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Depois da Terra™

Histórias de
Fantasmas

O direito de nascer

Peter David
Tradução
Elton Mesquita
Copyright © 2012 by After Earth Enterprises, LLC.
Todos os direitos reservados. Utilizado sob autorização.
Todos os direitos desta edição reservados à
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Depois da Terra: Histórias de fantasmas: O direito de nascer é uma obra de ficção.
Nomes, locais e incidentes são ou produtos da imaginação do autor ou usados
ficcionalmente.
TÍTULO ORIGINAL
Birthright
CAPA
Trio Studio sobre design original de Dreu Pennington-McNeil
IMAGEM DE CAPA
Stephen Youll
REVISÃO
Joana Milli
COORDENAÇÃO DE TRADUÇÃO
Reverb Localização
COORDENAÇÃO DE E-BOOK
Marcelo Xavier
CONVERSÃO PARA E-BOOK
Abreu’s System Ltda.

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
D274d
David, Peter
O direito de nascer [recurso eletrônico]: depois da Terra:
histórias de fantasmas / Peter David; [tradução Elton Mesquita].
– Rio de Janeiro: Objetiva, 2013.
recurso digital (Depois da Terra: histórias de fantasmas)
Tradução de: Birthright
Formato: ePub
Requisitos do sistema: Adobe Digital Editions
Modo de acesso: World Wide Web
42p. ISBN 978-85-8105-132-1 (recurso eletrônico)
1. Ficção americana 2. Livros eletrônicos. I. Mesquita, Elton.
II. Título. III. Série.
13-0341. CDD: 813
CDU: 821.111(73)-3
Sumário

Capa
Folha de Rosto
Créditos
Sumário
I
II
III
IV
V
VI
VII
I

MALLORY MCGUINESS deitada de costas, encarando confusa os sóis


JAZIA

gêmeos que a castigavam no céu de Nova Prime, e se perguntou


por que o soldado Lynch tinha se tornado subitamente um mímico.
Ela imaginou que talvez estivesse sonhando. Isso explicaria
muito… ora, explicaria tudo. A sensação de irrealidade; o fato de
que, para os seus sentidos, Lynch parecia estar se movendo em
câmera lenta. O rosto de Lynch estava sujo de terra, com marcas
que pareciam queimaduras, e havia torrões de barro nos curtos
cabelos ruivos. Seus lábios se moviam, lenta e deliberadamente,
mas nenhum som emergia deles. Seus olhos arregalavam-se com
urgência e Mallory não fazia a menor ideia do motivo.
Por que Lynch está em meu dormitório? Aliás, está de dia… eu
estava dormindo de dia? Onde está Janus?
Em seu fluxo de pensamentos desorientados, Janus — seu
marido há quatro anos — tornou-se o ponto de ancoragem. Seus
pensamentos agarraram-se nele, como se estivesse sendo levada
indefesa por um rio e o marido fosse a rocha sólida em que ela se
firmava.
Não... nós levantamos de manhã. Janus mexeu no meu ombro,
me acordou. Me beijou suave na bochecha. A barba dele me
arranhou. A barba dele cresce tão rápido que de manhã já está fora
do regulamento.
Eu achei que hoje fosse nossa folga. Tentei rolar pro lado e voltar
a dormir. Mas não, ele me lembrou de que tínhamos patrulha. Não
havia nenhum Ursa no perímetro de ataque da cidade, mas isso não
significa nada. Aquelas pragas ficam invisíveis; nunca se sabe
quando elas vão aparecer de repente.
— Temos que permanecer vigilantes — ele me disse.
Eu disse:
— Posso ser vigilante mais tarde? — Rolei pro lado de novo,
tentei voltar a dormir. Eu tinha dormido mal. Ficava acordando.
Sonhos ruins.
Ele deu um tapa forte na minha bunda nua.
— Temos coisas pra fazer.
— Eu sei o que eu quero fazer. — Eu o puxei para cima de mim.
Nós nos beijamos forte. A barba ainda coçava, mas eu não me
importei.
Fizemos amor pela última vez...
O quê? O que diabo isso significa?
Janus?
Jan?
— Jan! — sua voz rachou. Ela sentiu um gosto de cobre na boca.
Cuspiu seja lá o que causava o gosto e viu um pouco de um líquido
escuro — sangue — cair no chão perto dela.
Eu saí? Quando foi que eu vim pra cá pra fora?
— Mallory!
Ela ouviu a voz de Lynch. Parecia vir de muito longe, mas Lynch
estava logo ali.
Não é Lynch. Sou eu. Eu não consigo ouvi-lo. Meus ouvidos
estão tinindo. Por que meus ouvidos estão tinindo?
Ela tentou se sentar e Lynch imediatamente sacudiu firme a
cabeça. Ele mandou que ela permanecesse deitada e estava
dizendo algo sobre socorro já estar a caminho. Era difícil entender
direito. A voz dele ia e vinha, como se estivessem falando em um
canal de comunicação ruim.
— Jan — chamou ela novamente, dessa vez com mais urgência.
Ela tentou empurrar Lynch para longe, começou a mexer a perna
direita e então soltou um grito de dor.
— Eu falei! Eu falei pra você ficar deitada! — ralhou ele, com
firmeza.
Mallory conseguiu mover a cabeça e ficou em choque ao olhar
para baixo. Havia um pedaço de rocha cravado em sua coxa direita.
Um estilhaço pontiagudo com sangue escorrendo ao redor. Ela
tentou alcançar o fragmento para arrancá-lo.
— Não — Lynch agarrou sua mão e a imobilizou. — Não
sabemos o quão fundo está. Pode não ser nada e você volta a
caminhar em uma semana. Mas se atingiu uma artéria, então o fato
de ainda estar alojado aí talvez seja a única coisa mantendo você
viva. Se você removê-lo, pode ter hemorragia. Não vamos arriscar;
vamos esperar até que o socorro chegue.
— Eu não entendo... onde está...
As montanhas. As montanhas da serra de Golem, além do
perímetro externo. Havia uma colônia lá no alto, cuja população os
Skrel erradicaram em um dos primeiros ataques. Nunca foi
repovoada; em vez disso, eles a deixaram lá como um monumento
aos mortos. Infelizmente, sabe-se que Ursas se escondem lá
ocasionalmente, esperando uma visita imprudente de alguém em
romaria.
Então às vezes nós vamos lá pra ter certeza...
E era rotina...
Estrita rotina…
Janus…
Ele estava apenas caminhando por uma das muitas,
aparentemente infindáveis passagens entre as escarpas da serra,
com o alfanje pendurado às costas. Eu caminhava atrás dele. O
resto do esquadrão estava espalhado. Todos nós oito estávamos
em contato constante. Nenhum sinal de Ursas. Nenhum sinal de
problemas. Nenhum sinal de nada.
E então o pé de Jan — acho que foi isso. — Acho que ele...
Ele pisou em algo.
Eu não consigo lembrar.
No que ele pisou?
Ele estava lá.
Daí não estava mais...
— Jan! — e ela gritou.
— Preciso de ajuda aqui! — Lynch parecia desesperado, e tentou
prender Mallory ao chão pelos ombros. A Guardiã se sacudiu feito
louca e Lynch se esforçou para mantê-la deitada. Outro Guardião,
Tomlinson, veio ajudar Lynch, tentando impedir que Mallory
continuasse a chutar e acabasse deslocando a rocha da perna.
A última coisa que eu vi... uma expressão de confusão no rosto
dele, e então um clarão de luz e calor. Eu voei pelo ar, meus braços
se sacudindo como se eu pudesse me manter voando. Minhas
costas bateram contra a borda superior de uma das cristas rochosas
e eu caí do outro lado. Passei de um arremesso a uma queda
tortuosa, ricocheteando na protuberância de outra crista, finalmente
atingindo o chão oito metros abaixo. Afrouxei o corpo, protegi a
cabeça, caí de ombros. O resto do meu corpo bateu no solo, mas eu
não sentia nada abaixo do pescoço. Eu devia estar sentindo dor,
mas não sentia...
Jan estava sorrindo pra mim...
Ele estava sorrindo pra mim...
Nossos corpos estavam unidos na cama hoje de manhã...
Eu queria ter ficado lá, encontrado uma desculpa para não sair
em patrulha...
Mas ambos sabíamos que não tinha como. Nós somos
Guardiões. Temos deveres. Temos responsabilidades.
Jan? Jan, você não pode estar...
A verdade desabou sobre Mallory. Antes que conseguisse
começar a se debater novamente, Mallory sentiu uma picada no
braço. Olhou para a direita e viu uma mulher vestindo as cores dos
Guardiões med-técnicos. A mulher tinha uma expressão condoída
ao retirar a agulha do braço de Mallory.
Mallory se preparou para agredir a med-técnica com uma torrente
de xingamentos, mas tudo o que conseguiu foi grunhir
confusamente antes de sua cabeça pender pesadamente para trás.
— Eu te odeio — ela ainda conseguiu murmurar. — Te odeio...
—Não diga isso — Lynch a tranquilizou. — Somos seus
companheiros Guardiões.
— Você não. — A voz dela era pouco mais que um sussurro. —
Jan... por me fazer pensar... que ele morreu... ele nunca faria isso
comigo...
E então ela estava nas trevas. Verdadeiramente sozinha.
II

MALLORY na cama da enfermaria, encarando o coronel


ESTAVA DEITADA

Green sem expressão alguma. O Guardião veterano tinha se


sentado a alguns metros de distância, com o rosto cuidadosamente
neutro.
— Uma mina? — Mallory repetiu o que o coronel tinha dito.
— Ou algum tipo de dispositivo incendiário não detonado —
confirmou Green. — Remanescente de algum ataque Skrel anterior.
— Mas a última investida direta foi há décadas. — Não havia
choque nem protesto naquela observação. — A não ser que eu
tenha perdido algum.
— Não, você está certa. Ela caiu ou foi plantada, é difícil saber
com certeza... E então, com os anos, as tempestades de areia que
sopram na serra de Golem a cobriram. E ficou lá, sem ser detonada,
esse tempo todo. Foi um milagre ninguém ter pisado nela até
agora… — Ele se interrompeu e olhou para o chão. — Sinto muito.
Não me expressei bem.
— Por que não? — Mallory respondeu com a indiferença de
alguém discutindo uma questão tediosa. — É isso que nós fazemos,
não é? Nós trabalhamos para manter nossos compatriotas de Nova
Prime a salvo dos Skrel, Ursas e todos os outros perigos que
possam surgir. Foi um milagre que ninguém mais tenha sido ferido
pela mina, como você disse. E ao pisar nela Janus salvou a vida
de... bom, quem vai saber? Uma família num piquenique. Um
sacerdote meditando. O Savant buscando a inspiração que pode
levá-lo a alguma descoberta que vai melhorar a vida de milhões.
— Tenente...
— Qualquer outra pessoa, por definição, seria bem mais
importante que Jan. É uma troca justa.
— Mallory, me escute. Você pode ficar em repouso quanto tempo
quiser...
Sem aviso, Mallory puxou o lençol para inspecionar a perna
ferida. Ela estava nua exceto por um simples vestido de hospital
cuja barra subira até seus quadris. Green afastou o olhar, corando
um pouco. Mallory sequer o notou. Em vez disso, estudava a perna
com frieza clínica. A linha fina que marcava o local onde fora ferida
ainda estava vermelha, mas de um tom cuja intensidade já
esmaecia. Mallory a tocou gentilmente.
— Fantástico o que a ciência médica pode fazer, não é? Sabe
que antigamente eles costuravam as pessoas que nem roupa? Sem
selantes. Bem diferente do que temos agora. É quase milagroso.
Não tão milagroso quanto uma bomba esperando anos para que
Janus pisasse nela, mas quase lá.
— Mallory, pelo amor de Deus.
Ela ergueu a perna, estendendo-a e contraindo-a de forma a
quase tocar o queixo no joelho; então esticou-a outra vez.
— Então não foi uma artéria.
— Não — disse Green. — Parecia bem mais feio do que era;
atingiu só osso, praticamente. Você deve mancar por algum tempo,
mas nada permanente. Você teve sorte.
Ela sorriu sem prazer.
— Meu marido está morto, senhor. Não me sinto com sorte.
— Mallory…
— Mas o senhor está certo. Parece estar bem. Não vou precisar
de licença.
Green se levantou, pegou firmemente no lençol e o usou para
cobrir Mallory outra vez. Ela o encarou, apática, claramente sem
fazer ideia de por que ele fizera aquilo.
— Mallory, não é um pedido. Você vai sair de licença.
— Pra quê? Pra ficar sem fazer nada? Ficar só pensando em... —
sua voz falhou por um instante, mas ela se recompôs no último
momento — ... pensando no que aconteceu? Pensar em Jan
morrendo, não em batalha, encarando um inimigo, do jeito que os
Guardiões gostam, mas por causa de uma mina imbecil enterrada
na areia? Pro diabo com isso, e com todo o respeito, coronel, pro
diabo com o senhor. Era pra eu estar lá fora trabalhando. E assim
que os médicos garantirem que minha perna está totalmente
recuperada, e eles vão, pois fizeram um trabalho bom demais para
dizer qualquer outra coisa, eu quero voltar ao trabalho de campo.
— Você precisa de tempo para...
— Eu... preciso... trabalhar. — Ela fez uma pausa para pensar. —
Senhor... ficar parada não é uma opção. Se o senhor me tirar do
serviço ativo, eu vou patrulhar por conta própria.
— Vamos confiscar seu alfanje. — O alfanje era a principal arma
dos Guardiões. Um cajado de um metro que podia mudar seu
formato para uma variedade de armas brancas, projetado para
combate próximo... e particularmente eficiente contra Ursas.
— Então eu vou conseguir um pulsar. E se você confiscá-lo, eu
pego uma faca de cozinha. Eu vou sair, coronel, e vou fazer o meu
trabalho mesmo que eu não tenha mais emprego. Por que se eu
ficar parada só pensando em Jan, eu vou enlouquecer.
— Não tenho certeza se você já não enlouqueceu, Mallory.
— Alguma coisa que eu disse ou fiz indica um afastamento da
realidade?
— Não sei se você está no pleno domínio de suas emoções no
momento.
— Eu não preciso de emoções; preciso trabalhar. E eu vou lá fora
e vou trabalhar. A única dúvida é se vou trabalhar sozinha ou junto
com meus companheiros Guardiões.
Green olhou para ela com firmeza. Nenhum dos dois falou nada
por algum tempo.
— Avaliação psiquiátrica completa — disse ele finalmente. — Não
quero uma cretina suicida patrulhando e colocando a vida de
terceiros em perigo porque perdeu a vontade de viver.
— É isso o que o senhor acha? — Ela pareceu surpresa.
— Eu honestamente não sei o que pensar no momento. Pelo que
eu vejo, você quer estar junto do seu marido, então ao enfrentar o
perigo você deve achar que...
— Meu marido morreu, coronel. — Pela primeira fez ela soou
ríspida, até irritada. — Eu nunca prestei muita atenção em religião.
Ou em Deus. Não acredito que Jan esteja em alguma nuvenzinha lá
no céu esperando por mim. A morte é a morte e não há nada depois
dela. A vida é para os vivos. E eu tenho toda a intenção de continuar
a viver enquanto puder. E o meu trabalho é o que me motiva a viver.
Não… — sua voz se embargou por um instante, revelando as fortes
emoções que a acossavam — ... não tome isso de mim. Janus e o
meu trabalho eram a minha vida, e se o senhor me afastar dos
meus deveres, eu não vou ter mais nada. E o nada vai me engolir
inteira. O senhor entende, coronel?
— Eu... acho que entendo. — Ele acenou levemente com a
cabeça.
— Me avalie o quanto quiser. Me faça voltar à academia para
treinar com os recrutas, se quiser. Eu vou provar que estou apta
para o trabalho. Tudo bem?
— Veremos — foi tudo o que ele disse.
Vinte e quatro horas depois ela estava em patrulha.
III

meses foram extremamente entediantes para Mallory.


OS PRÓXIMOS DOIS
Houve algumas entregas de suprimentos em áreas afastadas que
supostamente ficavam perto de trilhas perigosas. Mas nada
aconteceu.
Ela respondeu a chamados sobre brigas, confusões e
discussões, com a tarefa de manter a paz. E não eram nem brigas
emocionantes. Na hora em que os Guardiões apareciam, todos os
envolvidos decidiam que era mais inteligente fazer as pazes do que
ter que lidar com o tipo de justiça que tinha feito a fama dos
Guardiões. E ninguém gostava da ideia de ser arrastado por um
Guardião até um juiz local.
Nada além de situações fáceis de se resolver. Era isso que
Mallory tinha que enfrentar, e ela começou a ter medo de
enloquecer realmente.
Não era uma conspiração. Às vezes os Guardiões passavam por
períodos de calmaria. Normalmente encaravam essas épocas
tranquilas como folgas bem-vindas, pois sabiam que logo algo
catastrófico aconteceria para interromper a paz temporária.
Mas Mallory não ficou calada sobre o que sentia. Não queria que
as pessoas ficassem tendo ideias sobre seu estado mental. Já era
ruim o suficiente o modo como os outros se comportavam nas
primeiras semanas de volta ao trabalho, hesitantes e intimidados
quando estavam perto dela. Mesmo as sessões de piadas
cessavam na hora em que ela se aproximava, pois todos estavam
obcecados em não ferir seus sentimentos.
Por fim Mallory confrontou o esquadrão inteiro e disse à queima-
roupa:
— Se vocês não pararem de me tratar como se eu fosse feita de
porcelana, eu vou encher vocês de porrada.
Aquilo aliviara um pouco o problema.
Mas não chegou a mudar o fato de que Mallory se metia em
situações potencialmente perigosas, uma depois da outra, apenas
para verificar que se tratava de algum caso rotineiro. Assim, quando
chegaram relatórios sobre um Ursa escondido na floresta Aldrin,
Mallory não se permitiu ficar empolgada. Sempre havia a
possibilidade de não ser Ursa nenhum, e simplesmente alguma
criatura menos perigosa que se instalara por lá. Era difícil crer que
alguma outra fera de Nova Prime poderia ser confundida com um
Ursa, mas o coronel Green supunha que qualquer coisa era
possível.
Assim, Mallory foi designada para fazer parte de um dos vários
esquadrões de oito pessoas que varriam a floresta Aldrin em busca
de algum sinal de Ursa.
Jan teria adorado isso, pensou ela. Ele vivera por momentos
assim, pela emoção da caçada. Mallory jamais entendera por que
ele nunca conseguira evitar completamente ser detectado por um
Ursa. “Virar Fantasma”, como chamavam a proeza. Somente
indivíduos sem medo algum conseguiam isso, e Janus era o
Guardião mais destemido que ela conhecera.
O pior é que a floresta parecia estar decidida a deixá-la
desatenta. O cheiro das folhagens era puro e forte. Quando Janus a
cortejara, eles gostavam de passear em lugares assim. O aroma
agradável bastava para disparar lembranças do tempo passado ao
lado dele e...
— Setor limpo. — Um relatório de outro esquadrão chegou pelo
comunicador. Era o terceiro afirmando com total convicção que não
havia Ursas por perto; mas aquilo não significava nada. As malditas
criaturas conseguiam se esconder bem à vista.
— Fiquem frios, pessoal, — veio a ordem ríspida da capitã Terelli,
líder do esquadrão de Mallory. — Esse bicho ainda pode estar bem
no nosso quintal.
Os Guardiões confirmaram com uma série rápida
de “Entendidos”. Mallory segurava o alfanje com firmeza. Ela o
brandiu para a frente e para trás, experimentando-o. Notou que
ofegava. Quanto mais durava a caçada, mais podia sentir o coração
pulsando aceleradamente. Mallory manteve-se o mais fria possível,
concentrando-se ao máximo. Apenas recentemente os outros
Guardiões tinham parado de tratá-la como se ela fosse se
despedaçar ao ouvir alguma palavra mais dura. Ela não ia fazer
nada que os fizesse voltar a se preocupar com...
O leve estalar de um galho próximo foi o único aviso de que um
Ursa estava entre eles. E então a criatura surgiu, revelando sua
presença e dando um rugido alto e agudo.
Ursas não atacam simplesmente; eles gostam de brincar com a
comida. O monstro rugiu e então desapareceu, e quando os
Guardiões se voltaram para encarar a criatura, ela reapareceu
subitamente fora do círculo formado por eles. A fera pulou no
Guardião mais próximo, um cara novo, Harrison, que mal teve
tempo de reagir. E a reação foi gritar enquanto o Ursa rasgava sua
jugular com um golpe de garra dado com precisão cirúrgica.
Harrison caiu com sangue jorrando de sua garganta destroçada.
Os Guardiões começaram a tentar cercar o Ursa.
— Mantenham a formação! — gritou Terelli. — Hopkins, flanco
direito, manobra nove sete...
Mallory não estava ouvindo. Ela escutava as palavras, mas era
como se fossem ditas a outra pessoa. Alguém que dava a mínima
para as manobras e o treinamento e os sinais e ordens que Terelli
bradava. Alguém que não era ela.
Palavras eram irrelevantes. Tudo o que importava era o que ela
estava vendo. Sim, Janus não fora morto por um Ursa. Mas seus
criadores eram os responsáveis. Se não fossem os Skrel, os Ursas
jamais teriam chegado a Nova Prime. E os Skrel também plantaram
a mina ou cápsula não detonada ou o que quer que fosse que tinha
feito Janus em pedaços.
Ela olhou o Ursa e viu o vínculo entre a presença da criatura e os
malditos alienígenas responsáveis pela morte do seu marido. E
então, sem hesitar, avançou na direção do monstro.
Em algum recesso de sua mente Mallory ouviu Terelli ordenando
que ela recuasse, mantendo-se em formação pra fazer o que fora
treinada pra fazer.
Eu fui treinada pra matar essas coisas. E é o que eu vou fazer.
— Ei! — gritou ela. — Seu filho da puta feioso! Aqui! Aqui!
O Ursa virou a cabeça rapidamente. Ursas não têm olhos, mas
podiam ouvir perfeitamente bem, e o grito furioso de Mallory
chamara sua atenção.
Mallory avançou para a fera sem nem se dar conta do que fazia.
O tempo pareceu passar mais lentamente. O mundo tornou-se
um borrão, pontuado por instantâneos mentais dos outros
Guardiões. Os olhos deles arregalavam-se de choque, suas bocas
se abriam. Alguns pareciam estar formando as sílabas do seu nome.
Mallory os ignorou. Nada importava exceto o Ursa, e a Guardiã
encurtou a distância tão abruptamente que sequer se deu conta de
quanto tempo tinha se passado, se é que se passara algum tempo.
Tudo na postura do Ursa indicava completa confusão. A criatura
se virou para a direção de onde ouvira o grito. Mallory moveu-se
para o lado enquanto avançava. Não falou mais nada. A hora das
palavras tinha passado.
A cabeça sem olhos do Ursa não seguiu seus movimentos. O
monstro rugiu zangado, certo de que um inimigo se aproximava, e
então avançou, golpeando e errando Mallory por quase um metro.
Em momento algum Mallory compreendeu a verdade do que
estava fazendo. Tudo em que pensava era que o Ursa estava
confuso e ela iria se aproveitar daquilo.
Os outros começaram a se aproximar, mas Terelli abriu os braços
com as mãos espalmadas, indicando que os Guardiões deveriam
parar onde estavam. Ela claramente queria ver o que estava para
acontecer.
Mallory continuou a avançar lentamente, procurando a posição
ideal. Ela prendeu a respiração, um tanto por pura necessidade,
pois o Ursa fedia consideravelmente. A fera deu alguns passos
hesitantes até onde Mallory tinha estado, golpeou o ar algumas
vezes e então começou a “olhar” para Hopkins. Estava detectando o
medo que Hopkins não conseguia controlar, e que atraía o Ursa feito
um farol.
Mallory agiu antes que o Ursa pudesse alcançar Hopkins ou
qualquer outra pessoa. A Guardiã girou o alfanje em arco e abriu um
corte no flanco da criatura. Se o Ursa tivesse ficado parado,
provavelmente o teria estripado. Em vez disso, ele se moveu
apenas um pouco, e o alfanje atingiu uma de suas costelas. Ainda
era o suficiente para causar dor considerável.
— Ah, você não gosta disso, é? — gritou Mallory, desistindo da
resolução anterior de permanecer em silêncio, e então avançou para
cima do Ursa. Ele se voltou para encará-la e, por um instante,
pareceu que ela estava perdida. Então, executando uma manobra
que ainda seria discutida por muitos anos, Mallory se jogou no chão
e deslizou para a frente, com uma perna estendida como um
jogador de baseball indo para a segunda base. Isso a levou bem
para baixo do Ursa no momento em que ele batia com as patas no
chão; ela chegou a ficar bem entre as pernas da criatura. O solo
pedregoso rasgou seu uniforme, mas ela não desacelerou.
Enquanto o impulso a levava para diante, Mallory golpeou duro com
o alfanje e por muito pouco não conseguiu estripar o monstro. Em
vez disso, deixou um corte profundo de onde o liquido fétido que
servia de sangue aos Ursas esguichou aos litros.
O Ursa rugiu tão alto e ferozmente que dois Guardiões depois
reclamariam de deficiência auditiva. Enquanto o monstro recuava,
Mallory se ergueu, e a julgar pelo modo como o Ursa reagia, era
como se ela estivesse invisível.
Foi então que o Ursa decidiu que já tinha sido o suficiente.
Ele pulou de lado. O Guardião Tomlinson pulou para a direita para
evitar o monstro, aprontando o alfanje para golpear. O Ursa não lhe
deu chance. Em vez disso, passou velozmente pelo Ranger,
produzindo um ruído sôfrego e grunhindo de maneira que
evidenciava a dor que sentia ao dar cada passo. Segundos depois o
Ursa ativou a camuflagem, desaparecendo entre os arbustos. A
invisibilidade não era sinal de outro truque; em vez disso eles
ouviram as árvores e moitas sendo afastados e derrubados e os
sons do Ursa se perdendo na distância.
E ele sumiu, deixando apenas o silêncio mortal em seu rastro.
Hopkins foi o primeiro a romper o silêncio.
— Isso que aconteceu foi o que eu acho que aconteceu?
— O que aconteceu é que perdemos um homem — disse Terelli,
acenando para Harrison, tombado. — Vamos levá-lo para casa e
enterrar nossos mortos honrados. Você. McGuiness.
— Sim, senhora. — disse Mallory, enrijecendo.
— Venha comigo.
Ela aquiesceu e lançou um olhar para Hopkins.
— Foi bom trabalhar com você — disse em voz baixa ao se
preparar para seguir Terelli para o que, ela tinha certeza, seria a
corte marcial.
— Você é idiota? — respondeu Hopkins em voz baixa. — Você
virou Fantasma. É o bilhete premiado.
— Eu… eu fiz o quê? — Todo o peso dos últimos minutos caiu
sobre seus ombros. Até agora tudo o que ela fazia era se recriminar
intimamente pelo monstro ter escapado. O modo como atacara o
Ursa e o fato de ele ter sido incapaz de detectá-la não tinham sido
registrados.
— Você virou Fantasma! Passou para outro nível de... Hopkins
parou, notando a expressão no rosto dela.
— Mallory, o que houve?
Ela enxugou as lágrimas e disse suavemente:
— A primeira coisa que eu pensei foi: Espera só eu contar pro
Jan.
IV

QUANDO MALLORY COMEÇOUo dia fazendo parte de um esquadrão de caça


a um Ursa, ela jamais imaginaria que terminaria no escritório do
Savant.
A Guardiã nunca tinha encontrado o Savant antes. Como chefe
da Guilda de Ciências, não era provável que o caminho dele
cruzasse o de Mallory algum dia.
Mas por causa da inesperada manifestação da habilidade de
Mallory de virar Fantasma, o coronel Green a levara direto ao salão
de ciências, onde ela poderia ser submetida a uma bateria de
testes. Eles lhe aplicaram um exame psicológico de terceiro grau
mais abrangente do que qualquer coisa que ela jamais suportara.
Fizeram centenas de perguntas; mostraram imagens de manchas
negras aleatórias e perguntaram o que ela via (sua resposta
insistente de “manchas negras aleatórias” não pareceu impressionar
ninguém). Extraíram sangue, fizeram-na urinar em um frasco.
Fizeram tudo menos enfiar uma sonda em seu traseiro, e Mallory
temeu que, se não gostassem dos resultados dos testes, seria isso
que fariam em seguida.
E quando tudo — assim esperava ela — tinha acabado, o coronel
Green mandou que ela aguardasse no escritório do Savant. Mallory
obedientemente fez o que lhe ordenaram. Apesar da convicção de
Hopkins de que ela não enfrentaria nenhuma ação disciplinar,
mesmo tendo desobedecido a ordens, Mallory se preparava para o
pior quando Terelli retornou com ela para o Quartel General dos
Guardiões. Mas Green já estava lá esperando pelas duas; no final,
Terelli tinha relatado o acontecimento com antecedência. Mallory
recebera o equivalente disciplinar a um tapinha na mão e Green
assumira em seguida.
Mallory passara o dia inteiro acostumando-se ao que tinha
acontecido, mas sua mente ainda estava inquieta. Ela andava de
um lado ao outro do escritório quando a porta se abriu e o Savant
entrou. O Savant era bastante alto, com cabelo ralo e bochechas
chupadas. Tinha os olhos azuis mais penetrantes que Mallory jamais
vira. Ela jamais se perguntara como seria a aparência da
curiosidade perpétua, mas decidiu que provavelmente teria aquela
cara.
Mallory postou-se alerta assim que o Savant entrou. Logo atrás
dele estava o coronel Green.
— Sente-se, Guardiã. — O Savant fez um gesto para a cadeira
em frente à sua grande mesa.
Mallory ficou exatamente onde estava.
— Ela é bem treinada demais — informou o coronel Green. — Há
um oficial superior na sala. Ela não vai se sentar a menos que eu
permita.
— Bem, então apreciaria se você o fizesse, pois sou antiquado o
suficiente para não me sentar enquanto houver uma dama de pé.
Um esboço de sorriso surgiu por um instante no rosto de Green.
— Creio que a tenente pode não gostar de ser descrita como uma
“dama”.
McGuiness não respondeu à provocação, permanecendo onde
estava como se aguardasse ordens. Green disse finalmente:
— À vontade, tenente. Sente-se.
Ela fez como ordenado. Suas costas permaneceram rígidas e
suas mãos estavam estendidas sobre o colo. Mallory esperou.
— Como vai você, tenente? — disse o Savant, em um tom de
conversa despreocupada, como se estivessem tomando um café.
— Cutucada e futucada o dia inteiro, senhor — disse ela, sem
tentar esconder a impaciência. — Então, com todo o respeito, em
vez de eu dizer como vou, gostaria que vocês me dissessem o que
essa intrusão toda descobriu.
— Muito bem — disse o Savant. Ele sentara-se, e agora se
inclinava para diante com os dedos entrelaçados. — Para ser
honesto, eu achei no começo que a explicação para sua súbita falta
de medo e sua habilidade de virar Fantasma —evidência
circunstancial, mas confirmada por testemunhas confiáveis — tinha
base psicológica. Achei que a perda do seu marido...
— Tinha me feito enlouquecer? Me fez virar suicida? Não me
importar com meu próprio bem-estar?
— Algo assim.
Aquela era exatamente a conclusão que ela temia. Aquele
diagnóstico a deixava bem perto de ser declarada mentalmente
instável. Ninguém iria querer que sua vida dependesse de uma
Guardiã que não se importava em viver ou morrer, ou que estivesse
de fato procurando a morte. Se isso acontecesse, ela poderia ser
posta de licença por período indefinido. Ou pior ainda, passar para
um trabalho burocrático, que seria o mesmo que morrer, no que lhe
dizia respeito.
— Senhor — sua resposta foi endereçada a Green, não ao
Savant —, eu asseguro que não estou nem de longe...
Green a silenciou com um gesto ríspido.
— Deixe o homem terminar, tenente.
Mallory ficou de boca aberta ainda um segundo, e depois a
fechou.
— No entanto — continuou o Savant, como se não tivesse sido
interrompido —, eu estou bastante certo de que esse não é o caso,
baseado na avaliação psíquica que fizemos hoje. E especialmente
considerando que outra explicação surgiu. Veja, nós descobrimos
que aconteceram algumas mudanças metabólicas fundamentais em
sua glândula pituitária e no hipotálamo. Essas mudanças criaram o
equivalente químico de uma SDP…
O Savant notou a incompreensão no rosto de Mallory e explicou:
— Síndrome de Despersonalização. Em casos extremos, SDP faz
o indivíduo se sentir como se estivesse em um sonho acordado. A
mente se sente desconectada do mundo ao seu redor. Em seu caso,
graças a esse desequilíbrio químico, quando você se confronta com
uma situação ameaçadora...
— Como um Ursa — disse Green, um tanto desnecessariamente.
—… você entra em um estado de fuga psíquica. É um fenômeno
fascinante, na verdade. Se você não se importa, eu gostaria de
estudá-lo e escrever uma monografia a respeito.
— Mas eu não entendo. — Mallory sacudia a cabeça, confusa. —
Meu corpo passou por uma mudança química? Por quê?
— Na verdade é bem comum em mulheres na sua condição.
— Minha o quê? Que condição? — Ela olhou confusamente de
um para o outro.
— Mallory — disse Green, gentilmente —, quando foi a última vez
que você menstruou?
O rosto dela corou de irritação.
— Essa é uma pergunta pessoal, senhor, e não vejo como sua
patente lhe dá o direito de... — então sua voz sumiu e seus olhos se
arregalaram.
Houve um pesado silêncio na sala um longo momento.
— Ah, puta merda — murmurou ela.
— Os testes indicam que você já está de dois meses — disse o
Savant.
— Você tem certeza?
— Absoluta.
Mallory não disse mais nada, e Green — que permanecera em pé
com as mãos atrás das costas — disse:
— O regulamento é bem específico nesses casos, tenente. Uma
Guardiã grávida pode continuar a trabalhar enquanto desejar,
durante o tempo em que seu oficial comandante a julgar capaz de
desempenhar suas funções. Obviamente você ainda é capaz de
desempenhar suas funções, e tem o direito de fazê-lo.
— Então… — ela lutou para encontrar as palavras certas. —
Então vocês estão dizendo que minha habilidade de virar Fantasma
vem com data de validade? Que se alguma coisa acontecer com o
bebê… — Sua voz se embargou, mas ela se forçou a continuar. —
Eu não vou mais conseguir virar Fantasma?
— Eu gostaria de ter uma resposta para isso, mas eu realmente
não sei — admitiu o Savant. — Teremos que esperar pra ver.
— Tenente — disse Green, cautelosamente —, você se
expressou de maneira um tanto específica. Está insinuando que
você pode não levar sua gravidez a termo?
Mallory levantou-se lentamente e postou-se em posição de
sentido. Ela olhou para a frente, para nada em particular.
— O senhor está insinuando que eu não tenho esse direito?
— De forma alguma — disse ele.
— Ou o senhor pensa em me forçar a continuar com a gravidez
para ter outro Fantasma à disposição pra...
— Pode parar por aí mesmo, tenente. — Green parecia bem
irritado. — Eu jamais disse ou fiz nada assim em minha longa
carreira, nem nunca tratei meus subordinados com esse tipo de
atitude desumanizante, e francamente eu estou bastante ofendido
com o que você está dizendo.
— Desculpe-me, senhor — disse ela imediatamente, e com
sinceridade. — É que... isso tudo é meio demais para absorver tão
rápido. Eu… vou precisar de algum tempo para processar isso tudo.
— Eu compreendo — disse Green. — Use todo o tempo de que
precisar para decidir o que fazer.
— Obrigada, senhor.
— Você tem até amanhã.
Mallory pausou e então aquiesceu com a cabeça.
— Obrigada, senhor.
Ela se voltou e caminhou em direção à porta.
Antes que ela chegasse lá, Green a chamou.
— Tenente.
Ela se voltou para ele.
— Parabéns — disse Green.
— Vamos ver — respondeu ela, e saiu.
V

seu dormitório a noite inteira, olhando para o teto. Ela


MALLORY FICOU EM
repousava a mão na barriga, tentando adivinhar o que se passava
em seu interior.
— Fale comigo — sussurrava. — Diga-me o que você quer.
O pequeno passageiro não respondeu.
Ela ficou à deriva durante a noite, dormindo alguns minutos por
vez. Sempre que conseguia adormecer, uma salva incessante de
imagens a acometia: seu marido, levantando-se da tumba com os
braços esticados caindo sobre ela e rasgando seu estômago com as
unhas, tentando arrancar o bebê.
Quando a primeira luz dos sóis gêmeos de Nova Prime começou
a subir no horizonte, os olhos de Mallory estavam vermelhos. Não
de lágrimas; sentia como se já tivesse chorado tudo o que podia
depois da morte de Jan. Estavam vermelhos de cansaço. Ao se
olhar no espelho, a imagem a fez pensar em alguma antiga história
de mortos-vivos.
Uma hora depois, sentava-se na beirada da cama, usando roupas
civis e com o cabelo molhado; obviamente havia tomado um banho
e se vestido, embora não tivesse lembranças do fato.
Foco. Você tem que se concentrar.
Só havia uma coisa na qual ela pensava em se concentrar.
Duas horas depois — demorara tudo isso para reunir coragem de
sair do dormitório — Mallory postava-se no local da sepultura do
marido.
Bom, pelo menos ele não saiu daqui.
Ponto Valhala era o local oficial de enterro dos Guardiões
honrados que tombaram no cumprimento do dever. As lápides eram
simples: pequenos retângulos de pedra inscritos com o nome do
indivíduo enterrado. Muitos preferiam cremação, mas outros eram
mais tradicionais, e os Guardiões se esforçavam para acomodar
todas as preferências.
Mallory era pragmática demais para crer que Janus estivesse “ali”
de alguma forma. Ela sabia que o marido se fora. Ele não a ouviria
ali nem em qualquer outro lugar. No final, aquilo não dizia respeito a
Janus, que agora estava além das preocupações mundanas. Dizia
respeito a ela, expressando seus problemas, sua tribulação íntima.
— Eu não sei o que fazer, Jan — disse serenamente. — Primeiro
não sei o que fazer com o bebê. Era você quem vivia falando de ter
um filho. Você teria sido um pai ótimo. Eu não sei que tipo de mãe
eu seria, e sem você...
“Além disso… olha o mundo pra onde o bebê viria. Monstros à
solta tentando nos matar. Alienígenas nos atacando do céu. Nós
nunca podemos baixar a guarda, nunca. Uma péssima mãe
trazendo um filho pra um péssimo lugar... por que eu faria isso com
ele? Talvez fosse melhor se ele jamais nascesse...
“Mas… — ela hesitou, sentindo a voz falhar. — Como posso
matar a única parte de você que restou? Como posso fazer isso
com ele? Como posso fazer isso com você...? Será que passei tanto
tempo me concentrando em matar que acabei esquecendo
completamente dos vivos...?”
Ela se ajoelhou diante do túmulo.
— Sim, e os vivos? Eu não tenho a responsabilidade de protegê-
los? Os cidadãos de Nova Prime estão contando comigo. E se eu
tenho a habilidade de virar Fantasma agora, será que não tenho
também a responsabilidade de usá-la?
“Mas… então isso vai expor o bebê a riscos. E daí se os Ursas
não me veem? Ainda assim, num momento de azar… um só golpe
da garra de um deles e acabou... morremos eu e o bebê.
“Nem precisa ser um Ursa. Em algum lugar por aí deve haver
uma cápsula não detonada com meu nome escrito nela...
“Quantas vidas dependem de mim? Como é que eu posso ser
uma boa mãe se isso significa abandonar as pessoas que contam
com os Guardiões? Mas como é que eu posso colocar meu bebê
em risco? Como?”
Ela baixou a cabeça, cobrindo o rosto com as mãos. Seu corpo
sacudia enquanto ela soluçava, torturada, embora seu rosto
permanecesse seco.
— Você está bem?
Ela ergueu o rosto.
Havia uma mulher um pouco afastada dali. Vestida no uniforme
cinza dos que trabalhavam em alguma divisão técnica, ela se
agachava diante de uma sepultura, depondo um buquê de flores
frescas no local. A mulher, de pele clara e olhos tristes, perscrutava
Mallory com o que parecia ser compreensão serena.
— Quer falar a respeito? — Ela não perguntou especificamente a
Mallory do que se tratava. Vira alguém sofrendo e estava
obviamente preparada para escutar.
Mallory não se moveu de onde estava. Não se sentia confortável
aproximando-se. Mas virou o rosto um pouco e acenou com a
cabeça na direção da sepultura diante da qual a mulher se postava.
— Seu marido?
— Minha filha — respondeu a outra mulher, suavemente.
— Ela era Ranger?
A outra mulher fez que sim com a cabeça.
— Morta por um Ursa ano passado.
— Sinto muito. — Ela fez uma pausa. — Meu nome é Mallory.
— Faia.
O nome era vagamente familiar para Mallory, mas ela não se
lembrava de onde.
— Esse é o meu marido — disse Mallory, apontando para a
sepultura de Janus. — Acho que temos algo em comum.
— Membros de um clube a que ninguém quer pertencer — disse
Faia. — Eu adoraria dizer que fica mais fácil com o tempo. Mas
seria mentira. O que acontece é que uma cicatriz se forma por cima
da ferida. Por dentro, o corte permanece profundo do mesmo jeito.
— Aprecio sua honestidade. — Ela ainda falava formal e
rigidamente, sem permitir que suas emoções aflorassem.
Houve um silêncio desconfortável.
— Bem, então... foi um prazer conhe...
— Eu estou grávida — disse Mallory, num rompante. — E não sei
se deveria continuar trabalhando. — Ela não mencionou o fato de
que sua gravidez aparentemente a permitia virar Fantasma. Mallory
não sabia se aquela informação era confidencial, e sequer sabia se
já havia aceitado aquela realidade.
— Oh… nossa. — disse Faia, lentamente. — Isso muda tudo, não
é?
— Muda? — Havia urgência desesperada em sua voz. — É isso
que fico me perguntando. Quem tem as necessidades mais
prementes? Esse... esse estranho… —ela gesticulou com raiva
indicando o estômago. — Ou as pessoas que eu jurei proteger?
Uma vida contra incontáveis outras? O que torna essa vida mais
importante que as outras?
— Eu não sei. Eu queria saber o que dizer...
— Você pode me dizer o seguinte: — Mallory a encarou. — Você
perdeu uma filha. Há alguém neste mundo cuja vida você não daria
para ter ela de volta? Existe alguém que você acha ser
intrinsecamente mais digno de viver que sua filha?
Faia olhou para o chão, incapaz de sustentar a mirada de Mallory.
— Minha filha morreu defendendo a vida do irmão. E eu lhe digo:
Não se passa um dia sem que meu filho não sinta falta da irmã, e
sem se perguntar por que ele pôde continuar vivendo e ela morreu.
Nem um dia. Quem disser que a vida é justa está mentindo. Nós
procuramos o motivo das coisas, e nos examinamos e aos nossos
fracassos para tentar entender o que poderíamos ter feito para
evitar o que aconteceu. Mas isso só nos faz duvidar de nós
mesmos. Porque a verdade é que acabaremos loucos se insistirmos
em nos preocupar com isso. A dura verdade — pelo menos no que
me diz respeito — é que o Universo é indiferente a nós. Esse
constante duvidar de nós mesmos só torna mais difícil que
percebamos que é tudo aleatório. E tudo o que podemos fazer, ao
decidir como viver nossas vidas, é fazer as melhores escolhas que
podemos e seguir em frente.
— Eu não posso seguir em frente. — Ela passou a mão no
estômago. — Eu carrego uma lembrança constante do que poderia
ter sido...
— Do que ainda pode ser.
— Não com meu marido. Eu não posso...
Faia apontou um dedo severo para ela.
— Não ouse dizer “não posso fazer isso sem ele”.
Mallory não disse mais nada e Faia continuou.
— Você é uma Guardiã, Mallory. Eu já conheci alguns Guardiões,
incluindo minha filha. Eu conheço o tipo. Conheço o temperamento.
E você é capaz de fazer qualquer coisa, se resolver agir. Se alguns
Guardiões podem encarar um Ursa sem sentir medo, acho que você
pode controlar o medo que sente de uma criança.
— Não é só o bebê. É o que ele representa.
— Ele representa responsabilidade. É isso que é ser um
Guardião: assumir responsabilidades.
Durante a conversa ela se aproximara de Mallory, e pousou a
mão em seu ombro.
— Olhe… não tenho intenção de passar sermão.
— Não acho que isso seja um sermão — mentiu Mallory.
— Bom, se não é sermão, é bem parecido. Mas no fim eu não
posso dizer a você o que fazer. Não cabe a mim; e além disso,
minha vida pessoal é tão complicada que dificilmente eu seria a
pessoa mais indicada a passar sermão em alguém. Escute: nós
duas conhecemos a dor de perder alguém querido. E sabemos das
exigências pesadas que o senso de dever nos compele a cumprir.
Eu mesma não sou uma Guardiã, mas meu marido escreveu o
manual sobre a psicologia dos Guardiões.
— O quê? — Subitamente a ficha caiu. — Faia... Raige. Seu
marido é Cypher Raige. O Fantasma Original. O general-
comandante. Eu sinto muito. Eu… eu devia…
— Devia o quê? Ter ficado em posição de sentido o tempo todo?
— Ela sorriu brandamente, então o sorriso desapareceu.
— Acho que no final não existe uma resposta absolutamente
certa. Você tem que escolher um caminho, e essa decisão será
irrevogável. É sempre assustador quando não há caminho de volta.
E sempre haverá sacrifícios a ser feitos.
— E quem sou eu — Mallory pousou a mão no estômago outra
vez — para tomar decisões que podem acabar sacrificando a vida
de outra pessoa sem que essa pessoa possa se manifestar a
respeito?
— Tomar decisões em nome dos seus filhos — algumas delas,
decisões de vida ou morte — faz parte do serviço. Mulheres menos
fortes que você já lidaram com isso e se saíram bem. Como eu
disse, não há resposta fácil. Mas eu sei de uma coisa: O que é mais
importante? Crianças nascendo? Ou o mundo onde nascem?
— Então você acha que eu devo…
— Eu acho — respondeu ela, encorajadoramente — que você
tem que tomar uma decisão com a qual possa viver depois. E
depois que fizer isso, tudo mais fará sentido.
Faia apertou o ombro de Mallory solidariamente.
Aquela tarde, no escritório, o coronel Green ergueu o rosto da
papelada e viu Mallory parada no umbral da porta. Ela usava o
uniforme, recém-passado.
Mallory bateu continência.
— Tenente Mallory McGuiness se apresentando para o trabalho,
senhor. Pelo menos enquanto for fisicamente possível.
Ele a perscrutou por um bom tempo.
— Tem certeza?
— A prioridade máxima de um Guardião é servir Nova Prime.
Quanto mais cedo o Júnior aqui aprender isso — ela acenou na
direção da barriga — melhor será para todos.
VI

POR ISSO? EU
passei por todo aquele sofrimento por isso?
Mallory olhou para os dois companheiros Guardiões. O cabo
Abbey era alto e forte, e seu entusiasmo por seus deveres de
Guardião era palpável. O recruta Sutton era magro, um dos
Guardiões mais atléticos da corporação. Não havia nada de errado
com seus companheiros.
O que estava errado era a própria missão.
O veículo de entrega avançava veloz pelo deserto de Falkor.
Sutton dirigia, mantendo o transporte estável. De vez em quando
havia um súbito movimento ascendente e descendente quando
rajadas de vento poderosas sopravam, empurrando o veículo de
lado. O deserto de Falkor era famoso por seus ventos fortes; de
todas as áreas desérticas de Nova Prime, era a mais propensa a
tempestades de areia. Mallory não conseguia imaginar por que
alguém se interessaria em se estabelecer ali.
E, no entanto, um grupo de cientistas tinha montado um posto
avançado naquela região, e precisava de ajuda.
Ajuda de rotina.
Ajuda muito, muito entediante.
Que era o único tipo de missão que ela recebia naqueles dias.
O coronel Green recebera Mallory de volta nas fileiras de
Guardiões, mas, desde então, tinha se mostrado
extraordinariamente, até mesmo insanamente cauteloso quanto à
utilização dos serviços da tenente. Ela presumira que seria
designada para os incidentes mais importantes envolvendo Ursas.
Em vez disso a maior parte das missões eram patrulhas de rotina
em áreas onde não havia testemunhos de presença de Ursas.
Era pra eu estar lá fora ajudando. Eu devia estar combatendo os
Skrel, seus planos, sua maldade. Em vez disso, estou aqui
cumprindo tarefas que qualquer um pode fazer. Você não precisa de
um Fantasma para realizar uma entrega. Você nem precisa de um
Guardião pra isso.
E, no entanto, era isso que ela se via fazendo. Quase não tinha
chovido em Nova Prime nos últimos meses, e a população sofria
com os efeitos da seca persistente. Por isso, a água estava sendo
severamente racionada, e a responsabilidade por sua distribuição
recaíra sobre os ombros dos Guardiões.
Green a selecionara para aquela entrega particular. Ao receber
suas ordens, Mallory quis gritar em protesto. Tinha achado que
Green finalmente decidira lhe dar algo interessante, mas
infelizmente o coronel ainda a queria na geladeira. Quando ela
tentou reclamar, Green respondera simplesmente:
— Estou empregando seus serviços onde creio que você fará
mais bem, tenente.
Porém Mallory não acreditava naquilo nem por um instante. Era
óbvio para ela que, apesar de seu valor como Fantasma, Green não
se sentia seguro em colocá-la em situações de risco. A tentente
considerara brevemente levar suas queixas direto ao general-
comandante. Se alguém se irritaria com um Fantasma subutilizado,
seria o Fantasma Original.
No entando, Mallory não conseguia se forçar a fazê-lo. Antes de
mais nada, como ela abordaria o assunto? Ei, general... Outro dia
eu topei com sua patroa no cemitério, daí achei que a gente podia
bater um papinho.
Além disso, a tenente tinha respeito demais pela linha de
comando. Ela respondia a Green, e por sua vez Green respondia ao
homem que era conhecido como general-comandante ou primeiro
comandante. Não lhe caberia passar por cima do coronel Green.
Não era seu trabalho decidir onde ela mesma poderia melhor servir
aos Guardiões. Seu trabalho era obedecer.
Assim, a única opção que restava a Mallory era persistir,
enquanto sua barriga aumentava de tamanho lentamente, tornando
perceptível a presença do pequeno parasita. Ainda não sofria um
grande impacto em suas tarefas, mas sentia um início de
estranheza e desconforto, uma sensação recorrente de estar fora do
seu centro de equilíbrio à medida que seu centro de gravidade
mudava. Mallory odiava aquilo, pois se acostumara a ser uma
máquina bem ajustada, e não estava gostando nem um pouco de ter
uma chave de fenda emperrada entre as engrenagens do seu corpo.
Odeio meu bebê.
Ela se sentiu culpada no instante em que pensou isso, mas não
podia se conter. A presença da criança parecia ter lhe concedido o
dom de virar Fantasma, mas ela não estava podendo se aproveitar
do fato. Assim, tudo o que restava era uma sensação de raiva e
frustração, pois a criança a impedia de realizar seu trabalho,
condenando-a a dia após dia de deveres insignificantes. O bebê a
impedia de servir, mas se ela sentisse algum ressentimento
direcionado a ele, então ela se tornava automaticamente uma mãe
ruim, já que boas mães não odiavam seus filhos.
Eu sabia que era uma ideia ruim. Jan queria filhos, não eu. Eu
vou ser uma mãe péssima. Uma mãe péssima que sempre vai se
ressentir do filho por...
— Tenente, temos contato visual com o posto avançado — disse
Sutton.
Mallory se concentrou na tarefa, mesmo que fosse tão banal. Na
traseira eles levavam seis grandes contêineres de água que deveria
durar pelo menos dois meses; os cientistas teriam que ser bastante
parcimoniosos no uso.
— Informe-os de nossa aproximação.
— Positivo.
Mallory ficou observando pelo para-brisa dianteiro enquanto se
aproximavam. O complexo não passava de uma série de prédios
pequenos, paredes e telhados construídos com tecido inteligente.
Sua insuperável flexibilidade permitia que suportassem mesmo os
ventos mais formidáveis. Havia também várias torres prateadas.
Mallory não fazia ideia da função delas; talvez coletassem leituras
para os vários experimentos que os cientistas sem dúvida estavam
conduzindo.
Sua tolerância e crença em cientistas continuavam mínimas. No
entanto, eles estavam esperando sua ajuda, e era seu trabalho
cuidar das necessidades deles. Mallory franziu o cenho quando,
após um longo momento, nenhuma reposta foi recebida.
— Sutton? — Mallory não precisava completar a pergunta; era
óbvio que ela queria saber por que os cientistas da estação
pareciam não ter comunicação de rádio.
Sutton sacudiu a cabeça.
— Não sei o que está havendo, tenente.
— Abbey, verifique os monitores de longa distância — disse
Mallory. Ela havia se levantado do assento e andava pelo interior do
veículo. — Veja se há alguma tempestade de areia se aproximando.
Talvez isso esteja atrapalhando a transmissão.
— Como isso seria possível?
— Eu não sei — admitiu ela, frustrada. — Apenas verifique...
— Já verifiquei. É verdade que as coisas por aqui começam
rápido, mas no momento as telas estão todas limpas.
Mallory estudou a imagem do posto avançado, aproximando-se
mais e mais. Ela não via nada. Nenhum sinal de movimento,
nenhum sinal de vida em parte alguma.
— Pra onde diabos eles foram? — murmurou ela.
— Será que devemos voltar, tenente?
Ela sacudiu a cabeça.
— Não. Nós temos que ver o que está acontecendo. Talvez
estejam se escondendo de alguma coisa.
— De quê? — disse Abbey, mas ele não tinha que pensar muito
para imaginar o que o “quê” seria. Não era difícil para nenhum deles
imaginar, na verdade.
— Vamos descobrir. — disse Mallory, usando uma voz
cuidadosamente neutra.
Momentos depois, o veículo pousou a alguns metros do
complexo. Depois de avisar ao QG que havia algo de suspeito na
situação e que eles iriam investigar, Mallory abriu a porta do veículo.
Os três Guardiões saíram cautelosamente para o ar livre, alfanjes
prontos para a ação. Nada parecia se mover na área. Tanto quanto
os Guardiões podiam perceber, eles estavam completamente
sozinhos.
Não havia necessidade de se espalharem. O posto avançado era
pequeno o suficiente para que, mesmo estando juntos, os
Guardiões não demorassem muito para cobrir a área inteira.
— Olá? — chamou Mallory. — Por um lado parecia absurdo fazer
aquilo. Obviamente não havia ninguém ali. Ainda assim, ela o fez
por puro reflexo.
— Somos os Guardiões. Tem alguém aqui? Alguém precisa de
ajuda?
Nenhuma resposta. Nada a não ser a brisa que soprava do
deserto.
— Tenente. — Abbey estava agachado a alguns metros de
distância gesticulando para Mallory se aproximar. — Olha só isso.
Mallory foi até Abbey e viu que ele apontava para algo no chão.
Havia alguns pontos vermelhos, e alguns pequenos fragmentos
brancos de...
— Osso?
Abbey fez que sim. Sua expressão era sombria.
— Sangue e osso. Alguma coisa foi massacrada aqui. E alguma
coisa foi devorada por alguma coisa que não deixou muita coisa pra
trás. Aposto que se verificarmos por aí, vamos encontrar mais
pedaços assim. Mas não muito mais.
— Ursa — sussurrou Mallory.
— E não faz muito tempo — comentou Abbey. Ele passou o dedo
em uma das manchas vermelhas. — Ainda está úmido. E aqui,
nesse calor, secaria bem rápido.
Sutton, alguns metros à frente, empalideceu. Mallory entendeu
por quê. Não era porque ele se assustava com a possibilidade de
enfrentar um Ursa. Não, ele imaginava como deveria ter sido para
aqueles pobres indivíduos, atacados e devorados tão rapidamente
que sequer tiveram tempo de enviar um pedido de ajuda. Não que
alguém fosse conseguir chegar a tempo.
O instinto imediato de Mallory foi retornar para o transporte e dar
o fora dali. Não havia mais nada a ser feito pelos cientistas. Naquele
instante eles estavam passando pelo que quer que constituísse o
trato digestivo de um Ursa.
Como se tivesse lido sua mente, Abbey disse:
— Temos que sair daqui. Esse bicho pode estar em qualquer
parte...
— E se estiver — disse Mallory — é nosso dever matá-lo.
— Só tem três de nós.
— Um dos quais é um Fantasma — Sutton lembrou.
— Tenente — disse Abbey — com todo o respeito, todos
sabemos que ninguém estava esperando um encontro com um
Ursa. O número de Guardiões em um grupo de caça a Ursa é oito.
Mesmo com um Fantasma, o protocolo pede cinco membros, a
menos que o Fantasma seja bastante experiente. Novamente, com
todo o respeito, você só tem uma morte — e não confirmada — em
seu nome, e desde então...
— Só me passaram tarefas fáceis, o que faz você duvidar da
confiança dos seus superiores em mim? Além do fato de eu estar
grávida, o que pode me retardar ou me fazer hesitar diante do
perigo? Era isso que você ia dizer? Com todo o respeito?
Abbey a encarou em silêncio. Ele não respondeu. Ele não
precisava. Tudo o que ele estava fazendo era expressar as dúvidas
que ela mesma sentia.
— Ok — disse Mallory após uma longa pausa. — Ok, você pode
falar à vontade. Como você procederia aqui?
Abbey suspirou de alívio, claramente aliviado por Mallory não ter
lhe dado uma bronca, como seria de direito.
— Voltamos pra nave, fechamos tudo e pedimos reforços. Então
ficamos na estação até que cheguem.
Não parecia um plano insensato. Não havia ninguém para salvar,
de forma que não era necessário agir imediatamente. Prosseguir
cautelosamente fazia todo o sentido. De fato, não havia razão para
não fazê-lo.
Ela concordou.
Abbey imediatamente foi em direção ao transporte, e Sutton o
seguiu. Mallory foi logo atrás, prestando atenção nos arredores. Se
havia uma coisa certa sobre os Ursas, era que só porque você não
via um, não significava que eles não estavam por perto.
O transporte estava esperando por eles, apoiado no trem de
aterrissagem.
Abbey estava subindo a rampa; quando ele se aproximou, a
escotilha se abriu. Sutton estava logo atrás dele, e foi então que
Mallory notou que o transporte estava mais abaixado do que
estivera antes.
A ficha caiu em um segundo.
— Pra trás! — gritou ela.
Tarde demais. O Ursa estava montado no teto, e seu peso era
responsável pelo veículo estar mais baixo que o normal; a fera
apareceu e rugiu. Abbey e Sutton congelaram no lugar, sentido o
medo bombeando nas veias. No mundo de trevas que os Ursas
viviam, o terror que os dois Guardiões irradiavam era como a luz de
um farol. O Ursa golpeou com a pata direita e a cabeça de Abbey
saiu voando enquanto sangue esguichava de seus ombros. Abbey
tombou e o alfanje caiu de seus dedos sem vida. Sutton recuou na
mesma hora, erguendo o alfanje, e atacou o Ursa. O monstro pulou
sobre o Guardião e, ainda no ar, golpeou com a pata. As garras
penetraram as costas de Sutton e saíram pelo peito. A visão das
entranhas se derramando paralisaram o soldado. O Ursa aterrissou
no chão perto do veículo, arremessando o corpo de Sutton rampa
abaixo.
Tudo aconteceu em menos de cinco segundos, e o tempo todo
Mallory ficou lá, presa ao chão, com os olhos arregalados.
O Ursa girou, perscrutando o resto da área. Mallory recuou
cambaleando, mas seu centro de gravidade, que estava mudando
por cortesia de sua barriga cada vez maior, tirou seu equilíbrio
apenas um pouco, mas o bastante para ela cair no chão arquejando.
A cabeça do Ursa virou-se repentinamente. A fera podia ser cega,
mas sua audição era afiada, e ela percebeu a presença de Mallory
no mesmo instante.
Quando o ursa se voltou para Mallory, ela viu uma longa cicatriz
ao longo do seu flanco, bem no lugar em que ela marcara o Ursa
muitos meses antes. Era o mesmo? Não era definitivo, mas era
inteiramente possível.
O monstro avançou para ela com as garras estalando no chão
árido. Ele sabia aproximadamente onde Mallory estava; só
precisava que ela emitisse o nível necessário de medo para fechar
seu foco nela.
Mallory viu seus companheiros Guardiões feitos em pedaços,
seus corpos espalhados, e ela se imaginou tendo um fim igual e
horrível...
… e então ela obrigou-se a ignorar o medo. A Guardiã o jogou
para o lado como se fosse problema de outra pessoa. Endireitou os
ombros, encarou o Ursa e passou a desconsiderar completamente
sua presença. O monstro se tornou pequeno para ela, insignificante.
Era como se a tenente tivesse desconectado a mente do próprio
corpo.
O Ursa parou. Começou a farejar o ar visivelmente, mas seu
design previa apenas a detecção de endorfinas. Outros aromas
simplesmente se misturavam em uma massa indistinta de estímulo
olfativo.
Mallory começou a rodear o monstro. Ela se agachou para se
equilibrar melhor, e seus pés se moviam silenciosamente pelo chão.
O alfanje estava pronto.
Súbito, a cabeça do Ursa se virou outra vez e o monstro agora
“olhava” direto para ela. Mallory congelou, certa de ter sido
detectada. Ela esperou, pernas ainda dobradas, pronta para saltar
para um dos lados e assim evitar o ataque inevitável da criatura.
E então o Ursa voltou a farejar o ar e continuou se virando.
Ele não está me vendo. Não sabe que estou bem na frente dele.
Mallory estava com o alfanje pronto. Silenciosamente ela o
separou nas duas metades com a sinistra ponta em curva. Se a
criatura continuasse a se mover na mesma direção, logo suas
costas estariam expostas e Mallory poderia atacá-la. Ela tinha tudo
planejado na mente: pularia em cima da criatura, segurando-se
firme com um dos bastões fincados nas costas do Ursa. Então
enterraria o outro bastão bem fundo na cabeça do Ursa, cravando a
lâmina em seu cérebro.
Essa é por você, Jan, pensou ela.
Então o bebê chutou.
Pela primeira vez.
Bem forte.
Ela sentira leves espasmos nos dias anteriores, mas nada assim.
Um soco no baixo ventre, como se o bebê tivesse decidido que ali
era o momento ideal para anunciar sua presença ao mundo.
Mallory gritou de surpresa e choque. Sua mente e corpo tinham
se reunido, e um pensamento galvanizou a ambos: Eu preciso
salvar meu bebê.
Imediatamente o Ursa girou e a detectou.
Mallory se virou e correu, reunindo as metades do alfanje
enquanto isso. O rugido do Ursa quase a paralisou, mas ela
continuou correndo.
O Ursa cobriu a distância entre os dois com um só pulo, e Mallory
só se salvou por ter golpeado cegamente com o alfanje atrás de si.
Ela teve sorte. A lâmina penetrou a pata direita do Ursa, cortando
os tendões. A criatura desabou, guinchando de fúria. Começou a se
sacudir violentamente, tentando saltar na direção de Mallory, mas
conseguindo apenas cair de cara no chão.
É um animal ferido. Não há nada mais perigoso que um animal
ferido. Com esse pensamento ecoando em sua mente, ela correu
dando tudo o que tinha, esperando afastar-se tanto quanto possível
do Ursa antes que a criatura se acostumasse à pata ferida e
começasse a persegui-la. Seu coração batia forte, e ela esquecera
qualquer coisa sobre ser ou virar um Fantasma. O primitivo instinto
humano de fugir ou lutar tomara o controle e ela não conseguia
pensar em nada que não fosse a fuga.
Só havia um lugar para onde ela podia obter abrigo: o veículo que
os levara até ali. Ela dobrou para a direita e correu o mais rápido
que pôde em direção ao local de pouso. Podia ser apenas sua
imaginação, mas ela jamais se sentira tão gorda, tão lenta, tão
desajeitada como naquele momento.
O transporte estava lá, esperando por ela com a porta ainda
aberta. E então ela pressentiu mais do que viu o Ursa vindo atrás
dela, pela direita. A Guardiã estava mais perto, mas o monstro era
mais rápido, e vinha direto em sua direção numa trajetória de
interceptação.
Mallory acelerou, puxando forças sabe-se lá de onde, e passou
pela porta a toda velocidade. Virou-se e apertou o botão na parede.
A porta se fechou no momento que o Ursa chegava. A fera bateu
violentamente, sacudindo o transporte. Mas a porta permaneceu
fechada, deixando o Ursa fora.
Mallory cambaleou até os controles do veículo para tentar
levantar voo. E então o Ursa apareceu bem à sua frente, no para-
brisa e abalroou o veículo com mais força do que Mallory cria ser
possível. O monstro atingiu o para-brisa uma, duas vezes; na
terceira, rachaduras se espraiaram pela janela feito teias de aranha.
Antes que Mallory conseguisse ativar os motores, a garra do
monstro estilhaçou o para-brisa. Mallory recuou até a traseira do
veículo, protegendo o rosto da chuva de vidro, e bateu com força no
chão.
O Ursa estendeu a perna ferida, varrendo o espaço à frente para
limpar o resto do vidro estilhaçado que impedia sua entrada. No
entanto, o espaço ainda não era amplo o suficiente para permitir
acesso fácil. Mas isso não o deteve. Com Mallory a alguns poucos
metros, o monstro estendeu a bocarra para diante. Era uma
passagem apertada, mas, sem se deter, o monstro começou a
empurrar lenta e inexoravelmente sua enorme cabeça pela abertura,
como uma perversão doentia de um nascimento humano.
É isso, ela pensou, em pânico, e sua confiança na habilidade de
virar Fantasma estava tão abalada que qualquer noção de coragem
agora parecia um sonho febril. Era isso que eu temia. Eu vou
morrer. Meu bebê vai morrer. Depois de tudo que eu e Jan
conseguimos em nossas vidas, no final vai ser como se nem
tivéssemos existido. Eu falhei completamente.
O Ursa não podia rugir; suas mandíbulas estavam fechadas
graças à estreiteza da entrada por onde tentava passar. Mas a fera
grunhia furiosamente entredentes.
Agachada na parte traseira do veículo, Mallory abaixou a mão e
tocou a barriga, por baixo do uniforme.
— Sinto muito — sussurrou.
E então Mallory sentiu outro movimento em seu ventre. Não um
chute. Dessa vez, alguma coisa pressionava contra a palma aberta
de sua mão.
Ela não podia ter certeza, mas pareceu como se fosse a mão do
bebê, aberta e pressionada contra a sua.
E em sua mente, era como se o bebê estivesse dizendo para ela:
Não tenha medo, eu tenho fé em você.
Pela primeira vez, ela percebeu a criança de uma maneira nova.
Ela a viu não como um risco ou um empecilho. Ela não a viu como
algo que iria exaurir sua força de vontade ou impedir seu
desenvolvimento como pessoa, Guardiã ou Fantasma.
Em vez disso, viu o filho não nascido como uma força. Uma
vantagem em sua vida, não um risco.
Mallory também se convenceu, pela primeira vez, de que era uma
menina. Um vínculo fora criado entre mãe e filha, uma conexão em
um nível fundamental que ela jamais experimentara antes.
A enorme cabeça do Ursa passou pela abertura e emitiu um
rugido furioso de fazer estremecer os ossos. Esperou pela emissão
costumeira de feromônios de medo que serviria para direcioná-lo
para a presa.
Nada.
A criatura berrou outra vez, e outra vez esperou por algum tipo de
resposta que poderia usar para se aproximar da humana.
Ainda nada.
A humana se fora.
O Ursa não conseguia compreender como aquilo era possível.
Ele sabia que o local era fechado, e havia uma humana ali até há
pouco. Agora já não havia ninguém.
O monstro tentou captar qualquer estímulo com todos os sentidos
de que dispunha.
E ainda se esforçava por detectar seu alvo quando a lâmina do
alfanje foi enfiada no topo de sua cabeça por uma mulher que se
postava a menos de meio metro de distância, e que, no entanto, era
indetectável.
Mallory McGuiness resistiu à tentação de gritar de triunfo. Em vez
disso, com eficiência implacável, ela arrancou o alfanje e golpeou
com ele mais uma vez. Mallory segurava um dos bastões. A lâmina
produziu um som como de uma faca perfurando um melão. No
mesmo instante, ela passou a outra lâmina sob o queixo do Ursa,
abrindo as veias em sua garganta. A fera sangrou por todo o interior
do veículo, tanto que em segundos uma poça de sangue de um
centímetro de profundidade se formou em volta de suas botas.
O Ursa estremeceu violentamente e o transporte sacudiu como
se um terremoto tivesse começado.
Então, tudo caiu em silêncio.
Morto.
O bebê de Mallory chutou. Outra vez.
VII

O por toda Nova Prime. Crianças voltando da escola para


ALARME SOOU

casa congelaram ao ouvir seu grito. Elas o conheciam bem: um


Ursa fora detectado nos limites da cidade.
E então elas o viram, vindo furioso em sua direção. Tinha
aparecido poucos metros à frente, e as crianças gritaram
aterrorizadas.
O Ursa as notou, mas antes que pudesse ir para cima delas, uma
mulher se intrometeu vindo da lateral.
— Te peguei! — Ela portava uma arma de gume, e a brandia com
confiança. O Ursa dançou para longe, esquecendo as crianças.
Outros Guardiões estavam vindo mais atrás. A mulher deu ordens
com autoridade:
— Flancos direito e esquerdo! Cerquem o Ursa e o expulsem da
cidade! Então nós acabamos com ele!
Os Guardiões se moveram com eficiência estudada. Só levou
alguns segundos para manobrarem o monstro na direção que o
afastaria dos civis.
E então a mulher, que estava claramente no comando, pausou
tempo suficiente para bater continência rapidamente para as
crianças antes de continuar a liderar os outros Guardiões na
perseguição ao Ursa.
— Ela bateu continência pra gente! — disse um dos meninos.
Uma garotinha disse, orgulhosa:
— Não, não. Ela bateu continência pra mim. Ela é minha mãe.
— Ih, não inventa! — disse uma criança, e outra completou:
— Você tá brincando, né Janny?
— Não. Ela é uma dos sete Fantasmas.
As crianças murmuraram, impressionadas.
— Como ela aprendeu a não ter medo de nada?
— Eu perguntei isso uma vez.
— O que ela respondeu?
— Ela disse que fui eu que ensinei pra ela — respondeu Janny. E
sorriu com o sorriso do pai.

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