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Histórias de
Fantasmas
O direito de nascer
Peter David
Tradução
Elton Mesquita
Copyright © 2012 by After Earth Enterprises, LLC.
Todos os direitos reservados. Utilizado sob autorização.
Todos os direitos desta edição reservados à
Editora Objetiva Ltda.
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Depois da Terra: Histórias de fantasmas: O direito de nascer é uma obra de ficção.
Nomes, locais e incidentes são ou produtos da imaginação do autor ou usados
ficcionalmente.
TÍTULO ORIGINAL
Birthright
CAPA
Trio Studio sobre design original de Dreu Pennington-McNeil
IMAGEM DE CAPA
Stephen Youll
REVISÃO
Joana Milli
COORDENAÇÃO DE TRADUÇÃO
Reverb Localização
COORDENAÇÃO DE E-BOOK
Marcelo Xavier
CONVERSÃO PARA E-BOOK
Abreu’s System Ltda.
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
D274d
David, Peter
O direito de nascer [recurso eletrônico]: depois da Terra:
histórias de fantasmas / Peter David; [tradução Elton Mesquita].
– Rio de Janeiro: Objetiva, 2013.
recurso digital (Depois da Terra: histórias de fantasmas)
Tradução de: Birthright
Formato: ePub
Requisitos do sistema: Adobe Digital Editions
Modo de acesso: World Wide Web
42p. ISBN 978-85-8105-132-1 (recurso eletrônico)
1. Ficção americana 2. Livros eletrônicos. I. Mesquita, Elton.
II. Título. III. Série.
13-0341. CDD: 813
CDU: 821.111(73)-3
Sumário
Capa
Folha de Rosto
Créditos
Sumário
I
II
III
IV
V
VI
VII
I
POR ISSO? EU
passei por todo aquele sofrimento por isso?
Mallory olhou para os dois companheiros Guardiões. O cabo
Abbey era alto e forte, e seu entusiasmo por seus deveres de
Guardião era palpável. O recruta Sutton era magro, um dos
Guardiões mais atléticos da corporação. Não havia nada de errado
com seus companheiros.
O que estava errado era a própria missão.
O veículo de entrega avançava veloz pelo deserto de Falkor.
Sutton dirigia, mantendo o transporte estável. De vez em quando
havia um súbito movimento ascendente e descendente quando
rajadas de vento poderosas sopravam, empurrando o veículo de
lado. O deserto de Falkor era famoso por seus ventos fortes; de
todas as áreas desérticas de Nova Prime, era a mais propensa a
tempestades de areia. Mallory não conseguia imaginar por que
alguém se interessaria em se estabelecer ali.
E, no entanto, um grupo de cientistas tinha montado um posto
avançado naquela região, e precisava de ajuda.
Ajuda de rotina.
Ajuda muito, muito entediante.
Que era o único tipo de missão que ela recebia naqueles dias.
O coronel Green recebera Mallory de volta nas fileiras de
Guardiões, mas, desde então, tinha se mostrado
extraordinariamente, até mesmo insanamente cauteloso quanto à
utilização dos serviços da tenente. Ela presumira que seria
designada para os incidentes mais importantes envolvendo Ursas.
Em vez disso a maior parte das missões eram patrulhas de rotina
em áreas onde não havia testemunhos de presença de Ursas.
Era pra eu estar lá fora ajudando. Eu devia estar combatendo os
Skrel, seus planos, sua maldade. Em vez disso, estou aqui
cumprindo tarefas que qualquer um pode fazer. Você não precisa de
um Fantasma para realizar uma entrega. Você nem precisa de um
Guardião pra isso.
E, no entanto, era isso que ela se via fazendo. Quase não tinha
chovido em Nova Prime nos últimos meses, e a população sofria
com os efeitos da seca persistente. Por isso, a água estava sendo
severamente racionada, e a responsabilidade por sua distribuição
recaíra sobre os ombros dos Guardiões.
Green a selecionara para aquela entrega particular. Ao receber
suas ordens, Mallory quis gritar em protesto. Tinha achado que
Green finalmente decidira lhe dar algo interessante, mas
infelizmente o coronel ainda a queria na geladeira. Quando ela
tentou reclamar, Green respondera simplesmente:
— Estou empregando seus serviços onde creio que você fará
mais bem, tenente.
Porém Mallory não acreditava naquilo nem por um instante. Era
óbvio para ela que, apesar de seu valor como Fantasma, Green não
se sentia seguro em colocá-la em situações de risco. A tentente
considerara brevemente levar suas queixas direto ao general-
comandante. Se alguém se irritaria com um Fantasma subutilizado,
seria o Fantasma Original.
No entando, Mallory não conseguia se forçar a fazê-lo. Antes de
mais nada, como ela abordaria o assunto? Ei, general... Outro dia
eu topei com sua patroa no cemitério, daí achei que a gente podia
bater um papinho.
Além disso, a tenente tinha respeito demais pela linha de
comando. Ela respondia a Green, e por sua vez Green respondia ao
homem que era conhecido como general-comandante ou primeiro
comandante. Não lhe caberia passar por cima do coronel Green.
Não era seu trabalho decidir onde ela mesma poderia melhor servir
aos Guardiões. Seu trabalho era obedecer.
Assim, a única opção que restava a Mallory era persistir,
enquanto sua barriga aumentava de tamanho lentamente, tornando
perceptível a presença do pequeno parasita. Ainda não sofria um
grande impacto em suas tarefas, mas sentia um início de
estranheza e desconforto, uma sensação recorrente de estar fora do
seu centro de equilíbrio à medida que seu centro de gravidade
mudava. Mallory odiava aquilo, pois se acostumara a ser uma
máquina bem ajustada, e não estava gostando nem um pouco de ter
uma chave de fenda emperrada entre as engrenagens do seu corpo.
Odeio meu bebê.
Ela se sentiu culpada no instante em que pensou isso, mas não
podia se conter. A presença da criança parecia ter lhe concedido o
dom de virar Fantasma, mas ela não estava podendo se aproveitar
do fato. Assim, tudo o que restava era uma sensação de raiva e
frustração, pois a criança a impedia de realizar seu trabalho,
condenando-a a dia após dia de deveres insignificantes. O bebê a
impedia de servir, mas se ela sentisse algum ressentimento
direcionado a ele, então ela se tornava automaticamente uma mãe
ruim, já que boas mães não odiavam seus filhos.
Eu sabia que era uma ideia ruim. Jan queria filhos, não eu. Eu
vou ser uma mãe péssima. Uma mãe péssima que sempre vai se
ressentir do filho por...
— Tenente, temos contato visual com o posto avançado — disse
Sutton.
Mallory se concentrou na tarefa, mesmo que fosse tão banal. Na
traseira eles levavam seis grandes contêineres de água que deveria
durar pelo menos dois meses; os cientistas teriam que ser bastante
parcimoniosos no uso.
— Informe-os de nossa aproximação.
— Positivo.
Mallory ficou observando pelo para-brisa dianteiro enquanto se
aproximavam. O complexo não passava de uma série de prédios
pequenos, paredes e telhados construídos com tecido inteligente.
Sua insuperável flexibilidade permitia que suportassem mesmo os
ventos mais formidáveis. Havia também várias torres prateadas.
Mallory não fazia ideia da função delas; talvez coletassem leituras
para os vários experimentos que os cientistas sem dúvida estavam
conduzindo.
Sua tolerância e crença em cientistas continuavam mínimas. No
entanto, eles estavam esperando sua ajuda, e era seu trabalho
cuidar das necessidades deles. Mallory franziu o cenho quando,
após um longo momento, nenhuma reposta foi recebida.
— Sutton? — Mallory não precisava completar a pergunta; era
óbvio que ela queria saber por que os cientistas da estação
pareciam não ter comunicação de rádio.
Sutton sacudiu a cabeça.
— Não sei o que está havendo, tenente.
— Abbey, verifique os monitores de longa distância — disse
Mallory. Ela havia se levantado do assento e andava pelo interior do
veículo. — Veja se há alguma tempestade de areia se aproximando.
Talvez isso esteja atrapalhando a transmissão.
— Como isso seria possível?
— Eu não sei — admitiu ela, frustrada. — Apenas verifique...
— Já verifiquei. É verdade que as coisas por aqui começam
rápido, mas no momento as telas estão todas limpas.
Mallory estudou a imagem do posto avançado, aproximando-se
mais e mais. Ela não via nada. Nenhum sinal de movimento,
nenhum sinal de vida em parte alguma.
— Pra onde diabos eles foram? — murmurou ela.
— Será que devemos voltar, tenente?
Ela sacudiu a cabeça.
— Não. Nós temos que ver o que está acontecendo. Talvez
estejam se escondendo de alguma coisa.
— De quê? — disse Abbey, mas ele não tinha que pensar muito
para imaginar o que o “quê” seria. Não era difícil para nenhum deles
imaginar, na verdade.
— Vamos descobrir. — disse Mallory, usando uma voz
cuidadosamente neutra.
Momentos depois, o veículo pousou a alguns metros do
complexo. Depois de avisar ao QG que havia algo de suspeito na
situação e que eles iriam investigar, Mallory abriu a porta do veículo.
Os três Guardiões saíram cautelosamente para o ar livre, alfanjes
prontos para a ação. Nada parecia se mover na área. Tanto quanto
os Guardiões podiam perceber, eles estavam completamente
sozinhos.
Não havia necessidade de se espalharem. O posto avançado era
pequeno o suficiente para que, mesmo estando juntos, os
Guardiões não demorassem muito para cobrir a área inteira.
— Olá? — chamou Mallory. — Por um lado parecia absurdo fazer
aquilo. Obviamente não havia ninguém ali. Ainda assim, ela o fez
por puro reflexo.
— Somos os Guardiões. Tem alguém aqui? Alguém precisa de
ajuda?
Nenhuma resposta. Nada a não ser a brisa que soprava do
deserto.
— Tenente. — Abbey estava agachado a alguns metros de
distância gesticulando para Mallory se aproximar. — Olha só isso.
Mallory foi até Abbey e viu que ele apontava para algo no chão.
Havia alguns pontos vermelhos, e alguns pequenos fragmentos
brancos de...
— Osso?
Abbey fez que sim. Sua expressão era sombria.
— Sangue e osso. Alguma coisa foi massacrada aqui. E alguma
coisa foi devorada por alguma coisa que não deixou muita coisa pra
trás. Aposto que se verificarmos por aí, vamos encontrar mais
pedaços assim. Mas não muito mais.
— Ursa — sussurrou Mallory.
— E não faz muito tempo — comentou Abbey. Ele passou o dedo
em uma das manchas vermelhas. — Ainda está úmido. E aqui,
nesse calor, secaria bem rápido.
Sutton, alguns metros à frente, empalideceu. Mallory entendeu
por quê. Não era porque ele se assustava com a possibilidade de
enfrentar um Ursa. Não, ele imaginava como deveria ter sido para
aqueles pobres indivíduos, atacados e devorados tão rapidamente
que sequer tiveram tempo de enviar um pedido de ajuda. Não que
alguém fosse conseguir chegar a tempo.
O instinto imediato de Mallory foi retornar para o transporte e dar
o fora dali. Não havia mais nada a ser feito pelos cientistas. Naquele
instante eles estavam passando pelo que quer que constituísse o
trato digestivo de um Ursa.
Como se tivesse lido sua mente, Abbey disse:
— Temos que sair daqui. Esse bicho pode estar em qualquer
parte...
— E se estiver — disse Mallory — é nosso dever matá-lo.
— Só tem três de nós.
— Um dos quais é um Fantasma — Sutton lembrou.
— Tenente — disse Abbey — com todo o respeito, todos
sabemos que ninguém estava esperando um encontro com um
Ursa. O número de Guardiões em um grupo de caça a Ursa é oito.
Mesmo com um Fantasma, o protocolo pede cinco membros, a
menos que o Fantasma seja bastante experiente. Novamente, com
todo o respeito, você só tem uma morte — e não confirmada — em
seu nome, e desde então...
— Só me passaram tarefas fáceis, o que faz você duvidar da
confiança dos seus superiores em mim? Além do fato de eu estar
grávida, o que pode me retardar ou me fazer hesitar diante do
perigo? Era isso que você ia dizer? Com todo o respeito?
Abbey a encarou em silêncio. Ele não respondeu. Ele não
precisava. Tudo o que ele estava fazendo era expressar as dúvidas
que ela mesma sentia.
— Ok — disse Mallory após uma longa pausa. — Ok, você pode
falar à vontade. Como você procederia aqui?
Abbey suspirou de alívio, claramente aliviado por Mallory não ter
lhe dado uma bronca, como seria de direito.
— Voltamos pra nave, fechamos tudo e pedimos reforços. Então
ficamos na estação até que cheguem.
Não parecia um plano insensato. Não havia ninguém para salvar,
de forma que não era necessário agir imediatamente. Prosseguir
cautelosamente fazia todo o sentido. De fato, não havia razão para
não fazê-lo.
Ela concordou.
Abbey imediatamente foi em direção ao transporte, e Sutton o
seguiu. Mallory foi logo atrás, prestando atenção nos arredores. Se
havia uma coisa certa sobre os Ursas, era que só porque você não
via um, não significava que eles não estavam por perto.
O transporte estava esperando por eles, apoiado no trem de
aterrissagem.
Abbey estava subindo a rampa; quando ele se aproximou, a
escotilha se abriu. Sutton estava logo atrás dele, e foi então que
Mallory notou que o transporte estava mais abaixado do que
estivera antes.
A ficha caiu em um segundo.
— Pra trás! — gritou ela.
Tarde demais. O Ursa estava montado no teto, e seu peso era
responsável pelo veículo estar mais baixo que o normal; a fera
apareceu e rugiu. Abbey e Sutton congelaram no lugar, sentido o
medo bombeando nas veias. No mundo de trevas que os Ursas
viviam, o terror que os dois Guardiões irradiavam era como a luz de
um farol. O Ursa golpeou com a pata direita e a cabeça de Abbey
saiu voando enquanto sangue esguichava de seus ombros. Abbey
tombou e o alfanje caiu de seus dedos sem vida. Sutton recuou na
mesma hora, erguendo o alfanje, e atacou o Ursa. O monstro pulou
sobre o Guardião e, ainda no ar, golpeou com a pata. As garras
penetraram as costas de Sutton e saíram pelo peito. A visão das
entranhas se derramando paralisaram o soldado. O Ursa aterrissou
no chão perto do veículo, arremessando o corpo de Sutton rampa
abaixo.
Tudo aconteceu em menos de cinco segundos, e o tempo todo
Mallory ficou lá, presa ao chão, com os olhos arregalados.
O Ursa girou, perscrutando o resto da área. Mallory recuou
cambaleando, mas seu centro de gravidade, que estava mudando
por cortesia de sua barriga cada vez maior, tirou seu equilíbrio
apenas um pouco, mas o bastante para ela cair no chão arquejando.
A cabeça do Ursa virou-se repentinamente. A fera podia ser cega,
mas sua audição era afiada, e ela percebeu a presença de Mallory
no mesmo instante.
Quando o ursa se voltou para Mallory, ela viu uma longa cicatriz
ao longo do seu flanco, bem no lugar em que ela marcara o Ursa
muitos meses antes. Era o mesmo? Não era definitivo, mas era
inteiramente possível.
O monstro avançou para ela com as garras estalando no chão
árido. Ele sabia aproximadamente onde Mallory estava; só
precisava que ela emitisse o nível necessário de medo para fechar
seu foco nela.
Mallory viu seus companheiros Guardiões feitos em pedaços,
seus corpos espalhados, e ela se imaginou tendo um fim igual e
horrível...
… e então ela obrigou-se a ignorar o medo. A Guardiã o jogou
para o lado como se fosse problema de outra pessoa. Endireitou os
ombros, encarou o Ursa e passou a desconsiderar completamente
sua presença. O monstro se tornou pequeno para ela, insignificante.
Era como se a tenente tivesse desconectado a mente do próprio
corpo.
O Ursa parou. Começou a farejar o ar visivelmente, mas seu
design previa apenas a detecção de endorfinas. Outros aromas
simplesmente se misturavam em uma massa indistinta de estímulo
olfativo.
Mallory começou a rodear o monstro. Ela se agachou para se
equilibrar melhor, e seus pés se moviam silenciosamente pelo chão.
O alfanje estava pronto.
Súbito, a cabeça do Ursa se virou outra vez e o monstro agora
“olhava” direto para ela. Mallory congelou, certa de ter sido
detectada. Ela esperou, pernas ainda dobradas, pronta para saltar
para um dos lados e assim evitar o ataque inevitável da criatura.
E então o Ursa voltou a farejar o ar e continuou se virando.
Ele não está me vendo. Não sabe que estou bem na frente dele.
Mallory estava com o alfanje pronto. Silenciosamente ela o
separou nas duas metades com a sinistra ponta em curva. Se a
criatura continuasse a se mover na mesma direção, logo suas
costas estariam expostas e Mallory poderia atacá-la. Ela tinha tudo
planejado na mente: pularia em cima da criatura, segurando-se
firme com um dos bastões fincados nas costas do Ursa. Então
enterraria o outro bastão bem fundo na cabeça do Ursa, cravando a
lâmina em seu cérebro.
Essa é por você, Jan, pensou ela.
Então o bebê chutou.
Pela primeira vez.
Bem forte.
Ela sentira leves espasmos nos dias anteriores, mas nada assim.
Um soco no baixo ventre, como se o bebê tivesse decidido que ali
era o momento ideal para anunciar sua presença ao mundo.
Mallory gritou de surpresa e choque. Sua mente e corpo tinham
se reunido, e um pensamento galvanizou a ambos: Eu preciso
salvar meu bebê.
Imediatamente o Ursa girou e a detectou.
Mallory se virou e correu, reunindo as metades do alfanje
enquanto isso. O rugido do Ursa quase a paralisou, mas ela
continuou correndo.
O Ursa cobriu a distância entre os dois com um só pulo, e Mallory
só se salvou por ter golpeado cegamente com o alfanje atrás de si.
Ela teve sorte. A lâmina penetrou a pata direita do Ursa, cortando
os tendões. A criatura desabou, guinchando de fúria. Começou a se
sacudir violentamente, tentando saltar na direção de Mallory, mas
conseguindo apenas cair de cara no chão.
É um animal ferido. Não há nada mais perigoso que um animal
ferido. Com esse pensamento ecoando em sua mente, ela correu
dando tudo o que tinha, esperando afastar-se tanto quanto possível
do Ursa antes que a criatura se acostumasse à pata ferida e
começasse a persegui-la. Seu coração batia forte, e ela esquecera
qualquer coisa sobre ser ou virar um Fantasma. O primitivo instinto
humano de fugir ou lutar tomara o controle e ela não conseguia
pensar em nada que não fosse a fuga.
Só havia um lugar para onde ela podia obter abrigo: o veículo que
os levara até ali. Ela dobrou para a direita e correu o mais rápido
que pôde em direção ao local de pouso. Podia ser apenas sua
imaginação, mas ela jamais se sentira tão gorda, tão lenta, tão
desajeitada como naquele momento.
O transporte estava lá, esperando por ela com a porta ainda
aberta. E então ela pressentiu mais do que viu o Ursa vindo atrás
dela, pela direita. A Guardiã estava mais perto, mas o monstro era
mais rápido, e vinha direto em sua direção numa trajetória de
interceptação.
Mallory acelerou, puxando forças sabe-se lá de onde, e passou
pela porta a toda velocidade. Virou-se e apertou o botão na parede.
A porta se fechou no momento que o Ursa chegava. A fera bateu
violentamente, sacudindo o transporte. Mas a porta permaneceu
fechada, deixando o Ursa fora.
Mallory cambaleou até os controles do veículo para tentar
levantar voo. E então o Ursa apareceu bem à sua frente, no para-
brisa e abalroou o veículo com mais força do que Mallory cria ser
possível. O monstro atingiu o para-brisa uma, duas vezes; na
terceira, rachaduras se espraiaram pela janela feito teias de aranha.
Antes que Mallory conseguisse ativar os motores, a garra do
monstro estilhaçou o para-brisa. Mallory recuou até a traseira do
veículo, protegendo o rosto da chuva de vidro, e bateu com força no
chão.
O Ursa estendeu a perna ferida, varrendo o espaço à frente para
limpar o resto do vidro estilhaçado que impedia sua entrada. No
entanto, o espaço ainda não era amplo o suficiente para permitir
acesso fácil. Mas isso não o deteve. Com Mallory a alguns poucos
metros, o monstro estendeu a bocarra para diante. Era uma
passagem apertada, mas, sem se deter, o monstro começou a
empurrar lenta e inexoravelmente sua enorme cabeça pela abertura,
como uma perversão doentia de um nascimento humano.
É isso, ela pensou, em pânico, e sua confiança na habilidade de
virar Fantasma estava tão abalada que qualquer noção de coragem
agora parecia um sonho febril. Era isso que eu temia. Eu vou
morrer. Meu bebê vai morrer. Depois de tudo que eu e Jan
conseguimos em nossas vidas, no final vai ser como se nem
tivéssemos existido. Eu falhei completamente.
O Ursa não podia rugir; suas mandíbulas estavam fechadas
graças à estreiteza da entrada por onde tentava passar. Mas a fera
grunhia furiosamente entredentes.
Agachada na parte traseira do veículo, Mallory abaixou a mão e
tocou a barriga, por baixo do uniforme.
— Sinto muito — sussurrou.
E então Mallory sentiu outro movimento em seu ventre. Não um
chute. Dessa vez, alguma coisa pressionava contra a palma aberta
de sua mão.
Ela não podia ter certeza, mas pareceu como se fosse a mão do
bebê, aberta e pressionada contra a sua.
E em sua mente, era como se o bebê estivesse dizendo para ela:
Não tenha medo, eu tenho fé em você.
Pela primeira vez, ela percebeu a criança de uma maneira nova.
Ela a viu não como um risco ou um empecilho. Ela não a viu como
algo que iria exaurir sua força de vontade ou impedir seu
desenvolvimento como pessoa, Guardiã ou Fantasma.
Em vez disso, viu o filho não nascido como uma força. Uma
vantagem em sua vida, não um risco.
Mallory também se convenceu, pela primeira vez, de que era uma
menina. Um vínculo fora criado entre mãe e filha, uma conexão em
um nível fundamental que ela jamais experimentara antes.
A enorme cabeça do Ursa passou pela abertura e emitiu um
rugido furioso de fazer estremecer os ossos. Esperou pela emissão
costumeira de feromônios de medo que serviria para direcioná-lo
para a presa.
Nada.
A criatura berrou outra vez, e outra vez esperou por algum tipo de
resposta que poderia usar para se aproximar da humana.
Ainda nada.
A humana se fora.
O Ursa não conseguia compreender como aquilo era possível.
Ele sabia que o local era fechado, e havia uma humana ali até há
pouco. Agora já não havia ninguém.
O monstro tentou captar qualquer estímulo com todos os sentidos
de que dispunha.
E ainda se esforçava por detectar seu alvo quando a lâmina do
alfanje foi enfiada no topo de sua cabeça por uma mulher que se
postava a menos de meio metro de distância, e que, no entanto, era
indetectável.
Mallory McGuiness resistiu à tentação de gritar de triunfo. Em vez
disso, com eficiência implacável, ela arrancou o alfanje e golpeou
com ele mais uma vez. Mallory segurava um dos bastões. A lâmina
produziu um som como de uma faca perfurando um melão. No
mesmo instante, ela passou a outra lâmina sob o queixo do Ursa,
abrindo as veias em sua garganta. A fera sangrou por todo o interior
do veículo, tanto que em segundos uma poça de sangue de um
centímetro de profundidade se formou em volta de suas botas.
O Ursa estremeceu violentamente e o transporte sacudiu como
se um terremoto tivesse começado.
Então, tudo caiu em silêncio.
Morto.
O bebê de Mallory chutou. Outra vez.
VII