Você está na página 1de 60

Depois da Terra™

Histórias de
Fantasmas

Reparação
Michael Jan Friedman

Tradução
Rodrigo Santos
Copyright © 2013 por After Earth Enterprises, LLC. Todos os direitos reservados. Usado
sob autorização.

Todos os direitos desta edição reservados à


Editora Objetiva Ltda.
Rua Cosme Velho, 103
Rio de Janeiro – RJ – Cep: 22241-090
Tel.: (21) 2199-7824 – Fax: (21) 2199-7825
www.objetiva.com.br

Depois da Terra: Histórias de Fantasmas: Reparação é um trabalho de ficção. Nomes,


lugares e incidentes são produtos da imaginação do autor ou usados de modo fictício.

TÍTULO ORIGINAL
After Earth: Ghost Stories: Atonement

CAPA
Trio Studio sobre design original

IMAGENS DE CAPA
Ilustração do soldado: Stephen Youll
Ilustração da paisagem: Dreu Pennington-McNeil/Random House

REVISÃO
Joana Milli

COORDENAÇÃO DE TRADUÇÃO
Reverb Localização

COORDENAÇÃO DE E-BOOK
Marcelo Xavier

CONVERSÃO PARA E-BOOK


Abreu’s System Ltda.

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

F946s

Friedman, Michael Jan.


Reparação [recurso eletrônico] : depois da terra : histórias de fantasmas / Michael
Jan Friedman ; tradução Rodrigo Santos. - Rio de Janeiro : Objetiva, 2013.

42 p., recurso digital

Tradução de: After Earth : ghost stories - atonement

Formato: ePub

Requisitos do sistema: Adobe Digital Editions

Modo de acesso: World Wide Web

ISBN 978-85-8105-143-7 (recurso eletrônico)

1. Ficção americana 2. Livros eletrônicos. I. Santos, Rodrigo II. Título.

13-2192. CDD: 813


CDU: 821.111(73)-3
Capa

Folha de Rosto

Créditos

Cade Bellamy

Cade Nunca Estivera

Cade Mal Se Levantara

Cade Estava de Pé

No Calor da Tarde

Tolentino Não Disse

Se o Primeiro Dia

Mais Tarde

No Quinto Dia

Foi Tolentino

Estava Chovendo

Cade Retornou

Naquela Noite

Com O Passar dos Dias

Cade Não Dormiu

O Novo Esquadrão
Cade Estava Quente
CADE BELLAMY tinha tudo planejado.
Seus homens — na verdade, os homens de Andropov —
estavam posicionados por todo o armazém e ao redor, com os
pulsares configurados para uma potência infimamente menor do que
a letal. Seu suprimento de componentes eletrônicos roubados —
que também eram de Andropov — foram retirados das enormes
fileiras de equipamentos legítimos e empilhados no centro do lugar,
para inspeção. E seu cliente, um fabricante de veículos terrestres
vintage que amava a ideia de pagar menos pelas peças, chegaria
em questão de minutos.
Tudo pronto.
Essa era a primeira transação que Cade organizara sozinho. E,
se tudo desse certo, não seria a última. Afinal, Cade planejava ter
um esquema próprio de mercado negro e contrabando. Um
esquema ainda maior do que o de Andropov.
Era assim que o mundo funcionava, não era? Cuide de si mesmo.
Foi isso que ele aprendeu no dia em que sua mãe morreu. Cuide de
si mesmo.
— Agora só falta contar o lucro, né? — disse uma voz por trás
dele.
Cade olhou por cima do ombro e viu o homem a quem devia a
maior parte dos créditos que já ganhara na vida. As feições de
Andropov eram rudes, brutas, como se alguém tivesse começado a
fazer um rascunho do rosto dele e perdido o interesse antes de
terminar. Os olhos de Andropov, que eram de cor clara, pareciam se
destacar somente por causa da sombra no resto do rosto todo.
Mas ele havia sido bom para seu protegido. Muito bom. E seu
protegido, em contrapartida, ganhara para ele uma bela pilha de
créditos.
— Contar o lucro é a minha parte favorita — respondeu Cade.
— Eu sei muito bem disso — comentou Andropov. — Eu aposto
que você já decidiu como vai gastar a sua parte.
— É, eu acho que vou comprar uma nave-veleiro nova. — Ele
passou a mão pela barba por fazer enquanto imaginava. — O último
modelo. Vermelho sangue. Aliás, eu acho que vou comprar uma
frota logo, uma pra cada dia da semana.
— Depois disso — comentou Andropov, olhando para o galpão ao
redor —, você vai merecer uma frota de naves-veleiro. — Ele
consultou o relógio de pulso. — Tem certeza de que seu cliente
estará aqui na hora?
— Aposto minha vida nisso — respondeu Cade.
Foi quando eles ouviram um grito do lado de fora:
— Guardiões!
Isso não deveria ter sido uma surpresa. Afinal, já havia muito
tempo que ele não era pego pelos Guardiões. Cinco anos.
As pessoas que viviam do mercado negro geralmente calculavam
passar entre um ano e um ano e meio sem que as autoridades
encontrarem seus rastros. Dois anos era uma raridade. E Cade
estava há cinco anos livre.
Então, mesmo sabendo que suas chances estavam piorando,
Cade começou a pensar que nunca seria pego, como se sua sorte
nunca fosse acabar.
E, agora, acabara.
Cade teria simplesmente sacado o pulsar, se fosse algum de
seus rivais tentando acabar com ele. Mas contra Guardiões? Não
havia motivo. Não quando eles tinham aqueles alfanjes nas mãos.
Por melhor que ele fosse com o pulsar, não era páreo para aquelas
coisas. Eles o fatiariam antes que conseguisse dar sequer um tiro
decente.
Então, ele seguiu o plano B: correr.
Não para fora do galpão, porque Cade sabia que os Guardiões
teriam bloqueado todas as saídas. Eles eram conhecidos por fazer
isso. Em vez disso, ele recorreu a uma saída que eles não
conheciam: um alçapão sob um contêiner no canto, que parecia tão
pesado quanto os outros, mas estava completamente vazio.
Andropov, que estava mais perto, já estava movendo o contêiner
para o lado. Melhor ainda, pensou Cade.
Usando os outros contêineres como cobertura, Cade deu dois
passos rápidos e mergulhou, se atirando para o outro lado do
aposento. Ouviu mais gritos: os Guardiões estavam reagindo à sua
tentativa de fuga. Mas nenhum deles tinha uma linha de ataque
livre, ou já o teriam atingido com um alfanje.
Cade caiu no chão, rolou e mergulhou novamente. Ainda nada.
Eu vou conseguir, pensou.
Outra voz dentro de sua cabeça disse: É claro que vai. Você é
Cade Bellamy.
Ao se jogar no chão de novo, deslizando para a frente, ele viu
Andropov entrando pelo alçapão aberto. Mas antes que Cade
pudesse se juntar ao mentor, Andropov fechou a porta.
Cade xingou, mas não por estar desapontado com Andropov. Se
eles estivessem em posições trocadas, Cade teria feito a mesma
coisa, sem dúvida.
Arrastando-se pelo chão, ele tentou abrir a porta à força. Não deu
certo. Andropov trancou por dentro, para que os Guardiões não o
seguissem. Novamente, era o que Cade esperava.
Ele procurou outras opções ao redor. Não deixaria que os
Guardiões o pegassem. Não mesmo. Outra rota de fuga se
apresentaria de alguma maneira. Ele só precisava estar pronto para
ela.
O que Cade certamente não esperava era que a parede ao lado
dele implodisse.
O impacto lançou pedaços de reboco para todos os lados. A
maior parte passou longe, mas um deles o acertou bem na têmpora.
Tudo ficou vermelho por um momento. Um longo momento.
Então, a visão de Cade começou a clarear e ele entendeu o que
tinha acontecido.
Um Ursa atravessara a parede como se fosse um caminhão
desgovernado. Essas criaturas tinham sido geneticamente
projetadas pelos Skrel, uma raça alienígena hostil. Depois de uma
tentativa falha de eliminar a humanidade vários séculos antes, os
Skrel introduziram as máquinas matadoras de homens em Nova
Prime para erradicar toda a vida humana do planeta.
Cade viu a criatura de relance, a bocarra como um buraco negro,
o couro alienígena pálido misturado com metal inteligente e as
garras afiadas e cruéis. Então, a coisa partiu para cima de um dos
Guardiões, prendendo-o no chão e cuspindo um veneno negro nele.
O Guardião gritou enquanto o veneno derretia seu uniforme e
chegava até o peito. Alguns segundos depois, o grito cessou, ele se
debateu duas vezes e ficou parado, com as entranhas fumegando.
Cade sentiu ânsia de vômito, lutou para contê-la e procurou seu
pulsar. Mas a arma sumira. Ele olhou ao redor e não a viu em meio
aos escombros. Obviamente, a arma caíra do cinto quando o Ursa
entrara no prédio.
Às vezes, a criatura ia embora após matar uma única vez. Ela
sumia e esquecia as outras vítimas em potencial. Mas não era o
caso, desta vez. A cabeça do Ursa se virou, com a boca abrindo e
fechando, com os dentes afiados batendo como se quisessem mais.
Ele não tinha olhos; Cade sabia que apesar da falta de visão, os
Ursas conseguiam detectar os feromônios secretados pelo medo e
se fixar na vítima.
E ao que parecia, a criatura estava fixada em Cade.
O Ursa estava apenas a uns dois metros de distância dele, um
pequeno salto. Perto demais para que ele tentasse procurar
cobertura.
Tudo o que podia fazer era se preparar, esperando que o Ursa o
agarrasse e derretesse suas entranhas como fez com o Guardião.
Mas por algum motivo, ele não o fez. Passou por ele como se não
estivesse lá.
Ele não vem atrás de mim, pensou ele ansioso, mal conseguindo
acreditar na sorte que teve. Ele não vem atrás de mim. Por que ele
não vem atrás de mim?
A criatura foi atrás de outra Guardiã. Os companheiros de
esquadrão dela golpearam com os alfanjes, mantendo a fera
afastada. Mas a defesa dos Guardiões não duraria para sempre. De
um jeito ou de outro, a criatura passaria e desmembraria sua presa.
Como sempre.
E então o que aconteceria? Cade ponderou.
Quanto tempo levaria até que o monstro acabasse com todos os
guardiões e se lembrasse dele, que fora deixado pra trás? Talvez
nem esperasse tanto tempo.
Escapar, pensou. Tem que ter uma saída. E Cade precisava
encontrar agora, enquanto os Guardiões ainda estavam distraindo a
criatura.
Mas ele estava encurralado em um canto do galpão, com o Ursa
bloqueando a saída. Ele não alcançaria a porta da frente, não
chegaria até o buraco na parede e não conseguiria nem encontrar o
alçapão em meio a tantos escombros.
Era por isso que ele precisava fazer alguma coisa antes que o
Ursa fizesse. Mas o quê?
Então, ele percebeu que a resposta estava apenas a alguns
passos de distância. Só que ele estava concentrado demais no Ursa
para enxergar. Do lado do monstro, caído no chão ao lado do
cadáver do Guardião, havia um alfanje.
Era longo, afiado e brilhava sob as luzes severas do galpão. E
era capaz de matar um Ursa. Cade viu acontecer uma vez, quando
era criança. Ele viu um esquadrão de Guardiões combatendo uma
das criaturas. Um dos Guardiões saltou nas costas do Ursa e cravou
o alfanje em um ponto fraco. Ele se convencera de que aquilo era
poder de verdade: forçar seu oponente, quer seja soldado, monstro
ou um cliente procurando mercadorias roubadas, a se submeter. Se
você acredita que é invulnerável, você se torna invulnerável.
É claro, ele nunca usara uma arma dessas na vida. Mas ele sabia
que os Guardiões usavam botões para mudar o formato do alfanje.
O quão difícil poderia ser?
Eu só preciso alcançá-lo antes que o Ursa me veja. Ele lambeu
os lábios e os sentiu repentinamente secos. É só ir até lá.
Cade nunca fora um cara acostumado a fazer escolhas seguras.
Era um jogador. E até aquele momento, ele sempre vencera. Eu vou
vencer dessa vez também, garantiu-se ele. Olha só.
E foi pegar o alfanje.
Um fato engraçado... Mesmo depois de se fixarem em um alvo,
os Ursas eram conhecidos por atacar ameaças em potencial. E
neste caso, Cade era uma ameaça em potencial. Mas a fera nem
pareceu percebê-lo.
Nem quando ele pegou o alfanje, nem quando ele rolou, nem
mesmo quando ele se levantou novamente, já próximo da criatura.
Acontece que Cade estava errado sobre o controle da arma. Agora
que ele estava com ela na mão, não tinha ideia de como fazê-la
funcionar. Ele deixou o alfanje como estava, na forma de lança, e
mirou o ponto fraco do Ursa para dar uma estocada.
Mas o que Cade atingiu não era fraco. Era tão duro ao ponto de
aparar o ataque.
Urrando com raiva, o Ursa se virou para atacá-lo. Opa, pensou
ele. A bocarra da criatura estava cheia de sangue e entranhas
quando se abriu para mordê-lo.
Só que ela não se fechou. O Ursa ficou lá, parado, parecendo
confuso.
Cade recuou dois passos, mas os Guardiões atrás do Ursa
tiveram outra ideia. Eles atacaram a fera pelas costas. E, por sorte,
eles pareciam conhecer os pontos vulneráveis.
Nem todos os Guardiões acertaram o alvo, mas pelo menos um
deles o atingiu. Com um alfanje cravado nas costas, o monstro
recuou e urrou.
Cade não pensou; só reagiu, arremessando o alfanje com toda
força contra a criatura. Ele perfurou a garganta do Ursa... Ou pelo
menos o que parecia uma garganta. Ele não era cientista, não
saberia dizer com certeza.
O Ursa cambaleou um pouco e caiu sobre um contêiner, abrindo-
o e derrubando todo o conteúdo. Cade sabia que, se fosse atingido
pela fera enquanto ela se debatia, morreria. Sem dúvida. Mas ele
encostou as costas contra a parede o mais afastado possível e se
manteve longe do perigo.
Finalmente, o Ursa desabou no chão do galpão, com o cabo
prateado do alfanje de Cade ainda protuberante na garganta,
atravessado até o outro lado. Mas mesmo assim, ele ainda não
estava morto. Ainda se debateu por alguns segundos, que
pareceram demorar muito tempo. Finalmente, ficou imóvel.
Você tem que ir embora, pensou Cade consigo mesmo, apesar
da vontade de ficar e comemorar a vitória.
Apareceriam mais Guardiões no local. Ele precisava sair de lá
antes que eles chegassem.
Mas mesmo na ânsia de fugir, ele se perguntou o que impedira o
Ursa de matá-lo, o que o impedira, ao que parecia, de percebê-lo.
Pare de se perguntar isso e fuja! pensou ele, os instintos de
autopreservação vencendo a curiosidade.
E ele fugiu.
Mas não deu dois passos antes que uma Guardiã barrasse seu
caminho.
Ela apontou o alfanje para ele e ordenou:
— Parado. Você não vai a lugar algum.
CADE NUNCA ESTIVERA em uma cela de prisão antes. Ele não podia
dizer que gostava muito das acomodações.
Mas, por outro lado, sempre prezara a liberdade. Foi por esse
motivo, dentre outros, que ele sempre evitou empregos tradicionais,
horários tradicionais e até mesmo pessoas tradicionais. Mas a cela
dele; um pequeno espaço cinzento sem janelas, com uma cama
embutida na parede, uma pia e uma privada de cerâmica, era
praticamente o ápice da falta de liberdade.
É claro que ele não ficaria preso lá por muito tempo, até ser
julgado. Mesmo os contrabandistas do mercado negro tinham esse
direito. Não que isso fosse importar, no final das contas.
Afinal, eles me pegaram com componentes roubados. Só aquele
carregamento já custaria alguns anos de cadeia. E eles
provavelmente já tinham rastros das outras transações que Cade
realizara, ou nem sequer teriam ido atrás dele, para começar.
Tô ferrado, pensou ele, jogando-se na cama no exato momento
em que a porta da cela se abriu, revelando uma figura alta, de
ombros largos, parada no corredor. O cara, que estava com a
metade do rosto coberto por sombras, era um Guardião.
Mas ele não estava armado, não poderia ser a escolta de Cade
para o tribunal. Então quem...?
O homem entrou na cela e Cade conseguiu vê-lo melhor. Melhor
o bastante para se pergunta o que diabos estaria acontecendo.
Não era qualquer dia que o Comandante Rafe Velan dos
Guardiões visitava um humilde contrabandista do mercado negro.
— Bellamy — começou Velan, com a voz profunda e sonora. O
chamado ecoou pela cela.
— Ele mesmo — respondeu Cade, cauteloso.
Ele via Velan nos noticiários desde criança, ao que parecia. Era
como se conhecesse o cara. Mas havia um mundo inteiro de
diferenças entre os dois.
A mente de Cade estava acelerada. Velan não estava lá para
bater papo. Aposto que ele quer nomes. E acha que eu vou abrir o
bico só por que um comandante está perguntando.
Só que isso não funcionaria. Cade podia ser muitas coisas, mas
dedo-duro não era uma delas.
— Olha só — começou Cade —, obrigado pela visita e tal, mas...
— Eu vou ser bem breve — interrompeu Velan, sem cerimônia. —
Eu tenho uma proposta. Você pode optar por apodrecer aqui na
prisão pelos próximos oito anos, que são sua provável sentença, ou
pode fazer um favor à colônia.
Cade sorriu.
— Um favor...?
— Sim. Você pode nos ajudar a eliminar os Ursas.
Cade levou alguns segundos para entender por que Velan o
chamaria para tal tarefa. Mas, antes que ele prosseguisse, Cade
achou melhor explicar a história. Afinal, Velan descobriria mais cedo
ou mais tarde.
— Eu não tenho uma reputação exatamente honesta, mas eu
acho melhor eu contar que o que eu fiz lá no galpão...
— Foi uma exibição de um talento raro. Nossos psiquiatras
acreditam que você vive no limite há tanto tempo, se virando
sozinho, que passou a reagir ao perigo de uma forma diferente das
outras pessoas. O medo foi substituído por instinto de
sobrevivência. Por qualquer razão que seja, nós precisamos desse
talento se quisermos nos livrar dos Ursas.
— O que eu quero dizer — forçou Cade —, é que eu não sei
como fiz aquilo. Ou, melhor ainda, não sei como fazer de novo.
Velan deu de ombros.
— Nós acreditamos que a sua falta de medo permitiu que você
ficasse invisível ao Ursa, como um fantasma. É possível que tenha
sido um evento único, e é igualmente possível que, da próxima vez
que você encontrar um Ursa, ele te faça em pedacinhos. Mas
também é possível que você faça exatamente a mesma coisa, com
ou sem o conhecimento de como aconteceu.
— Você acha mesmo?
— Eu estaria aqui perdendo meu tempo se não achasse?
Cade pensou na proposta.
— Então é um tiro no escuro.
— No fim das contas, a questão é se você tem colhões para uma
pequena aposta.
Cade deu uma risada. Uma aposta?
— Agora você está falando a minha língua.
CADE MAL SE LEVANTARA da cama no alojamento dos cadetes quando
viu uma mulher olhando por cima dele. Uma mulher magra, com
pele escura e cabelos cor de cobre. Ele deduziu, pelo uniforme cor
de ferrugem e pela insígnia em seu ombro, que ela era a líder do
esquadrão. Líder do esquadrão dele, era o que parecia pelo jeito
que ela o olhava.
Ele se levantou. Era assim que os Guardiões faziam, não era?
Eles se levantavam sempre que um oficial superior entrava na sala.
—Você é Bellamy — declarou ela com uma voz dura. Não era
uma pergunta.
Ainda assim, ele respondeu:
— Sim, senhora.
— Eu sou Tolentino. Agora você é meu.
Cade não conseguiu deixar de rir brevemente.
— Alguma coisa engraçada? — perguntou ela.
Ele deu de ombros.
— Eu estava só pensando que este emprego pode acabar nem
sendo tão ruim, no fim das contas...
— Vista-se — ordenou a Guardiã, obviamente sem achar a
mínima graça. — Nós vamos treinar na ravina em doze minutos.
Passando pelo centro de comando, fica à sua esquerda. Se você se
atrasar, vai limpar botas pelo resto do dia. E fique sabendo que as
botas por aqui ficam bem fedidas. — Ela declarou esse fato com
gosto. — Aliás, a ravina fica a dez minutos daqui. Se eu fosse você,
começaria a me mexer.
Então, deixou Cade lá sentado.
Ela que se dane, pensou ele, vendo-a partir. Olhou para o
uniforme cuidadosamente dobrado na cama. Ela acha que eu vou
sair correndo só porque tem mais músculos do que eu?
Sério?
É claro, tinha também aquele probleminha de voltar para a
cadeia.
No fim das contas, não foi demorado colocar o uniforme e o par
de botas. Nem um pouco.
CADE ESTAVA DE PÉ na planície de terra vermelha, protegendo os
olhos dos sóis de Nova Prime e analisando a estrutura de metal que
servia de ponte sobre a ravina à frente. Era como um brinquedo de
quintal, um trepa-trepa, exceto pelo fato de que as barras eram
presas por força magnética e podiam se reconfigurar a qualquer
momento.
Como Cade aprendera momentos antes, elas podiam girar, virar,
subir ou descer. Podiam se juntar ou se separar. E não havia como
saber com antecedência qual posição elas assumiriam.
A ravina tinha dez metros de largura e seis metros de
profundidade, o que significava que uma queda seria bem dolorosa,
senão mortal. Para passar pelas barras e chegar ao outro lado,
Cade teria que se adaptar. Ele não estava preocupado. Havia se
adaptado durante toda a vida.
— Prontos? — perguntou Tolentino.
Ela levantou um pequeno controle remoto. Com ele, a Guardiã
podia parar o movimento das barras, caso a segurança exigisse.
Mas pelo que Cade ouvira sobre o exercício, a segurança nunca era
muito exigente.
— Pronto — respondeu Cade, com a voz perdida entre outras
seis que responderam ao mesmo tempo. Os outros cadetes
estavam alinhados dos dois lados dele, agachados para poderem
saltar melhor.
Afinal, os três primeiros a chegar poderiam assistir os outros
quatro tentarem uma segunda vez no calor crescente do deserto. E
os últimos dois do segundo grupo passariam a tarde limpando os
uniformes do resto. Por isso, havia um incentivo para se sair bem.
Não que Cade precisasse disso. Ele gostava de desafios. Sempre
gostou. E essa era uma oportunidade de mostrar aos cadetes que
ele era tão bom quanto eles, apesar de terem treinado por muito
mais tempo do que ele.
— Comecem! — gritou Tolentino.
Os sete cadetes saltaram como se fossem um só, disparando
pelos metros que os separavam da ravina. Cade só precisou de
alguns segundos para perceber que era mais rápido do que todos
os outros.
Afinal, ele passou a vida inteira correndo da Lei.
Quando se aproximou da ravina, Cade levantou o joelho e
aumentou a velocidade. Se ele não saísse do chão até ser
absolutamente necessário, minimizaria a quantidade de tempo gasto
com as barras.
Três, dois, um, pensou. Agora salta!
Como esperou até o último momento, Cade passou direto pela
primeira fileira de barras. Mas ao passar por elas e alcançar uma
barra na segunda fileira, ela girou totalmente, ficando na vertical. Ele
conseguiu se agarrar mesmo assim, mas ela escorregou por entre
seus dedos.
Não! pensou ele, enquanto caía na ravina.
Mas por sorte, havia outra camada de barras abaixo da primeira.
Esticando uma das mãos, Cade agarrou uma com a ponta dos
dedos. De alguma forma ele se segurou, forçando o ombro ao
pendular.
Seus companheiros cadetes, que foram mais conservadores ao
se aproximarem da ravina, fizeram sombra no sol ao passarem por
ele. Com raiva, Cade admitiu que ele tentara ser mais esperto do
que devia.
Conseguiu fazer força e se prender a uma barra no caminho
certo. Então começou a se balançar, passando pela ravina, com os
braços doloridos pelo esforço.
Mas ao se aproximar da parede da ravina, ele encarou o fato de
que ainda precisaria subir para a camada superior. O primeiro
impulso foi se balançar e tentar agarrar a barra com o pé, mas ele
não era nenhum trapezista. Então, outra tática lhe ocorreu.
Cade esperou até chegar à parede. Então, chutou com força,
acertou a superfície inclinada e se impulsionou de volta com o
máximo de força possível. O ângulo da parede e a força exercida
por ele o propeliram alto o suficiente para que agarrasse uma das
barras de cima.
De lá, ele se balançou para a frente e para trás, chegando ao
limite, e lutou para subir à beira da ravina.
Cade ficou de pé rapidamente e viu que alguns dos outros
cadetes já estavam correndo para a linha de chegada. Ignorando a
queimação nos braços e nas pernas, Cade disparou atrás deles.
Dois o venceram. Ele conseguiu vencer o terceiro por meio
passo.
Não venci... mas também não perdi, pensou Cade sozinho.
Quando o resto do bando chegou, Cade deu um suspiro profundo
apontou para os dois que o venceram e disse:
— Boa corrida.
Eles olharam na direção dele, mas não disseram nada. Cade se
perguntou por quê.
— Está tentando me fazer ficar mal? — perguntou alguém de trás
dele.
Cade se virou e viu a cadete que vencera por meio passo.
Ela tinha o cabelo loiro avermelhado e olhos amendoados. Na
verdade, eram os olhos mais bonitos que ele via em um bom tempo.
E uma cicatriz bem fina que corria do canto da boca até o queixo.
— Ericcson — apresentou-se ela, usando as costas da mão para
limpar o suor da testa. — Nava Ericcson.
— Cade...
— É, eu sei. O Fantasma em treinamento.
Ele sorriu.
— Parece que a minha reputação me precede.
Do outro lado da ravina, Tolentino chamou o nome dos três
primeiros colocados, Cade entre eles.
— O resto atravessará outra vez em cinco minutos — avisou ela.
Nava se virou para Cade.
— Então, você consegue mesmo?
— O quê? Desaparecer? — Ele deu de ombros. — Consegui uma
vez.
— Isso é mais do que todo mundo que eu conheço.
Os dois cadetes que terminaram antes deles passaram andando.
Não falaram nada. Só encararam Cade.
— Qual é o problema deles? — perguntou ele.
— Eles têm raiva de você — respondeu Nava.
— Raiva de mim? Por quê?
Eles tiveram pai e mãe para criá-los, pelo amor de Deus. Eles é
que tiveram uma vida boa.
— Eles queriam ser Guardiões desde que começaram a
engatinhar. Se dedicaram a essa ideia. Estudaram. Treinaram. E
tiveram que lidar com a ansiedade de saber que, apesar de todo o
esforço e treinamento, talvez não consiguissem.
— Mas você não teve que se preocupar com nada disso. Velan
só usou a varinha mágica dele e avançou você pelo treinamento de
Guardião. Pelo menos, é assim que eles veem.
— É assim que você vê?
— Eu nunca quis me juntar aos Guardiões pra ficar desfilando por
aí em um uniforme cor de abóbora madura. Eu quero enfrentar os
Ursas. Talvez até, nos meus sonhos mais loucos, acabar com a
ameaça deles de uma vez. E se você puder nos ajudar a fazer isso,
eu não dou a mínima pra como você veio parar aqui.
Se, pensou ele. Essa era a questão, não era?
NO CALOR DA TARDE, várias semanas depois, o esquadrão de Cade
precisou responder a um ataque de Ursa simulado.
A ideia era do primeiro-comandante Cypher Raige, segundo
Nava. Ele havia montado réplicas das ruas da cidade no deserto. Ou
era o que parecia. As construções eram reais, mas estavam vazias
e desabitadas.
Conforme o esquadrão as patrulhava, um construto mecânico
seria solto de algum lugar surpresa.
O construto era feito para ter a aparência de um Ursa, mover-se
como um Ursa e reagir aos ataques como um Ursa. Exceto, é claro,
pelo fato de cuspir tinta preta em vez de veneno e deixar marcas
vermelhas em vez de ferimentos ao atingir com as garras. Ele
também não comia as presas quando vencia o combate.
Tolentino liderou o esquadrão pela rua como fizera no passado.
Mas agora, Cade era parte dele. Ele havia se graduado no
programa de treinamento acelerado e era um dos oito Guardiões
movendo-se lenta e deliberadamente, quatro de um lado da rua,
quatro do outro, com os alfanjes na mão.
Cade observou as janelas dos dois lados, as portas, o
cruzamento à frente. Os outros estavam guardando a rua por trás.
Era assim que funcionava. Eles eram uma equipe.
Cade nunca dependera de outros para fazer o trabalho para ele,
mas estava cooperando. Afinal, ele não estava mais no mercado
negro. Agora era um Guardião, por mais incrível que parecesse.
E por sorte, ele foi o primeiro a ver a criatura. Ela estava no teto
do outro lado da rua, quase invisível de seu ângulo no chão. Mas ele
tinha anos de prática detectando Guardiões sorrateiros, e eles eram
muito menores do que aquele Ursa de mentira.
Exatamente como Cade fora instruído, ele tocou o navi-band no
braço para alertar os outros. Mas, ao fazê-lo, a criatura simulada
saltou. Um segundo depois, ela caiu no meio da rua.
Obediente, Cade esperou as ordens de Tolentino
— Cerquem ele — gritou a comandante. — Não o deixem fugir.
Procedimento padrão. Cade assumiu sua posição. Seus
companheiros de esquadrão assumiram as deles. A fera se
concentrou em um deles, um homem forte chamado Smithee, e foi
atrás dele.
Cade estava no lado oposto do círculo. Aproveitando a chance,
começou a correr. Ao se aproximar do construto, saltou nas costas
da criatura e cravou o alfanje no ponto fraco dela.
Ele viu o ponto se iluminar de vermelho antes mesmo de cair ao
chão. Construto morto, pensou ele. Missão cumprida.
Ao se levantar e limpar a poeira, ele se sentiu satisfeito. Nava
sorriu para ele e balançou a cabeça. Sem dúvidas, mais do que um
pouco impressionada.
Mas na verdade, foi bem fácil.
Mais fácil até do que subir nas costas do construto para retirar o
alfanje. Da primeira vez que tentou, ele caiu com o traseiro no chão.
Todos riram. Não tinha problema. Deixa eles rirem. Todo mundo
sabe quem matou o Ursa.
Ele tentou outra vez. Dessa vez, ele recuperou o alfanje. Depois
caiu com o traseiro no chão.
TOLENTINO NÃO DISSE nada a Cade sobre seu “abate”, enquanto
aguardava o transporte de volta para o alojamento. Mas quando o
transporte avermelhado apareceu no deserto, a líder do esquadrão
bateu no ombro e Cade e disse:
— Vem comigo.
Cade caminhou ao lado dela, sorrindo, satisfeito com o fato de ter
se sobressaído no primeiro dia. Sem dúvida, Tolentino queria
cumprimentá-lo pelo trabalho bem-feito.
E quem era ele para discutir? Eu tenho me matado de esforço. Eu
mereço reconhecimento.
Quando estavam a alguns metros do esquadrão, Tolentino parou
e se virou para ele.
— À vontade — ordenou ela.
Cade ficou à vontade.
— Você sabe por que eu separei você? — perguntou ela. —
Porque estamos aqui conversando longe dos outros?
Ele não queria parecer pouco modesto.
— Não, senhora.
— É porque estou desapontada com o seu desempenho.
Desapontada...? Ele levou alguns segundos para absorver a
palavra.
— Do que você tá falando? — perguntou ele. — Eu fiz tudo o que
você pediu de mim. Fiz melhor do que o resto do esquadrão.
O olhar de Tolentino era duro, impiedoso.
— Não pelo meu ponto de vista. Eu dei a ordem para cercar o
Ursa. Você desobedeceu esta ordem.
— Eu vi uma oportunidade — argumentou ele. — Tirei proveito
dela.
— E colocou o resto da sua equipe em perigo. Ninguém morreu
desta vez, mas, da próxima, não será um exercício. Vai ser real.
— Eu pensei que o objetivo de eu ser um Fantasma...
— Você ficou invisível — disse Tolentino. — Eu sei. Uma vez.
Mas nenhum de nós tem cem por cento de certeza de que você
poderá fazê-lo novamente. Certo?
Ele apertou os dentes, se recusando a dar a ela a satisfação da
resposta.
Os olhos dela se apertaram.
— Eu fiz uma pergunta, Guardião.
Droga.
— Certo.
— E até nós termos certeza de que você pode fazer coisas que o
resto de nós não pode, vamos nos concentrar em ensinar a você a
fazer as coisas que nós podemos, como nos manter vivos e garantir
que o resto da equipe faça o mesmo.
Cade ressentiu a ressalva. O trabalho dele era se preocupar com
os companheiros do esquadrão ou matar o construto?
— E, por falar nisso — Tolentino adicionou —, quando você deu
uma de idiota tentando recuperar o seu alfanje... seus companheiros
de esquadrão não estavam rindo com você. Eles estavam rindo de
você.
Essa doeu. Sem dúvidas, essa foi a intenção dela. Cade queria
machucá-la de volta, mas não podia. Não se quisesse ficar fora da
cadeia.
— Entendido? — perguntou Tolentino.
Ele assentiu friamente.
— Entendido.
— Entendido, o quê?
— Entendido, senhora.
— É melhor entender mesmo — disse ela. — Porque eu não vou
liberar você para trabalho de campo até você entender.
SE O PRIMEIRO DIA de Cade fora ruim, o segundo foi pior ainda.
Tolentino o colocou em uma rotina torturante depois de outra,
fazendo-o enfrentar seus companheiros de esquadrão sozinhos e
em pares. A velocidade e agilidade dele eram incomparáveis, então
não houve problema em corresponder fisicamente. Mas quando o
problema era estratégia e trabalho em equipe, estava claro que
ainda tinha muito a aprender.
Até para ele.
Em um dos exercícios, Tolentino desenhou um círculo no chão
com o alfanje. Então, os guardiões precisavam se manter dentro
dele, usando os próprios alfanjes como bastões para expulsar os
oponentes do círculo. Eles recebiam proteções para a cabeça, os
tornozelos e as mãos, mas não o suficiente para impedir que uma
pancada forte tirasse algum sangue.
Na primeira rodada, Cade venceu uma mulher loira chamada
Bentzen, dando uma rasteira nela. Na segunda rodada, ele bateu
com a ponta do alfanje no peito de um cara chamado Zabaldo.
Isso o colocou na rodada final. Ele teria que enfrentar Kayembe,
um cara monstruoso com musculatura de halterofilista e coxas do
tamanho do tronco de Cade. Kayembe chegou à final vencendo
Tolentino na segunda rodada, o que significava que ele não era só
grande, mas também era habilidoso.
Kayembe sorriu quando Cade entrou no círculo.
— Parece que agora somos só nós dois, Fantasma.
— Descobriu isso sozinho? — zombou Cade.
O sorriso do oponente sumiu.
— Eu ia pegar leve com você. Agora... — A voz dele foi sumindo
sugestivamente.
— Não me faça favores.
— O comandante Velan fez o favor pra você — respondeu
Kayembe. — Agora cabe a mim mostrar como ele estava errado.
— Como se você fosse capaz — zombou Cade.
Se ele nunca havia dado para trás nos becos escuros de Nova
Prime, não fugiria de um brutamontes idiota como Kayembe. Nem
considerando o fato de que ele era um dos maiores seres humanos
que Cade já vira.
Tolentino levantou a mão entre os dois.
— Prontos?
Os dois disseram “pronto” ao mesmo tempo.
— Começar — gritou Tolentino, baixando a mão.
Kayembe começou atacando os pés de Cade. Nada mal, pensou
Cade. Mesmo se conseguisse não cair no chão, ficaria
desequilibrado.
A não ser, é claro, que Cade tivesse prestado atenção quando
Kayembe tentou a mesma estratégia de abertura com Nava, com
sucesso. Antecipando, Cade saltou alto o suficiente para evitar o
golpe, mas não tão alto quanto Kayembe esperava.
Então, plantou a ponta da arma no chão e, usando-a como uma
vara de salto, chutou a cara de Kayembe.
O grandalhão tonteou, mas não chegou a sair do círculo. Por
isso, Cade se abaixou, enfiou o alfanje entre as pernas dele e
empurrou. Já desequilibrado, o adversário de Cade não conseguiu
ficar de pé. Kayembe desabou como uma árvore, levantando poeira
onde caiu.
Mas não ficou caído por muito tempo. Em um segundo, ele
estava de pé de novo, tentando agarrar a garganta de Cade. Foram
necessários dois membros do esquadrão mais Nava para impedir
Kayembe e parecia que nem isso seria o suficiente até a
intervenção de Tolentino.
— Seeeentido! — gritou ela.
O esquadrão entrou em sentido, apesar de Kayembe ainda
encarar Cade com fúria assassina.
Tolentino olhou para Cade, depois Kayembe, depois Cade
novamente.
— Kayembe — disse ela —, eu preciso lembrá-lo da punição para
um Guardião que ataca seu companheiro de esquadrão?
Kayembe torceu a boca.
— Não, senhora.
— Ótimo. — O olhar dela endureceu. — Não que eu o culpe por
completo. Eu disse claramente que ninguém deveria acertar o
oponente senão com o alfanje. Você me ouviu dizer isso, Zabaldo?
— Sim, senhora — respondeu ele.
— E quanto a você, Ericcson?
— Sim, senhora — respondeu Nava.
— Ainda assim, Bellamy parece não ter ouvido essa instrução.
Uma pena. Isso vai custar a ele o campeonato de nosso pequeno
torneio... e algumas horas de sua tarde livre, que ele gastará
lavando as roupas de todos.
Cade ia protestar. Afinal, os Ursas não ligavam para regras. Por
que eu deveria?
Mas no fim, ele achou melhor ficar quieto. Não mudaria a ideia de
Tolentino, então de que serviria?
MAIS TARDE, Cade estava sozinho no refeitório. Afinal, ninguém mais
passara duas horas lavando as roupas do esquadrão.
Estava dando a primeira garfada na refeição quando alguém
entrou. Olhando por cima do ombro, ele viu que era Nava.
— Se importa se eu fizer companhia? — perguntou ela.
— Espero que você goste do cheiro de sabão em pó —
respondeu ele, feliz pela companhia, apesar de não admitir.
Nava sentou-se à mesa, na cadeira em frente a ele.
— O que você fez hoje de manhã foi muito criativo.
Cade deu de ombros.
— Tolentino não pareceu concordar com você.
— Bem ela disse que o contato corpo a corpo era proibido.
— Não é assim que funciona no mundo real. — Cade gesticulou
apontando o refeitório inteiro. — Só funciona assim nesse mundo.
— Mas é nesse mundo que você está treinando. E se nós
atacarmos uns aos outros aqui, não vai sobrar ninguém pra proteger
a colônia.
— O problema é que eu vim de um lugar diferente, só isso. Você
mesma disse. Eu não sonhei em ser um Guardião a vida toda.
Nava assentiu.
— Eu ouvi dizer que você esteve envolvido com o mercado
negro.
— Bem, eu tinha que me envolver com alguma coisa. Eu
precisava sobreviver.
— E a sua família? Eles concordavam com isso?
— Eu não tenho família. Minha mãe morreu quando eu tinha
cinco anos. Meu pai... nunca conheci.
A expressão de Nava ficou triste.
— Como você viveu depois disso?
— Depois da morte da minha mãe, eu comecei a fazer pequenos
trabalhos. Uns caras me pagavam pra levar mensagens pra eles.
Devem ter concluído que os Guardiões não prenderiam uma
criança. Quanto mais velho eu ficava, mais coisas eu passava a
fazer. Daí as coisas evoluíram.
— Deve ter sido difícil.
— Bom, eu nunca vi dessa forma. Quer dizer, nunca tive nada
com que comparar. Sempre pensei que todo mundo tinha que cuidar
de si mesmo, que não era só eu.
— Ninguém nunca te ajudava? Nunca? — Nava parecia
incrédula.
— As pessoas me ajudavam de vez em quando, claro, mas
sempre com segundas intenções. Na verdade, estavam tentando
tirar proveito. E, se eu confiasse nelas, se fizesse as coisas que elas
sugeriam... digamos que eu não teria durado muito tempo.
— Agora você é um Guardião. Pode deixar isso tudo pra trás.
Cade balançou a cabeça.
— Não é tão fácil assim. Eu não estou acostumado a confiar nas
pessoas, em fazer o que elas dizem só porque têm uma patente de
oficial no ombro.
— Então seguir ordens não é o seu forte — concluiu Nava.
Ele deu uma risada.
— Como se você não tivesse chegado a essa conclusão sozinha.
— As pessoas mudam, Cade.
— Nem todas.
Ela colocou a mão sobre a mão dele por um breve momento.
— Nós precisamos muito de você, do seu talento, pra deixar que
você fale desse jeito. Você é uma dádiva. E nós faremos tudo que
pudermos para mantê-lo aqui.
Ele olhou Nava nos olhos. Por mais que quisesse confiar nela, ele
não podia deixar de se perguntar se ela também não estaria
tentando tirar alguma vantagem.
— Ninguém nunca me chamou de dádiva antes.
Nava sorriu.
— Tem uma primeira vez pra tudo.
NO QUINTO DIA de treinamento de Cade, ele se meteu em confusão
com Kayembe novamente. Não era como se ele quisesse provocar
o cara. Simplesmente aconteceu.
O esquadrão estava fazendo manobras no alto da serra de São
Francisco. Afinal, os Ursas gostavam de se entocar em locais
remotos, especialmente nas montanhas. E quando isso acontecia,
cabia aos Guardiões expulsá-los.
Cade e Kayembe agiam em dupla, esquadrinhando um cânion
alto, indo do sol para a sombra várias vezes. Eles deveriam se
encontrar com o resto do grupo em um ponto específico.
A não ser que encontrassem algo. Mas não encontrariam. Era só
uma manobra. Uma caminhada, no fim das contas. Só para que
soubessem se posicionar caso tivessem que caçar um Ursa algum
dia.
Kayembe não falava. Pelo menos não com Cade. Se o
grandalhão estivesse em dupla com outra pessoa, seria diferente.
Mas ele não tinha nada a dizer a Cade.
Após mais ou menos vinte quilômetros, Cade percebeu algo
brilhante na parede do cânion. Apertando os olhos, ele viu que era
uma placa. Aqui? No meio das montanhas?
Ele se aproximou para ver melhor e forçou os olhos. “Em
comemoração à vitória de Conner Raige sobre o Ursa conhecido
como Talho”, dizia a placa.
— Quem é Conner Raige? — perguntou ele a Kayembe.
O grandalhão olhou para ele com os olhos apertados.
— Primeiro-comandante. Faz muito tempo. Continue andando.
Mas Cade ainda não estava pronto. Ele olhou para o cenário
montanhoso avermelhado, tentando imaginar alguém, algum Raige,
enfrentando um Ursa nos confins apertados do cânion.
— Eu disse pra continuar andando — insistiu Kayembe.
Cade ignorou o parceiro. Afinal, isso era coisa de Guardião.
História de Guardião. Talvez se ele soubesse mais sobre isso, sobre
Conner Raige, ele conseguiria entender o que estava faltando para
ele.
— Deve ter sido importante — pensou alto —, se o cara ganhou
uma placa por matar um....
De repente, Cade percebeu um ponto de luz vermelha no peito de
Kayembe. No mesmo instante, o homem xingou e apontou para
Cade. Seguindo o gesto, Cade percebeu que havia uma luz
vermelha no peito dele também.
— Mas que droga é essa...? — perguntou ele.
Kayembe soltou um xingamento, com os olhos cheios de ódio.
— Nós fomos marcados, seu idiota!
— Marcados? — perguntou Cade.
Ele não tinha ideia do que o parceiro estava falando. Mas a
expressão de Kayembe dizia que não era coisa boa.
FOI TOLENTINO que os marcou, no fim das contas, com um raio laser
de um ponto de observação no alto da montanha. Aparentemente,
Guardiões não deveriam parar para ler placas.
— Se você perder a concentração, você morre — disse Tolentino
a Cade e a Kayembe depois, quando o esquadrão foi reunido. —
Como vocês se sentem estando mortos, cavalheiros?
A penalidade? Uma corrida de duas horas no deserto na manhã
seguinte. Mochilas cheias, sem parar, nem mesmo para beber água.
Cade não estava nada feliz com a situação. Kayembe muito menos.
Quando retornaram ao alojamento, os outros estavam esperando
por eles com sorrisos no rosto e deboches na ponta da língua. Eles
pareciam achar engraçado. Apesar de toda a dor daquela manhã,
Cade poderia até achar alguma graça na situação.
Mas Kayembe não. Apontando o dedo para Cade, ele rosnou:
— Eu não dou a mínima se você é fantasma ou não. Eu prefiro
ter outra pessoa, qualquer pessoa, guardando a minha retaguarda
do que um fracassado como você.
Cade sentiu os olhos dos outros sobre ele. Eles não disseram
nada, mas nem precisavam. Pensavam o mesmo que Kayembe.
Um fracassado.
Doeu. Mais até do que Cade queria admitir, até para ele mesmo.
Afinal, ele queria mostrar a todos que poderia ser um Guardião
também. Mas não diria nada em defesa própria.
Por que deveria? Todos já o tinham julgado desde o começo.
Inclusive Tolentino.
Eu sou um fracassado? pensou ele, encarando Kayembe de
volta. Você que se dane então.
Mas ele não disse em voz alta. Não tendo tanto a perder. Só
manteve a boca fechada e saiu.
ESTAVA CHOVENDO quando Cade chegou a certo bar na rua
d’Agostino.
Ele ficou do outro lado da rua, com as mãos no bolso da jaqueta
e a gola levantada para se proteger do frio. Cade conseguia ver uma
luz laranja pela janela suja, conseguia até sentir a música vibrando
nos ossos, ao se concentrar.
O lugar se chamava Regina’s. Ninguém sabia o porquê. Se
pertenceu a uma mulher chamada Regina algum dia, todos já
esqueceram há muito tempo.
Cade se lembrou da primeira vez que entrou lá. Ele tinha 12
anos. Entrara com os caras para os quais ele trabalhava e que eram
frequentadores do lugar. Ninguém perguntou o que ele estava
fazendo lá, nem mesmo quando pediu um drinque que obviamente
não conseguiria tomar, ou quando tiveram que jogá-lo em uma cama
improvisada nos fundos porque tinha desmaiado.
Ele pensou ter ouvido uma gargalhada do outro lado da rua,
abafada pelas paredes e pela distância. Pelo que ele se lembrava,
as pessoas não precisavam de muito para gargalharem no Regina’s.
Qualquer coisa ali ficava engraçada.
É claro, as coisas podiam ter mudado desde que ele esteve lá
pela última vez. Mas ele duvidava. Passaram-se apenas algumas
semanas. Foi na noite anterior à da captura dele pelos Guardiões.
Cade conhecia todo mundo no Regina’s, cada rosto por lá. Teve
bons momentos com eles. E queria tê-los novamente.
Mas não fizera a viagem só para entrar na festa. Ele recebeu um
pedido em seu comunicador pessoal de um amigo não identificado.
Só que ele sabia, pelas palavras escolhidas, exatamente quem era
o amigo. A única coisa que ele não sabia era por que o amigo queria
encontrar-se com ele no Regina’s.
Mas saberia em breve.
O Regina’s estava exatamente como Cade se lembrava:
barulhento e lotado, fedendo a álcool e suor, com um perfume doce
que ele nunca conseguira identificar. Ele encontrou Andropov
sentado a uma mesa nos fundos, flanqueado por dois capangas.
Novos, é claro, para substituir os que Andropov perdera na batida
do galpão.
— Estou feliz que tenha conseguido vir, meu amigo — disse
Andropov. Ele se levantou e estendeu a mão, que era grande e
massuda.
Cade a apertou.
— Gostaria de dizer que foi fácil. Os Guardiões estão em toda
parte. — Apesar de Velan não ter imposto restrições formais a
Cade, ele provavelmente não gostaria da ideia de ele visitar um de
seus antigos refúgios.
Ele se sentou de frente para seu mentor. Andropov parecia o
mesmo. Afinal, ele tinha escapado naquele dia, no galpão. Não
precisara correr no deserto com uma mochila cheia.
— Quer beber? — perguntou Andropov.
Cade balançou a cabeça.
— Não, obrigado. — A última coisa que ele precisava era retornar
ao alojamento com bafo de álcool.
Andropov grunhiu.
— Você não está chateado comigo por ter escapado dos
Guardiões sem você, não é?
Cade balançou a cabeça.
— Não mesmo. Ali era cada um por si.
— Fico feliz que entenda.
— Você disse que precisava discutir alguma coisa comigo.
Andropov assentiu.
— Isso mesmo. Eu descobri uma coisa. Você sabe que eu tenho
contatos nos tribunais.
Cade sabia, com certeza. Quando era um garoto, ele fazia
entregas para pessoas. Uma delas era um secretário de um tribunal.
— São boas notícias — prosseguiu Andropov. Ele colocou os
cotovelos na mesa e se inclinou para a frente. — Daqui a uma
semana, as acusações contra você serão arquivadas.
Arquivadas? pensou Cade.
— Você parece surpreso — comentou Andropov. — Eu também
estou. Achei que você precisaria provar seu valor como Guardião
primeiro. Mas seus superiores parecem ser muito confiantes. Eles
fizeram uma petição à corte que limpasse sua ficha no dia em que
você se juntou a eles.
Arquivadas, repetiu Cade internamente.
— Então você não precisa ficar com eles — explicou Andropov.
— Você pode ir embora daqui a uma semana, livre e limpo. O que
nos traz à minha proposta...
Andropov descreveu uma entrega para a qual ele precisava de
comprador. Mas Cade não estava escutando os detalhes. Tudo o
que pensava era que poderia deixar os Guardiões em uma semana.
Isso seria bom demais.
— O que você acha? — perguntou Andropov.
— Pode contar comigo — respondeu Cade. Afinal, ele precisaria
de créditos ao sair.
— Excelente — exclamou Andropov. — Você deu muita sorte,
meu amigo. Eu acho que pode voltar a ter sorte novamente.
Talvez o homem estivesse certo. Talvez minha sorte esteja
voltando.
CADE RETORNOU ao alojamento uma hora e meia depois de ter saído,
eletrizado com a possibilidade de ter a antiga vida de volta. Quem
precisa dos Guardiões?, ele se perguntou.
Os Guardiões pegaram no pé de Cade desde que ele chegou.
Especialmente Tolentino. Ele viu isso acontecer na ravina no
primeiro dia. Viu acontecer de novo quando ele desabilitou o
construto. Viu quando ele derrotou Kayembe no torneio e
novamente em São Francisco quando ele olhou a placa.
Eles não lhe deram nenhum sossego. E Cade aturou todo o
abuso dos Guardiões porque não queria ir para a prisão. Mas, em
breve, não precisaria se preocupar com nada disso.
Cade se imaginou caminhando até Tolentino e enfiando o
uniforme na cara dela. Talvez até dando uma lição em Kayembe
antes de ir embora. É isso aí. Ele faria isso tudo e mais.
Estava pensando nisso, com toda a força, quando ouviu gritos
dentro do alojamento. Uma das vozes era de Nava.
Um Guardião de verdade provavelmente teria entrado no
alojamento sem pensar duas vezes. Mas Cade não era um
Guardião de verdade. Ele era um menino de rua, no fundo. Um
criminoso. Por isso, não entrou. Caminhou até um local onde as
paredes de tecido do alojamento se encostavam e olhou para
dentro.
Bem na hora em que viu Nava chutar o alfanje de Kayembe, que
estava apoiado na cama dele, e voou até a metade do alojamento.
Kayembe olhou furioso para ela.
— Você tá maluca?
— Dá um tempo! — gritou Nava. Ela se virou para Zabaldo. —
Você também.
— Eu não disse nada pra ele — protestou Zabaldo.
— Esse é o problema. É como se ele não existisse.
— E o que você tem a ver com isso? — perguntou Bentzen.
— Ele é um Guardião — respondeu Nava.
Kayembe riu sarcasticamente.
— Não um Guardião de verdade.
Eles estão falando de mim, concluiu Cade.
— Quem disse? — perguntou Nava. Você?
— Ele não merece estar aqui — respondeu Kayembe. — Você
sabe disso.
— Desde quando você é responsável por decidir quem merece o
quê?
Kayembe apontou o dedo para o próprio peito.
— Eu passei pelo processo de seleção. Dei um duro desgraçado.
— Ele olhou ao redor. — Todos nós demos.
— Isso é ótimo — respondeu Nava. — E por que você fez isso?
Kayembe ficou confuso.
— Pra me tornar um Guardião.
— Pra combater os Ursas — declarou Bentzen, que parecia estar
entendendo um pouco melhor onde Nava estava querendo chegar.
— Pra combater os Ursas? Bom — disse Nava —, isso é uma
coincidência. Porque é por isso que Bellamy está aqui também. Ele
quer combater os Ursas tanto quanto todos nós. Ele quer fazer a
diferença. E quem somos nós para dizer que ele não pode?
“Especialmente se ele for mesmo um Fantasma. Vocês sabem o
que isso quer dizer pra nós? Quantos Ursas nós conseguiremos
matar com um cara desses? Ou vocês gostam de perder
companheiros e não poder fazer nada quanto a isso?”
Isso pareceu calá-los.
— Se estiverem certos sobre Cade — prosseguiu Nava —, os
Ursas não podem vê-lo. Mas nós podemos. Então parem de fingir
que ele não está aqui, porque ele é um de nós. Um de nós.
Ninguém reclamou. Não por terem passado a respeitar Cade,
porque, até onde ele sabia, ninguém ali tinha respeito nenhum por
ele. Era pelo que eles pensavam de Nava.
E pelo que Nava pensava sobre ele.
Cade ficou comovido. Ninguém nunca o defendera na vida antes.
Mas e se a invisibilidade tivesse sido só um golpe de sorte? Um
evento único, como Velan dissera? E se ele não fizesse a diferença
como Nava esperava?
Será que ela lutaria por ele assim mesmo?
NAQUELA NOITE, o esquadrão de Cade foi designado para um trabalho
de controle de multidões na Arena do Lado Leste, um enorme
anfiteatro branco a céu aberto.
O evento era um espetáculo para as crianças que perderam os
entes queridos para os Ursas. Cade nunca ouvira falar nas bandas,
mas eram barulhentas e empolgadas, perfeitas para a plateia, a
julgar pelos aplausos.
Cade e Nava estavam posicionados na passarela curva logo
atrás dos assentos mais elevados. Nos primórdios da Arena, dois
espectadores baderneiros pularam a grade e tentaram escalar a
fachada da estrutura, e acabaram caindo e morrendo. Desde então,
passou a ser tarefa dos Guardiões vigiar a passarela.
Nava sorriu.
— Se eu soubesse que os Guardiões ficavam aqui, eu teria me
alistado mais cedo.
— Nós não estamos aqui pra curtir a música — lembrou Cade.
Tolentino o deixara paranoico. Cade tinha certeza de que se ele
de desconcentrasse por um segundo, ela ficaria sabendo.
Nava deu de ombros.
— Quem liga pra música?
— Então do que você tá falando? — perguntou Cade.
Nava olhou ao redor.
— A maneira como esse lugar se acende à noite. O cheiro do ar,
como um tipo de perfume. É muito bom.
Ele olhou desconfiado para ela.
— É mesmo?
— É, sim. E é ainda melhor ficar aqui em cima do que lá em
baixo.
— Se você está dizendo... — concordou ele.
De repente, ele percebeu que os olhos dela estavam presos aos
dele. E mais, ele viu que estava difícil olhar para outro lugar.
Cade achou Nava bonita no momento em que a viu. Mas agora
que a via sob a luz das estrelas, ela parecia absolutamente linda. E,
de alguma forma, a cicatriz ainda a deixava mais bonita.
Antes que percebesse, ela estava se inclinando na direção dele,
com a boca indo de encontro a dele.
— Não — disse ele, de repente, para a própria surpresa. Eu
estou louco? Uma garota linda tentando me beijar e eu recusando?
Ainda assim, ele não podia fazê-lo. Nava pensava que ele seria
um Guardião pelo resto da vida e não era verdade. Em breve, ele
estaria fora dos Guardiões, fazendo o que ele sabia fazer, no
mercado negro.
Ela era a única pessoa em toda a sua vida que o defendeu. Ele
não podia deixá-la se magoar.
— Por que não? — perguntou Nava. — Não tem ninguém
olhando.
— Porque nós somos Guardiões — respondeu ele, mentindo
descaradamente.
— E Guardiões não podem ter relacionamentos amorosos? —
Ela fez uma careta. — Isso é alguma regra? Porque, se for, eu
nunca ouvi falar.
— Eu não sei se é uma regra, mas continua sendo uma péssima
ideia. — A cabeça dele estava a mil. — E se nós acabarmos tendo
que enfrentar um Ursa, um do lado do outro? Como você vai poder
sobreviver se estiver preocupada comigo? Como eu vou sobreviver
se estiver preocupado com você?
— Eu vou me preocupar com você de um jeito ou de outro. Você
é um membro do meu esquadrão.
— Eu quero dizer eu em especial. Já existem milhões de coisas
pra se pensar lá fora. Você não quer adicionar mais uma.
Nava deu de ombros.
— Então eu vou pedir transferência para outro esquadrão.
— Esquadrões trabalham juntos o tempo todo. Eles acabam se
misturando. Nós não podemos nos arriscar.
— Você não acha que isso é idiotice? — perguntou ela. — Eu
nunca conheci ninguém como você.
Cade só conseguia ver uma parte do rosto de Nava, mas ela
parecia estar sofrendo.
— Já é difícil demais fazer isso — declarou ele. — Não deixe
ainda mais difícil.
Nava olhou para ele por um momento.
—Tudo bem — disse ela, apenas com um pequeno resquício de
amargura na voz, e se afastou. — Se é assim que você quer.
Não era. Mas ele não queria colocar Nava em uma posição que a
machucasse. Qualquer pessoa, menos ela.
COM O PASSAR DOS DIAS, Cade teve cada vez mais certeza de que
fizera a coisa certa na passarela.
Nava não falava muito com ele, mas estava tudo bem. Era melhor
que fosse assim.
Passou pela cabeça dele que eles poderiam ficar juntos quando
ele saísse dos Guardiões, mas ele achava que ela não gostaria
disso. Ela era uma Guardiã. Ele ia voltar para o mercado negro. Não
era exatamente a combinação perfeita, não é?
Enquanto isso, algo engraçado aconteceu. Quanto menos Cade
se importava em impressionar Tolentino e os outros, melhor ele
parecia fazer o trabalho. Ao menos, era o que todos pensavam. E
quanto mais ele fazia o trabalho, mais era aceito.
Até por Kayembe. Pelo menos um pouquinho.
Quem diria, pensou Cade.
Então, um dia antes das acusações contra Cade supostamente
serem arquivadas, ele e seus colegas receberam notícias de
Tolentino. Eles participariam de uma caçada a um Ursa, a primeira
de Cade. Para sua própria surpresa, ele estava empolgado com a
ideia. Ele teria a chance de ficar invisível novamente.
Ou quebrar a cara.
Ao menos ele saberia.
Eles foram transportados por mag-lev para a Cidade Antiga, o
local original a partir de onde a cidade de Nova Prime cresceu. A
Cidade Antiga, pelo que Cade se lembrava, era um lugar cheio de
ruas estreitas e becos, lugares ideais para um Ursa se esconder.
Ao chegar lá, ele se deu conta de que as ruas eram ainda mais
estreitas do que ele se lembrava. Não era uma melhoria do ponto de
vista estratégico. Os Guardiões sempre se saíam melhor quando
podiam cercar as feras.
Ainda assim, Tolentino colocou a metade deles de um lado da rua
e a outra metade do outro. Eles paravam em cada cruzamento,
sabendo que qualquer Ursa que encontrassem provavelmente
estaria camuflado, mas acabaria denunciando a própria presença
pelas pegadas na terra vermelha. Quando não viam nada,
prosseguiam.
De repente, o monstro apareceu. Parecia ter vindo de lugar
nenhum, uma massa sinuosa com seis patas, pele branca com
traços azulados de metal inteligente e uma enorme bocarra com
dentes afiados.
Tolentino deu uma ordem para que Kayembe e Bentzen
atacassem a criatura por lados diferentes. Cade percebeu que o
Ursa ficou confuso, sem saber em qual alvo se fixar primeiro.
Então, ele fez a escolha: Kayembe. O monstro deu uma patada
na direção do Guardião, quase o acertando. Mas ele conseguiu
recuar a tempo. Vendo que a criatura escolhera sua presa, os outros
Guardiões sabiam que precisavam distraí-la ou Kayembe seria
rapidamente retalhado.
Zabaldo foi o primeiro a dar um golpe com força na criatura. Nava
foi em seguida. Cade se pegou observando cada movimento dela e
se forçou a focar em outra coisa. Concentração, repreendeu-se ele.
A cada ataque dos Guardiões, a criatura se virava e rosnava, mas
não ia atrás do atormentador. Após ter se fixado em Kayembe, ela
não iria atrás de mais ninguém até ter feito o grandalhão em
pedacinhos.
Cade sabia que em breve iria embora. Não precisava arriscar a
própria vida para salvar Kayembe. Mas se ficasse para trás, talvez
nunca descobrisse se era um Fantasma de verdade.
Será que essa descoberta valia o risco? É claro que não. Mas ele
faria mesmo assim. Só precisava ficar com o alfanje preparado. Se
parecesse que o Ursa iria atacá-lo, ele poderia se defender.
Era arriscado? Com certeza. Mas Cade era um jogador. Ele
gostava da ideia de se arriscar. Tudo o que precisava fazer era ficar
entre Kayembe e a criatura, onde ela o perceberia como um
obstáculo, se conseguisse percebê-lo, e tentaria removê-lo com a
sutileza que só os Ursas tinham.
Lá vamos nós, pensou ele, deixando que os outros continuassem
a lutar enquanto passava correndo por Kayembe e se posicionava
atrás dele. Era lá que Tolentino ordenara que ele ficasse em um
combate. “Atrás de quem quer que seja fixado pelo Ursa”, disse ela.
Esse Ursa era consideravelmente maior do que a criatura que
Cade encontrou no galpão. Maior e mais rápido.
Cade se lembrou do modo como o outro Ursa passou por ele
como se nem estivesse lá. Naquele momento, ele não entendera o
que estava acontecendo. Mas desta vez, ele sabia exatamente.
E se o que aconteceu no galpão fosse apenas um golpe de
sorte? E se ele só pudesse se esconder do primeiro Ursa que o
encontrasse?
Se for o caso, Kayembe não será a única baixa do dia.
Quando o grandalhão passou direto por Cade, O Ursa o seguiu. E
Cade ficou lá parado, contando com a sorte que sempre o ajudou a
superar as situações, por piores que fossem.
A criatura abriu a bocarra e urrou. Cade pôde ver os dentes,
formando um círculo afiado e mortal. Ele sentiu o bafo da criatura,
podre com restos humanos digeridos.
Ele esperou até ter certeza de que a criatura não tentaria
arrebentá-lo com as garras ou cuspir o veneno. Então, esperou
mais. Mas o Ursa não foi atrás dele.
No último segundo, Cade se jogou para longe do perigo e a
criatura passou direto.
Eu sou invisível pra ele!, pensou. Sou completamente invisível!
Mas Kayembe ainda estava em perigo. Nava e Bentzen ficaram
perto do Ursa, tentando retardá-lo para dar uma chance a Kayembe.
Mas só havia um cara que poderia salvar o grandalhão, e era Cade.
O Fantasma.
Ele não devia nada a Kayembe. Mas devia algo a si mesmo. Ele
devia a si mesmo o olhar no rosto dos companheiros quando vissem
o que ele podia fazer, e talvez eles se arrependessem da maneira
que o trataram.
Ainda não era um especialista com o alfanje, mas já era bom o
suficiente. O Ursa tinha dois pontos fracos. Um deles era por baixo,
um alvo grande, mas difícil de atingir. O outro era nas costas.
Com isso em mente, Cade configurou o alfanje em forma de
lança, começou a correr e saltou nas costas da fera. Então, antes
que a criatura pudesse derrubá-lo, ele encravou a ponta da arma no
ponto fraco do Ursa.
Ou, pelo menos, o que ele pensou ser o ponto fraco.
Era difícil de mirar com a criatura se movendo tão rápido e difícil
de saber se acertara o lugar certo. Mas a sorte dele se manteve. A
lança não acertou o metal inteligente.
Ela se cravou meio metro, o máximo que ele poderia esperar.
Então o Ursa o derrubou.
Mas não importava. Quando Cade parou de rolar, ele viu a
criatura começando a cambalear, com seu alfanje enfiado nas
costas como um palito de dentes em um canapé deformado.
Caia, pensou ele.
A criatura caiu. E tremeu. Depois, parou completamente de se
mover.
Cade sorriu ao se levantar. E continuou sorrindo enquanto
escalava as costas do Ursa para arrancar o alfanje. A arma se
soltou com um barulho de carne sendo cortada.
Ele limpou o sangue no pelego escuro e desgrenhado da criatura
morta. Então, desceu e retornou a arma ao formato cilíndrico
indefinido.
A sorte está ao meu lado novamente, pensou ele. Ele podia ser
qualquer coisa que quisesse. Podia até ficar parado na frente de um
Ursa e sair sem um arranhão.
Cade ficou de frente para o monstro e bateu no peito com o
punho. Quem é o cara agora?
E a ironia era que ele não havia quebrado sequer uma única
regra. Ele fez exatamente o que Tolentino pediu que ele fizesse.
Mas no momento em que ele comemorava a vitória, viu que os
companheiros Guardiões estavam aglomerados mais além, na rua.
Por quê? se perguntou ele. O Ursa está aqui.
Então, ele viu que alguém estava deitado no chão e correu para
se juntar ao grupo. Não foi Kayembe, pensou ele. Cade se
certificara de que a criatura não o alcançasse.
Então quem...?
Ele não a viu até se juntar ao grupo de Guardiões. Só então viu
que era Nava estirada no chão. Ela estava deitada, com o rosto para
cima, com os olhos fechados e um braço dobrado atrás das costas.
Atingida por uma das garras erráticas do Ursa moribundo.
Não...
Os joelhos de Cade perderam a força. O alfanje rolou de sua
mão. Ele abriu caminho entre os outros e caiu de joelhos ao lado
dela.
— Nava? — gemeu ele.
Havia sangue no rosto dela. Muito sangue. Ele a segurou pelos
ombros e a balançou.
— Nava!
Alguém o puxou para trás, mas ele se livrou e voltou para o lado
dela. Bentzen passou um mag-scan por todo o corpo da Guardiã.
— Ela está viva! — gritou Cade. — Ela tem que estar!
Então, ele viu Bentzen olhar para Tolentino e balançar a cabeça.
A garganta de Cade se fechou. Lágrimas escorreram de seus olhos.
— Não! — gritou ele, com a voz embargada. — Não!
Mas Cade não poderia negar a realidade o suficiente para fazer
Nava respirar, fazê-la viver outra vez, fazê-la abrir os olhos.
Ninguém podia.
CADE NÃO DORMIU aquela noite. Ele ficou pensando em Nava deitada
na rua, com o rosto cheio de sangue. Os olhos dela, tão lindos,
fechados para sempre.
Por causa dele.
Ele finalmente estava começando a adormecer quando sentiu
alguém o balançando. Era Tolentino.
— O comandante Velan quer falar com você — declarou ela.
Velan? Cade saiu da cama e vestiu o uniforme, se perguntando o
que o comandante queria dele.
O primeiro sol estava começando a aparecer no horizonte quando
Cade entrou no escritório de Velan. O secretário de Velan o
anunciou.
— Bellamy — cumprimentou Velan, quando Cade entrou. —
Feche a porta.
Cade obedeceu. Então, ficou em posição de sentido.
— Você deve estar se perguntando por que eu o chamei aqui —
começou Velan. — A resposta é bem simples. Eu quero saber
quando você pretende ir embora.
Cade engoliu seco.
— Senhor?
— Nós não somos idiotas, Bellamy. Há um vazamento de
informações de vez em quando, como o que fez com que seu amigo
Andropov descobrisse quando as acusações contra você seriam
arquivadas. Mas nós também temos informantes, e é por isso que
conseguimos prender Andropov na noite passada. E,
incidentalmente, descobrir o que ele disse para você.
— Se quer saber, não era nenhum segredo que nós estávamos
arquivando as acusações. Eu mesmo teria lhe dito, se me
perguntasse. — Velan sentou-se na cadeira. — Você é um homem
livre, Bellamy. Não há nenhuma sentença de prisão em seu nome.
Você pode ir embora.
Então, ele se virou para examinar gráficos em uma tela
holográfica como se Cade não existisse mais. Porque, no mundo do
comandante, ele não existia.
Eu consegui o que eu queria, pensou Cade. Então por que ele
ainda estava lá parado? Por que não estava caminhando para a
porta?
— Eu quero ficar, senhor. — declarou ele, com as palavras
soando como se viessem da boca de outra pessoa.
— Ficar? — ecoou Velan, com um tom de perturbação na voz.
Ele olhou de lado para Cade. — O que o faz pensar que isto ainda é
uma opção?
— Por que... não seria, senhor?
— Deixando de lado a questão do que você pretendia fazer e
com quem, eu estive olhando o seu desempenho como Guardião.
De acordo com a líder do seu esquadrão, você não é
particularmente adequado ao que se espera dos Guardiões.
Autoconfiança pode ser uma característica positiva quando se está
negociando mercadorias ilegais no mercado negro, mas nós
preferimos que nossos Guardiões trabalhem em equipe.
— Mas... você disse que vocês precisam de Fantasmas...
— Nós precisamos... e muito. Mas só dos que podem se encaixar
no modelo dos Guardiões. Coisa que você, aparentemente, não
consegue fazer. Eu não estou colocando a culpa disso em você,
Bellamy. Se alguém tem culpa aqui sou eu, por tentar colocar uma
peça quadrada em um buraco redondo.
E voltou a atenção ao holograma.
Cade foi dispensado. Mas ele não foi embora. Depois de algum
tempo, Velan percebeu isso.
— Você quer dizer mais alguma coisa?
— Sim, senhor. Eu gostaria de continuar sendo um Guardião.
O comandante balançou a cabeça.
— Creio que a decisão sobre isso já tenha sido tomada.
— Eu tenho negócios inacabados com os Ursas, senhor. — Cade
sentiu um surto de ressentimento. — Você não quer que eu seja um
Guardião? Tudo bem. Eu vou caçá-los sozinho.
— Isso é contra a lei.
— A lei nunca me impediu de fazer nada antes, senhor.
Um músculo se contraiu no queixo de Velan.
— Por que esta vontade repentina de permanecer, Bellamy?
Segundo Andropov, você não suportava ser um Guardião.
— Eu mudei de opinião, senhor. Nava Ericcson... Ela morreu
porque eu estava pensando só em mim. No que eu podia fazer.
— Não se iluda, Bellamy. A morte de Ericcson não foi culpa sua.
— Mas eu podia ter impedido. Ela me defendeu, senhor. Confiou
em mim. — A garganta de Cade começou a arder. — Você não
encontra confiança assim por aí. Você não encontra pessoas que se
importam com você com tanta generosidade. Isso é uma dádiva.
Como o meu instinto de sobrevivência, minha habilidade de ficar
invisível para os monstros. Uma dádiva. E quando alguém lhe
concede uma dádiva, você não a recusa. A não ser que você seja
um imbecil.
— E você acha que não é um imbecil? — perguntou Velan.
Cade se ajeitou.
— Agora acho, senhor.
Velan olhou para ele por um longo tempo. E suspirou.
— Isso vai contra o meu bom senso, mas eu vou deixá-lo tentar,
em um novo esquadrão. Entenda que esse será um recomeço.
Cade assentiu.
— Obrigado, senhor. Você não vai se arrepender.
— Mas essa é a única chance, Bellamy. Se você não conseguir
desta vez, está tudo acabado. Entendido?
— Sim, senhor.
Velan o olhou por um momento a mais. Então, disse:
— Dispensado.
Cade saiu do escritório. Então, cruzou o complexo determinado a
não falhar pela segunda vez.
O NOVO ESQUADRÃO de Cade não tinha um único veterano, exceto
pelo líder da companhia, um homem magro e barbudo chamado
Gwynn. Ninguém além dele tinha mais de alguns meses de serviço
nos Guardiões.
Eles eram lembretes de como Cade se sentira impotente ao ver
Nava morrer. Como se sentira completamente impotente. Apesar de
toda a habilidade de desaparecer, ele não pôde fazer nada para
salvá-la. Ele estava tão preocupado em deixar os Guardiões que
acabou perdendo a única pessoa com quem se importava.
E lá estava ele novamente, encarando a possibilidade de perdas
terríveis. As pessoas estavam colocando as vidas nas mãos dele,
confiando nele. E, até onde ele sabia, nenhum deles jamais
enfrentara um Ursa antes.
Cade treinou com eles como treinara com o esquadrão de Nava.
Na verdade, treinou ainda mais duro. Mas ele nunca aprendeu o
nome deles.
Afinal, sempre haveria um deles como Nava. Ele nunca saberia
quem seria, mas as chances eram de que um deles morresse contra
um Ursa. E como ele se sentiria ao ver outro ser humano sendo
estripado, porque ele não conseguiu matar o monstro a tempo?
Cade lembrou-se de algo que sua mãe dissera logo antes de
morrer. Ela disse, citando alguém do passado, talvez até da Terra,
que uma das definições de insanidade era tentar fazer a mesma
coisa várias vezes e esperar resultados diferentes.
Então talvez ele fosse insano. Mas faria tudo que pudesse para
impedir que o que aconteceu com Nava acontecesse novamente. A
morte de sua mãe não afetou ninguém senão a ele, mas a morte de
Nava seria diferente. Significaria alguma coisa.
Cade não exigia perfeição só de si mesmo. Ele exigia também de
seus companheiros de equipe. Ele os perseguia sem dar descanso,
sem se importar com o que pensavam sobre ele. Ele continuava
cobrando deles mesmo quando o próprio Gwynn não parecia tão
inclinado a fazê-lo.
Obviamente, eles não gostavam. Alguns até revidavam. Um cara
especialmente, um grandalhão ruivo quase do tamanho de
Kayembe, parecia pronto para arrumar confusão depois que Cade
acabou com ele na ravina.
— Quem você pensa que é? — perguntou o cara.
Quando Cade não respondeu, o cara deu um soco na direção
dele. Cade se esquivou e plantou um murro no estômago do
homem. E quando ele se dobrou de dor, Cade desceu um soco na
lateral da cabeça dele.
Gwynn podia tê-lo punido, mas não disse nada. Ele só chamou os
nomes dos guardiões que atravessariam a ravina uma segunda vez,
como se nada tivesse acontecido.
Então, chegou a hora do primeiro exercício com o Ursa mecânico,
nas ruas construídas no deserto. Todos seguiram as ordens de
Gwynn, mas não era para ele que olhavam para ver se estavam
fazendo tudo certo. Era para Cade.
E ele estava satisfeito com isso.
Ele queria que eles soubessem que ele estava vigiando. Ele
queria que eles soubessem que não podiam dar menos de cem por
cento.
Enquanto ele arrancava o alfanje que estava encravado nas
costas do construto, viu uma sombra passando por cima do
esquadrão. O tipo de sombra que um Ursa faria se estivesse
saltando de telhado em telhado, mesmo camuflado.
Ele queria gritar, mas simplesmente tocou no comunicador e
disse:
— Ursa! — Então, saltou das costas do construto.
Um momento depois, a criatura apareceu no meio da rua.
— Cerquem-no — ordenou Gwynn, exatamente como deveria.
Eles abriram a formação, quatro Guardiões de cada lado da rua.
Mas a posição de Cade era diferente do resto. Como um Fantasma,
ele deveria encontrar o ponto fraco e atacar a criatura.
Ele estava procurando uma abertura, confiante de que não seria
visto pela fera até que fosse tarde demais, quando o Ursa
repentinamente foi atrás de Gwynn. Ele chegou perto demais,
concluiu Cade. Mas também, encurralar uma dessas feras não era
uma ciência exata. Era fácil cometer um erro.
Gwynn conseguiu ativar o alfanje na forma de lâmina e causar um
talho na cara da criatura, mas isso não a deteve. Ela atingiu o líder
do esquadrão com força estrondosa e o arremessou na base de um
dos prédios.
Cade conseguiu a abertura que queria. Enquanto o Ursa estava
ocupado com Gwynn, ele poderia plantar o alfanje nas costas da
fera.
Mas Gwynn seria destroçado primeiro.
Cade sabia disso com toda a certeza do mundo. E não podia
permitir que acontecesse. Ele viu o sangue de Nava derramado no
chão e não suportaria a ideia disso acontecendo com mais um de
seus companheiros.
Cade pulou nas costas da criatura e usou o alfanje para saltar por
cima dela.
Ele girou no ar e caiu entre o Ursa e Gwynn. O monstro não o viu,
é claro. Ele poderia ter saído da frente no último instante e
escapado sem um arranhão.
Mas esse não era o plano.
Com o alfanje em forma de gancho, ele enterrou a ponta na boca
do Ursa. Então, puxou para o lado com toda a força.
O movimento desviou o Ursa do curso, impedindo-o de encravar
os dentes em Gwynn. Porém, fez com que Cade recebesse a parte
principal do ataque da fera. Ele virou o corpo no último instante para
tentar evitar o impacto, mas não conseguiu.
A próxima coisa que Cade percebeu foi que estava caído no
chão, não muito longe de Gwynn, com o gosto metálico de sangue
na boca. Ele levara uma surra. Mas ainda estava vivo, sendo capaz
de pensar e conseguindo encontrar o alfanje na terra.
Quando recuperou os sentidos, viu os companheiros de equipe
desorganizados. A estratégia deles foi pelos ares e o líder deles
estava caído no chão inconsciente, na melhor das hipóteses
— Nós ainda podemos fazer isso — disse Cade no comunicador
enquanto transformava o alfanje em lança. — Acertem ele por trás.
Façam ele virar.
Os outros agiram imediatamente. Tudo o que precisavam era de
um empurrãozinho.
Ao atacarem o Ursa, a criatura fez exatamente o que Cade
esperava: ele se virou para os Guardiões, dando a ele a abertura
necessária. Levantando-se com dificuldade, Cade ignorou os
ferimentos da colisão com o monstro, deu dois passos dolorosos e
saltou nas costas da criatura.
Ainda atordoado, Cade não conseguiu se mover tão rápido
quanto antes. Mas foi capaz de se segurar quando o Ursa tentou se
livrar dele, erguendo a arma sobre a cabeça e cravando-a nas
costas da criatura.
Então, o Ursa de fato o derrubou. Ele bateu no chão, rolou e
olhou para cima para ver o que acontecera.
Ele viu o início dos estertores de morte da criatura. A lança fizera
o trabalho. Todos fizeram o trabalho.
Mas Cade não esperou para ver o Ursa morrer. Ele se levantou,
mancando, e foi até o local onde Gwynn estava caído no chão.
Esteja vivo, pensou ele. Esteja vivo...
O rosto do líder do esquadrão estava ferido e ensanguentado.
Terrivelmente. E ele não estava se movendo. Será que está ao
menos respirando?
— Gwynn...? — chamou ele.
Sem resposta.
Pela segunda vez:
— Gwynn?
Ele estava prestes a iniciar respiração boca a boca quando
Gwynn abriu os olhos. Cade soltou um suspiro de alívio. Ele está
vivo, pensou. Vivo.
Ainda assim, o homem precisaria de um médico. Cade ouviu os
companheiros de equipe atrás dele fazendo os preparativos.
Gwynn gemeu com os lábios inchados, mas Cade não conseguiu
entender o que ele estava dizendo. Ele se abaixou e colocou o
ouvido perto da boca de Gwynn.
O que ele ouviu, em palavras embargadas, foi:
— Por que você demorou tanto?
Cade riu.
— O que ele disse? — perguntou um dos outros.
Cade riu novamente.
— Não é da sua conta.
Ele sentiu uma mão em seu ombro. Depois outra. Depois sentiu
alguém o segurando e mais alguém o abraçando.
Antes de entender o que estava acontecendo, ele era parte de
um grande abraço coletivo. Não era só um grupo de Guardiões
compartilhando uma vitória, mas muito mais do que isso. Cade
sobrevivera. Mas, mais importante do que isso, eles também.
Juntos.
CADE ESTAVA QUENTE, cheio de poeira e um pouco mais do que
dolorido quando saiu do transporte que levou o esquadrão de volta
para o complexo dos Guardiões. Estava ansioso por um banho e
algumas horas de sono.
O que encontrou, em vez disso, foi o secretário de Velan, de pé
ao lado do transporte.
— O comandante quer vê-lo — disse o rapaz.
Cade tinha ideia do que seria.
— Tudo bem, vamos lá.
Ele olhou para seus companheiros de equipe. Eles pareciam
preocupados. Talvez estivessem certos quanto a isso.
Afinal, Cade arriscara a própria vida para salvar Gwynn no
treinamento no deserto, alguns dias antes. E um Fantasma, como
Gwynn dissera mais de uma vez, era valioso demais para se
arriscar dessa forma.
Infelizmente, ele não teve escolha. Ele não podia deixar Gwynn
morrer como aconteceu com Nava. Se tivesse que fazer a mesma
escolha outra vez, ele faria a mesma coisa.
Com certeza Velan deve saber disso.
Ao chegar ao escritório do comandante, o secretário indicou:
— Pode entrar.
Cade abriu a porta, mas Velan não estava visível.
— Senhor? — chamou ele, imaginando que o comandante
estivesse atrás da mesa, pegando algo que caiu no chão.
— Não se preocupe — disse o secretário. — Ele já vai voltar.
Cade se posicionou em frente à mesa. Qual o tamanho da
confusão que ele teria se metido? Ele matara o Ursa, no fim das
contas. Salvara a vida de Gwynn. Não seguiu as regras à risca,
mas...
Finalmente, Velan entrou.
— Guardião.
Cade se virou para seu superior.
— Comandante.
Velan passou por ele e se sentou à mesa. Ele não parecia feliz.
Mas até onde Cade sabia, o cara nunca parecia feliz.
— À vontade, Guardião.
Cade ficou numa posição mais relaxada.
— Há algo que eu deveria ter compartilhado com você há muito
tempo — começou Velan —, quando eu ofereci um lugar para você
nos Guardiões. Se tivesse feito isso, nós talvez tivéssemos evitado
algumas dificuldades.
Cade ficou escutando.
— Fantasmas são essenciais aos nossos esforços para eliminar
os Ursas, sem dúvida. Assim como todos os Guardiões. Todos têm
uma contribuição a fazer. Algumas pessoas são capazes de
aprender esta lição. Outras não.
Cade não estava entendendo onde o comandante queria chegar.
Ele está falando sobre o que aconteceu no treinamento?
Velan olhou para ele por mais um momento. Então, disse:
— Eu cometi um erro. Você não deveria ser parte de um
esquadrão de Guardiões.
O quê? Pensou Cade.
As palavras não pareciam reais. Não podiam ser. Depois de tudo
pelo que ele passou? Depois de tudo o que ele conseguiu?
Não, pensou ele. Só isso: Não.
— Permissão para falar livremente, senhor? — pediu ele
repentinamente.
— Concedida — respondeu Velan.
Cade apontou para o comandante.
— Esta foi a maior merda que eu já ouvi na vida. E se essa é a
sua palavra final, você não é a metade do Guardião que eu pensei
que fosse.
Velan apertou os olhos.
— Agora você se acha apto a julgar os Guardiões?
— Pode ter certeza que sim.
— E isso é maneira de se dirigir ao seu superior?
— Você me deu permissão, lembra?
O comandante franziu o cenho.
— É, eu dei.
— E enquanto eu tiver permissão, eu vou falar o que eu quiser...
Velan levantou a mão.
— Espera aí, Bellamy.
— Ou o que?
— Ou você vai perder o resto do que eu ia falar. — Ele limpou a
garganta. — Como eu estava dizendo, você não deveria ser parte
de um esquadrão de Guardiões. Você deveria liderar um.
Cade se endireitou. Liderar...?
— Então? — perguntou Velan. — Nenhum comentário? Nenhum
“Obrigado, senhor”?
Cade sorriu sem jeito.
— Hum... obrigado, senhor.
O comandante assentiu.
— É um prazer, Guardião. E eu falo isso com toda a sinceridade.
— Ele abriu a mão e revelou uma insígnia, do tipo que os líderes de
esquadrão usam. — Isto é seu.
Cade segurou.
— Eu não estava esperando isso. Eu...
Velan fez uma careta.
— Esse vai ser um discurso longo, Bellamy? Porque eu tenho
mais o que fazer hoje.
Cade balançou a cabeça.
— Não, senhor. Não mesmo. Novamente, obrigado, senhor. — Ao
sair do escritório de Velan, ele só conseguia pensar em uma coisa:
como Nava ficaria orgulhosa dele. Muito, muito orgulhosa.

Você também pode gostar