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Folha de Rosto

Depois da Terra™

Histórias de
Fantasmas

Superação
Robert Greenberger

Tradução
Rodrigo Santos
Créditos
Copyright © 2013 por After Earth Enterprises, LLC. Todos os direitos reservados. Usado
sob autorização.
Todos os direitos desta edição reservados à
Editora Objetiva Ltda.
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Depois da Terra: Histórias de Fantasmas: Superação é um trabalho de ficção. Nomes,
lugares e incidentes são produtos da imaginação do autor ou usados de modo fictício.
TÍTULO ORIGINAL
Redemption
CAPA
Trio Studio sobre design original de Dreu Pennington-McNeil
IMAGEM DE CAPA
Stephen Youll
REVISÃO
Joana Milli
COORDENAÇÃO DE TRADUÇÃO
Reverb Localização
COORDENAÇÃO DE E-BOOK
Marcelo Xavier
CONVERSÃO PARA E-BOOK
Abreu’s System Ltda.

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
G83s
Greenberger, Robert
Superação [recurso eletrônico] : Depois da Terra : histórias de fantasmas / Robert
Greenberger ; tradução Rodrigo Santos. - Rio de Janeiro : Objetiva, 2013.
recurso digital (Depois da terra : histórias de fantasmas)
Tradução de: Redemption
Formato: ePub
Requisitos do sistema: Adobe Digital Editions
Modo de acesso: World Wide Web
54 p. ISBN 978-85-8105-137-6 (recurso eletrônico)
1. Ficção americana 2. Livros eletrônicos. I. Santos, Rodrigo II. Título. III. Série.
13-1638. CDD: 813
CDU: 821.111(73)-3
Sumário

Capa
Folha de Rosto
Créditos
Sumário
O Sol Estava Quente
O Garoto Acordou
Ano Após Ano
Anderson Sabia
Naquela Noite
Alguns Dias Depois
Um Kincaid, Hein?
Você Sente Falta
As Chamas Escureceram
No Dia Seguinte
No Dia Seguinte
Depois de Ouvir
Alguns Dias Depois
Mas ele me bateu!

O Sol Estava Quente

O SOL ESTAVA QUENTE, como de costume, mas não de forma


incômoda. Anderson Kincaid queria brincar na areia. A mãe dele
tirou uma rara tarde de folga para levar o filho de sete anos ao
parque. Acompanhada somente pela babá do garoto, ela deixou
uma mensagem dizendo que não deveria ser incomodada por nada
menor do que uma supernova. Este era um momento em família,
extremamente raro, dadas suas responsabilidades sobre as
necessidades médicas da população.
Ela sorriu ao ver Anderson correndo dos braços dela em direção
aos montes de areia adiante. Considerando como a Cidade de Nova
Prime era empoeirada, a mãe sempre se surpreendia quando o
menino pedia para brincar no areal outra vez. Ela se preocupou por
um instante com as partículas de poeira fina que ele poderia inalar e
acabar se sufocando, mas Norah rapidamente balançou a cabeça e
afastou o instinto materno exagerado. Era esse instinto de proteger
a vida em todas as instâncias que acabava ligando-a às pessoas.
Em vez de engolir a areia, Anderson a pisoteou com as sandálias
brancas, plantou-se sentado e remexeu o traseiro até se sentir
confortável. A babá, que era um jovem chamado Jason, aproximou-
se e entregou a Anderson um saco de pano cheio de pequenas
ferramentas para brincar com a terra. O menino remexeu a terra
com a pá vermelha desbotada e gargalhou. Norah adorava isso. O
som a lembrava de seu tempo de criança, quando viu areia pela
primeira vez. Anderson começou a cavar com tanta vontade que
atraiu a atenção de meninos e meninas de várias idades. Em pouco
tempo, cinco crianças estavam ocupadas construindo uma espécie
de castelo ou forte.
Norah Kincaid estava satisfeita em ficar sentada observando. A
vida em Nova Prime nunca foi fácil, mas a população estava
aproveitando um bom período de alívio. Os inimigos alienígenas, os
Skrel, não apareciam há décadas. Suas criações terríveis, os Ursas,
haviam sido praticamente destruídas. O último ataque foi há trinta
anos, e todos os Ursas foram mortos, salvo por uma dúzia. As feras
restantes estavam em outra parte do planeta. Toda noite, como
parte de suas preces, ela pedia que os Guardiões ou a velhice os
destruíssem para manter seu povo seguro.
E parecia que as preces haviam sido atendidas. As feras quase
não haviam sido vistas nos últimos anos.
Por conta disso, as pessoas voltaram a olhar para o céu,
imaginando o que mais haveria por lá. As notícias davam conta de
que o último ancoradouro espacial, Avalon, começou a funcionar
com sucesso no braço espiral da galáxia que ficava mais próximo. O
planeta Tau Ceti ficava próximo e o primo de Norah, Atlas, era
fascinado por essas coisas desde criança. Esses pensamentos
eram bons, mas as ações que eles poderiam gerar eram uma fonte
de preocupação constante. A humanidade havia fugido da Terra há
quase um milênio e, centenas de anos depois disso, descobriu que
não estava sozinha no universo. Os perigos estavam lá fora, e não
eram somente os Skrel. Ela entendeu os avisos sobre as
consequências de se desafiar o destino e a mão do Criador, mas
ainda havia aqueles que desejavam explorar. Era da natureza
humana. Em vez de lutar contra esses desejos, Norah buscava
formas de atendê-los, sem deixar de temperá-los com a sensatez da
realidade.
Anderson se levantou sorrindo para ela e balançando a pá.
— Vem ver! — chamou ele.
Norah se levantou e deu três passos na direção do menino para
admirar a enorme estrutura. Havia torres agrupadas e várias
construções menores em um semicírculo. Estava claro que ele havia
sido o arquiteto que convencera os outros a construírem segundo
suas ideias.
— Agora você só precisa de um fosso pra proteger a vila —
comentou ela, admirada.
— O que é um fosso?
Antes que a mãe pudesse responder, as sirenes interromperam o
som das brincadeiras. Ela conhecia bem aquele som. Norah se
esticou e pegou Anderson, que estava tentando cobrir os ouvidos,
com os olhos apertados em reprovação.
— O que é isso, mãe? — gritou.
Ela não respondeu, passando os olhos de um lado ao outro,
procurando o motivo do alarme. Jason olhou para ela, que assentiu
em confirmação: um alarme de Ursa. O rapaz pegou o aparelho
comunicador na bolsa de pano. Estava de folga naquela tarde, mas
seu juramento significava que ela nunca poderia ignorar suas
responsabilidades. Ela pegou o comunicador na mão dele e falou:
— Aqui é a Dra. Kincaid. O que está acontecendo? — questionou
ela.
A voz do outro lado respondeu:
— Pelo menos seis Ursas entraram na cidade. Um deles está no
mercado principal, os outros estão indo para o parque! Você disse
que estava indo para lá. Se já tiver chegado, saia imediatamente.
Os Guardiões estão em perseguição.
— Eu estou indo praí — avisou ela, enquanto Anderson se
debatia em seus braços.
Norah entregou o aparelho a Jason, que recolhera todos os
brinquedos.
— Os protocolos de emergência já devem ter sido iniciados. Se
não, alguém vai estar encrencado. — As pessoas estavam correndo
e gritando por todos os lados. As crianças uivavam quase tão alto
quanto as sirenes. Havia tanto barulho que ela nem havia percebido
a comoção do outro lado do parque. Um esquadrão de oito
Guardiões entrou pelo portão, com suas armas que mudavam de
formato, chamadas de alfanjes, configuradas como espadas.
Norah olhou para todos os lados. Onde estaria o Ursa?
O grupo de Guardiões também parecia confuso, formando um
círculo aberto, de costas uns para os outros e observando o parque.
As pessoas continuavam fugindo.
Norah estudou os homens e mulheres, percebendo que estavam
em pânico. Sem dúvida, eles cresceram ouvindo histórias sobre os
monstros geneticamente modificados que eram enviados pelos
Skrel a Nova Prime com uma regularidade assustadora. Tudo numa
tentativa vã de livrar o mundo de qualquer forma de vida humana,
por algum motivo desconhecido.
Os Guardiões estavam parados, sem saber para onde ir. E, se
eles não se moviam, Norah também não o faria. Segurou Anderson
com força, enquanto ele olhava fascinado os Guardiões em seus
uniformes marrons de tecido inteligente. Ele sabia o que era um
Guardião. Afinal, seu primo mais velho Lucius era o general-
comandante e Anderson, mesmo sendo uma criança, se sentia
atraído pelo uniforme. Estava no sangue dos Kincaid, e assim fora
por muitas gerações.
Um dos Guardiões ouviu alguma coisa e olhou para cima. Norah
seguiu o olhar e viu uma árvore de folhas amareladas.
Foi então que ela ouviu: o rugido pavoroso de uma abominação.
A criatura ficou visível nas folhagens, enquanto urrava. Os
pesadelos de Norah haviam se manifestado e ela precisava fugir. Na
pressa, Anderson se libertou dela e correu pela caixa de areia, para
longe da mãe. Ela o chamou, mas as sirenes e os outros barulhos
abafaram suas palavras. O garoto, sem saber do perigo, correu
direto na direção dos Guardiões.
Um alvo móvel era tudo que o Ursa precisava. Ele saltou da
árvore, na direção do garoto.
O tempo ficou mais lento para Norah, enquanto seu coração
saltava no peito, encobrindo todos os sons.
Anderson finalmente parou e observou o Ursa no ar. Ele ficou
paralisado de medo.
Uma Guardiã também saltou para a ação, tentando chamar a
atenção do Ursa, mas o monstro tinha outra ideia.
A última coisa que Norah viu antes de desmaiar foi a bocarra do
Ursa se abrindo para devorar o filho dela, enquanto a arma da
Guardiã cortava o ar.
O Garoto Acordou

O GAROTO ACORDOU algumas horas depois. Norah não saiu do lado


dele nem por um instante. Ela estava acompanhada pelo marido,
Marco, um homem levemente barrigudo, com cabelo negro e um
bigode que um dia foi chique, mas agora parecia estranhamente
fora de lugar. Anderson estava tonto, piscando várias vezes antes
de conseguir focar seus pais.
— Onde... eu tô? — perguntou ele.
Uma enfermeira, também presente, se debruçou e deu um pouco
de água na boca de Anderson. Ele bebeu, tossindo, e pareceu mais
alerta.
— Oi, meu amorzinho — falou Norah, com as lágrimas
escorrendo pelo rosto.
— Você tá no hospital, Andy — explicou o pai. — Como está se
sentindo?
Ele parecia confuso.
— Não sei... dolorido. O que aconteceu?
Anderson adormeceu antes de ouvir a resposta. Durante as horas
seguintes, ele só conseguiu registrar fragmentos da conversa. Nada
daquilo parecia real, mas tudo parecia tão assustador que ele
preferiu dormir.
Ele ouviu o pai perguntando:
— Pode ser religado? — A mãe dele chorou. O médico começou
a falar sobre próteses e sobre como o processo havia progredido
nos últimos anos.
Anderson também ouviu os pais discutindo, o que o incomodava
de um modo diferente da dor no ombro. Ele ouviu a mãe dizer:
— Eu nunca deveria ter ido ao parque — O pai estava
concordando, mas parecia furioso.
Quando ele acordou completamente, não sabia ao certo o que
esperar. Só sabia que estava todo dolorido e com muita sede.
— Mãe?
Norah se virou para olhar o filho e viu que os olhos dele estavam
vermelhos. O pai estava logo atrás dela, com a mão em seu ombro.
Ombro. Ele se virou para ver de onde vinha a dor. Tudo o que
conseguiu ver foi uma enorme bandagem e... nada mais.
— Mãe! Cadê o meu braço?!
— O Ursa estava quase matando você, mas o Guardião
conseguiu impedir... —explicou ela.
— A criatura arrancou o seu braço — contou o pai, o mais gentil
possível. — Não foi possível colocá-lo no lugar.
Anderson piscou, com o ombro sob as bandagens latejando.
— Mas eu consigo sentir o braço. Mãe, você é médica! Não pode
colocar de volta? — A questão parecia muito coerente. E era, se
você fosse uma criança de sete anos. Norah Kincaid, porém, sabia
que havia limites para o que a medicina era capaz de fazer.
Neste exato momento, um homem de meia idade de
descendência asiática entrou na sala, seguido por uma enfermeira
com um carrinho de equipamentos. No carrinho, havia um relatório
dos sinais vitais de Anderson, que o homem leu antes de falar com
ele.
— Meu nome é Dr. Zeong, Anderson. Como você está se
sentindo?
— E o meu braço? — perguntou ele, ignorando a pergunta. — A
mamãe é a melhor médica de Nova Prime. Não pode colocar de
volta?
— O braço foi muito danificado na base para ser enxertado —
explicou o médico, em voz baixa. — Sinto muito, mas não pudemos
salvá-lo.
Houve uma conversa sobre próteses, que significava um braço
falso, e isso não interessava a ele. Deitado na cama, Anderson
tentou recordar o que acontecera. Ele se lembrava da caixa de areia
e das sirenes. E da Guardiã que correu em sua direção.
— Mãe — chamou Anderson, quebrando o silêncio. — O que
aconteceu com a Guardiã que me salvou?
Ela suspirou pesadamente e deu um beijo na testa dele.
— Ela morreu em serviço, pra proteger você.
O menino assentiu e ficou pensando muito tempo nos Guardiões,
enquanto os adultos conversavam sobre coisas que ele não
entendia.
Ano Após Ano

ANO APÓS ANO, Anderson crescia, treinando para se qualificar como


Guardião. A cada dois ou três anos, conforme seu corpo se
desenvolvia, ele visitava o hospital para colocar um novo braço.
Passavam-se algumas semanas desajeitadas enquanto o rapaz se
adaptava à nova prótese. Isso geralmente vinha acompanhado por
depressão e frustração com as tarefas simples que se mostravam
desafiadoras.
Anderson nunca mais pensou em seu braço como “falso”. Esse
era um pensamento de criança. Quando amadureceu, ele passou a
tratar o braço como um membro real. Graças à tecnologia de tecido
inteligente usado como pele sintética, o braço ficava bronzeado
junto com o resto do corpo, e chegava até a exibir sardas.
Enquanto crescia, Anderson estudava a história dos Guardiões e
a grande ligação de sua família com eles. A herança familiar podia
ser traçada pelo menos até 306 DT, quando Carlos Kincaid se
tornou o primeiro Kincaid a ser nomeado general-comandante. Ele
perturbava o primo Lucius, pedindo informações sobre como era ser
Guardião e o que era preciso, sem nunca se cansar das histórias
sobre os grandes feitos da família nas fileiras dos Guardiões.
Apesar da reputação manchada de seu avô, Nathan Kincaid,
considerado o pior general-comandante da história, Anderson
escreveu vários trabalhos escolares relacionados ao período notório
de sua liderança.
Ele também aprendeu mais sobre a longa rivalidade entre a
família Kincaid e a família Raige. Era impressionante o ódio genuíno
nas palavras de seus parentes ao recapitular todas as vezes em que
os Raige ofuscaram o progresso dos Kincaid. Para cada conquista
de sua família, como a criação do alfange, os Raige pareciam
realizar algo ainda maior para apagá-la. Anderson não conhecia
nenhum Raige na escola, e eles continuavam a ser um conceito
abstrato para ele, exceto por Cypher Raige. O famoso Guardião foi
um grande amigo de seu tio Atlas, apesar da inimizade entre as
famílias, e Anderson encontrou-se com Cypher algumas vezes. O
homem alto, sério e quieto era a epítome do que significava ser um
Guardião. Mais ainda, ele era uma lenda. No ano em que Anderson
perdeu o braço, Cypher Raige fez uma descoberta que lhe valeu o
título de Fantasma: ele se tornou invisível aos Ursas. Foi assim que
Cypher conseguiu ser o primeiro homem a matar uma dessas
criaturas sozinho. Parecia o tipo de história impossível, mas Atlas e
sua mãe confirmaram que o fato realmente acontecera. O próprio
Cypher nunca quis falar no assunto, pois não gostava de ser o
centro das atenções.
Crescer significava superar as limitações do braço mecânico.
Anderson o ajustava constantemente para ter força e destreza
iguais às do braço normal, para que pudesse praticar esportes sem
ter vantagens injustas. Levantando pesos e usando equipamentos
de ginástica, ele treinou os músculos para melhorar a resistência.
Aprendeu a lutar boxe, atirar, cavalgar e esgrimir. Durante a
adolescência, foi guiado pelo pai na luta em manter o equilíbrio
entre o treinamento físico e o mental, o que significava não ignorar
os estudos. Apesar de não ser o melhor da turma, Anderson tinha
orgulho de suas conquistas.
À noite, Norah chegava do trabalho para cuidar do filho. Mesmo
estando exausto de corpo e mente, ele prestava atenção nas aulas
sobre as filosofias de Nova Prime e seu povo. Apesar das profundas
ligações dos Kincaid com os Guardiões, muitos deles serviram como
Savant e ficaram encarregados da comunidade científica de Nova
Prime. Atualmente, a prima dele, Liliandra, liderava a ordem
religiosa do planeta como Primus. A família servia ao planeta de
todas as maneiras honrosas possíveis. Quando aquelas lições
aconteciam, Anderson lembrava a ela repetidamente que isso tudo
era muito legal, mas ele estava determinado a se tornar um
Guardião. Os testes começavam aos treze anos, mas Anderson
queria ser aprovado na primeira tentativa. Norah assentia,
encorajadora, e continuava a lição até ele cair no sono.
Talvez fosse pelo treinamento médico e pela preocupação com a
santidade da vida, que corria risco constante, no caso dos
Guardiões, mas Norah não o encorajava realmente nessa busca.
Por outro lado, ela sabia que Anderson estava focado nesse objetivo
como uma forma de expiação ou tentativa de honrar os mortos. E
ela não poderia se opor a isso.
Então, num belo dia, o rapaz de dezoito anos chegou ao
escritório de Norah, com uma camisa encharcada de suor e uma
toalha no pescoço. Talvez fosse o reflexo do suor, mas Anderson
parecia estar brilhando.
— Eu estou pronto — declarou Anderson.
— Pronto pra tomar um banho, certamente — retrucou a mãe,
sarcasticamente.
— Pra isso também. Mas depois do banho, eu vou me alistar —
anunciou ele.
Norah indagou cuidadosamente:
— É isso mesmo que você quer?
— Mãe, eu penso nisso desde o dia do ataque — respondeu ele,
em um tom que indicava que esse era um questionamento antigo. A
mãe insistiu.
— Eu sei, e foi um bom motivador para mantê-lo concentrado em
se curar e ficar forte. Mas agora que você está em forma, há tantas
opções. Há outras maneiras de servir ao povo.
— Eu já ouvi a tia Liliandra explicando as belezas de ser um
áugure — respondeu o rapaz. — E eu não dou a mínima.
— Tenha respeito pela sua tia e pela fé — repreendeu a mãe. —
Não sei o que seria de mim sem ela. Eu rezei sem parar para que
você sobrevivesse àquele ataque terrível.
— E eu sobrevivi, mãe. Sobrevivi porque um guardião arriscou a
vida pra me salvar. Você não diz sempre que nós temos que
retribuir? Esta é a minha maneira de fazê-lo.
— Você pode explorar a medicina ou outras carreiras — explicou
Norah. Ele já havia ouvido tudo isso, e sabia que ela só lhe pedia
que considerasse outras opções. Mas depois de tantos anos
concentrado em ser um Guardião, nada mais seria a escolha certa.
— Você está realmente decidido?
Ele concordou com a cabeça.
— Onde você vê um nobre sacrifício, eu vejo uma mulher que
morreu antes de poder viver a vida plenamente. Você já perdeu um
braço e eu quase morri por isso. Não quero perder o resto de você.
— Você não vai perder, mãe — prometeu o rapaz. Depois, foi até
a mãe e a abraçou. — Eu quero que você fique orgulhosa de mim —
explicou.
— Sempre — foi a resposta. Ficaram abraçados em silêncio por
alguns minutos.
— Se é isso que você realmente quer, eu não vou impedi-lo —
decidiu Norah, por fim. — Primeiro, banho; depois, Corpo dos
Guardiões.
Anderson Sabia

ANDERSON SABIA que a primeira fase do teste era uma mistura


extenuante de atividades físicas e esforço mental. Havia dúzias de
outros testes no ciclo, e o rapaz estava disposto a completar todos
no topo. Ele tinha pouquíssima gordura corporal e era muito
musculoso, capaz de levantar mais de 110 quilos, um feito
impressionante para um rapaz de dezoito anos, e isso sem nenhum
aprimoramento ao braço mecânico. Anderson omitiu a existência da
prótese no formulário de inscrição e nunca a mencionou aos outros.
A pele sintética se confundia perfeitamente com a pele natural e,
sempre que possível, ele se mantinha de camisa. Sendo um
Kincaid, Anderson conhecia os regulamentos de cor. Dentre eles,
havia a proibição arcaica a Guardiões com próteses. Mas não, ele ia
mostrar que podia ser tão bom quanto todos os outros.
Bom, na verdade, seria ainda melhor. Ser um Guardião estava no
sangue dele. Carregava orgulhosamente setecentos anos de
dedicação dos Kincaid ao serviço.
Ele corria mais rápido do que os homens, escalava mais rápido
do que as mulheres e conseguia vencer todos em combate.
Ao entrar na temida cabine de arguição, ele conseguiu citar fatos
e detalhes muito além do que a inteligência artificial perguntava.
Terminou também no que parecia ser o tempo recorde.
Nada o impediria de ser aprovado na fase dois.
Naquela Noite

NAQUELA NOITE, um visitante surgiu à porta da casa de sua família. A


irmã mais nova de Anderson, Kayla, correu para atender enquanto
ele estava lendo. Tudo o que ele ouviu foram vozes falando baixo e
uma comoção que lhe chamou a atenção.
Desligando o leitor digital, Anderson caminhou descalço até a
sala principal. No meio da casa, estava o comandante Rafe Velan, o
homem encarregado de treinar e testar os cadetes. O homem alto e
largo tinha cabelos grisalhos, bem aparados, e um rosto cansado. A
mente de Anderson estava a mil. Ele nunca havia ouvido falar em
uma visita pessoal como essa. O que poderia estar acontecendo?
— Comandante! — disse ele, batendo continência, apesar de
estar vestindo uma camiseta e calças largas de moletom. A irmã
dele imitou a postura, segurando uma gargalhada.
Velan, com uma expressão séria, torceu os lábios por um
momento e disse:
— À vontade... crianças.
Anderson exalou, tentando permanecer pelo menos apresentável.
Kayla sentou-se em uma cadeira.
— Os seus pais estão em casa? — perguntou Velan.
— Papai foi comprar alguma coisa pro jantar. Mamãe está no
escritório, como sempre — respondeu Kayla.
— Entendo. Posso falar com você em particular, cadete Kincaid?
— Kay, se manda — pediu Anderson, olhando seriamente para a
irmãzinha.
Ela fez uma careta para ele, sorriu para Velan, e saiu
rapidamente da sala. Enquanto isso, o comandante observou o
aposento, com claro desconforto. Isso deixou Anderson preocupado.
Se o comandante em pessoa estava em sua casa, havia algo de
errado. Ele queria muito que sua mãe estivesse presente.
— Senhor, você gostaria de algo pra beber?
— Não, obrigado — respondeu Velan, engolindo em seco. — Eu
vou direto ao ponto. Você não pode ser um Guardião.
Anderson piscou, nervoso.
Kayla enfiou a cabeça pela cortina que separava os aposentos,
tentando ouvir a conversa, mas Anderson olhou para ela furioso, e
ela sumiu. Ele nunca imaginaria algo tão brutal e definitivo. Agora
era a vez de ele se controlar e perguntar por quê.
— Senhor, este candidato pode perguntar por quê?
— À vontade, Anderson — ordenou Velan, de forma enfática. —
Você não está no centro de treinamento e nós dois nos
conhecemos. Ao olhar sua inscrição de alistamento, o computador
emitiu um alerta. Eu acho que você sabe por quê.
Anderson olhou para o comandante, tentando conter as emoções.
Seus sonhos estavam prestes a virar cinzas.
Como ele não respondeu, Velan prosseguiu:
— Você mentiu, filho. Se eu tivesse visto o formulário de
inscrição, teria lembrado de seu acidente e de sua prótese e
desconsiderado a inscrição automaticamente. Você conhece as
regras.
— Senhor, sim, senhor — responde ele, com fraqueza.
Velan assentiu.
—Você sabia sobre a proibição, mas se inscreveu assim mesmo
e tentou passar despercebido. Você foi desonesto. Você acha que
os Guardiões são desonestos, cadete?
— Não, senhor!
— Então por que mentiu?
— A prótese é um parte de mim — começou Anderson a explicar.
— Eu já vivi mais da metade da minha vida com ela e ela não me
torna menos apto a ser um Guardião.
— Nossos regulamentos têm proibições contra Guardiões com
próteses que podem falhar em combate, colocando em risco a
segurança dele e dos Guardiões ao redor — declarou Velan,
praticamente citando o manual.
— Isso já aconteceu com alguém antes?
— Não que eu saiba — admitiu Velan. E se ele não podia
lembrar-se de um incidente, era por que provavelmente nunca
acontecera. Velan era uma lenda na academia, um veterano de
batalhas que era um livro de regras falante. — Mas as regras foram
escritas há muito tempo.
Então, com todo respeito, senhor, levando em consideração os
avanços da medicina protética, talvez seja a hora de rever essas
regras.
— É um argumento válido, que será levado em consideração.
Mas por enquanto a proibição permanece nos livros, e isso exclui
você. Neste momento, o maior problema é a sua falta de
honestidade, que eu não posso aceitar dentre os Guardiões. Eu
preciso dizer, Anderson, que estou muito desapontado com a sua
mentira. Ela desonra você e o nome da sua família.
— O braço nunca falhou comigo, assim como eu nunca falharei
com os Guardiões. Você não pode me discriminar. Não é culpa
minha ter perdido o braço, e isso não é tudo que eu sou. Deixe-me
provar!
— Você omitiu a verdade aos Guardiões, e parece que também
está escondendo de si mesmo — explicou Velan, gentilmente.
Isso parecia ser o fim da discussão e Anderson sabia que não
poderia mais argumentar.
— A minha mãe sabe? — perguntou ele.
— Eu achei melhor falar com você primeiro — explicou o
comandante, parecendo genuinamente sentido. — Você quer que
eu converse com ela?
— Não... Obrigado — respondeu Anderson. — Eu posso falar
para ela sobre meu próprio fracasso.
— Você não fracassou — afirmou Velan. — Isto não tem nada a
ver com as suas notas, tem a ver com o fato de você ter escondido
um fator desclassificatório. Na verdade, você não poderia nem ter
tentado. Se você tivesse demonstrado um desempenho insuficiente,
não haveria problema algum e nada disto estaria acontecendo. O
motivo da minha visita pessoal foi a sua vitória, não o seu fracasso.
Suas notas foram impressionantes. Mas eu não poderia esperar
nada menos de um parente de Atlas.
O futuro pelo qual Anderson passou mais de uma década
trabalhando de repente sumiu, e agora, a verdade começava a
surgir. Era uma dor maior do que a falta do braço. Uma dor
psicológica, que ia da mente ao coração. Tudo o que o rapaz queria
neste momento era gritar com Velan, mas tinha a impressão de que
seria um erro grave.
— Eu acho melhor eu ir embora, Anderson — declarou Velan,
começando a se virar. — Se você quiser que eu fale com seus pais,
pode me ligar. Gostaria que as coisas fossem diferentes, pois eu sei
que você seria um ótimo Guardião. Boa noite.
Com uma voz tão morta quanto a própria carreira, Anderson
Kincaid respondeu:
— Boa noite... senhor.
Alguns Dias Depois

ALGUNS DIAS DEPOIS, quando a dor da rejeição passou, Anderson


sentou-se para examinar as opções que restavam. Ele era um
homem forte, e parecia que os únicos que tinham restrições quanto
a próteses eram os Guardiões. Dando uma olhada nos jornais, ele
viu várias oportunidades, mas a maioria era voltada para trabalhos
que não ofereciam oportunidade de carreira. Ele certamente não
queria ser um trabalhador braçal ou atleta — por medo de que
alguém alegasse “fraude” em cada competição — ou ser segurança
particular de pessoas ricas.
Então, achou uma vaga no Corpo de Defesa Civil de Nova Prime.
Eles estavam procurando candidatos qualificados para patrulhas
civis.
Kincaid fez uma pesquisa rápida sobre a agência e descobriu que
era sancionada como defesa civil. Ele nunca se deu conta ou
procurou saber de outras opções, cego pelo sonho de se tornar
Guardião. Porém, nesse momento, o CDCNP parecia ideal.
Um Kincaid, Hein?

— UM KINCAID, HEIN? — disse o atendente levemente obeso. — Eu


nunca vi um de vocês por aqui. Por que nós e não os Guardiões?
Anderson já esperava essa pergunta, apesar de não gostar de
falar no assunto. A visão do braço e da mão artificiais deveria ter
sido suficiente. Mas como ele bem sabia, nem todo mundo prestava
atenção aos detalhes.
— Meu braço esquerdo é uma prótese — respondeu Anderson,
secamente.
— Deixa eu ver — pediu o homem, estendendo a mão gorda.
Anderson obedeceu, colocando a mão sobre a dele. O homem
enrolou a manga e observou o trabalho detalhado, que simulava
pele, pelos e até impressões digitais semelhantes ao outro braço.
Ele assobiou.
— Esse é um braço novo classe K — declarou o homem.
Kincaid piscou, surpreso com o conhecimento do homem, e
flexionou os dedos cheio de orgulho, pois o sujeito claramente não o
estava discriminando.
— Funciona muito bem, o melhor criado até hoje — concordou
Anderson. — Vocês têm problemas com próteses?
— Nem um pouco — respondeu o homem. — Sou Bill McGirk.
Preencha isso e, se você passar nos testes físicos, está dentro. E
vai vestir melhor o uniforme do que eu.
McGrik era um homem de palavra. Em poucos dias, Anderson
Kincaid estava sendo apresentado aos pulsares, o armamento
padrão do CDCNP, que não costumavam ser usados, mas eram
guardados para o caso de emergência. A maior parte do trabalho se
resumia a patrulhar áreas públicas, perseguir ladrões de galinha e
resolver outros problemas pequenos que não exigiriam a atenção
dos Guardiões. Os integrantes do CDCNP eram os primeiros a
responder no caso de emergências médicas, portanto, precisavam
de treinamento paramédico. Anderson descobriu que tinha aptidão
para a coisa, apesar de ignorar as lições da mãe ao longo dos anos.
Ele gostava dos longos turnos e sentia um senso de propósito ao
caminhar pelas ruas de Nova Prime. McGirk estava certo em uma
coisa: ele ficava muito bem naquele uniforme. O tecido especial
expulsava o calor e secava o suor, mantendo-o confortável.
Anderson também gostava de patrulhar com Virginia Marquez,
uma mulher baixinha quase da idade dele. Ela era bonita, alegre e
de fácil convivência. Os dois andavam sempre juntos e ele ia, aos
poucos, passando a conhecer cada um dos setores, aprendendo o
que cada área representava. Era como se fosse um recém-chegado,
sendo apresentado à cidade pela primeira vez. Havia as áreas onde
os técnicos trabalhavam, outras com cheiro de fazenda e criação de
animais, e as áreas das fábricas, que sempre tinham uma pilha de
lixo reciclável em frente aos prédios.
— Qual foi o chamado mais estranho que você já atendeu? —
perguntou Kincaid, na quarta semana de patrulha. Era manhã e os
sóis se levantavam no horizonte, acordando a cidade. Havia sempre
um silêncio seguido pelo som das pessoas indo trabalhar. Sempre
havia o cheiro de comida fresca, e Anderson aprendeu rapidamente
a hora certa de patrulhar a região das padarias, onde os padeiros
ofereciam rosquinhas doces como uma forma de dizer bom-dia.
Marquez, com seu longo cabelo amarrado elaboradamente com
várias peças de madeira para mantê-lo no lugar, pensou na
pergunta.
— Acho que foi quando me chamaram por causa de uma briga
doméstica. Os vizinhos ligaram um pouco antes do anoitecer,
dizendo que tinha uma briga horrível acontecendo e que eles
ouviram coisas quebrando. Eu fui até lá com o meu parceiro, Cotto,
e nós batemos na porta uma vez, por educação, e depois
arrombamos.
Ela ficou em silêncio, mastigando a rosquinha.
— E aí?
— Ninguém estava brigando. Eles estavam transando. Sexo
selvagem, ao que parece.
Kincaid assentiu e deu uma risada.
— Aprendeu alguma coisa?
— Nada com que você precise se preocupar — provocou ela,
acelerando o passo.
Você Sente Falta

— VOCÊ SENTE FALTA do seu braço?


Marquez sentou-se no banco ao lado dele, entregando uma
caneca de cerveja gelada. Eles haviam saído do trabalho um pouco
mais cedo e se encontraram com os colegas no bar favorito, para
brindar o primeiro ano de serviço de Anderson.
— Eu era muito pequeno quando tudo aconteceu... Na verdade,
eu acho que penso no braço mais do que sinto falta dele. À noite, às
vezes, é como seu eu ainda pudesse senti-lo, como se ainda
pudesse contrair meus músculos e mexer meus dedos. Me disseram
que a sensação do membro fantasma sumiria com o tempo, e eu
acho que sumiu, mas eu nunca deixo de pensar nele.
— Mas você deveria pensar no caminho no qual ele te colocou —
declarou Lars Svensen. Era um veterano de cinco anos de serviço
com cabelos loiros, olhos azuis e músculos que atraíam a
mulherada. Por isso, ele sempre usava a camisa do uniforme aberta
além do que o regulamento permitia. Não que alguém fosse
reclamar. — Você podia acabar se tornando um Guardião.
— É, você podia acabar virando Guardião e ficar voando de canto
em canto do planeta, ou treinando até chorar — adicionou Kelly
Alpuente. — Tipo assim, o que eles ficam fazendo quando não têm
Ursas ou Skrel pra combater? Eles treinam combate contra Ursas e
Skrel.
— E quando foi a última vez que avistaram uma nave Skrel? —
Marquez perguntou.
— Já faz um bom tempo — admitiu Anderson.
— E quando foi o último ataque de Ursa significativo?
— Novecentos e cinquenta e um DT. Os Skrel depositaram cem
deles no chão. Os Guardiões mataram oitenta e oito. — respondeu
Anderson mecanicamente.
— Você está na minha equipe de trivia! — declarou Alpuente,
com um sorriso. — Eu teria acertado o ano, mas o resto nem
pensar.
— É por causa do treinamento de Guardião — comentou
Marquez. — Você queria mesmo ser um deles, não é?
Anderson simplesmente disse sim e continuou bebendo. Estava
feliz na defesa civil, e fez alguns amigos valiosos. Os últimos anos
haviam sido bons e ele estava contente com o trabalho. Eles
estavam satisfeitos com ele. Tudo deveria estar bem, e esta deveria
ser uma comemoração feliz, mas, assim como o membro fantasma,
ser um Guardião ainda parecia uma carreira fantasma, a realidade
em vez desta vida substituta.
Kincaid entrou na conversa, bebeu cerveja demais e deixou
Alpuente levá-lo para casa, sem perceber o olhar de desejo que
Marquez lhe lançava.
As Chamas Escureceram

AS CHAMAS ESCURECERAM a lateral do complexo-colmeia. Os materiais


nano inteligentes estavam pegando fogo e aumentando o calor e o
brilho. As pessoas ainda estavam sendo retiradas quando Anderson
apareceu para ajudar. O pedido de reforço foi emitido apenas dez
minutos antes, então ele pensou ter chegado rápido, mas percebeu
que cada minuto significava mais prejuízos e mais vidas em perigo.
McGirk chegou para assumir a liderança, e o calor do incêndio
resultou em mais suor do que o traje conseguia absorver. Ele
parecia exausto, enquanto os bombeiros atrás dele disparavam
espuma contra as chamas.
Kincaid e Marquez foram destacados de suas funções habituais
para ajudar os bombeiros. Primeiro, eles controlaram a multidão.
Felizmente, todos seguiram as ordens sem tumulto. Depois, McGirk
foi até eles, apontando para Kincaid.
— Kincaid, os bombeiros estão com pouco pessoal. Você é forte.
Eu preciso que entre lá e procure pessoas perdidas — ordenou
McGirk, apontando o prédio.
— Eu estou sem equipamento — começou Kincaid, quando um
bombeiro jogou uma vestimenta amarela de borracha para ele. Sem
hesitar ou falar qualquer outra coisa, Marquez ajudou-o a se
equipar, deixando o traje bem ajustado. Ele recebeu um par de luvas
fluorescentes que se prendiam às mangas do macacão. Por fim,
Anderson vestiu e travou o capuz, equipando-se com óculos e um
aparelho de respiração. O oxigênio tinha um sabor metálico. Ele se
sentiu meio idiota, mas era o regulamento, e agora ele estava
protegido por tempo suficiente para entrar e ver se havia alguém
preso.
Marquez passou a mão no lado do rosto dele, o que Anderson
achou estranhamente afetuoso até se dar conta de que ela estava
somente ativando o comunicador da máscara de respiração.
— Está me escutando? A minha voz está clara?
— Cristalina.
McGirk Levantou o polegar e disse:
— Vai lá, garoto.
Kincaid foi até o prédio, procurando um ponto de entrada seguro,
e acabou escolhendo uma janela incendiada. Ele quase tropeçou ao
entrar, recuperando o equilíbrio e parando para estudar os
arredores. O fogo havia destruído os móveis e os objetos, que agora
não passavam de amontoados de material enegrecido e
irreconhecível. Anderson não localizou nenhum corpo, e prosseguiu
até a sala seguinte. As chamas, a espuma e os gritos de comando
já se somavam num clamor tão alto que ele achou melhor não piorar
o barulho chamando os sobreviventes. Em vez disso, Anderson
avançou metodicamente de quarto em quarto, apartamento em
apartamento e andar em andar. Era um processo longo e tedioso.
Os primeiros andares estavam vazios, só com o resto dos lares e
pertences das pessoas. Quase nada sobreviveu ao calor das
chamas, que consumiu tudo o que pôde. Kincaid nem se preocupou
em perguntar o que causou o incêndio, mas o que quer que tenha
sido, aconteceu rápido e se espalhou muito antes dos bombeiros
chegarem. A espuma deixava um resíduo verde em toda parte,
pintando as paredes e móveis enegrecidos com uma coloração
verde.
Enquanto subia as escadas de emergência até o terceiro andar,
Anderson ouviu um barulho. Provavelmente uma parede cedendo,
desmoronando com tanta força que fez a escada tremer. Ele se
segurou com força e prosseguiu, atento para gritos que pudessem
indicar pessoas feridas. A respiração parecia ficar mais intensa a
cada passo.
Os primeiros quatro apartamentos que o rapaz verificou estavam
danificados e vazios, mas o quinto foi onde a estrutura desabara. Os
aposentos estavam completamente enegrecidos, com móveis
carbonizados. A parede caída separava a sala de estar do quarto, e
restavam apenas os suportes estruturais chamuscados. Anderson
suspeitou que o incêndio tivesse começado lá ou em algum lugar
próximo, mas só quem saberia ao certo seriam os investigadores.
Ele chutou os escombros cuidadosamente, procurando evidências
de que alguém estaria preso por lá. Não havia nada nem
remotamente humano e, após alguns minutos, ele desistiu.
Virando-se, ele se preparou para seguir até o próximo
apartamento, com a garganta seca, implorando por um gole de água
gelada, quando viu uma figura passar correndo pela porta.
— Ei! — chamou, mas ninguém respondeu.
Tentou se mover de forma rápida e cautelosa, torcendo para não
provocar o desabamento do chão ou das paredes. A figura havia ido
até o fim do corredor e entrado no último quarto à esquerda.
Passando direto pelos outros quartos, Kincaid seguiu a pessoa,
desejando ter um pulsar, só por via das dúvidas.
Olhando pela porta, Anderson ficou surpreso ao descobrir que
estava perseguindo um idoso, que parecia não ter se ferido no
incêndio. Ele andava em círculos, como se procurasse alguma
coisa, cada vez mais confuso. Kincaid deu um passo para dentro do
quarto e o homem finalmente o percebeu.
— Você viu o meu leitor? — resmungou o velho.
— Senhor, você está bem? — perguntou Kincaid ao homem, que
não parecia nem um pouco bem.
— É claro que estou — declarou o homem distraidamente,
abrindo uma gaveta. — Obrigado por perguntar.
— O senhor sabe que este prédio está em chamas? Temos de
sair imediatamente.
O homem interrompeu a busca e olhou para Kincaid como se
fosse a primeira vez. Estudando-o dos pés a cabeça, ele pareceu
impressionado.
— O que é você?
— Corpo de Defesa Civil, senhor. Estou procurando
sobreviventes e o senhor parece ser um deles.
— Sobreviventes de quê? Os Skrel estão atacando? — Ele
estava claramente confuso, talvez até mentalmente doente.
— Não são os Skrel. É um incêndio. Eu preciso que você saia do
prédio.
— Eu preciso do meu leitor. Preciso terminar meu livro antes da
aula — reclamou o homem. Kincaid percebeu que a argumentação
não estava servindo de nada com o pobre homem. O jovem ainda
se perguntava como o idoso escapara ileso do incêndio, mas esse
era um mistério para outra hora. Uma das paredes estava ruindo, e
ele sentiu como se estivesse dentro de uma bomba-relógio.
Anderson foi até o homem, pegou-o pelo pulso e jogou-o por cima
do ombro, carregando na postura tradicional dos bombeiros. Ele
testou o peso adicional e o chão aguentou. Então seguiu em frente,
um passo depois do outro, para garantir que conseguiriam escapar.
Quando o homem foi colocado nos ombros do jovem, ficou
estranhamente calmo, como um gato carregado pela mãe.
— McGirk, eu estou com um sobrevivente. Um senhor de idade,
sem ferimentos físicos. Estamos descendo do quinto andar.
— Entendido. Os paramédicos estarão aguardando. Tome
cuidado, garoto.
— Nem me fale.
O idoso permaneceu quieto enquanto Kincaid descia as escadas,
até que enfim, após vários minutos agonizantes, eles saíram do
prédio. Dois membros da equipe médica correram até a dupla e
tiraram o idoso dos ombros de Kincaid, colocando-o em uma maca
para verificar seus sinais vitais.
Kincaid arrancou a máscara e respirou o ar com cheiro de
fumaça.
— Bom trabalho, garoto — exclamou McGirk ao se aproximar. —
O que aconteceu com ele?
— Não faço ideia — admitiu Kincaid. — Não sei e, honestamente,
nem quero saber. O cara precisava de ajuda e eu estou cansado e
dolorido demais para pensar no assunto.
— Seu trabalho está feito. Eles já controlaram o incêndio e os
bombeiros vão verificar o resto do prédio. Qual é o seu próximo
plantão?
Anderson pensou por um momento e respondeu:
— Segundo turno.
— Vá dormir um pouco e chegue mais tarde. Marquez pode
manter a paz até você chegar.
— Bom trabalho, Anderson. — elogiou a patrulheira, dando um
abraço um pouco mais demorado do que o normal. Ele fingiu não
perceber e agradeceu.
Desabando na cama em seu apartamento, Kincaid lembrou por
que se alistara: para proteger as pessoas, para usar seu corpo de
forma produtiva. Era um bom jeito de viver.
No Dia Seguinte

NO DIA SEGUINTE, Anderson Kincaid se apresentou para o serviço e


foi parabenizado e exaltado pelos colegas. No vestiário, agiu como
se não tivesse sido mais do que sua obrigação mas, por dentro,
sentiu-se orgulhoso por ter mantido os ideais dos Guardiões,
mesmo sendo apenas um civil.
Porém, na rua com Marquez ele finalmente pôde expressar seus
sentimentos. Eles estavam cada vez mais à vontade um com o
outro, formando um laço verdadeiro. Hoje, Anderson percebeu que
ela estava com o cabelo diferente.
— Eu gosto dele assim, mesmo que esteja fora do regulamento
— comentou ele.
— Obrigada, mas nós não temos muitas regras para os cabelos.
Você ainda acha que nós seguimos o regulamento dos Guardiões,
mas não é por aí. Nós somos mais relaxados e nos divertimos muito
mais.
— Ah é? E o que você faz pra se divertir?
— Eu faço longas caminhadas. Gosto muito de ir ao deserto de
Falkor, pra ver o que tem por lá.
— Se você andar bastante, acaba chegando à cidade de Nova
Terra. — ressaltou ele.
— Não, eu costumo ir procurar répteis. Eu sou uma herp
amadora.
— Herp?
— Herpetologista. Estudo répteis, cobras e bichos assim.
— Sério? Isso é bem... diferente.
— Isso é típico de quem nunca tentou conhecer uma cobra —
comentou ela. — Olha, me encontra depois do trabalho que eu
mostro pra você como é.
Ela ficou vermelha ao dizer isso, mas ele certamente estava
interessado o suficiente para aceitar o convite.
Era um bom jeito de viver. Então, por que ele estava insatisfeito?
Anderson tinha se adaptado bem àquela vida, e o ano de 997 DT
fora particularmente bem-sucedido até o momento. Ele tinha o
Corpo de Defesa Civil, tinha amigos e seu apartamento estava
começando a ficar com a cara dele. Kayla crescera e não era mais
uma criança chata, e agora era uma irmã adorável e uma grande
amiga. Seus pais continuavam perguntando sobre namoradas e a
mãe, que ainda era a médica-chefe da cidade, vivia pedindo netos
para ocupar o tempo quando a aposentadoria iminente chegasse.
Mas Andeson não estava interessado nisso. Pelo menos ainda não.
Tinha vinte anos, no primor de sua forma física, e a produção de
novas gerações de Kincaids podia esperar.
Anderson e Marquez deixaram as coisas acontecerem
naturalmente ao longo de algumas semanas, e um romance
começou a se desenrolar. Ela o apresentou à cobra de estimação,
Merlin, e deixou que ele comparasse a pele fria do réptil com a dela,
bem mais quente.
Depois da tórrida noite de amor, os dois passaram a se ver no
trabalho e depois. Agora, todos no Corpo estava pegando no pé do
casal, mas todos aprovavam. Até Alpuente, que aparentemente
tinha a preferência na hora de dar em cima do colega.
Mas nem tudo era perfeito. Kincaid sentia muito carinho por ela,
mas isso estava claramente em segundo lugar, comparado à
missão, o que causava problemas. Na noite anterior, o patrulheiro
havia ficado na casa da namorada. Após fazerem amor pela
segunda vez em poucas horas, Marquez ficou por cima de
Anderson, com os cabelos tocando-lhe o rosto.
— Você precisa mesmo fazer tudo com essa precisão militar?
— Eu fiz alguma coisa de errado?
— Não, de jeito nenhum. Pra falar a verdade, você é o melhor
amante que eu já tive. Você é certamente um bilhete premiado,
Andy.
Ele franziu a testa.
— Tem um “mas” vindo aí, não tem?
Marquez balançou a cabeça, mas os olhos dela não estavam
mais felizes.
— Você é tecnicamente capaz, até criativo, mas nunca parece
totalmente comprometido com isso... conosco.
Anderson se colocou de joelhos e olhou nos olhos da
companheira. Será que ela estava tentando terminar o
relacionamento? Tinha acabado de dizer que ele era um bilhete
premiado... então, o que estaria acontecendo?
— Andy, você tem que deixar esse sonho pra lá. Você já me
contou como foi ser negado pelos Guardiões e eu entendo o quão
esmagador isso deve ter sido. Mas você tem uma boa vida, uma
boa carreira. Você tem a mim. Mas nada disso é o bastante, não é?
Anderson Kincaid não tinha uma resposta adequada a essa
pergunta.
Em vez disso, ele saiu da cama, se vestiu e voltou para casa,
com seus pensamentos.
No Dia Seguinte

NO DIA SEGUINTE, durante o segundo turno, Anderson caminhava em


direção a um enorme mercado a céu aberto. Verduras e legumes
frescos tinham chegado algumas horas antes e o lugar estava
abarrotado de pessoas conversando e negociando. Em outras
palavras, mais um dia típico em uma semana típica, o que não era
problema algum para Kincaid. Afinal, assim ele e Marquez poderiam
andar num silêncio confortável e absorver os arredores.
Enquanto ele ponderava sobre a escolha entre algo verde e
folhoso ou algo vermelho e suculento para o jantar, os rádios
começaram a falar.
— Todo o Corpo de Defesa Civil, este é um alerta prioritário.
Ursas foram avistados na cidade. Os Guardiões estão em
perseguição, mas nós precisamos evacuar as ruas. As sirenes vão
disparar a qualquer momento, então preparem-se para o pânico.
Marquez pressionou o botão e confirmou o recebimento da ordem
enquanto corria até o mercado.
— Este lugar é uma bagunça completa num dia normal. Isso não
vai ser nada fácil — comentou ela. — O que você disse daquela
vez? Que só um punhado deles sobreviveu após o último ataque?
— É, foram poucos, mas nós não sabemos se eles passaram a
se reproduzir ou não — respondeu ele, acompanhando o passo
dela.
— Estou torcendo para que não... — declarou ela, tendo as
palavras seguintes interrompidas pela sirene que começou a uivar.
Era longa e estridente, com o objetivo de atrair a atenção de todos.
Das caixas de som que ficavam em vários prédios, uma voz gravada
anunciou: Isto não é um treinamento. Todos os cidadãos deverão
ficar em suas casas ou se apresentar ao abrigo mais próximo.
Marquez sabia como o povo pensava e, como previra, as
pessoas se deslocavam de forma totalmente caótica. Alguns
corriam, outros juntavam as sacolas de compras e outras
continuavam comprando. Barracas começaram a cair e os produtos
à venda eram fechados em caixotes. As pessoas gritavam em
pânico ou chamavam seus entes queridos. Todos se moviam.
Movimento era uma coisa boa, tudo o que eles precisavam fazer era
direcionar o movimento para um abrigo.
Kincaid pensou na reação dos Guardiões. Era para isso que eles
se preparavam e era esse o sonho de todos eles: matar um Ursa e
levar o prêmio. Ter uma história para contar, ser parte de uma lenda.
Anderson desejava profundamente estar ao lado deles mais uma
vez, mas sabia que isso nunca aconteceria. Em vez disso, teria que
orientar a população e manter as ruas liberadas para que os
Guardiões pudessem fazer seu trabalho.
Apesar de não ser uma exigência do Corpo de Defesa Civil,
Kincaid sempre mantinha o treinamento com armas em dia, para
garantir que seria capaz disparar um pulsar com as duas mãos e
que o alvo tombaria. Ele era adepto do treinamento com vários tipos
de lâminas e havia até experimentado um pouco de tiro com arco
para aperfeiçoar a coordenação motora. A pontaria precisa poderia
significar a diferença entre a vida e a morte. No caso dos Ursas,
significava atingir a carne e não o metal inteligente que se prendia
ao esqueleto deles, e concedia uma camada de proteção extra.
Eram criaturas terríveis, sobrenaturais, e, na mente dele, conseguia
ver sempre aquela que quase o matou, há quase duas décadas.
Uma guardiã morreu para salvar a vida de Anderson, que sempre
teria um débito de sacrifício em sua memória.
Os abrigos de emergência, criados para receber as pessoas em
casos de tempestades elétricas ou de areia e, obviamente, de
ataques de Ursas, estavam espalhados por toda a cidade, marcados
com um símbolo brilhante que prometia segurança. Anderson
gesticulava com os braços, indicando a direção do abrigo mais
próximo aos cidadãos. Marquez havia corrido na frente, para
garantir que o abrigo estaria aberto e com energia elétrica. Depois,
ela passou a ajudar as pessoas a passar pelas portas duplas.
A população continuava fazendo barulho, que se somava ao apito
das sirenes, e Kincaid desejou ter um protetor auricular. O
patrulheiro cerrou os dentes com força, ignorando o desconforto, e
continuou conduzindo as pessoas na direção certa. A grande massa
seguia do mercado ao abrigo.
Um rugido, um som que despertou antigos pesadelos, se
sobrepôs ao tumulto do pânico. Um Ursa estava por perto e
Anderson torceu para que os Guardiões viessem em seu encalço.
Kincaid olhou por cima do ombro e viu as pessoas fugindo para
todos os lados, a partir do mercado. A criatura devia estar lá.
O patrulheiro correu até o abrigo e digitou um código no painel.
Uma porta se abriu na parede e ele retirou três pulsares. Colocando
um na cintura e entregando o outro a Marquez, ele se sentiu mais
seguro para lidar com a ameaça iminente.
Um Guardião apareceu por trás do abrigo, sem fôlego e coberto
de poeira.
— Você o viu? — Perguntou.
— Eu acho que está no mercado — respondeu Kincaid.
— Continue trazendo as pessoas para cá. Nós vamos cuidar
disso — ordenou ele, de forma meio desnecessária. O comentário
incomodou Kincaid, que o recebeu como uma insinuação de que ele
não faria o próprio trabalho se não tivesse um Guardião para
mandar.
O Guardião correu na direção do Ursa e, sem dúvida, dos outros
companheiros. Se Anderson bem lembrava, as regras diziam que,
quando possível, um mínimo de oito Guardiões era necessário para
enfrentar uma das criaturas. As pessoas saíam do caminho do
Guardião e continuavam entrando no abrigo. Marquez continuou
levando-as para dentro enquanto Kincaid observava a cena. Eles
não precisavam falar: se entendiam tão bem que as palavras eram
desnecessárias.
Kincaid viu o Guardião empunhando um alfanje, correndo em
direção ao mercado, onde os sons de destruição eram
complementados pela sirene. Ele desejou que fosse possível
desligar o alarme. A essa altura, todos já haviam recebido a
mensagem.
Um corpo veio voando por uma das passagens do mercado e
caiu desajeitado no chão. Parecia estar sem uma perna, e o sangue
se acumulava em torno. Marquez fez um gesto, pedindo que ele
mantivesse a posição.
— Fique aqui, Andy!
— Ainda há civis lá dentro.
A patrulheira foi até o companheiro, com os olhos em chamas.
— É suicídio! É pra isso que os Guardiões existem. E você não é
um Guardião. Deixa isso pra lá.
— Mas eles não estão aqui, eu estou.
— Tudo bem, Andy, então você vive e respira pra ser um
Guardião, mesmo sem ter um uniforme. O que o manual diz sobre
enfrentar Ursas?
— Oito Guardiões, pelo menos.
— E você é um exército de um homem só. Como você vai
conciliar isso?
Anderson olhou Marquez, sem palavras.
— Eu não sabia que você era suicida — disse ela.
— Como eu vou encarar você amanhã se eu não fizer isso?
Como eu posso ter uma vida ao seu lado, sabendo que deixei
aquele monstro matar inocentes?
— Se fôssemos um exército, eu apoiaria você. Mas no momento,
somos só nós dois. Não temos como entrar lá e sobreviver.
— Gin, eu preciso fazer isso. Eu preciso tentar. Se não, não
conseguirei viver em paz.
Kincaid correu na direção do corpo, mas logo ficou claro que a
pessoa já estava morta. Ele voltou sua atenção para o mercado, o
emaranhado de bancas e barracas pré-fabricadas onde era possível
encontrar todo tipo de comida e bebida. Ao se aproximar, Anderson
viu a criatura, que era imensa e se movia erraticamente. Seja como
for que os Skrel tenham projetado essas coisas, eles passaram
longe de criações elegantes e desenvolveram as criaturas para
carnificina máxima. As seis pernas terminavam em garras afiadas e
a bocarra era cheia de dentes pontudos. Ele sabia que a criatura
não tinha visão e usava os outros sentidos, principalmente o olfato,
para localizar e perseguir as vítimas. Neste momento, o monstro
estava louco, destruindo tudo em busca de presas humanas.
Anderson sabia que Virginia faria um bom trabalho, protegendo o
perímetro enquanto ele ia atrás da criatura, mas não fazia ideia se
ela ainda estaria lá quando a missão terminasse. Parte dele
planejava um futuro que incluía Marquez, mas cada passo de
Anderson na direção do mercado pisoteava esse sonho, arriscando
a felicidade mais tangível que tivera em anos.
As barracas vazias pareciam frustrar a criatura, que rasgava
metal, madeira e plasticina como se fossem papel. Atrás dele,
Kincaid conseguiu ver que pelo menos mais dois Guardiões
estavam presentes, além daquele com quem falara antes. Esse ele
não podia ver, mas torcia para que não estivesse morto.
Anderson observou os Guardiões sacando os alfanjes. Armas
leves e versáteis, os alfanjes podiam se transformar rapidamente
em mais de doze configurações diferentes, dependendo da
necessidade. Neste momento, as armas de todos os Guardiões
pareciam estar em forma de foice, claramente na intenção de ferir
as patas da criatura e derrubá-la. Obviamente, primeiro eles
precisavam conseguir pegar a fera.
Então, Kincaid viu o outro Guardião saindo de um esconderijo,
com o alfanje em forma de lança, disparando na direção da criatura,
pronto para perfurar sua couraça. Porém, o Ursa deve ter farejado o
novo inimigo e deu um passo atrás, enquanto atacava com a pata
da frente e partia o sujeito ao meio. Entranhas e sangue se
espalharam pelo chão com o impacto do corpo do soldado. O Ursa
rugiu, mas não em triunfo, pois não teve dificuldade nenhuma em
derrotar o homem.
Rapidamente, a criatura se virou e investiu na direção dos outros
Guardiões, que saíram rapidamente do caminho. A criatura
perseguiu os que foram para a esquerda.
Essa era a chance de Anderson. Ele correu e pegou o alfanje do
Guardião morto. Agora que empunhava a arma, não havia muita
diferença entre ele e um Guardião. Kincaid reconhecia dívidas a
pagar: primeiro, à mulher que salvou a vida dele; depois, ao legado
de sua família.
Ele teria de se mover com cuidado para não chamar a atenção da
criatura, e para não escorregar nas poças de sangue, vísceras e
frutas amassadas. Os cheiros doces e enjoativos lhe causaram
ânsia de vômito, mas ele engoliu em seco e continuou a se
aproximar da criatura, que ainda perseguia os Guardiões. Os outros
Guardiões estavam fora de vista. Ou haviam fugido ou se
aproximavam furtivamente.
As sirenes finalmente cessaram e Kincaid agradeceu aos céus,
como sua mãe lhe ensinou.
O patrulheiro ouviu com concentração total, e captou o som das
patas com garras afiadas da criatura, o estalar das madeiras
desgastadas e o zumbido do alfanje em sua mão.
Então, Anderson ouviu um som baixo e lamentoso. Não era
humano e certamente não era de Ursa. Ele lembrou que também
havia gado no mercado, que servia principalmente como um
minizoológico para as crianças enquanto os pais faziam compras.
Eram feitas demonstrações para ensinar as crianças como os
animais contribuíam para a sociedade. Mas não eram sons felizes e
Anderson percebeu que havia movimento. Os animais estavam
espantados, o que só poderia significar que o Ursa decidiu que era
hora do almoço.
Kincaid se aproximou, segurando o alfanje com força. Ele nunca
havia empunhado um deles antes e não tinha ideia de como fazê-lo
mudar de forma. Se a forma de foice era especialmente afiada,
provavelmente era disso que ele precisava.
Um dos animais gritou, enquanto os outros reproduziram o
mesmo som um pouco mais baixo. O patrulheiro soube, na mesma
hora, que o Ursa havia abatido um deles, talvez um cavalo.
Pretendia pegar o Ursa desprevenido, preocupado em comer o
animal que acabara de matar.
Kincaid caminhou perto da cerca e, ao dobrar uma esquina, se
deparou com os restos de outros Guardiões. O torso de um deles
havia sido rasgado; a cabeça de outro, arrancada do pescoço. A
cabeça havia rolado alguns metros, com a expressão de choque
congelada para sempre. Essa era uma visão que Kincaid gostaria
de esquecer rapidamente. Em vez disso, ficou gravada em sua
mente, bem ao lado da imagem do Ursa avançando contra ele no
parque.
O Ursa parou de comer, percebendo, de repente, a presença de
Kincaid. Sem enxergar, a criatura virou na direção dele, mas ficou
no mesmo lugar. A luz fraca refletia os retalhos de metal inteligente
que protuberavam em um padrão aparentemente aleatório no corpo
da criatura. Um tiro só, daquela distância, nunca poderia matar a
fera. Na verdade, os pulsares eram quase inúteis, mesmo a queima-
roupa. Kincaid precisava chegar mais perto, mas estava com
dificuldade de se mexer. Talvez o Ursa viesse na direção dele; esse
era um pensamento terrível.
Ele sabia que se a criatura se fixasse nele e em seu medo, ela o
caçaria até um dos dois estar morto. Kincaid tinha outros planos
para a própria morte: primeiro e mais importante, planejava que ela
não acontecesse por muito tempo. Então, ele fez a única coisa que
pôde: Andou para trás, para longe da criatura, torcendo para que ela
ficasse e terminasse a refeição. Ainda havia Guardiões em
operação e certamente eles viriam. A grande missão dos Guardiões
era proteger o mundo; o trabalho dele era proteger os cidadãos ali,
naquele momento.
Para a surpresa de Kincaid, a criatura deu mais uma mordida no
animal morto e continuou ignorando-o. Ele não conseguiu entender.
Essas coisas deveriam ser máquinas de matar. A única explicação
que ele pôde pensar foi que o Ursa o considerava pequeno e fraco
demais para valer a pena. Por um lado, ele estava aliviado. Por
outro, se sentiu vagamente insultado.
Sem fazer movimentos bruscos, Kincaid foi até a periferia do
mercado. Ele ouviu sons humanos e parou para escutar: eles
vinham de debaixo de uma venda de tecidos que desabou.
Caminhando cuidadosamente sobre os destroços, o patrulheiro se
aproximou do monte de tecidos. Individualmente, cada rolo de tecido
era bem leve, mas, amontoados assim, eles criavam um peso que
poderia prender alguém facilmente. Depois de chutar alguns rolos,
ele gritou:
— Quem está ai?
— Miranda — respondeu uma voz fraca.
— Oi, Miranda. Eu sou Anderson e estou aqui para resgatá-la.
Você está ferida?
— Meu braço — disse ela, choramingando de dor.
Ele sabia muita coisa sobre ferimentos no braço e começou a tirar
rapidamente os tecidos do caminho. Escavou pelo menos um metro
de tecidos de algodão, lã, linho e outros materiais, até encontrar um
emaranhado de prateleiras de madeira e metal que não sairiam com
facilidade. Ele fez força contra um pedaço teimoso de metal e seu
braço direito doeu.
Kincaid raramente pensava nas características que tornavam seu
braço esquerdo único, mas ele sabia que era incansável, não doía e
era muito mais resistente do que o direito. Ele tentava não depender
da força superior, insistindo sempre para que os médicos o
calibrassem para a força média de um humano adulto, mas sabia
que o processo de calibragem nunca era muito preciso e a prótese
permanecia um pouco mais forte. Nesse momento, ele desejou ter
superforça, lembrando-se das histórias de Sansão e do Super-
homem. Queria ter toda aquela força no mundo real para salvar
Miranda.
Fazendo toda a pressão possível, o metal começou a ficar
amassado em sua mão, que fechava como um torniquete. Anderson
cerrou os dentes, forçando ao máximo os músculos do pescoço,
peitoral e pernas. Ainda assim, não parou de forçar. Pouco a pouco,
o metal começou a ceder à pressão. Com um barulho seco, ele se
dobrou e finalmente soltou, quase o fazendo cair. Depois de
recuperar o equilíbrio, o patrulheiro foi até a abertura criada e
continuou arrancando pedaços de metal, madeira e tecido.
Finalmente criando uma abertura grande o suficiente, ele parou para
olhar.
Miranda tinha, no máximo, quinze anos. Era ruiva e tinha cabelos
cacheados que caiam sobre um vestido amarelo, que agora estava
ensanguentado e rasgado. O braço sobre o qual ela reclamava
estava preso sob uma máquina de costura, e ela estava caída em
um ângulo que o impedia de tirá-la dali.
— Oi — disse ele, para acalmá-la.
Ela gemeu e olhou com cara de assustada.
— Eu não estou sentindo meu braço — reclamou ela.
Isso não era nada bom. Kincaid redobrou os esforços e
conseguiu alcançar a máquina pelo lado. Usando o alfanje como
alavanca, ele levantou a máquina o suficiente para que Miranda
pudesse mover o corpo inteiro, tirando o braço ferido de baixo de lá.
Ela começou a ir na direção da abertura criada pelo seu salvador.
Kincaid a puxou e a colocou de pé. Calmamente, tentou examinar o
braço da adolescente, mas ela se jogou nele em um abraço
desajeitado.
Anderson comunicou sua descoberta pelo rádio e pediu ajuda
para que pudesse continuar em sua busca. Ao desligar o sinal,
disse:
— Agora fuja daqui. Tem um Ursa perto dos animais, e eu não
quero que ele encontre você.
— E quanto a você?
— Esse é o meu trabalho. Vai lá e cuida desse braço — terminou
ele.
Miranda enxugou as lágrimas com a mão boa, deu outro abraço
nele e correu para longe.
Pelos quinze minutos seguintes, Anderson encontrou mais
cadáveres, esmagados pelo maquinário que havia sido derrubado, e
o corpo de mais um Guardião. O corpo todo tinha marcas profundas
deixadas pelas garras do Ursa.
A cada passo, Kincaid verificava a posição do Ursa barulhento.
Manteve o rádio ligado no volume baixo, para ouvir relatórios de
outras partes de Nova Prime. Ao que parecia, vários Ursas
chegaram simultaneamente e estavam espalhando o terror por toda
parte, o que provavelmente significava que os reforços dos
Guardiões iriam demorar. Especialmente se não soubessem que os
Guardiões do mercado estavam mortos.
Kincaid deu as costas para a posição do Ursa e chamou o Corpo
pelo rádio, transmitindo as informações e pedindo que elas fossem
repassadas aos Guardiões. Eles precisavam saber que ele e
Marquez eram a única forma de defesa treinada nesta parte da
cidade. É claro, o lugar já não parecia tão cheio agora que as
pessoas estavam escondidas no abrigo ou em suas casas.
Ao voltar-se a posição do Ursa, ele viu Miranda parada, no
mesmo lugar. Ela estava em choque e não havia ido muito longe.
Era o tipo de complicação que ele não precisava no momento.
— Vai embora! — disse ele, gesticulando na direção da entrada.
— Eu tô com medo — respondeu ela, segurando o braço
machucado.
— Mais motivo ainda pra você ir embora — explicou.
Ela hesitou.
Bufando, Anderson pegou a menina, colocou-a de pé e começou
a levá-la para longe do Ursa. Ele não tinha tempo para brincadeiras
e não podia virar as costas para a fera por muito tempo. Bastaram
alguns metros de movimento para levá-la de volta para a realidade.
Os olhos dela se ampliaram; ela soltou um grito de medo e começou
a correr.
O Ursa rugiu e Kincaid ouviu um barulho úmido de algo caindo no
chão. A hora da refeição acabara e a caçada havia recomeçado.
Eles eram os alvos.
Então, o rosnado soou novamente, agora mais perto.
Miranda estava fora de vista, presumivelmente a caminho de um
lugar seguro. Isso liberava Anderson para se concentrar totalmente
em impedir o Ursa de caçar outros humanos. Ele olhou para os dois
lados e viu um telhado. Eram grandes telhas de metal maleável que
ajudavam a sombrear as barracas. Quando presas, elas
conseguiam aguentar algum peso.
O patrulheiro saltou com suas poderosas pernas. Agarrando-se
na borda, Kincaid se içou. Então, ficou deitado com a barriga para
baixo, cortando o rosto no processo, e puxou o pulsar para mirar.
Disparou uma série de raios que cortaram o ar como fogos de
artifício. Os tiros preencheram o ar entre ele e o Ursa feroz.
O truque funcionou e os tiros desaceleraram a fera, que começou
a farejar o chão e arranhar o solo com as garras. Depois que o Ursa
travou o cheiro de Kincaid, ele acelerou novamente. Anderson olhou
para seu nêmesis, mirou e atirou novamente. Não que ele pudesse
matar a criatura com a pistola, ou com as duas, se fosse o caso. Ele
não sabia nem se o alfanje seria o suficiente, mas precisava manter
o Ursa ocupado para dar aos Guardiões uma chance de chegar.
A manopla do patrulheiro continha uma tela que mostrava todo
tipo de informação; Anderson pediu em voz alta que ela mostrasse a
planta do mercado. Precisava de um plano que não se resumisse a
atirar cegamente no Ursa até que ele saltasse e o rasgasse em
pedaços. Linhas vermelhas apareceram na tela escura, e os olhos
de Anderson traçaram um caminho e depois outro. Abaixo dele, o
Ursa rosnava e rugia, aproximando-se de sua posição, pronto para
saltar.
O partrulheiro viu uma oportunidade e correu para o próximo
segmento de teto à direita, abaixando-se e disparando enquanto
corria. A fera rugiu e o seguiu, tentando acumular impulso suficiente
para pular e retalhá-lo.
Kincaid continuou fazendo a rota em diagonal, levando a criatura
de volta ao cercado dos animais. A fera escalou rapidamente as
barracas amassadas, ignorando tudo no caminho e tentando
alcançar o pulsar irritante e seu dono. Anderson correu até chegar
ao ponto desejado e disparou outra vez.
A criatura acelerou, investindo furiosamente. Enquanto corria,
Kincaid disparava rajadas não contra o Ursa, mas contra o teto
adiante. Sem parar, o Ursa saltou para o telhado, mas teve o azar
de cair exatamente em um dos pontos fragilizados pelo tiro de
Kincaid. O piso enfraquecido cedeu com o peso enorme da criatura,
que caiu repentinamente sobre uma montanha de comida podre e
dejetos animais.
A fera expressou seu descontentamento com o rugido mais alto
até o momento, e Kincaid precisou cobrir os ouvidos. Infelizmente, o
buraco não era fundo e, assim que recobrasse o juízo, o Ursa
escalaria de volta. Mas pelo menos ele estava ocupado por alguns
momentos, dando a Kincaid tempo para criar um novo plano.
— Kincaid falando. Onde estão os Guardiões?
— Moser falando — respondeu uma voz desconhecida. — Eles
estão por toda a cidade. Onde estão os encarregados do mercado?
— Estão todos mortos. Onde diabos estão os reforços?
— A caminho.
— É melhor correrem. Passe essa mensagem adiante.
— Você está bem?
— Por enquanto, sim.
Os dedos passaram pelo alfanje, pressionando partes aleatórias
da arma; rapidamente, o aparelho ganhou vida e os filamentos de
metal programado se alteraram em uma das extremidades, tomando
a forma de um gancho.
— Arrume esses reforços.
— Entendido.
O Ursa não ficou parado durante a conversa. Ele se recompôs e
usou as pernas poderosas para escapar da gosma e voltar para a
arena, rugindo a cada passo. Obviamente, além de ouvir a fera,
Kincaid podia sentir seu cheiro. Ele torceu o nariz de nojo.
No momento em que pôs os pés no chão, o Ursa se flexionou e
saltou, usando os membros frontais mais curtos para agarrar o
metal da cobertura. Com algum esforço, ele chegou até a parte do
telhado onde estava Kincaid.
Agora que estavam no mesmo nível do campo de batalha, a
vantagem passou de Anderson para a criatura fedorenta. O
patrulheiro começou a golpear com o alfanje, atingindo patas,
articulações e garras. Mas o Ursa continuou atacando
implacavelmente. Percebendo que não estava conseguindo ferir a
criatura, Kincaid se virou e correu.
O Ursa investiu contra ele.
Kincaid estava contando que o peso da criatura fosse demais
para as folhas finas de metal que compunham o teto. E acertou. A
estrutura começou a ranger e estalar, adicionando ruídos aos
emitidos pelo Ursa. A fera andou mais uns seis metros antes de o
teto começar a ceder. Mais alguns passos e a estrutura ficou frouxa.
Conforme o Ursa se aproximava de Kincaid, o metal começou a se
soltar das presilhas.
A única coisa com que ele não contava era cair no chão junto
com o Ursa.
Os dois desabaram com um estrondo poderoso. O ombro direito
de Kincaid absorveu o impacto da queda. Ele precisou de toda a
força de vontade para não gritar de dor ao cair sobre as ruínas de
uma barraca de sapateiro. Rapidamente se levantou e começou a
traçar uma nova estratégia.
O Ursa, apesar da forma aparentemente desajeitada, era ágil e já
estava de pé, fixado na posição de Kincaid.
Um plano, por mais tosco que parecesse, ainda era um plano.
Kincaid correu para a direita, passando por um corredor
relativamente intocado do mercado. O ombro dele latejava ao mexer
o braço; ele precisava superar isso. Depois de vários passos, ele
ouviu a criatura o seguindo, rugindo com toda força. Ela o desejava
seriamente.
Anderson entrou em um dos becos laterais, saltando por sobre
caixas e dando um rolamento para passar por uma pilastra caída no
caminho. Enquanto isso, a criatura seguia em frente, destruindo
tudo no caminho, sem desistir de sua perseguição.
O mercado estava acabando para Kincaid. Logo, ele estaria
exposto e a criatura poderia atacá-lo diretamente e acabar com
tudo.
Foi aí que ele se lembrou do parque e acelerou o passo. Saiu das
sombras do mercado para uma parte ensolarada. Piscando sem
parar para ajustar os olhos, ele continuou em frente, cruzando a rua
do mercado e chegando ao parque. Por sorte, o lugar estava
deserto.
Por todo o parque, havia árvores antigas. Kincaid partiu na
direção de uma delas e agarrou um galho grosso. O ombro direito
reclamou, mas ele conseguiu ignorá-lo e se puxou para cima, caindo
no galho. Depois, passou para o próximo galho mais alto, escalando
até chegar a uns cinco metros do chão, teoricamente alto demais
para ser alcançado pelo Ursa com um salto só. O ombro lembrava a
ele que teria um preço a pagar quando a adrenalina passasse. Tudo
o que ele queria era estar vivo para sentir a dor.
Finalmente, Anderson se sentiu seguro o suficiente para olhar
para trás, mas a coisa maldita estava fora de vista. A criatura devia
ter ligado a camuflagem, misturando-se com a paisagem serena do
parque. Kincaid torceu para que mais Guardiões chegassem logo,
se perguntando o quão inteligente a criatura seria, duvidando que
alguém pudesse saber ao certo.
A vida inteira dele parecia ter se desenrolado em parques. Este
era semelhante àquele no qual ele perdeu um braço, viu uma
Guardiã se sacrificando e começou a trilhar seu caminho. Apesar da
rejeição de Velan, Kincaid estava lá agora, lutando mano a mano
com um Ursa. Ele imaginou o que Velan pensaria sobre isso,
considerando que o oficial primeiramente lembraria que o
regulamento exigia esquadrões com, no mínimo, oito soldados.
Enfrentar uma dessas feras sozinho parecia suicídio, mas Kincaid
estava determinado a não morrer em um parque. Ele sobreviveria a
isso. Sua vida ainda não estava no fim.
Tudo estava calmo. Calmo demais. Anderson tentou prestar
atenção nos arredores, mas o rosto de Virginia continuava se
materializando em sua mente. Ele precisava ficar vivo para pedir
desculpas. Ou ser homem o suficiente para perdê-la.
O nariz dele percebeu um cheiro forte, interrompendo os
devaneios e alertando-o um segundo antes do rugido confirmar seu
olfato.
O Ursa, ainda invisível, rugiu mais uma vez para chamar a
atenção, provavelmente no intuito de deixá-lo com medo. Quanto
mais feromônios ele emitisse, mais fácil seria para a criatura
percebê-lo. Ela atacou a árvore com as garras.
Kincaid segurou-se com toda força, enquanto o tronco tremia a
cada golpe. Ele se deu conta, com uma certa dose de desespero,
que a criatura pretendia derrubar a árvore para pegá-lo.
Segurando-se com o braço artificial, o patrulheiro começou a ficar
de pé para saltar para a árvore seguinte. Não estava nem um pouco
interessado em se tornar vítima da criatura e começou a se afastar
do Ursa o mais rápido possível, atraindo-o para as profundezas do
parque e para longe das pessoas escondidas perto dos limites.
Rapidamente, Kincaid conseguiu trocar de árvore seis vezes, e
começou a perceber a fraqueza do lado direito do corpo. O Ursa,
agora completamente visível em sua feiura, o seguiu
dedicadamente, fedendo, rugindo e atacando as árvores por todo o
caminho. Como as copas e o fôlego dele estavam acabando,
Anderson pensou nas opções que restavam. Ele tinha um alfanje,
apesar de não saber exatamente o que fazer com ele; tinha dois
pulsares, um deles quase sem carga; tinha um braço mecânico, que
poderia resistir a uma ou duas patadas. Mas era só isso. Olhando
além do monstro, ele não viu nenhuma ajuda chegando.
Talvez fosse realmente o fim.
A mente do jovem homem voltou no tempo, e ele pensou em tudo
que conseguiu conquistar na vida. Nas últimas horas, ele foi capaz
de salvar algumas vidas e impedir o Ursa de atacar mais pessoas.
Ele serviu o Corpo com honra, resgatando aquele homem do
incêndio, entre outros atos de heroísmo. Anderson também riu
bastante, talvez tivesse até amado de verdade, mesmo tendo
colocado tudo a perder algumas horas atrás. Se fosse o fim agora,
teria sido uma boa vida. Uma vida vivida honrando seu débito e
respeitando a tradição da família Kincaid, mesmo sem usar um
uniforme de Guardião. Se Anderson fosse realmente morrer ali,
agora, ele poderia aceitar isso.
O primeiro Ursa havia levado todo o medo de seu coração, anos
antes.
Seguindo os ensinamentos da Primus, ele rezou ao criador dos
céus e do universo, agradecendo por ter recebido uma vida tão boa
e por poder honrar o nome da família. Pediu ao criador que cuidasse
de seus pais e de sua irmã, e para que a humanidade continuasse a
prosperar em Nova Prime.
A mente dele estava tão ocupada preparando-se para a morte
iminente que Kincaid demorou alguns momentos até perceber que
tudo ficara muito silencioso, e que seu mundo tinha parado de
balançar. O Ursa desistiu de atacar a árvore e estava dando voltas,
procurando alguma coisa. Primeiro, Kincaid pensou que a ajuda
estivesse chegando e que a criatura tivesse percebido primeiro.
Mas não, era outra coisa.
A criatura parecia ter perdido o rastro do seu alvo, assim como
antes, quando se virou diretamente para ele sem reagir. Era a
chance dele de escapar para a segurança. Mas isso significaria que
a criatura ficaria livre para perseguir outras pessoas, e Anderson
não gostava dessa ideia.
Em vez disso, ele desceu de galho em galho, até o chão. O Ursa
não estava percebendo ou entendendo o que acontecera com sua
presa. Kincaid se aproximou do Ursa por trás. Ele chegou
perigosamente perto, segurando o fôlego por causa do cheiro.
Não havia suor, nem medo.
A fera se virou para o patrulheiro, sem perceber o quão perto o
humano estava.
Kincaid segurava um pulsar na mão direita e o alfanje em forma
de gancho na esquerda. Havia estudado a criatura e visto vários
pontos que pareciam mais vulneráveis do que outros. Ele podia
atacar pelas costas. Apesar de ser deselegante e nada justo, isso
era guerra, e na guerra justiça é um luxo que não se pode ter.
Golpeando com toda força, Anderson cravou o alfanje no couro
do Ursa e puxou. Em meio ao sangue da criatura, ele conseguiu ver
parte da pele. Puxou com mais força, enquanto atirava à queima-
roupa com o pulsar. O alfanje continuou a rasgar a junta da perna
traseira da criatura, partindo a carne e o músculo roxo da fera.
Enquanto o Ursa gritava, com um tom que refletia sua dor, Kincaid
se virou e saiu em disparada com toda a energia que ainda tinha.
Ele não olhou para trás, nem largou as armas. O Ursa tentou correr
atrás dele, mas estava gravemente ferido.
Kincaid continuou correndo por onde viera antes, passando pelas
árvores e chegando na rua. À esquerda, o caminho estava livre. À
direita, um veículo dos Guardiões pousava no meio da avenida.
Oito Guardiões, com alfanjes em punho, saltaram do veículo
antes mesmo dele terminar de pousar.
— Eu feri um deles no parque — afirmou Anderson, exasperado.
Eles assentiram silenciosamente, passando pelo patrulheiro
apressadamente. Esticando o braço artificial, ele se recostou no
veículo, respirando fundo e tentando se acalmar.
Lá ele permaneceu, por vários minutos, acalmando a mente e a
respiração no ar morno. Por fim, uma Guardiã saiu do parque, o viu
e fez sinal de positivo.
— Nós conseguimos contê-lo — explicou ela, sorrindo. — Eu sou
a tenente Divya Chandrark.
— Anderson Kincaid. Vocês o mataram?
— O resto do pessoal esta trabalhando nisso — admitiu ela. — O
que aconteceu?
Kincaid relatou os acontecimentos a ela como se estivesse
falando com McGirk e transmitindo um relatório formal pós-ação. Ela
assentiu, arregalando os olhos algumas vezes.
— Você está dizendo que a coisa virou para você e não te
percebeu? E depois parou de detectá-lo completamente? Os Ursas
não fazem isso. Você faz isso com eles. Parece que você ficou
invisível, exatamente como o F.O.
— F.O.?
— O Fantasma Original. Cypher Raige. Conseguiu se
desconectar tanto do medo que o Ursa não conseguiu encontrá-lo.
Ele foi o primeiro a matar um desses sozinho.
Na verdade, ele sabia de tudo isso, mas não percebeu que era
isso que estava acontecendo com ele. Estava tão ocupado tentando
sobreviver que simplesmente não se perguntou como estava
fazendo aquilo.
— É, parece que o F.O. ainda está na minha frente. Eu só dei um
golpe e corri.
— Ainda assim, você conseguiu chegar perto o suficiente pra
fazer isso.
Ele concordou com a cabeça, impressionado. Aparentemente, a
competição entre as famílias ainda existia.
Depois de Ouvir

DEPOIS DE OUVIR o relatório, os Guardiões seguiram o caminho deles


e Anderson voltou para o quartel. Pelo caminho, encontrou alguns
companheiros que já sabiam de sua proeza. Podia jurar que as
notícias estavam sendo transmitidas pelo vento, de tão rápidas que
se espalhavam.
Quando Anderson chegou ao vestiário, Virginia estava parada ao
lado do armário dele, recém-saída do banho e com um vestido
casual.
— Oi — disse ele.
— Oi — responde ela, em um tom neutro. Ele não conseguia ler a
expressão dela e não fazia ideia se eles ainda eram amantes,
parceiros ou sequer amigos.
Por um momento, Kincaid parou e refletiu. Tinha feito o mesmo o
dia inteiro, procurando respostas, e este devia ser seu dia de sorte,
pois as soluções estavam aparecendo magicamente.
— Eu sou um idiota — declarou ele.
Ao ouvir isso, ela piscou e respondeu:
— Mas é um idiota talentoso.
— Você me faz tão feliz, mas eu só me dei conta disso quando
achava que tinha jogado tudo fora para morrer enfrentando um
Ursa. Eu corri o risco de perder você, arrisquei a nossa relação para
talvez até morrer.
— Mas você não morreu. E, ainda por cima, você ficou invisível.
Isso é incrível demais!
Virginia se jogou nos braços de Anderson, que a segurou, usando
o braço mecânico para levantá-la um pouco do chão. Os dois riram
juntos enquanto giravam.
Depois de colocá-la no chão, eles sorriram um para o outro.
— Eu preciso de um banho — disse ele. — Depois, nós vamos
comemorar.
Tirando o vestido, ela respondeu:
— Então deixa eu ajudar você.
Alguns Dias Depois

ALGUNS DIAS DEPOIS, alguém bateu à porta. Kincaid, ainda se


recuperando dos ferimentos, atendeu vestindo uma camisa casual e
segurando uma cerveja. Marquez, vestida em um roupão de seda,
permaneceu no sofá.
Cypher Raige, em seu uniforme todo branco, estava na porta. Os
olhos dele subiram e desceram, absorvendo a imagem. Kincaid
quase derrubou a garrafa ao bater continência.
Raige ficou pacientemente na porta, até o jovem se dar conta do
que estava acontecendo e dar um passo para trás, gesticulando
para que o general-comandante entrasse. Ele olhou rapidamente
por cima do ombro e viu Marquez congelada no mesmo lugar,
incapaz de sair da visão.
— General-comandante Raige, eu gostaria de apresentar Virginia
Marquez — disse ele, o mais formal possível.
Ela apertou o roupão para fechá-lo e levantou-se com o máximo
de graciosidade possível, indo apertar a mão do homem.
— É um prazer — foi tudo que ela conseguiu dizer. Raige fez só
um aceno vago na direção dela. Virginia foi se sentar numa cadeira
de onde ainda seria possível ouvi-los. Raige não pareceu se
importar com isso, apesar de Kincaid estar um pouco incomodado
com a situação, como se ela estivesse violando alguma regra
esquecida.
— Eu ouvi falar que você ficou invisível — começou Raige,
observando o apartamento, que Anderson sempre mantinha limpo e
organizado. Não estava impecável, é claro, mas bom o bastante.
— Foi o que me disseram — respondeu Kincaid.
— Bom trabalho. Anderson... Posso chamá-lo assim?
— É claro, senhor.
— Anderson, tornar-se invisível é uma habilidade muito rara.
Poucos conseguiram fazer isso até hoje. Somente três, durante os
ataques recentes de Ursas, incluindo você. É um grupo bem
selecionado, ao qual você pertence.
— Sim, senhor — respondeu Kincaid, repentinamente se sentindo
muitos anosmais jovem e sentindo novamente queimar o desejo de
vestir o uniforme.
— Nós temos uma dívida com você. Suas ações mantiveram as
pessoas em segurança e permitiram que os Guardiões fizessem seu
trabalho.
— É, foi basicamente isso.
— A cidade de Nova Prime tem uma dívida de gratidão com você.
Nós gostaríamos que você se juntasse aos Guardiões.
Finalmente, pensou ele.
Mas logo depois, ele se deu conta de que essa era uma oferta
muito boa, mas que havia chegado atrasada. Era tudo o que ele
queria, tudo de que precisava, por muito tempo. Mas agora, ele
tinha tudo o que queria: uma lar, uma carreira e alguém com quem
compartilhar a vida.
Kincaid ficou calado e respirou fundo.
Raige permaneceu impassível.
— Seu primo, Atlas, me pediu que preservasse e protegesse esta
sociedade quando ele partiu de Nova Prime — explicou Cypher
Raige, pensativo. — É claro, aquelas regras provavelmente foram
escritas antes de os Ursas aparecerem por aqui. Talvez sejam
anteriores até aos ataques dos Skrel. As coisas eram bem
diferentes naquela época.
— Sim, senhor, eram sim.
— A regra, todas as regras, precisam ser revistas, na minha
opinião. Algumas, como essa, precisam ser adequadas à nossa
sociedade atual e às suas necessidades. — Raige parou, esperando
que ele absorvesse os comentários.
— Muito obrigado, general-comandante — respondeu Anderson,
lentamente, lutando para encontrar as palavras corretas e encarar o
olhar penetrante do homem. — Mas eu respeitosamente recuso o
convite. As regras continuam sendo regras, e elas me forçaram a
abandonar um sonho de criança e perseguir um sonho de adulto. Eu
o encontrei, criei meu próprio caminho e estou feliz comigo mesmo.
Raige absorveu a informação e olhou diretamente para Marquez,
que ficou imediatamente vermelha, mas estava sorrindo, orgulhosa.
Ele assentiu.
— Você está caminhando com as próprias pernas e suas
conquistas certamente lhe permitem fazer as próprias escolhas para
o futuro. É uma pena que os Guardiões percam um fantasma, mas
certamente será um ganho para a Defesa Civil. Quem sabe, um dia,
os Guardiões consigam convencê-lo a mudar de ideia.
— Obrigado, senhor — respondeu Kincaid.
Ele parou, olhou para Marquez atrás de Kincaid e acenou uma
despedida.
— Boa sorte, Anderson.
— Obrigado, senhor.
— Um conselho — adicionou Cypher. — Da próxima vez que
atender a porta, veja quem está batendo antes, para que vocês dois
possam se vestir adequadamente.
Quando Raige saiu, Kincaid olhou para baixo e viu que ainda
estava em posição de sentido, vestindo apenas uma camiseta e
uma cueca.
Marquez olhou para ele e sorriu.
— Você teria ficado muito bem de branco.

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