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Autor: George Mann

COM TRADUÇÕES DE:


Marcela Gonçalves.
Luisa Duarte de Medeiros Machowski.
Mayara Oliveira.
Ênio Junior.
Vinícius Rodrigues Viana.

REVISADO POR:
Marcela Gonçalves.

Conteúdo.
Parte Um: Moldox
Parte Dois: Gallifrey
Parte Três: Para Dentro do Olho.
PARTE UM
Moldox
Capítulo Um
Faziam três dias desde que ela havia visto um Dalek pela última vez. Três dias
desde que ela tinha entalhado outra morte no cano de sua arma. Era muito
tempo. Ela estava começando a se sentir nervosa. O que eles estavam
tramando? A patrulha Dalek andava infrequente ultimamente, como se eles não
se incomodassem mais com as ruinas. Eles estavam se concentrando na cidade,
encurralando todos os humanos sobreviventes que encontravam, os controlando
lá também. O plano deles havia mudado. Algo novo estava acontecendo. Talvez
ela tivesse que pensar em se mudar novamente. Logo agora que ela tinha
começado a se sentir confortável.
Cinder deitou de barriga no chão empoeirado e sujo, perfeitamente imóvel,
examinando a estrada abaixo do barranco. Ela ouvira falar que uma Patrulha
Dalek estava vindo por esse caminho, mas isso tinha sido há mais de uma hora.
Será que uma das outras células de resistência havia acabado com eles? Isso
parecia improvável. Se isso tivesse acontecido ela já estaria sabendo. Uma
mensagem teria chegado no link de comunicação. Não, era mais provável que
os Daleks tivessem encontrado outro grupo de sobreviventes e os estavam
processando para a escravidão, ou então “exterminado” eles – ou como ela gosta
de falar, assassinando eles na hora. Cinder agarrou a arma com um pouco mais
de força, sentindo uma centelha de raiva ao pensar nisso. Se eles viessem por
esse caminho...
Ela afastou a franja do olho. Ela tinha uma mecha de cabelo castanho-
avermelhado, cortado irregularmente em torno de seus ombros. Foi por isso que
ela originalmente ganhou o nome “Cinder”. Isso e também o fato de que ela foi
encontrada nas ruinas ainda em chamas da sua casa, a única coisa que restou
viva após a passagem de um Dalek. Agora parecia a muito tempo atrás, quando
o planeta havia queimado. Quando todos eles haviam queimado. Cinder assistiu
cada um dos mundos na Espiral explodir, iluminando o céu acima de Moldox;
uma espirral de orbes flamejantes, estrelas rodopiantes recém batizadas.
Naquela época ela era uma criança. No entanto, mesmo naquela idade ela sabia
o que fogo no céu anunciava para ela e sua espécie: os Daleks haviam chegado.
Toda esperança estava perdida.
Moldox sucumbiu pouco tempo depois, e a vida – se é que você pode chamar
assim – nunca mais foi a mesma. Sua família morreu nos primeiros dias da
invasão, incinerada por uma patrulha Dalek enquanto tentava fugir. Cinder
sobreviveu se escondendo em uma lata de lixo de metal, espiando através de
um pequeno buraco na ferrugem a carnificina acontecendo ao seu redor, com
medo até de respirar. Demorou quase um ano até ela se sentir segura o
suficiente para emitir algum som. Dias depois, confusa e traumatizada, ela foi
encontrada vagando entre os destroços de sua casa, e foi acolhida por um bando
de combatentes da resistência. No entanto, esse não foi um ato de bondade de
seus semelhantes, foi simplesmente um meio para um fim: eles precisavam de
uma criança para ajudar a montar armadilhas para os Daleks, para se esgueirar
e fugir entre os lugares onde os Daleks não conseguissem segui-los. Ela passou
os próximos quatorze anos aprendendo a lutar, e a como sobreviver nas ruinas,
ficando mais furiosa a cada dia que passava. Tudo que ela fez desde então –
tudo – foi alimentando aquela fúria ardente; aquele desejo por vingança.
Ela sabia que os anos vividos com escassez de recursos não a fizeram bem –
ela era magra, apesar de ter músculos; sua pele era pálida e perpetuamente
suja, e sempre que ela parava para olhar em um espelho quebrado ou uma
vidraça estilhaçada, tudo o que ela via olhando de volta pra ela era dor e
arrependimento em seus olhos escuros. Mas essa era sua vida agora: sobreviver
dia após dia procurando por comida, e caçando Daleks sempre que surgisse
uma oportunidade.
E independente de tudo isso, durante todo o tempo no universo, a guerra entre
os Senhores do Tempos e os Daleks continuava a rasgar todo o tempo e espaço
em seu rastro. Cinder tinha ouvido falar que, em termos simples e lineares, a
guerra já durava mais de quatrocentos anos. Isso, claro, era uma mentira, ou
pelo menos uma irrelevância; as zonas de guerra temporal tinham se permeado
tão longe e tão profundamente na própria estrutura do universo que o conflito
tinha – bem literalmente – se permeado pela eternidade. Não existia época que
ficou intocada, nenhuma história que não tivesse sido reescrita. Para muitos,
ficou conhecido, talvez ironicamente, como a Grande Guerra no Tempo. Para
Cinder era simplesmente o Inferno.
Ela mudou seu peso de um cotovelo para o outro, todo o tempo mantendo seus
olhos na estrada de asfalto rachado, esperando por sinais; só esperando. Eles
viriam em breve, ela tinha certeza disso. Mais cedo naquele dia ela tinha
destruído outro de seus comunicadores, e a patrulha que os outros haviam visto
deve ter sido despachada para investigar. Os Daleks eram nada mais que
previsíveis. Ela examinou a fileira de edifícios irregulares e quebrados que se
alinhavam ao lado oposto da estrada, procurando por Finch. Era a vez dele de
incendiar o Dalek enquanto ela acaba com eles pelo outro lado. Ela não
conseguia vê-lo entre as ruinas. Bom. Isso significava que ele estava mantendo
a cabeça abaixada. Ela odiaria que algo acontecesse com ele. Ele era um dos
bons. Ela poderia ir até mais longe e chama-lo de amigo.
As fachadas dos edifícios destruídos ao longo da estrada estavam enegrecida e
lascada; resultado de ambos, os raios de energia dos Daleks e das bombas
incendiarias usadas pelas forças de defesa dos humanos enquanto tentavam
manter os invasores à distância. No final das contas, eles falharam em face das
probabilidade esmagadora e um inimigo indiferente e inabalável. Os Daleks eram
totalmente implacáveis e em poucos dias o planeta foi reduzido a ruinas
fumegantes. Cinder mal conseguia se lembrar de uma época anterior á chegada
dos Daleks a Moldox. Ela tinha uma vaga memória de torres cintilantes e grandes
cidades, de florestas selvagens e céus com naves de transporte. Aqui na Espiral
de Tântalus, os humanos alcançaram seu auge, colonizando um vasto número
de mundos que cercam uma imensa estrutura fantasmagórica no espaço – o
Olho de Tântalus. Olhou para ela agora, estudando malignamente, os eventos
que se desenrolavam abaixo. Deve ter sido testemunha de alguns horrores na
ultima década e meia, ela considerou. Moldox já foi majestosa, mas agora não
era nada além de um mundo agonizando, miserável, agarrado ao ultimo vestígio
de vida.
Ouviu-se um barulho vindo da estrada. Cinder se afundou ainda mais na terra e
avançou alguns centímetros, espiando por cima da borda do barranco para ver
um pouco mais longe na estrada. A alça de sua mochila estava a deixando
desconfortável, mas ela ignorou. Os Daleks estavam finalmente vindo, como ela
havia previsto. Seu pulso acelerou. Ela apertou os olhos tentando ver em
quantos eles estavam. Ela podia ver cinco formas diferentes, seus coração
apertou quando eles se aproximaram, e sua visão melhorou. Apenas um deles
era um Dalek. Pairando atrás do pequeno grupo como se os conduzissem. Seu
invólucro de bronze brilhava no sol poente da tarde, e seu visor girava de um
lado para o outro, examinando o caminho a frente.
O resto deles eram mutantes, Kaled, uma espécie de Dalek, mas transformado
em uma nova e perturbadora forma por interferência dos Senhores do Tempo.
Isso era a degradação de Skaro, o resultado dos esforços dos Senhores do
Tempo para refazer a história dos Daleks, para brincar com a evolução de sua
espécie de origem, provavelmente em uma tentativa de contornar o
desenvolvimentos da raça Daleks completamente. O resultado foi catastrófico,
mesmo assim, em cada permutação da realidade, em cada uma das
possibilidades, os Daleks haviam se afirmado. Eles não podiam ser parados. De
qualquer jeito que Cinder olhava, parecia que o universo queria os Daleks.
Muitos desses Indignos, eram instáveis – imprevisíveis – o que na opinião de
Cinder, os torrnavam ainda mais perigosos que os Daleks. E agora eles estavam
sendo obrigados a trabalhar aqui em Moldox.
Cinder preparou sua arma – uma arma de energia arrancada do involucro de um
Dalek moribundo e amarrada em um bateria de energia – e lutou contra a
vontade de fugir. Já era tarde demais. Eles estavam comprometidos. Ela só
esperava que nenhum dos Indignos estivesse carregando uma arma que eles
não haviam enfrentado antes.
Conforme a patrulha se aproximava, Cinder deu uma boa olhada neles. Dois dos
Indignos eram quase idênticos a um tipo que ela já tinha visto muitas vezes
antes: um torso humanoide em uma câmara de vidro reforçada, suspensa sob a
cabeça e o visor de um Dalek normal. Três grandes painéis em braços de metal
preto ficavam dos lados na coluna central, nas laterais e na parte de trás. Nos
painéis haviam os mesmos sensores redondos, como o invólucro dos Daleks, e
de cada lado armas de energia.
Os torsos sem membros dentro das câmaras de vidro estremeciam de
nervosismo enquanto aquelas coisas monstruosas pairavam por perto,
impulsionando os no ar em plumas de luz azul. Finch havia apelidado eles de
“Planadores”.
Os outros, no entanto, não eram nada como ela havia visto antes. Um deles tinha
o formato de um ovo e estava montado em um conjunto de três membros que
lembravam aranhas, correndo ao longo da estrada como um inseto enorme e
assustador. E mais uma vez o involucro tinha as coisas redondas familiares,
embora nesse caso eram negros como carvão e embutido em painéis de um
vermelho metálico profundo. O visor era maior e de seu corpo saia quatro armas
de fogo. O último mutante parecia ser quase idêntico a um Dalek normal, exceto
que onde deveria ter uma arma tinha sido substituído por algo parecido com uma
arma de um tanque de guerra com um canhão de energia enorme.
Cinder tentou engolir, mas sua boca estava seca. Ela não podia correr o risco de
deixar aquele canhão disparar. O resultado seria devastador e Finch quase não
teria chance de sair dessa. Aquele deveria ser seu primeiro alvo. Ela sentiu
movimento nas ruinas, e um rápido olhar disse a ela que Finch já estava se
deslocando, correndo de esconderijo a esconderijo para chamar atenção dos
Daleks. O Dalek também percebeu e seu olhar girou em direção a Finch.
“Pare! Apareça! Renda-se e você não será ex-ter-mi-na-do.” Disse o Dalek
severamente, o ranger metálico que ecoava pela estrada fez Cinder se arrepiar.
Ela procurava Finch, tentando distingui-lo das ruinas para antecipar seu próximo
movimento. Não havia chance dele obedecer às ordens do Dalek – mesmo que
ele não estivesse mentindo, extermínio era uma alternativa melhor do que ser
escravizado por esses monstros.
Ali! Ela o viu se movimentar novamente, perto dos restos de uma casa
incendiada. O Dalek girou, disparou três tiros curtos e sucessivos com sua arma.
O barulho agudo da arma era quase ensurdecedor. Houve um flash de luz branca
intenso, seguido por uma explosão, então os restos de uma parede caíram em
uma pilha, perto de onde Finch estava se escondendo a apenas alguns
segundos atras. A fumaça ondulava nas ruinas, pairando no ar.
“Procurar. Localizar. Destruir!” Ordenou o Dalek. “Encontre o humano e o ex-ter-
mi-ne”
“Nós obedeceremos” disseram em coro os Indignos em suas vozes sintéticas.
Os dois planadores se ergueram sob lanças de luz, enquanto os outros se
espalhavam, cobrindo as ruinas com suas armas.
A patrulha se separou e Cinder viu sua chance. Ela ficou de joelhos, pesando a
arma Dalek em seu ombro e mirando pelo cano. Ela mirou na cabeça do Indigno
com o canhão, respirou fundo e atirou. A arma lançou uma explosão curta e
poderosa de energia e a descarga quase fez ela cair cambaleando para trás.
Mas ela manteve o ombro travado na posição, firmando-se, o ar se encheu com
o fedor de queima de ozônio.
Sua pontaria foi certeira. E o feixe de energia lançado através da carapaça de
bronze do mutante, formou um buraco e detonou uma de suas válvulas de
radiação. No entanto, não teve o efeito desejad de fazer com que sua cabeça
explodisse de forma espetacular, ao invés disso provocou uma resposta bem
menos desejada.
“Estamos sob ataque! Sob ataque!” berrou o Indigno, girando sua cabeça a 180
graus para escanear o entorno. “Mulher humana armada com neutralizador
Dalek. Exterminar! Exterminar!”.
Em pânico Cinder olhou para a arma na sua mão. O que tinha dado errado? Ela
nunca viu um Dalek sobreviver a uma explosão de energia de uma de suas
próprias armas. Esse novo tipo de mutante tinha uma armadura reforçada? Seja
qual for o caso, só o que ela conseguiu fazer foi revelar sua localização.
Ela tinha que agir rapidamente, eliminar o líder. Ela se virou, ergueu a arma e
fechando o olho esquerdo, traçou uma linha de visão sobre o Dalek enquanto
ele mudava sua posição, preparando para devolver o tiro. Ela apertou o gatilho
improvisadamente e a arma lançou outro raio de energia.
O tiro acertou o alvo, atingindo o Dalek logo abaixo do seu visor. O involucro
detonou com um barulho satisfatório. Rompendo as grades e espalhando
biomassa do Kaled morto lá dentro. As chamas alcançaram a borda da ferida
irregular, enquanto a carne verde borbulhava e escorria com um chiado grotesco.
Cinder não teve tempo de comemorar, porque o Indigno de formato ovular abriu
fogo em resposta. Ela se jogou para trás, rolando para se proteger, mas já era
tarde demais, o impacto dos tiros havia desestabilizado a borda do barranco que
desabou.
Cinder sentiu o mundo ceder sob ela. Ela gritou, agarrando a arma, caindo de
cabeça para baixo na direção dos Indignos.

Capítulo Dois
Bem acima de Moldox, uma caixa azul aparecia, deslizando sem esforço para
fora do Vórtice do Tempo. Parecia incoerente que uma relíquia da Terra antiga
tinha caído pelo espaço e tempo só para aparecer aqui nos confins da Espiral de
Tântalus, sua luz piscava descontroladamente enquanto ela ganhava forma. Se
desse para escultar barulho no espaço, a forma viria acompanhada por um som
ofegante, mas em vez disso havia só o silencio.
Entretanto a chegada desse objeto anacrônico não passou despercebida, e a
aparição da TARDIS fez surgir avisos de perigo em mais de mil painéis de
controle dos Daleks. Eles logo entraram em ação, deslizando através do espaço
vazio e adotando formação de combate, luzes piscavam enquanto eles ficavam
em prontidão.
Dentro da TARDIS, o Doutor – ou melhor o Senhor do Tempo, que antes, tinha
vivido muitas vidas com esse nome – girou um indicador e se afastou do console.
Ele cruzou os braços e esperou. Ao seu redor, as coisas redondas nas paredes
brilhavam com uma leve luminescência, fazendo com que as linhas em seu rosto
se destacassem na sombra: o mapa de cem anos ou mais, desgastado pelo
conflito e pelo cansaço.
No meio do console, a coluna central suavemente descia e subia, como se a
maquina estivesse de alguma forma respirando e expirando. Esse pensamento
era reconfortante. Isso significava que ele não estava sozinho. Ele suspirou e
olhou para cima no campo de estrelas sendo projetada no teto opaco da sala do
console.
Acima dele estava a etérea forma do Olho de Tântalus.
O Olho era uma anomalia, uma vasta dobra no espaço e tempo; uma estrutura
impossível que não tinha o direito de existir, e ainda assim, existia. Como aquilo
se formou – fosse naturalmente ou projetado – ninguém era capaz de dizer. Tudo
o que o Doutor sabia era que era anterior aos Senhores do Tempo, e que Ômega,
o grande engenheiro, naqueles primeiros dias felizes da Diáspora dos Senhores
do tempo, tinha escrito sobre o Olho e seus muitos segredos obtusos – segredos
que ainda guardava até hoje.
Desse ponto em diante, a Espiral, tinha a aparência de um corpo imenso e
gasoso, um olho humano giratório, rodeado por uma espiral de mundos
habitados.
Para o Doutor era de tirar o folego. Ele tinha vindo aqui muitas outras vezes em
suas outras vidas – particularmente em sua quarta e sua oitava, aquelas com
uma convicção mais romântica – embora agora esses dias fossem como
memorias distantes, sonhos que aconteceram com outras pessoas. Agora não
havia nada além da Guerra. Tinha o consumido, o transformado em algo novo.
Um guerreiro.
Assim como mudou o Doutor, a guerra havia mudado a Espiral de Tântalus
também. O que antes era um refúgio pacifico, agora tinha sido arruinado pela
ocupação dos Daleks. Transformou-se em uma zona de guerra, como grande
parte do universo – um posto de onde os Daleks poderiam continuar sua cruzada
para povoar a eternidade com seus progenitores e travar sua campanha
incessante contra os Senhores do Tempo.
Foi por isso que o Doutor tinha vindo para a Espiral – os Daleks estavam se
aglomerando aqui, e ele precisava descobrir qual era o tamanho de sua força.
Existia uma maneira simples e eficaz de fazer exatamente isso.
“Certo,” ele rosnou. “Venham me pegar.”
Acima da TARDIS, as naves Daleks começaram a aparecer. Eles ainda não
estavam com suas armas de energia, mas o Doutor sabia que a qualquer
momento ele poderia esperar pelo bombardeio. Ele deu um passo a frente e
assumiu os controles novamente.
“Espere,” murmurou para si mesmo. “Espere pelo momento certo...”
Ele apertou um botão e abriu o canal de comunicação. Centenas ou mais de
Daleks falavam em uma cacofonia desenfreada. Quase não dava para entender
as palavras, mas ele sabia muito bem o que estavam dizendo: “Exterminar!
Exterminar!” Mesmo agora o som fez sua pele arrepiar. Eles estavam se
aproximando. E ainda assim o Doutor esperou.
A nave principal finalmente estava ao alcance, pairando logo acima.
“Agora!” gritou o Doutor a plenos pulmões, empurrando uma alavanca para frente
e se segurando nas bordas do console de modo que os nós de seus dedos
ficaram brancos com o esforço.
A TARDIS disparou como um foguete. Acertou uma nave que não estava
esperando por isso, rasgando sua cúpula com uma velocidade imensa, que ficou
girando em seu próprio eixo. A eletricidade fez a nave estourar então um feixe
de energia acertou a nave vizinha. Em seu monitor o Doutor observou as naves
danificadas dos Daleks se afastarem enquanto queimavam.
“Está feito, garota,” ele disse, mexendo novamente nos controles para tirar a
TARDIS do caminho de outro feixe de energia. As naves Daleks começaram a
persegui-lo, seus canhoes cuspindo morte ao seu redor.
“É isso mesmo,” ele disse. “Me sigam...”
Como um piloto de avião acrobático – que ele fazia questão de ir assistir com o
Brigadeiro em seus dias trabalhando na UNIT – o Doutor se virou e levou a
TARDIS para a esquerda, para a direita, para cima, para baixo, cruzando o
espaço, liderando os Daleks em uma perseguição, mas sempre ficando um
passo à frente de suas armas.
O tempo todo o brilho maligno do Olho os encarava impassivelmente.
“Certo, já era hora...” O Doutor irrompeu, sorrindo, enquanto uma centena ou
mais de TARDISes de batalha saíram do Vórtex atrás da frota Dalek. “Agora nós
pegamos vocês.” Ele cantou, girando uma alça e mergulhando com a TARDIS,
para que ele pudesse fechar a onda de naves Daleks e se juntar a seus
camaradas.
Armas transformaram a parte externa das TARDISes de batalha – losangos lisos
com uma parte externa de metal vivo que poderia se transformar em escudos,
ou qualquer número de armas predeterminadas. As TARDISes se espalharam,
e dispararam em direções diferentes, enquanto os Daleks tentavam reverter seu
curso virando para poder enfrentar o inimigo que os havia enganado tão
facilmente.
Torpedos temporais eram lançados em ondas, uma porção deles encontrava seu
destino e o congelava, prendendo os em um padrão de repetição temporal, um
tranca a qual a nave não poderia escapar. As naves Daleks explodiam
silenciosas enquanto os Senhores do Tempo seguiam com suas rodadas de
explosões. Seus dedos dançavam nos controles e a TARDIS foi para longe
quando as naves Dalek receberam a segunda rajada.
“Desaparecer!” ele berrou no equipamento de comunicação, e os Senhores do
Tempo fizeram o que ele ordenou, suas TARDISes de repente desapareceram.
Elas apareceram novamente momentos depois, tendo saltado dois segundos no
futuro para evitar os raios crepitantes das armas dos Daleks, que não chegaram
a acertar em nada.
A rajada de retorno foi muito mais eficaz, detonando incontáveis naves Dalek.
“Recuar! Recuar” O coro de vozes Dalek, agora diminuída, mas ainda audível ao
fundo, tinha mudado. Eles estavam tentando se reagrupar, recuando em direção
ao Olho e usando os destroços de seus irmãos como cobertura.
“Eles estão fugindo, Doutor!” gritou uma voz feminina satisfeita pelo link de
comunicação.
“Vá atrás deles!” ele respondeu. “Aproveite a vantagem”.
Os Senhores do Tempo agora em maior número, superando as nave Dalek de
dois para um, fizeram exatamente isso, surgindo do nada, alguns mais ao alto,
outros abaixo, prendendo os Daleks entre eles.
O Torpedo Temporal fez seu trabalho, impedindo a retirada dos Daleks, e em
segundos o espaço acima de Tântalus estava preenchido com os destroços da
frota Dalek restante.
“Muito bem Doutor,” disse a mulher no link de comunicação. Ela parecia alegre.
Ela era a Capitã Preda, Comandante da quinta frota de batalha dos Senhores do
Tempo. “Nós de fato os conduzimos em uma dança.”
“Não cante vitória cedo demais Preda,” respondeu o Doutor, seu tom severo.
“Ainda não tenho certeza de que acabou. Podem haver mais deles, espreitando
nas sombras desses planetas.”
“Então vamos dar uma olhada,” disse Preda. O link de comunicação foi desligado
e as TARDISes de Batalha entraram em uma formação de ponta de lança,
chegando mais perto do Olho de Tântalus.
Cautelosamente o Doutor ficou para trás, de olho nos monitores.
A emboscada veio sem aviso. Não houve alarme, nenhuma indicação de que
algo estava errado, de que eles haviam acionado algum tipo de armadilha. Em
um segundo não havia nada, no outro uma armada de naves Dalek surgiu para
fora do Vórtice.
O Doutor havia visto essas naves apenas algumas vezes – naves lustrosa,
elegantes, do mais puro preto, sem as luzes piscantes normalmente vistas nas
naves Dalek, e duas vezes mais perigosas. Elas foram um desenvolvimento
recente e indesejável. Dizem que elas ficam no Vórtex como aranhas em sua
teia, detectando a vibração das TADISes que passam. Só ai que eles se deixam
serem vistos, aparecendo e pegando os Senhores do Tempo desprevenidos.
Era elegante e mortal e – o Doutor percebeu – Preda e sua frota tinham acabado
de serem apanhados em sua teia.
Os Senhores do Tempo não tiveram tempo para reagir. Nenhum foi capaz de se
desmaterializar antes do armamento Dalek abri-los como latas de sardinha,
deixando sua entranha no vácua frio do espaço.
O Doutor rugiu, batendo os punhos nos controles fazendo a TARDIS girar de
lado, em uma ação evasiva que salvou sua vida. No entanto a TARDIS recebeu
um golpe de raspão que a deixou em rotação. Com o estabilizador incapaz de
compensar, o Doutor caiu no chão, rolando para o lado enquanto a nave
trepidava.
A TARDIS, fora de controle, foi arremessada para um dos planetas abaixo.

Capítulo Três
A TARDIS mergulhou na atmosfera do planeta como uma pedra caindo,
deixando um rastro de fumaça preta por onde passava. Lá dentro o Doutor
agarrou as bordas do dossel central. Os motores gritavam enquanto a nave
tentava se endireitar, mas a trajetória era muito acentuada e eles estavam caindo
muito rápido. No teto ainda estava projetado a vista do lado de fora, mas agora
era nada além de uma confusão desorientada de imagens: imagens de um céu
roxo e machucado; continentes varridos em ruinas; chamas nas bordas da parte
externa na nave.
Com um esforço gigantesco o Doutor soltou o corrimão e cambaleou até o
console, se agarrando em um cabo solto em um esforço para não ser jogado no
chão. Ele puxou o cabo para tentar se apoiar, mas para sua consternação o
mesmo saiu em sua mão, não estava encaixado onde devia fazendo-o balançar
violentamente até que a nave tombou para a frente novamente e ele pode
agarrar uma alavanca que estava próxima.
Ele se firmou o melhor que pode, balançando com o movimento na nave em
queda. “Certo vamos ver se funciona...” ele disse, jogando fora a ponta solta do
cabo e apertando uma série de botões e interruptores no painel de controle.
Os motores gritaram em protesto, a TARDIS fez uma tentativa de se
desmaterializar. Lá fora, visível através do teto transparente, o mundo parecia
desaparecer até a inexistência, substituído pelos tons rodopiantes do Vórtice do
Tempo. No momento que o Doutor estava prestes a suspirar de alivio, a imagem
ficou tremula como se estivesse fora de alcance e voltaram as imagens
bruxulentas do mundo desolado abaixo dele, visto apenas em fragmentos
enquanto o chão parecia se apressar para encontrar a TARDIS.
Ele bateu nos controles furiosamente, sem sucesso. Até mesmo a coluna central
tinha parado de subir e descer, como se a própria TARDIS tivesse antecipado o
que viria a seguir e estivesse se retirando para dentro de si mesmo, fechando
seus sistemas vitais.
“Sinto muito, velha amiga,” disse o Doutor, agarrado ao console com toda a força.
“Acho que não vamos ter uma aterrisagem legal...”
Sua boca estava cheia de terra, sua bochecha esquerda doía e ela tinha certeza
de que havia quebrado pelo menos uma costela. Ela não conseguia lembrar
onde estava, o que estava fazendo. Uma escuridão reconfortante se ofereceu
para consumi-la. Ela gostou. Dormir. Dormir era o que ela precisava. Dormir iria
– “Localizar o outro Hu-ma-no.” O som áspero e metálico de um dos Indignos a
acordou.
Claro! O barranco! O deslizamento de terra. Os Indignos. Apenas alguns
segundos poderiam ter se passado. Ela permaneceu imóvel. Será que eles
achavam que ela estava morta?
Ela estava parcialmente coberta pela terra. Podia sentir o peso em suas pernas.
Aquilo foi bom – pelo menos ela ainda conseguia sentir as pernas. A lama deve
ter amortecido sua queda. Ela mexeu o pé, muito devagar, e sentiu a terra
amontoada ceder. Ela seria capaz de escapar então. Não estava enterrada muito
fundo.
Ela ainda estava segurando a arma Dalek roubada. Estava fria contra a palma
de sua mão, e cheia de poder. Não apenas isso, ela também tinha o elemento
da surpresa. Eles não esperavam que ela de repente começasse a atirar
novamente. E pelo o que parecia eles não haviam encontrado Finch. Eles não
tinham – “Cinder!” O grito preocupado de Finch ecoou nas ruinas. Cinder teve
vontade de gritar de frustração. O que ele estava fazendo! Tinha revelado sua
posição, se tornaria um alvo fácil.
Bom, ela achou que ele havia puxado sua mão...
Com um sobressalto, Cinder se ergueu da terra amontoada, girando enquanto
se levantava, cuspindo terra.
Ela não teve tempo para pensar no que os Indignos estavam fazendo. Ela viu
um dos planadores pairando a poucos metros do chão de costas pra ela, ela
mirou, e disparou dois tiros. Ainda se virando ela viu o outro Planador a vista e
disparou mais dois tiros.
Eles detonaram igual bolas de fogo brilhantes, um após o outro, cobrindo o chão
de destroços, Cinder mergulhou para se proteger, rolando para trás da casca do
Dalek que ela havia atirado. Ainda tinha dois Indignos para enfrentar, e ela não
gostava das suas chances contra o canhão.
“Cinder!”
Ela ficou de pé e viu a alta e larga silhueta de Finch a sua frente, saindo por trás
de uma parede quebrada e correndo para a estrada. Ele estava vestindo um
macacão preto sujo e carregando uma metralhadora antiquada, com a qual ele
jogou granadas nas criaturas Daleks restantes enquanto corria.
As balas ricochetearam inutilmente na armadura deles, mas o plano – se é que
era mesmo um plano – tinha funcionado, e ele os distraiu por tempo o suficiente
para que Cinder pudesse se proteger.
“Cinder – ache um lugar seguro, agora!” ele berrou. Ele disparou outra vez contra
os Indignos inutilmente, então se virou e correu.
“Erradicar!” gritou o Dalek com o canhão, girando sua parte central para rastreá-
lo enquanto ele corria.
“Finch!” gritou Cinder. “Não!”
O canhão disparou emitindo um pulso de luz cor de rubi, acertou Finch nas
costas e parecia envolve-lo inteiramente, circulando seu corpo, como se
procurasse uma maneira de entrar. Ele parou de correr, agora em agonia se
debatendo como se estivesse tentando se livrar do abraço mortal do feixe de luz.
Não tinha escapatória. Ele abriu a boca pra gritar e o fluxo de luz entrou pela sua
boca, derramando-se em seu corpo, o sufocando. Ele agarrou a garganta com
as duas mãos, lutando para respirar.
Enquanto ela assistia, lagrimas surgiam em seus olhos, a carne de Finch
começou a brilhar, assumindo o mesmo aspecto estranho da luz. Ele parecia
estar se desintegrando diante dela, desaparecendo da existência, como se a luz
o estivesse empurrando, expandindo, o dissolvendo por dentro.
Em menos de alguns segundos, não havia mais nada dele, além de um tênue fio
de luz desaparecendo lentamente.
Agachada atras do Dalek, Cinder sentiu uma sensação estranha. Ela sabia que
tinha testemunhado algo horrível, mas por algum motivo, ela não conseguia
entender o que. A memória dela parecia repentinamente confusa. Ele teve a
noção perturbadora de que havia algo de que ela não conseguia se lembrar. Ela
podia jurar que os Indignos haviam acabado de exterminar alguém, talvez até
alguém que ela conhecia, mas ela não conseguia imaginar quem poderia ser.
Afinal de contas ela havia planejado aquela emboscada sozinha, sem nenhuma
ajuda. Não foi? No entanto ela não podia negar a sensação avassaladora de
vazio, como se ela estivesse experimentando a ausência de uma emoção
semelhante ao luto. Ela não teve muito tempo para pensar nisso, agora mesmo
os dois Indignos restantes estavam se movendo, voltando-se para ela...
Ela olhou para trás, procurando um lugar para onde correr. Não havia nenhum
lugar além das ruinas do outro lado da estrada, e ela não gostava de suas
chances ali ao ar livre. E a casca do Dalek destruído não iria funcionar como
escudo por muito tempo.
Cinder olhou para cima e escultou um assovia agudo vindo de lá, seu queixo
caiu de espanto. Algo estava caindo do céu – uma caixa azul, com janelas
iluminadas e uma lâmpada piscando no topo. Estava caindo muito rápido,
brilhando com faíscas brancas ao redor de suas bordas, e deixando uma mancha
longa e escura no céu para marcar sua passagem. Fosse o que fosse estava
claramente fora de controle, e iria aterrizar a qualquer segundo...
“Fugir! Fugir!” O Indigno em formato oval se virou e deslizou em direção as
ruinas, seus membros em formato de aranha se agarrando no terreno acidentado
para se apoiar.
Cinder se encolheu, caindo de joelhos e enterrando o rosto nas dobras dos
braços. Não havia nada mais a fazer. O rugido da caixa caindo aumentou com
tal intensidade que era tudo o que ela podia escultar.
Não havia tempo para correr, para buscar abrigo. Estava caindo, e estava
chegando muito perto. O impacto foi tremendo, deslocando tanta terra que jogou
Cinder e a casca de Dalek em que ela estava se escondendo pelo menos dois
metros para cima. Ela caiu de costas, ficando sem ar, assim como fez a caixa –
que havia ricocheteado na beira do morro e sido lançada para a estrada – bateu
pela segunda vez, dessa vez causando um estrondo colossal. Pela segunda vez
naquele dia, ela estava mergulhada em destroços.
A caixa azul guinchou no asfalto, rasgando o que parecia ser madeira, até atingir
os restos de uma parede de tijolos e parou bruscamente.
Cinder respirou fundo e abriu seus olhos. A primeira coisa que a impressionou
foi o fato de ainda estar viva. O segundo foi o silencio assustador que se instalou.
A única coisa que se ouvia era o chiado do asfalto derretendo por onde a caixa
havia passado. Ela não tinha ideia de como uma caixa de madeira podia ter
sobrevivido a violência da reentrada na atmosfera do planeta.
Cinder se levantou, tirando a sujeira de seu corpo e de suas roupas. Ela respirou,
forçando o ar a retornar a seus pulmões. Seus ouvidos zumbiam. Ela cambaleou
alguns passos, mas depois pensou melhor, decidindo que teria que espera até
que sua cabeça parasse de rodar.
Ela tentou se orientar. Tudo estava uma bagunça. O impacto inicial explodiu uma
cratera na latera do barranco, a força do impacto foi tanta que removeu a
superfície da estrada em uma área quase do tamanho de uma casa.
A casca do Dalek estava a quase três metros de distância, ainda balançando
suavemente com o movimento do impacto.
Fumaça ondulou de onde a caixa havia finalmente parado, deitada de lado. Uma
escotilha se abriu no topo, mas ela não conseguia ver o interior. As luzes ainda
brilhavam suavemente nas janelas, embora a lâmpada de cima tivesse se
apagado. Ela se perguntou se aquilo era um sinal de socorro ou algo da própria
caixa.
Parecia que a caixa inadvertidamente tinha salvado sua vida também – metade
do involucro do Dalek – que presumidamente pertencia ao Indigno com o canhão
– ainda estava de pé do lado da caixa, mas a metade superior não estava a vista.
Parecia que a caixa havia decapitado a coisa antes que tivesse a chance de sair
do caminho.
Do mutante parecido com aranha não se via sinal. Cinder avançou, espiando
dentro da caixa. Tudo o que ela conseguia ver era uma nuvem de fumaça
espessa e a luz interna brilhando. Ela pensou em gritar, para ver se havia alguém
vivo lá dentro, mas também estava preocupada em chamar atenção. E além
disso, ela não tinha ideia de quem – ou o que – poderia estar lá dentro. Não, ela
só chegaria um pouco mais perto e daria uma olhada...
Ela congelou ao ouvir o som de um homem gaguejando. Tinha vindo de dentro
da caixa. Então – o ocupante ainda estava vivo.
Rapidamente ela procurou por sua arma. Estava quase pra fora dos escombros,
então ela apressadamente a desenterrou com as mãos, fazendo com que suas
unhas ficassem sujas de uma argila grossa e suja. Ela puxou a arma para fora,
arrastando os cabos, então a limpou e verificou se estava tudo certo.
A luz da bateria diminuiu e ficou vermelha, indicando que toda a energia que
tinha armazenada tinha sido utilizada. Claramente tinha sido danificada na
explosão. Ela praguejou baixinho. Mesmo assim, quem quer que saísse daquela
caixa não precisava saber disso. A arma ainda seria um meio eficaz de
intimidação. Carregando a arma como se fosse um escudo, ela avançou
lentamente sobre a caixa, desconfiada de qualquer sinal repentino de movimento
que pudesse indicar hostilidade. Era uma capsula de fuga? Certamente não
parecia muito grande, e a maneira que havia caído do céu sugeria que tinha sido
ejetada de uma nave orbital. As bordas da caixa ainda estavam brilhando por
conta de sua entrada abrasiva na atmosfera, e uma faixa escura no seu invólucro
indicava que havia recebido um golpe de raspão de uma arma de energia. Será
que uma nave Dalek derrubou essa aqui? Ela se perguntou se o ocupante da
capsula poderia ser humano. Mas porque as palavras “CAIXA DE POLICIA”
estavam escritas em letras grandes nas laterais? Nada que tinha acontecido
parecia fazer sentido.
O homem tossiu novamente, dessa vez mais alto. Cinder sentiu que ele estava
se movendo. Ela parou de andar e apontou o cano de sua arma na direção da
caixa bem a tempo de ver uma cabeça surgindo da escotilha aberta. Com um
esforço o homem jogou os braços nas laterais da caixa e se ergueu, de modo
que sua cabeça e ombros estavam quase nas laterais.
Cinder olhou feio para ele, sem saber o que dizer ou fazer. Ele era um homem
mais velho, com um rosto áspero e preocupado e surpreendentes olhos
castanhos-esverdeados. Seu cabelo era cinza prateado e penteado para frente,
e ele tinha uma espessa barba branca e bigodes. Ele franziu a testa pra ela,
parecendo perplexo. Ele parecia estar vestindo um casaco de couro surrado e
um cachecol tricotado.
“Bem?” disse ele, como se esperasse pela resposta de uma pergunta ainda não
feita.
“Bem, o quê?” ela respondeu, sacudindo a arma para garantir que ela tivesse
visto.
Ele ergueu as sobrancelhas como se estivesse surpreso com a insolência dela.
“Ah, então balançar essa arma pra mim é a melhor coisa a se fazer nessa
circunstancias, não é?”
“Bem...” Cinder pensou por um momento, confusa.
“Olha, foi você que acabou de cair do céu!”
“E ainda bem que eu cai,” disse ele. “Eu diria que meu timing é impecável.”
“Do que você está falando?” disse Cinder, não conseguindo conter sua
exasperação.
“Olha pra você” disse ele. “Claramente precisa da minha ajuda.”
Cinder sentiu uma onda de indignação. “Ah, é mesmo?” Ela balançou a cabeça
perante a pura arrogância do homem. “Eu preciso da sua ajuda?”
“Eu diria que sim,” respondeu o homem.
“E o que te faz pensar isso?” perguntou Cinder. Ela já estava ficando cansada
da postura desse recém chegado irritante. O homem fez um gesto que poderia
ter sido um encolher de ombros, não fosse o fato de ele estar pendurado na
borda da caixa com os dois braços. Parando para pensar a posição parecia um
pouco estranha, dado o quão rasa a caixa realmente era. Ele suspirou. “Se você
não quer acabar sendo exterminada, então eu sugiro que você venha para
dentro.”
“O que?” ela disse. “Você quer que eu entre na caixa com você?” Então ela fez
a sua melhore expressão de ‘não nessa vida, senhor’.
“Eu não quero que você faça nada,” disse o homem, “mas a menos que você
seja tão burra quanto você parece ser, você fará o que eu disse.”
Cinder teve que lutar contra o desejo de puxar o gatilho de sua arma na
esperança de que houvesse energia o suficiente para explodir aquele homem.
“Certo.” Ela disse. “Você está por sua própria conta.” Ela se virou para ir embora.
“AGORA!” berrou o homem. Havia um senso de urgência em sua voz que não
existia antes, um tom que a fez repentinamente prestar atenção.
“Ex-ter-mi-nar!”
Cinder se virou para ver o Dalek em forma de aranha saindo das ruinas à sua
direita. Ela o amaldiçoou. Ela esteve tão concentrada em sua discussão com o
homem na caixa que não estava prestando atenção. Ela já deveria ter aprendido.
Ela apontou a arma para o Indigno e apertou o gatinho, mas como esperava,
nada aconteceu. A energia tinha sido completamente drenada.
Cinder estava ficando rapidamente sem opções. Ela poderia ficar do lado de fora
e lutar contra o Indigno com uma arma que provara ser tão inútil quanto um
martelo, tentar fugir e se expor a ponto de poder levar um tiro nas costas, ou
mergulhar em uma pequena caixa azul com um velho que tinha acabado de cair
do céu.
“Sair de uma situação ruim, para uma pior,” ela murmurou. Enquanto o Indigno
escalava os restos das paredes nas ruinas, tirando uma enxurrada de tijolos
soltos, ela recuou, deu uma corrida e saltou para dentro da escotilha aberta da
capsula de fuga. Ela trouxe os joelhos até seu peito quando pulou, preparando
para cair em uma caixa rasa.
“Entrando!” ela gritou, para dar ao homem tempo de se proteger antes que ela
pousasse nele.
Ela caiu de costas, batendo dolorosamente no que parecia ser placas de metal
do piso, e rolou para a esquerda, estendendo a mão para se conter. Com a outra
mão, ela ainda segurava a arma Dalek perto de seu peito. O impulso a levou
para o lado, e ela acabou com o rosto pressionado contra o metal, que parecia
vibrar suavemente com a vibração do motor.
Algo não parecia certo.
Ela fechou os olhos com força durante a queda. Ela os abriu esperando ver o
velho pressionado contra ela naquele espaço apertado, protegendo-se do
Indigno do lado de fora. Ai invés disso, a visão de uma grande sala circular a
cumprimentou.
Ela se sentou, segurando a arma contra o peito. A sala era totalmente diferente
do que ela esperava. As paredes estavam iluminadas com uma série de
impressões redondas e estranhas – luzes, talvez – e pilares de pedra áspera que
iam até o alto para apoiar o teto.
Uma elevação abrigava o que parecia ser um painel de controle, de alguma
espécie – embora os controles em questão pareciam ter sido remendados a
partir de componentes encontrados que foram feitos para se adaptar. Teias de
cabos pendiam do teto. Todo o lugar tinha uma sensação meio confusa, como
se estivesse sendo constantemente reformado por um inventor, ou consertado
por alguém que nunca tinha sido capaz de acertar onde ia cada peça. Era a sala
de controle de uma nave. Ela supôs que podia ter desmaiado durante seu salto
e tinha acabado de acordar, horas depois, em um lugar diferente. Mas mesmo
tentando se convencer, ela não acreditou nisso nem por um segundo.
O homem, cuja cabeça e ombros ela tinha visto saindo da caixa, agora estava
de pé ao lado do painel de controle, tentando ajustar a imagem em uma pequena
tela de computador. Ele estava de costas pra ela, mas era definitivamente o
mesmo homem – ele estava vestindo a mesma jaqueta e seu cabelo era do
mesmo cinza prateado.
Ela olhou para trás. Estranhamente, estava sentada de costas para a escotilha.
Ela tentou entender, avaliando o tamanho e a forma da abertura. Ela supôs que,
pensando bem, parecia mais com uma porta, mas parecia certo. Era
definitivamente a escotilha pela qual ela havia pulado.
“É...é...” ela gaguejou.
O homem parou o que estava fazendo e olhou para ela. “Maior por dentro. Sim,
eu sei. Vamos acabar logo com isso, certo?” ele disse.
“É o lado errado,” terminou Cinder. “A caixa estava virada de lado, e agora eu
estou do outro lado.”
“Ah. Certo. Hmmm. Eu não estava esperando por isso.” Disse ele. “Sim, suponho
que esteja. Isso acontece por causa dos estabilizadores dimensionais relativos.
Impede que você, bem...caia.” Ele olhou para ela e levantou uma sobrancelha
ironicamente. “O interior pode se orientar de forma diferente do exterior.” Ele
acenou com as mãos, como se estivesse explicando que um milagre não
passasse de um truque.
“E é maior,” disse Cinder.
O homem riu. “E aí está. Isso era o que eu estava esperando.”
“O que significa que...” A expressão de Cinder ficou sombria. “Isso é uma
TARDIS?”
“Sim,” disse o homem. Ele voltou sua atenção para o console e começou a
examinar as leituras na tela do computador. Parecia antiquado. Ele digitou no
teclado, como se tentasse fazer alguma coisa funcionar.
Cinder espiou por cima de seu ombro para ver o que ele estava olhando, mas
tudo o que ela podia ver na tela era uma massa de pictogramas desconhecidos,
rolando e se movendo e uma dança aparentemente aleatória.
“Droga!” ele falou de repente em resposta a algo que tinha lido, e Cinder colocou
o dedo no gatilho de sua arma.
“Se isso é uma TARDIS,” ela disse, “isso significa que você é um...”
“Senhor do Tempo,” ele disse a interrompendo. “Sim, você está certa. Muito
bem.” Seu tom era condescendente.
Cinder respirou fundo. Ela recuou e levantou a arma para que pudesse apontar
para o Senhor do Tempo. Ela estava começando a pensar que suas chances
eram melhores do lado de fora com o Dalek mutante. Conseguia escultar um dos
Indignos batendo na porta, tentando forçar sua entrada. Felizmente a porta da
TARDIS parecia estar segurando.
“O que você vai fazer comigo?” ela disse em uma voz oscilante.
O Senhor do Tempo suspirou. “Largar você em algum lugar seguro assim que
eu puder,” ele disse. “Assim eu vou conseguir um pouso de paz e sossego.” Ele
olhou para ela, como se quisesse avaliar sua resposta.
“Me diga porque eu não deveria simplesmente matar você agora?” ela disse,
segurando a arma Dalek. Não havia como ele saber que estava danificado.
“Porque eu salvei sua vida?” ele disse, razoavelmente. “Porque você não me
parece uma assassina e porque a sua arma está completamente descarregada.”
Ele estendeu a mão para o painel e começou a apertar alguns botões.
“Salvou minha vida!” ela retrucou indignada. “Você quase me matou, caindo do
céu em sua...sua...caixa!” Ela praguejou baixinho em frustração. Ele deve ter
visto ela tentando atirar no Indigno, e descobriu que a arma não tinha mais
energia. Isso significava que ela estava exposta. Mesmo assim, ela ainda seria
capaz de lutar se ele tentasse alguma coisa. Afinal de contas, ela era bem mais
nova que ele.
“Ah, entendi. Então seria bem simples ter se livrado daquela patrulha Dalek?”
Ela não gostou do tom condescendente, dado ao fato de que ele tinha apenas
caído com a nave. Ele retirou algo de dentro do bolso da jaqueta, mas ela não
conseguiu ver o que era.
“Não eram Daleks,” ela rebateu. “Eu já lidei com Daleks. Aqueles eram mutantes.
Indignos.”
O Senhor do Tempo encolheu os ombros. “Um Dalek é um Dalek,” ele disse,
“independente de sua forma, época ou alteração da realidade que eles se
originaram.”
“Isso também é verdade para os Senhores do Tempo?” perguntou Cinder, o
sarcasmo escorrendo de sua voz.
“Infelizmente, acredito que sim,” ele respondeu.
“Mas, você é um Senhor do Tempo?” ela disse, balançando a arma para garantir
que ele não se esquecesse que ela tinha uma. Ele não estava olhando. Voltou a
mexer no objeto em sua mão – um cilindro fino de metal com a ponta brilhante,
que fazia um zumbido irritante toda vez que ele apertava um botão.
“Sim,” ele disse, prolongando as palavras, como se indicasse sua paciência. Ele
segurou o dispositivo perto do ouvido e pressionou o botão, ouvindo atentamente
o som. Então, franziu a testa como se estivesse frustrado com a coisa, ele bateu
repetidamente contra a palma de sua mão.
“Então onde estão o negocio que você usa na cabeça e suas vestes?” disse
Cinder. “Você não parece muito um Senhor do Tempo.”
“Existem exceções para todas as regras,” ele respondeu. E levou seu dispositivo
ao ouvido novamente, ouvindo o som, e então, aparentemente satisfeito,
deslizou o dispositivo em um aro de couro no cinto de munição que ele estava
usando e tirou a poeira das mãos.
“O que é essa coisa? Uma arma?” disse ela.
Ele a ofereceu um olhar impaciente. “Não. É uma Chave de Fenda. Agora,
porque você não abaixa essa arma? Você está deixando a velha garota
chateada.” Ele deu um tapinha afetuoso no console da TARDIS. “E pra ser
honesto, você está me irritando.”
Cinder ignorou a ultima parte do que ele disse. “Você quer dizer, mais do que
você chateou ela por ter caído em um planeta?” ela retrucou. Mas abaixou a
arma, embora se recusasse a abrir mão dela.
“Pronto,” disse o Senhor do Tempo. “Você não se sente melhor?”
Cinder deu um suspiro exasperado. “O que você está fazendo aqui em Moldox?”
“Ah, então é assim que esse planeta horroroso se chama? Moldox.” Ele disse a
palavra como se a estivesse experimentando, então balançou a cabeça, como
se decidisse que não era de seu gosto. “Mas a grande pergunta é, o que você
estava fazendo lá, enfrentando aqueles Daleks?”
“Era uma emboscada,” ela disse.
O Senhor do Tempo deu a ela um olhar de aprovação. “Uma emboscada?” ele
repetiu. “Só você, seu amigo e uma arma de energia Dalek. Estou
impressionado.” Ele pareceu momentaneamente desamparado. “Me desculpa,
eu não consegui salva-lo.”
Cinder olhou para ele confusa. “Meu amigo? Eu estava sozinha.”
O Senhor do Tempo franziu a testa. “A TARDIS detectou dois sinais de vida
humano na zona de colisão. Um deles desapareceu depois uma descarga
massiva de energia de um dos Daleks. Eu presumi que vocês estavam juntos.”
Mais uma vez, aquele estranho sentimento, como se tivesse algo que ela deveria
lembrar, mas não conseguia. “Eu...” ela hesitou. “Eu acho que não,” ela disse.
O Senhor do Tempo acenou com a cabeça, mas estava claro que ele estava
preocupado com a resposta dela. “Bom, você pode se sentir em casa por alguns
minutos” ele disse, dando a volta no console, fazendo ajustes nos controles. “Eu
só vou fazer ela ligar novamente.” Ele agarrou uma alavanca com uma alça de
madeira gasta e puxou. A câmara alta de vidro no cento do console piscou
brevemente com uma luz branca e brilhante e o ninho de tubos começou a subir
dentro da coluna. Mas então a luz diminuiu, e houve um gemido profundo e
inquietante no chão.
“Droga!” Disse o Senhor do Tempo, batendo o punho com raiva contra o painel
de controle. “Ela está fora de ação. Vai precisar de um tempo para se curar antes
que eu possa sair desse mundo novamente.
“Sair desse mundo?” disse Cinder. Um pensamento repentino e espontâneo
passou por sua cabeça. Era isso? Era essa a chance para escapar que ela
esteve esperando? Será que ela poderia pegar uma carona para fora do planeta
com esse excêntrico e velho Senhor do Tempo? O pensamento era atraente. Ela
brincou com a ideia de deixar Moldox centenas de vezes ao longo dos anos, mas
a oportunidade nunca tinha se apresentado. Poderia ser dessa vez? A chance
para um recomeço, em algum lugar onde a guerra não passava de uma memoria
distante, um conto de fadas contado aos jovens para encorajar seu bom
comportamento. Lugares como esses deveriam existir em algum lugar no
cosmos.
“Bem, não é como se nós estivéssemos com pressa,” ela disse, finalmente se
levantando. Ela apoiou a arma contra a grade de metal, certificando-se de estar
a seu alcance. Não faria bem nenhum disparar em um lugar fechado – e ela
precisava achar outra bateria – mas se as coisas ficassem feias, era tudo o que
ela tinha.
“Nós?” disse o Senhor do Tempo.
“Você disse que me levaria para um lugar seguro,” disse Cinder. “E eu posso te
assegurar, Moldox não é seguro. É difícil evitar patrulhas Dalek. E eu prefiro
morrer do que deixar que eles façam de mim uma prisioneira.”
“Prisioneira?” disse o Senhor do Tempo. “Não é como os Daleks fazem. Não a
menos que eles tenham planos para esse planeta. O que acontece com as
pessoas que eles levam?” Cinder deu de ombros. “Só o que eu sei é que eles
são levados até a cidade. É para isso que servem as patrulhas – para reunir
pessoas. Eles só te exterminam se você lutar ou tentar fugir.”
“Eles estão cavando poços no chão? Cavando minas?”
Cinder deu de ombros. Ela não tinha a menor ideia.
“Acho melhor você me mostrar,” disse o Senhor do Tempo.
O coração de Cinder apertou. “Mas e os Daleks?” Ela percebeu que as
marteladas na porta haviam parado. Talvez o Indigno havia desistido e fugido
para relatar. E ela preferia não descobrir se isso era verdade.
“Nós chegaremos a isso no momento certo,” ele disse “Qual é a cidade mais
próxima?”
“Andor,” ela disse. “Cerda de dez milhas daqui.”
“Você conhece o caminho?”
Cinder acenou com a cabeça. “É perigoso,” ela disse. “Existem milhares deles
lá. Existem histórias... sobre os mutantes, e sobre as novas armas que estão
desenvolvendo.”
“É disso que eu tenho medo,” disse o Senhor do Tempo. Ele olhou para o monitor
uma ultima vez, e andou em direção a aporta. “Vamos. Não existe tempo melhor
do que o presente.”
“Se eu fizer isso,” ela disse, ainda parada perto do console, “se eu te levar a
Andor e te mostrar onde estão os Daleks, então você vai me tirar daqui em sua
TARDIS, para algum lugar seguro?” sua voz falhou enquanto ela dizia as
palavras. Ela enfiou as mãos no bolso para que ele não visse que ela estava
tremendo.
“Sim,” ele disse. “Eu vou. Eu prometo.”
“Como eu sei que posso confiar em você?”
Seus olhos encontraram o dela, antes de ele se virar e passar pela porta. “Não
tem como saber.” Ele disse.
Pensando que não tinha mais nada a perder, Cinder agarrou sua arma e correu
atrás dele.

Capítulo Quatro
Antes dos Daleks chegarem, Jocelyn Harris era a governadora do planeta
Moldox, e dos outros quatro assentamentos humanos nas luas do planeta. Ela
era boa no seu trabalho: a colônia havia florescido sob o seu olhar. A taxa de
natalidade subiu, o programa de construção tinha um ritmo constante, e o
processo de Terraformação tinha provado ser tranquilo, com apenas um
memorável mal funcionamento que causou um único inverno rigoroso. Jocelyn
tinha orgulho de seu trabalho. As pessoas de Moldox que tinham a reelegido três
vezes, a celebravam como se ela fosse a precursora de uma nova era. E para
retribuir por sua inabalável fé, ela os traiu com os Daleks.
Ela não o fez por conta do desejo de poder ou por qualquer tipo de devoção a
uma causa superior. Eles eram o tipo de coisa que motivava os desertores, em
sua experiencia limitada. Não, o que ela fez foi motivado pela covardia, e na
própria opinião de Jocelyn, isso a tornava o pior tipo de desertor. Ela fez para
salvar sua própria pele. Quando os Daleks invadiram Moldox, acabando com o
planeta e eliminando a população, ela concordou em se tornar a humana porta-
voz, um fantoche, um brinquedo. Tudo isso para ter certeza de que ela viveria.
Ao longo dos anos, ela tentou dizer a si mesmo que não teve escolham, que
certamente seria melhor se ela trabalhasse contra os Daleks internamente, se
envolvendo em seus planos, alertando seu povo. Só que ela sempre teve um
pouco de medo de agir, de passar qualquer informação para a resistência,
preocupada que os Daleks descobririam o que ela estava fazendo. A retribuição
deles seria rápida e eficaz e isso seria o fim de tudo. Ela sabia disso, o que quer
que acontecesse, uma coisa era certa: Ela era completamente substituível.
Ela se perguntou o que os Daleks tinham em mente para ela hoje. Dois dos
terríveis, com cores de latão, tinham vindo no quarto - uma cela na verdade –
exigiram que ela saísse com eles imediatamente. Como de costume, não teve
nenhuma sutileza, nenhuma explicação – apenas um comando em que exigiam
que ela estivesse na câmara de audiência.
Ela se levantou de trás da mesa, aprontou seu tablet e fez o que lhe foi dito. A
gravidade artificial na estação de comando era fraca, apesar do seu tamanho.
Os Daleks, ela aprendeu, não tinham necessidade disso – eles podiam se
magnetizar no piso de metal e mesmo se eles flutuassem eles tinham
propulsores que os permitiam voar. A gravidade era uma simples concessão aos
prisioneiros que eles mantinham a bordo da estação e por isso eles não
gastavam energia para garantir que existisse algum nível de conforto.
Por isso, Jocelyn se viu saltitando atrás dos Daleks, dando passo exagerados
enquanto tentava acompanhar eles. A câmara de audiência ficava a menos de
quinhentos metros de sua cela, e durante os muitos anos em que ela esteve
presa na estação ela tinha visitado lá inúmeras vezes.
Hoje ao que parecia o Circulo da Eternidade estava em plena sessão. Todos os
cinco estavam ali. Pairando sob seus pedestais, olhando para ela enquanto
avançava para dentro da grande câmara hexagonal.
Ela nunca foi capaz de estabelecer a função desses Daleks em particular, ou o
que os diferenciava dos outros Daleks. Exceto pela coloração, é claro. Eles eram
idênticos em tamanho e forma dos dois guardas que a trouxeram de sua cela,
mas onde os invólucros desses Daleks estavam decorados com bronze ou ouro,
o dos cinco membros do Circulo da Eternidade tinham um azul metálico, com
cabeças em forma de cúpula e os globos de prata, destacando a parte de baixo.
Tudo o que Jocelyn sabia é que eles foram encarregados pelo Imperador Dalek
de criar novas armas para acabar com os Senhores do Tempo, alguma dessas
armas eles estavam testando nas pessoas de Moldox e em outros mundos da
Espiral de Tântalus. Ela sabia disso porque era ela que fazia os relatórios.
Para Jocelyn eles eram criaturas de pesadelos; demônios envoltos em conchas
azuis. Esses eram os monstros responsáveis pelo o que aconteceu com seu
amado planeta, sua casa – e seu filho.
“Espere,” gritou um dos guardas Dalek. Sua voz era como pregos sendo
cravados em seu crânio. Ela parou de andar. Ela estava parada no centro da
câmara, olhando para os cinco Daleks Azuis. Eles pareciam considerar ela
ameaçadora, mas nenhum deles falou nada.
Os guarda recuara, deslizando silenciosamente para trás. Ela decidiu continuar
em silêncio até que fosse solicitada a falar.
Bem acima dela, uma tela holográfica ganhou vida, tingindo uma parte do ar de
um azul nebuloso. O aparecimento foi acompanhando por um cheiro que a
lembrou ozônio fresco.
“Relatório,” rugiu a voz baixa e áspera do Imperador Dalek. Jocelyn ergueu os
olhos surpresa. A imagem sinistra de um olho enorme que não piscava foi
projetado na tela, mas a voz parecia emanar de tudo ao seu redor, enchendo a
câmara. Ela sentiu algo no estomago e sentiu seus pelos arrepiarem.
“A arma está quase pronta,” disse o Dalek da esquerda, puxando a palavra em
seu tom áspero e monótono. “Em breve o Erradicador estará pronto.”
“Excelente,” respondeu o Imperador. “Estamos perto da destruição de Gallifrey.”
Uma pausa. “E sobre os progenitores?”
“Doze das dezessete épocas foram semeadas com progenitores Dalek,”
respondeu outro do Circulo Eterno. “As forças dos Senhores do Tempo estão
fracas. A guerra está sendo travado em múltiplas frentes.”
“Como estava prescrito,” disse o Imperador. “Qual progresso foi feito no
desenvolvimento do novo paradigma?”
“O teste no planeta Moldox está quase completo.” Respondeu o Dalek no
pedestal central, sua válvula de radiação piscava enquanto ele falava.
“Os dados sugerem que a nova Arma Temporal está quase pronta para
distribuição através do continuum espaço e tempo.”
“Mostre-me,” disse o Imperador.
“Eu obedeço,” respondeu o Dalek. Sua cabeça girou na direção de Jocelyn.
“Jocelyn Harris. Você serviu bem aos Daleks,” disse.
“Eu tentei,” ela gaguejou, sem saber exatamente para onde aquilo estava indo.
“A traição da sua própria raça mostra que você não é confiável,” continuou o
Dalek. “Você será ex-ter-mi-na-da.”
“Não!” ela gritou. “Não, eu faço qualquer coisa. Diga o que eu tenho que fazer
para me provar a vocês.” Ela começou a recuar em direção a porta, mas ela
sabia que não havia par onde correr. Ela estava em uma estação de comando
Dalek, orbitando uma vasta anomalia no espaço e tempo. Qualquer prorrogação
seria temporária. Mas isso não a impediria de tentar.
Ela se virou com a intenção de correr para a porta, mas gritou de frustração ao
ver a silhueta de uma Dalek, bloqueando seu caminho. Enquanto ela observava,
tentando descobrir o que fazer, o novo Dalek lentamente apareceu. Era diferente
dos outros. O mesmo padrão de bronze e outro, a mesma altura e aparência em
geral. Mas a parte do meio havia sido substituída, de modo que, ao invés do
braço e da arma, havia um enorme canhão preto.
Ela recuou, cambaleando na gravidade baixa. O Dalek avançou em sua direção,
nivelando seu canhão. “Erradicar! Erradicar!”. Energia começou a se acumular
ao redor de sua arma.
“Não! Por Favor!” gritou Jocelyn, levantando as mãos para cobrir o rosto
enquanto o canhão lançava uma enorme luz sobre ela.
A ultima coisa que ela viu foi o olho do Imperador Dalek, olhando para ela da tela
acima, com alguma intenção maléfica.

Capítulo Cinco
“Cuidado. Ele pode estar lá fora ainda.” disse Cinder, agachada ao lado da
TARDIS e escaneando as ruínas por algum sinal do Indigno. “Aquele estava
armado com quatro armas de energia.”
“Eu tenho certeza que ele já foi avisar os seus amigos.” disse o Senhor do
Tempo. “Eles não vão gostar do fato de que eu estou aqui nem um pouquinho.”
Cinder lhe encarou. Ela tinha ouvido dizer que os Senhores do Tempo tinham
fama de arrogantes, mas isso era diferente. Ele não parecia estar se gabando.
Na verdade, quando muito, ele tinha feito esse último comentário com a cansada
inevitabilidade sugerindo que ele não queria estar aqui de verdade. Ela estava
começando a gostar dele, apesar de que, no momento, teria que manter a
cautela. Ele era difícil de decifrar e ela não fazia ideia se podia ou não confiar
nele. Ela apenas esperava que ele não fosse causar problemas caso
conseguisse lhe colocar para dentro de Andor. Uma olhada rápida e então de
volta para a nave. Esse era seu plano. Se fossem rápidos, poderiam estar de
volta pela manhã.
Ele estava com a sua chave de fenda na mão de novo. Ela assistiu ele levantar
o objeto acima de sua cabeça e pressionar o botão. Ele moveu seu braço para
frente e para trás em um movimento de varredura, escutando o som que fazia,
antes de dar de ombros e guardar ela de volta no seu cinto de munição
novamente.
Cinder andou para ficar ao seu lado. Ela olhou ao redor, ainda se sentindo muito
exposta na ravina. “Eu me chamo Cinder, alias.” ela disse. Ela não ofereceu sua
mão.
O Senhor do Tempo assentiu.
Cinder suspirou. “É de costume quando alguém diz o nome, você responde
dizendo o seu por educação.”
“É mesmo?” O Senhor do Tempo rebateu abruptamente. Eles caíram em silêncio
por um momento.
“Então?” Cinder deu um empurrãozinho.
“Que tipo de nome é ‘Cinder’?” ele disse, mudando de assunto.

“É o único nome que eu tenho hoje em dia.” ela respondeu. “Eu costumava ter
outro, muito tempo atrás, antes dos Daleks chegarem. Mas depois que eles
mataram minha família e me deixaram para morrer dentro de uma lata de lixo
enferrujada, eu deixei aquela vida para trás. As pessoas que me encontraram
me chamaram de ‘Cinder’, brasa, por causa da cor do meu cabelo.” Ela levou
uma mão aos cachos laranjas e deu uma mexida na bagunça.
O Senhor do tempo lhe encarou pensativamente. “Eu entendo.” ele disse. “Eu
costumava ter um nome também, mas nem me lembro da última vez que usei
ele.”
“Por que?” ela disse. “Era tão vergonhoso assim?”
O Senhor do Tempo lhe deu uma olhada de lado. “Era um nome que
representava algo do qual eu não sou mais digno.”
“Não cabe a outros julgar isso?”
“Talvez.” ele respondeu.
“Diga-me.” ela pediu. “Diga-me qual era.”
Ele pareceu pensar por um momento. “O Doutor. Eu costumava me chamar de
Doutor.” Ele virou e se arrastou estrada abaixo com a cabeça curvada.
“Bem, Senhor do Tempo que costumava se chamar Doutor,” ela gritou para ele.
“Você está indo para o lado errado.”
A temperatura tinha caído com a luz que ia embora, tarde se tornou noite. Pelo
lado bom, a compacta mochila de Cinder não tinha se danificado durante sua
queda do penhasco, e ela conseguiu se enrolar no suéter tricotado a mão que
carregava para esse propósito.
A noite nunca era absoluta em Moldox. A luz do Olho de Tântalus mantinha o
planeta envolto por um estranho crepúsculo. Cinder nunca tinha conhecido nada
diferente, é claro, e a ideia de escuridão total, negridão impenetrável, lhe enchia
de temor. Em sua experiência, a escuridão era abrigo de monstros. Pelo menos
você podia os ver chegando em Moldox.
Eles tinham tomado um caminho através das ruínas ao invés de se manter nas
estradas. Isso queria dizer que eles iam passar por cima de tijolos quebrados e
paredes e fazer uma rota mais comprida, porém era mais difícil para os Daleks
passarem pelas ruínas e era mais fácil de avistar se levantassem voo.
Eles viram apenas mais uma patrulha enquanto avançavam as primeiras cinco
milhas através de uma paisagem de domos de habitação e prédios cívicos
quebrados: dois Daleks e dois Gliders, passando por cima dos telhados,
procurando sinais de vida abaixo. O Doutor puxou Cinder para um abrigo
temporário debaixo do limiar de uma porta despedaçada enquanto eles
passavam. Eles esperaram ali por mais dez minutos, só para ter certeza de que
a patrulha não ia voltar.
Ela disse para o Doutor que tinham uma pequena parada para fazer durante a
rota e estavam chegando perto - a última localização conhecida do
acampamento rebelde. Era uma seleção descombinada de barracas, tendas e
estruturas temporárias construídas com o entulho de prédios caídos. De cima,
era projetado para parecer com qualquer campo de destroços, mas daqui de
baixo parecia o acampamento de um exército, aninhado entre as estruturas que
tinham uma vez sido uma praça ou parque recreacional.
Cerca de trinta homens, mulheres e crianças, todos vestidos por trapos
coletados, ficavam por ali limpando armas, fazendo comida e cuidando dos
ferimentos uns dos outros. Essa era a única família que Cinder conhecia desde
os sete anos. Essa era a soma total do movimento de resistência humana, e, até
onde ela sabia, as últimas pessoas livres de Moldox - aqueles que tinham
escolhido lutar contra os Daleks e tinham sido rápidos o suficiente para
sobreviver.
“O que é esse lugar?” disse o Doutor. “Eu achei que você estava me levando
para Andoc.”
“Andor.” corrigiu Cinder. “E eu estou. Essa é a parada sobre a qual eu te falei.
Preciso coletar algumas coisas.”
“É aqui que você mora?” O Doutor perguntou.
Cinder balançou a cabeça. “Não por mais do que uns dois dias. Temos que nos
manter em movimento se queremos nos manter à frente dos Daleks. Mas sim, é
aqui. Essa é a minha vida. Esse é o meu povo.”
O Doutor não disse nada, apenas ficou ali, olhando para o lugar com seus olhos
velhos e aguçados.
“Anda.” Cinder falou. “Não quero ficar mais do que o necessário. Só quero jogar
umas coisas na minha mochila.”
Ela o liderou através da aldeia improvisada, atraindo olhares descarados das
pessoas pelas quais passavam.
“Não se importa com eles.” Cinder disse baixinho. “É raro o suficiente que
encontremos outro ser humano vivo para se juntar a nossa gangue. Imagina o
que pensariam se soubessem que você é um Senhor do Tempo?” Ela sorriu,
decidindo não adicionar que provavelmente linchariam ele se tivessem a
oportunidade.
“Cinder!”
Merda! Ela reconheceu a voz. Ela manteve a cabeça baixa. Coyne era a última
pessoa com a qual precisava esbarrar agora. Ela tinha esperado ir embora de
fininho sem precisar ver ele, sem encarar a culpa de deixar ele aqui - de deixar
todos eles aqui - enquanto fugia com um estranho em uma caixa azul. O que ela
estava fazendo não era corajoso. Ela sabia isso no fundo, mas ela tinha ficado
tão cansada da correria sem fim, de criar uma existência nas ruínas e
constantemente olhar por sobre o ombro à procura de Daleks. Ela nunca quis
ser uma guerreira, mas o papel tinha sido forçado a ela pelas circunstâncias, e
agora, finalmente, essa era sua oportunidade de escapar, de fazer algo diferente
com sua vida. Ela sabia que se visse Finch, a dívida que tinha com ele arriscava
fazer com que desistisse.
“Cinder! Quem é seu amigo?”
Com um suspiro, ela virou para ver Coyne andando em linha reta até eles do
outro lado da sua tenda. “Olá, Coyne.”
Ele era magro e musculoso, tinha cerca de quarenta anos de idade e era um dos
líderes de sua pequena tropa. Ele também era o veterano de diversos encontros
com os Daleks, como certificado pela profunda cicatriz roxa atravessando o lado
esquerdo de sua face, quando um raio de energia passou raspando, incinerando
sua orelha e desgastando a carne de sua bochecha.
Tinha sido Coyne que tinha pego ela da lixeira nas ruínas em chamas de seu lar,
e Coyne tinha lhe ensinado como sobreviver, como lutar.
“Você não vai nos apresentar?” ele disse, com um olhar cauteloso na direção do
Doutor.
“Esseéh…” Ela hesitou. “Esse é...”
“John Smith,” disse o Doutor, estendendo sua mão.
“Bem, John Smith,” disse Coyne, olhando o Doutor de cima a baixo. “Onde você
tem se escondido?”
“Em qualquer lugar onde os Daleks não me encontrem.” O Doutor disse por trás
de um sorriso fino. “Indo de lugar em lugar sem parar por muito tempo.” Ele olhou
de relance para Cinder, e ela pode dizer que isso não era uma mentira. “Eu
encontrei Cinder tentando derrubar uma patrulha Dalek por conta própria.” ele
continuou. “e decidi parar para ajudar.”
Coyne riu amistosamente. “É, isso soa como a Cinder.” Ele colocou um braço
protetor ao redor do seu ombro. “Mas por que você não levou ninguém junto?
Você sabe as regras. Não é seguro ir lá fora sozinha.”
“Eu não estava sozinha.” ela respondeu. “Eu tinha John Smith comigo, não
tinha?”
Coyne revirou os olhos. “Você sabe exatamente o que eu quero dizer, Cinder,”
ele rebateu. “Olha, eu aposto que vocês dois poderiam comer algo. Vamos, o
ensopado está quase pronto.”
Cinder lançou um olhar constrangido para o Doutor. “Bem, nós…”
“Isso soa como uma ideia maravilhosa.” disse ele.
O ensopado era um caldo grosso feito de vegetais e ervas, mas era quente e
bem vindo, e Cinder o engoliu rapidamente, aproveitando a rara sensação de
uma barriga cheia.
Era agora o que contava como noite em Moldox, e a estranha, quase etérea, luz
do Olho fazia ondas no céu, uma aurora de raios amarelos, rosas e azuis.
Borbulhava como a superfície de um lago indescritível, como uma colorida
pintura a óleo espalhada pelo céu.
O Doutor, que estava em uma profunda conversa com Coyne há meia hora para
furtivamente descobrir detalhes sobre a força de ocupação dos Daleks, veio
sentar ao seu lado em um tambor de cabeça para baixo. Ele seguiu seu olhar,
observando o céu.
“Lindo, não é?” ela observou.
“Você sabe o que são?” Ele ofereceu, ela balançou a cabeça. “Ventos
temporais.” Ele tomou um longo gole de uma caneca metálica de chá. Radiação
temporal vinda do Olho. O que você está vendo lá em cima é um bilhão de anos
de história, um vislumbre no céu noturno de um passado antigo e de um futuro
distante. A radiação causa anomalias, falhas no espaço-tempo. É uma janela
direta para outro tempo, só que o mundo do outro lado está mudando em um
fluxo constante. E sim, você está certa - é uma coisa muito bonita.”
Cinder olhou para cima novamente, dessa vez com novos olhos. “Todo aquele
tempo, todos aqueles anos de paz. Agora existe apenas a Guerra.”
O universo é cheio de maravilhas, Cinder. As coisas que eu já vi… As luas de
vidro em Sochi, o Véu Vermelho da Parábola Oriental, as praias celestes de
Altros. Existem coisas lá fora que te fazem chorar de felicidade.” Ela estava lhe
observando intensamente.
“Moldox já foi assim uma vez.” ela disse. “Antes da sua guerra. Antes dos Daleks
virem. Os céus costumam ser cheios de naves de transporte, trazendo pessoas
novas e exóticas todos os dias. As cidades transbordavam de vida. Pessoas
eram felizes. Palácios de prazer foram construídos nas planícies com vista para
o mar Bárico, com suas águas douradas e praias feitas com grãos de gelo. Eles
construíram torres que pareciam chegar ao próprio Olho, e máquinas que tanto
pareciam quanto pensavam como homens. Era um império grandioso. Agora
está em ruínas.”
Ela remexeu a terra com a ponta de seu sapato. “Todos esses outros lugares
que você mencionou, esses mundos maravilhosos - vocês vão destruir todos
eles, não vão? Cada último canto do universo. Até a hora que acabarem não vai
ter nada sobrando.”
“Não se eu puder evitar.” disse o Doutor. “É por isso que estou aqui, Cinder. É
isso que estou tentando evitar, por isso que precisava ver o que os Daleks estão
fazendo aqui em Moldox.”
Ela assentiu. Poderia ela realmente confiar neste homem - nesse Senhor do
Tempo? Havia algo nele, algo diferente. Passando tempo em sua companhia,
ela sentiu em si mesma o começo de uma crença, pela primeira vez em anos,
no fato de que talvez existisse um jeito de sair dessa bagunça na qual eles se
encontravam; que pudesse existir esperança. Era uma emoção estranha e ela
não estava pronta para aceitar ela ainda.
“Você conseguiu o que procurava?” ele disse depois de um momento. A pergunta
lhe puxou abruptamente de volta para o presente.
“Sim.” ela disse indicando sua mochila, a qual ela tinha largado em sua cama,
alguns metros distante e debaixo de uma cobertura de tecido. “Apenas algumas
lembranças. Coisas que eu não queria deixar para trás.” Ela levantou seu braço,
mostrando o bracelete em seu pulso para ele. Não era nada demais, apenas
uma argola de fios de cobre torcidos, desgastados pelo tempo. Tinha sido feita
por seu irmão, todos aqueles anos atrás, e ela tinha guardado desde então. Ela
não sairia de Moldox sem aquilo. Era tudo o que tinha sobrado dele além de suas
memórias.
“Eu entendo.” disse o Doutor. Ele fez uma cara descontente, olhando algo de
relance. “Diga-me, de quem é aquela cama ali, ao lado da sua?”
Cinder olho para a outra cama improvisada, apenas um metro ou dois distante
da sua. Parecia estranhamente familiar. “Eu não…” ela hesitou. “Eu sinto como
se devesse saber… mas eu não sei. É a sensação mais estranha. Como se algo
estivesse faltando.”
O Doutor concordou, sua expressão sombria. “Bem, não há nada com o que se
preocupar agora. É hora de beber um pouco e descobrir o que os Daleks estão
fazendo em Andor.”
Cinder colocou sua taça no chão e pegou sua mochila, colocando-a por cima do
ombro. Tudo que ela realmente queria agora era dormir, mas ela tinha feito uma
promessa ao Doutor, e ele em troca tinha feito uma promessa para ela. Ela ia
ver o fim disso de um jeito ou de outro.

Capítulo Seis
“Shhhh!”
“Eu não falei nada!” o Doutor rebateu.
“Não, seus pés.” Cinder chiou. “No cascalho. Caminhe na lama.”
O Doutor olhou para ela como se ela estivesse enlouquecendo. “Mas aí minhas
botas ficariam imundas.” ele respondeu. “Vai ficar sujando a TARDIS todinha.
Quem é que vai limpar? Você?”
Cinder revirou os olhos. “Sim, se eu for obrigada. Só ande logo. É melhor ter
botas sujas do que ficar jogado em uma sarjeta, ou com um buraco no peito.
Estamos quase lá. Esse lugar vai estar cheio de Daleks.”
O Doutor negou com a cabeça de maneira dramática, mas fez conforme tinha
sido orientado e subiu na borda, abandonando o caminho de cascalho.
Eles estavam nos arredores de Andor, logo depois da fronteira marcada pelas
muralhas. As muralhas propriamente ditas tinham sido em grande parte
derrubadas durante os anos de ocupação Dalek, e agora formavam pilhas de
escombros e pedaços de pedra. Pareciam assustadoramente com uma pintura
que ela tinha visto quando criança em um de seus livros ilustrados, uma cidadela
da antiga Terra, assentada em um penhasco escarpado acima do oceano.
O resultado era que qualquer aproximação em direção à cidade seria perigosa
e, pior ainda, exposta.
Era fácil de ver que Andor já tinha sido espetacular um dia, uma joia no coração
da colônia. O que havia começado nos primeiros dias da ocupação humana
como uma coleção desorganizada de arquitetura funcional - hab-blocos, escolas
básicas e prédios públicos quadrados - tinha, ao longo dos anos, evoluindo em
uma metrópole digna de cartão postal.
Prédios de uma miríade de culturas originadas na terra ficavam ombro a ombro,
aqui -igrejas, arranha-céus, teatros e mesquitas - e a hastes finas de passarelas
aéreas cruzavam o céu em todas as direções. Muitas delas agora estavam
quebradas, estilhaçadas durante o saque. Os prédios estavam em maior parte
abandonados também, quaisquer sobreviventes, como a própria Cinder,
deixados para lutar por si mesmos nas ruínas ao redor enquanto os Daleks
tinham firmado residência na cidade.
Cinder chamou o Doutor para onde ela estava escondida dentro dos muros de
uma casa, olhando com cuidado sobre uma parede meio caída. Hera se agarrava
aos tijolos, correndo sem direção, a única coisa viva nesse maldito lugar.
Se abaixando para ficar fora de vista, o Doutor se arrastou para ficar agachado
do lado dela. “Ali.” ela disse, apontando para um buraco grande nas paredes da
cidade. “Consegue ver esses domos?” o Doutor assentiu.
“Aqueles são prédios dos Daleks. Eles adaptaram uma antiga escola,
adicionando coisas e adaptando. Achamos que é a base de operações deles.”
“E as pessoas?” O Doutor perguntou. “Aqueles que eles trazem para a cidade.
Onde estão?”
Cinder deu de ombros. “Ninguém sabe. Eles são levados para aquelas redomas
para “processamento” e nunca mais são vistas de novo. Nos primeiros dias nós
costumávamos especular sobre o que estava exatamente acontecendo com
eles, mas depois de um tempo todo mundo parou de falar a respeito. Eu acho
que todos assumimos que estavam mortos. Nunca escutei de ninguém sair com
vida,”
“Então é lá que a gente precisa ir.” o Doutor disse.
Cinder balançou a cabeça. “Ah não, não foi nisso que concordamos. Você disse
que precisávamos dar uma olhada. Você deu uma olhada. Agora tá na hora de
voltar para a sua TARDIS e ir para o lugar mais longe o possível daqui.”
“Cinder, eu preciso ver o que eles estão fazendo com essas pessoas. Se os
Daleks estão apenas matando elas, por que se dar ao trabalho de juntar e trazer
elas até aqui? Por que não apenas exterminá-las na hora? Esse é o padrão dos
Daleks, não é? Eles não são exatamente conhecidos por sua misericórdia.” Ele
passou a mão na barba enquanto pensava. “Eles estão tramando algo e eu quero
chegar ao fundo do que é.”
Cinder chutou uma pedra para extravasar sua frustração. Ela balançou para
longe, atravessando o caminho de cascalho, atingindo a parede oposta. No
fundo ela sempre soube que isso ia acontecer.
“Você pode esperar aqui se quiser.” disse o Doutor. “Eu não vou demorar.”
“Eu não posso te deixar ir até lá sozinho.” ela respondeu. “Especialmente
desarmado.” O que ela estava pensando, no entanto, era: se os Daleks te pegam
espiando, eu não tenho a mínima chance de descobrir como pilotar sua nave. E
além do mais - apesar de tudo isso, ela tinha começado a gostar dele.
Ela escutou um ruído mecânico abafado a aproximadamente dez metros de
distância e se abaixou atrás da parede com pressa. O Doutor claramente escutou
também porque imitou suas ações. Ele espiou por cima da parede, seus olhos
brilhando.
“O que era aquilo?” ela sussurrou. “Você consegue ver alguma coisa?”
“Olhe lá.” o Doutor disse, inclinando a cabeça. “Eles estão vindo para cá.”
Cinder se contorceu, olhando por um buraco na parede. Através de um pedaço
grosso de hera, ela conseguia ver uma longa fila de humanos, cerca de quinze
ou vinte, sendo escoltados pelos portões da cidade. Eles pareciam exaustos,
pálidos e próximos da morte. Eram flanqueados por pelo menos cinco Daleks,
dois dos quais estavam flutuando, um de cada lado da fila, escaneando as ruínas
ao redor por qualquer sinal da resistência.
Ela abaixou a cabeça quando uma haste visual virou na direção dela. Sua
respiração parou, esperando pelo ruído de uma voz de Dalek ou o tiro de uma
arma de energia. Felizmente nenhum dos dois veio. Parecia que os Daleks
estavam preocupados com transportar seus prisioneiros.
Quatro, cinco minutos passaram, sem nem Cinder ou o Doutor ousarem se
mexer ou falar. Então vieram os sons dos portões da cidade se abrindo, o som
distante de dois Daleks trocando ordens e o grito de um humano finalmente
sucumbindo ao medo ou à fadiga. Cinder queria enfiar os dedos nos ouvidos e
afogar tudo aquilo em silêncio.
Os Daleks jogaram mais ordens para seus prisioneiros, e um minuto ou dois
depois os portões se fecharam de novo. Cinder soltou a respiração devagar, pelo
que pareceu ser a primeira vez em horas.
“Eles já foram.” O Doutor anunciou depois de uma breve olhada. “Nós
deveríamos nos mover rápido, ver se achamos um jeito de ir atrás deles.”
Ele se levantou e ofereceu a mão para ela, e quando ela aceitou seu corpo
congelou em terror com a visão de um Dalek olhando para eles por cima da
parede.
“Intru-so! Alerta! Alerta!”
Apenas sua cabeça e haste de visão eram visíveis, seu manipulador e arma
escondidos atrás da parede arruinada.
“Elevar! Elevar!”
“Qual é!” O Doutor a puxou de onde tinha se abaixado. “Corre!”
“Não!” ela gritou, se torcendo para fora de seu alcance. Sua arma estava jogada
por cima do ombro em uma alça improvisada de couro, ela deslizou a mesma
para a posição correta e procurou pelo gatilho.
O Dalek estava se elevando com constância no ar. “Extermina-”
Houve uma grande explosão quando o raio de energia deixou o cano da arma
de Cinder, tirou a cabeça do Dalek e mandou o resto da armadura em uma
espiral até o chão. A coisa foi direto para a lateral de um prédio e ficou no chão
até parar a alguns metros de distância deles. Fumaça saia da cratera onde o
Dalek estava.
O Doutor lhe encarou. “Eu achei que essa coisa tinha ficado sem bateria.” ele
disse, surpreso, mas claramente aliviado.
“Eu peguei uma nova no acampamento.” ela respondeu com um sorriso largo.
“Achei que pudesse ser útil.”
O Doutor sorriu de volta. “Bem, você com certeza vai virar assunto. Eles vão nos
encontrar em alguns momentos. Vamos enquanto temos o poder de uma
distração. Agora é a nossa chance de entrar.”
“Sério?” Cinder indagou. “Você realmente quer ir lá dentro?”
“Eu achei que a gente já tinha falado sobre isso.” o Doutor respondeu.
“Só conferindo.” Cinder disse. “Porque é o pior plano que eu já escutei na minha
vida.”
Um coro de vozes de Daleks aumentou na distância, vindo detrás das paredes
da cidade.
“Eu não acho que a gente tenha muita escolha.” o Doutor respondeu. Ele andou,
suas botas amassando o cascalho. “Venha por aqui.”
Enquanto os Daleks convergiam no lugar onde eles estavam apenas segundos
antes, o Doutor e Cinder correram de forma desgovernada em direção às
paredes da cidade.
O Doutor liderava o caminho, se mantendo nas bordas enlameadas - de forma
irônica, Cinder notou - e ficando perto das paredes de casas abandonadas, se
escondendo nas sombras.
Atrás deles, ela escutou um Dalek dar várias instruções para sua corja maldita.
“Busque. Localize. Extermine!”
Isso era pura e completa loucura. Ela nunca tinha feito nada tão imprudente em
sua vida inteira. Ela tinha certeza que isso só poderia acabar de um jeito… e
ainda assim, era estimulante também. Pela primeira vez em todo o tempo que
conseguia lembrar, ela tinha um propósito além de simplesmente destruir o
máximo de Daleks possível antes de morrer. Ela tinha algo pelo qual viver. O
que, ela supunha, era também irônico, dado que ela estava entrando de cabeça
em território inimigo, onde o resultado mais provável era um raio de energia entre
suas escápulas.
O Doutor tinha alcançado a base da parede e estava escalando uma pilha de
destroços, em direção a um buraco pequeno através do qual ele poderia entrar
na cidade propriamente dita. Ele era inesperadamente atlético para um velho
grosseiro - vivaz até - enquanto se levantava, nem se preocupando em olhar
para trás para ver se os Daleks tinham lhe avistado.
“Espera por mim!” Ela chiou enquanto copiava suas ações, escalando atrás dele.
Era uma escalada assustadora, mas ela não tinha muita escolha. Era isso ou os
Daleks.
Os Daleks tinham finalmente encontrado seu camarada morto e estavam se
espalhando, escaneando as ruínas em busca do culpado. Cinder percebeu que
não tinham muito tempo antes de serem avistados.
Ela estendeu uma mão para segurar em um apoio, mas seus dedos
escorregaram do granito liso e ela balançou, segura apenas por uma mão. Ela
segurou um grito de alarme, que acabou saindo como um grunhido abafado.
A ponta fria da pedra pressionou sua mão restante e ela sentiu o apego soltar.
Ela tentou alcançar novamente com a outra mão, mas sem o movimento de
escalada era difícil segurar. Ela estava prestes a escorregar, de volta para as
rochas abaixo onde sem dúvida os Daleks lhe encontrariam, se não fosse
esmagada por pedras antes. Ela olhou para baixo, tentando calcular a distância.
Sua visão se turvou.
Uma mão agarrou a sua de repente. Ela olhou para cima e viu o Doutor lhe
olhando, segurando seu pulso. “Anda logo!” ele sussurrou. “Lugares a ir, pessoas
para ver.”
Ele a arrastou para a protuberância na parede. “Você está gostando disso, não
está?” ela disse, um toque de acusação em sua voz.
O Doutor abriu um sorriso. “E você não?”
Cinder deu de ombros, mas sorriu com travessura. “Talvez.”
O buraco na parede parecia muito maior daqui de cima do que lá embaixo. Ela
tinha antecipado se esgueirar de lado, mas era grande o suficiente para que
ambos caminhassem lado a lado. Enquanto faziam isso, Cinder percebeu que o
Doutor ainda segurava em sua mão. Ela não sabia se era para o conforto dele
do que dela própria, mas ela não se importava de qualquer forma.
Tinha uma queda de mais ou menos seis metros do outro lado da parede,
levando ao que parecia lama macia e pegajosa. Além disso, havia um pequeno
pedaço de terra devastada terminando no que pareciam estruturas humanas.
Até onde ela era capaz de ver não haviam Daleks para lhes observar.
Evidentemente sua reação rápida nas ruínas tinha sido uma distração bem
sucedida.
“Você primeiro.” Cinder falou, olhando rapidamente para o Doutor. “Isso foi ideia
sua.”
“Ah e se formos juntos?” ele respondeu.
Cinder suspirou resignada. “Muito bem.” Ela olhou por cima da borda novamente,
considerando esse próximo passo, mas decidiu que não servia de nada começar
a ser sensível agora. Era tarde demais para isso. “No três. Um, dois -”
O Doutor falou, ainda segurando sua mão, e ela foi forçada a se jogar atrás dele.
Ambos aterrissaram em pé, e, com um movimento sincronizado que teria sido
engraçado se não fossem as circunstâncias, caíram de joelhos na lama molhada.
“Argh.” Cinder falou em voz alta, soltando a mão do Doutor e ficando em pé.
“Minhas calças estão encharcadas.” Ela ajudou o Doutor a levantar.
“Não se preocupe.” ele disse. “Eu tenho certeza que existe algo parecido em um
dos guarda-roupas da TARDIS.”
Ela levantou uma sobrancelha. “Gostamos de roupas femininas, não é?”
“Sim.” ele respondeu, indicando suas calças enlameadas. “Eu claramente tenho
um problema.”
Ela deu risada, cobrindo a boca com as mãos.
“Certo.” ele disse, apontando para os prédios sombrios à frente deles. Eram com
certeza abandonados, cobertos por escuridão, com janelas partidas e plantas
saindo de maneira curiosa por buracos no telhado. “Eu acho que era por aqui.”
“Não.” Cinder interrompeu. “Eu estudei mapas desse lugar. Se você quiser
chegar perto do complexo das instalações dos Daleks, devemos seguir a parede
nessa direção por um tempo. Então atravessamos, nos mantendo nas sombras.
Eles não devem estar esperando ninguém vindo nesta direção.”
O Doutor sorriu. “Você não está feliz de ter vindo junto? Eu estou.”
Eles não foram incomodados por Daleks enquanto caminhavam com cuidado
pelas ruas vazias da cidade, passando por casas abandonadas e vitrines nas
quais, anos depois, mercadorias ainda estavam expostas, lentamente se
tornando mofo.
A ameaça dos Daleks era uma presença constante, no entanto, reprimindo o
bom humor anterior de Cinder. Ela era capaz de escutar suas vozes roucas,
pequenas na distância enquanto procuravam nas ruínas por quem quer que
fosse responsável pela destruição de uma de suas patrulhas.
Cinder não fazia ideia de como iriam sair dessa. Escalar a parede novamente
não era uma opção - era alta demais. Eles precisariam encontrar uma rota
alternativa para sair da cidade - de preferência uma que não fosse guardada
pelos Daleks.
Isso, no entanto, era problema para depois. No final de uma longa e estreita rua,
eles podiam ver a curva de uma redoma dos Daleks, sua superfície exterior
marcada por protuberâncias familiares. Antes disso, contudo, havia um único
Dalek, de costas para eles, sua haste de visão indo de um lado para o outro,
como se estivesse de vigia.
Ela deu um passo para trás. “Dalek.” ela sussurrou.
“Eu não esperava encontrar um desses aqui.” o Doutor sussurrou de volta.
Cinder deu um soco gentil em seu ombro. “Sério, o que a gente vai fazer? Se eu
atirar com a minha arma tão perto da redoma, eles vão escutar. Vão nos
encontrar em instantes.”
O Doutor colocou sua cabeça brevemente ao redor da esquina, vendo a situação
por si mesmo. “A gente podia simplesmente perguntar de maneira gentil?” ele
ofereceu. “Dizer que nos perdemos e queremos voltar para as nossas celas no
acampamento. É uma maneira tão boa quanto qualquer outra de entrar.”
Cinde lhe olhou como se fosse louco. “Minha liberdade é mais importante para
mim do que entrar naquela redoma.” ela disse. “E minha vida também. Eu tenho
meus limites.”
O Doutor sorriu. “Nesse caso, vamos dar a volta.”
Eles voltaram até encontrar uma brecha entre duas filas de casas, formando um
pequeno beco. Eles andaram por seu comprimento em silêncio, seus pés
imersos em uma água suja correndo constantemente de bueiros transbordantes.
“Anda, entra aqui.” o Doutor chamou, lhe puxando para o limiar da porta de uma
casa vazia. Parecia relativamente intacta - bem padrão, bloco habitacional pré-
fabricado, construído para uma família. Ele tentou a porta mas estava trancada.
Cinder olhou enquanto ele tirou sua chave de fenda da argola em seu cinto de
munição preso ao redor de seu peito, e mexeu por um minuto nas configurações.
Ele segurou a ponta na fechadura e pressionou o botão. A ponta do objeto
acendeu e emitiu um ruído eletrônico. Segundos depois ela escutou o
mecanismo de tranca abrir.
“O que você fez?” ela perguntou.
“Agitei algumas moléculas.” ele sussurrou, dando uma batidinha na ponta de seu
nariz. “Vamos entrar.” Ele a levou para dentro da casa.
Estava escuro dentro, sem o brilho pulsante do Olho de Tântalus e as
tempestades de radiação ainda acontecendo acima. A pouca luz que havia
estava entrando pelos buracos entre o líquen que crescia nas janelas do andar
de baixo, deixando sua visão nítida por pouco uma vez que seus olhos se
ajustavam ao escuro.
Ela engoliu em seco. Sentia que seu coração estava na boca. O ambiente que
tinham adentrado estava montado como se a família que uma vez tinha habitado
esse lugar tivesse simplesmente se levantado e ido embora, saído pela porta
com toda intenção de retornar mais tarde para continuar de onde tinham parado.
Brinquedos de criança estavam jogados no tapete. Um copo vazio estava na
mesa de centro. Uma moldura na parede ainda mostrava a imagem holográfica
de um homem e uma mulher em um abraço feliz.
Cinder sentiu o peso da culpa em seus ombros, uma imensa tristeza. Como ela
tinha sobrevivido esse tempo todo, enquanto os Daleks tinham pego essas
pessoas e suas famílias? Que direito ela tinha de ainda estar viva? Como ela
tinha conseguido viver enquanto sua mãe, pai e irmão tinham sido
exterminados?
Sua vida inteira até esse ponto tinha sido para erradicar essas memórias, esses
pensamentos traiçoeiros, carregados de culpa; sobre lhes enterrar debaixo de
violência e vingança, lhes transformar em ódio mortal contra os Daleks que
ocupavam o âmago do seu ser.
Ela nunca tinha pensado em resgatar alguém, tentar mudar as coisas. Sempre
havia parecido tão fútil, tão além de suas capacidades. E então ela tinha se
contentado em atirar nas patrulhas de Daleks que passavam, ou caçar os
mesmos nas ruínas de sua antiga casa, contando cada morte como uma vitória.
Então o Doutor tinha aparecido, caindo dos céus em sua caixa mágica, e em
algumas poucas horas tinha lhe forçado a reconhecer isso, reconhecer que
talvez houvessem coisas que pudessem ser feitas, que nada era tão impossível
quanto parecia. Haviam maneiras diferentes de lutar. Ela não tinha muita certeza
do que ele pretendia fazer com a informação adquirida aqui em Moldox, mas ela
sabia que não era apenas para ganho próprio. Ele estava se envolvendo porque
queria ajudar, queria dar um fim a tudo aquilo.
Ela podia ver agora que todas as suas ações eram apenas gritos no vento.
Aquelas vitórias que havia contado no cano de sua arma eram vazias, cada uma
delas, ela não tinha mudado nada, não tinha feito a mínima diferença. Ela tinha
desperdiçado tanto tempo.
Ainda assim algo nela sabia que ainda dava para fazer algo importante. Ela tinha
seguido o Doutor até aqui, um Senhor do Tempo que ela mal conhecia, e agora,
em meio às ruínas de Andor, ela percebeu que ele poderia ser sua salvação.
Isso não era simplesmente sobre lhe ajudar a fugir de sua vida antiga. Era sobre
mostrar como ela mesma poderia mudar aquilo. E ainda por cima, ela achava
que ele sabia disso também.
Ela olhou ao redor em busca dele e percebeu que ele já tinha seguido em frente,
mais para dentro da casa. Ela escutou seus passos nas escadas e seguiu os
mesmos.
Cinder encontrou no quarto de uma das crianças no segundo andar, na frente da
janela, as cortinas coloridas puxadas para o lado para que ele pudesse observar
a base dos Daleks. Ela se juntou a ele.
Dessa distância, as estruturas dos Daleks não pareciam tão sofisticadas quanto
ela tinha imaginado. Na verdade, elas pareciam um tanto improvisadas, com
passarelas metálicas estreitas saindo dos flancos de cada redoma para perfurar
sua vizinha. Eram cinco domos no total, formando um círculo ao redor de um
pátio central. Eram enormes e aparentemente idênticas, em formato de disco
com uma torre central elevada, decoradas com o mesmo padrão de bronze e
dourado que os próprios Daleks.
A base tinha um layout economicamente prático, nada a ver com a estética, mas
tudo a ver com funcionalidade. O lugar todo tinha uma sensação temporária,
transitória, apesar de estar ali por mais de uma década.
“O que são essas coisas?” Cinder perguntou.
“Naves espaciais.” o Doutor respondeu. “Embarcações Daleks. Eles não
adaptaram a antiga escola, eles terraplanaram ela e pousaram suas naves em
cima. Eles levantaram passagens entre as naves, mas são apenas estruturas
temporárias. A base inteira poderia ser desmontada a qualquer momento. Eles
claramente não pretendem ficar em Moldox.”
“Então o que eles estão fazendo aqui?” Cinder perguntou. Ela sempre supôs que
a ocupação era porque os Daleks queriam controle do planeta. Ela jamais havia
considerado a possibilidade de haver um outro propósito menos permanente.
“Essa é uma pergunta para a qual eu quero muito a resposta.”
Cinder pensou ter visto um sinal de movimento no pátio e se inclinou para a
frente, até que seu nariz quase tocasse o vidro sujo da janela. Ela cerrou seus
olhos, tentando ver o que acontecia. Definitivamente havia movimento - pessoas,
na verdade - um grupo de humanos estava sendo levado para a área
pavimentada que uma vez fora um parquinho infantil.
Holofotes ligaram de repente, fazendo ela estremecer conforme tudo era trazido
para uma luz repentina e forte. Três Daleks estavam cutucando os prisioneiros
humanos - cerca de dez, homens e mulheres - lhes fazendo formar uma fila
longa, ombro a ombro. Cinde não podia escutar nada de tão longe mas podia
imaginar as ameaças feitas pelos monstros de metal, forçando os humanos a
obedecer.
O Doutor colocou sua mão no parapeito, olhando para fora com interesse.
Por que eles formavam uma fila?
“Ah, não!” Cinder disse com uma revelação repentina. “Eles vão ser executados!”
“Talvez.” o Doutor respondeu, sua voz um grunhido baixo. “Mas de novo: por que
fazer desse jeito? Por que se dar ao trabalho de tomar eles como prisioneiros,
trazer até aqui enquanto estão quase mortos de fome, só para formar uma fila
no pátio e atirar neles. Tem que haver um motivo a mais.”
Cinder não queria assistir de verdade, com medo do que estava diante de seus
olhos, mas mesmo assim ela estava hipnotizada, incapaz de tirar seus olhos da
cena. Enquanto ela olhava, os três Daleks se afastaram, dois deles
desaparecendo de vista, enquanto o outro ficava em foco.
Esse tinha um contorno levemente diferente, mas familiar. “Esse é como aquele
que eu vi durante a emboscada.” Cinder disse. “O que você decapitou quando
caiu. É um dos mutantes, um Indigno.”
Era precisamente como a coisa monstruosa que ela tinha encontrado mais cedo
naquele mesmo dia, do tamanho e forma de um Dalek normal, exceto pelo fato
de que sua seção do meio tinha sido substituída por um grande canhão preto.
“Isso não é um Indigno.” o Doutor disse. “Isso é diferente. É algo novo.”
O Dalek virou para a fila de prisioneiros miseráveis. Um dos outros Daleks flutuou
para o campo de visão deles, e Cinder pode entender o que ele falava por conta
das luzes que piscavam em sua cabeça.
Em resposta, o Dalek com um canhão ligou a sua arma. Uma aura de luz
escarlate intensa veio a vida na ponta do cano da arma. Houve uma descarga
repentina e enorme quando a arma cuspiu uma corrente de luz rosada, que
engoliu quatro das pessoas enfileiradas, as envolvendo enquanto gritavam e
tentavam se afastar.
Os prisioneiros que sobraram cambalearam para fora do alcance, claramente
aterrorizados enquanto olhavam para o que provavelmente seria seu destino.
As quatro vítimas se contorcem em clara agonia conforme a luz rosa pareceu
penetrar em seus corpos, entrando por suas bocas abertas, seus olhos,
permeando sua pele. Então, como se sua carne fosse simplesmente incapaz de
conter tanta energia pura, eles floresceram, suas formas se dissolvendo, a luz
rosa piscando com força antes de se dispersar e sumir, como traços de uma
fumaça.
Cinder cambaleou para longe da janela sentindo seu estômago se contorcer com
náusea. Ela levou a mão à testa. Ela podia dizer que algo estava seriamente
errado, mas não era capaz de dizer exatamente o que. Seus olhos encararam o
Doutor, sua mão segurando o braço dele para se estabilizar. “O que acabou de
acontecer?” ela disse. “Eu sei que foi algo terrível, mas o que foi?”
Ela olhou de volta para o pátio, onde os Daleks estavam olhando os seis
prisioneiros que tinham sobrado dos que haviam sido trazidos pro lugar minutos
antes.
O Doutor se afastou da janela e, segurando no antebraço de Cinder, levou ela
pra longe também. “É uma arma temporal.” ele disse. “Uma arma de
desmaterialização. Os Daleks desenvolveram uma nova maneira, um novo
paradigma, que tem o poder de erradicar uma pessoa da história.”
“Como você pode ter certeza?” Cinder perguntou. “Como você sabe só de olhar
para isso?”
O Doutor cerrou os olhos. “Você não viu o mesmo que eu? Não viu o que isso
acabou de fazer com essas quatro pessoas?”
Cinder se livrou de sua mão. Ela voltou para a janela. Não, haviam seis pessoas
ali, assim como tinha antes. “Quatro pessoas?” ela disse. “Tem seis lá embaixo.”
Mesmo enquanto dizia isso, no entanto, ela era capaz de sentir algo errado. Ela
podia sentir uma coisa no canto de sua mente. Tinha algo que não enxergava.
Será que ela não podia mais confiar na própria mente?
“É a arma, Cinder. É isso que está fazendo.” o Doutor disse. “Aquele canhão -
ele é capaz de apagar a linha do tempo de uma pessoa completamente da
história, remover cada traço dela, como se nunca tivessem existido. É o que
aconteceu com seu amigo, lá nas ruínas, a pessoa cuja a cama ao lado da sua
no acampamento sempre escapa da sua memória. Sua mente está lutando para
entender. Você sabe que tem algo errado, algo faltando. As memórias ainda
estão lá, enterradas na sua cabeça, mas não fazem mais sentido, não se ligam
mais a uma pessoa que você conheceu ou viu, porque a realidade se curvou ao
seu redor.”
Cinder balançou a cabeça, como se tentasse tirar algo de dentro. Ela não
entendia. Uma arma capaz de não apenas matar, mas de reescrever a história
como se nunca tivessem nascido? Era a coisa mais horrível que ela tinha
escutado. A pura violência da ideia - não apenas tirar uma vida, mas desfazer
cada ação, cada pensamento, cada emoção jamais feita ou experimentada por
aquela pessoa… tinha que ser o mecanismo mais ruim a ser inventado. Ela
limpou as lágrimas dos olhos, lembrando do luto mesmo que não lembrasse das
pessoas.
“Eu sinto muito.” O Doutor disse. “De verdade. Mas aquela viagem na TARDIS
vai ter que esperar um pouco mais. Se os Daleks forem capazes de disseminar
essa arma, então a Guerra estará perdida de vez.” Ele deu um passo em sua
direção, envolvendo a garota em seus braços e lhe puxando para perto de seu
peito. “Eu vou impedir que façam isso com outras pessoas.”
Fungando para segurar as lágrimas, Cinder se afastou do Doutor. Ela lhe deu
um olhar de desafio. Sua determinação se solidificou. “Eu vou junto. O que for
preciso, eu te ajudo a parar eles.”
O Doutor deu um sorriso mórbido. “Essa é a minha garota.”

Capítulo Sete
“Como nós vamos entrar?” disse Cinder.
Eles saíram da casa, emergindo na rua quieta e vazia do lado de fora. As cúpulas
Dalek pareciam grandes e agourentas no cruzamento seguinte. Cinder estava
tentando pensar na melhor forma de entrar.
“Eu sempre penso em momentos como esse" disse o Doutor, “que o melhor
recurso é usar a porta da frente.”
“A porta da frente? Você não quer realmente dizer que vai apenas andar até lá
e tentar a maçaneta?” disse Cinder. Ela não sabia dizer se ele era ingênuo,
confiante ou apenas perigosamente imprudente. Nem mesmo sabia se as portas
das naves Daleks ao menos possuíam maçanetas.
“Precisamente" respondeu o Doutor. “Normalmente funciona.” Ele caminhou na
direção da cúpula.
Exasperada, Cinder correu atrás dele. “Você está frequentemente neste tipo de
situação, não está?” ela perguntou.
“Mais do que você gostaria de saber" disse o Doutor, com um suspiro pesado.
Seus olhos pareciam velhos e cansados.
Ela se perguntou quão velho ele realmente era. Ele com certeza parecia velho,
mas ela não tinha ideia de quanto tempo um Senhor do Tempo podia sobreviver.
Ela ouvira histórias de que eram imortais, que não podiam ser mortos, mas que
podiam mudar de rosto à vontade, se transformar em alguém novo e diferente.
Ela não sabia se alguma coisa daquilo era verdade. Até onde sabia, o Doutor era
tão mortal quanto ela, e igualmente suscetível ao tiro de uma arma de energia
Dalek.
“E quanto aos Daleks?” ela disse. “Você viu o que eles podem fazer. Aquela nova
arma, a arma de desmaterialização – e se vierem atrás de você com uma
dessas?”
“Os Daleks são tão arrogantes quanto os Senhores do Tempo” disse o Doutor.
“Talvez até mais. Essa é a beleza de um plano como esse. Eles não vão estar
esperando que alguém simplesmente chegue e se convide para entrar.”
“Eu não sei se chamaria isso de plano” murmurou Cinder. Ela agarrou sua arma
um pouco mais forte. Quando ela disse que estava junto nessa aventura, ela
esperava que ele tivesse alguma ideia de como exatamente eles fariam isso.
Ao final da rua, ela olhou para a esquerda, pronta para correr, mas o Dalek que
eles haviam visto antes havia se movido. Ela checou a outra direção, olhando ao
longo da rua.
A cidade era organizada em um padrão básico de grade, projetada para um
plano que os colonos trouxeram com eles da Terra. Eles haviam chegado com
uma certa quantidade de materiais pré-fabricados em seus porões, e, a partir
deles, formaram as bases dos primeiros edifícios – deles, e do casco do nave
que os trouxera ali. Conforme a colônia se desenvolvia e eles aprendiam a
fabricar, a recolher a madeira local e extrair minerais e metais, os prédios foram
ficando mais sofisticados, mas ainda seguiam o plano da Terra. Mês após mês,
ano após ano, a colônia cresceu, logo esquecendo que já fora colônia e se
tornando um lar.
Pessoas floresceram aqui, e com o tempo se espalharam pelos outros planetas
de Espiral. Moldox, no entanto, fora o primeiro, a origem da vida humana nesse
setor. Agora, bilhões dessas pessoas estavam mortas, possivelmente apagadas
completamente da história, enquanto outros bilhões eram escravizados pelos
Daleks.
O Doutor estava certo. Eles impediriam isso de acontecer com outras pessoas.
Eles precisavam. Era hora de parar de duvidar dele. Se caminhar
descaradamente até a nave e passear pela porta de entrada mais próxima fosse
o melhor caminho para a base Dalek, então ela o seguiria. Havia algo sobre o
Doutor – algo que a inspirava a confiar nele
Eles atravessaram o cruzamento e seguiram pela rua suja, até estarem na
sombra do disco mais próximo. Era enorme, elevando-se sobre ela, e ela podia
ver dali, do nível do chão, que se assentava sobre três cúpulas que brotavam da
base. Abaixo daquilo estavam os entulhos de um dos velhos prédios escolares.
A armadura ablativa que formava o casco da nave estava esburacada e coberta
de azinhavre. Nenhuma das luzes parecia estar funcionando. Videiras
rastejantes começavam a tomar conta, enrolando-se de baixo para cima como
dedos verdes esguios, agarrados ao intruso alienígena. Parecia tão abandonado
quanto os prédios humanos que o cercavam.
Eles avançaram, olhando de um lado para o outro. Bem acima, sobre uma
estrutura alta de metal, um Dalek e dois Indignos– a mutação atarracada em
forma de ovo e com pernas de aranha – atravessavam de uma nave para outra.
O Doutor parecia não ter notado. Cinder agarrou seu braço e o arrastou para as
sombras abaixo da barriga da nave. Ela apontou sua arma em silêncio na direção
dos Daleks e ele acenou a cabeça em compreensão. Eles esperaram por um
momento até que os Daleks atravessassem.
“Deve haver uma rampa por aqui, se não estou enganado" disse o Doutor,
mexendo no nó do cachecol. Ele prosseguiu, seguindo a borda do disco até que
eles estivessem perto da beirada do pátio central, mas ainda amplamente
escondidos pelas sombras.
Os Daleks pareciam ter terminado os testes das armas e os humanos restantes
– seis deles, ela contou, aliviada – estavam sendo conduzidos de volta para o
disco do outro lado.
Parecia incompreensível para Cinder que este terreno, um velho parquinho de
criança, poderia ter se tornado um lugar tão mortal. As marcas desbotadas de
quadrados de amarelinha e círculos pintados no chão pareciam incongruentes,
errados. Ela estava tomada por uma sensação aguda de inquietação. Era quase
como se os Daleks tivessem escolhido aquele local para zombar de seus
prisioneiros humanos, para lembrá-los de tempos mais felizes, agora perdidos
para eles para sempre.
“Mexa-se ou será ex-ter-mi-na-do" disse um dos Daleks, empurrando um
prisioneiro pelas costas com seu braço manipulador. O homem cambaleou para
frente, mas não demonstrou ligar para o Dalek, nem mesmo gritou. Claramente
não havia mais luta nele, e ele subiu na rampa de embarque, a cabeça abaixada.
Aquele era um homem esperando para morrer, Cinder percebeu. Todos eles
estavam. Todos os prisioneiros, homens e mulheres – eles sabiam que era
apenas uma questão de tempo, e, de certa forma, eles provavelmente estavam
ansiosos. Esperando aquilo. Pelo menos a morte seria uma liberação do
tormento que lhes era infligido por seus captores. Qualquer outra coisa estaria
apenas prolongando suas agonias.
Ela assistiu os últimos retardatários do pequeno grupo subirem a rampa e
desaparecerem na outra nave.
“Muito bem" sussurrou o Doutor, tocando o braço dela para chamar sua atenção.
“Essa é a nossa chance. Tem uma rampa logo ali" ele indicou acenando com o
dedo. “Devagar e em silêncio, e fique do meu lado.”
Cautelosamente, eles atravessaram o pátio e subiram a rampa. Cinder manteve
sua arma pendurada próxima ao quadril, o dedo próximo do gatilho. Ela mal
podia acreditar no que estava fazendo. Se Coyne pudesse vê-la agora...
Lado a lado, os dois seguiram na direção da boca escancarada da nave Dalek.
Lá dentro, as paredes eram compostas de uma série de arcos cristalinos
padronizados com pequenos círculos, e através dos quais cores lúgubres –
amarelos, verdes, ocres e roxos – pulsavam como sangue correndo por uma
rede de artérias e veias.
Uma ampla passagem parecia contornar a circunferência da nave, oferecendo a
eles a escolha de ir para a esquerda ou para a direita. O coração de Cinder
estava martelando em seu peito, esperando um Dalek surgir em uma das curvas
a qualquer momento. Porém, por enquanto, eles pareciam estar sozinhos.
“Bom, isso foi mais fácil do que eu imaginei." ela sussurrou.
“Entrar é a parte fácil” respondeu o Doutor. “Sair que normalmente é o problema.”
“Ah, obrigada por isso" ela murmurou. Ela percebeu que suas mãos tremiam
enquanto ela tentava manter a altura da arma. “Então, e agora?”
O Doutor deu de ombros. “Nós damos uma olhada. Cada uma dessas naves
deve ser destinada a um propósito específico. Vamos descobrir em qual delas
estamos.”
Ficando próximos a parede, eles seguiram pela passagem que serpenteava para
a esquerda, observando a frente para qualquer sinal de Daleks se aproximando.
Por pura sorte chegaram até ali, Cinder tinha certeza, e estava convencida de
que se veriam cercados a qualquer momento. Com certeza os Daleks possuíam
sistemas de monitoramento em suas naves?
Depois de um tempo, a passagem se ramificou para a direita, se dividindo em
vários túneis estreitos que pareciam levar para mais fundo na nave. O Doutor –
que parecia estar decidindo arbitrariamente qual caminho seguir – a guiou para
um desses pequenos corredores afluentes com um aceno de sua mão.
Lá, haviam diversos painéis nas paredes que se assemelhavam a portas;
grandes placas de metal inseridas em arcos. Eles não pareciam ter nenhum tipo
de controle. Ou, Cinder considerou, nenhuma maçaneta. Bem, isso respondia
aquela pergunta, pelo menos.
“Isso são celas?” perguntou Cinder. “Podem ter prisioneiros aí dentro?”
“Possivelmente” disse o Doutor. “É difícil dizer daqui, embora eu imagine que
estejam mantendo todos juntos na outra nave, ou em um dos prédios por perto.”
“Temos que verificar” ela disse. “Como eu abro a porta?”
“Ande até ela. São ativadas por movimento” ele respondeu.
Cinder aproximou-se da porta, mas nada aconteceu.
“Não, não assim" disse o Doutor. “Ande até ela com propósito, como um Dalek.”
Ele avançou com confiança, estufando o peito. Houve um clique e um rangido
metálico e, um segundo depois, a porta se abriu, deslizando para dentro do teto.
O cômodo revelado a frente era uma câmara relativamente grande, cheia de todo
tipo de equipamento bizarro e tecnologias efêmeras. O fedor que exalava, no
entanto, quase foi suficiente para que ela caísse de joelhos e vomitasse.
Imediatamente, ela desejou ter apenas seguido em frente.
O Doutor entrou e ela o seguiu, torcendo o nariz para o cheiro. Era nojento, como
carne rançosa e podre. Alguma coisa dentro da sala estava realmente muito
errada.
Cinco estruturas de vidro estavam contra a parede dos fundos. Eram
transparentes, mas na forma arquetípica de um Dalek, completo com um braço
manipulador e arma de vidro.
Cinder levantou sua arma, esperando que eles entrassem em ação a qualquer
momento. Ela recuou, olhando para os lados.
O Doutor entendeu sua mão, tranquilizando-a. “Não são Daleks vivos” ele disse.
“Pelo menos ainda não. Dê mais uma olhada.”
Ainda um pouco receosa, ela se aproximou. Pelas paredes de vidro do invólucro,
ela podia ver a matéria orgânica lá dentro, uma massa volumosa e viscosa de
carne e tubos, inflando e murchando continuamente como um pulmão pegajoso
e doente.
Só isso já era suficiente para causar outra ânsia de vômito, mas foi quando ela
olhou para a segunda câmara de incubação que ela percebeu a verdadeira
extensão do horror. Naquele, o componente orgânico ainda tinha um rosto
humano.
Havia sido uma mulher antes, mas agora, se sobrara alguma coisa por trás dos
olhos amarelos e agudos, era apenas loucura. A cabeça havia sofrido mutação,
se tornando careca e disforme. A carne tinha empolado e borbulhado,
endurecida em tumores nodosos. Os membros da mulher haviam sido removidos
e cabos eram expulsos de seu peito, conectando-a ao compartimento de
incubação.
Cinder cambaleou para trás, desviando o olhar, incapaz de processar
exatamente o que estava vendo. Era ao mesmo tempo a coisa mais nojenta e a
coisa mais lamentável que ela já vira.
“É isso o que fazem aqui?” ela disse. “Fazem experimentos nos prisioneiros?”
“Os transformando em Daleks” disse o Doutor, sua voz grave.
“Transformando humanos em Daleks?” ecoou Cinder, incapaz de demonstrar
adequadamente todo seu nojo.
“Sim, me parece que não estão tão preocupados com a pureza da raça quanto
costumavam estar" disse o Doutor. “Engraçado como ideais voam pela janela
quando você está contra a parede.”
“Mas por que? O que eles poderiam ganhar?”
“Eles estão fazendo soldados de infantaria" ele disse. “Buchas de canhão. Eles
estão expondo as pessoas a radiação para que suas células sofram mutações
em formas semelhantes aos Kaleds mutantes. Depois de alterá-los
fisiologicamente, eles vão remover todas as emoções, os lobotomizando e os
realojando em invólucros Daleks. Eles receberão ordens tão bem quanto
qualquer Dalek e, se forem destruídos, bem – pelo menos não seriam Daleks
reais.”
“É obsceno” disse Cinder.
O Doutor concordou. “É apenas a ponta do iceberg” ele disse.
Cinder olhou ao redor da sala. Além das cinco incubadoras havia pouco o que
reparar: um tanque borbulhante contendo algo que parecia repugnantemente
carne derretida e uma teia trabalhada de cabos conectados às incubadoras, que
desapareciam dentro do teto e das paredes. Claramente, eram esses cabos que
carregavam a energia e nutrientes necessários para manter os mutantes vivos
durante a transição.
Ela olhou para o Doutor, uma pergunta em seus olhos. Ele acenou a cabeça em
compreensão e andou até a porta para vigiar.
Cinder largou a arma, permitindo que ela balançasse na fivela e pegou um
punhado de fios com as duas mãos. Ela puxou para baixo com força, usando
todo seu peso para tentar arrancá-los de suas fixações no teto. Na terceira
tentativa, metade deles soltaram, arrebentados, um horrível fluído preto
espirrando em gotas das pontas desfiadas como sangue jorrando de uma ferida
recente. Cinder largou as pontas arrebentadas no chão. Ela continuou por alguns
momentos, arrebentando todos os cabos de suas bases, permitindo que sua
raiva queimasse brilhante e violentamente em seu peito.
Quando ela terminou, ela se agachou diante da incubadora que abrigava a que
fora uma mulher no passado e encarou os olhos da coisa. As pupilas estavam
fixadas nela, mas o olhar era vago, perturbador. “Encontre paz" disse Cinder. Ela
se levantou e andou até o Doutor. Ele ainda esperava junto a porta, atento a
Daleks.
“Vamos ver o que mais eles têm aqui" ele disse. Ele deu um passo para fora da
sala e imediatamente retrocedeu, barrando Cinder no peito com o braço e quase
a derrubando. “Daleks" ele sussurrou.
Eles retrocederam, cada um de um lado da porta aberta, pressionando contra a
parede quando três Daleks passaram deslizando. Eles se moviam quase em
silêncio, seus olhos girando, seus braços manipuladores se contraindo como se
sentissem o ar em busca de alguma perturbação.
Cinder prendeu a respiração, esperando que eles passassem, imaginando que
a qualquer minuto um deles notaria que algo estava errado na câmara de
incubação e se viraria para investigar.
Felizmente, eles não pareciam estar prestando atenção e seguiram em frente,
indo para mais fundo na nave.
Ela esperou que o Doutor indicasse que a barra estava limpa antes de se permitir
respirar. “Eles vivem a bordo dessas coisas?” ela perguntou quando estava
segura de que não seriam ouvidos. “Dos naves, quero dizer. Essa é a casa
deles?”
“Vivem tanto quanto um Dalek pode viver" disse o Doutor. “Eles não dormem,
comem ou bebem. Eles não têm o conceito de amizade ou companheirismo. São
obstinados, incansáveis na busca de seu objetivo final – erradicar toda a vida no
cosmos que não seja a própria.”
“É, essa parte eu já entendi" disse Cinder com um sorriso torto.
Eles avançaram, continuando seu circuito na nave.
“A cabine de comando está no coração da nave" disse o Doutor. “É onde a maior
parte dos Daleks vai estar. Estou mais interessado no que acontece nos outros
lugares.”
Ele andou na direção de outra porta, que se abriu quando ele aproximou.
O conteúdo dessa sala era igualmente perturbador – e, Cinder notou, igualmente
fedido – como as das salas passadas. Ali, os experimentos estavam claramente
sendo realizados nos Indignos.
O invólucro de um Planador estava em pedaços no chão, enquanto o torso havia
sido removido de dentro da câmara de vidro e estava aberto em uma placa de
metal. Era como se os Daleks estivessem realizando uma autópsia e haviam
simplesmente abandonado pela metade. Órgãos extirpados estavam em
vasilhas de metal, lentamente tornando-se pútridos, e a carcaça descoberta
estava secando e começando a apodrecer.
Componentes de outros Daleks de aparência não usual estavam espalhados
pela sala: uma peça de olho alongada, a parte de baixo de uma unidade de
transporte em que todos os globos sensores eram transparentes e piscavam
uma luz azul exótica, uma cúpula de cabeça dourada com quatro válvulas de
radiação.
“É verdade,” disse Cinder cobrindo a boca e se recusando a olhar para os corpos.
“que esses são resultados dos experimentos dos Senhores do Tempo, tentativas
de refazer a história e evolução dos Daleks?”
O Doutor deu de ombros. “Existe uma verdade nisso" ele disse. “É claro que
existe, mas apenas de forma que desse aos Daleks a ideia, uma forma de
experimentarem e se adaptarem. Eles levaram a extremos muito maiores do que
os Senhores do Tempo já fizeram.”
“Você quer dizer que eles estão fazendo isso neles mesmos?” disse Cinder.
Somente a ideia a assustava.
O Doutor concordou. “Um programa de eugenia Dalek” ele disse. “Mergulhando
em tantas realidades alternativas quanto é possível e adulterado seu próprio
DNA, tentando nutrir a máquina de matar perfeita para utilizar contra os
Senhores do Tempo.”
“Vocês devem ser um inimigo terrível” disse Cinder. “Para inspirarem isso.”
O Doutor desviou o olhar, incapaz de olhá-la nos olhos. “Não vamos achar o que
estamos procurando aqui" ele disse. “Acho que está na hora de olharmos outra
nave. Esta é apenas um laboratório de experimentos.”
Cinder queria perguntar a ele o que exatamente ele procurava, mas antes que
tivesse a chance ele já estava seguindo em frente, desaparecendo pela
passagem. Suas perguntas teriam de esperar – tentar engajar uma conversa
enquanto eles se esgueiravam pela nave apenas os colocava em risco de atrair
os Daleks pra cima deles. Ela se apressou para acompanhá-lo.
Eles continuaram com o reconhecimento ao redor das passagens externas da
nave, até que eles encontraram uma rampa de acesso que conduzia ao nível
superior. Eles se apressaram ao longo dela, estimulados pelo som de vozes
Daleks abafadas, ecoando pela passagem atrás deles.
A parte superior da nave era muito semelhante a parte de baixo, apesar de
estarem agora de frente para uma grande escotilha aberta enquanto emergiam
do topo da rampa. Ali, a passarela de metal se projetava do buraco abrangendo
perfeitamente o espaço aberto até a nave oposta.
Era improvisado. Parecia que tinha sido conectado quase com tanta pressa
quanto os prédios temporários que serviram a ela de casa por tanto tempo. Não
parecia muito seguro – não havia corrimão ou calços, apenas uma lisa faixa de
metal, cerca de quatro metros de largura, estendida entre as duas naves para
que os Daleks atravessassem. No entanto, ao contrário de um Dalek, se Cinder
caísse, ela não seria capaz de acionar rapidamente seus propulsores para se
estabilizar ou voar até o chão.
Ela avançou até a abertura e olhou para baixo enquanto o Doutor checava se
não haviam Daleks vindo de outra direção. Era uma queda e tanto. Abaixo deles,
o pátio agora parecia estar vazio, os prisioneiros e os Daleks tendo retornado
para um dos discos.
“Não me parece muito seguro” sibilou Cinder quando o Doutor se juntou a ela ao
pé da ponte de metal.
“Você vai ficar bem” disse o Doutor, no que parecia uma tentativa de tranquilizá-
la. Ele mesmo, no entanto, não parecia muito seguro daquilo. Ele bateu na ponte
de metal com a ponta de sua bota, e então balançou para frente, testando seu
peso. “Viu, tudo certo" ele disse. Ele seguiu na direção da outra nave.

Se sentindo muito exposta e decididamente em perigo, Cinder o seguiu pela


ponte, tentando não olhar para baixo. Se ela focasse nas costas do Doutor e se
apressasse, então não era tão ruim...
Tarde demais, eles perceberam que, na misteriosa quietude na base, seus
passos soavam com tiros, ecoando contra o revestimento de metal a cada passo.
Na metade do caminho, o Doutor parou por um momento, olhando para trás.
“Melhor nos apressarmos” ele sussurrou. “A qualquer momento agora, um deles
vai acabar vindo investigar. Não estamos sendo muito discretos.”
Cinder disparou seu melhor olhar de ‘não me diga’ e prosseguiu,
simultaneamente tentando andar mais rápido enquanto se assegurava de se
equilibrar na superfície polida de metal. Ela quase caiu de costas quando eles
alcançaram o ponto onde a ponte se inclinava, descendo até a outra nave Dalek,
e ela girou os braços freneticamente tentando manter o equilíbrio. Sua arma se
soltou da alça do ombro e se prendeu na curva de seu cotovelo, ameaçado
escorregar e cair da borda.
“Segure-se!” disse o Doutor. Ele estendeu a mão para ela, se atrapalhou por um
momento, e então finalmente conseguiu segurá-la pelo braço. Ele esperou por
um momento, ainda agarrado a ela, enquanto ela se reequilibrava e amarrava a
alça da arma de volta em seu ombro, e então a guiou para a segurança,
empurrando-a pela escotilha. Ela estava feliz em ter um chão sólido sob seus
pés, mesmo sendo a bordo de uma nave Dalek.
“Onde estão todos eles?” ela disse um momento depois, uma vez que recuperara
seu fôlego.
“Haverá menos aqui do que você pensa" disse o Doutor. “Eles têm outras bases
em outros lugares no planeta, parecidas com essa, e patrulhas nas ruínas como
as que você encontrou antes. Porém, a maioria deles já vai ter seguido em frente,
implantando-se nas outras frentes de batalha ou se juntando as suas frotas de
ataque próximas do Olho.”
“Eu imaginei que haveria um exército deles” disse Cinder. “Milhares e milhares
deles. Quero dizer, olhe o que fizeram com este lugar. Olhe a devastação que
criaram. E mesmo assim aqui estamos, nos esgueirando pela base deles e mal
vimos algum sinal de Daleks.”
“É isso o que eles fazem” disse o Doutor. “Chegam, devastam e vão embora.
Eles não têm qualquer interesse no planeta. Acho que estou começando a
perceber que isso tem mais a ver com a proximidade de Moldox com o Olho.
Acho que é por isso que estão aqui.”
“O que quer dizer?” disse Cinder.
“Aquela radiação temporal que eu mencionei” disse o Doutor. “Aquilo que causa
a aurora no céu?”
Cinder concordou com a cabeça.
“É um vazamento do Olho, uma descarga constante. O Olho é uma anomalia,
uma estrutura que não deveria existir. É uma dobra no espaço-tempo: um
buraco, se preferir, entre universos. Essas armas temporais, as armas de
desmaterialização, acho que são alimentadas por isso. Os Daleks encontraram
uma forma de aproveitar essa energia e dobrá-la a vontade deles.”
Cinder olhou para cima involuntariamente, como se procurasse pelo Olho. Tudo
o que ela viu, no entanto, foi o interior da nave Dalek. “E quanto aos prisioneiros?”
ela disse. “Por que mantê-los aqui?”
O Doutor encolheu os ombros. “Matéria biológica que eles podem usar para
construir novos Daleks mutantes, ou ratos de laboratório para testar suas armas
experimentais. Temo que seja tudo.”
A pura frieza daquilo era desconcertante para Cinder. Ter um desprezo tão
flagrante pela vida – parecia uma sentença de execração para ela. “E é o que
eles vão fazer com todos os outros planetas na Espiral?”
“Provavelmente" disse o Doutor. “Ou terão minas afundadas e pessoas
escravizadas para cavar, recolhendo minerais e metais preciosos para seu
esforço de guerra. Eles não possuem muita imaginação, a não ser que tenha a
ver com matar pessoas.” Ele alisou a frente de seu colete. “Vamos, vai haver
muito tempo para conversar mais tarde.”
O interior da segunda nave parecia muito com o da primeira: quase idênticos,
exceto pelo fato de que haviam diversas portas voltadas para eles quase
imediatamente quando entraram.
“Quero encontrar um dos terminais de computadores deles" disse o Doutor.
“Vamos tentar em...” ele balançou seu dedo para lá e para cá como se contasse.
“Uni-duni-tê... aqui.” Ele caminhou confiante para uma das portas e, como antes,
ela se abriu para acomodá-lo.
Esta se abriu em uma larga câmara de onde uma série de outras portas se
originavam de quartos adjacentes. Parecia ser um laboratório com um banco de
nove monitores instalados na parede oposta, todos exibindo complexas
sequências de números, animados para formar hélices duplas retorcidas contra
um fundo verde pálido.
Duas mesas foram dispostas com uma série de ferramentas e equipamentos
cirúrgicos de aparência cruel, apesar de que, dessa vez, nenhum carregava
resquícios de experimentos Dalek, pensou Cinder.
“Vigie a porta” disse o Doutor. Ele foi até o banco de telas e começou a bater no
vidro, criando símbolos estranhos e os movendo para criar padrões incomuns.
Parecia completamente ininteligível para Cinder, mas ela imaginou que devia
fazer algum sentido para o Doutor.
“Você consegue ler isso?” ela disse.
“Um pouco" respondeu o Doutor, mas ele estava distraído, prestando atenção
nos dados que surgiam diante de seus olhos. Agora, diagramas piscavam pelas
telas, modelos em 3D que pareciam descrever um edifício ou outra construção
massiva. Ela se perguntou se eram mapas da nave ou da base.
Cinder esperou junto a porta, segurando sua arma atravessada em seu peito, de
forma que pudesse cobrir a passagem do lado de fora e a entrada da nave. Seu
coração ainda tremia e as palmas das mãos estavam escorregadias de suor.
Apesar da bravura, ela se sentia apavorada de certa forma, e a onda inicial de
adrenalina estava começando a diminuir.
“É pior do que eu pensei” disse o Doutor, de repente. Ela olhou por cima do
ombro para ver o que havia de errado, mas ele ainda estava de costas para ela,
lendo as telas. “Eles estão clonando Daleks mutantes aqui, e por ali" ele olhou
por cima do ombro para ver se ela estava prestando atenção antes de apontar
uma das portas “é uma incubadora. Eles estão criando Daleks para poderem
colocar o novo paradigma em plena produção.”
“Aqueles com os canhões?” ela perguntou.
“Sim" confirmou o Doutor. “Mas fica pior. Eles estão construindo outra coisa
também.”
“O que é?” sibilou Cinder.
“Um assassino de planetas” disse o Doutor. “Uma mega-arma. Eles estão
planejando transformar o próprio Olho de Tântalus em um canhão massivo de
energia, e então dispará-lo contra Gallifrey.”
“O que isso significa?” disse Cinder.
“O fim de tudo” rosnou o Doutor. “Eles vão apagar Gallifrey completamente,
remover da existência, reescrever a história como se os Senhores do Tempo
nunca tivessem existido. Eles vão condenar o universo, invadir tudo.” Pela
primeira vez desde que chegara à base Dalek, o Doutor parecia realmente
preocupado.
“O que podemos fazer?”
“Podemos começar dando a eles algo para se preocupar” disse o Doutor. Ele
voltou a mexer com os ícones na tela do monitor, e uma das portas a direita dela
se abriu deslizando e revelando uma pequena câmara.
Ela se virou, esperando ver um Dalek emergindo da porta, mas não havia nada
lá. Ela recuou, mantendo sua arma apontada para a porta principal, até que ela
pudesse dar uma olhada no novo cômodo revelado.
Tanques transparentes cheios de bancos forrados de um fluido azul claro
estavam em ambos os lados da sala. Dentro, criaturas verdes feias do tamanho
de uma cabeça humana, com um único olho pálido, tentáculos parecidos com
vermes e garras afiadas em forma de gancho estavam suspensas em um líquido
borbulhante. Haviam centenas deles. Apenas a visão deles fazia Cinder querer
vomitar, sem falar no fedor ácido que agredia suas narinas a cada respiração.
“O que são eles?” ela disse, o desgosto evidente em sua voz.
“Kaleds mutantes” respondeu o Doutor, vindo ficar ao lado dela. “Clones, em um
estágio avançado de desenvolvimento. Eles logo estarão prontos para serem
colocados dentro dos invólucros Dalek.”
“Isso é o que tem dentro de um Dalek?” disse Cinder olhando um pouco mais de
perto. “Não é por menos que eles têm problemas de imagem.”
O Doutor entrou no cômodo e começou a mexer em uma grande de metal no
chão.
“O que está fazendo?” ela disse.
“Algo que eu deveria ter feito há muito tempo” ele respondeu. Ele baixou uma
alavanca e removeu um pequeno painel de acesso aos seus pés, revelando um
ninho de cabos coloridos abaixo. Ele agarrou uma mão cheia deles e os puxou
para fora, vasculhando até encontrar o que procurava.
“Ah, é este aqui" ele disse.
“O que é?”
“Tubo de resfriamento” ele respondeu, puxando violentamente até que
arrebentasse, se desfazendo em suas mãos. Um vapor verde pálido começou a
vazar das pontas arrebentadas, condensando no ar quente e respingando pelo
chão. Ele jogou fora o tubo arruinado. Em algum lugar da nave, um alarme
começou a soar, um gorjeio insistente ecoando pelos corredores vazios.
“Você está matando eles" ela disse. Não havia acusação em sua voz. Era uma
constatação de um fato. Ela já conseguia ver os mutantes começando a se
mexer em seus tanques, ficando desconfortáveis conforme a temperatura da
água começava a aumentar. “Eles vão superaquecer, ferver vivos nesses
tanques.”
O Doutor a encarou com um olhar duro. “Eu estive aqui antes" ele disse. Pela
primeira vez, a voz dele soava velha, cansada pelo peso dos séculos. “Enfrentei
isso no passado e não agi a tempo. Se eu tivesse tido a coragem de fazer o que
era necessário lá trás, as coisas poderiam ser muito diferentes agora. Mas eu
sou um homem diferente agora. Eu não vivo pelos mesmos ideais. Eu tenho um
trabalho a fazer, e dessa vez eu não tenho mais tais escrúpulos.”
Apesar da frieza de suas palavras, ela podia perceber que ele não acreditava
realmente naquilo. Ele estava tentando se convencer tanto quanto tentava
convencer a ela.
“Tem certeza disso?” ela disse.
Ele fez que sim com a cabeça. “Deixe-os.” Ele deixou o cômodo, marchando
diretamente para uma das outras portas. Ela se abriu deslizando, revelando outra
pequena antecâmara. Essa parecia ser um gabinete de armazenamento,
contendo uma variedade de componentes Dalek: braços manipuladores, globos
de sensores, armas de energia. O Doutor se aproximou de uma estante que
abrigava uma fileira de largos canhões pretos, como os adaptados aos novos
Daleks.
Ele agarrou um, erguendo-o, testando seu peso. Ele o virou nas mãos,
verificando a carga de energia e, em seguida, acenou com a cabeça para Cinder,
claramente satisfeito. “Hora de ir" ele disse.
O alarme ainda estava tocando, e quando eles saíram para o corredor, Cinder
caiu para trás em terror ao ver um Dalek a não mais de alguns metros de
distância, indo diretamente para eles.
“Parem! Intrusos! Vocês serão exterminados!”
“Não se eu puder evitar” disse o Doutor atrás de Cinder. Ela se jogou contra a
parede da nave quando o Doutor apertou o gatilho do canhão, atingindo o Dalek
com uma dose de radiação temporal. O Dalek gritou de fúria recuando, mas a
luz rosa crepitante da arma parecia formar um casulo ao redor do Dalek,
entortando e retorcendo enquanto tentava encontrar uma forma de entrar.
“Expurgar! Expurgar!” gritou o Dalek.
Algo estava errado. A arma não havia se comportado da forma que ele esperava,
quando ele a observou sendo usada contra os prisioneiros humanos. Em vez de
se infiltrar dentro do Dalek, devorando-o por dentro, a luz começou a se dispersar
em fiapos cintilantes, dissolvendo-se no ar até que um momento depois havia
desaparecido completamente e o Dalek permanecia diante deles.
O Doutor abaixou o canhão. “Eles se tornaram imunes a isso" ele disse.
O Dalek disparou sua arma de energia e o Doutor mergulhou para o chão,
esmagando seu ombro na parede e voltando, caindo de joelhos. O feixe de
energia errou por pouco, queimando um longa linha negra na parede.
“Eles não são imunes a isso” Cinder disse, levantando sua arma e apertando o
gatilho. O raio branco de energia atravessou a malha do sensor do Dalek,
rompendo sua blindagem e estourando a parte de trás de sua cabeça,
espalhando no corredor fragmentos de Dalekânio e matéria biológica. Seu olho
estremeceu e se apagou.
“Agora conseguimos” disse o Doutor. “Agora realmente chamamos a atenção
deles.” Cinder podia ouvir o canto das vozes de Daleks vindo das profundezas
da nave. Eles estavam se mexendo, convocados pelo alarme e a explosão das
armas de energia.
“Um simples ‘obrigado’ já estaria de bom tamanho” ela disse, ajudando-o a se
levantar. “Mas vamos dizer que eu apenas retribuí o favor.”
O Doutor sorriu. O som das vozes dos Daleks estava se aproximando. “Vamos"
ele disse. “Agora!”
Eles saíram da nave para a ponte pela qual embarcaram. Eles estavam a dez
metros do chão pelo menos, e abaixo deles Daleks estavam fervilhando para
fora das outras naves. Não havia com eles pularem sem se machucarem, e se
isso acontecesse, eles nunca fugiriam a tempo.
“De volta para a outra nave” gritou o Doutor, agarrando-a pelo braço e subindo
a elevação.
“Exterminar!” Um raio de energia passou zunindo por eles, perto suficiente para
queimar as costas da jaqueta do Doutor. Eles avançaram pela passarela em
direção a outra nave.
À frente deles, um Dalek surgiu da escotilha aberta, mas Cinder não hesitou. Ela
disparou outro tiro e viu o Dalek explodir, a força do impacto empurrando o
invólucro de volta a boca da nave.
Os Daleks estavam agora decolando, gritando um coro de ameaças enquanto
disparavam tiro após tiro, mas Doutor e Cinder seguiram correndo apesar disso,
deslizando ao acaso para a outra nave. De alguma forma, eles conseguiram
passar pela ponte sem serem atingidos. Não parecia uma grande consolação.
Com um empurrão, o Doutor mandou os restos do Dalek morto no caminho de
outros dois que vinham pelo corredor na direção deles e liderou a investida pelo
lado contrário, dando a volta na nave para voltar de onde tinham vindo, descendo
para o nível inferior e pela incubadora humana.
Eles irromperam no pátio e viram pelo menos dez Daleks que vinham
diretamente para eles. Cinder sabia que não podia acertar todos eles antes que
a derrubassem, e o canhão que ainda era empunhado pelo Doutor havia se
provado totalmente ineficaz.
Eles estavam todos ali, todos os diversos tipos de Daleks e Indignos que ela já
vira: os padrões em bronze e ouro, Planadores, Aranhas, Armas Temporais.
Haviam novos também, versões que ela nunca encontrara na patrulha: pretos,
prateados com cúpulas azuis, outros do mais puro branco, como fantasmas
pálidos – cada um mais mortal que o outro.
Ela apontou a arma para a maré que se aproximava, decidida a levar pelo menos
metade com ela.
“A passarela!” berrou o Doutor. Cinder olhou para cima. Haviam três Daleks
chegando pela ponte acima.
Ela girou o cano da arma e disparou três tiros consecutivos – não nos Daleks,
mas na ponte de metal onde estavam. O metal torceu e contraiu, fazendo com
que os Daleks balançassem incontrolavelmente, e um quarto tiro dividiu a
passarela em duas, mandando-os para baixo, para cima dos Daleks no chão.
Pelo menos cinco deles foram enviados girando pelo pátio, suas armas
explodindo indiscriminadamente, enquanto outros dois foram incapacitados,
espalhados pelo chão, suas cabeças afundadas com o impacto vindo de cima.
Não os impediriam por muito tempo, mas era uma distração suficiente para o
Doutor e Cinder saírem da linha de fogo.
“Vá para a muralha da cidade" disse o Doutor. “Eu vou levá-los para longe.” Ele
seguiu para a direção oposta.
“E quanto aos prisioneiros?” chamou Cinder. Com certeza eles não poderiam
abandoná-los agora?
O Doutor hesitou, parando em seu caminho. Ele parecia aflito, como se estivesse
tentando decidir se arriscaria. “Droga!” ele gritou. “Segure eles.”
Ele se virou, correndo em diagonal pelo pátio na direção da nave, onde antes
eles haviam visto os Daleks pastoreando os prisioneiros humanos.
Cinder correu atrás dele enquanto ele subia pela rampa, mas estão parou de
repente, se virando para encarar os três Daleks restantes que agora a cercavam.
“Vamos lá!” ela gritou. “Venham me pegar, suas latas de metal estúpidas!”
Logo quando ela estava pronta para esvaziar a carga de energia nos Daleks,
ouviu-se uma explosão terrível de dentro de uma das naves. Ela sentiu a
vibração da explosão como um estrondo sob seus pés, sacudindo seus ossos.
Uma nuvem de chamas e fumaça escura e oleosa irrompeu do topo da cúpula e
os Daleks giraram na direção oposta, gritando comandos. Ela percebeu que
devia ser a incubadora que o Doutor havia manipulado para sobrecarregar,
finalmente atingindo massa crítica.
Ela aproveitou a chance e ergueu a arma, disparando três tiros e explodindo as
cúpulas dos Daleks restantes enquanto eles tentavam decidir o que fazer.
Ainda assim, mais Daleks chegavam em cena e ela sabia que tinha apenas
segundos antes de ser subjugada.
“Doutor!” ela gritou, no momento em que uma horda de pessoas veio descendo
a rampa atrás dela, espalhando-se pelo antigo parquinho. Haviam muitos deles,
e ela percebeu que deviam estar amontoados em celas a bordo da nave.
Ela ouviu o Doutor falando com eles do topo da rampa. “Vão! Corram por suas
vidas! Lutem! Agora é a sua chance!” Os prisioneiros libertados responderam
com entusiasmo, cercando os Daleks. Mesmo sem armas eles encontravam
formas de desativá-los, derrubando-os pelo simples peso dos números.
Daleks surgiram de cima, atirando indiscriminadamente contra a multidão, mas
os prisioneiros agora estavam em plena rebelião e não seriam dissuadidos.
“É realmente impressionante o que um punhado de humanos pode conseguir
quando eles colocam suas mentes nisso." Cinder se virou para encontrar o
Doutor ao seu lado. Em uma das mãos ainda estava o canhão, enquanto a outra
segurava sua chave de fenda sônica, que ele claramente havia usado para abrir
as trancas das celas.
“Agora, Cinder. É hora de correr" ele disse. “Vá para os portões principais.
Encontraremos uma maneira de passar.”
Eufórica ao ver seu povo dominando os Daleks, Cinder fez o que o Doutor disse
e recuou. Eles correram, lado a lado, esquivando-se em uma das ruas laterais e
enfrentando uma corrida até os portões principais.
Com a revolta assolando a base principal, os portões – como claramente o
Doutor havia previsto – estavam desguardados. Cinder, porém, nem se
incomodou em procurar uma forma de destrancá-los e atirou nas portas de
madeira com a arma Dalek, abrindo um buraco grande o suficiente para que eles
passassem.
Em poucos instantes, o Doutor e Cinder desapareceram mais uma vez pelas
ruínas. Atrás deles, o brilho laranja da base Dalek em chamas iluminou o céu
acima de Andor.

Eles não pararam até chegarem a TARDIS. Exaustos, sem fôlego, eles
tropeçaram na borda da cratera causada pela aterrissagem não ortodoxa do
Doutor anteriormente. Os restos dos Daleks mortos ainda estavam na rua, frios
e imóveis.
A TARDIS era talvez a vista mais acolhedora que Cinder poderia ter imaginado,
aquela caixa azul engraçada, deitada de lado na lama. Para ela, representava
segurança, uma chance de escapar, de deixar a Guerra para trás. Mas agora
representava outra coisa – libertação. O dia que o Doutor caíra do céu e a fez
olhar o mundo de forma diferente, para o que era possível. E agora, embora ela
soubesse que era apenas uma poeira no furacão da Guerra, a mais ínfima das
vitórias, ela havia ajudado a libertar alguns de seu povo.
Com gratidão, Cinder pulou para dentro da TARDIS, dessa vez se preparando
para a estranha mudança no alinhamento entre as dimensões externas e
internas. Mesmo assim, desorientada, ela ainda cambaleou como bêbada,
forçada a se segurar no corrimão de metal para se equilibrar.
O Doutor fechou a porta atrás deles e ela caiu de joelhos, jogando a arma no
chão e envolvendo os braços ao redor do corpo. Ela sentiu as lágrimas brotando,
lágrimas de alívio, mas ela lutou contra elas, fungando e secando os os olhos.
Ela notou que o Doutor ainda tinha o canhão Dalek nas mãos. “Por que trouxe
isso?” ela disse. “Você sabe que não funciona contra os Daleks.”
O Doutor olhou para a arma e então a jogou no chão, onde fez um barulho alto
até parar. “Eu preciso levar isso para Gallifrey" ele disse. “Preciso mostrar aos
Senhores do Tempo contra o que estão lutando.”
Cinder ficou boquiaberta. “Mas tínhamos um acordo" ela disse. “Eu pensei que
você iria me levar para longe disso tudo, da Guerra?”
O Doutor concordou com a cabeça. “Eu vou. Eu prometo. Vou levá-la à algum
lugar seguro. Mas primeiro preciso visitar Gallifrey. O que os Daleks estão
fazendo aqui – pode significar o fim da Guerra. Pior, o fim do universo. Se eles
forem capazes de utilizar essa arma, não vai haver nenhum lugar seguro, em
nenhum canto da realidade.”
“Então eu vou com você” disse Cinder desafiadoramente. “Não vai me deixar
aqui.”
O Doutor negou com a cabeça. “Eu viajo sozinho. Não tenho tempo para crianças
abandonadas e perdidas. Você vai apenas ficar no caminho.” Ele começou a se
virar, mas Cinder se levantou e o segurou pelo braço. Havia mais do que ele
estava falando. Ela podia ver nos olhos dele. Ele tinha medo dela de uma forma
que não havia tido nem mesmo dos Daleks.
“Ah, não,“ ela disse. “Não vai se livrar tão fácil. Eu disse que estávamos juntos
nisso, e isso significa que você não pode me deixar pra trás.”
Seus olhos se encontraram. Eles se encararam em silêncio por um momento,
nenhum deles querendo ceder.
Finalmente, o Doutor cedeu. “Está bem" ele disse, jogando as mãos para o alto
em um gesto de resignação. “Está bem. Você pode vir. Mas isso é um arranjo
temporário. Eu não tenho tempo de me preocupar com mais ninguém.”
Cinder sorriu. “Acho que o ponto principal, Doutor, é se eu tenho tempo para me
preocupar com você.”
“Eu disse a você – não uso mais esse nome” ele disse franzindo a testa.
“Ah, eu acho que hoje você merece” disse Cinder. Ela caminhou até ficar ao lado
dele no console, examinando a estranha variedade de alavancas, mostradores
e botões piscando. “Muito bem" ela disse. “Vai me mostrar como essa coisa
funciona?”
“Não abuse da sua sorte" disse o Doutor enquanto pressionava o botão de
desmaterialização.

Capítulo Oito
“Relatório!”
O Dalek deslizou sem esforço para a câmara hexagonal do Círculo da
Eternidade, sua cabeça girando enquanto seu olho observava cada um de seus
cinco mestres por vez. "As operações Dalek em Moldox foram comprometidas”
ele disse. “A base temporária na cidade de Andor foi destruída.”
“Explique” vociferou o Dalek azul e prata no pedestal do centro.
“Uma rebelião humana" disse o Dalek. “Os prisioneiros escaparam e destruíram
as incubadoras.”
“E quanto ao progenitor?”
“Estão inoperantes. Os clones são inviáveis” disse o Dalek.
“Sem importância” disse outro dos Daleks azul e dourados nos pedestais. “O
teste está completo. O modelo para o novo paradigma pode ser disseminado.
Transmita instruções para os outros progenitores na Espiral de Tântalus. Ordene
a eles que comecem a produção imediatamente.”
“Eu obedeço.”
“Os humanos tiveram assistência de um Senhor do Tempo?” perguntou O Dalek
no pedestal do centro.
“Sim” respondeu o Dalek de bronze e ouro. “As transmissões da base indicam a
presença do Predador em Moldox. Confirmamos a assinatura de energia de sua
TARDIS.”
“Excelente. O plano está quase em conclusão.” O Dalek em azul e prata emitiu
um som que quase poderia ter sido uma risada. “Logo, o Predador vai liderar os
Daleks para sua vitória final. Logo, ele será nosso.”
Parte Dois.
Gallifrey
Capítulo Nove.
Karlax se curvou sobre sua mesa, usando seu dedo indicador para cutucar uma
tela de dados com cansaço. Grifos rolavam, indicando um número sem fim de
relatórios chegando da frente de batalha - ou melhor, das numerosas frentes nas
quais os Senhores do Tempo estavam atualmente engajados com os Daleks.
Ele selecionou um ao acaso e o abriu na tela, então escaneou as linhas de
abertura, nem se preocupando em checar a qual época se referia. Estavam todas
se misturando, de qualquer forma - todos os períodos da história de Gallifrey
agora estavam sob ataque dos vis Kaleds mutantes.
A história era a mesma. Em todo e qualquer relatório, era sempre o mesmo. Não
importava quão bem eles lutassem, quantos saleiros Daleks ou naves furtivas os
Senhores do Tempo conseguissem destruir, mais tomavam seus lugares. As
coisas eram implacáveis, e pior, de alguma forma capazes de se replicar tão
rápido quanto coelhos. Eles eram astutos também - tinham começado a semear
seus progenitores em eras incontestáveis, clonando a si mesmos e
manufaturando legiões inteiras, que por sua vez ficariam dormentes, às vezes
esperando por anos até o momento certo para atacar. Inevitavelmente, eles
seriam implantados para fortalecer uma força de ataque Dalek que já existia ou
então fazer cerco contra uma fortaleza de Senhores do Tempo desavisada
durante algum período caótico na história de Gallifrey. Eles tinham até tentado
exterminar as formas de vida primitivas de uma Gallifrey pré-histórica em um
esforço para impedir a evolução dos Senhores do Tempo.
Para os Daleks, a vida era barata e substituída com facilidade. Isso lhes dava
uma vantagem. Um Senhor do Tempo podia ter treze vidas, porem, Karlax
refletiu, a regeneração não tinha a menor serventia se você tivesse sido
atomizado em uma TARDIS de Batalha que explodia ou erradicado antes mesmo
de sua concepção.
Karlax suspirou. Seu colarinho e manto pareciam mais pesados hoje. Ele tinha
a sensação mórbida de que estavam a momentos de distância do apocalipse, de
que todos os seus esforços, todas as suas supostas vitórias contra os Daleks,
no fim, não iriam contar pra nada. Eles estavam presos em um impasse, e era
apenas uma questão de tempo até que os Daleks descobrissem um jeito de
quebrá-lo e a contagem regressiva continuasse. Eles tentavam adiar o inevitável.
Sua tela de dados apitou. Mais relatórios chegavam a cada segundo, e todos
deveriam ser lidos e sumarizados para o Senhor Presidente. O problema era que
Karlax simplesmente não conseguia acompanhar, não enquanto ele tinha outros
deveres para considerar. Ainda assim, ele supunha, eles não iriam ler a si
mesmos. Ele pressionou o ícone de outro relatório, mas conforme ele se reclinou
na sua cadeira, o estridente som de um alarme soou sob sua cabeça. Seus
ombros murcharam. O que seria dessa vez?
Karlax olhou para a direção do som de uma porta deslizando para abrir, quase
impossível de escutar devido ao alarme. Um soldado da Guarda do Chanceler
correu para dentro de suas câmaras. Ele parou diante da mesa de Karlax,
recuperando seu fôlego.
“Bem? O que foi dessa vez?” Karlax vociferou para o guarda. “Qual é o motivo
para esse barulho infernal?”
“É uma emergência nível nove, senhor.” disse o guarda, ainda um pouco sem
fôlego. Ele soava preocupado.
“Nível nove?” perguntou Karlax. Ele nunca poderia lembrar direito o que todas
queriam dizer.
“Uma cápsula temporal não autorizada está tentando se materializar no
Panopticon.” disse o guarda.
“O que?” Karlax respondeu. O timbre de sua voz alterado dramaticamente
conforme a fala do homem foi registrada. O Panopticon. “Como conseguiram
passar pelas trincheiras celestes e as barreiras de tradução?”
O guarda olhou para ele com uma expressão vaga. “Eu não faço a menor ideia,
senhor. É… deveria ser… bem, é impossível.”
“Claramente não é.” Karlax comentou de maneira sarcástica. Ele se levantou,
jogando sua tela de dados pro lado. “Peça para o Governador vir. Diga-lhe que
apronte suas tropas imediatamente. Se esse intruso conseguir entrar, apenas
Omega sabe o que pode acontecer.”
“Ele já sabe de tudo Senhor,” disse o guarda. “Foi o Governador que me
mandou pra te informar.”
“Bom,” Karlax murmurou.
O guarda lhe deu um olhar carregado de expectativa.
“Sim?” Karlax falou. “mais alguma coisa?”
“O Governador pediu a sua presença, Senhor,” o guarda falou, claramente
desconfortável em entregar tal mensagem.
Karlax suspirou. “Muito bem.”
Ele seguiu o guarda ao longo de uma passagem. O homem parecia querer andar
apressadamente, quase correndo, mas Karlax não concordava com isso. Ele não
estava muito interessado em ser convocado pelo Governador .
Eles passaram por um corredor largo, que terminava em uma porta enorme. Ela
abriu automaticamente conforme se aproximavam, deslizando em direção ao
teto. A vista além do mesmo era imensa, de tirar o fôlego - o olho do Capitólio, a
cidadela que era o coração pulsante da civilização dos Senhores do Tempo. Sua
base se abria para o alto, longe de suas cabeças e voltava a se fechar quando
se aproximava das nuvens, preenchida por espinhas dorsais pertencentes a
torres e arranjos de comunicação. A energia cintilante do domo era quase
invisível vista de baixo, se curvando através do céu e tingindo a luz com um leve
tom de laranja.
Karlax e o guarda marcharam para atravessar uma passarela comprida e sem
corrimãos, que levava para longe do complexo habitacional dos Cardinais,
através de um abismo que mais parecia um fosso, para a entrada da cidadela.
Na frente deles, podia ver outros soldados uniformizados se juntando. Parecia
que o Governador não ia deixar nada para o acaso.
Então seria isso? Tinha a guerra finalmente alcançado o Capitólio? Tinham os
Daleks finalmente descoberto uma entrada, uma maneira de violar sua
segurança? Parecia improvável, e mesmo assim - quem mais faria uma tentativa
tão descarada de forçar sua entrada? Quem seria insano o suficiente para
tentar?
Ele decidiu que talvez o guarda estivesse certo, no final das contas, e apertou o
passo, se apressando para passar pelos guardas que esperavam enquanto
gritava para que saíssem de seu caminho.
Todo mundo estava convergindo no Panopticon - a vasta câmara que servia
como o Parlamento e sede de Estado dos Senhores do Tempo. Estava em
pandemônio.
“Mexam-se.” gritou o guarda que estava lhe escoltando. “Deem passagem para
o Cardeal.” Karlax conferiu ao homem um pouco mais de respeito. A multidão de
observadores - alguns guardas, outros simplesmente subordinados curiosos
para saber o que estava acontecendo - se partiu para que ele pudesse passar.
Alisando seu manto, ele caminhou com determinação pelo corredor central e no
Panopticon propriamente dito. O Governador estava no processo de liberar um
espaço no meio da sala, cercado por uma horda de guardas, todos armados com
armas energéticas. Ele percebeu Karlax andando em sua direção.
“Você mandou um recado para o Senhor Presidente?” ele disse como saudação.
“Bom dia para você também.” Karlax respondeu.
“Que merda, Karlax. Isso é sério. O Senhor Presidente foi informado?” A face do
Governador estava ficando avermelhada.
“Ainda não.” Karlax respondeu. “Não até que eu realmente tenha algo para lhe
informar. O que está acontecendo aqui? O guarda disse algo a respeito de uma
emergência de nível nove, uma cápsula temporal não autorizada tentando se
materializar aqui, no Panopticon. Eu sei que isso não pode ser verdade. Eu sei
que você é bom demais no seu trabalho para permitir que isso aconteça.”
Karlax sorriu internamente. Bom estabelecer desde já de quem seria a culpa
caso o inimigo conseguisse de fato violar a segurança da cidadela. Ele sempre
achou útil atribuir culpa cedo no processo, particularmente se fazer tal coisa
significava que ele podia provar que nenhuma parte da mesma lhe pertencia.
O Governador parecia exasperado. “Nós tentamos atrapalhar a passagem, mas
passou por todos os nossos protocolos de defesa, um por um. Quem, ou o que,
quer que seja parece saber todos os nossos protocolos. O Senhor Presidente
precisa saber porque precisa ser evacuado. Ele precisa sair do Capitólio agora
para o caso de o inimigo estar lançando uma arma.”
Karlax considerou o Governador . Isso não era apenas uma hipérbole, O homem
estava seriamente preocupado. “Muito bem.” ele disse. Fez um gesto para
chamar um dos guardas. “Você. Sabe onde as câmaras do Senhor Presidente
estão?”
“Sim, senhor,” Disse o guarda, com seus olhos arregalados. Evidentemente a
ideia de visitar as mesmas lhe aterrorizava mais do que a possibilidade de um
inimigo desconhecido nas imediações.
“Bom. Então eu preciso que você vá at-” Karlax parou no meio da frase quando
um som profundo de metal raspando preencheu o ar ao redor deles. O
burburinho da multidão se tornou um sussurro.
“Tarde demais.” disse o Governador . “Eles estão aqui.”
Karlax virou para assistir o contorno da embarcação começar a se solidificar no
ar à esquerda de onde ele estava em pé. Os guardas formaram um círculo ao
redor com suas armas levantadas, se preparando para atirar. Uma terrível
suspeita se contorceu no fundo da mente de Karlax. Ele reconhecia aquele
som…
O barulho adquiriu um tom baixo, quase o barrido de um elefante, e então com
um chiado final, a nave deslizou para aquele plano de existência, passando por
todas as medidas de segurança dos Senhores do Tempo para sair do Vortex
Temporal e entrar no Panopticon.
Por um momento todos no ambiente ficaram em silêncio, como se temerosos até
de soltar a respiração. A nave era uma cabine de polícia alta e maltratada, com
as palavras “CAIXA DE POLICIA” escritas em letras grandes.
“Ah,” disse Karlax, com um balançar desgostoso da cabeça. “É ele.”
“Estamos aqui.” disse o Doutor.
“Aqui sendo Gallifrey?” Questionou Cinder.
A ideia de visitar o mundo natal dos Senhores do Tempo lhe preenchia de uma
animação curiosa e medo abjeto ao mesmo tempo. Ela não podia imaginar que
eles seriam particularmente hospitaleiros com uma refugiada humana. Ela não
era capaz de imaginar nem que receberiam o Doutor de braços abertos, julgando
pela maneira que ele falava deles.
Ainda assim, pelo menos não era Moldox. Pelo menos isso, ou algo do tipo…
O Doutor abriu um sorriso largo. “Sim, Gallifrey,” ele disse. “Apesar de que é
possível que eu tenha lhes deixado um tanto chocados.” Ele parou e pegou o
canhão Dalek que tinha deixado apoiado contra uma cadeira durante seu curto
voo. Se é que, de fato, podia ser chamado de voo. Cinder não tinha muita
certeza.
“Anda logo.” ele disse. “É melhor você ficar comigo.” Ele andou com propósito
até a porta.
Cinder olhou de relance para sua arma Dalek descartada, apoiada contra o
corrimão de metal, e considerou por um momento se deveria levá-la ou não. Ela
decidiu contra. Não tinha como saber o quanto o dedo dos Senhores do Tempo
ia pesar no gatilho, e ela não queria lhes dar nenhuma oportunidade de lhe
mostrar.
Com um balançar dos ombros, ela seguiu o Doutor enquanto ele se apressava
para sair da TARDIS.
Ela saiu para a luz do Panopticon e imediatamente levantou as mãos. Um mar
de guardas os cercava, todos vestidos em uniformes vermelho e branco que
combinavam, com armas levantadas que não pareciam feitas para incapacitar
ou chocar.
“Um belo comitê de boas vindas.” Ela disse, se aproximando do Doutor. “Posso
ver que você é bastante popular com seus amigos.”
O Doutor não parecia estar prestando atenção nenhuma - nem nela, nem nos
guardas. “Karlax.” Ele grunhiu, olhando para um entre a multidão, uma figura
vestida na tradicional veste extravagante dos Senhores do Tempo - uma espécie
de capacete, manto e um exuberante colarinho roxo-rosa. Ele parecia totalmente
estranho. “Onde está Rassilon?”
“Doutor, você não pode continuar aparecendo desse jeito. Existem protocolos.”
respondeu o homem, que Cinder assumiu ser Karlax.
“Até agora você está preocupado com protocolos.” disse o Doutor, com um tom
desdenhoso. “Não é de se surpreender que estejamos perdendo a merda da
guerra.”
Karlax fez uma careta, ignorando o ataque verbal. “Você podia usar a porta da
frente como todo mundo.” ele retrucou.
“Eu estava tentando chamar a sua atenção.” disse o Doutor. “Até você tem que
admitir Karlax.” Ele deixou seus olhos vagarem pela massa de guardas que tinha
se juntado, os mesmos com suas armas ainda em punho. “Funcionou.”
O homem em pé ao lado de Karlax, vestido em capacete e mantos similares,
apenas laranja e vermelho sem um colarinho, gesticulou para que os guardas
abaixassem suas armas. Havia um senso palpável de alívio no ambiente. Cinder
abaixou seus braços, se sentindo um pouco ridícula.
“Agora me diga.” O Doutor continuou. “Onde está Rassilon?”
“O Senhor Presidente está atualmente engajado em importantes problemas de
Estado.” Karlax respondeu com pompa.
“Ele vai querer saber a respeito disso, Karlax.” O Doutor rebateu. Ele avaliou o
peso do canhão Dalek e Cinder viu o homem ao lado de Karlax abaixar a mão
em direção ao sinto, como se estivesse se preparando para puxar uma pistola.
“Doutor.” ela interrompeu, dando um passo para a frente e colocando sua mão
no cano da arma Dalek. “Com tantas armas no ambiente, eu acho que pode ser
uma boa ideia manter essa fora da mistura.”
Karlax deu risada. “Vejo que você encontrou uma nova… acompanhante.” ele
disse. Falou a última palavra como se a mesma deixasse um gosto
particularmente ruim em sua boca. “Mais um perdido?”
Cinder se eriçou. Era exatamente assim que ela tinha imaginado os Senhores
do Tempo - sarcásticos, presunçosos e praticamente pingando vaidade.
“Você vai ter que deixá-la aqui.” Continuou Karlax. “Você não pode levar ela para
a câmara do conselho.”
“Eu posso fazer o que eu quiser.” disse o Doutor. “Ela está comigo. Ela está sob
a minha proteção. E ela viu o que os Daleks estão fazendo em Moldox. Sua
perspectiva vai ser útil.”
“Ela também está aqui nessa sala.” Cinder apontou severamente. Os dois
olharam para ela antes de voltar a discutir.
“Lorde Rassilon não vai gostar disso.” Karlax advertiu.
“Não.” o Doutor concordou. “Mas eu também não gosto muito de você, e eu tenho
que lidar com isso.” ele adicionou.
As bochechas de Karlax coraram e Cinder teve que segurar uma risada. “Isso
vai entrar na sua conta, Doutor.” ele disse. “É melhor você vir comigo.”
O Doutor olhou para Cinder, e havia um vislumbre de algo que ela não tinha visto
antes, um brilho em seus olhos. Ele estava se divertindo. “Mostre o caminho,
Macduff.” ele disse sorrindo.

Capítulo Dez
A Sala de Guerra não era tudo aquilo que Cinder tinha esperado quando ouviu
Karlax contando para o Doutor qual seria seu destino. Se esse era o nervo
central da operação inteira dos Senhores do Tempo contra os Daleks, então
talvez eles tivessem mais problemas do que ela tinha antecipado. Era um tanto…
bem, ela supunha que a palavra para aquilo era discreta.
O ambiente nem parecia tão impressionante, e também não era particularmente
bem equipado, pelo menos até onde ela podia ver - a maior parte da tecnologia
Gallifreyana estava além do seu entendimento, mais perto de mágica do que
algo feito por uma pessoa.
Mesmo assim, a Sala de Guerra era pouco mais do um espaço grande e oval,
flanqueado por pilares de rocha caindo aos pedaços e dominado por uma
enorme mesa de ébano. A superfície da mesa brilhava com a luz azul vaga de
pictogramas e runas holográficas. Eles pareciam deslizar logo abaixo do verniz,
como peixes em um lago, se transformando em novas e elaboradas formas toda
vez que tocavam ou interagiam um com o outro. Era uma dança estranha e
hipnótica, e ela não era capaz de decifrar nenhum significado nela.
Isso, ela supôs, era a língua dos Senhores do Tempo. Certamente parecia
complexa e lógica o suficiente para ser um idioma, e precisa o suficiente para
pertencer a única raça no universo que parecia preocupada em transformar o
pedantismo em arte.
Havia pouca coisa além disso na sala digna de nota, apenas um número de telas
penduradas como quadros nas paredes, transmitindo filmagem capturada do
que ela assumiu serem naves de guerra ou TARDISes dos Senhores do Tempo.
As imagens silenciosas deslizavam em uma confusão de explosões e luzes
piscantes; janelas para os encontros dos Senhores do Tempo com os Daleks.
Conforme ela assistia, viu naves de ambos os lados do conflito explodir em
chamas e então serem extintas quase instantaneamente, suas carcaças mortas
deixadas à deriva no vazio frio e sem vida.
Ela não era capaz de dizer se estava ao vivo, ou se o homem sentado na cadeira
estava revisando a filmagem de batalhas que já tinham passado. Ela supunha
que em uma guerra do tempo, isso era provavelmente discutível.
A coisa mais estranha sobre a situação toda, no entanto, era o fato de que a Sala
de Guerra estava escondida em um canto quieto da cidadela, bem longe das
salas de estado e do Panopticon. A impressão deixada em Cinder era que os
Senhores do Tempo estavam tentando esconder algo, varrer toda a evidência
da guerra em um canto inutilizado e empoeirado do prédio para que pudessem
simplesmente ignorar a situação. Eles realmente achavam que se escolhessem
não reconhecer isso, isso não seria real, e a vida no Capitólio poderia seguir em
frente como sempre? Ela tinha a distinta impressão de que para muitos dos
Senhores do Tempo, a guerra era um problema de outra pessoa, uma
perturbação que seria resolvida em seu devido tempo. Nada que valesse a pena
se estressar.
Cinder sabia que o Doutor pensava diferente, claro, a julgar pela sua reação ao
que tinha visto em Moldox. Aquele era o motivo para a sua visita. Ele tinha vindo
lhes avisar. Esse era seu povo e ele planejava os proteger.
O homem na cadeira não se levantou nem virou para olhar conforme entravam
no ambiente. Uma demonstração de poder, talvez - um lembrete de quem estava
no comando.
Esse, então, era o Senhor Presidente de Gallifrey, o homem ao qual o Doutor se
referia como Rassilon. Cinder sentiu o estômago se contorcer. Apenas ontem
ela estava lutando pela sua vida contra uma patrulha Dalek em Moldox. Agora
ela estava aqui, na presença de um dos seres mais poderosos do universo.
Ela podia ver apenas o seu perfil. Ele era um homem mais velho, magro e severo.
Seu cabelo estava cortado curto e escuro, se tornando cinza. A luz dos monitores
colocava suas feições em contraste: o cenho pequeno e forte, o nariz aquilino,
seu maxilar firme e quadrado. Aqui estava um homem que não se divertia muito
com o universo, que tinha sido endurecido pelo fardo do dever. O peso daquele
fardo era quase palpável no ambiente.
“Ah, Doutor.” disse Rassilon, ainda se recusando a tirar seus olhos do monitor
acima dele. “Eu escutei que sua chegada causou uma certa comoção. Você
merece parabéns pela sua criatividade.” Ele tinha uma boa dicção, sua voz era
profunda e suave. Ele deu uma risada. “Fico feliz que você esteja trabalhando
com a gente e não contra.” Ele virou sua cabeça e ofereceu um sorriso torto para
o Doutor. Seus olhos, no entanto, eram frios e duros. “Não concorda, Karlax?”
“Com toda certeza, Senhor.” disse Karlax, com uma subserviência
desconcertante.
“As notícias se espalharam rápido.” disse o Doutor, olhando de relance para
Karlax. “Eu acabei de chegar.”
Rassilon riu. “Venha, se junte a mim.” ele disse, gesticulando para que o Doutor
viesse para frente. Seus dedos brilhavam na luz refletida e Cinder percebeu que
ele usava uma manopla de metal em sua mão esquerda.
O Doutor fez conforme a orientação. Cinder permaneceu do lado de dentro da
porta, tentando permanecer invisível, enquanto Karlax tomou um assento na
mesa, de onde podia observar os procedimentos.
“O filho pródigo de Gallifrey. Veja aqui.” Ele indicou os monitores com um gesto
de sua mão. “Nossos navios de proa queimam, nossas TARDISes explodem,
nossas crianças morrem nas mãos dos Daleks. Nós lutamos pela nossa própria
existência.” Ele suspirou. “Mas você sabe disso, é claro. Você esteve lá fora, no
grosso das coisas. Diga-me, Doutor - o que te fez voltar para casa da frente de
batalha?”
“Eu trago um aviso.” Ele respondeu secamente.
“Um aviso.” disse Rassilon, evidentemente entretido. “Somos verdadeiramente
privilegiados, Doutor.” Ele riu. “Primeiro, no entanto, eu gostaria de ouvir notícias
da sua procura. Já encontrou ele por acaso? Já localizou o mestre?”
O Doutor balançou a cabeça. Cinder não tinha ideia do que ou de quem estavam
falando. “Ele te abandonou, Rassilon. Ele abandonou a todos nós. Ele fugiu para
um abrigo, e duvido que vamos vê-lo de novo. Não até que a guerra acabe, pelo
menos.”
“Ele olhou no olho da tempestade e o que ele viu lá foi demais para aguentar.”
Rassilon declarou. “Ele é fraco e pensa apenas na própria sobrevivência. Ainda
assim, não posso o culpar. Estamos todos na beira de um precipício, olhando
para baixo.” Ele estudou o Doutor por um momento. “E agora você, Doutor, traz
mais notícias desagradáveis.”
“Temo que sim.” o Doutor disse. “Venho direto da Espiral de Tantalus, onde vi a
frota de Pedra destruída por uma emboscada de naves furtivas Daleks.”
Rassilon indicou as telas com um aceno extenso. “Eu assisti os momentos finais
de sua TARDIS com um coração pesado.” Cinder acho que ele não parecia
minimamente incomodado.
O Doutor assentiu. “Minha TARDIS foi danificada no ataque. Sobrevivi a um
pouso forçado no planeta Moldox, onde descobri uma instalação de testes dos
Daleks. Eles estão desenvolvendo uma nova arma, alojada em um novo
paradigma. Ela aproveita a radiação temporal vazando do Olho de Tantalus.”
“A anomalia?” Rassilon perguntou.
“Precisamente.” foi a resposta do Doutor. “Eles criaram uma arma de
desmaterialização. Eu vi eles testando em seus prisioneiros humanos. Está
pronta para ser disseminada nas linhas de frente.”
“Isso é… preocupante.” Rassilon disse.
“Fica pior.” o Doutor continuou. “Eu consegui entrar em uma de suas armaduras
e interrogar seu banco de dados. Estão usando a tecnologia para construir um
matador de planetas. Querem atirar em Gallifrey.”
“Desmaterializar um mundo inteiro.” disse Rassilon. “Eu admito, Doutor - estou
impressionado com a engenhosidade deles.”
“Precisamos agir.” insistiu o Doutor. “E logo. Aquele precipício que você
mencionou - acabamos de nos aproximar um pouco demais da beirada.”
Rassilon pareceu se divertir. “Karlax?”
“Sim, meu Senhor?”
“Faça arranjos para uma sessão emergencial do Alto Conselho. Vamos nos
encontrar em uma hora. O Doutor e sua assistente irão apresentar suas
descobertas.” Rassilon olhou de relance para o Doutor e sorriu.
“Muito bem, senhor.” respondeu Karlax.
Cinder não conseguia deixar de sentir que o Doutor tinha acabado de se inserir
em um outro tipo de emboscada.
Karlax lhes apressou para dentro da câmara do conselho. O Doutor foi primeiro,
arrastando o canhão Dalek que tinha pego em sua TARDIS, e enquanto Cinder
lhe seguia, ela parou ao toque de uma mão em seu ombro, pressionando um
pouco forte demais para ser confortável. Ela virou para ver Karlax assomando
sobre seu corpo.
“Você espera comigo, aqui.” ele disse, enquanto lhe empurrava com força ao
canto do ambiente, logo ao lado esquerdo de dentro da porta. Relutantemente,
ela aquiesceu, permitindo que ele a guiasse para fora do caminho.
“Ah, eu entendi.” ela disse ironicamente, cruzando seus braços sobre o peito e
colocando tanta distância entre si e o homenzinho detestável quanto possível.
“Apenas Senhores do Tempo importantes podem se sentar à mesa.”
Karlax fez uma careta de desgosto para ela, mas não esboçou nenhuma outra
resposta. Ela assistiu enquanto os procedimentos começaram prestando
atenção no que Karlax fazia ao seu lado.
Dado que essa era a sala de reuniões do Alto Conselho de Gallifrey, era bem
menos ostentosa do que ela tinha esperado levando seu curto tempo no Capitólio
em consideração: as paredes eram totalmente brancas, o chão feito de mármore
liso cor de creme e a mobília era escassa.
Uma grande mesa oval preenchia a maior parte do espaço. Era similar em
tamanho e forma àquela na Sala de Guerra, mas com uma superfície reluzente
de madeira envernizada, incrustada com delicados traços de ouro. Não parecia
ter nenhuma tecnologia embutida, mas era difícil ter certeza.
Além disso, os únicos outros objetos no ambiente eram uma grande harpa
dourada, uma pintura de um Senhor do Tempo de aparência decrépita tocando
a harpa, e uma plataforma contendo duas esporas e uma interface
computadorizada.
Ao redor da mesa, um número de Senhores do Tempo já tinha tomado seus
lugares. Rassilon sentou na cabeceira, vestindo todas as partes da veste
pertinente ao seu ofício, e segurando um cajado dourado em sua mão esquerda.
Era uma haste fina de metal, um remate elaboradamente tecido em seu topo.
Cinder não fazia ideia de seu propósito, mas assumiu que tinha uma origem
cerimonial.
Uma das cadeiras estava vazia, Cinder notou o padrão de um Senhor do Tempo
que tinha sido entalhado nas costas alongadas com detalhe excepcional. Ela
imaginou se isso denotava o ranque da pessoa que deveria estar sentada ali.
À esquerda de Rassilon estava uma Senhora do Tempo. Ela parecia jovem, com
cabelos curtos e escuros emoldurando sua face delicadamente linda. Ela
também estava vestida com um manto elaborado, dessa vez em um tom de roxo
profundo com detalhes em platina, com um colarinho dourado e largo em seus
ombros.
No lado oposto da mulher estava o Governador - o chefe do serviço de
segurança, a quem Cinder tinha brevemente encontrado quando chegou no
Panopticon - e dois outros homens, um deles mais velho, com pele escura
manchada por pequenas perfurações e cabelo curto, o outro mais jovem mas
ainda assim ficando grisalho, uma barba extremamente bem cuidada e olhos
azuis que não paravam quietos. Ambos vestiam luvas indo até os cotovelos, seus
dedos adornados com anéis.
Era tudo pompa e cerimônia, Cinder reconheceu. Eles pareciam mais
preocupados com seus rituais do que com escutar o que o Doutor tinha a dizer.
Se o destino do universo realmente estivesse nas mãos dessas pessoas, então
ela tinha graves dúvidas sobre se teria algo pelo qual valesse a pena lutar
quando os Daleks fizessem a sua jogada.
Parecia que todos os que deveriam comparecer tinham chegado. Karlax puxou
a porta até que fechasse e retornou ao seu lugar no canto ao lado dela. Ela lhe
observou por um momento. Seus olhos estavam fixados no Presidente, atentos
a cada movimento dele.
Karlax deve ter sentido seu olhar, porque ele virou e lhe ofereceu um olhar de
escárnio. “Você é privilegiada.” ele sussurrou. “Eu nunca ouvi sobre um humano
que teve permissão para atender uma sessão do Alto Conselho.”
Cinder deu de ombros. “Tempos desesperados pedem por medidas
desesperadas.” ela disse.
“E como.” Karlax respondeu com amargura.
Metal rangeu contra mármore, e todos os olhares se voltaram para o presidente.
“Essa sessão está formalmente aberta.” ele disse. “O Doutor irá se dirigir a nós
agora.”
O Governador sorriu e soltou o corpo na cadeira. Ele assistiu o Doutor com um
olhar de diversão em seus olhos. “Eu entendo que existe um pequeno problema
sobre o qual você deseja nos informar, Doutor?” ele disse. Seu tom era
condescendente, Cinder ficou indignada pelo Doutor.
O Doutor, é claro, podia tomar conta de si mesmo. “Pequeno, você disse?
Pequeno?” Ele encarou o Governador . “A única coisa pequena nesse ambiente,
Governador , é a sua mente.”
O Doutor jogou o canhão Dalek na mesa, onde fez um barulho alto, fazendo os
Senhores do Tempo recuarem como se o Doutor tivesse sido rude o suficiente
para jogar um animal morto na mesa do jantar.
O Doutor começou a andar sem sair muito do lugar. Cinder podia ver que ele
estava transbordando de raiva. “Está na hora de acordar!” ele disse. “Estamos
em guerra, e de acordo com todos os relatórios estamos perdendo em todas as
frentes. Estamos perdendo em números e ranques, e estamos enterrando
nossas cabeças na areia, nos recusando a reconhecer o que está bem claro para
o resto do universo. Enquanto olhamos para nossas naves, os Daleks
estabeleceram sua presença na Espiral de Tantalus e estão construindo suas
forças lá.”
O Cardeal com a barba deu de ombros, exasperado. “Deveríamos mandar uma
flotilha para lidar com isso então.”
O Doutor bateu com o punho na mesa, se inclinando para a frente para assomar
sobre o homem. Ele empinou o queixo, empurrando sua face para perto da do
outro homem. “Nós já tentamos, Grayvas.” ele disse. “Deixamos chegar muito
longe. Tem muitos deles e já estamos espalhados demais. Eu assisti a frota da
Preda inteira queimar, as TARDISes de batalha explodindo debaixo do fogo de
cem ou mais naves Dalek furtivas. E essa é apenas a ponta do iceberg. Eles
tomaram posse de uma dúzia de planetas já tem anos, os usam para moldar
seus planos e construir suas frotas.”
“Já vimos isso antes.” Disse o Governador , seu tom desdenhoso. “Os Daleks
estão construindo exércitos em todos os lugares para onde olhamos. É mais da
mesma coisa. Eles semeiam seus progenitores infernais ao longo da história e
colhem sua matéria biológica da população local para criar novos mutantes. Não
existe nada de novo nisso, Doutor. A guerra continua.”
“Ah, mas existe, Governador .” O Doutor usou o título de honra como um
xingamento. “Eles estão minerando a radiação temporal que vaza do Olho de
Tântalus, usando para criar armas de desmaterialização como essas.” Ele
apontou para a arma na mesa. “Essa foi tirada de um de seus novos paradigmas.
Eu vi o que pode fazer, assisti conforme reescreveu o tempo e apagou totalmente
quatro humanos da história.”
Rassilon se inclinou para a frente, encarando a arma. O Governador estendeu
sua mão enluvada como se fosse tocar o objeto e mudou de ideia. Sua
expressão era sombria.
“Exatamente.” disse o Doutor. “Vocês lembram o que uma arma de
desmaterialização pode fazer com um Senhor do Tempo. Sem chance de
regeneração - apenas o simples esquecimento. Nos escondemos das nossas,
enfiando em um cofre por conta dos horrores que eram capazes de infligir aos
outros.” Ele passou uma mão por seu cabelo. “Agora os Daleks as têm, e estão
começando a produção de seus paradigmas enquanto conversamos.”
Grayvas limpou sua garganta. “Essa arma temporal dos Daleks, Doutor - você
viu mais de uma?” ele disse.
O Doutor assentiu. “Eu destruí uma de suas incubadoras em Moldox, mas haverá
centenas mais, milhares até. A Espiral de Tantalus se tornou um campo de
criação. Se não lhes pararmos logo, vão começar a enviá-los através do tempo,
para todas as épocas nas quais lutamos, e outras nas quais não estamos. O
gênio vai sair da lâmpada, e jamais seremos capazes de colocá-lo de volta.”
Rassilon se recostou na cadeira, parecendo pensativo. Ele bateu seus dedos
envoltos pela manopla na mesa, rat-ta-tat-tat, rat- ta-tat-tat. “Conte a eles o resto
da história, conte a verdadeira ameaça.”
“Isso é apenas o começo.” disse o Doutor. “Eu obtive acesso aos seus sistemas
de computador enquanto estava a bordo de uma de suas armaduras. Eles estão
construindo um matador de planetas. Estão usando a mesma tecnologia para
transformar o Olho de Tântalus em uma enorme arma de energia. Uma arma
temporal.” Ele pausou para respirar. “Eles planejam apagar Gallifrey da história,
de toda e qualquer variação da realidade. Os Senhores do Tempo vão deixar de
existir, a história será reescrita como se nunca tivessem ao menos existido, e o
universo será dos Daleks.” O Doutor deu um passo para longe da mesa, olhando
ameaçadoramente para Rassilon. “Nós temos que agir agora.”
Rassilon fez uma careta. “Se você estiver errado, Doutor, e nós mostrarmos o
que temos em mãos, vamos nos deixar completamente expostos aos Daleks.
Como você habilmente apontou, nossas forças já estão muito espalhadas. Se
nos comprometermos com uma ofensiva na Espiral de Tântalus, vamos arriscar
permitir que os Daleks tenham oportunidade de estabelecer uma praça de armas
em outro lugar.”
“Eu não estou errado.” disse o Doutor. Seu tom era forte. “Aqui está a evidência,
bem diante de seus olhos.” Ele deu um empurrão no canhão do Dalek, para que
escorregasse pela mesa até Rassilon. “Peça para os técnicos examinarem isso
se duvidam de mim.”
Rassilon sorriu de canto. “Então o que deve ser feito? Diga-nos, Doutor. O que
você sugere?”
O Doutor suspirou, seus ombros se curvaram. “Eu não sei.” ele disse. “Eles
parecem ter uma estação de comando no coração da Espiral, logo acima do
Olho. Eu arrisco que esse também seria o local da arma. O problema é chegar
até lá. Tem uma armada de soldados estacionada lá, sem contar as inúmeras
naves furtivas, se escondendo no vazio. Seria necessário tudo o que temos.”
“Impossível.” disse a Senhora do Tempo. “Nós simplesmente não temos os
recursos.”
“Existe um jeito.” Disse o Governador , seu tom grave. “Tem uma arma no
Arsenal Omega.”
O outro cardeal, que até agora tinha ficado em silêncio, virou-se para o
Governador . “Você não pode estar seriamente se referindo ao Momento?
Certamente ainda não é necessário tal coisa?”
“Não.” o Governador respondeu firmemente. “Não isso. A Lágrima de Isha.”
O Doutor fechou sua expressão. “Mas a Lagrima foi criada para colapsar buracos
negros.” ele disse. É uma ferramenta para engenharia estelar. Como você… oh.”
Ele parou, sua mente alcançou sua boca. “Sim, eu entendi…”
“Vejo que você entendeu, Doutor.” disse o Governador . “Se lançássemos a
Lágrima no coração da anomalia, poderíamos fechar o Olho. Nos permitiria re-
engenhar a dobra no espaço-tempo e neutralizar a fonte de poder temporal dos
Daleks para sempre.”
“Você não pode fazer isso.” O Doutor argumentou. “Bilhões de vidas seriam
perdidas. Tem uma dúzia de mundos habitados na Espiral, colônias
estabelecidas há séculos. A Lágrima causaria a implosão do Olho, e a
tempestade subsequente iria devastar os planetas até o pó. Eu não posso
permitir isso.”
“Você não pode permitir isso?” Rassilon rebateu. “Realmente, Doutor, eu acho
que você tem um senso inflado da sua própria importância. Quem é você para
dizer o que podemos ou não fazer?”
“Rassilon, você estaria apoiando um genocídio em uma escala enorme.” o
Doutor contra-atacou. “As apostas estão muito altas. Deve existir outro jeito.”
“Então nos diga, Doutor. Dê uma luz. Que outro jeito você vê?” Rassilon ficou
em pé, cortando sua mão envolta na manopla. “Você vem até nós com notícias
de ruina iminente, e agora espera que simplesmente fiquemos sentados sem
agir devido ao seu apego idiota por um punhado de seres humanos?”
Cinder não podia aguentar mais. “Um punhado?” ela disse, caminhando para
frente. Ela já estava cansada de todo esse papo casual a respeito de genocídio.
“É sobre a minha casa que você está falando. Bilhões de vidas. Tem mais
pessoas nesses mundos que em toda Gallifrey. Elas não são piões em seu jogo,
para serem sacrificadas quando quiserem.”
Rassilon encarou o Doutor. “Por gentileza silencie sua assistente, Doutor. Ela
não tem voz nessa sala.”
Cinder sentiu o aperto de Karlax em seu ombro de novo, e dessa vez ele apertou
até que doesse.
O Doutor lhe olhou de esguelho, e ela podia ver a frustração na tensão de seu
maxilar. Claramente ele queria agarrar Rassilon pelos ombros e lhe sacudir até
que escutasse.
“Por favor, Senhor Presidente.” ele disse com um esforço aparente para todos
que ocupavam o ambiente. Ele estava segurando um discurso. “Se você dedicar
um pouco de tempo, considerar tudo, haverá outros caminhos. Nós apenas não
podemos enxergar ainda.”
Rassilon acenou com o braço para os Senhores do Tempo reunidos. “Vá.” ele
disse. “Todos vocês. Essa sessão está encerrada. Eu tomarei minha decisão e
vocês serão informados.” Ele olhou para cima, fixando um olhar ameaçador no
Doutor. “Doutor, você pode esperar no lounge de observação. Falarei com você
em breve.”
“Muito bem.” ele respondeu. Os outros membros do conselho saíram aos
poucos, cada um deles se recusando a olhar nos olhos de Cinder. Se isso era
creditado a sua pura arrogância, ou a sua inabilidade de encarar um ser humano
depois de ser cúmplice no que levaria ao genocídio de seu povo, ela não sabia.
Nem se importava. Ela queria que sofressem.
Karlax saiu de seu lado para ir falar com o presidente, e ela correu para o Doutor,
que se apoiava com pesar sobre a mesa, seu cenho franzido. “Vamos lá.” ela
disse. “Venha me mostrar esse lounge de observação.”
O Doutor olhou ao redor e ela sorriu esperançosamente para ele. Ela sabia que
precisava tirar ele do ambiente. Ainda havia tempo. Ele encontraria um jeito. A
expressão em sua face agora, no entanto, sugeria que se ela deixasse ele aqui
com Rassilon e Karlax, as coisas não iriam acabar bem. Além de que ela própria
não sabia por quanto tempo poderia continuar olhando para eles.
O Doutor se endireitou, pegando o canhão Dalek da mesa. “Por aqui.” ele disse,
saindo subitamente da sala.
Capítulo Onze
Do painel de observação na sala eles tinham uma vista do Capitólio inteiro.
Cinder estava em pé diante dele, ombro a ombro com o Doutor, ambos imersos
em um silêncio impressionado. Ela não pode evitar ficar maravilhada com o mar
de espirais eriçadas, os domos de cristal que pareciam orbes, estranhamente
angulares complexos de prédios e plataformas de transporte. Essa era a
extensão urbana de uma antiga, quase divina raça; esse era o pináculo da
civilização dos Senhores do Tempo. Era lindo e aterrorizante ao mesmo tempo,
uma vasta diferença da paisagem inóspita de Moldox.
“Eu não olho para Gallifrey assim há tanto tempo.” disse o Doutor depois de um
momento. “Me faz lembra o que eu amo sobre o lugar e o que eu odeio também.”
“Te lembra do seu motivo para lutar?”
O Doutor deu uma risada. “Sim, eu suponho que lembra.”
Com os senhores do tempo, Cinder compartilhava os Daleks como inimigos em
comum, e olhando para a vasta expansão disso, sua cidade mais importante, ela
sentiu um tipo de empatia amarga com eles. Isso era o que tentavam proteger:
seu lar. Era apenas natural que, quando empurrados em um canto, eles fossem
revidar e fazer o que quer que pudessem para defendê-lo.
Muitos do seu povo afirmavam que os Senhores do Tempo não eram nada além
de tolos iludidos, um povo antigo que tinha tomado como obrigação tentar policiar
o universo, interferir na evolução e no desenvolvimento de outras raças. Eles
argumentariam que o poder dos Senhores do Tempo tinha subido as suas
cabeças e lhes corrompido, e que eles tinham começado a guerra com os Daleks
em primeiro lugar, todos aqueles muitos séculos atrás. Talvez ainda pior era a
ideia de que tinha sido sua interferência, ou o simples fato de sua simples
existência, que havia causado a evolução dos Daleks em máquinas mortíferas
sem coração.
Cinder não sabia se nada disso era verdade. Isso não alterava o fato, no entanto,
de que quando confrontada pelo mesmo problema que os Senhores do Tempo -
um exército saqueador de Daleks tentando obliterar seu povo da história - ela
tinha se comportado exatamente da mesma maneira. Ela tinha lutado com todos
os pedaços de seu ser, empregando cada arma existente em seu arsenal. Isso,
ela podia entender.
Mesmo assim, ela não podia esquecer as coisas que tinha visto durante este
longo e pavoroso conflito: a pura arrogância dos Senhores do Tempo, seu
descaso pela vida humana, e a horrorizante criatividade de suas armas. Empatia
era uma coisa, confiança era outra muito diferente.
Ela também não era capaz de ignorar o fato de que, se tudo fosse feito do jeito
dos Senhores do Tempo, seu povo ainda poderia ser extinto, só que dessa vez
por um inimigo diferente.
Se aproximava do anoitecer e, diante dos olhos de Cinder, pequenas luzes
começaram a piscar no céu ao redor dos domos de habitação. A princípio eram
apenas um punhado, mas ela assistiu enquanto elas pareciam se multiplicar, até
que houvessem enxames, centenas talvez, flutuando devagar no céu vindas da
cidade abaixo. Pareciam vagalumes, zumbindo caoticamente na brisa.
“O que são essas coisas?” Cinder perguntou. “Lanternas de papel?”
O Doutor balançou sua cabeça. “Não, apesar do princípio ser o mesmo. Essas
são lanternas de memória.”
“Lanternas de memória?” Cinder ecoou.
O Doutor olhou rapidamente para a menina. “Todos eles acham que vão morrer.”
ele disse. “Todas aquelas pessoas lá embaixo acham que os Daleks estão vindo,
e vão ser exterminados.” Ele suspirou e o cansaço em sua expressão falou mais
alto. Talvez ele achasse que estavam certos. “Então eles estão gravando todas
as suas memórias e pensamento nessas lanternas, e lhes espalhando por todo
tempo e espaço. O último ato de um povo desesperado. Eles estão com muito
medo de serem esquecidos, então estão semeando a si mesmos nos cantos
remotos do universo para serem lembrados.”
“Isso é bonito.” Cinder disse suavemente. Ela deu um passo para se aproximar
da tela de observação, assistindo conforme mais dos pequenos pontos de luz
flutuavam para cima antes de piscar para fora da existência, transmitidos para
algum lugar no mais profundo do Vortex. Ela imaginou onde cada um emergiria,
em um passado há muito esquecido, ou talvez em um futuro marcado por
batalhas, muito depois que a Guerra do Tempo tivesse acabado.
“É pura vaidade.” respondeu o Doutor. “É impróprio. Um desperdício de tempo.
A maior parte dessas lanternas não vai sobreviver à jornada através do Vortex.
Elas vão se partir dos ventos temporais, e todas essas memórias preciosas serão
espalhadas pela brisa.”
“Mas não é essa a questão.” Cinder rebateu. “Para essas pessoas, as lanternas
representam esperança. Esperança que alguma parte delas, mesmo que
pequena, possa sobreviver a tudo isso. Não tire isso delas.” Ela de repente sentiu
muito frio, cruzando os braços sobre seu peito para se dar uma espécie de
abraço.
O Doutor sorriu, pelo mais breve dos momentos. “Você é incrivelmente humana,
Cinder.” ele disse quietamente. Seus olhos se encontraram por um breve
segundo, antes dele desviar o olhar e a expressão cansada e abatida retornasse.
“O que fazemos agora?” Cinder perguntou.
O Doutor deu de ombros. “Esperamos que eles respondam.”
Meia hora passou, talvez mais. Cinder andou impaciente pela sala, enquanto o
Doutor permaneceu diante da janela, olhando para a cidade que um dia fora seu
lar.
Ela imaginou há quanto tempo ele fugia. Rassilon havia lhe chamado de “filho
pródigo de Gallifrey”. Aquilo sugeria uma história mais profunda, mais
interessante, do que ela tinha sido capaz de descobrir até agora. O que ele teria
feito para ganhar essa reputação? Era claro que ele era um não-conformista - a
simples questão de sua aparência, a jaqueta de couro surrada, o cachecol
vermelho e branco, sem falar da estranha aparência externa de sua TARDIS -
tudo isso lhe marcava como diferente dos outros Senhores do Tempo. E ainda,
Cinder achava que tinha mais nessa história.
Ela supunha que podia apenas ser culpa da sua aproximação antagonista a
autoridade e seu flagrante descaso pela obsessão dos Senhores do tempo por
cerimônias e rituais. Ele certamente não tinha se feito nenhum favor com o jeito
que tinha se dirigido a Rassilon. Apesar de que, vendo a maneira adotada por
Karlax para babar pelo Senhor Presidente, era provavelmente uma atitude
saudável para ser adotada. Alguém tinha que falar. A própria Cinder não tinha
ajudado em nada com seu comentário. Ainda assim, pelo menos ela tinha
conseguido ser entendida.
Ela se virou ao som de uma porta abrindo. Um guarda entrou na sala. Seus olhos
pareciam passar por cima dela, mesmo que os seus estivessem fixados nele.
Ela esperou que o Doutor o virasse e reconhecesse antes de falar. “Lorde
Rassilon vai falar com você agora, Doutor.” ele disse. “Você pode trazer sua…
companheira.”
Cinder ficou tensa. O homem tinha dito a palavra de um jeito que a implicação
era clara: ele não a considerava de jeito nenhum como a “companheira” do
Doutor, ela era mais seu “bichinho”. O Doutor percebeu isso também, e conforme
atravessou o ambiente, fez questão de colocar uma mão em seu braço para lhe
confortar. “Vamos.” ele disse baixinho. “Vamos lá ver o que esses velhos
amargurados conseguiram inventar.”
Eles seguiram o guarda ao longo da passagem levando a câmara do conselho.
Ele os apressou para entrar, mas ele mesmo ficou do lado de fora.
Rassilon sentava sozinho na cabeceira da mesa, ainda segurando seu cajado.
Ele olhou para cima quando entraram na sala. Cinder notou com gratidão que
Karlax não estava ali.
“Você chegou a uma decisão?” disse o Doutor.
Rassilon cerrou seus olhos. “Você esqueceu seu lugar, Doutor. Você assume ter
direito a algo, aqui na câmara do Alto Conselho, onde você não tem nenhum.
Você é um renegado, um fugitivo. Um desertor.”
“Eu sou um ex-presidente de Gallifrey.” Disse o Doutor com raiva.
Rassilon zombou. “Em nome, talvez, mas nunca mais que isso. Você nunca seria
capaz de apreciar a importância de tal posição.”
“Pelo contrário, Rassilon. Eu fui o único que pode.” O Doutor puxou uma cadeira,
arrastando-a contra o chão e deixando seu corpo cair pesadamente nela, de
frente para Rassilon. “A Lágrima de Isha. Qual é sua decisão?
“Que seja implantada no Olho.” foi a resposta.
Cinder sentiu seu coração dar uma guinada em seu peito. Houve uma onda
súbita de náusea. Eles iam fazer aquilo. Eles iam realmente assassinar cada
alma vivente em uma dúzia de mundos.
“Rassilon,” disse o Doutor, claramente exasperado. “Você está condenando um
bilhão de almas a uma morte terrível. Mais que isso até. Como pode se quer
considerar isso?”
“O que são um bilhão de vidas humanas para nós, Doutor?” Rassilon respondeu.
“Não são nada mais que grãos de areia na brisa. Eles procriam como um vírus,
infectando cada canto do universo. Onde uns morrem, outros vão tomar seu
lugar.”
Ele pausou, seus afiados olhos verdes fixados no Doutor, como se fizessem
buracos. “Nós estamos falando de vidas de Senhores do Tempo aqui. O que
você descreveu para nós é um dispositivo apocalíptico com o poder de nos
aniquilar, de trazer um fim para a Guerra que seja favorável aos Daleks. Pior
ainda, se você estiver correto, se os Daleks conseguirem implantar essa arma,
então Gallifrey e todas as suas muitas crianças serão totalmente apagadas da
história. Será como se nunca tivéssemos existido. E onde estarão seus preciosos
humanos então? A mercê dos Daleks, sem ninguém para cuidar deles, manter
os monstros à distância. O destino do próprio tempo está em jogo. A morte de
bilhões é como nada para nós, Doutor, se ajudar a derrotar os Daleks.”
“Rassilon, você não pode seriamente acreditar nisso. Estamos falando de uma
dúzia de mundos habitados.” disse o Doutor, se levantando. A exasperação - e
descrença - era evidente em sua voz. “Você está falando de genocídio.”
“Mundos agora habitados por Daleks, Doutor, não se esqueça.” veio a resposta.
“Mesmo assim, nós não temos o direito de decidir quem vive e quem morre. Não
nessa escala. Não somos deuses, não importa o quanto de pose você goste de
fazer com suas capas chiques e chapéus engraçados.” O Doutor deixou suas
palavras pesarem por um momento. “Você não tem direito de decidir isso.” Ele
continuou, quietamente, sobriamente. “Se você implantar aquela arma, seremos
tão ruins quanto os Daleks, a própria coisa contra a qual lutamos. Não se lembra
do motivo pelo qual começamos essa guerra?”
“Já chega!” Rugiu Rassilon, dando um murro com a mão envolta por uma
manopla na mesa. Saliva decorou o tampo da mesa diante dele. Ele se levantou,
lançando um olhar ameaçador para o Doutor. “Estamos lutando, Doutor, porque
devemos. Porque estamos sob ataque e não temos outra opção. Estamos
lutando para salvar a nós mesmos da extinção.”
“Isso não é bom o suficiente.” o Doutor respondeu. “Não é uma boa justificativa
para o que você está sugerindo. Selar o destino de doze planetas para salvar
um. Essa é a escolha que você está fazendo. Vocês estão colocando suas
próprias vidas acima da de todos os outros.”
“E se eu estiver? Não é esse o fardo dos Senhores do Tempo? Se sobrevivermos
a essa guerra, exatamente como devemos, vamos nos dedicar a assegurar a
santidade das linhas do tempo. Iremos restaurar a história, desenrolar o dano
causado pelos Daleks. Apenas os Senhores do Tempo têm a capacidade, a
destreza, para conseguir isso. É nosso dever sobreviver.”
O Doutor deu risada. “Ah, como deve ser linda a vista de cima do seu pedestal,
Rassilon. Seu dever. Está começando a soar mais como um Dalek a cada
segundo que passa.”
Cinder podia ver que Rassilon estava rangendo os dentes, dedos envoltos pela
manopla cerrados. “Essa conversa terminou.” ele disse enquanto se levantava.
“Mais uma vez, Doutor, você ultrapassou a sua estadia. Eu tomei minha decisão.
A Lágrima será implantada. Mas fique tranquilo - apesar de suas alegações
contrárias, nós não somos monstros. Se existe uma maneira de neutralizar o
Olho e implantar a Lágrima de Isha sem nenhum… dano colateral, então eu vou
encontrá-lo. Eu irei consultar o motor da possibilidade.”
“O que?” disse o Doutor.
“Aquilo que pode nos salvar.” foi o comentário misterioso. “e que não é da sua
conta. Chegou a hora de você ir embora. Vá, e retorne para suas andanças pelo
universo, se intrometendo nos problemas de espécies inferiores.”
“Já vi algumas ‘espécies inferiores’ em meu tempo, Rassilon, mas nenhuma que
afundou tanto quanto os Senhores do Tempo.”
Rassilon levantou sua mão envolta pela manopla, dando forte com o indicador
no peito do Doutor. Seu corpo balançou para trás, mas seus pés ficaram firmes.
“Saia daqui. Agora!”
“Vamos, Cinder,” disse o Doutor, sem tirar seus olhos de Rassilon. “Está claro
que não há nada que possamos fazer aqui.” Ele deu um passo para trás, então
se virou e lhe agarrou pelo braço, levando-a com pressa até a saída.
Ela olhou de relance por cima do ombro para ver Rassilon em pé, seu braço
levantado, dedo apontando para a porta.
Uma vez no corredor, o Doutor puxou Cinder para um lado, lhe parando em seu
caminho. Ele olhou para os dois lados, checando por guardas. Não havia
ninguém.
“Que-” ela começou.
Ele colocou o próprio dedo sobre os lábios dela. Seu cenho se franziu em
confusão.
“Eu quero ver o que ele vai fazer agora.” ele sussurrou. “Eu tenho um
pressentimento de que deveria saber o que é esse tal de ‘Motor da
Possibilidade’“
Cinder assentiu. Ela olhou enquanto o Doutor se esgueirou de volta até a porta
aberta que levava para a câmara do conselho. Ele parou logo antes, olhando
sorrateiramente pela abertura.
Com um dar de ombros, Cinder decidiu se juntar a ele. Ela se esgueirou até
chegar atrás dele, colocando uma mão em suas costas como apoio e ficando na
ponta dos pés para olhar por cima de seu ombro.
Rassilon ainda estava dentro da sala, de costas pra eles. Enquanto ela assistia,
ele virou e subiu na pequena plataforma que ela tinha notado mais cedo, ficando
em pé entre as duas esporas negras. Ele fez um ajuste em algo no painel de
controle, pressionou um botão, e então em um brilho de luz coruscante, ele
desapareceu.
Ela sentiu o Doutor soltar um suspiro aliviado. Ele atravessou o umbral da porta.
“O que aconteceu com ele?” ela sussurrou confusa. “Onde ele foi parar?”
“Duas perguntas muito diferentes, com respostas igualmente diferentes.” disse
o Doutor. “Aquele dispositivo é um transmat, criado para transferência de
matéria.”
“Teletransporte?”
“De certa forma.” disse o Doutor. Isso é o que aconteceu com ele. Agora para
onde ele foi…” Ele olhou por cima do ombro e então entrou no ambiente,
cruzando até o dispositivo de trasnmat. Ele subiu na plataforma e mexeu nos
controles, franzindo o cenho para o display. “Ah, sim. Justamente o que eu
pensava.”
“E então?” disse Cinder. “Não me deixe no escuro.”
“Ele foi para a torre.” Disse o Doutor. Ele estava claramente distraído, tentando
organizar seu próximo movimento.
“Certo.” Cinder concordou. “Agora eu entendi.” Ela cruzou os braços para a frente
do corpo.
O Doutor olhou para cima dos controles do transmat. “Escuta, Cinder. Volte para
a sala de observação. Me espera lá. Eu não vou demorar. Tente não arranjar
nenhum problema.”
“Espera! Calma aí! Aonde você está indo?”
“Eu vou atrás de Rassilon.” ele respondeu antes de piscar e desaparecer.
Cinder foi deixada com uma plataforma vazia em uma sala vazia. “Ótimo.”
Capítulo Doze
O corpo do Doutor voltou a existir com um flash de luz no tempestuoso ambiente
vazio que já tinha sido a Zona de Morte.
Foi necessário um momento para ele se reorientar. Não era mais tão frequente
que ele viajasse por teletransporte e ele ficou desorientado por um momento.
A paisagem aqui era selvagem, coberta por vegetação e perigosa. Afloramentos
rochosos estavam expostos aos elementos, e a flora tinha sido deixada para
crescer sem controle, abrigando todo tipo de bestas selvagens, essas tinham
ficado para trás dos dias dos jogos. Mescla tinha coberto os campos
desenfreadamente, mas o Doutor sabia que, escondido pela grama alta, haviam
brejos e pântanos mortais. Pior ainda, haviam sistemas de cavernas propensos
ao colapso, alguns deles o único jeito de passar de uma zona para a outra.
Aqui, os Senhores do Tempo de antigamente tinham realizados jogos brutais de
vida e morte, durante os quais eles sequestravam espécies alienígenas
desavisadas de seus habitats naturais e lhes jogavam umas contra as outras
nesse canto selvagem de Gallifrey. Era um esporte para espectadores, similar
àqueles dos Romanos antigos na Terra, um violento e sanguinário passatempo
de uma era menos iluminada que muitos Senhores do Tempo agora desejavam
esquecer.
O Doutor tinha jogado esses jogos uma vez, muito tempo atrás, quando um louco
tinha arrancado cinco de suas encarnações de suas próprias linhas do tempo e
tentado lhes depositar aqui, esperando que ele achasse o caminho para a tumba
e o segredo da longevidade de Rassilon. O homem responsável tinha se
revelado como um antigo amigo e mentor, Borusa, que tinha ficado obcecado
pelo desejo de alcançar imortalidade e sua necessidade de manter um poder
que estava acabando.
Ele tinha conseguido seu desejo, pelo menos, ao seguir o Doutor até a tumba,
onde o ancião Senhor do Tempo Presidente tinha lhe enganado, enterrando sua
consciência viva em um relevo de pedra pelo resto da eternidade.
O próprio Rassilon tinha sido ressuscitado no começo da Guerra, encorajado a
tomar forma corpórea novamente para liderar os Senhores do Tempo em sua
cruzada contra os Daleks.
O Doutor tinha imaginado que ele fosse um líder benevolente, um inovador e um
grande membro do estado, tão antigo quanto diziam as lendas, mas agora ele
sabia que Rassilon era tão cheio de defeitos quanto qualquer outro Senhor do
Tempo. Pior, seus ideais eram antiquados, seu senso de auto importância a força
motriz por trás de suas políticas. Em sua própria mente, Rassilon havia se
tornado um deus, capaz de fazer o que bem entendesse.
Os Senhores do Tempo sempre tiveram preferência por sociedades autocráticas
- gostavam até demais de receberem ordens - mas o que ele tinha visto durante
a reunião do Alto Conselho tinha convencido o Doutor mais do que nunca de que
as coisas estavam dando errado demais. A única pergunta era como ele iria
interferir com sucesso.
Ele levantou o colarinho de sua jaqueta e passou a mão pensativamente pela
sua barba. Ele havia emergido do teleporte na base da Torre - uma estrutura
alta, imponente, que estava no coração da Zona da Morte. Era esculpida de
blocos escuros de um imponente granito, e tinha em seu topo um remate na
forma de um globo de ouro, intersectado por uma meia lua. Tinha que ser um
dos lugares mais hostis que o Doutor já tinha visto, sua arquitetura brutal datando
daqueles dias primitivos das primeiras tentativas em engenharia estelar de
Gallifrey, que tinha lhes dado o poder de andar pelo tempo. Dentro da torre
estava a antiga tumba de Rassilon.
Tinha que ser para cá que o Presidente tinha vindo. Mas o que ele estava
fazendo? Por que voltar para esse lugar, onde ele tinha dormido em paz por
tantos milênios, mas estava, certamente, desocupado agora? Tinha Rassilon
encontrado outro uso para o lugar, algo que não queria compartilhar com o resto
do Alto Conselho?
O Doutor supôs que tinha apenas um jeito de descobrir. Ele arriscava acordar a
ira de Rassilon mas, ele refletiu, já era um pouco tarde demais para isso, e ele
estava curioso para descobrir exatamente o que era esse “motor da
possibilidade”.
Ele marchou em direção aos portões principais da torre. Aqui, dois imensos
pilares flanqueavam a entrada, e braseiros de ferro estavam montados em barras
de ferro ornamentadas, seus vasilhames brilhando com uma flama laranja
reluzente.
Ele esperava que Cinder estivesse fora de problemas lá no Capitólio, apesar de
que era improvável. Ela provavelmente estava infernizando a vida de Karlax.
Nada menos do que ele merecia. Seria bom, no entanto, se pelo menos um deles
não acabasse em uma cela.
Com uma inspiração profunda, o Doutor foi para o lado de dentro.
O interior da torre era cavernoso, e iluminado por mais braseiros que criavam
longas sombras bruxuleantes, dando um ar sombrio para o ambiente. O que, o
Doutor considerou, era apenas natural para uma tumba.
A câmara era dominada pela tumba em si, colocada sobre um grande pedestal
no centro, com impressionantes pilares de mármore em cada canto e um curto
lance de escadas levando ao estrado elevado. Banners esfarrapados em tons
de azul e cinza pendiam do teto, representando, o Doutor decidiu, a glória
desbotada dos próprios Senhores do Tempo.
O Doutor assistiu Rassilon entrar no grande salão de maneira dramática, seu
manto esvoaçante fazendo uma trajetória no chão de mármore, levantando
nuvens de poeira enquanto passava. Seu cajado fazia tap tap com cada passo,
ecoando no desolador abandono do lugar.
Ele cruzou até um console hexagonal pequeno e passou suas mãos por cima,
acordando o sistema para que uma coleção de runas acendesse ao longo da
superfície. Ele então se virou e se aproximou da tumba vazia, na qual seu corpo
- ou melhor, o corpo de sua encarnação anterior - esteve deitado.
“Borusa!” ele chamou, sua voz ecoando, como se tentasse acordar os mortos.
“Borusa! Eu necessito da sua presença.”
Estaria Borusa aqui ainda, sua essência presa no relevo esculpido no lado do
caixão de mármore que pertencia a Rassilon? Durante aquele fatídico episódio,
quando o Doutor tinha sido forçado a passar pela Zona da Morte, era aqui onde
Rassilon tinha encarcerado Borusa.
Um zumbido mecânico soou do topo da tumba, e conforme o Doutor assistia,
uma plataforma começou a se elevar, virando para que a figura no topo da
mesma pudesse ser apresentada de pé para qualquer um em pé embaixo.
Rassilon estava no pé dos degraus, olhar elevado enquanto a máquina
completava seu ciclo. O Doutor, ainda de pé na porta, se esgueirou para a frente,
tentando conseguir olhar melhor, indo ao redor da sala até ficar na sombra de
um contraforte. Ele fez careta quando suas botas rangeram contra o mármore
polido, mas pra sua sorte o som rangente do mecanismo abafou seus passos, e
Rassilon não olhou para trás de si.
A visão da coisa na tumba era algo que o Doutor jamais esqueceria, em
nenhuma de suas vidas. Era completamente monstruoso. Borusa tinha sido
preso a uma moldura de aço, seus pulsos e tornozelos presos por corda, para
que seu corpo formasse o formato de uma cruz. Ele ainda vestia seu manto
cerimonial, mas onde ele abria sobre seu peito, ficava claro que escondia uma
multidão de pecados.
Seu corpo era uma bagunça, descansando no meio de um ninho feito de fios e
cabos. Sua carne pálida era marcada onde incipientes tinham sido feitas no seu
peito e tubos haviam sido inseridos profundamente na cavidade,
presumivelmente para inflar seus pulmões e manter pelo menos um de seus
corações batendo.
Sua cabeça era coroada por um capacete de metal, uma massa de cabos em
erupção da parte traseira levando até a caixa com luzes piscantes de uma
retransmissão neural.
Mais aterrorizante de tudo era sua face, que parecia estar presa em um ciclo de
transição infinita, acompanhado pelo suave brilho de energia regenerativa. Se
torcia e reformava enquanto o Doutor assistia, passando pelo semblante de
todas as encarnações anteriores de Borusa - ou pelo menos aquelas que o
Doutor reconhecia - e muitas mais que ele não conhecia. Seus olhos brilhavam
com energia elétrica ofuscante ao mesmo tempo que encarava, sem ver,
Rassilon.
Era esse, então, o tal “motor de possibilidade”.
“Diga-me, Borusa, o que você vê?” Rassilon indagou com certa reverência.
“Eu vejo Gallifrey queimando.” Borusa resmungou, sua voz pouco mais alta que
um sussurro. “Eu vejo o fim de todas as coisas, a escuridão que limpa. Eu vejo
o momento, o próprio momento, quando todas as coisas vão deixar de existir.”
Rassilon cerrou o punho envolto na manopla. “Então é isso que devemos mudar.”
ele disse. “E quanto ao Olho de Tântalus? O Doutor nos traz notícias de uma
nova arma dos Daleks, um dispositivo apocalíptico que poderia significar a nossa
destruição.”
Por um momento, Borusa não respondeu, mas virou sua cabeça como se
olhasse para longe, buscando uma visão do futuro. “O Doutor fala a verdade,”
ele disse. “O plano Dalek está perto de seu clímax. Se deixado de lado, eles vão
erradicar Gallifrey e todos os seus filhos da história.”
“Então devemos agir.” Rassilon respondeu. “Não temos outra escolha.”
A cabeça de Borusa virou, e seus estranhos olhos eletrizados pareceram se fixar
no Doutor, que ainda estava espreitando nas sombras ao lado da porta. Ele
sentiu um arrepio de antecipação nervosa. Tinha Borusa visto ele ali? Ele
revelaria sua presença?
“Há outra pessoa aqui.” Disse Borusa como uma resposta para sua pergunta.
“Venha até aqui, Doutor.”
Bem, ele supunha que era tarde demais para fugir correndo agora. Ele pisou na
luz para ver Rassilon dar meia volta, levantando sua manopla. O punho de metal
começou a brilhar, adquirindo um tom ofuscante de azul, zumbindo com energia.
Ele estendeu a mão, abrindo os dedos, como se a qualquer momento ele fosse
fechá-los novamente, esmagando o Doutor. Ao invés disso, ele abaixou o
membro para o lado de seu corpo e o brilho azul retrocedeu.
“Eu poderia ter te matado, Doutor, por sua intromissão. Você não é bem vindo
aqui.”
O Doutor lhe ignorou, elevando os olhos para Borusa, que estava preso ao
dispositivo monstruoso. “Rassilon, o que você fez?”
“Uma coisa majestosa, não acha?” Rassilon quase cantou, incapaz de resistir a
tentação de se gabar. “Esse, Doutor, é meu motor de possibilidade.”
“É terrível.” O Doutor respondeu. “Monstruoso.”
“É uma dádiva. Borusa traz esclarecimento. Sua recompensa é ver todas as
maravilhas do universo, em todas as suas muitas formas.”
“E todos os horrores também, ao que parece.” disse o Doutor. “O que você fez
com ele?”
“Sua linha do tempo foi retro-evoluída.” Rassilon esclareceu. “Ele está preso em
um ciclo de regeneração iterativo, sempre em mudança, sempre se tornando
mais.”
“Mais?” O Doutor perguntou. “Parece demais com uma prisão para mim.”
“Te falta imaginação, Doutor. Essa máquina - ela libertou Borusa da prisão de
sua carne. Ela liberou seu verdadeiro potencial. Ele está livre para vagar por todo
o tempo e espaço em sua própria mente. Todas as permutações da realidade
são suas para navegar, até a última possibilidade.”
“E Borusa? Tem algo a dizer?” perguntou o Doutor.
“Eu vejo.” veio a simples resposta. “Eu vejo tudo.”
“É uma abominação,” disse o Doutor. “O que você fez aqui - diminui a todos nós.”
“Você está errado, Doutor. Borusa transcendeu. Ele representa o futuro. Ele é o
que tem sorte, o primeiro de nós a ser verdadeiramente livre.”
O Doutor balançou sua cabeça. “Não consegue ver, Rassilon? O que isso quer
dizer? Fazendo isso com Borusa, vocês estão nos rebaixando ao mesmo nível
dos Daleks. Você está nos alterando, nos transformando em algo menor do que
aquilo que somos. É apenas um passo antes de deletar nossa capacidade de
empatia, de emoção. Aonde isso vai nos levar? Soldados sem consciência?
Unidades de viagem metálicas?”
“Você está sendo melodramático, Doutor.” Rassilon rebateu. “É apenas um
homem.”
“Sempre começa com um homem, Rassilon.” foi a resposta solene que saiu do
Doutor.
“Eu fiz apenas o que era necessário. O que ninguém mais estava preparado para
fazer. Borusa entendeu o que era pedido dele. O motor da possibilidade
representa a nossa salvação. Com ele conseguimos ver a trama de todos os
futuros possíveis. Podemos escolher o nosso próprio destino, selecionando
apenas os caminhos mais fortuitos. Podemos medir as possíveis consequências
de todas as nossas ofensivas contra os Daleks, garantindo a nossa vitória em
cada passo. Podemos dar um fim na Guerra!”
“Então anda.” disse o Doutor. “Pergunte. Pergunte se existe uma maneira de
implantar a Lágrima de Isha sem assassinar todas aquelas pessoas.”
Rassilon parecia desafiador. “Muito bem.” ele disse antes de se virar para
Borusa. “Borusa, o plano do Governador para implantar a Lágrima de Isha no
Olho de Tântalus - vai funcionar? Vai dar um fim a ameaça Dalek naquele setor
e destruir sua nova arma temporal? Vai nos salvar?”
Borusa virou sua cabeça para os lados, emitindo um gemido baixo. Após um
momento ele falou. “Vai funcionar. A Lágrima vai fechar o Olho, e a arma Dalek
será neutralizada.”
“Excelente.”
“A vitória será apenas temporária, no entanto.” continuou Borusa. “A escuridão
ainda virá. Ela vai sufocar todas as coisas. A era dos Senhores do Tempo está
perto do fim.”
“Está vendo?” disse o Doutor. “Até a sua própria máquina avisa que essa não é
a única solução. A Lágrima não é a resposta. Não vai parar eles.”
“Vai nos comprar tempo!” Rassilo disse. “Tempo valioso para nos prepararmos,
traçarmos estratégias, consultar o motor mais vezes.”
“E a que custo?” o Doutor replicou. “Você diz ser melhor que os Daleks, que é
nosso dever sobreviver a essa guerra, trazer paz e estabilidade para o universo
- e ainda assim fica feliz de re-engenhar a essência de seu próprio povo para
lhes transformar em ativos estratégicos, feliz de obliterar civilizações inteiras
para conseguir o que quer. Como isso é melhor? Como isso é diferente?”
“Começa a soar como se preferisse os Daleks e não seu próprio povo, Doutor.”
disse Rassilon. “Devo lhe categorizar como um traidor?”
“Eu odeio os Daleks por tudo o que representam,” respondeu o Doutor, sua voz
nivelada. Ele estava tentando não perder a cabeça, apesar de todas as fibras de
seu ser estarem lhe dizendo para derrubar Rassilon no chão, tentar enfiar bom
senso a forca nesse homem idiota antes que fosse tarde demais. “Eu não quero
acabar odiando o meu povo pelos mesmos motivos.” ele adicionou.
Rassilon permaneceu em silêncio, como se contemplasse as palavras ditas pelo
Doutor.
O Doutor olhou para cima, olhos focando na face mutante e desorientadora de
Borusa. “Borusa - existe alguma maneira através da qual a Lágrima possa ser
implantada no Olho de Tântalus sem causar as mortes dos povos habitando os
doze mundos da Espiral?”
“Não.” foi a resposta sem hesitação. “Eu não vejo um fio de possibilidade no qual
os humanos colonistas sobrevivam se a Lágrima for implantada.”
O Doutor virou para Rassilon. “Então certamente você tem uma resposta?”
“Eu tenho apenas consciência das consequências das minhas ações, Doutor.
Isso não muda nada.” Rassilon respondeu. Seu tom era firme e final. “A decisão
já foi tomada. A Lágrima será implantada. Eu tinha pensado em poupar seus
preciosos humanos, se Borusa pudesse nos mostrar como. No entanto, isso não
aconteceu. Chegou a hora de agir.” Ele cruzou em direção ao console e iniciou
o comando para baixar o berço do Borusa de volta à tumba.
O Doutor foi atrás dele. “Você não pode fazer isso, Rassilon. Isso muda tudo. Eu
te aviso agora - você jamais vai se recuperar dessa decisão.”
“Já está feito.” Veio a resposta, firme e final. “Venha. Eu vou falar com o alto
conselho.” Ele foi em direção a porta.
Com corações pesados, o Doutor seguiu Rassilon de volta à estação de
transmat.
Capítulo Treze
Cinder estava caminhando pelo saguão de observação há pelo menos meia
hora, e a cada passo que dava, sua frustração crescia ainda mais. Ela queria
fazer alguma coisa. O Doutor havia pedido a ela que ficasse ali e se mantivesse
fora de problemas, mas esse não era o estilo de Cinder. Ela nunca se sentiu
confortável em ficar parada por muito tempo, e não achava que se sentiria em
algum momento.
Com um gemido de irritação, ela foi até a janela, espiando a cidade.
A noite havia caído e trouxera com ela as estrelas.
As estrelas. Cinder leu sobre elas, é claro, entendia o que eram – no entanto
nunca havia visto com seus próprios olhos. Não até agora. Todos esses anos,
crescendo em Moldox, o céu à noite sempre havia sido manchado de auroras
flutuantes que, para ela, simulava sonhos coloridos, que sumiam em direção ao
éter enquanto as pessoas dormiam. É claro, ela agora sabe que as auroras eram
causadas pela radiação temporal que vazava do Olho de Tântalus – a mesma
radiação que os Daleks estavam se aproveitando para alimentar suas armas.
De alguma forma, isso tirava toda a beleza. Não era nenhuma novidade. Tudo
que ela já amou, os Daleks tiraram dela. Tudo que era bonito, eles arruinaram.
Era isso que os Daleks faziam. Eles pegavam. Eles saqueavam. E agora eles
contaminavam o céu.
Cinder já estava cheia disso. Ela achou uma saída de Moldox com o Doutor, e
ela não se permitiria ser diminuída, pelos Daleks ou por qualquer um.
Ela observou as constelações cintilantes. As estrelas eram como pequenos
alfinetes de luz, furos no tecido do céu, pelos quais ela podia ver o brilho de um
universo mais distante. Ela nunca imaginou que haveriam tantas estrelas. Ela
entendia que o universo era povoado de incontáveis bilhões de estrelas, mas vê-
las brilhando acima de sua cabeça era completamente diferente. Era
surpreendentemente bonito.
Ela se perguntou quantas pessoas estavam lá fora, assim como ela, olhando
para o céu e sentindo esperança. Talvez ela pudesse visitar alguns desses
lugares com o Doutor, uma vez que a guerra terminasse. Ela gostaria disso e ela
sabia que ele precisava disso também. Faria bem a ele fugir um pouco de tudo,
se lembrar de quem ele realmente era. Ela conseguia ver que a Guerra o estava
corroendo. Ele havia se tornado calejado, endurecido pela luta, mas ela tinha
certeza que havia muito mais nele do que isso – outro homem enterrado em
algum lugar sob o exterior rabugento.
Ela suspirou, olhando para a porta. Quanto tempo ele disse que levaria? Com
certeza não doeria dar uma pequena olhadinha por aí? Em quanto problema ela
poderia se meter?
Cinder tomou sua decisão. Talvez ela até descobrisse alguma coisa útil, algo
que pudesse ajudar o Doutor a convencer os Senhores do Tempo a não
implantar o aparelho do juízo final. Ela sabia que ele conseguiria. Tinha fé nele.
A outra possibilidade era impensável.
Ela avançou até a porta, que ela achava estar trancada. Não estava. Ela abriu
só o suficiente para espiar o lado de fora. A passagem a frente estava vazia. Ela
não queria ir longe. Ela talvez conseguisse achar o caminho até a Sala de Guerra
ou a Câmara do Conselho, mas, para além disso ela arriscaria despertar a fúria
do Governador e de seus guardas.
Ela pisou para fora da porta, fechando-a atrás de si, e então gritou quando uma
mão a agarrou firmemente pelos ombros.
Karlax fez um som desaprovador e ela se contorceu tentando se libertar. Ele era
muito forte e a havia pegado desprevenida.
“Pensou em dar uma voltinha, não foi?” ele disse. Seu hálito estava quente na
parte de trás do pescoço dela. “Bem, isso não pode ser. O que diria a
Governador? Hum?” Ele se moveu atrás dela, prendendo seus braços nas
costas. “Na verdade,” ele continuou “Eu acho que devemos ir até lá e descobrir,
não concorda?”
“Me solta, Karlax” ela disse. “O Doutor vai voltar a qualquer momento.”
Karlax riu. “Oh, isso não me preocupa nada, mocinha. Nem um pouco. Ele não
está aqui agora e é só isso que importa. Eu vou ter tudo que eu preciso até que
ele encontre você.”
“O que quer dizer?” ela disse começando a sentir medo. O que o homenzinho
odioso tinha em mente?
“Oh, nada para se preocupar,” ele respondeu, colocando a mão sobre a boca
dela para prevenir possíveis gritos. “Apenas um pequeno teste que preciso
realizar. Veja, o Governador tem uma máquina conhecida como sonda metal...”
Em pânico, Cinder chutou para trás, acertando seu calcanhar na canela de
Karlax. Ele gritou, mas não afrouxou o aperto. Em retaliação, ele puxou ainda
mais o braço dela para trás das costas até que ameaçasse quebrar e a
intensidade da dor a fez desmaiar. Enquanto ela caia mole e delirante, ele a
arrastou para uma sala lateral, onde o Governador a guardava.
“Tem certeza que deseja prosseguir com isso, Karlax?” disse o Governador. Ele
estava inclinado sobre ela, a prendendo em uma dura cadeira de metal e
apertando as fivelas em volta do capacete que eles colocaram sobre sua cabeça.
“É só – ela é só uma humana. Existe a chance de isso matá-la.”
“Irrelevante” disse Karlax. “Se você conseguir as informações que eu quero, eu
não poderia ligar menos para o que acontece com ela. Na verdade, pode ensinar
ao Doutor uma valiosa lição se ela de fato morrer.”
Nesse momento, Cinder lutou violentamente contra as amarras resistindo, mas
o Governador havia feito bem seu trabalho e não havia chance de Cinder
escapar. Ela não podia nem mesmo chamar ajuda, pois eles a amordaçaram no
momento em que Karlax a colocou no cômodo.
Ela havia conseguido arranhar o rosto de Karlax com suas unhas durante a luta
que se seguiu, tirando sangue, mas fora apenas uma pequena vitória, um
momento fugaz de satisfação antes do horror de sua situação se estabelecer.
Ela estava presa em um cômodo com os dois homens e a máquina e ninguém
sabia que ela estava ali. Quer ela gostasse ou não, eles iriam utilizar a sonda
mental nela.
Cinder se pegou imaginando com que frequência eles tinham uma ocasião para
usar a máquina. Julgando pelo olhar de antecipação de Karlax, não a
surpreenderia saber que ele utilizava a sonda em qualquer oportunidade que
tinha. Claramente, entre suas várias virtudes, ele tinha tendências sádicas muito
bem desenvolvidas.
Ela estava presa em uma cadeira com o encosto alto, de frente para vários
monitores. No momento, eles mostravam apenas estática, ruído branco, mas ela
imagina que ali era onde seriam exibidas quaisquer memórias que eles
conseguiam extrair de sua mente para outros assistirem.
Ela podia ver seu próprio reflexo no vidro polido. Ela parecia encolhida devido a
cadeira e os cabos que saíam do capacete em direção ao teto poderiam ser
longos fios de cabelo fibroso, em pé como se carregados de energia estática.
Isso a fez lembrar das câmaras de incubação de vidro que ela havia visto na
nave Dalek e ela desejava ter a mesma oportunidade agora para sabotar a
máquina antes que eles a ativassem.
“Ande logo com isso” disse Karlax. Ele estava de olho na porta, claramente
nervoso com a ideia de o Doutor aparecer a qualquer momento e interromper o
processo.
“Estou trabalhando o mais rápido que posso" respondeu o Governador. “Se eu
não fizer o nivelamento adequado, vamos fritar o cérebro dela antes que você
consiga alguma coisa de sua mente.”
Karlax andava de um lado para o outro com as mãos atrás das costas. Ele
parecia imperioso, cheio de arrogância, e Cinder sorriu olhando os três
arranhões feios em sua bochecha esquerda. Com alguma sorte, ela poderia
oferecer a ele o par correspondente na outra bochecha quando isto terminasse.
O Governador se afastou. “Estou pronto” ele disse.
Karlax parou de andar e foi para trás da cadeira, fora de vista. Pela primeira vez,
o Governador, que estava parado ao lado da cadeira, olhou para baixo e
encontrou o olhar dela. "Lamento” ele disse. “Isto vai doer”. Ele virou o
interruptor.
De primeira, nada aconteceu. Ela ouviu um zumbido suave vindo de trás de sua
orelha esquerda e tudo que podia sentir era uma sensação quente de cócegas
na parte da frente de seu crânio. Era desconfortável, mas não doloroso. Ela olhou
para os monitores, mas eles continuavam mostrando apenas estática.
Ela se concentrou no zumbido enquanto este aumentava de intensidade. Com
isso, a pressão dentro de sua cabeça começou a aumentar. A dor apareceu e
ela cravou os dentes na mordaça. O calor e a pressão continuaram a aumentar
até que ela tivesse certeza de que faria seu crânio rachar a qualquer momento.
Ela se lançou para frente na cadeira, sua visão borrando. A dor era como uma
luz branca, ardente e brilhante, e não havia como desligar ou escapar. Ela tentou
gritar, mas engasgou com o pano em sua boca.
As memórias vieram em uma agitação repentina, cascateando por sua mente
como uma série de imagens picotadas. Curiosamente, elas não possuíam cor,
como velhas fotografias em preto e branco sendo passadas na visão da sua
mente. Elas apareciam fora de sequência: uma parte aqui, outra ali, fragmentos
de sua infância, seu tempo com os rebeldes em Moldox , seus momentos
recentes com o Doutor.
Ela se forçou a abrir os olhos para ver essas cenas surgindo nos monitores, a
história da vida dela sendo passada em uma sequência bizarra de looping.
Ela via rostos, pessoas falando com ela, e mesmo ela não podendo ouvir nada,
os gostos e cheiros estavam frescos, como se ela estivesse experienciando tudo
de novo pela primeira vez.
Ela viu seu irmão, pulando como um macaco, fazendo caretas para ela. Ela
assistiu sua mãe servir o jantar na propriedade deles, seu pai lendo uma história
para ela dormir. E então ela assistiu eles morrendo mais uma vez, exterminados
por monstros de metal que pareciam surgir do nada, caindo do céu em discos
brilhantes, acendendo fogueiras com suas armas gritantes.
Eles haviam estourado a parede da cozinha para entrar, cinco deles, com vozes
mecânicas, oleosas e ásperas, em ouro e bronze e gritando comandos. Ela não
havia entendido uma palavra, porém quando eles começaram a atirar e seu pai
colapsou no chão da sala, seu corpo sem vida esfumaçando, ela havia entendido
o suficiente para correr e se esconder.
Momentos antes dos Daleks aparecerem, a mãe de Cinder estava esvaziando o
lixo da cozinha e, durante o caos, Cinder escapou para o quintal, desvirando a
lixeira e se escondendo dentro dela. Ela se acovardou ali enquanto os Daleks
destruíam a propriedade por completo.
Ela nunca mais viu sua família, nem mesmo seus corpos.
As memórias continuaram a surgir espontaneamente em seu inconsciente.
Agora, elas vinham com surpreendente clareza e uma dor excruciante.
- Coyne ensinando a ela como mirar um rifle, apontando como alvo a casca
queimada de um Indigno de Skaro que ele destruíra mais cedo em uma
armadilha.
- Aprender a abrir fechaduras com Ash, um garoto de doze anos com os cabelos
loiros cor de areia, que foi morto naquela noite durante um ataque Dalek.
- Deitar no topo de um prédio durante uma tempestade, esperando a patrulha
Dalek passar por baixo, para ela então ativar a mina que ela havia enterrado na
rua durante a manhã.
- Seu primeiro beijo com outra garota do acampamento de rebeldes, Stephanie
de cabelos negros, quem lhe ensinou coisas que ela nunca imaginaria.
- E Finch, quem ela havia esquecido. Finch, seu parceiro no crime, seu amigo.
Finch, que morreu durante a armadilha que trouxera o Doutor despencando do
céu, que foi apagado da existência pela arma temporal do novo Dalek...
Cinder sentiu lágrimas caindo de seus olhos, correndo por seu rosto, mas não
eram lágrimas de dor. Eram lágrimas de tristeza.
Imagens da base Dalek piscaram em sua mente – correndo pelas passagens
atrás do Doutor, explodindo Daleks e incubadoras obscenas. O laboratório onde
os Daleks dissecavam as Degradações e o voo pelas ruínas, a caminho da
TARDIS.
Cinder não percebeu quando o Governador desligou a máquina, mas ela sentiu
o fogo em sua cabeça começar a acalmar. O zumbido se extinguiu de repente.
Ela caiu de volta na cadeira, nauseada e tonta. Sua respiração vinha em arquejos
irregulares.
Ela sentiu alguém medir sua pulsação no pescoço. “Ela vai sobreviver” disse o
Governador.
“Uma pena” disse Karlax. “Eu estava ansioso para ver a expressão do Doutor
quando eu desse a notícia.”
O Governador removeu a mordaça da boca dela. Ela arquejou por ar. “Ele vai
matar você” ela disse entre respirações fracas. “Ele vai matar você por isto.”
Karlax riu. “Oh não, não o Doutor” ele disse. “O Doutor e eu somos velhos
companheiros. Ele não gosta de sujar as mãos.”
Cinder fechou os olhos. O mundo estava girando. Ela não podia arriscar ficar
inconsciente perto deles. Se desmaiasse, era muito provável que nunca mais
acordaria.
“Água” ela disse, sua voz saindo como um coaxo seco. Ela estava com a boca
ressecada e havia um gosto estranho em sua língua, como alumínio.
“Karlax, pegue um pouco de água enquanto eu removo as amarras, sim?” disse
o Governador. “Você conseguiu o que queria. Viu a evidência para apoiar as
reivindicações do Doutor e sabe o que ele fazia em Moldox. Está na hora de
deixar a garota em paz.”
“Se insiste” Respondeu Karlax com veneno, e então saiu do cômodo.
“Certo” disse o Governador, assim que a porta se fechou atrás de Karlax. “Vamos
tirar você daqui” ele começou a desfazer as amarras. “Rápido, me ajude se tiver
forças. Quero tirar você daqui antes que ele volte.”
Cinder olhou para o homem de face corada enquanto ele se apressava em
desamarra-la. Ela não tinha mais forças restantes para ajudá-lo. Um esforço
tardio. Ele claramente era o tipo fraco de homem, cúmplice na tortura e agora
arrependido. Ela conheceu pessoas assim antes. Em Moldox, não sobreviviam
muito tempo.
O Governador terminou de desamarra-la e se abaixou, a removendo da cadeira
e a carregando nos braços. “Vou levar você para algum lugar onde possa dormir
enquanto espera o Doutor” ele disse. Ele cambaleou em direção da porta e a
abriu com um chute. “Se vale alguma coisa, acho que está certa. O Doutor é um
homem diferente ultimamente. Se ele pegar Karlax depois disso, acho que pode
muito bem matá-lo.”
Cinder, no entanto, ouviu apenas um murmúrio vago, enquanto finalmente se
permitia adormecer em uma inconsciência pacífica.

Capítulo Quatorze
O Doutor e Rassilon retornaram a câmara do Alto Conselho através do transmat
e encontraram Karlax aguardando por eles. Ele estava sentado a mesa com uma
expressão ansiosa, suas mãos apoiando seu queixo.
“Ah, Doutor. Estávamos preocupados com seu paradeiro. Ninguém sabia dizer
onde você estava.”
“Preocupado” ecoou o Doutor. “Sim, consigo acreditar que estava preocupado,
Karlax.”
O homem deu um sorriso doentio. “Eu vejo que não havia motivo para
preocupação, considerando que você estava na companhia do Lorde
Presidente.”
Rassilon desceu da plataforma do transmat. Sua expressão era impassível.
“Karlax, reúna o Conselho. Devo relatar minhas instruções imediatamente.” Ele
virou-se para o Doutor. “Sua presença não é mais necessária, Doutor. Encontre
sua assistente e vá embora.”
“Está cometendo um erro terrível, Rassilon.” disse o Doutor.
"Estou fazendo a única escolha que posso. Não vou ouvir mais de sua insolência.
Estou farto. Vá agora antes que eu seja obrigado a silenciá-lo eu mesmo.” Ele
encarou o Doutor com um olhar perturbador e os dedos se apertaram
visivelmente em volta do cajado, como que para reforçar sua posição. O Doutor
sabia que não era uma ameaça vazia. Rassilon era rápido em se enfurecer e
mais rápido ainda agindo.
Desafiadoramente, o Doutor sustentou o olhar. Então, relutante, deu as costas
para o homem. Parecia que ele estava ficando sem opções. Claramente,
nenhum dos membros do Alto Conselho estava preparado para ouvir a razão.
Ele decidiu que teria que encontrar uma nova abordagem, outra forma de impedi-
los. O que quer que acontecesse, ele não poderia permitir que utilizassem a
Lágrima, mesmo que isso significasse agir contra eles e interferir em seus
planos.
Sem dizer mais uma palavra, ele trovejou para fora do cômodo, indo para o
observatório para encontrar Cinder.

“O que fez com ela?” grunhiu o Doutor, irrompendo pelas portas do Alto
Conselho. Sua mandíbula tensionada, ele estava cheio de ira.
O Alto Conselho estava, mais uma vez, em sessão e a reunião de Senhores do
Tempo cessou as conversas para olhar para o Doutor enquanto ele marchava
na direção deles, encarando Karlax, esperando uma resposta.
O assessor estava de pé no lado oposto da sala, suas costas na parede, bem
atrás do ombro esquerdo do Rassilon.
“Sua companheira fêmea, Doutor?” disse Karlax com uma inocência afetada.
“Você não a deixou no observatório esperando você voltar de seu – e sou
obrigado a dizer – passeio não autorizado?”
O Doutor bateu seu punho na mesa. Ele havia procurado pelo observatório e as
salas ao redor e Cinder não estava em nenhum lugar. Algo com certeza havia
acontecido com ela enquanto ele estava fora na Zona da Morte. “Não banque o
inocente comigo, Karlax. Sei que fez alguma coisa. Agora diga – onde ela está?”
“Posso dizer com honestidade, Doutor, que não tenho ideia” disse Karlax com
um sorriso satisfeito. Ele cruzou os braços sobre o peito. “Se você perdeu ela,
talvez deva considerar investir em uma coleira mais eficaz.”
O Doutor inspirou profundamente. Ele sabia que Karlax estava por trás do
desaparecimento de Cinder. Ele sabia. Estava furioso consigo mesmo por deixar
Cinder tão exposta enquanto ele corria atrás do Rassilon na Zona da Morte. Ele
pensou ingenuamente que haveria menos chances dela se machucar aqui na
Capital dos Senhores do Tempo. Eles deveriam ser civilizados. Era por isso que
ele viajava sozinho nos últimos tempos. A Guerra havia mudado tudo, mudado
a todos, e ele não queria a responsabilidade. Ele não estava certo de que ainda
podia protegê-los.
De toda forma, isto era do feitio de Karlax. Ele era um oportunista. Ele havia visto
sua chance e a agarrado, sumindo com Cinder para atingir o Doutor.
O Doutor cerrou os punhos, tão forte que sentiu suas unhas cravando na carne
de suas palmas. “Estou avisando você, Karlax...” ele disse.
O Governador se levantou hesitante e tossiu nervosamente. “Eu sei onde ela
está, Doutor.” ele disse de forma controlada. “Vou mostrar onde.” Ele empurrou
a cadeira, os pés arranhando o chão de mármore, e andou ao redor da mesa até
estar ao lado da harpa. Todos os olhos do salão estavam nele e o Doutor notou
que Karlax olhava para o Governador com um olhar particularmente ameaçador.
O Governador se deteve, olhou para Rassilon – cujas feições permaneciam
impassíveis – e então levou as mãos para a harpa. Seus dedos passavam
desajeitados pelas cordas, suas mãos tremendo. Ele lia as notas pintadas na
parede, recriando-as na harpa real. O Doutor entendeu o que estava para
acontecer – ele havia visto isso antes.
Após um momento, a melodia chegou ao fim e um painel na parede, logo atrás
do pedestal onde estava a harpa, deslizou para revelar uma sala de controles
secreta. Luzes piscavam em um amontoado de velhos painéis e consoles. E ali,
estirada em uma cadeira, estava Cinder.
O Doutor correu até ela, passando pelo Governador e para dentro da pequena
câmara. Ela mal estava consciente, sua cabeça tombada sobre o ombro
esquerdo, o que fazia com que seu cabelo laranja brilhante caísse em seu rosto.
Seus olhos estavam fechados e sua respiração estava fraca.
Gentilmente, o Doutor arrumou a posição de sua cabeça, retirando os cabelos
de sua testa. Ela estava pálida e fria, sua pele úmida. Suas pálpebras tremiam,
tentando abrir. Ele checou o pulso dela e suspirou aliviado, percebendo que
estava forte e regular.
“O que aconteceu?” ele perguntou suavemente. “O que eles fizeram com você,
Cinder?”
A boca dela se abriu, mas tudo o que saiu foi um sibilo indecifrável. “Ss...ssss...”
Ele chegou mais perto, colocando sua orelha perto da boca dela e sentindo o
hálito quente dela em sua bochecha.
“S... sonda...mental...” ela disse, com o que parecia um gigantesco esforço. Ela
voltou a se encolher na cadeira, tendo gastando sua última energia.
O Doutor endireitou-se, virando lentamente para os rostos curiosos no salão. Ele
sentiu o calor branco de fúria se formando em seu peito. “A sonda mental!” ele
berrou, fazendo com que o Governador, que permanecia junto da harpa,
estremecesse.
O Doutor irrompeu de volta no salão, fazendo um caminho torto até Karlax que
– vendo o que ia acontecer – começou a dar a volta na mesa, tentando formar
uma barreira entre ele e o Doutor.
O Doutor não estava interessado em jogos de gato e rato com o tolo adulador, e
então, ao invés de tentar persegui-lo em volta da mesa, ele tirou a cadeira do
Governador do caminho e subiu em cima da mesa, recebendo arquejos de
espanto do resto do Alto Conselho.
Jogando papéis para o chão a cada passo, ele marchou por cima da mesa até
Karlax, que estava preso em um canto, sem nenhum lugar para correr. Ele se
encolheu no momento em que o Doutor pulou da mesa.
Duas passadas e ele estava diretamente na frente do assessor. Sem perder
tempo, o Doutor agarrou o homem pela garganta e o empurrou na parede, com
força suficiente para que o outro gritasse de dor quando sua cabeça atingiu o
gesso.
“Me diga um motivo para eu não simplesmente estrangular você agora, Karlax?”
berrou o Doutor. Saliva espirrou pelo rosto de Karlax e ele estremeceu, suas
pálpebras tremendo em pânico.
“Eu... Lorde... Presidente...?” ele gaguejou, se contorcendo nas mãos do Doutor.
O Doutor olhou para Rassilon para medir sua reação. O Lorde Presidente parecia
completamente desinteressado no que estava acontecendo, como se estivesse
simplesmente esperando tudo explodir. Isso sozinho apenas aumentou a raiva
do Doutor.
“Implorando por seu mestre, hein?” riu o Doutor, voltando sua atenção para
Karlax. “Agora quem está na coleira? Eu poderia matar você antes mesmo dele
poder te olhar novamente, lagarto ridículo.”
“Mas é claro que não vai” disse Rassilon atrás dele. Ele ouvia o tap-tap-tap dos
dedos da manopla de Rassilon na superfície da mesa. Um aviso, o Doutor sabia
– a manopla continha poder inimaginável, incluindo a habilidade de
desmaterializar uma pessoa, assim como a nova arma Dalek. Rassilon estava
lembrando a ele onde estavam.
O Doutor suspirou. “Não. Não vou.” Ele soltou Karlax, empurrando-o para o chão,
onde ele afundou de joelhos, com as mãos na garganta. “Mas acredite, Karlax –
nem mesmo mancharia minha consciência.
“Você terminou sua pequena rebelião agora, Doutor?” disse Rassilon. “Fica
entediante.”
O Doutor virou-se para o Presidente. “Você sabia sobre isso, Rassilon? Você
sabia o que eles iam fazer?”
Os lábios de Rassilon se curvaram em um sorriso. “Oh não, Doutor. Isso foi tudo
Karlax e o Governador, usando sua própria iniciativa. Os resultados, no entanto,
se mostraram esclarecedores.”
O Doutor olhou para o Governador, que não o olhava de volta. “Você poderia ter
matado ela!” ele disse. “Ela é humana. A mente dela não é forte o suficiente para
resistir a sonda. O que você esperava ganhar?”
“É como você disse, Doutor” choramingou Karlax, se pondo de pé e tirando a
poeira de suas roupas. “ A perspectiva dela se provou muito valiosa. Nós agora
podemos corroborar sua história. Estamos muito cientes da ameaça Dalek.”
“O que está dizendo?” disse o Doutor.
“Que o Alto Conselho endossou minha recomendação, Doutor" disse o Rassilon,
se levantando. “Você chegou a tempo de ver a ordem ser dada.” Ele virou para
seu assessor. “Karlax, você pode dar a ordem. A Lágrima de Isha será utilizada.”
“Sim, Lorde Presidente.” disse Karlax, com os olhos no Doutor.
“Governador, diga ao Comandante Partheus para preparar sua frota" continuou
Rassilon. “Ele é honrado neste dia. Ele deverá carregar a Lágrima para as
profundezas do Olho de Tântalus, e com ele a esperança de todos os Senhores
do Tempo, vivos, mortos e ainda por existirem. Nós daremos um golpe duro nos
Daleks hoje. Eles irão conhecer a fúria dos Senhores do Tempo.”
“E vocês conhecerão a minha.” disse o Doutor calmamente. Ele não poderia –
não iria – permitir que isto acontecesse. Tantas vidas, em tantos mundos. Teria
que existir uma maneira melhor.
“Doutor?” disse Rassilon. “Você tem algo a adicionar?”
“Eu vou detê-lo” ele disse. “Entenda isso, Rassilon. Eu me recuso a permitir que
você use a Lágrima de Isha.”
“Você se recusa?” disse Rassilon, seu tom incrédulo. “Você irá desobedecer
diretamente a decisão do Alto Conselho, do Lorde Presidente?”
“Nada que eu já não tenha feito antes" disse o Doutor. “Não significa nada.” Ele
olhou para cada um. “Vocês estão loucos" ele disse exasperado. “Vocês
esqueceram quem são. Vocês permitiram que a Guerra os deixasse
desesperados e cegos. Olhem para vocês, escondidos aqui em cima em seus
robes e enfeites de cabeça, fingindo que sabem o que realmente está
acontecendo lá fora, dizendo a si mesmos que são tão importantes. Bom, vou
dizer a verdade. Estão errados. Estão simplesmente errados.”
Ele apontou o dedo para Rassilon. “Se permitirem que ele faça isso, que cometa
genocídio nesta escala, então somos tão ruins quanto os Daleks. Não
conseguem ver isso? Vocês estão tão obcecados com sua própria sobrevivência
que perderam a visão do cenário total. Se é nisto que os Senhores do Tempo se
tornaram, então não merecemos sobreviver.”
O salão permaneceu silencioso por um momento. O Doutor tentou recuperar o
fôlego. Rassilon foi o primeiro a falar. “Devo entender, Doutor, que planeja
mover-se contra nós?”
O Doutor o encarou. Ele podia sentir todos os olhos do salão grudados nele. Ele
deu uma olhada para Cinder, ainda semiconsciente na cadeira. “Sim" ele disse
com determinação. “Se for preciso. Faço pelo nosso próprio bem, pelo bem dos
Senhores do Tempo. Estou tentando salvá-los de si mesmos. O caminho que
está tomando, Rassilon – não leva a vitória. Se fizer isto, será o fim dos Senhores
do Tempo. Pergunte a Borusa se duvidar de mim.” ele adicionou amargamente.
Ele marchou pelo salão até Cinder. Era hora de deixar Gallifrey, e ele duvidava
que algum dia voltaria. Não havia volta. Ele já tivera o suficiente.
“Prendam-no” disse o Rassilon. “Ele e a garota. Joguem em uma cela e
confisquem sua TARDIS.”
O Doutor sentiu mãos o agarrando por trás, torcendo seu braço atrás das costas.
Ele lutou, mas sem sucesso. O Governador era mais jovem, mais forte e mais
acostumado a cumprir ordens, não importa quão desagradáveis. “Ainda melhor"
continuou Rassilon. “Joguem fora. É uma coisa velha e decrépita e não nos
serve. O Doutor é um renegado e não será permitido a ele interferir em nossos
planos. Uma vez que a Lágrima de Isha neutralizar a ameaça Dalek, ele será
julgado.”
O Doutor ouviu Karlax chamando mais guardas. Era inútil tentar lutar – por agora,
pelo menos. A oportunidade apareceria. Ele precisava acreditar nisso.
Enquanto o Governador o arrastava sob o som das risadas debochadas de
Karlax, o Doutor deu uma última olhada em Cinder. Ele não queria a
responsabilidade, mas havia assumido aquela posição mesmo assim. Não só
por Cinder, mas por toda a raça dela, todos os bilhões de pessoas feitas
prisioneiras nos mundos ocupados da Espiral. Julgando pelo andar da
carruagem, eles estavam melhores com os Daleks do que com seu próprio povo.
Os Senhores do Tempo estavam prestes a cruzar uma linha da qual nunca
poderiam retornar e havia apenas ele, um velho e cansado guerreiro, ficando em
seu caminho.
Ele não poderia fazer muito de dentro de uma cela.

Capítulo Quinze
Cinder se mexeu. O lado de seu rosto estava pressionado contra algo duro e frio.
Sua cabeça doía como se alguém tivesse usado seu crânio como um tambor,
bang, bang, bang, e por um momento ela não tinha nenhuma ideia de onde
estava ou o que estivera fazendo para chegar ali.
Teria sido o álcool verde de novo? Ela tinha certeza de que não havia ido a
nenhuma festa na última noite. Ela saíra para uma emboscada, mas algo
aconteceu e...
Ela se levantou num sobressalto e, momentos depois, quando o mundo veio
junto com ela e ela desmaiou, desejou não ter feito. Luzes dançavam diante de
seus olhos como manchas de sol, obscurecendo sua visão. Ela inspirou
profundamente, o que levou a um doloroso acesso de tosse. Ela piscou para
enxergar melhor.
Ela estava sentada em uma cela, na parte debaixo de um beliche feita de
camadas de rocha dura. Na sua frente, o Doutor estava sentado caído contra a
parede, seus pés esticados a sua frente. Ele a olhou microscopicamente. “Olá”
ele disse.
“Onde estamos?” ela disse. Sua boca estava seca. Ela esfregou a nuca.
“Em uma cela.” ele disse, redundantemente.
“Uma cela?”
“Sim, abaixo da Capital em Gallifrey. Você se lembra...?”
“A sonda mental" ela disse. “Como eu poderia esquecer?”
O Doutor suspirou. “Eu sinto muito” ele disse. “Eu não deveria ter deixado você.
Nem mesmo deveria tê-la trazido aqui, em Gallifrey, e enfiado você em tudo isto.”
Cinder massageou suas têmporas. “Eu disse a você, na base Dalek em Moldox,
estamos nisso juntos” ela disse. “Porém eu admito, não imaginei que
terminaríamos em uma cela.” Ela considerou por um momento. “Por que estamos
em uma cela?”
“Ah" disse o Doutor. “É uma longa história.”
“Você mandou o Rassilon para aquele lugar, não foi?” ela disse. Então sorriu.
“Disse onde ele poderia enfiar a Lágrima de Isha.”
O Doutor riu. “Mais ou menos isso” ele concordou. “Talvez de uma forma um
pouco menos vulgar.”
Cinder deu de ombros. “Talvez um pouco de vulgaridade era o que ele precisava.
Talvez muita vulgaridade.”
“Você não está errada.” disse o Doutor.
Cinder analisou a cela. Era com certeza uma cela. Sem encanamento,
aquecedor, telas de monitoramento, livros ou arquivos – somente quatro
paredes, uma cama de pedra elevada e uma porta. O chão era forrado de
ladrilhos e coberto em uma camada encardida de poeira. O Doutor estava
sentado nele. A única luz vinha de um pequeno painel no teto, fraca e pálida.
“Lugar legal esse que vocês têm aqui” ela disse. “Gostei do que fizeram com o
lugar.”
O Doutor estremeceu. “É bastante medieval.” ele disse.
“Medi-o que?” perguntou Cinder.
“Bárbaro” respondeu o Doutor. “Sem imaginação. Primitivo.”
A cabeça de Cinder ainda girava. Para ela, a situação toda parecia surreal. “Por
quanto tempo eu apaguei?” ela perguntou.
“Duas ou três horas” respondeu o Doutor. “Você resistiu bem aos efeitos da
sonda mental. Mais do que bem. Eu já vi a sonda desfazer as mentes de
indivíduos com intelecto muito superior.”
“Ah, obrigada.” ela disse.
“Foi um elogio!” disse o Doutor.
“Pareceu mesmo um.” disse Cinder.
O Doutor riu novamente. “Sabe, você é bem extraordinária, Cinder" ele disse.
“Você conhece sua própria cabeça. Você sabe o que quer e então vai e
consegue. É uma qualidade invejável.”
“Isso sim é um elogio" disse Cinder. “Viu a diferença?” Ela se espreguiçou,
bocejando e esticando as costas. Então se pôs de pé. “Então – e eu quero uma
resposta honesta e direta – eles vão implantar a arma?”
O Doutor fez que sim com a cabeça. “Infelizmente.” ele disse. Sua voz era
sombria. “Eu tentei impedi-los, mas Rassilon já havia tomado sua decisão.” A
maneira como o Doutor disse o nome dele deixava claro que havia perdido todo
seu respeito pelo Senhor do Tempo Presidente – isso se chegara a ter em algum
momento.
“Bom, ainda não acabou” disse Cinder. “Quanto tempo temos?”
“Até que estejam prontos para implantar?” O Doutor pareceu fazer uma rápida
conta em sua cabeça. “Não mais do que algumas horas.” ele disse.
Cinder ficou de pé sobre ele, estendendo as duas mãos. “O que você está
fazendo sentado aí, então?” ela disse. “Você não vai salvar o mundo enfiado na
poeira e fuligem.”
O Doutor segurou as mãos dela e deixou que ela o ajudasse a se levantar, mas
sua expressão era reveladora. “Eu gostaria que fosse tão simples” ele disse.
“Estamos em uma cela de prisão dos Senhores do Tempo. Apesar do visual
primitivo, não existe como escapar. Eles confiscaram a TARDIS e não vão nos
deixar sair até que a Lágrima de Isha seja implantada e o Olho de Tântalus seja
neutralizado.”
Cinder o olhou com seu melhor olhar incrédulo. “Isso soa como um monte de
desculpas para mim.” ela disse. Era pura cascata. Ela sabia. Por dentro, porém,
seu coração doeu com a firmeza na resposta do Doutor. Seu peito apertou e ela
podia sentir o pânico crescendo, ameaçando dominá-la. Ela simplesmente não
queria acreditar que ele estava certo, que o estranho em quem ela aprendera a
confiar estava sendo derrotado, que todos que ela conhecia – todos
remotamente semelhantes a ela nos doze mundos inabitados – iriam morrer.
O Doutor parecia pesaroso. Ele ainda segurava a mão dela. “Tudo bem" ele
disse. “Eu entendo.”
“Não!” ela disse. “Não, você não entende. Não seja gentil. Não segure a minha
mão enquanto tudo o que eu já conheci é obliterado. Não é assim que vai
funcionar.” Ela buscou ar. “Você vai achar uma saída daqui e você vai impedi-
los.” Ela puxou suas mãos das dele e o acertou com força no peito com ambos
os punhos. Ela sentia lágrimas brotando em seus olhos. “Você entendeu?”
O Doutor a olhou com olhos tristes e assombrados. “Se houvesse alguma
maneira...” ele sussurrou.
Ela sacudiu a cabeça. “Quando nos conhecemos, você me disse que costumava
ter um nome, um que não merecia mais. Hoje é sua chance de provar que o
merece.”
Cinder caminhou até a porta da cela. Era feita de pesadas vigas de madeira
unidas por ferro fundido. Havia uma grande fechadura mecânica. “Aqui, olhe" ela
disse. “Você pode usar sua chave de fenda sei-lá-o-que para abrir.”
O Doutor veio ficar ao lado dela e colocou uma mão em seu ombro. “Eu sinto
muito, Cinder" ele disse. “Eu tentei. Lembra do que eu disse. Essa é uma cela
dos Senhores do Tempo. A fechadura é imune aos efeitos de aparelhos sônicos.
Por isso eles não se deram o trabalho de tirar de mim quando nos jogaram aqui.
Gastei a primeira hora e meia procurando maneiras de escapar. Eu não encontrei
nenhuma. Se conseguíssemos sair desta cela talvez teríamos uma chance.
Desse jeito, estamos de mãos atadas.”
Cinder chutou a porta. Ela não se mexeu nenhum centímetro, mas o pé de Cinder
queimou de dor. Tristemente, ela sentou no chão, esfregando seus dedos pela
bota.
O Doutor, claramente decidindo deixá-la com seus próprios problemas por um
tempo, caminhou de volta para onde ele estava sentado contra a parede e se fez
confortável.
Cinder olhou com raiva para a fechadura. Não parecia tão sofisticada. Na
verdade, era como uma fechadura humana simples de Moldox, uma simples
alavanca de tambor que era aberta com uma chave. Seriam os Senhores do
Tempo realmente tão arrogantes que pensaram que adaptar uma fechadura
mecânica simples para ser a prova de sônicos seria suficiente para manter seus
prisioneiros ali?
Ela sentiu um vislumbre de esperança. Ela olhou para o Doutor, que havia
removido sua chave de fenda sônica do aro de seu cinto de munição e estava
mexendo nas configurações, provavelmente tentando sobrecarregar os
protocolos da fechadura.
Ela puxou a manga do casaco pelo braço, até o cotovelo. Ela quase não se
atrevia a olhar. Talvez...
Ainda estava ali. Ela suspirou aliviada. O bracelete que ela trouxera com ela de
Moldox, o que seu irmão havia feito para ela quando ela ainda era uma criança,
torcendo um aro de fios grossos de cobre. Era grande demais para ela na época,
mas quando Coyne e sua equipe a encontraram nas ruínas fumegantes de sua
casa, era a única coisa que ela conseguira salvar.
Ela puxou com a ponta de seus dedos, pensando. Se ela desenrolasse, talvez o
fio seria forte o suficiente para fazer dois arrombadores de fechadura. Havia uma
parte dela que não queria fazer aquilo, que queria baixar a manga do casaco de
volta e se encolher, fingir que nunca tivera aquela ideia, mas ela sabia que não
podia. Haviam muitas vidas em risco. Seu irmão teria entendido.
“Sinto muito, Sammy.” ela sussurrou enquanto removia o bracelete e lentamente
desfazia as tiras de metal. Estavam endurecidas pelo tempo, e por um momento
ela pensou que simplesmente quebrariam em suas mãos, mas enquanto
trabalhava, elas gradualmente começaram a se soltar.
Em alguns minutos, o bracelete havia se separado, agora desdobrado em dois
fios separados. Ela os endireitou o melhor que pôde e os colocou no chão.
O Doutor ainda estava concentrado em sua chave de fenda, um olhar de
profunda concentração em suas sobrancelhas franzidas.
Cinder se ajoelhou, se aproximando da fechadura e fechou um olho para que
pudesse olhar pelo buraco da chave. Ela via um pouco do corredor do lado de
fora, apenas uma outra porta do outro lado. Não havia sinal de guardas.
Ela pegou suas ferramentas improvisadas do chão. Com cuidado, ela as enfiou
na fechadura, ainda meio que esperando receber um choque violento ou ao
menos disparar um alarme, mas nada aconteceu. Lentamente, deliberadamente,
ela começou a trabalhar, usando as hastes de metal para forçar com cuidado o
mecanismo, girando os tambores para que a alavanca deslizasse para fora do
buraco na parede.
Ela ouviu o mecanismo clicar. Ela estava naquilo apenas a alguns segundos.
Seria mesmo tão simples?
Ela percebeu que estava segurando a respiração e então soltou. Então, ficando
de pé, ela enfiou suas ferramentas no bolso e, com a mão tremendo, tentou abrir
a porta.
A maçaneta girou e a porta se abriu em alguns centímetros. Sua pulsação
tamborilava em seus ouvidos. Em silêncio, ela voltou a fechar a porta e se virou
para ver se o Doutor estava assistindo. Ele ainda mexia na chave de fenda.
“Doutor?” ela disse, sua voz tremendo levemente.
“Humm” ele respondeu, não prestando muita atenção. “Você disse que se
conseguíssemos sair dessa cela, você pensou que ainda teríamos chance de
impedir os Senhores do Tempo de implantar a Lágrima?”
O Doutor deu uma olhada para ela, estreitando os olhos. “Sim, eu disse," ele
respondeu. “Mas eu já falei..."
Cinder fez sinal para que ele ficasse quieto. Ela colocou a mão atrás dela, girou
a maçaneta e deixou a porta abrir por completo. “Hora de fazer valer” ela disse.
O Doutor olhou para a fechadura e então para Cinder. “Estou impressionado” ele
disse.
Ela deu de ombros. “Claramente eles não esperavam por uma mísera garota
humana com um arrombador de trancas”
“Não” riu o Doutor, se levantando. “Eu não acho que algum de nós esperava.”
Seu colete estava amarrotado por baixo da jaqueta e suas botas estavam
salpicadas de lama seca. Ele parecia meio sujo. Mas considerando, ela pensou,
os dois haviam passado por guerras nos últimos dias – literalmente.
Sem mais enrolação, eles fugiram da cela.
“Qual lado?” perguntou Cinder.
“Esquerda, eu acho” disse o Doutor, baixando a voz para um sussurro.
“Felizmente nunca passei muito tempo aqui em baixo, mas acredito que temos
que descer. Deve haver uma passagem inclinada logo a frente, pela esquerda.”
“Descer?” disse Cinder. “Pensei que estávamos nas masmorras? Com certeza
pareciam masmorras.”
O Doutor fez que sim. “Existe um terreno subterrâneo que se estende por
debaixo da cidadela principal. É para onde mandam TARDISes para morrer” sua
voz falhou enquanto ele falava. “É onde ela vai estar.”
Trilhando um após o outro, o Doutor guiou o caminho pela passagem. Estava
escuro e úmido e as outras quatro ou cinco celas pelas quais eles passaram
estavam todas vazias, as portas abertas. As paredes eram grosseiramente
talhadas, esculpidas da base rochosa abaixo da cidadela, além de
majoritariamente sem adornos, com exceção de alguns candeeiros ocasionais.
Ou esta parte da prisão foi reservada apenas para eles ou os Senhores do
Tempo não tinham o hábito de fazer prisioneiros. Cinder comentou isso com o
Doutor enquanto caminhavam.
“Pelo meu entendimento, Rassilon prefere execuções como forma de punição
ultimamente” ele disse sombriamente.
Cinder franziu a testa. “Então porque nos jogar em uma cela velha e suja?” ela
disse. “Não que eu esteja reclamando ou qualquer coisa.”
“Ele sabe que eu ainda posso ser útil” disse o Doutor. “E ele pode usar você
como alavanca, por mais desprezível que seja.”
Cinder não gostava muito da ideia de ser usada de alavanca, mas pelo menos
lhe dava algum conforto saber que o Doutor estava cuidando dela e não
simplesmente a abandonaria para se salvar ou a deixaria em algum lugar para
morrer.
Eles chegaram ao final do túnel e viraram à esquerda, direto para o campo de
visão de uma guarda de plantão, que estava sentada em um banquinho de
costas para a parede e folheando casualmente um tablet de dados. Ela era uma
mulher alta e musculosa, vestida com o uniforme familiar em vermelho e branco
da Guarda do Governador. Cinder não podia evitar reparar na pistola presa em
seu cinto.
Lentamente, a mulher levantou do banco, deixando a lista de dados no assento
atrás dela. “Parem aí!” ela disse. Ela correu na direção deles, seus passos
ecoando na pequena passagem.
O Doutor deu um passo a frente para cumprimentá-la, estendendo a mão. “Olá”
ele disse.
“Agora, o que fazem aqui em baixo?” disse a mulher. “A prisão é estritamente
fora dos limites.”
“Ah” disse o Doutor. “Eu sinto muito. Devo ter pegado a curva errada em algum
lugar lá trás. É claramente apenas um engano. Não ligue para nós. Vamos seguir
nosso caminho.” Ele se virou no mesmo lugar, pronto para sair.
“Espere um momento" disse a mulher. “Você parece familiar. Você não é...?” Os
olhos dela se arregalaram. “Você é o Doutor!” ela disse. “Você deveria estar na
cela. Como escapou?” ela tateou a procura da pistola.
“Agora, escute” disse o Doutor, estendendo a mão em um esforço para acalmá-
la. “Como eu disse, é apenas um mal entendi-"
Cinder deu um passo a frente, puxou o punho e acertou um belo gancho de
direita na mandíbula da mulher. Ela desabou no chão, a pistola escorregando
para longe.
“Sinceramente!” exclamou o Doutor. “Havia mesmo necessidade disso?”
Cinder revirou os olhos, massageando a mão dolorida. “Alguma coisa me diz que
você não entendeu a dinâmica da nossa situação” ela disse. “Isso é uma fuga da
prisão. Ela era uma guarda. Deveríamos estar fugindo.”
O Doutor pareceu pesar a situação por um momento e então deu de ombros.
“Bem, quando coloca desse jeito...” ele disse. Ele olhou para a forma
inconsciente da guarda. “Podemos ao menos deixá-la confortável.”
Cinder suspirou enquanto o Doutor arrastava a mulher para a parede do túnel e
a colocava sentada, pondo suas mãos em seu colo. “Pronto” ele disse limpando
as mãos. “Ela vai nos agradecer por isto quando acordar.”
“Eu realmente acho que não vai" disse Cinder. “Agora vamos andando.”
O fim do túnel mergulhava como o Doutor havia previsto, se tornando uma longa
e suave inclinação que levava mais fundo no subsolo. “Por aqui" ele disse
acenando com a mão para ela.
Cinder ouviu vozes atrás deles – dois homens gritando um para o outro em
alarme. Obviamente, eles haviam descoberto a colega inconsciente. “Eles a
encontraram” ela disse. “Vamos. Precisamos correr.”
Abandonando qualquer esperança de permanecerem imperceptíveis, o Doutor e
Cinder começaram a correr, disparando pelas encostas na direção do fundo do
terreno subterrâneo. Momentos depois, eles ouviram passos atrás deles.
A passagem continuava a se aprofundar pelo que pareciam quilômetros,
enrolando-se em si mesma até Cinder estar completamente desorientada. Ela
estava exausta, os músculos em suas coxas doíam pela corrida, a cabeça ainda
martelada devido aos efeitos colaterais da sonda mental. Ela, no entanto, se
mantinha motivada graças aos sons de passos que os acompanhavam, que
pareciam ficar mais altos, se aproximando a cada segundo.
“É logo aqui em baixo" disse o Doutor, sem fôlego.
Logo a frente o túnel ficou mais largo de repente, o chão ia nivelando enquanto
se aproximavam da boca de uma grande caverna.
O Doutor derrapou até parar e Cinder quase deu de encontro nas costas dele,
sendo obrigada a agarrá-lo pelo braço para diminuir seu impulso e quase
derrubando os dois no processo.
O terreno subterrâneo era imenso, assim como o Doutor descrevera, se
esticando abaixo de toda a cidade. O teto era alto e abobadado, claramente
construído em milênios passados, e faixas suavemente brilhantes cruzavam a
alvenaria, provendo uma iluminação razoavelmente fraca. As paredes eram de
pedras cortadas grosseiramente e desapareciam no horizonte, sendo absorvidas
nas sombras.
O chão da caverna era cheio de carcaças de TARDISes mortas ou morrendo.
Haviam milhares delas, dezenas de milhares. Era impossível calcular.
Cinder permaneceu na boca da caverna, olhando para o mar de TARDISes em
suas infinitas formas, de todos os tipos de silhuetas e tamanhos. Algumas eram
losangos brancos e simples marcados com riscos de fuligem da batalha, outras
eram cápsulas prateadas e cinza, a superfície esburacada e rachada pelo tempo.
Uma delas, que estava perto, estava rachada como um ovo, o interior se
desdobrando para fora e criando uma paisagem confusa de bizarrice geométrica.
Cinder não conseguia entender aquilo – as paredes estavam no teto, o teto
estava no chão. A sala do console estava na perpendicular em paralelo a um
fragmento do revestimento externo, que por sua vez dividia ao meio uma estante
vazia de pinho. Era como olhar para uma paisagem de um sonho que fora
renderizada em madeira e metal.
Ao longe, ela conseguia ver algumas que haviam inchado em proporções
gigantescas, as formas externas inchando para pressionar contra o teto da
caverna, como pilares assimétricos que sustentavam a cidade acima.
A sua esquerda estava uma que parecia um disco Dalek danificado, deitado de
lado, outra que parecia uma árvore de carvalho antiga, acima de um emaranhado
de raízes reforçadas e nodosas, outras que pareciam ter tomado a forma de um
pilar neoclássico, tendas de circo, um galeão afundado, apoiado na parede.
Haviam outras também, que replicavam objetos estranhos e incomuns que ela
não reconhecia, provavelmente de civilizações alienígenas.
Havia algo terrivelmente desamparador sobre o lugar, sobre esses receptáculos
serem abandonados ali daquela forma para encerrar seus dias.
“É um cemitério” ela disse.
O Doutor concordou. “O lugar de descanso final de velhas amigas" ele disse e
então agraciou sua barba. “Elas estavam vivas antes, sabia?”
Cinder franziu a testa. “Mas são máquinas.”
O Doutor sacudiu a cabeça. “Não. São muito mais que isso. Deveria tentar fugir
com uma delas.”
Atrás deles, os passos dos guardas se aproximavam.
“Como vamos encontrá-la no meio de tantas?” perguntou Cinder, com uma
súbita urgência. Eles estavam perdendo tempo. “Sua TARDIS. Tem muitas
delas” ela acenou as mãos para abranger a largura da caverna. “Levaria
semanas para vasculhar o lugar.”
O comentário dela foi pontuado por um curto bipe eletrônico, que parecia vir de
debaixo da lapela da jaqueta de couro do Doutor. Ele levantou uma sobrancelha.
“Ah, ela é boa" ele disse. “Esperta, garota esperta.” Ele alcançou a chave de
fenda sônica. A ponta havia ganhado vida, acendendo, mas ele não havia feito
nada e não havia nenhum zumbido irritante. Depois de um segundo, emitiu outro
bipe.
“Ela está nos chamando" ele disse. “Ela sabe que estamos aqui. Quer que a
encontremos. Vamos!”
Segurando a chave de fenda sônica como uma tocha, o Doutor pulou da
pequena beirada, desaparecendo na floresta de TARDISes quebradas. Cinder
pulou atrás, seguindo o brilho chave de fenda sônica.
“Parem aí!”
Atrás deles, os guardas emergiram na boca da caverna. Cinder não parou para
olhá-los, mas correu para se proteger atrás da casca queimada de uma TARDIS
de Batalha.
“Voltem agora para as celas" berrou um dos guardas “e não atiraremos.”
“Duvido muito!” veio a resposta abafada do Doutor, fazendo Cinder soltar uma
risada. Porém durou apenas um momento, pois um raio de energia da pistola de
um dos guardas passou zumbindo por sua orelha, atingindo o galeão e criando
uma chuva de faíscas no ar.
Então, não eram para atordoar.
Ela podia ouvir a chave de fenda do Doutor bipando na frente dela, o barulho
aumentando a frequência conforme eles se moviam para dentro do labirinto e
provavelmente para mais perto da TARDIS dele. “Por aqui!” ele chamou,
acenando com a chave de fenda por cima de uma TARDIS que parecia uma
barca de canal, resultando em outro disparo de um dos guardas.
Mantendo a cabeça baixa, Cinder correu atrás dele. Mais tiros zuniram acima de
sua cabeça quando os guardas, obviamente decidindo que precisão não era uma
virtude, começaram a disparar indiscriminadamente na direção deles.
As TARDISes quebradas formavam um labirinto aleatório cheio de bordas
irregulares e geometrias desorientadoras.
Enquanto os guardas se separavam, indo atrás deles em um movimento de
pinça, o Doutor e Cinder seguiram o bipe insistente da chave de fenda sônica,
correndo de forma caótica de um lado para o outro, tropeçando em becos sem
saída, retornando, dando a volta.
Um tiro oportuno de um dos guardas atingiu a parte de fora de uma TARDIS de
Batalha, que estava deitada logo ao lado dela, e ela mergulhou para se proteger,
abaixando atrás do que parecia ser uma estufa. Metade dos painéis estavam
quebrados e estava coberto de vinhas.
O Doutor corria na frente. “Vamos, estamos perto agora!”
Ela correu atrás dele, os pés escorregando no chão empoeirado. Ela quase caiu,
balançando os braços e enxergando do uniforme vermelho e branco do guarda
que os perseguia. Ele estava se aproximando deles.
Logo a frente, o Doutor fazia a curva para a direita e ela correu atrás dele,
segurando o que parecia uma rampa de torpedo e usando para se equilibrar na
curva.
“Lá está ela!” gritou o Doutor jubiloso. Cinder via a agora familiar caixa azul
alinhada perto de uma pilha de fragmentos e paredes de interiores quebrados,
que possuíam as mesmas coisas redondas estranhas que o interior da sala de
controles do Doutor.
Enquanto eles corriam na direção dela, as portas se abriram para eles,
acolhendo-os lá dentro. Eles entraram correndo, o Doutor saltando para a
plataforma e batendo com o punho em um grande botão vermelho no console.
As portas se fecharam atrás deles.
“Isso aí” disse ele sem fôlego. “Ha! Eles não vão entrar agora” ele ria como
criança. “Obrigado, minha garota.” Ele ficou de pé levantando as mãos de cada
lado, virando-se e olhando para cima, como se falasse com a nave. “Você nunca
me desaponta.”
Ele deu uma olhada para Cinder. “Esta não é a primeira vez que tenho que roubá-
la de Gallifrey” ele disse. “Às vezes, eu acho que ela queria sair em uma aventura
tanto quanto eu.”
Nos monitores, Cinder viu os dois guardas na porta da TARDIS. Eles chutaram,
tentando entrar, e quando não adiantou, eles se afastaram, miraram e atiraram
ao mesmo tempo na tranca.
O barulho dentro da TARDIS foi enorme, os raios de energia ricochetearam,
disparando contra a escuridão do cemitério, mas as portas não cederam. Ela
assistiu um dos homens – um sujeito moreno com a barba preta e cheia – falando
no comunicador em seu pulso. Ela imaginou alarmes disparando em algum lugar
no complexo da prisão.
O Doutor estava ajustando os controles de voo. “Alguma coisa me diz que não
somos mais bem vindos aqui” ele disse com sarcasmo. Ele apertou uma
sequência de botões, girou um disco e puxou uma alavanca.
A coluna de vidro no coração do console despertou para a vida, emitindo uma
luz etérea brilhante. Dentro, o conjunto de tubos de vidro começou a subir e
descer lentamente, acompanhado dos gemidos ofegantes das engrenagens da
nave.
Cinder agarrou o corrimão, finalmente se permitindo um suspiro de alívio.
A nave deu um solavanco brusco, os motores engasgando como se estivessem
falhando.
“Ah, não, não, não” disse o Doutor, os dedos dançando sobre os controles. Ele
seguiu a mesma sequência mais uma vez, puxando a alavanca. A coluna central
começou a subir mais uma vez, mas então travou, parando. As engrenagens
engasgaram, como se se esforçassem para fugir.
O Doutor deu um passo para longe dos controles e olhou para Cinder. “Eles
mudaram os protocolos de segurança” ele disse. “Não vão nos deixar
desmaterializar.”
Uma voz ressoou pelo comunicador da nave, fazendo Cinder se assustar. “É
hora de desistir de sua rebelião, Doutor, e volte quietamente” era a voz do
Governador, falando de algum lugar na cidadela, o Doutor imaginou. “Sua
TARDIS não possuiu mais acesso aos protocolos corretos para sair de Gallifrey.
Entreguem-se aos guardas e podem retornar para sua cela. Nada mais será dito.
É tudo que posso fazer por você.”
“Não!” berrou o Doutor, cheio de ira. “Vai nos deixar ir.”
O Governador riu. “Receio que isso seja mais do que vale a minha vida.” ele
respondeu.
“Pode ser" disse o Doutor, seu tom grave. “Mas uma vez na vida vai fazer a coisa
certa. Porque você sabe que o que eles vão fazer é errado, não sabe,
Governador? Você não sabe como você vai viver com bilhões de vidas na sua
consciência quando isto acabar" o Doutor começou a andar de um lado para o
outro na frente do console, perdido em seu argumento. “No fundo de seus
corações, você sabe que eu preciso impedi-los de implantar a Lágrima, então vai
transmitir os protocolos corretos para o console da minha TARDIS.”
“Mas...” o Governador vacilou e Cinder podia ouvir em sua voz que ele não podia
contradizer as palavras do Doutor. “Mas Karlax?”
“Isso é maior que você ou Karlax” disse o Doutor. “É maior que eu, que qualquer
um de nós, inclusive Rassilon. Você me ouviu na câmara do conselho. Se
permitir que isso aconteça, não vai ser melhor que um Dalek.”
Ouviu-se um alerta no console e um botão começou a piscar.
“Obrigado” disse o Doutor. “Eu entendo o que você está sacrificando.”
“Não deixe ser em vão” disse o Governador antes de cortar a conexão.
Mais uma vez, o Doutor ajustou os controles e a TARDIS ofegou para fora da
existência, deixando os dois guardas de pé no terreno subterrâneo, olhando um
para o outro em confusão.

Capítulo Dezesseis
Karlax sempre detestou viajar pelo transmat, fazia seus dedos formigarem por
pelo menos uma hora, seus corações aceleravam quando as partículas de seu
corpo começavam a se separar, se desfazendo a nível molecular. Até mesmo o
conceito o incomodava, e ele se lembrava de virar a noite após sua primeira
viagem, muitas vidas atrás, se perguntando se ainda era a mesma pessoa ou se
o processo o havia mudado irreversivelmente de alguma forma.
É claro, tudo isso foi muito antes de sua primeira regeneração, quando os
conceitos de mudança e identidade se tornaram efetivamente irrelevantes para
ele. Ele percebia agora que a mudança era inevitável, apenas mais um fio na
longa tapeçaria da vida. O principal era garantir que se pudesse utilizar a
mudança para conseguir o que queria, até mesmo a encorajando em uma certa
direção. Alguns chamariam de manipulação, ele pensava. Karlax simplesmente
via de forma pragmática. Até o momento, era uma abordagem que havia lhe
dado muitos frutos e ele não via motivo para parar agora.
Então por isso ele estava ali, na cripta do Lorde Presidente, para falar com ele.
Ele estava ansioso em ser o primeiro a entregar as notícias, dessa forma ele
poderia influenciar qualquer decisão que se seguisse. Karlax sabia exatamente
o que queria, e ele faria de tudo para conseguir. Era hora de se vingar. O Doutor
receberia o que merecia.
Karlax havia visitado a cripta uma vez e ele sabia o que Rassilon mantinha ali –
todos sabiam. Todos os membros do Alto Conselho sancionaram a criação da
Máquina de Possibilidade. O trabalho havia sido realizado na Capital, a portas
fechadas, e o Conselho fora mantido a par do progresso. Quando o momento de
revelar o extraordinário novo aparelho chegou, no entanto, nenhum deles
conseguiu olhar. Eles o rejeitaram, chamaram de abominação, e Rassilon foi
obrigado a movê-lo para sua velha cripta para manter aquilo fora do caminho.
Agora, quase não era conhecido. O Alto Conselho sabia que Rassilon falava com
uma autoridade respaldada pela máquina, mas o aparelho permaneceu não
declarado e o nome de Borusa nunca fora pronunciado.
Essa era uma das coisas da qual o Doutor acertara completamente, Karlax
admitia a contragosto – eles eram todos hipócritas, preparados para fazer o que
fosse preciso e colher as recompensas desde que nunca tivessem que enfrentar
as consequências.
Ele havia insinuado tal coisa para Rassilon mais cedo naquele dia, sussurrando
em seu ouvido que o Governador estava começando a desenvolver uma
consciência, que ele não possuía o distanciamento para ser capaz de cumprir
inteiramente suas funções. O incidente com a garota humana havia sido prova
suficiente disso, e agora Karlax suspeitava de que havia dedo dele na fuga do
Doutor. Haveriam repercussões.
Ele chegou à entrada na Torre. Pisou dentro e abaixou a cabeça, consciente em
mostrar a devida reverência.
Rassilon estava ao pé da cripta, falando com a máquina de possibilidade,
exigindo que Borusa mostra-se a ele um caminho pelo caos flutuante das linhas
do tempo, que ele previsse o momento mais efetivo para implantar a arma. "Diga-
me, Borusa, da Lágrima de Isha. Qual é o verdadeiro caminho para a vitória?
Como me certifico de que sua implantação atinja o coração da comoção Dalek?”
Karlax encolheu-se ao ver a máquina de possibilidade, dobrado em sua cama de
metal para que Rassilon pudesse olhá-lo. Para Karlax era como um cadáver
pálido, restituído de vida, magro, mas ainda sim cheio de uma vitalidade que não
lhe pertencia. O Vortex Temporal corria por sua cabeça, o enchendo de
maravilhas e horrores além da imaginação. Na luz fraca da cripta, brilhava com
a aura de energia de regeneração oscilante.
“As linhas do tempo não se mostram claras para mim" murmurou Borusa. “Não
há um caminho verdadeiro. Cada resultado está em fluxo e as possibilidades
florescem. Um fator aleatório foi introduzido, o que... perturba as coisas.”
“Um fator aleatório?” ecoou Rassilon. “O que é? A arma Dalek?”
“Não, meu Senhor. Outra coisa. Um nó de potencial, movendo-se não
identificado através das linhas do tempo, tecendo padrões no futuro e no
passado.”
“Você fala através de enigmas" amaldiçoou Rassilon. "Enigmas e códigos. Não
consigo entender!”
Karlax pairou próximo a entrada, incerto de como proceder. Ele não queria
despertar a ira de seu mestre, mas ao mesmo tempo – haviam notícias que ele
precisava transmitir. “Lorde Presidente?” ele chamou, cuidadoso.
Rassilon se virou. Ele parecia irritado em ver que era Karlax quem o interrompia
em seu refúgio.
“O que é, Karlax?” ele disse ríspido. “Não pode ver que estou ocupado?”
“Minhas desculpas, Lorde Presidente” disse Karlax. “Trago notícias da Capital.
Nossos planos podem estar em risco. Pensei em informá-lo imediatamente.”
Rassilon fez sinal para que se aproximasse.
Karlax cruzou o mausoléu, hesitante em estar tão próximo da criatura que antes
havia sido Borusa. Apesar de seu desdém pela forma com que os membros do
Alto Conselho haviam pedido a remoção de Borusa da Capital, Karlax tinha
grandes dúvidas sobre estar em tão grande proximidade com a coisa. Aquilo
olhou para ele com seus olhos cintilantes e estranhos, e sorriu conscientemente.
Karlax estremeceu. Ele se perguntou o que podia estar pensando, o que podia
estar vendo quando olhava para ele.
“Bem?” disse Rassilon. “Diga logo.”
“É o Doutor” disse Karlax. “Ele escapou.”
A mandíbula de Rassilon se moveu enquanto ele rangia os dentes,
evidentemente tentando manter a compostura. “Escapou?” Havia uma rigidez de
aço em sua voz. Karlax precisava escolher suas próximas palavras com muito
cuidado.
“Claramente, ele foi auxiliado de alguma forma" ele disse. “Temos um traidor em
nosso meio. É uma questão simples de rastrear os registros de dados e descobrir
quem permitiu que a TARDIS do Doutor tivesse acesso aos protocolos de
segurança.”
“Faça.” disse Rassilon. “Vou ter a cabeça de alguém por isso.”
Karlax tinha a sensação de que o Alto Conselho estaria procurando um novo
Governador nos próximos dias. Ele suprimiu um sorriso. “E quanto ao Doutor?”
ele se aventurou. “Ele ainda pode tentar impedir o Comandante Partheus de
implantar a Lágrima.”
“Sim” disse o Rassilon. “O fator aleatório” ele olhou para Borusa,
momentaneamente perdido em pensamentos. Então, após um momento, ele
pareceu tomar uma decisão. “Eu vejo claramente agora, Karlax. O Doutor é uma
carta coringa, um renegado, e ele deixou sua posição abundantemente clara. Ele
pretende agir contra nós. Ele deve ser impedido de influenciar no resultado dos
eventos. Existe apenas um recurso.”
“Meu Senhor?” disse Karlax.
“O Doutor deve morrer, Karlax” disse Rassilon. “Somente então teremos
certeza.”
Karlax não pode impedir seu sorriso de se abrir em seus lábios.
“Você, Karlax, é o único que posso confiar para uma tarefa tão significante”
continuou Rassilon.
“Eu?” disse Karlax, de repente em pânico. Isso não era nada do que ele
esperava. Ele não era um homem de ação. Ele construiu sua carreira através da
manipulação de outros. Ele mal havia se aventurado em uma TARDIS desde os
tempos na Academia. “Tem certeza que sou adequadamente equipado para um
papel tão crucial, meu Senhor?” disse Karlax.
“De maneira única” disse Rassilon. “Você, mais que qualquer um de nós, quer
vê-lo morto.”
Então Rassilon era mais perceptivo do que parecia. Karlax podia ver que ele não
mudaria de ideia. Ele entrou direto nisso e agora teria que ver terminar. Ainda
assim, ele pensou, pelo menos dessa forma ele veria o olhar no rosto do Doutor
enquanto ele morria. Isso seria alguma forma de consolo. “Muito bem, meu
Senhor” ele disse.
“Excelente. Tempo é essencial. Consiga ajuda da Agência de Intervenção
Celestial. Se você vai ser a bala, Karlax, eles serão a arma.”
“Imediatamente” disse Karlax. Ele virou-se e caminhou para a porta, a cabeça
girando.
“Ah, Karlax?” chamou Rassilon, no momento em que ele passava pelo batente.
Karlax parou e olhou para trás. “Sim, meu Senhor?”
“Se você falhar, não se dê o trabalho de voltar.”
Karlax engoliu. Não haviam palavras para o quão aterrorizado ele se sentiu
naquele momento. “A minha vida ou a do Doutor" ele disse, acenando com a
cabeça. “Eu entendo.”
Então, era isso. Karlax sabia com certeza de uma coisa. O que quer que
acontecesse, ele ia fazer o Doutor sofrer.
Parte Três
Para Dentro do Olho
Capítulo Dezessete
A TARDIS ficou parada no Vórtice do Tempo em meio a um caos rodopiante de
roxos e azuis. Cinder podia ver as cores furiosas através do teto transparente da
sala do console, como uma tempestade tempestuosa, nuvens esmagadas
cheias de energia crepitante. Pelo que ela sabia, o casco externo da nave estava
sendo esbofeteado e espancado, mas por dentro tudo estava calmo.
Ela estava empoleirada na borda do estrado central, o console da nave em suas
costas. Parecia estranho para ela não estar correndo, perseguida por corredores
sinuosos ou tentando desesperadamente escapar de uma nave Dalek, uma
cidade em ruínas ou uma prisão dos Senhores do Tempo. De qualquer lugar. Ela
considerou isso por um momento. Durante toda a sua vida ela tentou escapar de
onde quer que estivesse, sempre trabalhando na suposição de que se ela
pudesse fugir, haveria um lugar melhor, esperando por ela em algum lugar do
cosmos. Um lugar que ela poderia chamar de lar.
Agora, ela não tinha tanta certeza. Ela não podia deixar de se perguntar,
enquanto observava a tempestade ondulante do Vórtice do Tempo, soprando ao
redor deles, se o universo inteiro estava tão zangado, tão violento. Certamente
parecia assim.
Ao mesmo tempo, era estranho ficar sentada quieta.
O Doutor estava se movimentando pela sala do console como se tivesse perdido
algo.
“O que vamos fazer agora?” Perguntou Cinder. Ela apoiou o queixo na palma da
mão voltada para cima. “Não podemos voltar para Moldox e não podemos voltar
para Gallifrey. Não somos muito populares, somos?” Ela disse.
O Doutor parou o que estava fazendo por um momento.
“Vamos impedir que os Senhores do Tempo implantem a Lagrima de Isha “disse
ele. “Isso é o que vamos fazer.”
Uma façanha nada fácil, pensou Cinder, para dois renegados em uma caixa azul.
Ela percebeu que estava sendo piegas e decidiu se animar.
“Supondo que tenhamos sucesso,” disse ela “e que possamos evitar que os
Senhores do Tempo colapsem o Olho de Tântalus ... “
“Sim,” disse o Doutor.
“Então e os Daleks? O que vamos fazer com eles? Certamente você não vai
permitir que eles terminem o que começaram, para varrer Gallifrey da
existência?”
“Eu não deveria?” Disse ele, mas ela poderia dizer que seu coração não estava
ali. Ele estava furioso com seu povo, e com razão. Eles não apenas se
recusaram a ouvi-lo, mas também se voltaram contra ele quando ele estava
tentando ajudá-los, quando eles mais precisavam dele. Eles mostraram a ele
suas verdadeiras faces.
Tudo o que ela tinha ouvido sobre os Senhores do Tempo, todos os rumores -
agora ela supôs que eles deviam ser verdade, que realmente não havia muita
diferença entre eles e os Daleks.
Todos exceto um, ela pensou, com um sorriso. Ele não era tão ruim. E ela não
acreditou por um minuto que ele iria ficar parado e vê-los serem destruídos.
“Ah, entendi!” Exclamou o Doutor, e Cinder se virou para ver o que ele estava
fazendo, trazendo os joelhos até o peito e os braços em volta deles.
O Doutor estava de joelhos, preocupado com algo sob o console em forma de
cogumelo.
“O que é? “Perguntou ela.
“Espere ...” veio a resposta abafada. Ele estava com um olhar de intensa
concentração e sua a língua estava para fora comicamente do canto da boca.
“Pronto!” Declarou ele. Uma pequena cápsula preta, que evidentemente havia
sido fixada embaixo do painel de controle, saiu em sua mão. Ele o jogou no ar e
o pegou novamente. “Isso vai ensiná-los.” disse ele, levantando-se.
“O que é? O que você encontrou?
O Doutor se levantou e foi até onde ela estava sentada. Ele estendeu a mão. O
objeto preto era um ovoide fino, feito do que parecia ser uma cerâmica brilhante.
Não revelou muito.
“Um dispositivo de rastreamento” disse ele. “Eu sabia que eles não seriam
capazes de resistir. Os homens do Governador devem ter plantado antes de
mover a TARDIS para o ferro-velho.
“Então você acha que eles virão atrás de nós? “Perguntou Cinder. Isso era tudo
que eles precisavam. Ela teve o suficiente dos Senhores do Tempo para durar
toda a vida. Talvez duas.
“Nada me surpreenderia,” disse o Doutor, resignado. “Se eles puderem nos
encontrar, claro. Eles saberão que vamos atrás da Lagrima. Eles provavelmente
enviarão uma força de ataque para tentar nos impedir.
Cinder suspirou. Quando tudo isso acabaria?
“Então, sobre os Daleks,” disse ela.
“O que tem eles?
“Bem, eu sei que você não estava falando sério. Mas o que vamos fazer para
detê-los?” Disse ela. “Se eles usarem sua arma em Gallifrey, será apenas uma
questão de tempo antes que a usem em outro lugar também. Não haverá
ninguém para impedi-los.
“Sim, ainda não resolvi bem isso “disse o Doutor. Suas sobrancelhas espessas
se contraíram.
“Então você considerou a alternativa? “Disse ela. Ela se odiava por ter tocado no
assunto, mas tinha que ser dito.
“Não há alternativa” respondeu o Doutor.
Cinder balançou a cabeça. “Você poderia deixar os Senhores do Tempo
implantarem a Lágrima. E se Rassilon estiver certo? As vidas de alguns bilhões
de escravos humanos para garantir a segurança de todos os outros no universo
...”
O Doutor parecia furioso. “Não é assim que funciona, Cinder. Não podemos fazer
essa escolha. Ninguém deve exercer esse tipo de poder.
“Mas se não o fizermos, não entregaremos esse mesmo poder aos Daleks?”
“Vou encontrar uma maneira,” disse o Doutor. “Eu sempre encontro, no final. Mas
eu certamente não permitirei que os Senhores do Tempo cometam genocídio
por isso.”
Cinder concordou com a cabeça. Preguiçosamente, ela pegou o canhão Dalek,
que estava caído no chão a seus pés.
Não havia nada esteticamente agradável naquela coisa. Era uma arma de puro
ódio, funcional e mortal.
“Onde você conseguiu isso?” Disse o Doutor. Ele parecia desconfiado.
“Bem aqui, onde você deixou” respondeu Cinder.
O Doutor se agachou ao lado dela e estendeu a mão. Ela passou para ele. “Eu
deixei isso em Gallifrey,” disse ele. “Na Câmara do Conselho. “
“Eles devem ter decidido devolvê-lo,” disse Cinder.
“Mmmm,” murmurou o Doutor, virando a arma em suas mãos. “Sim, como eu
pensei. “Ele o virou para mostrar a ela o pequeno nódulo preto que havia sido
secretado sob o barril. Ele o puxou para fora.
“Parece que eles não estavam se arriscando” disse ele. “Eu tenho a reputação
de ser difícil de manter em uma cela.
Ele se levantou, deixando os dois dispositivos de rastreamento lado a lado no
chão. Ele então os pisou repetidamente, esmagando-os sob seu calcanhar até
que não houvesse mais nada além de uma polpa de cerâmica quebrada e
diodos.
“Pronto, isso deve bastar,” disse ele.
Ele ofereceu-lhe a mão, puxando-a para cima.
“Agora, é hora de você descansar um pouco.
Cinder esfregou os olhos.
“Não, estou bem” disse ela.
O Doutor balançou a cabeça.
“Você precisa dormir.”
Agora que ele havia mencionado isso, ela percebeu o quão perto da exaustão
ela realmente estava. Seus olhos estavam quentes e pesados e havia uma dor
surda na parte de trás de seu crânio, que estava lá desde sua experiência com
a sonda mental. Seus membros estavam pesados.
“Tudo bem,” disse ela. “Por um tempinho.”
“Suba esses degraus” disse o Doutor. “Primeira porta à esquerda. Você
encontrará um lugar para dormir um pouco.” Cinder alisou a túnica. Estava
imunda. “Deve haver algumas roupas limpas no guarda-roupa, também. Pegue
o que quiser.”
“Obrigada” disse ela. Ela foi até a escada. Talvez pela primeira vez na vida, ela
se sentiu em paz. No entanto, ela não podia deixar de se perguntar se esta era
a calmaria antes da tempestade, o silêncio assustador na noite antes da batalha.
De qualquer forma, ela demoraria um pouco para reunir suas forças.
“Você já sabe o que vai fazer?” Disse ela. “Como você vai impedi-los. Os
Senhores do Tempo, quero dizer.”
O Doutor sorriu.
“Eu sempre fui de ... bem, improvisar,” respondeu ele.
Cinder riu.
“Eu também.
Ela subiu os degraus em busca de uma cama.
Cinder desceu correndo os degraus para encontrar o Doutor ainda de pé no
console, mexendo nos controles.
“Estou dormindo há horas” disse ela. “Por que você não me acordou?”
O Doutor ergueu os olhos, imperturbável.
“Você precisava descansar,” disse ele.
“Mas a Lágrima! Não vamos chegar tarde demais?
O Doutor riu.
“Esta é uma máquina do tempo” disse ele. “Aqui no Vortex, estamos a um passo
do que está acontecendo.
“Não entendo.”
“Pense nisso como um rio” disse o Doutor “sempre fluindo, sempre correndo. É
o tempo, e a TARDIS está pairando sobre o rio. Siga rio acima e podemos
mergulhar no futuro, de volta na direção oposta, e embora estejamos nadando
contra a maré, podemos encontrar nosso caminho para qualquer ponto no
passado.”
Cinder balançou a cabeça, descendo o último degrau.
“Vou acreditar na sua palavra” disse ela.
Navegar na TARDIS não tinha sido tão simples quanto “a primeira porta à
esquerda”, que na verdade levava a um pátio palaciano, cheio de oliveiras e
bancos de parque e completo com uma fonte de mármore esculpida para lembrar
uma mulher nua, despejando água de uma jarra. Aqui, pelo menos cinco outras
portas conduziam a salas contíguas. Ela experimentou um de cada vez,
descobrindo todos os tipos de ambientes bizarros: uma selva barulhenta,
inebriante com o cheiro de chuva fresca; um vasto aviário cheio de pássaros
coloridos cantando; um laboratório de química com bancos de madeira
antiquados, torneiras de gás e bicos de Bunsen, e estantes de livros forradas
com inúmeros frascos. Finalmente ela encontrou um quarto, evidentemente
ainda cheio com a desordem de um ocupante anterior. Cinder não tinha
absorvido a maior parte, simplesmente desabou na cama e caiu em um sono
longo e luxuoso.
Ao acordar, ela encontrou um par de jeans skinny preto e uma camiseta do
Greenpeace no guarda-roupa, embora ela não tivesse ideia do que o slogan
significava.
“Então qual é o plano?
“Ir para a Espiral de Tântalus” disse o Doutor. “A frota dos Senhores do Tempo
vai ter que se aproximar se pretendem implantar a Lagrima. É onde os
encontraremos. “
“E então? “Disse Cinder.
“E então vamos inventando à medida que avançamos,” respondeu ele. “Segure-
se!”
Ela fez o que ele disse, agarrando a borda do console enquanto ele mexia com
a TARDIS que voltava à vida. Os motores rugiram enquanto mergulhavam em
direção à Espiral de Tântalus. Em direção ao lugar que ela tinha uma vez
chamado de casa.
O Doutor deixara o teto sem opacidade, e Cinder observou enquanto a névoa
rodopiante do Vórtice do Tempo mudava repentinamente, dando lugar a um
nítido campo de estrelas.
“Agora, só temos que torcer para não atrair a atenção de nenhum Dal ...” O
Doutor parou, enquanto a TARDIS estremecia, como se apanhada por um golpe
de raspão.
“O que foi isso? “Disse Cinder.
O Doutor agarrou um botão do console e o girou em um círculo, fazendo com
que a visão através do dossel deslizasse vertiginosamente, oferecendo a eles
uma perspectiva alternativa do espaço local. Cinco TARDISes de batalha
brancas, semelhantes às que tinham visto no cemitério, mas eriçadas com uma
série de armamentos de aparência brutal, formaram um anel ao redor deles.
“Uma emboscada,” disse o Doutor, severamente. “Eles estavam esperando por
nós quando nos materializamos. Deve ter havido outro dispositivo de
rastreamento.” Ele olhou para Cinder. “Claro!” Disse ele, batendo a palma da
mão na testa. “Eu deveria ter visto.”
“Visto o quê? “Disse Cinder, olhando a variedade de TARDISes na tela.
“Você! É você!
Cinder deu um passo para trás, sentindo-se insegura.
“O que? O que eu fiz?”
O Doutor balançou a cabeça.
“Não, eles devem ter plantado o rastreador em você durante aquele negócio com
a sonda mental.”
Cinder não tinha certeza de que "esse negócio" descrevia adequadamente o
episódio torturante ao qual ela foi submetida por Karlax e o Governador. Ela
também não gostou da implicação de que eles de alguma forma ainda a estavam
usando para chegar ao Doutor. Ela não teve tempo para considerar isso, no
entanto, quando uma voz familiar estalou no link de comunicação.
“Muito perspicaz de sua parte, Doutor,” disse a voz fina e esganiçada.
“Karlax,” cuspiu o Doutor. “Eu devia saber. Com alguns amigos da CIA, sem
dúvida?”
“Naturalmente.” respondeu Karlax. “Devo dizer, Doutor, todos nós ficamos muito
impressionados com a maneira como você conseguiu enganar nossos guardas.
Eu entendo que sempre foi muito difícil manter você em uma cela.”
O Doutor olhou para Cinder com uma expressão que dizia “Eu avisei”.
“Ainda assim, pouco importa” continuou Karlax. “O Comandante Partheus em
breve entregará a Lágrima de Isha ao Olho. Você e sua companheira,
infelizmente, serão contados entre os bilhões de mortos.”
No monitor, Cinder viu uma das TARDISes de Batalha expelir o que parecia ser
uma rampa de torpedo.
Foi apontado diretamente para eles.
“Doutor,” disse ela.
“Eu sei. “Ele estava de costas para ela.
“Não, Doutor, eu realmente acho que você precisa...”
“Eu sei,” disse ele, com mais força.
“Então faça algo!”
Houve uma explosão de luz no final da rampa do torpedo quando a outra TARDIS
disparou. Em resposta, o Doutor caiu contra os controles e a TARDIS caiu,
despencando direto para baixo e deixando as cinco TARDIS de Batalha
penduradas em um círculo perfeito.
O torpedo nadou para o vazio, deixando um rastro de luz. Momentos depois,
houve um clarão que detonou inofensivamente no vácuo. Acima deles, o anel de
TARDISes se mexeu.
“Encontre algo em que se agarrar,” disse o Doutor. “Esta vai ser uma jornada um
pouco turbulenta.”
Houve uma sacudida repentina quando o Doutor manipulou os controles e a
TARDIS parou de cair livre e girou para o lado, girando em um saca-rolhas que
deixou Cinder com a sensação de que seu coração estava na boca e seu
estômago estava na cavidade torácica. Ela fechou os olhos, mas isso não fez a
sensação de giro ficar melhor.
Eles capotaram, caindo novamente - desta vez de cabeça para baixo - para evitar
a trajetória de outro torpedo.
O Doutor puxou uma alavanca e eles deram uma guinada, subindo em um
esforço para sacudir uma das TARDISes de Batalha que havia caído atrás deles,
cavalgando com força em sua cauda.
“Você sabe que está perdendo seu tempo” disse Karlax pelo link de
comunicação. “Pense nisso. Não é melhor ir com elegância, com dignidade,
sabendo que seu tempo acabou?”
“Isso soa como você, Karlax,” respondeu o Doutor. “Sempre disposto a desistir
quando as coisas ficarem difíceis. Se eu cair, vou cair lutando.”
“Assim seja “disse Karlax, cortando a conexão.
A Batalha da TARDIS atrás deles estava se aproximando deles. Estava bem
dentro do alcance para disparar suas armas, mas o Doutor estava
ziguezagueando de um lado para o outro, claramente tornando difícil para eles
acertarem o alvo.
“Fogo! “Berrou Cinder.
“Eu não posso!
“O que você quer dizer com não pode?” Ela disse, incrédula.
“Não temos armas” gritou o Doutor. O barulho dos motores guinchando estava
abafando todo o resto.
“Por que não?
“A TARDIS, ela não gosta delas,” respondeu o Doutor. Ele estava segurando o
console com as duas mãos, mas recostado, como se estivesse tentando puxar
fisicamente a nave em uma direção diferente.
“Não gosta delas!” Cinder teria colocado a cabeça entre as mãos se não
estivesse se segurando para sobreviver. “O que eu posso fazer?” Ela perguntou.
“Diga-me!”
“Apenas espere” disse o Doutor. “Vou tentar desmaterializar e fugir, ganhar um
pouco de tempo para nós.” Ele puxou os controles, assim que a TARDIS soltou
outro torpedo.
Desta vez, o Doutor não teve chance de deslizar para fora do caminho, e o
cilindro fino de prata bateu na lateral da guarita, detonando em um halo de
intensa luz branca.
A sala do console tremeu, fazendo Cinder cair sobre um joelho e, de repente,
tudo parou. Os motores suspiraram, as luzes diminuíram e ela podia dizer pela
vibração das placas do chão e a visão através do teto que eles pararam imediata
e completamente.
“O que foi isso?” Disse ela.
O Doutor bateu com o punho contra o console.
“Torpedo do tempo. Estamos temporariamente congelados em uma bolha de
estase. Não podemos nos mover.”
“Perfeito” disse Cinder. “Eu gostaria de ter ficado na cama.”
Enquanto eles observavam, uma das TARDISes de Batalha apareceu,
aproximando-se com a clara intenção de abordá-los.
“Isto deve ser Karlax” disse o Doutor. “Querendo se vangloriar.
“Não podemos impedi-lo de subir a bordo?” perguntou ela.
“Podemos tentar” disse o Doutor.
Cinder sentiu um movimento com o canto do olho e, uma fração de segundo
depois, a TARDIS de Batalha floresceu, detonando repentinamente, como se
tivesse sido atingida por um tiro por trás. A sala do console tremeu com o tremor
posterior da explosão. Ela não conseguia ver nada, nenhum sinal do que havia
causado a explosão, enquanto procurava apressadamente a vista.
A TARDIS arruinada parecia se desfazer no espaço diante de seus olhos, seu
interior se desdobrando como os que ela vira no cemitério, inchando até
preencher a visão inteira. Objetos flutuaram no vácuo: monitores quebrados,
trajes espaciais, cadeiras.
O Doutor mexeu no botão do console e a visão mudou. Uma formação de naves
pretas e elegantes havia enfrentado as quatro TARDISes restantes, e os dois
lados foram lançados em batalha, negociando tiros enquanto eles circulavam um
ao outro em uma dança rápida e violenta.
As naves negras pareciam ter surgido do nada.
“O que são eles?” Perguntou Cinder.
“Naves Dalek furtivas” disse o Doutor. “Eles não aparecem em nenhum sistema
de monitoramento dos Senhor do Tempo. Eles ficam à espreita no Vórtice do
Tempo como caçadores perseguindo a presa, então atacam o mais oportuno
momento.”
Uma das TARDISes pareceu pousar um míssil no flanco de uma das naves
furtivas, e ele detonou em uma explosão cintilante, rolando sobre a carapaça
negra da nave. A TARDIS tentou capitalizar em seu ataque, girando para um
segundo tiro, mas outra das naves Dalek passou, liberando uma rajada de
energia supercarregada, que destroçou a TARDIS, aniquilando-a em questão de
segundos.
“Nós estamos sentados, aqui” disse Cinder, com pânico crescente. “Você não
pode fazer algo?
O Doutor balançou a cabeça.
“Temos que esperar que eles fiquem felizes em lidar com os alvos móveis
primeiro” disse ele, embora ela tenha notado que suas mãos não se afastaram
muito dos controles.
Uma das naves furtivas explodiu em uma bola de fogo, pega em uma rajada
entre duas das TARDISes de batalha restantes, mas nunca seria o suficiente.
Simplesmente havia muitas naves Dalek. Cinder não foi capaz de conta-las, mas
o número estava em dois dígitos, mais do que o dobro dos Senhor do Tempos.
Eles foram superados em todos os aspectos.
Quase simultaneamente, ela viu as TARDISes restantes morrerem, suas
dimensões interiores repentinamente, dramaticamente expostas.
As palmas das mãos de Cinder suavam. Ela sabia o que viria a seguir. As naves
furtivas convergiriam para a TARDIS do Doutor e, em um momento, ela também
seria reduzida a nada além de uma carcaça inchada, vagando no vazio.
Ela observou uma das naves Dalek deslizar acima. O Doutor ligou um botão no
console e o motor ligou com um assobio.
“Pensei que você disse que estávamos congelados em uma bolha temporal.”
gritou ela.
O Doutor encolheu os ombros.
“Eu não vou cair nessa velha loucura de novo.” disse ele. “Eu atualizei a
blindagem.”
“Então ... você estava apenas ganhando tempo?”
“Precisamente” disse o Doutor, batendo com o punho nos controles. A TARDIS
subiu em uma velocidade incrível, batendo na parte inferior da nave furtiva.
A mira do Doutor não tinha sido bem certa, e eles o pegaram pela lateral, abrindo
um buraco enorme ao estourar. No monitor, ela viu a outra nave girar fora de
controle, uma massa retorcida de metal torturado. Jatos de gás subiram no vazio,
congelando instantaneamente para formar nuvens de gelo à deriva.
“Rápido! Tire-nos daqui” berrou Cinder. “Desmaterialize. Há muitos deles.”
O Doutor bateu no monitor com o dedo indicador.
“Há alguém ainda vivo lá.”
Ela deu a volta, ainda segurando o corrimão. No monitor, ela podia ver a carcaça
de uma das TARDISes devastadas. Uma pequena figura se contorceu em agonia
nas ruínas de uma sala de console.
“Certamente você não pode estar pensando ... “
“Oh, mas estou,” respondeu o Doutor. Ele puxou uma alavanca e a TARDIS se
desmaterializou por um breve segundo, formando-se novamente entre os
destroços da TARDIS de Batalha abatida. Naves furtivas estavam se
aproximando de todas as direções.
Cinder tentou entender o que estava acontecendo. De repente, havia destroços
por todo o chão: pedaços de coluna de coral quebrada, fragmentos de uma
parede cinza escura, metade de um console estilhaçado, ainda estalando
enquanto a eletricidade descarregava. Entre todos eles, aninhado em um poço
de cabos, estava um Senhor do Tempo.
Ele estava vestido com túnicas escarlates e solidéu, e estava segurando a
garganta com as duas mãos, lutando para respirar. Sangue brilhante borbulhava
de seus olhos, nariz e lábios, escorrendo pelo queixo.
Sua carne estava queimada e com bolhas, mas suas feições eram
inconfundíveis.
“É Karlax,” disse ela.
“Deixe-o confortável,” disse o Doutor.
“Mas eu ...” ela começou.
“Apenas faça! “Ele berrou, interrompendo-a.
A TARDIS tremeu enquanto girava para fora do caminho de outra rajada de
Dalek.
“Droga!” Disse o Doutor. Ele esmagou os controles e os motores gemeram,
transformando-os no Vortex.
“Caramba!” ele disse novamente.
Cinder estava de joelhos, segurando a cabeça de Karlax nas mãos. Ele estava
mal. Sua respiração estava saindo em goles curtos e ofegantes. A exposição ao
vácuo quase o matou, e mesmo agora, ela não tinha certeza se ele conseguiria.
Sua pele tinha adquirido um brilho estranho, que parecia enfraquecer e
desaparecer, como se a luz estivesse de alguma forma mudando sob a
superfície de sua carne.
Ela não tinha ideia do que fazer. Ela nem sabia se os Senhores do Tempo tinham
a mesma fisiologia dos humanos.
Cinder sentiu o Doutor por cima do ombro.
“Os Daleks? “Disse ela, sem olhar em volta.
“Eles não vão nos encontrar aqui “respondeu o Doutor. Ele se agachou ao lado
dela, colocando a mão na garganta de Karlax, sentindo o pulso. “Chegamos
tarde demais, “disse ele. “Ele já começou a se regenerar.”
Karlax tossiu e uma gota de sangue espesso e escuro escorreu de sua boca,
pingando em suas vestes.
“Ajude-me com ele” disse o Doutor. Ele deslizou as mãos por baixo dos braços
de Karlax e puxou-o para uma posição sentada, instigando uma rodada explosiva
de tosse. “Pegue os pés dele. “
Cinder fez o que o Doutor pediu, e eles o içaram, arrastando-se
desajeitadamente em direção aos degraus.
Karlax estava mole e mais pesado do que parecia. “Para onde o estamos
levando? Uma sala médica?”
“Não,” disse o Doutor. “A Sala Zero.”
“A Sala Zero?” Perguntou Cinder, sem fôlego, enquanto lutava para evitar que
as pernas de Karlax batessem no chão. O Doutor subiu os degraus, levantando
a cabeça e ombros de Karlax mais altos.
“Um lugar onde ele pode se regenerar em paz” disse o Doutor “e talvez mais
importante, onde ele estará fora do caminho. Tem uma porta com fechadura.”
“Por que você está ajudando ele?” Perguntou Cinder. “Depois de tudo o que ele
fez? Ele estava tentando nos matar. Ele não merece nossa ajuda. Devíamos tê-
lo deixado para morrer.”
“Quando nos conhecemos, em Moldox,” disse o Doutor, “você se lembra do que
estava fazendo?
Cinder franziu a testa.
“Lutando com Daleks, “disse ela.
“Não, depois disso, quando eu cheguei.”
“Eu não sabia se confiava em você” disse ela. “Eu ameacei você com minha
arma.
“Precisamente” disse o Doutor. “E eu não te deixei morrer.”
Cinder suspirou.
“Você não está me dizendo seriamente que ele foi mal interpretado? Doutor, ele
realmente tentou nos matar.”
“Seja como for, Cinder, todos merecem uma segunda chance. E Karlax aqui está
prestes a obter uma perspectiva totalmente nova.” Eles chegaram ao topo da
escada, e o Doutor os conduziu ao longo de uma passagem para uma porta. Ele
a abriu com um chute e eles carregaram Karlax para dentro.
A sala estava vazia, sem móveis. As paredes eram cobertas pelas mesmas
rodelas brilhantes que decoravam a sala do console. “Basta colocá-lo aqui,”
disse o Doutor. Eles o deitaram no chão. Desconcertantemente, sua pele pálida
estava brilhando ainda mais intensamente do que antes assim como suas mãos
e seu rosto.
“Isso é a regeneração?” Disse Cinder.
“Sim, está vindo” disse o Doutor. “É melhor deixa-lo sozinho. “Ele a conduziu
para fora da sala, tirando uma chave inesperadamente do bolso da calça e
trancando a porta atrás deles. “Pronto. “disse ele. “Isso vai mantê-lo ocupado por
um tempo. Agora, onde estávamos?”
“Prestes a evitar que uma frota de Senhores do Tempo cometa genocídio“ disse
Cinder.
“Ah, sim!” Disse o Doutor, como se tivessem acabado de lembra-lo de onde ele
havia deixado seus óculos de leitura.
“Melhor voltar para isso!

Capítulo Dezoito
Cinder assobiou enquanto ficava ao lado do Doutor, olhando para a tela do
monitor.
“Isso é um monte de TARDISes,” disse ela.
Eles emergiram do Vórtice nos limites externos da Espiral de Tântalus, e a
imagem na tela foi ampliada para fornecer a eles uma visão da enorme flotilha
dos Senhor do Tempo que estava rastejando continuamente em direção ao olho.
A escala disso era simplesmente demais para Cinder compreender. Quantas
naves haviam? Quinhentos, mil - era impossível dizer, mas eles preencheram o
espaço no monitor como um bando de gaivotas, seguindo seu líder com
determinação.
Nas bordas da vasta formação, discos Dalek esvoaçavam em esquadrões de
cinco ou dez, disparando para dentro e para fora, abatendo ocasionalmente uma
TARDIS, mas não conseguindo fazer qualquer dano significativo na armada. Ela
observou quando um punhado de TARDISes se libertou de sua formação,
disparando para enfrentar as embarcações inimigas.
“Parece que eles decidiram que a força bruta é a resposta” disse ela. “Eles vão
simplesmente entrar lá, não vão? Direto no Olho, com total desconsideração por
quantos deles não conseguirão voltar.
“Eles são soldados,” disse o Doutor, como se isso já fosse uma explicação
suficiente.
“Hesito em perguntar isso,” disse ela, “mas como diabos vamos impedi-los?
Quero dizer, nós nem mesmo temos armas, exceto um velho neutralizador Dalek
e um único canhão temporal.”
O Doutor estava inclinado para a frente, olhando atentamente para o monitor, o
nariz quase tocando a tela.
“Aquele ali” disse ele. Ele bateu na tela com a unha e, ao fazer isso,
obscurecendo o objeto da visão. “Essa é a TARDIS de Partheus. Aposto que é
onde encontraremos a Lágrima. Ele não confiaria em ninguém mais.”
Ele se recostou. A TARDIS para a qual ele estava apontando estava cercada por
um grupo de pelo menos vinte outras TARDIS de batalha, cada uma delas
fortemente armada.
“Nós não vamos chegar nem perto disso!” Disse Cinder.
O Doutor tocou nos controles e a imagem na tela mudou para uma série de
ícones de rolagem. Ele os estudou atentamente por um momento.
“Nós não vamos chegar perto disso,” disse o Doutor. “Nós vamos entrar nisso.”
O Comandante Partheus estava na ponte de sua TARDIS, examinando sua rota
para o Olho. Ele havia diminuído a opacidade das paredes e do teto, de modo
que teve a impressão de que estava em cima de uma grande parede cinza
vagando pelo vazio.
Em torno dele, as outras TARDISes se aglomeraram, mantendo sua formação
de batalha, enquanto mais longe o halo de um tiroteio violento mostrava onde as
naves em seu flanco esquerdo estavam mantendo o inimigo à distância.
À frente, o próprio Olho de Tântalus parecia fulmina-lo com raiva, avisando-os
para não prosseguir.
Tão longe na Espiral, a radiação do Olho estava afetando os sistemas de voo de
suas TARDISes, o que significa que eles eram incapazes de simplesmente entrar
e sair do Vórtice do Tempo, e tinham que fazer sua abordagem final no espaço
real. Isso deixou Partheus se sentindo exposto e inquieto, e vulnerável a ataques.
Ele olhou para cada um dos três homens estacionados nos consoles.
“Como está? “Disse ele.
“Temos um caminho livre, comandante,” respondeu um dos homens, seu
tenente. “Mais alguns anos-luz e estaremos dentro do alcance para implantar.”
“Excelente,” disse Partheus. “Segure a linha.”
Mais e mais Daleks estavam fluindo para fora do Vórtice, naves furtivas e discos
voadores, e ao redor deles, a batalha era travada.
A TARDIS de Partheus, no entanto, aninhada no centro de um amontoado
defensivo e permaneceu sem ser atacada.
Ele coçou a barba, desejando que a nave continuasse.
Ele estava prestes a pedir um relatório das outras naves, quando um som
estridente abafou seus pensamentos.
“Que diabo?” Ele berrou. “Relatório, agora!”
Seu tenente se virou, sua expressão em pânico.
“Não sei, comandante. Diz que temos uma aproximação.”
“Uma aproximação do quê?” Gritou Partheus. “Um míssil? “
“Não,” respondeu o tenente. “Uma nave do tempo.”
À direita de Partheus, o ar parecia tremular, enquanto o intruso tentava se
materializar, sua aparência acompanhada por um gemido profundo e ofegante.
Partheus procurou sua pistola.
“É uma TARDIS, Comandante” disse um dos outros homens. Partheus não
conseguia se lembrar de seu nome. Ele teve problemas para lembrar qualquer
um de seus nomes. Eles nunca sobreviveram por tempo suficiente para fazer
isso valer a pena.
“UMA TARDIS? Mas isso é loucura! Ele vai nos separar. Aniquile eles.” A outra
nave estava claramente lutando para conseguir uma aproximação, gaguejando
enquanto tentava emergir do Vórtice do Tempo. “Você não pode parar?” Ele
grunhiu.
“Estou tentando, comandante,” chamou o tenente. “Os escudos estão
configurados para a potência máxima.”
Ouviu-se um sino repentino e estridente, e um alto gabinete azul marcado
"CABINE DE POLÍCIA" estava parado na sala do console de Partheus.
“Tarde demais” disse ele, sua voz cheia de ira. “Eles estão aqui.”
“É isso, então” disse Cinder.
“É isso,” respondeu o Doutor, dirigindo-se para a porta. Ele parou e olhou para
trás. Sua expressão era severa. “Traga sua arma” disse ele “mas sob nenhuma
circunstância você deve realmente usá-la.”
Cinder o levantou do chão enquanto trotava atrás dele.
Seu primeiro pensamento, quando ela emergiu da TARDIS, foi que algo tinha
dado horrivelmente, inexplicavelmente errado, e que em vez de aterrissar dentro
da outra TARDIS como o Doutor pretendia, eles estavam vagando no vácuo
aberto do espaço.
Em pânico, ela olhou da esquerda para a direita, procurando uma maneira de se
proteger, mas tudo que ela podia ver era a vista aberta do espaço e o inferno
furioso da batalha entre os Senhores do Tempo e os Daleks.
Ela se engasgou, e então percebeu que ainda estava respirando, e que a
gravidade de alguma descrição ainda a mantinha no chão. Eles estavam dentro
de uma TARDIS.
Após o choque inicial, sua mente começou a processar o resto do que estava
acontecendo. Eles estavam parados na sala do console de outra nave, mas era
tão fundamentalmente diferente da que pertencia ao Doutor, que a princípio não
havia notado. Havia três consoles achatados hexagonais, de cor cinza escuro e
aparentemente idênticos. Ao contrário do Doutor, eles não eram cobertos em
todos os tipos de alavancas e engenhocas improvisadas e pareciam lisas e
manufaturadas, ao invés de orgânicas. Entediante, era a palavra certa para isso,
pensou Cinder.
A sala em si era cavernosa, maior do que a do Doutor por uma magnitude de
três ou quatro vezes. As paredes e o teto foram tornados transparentes para que
o Comandante Partheus pudesse ver melhor como sua frota estava se saindo
contra os Daleks.
Havia três Senhores do Tempo masculinos, um presente em cada um dos
consoles. Eles estavam vestidos com o mesmo uniforme vermelho e branco que
os guardas do castelo no Capitólio.
O próprio Comandante Partheus estava em uma plataforma elevada, olhando
carrancudo para eles. Ele estava segurando uma pistola na mão esquerda. Ele
era um sujeito alto e corpulento, com uma espessa barba negra. Ele estava
vestindo vestes preto com um solidéu vermelho.
“Você!” Disse ele. Sua voz era estrondosa. “O que você pensa que está fazendo?
Esse seu pequeno truque pode resultar em um Corredor do Tempo, aniquilando
nós dois.”
O Doutor encolheu os ombros.
“Você realmente acha que eu seria tão imprudente?” Ele sorriu.
Partheus lançou ao Doutor um olhar de pura descrença.
“Acho que você é o único que pode” disse ele. “Pensei que você estivesse em
uma cela em Gallifrey?
“Assim como Rassilon,” disse o Doutor “mas mesmo o Lorde Presidente não
consegue o que quer o tempo todo.”
Partheus ergueu sua pistola.
“Sinto muito, Doutor. Eu não quero fazer isso, mas você está me colocando em
uma posição terrível.”
“Não é uma posição tão terrível quanto a daqueles que você está prestes a
matar” respondeu o Doutor.
“Se você tentar qualquer coisa ...” continuou Partheus.
Cinder tossiu.
“Eu acho que não,” disse ela, sacudindo a arma de seu quadril.
Os outros três homens pareciam decididamente desconfortáveis, mas
permaneceram onde estavam perto de seus consoles. O Doutor foi até o primeiro
deles, olhou para os controles e, em seguida, balançou a cabeça. Ele contornou
o homem e foi até o próximo console, repetindo o procedimento.
Evidentemente, ele viu o que queria ali, quando estendeu a mão e começou a
apertar botões.
O outro homem, que Cinder imaginou ser um piloto, parecia indignado.
“O que você está fazendo?
“Estabelecendo um novo curso.” disse o Doutor. “Afinal, isso é um sequestro.”
“Mas você não pode!” O homem se virou, tentando interceptar o Doutor.
“Afaste-se” disse o Doutor. “Isso não é da sua conta.”
O homem continuou a tentar empurrar o Doutor para fora do caminho.
“Acredite em mim quando digo que realmente sinto muito por isso,” disse o
Doutor resignado.
“Que...”
Ele se virou e deu um golpe inteligente de direita, que acertou a mandíbula do
homem e o jogou no chão em uma pilha inconsciente. O Doutor apertou sua mão
e balançou os dedos, puxando uma expressão de dor.
“Oh, eu realmente não gosto dessa parte,” disse ele. “Eu gostaria que as pessoas
apenas escutassem.”
Ele se abaixou repentinamente, esquivando-se para a direita, quando um raio de
energia passou por sua mão esquerda, queimando uma depressão escura e
fumegante no console. Cinder se virou para ver Partheus segurando sua arma
estendida.
“Um tiro de aviso, Doutor” disse ele. “Para que você saiba que estou falando
sério.
O Doutor foi até Partheus e arrancou a pistola de sua mão, jogando-a longe,
fazendo-a cair no chão perto do pé de sua própria TARDIS.
“Estou tentando ajudar você, Partheus. Acredite em mim - este é um fardo com
o qual você não quer viver. “
“No canto” disse Cinder para as outras duas, acenando com a arma, mas
mantendo Partheus coberto.
“Não se preocupe,” disse o Doutor. “Isso não vai demorar muito. Apenas um
breve vislumbre do futuro.” Ele começou a girar os botões e a manipular os
controles, seus dedos dançando sobre as teclas.
Cinder ouviu o gemido distante dos motores respondendo aos seus cuidados.
Era um som totalmente diferente daquele feito pela TARDIS do Doutor - mais um
som sutil do que um rugido elefantino.
“Bem, não posso dizer que penso muito na sua TARDIS, Partheus,“ disse o
Doutor. “Falta ... caráter.”
“Você vai pagar por isso com sua vida, Doutor, “disse Partheus. “Você sabe
disso, não é?”
O Doutor encolheu os ombros. Ele nem mesmo se virou para olhar para o
homem.
“Minha vida em troca de bilhões de outras pessoas “ disse ele. “Não são chances
ruins, eu suponho. Já vivi o suficiente. “Ele olhou por cima do ombro para o
Comandante. “Você já considerou o que está prestes a fazer?”
“Não me trate com condescendência“ retrucou Partheus. “Claro que estou ciente
da gravidade da situação. A meu ver, porém, temos pouca escolha. Os Daleks
devem ser parados.”
“Há mais de uma maneira de esfolar um gato“ disse o Doutor. Ele fez uma careta,
olhando para Cinder.
“Nunca gostei dessa expressão. Por que alguém iria querer fazer isso?”
Ele estava em seu elemento novamente, Cinder percebeu. Ela podia ver no
brilho infantil em seus olhos.
Ele estava se divertindo. Ela se perguntou se era assim que ele seria o tempo
todo, se não fosse pelo peso da guerra caindo sobre ele. Estar perto dele quando
ele era assim – ela não pode deixar de sorrir.
A visão ao redor deles havia mudado. Eles não estavam mais em qualquer lugar
nas proximidades do Olho de Tântalus, ou da frota de TARDISes de batalha,
travados em combate com discos inimigos.
Aqui, eles ficaram pendurados sozinhos no vazio. Ao redor deles, a escuridão
consumia tudo, com apenas um punhado de estrelas ainda brilhando na noite
tranquila do espaço. Todos, exceto a carcaça maciça e inchada de um gigante e
vermelho sol moribundo, que preencheu a tela de visão frontal. O núcleo da
estrela queimou suavemente; uma chama morrendo nas últimas brasas de um
fogo que ardeu por milênios. A camada externa era pálida e fina, quase
transparente.
“Onde você nos trouxe?“ Perguntou Cinder.
“Até o fim do universo“ disse Partheus. “Até o último e persistente momento antes
que as estrelas finais se apaguem e o universo se contraia.”
“Vejo que você tem pelo menos um pouco de poesia em sua alma“ disse o
Doutor. “Talvez você não seja irredimível, afinal.”
“Não posso deixar você fazer isso, Doutor, “disse Partheus. “A Lágrima é nossa
última esperança.”
“Encontraremos uma maneira“ disse o Doutor. “Não acabou. Não pode se
resumir a isso.“ Ele mudou-se para um dos outros consoles e bateu em uma
sequência. “Lá. A Lágrima está preparada.”
“Você vai atirar no coração daquela estrela?“ Disse Cinder.
O Doutor acenou com a cabeça.
Com um rugido repentino, Partheus se lançou da plataforma em direção ao
Doutor. Cinder lutou contra a vontade de apertar o gatilho de sua arma. Afinal de
contas, o Doutor disse a ela para não atirar em nenhuma circunstância e, se o
fizesse, arriscava-se a acertar no Doutor. Ao mesmo tempo, ela o manteve
travado em Partheus enquanto ele colidia com o Doutor no console.
Ambos os homens caíram sobre os controles e a TARDIS listada à direita em
resposta.
“Afaste-se dos controles!“ Partheus berrou. Ele agarrou o Doutor pela cintura e
puxou-o para longe do console. Com imensa força, ele jogou o Doutor no chão,
onde ele caiu de costas, com uma expressão indignada.
Ele se levantou e, sem perder o ritmo, avançou contra Partheus, com a cabeça
baixa e para o lado, levando o outro Senhor do Tempo no peito com o ombro e
mandando os dois disparando na direção oposta. Partheus bateu nas costas do
Doutor com os punhos, e o Doutor rolou para longe dele, lutando para se libertar.
Cinder olhou para os outros dois Senhor do Tempos, que ainda estavam
encolhidos no canto. Ela mostrou a eles sua arma, apenas para lembra-los de
ficar fora dessa briga.
O Doutor levantou-se de um salto enquanto Partheus ainda lutava para tirar seu
corpo do chão.
“Olha, Partheus. Isso tudo é terrivelmente impróprio. Por que nós não ...“ O
Doutor parou quando Partheus chutou seus tornozelos, tirando seus pés de
debaixo dele. Ele caiu de novo, mal evitando quebrar sua cabeça na borda do
console. Ele gemeu enquanto rolava para se sentar.
Cinder estava farta. Ela avançou violentamente.
“Qual botão é?
“O vermelho“ suspirou o Doutor.
Cinder deu de ombros. Ela supôs que isso deveria ser óbvio, realmente. Ela
bateu o punho contra o botão.
“Sua garota estúpida!“ Rugiu Partheus. Os dois homens estavam se levantando,
espanando a poeira.
Houve um baque mecânico sob seus pés, seguido por uma série de sons como
grampos sendo liberados. Partheus cambaleou até o console, apertando os
botões.
“É tarde demais. A sequência foi iniciada. A Lágrima está sendo implantada.”
Houve um estrondo de ignição e então, enquanto observavam, um foguete
disparou silenciosamente, aparentemente sob seus pés, em direção ao coração
do Gigante Vermelho.
O foguete era pequeno e Cinder não pôde deixar de pensar que o que havia sido
descrito para ela como uma arma tão devastadora era, na verdade, um tanto
anticlimático. Talvez, como uma TARDIS, a arma do Senhor do Tempo era maior
por dentro.
Todos eles ficaram em silêncio atordoado, esperando para ver o que aconteceria
quando a lágrima caísse na estrela e começasse a se desfazer.
“Eu sugiro que façamos uma retirada estratégica“ disse o Doutor.
Partheus, ainda parado ao lado dos controles, digitou uma série de comandos e
a TARDIS começou a se afastar lentamente da estrela.
O foguete agora era uma partícula minúscula, quase invisível contra a aurora
inchada do gigante celestial.
“Nada está acontecendo “ disse Partheus.
“Continue assistindo,“ disse o Doutor, e um segundo depois Cinder percebeu a
leve sugestão de uma sombra no centro da estrela. Enquanto ela observava,
começou a crescer continuamente de tamanho, inchando como um
derramamento de óleo. A mancha negra continuou a se espalhar, ganhando
impulso, atraindo e consumindo a tênue luz vermelha da borda externa da
estrela.
“É o colapso da estrela“ disse o Doutor, “arrastando tudo em direção a uma
singularidade gravitacional.”
“Você é um tolo, Doutor,“ disse Partheus. “Você jogou fora a melhor chance que
tínhamos de derrotar a ameaça Dalek. “Ele parou e estava ajudando seu tenente
a se levantar do chão. “Eles vão fazer você pagar por isso.”
“Não duvido,“ disse o Doutor calmamente. “Mas isso não me torna errado.”
A última luz vermelha agora havia se apagado para o preto, e a estrela em
colapso estava começando a se arrastar para a matéria circundante. O piso da
TARDIS começou a vibrar enquanto os motores lutavam contra a tração.
“Hora de ir“ disse o Doutor.
Partheus havia recuperado sua pistola e estava apontando para o Doutor.
“Eu deveria matar você agora“ disse ele “por todas as vidas que você acabou de
condenar.”
O Doutor encontrou seu olhar, seus olhos desafiadores.
“Bem, então,“ disse ele. “Faça se quiser. Acabei de evitar que você se tornasse
um assassino, mas se você ainda está pensando nisso ...”
A resolução de Partheus pareceu vacilar.
“Vá“ disse ele. “Saia da minha nave”
Sem dizer nada, o Doutor virou as costas e caminhou em direção a sua própria
TARDIS. Cinder o seguiu, mantendo sua arma apontada para Partheus, mas ela
poderia dizer que ele não iria lutar mais.
O Doutor destrancou a TARDIS e os dois cruzaram a porta.
Cinder deu um suspiro de alívio, largando a arma quando a porta se fechou atrás
deles.
“Conseguimos“ disse ela. “Nós realmente conseguimos.”
O Doutor sorriu.
“Sim, suponho que sim. Mas temo que nossos problemas ainda não tenham
acabado. Ainda temos que lidar com os Daleks, sem mencionar um bando de
Senhores do Tempo furiosos, uivando pelo meu sangue.”
“O que você vai fazer a respeito?“ Disse Cinder.
“Só há uma coisa a fazer“ disse o Doutor. “Vamos voltar para Gallifrey.”
“O quê! “Disse Cinder. “Você realmente é louco.”
O Doutor riu.
“Eu gosto de pensar assim.”
Capítulo Dezenove
A TARDIS se materializou em um penhasco acima de uma paisagem desolada
e selvagem.
Depois de um momento, a porta se abriu e Cinder emergiu, se preparando contra
a mordida do vento. Seu cabelo chicoteou em seu rosto, seus olhos
lacrimejaram, e ela se viu envolvendo os braços ao redor de seu corpo, tentando
reter o calor.
Ela ouviu o Doutor fechar a porta da TARDIS atrás dela e olhou em volta para
vê-lo parado ali, observando a charneca abaixo deles. Até onde a vista
alcançava, campos de grama semelhante a palha e urze, pontuada por um grupo
ocasional de árvores, dominava a vista. O céu era de um azul claro e nítido,
pontilhado de nuvens.
“Pensei que você tivesse dito que voltaríamos para Gallifrey? “Disse ela.
“Ah“ respondeu o Doutor. “Sim, devo explicar.”
Cinder ergueu uma sobrancelha expectante, colocando as mãos nos quadris.
“Nós vamos voltar?”
“Este é Gallifrey “ disse ele. “Pelo menos, em certo sentido. É um pequeno bolsão
de vida selvagem Gallifreyana, isolado em uma bolha temporal. Os Senhor do
Tempos a conhecem afetuosamente como a Zona da Morte. “Ele sorriu.“ Lugar
bastante inóspito, realmente “ disse ele.
“Maravilhoso“ disse Cinder. “A Zona da Morte.“ Ela bateu os pés, sentindo-se
exposta lá na encosta. “Lembre-me por que estamos aqui?”
“A Zona da Morte costumava ser o lugar onde os azarados participantes eram
cooptados para jogar o Jogo de Rassilon, colocados em uma batalha de vida ou
morte contra uma variedade de espécies alienígenas, retiradas à força de seus
habitats naturais“ disse o Doutor, ignorando a pergunta dela.
“E aqui estou eu pensando que os Senhores do Tempos eram os mocinhos “
disse Cinder sarcasticamente.
“Foi há muito tempo, na primeira Era de Rassilon. Ele construiu sua tumba aqui.
“ O Doutor se virou no local, apontando para uma torre negra à distância,
projetando-se da terra ao pé de uma montanha. “Pronto“ disse ele. “A Torre
Negra.”
“Seu túmulo?“ Disse Cinder. “Mas ele não está morto. Eu o conheci. Tanto
quanto eu gostaria de não ter feito.”
“É complicado,“ disse o Doutor. “Rassilon é essencialmente imortal. Nos tempos
antigos, ele abandonou a forma corpórea e por milênios residiu aqui em sua
tumba, adorado como um rei antigo. Ele foi ressuscitado nos primeiros dias da
guerra, no entanto, quando os Senhor do Tempos perceberam que precisavam
de um tipo diferente de líder.
“Posso ver que isso fez muito bem a eles“ disse Cinder.
“Exatamente“ respondeu o Doutor. Ele parecia abatido.
“Você ainda não respondeu à minha pergunta? “Disse ela.
“Que pergunta?”
“Por que estamos aqui?”
“Estamos aqui para fazer uma fuga“ disse o Doutor. “Rassilon tem ... alguém
preso na Torre. Alguém de cuja ajuda precisamos. Seu nome é Borusa. Vamos
ajuda-lo a escapar. “
“Você não poderia ter nos estacionado um pouco mais perto? “Disse Cinder,
soprando nas mãos em concha.
O Doutor balançou a cabeça.
“Esse é o problema com a Zona da Morte. A menos que você tenha acesso ao
dispositivo transmat nas câmaras do Alto Conselho, você tem que fazer a jornada
pela selva para chegar perto da Torre. É uma ressaca dos jogos, mas também
serve como excelente proteção para Rassilon e o que quer que ele queira fazer
em sua velha tumba.”
Cinder concordou com a cabeça.
“Bem, vamos ver se podemos descer até lá,“ disse ela, caminhando para a outra
borda do penhasco e olhando para baixo. Quando ela viu o que estava ao pé do
penhasco, ela emitiu um som que estava em algum lugar entre um grito e um
guincho de terror.
“O que é? “ Chamou o Doutor, correndo para o lado dela.
“Isso “ disse ela, apontando a coisa na base da colina. Uma enorme criatura
parecida com um lagarto estava descansando na urze, mastigando alegremente
a flora local. Tinha pelo menos vinte metros de comprimento, quatro patas
atarracadas de elefante e um pescoço comprido e sinuoso. Sua pele era verde
e seu dorso adornado com escamas de armadura espessa e quitinosa. A cabeça
era pequena, com olhos negros e redondos e uma mandíbula cheia de dentes
afiados e serrilhados. Sua cauda balançava despreocupadamente de um lado
para o outro, rasgando a vegetação rasteira.
“O que é isto?”
“Uma besta primitiva “ disse o Doutor “do passado obscuro e distante de
Gallifrey. Os Senhores do Tempos pararam de pegar alienígenas incautos há
muitos anos, mas isso claramente não os impediu de interferir em seu próprio
passado. Esta é uma criatura fora do tempo, uma espécie extinta há muito tempo
antes que os Senhores do Tempos andassem no planeta.”
Cinder olhou para o lagarto gigante, que ainda mastigava serenamente as folhas
espessas de uma árvore caída.
“Desde que ele não tenha irmãos carnívoros maiores, “ disse ela.
“Ah ... “ disse o Doutor novamente.
Cinder se virou para ele.
“Sério? “ Disse ela.
“Você não deve se incomodar indevidamente “ respondeu ele. “Eles são grandes
o suficiente para que os veríamos chegando com bastante tempo. É com as
formigas carnívoras que você precisa estar atento. Agora eles realmente podem
dar uma mordida nojenta.
Cinder olhou para as botas aninhadas entre as urzes e imediatamente começou
a coçar as pernas. O Doutor riu, ela se virou e bateu em seu braço com força.
“Você é incorrigível “disse ela, permitindo que um sorriso surgisse em seu rosto.
Afinal, um pouco de leviandade era exatamente o que ela precisava.
“Então, o que há de tão especial nesse personagem Borusa? Como ele será
capaz de nos ajudar contra os Daleks?
O Doutor parecia envergonhado.
“Borusa pode ver o futuro “ disse ele “e o passado. A teia de todos os tempos.
Toda e qualquer possibilidade, como se relacionam, como toda decisão causa
uma fratura no universo, abrindo novos caminhos no tempo. O Vórtice do Tempo
flui por sua mente. Rassilon usa Borusa para navegar nas linhas do tempo, para
discernir o curso de ação mais eficaz para suas ofensivas contra os Daleks.
“Ele nasceu assim? “Disse Cinder.
Eles estavam marchando por um campo vazio, suas botas batendo na grama
alta a cada passo. Uma rajada ocasional ameaçava derrubá-los, mas até agora
não havia sinais de qualquer animal carnívoro e, felizmente, nenhuma formiga.
“Não “disse o Doutor. “Ele foi feito assim. Sua linha do tempo foi retro” projetada.
Ele foi forjado por Rassilon em uma tentativa de encontrar uma solução para
acabar com a guerra.
Cinder não entendeu muito bem as implicações disso, então manteve seu próprio
conselho. Como você faz a retroengenharia de uma pessoa? O tempo, ela
supôs, diria.
“Então, esse seu amigo, ele vai nos dizer como derrotar os Daleks?
“Por assim dizer, “disse o Doutor. “Vamos leva-lo para o Olho de Tântalus. Ele
vai nos ajudar a mudar o futuro.
“Certo“ disse Cinder “Claro. No olho. Isso faz muito sentido. “Ela olhou para a
Torre, aparecendo à distância.”
De algum lugar próximo, ouviu” se o som de uma sirene de nevoeiro “ a trombeta
de uma fera enorme e abandonada. Os olhos de Cinder se arregalaram de
pânico.
“Não se preocupe, “disse o Doutor. “É apenas mais um dos amigáveis, um
herbívoro como o que vimos antes, chamando seus parentes.
Cinder deu um suspiro de alívio.
“Por que estaria fazendo isso? “ Disse Cinder. “Uma chamada de
acasalamento?”
O Doutor balançou a cabeça.
“Não, “ disse ele, com um encolher de ombros. “Provavelmente mais um avi...
“Ele parou, olhando para Cinder, realização em seus olhos. “Ah. Suponho que
foi bem perto, não foi?”
Houve um rugido estrondoso que pareceu sacudir a terra sob seus pés. Cinder
sentiu as pernas tremerem. Os cabelos de sua nuca se arrepiaram.
Atrás deles veio o estrondo de um passo tremendo, seguido por outro, depois
outro, aumentando o ritmo. Cinder engoliu em seco, enraizada no lugar. A
expressão no rosto do Doutor era de uma surpresa assustada.
Lentamente, ela virou a cabeça.
A criatura era como algo nascido do pesadelo de uma criança. Era titânico, com
o dobro do tamanho de um hab-bloc em Moldox e ainda mais feio de se olhar.
Ele se erguia sobre duas patas traseiras atarracadas, com uma cauda curta e
gorda arrastando-se ao longo do solo para se equilibrar. Onde ela esperava que
duas patas dianteiras se projetassem de cada lado de seu peito, a besta tinha
asas curtas e incapazes de voar, cobertas por penas felpudas roxas e brancas.
Sua cabeça maciça era formada principalmente de dentes, contidos em uma
fenda escancarada de uma boca. Acima disso, uma fileira de quatro olhos
redondos piscou em rápida sucessão. No momento, todos os quatro estavam
fixos em Cinder e no Doutor quando este veio correndo pelo campo em direção
a eles.
“Pensei que você disse que o veríamos com bastante tempo “ disse Cinder.
O Doutor encolheu os ombros.
“Eu estava tentando fazer você se sentir melhor “disse ele. Ele a agarrou pelo
braço. “Vê aqueles penhascos rochosos ali? “Cinder concordou com a cabeça.
“Corre!
Cinder correu com tudo o que valia a pena. Os músculos de suas coxas
queimaram enquanto ela mergulhava na terra irregular em direção à face do
penhasco. Ela estava a passos largos do Doutor, que, apesar de sua
surpreendente agilidade, simplesmente não conseguia acompanhar.
A besta saltitante avançou atrás deles, suas asas bizarras e incapazes de voar
batendo animadamente enquanto corria.
Fios de baba escorriam de suas mandíbulas aterrorizantes.
O pé de Cinder prendeu-se em uma raiz ou em um pedaço irregular de grama e
ela caiu, jogando as mãos para fora e batendo na argila dura e seca, fazendo
seu pulso ralar. Ela imediatamente começou a rolar, recusando-se a permitir que
isso interrompesse seu ímpeto, em um movimento ágil saltou de pé e continuou
sua corrida frenética para se proteger.
Atrás dela, a besta rugiu, um grito primitivo e estrondoso que a atingiu como um
soco na barriga. Várias vezes no passado, ela tinha ouvido o som de um tiro ou
uma mina explodindo descrito como “Ensurdecedor” e ela nunca tinha realmente
pensado muito no que um som ensurdecedor poderia realmente ser.
O barulho que saiu da besta, no entanto, foi - literalmente - isso. Isso deixou seus
ouvidos zumbindo, como se alguém tivesse acabado de enfiar bolas de algodão
neles, e afogou o mundo.
Tudo parecia hiper-real, como um sonho. Ela estava realmente correndo por um
campo em um planeta distante, perseguida por uma criatura carnívora análoga
a um dinossauro?
A face do penhasco estava subindo para ela, preta e como uma laje, uma parede
em todo o mundo. Ela percebeu com horror que não tinha ideia do que deveria
fazer quando chegasse lá. Ela era efetivamente correndo em direção a um beco
sem saída. A criatura os prenderia contra a parede sem ter para onde ir.
“Doutor!“ Ela lamentou, sabendo muito bem que não seria capaz de ouvir a
resposta dele.
Os passos da criatura estavam se aproximando, jogando-a fisicamente no ar a
cada passo estrondoso. Sua audição estava começando a voltar em uma série
de episódios de gagueira e desorientação.
Ela começou a desacelerar.
Ela alcançou o sopé da encosta escarpada da montanha, olhando da esquerda
para a direita. Tudo o que ela podia ver era uma pedra solitária, situada entre
uma pilha de pedras soltas. O Doutor pretendia que eles se protegessem por
trás disso?
Ela o sentiu de repente agarrar seu pulso e, surpresa, permitiu que ele a puxasse
para longe, correndo paralelo à parede. A criatura tentou diminuir seu ritmo e,
incapaz de parar seu ímpeto, derrapou lateralmente na face da rocha.
Cinder olhou por cima do ombro enquanto corria e viu que ele não havia sido
dissuadido, pois continuou a cambalear atrás deles, balançando a cabeça de um
lado para o outro.
“Aqui! “Chamou o Doutor, apontando para uma fissura estreita na rocha. “Entre!”
“Lá dentro? “Gritou Cinder.
“Apenas faça! “Gritou o Doutor, soltando o braço dela e empurrando-a na direção
da grande fenda. Ela correu em direção a ele, virando-se de lado para que
pudesse se contorcer, na esperança de que se alargasse assim que ela entrasse
para criar um espaço no qual eles pudessem se abrigar até que o monstro fosse
embora.
As pedras eram irregulares e arranhadas dolorosamente em suas costas e mãos
quando ela forçou sua entrada.
Através da abertura estreita, ela podia ver o Doutor, recuando em sua direção,
acenando com sua chave de fenda sônica para a criatura. Não parecia estar
surtindo nenhum efeito.
“Doutor! “Ela gritou.
“Já vou “disse ele por cima do ombro.
Ele desapareceu de vista por um momento, e então ele estava na entrada,
forçando seu caminho atrás dela. A criatura rugiu novamente, batendo a cabeça
contra a face do penhasco, como se tentasse abrir caminho para chegar até eles.
Bufando, ele abaixou a cabeça até a fenda, espiando com seus múltiplos olhos
piscando. Ele podia vê-los se contorcendo na fenda na rocha, e não estava feliz.
Ele bufou novamente, enviando gotas de cuspe profundamente na fenda,
respingando no rosto e no cabelo de Cinder. Ela fez um som de nojo ao tentar
enxuga-lo, e só conseguiu espalhar na bochecha. Rosnou para eles, e o sopro
de seu hálito era quente e fedorento com o fedor de carne podre.
“Estaremos seguros aqui, “disse o Doutor. “Podemos esperar aqui até que
acabe. “Ele colocou uma mão tranquilizadora em seu ombro. Ela olhou para ele.
Ele estava parado a pelo menos um metro de distância, ainda tentando negociar
para entrar na caverna, os ombros pesando a cada respiração. Então, de quem
era a mão ...?
Cinder se torceu freneticamente, pegando o outro ombro em um afloramento de
rocha e gritando de surpresa assustada para o homem parado atrás dela. Um
homem de quem ela não tinha certeza se era mesmo um homem.
Ele parecia estar vestido com mantos de linho rudemente trançados e era magro
e de pele clara. Seu rosto, no entanto, era quase impossível de focar. As feições
cintilaram e alteraram enquanto ela observava, como se um rosto estava se
transformando em outro, e depois em outro, e depois em outro, travado em um
ciclo constante de mudança. Mais, parecia brilhar com uma luz âmbar suave,
como se impregnado de uma energia estranha e bruxuleante, semelhante à
maneira como o rosto de Karlax começou a brilhar, pouco antes de o Doutor
explicar que o Senhor do Tempo estava prestes a se regenerar.
Isso era diferente, no entanto. Era como se o homem não estivesse realmente
lá, como se seus traços fossem fantasmagóricos e incorpóreos, apesar do rosto,
ela podia sentir o peso da mão dele em seu ombro. Ela não conseguia ler
nenhuma expressão em seus rostos. Tudo estava muito fluido. Ela não tinha
ideia se ele pretendia prejudica-la ou não.
“Está tudo bem, “disse o Doutor atrás dela. “Ele não vai te machucar.
O recém-chegado retirou a mão e recuou lentamente pelo caminho por onde
viera, mais fundo na caverna.
Agora que tinha a atenção deles, acenou silenciosamente para que o seguissem.
“O que é ele? “Sussurrou Cinder.
“Ele é um Senhor do Tempo, “disse o Doutor, sua voz carregada de tristeza.
“Um Senhor do Tempo? “
“Sim. Lembra que eu te contei sobre Borusa?
Cinder concordou com a cabeça.
“É ele?
“Não, não é ele, mas é assim que ele é agora. Esta pobre alma deve ter sido um
dos experimentos anteriores de Rassilon, lançado na Zona da Morte quando o
experimento falhou.”
“Que experiência? Você não está fazendo sentido “disse Cinder.
“Rassilon, assim como os Daleks, tem brincado com a evolução do Senhor do
Tempo, escolhendo assuntos e retrocedendo sua linha do tempo pessoal,
alterando sua composição genética para que eles evoluam para algo mais. Para
isso. “O Doutor acenou para que ela descesse o túnel, instando-a a seguir o
meio-homem estranho.
“Qual é o problema com o rosto dele? “Disse ela.
“Essas são todas as suas encarnações passadas e futuras “disse o Doutor. “Os
rostos diferentes que ele teria usado. Eles estão presos em um ciclo de fluxo
constante. Ele não é nem uma nem outra das pessoas que poderia ter sido. Ele
está travado em um estado de metacrise constante entre os rostos, sua mente
exposta à energia crua do Vórtice do Tempo.
Cinder não sabia o que dizer. Parecia horrível, e ela ainda não tinha certeza se
podia confiar no estranho mutante Senhor do Tempo, oferecendo-se para
conduzi-la mais fundo em sua caverna. Suas escolhas, no entanto, pareceram
estar entre ele e o gigante furioso que ainda estava andando do lado de fora, na
esperança de comê-la. Ela supôs que não era escolha. Ela foi atrás dele, o
Doutor seguindo atrás.
Em poucos metros, a cavidade se alargou e a sensação nauseante de
claustrofobia que ameaçava dominar Cinder começou a se dissipar. Ela foi capaz
de se virar e andar normalmente. Distante, guiada pelo brilho suave da carne do
meio-homem, ela podia ver que a fenda na rocha se abria em um sistema de
cavernas totalmente desenvolvido, conectado por uma rede de túneis. Era como
um labirinto, escavado profundamente na parte inferior da montanha.
À medida que avançavam cada vez mais fundo na encosta da montanha, Cinder
sentiu o cheiro forte de fumaça de madeira flutuando pelos túneis e franziu o
nariz. Ela percebeu que isso provavelmente significava que o meio-homem os
estava conduzindo para seu acampamento, escondido em uma das cavernas
próximas. Esperançosamente, isso significava que haveria uma chance para ela
descansar um pouco “ os músculos da coxa a estavam matando “ embora a ideia
de ficar presa em um espaço confinado com esse indivíduo estranho não a
atraísse particularmente, apesar das garantias do Doutor.
Ela supôs que ele devia estar vivendo uma vida difícil aqui. Lançado no deserto
da Zona da Morte, ele provavelmente encontrou este lugar enquanto buscava
abrigo dos monstros, assim como ela e O Doutor tinha fixado residência. Cinder
provavelmente teria feito o mesmo, ela considerou, se tivesse que escolher entre
um sistema de cavernas úmidas e escuras e as mandíbulas babosas de um
faminto dinossauro.
O cheiro do fogo ficou cada vez mais forte, levando-os como um farol. A
passagem pelas cavernas se bifurcou e se retorceu, e ela percebeu que eles
deviam ter passado nas profundezas da montanha. Eles não pareciam estar
viajando para baixo, no entanto, então ela presumiu que eles deveriam estar
passando, e que talvez em algum ponto ficaria claro que havia outra saída no
lado oposto. Ela certamente esperava que sim “ ela não imaginava suas chances
de refazer todos esses passos sem se perder. E, claro, ainda havia o monstro a
ser considerado.
Eles caminharam em silêncio por um curto tempo, até que, finalmente, o som
crepitante do fogo tornou-se audível acima de seus passos ecoantes. O meio-
homem fez uma curva, desaparecendo, de repente, de vista, e Cinder hesitou,
ficando para trás no corredor, sem saber se deveria continuar. O Doutor colocou
a mão em seu ombro e silenciosamente a encorajou.
Em torno da curva do túnel, ela encontrou uma grande caverna de formato
irregular. Duas outras passagens correram para as sombras, e um fogo brilhou
em uma cova rasa no solo. O meio-homem estava de pé de frente para eles,
como se os recebesse em sua casa, e outras duas pessoas sentaram-se nas
pedras perto do fogo, aquecendo as mãos. Um era uma mulher, o outro um
homem mais jovem, e ambos compartilhavam a mesma condição “ ou aflição “
como o primeiro homem. Seus rostos mudavam em padrões constantes e
oscilantes, girando desconcertantemente por suas encarnações perdidas.
O primeiro homem “ aquele que os conduziu até aqui “ acenou para que
entrassem na caverna e se sentassem perto da fogueira.
“Vá em frente “disse o Doutor. Quando ela hesitou novamente, ele gentilmente
passou por ela, sorrindo para as duas novas figuras, e circulou o fogo,
procurando outra pedra. Ele se sentou, esticando o pescoço e músculos do
ombro.
Decidindo que não tinha nada a perder, Cinder se juntou a ele, sentando-se ao
lado dele, enquanto o meio-homem se ocupava em empilhar mais lenha no fogo.
“Você vê como a fumaça está enrolando? “Disse o Doutor.
Ela observou por um momento, enquanto a fumaça espessa e oleosa girava do
fogo, como se girada por uma brisa.
“Deve haver outra saída, “disse ela, aliviada. Eles claramente passaram por
baixo da montanha e estavam perto de uma rota alternativa. Mais perto da Torre.
“Precisamente “disse o Doutor. “Mas vamos sentar um pouco e recuperar o
fôlego, certo?
Cinder olhou para os Senhor do Tempos curiosos e silenciosos. Ela não sabia
se eles estavam olhando para ela ou não.
“Sim “disse ela. “Só não por muito tempo.
O Doutor acenou com a compreensão.
Cinder olhou ao redor da caverna. Havia pouco aqui para caracterizá-lo como
um lar. Algumas esteiras de palha e potes de barro. Nenhum sinal de comida.
Ela se perguntou se essas pessoas ainda precisavam comer, presas enquanto
estavam em um estranho ciclo de vida e morte.
Ela olhou com curiosidade para a parede. Parecia haver listras coloridas na
rocha nua, mas era difícil discernir na luz fraca. Era líquen ou bolor?
“O que é isso? “Disse ela, cutucando o Doutor e apontando para a parede.
O Doutor seguiu seu olhar.
“Oh ... são pinturas “disse ele, seus olhos se iluminando de repente. Ele se
levantou, começou a andar em direção à parede e então voltou, pegando um
pedaço de pau do fogo. Ele selecionou um e puxou-o para fora, içando-o diante
dele como uma tocha. Cinder, levantando-se, desviou-se da ponta em chamas
enquanto ele a girava. Ele foi até a parede, segurando a tocha no alto. “Elas são
maravilhosas “disse ele. “Totalmente maravilhosas.
Ela se juntou a ele, consciente das três meias-pessoas, que permaneceram
sentadas impassíveis ao redor do fogo.
As pinturas eram primitivas e claramente representadas por dedos pintados com
pigmentos vibrantes. Eles cobriram uma parede inteira da caverna, derramando-
se sobre outra “ uma série de pequenas cenas aparentemente independentes,
cada uma representando uma história diferente. Eles pareciam para Cinder
como pictogramas dentro de uma tumba antiga, falando com ela por séculos
incontáveis. Não havia indicação de quantos anos eles realmente tinham.
Ela ficou atrás do Doutor enquanto ele andava de um lado para o outro,
segurando a tocha no alto. No brilho quente e laranja, as fotos pareciam ter vida
própria, mudando sob as sombras bruxuleantes. Ela mal sabia para onde olhar.
Havia tantos deles. Ela traçou um com o dedo, tentando interpretar o que estava
vendo.
Nele, uma figura que claramente pretendia ser o Doutor, com uma cabeleira
grisalha e jaqueta de couro escura, estava parada ao lado de uma mulher loira
em trapos. Uma flor alta e vermelha estava entre eles.
Em outro, cinco Daleks formaram um círculo solto em torno de uma sexta
silhueta Dalek maior.
Um terceiro mostrava um olho enorme e uma caixa azul que, Cinder percebeu,
pretendia representar a TARDIS em voo ao redor do Olho de Tântalus.
Havia outros também: uma figura magra com cabelos longos e encaracolados;
um homem magro em um terno azul; um terceiro com cabelo branco bufante e
uma capa sendo perseguido por um robô prateado; uma mulher ruiva deitada no
chão ao lado do que parecia ser o console da TARDIS.
Cinder engoliu em seco. Ela não queria nem imaginar o que isso poderia
significar.
“O que eles são? Quem são essas pessoas? “Disse ela.
“Eles são eu “respondeu o Doutor. Ele parecia totalmente enfeitiçado pelas
pinturas primitivas, traçando-as na parede com a ponta dos dedos, movendo a
tocha para frente e para trás para ver. Ele se inclinou mais perto, estudando-os
atentamente. “Pelo menos, eu acho que eles são. Eu não reconheço todos eles.
Algumas dessas coisas ainda não aconteceram. Eu posso ter mudado de rosto.
Cinder franziu a testa. Ainda não aconteceu. Então, se a mulher na foto era para
ser ela, isso não era um bom presságio. Ela considerou apontar isso para ele,
mas decidiu contra isso. Havia um risco
que se ela fizesse, ela poderia de alguma forma torna-lo real. Melhor ignorar isso,
ela decidiu. “Por que há pinturas suas na parede de uma caverna, aqui, no meio
do nada?
“Eles estão pintando o que vêem “disse o Doutor. “E por algum motivo, eles me
veem. Passado, presente e futuro. Esta é minha história. “
“Então você não deveria ler “disse Cinder. “Ninguém deve saber seu próprio
futuro. “Ela sentiu um arrepio passar espontaneamente por sua espinha.
“Não “concordou o Doutor. “Você está certa. “Ele não se virou, no entanto, mas
continuou parado ali, estudando as fotos.
“Doutor?
“Oh, tudo bem, “disse ele, relutantemente se afastando da parede. “É tão
tentador dar uma espiada, para ver como será o meu futuro eu.
“Não tenho certeza de quanto você vai colher sobre isso nas pinturas rupestres
“disse Cinder, “e suponha que você tenha visto algo que não deveria, como como
iria morrer? O que você faria então?
Ele a olhou com desconfiança.
“Nada está fixado. Não importa o que eu tenha visto, se ainda não aconteceu,
pode ser mudado.
Ela deu um suspiro de alívio. Bem, era bom saber, pelo menos.
“Devemos ir “disse ela.
“Precisamos voltar da Torre antes de escurecer.
O Doutor parecia um pouco desanimado; como se ele preferisse ficar aqui na
caverna, estudando as pinturas.
“Você sempre tem que ser tão sensato? “Disse ele.
“Receio que sim “respondeu ela. “Em Moldox, você aprende a não ficar parado.
Você tem que continuar se movendo para ficar à frente dos Daleks.
“Quando isso estiver feito, “disse ele “eu vou te ensinar sobre algumas das coisas
boas da vida. Livros, marshmallows, chá Earl Grey, a vista das margens do
Reno, os oceanos de cinzas de Astragard, o prazer da corte de Cleópatra.
“Vou cobrar isso de você “disse ela, com um sorriso. Ela olhou para a pintura da
mulher ruiva e pigarreou. “Mais uma razão para continuar a encontrar esse
personagem Borusa. Venha! “Ela cruzou para a passagem à esquerda e sentiu
uma leve brisa contra sua bochecha. “Por aqui. “Um olhar por cima do ombro
disse a ela que o Doutor e as três meias-pessoas a estavam seguindo.
A Torre estava escura e agourenta à frente deles. Cinder sentiu um arrepio
involuntário correr pela espinha ao vê-lo. “Não se parece muito com uma tumba
“disse ela ao Doutor, que caminhava ao lado dela. “Mais como uma fortaleza.
“Mmmm, hmmm, “murmurou o Doutor, evasivamente.
Bem perto, as três meias-pessoas da caverna se arrastavam atrás deles. Cinder
se chutou por continuar a pensar neles assim. Claro, essas não eram pessoas
pela metade. Intersticiais? Faria por enquanto.
Ela gostaria de saber como se comunicar com eles, se eles eram capazes de
entende-la.
Ela não tinha certeza de como agir perto deles.
O Doutor a viu olhando.
“Eles querem ajudar, “disse ele. “Eles previram tudo isso. Eles estão preparados
para a tempestade que está chegando.
Cinder assentiu, mas não disse nada, imaginando o que mais eles haviam
previsto. Essa era a verdadeira raiz de seu desconforto. Ela não sabia se o
Doutor tinha visto a pintura na parede da caverna da garota ruiva, deitada no
chão do que parecia ser a sala do console da TARDIS. Era Cinder ou alguma
outra garota de cabelo de fogo do futuro ou do passado do Doutor? A pintura era
muito primitiva para dizer, mas algo a perturbava. Ela não conseguia tirar a
imagem da cabeça.
Ao se aproximarem da Torre, ela pôde ver que braseiros em chamas
flanqueavam a entrada elevada. Ela meio que esperava que o lugar parecesse
abandonado, ou em estado de ruína ou degradação, mas os braseiros
mostraram que claramente ainda estava habitado.
“Fique para trás “disse o Doutor, acenando-a em direção a um bosque próximo.
Ela saltou até eles, observando que os Intersticiais haviam parado, mas
permaneceram onde estavam no caminho em visão clara, ignorando o Doutor.
Ela não tinha ideia se isso era obstinação idiota, ou simplesmente porque eles já
sabiam que não havia mais ninguém dentro da Torre.
O Doutor, no entanto, não estava se arriscando, e Cinder o observou rastejar em
direção à entrada. Ele pairou lá por um momento, evidentemente ouvindo
qualquer ruído de dentro, e então entrou, desaparecendo de vista.
Um momento depois, ele voltou, acenando com os dois braços para indicar que
estava tudo limpo.
Cinder e os Intersticiais trotaram para se juntar a ele.
“Precisamos trabalhar rápido, “disse o Doutor enquanto os conduzia para o
interior mal iluminado da Torre. “Rassilon pode retornar a qualquer momento, e
isso tornaria as coisas extremamente difíceis.
Cinder considerou isso por um momento.
“Oh, eu não sei. Um dele, dois de nós ... “disse ela.
O Doutor balançou a cabeça.
“Essa luva que ele usa? Tem o mesmo efeito que as armas temporais do Dalek,
entre outras coisas. Não seria bom se envolver com ele.
Cinder franziu a testa. Quanto mais ela descobria sobre Rassilon, mas ela
decidia que o universo estaria melhor sem ele.
Ela olhou em volta, tentando ter uma ideia do lugar. Aqui, parecia mais um
mausoléu “ um salão cavernoso, com faixas esfarrapadas pendendo do telhado,
um pedestal de pedra que parecia para todo o mundo como uma fonte, e a
própria tumba, parecendo uma vasta cama de dossel desprovida de marquise.
Todo o lugar tinha uma aura de abandono, um ar deprimente que a fez querer
sair dali o mais rápido que pudesse.
“Ele está aqui “disse o Doutor, conduzindo-a até o curto lance de degraus de
pedra que levava ao túmulo. Os Intersticiais estavam esperando em silêncio na
porta.
“Borusa? “Disse o Doutor. “Você está aí?”
Ouviu-se um zumbido, como o de engrenagens girando, e a plataforma de metal
que ficava no topo da tumba começou a girar sobre os raios da engrenagem.
Para seu horror, Cinder percebeu que havia um emaciado
pessoa presa ao quadro. Seus pés e mãos foram amarrados, e cabos pareciam
jorrar de sua cavidade torácica e da parte de trás de seu crânio, descendo pelo
outro lado da tumba.
“Doutor “disse a coisa-homem. Como os intersticiais, seu rosto estava em
constante fluxo, oscilando entre o de um homem idoso e pálido, um jovem
bronzeado de pele morena, uma mulher de meia-idade e muito mais. Seus olhos,
no entanto, eram diferentes dos outros e cintilavam com luzes azuis dançantes,
como se uma corrente elétrica estivesse passando por sua cabeça e seus olhos
fossem minúsculas janelas, permitindo que ela espiasse dentro. Foi a coisa mais
terrível que ela já tinha visto.
“Borusa, estou aqui para ajudar “disse o Doutor. “Mas primeiro, preciso que você
me ajude.
Borusa riu, e foi um estrangulamento úmido e devastador.
“O fator aleatório, “disse ele. “O nó da possibilidade. Você sempre foi difícil de
definir, Doutor. Lorde Rassilon não vai achar graça.
O Doutor o ignorou.
“Borusa, vou libertar você e levá”lo comigo para o Olho. Tenho um plano para
derrotar os Daleks. “Ele hesitou. “Você pode ver? Você pode ver esse futuro se
desenrolando?
“Eu posso “disse Borusa.
“Então você vai me ajudar?
Houve uma longa pausa, enquanto Borusa parecia considerar o pedido do
Doutor. Cinder se perguntou se ele estava, de fato, tentando olhar para a frente,
para ver o que poderia acontecer com todos eles se o fizesse.
“Eu vou te ajudar, “disse ele depois de um momento, “mas há uma condição.
“Diga “disse o Doutor.
“Que depois, quando terminar, você acabará com meu sofrimento. Você vai me
libertar.
O Doutor baixou a cabeça, claramente magoado com a ideia.
“O Vórtex do Tempo “disse Borusa. “Isso se desenrola dentro da minha cabeça.
É lindo, requintado. Eu vejo o mapa de todos os tempos, cada momento, cada
decisão delicada que é tomada, e como isso altera o curso do futuro, muda as
possibilidades. Mas dói, Doutor. É mais do que posso suportar. Nenhum ser vivo
deve ter este fardo.
Cinder olhou para o Doutor. Seus olhos estavam baixos.
“Você vai me ajudar? “Disse Borusa. “Você vai me libertar do mecanismo de
possibilidades?
“Eu vou “disse o Doutor, sua voz falhando.
“Então estamos de acordo “disse Borusa. “Liberte-me. Rompa meus laços com
a Matrix. Vou acompanha-lo em sua TARDIS para uma viagem final.
“Ajude-me “disse o Doutor a Cinder, enquanto subia os degraus. “Precisamos
libertá-lo.
O Doutor correu até a plataforma elevada e contornou a estrutura de metal sobre
a qual Borusa estava amarrado, até que foi capaz de se agachar
desajeitadamente atrás da cabeça de Borusa. Ele começou a trabalhar, tirando
cabos de encaixes na parte de trás do crânio de Borusa. Um fluido branco
escorria das portas abertas.
Cinder decidiu não assistir.
“O que você precisa que eu faça? “Disse ela. “Vamos cortá-lo da estrutura de
metal? “Ela cutucou as cordas com nós que prendiam o pé esquerdo de Borusa.
Ela podia ver onde eles haviam mordido sua carne, esfregando feridas ao redor
de seu tornozelo.
“Não! “Disse o Doutor, com urgência, colocando a cabeça em pânico ao redor
da moldura. Quando ele viu que ela ainda não havia começado, ele relaxou
visivelmente. “Não, não faça isso. Duvido muito que ele pudesse se sustentar
depois de todo esse tempo amarrado. Precisamos apenas afrouxar a estrutura
de seu alojamento.
Cinder concordou com a cabeça. Ela se agachou, espiando por baixo da
moldura. Era um mecanismo primitivo, realmente, como se tivesse sido
construído no último minuto como uma reflexão tardia, uma vez que o verdadeiro
trabalho “ a ‘retroengenharia’, como o Doutor a chamava “ tinha sido feito.
Borusa gemeu quando o Doutor puxou o último fio da parte de trás de seu crânio,
desligando sua interface com a Matriz “ o que quer que fosse.
“Aqui, “ela chamou o Doutor. “Eu encontrei os parafusos certos, mas você vai
precisar da sua coisa sônica.
“Meu o quê?
“Oh, você sabe o que quero dizer.
O Doutor deu a volta para se juntar a ela.
“Lá embaixo “disse ela, indicando o primeiro parafuso.
“Tudo bem “disse o Doutor. “Fixe a moldura enquanto eu cuido disso.
Cinder ficou de pé, pensando na melhor forma de fazer o que o Doutor havia
pedido, apenas para descobrir que os três Intersticiais haviam se juntado a eles
e cada um segurava um canto da moldura, firmando-a enquanto o Doutor
pressionava o botão da sua chave de fenda sônica e os parafusos começaram
a afrouxar e soltar.
Momentos depois, o mecanismo de possibilidades estava livre de seu
alojamento e os três Intersticiais o levantaram cuidadosamente, mantendo-o
nivelado acima de suas cabeças. De seu ponto de vista no topo da tumba, Cinder
podia ver seu rosto. Seus olhos elétricos pareciam olhar diretamente para sua
alma.
“Certo “disse o Doutor. “Vamos voltar para a TARDIS antes que Rassilon
perceba que seu brinquedo favorito foi apropriado. “Ele saltou da tumba,
colocando sua chave de fenda sônica de volta em seu cinto de munição. Ele
ofereceu a mão a Cinder e ela a aceitou, saltando ao lado dele.
“Pergunte a ele se vamos conhecer outro daqueles dinossauros “disse ela,
apontando para Borusa.
“Porque se formos, vou ficar bem aqui, Rassilon ou não.
O Doutor riu, dirigindo-se para a porta.
“Eu não estou brincando “ela gritou atrás dele. “Doutor? Doutor!
Os três Intersticiais carregavam o mecanismo de possibilidades em seus ombros
como os homens de antigamente, carregando seu rei em uma maca. Borusa
ficou imóvel no topo da estrutura de aço enquanto eles marchavam pelo deserto
em direção à TARDIS, Cinder e o Doutor os seguindo em silenciosa
contemplação.
Por quase uma hora, eles caminharam por campos varridos pelo vento e, o
tempo todo, Cinder nervosamente vigiava qualquer sinal da besta que já havia
vindo atrás deles, ou de qualquer um de seus parentes infernais.
Ao se aproximarem do penhasco, seguindo os intersticiais, que pareciam
instintivamente saber que rota tomar, Cinder viu a TARDIS empoleirada na
encosta. A luz do sol estava começando a desaparecer, e, ao olhar para a frente,
viu que dezenas de pequenas luzes haviam sido colocadas em uma trilha, que
ia da base da colina até a própria TARDIS.
“O que é isso? “Disse ela.
O Doutor sorriu.
“Você verá “respondeu ele, rindo de si mesmo.
À medida que se aproximavam e a vista se resolvia adequadamente, ela se
engasgou ao ver cinquenta ou mais figuras; todos alinhados como uma procissão
bizarra, mostrando-lhes o caminho para a TARDIS. Eles eram todos Intersticiais,
cada um deles. Ela contou dezenas deles, fileiras de profundidade, antes de
desistir, percebendo que era uma missão tola.
As luzes que ela tinha visto à distância eram o brilho suave de sua carne,
brilhando no crepúsculo.
“Eles estão aqui para nos desejar boa sorte “disse o Doutor. “Para nos guiar em
nosso caminho.
“São tantos “disse Cinder. Um pensamento surgiu em sua cabeça. “Como é que
eles não estão atraindo os animais carnívoros?
“Eles podem ver o futuro, Cinder, “disse o Doutor.
“Ah sim. Suponho que isso seria útil “repôs ela.
Eles haviam chegado ao sopé da falésia, e os três Intersticiais à frente deles
começaram a lenta escalada até o topo, içando o mecanismo de possibilidade
bem acima de suas cabeças para que os outros pudessem ver. Ao passarem,
os membros da multidão baixaram a cabeça em reverência.
Sentindo-se um pouco envergonhada, Cinder o seguiu, sem saber ao certo como
agir e se deveria fazer ou dizer alguma coisa. Em vez de qualquer orientação
futura, ela simplesmente copiou o Doutor, que manteve os olhos baixos e
lentamente seguiu atrás dos carregadores da liteira.
Quando chegaram à TARDIS, os três Intersticiais ficaram de lado enquanto o
Doutor destrancava a porta. Então, com um rápido olhar por cima do ombro para
Cinder, ele conduziu todos para dentro.
Cinder observou enquanto eles desapareciam pela pequena porta e, então,
satisfeita por estar o mais longe possível da Zona da Morte, ela se apressou
atrás deles.

Capítulo Vinte
Cinder olhou para o mecanismo de possibilidades com desconforto.
O Doutor instruiu os Intersticiais a sustentar a estrutura vertical entre dois pilares
de pedra do outro lado do console e, no que ela considerou um movimento um
tanto surpresa, puxou dois dos cabos pendurados de seus encaixes no teto e
usou as extremidades deles para fixar a estrutura no lugar. Ela esperava que
eles não estivessem fazendo nada importante.
Agora Borusa estava pendurado em pé, seus pulsos e tornozelos ainda presos
à moldura. Seu queixo caiu para frente para descansar em seu peito, mas ela
ainda podia ver a luz azul bruxuleante dançando atrás de seus olhos.
Os Intersticiais recuaram após depositar Borusa na TARDIS, sem fazer nenhuma
tentativa de se juntar a eles em sua jornada. Talvez eles já soubessem como
isso iria acabar, ela considerou, e não queria mais nada a ver com isso. O
pensamento não era particularmente reconfortante.
Eles haviam estacionado em uma órbita temporal e o Doutor estava ocupado
passando cabos por debaixo do console, prendendo-os aos soquetes vazios no
chassi do motor de possibilidade. Ele parecia estar lendo diagnósticos no
monitor, sua chave de fenda sônica apertada entre os dentes.
Ele a viu observando e tirou a chave de fenda da boca.
“ Quase pronto “disse ele.
“Você ou Borusa? “ Perguntou ela.
O Doutor deu um sorriso fraco.
“Ambos.
Ele parecia diferente depois de deixar a Zona da Morte. Parte disso, ela supôs,
poderia ser devido ao fato de que eles estavam indo para a batalha, e ele estava
se preparando para o conflito que se aproximava, adotando um humor mais
contemplativo. Havia algo mais lá, porém, algo o incomodando. Ela o tinha visto
olhando para ela quando pensava que ela não estava olhando, e ele tinha a
mesma expressão em seu rosto, a que ele estava usando quando se
conheceram em Moldox. Era como se ele estivesse com medo dela, de alguma
forma, e ela não conseguia entender por quê.
Ela se perguntou se ela tinha feito algo para preocupa-lo. Era perceptível como
ele evitou contar a ela seus planos enquanto trabalhava para conectar Borusa
ao console, fingindo concentração.
Ela o observou circular o console agora, checando seus links. Ele murmurou algo
baixinho para Borusa, que não pareceu responder, e então caminhou até a
alavanca de desmaterialização, e girou-o. A TARDIS tremeu e deslizou
ruidosamente para fora do Vórtice.
Segurando-se no corrimão, Cinder ergueu os olhos. O Doutor apertou uma
sequência de botões, e o teto, que até então era o mesmo material cinza suave
das paredes, pareceu clarear de repente, revelando uma ampla vista do espaço.
Diante deles estava a visão familiar da Espiral de Tântalus, os planetas tecendo
em uma única hélice retorcida em torno da anomalia turva do Olho.
À distância, as pequenas partículas de discos Dalek voaram pelo espaço como
nuvens de insetos, enxameando ao redor de uma colmeia.
“ O que vamos fazer? “ Disse ela. O Olho parecia tão distante daqui, nos confins
da Espiral, com a ameaça de milhares de discos Dalek entre eles e seu objetivo.
Como eles iriam chegar perto do Olho, quanto mais dentro dele?
O Doutor começou a apertar botões e interruptores no painel de controle. As
luzes piscaram na sala do console. Os motores suspiraram. O rotor escureceu e
parou.
“Nós vamos nos render “ele disse cansado.
Por um momento, eles ficaram quase na escuridão, com apenas as luzes
estranhas e crepitantes do mecanismo de possibilidade para iluminação.
“Render-se? “ Disse Cinder, incrédula. “ Depois de tudo isso? Você vai apenas
derrubar a nave e deixar os Daleks virem atrás de nós? “ Ela olhou para cima.
Acima, o Olho de Tântalus olhou para eles através do dossel da TARDIS, uma
presença sinistra e vigilante. Incontáveis discos Dalek deslizaram através do
campo estelar, voando ao redor da vasta espiral de mundos ocupados.
Certamente eles já haviam notado a chegada da TARDIS? Não demorou muito
para que as naves Daleks começassem a convergir para sua posição.
“Isso é exatamente o que vou fazer, “disse o Doutor. Ele estava de costas para
ela, agindo como se ela não estivesse lá.
“ Você não pode! Você não pode parar agora. Nós chegamos longe demais. Se
não encontrarmos uma maneira de detê-los, os Daleks continuarão para sempre.
Eles vão destruir tudo. Eles vão matar cada um do seu povo.
“Meu povo! “ Gritou o Doutor, interrompendo-a. “ Meu povo teria feito o mesmo
com você. Eu nem tenho certeza se vale a pena salvar mais.
“ Sim, eles são “disse Cinder, calmamente. “ Apesar de tudo, vale a pena
salvá”los. Eu sei que você acredita nisso. Caso contrário, por que estamos aqui?

A TARDIS deu um solavanco repentino e seus motores ganharam vida. As luzes
piscaram e diminuíram, e a coluna central começou a subir e descer
continuamente com seu suspiro familiar e gentil.
O Doutor balançou a cabeça.
“ Não, menina. Não temos escolha. Temos que fazer isso. “ Ele girou uma
alavanca no console, com uma expressão de dor.
A TARDIS estremeceu novamente, os motores roncando. Em algum lugar nas
entranhas do navio, um sino começou a soar repetidamente, ecoando pelo
labirinto de corredores e quartos em constante mutação. Isto encheu a cabeça
de Cinder como um metrônomo incessante, um grito de socorro. Ela lutou contra
o desejo de pressionar as mãos sobre os ouvidos.
“ Ela sabe, não é? A nave sabe o que você está planejando fazer e está tentando
impedi-lo? “Disse Cinder. “ Ela está tentando te levar para longe daqui. Talvez
você deva ouvi-la ...
O Doutor se virou, acenando com a mão para Cinder com desdém.
“Oh, apenas saia! “ Ele grunhiu, com raiva. “Sair!
Cinder deu um passo para trás, reprimida pela pura ferocidade da resposta do
Doutor. Suas costas encontraram a grade de metal que contornava o estrado
central. Ela agarrou-se a ele para se apoiar, firmando-se.
“ Por que você me permitiu vir? Se você gosta tanto de ficar sozinho, por que me
encorajou? Por que você está me mantendo por perto?
“ Para me lembrar de quem eu não sou, “disse o Doutor.
“ Você está zangado com o que vimos na Zona da Morte, com o que os Senhor
do Tempos fizeram com seu próprio povo “disse ela. “ E você está com medo do
que pode significar salvá-los. Eu entendo.
O Doutor balançou a cabeça. Quando ele falou, sua voz estava tingida de
tristeza.
“ Não é isso “disse ele. Seus ombros caíram. Ele se virou e ela viu o peso de
séculos, pesando sobre seus ombros.
“ Sou eu, não é? “ Disse ela. “ Você está preocupado com o que eu posso fazer,
que eu irei e matarei nós dois.
O Doutor suspirou.
“ Não, Cinder. Estou preocupado em não ser capaz de protege-la. Eu perdi tantas
pessoas, tantos amigos. Eu ... “ele hesitou, e então se ergueu. “ Eu não sei como
eu poderia suportar outra perda.
Ela foi até onde ele estava.
“ Lembre-se do que eu disse em Moldox. Estou dentro. Fiz a escolha de ir com
você. Estamos nisso juntos, de uma forma ou de outra. Eu quero destruir aqueles
Daleks tanto quanto você. Não tente me impedir agora.
“ Muito bem, “disse ele.
“Então, sobre essa rendição?
“ Se eu me mostrar, eles não conseguirão resistir ao orgulho. Eles vão nos fazer
prisioneiros; aproximar-nos do Olho. Eles me conhecem há muito tempo “disse
ele.
Cinder franziu a testa.
“ Não parece o mais seguro dos pl...
“Predador.
O ruído metálico de uma voz de Dalek ressoou por toda a sala do console. Cinder
congelou, sua raiva aumentando. O som daquelas coisas, daqueles demônios
frios de metal, parecia arranhar sua própria alma.
Ela se virou no local, temerosa de que, com os escudos abaixados, um ou mais
Daleks tivessem se teletransportado a bordo da nave. Ela estava convencida de
que, a qualquer momento, ela sentiria a queimadura excruciante de uma arma
de energia, fervendo sua carne dos seus ossos.
Mas não havia nada lá. A voz foi transmitida de dentro da Espiral, captada pelos
sistemas de comunicação da TARDIS.
O Doutor se afastou do console, removendo cuidadosamente as mãos dos
controles. Até a própria TARDIS parecia entender que o momento havia
passado, que agora era a hora de parar
brigando. A coluna central suspirou e se acalmou. O toque do sino cessou com
seu repicar ensurdecedor.
“Estou aqui “disse o Doutor. Sua voz era baixa e rouca, pesada com a gravidade
de séculos.
“Dou-tor “disse o Dalek. “ O assassino dos Dalek. O Grande Flagelo. A Morte em
Vida. O Carrasco.
O Dalek fez uma pausa. Cinder observou o Doutor, avaliando sua reação. Seu
rosto permaneceu impassível, sua mandíbula cerrada.
“Estes são os nomes dados a você pelos Daleks, Doutor. Eu me pergunto se
você sente orgulhoso. Eu me pergunto se você se deleita com a morte de seus
inimigos?
Isso era diferente de qualquer Dalek que Cinder já tinha ouvido. A voz era a
mesma, mas havia uma qualidade diferente aqui, uma inteligência
desconhecida, talvez até um toque de reverência.
“Eu nunca me diverti com a morte, “disse o Doutor. “Valorizo a vida acima de
tudo. Eu não sou como você. Eu não sou Dalek.
“No entanto, você nos extermina impunemente. Permita-me assegurar-lhe,
Doutor, que Daleks também valorizam a vida.
O Doutor riu, mas estava cheio de remorso.
“Você valoriza apenas a vida Dalek. Você existe apenas para destruir, para
consumir. Vocês são parasitas, vivendo da carcaça da criação.
“Daleks são a forma de vida superior do universo “disse o Dalek. “Todas as
outras formas de vida são irrelevantes.
“Ah, “disse o Doutor, com um suspiro. “Agora você está começando a soar mais
como os Daleks que eu conheço.
Agora você está me dizendo o que realmente pensa.
“Ainda assim, Doutor. Você é admirado pelos Daleks. Você é reverenciado. Sua
mera presença invoca terror entre nossa espécie. Não há maior honra. Eu iria
encontrar a criatura que pode aterrorizar um espécies inteiras. Gostaríamos de
aprender com você.
O Doutor fez uma careta para o mais horrível e indesejável dos elogios.
Cinder engoliu em seco. Ela queria dizer ao Doutor para desliga-lo. Para silenciar
o monstro, ligar os motores TARDIS e leve-o o mais longe possível da Espiral de
Tântalus. Para usar sua máquina do tempo para leva-la a algum lugar onde não
houvesse Daleks, nem Senhores do Tempo, nem guerra.
Mas ela sabia que não podia. O Doutor estava certo. Eles não tinham escolha.
Se houvesse a menor chance de que seu plano funcionasse, de que eles
pudessem encontrar um meio de se aproximar o suficiente do Olho para
implantar o mecanismo de possibilidade, para derrotar de alguma forma esses
monstros, então eles teriam que pegá-lo.
“Estou aqui para negociar “disse o Doutor.
“Os Daleks não apostam “disse o Dalek. “Nós não negociamos. Nós não
negociamos.
“Não “disse o Doutor. “Eu realmente não achei que você iria.
Cinder ficou tensa de preocupação. Ele havia julgado mal? Eles eram patos
sentados aqui. Os Daleks poderiam destruí-los facilmente antes que o Doutor
pudesse trazer o poder de volta. Foi uma grande aposta que ele estava
considerando.
“Ainda assim, olharíamos para você, Predador, antes que fosse exterminado,
“disse o Dalek. “Você terá uma audiência com o Círculo da Eternidade. Você
falará conosco antes de morrer.
“Que gentil. “O Doutor olhou para Cinder, e ela não conseguiu evitar a expressão
travessa de “Eu avisei” que ele estava usando. Infantilmente, ela sucumbiu ao
desejo de mostrar a língua para ele.
A TARDIS deu um estremecimento repentino e inesperado, e Cinder foi forçada
a se apoiar na amurada. Ela sentiu o navio se mover aos arrancos, balançando-
a nas pontas dos pés. O Doutor estava firmando-se no console, agarrando-se a
uma alavanca próxima.
“O que ...? “Ela começou, mas parou quando viu que o Doutor estava olhando
fixamente para o teto.
Ela seguiu seu olhar. Através do telhado transparente, ela viu um grande grupo
de escolta de cerca de dez discos Dalek reunidos em torno da TARDIS
estacionária. Arcos de luz azul bruxuleante emanavam da base do disco mais
próximo, circundando a TARDIS no que ela presumiu ser um raio trator. Eles
estavam sendo lentamente arrastados em direção ao Olho e ao coração pulsante
da operação Dalek.
“Onde você acha que eles estão nos levando? “Ela perguntou, sua voz quase
um sussurro.
O Doutor estendeu a mão e apertou um botão no console antes de responder,
presumivelmente para garantir que os Daleks não escutassem sua conversa,
embora Cinder não pudesse ver nenhum microfone na sala do console.
“Há uma estação orbitando o Olho, “disse ele. “A sede deste chamado Círculo
da Eternidade. É para lá que eles estão nos levando. “Ele apontou para o teto,
para uma pequena mancha preta, pairando perto do coração do Olho.
“O Círculo da Eternidade? “Disse ela. “Eu pensei que os Daleks só recebiam
ordens de seu Imperador?
“O Imperador Dalek está experimentando, “respondeu o Doutor. “Sancionando a
criação de novos tipos de Daleks, esperando que eles possam lhes fornecer uma
vantagem, um meio de vencer a Guerra. Tanto quanto eu posso dizer, o Círculo
da Eternidade é um grupo seleto de Daleks encarregado de desenvolver novas
armas e coordenar o esforço de guerra Dalek ao longo do tempo.
Cinder deu de ombros.
“Assim como o conselho dos Senhores do Tempo, “disse ela.
O Doutor fez uma careta, como se tivesse acabado de engolir algo desagradável.
“Sim “disse ele. “Eu acho que você está certa.”
Ela olhou para Borusa, ainda amarrado à estrutura da máquina do Senhor do
Tempo. Ela mal conseguia olhar para a coisa, ou mesmo considera-la um ser.
Ela se sentiu desorientada apenas tentando se concentrar no rosto em constante
mudança de Borusa, preso naquele ciclo regenerativo terrível. Seus olhos, azul
elétrico e totalmente abertos, pareciam cavar nela do outro lado da sala do
console. Ela se perguntou se ele poderia ver seu futuro, se ele sabia se eles
sobreviveriam ou não.
Um pensamento repentino ocorreu a ela.
“Espere um minuto, “disse ela. “Você sabia que os Daleks iriam cair no seu
plano? Que eles sempre seriam incapazes de resistir à tentação de assistir você
morrer pessoalmente?
O Doutor sorriu.
“Eu não precisava que Borusa me dissesse isso, “disse ele.
A estação de comando Dalek parecia mais uma vasta cidade flutuante do que o
tipo de satélite modular e habitável que Cinder havia imaginado. Estruturas em
forma de cúpula aninhadas entre grupos de espinhos eriçados e transmissores,
e qualquer substância que fosse construída “ Dalekanium, ela supôs “ brilhava
como bronze polido na luz refletida do Olho. Centenas, senão milhares, de discos
Dalek e navios furtivos zumbiam ao redor como abelhas zelosamente cuidando
de uma rainha.
Atrás dele, porém, diminuindo até mesmo a enorme estação em insignificância
estava o próprio Olho de Tântalus.
Tão perto, através do teto sem opacidade da TARDIS, Cinder podia ver
claramente a fissura no coração da anomalia: um imenso núcleo crepitante de
energia bruta, uma ferida irregular no tecido do tempo e do espaço, efervescendo
com luz colorida rubi.
Ela podia ver agora, mais do que nunca, por que a anomalia passou a ser
conhecida como o Olho “esse núcleo era sua pupila, cercado pelo redemoinho
de gás suavemente brilhante que formou sua íris caleidoscópica. Dentro dessa
região expansiva, o tempo correu descontroladamente, acelerando e
desacelerando, revertendo-se e geralmente se comportando de forma tão
imprevisível que as leis da física não tinham como explicar sua existência.
Cinder viu as estrelas ganharem vida com uma ferocidade súbita e intensa,
apenas para evoluir para gigantes inchados e moribundos em segundos.
Enquanto isso, outros entraram em colapso e reacenderam, ressuscitados da
beira da morte, florescendo mais uma vez em uma vida vibrante. Ela se
perguntou o que teria acontecido com os muitos exploradores que voaram para
o Olho, e se eles ainda o exploravam, preso em um espaço intermediário em
algum lugar entre a vida e a morte. É isso que seria dela e do Doutor se o plano
deles desse certo? Ou a TARDIS pode protege-los de alguma forma?
Todos esses pensamentos foram esquecidos, no entanto, com a visão de uma
estrutura Dalek ainda maior pendurada acima do Olho “ o imenso cano cilíndrico
de seu assassino de planetas, a arma que ela e o Doutor estavam supostamente
lá para impedi-los de disparar.
Cinder engoliu em seco. Ela nem sabia por onde começar. O canhão tinha o
tamanho de três luas “ ou melhor, era na verdade composto de três luas “ que
haviam sido amarradas juntas em uma enorme treliça de escoras e nós, e
segmentada por vastos e cintilantes discos de metal. Na frente, três raios se
juntaram para formar uma ponta maciça, da qual ela presumiu que a explosão
de energia seria disparada.
Enxames de Daleks cuidavam dele, milhares deles, centenas de milhares deles,
como formigas operárias, rastejando por toda a sua superfície.
Um fluxo de luz cor de rubi estava sendo sugado do próprio Olho, canalizado
para duas antenas crepitantes na parte traseira da arma. Ela podia ver no final
do negócio da arma – se é que poderia até ser chamada de arma – que a luz
rubi estava começando a piscar, como se estivesse se preparando para uma
descarga, assim como as armas temporais menores que ela vira os Daleks
usando em Moldox.
Essa, então, era a arma que eles usariam para destruir Gallifrey e quaisquer
outros planetas que estivessem no caminho de sua terrível ambição. Cinder
podia ver agora, pela primeira vez, a verdadeira escala da ameaça. Ela podia
ver o que aterrorizou Rassilon e seu conselho.
Isso foi engenharia em uma escala épica. Com isso, ela não tinha dúvidas de
que os Daleks seriam capazes de encerrar a Guerra e reivindicar o domínio
sobre todo o universo. Era em partes iguais uma das coisas mais assustadoras
e impressionantes que ela já vira e, pior, parecia-lhe que estava quase pronto
para disparar.
Ela se afastou do console, desviando o olhar.
Os Daleks estavam em silêncio desde que o Doutor cortou a conexão, mas agora
o sistema de comunicações voltou à vida novamente, captando uma transmissão
da estação de comando.
“Relatório “exigiu uma voz abrupta de Dalek. Cinder saltou com a intrusão
repentina.
“Alvo adquirido “respondeu outra voz quase idêntica, provavelmente a bordo de
uma das embarcações de escolta.
“Prossiga “foi a resposta econômica.
Cinder e o Doutor observaram em silêncio enquanto eram arrastados em direção
à estação. Ela não pode deixar de se maravilhar com o tamanho da estrutura,
conforme eles se aproximavam e a verdadeira escala da operação Dalek
começou a surgir para ela. Devia haver bilhões deles lá na Espiral, quando ela
considerou quantos deles estiveram em Moldox, e devem ter se espalhado por
todos os outros mundos habitados. E isso foi apenas agora, neste período em
particular, nesta região específica do espaço.
A ideia de um universo repleto de Daleks a encheu de pavor. Ela estava errada?
Teve o Doutor? Talvez eles devessem ter permitido que os Senhor do Tempos
prosseguissem com seu plano para implantar seus
Dispositivo Armagedom. Talvez a perda de vidas humanas valesse a pena.
Como se entendendo sua crescente sensação de terror e a escuridão que estava
começando a se infiltrar em seus pensamentos, o Doutor se aproximou para ficar
ao lado dela, segurando-se no corrimão.
“Vai ficar tudo bem. “disse ele, calmamente. “Basta ficar ao meu lado e você
ficará bem.
Ela queria perguntar como ele podia ter tanta certeza, tanta confiança, mas o
momento havia passado. Ele já havia voltado a observar a abordagem deles. A
estação agora preenchia toda a sua visão, e as naves de escolta estavam
começando a descascar, girando para o vazio. Os Daleks estavam claramente
com a impressão de que haviam conseguido prender o Doutor; que ele e sua
TARDIS estavam inteiramente à mercê deles. Cinder não conseguia se livrar da
sensação de que, de alguma forma, a realidade da situação era exatamente o
oposto.
A TARDIS, ancorada no disco Dalek como o pêndulo oscilante de um relógio,
deslizou pela boca cavernosa da baía de ancoragem da estação e
profundamente em sua boca.
Ela mal teve tempo de obter uma impressão de como era o interior da estação
antes, com um solavanco repentino, a TARDIS ser liberada do feixe trator e cair
no chão da baia de carregamento. Ela foi arremessada para a frente, e só foi
impedida de tropeçar de cabeça no console pelo Doutor, que balançou um braço
para segurá-la pela cintura, mantendo seu próprio controle na grade o tempo
todo. Sem fôlego, ela agradeceu, encontrando o equilíbrio novamente um
momento depois. Ela afastou o cabelo dos olhos.
“Então “disse ela. “Vamos apenas sair valsando daqui como se fossemos os
donos do lugar, para os braços à espera de um bilhão de Daleks?
“Algo assim “disse o Doutor, distraído. Ele voltou ao console e estava mexendo
nos botões e interruptores novamente.
Cinder ficou boquiaberta.
“Quer dizer ... eu ... eu estava apenas sendo sarcástica, “ela murmurou. “Esse
não é realmente o plano? É isso?
O Doutor olhou para ela por cima do ombro, movendo-se suavemente ao redor
do console para acionar outra alavanca. “Freio de mão”, disse ele, como se isso
respondesse a tudo. “Melhor não deixar isso ligado se acharmos que precisamos
fazer uma fuga rápida.
“Oh, não acho que haja necessidade disso “disse Cinder, incrédula. "Acho que
estaremos muito ocupados sendo inequivocamente exterminados para que isso
faça muita diferença."
O Doutor balançou a cabeça. “Você tem jeito com o melodrama, “disse ele.
“Agora venha. Traga seu casaco.
Cinder emitiu um gorgolejo exasperado, mas fez o que ele disse, pegando sua
velha jaqueta chamuscada de onde ela a jogou no chão depois de fugir de
Gallifrey. Ela encolheu os ombros.
“Não consigo acreditar que vamos fazer isso “disse ela. Ela se virou para ver que
o Doutor não estava mais lá. Virando-se, ela o avistou, descendo o curto lance
de escadas do nível superior. Cinder franziu a testa. Ela nem o tinha visto sair.
Ele deve ter saído enquanto ela pegava o casaco.
“Um pouco tarde para arrependimentos agora. “disse ele, caminhando com
confiança em direção à porta. Ele a abriu e saiu para a forte luz elétrica da
estação de comando Dalek.
“Olá, “ela o ouviu dizer. “O que se deve dizer em tais situações? Ah, sim, isso
mesmo. Leve-me ao seu líder!
Com um suspiro sincero, Cinder correu atrás dele.

Capítulo Vinte e Um
Um grupo de Daleks os conduziu sob a mira de uma arma pelas passagens
silenciosas e cavernosas da estação de comando. As paredes aqui eram
semelhantes às dos discos Dalek em Moldox: uma estrutura de cristal hexagonal,
pulsando com a passagem de gases e fluidos coloridos.

Eles passaram por corredores bifurcados e salas que formavam centros, como
pontos de conexão em um labirinto estranho e sobrenatural. Portas lacradas
sugeriam quartos e celas, mas nenhum deles estava aberto. Outros Daleks
deslizavam silenciosamente ao longo dos corredores, como monges solenes nos
corredores de uma abadia, nem mesmo cumprimentando uns aos outros ao
passarem. Todos os Daleks aqui pareciam ser da variedade típica de latão e
ouro. Nenhum dos mutantes ou Indigno parecia estar presente.

Logo depois, seus guardas Dalek pararam diante de um grande arco aberto.

'Espere', disse um deles em um tom profundo e mecânico, antes de deslizar para


a câmara adiante.

Cinder não conseguia ver muito de onde estava atrás de outro dos Daleks, a não
ser o fato de que as paredes dentro da sala mudaram de aparência, tornando-
se brancas e opacas. O chão também parecia ser feito de painéis de metal liso
e branco.

O Dalek voltou alguns momentos depois, claramente tendo verificado à frente.


'Prossiga. Fico feliz em ver que você está se sentindo conversador' murmurou
Cinder.

O Doutor, que até então havia mantido seu próprio conselho enquanto eles eram
conduzidos pela estação, virou-se para ela.

'Certo, vamos ver o que estamos enfrentando?' Ele coçou a barba


nervosamente, puxando a ponta do bigode.

Cinder deu um grito assustado quando um dos Daleks a cutucou entre as


omoplatas com o braço manipulador, empurrando-a para frente. 'Tudo bem, tudo
bem', disse ela. 'Eu estou indo.'

O Doutor olhou feio para o Dalek e segurou-a pelo braço, puxando-a para o lado.
Juntos - de braços dados - eles entraram na sala para encontrar o Círculo da
Eternidade.

Cinder e o Doutor se viram entrando em uma grande câmara de audiência,


disposta em torno de um saguão hexagonal.

Em cada lado do hexágono, excluindo a entrada, havia um pedestal elevado, e


no topo de cada um estava um Dalek, olhando imperiosamente para o auditório.

Eles eram semelhantes em tamanho e aparência aos Daleks de bronze que ela
vira em outros lugares da estação e com tanta frequência em Moldox - o mesmo
braço manipulador e arma de energia, o mesmo olhar ameaçador - exceto pela
coloração que, Cinder supôs, os marcava tão único. O invólucro de todos os
cinco Daleks do 'Círculo da Eternidade' era de um azul profundo e metálico, com
globos sensores de prata e cabeças em forma de cúpula. Eles pareciam ser
idênticos um ao outro, embora ela soubesse ao examinar os invólucros de
Daleks mortos em Moldox que eles geralmente carregavam pequenas marcas
sob seus olhos para torná-los mais fáceis de identificar.
Duas outras passagens alimentavam a sala, e uma série de alcovas sombrias
existia entre cada um dos pedestais do Dalek.

'Bem-vindo, Doutor' anunciou o Dalek no pedestal central.

'Então este é o assim chamado Círculo da Eternidade', disse o Doutor com um


sorriso malicioso. 'Você percebe que não é realmente um círculo, não é?' Ele
traçou um círculo no ar com o dedo para enfatizar seu ponto.

Os Daleks o olharam em silêncio. Cinder percebeu que os guardas haviam


recuado para ficar na sombra da arcada, observando das linhas laterais.

'Então vocês são os responsáveis por tudo isso? Por aproveitar o poder do Olho
de Tântalus?' Disse o Doutor. 'Vou admitir, com certeza é original.'

'É uma arma digna dos Daleks,' respondeu o Dalek no pedestal central. Cinder
decidiu que aquele tinha que ser o líder.

'É isso que você faz, então?' Disse o Doutor. 'Sente-se lá em seus pedestais se
sentindo superior e sonhando com novas maneiras de torturar qualquer uma das
outras formas de vida no universo?'

'Esse é, de fato, nosso propósito' - disse o Dalek, e novamente Cinder teve a


sensação de uma inteligência profunda e perturbadora em ação. Este era o
Dalek que eles ouviram no sistema de comunicações da TARDIS. Era diferente
dos outros, e não simplesmente em virtude da cor do invólucro. Parecia haver
um senso de ironia. 'Nós, do Círculo da Eternidade, somos encarregados de
assegurar a proliferação da raça Dalek ao longo do tempo. Comprometemo-nos
a invasão da história a fim de garantir o futuro e a erradicação de todas as outras
formas de vida. '

"Criaturas nascidas do ódio", cuspiu o Doutor em resposta. 'Você me enoja.'

'Quanta fúria. Uma raiva tão pura e ardente. É algo de rara beleza de se
contemplar. Você é tão digno quanto esperávamos, Dou-tor.' O Dalek parecia
impressionado.

'Digno?' Disse o Doutor. 'De extermínio? Tive a impressão de que simplesmente


era preciso ter a ousadia de estar vivo para justificar tal resposta de sua espécie.'

O Dalek fez um som como se estivesse sufocando - um grito estranho e


estrangulado que Cinder percebeu, com nojo, ser na verdade uma gargalhada
rouca. O Dalek estava realmente rindo.

“Vocês estão ainda mais iludidos do que eu imaginava”, disse o Doutor,


apontando para cada um dos cinco Daleks azuis. 'Sentados aqui em sua torre
de marfim, planejando esquemas e construindo suas super-armas.'
'O Canhão Temporal é apenas um pequeno componente, Doutor. um meio para
o fim Gallifrey será destruído de qualquer maneira. A ambição Dalek conhece
limites muito maiores. ' O Dalek fez uma pausa, como se pesasse suas palavras.
'Você, doutor. Você será nosso salvador. Você vai garantir a sobrevivência da
espécie Dalek. '

O Doutor estreitou os olhos. 'Eu não vou', disse ele. 'Já cometi esse erro uma
vez, em Skaro, quando não consegui encerrar o trabalho do seu criador'

'Ah', disse o Dalek. 'O início da Guerra do Tempo. No momento em que você,
Doutor, ensinou aos Daleks sua lição mais valiosa de todas - que a emoção é
uma fraqueza que deve ser erradicada. Essa misericórdia não tem lugar na
vitória. '

'Não é uma fraqueza', disse o doutor, 'mas uma força.'

'Se não fosse por sua hesitação,' disse o Dalek, seu tom irrisório, 'por sua
incapacidade de fazer o que era necessário, então toda a Guerra poderia ter sido
evitada. Os Daleks teriam deixado de existir.'

' É verdade?' disse Cinder, espantada. 'Que você teve a chance de matar todos
eles e os deixou viver?'

'Continue', disse o Dalek. 'Diga a sua companheira. Diga a ela como você falhou.
'

'É verdade', disse o Doutor, baixando a cabeça. 'Muito antes de a guerra


começar, em uma vida diferente, eu tive a chance de impedir o advento da raça
Dalek, de matá-los em seu berço antes que o universo soubesse de seu terror.'
Ele suspirou. 'Mas eu hesitei. Eu ainda esperava que eles pudessem ser salvos.
Eu estava errado, e quando voltei, quando percebi meu erro e tentei destruí-los,
era tarde demais. Eles já haviam iniciado a linha de produção. '

Cinder não sabia o que dizer. O pensamento de que ele poderia ter evitado tudo
isso, o que tinha acontecido com sua família, seus amigos, os trilhões de vidas
que foram perdidas em todo o cosmos - como ele poderia ter permitido que tudo
acontecesse?

O Doutor tinha esse poder em suas mãos. No entanto, ele também havia falado
com ela sobre responsabilidade, sobre como nunca deveria ser o fardo de uma
pessoa sozinha exercer tal poder. Ele realmente tinha o direito de destruir uma
raça em sua infância, antes de realmente entender do que ela era capaz, como
poderia evoluir? Claro que não. Não poderia haver culpa nele por isso. 'Não está
errado' disse ela baixinho. 'Apenas humano.' Foi o maior elogio que ela poderia
pensar em oferecer a ele. Ele sorriu agradecido.
'Vejo, Doutor, que você entende' disse o Dalek. 'E agora vamos oferecer a você
um presente, um papel no alvorecer do novo império Dalek. Você se tornará
nosso instrumento de extinção. Você vai conceber meios novos e criativos pelos
quais espalhar o seu dom da morte por todo o cosmos.

Sua raiva reacenderá as chamas da guerra, levando os Daleks à vitória em um


bilhão de mundos. Será um reinado lindo e aterrorizante, e os Daleks irão adorá-
lo por isso. ' O Dalek ficou em silêncio, aguardando a resposta do Doutor.

'Vou morrer antes de levantar um dedo para ajudá-lo', respondeu o Doutor.

'A entidade conhecida como Doutor será, de fato, exterminada', disse o Dalek.
'Os centros emocionais do seu cérebro serão neutralizados. Todos os
pensamentos de suas vidas anteriores serão extirpados. Sua mente, entretanto,
será colhida. Sua criatividade terá um uso maravilhoso apoiando a causa Dalek.
'

'Você não entende, não é?' disse o Doutor, rindo. 'Você não faz ideia. É por
causa das minhas emoções que sou quem sou. Sem eles eu não seria nada
mais do que um drone, como o resto de sua raça patética.'

'Veremos, Doutor' disse o Dalek. Seu olho mudou repentinamente para a direita.
'Está na hora. Comece o procedimento. '

'Eu obedeço', veio uma resposta metálica de algum lugar fora de vista.

Cinder sentiu um movimento em uma das alcovas abaixo do Círculo da


Eternidade, e algo começou a emergir das sombras. Era a silhueta de um Dalek,
só que muito maior.

'Veja, Doutor, o Predador Dalek.'

Cinder assistiu com horrorizada admiração enquanto o novo Dalek avançava


para a luz. Tinha o dobro do tamanho de uma caixa Dalek padrão, embora
construída com o mesmo design familiar. Sua saia era de um vermelhão
profundo e metálico, com globos sensores e grades pretas e, embora quase
totalmente inanimada, sua aparência enchia Cinder de pavor. Os Daleks
estavam claramente planejando isso há algum tempo, e ela estava começando
a ter a sensação de que o Doutor havia caído involuntariamente em sua
armadilha.

'Esta é nossa verdadeira vitória, Doutor', disse o Dalek no pedestal. 'A arma que
vai ganhar a guerra. O Olho de Tântalus é apenas um meio para um fim, a
remoção da distração do Senhor do Tempo. O Predator Dalek será o arauto de
uma nova era. O tempo dos Daleks se aproxima.'

O invólucro do Predator Dalek se separou como portas sendo simultaneamente


abertas para fora, revelando uma grande cavidade interna.
Dentro, havia um assento de metal polido cercado por mostradores e monitores,
lembrando a cabine de um pequeno veículo. Estava claramente vazio e
esperando um ocupante, mas ao contrário dos invólucros Dalek padrão que ela
tinha visto em Moldox, este não foi projetado para abrigar Kaleds mutantes, mas
uma figura humanóide na cadeira.

Fios fibrosos e conjuntos de sondas semelhantes a agulhas lutavam por espaço


em ambos os lados da cadeira, e uma ponta de metal afiada, fixada na parte de
trás do encosto de cabeça, brilhava com lubrificante. Esta era claramente a
versão Dalek de uma interface neural, a ser inserida no tecido mole na base do
crânio do ocupante.

Agulhas de aparência mais maligna foram fixadas no interior das portas com
dobradiças como uma donzela de ferro, esperando para serem cravadas na
carne do ocupante assim que estivessem no local.

Uma vez sepultado, não havia como escapar. Os motores do invólucro se


fundiriam com a biologia do ocupante, fundindo-se para se tornar uma única
entidade simbiótica. Um Dalek.

'Este, Doutor, é o seu futuro', disse o líder Dalek.

Da porta, os três guardas Dalek sussurraram para frente, formando um círculo


solto ao redor de Cinder e do Doutor.

'Doutor?' ela disse, preocupada. Ele olhou para ela, e ela viu terror verdadeiro
em seus olhos. Ele não tinha previsto isso, a verdadeira agenda do Círculo da
Eternidade. Além do mais, não parecia que eles iriam puxar o assunto ou
oferecer qualquer chance de fuga - o invólucro do Predador Dalek estava
esperando para aceitar seu novo hospedeiro.

'Vamos!' berrou o doutor, olhando em volta freneticamente. 'Vamos!' 'Não lute


contra isso, Doutor', disse o Dalek.

'Cinder... Eu ... 'ele parecia não saber o que dizer.

'Sua companheira terá o privilégio de ser o primeiro humano a ser exterminado


pelo Predador Dalek.'

Os guardas se aproximaram, seus braços manipuladores erguidos como


aguilhões de gado. Cinder teve vontade de gritar. Ela desejou ter sua arma,
qualquer coisa, mas não parecia haver nenhuma maneira de contra-atacar e
nenhum lugar para onde fugir. O Doutor os havia conduzido involuntariamente
para uma armadilha.

Ela correu para a frente, agarrando freneticamente as lapelas da jaqueta de


couro do doutor. Ele passou os braços em volta dela, beijando o topo de sua
cabeça. 'Sinto muito, Cinder' disse ele.
'Doutor, está na hora' murmurou o Dalek.

Houve um som como o estrondo distante de um trovão. No início, Cinder pensou


que os Daleks tinham feito algo, ativado o Dalek Predador de alguma forma. À
medida que o som ficava mais alto, no entanto, ela reconheceu o familiar chiado
áspero. Alugou todo o ar na câmara de audiência.

'Explique!' gritou o Dalek. 'Explique!'

Cinder sentiu o Doutor apertando-a com ainda mais força pelos ombros. 'Espere!'
gritou ele. 'Não!' berrou o Dalek, enquanto o mundo ao redor de Cinder de
repente começou a mudar. Ela viu rodelas iluminadas cintilando em existência,
substituindo sua visão das paredes brancas e os guardas Dalek.

'Exterminar!' A voz do Dalek soou distante, e ela se encolheu ao som de uma


arma de energia disparando por perto.

O tiro nunca a alcançou, pois as paredes da TARDIS milagrosamente se


fecharam em torno deles, arrancando-os das garras dos guardas Dalek.

Capítulo Vinte e Dois


Cinder observou os arredores com um olhar perplexo e perplexo. Então, em
dúvida, ela deu um tapinha no peito para ter certeza de que era real, e que este
não era, de fato, um sonho bizarro, mas altamente confiável.

Ela estava na TARDIS ao lado do Doutor, logo após a porta. Em um minuto ela
estava cercada por Daleks, preparando-se para morrer; no seguinte, a nave
simplesmente se materializou ao redor deles, arrancando-os das garras dos
Daleks. De onde ela estava, ela podia apenas ver a visão no monitor, que
mostrava Daleks circulando do lado de fora, sem dúvida gritando comandos
raivosos um para o outro enquanto tentavam determinar precisamente o que o
Doutor havia feito.

Ela se assustou quando percebeu que um homem desconhecido estava parado


no console. Ele era moreno e musculoso, com cabelos curtos e olhos azuis
surpreendentes. Ele estava vestido com as vestes de um Senhor do Tempo, mas
elas eram inadequadas e manchadas com manchas escuras de sangue.

'Mas ... mas ... como?' disse ela, olhando em volta para o Doutor.

'Karlax', respondeu o doutor.

O homem no console sorriu com desprezo.


Karlax? Então esse era Karlax? Ela sabia sobre a regeneração dos Senhores do
Tempo, é claro, mas para ver por si mesma, para ver a evidência de uma
mudança tão profunda - sua mente vacilou. Ela perdeu o fôlego. 'Então foi você
quem nos salvou?' Ela se perguntou se talvez a mudança tivesse sido mais
profunda do que meramente cosmética. Será que esse novo Karlax desenvolveu
uma consciência, bem como um novo rosto?

'Não por escolha' disse Karlax, dissipando imediatamente essa teoria.

'Eu destranquei a porta da Sala Zero antes de deixarmos a TARDIS,' disse o


Doutor. 'Eu sabia que, se tivesse meia chance, Karlax tentaria escapar. Portanto,
certifiquei-me de que a rota do voo estava definida para o dispositivo de
rastreamento que ele plantou em você em Gallifrey. Assim que ele a ligou ...'

'Ela veio em nosso resgate' concluiu Cinder.

'E agora é hora de terminar o trabalho', disse o Doutor. 'Para levar Borusa para
o Olho.' Ele começou a avançar, mas parou quando Karlax circulou por trás do
console, segurando uma pistola.

'Não é assim que isso vai acabar, Doutor', disse ele.

Os ombros do doutor caíram. Mais do que tudo, ele parecia desanimado, como
se esperasse mais de Karlax, como se tivesse esperança de que talvez as coisas
não fossem acontecer assim.

'Ele salvou sua vida, Karlax' disse Cinder. 'Ele arrastou você dos destroços de
sua TARDIS danificada quando poderia ter deixado você lá para morrer.'

'Ele sempre foi um velho tolo sentimental', disse Karlax. 'Nunca foi capaz de
entender quando tinha vantagem tática.'

“Karlax. Abaixe a arma ', disse o Doutor, razoavelmente. 'Tenho um plano para
deter os Daleks. Podemos terminar isso assim que você parar com bobagens. '

Karlax balançou a cabeça. 'Você é um criminoso procurado', disse ele. 'Você


traiu os Time Lords. Um traidor. Não posso confiar em nada do que você diz. '

Cinder podia ouvir na voz de Karlax - ele estava completamente perdido. Se era
um sintoma de sua regeneração recente ou simplesmente porque ele finalmente
teve a oportunidade de se vingar do Doutor, ela não tinha certeza. De qualquer
forma, o tremor agudo em sua voz, a maneira animada como seus olhos estavam
correndo, as gotas de suor em sua testa - todos apontavam para o fato de que
ele não estava em seu juízo perfeito. O que, na opinião de Cinder, o tornava
ainda mais perigoso do que o normal. Ele estava imprevisível.

'Esperando agradar ao seu mestre, não é?' disse o Doutor, sua voz cheia de
cinismo. 'Esperando que ele dê um tapinha na sua cabeça e diga como você se
saiu? Vou te contar um segredo, Karlax - ele não se importa. Ele não está
interessado em você e em sua pequena existência chorosa. Ele acha você útil.
Só isso. Quando você se for, ele o substituirá sem um momento de hesitação.
Ele provavelmente já fez isso. '

'Cale a boca' disse Karlax amargamente.

O Doutor apontou o dedo para Karlax, como se o repreendesse. Além disso,


mesmo que consiga o que deseja, será uma vitória vazia. Os Daleks estão vindo
atrás de Gallifrey. Rassilon não vai agradecer por permitir que eles implantem
seu assassino de planetas.

Cinder viu o dedo de Karlax se mexer no gatilho da pistola. Ela podia ver o que
o Doutor estava tentando fazer para minar a determinação de Karlax, mas não
estava funcionando. Ele já estava longe demais.

'Acho que já chega de conversa por enquanto' disse Karlax, sacudindo a arma.

'Ótimo', disse o Doutor. 'É hora de começar.' Ele fez um movimento em direção
ao console. Cinder viu a expressão de puro ódio nos olhos de Karlax, o
movimento repentino e brusco quando ele ergueu a pistola e apertou o gatilho.

'Não!' ela gritou, mergulhando no Doutor e jogando-o sobre ele, de modo que ele
se esparramou desajeitadamente no chão, xingando de surpresa.

O raio de energia da pistola a atingiu logo abaixo das costelas e ela caiu
pesadamente no chão, gritando de dor lancinante. Ela rolou de costas,
arranhando o ferimento com as duas mãos, tentando aplicar pressão. O sangue
bombeou, quente e úmido, jorrando por entre seus dedos enquanto ela tentava
o seu melhor para segurá-lo. Ela engasgou e então estremeceu com a dor
aguda. Seu pulmão direito estava se enchendo de sangue.

O Doutor ficou de joelhos e de repente estava ao lado dela, embalando a cabeça


dela em seu colo. 'Cinder! Cinder! Aguente firme. Ficará tudo bem. Vai dar tudo
certo.'

Cinder abriu a boca para falar, mas o sangue borbulhou de seus lábios,
escorrendo pelo queixo. A dor consumia tudo. Ela mordeu com força, cerrando
os dentes, obrigando-se a ficar acordada, a lutar contra a escuridão que
delineava sua visão.

Ela ouviu Karlax rindo e ergueu os olhos para vê-lo parado diante deles, a pistola
agora pendurada fracamente em seus dedos. 'Ah, Doutor. Seu animal de
estimação parece ter se machucado. Você sempre gostou demais dessas
criaturas humanas.'

O Doutor rosnou de raiva inarticulada e Karlax deu um passo para trás surpreso,
parecendo momentaneamente inseguro, antes de recuperar o equilíbrio. 'Bem,
suponho que comecei o trabalho', disse ele. Ele ergueu a arma, olhando para
ela, como se estivesse em transe com seu poder.

'Por quê, Karlax?' rosnou o Doutor.

'Porque tenho minhas ordens' respondeu Karlax.

O Doutor balançou a cabeça. 'Isso não é motivo o suficiente', disse ele. Olhando
para cima, com os olhos turvos, Cinder viu o Doutor olhar para o console, a
apenas alguns metros de distância.

A respiração de Cinder estava rasa agora, e cada ingestão sacudia seu corpo de
dor. Ela podia sentir-se enfraquecendo.

'É motivo o suficiente para mim', disse Karlax.

O que aconteceu a seguir pareceu a Cinder ocorrer como uma série de imagens
congeladas e gaguejantes. Karlax ergueu a arma para mirar, enquanto o Doutor
cambaleava para a esquerda, seus dedos alcançando os controles da TARDIS.
Ele se virou, batendo com o punho na alavanca de desmaterialização, assim que
Karlax conseguiu dar o segundo tiro.

Os motores uivaram e a coluna central pulsou com luz. O feixe de energia da


arma de Karlax atingiu o console, despejando faíscas no Doutor e fazendo-o
cambalear para trás, amaldiçoando quando as pequenas estrelas brilhantes
picaram as costas de suas mãos.

A visão de Cinder estava nadando para dentro e para fora. Ela não tinha certeza
do que estava acontecendo. A dor estava diminuindo agora, tornando-se uma
névoa distante. Ela se sentia entorpecida e com frio, mas Karlax parecia estar ...
desmaiando de alguma forma, como se fosse ele quem se desmaterializasse,
em vez da TARDIS.

'Não, Doutor! Você não pode me deixar aqui! Não com os Daleks! ' A voz de
Karlax era esganiçada e suplicante.

Ele largou a arma e ela caiu no chão da TARDIS.

'Não é mais do que você merece, Karlax' disse o Doutor.

Com um choque, Cinder percebeu o que estava acontecendo - a TARDIS estava


se desmaterializando em torno de Karlax, deixando-o lá no meio de todos
aqueles Daleks furiosos. Deixando-o para morrer.

Karlax deu um passo à frente, sua expressão cheia de consternação. A carne de


seu rosto adquiriu uma estranha translucidez pulsante. Ele abriu a boca, mas
nenhum som saiu. Ele ergueu as mãos, olhando ao redor com horror ao ver os
Daleks que só ele podia ver. Luzes piscaram ao redor dele quando os Daleks
abriram fogo, seu rosto se contorcendo de dor, e então, tão repentinamente
como se ele nunca tivesse estado lá, ele piscou e deixou de existir, deixado para
trás na estação Dalek enquanto a TARDIS deslizava para dentro o Vórtice do
Tempo.

Com um grunhido, o Doutor cambaleou até onde Cinder estava deitada e caiu
de joelhos ao lado dela. Ele afastou o cabelo do rosto de Cinder. 'Aguente firme.
Pode deixar que eu vou dar um jeito.' Sua voz era um gentil

sussurro, como o vento agitando os galhos das árvores na primavera.

'Não' resmungou ela, com algum esforço. Suas palavras foram suaves e
murmuradas, e o Doutor teve que se aproximar para ouvi-la. 'É tarde demais.'

Ele a encarou. 'Não desista', disse ele. Seu bigode se contraiu. 'Você nunca deve
desistir.' Ele parecia preocupado e havia lágrimas se formando nos cantos dos
olhos.

'A parede da caverna. A pintura' disse ela, entre suspiros curtos e superficiais.

O Doutor balançou a cabeça. 'Não. Essa foi apenas uma das muitas possibili-'
Ele se absteve de oferecer banalidades. 'Fique quieta' disse ele, acariciando a
bochecha dela. 'Vai doer menos.'

'Você disse que eu só atrapalharia' disse ela, forçando um sorriso.

'Oh, Cinder. Mas você fez isso com muito estilo. ' Ele pegou a mão dela e
apertou-a. 'Obrigado.' Ele se virou por um momento, mas então se forçou a olhar
para trás, encontrando o olhar dela. 'Por que você teve que fazer isso? Por que
você teve que ser tão ... humana?'

Cinder tentou encolher os ombros, mas o gesto doeu muito. 'Minha vida em troca
de bilhões de outras pessoas', disse ela, ecoando as palavras anteriores do
Doutor. 'Vou aceitar essas probabilidades.'

Ela tossiu e sua boca se encheu de sangue. Ela fechou os olhos. Ela estava se
sentindo tão cansada, e o Doutor acariciando sua testa era tão reconfortante.
Talvez se ela apenas se permitisse dormir por um momento ...

Quando ela abriu os olhos novamente, um momento depois, ela estava de volta
em Moldox. Ela era uma menina de 6 anos de idade, brincando nos jardins fora
de sua casa. Seu irmão estava jogando nos balanços próximos, gritando de
alegria enquanto se empurrava mais e mais alto. Pela janela da cozinha, ela viu
sua mãe e seu pai preparando uma refeição.

O sol caiu em seu rosto, quente e reconfortante. Pela primeira vez em anos, ela
se sentiu feliz.
Capítulo Vinte e Três
O Doutor emitiu um lamento que estava entre um uivo angustiado e um furioso
grito de guerra. Com ternura, ele abaixou a cabeça sem vida de Cinder no chão
e cruzou os braços sobre o corpo repousante. Seus olhos estavam fechados e
ela parecia em paz, como se estivesse simplesmente dormindo.

Ele se levantou e correu para o console, sua visão turva por lágrimas que se
recusavam a rolar por suas bochechas.

'Doutor?' disse Borusa. A voz dele era profunda e rouca.

O Doutor não ergueu os olhos. Ele estava ocupado definindo uma nova rota de
vôo.

'Doutor?' repetiu Borusa. 'Está na hora.'

'Você acha que eu não sei disso?' retrucou o Doutor em resposta. 'Você não
acha que estou ciente do que deve ser feito?' Seus dedos dançaram sobre os
controles da nave.

No monitor, a visão da câmara de audiência dos Dalek foi substituída pela


tempestade rodopiante do Vórtice do Tempo.

O Doutor olhou para o corpo deitado de sua companheira. Ainda havia tempo.
Talvez, com a ajuda de Borusa, ele ainda pudesse encontrar uma maneira de
salvá-la. Ele não estava pronto para desistir dela ainda.

Ele agarrou-se ao console enquanto a TARDIS se lançava através do envelope


externo do Olho de Tântalus, fustigada pelas tempestades temporais que saíam
de seu ápice.

Nas entranhas do navio, o Sino começou a dobrar novamente. Os motores


uivaram, gaguejando e guinchando em protesto quando o Doutor os forçou a
entrar na anomalia. A integridade da nave estava sendo testada até o limite
enquanto ela tentava permanecer no curso, mergulhando cada vez mais fundo
no Olho.

Algo no console explodiu, enviando uma explosão de faíscas para o ar. Os


minúsculos vaga-lumes em chamas choveram sobre a jaqueta do Doutor,
queimando o couro onde caíram. Ele os ignorou, agarrando-se à borda do
console enquanto a sala começava a tremer violentamente. Os cabos soltos se
soltaram de seus encaixes no teto, balançando soltos como trepadeiras da selva.
Algo redondo na parede à sua esquerda detonou, chamas lambendo avidamente
dentro do invólucro despedaçado.
O Doutor sabia que a TARDIS não aguentaria muito mais, que ele corria o risco
de ela se desfazer nas tempestades, murchando a nada. E ainda assim não tinha
escolha. Foi a única maneira de ele pensar em trazer Cinder de volta.

Ela morreu por sua causa, protegendo-o. Ela era sua responsabilidade, e ele não
podia permitir que isso acontecesse novamente. Não agora. Não Cinder.

Ele olhou para Borusa, que ainda estava amarrado à estrutura de metal do
mecanismo de possibilidade, preso entre dois pilares de pedra do outro lado do
console. Tal como o Doutor previra, Borusa estava começando a absorver a
radiação temporal da anomalia. Seus olhos queimaram como brasas enquanto
ele observava a urdidura e trama do próprio tempo. O ciclo de suas regenerações
estava chegando mais rápido, seu rosto era um borrão bruxuleante, mudando
em seu ciclo em constante mudança. Sua carne agora brilhava vibrantemente
com uma luz interior. Sua proximidade com o centro da tempestade o estava
alterando.

Ainda assim, a TARDIS mergulhou, mergulhando cada vez mais fundo na fenda
espacial.

O Doutor cambaleou ao redor do console, mal conseguindo manter o equilíbrio


enquanto o navio empurrava. Ele estava diante de Borusa, pendurado nos
pilares de pedra para se apoiar. 'Está vendo?' ele gritou, acima dos sons de
dilaceração vindos de fora do navio. 'Você consegue ver um fio de possibilidade
em que ela ainda viva?'

Borusa soltou um gemido baixo, como se o próprio ato de falar fosse demais
para suportar. 'Estou vendo', disse ele. Sua voz havia mudado, separando-se
tanto que agora, com cada palavra, cada uma de suas regenerações falava em
coro. Foi lindo e discordante. 'Eu posso ver tudo.'

O Doutor percebeu, porém, que Borusa estava começando a queimar. A


desarmonia temporal do Olho o estava sobrecarregando, enquanto ele tentava
canalizar todo o seu poder, para abrir sua mente e permitir que tudo fluísse
através dele.

O Doutor só tinha uma chance. Ele poderia salvar Cinder agora. Ele poderia dizer
a Borusa para selecionar aquele fio em que ela sobreviveu, dizer a ele para puxá-
lo para que se desenrolasse e se tornasse realidade, para que a história se
reescrevesse a um ponto onde Cinder viveu e Karlax morreu. Esse era o
verdadeiro potencial do mecanismo de possibilidades. Aproveitando tanto poder,
tanto potencial absoluto, Borusa poderia fazer qualquer coisa. Ele poderia
escolher uma linha do tempo e forjar a realidade em torno dela. Ele poderia tecer
o universo em uma forma diferente, dar vida àqueles que morreram ou tirá-la
daqueles que não eram dignos. Ele era a vida e a morte encarnadas, o portador
do apocalipse, o arauto do esquecimento.
Esta era sua chance de trazê-la de volta, de ressuscitá-la. Ele sempre fez o que
era necessário, o que ninguém mais faria. Ele nunca se permitiu aquele momento
único e egoísta, aquele segundo de fraqueza, em que escolheu o futuro que
desejava , e não o que os outros precisavam dele. Talvez fosse justo que ele
fizesse isso agora, no meio da tempestade. Ele diria a Borusa para fazer isso,
para usar o mecanismo de possibilidade para trazê-la de volta para ele.

'Então...' O Doutor parou. O que foi que ela disse a ele enquanto estava deitada
em seus braços? Minha vida em troca de bilhões de outras pessoas. Isso é o
que ela deu sua vida para garantir. Eles vieram aqui com um único propósito:
impedir os Daleks de exercerem o poder do Olho de Tântalus, de dobrar seu
poder à sua própria vontade, para libertar seu povo e acabar com a ameaça aos
Senhores do Tempo e ao cosmos em geral.

Se ele usasse o poder para isso, o que isso o faria? Ele tinha o direito? Ele sabia,
em seus corações, que não. Se ela estivesse aqui, agora, ela nunca permitiria
que ele fizesse isso, desistisse de sua chance pelo bem de uma vida.

Ele tropeçou quando a sala do console balançou e outro objeto redondo explodiu,
cobrindo-os com fragmentos de vidro quebrado. Borusa rugiu de dor enquanto a
energia correndo por sua mente crescia em intensidade. Ele estava se tornando
um canal para o poder, um ponto focal para toda a energia temporal que fervia
no coração do Olho.

Não havia escolha. Ele tinha que terminar o trabalho e libertar Borusa de seu
fardo. 'Borusa, está na hora. Um trabalho final para o mecanismo de
possibilidades e, então, você estará livre. Temos que destruir os Daleks. Você
deve encontrar um fio de possibilidade em que eles não tenham mais domínio
sobre a Espiral de Tântalus, e seus progenitores de Arma Temporal nunca sejam
dispersos. Destrua o Círculo da Eternidade e sua arma com o poder do Olho.
Limpe-os do universo como se nunca tivessem existido. Faça, agora.'

Borusa jogou a cabeça para trás e gritou com todas as suas muitas vozes. Era
um som que o Doutor sabia que ecoaria por todo o tempo e espaço, e o
assombraria pelo resto de seus dias.

Ao redor deles, a tempestade pareceu diminuir momentaneamente, e então uma


onda de luz saiu do Olho - um pulso temporal; uma única e massiva explosão de
energia que se espalhou para englobar toda a Espiral. Em seu rastro, os fios da
possibilidade foram reescritos.

Frotas inteiras de discos Dalek e naves furtivas se dissolveram quando a luz cor
de rubi caiu sobre eles, queimando-os até o nada.

A bordo da estação de comando Dalek, o Círculo da Eternidade, ainda


descansando em seus pedestais, desapareceu sussurrando, cintilando para a
não-vida como fragmentos de um sonho que se desvanece, apenas meio
lembrado.

Em Moldox e uma dúzia de outros mundos, a última das patrulhas Dalek e suas
hordas de Degradações foram superadas, lavadas em fragmentos de luz diante
dos olhos de seus prisioneiros humanos.

Em segundos, tudo acabou.

A TARDIS, devastada pela tempestade, saiu mancando do Olho por sua própria
vontade, vagando em uma órbita solta ao redor de Moldox. Lá dentro, os restos
do motor de possibilidade chiaram e estouraram, onde antes Borusa havia sido
chicoteado, mas agora não havia mais nada.

O Doutor estava inconsciente no chão sob o console, ao alcance de um braço


do corpo de seu companheiro morto.

Capítulo Vinte e Quatro


O Doutor levou três dias para encontrar a casa. Três dias fazendo perguntas nos
acampamentos humanos em ruínas, viajando entre eles como um nômade. Não
foi fácil descobrir uma trilha que esfriou uma década e meia antes, mas a
persistência o colocou no caminho certo.

Ele havia encontrado registros decadentes em um prédio municipal abandonado,


e Coyne ajudou o máximo que pôde, preenchendo alguns dos espaços em
branco. Quanto ao resto, ele teve que confiar na palavra de estranhos, mas em
seu estado atordoado e jubiloso, eles não pareciam se importar em ajudar um
rosto desconhecido. Ele supôs que o levaram pelo que ele era - outra alma
perdida, vagando de um lugar para outro, em busca de respostas, de um lar. Só
que não era sua própria casa que ele estava procurando.

Ele ficou animado ao ver que os humanos em Moldox estavam lentamente


começando a se encontrar. Os grupos desconexos de lutadores da resistência e
viajantes que haviam ganhado vida durante a ocupação começaram a se fundir,
encontrando força em números, e tentavam tomar medidas para voltar às vilas
e cidades. Sua resiliência foi edificante.

Todas as evidências dos próprios Daleks haviam sumido - os discos, as


patrulhas, os projéteis de mutantes derrotados - tudo, exceto pelos danos que
causaram e os destroços que deixaram para trás.

Os humanos com quem ele falou pareciam confusos. Eles entenderam que
houve uma guerra, que sofrimentos terríveis foram impostos sobre eles, mas o
inimigo parecia distante e esquecido - um sintoma da excisão temporal realizada
por Borusa e do motor da possibilidade.

O tempo serviria de lembrete, supôs o Doutor. O tempo e a ameaça contínua da


guerra ainda grassam nos céus. Não importa o que Borusa tenha feito, os
horrores enfrentados pelas pessoas aqui eram simplesmente terríveis demais
para serem esquecidos por muito tempo. Essas memórias acabariam por vir à
tona, e eles compartilhariam sua dor. Nesse ínterim, no entanto, as pessoas iriam
reconstruir suas vidas.

A propriedade, quando ele finalmente a encontrou, não era nada além de uma
casca queimada. As paredes foram reduzidas a escombros, enegrecidas como
tocos de dentes podres e desiguais. Restos de móveis em decomposição
estavam espalhados pelo lugar, e estava claro que o local havia muito havia sido
saqueado por qualquer coisa valiosa ou útil. As ervas daninhas cutucavam
inquisitivamente a terra fraturada, gavinhas pegajosas circundando fragmentos
de verga quebrada, cadeira quebrada ou cabeceira enferrujada.

Foi um trabalho solene, desenterrar os restos mortais dos outros três humanos -
a mãe, o pai e o irmão de Cinder - que há muito estavam cobertos pela poeira e
detritos da ocupação Dalek. Agora, eles eram apenas ossos e trapos,
espalhados por animais necrófagos. No entanto, parecia certo reunir essa alma
perdida com a família que uma vez a amou, que foi tirada dela por uma guerra
pela qual ela não tinha nenhuma responsabilidade.

Nos registros, ele encontrou evidências de seu nome verdadeiro. Era um nome
lindo e humano e, na morte, ele o devolveu a ela, esculpindo-o no poste de
madeira que encontrou para servir de marcador para seu túmulo. Ele se
perguntou se, quando chegasse a hora, haveria alguém para fazer o mesmo por
ele.

O Doutor parou nas ruínas ao lado do túmulo de sua amiga e olhou para cima.
A noite estava se aproximando e as auroras dançavam hipnoticamente pelos
céus, suas cores exóticas se misturando como óleo se separando na água. Atrás
deles, o Olho de Tântalus lançou seu olhar que tudo vê sobre ele. Ele se sentia
como se estivesse sendo escolhido de alguma forma, como se ele estivesse
sozinho no olho de uma tempestade, o único capaz de ver claramente o caos
que estava envolvendo o universo ao seu redor. Ele viera para Moldox sentindo-
se piegas, mas agora não sentia nada além de uma raiva ardente.

Ele olhou de volta para o Olho, desafiador. A Guerra havia durado muito.
Houveram muitas vítimas, muitas vítimas.

Ele não tinha estômago para o que seu povo havia se tornado. A guerra os
mudou. Seu desespero para sobreviver a qualquer custo, sua arrogância e senso
de direito combinaram-se para conduzi-los ao mais sombrio dos caminhos. Em
algum lugar na linha, eles pararam de valorizar as coisas que deveriam ter
considerado sagradas, as vidas daquelas raças incipientes que os Senhores do
Tempo deveriam estar conduzindo para o futuro, ao invés de casualmente
remeter ao passado.

Seu conflito com os Daleks iria destruir tudo. Toda a criação se encolheu em seu
rastro, e a única coisa que ambos os lados podiam ver era a própria guerra e sua
cruzada interminável pela vitória. Eles tiveram que ser parados antes que alguém
fosse pego no fogo cruzado.

O Doutor levantou a gola do paletó. Ele faria um voto a Cinder e ao que restasse
do universo. Ele acabaria com a longa guerra. Custe o que custar. Ele iria colocar
um fim nisso agora. Era isso. Este foi o dia em que ele traçou a linha.

Um melro estava cutucando a terra recém-revolvida em busca de vermes, e ele


o observou voar para longe no céu escuro, finalmente admitindo a derrota.

Então, finalmente sozinho, ele silenciosamente proferiu sua promessa. Apenas


duas palavras simples, mas pesadas com o peso de sua determinação:

'Não mais.'

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