negociar. Através da análise dos seus relatos, é perceptível que os
Nambiquara participaram desse empreendimento, ora permitindo os
seringueiros como aliados, ora como inimigos, demonstrando resistência ao
protelar os avanços em seu território tradicional. (COSTA, 2002, p. 27).
28

Em 1942, o SPI fundou o Posto Indígena Pyreneus de Souza, localizado às margens


do córrego Espirro, nas cabeceiras do rio Doze de Outubro, território tradicional dos
Nambiquara da Serra do Norte. (PRICE, 1983). Entre 1943 e 1968, o chefe desse posto
indígena, Afonso Mansur de França, empregou um sistema de intensa exploração dos
Nambiquara da Serra do Norte para trabalharem na extração da borracha. Isso foi propiciado
através de convênio firmado entre o SPI e a Rubber Development Corporation, ficando,
posteriormente, sob sua própria direção. Quanto a esse incidente no posto indígena, Price
(PRICE, 1975, p. 10) relatou que “Não é mais possível comprovar as atrocidades que os
índios contam, mas o certo é que Afonso fez várias para capturar mais índios, pois, no posto,
os índios morreram muito mais rapidamente do que nasceram”. Antonio Wakalitesu relatou
sobre a presença dos seringueiros, também na Chapada dos Parecis, bem como os nomes dos
seringueiros e seringalistas e as regiões que exploravam as seringueiras:

O Propício [um dos seringalistas que explorou as matas dos Nambiquara do


Cerrado] pegou a mata do Macaco Preto prá esse fundo [indicando com o
braço]. O limite dele é aqui, daqui prá lá, Bacaiuval, ‘Capitão’ Júlio [aldeia
do ‘Capitão’ Júlio, um chefe indígena Wakalitesu] até o Juruena é do
Propício; o Guaporé era do Canguru. Seringueiro inventou de encher o saco
em cima de mim. Deu parte na inspetoria [SPI, regional de Cuiabá], lá na
Artíndia, do povo do seringalista, João Ponce, Dr. Benjamim cabô com
seringalista. Marco da Luz, João Garcia, Junqueira, Salomão, Perucho,
Afonso, era Chefe do Posto do SPI, no Pyreneus de Souza. Afonso França
entrou no trabalho de seringalista, no serviço de seringa. Depois ele faleceu.
(COSTA, 2002, p. 118-119).

Silas Kithaulhu trabalhou na abertura de estradas, pescava e caçava para os


seringueiros. Ele recorda o nome dos seringueiros e os locais que ocuparam.

Primeiro é Marco da Luz. Marco da Luz. Segunda, Antônio Chumbeira


(Junqueira). Terceiro, Antônio. Antônio entrô. Propício, segundo. Entrou em
cima, Juina. Juina memo, só em cima. Maloca do Serra Azul. Entrô. Até
mato dele. Entro rio Novo, tudo entrô prá pega o seringueiro, prá pegá
madeira, na hora de tirá. Mas, agora, seringueiro do Marco... Marco da Luz
tá Campos Novos. Campos Novos mesmo. Junqueira, Antonio Chique. É...
ta, tá, tá tudo Campos Novos. Salomão Cheiroso. É tudo Campos Novos.
Trabalhá com borracha. Mas só seringueiro entrou lá embaixo de... a barra
do Camararé, pegá o Sebastião Americano, seringueiro nome, Sebastião
Americano. Irmão dele, o Cuiabano, com mulhé dele, estava lá. A barra do
Camararé, tirando borracha... prá mandá Marco da Luz. Tirô. Então, segundo
entrou, rio 12. Entrô Felipe, é... Mané Seringueiro. Entraram no 12. E
também entrô, embaixo de Nambiquara, rio Nambiquara. Entrô. Gilberto,
Justino, é... Nedes, mulhé dele Lourdes, mulhé dele Carminda, seringueiro...
Mané Pôncio, Paulista, Eutímio, Julício. Entrô perto de corguinho, chama
Roncador! Corguinho de Nambiquara. Rio Nambiquara. Corguinho é perto.
Campos Novos pertinho. Mas, agora, até embaixo do Nambiquara chama
seringueiro o Vitório, o filho dele chama Luiz Abreu, pai dele, Vitório.
29

Irmão de Luiz, Bugre. Filho de Vitório. Tem dois filhos: Bugre e Luís
Abreu. Pai, Vitório. Mãe dele não tava não. Tava lá Campos Novos. Só esse.
Então, seringueiro, barra do Mutum, Mané Cavaquinho, Francisco...
Francisco Cunha, esse homem, chama Cunha, seringalista homem.
Francisco. Tava lá em baixo de Mutum, é... montou barracão, com mulhé
dele, tirá borracha. Então, lá em baixo, perto de mim, um só Mané,
seringueiro, um só, tirá estrada. (COSTA, 2002, p. 120-121).

Ayres da Luz, filho de Marcos da Luz21, conta que seu pai “não via com bons olhos
os índios que lhe causava muitos aborrecimentos, ao devastarem as nossas roças, seringueiros
e barracões. Papai não os amava, mas não os caçava; deixava essa tarefa a outros que
considerava malucos”. (LUZ, 1982, páginas não numeradas). Ayres da Luz e seu irmão,
Nilson da Luz, acompanhavam seu pai no seringal Ayres também foi nomeado professor pelo
governo de Mato Grosso (Decreto nº 7614, de 12 de abril de 1950), a fim de que ministrasse
aulas para mais de 100 (cem) alunos na Escola Rural Mista Nhambiquara, localizada em
Campos Novos. De acordo com Nilson da Luz,

[...] cada um tinha seu seringal: Marco da Luz, que era mineiro, Juina Mirim,
Campos Novos e Veado Preto, Pimenta Bueno e Riozinho, em Rondônia;
Junqueira, que comprou o seringal do meu pai; Propício Loureiro, Renato e
Biratan Spinelli [fora dos limites demarcados], Canguru, Amil Furtado [este
último, fora dos limites demarcados]. (COSTA, 2002, p. 121).

Na opinião de Ayres da Luz, a decadência da extração da borracha não somente se


deu em decorrência das desavenças políticas entre o Banco de Crédito da Amazônia e a
Superintendência do Desenvolvimento da Borracha, “mas principalmente pelo desinteresse do
próprio governo, que transformou os seringais em áreas indígenas. [...] A reserva para eles é
utopia”. (LUZ, 1982, páginas não numeradas).
O seringueiro Antonio Luiz Amorim, relata quando conheceu J. K. Wakalitesu22, em
1944.

21
Costa (2002) informa que o seringalista Marcos da Luz tinha como prática levar os índios para conhecer
Cuiabá, hospedando-os em sua casa, localizada no Coxipó, ocasião em que eram batizados e os tomava como
afilhados. Durante a permanência dos seringueiros e missionários no território Nambiquara, a convite destes,
índios eram levados de suas aldeias para estudar e morar em municípios.
22
Conhecido como Capitão J. K. Wakalitesu, nasceu por volta de 1903, na aldeia Dihetyawsu (córrego da
formiga tacuá). Era casado com L. A., C. W. e J. K.. Gozava de prestígio entre os Nambiquara e até mesmo
entre os Paresi. “Percorria o território tradicionalmente ocupado por outros grupos como os Halotesu, Kithaulhu
e Sawentesu sem que houvesse conflito algum.” (COSTA, 2002, p. 129). O índio Nambiquara V. Y. o definiu
como “um capitão grande e muito bom; nenhuma gente estranhava K. e, nesta região, ele mandava em tudo;
todos estavam no braço dele” (HOLANDA PEREIRA, 1994, p. 3). Foi um chefe político e espiritual que, de
acordo com Holanda Pereira (1994, p. 4), possuía todas as características essenciais para exercer tal tarefa:
“hábil, astuto, inteligente, interessado, sábio, prestigioso, generoso e organizador”. “Quando algum Nambiquara
se queixava de não possuir uma espingarda, J. K. Wakalitesu se encarregava de resolver o problema. Saía em
busca da arma, assaltando os barracões dos seringueiros. [...] o xamã evoca o espírito desse Wakalitesu para
fazer uma cura na aldeia.” (COSTA, 2002, p. 129).
30

[...] saí para campear os bois que estavam no pasto e me perdi. Andei assim
perdido uns oito dias. Para comer, eu olhava o que os macacos comiam, ou
porque via comendo ou porque via restos caídos no chão. Dormia no chão
mesmo. Certo momento achei um trilho e o trilho foi dar numa roça. Era
roça do povo Nambikwára. [...] Aritoá? Aritoá! – respondi, sem entender que
perguntava meu nome. Bateu no peito dele e disse: - Eu J.! Eu Amorim! –
disse, batendo no meu peito mesmo. J. então disse: -Medo cabou! Medo
cabou! Disse eu. Contei que estava perdido. Os Nambiquara me deram o que
comer dois dias, principalmente mandioca. Depois de dois dias chegaram
dois seringueiros à minha procura. Vinham batendo o meu rasto. Na entrada
da roça deram três tiros. Os índios já foram procurar arcos e flechas, quando
J. me perguntou: - Nenê? Nenê – respondi e emendei: Eles vêm me
procurando. J. recebeu também os dois seringueiros e deu de comer para nós
das coisas da maloca, principalmente beiju grosso, como é o costume deles.
O beiju é assado no borracho. Depois de dois dias, J. pegou o secretário dele
e mais duas mulheres que ele tinha e nos levou até a cabeceira da Água
Quente. Ali convidei para ir até a sede no Buriti. Foram conosco. Antônio
Junqueira estava ali e como recompensa do trabalho deu um boi para J. J.
mandou guardar o boi e foi à aldeia chamar os companheiros para comerem
o boi. Comeram e gostaram muito. Tanto assim, que J. foi mostrar onde
havia seringa. Mostrou dezoito estradas. Ele mostrava os rumos e chegava
até às cabeceiras. Depois desse serviço, J. recebeu como pagamento de
Antônio Junqueira uma espingarda cartucheira calibre 16, norte-americana.
Como munição recebeu um quilo de chumbo, uma lata de pólvora, duzentos
cartuchos e quinhentas espoletas, tudo procedente do exército, material de
primeira qualidade. Primeiro, Antônio Junqueira ensinou a encher um
cartucho e deu o tiro. A seguir, J., sozinho, preparou um cartucho também e
deu o tiro. Gostou por demais. Saiu e foi embora contente. Quando a
munição acabava ia pegar mais no barracão. Assim, o ano de 1944 terminou
com 22 estradas de alta produção. (COSTA, 2002, p. 126-127).

Geraldino Aguiar, seringueiro de Propício Loureiro, conta que a produção era de 950
a 1.110 quilos por mês. (COSTA, 2002). Outro seringalista foi Antônio Cezário Miguel
Áschar, conhecido como Canguru. Possuía um local chamado Barracão Queimado, situado
em terras Nambiquara da Chapada dos Parecis (atualmente, nos limites da Terra Indígena
Nambikwara). O barracão era a central de abastecimento de todos os seringais.

Em um ano, o número de trabalhadores nos seringais chegou a 480. Canguru


considerava-se o maior produtor da região. No ano de 1964, produziu 240
toneladas de borracha, enquanto a produção total do Estado foi de 2.000
toneladas. Era proprietário de quatro caminhões, abriu 600 quilômetros de
estradas, aproveitando trechos da Linha Telegráfica e edificou três pontes.
Conforme o depoimento de seu filho e do seringalista Sérgio Canongia,
Canguru chegou a entrar com um pedido de indenização junto ao
Departamento Nacional de Estradas de Rodagem (DNER), alegando que a
BR 364 seguiu parte do percurso das estradas dos seus seringais. (COSTA,
2002, p. 134).

Esses dados são referentes aos seringais que Canguru possuía na região
compreendida de Pontes e Lacerda a Vilhena, o equivalente a 1.400.000 (um milhão e
31

quatrocentos mil) hectares. Permaneceu na região de 1951 até 1974. Esse seringalista
explorou os arredores das aldeias Campos Novos e dos rios Piolho, Cabixi, Sabão e Galera
(denominações de seus seringais), localizados do outro lado da BR 364, na Serra do Norte e
Vale do Guaporé. (COSTA, 2002). Sérgio Canongia, seringalista que adquiriu, através de
compra, parte dos seringais de Canguru, contou que

[...] tirava 20, 18 toneladas por ano. Eu tirava pouquinho. [...] Uma barra de
borracha dá mais ou menos 50, 60 quilos. [...] propriamente não fui quase
seringalista, fui mais colonizador. [...] Meu interesse era compra e veda de
terra. [...] Ah! Lá tem um detalhe: só podia titular 2 mil hectares, né? Por
causa da faixa de fronteira, né? 2 mil hectares. Eu vendia título prás pessoas.
Muita gente. Eu fui lá... Calcanhoto S.A. Indústria e Comércio e
Agropecuária. Fui a primeira... projeto SUDAM, autorizado pelo governo
federal. Quando nós começamos o processo, não era nem SUDAM, era
SPHEVEA. Depois que foi transformada em SUDAM, né? Era um grupo de
Caxias do Sul, liderado por Mandeva Calcanhoto. Uma bela de uma
indústria! (indústria) de madeira. Beneficiamento de madeira. (Localizada)
no (rio) 12. Não chegava a ser no 12 de Outu bro. [...] Rio Mutum. Eu titulei
aqui (mostrando no mapa). 100 mil hectares. Aqui 30 mil desse lado (do
outro lado da BR 364, no Vale do Guaporé) e aqui 70 mil ... hectares (no
cerrado). (COSTA, 2002, p. 136).

Tanto a passagem da Linha Telegráfica quanto dos seringueiros trouxeram ameaças


aos modos de viver dos Nambiquara do Cerrado, principalmente quanto às doenças. De
acordo com Costa (2002, p. 48), “Por onde a Comissão das Linhas Telegráficas passou, os
grupos contatados foram em quase sua totalidade dizimados”. As epidemias representam a
maior causa das mortes entre os Nambiquara.23 Trata-se de uma luta desigual, na qual os arco-
e-flechas não foram capazes de impedir a chegada das armas de fogo, das máquinas, dos
produtos químicos, de doenças. Essa situação ocorrida com os Nambiquara foi denunciada
por Tomás Balduíno, bispo de Goiás, em 1980, ao Tribunal Russel de Direitos Humanos, em
Roterdã, na Holanda, que condenou o Brasil por genocídio contra esses índios. (CEDI, 1980).

Do imenso território tradicional com áreas contíguas que outrora abrigava


todos os grupos Nambiquara, alguns deles hoje extintos, o pouco que resta
está agora dividido em nove áreas, algumas não contínuas: Terra Indígena
Pyreneus de Souza, com 28.212 hectares; Terra Indígena Nambikwara, com
1.011.9961 hectares; Terra Indígena Vale do Guaporé, com 242.593
hectares; Terra Indígena Lagoa dos Brincos, com 1.845 hectares; Terra
Indígena Taihãtesu, com 5.362 hectares; Terra Indígena Pequizal, com 9.886
23
De acordo com Ramos (1943, p. 245), no início do século XX, Rondon apresentou estimativa
populacional de 20.000 (duzentos mil). Price (1983) estimou que o número de indígenas foi reduzido a 528
(seiscentos), sendo que, Roquette-Pinto (1935, p. 213) fez uma estimativa de 1.200 (mil e duzentos). Em 1938,
Lévi-Strauss (1979, p. 302) calculou em cerca de 2.000 (dois mil). Posteriormente, em 1972, Price acreditava
existir um total de 5.000 (cinco mil) índios Nambiquara. Dados da FUNAI de 1997 apontam uma população de
1.200 (mil e duzentos) índios. Inversamente, o número de kwajato na região tornou-se cada vez maior. De
acordo com Costa (2002), nessa época, vários grupos se uniram no intuito de evitar sua extinção.
32

hectares; Terra Indígena Sararé, com 67.419 hectares; Terra Indígena


Tirecatinga, com 130.575 hectares; e Terra Indígena Tubarão-Latundê, com
116.613 hectares. (COSTA, 2002, p. 60).

As trilhas abertas pelos Postos Telegráficos também possibilitaram a chegada de


missionários. Em 1924, missionários protestantes da Inland South American Mission Union
(ISAMU) entraram nas terras Nambiquara. Instalaram-se, primeiramente, às margens do rio
Juruena (Sakaiyausu), próximos à Estação Telegráfica Juruena. Permaneceram ali até 1930,
ano em que o grupo do Capitão J. K. Wakalitesu invadiu o estabelecimento dos protestantes,
causando a morte de 7 (sete) pessoas da missão, dentre elas uma criança. Em 1937, a ISAMU
retornou aos Nambiquara, agora em Campos Novos e Utiariti. (HOLANDA PEREIRA,
1975).
Em 1935 houve a chegada dos missionários jesuítas da Missão Santa Teresinha do
Mangabal, que se instalaram às margens do córrego Mangabal, afluente do rio Juruena
(Sakaiyausu), em território Wakalitesu, até 1945, quando uma epidemia de sarampo os
transferiu para o Utiariti, à margem direita do rio Papagaio. Esse período de 10 (dez) anos foi
marcado por tensões, medo e desconfiança por kwajato e Nambiquaras. Tratou-se de mais
uma tentativa de evangelização fracassada, pois, “Apesar dos esforços despendidos pelos
jesuítas, os Nambiquara mantiveram seus rituais de cura realizados pelos curandeiros, com o
auxílio dos espíritos ancestrais, e sua religiosidade.” (COSTA, 2002, p. 49-50). Também
passou a ser comum os índios trabalharem, fazendo roças, para os missionários.

Foi decidido que se empregavam os índios nos trabalhos das roças:


pagavam-se, em mantimentos e em bilhetes com que compravam o que
desejavam. Foi decidido que nunca se lhes deve dar de presente: se se
começa, como de fato se começou, não querem mais trabalhar, querem tudo
dado. [...] Foi também decidido que lhe não devem dar armas, de fogo, senão
depois de muito provados: o que se deu com o J. [Wakalitesu]. (DIÁRIO DE
DOM ALONSO, 1937-1943 apud COSTA, 2002, p. 102).

Em 1945, ocorreu uma epidema de sarampo entre os Nambiquara. Esse incidente,


para os Nambiquara, está relacionado com o fato de o Padre Alonso Siveira de Mello ter
soltado um balão, entendido pelos índios como bomba, já que estourou e fez muito barulho. A
intensão do padre foi assustar aos índios, pois estavam roubando comidas da roça da missão,
deixando-o zangado. Silas Kithaulhu, um Nambiquara nascido em 1930, contou sobre o
evento da bomba.

Esse história tá com muito sofrido memo. Eu não quero falá! Tudo morreu.
Triste. Triste memo. Meu mãe, meu irmão, tudo acabou. Esse muito... sofre
muito. Não sei... tá fazendo padre! [...] Primeiro padre bom, né? Aí tô esse
33

conto miçangui, roupa, camisa, é... ferramenta, tudo, tudo bom, né? O
primeiro fazê bastante. Andá com cana, melancia, outra semente, caju,
abacaxi, mandioca, galinha. Tudo criado! Tudo! Boi, vaca, bezerro.
Tudo,tudo. Tudo tem. Então, índio, padre quando... índio não sabe. [...] Só
índio aí roubá, comê frango, galinha, frango, outra semente, outra coisa.
Tudo roubá. Cana... tudo roubá. Frango, tudo as coisas. Tudo roubá. Roubou
tudo. Não é um não! Aí, dez matá um frango, dez cana, tuuudo comê, todo
dia, toda noite, todo dia, toda noite. Ah! Índio tá roubaram tudo nesse
minhas coisa. Então, pensá padre ficou feio: - Ô índio, não mexê. Mexê
nessas coisas. Eu tenho veneno. Tá vendo? Bem venturado lá. Quando mexê
bastante, esse padre estourou, nesse mundo. Cabô! Não tem índio. Primeiro
escutá. Depois, matá bezerro. Bezerro chegá terrero comê com massa, tudo,
eu sei. [...] Mas, um rapaz novo. Mostrô prô’cê. – Vocês muiiitas coisas.
Muiiito assim. Mas, agora nesse, mas agora estourou, ocê pode ver. É
mentira, ninguém morreu tudo. Ninguém memo. Mentira cabô, morreu tudo.
Lá morreu tudo, nesse mundo! Mentira cabô. Nesse dia, hoje memo... jogou
no meio de terrero. Mas, estourou. Mas, rapaz novinho correu lááá onde lá
maloca. Fumaça de veneno (outro índio, não pude identificá-lo). Fumaça.
Cheiroooso brabo! Chegou. Olha, mas agora padre jogou nesse índio moço.
Mas, agora, morreu tudo! Aí, vai chega logo... tudo. Cabô tudo. Aí vento prá
cá. Fumaça vem atééé... onde está índio de... Sabanês, ééé Cabixi, Paresi,
Mamaindê, Mamairisu, daqui, Halotesu... Tudo, tudo, tudo, tudo. Ninguém
sobrou. Ninguém maloca, nem escondeu. Tá escondê tá assim memo.
(COSTA, 2002, p. 107).

Para os Nambiquara, “a doença é também espiritual e ela vem em decorrência da


ação humana.” (COSTA, 2002, p. 107). Poucos índios estão vivos para contar sobre a
ocorrência da bomba e da epidemia de sarampo ou gripe. Nos documentos da FUNAI, essas
informações são escassas. No entanto, encontram-se informações sobre a doença ocorrida
nesse período no diário do Padre Mello (MELLO, 1936-1946), embora não mencione a
“bomba”. Fernandes Silva (1999, p. 403), relata que

Entre 1930 e 1945 os jesuítas tentavam catequizá-los quando uma epidemia


de sarampo grassou nas aldeias deixando muitos mortos. Os missionários
resolveram, então, mudar a sede da missão. Não existem muitas informações
a este respeito, mas há indícios de que os Nambikwara afastaram-se da
missão por atribuírem a epidemia de sarampo à presença dos padres, que
teriam praticado feitiçaria.

Price (1972, p. 39-40) também registra esse ocorrido:

An epidemic of measles that passed throught the region in November and


December of 1946 was devastating. Reports mention one dead at Pyreneus
de Souza at Campos Novos, three in the Mata de Canga, five at Juína [...], 13
at Camararé [...], at Juruena 20 Indians died, including men, woman and
children, only four being buried, the remainder being eaten by buzzards and
dogs.24

24
Uma epidemia de sarampo, em Novembro e Dezembro de 1945, foi devastadora. Relatórios deram
conta de uma morte em Pyreneus de Souza e Campos Novos, três na Mata da Canga, cinco no Juína, [...] 13 no
34

Para os índios, a “bomba” atribuída ao Padre Mello também remete a outro


acontecimento, quando a Comissão Rondon comemorou a finalização da edificação do
Destacamento Central de Juruena ao som do hino nacional, soltando fogos de artifício e
bombas de dinamite estourados na madrugada, no Vale do Juruena. Costa (2002) relata o
pavor dos índios para com esses estrondos. O emprego de fogos de artifício também era
utilizado por seringalistas, para assustar os índios e, assim, não gastarem munição.
Foi, também, com a chegada das missões que a escrita passou a fazer parte da vida
dos Nambiquara, mais especificamente a partir de 1940, com a chegada das Irmãzinhas da
Imaculada Conceição a Mangabal. Em 1961, também houve a atuação de missionários
protestantes norte-americanos do Summer Institute of Linguistics (SIL)25 que objetivavam
estudar a língua dessa etnia, traduzindo a Bíblia para o idioma Nambiquara26, de forma a
alfabetizar e evangelizá-los. (COSTA, 2002). Fuado Sawentesu relata que

Primeiro entrô chama Pedro e Ivan, lá da Inglaterra. Morô na Serra Azul,


antes da FUNAI. Depois de Pedro e Ivan entrô Menno. Parente [outro
missionário] andô, andô até Utiariti, vasou até aldeia Juina. Depois, mudô
prá aldeia Gato, no Rio Pardo. Ele morava com povo de Mamaindê,
Negarotè. Depois retorná ficá Camararé. Depois Parente ficá Felipe. Depois
ficá Campos Novos. Aí depois de Felipe chega FUNAI. Ele, Felipe, saiu.
Não ficá na área junto com FUNAI. Só agora outro americano, outro existe,
vai ajudá índio. Parente, Camararé; Felipe, Camararé; Ivan e Menno, Serra
Azul. (COSTA, 2002, p. 145).

O SIL possuía integrantes de várias partes do mundo, em sua maioria da América do


Norte. Recebeu apoio da comunidade científica brasileira, gerando expectativa no meio
acadêmico27, pois o Brasil carecia de estudos das línguas indígenas.

Camararé [...], e 20 no Juruena, incluindo homens, mulheres e crianças, apenas quatro foram enterrados, sendo o
restante comido por abutres e cães. (Tradução livre).
25
O SIL chegou ao Brasil em 1956. Possui sedes em Brasília, Cuiabá, Porto Velho, Belém e Manaus. Em
1975 declarou possuir 63 bases no Brasil. Para saber mais sobre a atuação do SIL no Brasil, ver Magalhães
(1981), Oliveira (1981), Seeger (1981) e Leite (1981). Há também o site oficial, https://www.sil.org/.
26
Costa (2009, p. 42) relata que os índios Nambiquara do Cerrado, durante suas entrevistas a campo
realizadas entre 2000 e 2007, “ao se referirem a algumas histórias da Bíblia, demonstraram-se surpresos e
incrédulos em relação aos episódios milagrosos, estarrecendo-lhes a barbárie da condenação de Jesus Cristo à
pena de morte pela crucificação. [...] Dizem ser relatos ilusórios, tanto quanto pensam os não indígenas,
kajantisu, sobre suas narrativas mitológicas. Determinadas passagens bíblicas chegaram a despertar-lhes riso
durante as pregações proferidas pelos religiosos, como, por exemplo, a ressurreição de Lázaro, a multiplicação
dos pães e dos peixes.”
27
O Museu Nacional e, mais tarde, a Universidade de Brasília recebiam resultados das pesquisas do SIL,
em decorrência de convênio estabelecido estre essas instituições. Posteriormente, a recém-criada FUNAI
também estabeleceu convênio com a SIL direcionado à implantação de ensino bilíngue nas comunidades
indígenas. “A FUNAI resistiu o quanto pôde para impedir a transferência da política educacional do Estado para
as mãos de um órgão particular e estrangeiro.” (OLIVEIRA, 1981, p. 66).
35

Nesses meados dos anos 50 todos nós acreditávamos que o SIL, malgrado a
natureza missionária de seus integrantes e a ideologia catequética da
entidade, poderia ser orientado de modo a criar no Brasil uma tradição de
trabalho na lingüística descritiva (tagnêmica) dos idiomas tribais. Os
Professores Darcy Ribeiro, então no Museu do Índio, e Luiz de Castro Faria,
do Museu Nacional, foram praticamente os inspiradores desse convênio no
que diz respeito à vinculação exclusiva dos lingüistas do SIL a tarefas
estritamente científicas. (OLIVEIRA, 1981, p. 66).

Na segunda metade da década de 1960, uma missão protestante se instalou na aldeia


Camararé. Essa missão era representada por Dudley Kinsman, apelidado de “Parente” por
chamar a todos assim, e sua esposa Helena. Orivaldo Halotesu conta que

Ele quer que tudo povo do Camararé virá crente. Batizaram quarenta
pessoas. Sábado, Domingo, não deixa cantá cultura. Proibiu. Não deixa furar
[ritual de iniciação da puberdade masculina, quando perfuram o septo nasal e
o lábio superior]. Não deixa cantá, usar colar preto. Fez fogo, juntou material
[dos índios] que usa: colar, cocar, flauta sagrada, cabaça, pintura, madeira.
Põe fogo na Casa da flauta. Põe fogo. Enfeite de nariz é pecado. [...] Ali
Camararé vira cidade. Casa de zinco, todos, todos, todos eles. Até o fim
começou morrer. V. Kithaulhu morreu, mordida de cobra cascavel. Tudo foi
batizado no Camararé. Foi sorte que minha mulher não foi batizada. [...] E
morreram tudo por causa de batismo. Batizado crente é perigoso. Esse
Parente, louco demais. Esses índios Camararé perderam dois anos de cultura.
(COSTA, 2002, p. 125).

Todos esses incidentes trouxeram grandes mudanças e infortúnios aos Nambiquara


que colocaram em risco sua existência por diversas vezes. No entanto, o pior ainda estava por
acontecer.

1.3 A BR 364 e o confinamento dos Nambiquara

Após a Segunda Guerra Mundial, as relações comerciais com o Oriente foram


interrompidas. Os seringais passaram a receber incentivo financeiro da Campanha da Batalha
da Borracha. Quem explica é Costa (2002, p. 51):

Durante o período de 1942 a 1968, a continuidade do processo de


colonização e ocupação do território indígena deu-se graças às concessões
do direito de exploração dos seringais expedidas pelo Estado de Mato
Grosso. Muitos seringalistas acabaram por requerer a posse da terra e,
consequentemente, a sua titularidade, não levando em consideração a
existência de aldeamentos indígenas. A partir da década de 1950, a política
levada a efeito pelo Departamento de Terras e Colonização do Estado de
Mato Grosso veio a agravar ainda mais a situação dos Nambiquara.

Essa política possibilitou que particulares vendessem terras ditas devolutas, sendo
que as mesmas eram habitadas por indígenas. Assim, imensas glebas foram entregues a
36

companhias de particulares para colonização.28 No final da década de 1960 a situação


agravou-se em decorrência da política de atuação do Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária (INCRA) e do Instituto de Terras de Mato Grosso (INTERMAT), também
responsáveis por expedir títulos de terras tradicionais indígenas, inclusive Nambiquara.

A invasão da região se intensifica e torna-se definitiva: grandes fazendas


agropastoris são implantadas nas terras indígenas com o apoio burocrático e
econômico de diferentes setores e projetos do governo. O índio passa a ser
espectador, no seu meio ambiente milenar, da chegada de milhares de peões,
de gigantescas derrubadas e da agroprodução em grande escala: desfolhantes
químicos, semeadura de capim, arame farpado e a privatização da pastagem,
estradas de acesso com porteiras privativas, milhares de cabeças de gado
tomando conta da paisagem, feita de pastagem, e poluindo as águas; estas
agora manipuladas, desviadas, canalizadas. (FIGUEROA, 1983, p. 5).

Nesse mesmo período, final da década de 1960, houve a desvalorização da borracha.


Os seringalistas tinham o direito de trocar suas concessões pela titulação da terra, através do
Governo do Estado de Mato Grosso. O seringalista Sérgio Canongia, mesmo sabendo da
presença dos índios, utilizou dessa prática.

Todo mundo fez isso. O Antônio Junqueira, quem mais outro... o... no
Formiga [rio], Propício, né? Marcos da Luz. Porque a borracha... ficou um
preço vil, né? Não valia mais nada, né? E veio aquela fase da colonização!
[...] Vendi terra prá muita gente! Eu vendi... aqui dentro tem um pessoal,
chama Gleba Natal, que eu titulei. Título de 30.000 hectares... no Doze de
Outubro [na região dos Nambiquara do Cerrado]. Na beira da estrada. Mas, o
pessoal do Presidente Pru... nunca chegou a tomar posse. Quem comprou de
mim foi o Morimoto, Nomura, o... Caprioli, isso tudo no Vale [do Guaporé].
No campo, no campo eu vendi uma gleba lá no... Primavera, chama-se Gleba
Primavera. Eu vendi no Primavera. 186.000 hectares. Primavera. (COSTA,
2002, p. 137).

A Gleba Continental, por exemplo, tinha como principal objetivo a venda de terras.
Localizava-se ao Sul da Terra Indígena Nambiquara, próximo ao córrego Água Limpa,
afluente do Juína (Yalauliyausu). Sua extensão era de 58.800 (cinquenta e oito mil e
oitossentos) hectares. Foi extinta em 1977 em decorrência de denúncias efetuadas pela
FUNAI. Lourenço Kithaulhu e Lídio Halotesu relataram que

28
CAMPOS (1955) demonstra que, em 1955, as terras de Mato Grosso encontravam-se loteadas entre 22
companhias e que cada uma recebia, no mínimo, 200.000 (duzentos mil) hectares. A venda pelo Estado de Mato
Grosso de lotes para pessoas físicas e jurídicas era realizada sem nenhum critério técnico, beneficiando a
especulação, a fraude e a violência. Entre essas companhias estavam a Industrial Colonizadora Continental S. A.
(Decreto nº 1.822, de 25 de março de 1954) e a Colonizadora Camararé Ltda (Decreto nº 1.671, de 10 de
setembro de 1973). Ambas exploraram seringais e venderam glebas correspondentes a território dos Nambiquara
do Cerrado a terceiros.
37

Não tinha só seringueiro aqui não. Tinha a Gleba Continental. O Dr. Nelson
era o dono, povo do Porto Estrela. Isso foi acontecido em 54. 5 de janeiro de
57 a gleba estava abandonada. Tinha promessa de colocar escola, saúde.
Tiravam madeira da área. Fizeram casa, serraria, casa. Dono da Gleba
Sérgio; gerente Dr. Nelson. [...] Pessoal do Dr. Nelson não é bom prá nós.
Foi Dr. Nelson que abriu Gleba Continental. [...] Fomos com Polícia Federal.
Frito chegou, falou prá ele, Geraldino, sair. Larga café, tudo saí. Polícia
Federal foi acudí, apoiá nós. Tiremos Geraldino com Ari, Frito, Polícia
Federal dois. Aí, nós tomamos terra. Que terra deles nada!!! (COSTA, 2002,
p. 140).

Nessa mesma época, havia a Gleba Boqueirão. Sua extensão era de 2.991 (dois mil
novecentos e noventa e um) hectares, com 10.000 (dez mil) pés de café. Localizava-se cerca
de 20 (vinte) quilômetros da aldeia Serra Azul, pertencente a Ademar Geraldo Pereira César,
apelidado de “Mineiro Louco”, comprada de Nelson Moreira, da Gleba Continental,
registrada no Instituto Brasileiro de Reforma Agrária (IBRA), atualmente, INCRA. Nelson
Moreira, além de vendas, arrendava parte das terras para finalidades agropastoris. (JOSÉ DOS
SANTOS, 1975).
Menno Kroeker, um dos primeiros linguistas a chegar às terras Nambiquara, relata
que os índios Nambiquara que trabalharam na gleba,

[...] às vezes, fazendo roças. Geralmente, esse tipo de trabalho. Eles não
gostavam de ser serventes, esse tipo de trabalho. Mais na roça, no campo,
caçando. (Pagavam os índios) com mercadoria, em dinheiro não. Eles não
tinham jeito de usar dinheiro. Comida. Depois que começaram também com
pólvora, chumbo, quando começaram a usar chumbeiro. (COSTA, 2002, p.
141).

A BR 364, rodovia Marechal Rondon, na década de 1960, uma “reta”, como os


índios a denominam, atravessou terras de quase todos os grupos Nambiquara, principalmente
do Vale do Guaporé, chegando a passar pelos pátios centrais de algumas aldeias. De acordo
com Costa (2002, p. 137) “Utilizou trechos das linhas traçadas pelos seringueiros e pelas
tropas de burros nas matas ciliares dos Nambiquara.”. Além de facilitar a chegada de
missionários, também viabilizou a implantação de empreendimentos agropastoris,
principalmente no Vale do Guaporé, conforme visto anteriormente.
Ao longo da BR 364, inúmeros grupos econômicos apropriaram-se de extensas
terras, atraídos pelos incentivos fiscais da Superintendência do Desenvolvimento da
Amazônia (SUDAM). Consequentemente, enormes grilagens passaram a incidir em terras
indígenas da Amazônia meridional de Mato Grosso.

[...] transitada a partir de 1963, colocou-os em situação de ruína


generalizada. Estadas vicinais, campos de aviação, cercas de arame farpado,
38

capim, gado zebu, tudo isso aparece como “desenvolvimento econômico” na


sua face visível para o resto do país. Já na face oculta da Lua, a pecuária não
aparece mais como produção de alimentos, exportação de carne para o
mercado mundial, zootecnia e ciências veterinárias, ou qualquer outra
dimensão da cultura no capitalismo, mas sim e tão somente como fome,
doença e morte. (LEONARDI, 1996, p. 106).

Os desmatamentos para plantação de pasto e extração de madeira causou o


extermínio de outra parcela da sociedade Nambiquara. A BR 364 é um eixo viário estratégico
de Mato Grosso, pois “[...] escoa a produção da soja da região do Chapadão dos Parecis até
Porto Velho-RO, que segue, a partir daí, por intermédio da Hidrovia Madeira-Amazonas, para
a exportação pelo Porto de Itacoatira-AM.” (DIAS PEREIRA, 2007, p. 26).

[...] considerada pelos proprietários de terra como um negócio de baixo risco


e de alta liquidez, além de demandar pouca mão de obra e poucos
investimentos, exceto aqueles ligados à formação das pastagens [...], além de
dispor de um grande mercado interno para carnes e derivados, está
aumentando rapidamente sua participação no mercado mundial. (EGLER,
2007, p. 30).

Antropólogos e indigenistas brasileiros, inclusive da FUNAI, formularam uma


denúncia ao Banco Mundial29, instituição responsável pelo financiamento da pavimentação da
BR 364. A resposta foi a realocação das verbas para o POLONOROESTE, para a construção
da BR 174, uma alteração de parte do traçado inicial da BR 364, de Pontes e Lacerda ao
Barracão Queimado (local onde o seringalista Antônio Cesário Áshcar edificou seu barracão).
Esse trecho, ainda assim, cortou terras do Vale do Guaporé e passou pelo pátio central de
aldeias. (COSTA, 2002). De acordo com depoimento de Etreca Wasusu, Nambiquara do Vale
do Guaporé, a Sílbene Almeida,

[...] Primeiro civilizado chegou seringueiro, coisa pouca, açúcar nada, foi
embora. Depois veio a estrada grande. Quando a gente viu os tratores,
máquinas grandes e chamamos os Alantesu lá embaixo os Hahaintesu e nós
viemos no campo até perto do Uirapuru e ficava vendo pensando o que era.
Depois chegou com facão fazendo picada, derrubada e depois veio caminhão
leva amburana, Araputanga e nós ficamos olhando e não sabia porquê.
Conversava com os civilizados e eles não entendiam e dava açúcar e
caminhão ia embora. (ALMEIDA, 1987).

29
Agente financiador do Programa Integrado de Desenvolvimento do Noroeste do Brasil (Polonoroeste),
que promoveu diversas ações para ocupação da fronteira Oeste do Brasil, promovendo o asfaltamento da BR
364, que liga as cidades de Cuiabá e Porto Velho. O financiamento foi de US$ 411 milhões. Em menos de 10
anos, foram afetadas diversas estruturas sociais, culturais e ambiental da região, resultando em altos índices de
desmatamento e não atingindo os objetivos propostos. Diversas entidades fizeram campanhas nacionais e
internacionais exigindo sua paralisação. (http://www.ibama.gov.br ).
39

Com a política econômica implantada pelo governo pós-1964, a região amazônica


passou a ser alvo de ações governamentais, como a criação da Superintendência do
Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM), criada pela Lei nº 5.173, de 27 de outubro de
1966, do Banco da Amazôia S. A. (BASA), em 1967, e a Superintendência do
Desenvolvimento do Centro-Oeste (SUDECO), no mesmo ano. Em 1968, foi demarcada a
Reserva Indígena Nambikwara (Decreto nº 63.368, de 8 de outubro de 1968) pela recém
criada Fundação Nacional do Índio (FUNAI), com o intuito de transferir os grupos dos
Nambiquara do Vale do Guaporé para a área do cerrado, onde habitam os grupos Nambiquara
do Cerrado, na Chapada dos Parecis, região bem distinta da do Vale. O interesse estatal e
particular recaiu nas áreas férteis do Vale do Guaporé porque

[...] as terras arenosas dos campos cerrados da Chapada dos Parecis, que
representam boa parte do território atualmente habitado pelos Kithãulhu,
Halotesu, Sawentesu, Wakalitesu, Niyahlosu, Siwaihsu e Hinkatesu e eram
consideradas improdutivas, foram destinadas também aos grupos
Nambiquara da Serra do Norte (Mamaindê e Negarotê) e Vale do Guaporé
(Wasusu e Alantesu). Para tanto, foi necessário elaborar um discurso que
justificasse tais ações. (COSTA, 2009, p. 23).

O discurso oficial dava continuidade a aspectos linguísticos e doutrinários utilizados


pelo colonialismo europeu vigente desde o século XVI. Trata-se de um complexo baseado em
concepções hegemônicas acerca do mundo, repercutindo naquilo que se pensava sobre o
índio. A reprodução discursiva objetivou instrumentalizar e instituir uma relação de poder e
dominação, instaurando a ideia etnocêntrica da superioridade do homem “civilizado”, bem
como acerca do “atraso” dos povos indígenas. Também buscou empregar no imaginário das
pessoas a suposta obrigatoriedade de a sociedade ocidental levar a todos os cantos do mundo
o desenvolvimento, seja material, seja espiritual. Esses discursos materializaram-se por meio
de ações de interesse do estado e de particulares.
Por meio de incentivos fiscais da SUDAM, logo após a criação da então denominada
Reserva Indígena e a transferência dos índios para o cerrado, foram expedidas certidões
negativas a 22 empresas agropecuárias que se instalaram no Vale do Guaporé. (COSTA,
2002).

[...] a FUNAI dá início à distribuição de certidões negativas atestando que


não havia índios no Vale, documentos necessários para que empresas daqui e
do mundo viessem engordar a terra Nambiquara, instaladas com dinheiro
público, através dos chamados incentivos fiscais da SUDAM
[Superintendência para o Desenvolvimento da Amazônia]. Nas certidões, a
FUNAI ainda se comprometia com os fazendeiros a transferir o povo de
40

Etreka [grupo Nambiquara wasusu, do Vale do Guaporé] para a chapada


inóspita, do outro lado da BR 364! (CARELLI; SEVERIANO, 1980, p. 11).

Com essas políticas governamentais voltadas a incentivos fiscais que favoreciam a


instalação de grandes empresas agropecuárias30 e extração de madeiras, em poucos anos, os
índios viram a natureza sendo devastada.

Os grupos Nambiquara do Vale do Guaporé foram acossados pela forte


presença de trabalhadores que participavam de derrubadas gigantescas,
trazendo consigo um surto mortal de malária, afugentando as caças,
invadindo seus espaços. Suas roças foram inundadas com sementes de
capim, também despejadas por aviões. Os índios responderam com
constantes saques aos armazéns das fazendas e dos acampamentos dos
peões, inicialmente espalhando os alimentos sobre a terra e inutilizando-os.
Depois, começaram a carregar as ferramentas, cortar cercas, flechar o gado e
deixa-lo apodrecer. Logo depois, enfraquecidos pelas doenças trazidas pelos
brancos, capitularam. Aceitaram uma trégua e a FUNAI iniciou a
transferência desses grupos a região do cerrado, desconhecida para eles.
(COSTA, 2002, p. 55).

Os grupos dos Nambiquara do Vale do Guaporé chegaram a permanecer na Chapada


dos Parecis por aproximadamente oito meses (COSTA, 2002). Entretanto, em decorrência da
adversidade cultural e ecológica do novo ambiente, não conseguiram adaptar-se, retornando
às suas aldeias com o auxílio de um sertanista da FUNAI e de missionários. Os grupos foram,
assim, retornando aos poucos, com a saúde fortemente debilitada. No final de 1974, todos
grupos, principalmente os Alantesu e Wasusu, já estavam de volta às aldeias do Vale do
Guaporé. Fuado Nambiquara, do grupo Sawentesu, contou que

Alantesu ficá embaixo do Posto. Caçou, Caçou não achou bicho. Cansou e
retornou aldeia dele. Caminhão do Gustavo e Frito [Fritz] ajudá com
Eduardo, ajudô tranferência. Seu Eduardo ajudô índios voltarem. Hahaintesu
só veio prá visita. Quem morá prá experimentá é Wasusu e Alantesu. Por
isso meu povo não esquece Wasusu e Alantesu. Tá bem ligado! (COSTA,
2002, p. 55-56).

Ante a resiliência dos índios em defender seu território tradicional, em 1968, o


Presidente Arthur da Costa e Silva, por meio do Decreto nº 62.995, de 6 de julho do referido
ano, interditou a área limítrofe do Estado de Mato Grosso e do Estado de Rondônia para a
realização de projeto de pacificação dos Nambiquara.

30
Existem relatos auferidos por Costa (2002) de que empresas empregavam o desfolhante químico
Tordon-155, conhecido como Agente Laranja, produzido pela Dow Química, e empregado na guerra do Vietnã.
O Tordon-155 era jogado por pequenos aviões para o desmatamento que atingiam indistintamente toda a região
do Vale do Guaporé, inclusive roças indígenas. Esse produto foi proibido pelo governo federal em 1977, quase
10 (dez) anos depois da demarcação da Reserva Indígena Nambikwara.
41

Em 1973, a FUNAI efetuou nova tentativa de compactar os grupos Nambiquara


Wasusu e Alantesu, do Vale do Guaporé, para o interior da reserva, agora, transferindo,
também, os Mamaindê e Negarotê, da Serra do Norte e os Halotesu, da Chapada dos Parecis.
Para isso, redefiniu os limites da então denominada Reserva Indígena Nambikwara, que
abrange a maioria dos grupos da Chapada dos Parecis, estendendo-os até o rio Doze de
Outubro, por meio do Decreto nº 73.221, de 28 de novembro daquele ano, bem como
transferindo-os, de avião.31 Assim, sob intenso sofrimento, foram obrigados a abandonar seus
lares, em decorrência da decisão de seu órgão tutor. Contudo, de acordo com Costa (2002, p.
56),

Após quase um ano de tentativas de adaptação a um ambiente tão adverso,


os Wasusu e Alantesu regressaram ao seu território tradicional. Em relação
aos índios do grupo Negarotê e Mamaindê, aqueles que tinham abandonado
suas aldeias na Serra do Norte, retornaram paulatinamente, no início da
década de 1980, à região de origem, unindo-se àqueles que ali
permaneceram. No retorno, encontraram parte das matas exuberantes já
derrubadas e uma profunda mudança no ecossistema e, consequentemente,
na cadeia alimentar.

Os grupos Nambiquara do Vale do Guaporé permanecem sem suas terras


demarcadas, por configurarem um entrave à expansão dos empreendimentos agropecuários,
com interesses nas características dessa região. A Poloamazônia ficou a cargo da colonização
dessa área, trazendo investimentos nacionais e estrangeiros que objetivavam instaurar
economia agropecuária. O líder Fuado Nambiquara contou que

Quem perdeu mesmo foi povo do Erdo, Daniel, Milton, Lídio (Halotesu e
Wakalitesu). Daqui prá Juína, até linha telegráfica prá lá de Juruena. Campos
de Júlio é terra de Wakalitesu. Juína, Juruena, é terra dos índios, nosso
mesmo. Não perde. Quem mais perdeu mesmo é povo do Milton. Halotesu e
Wakalitesu perdeu mesmo! Juruena prá cá da banda do Utiariti era terra de
Júlio. Aldeia de Júlio perdeu mesmo. Mas, cemitério dele eu conhece. Está
prá cá da linha telegráfica, onde não tem reserva. Halotesu chama
Sawentesu, porque fica no meio do mato. Quem perdeu terra foi esse
Marieta. Aldeia Jacaré, prô fundo chama aldeia Yaitulentsu, prá lá é região
do Kithaulhu, prá lá da linha telegráfica. Junto, emendado, terra de
Kithaulhu e Sawentesu. Padronal prá cá, povo de Sawentesu, Padronal até
12, prá lá prô fundo, Kithaulhu. (COSTA, 2002, p. 54).

Em 19 de dezembro de 1973, o Presidente Médici sancionou a Lei nº 6.001, o


Estatuto do Índio, ainda em vigor. Essa lei “regula a situação jurídica dos índios ou silvícolas
31
A Reserva Nambikwara passou a ter 1.000.000 (um milhão) de hectares. Os índios Halotesu, da bacia
do alto Formiga, também transferidos para o seu interior, pelo fato de morarem nos limites dela, continuaram
utilizando seu território tradicional de origem para sua subsistência. “Hoje, mesmo estando esses campos
ocupados pela plantação da soja, a pedido dos índios, o fazendeiro protegeu com cercas o antigo pátio da aldeia
onde está localizado o cemitério, frequentado regularmente pelos índios.” (COSTA, 2002, p. 56).
42

e das comunidades indígenas, com o propósito de preservar a sua cultura e integrá-los,


progressiva e harmoniosamente, à comunhão nacional.” Para tanto, dispõe de etapas e
caracteriza os indígenas em índios isolados, em vias de integração e integrados, categorias
estas já estabelecidas pela Diretoria Geral dos Índios, em 1872, que os caracterizava em os
que vivem aldeados sob nossas vistas; os que vivem primitivamente e sob estado de
independência, todavia relacionam-se conosco e os que nos hostilizam e mostram-se
indispostos a mudarem o seu modo de existência (os Nambiquara estavam incluídos nessa
última categoria).
Para ocupar os “espaços vazios”, o governo criou o Programa de Integração Nacional
(PIN), em 1976, que concedeu recursos à criação do Projeto Nambikwara, aprovado pela
FUNAI, para ações nas áreas de desenvolvimentos socioeconômicos, saúde, educação e
questões fundiárias. Assim, os Postos Indígenas da FUNAI passaram a receber incentivos
financeiros para o cumprimento desse Programa, de forma a investir em infraestrutura e
atividades assistenciais.

1.4 Os Nambiquara e a atual conjuntura

Em 1974, a FUNAI, por meio do Decreto nº 74.515 de 5 de setembro desse mesmo


ano, interditou regiões tradicionais dos Katitaulhu e Wasusu, localizadas no Vale do Guaporé,
entre os rios Galera, Sararé e Guaporé, transferindo para o seu interior os Hahaintesu e
Waikisu. Diante dessa tentativa, mais uma vez fracassada, a FUNAI

optou por demarcar pequenas áreas em locais em que se encontravam


algumas de suas aldeias tradicionais para os grupos do Vale do Guaporé.
Essas ações encontraram grande resistência por parte dos fazendeiros aí
instalados, por estarem de posse de certidões negativas pelo próprio órgão de
assistência. (COSTA, 2002, p. 57-58).

No entanto, o Banco Mundial, exigiu outra abordagem. Assim, um novo estudo de


identificação e delimitação dos territórios tradicionais dos grupos do Vale do Guaporé propôs
a demarcação de uma área próxima, localizada mais ao Sul, contígua ao rio Sararé. Diante dos
intensos conflitos pela posse da terra no Vale do Guaporé, o governo federal acabou por
encarregar o Exército Brasileiro para executar a demarcação da área. Consequentemente, o
território Nambiquara foi drasticamente fragmentado e diminuído. Áreas de extrema
importância aos índios, tais como a Lagoa dos Brincos32, Pequizal e Taihãntesu, locais

32
Na Lagoa dos Brincos, os Mamaindê e Negarotê coletam uma concha que é utilizada para confecção de
brincos, de uso masculino e feminino.
43

sagrados, somente foram demarcadas no decorrer dos anos 1980 e 1990. Na Lagoa dos
Brincos, os Mamaindê e Negarotê coletam uma concha que é utilizada para confecção de
brincos, de uso masculino e feminino. Com relação à Terra Indígena Pequizal, esta

foi criada com o objetivo de proteger o fruto do Pequi (Caryocar brasiliense


St. Hil), o elemento primordial que solidifica a identidade cultural dos
Alantesu e que os autodenomina como povo do pequi. Nessa área há uma
extensa reserva nativa de pequizeiros, cujos frutos, depois de cozidos, se
destinam à produção de uma bebida muito apreciada por eles.” (COSTA,
2002, p. 59).

Taihãntesu é um local onde localizam-se as cavernas sagradas de vários grupos do


Vale do Guaporé. Para os Wasusu, por exemplo, são a morada das almas após a morte. Ainda
assim, em decorrência da construção da BR 174, um desvio da BR 364, passou a surgir, cada
vez mais, núcleos urbanos e, com eles, o retorno dos garimpeiros às minas do Sararé, bem
como assentamentos do INCRA no entorno dos grupos Nambiquara e invasões de grileiros. O
município de Vila Bela foi desmembrado, originando os municípios de Pontes e Lacerda,
Nova Lacerda, Conquista d’Oeste, Comodoro, Sapezal e Campos de Júlio. Na década de
1980, as terras tradicionais Nambiquaras localizadas no Vale do Guaporé foram alvo de
extração ilegal de madeira de lei. O número de kwajato em terras tradicionais indígenas só
aumentou com o passar dos anos.

Em 1992, o número de garimpeiros a ocuparem a região chegou a 8.000


(oito mil). A extração mineral e a extração vegetal mudaram
demasiadamente o cenário do território dos Nambiquara. As verdes matas da
Floresta Amazônica foram substituídas por extensas áreas devastadas, rios
assoreados e dragas trabalhando incessantemente. (COSTA, 2002, p. 60).

A partir de 1992, com o apoio e interesses do Ministério da Integração Regional, o


governo do Estado de Mato Grosso, por meio de recursos financeiros concedidos pelo Banco
Mundial, desenvolveu o Programa de Desenvolvimento Agro-ambiental (PRODEAGRO). O
programa objetiva, principalmente, o reordenamento territorial.

O Banco mundial condicionou a liberação das verbas para a PRODEAGRO


à extrusão dos garimpeiros da Terra Indígena Sararé e à implementação de
projetos voltados para a população local, objetivando a regularização
fundiária, a fiscalização e a vigilância das terras indígenas [...]. (COSTA,
2002, p. 60).

Do imenso território tradicional com áreas contíguas, que outrora abrigava todos os
grupos Nambiquara, alguns deles hoje extintos, o pouco que resta está agora dividido em 9
(nove) áreas, algumas não contínuas: Terra Indígena Pyreneus de Souza, com 28.212,2761
44

hectares; Terra Indígena Nambikuara, com 1.011.961,4852 hectares; Terra Indígena Vale do
Guaporé, com 242.593 hectares; Terra Indígena Lagoa dos Brincos, com 1.845 hectares;
Terra Indígena Taihãtesu, com 5.362 hectares; Terra Indígena Pequizal, com 9.886,8211
hectares; Terra Indígena Sararé, com 67.419,5158 hectares; Terra Indígena Tirecatinga, com
130.575 hectares e Terra Indígena Tubarão-Latundê, com 116.613,36 hectares. (COSTA,
2002).
Toda essa teia de relações que permeia os grupos Nambiquara das 3 áreas geo-
culturais e suas consequências no mundo visível e invisível é fixada na lembrança de lugares e
objetos presentes em suas memórias. São organizadoras de referências identitárias que
contribuem ao fortalecimento da luta e união entre os grupos Nambiquara. Fuado Sawentesu
conclui sobre essas relações que “o branco esquisito memo. Algum vem de longe. O índio
não! Daqui memo. Não adianta conta qual dia Nambiquara vem mora aqui. Não existe. É
daqui memo!”. (COSTA, 2002, p. 146). No entanto, para os índios Nambiquara, a chegada
dos Kwajato, os comedores de feijão,

Não ocasionou somente uma enorme perda territorial, mas também o


decréscimo de tantos e tantos saberes que envolvem essa espacialidade.
Esses conhecimentos contêm ‘inúmeráveis memórias de lugares’ dos mais
velhos; elas precisam ser vividas para obter o caráter de lugar praticado.
(COSTA, 2009, p. 231).

Em 1989, o rio Walukatuyausu (Doze de Outubro), foi alvo de interesses econômicos


para a construção de uma usina hisdrelétrica, a 5 km da aldeia dos Kithãulhu, na Chapada dos
Parecis, localizada no município de Vila Bela da Santíssima Trindade, Mato Grosso, a 25 km
de Vilhena, Rondônia. (CEDI, 1991).

FUNAI autoriza a empresa particular “Góes Cohabita”, do deputado Joacel


Góes a construir uma hidrelétrica no rio Doze de Outubro que geraria
energia para Vilhena (Rondônia). Para a obtenção da aprovação dos
Nambikwara, a empresa forneceu-lhes remédios e alguns pneus para um
caminhão além de consertar o trator da comunidade. (CIMI, 1988, p. 17).

Em um primeiro momento, os índios deram o aval à construção, apoiados e pela


FUNAI. No entanto, posteriormente, foi solicitada a “suspensão da construção da hidrelétrica
pelo subprocurador da República. Índios e um deputado estadual fazem representação na
Procuradoria Geral da República.” (FEMA/SEMA/FUNAI, s/d). “Os Nambiquara têm
consciência de que o contato com os não indígenas, kwajantisu, traz perdas irreparáveis.”
(COSTA, 2009, p. 72).
45

As fazendas que circundam o território tradicional Nambiquara apontam outra


problemática. Atualmente, o rio Juína (Yalauliyausu), por atravessar campos de soja do
município de Campos de Júlio, em Mato Grosso, possui sua coloração alterada e, segundo os
índios, também seu gosto e temperatura, em decorrência do emprego de agroquímicos, dentre
eles, os agrotóxicos. O modo de cultivo de plantas pelo kwajato é muito diferente da dos
Nambiquara. Com relação à agricultura Nambiquara, Fuado Sawentesu, explica que

[...] quando quer começar época de chuva, dois, três dias, um Curiango
começa cantar a noite toda, [chuva] está longe; quando dez cantam, aí vou
plantar roça; quando quero fazer roça bem grande, aí começa flor do campo,
que vocês chamam de Primavera, vou roçar pau fino. Quando roça, flor
amarela. Curiango [canta] para queimar. Ele canta muito por causa de
Aleluia [insetos isópteros ou cupins que abandonam suas colônias para o voo
nupcial], filhote de cupim, difícil catar. Quando saem voando, se alimentam
de filhote de cupim. Marimbondo leva-o [filhote de Aleluia], faz farinha. É
bem gostosa. (COSTA, 2009, p. 128).

A agricultura reflete, inclusive, na relação entre o homem e a mulher Nambiquara.

[...] por um lado, a vida sedentária e agrícola, baseada na dupla atividade


masculina da construção das palhotas e do cultivo da terra, e, por outro lado,
o período nômade, durante a qual a subsistência é principalmente garantida
pela colheita e pela apanha femininas; uma representa a segurança e a
euforia alimentar, a outra a aventura da fome. A essas duas formas de
existência, invernal e estival, os Nambikwara reagem de maneira muito
diferente. Falam da primeira com a melancolia que se liga à aceitação
consciente e resignada da condição humana, à triste repetição de atos
idênticos, enquanto que descrevem a outra com excitação e num tom
exaltado de descoberta. (LÉVI-STRAUSS, 1979, p. 285).

Com relação à característica nômade dos Nambiquara, Orivaldo Halotesu e Natan


Sawentesu explicam que

[...] na época da seca, período que Nambiquara anda mais, ele andava muito
atrás de fruta, coró. Passava uma semana, um mês. Depois voltada. Na época
da seca, nem casa fazia! Ia de um lugar para o outro. [...] quando acabava
mel, ia para outro lugar. Hoje não. FUNASA não aprova projeto para aldeia
de pessoal que anda muito. (COSTA, 2009, p. 268).

A ação das frentes de expansão econômica, em constantes embates com os


Nambiquara, desrespeita seu modo de viver em prol de um desenvolvimento apresentado
como sustentável. As ações do governo do Mato Grosso e da sociedade não indígena têm
sistematicamente difundido uma lógica epistemológica diversa da indígena.33 O

33
No dia 16 de agosto de 2017, o Supremo Tribunal Federal (STF) indeferiu ação do governo de Mato
que, com base na tese do marco temporal, negava a ocupação pelos Nambiquara de suas terras tradicionais, bem
como exigia indenizações da União por ter supostamente criado reservas indígenas sobre terras devolutas que
46

desaparecimento da cobertura vegetal e de seus mantenedores espirituais, responsáveis por


muitas espécies de animais e vegetais, repercutem no equilíbrio da natureza e do mundo
espiritual, o que pode ocasionar a escassez de alimentos, infortúnios e doenças. Por isso que a
construção de estradas e de hidrelétricas que perpassam lugares habitados por seres espirituais
acabam por refletir no mundo físico e espiritual.
Atualmente, enfrentam a falta de recursos básicos como alimentação, vestimenta e
assistência médica. Em decorrência do desolamento por falta de perspectivas de formação
educacional e de socialização fora das aldeias, no início do presente ano, fecharam partes da
BR 364, trechos que ligam as cidades de Sapezal, Campos de Júlio, Comodoro e Vilhena, e
passaram a cobrar pedágio. O ato resultou na prisão de 15 (quinze) índios, dentre eles jovens e
idosos, algemados nas mãos e pés. A prisão decorreu da Medida Cautelar Penal nº 935-
09.2018.4.01.36.01, que corre em segredo de justiça. No processo, o juiz entendeu pela prisão
preventiva e busca e apreensão em desfavor desses Nambiquara, em razão de desobediência à
ordem judicial de desocupação da BR. A cobrança de pedágio pelos índios foi entendida pelo
juiz como prática de extorsão, desobediência e organização criminosa. Mais uma vez, com
fundamentos legitimados pelo direito, um acontecimento reforça a situação de
incompreensão, invisibilizando e oprimindo os Nambiquara.
Ainda que os índios tenham mudado de ideia com relação à construção da
hidrelétrica no rio Doze de Outubro, ante a falta de melhoria de perspectivas futuras em
decorrência da atual conjuntura de encapsulamento, de invisibilidade e de exclusão que
resultam na difícil sobrevivência, outra hidrelétrica está sendo construída. A PCH (Pequena
Central Hidrelétrica) Juína 117, localizada no rio Juína, um dos limites da Terra Indígena
Nambiquara, aponta outra problemática a ser enfrentada pelos Nambiquara.34

não seriam de ocupação tradicional (glebas Nambikwara, Salumã e Tirecatinga). (Disponível em:
http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ACO366VotoMMA.pdf ).
34
A Sema (Secretaria de Estado e Meio Ambiente) emitiu a licença para a construção da hidrelétrica. (
https://terrasindigenas.org.br/es/noticia/137880?fbclid=IwAR3J35cXN5W7s5SKed3Trpk9wvwTAhyIu_8oYFP
WkJ4TQYx6I_5Xok3GPyI )
47

Fonte: Costa (2009, p. 24).


48

2. PODE O DIREITO SER DESCOLONIAL? UM CONVITE A REFLEXÕES


ACERCA DOS LIMITES E ALTERNATIVAS AO DIREITO

É sabido que, não raramente, o direito legitima práticas opressoras. O caso dos
Nambiquara demonstra isso. Existe um avanço das lutas sociais ao longo da história, por
outro lado, o colonialismo adquire novas roupagens que atuam cegamente em benefício de
interesses econômicos e culturais. Diante deste emblema, faz-se necessário indagar: existe um
direito latino-americano ou somos replicadores de epistemologias e fórmulas ocidentais? Um
direito descolonial é possível?35
A teologia da libertação (DUSSEL, 2007; BRAGATO; CASTILHO, 2014;
FAGUNDES, 2015) e a teoria da dependência (DOS SANTOS, 2015) relacionam-se com as
questões por de trás dessas indagações. Para a teoria da dependência (DOS SANTOS, 2015),
a caracterização dos países do Sul em "atrasados" ou “subdesenvolvidos” decorre dessa
estratégia que acaba por estabelecer uma relação de dependência entre países "centrais" e
países "periféricos". Um olhar de viés crítico sobre essa questão permite compreender o
projeto de vida moderno que se pauta em uma metodologia orientada na divisão entre um
centro econômico, tecnológico e cultural avançados versus uma periferia subordinada e
dependente. Isso resulta na colonialidade do ser, do saber e do poder.
Portanto, “[...] é tempo de aprendermos a nos libertar do espelho eurocêntrico onde
nossa imagem é sempre, necessariamente, distorcida. É tempo, enfim, de deixar de ser o que
não somos.” (QUIJANO, 2005, p. 126). Os países latino-americanos precisam deixar de se
espelhar em conjuntos de instituições, normativas, ideologias do Norte global e voltarem-se
para si mesmos, o que significa lidar com seus próprios problemas, os quais são distintos dos
países ex-colonizadores. A autodeterminação interna é tão importante quanto a
autodeterminação externa.
Para orientar esse desvelar do Sul, teorias críticas latino-americanas muito
contribuem ao pensamento descolonial, pois permitem uma reflexão dos mais variados temas
e formas de conhecimento, demonstrando a possibilidade e existência de pressupostos
filosóficos, políticos e metodológicos contra-hegemônicos. As principais referências teóricas
do pensamento descolonial advém do Projeto M&C (Modernidade e Colonialidade),

35
São exemplos de pessoas que buscaram o desvelar do indivíduo e do mundo latino-americano: Gustavo
Guterres, Camilo Torres, Arturo Roig, Horacio Cerutti, Enrique Dussel, Milton Santos, Darcy Ribeiro, Paulo
Freire, Florestan Fernandes, Orlando Fals Borda, Celso Furtado, José Julián Martí Pérez, Mercedes Sosa,
Augusto Boal, Glauber Rocha, Mario Benedetti, Ernesto Sabato, Gabriel García Márquez, Jorge Amado, Pablo
Neruda, Rubén Darío, Oscar Correa. Esses pensadores comumente são criticados por buscarem uma filosofia
periférica não universal, diferentemente da filosofia local grega alemã, europeia que, por outro lado,
majoritariamente é tida como uma fórmula superior e universal às sociedades.
49

composto por estudos de Aníbal Quijano, Enrique Dussel, Catherine Walsh, Boaventura de
Sousa Santos, Freya Schiwy, José Saldívar, Nelson Maldonado-Torres, Fernando Coronil,
Javier Sanjinés, Margarida Cervantes de Salazar, Libia Grueso, Marcelo Fernádez Osco,
Edgardo Lander, Arturo Escobar. De acordo com Escobar (2003, p. 53), os estudos do grupo
são orientados pela

Teologia de la Liberación desde los sessenta; los debates en la filosofía y


ciencia social latino-americana sobre nociones como filosofía de la
liberación y uma ciencia social autónoma (e. g. Enrique Dussel, Rodolfo
Kushm Orlando Fals Borda, Pablo Gonzáles Casanova, Darcy Ribeiro); la
teoría de la dependência; los debates en Latinoamérica sobre la modernidad
y postmodernidad de los ochenta, seguidos por las discusiones sobre hibridez
en antropología, comunicación y en los estudios culturales en los noventa; y,
en los Estados Unidos, el grupo latino-americano de estudios subalternos.

O pensamento descolonial mostra-se capaz de dar autonomia ao indivíduo para que


compreenda os processos histórico-sociais em que se desenvolve a América Latina, bem
como o colonialismo inerente ao continente e a si próprio, enquanto ser latino-americano e,
portanto, produto e reprodutor de colonizações. Além disso, contribui e dá maior
possibilidade de respeito às diversas lutas populares que resistem a um histórico processo de
opressões e silenciamentos. (FLORES, 2009). Isso porque o direito, quando atrelado às
memórias sociais, é capaz de desenvolver um sentimento de identidade, de pertença, de
alteridade e de busca por transformações, principalmente aos que se encontram excluídos e
invisibilizados. Consequentemente, mostra-se possível um ser latino-americano apto a se
descolonizar e a descolonizar ao seu redor.
Descolonizar-se trata de uma postura de questionamento e de desconfiança àquilo que
se é posto, seja uma lei, um ensino, um livro, uma fala. Trata-se de buscar identificar o
ideológico por detrás dos interesses. Isso abarca o desvelar do conhecimento, da cultura e da
economia que nos são impostos a partir de uma lógica monocultural (a do Ocidente) que se
legitima com fundamentos absolutos ou transcendentais orientados a desqualificar o diferente
e a desvalorizar as demais formas de vida e de identidades.

2.1 Pode o constitucionalismo ser descolonial?

Ao indagar sobre o potencial descolonizador do direito, é necessário indagar sobre o


constitucionalismo. Mais que isso, mostra-se primordial uma reflexão acerca das raízes
epistemológicas do direito.
50

Durante cinco séculos, desde a expansão marítima e comercial, a Europa,


particularmente, vem ensinando ao mundo acerca da história da civilização, direitos humanos,
constitucionalismo, democracia, cidadania, organização e limites do Estado. A crença na
necessidade de doutrinar o mundo, ditar suas normas e saberes, bem como em estabelecer o
que vem a ser o progresso, são, basicamente, de caráter imperialista e colonialista. Estes
ideais andam a par de violências que fazem parte da história europeia e a América do Norte
utiliza da mesma estratégia. São muitas as faces da opressão e dominação e várias delas foram
negligenciadas pelos estudos críticos do direito. De acordo com Santos (2000, p. 126),

O direito natural racionalista dos séculos XVII e XVIII, também faz parte
deste processo, na medida em que serviu para legitimar, quer o despotismo
iluminado quer as ideias liberais e democráticas que conduziram à
Revolução Francesa, partindo, portanto, do modelo de racionalidade
descrita. Portanto, há contrariedade entre os direitos naturais tidos como
universais como forma de emancipação social. Dessa forma, tanto a virada
Kantiana, como o raciocínio iluminista, o constitucionalismo liberal e,
posteriormente, a internacionalização dos direitos humanos fazem parte da
mesma faceta colonizadora. O aprimoramento dos direitos humanos por
meio do Welfare-State serviu como forma de gestão capitalista, pois ao
Estado providência coube a gestão das desigualdades e à teoria dos direitos
humanos a gestão da exclusão.

A história do constitucionalismo demonstra uma preocupação em demasia para com


a forma do direito, em detrimento do conteúdo em si. O positivismo separou direito e moral.
Com a Segunda Guerra Mundial, houve uma reaproximação entre estes, por meio da ideologia
pós-positivista, que prima pela proteção de valores contidos em direitos fundamentais de
natureza eurocêntrica que acabam por se autoviolarem quando diante do pluralismo
sociocultural.36
Enquanto teóricos debruçam-se acerca da distinção entre princípios e regras, não
veem o contexto abissal37 em que estas se inserem. Isso porque as razões do colapso do

36
Lenio Streck (2012) parte da premissa de que o neoconstitucionalismo emergiu a partir da Segunda
Guerra Mundial, preferindo denominá-lo de “Constitucionalismo Contemporâneo”. Existem três marcos do
processo evolutivo do direito constitucional contemporâneo: histórico, filosófico e teórico. O marco histórico
corresponde à Lei Fundamental de Bonn (Constituição Alemã, 1949), efetivada anteriormente aos direitos
fundamentais contidos na Constituição Italiana, de 1948, por meio da instauração do Tribunal Constitucional
Federal, em 1951, ocorrendo a reconstitucionalização no Brasil em 1988; o filosófico diz respeito ao ideal pós-
positivista. Quanto ao teórico, relaciona-se à matéria de aplicação do direito constitucional, e demonstra três
relevantes características: “o reconhecimento da força normativa da Constituição, a expansão da Jurisdição
Constitucional e o desenvolvimento de uma nova dogmática de interpretação constitucional” (BARROSO, 2005,
p. 6).
37
Adjetivo muito utilizado por Santos (2000) para descrever o pensamento moderno ocidental. De acordo
com ele, a epistemologia ocidental baseia-se em um sistema de distinções entre visível e invisível que dividem a
realidade social em dois universos distintos: “deste lado da linha” e “do outro lado da linha”. A distinção ocorre
na medida em que “o outro lado da linha” desaparece como realidade, se produzindo apenas como ausência,
invisibilidade, inexistência. A característica principal desse pensamento é a impossibilidade da co-presença dos
51

positivismo são similares as do pós-positivismo, pois ambos permitem barbáries em nome da


lei, por serem incapazes de compatibilizar o direito positivado à realidade social. Assim, a
constituição configura mais um documento político do que propriamente um instrumento
jurídico emancipador.
Como cerne dessa problemática encontra-se o ocidentalismo que se supõe fonte
epistêmica de conhecimento, como que superior às demais, desprezando saberes do mundo e
outras espiritualidades, taxando-as de inferiores ante à imposta razão científica do homem
ocidental. Isso resulta na racionalização da ciência do direito a uma visão universal de
valores, modelos e definições que refletem a própria existência do europeu. É justamente na
percepção do Outro enquanto “primitivo”, “bárbaro”, “arcaico”, “tradicional”, “simples” ou
“selvagem” que o Ocidente vem produzindo a imagem e a reafirmação de si mesmo. O
conceito colonial ocidental de modernidade colocou a América Latina em lugar periférico,
rotulando o continente em “subdesenvolvido” ou “em desenvolvimento”, evidenciando uma
“ontologia da totalidade”.

2.2 Podem os direitos humanos e a dignidade humana serem descoloniais?

A problemática dos direitos humanos e da dignidade humana é que se mostram,


simultaneamente, desde sua origem, uma política reguladora e uma política emancipadora
(SANTOS, 1997). A concepção de que os direitos humanos são universais porque pertencem
“a todos os seres humanos enquanto seres humanos, ou seja, porque, independentemente do
seu reconhecimento explícito, eles são inerentes à natureza humana” (SANTOS, 2010, p.
443), significa que os seres não detêm direitos, mas porque são humanos possuem
características universais inerentes à natureza dos humanos. Explicando: O ser humano38, sob
essa ótica, é entendido como um vazio, um eco, um não-ser. Foi necessário esvaziá-lo e
entendê-lo com direitos universais para compreender sua essência. Assim, universalizou-se a
essência do humano, suas características identitárias e epistemológicas, resultando, no final
das contas, na imagem do Norte global. Por consequência,

El proceso histórico que venimos describiendo asume una condición extrema


a partir de la universalización de la forma mercantil y de la sujeción de las
normas jurídicas a las exigencias del mercado propias del actual proceso de
globalización capitalista del sistema neoliberal. En ella, se establece una

dois lados da linha. As representações mais cabais são o conhecimento e o direito modernos. Eles formam as
duas principais linhas abissais globais dos tempos modernos e são interdependentes.
38
Importante mencionar que os direitos são comumente mencionados direcionando-os ao “indivíduo” ou
“homem”, como uma suposta “generalização”, sendo que na verdade
52

sensibilidad jurídica capaz de sacralizar tanto la productividad como la


eficacia económica, a la vez que logra que se asuman como naturales los
imperativos requeridos por la acumulación privada de capital.
(CARBALLIDO, 2013, p. 137).

Portanto, a universalidade da compreensão sobre o humano é baseada em direitos


que remetem a uma marca ocidental, mais ainda, a uma marca ocidental liberal, a exemplo da
Declaração Universal de 1948, elaborada sem a participação da maioria dos povos do mundo.
Aqueles que não se identificam ou não se encaixem nessa concepção de direitos humanos não
são humanos.

El mercado, como sistema de competencia, genera así unos modelos de


relación social que se introducen como una sensibilidad en los sujetos,
definiendo un horizonte de sentido, de forma tal que no deciden únicamente
sobre los productos y las formas de producción, sino también sobre los
productores y su vida. Es por ello que el sociólogo Edgardo Lander afirma
que las alternativas que se quieran generar al sistema capitalista “requieren
no sólo alternativas a los patrones de propiedad y de consumo de esta
sociedad, sino igualmente alternativas a su cosmovisión, sus subjetividades,
a sus modos de conocer y de producir.” (CARBALLIDO, 2013, p. 138).

O que caracteriza o humano não é sua estrutura, mas suas diferenças oriundas de
características sócioculturais. Sem ele é um objeto, um vazio. Dessa forma, portanto, não
existe “dignidade humana”, nem “direitos humanos” universais. Mas dignidades e concepções
de direitos daquilo que cada cultura entende por universal. Isso significa que toda cultura e
saber são incompletos e diferentes, evidenciando a premissa de diálogo e tradução. É
necessário uma hermenêutica intercultural de suspeição contra supostos universalismos ou
totalidades. Na ausência de um princípio dessa vertente,

[...] não é possível reunir todas as resistências e agências sob a alçada de


uma grande teoria comum. [...] [Portanto] mais do que uma teoria comum, é
preciso uma teoria de tradução [...] que torne as diferentes lutas mutuamente
inteligíveis e permita aos actores coletivos ‘conversarem’ sobre as opressões
a que resistem e as aspirações que os animam. (SANTOS, 2000, p. 27).

O método utilizado para a tradução intercultural sugerido por Panikkar (2004) é a


hermenêutica diatópica que, de acordo com Santos (2000), consiste em na explicação de uma
necessidade, uma aspiração ou uma prática numa dada cultura, de forma que se torne
compreensível e inteligível para outra cultura. Portanto, é necessário fazer conhecer as
epistemologias do Sul, de forma que não sejam mais vistas e descritas como inferiores às do
Norte global. As formas dominantes de sociabilidade podem continuar a reproduzir-se,
embora, sem o monopólio sobre as práticas epistemológicas e sociais, pois todos os
53

conhecimentos fazem parte de uma amálgama, uma “ecologia de saberes” (SANTOS, 2010a,
p. 137).

Resulta daí que a nossa necessidade radical seja dupla: por um lado, a
necessidade de reinventar um mapa emancipatório que [...] não se converta
gradual e insidiosamente em mais um mapa de regulação; por outro lado, a
necessidade de reinventar uma subjectividade individual e colectiva capaz de
usar e de querer usar esse mapa. Esta é a única maneira de delinear um
trajecto progressista através da dupla transição, epistemológica e societal,
que começa agora a emergir. (SANTOS, 2000, p. 330).

Por meio da hermenêutica diatópica, amplia-se ao máximo a consciência da


necessidade mútua, de maneira a favorecer sempre o diálogo com outras epistemologias. Da
mesma forma, possibilita mostrar o lado incompleto da cultura ocidental que estabelece
dicotomias rígidas ao indivíduo e sociedade, tais como: “cultura científica/cultura literária,
conhecimento científico/conhecimento tradicional, homem/mulher, cultura/natureza”
(SANTOS, 2000, p. 739).

Terá o conceito de limite do conhecimento científico um sentido absoluto?


Será mesmo possível traçar as fronteiras do pensamento científico?
Estaremos nós verdadeiramente encerrados num domínio objectivamente
fechado? Seremos escravos de uma razão imutável? (BACHELARD, p. 23,
2010).

A fronteira imposta ao conhecimento é uma “paragem momentânea do pensamento”,


pois, “filosoficamente, toda fronteira absoluta proposta à ciência é a marca de um problema
mal posto”, o que nos faz desejar que cada ciência tivesse uma espécie de “plano quinquenal”
(BACHELARD, 2010, p. 25).39 Por isso, há necessidade de criar

novas formas de conhecimento baseadas numa novíssima retórica, uma


retórica dialógica empenhada em constituir-se como tópica emancipatória,
ou seja, como tópica de novos sensos comuns emancipatórios. Tenho em
mente formas de conhecimento que progridam do colonialismo para a
solidariedade e que sejam tolerantes relativamente ao caos, por ele ter
potencialidades para criar uma ordem emancipatória capaz de facilitar uma
resolução progressista da transição paradigmática. (SANTOS, 2000, p. 330).

Assim, mostra-se pertinente analisar constituições que apresentam epistemologias do


Sul como tentativa de emersão de um giro paradigmático como resposta prudente 40 a questões
das quais a modernidade não foi apta a lidar, trocando aquele conhecimento científico e

39
Nesse sentido, terá papel primordial a “filosofia do não” (BACHELARD, 2010), que se trata de uma
concepção que não se apega à vontade de objetividade e conceitos rígidos de subjetividades, tendo como
finalidade o questionar, o duvidar, o criticar. Isso porque evita associar-se à ciência positiva e linear.
40
A transição epistemológica que ocorre entre o paradigma dominante da ciência moderna e o paradigma
emergente é designado por Santos de “Conhecimento prudente para uma vida decente” (SANTOS, 2004).
54

conservador por um senso comum, novo e descolonial. De acordo com Lander (2012, p. 238),
isso implica em

Asumir criticamente los derechos humanos nos debe llevar no sólo a ver si
un determinado derecho está siendo garantizado, sino a un análisis de
nuestra sociedad, intentando determinar qué causas estructurales (modelo de
civilización, relaciones sociales de producción, sistemas socio-culturales,
formas de organización política) establecen una determinada configuración
que hace imposible la vida digna para todos y todas (incluida la naturaleza).
Este análisis no niega acciones específicas más sectoriales, sobre derechos
concretos, pero exige una comprensión del conjunto capaz de orientar una
práctica realmente transformadora.

A redefinição do direito pautado em concepções contra-hegemônicas é capaz de


romper com dicotomias, redefinindo, inclusive, a base do constitucionalismo moderno: a
dignidade humana (FLORES, 2009).41 Isso porque a dignidade, essência da proteção dos
direitos humanos, é aquilo que cada povo entende por mais essencial, o que justifica a
necessária redefinição dos pressupostos básicos do jusnaturalismo racionalista-contratualista,
face sua íntima relação com o colonialismo. Isso significa que

[...] cualquier propuesta de política económica, y de economía política en


general, que desconozca la centralidad de las necesidades humanas y de las
formas de organización social posible para atenderlas, establece y refuerza
dinámicas discriminatorias, autoritarias, totalitárias y de exterminio de lo
humano y la naturaleza. (CARBALLIDO, 2013, p. 140).

Como consequência, não há mais definições dos núcleos dos direitos, pois são
diversas as concepções culturais, de forma a entrelaçá-las, bem como as possíveis acepções do
que se entende por Bem-viver ou vida digna, configurando um sistema de alternativas.
Portanto, é preciso

[...] desnaturalizar las supuestas evidencias que el capitalismo há logrado


instalar como forma de pensamiento; se requiere imaginar alternativas
concretas que permitan anudar el lazo social sobre la base de otro
metabolismo que no sea el del capital. Tal tarea, para que sea real y efectiva,
solo será posible en el diálogo permanente entre los actores sociales que la

41
O “Criterio de Riqueza Humana”, formulado pela teoria crítica dos direitos humanos de Flores (1989, p.
126, apud CARBALLIDO, 2013, p. 144) defende la necesidad de que los seres humanos, individual y
colectivamente, estén en condiciones de reaccionar frente al entorno de relaciones en que viven, contando con
los recursos materiales e inmateriales necesarios para poder formular y construir mundos de vida a partir de sus
particulares y diferenciadas concepciones de dignidad. Así, el elemento paradigmático de los derechos humanos
lo conformaria ‘la facultad para gozar del desarrollo de las capacidades humanas objetivadas social e
institucionalmente y para apropiárselas, es decir, para ponerlas en práctica siempre de un modo renovado’.
Coherentemente con su afirmación de los derechos humanos como produtos culturales a través de los cuales se
restablece el circuito de reacción cultural frente a aquellos contextos socio-históricos que niegan el acceso a los
bienes, tanto materiales e inmateriales, necesarios para la vida humana, el Criterio de Riqueza Humana ofrece un
postulado concreto de acción”.
55

habrán de llevar a cabo. Por eso, las reflexiones que siguen pretenden ofrecer
algunos aportes para pensar y actuar una teoria anticapitalista de los
derechos humanos. (CARBALLIDO, 2013, p. 139).

Para alcançar uma transformação de caráter descolonial, como explicado alhures,


faz-se necessário um diálogo intercultural sobre a dignidade humana e direitos humanos. Para
alcançar esse objetivo, é preciso: 1) superar o debate sobre universalismo e relativismo
cultural, sendo que “Contra o relativismo, há que desenvolver critérios políticos para
distinguir política progressista de política conservadora, capacitação de desarme, emancipação
de regulação.” (SANTOS, 1997, p. 21); 2) transformação cosmopolita dos direitos humanos,
que implica na compreensão de que todas as culturas possuem concepções de dignidade
humana, mas nem todas elas a concebem em termos de direitos humanos, mesmo que tenham
preocupações ou aspirações semelhantes ou mutuamente inteligíveis; 3) compreensão de que
todas as culturas são incompletas e problemáticas no que entendem por dignidade humana; 4)
compreensão de que todas as culturas possuem versões diferentes de dignidade humana,
sejam elas mais amplas ou não com relação às outras, havendo certa reciprocidade ou não; 5)
compreensão de que todas as culturas tendem a distribuir as pessoas e os grupos sociais entre
dois princípios competitivos de pertença hierárquica: o princípio da igualdade e o princípio da
diferença. (SANTOS, 1997).

2.3 O Novo Constitucionalismo Latino-Americano: Um passo rumo a um direito


descolonial?

O Novo Constitucionalismo Latino-Americano42 demonstra a renovação de diversos


setores políticos e das dinâmicas sociais da América Latina, ao colocar em questionamento os
sistemas e conhecimentos hegemônicos. Isso porque aponta a necessidade de se repensar uma
teoria crítica desde el Sul e de viés periférico. Reflete anseios de sujeitos emergentes,

42
Denominação utilizada por Viciano Pastor e Martinez Dalmau (2011), considerados por Brandão (2015,
p. 12) como “percursores do desenvolvimento teórico do Novo Constitucionalismo” a trabalhar “a partir da
teoria da Constituição”. Existem outras denominações a esse marco constitucional, como: constitucionalismo do
Sul (PISARELLO, 1999); constitucionalismo plurinacional comunitário (CHIVI VARGAS, 2009); novo
constitucionalismo indigenista (RAMÍREZ, 2009); constitucionalismo mestiço (BALDI, 2009);
constitucionalismo da diversidade (UPRIMNY, 2011); constitucionalismo experimental ou transformador
(SANTOS, 2010b); neoconstitucionalismo transformador (ÁVILA SANTAMARIA, 2011, inspirado em
Boaventura de Sousa Santos); novo constitucionalismo indoafrolatino-americano (QUADROS DE
MAGALHÃES, 2010); constitucionalismo plurinacional e democracia consensual plural do novo
constitucionalismo latino-americano (QUADROS DE MAGALHÃES, 2011); constitucionalismo andino ou
constitucionalismo pluralista intercultural (WOLKMER, 2011); constitucionalismo pluralista (YRIGOYEN
FAJARDO, 2011); constitucionalismo indígena (CLAVERO, 2011); constitucionalismo ecocêntrico (MORAES;
FREITAS, 2013); nuevo constitucionalismo social comunitário desde América Latina (RAMOS MAMANI,
2014); novo constitucionalismo pluralista latino-americano (BRANDÃO, 2015).
56

subalternos, minorias, indígenas, afrodescendentes, na tentativa de mudar o status quo,


referido alhures, e não mais silenciar as epistemologias do Sul. Sendo assim, o Novo
Constitucionalismo Latino-Americano baseia-se na busca por rompimento com categorias
pós-coloniais43 e implementa ações de caráter descolonial.44
O Novo Constitucionalismo Latino-Americano pode ser entendido como um
processo de transição. Isso porque ainda não efetivou rompimentos epistemológicos
consubstancias, necessários à realidade sócio-histórica do Sul. No entanto, ainda assim,
configura um projeto com o diferencial de ser pautado na praxe material, ao partir da
realidade latino-americana. No plano epistemológico, traz novas concepções de mundo, ao
consagrar cosmologias indígenas nas constituições, a exemplo a da Bolívia e do Equador, que
objetivam proteção à Pachamama. Pachamama é a deidade máxima dos Andes, protetora da
natureza, cujo nome Quéchua significa Mãe Terra. Esse ser espiritual exige respeito e
cooperação dos demais seres para com ela. Sua consagração pela Constituição do Equador
objetiva respeito aos ciclos naturais ecológicos, o que implica na rejeição da teoria utilitarista
dos recursos naturais sobre a qual se alicerça o capitalismo. (ZAFFARONI, 2010).
A terminologia neoconstitucionalismo, utilizada por alguns autores, segundo
Brandão (2015, p. 13), remete à teoria do direito e não à teoria da constituição, pois

visa a uma análise da dimensão positiva da Constituição e, portanto, não


busca uma ruptura, mas apenas converter o Estado de Direito em Estado
Constitucional de Direito, embora reconheça a centralidade e o
fortalecimento da Constituição, principalmente com a forte presença dos
princípios no ordenamento jurídico.

A principal diferença entre as terminologias “neoconstitucionalismo” e “Novo


Constitucionalismo”, é que

O neoconstitucionalismo é uma corrente doutrinária fruto da academia, dos


professores de direito constitucional, enquanto o Novo Constitucionalismo é
um movimento surgido das reivindicações e manifestações populares. [...] O
Novo Constitucionalismo, ao mesmo tempo em que absorve alguns
comandos do Neoconstitucionalismo, notadamente a infiltração da
Constituição no ordenamento jurídico, ostenta como preocupação central a
legitimidade democrática da Constituição, garantindo a participação política

43
O pós-colonialismo é um período posterior à colonização, com a declaração de independência dos
países, mas ainda marcado por forte dependência entre colonizadores e ex-colônias.
44
Descolonialismo trata-se de um pensamento crítico baseado na noção de ruptura de todas as formas de
colonialismo existentes no pós-colonialismo, a exemplo da teoria crítica clássica eurocêntrica. Walter Mignolo e
Catherine Wash adota a terminologia “decolonialismo”. Enrique Dussel, Anibal Quijano, Castro Gomes são
exemplos de autores críticos que buscam uma perspectiva latino-americana. A busca por essa teoria crítica
baseada na identidade latino-americana resulta na averiguação de características marcantes de nosso continente:
alteridade, pluralidade e interculturalidade.
57

– de forma que só a soberania popular pode determinar a alteração da


Constituição. [...] Assim, uma das principais diferenças que marca o velho
constitucionalismo da América Latina, em relação ao Novo
Constitucionalismo, se refere aos processos constituintes. Enquanto aquele
era fruto de um acordo de elites, baseado em interesses comuns, este faz
parte de uma dinâmica participativa e marcada por tensões. (BRANDÃO,
2015, p. 13-14).

A peruana Yrigoyen Fajardo (2011) analisa o constitucionalismo latino-americano


em três principais ciclos. Denomina o primeiro (1982-1988) de “constitucionalismo
multicultural”, no qual se inserem as constituições da Guatemala (1985) e Nicarágua (1987).
Aqui, ocorre uma abertura para a diversidade cultural e o reconhecimento de várias línguas
como oficiais. De acordo com Brandão (2015, p. 29), “Não há, entretanto, maiores avanços no
reconhecimento dos direitos indígenas nem do pluralismo jurídico”.
O segundo ciclo (1989-2005), fortemente influenciado pela Convenção 169 da OIT
(1989) que positivou a necessidade de consulta prévia aos indígenas e de reconhecimento de
tradições, costumes e introdução de formas de pluralismo jurídico a fim de romper com o
monismo jurídico, resultou em constituições multiculturais, substituindo o Estado monista do
século XIX por uma espécie de pluralismo jurídico interno. Ainda assim, esse ciclo demonstra
um “pluralismo jurídico subordinado colonial” (YRIGOYEN FAJARDO, 2011, p. 146-147),
pois a autonomia indígena, direitos humanos e fundamentais mostram-se condicionados à
constituição e à lei que não traziam mecanismos e instituições alternativos. Como resultado,
na prática, os conflitos passam a ser decididos pela jurisdição ordinária ao invés de serem
solucionados por uma jurisdição intercultural, tornando os avanços ineficazes. Inserem-se
nesse ciclo as constituições da Colômbia (1991), México e Paraguai (1992), Peru (1993),
Equador (1998) e Venezuela (1999).
O terceiro ciclo (2006-2009) denomina-se constitucionalismo plurinacional. Aqui,
intenta-se conceder um caráter intercultural às normas constitucionais. Como resultado das
lutas sociais e do protagonismo indígena marcante nesse período que buscavam um projeto
descolonizador e intercultural para o país, internalizou-se cosmovisões indígenas à
constituição, ocasionando um giro paradigmático na teoria da Constituição. Nesse contexto,
inserem-se as constituições do Equador (2008) e da Bolívia (2009).
A principal característica dessas constituições é o direito à água, à segurança
alimentar, ao reconhecimento de cosmovisões, à Natureza como sujeito de direito
(Constituição equatoriana de 2008) e o Tribunal Constitucional Pluricultural (Constituição
boliviana de 2009). Buscam uma nova concepção de Estado e de sociedade que superem o
colonialismo, o patriarcado, que permita uma leitura intercultural do direito constitucional e
58

que os protagonistas dos processos constitucionais sejam os historicamente excluídos e


marginalizados.
As constituições da Bolívia e do Equador inserem-se no marco do Novo
Constitucionalismo Latino-Americano, denominado por Yrigoyen Fajardo (2011) de
constitucionalismo plurinacional. Um evidente giro paradigmático, com relação à proposta
desse ciclo constitucional, decorre da disposição de seus textos que optam por referir-se
sempre à mulher e ao homem a generalizá-los, por meio de palavras como “indivíduo” ou
“homem” (sempre no singular e no masculino). Outro ponto importante é o reconhecimento
da diversidade nacional enquanto mulher, homem, povos, comunidades, nações, como é
possível constatar no artigo 3 da constituição da Bolívia, por exemplo:

La nación boliviana está conformada por la totalidad de las bolivianas y los


bolivianos, las naciones y pueblos indígena originário campesinos, y las
comunidades interculturales y afrobolivianas que en conjunto constituyen el
pueblo boliviano.

Destarte, é possível estabelecer um Estado plurinacional45 ao trazer novas formas de


abordar as relações interculturais. A plurinacionalidade possibilita considerar toda e qualquer
cultura como incompleta, no sentido de reconhecer a importância do diálogo entre elas, sem
que haja exclusão ou “encobrimento do outro” (DUSSEL, 1977). Com relação a isso, o
brasileiro Quadros de Magalhães (2012, p. 108) esclarece que:

A ideia de Estado Plurinacional pode superar as bases uniformizadoras e


intolerantes do Estado nacional, onde todos os grupos sociais devem se
conformar aos valores determinados na constituição nacional em termos de
direito de família, direito de propriedade e sistema econômico, entre outros
aspectos importantes da vida social [...]. A grande revolução do Estado
Plurinacional é o fato de que este Estado constitucional, democrático
participativo e dialógico, pode finalmente romper com as bases teóricas e
sociais do Estado nacional constitucional e democrático representativo
(pouco democrático e nada representativo dos grupos não uniformizados),
uniformizador de valores e, logo, radicalmente excludente.

Assim, passa-se a reconhecer que em cada sociedade circulam diversas práticas


epistemológicas e sociais até então ocultadas pelo pensamento ocidental. Isso porque o direito
somente será democrático se souber conviver com concepções não estatais de direito
(DANTAS, 2012). Dessa forma, rompe-se com a máxima da modernidade que preconiza que

45
Walsh (2008, p. 140) esclarece que o prefixo “multi” designa várias culturas singulares em relação entre
elas, prevalecendo uma dentre elas. Esse prefixo tem suas raízes em países ocidentais. O prefixo “pluri” indica
uma convivência de culturas em um mesmo espaço territorial. Já a interculturalidade trata-se de um conceito
mais amplo, pois indica “un proceso y proyecto social político dirigido a la construcción de sociedades,
relaciones y condiciones de vida nuevas y distintas”.
59

o que vem a ser legal/ilegal é o que o Estado assim o estabelece oficialmente. De acordo com
Wolkmer (2001, p. XVI), é necessário levar em conta critérios mais importantes, quais sejam:
“a multiplicidade de manifestações ou práticas normativas num mesmo espaço sócio-político,
interagidas por conflitos ou consensos, podendo ser ou não oficiais e tendo sua razão de ser as
necessidades existenciais, materiais e culturais”.
Partindo dessa premissa, as epistemologias indígenas possibilitam uma revisão
crítica de dogmas constitucionais ocidentais tidos como intangíveis, mostrando uma
alternativa ao desenvolvimento econômico, político e social dominantes. É por isso que as
atuais constituições da Bolívia (2007) e do Equador (2008) rompem com modelos ocidentais
ao incorporar saberes não liberais seus textos, tais como o Sumak Kawsay e o Suma Qamaña46
que objetivam proteção à Pachamama. Assim, inserem-se no paradigma do Novo
Constitucionalismo Latino-Americano por proporcionarem um giro paradigmático, ao afastar
o modelo constitucional ocidental antropocêntrico para vigorar um biocêntrico de dignidade47.
O artigo 275 da Constituição do Equador é um exemplo disso, ao dispor que:

El régimen de desarrollo es el conjunto organizado, sostenible y dinámico de


los sistemas económicos, políticos, socio-culturales y ambientales, que
garantizan la realización del buen vivir, del sumak kawsay. El Estado
planificará el desarrollo del país para garantizar el ejercicio de los derechos,
la consecución de los objetivos del régimen de desarrollo y los principios
consagrados en la Constitución. La planificación propiciará la equidad social
y territorial, promoverá la concertación, y será participativa, descentralizada,
desconcentrada y transparente. El buen vivir requerirá que las personas,
comunidades, pueblos y nacionalidades gocen efectivamente de sus
derechos, y ejerzan responsabilidades en el marco de la interculturalidad, del
respeto a sus diversidades, y de la convivencia armónica con la naturaleza.

De acordo com esses dizeres, o que se entende por progresso não é aquele trazido
propriamente pelo conhecimento do Norte global, que na verdade assinala a crise no
desenvolvimento econômico-social-ambiental por possuir caráter puramente liberal. Na

46
Sumak Kawsay e Suma Qamaña são valores indígenas que não possuem tradução nas línguas coloniais.
O significado mais próximo seria Buen Vivir. No entanto, não possuem conotação a um viver bem utilitarista.
Sumak Kawsay foi consagrada pela Constituição equatoriana. Trata-se de uma expressão Quéchua, idioma
tradicional dos Andes. Sumak significa o ideal, o belo, o bom, realização, plenitude; Kawsay quer dizer viver,
vida digna, harmonia e equilíbrio entre o universo e o ser humano. A postura biocêntrica do Equador, ao
reconhecer a Natureza como sujeito de direitos, demonstra uma alternativa ética de aceitar que o meio ambiente
possui valor intrínseco, ontológico. (ACOSTA, 2016). O Suma Qamaña é uma expressão similar, mas da etnia
boliviana Aimará. Refere-se ao Buen Vivir, relacionada à ideia de olhar o passado, viver o presente, para projetar
o futuro como sonho de vida plena. (ZAFFARONI, 2010). A constituição boliviana não possui caráter
biocêntrico, pois, embora outorgue ideais não liberais, também abarca a clássica ideia do progresso baseado na
apropriação da Natureza. Ainda assim, no processo que quebra paradigmática, são as constituições mais
avançadas nesse sentido.
47
Segundo Zaffaroni (2012), o biocentrismo afirma o direito à dignidade de todos os seres vivos,
incluindo os não humanos, sendo, portanto, uma alternativa ao modelo normativo antropocêntrico.
60

concepção do Buen Vivir, avanço civilizacional é aquele que proporciona garantia de vida aos
seres humanos e inumanos, bem como às futuras gerações48, de forma a alcançar equidade
intergeracional a todos os seres vivos. Essa ética se aproxima das propostas da
sustentabilidade forte49 e da ecologia profunda que reconhecem a interdependência entre
homem-natureza (BOSSELMANN, 2015). No entanto, diferem-se muito pelo fato da primeira
ser fortemente marcada por um viés liberal e a segunda restrita a uma concepção ocidental da
Natureza.50 Por meio das epistemologias do Sul é possível apreender uma nova perspectiva de
vida.
Sendo assim, a positivação do Sumak Kawsay e do Suma Qamaña instauram um
novo marco epistemológico constitucional. A inserção de cosmologias indígenas em textos
constitucionais faz com que os países ameríndios tendam a atender aos anseios da América
Latina. As constituições da Bolívia e do Equador ao inserirem práticas e saberes indígenas –
Sumak Kawsay e Suma Qamaña – cumprem com dois objetivos essenciais:

no campo simbólico, dá destaque à visão de mundo daqueles que foram


marginalizados e excluídos; no plano econômico, aponta os equívocos do
desenvolvimentismo, a partir da realidade periférica. O Bem-viver, assim,
tem uma dupla função: faz uma crítica ao modelo econômico vigente, ao
mesmo tempo que propõe alternativas de reconstrução política, social e
cultural da sociedade. (BRANDÃO, 2015, p. 150).

Acosta (2016, p. 29) explica que o Bem Viver trata de uma “filosofia de vida”, um

projeto libertador e tolerante, sem preconceitos nem dogmas. Um projeto


que, ao haver somado inúmeras histórias de luta, resistência e propostas de

48
Importante mencionar que a justificativa de proteção à Natureza baseada no direito intergeracional e na
sustentabilidade não são suficientemente capazes de garantir-lhe direitos ou assegurar vida a todos os seres, pois
o “montante” natural que se deve deixar às gerações futuras é subjetivo e insuficiente para prever suas
necessidades no futuro. Quanto à sustentabilidade, Bosselmann (2015) tece relevante crítica ao princípio, por
este ser fortemente marcado por um viés liberal. Além do mais, ambos, direito intergeracional e sustentabilidade,
possuem como finalidade à proteção ambiental interesses antropocêntricos.
49
A sustentabilidade forte trata-se de uma abordagem ecologista de desenvolvimento sustentável e difere-
se da sustentabilidade fraca que coloca em paridade de importância a sustentabilidade ambiental, a justiça social
e a prosperidade econômica.
50
Não é o objetivo do presente estudo o aprofundamento dessas questões, limitando-se a mencionar que
muitas das tentativas de fundamentação dos direitos da Natureza encontram-se dentro do paradigma da
modernidade (kantiano, antropocêntrico, liberal ou ocidental). Noções e termos, contidos nessas tentativas, estão
muito ligados a uma concepção ocidental do direito e da Natureza, não possibilitando distintos significados,
como o fazem as epistemologias do Sul. O mesmo pode-se dizer com relação aos “bens comuns” que, de acordo
com Svampa (2016, p. 140-141), “a referência em torno dos bens comuns aparece intimamente associada à de
território. Assim, não se trata exclusivamente de uma disputa em torno dos ‘recursos naturais’, mas de uma
disputa pela construção de um determinado ‘tipo de territorialidade’ baseado na proteção do ‘comum’
(patrimônio natural, social e cultural)”. Portanto, “bem comum”, ainda que se mostre um instrumento eficaz ao
direito à autonomia e ao território de povos tradicionais, está distante da proteção da natureza como um fim em
si mesma. A própria noção de “injustiça ambiental” (FENSTERSEIFER, 2010) não remete à injustiça à Natureza
em si, pois relaciona-se à degradação e poluição ambiental que afeta, principalmente, indivíduos e grupos sociais
de baixo poder econômico.
61

mudança, e ao nutrir-se de experiências existentes em muitas partes do


planeta, coloca-se como ponto de partida pra construir democraticamente
sociedades democráticas.

São vários os exemplos de giro jurídico-social-paradigmático contidos no Novo


Constitucionalismo Latino-Americano. Entre eles está o artigo 306. I.:

El modelo económico boliviano es plural y está orientado a mejorar la


calidad de vida y el vivir bien de todas las bolivianas y los bolivianos. II. La
economía plural está constituida por las formas de organización económica
comunitaria, estatal, privada y social cooperativa.

No marco epistemológico constitucional do Norte, é possível evidenciar, no artigo


citado, as características “estatal” e “privada”. No entanto, o artigo inova ao trazer outras
concepções de organizações conhecidas apenas pelas epistemologias do Sul: comunitária e
social-cooperativa. No mesmo sentido é o artigo 71 da Constituição do Equador:

La naturaleza o Pacha Mama, donde se reproduce y realiza la vida, tiene


derecho a que se respete integralmente su existencia y el mantenimiento y
regeneración de sus ciclos vitales, estructura, funciones y procesos
evolutivos.

Esse artigo deixa claro o tipo de natureza da qual se refere: a Pachamama,


esclarecendo que não se trata da concepção de natureza contida no marco da epistemologia
constitucional do Norte, de caráter puramente liberal. Sendo assim, inaugura o marco do
reconhecimento da natureza como sujeito de direitos, explicado outrora.
Outra característica inovadora, no que tange à Constituição boliviana de 2009, diz
respeito à organização dos poderes. A criação do Órgão Eleitoral como um quarto poder que
atua ao lado dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Com isso, o processo eleitoral
passou a ser conduzido pelo poder Eleitoral Plurinacional, que tem a mesma hierarquia
constitucional dos demais poderes, garantindo maior atuação e interculturalidade à
democracia boliviana.
A Assembleia Legislativa boliviana deve obedecer a dois tipos de cotas para os
candidatos: 50% devem ser mulheres e, dentre os pré-selecionados deve haver candidatos
oriundos da justiça comunitária e/ou indicados por organizações indígenas. Os candidatos ao
Tribunal Constitucional Plurinacional disputarão a eleição em nível regional. A apresentação
dos candidatos ao eleitorado é feita exclusivamente pelo Órgão Eleitoral, pois assim como
qualquer pessoa, não podem realizar campanha eleitoral em favor de suas candidaturas, sob
pena de desqualificação. Os sete candidatos mais votados serão os magistrados titulares do
Tribunal Constitucional Plurinacional, e os sete candidatos seguintes na votação serão
62

suplentes. Pelo menos dois magistrados serão oriundos do sistema indígena camponês
original, por autoidentificação pessoal. Por fim, os eleitos cumprirão mandatos de seis anos,
sem direito à reeleição.
A eleição do Tribunal Constitucional por meio de sufrágio universal, algo já pensado
por Kelsen, trata-se de um método de escolha único na região e no mundo, com características
regionais. No passado, na América Latina, o sufrágio para eleger juízes foi implementado no
México, na Constituição de 1857, na Nicarágua e em Honduras, no século XIX. No entanto,
hoje não existe outro país em que juízes dos tribunais são eleitos por meio do sufrágio
universal. Além disso, qualquer mudança feita na constituição boliviana de 2009 deverá
passar por referendo popular. Só assim as constituições podem ser consideradas realmente
democráticas: se a Constituição é a vontade do povo soberano, só o povo soberano – e não os
poderes constituídos - pode modificá-la (ERREJÓN; SERRANO, 2012, apud DALMAU;
SILVA JÚNIOR, 2011).
Essa ampliação dos poderes constitucionais, instituindo mecanismos de atuação
popular com legitimidade para reforma constitucional, proporciona a integração de
sociabilidades até então invisibilizadas. Assim, supera-se a lógica da democracia
essencialmente representativa de legitimidade participativa que se esgota no ato da eleição de
seus representantes; combate os excessos de regulamentação da modernidade, por instituir
outros parâmetros do que se entende por legal/ilegal; afasta as tendências hegemônicas da
ordem ocidental global. Consequentemente, há uma quebra do padrão de juridicidade que
reproduz o monismo jurídico, ao negar que o “Estado seja o centro único do poder político e a
fonte exclusiva de toda produção do Direito.” (WOLKMER, 2001, p. XV). Nesse mesmo
percurso, Tapia (2007) entende que o Estado assume uma postura correspondente à realidade
social e com a insurgência das demandas da população, configurando uma nova ordem
jurídica amplamente plural.
Dessa forma, ocorre a necessária redefinição não somente das funções do direito,
como também das concepções hegemônicas de direitos fundamentais, rompendo com a antiga
dicotomia entre estes e os direitos humanos advindos do Ocidente, redefinindo, inclusive, a
base do constitucionalismo moderno: a dignidade humana (FLORES, 2009). Isso porque a
dignidade é aquilo que cada povo entende por mais essencial, o que justifica a necessária
redefinição dos pressupostos básicos do jusnaturalismo racionalista-contratualista, face sua
íntima relação com o colonialismo. Como consequência, não há mais definições dos núcleos
dos direitos, pois são diversas as concepções culturais, de forma a entrelaçá-las, bem como as
63

possíveis acepções do que se entende por Bem-viver, configurando um sistema de


alternativas.
A constituição equatoriana de 2008 inaugurou um período de maior estabilidade
política no país. Portanto, o Sumak Kawsay concebe os ecossistemas, as florestas, as
montanhas, as neves e os animais como sujeitos de direitos. As constituições da Bolívia e do
Equador permitem reflexões, não só porque representam um marco instaurado pelo povo, mas
também porque aponta questões que as sociedades são capazes de avançar (ÁVILA
SANTAMARIA; GRIJALVA JIMENEZ; DALMAU, 2008).
O fato de projeto inovador advir de setores marginalizados, fez com que, a princípio,
fosse visto como separatista, divisionista ou mesmo invisibilizado. Foi a pressão popular que
conseguiu que se instituísse a refundação dos Estados, ou seja, a transformação dos Estados
coloniais, capitalistas, patriarcais e monoculturais em Estados plurinacionais e interculturais
como transição para uma nova forma de organização social, política e econômica. O projeto
era consciente de que alternativas poderiam ser encontradas em epistemologias
marginalizadas, excluídas e invisibilizadas, em especial, as dos movimentos indígenas. Por
isso, essa proposta vai muito além de uma refundação do Estado, trata-se de um projeto que
objetiva superar o colonialismo, o neocolonialismo e a noção de desenvolvimentismo a nível
local, regional e internacional.
A pressão social, porém, exigiu que a multiculturalidade fosse reconhecida no
modelo neoliberal. Diante dessa realidade, os movimentos indígenas, articulados com outros
segmentos sociais, pressionaram para que fosse viabilizada a proposta de Estado plurinacional
e intercultural. Uma vez aprovadas as constituições, foram realizados diversos estudos em
diferentes perspectivas, pois as artimanhas coloniais continuam se repetindo. Isso decorre do
fato de serem ignoradas tanto as visões como as concepções das epistemologias do Sul
propostas e, ainda, persistir o olhar epistemológico ocidental sobre a natureza, a vida, o ser.
De acordo com Llasag Fernández (2014, p. 267), e essa é a tese aqui adotada, essas
constituições são a parte formal do que preparará a Bolívia e o Equador para o processo de
transição Estatal, compreendendo-as, portanto, como “constituições de experimentação”.
Portanto, o caminho para a efetivação desse projeto social é longo, mas já está sendo
construído.
Ainda que as epistemologias do Sul sejam importantes ao processo de
descolonização da América Latina, o Brasil nunca adotou constitucionalmente uma. De
acordo com Brandão (2015), a atual constituição brasileira, promulgada em 1988, está longe
de ser considerada um exemplo no marco do Novo Constitucionalismo Latino-Americano.
64

Isso porque, além da não adoção de epistemologias do Sul, inexistiu participação ou consulta
popular para ativação do poder constituinte durante o processo de elaboração, bem como na
ratificação do projeto final da Constituição, o que configura um déficit de legitimidade
democrática.51 Além disso, o contexto histórico-social em que se deu sua elaboração foi logo
após um intenso período de ditadura militar, tendo representantes militares participado do
processo constituinte. “A despeito de recentes tragédias ambientais e do crescimento da
consciência sobre a imprescindibilidade da preservação do meio ambiente em todo mundo, a
agenda legislativa brasileira parece andar na contramão da história.” (AVZARADEL;
TAVARES, 2017, p. 186).
Em termos epistemológicos brasileiros, existem diversas cosmovisões indígenas
capazes de proporcionar um giro jurídico-paradigmático, em sentido similar ao Buen Vivir.
Dentre as tantas epistemologias, encontra-se a da etnia Nambiquara. Os Nambiquara vivem
em pequenas aldeias, organizando-se de forma a não degradar nem desrespeitar os demais
seres da Natureza. Se atentam a não cansar o solo destinado às roças de toco e a não esgotar
os recursos naturais da coleta, da caça e da pesca, atividades que nutrem a vida material e
espiritual.

2.4 A Natureza como sujeito (de direitos)

Para fins deste estudo, qual seja, demonstrar a importância das epistemologias
constitucionais do Sul, volta-se a análise para o último ciclo de Yrigoyen Fajardo (2011),
especificamente no que tange às cosmologias andinas adotadas pelas constituições do
Equador (2008) e da Bolívia (2009). Isso porque essas constituições, ao utilizarem de
epistemologias indígenas, possibilitam uma revisão crítica de dogmas constitucionais
ocidentais tidos como intangíveis e mostram alternativas contra-hegemônicas ao
desenvolvimento econômico, político e social dominantes.
O reconhecimento da Natureza como sujeito de direitos demonstra que o meio
ambiente possui valor intrínseco, ontológico, com um fim em si mesmo. Portanto,
diferentemente de concepções liberais, a proteção da Natureza não se justifica para fins da

51
A falta de participação popular no processo de elaboração e aprovação de normas é uma problemática
frequente em vários países do globo, bem como em âmbito internacional. Acerca de questões ambientais, Parola
(2013, p. 15) defende a necessidade de inclusão, em âmbito internacional, de participação democrática
deliberativa e participativa, bem como de mecanismos nos quais “citizens have real possibility to participate [...]
public should be involved directly in environmental decision-making.” “cidadãos tenham realmente a
possibilidade de participar [...] o público deve estar envolvido diretamente na tomada de decisões ambientais”
(Tradução livre).
65

saúde e do “Bem-Estar” humano. A epistemologia do Norte compreende o homem/indivíduo


como ser racional e, por essa “razão”, difere-se dos demais seres do planeta, como se nada
fosse “humano”, exceto nós, sozinhos, especiais, superiores a habitar o universo e a utilizar
dos recursos naturais como se fossem infindos. Já a epistemologia do Sul não vê diferença
entre os seres que habitam a Terra, pois animais e plantas, ainda que se utilizem dessas
roupagens, possuem uma essência/“alma” “humana”. Portanto, nessa perspectiva, tudo é
“humano”, todos compartilham e buscam equilíbrio – Buen Vivir – no ambiente em que
vivem – Sumak Kawsay e Suma Qamaña.
Ao explorar o pensamento indígena, o brasileiro Viveiros de Castro (2002) aborda a
cosmologia ameríndia dos diferentes sujeitos, “humanos” e “inumanos”, constante nas
normativas cosmológicas. Conforme sua explicação,

os animais são gente, ou se vêem como pessoas. Tal concepção está quase
sempre associada à idéia de que a forma manifesta de cada espécie é um
envoltório (uma ‘roupa’) a esconder uma forma interna humana,
normalmente visível apenas aos olhos da própria espécie ou de certos seres
transespecíficos, como os xamãs. Essa forma interna é o espírito do animal:
uma intencionalidade ou subjetividade formalmente idêntica à consciência
humana, materializável, digamos assim, em um esquema corporal humano
solto sob a máscara animal. (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 351).

Assim, ecossistemas, florestas, montanhas, neves, animais, plantas, artefatos


produzidos a partir de matéria-prima provida pela Natureza, possuem mantenedores
espirituais, uma essência que possui vontades e que é capaz de interferir no cotidiano da
aldeia e para além dela. Por isso que a construção de estradas e de hidrelétricas que perpassam
lugares habitados por esses seres espirituais acabam por refletir no mundo físico e espiritual.
Também por isso que são compreendidos e respeitados pelas cosmologias indígenas. A
capacidade dos espíritos e, eventualmente, dos pajés em adquirirem formas corpóreas
diferentes constitui em um importante foco de interesse dos índios, pois dela pode
depender/anunciar/transmitir desígnios e o encaminhamento/anunciamento de interesses.
Viveiros de Castro (2002, p. 381) recorre ao etnólogo Lévi-Strauss para exemplificar:

Se o corpo é o que faz a diferença aos olhos ameríndios, então se


compreende, afinal, por que os métodos espanhóis e antilhanos de
averiguação da humanidade do outro, na anedota narrada por Lévi-Strauss,
mostravam aquela assimetria. Para os europeus, tratava-se de decidir se os
outros tinham uma alma; para os índios, de saber que tipo de corpo tinham
os outros. O grande diacrítico, o sítio da diferença de perspectiva para os
europeus é a alma (os índios são homens ou animais?); para os índios, é o
corpo (os europeus são homens ou espíritos?).
66

Conceber, constitucionalmente, outras formas de ser e perceber o mundo consiste em


reconhecermos a condição a nós apregoadas pela epistemologia do Norte como latino-
americanos oprimidos, colonizados, invisibilizados, “subdesenvolvidos”, “bárbaros”,
“primitivos”, “tradicionais”. Trata-se de posicionarmos contra qualquer forma de
colonialidade do ser, saber, viver (QUIJANO, 2005). Por isso, faz-se necessário o desvelar
das epistemologias do Sul, pois é aí que serão encontradas as alternativas rejeitadas e
invisibilizadas pela epistemologia do Norte. Nesse sentido, o direito latino-americano é capaz
de cumprir seu papel de refletir e atender aos anseios da realidade, ao abarcar a pluralidade de
perspectivas cosmológicas. Daí que o Novo Constitucionalismo Latino-Americano dá um
salto consubstancial ao conceber a Natureza como sujeito de direitos, pois reconhece o
potencial das epistemologias do Sul para romper com paradigmas coloniais do Norte global.

2.5 A importância do protagonismo social para emersão de um direito latino-americano

O direito pode ser uma ferramenta para colonizar e descolonizar. Como o foco do
estudo está voltado à procura por alternativas descoloniais ao direito, é necessário analisar e
questionar o direito positivo e toda a tradição do formalismo jurídico, bem como o projeto
monista estatista. Nesse sentido, a teoria crítica deve debruçar-se a repensar as estruturas e
institutos jurídico-estatais, bem como a quem representam, a quais necessidades contemplam
e quais interesses atendem.
Para isso, mostra-se essencial uma análise do direito, desde aquele ensinado dentro
das faculdades de graduação e pós-graduação, até aquele empregado por agentes estatais, de
forma a buscar alternativas contra-hegemônicas acerca do direito e seus beneficiados. Assim,
é possível formar advogados, juízes, procuradores, promotores, mulheres e homens, em geral,
mais comprometidos e atentos às questões e interesses populares ligados aos subalternizados,
aos pobres, aos indígenas, aos quilombolas, aos afrodescendentes. Portanto, é necessário
consolidar um ensino acadêmico desenvolvido para a praxe, que compreenda análises críticas
de conjunturas, comprometido com as questões latino-americanas e voltado à
instrumentalização das lutas sociais.52
A partir do estudo epistemológico do constitucionalismo, é possível conhecer as
origens histórico-sociais do direito, demonstrando as razões pelas quais encontramo-nos nesse
estado de coisas. Do mesmo modo, trata-se de saber que na origem do que hoje entendemos

52
Para mais dados sobre o ensino crítico do direito, ver os estudos de Bello; Engelmann (2015), Siqueira
(2016), Veronese (2017), Veronese; Fragale Filho (2015), Japiassú (1976), Bello; Oliveira (2015), Nobre (2003),
Falbo (2015), Bello (2015), Castro-Gómez; Grosfoguel (2007), Quijano (2005).
67

por direito encontra-se uma ideologia que legitima práticas e distribuições de poder. Portanto,
a historicidade contida na epistemologia constitucional se mostra uma ferramenta
imprescindível, no sentido de que desistoricizar significa atingir a identidade dos povos. A
invisibilização da história da América Latina, das suas lutas sociais e das suas epistemologias,
por meio de duvidosas noções de neutralidade, imparcialidade, universalidade, racionalidade,
coloniza o latino-americano, deixando oco e passível de dominação e não-identificação.
Portanto, “Historizar é humanizar; e nada no humano é estático ou procede de alguma ordem
transcendental.” (FLORES, 2009). Isso porque, todo fenômeno social decorre de uma causa
histórica.

É preciso, também, conhecer a evolução temporal dos fenômenos: suas


linhas, seus traçados, suas continuidades e descontinuidades, suas
semelhanças com outros processos, as rupturas temporais que podem
produzir ações sociais que subvertam a concepção unilinear do tempo
(sempre funcional aos interesses dos que atualmente ostentam o poder). [...]
A partir da historicidade/temporalidade, poderemos perceber e assimilar o
caráter “dinâmico” dos processos sociais. Não há nenhum processo estático,
por isso não há um “fim da história”. Tudo é mutável e transformável. É
preciso, porém, afirmar a “processualidade” da realidade. (FLORES, 2009,
p. 131).

Ademais, não é possível compreender a ciência jurídica se não a compararmos com


outras concepções diferentes sobre o direito, de forma a compreendê-la como fenômeno
sociocultural advindo das lutas sociais. Ao revirar o cânone do constitucionalismo, é possível
obter uma consciência da situação que os agentes sociais ocupam e o modo como atuam no
processo de acesso aos bens. É necessário entendê-los como favorecidos ou desfavorecidos no
sistema liberal, se são explorados, se recebem vantagens, se há igualdade formal e material e,
consequentemente, evidenciar como se dá a legitimação do poder Estatal e a capacidade de
reagir dos indivíduos diante de cada fenômeno. Nesse sentido, é imprescindível desenvolver
concepções

que tenham em conta as diferentes formas de perceber, narrar e atuar no


mundo; ou seja, as diferentes formas de lutar por uma vida digna de ser
vivida. Por conseguinte, necessitamos urgentemente ampliar nosso
conhecimento a respeito do que outras culturas entendem pela dignidade
humana. Precisamos realizar algo como uma “leitura contrapontística”, na
qual diferentes vozes sejam escutadas e levantadas em consideração como
um recurso público de enorme importância para visualizar que não é tão
clara a contraposição entre “civilização” e “barbárie”. (FLORES, 2009, p.
129-130).
68

Com relação à “leitura contrapontística”, alhures mencionada por Flores (2009, p.


130), significa contrapor as distintas posições/perspectivas/concepções, a fim de desmistificar
os marcos relacionados ao fenômeno do direito.
Por que, então, continuar insistindo na ciência jurídica, mais especificamente no
constitucionalismo que institui a dignidade humana, direitos humanos e formas de Estado, um
contrato social de origem epistemológico ocidental? A resposta a essa pergunta não se trata de
uma opção pessoal, mas sim da postura político-social dos movimentos populares. Nesse
caso, o Novo Constitucionalismo Latino-Americano demonstra que o constitucionalismo pode
ser utilizado como ferramenta de luta capaz de propiciar o diálogo. Isso porque além das
epistemologias do Sul adotadas, foi originado de baixo para cima, ou seja, a partir da atuação
das camadas sociais menos favorecidas economicamente que demonstraram como utilizar a
constituição como estratégia de luta contra ideais liberais, ainda que esse instrumento seja de
origem ocidental.
Assim, mostra-se possível a apropriação e reformulação do direito por grupos
subalternizados para se defenderem, inclusive, do próprio direito, ainda que o utilizem,
outrora, como ferramenta. Portanto, a resposta dada pelas lutas sociais demonstra que não é
necessário que a América Latina abdique de instrumentos simplesmente por serem de origem
epistemológica ocidental, desde que os utilizemos como ferramenta útil ao diálogo e à
descolonização. Consequentemente, o constitucionalismo demonstra-se transformador da
realidade para alteração do status quo.
As lutas sociais emergidas no Equador e na Bolívia questionavam53: o
constitucionalismo que legitimava um sistema colonial, excludente, assimilacionista,
patriarcal, capitalista e monocultural, fruto das “independências”; a falta de compatibilidade
normativa com a realidade latino-americana e propiciadora de exclusão e marginalização da
coletividade indígena, afrodescendentes, mulheres, crianças; a apropriação da Natureza como
objeto de exploração; o sistema de ensino e a produção de conhecimentos, incapazes de
desenvolver indivíduos críticos, de forma a torná-los facilmente submissos ao sistema e
alheios à realidade latino-americana, uma vez que invisibiliza conhecimentos tão válidos
quanto ao que se entende por “ciência”; o sistema estatal e social racista, baseado em
estereótipos sobre indígenas, afrodescendentes; a família pautada em uma visão patriarcal na
qual a mulher é inferior e incapaz; a relação colonial com outros países; a importação de

53
Protestos indígenas da década de 1990 que exigiam a convocação de uma assembleia constituinte para
elaborar uma Constituição que declarasse formalmente os Estados como multiculturais e pluriétnicos. (LLASAG
FERNÁNDEZ, 2014).
69

institutos normativos pautados em uma teoria política incompatível com a realidade política
dos países latino-americanos.54 (LLASAG FERNÁNDEZ, 2014).
O projeto era consciente de que alternativas poderiam ser encontradas em
epistemologias marginalizadas, excluídas e invisibilizadas, em especial, as dos movimentos
indígenas. Foi a pressão popular que conseguiu que se instituísse esse processo de refundação
dos Estados, ou seja, de transformação dos Estados coloniais, capitalistas, patriarcais e
monoculturais em Estados plurinacionais e interculturais, inaugurando o marco constitucional
de transição que concebe a organização social, política e econômica com características
latino-americanas. As epistemologias do Sul constitucionalmente reconhecidas significam a
abertura para compreensão da identidade de seu próprio povo e a existência de outras formas
de conceber o mundo e de reger relações.
A constituição pode ser um instrumento transformador da realidade, mas há
pressupostos que devem ser considerados e analisados. Para tanto, sua concepção e
fundamentos devem estar atrelados ao contexto de lutas sociais de movimentos latino-
americanos, bem como à análise crítica das epistemologias que é possível abarcar, tanto as do
Sul quanto às do Norte global. Isso é possível por meio de análises históricas, uma vez que
desistoricizar implica conceber o direito apartado da realidade, como fórmula pura, neutra,
imparcial, universal, racional. A epistemologia ocidental invisibiliza a história, as suas lutas
sociais e as epistemologias latino-americanas. Esse ocultamento resulta na colonização e
opressão da América Latina, de forma que ignorar ou desprezar as epistemologias do Sul
implica em deixar o latino-americano oco e passível de dominação e não-identificação.
De acordo com Freire e Faundez (1985), mesmo após séculos da chegada do
colonizador, este deixa sua herança cultural e ideológica embrenhada na mente do dominado,
de forma a fazer parte dele. Essa redução a uma única forma de ver a realidade é denominada
pelo argentino Mignolo (2009) de “privilégio epistémico da modernidade”, geradora e
mantenedora da colonialidade do conhecimento e da subjetividade do ser. Portanto, como já
foi dito, “Historizar é humanizar; e nada no humano é estático ou procede de alguma ordem
transcendental.” (FLORES, 2009). Todo fenômeno social decorre de uma causa histórica.
Assim, mostra-se exequível a apropriação e reformulação do direito por grupos
subalternizados para se defenderem, inclusive, do próprio direito. Portanto, a resposta dada
pelas lutas sociais demonstra que não é necessário que a América Latina abdique de

54
A exemplo disso, pode-se citar a forma geográfica ocidental com que os países são divididos. Os países
latino-americanos não se inserem nesse ideal liberal de Estado-nação, ainda que constituições latino-americanas
concebam seus Estados nacionais como monoculturais. Isso porque, na prática, os Estados são heterogêneos e
pluriculturais, principalmente em decorrência do grande número de etnias neles presentes.
70

instrumentos simplesmente por serem de origem epistemológica ocidental, desde que os


concebamos sob óticas capazes concedê-lo uma nova identidade, uma identidade latino-
americana. Consequentemente, efetiva-se maior aproximação dos instrumentos normativos à
realidade continental latino-americana. O constitucionalismo pode ser uma ferramenta útil ao
diálogo e à descolonização, capaz de transformar e alterar a realidade e o status quo.
71

3. HALUHALUNEKISU: À PROCURA POR ALTERNATIVAS DESCOLONIAIS NO


BRASIL

A experimentação do mundo está ligada a modos de ser, fazer, viver e conhecer que
resultam em diferentes formas de relações entre os seres humanos com os espaços. Nossos
problemas sociais são epistemológicos a partir do momento que a ciência passou a estar na
orifem deles. “Daqui decorre a necessidade de uma crítica epistemológica hegemónica e a
necessidade de invenções credíveis de novas formas de conhecimento.” (SANTOS, 2000, p.
117). O ideal de modernidade influencia todo o mundo e implica na formulação de normas de
comportamento, atitudes e valores pautados na racionalidade do saber e do viver do Norte
global, de característica iluminista, antropocentrista, racionalista, universalista, capitalista,
individualista.
É justamente essa atenção à “colonialidade do poder” (QUIJANO, 2005) que permite
conhecer os povos do Sul e, com ela, nossa própria identidade brasileira. A democratização no
Brasil não se sustenta em teses de matrizes europeias orientadas por ideais da modernidade,
mas em interpretar corretamente (ou seja, à nossa maneira – a do Sul) nossas estruturas
societárias e perspectivas históricas latino-americanas, de forma a sulear o caminho para o
projeto de descolonização.
A identidade que se pauta na concepção colonial moderna, reserva lugar de privilégio
material e simbólico apenas aos povos de aparência branca ou descendência europeia,
impondo, também, inferioridade e desqualificação aos povos não brancos, entre eles, os
indígenas. Essa concepção se fundamenta no “racismo epistêmico” (GROSFOGUEL, 2011, p.
346), versão mais antiga de racismo que compreende os não-ocidentais enquanto seres de
incapacidade racional-epistemológica. Nesse sentido, é necessário que se fortaleça o ideal de
justiça cognitiva. (BALDI, 2014). De acordo com Santos (2000, p. 31),

O domínio global da ciência moderna como conhecimento-regulação


acarretou consigo a destruição de muitas formas de saber sobretudo daquelas
que eram próprias dos povos que foram objecto do colonialismo ocidental.
Tal destruição produziu silêncios que tornaram impronunciáveis as
necessidades e as aspirações dos povos ou grupos sociais cujas formas de
saber foram objecto de destruição.

É necessário reconhecer a infinitude de cosmovisões. Não se trata de transformá-las


em uma amálgama de consensos e diálogos diferenciados, mas de construir um processo
sócio-histórico baseado em um consenso local-imediato capaz de identificar o colonialismo
como forma de ignorância. (SANTOS, 2000). É necessário desvelar outras formas de ser,
72

fazer, viver e conhecer. Nesse sentido, o presente capítulo almeja conhecer a cosmovisão
Nambiquara.

3.1 Origem dos seres (in)humanos

Os índios Nambiquara mais velhos são “homens-memória”55, responsáveis por


transmitir ensinamentos e a história do povo indígena Nambiquara. “Para eles, a história é
aquilo que é guardado na memória, sendo os mais velhos seus guardiões, os memoriosos,
depositários de seu legado e, por isso, muito respeitados.” (COSTA, 2009, p. 34). Para os
Nambiquara,

O tempo na memória confunde-se com o tempo na história. Passado e


presente ocupam lugares distintos e ao mesmo tempo múltiplos, de
conformidade com o momento em que a história está sendo narrada ou
mesmo lembrada, em que o presente é determinante na modalidade
narrativa. A memória é composta por elos de uma mesma corrente
ordenados em consonância com as tradições estabelecidas por sua sociedade
e principiada pelo tempo mítico. A totalidade dessa corrente consiste na
memória coletiva, que remonta a um tempo longínquo. (COSTA, 2002, p.
25).

Eles contam que no início do universo, houve um dilúvio56 ocasionado pela ação do
espírito Waluru, destruindo o mundo. Tempos depois, o Sol, iraladndekisu, e a lua, ilakisu,
reapareceram. Não existiam mais humanos, apenas animais. No entanto, no interior de uma
montanha em formato de pedra, habitava a etnia Nambiquara. Esses índios viviam em
constante alegria, fartura de alimentos e desconheciam a doença e o envelhecimento.
Do lado de fora, habitavam animais e outras espécies de seres vivos que podiam
ouvir vozes que vinham do interior dessa montanha. Alguns, aguardavam que alguém saísse.
O macaco japuçá, hosxasitisu, esperou tanto que a pelagem de seu lombo chegou a ficar
avermelhada. Resolveu chamar a cutia para roer a pedra com seus dentes afiados. Porém, não
resistiram à solidez. Pediu à anta que, inutilmente, tentou quebrá-la. O tatu canastra, com seu
casco áspero, saiu ferido ao tentar lixá-la. O urubu, com voos longínquos, não conseguiu
perfurá-la com seu bico. Foi quando a andorinha da mata, kualihahaitalisu, uma mulher-
espírito, também curiosa para descobrir quem habitava aquela enorme pedra, com uma lança,

55
Metáfora utilizada por Le Goff (1996, p. 429) ao se referir a homens pertencentes à sociedades ágrafas,
“especialistas da memória, genealogistas, guardiões dos códices reais”. Segundo o autor, a memória coletiva é
característica de povos de cultura oral.
56
A água está muito presente nas narrativas Nambiquara, ora como indicativo de morada de espíritos, ora
em cataclismos, que podem ser consultados, principalmente, nas obras de Costa (2009) e Holanda Pereira
(1983).
73

voou longe adquirindo embalo, quando conseguiu abri-la. Dela saíram várias pessoas que
foram morar em determinadas direções apontadas pela andorinha. (COSTA, 2002; 2009).
Fontes orais trazidas por Oberg (1953, p. 96) contam que foi “um pica-pau preto e
branco” o responsável por quebrar a “pedra preta chamada yahaindurukatsu, situada ao norte
da linha de telégrafo, perto de Campos Novos [...].” Holanda Pereira (1983) faz referência a
essa montanha, como sendo a responsável Halukitakalosu, espírito da Mulher Beija-flor, por
abri-la com uma espada. “Não é beija-flor, é igual a beija-flor. Essa mulher ainda existe no
mundo. É bonita e nunca fica velha. Não mora definitivo. Não tem lugar certo para morar.
Dona andarilha. Gosta muito de movimento. Onde tem movimento, ela está.” (COSTA, 2009,
p. 257). Com relação aos Nambiquara do Vale do Guaporé, estes se originaram de cavernas
que denominam de “buracos dos espíritos”, local para ondem regressam após a morte. Essa
caminhada de volta da “alma/sombra/espírito é feita através do xamã”. (VALADÃO, 1998,
páginas não numeradas).57
Para os Nambiquara, “montanhas” (talensu)58 ou “buracos” existentes em seu
território são moradas de “donos” de determinadas espécies de animais. Para os Enawene-
Nawe, “[...] o complexo de morros que formam um continuum entre as nascentes dos rios
Preto/Adowina e Arimena/Olowina, abrigo das falanges espirituais de todos os clãs: sem
dúvida, um dos marcos topográficos mais importantes da cosmologia enawene.” (MENDES
DOS SANTOS, 2006, p. 61). Não foram apenas os seres humanos que saíram da pedra. A
morada os animais, Kaiwasxisu (kaiwa, que significa animais; sxisu, que significa casa), era
um buraco do qual fugiram. Esse buraco localiza-se no campo, Yawensu, próximo à aldeia
Camararé, na Chapada dos Parecis e, segundo Mané Manduca,

[...] próximo à aldeia Vinte, onde assoprou os animais. O dono sempre não
trazia carne de anima, só de cobra. O dono foi embora. O outro começou a
soprar na boca do buraco e começou a soprar e foi saindo e não conseguiu
mais, saiu tudo que bicho. O dono ficou bravo. Às vezes, tem um dono para
cada animal tem o chefe de tudo. Cada animal não tem responsabilidade
enorme que atinge todos. Aí tem um chefe maior. (COSTA, 2009, p. 241).

57
Para saber mais sobre os rituais fúnebres Nambiquara, consultar Costa (2009), Valadão (1998), Holanda
Pereira (1974).
58
Para os Bororo (autodenominados Boe), localizados ao Sudeste da Terra Indígena Nambikwara, as
montanhas também possuem significado, a exemplo do morro Toroári, que salvou o índio Meríri Poro de uma
grande inundação que ocasionou a morte desse povo, segundo a cosmovisão dessa etnia. Para mais dados,
consultar Albisetti; Venturelli (1969).
74

Com relação ao surgimento dos animais, segundo os Nambiquara do Cerrado59, Price


(1989, p. 7-8) relata que “[...] viviam em um grande buraco, e o ‘dono’ do buraco somente
tinha que assobiar para um animal sair [...]”. Em versão similar, Holanda Pereira (1974, p. 29-
30) explica que

[...] Quando um Nanbikuára queria comer carne, ia pedir ao dono. Esse


soprava na boca do buraco e saída algum animal. [...] Um dia, o dono dos
animais viajou e deixou outro homem para cuidar dos animais. Chegou
Nanbikuára atrás de carne. O homem soprou na boca do buraco e saíram um
gambá e uma caninana. – Ah, eu queria uma caça boa! Você não quer soprar
de novo para mim? – Não, eu tenho que fazer como o dono dos animais me
mandou. Só posso soprar uma vez. Mas, o Nanbikuára começou a teimar. –
Eu não sopro. Se você quiser, pode soprar e eu vou embora. O homem saiu e
o Nanbikuára soprou mais duas vezes. Então saíram todos os animais do
buraco, começando pela cutia e se espalharam todos. O Nanbikuára, com
vergonha, não matou nada e foi embora. O homem que cuidava, quando viu
aquilo não disse nada, ficou quieto. O dono dos animais vinha voltando da
viagem e de repente encontrou um tatu cascudo. Tomou um susto e falou: -
Nunca vi esse animal aqui fora! Cavou um buraco no chão, deixou o tatu
cascudo lá dentro. Logo mais entrou uma anta: limpou um lugar para ela e
largou lá. Mais na frente, deu com uns caititus: ajudou todos e ficaram por
lá. Encontrou ainda um macuco: pôs em cima de uma árvore e deixou lá.
Encontrou uma paca: fez um buraco com suspiro e deixou a paca dentro.
Chegou em casa e se queixou com o homem que tinha ficado no lugar dele.
O homem respondeu: - Deixa os animais soltos assim mesmo! Por isso os
animais hoje vivem espalhados.

Os grupos do Vale do Guaporé também acreditam existir um buraco, cuja a guarda o


dono, certa vez, confiou

[...] a dois índios, recomendando-lhes que, em caso de necessidade, só se


utilizassem de um bicho de cada vez. Gananciosos, os índios desrespeitaram
o conselho e os animais fugiram, espalhando-se por todo o mundo. Ao
retornar, o dono completou o castigo, dando a cada animal uma característica
diferente, de forma a dificultar sua caçada. E foi assim que os macacos
subiram nas árvores, a anta passou a dormir de dia e andar à noite...
(MINISTÉRIO DO INTERIOR, 1982, p. 14).

A cartografia apresentada por Costa (2009) expõe lugares espirituais, habitados por
diversas entidades que interagem entre si e com os índios, com pontos de vistas e perspectivas
próprias. Invisíveis aos olhos comuns, se mostram ao wanintesu (pajé)60 com hábitos
antropomórficos correspondentes às cosmovisões reveladas pela tradição oral. Animais se
59
Os Rikbaktsa, moradores da região da bacia do rio Juruena, ao Noroeste de Mato Grosso, descrevem um
lugar perigoso próximo a um paredão de pedra, localizado no rio Arinos, cerca de 7 (sete) horas de caminhada da
Aldeia São Vicente. Nesse local mora um espírito que cuida dos bichos, mandando-os de tempos em tempos.
Para saber mais, consultar Athila (2006). Os Kaiabi do rio dos peixes, também em Mato Grosso, acreditam que
“todos os animais juntos têm um chefe, ou então uma senhora, dona, que é uma velha, a owi. Para saber mais
sobre a cosmovisão dos Kaiabi, consultar Grunberg (2004).
60
Embora não seja comum, o pajé pode ser uma mulher, wanintakalosu (COSTA, 2009, p. 326).
75

veem e são vistos como gentes numa relação de predação, onde a perspicácia de um grilo
pode dominar uma onça. Assim, o mundo Nambiquara concebe diferentes perspectivas: o que
se apresenta como larva de carniça aos olhos humanos, para o urubu é igual ao amendoim que
o índio come. (COSTA, 2009). Esses seres, que são bons, atasu, (nome atribuído
genericamente aos espíritos maus) ou os dois, “desconhecem as linhas demarcatórias impostas
pela FUNAI e, assim, chegam até às cidades, auxiliando e influenciado os kwajantisu.”
(COSTA, 2009, p. 250).

3.2 Montanhas Sagradas, a Casa das Almas

O foco das atenções dos Nambiquara são as “Montanhas Sagradas” ou “Casa das
Almas”, walakatata, um complexo de morros que abriga espíritos ancestrais e outros seres.61
Localizada entre as nascentes dos rios Preto/Adowina e Arimena/Olowina, os Nambiquara do
Cerrado acreditam que é para lá que suas essências/almas seguem após a morte.62
Os Nambiquara do Vale do Guaporé creem que após a morte, o wanintesu (pajé) é
responsável por conduzir a alma do falecido até as cavernas, diferentemente dos Nambiquara
do Cerrado que creem que estas devem ser conduzidas às montanhas sagradas. (MIGLIÁCIO;
ÓPPIO-FIORINI, 1988). MILLS, antropólogo da FUNAI, ao realizar pesquisa arqueológica
nas cavernas Abrigo do Sol, Abrigo Guanabara e Abrigo Wasusu, em território tradicional dos
grupos Wasusu, no Vale do Guaporé, constatou que

Pode ter sido há 9, 10 ou 35 mil anos antes de Cristo. Numa data assim
remota foi que, emergindo de estreitas e escuras grutas, cobertos de terra e
cinza, surgiram os primeiros seres humanos e habitaram o Vale do Guaporé,
no centro-oeste brasileiro. Esse começo de mundo repete a história dos
índios Nambikwara que ali vivem há pelo menos 200 anos e que, fiéis a seus
antepassados, ainda se cobrem de terra e cinza e realizam seus rituais
sagrados nas inúmeras cavernas espalhadas pela região. (MINISTÉRIO DO
INTERIOR, 1982, p. 12).

Os resultados dos estudos de Miller, baseados no teste de Carbono 14, apontam que a
presença dos índios Nambiquara remete a 12.000 anos de idade. (PUT-TKAMER, 1979, p.
72). Assim como ocorrem nas cavernas localizadas no território tradicional dos índios do Vale
do Guaporé, denominados “Buracos dos Espíritos”, o mesmo ocorrem

61
As terras tradicionais Nambiquara abrangem mais de 36 Montanhas Sagradas. O presente estudo opta
por trazer as consideradas mais importantes aos Nambiquara, bem como algumas não contempladas pela
demarcações efetuadas pela FUNAI. Para mais dados sobre elas, consultar Costa (2009).
62
Os Nambiquara do Vale do Guaporé creem que após a morte, o wanintesu (pajé) é responsável por
conduzir a alma do falecido até as cavernas, diferentemente dos Nambiquara do Cerrado que creem que estas
devem ser conduzidas às montanhas sagradas. (MIGLIÁCIO; ÓPPIO-FIORINI, 1988).
76

[...] com as Montanhas Sagradas dos grupos do Cerrado, nessas áreas, num
raio aproximado de 5 km, é proibido caçar, pescar ou coletar, sendo o acesso
permitido a poucas pessoas. Sua localização acha-se ao longo das encostas
da Chapada dos Parecis, desde as proximidades do rio Piolho, ao Norte, até
as cabeceiras do rio Vai-e-vem, ao sul. Nessa faixa, cada um dos grupos tem
sua respectiva gruta, na qual vivem os espíritos de todos os seus
antepassados. (COSTA, 2009, p. 246).

As montanhas sagradas dos Nambiquara do Cerrado abrigam espíritos ancestrais,


bem como seres inumanos. Em seu interior, Eutímio Kithãulhu e Jaime Halotesu explicam
que

Lá só usa coisa da natureza. Lá sem alimentação é difícil: beiju, chicha. Só


mandioca d’água tem lá dentro. E não precisa de açúcar! Aí é que está! Onde
fica roça? Porque lá é só cerrado baixo. Aí é que está. Não acha roça deles
não. Acho roça deles só em sonho. De roupa, eles só vestem enfeite.
Vestuário dele é fibra de buriti, cocar de tucano, colar preta. É muita coisa
que tem lá dentro. Lá dentro eles usam muito colar, chicha, beiju, cuia. Lá
dentro só tem natureza. Tem mel, mas não é mel de Europa, é mel de jati.
Tem pente. (COSTA, 2009, p. 247).

São diversas as Montanhas Sagradas espalhadas no território tradicional dos


Nambiquara do Cerrado. Mané Manduca, do grupo da Serra do Norte, conta que existe a

Wasakalentsu, Casa das Almas, para o lado da aldeia Vista Alegre. Aí tem
muito morro. É buracão fundo! Tem a Montanha do Tucano e a do Besouro.
Indo para a direção do [rio] Camararé, é tudo sagrado, morador de espírito.
Outra é Kalitensu [fora dos limites da Terra Indígena Nambiquara]. Casa das
Almas dos Manduca. Aí tem duas: tem a casa dos animais, Kaiuasisu. O
espírito dos animais mora com os animais. O pajé entra na casa, conversa
com ele e pede para liberar os animais. A outra casa é Waninthalosu. Só tem
alma boa. É diferente; é separado. Essa é só pajé e espíritos dos Manduca,
segundo pesquisa do finado meu pai. Existe também a Tulahulentsu é a casa
dos animais, que já é no campo. A Yalanahaytesu fica perto da cabeceira da
aldeia Serra Azul. Tem a Yaitulhu. Tem a Kalintsu, guariroba do campo, tem
lá em cima da pedra. Natureza, natureza mesmo. Perto da lagoa Yaytulentsu
tem a Tainkaientsu. Tem a Kalulutensu, que passa perto da cabeceira do
Primavera, próximo ao caminho do Propício [seringalista]. Passa, saiu ali no
Titensu. De Kalulutensu dá para ver campo de soja. Tem casa dos animais,
Kalensu. (COSTA, 2009, p. 249).

Para além do rio Juína, um dos limites da Terra Indígena Nambiwara, localiza-se a
Montanha Sagrada Alakakatsu, fora do território demarcado pela FUNAI. Orivaldo, João
Maxixe e Jorge Halotesu contam que ela é habitada por “espíritos da natureza”. De acordo
com eles,

São autoridades, chefes do pequi. Cacique de pequi, dono de pequi. Se não é


ele, não dá pequi. Não é só um. Muito, muito, muito morador do chefe do
77

pequi, como Congresso Nacional. Mulher, homem, criança. Só que não é


peão. É igual aos Nambiquara. Lá é montanha vermelha! Espírito de várias
frutas: pitanga, mangaba, caju, jabuticaba. (COSTA, 2009, p. 251).

Fora da Terra Indígena Nambiquara, há a Montanha Garapeira, Kaluhainkatsu,


Espírito da Natureza e dos Nambiquara. Orivaldo Halotesu e Samuel Kithãuhu contam que
“De vez em quando, [espírito] passa fome e vem comer aqui” (COSTA, 2009, p. 252).
Também fora da demarcação, encontra-se a Montanha do Calango.
As Montanhas Sagradas são protegidas por jaguares, yanalatasu, que auxiliam os
pajés, wanintesu. Costa (2009, p. 250) explica que “As onças continuam atreladas aos
wanintesu; os espíritos, da mesma forma, interagem nas práticas cotidianas dos anunsu,
índios, e kwajantisu, não indígenas.” Por exemplo, se elas “se postam de guardas próximas à
entrada do local, vigiando-o, prenunciam que não há um clima propício ao wanintesu para
visitar o interior das Montanhas Sagradas. Nesse caso, é recomendável retornar à aldeia.
Quando, porém, se encontram no centro destas, indicam que a estada do visitante estará
protegida e será coroada de êxito.” (COSTA, 2009, p. 250). Quando a onça indica que sua
entrada é favorável, ela

Passa a ser o protetor do pajé. A onça vai ser dele. Cada pajé tem sua onça.
Quando o pajé consegue pegar a onça que está no centro [da Montanha
Sagrada], lá dentro ela é agarrada como se fosse um cachorrão. Lá fora, ela
some e se transforma em dente de onça, unha ou ponta do rabo. A onça é a
mágica do pajé! Quando o pajé chega na aldeia, a música aparece na mente
do pajé. A onça está dentro do corpo do pajé. O pajé consegue chegar rápido
na caverna. É um passo para ele, que consegue ir atrás dos pensamentos.
(COSTA, 2009, p. 343).

Entre os Mamaindê, grupo habitante da Terra Indígena Vale do Guaporé,

[...] a iniciação xamânica como um tipo de morte. Ao andar sozinho na


floresta, o futuro xamã leva uma surra de borduna dos espíritos dos mortos
(munnadu) e desmaia (/do-/morrer). Algumas pessoas dizem que os espíritos
dos mortos também podem atingi-lo com flechas. Nesse momento, ele
recebe desses espíritos vários enfeites e objetos “mágicos” (wanin
wasain’du). (MILLER, 2007, p. 185).

Para conhecer as Montanhas Sagradas, também chamada de Casa das Almas, os


jovens aprendizes de wanintesu devem receber seus os ensinamentos. Para tanto, o wanintesu
tem de ser experiente, a fim de controlar situações que venham a acontecer durante o percurso
até esse local. Também é necessário que o wanintesu esteja atento aos acontecimentos de seu
povo. De acordo com Eutímio Kithãulhu e Jaime Halotesu, o pajé deve saber,
78

[...] por exemplo, que bicho que Estevão [Halotesu] matou ontem à noite, o
que ele pegou. Se eu souber, eu posso entrar. Tem gente quer entrar, mas
fica brincando com mulher. Só com a minha mesmo. Brincadeira só de falar,
não pode tocar. O capitão Júlio [Katukolosu] tinha três mulheres, mas ele
tinha conversa dura e o povo acreditava nele. (COSTA, 2009, p. 248).

Os moradores das montanhas sagradas usam indumentárias tradicionais e mantém


comportamentos semelhantes aos dos vivos: dançam, cantam e celebram a felicidade de
estarem juntos. Entendem que só podem adentrar esses lugares se forem alegres em vida!
(COSTA, 2009).

3.3 Wanintesu

Os wanintesu (pajés) são responsáveis por controlar a intensão dos fenômenos da


Natureza, espíritos que devem ser afastados das aldeias. Ter o poder de controlar raios 63,
desviando-os das aldeias, “consiste em um dos principais indicativos de que um wanintesu é
forte.” (COSTA, 2009, p. 259). Devem, também, apreender com os espíritos donos das
Montanhas Sagradas, a exemplo do da Montanha do Grilo ou Montanha do Cantador,
Yaitulahaigatsu, que ensina ao pajé músicas a serem cantadas nas festividades da puberdade
feminina, festa da menina-moça. Portam objetos mágicos em seu corpo, capazes de colocar e
desfazer feitiços, bem como fazer retornar a alma que tenha se retirado do corpo de um
enfermo. Um pajé é considerado “forte”, quanto mais generoso64 for, bem como com relação
à sua credibilidade em ultrapassar os limites territoriais do seu grupo e ter acesso às demais
aldeias Nambiquara.
Os wanintesu, ao dirigirem-se a uma montanha, buscam tornarem-se mais sábios,
bem como renovar seus poderes. Buscam colares de fios de algodão, flauta nasal de pedra,
sem orifícios, que, a depender do entoador, produzem um som. Mané Manduca esclarece que

Para ser um novo pajé, não depende de si mesmo, depende muito da


avaliação corporal pela alma da natureza ou espírito de pessoa da sua família
descendente. Que a vida política tradicional de um pajé tem sua técnica,
sabedoria e conhecimento mágico invisível. (COSTA, 2009, p. 272).

Orivaldo Halotesu explica que

63
Os raios são espíritos maus de cobras com cabeça de ferro, oriundas de dentro da Montanha
Salitanukatesu, enviadas quando os espíritos habitantes dela estão bravos.
64
“A reciprocidade na aldeia é um dos princípios essenciais ao fazer parte do grupo. A falta de
generosidade indica má educação, avareza. Estar em uma aldeia implica permuta constante, e todos sabem quem
deve a quem.” (COSTA, 2009, p. 59).
79

[...] antigamente, uma pessoa era cacique e pajé. Tudo junto! Forte mesmo!
Depois, bem depois, os padres do CIMI [Conselho Indigenista Missionário]
que moravam junto com Nambiquara, dividiram o poder de pajé e o poder de
cacique da aldeia. Ficou separado: um para ser pajé, outro para ser chefe da
aldeia. [...] Eu não! Eu sou igual antigo: sou pajé e sou chefe da minha
aldeia! (COSTA, 2009, p. 288).

Para se tornar um wanintesu, o índio ou índia deve externar essa vontade aos demais
integrantes da aldeia, que será analisada por um pajé experiente. É necessário que abdique da

‘vida de branco’ que vem levando nos último tempos. Estar envolvido com
as coisas do mundo sagrado requer de um wanintesu um comportamente
diferenciado devendo o interessado direcionar seus interesses aos problemas
rotineiros da aldeia. Não é comum a presença constante de um wanintesu nas
cidades. Na concepção de [Mané] Manduca, isso ocasionaria uma grande
interferência em suas ações, principalmente para visualizar e manter contato
com os espíritos, sejam eles do bem ou do mal. [...] Afastado da maior parte
das atividades desempenhadas pelo sexo masculino, principalmente daquelas
voltadas à agricultura, o wanintesu reserva grande parte de seus dias a
percorrer uma extensa área, a organizar cerimônias de cura e a manter
contato com entes de seu mundo religioso – ‘as almas da natureza’ – os
espíritos sobrenaturais – e os ‘espíritos de uma pessoa que morreu’ – as
almas de seus ancestrais. (COSTA, 2009, p. 263 e 264).

A complexidade das incumbências atribuídas às atividades de um wanintesu o


impossibilita de ter disponibilidade para práticas de subsistência. Isso porque constantemente
realizam visitas às demais aldeias, para prestar assistência aos doentes, quando alguém
desaparece ou em decorrência de outra situação. Outro motivo pelo qual se afasta de tais
atividades, a exemplo da caça, ocorre porque os animais são

espíritos ancestrais ou da natureza. [...] são nossos parentes e pajé quase não
caça, porque caça é gente. [...] Quando a pessoa é pajé, não encontra caça, é
pessoa mesmo. Às vezes, parece filho dele mesmo, só para escapar. Quando
começa a virar pajé, difícil comer caça. Dificilmente encontra animal: cobra
se transforma em gente para enganar pajém mas, não isso a qualquer hora.
(COSTA, 2009, p. 276).

Ao passar do tempo, os wanintesu tornam-se mais experientes, sabendo diferenciar


espíritos de animais, bem como para irem sozinhos nas Montanhas Sagradas. Mané Manduca
e Orivaldo Halotesu explicam que

A gruta é onde os pajés renovam sua magia. Eu nunca visitei. Eu só fui


muito pequeno, sete ou oito anos de idade. É um morro alto, de 10 metros de
altura, sei lá. É uma gruta, não tem buraco, não tem porta. Ela fica no meio
do cerrado. Só quem consegue entrar é pajé. Ele consegue entrar e muito
espírito mora lá dentro. Eu sou pajé novo, mas eu não sou reconhecido por
aquele grupo. [...] Dizem que tem um lugarzinho para entrar. Se eu não
tenho conhecido lá dentro, eu posso ser eliminado. O chefe que mora lá perto
80

da gruta, ele fala: - acende a lâmpada aí. Na verdade, ele está falando para o
peão dele acender o raio. Eu sou desconhecido, novo e eles não me
conhecem. Quando ascende a lâmpada, ele estoura você! Agora, se tem
conhecido lá dentro, algum que chama você de neto, parente, ele aceita você.
Na montanha, lá dentro, tem muita massa de pequi. Lá, eles têm muito
pequi. Ele fornece para você e não pode comer bastante, senão morre lá
dentro, porque ultrapassou a quantidade de comer. Tem que comer pouco.
(COSTA, 2009, p. 279).

Os wanintesu também buscam adquirir sabedoria na Haluhalunekisu, uma gigantesca


figueira de raízes compridas que alcançam a morada dos índios e não índios. Sob suas raízes,
estão as águas dos rios, das cachoeiras, dos córregos, dos rebojos, lugares sagrados, como a
Casa das Almas. O único que tem acesso a ela é o pajé, que

[...] vai até Haluhalunekisu para buscar sabedoria para curar doentes.
Qualquer sabedoria de cura, de bicho, de fruta, de vida. [...] Várias
orientações que busca [...], traz orientação de diversos animais, diversos
insetos. Tudo, tudo, tudo! Assim que esse pajé volta de Haluhalunekisu para
este mundo, aqui na terra, aparecem vários tipos de bichos, vários tipos de
insetos, vários tipos de frutas, marimbondo. Enfim, ele traz desse lugar.
(COSTA, 2009, p. 305).

De acordo com os estudos de Costa (2009, p. 285), “É praticamente impossível, para


um estrangeiro recém-chegado a uma aldeia Nambiquara, reconhecer, entre os demais
homens, a figura do pajé, wanintesu, principalmente fora das sessões de cura.” Isso porque
são muito discretos e, a maioria, de poucas palavras. Fumam demasiadamente e, quase
sempre, estão sozinhos e, se acompanhados, ao lado de sua esposa. Constantemente são
acompanhados por espíritos ancestrais, tetenjahlosu ou yãinyahlosu e mulheres-espíritos,
ãyãukatisu ou wanindakalosu que não fazem cura, mas ajudam e ensinam cantigas.
O pajé possui objetos que trazem mais poder, a exemplo do dente e couro de onça,
yanalawisu, a pena, tautawetisu, concedida pelo gavião que habita Haluhalunekisu, a árvore
sagrada. Tautawetisu o faz voar até esse frondoso vegetal, representado por uma figueira.
Possui, também, a flauta nasal, alatasu, mencionada alhures, colar, kartisu. Carrega um
coração de algodão que o auxilia a desvendar se seu paciente está bem ou não, utilizando-o
para curá-lo. Além disso, tem o poder de transmutar-se em onça, yanalatasu. São raros os pajé
que detêm o “poder do trovão. [...] O papel intermediador do wanintesu entre o visível e o
invisível, por conseguinte, interfere na constante luta pela sua sobrevivência e dos demais
Nambiquara.” (COSTA, 2009, p. 274 e 275).
Guardado em uma cabaça, utilizam de um tipo de fumo próprio para a pajelança,
etsu, que não é para fumar, mas para espantar espírito mau. Alguns objetos são próprios a
esses sessões de cura, wãninkisã, tais como
81

[...] colares de coco tucum e canutilhos de tabocas, narigueira com a pena do


gavião que habita a Montanha Sagrada Haluhalunekisu. [...] Portam espadas,
halukisu, correspondentes àquelas existentes na narrativa mítica, como, por
exemplo, a utilizada pela mulher-espírito, Ehensu, representada por
Hulihaihaitalisu, uma andorinha da mata que conseguiu rachar a montanha
de pedra, sua própria morada, para que as pessoas que ali estavam pudessem
sair e edificar suas aldeias. (COSTA, 2009, p. 314).

Também possuem objetos que são guardados dentro de si, a exemplo de um colar.
Milton Halotesu conta que

[...] fica no pescoço ou segurando. As pessoas só conseguem ver este colar


no momento da cura. Quem faz o colar é o espírito. Feito de algodão. Tem
várias voltas. Quem usa o colar de algodão é o espírito de cura. O pajé fica
quietinho, parece que não sabe de nada. [...] Dependendo da doença, o colar
de algodão, feito pelo espírito para usar durante a cura, pode embolar,
conforme a doença. [...] O colar não fica no pescoço, fica dentro dele.
(COSTA, 2009, p. 315).

A seguir a trilha de Costa (2009, p. 317), “O wanintesu precisa buscar esses objetos
na Montanha Sagrada, onde espíritos ancestrais e sobrenaturais o guardam.” Os wanintesu
podem receber diversos castigos, podendo enfurecer Dauasununsu, o deus supremo
Nambiquara, moradir da Figueira sagrada, Haluhalunekisu, que pode pegar de volta toda
aquela sabedoria, principalmente se praticar adultério, deixando sua esposa-humana e esposa-
espírito muito tristes.
Além de sua esposa humana, unem-se a uma mulher-espírito, se essa o escolher,
tendo a liberdade de deixá-lo se ele lhe causar alguma dor, não satisfazerem seus gostos
alimentares ou em decorrência de condutas ruins como relacionamentos extraconjugais. Ela
nunca morre, não envelhece, nunca se casam. Dessa união ela se torna mulher-pajé,
wanintakalosu, e ensina músicas e conhecimentos fitoterápicos ao wanintesu. Se dá muito
bem com a esposa-humana do pajé, pois ambos sabem que sua companhia traz proteção
contra espíritos sobrenaturais maléficos. As relações sexuais entre o pajé e a mulher-espírito
proporciona fartura à aldeia, bem como o nascimento de uma criança-onça que acompanhará
o pajé até sua morte, momento em que ambos passarão a habitar a Montanha Sagrada.
O repertório musical do wanintesu é extremamente vasto e poderoso. Isso porque, de
acordo com Jonatas Kithãulhu,

O canto chama o espírito curador para ver que doença é. O espírito fala para
o pajé que doença ele tem. Tem próprio colar dele. Esse colar que ele tem no
corpo vai curar o doente. O canto vai chamar o espírito que chega e vai
examinar o doente. (COSTA, 2009, p. 304).
82

Os filhotes-onças de wanintesu e sua esposa-espírito, são crianças e vivem e,


posteriormente, vão para as Montanhas Sagradas, quando da morte de seu dono, o wanintesu.
Essas crianças-onças têm a incumbência de proteger os Nambiquara. (COSTA, 2009).

Para o wanintesu, possuir uma onça gerada da relação sexual com sua
esposa-espírito indica que ele dispõe também de sua proteção e tem acesso,
durante as sessões de cura, principalmente aos conhecimentos fitoterápicos
que ela poderá lhe ensinar. (COSTA, 2009, p. 343).

Portanto, ao casar-se com uma mulher-espírito, os poderes de wanintesu aumentam,


na medida em que nasçam crianças-onça de sua relação, originando, também, uma grande
variedade e quantidade de frutas. A mulher-espírito, wanintakalosu, tem liberdade de procurar
homens-wanintesu para se casar, diferentemente das mulheres Nambiquara. Isso porque,
como são espíritos da natureza, não possuem parentescos com os Nambiquara, são livres para
escolher aquele que mais lhe agrada e permanecer ao seu lado durante o tempo que desejarem.
Se seu esposo-wanintesu ou os moradores de sua casa lhes causarem sofrimento, não lhes
derem comida, a mulher-espírito poderá deixa-lo, ficando novamente disponível para outro
laço matrimonial. Costa (2009, p. 350) informa que “[...] os wanintesu somente se casam com
mulheres-espíritos da natureza quando são escolhidos por elas” e mais:

Na leitura e interpretação que os Nambiquara fazem da vivência do


wanintesu, que interage com a instância mítico-religiosa, na companhia de
sua esposa-espírito e na relação que estabelece com os demais seres
inumanos – ressignificam suas práticas sociais, numa busca constante de um
viver harmonioso, com fartura alimentar, enleado pela alegria. (COSTA,
2009, p. 354).

O wanintesu é o “construtor do mundo Nambiquara” (COSTA, 2009, p. 352), pois é


interlocutor e responsável pela intermediação das vontades dos seres. Além de outras
atribuições, o wanintesu é responsável pela mediação e interpretação de sonhos e das
vontades dos seres, como uma “política cósmica” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002). Por ser o
mantenedor da ordem social e espiritual, conduz os rituais de cura65 dos males e dos
infortúnios de seu povo. Uma das tarefas mais complexas é a de cuidar da Figueira
Haluhalunekisu.

65
Para mais dados sobre as práticas de cura entre os Nambiquara, consultar Lévi-Strauss (1975).
83

3.4 Os seres das águas

Os rios, renomeados pela cartografia oficial, influenciam as ocupações territoriais


pelos Nambiquara, pois podem pertencer à moradia de inúmeros seres fantásticos. As águas
abrigam espíritos maléficos, alguns com hábitos antropofágicos.66 A água

[...] é a substância que melhor se oferece às misturas, a noite vai penetrar as


águas, vai turvar o lago em suas profundezas, vai impregná-lo. Às vezes a
penetração é tão profunda, tão íntima que, para a imaginação, o lago
conserva em plena luz do dia um pouco dessa matéria noturna, um pouco
dessas trevas substanciais. (BACHELARD, 2009, p. 220).

Os seres maléficos, habitantes das águas, estão sempre dispostos a se defender e


atacar. Ainda que os espíritos ancestrais protejam os índios para que não os encontrem, esses
seres inumanos criam situações para cruzarem seus caminhos. Os Nambiquara acreditam que
“o simples fato de vê-los pode levar à morte, caso não seja um wanintesu.” (COSTA, 2009, p.
217). Por isso, os wanintesu são responsáveis por indicar os locais apropriados à presença
humana, ensinar seus nomes, suas aparências físicas e seus hábitos, a fim de que reconheçam
esses seres e saibam lidar com as circunstâncias. Orivaldo Halotesu conta que

[...] viu o espírito da cachoeira. Marquinho [seu filho] que viu primeiro. Eles
foram espiar o espírito. Anael e Marquinho [seus filhos] correram. Eu
conversei com o espírito que não veio para matar, mas para pescar. Tocar
flauta de nariz ele gosta, ele aparece. Se gritar na beira do rio, ele vem [imita
o som do espírito da cachoeira]. Ele não gosta da cor vermelha, branca. Ele
gosta da cor preta. Ele não corre, mas quando mergulha, sai igual peixe. Ele
não gosta de sol. Igual peixe, quando sai fora d’água, ele morre. (COSTA,
2009, p. 216).

A maioria dos nomes dados aos rios pelos Nambiquara remete a espécies de vegetais
frutífero ou não que se associam às mulheres-espíritos.

[...] ‘todo rio tem espírito de peixe’, ‘toda cachoeira tem animal’, essa
hidrografia encantada representa a morada de muitos seres sobrenaturais, em
especial, do casal de peixes Kikayãulhu e Kikayãuli. Essa espécie pode estar
em vários córregos e rios, pois lhe cabe a capacidade da reprodução. [...] se
sai fora d’água, ele morre. [...] Tem mão de gente. É perigosa. Se ela morrer,
morre peixe, seca água, diminui água. Tem homem e tem mulher. Ela é dona
do rio, do peixe, tracajá e jacaré. Também gosta de água suja. O pajé pode ir
lá para cantar para ele para não ficar triste, mas é muito perigoso. (COSTA,
2009, p. 216-217).

66
Na cosmovisão dos índios Kaiabi, moradores das terras próximas aos rios Teles Pires, dos Peixes e do
Xingu, em Mato Grosso, a água também são moradas de seres inumanos. Para saber mais, consultar Grunberg
(2004, p. 202).
84

O canto do pajé alegra Kikayãuli, pois “ao agredir sua morada com a derrubada das
matas próximas às corredeiras e cachoeiras, ele pode ficar triste e vir a falecer.” (COSTA,
2009, p. 217). A morada preferida de Kakayãuli são as cachoeiras. Segundo Orivaldo
Halotesu (COSTA, 2009, p. 217),

[...] é parecida com gente e seu pé é parecido com lobó [peixe]. Tem mão de
gente. É perigosa. Se ela morrer, morre peixe, seca água, diminui água. Tem
homem e tem mulher. Ela é dona do rio, do peixe, tracajá e jacaré. Também
gosta de água suja. O pajé pode ir lá para cantar para ele para não ficar triste,
mas é muito perigoso.

Conforme pesquisas de campo de Costa (2009, p. 217), Fuado Sawentesu, explica


que “[...] quando derruba [a mata] fica muito quente; o mesmo acontece com o rio. Tem que
cuidar, proteger rio para não secar, diminuir água ou acabar com peixe.” Segundo descrição
dos índios, Kikayãulhu é similar às sereias, no sentido de sua beleza e de ficar à espreita de
homens quando estão sozinhos em seu habitat. Possuem cabelos longos e negros. Encantam
os homens com seu canto e carícias, a fim de conduzi-los às profundezas das águas. Existem
relatos de índios que jamais retornaram. Existe outro ser, o Uakanasu. Encontrar pedras
partidas apontam a passagem ou presença desse ser mítico.

[...] Uakanasu fica no rio, companheira de Kakayãulhu. Qual o papel delas?


Pegar a pessoa e consumi-la. Por debaixo tem um buraco, lá que tem alma
perigosa, espírito da natureza. Ela mora lá embaixo, lá dentro é água. Ela é
muito bonita, só que é ruim, ruim. Na pesquisa de Samuel, ele encontrou
aqueles pedaços de pedra. (COSTA, 2009, p. 218).

Além desses seres, os Nambiquara também temem o casal de espíritos Kikiãulhu que
habitam pequenos córregos.

Esses seres, tanto os do sexo masculino quanto os do feminino, têm corpos


brancos e cabelos compridos. Gostam de se mostrar asseados e sempre com
a aparência de gente nova, jamais envelhecendo. Ambos adornam as cabeças
com aro de pena de arara vermelha. [...] Percorrem as águas na companhia
de ariranhas. Temerosos de seus castigos, os índios não matam e não comem
a ariranha porque podem contrair doença e morrer em consequência do vento
que adentra o corpo da vítima e percorre sua corrente sanguínea. (COSTA,
2009, p. 218).67

Os seres inumanos estão, na maioria das vezes, relacionados a lugares específicos do


território Nambiquara. Fuado Sawentesu relata que

67
Sobre os demais seres habitantes das águas dos territórios Nambiquaram, como o Alaaintzu ou
Alaatasu, o Alutzu, o Uakanázu, os Kikiãulhu, o Uakalatasu, o Podntzu, o Ualuru, a Alunlahatasu, Tihatasu,
consultar Costa (2009) e Holanda Pereira (1973).
85

no rio Juína, Sisunjausu (rio da Água Fria ou rio da Bunda Fria), abaixo da
foz do córrego Água Bonita, Wasakikuyausu, que quer dizer rio do Coró
Taturana, [...] tem cachoeira bem braba! Odair [genro de Paulo César
Sawentesu e filho de Fuado Sawentesu], pequeno ainda, Evaristo [seu filho],
eu pai, Reginaldo, eu. Arrasta barco, passou bem grande, cabelo meio preto,
sentado no meio da pedra, no meio do rio. Depois de remar para chegar lá
[na pedra], não achar nada. [...] meu nariz saiu sangue. Me assustou. Pássaro
bem grande. Eu estava pensando urubu. Todo mundo está enxergando. Me
assustou mesmo. Quase desmaiei. Meu nariz ficou com cheiro de sabonete,
perfume, gosto ficou ruim. Por isso, pessoal tem medo de pescaria. Agora eu
fiquei teimoso ao entrar na cachoeira também. Se arara vermelha sai debaixo
da cachoeira, você não fica vivo. Nunca encosto nessa cachoeira! (COSTA,
2009, p. 221).

Os Nambiquara optam por construir suas casas longe das águas, se instalando no
campo e também pelo hábito de dormirem diretamente no chão. Isso impede que seus filhos
cheguem facilmente às águas e também como uma forma de respeito à morada desses
espíritos.

A documentação cartográfica oficial em nenhum momento privilegiou a


taxonomia Nambiquara. Muitos nomes de rios, córregos e outros acidentes
geográficos reconhecidos ancestralmente por esses índios foram renomeados
por Cândido Mariano da Silva Rondon, durante a passagem da Comissão
Construtora de Linhas Telegráficas Estratégicas de Mato Grosso ao
Amazonas, mais conhecida como Comissão Rondon, entre os anos de 1907 e
1908. (COSTA, 2009, p. 224).

Os índios se orientam, cartograficamente, pelos córregos e rios, que “são os


primeiros traços na cartografia improvisada na areia fina do pátio das aldeias” (COSTA, 2009,
p. 223). Há córregos com nomes de pássaros, a exemplo do sabiá e gavião, bem como de
insetos, de peixes e de “adornos corporais, como o córrego Yalauliyausu (Rio onde caiu a
pulseira da cauda-de-tatu de uma criança”. (COSTA, 2009, p. 38). Esse último córrego
corresponde, na cartografia oficial como Serra Azul (Yalauliyausu), “um dos afluentes do rio
Sisunjausu (Juína), que nasce fora dos domínios oficiais dos Nambiquara e banha a aldeia
Serra Azul.” (COSTA, 2009, p. 38).

3.5 As plantas

É possível constatar que “No mundo material há a prevalência da figura masculina na


orientação das atividades cotidianas que se contrapõe à feminina, e esta, ao contrário, destaca-
se no espiritual, conforme os relatos dos wanintesu e demais índios.” (COSTA, 2009, p. 353).
86

Os vegetais, a exemplo do buriti e do pequi, também possuem entidades mantenedoras68 cujas


vontades devem ser respeitadas. Esses seres podem adquirir outras formas/roupagens,
inclusive a humana, pois abrigam em seu interior essência análoga às pessoas, podendo falar,
cantar, comer, dançar. Alguns, inclusive, possuem artefatos (armas, adornos, objetos) iguais
aos dos índios. Entre seus pares, se veem como pessoas e somente o pajé tem a faculdade de
descortinar sua verdadeira aparência, interagir com eles e, a depender de sua força, submetê-
los à sua vontade.

[...] a ligação homem-vegetal-animal estabelecida nesses dois espaços –


visível e invisível –, onde a passagem de um para o outro se transpõe por um
fio extremamente tênue, diversas narrativas mitológicas demonstram que
humanos, espécies vegetais e animais, além de dividirem o mesmo espaço,
comunicam-se. Mesmo que seja adotada uma forma diferenciada de
linguagem, compreensível apenas ao wanintesu, ligam-se por afinidade, grau
de parentesco e até por amor. (COSTA, 2009, p. 330).

Os pajés são os mais habilitados para identificar as espécies/categorias de espíritos


que transitam pelo seu universo. Estão constantemente em perigo, pois “pagam bem caro pelo
privilégio de serem reconhecidos como árbitros do infortúnio alheio.” (DESCOLA, 2006, p.
390). “Relações sexuais mantidas entre seres humanos e inumanos, ou, até mesmo, com
representantes da fauna e da flora, são comuns na narrativa mitológica de diversos povos
indígenas.” (COSTA, 2009, p. 340).

[...] como resultado de relações amorosas entre seres humanos e inumanos,


com características peculiares, acredita-se que todas as frutas têm alma e, por
isso, devem ser respeitadas. Atribuir sentimentos às frutas, no caso, o
respeito, significa especialmente que não podem ser comercializadas. [...]
Assim como na vida cotidiana, o vegetal é associado ao sexo feminino,
mulheres-espíritos que simbolizam vegetais (frutas, principalmente) e
denominam Mulher Pequi, Mulher Mangaba, Mulher Jabuticaba do Campo,
Mulher Pitomba, Mulher Caju do Campo, Mulher Fuso. Elas são as donas
das frutas. [...] Frutos, que também são espíritos sobrenaturais e possuidores
de alma, independentemente de sua espécie, não nascem somente das
cópulas entre homens-wanintesu e mulheres-espíritos. (COSTA, 2009, p.
341-342)

A forma de conceber a vida na cosmovisão Nambiquara resulta em


comprometimento de respeito nas relações. Preocupam-se com as vontades da natureza, não a
objetificando nem se apropriando dela, pois percebem-se também nela e parte dela.

68
Existe a Moça do Pequi ou Mulher do Pequi que, de acordo com Price (1989, p. 686), é “[...] uma jovem
bonita que mora na Aldeia dos Espíritos, com outros Espíritos Eternos.”
87

3.6 Haluhalunekisu: a abóboda celestial

Halu, halu é o choro da mulher-espírito, dona desse vegetal, representado para os


kwajato como uma árvore da espécie figueira. Price (1972, p. 603-609) várias vezes faz
menção a essa árvore como “a grande árvore do mundo”. Miller (2018, p. 131) chama-a de
“halohalodu” e “a árvore que segura o céu”. Costa (2002, p. 97) explica que “Nas raízes da
enorme figueira que descem até à terram moram índios e brancos, ambos possuindo o mesmo
sangue.”

Os Nambiquara creem que na abóboda celestial existe uma enorme Figueira,


Haluhalunekisu, de imensas raízes envolvendo a terra de todos os homens.
Halu, halu representa o choro da mulher-espírito, dona da Figueira nativa,
encontrada com regularidade nas matas ciliares do território dos Nambiquara
do Cerrado; nekisu significa árvore. Assim, Haluhalunekisu é a “árvore do
choro”. Dauasununsu, ser sobrenatural, conhecedor de todas as coisas, reina
nesse frondoso vegetal de copa verdejante. (COSTA, 2009, p. 199).

Na Haluhalunekisu mora o Dauasununsu, ser sobrenatural conhecedor de todas as


coisas. Aves e curiangos, também habitantes da Halu são responsáveis por frequentar a Terra,
a fim de procriarem nas estações chuvosas, retornando à Figueira somente quando seus
filhotes estiverem crescidos. Haluhalunekisu é um “lugar limpo e bonito e que não tem início
nem fim. O cenário é um lago redondo, onde habitam um pássaro amarelo e um pato. Há
também quatro árvores e em cada uma delas moram a libélula amarela, a azul, a vermelha
[...].” (COSTA, 2002, p. 142).
As libélulas, watitinsu, com o passar do tempo, aprenderam a fazer chover na
quantidade suficiente a fim de não causarem novos dilúvios. (HOLANDA PEREIRA,
1973).69 O único sobrevivente ao dilúvio foi um velho que, com a ajuda das almas que lá de
cima da Figueira observavam a tudo, o ensinaram a subir na Fiqueira por meio de um cipó, de
olhos fechados e sem se mexer. Assim, o velho ensinou aos watitinsu acerca da época
propícia às chuvas. (HOLANDA PEREIRA, 1974). Isso foi bom, pois watitinsu, ao agitar a
água da lagoa com seus pezinhos e fazer chover demais, fazia com que os Nambiquara não
pudessem caçar, pois estes não viam mais o rastro das caças. A derrubada também não
secava, impossibilitando o plantio de mandioca. Também fazia muito frio. Jaime Halotesu
conta sobre os animais que moram na Figueira:
69
“[...] o mundo dos Nambiquara já acabou por várias vezes: uma ocasionada pela ação de Walulatasu,
um tatu sobrenatural, que de tanto fazer buracos nas margens dos rios provocou uma inundação, e a outra,
causada pelos watitinsu [libélulas], que ao baterem incessantemente suas patas na lagoa de Haluhalunekisu
provocaram a submersão do mundo Nambiquara.” (COSTA, 2009, p. 200). Na descrição de Oberg (1953), é
dinínuwa, um pequeno pássaro vermelho, o responsável pelo dilúvio, em decorrência do excesso de sua urina
que, ao transbordar, faz chover na Terra.
88

Lá tem muita gente! Tem vários bichos lá! Tem urubu. Ele faz sacanagem.
Urubu come carne de carniça, carne estragada: boi morto. Onde tem lixo, ele
pega também. Mas, significa que urubu não come carne estragada não! Ele
come carne boa. Ele tem mapa dele. Ele sabe onde tem carne estragada.
Quando tem visão do urubu, se carne carniça, se onça comeu bicho, ele vai
certinho. Urubu come carniça, mas não come carne estragada. Aquela larva
tem bastante em cima da carniça. Igual castanha de amendoim do índio.
Mas, se comer, faz mal. Só urubu pode comer. (COSTA, 2009, p. 200-201).

Nela, há também walulatasu, um tatu destruidor do mundo, que tenta devorar as


raízes desse frondoso vegetal. Tem também o urubu e, em sua copa, o gavião, dautatasu,
temido pelos seres que habitam Halu e por experientes wanintesu. Um dos motivos de ser
temido, é por possuir hábito antropofágico e utilizar ossos para estruturar seu ninho feito
nessa árvore70. É bravo e possui pernas e unhas compridas. Frequentemente desce de sua
morada, Haluhalunekisu. (COSTA, 2002; 2009).
O gavião possui poder mágico cuja pena, cedida ao wanintesu, transfere poderes e
enfeita seu rosto. A narigueira emplumada com a pena de dautatasu confere-lhe a faculdade
de voar e viajar até a copa de Halu. Orivaldo Halotesu explica que o wanintesu “[...] tira a
pena desse gavião, que é muito grande, para enfeitar seu rosto e serve para ele voar.”
(COSTA, 2009, p. 314). Mané Manduca explica que

Haluhalunekisu, Figueira, de tronco grande. Os galhos se abrem, se


estendem. Haluhalunekisu tem que ser recuperada. Aparece na música de
pajé: ‘o filhote de gavião está chorando’. Essa Figueira está no universo.
Não pode subir na parte da manhã, só na parte da tarde, porque é muito
quente. Avião de pajé é anjo. Tem que fazer limpeza porque debaixo dela
está muito sujo e tem que fazer limpeza. Aí sim, o tempo no mundo vai
voltar ao normal! O tatu está desmoronando o mundo para provocar o pajé.
Ele é demônio e se o pajé não conseguir eliminar o tatu, o tatu pode eliminar.
O gavião de Haluhalunekisu tem poder mágico. O pajé tira a pena desse
gavião, que é muito grande, para enfeitar seu rosto. (COSTA, 2009, p. 201).

O choro do filhote de dautatasu denuncia a necessidade de limpeza para


revitalização da árvore. Por isso, wanintesu, ao alcançar a copa da Figueira para renovar seus

70
Oberg (1953, p. 99-100) relata sobre a existência desse gavião, Tauptu. Segundo ele, Tauptu “[...] é um
imenso gavião com enormes asas, rabo e garras, que vive pousado em uma árvore feita de ossos humanos. Essa
árvore [lúlukatsu] situa-se na praia de um lago raso no céu. Quando o tauptú defeca à noite, o resultado são
estrelas cadentes. Um pequeno pássaro vermelho [dinínuwa], que vive com taúptu, urina no lago e, quando o
lago enche, a urina transborda e cai sob a forma de chuva. O tauptú não provoca doença diretamente, mas
quando as pessoas ficam doentes, ele começa a devorar-lhes a carne até mata-las e depois leva seus ossos para
seus próprios domínios no céu.” Miller (2007, p. 155-156) relata que em cima da halohalodu, também da espécie
Figueira, “[...] o ‘dono’ do gavião [kokadadu] faz seu ninho com os restos dos ossos e dos cabelos que ele rouba
dos Mamaindê. Os Mamaindê dizem que o xamã deve ficar sempre atento ao canto do gavião real. Quando o
gavião canta à noite, o xamã deve ir até a grande Figueira e chupar seu tronco, retirando possíveis larvas que
possam fazê-lo apodrecer. Assim, ele evita que a Figueira caia, o que faria o céu tombar sobre os Mamaindê”.
89

poderes junto a Dauasununsu, além de receber os nomes das crianças que estão para nascer,
possui a tarefa de limpeza da Haluhalunekisu.

Para os Nambiquara, a purificação de Haluhalunekisu faz-se necessária para


o equilíbrio do mundo dos índios e não indígenas. Essa tarefa é instigada
pelo repertório musical de wanintesu, entoado nas sessões noturnas de cura.
“O filhote de gavião está chorando” porque “debaixo dela está muito sujo”.
Essa impureza refere-se aos desacertos relacionados às atitudes dos
habitantes da Terra. Com o enfeite nasal de pena, viaja para a copa da
Figueira. Na visão dos Nambiquara, o mundo só voltará ao normal quando o
ser mítico, representado pelo tatu, interromper o desmoronamento
ocasionado pela ação do wanintesu. A noção de que o lugar dos homens está
“muito sujo” demonstra também como os Nambiquara leem a destruição
ambiental. O mito, nesse caso, foi decodificado pelos índios para explicar
determinados fatos que estão ocorrendo no mundo dos kwajantisu, os não
indígenas. (COSTA, 2009, p. 202).

Na cosmologia Nambiquara, é importante satisfazer os desejos de Dauasununsu, que


“preza pela alegria, bondade e beleza, caso contrário, castigará a todos, indistintamente, com a
escuridão. Os primeiros sinais da insatisfação furiosa de Dauasununsu refletem nas folhas de
sua copa, quando elas começam a amarelar e, consequentemente, a cair” (COSTA, 2009, p.
204). Em entrevista realizada por Costa (2009, p. 204) a Jaime Halotesu, este explicou que

Essa Haluhalunekisu é um tipo de árvore. Tem homem branco, tem homem


índio, quase igualzinho. Mas, não é igualzinho não. Lá tem a vida! No meio
disso, uma folha da vida. Quando amarela, algumas folhas caem. Lá na
árvore da vida nunca acontece isso. Sempre saúde. Se alguma folha da
árvore da vida amarelar, dá problema, doença. Não é só doente não! É
quando a folha, a da vida, amarelar e secar, não é boa coisa não! Você não
traz sabedoria não. Só traz miséria. De modo geral, para todo o mundo. Não
é só para índio não!

A purificação da Haluhalunekisu é necessária para o equilíbrio do mundo dos índios


e dos kwajato. Essa tarefa é realizada ao som do “repertório musical do wanintesu, entoado
nas sessões noturnas de cura.” (COSTA, 2009, p. 202). Mané Manduca conta que

Nambiquara avalia muito o tempo do passado. O mundo Nambiquara era di-


fe-ren-te mesmo! Muita onça, muito espírito que vinha e atacava mesmo!
Depois que diminuíram as onças, os atasu, que é demônio. Era constante
mesmo! Nambiquara fala assim: “o mundo Nambiquara mudou porque
desapareceu muita coisa ruim!” Na cidade está cheio de espírito de índio que
protege o Nambiquara. A alma interfere na ação dos kwajantisu. (COSTA,
2009, p. 249).

Os Nambiquara entendem que o tatu causa desordem terrestre que necessita ser
combatida, a fim de que os buracos na terra possam ser fechados e, com isso, evitada a
catástrofe que está por vir.
90

Mané Manduca, Eutímio Kithãulhu, Jaime e Orivaldo, estes últimos


Halotesu, contaram em momentos distintos que os wanintesu precisam matar
a “mãe do tatu”, ser mitológico que desde 2006 vem provocando o
desmoronamento das margens dos rios Walukatuyauru (Doze de Outubro) e
Wxenyausu (Camararé). Mané Manduca [...] relata que, nas redondezas da
aldeia Kithãulhu, o terreno encontra-se repleto de buracos, que, segundo
Benjamin Kithãulhu, o terreno encontra-se repleto de buracos, que, segundo
Benjamin Kithãulhu, estão sendo cavoucados pelo espírito masculino da
natureza chamado Saninkalisu. De aspecto semelhante ao tatu, sua ação
destrutiva recai como um castigo, na explicação do wanintesu, porque o ‘[...]
mundo está com raiva do homem. O homem está destruindo o planeta.
Benjamin e José Baixo estão achando. Apurados, vão para o Kithãulhu, por
duas semanas, trabalhando. Lá desmoronou, houve um desmoronamento no
ano passado [2006], já tem um ano. Fizemos um trabalho. [...] Ele, Benjamin
está ficando com muito medo. O tempo está ficando diferente. Ele
[Benjamin] entra no buraco com o halukisu, uma espadinha. Esse halukisu é
uma espada própria para estar chuchando [mexendo] no buraco, feita de ipê
roxo, madeira própria. Essa halukisu é uma arma de procura. Ele [Benjamin]
chega na mina, no atoleiro, e o pajé fica procurando com a espadinha.
Quando o pajé começa chuchar, pede para pessoa comum, que não é pajé,
para treinamento. Quando ele está nessa posição horizontal, você consegue
tocar nele. Na posição vertical é mais difícil de encontra-lo. A pessoa
cavouca, cavouca e acha uma pedra. Para uma pessoa comum, é uma pedra
comum; para o pajé, é molinha, é pessoa. Tem que eliminar quase todos,
porque são muitos, pelo menos para diminuir a força dele. Agora nós vamos
enfrenta-los de novo. Isso pode acontecer em qualquer lugar. Esse tipo de
desmoronamento já tem estrada por dentro. Quando chega certo tempo, vem
chuva, igual Noé, vai encher. Eu estou vendo na televisão as cidades
acontecendo muitas coisas. Aí, eu juntei com a história de Benjamin. O
problema não é só para a área indígena não! Povo fala que antigamente, eles
falam que quando Saninkalisu quer fazer mundo acabar, ele entra de ponta a
ponta, por dentro da Terra, que já está bem mastigado. Na verdade, por
dentro da Terra já está tudo mole. (COSTA, 2009, p. 207-208).

Os wanintesu estão preocupados com relação ao desmoronamento das margens dos


rios Walukatuyausu, do rio Jaú (Doze de Outubro) e Waihaliyausu, o Waihhlxiyausu,
Wxenjausu ou Kunyausu (Camararé). Essa situação impede que os índios façam suas roças
nesses locais, mobilizando a sociedade à procura de solução para essa situação. Mané
Manduca relata que esse tatu

[...] fica fazendo buraco, minando água. Não tem forma de gente. É diferente
de tatu canastra. Mas, é esquisito demais. A unha dele é grande, grande e
transparente, igual arroz, igual caranguejo, igual gilete. Sai cortando,
cortando planta no fundo da terra e fica desmoronando. (COSTA, 2009, p.
210).

Diante de todas as formas de poder que incidem sobre os Nambiquara, a cosmovisão


e proteção à Haluhalunekisu é o que os fazem resistir. A vida de todos os seres está atrelada à
figueira que indica necessidade de limpeza. A função de não sujá-la pertence a todos e deve
91

ser realizada com alegria! Essa perspectiva de conceber a realidade aponta a necessidade de se
refletir sobre as relações sociais, deixar o subalterno falar (SPIVAK, 2014), compreender e
respeitar outras formas de ser, fazer, viver, em busca pela descolonização do Brasil.

Haluhalunekisu, Jaime Halotesu Nambiquara (COSTA, 2009, p. 407).


92

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O território geográfico Nambiquara é caracterizado por linhas de interesses trazidos


pela extração de ouro, diamante, borracha, madeira, produção de energia elétrica, soja, criação
de gado. Tais interesses, muitas vezes, foram e são promovidos por incentivos financeiros do
governo brasileiro, norteado por ideias modernos de progresso social.
Por outro lado, a destruição ambiental/espiritual da Haluhalunekisu e da Pachamama
é uma preocupação analogamente presente em diferentes epistemologias indígenas que
povoam o planeta. Finalmente, essa concepção começa a ser entendida como meio de
proteção jurídica de todos os seres e de mudança no status quo.
Ao conceber a Natureza como sujeito (de direito) em uma compreensão pautada nas
epistemologias do Sul, emerge o aparato jurídico plural e descolonial. Como consequência
mostra-se possível buscar uma nova forma de relação com a
Natureza/Haluhalunekisu/Pachamama. A cosmovisão Nambiquara, Haluhalunekisu, assim
como o Sumak Kawsay e a Suma Qamaña, permite pensar em uma perspectiva
epistemológica de relação de respeito e integralidade entre seres. Assim, torna-se possível
alcançar um novo patamar jurídico-social. Esse giro descolonial, quando contidos nos anseios
das lutas sociais, convoca o constitucionalismo a transformar e reaproxima-se da realidade
latino-americana. Isso se torna possível por meio do desvelar das epistemologias do Sul.
A partir do estudo epistemológico sobre o constitucionalismo, é possível conhecer as
origens histórico-sociais do direito, demonstrando as razões pelas quais encontramo-nos nesse
estado de coisas. Do mesmo modo, trata-se de saber que na origem do que hoje entendemos
por direito encontra-se uma ideologia que legitima determinadas práticas e distribuições de
poder. A história do constitucionalismo demonstra uma preocupação em demasia para com a
forma do direito, em detrimento do conteúdo em si. Enquanto teóricos debruçam-se acerca da
distinção entre princípios e regras, não veem o contexto abissal (SANTOS, 2000) em que
estas se inserem. Isso porque as razões da crise do positivismo são similares as do pós-
positivismo, pois ambos permitem barbáries em nome da lei, por serem incapazes de
compatibilizar o direito positivado à realidade social.
Diante desse cenário, questiona-se: seria o constitucionalismo latino-americano um
reflexo de ideais nacionais ou de uma ordem de influência global, mascarada por um Estado
Providência ou Estado de Bem-Estar Social, de caráter econômico-cultural estritamente ligado
ao colonialismo e ao imperialismo? A constituição é capaz de se defender das influências
(desestabilizadoras e aquém da identidade e realidade social nacional) advindas da
93

epistemologia ocidental? Daí a grande contradição entre democracia e constituição, pois não
possuem a mesma identidade (América do Sul versus importação de fórmulas “neutras”,
“universais”, ocidentais). Enquanto a América do Sul ocultar sua identidade, deixar-se
dominar e colonizar pelos ideais e pelos interesses do Norte, não será possível a alteridade, a
pluralidade de visões de mundo e a interculturalidade.
As constituições da Bolívia e do Equador são uma verdadeira tentativa de responder
a essas questões e solucionar o dilema jurídico-social da modernidade: a herança colonial e
imperial. Ainda que a América Latina utilize de um instrumento de origem ocidental para
descolonização, a constituição, é possível proporcionar rupturas paradigmáticas. Isso porque,
ainda que a constituição seja um instrumento advindo do Norte, esta pode ser descolonial e
apontar uma possível relação entre epistemologias, demonstrando seus potenciais e limites
para atuação na realidade. Além disso, o Novo Constitucionalismo Latino-Americano, no qual
se inserem essas constituições, não advém das elites políticas e de dogmas contidos em
doutrinas de professores de direito. Ao contrário, são modelos originados das lutas sociais de
povos subalternizados e com projetos que refletem epistemologias das camadas sociais
oprimidas, vulneráveis, marginalizadas, invisibilizadas. Portanto, o constitucionalismo pode
ser transformador do status quo, desde que os povos se organizem politicamente para que o
seja. A constituição por si e entregue aos juízes e às autoridades estatais não possuem tal
potencial. A mobilização jurídica só será emancipatória se estiver a par da realidade social.
Para tanto, é necessário que o sistema normativo também esteja. Isso é possível por meio de
uma mobilização político-social (FLORES, 2009) pautada na descolonização do poder, do
ser, do saber e do viver (QUIJANO, 2005).
A descolonialidade revela o homem latino-americano oculto, oprimido, colonizado e
dependente do sistema em que vive. O Novo Constitucionalismo Latino-Americano permite,
pela primeira vez a nível epistemológico-constitucional, que se pense o mundo a partir de sua
própria localidade. Portanto, para contrapor ao sistema colonial imposto, a cosmovisão
indígena mostra-se um eficaz instrumento para se desenvolver uma cultura jurídica latino-
americana própria, aquém do etnocentrismo.
A história da humanidade é composta por constantes construções e desconstruções.
Encontramo-nos em um interregno, um momento de transição em que o antigo modelo
constitucional de base europeia mostra-se ineficaz para solucionar questões sociais e um novo
paradigma ainda não fora consolidado, embora se constate sua emersão e emergência. Esse
caminho deve ser construído assumindo nossa história, aquela que não foi e evita ser contada.
Isso implica, também, em assumir nossa realidade e pluriculturalidade. Trata-se de pensar
94

uma teoria crítica desde o Sul (BALDI, 2015) e de viés periférico, que reflita anseios e
identidades subalternizadas, das minorias, dos indígenas, dos afrodescendentes, dos sujeitos
que mais sofrem com a colonialidade. É por meio desses anseios e visões de mundo que se
pode concretizar um novo, pautado, por exemplo, no paradigma do Sumak Kawsay, Suma
Qamaña e Haluhalunekisu, pois “[...] é preciso imaginar muito para ‘viver’ um espaço novo.”
(BACHELARD, 1978, p. 331).
Essa análise foi proposta devido ao potencial opressor do direito, demonstrado com
base nos acontecimentos entre os Nambiquara, bem como na própria trajetória do direito ao
longo da história. Foi demonstrado que instrumentos do direito, tais como constituição,
direitos humanos, dignidade humana, podem descolonizar, desde que reflitam a memória de
povos subalternizados. A cosmovisão torna possível que os Nambiquara mantenham vivas
memórias, pois é nelas que se tornam possíveis o sentimento de pertença ao grupo e de
compreensão acerca da vida, potências geradoras de uma memória coletiva.
Haluhalunekisu permite pensar em uma perspectiva epistemológica brasileira de
relação de respeito e integralidade entre todos os seres. Diante de todas as formas de poder
que incidem sobre os Nambiquara, a cosmovisão e proteção à Haluhalunekisu é o que os
fazem resistir.
95

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