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NO OLHO DO FURACÃO
— Homem ao mar!
— E o que estão esperando, seus molengas? Ele está afundando! Joguem
as cordas.
— Sim, senhor imediato!
Essas foram as primeiras palavras que Dimitri ouviu ao que parecia ser
muito tempo para ele. A tempestade que se formava era monstruosa, imersa
em ventos traiçoeiros e em ondas do tamanho dos maiores monstros
marinhos. Raios iluminavam os céus noturnos de forma caótica, fazendo
com que as sombras das nuvens se parecessem com os piores pesadelos.
Havia três caravelas ao norte e um navio desconhecido de porte pequeno a
leste. A tripulação a bordo corria de um lado para o outro, seguindo os
comandos de seus oficiais. Amarravam e desamarravam cordas, domando
suas velas selvagens, sem se importar com suas vestes pesadas da água
salgada que inundava o convés. Dimitri era espirituoso e até estaria
animado com aquela adrenalina se não fosse ele quem estava com água até
o pescoço.
— Puxem os cabos, homens!
— Perigo a bombordo, perigo a bombordo!
E tudo tremeu.
O navio virou bruscamente, mas não a tempo de fugir do impacto ao
bater de frente com uma onda feroz. Dimitri debatia-se e nadava com
dificuldade, sendo levado pela maré. Ele lutava contra os espíritos da água e
da correnteza que o puxavam violentamente para as profundezas
desconhecidas do oceano, sem piedade. Gritos. Conseguia ouvir vozes ao
longe, mas eram comandos abafados e sem sentido para ele. Talvez fosse
por causa de seus ouvidos que estavam completamente submersos. Talvez
fosse seu cérebro começando a entregar os pontos para a inconsciência. Seu
corpo cansado fazia de tudo para sobreviver até o último instante, mas não
aguentava mais segurar o fôlego. Era impossível chegar à superfície. Seus
pulmões queimavam e pediam por misericórdia. Seu corpo já não
correspondia, sua alma implorava para se esvair.
Parece tão mais fácil deixar a água entrar...
E Dimitri fechou os olhos, soltando o ar pela boca e deixando o corpo ser
levado pelos espíritos da água.
Naquele momento, cordas grossas foram atiradas e apertadas ao redor de
sua cintura fina. Um rapaz pulou da embarcação e agarrou-o desacordado,
aparentemente. Lutando contra a tempestade, ambos foram resgatados pela
âncora, que subiu lentamente até levá-los de volta ao convés onde o corpo
de Dimitri foi jogado com força contra o chão de madeira. E bateu a cabeça.
Confuso e atordoado, abriu os olhos, mas tudo o que viu foram vultos
curiosos.
— Mas... é um garoto!
Se Dimitri ainda não estava desacordado, foi naquele instante que tudo
ao seu redor escureceu.
2
DIMITRI, O NOVATO
Até aquele ponto da história era difícil para o garoto dizer o que era ou
não verdade, vindo da boca suja daqueles marujos. Ele não conseguia
lembrar muito daquele dia, só das diversas versões modificadas ao longo
dos anos que a tripulação lhe contou. Costumavam dizer que ele estava
mais inconsciente que “marujo bêbado em terra firme”. Por isso, confiem
nas palavras escritas aqui, leitor. Eu lhe asseguro que é a pura verdade, a
versão mais fiel desta história. Afinal, eu vejo tudo, portanto sei de tudo. Se
alguma palavra aqui for mentira… que me matem.
Dimitri foi acordar dois dias depois da grande tempestade, em uma cama
fedorenta e esfarrapada, enjambrada em feno, dentro do depósito de proa do
navio. O garoto abriu os olhos e analisou ao redor. O lugar não era muito
grande e estava lotado de caixas e barris.
Onde..., pensou.
De repente, a figura de um homem alto e magro surgiu a sua frente. Seus
cabelos eram bem aparados e sua pele pálida, debaixo dos óculos de lentes
pequenas e retangulares. Vestia um sobretudo marrom e de costura com um
bom acabamento. Até seus sapatos eram bonitos e engraxados. Na verdade,
foi a primeira coisa em que Dimitri reparou naquela manhã. Tentou levantar
com um impulso, mas o homem dos sapatos foi mais rápido e o empurrou
de volta para a cama.
— Calma, menino. Você bateu a cabeça com força. Precisa descansar.
Com aquele movimento, o garoto sentiu a dor que o consumia e
estremeceu. A sensação era de ter levado uma pancada com um taco de
madeira. Sua cabeça latejava e todos os músculos de seu corpo ardiam de
cansaço. Olhou para seu tronco, para seus pés e para suas mãos que
começavam a entrar em foco. Era quase como se não reconhecesse a si
mesmo. Foi quando percebeu que seu peito estava envolto por bandagens,
assim como sua testa e seu braço direito.
— Onde eu estou? — perguntou.
Era estranho ouvir a própria voz como se não a reconhecesse ou não a
usasse há um bom tempo. Estava rouca e fraca como se tivesse pegado um
resfriado. Percebeu que o homem tinha alguns apetrechos metálicos em
mãos. Pelo visto, era o curandeiro do navio.
— Você estava vagando sozinho em alto-mar. Nós o resgatamos do meio
de um tornado dos grandes. Os deuses tiveram piedade dessa vez —
brincou.
Mas Dimitri não queria saber sobre os deuses. Pelo contrário, estava
mais interessado em saber sobre os humanos que comandavam aquela
embarcação.
— Por que me resgataram? — perguntou.
As peças simplesmente não encaixavam em sua cabeça. Por que teriam
se arriscado apenas para salvar sua vida quando nem o conheciam? Aquilo
não era da natureza humana. Mas a resposta que o curandeiro deu em
seguida, com certeza, não era o que o garoto estava esperando.
— Porque nunca deixamos um homem inocente morrer injustamente,
Dimitri.
— O que você disse?
Dimitri estreitou os olhos em um conflito de emoções entre desconfiança
e surpresa. O homem encarava-o por cima das lentes de seus óculos, o que
dava a ele um ar intelectual. Seus olhos eram muito claros e queriam passar
a sensação de segurança. Mas Dimitri não cairia nessa. Não...
Tem alguma coisa errada.
Aquilo era no mínimo intrigante, levando em consideração que o próprio
Dimitri não lembrava de seu nome. O curandeiro soltou os aparelhos
médicos metálicos e levou a mão até a gola do colete do garoto, que tentou
se esquivar, mas não conseguiu. Ali podia-se ler perfeitamente o nome
“Dimitri” estampado.
— Dimitri.
Isso explicava algumas coisas, afinal.
— É o seu nome, não é?
— Acho que sim — respondeu, dando de ombros.
— Acha?
O garoto podia estar na defensiva, mas com certeza não estava blefando.
— Então, Dimi — o homem começou sondando de forma amigável. —
Posso saber o que você faz em alto-mar nesta época do ano? Sabe que
estamos no meio da estação das tormentas, não sabe?
— Eu estava, eu estava...
O que eu estava fazendo?
Dimitri tentava se lembrar, mas tudo que vinha a sua mente eram flashes
das ondas batendo com força em seu corpo e o sangue se diluindo na água.
Sangue. Seria seu aquele sangue? Ele não conseguia lembrar. Depois de
muito tentar vasculhar o show de sombras que era sua mente, desistiu,
sentindo-se covardemente derrotado.
— ...Não sei dizer.
Em outras circunstâncias, o curandeiro poderia não acreditar naquelas
palavras, mas algo em Dimitri parecia verdadeiro e genuíno, apesar das
memórias falhas dentro de um poço sem fundo. O homem analisou-o,
completamente, por cima dos óculos.
— Curioso. Não encontrei nenhuma fratura ou traumatismo craniano em
você. E meu material é de primeira linha, forjado pelos especialistas de
Montemor.
O curandeiro riu e mostrou suas geringonças médicas com orgulho, mas
Dimitri estava atordoado demais com tudo o que estava acontecendo para
prestar atenção em piadas. Afinal, de que adiantava sua cabeça não
apresentar danos externos se tudo por dentro estava quebrado? Ou pior...
apagado, como se nem tivesse existido.
— Você pode ter sofrido uma perda temporária de memória por conta do
choque. Ao menos sabe seu sobrenome?
— Não.
— Data de nascimento ou qualquer outra informação pessoal?
— ...Não.
O homem dos óculos virou-se desconfortável. Aquilo não era nada bom.
E ele não podia nem imaginar como era estar no lugar de um pobre garoto
que tinha um passado nebuloso. Apesar de todos os acontecimentos
simultâneos em um curto período de tempo, Dimitri não chorava. Ele nunca
chorava. Para falar a verdade, sentia raiva.
Tentando alegrá-lo, o curandeiro tomou a palavra:
— Bom, não sei se posso ajudá-lo quanto ao sobrenome, mas se for de
seu interesse, posso descobrir sua idade.
O homem pegou uma pequena lanterna e aproximou-se de Dimitri, que,
de novo, tentou se esquivar. Que moleque arisco, pensou. Deve ter passado
por coisas difíceis para agir assim. A última coisa que ele queria era deixá-
lo assustado ou inseguro, por isso, com toda a cautela e gentileza, analisou
alguns pontos de seu rosto.
— Levando em conta a pele malcuidada, os traços ainda infantis do seu
rosto e a personalidade difícil de lidar...
— Ei! — reclamou o garoto. Não deixava de ser verdade.
— Eu diria que você aparenta ter uns quatorze anos.
O curandeiro riu e guardou a lanterninha no bolso do seu sobretudo.
Então, acrescentou:
— Um garoto nascido no ano da Fênix pelas minhas contas. Poético, eu
diria.
É, poético, pensou a mente sarcástica de Dimitri. Pena que poesia não
me adianta para nada. Mas, apesar disso, aliviou as feições. Mesmo que
aquilo não fosse verdade, uma idade, um nome poderia ser um bom começo
para alguém que não tinha nada.
Em seguida, o homem das vestes marrons tirou de dentro da bolsa uma
botelha de vidro, forrada em uma capa de couro, e ofereceu para Dimitri, o
garoto de poucas palavras.
— Beba — mandou.
— Não, obrigado.
O curandeiro riu, achando graça.
— Recusa-se a aceitar bebidas de estranhos... bem treinado você.
E ofereceu mais uma vez. Dimitri recuou.
— O que é? — perguntou desconfiado, então agarrou a botelha e
cheirou.
Eca. Pelo cheiro...
— É remédio?
— Não. Mas prometo que vai ajudá-lo a se aquecer.
Depois de segundos de hesitação para confiar ou não confiar em um
completo estranho, Dimitri bebeu, fazendo uma careta ao sentir o gosto
forte e amargo da bebida.
— Pois é, não é para todo mundo. — O curandeiro riu.
— Com certeza não. — Dimitri tossiu uma risada e devolveu a botelha.
Era bom rir novamente. O garoto não lembrava da sensação. Quanto ao
curandeiro, ele deu um sorriso nostálgico ao ver seu paciente minimamente
feliz. Então, levantou-se para pegar sua maleta de equipamentos
orgulhosamente forjados na Capital. Antes de sair, virou-se para Dimitri e
imitou o movimento de uma reverência exagerada, como se estivesse
falando com um lorde famoso ou coisa parecida. Em seguida, suas palavras
saíram com um tom teatral e heroico, o que não combinava nada com
aquela figura:
— Às suas ordens, menino Dimi. Bryce Jonathan King ao seu dispor.
Sou o curandeiro desta banheira.
B.J. King deu uma piscada de olho e estendeu a mão em direção ao
garoto. Dimitri apertou-a, achando certa graça na atuação.
— Mas sem formalidades. Me chame de King.
E empurrou os óculos para perto do nariz, insinuando uma despedida de
curto prazo. Porém, antes que pudesse sair do depósito da proa, ouviu um
sussurro.
— ...King?
— Sim? — O curandeiro virou-se.
Dimitri juntou as sobrancelhas, seus pensamentos ganharam voz alta.
— Quanto tempo acha que vou demorar para recuperar minhas
memórias?
— Eu… — King pensou, desesperançoso. — Eu não sei dizer, garoto.
— Acha que algum dia vou recuperá-las?
Por um breve momento, King sentiu um aperto no meio do peito. Ele
realmente não sabia a resposta para a pergunta. Mas a última coisa que
queria era tirar as esperanças de um rapaz tão jovem. Suspirou confiante.
— A memória é algo curioso. Pode se surpreender com o que ela é
capaz... e sobre o tempo, é só uma invenção humana. Não se frustre com
ele. Não depende do tempo, só de você e da sua vontade para conseguir o
que quer. Está bem?
— ...claro — respondeu Dimitri, frustrado.
Ele sabia que aquilo era uma tentativa falha de enganá-lo com falsas
promessas que nunca seriam cumpridas. Mas Dimitri não tinha como culpar
King. Ele estava fazendo o seu melhor. O curandeiro pareceu perceber. O
rapaz era esperto e pouco iludido. Mesmo assim, fez seu trabalho e abriu
um sorriso para o paciente.
— Até lá, você é bem-vindo para ficar conosco.
Por fim, retirou-se. Dimitri foi deixado para trás naquele cômodo
esquisito e desconhecido com a única companhia que era sua mente
perturbada.
JACK, A TIMONEIRA
— Hã?
Jack, indignada ao ver uma lâmina apontada para si, fez uma careta e
distanciou-se. Aproveitando a deixa, Dimitri levantou, confuso.
— Pensei que Jack fosse o timoneiro.
— Meu nome é Jack e, sim, sou a timoneira. Algum problema com isso?
— Sem problemas.
A timoneira tirou as mechas de cabelo castanho que caíam em frente ao
seu rosto e jogou o colete para longe. Apesar disso, não parecia estar com
calor, porque levava um cachecol verde ao redor do pescoço. Na cintura,
um gancho de escalada. Sem mudar muito a expressão, voltou-se para o
timão novamente, sem dizer uma palavra. Dimitri a seguiu, achando graça.
— Então, você é a tão assustadora Jack? — Riu, pondo as mãos nos
bolsos. — Não sei por que me preocupei tanto.
— Sou uma das comandantes por aqui também. Então, vê se cuida com o
que fala — acrescentou Jack, levantando uma de suas facas no ar.
Dimitri fez uma careta.
— Comandante? Mas você é só uma garota.
— E isso te diz alguma coisa? — Jack levantou a voz, indignada. — Só
por que eu sou mulher eu não posso comandar? Acha que pode fazer
melhor?
— Não. — Dimitri riu. — Não foi o que eu quis dizer. É que você é só
uma criança.
Ouch.
Ela odiava ser tratada como criança. Mas, mais ainda, odiava ouvir de
estranhos que não poderia estar no cargo que ocupava. É, Dimitri.
Começamos bem.
— Eu batalhei muito para chegar até aqui — falou baixinho, para si
mesma.
Dimitri não parecia ter escutado.
— O que você disse?
Jack virou-se, revoltada, fazendo sua franja voar.
— Olha só. Não sei quem é você e, sinceramente, não me importo. Saiba
que eu estou aqui há mais tempo do que a maioria da tripulação. Tenho
mais experiência do que todos os moleques deste navio juntos. Sou a única
em quem o capitão Hall confia como timoneira. E não é um garoto —
empurrou Dimitri — que vai falar assim de mim.
Dimitri levantou as mãos, sarcasticamente, em tom de rendição.
— Tenho que admitir, essa foi a maior surpresa do dia.
— Onde conseguiu o canivete? — perguntou.
— Roubei — respondeu o garoto, dando de ombros.
Jack aproximou-se e analisou o cabelo de Dimitri. Era comprido e sem
corte, na altura do ombro, deixando com que uma franja escondesse um de
seus olhos. Cuspiu uma risada.
— Parece que saiu de um baile de princesinhas.
— Um o quê?
— Como é que disse que se chamava mesmo?
— Não disse.
Jack levantou a sobrancelha, impaciente. O garoto suspirou.
— Dimitri.
— É um nome idiota. Combina com seu corte de cabelo.
Jack bagunçou a cabeleira do garoto.
— Bem melhor assim.
Dimitri, sem jeito, passou a mão mais uma vez pelos fios só para
contrariar o que Jack tinha feito. A timoneira se distanciou, fazendo com
que o novato corresse atrás dela. Ela não parecia se importar se estava
sendo grossa ou mal-educada com ele. E ele, começava a querer fazer o
mesmo. Dimitri não era exatamente o que chamaríamos de cavalheiro. Se
alguém mexesse com ele, não deixava quieto. E Jack, definitivamente,
estava deixando uma primeira impressão e tanto.
— Fui mandado aqui para a apresentação oficial, o que quer que isso
seja.
Jack, que estava com as duas mãos posicionadas no timão, não falou
nada em resposta. Ao invés disso, fixou seus olhos no vasto azul do mar em
sua frente. Havia uma questão que a perturbava, mas ela não falaria tão
cedo sobre. Dimitri, que ainda precisava de respostas, aproximou-se, sem
medo de, possivelmente, levar outra surra.
— O que é esse negócio, afinal?
A garota levantou as sobrancelhas, aproveitando a deixa.
— Toda vez que alguém chega a bordo, tem que passar pela apresentação
oficial. Os novos tripulantes têm que subir até o topo do mastro da proa. Os
covardes são jogados da prancha e os audaciosos que sobem, se chegarem
até o fim, serão bem-vindos como Saqueadores da Barra. Os que caírem no
meio do caminho... — Riu de maneira macabra. — Bom, então não
sobreviveriam aos perigos do mar.
Dimitri e Jack trocaram um olhar misterioso.
— E você, Dimitri? É audaz ou covarde?
Dimi ficou estático e sem palavras. Não era de sua natureza, mas Jack
tinha algo que conflitava de frente com ele. Como se estivesse conversando
consigo mesmo, em um combate de fogo contra fogo. Não se saberia quem
iria ganhar. Então, Jack riu.
— Estou zoando com você. Sempre que um novato chega, meu trabalho
é assustar o pobre coitado.
— Conseguiu.
— Não pode levar tudo a sério por aqui.
Dimitri levantou os olhos para a timoneira e deixou um sorriso escapar.
Jack tem senso de humor, afinal, pensou. Obscuro e maldoso, mas tem.
— Dante disse algo parecido, hoje mais cedo. Disse que nunca devemos
confiar em outro pirata.
— E ele roubou essa fala de mim, claramente. — Jack riu de maneira
contagiante e arrumou o chapéu no topo da cabeça para que o sol não
incomodasse seus olhos.
O mundo pirata não era tão fora da lei quanto era de se imaginar. Na
verdade, seus integrantes haviam feito suas próprias regras e seguiam-nas
cegamente. Um bom homem do mar sempre seguia as Leis da Pirataria. E
Jack não era a pirata mais correta, mas para sobreviver àquele mundo, ela
havia inventado suas manhas. “Nunca confie em outro pirata” era seu maior
lema e o primeiro de uma enorme lista.
— Vem — chamou a timoneira. — Vamos começar logo com isso.
Jack puxou Dimitri pela mão e levou-o até seu posto.
— Esse é o timão. Não o subestime, é o coração do navio. Se ouvir a
palavra “bombordo”, é um comando para a esquerda. “Estibordo”, direita
— explicava, enquanto guiava as mãos de Dimitri. — Entendido?
— Sim, senhora.
— Bom. Aqui onde estamos é a popa, a parte de trás do navio. Lá na
frente é a proa.
Jack puxou Dimitri bruscamente pela mão mais uma vez e levou-o até a
borda do navio, onde havia uma estrutura feita de cordas, que formava uma
escada do chão até as vergas mais altas. Enquanto explicava, os dois subiam
com os cabelos voando contra o vento.
— Esses são os brandais e os cordames. O Nadia Keane é um tipo de
embarcação pequena chamada corveta. Possui dois mastros, um cesto da
gávea e quatro canhões de cada lado. Aquela estrutura comprida na proa é o
gurupé. Dica: nunca suba lá sozinho. A cabine do capitão fica aqui embaixo
e o resto dos aposentos no andar inferior, descendo a escotilha. Lá você vai
encontrar os dormitórios, a cozinha, a enfermaria e outros cômodos nos
quais você é proibido de entrar. No último andar fica o depósito principal
onde guardamos munição, materiais de construção e outras coisas que
queremos manter escondidas.
Dimitri levantou uma sobrancelha, curioso.
— Tesouros?
Jack puxou um sorriso de canto de boca, gostando da audácia.
— Quem sabe...
A timoneira apontou para os céus e Dimitri jogou a cabeça para
conseguir enxergar o topo.
— Cada uma dessas velas possui um nome, mas não adiantaria explicá-
las a você. E lá no topo está a nossa...
— Jolly Roger, a bandeira preta — completou Dimitri.
— ...é.
Jack estranhou os conhecimentos marítimos do garoto. A conversa dos
dois era afiada, mas sutil, como uma batalha entre lâminas cegas. Pensando
bem, ele conseguiu roubar o canivete, ponderou. Quem é esse garoto?
Então pulou dos cordames de volta ao deque, fazendo-o tremer com o
impacto. Mas seus pés caíram perfeitamente firmes no chão. Era sua vez de
recolher informações.
— Você já velejou antes?
Ele não sabia responder aquela pergunta. Eu não tinha parado para
pensar nisso. Será que...?
— Eu...
— Não parece com quem já velejou antes.
E essa foi a deixa para frustrar ainda mais o rapaz.
— Você disse que não vale a pena falar o nome dessas velas para mim —
tomou a palavra, determinado. — E não vale mesmo. Eu sei o nome de
todas elas.
— Ah, é, esperto? — debochou Jack. — Parabéns, você acaba de receber
o selo de bom rato de biblioteca.
Jack era rápida, mas Dimitri não deixaria as coisas daquele jeito.
Apontou para cima, confiante.
— Genoa.
— O que disse?
— O nome daquela vela. Muito útil para controlar o barlavento e o
sotavento.
Jack fez uma careta e limpou o ouvido, pois não acreditava no que havia
ouvido. Dimitri levantou as sobrancelhas, convencido do que estava
dizendo.
— Ainda acha que eu não era um homem do mar?
Por certo instante, podia-se parecer que a timoneira tinha levantado
bandeira branca e se rendido. Até que ela sorriu.
— Genoa é a vela de proa, mané. Essa daqui é a mezena. Conclusão —
deu de ombros, fingindo pena — você não era um homem do mar.
Droga! Dimitri, seu idiota, xingou para si mesmo. Mas é claro que
aquela era a mezena. Tentou esconder a vermelhidão que imaginava que
suas bochechas tinham ficado por trás do cabelo comprido. Isso foi o
suficiente para Jack sair de perto, saltitando. O dia dela acabara de ficar
ainda mais ensolarado, depois de se sentir mais inteligente que outra pessoa.
Então só continuou a tagarelar. Irritar Dimitri tinha virado seu passatempo
favorito, de repente.
— Estão fazendo apostas sobre quanto tempo você aguenta. Eu,
particularmente, apostei três coroas que você não passa de uma semana.
— Eu tenho tanta cara de frouxo assim?
— Mais do que você pensa.
Jack apontou para o pé de Dimitri, que havia ficado pendurando no
brandal por conta das bandagens que levava. Ele, de bochechas rubras de
constrangimento, tentou arrumar o mais rápido possível. Jack deu uma
risada. Dimitri desviou o olhar por não saber mais o que argumentar com
aquela garota maluca. Ele sabia reconhecer uma derrota e, naquele dia, foi
dele. A timoneira suspirou.
— Acho que meu trabalho acabou por aqui.
— Beleza. — Dimitri estendeu a mão. — Foi, hã... um prazer te
conhecer.
— Sei. — Jack apertou sua mão, mas logo soltou. — Já conheceu o
capitão?
O novato lembrou de algo que havia ouvido mais cedo naquele dia,
dentro do depósito da proa. O imediato comentara com King algo sobre o
capitão não estar muito bem humorado ultimamente. Dimitri queria
perguntar para Jack o que ela sabia sobre aquilo, no entanto, não achou que
tivesse intimidade ou sequer direito de tocar no assunto. Nem ele era tão
sem noção assim. A garota retomou a palavra.
— Aproveite enquanto pode. Ele é tipo barco pirata com bandeira de
navio mercante — falou em tom de contadora de histórias.
Essa era uma tática muito utilizada pelos navios piratas. Alguns
escondiam suas bandeiras pretas e substituíam-nas por outras para chegar
mais perto dos portos sem serem reconhecidos. E, quando era o momento
certo, atacavam. Jack pendurava-se no timão, com o corpo baixo e voz mais
baixa ainda.
— Ele fica só na espreita e quando você menos espera...
Ela estava só esperando o momento certo.
Botas pretas engraxadas e de fivelas polidas caminhavam pesadamente,
atravessando o convés. Seu barulho surdo pisando o chão, abria espaço por
entre os marujos presentes, que recuavam assustados. Um homem vestindo
um longo sobretudo preto caminhava em direção ao deque superior da
popa.
— AHÁ!
A timoneira apontou a faca para o peito de Dimitri, que se assustou com
o movimento e caiu para trás. Então, apontou a lâmina em direção aos céus
e gritou.
— Iça sua Jolly Roger, atacando o inimigo e...
No momento que Jack levou a faca para a frente, as risadas murcharam,
instantaneamente. De repente, o ar parecia esfriar, e o vento era o barulho
mais alto que se podia ouvir. De resto, estava tudo em silêncio. Um silêncio
tenebroso. Dimitri estava caído no chão e a primeira coisa que viu em sua
frente foram as fivelas de ouro. Levantou seus olhos, cada vez mais,
acompanhando todo o corpo do sujeito alto em sua frente, até se deparar
com a figura mais assustadora que já vira. Era um homem vestido todo de
preto, como uma sombra. Era elegante, mas de uma maneira mortífera, com
os cabelos pretos e lisos que iam até o pescoço. Tinha uma aparência
fantasmagórica, apesar de ser jovem, com seus trinta e dois anos. Seus
olhos cinzentos destoavam na pele muito pálida e sua expressão era de ódio.
Dimitri, prontamente, apoiou-se nos cotovelos a fim de dar impulso ao
corpo para ficar de pé. Então percebeu que o chapéu que o sujeito levava no
topo da cabeça era bem maior que o dos outros. Percebeu também que
usava um anel com uma pedra vermelha no dedo indicador da mão direita, a
mão que mirava uma espada comprida e pontiaguda na direção de seu
pescoço.
Jack engoliu em seco e bateu continência. Quem seria aquele que fazia
até Jack, a Bruta, estremecer?
— Capitão.
6
Pergaminho Perdido 1
- Sistema de Moedas de Aklas -
SISTEMA DE COROAS
Coroa Real: moeda de ouro, utilizada apenas pela família real e
monarcas = 50,00
Coroa Média: moeda de prata, utilizadas pela elite da cidade e oficiais
da marinha = 5,00
Eu estou sonhando?
— Não. NÃO!
Uma onda gigante bateu com força contra o navio e uma das vergas
acabou por se soltar, atingindo Dimitri na barriga. O garoto voou para
longe, sentindo a água gélida do Mar Real abraçar seu corpo. Mas, desta
vez, ele não estava sozinho.
— DIMITRI!
E a voz chamava. Seria uma voz conhecida? Dimitri tinha certeza de que
já ouvira antes. Ou seriam seus delírios? Enquanto afundava, seu cérebro já
não tinha tanto oxigênio quanto antes. Talvez fosse isso.
— Dimitri — a voz chamava.
O ar deveria estar deixando seus pulmões, mas, por alguma razão,
Dimitri conseguia manter os olhos abertos e respirar. De ponta cabeça,
deixando o oceano moldar o seu corpo, olhou ao redor. Estava submerso e
as águas estavam calmas.
Não estava tendo uma tempestade?, perguntou-se.
De repente, uma figura estranha aproximou-se. Uma mulher. Seus olhos
magenta brilhavam em neon, hipnotizando-o. Ela era muito bonita, mas
algo em sua beleza parecia mortífero, letal. Dimitri tentou se afastar, mas
seu corpo permaneceu imóvel e de nada adiantaram seus esforços. Quando
mirou seus olhos para baixo, percebeu que seus braços e pernas estavam
presos ao resto de seu corpo, envolto pelos fios de cabelos pretos da mulher
misteriosa.
Ela sorriu e passou uma das mãos macias pelo rosto de Dimitri.
— Quantas memórias atormentadoras... não sei por que sente tanta falta
delas.
— Quem é você? — perguntou o garoto.
A mulher riu e nadou ao seu redor.
— O que importa aqui é quem é VOCÊ.
— DIMITRI! — a voz chamava.
Dimitri arregalou os olhos e olhou ao redor, mas não viu quem o
chamava. A mulher misteriosa ergueu uma das sobrancelhas, como se
tivesse descoberto um segredo.
— Dimitri? — Ela se aproximou. — É um belo nome... será que
pertence mesmo a você? Ou é só uma ilusão que você criou? Uma âncora
para se segurar?
— O que você quer?
Ele estava assustado, mas escondia muito bem. Para falar a verdade, a
curiosidade e a desconfiança eram maiores do que o medo.
— Nada. — A mulher deu de ombros. — Só estou checando sua cabeça
e os danos que foram causados. Pelo visto, o trabalho foi bem-feito.
— Danos? — Dimitri olhou confuso. — Quer dizer o que aconteceu com
as minhas memórias? O que sabe sobre isso? Elas vão voltar?
A mulher suspirou e revirou os olhos, passando seus cabelos por toda a
extensão do corpo de Dimitri.
— Você faz as perguntas tão erradas... não existe resposta certa para o
que você quer saber. Mas, por enquanto, vamos manter as coisas como
estão.
Ela aproximou-se do rosto de Dimitri e agarrou seu queixo. Dali, de tão
perto, ele conseguia ver dentro dos seus misteriosos olhos e era como um
universo inteiro. Um universo sombrio de buracos negros que poderiam
sugá-lo a qualquer instante.
— Digamos que você saber a respeito do seu passado não seria
conveniente para mim.
— Conveniente? Quem é você?
— DIMITRI! — a voz chamava.
Mais uma vez, o coração do garoto disparou e Dimitri olhou ao redor,
tentando encontrar a origem daqueles chamados. Onde está, onde...
A mulher levantou as sobrancelhas e esboçou um sorriso.
— Ele está chamado. Dimitri.
ROTINA DE CONVÉS
Kim, como sempre, foi a primeira a pisar seus pés no convés. O sol
estava recém-nascendo no horizonte, quando a contramestre soou o gongo.
Em poucos minutos, o deque estava cheio de marujos sonolentos,
começando a se preparar para suas tarefas diárias. Dante puxou uma flauta
transversa do bolso e começou a tocar, ao passo que Jonas ainda se
espreguiçava em um canto. Caspar chegou descabelado e sem bandana,
escondendo o rosto da claridade. Estava um trapo. Jack, com os olhos
envoltos em olheiras, chegou ao seu lado com o cabelo e a franja
arrepiados. Era difícil dizer qual dos dois estava em pior condição.
— Eu vou matar a Kim — reclamou a timoneira. Ela era conhecida por
seu mau-humor de cão logo pela manhã.
Caspar bocejou.
— Já temos pouco tempo para dormir, porque nos acordar meia hora
antes? Por quê? — reclamou o loiro, fazendo drama.
— Bom dia!
O rapaz da pólvora e a timoneira deram um pulo de susto ao sentirem
uma mão nos ombros vinda por trás. Poeta apareceu pelas costas dos
amigos, sorridente e bem-disposto. O sorriso dele deu nos nervos de Jack.
— Ah... — Respirou fundo. — Não é bom levantar com o sol para
aproveitar o dia ao máximo? Me sinto um novo homem. Que bom que o
capitão aprovou minha proposta.
A sobrancelha de Caspar tremelicou.
— Proposta?
— Sim — respondeu Poeta, sorridente e orgulhoso do bom trabalho e
das mudanças que estava fazendo no Nadia.
— ...Mas é claro que foi ideia sua. — Caspar esfregou os olhos.
Jack estava prestes a soltar fumaça pelas orelhas.
— Argh, você é o próximo da minha lista — bufou para Poeta, irritada.
Mas antes que pudesse planejar as várias maneiras de matar Poeta em
sua cabeça, a timoneira arregalou os olhos ao lembrar de algo,
aparentemente, muito importante. Bateu na testa.
— Ah, droga! Esqueci que tenho que entregar o relatório de rota para
Hall até ao meio-dia.
— Parece que temos muito trabalho pela frente. — Poeta piscou o olho
para a amiga. — Que bom que acordamos meia hora mais cedo.
Jack levantou o punho.
— ...é sério. Eu não controlo meus músculos pela manhã e não me
responsabilizo pelo estrago que eles podem fazer.
— Pivete da pólvora! — gritou Kim, do outro lado do convés.
Caspar apontou para o próprio peito, como se não tivesse entendido que
era mesmo com ele que ela falava. Resmungou e virou-se para Jack.
— O dever me chama. O último que terminar as tarefas limpa as
espinhas de peixe para o almoço.
— Fechado.
A timoneira trocou um toque de mão molenga e cansado com o amigo, o
que foi a deixa para os dois irem aos seus postos. Jack usou seu gancho de
escalada para voar até o timão, e Caspar correu ao encontro de Kimberly,
que logo jogou um balde e um esfregão em sua direção. O loiro apanhou os
utensílios de limpeza, todo desastrado.
— Oh, qual foi?
— Está atrasado — reclamou a contramestre.
Caspar não perdeu a oportunidade e mandou um sorriso provocante para
a colega.
— Ah, então você percebeu. Sentiu minha falta?
Kim revirou os olhos e bufou.
— Cadê o novato?
— Primeiro dia atrasado... que vergonha — zombou Caspar.
Dimitri chutou a escotilha, com preguiça, e chegou ao convés, vestindo
suas roupas novas. Caspar foi o primeiro a perceber o que, com certeza, foi
o fator principal para que a atenção de todo o resto da tripulação se
direcionasse para o novato. Caspar assobiou e bateu palmas.
— Ei, olha o cara! Todo estiloso. Agora sim se parece com um pirata
“folgado”. — Riu o loiro. — Entendeu? Folgado!
E apontava para Dimitri e suas calças largas demais.
— Engraçado... Apa meio que insistiu. Ela disse que não tinha nada do
meu tamanho.
Caspar aproximou-se para analisar melhor. Então indicou a regata.
— Pois é. Essa camisa daí era do velho Aiko, se não me engano. Se deu
bem, era cheia de furos debaixo das axilas.
Dimitri fez uma careta e deu uma rápida olhada debaixo dos braços.
Realmente ainda tinha furos nas axilas, apesar de Apa ter tirado a maioria
deles quando cortou as mangas. Caspar era um ano mais velho que Dimitri
e, no mínimo, um palmo mais alto. Com aquelas roupas, grandes demais
para o corpo magro de Dimitri, a diferença de idade parecia muito maior.
— E EU MANDEI PARAR? — gritou Kim para os criados de bordo,
interrompendo a conversa.
O rapaz da pólvora resmungou e voltou ao trabalho, fugindo da
contramestre que se aproximava em direção ao novato. Então fez sua
famosa jogada de balde e esfregão.
— Dimitri, limpe o convés e revise os cabos.
— Sim, mestra — respondeu Dimi, de bochechas vermelhas. Kim tinha
esse poder sobre os garotos.
A contramestre suspirou e esfregou os olhos com os dedos.
— ...sim, eu sou sua mestra, mas não me chame assim. Seu turno começa
quando o sol nasce e termina quando ele se põe. Nada mais óbvio de gravar
na memória. Portanto, atrasos são inadmissíveis e resultarão em punições.
— Sim, senhora — respondeu Dimitri, tentando controlar o rubor das
bochechas.
— ...não me chame de senhora — Kim xingou, mas logo se acalmou,
respirando fundo. — Você tem horário de folga na hora do almoço e trinta
minutos durante a tarde.
— E o café da manhã?
— Você perdeu o horário — respondeu, séria.
Ao ver os olhos assustados e confusos de Dimitri, Kim puxou um sorriso
e tirou uma maçã do bolso, jogando em direção ao novato.
— Valeu... — Dimitri retribuiu, envergonhado. Kim suspirou.
— Enfim, quero ver esse deque brilhando no fim do dia. — Então
voltou-se para Caspar, aumentando o volume da voz. — E você, vê se
mostra onde ficam os cabos para o novato.
— Mais algum pedido especial, milady?
Caspar pulou para perto da ruiva e fez um bico com os lábios. Kim fez
uma expressão de repugnância e empurrou o colega para longe.
— Quando terminarem, contem a quantidade de caixas de suprimentos
que há no depósito da proa e levem lá para baixo. Quero que separem
perecíveis de não perecíveis.
Ao terminar de falar, Kim encarou Caspar em tom de desafio.
— Tem mais alguma coisa para falar?
Caspar fechou a expressão, claramente derrotado, mas sem querer dar o
braço a torcer. Kim puxou um sorriso e virou-se para ir embora, quando o
loiro chamou sua atenção mais uma vez.
— Contar as caixas é trabalho do Zuca!
— E seu trabalho é me obedecer. Que fique bem claro, isso é uma ordem
e não um pedido, fedelho. Se não terminarem tudo antes do anoitecer, vão
ter que lavar as redes no fim de semana. — Voltou-se para Dimitri. — E
você, espero que tenha entendido o recado.
— Sim, mestra. — Engoliu em seco. — Quer dizer... senhora.
SENHORITA.
A contramestre deu uma risada abafada e se retirou.
— Eu adoro meu trabalho.
Kim não admitia a ninguém além de si mesma, mas adorava ser
contramestre e mandar nos outros. E adorava mais ainda ser temida pelos
mais novos que ela. Sinceramente, pelos mais velhos também. Já de longe,
fez um sinal com os dedos para indicar que estava de olho nos dois garotos.
— Ela é sempre assim? — perguntou Dimitri.
— Quer dizer uma gata raivosa? — Caspar parou para pensar, pondo o
polegar apoiado no queixo. — Ah, é. É sim.
— EU OUVI ISSO!
Em seu formato astral, um polvo gigante criou vida para fora do mapa e
nadou até as mãos de seu pai, Leros, o deus dos monstros marinhos. Leros
envolveu-o em suas mãos fechadas em formato de concha e guardou-o com
todo carinho dentro do bolso.
— Não é seu momento ainda, meu filho.
Umma tinha os olhos fixos na bola de cristal flutuante em cima da mesa.
Não os desviava por nada, pois, do outro lado da bola, estava a imagem de
Dimitri.
— Não é bonito?
Tachi, o deus do sono, riu provocante.
— Engraçado você dizer isso, Umma.
— É um humano! — menosprezou Leros.
Umma não se dava ao luxo de perder tempo ou ouvidos com as bobagens
de seus irmãos. No lugar, apenas sorriu.
— Exatamente, irmãozinho. Não é bonita a fragilidade dos humanos?
Como uma palavra, a pequena fração de uma oração pode mudar tanto a
cabeça deles...? Confundir seus sentidos?
— O rapaz é forte — disse Sarab.
A deusa das tempestades tinha voracidade nos olhos ao responder:
— É o que vamos ver.
MADAME RUSSO
Poeta apontou para o desenho de uma ilha no mapa. Dimitri fez uma
careta.
— Eu só perguntei que horas são.
— E eu te fiz um favor — respondeu Poeta, orgulhoso. — Todo pirata
deve conhecer o mapa mundi — olhou para o relógio. — E são nove e
meia.
Caspar bufou.
— Obrigado pela aula, colega. Agora, você bem que podia dar uma
mãozinha, não é?
Fazia uma hora que o Nadia Keane havia ancorado na praia principal de
Calamari. O navio havia sido retirado da água e preso na areia por cordas e
estacas, pois seu casco estava infestado de cracas, o que relentava a viagem.
Por isso, restava para os criados de bordo, que estavam quase perdendo seus
braços, raspar as malditas conchinhas. Os garotos estavam sem camisa por
conta do calor que fazia e tinham bandanas amarradas nas testas. Caspar
ensinou a Dimitri seu segredo. Aquilo ajudava a enxugar o suor.
— E fica com menos cara de fracote na frente das meninas — explicou.
Patrick Hall era o único que ainda não tinha descido em terra firme,
desde que haviam chegado. Apesar do calor que fazia, não abria mão de
suas botas de couro ou de seu casaco comprido. Tudo por uma boa
aparência. Quando o relógio bateu nove e meia, o capitão pulou do convés
para a praia.
— Quero tudo limpo até meio-dia! — ordenou.
Não parecia estar muito de bom-humor. Mas... quando é que ele estava,
afinal?! Caspar raspava as cracas como um profissional e Dimitri estava
começando a pegar a manha. Tinha que ir, uma por uma, colocar a espátula
debaixo e fazer pressão. Volta e mexe, algum dos dois se cortava, mas fazia
parte do trabalho. O que realmente era revoltante, era ver Poeta, sereno, de
pé, ao lado dos dois. Magro daquele jeito nem para servir de sombra.
— Tarefa idiota, sol idiota... — reclamava Caspar.
— Está fazendo exatamente trinta e oito graus — disse Poeta.
Caspar e Dimitri levantaram os rostos em direção ao colega e,
naturalmente, suas expressões transformaram-se em caretas. Poeta não
percebeu, estava entretido demais mexendo em seu termômetro.
— Não, espera... — Checou mais uma vez. — Trinta e nove.
Os garotos resmungaram de cansaço e voltaram a raspar as malditas
cracas.
— Ei, por que você não está trabalhando? — perguntou Caspar. Ele, com
certeza, era o mais revoltado com a situação.
Poeta tirou as luvas e levantou os dedos no ar, mexendo-os de forma
irritante.
— Sou o cara dos mapas, esqueceu?! Tenho que cuidar das minhas
preciosas mãos.
— Tem razão — concordou Dimitri, sarcasticamente. — Suas mãos vão
cair se você trabalhar com os criados de bordo. Muito cauteloso você.
— Obrigado, Dimitri — respondeu Poeta, fazendo uma expressão de
“toma essa” para Caspar. Caspar devolveu com uma que dizia,
silenciosamente, você ainda vai me pagar, seu almofadinha.
Enquanto o sol era um fardo para alguns que trabalhavam e suavam ao
comando de Patrick Hall, era também uma luz no fim do túnel. Uma luz
que iluminava aquele colírio para os olhos.
Calamari era conhecida no mundo inteiro por ser uma ilha tomada por
piratas. As Ilhas do Sul não tinham controle sobre o local, pois Calamari
ficava no Mar Castanho e fazia parte das terras do Oriente. E o Oriente, por
sua vez, não tomava esforços para se intrometer. Assim, piratas de todos os
quatro cantos do mundo navegavam até a ilha, fosse para trocar
informações ou tesouros, fosse para descansar e beber. Sua floresta tropical
era densa e pouco explorada, habitada por nativos, enquanto a bela praia era
praticamente propriedade de uma figura peculiar, chamada Madame Russo.
Ela era dona da taverna e da estalagem mais populares da ilha. Todos
conheciam Madame Russo. Ela era um ícone da pirataria.
— Vejam se não são os meus meninos!
Madame Russo foi caminhando pela praia e aproximou-se do Nadia
Keane. Tinha alguns cabelos brancos da casa dos cinquenta anos
começando a nascer e usava seu vestido típico, seus colares, brincos e
chinelos de dedo. Que ícone.
— Bem-vindos a Calamari — anunciou, literalmente, de braços abertos.
— Madame Russo, é um prazer vê-la de novo. — Zuca abraçou-a. —
Linda como sempre.
Madame Russo deu um tapa amigável no ombro do marujo e suas
bochechas ficaram rosadas.
— Ora, deixe de ser galanteador, homem.
Então seus olhos voltaram-se para o outro pirata ao seu lado. O homem
das vestes pretas que fingia indiferença e não fazia contato visual de
maneira alguma. Madame arqueou as sobrancelhas.
— Patrick Hall... — começou e deu um sorriso. — Tentou deixar a ilha,
mas a ilha só fala de você.
— Bom vê-la também, Madame — respondeu, sem graça, coçando a
ponta do nariz.
Madame Russo fez uma careta.
— Deixe de bobagem e me dê um abraço! — ordenou e puxou o capitão
para seus braços em um caloroso cumprimento de verdade.
Hall ficou todo vermelho.
— Pronto, agora sim!
Madame sorriu satisfeita e Hall se distanciou, arrumando as vestes que
tinham ligeiramente amassado. A senhorita Russo olhou ao redor, contente
por ver o Nadia Keane mais uma vez em sua ilha. Fazia tempo, afinal. Mas
ela também sabia que aquela visita não era para matar as saudades. Nunca
era. Mesmo assim, não perderia a oportunidade de ficar por dentro das
fofocas de suas vidas no mar. Passou seus olhos pelos Saqueadores da Barra
e voltou-se para os dois companheiros.
— No que andam se metendo, garotos? — perguntou, com as mãos nos
quadris. — Só ouço falar de vocês, ultimamente. Os Saqueadores da Barra,
aqueles que nunca são pegos... devem estar cheios de histórias para contar.
Zuca deu de ombros.
— O mesmo de sempre. Roubos na capital...
— ...saques de navios... — completou Hall, analisando as unhas.
— ...perseguição da marinha...
— ... fãs... fãs mulheres... — citou o capitão.
Madame Russo intrometeu-se entre os dois e agarrou-os pelos ombros.
Ela era muito afetuosa. Do jeito dela. Zuca e Patrick Hall encolheram-se de
susto.
— Quer saber?! Por que não colocamos a conversa em dia lá na taverna?
Tragam as crianças!
Caspar, Dimitri e o resto das “crianças” obviamente estavam o tempo
todo ouvindo a conversa escondidos atrás do casco do navio. Ao ouvirem o
chamado, Jack envolveu todos em um abraço. Dimitri ficou com as
bochechas amassadas entre Jack e Poeta, sem entender absolutamente nada
do que estava acontecendo. A timoneira pisou em seu pé.
— Sorriam — mandou.
Dimitri fechou ainda mais a expressão. Kim revirou os olhos. Patrick
Hall esfregou as pálpebras, tentando fazer de tudo para fugir daquela
situação.
— Na verdade, estamos só de passagem.
Madame Russo deu uma gargalhada. Ela não era facilmente enganada.
— Patrick Hall só de passagem? Ahá!
Empurrou todos os marujos, contra a vontade deles, em direção à sua
preciosa taverna.
— Eu insisto.
14
WINIKENEKE
Por outro lado, era um alívio estar longe de todo o furdunço da pirataria.
Na verdade, era uma bênção para os ouvidos, mas principalmente para o
nariz. A oeste de Winikeneke, havia uma praia menor e pouco
movimentada. Os únicos corações pulsantes naquela areia gélida da noite
eram os de Caspar e Aran.
Os dois caminhavam lado a lado, chutando conchinhas com os dedos dos
pés e rindo um do outro.
— Quer dizer que ele se escondeu por uma semana?
— Pensamos que ele tinha ficado na ilha.
— Não acredito!
E os dois rolaram de tanto rir. A noite estava fria para um ano de verão
como aquele, mas Caspar sentia seu corpo aquecido por dentro. Aran
irradiava energia.
Caspar respirou fundo e limpou uma lágrima do olho.
— Ah, Poeta... que figura. Você tinha que conhecê-lo algum dia.
— Eu ia adorar — respondeu a garota.
Ela tinha um brilho nos olhos. Caspar viu-se hipnotizado por eles e,
quando percebeu que estava perto demais, virou o corpo de frente para o
mar tentando esconder o rubor das bochechas. O silêncio constrangedor
voltou entre os dois, apesar de Aran estar achando aquilo tudo muito
engraçado. Caspar coçou a nuca e bagunçou a franja, tentando pensar em
alguma coisa para falar. Alguma coisa que não fosse muito imbecil, pelo
menos.
— O mar, à noite, não parece muito mais assustador? — começou,
olhando para a frente.
Aran seguiu seu olhar até o horizonte azul. Suspirou.
— Não acho. — Então fez uma careta para o rapaz da pólvora. — Por
quê? Você está tentando me assustar só para chegar mais perto de mim?
— O quê? — Caspar sentiu o rosto queimar de vergonha e riu para tentar
esconder. — Pff... não. Pensando bem, agora que você falou, teria sido uma
boa ideia.
Aran riu tímida.
— Você é fofo. Se não estivéssemos nessa situação, seria até romântico.
Caspar fez uma careta, confuso.
— Situação?
Foi como um furacão. Antes que o loiro pudesse perceber o que estava
acontecendo, Aran pulou em cima dele, dando-lhe um golpe certeiro e
prendendo seu braço. Quando Caspar se deu conta, estava completamente
indefeso.
— Se não estivesse perdendo feio para uma garota.
As coisas estavam começando a ficar interessantes. Caspar entrou na
brincadeira.
— Quer lutar? Cai dentro!
Aran deu de ombros.
— Você que pediu.
Caspar, que havia aprendido algumas técnicas com Jack, reverteu o golpe
rapidamente, imobilizando Aran que tinha seu rosto a centímetros da face
de Cas. Ele não conseguiu segurar o sorriso.
— Belos golpes. Parece que você não é só um rostinho bonito.
Aran arqueou uma das sobrancelhas.
— Você me acha bonita?
E foi a vez dela de revidar. Com um golpe só, a garota desvencilhou-se e
prendeu Caspar com força perto de si. Faltavam poucos milímetros para
seus narizes se tocarem. Ambos estavam ofegantes e o ar quente que saía de
suas bocas misturava-se, entrando em choque com aquela noite tão gelada.
Estavam tão perto um do outro que Caspar podia sentir as vibrações, as
batidas do coração de Aran. Podia sentir a energia que corria solta entre os
dois. Ela estava com os cabelos loiros bagunçados e os olhos confusos por
ter sido surpreendida. A flor tropical de seu cabelo já não estava colocada
perfeitamente atrás de sua orelha, agora ela caía para o lado. Mesmo assim,
Aran estava linda demais. Sua silhueta era contornada pela luz da lua que
brilhava ao fundo. A respiração de Caspar começou a falhar, mas dessa vez
ele não sorriu. Parecia como um ímã. Ele precisava chegar mais perto. E
mais perto. E...
— Eu preciso ir.
De repente, Aran pôs suas mãos no peito de Caspar para impedi-lo de se
aproximar mais. Foi como um balde de água fria, difícil de lidar. Mesmo
assim, Caspar tentou esboçar um sorriso.
— Que pena...
Aran olhou triste para Caspar e a sensação de suas mãos desencostando
de seu corpo foi como o pior dos castigos. Como se a barreira que segurava
o calor dentro de seu corpo quebrasse de repente, deixando o frio entrar. A
garota caminhou para longe pela areia, seus pés indo de encontro com as
ondas fracas que chegavam na praia. Suas roupas brancas voavam com a
brisa de verão como se quisessem fazer parte da própria noite. Aquela visão
deu um aperto do peito de Caspar. Ele simplesmente não conseguia vê-la
indo embora daquele jeito. Respirou fundo e estufou o peito.
— Acha que vamos nos encontrar de novo? — gritou enérgico.
Aran, surpresa, virou-se para trás, fazendo seus cabelos e vestes voarem
a favor do vento. Não importava o quanto ela tentasse esconder, havia um
sorriso em seus lábios. Pôs uma mecha para trás da orelha e gritou de volta.
— Quem sabe?! — E piscou um dos olhos.
Caspar tinha um ar melancólico.
— Desculpe, mas é muito irritante ver você indo embora.
— Irritante? — Riu Aran. — Que jeito esquisito de descrever uma
despedida.
— Despedida... — bufou o garoto. — Esse sim é um jeito irritante de
descrever isso.
Aran mirou seus olhos em Caspar. A empatia que transmitia era
acolhedora demais. Caminhando devagar, aproximou-se mais uma vez do
rapaz. Então pôs seus dedos polegares em cima de suas pálpebras.
— Fecha os olhos — sussurrou. — Feche os olhos e não os abra em
hipótese alguma. Não importa o que aconteça.
O garoto obedeceu, baixando as pálpebras por um instante. Mas sua
curiosidade sempre falava mais alto. Caspar abriu um dos olhos com uma
careta.
— Pra que isso?
Aran puxou um sorriso no canto dos lábios e mexeu as sobrancelhas.
— Manter o mistério — respondeu.
Caspar estreitou os olhos.
— Você é uma sereia, é?
— Essa é sua teoria? — Aran riu.
— Ou você é uma sereia... ou vai me matar, também é uma opção. —
Deu de ombros.
— Ah é. — Aran entrou na brincadeira. — E sumir com o corpo depois.
Os dois riram, deixando os sorrisos morrerem aos poucos na escuridão.
Aran fechou a expressão e pôs as mãos nas bochechas de Caspar. Respirou
fundo.
— Confia em mim?
Ele queria tanto, mas tanto manter os olhos abertos. Ao invés disso,
apunhalou seu coração e fez o que Aran mandou. Mesmo sem enxergar
nada, Caspar conseguia sentir. O calor das mãos em seu rosto. Cada... Vez...
Mais... quente. Seus lábios tocaram os de Aran sutilmente como um véu de
seda. A onda de energia que percorreu seu corpo foi eletrizante. Mas durou
apenas um instante. Um pequeno instante que se perdeu no meio de muitos
outros logo que ela se afastou. Foi como uma facada. Doía demais esse
curto espaço de tempo em que seus lábios deixavam de se tocar. Sentiu
Aran encostando sua testa na dele e as palavras seguintes foram fracas
como um sopro da brisa.
— Até breve, rapaz da pólvora.
Em um instante ela estava ali, no outro, era como se tivesse virado parte
do mar. Como uma sereia.
18
EPISÓDIO UM
20
Diga “rubi”.
— RUBI!
Os dias passavam-se lentamente a bordo do Nadia Keane. Desde a volta
de Calamari e a inesperada aparição de John Kirk, uma nuvem de tensão
pairava sobre os marujos. Tamanha tensão que só poderia ser quebrada por
uma sessão de fotos entre Poeta e Cesco.
Poeta esperou o filme da câmera sair pela fenda de cima. Ele mesmo
construiu aquela maravilha da ciência com os materiais que tinha no seu
estoque. Em seus anos de convivência com Senhor Donvar, o homem que
praticamente o criou, Poeta havia estudado todo o tipo de coisa, inclusive a
genialidade das máquinas que capturavam imagens e congelavam o tempo
para sempre. Ele era maravilhado por elas. Balançou o filme no ar, até que a
imagem de um Francesco sorridente aparecesse na superfície.
— Olha só! Você se saiu muito bem nessa.
Cesco, contente, pegou a foto nas mãos.
— Sabia que tinha feito um bom negócio comprando esse dente de ouro!
— Só falta perder um dente para colocá-lo no lugar — brincou Poeta,
arrependendo-se em seguida.
A sessão de fotos ocorria em um canto do convés ao lado do depósito da
proa. Apa, com ajuda de Ted, havia montado um toldo improvisado, pois,
de acordo com Poeta, se o filme da câmera fosse exposto à luz, queimaria.
Como nenhum deles tinha sequer conhecimento no assunto, resolveram
acreditar no garoto. E a fila que se estendia era enorme. Pelo visto, todos
queriam uma foto tirada pelo Poeta. Dimitri observava tudo atrás de Caspar,
que esperava sua vez chegar. Não sabia exatamente o que estava fazendo
ali, mas como havia recebido ordens para participar, não havia questionado.
Cutucou o colega.
— O que está rolando?
Caspar virou a cabeça para trás e sussurrou de volta:
— Poeta está renovando as fotos da tripulação para o diário de bordo
dele. — Sorriu animado. — Ah, é minha vez!
— Tá, mas e...
— Vai ter que perguntar para o “senhor pérolas brancas” ali. — Caspar
apontou para trás de Dimitri e correu para dentro do depósito de proa.
Dimitri nem precisou se virar para saber de quem o rapaz da pólvora
estava falando. Respirou fundo e direcionou-se para Dante e seu sorriso
alinhado demais.
— Dante — chamou, mas parece que Dante estava ocupado demais para
ouvir. Ele estava assoviando. Dimitri bufou e chamou-o de novo. — Ou,
Dante!
O montador parou a melodia, de repente, e voltou seus olhos para baixo,
abrindo um largo sorriso. Tão largo que Dimitri tinha certeza de que era
aquilo que estava fazendo sombra em seu rosto.
— Ah. Oi, rapazinho! Nem tinha visto você aí. Tão pequeno...
— Sei — o rapaz respondeu cerrando os dentes. — Escuta, por que estão
nos chamando para dentro daquela sala?
Dante olhou para o depósito da proa.
— O capitão convocou Zuca para interrogar os tripulantes.
Dimitri juntou as sobrancelhas, confuso.
— Interrogar?
MARCA DE NASCENÇA
O PLANO
Algumas testas se pecharam e agora Kim poderia ter seu sono de beleza.
23
HÁ FANTASMAS NO CORREDOR
Não era bem aquilo que Dimitri imaginara. Kim não parecia ser do tipo
cuidadora, mas lá estava ela, com um pano no rosto do novato, limpando
sua ferida. Bem onde Patrick Hall havia acertado com o punho mais cedo,
estava tomando uma cor arroxeada. Ele tinha acertado o soco bem na
mandíbula de Dimitri, que segurava um pano menor perto do nariz para
evitar sangramentos. Tentava evitar grandes fiascos, mas Kim não se
importava se estava sendo bruta ou não quando chegava perto do
machucado.
— Ai — reclamou, baixinho.
— Engole esse choro.
— Eu não estou chorando!
Kim levantou uma das sobrancelhas e encarou Dimitri, sem acreditar em
suas palavras. Dimi desviou o olhar com medo de estar talvez lacrimejando.
— Não se preocupe, foi só um corte — explicou Kim. — Vai inchar,
mas, em uma semana, deve estar sarado.
A contramestre levantou-se para ir até um cesto que guardava bandagens
e curativos colantes. Quando voltou, apoiou o corpo para a frente, ficando a
centímetros do rosto de Dimitri, para colar um curativo no machucado.
Dimitri sentiu um calor percorrer seu corpo até pousar em suas bochechas
completamente vermelhas. Kim deixava-o nervoso. A contramestre passou
os dedos por cima do curativo para a cola fixar e distanciou-se novamente
para guardar a bagunça que tinham feito.
Dimitri pôs as mãos geladas acima das bochechas a fim de aliviar a
vermelhidão de vergonha. De repente, um pensamento passou por sua
cabeça.
— Odeio quando ele me chama de covarde.
Kim suspirou, já sabendo sobre o que aquela conversa tratava.
— Não liga. A maior das covardias se apresenta quando um cérebro é
pequeno demais para responder com palavras e resolve pôr a
responsabilidade em seus punhos. Hall é o capitão, mas ele também é um
enorme covarde.
Dimitri riu.
— Covardão.
Ela é o máximo, pensou Dimitri. Aquela era uma das coisas que o garoto
mais admirava em Kim, o fato de ela ter um cargo tão importante como o de
contramestre e saber reconhecer que seu superior é um inútil.
— O pouco tempo que estou aqui, percebi o quanto ele odeia a ideia de
estar errado, não é? — começou o garoto, pensativo. Ele começava a
entender quem era Patrick Hall. — Ele me quer como inimigo e isso não vai
mudar nunca na cabeça dele, não importa o que eu faça. Ele vai fazer de
tudo, esperar a menor das oportunidades para me atacar.
Kim deu uma leve risada.
— Você até que é bem observador.
— Você que disse que eu estava nadando com tubarões...
Então ele lembra da nossa primeira conversa, pensou Kim. Para alguém
sem memórias, o garoto tem uma capacidade impressionante de guardar
informações.
— Falando nisso — continuou o novato — tenho quase certeza de que
ele mandou alguém me espionar para tentar provar que eu sou o informante.
— Ah, sou eu.
— QUÊ? — Dimitri arregalou os olhos. — VOCÊ?
— Nunca disse que eu não era um dos tubarões. — Kim deu de ombros,
apesar de Dimitri estar completamente chocado.
Pelo visto ele não é tão observador assim, a garota riu internamente. Ela
continuava sendo a mais esperta do quarto.
— Então, realmente estava me seguindo.
E eu nem percebi, pensou Dimitri, irritando-se por ter baixado a guarda.
— Não posso dizer que confio totalmente em você, mas também não
aprovo o jeito que Hall lida com seus sentimentos, transformando-os em
rixas pessoais. Como se o mundo estivesse contra ele. Tão infantil...
Dimitri levantou a cabeça para estancar o sangue.
— E ele me escolheu como saco de pancadas.
— Se prefere enxergar desse jeito.
Tinha algo de confortante naquele momento tão estranho. Foi a primeira
vez que Dimitri sentiu que tinha um amigo de verdade dentro do navio,
apesar de tudo. Kim podia ser fechada, mas ele também era e, mesmo
assim, não havia máscaras ou barreiras entre eles. Foi a primeira vez que
Dimitri baixou sua guarda desde que chegara.
Mas todo segundo, não importa o quão infinito ele seja, acaba em algum
momento. De repente, Kim fechou a expressão e uma sombra percorreu seu
rosto.
— Não chame mais atenção para você.
Dimitri estreitou os olhos, estranhando a mudança repentina de humor.
Suas barreiras ergueram-se rapidamente. Kim suspirou e continuou.
— Sei que já teve essa conversa com King antes, mas...
— Espera, como...
— Mas dessa vez sou eu que te peço.
Suas palavras saíram com tanta seriedade que a confusão que se criou no
cérebro de Dimitri deu-lhe dor de cabeça. No entanto, havia algo de
genuíno. Dimitri era muito bom em detectar mentiras e Kim
definitivamente não estava mentindo naquele momento.
— Não queira Patrick Hall como seu inimigo.
Inimigo, aquela palavra era forte. No fundo ele sabia. Ela era a espiã de
Patrick Hall, desde o primeiro dia. E ele era o espionado. Fechou a
expressão. Tarde demais, Kim.
— Não vou deixar que falem daquele jeito comigo — disse o garoto.
— Dimitri...
— Não vou deixar ele me humilhar. Eu não vou ser mais um dos
covardes dele.
— É bom estar vivo se quiser recuperar as suas memórias!
As palavras de Kim surtiram o efeito desejado. Dimitri calou-se no
mesmo instante, juntando as sobrancelhas, confuso.
— E por que você se importa?
— Saiba sobreviver no mundo que você escolheu, garoto.
— Só que eu não escolhi estar aqui!
— Você é muito imbecil.
Dimitri fez uma careta. A contramestre suspirou e baixou o tom de voz.
O que falou em seguida, deu um nó ainda maior no garoto.
— O dia em que quiser ir contra ele, faça direto um motim. Eu serei sua
aliada. Mas não o provoque enquanto ele está no cargo de capitão. Quando
se der conta, estará amarrado pela âncora, morto nas profundezas.
Um tanto desconfortável, Dimi assoprou a franja e cruzou os braços.
— Pensei que tinha dito que alguém tinha que pô-lo no lugar — lembrou
as palavras da própria contramestre.
— Mas imagino que até um mal-agradecido como você tenha algum
amor pela própria vida — respondeu Kim.
Dimitri sentiu-se desarmado mais uma vez e, então, percebeu que a ruiva
olhava nostálgica para os pés no chão. Um pouco receoso, perguntou:
— E você?
— Amor pela própria vida? — Kim cuspiu uma risada banhada em
sarcasmo. — Nah, isso não combina muito comigo.
Uma risada surgiu no canto da boca dos dois, mal iluminada pelo
lampião que começava a falhar. Kim levantou-se e pôs as mãos na cintura.
— E não se anime muito. Ainda não vou tirar os olhos de você...
informante.
— Mas eu não...
Kim estendeu a palma da mão no ar, interrompendo-o.
— Mantenha suas palavras para si. Deixe que eu tome minhas próprias
conclusões. Se você for inocente, eu saberei.
E deu uma piscada de olho que fez as bochechas de Dimitri corarem
instantaneamente. Caminhou até a saída, pouco antes de ouvir aquela voz,
uma última vez.
— Kim — Dimitri chamou-a decidido.
A contramestre virou-se, suspirando. Ela já sabia o que ouviria em
seguida. Dimitri levantou o rosto.
— Eu não vou ficar quieto. Se ele me ameaçar, eu vou revidar.
Que cabeça dura, revirou os olhos incrédula.
— Boa noite. E vê se não se perde no caminho para os dormitórios,
novato. Têm fantasmas por aí.
Fantasmas de todas as formas e tamanhos. O mar é o palco perfeito para
histórias de dormir e canções de ninar. Dimitri deixou que Kim
desaparecesse de vista para deixar o pano de lado e mexer nos armários
médicos de King. Ervas, remédios, aparelhos científicos demais...
...um bisturi.
Roubou a faquinha discretamente e a pôs no bolso. Desde que Zuca tinha
confiscado seu canivete, ou melhor, o canivete de Caspar, ele estava
completamente desarmado. E um navio pirata não parecia o lugar ideal para
estar de mãos vazias. Depois de ter certeza de que ninguém o havia visto,
fechou a porta da enfermaria e saiu corredor afora.
Pouco antes de ser emboscado.
Algo pesado apertou-lhe o pescoço, um braço enorme. Dimitri tentou se
desvencilhar, puxar sua arma, mas quando foi contra-atacar e cortar a mão
do desgraçado, teve uma bela surpresa. Arregalou os olhos.
Não havia uma mão ali.
Lars, o Atroz, prensou-o contra a parede com força. Dimitri ficou com os
pés suspensos, sendo difícil de respirar. O velho pirata analisou-o de cima a
baixo, até ver o pequeno bisturi que segurava. Soltou uma risada.
— Você tem belos instintos assassinos, moleque.
— Me solte — rosnou Dimitri. — Antes que...
— Você me espete com o palito de dente? Não me faça de palhaço.
Apertou-o ainda mais.
— Daria um ótimo bucaneiro...
Bucaneiro?
— O que você quer?
— Que trabalhe para mim.
Dimitri observou com cautela todas as suas brechas de escape. Até que
encontrou a perfeita.
— ARGH!
Deu uma joelhada no meio das pernas de Lars e passou o bisturi
levemente por seu pescoço, conseguindo uma boa margem para se soltar.
Ofegante, encarou-o nos olhos.
— Não trabalho para ninguém.
O velho pirata, que estancava o sangue com sua única mão, soltou uma
risada.
— É uma pena. Juntos poderíamos, quem sabe... acabar com um certo
capitão.
Dimitri juntou as sobrancelhas. Então, é disso que se trata. Ele quer se
livrar do Hall. De repente, as palavras frescas de Kim lhe tomaram os
ouvidos.
Saiba sobreviver no mundo que você escolheu, garoto.
— E o que eu ganho com isso? — perguntou, sem abaixar o bisturi.
Lars, o Atroz, puxou um sorriso.
— Uma dica sobre as suas memórias.
Um aperto no peito. Minhas memórias. Baixou a cabeça, sentindo uma
tontura. Ele queria tanto saber, mas tanto. Não... Tirou os pés do chão.
Aproximou-se e levantou os olhos, ficando frente a frente com aquela
figura tão assustadora.
— Nunca mais me tome para idiota.
Lars franziu a testa ao ver o incêndio que havia causado dentro daquele
garoto. Dimitri encarou-o, falando por entre os dentes.
— Da próxima vez que o fizer... eu vou matá-lo.
E saiu em direção aos dormitórios como se nada tivesse acontecido com
as mãos e um bisturi dentro dos bolsos.
Lars, o Atroz, passou a língua pelos dentes. Agora era pessoal.
Você desafiou a pessoa errada, moleque.
24
INOCENTE OU CULPADO?
— Olha lá o traidor!
A raiva tomou conta do peito de Dimi, fazendo as pequenas risadas e
toda a tristeza mergulharem bem fundo no oceano de seu corpo. Dimitri
sentiu os punhos formigarem de inquietação. Quem tinha gritado era Jonas
por entre um trigo que mascava com seu dente de ouro. Antes que pudesse
pensar, seus pés viraram para a direção do pirata.
Kim disse para eu não comprar briga com o capitão, mas não mencionou
nada sobre marujos velhos e bêbados.
Encheu os pulmões.
— Ei, se quer insinuar alguma coisa, venha dizer na minha cara, velhote.
Todos calaram-se imediatamente. Desde a noite anterior, alguns haviam
ficado apreensivos sobre o comportamento rebelde de Dimitri. Cesco foi o
único a criar coragem.
— Menino Dimitri, ele não quis dizer isso, sabe...
— Não, eu entendi bem o que ele quis dizer — Dimitri falou de olhos
baixos escondidos pela franja. Então levantou a cabeça e, em suas pupilas,
um brilho sarcástico reinava. — Ele acha que eu sou o informante. Sabe, eu
não sou de comprar briga e nem quero brigar com nenhum de vocês. Mas
também não sou de ficar calado quando falam de mim. Acha que eu não sei
o que todos aqui pensam?
Não chame mais atenção para si mesmo. Dimitri grunhiu, contendo-se.
— Pois bem, mantenham para si mesmos.
E foi assim que Dimitri, o cabeça quente, controlou bem seus nervos e
voltou a trabalhar perto de Caspar. Não que Kim tivesse mudado suas
opiniões, mas agora era questão de honra. Queria provar a si mesmo que ele
não era aquilo que falavam. Até que Jonas gritou em resposta.
— Chegou aqui querendo ditar as regras, não é, garoto?
Dimi cerrou os dentes. Controle-se.
— O que mais pretende fazer?
Apertou as unhas contra as mãos. Ei, controle-se.
— Estou falando com você, INFORMANTE!
Sem pensar, Dimitri bateu seu esfregão contra a perna, quebrando-o ao
meio em uma estaca de madeira. Seu coração estava batendo com tanta
força que não conseguia mais ouvir seus pensamentos. Sua respiração
ensurdecia-o. Quando virou, havia fogo em seus olhos.
— Já disse — marchou rapidamente em direção a Jonas — que EU NÃO
SOU O INFORMANTE!
Levantou a estaca no ar, mas antes que pudesse atacar o velho pirata,
Cesco e Dante partiram para cima do garoto, segurando seus braços. Jonas
tinha uma expressão de desespero no rosto e a respiração de Dimitri estava
tão intensa, que chegava a assoprar suas mechas de cabelo para o alto. Sua
testa suava frio. Seu coração iria saltar para fora do peito. A dor de cabeça o
deixava atordoado. Se não fosse pelo almirante e pelo montador, ele não
sabia dizer do que teria sido capaz. Cesco e Dante demonstravam nas linhas
de expressões o medo que sentiam naquele instante decisivo. Dimitri
encarou Jonas por um longo tempo, a íris de seus olhos, as pupilas, até ver
seu próprio reflexo neles e surpreendeu-se com o que viu.
Os olhos de um assassino.
Em um ponto não muito longe dali, estava Lars, o Atroz, observando
tudo com sua mão mexendo em algo no bolso. O que ele fez comigo?
— Eu não sou o informante!
Os pelos das orelhas de cada um dos marujos arrepiaram-se ao ouvir
aquela voz. Uma voz misteriosa ecoando de algum lugar não muito distante.
Uma voz... feminina. Caspar olhou para os lados, e o resto dos marujos
soltaram-se para procurar. Corria da esquerda para a direita, de proa a popa,
olhavam para os céus. Dimitri, em choque e perplexo consigo mesmo,
soltou a estaca no chão.
— Vocês também ouviram, não é? — perguntou Dante, ofegante.
— Parecia uma moça — Cesco respondeu. — Mas...
— Se você chama aquilo de moça...
Caspar estava pendurado na borda do navio e tinha os olhos vidrados em
algum lugar do oceano. Curiosos, todos os outros atropelaram-se para
chegar perto e ver do que se tratava. Então olharam além da borda.
— Ele tem razão, sabe?
Sentada em uma pedra, no meio do mar, lá estava uma das garotas mais
bonitas que Dimitri já tinha visto. Sua pele marrom brilhava com o sol e
seus cabelos ondulados pelo sal do mar faziam as mechas pretas e roxas
enrolarem entre si. Nos pulsos braceletes, no pescoço um grosso colar. Seus
olhos pretos, cor das maravilhosas pedras ônix, eram envolventes e sua
boca risonha, pintada com algum tipo de batom escuro, levava uma corrente
presa do lábio ao lóbulo da orelha. Mas isso não era o mais estranho. Logo
abaixo da cintura, havia barbatanas e uma cauda preta. Uma cauda de
sereia.
Ela enrolava os cabelos.
— Não pode haver dois informantes nos onze mares, eu ficaria muito
chateada.
Dimitri estreitou os olhos, sem acreditar no que via.
— Quem é você?
— Eu? — A garota deu um sorriso misterioso. — Eu sou a informante.
25
COMPANHEIROS DE CELA
Caspar era muito mais forte que Dimitri, mas Dimitri era muito mais
esperto. De qualquer forma, o loiro amarrou os pulsos do colega um no
outro atrás das costas para levá-lo até o calabouço. Obviamente, Dimitri já
tinha dado um jeito de se soltar, mas só para não desanimar o rapaz da
pólvora, ainda fingiu estar amarrado. Caspar parecia estar se divertindo um
bocado com a situação.
— Que situação. — Ele ria. — Eu já imaginava que você seria preso em
algum momento, mas nunca pensei que seria por conta de um esfregão.
— Cala a boca, são só cinco horas.
— E deveria ser mais, transgressor — Caspar brincou.
Logo que pisaram naquele andar escuro e úmido, Dimitri teve uma
surpresa. Passou seus olhos pelas grades e correntes, sem acreditar que
aquilo era realmente um cômodo do Nadia Keane.
— Quando Hall disse calabouço...
— Pois é, era exatamente o que ele queria dizer. — Caspar voltou a
empurrar o colega. — Pensou que estava indo para uma casa de banho?
E foi posto atrás das grades. O rapaz da pólvora fechou a quarta cela com
Dimitri dentro e pôs as mãos nos bolsos, dando um suspiro.
— Você ficou bem aí dentro.
— Não vai nem trancar?
Caspar deu de ombros.
— Não vou mentir, eu perdi a chave, mas sei que não vai sair daí. Você
se faz de rebelde, mas é um cara justo.
Então algo ali perto chamou a atenção do loiro. Alguém na cela logo ao
lado.
— Ih, olha. Parece que você tem companhia.
— Olá, rapazes — disse Rizo.
Caspar aproximou-se, puxando conversa indiscretamente.
— Então, Rizo. Sereias — começou, ridiculamente. — Vocês devem ter
muitos contatos por aí, não é? Por acaso, bem por acaso mesmo, você
conhece uma Aran? Cabelos loiros, meio baixinha...
Enquanto explicava, fazia mímicas. Mas não foi disso que Rizo riu.
— Aran? — Cuspiu uma risada. — Foi isso que ela te disse? Quanta
criatividade...
— Ei, não zomba dela!
— Não estou zombando dela, estou zombando de você. — Rizo deu de
ombros e respirou fundo. — Mas sou só uma sereia, como vocês todos
insistem em dizer. Eu posso estar blefando, mentindo — provocou —, ou
não.
27
A PRIMEIRA MISSÃO
Toma!
Dimitri, literalmente, usou sua carta na manga. Com um ataque especial,
fez sua jogada de mestre para acabar com o oponente de uma vez por todas.
— Krauk, com 30 de velocidade e 43 de força. — Cruzou os braços,
confiante.
Caspar olhou para o desenho estampado na carta. Era de um polvo
gigante de cinquenta tentáculos e cinquenta olhos. Aquele era para ser o fim
do jogo, mas Caspar não sabia a hora de desistir e apenas fez uma careta.
— Ahá! Boa tentativa, Dimi — levantou uma de suas cartas no ar —,
mas o meu Megalodon ganha desse seu polvilho de meia tigela.
Jogou a carta na mesa, contra-atacando.
— 38 de velocidade e 27 de força.
O rapaz da pólvora tinha um sorriso largo no rosto, então foi a vez de
Dimitri fazer uma careta. Inclinou-se para a frente, levou as duas cartas para
perto do rosto e estreitou os olhos. Convencido de que estava certo, puxou
um leve sorriso no canto do lábio e jogou-as de volta na mesa.
— Não é o que os números mostram.
— Já olhou para o tamanho dos dentes do meu tubarão? — perguntou
Caspar, indignado. — Aposto que isso, os números não mostram.
— Se é assim, eu posso usar os tentáculos para esmagar esse seu
peixinho! — provocou Dimitri, entrando na briga.
Poeta, que estava no papel de “jogador passivo”, apenas suspirou,
observando aqueles dois brutamontes sem cérebro brigando por conta de
uma partida de cartas. Fez uma careta para o novato.
— Parece que alguém ficou viciado neste jogo. — E pegou uma carta do
baralho.
— Por acaso você não leu as regras? — Caspar partiu para cima de
Dimitri.
— Você que me ensinou a jogar! — respondeu o novato, levantando uma
sobrancelha. — E para constar, sim. Eu li as regras.
Óbvio que ele leu, pensou Poeta.
Caspar bufou.
— Golpe baixo, meu irmão. Golpe baixo.
— Poeta — chamou Dimi.
Poeta levantou a cabeça, cansado.
— ...você decide.
— É — concordou Caspar. — Você decide, colega.
Apesar do impulso e da urgência em conseguir respostas, os dois
estavam nervosos para saber quem iria ganhar aquela partida.
Se a carta dele for melhor na força do que a minha, com certeza eu vou
perder, Dimitri calculava as probabilidades.
Só espero que ele não jogue nada com mais presas e dentes do que eu,
era a única coisa que Caspar tinha em mente.
E Poeta estava se divertindo um bocado com a situação. Pegou uma de
suas cartas e, com um sorriso cínico no rosto, jogou-a na mesa. Dimitri e
Caspar pularam um em cima do outro para tentar ver.
E lá estava. O desenho de um homem com um chapéu de três pontas na
cabeça.
— ZACHARY BONES? — os dois gritaram, indignados.
— Um pirata a ser contemplado — respondeu Poeta, confiante. — 13 de
velocidade e 15 de força.
Caspar aproximou-se de Zachary Fracote Bones, tentando controlar o
tique nervoso de sua sobrancelha.
— ...Você está me zoando. Eu tenho cara de idiota para você?
— Poeta... — Dimitri fez o mesmo, sem acreditar. — Uma sardinha teria
sido uma escolha melhor.
Mas o moleque dos mapas parecia satisfeito, quando deu de ombros.
— Em uma batalha de monstros literários, o pirata de verdade ganha. —
E jogou o resto de suas cartas na mesa. — Fim da história, ganhei.
— BUUUU! — vaiou Caspar. — Chato!
— E Bones foi o maior caçador de tubarões da segunda geração —
respondeu, pegando a carta de Caspar entre os dedos para provocá-lo.
Caspar virou a cara, claramente derrotado.
— Sem graça.
Alguns subiam nos cordames, outros sentavam nas vergas, tudo para
poderem ver melhor o tão esperado destino a sudoeste. Mas, pelo visto, suas
expectativas estavam altas demais. Rosto a rosto, as expressões foram
murchando. Caspar pendurou-se na borda do navio, inclinando-se para a
frente com uma careta.
— É só isso? Viemos até aqui para isso?
Ansiando por ruínas majestosas da antiga Cidade de Volta, aquilo
realmente era um pouco decepcionante. Em sua frente, apenas uma torre
inclinada por conta de uma embarcação naufragada em cima de uma pedra
ao seu lado. Cobertas por algas e mariscos, parecia mais um pedaço de lixo
jogado no oceano do que já fora uma construção digna do centro do mundo.
E os murmurinhos tomavam conta.
— Não pegamos a rota errada?
— O capitão deve estar maluco.
Dimitri aproximou-se e viu mais de perto. Ao contrário dos outros
Saqueadores da Barra, Dimi nunca tinha visto grandes coisas na vida e
aquela belezinha em alto-mar, para ele, era no mínimo intrigante. Talvez
por isso, tenha percebido.
— É uma torre. — Apontou para o mar. — O resto deve continuar lá
embaixo.
Caspar arqueou as sobrancelhas para o colega.
— E desde quando VOCÊ se anima com esse tipo de coisa?
Dimitri sorriu radiante, sentindo a adrenalina correr, e voltou-se para o
convés. Neste mesmo momento, Patrick Hall surgia em meio à multidão. Se
fosse possível, ele parecia ainda mais emburrado do que de costume.
— Homens — chamou atenção. — Devem estar se perguntando o que
estamos fazendo aqui.
Dante levantou a mão.
— O que estamos fazendo aqui?
E Hall já estava acostumado a ignorar o montador e suas perguntas.
— De acordo com a nossa... — limpou a garganta com desdenho —
visitante imprevista, embaixo de nossos pés jaz parte da lendária Cidade de
Volta, que afundou antes mesmo da Grande Guerra.
— E o que temos a ver com isso? — perguntou Ted, levantando sua
colher de pau. — Pensei que íamos atrás do nosso tesouro.
— É — concordou Jonas, indignado. — Estamos perdendo tempo!
O soar do gongo ensurdeceu todos os presentes que tamparam suas
orelhas o mais rápido possível. Era de se esperar que Kim havia se
aproveitado mais uma vez da situação, mas o responsável, desta vez, era
outro. Zuca havia batido com seu próprio punho, ordenando todos a se
calarem imediatamente.
— Deixem o capitão falar!
Funcionara. E Hall não foi uma exceção. Eram poucas as vezes que via
Zuca daquele jeito. Demorou alguns instantes para se recuperar do choque e
voltar a falar.
— Para que consigamos informações confidenciais sobre John Kirk e os
Chapéus Verdes, temos a missão de encontrar um outro tesouro — explicou.
— Um bracelete para ser mais específico. Vou mandar duas pequenas
equipes de campo, assim poderemos acabar com isso até o meio-dia. —
Apontou para os escolhidos. — Caspar, Kimberly...
Caspar pôs as mãos na cintura.
— Já gostei.
— ...Jacqueline e... — Hall respirou fundo — o novato.
Dimitri arregalou os olhos e apontou para o próprio peito, surpreso.
— Eu?
— É — bufou o capitão. — Você.
O garoto sabia que, provavelmente, Patrick Hall já havia se arrependido
da escolha, mas, de qualquer forma, era sua primeira missão no Nadia
Keane e, como Rizo havia sugerido, ele aproveitaria a viagem e qualquer
oportunidade que surgisse em sua frente. Era sua chance de mostrar seu
valor.
Apa, com as feições preocupadas, foi de encontro ao capitão.
— Espera, mas por que temos que mandar as crianças?
— Parece que o bracelete está em uma sala que serve como um bolsão de
ar debaixo d'água — esclareceu Hall. — Uma sereia não conseguiria se
locomover em terra sem ajuda. E os tripulantes mais novos têm mais
energia e, por serem menores, mais chances de conseguir entrar.
O pulmão de Caspar esvaziou por um segundo.
— Espera, está me dizendo que essa coisa fica debaixo d'água? —
perguntou, exaltando-se. — Como vamos fazer para chegar até lá?
Mas Patrick Hall também tinha suas cartas na manga.
— Poeta!
28
RUÍNAS DE VOLTA
A Cidade de Volta era conhecida por ser grandiosa e bela. Mas suas
ruínas eram como um reino amaldiçoado. Dimitri e Caspar nadavam
diretamente para a escuridão. Quando já era praticamente impossível de se
enxergar, os garotos ligaram suas lanternas embutidas nos óculos e
continuaram em frente.
Foi a surpresa do que viram em seguida que fez com que Dimitri soltasse
o ar. Dois rapazes pequenos estavam em frente à arquitetura de gigantes.
Em frente aos seus olhos, havia uma parede imensa sem início ou fim. Por
toda a sua extensão, havia gravuras feitas em pedras de todas as cores e
escrituras antigas. Quanto mais iluminavam, mais podiam ver. Não tardou
para que Caspar levasse um susto com o desenho de um tubarão.
Enquanto o colega se recompunha, Dimitri apontou para cima,
visualizando o que parecia ser um pequeno bolsão de ar. Os dois deram
impulso e chegaram na superfície para respirar. Dimitri tossiu água e pôs os
cabelos molhados para trás, animado.
— Você viu aquilo?
Caspar não tinha a mesma energia.
— Se você está falando da parede gigante e assustadora, sim, eu vi!
— Devem ser escrituras originais da Cidade de Volta... — Dimitri
pensava em voz alta, passando a mão pela enorme parede.
— Acha que conseguimos ler? — perguntou Caspar.
Agora que as coisas começavam a ficar interessantes. Os rapazes
mergulharam de volta para a penumbra abissal e cada um iluminou uma
parte diferente. Dimitri tentou decifrar aquelas letras, enquanto Caspar deu
o azar de levar outro susto. Dessa vez com uma cobra marinha. Os dois
voltaram para respirar.
— Povinho macabro esse — resmungou Caspar, ofegante.
— Droga — reclamou Dimi. — Acho que deve estar escrito em algum
dialeto antigo. Só consegui entender algumas partes.
— Pelo que eu entendi, está contando sobre o dia do nascimento de uma
princesa.
Dimitri fez uma careta.
— Você consegue ler aquilo?
— É Motokore, a base da nossa língua, só um pouco mais arcaica. Você
não consegue ler?
O novato fechou a expressão. Não queria admitir, mas era um pouco
humilhante Caspar saber daquilo e ele não.
— E por que o nascimento de uma princesa seria tão relevante para estar
registrado numa parede deste tamanho?
Caspar deu de ombros.
— A família real não tem limites, Dimitri. Eles usam papel higiênico de
ouro.
— Como você... — Dimitri não estava entendendo mais nada.
— Ainda mais os de Volta — continuou o loiro. — Cara, eles eram os
donos do centro do mundo. Da capital mais famosa de Aklas. Não me
surpreendo com esse tipo de coisa. — Apontou para a parede, indignado. —
E pensar que uma cidade como Volta desapareceu no oceano
misteriosamente da noite para o dia... já começa a rolar umas teorias da
conspiração.
Era só falar em teorias da conspiração que os olhos de Caspar brilhavam.
— Onde está o resto da cidade?
— Terra Coral não fica muito longe daqui — explicou o rapaz da
pólvora. — Deve estar a uns vinte quilômetros para sudoeste. Cidade de
Volta deve ter se dividido por alguma razão quando afundou.
Aquilo não descia na garganta de Dimitri. Aquela história toda.
— Tem alguma coisa errada aqui.
— Tirando o péssimo gosto artístico desse pessoal?
— Por que estamos aqui se Terra Coral é a vinte quilômetros para
sudoeste?
E Caspar não parecia acompanhar.
— Estamos procurando o Bracelete de Nêmona Coral, por que não
estaria aqui?
— Exatamente por isso!
Foi a vez dos olhos de Dimitri brilharem. Mas o brilho não era apenas de
fascinação por história. Era de medo também.
— Não estamos em Terra Coral. Estamos em território de Volta,
território humano. Não há nereianos aqui e por quê? Porque eles não
conseguem viver aqui. Há bolsões de ar por toda a parte. Por que esconder
uma relíquia nereida em um lugar onde nereianos não têm acesso?
As engrenagens cerebrais de Caspar funcionavam no seu próprio tempo.
— ... acha que a sereia mentiu?
Bingo, ele finalmente entendeu.
— Ah, cara! Eu sabia — reclamou, indignado. — Quando ela veio com
aquele papo de maluco, eu sabia que não dava para confiar. — Então, parou
para pensar. — Espera... se a Aran é uma sereia, como que ela tem pernas?
É, ele não entendeu, pensou Dimitri.
— Porque a Aran é invenção da sua cabeça — provocou o moreno, em
seguida, mergulhando.
Caspar fez uma careta.
— Ahá, muito engraçado. Agora eu que sou o maluco.
E mergulhou atrás de seu companheiro.
Enquanto os garotos brincavam de ser pirata, as marujas de verdade
tinham seus próprios problemas. Kim andava pelo salão principal com
Gwendolyn, em busca de metais. Não parecia ser um trabalho muito
cansativo, apesar da contramestre estar bocejando. Poderiam ser bocejos de
tédio também. Mas ela tinha dado o trabalho pesado todo para Jack, que
mergulhava incansavelmente em busca do bracelete. Seus olhos quase que
tinham a palavra “revoltada” escrita em suas pupilas.
Voltou para a superfície e cuspiu água.
— Pensei que quem viesse com você, ia poder usar o detector.
— Conseguimos procurar mais rápido desse jeito.
Jack aprontou-se para sair da água.
— Se é assim, então vamos trocar de lugar um pouco.
Kim empurrou a cabeça da timoneira de volta para baixo.
— Você é mais jovem, tem mais fôlego que eu.
Jack bufou e tirou a franja da frente dos olhos.
— Tá bom, vovó — reclamou e voltou a mergulhar.
Kim, desde o início, achava que aquela missão era perda de tempo, mas
seus pensamentos começavam a se concretizar naquele instante. Ou
estavam sendo enganados ou Gwendolyn era só uma tralha mesmo. Foi
quando, pela primeira vez, ela apitou.
A contramestre levou um susto e a timoneira ouviu o barulho mesmo
com a cabeça submersa. Pulou para fora da água e saiu correndo em direção
à ruiva para ver o que era.
— Onde é que é?
— Apitou onde?
As duas estreitaram os olhos.
— Aqui, aqui!
Pareciam duas crianças brincando de caça ao tesouro. Abaixaram-se e
cavaram por entre uma pilha de objetos abandonados. Estavam perto de
verdade. Seria ouro? Seria... o bracelete?
Kim tirou alguma coisa brilhante dali e assoprou para ver o que era. Sua
expressão murchou no mesmo instante.
— Tá de brincadeira.
— O que é? — Jack abriu espaço para ver. Sua reação foi muito parecida
com a da amiga. — Um garfo?
Kim bufou.
— Eu vou matar o Poeta.
E aquela era a deixa de Jack.
— Ou é você que não sabe usar a Gwendolyn — provocou, já esticando
a mão para finalmente pegar o detector de metais.
Mas Kim não parecia estar prestando atenção.
— Argh, odeio esta sensação.
— De se sentir burra? — Jack ainda tentava alcançar Gwen.
— De sentir que tem alguma coisa fora do lugar e não ter controle sobre.
Não faz sentido.
Até que a timoneira desistiu.
— O quê?
— Essa missão. Essa história do bracelete.
Jack suspirou.
— Bom, talvez Nêmona usou suas pernas para chegar até aqui e guardar
o bracelete seguro onde ninguém nunca encontraria.
— E que raios ela fez para voltar depois? — Kim começava a aumentar
o tom da voz.
— Ué, do mesmo jeito que nós. Nadando.
A contramestre cruzou os braços.
— Isso não me cheira bem. Patrick não devia ter caído na conversa de
uma sereia.
Jack mergulhou em seus pensamentos. Sim, havia uma coisa que a
incomodava desde que Rizo havia chegado ao Nadia Keane.
— ...ainda não entendo por que os olhos dela eram escuros.
Kim fez uma careta.
— Por que está preocupada com isso?
— Sereias deveriam ter os olhos brancos como qualquer outra criatura
do reino do mar — começou, então se sentou. — Pensa comigo. Os
Nascidos da Lua têm olhos violeta. Os Nascidos do Sol têm a cor de acordo
com o seu sangue. Sangue do Sul, olhos azuis. Do Oriente, verdes. Do
Ocidente, dourados. E do Norte, vermelhos.
— E uma “jasper” como eu... — pensou alto a contramestre de olhos
cinzentos. Ela havia entendido o porquê da preocupação da timoneira.
— Exato! — continuou Jack. — Mas você já viu alguém com olhos
ônix?
Havia um certo medo em sua voz. Pela primeira vez na história, Jack
sentira medo do desconhecido.
— Não. Aquilo não é uma sereia. É algo totalmente diferente.
31
A PROMESSA DE UM HOMEM
CONTRATEMPO
Rizo nadava por pelas profundezas, através de tantas ruínas que haviam
desabado de repente. Entrando por uma fenda oculta, chegou até a enorme
sala secreta. Olhou para o pedestal vazio e para o bracelete em suas mãos.
Deu de ombros.
— Se ainda fosse o verdadeiro... pff, que idiotas.
Com indiferença, jogou-o para longe. Então, o inesperado aconteceu.
Quando subiu pelas escadas, no lugar de uma cauda, lá estavam duas
pernas. Um par perfeito delas. Subiu os degraus e observou seu colega
ridículo ir atrás do bracelete. Um moleque de cabelos espetados, metade
preto, metade verde, com uma máscara de corvo pendurada no pescoço.
Pegou o bracelete do chão e colocou-o de volta no pedestal, como se nunca
tivesse saído dali.
Rizo revirou os olhos.
— Poxa, e se precisarmos iludir mais algum pobre pirata?
— Falando em ilusão... Hideki, pode desfazer.
O terceiro garoto apareceu com a mesma máscara de raposa em frente ao
rosto. Sem dizer uma única palavra, levantou apenas um dedo, fazendo as
Ruínas de Volta voltarem a ser o que eram, em um piscar de olhos. Lá
estavam de volta, as majestosas paredes pintadas, o teto de vidro. Rizo
cuspiu uma risada.
— Humanos são tão fáceis de enganar.
— E o moleque? Tem certeza de que é mesmo ele? — perguntou Zara, o
garoto dos cabelos verdes.
— Ah, sim. É ele, sim. Como previmos, a cabeça dele está um pequeno e
lindo caos.
Zara abriu um sorriso sombrio.
— Então, ele é um dos quatro queridinhos dos deuses.
— Qual é o próximo passo?
— Esperarmos. Se o oráculo está certo, tudo vai ocorrer como previmos.
Precisamos nos preparar para quando o momento chegar.
Com um simples toque da ponta de seus dedos, Rizo e Zara desenharam
marcas pretas em seus corpos. Ela, três riscos no pescoço, ele dois riscos
simétricos em uma das bochechas.
Aquelas marcas... eram exatamente como as de Dimitri.
34
FOTOGRAFIA
3h54min.
24 graus Sul. 5 graus Leste. Dormitórios do Nadia Keane.
EPISÓDIO DOIS
35
UM NOVO COMEÇO
GRUPO GAMA
Aquele sim era um reino bastante antigo. De certa forma, até medieval
demais para a época. O porto estava lotado de pessoas de todos os cantos do
Império do Sul e até se via alguns convidados do Norte. Dava para
distinguir pelas suas roupas excêntricas. Uma multidão circulava por toda
aquela área, por entre várias bancas postas em fileira de frente para o mar.
Havia um palco montado mais para longe onde aconteciam apresentações
de peças junto com uma pequena banca de show de bonecos de pano para
crianças. Músicos de rua tocavam diversos instrumentos de cordas,
percussão e sopro, dando vida à cidade de pedra. Carroças, cavalos e
cachorros de rua atravessavam o tempo todo, tumultuando ainda mais o
caminho.
Dimitri, Jack, Caspar e Poeta andavam pela orla de Pedreira, cada um
levando um saco de pano pendurado nas costas. Por ordem de Jack, os
quatro abaixaram-se atrás de uma mureta para observar tudo com atenção.
Caspar fez uma careta.
— Não lembrava de Pedreira ser tão festiva assim.
— Esse é o Festival da Lua de Fogo — explicou Poeta. — Acontece uma
vez por ano aqui. É em homenagem ao mago milenar Aro e à Lua Dourada.
O Festival da Lua de Fogo, de fato, era um dos maiores eventos do Sul.
Acontecia sempre na primeira semana de dezembro e durava sete noites e
sete dias, o tempo em que a lua de fogo brilhava no céu. Seu significado era
antigo e referia-se à época dos grandes magos.
— Quando a Lua Dourada surge, torna-se uma chama de esperança de
que os magos e seus enormes dragões ainda estejam por aí, pintando a lua
com seu fogo — explicou Jack. — Então, os reinos do Sul e do Norte, que
apoiam o poder dos magos, são convidados a trazer um pouco de suas
culturas para o evento.
— É uma verdadeira festa — acrescentou Poeta.
Apesar de ser baseada em um fato bobo, pensou o cético.
Dimitri estava encantado com tudo ao seu redor e adorando ter contato
com alguém que não fosse um pirata fedido. A partir dali, qualquer coisa
poderia ser uma pista sobre seu passado. Então percebeu que realmente
havia uma lua cor de fogo enorme no céu. Caspar fez outra careta.
— Festival para uma lua... povinho esquisito.
Jack puxou o queixo do loiro para perto de si.
— Agora me escutem. Temos que ser discretos.
— Você tem um plano? — perguntou Dimi.
— O plano é não sermos pegos, princesa!
Poeta deu de ombros.
— Ela não me deixa fazer os planos, então é sempre a mesma coisa.
— Cala a boca. Eu e Dimitri cuidaremos das bancas da esquerda. Caspar
e Poeta vão atrás das da direita. Nos encontramos aqui em uma hora.
Entendido?!
— Uma hora? Tá maluca?
A timoneira deu uma cotovelada no loiro.
— É. Uma hora.
Então, os grupos se separaram, desaparecendo por entre multidões. Jack
pegou na mão de Dimitri para guiá-lo e cortar caminho, e Caspar e Poeta
correram para o outro lado.
Poeta puxou Caspar para uma ruela um pouco menos movimentada. Ele
estava transbordando de alegria.
— Ah, como é bom estar em casa...
Caspar arregalou os olhos.
— Espera, você nasceu nessa pocilga?
O moleque dos mapas deu uma risada.
— Não... fui adotado pelo senhor Donvar e passei a morar em Pedreira a
partir dos seis anos. Lembro como se fosse ontem de estar no antiquário
dele, trabalhando e lendo sobre todo o tipo de coisa. O cara tinha uma
biblioteca particular! Mas o meu livro favorito ficava debaixo do caixa. Era
enorme com uma capa de couro antiga, mas era proibido. Então, eu
acordava de madrugada e lia no escuro.
— E pensar que tem gente que acorda de madrugada para ler —
resmungou Caspar.
— Mas não eram só livros!
Poeta continuou o relato, fascinado. Dava para ver o brilho em seus
olhos. Caspar percebeu e simplesmente deixou o amigo falar.
— Tinha tesouros de todas as épocas também, e os piratas iam lá o
tempo todo.
— Saquei! Foi quando Zuca convocou-o para a tripulação, não é?!
— Isso! Zuca e Kim invadiram a loja atrás de um mapa antigo. E eu não
apenas mostrei o que eles queriam como sabia tudo sobre a lendária ilha de
Tunavari a qual eles estavam procurando. Modéstia à parte, ficaram
impressionados e me convocaram.
Caspar deu um sorriso, feliz por ver o amigo contente.
— Que doidera, cara. Poucos de nós foram convocados.
Poeta suspirou.
— Foi uma decisão difícil, mas não me arrependo. Deixei uma carta
explicativa para o senhor Donvar e...
— Espera... Donvar? Você também é Donvar?
Poeta riu do desentendimento.
— Ah não. Meu sobrenome é...
— Cara, a gente podia ir lá!
Mas então fechou a expressão.
— Onde?
— No antiquário!
Agora era Caspar quem estava animado.
— Você podia falar com o senhor Donvar enquanto eu roubo umas
belezinhas da loja.
— Eu não vou roubá-lo!
Caspar bufou.
— Argh, tudo bem. Então, vamos só falar com ele. Fiquei curioso para
conhecer.
Como o rapaz da pólvora era o ser mais desligado desse mundo, parecia
não ter percebido o desconforto nítido de Poeta.
— ...Jack vai nos matar.
— Que isso, deixa de ser careta. O bom de ter o Dimitri é que agora
somos quatro fazendo o trabalho de três. O que significa que só precisamos
trabalhar pela metade.
— Hã?
Caspar parou e levantou os dedos para fazer as contas, mas desistiu no
meio do caminho.
— Desculpa, não sou bom com matemática.
E puxou Poeta pela mão.
— Vem, vamos!
VISLUMBRE DO PASSADO
ROTA DE FUGA
O CORAÇÃO DO ALVORECER
Com algum tempo sobrando por ter sido liberado mais cedo de suas
tarefas, Dimitri resolveu explorar o navio. O Nadia Keane era uma corveta,
o que significa que não era assim tão grande, mas o garoto nunca tinha tido
oportunidade para conhecer todos os seus cantos. Já havia visitado
praticamente todos os cômodos comuns abaixo do convés, menos alguns
quartos que eram proibidos. Um em específico, era o mais misterioso de
todos. Dimitri caminhou até o fim do último corredor. Lá tinha uma única
porta, bem mais estreita que as outras. Em sua superfície, podia-se ler o
número 17 estampado em cobre.
O garoto já tinha ouvido falar do famoso quarto 17. Era tema de boatos e
lendas fantasmas no navio. Ninguém jamais entrara lá ou sequer sabia o que
tinha dentro do cômodo misterioso. Dimi aproximou-se, olhando para trás
para ter certeza de que não estava sendo observado. Pé ante pé, chegou à
frente do quarto 17. Sua maçaneta era redonda e quando Dimitri levou a
mão direita até ela, não se moveu. Estava emperrada. E a porta... trancada.
O que será que tem aí dentro?, ele pensava. Forçou mais algumas vezes a
maçaneta, mas de nada adiantou. Tentou empurrar a porta, mas ela nem se
mexeu. Grudou o ouvido no tampo de madeira logo abaixo dos números em
cobre. Aguçou a audição e prestou atenção. Se ele se concentrasse,
conseguiria ouvir um barulho específico. Que estranho...
Dimitri podia jurar que ouvia o som do mar.
De fato, aquele quarto escondia alguns segredos e a revelação do
mistério teria que ficar para outro dia. Distanciou-se confuso e partiu para
um próximo destino.
Dimi já conhecia alguns dos outros quartos, outros ainda não. Conhecia
o depósito principal de cabo a rabo também. Mas naquele dia, deu-se conta
de que nunca havia ido até o extremo da proa. Subiu as escadas do deque
superior e deparou-se com o enorme gurupé, que se estendia muito além da
borda do navio. Aproximou-se, curioso, apesar de lembrar de algo que Jack
havia dito para ele quando chegou.
Dica: nunca suba lá sozinho.
Mas Dimitri não era facilmente amedrontado. Pôs o primeiro pé na
frente, então equilibrou o segundo. Abriu os braços para os lados e
começou a caminhar. Um passo… de cada vez. Ao chegar no meio da
estrutura do gurupé, sentou-se e largou as penas suspensas no ar. Quando
finalmente parou para respirar, seus olhos se encheram da obra-prima em
sua frente. Pela primeira vez, Dimi teve uma visão perfeita do mar.
— Wow.
O sol estava se pondo mais cedo do que de costume, e o céu estava
pintado em tons de rosa, laranja e amarelo. A brisa marítima batia
levemente em seu rosto, fazendo sua franja voar para trás. Respirou fundo,
enchendo os pulmões por completo com aquele ar tão puro.
— É... wow.
— AHH!
Jack havia chegado de fininho, caminhando e equilibrando-se com
facilidade por trás do garoto. Dimitri balbuciou e caiu, ficando pendurado
de cabeça para baixo apenas pelo pé esquerdo. Com as vestes sendo
puxadas pela gravidade e tapando seu rosto, Dimitri parecia um idiota.
Olhou para cima e percebeu que a timoneira ria dele.
É, definitivamente eu pareço um idiota.
— Não se assusta alguém no gurupé — gritou.
— Não se vem sozinho no gurupé. Pensei que eu já tinha avisado — ela
respondeu.
— Touché!
A timoneira pendeu seu corpo para a frente e, quando Dimitri pensou
que ela fosse ajudá-lo a subir de volta, Jack se jogou, ficando de ponta
cabeça, cara a cara com o garoto. Os cabelos e roupas dos dois sendo
puxados para baixo. Ela ria, de braços cruzados para segurar a camisa. Suas
bochechas estavam vermelhas, e a luz dourada do sol batia diretamente em
seu rosto, realçando a cor verde de seus olhos, e agora seu cabelo castanho
estava pintado em tons de vermelho. Dimitri nunca havia reparado antes,
mas ela tinha sardinhas em volta do nariz.
— Olha, é a primeira vez que vejo seus dois olhos — ela disse, sem
parar de sorrir. — Seu rosto fica bem mais bonito assim.
Dimitri sentiu as bochechas queimando e riu um pouco sem graça.
— É... acho que eu preciso cortar o cabelo — respondeu, sem jeito.
Jack riu e relaxou o pescoço, deixando sua cabeça cair para sinalizar algo
atrás de si.
— Consegue ver a figura de proa daqui?
Dimitri estreitou os olhos e levantou um pouco a cabeça para enxergar.
Logo atrás da timoneira, havia uma estátua esculpida em madeira na frente
do navio. Era a figura de uma mulher de cabelos longos, cauda de peixe e
expressão de batalha. Seus olhos não possuíam íris ou pupilas, o que os
deixava um tanto fantasmagóricos.
— Você está ficando vermelho.
— O quê?
Jack riu.
— Seu rosto.
O sangue começava a descer para a cabeça dos dois. Dimitri cutucou o
rosto de Jack, implicante.
— Do que você está falando, você que está ficando vermelha.
— Isso porque você não olhou para a sua cara.
E ficaram cutucando um ao outro na brincadeira, até Dimitri se
desequilibrar e quase cair. Mas Jack foi mais rápida e segurou sua mão.
— Quase — provocou. — Pensou que eu ia te deixar cair?
Dimitri fez uma careta.
— Eu não duvido de mais nada.
Jack ameaçou soltá-lo, até que os dois se entenderam e sentaram-se
rindo, agora de cabeça para cima. Ficaram ali lado a lado, equilibrando-se
no gurupé. Apreciavam a vista com os pés soltos cortando o ar. Dimitri
olhou mais uma vez para a figura de proa.
— Por que uma sereia?
— Dimitri, Nadia Keane. Nadia Keane, Dimitri.
— Espera... o quê?
Jack levantou e agarrou uma corda que havia por perto. Dimitri
continuou sentado, virado de frente para a garota e de costas para o mar.
— Por que você acha que o navio tem esse nome? Nadia era o nome da
mulher que partiu o coração de Hall.
Dimitri juntou as sobrancelhas, confuso.
— Patrick Hall se apaixonou por uma sereia? — pensou alto. — Não é à
toa que ele é amargurado.
Jack deu uma risada.
— E quem em sã consciência se apaixonaria por uma sereia? Não, idiota.
Ele diz que, como uma sereia, ela o enfeitiçou, traiçoeira e mortífera. Acho
que a ideia é passar essa imagem para o navio também.
Dimitri pensou por um instante. Era um pouco triste na verdade.
Por isso Hall é desse jeito.
Ele forçava-se a lembrar de seu sofrimento todos os dias,
propositalmente, como um castigo ou uma punição infinita. Ou era isso que
o garoto pensava na época. Patrick Hall era um caso muito mais profundo
do que isso. Dimi virou a cabeça em direção à linha do horizonte. Jack
voltou a sentar-se ao seu lado, os dois em silêncio por alguns instantes.
Jack cutucou-o com o cotovelo.
— Ei, mas não vim até aqui para chamar você de idiota.
— Veio para me chamar de que, então?
Jack voltou seus olhos para baixo. Brincava com os dedos, sem propósito
algum, tentando distrair sua própria cabeça de seus pensamentos. Parecia
estar em conflito consigo mesma sobre o que falaria a seguir. Dimitri achou
engraçado ver aquela garota tão destemida lutando contra seus sentimentos,
escondendo a vergonha por trás dos cabelos.
Parece comigo, pensou.
Jack respirou fundo.
— Obrigada por me salvar mais cedo hoje.
E aquelas palavras saíram de sua boca como veludo, pegando Dimitri de
surpresa. Era incrivelmente difícil para a timoneira agradecer um favor a
alguém ou até mesmo pedir desculpas. Não era questão de orgulho, de
maneira alguma. Mas era como uma barreira ao seu redor. Uma barreira que
cercava tudo aquilo que envolvesse seus sentimentos. Não queria ser vista
como uma menina sensível. Sua reputação era clara: Jack, a Bruta. Seu
comentário veio sem um contato visual, até que Jack trocou um leve olhar
com seu companheiro. Dimitri sorriu em resposta.
— De nada — respondeu, grato. — E desculpa por ter te desrespeitado.
— O quê? — perguntou, sem entender.
— Seu cachecol. Você disse para eu nunca mais tocar nele. Me desculpe.
Jack baixou a guarda, de repente.
— Ah... isso?! — E pegou aqueles fios trançados nas mãos. — Tudo
bem. Foi por uma boa causa.
Dimitri percebeu o quanto ela olhava com carinho para aquele simples
pedaço de roupa. Carinho e melancolia. Por quê... Queria tanto perguntar
mais sobre. Mas Jack era muito fechada, e ele não queria invadir sua
privacidade de jeito algum. Respirou fundo e apenas disse:
— Estamos quites agora.
Jack estreitou os olhos e jogou o corpo para trás.
— É, mais ou menos, né, princesa? Perdi a conta de quantas vezes já
livrei sua barra por aqui. Ainda está me devendo.
— Devo alguns salvamentos?
— Não preciso ser salva.
Dimitri sorriu.
— É. Não precisa mesmo.
— Mas acho que podemos assinar um tratado de paz por enquanto — ela
acrescentou.
— Concordo. — Dimi riu e esticou sua mão direita. — Sem mais
competições.
Mas Jack retribuiu com uma careta e deu de ombros.
— Não posso prometer sem mais competições. É mais forte do que eu.
Dimitri riu e concordou, puxando sua mão de volta para o corpo.
— Tá bom.
— E vou pensar como eu quero que você pague suas dívidas.
O criado de bordo fingiu pensar por um instante.
— Eu até pagaria as 320 coroas que ganhei, mas ficaram com o
esquisitão de Calamari. — Levantou as sobrancelhas em tom de
provocação. — E ele bem que ficou perguntando de você.
— Eww, que nojo! Ainda bem que eu não ouvi.
Dimitri não podia perder a oportunidade de incomodá-la um pouquinho.
— Ele ficou todo “nossa, que garota maluca, ela tem namorado?”.
— Cala a boca! — falou, iniciando uma guerra de empurrões e risadas
com Dimitri.
E assim terminou o dia. Com as vozes se confundindo com o vento. Com
os corações de dois jovens iluminados pelo alvorecer. Com o sol
desaparecendo no horizonte, Caspar interveio, gritando de cima de um dos
cordames. Era quase como acordar de um sonho de volta para a realidade.
— Ei, galera, está quase na hora!
Os dois garotos levantaram e Dimitri fez uma careta.
— Na hora de quê?
Jack levantou as sobrancelhas animada. Cesco gritou lá de cima:
— Celacantos a estibordo!
O navio virou bruscamente, e o criado de bordo viu que Zuca estava
controlando o timão. Jack puxou Dimitri, que esperava algo surpreendente
acontecer, de volta para o navio. Mas nada. O garoto olhou para baixo e a
única coisa que via era a água batendo no casco do navio.
— Era para eu ver alguma coisa?
Jack revirou os olhos. Idiota. Pegou-o pelo queixo e guiou-o até a direita.
— Ali, celacantos.
Dimitri estreitou os olhos. De repente, inúmeros animais gigantes
pularam para fora d'água. Eram parecidos com baleias, de imensas
nadadeiras, cada uma delas tinha o tamanho de pelo menos metade do
Nadia Keane. Eram da cor do mar e camuflavam-se com as ondas, nadando
e saltando como se dançassem em grupo. Algumas davam voltas e voltas,
outras espirravam água para fora. Era um espetáculo de se ver.
Poeta, que tinha sua câmera a postos, tomou a palavra:
— O celacanto é um dos maiores peixes já registrados nesta região.
Vivem aqui por conta da água morna das crateras submarinas e costumam
vir para a superfície no crepúsculo.
Dimitri estava impressionado.
— São peixes? Mas são enormes!
— São lindos, não são?!
No momento em que o garoto ia responder, um celacanto bateu a
barbatana na água, encharcando Dimitri com uma onda. Depois dessa deixa,
os enormes peixes voltaram para as profundezas. Os Saqueadores da Barra
aproximaram-se rindo do garoto.
— Agora sim, o rapazinho Dimi virou um homem do mar.
Dante fazia piadas que apenas ele mesmo ria. O sol começava a
desaparecer por completo, fazendo com que a noite tomasse conta dos céus.
Os dias no convés podiam ser bastante quentes, mas as noites em alto-mar
eram frias. King aproximou-se, também rindo.
— É melhor dar um jeito nessas roupas ou vai morrer congelado, garoto.
Dimitri olhou para si mesmo. Parecia que tinha recém sido resgatado do
mar. Encharcado e parecendo um idiota.
Lua, a deusa da noite, começava a tomar conta dos céus, fazendo todos
os marujos irem se aprontar para o jantar. Depois de se secar e trocar de
calças, Dimitri vestiu seu velho colete esfarrapado e aprontou-se para ir ao
convés. Porém, antes que tivesse a chance de subir as escadas e passar pela
escotilha, uma sombra barrava sua passagem.
— Vejo que está fazendo amizades.
Lars, o Atroz. Dimitri fechou a expressão e passou, sem dar ouvidos,
pouco antes daquela voz rouca e gasta tomar conta de seus ouvidos
novamente.
— Sabe que vai perder tudo quando for embora, não sabe?
— Não é da sua conta — respondeu, sem parar de caminhar.
— Ou está realmente pensando em ficar?
Foi quando Dimitri freou o passou. O velho pirata sorriu.
— Saiba que Hall nunca irá aprovar um fil...
— Não pretendo ficar — respondeu Dimitri, ríspido.
Mesmo assim, não se moveu. Lars, o Atroz, aproximou-se, levantando
sua mão de faca perto do rosto.
— Minha oferta ainda está de pé.
Dimitri sentiu o sangue subindo à cabeça. Sua respiração ficou pesada.
— Eu não vou trabalhar para você.
— Pensei que quisesse matar o capitão... — provocou Lars.
O garoto baixou a cabeça. Que instintos assassinos você tem. Daria um
ótimo bucaneiro, ele lembrava daquelas palavras, de tempos atrás. Não.
Virou-se, com os olhos em chamas.
— O que significa ser um bucaneiro?
Lars levantou as sobrancelhas, intrigado com aquela figura em sua
frente.
— Pensei que quisesse saber sobre o seu passado...
— Responda!
O marujo riu com gosto, mostrando seus dentes podres.
— Você vai descobrir. Mais cedo ou mais tarde.
42
GARRA
Por sorte ou não, Patrick Hall não teve muito tempo de pensar sobre.
Zuca adentrou a cabine, impondo sua presença em poucos instantes.
— Capitão, tudo certo para zarparmos para a Ilha da Barracuda amanhã.
— Ótimo — respondeu o capitão, ajeitando a postura na poltrona.
Zuca conhecia seu companheiro fazia alguns bons anos. Conhecia aquela
energia que ele estava exalando, mas não queria ser inconveniente. Virou-se
novamente para a porta e, quando estava prestes a sair, decidiu perguntar.
— Patrick... você está bem?
Patrick Hall soltou uma risada fraca.
— Até deixou as formalidades de lado. Deve ser coisa séria.
— Eu me preocupo com você, saiba disso.
O capitão suspirou e encheu uma taça com seu vinho favorito, vindo da
terra longínqua de Andovas. Só aquilo para acalmá-lo.
— Só estou começando a me preocupar. Estamos ficando sem tempo...
— disse de maneira cansada. — E do jeito que Kirk está jogando, vamos
perder essa corrida. Ele sempre está um passo à nossa frente.
— Precisamos revidar — respondeu o imediato.
Patrick Hall levantou o tronco do encosto da poltrona e levou-o para a
frente, onde havia uma mesa e um tabuleiro de xadrez arrumado em cima.
Mexeu um peão. Então uma torre. Então o cavalo.
— Não, isso seria óbvio demais.
Zuca observava tudo atentamente.
— Precisamos fazê-lo acreditar que estamos caindo na estratégia dele.
Sutilmente, como uma mosca presa em uma teia... — continuou o capitão.
— O xeque-mate é o movimento mais discreto do jogo.
Quando Zuca pôs seus olhos novamente no tabuleiro, lá estava o rei,
encurralado.
— Como estão os estudos do garoto Poeta? — perguntou Hall, trocando
de assunto.
— Sobre isso — Zuca coçou a nuca, procurando as palavras certas — ele
parece estar com algumas dificuldades para decifrar a charada da sereia.
Pediu mais alguns dias.
Patrick Hall cuspiu de indignação.
— Alguns dias, o que seriam alguns dias? Uma semana, duas? Esse
moleque já foi mais eficiente.
— Tenho certeza de que duas semanas serão suficientes para termos
respostas. Poeta trabalha mais duro do que ninguém.
Queria o imediato acreditar tanto nas suas palavras.
FILHAS DE LEROS
A APOSTA DO SÉCULO
De repente, lá estava ela. Nove anos. Em sua frente, uma criança mais
nova, encolhida, chorava em frente à lareira recém-apagada.
— Kim... — choramingava —, tem alguma coisa errada comigo.
— ONDE ESTÁ?
— Capitão, acalme-se.
— Eu não vou me acalmar. Aquele pilantra do Kirk vai me pagar! Como
ele ousa me roubar?
Dimitri definitivamente estava assustado, mas não era mais como Kim.
Por trás da franja que escondia seu rosto, lá estava ele. Assustado consigo
mesmo. E algo que ele havia falado mais cedo tinha mexido com a ruiva.
Tem alguma coisa errada comigo. Naquele momento, seus instintos falaram
mais alto. Aproximou-se e puxou uma cadeira para sentar ao lado daquele
rapaz tão frágil.
— Eu ouvi uma voz. — As palavras de Dimitri saíram como se ele
estivesse pensando alto.
Kim levantou uma sobrancelha.
— Uma... voz.
— Era familiar, de alguém que eu sei que conheço. Só não sei de quem.
De repente — sua respiração falhou —, foi como se tudo daquela noite
voltasse à tona, como uma avalanche.
— Quer dizer que lembrou o que aconteceu na noite da tempestade?
Dimitri balançou a cabeça negativamente.
— Não. Mas alguma coisa muito estranha aconteceu naquela noite. E...
— E?
O rapaz respirou fundo.
— Ela sabe.
— Quem é ela?
Só então, Dimitri olhou Kim nos olhos. Aqueles olhos que imploravam
por ajuda.
— A mulher da banca 25.
— Do festival? — perguntou Kim, confusa.
— Ela sabe onde eu estou. Ela está dentro da minha cabeça, fala coisas...
A contramestre levantou, sem fazer movimentos bruscos, preparando o
corpo na posição de guarda. Sua mão voltou-se para a adaga no cinto.
— Kim...
— E que coisas ela fala? Está mandando você fazer alguma coisa? —
Aumentou o tom da voz.
— Não! Quer dizer... ah, droga.
Dimitri levou a mão ao rosto e fez uma careta tentando organizar as
palavras.
— Kim, eu não sou maluco.
— E por que devo acreditar nisso?
Justo, pensou Dimi. Por que acreditar em um pivete como eu? Ele
mesmo começava a não acreditar.
Respirou fundo e prendeu o cabelo para tentar se recompor. Kim não saía
da posição de guarda.
— Tem alguma coisa me perseguindo, me assombrando. Talvez sejam
minhas memórias, talvez não. — Dimitri riu por entre a tristeza. — Talvez
eu esteja mesmo ficando maluco.
Kim ficou surpresa com o que viu. Mas Dimitri ainda não tinha notado.
— Tinha certeza de que eu era um homem do mar, era a única sensação
que eu tinha e me apeguei a ela para não perder a pessoa que eu acredito
ser.
Por isso o desespero em provar a Jack que ela estava errada, pensou a
contramestre.
— Mas nem disso eu tenho mais certeza. Eu não sei mais o que fazer,
não sei quem eu sou, quem eu era ou quem eu devo me tornar. Se o destino
é certo e imutável, eu não sei. Mas, pelos deuses, olha onde eu vim parar.
Em um maldito navio pirata!
Dimitri riu e foi quando seus lábios sentiram algo quente e salgado
escorrendo. Só então ele percebeu que estava chorando. Rapidamente,
limpou as lágrimas em seu braço. Droga, droga, droga...
Kim foi a primeira que o viu chorar.
Mas ela não parecia estar muito interessada no fato. Ao invés disso,
cruzou os braços e analisou o rapaz em sua frente por inteiro. Por fim,
suspirou.
— Você é péssimo, Dimitri. Se esse é mesmo o seu nome.
Deu passos arrastados na direção do novato.
— Valeu, hein... — resmungou Dimi.
Kim tinha uma das sobrancelhas levantada em tom de julgamento. Suas
botas de couro passaram por trás da perna de madeira da cadeira em que o
rapaz estava sentado.
— Um péssimo pirata.
E puxou o pé, destruindo a cadeira que bateu contra o chão. Dimitri caiu
de costas, dando uma cambalhota para trás e parando com as pernas na
parede e a cabeça para baixo. Seu corpo todo estremeceu.
— Sabe quando eu disse que Hall vê algo ameaçador em você?
Dimitri levantou, cambaleando e esfregando a nuca.
— É ainda mais ameaçador quando você mesmo não sabe o que é.
— O que quer dizer?
Kim deu mais um passo e olhou fundo nos olhos do rapaz.
— Quer dizer que o seu passado nebuloso pode acabar matando-o. Isso
se o capitão não o fizer primeiro.
Dimitri sentiu aquelas palavras crescerem em seu peito de repente.
— Acho que entendi o que você quis dizer com garra.
Por que você quer aprender a lutar? ela havia dito.
Porque quero ser como os outros. Um legítimo homem do mar. Revidar
quando me atacarem.
Ser como os outros?... falta garra em você.
Mas que raios isso significa?
Um dia você vai descobrir.
Dimitri deixou aquela força se alimentar de energia e levantou. Agora ele
sabia o significado.
— Kim — chamou determinado — a próxima vez em que eu enfrentar o
Hall, vou ganhar dele.
Kim suspirou e deu um cascudo no garoto.
— Você é um cabeça dura, mas admito que tem coragem.
Dimi esfregou a cabeça. Os cascudos de Kim sempre doíam um bocado,
mas riu. O dia em que Kim quase o matou terminou com o início de uma
grande aventura.
— Me convenceu. Eu vou ajudá-lo.
— Com o quê?
Kim esboçou um sorriso instigante.
— Em se tornar o maior pirata desta geração.
Os olhos de Dimitri se encheram de brilho.
— Quer dizer que vai me ensinar a lutar?
Kim fez uma careta e empurrou a cabeça do garoto para longe.
— Estragou minha frase de efeito, pirralho. Começaremos em breve,
esteja preparado.
E saiu da sala, deparando-se com a enfermaria vazia. Ou era o que ela
pensava. Ninguém imaginaria que dentro do armário havia dois piratas
curiosos. Poeta estava impaciente, tremia as pernas e roía as unhas de
ansiedade. Olhava apreensivo para Jack, que tinha as sobrancelhas juntas
em confusão.
— Poeta, tem certeza disso?
— É tudo o que eu sei sobre o tesouro.
Jack viu aquele desenho estranho estampado em frente aos seus olhos.
Por quê...
— O que Hall quer com um castiçal?
John Kirk abriu o baú como fazia todas as noites. Seu rosto iluminou-se
com o brilho daquele objeto, aquela relíquia tão enigmática. Mas ele não
conseguia entender.
— Por que Patrick quer tanto essa coisa?
Passava suas mãos pelo castiçal.
— O que é que você pode fazer...
Áquila, o deus da guerra, era o mais novo presente entre seus irmãos.
Seus cabelos castanhos eram encobertos por uma touca que lembrava
vagamente a cabeça de um lobo. Seu corpo de garoto era tatuado e seus
olhos vermelhos riam de loucura ao ver aquele tesouro em uma das bolas de
cristal em sua frente.
— AHÁ!
— E você, Umma? — perguntou Tachi, provocador. — O que acha do
Castiçal?
A deusa das tempestades, que fazia pequenos raios com a ponta de seus
dedos, teve que fazer um enorme esforço para não os jogar.
— Eu acho que você esqueceu o seu lugar, Tachi.
— Eu adoro isso.
Áquila agarrou a bola de cristal nas mãos, deixando-a iluminar o rosto.
— Os humanos fazem guerra por tão pouco... são tão pequenos e
insignificantes... são como vermes. Um único sentimento toma conta de
seus corpinhos e é o que basta para causar tanta discórdia. Guerra. Dor.
Sangue. Morte.
Ele também não batia muito bem da cabeça. A sala encheu-se de suas
gargalhadas e do silêncio de seus irmãos. Sarab ajeitou-se na cadeira,
mantendo a compostura em meio a tanta loucura.
— Acho que você subestima os humanos.
Foi a vez dela de pegar uma das bolas de cristal. Lá estavam. Hall. Zuca.
Poeta. Kim.
Jack.
Dimitri.
Os dois caminhavam paralelamente, então, de repente...
Antes de cruzarem o caminho um do outro, encararam-se por um longo
tempo. Sem dizer uma única palavra. O silêncio já dizia tudo. Por fim,
continuaram a caminhar e passaram um pelo outro, sentindo aquela energia
estranha tomar conta, quando seus ombros levemente se tocaram. Dimitri
não percebeu, mas Jack olhou para trás ao sentir as bochechas
enrubescerem. Jack não percebeu, mas logo em seguida, Dimitri virou-se
para ela, que já caminhava para longe.
Então sorriu.
Sarab aliviou as feições.
— Eles têm muito ainda o que nos ensinar.
E assim terminou mais uma noite a bordo do Nadia Keane. Posso
finalmente fechar o livro e descansar até amanhã.
Quem eu sou?
Bom, se alguém descobrir, terá que me matar.
PERGAMINHO PERDIDO 2
CARGOS DO NAVIO:
NOMENCLATURAS PIRATAS:
PARTES DO NAVIO:
Nadia Keane é sobre querer largar tudo para viver uma aventura. É sobre
amizade, sobre desafiar seu destino e autodescoberta. É sobre correr atrás
de seus sonhos e lutar pelo que acredita. É sobre aprender a enfrentar suas
batalhas.
Eu tenho a agradecer a minha família, meus amigos, minha irmã e todos
aqueles que me fizeram sentir que eu poderia conquistar o mundo. Inspirar
as pessoas, fazer o impossível. Mas, acima de tudo, quero agradecer àquela
garotinha que conheci há tanto tempo. Aquela que queria velejar pelo
mundo. Aquela que mais acreditou em mim, apesar de todas as vezes que
foi rejeitada, que ouviu um não ou um “desiste dessa ideia boba”. Eu queria
muito poder dizer a ela que ela conseguiu. Abraçá-la forte e dizer para ela
que a princesa virou pirata e mostrou para todo mundo que ela podia ser o
que ela quisesse.
Nalu, você conseguiu.
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