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1

NO OLHO DO FURACÃO

SALÃO DOS DEUSES. LOCALIZAÇÃO DESCONHECIDA.

Sempre que uma profecia é lançada, o mundo entra em frenesi. Nascidos


do Sol e da Lua esperam ansiosos para que as palavras do oráculo se
concretizem a fim de presenciarem o que virá em seguida. Afinal, uma
simples profecia pode mudar o mundo inteiro. Já aconteceu antes. Mas
esperar não faz muito o estilo dos deuses. Pelo menos não dos que estavam
reunidos naquela noite para discutir as rédeas das linhas que moldariam o
futuro. Ninguém sabe ao certo quem são eles, pois seus rostos se parecem
com as faces da multidão. Claro, isso se você conseguir prestar atenção
nesses seres. A única coisa que diferencia um deus de um humano são seus
olhos. Eles brilham no escuro. Por isso se escondem nas sombras de uma
sala mal iluminada, onde uma mesa circular contém o palco central de suas
mais ilustres jogadas.
Umma, a deusa das tempestades, era uma das participantes da reunião
naquela noite. Seus cabelos pretos combinavam perfeitamente com seus
olhos cor de magenta. Ela tinha um sorriso no rosto ao contemplar a beleza
do tabuleiro que era o mundo a sua frente. Pelo que parecia, ela sabia
exatamente o que responder à pergunta de seu irmão.
— Cabe a você decidir.
— Parece que já temos o palco perfeito para o nosso acaso — disse
Umma.
Sem hesitar, assoprou uma brisa suave de seus lábios a qual passou por
suas mãos e direcionou-se até o meio do tabuleiro. A brisa transformou-se
em um vento forte, e o vento forte transformou-se em um enorme furacão.
Seus olhos voltaram-se para a bola de cristal flutuante logo em cima da
mesa de jogo. Pobre do alvo que receberia uma surpresa dos deuses.

53 graus Norte, 15 graus Leste. Mar Real.

— Homem ao mar!
— E o que estão esperando, seus molengas? Ele está afundando! Joguem
as cordas.
— Sim, senhor imediato!
Essas foram as primeiras palavras que Dimitri ouviu ao que parecia ser
muito tempo para ele. A tempestade que se formava era monstruosa, imersa
em ventos traiçoeiros e em ondas do tamanho dos maiores monstros
marinhos. Raios iluminavam os céus noturnos de forma caótica, fazendo
com que as sombras das nuvens se parecessem com os piores pesadelos.
Havia três caravelas ao norte e um navio desconhecido de porte pequeno a
leste. A tripulação a bordo corria de um lado para o outro, seguindo os
comandos de seus oficiais. Amarravam e desamarravam cordas, domando
suas velas selvagens, sem se importar com suas vestes pesadas da água
salgada que inundava o convés. Dimitri era espirituoso e até estaria
animado com aquela adrenalina se não fosse ele quem estava com água até
o pescoço.
— Puxem os cabos, homens!
— Perigo a bombordo, perigo a bombordo!
E tudo tremeu.
O navio virou bruscamente, mas não a tempo de fugir do impacto ao
bater de frente com uma onda feroz. Dimitri debatia-se e nadava com
dificuldade, sendo levado pela maré. Ele lutava contra os espíritos da água e
da correnteza que o puxavam violentamente para as profundezas
desconhecidas do oceano, sem piedade. Gritos. Conseguia ouvir vozes ao
longe, mas eram comandos abafados e sem sentido para ele. Talvez fosse
por causa de seus ouvidos que estavam completamente submersos. Talvez
fosse seu cérebro começando a entregar os pontos para a inconsciência. Seu
corpo cansado fazia de tudo para sobreviver até o último instante, mas não
aguentava mais segurar o fôlego. Era impossível chegar à superfície. Seus
pulmões queimavam e pediam por misericórdia. Seu corpo já não
correspondia, sua alma implorava para se esvair.
Parece tão mais fácil deixar a água entrar...
E Dimitri fechou os olhos, soltando o ar pela boca e deixando o corpo ser
levado pelos espíritos da água.
Naquele momento, cordas grossas foram atiradas e apertadas ao redor de
sua cintura fina. Um rapaz pulou da embarcação e agarrou-o desacordado,
aparentemente. Lutando contra a tempestade, ambos foram resgatados pela
âncora, que subiu lentamente até levá-los de volta ao convés onde o corpo
de Dimitri foi jogado com força contra o chão de madeira. E bateu a cabeça.
Confuso e atordoado, abriu os olhos, mas tudo o que viu foram vultos
curiosos.
— Mas... é um garoto!
Se Dimitri ainda não estava desacordado, foi naquele instante que tudo
ao seu redor escureceu.
2

DIMITRI, O NOVATO

Até aquele ponto da história era difícil para o garoto dizer o que era ou
não verdade, vindo da boca suja daqueles marujos. Ele não conseguia
lembrar muito daquele dia, só das diversas versões modificadas ao longo
dos anos que a tripulação lhe contou. Costumavam dizer que ele estava
mais inconsciente que “marujo bêbado em terra firme”. Por isso, confiem
nas palavras escritas aqui, leitor. Eu lhe asseguro que é a pura verdade, a
versão mais fiel desta história. Afinal, eu vejo tudo, portanto sei de tudo. Se
alguma palavra aqui for mentira… que me matem.

5 de Novembro, 1543. Ano do Lobo Marinho.


35 graus Norte, 27 graus Leste. Depósito da Proa.

Dimitri foi acordar dois dias depois da grande tempestade, em uma cama
fedorenta e esfarrapada, enjambrada em feno, dentro do depósito de proa do
navio. O garoto abriu os olhos e analisou ao redor. O lugar não era muito
grande e estava lotado de caixas e barris.
Onde..., pensou.
De repente, a figura de um homem alto e magro surgiu a sua frente. Seus
cabelos eram bem aparados e sua pele pálida, debaixo dos óculos de lentes
pequenas e retangulares. Vestia um sobretudo marrom e de costura com um
bom acabamento. Até seus sapatos eram bonitos e engraxados. Na verdade,
foi a primeira coisa em que Dimitri reparou naquela manhã. Tentou levantar
com um impulso, mas o homem dos sapatos foi mais rápido e o empurrou
de volta para a cama.
— Calma, menino. Você bateu a cabeça com força. Precisa descansar.
Com aquele movimento, o garoto sentiu a dor que o consumia e
estremeceu. A sensação era de ter levado uma pancada com um taco de
madeira. Sua cabeça latejava e todos os músculos de seu corpo ardiam de
cansaço. Olhou para seu tronco, para seus pés e para suas mãos que
começavam a entrar em foco. Era quase como se não reconhecesse a si
mesmo. Foi quando percebeu que seu peito estava envolto por bandagens,
assim como sua testa e seu braço direito.
— Onde eu estou? — perguntou.
Era estranho ouvir a própria voz como se não a reconhecesse ou não a
usasse há um bom tempo. Estava rouca e fraca como se tivesse pegado um
resfriado. Percebeu que o homem tinha alguns apetrechos metálicos em
mãos. Pelo visto, era o curandeiro do navio.
— Você estava vagando sozinho em alto-mar. Nós o resgatamos do meio
de um tornado dos grandes. Os deuses tiveram piedade dessa vez —
brincou.
Mas Dimitri não queria saber sobre os deuses. Pelo contrário, estava
mais interessado em saber sobre os humanos que comandavam aquela
embarcação.
— Por que me resgataram? — perguntou.
As peças simplesmente não encaixavam em sua cabeça. Por que teriam
se arriscado apenas para salvar sua vida quando nem o conheciam? Aquilo
não era da natureza humana. Mas a resposta que o curandeiro deu em
seguida, com certeza, não era o que o garoto estava esperando.
— Porque nunca deixamos um homem inocente morrer injustamente,
Dimitri.
— O que você disse?
Dimitri estreitou os olhos em um conflito de emoções entre desconfiança
e surpresa. O homem encarava-o por cima das lentes de seus óculos, o que
dava a ele um ar intelectual. Seus olhos eram muito claros e queriam passar
a sensação de segurança. Mas Dimitri não cairia nessa. Não...
Tem alguma coisa errada.
Aquilo era no mínimo intrigante, levando em consideração que o próprio
Dimitri não lembrava de seu nome. O curandeiro soltou os aparelhos
médicos metálicos e levou a mão até a gola do colete do garoto, que tentou
se esquivar, mas não conseguiu. Ali podia-se ler perfeitamente o nome
“Dimitri” estampado.
— Dimitri.
Isso explicava algumas coisas, afinal.
— É o seu nome, não é?
— Acho que sim — respondeu, dando de ombros.
— Acha?
O garoto podia estar na defensiva, mas com certeza não estava blefando.
— Então, Dimi — o homem começou sondando de forma amigável. —
Posso saber o que você faz em alto-mar nesta época do ano? Sabe que
estamos no meio da estação das tormentas, não sabe?
— Eu estava, eu estava...
O que eu estava fazendo?
Dimitri tentava se lembrar, mas tudo que vinha a sua mente eram flashes
das ondas batendo com força em seu corpo e o sangue se diluindo na água.
Sangue. Seria seu aquele sangue? Ele não conseguia lembrar. Depois de
muito tentar vasculhar o show de sombras que era sua mente, desistiu,
sentindo-se covardemente derrotado.
— ...Não sei dizer.
Em outras circunstâncias, o curandeiro poderia não acreditar naquelas
palavras, mas algo em Dimitri parecia verdadeiro e genuíno, apesar das
memórias falhas dentro de um poço sem fundo. O homem analisou-o,
completamente, por cima dos óculos.
— Curioso. Não encontrei nenhuma fratura ou traumatismo craniano em
você. E meu material é de primeira linha, forjado pelos especialistas de
Montemor.
O curandeiro riu e mostrou suas geringonças médicas com orgulho, mas
Dimitri estava atordoado demais com tudo o que estava acontecendo para
prestar atenção em piadas. Afinal, de que adiantava sua cabeça não
apresentar danos externos se tudo por dentro estava quebrado? Ou pior...
apagado, como se nem tivesse existido.
— Você pode ter sofrido uma perda temporária de memória por conta do
choque. Ao menos sabe seu sobrenome?
— Não.
— Data de nascimento ou qualquer outra informação pessoal?
— ...Não.
O homem dos óculos virou-se desconfortável. Aquilo não era nada bom.
E ele não podia nem imaginar como era estar no lugar de um pobre garoto
que tinha um passado nebuloso. Apesar de todos os acontecimentos
simultâneos em um curto período de tempo, Dimitri não chorava. Ele nunca
chorava. Para falar a verdade, sentia raiva.
Tentando alegrá-lo, o curandeiro tomou a palavra:
— Bom, não sei se posso ajudá-lo quanto ao sobrenome, mas se for de
seu interesse, posso descobrir sua idade.
O homem pegou uma pequena lanterna e aproximou-se de Dimitri, que,
de novo, tentou se esquivar. Que moleque arisco, pensou. Deve ter passado
por coisas difíceis para agir assim. A última coisa que ele queria era deixá-
lo assustado ou inseguro, por isso, com toda a cautela e gentileza, analisou
alguns pontos de seu rosto.
— Levando em conta a pele malcuidada, os traços ainda infantis do seu
rosto e a personalidade difícil de lidar...
— Ei! — reclamou o garoto. Não deixava de ser verdade.
— Eu diria que você aparenta ter uns quatorze anos.
O curandeiro riu e guardou a lanterninha no bolso do seu sobretudo.
Então, acrescentou:
— Um garoto nascido no ano da Fênix pelas minhas contas. Poético, eu
diria.
É, poético, pensou a mente sarcástica de Dimitri. Pena que poesia não
me adianta para nada. Mas, apesar disso, aliviou as feições. Mesmo que
aquilo não fosse verdade, uma idade, um nome poderia ser um bom começo
para alguém que não tinha nada.
Em seguida, o homem das vestes marrons tirou de dentro da bolsa uma
botelha de vidro, forrada em uma capa de couro, e ofereceu para Dimitri, o
garoto de poucas palavras.
— Beba — mandou.
— Não, obrigado.
O curandeiro riu, achando graça.
— Recusa-se a aceitar bebidas de estranhos... bem treinado você.
E ofereceu mais uma vez. Dimitri recuou.
— O que é? — perguntou desconfiado, então agarrou a botelha e
cheirou.
Eca. Pelo cheiro...
— É remédio?
— Não. Mas prometo que vai ajudá-lo a se aquecer.
Depois de segundos de hesitação para confiar ou não confiar em um
completo estranho, Dimitri bebeu, fazendo uma careta ao sentir o gosto
forte e amargo da bebida.
— Pois é, não é para todo mundo. — O curandeiro riu.
— Com certeza não. — Dimitri tossiu uma risada e devolveu a botelha.
Era bom rir novamente. O garoto não lembrava da sensação. Quanto ao
curandeiro, ele deu um sorriso nostálgico ao ver seu paciente minimamente
feliz. Então, levantou-se para pegar sua maleta de equipamentos
orgulhosamente forjados na Capital. Antes de sair, virou-se para Dimitri e
imitou o movimento de uma reverência exagerada, como se estivesse
falando com um lorde famoso ou coisa parecida. Em seguida, suas palavras
saíram com um tom teatral e heroico, o que não combinava nada com
aquela figura:
— Às suas ordens, menino Dimi. Bryce Jonathan King ao seu dispor.
Sou o curandeiro desta banheira.
B.J. King deu uma piscada de olho e estendeu a mão em direção ao
garoto. Dimitri apertou-a, achando certa graça na atuação.
— Mas sem formalidades. Me chame de King.
E empurrou os óculos para perto do nariz, insinuando uma despedida de
curto prazo. Porém, antes que pudesse sair do depósito da proa, ouviu um
sussurro.
— ...King?
— Sim? — O curandeiro virou-se.
Dimitri juntou as sobrancelhas, seus pensamentos ganharam voz alta.
— Quanto tempo acha que vou demorar para recuperar minhas
memórias?
— Eu… — King pensou, desesperançoso. — Eu não sei dizer, garoto.
— Acha que algum dia vou recuperá-las?
Por um breve momento, King sentiu um aperto no meio do peito. Ele
realmente não sabia a resposta para a pergunta. Mas a última coisa que
queria era tirar as esperanças de um rapaz tão jovem. Suspirou confiante.
— A memória é algo curioso. Pode se surpreender com o que ela é
capaz... e sobre o tempo, é só uma invenção humana. Não se frustre com
ele. Não depende do tempo, só de você e da sua vontade para conseguir o
que quer. Está bem?
— ...claro — respondeu Dimitri, frustrado.
Ele sabia que aquilo era uma tentativa falha de enganá-lo com falsas
promessas que nunca seriam cumpridas. Mas Dimitri não tinha como culpar
King. Ele estava fazendo o seu melhor. O curandeiro pareceu perceber. O
rapaz era esperto e pouco iludido. Mesmo assim, fez seu trabalho e abriu
um sorriso para o paciente.
— Até lá, você é bem-vindo para ficar conosco.
Por fim, retirou-se. Dimitri foi deixado para trás naquele cômodo
esquisito e desconhecido com a única companhia que era sua mente
perturbada.

33 graus Norte, 28 graus Leste. Convés.

Do outro lado da porta, os marujos viviam mais um dia de suas rotinas a


bordo. Alguns rostos eram desgastados e cheios de linhas históricas para
contar. Outros eram tão jovens que você se perguntaria o que estariam
fazendo em um navio como aquele. Havia uma garota que se destacava em
meio à multidão de homens robustos, velhos ou magriços demais. Ela tinha
os cabelos ruivos e vibrantes quando o sol os tocava. Tinha os olhos
cinzentos e sardas ao redor do nariz, mas o que mais chamava atenção ao
olhar para Kim era que ela levava uma espécie de manga de couro cheia de
engrenagens no braço direito a qual tomava a extensão de seus dedos até o
pescoço.
E, é claro, ao seu lado, estava Caspar, o moleque loiro com sua icônica
bandana bordô.
— Rapaz da pólvora! — chamou o imediato.
Não era à toa que Caspar levava esse apelido. Seu cargo no navio incluía
reabastecer os canhões e cuidar de sua manutenção. Por consequência,
estava sempre com as bochechas sujas de pólvora. Caspar deu um pulo ao
se assustar com o chamado e, instantaneamente, seus olhos procuraram os
de Kim, quem tinha as sobrancelhas arqueadas e um sorriso traiçoeiro no
rosto.
— Parece que alguém vai andar na prancha — provocou a ruiva.
Caspar engoliu em seco e acompanhou o imediato para dentro do
depósito da proa.

32 graus Norte, 28 graus Leste. Depósito da Proa.

As mãos astutas de Dimitri já procuravam por comida em meio a tantas


caixas de madeira e barris encostados nas paredes. Definitivamente, aquele
era o depósito de alimentos do navio.
Se eu não comer, vou acabar morrendo de fome, ele ouvia sua barriga
roncar. Não vão perceber se eu roubar uma ou duas maçãs.
— Bingo. — Encontrou.
Quando estava prestes a morder a primeira, arregalou os olhos ao ouvir o
barulho do que pareciam ser muitas vozes vindo em sua direção.
— Ei, pessoal. O garoto Dimi acordou!
Em um reflexo rápido, Dimitri escondeu as maçãs debaixo da sua cama
de feno para que ninguém tivesse a primeira impressão de ter resgatado um
ladrão em alto-mar. De repente, vários marujos adentraram o pequeno
cômodo, que se tornou ainda menor com toda aquela presença. Todos eles
queriam cumprimentar o menino perdido e se atropelavam, física e
verbalmente, enquanto disputavam um espaço perto de Dimitri.
Aparentemente, o seu nome já era bem popular dentre a tripulação.
O primeiro a se aproximar foi um homem jovem, de aparência suja,
corpo magricela e baixo. Cabelos lisos e oleosos, presos em um coque,
combinavam perfeitamente com os dentes separados no largo sorriso que
mostrava. Seus pés, para contrapor aos de King, estavam descalços e cheios
de calos.
— Pelos bigodes do meu tio gago, Dimi. Você nos assustou!
— Cesco, volte para seu posto. Você que está assustando-o — reclamou
King, abrindo espaço na multidão a base de cotoveladas.
— Ah, ele lembra meu filho Tom — disse Apa.
Apa, conhecida também como Apollonia, era uma mulher mais velha, de
cabelos meio negros meio grisalhos com franja. Geralmente estava sempre
com um sorriso no rosto e com os olhos ternos típicos de uma mãe. Mas
logo essa imagem foi quebrada pela figura de um homem de barba
comprida, amarrada três vezes para baixo. Era conhecido por todos ali
como Ted Molenga, o cozinheiro, o que fazia sentido quando se notava o
avental manchado de banha e sua preguiça constante.
— Vou fazer uma banha para esse filhote comer — vociferou e limpou o
nariz. — Vai querer um pedaço também, Apa? Ou está de regime?
— Se estiver caçoando da minha barriga novamente, seu verme, eu vou
usá-lo de palito de dente na minha próxima refeição! — rosnou Apa.
Ted saiu rindo, acompanhado de Cesco e Apa que ainda praguejava
insultos para o cozinheiro. King foi um dos únicos que permaneceu no local
ao lado de um homem gigante e musculoso, com oito argolas de ouro em
cada orelha, o qual mantinha os braços cruzados, em uma pose imponente e
assustadora. Aquele era Zuca, o imediato. Ao seu lado, quase imperceptível,
estava Caspar, que não batia nem no ombro do colega, quando comparadas
as alturas. Pelo menos, era mais alto que Dimitri e, para Caspar, isso já era
alguma coisa. Dimitri percebeu que o loiro retirava alguma coisa de baixo
das unhas, sem prestar muita atenção ao seu redor. Parecia realmente
entretido. King sussurrou algo para o imediato e Dimitri manteve seus
ouvidos apurados para saber sobre o que estavam conversando.
— Será que o apresentamos para o capitão?
— Vou tentar segurar a situação mais um pouco. Hall não anda muito
bem-humorado nesses dias.
— Eu que o diga! Ele me fez limpar os sapatos dele quatro vezes nessa
semana — reclamou Caspar.
Zuca olhou feio para o garoto, que deu de ombros e se encolheu para
voltar a procurar sujeira nas extremidades das unhas. King limpou a
garganta.
— Obrigado, imediato — disse, então ofereceu algo para Dimitri. —
Toma.
— Por que eu iria querer um peixe congelado?
— Não seja ingrato, só pega o peixe — disse Caspar, como se fosse algo
completamente óbvio.
Dimitri fez uma careta e King riu.
— É para prensar contra a testa, se quiser. Ajuda a baixar sua
temperatura.
O garoto pegou o peixe pela cauda e tacou contra sua testa, sem ter outra
opção. King aprontou-se para sair.
— Levante quando se sentir melhor, está bem?
Os dois adultos já se direcionavam para a porta, quando o imediato se
voltou para o menino da bandana.
— Ah, e Caspar. Ajude o novato a caminhar, caso necessário. Não seja
preguiçoso.
— Eu? Preguiçoso?
Zuca revirou os olhos, ignorando a ordem.
— ...Quando saírem daí, leve-o até Jack para a apresentação oficial da
embarcação.
— A-hoi, imediato!
E bateu continência, concordando com as solicitações que lhe foram
dadas.
A pequena porta do depósito fechou com um estrondo, deixando os
garotos no meio de um silêncio constrangedor. Mas, se você olhasse bem,
poderia perceber que eles não estavam sozinhos. Havia mais um par de
olhos observando toda a cena do lado de fora, pela janela. Era Poeta, o
moleque dos mapas, dono de uma engenhoca com mil e uma utilidades em
formato de grossos óculos de grau. Naquele momento, estava usando uma
de suas lentes extensivas especiais para espionar a cena de longe sem ser
percebido. Arregalou os olhos e correu para seu próximo destino. Olhando
assim, ele podia parecer um rato fofoqueiro, mas ele só estava cumprindo
ordens.

31 graus Norte, 29 graus Leste. Cabine do Capitão.


Ordens do Capitão.
Sem delongas, Poeta entrou ofegante na cabine para, em primeira mão,
revelar as mais novas notícias ao seu capitão. Era um lugar de acesso
restrito para a maioria dos tripulantes, mas o moleque dos mapas era o
mensageiro oficial de Patrick Hall, o homem das vestes pretas. Ele tinha as
botas de couro em cima do tampo de madeira de sua mesa, e o chapéu de
três pontas projetava uma sombra em seus olhos.
— ...Capitão?
— Sim?
Poeta engoliu em seco.
— Ele acordou.
Patrick Hall levantou a visão, e Poeta pôde presenciar a ira que seus
olhos carregaram ao ouvir aquela frase. Pelo seu bem, não ficou mais para
descobrir o que aconteceria.
3

CASPAR, O RAPAZ DA PÓLVORA

31 graus Norte, 29 grau Leste. Depósito de Proa.

Dimitri mantinha-se com os braços cruzados e a guarda alta, enquanto


observava Caspar comer uma maçã.
Será que esse é um sinal de que eu também posso comer? Mas
permaneceu com fome e em silêncio, enquanto os únicos barulhos do
cômodo eram o de sua barriga e dos dentes de Caspar mastigando. Ele era
assim mesmo, de poucas palavras. Preferia analisar bem suas situações
antes de fazer um movimento em falso. Mas Caspar não parecia ser
amedrontador ou coisa do tipo. Na verdade, parecia um ser bastante
simples, com necessidades simples.
Por isso, discretamente, levou uma de suas mãos até o esconderijo onde
havia guardado suas maçãs roubadas. Tateou-as com cuidado para não fazer
barulho, mas soltou-as rapidamente quando Caspar se moveu.
— Quer uma? — ofereceu o loiro. — Assim você não precisa roubar.
Dimitri, surpreso por ter sido pego, concordou com a cabeça. Caspar
jogou em sua direção uma das frutas, e o novato pegou-a no ar.
— Ficou tão assim na cara? — perguntou Dimitri, constrangido.
— Você é um péssimo ladrão.
Os dois riram baixinho, mas logo ficaram em silêncio novamente,
aproveitando, ou não, a companhia um do outro até terminar de comer.
Caramba, Dimi arregalou os olhos ao morder a maçã.
Uma explosão de sabor tomou conta de sua boca. Pensava estar com
fome, mas só descobriu o quanto estava faminto de verdade quando mordeu
aquela maçã. Em outras circunstâncias talvez ela parecesse viscosa e um
pouco murcha, mas, naquele momento, aquela era a melhor maçã do
mundo. Quanto a Caspar, ele era ótimo em quebrar o gelo, mas suas
conversas eram sempre péssimas e atrapalhadas, então, decidiu deixar o
novato falar primeiro, o que acabou sendo uma decisão horrível, pois foi
seguida por longos minutos em silêncio.
Dimitri suspirou, contente com a refeição, mas incomodado por ter que
falar. De qualquer maneira, Caspar parecia o cara ideal para se tentar extrair
informações.
— O que é essa apresentação oficial? — perguntou, casualmente.
O loiro deu de ombros, enquanto terminava de retirar o caroço com um
pequeno canivete.
— Não se preocupe com a apresentação. Todos passamos por ela quando
chegamos. Do que você realmente tem que ter medo é de conhecer Jack.
— Quem?
— Jack — explicou Caspar, cuspindo uma risada. — Quem está no cargo
de timoneiro atualmente. Você vai ver.
Dimitri pôs as mãos nos bolsos, discretamente roubando o canivete de
Caspar.
— Parece que eu não tenho muita escolha.
Caspar, que sequer percebeu, terminou de comer sua fruta, deixando o
miolo dentro de uma cesta de palha. Ficou um tempo em silêncio,
analisando o novato.
Ele é meio... estranho, pensou Caspar. Parece estar pensando em
milhares de coisas, enquanto nem uma palavra sequer sai de sua boca.
Caspar, em contrapartida, era o completo oposto. Falava o tempo todo
sem pensar.
— Tem gente especulando sobre a sua história e o que você estava
fazendo sozinho em alto-mar. Tem cada teoria... estão até apostando, sabia?
— O quê? Sério?
— Em nome de Nathaniel Dyi — respondeu o loiro. — Quando um
marujo aposta em seu nome, é como apostar em nome dos deuses.
E Caspar sabia tudo sobre apostas.
— Se a aposta não for cumprida, o vencedor tem o direito de cortar o
dedo de quem não o pagou. E se já não sobram dedos... bom, acho que você
pode escolher outra coisa para cortar.
— Que povo civilizado — resmungou Dimitri.
— Você não saberia me dizer se, hã, por acaso você foi engolido e
vomitado por um... monstro marinho?
Definitivamente, Caspar não pensava antes de falar. Dimitri fez uma
careta, sem saber ao certo se tinha ouvido direito.
— Não?! — respondeu.
— Droga! Vou ter que pagar três coroas para o velho — xingou a si
mesmo, cerrando os punhos no ar.
Caspar tirou de dentro da meia algumas moedas e pôs-se a contar.
Quanto mais contava, mais revoltado ficava.
— Uma, duas... argh, droga, só tenho trocados — resmungava.
Dimitri esboçou um sorriso.
Ele parece um cara legal, pensou. Então fechou a expressão. Ele
precisava focar. Ainda não sei onde estou, não posso confiar em ninguém.
Então, pela segunda vez na manhã, tentou levantar. A sensação de ficar
em pé era estranha, pois Dimitri não sentia direito os calcanhares ou os
joelhos. Quando sua sensibilidade voltou, já era tarde demais.
— MIAUUUUUUU!
— Ah, gato idiota!
Sem perceber, Dimitri havia pisado no rabo felpudo de um gato, ou algo
parecido com um. Tinha a pelagem alaranjada e suja, parecia um tanto
velho e levava um tapa-olho de couro, com o que se parecia um obturador
metálico, do lado direito da cabeça. Parecia o resultado de algum cientista
lunático por máquinas. O bichano fez um estardalhaço e pulou para o colo
de Caspar, que riu e o agarrou, como se fossem amigos íntimos. Em
seguida, fez carinho em sua barriga.
— Ahá! Vejo que já conheceu o Cook.
— Essa coisa tem nome?
O bichano rosnou em resposta. Caspar riu.
— “Essa coisa”... ele é o mascote da tripulação, Dimi. Na real, o dono
legal dele é Lars, o Atroz.
O loiro apontou para o próprio rosto.
— Os dois têm o tapa-olho no mesmo lugar e nem me pergunte o porquê.
Também não sei. Então, se eu fosse você, não chamaria o Cook de “coisa”
na frente dele.
Dimitri sentiu um arrepio. Algo no que Caspar havia dito, cutucara em
um ponto fundo de sua memória adormecida. Um ponto sombrio e
medonho.
— Espera. Lars, o Atroz, você disse?
Só de falar em voz alta, sentia calafrios ao ouvir aquele nome. Não sabia
muito bem o porquê, mas sentia. Caspar concordou com a cabeça,
levantando em um salto. Em seguida, respondeu com um tom de admiração
e um brilho nos olhos.
— Sim, o próprio. O cara é o mais procurado de toda a Baía de
Hombatomba. Dizem por aí que ele comeu a própria mão para não morrer
de fome.
Dimitri tinha certeza de que já ouvira aquele nome antes. Então a
sensação de algo estar errado voltou com tudo e seu instinto de autodefesa
também. As peças começavam a se encaixar em sua cabeça.
— Se Lars, o Atroz, trabalha aqui, então...
— Positivo, novato. Bem-vindo ao Nadia Keane!
4

KIM, A CONTRAMESTRE MEGERA

30 graus Norte, 29 graus Leste. Convés.

Até aquele momento, ninguém havia mencionado realmente ser um


pirata. E lá estava Dimitri, cercado deles por todos os lados. Saqueadores,
ladrões, sanguinários. Agarrou o canivete em seu bolso. Sua guarda teria
que aumentar, com certeza, pois suas deduções estavam certas. Aquele
lugar não era de confiança.
— Positivo, novato. Bem-vindo ao Nadia Keane!
Nadia Keane... pensou. Sim, eu conheço essa embarcação. Nadia Keane,
navio pirata, pequeno e veloz. Seus tripulantes eram tão astutos que
ninguém os via chegando. São como sombras da noite e, quando
percebidos, já é tarde demais. Jamais capturados, a recompensa por suas
cabeças era altíssima e eles eram famosos por isso.
Dimitri estava a bordo do Nadia e tudo o que havia ao seu redor era
água.
Caspar pôs o ombro debaixo do braço do novato.
— Ow, o que pensa que vai fazer? — o garoto esquivou.
— Tenho que mostrar para Zuca que não sou um molenga — o loiro deu
de ombros, repetindo o gesto.
Dimitri não parecia muito confortável em ter que precisar de ajuda para
caminhar. Vestia um colete marrom esfarrapado, o que deixava suas
bandagens e ferimentos bem à mostra, e parecia ainda menos animado com
a situação de vulnerabilidade. A última coisa que ele precisava, naquele
momento, era estar em um maldito navio pirata. Caspar, por outro lado,
estava animadíssimo.
— Vem, o resto dos Saqueadores da Barra quer te conhecer.
— Saqueadores da Barra... — Dimitri começava a acessar memórias de
relance sobre aquele nome.
— É como chamam nossa tripulação por aí. Somos famosos, cara!
Ao pisar no convés, Dimitri perdeu sua visão por alguns instantes. O sol
estava alto e escaldante, iluminando um dia quente de verão. Não se
lembrava qual fora a última vez que havia visto a luz do sol. Seus olhos
demoraram alguns segundos para se acostumar à penumbra ao dia, e seu
corpo foi tomado por uma onda de calor. Mas seu coração gelou. Ele estava
de frente com um verdadeiro navio pirata.
A embarcação era de tamanho médio, mas para Dimitri parecia um
mundo gigantesco e desconhecido. Seu casco era de madeira, mas possuía
ajustes em cobre, assim como turbinas na parte de trás. O que poderia não
parecer fazer sentido, quando se olhava para as velas voando no céu. Elas
era muitas e enormes, com desenhos assustadores estampados. Os canhões
metálicos surgiam nas laterais e havia canos e outras geringonças por toda
parte. Mas isso não era tudo. Em frente aos seus olhos, havia pelo menos
uma dúzia de piratas.
Ainda um pouco manco, Caspar ajudou Dimitri a caminhar, lentamente,
adentrando o convés. Os céus estavam limpos de nuvens e os marujos
cantavam alegres com isso. As letras de suas músicas eram de difícil
compreensão, pois não faziam questão de pronunciar as palavras
corretamente. A melodia era sempre a mesma. Cantavam sobre o mar,
tesouros, mulheres e monstros. E quando acabavam, começavam a cantar
tudo de novo.
— “Hey-ho, hey-ho e a sereia pulou do brandal.”
Além disso, Dimitri percebeu que muitos deles carregavam tábuas,
caixas e materiais de construção para todos os lados. Pareciam estar
reparando os estragos que a tempestade havia causado e, muitas vezes,
esbarravam uns nos outros e praguejavam insultos.
— Olhe por onde anda, seu troll!
Um grito vindo do alto chamou a atenção do garoto, que analisava o
lugar com cautela e estranheza. Dimitri olhou para cima e percebeu que era
Cesco, o almirante, que estava em seu posto, o cesto da gávea. Aquele era o
ponto mais alto do mastro da popa, logo abaixo da bandeira. Cesco
pendurava-se nas cordas, sem medo de olhar para baixo. Talvez, se você
pensasse na palavra “pirata”, ele seria a primeira imagem de referência que
viria a sua mente.
— Umma não poupou esforços dessa vez, hein? Eu avisei! Não se brinca
com os deuses.
— Argh, esse maldito tornado dela acabou com o nosso navio e ainda
nos trouxe um frouxo para tomar conta.
Quem gritava em resposta era um velho pirata, encurvado em um canto.
Levava uma tatuagem no bíceps, mal desenhada com um coração sendo
perfurado por uma adaga, e uma touca no topo da cabeça para esconder os
cabelos grisalhos. Quando se virou, Dimitri sentiu aquele mesmo calafrio
de instantes atrás que percorreu seu corpo todo. O pirata era dono de uma
barba curta e icônica dividida em dois e de uma faca posicionada no lugar
onde devia estar sua mão esquerda. Quando se virou, Dimitri pôde olhar
seus olhos com clareza. Ou melhor, seu olho.
Lars, o Atroz, pensou. Ele tinha certeza. O velho pirata encarou-o e, pelo
visto, não estava muito contente com sua presença. Mas Dimitri não se
deixou intimidar e encarou-o de volta.
— Aposto que foi porque Jonas desperdiçou o rum inteiro no mar depois
daquela festa. — Riu Cesco, ainda no alto. — Só podia ter enfurecido a
deusa.
— Eu não fiz isso! — gritou Jonas, em defesa.
— E aí, quanto você aposta que foi isso, Lars?
Lars grunhiu, desviando os olhos de Dimitri.
— Argh, eu não faço mais isso, Francesco! Apostas são para jovens que
ainda têm todos os membros do corpo.
— Qual foi, velhote? Vai amarelar? Qualquer coisa você ganha umas
coroas extras do capitão!
Dimitri aproveitou até o último momento para analisar aquele sujeito tão
temido que era Lars, o Atroz. O novato estava tentando descobrir se ele
fazia jus ao nome, quando foi resgatado bruscamente de seus devaneios.
— Ah, então esse é o famoso Dimi!
Dimitri levou um soco forte no ombro, o que, com certeza, veio de
alguém que queria chamar sua atenção. E conseguiu. O garoto mordeu o
lábio para não reclamar da dor aguda que sentiu, pois não queria parecer um
frouxo, como Lars já havia insinuado que ele era. E, em sua frente, ele
podia ver o sorriso mais bem alinhado que veria na vida. O mais irritante
também. Pertencia a um cara jovem e forte, com os traços da mandíbula
bem definidos e os cabelos curtos cor de mel. Vestia uma camisa bem
moldada ao corpo e um lenço bordô no pescoço. Caspar revirou os olhos
com sua presença, sem nem tentar parecer discreto.
— Dimitri, Dante. Dante, Dimitri. Ele é um dos nossos montadores. São
eles que ficam carregando as coisas por aí, sem rumo nem sentido. Meu
trabalho, particularmente, é bem mais interessante.
O novato abriu um sorriso sem graça.
— Rapazinho, você devia ter visto. Estava roxo de frio e desmaiado
quando te encontramos. Não querendo ganhar elogios, mas fui eu quem te
resgatei das garras de Umma. Pulei no mar sem pensar duas vezes. — Riu.
— Pelos deuses, você parecia morto como um salmão na rede! Tive até que
fazer um salvamento urgente boca a boca.
Por um segundo, Dimitri sentiu como se tivesse engolido um metro de
alga marinha e agora estava presa em sua garganta.
Graças aos deuses, eu estava inconsciente, pensou, sem perceber que
estava fazendo mais uma de suas caretas. Dante deu risada e socou outra
vez o ombro do garoto, desmentindo a história.
— Ai, rapazinho. Não pode acreditar em tudo o que te dizem por aí,
senão vai acabar em um anzol. Regra número um: nunca confie em outro
pirata.
— Vou tentar lembrar disso. — Dimitri fingiu concordar, levantando as
sobrancelhas.
E aquela foi a primeira versão oficial que o garoto ouviu de como
chegou ao Nadia Keane, no meio da noite de tormentas. Muitas outras
versões foram surgindo com o tempo, porém, ele sempre recordaria daquela
contada por Dante de Montessa Júnior. Não tardou para que ele recebesse
mais um soco no braço.
— Não se preocupe, menino. Alguns meses aqui transformam qualquer
moleque em homem, acredite. Depois de uma temporada na marinha então,
ugh!
— Tá, ótimo papo, amigão. De verdade, tocou meu coração...
Caspar interveio, puxando Dimitri para o lado contrário e dando tapinhas
amigáveis nas costas de Dante.
— ...mas temos que ir andando. Dimitri aqui vai conhecer Jack!
E para finalizar, deu um tapa no peito de Dimitri, o que o fez engasgar.
O que será que os piratas veem de tão legal em bater nos outros?, pensou
Dimi, que já tinha apanhado demais por um dia. Dante arqueou as
sobrancelhas e, antes de ir embora, apenas acrescentou:
— Vish. — Riu. — Boa sorte, garoto.
O montador foi embora, levando um barril nos ombros e assoviando uma
canção exatamente igual a todas as outras. Enquanto Dimitri se recuperava
de todas as surras “amigáveis” que recebera, Caspar suspirou de alívio.
— Não liga, não. Esse metido a besta era da marinha real de Sedra e fica
se gabando da vida que tinha antes e como “teve que abrir mão de tudo
quando virou pirata. “É, tive que aprender rápido, rapazinho”. — Imitou a
voz convencida de Dante.
Dimitri deu uma leve risada, mas logo fechou novamente a expressão.
Os dois voltaram a caminhar em direção à popa do navio, a parte traseira da
embarcação. Havia muitos outros homens cumprindo suas tarefas diárias e
consertando os estragos.
Pelo visto a coisa foi feia por aqui, pensou o novato, sentindo certa pena.
O casco do navio levava buracos, algumas velas estavam rasgadas e uma
das vergas estava quebrada.
— Estão culpando a deusa das tempestades, Umma, por isso — explicou
Caspar.
— Não deviam pôr a culpa dos humanos nos deuses — disse Dimitri,
convicto, apesar de estar olhando para o chão.
Caspar pareceu estranhar.
— Não acredita nos deuses?
Dimitri deu de ombros.
— Acredito. Só acho que eles não são idiotas o suficiente para perder
tempo se importando com humanos.

Salão dos Deuses. Localização Desconhecida.

Doze divindades assistiam a tudo como se fosse uma peça de teatro. A


bola de cristal que flutuava em cima da mesa tinha esse poder. Só existiam
duas delas no mundo de Aklas e uma estava presente no lugar mais
perigoso de todos: nas mãos dos deuses. A outra, acho que ficou claro que
está comigo, no lugar mais a salvo de todos, o qual não revelarei.
Umma tinha a atenção completamente focada no Nadia Keane e em
todos os boatos que estavam surgindo sobre ele. Mas nem a paciência da
deusa das tempestades aguentava quando um irmão caçula atrapalhava.
— Ahá! Seu garoto tem a língua afiada, Umma! — brincou Áquila, o
deus da guerra.
Umma fez uma careta de desprezo.
— Ele não é meu garoto.
Mas Áquila estava certo. O garoto tinha a língua afiada.
29 graus Norte, 29 graus Leste. Convés.

Em meio a tantos homens, jovens, adultos e velhos, uma garota ruiva


chamou a atenção de Dimitri. Estava de pé no convés e dava para ver que
tinha em torno seus dezessete anos na época. Era alta e de corpo bem
definido. Vestia um espartilho por cima da camisa branca, calças justas e
botas de cano alto. Se Dimi tinha caçoado das divindades mais cedo, talvez
se arrependesse naquele momento, pois parecia ter visto uma deusa. Uma
deusa irritada, dando ordens para todos os seus colegas de bordo.
— Eu disse para substituir a tala e não a retranca!
Caspar aproximou-se, de fininho.
— Ah, olá, Kim. O dia está bonito hoje, não está?
Kim revirou os olhos, impaciente, e ignorou o rapaz da pólvora, sem
piedade.
— E dê um jeito nessa vela, marujo! — gritou para Jonas.
Mas Caspar voltou a falar, sem se importar se estava sendo ou não
inconveniente.
— Quem, eu? Eu estou bem, obrigado por perguntar. E você? Está
divertido infernizar a vida de seus colegas de bordo?
— Não amola, fedelho — reclamou, em seguida juntando as
sobrancelhas. — Parece que alguém sobreviveu ao sermão do imediato.
Aliás, não deveria estar limpando canhões a esta hora?
Caspar fingiu ter sido atingido no peito, com uma cara de dor. Então,
cambaleou para o lado, tentando chegar “acidentalmente” perto de Kim. A
contramestre empurrou-o para longe e pôs as mãos na cintura, para analisar
Dimitri. Passou seus olhos por todo o corpo do garoto, dos pés à cabeça, e,
em seu rosto, uma expressão negativa estava estampada. Dimi ficou um
pouco desconfortável e fechou, discretamente, um dos botões de seu colete.
— Esse daí é o novato?
— É, ele mesmo. E, se quer saber, não estou no meu posto porque fui
designado à tarefa muito importante de mostrar a ele a embarcação —
Caspar respondeu, orgulhoso e tentando impressionar a garota. — Se me
permite...
— Tá certo. — Kim soltou uma risada, como se aquilo não fosse nada
demais, então estendeu a mão para Dimitri. — Prazer, garoto. Kimberly.
— Conhecida como a contramestre megera — acrescentou o loiro, pelo
canto da boca.
— Dimitri. — O garoto pegou em sua mão e deu um leve sorriso. Seu
coração bateu mais forte.
Kim era mais velha, estava em um outro patamar. Mesmo Dimitri sendo
um jovem muito maduro para sua idade, ainda era só um pivete perto da
contramestre. Não era à toa que ela era dona daquele posto.
Mandar nos outros parece combinar muito com ela, pensou o novato.
E antes que qualquer um dos dois pudesse dizer outra coisa, o mais
pivete de todos tomou a palavra:
— Jack vai fazer a apresentação oficial para esse sortudo aqui — disse
Caspar, tentando imitar a amiga e pôr medo no novato.
— Jack? — Kim fez a mesma expressão de Dante. — Boa sorte, garoto.
Por acaso, essa é uma fala combinada entre eles ou eu realmente preciso
de sorte?, questionou Dimitri, levando a mão ao bolso novamente. Quem é
esse Jack, afinal?
A ruiva retirou-se para voltar a dar ordens. Caspar olhou para Dimitri
com cara de bobo, enquanto assistia a Kim caminhar ao longe com as mãos
nos quadris. Com uma passada de mão, bagunçou seus cabelos espetados.
— Algum dia, eu vou me casar com aquela ali.
— Kim, a contramestre megera? — provocou Dimitri.
Caspar fez uma careta e coçou a cabeça, pensativo.
— Bom, ainda é um trabalho em processo.
— Ela não parece gostar muito de você.
— Ela só age assim perto de mim porque é o trabalho dela. Sabe —
começou Caspar, convencido de suas palavras —, o cargo de contramestre
vem logo abaixo do de imediato, que é o braço direito do capitão. Isso
significa que Kim é muito importante por aqui. Ela tem que manter as
aparências.
— Sei...
Os dois garotos voltaram a caminhar, sem mais interrupções. Chegando
na popa do navio, Caspar empurrou Dimitri até o meio da escada para o
deque superior e freou o passo, repentinamente.
— A partir daqui, você tem que continuar sua jornada sozinho. Rito de
passagem. Lá está Jack.
Caspar apontou para cima, mas dali onde estavam, Dimitri só pôde ver o
topo do chapéu de três pontas que o sujeito usava. Virou-se novamente para
o rapaz da pólvora.
— É só ir até lá?
— Só não chegue de surpresa — explicou. — Além de levar uma surra, é
Jack quem controla o navio, então todos morreríamos. Mas sem pressão.
Caspar deu um sorriso amarelo e empurrou o novato alguns degraus para
cima. No momento em que Dimitri pisou seus pés no deque superior,
conseguiu ver tudo dali de cima. O caos do convés tumultuado contrastando
com a calmaria do vasto oceano. Em meio a essa visão, havia um marujo no
timão. Estatura baixa, corpo magro. Cabelos curtos cobertos pelo chapéu.
Usava um macacão largo, de alças caídas na cintura, coberto por um colete
comprido. No tronco vestia suspensórios, uma regata preta e vários cintos
multiuso. Seus braços e tornozelos eram finos e usava luvas de dedos
vazados.
Não parece ser tão assustador, afinal.
Dimitri, intrigado, foi até seu encontro e tocou em seu ombro para
chamar atenção.
— Jack?
Tudo aconteceu rápido demais, como um relâmpago ou algo parecido.
Jack, que tinha conhecimento das artes marciais do Oriente, possuía os
reflexos mais ágeis de toda a tripulação. Podia não parecer, mas era tão
forte quanto veloz. Ao sentir a presença de Dimitri, deu-lhe uma rasteira,
fazendo com que o garoto caísse de costas no chão e batesse a cabeça.
— Ouch.
Pulou em cima de seu corpo e pisou em seu peito, o que fez com que
Dimitri perdesse o ar, momentaneamente. Em seguida, puxou suas facas do
cinto e se aproximou do rosto do garoto, mirando uma das lâminas ao lado
da cabeça e a outra em seu pescoço. Dimitri, num impulso, fez o mesmo,
levando a mão ao bolso e apontando a sua própria arma para o nariz do
inimigo. Quando, finalmente, levantou o olhar, pôde ver Jack de perto. Seus
olhos verdes, como duas esmeraldas, suas sobrancelhas grossas e sua boca
cerrada. Sem saber como reagir àquela situação inesperada e tão incomum,
Dimitri levantou as sobrancelhas, surpreso.
— Jack é uma garota?
5

JACK, A TIMONEIRA

— Hã?
Jack, indignada ao ver uma lâmina apontada para si, fez uma careta e
distanciou-se. Aproveitando a deixa, Dimitri levantou, confuso.
— Pensei que Jack fosse o timoneiro.
— Meu nome é Jack e, sim, sou a timoneira. Algum problema com isso?
— Sem problemas.
A timoneira tirou as mechas de cabelo castanho que caíam em frente ao
seu rosto e jogou o colete para longe. Apesar disso, não parecia estar com
calor, porque levava um cachecol verde ao redor do pescoço. Na cintura,
um gancho de escalada. Sem mudar muito a expressão, voltou-se para o
timão novamente, sem dizer uma palavra. Dimitri a seguiu, achando graça.
— Então, você é a tão assustadora Jack? — Riu, pondo as mãos nos
bolsos. — Não sei por que me preocupei tanto.
— Sou uma das comandantes por aqui também. Então, vê se cuida com o
que fala — acrescentou Jack, levantando uma de suas facas no ar.
Dimitri fez uma careta.
— Comandante? Mas você é só uma garota.
— E isso te diz alguma coisa? — Jack levantou a voz, indignada. — Só
por que eu sou mulher eu não posso comandar? Acha que pode fazer
melhor?
— Não. — Dimitri riu. — Não foi o que eu quis dizer. É que você é só
uma criança.
Ouch.
Ela odiava ser tratada como criança. Mas, mais ainda, odiava ouvir de
estranhos que não poderia estar no cargo que ocupava. É, Dimitri.
Começamos bem.
— Eu batalhei muito para chegar até aqui — falou baixinho, para si
mesma.
Dimitri não parecia ter escutado.
— O que você disse?
Jack virou-se, revoltada, fazendo sua franja voar.
— Olha só. Não sei quem é você e, sinceramente, não me importo. Saiba
que eu estou aqui há mais tempo do que a maioria da tripulação. Tenho
mais experiência do que todos os moleques deste navio juntos. Sou a única
em quem o capitão Hall confia como timoneira. E não é um garoto —
empurrou Dimitri — que vai falar assim de mim.
Dimitri levantou as mãos, sarcasticamente, em tom de rendição.
— Tenho que admitir, essa foi a maior surpresa do dia.
— Onde conseguiu o canivete? — perguntou.
— Roubei — respondeu o garoto, dando de ombros.
Jack aproximou-se e analisou o cabelo de Dimitri. Era comprido e sem
corte, na altura do ombro, deixando com que uma franja escondesse um de
seus olhos. Cuspiu uma risada.
— Parece que saiu de um baile de princesinhas.
— Um o quê?
— Como é que disse que se chamava mesmo?
— Não disse.
Jack levantou a sobrancelha, impaciente. O garoto suspirou.
— Dimitri.
— É um nome idiota. Combina com seu corte de cabelo.
Jack bagunçou a cabeleira do garoto.
— Bem melhor assim.
Dimitri, sem jeito, passou a mão mais uma vez pelos fios só para
contrariar o que Jack tinha feito. A timoneira se distanciou, fazendo com
que o novato corresse atrás dela. Ela não parecia se importar se estava
sendo grossa ou mal-educada com ele. E ele, começava a querer fazer o
mesmo. Dimitri não era exatamente o que chamaríamos de cavalheiro. Se
alguém mexesse com ele, não deixava quieto. E Jack, definitivamente,
estava deixando uma primeira impressão e tanto.
— Fui mandado aqui para a apresentação oficial, o que quer que isso
seja.
Jack, que estava com as duas mãos posicionadas no timão, não falou
nada em resposta. Ao invés disso, fixou seus olhos no vasto azul do mar em
sua frente. Havia uma questão que a perturbava, mas ela não falaria tão
cedo sobre. Dimitri, que ainda precisava de respostas, aproximou-se, sem
medo de, possivelmente, levar outra surra.
— O que é esse negócio, afinal?
A garota levantou as sobrancelhas, aproveitando a deixa.
— Toda vez que alguém chega a bordo, tem que passar pela apresentação
oficial. Os novos tripulantes têm que subir até o topo do mastro da proa. Os
covardes são jogados da prancha e os audaciosos que sobem, se chegarem
até o fim, serão bem-vindos como Saqueadores da Barra. Os que caírem no
meio do caminho... — Riu de maneira macabra. — Bom, então não
sobreviveriam aos perigos do mar.
Dimitri e Jack trocaram um olhar misterioso.
— E você, Dimitri? É audaz ou covarde?
Dimi ficou estático e sem palavras. Não era de sua natureza, mas Jack
tinha algo que conflitava de frente com ele. Como se estivesse conversando
consigo mesmo, em um combate de fogo contra fogo. Não se saberia quem
iria ganhar. Então, Jack riu.
— Estou zoando com você. Sempre que um novato chega, meu trabalho
é assustar o pobre coitado.
— Conseguiu.
— Não pode levar tudo a sério por aqui.
Dimitri levantou os olhos para a timoneira e deixou um sorriso escapar.
Jack tem senso de humor, afinal, pensou. Obscuro e maldoso, mas tem.
— Dante disse algo parecido, hoje mais cedo. Disse que nunca devemos
confiar em outro pirata.
— E ele roubou essa fala de mim, claramente. — Jack riu de maneira
contagiante e arrumou o chapéu no topo da cabeça para que o sol não
incomodasse seus olhos.
O mundo pirata não era tão fora da lei quanto era de se imaginar. Na
verdade, seus integrantes haviam feito suas próprias regras e seguiam-nas
cegamente. Um bom homem do mar sempre seguia as Leis da Pirataria. E
Jack não era a pirata mais correta, mas para sobreviver àquele mundo, ela
havia inventado suas manhas. “Nunca confie em outro pirata” era seu maior
lema e o primeiro de uma enorme lista.
— Vem — chamou a timoneira. — Vamos começar logo com isso.
Jack puxou Dimitri pela mão e levou-o até seu posto.
— Esse é o timão. Não o subestime, é o coração do navio. Se ouvir a
palavra “bombordo”, é um comando para a esquerda. “Estibordo”, direita
— explicava, enquanto guiava as mãos de Dimitri. — Entendido?
— Sim, senhora.
— Bom. Aqui onde estamos é a popa, a parte de trás do navio. Lá na
frente é a proa.
Jack puxou Dimitri bruscamente pela mão mais uma vez e levou-o até a
borda do navio, onde havia uma estrutura feita de cordas, que formava uma
escada do chão até as vergas mais altas. Enquanto explicava, os dois subiam
com os cabelos voando contra o vento.
— Esses são os brandais e os cordames. O Nadia Keane é um tipo de
embarcação pequena chamada corveta. Possui dois mastros, um cesto da
gávea e quatro canhões de cada lado. Aquela estrutura comprida na proa é o
gurupé. Dica: nunca suba lá sozinho. A cabine do capitão fica aqui embaixo
e o resto dos aposentos no andar inferior, descendo a escotilha. Lá você vai
encontrar os dormitórios, a cozinha, a enfermaria e outros cômodos nos
quais você é proibido de entrar. No último andar fica o depósito principal
onde guardamos munição, materiais de construção e outras coisas que
queremos manter escondidas.
Dimitri levantou uma sobrancelha, curioso.
— Tesouros?
Jack puxou um sorriso de canto de boca, gostando da audácia.
— Quem sabe...
A timoneira apontou para os céus e Dimitri jogou a cabeça para
conseguir enxergar o topo.
— Cada uma dessas velas possui um nome, mas não adiantaria explicá-
las a você. E lá no topo está a nossa...
— Jolly Roger, a bandeira preta — completou Dimitri.
— ...é.
Jack estranhou os conhecimentos marítimos do garoto. A conversa dos
dois era afiada, mas sutil, como uma batalha entre lâminas cegas. Pensando
bem, ele conseguiu roubar o canivete, ponderou. Quem é esse garoto?
Então pulou dos cordames de volta ao deque, fazendo-o tremer com o
impacto. Mas seus pés caíram perfeitamente firmes no chão. Era sua vez de
recolher informações.
— Você já velejou antes?
Ele não sabia responder aquela pergunta. Eu não tinha parado para
pensar nisso. Será que...?
— Eu...
— Não parece com quem já velejou antes.
E essa foi a deixa para frustrar ainda mais o rapaz.
— Você disse que não vale a pena falar o nome dessas velas para mim —
tomou a palavra, determinado. — E não vale mesmo. Eu sei o nome de
todas elas.
— Ah, é, esperto? — debochou Jack. — Parabéns, você acaba de receber
o selo de bom rato de biblioteca.
Jack era rápida, mas Dimitri não deixaria as coisas daquele jeito.
Apontou para cima, confiante.
— Genoa.
— O que disse?
— O nome daquela vela. Muito útil para controlar o barlavento e o
sotavento.
Jack fez uma careta e limpou o ouvido, pois não acreditava no que havia
ouvido. Dimitri levantou as sobrancelhas, convencido do que estava
dizendo.
— Ainda acha que eu não era um homem do mar?
Por certo instante, podia-se parecer que a timoneira tinha levantado
bandeira branca e se rendido. Até que ela sorriu.
— Genoa é a vela de proa, mané. Essa daqui é a mezena. Conclusão —
deu de ombros, fingindo pena — você não era um homem do mar.
Droga! Dimitri, seu idiota, xingou para si mesmo. Mas é claro que
aquela era a mezena. Tentou esconder a vermelhidão que imaginava que
suas bochechas tinham ficado por trás do cabelo comprido. Isso foi o
suficiente para Jack sair de perto, saltitando. O dia dela acabara de ficar
ainda mais ensolarado, depois de se sentir mais inteligente que outra pessoa.
Então só continuou a tagarelar. Irritar Dimitri tinha virado seu passatempo
favorito, de repente.
— Estão fazendo apostas sobre quanto tempo você aguenta. Eu,
particularmente, apostei três coroas que você não passa de uma semana.
— Eu tenho tanta cara de frouxo assim?
— Mais do que você pensa.
Jack apontou para o pé de Dimitri, que havia ficado pendurando no
brandal por conta das bandagens que levava. Ele, de bochechas rubras de
constrangimento, tentou arrumar o mais rápido possível. Jack deu uma
risada. Dimitri desviou o olhar por não saber mais o que argumentar com
aquela garota maluca. Ele sabia reconhecer uma derrota e, naquele dia, foi
dele. A timoneira suspirou.
— Acho que meu trabalho acabou por aqui.
— Beleza. — Dimitri estendeu a mão. — Foi, hã... um prazer te
conhecer.
— Sei. — Jack apertou sua mão, mas logo soltou. — Já conheceu o
capitão?
O novato lembrou de algo que havia ouvido mais cedo naquele dia,
dentro do depósito da proa. O imediato comentara com King algo sobre o
capitão não estar muito bem humorado ultimamente. Dimitri queria
perguntar para Jack o que ela sabia sobre aquilo, no entanto, não achou que
tivesse intimidade ou sequer direito de tocar no assunto. Nem ele era tão
sem noção assim. A garota retomou a palavra.
— Aproveite enquanto pode. Ele é tipo barco pirata com bandeira de
navio mercante — falou em tom de contadora de histórias.
Essa era uma tática muito utilizada pelos navios piratas. Alguns
escondiam suas bandeiras pretas e substituíam-nas por outras para chegar
mais perto dos portos sem serem reconhecidos. E, quando era o momento
certo, atacavam. Jack pendurava-se no timão, com o corpo baixo e voz mais
baixa ainda.
— Ele fica só na espreita e quando você menos espera...
Ela estava só esperando o momento certo.
Botas pretas engraxadas e de fivelas polidas caminhavam pesadamente,
atravessando o convés. Seu barulho surdo pisando o chão, abria espaço por
entre os marujos presentes, que recuavam assustados. Um homem vestindo
um longo sobretudo preto caminhava em direção ao deque superior da
popa.
— AHÁ!
A timoneira apontou a faca para o peito de Dimitri, que se assustou com
o movimento e caiu para trás. Então, apontou a lâmina em direção aos céus
e gritou.
— Iça sua Jolly Roger, atacando o inimigo e...
No momento que Jack levou a faca para a frente, as risadas murcharam,
instantaneamente. De repente, o ar parecia esfriar, e o vento era o barulho
mais alto que se podia ouvir. De resto, estava tudo em silêncio. Um silêncio
tenebroso. Dimitri estava caído no chão e a primeira coisa que viu em sua
frente foram as fivelas de ouro. Levantou seus olhos, cada vez mais,
acompanhando todo o corpo do sujeito alto em sua frente, até se deparar
com a figura mais assustadora que já vira. Era um homem vestido todo de
preto, como uma sombra. Era elegante, mas de uma maneira mortífera, com
os cabelos pretos e lisos que iam até o pescoço. Tinha uma aparência
fantasmagórica, apesar de ser jovem, com seus trinta e dois anos. Seus
olhos cinzentos destoavam na pele muito pálida e sua expressão era de ódio.
Dimitri, prontamente, apoiou-se nos cotovelos a fim de dar impulso ao
corpo para ficar de pé. Então percebeu que o chapéu que o sujeito levava no
topo da cabeça era bem maior que o dos outros. Percebeu também que
usava um anel com uma pedra vermelha no dedo indicador da mão direita, a
mão que mirava uma espada comprida e pontiaguda na direção de seu
pescoço.
Jack engoliu em seco e bateu continência. Quem seria aquele que fazia
até Jack, a Bruta, estremecer?
— Capitão.
6

PATRICK HALL, O IMPIEDOSO

— Volte para seu posto, maruja — ordenou.


A timoneira, depois de hesitar por alguns segundos, decidiu obedecer.
Puxou uma fivela de seu cinto, que fez com que o gancho de escalada
automaticamente voasse longe e ela desaparecesse dali em um instante,
deixando o novato sozinho com o capitão do temido Nadia Keane: Patrick
Hall, o Impiedoso. Sua voz era grave e imponente e seus olhos estavam
vidrados em Dimitri.
— Dimitri, não é?
O garoto não respondeu, mas também não desviou o olhar. Não devia
satisfações para ninguém. O capitão aproximou-se bruscamente, puxando a
gola de suas roupas, deixando Dimitri suspenso no ar por alguns instantes.
Leu o nome estampado, então, empurrou-o para longe.
— Responda quando eu perguntar, pivete.
— Sim, senhor...
— Me chame estritamente de capitão.
— Sim, capitão.
Dimitri baixou os olhos e mirou-os indiretamente em Jack, que se
encontrava a alguns metros de distância. Ela visualizava a cena de longe,
parecendo se esforçar para não sair dali. Enquanto isso, o homem das vestes
pretas analisou o garoto em sua frente com uma expressão de nojo
estampada no rosto. Examinou cada centímetro de seu corpo, cada fio de
cabelo, ao passo que soltava interjeições de desaprovação. Por fim, gritou
por seu “braço direito”.
— Imediato, Zuca!
Quem apareceu em seguida foi o homem das oito argolas em cada
orelha, que subiu as escadas para o deque superior, rapidamente. Deixar o
capitão esperando era uma falta de respeito.
— Sim, capitão Hall.
— Dê a este filho de caravela um trabalho como criado de bordo
imediatamente. Mande Kimberly ficar de olho nele.
— Entendido, capitão.
Dimitri olhou para o homem a sua frente, ainda com a cabeça baixa, mas
não se deixou abalar. Olhos cinzentos mirando olhos azuis, os dois se
encaravam, como se desafiassem um ao outro, silenciosamente. Seria aquilo
o início de uma guerra? Só de pensar, Patrick Hall estreitou os olhos e
rangeu os dentes. Ele não podia deixar isso acontecer.
Que raios eu fiz para merecer isso?, ele pensava, sentindo-se
amaldiçoado pelos deuses.
— E não se dirija a mim, a não ser que seja algo urgente. Não quero ter
que me preocupar com um fedelho no meu navio.
O jeito que Patrick Hall falava, como se fosse o rei de uma dinastia
inteira, a seu oponente, um subordinado inferior a um verme, incomodava
todos os nervos de Dimitri. Em sua cabeça, estava criando mais de cem
teorias sobre aquela figura enigmática a sua frente que era o homem das
vestes pretas, mas, antes que tirasse qualquer ideia precipitada, um baque
balançou o navio inteiro. Os marujos olharam para baixo, para os lados,
para cima, sem entender. E Hall parecia não estar com paciência para mais
contratempos.
— Mas o que diabos é isso, agora?
— Alguma coisa encostou na embarcação a bombordo, senhor —
explicou Jack, com um tom de urgência.
Apesar de tudo, Patrick Hall parecia calmo.
— Almirante?
Quem respondeu em seguida foi Cesco, o pirata do topo do cesto da
gávea. Ele estreitou os olhos em direção ao mar, através da lente de sua
luneta.
— Não consigo ver o que é exatamente, mas é grande e está vindo para a
superfície.
Ao ouvir aquilo, Patrick Hall sabia instantaneamente do que se tratava.
Antes que deixasse seus olhos arregalarem, fechou a expressão e bufou.
— ...Kirk.
De repente, um navio apareceu direto das profundezas, tomando forma
mais nítida quando chegou à superfície. Era uma embarcação diferente de
todas as outras. Era toda revestida em materiais metálicos e aparelhada com
os mais diversos recursos, com janelas redondas por todo o seu casco, o que
lhe dava a aparência remota de um submarino. Seu convés era pequeno e
oval, com grades e escadas de ferro em todos os cantos. Os Saqueadores da
Barra foram correndo até a borda do navio para ver mais de perto, quando
seis canhões surgiram das laterais daquela estranha corveta e miraram
diretamente em seus rostos.
— Abaixem-se!
Metade da tripulação mergulhou em direção ao chão para tentar se
proteger dos estrondos. Pedaços de madeira eram arrancados de raspão
pelas balas e caíam por todo o convés. Patrick Hall tinha a verdadeira fúria
em seus olhos.
— Virar a estibordo e acionar os canhões!
Jack foi a primeira a agir, seguida por Caspar. O timão girou com força e
o Nadia Keane fez um brusco movimento para a direita, o que levou Dimitri
a cambalear e a bater de costas na borda do navio. Caspar acionou seus
poucos canhões. Estrondos. Baques. O barulho das balas se chocando era
tão alto que Dimitri não hesitou em tampar os ouvidos. Caspar se escondia
atrás de um dos canhões, quando gritou para o capitão:
— Preciso de uma mãozinha aqui!
— O que está esperando? — vociferou o capitão.
Quando Dimitri percebeu que era com ele a conversa, já era tarde
demais. Patrick Hall, o Impiedoso, pegou-o pela gola novamente e
empurrou-o em direção à escada.
— Vá trabalhar, pivete!
O novato desceu os degraus que levavam ao convés, ao passo que
desviava de todos os obstáculos que surgiam em seu caminho. Marujos
pendurando-se em cordas. BAM! O Nadia Keane foi atingido. Destroços do
navio voavam por todos os lados. BAM! Os canhões foram acionados em
resposta. Quando Dimitri chegou até Caspar, esperava que, pelo menos,
pudesse ajudar de alguma forma. O garoto não sabia nada sobre armas de
fogo.
— Disparem! — gritava Hall.
— Ouviram o capitão — gritava Kim, em seguida. — Dante, Jonas.
Quero um em cada canhão, AGORA!
E suas ordens eram cumpridas com maestria. Apesar de toda a confusão,
os Saqueadores da Barra estavam em ótima forma. Afinal, essa era a vida
deles, estavam acostumados com contratempos.
— FOGO! — gritava o rapaz da pólvora.
Corveta contra corveta, dois navios batalhavam e os mares não estavam
do lado de nenhum deles. Estariam os deuses? Canhões contra canhões, o
fogo iluminava os céus. O cenário era de caos e as águas de tormentas,
como se uma tempestade quisesse se formar. Uma tempestade de pólvora.
Sangue. A descrição perfeita para a obra-prima de um famoso pintor gótico.
Mas não é nada disso que deixa essa história interessante. Não, senhores.
Deveriam observar o pirata com os pés fincados no chão da embarcação
inimiga. Ele tinha um sorriso de satisfação no rosto por trás do escafandro
na cabeça. Patrick Hall rosnou de raiva.
— Ele está brincando conosco.
— Capitão?
Mas Patrick Hall também tinha suas cartas na manga. Ele sabia com
quem estava lidando.
— Virar a bombordo — ordenou.
— O senhor quis dizer estibordo?
— Bombordo, timoneira.
Jack fez uma careta de espanto.
— O QUÊ? Se virarmos, vamos acabar colidindo de frente com eles!
— Exatamente. CESSAR FOGO!
Dessa vez, foi Hall quem deu o sorriso.
— Cessar canhões! — repetiu a contramestre.
Caspar ficou confuso, mas Dimitri agradeceu aos deuses por não ter que
mexer mais com canhões. Dante, Jonas e os demais obedeceram aos
comandos e aguardavam por novas ordens. Voltando para o deque da popa,
Jack tinha uma raiva em seus olhos que brilhavam de agonia. Virou o timão
a bombordo, sem hesitar, pois, apesar de tudo, em seus olhos nunca havia
medo.
— Droga, Patrick! — xingou baixinho.
Com um só movimento, a timoneira comandou a embarcação inteira, que
virou bruscamente à esquerda. A ponta pontiaguda do gurupé agora estava
virada e mirava bem no centro do casco do navio inimigo. Desse ângulo,
Patrick Hall pôde ficar frente a frente com John Kirk, o Vil. O capitão do
Octopus juntou as sobrancelhas, ao passo que Hall levantou as suas em tom
de desafio. O Nadia Keane aproximava-se cada vez mais e as mãos de Jack
tremiam ao girar o timão, mas ela se conteve. Aquela era uma batalha de
egos. De orgulho. Não seria uma surpresa ver quem seria o último homem a
ficar de pé.
É intriga o que você quer, John?, pensava Patrick Hall.
Foi você que começou com isso, Pat. Só estou retribuindo, pensava John
Kirk.
Apesar da distância e da falta de palavras em voz alta, os dois pareciam
ler exatamente o que se passava na mente um do outro. Os olhos de John
Kirk encontraram-se com os de Patrick Hall segundos antes de Kirk bater
em retirada. Seus canhões lançaram uma última carga misteriosa antes de
serem recolhidos e sua embarcação submergir nas profundezas novamente.
Os Saqueadores da Barra correram curiosos em direção à borda do navio,
para verem o espetáculo, mas, em poucos instantes, era como se o Octopus
nunca estivera ali. O capitão rangeu os dentes.
— Eu sabia. Covarde.
— Capitão — chamou Zuca.
O imediato, junto com todos os seus outros homens, estava estático, no
meio do convés. Os marujos formaram um círculo, olhando curiosos para
um objeto estranho no chão. Patrick Hall abriu espaço entre os corpos para
ver o que tanto causava confusão. Seus olhos voltaram-se para o chão de
madeira onde havia centenas de cacos de vidro espalhados ao redor do que
já fora uma garrafa. Mas o que mais chamou sua atenção foi o que veio
dentro. Abaixou-se ao ver um bilhete amarelado, com a tinta das letras um
tanto borrada. Pegou na mão o pedaço de papel, onde podia-se ler as
seguintes palavras:

Sentiu minha falta? Soube que está me procurando.


J.K.

— “Sentiu minha falta? Soube que está me procurando.” Argh,


desgraçado.
Hall amassou o bilhete com raiva e jogou ao mar. Então, pôs-se a pensar
com uma das mãos no queixo. Os marujos não sabiam muito o que falar ou
como reagir. Jack foi quem tomou a palavra.
— Senhor, permanecer na rota?
— Não — respondeu o capitão, decidido. — Traçar rota para Calamari,
imediatamente.
— Sim, senhor.
Poeta, o moleque dos mapas, anotou alguma coisa em seu fiel
caderninho e correu junto a Jack para o deque superior. Eles tinham
bastante trabalho pela frente. Os marujos começavam a se dispersar com o
comando para voltarem às suas atividades, mas era inegável o ar de tensão
que ficara no convés. O capitão virou o corpo para trás e deparou-se com
Dimitri, de repente. Ele já tinha esquecido daquele fardo. Então lembrou-se
que os problemas de verdade estavam apenas começando.
— E você — rosnou — fique esperto. No primeiro vacilo, os filhotes de
caravela viram jantar de Krauk por aqui.
E retirou-se para sua cabine.

5 graus Sul, 54 graus Leste. A bordo do Octopus.


Ter inimigos em alto-mar é algo muito comum aos piratas. Ter inimigos
reais é outra. John Kirk era os dois e nenhum desses casos ao mesmo
tempo. John Kirk era uma incógnita, que só podia ser resolvida por ele e
por Patrick Hall. Os dois tinham seus motivos e um passado turbulento para
acompanhar. Mas uma coisa era certa. Nenhum deles daria o braço a torcer.
Por fora, o Octopus era um navio que surpreendia qualquer marujo que
se deparasse com ele nos oceanos, mas, por dentro, era ainda mais chocante
comparado a outras embarcações. John Kirk caminhava por entre um
corredor até chegar no coração do navio. Uma sala de máquinas, onde um
grupo seleto de marujos trabalhava incansavelmente. A maioria deles
utilizava máscaras especiais de gás ou mergulho. Não que elas servissem
para alguma coisa, mas eram ordens vindas de cima.
— Boa noite, capitão!
— Ponha mais força nas hélices da próxima vez — respondeu Kirk,
ríspido.
— Sim, senhor. Convocarei mais de meus homens amanhã.
— Ótimo.
O capitão voltou a caminhar confiante de que o trabalho seria feito o
mais rápido possível. No entanto, antes que pudesse sair, sua atenção foi
chamada novamente.
— Mas o desempenho da velocidade foi bom hoje, não acha?
Uma sombra percorreu pela expressão de John Kirk através das grades
de seu escafandro. E o marujo, que já sabia que tinha falado bobagem,
engoliu em seco. Kirk respondeu com a voz metálica.
— Não existe “bom” quando se trata de Patrick Hall. Eu quero a
excelência.
— Sim, senhor — respondeu o marujo, claramente envergonhado.
John Kirk continuou em frente. Os cômodos inferiores do Octopus eram
como um enorme labirinto. Não era de se surpreender que o capitão era o
único que conhecia o caminho para sua sala secreta. A sala dos segredos.
Estava escuro quando entrou no pequeno quarto e andou em direção a um
baú brilhando em dourado. Todo o seu corpo era feito de ouro e seu
conteúdo então... Abaixou-se e, ao abri-lo, seu rosto se iluminou com o que
viu lá dentro.
Um tesouro cobiçado por muitos. E lá estava nas mãos de John Kirk, o
Vil. A 5 graus Sul, 54 graus Leste.
7

POETA, O MOLEQUE DOS MAPAS

28 graus Norte, 37 graus Leste. Convés do Nadia Keane.

O trabalho pareceu durar uma eternidade para os criados a bordo e,


quando Dimitri percebeu, a noite já estava chegando aos céus. Os
Saqueadores da Barra encontraram-se no convés para confraternizar e
comer o jantar feito com tanto esmero por Ted Molenga. Caspar foi um dos
primeiros a entrar na fila para se servir e receber uma concha cheia em seu
prato.
— Sopa de peixe, molecada! — anunciava Ted.
— Delícia — respondeu Caspar, sarcasticamente, com uma careta no
rosto.
Dimitri teve seu prato servido e sentiu o cheiro forte da sopa adentrar
suas narinas. Pelo menos era comida. Os dois garotos sentaram-se no chão
do convés perto do resto da tripulação, formando um semicírculo. Havia
caixas de madeira baixas, espalhadas para servirem de mesa durante a
refeição. Cesco era o que mais parecia apreciar de fato seu jantar, pois
lambeu os beiços depois de comer. Dimitri mexia sua tigela de um lado para
o outro, pensando por onde começar. Era um caldo esverdeado e pastoso.
Poeta foi o próximo a receber seu prato e foi esperto ao tampar o nariz
quando pegou sua porção. Em seguida, sentou-se com o resto dos jovens.
— Boa noite, companheiros — começou animado. Ele estava sempre
cheio de energia. E palavras. — Vocês viram aqueles tanques de lastro? Por
isso conseguiram submergir tão rápido. Nossa, o engenheiro do Octopus
deve ser um gênio... Preciso estudar sobre isso. — Tirou o lápis detrás da
orelha e anotou algo em seu caderno.
— Boa noite, Poeta — respondeu Kim, mesmo sabendo que o rapaz não
ouviria.
Dimitri juntou as sobrancelhas, confuso.
— O nome dele é Poeta?
Caspar deu de ombros.
— Sei lá. Cheguei aqui e ele já era chamado assim.
Poeta deu uma risada.
— Não, na verdade, meu nome é... — interrompeu ao finalmente
perceber Dimitri. — Ah, olá! Dimitri, não é?
— É o que dizem — respondeu o novato, mostrando a gola do colete
com “seu nome” estampado.
Mas é claro que Poeta não prestou atenção. Estava ocupado demais se
maravilhando com suas ideias.
— Então, como eu estava dizendo, se eu conseguir estudar esse tipo de
hidrodinâmica, posso conseguir fazer alguns ajustes por aqui.
— Eu não entendi nada do que você disse, mas você viu o tamanho
daqueles canhões? — falou Caspar, horrorizado. — Graças aos deuses que
eu não trabalho lá. Tenho pena do rapaz da pólvora deles.
Jack foi a próxima a chegar com sua tigela de sopa de peixe. Usou os
cotovelos para abrir espaço entre os garotos, por fim, sentando ao lado de
Dimitri.
— O que as mocinhas leigas em mecânica estão discutindo?
— Sobr sauqned c...
Poeta começou a falar de boca cheia, mas engoliu para continuar. Ele era
um tanto ansioso.
— ...sobre o ataque do Octopus. Você viu como eles revestiram o casco?
O que era aquilo, aço? — Então mudou de assunto. — Ah, Jack, e esse é o
Dimitri.
Poeta era um tanto hiperativo também, mas ele negava até a morte.
Vestia uma camisa por baixo do colete, por baixo do casaco jogado em cima
dos ombros. Tinha uma boina na cabeça, cheia de pequenos papéis e
anotações presas perto da aba, e seus óculos ficavam pendurados no
pescoço. Havia uma bolsa de carteiro enrolada no braço, com tantas fivelas
e engrenagens que era impossível alguém de fora tentar abrir sem saber o
truque certo. Suas calças eram curtas e seus coturnos eram daqueles de
combate, o que definitivamente contrastava com o resto da sua figura
intelectual, assim como as luvas grossas de mecânico. Em seu antebraço
havia uma manga de couro que carregava diferentes relógios, bússolas e
termômetros. O moleque dos mapas apontou para o novato, que estava de
cabeça baixa, e Jack levantou as sobrancelhas em sua direção. Então, deu
uma leve risada.
— Eu sei. Esbarrei com ele mais cedo.
Aproximou-se, nada discreta, e deu uma cotovelada para chamar a
atenção do garoto.
— E aí, princesa? Posso te chamar assim?
— Gosto do meu nome, valeu.
— Dimitri? — Jack cuspiu uma risada. — Acho que prefiro princesa...,
mas então, depois dessa, acha que aguenta virar um de nós?
— Você quer dizer sobre o ataque?
Dimitri apoiou o rosto no punho. Seus olhos tinham um brilho misterioso
por baixo dos cabelos castanhos. E, certamente, o que respondeu em
seguida, pegou Jack de surpresa.
— Posso não ter sido um homem do mar, mas eu aprendo rápido.
O grupo ficou um instante em silêncio ao ouvir aquelas palavras tão
fortes vindas de um novato. Geralmente, os novatos se encolhiam em um
canto com medo dos piratas grandes e demoravam uma ou duas semanas
para começar a falar. Mas não Dimitri.
Caspar trocou um olhar com Jack. Para descontrair, ou não, Kim deu
uma risada e uma cotovelada na barriga de Dimi. Era assim que piratas
demonstravam afeto, aparentemente.
— Gostei da espiritualidade, garoto. Mas ainda falta garra em você.
Precisa ficar esperto.
— Dante falou a mesma coisa para ele — explicou Caspar. — Acredita
que ele mentiu que fez boca a boca no Dimitri? Ahá! Tinha que ter visto a
careta que ele fez.
— Ele deve ter pensado que foi muito engraçado — resmungou Dimitri,
lembrando da cena.
Jack deu uma risada.
— Engraçado mesmo, porque não foi ele. Fui eu.
— VOCÊ?!
Dimitri ficou com as bochechas mais rubras do que uma maçã. Ele podia
ser bastante confiante, mas, pelo jeito, era péssimo quando se tratava de
garotas.
O que se responde para isso?, ele pensou.
— Eu...
— Você estava fedendo a peixe — continuou Jack, o que fez com que
Dimitri quisesse esconder a cabeça em um buraco.
Placar: Jack 2 x Dimitri 1
Antes que se pudesse continuar o assunto constrangedor para a sorte ou
não de Dimitri, Patrick Hall chutou a porta de sua cabine com um estrondo
que ecoou por todo o navio. Isso, com certeza, chamou todas as atenções
para ele. Então, caminhou em direção ao centro do convés. Os tripulantes
do Nadia encaram-no com respeito e todos se mantiveram calados,
enquanto o capitão caminhava devagar, pisando forte com as botas no chão.
O som do alto-mar era o barulho mais alto a se escutar depois de suas botas
de couro batendo no piso de madeira. Seguiu por todo o semicírculo que
estava formado ao redor das mesas de jantar, analisando rosto por rosto,
antes de frear o passo no centro. Dimitri percebeu que ele tinha um mapa
em mãos.
— Homens!
— Capitão — Dante bateu continência.
— Quieto, marujo. Tenho um comunicado urgente a fazer, portanto, sem
mais interrupções, Montessa.
Sua voz era firma e ríspida como no momento em que Dimitri havia a
ouvido pela primeira vez, mais cedo naquele mesmo dia. Seus olhos tinham
o reflexo do mar dentro deles, iluminados por uma luz bruxuleante vinda
dos lampiões. Zuca foi ao seu encontro e, ao lado do imediato, Patrick Hall
parecia muito mais com um menino jovem. Abriu espaço em cima de uma
das mesas e desenrolou o mapa que levava em mãos, prendendo as pontas
com botelhas de rum. Todos os Saqueadores da Barra deixaram seus pratos
de lado e aproximaram-se curiosos. Dimitri manteve certa distância,
camuflando-se atrás dos outros marujos para não chamar muita atenção.
Mesmo assim, de algum modo, as pupilas raivosas de Hall encontraram-no
em meio à multidão. O garoto desviou o olhar, rapidamente, em direção ao
mapa.
Antes de começar a falar, Hall deu um gole em uma das botelhas para
limpar a garganta.
— Quero anunciar que, depois de muito tempo, finalmente estamos perto
de encontrar nosso tesouro.
Os olhos de Dimitri se arregalaram.
— Tesouro? — pensou alto, interessado.
Sussurros começaram a surgir das sombras, mas, antes que as vozes
pudessem tomar rostos, Patrick Hall levantou as mãos para pedir silêncio.
Todos obedeceram imediatamente. Então, circulou alguma coisa no centro
do mapa.
— Com a rota traçada para Calamari, devemos chegar em breve. Mas
não se dispersem com o que o porto tem a oferecer. Ficaremos poucos dias.
Com toda a atenção para si, Hall esboçou um sorriso. Tinha a botelha de
rum em uma das mãos e a espada desembainhada na outra.
— Cavalheiros, em questão de semanas e sem delongas, o Nadia Keane
se vingará de John Kirk e todos os seus vinte e sete homens. Faremos com
que aquele pilantra pague suas dívidas!
Os Saqueadores da Barra repetiram as palavras dele, brandindo armas e
gritando urras. A voz do capitão aumentava de volume e energia a cada
frase que falava, com raiva e prazer recheando as suas palavras.
— Afundaremos o Octopus e roubaremos suas riquezas. Penduraremos a
Jolly Roger tenebrosa deles no nosso mastro como um troféu!
— URRA! — gritou a tripulação, em resposta.
Com um movimento, pisou em cima do mapa, o que pareceu incomodar
Poeta um bocado, e apontou a lâmina para os céus. Então, encheu os
pulmões e gritou:
— Homens, John Kirk e os Chapéus Verdes já são piratas mortos!
E a tripulação foi à loucura. Pendurando-se nos cabos, mastros e
cordames, gritavam aquelas palavras com gosto. Assemelhavam-se a
animais selvagens, correndo e disputando por suas presas. Cesco e Jack
eram os que atiçavam a tripulação como líderes de uma matilha. Patrick
Hall tinha seu rosto iluminado de maneira macabra e, quando mirou seus
olhos em Dimitri, fuzilou-o até a alma.
O que esse cara tem comigo?
Desceu de seu palanque enjambrado e só desviou o olhar no momento
em que passou pela porta de sua cabine. Ele era desses. Chegava de
mansinho, causava furdunço e ia embora porque não queria ter que lidar
com a bagunça que tanto detestava.
De repente, Dimitri ouviu um barulho estranho vindo de um canto
escuro. No ponto mais distante da fogueira, lá estava Kim. A única da
tripulação que não estava se pendurando por aí como macacos-aranha. A
ruiva estava alguns passos de distância, observando a cena e afiando a sua
adaga com destreza. Ela era boa nisso. Quer dizer, em observar tudo à sua
volta. Em afiar suas lâminas também, aliás.
Dimitri apoiou-se na parede ao seu lado, de braços cruzados. Os dois
ficaram ali, nas sombras, observando. Em silêncio. Kim terminou o trabalho
e guardou sua adaga no cinto novamente. Então, suspirou.
— É, parece que você é uma ameaça para o capitão.
Dimitri riu, sarcasticamente.
— Qual foi, fala sério...
— Acha que eu não sou séria o suficiente?
O garoto olhou para a ruiva, que tinha as sobrancelhas levantadas, e
cuspiu uma risada. Ele não acreditava no que estava ouvindo.
— Eu tenho quatorze anos. O que ele acha que eu vou fazer? Jogar um
esfregão na cara dele?
Foi a vez de Kim rir. Ajeitou a posição dos ombros e voltou a se apoiar.
— Você ainda é um mistério, e Hall odeia não saber das coisas.
A contramestre aproximou-se, desarmando Dimitri. Literalmente.
— Se você fosse um mero garoto de quatorze anos, ele nem ligaria. —
Levou o canivete de seu bolso ao ar.
O quê?, Dimitri agarrou-a de volta, surpreso. Ela sabia que eu estava
armado?
— Acredite, eu sei. Foi assim comigo.
— O que quer dizer?
Kim deu de ombros.
— Quer dizer que você tem algo de diferente e Hall vê isso como uma
ameaça.
Uma sensação de inquietude surgiu no peito do rapaz. Inquietude e
alerta. Kim apertou a fita que amarrava seu cabelo e deu um cascudo na
cabeça de Dimitri.
— Se cuida, garoto. Você está nadando com tubarões.

Salão dos Deuses. Localização Desconhecida.

Ao chamar seu pequeno furacão de volta, Umma desintegrou-o ao


apertar uma das mãos no ar. Como Lua, a deusa dos mares e da noite, havia
tomado conta dos céus com seu corpo estrelado, já não havia mais grandes
jogadas a serem feitas. As cadeiras foram se esvaziando e Tachi preparou-se
para trabalhar, afinal, o deus dos sonhos não tem hora para dormir.
Levantou-se e seu corpo foi tomado por linhas finas e douradas, que
desenhavam círculos, triângulos e outros muitos símbolos em sua pele. Ao
redor de sua cabeça, um anel girava para fazê-lo se concentrar.
Umma foi a última a se levantar, mas, antes que o fizesse, focou seus
olhos mais uma vez na bola de cristal, que flutuava sobre a mesa. Lá ela
pôde ver a imagem de um belo rapaz, de cabelos castanhos e olhos azuis.
Ele estava deitado em uma rede, em algum lugar no meio do oceano. Olhou
para o teto e suspirou, pois não parecia conseguir dormir.
Umma sorriu.
— Este será um jogo adorável, irmãos.
E Dimitri fechou os olhos, ansiando por uma noite tranquila de sono.

Pergaminho Perdido 1
- Sistema de Moedas de Aklas -

O mundo de Aklas é dividido politicamente em quatro grandes impérios.


O Norte, o Oriente, o Ocidente e o Sul. Cada um deles possui uma moeda
própria que vale para a maioria de seu território. Ilhas menos
desenvolvidas têm suas próprias técnicas, como o escambo.
O Banco Central fica na capital Montemor, no Norte. É o único lugar no
mundo onde se pode trocar as moedas legalmente. Claro que se pode
consegui-las também no Mercado Sinistro.
Das mais valiosas às menos valiosas:
Florim: moeda utilizada no Ocidente e na famosa cidade de Aquatta.
É a capital mais desenvolvida do mundo, portanto a vida lá é de alto
custo e sua moeda vale muito. Todas as moedas são furadas no meio, para
ser mais fácil de contá-las e pesá-las. O florim tem um furo no formato de
um losango.
Coroa: moeda utilizada nas Ilhas do Sul.
Por seu território ser muito pequeno depois das terras do continente do
Sul serem devastadas pela Grande Guerra, a coroa ganhou muito valor.
Sua capital, Hombatomba, é considerada o novo centro do mundo e é um
destino turístico grandioso. Tem um círculo no meio.
Dinar: moeda utilizada no Norte.
O Dinar já fora a moeda mais valiosa do mundo, e na época foi por isso
que construíram o Banco Central em suas terras. Mas depois de sua capital
Montemor ser devastada por um incidente, a moeda perdeu muito valor e o
Império inteiro perdeu muito dinheiro. Tem um triângulo no meio.
Besantes: moeda utilizada no Oriente.
Nova Baggi, sua capital, é uma cidade muito rica, mas o resto de seu
Império é bastante defasado. Cidades como Palumbo e Damico que já
foram grandes, são a fonte de origem das mais famosas gangues de
ladrões. Então, surgiu o Mercado Sinistro, então a falsificação de moedas.
Virou uma moeda bastante comum e de pouco valor. Tem um quadrado no
meio.

SISTEMA DE COROAS
Coroa Real: moeda de ouro, utilizada apenas pela família real e
monarcas = 50,00
Coroa Média: moeda de prata, utilizadas pela elite da cidade e oficiais
da marinha = 5,00

Coroa Menor: moeda de bronze popular usada pelos moradores da


cidade = 1,00
Coroa de Rua: moeda de latão, equivalente a poucos centavos = 0,10

SISTEMA DE VALORES: (levando em consideração uma Coroa Menor)


1,00 Coroa Menor = 0,27 Florins
1,00 Coroa Menor = 4,88 Dinares
1,00 Coroa Menor = 1263,00 Besantes

Essas seriam as moedas oficiais. Há algumas outras não registradas,


como as Tilintantes, de Cidade Canal que tenta tanto ser independente do
Oriente. Há outras que viraram lendas, como as famosas Moedas
Celestiais. Essas seriam moedas feitas de material desconhecido e brilham
com a luz da noite. Não são encontradas na civilização, apenas em lugares
específicos da natureza ou com os Representantes Celestiais. Seriam
moedas a serem negociadas com os deuses.
FILHO DE CARAVELA

Há uma escuridão em frente, um buraco negro que consome tudo à sua


volta. Como sair dele? Como sair…

…Eu estou sonhando?


8

A MÃE OFICIAL DA TRIPULAÇÃO

Eu estou sonhando?
— Não. NÃO!
Uma onda gigante bateu com força contra o navio e uma das vergas
acabou por se soltar, atingindo Dimitri na barriga. O garoto voou para
longe, sentindo a água gélida do Mar Real abraçar seu corpo. Mas, desta
vez, ele não estava sozinho.
— DIMITRI!
E a voz chamava. Seria uma voz conhecida? Dimitri tinha certeza de que
já ouvira antes. Ou seriam seus delírios? Enquanto afundava, seu cérebro já
não tinha tanto oxigênio quanto antes. Talvez fosse isso.
— Dimitri — a voz chamava.
O ar deveria estar deixando seus pulmões, mas, por alguma razão,
Dimitri conseguia manter os olhos abertos e respirar. De ponta cabeça,
deixando o oceano moldar o seu corpo, olhou ao redor. Estava submerso e
as águas estavam calmas.
Não estava tendo uma tempestade?, perguntou-se.
De repente, uma figura estranha aproximou-se. Uma mulher. Seus olhos
magenta brilhavam em neon, hipnotizando-o. Ela era muito bonita, mas
algo em sua beleza parecia mortífero, letal. Dimitri tentou se afastar, mas
seu corpo permaneceu imóvel e de nada adiantaram seus esforços. Quando
mirou seus olhos para baixo, percebeu que seus braços e pernas estavam
presos ao resto de seu corpo, envolto pelos fios de cabelos pretos da mulher
misteriosa.
Ela sorriu e passou uma das mãos macias pelo rosto de Dimitri.
— Quantas memórias atormentadoras... não sei por que sente tanta falta
delas.
— Quem é você? — perguntou o garoto.
A mulher riu e nadou ao seu redor.
— O que importa aqui é quem é VOCÊ.
— DIMITRI! — a voz chamava.
Dimitri arregalou os olhos e olhou ao redor, mas não viu quem o
chamava. A mulher misteriosa ergueu uma das sobrancelhas, como se
tivesse descoberto um segredo.
— Dimitri? — Ela se aproximou. — É um belo nome... será que
pertence mesmo a você? Ou é só uma ilusão que você criou? Uma âncora
para se segurar?
— O que você quer?
Ele estava assustado, mas escondia muito bem. Para falar a verdade, a
curiosidade e a desconfiança eram maiores do que o medo.
— Nada. — A mulher deu de ombros. — Só estou checando sua cabeça
e os danos que foram causados. Pelo visto, o trabalho foi bem-feito.
— Danos? — Dimitri olhou confuso. — Quer dizer o que aconteceu com
as minhas memórias? O que sabe sobre isso? Elas vão voltar?
A mulher suspirou e revirou os olhos, passando seus cabelos por toda a
extensão do corpo de Dimitri.
— Você faz as perguntas tão erradas... não existe resposta certa para o
que você quer saber. Mas, por enquanto, vamos manter as coisas como
estão.
Ela aproximou-se do rosto de Dimitri e agarrou seu queixo. Dali, de tão
perto, ele conseguia ver dentro dos seus misteriosos olhos e era como um
universo inteiro. Um universo sombrio de buracos negros que poderiam
sugá-lo a qualquer instante.
— Digamos que você saber a respeito do seu passado não seria
conveniente para mim.
— Conveniente? Quem é você?
— DIMITRI! — a voz chamava.
Mais uma vez, o coração do garoto disparou e Dimitri olhou ao redor,
tentando encontrar a origem daqueles chamados. Onde está, onde...
A mulher levantou as sobrancelhas e esboçou um sorriso.
— Ele está chamado. Dimitri.

7 graus Sul, 52 graus Leste. Dormitórios do Nadia Keane.

Dimitri acordou de repente, levantando o corpo de maneira desesperada,


como se estivesse em busca de ar. Estava suado, assustado, ofegante.
O que foi isso?
Quem é ela…
Mas, como sonhos são obras de arte de um deus, eles vêm e vão em
questão de segundos, no tempo exato do bater de asas de uma borboleta.
Não era estranho perceber que Dimitri, quando acordou, já não tinha mais
lembranças daquela mulher misteriosa.
Quem..., pensava. Mas era impossível lembrar. Olhou ao redor e
percebeu-se em um dormitório comunitário. O lugar era decorado com
redes penduradas nas paredes e alguns cabideiros perto da porta. Não muito
mais que isso.
Ah, é..., lembrou. Estou no Nadia Keane.
Então, deitou-se novamente aliviado por ver que não estava submerso e
que lá tinha todo o ar que suas narinas eram capazes de inspirar.
Ou era o que ele pensava.
Dimitri abriu os olhos assustado ao sentir alguém tampar sua boca e,
instantaneamente, tentou se soltar, mas quem o segurava era, no mínimo,
três vezes maior do que ele. Seus olhos encontraram os de Zuca em meio à
escuridão. Então recordou-se: Isto é um maldito navio pirata, eu deveria ter
previsto esta situação. Mas, antes que o novato pudesse pensar em alguma
estratégia para se livrar, o imediato levou o indicador até os lábios e pediu
por silêncio.
— Venha comigo.

7 graus Sul, 52 graus Leste. Andar inferior do Nadia Keane.

Dimitri era bruscamente levado escotilha abaixo. Zuca puxava-o pelo


braço e abria caminho por entre obstáculos, andando rápido demais para o
garoto sonolento acompanhar sem tropeçar algumas vezes no caminho.
— Para onde estamos indo? — perguntou, desconfiado.
— Você vai ver — respondeu o imediato.
Ele tinha um lampião em mãos e, pelo pouco que o novato pôde
distinguir no escuro, estavam adentrando o depósito no último andar.
Preciso ficar atento. O lugar estendia-se de popa a proa, percorrendo toda a
imensidão do casco do navio. Mas isso Dimitri não conseguia ver. Para ele,
além do círculo de luz que o lampião emitia, já não se enxergava nada além
de trevas. Acompanhou o imediato que desviava de objetos e de caixas no
chão. Um objeto cintilante e sua mão astuta agiu. Do teto, pendiam fios e
cabos, que, de tempos em tempos, prendiam-se nos cabelos de Dimitri sem
querer. Não era de se surpreender, afinal, havia todo tipo de coisa lá
embaixo. Cadeiras estofadas, mesas, baús, armários e até esqueletos de
criaturas inteiras montados. Havia alguns animais empalhados também, e
Dimitri levou um susto ao dar de cara com um gavião ferrugem de olhos
amarelos. Apressou o passo.
Tinha uma coisa, uma pergunta presa em sua garganta fazia algum
tempo. Algo que ele precisava saber.
— O que o capitão quis dizer com filho de caravela?
O imediato não respondeu.
Talvez essa seja a deixa para eu ficar calado, pensou. Zuca é
visivelmente grande e forte, provavelmente não a melhor escolha para
comprar briga.
Mas Dimitri não era disso. De ficar calado.
— Ei, grandão. Eu fiz uma pergunta.
— É melhor que Hall não veja o que estou fazendo por você. Vou te
deixar com Apollonia para ela cuidar dessas suas roupas e conseguir umas
novas. Não demorem muito. Ela deveria estar moldando peças para
consertar o navio.
O garoto levantou as sobrancelhas.
— Me acordou para ver roupas?
Chegava a ser engraçado. Zuca não é tão assustador, afinal.
— Pensei que ia me torturar ou coisa do tipo — soltou Dimitri,
levantando a lâmina de seu canivete no ar. — Que decepcionante.
Zuca arrancou-lhe a arma da mão e guardou no próprio bolso.
— Depois, vá direto trabalhar — acrescentou o imediato. — Não
queremos o capitão de olho em você, não é?
Dimitri riu, sarcasticamente.
— Acho isso meio impossível.
Zuca virou-se para o garoto. Estatura média para a idade e braços finos
demais. Uma armadura incomum carregando uma personalidade mais forte
que a de um dragão do oeste. Aquilo era nostálgico, pois não era a primeira
vez que ele via um rapaz daqueles. O destino é um desgraçado mesmo,
pensou, achando certa graça. O imediato deu um cascudo um tanto forte na
cabeça de Dimitri e deixou o lampião em cima de um barril.
— Você vai ficar bem, fedelho.
E saiu. Subiu as escadas e fechou a escotilha, deixando o novato sozinho.
A impressão era de que havia escurecido mais ainda lá embaixo. O lampião
fazia seu trabalho, mesmo assim, estava muito escuro. E silencioso. Deve
ter sido por isso que, quando Dimitri ouviu algo caindo no chão, pulou de
susto. O barulho estranho ecoou por todo o vasto espaço a sua frente.
— Olá? — Levantou o lampião.
Dimitri tentava iluminar a vista. Podia estar com sono, mas tinha certeza
de que havia visto um ponto de luz brilhando lá nos fundos. Estreitou os
olhos para que pudesse ver melhor, quando um fósforo, de repente, foi
aceso em frente ao seu nariz. Uma chama flutuando no ar, uma pequena
labareda dançando no escuro. Dimitri deixou o lampião de lado para se
aproximar e entender o que era aquilo afinal. Era quase como um farol em
alto-mar. Estava tão brilhante que tinha vontade de tocá-la.
De repente, um outro rosto também se aproximou, vindo detrás da
chama. Um rosto vermelho e enorme, com sombras bruxuleantes o
moldando. Quando sua boca se abriu, revelando um sorriso enorme de
dentes tortos, Dimitri gritou.
— AH!
E o sorriso foi seguido por uma risada feminina, exagerada e calorosa.
Apa riu e usou a chama do próprio fósforo para acender um outro lampião.
— Garotinho!
Apa levantou Dimitri no ar, com a maior facilidade, dando-lhe um
abraço entusiasmado.
— Eu estava justamente esperando por você — disse, devolvendo-o para
o chão —, venha, venha... não temos muito tempo.
Os dois caminharam em direção aos fundos onde o ponto de luz, que
antes Dimitri tinha visto, estava ligado. Chegando lá, Apa freou o passo, e o
novato pôde ver o local. Havia várias folhas de papel rabiscadas com
desenhos do navio em cima de uma mesa feita de madeira de carvalho.
Outros projetos encontravam-se colados ou pregados na parede como um
mural. Em um canto, havia uma pilha de tábuas de madeira e uma serra,
juntamente com um pote cheio de pregos. Do outro lado, havia uma outra
pilha, dessa vez de roupas e tecidos que mais pareciam trapos sujos e
velhos. Dimitri aproximou-se, curioso, abaixando a cabeça ao passar por
objetos de artesanato pendendo do teto.
— Você é a carpinteira do navio?
— Além de mãe oficial da tripulação.
Apa riu do próprio comentário e foi até a pilha de roupas jogadas no
chão. Mexeu um pouco nas peças, procurando por algo específico e
atirando para longe o que não lhe prestava naquele momento.
— Sabe — continuou — esses marujos não sabem se virar sozinhos. São
todos velhos e mimados. Não duraria uma estação sem mim... — Olhou
para Dimitri e observou suas medidas. — Você gosta de azul? Deve gostar,
com esses olhos maravilhosos.
O capitão Hall preferia que seus subordinados usassem as cores da
tripulação: preto, branco e marrom. Cada tripulação tinha suas próprias
cores, assim era mais fácil de serem reconhecidas e relacionadas aos seus
respectivos capitães. Mas Apa não parecia se importar nem um pouco com
estar ou não quebrando o código de vestimenta. Em meio à pilha, encontrou
uma camisa preta, cheia de furos pelas mangas. Estava rasgada em certos
pontos e comida pelas traças em outros. Em um de seus punhos, Dimitri leu
as iniciais K. A. bordadas. Junto à camisa, retirou uma calça larga e curta
nas panturrilhas. Colocou as duas peças, uma ao lado da outra, em cima da
mesa para analisar.
— Isso deve dar. Desculpe, menino, não tenho nenhum sapato do seu
tamanho. Por enquanto, ponha isso para proteger os pés.
A carpinteira tirou de uma gaveta um rolo de pano comprido e fino, meio
amarelado. Deu nas mãos de Dimitri.
— Enrole da sola dos pés até os joelhos.
— Beleza — respondeu Dimitri, tentando ignorar que, com aquilo,
pareceria ainda mais uma múmia do que já estava parecendo com suas
bandagens médicas.
Enquanto o novato Dimi enfaixava suas pernas, Apollonia cortava fora
as mangas da camisa, deixando-a mais parecida com uma regata. A calça,
também um tanto maltrapilha, precisou de retalhos para esconder alguns
buracos. Levantou no ar para analisar e, talvez por se sentir um pouco
culpada de dar roupas tão esfarrapadas para o pobre rapaz, falou em
seguida:
— Mas não se preocupe. Quando receber seu salário, vai poder comprar
roupas novas na capital. — Sorriu. — Você acha que piratas são
desleixados? Ah, não. O mar é um concurso de moda. Os capitães mais
famosos usam roupas de grife. Botas de couro, casacos de veludo, quanto
maior o chapéu de três pontas então...
— Bom saber. — Riu Dimitri.
Algo em Apa deixava-o confortável, apesar de sua presença extravagante
e exagerada. Ela, definitivamente, tinha um ar maternal. Enquanto a
carpinteira arrumava as roupas novas do garoto, tinha um pensamento
constante em mente...
— Você lembra meu filho Tom... é encabulado igual. — E riu.
Filho?
Dimitri levantou os ombros, desajeitado com o comentário. Apa deixou
seus devaneios de lado e aproximou-se, estendendo as roupas novas em
direção ao garoto.
— Pronto! Pode experimentar.
9

ROTINA DE CONVÉS

7 graus Sul, 52 graus Leste. Convés do Nadia Keane.

Kim, como sempre, foi a primeira a pisar seus pés no convés. O sol
estava recém-nascendo no horizonte, quando a contramestre soou o gongo.
Em poucos minutos, o deque estava cheio de marujos sonolentos,
começando a se preparar para suas tarefas diárias. Dante puxou uma flauta
transversa do bolso e começou a tocar, ao passo que Jonas ainda se
espreguiçava em um canto. Caspar chegou descabelado e sem bandana,
escondendo o rosto da claridade. Estava um trapo. Jack, com os olhos
envoltos em olheiras, chegou ao seu lado com o cabelo e a franja
arrepiados. Era difícil dizer qual dos dois estava em pior condição.
— Eu vou matar a Kim — reclamou a timoneira. Ela era conhecida por
seu mau-humor de cão logo pela manhã.
Caspar bocejou.
— Já temos pouco tempo para dormir, porque nos acordar meia hora
antes? Por quê? — reclamou o loiro, fazendo drama.
— Bom dia!
O rapaz da pólvora e a timoneira deram um pulo de susto ao sentirem
uma mão nos ombros vinda por trás. Poeta apareceu pelas costas dos
amigos, sorridente e bem-disposto. O sorriso dele deu nos nervos de Jack.
— Ah... — Respirou fundo. — Não é bom levantar com o sol para
aproveitar o dia ao máximo? Me sinto um novo homem. Que bom que o
capitão aprovou minha proposta.
A sobrancelha de Caspar tremelicou.
— Proposta?
— Sim — respondeu Poeta, sorridente e orgulhoso do bom trabalho e
das mudanças que estava fazendo no Nadia.
— ...Mas é claro que foi ideia sua. — Caspar esfregou os olhos.
Jack estava prestes a soltar fumaça pelas orelhas.
— Argh, você é o próximo da minha lista — bufou para Poeta, irritada.
Mas antes que pudesse planejar as várias maneiras de matar Poeta em
sua cabeça, a timoneira arregalou os olhos ao lembrar de algo,
aparentemente, muito importante. Bateu na testa.
— Ah, droga! Esqueci que tenho que entregar o relatório de rota para
Hall até ao meio-dia.
— Parece que temos muito trabalho pela frente. — Poeta piscou o olho
para a amiga. — Que bom que acordamos meia hora mais cedo.
Jack levantou o punho.
— ...é sério. Eu não controlo meus músculos pela manhã e não me
responsabilizo pelo estrago que eles podem fazer.
— Pivete da pólvora! — gritou Kim, do outro lado do convés.
Caspar apontou para o próprio peito, como se não tivesse entendido que
era mesmo com ele que ela falava. Resmungou e virou-se para Jack.
— O dever me chama. O último que terminar as tarefas limpa as
espinhas de peixe para o almoço.
— Fechado.
A timoneira trocou um toque de mão molenga e cansado com o amigo, o
que foi a deixa para os dois irem aos seus postos. Jack usou seu gancho de
escalada para voar até o timão, e Caspar correu ao encontro de Kimberly,
que logo jogou um balde e um esfregão em sua direção. O loiro apanhou os
utensílios de limpeza, todo desastrado.
— Oh, qual foi?
— Está atrasado — reclamou a contramestre.
Caspar não perdeu a oportunidade e mandou um sorriso provocante para
a colega.
— Ah, então você percebeu. Sentiu minha falta?
Kim revirou os olhos e bufou.
— Cadê o novato?
— Primeiro dia atrasado... que vergonha — zombou Caspar.
Dimitri chutou a escotilha, com preguiça, e chegou ao convés, vestindo
suas roupas novas. Caspar foi o primeiro a perceber o que, com certeza, foi
o fator principal para que a atenção de todo o resto da tripulação se
direcionasse para o novato. Caspar assobiou e bateu palmas.
— Ei, olha o cara! Todo estiloso. Agora sim se parece com um pirata
“folgado”. — Riu o loiro. — Entendeu? Folgado!
E apontava para Dimitri e suas calças largas demais.
— Engraçado... Apa meio que insistiu. Ela disse que não tinha nada do
meu tamanho.
Caspar aproximou-se para analisar melhor. Então indicou a regata.
— Pois é. Essa camisa daí era do velho Aiko, se não me engano. Se deu
bem, era cheia de furos debaixo das axilas.
Dimitri fez uma careta e deu uma rápida olhada debaixo dos braços.
Realmente ainda tinha furos nas axilas, apesar de Apa ter tirado a maioria
deles quando cortou as mangas. Caspar era um ano mais velho que Dimitri
e, no mínimo, um palmo mais alto. Com aquelas roupas, grandes demais
para o corpo magro de Dimitri, a diferença de idade parecia muito maior.
— E EU MANDEI PARAR? — gritou Kim para os criados de bordo,
interrompendo a conversa.
O rapaz da pólvora resmungou e voltou ao trabalho, fugindo da
contramestre que se aproximava em direção ao novato. Então fez sua
famosa jogada de balde e esfregão.
— Dimitri, limpe o convés e revise os cabos.
— Sim, mestra — respondeu Dimi, de bochechas vermelhas. Kim tinha
esse poder sobre os garotos.
A contramestre suspirou e esfregou os olhos com os dedos.
— ...sim, eu sou sua mestra, mas não me chame assim. Seu turno começa
quando o sol nasce e termina quando ele se põe. Nada mais óbvio de gravar
na memória. Portanto, atrasos são inadmissíveis e resultarão em punições.
— Sim, senhora — respondeu Dimitri, tentando controlar o rubor das
bochechas.
— ...não me chame de senhora — Kim xingou, mas logo se acalmou,
respirando fundo. — Você tem horário de folga na hora do almoço e trinta
minutos durante a tarde.
— E o café da manhã?
— Você perdeu o horário — respondeu, séria.
Ao ver os olhos assustados e confusos de Dimitri, Kim puxou um sorriso
e tirou uma maçã do bolso, jogando em direção ao novato.
— Valeu... — Dimitri retribuiu, envergonhado. Kim suspirou.
— Enfim, quero ver esse deque brilhando no fim do dia. — Então
voltou-se para Caspar, aumentando o volume da voz. — E você, vê se
mostra onde ficam os cabos para o novato.
— Mais algum pedido especial, milady?
Caspar pulou para perto da ruiva e fez um bico com os lábios. Kim fez
uma expressão de repugnância e empurrou o colega para longe.
— Quando terminarem, contem a quantidade de caixas de suprimentos
que há no depósito da proa e levem lá para baixo. Quero que separem
perecíveis de não perecíveis.
Ao terminar de falar, Kim encarou Caspar em tom de desafio.
— Tem mais alguma coisa para falar?
Caspar fechou a expressão, claramente derrotado, mas sem querer dar o
braço a torcer. Kim puxou um sorriso e virou-se para ir embora, quando o
loiro chamou sua atenção mais uma vez.
— Contar as caixas é trabalho do Zuca!
— E seu trabalho é me obedecer. Que fique bem claro, isso é uma ordem
e não um pedido, fedelho. Se não terminarem tudo antes do anoitecer, vão
ter que lavar as redes no fim de semana. — Voltou-se para Dimitri. — E
você, espero que tenha entendido o recado.
— Sim, mestra. — Engoliu em seco. — Quer dizer... senhora.
SENHORITA.
A contramestre deu uma risada abafada e se retirou.
— Eu adoro meu trabalho.
Kim não admitia a ninguém além de si mesma, mas adorava ser
contramestre e mandar nos outros. E adorava mais ainda ser temida pelos
mais novos que ela. Sinceramente, pelos mais velhos também. Já de longe,
fez um sinal com os dedos para indicar que estava de olho nos dois garotos.
— Ela é sempre assim? — perguntou Dimitri.
— Quer dizer uma gata raivosa? — Caspar parou para pensar, pondo o
polegar apoiado no queixo. — Ah, é. É sim.
— EU OUVI ISSO!

9 graus Sul, 58 graus Leste. Convés do Nadia Keane.


A tarde passou devagar com o sol escaldante em cima da cabeça dos
meninos que cumpriam suas tarefas com medo de Kim puni-los de alguma
forma. Caixas e barris a serem arrastados, canhões e espadas a serem
limpos, chão para esfregar. Tudo ao som da flauta de Dante.
— Menino Dimi, sua vez de cantar junto agora! Vamos lá, “yo-ho, yo-
ho” agora você continua a letra.
Por que ninguém joga aquela coisa no mar, pensava perturbado. Ficou
pensando em várias maneiras de roubar a flauta e lançá-la longe, mas, ao
invés disso, só respirou fundo, deu de ombros e respondeu, por entre os
dentes cerrados.
— Eu não sei cantar.
Dante abriu a boca em choque, claramente sem entender a indireta para
deixar os garotos em paz.
— Todo mundo sabe cantar, oras! Vamos, eu te ajudo. “Yo-ho, yo-ho, e o
marujo caiu do brandal...”
Enquanto isso, Jack tinha seus próprios problemas no deque da popa.
Parecia cansada, entediada, como se fosse uma criança sem brinquedos. No
caso, uma pirata sem confusões para se meter. Apoiava-se no timão e ouvia
Poeta discursar entusiasmado ao seu lado.
— Semana retrasada, navegamos por Sedra, se não me engano. Mas
fizemos uma parada estratégica em Andovas para comprar o vinho tinto do
capitão... — Anotava em seu caderno. — Cerca de doze dias no mar e agora
estamos indo para Calamari... — Anotava mais um pouco. — São mais
cinco dias de viagem.
E Jack só concordava com a cabeça, concentrando-se em não babar de
sono em cima do timão.
— Você lembra se pegamos a Correnteza do Norte?
— Poeta, eu faço o que mandam e giro essa coisa — apontou para o
timão a sua frente. — Você é o cara do mapa.
Poeta pareceu cair na desculpa preguiçosa da timoneira e fez mais uma
anotação.
— Certo. — Fechou o caderninho e o guardou no bolso interno do
casaco. — Bom, acho que terminei por aqui. Tenho que esperar ancorarmos
em Calamari para continuar o relatório. Então vejo você em cinco dias.
— Por que esperar?
O moleque dos mapas parou por um instante, sem saber muito bem o que
fazer ou falar. Deu um sorriso forçado e indicou que estava de saída.
— Poeta...
E o garoto congelou. Algo no que Poeta falara não estava encaixando na
cabeça da timoneira. E ela, que era muito astuta, não deixaria um detalhe
passar despercebido. Ela precisava de informações. Chegou perto do garoto
e analisou seu comportamento. Poeta era péssimo quando queria esconder
segredos.
— O que o capitão quer em Calamari, afinal?
Poeta reconhecia que tinha falado demais. E isso só atrapalhava mais sua
situação.
— Hã... ah, você sabe. O mesmo de sempre.
Jack levantou uma sobrancelha, e Poeta estremeceu. Começava a suar de
nervosismo.
— Patrick tem pavor de Calamari. Só vai quando quer alguma coisa —
disse Jack, analisando as feições do amigo.
— Quer dizer — riu, nervoso —, você tem razão. Eu não sei de nada, o
capitão não fala muito. Hall... você conhece o cara. Caladão.
A timoneira apoiou-se no ombro do colega.
— Poeta — começou com a voz persuasiva —, é sobre o tesouro, não é?!
Poeta engoliu em seco e enrijeceu a postura.
— Não tenho permissão para falar sobre o assunto.
— É sobre o tesouro!
Jack pulou no ar, dando impulso no corpo de Poeta, e riu sozinha. O
garoto a repreendeu e fez sinal de silêncio.
— Cala a boca, quer que todo mundo saiba?!
A timoneira olhou de maneira travessa para o moleque dos mapas. Poeta
conhecia aquele olhar. Convivia com aquele olhar fazia quatro anos e sabia
que estava encrencado. Jack, sem dar aviso prévio, roubou o caderninho de
Poeta.
— O que tem escrito aqui sobre isso?
— Jacqueline, devolve!
— Você não é bobo, deve ter anotado alguma coisa. — A garota
folheava, desviando dos golpes de Poeta que tentava, sem sucesso,
recuperar seu caderninho. — Uh, quem é Natani? — Arregalou os olhos. —
É sua namorada?
Poeta bufou, sentindo a raiva subir.
— Já chega, devolve!
Enquanto Jack e Poeta estraçalhavam as próprias roupas em uma briga
nada amigável para ver quem ficaria com o caderno, Dimitri e Caspar
encontravam-se mortos. Figurativamente.
— Água. Eu só quero água.
— Se você não tivesse bebido tudo antes...
Os dois garotos encontravam-se atirados no chão, sem fôlego algum para
ao menos ter uma discussão que fizesse algum sentido.
— É, mas você deu o último gole. Falei para guardar.
— Aquilo nem foi um gole! Foi um resto de saliva que você deixou na
garrafa.
— Até o garoto Dimi conseguiria fazer isso!
Dimitri ouviu alguém dizendo seu nome e levantou a cabeça para tentar
enxergar quem havia sido. De repente, percebeu que um grupo de marujos
tinha se formado ao redor do mastro da proa e conversavam mais alto que
um bando de gralhas.
— Certeza? Acho que não.
Curioso para saber sobre o que falavam, criou forças e levantou, indo em
direção a Dante, Jonas e Cesco. Caspar, enxerido, tinha que ir atrás. Jonas
foi o primeiro a percebê-los.
— Ahá! Parece que alguém deixou de fazer corpo mole. — Bateu nas
costas de Dimitri.
— Corpo mole? — indagou Dimi.
Dante riu e deu um soco no ombro de Dimitri. O que piratas veem de tão
divertido em bater uns nos outros?, irritou-se.
— Relaxa, rapazinho. Estávamos falando justamente de você.
— Desafiei Dante a subir até o cesto da gávea — explicou Cesco. — Ele
ficou com “medinho”.
— Falamos que até você subiria — disse Jonas.
Dimitri fez uma careta, incrédulo. Caspar deu uma gargalhada.
— Ah, essa é boa.
10

CORRIDA ATÉ O TOPO

— Então, colega. O que sabe sobre o tesouro?


— Nada — respondeu Poeta, cerrando a boca.
Jack não era de desistir facilmente. E Poeta... bem, Poeta não gostava
que mexessem em suas coisas.
— Você sabe o que é, não sabe?!
— Eu já disse que não posso falar!
Os dois continuavam brigando no deque superior da popa, Poeta
tentando recuperar seu caderno e Jack, que estava em vantagem, fugindo
dos golpes trouxas que o garoto tentava aplicar nela. Puxões de roupa e de
cabelo não derrubavam a timoneira de jeito nenhum. Jack voou para cima
dos brandais e levantou as sobrancelhas.
— Poeta, eu gosto de você. Mas parece que vou ter que te chantagear.
E levantou o caderninho para o alto.
— Ei, devolve!
Jack ria e balançava o bloco de folhas em sua mão, ameaçando jogá-lo
no mar a qualquer instante. Poeta estava entrando em parafuso.
— ISSO NÃO TEM GRAÇA, JACQUELINE!
— Sério?! Eu estou achando muito divertido.
Sendo criada em um navio pirata, não era à toa que a garota cresceu sem
o menor senso de o que é certo ou errado. Para ela, roubar fazia parte de sua
natureza humana. Não que isso fosse desculpa para tratar Poeta daquele
jeito, mas fazer o quê. A garota não tinha modos. Não era culpa dela.
Quando Poeta estava quase alcançando o pé de Jack nos brandais, a
timoneira percebeu um alvoroço acontecendo no convés, perto do mastro da
proa. Estreitou os olhos para tentar entender a razão de tudo aquilo, e Poeta
aproveitou a deixa para roubar de volta seu caderninho.
— Ahá! — comemorou.
Mas Jack nem pareceu se importar. Sua atenção era facilmente desviada
quando algo mais interessante do que o que ela estava fazendo surgia. E,
com certeza, aquilo era mais interessante. De corda em corda, pendurou-se
para ir até a multidão de piratas que discutia.
— Falamos que até você subiria — disse Jonas.
Dimitri fez uma careta. Caspar deu uma gargalhada.
— Ah, essa é boa.
— Como assim até eu? — perguntou Dimitri, incrédulo.
Caspar apoiou-se em um dos ombros do amigo.
— Dimitri, amigão... encaremos os fatos.
— Acha que eu não tenho coragem de subir até lá em cima? —
Empurrou o cotovelo de Caspar para longe.
Os três marujos olharam boquiabertos e perplexos para o novato, mas
logo seus olhares transformaram-se em curiosidade para ver o que
aconteceria em seguida. Dimi não era como os outros novatos. Ele parecia
determinado a enfrentá-los e provar seu valor, quando uma voz cortou o ar.
— Claro que não tem!
Jack surgiu, de repente, balançando-se pelos cabos. Ao pressionar o
botão de seu cinto, caiu com os dois pés firmes em frente a Dimitri. O rapaz
fez uma careta para ela.
— Claro que tenho!
— Devo listar os porquês? — perguntou a timoneira, sarcasticamente.
Agora sim, ela estava se divertindo. Abriu a mão e começou a contar nos
dedos.
— Primeiro: você é uma princesinha. — Aproximou-se. — Aposto que
se alguém cortasse esse seu cabelo, você choraria.
E soprou a franja de Dimitri. O garoto desviou o rosto, com raiva.
— Segundo: você não tem experiência nenhuma além de seus livros, rato
de biblioteca. Não deve nem saber por onde começar a subir aí.
— Quer apostar?
A voz do garoto ecoou como um raio, dividindo opiniões entre os
marujos presentes.
— Aposto que chego no topo do mastro antes mesmo que você.
Jack pareceu verdadeiramente surpresa com a iniciativa e calou-se,
imediatamente. Dimitri juntou as sobrancelhas, determinado.
— Em nome de Nathaniel Dyi.
E os piratas prenderam a respiração de emoção e de perplexidade. Não é
todo mundo que tem coragem de apostar em nome de Dyi. Mas, loucos
mesmo são os que aceitam a proposta. Jack estreitou os olhos e sorriu com
o canto da boca. Determinada, desafivelou seu cinto e jogou-o para longe.
As coisas estavam começando a ficar interessantes. Deu um passo à frente e
apertou a mão do colega.
— Apostado.
Piratas são uma espécie fofoqueira. Os boatos se espalham rápido e, em
questão de segundos, toda a tripulação havia virado espectadora do que
seria uma corrida árdua até o topo. Jack estava posicionada em uma lateral
do mastro e Dimitri na outra. Seus olhares intercalavam-se entre eles e o
cesto da gávea. Qualquer movimento de qualquer um dos dois, poderia
significar o início da disputa. Dimitri olhou para Jack e Jack olhou para
Dimitri. Então, ela sorriu.
Pulou para cima e agarrou-se nas cordas para começar a subir. Dimitri
bufou por estar atrasado e logo pendurou-se nos cabos.

10 graus Sul, 58 graus Leste. Cabine do Capitão.

Patrick Hall aproveitava seus momentos sozinho para organizar os


pensamentos. Tinha seu chapéu em frente ao rosto e as botas em cima do
tampo da mesa. Girava o anel vermelho nos dedos, o que significava que
ele estava imerso no passado. Digamos que, aquele não seria o melhor
momento para interrompê-lo, a não ser que você quisesse perder uma
orelha.
Ainda mais uma orelha de origens élficas como a de Poeta. O moleque
dos mapas adentrou a cabine do capitão correndo e, ofegante, escondeu-se
atrás da porta. Hall levantou impaciente.
— O que está fazendo, rapaz?
Poeta levantou a cabeça para seu superior e arregalou os olhos ao
perceber a besteira que tinha feito.
— Ah, nada não, capitão. Só meus exercícios de rotina — disse, fingindo
um alongamento de braço.
Hall levantou uma das sobrancelhas.
— Fugindo de Jack de novo?
— Sim, senhor... — admitiu o garoto, baixando a cabeça e deixando os
cabelos caírem em seu rosto.
— Terminou o relatório?
Mas logo levantou novamente animado e orgulhoso com seu trabalho.
— Sim! Vim deixar na sua mesa, senhor.
Poeta estendeu o caderninho para seu superior, que o pegou de suas mãos
para analisar. Passou seus olhos pelas anotações rabiscadas do garoto,
enquanto passava os dedos pelo queixo.
— Bom...
O moleque dos mapas abriu um sorriso e soltou o fôlego de alívio.
Porém, sua felicidade não durou mais que três segundos. Patrick Hall
levantou a cabeça ao ouvir um barulho estranho vindo do convés. Fechou o
caderno.
— Argh, mas o que está acontecendo lá fora?

10 graus Sul, 59 graus Leste. Convés do Nadia Keane.

A disputa estava acirrada. Dois cabeças quentes, que não aceitavam


perder, faziam de tudo para derrubar um ao outro. Jack, mesmo sem seu fiel
equipamento de escalada, subia com maior velocidade, mas Dimitri era
esperto e fazia de tudo para atrasá-la.
— Olha ele... tentando provar que é um homem do mar — provocou
Jack.
— Não tenho que provar nada a você — contra-atacou Dimitri.
Jack tentava acertar seus golpes no garoto, enquanto Dimitri desviava,
tentando prender um dos pés da garota nas cordas. E assim eles iam.
— Pensando bem, você sabe demais para alguém que nunca pisou em
um navio antes.
— Só sigo meu instinto — respondeu Dimitri. — Você devia tentar fazer
o mesmo qualquer dia desses — provocou.
A timoneira não aceitava tal humilhação vinda de um garoto. Rangeu os
dentes e pulou para cima, por pouco não acertando o pé no rosto do seu
rival. Dimitri aproveitou a deixa e puxou a perna da garota para baixo,
ganhando certo impulso para continuar escalando. Jack escorregou alguns
centímetros, até prender a lâmina de uma de suas facas na madeira do
mastro.
— Eu sabia. Não é a primeira vez que você veleja, não é?
— Eu já disse que não sei, tem problema de memória?! — gritou o
garoto, sendo puxado para baixo.
— Eu não, você tem?!
Tudo bem, aquilo foi maldoso.
Jack usou o corpo de Dimitri para escalar mais alguns metros para cima,
mas o garoto não ficou para trás. Deu a volta e apressou os músculos para
acompanhar a timoneira. Quando Jack pensou que nunca encontraria algum
pirata páreo para suas habilidades, lá estava seu maior pesadelo: um novato
determinado como ninguém. Isso ela não podia deixar acontecer. Não no
navio dela.
— Você pode contar a história que quiser, mas não me engana...
Os dois continuaram subindo, paralelamente, tentando se derrubar ou,
pelo menos, atrasar o rival. Não tardou para que ambos pusessem as mãos
na mesma verga, cara a cara, esbaforidos de tanto correr. Tinham chegado
na metade do caminho.
A timoneira, ofegante, lançou um olhar de desafio.
— Uh, parece que a princesa sabe escalar.
Dimitri sorriu de canto, compenetrado.
— Você até que é boa também.
— O QUE PENSAM QUE ESTÃO FAZENDO?
Todos os pelos do corpo de Jack e Dimitri se arrepiaram ao ouvir aquela
voz. Eles sabiam de quem eram aquelas palavras. Os dois viraram a cabeça
lentamente, em direção ao convés, para depararem-se com um Patrick Hall
encarnado pelo demônio.
— Droga.
— Isso é culpa sua. — Jack apontou o dedo para o colega.
Dimitri rangeu os dentes, bem a tempo de Patrick Hall gritar mais uma
vez. Sua paciência parecia estar se esgotando.
— SAIAM JÁ DAÍ DE CIMA!
Jack olhou para Dimitri e bateu continência.
— A gente se vê lá embaixo, marujo.
E derrubou os dedos do colega, que seguravam a verga, soltando a
própria mão em seguida e deixando seus corpos serem levados pela
gravidade. A garota deu um mortal no ar e impulsionou os pés no mastro
para alcançar as cordas mais ao longe. Então, usou-as para escorregar até o
convés. É. Aquilo Dimitri não sabia fazer. A queda foi tão rápida que o
único instinto do garoto, naquele momento, foi cerrar os olhos.
11

DE FRENTE COM AS PRESAS

Quando abriu os olhos, percebeu que tinha pousado em algo grande e


macio. Sentiu um cheiro familiar e calor.
Espera... fez uma careta.
Ao olhar para cima, Dimitri deparou-se com Apa, segurando-o em seus
braços enormes e fofos. Ela tinha aquele olhar materno no rosto, apesar de
estar repreendendo-o.
— Levado que nem meu filho, Tom... Eu devia te deixar de castigo,
menino!
Dimitri empurrou os braços da carpinteira para longe, tentando se
desvencilhar. Voltou para o chão, cambaleando por estar um pouco zonzo
da queda e de tudo que tinha acabado de acontecer. Estava finalmente
recuperando o fôlego, quando seus olhos traçaram linha reta na figura que
estava em sua frente. Patrick Hall aproximou-se, projetando uma sombra
comprida em cima de Dimitri. Não aparentava estar nada contente. Ele
carregava todas as fúrias no olhar, quando cuspiu as palavras: falta algo...
— Desde que pisou seus pés imundos no meu navio, age como um
fedelho encrenqueiro, não é? Acha isso engraçado?
Dimitri não respondeu. Manteve os olhos baixos, em silêncio, enquanto
ouvia o capitão se esbaforir de tanto gritar em seus ouvidos.
— OLHE PARA MIM, COVARDE!
Hall, irado, projetou o corpo para a frente e agarrou a gola da camisa do
garoto, suspendendo-o no ar. Dimitri cumpriu a ordem. Levantou a cabeça
com dignidade e mirou seus olhos fortes no capitão, mas manteve-se
calado, cerrando os dentes para ter certeza de que nenhuma palavra sairia de
sua boca. Já sabia ele, naquela época, que o silêncio é uma arma poderosa.
O capitão aproximou seu rosto do de Dimitri e analisou-o.
— Nada... você não vai falar nada?!
E Dimitri manteve a compostura, sem desviar os olhos. Patrick Hall deu
uma risada, incrédulo e jogou o garoto para longe com um só movimento.
Dimitri caiu torto no chão, batendo o rosto e um dos joelhos com força. Era
assim que Hall gostava de ver seus inimigos. Aos seus pés. O novato apoiou
as mãos para tentar se levantar, mas seus braços tremiam.
— Eu poderia jogá-lo no mar de novo.
Patrick Hall afastou-se e desembainhou a espada, apenas para ficar
girando-a com o pulso esquerdo. Então seu olhar fuzilante voltou-se para o
novato em tom de ameaça.
— É isso que você quer?
Dimitri não respondeu. Sentia um gosto estranho e metálico na boca.
Seria aquilo...
— Eu sou tolerante. Até certo ponto.
Patrick Hall aproximou-se do garoto e estendeu a mão. Dimitri limpou o
sangue que escorria de seu lábio e olhou na direção do capitão, desconfiado.
Hall tinha o esboço de um sorriso estampado no rosto.
— Vamos. Vai recusar a ajuda do seu capitão?
Relutante, Dimitri aceitou e pegou na mão do capitão, ganhando impulso
para voltar a ficar de pé. Mas, antes que pudesse se equilibrar, Hall fechou a
expressão e deu-lhe uma rasteira com a perna. Dimitri sentiu o impacto
contra o chão e o peso de seu corpo batendo fortemente de mal jeito. Dessa
vez, acabou batendo as costas. Então, estremeceu.
— Sou conhecido como “O Impiedoso”, você sabia?
E o capitão não havia ganhado tal fama por acaso. Sua voz era
imponente e firme, seguindo o movimento de sua lâmina, que agora, era
prensada contra o pescoço de Dimitri.
— Os Saqueadores da Barra são minha família, e o Nadia Keane é minha
casa. Trato muito bem a todos. Com exceção dos ratos imundos de peste
que vem com a mercadoria do porto.
Prensou mais ainda a lâmina. Dimitri começava a perder o ar.
— Desses eu faço questão de me livrar.
Hall agachou-se para ficar na altura do garoto e retirou a espada,
levantando o queixo de Dimitri com a mão em que usava o anel com a
grande pedra vermelha. Seus olhos se encontraram.
— E você, filho de caravela. É um rato ou não?
Depois de um longo instante, soltou o rapaz. Seu trabalho já estava feito
e, com sorte, tinha posto Dimitri em seu devido lugar. Virou de costas e
estava prestes a voltar para sua cabine, quando o soar de uma espada saindo
da bainha ensurdeceu seus ouvidos. Voltou seu rosto para trás. Com um
movimento rápido, Dimitri levantou e roubou a arma de Dante, que estava
distraído. Seus joelhos ainda tremiam e sua boca não havia parado de
sangrar completamente. Mas seus olhos... ah, seus olhos não eram
diferentes dos de Patrick. Eles carregavam suas próprias fúrias.
Dimitri limpou o lábio e apontou a lâmina para Hall.
— Você não me conhece.
A tripulação estava paralisada. Em choque. Não sabiam se intervinham
ou não em uma situação tão delicada quanto aquela. Os sussurros
começavam a surgir das sombras. Dimitri não é um frouxo, afinal, diziam.
Quem teria previsto isso? Hall vai ter que cuidar para não perder o posto,
alguém cuspiu uma risada. E aquele foi o ápice. Hall levantou a espada e
atacou o garoto, com voracidade. Dimitri defendeu-se do golpe com alguma
dificuldade e contra-atacou. Sem piedade, o capitão avançou ficando frente
a frente com o rosto de Dimitri. Lâmina com lâmina, formavam um x.
Ambos usavam todas as suas forças para aguentar o golpe. O primeiro a
ceder, seria degolado. Patrick Hall rugia por entre os dentes. Dimitri
aguentava como podia, sendo sua força de vontade a maior das armas e a
única coisa que ainda o mantinha em pé. O capitão era mais forte. Fato. Foi
preciso um empurrão a mais para fazer com que Dimi desse de costas na
borda do navio e fosse desarmado.
— Como ousa me desafiar em meu próprio navio, seu pivete...
E aquele seria o momento. Dimitri encarou os olhos do capitão, sem
escapatória. Ele ainda tinha sua dignidade. Se fosse para sofrer as
consequências, que estivesse orgulhoso de seus atos. Hall levantou a lâmina
no ar. Ele mirava bem no pescoço. Dimitri respirou fundo e só desviou o
olhar quando Hall a baixou, com força.
— Patrick, para!
Essa voz..., Dimi abriu os olhos.
Antes que pudesse sentir a dor da morte na própria pele, Jack jogou o
corpo em frente a Dimitri para separar a briga. Então abriu os braços para
protegê-lo, convicta, ficando cara a cara com o capitão. Ela tinha as
sobrancelhas juntas e, em seus olhos, uma calmaria antes da tempestade.
Dimitri não pôde deixar de perceber o jeito em que ela havia chamado
Patrick Hall pelo primeiro nome. Ninguém o chamava daquele jeito. Pelo
menos, não quando conversava diretamente com ele. A expressão do garoto
era de surpresa naquele momento, seguida por um alívio. Levou as mãos ao
pescoço, só para garantir que ainda estava ali. Hall rangeu os dentes com a
atitude da timoneira e trocou olhares com Jack. Eram os mesmos olhares,
de ambos. Como se dissessem, silenciosamente, você quer mesmo me
enfrentar?

Salão dos Deuses. Localização Desconhecida.

É claro que os deuses não deixariam uma intriga passar despercebida. As


doze cadeiras estavam ocupadas e um deles, o de barba esquisita, tinha
várias esferas de cristal em sua frente, cada uma delas guardando o rosto de
um jovem diferente. Umma passava o dedo indicador pela bebida de sua
taça, fazendo movimentos circulares, enquanto assistia a tudo, de camarote.
O sorriso em seu rosto era incomparável.
— Parece que nossa semente da discórdia foi plantada.
— E a garota?
Umma suspirou.
— Sim... ela é o peão perfeito.

10 graus Sul, 59 graus Leste. Convés do Nadia Keane.

— Saia da minha frente, Jacqueline.


Jack fincou os pés no chão e rosnou em resposta:
— Vai ter que fazer mais do que isso para me tirar daqui.
Hall tinha sangue nos olhos, como um tubarão, quando os desviou de
Jack para Dimitri.
Esse pivete vai ser um problema. Já está mexendo com a cabeça dos
meus marujos. Definitivamente, o capitão não estava gostando daquilo.
Os Saqueadores da Barra assistiam a tudo com os olhos arregalados,
esperando pelo desfecho sangrento. Hall baixou seus olhos em direção a
Jack, que se mantinha firme. Então, depois de muito hesitar e, contra sua
vontade própria, abaixou a espada e se distanciou, deixando para trás todos
os tripulantes boquiabertos.
Dimitri finalmente recuperou o fôlego, sem poder acreditar em tudo que
acabara de acontecer. Olhou para Jack e, de repente, ela parecia alguém
muito diferente da garota birrenta com quem ele tinha apostado corrida
mais cedo. Ele queria poder dizer alguma coisa, mas o olhar que a garota
lançou a ele, quando virou a cabeça para trás, foi como uma flecha. Uma
flecha certeira que dizia muitas coisas e nada ao mesmo tempo. Dimitri
permaneceu calado e estático. Os dois trocaram o olhar por um breve
instante, o que pareceu durar uma eternidade.
Então, Jack se distanciou.
Era sete da noite quando o Nadia Keane foi tomado pelas colorações
rosadas de um pôr do sol ao horizonte. Depois de uma tarde conturbada e
cheia de emoções, os piratas começavam a se retirar do convés e se preparar
para o jantar. Dimitri encontrava-se pendurado em um dos cordames,
sozinho, quando Kim se aproximou.
— Não abusa da mordomia, pirralho. Amanhã você vai ajudar na
cozinha.
Dimitri deu de ombros.
— Tanto faz.
Ele não parecia querer conversar ou ter uma companhia. Para falar a
verdade, não parecia querer nada. Seus olhos encaravam o mar dourado de
fim de tarde, mas não transbordavam vida alguma. Dimitri queria acreditar.
Queria mesmo. Acreditar que fora um homem do mar antes de perder as
memórias. Se tinha alguma pista sobre si mesmo era aquela e queria se
apegar ao pequeno rastro de um possível passado. Mas começava a pensar
que talvez o mar não fosse mesmo o seu lar.
Teria uma maneira... de retornar.
O convés estava praticamente vazio, quando Dimitri soltou um dos pés
dos cordames no ar. Sentiu o vento soprando e chamando pelo seu nome.
Olhou para baixo, para a imensa profundeza. Ele poderia acabar com tudo
aquilo em um instante. Deixar a água entrar...
Soltou um dos braços. Seus dedos tremiam.
— AH, QUE DROGA!
Por conta da voz mais irritante que ele conhecia, Dimitri despertou de
seus desejos sombrios de volta para a realidade. Quando se deu conta,
estava pendurado, prestes a cair no mar. Segurou-se rapidamente nos
cordames e olhou para cima, estreitando os olhos. Lá estava Jack, iluminada
pelos raios dourados, bufando e xingando a si mesma.
— AAAAA!
A timoneira utilizava o próprio cachecol para escalar mais rápido e
ganhar impulso para subir até o topo do mastro, como se fosse um cipó ou
coisa parecida. Pelo visto, estava treinando sem seu gancho. Ela preparava-
se, respirava fundo e corria gritando, mas a gravidade logo a alcançava e ela
caía em uma das vergas.
— Mas que raios!
Jack, já exausta e tentando recompor o ar, desceu de volta para o convés
e apoiou as mãos nos joelhos.
Que cabeção.
Dimitri aproximou-se, com as mãos nos bolsos.
— Parece que alguém ficou frustrada com a derrota.
Jack pareceu surpresa por um instante, mas quando percebeu que era o
novato, revirou os olhos.
— O que você quer?
— Nada não... — Dimitri deu de ombros e calou-se.
Apoiou-se em um dos mastros, esperando se recuperar. A timoneira pôs
as mãos nos quadris e arqueou uma das sobrancelhas.
— Pelo menos... eu treino para melhorar... — Respirou. — E não foi
uma derrota. Foi um empate. Da... da próxima vez eu vou ganhar.
Dimitri riu, sarcasticamente.
— Grande pirata você.
E pegou o cachecol da timoneira que estava caído no chão. Era macio e
quentinho, apesar dos muitos remendos feitos ao longo dos anos. Jack
arrancou de suas mãos, furiosa.
— NÃO TOCA NISSO NUNCA MAIS!
Dimitri assustou-se com a reação tão repentina e levantou as mãos em
tom de rendição.
— Beleza... — respondeu confuso e, então, suspirou. — Eu vou direto ao
ponto. Valeu por hoje e...
— Só porque salvei a sua pele, não quer dizer que gosto de você —
respondeu ríspida. — Não quer dizer que vejo você como igual ou que
quero ser sua amiga.
Dimitri sentiu o peso daquelas palavras e fechou a expressão. Eu tinha
razão, voltou a pensar amargurado. Cerrou os punhos e falou por entre os
dentes.
— Não preciso da sua amizade.
Jack sentiu um aperto no coração. Um aperto de raiva. De querer gritar.
Espernear. Quebrar tudo. Eu odeio você, eu odeio você, eu odeio você, eu
odeio..., mas ela mordeu a língua e apenas respondeu.
— Ótimo.
— Ótimo — respondeu Dimitri.
Se fosse em outras circunstâncias, os dois até teriam se encarado,
desafiado um ao outro por mais tempo. Mas as crianças estavam cansadas.
Aqueles dois, exaustos, não conseguiram nem manter um segundo de olhar
antes de desviarem. E marcharam para longe dali, bufando para si mesmos.
Mal perceberam que a cena toda estava sendo assistida por ninguém
menos que Apollonia e Tedesco que terminavam de empilhar algumas
caixas. Apa levantou as sobrancelhas.
— Se a pivetinha não é a miniatura fiel de Hall, eu não sei o que é.
Ted Molenga deu uma risada, por entre o trigo que levava na boca.
— Como já dizia o velho Aiko: “Filha de peixe, peixinho é”.
O sol se pôs desse jeito naquele dia. Jack e Dimitri dando tudo de si
mesmos para subir, cada um em um mastro, treinando para a próxima
possível batalha que teriam até a noite cair em suas cabeças. E essa foi a
primeira vez que os dois se encontraram sob um mesmo céu dourado.
12

O QUE COMEM OS FILHOS DE


CARAVELA

23 graus Sul, 68 graus Leste. Convés do Nadia Keane.

À noite, os Saqueadores da Barra, como era de costume, sentaram-se no


chão em formação de roda para esperar o jantar. Ted Molenga subiu da
cozinha com sua enorme panela de ferro em mãos e foi cambaleando na
direção dos garotos, que estendiam suas tigelas para o alto.
— Banha que sobrou do almoço, ovos, peixe e camarão fresco. Receita
especial para você, Dimitri.
— ...Por quê?!
Ted tirou uma espinha de peixe na borda da panela e mascou.
— Porque eu vou dar um jeito em você. Vai aprender a comer tudo da
minha cozinha.
Caspar esboçou uma risada e mexeu as sobrancelhas.
— Só por isso, Molenga?
Ted Molenga ficou com as bochechas avermelhadas e coçou a nuca.
— E porque Apa mandou eu engordar o rapaz. Disse que está magro
demais e não entra nas roupas. — Deu uma cotovelada no braço de Dimitri,
ao abrir um sorriso. — Ahá, e quem sou eu para discutir com uma dama
daquelas, hein, senhores?!
— Mais comida, menos papo, Molenga! — gritou Apa, batendo a colher
de madeira na tigela.
Os meninos deixaram o cozinheiro trabalhar e foram se sentar com o
resto do grupo. Dimitri já não estava pulando de alegrias com o jantar, por
conta do que tinha acontecido durante a tarde. E a fome passou
instantaneamente, quando viu um olho de peixe boiando em seu prato.
— Bem... exótico.
— Pois é — respondeu Caspar, pondo a colher cheia na boca. — Ted
Molenga gosta de aproveitar todo o material. Provavelmente despejou na
panela todos os restos de peixe que a gente separou.
— Que nojo. — Dimitri fez uma careta, mas deu de ombros. Era o que
tinha para comer. Suspirou e virou o prato na boca.
— E além do mais, com algumas semanas aqui no mar, vai perder o
paladar e seu estômago vai fortalecer — continuou o loiro, lambendo os
beiços.
Poeta riu.
— E você é o único a cair pela ladainha do Molenga.
— Qual foi? É a “banha especial com todo o tipo de restos” do Ted. Faz
parte do cardápio exclusivo para fazer o Dimitri engordar um pouco.
— O que é totalmente desnecessário — resmungou Dimitri.
— Se você diz — brincou Caspar.
Poeta pegou uma colherada e levou até a boca. Então, arregalou os olhos
e cuspiu ao sentir o gosto.
— Que tipo de restos são esses? Certeza que não tem pelo de gato aqui
dentro?
Todos riram e começaram a caçoar Poeta.
— Ah, porque você tem um paladar muito refinado, Poeta.
— Tem mais do que pelo na receita, colega.
— Tampa o nariz e engole que nem dá para sentir.
Dimitri olhou para seus colegas. Poeta estava ao seu lado, logo em
seguida vinha Caspar. Ele poderia se acostumar àquela nova vida. A novos
amigos e a aventuras. Kim estava sentada à sua esquerda e, quando seus
olhos se voltaram para frente, viu que Jack também estava lá.
Não.
Eu não posso me dar ao luxo de ter amigos.
Jack era a prova concreta de que ele precisava. Piratas são piratas, não se
podia confiar em ninguém. Ela mesma havia dito isso quando Dimitri
chegou. Era sua regra número um. E o garoto a cumpriria com maestria.
Mas por outro lado, Jack...
Jack me salvou?!, pensou e relembrou da cena que havia ocorrido mais
cedo. Aquela garota brava, abrindo os braços sem medo de encarar o
capitão. Aqueles olhos eram os de uma guerreira.
Assim como os olhos que o xingaram mais cedo. “Só porque salvei a sua
pele, não quer dizer que eu gosto de você. Não quer dizer que vejo você
como igual ou que quero ser sua amiga.”
Dimitri suspirou. Ele ainda não sabia muito o que pensar sobre. A
timoneira era uma incógnita na sua cabeça. Aquela cabeça que separava
tudo e todos entre inimigo ou não-inimigo. Sua melhor opção era continuar
com o plano. Sobreviver em primeiro lugar, ficar na defensiva.
— Ei, Dimi — chamou Kim.
— O que foi? — respondeu, acordando de seus devaneios.
— Você não lembra mesmo de onde veio?
Caspar engoliu e falou algo bem baixinho.
— Levando em conta que ele é um filho de caravela... — Enfiou o rosto
na tigela. — Não me surpreende que ele também seja todo frouxo com
comida.
Poeta arregalou os olhos e deu uma cotovelada forte na barriga do
amigo, fazendo Caspar engasgar.
— Que é?! É o que Hall fala sobre ele.
— Nisso eu discordo.
A voz de Kim cortou o ar e todos os jovens olharam para ela, perplexos.
Ela terminava de raspar o fundo do prato.
— Filho de caravela ou não, precisa ter coragem para colocar aquele
mesquinho do Hall no devido lugar. — Então deu uma cotovelada em
Dimitri. — Garoto, você arrasou.
Dimitri deu um sorriso tímido de bochechas vermelhas e ficou sem
graça. Kim é muito maneira, pensou.
— O QUÊ?! — Poeta surtou. — Não pode ficar incentivando os
tripulantes a irem contra seu capitão, Kimberly! Quer causar um motim?
— Palavras suas, não minhas, colega.
Caspar cuspiu uma risada.
— Kimberly, Kimberly... desde quando você ficou tão rebelde? Gosto de
garotas ousadas.
A contramestre lançou um olhar tenebroso para o rapaz da pólvora e
começaram a brigar. Pobre Poeta, estava no meio. O resto da roda ficou em
um silêncio constrangedor, tomado pelo ar gelado da noite. Jack lançou um
olhar para Dimitri, mas logo desviou ao perceber que o novato estava
olhando para ela. Dimitri respirou fundo.
— Filho de caravela... Hall já disse essas coisas na minha frente. E vai
que o cara está mesmo certo? Eu não tenho como negar.
Dimitri mexeu sua tigela, seguido por um longo silêncio. Jack olhou de
maneira curiosa e discreta para ele. Dimi agora mantinha os olhos fixos no
chão e suas próximas palavras saíram de maneira estranha, como se algo em
sua voz tivesse mudado. As sílabas pareciam sair engasgadas, ao passo que
ele lembrava da sensação do vento e do mar o chamando.
— É estranho não ter momentos como esse para lembrar. Ou pessoas
para eu me apegar. É como se minha vida estivesse começando agora,
depois de longos anos no escuro. Como se eu...
— ... estivesse perdido no olho do furacão.
Dimitri levantou a cabeça em um impulso, perdendo o ar por um instante
de surpresa. Seus olhos encontraram os de Jack que havia completado a
frase. Ela finalmente mirava-o nos olhos e, por certo momento, os dois
pareceram se comunicar em sintonia de energias. Foi aquela sensação, de
parecer que conhece alguém desde criança.
Mas Dimitri e Jack se conheciam há apenas um dia.
— Não sei de onde vim ou quem sou. Quem eu era... — corrigiu.
Caspar, Poeta e Kim haviam parado de brigar e todas as atenções
estavam voltadas para Dimitri. Ele juntou as sobrancelhas, determinado.
— Mas eu vou fazer de tudo para descobrir.

23 graus Sul, 68 graus Leste. Convés do Nadia Keane.

Depois que o jantar acabou, os garotos mais jovens ajudaram a levar as


louças de volta à cozinha e lavaram os pratos. Quando terminaram, Poeta e
Kim se despediram com um boa-noite e foram dormir em suas cabines. Eles
eram uns dos poucos com esse privilégio. Caspar bocejou e bagunçou a
bandana na cabeça.
— Acho que eu vou indo também.
— Fiquei sabendo que a rede dos fundos ainda está livre — disse Jack.
A rede dos fundos era a cama mais cobiçada da tripulação. Isso porque
era a mais exclusiva entre as redes. Não era nem muito alta nem muito
baixa. Nem muito molenga, nem muito dura. Não ficava perto da porta, o
que significava que estava bem longe da rede favorita de Jonas. E o cheiro
do chulé dele impregnava todo o cômodo dos dormitórios. Menos na parte
em que a rede dos fundos estava. Resumindo, era a rede perfeita.
Caspar lançou um olhar para Jack. Os dois desafiaram-se e armaram uma
corrida. Jack deu uma risada marota e puxou a bandana de Caspar para
cima de seus olhos, cegando-o por um instante.
— Mané.
— Ae, qual foi? Isso é trapaça!
Então, desatou a correr.
Em questão de segundos, Dimitri viu-se sozinho no corredor. Sentiu um
aperto no coração e olhou escotilha acima. O céu ainda não estava tão
escuro. Subiu as escadas de volta para o convés e foi até a borda do navio,
onde escorou o corpo. Aquele aperto no coração, aquele vazio. Tinha
certeza de que seu “eu” anterior não era uma pessoa muito querida e que
não havia muitos que se importavam com ele, afinal de contas, por que
outra razão ele estaria vagando sozinho daquele jeito em alto-mar?
Será que ninguém além de um bando de piratas se importou em me
resgatar? Alguém sequer percebeu que eu desapareci?
Será que... tem alguém me procurando?
E, mais do que nunca, ele sentia naquele momento. O vazio. A sensação
assustadora que o consumia da solidão. Mais do que nunca, Dimitri estava
se sentindo sozinho.
Acha que vou recuperar minhas memórias?, lembrou da conversa com
King.
A memória é algo curioso. Pode se surpreender com o que ela é capaz,
ele havia respondido.
Então outra voz tomou conta de sua cabeça. E você, filho de caravela, é
rato ou não? Dimitri tampou os ouvidos. OLHE PARA MIM, COVARDE!,
a voz de Patrick Hall ecoou em sua cabeça e, de raiva, Dimitri pegou as
pedrinhas de carvão de um dos barris e jogou-as longe. Uma de cada vez.
Só porque salvei a sua pele, não significa que eu gosto de você. Jogava.
Não quer dizer que vejo você como igual ou que quero ser sua amiga. E
jogava. Incansavelmente, até extravasar toda a raiva que estava presa dentro
do peito.
— Eu nunca pedi para estar aqui! — Jogava uma pedrinha. — Não pedi
para perder as minhas memórias! — Jogava outra. — Eu. Só quero. Ir.
EMBORA!
E as pedrinhas acabaram. Quando percebeu, estava ofegante. Chutou o
barril e voltou a se escorar, com a cabeça baixa.
— ...embora...
A noite fria combinava perfeitamente com o que ele sentia. Frio. Dimitri
olhou para a água e, só então, percebeu que estava chorando. Sentiu as
lágrimas quentes queimando suas bochechas. Surpreso, limpou-as
rapidamente para que ninguém visse. Aquilo ele nunca poderia deixar
acontecer. Nunca. Certo de que seus olhos já não estavam mais úmidos,
voltou a olhar para seu reflexo nas águas. Ficou um bom tempo ali, apenas
se observando. Seus olhos azuis e enormes, seu cabelo do corte esquisito.
Seus braços magros. E esboçou um sorriso.
Será que eu sempre fui assim?, pensou.
Suspirou. Ele não tinha como ter a resposta para aquela pergunta.
Ninguém tinha. Já exausto, estava quase dormindo pendurado na borda do
navio quando percebeu algo diferente dentro da água. Um reflexo que não
era o seu, mas um muito parecido. Confuso, franziu a testa e se aproximou,
tentando deduzir de quem eram aqueles traços esboçados no mar. Estava
quase na posição perfeita para cair, quando sentiu alguém o puxando pelas
costas.
— AHH!
O garoto caiu para trás, assustado. Não esperava que teria mais alguém lá
em cima além dele naquela hora. Então, mirou seus olhos para cima e
encontrou uma figura bem-vestida com óculos de grau e sapatos bem
engraxados. Suspirou.
— Ah, é só você...
King soltou uma risada.
— Se estava esperando outra pessoa, desculpe decepcioná-lo. Não acha
que já se arriscou o suficiente por um dia?
Dimitri deu de ombros. Para ele, isso não importava muito. King
percebeu o desânimo e a teimosia do rapaz.
Dimitri..., suspirou. Então tirou de baixo do braço um cobertor e pôs nas
costas do novato. Dimitri aliviou a expressão surpreso com o ato.
— Venha — chamou. — Senão vai pegar um resfriado.
Dimitri deu de ombros mais uma vez e se agarrou no cobertor.
— Eu não me importo.
Ele é muito teimoso, pensou King, de uma maneira até engraçada, pois
isso o lembrava de outro alguém. Levantou as sobrancelhas e soltou o ar
pela boca.
— E é proibido ficar no convés depois do toque de recolher —
acrescentou, olhando para o horizonte. — Se pretende ficar aqui, é melhor
respeitar as regras do capitão.
— Não pretendo ficar — Dimitri respondeu ríspido. — Não pedi para ser
resgatado.
Percebendo a ingratidão em suas palavras frouxas, encolheu os ombros e
olhou de canto para o curandeiro, envergonhado.
— Desculpe.
King riu, sem tirar os olhos do além.
— Sabe, às vezes, a vida precisa nos jogar no meio de tempestades para
nos testar. Para que nós mesmos possamos nos conhecer. De vez em quando
são tempestades de areia quentes e intensas. De vez em quando são furacões
em alto-mar. — Deu de ombros. — E são nessas situações extremas que
percebemos o que realmente importa.
Dimitri olhou para King com outra aura. Não estava esperando aquelas
palavras, mas pensou muito nelas, pois ficaram matutando sua cabeça pelo
resto da noite. Olhou para o mar novamente, mas, desta vez, não viu reflexo
algum.

Salão dos Deuses. Localização Desconhecida.

Em seu formato astral, um polvo gigante criou vida para fora do mapa e
nadou até as mãos de seu pai, Leros, o deus dos monstros marinhos. Leros
envolveu-o em suas mãos fechadas em formato de concha e guardou-o com
todo carinho dentro do bolso.
— Não é seu momento ainda, meu filho.
Umma tinha os olhos fixos na bola de cristal flutuante em cima da mesa.
Não os desviava por nada, pois, do outro lado da bola, estava a imagem de
Dimitri.
— Não é bonito?
Tachi, o deus do sono, riu provocante.
— Engraçado você dizer isso, Umma.
— É um humano! — menosprezou Leros.
Umma não se dava ao luxo de perder tempo ou ouvidos com as bobagens
de seus irmãos. No lugar, apenas sorriu.
— Exatamente, irmãozinho. Não é bonita a fragilidade dos humanos?
Como uma palavra, a pequena fração de uma oração pode mudar tanto a
cabeça deles...? Confundir seus sentidos?
— O rapaz é forte — disse Sarab.
A deusa das tempestades tinha voracidade nos olhos ao responder:
— É o que vamos ver.

23 graus Sul, 68 graus Leste. Convés do Nadia Keane.

King e Dimitri caminhavam no corredor. O curandeiro finalmente tinha


convencido o garoto a ir dormir em um lugar apropriado. Ele precisava
disso, precisava recompor suas forças. Quando estavam na metade do
caminho para os dormitórios, o imediato Zuca surgiu das sombras, vindo do
outro lado. King esfregou a nuca.
— Acho que você pode continuar a caminhada com Zuca.
Isso significava que ele estava indo para o outro lado do corredor. Afinal,
King tinha sua própria cabine também.
— Bom, boa noite, garoto. Imediato.
— King.
Ambos trocaram um aceno de cabeça. King deu meia-volta e Dimitri
acompanhou Zuca na caminhada para os dormitórios comunitários. Foi um
percurso silencioso até chegarem na porta. Dimi aprontou-se para girar a
maçaneta e abri-la, quando Zuca barrou sua passagem.
— Escuta, garoto...
Dimitri estava confuso, mas Zuca tinha sua total atenção.
— Eu pensei no que você perguntou e, depois de hoje, acho que merece
saber da verdade.
A verdade?!
Zuca suspirou para continuar.
— Você foi salvo sem o consentimento do capitão durante a tempestade
que mais abalou o precioso navio dele. Um relâmpago iluminou os céus e
vimos três caravelas velejando ao longe. Hall pensa que você caiu de uma
delas.
O garoto franziu o cenho, juntando as peças em sua cabeça.
— Isso explica o apelido. Mas não explica o porquê de ele me odiar
tanto.
Dimitri levou seus olhos ao encontro dos de Zuca, mas tudo o que viu,
foi uma sombra percorrendo sua face. As seguintes palavras fizeram o
garoto perder o ar:
— ... caravelas são estritamente utilizadas pela marinha real.
CALAMARI

O mundo de Aklas é dividido entre os reinos do céu, da terra e do mar.


Não se sabe muito sobre as criaturas que vivem em cima ou as que vivem
embaixo. Alguns acreditam na existência de um quarto reino. Mas tudo o
que sabemos é sobre a terra onde habitamos. Há quatro grandes impérios
que conflitam entre si e vivem em harmonia com os onze mares. Lá em
cima, temos o vasto império do Norte, onde moram os famosos arqueiros e
as maiores cidades. Sua capital é a inabalável Montemor já faz séculos.
Mais para o lado, podemos ver as terras do Ocidente, onde pode-se
encontrar feiticeiros e criaturas fantásticas, como gnomos e animais
gigantes. Sua capital é a belíssima Aquatta, lar dos sábios e das melhores
universidades de filosofia e medicina. Aqui embaixo, ficam as Ilhas do Sul,
o lar da maravilhosa pirataria. Sua capital é a majestosa cidade de
Hombatomba por mais de mil anos. Metade do Império do Sul foi destruído
depois da Grande Guerra e esquecido logo que a Cordilheira foi criada.
Essa massa de rochas é habitada pela temida Quimera e divide o mapa
entre Normania e Arcadia, o mundo perdido... dizem que não tem nada por
lá, além de ruínas da guerra. Outros acreditam que lá está a borda do
mundo. A verdade ninguém sabe, afinal a Grande Guerra divisora de terras
foi há 1543 anos. Sua causa... ninguém sabe direito. E temos o Oriente, o
Império dos enormes desertos e dos mistérios mais curiosos. Lar de
criaturas mágicas presas em objetos, guerreiros mascarados, alquimistas e
maldições. Sua capital é Nova Baggi. E é aqui que estamos. Ilha de
Calamari, o famoso porto pirata.
13

MADAME RUSSO

45 graus Sul, 126 graus Leste. Calamari.

Poeta apontou para o desenho de uma ilha no mapa. Dimitri fez uma
careta.
— Eu só perguntei que horas são.
— E eu te fiz um favor — respondeu Poeta, orgulhoso. — Todo pirata
deve conhecer o mapa mundi — olhou para o relógio. — E são nove e
meia.
Caspar bufou.
— Obrigado pela aula, colega. Agora, você bem que podia dar uma
mãozinha, não é?
Fazia uma hora que o Nadia Keane havia ancorado na praia principal de
Calamari. O navio havia sido retirado da água e preso na areia por cordas e
estacas, pois seu casco estava infestado de cracas, o que relentava a viagem.
Por isso, restava para os criados de bordo, que estavam quase perdendo seus
braços, raspar as malditas conchinhas. Os garotos estavam sem camisa por
conta do calor que fazia e tinham bandanas amarradas nas testas. Caspar
ensinou a Dimitri seu segredo. Aquilo ajudava a enxugar o suor.
— E fica com menos cara de fracote na frente das meninas — explicou.
Patrick Hall era o único que ainda não tinha descido em terra firme,
desde que haviam chegado. Apesar do calor que fazia, não abria mão de
suas botas de couro ou de seu casaco comprido. Tudo por uma boa
aparência. Quando o relógio bateu nove e meia, o capitão pulou do convés
para a praia.
— Quero tudo limpo até meio-dia! — ordenou.
Não parecia estar muito de bom-humor. Mas... quando é que ele estava,
afinal?! Caspar raspava as cracas como um profissional e Dimitri estava
começando a pegar a manha. Tinha que ir, uma por uma, colocar a espátula
debaixo e fazer pressão. Volta e mexe, algum dos dois se cortava, mas fazia
parte do trabalho. O que realmente era revoltante, era ver Poeta, sereno, de
pé, ao lado dos dois. Magro daquele jeito nem para servir de sombra.
— Tarefa idiota, sol idiota... — reclamava Caspar.
— Está fazendo exatamente trinta e oito graus — disse Poeta.
Caspar e Dimitri levantaram os rostos em direção ao colega e,
naturalmente, suas expressões transformaram-se em caretas. Poeta não
percebeu, estava entretido demais mexendo em seu termômetro.
— Não, espera... — Checou mais uma vez. — Trinta e nove.
Os garotos resmungaram de cansaço e voltaram a raspar as malditas
cracas.
— Ei, por que você não está trabalhando? — perguntou Caspar. Ele, com
certeza, era o mais revoltado com a situação.
Poeta tirou as luvas e levantou os dedos no ar, mexendo-os de forma
irritante.
— Sou o cara dos mapas, esqueceu?! Tenho que cuidar das minhas
preciosas mãos.
— Tem razão — concordou Dimitri, sarcasticamente. — Suas mãos vão
cair se você trabalhar com os criados de bordo. Muito cauteloso você.
— Obrigado, Dimitri — respondeu Poeta, fazendo uma expressão de
“toma essa” para Caspar. Caspar devolveu com uma que dizia,
silenciosamente, você ainda vai me pagar, seu almofadinha.
Enquanto o sol era um fardo para alguns que trabalhavam e suavam ao
comando de Patrick Hall, era também uma luz no fim do túnel. Uma luz
que iluminava aquele colírio para os olhos.
Calamari era conhecida no mundo inteiro por ser uma ilha tomada por
piratas. As Ilhas do Sul não tinham controle sobre o local, pois Calamari
ficava no Mar Castanho e fazia parte das terras do Oriente. E o Oriente, por
sua vez, não tomava esforços para se intrometer. Assim, piratas de todos os
quatro cantos do mundo navegavam até a ilha, fosse para trocar
informações ou tesouros, fosse para descansar e beber. Sua floresta tropical
era densa e pouco explorada, habitada por nativos, enquanto a bela praia era
praticamente propriedade de uma figura peculiar, chamada Madame Russo.
Ela era dona da taverna e da estalagem mais populares da ilha. Todos
conheciam Madame Russo. Ela era um ícone da pirataria.
— Vejam se não são os meus meninos!
Madame Russo foi caminhando pela praia e aproximou-se do Nadia
Keane. Tinha alguns cabelos brancos da casa dos cinquenta anos
começando a nascer e usava seu vestido típico, seus colares, brincos e
chinelos de dedo. Que ícone.
— Bem-vindos a Calamari — anunciou, literalmente, de braços abertos.
— Madame Russo, é um prazer vê-la de novo. — Zuca abraçou-a. —
Linda como sempre.
Madame Russo deu um tapa amigável no ombro do marujo e suas
bochechas ficaram rosadas.
— Ora, deixe de ser galanteador, homem.
Então seus olhos voltaram-se para o outro pirata ao seu lado. O homem
das vestes pretas que fingia indiferença e não fazia contato visual de
maneira alguma. Madame arqueou as sobrancelhas.
— Patrick Hall... — começou e deu um sorriso. — Tentou deixar a ilha,
mas a ilha só fala de você.
— Bom vê-la também, Madame — respondeu, sem graça, coçando a
ponta do nariz.
Madame Russo fez uma careta.
— Deixe de bobagem e me dê um abraço! — ordenou e puxou o capitão
para seus braços em um caloroso cumprimento de verdade.
Hall ficou todo vermelho.
— Pronto, agora sim!
Madame sorriu satisfeita e Hall se distanciou, arrumando as vestes que
tinham ligeiramente amassado. A senhorita Russo olhou ao redor, contente
por ver o Nadia Keane mais uma vez em sua ilha. Fazia tempo, afinal. Mas
ela também sabia que aquela visita não era para matar as saudades. Nunca
era. Mesmo assim, não perderia a oportunidade de ficar por dentro das
fofocas de suas vidas no mar. Passou seus olhos pelos Saqueadores da Barra
e voltou-se para os dois companheiros.
— No que andam se metendo, garotos? — perguntou, com as mãos nos
quadris. — Só ouço falar de vocês, ultimamente. Os Saqueadores da Barra,
aqueles que nunca são pegos... devem estar cheios de histórias para contar.
Zuca deu de ombros.
— O mesmo de sempre. Roubos na capital...
— ...saques de navios... — completou Hall, analisando as unhas.
— ...perseguição da marinha...
— ... fãs... fãs mulheres... — citou o capitão.
Madame Russo intrometeu-se entre os dois e agarrou-os pelos ombros.
Ela era muito afetuosa. Do jeito dela. Zuca e Patrick Hall encolheram-se de
susto.
— Quer saber?! Por que não colocamos a conversa em dia lá na taverna?
Tragam as crianças!
Caspar, Dimitri e o resto das “crianças” obviamente estavam o tempo
todo ouvindo a conversa escondidos atrás do casco do navio. Ao ouvirem o
chamado, Jack envolveu todos em um abraço. Dimitri ficou com as
bochechas amassadas entre Jack e Poeta, sem entender absolutamente nada
do que estava acontecendo. A timoneira pisou em seu pé.
— Sorriam — mandou.
Dimitri fechou ainda mais a expressão. Kim revirou os olhos. Patrick
Hall esfregou as pálpebras, tentando fazer de tudo para fugir daquela
situação.
— Na verdade, estamos só de passagem.
Madame Russo deu uma gargalhada. Ela não era facilmente enganada.
— Patrick Hall só de passagem? Ahá!
Empurrou todos os marujos, contra a vontade deles, em direção à sua
preciosa taverna.
— Eu insisto.
14

WINIKENEKE

Madame Russo conseguiu levar um batalhão consigo. Jack, Dimitri,


Caspar, Poeta, Kim, Zuca e Patrick acompanhavam-na até uma construção
bastante peculiar. Era rodeada por palmeiras e seu acesso era feito por uma
ponte de madeira que depois transformava-se em um deque, elevado por
pequenos pilares de madeira. O lugar ficava bem em cima do mar raso onde
peixes coloridos e pequenos tubarões poderiam ser vistos nadando
livremente. Sua estrutura lembrava vagamente uma embarcação pirata.
Dimitri não duvidava que a tal taverna-estalagem tivesse sido construída a
partir de um navio naufragado ali na ilha. Na verdade, era uma certeza, pois
possuía dois mastros, um que levava para um deque elevado e outro que
segurava uma Jolly Roger. Mas Madame Russo tinha feito todos os ajustes.
Estava parecendo novo em folha e, logo à frente, podia-se ler em uma placa
de madeira, com letras garrafais enormes, formando o nome “Winikeneke”.
Provavelmente era o nome da propriedade.
Os Saqueadores da Barra seguiram Madame Russo por uma escada que
levava ao primeiro andar onde ficava a taverna e a recepção. Do lado de
fora havia uma varanda com um timão, que já não funcionava mais, e uma
bela vista da ilha. Do lado de dentro, mais surpresas. O lugar era
inteiramente decorado com objetos da cultura nativa, como pranchas,
máscaras pintadas, com penas e miçangas e pequenos totens. Havia também
mapas antigos enquadrados, assim como outros artefatos vindos da vida dos
marujos que passavam por ali. No fundo, Winikeneke era um dos maiores
museus colecionadores do mundo, cheio de histórias para contar de cada
pirata que já passara por ali. Luzes em tons de verde, azul e vermelho
deixavam o lugar com um aspecto curioso.
Dimitri entrou devagar, ao contrário de seus amigos que pareciam
contentes demais por estar ali. Kim também não parecia muito confortável.
— Sentem-se — pediu Madame Russo, mostrando os sofás e as cadeiras
altas que ficavam no bar. — Vou servir um refresco para vocês.
Jack era a mais sorridente de todos. Passava as mãos pelos objetos e
tinha um brilho infantil nos olhos. Ela, que havia visitado muito
Winikeneke, sabia de cor cada cantinho daquele lugar, portanto, percebia
logo de cara o que a dona tinha mudado na decoração. Daquela vez, eram
lampiões coloridos pendendo do teto e tambores indígenas servindo de
cadeiras altas perto do balcão.
— Uau, Madame Russo. Arrasou na decoração nova.
— Obrigada, menina. Esses daí foram presente do povo da ilha. —
Apontou para os tambores.
A timoneira continuou passando suas mãos pelas paredes, até encontrar
uma foto sua pendurada na parede. Ela estava no colo de Madame Russo e,
ao seu redor, havia algumas crianças da ilha e piratas que passavam por ali.
Aquele tinha sido o dia do seu nono aniversário. Pegou o pequeno quadro
em mãos e passou os dedos pela superfície, dando um sorrisinho nostálgico.
Bons tempos, pensou.
Madame Russo, que estava ocupada demais no bar, limpando o balcão e
servindo bebidas, percebeu só depois de um tempo o que Jack tanto
observava.
— Você cresceu bastante desde a última vez que nos vimos, pequena —
disse, sorrindo. — Está com quantos anos, doze?
— Vou fazer quatorze em março — respondeu Jack, devolvendo o
quadro para a parede.
Madame Russo segurou um riso.
— Mas ainda estamos em novembro, já está contando?
E as duas riram. A última vez em que elas haviam se visto fazia dois
anos, mas a visita tinha sido tão rápida que nem dera tempo de pôr a
conversa em dia. Madame Russo era como uma segunda mãe para Jack,
ainda mais depois de se disponibilizar um ano inteiro para cuidar da garota
na ilha. Jack perguntava-se se o seu quarto ainda existia no segundo andar.
Provavelmente não.
— Pode me dar uma mãozinha com as bebidas?
— Claro! — respondeu a timoneira de prontidão.
As duas alcançaram taças para Patrick Hall e Zuca no bar, para Poeta e
Caspar no sofá.
— Acredita que virei timoneira? — contava Jack, animada.
— Meus peixinhos! — Madame Russo sorria. — Seu pai deve ter muito
orgulho de você.
Jack olhou para Patrick Hall no bar. Seu pai. De vez em quando, era
estranho ouvir aquilo. Ele parecia estar sempre tão distante...
— Pois é — respondeu a garota, abrindo um leve sorriso.
Direcionaram-se para a porta, por último oferecendo as bebidas para
Kim e Dimitri que estavam sentados na varanda.
— Obrigada — respondeu Kim.
O garoto girava o canudo, entediado, até perceber que nem Madame nem
Jack tinham ido embora. Kim deu-lhe uma cotovelada. Bufou.
— Valeu aí. — Brindou no ar, agradecendo.
Madame Russo arqueou uma das sobrancelhas e passou pela porta com a
bandeja vazia. Então, cutucou o ombro de Jack para chamar sua atenção.
— Vejo que ganharam mais um tripulante. Quem é o rapaz?
Jack, confusa com o que Madame estava falando, olhou para a varanda e
riu.
— Dimitri?! É um mané que a maré trouxe.
— Não é muito educado.
A timoneira bufou. Não preciso da sua amizade, lembrava de suas
palavras.
— Nem me diga. Ele é muito metido, arrogante, um grosso e
completamente egocêntrico.
Madame Russo esboçou um sorriso e deu uma cotovelada.
— Ele é bonitinho — provocou.
Jack sentiu as bochechas queimarem e, prontamente, tentou esconder.
Deu de ombros.
— Ah é? Nem percebi.
E saiu de perto para ir se juntar a Caspar e Poeta, que faziam competição
para decidir quem bebia mais rápido.
— Sei...
Madame Russo não era boba nem nada. Ela via tudo. Era os olhos e os
ouvidos de toda a comunidade pirata. Percebeu o jeito que Jack olhou para
o rapaz novo. Então, como se nada tivesse acontecido, voltou para o bar.
Enquanto isso, Dimitri e Kim nem faziam ideia da conversa paralela. O
garoto sentiu uma das orelhas queimar, mas talvez fosse só pelo calor. Ou
talvez porque tinha ficado a sós com aquela gata ao seu lado. Em uma
tentativa de distrair o nervosismo, bebeu um gole pelo canudo de bambu.
Caraca.
Até que se impressionou com o gosto. O gosto de abacaxi com laranja
refrescou seu corpo instantaneamente. Acostumado com o que Ted Molenga
servia, o garoto imaginou que tudo no mundo pirata fosse, no mínimo, um
pouco podre. Mas Madame Russo mandava muito bem. Não se importaria
de ter que ficar uns dias naquele lugar.
Kim bufou.
— Odeio esse lugar.
Tudo bem, talvez não, pensou o garoto.
— Vocês vêm muito aqui? — perguntou.
Kim atirou o corpo para trás na cadeira e suspirou.
— Calamari é o ponto de encontro dos piratas. — Deu de ombros. —
Sim, infelizmente. Hall geralmente passa só para falar com algum de seus
informantes, mas sempre arrasta eu e Zuca consigo. Fazia uns dois anos que
não vínhamos de fato aqui. Só o cheiro de Winikeneke já me irrita.
Dimitri deixou o copo de lado e deu uma breve olhada para dentro da
taverna.
— Essa Madame Russo parece ser bem... alegre.
— Exatamente — respondeu a ruiva. — Tudo aqui cheira a perfume
barato e alegria. Não é meu tipo de paraíso se quer saber.
Kim odiava aglomerações. E festas. E qualquer coisa que causasse
euforia coletiva. Talvez fizesse sentido odiar tanto Calamari. Afinal, que
outro lugar mais festeiro do que o porto pirata?! Talvez por isso que ela se
identificasse com Dimitri. Os dois eram malditos antissociais.
— Parece suspeita também — sondou o garoto.
A contramestre levantou uma sobrancelha, surpresa e intrigada.
— Você tem uma percepção e tanto, pirralho.
Voltando um pouco para dentro da taverna, Zuca e Patrick Hall
terminavam suas bebidas, sentados no bar. Madame Russo recolheu seus
copos e voltou para limpar o balcão. Ela sentia que estava chegando o
momento. Podia sentir a aura de Patrick Hall emanando por todo o espaço.
Ele estava ali por uma razão, e ela não duvidava de que todo aquele drama
do início da manhã tivesse sido para despistar seus tripulantes. Ele queria
informações. E não havia ninguém melhor no mundo do que Madame
Russo para cumprir aquela tarefa.
O capitão limpou a garganta, deixando as próximas palavras saírem
discretas e baixas.
— Ouviu algum boato sobre um baú de ouro? — perguntou.
Madame Russo respirou fundo fazendo-se de desentendida e seguiu
limpando o balcão.
— Ouvi muitos boatos, rapaz.
O capitão e o imediato trocaram um olhar cúmplice. Então Zuca tirou de
dentro de seu bolso um pequeno saco encardido de dinheiro e alcançou para
a dona do bar.
— Algum deles menciona John Kirk? — continuou Hall.
Madame Russo abriu um sorriso e pegou o saquinho, guardando-o no
decote.
— Você sabe como fazer uma garota feliz.
Jack, que estava espionando de perto, percebeu instantaneamente do que
se tratava aquela visita toda. Madame Russo voltou a esfregar o balcão.
— Ouvi sussurros sobre um plano de esconder esse... baú.
— Tem alguma ideia de onde?
— Se me contar o que tem dentro...
A timoneira, que ainda fingia estar se entretendo com a decoração, de
repente deparou-se com um cartaz colorido na parede. Então deixou de ser
fingimento. Ela realmente gritou de entusiasmo.
— Meus deuses! Vocês vão dar uma festa hoje à noite?
Madame Russo desviou o olhar para a garota e sorriu.
— Em comemoração aos cem anos do velho Gus! — respondeu e
apontou o dedo para os fundos da taverna.
Foi só então que Caspar e Poeta perceberam que havia um velho senhor
dormindo próximo a eles e deram um pulo. Analisaram Gus e trocaram um
olhar de susto.
— Será que ainda está vivo?
Caspar analisou mais uma vez.
— Toca nele para ver se acorda — sugeriu.
— O quê? — Poeta arregalou os olhos. — E por que eu que tenho que
tocar? Vai você!
Enquanto os garotos brigavam entre si, os adultos continuavam com o
jogo de gato e rato.
— Vocês deveriam vir, capitão — ofereceu Madame Russo. — Podemos
continuar essa conversa na festa.
Patrick Hall bufou. Ele sabia que Madame tinha feito aquilo de propósito
só para ficar mais tempo com eles. Maldita, pensou. Já estava pensando em
um contra-ataque, quando Jack aproximou-se saltitante.
— Nossa, por favor. Por favor, por favor!
E o capitão bufou.
— NÃO!
15

A APOSTA DE 320 COROAS

Patrick escondia sua expressão de derrota atrás de um de seus copos de


bebida. Jack conseguia ser a pessoa mais persuasiva do mundo quando
queria. E o resultado disso, foi uma noite de festa em Winikeneke. A festa
de cem anos do velho Gus havia deixado a taverna lotada de piratas. Alguns
bebiam no bar, outros apostavam em jogos de dardos, outros compravam
briga e se jogavam das mesas. Os mais festeiros cantavam no palco.
É, com certeza aquele não era o paraíso de Kim.
— Já pode me matar se quiser — resmungou, com uma careta no rosto.
Dimitri riu e se escorou na parede ao seu lado.
— Parece que alguém não gosta de festas — provocou.
— E quem gosta? É só um monte de gente bebendo e gritando. Não dá
para acompanhar.
— Eu achei a sua cara.
Kim levantou uma sobrancelha, com o desaforo do rapaz.
— Prefiro o meu trabalho porque posso só eu gritar.
Dimitri riu e cruzou os braços. Pegou uma bebida e ficou um tempo
observando a festança. Talvez a vida de pirata não fosse tão ruim quanto ele
imaginara. Mas rapidamente esse pensamento se esvaiu. Dimitri fechou a
expressão ao ver o capitão se aproximar. Virou o rosto para o lado, fingindo
estar muito entretido com um velho senhor dançando em cima da mesa.
Tudo para não chamar a atenção de Hall.
Mas é claro que ele espiou de canto de olho.
— Contramestre, preciso de um trabalho seu.
— Minhas preces foram ouvidas — a garota falou para si mesma
aliviada. Então alcançou seu copo para Dimitri segurar.
O capitão aproximou-se do ouvido de Kim e sussurrou algo.
— Quero que você e o imediato Zuca andem pela ilha para “caçarem a
águia-pavão”.
Por mais que Dimitri estivesse tentando se manter fora da conversa, seus
instintos foram mais fortes. Não era culpa dele ter uma ótima audição.
Caçar a águia-pavão... interessante, pensou. Kim fechou a expressão com
seriedade.
— Entendido, capitão.
— Vou ficar e ver se descubro algo — continuou Hall. — E lembre-se:
sejam discretos.
Kim concordou com a cabeça e retirou-se, sem mais nem menos,
deixando Dimitri a sós com Patrick Hall, o Impiedoso. Rapidamente, virou
a cabeça para o lado novamente, fugindo por um triz da careta horrorosa
que o capitão lhe lançou, logo antes de se distanciar dali. Quando se viu
livre, Dimitri parou de assobiar ridiculamente ao som da música e procurou
alguém conhecido em meio à multidão. BINGO.
Aproximou-se de Caspar, que dançava contidamente sozinho em um
canto, depois de perder a dignidade em uma partida de dardos. Bebeu mais
um gole de seu refresco e cutucou o colega.
— Ah, oi, Dimi. O que está achando da sua primeira festa pirata?
— Bem... agitada.
— É! Esse é o espírito. — E deu um tapa nas costas do amigo.
Por pouco que Dimitri não derrubou sua bebida em cima de um pirata
que passava por ali no momento. Teria sido um desastre. O cara era imerso
em puro músculo e tatuagens. Encolheu-se novamente para perto da parede.
— Cara, o que é uma águia-pavão? — perguntou.
— Por quê? Está vendo alguma?
Caspar era a pior pessoa para se tirar informação, pelo simples fato de
ele ser completamente desinformado. Ou era isso ou era um ótimo ator.
Dimitri escolheu a primeira opção e bufou, desistindo. Tudo bem, pensou.
Isso é uma festa, Dimitri. Relaxa, nem tudo tem a ver com conspiração.
Por enquanto.
— E qual é o motivo da cara de bunda, por que está escondido aqui no
canto? — perguntou o loiro.
— Porque esse é o papel do meu personagem. O que VOCÊ está fazendo
aqui?
O rosto de Caspar murchou de vergonha.
— Perdi grana apostando. E olha que eu sou MUITO bom com dardos.
E encarou o maldito do seu rival, vangloriando-se.
— Tenho certeza de que o velho roubou — resmungava. — Bom, chega
de apostas por esta noite.
Do outro lado do salão, acontecia uma competição de queda de braço
entre um monte de piratas enormes, como o que Dimitri tinha encontrado
antes. Uma dupla estava sentada à mesa e disputava pelo prêmio final. Não
era de se espantar que só um daqueles homens ganhava todas as rodadas
consecutivamente. Mas Jack não parecia estar prestando atenção nessa
parte. Estava deslumbrada demais olhando para um objeto brilhante em um
pedestal. Seus olhos pareciam os de uma criança vendo a vitrine de uma
loja de doces.
— Poeta, você está vendo aquilo?
Poeta limpou a lente de seus óculos e ficou boquiaberto.
— É lindo...
Em sua frente, havia um enorme chapéu de três pontas, todo costurado
com pedras preciosas. No topo, havia uma pena, típica dos piratas da
primeira geração.
— ...levando em conta o número da massa de cada uma daquelas
esmeraldas, esse chapéu deve custar — contou algo nos dedos — uma
fortuna.
— Eu quero — respondeu Jack, convicta.
E quando Jack queria alguma coisa, Jack conseguia. Isso era bom para
ela, mas um perigo para todos os outros. A timoneira abriu um sorriso.
— Se você ganhar, me empresta? — perguntou Poeta.
— Não.
— Tudo bem. — Poeta calou a boca.
A timoneira respirou fundo e estufou o peito. Essa era a tática dela. Ir
com toda sua confiança, não importa para o que fosse, intimidava qualquer
inimigo. A garota mais baixinha da festa aproximou-se do homem que
parecia ser o responsável pelo concurso. Um pirata com um bigode fino no
rosto anunciava o vencedor da partida, levantando o braço de um outro
homem, que estava sentado. Aquele sim, talvez fosse o maior de todos ali.
Mas Jack não se deixou abalar. Seu alvo era o marujo baixo que usava um
banquinho para ficar na altura dos outros. Limpou a garganta e começou.
— Com licença?
Os homens olharam-se confusos, tentando entender de onde tinha vindo
aquela voz fina.
— O que eu tenho que fazer por aqui para ganhar aquela belezinha ali?
Jack apontou para o chapéu e só então os olhares voltaram-se para ela. O
marujo de bigode deu uma gargalhada, talvez por não acreditar que existisse
alguém mais baixo que ele. Talvez porque era idiota mesmo.
— Ahá! Viram só, homens? A mocinha quer ganhar o chapéu de Blue
Kidd.
Todos os presentes ao redor da mesa riram. Jack manteve a postura de
braços cruzados e pernas afastadas. Poeta arregalou os olhos, sem acreditar
naquilo.
— Blue Kidd? Quer dizer, A CAPITÃ BLUE KIDD?
O homem enrolou a ponta do bigode. Para facilitar a escrita, o chamarei
de “Bigode”. Combina com ele.
— O garoto entendeu — disse Bigode, cuspindo.
Blue Kidd. Grande nome dos mares. Capitã da primeira geração da
pirataria foi uma das responsáveis por fundar a lendária Libertália, a terra
dos piratas além da Cordilheira. No início, foi difícil para uma mulher
entrar nesse mundo de homens, mas Diana, a Brava, não desistiu. Apenas
com dezesseis anos, passou-se por um garoto chamado Billy e entrou na
tripulação de um corsário que trabalhava para a família real. Anos depois,
tornou-se capitã, conhecida por todos como Blue Kidd. Sua identidade só se
revelou como feminina depois de sua morte, o que é uma pena. Mas isso
não impede o fato de ela ter sido uma das maiores mulheres da história. E a
inspiração número um de Jack.
Mais um motivo para eu ganhar, animou-se. A timoneira levantou uma
das sobrancelhas e, em tom de desafio, disse:
— É, mas acho que VOCÊ não entendeu — começou, firme. — Eu
quero o chapéu. O que uma... “mocinha” tem que fazer por aqui para
ganhar?
Os olhos de Bigode brilharam. Então mostrou a todos seu sorriso
amarelo.
— Você quer o chapéu? Vai ter que ganhar do nosso campeão, Polo, o
Robusto.
Aquele que antes estava sentado, levantou-se e projetou uma sombra
enorme por cima de Jack. Sua altura era o dobro da dela e sua largura...
bem, era o equivalente a quatro timoneiras. Era um homem corpulento,
loiro e cheio de tatuagens do povo bárbaro. Mesmo assim, Jack não se
deixou abalar. Não importa o tamanho do inimigo. A confiança sempre é a
melhor arma, pensou, nem que o inimigo seja Polo, o Robusto.
O homem mais forte dos onze mares.
Muitos se deixariam levar pelo pavor de estar em frente a um bárbaro.
Jack sorriu e deu de ombros.
— Diga para Polo, o Engomadinho, que no fim da noite ele estará
chorando como um bebê.
Risadas e burburinhos tomaram conta do ar. Jack parecia atrair a
popularidade toda para ela. Fato que não deixou aquele monte de marujos
que emanavam testosterona muito contentes. Principalmente Polo. Dimitri,
curioso, aproximou-se, ao ver uma roda de piratas englobando a timoneira.
Alguns faziam apostas e outros já trocavam sacos de dinheiro, em nome de
um dos competidores. Então uma aposta falou mais alto do que as outras.
— Aposto trezentas e vinte coroas no Robusto.
Trezentas e vinte coroas foi a quantia necessária para calar todos os
piratas ao redor. Era muito dinheiro. Com trezentas e vinte coroas podia-se
comprar, no mínimo, três cavalos. A aposta veio de quem menos se
esperava. Um rapaz beirando a adolescência, de cabelos pretos e olhos
verdes que combinavam com sua camisa, tinha no rosto sua “expressão de
jogo” estampada. Parecia determinado.
Dimitri juntou as sobrancelhas, por alguma razão, sentindo na pele o
desafio. Levantou a mão.
— Aposto o mesmo valor na garota!
O quê?? Pelo visto não tinha aprendido nada com Caspar.
Mais uma vez, o dinheiro calou as bocas. Jack virou-se, surpresa ao
ouvir aquela voz.
O que ele está fazendo?
Os marujos entreolharam-se animados. Dimitri encarou o rapaz. Olhos
verdes encontraram olhos azuis e a tensão era evidente. Poeta, desesperado,
puxou o colega para um canto.
— Dimitri, ficou maluco? Você sabe o quanto acabou de apostar?
Dimitri não conhecia nada sobre valores. Não era culpa dele se suas
memórias tinham sido deletadas. Deu de ombros.
— ...trezentas e vinte coroas?
Poeta soltou uma interjeição controlada de desespero. Então respirou
fundo e tentou se acalmar.
— Tudo bem. Talvez, ele esteja blefando. — Riu, tentando se enganar.
— Ninguém tem tanto dinheiro.
Os Saqueadores da Barra olharam para trás e lá estavam oito sacos
cheios de moedas nas mãos de um rapaz rico demais para sua idade. O
garoto sorriu para Dimitri.
— É melhor começar a juntar a grana, cara!
Faltou um triz para Poeta desmaiar.
CARTAS OU XADREZ

Do outro lado de Winikeneke, fazendo questão de não se envolver em


mais brigas, estava um rapaz loiro, de íris douradas e bandana amarrada na
cabeça. Ele vestia suas melhores roupas, as quais não deixavam de ser suas
únicas, e bebia seu suco tropical escorado na parede. Fazia de tudo para
parecer o mais descolado da festa. Não demorou para que seus olhos
pousassem em uma garota risonha do outro lado da taverna.
Caspar engasgou.
Que vergonha, pensou. Parabéns, cara, parabéns.
Quando levantou sua cabeça em estado de derrota, lá estava a bela
menina dos fios amarelos. Ela ria. Mas não de maldade. Seus olhos eram
cinzentos como um dia nublado, seu cabelo curto e bagunçado a fazia quase
parecer um dos garotos. Levava uma flor tropical atrás da orelha. Vestia-se
toda de branco como um anjo e não era de se descartar a ideia, pois uma
aura de inocência pairava sobre sua cabeça. Se ela não era um anjo,
definitivamente se parecia com um. Ou com o que Caspar imaginava ser
um.
E sua risada era contagiante.
Ela me achou engraçado?
As expectativas do rapaz da pólvora subiram ao topo e ele sorriu de volta
para ela.
Seria uma longa noite para todos os Saqueadores da Barra.
Olhando à esquerda do salão, longe do furdunço, podia-se ver o capitão
Hall. Com certeza aquele era o homem mais elegante de toda a festa. Não
que fosse muito difícil, pois todos os convidados eram piratas moribundos
de vestes fedorentas. Mas não Patrick Hall. Ele usava seu melhor traje, pois
tinha que manter as aparências de sua reputação. Talvez perdesse para um
convidado muito especial que acabara de chegar. Aproximou-se da mesa de
jogos e cumprimentou seu parceiro, batendo no chapéu dele.
— Bay, meu velho e bom camarada. Posso jogar?
O pirata que respondeu era um sujeito boa pinta de óculos escuros e
redondos, beirando os trinta anos. O que mais chamava atenção era o cabelo
albino, penteado para trás, e os olhos quase transparentes de tão claros.
Tinha estrelas desenhadas nas bochechas e usava calças listradas. O cara era
bem estiloso. Ao ver o colega, levantou as sobrancelhas de surpresa, mas
manteve-se contido na cadeira. Fez menção para que o homem das vestes
pretas sentasse à sua frente.
— Patrick Hall, o Impiedoso. Que colírio para os olhos.
Hall sentou-se junto com os outros dois jogadores ao redor da mesa. Bay
Timothee alcançou um bolo de cartas pintadas à mão para que o mais novo
jogador pudesse iniciar a partida. E como Hall não era idiota, fez bom uso
da estratégia. Deu as cartas.
— E como vai a esposa? — perguntou, iniciando a conversa.
Bay recebeu a primeira carta e levantou-a na altura dos olhos com
cuidado. Lá estava, como era esperado, um bilhete. Discretamente, leu seu
conteúdo:

“Paradeiro do Baú de Ouro” - H.

Bay tinha que segurar a risada. Aquilo o lembrava de bons momentos


com seu parceiro de jogo, Patrick Hall. Os dois eram uma dupla de
cúmplices imbatível. E Bay Timothee era o informante número um do
capitão do Nadia Keane. Estreitou os olhos e entrou na brincadeira. Limpou
a garganta para dar o sinal.
— Iola lamentou hoje.
Patrick Hall puxou um sorriso no canto da boca e anotou em seu caderno
a seguinte frase: Iola lamentou hoje. Bay suspirou. Ele nem tinha esposa.
— Sua vez, J.
Enquanto o jogo de charadas tomava rumo, havia coisas mais
interessantes acontecendo em frente ao palco. Piratas bêbados penduravam-
se nos móveis, e Madame Russo xingava os mais audaciosos antes que
estragassem a nova decoração.
— Vou despejá-los de “Wini”, seus mal-agradecidos! — xingava-os.
“Wini” era o apelido carinhoso que ela tinha dado ao seu querido
negócio de Winikeneke. Não importava o quanto ela tentava fazer o nome
pegar, as únicas que chamavam a estalagem desse jeito eram ela e Jack.
Madame Russo expulsava os bagunceiros do palco com um cabo de
vassoura, enquanto o resto da banda tocava músicas clássicas do mar.
E é claro que uma briga de marujos só chama ainda mais intriga. O resto
da festa aproximou-se para ver como terminaria aquilo tudo. E Caspar,
coitado, estava no meio da multidão. Ele abria espaço por entre as axilas
fedorentas e os copos de vidro que lançavam bebida para todos os lados.
Olhava para um lado, depois para o outro, mas ela não parecia mais estar na
festa.
— Procurando por mim?
Caspar arregalou os olhos de susto ao sentir um dedo cutucando suas
costas. Mas aquela voz doce o acalmou e ele não pôde deixar de sorrir.
Virou para trás apenas para encontrar aquela garota que batia só um
pouquinho acima do ombro do rapaz da pólvora. Suas roupas e seu corte de
cabelo faziam-na aparentar ser mais baixa e até mais nova do que ela
realmente era. Seus olhos realmente eram cinzentos, mas olhando mais de
perto não eram como um céu encoberto. Não. Eram mais como neblina em
um lago misterioso.
O que mais chamava atenção, com certeza, era seu sorriso. A garota
aproximou-se do ouvido de Caspar para ser ouvida em meio àquele
furdunço de piratas. Ficou na ponta dos pés para alcançá-lo.
— Você também está procurando alguém?
— Ah, oi! — respondeu Caspar, totalmente sem graça. — Não, na
verdade não. Eu só estava...
— Me espionando?
O sangue de Caspar gelou. A garota misteriosa arqueou uma das
sobrancelhas, esperando por uma resposta plausível. E o rapaz da pólvora
fez o que ele fazia de pior. Enrolar as pessoas.
— Quê? — Riu de nervoso. — Nem se eu quisesse, conseguiria. Não sou
nada discreto. Eu só estava... curtindo aqui sozinho.
A garota levou o dedo até o nariz de Caspar e cutucou-o.
— Indiscreto e um péssimo mentiroso.
Mais uma vez, Caspar sentiu que tinha falado bobagem. Até que ela riu.
Aquela risada quentinha de se ouvir.
— Se não é um espião, o que você faz? — perguntou, curiosa.
Caspar já não tinha mais cartas na manga. A verdade era um pouco
vergonhosa, mas era tudo o que ele tinha no momento. Coçou a nuca e
bagunçou os cabelos envergonhado.
— Sou um mero rapaz da pólvora.
E a reação que recebeu, com certeza, não foi a que ele estava esperando.
A garota de branco fez uma expressão mista de surpresa e entusiasmo,
levando as mãos à cintura.
— Ah, então temos um pirata aqui... — Seus pés cambaleavam no chão
enquanto ela falava, o que dava à garota um aspecto de criança hiperativa.
— Me conta. De que embarcação você é? Corsário Sangrento? Fragata
Jolly?
Caspar estufou o peito, sentindo a confiança surgir.
— Nadia Keane, senhorita. — E fingiu uma reverência como se fosse um
bobo da corte.
— Quer dizer que estou diante de um famoso Saqueador da Barra?
Então a confiança foi substituída pelo próprio bobo da corte. Isso
acontecia sempre que alguém elogiava Caspar. Era uma zona de perigo que
transitava entre o orgulho e a modéstia só para ouvir mais elogios.
— Ah. — Deu um sorriso desconversado. — Eu não diria famoso...
A menina levou as mãos à boca e escondeu uma risada abafada. Tudo
bem, quem ria de Caspar tanto assim em um curto período de tempo não
podia ser muito normal.
— Você é uma graça — respondeu, piscando os olhos.
As bochechas de Caspar arderam em rubor. Dois elogios de uma vez só.
Aquilo devia ser algum tipo de recorde.
— Você que é — respondeu, atrapalhado. — Quer dizer... e você é?
— Aran.
Aran. Então aquele era o nome dela. A garota linda da festa que perdia
seu precioso tempo conversando com Caspar se chamava Aran. E ele estava
completamente bobo por ela.
— Caspar — respondeu e apertou sua mão.
Os dois trocaram um olhar rápido, mas logo desviaram. Manter contato
visual é difícil, ainda mais para duas pessoas que sentem atração uma pela
outra e não querem admitir. Definitivamente, a energia ali estava em outro
nível. Um silêncio constrangedor tomou conta do ar e Caspar começou a
assobiar a melodia da música que era tocada no palco. Assobios são sempre
ótimos para quebrar o gelo: assim pensava Caspar. Aran batia um tornozelo
no outro sem saber muito bem o que dizer em seguida. Caspar levou os
lábios mais uma vez até o canudo de sua bebida e deu um gole. Não
demorou para que engasgasse mais uma vez de nervoso. Discretamente,
virou o rosto e tossiu. Quando voltou, lá estava ela olhando para ele.
— Vem cá, você não quer dar o fora daqui? — perguntou Aran,
apontando a cabeça em direção à porta.
Caspar sentiu o coração acelerar. Fica frio, cara. Fica frio, repetia para si
mesmo. Deu de ombros.
— Tudo bem. “Dar o fora” parece legal.
Aran sorriu, pegou na mão de Caspar, e o coração dele acelerou ainda
mais. Então os dois correram para fora da festa.
Enquanto alguns se divertiam, outros trabalhavam duro. E lá estava
Patrick Hall em um jogo mental de xadrez com Bay Timothee, e tudo que
havia na mesa eram cartas.
— A Baía Azul repetiu a revolta até cair — disse Bay, jogando uma carta
na mesa.
E Hall anotava tudo o que era dito.
“A Baía Azul repetiu a revolta até cair.”
Ele tinha o tempo de jogo do pirata à sua esquerda para escrever. Era o
período perfeito que precisava para ser discreto e não deixar de jogar.
— Sério? — fingiu lamentar. — É uma pena. Nunca mais fui até lá.
E pôs sua carta na mesa.
— Pois é... — Rey deu um gole em sua bebida.
O pirata à direita de Hall estava demorando para escolher sua jogada, o
que talvez fosse a desgraça de todo o plano. E o homem à esquerda tinha
uma expressão de desconfiança. Seria aquilo parte de qual jogo? O de cartas
ou o de xadrez? Por fim, chegou a vez de Bay jogar novamente. Sorriu.
— Uma desgraça aquela — por fim disse e pôs sua última carta na mesa.
Hall trocou um olhar rápido com seu confidente e, em seguida, levantou-
se da mesa, satisfeito com os resultados.
— Com licença, senhores. Vou parar por aqui hoje. Podem ficar com a
minha bebida.
E Bay era provocador. Entrou na atuação.
— Mas já? Estamos só aquecendo, parceiro!
— Boa noite, senhores. Foi um prazer. — Cumprimentou-os com a
cabeça. — Bay... — E distanciou-se.
Esperou passar por entre a multidão até chegar no balcão de entrada,
onde Madame Russo esperava-o, como o planejado.
— Linette! — chamou.
Uma moça de cabelos escuros e compridos apareceu ao seu lado. Era
muito bonita. Madame Russo alcançou uma chave com o número 7
entalhado na madeira do chaveiro em uma das mãos de Hall. Na outra,
apresentou-lhe Linette. Hall saiu da taverna de mãos dadas com a moça e
foi em direção ao deque do lado de fora onde ficava a escada para o
segundo andar. Suas vestes ajudavam nessas horas. Pretas como a
penumbra dos céus noturnos, era difícil vê-lo nas sombras. Mesmo assim,
cuidou para que não estivesse sendo seguido. E se estivesse, Linette era o
disfarce perfeito. Subiu até o deque superior e caminhou por um longo
corredor até encontrar aquela porta escondida nos fundos da estalagem. Em
sua porta, estava o número 7.
Antes de entrar, tirou do bolso do casaco um saco de dinheiro. Alcançou-
o nas mãos de Linette.
— Não diga uma palavra. Você não viu nada esta noite.
Linette sorriu com tamanha quantia de dinheiro e guardou o saco dentro
do decote.
— A-hoi, capitão.
E distanciou-se. Hall ficou um tempo esperando Linette sair de sua vista,
destrancou a porta e entrou. Não se deu ao luxo de se sentar ou se escorar
em algum lugar para descansar. Pegou seu caderno e organizou todas as
anotações feitas naquela noite.
Iola
Lamentou
Hoje
A
Baía
Azul
Repetiu a
Revolta
Até
Cair
Uma
Desgraça
Aquela.
Leu de frente para trás, de trás para frente. Em diagonal e por todos os
lados. Mas ele já tinha certeza do código. Bay era esperto e prático. Ao ver
aquelas palavras estampadas na folha, foi inevitável sorrir.
“Ilha da Barracuda.”
— Bingo.
17

RÉGUAS, FITAS MÉTRICAS SEREIAS

Madame Russo começava a se perguntar se tinha sido uma boa ideia


convidar as “crianças” para a festa. O pior de tudo era que ela conhecia Jack
e seu temperamento difícil de lidar. Mesmo assim, lá estava a garota com a
cabeça encostada em Poeta e Dimitri em uma formação de montinho.
Parecia a melhor maneira de criar um plano sem serem escutados ou
chamarem atenção. Ou isso era o que passava na cabeça dela.
— Precisamos de uma estratégia — começou Dimitri, o prático.
Jack revirou os olhos.
— Ah, porque você é o mestre das estratégias.
Os dois fuzilaram um ao outro com o olhar, enquanto Poeta tentava dar
um jeito de segurar as pontas da situação. Eles não podiam ser rivais
naquela noite. Não naquela situação.
— Vamos analisar o oponente. Polo é um bárbaro da ilha de Brasa. Isso
já diz muita coisa sobre ele. Dizem que lá, comem tudo que é feito de carne
que aparece pela...
— Foco, Poeta!
— Tá legal.
Poeta olhou para Polo, o Robusto, e estremeceu. Ele era o cérebro da
operação em meio a dois cabeças quentes. Precisava se recompor.
— Jacqueline, aquele homem é cinco vezes maior que você. Vai ter que
ganhar na inteligência.
— E desde quando se ganha queda de braço com a força? — Dimitri
concordou como se fosse óbvio. — Só tem um problema... a cabeça oca
aqui não é muito de pensar antes de agir.
Jack rangeu os dentes.
— Ora seu...
— O temperamento dela é horrível — continuou, calmamente.
Foi a vez de Poeta pôr as duas crianças no lugar.
— Sua tranquilidade está me atormentando, Dimitri. Não vê que temos
uma crise aqui, homem?
Jack suspirou, concentrando-se.
— O que eu faço?
Poeta agarrou um doce de seu bolso e pôs na boca como sempre fazia
quando estava tentando pôr as ideias em ordem. O açúcar era sua arma
secreta. Mas, naquele momento, nem isso funcionou.
— O que fazer... o que fazer se não quisermos perder trezentas e vinte
coroas. — Ele quebrava a cabeça.
Então deu de ombros.
— Bom, qualquer coisa, a gente deixa o Dimitri aqui de garantia.
Dimitri fez uma careta.
— Foi você que apostou. Arque com as consequências de suas ações.
Dimitri fechou a cara e olhou para seu oponente. Era óbvio que ele não
deixaria aquele garoto forasteiro metido passar por cima dele. Nem que isso
lhe custasse uma grana preta. Agora era questão de orgulho. Ele faria de
tudo para que Jack ganhasse.
— Escutem aqui, vocês dois — começou a timoneira.
Puxou os garotos para perto, fazendo com que os três batessem as
cabeças com força. Dimitri e Poeta reclamaram de dor, mas ela estava
determinada demais para se importar com coisas fúteis no momento.
— Eu vou sair daqui usando aquele chapéu de uma forma ou de outra.
Dimitri olhou para Poeta.
— Você tem uma régua?
O moleque dos mapas fez uma careta.
— Acha que eu ando por aí carregando réguas no bolso?
Alguns instantes se passaram até Poeta medir a distância entre o cotovelo
de Jack e o de Polo, o Robusto. Parecia centrado, pois mordia a língua e
tinha regulado suas melhores lentes de óculos para não errar nem um
centímetro entre os dois competidores. Jack fez uma careta.
— Você disse que não tinha uma régua.
— Isso é uma fita métrica. Fita métrica, tá?! — reclamou o garoto,
bufando. — Você está me desconcentrando, vou ter que começar de novo...
Polo, o Robusto, juntou as sobrancelhas como se estivesse vendo uma
formiga tentando carregar uma folha grande demais para seu tamanho.
— Isso é permitido? — Apontou para Poeta.
O garoto, que já começava de novo suas contas, fechou os punhos por ter
sido interrompido novamente e começou o escândalo.
— Não me chame de “isso”, meu nome é...
Antes que pudesse terminar, Poeta foi levado embora, esperneando, por
um marujo que o pôs em seu ombro, o que deixou Jack um pouco
apreensiva. Ela tinha a mão dada com Polo, o Robusto, e os dois
desafiavam-se com o olhar. Às vezes faziam força de leve para intimidar
um ao outro. Dimitri percebeu que Jack estava insegura, mas sabia que ela
não daria o braço a torcer. Literalmente. Ao ver Poeta sendo levado para
longe, o rapaz dos cabelos pretos deu um sorriso convencido para Dimi.
— No nome de quem eu peço para pôr a conta?
Esse cara é muito irritante, pensou Dimitri. Sorriu confiante e pôs as
mãos nos bolsos.
— No seu mesmo. — Então apontou para Jack com a cabeça. — A
minha garota é timoneira. Ela manda bem na musculação.
O garoto deu uma risada de braços cruzados.
— Sua garota? — Apontou com o ombro para Polo. — Ouvi dizer que
Robusto é o campeão... ninguém nunca ganhou dele! Que loucura, não é?
Dimitri rangeu os dentes. Seu oponente suspirou e apoiou as mãos na
cabeça.
— E você? Qual é o seu nome?
— Por que eu diria meu nome? — perguntou Dimitri.
— Acho uma parte crucial do jogo. — Ele deu de ombros. — Conhecer
o seu oponente.
O criado de bordo esboçou um sorriso intrigante. Por um segundo,
identificou-se com o rapaz misterioso. Ele era cauteloso, assim como
Dimitri.
— Dimi — respondeu sem estender a mão. — Minha vez.
— Pode mandar... Dimi.
O fato de agora seu nome ter sido exposto incomodava-o um bocado,
mas ele sabia que aquilo era um campo minado. Tinha que andar pé ante pé,
calculando cada movimento. E era sua vez de conseguir informações.
— Me diz, como um cara que nem você tem tanta grana no bolso?
— Um cara que nem eu? — O rapaz riu com gosto. — Você não sabe a
resposta porque não sabe quem eu sou. Mas eu sei bem quem você é...
Dimi.
Droga, pensou. Ele é esperto. E Dimitri não sabia nada sobre seu
oponente, além do fato de ele ser extremamente bonito e egocêntrico.
Espera...
— “Sabe bem” quem eu sou? — perguntou desconfiado.
O garoto deu um sorriso provocante.
— Não se preocupe. Seu segredo está a salvo comigo.
Segredo? Dimitri arregalou os olhos. O rapaz deu de ombros.
— Não vou contar para ninguém que você vai ficar cheio de dívidas.
Antes que Dimitri pudesse revidar, o som de um gongo ecoou na sala
mutando a música do palco por alguns instantes. Aquele era o sinal. Aquela
era a hora. Bigode subiu em seu banquinho e levantou a mão para o ar. Jack
e Polo, o Robusto, estavam tensos. Seus músculos estavam, pelo menos.
Seus olhos também. O oxigênio pareceu engrossar e ficar mais difícil de
respirar, talvez fosse pelo fato de ter muitos marujos moribundos
aproximando-se para ver a batalha épica da noite.
Bigode baixou a mão com um só movimento.
— COMECEM A PARTIDA!

45 graus Sul, 126 graus Leste. Praia de Calamari.

Por outro lado, era um alívio estar longe de todo o furdunço da pirataria.
Na verdade, era uma bênção para os ouvidos, mas principalmente para o
nariz. A oeste de Winikeneke, havia uma praia menor e pouco
movimentada. Os únicos corações pulsantes naquela areia gélida da noite
eram os de Caspar e Aran.
Os dois caminhavam lado a lado, chutando conchinhas com os dedos dos
pés e rindo um do outro.
— Quer dizer que ele se escondeu por uma semana?
— Pensamos que ele tinha ficado na ilha.
— Não acredito!
E os dois rolaram de tanto rir. A noite estava fria para um ano de verão
como aquele, mas Caspar sentia seu corpo aquecido por dentro. Aran
irradiava energia.
Caspar respirou fundo e limpou uma lágrima do olho.
— Ah, Poeta... que figura. Você tinha que conhecê-lo algum dia.
— Eu ia adorar — respondeu a garota.
Ela tinha um brilho nos olhos. Caspar viu-se hipnotizado por eles e,
quando percebeu que estava perto demais, virou o corpo de frente para o
mar tentando esconder o rubor das bochechas. O silêncio constrangedor
voltou entre os dois, apesar de Aran estar achando aquilo tudo muito
engraçado. Caspar coçou a nuca e bagunçou a franja, tentando pensar em
alguma coisa para falar. Alguma coisa que não fosse muito imbecil, pelo
menos.
— O mar, à noite, não parece muito mais assustador? — começou,
olhando para a frente.
Aran seguiu seu olhar até o horizonte azul. Suspirou.
— Não acho. — Então fez uma careta para o rapaz da pólvora. — Por
quê? Você está tentando me assustar só para chegar mais perto de mim?
— O quê? — Caspar sentiu o rosto queimar de vergonha e riu para tentar
esconder. — Pff... não. Pensando bem, agora que você falou, teria sido uma
boa ideia.
Aran riu tímida.
— Você é fofo. Se não estivéssemos nessa situação, seria até romântico.
Caspar fez uma careta, confuso.
— Situação?
Foi como um furacão. Antes que o loiro pudesse perceber o que estava
acontecendo, Aran pulou em cima dele, dando-lhe um golpe certeiro e
prendendo seu braço. Quando Caspar se deu conta, estava completamente
indefeso.
— Se não estivesse perdendo feio para uma garota.
As coisas estavam começando a ficar interessantes. Caspar entrou na
brincadeira.
— Quer lutar? Cai dentro!
Aran deu de ombros.
— Você que pediu.
Caspar, que havia aprendido algumas técnicas com Jack, reverteu o golpe
rapidamente, imobilizando Aran que tinha seu rosto a centímetros da face
de Cas. Ele não conseguiu segurar o sorriso.
— Belos golpes. Parece que você não é só um rostinho bonito.
Aran arqueou uma das sobrancelhas.
— Você me acha bonita?
E foi a vez dela de revidar. Com um golpe só, a garota desvencilhou-se e
prendeu Caspar com força perto de si. Faltavam poucos milímetros para
seus narizes se tocarem. Ambos estavam ofegantes e o ar quente que saía de
suas bocas misturava-se, entrando em choque com aquela noite tão gelada.
Estavam tão perto um do outro que Caspar podia sentir as vibrações, as
batidas do coração de Aran. Podia sentir a energia que corria solta entre os
dois. Ela estava com os cabelos loiros bagunçados e os olhos confusos por
ter sido surpreendida. A flor tropical de seu cabelo já não estava colocada
perfeitamente atrás de sua orelha, agora ela caía para o lado. Mesmo assim,
Aran estava linda demais. Sua silhueta era contornada pela luz da lua que
brilhava ao fundo. A respiração de Caspar começou a falhar, mas dessa vez
ele não sorriu. Parecia como um ímã. Ele precisava chegar mais perto. E
mais perto. E...
— Eu preciso ir.
De repente, Aran pôs suas mãos no peito de Caspar para impedi-lo de se
aproximar mais. Foi como um balde de água fria, difícil de lidar. Mesmo
assim, Caspar tentou esboçar um sorriso.
— Que pena...
Aran olhou triste para Caspar e a sensação de suas mãos desencostando
de seu corpo foi como o pior dos castigos. Como se a barreira que segurava
o calor dentro de seu corpo quebrasse de repente, deixando o frio entrar. A
garota caminhou para longe pela areia, seus pés indo de encontro com as
ondas fracas que chegavam na praia. Suas roupas brancas voavam com a
brisa de verão como se quisessem fazer parte da própria noite. Aquela visão
deu um aperto do peito de Caspar. Ele simplesmente não conseguia vê-la
indo embora daquele jeito. Respirou fundo e estufou o peito.
— Acha que vamos nos encontrar de novo? — gritou enérgico.
Aran, surpresa, virou-se para trás, fazendo seus cabelos e vestes voarem
a favor do vento. Não importava o quanto ela tentasse esconder, havia um
sorriso em seus lábios. Pôs uma mecha para trás da orelha e gritou de volta.
— Quem sabe?! — E piscou um dos olhos.
Caspar tinha um ar melancólico.
— Desculpe, mas é muito irritante ver você indo embora.
— Irritante? — Riu Aran. — Que jeito esquisito de descrever uma
despedida.
— Despedida... — bufou o garoto. — Esse sim é um jeito irritante de
descrever isso.
Aran mirou seus olhos em Caspar. A empatia que transmitia era
acolhedora demais. Caminhando devagar, aproximou-se mais uma vez do
rapaz. Então pôs seus dedos polegares em cima de suas pálpebras.
— Fecha os olhos — sussurrou. — Feche os olhos e não os abra em
hipótese alguma. Não importa o que aconteça.
O garoto obedeceu, baixando as pálpebras por um instante. Mas sua
curiosidade sempre falava mais alto. Caspar abriu um dos olhos com uma
careta.
— Pra que isso?
Aran puxou um sorriso no canto dos lábios e mexeu as sobrancelhas.
— Manter o mistério — respondeu.
Caspar estreitou os olhos.
— Você é uma sereia, é?
— Essa é sua teoria? — Aran riu.
— Ou você é uma sereia... ou vai me matar, também é uma opção. —
Deu de ombros.
— Ah é. — Aran entrou na brincadeira. — E sumir com o corpo depois.
Os dois riram, deixando os sorrisos morrerem aos poucos na escuridão.
Aran fechou a expressão e pôs as mãos nas bochechas de Caspar. Respirou
fundo.
— Confia em mim?
Ele queria tanto, mas tanto manter os olhos abertos. Ao invés disso,
apunhalou seu coração e fez o que Aran mandou. Mesmo sem enxergar
nada, Caspar conseguia sentir. O calor das mãos em seu rosto. Cada... Vez...
Mais... quente. Seus lábios tocaram os de Aran sutilmente como um véu de
seda. A onda de energia que percorreu seu corpo foi eletrizante. Mas durou
apenas um instante. Um pequeno instante que se perdeu no meio de muitos
outros logo que ela se afastou. Foi como uma facada. Doía demais esse
curto espaço de tempo em que seus lábios deixavam de se tocar. Sentiu
Aran encostando sua testa na dele e as palavras seguintes foram fracas
como um sopro da brisa.
— Até breve, rapaz da pólvora.
Em um instante ela estava ali, no outro, era como se tivesse virado parte
do mar. Como uma sereia.
18

BRUTA VS. ROBUSTO

Calamari podia parecer uma ilha comum do Oriente, um paraíso tropical


para os marujos que resolviam atracar em seu território. Mas a verdade é
que Calamari era cheia de segredos. Não é à toa que foi uma escolha
unânime, tempos atrás, torná-la o porto pirata oficial. A ilha possuía quatro
praias principais nos seus extremos, porém, ao longo da extensão da área,
havia muitos cantos escondidos que só os nativos ou marujos experientes
conheciam.
Kim e Zuca estavam em uma dessas praias ocultas. Onde havia uma
pequena baía que se formava da água vinda do mar, lá estavam os dois,
cumprindo suas ordens e procurando o que Patrick Hall havia insinuado
mais cedo.
Quero que andem pela ilha para caçarem a águia-pavão.
Ambos os tripulantes conheciam o capitão há anos e, por consequência,
conheciam seus códigos. Kimberly e Zuca faziam parte do chamado
“Fronte” do Nadia Keane, um grupo de elite do qual só os melhores
marujos participavam. Poeta era o terceiro membro. Esse grupo ganhava
acesso a todas as reuniões privadas com o capitão, além de ser responsável
pelas missões mais importantes. “Águia-pavão” era seu código para
“pertences enterrados”.
Deixe-me explicar. A pirataria é movida por três motivações: fama,
fortuna e poder. A fama é movida pela fortuna e vice-versa. Juntas, geram o
tão cobiçado poder. Quem tem riquezas e popularidade move o mundo. Os
piratas são fanáticos por isso. Querem ser os mais conhecidos, pois a fama
de “procurado” leva a recompensas altíssimas por suas cabeças e, quem
tiver a maior recompensa, ganha imediatamente o título de Kingikai, o rei
da pirataria. Querem ser os mais ricos para aposentarem-se nas ilhas
paradisíacas do Sul e viverem o melhor de suas vidas. E o poder... bem, é só
o desejo mais antigo da humanidade. Todos o querem. Mas são poucos os
que o possuem.
Quanto mais um pirata rouba, quanto mais ele acumula bens materiais e
tesouros, mais seu navio fica pesado. E o que ele menos quer é isso, afinal,
um navio pesado é um navio lento. E navios lentos são alvos fáceis para a
marinha capturar. De tempos em tempos, Patrick Hall e os Saqueadores da
Barra ancoravam em certas ilhas, dentre elas Calamari. Assim, poderiam
deixar parte de suas relíquias em terra firme, escondidas ou enterradas.
Poeta era o responsável por anotar a localização de todos os bens do Nadia
Keane, mas era Kim e Zuca que sempre faziam esse trabalho sujo.
Piratas são piratas e é de sua natureza serem ladrões. Esconder tesouros
em uma ilha pirata pode não ser a melhor das ideias.
Zuca terminou de tampar o buraco que havia feito na terra e limpou o
suor de sua testa.
— Acho que isso é tudo.
Olhou para os objetos que tinham recuperado. Um vaso antigo, um colar
de esmeraldas, uma adaga com punho de ouro, alguns anéis e moedas de
ouro. Zuca suspirou.
— Nem metade do que deixamos da última vez... Hall não vai ficar
satisfeito.
— Digamos que o esconderijo dele não foi dos melhores também —
reclamou Kim, juntando as moedas.
De repente, um estalo.
— Abaixe! — sussurrou a contramestre.
Kim manteve-se em alerta, escondendo-se rapidamente. Zuca fez o
mesmo e ambos olharam ao redor. Praias ocultas têm esse nome por uma
razão. Como citado anteriormente, em Calamari, os únicos que as
conheciam eram os nativos e os marujos experientes. E alguns patifes.
A ruiva encontrava-se com as costas encostadas contra um tronco de
árvore caído. O barulho vinha do outro lado, onde estava a baía. Podia não
parecer ao primeiro ver, mas suas águas eram profundas. Profundas o
suficiente para abrigar um navio submarino.
— Isso não é bom...
Kim fixou seus olhos no Octopus. Aquilo não era nada bom, de fato.
— Precisamos avisar o capitão.
45 graus Sul, 126 graus Leste. Winikeneke.

O capitão estava a alguns bons quilômetros de distância. Enquanto seus


subordinados faziam as tarefas pesadas, Patrick Hall bebia mais um dos
coquetéis de Madame Russo no bar de Winikeneke. A festa de cem anos do
velho Gus continuava a todo vapor, mas o capitão não pretendia ficar até
seu final. Levantou uma das mãos e pediu a conta. Madame Russo apareceu
de prontidão e alcançou-lhe um papel dobrado ao meio.
— Aqui está. Espero que não fique me devendo dessa vez.
— Eu sempre pago minhas dívidas, Madame — respondeu Hall. Não
deixava de ser verdade.
Mas não era de dinheiro que ela falava. Patrick Hall abriu o pequeno
bilhete dobrado em dois e seus olhos arregalaram com o que leu em sua
superfície.
“John Kirk está aqui”

45 graus Sul, 126 graus Leste. Praia de Calamar.

Voltando para nosso rapaz da pólvora, Caspar mantinha-se de pé e de


olhos fechados. Em seu rosto, estava estampado um sorriso bobo de quem
acabara de ganhar seu primeiro beijo. Em sua cabeça, passava novamente
todos os momentos daquela noite, como um filme.
Até breve, rapaz da pólvora.
E o rosto de Aran sumia em meio ao nevoeiro de sua memória. Àquela
altura, já estava sozinho na praia fazia uns bons trinta minutos, mas ele
havia prometido que não abriria os olhos. Foi preciso um verdadeiro choque
para quebrar sua palavra.
— AH!
Bruscamente, foi jogado no chão por uma Kim apressada que corria
desesperadamente pela praia. Os dois caíram de mal jeito, um em cima do
outro. Caspar abriu os olhos confuso e cuspiu a areia que tinha entrado em
sua boca.
— Argh, Kim. Olha por onde anda!
A contramestre bufou, apoiou-se nos cotovelos para sair de cima do
colega e rolou para ao lado.
— Ninguém mandou você ficar sozinho que nem um sonso no escuro.
— Eu não estou sozinho — respondeu, convencido. — Estou em um
encontro com a Aran.
Kim levantou-se e estendeu a mão para ajudar Caspar a subir. Arqueou
uma das sobrancelhas.
— É sua amiga imaginária?
Caspar estreitou os olhos.
— Por quê? Ficou com ciúmes?
A ruiva bufou como se em sua cabeça pensasse não sei nem por que eu
pergunto, e saiu correndo em direção a Winikeneke para cumprir sua
missão. Por outro lado, Caspar cruzou os braços e sorriu.
— É... ela ficou com ciúmes.
E foi derrubado.
— AH!
Dessa vez por Zuca, o que resultou em uma dor muito maior do que a
queda anterior.
— Ei, qual foi?
— Não devia ficar sozinho no escuro, rapaz.
E saiu correndo para alcançar a parceira. O loiro esfregou a mão na nuca
e deixou o corpo caído. Depois daquela, não tinha mais forças para levantar.

45 graus Sul, 126 graus Leste. Winikeneke.

As comemorações continuavam noite adentro na taverna de Madame


Russo, e Jack, a Bruta, com certeza, era o centro das atenções.
— BRIGA, BRIGA, BRIGA, BRIGA!
A timoneira mantinha-se firme e forte em sua batalha contra Polo, o
Robusto, graças às medidas da fita métrica de Poeta.
— Eu quero ver fogo nos olhos, Jacqueline! — ele gritava.
— Cala a boca, Poeta.
— Eu disse fogo nos olhos, mulher!
As veias de seu braço começavam a saltar de cansaço e seus músculos já
não aguentavam mais tanto quanto antes. Um movimento em falso, uma
distração, seria sua ruína. Sua sorte era que Polo, o Robusto, não tinha
cérebro o suficiente para pensar em usar esses recursos.
— Você... — ele rugia. — Eu não vou perder para você.
— Realmente, seria muito vergonhoso perder para mim — provocava
Jack, sem perder o foco.
Dimitri, que estava escorado em uma parede, observava tudo e trocava
olhares com o garoto moreno ao seu lado. Ele tinha um sorriso sereno
estampado no rosto, o que irritava o novato ao extremo.
— Eu não vou perder.
Ele riu.
— Muito menos eu.
De repente, uma onda de piratas curiosos se formou e todos, que antes
subiam nos móveis de excitação com a competição de queda de braço no
centro da festa, agora corriam em direção à porta da taverna. Alguma coisa
acontecia do lado de fora. Alguma coisa interessante o suficiente para tirar a
atenção de marujos loucos por uma briga.
E Jack usaria isso a seu favor.
— É o seu navio afundando lá fora? — perguntou para Polo.
O bárbaro riu.
— Boa tentativa, garota. Mas eu não caio nos seus truques.
Os olhos determinados, porém cansados, de Jack voltaram-se
diretamente para Dimitri. De repente, ele sabia exatamente o que fazer.
Com toda a calma do mundo, viu o símbolo que Polo, o Robusto, levava em
suas vestes. Era uma foice em conjunto com uma flor. Então, suspirou e
caminhou até a porta. Avistou o mesmo símbolo em uma Jolly Roger ali
perto.
— Caramba... era um belo navio.
Os nervos de Polo agitaram-se.
— Podem blefar o quanto quiserem, seus vermes.
Dimitri aproximou-se de Polo e apoiou-se com o cotovelo no ombro do
bárbaro.
— Por acaso, era uma corveta de quatro canhões e uma Jolly vermelha?
Polo firmou os músculos. Dimitri coçou o nariz.
— Você estava devendo para alguém? Tem um cara lá fora queimando
suas velas.
O bárbaro pulou da cadeira e, sem pensar duas vezes, virou para trás,
rosnando.
— Maldito, Bay!
Mas Bay Timothee estava bem ao seu lado e bateu continência,
sarcasticamente. Quando Polo percebeu, Jack já tinha se aproveitado da
situação. Usou toda sua força restante para ir contra o instante de desespero
de seu oponente e prensou o braço de Polo, o Robusto, contra a mesa.
Bigode, que era um dos poucos que não havia saído correndo para fora da
taverna, analisou bem a situação e determinou o vencedor.
— Mas, mas...
Jack pulou para cima da mesa, arrancou o chapéu de Blue Kidd da
parede e vestiu-o. Apontou uma de suas facas para o alto e, ao descer,
chutou as cadeiras. Tudo para anunciar sua vitória.
— Ah, é! Engole essa, Robusto!
Polo soluçava em sua cadeira sem acreditar que tinha perdido para uma
pirralha Saqueadora da Barra. Bigode aproximou-se e pôs uma mão sobre
seu ombro.
— Não chore... não dê essa glória toda para ela.
Mas Jack fazia questão de jogar a derrota bem na cara do perdedor.
— Quem é a mocinha agora?
E dançava em cima das cadeiras. O garoto moreno que havia apostado
em Robusto tinha os olhos arregalados e estava boquiaberto, sem acreditar
no que havia acabado de testemunhar. Olhou para Dimitri e apontou para
Jack.
— Caramba, a sua garota é maluca.
— Um pouco — respondeu o novato.
Dimitri não segurou o sorriso que surgiu em seus lábios. Talvez por ver
que Jack realmente era um tanto doida, talvez por ter ganhado a aposta... ou
talvez pelo fato do rapaz ter se referido a ela como “sua garota”. Logo seus
pensamentos foram interrompidos por uma cotovelada.
— Ela tem namorado? — perguntou o garoto.
Dimitri fez uma careta. Não sabia exatamente o porquê, mas queria
muito dar um soco na cara daquele paspalho.
19

UMA JORNADA ESTRONDOSA

De fato, acontecia um espetáculo na beira da praia. E piratas adoram


espetáculos. Não havia fogos de artifício ou animais marinhos dançantes, só
um pirata caçoando do outro. Patrick Hall guardou o bilhete dentro do bolso
e saiu correndo para fora de Winikeneke, bem a tempo de ver o que não
queria. Sem fôlego, lá estava ele observando John Kirk e o Octopus
zarpando em direção ao horizonte. O capitão do escafandro abanava de
longe, intrigando dúzias e dúzias de marujos que haviam deixado a bebida
de lado para saber de uma boa fofoca.
— Ei, aquele é o famoso Octopus? — disse um, maravilhado.
— Caramba, então não são só boatos, realmente ele pode navegar
debaixo d'água — disse outro.
John Kirk entrou para sua cabine e sua embarcação desapareceu da
superfície. Patrick Hall não poderia estar mais enfurecido. Pegou o
papelzinho de seu bolso e rasgou em dezenas de pedaços, jogando-os ao
mar. Rosnou.
— Ele está me fazendo de palhaço.
Zuca aproximou-se, correndo.
— Capitão.
Por incrível que pareça, ele havia corrido como em uma maratona, mas
seu fôlego mantinha-se impecável.
— Vimos o Octopus escondido nas docas abandonadas faz pouco tempo.
Creio que bateram em retirada quando perceberam que estávamos aqui.
— Não seja tolo, imediato. Eles queriam ser vistos...
Hall desembainhou sua espada com ferocidade e fincou a ponta da
lâmina no solo. Então apoiou-se nela pensativo.
— Acho que ele tem informantes na ilha.
O imediato juntou as sobrancelhas.
— Informantes... você acha que a Madame...?
— Madame Russo é o ser mais linguarudo que o Oriente já viu, senão do
mundo inteiro. Eu digo, além dela — interrompeu Hall. — Kirk tem olhos
em Calamari. Alguém aqui reconheceu um dos meus marujos e relatou a
Kirk. Mas quem... — Bateu na testa. — Ah droga! Vamos ter que interrogar
todos os Saqueadores.
— Me encarregarei disso assim que estivermos a bordo, capitão —
respondeu Zuca, de prontidão.
Patrick Hall concordou com a cabeça. Kirk era esperto, é claro que teria
informantes no centro do mundo da pirataria. A questão era “quem” ou
“quando” a informação tinha vazado. Havia um espião na festa.
Mas o pior de tudo nem era isso, para Hall. Ser espionado não era uma
novidade para ele ou para seus tripulantes. O que havia incomodado cada
um de seus nervos era a mão de John Kirk, acenando de longe. Ele queria
ser visto, isso é fato, pensou.
Acima de tudo, John Kirk era um maldito sádico.
— Ele está entrando em um jogo perigoso.
— E o que faremos agora? — perguntou Zuca.
Apesar de todas as desventuras da noite, Patrick Hall deu um sorriso.
Levantou as sobrancelhas e apenas respondeu:
— Vamos jogar.
45 graus Sul, 126 graus Leste. Nadia Keane.

Apa e Zuca foram os responsáveis por arrastar todos os jovens


Saqueadores da Barra de volta para dentro do navio. Os velhos também, na
verdade. Não foi uma tarefa fácil, afinal de contas foi uma festança aquele
aniversário de cem anos do velho Gus. Cesco e Dante tiveram que ser
levados nas costas, regados a rum. A maioria já caía pelos cantos de
cansaço e sono, mas para Jack tais palavras não entravam em seu
vocabulário. A timoneira vestia seu mais novo chapéu no topo da cabeça e,
com orgulho, caminhava para seu posto.
— Traçar rota para Pedreira! — gritou o capitão.
— Sim, senhor! — respondeu Jack, energética.
Patrick Hall estreitou os olhos em direção ao horizonte.
— Vamos atrás do nosso tesouro.
Caspar arrastou o corpo dolorido para a borda do navio, mas precisou da
ajuda de Dimitri para puxar a âncora. O novato olhou mais uma vez para a
ilha e, de repente, parecia que havia lembrado de algo superimportante.
Uma importância parecida com a de 320 coroas em dinheiro.
Correu para a popa do navio e pendurou-se em uma das cordas.
— Ei! — gritou para o garoto moreno na praia. — Você não pagou a
aposta!
O rapaz deu de ombros.
— Você não cobrou — gritou de volta, batendo continência. — A-hoi,
marujo!
— ME DEVE 320 COROAS! NÃO VOU ESQUECER — gritou
Dimitri, com os cabelos ao vento.
— FICO TE DEVENDO ESSA ENTÃO!
E lá se foi. O Nadia Keane para um lado, Calamari para o outro. E lá se
foi a grana de Dimitri, por entre os dedos de um jovem desconhecido e
incrivelmente rico. Qual era seu nome mesmo? pensou. Mas Dimitri não
lembrava, afinal, tinha certeza de que o garoto nem mesmo havia contado.
Mas se estava escrito nas linhas do destino, seus caminhos se cruzariam
novamente e sua aposta finalmente seria paga. Se não estivesse escrito...
bem, é a vida.

Salão dos Deuses, Localização Desconhecida.

É a vida. E os deuses a acompanham de perto. Umma não desgrudava


seus olhos daquele pequeno navio, de velas pretas à noite e brancas ao dia.
— Pedreira? — Abriu um sorriso. — Acho que é hora de fazer uma
visitinha...

42 graus Sul, 107 graus Leste. Nadia Keane.

Um longo dia em alto-mar tinha chegado ao fim e a janta da vez era


salada de repolho e iscas de bacalhau. O navio já havia ancorado novamente
em um lugar seguro para passar a noite, e Ted Molenga servia os jovens
piratas famintos. Poeta foi o último da fila, mas não se importava. Era, com
certeza, o que comia menos. Então, foi sentar perto dos amigos.
Kim tinha uma careta no rosto e logo foi fácil de adivinhar o porquê.
— Você vai mesmo ficar usando esse negócio?
Jack arrumou o chapéu de Blue Kidd nos cabelos, com orgulho.
— Eu ganhei, não ganhei?
— Com a minha ajuda — gabou-se Poeta.
— Com a ajuda da fita métrica ridícula do Poeta, tanto faz. — Deu de
ombros e deu uma garfada em sua salada. — Nos poupei de perder
trezentas e vinte coroas ontem. De nada.
— Você o quê? — perguntou Kim, sem saber se tinha escutado certo.
Poeta, percebendo o conflito que começaria, trocou de assunto
rapidamente.
— Ted Molenga se superou, hein?! — Deu uma garfada.
— Primeira coisa que não tem um olho boiando desde que cheguei —
resmungou Dimitri, causando uma onda de risadas inesperadas.
Até ele mesmo sorriu.
— Acho que Madame Russo deu um pouco do estoque dela para ele —
explicou Kim.
— Abençoada seja a Madame! — gritou Jack para os céus, o que causou
mais uma onda de risadas em todo o convés.
A noite estava fria, contudo as risadas aqueciam demais cada um dos
corpos presentes. Dimitri começava a entender o que significava aquilo. Os
Saqueadores da Barra não possuíam um nome apenas por fama ou para
amedrontar os inimigos. Era como um sobrenome. O sobrenome de uma
enorme família na qual, agora, ele fazia parte.
Não. Foco, lembrava-se. Cada dia que passava, ficava mais difícil de
recordar. Mas ele não baixaria sua guarda nem abriria mão de seu objetivo.
Recuperar suas memórias, é por isso que está aqui.
Poeta limpou uma lágrima do olho, de tanto rir.
— Ah, nossa... parece que faz tanto tempo que não falo com vocês.
— É... nossa, um dia inteiro — zoou Caspar.
— Pois então. — Poeta deu mais uma garfada na janta. — Essas
reuniões do Fronte estão me matando. Hall está paranoico com essa história
de plano.
— Plano? — perguntou Dimitri.
Sua curiosidade voltou a despertar. Era daquilo que ele precisava. O
plano. O tesouro roubado. Quanto mais conhecesse sobre o mundo dos
mares, mais tinha chance de chegar perto de seu objetivo e descobrir o que
havia acontecido de fato naquela noite em que se perdeu nas ondas.
Poeta abriu um enorme sorriso. Entusiasmava-se fácil quando o assunto
tinha a ver com seu trabalho, mesmo que tentasse fingir que não.
— Hall se juntará a nós, daqui a pouco. Ah, vocês vão ver, o plano ficou
magnífico, magnífico! Desenhamos uma rota que, de acordo com o tempo
estabelecido, devemos chegar à ilha em poucos meses.
— Ótima história, Poeta. Poupe seus pulmões — interrompeu Jack,
dando tapinhas amigáveis no ombro do colega.
— Ei, mas eu ia contar a melhor parte...
Jack apontou para a cabine do capitão. Não tardou para que Patrick Hall
chutasse a porta e adentrasse o convés, com presença.
— Deixa que é a vez dele explicar — por fim, disse Jack.
— Falando no diabo... — resmungou Kim.
O capitão do Nadia Keane travou seus pés no chão e olhou ao redor. Era
incrível como a sua presença ali fazia com que todos os tripulantes
calassem as bocas e parassem qualquer atividade. Hall era como um deus
para eles. Um deus muito amedrontador. Levantou um dos braços e gritou:
— Imediato! Moleque pintor! — chamou.
Poeta deixou o prato de lado e levantou-se para cumprir ordens. Patrick
Hall podia parecer muito autoritário, mas naquele momento, o garoto estava
feliz de ficar ao seu lado. Poeta tinha um sorriso no rosto, sedento por
aventura.
— Preparem-se para uma jornada estrondosa.
JACK-AS

EPISÓDIO UM

Jack: Olá! Sejam bem-vindos ao Jack-As.


Caspar: O programa de rádio da Jack e do Cas!
Jack: Estamos de volta esta semana com mais um episódio do nosso
quadro “Entrevistando os Saqueadores”.
Com certeza, a pessoa que menos estava se divertindo no cômodo era
Poeta. De braços e pernas cruzados, mantinha-se com uma careta de
indignação.
Poeta: Ainda não acredito que vocês me excluíram, ainda mais depois de
eu ter ensinado os dois a fazerem um gravador.
Caspar piscou para o amigo.
Caspar: Você é o cara.
Jack suspirou, já não aguentando mais aquela história.
Jack: O nome do programa é Jack-As. Não Jack-As-Poeta.
Poeta: E por que não?
Jack: Dã?! Porque é um nome idiota.
Caspar interveio, em seguida, limpando a garganta para tomar a palavra.
Era Jack quem sempre ficava com o gravador na mão, então ele que tinha
que ir até ela. Apontou para Poeta.
Caspar: Nosso primeiro convidado de hoje é um jovem cuja voz ainda
transita na puberdade. Olhos vermelhos nortistas e cabelos espetados, o
nome de Poeta é o maior mistério dos onze mares.
Poeta: Na verdade, meu nome é...
Caspar: E tem mais! Nosso rapaz tem novidades esta semana, certo?
Poeta fechou a expressão ao cerrar a boca.
Poeta: Eu não tenho permissão para compartilhar os planos de rota fora
da cabine do capitão.
Jack bufou.
Jack: Ah, qual foi, Poeta. Deixa de ser careta.
O garoto suspirou, já imaginando a bronca que levaria.
Poeta: Tá..., mas só uma dica rápida.
Mas logo se entusiasmou.
Poeta: Estamos prestes a mergulhar em uma aventura nas águas
misteriosas do Mar Oculto. Só piratas de grandes nomes já se aventuraram
por lá. É... sim, eu estou falando de Calico Jack, senhores. O primeiro e
único Kingikai.
O moleque dos mapas calou-se. Jack e Caspar entreolharam-se,
confusos, esperando pelo resto da história, que nunca veio. Poeta deu de
ombros e arrumou a boina.
Poeta: Ah, é só isso que eu posso contar.
Os dois bufaram. Jack tossiu.
Jack: Trouxa. Algum recado a mais que queira dar para seus fãs do Jack-
As?
Poeta: Não comam o bolinho de polvo do Molenga nesta semana.
Fez uma careta e o corpo estremeceu com um arrepio.
Poeta: Aquilo com certeza não é polvo...
Caspar: Tudo bem.
Caspar tomou a palavra, já empurrando Poeta para fora da sala.
Caspar: Esse foi nosso adorado Poeta, o garoto sem nome!
Poeta: Na verdade, eu...
E o moleque dos mapas foi deixado do outro lado da porta. Caspar
espreguiçou-se e sentou novamente na cadeira ao lado de Jack.
Caspar: Jacqueline, quem é o nosso próximo convidado?
Jack tomou a palavra como se fosse uma verdadeira apresentadora.
Jack: Então, Cas. Nas últimas semanas, o Nadia Keane foi surpreendido
com mais um tripulante ainda não oficial. E tem mais... é uma princesa!
Dimitri foi o próximo a entrar, completamente desavisado da tragédia
que estava prestes a enfrentar.
Dimitri: E aí?!
Caspar: Dimitri, o náufrago! O que tem para nos contar sobre suas
primeiras semanas a bordo?
Dimitri: É...
Jack puxou o queixo do rapaz em sua direção.
Jack: Fala para o gravador, mané.
Dimitri, o garoto de poucas palavras, sabia exatamente o que responder.
Estreitou os olhos.
Dimitri: O que falar sobre o Nadia Keane... a comida se mexe, as camas
também e alguns marujos são mais encrenqueiros que outros.
A timoneira fechou a expressão, entendendo a indireta. Ela sabia que
aquilo tinha a ver com a corrida deles até o topo do mastro. Mesmo que eles
já tivessem se entendido, a competição entre os dois era perceptível a
quilômetros. Dimitri não daria o braço a torcer, muito menos ela. Agora é
pessoal, pensou Jack. Caspar, que obviamente não havia sentido a tensão no
ar, deu uma cotovelada para chamar a atenção do colega.
Caspar: Tem certeza de que você não é um desses encrenqueiros, Dimi?
Fiquei sabendo por fontes anônimas que você causou bastante confusão no
pouco tempo que esteve com os Saqueadores da Barra.
O novato lançou mais um olhar para Jack. Ela não desviou. Não deixaria
Dimitri ganhar, nem naquele momento nem nunca.
Dimitri: É, pode ser.
Dimitri deu uma leve risada.
Dimitri: o capitão não foi muito com a minha cara, mas tudo bem. Não é
com ele que estou preocupado. Tem alguém aqui dentro que é um desafio
muito maior para mim do que o próprio Patrick Hall.
Caspar logo alegrou-se.
Caspar: Eu adoro uma briga! Fala quem é, vai.
Dimitri respirou fundo e deu de ombros.
Dimitri: Ah, é uma cabeça dura.
Caspar: Não quer contar... deve ser uma garota.
O loiro coçou o queixo, suspeitando. Então, deu um pulo.
Caspar: Espera um pouco, NÃO É A KIM, É?!
Foi a vez de Dimitri dar um pulo na cadeira. De repente, suas bochechas
queimaram de vermelho, e suas mãos começaram a suar. Tentando
desconversar, sua voz falhou.
Dimitri: Quê? C-claro que não. Que ideia...
Coçou a nuca, pensativo.
Dimitri: Ela por acaso vai ouvir essa conversa?
Jack mordeu a língua e caminhou decidida até a porta.
Jack: Na verdade, ela já ouviu. Nossa próxima convidada, Kimberly, a
contramestre! Pode entrar, Kim.
A porta do quarto abriu e uma Kim emburrada e sarcástica, como
sempre, adentrou. Caminhava com o queixo alto e olhava para todos de
baixo. Então mirou no criado de bordo e arqueou as sobrancelhas.
Kim: Quer dizer que você me acha uma cabeça dura, é?!
Só faltou sair fumaça da cabeça do garoto de tão quente que ele estava,
ardendo em vergonha.
Dimitri: Não era de você que eu estava falando...
Jack revirou os olhos. Pessoas apaixonadas são tão otárias, pensou, então
puxou Dimitri da cadeira e o empurrou para fora do quarto.
Jack: Vai, princesa, se manda. Só pode um convidado por vez e seus
hormônios inquietos estão me dando nos nervos.
E fechou a porta.
Kim sentou-se na cadeira e cruzou as pernas, impaciente, enquanto
enrolava um de seus cachinhos ruivos com os dedos.
Kim: Vamos logo com isso. Quanto mais cedo vocês abrirem a boca,
mais cedo eu me livro desse programa idiota.
Caspar apertou os punhos, incomodado.
Caspar: Opa, espera aí. Quem você chamou de idiota?
Kim: Ninguém. Mas se o chapéu serviu...
Caspar: O Jack-As é uma obra-prima, Kimberly. Quem você acha que
mantém esse bando de marujos moribundos informados sobre as notícias?
Kim: Zuca?
Era a resposta mais óbvia. E não deixava de ser verdade. Caspar estava
prestes a entrar em parafuso.
Caspar: NÃO, sua ignorante! Os informantes do submundo, nós. É
nossa chance de formar nome no mundo da pirataria e, quem sabe, até
ganhar uma coluna só nossa no Faroleiro?
Kim cuspiu uma risada.
Kim: “O Faroleiro”, jornal pirata mais mentiroso do Sul?
Jack tomou a frente, confiante de suas ideias.
Jack: Isso mesmo. O dia em que chegarmos lá, você vai engolir nossa
poeira.
Fez um bico com a boca e trocou um toque de mão no ar com Caspar.
Jack: E falando em informante... parece que o capitão está atrás do
responsável por vazar informações nossas a John Kirk. Algum avanço com
isso?
A contramestre sorriu de canto e levantou da cadeira, alongando as
costas, em seguida.
Kim: Não passo informações confidenciais do Fronte para meros criados
de bordo.
Caspar: Ei, mas...
Kim: E nem tente me persuadir como fez com Poeta. Eu não caio no seu
charme... pelo visto, parece que vou ter que participar do episódio da
semana que vem e contar o resto para vocês.
E direcionou-se para a porta de saída. Jack acompanhou-a, com o
gravador em mãos e sem desmanchar a personagem apresentadora. Jack era
muito profissional de acordo com ela mesma.
Jack: Mal podemos esperar! É isso por hoje, obrigada por
acompanharem o Jack-As desta semana, marujos. A-hoi!
Kim bateu a porta e a timoneira suspirou, dando um fim à gravação. Ela
torcia para que aquela geringonça do Poeta tivesse captado o episódio
inteiro. Enquanto isso, Caspar babava em um canto, sentindo-se
convencido.
Caspar: Então, ela percebeu o meu charme...
Jack fez uma careta.
Jack: Com certeza é o perfume barato.
Caspar cheirou a axila e fechou a expressão, correndo para atacar Jack,
que fugia em círculos, rindo.
Caspar: Ei! Eu paguei trinta coroas pelo frasco, tá?! É de marca.
INFORMANTE DOS ONZE MARES

20

AQUELE QUE É O CULPADO

28 graus Sul, 75 graus Leste. Nadia Keane.

Diga “rubi”.
— RUBI!
Os dias passavam-se lentamente a bordo do Nadia Keane. Desde a volta
de Calamari e a inesperada aparição de John Kirk, uma nuvem de tensão
pairava sobre os marujos. Tamanha tensão que só poderia ser quebrada por
uma sessão de fotos entre Poeta e Cesco.
Poeta esperou o filme da câmera sair pela fenda de cima. Ele mesmo
construiu aquela maravilha da ciência com os materiais que tinha no seu
estoque. Em seus anos de convivência com Senhor Donvar, o homem que
praticamente o criou, Poeta havia estudado todo o tipo de coisa, inclusive a
genialidade das máquinas que capturavam imagens e congelavam o tempo
para sempre. Ele era maravilhado por elas. Balançou o filme no ar, até que a
imagem de um Francesco sorridente aparecesse na superfície.
— Olha só! Você se saiu muito bem nessa.
Cesco, contente, pegou a foto nas mãos.
— Sabia que tinha feito um bom negócio comprando esse dente de ouro!
— Só falta perder um dente para colocá-lo no lugar — brincou Poeta,
arrependendo-se em seguida.
A sessão de fotos ocorria em um canto do convés ao lado do depósito da
proa. Apa, com ajuda de Ted, havia montado um toldo improvisado, pois,
de acordo com Poeta, se o filme da câmera fosse exposto à luz, queimaria.
Como nenhum deles tinha sequer conhecimento no assunto, resolveram
acreditar no garoto. E a fila que se estendia era enorme. Pelo visto, todos
queriam uma foto tirada pelo Poeta. Dimitri observava tudo atrás de Caspar,
que esperava sua vez chegar. Não sabia exatamente o que estava fazendo
ali, mas como havia recebido ordens para participar, não havia questionado.
Cutucou o colega.
— O que está rolando?
Caspar virou a cabeça para trás e sussurrou de volta:
— Poeta está renovando as fotos da tripulação para o diário de bordo
dele. — Sorriu animado. — Ah, é minha vez!
— Tá, mas e...
— Vai ter que perguntar para o “senhor pérolas brancas” ali. — Caspar
apontou para trás de Dimitri e correu para dentro do depósito de proa.
Dimitri nem precisou se virar para saber de quem o rapaz da pólvora
estava falando. Respirou fundo e direcionou-se para Dante e seu sorriso
alinhado demais.
— Dante — chamou, mas parece que Dante estava ocupado demais para
ouvir. Ele estava assoviando. Dimitri bufou e chamou-o de novo. — Ou,
Dante!
O montador parou a melodia, de repente, e voltou seus olhos para baixo,
abrindo um largo sorriso. Tão largo que Dimitri tinha certeza de que era
aquilo que estava fazendo sombra em seu rosto.
— Ah. Oi, rapazinho! Nem tinha visto você aí. Tão pequeno...
— Sei — o rapaz respondeu cerrando os dentes. — Escuta, por que estão
nos chamando para dentro daquela sala?
Dante olhou para o depósito da proa.
— O capitão convocou Zuca para interrogar os tripulantes.
Dimitri juntou as sobrancelhas, confuso.
— Interrogar?

28 graus Sul, 75 graus Leste. Depósito da Proa.

E Caspar, aparentemente, foi pego de surpresa.


— Vamos começar. Caspar’O'Connell. — Anotou.
O rapaz da pólvora, com as mãos inquietas nos joelhos, estava sentado
de frente para o imediato, que tinha uma prancheta no colo. Parecia sério
como sempre.
— Informações confidenciais foram vazadas, e achamos que um
informante de John Kirk estava na festa de Winikeneke naquela noite.
Primeira pergunta: com quem você teve contato?
Caspar repassou a noite inteira na cabeça, mesmo sem precisar. Ele
lembrava de cada detalhe. De cada detalhe de Aran. Então percebeu do que
aquilo se tratava. Era um interrogatório. Qualquer pessoa estranha que ele
tivesse encontrado seria um suspeito em potencial. Em seu coração, sabia
que Aran não tinha nada a ver com aquela história, mas talvez seu
subconsciente estivesse em dúvidas, pois suas mãos começaram a suar
descontroladamente. Ele entrou automaticamente no modo “enrolação”.
— Contato... o que você quer dizer, que tipo de contato? Contato físico,
químico? Porque se for isso, eu não beijei ninguém.
Zuca fungou o nariz.
— Com quem você falou naquela noite?
O rapaz da pólvora coçou a cabeleira, tentando ganhar tempo, sem
parecer que estava fazendo um esforço enorme para pensar em alguma
desculpa.
— Acho que com... — Fez uma careta. — Ah, sei lá, Zuca. Acha que eu
fico contando na mão todo mundo que vem falar comigo? Já passei dessa
fase.
Zuca revirou os olhos.
— Muito popular você... — Anotou alguma coisa.
Caspar alongou o pescoço para a frente em uma tentativa de ler, mas não
teve muito sucesso. Zuca logo retomou a palavra.
— Lembra de ter ouvido algo suspeito ou falado alguma coisa que
pudesse insinuar sua identidade de Saqueador da Barra? — perguntou.
Sou um mero rapaz da pólvora, Caspar repassou o diálogo em sua
cabeça.
Ah, então temos um pirata aqui? De que embarcação você é?
Nadia Keane, senhorita.
Quer dizer que estou diante de um famoso Saqueador da Barra?
Eu não diria famoso...
O corpo de Caspar gelou. DROGA!, xingou-se, silenciosamente. Tudo
bem, aquilo era explicitamente uma insinuação à sua identidade. O garoto
tentou controlar a respiração, mas as palavras saíram um pouco engasgadas
ao responder:
— Não, senhor.
Zuca levantou uma das sobrancelhas.
— Certeza?
Caspar deu um sorriso amarelo e bateu com o indicador por cima da
bandana.
— Minha memória não falha.
Mas o imediato não era burro. Não era na desconversa de um
adolescente que ele iria cair. Anotou mais alguma coisa.
— E o que você estava fazendo na praia sozinho?
— Hã... sabe, Zuca. Eu estava — começou, gesticulando as mãos.
Suas cartas na manga haviam acabado, era hora de partir para o golpe
baixo.
— Você sabe... — Caspar mexeu as sobrancelhas. — Com uma garota.
Zuca fez uma careta ao entender o recado e balançou as mãos no ar.
— Tudo bem, eu já entendi. Poupe-me dos detalhes, pode se mandar
daqui.
Caspar levantou-se da cadeira, cumprimentou o imediato e saiu do
depósito da proa quase desmaiando de tanto ar que ele tinha esquecido de
respirar durante o interrogatório. Pelo menos, agora estava tudo bem.
Por enquanto.
Dimitri foi a próxima vítima de Zuca. Adentrou o cômodo, pequeno
demais para o imediato, e sentou-se na cadeira livre em sua frente. Não
entrava ali dentro desde o dia em que acordou, de repente, no Nadia Keane,
sem suas memórias. Para ele, aquele lugar era referente à sua estaca zero.
Afinal de contas, era.
— Nome e sobrenome, por favor — pediu o imediato, sem tirar os olhos
da prancheta. Ainda escrevia observações sobre Caspar.
— É... Dimitri e só Dimitri, por enquanto.
Zuca levou um susto e levantou a cabeça rapidamente para o garoto,
sentindo-se quase que envergonhado pelo vexame.
— Ah, perdão, rapaz. Não vi que era você.
Dimitri riu. Para ele era quase engraçado. O garoto sem nome.
— Tudo bem. Sem problemas, grandão.
— O que disse?
— Nada não.
O imediato segurou uma risada e arrumou a posição do corpo para tentar
aliviar sua dor nas costas. Então limpou a garganta.
— Primeira pergunta. Quero que seja o mais sincero possível, está bem?
— Beleza.
— Com quem você esteve na festa de Winikeneke?
O novato respirou fundo ao pensar. A taverna estava lotada, havia feito
contato visual com muitas pessoas, mas não achou que seria necessária uma
lista de contatos secundários como esses, mesmo que lembrasse de cada
um. Zuca ficaria entediado em segundos. Soltou o ar e deu de ombros.
— Fiquei a noite inteira com Poeta e Jack na mesa de apostas.
Ameaçamos uns bárbaros e eu comprei briga com um moleque riquinho
metido a besta.
Zuca levantou os olhos, impaciente.
— Eu gostaria que levasse a sério esse interrogatório.
Dimitri deu de ombros.
— Eu estou.
— Está bem... — anotou em sua prancheta. — Lembra de ouvir algo ou
falar alguma coisa que insinuasse a presença dos Saqueadores da Barra?
Dimitri parou para pensar. Ele não se considerava um Saqueador da
Barra e não se sentia como um. Portanto, era improvável que tivesse feito
algum comentário do tipo. Mas, então, lembrou do seu arrependimento.
Levou o polegar e o indicador ao rosto e esfregou os olhos.
Argh.
— Eu disse meu nome para o maldito. Não acho que tenha sido grande
coisa, apesar de eu me arrepender.
Zuca deu uma risada abafada.
— Aprendemos com os erros, rapaz — anotou uma última coisa, antes
de deixar a prancheta de lado. — Certo, está liberado.
O novato fez uma careta.
— Já?
— Você respondeu a todas as perguntas, não respondeu?! E sua história
foi confirmada por Jacqueline hoje mais cedo.
Respirou fundo e se levantou da cadeira calmamente.
— Beleza.
— Pode passar para a tenda ao lado e tirar a foto — disse, riscando algo
no topo de sua prancheta.
Dimitri virou-se para a porta e estava prestes a sair, quando a voz grave
de Zuca cortou sua passagem instantaneamente.
— Ei, garoto — chamou e suspirou. — Fique atento.
Aquele comentário bateu diferente no peito de Dimitri. Era quase como
um alarme para uma ameaça fantasma. “Fique atento.” A tudo e a todos, era
o que ele queria dizer. Escondendo o olhar por baixo da franja, puxou um
sorriso nos lábios e olhou para Zuca.
— Uma pena.
O imediato franziu a testa confuso. Dimitri apontou com a cabeça para a
prancheta.
— Ter que riscar o nome do suspeito número um da sua lista.
Abriu a porta e retirou-se, deixando toda a ansiedade tomar conta. Por
fim, lá estava ele de novo. Na sua estaca zero, sozinho, no escuro. “Fique
atento.”
Mais uma vez, o recado era claro.
Nunca confie em outro pirata.

28 graus Sul, 75 graus Leste. Cabine do Capitão.


Nunca confie em outro pirata. Principalmente em um navio onde há
olhos e ouvidos em cada tábua de madeira que constitui a embarcação.
Cada prego, cada parafuso. Os olhos que observavam Dimitri através da
janela de vidro eram cinzentos como um mar envolto por neblina.
— Quero que fique dia e noite com aquele ali no seu campo de visão.
Kim, que mantinha os braços cruzados logo ao lado de seu superior,
parecia um tanto incomodada com a decisão.
— Não acha um pouco exagerado, senhor? Eu também não confio nele,
mas acho que você pode estar indo longe demais.
Patrick Hall não desviou o olhar. Apenas inspirou profundamente. Então,
suas palavras saíram serenas, apesar de carregarem ódio em cada uma das
sílabas.
— Kimberly. Um estranho aparece no nosso navio em alto-mar e,
semanas depois, informações confidenciais são vazadas para nosso rival
número um. — Expira, embaçando o vidro da janela. — Não acho que seja
mera coincidência.
Por fim, virou-se para a contramestre.
— Podemos estar lidando com um espião da marinha, portanto, faça o
que eu mando.
Kim engoliu em seco e assentiu com a cabeça.
— Farei, capitão.
21

MARCA DE NASCENÇA

Antes que Dimitri pudesse sequer arrumar o traseiro na cadeira, Poeta já


estava com a câmera na mão.
— Diga “rubi”.
— Quê?
E antes que pudesse perceber, uma rajada de luz cegou-o
momentaneamente.
— AHH! O QUE FOI ISSO?
Não era todo mundo que estava acostumado com a tecnologia de Poeta.
O moleque dos mapas esperou o filme sair e balançou-o para ver o
resultado. Fez uma careta.
— Aff, Dimitri. Era para ter dito “Rubi” e não “AHH”.
Dimi não estava nem prestando atenção. Seus olhos azuis estavam
lacrimejando por baixo das mãos que esfregavam as pálpebras. Poeta
retirou uma segunda foto e entregou-a ao colega.
— Toma, fica uma para você. Se não gostar, azar o seu. Só ano que vem
de novo.
— Mas...
— Anda logo! — Puxou impaciente o rapaz da cadeira e jogou-o para
fora da tenda. — PRÓXIMO!
Pelo visto, até Poeta irritava-se com o trabalho de vez em quando.
Ainda sem enxergar, não foi surpresa a quantidade de vezes que Dimitri
tropeçou até chegar aos dormitórios.
— AH!
E caiu de queixo no chão, fazendo tudo ao redor estremecer. Droga,
xingou a si mesmo. Pelo menos estou sozinho, ninguém viu essa palhaçada.
Ajoelhou-se para ganhar impulso e levantou-se, ainda um pouco atordoado.
Deitou-se na rede mais próxima. Seus olhos começavam a voltar ao normal,
apesar de ver pontos pretos em todo lugar.
— Esse pessoal é maluco...
Então percebeu a foto em suas mãos e relembrou o dia em que viu seu
reflexo no oceano. Aquele Dimitri não tinha mudado muito por fora, mas
algo por dentro o fez rir. O garoto em sua frente fazia uma careta, de olhos
semicerrados, como se estivesse prestes a espirrar. Minha primeira
fotografia, pensou e não deixou de sorrir. Minha primeira fotografia...?
— Cara, você é feio. — Riu sozinho.
Aproveitando a calmaria, deitou com a cabeça para trás e tapou os olhos
com o antebraço. Ele poderia finalmente tirar um cochilo silencioso longe
dos marujos barulhentos do Nadia Keane. Nem perceberiam sua falta, ao
menos por apenas quinze minutos. Era o mesmo tempo que Molenga
passava no banheiro.
E Dimitri teria conseguido, se não fosse por...
— Falando sozinho, princesa?
... Jack, A Maldita.
O garoto destapou um dos olhos apenas para ver o que ele já imaginava
que veria. Jack estava pendurada em uma das vigas do teto de madeira.
Dimitri bufou e voltou a prensar o braço contra as pálpebras. Mas a
timoneira era de uma insistência a ser contemplada.
— Eu falei com você, mané — chamou.
Sem olhar de volta, Dimitri resmungou.
— Não devia estar conduzindo o navio para evitar nossa morte ou coisa
parecida?
Jack riu. Ela gostava da audácia do novato.
— Ou coisa parecida. — Pulou das alturas, caindo com os pés
perfeitamente equilibrados no chão. — Zuca me deu uma folga, enquanto
interroga os Saqueadores.
Aproximou-se da rede e viu a foto posicionada em cima do abdômen
magro de Dimitri. Agarrou-a com um só movimento surpresa.
— Nossa, você é bem feio.
— Cala a boca — respondeu o garoto, recuperando a foto para si.
Jack encostou-se no poste de madeira que sustentava a rede do rapaz. A
maioria ali tinha sido construída por Apa e Jack, mas projetadas pelo
próprio Poeta. Ele fez muitas mudanças desde que chegou. O suporte das
redes havia sido desenhado para servir à praticidade do dia a dia e à higiene.
Não que piratas se importem com isso, mas enfim. Todos os suportes
possuíam uma alavanca ao lado.
Jack suspirou e cruzou os braços.
— Parece que as reuniões com o capitão Hall terminaram ontem à noite
— disse.
— Quer dizer que vamos atrás do tesouro agora?
Uma alavanca com um simples propósito. E Jack adorava usá-la ao seu
favor. Puxou-a, fazendo a rede fechar e Dimitri cair sentado no chão.
— Ouch.
— Quer dizer, novato, que Hall vai nos passar o plano em breve, assim
eu posso traçar a rota. Vai nos dividir em grupos e tarefas para, então, irmos
atrás do tesouro.
— E precisava disso? — perguntou o garoto, esfregando o traseiro.
Jack escolheu ignorar.
— ...isso se ele encontrar o informante.
De repente, o ar do cômodo esfriou. Nem tanto, afinal um cômodo com
Jack era sempre caloroso, mas Dimitri sentiu a mudança.
— Quem você acha que é? — perguntou, levantando.
A timoneira riu. Sua voz tinha um tom instigante.
— Se eu soubesse, acha mesmo que eu contaria a você? Se pensa assim,
tem muito ainda o que aprender.
Nunca confie em outro pirata. Aquelas mesmas palavras ecoavam na
cabeça de Dimi, como se fossem parte da música de um carrossel. Respirou
fundo e escorou-se ao lado de Jack.
— Talvez você tenha razão...
A garota arqueou uma sobrancelha, convencida.
— Eu sempre tenho razão.
Foi a vez de Dimitri ignorá-la.
— ...mas não pretendo ficar aqui por muito tempo para aprender. Só
estou fazendo o que é preciso para sobreviver, até restaurar as minhas
memórias.
Jack calou-se por um instante, surpresa.
— E quando isso acontecer, vou dar o fora.
Algo em Dimitri a fazia se questionar sobre o mundo.
— E depois? — perguntou, pensativa. — O que pretende fazer?
Dimitri deu de ombros e sorriu no canto dos lábios.
— Até lá eu dou um jeito de descobrir.
E ele sempre a surpreendia. Sempre. De certa forma, Dimitri deixava
Jack sem defesas. Ela se preparava para um ataque, e ele contornava o
campo de batalha. Toda vez. Frustrante. Essa era a palavra. A timoneira
estreitou os olhos e analisou o colega de bordo.
— Você é estranho.
— Você sempre elogia assim?
— É diferente de todo mundo que eu já conheci.
Foi a vez do garoto se calar, surpreso. Jack passava seus olhos por todo o
rosto de Dimitri, o que o deixou sem ar por um momento. Recuou.
— Não sei explicar — ela falava, mais para si do que para ele. — Eu não
consigo tirar nenhuma informação de você. Eu simplesmente não sei, é...
frustrante.
E Dimitri não podia deixar aquela oportunidade passar batida.
Aproveitou o momento para frustrá-la mais um pouquinho. Levantou as
sobrancelhas.
— Ah, então eu a deixo frustrada?
Jack revirou os olhos e deu um soco no ombro do garoto.
— Não se ache tão especial. Como você mesmo disse, é questão de
sobrevivência. Conheça seus inimigos.
Aquela era a segunda regra de Jack. Por isso a deixava tão irritada não
saber nada sobre o novato. Sobre suas armas, mas sobre suas fraquezas
principalmente. Era como uma folha em branco.
De repente, um momento retornou para a memória de Dimitri. Uma
pequena fração do tempo de duas semanas antes. E lá estava ele, ao lado de
Kim, que afiava suas lâminas nas sombras. “Você ainda é um mistério e
Hall vê isso como uma ameaça”, repassou as palavras em sua cabeça. Ele
ainda não entendia o significado verdadeiro delas. Conheça seus inimigos...
A timoneira analisou-o da cabeça aos pés, o que não era novidade
nenhuma para Dimitri. Desde que ele havia chegado ao Nadia Keane, era
algo comum entre os marujos fazer isso com ele. Mas Jack era mais
atenciosa aos detalhes. E mais audaciosa também. Levantou as mãos e, sem
hesitar, levou-as até o rosto de Dimitri. Por alguma razão, ele não tentou se
defender. Quando se dera conta, ela já o tinha desarmado. Aqueles olhos
verdes nunca estiveram tão próximos. Seus dedos desenharam todas as suas
linhas de expressões, passando pelas sobrancelhas grossas, as pálpebras, os
lábios... até pousarem em suas maçãs do rosto.
— Sempre teve isso?
— O quê?
— Essas marcas em preto...
Ela estava muito próxima.
— Eu perdi minhas memórias, esqueceu? — respondeu, desconfortável.
Jack fez uma careta, o que fez com que o garoto desviasse os olhos.
— Sei lá... acho que sim.
A timoneira desenhava-as com a ponta dos dedos. Eram pequenas linhas,
que formavam um desenho quase enigmático debaixo de um dos olhos.
— Parece algum tipo de pintura ou marca de nascença — pensou em voz
alta. Então uma ideia surgiu em sua cabeça e ela se afastou pondo as mãos
na cintura. — Princesa, que tipo de ladrão era você para ter ganhado uma
dessas?
O tom de voz alto e sarcástico, tão repentinamente, confundiu Dimitri.
Mas as palavras o deixaram intrigado.
— Você acha que eu era um ladrão?
— Homem do mar que você não era.
Dimitri ficou incomodado com a afirmação, afastando-se.
— Posso estar enganada, mas, bem antigamente, logo depois da Grande
Guerra, os prisioneiros de guerra eram marcados no rosto para os guardas
saberem que eles seriam condenados.
Um calafrio percorreu a espinha do rapaz.
— ...você acha que eu era um prisioneiro condenado?
— Ou é uma marca de nascença bem esquisita — brincou, arregalando
os olhos.
— ONDE ESTÁ A TIMONEIRA?
A voz de Zuca ecoou do convés aos dormitórios pelas grades no teto.
Aquilo foi o suficiente para trazer os dois jovens de volta à realidade. Jack
suspirou e ajustou seu cinto.
— Parece que o dever me chama.
— Para evitar nossa morte ou coisa parecida?
Jack riu da brincadeira.
— Ser pirata é um risco constante.
Por fim, colocou seu chapéu de três pontas no topo da cabeça. Ela
parecia ter nascido para usá-lo. Então lá se foi Jack, a timoneira, correndo
em direção às escadas para cumprir com seus deveres. Salvar vidas ou coisa
parecida. Dimitri percebeu o sorriso murchar, ao ficar sozinho. A garota
tinha implantado em sua mente uma dúvida na qual ele nunca havia nem
sequer se perguntado sobre. Olhou mais uma vez para sua foto e levou os
dedos ao rosto, desenhando o contorno das marcas misteriosas.

5 graus Sul, 68 graus Leste. Convés do Nadia Keane.

Caspar estava a milímetros de distância de Dimitri. Quem olhasse de


fora, talvez tirasse conclusões precipitadas. Ele estreitava os olhos e sua
visão percorria todo o rosto do novato, não deixando escapar nenhum
detalhe.
— O que você acha? — perguntou Dimitri, evitando contato visual.
Caspar coçou o queixo, afastando-se.
— Ah, ela só estava tentando assustar você. — Deu de ombros. — Isso
daí não é nada. Pode ser uma dica de quem é a sua família.
— Ah é? — Os olhos de Dimi brilharam por um instante.
— Claro! — Caspar deu uma mordida em seu pão e continuou, de boca
cheia. — Uma coisa você já sabe. Você tem sangue do Sul, porque seus
olhos são azuis. Assim como eu tenho sangue ocidental. — Apontou para as
íris douradas. — Meus avós eram de Aquatta e por lá todo mundo tem um
sinal branco de falta de melanina na pele, olha só.
O rapaz da pólvora arregaçou uma das mangas de sua camisa para
mostrar o pulso. Em sua lateral, havia uma marquinha branca e comprida de
vitiligo, que contrastava com sua pele.
— Assim como eu, essas marcas devem ser parte do DNA da sua família
— explicou.
Dimitri olhou seu reflexo na colher.
— Já viu alguém com marcas parecidas?
Caspar parou um instante para pensar.
— Não... mas tenho certeza de que elas não têm nada a ver com ladrões
ou prisioneiros de guerra.
— Tem certeza?
— Pelo menos, não mais. Isso foi há muito tempo.
— Conhece algum prisioneiro de guerra?
Uma pontada de agonia tomou conta do peito de Caspar, fazendo-o se
calar, instantaneamente. Ele não gostava de falar sobre o assunto. Para sua
sorte, antes que se sentisse na obrigação de responder, Jack, Poeta e sua
santa Kimberly chegaram à roda para jantar.
Poeta sentou-se ao lado do loiro como quase sempre fazia. As meninas
eram assustadoras.
— Ah, que dia, senhores... nada como uma noite de tacos para dormir
bem.
Caspar alegrou-se.
— Fui eu que dei a ideia para o Molenga! Para falar a verdade, não achei
que ele tivesse levado a sério.
— Melhor que os bolinhos de polvo, né, Poeta? — Jack riu.
Poeta deu uma mordida.
— Nem me fala.
E todos riram. Ted Molenga não era o melhor cozinheiro do mundo, e o
moleque dos mapas havia espalhado pelo navio inteiro o boato de que usava
ingredientes genéricos em algumas de suas receitas, depois de uma noite
inteira passando mal em sua cabine. Jack segurou a barriga para parar de rir
e suspirou.
— Mas eu concordo... ah, que dia. — Apontou a colher para Kim. — E
aí, mana. Já encontraram o informante?
Os olhares curiosos foram todos atraídos para a contramestre. Kim não
gostava de ser o centro das atenções, mas, naquela hora, ela estava em uma
missão. Tinha que manter as aparências e continuar o jogo.
— O capitão tem algumas suposições. — Olhou de canto para o novato.
Dimitri percebeu, afinal não deixava nada escapar. Eu sabia. Jack
projetou o corpo para a frente e, em seu rosto, estava estampada aquela
expressão de contadora de histórias, iluminada pelo fogo.
— Tá, mas falando sério. Quem vocês acham que foi?
Dimi espreguiçou-se e entrou na conversa.
— Eu apostaria naquele cara das 320 coroas. Esquisitão.
— Quer dizer você?
Uma onda de risadas tomou conta do convés com o comentário de Kim.
Dimitri foi o único que não riu. Pelo contrário, aquilo não tinha sido um
simples comentário sarcástico. Soava como o tilintar de uma de suas
lâminas sendo afiadas no escuro. E Kim fazia isso muito bem.
Poeta balançou a colher no ar.
— Acho que não. Se eu tivesse que apostar em alguém, seria em Bay
Timothee. Não vou com a fuça do cara.
— O Polo não foi. Ele estava ocupado demais chorando pela derrota. —
Riu Jack, deliciando-se com a memória daquela noite.
Outra pessoa estava bastante quieta também. Alguém que, geralmente, é
a razão de todos os risos. Poeta chamou pelo colega.
— Quem você acha que foi, Cas?
— Quê? — Caspar deu um pulo como se acordasse de uma soneca não
permitida. — Ah, não sei... não tive contato com ninguém não.
Kim aproveitou a deixa.
— Pensei ter ouvido você dizer que estava em um encontro. Se bem que
achei que fosse mentira mesmo.
— Eu estava sim! — E o Caspar de sempre voltou. — A Aran só teve
que ir embora mais cedo, só isso. Os pais dela devem ser rígidos.
Jack e Kim trocaram um olhar de cumplicidade. A timoneira pôs uma
mão ao lado da boca para provocar o amigo.
— Ih, isso me cheira a informante. — Deu de ombros. — Mas como
sabemos que a namorada do Caspar não existe, já que só ele consegue ver...
— Ei!
— ...vamos aos fatos: eu acho que foi alguém do Nadia Keane.
Dessa vez, os olhares foram atraídos para Jack como um ímã natural. Ela
tinha aquela mesma expressão no rosto. Aquela expressão causadora de
intrigas. E Dimitri não deixou passar batido. Lembrou-se da conversa que, a
pouco, havia tido com a timoneira.
Se eu soubesse, acha mesmo que eu contaria?, ela havia falado. O que
Jack está tramando?
Caspar parecia não ter percebido, contudo estava boquiaberto.
— Espera, mas que tipo de informação foi vazada para acharem que foi
alguém de dentro?
Kim suspirou.
— Kirk sabia que íamos a Calamari antes mesmo de chegarmos nas
fronteiras do Oriente. — Olhou para Dimitri de relance. — Ele armou tudo
para ser pego no flagra indo embora. Inclusive, tenho certeza de que foi ele
também quem roubou alguns tesouros que deixamos enterrados na ilha.
— Acham que foi algum dos Saqueadores da Barra? — perguntou
Dimitri. — Como teriam feito contato com Kirk?
E a contramestre cumpria suas ordens. Dimitri... ele não sabe mesmo?
Ou é uma fachada?, ela pensava. Enquanto isso, anotava toda a conversa,
mentalmente. Poeta coçou a cabeça.
— Bom, não seria impossível com um rádio. Não é tão difícil de se
montar um. Se a pessoa tem o conhecimento básico e os materiais
necessários...
— Ou... — Jack interrompeu, animada. — Magia das sombras.
Dessa vez, havia mais caretas confusas do que o normal. Jack continuou
a explicação, convicta do que estava dizendo.
— Ué. Vão me dizer que nenhum de você sequer pensou na
possibilidade de ser o Lars? — sussurrou. — O cara certamente tem um
pacto com o “lado de lá”, se é que me entendem.
Poeta trocou olhares com Dimitri, que trocou com Kim, que trocou com
Caspar, que trocou com Poeta. Aparentemente, ninguém estava entendendo
nada. O raciocínio de Jack era demais para esse mundo. E ela continuava a
pensar em voz alta.
— Não deve ser difícil se comunicar usando as sombras, e se...
— Chega, Jack — interrompeu Caspar. — Você bebeu cafeína demais de
novo, não é? Está endoidando!
— ...aposto que ele deu o olho dele e o do gato em troca! — continuou,
animada.
Naquele momento, só uma voz seria capaz de interromper a timoneira. E
foi essa mesma voz, grossa e imponente, que tomou conta do ar gélido da
noite.
— HOMENS, ATENÇÃO!
Patrick Hall havia pisado no convés. Foi como o tiro de um canhão e
todos se calaram imediatamente. Alguns demonstravam medo, outros
indiferença. Poeta transpirava ansiedade.
— É agora. — Mexia os dedos de hiperatividade.
— É com imenso prazer que esta noite, compartilharei com vocês os
nossos próximos passos.
E o capitão das vestes pretas sorriu.
— O plano.
22

O PLANO

Tanto seu braço direito, como o esquerdo, foram ao encontro de Patrick


Hall. Era uma das poucas situações em que Zuca não era o mais alto da
tripulação, pois o capitão encontrava-se de pé em cima das caixas de
madeira do convés, para chamar a atenção de todos. Poeta ligou um
lampião e alcançou-o ao seu superior.
Patrick Hall limpou a garganta.
— Como todos aqui devem saber, estive em reunião com o imediato
Zuca e Poeta, o capataz, nos últimos dias. Os dois foram muito prestativos,
então suponho que, aqui fora, o resto de vocês tenha sido também.
Poeta parecia muito emocionado com o elogio e orgulhoso de si mesmo
por não fazer parte do “resto de vocês”. Hall desviou o olhar para a
contramestre.
— Kimberly?
Kim, a responsável pelo trabalho do convés, bateu continência.
— Tudo em ordem, senhor.
— Ótimo.
A noite estava clara e com um ar fantasmagórico por conta da luz da lua.
Era quase como se a natureza quisesse alertar sobre o que viria a seguir. E
todos os olhos encontravam-se vidrados no homem das vestes pretas.
— Hoje pela manhã, tivemos a inspeção dos dormitórios e o
interrogatório sobre a festa problemática em Winikeneke. A noite foi longa
e eu espero que todos vocês tenham sido sinceros quanto às pessoas com as
quais conversaram e sobre o que conversaram durante nossa estadia em
Calamari. — Suspirou. — E, infelizmente, ainda não estamos certos a
respeito do informante.
— Ou a informante.
Alguns olhos curiosos, outros cansados, voltaram-se para Jack. Hall
massageou as pálpebras, impaciente.
— O que disse?
Jack deu de ombros.
— Ué?! Quem disse que não foi uma mulher?
Hall suspirou. Não estava com cabeça para entrar em discussões sobre
sexismo, pois sabia que perderia, principalmente, tratando-se de Jack.
— Quanto ao informante, quem quer que seja — corrigiu-se, cansado —,
mas enfim. Estamos engavetando o caso, por enquanto, pois temos
objetivos mais importantes a cumprir. Noite passada, terminamos de montar
o plano e quero pô-lo em prática ainda hoje.
Caspar cuspiu um riso desaforado e aproximou-se do ouvido de Dimitri
que estava ao seu lado.
— Aposto que Zuca e Poeta fizeram o trabalho todo. Ele deve ter
passado esse tempo todo na banheira particular dele, enquanto a gente
trabalhava feito porcos aqui do lado de fora.
Antes que Dimi pudesse ter qualquer tipo de reação à brincadeira do
colega, ambos foram surpreendidos por um ataque certeiro. Kim agarrou as
orelhas dos pivetes e torceu-as.
— AIII!
— EI, calma aí! — eles reclamavam.
— Calados — a contramestre rugiu. — O capitão está falando. Querem
que eu dê o verdadeiro relatório do trabalho de vocês a ele? Aposto que os
dois molengas não durariam nem mais uma semana aqui. — E mirou os
olhos no novato. — Se soubesse que estavam tirando cochilo fora de hora.
Dimitri estreitou os olhos. Como ela sabia?
— Você anda me seguindo?
E Kim levantou as sobrancelhas.
— Quer mesmo descobrir?
— Aiii, e você é uma gata, sabia?!
A contramestre soltou Dimi e puxou ainda mais forte a orelha do rapaz
da pólvora desaforado, em seguida, jogando-o em direção ao chão. Não era
preciso muito para ver que aquilo tinha doído um bocado. Dimitri foi ao
encontro do colega para ajudá-lo a levantar.
— Você está bem?
— SILÊNCIO!
A voz de Patrick Hall soou como um trovão e seus olhos injetados de
raiva eram os relâmpagos que seguiam um percurso em linha reta até
Dimitri. Empunhou a espada e abriu caminho ferozmente por entre a
tripulação.
— Impostor — bufou. — Quer brincar de ser o capitão, agora?
Dimitri sentiu o sangue ferver, mas manteve a calma ao se virar para seu
superior.
— Não, senhor. Eu estava...
— Ahá! E ele ainda tem colhões para responder, marujos.
Os Saqueadores da Barra deram gargalhadas. Não estavam muito
acostumados a terem alguém com a coragem de Dimi por ali, portanto, não
eram muitas as vezes que presenciavam alguém indo contra o capitão.
Achavam que era burrice. Mas Hall foi o primeiro a parar de rir. Com um
gesto, levantou a mão ao ar, obrigando todas as vozes a cessarem e o
silêncio a reinar novamente. Fechou a expressão e caminhou até seu alvo,
rondando-o como um leão, passando por seus lados e costas.
— Língua solta... — sussurrou no ouvido do garoto, por trás —, era bem
o que eu esperava de um informante.
E chutou-o. Dimitri sentiu o golpe certeiro por trás do joelho, o ponto
fraco de qualquer ser humano. Perdendo o equilíbrio, caiu no chão,
apoiando-se com as mãos em um reflexo rápido. Hall agarrou o rapaz pelos
cabelos e virou-o bruscamente para sua direção, sem piedade. Então levou
sua outra mão, com a adaga, para perto de seu queixo.
— Talvez eu devesse cortá-la fora.
A lâmina dançava pelo rosto de Dimitri, querendo tocar em sua língua.
Mas aquela humilhação ele não passaria. Já estava de joelhos e aquilo era
tudo que Patrick Hall conseguiria tirar dele. Sem hesitar ou ter pena, usou
as armas que tinha, dando uma cabeçada na testa do capitão, que gritou de
dor e caiu para trás. Dimitri levantou, cambaleando de tontura por conta do
golpe, e distanciou-se aos tropeços. Apesar disso, ele sorria.
— Já entendi — começou, recuperando o fôlego. — É muito mais fácil
culpar o novato, aquele que você odeia e tem todas as razões para matar, do
que alguém da sua própria tripulação.
Patrick Hall rosnou.
— Ora seu...
— Você sabe que não fui eu. — Dimitri levantou a voz e abriu os braços,
em tom sarcástico. — Vá em frente, Patrick Hall! Me mate, se é o que você
tanto quer. Mas saiba que você ainda terá um traidor entre vocês.
Os Saqueadores da Barra estavam estáticos, e os burburinhos
começavam a tomar forma. Hall não podia perder o controle de seus
subordinados. Isso não, afinal ele era o capitão. Ele era o imperador daquele
império e não deixaria um pirralho linguarudo sentar em seu trono.
Aproximou-se o mais rápido que pôde para não dar tempo algum de
ninguém à sua volta poder pensar. Nem mesmo ele. Fechou o punho com
força e deu um soco bem no rosto de Dimitri, sentindo o impacto de todos
os seus dentes chocando-se. O rapaz caiu para trás, leve como um saco de
pano. Quando tentou levantar, percebeu que tinha sangue nas mãos. Mais
uma vez. Sangue...
Lembrou do dia em que se perdeu no mar. Naquela noite, suas mãos
também estavam tingidas de vermelho. De quem era..., tentava imaginar.
De repente lembrou-se de King, tratando seus ferimentos em troca de
absolutamente nada.
Se pretende ficar aqui, é melhor respeitar as regras do capitão, lembrou
da conversa.
Não pretendo ficar. Não pedi para ser resgatado.
Dimitri estremeceu. Viu aquelas gotas rubras pingando por todo o seu
corpo, manchando o chão, manchando suas roupas, manchando sua alma.
Então sentiu algo gélido que fez com que seu queixo levantasse em direção
aos céus, revelando a tempestade contida em seus olhos.
Hall segurava sua adaga, apontando-a para o pescoço de Dimitri. Os dois
encontravam-se frente a frente em uma batalha silenciosa de egos. O
capitão não gostava de tempestades, mas aquela ele queria enfrentar, por
isso segurava um sorriso por entre os dentes.
— Não aceito petulância no meu navio e não aceito que insulte um dos
meus. — Apertou ainda mais a adaga. — Quer saber o que eu faço com
moleques petulantes por aqui?
O garoto olhou ao redor. Visualizou seus colegas de bordo, o curandeiro.
Às vezes, a vida precisa nos jogar no meio de tempestades para nos
testar, lembrou de suas palavras e sua última decisão foi calar-se. Apenas...
calar-se. Patrick Hall esperou por um bom tempo, mas nada. Simplesmente
nada saía da boca daquele rato, aquele rato de língua solta que o havia
humilhado segundos atrás. E isso, mais do que tudo, frustrava-o.
— Não vai revidar? — Balançou o corpo do rapaz. — ANDE,
COVARDE!
Assim como Hall, Dimitri não gostava de tempestades. Que ironia a do
destino, pois havia renascido de uma. Então, como a calmaria contida no
centro de um furacão… Sorriu.
— Sinto muito por ter interrompido… capitão.
Talvez fosse o sarcasmo da última palavra, talvez fosse seus nervos
descontrolados à flor da pele. Patrick Hall queria gritar de raiva, quebrar o
mundo à sua volta e todos aqueles que o encaravam chocados. Tudo por
causa de um pequeno tornado de olhos azuis em sua frente. Bufou e largou
o garoto. Acima de tudo, precisava manter a compostura e, às vezes, ele
esquecia disso. Arrumou a gola do sobretudo e limpou a garganta, voltando-
se novamente para onde havia iniciado seu discurso.
— Sem mais interrupções, criado de bordo, quero lhes apresentar a Ilha
da Barracuda.
Os tripulantes aproximaram-se, ao passo que Poeta tirava um enorme
rolo de pergaminho de dentro da bolsa. Zuca estendeu-o em cima da caixa
de madeira e todos ali puderam ver um verdadeiro mapa pirata diante de
seus olhos brilhantes. Caspar e Dimi caminharam para perto, o novato
mantendo uma distância favorável. Mesmo assim, conseguiu ver. O mapa
do tesouro, pensou, maravilhado.
Hall jogou sua adaga, cravando a ponta bem em cima de um pedaço de
terra em alto-mar.
— Aqui. — Apontou.
Lá havia uma ilha desenhada em um formato que lembrava vagamente
uma concha. Ao seu redor, estavam estampadas figuras de monstros
marinhos. Decorativas ou não, eram de arrepiar qualquer um. Além do
mais, havia rabiscos, números, símbolos e coordenadas por todo o papel.
Em cima da ilha, vários locais específicos encontravam-se marcados em
vermelho, com um “x”. Outros eram linhas pontilhadas que indicavam
trilhas.
Hall retomou a palavra:
— Bay Timothee foi quem passou as coordenadas. Ele alega que John
Kirk escondeu o tesouro em algum lugar da ilha.
Jack olhava atentamente ao mapa. Seus olhos verdes brilhavam ainda
mais, iluminados pelo lampião em sua frente.
— Faz alguma ideia de onde é?
— Não exatamente.
O imediato Zuca tomou a frente.
— Fizemos algumas pesquisas sobre a ilha e marcamos alguns pontos
estratégicos onde os Chapéus Verdes possam ter escondido o baú.
— Mas nada concreto — Patrick Hall interrompeu. — Teremos que
explorar o local.
Aquilo explicava a quantidade de “x” marcados no mapa. Poeta estava
logo atrás de seus superiores e parecia inquieto para falar. Cesco, por outro
lado, estampou uma expressão de desconforto no rosto ao visualizar a ilha.
— Hã, capitão?
— Sim, almirante?!
Cesco levou os dedos nervosos até a nuca e perguntou, receoso com a
resposta:
— Essa não seria a Ilha da Barracuda das histórias, seria?
Poeta largou um grito agudo de excitação e levantou a mão, pedindo
permissão para falar. O capitão revirou os olhos, mas concedeu ao garoto.
— Prossiga.
Animado, o moleque pintor limpou a garganta, arrumou a boina no topo
da cabeça e retirou do bolso seu fiel caderninho. Então, levantou o dedo
indicador e começou a ler suas anotações.
— De acordo com os relatos dos viajantes que já foram até a Ilha da
Barracuda, sua terra leva tal nome, pois alegam que suas cavernas
submarinas são habitadas por um terrível monstro marinho sanguinário...
— Terrível e sanguinário — resmungou Caspar. — Ah, que ótimo dia
para ser um pirata.
— ...poucos dizem terem visto tal monstro, mas pessoas das ilhas
vizinhas costumam contar a lenda para assustar as crianças e incentivá-las a
manter distância. Eu não acredito em tal monstro, mas é possível que...
— Basta, rapaz — Hall interrompeu, bem a tempo de Poeta falar alguma
besteira. Já estava assustando os marujos mais do que deveria.
Poeta fechou o caderno de bolso irritado por não ter tido a chance de
terminar de falar. Odiava ser interrompido no meio de uma explicação.
Dante, que parecia acreditar bastante em histórias e relatos, levantou as
sobrancelhas e, de maneira quase teatral, apoiou-se no barril de rum.
— Capitão, sem querer me intrometer, mas temos um plano reserva caso
fiquemos frente a frente com a criatura?
Um punho bateu de encontro com o mapa, cortando a fala do marujo.
Poeta estremeceu de dor ao ver uma raridade como aquele pergaminho
sendo amassado e Dante saltou para longe, de olhos arregalados.
— Seus idiotas, a Barracuda não existe! — rosnou Hall. — Poeta está
certo, não passam de lendas para assustar as crianças intrometidas das
redondezas. Os únicos monstros que enfrentaremos serão os capangas de
Kirk.
— E lendas não são um jeito de contar histórias? Pensei que o cargo de
capitão era para controlar a tripulação de idiotas, mas, pelo visto, Patrick
Hall não passa de mais um deles.
Aquele comentário seco na noite gélida fez com que um silêncio pesado
tomasse conta do convés. Quem havia dito tais palavras era ninguém mais,
ninguém menos que Lars, o Atroz, que se escondia nas sombras.
— Os idiotas são uma espécie traiçoeira e parece que estou afundando
até o pescoço com eles. Se Hall fosse um capitão de verdade, talvez não
tivéssemos mesmo o que temer.
O velho marujo não tinha medo de seu superior, afinal já tinha lidado
com muita gente pior. Lars via Patrick como uma criança birrenta que havia
se tornado pirata da noite para o dia. Já o capitão do Nadia Keane não fazia
questão de comprar briga com um veterano do mar. Achava Lars um
insolente mal-educado, metido a fanfarrão do vodu, mas preferia manter
distância.
Patrick Hall virou-se lentamente em direção ao marujo e esfregou as
pálpebras, cansado.
— Alguma coisa a acrescentar, Lars? — Rangeu os dentes.
— Na verdade, sim. Que bom que perguntou.
O velho marujo soltou Cook, seu gato, no chão e arrumou o cinto na
cintura. Os Saqueadores da Barra estavam todos em alerta. Diferente de
quando Patrick ameaçou Dimitri, desta vez eram dois nomes fortes dos
mares, cara a cara um com o outro. Lars limpou os dentes com a ponta da
faca que levava no lugar da mão e cuspiu.
— Você compra brigas com crianças quando, na verdade, não passa de
mais uma dentro deste navio. Pior, chama Dimitri de covarde, mas o garoto
está sendo mais maduro que você.
Patrick Hall sentiu as bochechas queimarem de raiva. Ele não queria,
mas talvez, uma parte dele soubesse que aquilo era verdade. Não, brigou
consigo mesmo. Não dê ouvidos a esse paspalho.
E Lars só apreciava o show porque, desta vez, era ele quem estava no
palco.
— Hall... dizem que nem uma vida inteira de marujo lhe mostra todos os
segredos do oceano. Nem mil vidas teriam essa chance. Quinze anos no
mar, isso? Pois bem, vejamos. Eu conheço essas águas há cinco décadas. Já
vi mais do que é possível de se acreditar, já velejei pelo inferno e voltei. E,
mesmo assim, um pirralho vem querer me dizer que tal monstro como a
Barracuda não existe. — Riu. — Capitão... não minta para a sua tripulação.
Hall olhou ao redor. Todos aqueles pares de olhos esperançosos
aguardavam por uma resposta. E era seu papel manter a calma. Suspirou.
— Como eu disse, não há nada a temer.
Lars, o Atroz, soltou mais uma gargalhada antes de voltar para as
sombras de onde havia saído. O clima aliviou um pouco, mas nem toda a
tensão havia se esvaído com o vento. A tripulação parecia tentar escolher
lados, pois alguns eram fiéis ao capitão e às suas opiniões. Mas alguns
poucos corações a bordo não tinham sentido firmeza em suas palavras.
King, que nunca se pronunciava em público, sabiamente, quebrou o
silêncio, fazendo aquela pergunta que todos queriam saber:
— Qual é o plano, senhor?
Patrick Hall pareceu recuperar um pouco de suas forças. Respirou fundo
e voltou a chamar Poeta para perto de si. Dessa vez, o garoto abriu um outro
mapa, um mapa mundi de Aklas e seus quatro grandes Impérios, divididos
em continente e em arquipélago. Ali podia-se ver o Norte, o Ocidente, o
Oriente e o Sul, onde havia uma linha pontilhada que dividia o oceano entre
Altos e Baixos Mares. Ainda no Sul, lia-se o nome das cidades mais
importantes, como Hombatomba, a capital, Valinera, Sedra e Pedreira.
Outras ilhas e territórios menores não levavam identificação. Dimitri
percebeu que havia outra linha, mal desenhada, bem perto do fim do mapa,
onde havia o registro “A Cordilheira”. Logo abaixo, estava representada a
borda do mundo em uma confusão de cachoeiras.
De repente, alguma coisa pinicou no fundo de suas memórias
adormecidas como se fosse algo importante querendo ser relembrado. Dimi
sabia e podia jurar que já tinha visto aquele mapa e alguns daqueles nomes
em certo momento. Mas quando? Onde?
O capitão agarrou uma pena e um pote de tinta nanquim falsificada.
Circulou a Ilha da Barracuda no mapa mundi. Ficava nos chamados Altos
Mares, entre os reinos do Sul e do Oriente, e a linha da divisa do oceano,
localizada, mais precisamente, no meio do Mar Oculto. Algo estava
rabiscado ao seu redor, formando uma espécie de lua minguante, que
envolvia quase todo o perímetro da ilha. O que seria aquilo?
— Antes de zarparmos para o destino final, faremos uma parada
estratégica em Pedreira, rota já traçada pela nossa timoneira. Dividirei os
grupos no porto para abastecerem os estoques e diminuírem o peso de carga
extra. De volta a bordo, seguiremos o mapa, desviando da Rota do Krauk e
adentraremos o Mar Oculto. — O capitão respirou fundo. — Então temos
de estar com os olhos abertos. Essas são águas traiçoeiras e pouco
navegadas. Mas, uma vez na Ilha da Barracuda, senhores...
Um sorriso nascia nos lábios de Patrick Hall, o Impiedoso.
— ...próxima vez que o Nadia Keane encontrar o Octopus, Kirk terá uma
surpresa.
A tripulação delirou. Como sempre, Dimitri e Kim foram os únicos a não
demonstrarem comemoração. O Mar Oculto é um lugar misterioso, cheio de
armadilhas e mal mapeado, mas o capitão não parecia se preocupar com
riscos de viagem. Estava ocupado demais, deliciando-se com sua sede por
vingança.
E Lars, o Atroz, apenas ria em seu canto. Tolo..., pensava. Garoto tolo.
A gritaria estava alta e já passavam das dez horas da noite. Toque de
recolher. Kim aprontou-se para tocar o bumbo e rir do susto que todo
mundo levaria, mas antes que isso acontecesse, o próprio Hall pediu
silêncio, fazendo um gesto chamativo com os braços.
— Durmam, seus ratos imundos. Temos trabalho pela manhã.
Apagou o lampião, deixando o convés imerso em penumbra. Os marujos
conversavam e, desnorteados, tentavam encontrar o caminho para as
escotilhas. Obviamente, aproveitando a deixa perfeita, Kim soou o bumbo.
— AHHHHHH!
— Mas que diabos? O que foi isso?
— A Barracuda!!!! Protejam-se!

Algumas testas se pecharam e agora Kim poderia ter seu sono de beleza.
23

HÁ FANTASMAS NO CORREDOR

Depois de um pequeno surto coletivo causado por Kim e seu senso de


humor sádico, Patrick Hall mandou todos irem dormir, pois já estava tarde
demais para gritar em alto-mar. Os Saqueadores da Barra desceram pela
escotilha, os mais novos cambaleando de sono, os mais velhos de
bebedeira. O único que não reclamava de cansaço era Cook, o gato caolho,
que pulou para o colo do dono e encolheu-se dentro da camisa de Lars, o
Atroz. Jack fez uma careta.
— Eu hein, aquele gato deve ser um boneco empalhado ou sei lá. Por
isso não dorme nunca.
Caspar lacrimejou de sono ao bocejar.
— Ah... preciso de uma boa noite de sono.
— Boa sorte, então. — Poeta riu e abanou a mão perto do nariz. — Jonas
comeu feijão.
Caspar fez uma carta de nojo e deu uma cotovelada no amigo.
— Sai para lá, engomadinho. Vai dormir na sua cabine de primeira
classe, vai.
Os dois riram e Caspar deu um cascudo em Poeta, bagunçando todo o
seu cabelo. Então, o moleque dos mapas deu mais um “boa-noite” e
distanciou-se do grupo, indo para sua cabine. Caspar continuou a caminhar
em direção aos dormitórios, arrastando os pés e, desta vez, com o peso de
Jack jogado de cansaço em seu ombro.
— Se eu estivesse com mais energia, provavelmente mandaria você
embora — resmungou, sem tomar atitude nenhuma.
Jack esfregou os olhos e segurou no pescoço de Caspar, pulando em suas
costas.
— Ei, mulher, você se importa?
— Nem vem. Você nem tem o que reclamar, eu sou leve que nem uma
sardinha.
— Pff — cuspiu Caspar. — Qual o tamanho da sardinha?
— Tá me chamando de gorda?
De repente, a energia voltou para seus corpos, mas, por pouco, uma briga
não começou. Kim estava escorada em uma das paredes do corredor,
observando tudo e todos para evitar qualquer furdunço. Caspar logo sentiu
as bochechas corarem e o coração acelerar. Soltou Jack, que caiu sentada no
chão, e aproximou-se da ruiva. Fez uma reverência, imitando os cavalheiros
da cidade grande.
— Boa noite, milady.
E mandou um beijo no ar que, por alguma razão, Kim fez questão de
desviar. Jack levantou e fez uma careta.
— Espera, você acabou de se esquivar de um beijo invisível?
— Melhor prevenir do que remediar. — Kim deu de ombros.
Caspar arqueou as sobrancelhas, convencido.
— Tá com medo de cair nos meus encantos, não é, gata?
Kim fechou a expressão.
— Só nos seus sonhos, pirralho.
— Pode deixar. — E mandou mais um de seus beijos.
Kim tentou desviar mais uma vez, mas o garoto seguiu seus movimentos,
levando a mão que carregava um “beijo” até a bochecha da contramestre.
— Xeque-mate. — Caspar puxou um sorriso no canto da boca.
Aquela foi a primeira vez que Kim foi beijada pelo rapaz da pólvora e
sua resposta foi bem clara. O golpe que Caspar recebeu em troca foi bem
merecido, a garota atacou o moleque, virando seu corpo e prendendo um de
seus braços nas costas. Na posição perfeita para um ossinho quebrar.
— Ah, está bem, está bem! — implorava o loiro. — Bandeira branca,
bandeira branca!
No instante em que Caspar viu-se livre, esfregou o braço e caminhou
para longe com Jack.
— Eu, hein... completamente maluca.
— Você que se meteu com ela. — Jack deu de ombros, escondendo uma
risada. Não era à toa que ela também era chamada de maluca. Muito de seu
gênio indomável vinha do exemplo de Kim, a contramestre megera.
Dimitri caminhava sozinho um pouco atrás. Ele sempre era o último da
fila, para ele era indiferente ganhar ou perder uma competição
desnecessária daquelas ou iniciar brigas por coisas idiotas. Ver Caspar, ver
Jack, para ele era quase incompreensível, ele não entendia o porquê daquela
vontade de querer chamar atenção. Já Kim... Kim era mais parecida com
ele. Ficava à espreita nas sombras, em silêncio até alguém mexer com ela.
Pensar em Kim deixava-o um pouco mais seguro. Não por ela ser bonita ou
ele ter qualquer tipo de atração por ela, mas por ter alguém que o
entendesse em meio a um festival de loucos.
Quase não percebeu as bochechas corando quando ouviu aquela voz.
— Ei, novato.
Os pés de Dimi travaram no chão ao ver a ruiva escorada no corredor.
Pôs o cabelo para trás da orelha e olhou para o fundo do corredor, confuso
sobre ser ele quem ela estava chamando.
— Você mesmo. Tem um minuto?
Seu peito aquecia de vergonha, mas suas mãos formigavam de
desconfiança. Respira, cara. Não baixe a guarda.
— Claro — respondeu, tentando ficar frio e, parcialmente, fracassando.
Kim tomou a frente e Dimitri ajeitou o cabelo na primeira oportunidade
que teve.

5 graus Sul, 68 graus Leste. Enfermaria.

Não era bem aquilo que Dimitri imaginara. Kim não parecia ser do tipo
cuidadora, mas lá estava ela, com um pano no rosto do novato, limpando
sua ferida. Bem onde Patrick Hall havia acertado com o punho mais cedo,
estava tomando uma cor arroxeada. Ele tinha acertado o soco bem na
mandíbula de Dimitri, que segurava um pano menor perto do nariz para
evitar sangramentos. Tentava evitar grandes fiascos, mas Kim não se
importava se estava sendo bruta ou não quando chegava perto do
machucado.
— Ai — reclamou, baixinho.
— Engole esse choro.
— Eu não estou chorando!
Kim levantou uma das sobrancelhas e encarou Dimitri, sem acreditar em
suas palavras. Dimi desviou o olhar com medo de estar talvez lacrimejando.
— Não se preocupe, foi só um corte — explicou Kim. — Vai inchar,
mas, em uma semana, deve estar sarado.
A contramestre levantou-se para ir até um cesto que guardava bandagens
e curativos colantes. Quando voltou, apoiou o corpo para a frente, ficando a
centímetros do rosto de Dimitri, para colar um curativo no machucado.
Dimitri sentiu um calor percorrer seu corpo até pousar em suas bochechas
completamente vermelhas. Kim deixava-o nervoso. A contramestre passou
os dedos por cima do curativo para a cola fixar e distanciou-se novamente
para guardar a bagunça que tinham feito.
Dimitri pôs as mãos geladas acima das bochechas a fim de aliviar a
vermelhidão de vergonha. De repente, um pensamento passou por sua
cabeça.
— Odeio quando ele me chama de covarde.
Kim suspirou, já sabendo sobre o que aquela conversa tratava.
— Não liga. A maior das covardias se apresenta quando um cérebro é
pequeno demais para responder com palavras e resolve pôr a
responsabilidade em seus punhos. Hall é o capitão, mas ele também é um
enorme covarde.
Dimitri riu.
— Covardão.
Ela é o máximo, pensou Dimitri. Aquela era uma das coisas que o garoto
mais admirava em Kim, o fato de ela ter um cargo tão importante como o de
contramestre e saber reconhecer que seu superior é um inútil.
— O pouco tempo que estou aqui, percebi o quanto ele odeia a ideia de
estar errado, não é? — começou o garoto, pensativo. Ele começava a
entender quem era Patrick Hall. — Ele me quer como inimigo e isso não vai
mudar nunca na cabeça dele, não importa o que eu faça. Ele vai fazer de
tudo, esperar a menor das oportunidades para me atacar.
Kim deu uma leve risada.
— Você até que é bem observador.
— Você que disse que eu estava nadando com tubarões...
Então ele lembra da nossa primeira conversa, pensou Kim. Para alguém
sem memórias, o garoto tem uma capacidade impressionante de guardar
informações.
— Falando nisso — continuou o novato — tenho quase certeza de que
ele mandou alguém me espionar para tentar provar que eu sou o informante.
— Ah, sou eu.
— QUÊ? — Dimitri arregalou os olhos. — VOCÊ?
— Nunca disse que eu não era um dos tubarões. — Kim deu de ombros,
apesar de Dimitri estar completamente chocado.
Pelo visto ele não é tão observador assim, a garota riu internamente. Ela
continuava sendo a mais esperta do quarto.
— Então, realmente estava me seguindo.
E eu nem percebi, pensou Dimitri, irritando-se por ter baixado a guarda.
— Não posso dizer que confio totalmente em você, mas também não
aprovo o jeito que Hall lida com seus sentimentos, transformando-os em
rixas pessoais. Como se o mundo estivesse contra ele. Tão infantil...
Dimitri levantou a cabeça para estancar o sangue.
— E ele me escolheu como saco de pancadas.
— Se prefere enxergar desse jeito.
Tinha algo de confortante naquele momento tão estranho. Foi a primeira
vez que Dimitri sentiu que tinha um amigo de verdade dentro do navio,
apesar de tudo. Kim podia ser fechada, mas ele também era e, mesmo
assim, não havia máscaras ou barreiras entre eles. Foi a primeira vez que
Dimitri baixou sua guarda desde que chegara.
Mas todo segundo, não importa o quão infinito ele seja, acaba em algum
momento. De repente, Kim fechou a expressão e uma sombra percorreu seu
rosto.
— Não chame mais atenção para você.
Dimitri estreitou os olhos, estranhando a mudança repentina de humor.
Suas barreiras ergueram-se rapidamente. Kim suspirou e continuou.
— Sei que já teve essa conversa com King antes, mas...
— Espera, como...
— Mas dessa vez sou eu que te peço.
Suas palavras saíram com tanta seriedade que a confusão que se criou no
cérebro de Dimitri deu-lhe dor de cabeça. No entanto, havia algo de
genuíno. Dimitri era muito bom em detectar mentiras e Kim
definitivamente não estava mentindo naquele momento.
— Não queira Patrick Hall como seu inimigo.
Inimigo, aquela palavra era forte. No fundo ele sabia. Ela era a espiã de
Patrick Hall, desde o primeiro dia. E ele era o espionado. Fechou a
expressão. Tarde demais, Kim.
— Não vou deixar que falem daquele jeito comigo — disse o garoto.
— Dimitri...
— Não vou deixar ele me humilhar. Eu não vou ser mais um dos
covardes dele.
— É bom estar vivo se quiser recuperar as suas memórias!
As palavras de Kim surtiram o efeito desejado. Dimitri calou-se no
mesmo instante, juntando as sobrancelhas, confuso.
— E por que você se importa?
— Saiba sobreviver no mundo que você escolheu, garoto.
— Só que eu não escolhi estar aqui!
— Você é muito imbecil.
Dimitri fez uma careta. A contramestre suspirou e baixou o tom de voz.
O que falou em seguida, deu um nó ainda maior no garoto.
— O dia em que quiser ir contra ele, faça direto um motim. Eu serei sua
aliada. Mas não o provoque enquanto ele está no cargo de capitão. Quando
se der conta, estará amarrado pela âncora, morto nas profundezas.
Um tanto desconfortável, Dimi assoprou a franja e cruzou os braços.
— Pensei que tinha dito que alguém tinha que pô-lo no lugar — lembrou
as palavras da própria contramestre.
— Mas imagino que até um mal-agradecido como você tenha algum
amor pela própria vida — respondeu Kim.
Dimitri sentiu-se desarmado mais uma vez e, então, percebeu que a ruiva
olhava nostálgica para os pés no chão. Um pouco receoso, perguntou:
— E você?
— Amor pela própria vida? — Kim cuspiu uma risada banhada em
sarcasmo. — Nah, isso não combina muito comigo.
Uma risada surgiu no canto da boca dos dois, mal iluminada pelo
lampião que começava a falhar. Kim levantou-se e pôs as mãos na cintura.
— E não se anime muito. Ainda não vou tirar os olhos de você...
informante.
— Mas eu não...
Kim estendeu a palma da mão no ar, interrompendo-o.
— Mantenha suas palavras para si. Deixe que eu tome minhas próprias
conclusões. Se você for inocente, eu saberei.
E deu uma piscada de olho que fez as bochechas de Dimitri corarem
instantaneamente. Caminhou até a saída, pouco antes de ouvir aquela voz,
uma última vez.
— Kim — Dimitri chamou-a decidido.
A contramestre virou-se, suspirando. Ela já sabia o que ouviria em
seguida. Dimitri levantou o rosto.
— Eu não vou ficar quieto. Se ele me ameaçar, eu vou revidar.
Que cabeça dura, revirou os olhos incrédula.
— Boa noite. E vê se não se perde no caminho para os dormitórios,
novato. Têm fantasmas por aí.
Fantasmas de todas as formas e tamanhos. O mar é o palco perfeito para
histórias de dormir e canções de ninar. Dimitri deixou que Kim
desaparecesse de vista para deixar o pano de lado e mexer nos armários
médicos de King. Ervas, remédios, aparelhos científicos demais...
...um bisturi.
Roubou a faquinha discretamente e a pôs no bolso. Desde que Zuca tinha
confiscado seu canivete, ou melhor, o canivete de Caspar, ele estava
completamente desarmado. E um navio pirata não parecia o lugar ideal para
estar de mãos vazias. Depois de ter certeza de que ninguém o havia visto,
fechou a porta da enfermaria e saiu corredor afora.
Pouco antes de ser emboscado.
Algo pesado apertou-lhe o pescoço, um braço enorme. Dimitri tentou se
desvencilhar, puxar sua arma, mas quando foi contra-atacar e cortar a mão
do desgraçado, teve uma bela surpresa. Arregalou os olhos.
Não havia uma mão ali.
Lars, o Atroz, prensou-o contra a parede com força. Dimitri ficou com os
pés suspensos, sendo difícil de respirar. O velho pirata analisou-o de cima a
baixo, até ver o pequeno bisturi que segurava. Soltou uma risada.
— Você tem belos instintos assassinos, moleque.
— Me solte — rosnou Dimitri. — Antes que...
— Você me espete com o palito de dente? Não me faça de palhaço.
Apertou-o ainda mais.
— Daria um ótimo bucaneiro...
Bucaneiro?
— O que você quer?
— Que trabalhe para mim.
Dimitri observou com cautela todas as suas brechas de escape. Até que
encontrou a perfeita.
— ARGH!
Deu uma joelhada no meio das pernas de Lars e passou o bisturi
levemente por seu pescoço, conseguindo uma boa margem para se soltar.
Ofegante, encarou-o nos olhos.
— Não trabalho para ninguém.
O velho pirata, que estancava o sangue com sua única mão, soltou uma
risada.
— É uma pena. Juntos poderíamos, quem sabe... acabar com um certo
capitão.
Dimitri juntou as sobrancelhas. Então, é disso que se trata. Ele quer se
livrar do Hall. De repente, as palavras frescas de Kim lhe tomaram os
ouvidos.
Saiba sobreviver no mundo que você escolheu, garoto.
— E o que eu ganho com isso? — perguntou, sem abaixar o bisturi.
Lars, o Atroz, puxou um sorriso.
— Uma dica sobre as suas memórias.
Um aperto no peito. Minhas memórias. Baixou a cabeça, sentindo uma
tontura. Ele queria tanto saber, mas tanto. Não... Tirou os pés do chão.
Aproximou-se e levantou os olhos, ficando frente a frente com aquela
figura tão assustadora.
— Nunca mais me tome para idiota.
Lars franziu a testa ao ver o incêndio que havia causado dentro daquele
garoto. Dimitri encarou-o, falando por entre os dentes.
— Da próxima vez que o fizer... eu vou matá-lo.
E saiu em direção aos dormitórios como se nada tivesse acontecido com
as mãos e um bisturi dentro dos bolsos.
Lars, o Atroz, passou a língua pelos dentes. Agora era pessoal.
Você desafiou a pessoa errada, moleque.
24

INOCENTE OU CULPADO?

4 graus Sul, 63 graus Leste. Nadia Keane.

Já era de se esperar que os marujos fossem demorar para acordar no dia


seguinte. Com uma noite turbulenta como a anterior, não seria surpresa se
alguns perdessem o toque de despertar. Ainda mais quando se tratava de
Dimitri, o pirata mais sonolento dos onze mares. Sempre era o último a
acordar, mas, naquela manhã, estava mais atordoado do que o normal, afinal
a dor que sentia em sua mandíbula espalhava-se por todo o crânio como mil
marretas. E não só isso. Sentia uma dor de cabeça constante, latejando e
matutando seu cérebro desde seu encontro com Lars, o Atroz. Foi preciso
um raio de sol e um Cook de rabo felpudo em seu nariz para despertar o
rapaz.
— Argh...
— Miau.
— Cook, qual foi. Me deixa dormir — reclamou, tentando tapar o rosto.
Cook, que era mais inteligente que muitos humanos por aí, pulou do colo
do garoto direto para a alavanca da rede, empurrando-a sem dó nem
piedade. Prontamente, a rede cerrou fazendo Dimitri cair deitado no chão.
Atrevo-me a dizer que nem mesmo isso fez com que Dimi levantasse.
— Gato idiota — resmungou e puxou as cobertas, encolhendo-se ali no
chão mesmo.
Aquele era um dos dias em que Dimitri queria apenas sofrer em silêncio,
dentro de um casulo, e pensar na vida. Seria tão fácil, pensou. Não ter que
lidar com os problemas. Só que eles o importunavam, impedindo uma boa
qualidade de sono.
Você tem belos instintos assassinos, moleque.
Prisioneiros de guerra eram marcados no rosto para os guardas saberem
que eles seriam condenados.
Não queria que aquilo fosse verdade. Parte dele queria ter aceitado o
trabalho, apesar de ter certeza de que Lars estava mentindo sobre saber algo
de suas memórias. Mas ele queria saber. Não aguentava mais...
Não chame mais atenção para você.
ANDE, COVARDE, a voz de Patrick Hall ecoava em seus ouvidos.
Dimitri enterrava o rosto no travesseiro. Desculpa, Kim. Eu não consigo.
Aconchegou-se, tapando até os olhos com o cobertor, mas, antes que
pudesse ceder a mente para possíveis sonhos, ouviu uma voz bastante
desprezível.
— Dimitri? Ahá. Eu sempre suspeitei dele.
Abriu os olhos lentamente e estreitou-os para poder enxergar através do
feixe de luz que adentrava o cômodo dos dormitórios pela grade do teto.
Alguém falava dele direto do convés. A próxima voz era inconfundível.
— Ele é um pouco esquisito, mas achei que fosse o jeito gótico dele —
Cesco respondeu.
— Que triste — lamentou Dante. — E o rapazinho Dimi estava
começando a se encaixar por aqui.
— Não passava de armação.
E foram as palavras de Jonas que tiveram o poder de despertar Dimitri
por completo. De repente, era como se o sono tivesse desaparecido, pois
seus olhos já não pesavam mais. Levantou com um impulso, vestiu sua
camisa e subiu as escadas para o deque. Estava determinado a encará-los,
quando a primeira coisa que viu foi o punho de Kim indo de encontro com
sua cabeleira marrom.
— Ai! — Esfregou a cabeça para aliviar a dor da pancada. Kim é
extremamente forte.
— Está atrasado. De novo.
— Bom dia para você também.
E ele tinha certeza de que aquela pancada tinha sido de duplo sentido.
Kim estava brava com ele. Ah... Nada como começar um dia de trabalho
energético desse jeito. Dimitri, revoltado com tudo e com todos, foi até o
depósito e pegou seu esfregão e balde de sempre. Encheu de água com
sabão e foi ao encontro de Caspar, que observava a discussão de longe,
escorado em um barril. Foi quando se deparou com um Dimitri
descabelado, de olheiras e outras partes do rosto roxas.
— Cara, sua cara está péssima. Não conheço alguém que durma mais do
que você e acorde pior — disse o loiro.
Dimitri esfregou a cabeça.
— O que está acontecendo?
De contraponto, Caspar estava radiante como sempre. Apoiou-se no cabo
do esfregão.
— Você meio que virou a fofoca da semana. De novo.
— Como assim de novo?
O rapaz da pólvora deu de ombros.
— Ah, sabe... surgiu do nada... no meio do furacão... teorias da
conspiração dão cria que nem roedores.
— E que teorias você já ouviu?
— Só algumas... — respondeu Caspar, baixando o tom de voz.
— Você espalhou alguma delas? — Dimitri levantou a sobrancelha e fez
uma careta, desconfiado.
O loiro não respondeu nada, desviando o olhar para qualquer outro canto
do navio que não fosse os olhos de seu companheiro.
— Ah, cara. Não pode me culpar, são as circunstâncias, sabe?
Por alguma razão, Dimi sentia-se irritado por seus companheiros
duvidarem dele, mas tinha vontade de rir pelo absurdo de acharem que ele
realmente teria algum talento para isso.
— Acha que eu sou o informante também?
Caspar levantou as mãos em tom de rendição e baixou a cabeça.
— Eu não disse nada. Só continuo com a teoria do monstro marinho.

4 graus Sul, 63 graus Leste. Deck Superior da Popa.

No deque superior da popa, as coisas estavam um pouco diferentes. Kim


subiu as escadas para pegar um ar e deparou-se com uma Jack animada
demais para aquele horário da manhã. Tinha os cabelos soltos ao vento e
segurava seu querido timão com um sorriso no rosto.
— Ah, e aí, maninha? Noite turbulenta?
— Vida turbulenta — Kim respondeu, com a voz arrastada.
Jack juntou as sobrancelhas e olhou para a ruiva, tentando ler suas
feições.
— Parece cansada.
— Pode não acreditar, mas até eu gostaria de férias de vez em quando.
— Ahá. — Jack soltou uma risada. — Você quer ir encontrar aquele seu
namoradinho em terra firme.
Kim deu uma cotovelada na amiga, seguida por um riso levemente triste.
Ela não gostava de falar no assunto, e Jack não conhecia a história inteira.
— Percebi que Dimitri chegou tarde ontem nos dormitórios, sabe de
alguma coisa?
A contramestre levantou uma sobrancelha.
— E você parece prestar muita atenção nele — provocou.
— Cala a boca. — Jack girou levemente o timão para a esquerda. —
Conseguiu falar com ele?
Kim suspirou e apoiou a nuca nas mãos.
— É, consegui sim. Ele pode ser meio esquisitão, mas é burro demais
para ser o informante. Se fosse, teria sabido desde o início que eu era a
espiã do capitão.
— Patrick vai ficar uma fera.
— Pois é... falei para o moleque parar de se meter em encrenca.
— Será que ele consegue? — perguntou Jack, duvidando. — Ele é um
cabeça quente.
— Olha quem está falando. — Kim achou graça.
Jack riu, apesar de sentir uma pontada de culpa.
— Por isso mesmo.
Se Dimitri fosse como Jack, “encrenca” estava escrito nas linhas do seu
destino.
De repente, um baque no deque inferior chamou a atenção das duas
piratas. Kim levantou-se rapidamente de seu curto descanso e pendurou-se
na sacada em frente ao convés.
— Que pancadaria é essa?

4 graus Sul, 62 graus Leste. Convés.

— Olha lá o traidor!
A raiva tomou conta do peito de Dimi, fazendo as pequenas risadas e
toda a tristeza mergulharem bem fundo no oceano de seu corpo. Dimitri
sentiu os punhos formigarem de inquietação. Quem tinha gritado era Jonas
por entre um trigo que mascava com seu dente de ouro. Antes que pudesse
pensar, seus pés viraram para a direção do pirata.
Kim disse para eu não comprar briga com o capitão, mas não mencionou
nada sobre marujos velhos e bêbados.
Encheu os pulmões.
— Ei, se quer insinuar alguma coisa, venha dizer na minha cara, velhote.
Todos calaram-se imediatamente. Desde a noite anterior, alguns haviam
ficado apreensivos sobre o comportamento rebelde de Dimitri. Cesco foi o
único a criar coragem.
— Menino Dimitri, ele não quis dizer isso, sabe...
— Não, eu entendi bem o que ele quis dizer — Dimitri falou de olhos
baixos escondidos pela franja. Então levantou a cabeça e, em suas pupilas,
um brilho sarcástico reinava. — Ele acha que eu sou o informante. Sabe, eu
não sou de comprar briga e nem quero brigar com nenhum de vocês. Mas
também não sou de ficar calado quando falam de mim. Acha que eu não sei
o que todos aqui pensam?
Não chame mais atenção para si mesmo. Dimitri grunhiu, contendo-se.
— Pois bem, mantenham para si mesmos.
E foi assim que Dimitri, o cabeça quente, controlou bem seus nervos e
voltou a trabalhar perto de Caspar. Não que Kim tivesse mudado suas
opiniões, mas agora era questão de honra. Queria provar a si mesmo que ele
não era aquilo que falavam. Até que Jonas gritou em resposta.
— Chegou aqui querendo ditar as regras, não é, garoto?
Dimi cerrou os dentes. Controle-se.
— O que mais pretende fazer?
Apertou as unhas contra as mãos. Ei, controle-se.
— Estou falando com você, INFORMANTE!
Sem pensar, Dimitri bateu seu esfregão contra a perna, quebrando-o ao
meio em uma estaca de madeira. Seu coração estava batendo com tanta
força que não conseguia mais ouvir seus pensamentos. Sua respiração
ensurdecia-o. Quando virou, havia fogo em seus olhos.
— Já disse — marchou rapidamente em direção a Jonas — que EU NÃO
SOU O INFORMANTE!
Levantou a estaca no ar, mas antes que pudesse atacar o velho pirata,
Cesco e Dante partiram para cima do garoto, segurando seus braços. Jonas
tinha uma expressão de desespero no rosto e a respiração de Dimitri estava
tão intensa, que chegava a assoprar suas mechas de cabelo para o alto. Sua
testa suava frio. Seu coração iria saltar para fora do peito. A dor de cabeça o
deixava atordoado. Se não fosse pelo almirante e pelo montador, ele não
sabia dizer do que teria sido capaz. Cesco e Dante demonstravam nas linhas
de expressões o medo que sentiam naquele instante decisivo. Dimitri
encarou Jonas por um longo tempo, a íris de seus olhos, as pupilas, até ver
seu próprio reflexo neles e surpreendeu-se com o que viu.
Os olhos de um assassino.
Em um ponto não muito longe dali, estava Lars, o Atroz, observando
tudo com sua mão mexendo em algo no bolso. O que ele fez comigo?
— Eu não sou o informante!
Os pelos das orelhas de cada um dos marujos arrepiaram-se ao ouvir
aquela voz. Uma voz misteriosa ecoando de algum lugar não muito distante.
Uma voz... feminina. Caspar olhou para os lados, e o resto dos marujos
soltaram-se para procurar. Corria da esquerda para a direita, de proa a popa,
olhavam para os céus. Dimitri, em choque e perplexo consigo mesmo,
soltou a estaca no chão.
— Vocês também ouviram, não é? — perguntou Dante, ofegante.
— Parecia uma moça — Cesco respondeu. — Mas...
— Se você chama aquilo de moça...
Caspar estava pendurado na borda do navio e tinha os olhos vidrados em
algum lugar do oceano. Curiosos, todos os outros atropelaram-se para
chegar perto e ver do que se tratava. Então olharam além da borda.
— Ele tem razão, sabe?
Sentada em uma pedra, no meio do mar, lá estava uma das garotas mais
bonitas que Dimitri já tinha visto. Sua pele marrom brilhava com o sol e
seus cabelos ondulados pelo sal do mar faziam as mechas pretas e roxas
enrolarem entre si. Nos pulsos braceletes, no pescoço um grosso colar. Seus
olhos pretos, cor das maravilhosas pedras ônix, eram envolventes e sua
boca risonha, pintada com algum tipo de batom escuro, levava uma corrente
presa do lábio ao lóbulo da orelha. Mas isso não era o mais estranho. Logo
abaixo da cintura, havia barbatanas e uma cauda preta. Uma cauda de
sereia.
Ela enrolava os cabelos.
— Não pode haver dois informantes nos onze mares, eu ficaria muito
chateada.
Dimitri estreitou os olhos, sem acreditar no que via.
— Quem é você?
— Eu? — A garota deu um sorriso misterioso. — Eu sou a informante.
25

ATRAVÉS DOS ECOS

Nenhum dos Saqueadores da Barra estava preparado para aquela visita


inesperada. Os piratas observavam boquiabertos aquele ser das águas,
pendurados na borda do navio. Era esse o poder de uma sereia, pelo visto.
Deixar todos os homens babando.
Menos um.
— Mas o que está havendo por aqui?
Patrick Hall, com os nervos à flor da pele, abriu caminho por entre seus
tripulantes, atropelando piratas caídos de paixão e abrindo espaço com os
cotovelos por entre a multidão.
— O que estão fazendo aqui? Por que não estão trabalhando?
E a confusão aumentou, quando o homem das vestes pretas percebeu a
mulher peixe encarando seus olhos, com um sorriso no rosto. Hall teve que
piscar algumas vezes para acreditar no que via.
— Mas... que diabos… — Levantou a mão e subiu a voz. — Oye! O que
fez com meus marujos?
A sereia levou o indicador ao lábio.
— Uh, e você deve ser o capitão Hall. — Virou a cabeça como um
cachorrinho confuso, pensativa. — Você é mais baixo do que imaginei...
E as sobrancelhas de Hall juntaram-se.
— Como sabe quem eu sou?
A jovem dos mares deu uma gargalhada.
— Qual é a graça?
Nada dá mais medo em um pirata do que o sorriso do inimigo. Isso quer
dizer que está em desvantagem. A moça suspirou.
— Ah, capitão. Eu sei de mais coisas do que você pode imaginar. O
oceano é vasto, mas eu sou os olhos dele. O farol... — Deu de ombros. —
Em algum momento, todos vêm me procurar.
Hall cerrou os dentes. Não estava gostando daquela conversa.
— Está errada. Não viemos procurá-la.
E ela levou o dedo de volta para os lábios como se pensasse
retoricamente.
— Bom, mas por alguma razão a correnteza trouxe vocês até mim.
Talvez não quisessem me procurar, mas talvez precisassem. O oceano sabe
de tudo. Caso contrário, não estaríamos conversando agora, capitão. — E
deu uma piscada de olho.
— Quem é você?
E o temido sorriso voltou.
— A garota que você queria ver.
— Ei, pare com isso, sereia! — Zuca interveio, autoritário.
A mulher peixe deu uma risada abafada como se tivesse ouvido uma
piada que só ela havia entendido.
— Pff, sereia...
Foi a vez de Zuca juntar as sobrancelhas.
— O que disse?
— Nada. — Deu de ombros. — Achei engraçado.
Dava para sentir as sensações mistas a bordo. A maioria dos olhos
esperava por uma palavra do capitão que, para falar a verdade, estava mais
confuso do que todos eles juntos. Mas isso ele não demonstraria. Patrick
Hall bufou, retomando a liderança.
— Vamos logo embora daqui — Virou-se para a timoneira. —
Jacqueline!
— Mas senhor...
— O que há com vocês hoje? Estão lerdos como águas-vivas.
Cesco batia a ponta dos dedos indicadores uma na outra, pois era seu
jeito de criar coragem para falar em momentos como aquele.
— Capitão... é ela. É a informante.
Não demorou muito para se arrepender de ter soltado aquelas palavras. O
almirante encolheu-se ao ficar debaixo da sombra do homem das vestes
pretas. Patrick Hall virou o rosto lentamente, processando a informação. Era
de se esperar que seus nervos explodissem de raiva ao saber a identidade do
maldito, mas não foi exatamente o que aconteceu.
— E o que espera que façamos com isso, Francesco? Acha mesmo que
vou acreditar nessa bobagem?
O corpo de Cesco amoleceu. Ele acha que eu estou inventando, pensou.
De certo modo, aliviou-se e agradeceu por isso. Poeta interveio,
pigarreando para chamar atenção e tirando seu caderninho de dentro da
bolsa. Leu suas anotações.
— “Sereias são conhecidas por serem os olhos e ouvidos dos onze
mares.” Resumindo, não passam de pestes enxeridas.
Dimitri estreitou os olhos.
— Não duvido que ela estivesse ouvindo nossa conversa o tempo todo.
— Calado! — urrou o capitão.
O novato revirou os olhos e pousou-os em Kim. O olhar que ela lhe
lançou era claro. “Não retruque ou eu vou socar o seu estômago.” Levantou
as mãos em rendição e saiu de perto.
— Sim, senhor.
Por sorte, havia algo que Patrick Hall odiava mais que filhos de caravela:
situações em que não fazia ideia de como resolver. Voltou-se para a
madame de cauda posando no mar e fez a pergunta que o estava mais
incomodando.
— Como me conhece?
— Ah, e quem não conhece o grande Patrick Hall, o Impiedoso?
O diálogo estava ficando interessante. Talvez ele conseguisse tirar algo
de bom dali, então mediu bem as suas palavras.
— Conhece John Kirk, o Vil, também?
— Claro que sim — respondeu, mexendo nas unhas. — Não me
subestime, pirata. Conheço cada um dos nomes, cada um dos segredos e
cada um dos boatos. Kirk fez uma boa troca equivalente. Deu-me
coordenadas em troca de informações confidenciais.
O coração de Patrick Hall palpitou e seu plano foi por água abaixo. Ele
estava perto de perder o controle.
— O que quer dizer? Coordenadas? Que informações?
— Ah, Patrick. Pare com a encenação, eu não sou trouxa. As
informações sobre o paradeiro do Nadia Keane na ilha de Calamari. Contei
para ele faz quase duas semanas.
— DUAS SEMANAS?
Patrick Hall quase teve uma parada cardíaca. Apoiou os cotovelos na
borda do navio para respirar, mas tudo o que saía de sua boca eram
rosnados de raiva. Zuca, a única pessoa capaz de acalmar o capitão,
aproximou-se, cauteloso.
— Capitão, já temos o que queremos. Descobrimos quem é o informante.
— O grandão tem razão — gritou a garota lá de baixo. — Mas vocês
podem sair daqui com mais do que isso.
Os ouvidos de Hall aguçaram-se.
— Mais do que isso?
E ela sabia que tinha acertado em cheio. Puxou um sorriso nos lábios.
— Informações confidenciais... sobre John Kirk. Só preciso que tracem
rota para o sudoeste.
— E o que sabe?
— Hum, eu trabalho à base do escambo, senhor capitão.
O famoso dedo indicador voltou para seu rosto, mas dessa vez, levantou
o do lado também, marcando um “2” com a mão.
— Um favor por outro.
Zuca sabia bem que Patrick estava considerando a proposta, ou seja,
estava cego pelas circunstâncias. Ele sabia que Hall pensava daquele jeito,
que estaria quite e à altura de John Kirk se fosse pago pelas informações
que perdeu com outras novas. E sabia que isso não acabaria bem. Segurou
seu ombro, aproximou-se de seu ouvido e sussurrou:
— Hall, vamos embora. Está mesmo dando ouvidos para uma criatura
suja como esta? Nem sabemos se o que ela diz é real. Sereias hipnotizam os
homens, você pode estar sob hipnose neste exato momento.
— Sereias. — Ela cuspiu uma risada. — Também não gosto delas,
grandão.
Cesco, o porta-voz da tripulação do dia, aproximou-se, nervoso.
— Capitão, o que faremos agora?
Patrick Hall, o homem das vestes pretas, esvaziou a cabeça para poder
pensar com lucidez. Pensou em todas as probabilidades e calculou seus
resultados. Se desse ouvidos àquela criatura, poderia tanto estar em
vantagem quanto em desvantagem. Como posso ter certeza de que ela sabe
alguma coisa? Se não desse ouvidos, com certeza permaneceria em
desvantagem, mas talvez não caísse em uma possível armadilha traiçoeira.
É, é o mais sensato a se fazer.
— Aliás — a garota interrompeu seu raciocínio —, se não quiser
trabalhar comigo, eu conheço quem queira. John Kirk adoraria saber que
estão indo para Pedreira.
RAIOS... COMO ELA SABE DISSO? Droga!
Ponto para a mulher peixe por desestabilizar o capitão. Patrick Hall
respirou fundo e levantou a cabeça, usando sua melhor atuação de homem
confiante.
— Jacqueline! Traçar rota...
Os Saqueadores da Barra ansiavam pela resposta.
— ... para sudoeste.
Foi a vez de Jack se desestabilizar. Não acreditava naquilo.
— ...sim, capitão.
— Ted, Apa! Tragam-na a bordo e disponibilizem uma cela para ela no
calabouço.
— Uh, calabouço. — A mulher peixe parecia sarcasticamente
entusiasmada. — Quanto luxo.
— Faremos o que você quer — disse Hall —, mas, em troca, falará tudo
o que sabe sobre John Kirk. Entendeu?
A moça da cauda de sereia estendeu o dedo mindinho no ar.
— Juramento de sereia.
— Isso não é muito convincente — resmungou Caspar.
— Mais uma coisa, sereia. E, dessa vez, quero que responda.
Patrick Hall respirou fundo e criou coragem para continuar a pergunta.
— Quem é você?
A garota misteriosa, que mantinha a cabeça baixa, abriu um misterioso
sorriso por trás das mechas caídas de seu cabelo. Levantou os olhos pretos
com um brilho hipnotizante e respondeu:
— Meu nome é Rizo. Estou em busca de algo e vocês vão me ajudar a
encontrar.
Depois de alguns minutos tentando se convencer de que tinha feito a
escolha certa, o capitão Hall deu ordens para que seu imediato, Zuca,
levasse a “convidada” para o calabouço. Levando-a no colo, desceu as
escadas e escotilhas até a sala cheia de grades e correntes. Poeta foi
convocado também, então seguia-os, levando nos braços uma bacia cheia
de água do mar. Zuca escolheu a terceira cela e pôs Rizo sentada no banco
de madeira. Poeta logo foi cumprir com seu dever e se aproximou.
Levantou aquela cauda escamosa e a pôs dentro da bacia. Foi uma das
situações mais constrangedoras de sua vida e piorou quando Rizo se
aproximou, ficando cara a cara com o garoto e pondo uma das mãos em seu
rosto.
— Valeu, conchinha. Mas não vou precisar disso.
Sua mão era fria e grudenta, como o corpo de um peixe. Poeta
esbranquiçou na hora e saiu de perto o mais rápido possível, correndo em
direção a Zuca e a Patrick, que se escoravam na parede do calabouço. Por
fim, trancou a cela com as mãos tremendo.
Foi a vez de Hall se aproximar. Caminhou até as grades, sem abrir mão
da postura de superioridade.
— Vamos conversar.
— E sobre o que quer conversar, capitão?
Patrick Hall é um homem bastante confiante aos olhos nus, mas aquele
sorriso cínico de Rizo lhe dava tiques nervosos.
— Que garantia temos de que você vai nos dar a informação que
queremos, depois de cumprirmos nossa parte do acordo?
A garota fez uma expressão de choro, como se tivesse sido gravemente
ofendida.
— Ah... pensei que meu juramento de sereia fosse o suficiente.
Mas Hall não caiu por seus encantos. Permaneceu rígido, esperando por
uma resposta. E Rizo pareceu gostar de jogar com aquele peão. Esboçou um
sorriso torto no canto da boca e lambeu os lábios.
— Eu sou a sua garantia — respondeu. — Estou presa, não estou?
— Muito bem. Poeta, cuide para que sempre tenha alguém na porta do
calabouço. Não a deixem sair.
Poeta, que se mantinha parcialmente encolhido, cuspiu uma risada.
— Acho um pouco difícil, sabe... quer dizer, barbatanas...
Hall fechou a expressão, e Poeta arrumou a postura, envergonhado.
— Desculpe, senhor.
— E só mais uma pergunta. — Hall aproximou-se mais uma vez da
grade para poder olhar bem nos olhos da prisioneira. — O que tem a
sudoeste?
Minutos depois, o Fronte do Nadia Keane subiu de volta ao convés.
Patrick Hall, Zuca e Poeta passaram pela multidão curiosa, sem dar atenção
específica para ninguém. Os garotos cochichavam escondidos atrás do
mastro, tentando tirar suas próprias conclusões.
— Sobre o que será que eles conversaram? — perguntou Dimitri.
— Acha que tiveram que apelar para a tortura? — perguntou Caspar.
Jack chegou por trás e se meteu na conversa.
— Patrick tem um coraçãozinho mole quando o assunto é mulheres —
disse, suspirando. — Não teria coragem ou estômago forte para torturar
uma nem se quisesse.
A timoneira respirou fundo, pensativa. Os garotos tinham total atenção
nela.
— Bom, se bem que aquilo não é uma mulher.
Caspar fez uma careta.
— Tem razão, Jack. É só metade mulher, o resto é peixe — caçoou, em
seguida, recebendo um soco no ombro. — AII!
— Não confio em sereias — continuou a garota. — São a espécie mais
traiçoeira dos mares. O homem se superestima, quando, na verdade, as
predadoras são elas.
Dimitri levantou uma sobrancelha.
— Não sabia que você era tão entendida sobre sereias.
— E não sou, mas essa é diferente.
Jack parecia estar entrando em transe, seguindo o caminho de seus
pensamentos intrigados. Geralmente ela falaria tal coisa para tentar assustar
marujos como Caspar ou Poeta, mas o novato percebeu na mesma hora que,
daquela vez, ela falava sério.
— Ela não deveria estar de bobeira na superfície, sereias são das
profundezas. E seus olhos — juntou as sobrancelhas —, seus olhos
deveriam ser brancos, mas...
— São ônix.
Dimitri trocou um olhar com Jack. Um olhar cheio de medo. A timoneira
estremeceu.
— Nunca vi olhos assim antes.
— Ei — Caspar interrompeu o momento, apontando para a frente. Não
parecia estar entendendo a conversa dos colegas. — Acham que a gente
consegue tirar alguma informação do Poeta?
— QUEM FOI?
De repente, o medo tomou conta total do convés. Mas era um medo
diferente. Um medo de alerta de sobrevivência. Todos olhavam assustados
para o final do deque, onde uma Kimberly furiosa segurava um esfregão
partido ao meio, recém-encontrado. Foi preciso um olhar fuzilante para que
todos os marujos abrissem seu caminho até Dimitri. O garoto arregalou os
olhos de pavor, ao passo que Kim aproximava-se bufando de raiva.
— Eita, a Kim entrou em modo agressivo. — Caspar engoliu em seco.
A contramestre aproximou-se de Dimitri e jogou o esfregão em seus
braços. Ele podia sentir sua respiração bufante dali. Parecia um animal
selvagem de frente com sua presa.
— Sabe alguma coisa sobre isso?
— Desculpe, eu quebrei — respondeu, quase catatônico.
— Ah, você quebrou.
— ...foi mal.
Dimitri estava gago, e Kim usava mais sarcasmo do que o normal.
Aquilo devia significar alguma coisa. Que algo terrível estava para
acontecer com o pobre novato. A contramestre bateu em suas mãos,
deixando o garoto derrubar o resto do esfregão no chão. Aproximou-se
ainda mais e Dimitri teve que dar um passo para trás.
— Sabe quanto custa um esfregão desses?
— Quê?
— RESPONDA!
— Sei lá, 5 coroas?!
Uma veia estava prestes a estourar na testa da ruiva, quando ela suspirou
e esfregou as pálpebras. Por um instante, Dimitri pôde soltar a respiração.
Até Kim puxar a sua gola.
5 coroas..., que desaforo.
— Venha, você vai pagar pena de CINCO horas.
— Pena?
Arrastou o garoto pelo convés.
— E vai ser descontado do seu salário.
Caspar observava a cena, rindo até morrer.
— Ah, cara. Que mancada! Não se mexe com o material da rainha da
limpeza.
Kim virou-se para o loiro, com fogo nos olhos, e jogou o moleque
moreno em cima de Caspar.
— Vai você levá-lo, antes que eu o repreenda também!
26

COMPANHEIROS DE CELA

Caspar era muito mais forte que Dimitri, mas Dimitri era muito mais
esperto. De qualquer forma, o loiro amarrou os pulsos do colega um no
outro atrás das costas para levá-lo até o calabouço. Obviamente, Dimitri já
tinha dado um jeito de se soltar, mas só para não desanimar o rapaz da
pólvora, ainda fingiu estar amarrado. Caspar parecia estar se divertindo um
bocado com a situação.
— Que situação. — Ele ria. — Eu já imaginava que você seria preso em
algum momento, mas nunca pensei que seria por conta de um esfregão.
— Cala a boca, são só cinco horas.
— E deveria ser mais, transgressor — Caspar brincou.
Logo que pisaram naquele andar escuro e úmido, Dimitri teve uma
surpresa. Passou seus olhos pelas grades e correntes, sem acreditar que
aquilo era realmente um cômodo do Nadia Keane.
— Quando Hall disse calabouço...
— Pois é, era exatamente o que ele queria dizer. — Caspar voltou a
empurrar o colega. — Pensou que estava indo para uma casa de banho?
E foi posto atrás das grades. O rapaz da pólvora fechou a quarta cela com
Dimitri dentro e pôs as mãos nos bolsos, dando um suspiro.
— Você ficou bem aí dentro.
— Não vai nem trancar?
Caspar deu de ombros.
— Não vou mentir, eu perdi a chave, mas sei que não vai sair daí. Você
se faz de rebelde, mas é um cara justo.
Então algo ali perto chamou a atenção do loiro. Alguém na cela logo ao
lado.
— Ih, olha. Parece que você tem companhia.
— Olá, rapazes — disse Rizo.
Caspar aproximou-se, puxando conversa indiscretamente.
— Então, Rizo. Sereias — começou, ridiculamente. — Vocês devem ter
muitos contatos por aí, não é? Por acaso, bem por acaso mesmo, você
conhece uma Aran? Cabelos loiros, meio baixinha...
Enquanto explicava, fazia mímicas. Mas não foi disso que Rizo riu.
— Aran? — Cuspiu uma risada. — Foi isso que ela te disse? Quanta
criatividade...
— Ei, não zomba dela!
— Não estou zombando dela, estou zombando de você. — Rizo deu de
ombros e respirou fundo. — Mas sou só uma sereia, como vocês todos
insistem em dizer. Eu posso estar blefando, mentindo — provocou —, ou
não.

Basta você decidir o que é verdade.


— Hã... — Claramente, ela tinha dado um nó na cabeça de Caspar.
— Se Aran é uma boa verdade para você, tudo bem. Cada um tem suas
verdades e não importa o quanto sejam mentiras. Se você acredita nelas,
elas são a verdade para você — explicou, mexendo nas unhas.
Ela é um ser muito mais racional do que eu esperava, pensou Dimitri,
entrando em estado de alerta. Enquanto isso, um pequeno Caspar parecia
pedalar na cabeça do rapaz da pólvora, trabalhando para fazer seus
neurônios funcionarem. Pelo visto, tinha dado curto-circuito. E quando
aquilo acontecia, Caspar só conhecia um jeito de resolver.
— Dimi... eu vou indo. — Caminhou em direção à porta, gesticulando
com a boca um “boa sorte”, silenciosamente.
O jeito de Caspar resolver era dar no pé. O loiro foi embora, deixando o
cômodo sob o silêncio de dois indivíduos bastante diferentes. E todos
sabem que pessoas diferentes demais, demoram a conseguir iniciar uma
conversa, até encontrarem algo em comum. Não que Dimitri estivesse
ansiando por um diálogo com aquele ser misterioso das profundezas, mas
Rizo parecia interessada.
— Então, impostor — começou. — Fiquei curiosa para saber por que
acharam que era você.
Como era de se esperar, Dimitri não respondeu. Essa era uma maneira
fácil de não entregar informações ao inimigo, mas não era muito sagaz
quando se tratava do contrário. Mesmo assim, permaneceu calado.
— Não quer falar comigo? — Rizo fingiu uma voz de choro. — Ah, tudo
bem... é uma pena.
Os dois encontravam-se encostados na parede de suas respectivas celas,
um de costas para o outro. Rizo enrolava os cabelos curtos com a ponta de
seus dedos, contando os segundos para que o garoto começasse a falar. Ela
sabia que, em algum momento, ele cederia. Afinal, ela conhecia bem o
tipinho dele. Os “intrigados pelo desconhecido”. Não suportam não saber e
sempre entram no jogo.
E, daquela vez, Dimitri caiu.
— Porque eu sou o garoto novo odiado pelo capitão — respondeu, seco.
— Uh, isso parece uma boa história.
Rizo aconchegou-se para ouvir o resto, mas Dimitri cuspiu uma risada
por baixo da franja.
— Não, obrigado.
— Qual foi — Rizo reclamou. — Vamos ficar cinco horas juntos.
Era um bom argumento, de fato.
— Ele me odeia porque acha que sou um filho de caravela. Fui resgatado
em alto-mar, sem memórias em meio a uma tempestade. Ele chegou às
próprias conclusões. — Dimitri suspirou. — Resumindo, ele me odeia pelo
simples fato de eu existir.
Rizo sabia exatamente como ele se sentia.
— ...conheço umas pessoas assim — respondeu.
— E claro que eu era a opção mais óbvia para um possível informante. A
verdade é que todo mundo diz para eu ficar calado e não revidar. Mas — o
garoto sentia um aperto no peito — simplesmente não faz sentido para mim.
É como se eu estivesse provando a ele que sou um covarde, mas eu não sou
assim. Não consigo ficar parado e só escutar enquanto alguém está sendo
injustiçado, mesmo que esse alguém seja eu.
Rizo esboçou um sorriso maroto. O garoto tem uma alta conexão com
princípios... bingo, pensou. Era aquilo que ela queria ouvir.
Dimitri deu de ombros e apoiou a cabeça para trás em cima das mãos.
— Mas isso tudo não importa. Quando eu tiver a oportunidade, vou
embora daqui.
— Você é tão previsível.
— O que quer dizer? — perguntou Dimitri, incomodado. Se tinha uma
coisa que ele não se considerava era ser previsível. Podia ser muito
racional, mas seu lado cabeça dura era o oposto de previsível. Pelo menos
para ele.
Rizo pensava o contrário.
— Concordo com você — disse, como se tivesse lido os pensamentos do
rapaz. — Para uma pessoa normal, isso não seria uma escolha óbvia. Mas
você não é normal. E essa é uma escolha que eu já esperava vinda de um
cara como você.
Um cara como você, pensou o garoto. O que ela quer dizer?
— Um lobo solitário — por fim, disse Rizo.
Dimitri estreitou os olhos e juntou as sobrancelhas. Algo naquela frase,
naquela expressão, cutucava sua memória. Será que já havia sido chamado
daquele jeito? Será que sempre fora um cara solitário? Seu coração sentiu
um aperto.
— ... e você? — perguntou à garota.
— Minha história não é tão interessante quanto a sua — respondeu Rizo,
indiferente.
Dimitri soltou uma leve risada.
— Tá certo.
— Mas pretendo mudá-la — acrescentou a garota, misteriosamente, o
que chamou a atenção do novato. — Estou atrás de uma relíquia que pode
fazer o inimaginável.
— O inimaginável? — perguntou. Seus olhos brilharam — E o que seria
essa relíquia?
— Já ouviu falar em objetos mágicos? — perguntou Rizo, contente por
ter finalmente atraído a atenção total de Dimitri. — São artefatos que
possuem propriedades mágicas e estão espalhados pelo mundo todo.
— Foram feitos pelos magos? — perguntou Dimi, fascinado com a ideia.
— Pelo magos, alquimistas, bruxas e até mesmo pelos deuses. Alguns
podem te dar poderes de outro mundo. Outros mexem com sua mente. Até
demônios elas podem aprisionar.
Dimitri não podia evitar em deixar sua criatividade voar longe. Objetos
mágicos. Magia... se magia era possível, será que... será?
— Deve estar se perguntando se alguma delas pode trazer de volta suas
memórias.
— Como sabe o que estou pensando? — perguntou, levantando a guarda.
Rizo deu de ombros.
— Já disse. Você é um cara previsível.
Droga, pensou o rapaz, incomodado. Mas aquela conversa poderia,
afinal, levá-lo a alguma pista.
— Acha que existe algo que possa fazer isso? — perguntou,
esperançoso.
Rizo suspirou, pensativa.
— Existem muitos mistérios neste universo. O oceano é um mundo
vasto, um imenso desconhecido para nós. Por que acha que piratas viram
piratas, afinal? Eles querem ir aonde ninguém jamais foi. Desvendar o
desconhecido.
— Já entendi — respondeu Dimitri, com emoções mistas.
— Pois é. Eu posso saber de muitas coisas, mas não sou a dona da sua
verdade, apenas da minha. Se quiser ter fé em algo, já sabe no que se
apegar. Talvez, um dia, encontre uma maneira de restaurar suas memórias.
Ou seja realista. Fé é para os trouxas. Não se apegue em nada além de si
mesmo e não dependa de nada ou ninguém além de si mesmo.
— Isso é algum tipo de teste? — perguntou o rapaz, intrigado.
— Isso é a encruzilhada das verdades. E chegou a sua vez de escolher.
Não importa o caminho que escolha, será sua verdade absoluta.
Dimitri soltou uma gargalhada.
— O que é tão engraçado? — perguntou Rizo.
— Percebi que tem um erro no seu mapa.
Foi a vez de Rizo rir.
— Eu nunca erro. Não me subestime, garoto.
Dimitri endireitou-se e deitou no banco de madeira, olhando para cima e
desenhando seu raciocínio com os dedos no ar.
— Você deu a entender que eu tenho apenas duas escolhas a fazer.
Escolher a fé ou a mim mesmo. Mas tem um terceiro caminho. Eu não
tenho fé nos deuses, muito menos nos magos. O caminho que eu escolhi foi
ter fé em mim mesmo.
Rizo calou-se, surpresa. O que é esse garoto, afinal?
— Acho que não é tão esperta quanto achou que fosse, não é, Rizo?
A moça de cauda de sereia fechou a expressão. Agora ela começaria a
jogar sério.
— Menos, rapaz. Você é muito prepotente. Ainda é muito cedo para o
xeque-mate.
Dimitri sorriu.
— E de qual objeto mágico você está atrás?
Foi a vez de Rizo tomar a palavra para a hora da história.
— O Bracelete de Nêmona — começou. — Nêmona foi a primeira
princesa da linhagem real a assumir o trono do reino subaquático de Terra
Coral. A cidade foi toda construída sobre as ruínas de um antigo império
humano que afundou séculos atrás.
A voz de Rizo era como um livro sendo aberto. Era como a de uma
narradora das antigas lendas. Quanto mais contava, mais Dimitri conseguia
imaginar.
— O mago Malli, responsável pelo elemento água, foi quem ajudou a
construir a majestosa Terra Coral. Ergueram muralhas, templos e mansões
para abrigar os novos moradores do que se tornaria a capital dos mares.
Nereianos e nereidas de todos os onze mares juntaram-se em uma nova
comunidade para escolher a dinastia responsável por comandar esse novo
império. Com uma nereida como Nêmona da família Coral no trono, Malli
passava a maior parte de seu tempo longe da superfície. Mas isso não era
problema para ele. Com o passar do tempo, apaixonou-se por Nêmona e, no
dia da inauguração da cidade e da coroação oficial da princesa, ele a
presenteou com um belo bracelete de titânio. Isso daria a ela a oportunidade
de visitá-lo em terra firme quando ele fosse embora do reino das águas.
Assim, o amor deles não morreria.
Dimitri levantou uma das sobrancelhas.
— Então, você quer pernas.
— Você resumiu bem.
Dimi deu uma gargalhada abafada.
— Qual é a graça, moleque?
— Depois sou eu que sou previsível.
— Não devia rir dos sonhos das pessoas desse jeito. — Rizo fingiu raiva.
— Não, tudo bem. Tem razão — Dimitri concordou, segurando a risada.
— Imagino que isso seja algo grande para uma sereia.
— Sereia... — Rizo cuspiu um riso. — Vocês são engraçados.
Dimitri deitou em cima das mãos, relaxando.
— É isso que vamos fazer?
— Pernas em troca de informação. Vocês humanos se contentam com tão
pouco...
— Vai deixar de ser a informante dos onze mares — provocou Dimi.
Mas Rizo tinha suas próprias cartas na manga.
— Tudo bem. Já tenho toda a informação de que preciso, Dimitri.
Aquela deixa foi a responsável por um longo silêncio. Dimitri estava
com a desconfiança à flor da pele e a curiosidade coçando atrás da orelha.
Aquele era um jogo de gato e rato, no qual os dois participantes batalhavam
para ver quem seria o caçador ou a presa. E Rizo estava adorando aquele
momento de tensão no ar. Era a melhor oportunidade para as melhores
jogadas.
— E sobre você, garoto. Por que não aproveita um pouco a viagem?
Dimitri riu, pensando ser uma piada.
— Disse que virou minha companheira de cela. Acho que é um pouco
tarde demais para isso, não acha?
— Quero dizer o seu tempo a bordo do Nadia Keane — respondeu,
deixando Dimi pensativo. — Você sabe onde quer chegar, mas a jornada é a
melhor parte a ser apreciada. E você parece alguém que curte uma aventura.
De repente, Dimitri viu-se nostálgico. Pela primeira vez, dava
importância para um momento novo e não à falta de um antigo. Lembrou-se
daqueles olhos intensamente verdes, desafiando-o.
— Uma vez, uma garota me disse que eu não pareço um homem do mar.
Rizo deu um meio-sorriso.
— Dê uma chance para o mar, ele pode surpreender.
Dimitri entrou em modo pensativo depois daquela conversa cheia de
idas, de vindas e de reviravoltas. Estava cansado, pois, pela primeira vez
desde que chegou ao Nadia Keane, começava a questionar suas escolhas e
seus propósitos. A jornada é a melhor parte e você parece alguém que curte
uma aventura.
Será que... eu posso? Ele se referia à jornada. Para alguém tão cego pela
determinação, seria possível para Dimitri aproveitar a viagem, baixar sua
guarda, quem sabe... fazer amigos?
Talvez ele tivesse que passar por algumas noites em claro antes de
chegar a uma conclusão. E claro, abrir os olhos. Agora ele tinha, não apenas
um, mas dois inimigos a bordo. Foi preciso uma distração enorme para tirar
Dimitri do seu mundo dos pensamentos. E ninguém melhor para isso do que
Caspar O'Connell.
— E aí, rapaziada!
Caspar entrou radiante no calabouço, quebrando completamente a
atmosfera de antes. Dimitri revirou os olhos e sorriu.
— Deixa eu adivinhar. Kim prendeu você também?
— Ahá, antes fosse. — Riu o loiro. — Poeta me mandou ficar de guarda.
Então tirou alguma coisa do bolso de suas calças esfarrapadas.
— E aí, alguém quer jogar carta?
O BRACELETE DE NÊMONA

27

A PRIMEIRA MISSÃO

Uma semana depois...

21 de Novembro, 1543. Ano do Lobo Marinho.


27 graus Sul, 2 graus Oeste. Convés do Nadia Keane.

Toma!
Dimitri, literalmente, usou sua carta na manga. Com um ataque especial,
fez sua jogada de mestre para acabar com o oponente de uma vez por todas.
— Krauk, com 30 de velocidade e 43 de força. — Cruzou os braços,
confiante.
Caspar olhou para o desenho estampado na carta. Era de um polvo
gigante de cinquenta tentáculos e cinquenta olhos. Aquele era para ser o fim
do jogo, mas Caspar não sabia a hora de desistir e apenas fez uma careta.
— Ahá! Boa tentativa, Dimi — levantou uma de suas cartas no ar —,
mas o meu Megalodon ganha desse seu polvilho de meia tigela.
Jogou a carta na mesa, contra-atacando.
— 38 de velocidade e 27 de força.
O rapaz da pólvora tinha um sorriso largo no rosto, então foi a vez de
Dimitri fazer uma careta. Inclinou-se para a frente, levou as duas cartas para
perto do rosto e estreitou os olhos. Convencido de que estava certo, puxou
um leve sorriso no canto do lábio e jogou-as de volta na mesa.
— Não é o que os números mostram.
— Já olhou para o tamanho dos dentes do meu tubarão? — perguntou
Caspar, indignado. — Aposto que isso, os números não mostram.
— Se é assim, eu posso usar os tentáculos para esmagar esse seu
peixinho! — provocou Dimitri, entrando na briga.
Poeta, que estava no papel de “jogador passivo”, apenas suspirou,
observando aqueles dois brutamontes sem cérebro brigando por conta de
uma partida de cartas. Fez uma careta para o novato.
— Parece que alguém ficou viciado neste jogo. — E pegou uma carta do
baralho.
— Por acaso você não leu as regras? — Caspar partiu para cima de
Dimitri.
— Você que me ensinou a jogar! — respondeu o novato, levantando uma
sobrancelha. — E para constar, sim. Eu li as regras.
Óbvio que ele leu, pensou Poeta.
Caspar bufou.
— Golpe baixo, meu irmão. Golpe baixo.
— Poeta — chamou Dimi.
Poeta levantou a cabeça, cansado.
— ...você decide.
— É — concordou Caspar. — Você decide, colega.
Apesar do impulso e da urgência em conseguir respostas, os dois
estavam nervosos para saber quem iria ganhar aquela partida.
Se a carta dele for melhor na força do que a minha, com certeza eu vou
perder, Dimitri calculava as probabilidades.
Só espero que ele não jogue nada com mais presas e dentes do que eu,
era a única coisa que Caspar tinha em mente.
E Poeta estava se divertindo um bocado com a situação. Pegou uma de
suas cartas e, com um sorriso cínico no rosto, jogou-a na mesa. Dimitri e
Caspar pularam um em cima do outro para tentar ver.
E lá estava. O desenho de um homem com um chapéu de três pontas na
cabeça.
— ZACHARY BONES? — os dois gritaram, indignados.
— Um pirata a ser contemplado — respondeu Poeta, confiante. — 13 de
velocidade e 15 de força.
Caspar aproximou-se de Zachary Fracote Bones, tentando controlar o
tique nervoso de sua sobrancelha.
— ...Você está me zoando. Eu tenho cara de idiota para você?
— Poeta... — Dimitri fez o mesmo, sem acreditar. — Uma sardinha teria
sido uma escolha melhor.
Mas o moleque dos mapas parecia satisfeito, quando deu de ombros.
— Em uma batalha de monstros literários, o pirata de verdade ganha. —
E jogou o resto de suas cartas na mesa. — Fim da história, ganhei.
— BUUUU! — vaiou Caspar. — Chato!
— E Bones foi o maior caçador de tubarões da segunda geração —
respondeu, pegando a carta de Caspar entre os dedos para provocá-lo.
Caspar virou a cara, claramente derrotado.
— Sem graça.

28 graus Sul, 3 graus Oeste. Nadia Keane.


Enquanto uns aproveitavam o resto do horário do café da manhã para
jogar, outros já haviam começado suas tarefas diárias. Cesco e Jack, por
exemplo, eram almirante e timoneira, respectivamente. Eles não tinham o
luxo de terem grandes horários de folga.
Apesar de Cesco ainda estar parcialmente dormindo, avistou algo de
cima do cesto da gávea.
— Epa, o que é aquilo lá? — levantou, cambaleando.
— Cesco, está vendo alguma coisa? — gritou Jack do deque superior.
O almirante estreitou os olhos para tentar enxergar melhor.
— É, quer dizer... estou?!
— Não deve ser muito grande — Jack explicou. — São poucas as ruínas
que ficaram na superfície. Acha que é isso?
Cesco já se pendurava no mastro para ter uma melhor visão, com a mão
na testa para tapar a luz do sol. Só ele para conseguir se equilibrar daquele
jeito.
— Pode ser. — Piscou os olhos.
Então pôde ver mais nitidamente. Definitivamente havia algo em sua
frente. Será que...
— Espera, terra a vista...?
Jack olhou para cima, tentando ver também. Cesco pulava de alegria.
— É, é sim. Terra à vista! Terra à vista! Virar a estibordo.
A timoneira sorriu animada e virou o timão para a direita. O dia
começava a ficar interessante. Todos os Saqueadores da Barra pararam o
que estavam fazendo e correram até a borda do navio, para ver o grande
espetáculo, o que fez a embarcação entortar com o peso.
— Ei, galera! Um de cada vez — xingou Jack, tentando segurar as
pontas da situação com o timão.

28 graus Sul, 3 graus Oeste. Calabouços do Nadia Keane.


E tudo que acontecia no andar de cima repercutia nos andares inferiores.
Rizo ouvia os marujos enlouquecidos, quando sentiu a madeira em cima de
si cedendo e soltando pó em cima de sua cabeça, mas não se importou. Ela
sabia o que aquilo significava.
— Parece que chegamos.

28 graus Sul, 3 graus Oeste. Calabouços do Nadia Keane.

Alguns subiam nos cordames, outros sentavam nas vergas, tudo para
poderem ver melhor o tão esperado destino a sudoeste. Mas, pelo visto, suas
expectativas estavam altas demais. Rosto a rosto, as expressões foram
murchando. Caspar pendurou-se na borda do navio, inclinando-se para a
frente com uma careta.
— É só isso? Viemos até aqui para isso?
Ansiando por ruínas majestosas da antiga Cidade de Volta, aquilo
realmente era um pouco decepcionante. Em sua frente, apenas uma torre
inclinada por conta de uma embarcação naufragada em cima de uma pedra
ao seu lado. Cobertas por algas e mariscos, parecia mais um pedaço de lixo
jogado no oceano do que já fora uma construção digna do centro do mundo.
E os murmurinhos tomavam conta.
— Não pegamos a rota errada?
— O capitão deve estar maluco.
Dimitri aproximou-se e viu mais de perto. Ao contrário dos outros
Saqueadores da Barra, Dimi nunca tinha visto grandes coisas na vida e
aquela belezinha em alto-mar, para ele, era no mínimo intrigante. Talvez
por isso, tenha percebido.
— É uma torre. — Apontou para o mar. — O resto deve continuar lá
embaixo.
Caspar arqueou as sobrancelhas para o colega.
— E desde quando VOCÊ se anima com esse tipo de coisa?
Dimitri sorriu radiante, sentindo a adrenalina correr, e voltou-se para o
convés. Neste mesmo momento, Patrick Hall surgia em meio à multidão. Se
fosse possível, ele parecia ainda mais emburrado do que de costume.
— Homens — chamou atenção. — Devem estar se perguntando o que
estamos fazendo aqui.
Dante levantou a mão.
— O que estamos fazendo aqui?
E Hall já estava acostumado a ignorar o montador e suas perguntas.
— De acordo com a nossa... — limpou a garganta com desdenho —
visitante imprevista, embaixo de nossos pés jaz parte da lendária Cidade de
Volta, que afundou antes mesmo da Grande Guerra.
— E o que temos a ver com isso? — perguntou Ted, levantando sua
colher de pau. — Pensei que íamos atrás do nosso tesouro.
— É — concordou Jonas, indignado. — Estamos perdendo tempo!
O soar do gongo ensurdeceu todos os presentes que tamparam suas
orelhas o mais rápido possível. Era de se esperar que Kim havia se
aproveitado mais uma vez da situação, mas o responsável, desta vez, era
outro. Zuca havia batido com seu próprio punho, ordenando todos a se
calarem imediatamente.
— Deixem o capitão falar!
Funcionara. E Hall não foi uma exceção. Eram poucas as vezes que via
Zuca daquele jeito. Demorou alguns instantes para se recuperar do choque e
voltar a falar.
— Para que consigamos informações confidenciais sobre John Kirk e os
Chapéus Verdes, temos a missão de encontrar um outro tesouro — explicou.
— Um bracelete para ser mais específico. Vou mandar duas pequenas
equipes de campo, assim poderemos acabar com isso até o meio-dia. —
Apontou para os escolhidos. — Caspar, Kimberly...
Caspar pôs as mãos na cintura.
— Já gostei.
— ...Jacqueline e... — Hall respirou fundo — o novato.
Dimitri arregalou os olhos e apontou para o próprio peito, surpreso.
— Eu?
— É — bufou o capitão. — Você.
O garoto sabia que, provavelmente, Patrick Hall já havia se arrependido
da escolha, mas, de qualquer forma, era sua primeira missão no Nadia
Keane e, como Rizo havia sugerido, ele aproveitaria a viagem e qualquer
oportunidade que surgisse em sua frente. Era sua chance de mostrar seu
valor.
Apa, com as feições preocupadas, foi de encontro ao capitão.
— Espera, mas por que temos que mandar as crianças?
— Parece que o bracelete está em uma sala que serve como um bolsão de
ar debaixo d'água — esclareceu Hall. — Uma sereia não conseguiria se
locomover em terra sem ajuda. E os tripulantes mais novos têm mais
energia e, por serem menores, mais chances de conseguir entrar.
O pulmão de Caspar esvaziou por um segundo.
— Espera, está me dizendo que essa coisa fica debaixo d'água? —
perguntou, exaltando-se. — Como vamos fazer para chegar até lá?
Mas Patrick Hall também tinha suas cartas na manga.
— Poeta!
28

GWENDOLYN E OS HÁBITOS DE POETA

Poeta cumpriu ordens e foi correndo em direção ao depósito de proa.


Abriu a porta e fechou-a tão rápido que nenhum dos olhares curiosos ao
redor conseguia ver o que ele estava de fato fazendo lá dentro. Sons de
sinos, papéis, tilintares de pregos batendo uns nos outros, parecia que Poeta
estava fazendo a maior bagunça. Mas foi o estrondo de algo caindo que
assustou a tripulação.
— AHHH!
O imediato Zuca fez seu trabalho e, desesperado, foi correndo ajudar o
rapaz. Depois de alguns instantes angustiantes, os dois piratas saíram do
depósito juntos e, o que chamava mais atenção, era Poeta sendo carregado
no colo junto com um monte de seus equipamentos.
— Eu estou bem, galera! — anunciou, com um sorriso no rosto. Então,
deu uns tapinhas no braço de Zuca. — Obrigado, grandão. Já pode me pôr
no chão.
Que mania de me chamar de grandão. Zuca revirou os olhos, e Poeta
pousou com os dois pés leves como plumas. Com toda a paciência do
mundo, passou as mãos pela roupa para tirar os fiapos e limpou a garganta.
— Acabou? — caçoou Caspar.
— Respondendo sua pergunta, caro amigo, vocês terão a ajuda destas
belezinhas aqui — Poeta abriu o maior dos sorrisos e jogou um par de
óculos de mergulho para cada um de seus colegas.
Dimitri pegou o objeto com curiosidade e analisou impressionado.
— Foi você quem fez?
Os olhos de Poeta brilharam com a pergunta. Ele simplesmente era
apaixonado por suas invenções e não parava de falar quando alguém
perguntava. Levantou o indicador no ar e começou:
— Isso mesmo. São óculos especiais para mergulho. Com eles, a água
não vai entrar. — Virou os óculos de costas e apontou para uma
extremidade. — Inclusive, possuem um rastreador embutido, então posso
controlar a localização exata de todos vocês durante a missão.
Caspar virou o óculos da mesma maneira que o colega fez, mas, ao invés
de encontrar o rastreador, encontrou outra coisa.
— AHHH! — E seus olhos foram momentaneamente cegados.
— E instalei uma lanterna na lateral de cada um deles para ajudar na
visão debaixo d'água — explicou o moleque dos mapas.
— Você pensa em tudo — admitiu Kim.
— Obrigado — Poeta respondeu orgulhoso.
Kim levantou uma sobrancelha.
— A cor laranja serve para alguma coisa também?
— Estética — respondeu Poeta, animado. — Ah, e tem mais.
Mordeu a língua e colocou um de seus braços dentro do bolso das calças,
procurando por algo. Ao encontrar, estreitou os olhos e teve certeza.
— Isso mesmo.
Os jovens aproximaram-se, confusos. Parecia um farelo de pão. Poeta
puxou um sorriso convencido e pegou um controle remoto de dentro de sua
bolsa.
— Apreciem o avanço da ciência.
E clicou em um botão. Aquele “pedaço de pão”, que antes era menor que
uma unha humana adulta, de repente, transformou-se em um enorme objeto
de metal, cheio de aparelhagens especiais e com uma aparência bastante
futurística. Parecia pesado também, afinal de contas, Poeta não aguentou,
dobrando os joelhos.
— Zuca, pode me dar uma mãozinha?
O imediato, literalmente usando uma mão, pegou a engenhoca dos
braços de Poeta e jogou na direção de Caspar, que era um pouco mais forte.
Ou nem tanto, porque foi lançado para longe do mesmo jeito.
— AI!
— Fiz esse dispositivo engenhoso que gera um campo magnético capaz
de detectar qualquer objeto feito de metal — explicou Poeta. — Eu chamo
de...
— Detector de metais? — tentou Dimitri.
— Gwendolyn! — respondeu Poeta, orgulhoso.
Kim fez uma careta.
— A coisa... tem nome.
Poeta e seu hábito estranho de personificar suas invenções, pensou.
Mas Caspar não parecia estar preocupado com esse fato.
— Cara, que demais! Quer dizer que a Gwen pode encontrar ouro por
nós? — Abraçava a invenção. — Posso te chamar de Gwen, não é?
— Isso! Você só tem que estar perto o suficiente para ela detectar e soar
o apito.
— Então é inútil. — Kim deu de ombros.
— Eu quero usar.
Jack pulou para cima de Gwendolyn, agarrando-a das mãos de Caspar.
— Sai, Jack! Ele deu para mim.
— Você nem consegue carregar direito. Passa para cá. — A garota
puxava.
Foi preciso que a irmã mais velha da tripulação interviesse na briga das
crianças. Kim levantou no alto o detector de metais.
— A pessoa que vier comigo vai usar.
E Gwendolyn voltou a ser um pequeno pedaço de metal nos dedos de
Kim. Poeta, que havia clicado no botão, passou o controle remoto para a
ruiva, que era a mais responsável da missão, e ela guardou tudo no bolso da
calça.
— Então, eu vou. — Aprontou-se Caspar, na maior felicidade.
— Você não. — Kim prensou a palma da mão no rosto do loiro,
impedindo-o de seguir em frente. — Jack?
— Tô nessa — respondeu a timoneira.
Aquela seria uma missão interessante, afinal das contas.
Alguns minutos depois, os jovens aprontaram-se para sua pequena
aventura submersa. Tiraram seus trajes, permanecendo apenas com as
roupas necessárias. Os garotos de calça e sem camisa; as garotas de calça e
bandagens protetoras ao redor do peito. Kim trocou sua manga de couro
usual por uma mais leve, perfeita para nadar, porém fez isso onde ninguém
pudesse observar. Ela nunca mostrava seu braço direito em público.
Sentaram-se na borda do navio e puseram seus óculos especiais para
mergulho de marca confiável, testada e aprovada por Poeta (ou nem tanto).
Kim e Caspar, os mais velhos, estavam nas pontas da formação,
enquanto Dimitri e Jack, os mais novos, sentaram no meio.
— Não terminamos a nossa corrida do outro dia, princesa — disse Jack,
provocante. — E empates não combinam muito comigo.
— Isso é um desafio? — perguntou Dimitri, intrigado.
Jack estreitou os olhos, em tom de desafio.
— Quem encontrar o bracelete primeiro ganha.
Dimitri terminou de regular os óculos ao redor da cabeça, animado.
— Beleza.
— Ah, princesa — Jack cutucou-o —, prepare-se para vestir um belo
manto da derrota.
Mas o garoto puxou um sorriso convencido nos lábios.
— Derrotas não me vestem muito bem, baixinha.
A raiva queimou no peito de Jack, mas antes que ela tivesse qualquer
chance de responder ou contra-atacar, o criado de bordo pulou no mar, com
um enorme sorriso no rosto. Isso a deixou ainda mais furiosa. Então, pulou
com fogo nos olhos, seguida por Caspar e Kim.
O barulho das crianças mergulhando lá de cima do convés, com certeza,
chegou aos ouvidos de Rizo no calabouço. Ela esperou alguns instantes e
então bocejou.
— Parece que é a minha deixa.
Já no andar de cima, o resto da tripulação começava a se dissipar.
Voltavam para suas tarefas diárias, um pouco sem rumo por conta da falta
da contramestre. Alguns estavam preocupados com o resultado da missão
ou com o bem das crianças, outros mais preocupados com suas próprias
barrigas.
— O que será que vai ter de almoço? — perguntou Cesco, pondo um
braço nas costas do cozinheiro.
— Quê? — perguntou Ted, indignado. — Já está pensando em comida
de novo?! São nove da manhã, homem!
Em meio a tantos piratas moribundos, um deles era o mais elegante de
todos. Zuca aproximou-se do capitão apoiado na borda do navio, encarando
profundamente as águas escuras. Discretamente, o imediato lançou-lhe uma
pergunta:
— Acha mesmo que foi uma boa ideia mandar as crianças?
Patrick Hall suspirou.
— Não queime seus neurônios com preocupação. Kimberly é uma líder
nata. Jack treina técnicas de sobrevivência desde muito jovem e Caspar... —
o capitão parou para pensar — o rapaz tem alguma experiência.
Mas não era aquela a resposta que Zuca queria ouvir. Com toda cautela,
continuou:
— E quanto ao novato?
Patrick Hall sentiu um amargor no fundo da língua.
— ...com sorte ele não volta mais.
29

RUÍNAS DE VOLTA

A metros de distância da superfície, lá estavam, quatro jovens piratas


mergulhando em direção ao desconhecido. Kim, a contramestre, puxava a
frente, seguida de Dimitri, Jack, Dimitri e, por último, Jack. A timoneira e o
criado de bordo ficavam avacalhando, puxando os pés um do outro para
nadar mais rápido. Era mais uma batalha que uma brincadeira.
Quanto mais nadavam, mais podiam ver. Ao chegarem perto, Dimitri
perdeu o ar. Em frente aos seus olhos, lá estavam as ruínas de volta. A
continuação da torre da superfície era muito maior do que imaginara. E
mais assustadora também. Era como um prédio mal-assombrado por uma
escuridão abissal. Algas cresciam ao redor, sendo difícil encontrar uma
fenda para entrar.
Kim aproximou-se e ligou a lanterna de seus óculos. Depois de muito
observar, encontrou uma entrada oculta. Empunhou sua adaga, cortando as
algas e abrindo caminho. Espremeu-se lá para dentro, fazendo menção com
a mão para os outros a seguirem. Dimitri segurou um pouco mais o fôlego e
apressou as pernas, sem ideia de que Jack fosse fazer exatamente o mesmo.
Resultado da batalha: os dois ficaram entalados juntos na fenda de entrada.
Jack ficou vermelha de raiva, tentando se soltar de Dimitri o qual tentava
se desvencilhar de forma inteligente. Claro que não funcionou, pois não
conseguia raciocinar com Jack fazendo escândalo ao seu lado. Um pouco
antes de iniciarem um duelo de socos, lerdos e sem força, debaixo d'água,
Caspar empurrou o traseiro de Dimitri para a frente, acabando com aquela
palhaçada. Por sorte, logo em seguida, encontraram um bolsão de ar.
Subiram para respirar desesperados por oxigênio. Jack pôs os cabelos
molhados para trás e jogou-se no chão, de braços abertos, mas logo que
Dimitri subiu para a superfície, a garota levantou irritada.
— O que você estava pensando? — xingou ofegante. — Podíamos ter
morrido.
Dimitri ainda se recuperava.
— Ah, porque a culpa nunca é sua.
— Se viu que eu estava querendo passar, por que passou junto? — Foi
marchando ao encontro do criado de bordo.
Dimitri levantou-se irritado.
— Por nada. Pensei que pequena desse jeito, você não ia ficar entalada
do jeito que você ficou.
Jack espremeu as mãos.
— Ora seu...
— Calem a boca, vocês dois — rugiu Kim, perdendo a paciência. — Isto
não é uma competição, estamos em missão aqui.
— Cara, este equipamento do Poeta é meio duvidoso — reclamou
Caspar. — O cara deveria ter colocado uns protetores de ouvido também.
O rapaz da pólvora batia nas orelhas para retirar a água, quando seus
olhos se voltaram para cima.
— Uou...
E a grandiosidade daquela cidade perdida encheu seus corações. As
paredes eram altas e havia colunas ornamentadas com vários detalhes em
ouro e pedras preciosas. O teto lembrava um vitral de igreja, construído em
vidro com uma vista de um céu feito de mar. Era impressionante pensar que
uma civilização antiga, como a dos moradores de Volta, teria tido
tecnologia para tal arquitetura na época. Caspar olhava, abismado, para o
teto, quando uma sombra enorme de um corpo não identificado enorme
passou de relance, escurecendo a sala por um segundo. Algo muito parecido
com um tubarão.
Caspar estremeceu.
— Vem cá... só eu que vi o tubarão?
— Não enche. — Kim tomou a palavra. — Precisamos de um plano.
Esta sala por si só já é bastante grande. Mas acho que tem uma fenda para o
lado de lá que, possivelmente, leva para outro cômodo.
— Já não gostei disso. — Caspar apoiou os braços na cabeça.
— Eu proponho que Jack e eu permaneçamos aqui, enquanto Caspar e
Dimitri nadam até o próximo salão.
Caspar fez uma careta.
— Ah, cara. Eu sabia. — Apoiou-se em Dimitri. — Elas só estão usando
a gente.
— Vocês são mais altos e têm as pernas mais compridas. Se tiverem que
escapar de algo, nadam muito mais rápido de que nós.
Dimitri levantou uma sobrancelha.
— ...você sabe que isso é uma grande mentira, não é?!
Kim abriu um sorriso satisfatório.
— É porque estamos usando vocês. Eu sou a líder, eu mando.
Caspar virou a cabeça e tossiu discretamente.
— Megera.
— O que disse?
— Nada não.
— Que beleza — Dimitri tomou a palavra, interrompendo o início de
uma briga em potencial. — Estamos procurando um bracelete de titânio...
em um lugar deste tamanho.
— E é por isso que nós vamos ficar com o detector de metais.
Jack estendeu a mão para Caspar que estava em uma relação de paixão
com a invenção de Poeta. A timoneira arqueou uma sobrancelha.
— Caspar?
Dimitri suspirou.
— Caspar... passa a Gwendolyn.
— Agora que você disse o nome dela que eu não vou dar mesmo! —
reclamou o loiro.
Dimitri aproximou-se como quem não queria nada.
— Não precisamos desta sucata velha. Deixa o detector para a Jack que
tem uma péssima visão.
— EU TENHO O QUÊ?
— Mas, pelo visto, o ouvido até que é bom — caçoou.
Kim, impaciente, aproximou-se dos dois e arrancou Gwendolyn à força
dos braços de Caspar, que interpretou uma cena dramática e silenciosa.
— Eu vou sentir sua falta.
— Chega de drama. Temos um bracelete para encontrar. Garotos —
chamou a ruiva —, contamos com vocês.
Jack não perdeu a oportunidade de provocar. Encarou Dimitri.
— Ouviu isso? Eu tenho um bracelete para encontrar.
— Não se eu encontrar primeiro — retrucou o novato.
Os dois aproximaram-se com raios nos olhos. A tensão entre eles era
nítida a metros de distância, o que foi comprovado cientificamente, quando
Caspar puxou Dimitri para longe, mas ele e a timoneira não cederam o
olhar. Só foram desviá-los quando os garotos chegaram à fenda misteriosa.
Dimitri olhou para dentro. Caspar engoliu em seco.
— Parece que é fundo.
Dimitri não estava mais tranquilo, mas alguém na dupla tinha que
incentivar a coragem por ali.
— Se não tiver nada do outro lado, voltamos para cá.
Caspar fez um sinal rápido de reza.
— Deuses, tomara que não haja tubarões.
E mergulharam.

28 graus Sul, 3 graus Oeste. Nível do Mar. Nadia Keane.

Alguns metros acima, um garoto chamado Poeta roía as unhas, tentando


controlar o nervosismo. Gesticulava com as mãos, tentando entender
exatamente o que havia acontecido.
A cela estava trancada, então ela pode ter evaporado junto com a água,
senhor. Deve ser uma coisa de sereia, pensava. Não, espera. Isso não faz
sentido. Tá, calma. Pensa, Poeta, pensa... a sereia sumiu e não há nada que
você possa fazer a respeito, a não ser avisar o capitão, tentava se convencer.
É... é o mais sensato a se fazer. Ele vai entender.
Seus nervos começavam ceder à calma. Depois de decidir ao certo o que
faria e o que falaria para seu superior, não podia deixar de refletir sobre qual
seria a sua resposta. Ai, os nervos.
Mas o que ele vai dizer?... “Poeta, seu moleque tolo. Pedi para ficar de
olho na sereia e você fez piada das barbatanas dela. Bem-feito. Vá avisar
Zuca para mandar uma equipe de busca pelo navio” ... parece com algo que
ele diria, pensava.
Seu coração começava a acelerar. Ai, estes nervos.
Bom, na pior das hipóteses... “Poeta, estou muito decepcionado com
você. Vai ser rebaixado a criado de bordo e perderá a sua cabine particular.
Ah, e seus óculos são ridículos”.
Poeta estava entrando em parafuso.
Droga... isso também parece muito com algo que ele falaria, respirou
fundo. Não. A culpa é minha e eu preciso arcar com as consequências. Ele é
o capitão e merece saber da verdade. Que eu sou um péssimo subordinado
que precisa pagar pelo estrago que fez!
Da maneira mais estranha possível, Poeta parecia estar confiante quanto
à sua decisão. Marchou até a frente da cabine nobre do capitão Hall e
encarou aquela enorme porta de mogno. Soltou o ar pela boca e levantou a
mão para agarrar a aldrava. Estava prestes a bater, mas, antes que sua mão
tocasse o enfeite de metal, ouviu um barulho ensurdecedor vindo do lado de
dentro do quarto.
Tudo bem, isso é assustador, paralisou de medo por um instante. Quero
ver o que é.
Fato sobre Poeta: sua curiosidade precisava ser alimentada
frequentemente, senão o garoto morria de fome. Como um verme, arrastou-
se de mansinho até a janela de vidro e levantou uma das lentes especiais de
seus óculos para enxergar o que estava acontecendo dentro dos aposentos
de Patrick Hall. Dali ele podia ouvir tudo. E ouvir até demais.
— IDIOTA! — gritou Hall.
Um tamanco voou pelos ares e estilhaçou a janela onde Poeta se
encontrava. Faltou um centímetro para que o garoto fosse empalhado.
Abaixou-se rapidamente e, então, voltou a espiar.
Zuca tentava chegar perto do capitão.
— Hall, você precisa se acalmar.
— Me acalmar? — Hall estava vermelho de raiva, dentro de um roupão
para dormir. — Estamos perdendo quase duas semanas de viagem e
perderemos ainda mais por conta deste desvio de rota idiota.
Seria uma cena até engraçada, se ele não tivesse rido, alucinadamente,
como fez em seguida. A gargalhada alta de Patrick Hall era de pôr medo em
qualquer marujo. Poeta estremeceu.
— Quer saber? Sou eu. — Hall ria. — Eu sou o idiota... idiota por ter
ouvido aquela bastarda!
E a raiva voltou a reinar. Jogou um dardo na parede que quase acertou
Poeta novamente. Patrick Hall ficava sem noção alguma de mira quando
perdia a calma.
— Não se pode acreditar em sereias, eu não sei o que deu em mim. —
Jogou-se cansado na poltrona e esfregou a testa.
Zuca, mantendo a compostura, respirou fundo.
— Foi o que eu disse para o senhor, mas agora não adianta lamentar. O
que está feito está feito e não vamos recuperar o tempo perdido. Com
alguma sorte, sairemos desta história com informações confidenciais sobre
John Kirk e o seu paradeiro.
Hall cuspiu uma risada e bebeu um gole de seu vinho.
— Pff... sorte. — Suspirou. — Tem razão, homem.
O capitão, em trajes menores, direcionou-se à porta a fim acompanhar
seu imediato até a saída. Poeta aprontou-se.
— Só espero que você esteja certo, senão eu vou estrangular aquela
bastarda.
Como se ele fosse capaz de machucar uma mulher, pensou Zuca,
achando engraçado.
Patrick Hall, ainda segurando sua taça de vinho, abriu a porta, revelando
um Poeta de cabelos arrepiados.
— Ah, moleque pintor. — Mexeu a taça em círculos e bebeu. — Você
queria falar comigo?
Poeta engoliu em seco.
— AH, sim, capitão... — gaguejou. — Vim, eu vim... avisar que o
almoço está saindo.
Mas Patrick Hall não parecia ter prestado muita atenção. Apenas deu um
sorriso forçado e voltou a beber seu vinho, fechando a porta na cara de seu
pobre subordinado. Poeta manteve o sorriso até quando pôde. Então, voltou
a roer as unhas.
30

O SEGREDO DOS NEREIANOS

A Cidade de Volta era conhecida por ser grandiosa e bela. Mas suas
ruínas eram como um reino amaldiçoado. Dimitri e Caspar nadavam
diretamente para a escuridão. Quando já era praticamente impossível de se
enxergar, os garotos ligaram suas lanternas embutidas nos óculos e
continuaram em frente.
Foi a surpresa do que viram em seguida que fez com que Dimitri soltasse
o ar. Dois rapazes pequenos estavam em frente à arquitetura de gigantes.
Em frente aos seus olhos, havia uma parede imensa sem início ou fim. Por
toda a sua extensão, havia gravuras feitas em pedras de todas as cores e
escrituras antigas. Quanto mais iluminavam, mais podiam ver. Não tardou
para que Caspar levasse um susto com o desenho de um tubarão.
Enquanto o colega se recompunha, Dimitri apontou para cima,
visualizando o que parecia ser um pequeno bolsão de ar. Os dois deram
impulso e chegaram na superfície para respirar. Dimitri tossiu água e pôs os
cabelos molhados para trás, animado.
— Você viu aquilo?
Caspar não tinha a mesma energia.
— Se você está falando da parede gigante e assustadora, sim, eu vi!
— Devem ser escrituras originais da Cidade de Volta... — Dimitri
pensava em voz alta, passando a mão pela enorme parede.
— Acha que conseguimos ler? — perguntou Caspar.
Agora que as coisas começavam a ficar interessantes. Os rapazes
mergulharam de volta para a penumbra abissal e cada um iluminou uma
parte diferente. Dimitri tentou decifrar aquelas letras, enquanto Caspar deu
o azar de levar outro susto. Dessa vez com uma cobra marinha. Os dois
voltaram para respirar.
— Povinho macabro esse — resmungou Caspar, ofegante.
— Droga — reclamou Dimi. — Acho que deve estar escrito em algum
dialeto antigo. Só consegui entender algumas partes.
— Pelo que eu entendi, está contando sobre o dia do nascimento de uma
princesa.
Dimitri fez uma careta.
— Você consegue ler aquilo?
— É Motokore, a base da nossa língua, só um pouco mais arcaica. Você
não consegue ler?
O novato fechou a expressão. Não queria admitir, mas era um pouco
humilhante Caspar saber daquilo e ele não.
— E por que o nascimento de uma princesa seria tão relevante para estar
registrado numa parede deste tamanho?
Caspar deu de ombros.
— A família real não tem limites, Dimitri. Eles usam papel higiênico de
ouro.
— Como você... — Dimitri não estava entendendo mais nada.
— Ainda mais os de Volta — continuou o loiro. — Cara, eles eram os
donos do centro do mundo. Da capital mais famosa de Aklas. Não me
surpreendo com esse tipo de coisa. — Apontou para a parede, indignado. —
E pensar que uma cidade como Volta desapareceu no oceano
misteriosamente da noite para o dia... já começa a rolar umas teorias da
conspiração.
Era só falar em teorias da conspiração que os olhos de Caspar brilhavam.
— Onde está o resto da cidade?
— Terra Coral não fica muito longe daqui — explicou o rapaz da
pólvora. — Deve estar a uns vinte quilômetros para sudoeste. Cidade de
Volta deve ter se dividido por alguma razão quando afundou.
Aquilo não descia na garganta de Dimitri. Aquela história toda.
— Tem alguma coisa errada aqui.
— Tirando o péssimo gosto artístico desse pessoal?
— Por que estamos aqui se Terra Coral é a vinte quilômetros para
sudoeste?
E Caspar não parecia acompanhar.
— Estamos procurando o Bracelete de Nêmona Coral, por que não
estaria aqui?
— Exatamente por isso!
Foi a vez dos olhos de Dimitri brilharem. Mas o brilho não era apenas de
fascinação por história. Era de medo também.
— Não estamos em Terra Coral. Estamos em território de Volta,
território humano. Não há nereianos aqui e por quê? Porque eles não
conseguem viver aqui. Há bolsões de ar por toda a parte. Por que esconder
uma relíquia nereida em um lugar onde nereianos não têm acesso?
As engrenagens cerebrais de Caspar funcionavam no seu próprio tempo.
— ... acha que a sereia mentiu?
Bingo, ele finalmente entendeu.
— Ah, cara! Eu sabia — reclamou, indignado. — Quando ela veio com
aquele papo de maluco, eu sabia que não dava para confiar. — Então, parou
para pensar. — Espera... se a Aran é uma sereia, como que ela tem pernas?
É, ele não entendeu, pensou Dimitri.
— Porque a Aran é invenção da sua cabeça — provocou o moreno, em
seguida, mergulhando.
Caspar fez uma careta.
— Ahá, muito engraçado. Agora eu que sou o maluco.
E mergulhou atrás de seu companheiro.
Enquanto os garotos brincavam de ser pirata, as marujas de verdade
tinham seus próprios problemas. Kim andava pelo salão principal com
Gwendolyn, em busca de metais. Não parecia ser um trabalho muito
cansativo, apesar da contramestre estar bocejando. Poderiam ser bocejos de
tédio também. Mas ela tinha dado o trabalho pesado todo para Jack, que
mergulhava incansavelmente em busca do bracelete. Seus olhos quase que
tinham a palavra “revoltada” escrita em suas pupilas.
Voltou para a superfície e cuspiu água.
— Pensei que quem viesse com você, ia poder usar o detector.
— Conseguimos procurar mais rápido desse jeito.
Jack aprontou-se para sair da água.
— Se é assim, então vamos trocar de lugar um pouco.
Kim empurrou a cabeça da timoneira de volta para baixo.
— Você é mais jovem, tem mais fôlego que eu.
Jack bufou e tirou a franja da frente dos olhos.
— Tá bom, vovó — reclamou e voltou a mergulhar.
Kim, desde o início, achava que aquela missão era perda de tempo, mas
seus pensamentos começavam a se concretizar naquele instante. Ou
estavam sendo enganados ou Gwendolyn era só uma tralha mesmo. Foi
quando, pela primeira vez, ela apitou.
A contramestre levou um susto e a timoneira ouviu o barulho mesmo
com a cabeça submersa. Pulou para fora da água e saiu correndo em direção
à ruiva para ver o que era.
— Onde é que é?
— Apitou onde?
As duas estreitaram os olhos.
— Aqui, aqui!
Pareciam duas crianças brincando de caça ao tesouro. Abaixaram-se e
cavaram por entre uma pilha de objetos abandonados. Estavam perto de
verdade. Seria ouro? Seria... o bracelete?
Kim tirou alguma coisa brilhante dali e assoprou para ver o que era. Sua
expressão murchou no mesmo instante.
— Tá de brincadeira.
— O que é? — Jack abriu espaço para ver. Sua reação foi muito parecida
com a da amiga. — Um garfo?
Kim bufou.
— Eu vou matar o Poeta.
E aquela era a deixa de Jack.
— Ou é você que não sabe usar a Gwendolyn — provocou, já esticando
a mão para finalmente pegar o detector de metais.
Mas Kim não parecia estar prestando atenção.
— Argh, odeio esta sensação.
— De se sentir burra? — Jack ainda tentava alcançar Gwen.
— De sentir que tem alguma coisa fora do lugar e não ter controle sobre.
Não faz sentido.
Até que a timoneira desistiu.
— O quê?
— Essa missão. Essa história do bracelete.
Jack suspirou.
— Bom, talvez Nêmona usou suas pernas para chegar até aqui e guardar
o bracelete seguro onde ninguém nunca encontraria.
— E que raios ela fez para voltar depois? — Kim começava a aumentar
o tom da voz.
— Ué, do mesmo jeito que nós. Nadando.
A contramestre cruzou os braços.
— Isso não me cheira bem. Patrick não devia ter caído na conversa de
uma sereia.
Jack mergulhou em seus pensamentos. Sim, havia uma coisa que a
incomodava desde que Rizo havia chegado ao Nadia Keane.
— ...ainda não entendo por que os olhos dela eram escuros.
Kim fez uma careta.
— Por que está preocupada com isso?
— Sereias deveriam ter os olhos brancos como qualquer outra criatura
do reino do mar — começou, então se sentou. — Pensa comigo. Os
Nascidos da Lua têm olhos violeta. Os Nascidos do Sol têm a cor de acordo
com o seu sangue. Sangue do Sul, olhos azuis. Do Oriente, verdes. Do
Ocidente, dourados. E do Norte, vermelhos.
— E uma “jasper” como eu... — pensou alto a contramestre de olhos
cinzentos. Ela havia entendido o porquê da preocupação da timoneira.
— Exato! — continuou Jack. — Mas você já viu alguém com olhos
ônix?
Havia um certo medo em sua voz. Pela primeira vez na história, Jack
sentira medo do desconhecido.
— Não. Aquilo não é uma sereia. É algo totalmente diferente.
31

RIVALIDADE DOS CABEÇA DURA

Depois de alguns bons minutos segurando o fôlego, que pareceram uma


eternidade, Caspar e Dimitri emergiram do outro lado. Apoiaram-se no que
parecia ser uma escada, tossindo e recuperando o ar em seus pulmões.
Depois de segundos deitados parcialmente submersos, Dimitri deu um tapa
de mão molenga no rosto de Caspar para chamar sua atenção.
— Cara...
Caspar, parecendo uma criança deslumbrada, levantou a cabeça e ficou
boquiaberto com o que viu.
— Wow.
Em sua frente, havia um salão ainda maior do que o primeiro. Mais
misterioso também. O teto era mais alto e não havia objetos abandonados.
Podia ser impressão, mas parecia até mais escuro do que o cômodo das
meninas. O reflexo da água cintilava nas paredes, dando um ar “covil e
sombrio” para o lugar. Dimitri, sem desviar os olhos da maravilha em sua
frente, ofereceu a mão para Caspar levantar.
— Wow. — O rapaz da pólvora estava babando.
— Você já disse isso.
— É eu sei, mas... wow.
Dimitri sorriu entusiasmado e apressou o passo.
Os garotos correram escada acima, abrindo os braços e chutando água,
deliciando-se com a descoberta.
— Os primeiros homens a descobrir as ruínas perdidas. — Ria Caspar.
Mas eles não eram os primeiros. Um pouco mais adiante, podia ser
difícil de notar, mas havia três cabeças desconhecidas observando os
garotos por trás de uma pedra oculta. Não se sabia quem era, pois seus
rostos estavam mascarados com o desenho de animais. Um guaxinim, um
corvo e uma raposa. Era difícil de distinguir suas vozes também, mas
consegui captar parte da conversa por entre sussurros.
— É ele mesmo? — o cara de corvo perguntou.
— É o que vamos descobrir — respondeu o guaxinim.
Caspar, com certeza, era o mais animado da dupla. Pulava de um lado
para o outro, brincando com o eco.
— Eureca!
E o salão respondia: eureca, eureca... reca... eca...
Dimitri ria do companheiro, fazendo sinal de silêncio.
— Quer parar com isso? Vão nos ouvir!
— Estamos a vinte metros debaixo da superfície. Quem vai nos ouvir?
Nem o moleque de poucas palavras se aguentou. Deu um largo sorriso e
os dois gritaram.
— EURECA!!!
Eureca, eureca... reca... eca.
— AU, Au, AUUUU! — uivavam imitando lobos.
Au, au, Auuuuuu...

28 graus Sul, 3 graus Oeste. 20 metros abaixo do nível do mar. Câmara


Um.
Quem estava na superfície, certamente não ouviria. Por outro lado...
Kim fez uma careta.
— O que é isso, hein? Você ouviu também?
Jack aguçou os ouvidos e deu de ombros.
— Deve ser algum animal ferido.

28 graus Sul, 3 graus Oeste. 20 metros abaixo do nível do mar. Câmara


Dois.

Enquanto as meninas lidavam com maturidade, os garotos riam


abobalhados como duas bestas bêbadas. E rolavam no chão. Gargalhavam
como se estivessem sob o efeito de gás hilariante. Dimitri ria tanto que sua
barriga doía, quando tampou a boca de Caspar e pediu silêncio.
— Shh!
Mas Caspar não conseguia parar de rir, o que contagiava Dimitri
também.
— Cala a boca, guri.
— Guri. — Caspar ria que não aguentava mais. — Você é muito caipira.
Dimitri riu e soltou o amigo, deixando Caspar abestalhar sozinho no
chão. Então, levantou-se, amarrou melhor o cinto ao redor das calças e
prendeu o cabelo.
— Como será que as garotas estão se saindo?
O rapaz da pólvora ergueu-se com dificuldade e limpou as lágrimas de
riso de seus olhos. Ele estava se esforçando para ficar sério.
— Aposto que a Kim deu um jeito. Ela é muito boa com essas coisas.
— Coisas? — Dimi fez uma careta, sem entender.
— Ah, essas missões impossíveis do Hall. Nega-se a voltar com cara de
derrota. Elas vão tirar isso de letra.
Dimitri cruzou os braços, voltando a se concentrar.
— Espero que não. Espero que a gente encontre o bracelete primeiro.
Foi a vez de Caspar não entender.
— Por quê? Quer provar alguma coisa por acaso? Saiba que por
encontrar uma bobagem dessas, o capitão não vai te odiar menos.
— Eu não estava falando disso. Não tenho que provar nada para
ninguém.
— Você está diferente, sabia?
— Como assim?
Caspar deu de ombros.
— É a primeira vez que vejo você sorrir de verdade.
Dimitri surpreendeu-se com a resposta, encolhendo-se e pondo o cabelo
na frente do rosto.
— Animado com a missão, de onde veio isso? O que aconteceu?
— Alguém me disse para aproveitar a viagem — respondeu o garoto,
pensativo.
— E você está?
O novato segurou-se. Quero que trabalhe para mim, aquela voz nojenta
de Lars, o Atroz, ecoava em sua cabeça. Tinha certas coisas que ele não
podia simplesmente contar.
— Tem alguns obstáculos no caminho.
Caspar sabia que tinha encontrado o ponto fraco. Deu um sorrisinho.
— Ah, então imagino que isso não tenha nada a ver com a sua
competiçãozinha com a Jack.
Dimitri arregalou os olhos, mas escondeu-os por baixo da franja.

28 graus Sul, 3 graus Oeste. 20 metros abaixo do nível do mar. Câmara


Um.
Na outra sala, Kim ainda procurava por tesouros.
— Parecem duas crianças disputando notas de prova na escola — e
Gwendolyn apitou — ah, bingo!
Jack torcia mechas do cabelo para secar.
— Nada a ver! Só não posso deixar um frouxo daqueles passar a perna
em mim.
Kim abaixou-se para ver o que tinha encontrado, mas para a sua
desgraça, mais uma vez, era apenas um pente com enfeites em prata. Um
maldito pente. Suspirou e guardou-o no bolso. Poderia vir a calhar mais
tarde.
— Isso tem a ver com você não ter ganhado a corrida do outro dia, não
é?
Jack sentiu as bochechas queimarem.
— Claro que não!
Kim arqueou uma das sobrancelhas. Jack não conseguia mentir para ela.
— ...talvez.

28 graus Sul, 3 graus Oeste. 20 metros abaixo do nível do mar. Câmara


Dois.

— A Jack é tão... tão... — Dimitri não conseguia pôr em palavras. — Ela


me irrita demais. Se acha o máximo e se acha invencível.
E Caspar era seu psicólogo.
— E você quer tirá-la do pedestal e provar que pode ganhar dela.
Dimitri encolheu os ombros.
— ...talvez.
Caspar deu um pulo e riu alto.
— Ahá! Diz o cara que falou que não tinha que provar nada para
ninguém. Aposto que quer provar a ela que é sim um homem do mar.
— Do que é que você está falando?
Caspar suspirou e revirou os olhos.
— Ah, Dimitri. Conta outra. Como se eu não soubesse disso. Eu posso
parecer idiota, mas não sou. Eu vejo as coisas, sei das coisas. — Apontou
para a própria testa. — Sei que tem a ver com você não ter ganhado a
corrida de vocês do outro dia.

28 graus Sul, 3 graus Oeste. 20 metros abaixo do nível do mar. Câmara


Um.

— Ahá! Eu sabia. — Kim puxou um sorriso provocante nos lábios. —


Você não aguenta admitir para si mesma que tem um rival à altura. Ainda
mais quando estava tão confiante sobre ganhar aquela corrida.
— Não é nada disso — Jack retrucava. — Só não houve um vencedor e
isso me deixa frustrada.
— E essa competição pelo bracelete?
— É só uma maneira de vermos quem é o melhor e acabar com o
empate.
— E desde quando você tem que provar isso, ainda mais para um
molenga que nem ele?
Jack não respondeu. Kim suspirou.
— Quanta infantilidade...
— Que nada, você me conhece. Eu só sou competitiva.

28 graus Sul, 3 graus Oeste. 20 metros abaixo do nível do mar. Câmara


Dois.
— Competitivo e um cabeça dura! — Caspar estava jogando todas as
verdades na mesa.
E Dimitri sentia-se um tanto derrotado pelos argumentos do colega.
— Você e Jack são iguaizinhos.
— Eu não sou nem um pouco parecido com aquela garota — reclamou
Dimi.

28 graus Sul, 3 graus Oeste. 20 metros abaixo do nível do mar. Câmara


Um.

— São teimosos do mesmo jeito — provocou Kim. — Mando ficar


calado, e ele vai lá comprar briga. Igualzinho a você.
— Foi ele que começou essa rixa — disse Jack, dando de ombros, como
se fosse a dona da razão.

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Dois.

— ELA QUE COMEÇOU!


Caspar se segurava para não rir das reações alteradas do novato. Ele não
conhecia esse seu lado.
— Mas foi você que apostou em nome de Nathaniel Dyi e agora não
quer perder os dedinhos. — Caspar mexia os dedos com um sorriso cínico
no rosto.
Dimitri bufou.
— Você que me ensinou.
— Nossa que amigo péssimo eu devo ser. — Apoiou-se no ombro de
Dimi. — Falando sério, Dimitri. Pensei que não ligasse para o que os outros
pensam de você ou se importasse com qualquer pessoa do nosso navio.
Dimitri tirou o cotovelo do loiro de cima do ombro e se afastou. Caspar
suspirou.
— Eu não vou te julgar, juro. Nem imagino como é ter perdido as
memórias e não ter no que se apegar.
O rapaz da pólvora falava na maior naturalidade, como se tivesse lido os
pensamentos mais profundos de Dimitri que pareceu surpreso.
— Você inventou esse “propósito” doido de querer ser respeitado e
ouvido no navio e entendo que superar um pirata de verdade tiraria das suas
costas o peso do fardo de ser “filho de caravela”.
Desde quando Caspar é tão atencioso?, pensou Dimitri, surpreendendo-
se com o intelecto do companheiro.
— Mas por que a Jack? — continuou o rapaz da pólvora, confuso. —
Quer dizer, ela é a última pessoa que você deveria estar se metendo. Pensei
que soubesse disso.
Dimitri baixou os olhos.
— Eu sei, eu sei... ela é contagiante. Mas sabe o que mais é contagiante?
Resfriado. E Jack é um dos brabos, colega. Ela é maluca! Não vai conseguir
ganhar dela.
Sem levantar os olhos, Dimitri respondeu:
— Eu sou um homem de palavra. E um homem que apostou em
Nathaniel Dyi.

28 graus Sul, 3 graus Oeste. 20 metros abaixo do nível do mar. Câmara


Um.
Jack tinha fogo nos olhos.
— Eu não vou perder.

28 graus Sul, 3 graus Oeste. 20 metros abaixo do nível do mar. Câmara


Dois.

Dimitri levantou a cabeça com determinação.


— Eu não vou perder.
Caspar, quem tinha uma careta no rosto, aliviou as feições e deu de
ombros.
— ...tudo bem. Eu vou engolir a minha língua da próxima vez.
E apontou para a frente com um sorriso no rosto.
— Deve ser seu dia de sorte.
32

A PROMESSA DE UM HOMEM

Dimitri levou seus olhos até onde Caspar apontava, e os dois


caminharam naquela direção. Algo lá longe parecia brilhar. Algo em cima
de um belo pedestal de pedra. Os garotos aproximaram-se curiosos e seus
rostos foram gradualmente sendo iluminados por um objeto magnífico
preso no centro da rocha misteriosa. Sem acreditar no que viam, os dois não
tiveram outra reação senão rir e trocar um cumprimento desajeitado de
mãos.
— Ah, cara, olha só para essa belezinha!
— Que beleza... — Dimitri aproximou o rosto. — De perto é ainda mais
bonito.
Rodeou o pedestal para analisar o bracelete de todos os ângulos, quando
percebeu que havia símbolos e escrituras marcadas na pedra.
— Olha só — chamou.
— O que foi?
Dimitri passou os dedos por cima das letras mal escritas.
— “Leve o bracelete de sua mansão...” acho que são instruções.
— Instruções para quê?
Caspar odiava a parte histórica das missões. Ele queria mesmo era o
ouro. Enquanto Dimitri continuou lendo, ele foi dar uma olhada de perto no
bracelete.
Dimitri arregalou os olhos com o que leu em seguida.
— “... e sofrerá com as consequências da maldição.”
Levantou a cabeça em desespero.
— CASPAR!
— É, engulam essa garotas!
Caspar tinha em mãos o bracelete de Nêmona Coral e balançava-o no ar,
contente. Não tardou para que o salão inteiro estremecesse.

28 graus Sul, 3 graus Oeste. 20 metros abaixo do nível do mar. Câmara


Um.

Kim e Jack sentiram o chão aos seus pés começar a ceder.


— O que foi isso?
De certa forma, Kim tinha certeza.
— Argh... o que aqueles imbecis fizeram?!
Jack tinha seus olhos agora voltados para o teto quando puxou o braço da
irmã, como uma criancinha assustada.
— Kim...
A contramestre percebeu a desgraça que estava prestes a acontecer e
agarrou a mão da pequena.
— Vem, precisamos sair daqui.
E mergulharam em busca de um raio de sol.

28 graus Sul, 3 graus Oeste. 20 metros abaixo do nível do mar. Câmara


Dois.

As coisas não estavam muito melhores do outro lado. As paredes


começavam a rachar, querendo deixar a água tomar conta daquele santuário
perdido. Dimitri não sabia se sentia mais desespero ou raiva.
— Você não ouviu nada do que eu falei? — Dimitri balançava os ombros
de Caspar.
— Põe de volta no lugar. — O loiro jogou o bracelete.
Dimitri estava incrédulo.
— Põe você!
Caspar, em um reflexo involuntário agarrou novamente o bracelete,
percebendo a roubada em que havia metido os dois.
— Ah, cara... a gente vai morrer.
— Não, calma. Só precisamos dar um jeito de sair daqui.
Por conta de uma rocha solta, os dois correram de volta para as escadas e
frearam o passo. Dimitri precisava ser o cérebro da operação naquele
momento, por mais que ele não quisesse. Esfregou a testa, tentando pensar
em alguma coisa.
O que fazer, o que fazer, o que...
Olhou ao redor à procura de uma saída, quando seus olhos encontraram a
fenda por onde haviam chegado. Ainda estava aberta. Sorriu.
— Isso. Caspar, passa o bracelete para mim.
— Ah, agora você quer.
Dimitri fez uma careta.
— Só passa logo.
Caspar bufou e passou a relíquia de titânio.
— Eu vou na frente, porque sou mais rápido e abro caminho para a gente
passar — começou o garoto. — Você é mais forte, então me dá cobertura
por trás caso veja algum obstáculo. Passamos pelo bolsão de ar no meio do
caminho para respirar e voltamos até a primeira sala nessa mesma
formação. E se adiantar alguma coisa, você fecha a fenda.
Caspar não tinha entendido o suficiente para contrariar.
— Tá, parece um bom plano — concordou.
O teto tremeu mais uma vez, e a água começava a entrar sorrateiramente
pelas laterais de toda a construção, como se fossem cobras marinhas. Logo,
logo, aquele lugar viraria uma enorme piscina. Dimitri mergulhou na frente
e Caspar foi logo atrás. Passaram ilesos pela primeira passagem e também
pela segunda. Voltaram pelo mesmo caminho que haviam feito no início, só
que dessa vez os obstáculos eram maiores. Os desenhos e escrituras da
parede gigante desabavam, querendo levá-los junto para a escuridão abissal.
Caspar ligou a lanterna e pegou a mão de Dimitri para desviarem de um
enorme obelisco vindo em sua direção. Ofegante, Dimitri saiu pela fenda,
chegando na primeira sala.
— Ainda bem. As garotas já saíram daqui. — Levantou-se. — Vamos
dar o fora.
— Ahoi, capitão — brincou Caspar.
Quando deu impulso para subir, alguma coisa o impediu. Arregalou os
olhos, pensando em todas as possibilidades e fez mais força. Nem sequer
um centímetro conseguiu se mexer. Dimitri nem havia notado e já se
direcionava para a saída, enquanto Caspar rastejava, tentando de todas as
formas sair. Então, olhou para baixo. Seu pé havia sumido. Duas rochas
enormes haviam colidido e o prendido de jeito. Ao ver que a água
começava a alcançá-lo, Caspar se desesperou de verdade.
— DIMITRI!
O moleque moreno ouviu a voz de Caspar vindo de longe e estranhou.
Quando virou, arregalou os olhos, percebendo que o colega estava preso.
— Caspar?
No momento em que deu um passo em direção ao loiro, uma pedra
enorme caiu em sua frente, jogando-o para trás com o impacto. Dimitri
abriu os olhos, mas estava tudo embaçado. Não sabia ao certo, mas ouvia
um apito. Seria de seu próprio ouvido? As vozes, os barulhos estavam
abafados. Fez força com a mão para levantar e foi quando sentiu sua cabeça
latejando. Tinha sido uma queda bem feia. Olhou para seus pés, seus
joelhos, seus braços, seus punhos, suas mãos...
Espera.
O bracelete havia sumido.
Deve ter caído do meu braço quando eu fui arremessado, pensou.
Levantou rapidamente e pôs-se a procurar pelo artefato. Procurou por
entre as pedras, por suas roupas e bolsos. Procurou pelo chão e foi quando
percebeu que a água já batia no meio de suas pernas. De repente, aquela
sensação surgiu. A sensação de estar esquecendo de alguma coisa.
— Caspar!
Correu em direção à fenda em que o rapaz da pólvora tinha ficado preso,
quando viu algo brilhando no chão. Freou o passo por um instante e
estreitou os olhos.
— O bracelete...
— DIMITRI! Por fav...
Dimitri virou-se para Caspar e foi quando ele viu. O colega estava
começando a engolir água. Fazia esforço para conseguir subir, mas era
impossível. Ele iria morrer.
Quer provar alguma coisa por acaso?, lembrava da voz do loiro ecoando
em sua mente. Saiba que por encontrar uma bobagem dessas, o capitão não
vai te odiar menos.
Eu não vou perder.
Seus olhos viajaram do bracelete para Caspar. Então para o bracelete.
Então... para Caspar. Ele sabia o que tinha que fazer. Com um impulso
rápido, Dimitri correu o mais rápido que pôde, aproveitando o embalo para
ganhar velocidade. E mergulhou.
Caspar já estava completamente submerso, ainda puxando a perna para
tentar se salvar, mas seu ar já queimava querendo sair dos pulmões. Dimitri
aproximou-se do problema e estudou a situação. O pé dele estava preso
exatamente entre duas rochas que envolviam seu tornozelo. Seria
impossível passá-lo totalmente por aquele espaço. Mas ele visualizou uma
brecha. Uma das rochas era um pouco menor. Dimi não era muito forte,
mas talvez conseguisse movê-la um pouquinho. Subiu rapidamente para
respirar, prendeu o ar e voltou a mergulhar. Fez força para cima, mas seus
músculos tremiam, queimavam de dor.
Nada.
Olhou para cima. Caspar estava desacordado. Dimitri subiu mais uma
vez para pegar ar. Já não conseguia ficar de pé, a água estava subindo muito
rápido. Respirou, mas dessa vez, não usou o oxigênio para si mesmo. Foi
em direção a Caspar e pôs sua boca na dele, passando todo o ar que tinha
para o colega, em um ato de desespero.
Nada.
Dimitri subiu mais uma vez e puxou o ar que lhe restava. Foi até Caspar
e emprestou seu oxigênio mais uma vez, torcendo para que chegasse em
seus pulmões.
Caspar abriu os olhos, soltando bolhas pela boca. Dimitri mergulhou
mais fundo e voltou sua atenção para as rochas.
Você consegue. Você é um homem do mar, aja como um!
Concentrando toda a energia que restava em seu corpo, contraiu os
músculos do braço e empurrou a pedra para cima. Mais, visualizava. E
empurrava com mais força. Mais, mais. Seus braços fininhos tremiam, mas
ganhou toda a força que precisava, quando viu que a rocha movimentou.
Afastou-se. Ele tinha uma nova tática para testar. Pegou impulso e chutou
as rochas, gastando tudo a sua energia. O salão tremeu.
Caspar conseguiu se soltar e, vendo que Dimi estava atordoado, puxou
sua mão para cima, levando os dois de encontro com o bolsão de ar. De
encontro mais uma vez com o oxigênio, os dois respiraram o máximo que
conseguiam.
— Ah, valeu, mano — agradeceu Caspar, ofegante. — Fico te devendo
essa.
Olhou ao redor. Estavam a metros de distância do chão agora. A água
tomava conta de pelo menos metade do salão. Olhou para baixo. A saída
estava muito longe.
— Vamos sair logo daqui.
— Espera — chamou Dimitri, também ofegante. — O bracelete ficou
preso lá embaixo.
Caspar fez uma careta.
— Tá falando sério? — Deu um tapa no rosto de Dimitri. — Esquece
isso. A gente pode morrer aqui!
— Eu vi onde caiu. Vai na frente e não para até chegar no navio, que eu
vou estar logo atrás de você... confia em mim.
Algo nos olhos de Dimitri dizia a Caspar que ele estava falando a
verdade. O loiro respirou fundo.
— Dimi, tem certeza disso?
Por incrível que pareça, Dimitri deu um sorriso naquele momento.
— Eu sou um homem de palavra, Cas.
E Caspar sentiu um aperto no peito. Então trocaram um cumprimento de
mão.
— Só... não morre, beleza?
Dimitri assentiu.
— Beleza. A gente se vê lá em cima, eu prometo.
Os dois concordaram com a cabeça e se separaram. Apesar de
preocupado, Caspar cumpriu com sua parte. Mergulhou e foi embora. Não
parou até chegar no navio.
E Dimitri... bem, Dimitri fez a parte dele. Mergulhou até onde havia
avistado o bracelete e ligou sua lanterna. Começava a ficar muito escuro lá
embaixo e até a luz de seus óculos parecia ir contra ele. Tentou ligar e
desligar, mas a lanterna já era. Pelo menos ele conseguia ver o bracelete.
Alongou o braço e achatou a lateral do rosto nas rochas para tentar chegar o
mais perto possível. Sem poder usar os olhos, tateou e tateou em busca do
bracelete. Até que sentiu aquele material gelado em algum lugar por ali.
Estava um pouco mais longe e em um ângulo difícil de chegar. Dimitri não
percebeu, mas quando mais mexia seu braço, mais uma daquelas rochas
ameaçava cair em cima dele.
Até que...

28 graus Sul, 3 graus Oeste. Nível do Mar, Nadia Keane.

Kim e Jack foram as primeiras a chegar na superfície. Cuspindo água


para todos os lados, as marujas perceberam que Apa esperava por elas com
uma chalupa próxima ao Nadia Keane. Seguraram-se na borda e deram
impulso para subir. Kim primeiro para, então, ajudar Jack. Jack deu seu
impulso, chutando algo maciço que estava debaixo de seus pés, sem nem
ligar para o que era.
— AHH. — Caspar engoliu água.
É. Era a cabeça de Caspar.
Jack olhou para baixo e viu a cabeleira loira fazendo estardalhaço.
— Ah, era você. Foi mal, não te vi aí, cabeçudo.
Caspar apoiou-se na borda do bardo e cuspiu água para fora.
— Haha. — Riu, sarcasticamente.
As garotas ajudaram-no a subir, cada uma puxando um dos braços.
Caspar sentou no banco da chalupa e balançou a cabeça para secar o cabelo,
como se fosse um cachorro vira-lata.
— Ei, vai com calma — reclamou Jack.
Só então ela parou e percebeu que algo estava faltando.
— Espera, onde está o Dimi?
Poeta olhava toda a cena lá de cima do convés do Nadia Keane, aliviado
pela maioria de seus colegas de bordo estarem a salvo. Mas sua paz não
durou muito tempo.
— ONDE ESTÁ A SEREIA?
A voz de Patrick Hall soou como um trovão, fazendo Poeta pular de
susto ao se virar para trás. O capitão aproximou-se do moleque pintor.
— Sabe de alguma coisa, garoto?
Poeta levantou as mãos nervoso, medindo as palavras que falaria em
seguida. No momento em que abriu a boca, o navio inteiro estremeceu com
uma força imensa vindo de baixo. Foi quando perceberam que as ruínas da
torre estavam desaparecendo da superfície. Poeta, em um reflexo rápido,
olhou ao seu rastreador e percebeu que um dos pontinhos vermelhos ainda
não havia voltado. Ainda estava submerso.
— Dimi...
— Argh, esquece — rugiu Patrick Hall. — Vamos embora antes que isso
vire um maremoto e nos sugue para as profundezas. Ted — apontou para a
chalupa —, puxe-os para o convés.
— ESPERA! — gritou Caspar lá debaixo. — Mais cinco minutos,
senhor!
O capitão Hall fez uma careta e voltou-se para Caspar, confuso. Antes
que perguntasse o porquê do desespero todo, Poeta aproximou-se e mostrou
seu rastreador.
— Capitão, Dimitri ainda não voltou.
Foram poucos os que perceberam, mas, ao ouvir aquelas palavras,
Patrick Hall esboçou um sorriso. Mas o desespero de Caspar falava mais
alto. Literalmente.
— Por favor, senhor — gritava. — Ele disse que ia voltar!
O Nadia Keane estremeceu mais uma vez. Hall já estava convencido do
que faria e não seria um mero rapaz da pólvora que mudaria sua opinião.
No momento em que Jack subisse a bordo, eles zarpariam para longe dali.
Mas não foi Caspar quem mudou o curso das coisas. Não só ele. Hall
virou-se e encontrou vários pares de olhos preocupados ao seu redor. Cesco,
Dante, Ted, Apa, King... até Jack. Por mais que ele odiasse aquele filho de
caravela, bufou.
— Cinco minutos, marujo — respondeu a Caspar.
Caspar respirou fundo, voltando a criar esperanças, e olhou para o fundo
do mar à espera de alguém. Kim se sentou ao seu lado.
— Você acha mesmo que ele vai voltar?
— Ele é um homem de palavra — respondeu o loiro. — Prometeu que
voltaria, então ele vai voltar.
E Caspar acreditava de verdade naquelas palavras. Mesmo que parte dele
temesse o pior.
Vamos, Dimi...
33

CONTRATEMPO

Dimitri forçava o corpo, entortando o pescoço contra a pedra para


alcançar o bracelete. Fazia força, mas logo perdia o ar, ficando mais difícil
de mantê-lo dentro de seus pulmões. Subiu até a superfície e respirou mais
uma vez. Aquela superfície quase já inexistente. A água estava
praticamente engolindo todo o salão.
— Vamos, idiota... Você é um homem do mar.
Respirou fundo e mergulhou mais uma vez em direção ao bracelete,
dando um impulso para alcançá-lo. Mas de nada adiantou. A pedra
ameaçava cair em cima de seu braço a qualquer instante. E não era só isso.
Uma outra parecia querer despencar das alturas bem onde ele estava.
Percebendo o perigo iminente, Dimitri, em um ato desesperado, tirou os
óculos de proteção do rosto e usou-os como uma concha para chegar mais
perto do bracelete. Tentou. Tentou. Tentou mais uma vez. Então...
Isso!
Puxou o bracelete para perto de si e colocou-o no pulso. Arrumou os
óculos novamente no rosto bem a tempo da enorme bigorna cair do teto e
chocar-se com as outras, destroçando tudo que havia ao redor. Incluindo
Dimitri. O garoto foi arremessado para longe e atingido por mil
pedregulhos. Um deles veio como uma rajada, bateu em seu rosto,
quebrando os óculos e deixando-o atordoado.
Não só atordoado. Poderia estar inconsciente.
Os deuses não pareciam estar ao seu favor. Não naquele momento. A
água tomou completamente o salão, deixando Dimitri vagando sozinho por
suas correntes invisíveis. De olhos fechados, peito para cima, bracelete no
pulso. Era de se esperar que ele recebesse visitas. Rizo, a sereia dos olhos
pretos, aproximou-se, nadando com delicadeza. Se tivesse pernas, talvez se
assemelhasse a uma bailarina. Aproximou-se do rapaz e nadou em volta de
todo o perímetro de seu corpo, analisando-o com cuidado. A princípio,
parecia um rapaz comum. Aproximou-se de seu rosto invertido ao seu e
tocou a ponta de seus dedos em sua testa.
Tu-dum.
Lá estava. Um garotinho recém-nascido nos braços de uma bela mulher.
Ele parecia iluminado na época, como se um anjo tivesse nascido entre os
humanos. Quando criança, ele gostava de brincar com os garotos de rua,
empinavam pipas e roubavam pão das senhoras que deixavam as fornadas
esfriarem no parapeito das janelas. Depois, levava sermão.
Então... uma memória um pouco diferente. Dimitri tinha doze ou treze
anos na época. Molhava os pés na água cintilante do mar e tinha um sorriso
no rosto. Um sorriso lindo e apaixonante. Não era de se estranhar que ele
não estava sozinho. Ao seu lado, uma bela garota. Olhos dourados, assim
como seus cabelos compridos. Pele tocada pelo sol e várias marquinhas
brancas nas bochechas, como se tivesse sido beijada muitas vezes por fadas.
Os dois tinham as mãos dadas.
Outros relances de memórias perdidas passaram como relâmpagos,
outros estavam totalmente em preto, apagados da existência. Rizo abriu os
olhos, tirando o dedo rapidamente da testa do garoto, assustada. Hesitante,
aproximou-se novamente, encarando o rosto delicado do menino.
Então, sorriu.
— Foi o que eu pensei.
28 graus Sul, 3 graus Oeste. Nível do Mar, Nadia Keane.

Os Saqueadores da Barra estavam inquietos. Debruçados contra a borda


do navio, olhavam fixamente para o mar, nervosos. Kim e Jack já tinham
voltado para o convés por ordens de Patrick Hall, mas Caspar continuava no
barco a remo junto de Apollonia. O capitão contava os segundos em seu
relógio, pronto para partir a qualquer momento.
Então, fecharam os cinco minutos. Hall sorriu, discretamente.
— Marujos, parece que...
— É ele!
Patrick Hall fechou a expressão, ao passo que Poeta pulou de alegria ao
perceber em seu radar que o último pontinho estava vindo em direção ao
navio.
— Ele está vindo!
E apontou.
Todos correram para a popa do navio. Não muito longe dali, estava
Dimitri emergindo das profundezas e, atrás de si, a torre das Ruínas de
Volta desapareceu dentro do mar por completo. O garoto se debatia,
tentando usar os braços para nadar, mas sem muito sucesso. Parecia estar se
afogando. Tossia. Tossia. Os óculos de proteção rachados estavam
pendurados em seu pescoço. Caspar pulou na água gelada para resgatar o
colega o mais rápido que pôde. Apoiou-o em suas costas e nadou com ele
em direção à chalupa. Apa ajudou-os a subir e Dimitri caiu para dentro do
barco, recuperando o fôlego.
Caspar parecia preocupado.
Mas Dimitri levou o punho até o peito do colega.
— Não disse que eu ia voltar?!
O rapaz da pólvora abriu um enorme sorriso aliviado.
— Convencido. Chegou no último instante só para roubar a cena.
E os dois riram, fracos depois de tudo. A tripulação gritava em êxtase na
direção dos garotos, chamando-os para o convés. Caspar ajudou Dimitri a
se sentar.
— Vem. Vamos lá receber sermão.
— Que beleza...
Apa remou de volta até o Nadia Keane com os garotos finalmente a
salvo. Logo que subiram no convés, foram recebidos com abraços e beijos.
Mais abraços que beijos. Tudo bem... talvez nem abraços fossem direito,
vindo daqueles piratas.
Dante correu em direção a Dimitri e levantou-o no ar.
— Rapazinho, Dimi! Pensamos que você tinha morrido.
Dimitri deu um sorriso sem graça logo que teve seus pés postos de volta
no chão. Não tardou para que fosse cercado por mais meia dúzia de
marujos. Patrick Hall, nada contente com a cena, observava tudo das
sombras, incomodado. Zuca aproximou-se.
— É... definitivamente, o rapaz está criando uma reputação.
Kim deu um cascudo na cabeleireira de Dimitri.
— Aiii!
— Deixou seu amigo aí preocupado — disse a ruiva.
Caspar deu um soco no ombro do amigo.
— Que nada. Eu sabia que ele ia voltar.
E os dois trocaram um olhar caloroso. Dimitri sentiu seu peito aquecer.
Amigo…
De repente, olhava para todos aqueles piratas de uma outra forma. Eles
podiam ser barulhentos, fedidos e intensos. Mas um deles tinha se tornado
seu... amigo?!
Poeta aproximou-se, desesperado. Dimitri já abriu um sorriso, achando
graça que o garoto tinha se importado tanto assim com ele e já abria os
braços para receber um abraço.
— AHHH! Você detonou com eles!
— Hã?
Poeta estava falando dos óculos. Sua preocupação era com os malditos
óculos. Dimitri coçou a nuca e fechou a expressão.
— Pois é... é que... meio que caiu uma bigorna em cima de mim.
Poeta deu um tapa no ombro do colega.
— Se continuar tratando meu equipamento desse jeito, não deixo mais
você usar.
Kim se aproximou, balançando os quadris. Dimitri sentiu as bochechas
corarem e mexeu no cabelo, desengonçado.
— Vem cá. Como é que você fez para sair de lá?
— Eu...
Então, uma imagem estranha apareceu em sua cabeça. A imagem de uma
sereia.
— Rizo...
Correu para a beirada do navio, levando uma onda de marujos curiosos
atrás de si. Escorou-se e olhou para baixo. Lá estava ela. Serena, em cima
de uma rocha qualquer.
— Garoto, você está com uma coisa minha!
Ela apontou para Dimitri. Foi só então que ele percebeu que o Bracelete
de Nêmona, o tão cobiçado tesouro, estava em seu pulso. Seus olhos
miraram-no encantados, adentrando as maravilhas que aquele artefato
carregava consigo. Os Saqueadores da Barra também o encaravam de perto,
salivando por pensar nas enormes quantias que poderiam ganhar em troca
de um objeto mágico perdido como aquele. Mas um deles não estava
interessado.
Patrick Hall marchou, abrindo espaço por entre a multidão, até chegar
próximo a Dimitri. Sem hesitar, arrancou a relíquia de seu braço, com força,
jogando-a na direção de Rizo. Encheu os pulmões e gritou.
— Aí está. Queremos nossas informações!
Rizo pegou o bracelete no ar. O sorriso estampado em seu rosto era o de
uma vencedora.
— Ah, é verdade...
Limpou a garganta e recitou.
— O que um coral disse para o outro?
Os marujos observavam-na com curiosidade, esperando quaisquer
palavras a mais que saíssem de sua boca. E ela parecia estar se divertindo
demais.
— Que a conchinha vai dar uma festa.
Sem delongas, mergulhou no Mar Oculto, sem nem se despedir. Hall
estava irado, quando gritou:
— Ei, sua desgraçada! Volte aqui! E as informações sobre Kirk? Onde
ele está? EI, NÃO SE ATREVA A FUGIR! Senão, eu JURO que iremos
pescar você!
Zuca pôs a mão em seu ombro, tentando acalmá-lo.
— Hall, ela já foi embora.
Patrick Hall olhou mais uma vez para o horizonte e grunhiu por entre os
dentes.
— Argh... maldita. Poeta, anote o que ela falou. Vai trabalhar dia e noite
em decifrar esse código.
— O QUÊ??
Caspar aproximou-se para dar uma força para o amigo, que parecia um
tanto desanimado.
— Ei, colega. Não se preocupa, se quiser uma mãozinha...
— Vinda de você? Para decodificar isso?
O moleque dos mapas riu. Ele não parecia tão desanimado assim.
— Caspar, eu gosto da sua autoestima. Agora, com licença, que eu tenho
um código para decifrar.
E saiu de perto, assobiando feliz, como se tivesse acabado de descobrir
um milhão de coroas em seu bolso. Jack, um tanto envergonhada,
aproximou-se de Dimitri, apenas para dar um soco em seu ombro.
— Ei!
Ela resmungou.
— Parabéns pelo bracelete.
Alguma coisa naquele ato tinha feito Dimitri 383cha-la uma gracinha.
— Você até que foi bem também.
Sentido, estendeu a mão em sua direção.
— Trégua?
Jack abriu um sorriso cínico.
— Fico feliz que esteja vivo, princesa. Porque, da próxima vez, eu vou
ganhar. Em nome de Nathaniel Dyi.
Dimitri estreitou os olhos.
— Fechado.
E apertaram as mãos.

Placar: Jack 2 x Dimitri 2


E o Nadia Keane zarpou em direção ao sol poente depois de uma longa
aventura.
28 graus Sul, 3 graus Oeste. Vinte metros submarinos.

Rizo nadava por pelas profundezas, através de tantas ruínas que haviam
desabado de repente. Entrando por uma fenda oculta, chegou até a enorme
sala secreta. Olhou para o pedestal vazio e para o bracelete em suas mãos.
Deu de ombros.
— Se ainda fosse o verdadeiro... pff, que idiotas.
Com indiferença, jogou-o para longe. Então, o inesperado aconteceu.
Quando subiu pelas escadas, no lugar de uma cauda, lá estavam duas
pernas. Um par perfeito delas. Subiu os degraus e observou seu colega
ridículo ir atrás do bracelete. Um moleque de cabelos espetados, metade
preto, metade verde, com uma máscara de corvo pendurada no pescoço.
Pegou o bracelete do chão e colocou-o de volta no pedestal, como se nunca
tivesse saído dali.
Rizo revirou os olhos.
— Poxa, e se precisarmos iludir mais algum pobre pirata?
— Falando em ilusão... Hideki, pode desfazer.
O terceiro garoto apareceu com a mesma máscara de raposa em frente ao
rosto. Sem dizer uma única palavra, levantou apenas um dedo, fazendo as
Ruínas de Volta voltarem a ser o que eram, em um piscar de olhos. Lá
estavam de volta, as majestosas paredes pintadas, o teto de vidro. Rizo
cuspiu uma risada.
— Humanos são tão fáceis de enganar.
— E o moleque? Tem certeza de que é mesmo ele? — perguntou Zara, o
garoto dos cabelos verdes.
— Ah, sim. É ele, sim. Como previmos, a cabeça dele está um pequeno e
lindo caos.
Zara abriu um sorriso sombrio.
— Então, ele é um dos quatro queridinhos dos deuses.
— Qual é o próximo passo?
— Esperarmos. Se o oráculo está certo, tudo vai ocorrer como previmos.
Precisamos nos preparar para quando o momento chegar.
Com um simples toque da ponta de seus dedos, Rizo e Zara desenharam
marcas pretas em seus corpos. Ela, três riscos no pescoço, ele dois riscos
simétricos em uma das bochechas.
Aquelas marcas... eram exatamente como as de Dimitri.
34

FOTOGRAFIA

24 graus Sul. 5 graus Leste. Nadia Keane.

Depois de um longo dia, os jovens Saqueadores da Barra finalmente


tinham algum descanso. Bom, nem tanto assim, afinal todos queriam saber
sobre sua aventura submarina.
— E como era lá embaixo? — perguntou Cesco.
E claro que Jack não perderia a oportunidade de contar a melhor das
histórias.
— Era como um castelo assombrado daqueles super assustadores. Cheio
de armadilhas e tubarões... as paredes começaram a fechar e o teto a cair, o
sangue escorrendo por todo o corpo...
Kim fingiu uma tosse.
— ...dramática.
— Por pouco que conseguimos escapar.
E olhou provocante para o lado.
— Não me impressionaria se os garotos tivessem feito xixi nas calças.
O convés foi abaixo com gargalhadas. Caspar fez uma careta, indignado.
— Se tem alguém que sujou as calças aqui foi você!
— Sai pra lá, nojento!
Assim começou a briga de quem empurrava mais entre a timoneira e o
rapaz da pólvora. A noite estava uma festa.
Kim tirou algo minúsculo do bolso.
— Ah, já ia me esquecendo… toma aqui, Poeta.
E devolveu sua preciosa Gwendolyn em seus braços finos demais. Poeta
agarrou-a emocionado.
— AHHH Gwen! Que saudade... eles maltrataram você? Pode me contar.
— Aliás, essa coisa não funciona.
Foi a vez de Poeta fazer uma careta e aumentou o tom da voz.
— Perdoe meus modos, mas como é que é?
Ele realmente achava que estava sendo grosseiro. Kim deu de ombros.
— Não encontrei nada de ouro, só um pente velho.
— Talvez você não tenha procurado direito.
— Ou talvez falte uns parafusos em você e na Gwendolyn.
Poeta pegou sua invenção na mão e fez carinho com a ponta do dedo,
como se estivesse tentando alimentar uma planta carnívora sem ser
mordido.
— Shh, ela não quis dizer isso.
E olhou feio para Kim, mostrando a língua.
— Boba feia.
Caspar cuspiu uma risada.
— Pff... boba feia.
Kim levantou o punho para o loiro.
— Quer dizer... boba gata, super gata.
Ele estava pedindo para ter a orelha puxada, e Kim não foi piedosa.
— AIAIAIAIAI parei!
Mais para o lado, alguns marujos conversavam um pouco mais
civilizadamente.
— E o que mais tinha lá embaixo?
— É, conta aí! Como encontraram o bracelete?
Apesar de se sentir o centro das atenções por ter participado de uma
missão como aquela, Dimitri não admitia, mas estava achando o máximo.
— Você sabe...
Seus olhos pousaram em alguém que teve o poder de mudar suas
palavras. Ele sabia que fazia parte do grupo de heróis do dia, mas não
queria cantar vitórias. Abriu um pequeno sorriso e deu de ombros.
— Não tinha nada demais. Se as meninas tivessem ido mais a fundo,
com certeza teriam encontrado antes de nós. Elas são muito mais espertas.
Jack sentiu a gentileza do garoto e trocou um olhar cúmplice com
Dimitri. E ele deu uma piscada de olho amigável em sua direção. Mas a
farsa não duraria muito tempo, afinal Caspar estava presente. O loiro deu
uma cotovelada no estômago do colega.
— Deixa de ser modesto, Dimitri. A sala era enorme e tinha uma parede
grandona cheia de desenhos e textos antigos de Volta. Vocês tinham que
ver! Poeta teria enlouquecido.
— O quê? E você lembra de alguma coisa? Pode me relatar?
Ele já abria seu caderninho para anotar o que fosse possível. Tão afobado
que nem percebeu que estava de cabeça para baixo.
— Só tinha uma história sobre o nascimento de uma princesa. Nada
demais.
Kim estreitou os olhos.
— Falando nisso, vocês não acharam essa coisa toda um pouco estranha?
Jack deitou de bruços.
— Eu falei. Aquela sereia não me convenceu.
Realmente, aquela história toda tinha sido muito mal contada. Mas
alguém ali sabia de algo a mais. Dimitri sabia que Rizo era suspeita e
estranha, e não lembrava do que tinha acontecido depois de ter batido a
cabeça. Mas...
— Eu acho que... ela me salvou.
Ele só não sabia o porquê. Poeta limpou a garganta, contrariado.
— Nem vem com essa. Sereias são sereias e ponto final.
— Isso não explica o porquê de ela ter ido embora daquele jeito —
pensou Kim.
— Poeta, já teve algum avanço com o código? — perguntou Dimitri.
O moleque pintor coçou a testa por baixo da boina e folheou até
encontrar uma página específica do seu caderno de bolso.
— Estou tentando traduzir tudo para alguns dialetos antigos, pôr as letras
ao contrário, misturar as palavras, mas ainda não cheguei em lugar algum.
Dimitri aproximou-se para dar uma olhada.
— Talvez seja mais simples do que isso.
— Ou talvez não signifique absolutamente nada.
— E se...
Jack tinha imposto sua voz de contadora de histórias. Arregalou os olhos.
— Nós estávamos esse tempo todo sob hipnose de sereia?
Kim bufou.
— Ah, lá vem você com suas teorias da conspiração.
— Sereias só conseguem hipnotizar homens — disse Poeta.
— Não, não, ela tem razão.
É claro que Caspar entraria na onda. Pegou um lampião e pôs debaixo do
queixo.
— E se nós estivermos sob um sono profundo... se estivermos sonhando?
— AI!
Ele tinha acabado de receber de presente um beliscão da timoneira.
— Parece bem real para mim.
Todos riram felizes. Estavam cansados demais para segurarem as
gargalhadas. Até Poeta achou graça, apesar de ainda esfregar o braço que
doía. Caspar levantou seu copo para o alto e gritou.
— Um brinde à extinção das sereias de mau-caráter.
O convés foi tomado por um tilintar de brindes consecutivos e todos os
tripulantes entraram na brincadeira. Caspar terminou de beber o que quer
que fosse que Ted tinha colocado naquele copo e sentou-se satisfeito.
— Mas só as malvadas mesmo. Porque existem umas bem bonitinhas,
tipo a Aran...
— Ah, espera.
O moleque dos mapas saiu correndo de repente.
— O que ele foi fazer? — perguntou Dimi.
Caspar olhou para o próprio copo.
— Dor de barriga, com certeza.
Poeta voltou rapidamente para o convés, animado. Tinha em mãos sua
câmera fotográfica e aprontava-se para fixá-la em um tripé. Então, girou
seus botões até focar em Kim.
— Eu, hein. Me tira fora dessa.
Jack pulou e envolveu-a em um abraço.
— Vem, vai ser legal!
Mais um botão foi acionado. Poeta levantou-se agitado.
— Rápido, temos dez segundos.
Os jovens Saqueadores da Barra se espremeram uns contra os outros
para ficarem todos enquadrados. Obviamente, Kim tinha tido o azar de ficar
no meio. Dava para ver o desgosto estampado na sua cara. Dimitri olhava
de fora, um pouco sem graça. Caspar procurou algo ao redor de seu corpo,
até percebê-lo distante. Abriu um enorme sorriso e estendeu a mão.
— Vem, cara. Você também. É uma foto de amigos, todos têm que
participar.
Um batimento cardíaco foi mais alto do que os outros. Dimitri sentiu o
peito aquecer e não conseguiu segurar o sorriso. De novo aquela palavra.
Amigo.
— Eu...
— Vem logo!
E puxou-o para o fedor que emanava das axilas daqueles piratas suados.
Mas ele não se importava. Poeta pendurou os óculos no pescoço como um
binóculo.
— Digam rubi!
E todos gritaram.
— RUBI!
Menos Caspar, obviamente, que tinha que contrariar.
— BOBA, FEIA!
E foi disparada a câmera. As fotos não tardaram para sair e serem
reveladas. Uns segundos talvez. Poeta pegou o filme em mãos e lá estava a
imagem. Na primeira foto, viam-se sorrisos sinceros e um garoto no meio,
com uma pequena lágrima de felicidade no canto do olho esquerdo.
Amigo...
Aquela seria a primeira foto de uma era. Uma era de grandes amigos.
Já a segunda foto revelava Kim batendo na cabeça de Caspar que estava
encolhido com cara de chorão. Poeta com uma careta horrível por terem
estragado filme à toa. Jack de um lado tentando controlar Kim. E Dimitri no
meio da baderna, coitado, quase nem aparecia ao ser esmagado por todo
aquele furdunço.
Mas é disso que as fotos são feitas. Elas são apenas momentos
congelados no tempo. Um dia, daqui a alguns anos, um deles iria olhar para
essas fotos. Provavelmente riria da situação. Ou se fosse Kim, iria se
arrepender de não ter dado um soco no nariz de Caspar.

3h54min.
24 graus Sul. 5 graus Leste. Dormitórios do Nadia Keane.

É isso aí, gatinha... pode vir.


Pobre do deus dos sonhos que tinha que assistir ao que se passava na
cabeça de Caspar enquanto ele dormia.
Vem, eu sei que você quer...
E fez um beiço com os lábios. Mas não foi quem ele esperava que
apareceu. No lugar de uma bela donzela, lá estava um par de olhos azuis.
— AHHH!
Caspar levantou de supetão, chutando as cobertas. A careta em seu rosto
já dizia tudo.
— Por que eu ia sonhar que estava beijando o Dimitri?
Jogou a cabeça para baixo na direção do colega que dormia na rede
inferior. Dimitri dormia de cabelos soltos, parecendo um anjo. Um anjo
muito babão. Caspar sentiu um calafrio.
— Eu, hein. Que nojo! Ainda bem que foi um sonho.
Mal sabia ele do que tinha acontecido.
JACK-AS

EPISÓDIO DOIS

Jack: Olá, Saqueadoras e Saqueadores, aventureiros de todos os cantos


dos onze mares.
Caspar: Bem-vindos ao segundo episódio do programa com a maior
audiência do oceano, o quadro de maior fama do Faroleiro, Jack-As!
Jack: O programa da Jack e do Cas.
Poeta: E do Poeta!
Um silêncio constrangedor tomou conta da sala por alguns segundos.
Poeta: Que foi?!
Jack: Poeta, só porque você ganhou um quadro próprio, não significa
que virou apresentador do show.
Poeta levantou as sobrancelhas e puxou um sorriso provocante.
Poeta: ...ainda.
Antes que Jack levantasse o punho e desse uma surra no colega, Caspar
interveio, empurrando cada um para um lado.
Caspar: Esta semana, ganhamos um quadro novo no programa: “Poeta
Explica”. Vamos ouvir um pouco sobre o nosso convidado especial.
Poeta sentou-se de pernas cruzadas e coçou o nariz.
Poeta: Achei o nome um pouco sem graça.
Jack cuspiu uma risada.
Jack: Achei a sua cara.
Poeta: Deveria ser algo como: “Poeta desmistifica grandes questões do
mundo no mar”.
Jack: Quer fazer parte do programa ou não?!
Caspar foi ao encontro do amigo e pôs uma mão em seu ombro.
Caspar: Poeta, amigão. Por que você não conta para os nossos ouvintes
o que eles podem esperar desse novo quadro?
Poeta logo alegrou-se.
Poeta: Ah, tudo bem!
Limpou a garganta e pendurou um cartaz na parede como se fosse um
professor pronto para dar uma aula.
Poeta: Como sabemos, o mundo do mar é cheio de mistérios e
nomenclaturas complicadas. A maioria dos novatos acaba se perdendo com
tanta informação, mas é por isso que estou aqui. Para ajudá-los nesta
jornada de descobrimento. Então, o meu quadro é um “Salve os novatos!”.
Caspar: Na verdade, esse nome até que é bom.
Jack: Nossa, que coincidência. Temos um novato na plateia para
comentar sobre o assunto. Palmas para ele, pessoal!
Dimitri, que estava o tempo todo sentado de pijama em um canto, com
olheiras maiores que os olhos, bocejou.
Dimitri: Vem cá... me acordar de madrugada virou hobby de vocês?!
Caspar: Dimitri, o novato!!!! Como se sente sendo um novato?
Dimitri: É... novo?!
Poeta aproximou-se animado.
Poeta: Dimitri, como se sente dentro do navio? Sozinho? Perdido?
Cheio de pesadelos?
De repente, Dimi sentiu uma pontada de sensibilidade no peito.
Dimitri: Prefiro não tocar no assunto.
Poeta: Se sente?! Ótimo, conte para nós. Como é se sentir assim?
Sozinho, confuso, perturbado...
Dimitri encolheu-se emburrado.
Dimitri: Eu vou voltar a dormir.
Levantou-se e saiu o mais rápido que pôde dali, deixando Poeta
desesperado, querendo correr atrás de Dimi.
Poeta: Ei! Mas e o seu colega de bordo aqui? Não se sente mais seguro
com um veterano do mar, alguém como eu para guiá-lo nessa imensa
jornada que chamamos de vida?
Que situação constrangedora. Jack bateu palmas em tom sarcástico.
Jack: Parabéns, Poeta! Assustou o convidado nos seus primeiros
quarenta segundos de quadro. Deve ser algum tipo de recorde.
Poeta: Tanto faz. Dimitri não é parâmetro. O cara é meio perturbado
mesmo.
Deu de ombros e continuou com o mesmo entusiasmo.
Poeta: MAS é por isso que eu estou aqui. Para ajudar os pobres novatos.
E o tema de hoje é....
Caspar: Momento de suspense...
Poeta: Cornelius Carelli e as leis da astrof...
Jack: As cores dos olhos de Aklas.
Jack interrompeu, deixando Poeta incomodado.
Poeta: Agora nem o tema dos meus quadros eu posso escolher,
Jacqueline?!
Jack: Pensei que tivesse lido o contrato.
Em seguida, entregou um pedaço velho de papel nas suas mãos. Poeta
pegou, de mau grado.
Poeta: Não me provoca, mulher.
Jack: Está tudo aí. Você assinou.
Poeta abriu o pergaminho, bufando.
Caspar: Parece que tivemos um pequeno intervalo para ir ao banheiro.
Já, já voltamos dos comerciais.

Alguns muitos minutos depois...

Poeta, derrotado, terminou de ler e fechou o pergaminho, dando nas


mãos de Jack.
Poeta: Eu te odeio.
Jack: Eu sei que não é verdade.
Poeta: Por que a cor dos olhos? Que assunto mais chato!
Jack: Porque é pauta em relação à situação atual. Notícias. Precisamos
educar nossos ouvintes para eles entenderem o que está acontecendo no
mundo.
Poeta levantou as sobrancelhas, surpreso.
Poeta: Você manda bem com palavras.
Jack deu de ombros.
Jack: Anos de prática sendo a única garota em um navio pirata cheio de
testosterona.
Poeta: Muito bem. Vamos começar.
Poeta alongou os dedos, preparado.
Poeta: O mundo de Aklas é dividido em quatro grandes impérios como
todos já devem saber. Dizem que os deuses criaram os olhos dos humanos a
partir dos minerais preciosos de suas terras. Utilizamos essas nomenclaturas
para reconhecer seus nativos também. Por exemplo, o Norte é rico em
minas de rubis e aqueles cujo sangue nortista corre nas veias tendem a ter
os olhos escarlate. Assim como eu.
Claramente ele estava se gabando.
Poeta: Nortista de coração.
Caspar: Já no Império do Ocidente, surgiram os primeiros Nascidos do
Sol.
Poeta: Ou seja, seres não-portadores de magia.
Caspar: É, tanto faz. Lá as minas de ouro são abundantes e seus
moradores nascem de olhos dourados.
Caspar piscou um dos olhos com ar galanteador.
Caspar: O que é um charme, modéstia à parte.
Jack: Vocês são ridículos. Os olhos mais bonitos são os do Oriente. Lá
foram descobertas ilhas flutuantes onde havia imensas montanhas de
esmeraldas verdes. Dizem que de tanto o povo do deserto olhar para elas
refletindo a luz do sol, seus olhos começaram a nascer dessa cor.
Poeta tossiu, sarcasticamente.
Poeta: É. Essa parte é mentira.
Jack: E por acaso um nortista tem moral para falar da história do meu
país?
De repente, lá estava Dimitri de novo, enrolado em um cobertor e sendo
puxado por Caspar.
Dimitri: Qual o problema de vocês? Não dormem nunca?
Caspar: Se ficar aqui, eu cubro você no trabalho por uma semana.
Dimitri estreitou os olhos.
Dimitri: Eu sei que isso é mentira.
Caspar: Que bom que sabe.
E levantou as pálpebras do amigo.
Caspar: E aqui, pessoal, temos um nativo do Sul! Olhos azuis da cor das
famosas safiras perdidas ao longo dos Altos Mares. É a única pista que
temos sobre o nosso pobre Dimitri, o rapaz sem passado.
Dimitri respondeu manhoso, como se fosse uma criança.
Dimitri: Cara, você tinha que falar isso?
Caspar ficou todo sem graça, como se tivesse feito algo horrível.
Caspar: Ah... desculpe.
Pegou na mão do amigo e deitou-o no chão. Tapou-o com o cobertor até
o pescoço e fez um breve cafuné.
Caspar: Pronto, dá uma cochilada aí no canto.
Dimitri: Obrigado, Cas. Você é o melhor.
E dormiu instantaneamente, como se fosse um bebê. Jack fez uma careta.
Jack: Eu, hein!
Caspar: Ele fica sensível quando está com sono.
Poeta: Terminando a explicação sobre os quatro impérios, temos que
listar algumas exceções, como Bay Timothee da ilha de Oceana. Lá os
olhos dos nativos são tão claros que chegam a beirar a transparência. Dizem
que em suas águas estão escondidas toneladas de diamantes raros. Já os
Nascidos da Lua geralmente têm os olhos cor violeta, porque... é... porque...
Jack: Porque sim.
Poeta: Nada no mundo da ciência fica sem explicação, Jacqueline. Isso é
coisa de gente que acredita nos deuses como você.
Jack: Argh, você está muito chato hoje.
Caspar: Mas há algumas outras exceções, como os chamados “Jasper”,
humanos de olhos castanhos e cinzentos.
Poeta: Isso aí, Cas. Dois exemplos são a nossa contramestre Kim e o
capitão Hall. Esses humanos são a junção de duas nacionalidades, de duas
cores de olhos diferentes, que resulta em uma mistura de sangue. São
mestiços.
Jack: Dizem as lendas que os Jasper são espíritos livres, são viajantes do
mundo justamente por não pertencerem a ninguém.
Caspar: Por uma coincidência, ou não, a maioria dos piratas são Jasper.
Jack: Kim, por exemplo, tem boa chance de ser filha de um pai sulista
com uma mãe oriental, ou vice-versa, porque seus olhos são cinza.
Kim: Falando de mim?!
Foi preciso três palavras para fazer três piratas pularem de susto. Um
calafrio percorreu a espinha de Caspar, Jack e Poeta no mesmo instante. Era
como se tivessem visto um fantasma. Kim apareceu por trás dos três, de
braços cruzados e expressão não muito boa. A voz serena da contramestre
era o que mais assustava.
Kim: Na verdade, isso é o que menos importa. Por que raios estão todos
fora da cama a uma hora dessas?
Jack: Oi, Kim. Maninha...
Kim agarrou o gravador das mãos da timoneira, brava.
Kim: Eu vou ter que confiscar o brinquedinho? Já para o quarto! Todos
vocês. E espero que eu só tenha que mandar uma vez!
Caspar resmungou.
Caspar: Tá bom, mãe.
E aquele foi o fim da festa, afinal de contas alguém tinha que pôr ordem
naquele navio. Caspar, Jack e Poeta desceram as escadas em direção aos
seus dormitórios. No momento em que Kim e Poeta se distanciaram para
suas cabines, a timoneira tirou algo do bolso, sorridente. Um segundo
gravador.
Em tom de contadora de histórias, clicou no botão para iniciar a
gravação e sussurrou:
Jack: Mas é agora que o mistério começa. E os estranhos olhos cor de
ônix? Aqueles olhos escuros sem brilho ou pupilas?
Ela lembrava dos misteriosos olhos da sereia Rizo. Aqueles olhos que
tanto a intrigavam.
Jack: Nunca houve olhos como aqueles antes. De onde será que são?
Esse seria um mistério que levaria anos para ser desvendado.
O sol raiou no dia seguinte, iluminando as janelas do depósito da proa.
Dimitri acordou com luz e baba no rosto, enroscado em um cobertor que
não era o dele, no chão. Olhou ao redor, completamente confuso e fez uma
careta.
Dimitri: O que diabos eu estou fazendo aqui?
Aparentemente, não fazia ideia do que tinha feito na noite anterior.
FESTIVAL DA LUA DE FOGO

35

UM NOVO COMEÇO

O dia amanheceu perfeito.


Doq, deus das calmarias, estava plenamente de bom-humor e mantinha a
maré estável e favorável para velejar. Os marujos já estavam quase todos de
pé, sob um sol que brilhava ainda fraco. Eram oito da manhã quando
Dimitri acordou ao ouvir um som que há tempo não ouvia. Eram gaivotas.
Diziam os grandes marujos que o som mais bonito que se pode ouvir
quando se está perdido no mar é o cantar de uma gaivota. Significa que há
terra por perto.
Naquela manhã, pela primeira vez, Dimitri levantou de sua rede com um
sorriso no rosto. Vestiu sua regata e seu colete e correu pelo longo corredor,
pulando os degraus da escada que levava até o convés. Todos já estavam
trabalhando a postos. O garoto olhou para os céus e viu as aves brancas
sobrevoando a embarcação. Eram lindas. Ele não lembrava da última vez
que havia visto uma gaivota.
Cesco, que estava em seu posto, olhava para o horizonte através de uma
luneta, pendurado com os pés para fora do cesto da gávea.
— Terra à vista! Permanecer a bombordo.
— Sim, sim, almirante! — gritou a timoneira.
E virou o timão, fazendo o navio e todos os marujos cambalearem para o
lado. Pareciam mais animados do que o normal. Zuca aproximou-se de
Poeta.
— Então, o que acha, garoto?
Poeta girou uma engrenagem embutida em seus óculos e olhou para a
frente, calculando o tempo exato.
— Cerca de meia hora até Pedreira.
— E como vai aquela sua tarefa?
O rapaz tirou os óculos para esfregar os olhos. Apesar de animado,
parecia cansado como se tivesse passado noites em claro.
— Nem me lembre disso. Códigos e criptogramas são fáceis, mas uma
charada? — Suspirou. — Vou precisar de mais tempo.
— Vou falar com o capitão. E não hesite em pedir ajuda para alguém se
precisar.
Poeta cuspiu uma risada, convencida.
— Pff... você tá falando comigo, Zuca. Eu consigo fazer isso sozinho.
Agora é uma questão de honra.
Mas na verdade ele estava tentando SE convencer.
Zuca deu de ombros.
— Tudo bem, você que sabe. — E gritou: — MEIA HORA ATÉ
PEDREIRA, MARUJOS!
Os Saqueadores da Barra começaram a se mobilizar e arrumar as coisas
para descer em terra firme. Antes que Kim o pegasse no flagra, Dimitri
pendurou-se nos brandais, deixando o corpo cair para a frente. A sensação
do vento jogando seus cabelos para trás era de fato o que ele mais gostava
ali no navio. Subiu mais alto. E mais alto. Até alcançar uma das vergas e se
sentar. E ali, mesmo que de longe, ele conseguia ver uma ilha enorme
surgindo em frente aos seus olhos.
— Uau...
Caspar apareceu ao seu lado subindo pelas cordas.
— Não sei por que está tão impressionado. — Sentou-se e olhou para o
horizonte. — Pedreira... ô terrinha feia!
Dimitri riu do comentário e continuou a contemplar a vista. Para ele, que
não lembrava de ter pisado em terra firme, aquela ilha ao longe era
magnífica.
— Eu achei demais. Cara, tem até um castelo! — Apontou.
— Nah. Você tem que conhecer as capitais. Leone, Nova Baggi...
Montemor, hoje em dia, está decadente, mas Hombatomba... ah, pelos
deuses. Não é à toa que é o atual centro do mundo.
Dimitri fez uma careta, duvidando.
— Você só fala isso porque é de lá.
— Claro que não! Sangue aquattano na veia. — E apontou para seus
olhos dourados. — Mas vou admitir que só mora gente bonita em
Hombatomba.
O loiro passou as mãos pelo cabelo de forma narcisista. Dimitri riu, sem
dar muita moral. Estava mais preocupado em olhar para a ilha em sua
frente. Quanto mais chegavam perto, mais ele conseguia ver. A ilha era
bastante plana, com pinheiros e cabanas de madeira. O porto não era muito
grande, mas estava cheio de embarcações de todos os tamanhos. Mais ao
longe, podia-se ver um castelo de pedra com torres grossas e não muito
altas, revelando uma arquitetura antiga. Havia uma muralha ao redor da
construção e algumas bandeiras marrons e azuis penduradas. Nelas estavam
estampados desenhos de pássaros, mais especificamente pardais.
— O pardal é o animal símbolo do reino de Pedreira — explicou Caspar.
— Cada reino é representado por uma ave diferente. Geralmente é a espécie
que usam para entregar cartas.
Uma ideia meio doida passou pela cabeça de Dimitri.
— De onde você acha que eu sou?
Caspar coçou o queixo.
— Pedreira.
— Ah, é?!
— É feio igual.
— Cala a boca!
E os dois riram até quase caírem lá de cima.
— Quero ver se Hombatomba é tudo isso que você fala mesmo.
Mas antes que Caspar pudesse dar qualquer resposta, Kim apareceu no
convés. Mesmo de tão longe, dava para ver a fumaça saindo de suas orelhas
e o pé impaciente batendo no chão. Olhou para os dois nas alturas.
— Não sei se os dois pivetes sabem, mas estão em horário de trabalho.
Caspar acenou, com um sorriso no rosto.
— Bom dia, Kim! Acordou com o pé esquerdo hoje? Está mais gata que
um baiacu.
Mais gata que um baiacu era algo difícil de engolir naquela hora da
manhã. Kim bufou e ameaçou desembainhar a espada.
— Desçam antes que eu suba aí.
Dimitri estremeceu. Se tinha uma pessoa que lhe dava medo DE
VERDADE naquele navio, essa pessoa era Kim.
— Eita!
Antes que um massacre acontecesse antes do meio-dia, os dois tiveram o
bom senso de descer até o convés. Logo que pousaram os pés no chão, Kim
prensou uma prancheta de madeira contra o peito de Dimitri, sem nem ao
menos olhar para ele. Dimi sentiu as bochechas enrubescerem. Ele ficava
todo bobo perto dela, não conseguia controlar.
Tanto que demorou para entender o que ela estava falando.
— Quero que tragam as caixas do depósito de proa para cá. No mínimo
seis das grandes. Preciso delas o quanto antes, então não amolem.
— Bom dia... — resmungou.
Dimitri fez uma careta e Caspar bagunçou o cabelo, piscando o olho para
Kim.
— Bom dia, bom dia... Acordei com uma deusa destas na minha frente.
Kim fechou mais ainda a expressão. Se é que isso era possível.
— Você acaba de estragar o significado de um bom-dia para mim. Valeu,
pirralho.
— De nada.
E piscou o olho mais uma vez. Kim aproximou-se do rosto do loiro,
analisando-o com cautela, como se estivesse procurando por piolhos.
— E vê se dá uma passada na enfermaria mais tarde. Acho que tem algo
de errado com o seu olho.
Kim saiu convencida, balançando os quadris e deixando os dois garotos
de boca aberta. Caspar bufou.
— Odeio ela. Tem sempre que dar a última palavra.
Mas então os olhos de Dimitri voltaram-se para outro ponto. Olhou para
cima e percebeu algo estranho. A bandeira pirata não havia sido retirada do
mastro.
— Pensei que tirassem a Jolly Roger quando atracam nos portos.
Como era de se esperar, o loiro nem sequer ouviu o novato. Estava
ocupado demais, xingando Kim em seus pensamentos porque na vida real
não tinha coragem. Quem respondeu à pergunta foi Dante, que carregava
um barril embaixo de cada braço e um sorriso no rosto.
— Ahoi, rapazinho! — Deu um soco em seu ombro.
Dimitri estremeceu e esfregou o braço dolorido, emburrado.
— ...ahoi.
— Está vendo a cor preta? Significa “não resista”. Ninguém tem
coragem de chegar perto do Nadia ao ver a bandeira.
Jolly Rogers eram bastante famosas por serem bandeiras estritamente
utilizadas por piratas. Surgiram com a volta da pirataria, quando o primeiro
navio corsário sofreu um ataque inimigo, comandado por Calico Jack. Cada
uma era diferente da outra, dando identidade para cada embarcação. Havia
Jollys vermelhas ou pretas. Dimitri olhou mais uma vez para a bandeira no
topo do mastro. Podia ver uma caveira desenhada em branco, vestindo um
chapéu na cabeça e mordendo duas espadas entrelaçadas logo abaixo.
— Entendi...
— E não se preocupe — continuou Dante. — No meu primeiro saque
também fiquei nervoso. Se algo der errado, eu salvo você. Fiz treinamento
de perseguição pesado na marinha.
Caspar, que estava do lado, cuspiu uma risada. Dante sorriu e se retirou,
levando os dois barris até seu parceiro montador, Jonas, do outro lado do
convés.
— É... não se preocupa, rapazinho. Deixa que ele o salva.
O rapaz da pólvora imitou o colega, fazendo um bico com os lábios,
referindo-se ao primeiro salvamento do novato no navio. Dimi riu e
empurrou o amigo para longe. Os dois foram trabalhar, antes que Kim
voltasse para seu posto, furiosa. Dimitri pediu a ajuda de Ted Molenga para
levar todas as caixas vazias até o convés. O cozinheiro estava
particularmente animado, pois as encheria com temperos, especiarias e
todos os tipos de ingredientes.
— Pedreira é o reino com mais especiarias raras da região — explicou.
— Só aqui que encontro damascos e pistaches. E ainda por um preço bem
acessível. Cinco coroas, um punhado de duzentos gramas.
E um punhado de damascos e pistaches por esse preço era quase uma
raridade.
Dimitri terminou suas tarefas a tempo de voltar para o convés e ouvir
Cesco gritando no alto do cesto da gávea:
— Cuidado, embarcação a estibordo!
— Deixa comigo.
Jack respondeu e contornou uma fragata das grandes. O porto de
Pedreira estava, de fato, lotado de embarcações de todos os tipos, portes e
formas. Muitas delas levavam um símbolo estampado nas velas de cores
diversas, representando seus respectivos reinos ou ilhas. Um evento bem
importante estava acontecendo por ali.
Patrick encontrava-se ao lado da timoneira e, olhando para o deque de
madeira do porto que se aproximava, gritou para Caspar:
— Preparar para baixar âncora!
— Sim, capitão!
O rapaz da pólvora correu para seguir as ordens, assim como todos os
outros. Dimi olhava maravilhado para aqueles piratas, trabalhando com
tanta paixão. Seu coração batia mais forte só de pensar em fazer parte
daquela vida de adrenalina e de aventura.
Então, a imagem de Lars, o Atroz, surgiu à sua frente, relembrando-o
sobre verdade. Podia estar aproveitando a viagem, mas aquilo era apenas
uma passagem temporária.
— Dimitri, reforçar as amarras! — gritou Kim.
— Beleza...
Em poucos instantes, o Nadia Keane estava ancorado em Pedreira e
Dimitri já podia sentir os cheiros da cidade. Estava muito animado para
descer, assim como todos os outros. Hall juntou toda a tripulação no convés
principal, com exceção de Cesco, que permaneceu no cesto da gávea, pois
era seu trabalho estar sempre a postos para reconhecer ameaças de longe. O
restante dos marujos sentou-se em formação de meia-lua até novas ordens.
Hall limpou a garganta.
— Homens, já sabem o que fazer. Kimberly e Zuca vêm comigo enterrar
algumas cargas. Não queremos sobrepeso.
A contramestre e o imediato concordaram de prontidão. Eles eram
membros do Fronte e sempre os escolhidos para irem com o capitão. Patrick
chamava-os de Grupo Alfa.
— Apollonia, Tedesco, Dante e Jonas preencham nossas caixas com
suprimentos. Vocês têm uma margem de cinquenta coroas para gastar. Não
extrapolem.
— Sim, capitão!
Os quatro concordaram com a cabeça e aprontaram-se, ao passo que Apa
instalou uma rampa de madeira que facilitava o acesso ao deque do porto.
— Jacqueline, Caspar e Poeta vão atrás de especiarias e artefatos de
valor que possam ser úteis. Negociem pelo preço mais baixo possível.
Caspar levou a mão ao alto.
— Capitão.
Hall já sabia a pergunta que viria em seguida.
— Sim, caso não consigam, estão liberados para saquear as bancas.
Jack e Caspar trocaram um cumprimento no ar, em comemoração. O
capitão Hall olhou em volta. Havia poucos marujos restantes: Lars, King e
Dimitri. E Cook, o gato caolho.
— O resto permanece a bordo até novas ordens. Dispensados.
— Capitão — chamou Jack.
— Sim, senhorita?
— Por que o novato não vem com a gente no Grupo Gama?
Quê?!
Dimitri, com certeza, estava surpreso com a atitude de Jack. Mas não
mais do que Patrick Hall, que se virou furioso na direção do rapaz.
— Não quero esse filho de caravela andando por aí. Vai nos causar
problemas.
— Eu não me importaria de ajudar.
— Se quer ajudar, comece raspando as cracas do casco do navio. Seria
de grande ajuda — respondeu Hall, com frieza.
A próxima figura a se apresentar também foi bastante surpreendente.
Bryce Jonathan King deu um passo à frente, confiante.
— Senhor, sem querer me intrometer, mas o garoto se saiu muito bem na
primeira missão há algumas semanas. Seria bom para seu treinamento
participar dessas atividades.
E Hall estava prestes a cuspir fogo. Não podia acreditar que a tripulação
estava do lado... “dele”. Mas manteve a compostura.
— A diferença, senhor King, é que, semanas atrás, estávamos em alto-
mar. Esta é uma situação completamente diferente. Não podemos arriscar.
Jack levantou-se e fincou os pés no chão, impondo a voz e batendo
continência.
— Como líder do grupo Gama em terra firme, eu me comprometo
inteiramente com o novato.
Patrick Hall olhou desconfiado, mas a timoneira não desviou o olhar.
Não era à toa que Jack era tão respeitada no navio. Ela ia até o fim com
suas opiniões e suas escolhas, além de fazer o que era preciso, dia após dia,
para conquistar seu espaço no Nadia. Hall suspirou.
— Tem certeza disso?
— Você tem minha palavra, senhor. — Abaixou a cabeça, após o pedido
desesperado. — Ele vai aprender a deixar de ser tão molenga comigo.
E forçou a cabeça de Dimitri para baixo também. Jack era firme com
suas decisões. E firme de punho.
O capitão chamou seus companheiros de grupo, indicando que
iniciassem o trabalho. Mirou mais uma vez para a timoneira e esfregou os
olhos, suspirando.
— Ele agora é sua responsabilidade, Jacqueline. Qualquer coisa, você
será culpada pelos feitos dele e os dois serão devidamente punidos. Está
claro?
Jack sorriu.
— Como as águas de Doq, capitão.
E bateu continência.
36

GRUPO GAMA

2 de Dezembro, 1543. Ano do Lobo Marinho.


11 graus Sul, 54 graus Leste. Reino de Pedreira.

Aquele sim era um reino bastante antigo. De certa forma, até medieval
demais para a época. O porto estava lotado de pessoas de todos os cantos do
Império do Sul e até se via alguns convidados do Norte. Dava para
distinguir pelas suas roupas excêntricas. Uma multidão circulava por toda
aquela área, por entre várias bancas postas em fileira de frente para o mar.
Havia um palco montado mais para longe onde aconteciam apresentações
de peças junto com uma pequena banca de show de bonecos de pano para
crianças. Músicos de rua tocavam diversos instrumentos de cordas,
percussão e sopro, dando vida à cidade de pedra. Carroças, cavalos e
cachorros de rua atravessavam o tempo todo, tumultuando ainda mais o
caminho.
Dimitri, Jack, Caspar e Poeta andavam pela orla de Pedreira, cada um
levando um saco de pano pendurado nas costas. Por ordem de Jack, os
quatro abaixaram-se atrás de uma mureta para observar tudo com atenção.
Caspar fez uma careta.
— Não lembrava de Pedreira ser tão festiva assim.
— Esse é o Festival da Lua de Fogo — explicou Poeta. — Acontece uma
vez por ano aqui. É em homenagem ao mago milenar Aro e à Lua Dourada.
O Festival da Lua de Fogo, de fato, era um dos maiores eventos do Sul.
Acontecia sempre na primeira semana de dezembro e durava sete noites e
sete dias, o tempo em que a lua de fogo brilhava no céu. Seu significado era
antigo e referia-se à época dos grandes magos.
— Quando a Lua Dourada surge, torna-se uma chama de esperança de
que os magos e seus enormes dragões ainda estejam por aí, pintando a lua
com seu fogo — explicou Jack. — Então, os reinos do Sul e do Norte, que
apoiam o poder dos magos, são convidados a trazer um pouco de suas
culturas para o evento.
— É uma verdadeira festa — acrescentou Poeta.
Apesar de ser baseada em um fato bobo, pensou o cético.
Dimitri estava encantado com tudo ao seu redor e adorando ter contato
com alguém que não fosse um pirata fedido. A partir dali, qualquer coisa
poderia ser uma pista sobre seu passado. Então percebeu que realmente
havia uma lua cor de fogo enorme no céu. Caspar fez outra careta.
— Festival para uma lua... povinho esquisito.
Jack puxou o queixo do loiro para perto de si.
— Agora me escutem. Temos que ser discretos.
— Você tem um plano? — perguntou Dimi.
— O plano é não sermos pegos, princesa!
Poeta deu de ombros.
— Ela não me deixa fazer os planos, então é sempre a mesma coisa.
— Cala a boca. Eu e Dimitri cuidaremos das bancas da esquerda. Caspar
e Poeta vão atrás das da direita. Nos encontramos aqui em uma hora.
Entendido?!
— Uma hora? Tá maluca?
A timoneira deu uma cotovelada no loiro.
— É. Uma hora.
Então, os grupos se separaram, desaparecendo por entre multidões. Jack
pegou na mão de Dimitri para guiá-lo e cortar caminho, e Caspar e Poeta
correram para o outro lado.
Poeta puxou Caspar para uma ruela um pouco menos movimentada. Ele
estava transbordando de alegria.
— Ah, como é bom estar em casa...
Caspar arregalou os olhos.
— Espera, você nasceu nessa pocilga?
O moleque dos mapas deu uma risada.
— Não... fui adotado pelo senhor Donvar e passei a morar em Pedreira a
partir dos seis anos. Lembro como se fosse ontem de estar no antiquário
dele, trabalhando e lendo sobre todo o tipo de coisa. O cara tinha uma
biblioteca particular! Mas o meu livro favorito ficava debaixo do caixa. Era
enorme com uma capa de couro antiga, mas era proibido. Então, eu
acordava de madrugada e lia no escuro.
— E pensar que tem gente que acorda de madrugada para ler —
resmungou Caspar.
— Mas não eram só livros!
Poeta continuou o relato, fascinado. Dava para ver o brilho em seus
olhos. Caspar percebeu e simplesmente deixou o amigo falar.
— Tinha tesouros de todas as épocas também, e os piratas iam lá o
tempo todo.
— Saquei! Foi quando Zuca convocou-o para a tripulação, não é?!
— Isso! Zuca e Kim invadiram a loja atrás de um mapa antigo. E eu não
apenas mostrei o que eles queriam como sabia tudo sobre a lendária ilha de
Tunavari a qual eles estavam procurando. Modéstia à parte, ficaram
impressionados e me convocaram.
Caspar deu um sorriso, feliz por ver o amigo contente.
— Que doidera, cara. Poucos de nós foram convocados.
Poeta suspirou.
— Foi uma decisão difícil, mas não me arrependo. Deixei uma carta
explicativa para o senhor Donvar e...
— Espera... Donvar? Você também é Donvar?
Poeta riu do desentendimento.
— Ah não. Meu sobrenome é...
— Cara, a gente podia ir lá!
Mas então fechou a expressão.
— Onde?
— No antiquário!
Agora era Caspar quem estava animado.
— Você podia falar com o senhor Donvar enquanto eu roubo umas
belezinhas da loja.
— Eu não vou roubá-lo!
Caspar bufou.
— Argh, tudo bem. Então, vamos só falar com ele. Fiquei curioso para
conhecer.
Como o rapaz da pólvora era o ser mais desligado desse mundo, parecia
não ter percebido o desconforto nítido de Poeta.
— ...Jack vai nos matar.
— Que isso, deixa de ser careta. O bom de ter o Dimitri é que agora
somos quatro fazendo o trabalho de três. O que significa que só precisamos
trabalhar pela metade.
— Hã?
Caspar parou e levantou os dedos para fazer as contas, mas desistiu no
meio do caminho.
— Desculpa, não sou bom com matemática.
E puxou Poeta pela mão.
— Vem, vamos!

11 graus Sul, 54 graus Leste. Lado Esquerdo do Festival.

Os dois jovens Saqueadores da Barra caminhavam por entre a festança


que acontecia, sem chamar muita atenção. Jack ia na frente liderando,
enquanto Dimitri a seguia. Não sabia se o fato de a timoneira parecer muito
segura sobre o que falava e fazia deixava-o mais tranquilo ou mais tenso.
Mas ele não tinha muita escolha, senão confiar em Jack. Afinal, ela havia
insistido em trazê-lo junto.
Ele só não sabia o porquê. Já se dava bem com a maioria dos marujos do
Nadia Keane e alguns poderiam ser chamados de amigos. Mas com Jack...
com Jack ele ainda mantinha um pé atrás. Ela era esperta.
A timoneira freou o passo, fazendo Dimitri acordar de seus devaneios.
— Vinte e cinco bancas. Não vamos nos separar em nenhum momento,
ouviu? Preciso da sua ajuda.
— Como se eu tivesse para onde fugir…
— Engraçadinho. Não podemos ser pegos, senão podem ir atrás do
Nadia. E quem o capitão vai culpar?
— Eu?
— Você. E quem vai ser a responsável pelo que aconteceu?
— Você?
— Que bom que você aprende rápido. Então, é melhor fazer o que eu
mando. Somos pequenos e vamos usar isso a nosso favor.
— Beleza.
Jack fez sinal para que Dimitri se aproximasse. Eles estavam diante da
primeira banca. Era enfeitada por uma toalha laranja estendida que
combinava perfeitamente com a bandeira pendurada na fachada. Era um
desenho laranja e azul, que representava um caranguejo. Jack aproximou a
boca do ouvido de Dimi.
— Esses são da ilha de Taranga. São meio tapados.
— Isso foi para me tranquilizar?
— O que você vai fazer é enrolar o vendedor até eu dar o sinal.
Entendido, marujo?
Dimitri fez uma careta.
— ... o sinal?!
Jack levou o dedo até a ponta do nariz e empurrou-o com um movimento
rápido. Dimitri captou a ideia e a imitou. A timoneira puxou um sorriso
discreto nos lábios e piscou antes de se distanciar.
— Você vai ficar bem, novato.
A garota sumiu de vista, deixando Dimi sozinho em frente à primeira
banca. O garoto aproximou-se, tentando manter a pose, mas logo
desmontou ao sentir um cheiro esquisito vindo da mercadoria. Sobre a
toalha de mesa havia várias cestas de palha, cada uma com uma espécie de
frutos do mar diferente. Peixes grandes e pequenos, ostras, mexilhões,
camarões, lagostas. Havia também frascos de vidro com conteúdos líquidos.
Nas placas indicativas dizia que era óleo de peixe.
Então é isso que está fedendo.
Dimitri percebeu que Jack estava a postos, escondida nos fundos da
banca, logo atrás do vendedor. Era um homem magricela e com os dentes
tortos. Suas mãos não aparentavam ser das mais limpas e higiênicas, e o
garoto tentava ignorar esse fato enquanto o comerciante mexia na
mercadoria. Percebendo a expressão de nojo do colega, Jack mexeu as
narinas e cerrou a boca, indicando que o novato deixasse de ser tão frouxo.
Dimitri respirou fundo o máximo de ar puro que conseguiu e incorporou
seu personagem “garoto normal de quatorze anos que não trabalha em uma
tripulação pirata”. Esperava que desse certo.
Mas estava bastante confiante. Não que ele quisesse provar a Jack que
era digno do trabalho.
Dimitri apoiou-se na bancada e limpou a garganta.
— Bom dia, camarada!
O vendedor abriu um enorme sorriso.
— Ah, um bom-dia, menino. Já conhece a nossa banca? Veio atrás de
algo em especial?
O homem tinha um sotaque mais cantado, parecido com o de Cesco.
Todas as palavras possuíam uma sílaba na qual ele parecia começar a
cantarolar uma música. Jack fez sinal para que ele continuasse a enrolar.
— Na verdade, não. O que você tem?
— Rapaz, temos as melhores mercadorias frescas dos Mares do Sul.
Temos linguados, arenques, ostras-rosadas, mexilhões costeiros, lagostas,
camarões do reino...
Enquanto falava, mergulhava suas mãos em cada uma das cestas de
palha em sua frente. Dimitri perdeu-se nas palavras do vendedor, tendo seus
olhos fisgados em outro ponto. Quando percebeu, havia se distraído
olhando para Jack, que roubava do estoque e enchia um pote de vidro com
ostras. O vendedor chamou sua atenção.
— Menino?
— Hã, sim?! — respondeu Dimitri, fingindo que nada tinha acontecido.
Que cara de pau... Jack revirou os olhos.
— Não vai querer levar nada? — perguntou o vendedor, insistente. —
São espécies raras. Eu se fosse você, levava um pouco para a sua mãe. Ela
ficaria encantada.
Dimitri forçou uma risada.
— Tenho certeza que sim.
— Um salmão dourado, talvez?
O homem levantou um enorme peixe rodeado de moscas.
— Fica ótimo com limões e vinagre.
— É...
Dimitri desviou o olhar daquela nojeira para Jack, a fim de se certificar
que ela já havia terminado o trabalho. O vendedor, desconfiado, virou a
cabeça para trás. Por sorte, a timoneira era rápida e abaixou-se antes que ele
a percebesse. O homem de Taranga estreitou os olhos, sentindo que estava
deixando algo estranho acontecer debaixo de seu nariz. Dimitri levantou a
voz para chamar a atenção de volta para si.
— Sabe o que é? Eu estou meio sem grana agora. Passo aqui outra hora,
beleza?
E distanciou-se, puxando os bolsos do avesso para mostrar que estavam
vazios. O homem bufou e juntou as sobrancelhas, impaciente.
— E como se atreve a vir sem dinheiro e me fazer perder tempo? Se
manda daqui, moleque!
Dimitri saiu correndo e rindo até encontrar com Jack, que guardava os
potes cheios de ostras na sua mochila-saco. O garoto chegou sorrindo,
orgulhoso do seu primeiro trabalho bem-sucedido e feliz por estar ajudando.
— Essa foi por pouco... — disse, ofegante.
Jack, por outro lado, deu-lhe um tapa na cara.
Dimitri mordeu a língua e esfregou a bochecha.
— ...desnecessário.
Jack deu outro tapa.
— Qual o seu problema? Não pode ficar olhando para mim durante o
saque, senão estraga o plano!
Estava demorando para ela me xingar, pensou o novato, com preguiça.
— Eu nem fiquei olhando.
— Faltou só agir que nem um idiota. Ah, espera... isso você fez.
Dimitri mordeu mais uma vez a língua, controlando-se para não falar
umas verdades na cara de Jack.
— Beleza, eu entendi o recado. Não vai acontecer de novo.
A timoneira olhou para os céus e, colocando a mão em frente aos olhos,
calculou o horário. O sol estava um dedo mais alto do que quanto haviam
começado.
— Vamos. Já perdemos um bom tempo. Pularemos as bancas de comida
porque isso é trabalho do Grupo Beta.
Dimitri fez uma careta.
— Então por que perdemos tempo com ostras?
Jack deu um sorrisinho maroto.
— Porque é minha comida favorita.
Apesar de tudo, tinha algo contagiante sobre Jack. Dimitri não se
conteve e cuspiu uma risada. A timoneira segurou sua mão.
— Vem, vamos logo.
E os dois se puseram a correr.
37

DIMITRI NÃO SABE DANÇAR

O criado de bordo e a timoneira voltaram ao trabalho. As bancas


seguintes foram mais tranquilas, pois os vendedores estavam ocupados
demais atendendo muitos clientes de uma vez só. Conseguiram velas e
incensos naturais, alguns medicamentos de Aquatta, fósforos, especiarias,
temperos e até alguns colares ciganos. Lembrando de Ted Molenga, Dimi
ainda deu um jeito de pegar alguns damascos. Por fim, sentaram-se em um
dos bancos espalhados pela orla para organizarem suas mochilas.
Jack estava radiante.
— Bom trabalho, princesa!
Dimitri imitou uma reverência com a cabeça.
— Obrigado, madame!
— Achei que você ia me fazer passar mico, mas quem diria... você me
surpreendeu.
E ele não deixou de esboçar um sorriso.
— Acho que somos uma boa dupla. Quem diria...
O que recebeu em troca foi, obviamente, um soco no ombro. Mas dessa
vez tinha uma pitada de carinho. Dimitri riu e pegou um dos potes de
damascos de dentro da mochila para comer. Estava morrendo de fome
depois de um trabalho árduo e bem-feito.
Jack fez uma careta.
— Você está na Feira Anual da Lua de Fogo e vai comer isso?
— Qual foi? — Dimitri deu de ombros e voltou a comer.
Até que Jack arrancou o potinho de suas mãos.
— Ah, você não vai embora de Pedreira sem antes comer o queijo
derretido daqui. Fica aí que eu vou pegar um para a gente.
O garoto permaneceu sentado e a timoneira distanciou-se na direção de
uma tenda marrom. Faltavam três bancas para saquear, mas eles ainda
tinham alguns minutos. Dimitri aproveitou os instantes que tinha sentado
para apreciar uma apresentação de dança ao som de flautas e instrumentos
de percussão. Havia várias dançarinas vestindo saias coloridas e com
moedas douradas penduradas. Em suas mãos, elas giravam lenços de seda.
Uma jovem moça vestindo azul aproximou-se de Dimi, balançando os
quadris e fazendo com que todas as moedas douradas tilintassem. Seus
olhos eram estonteantes e do mesmo tom de suas roupas. A dançarina
pegou um dos braços do garoto, puxando-o para o meio de uma roda de
artistas. Dimitri não sabia que tipo de dança era aquela, mas a moça guiava-
o, girando e girando e girando... batendo palmas no ar. Em seguida, pisou os
pés com força no chão e parou em uma pose sedutora, com os braços para
cima.
— A Collora — sussurrou.
— O que disse?
Nesse meio tempo, Jack foi arrastada para o meio dos artistas por um
mágico de rua que passava por ali. A garota levava um palito de queijo em
cada mão e reclamava. As dançarinas passavam seus lenços pelo rosto da
garota que as ameaçava com seus palitos.
— Já chega, saiam!
Dimitri riu da amiga e pegou um queijo quente para comer. Voltaram
para o banco e sentaram.
— O que é tudo isso?
— A Collora — bufou a garota. — É a dança típica de Aruda. Essas
estrangeiras são tão bregas, fala sério...
A moça de azul sorria para Dimitri, bobo, que acenava de longe. Havia
uma multidão batendo palmas ao som da música. As dançarinas
convidavam o povo para entrar na roda dos artistas. Jack baixou o pulso de
seu companheiro, rindo.
— Deu, né? Eu hein... vocês homens ficam babando por qualquer
coisinha.
— Foi mal... é que tudo é meio novo para mim. Não lembro de ter visto
algo assim antes — explicou sem tirar o sorriso deslumbrado do rosto.
— Você é esquisito.
— Vou aceitar isso como um elogio vindo de você.
— Cala a boca e come seu queijo quente, vai.
Dimitri fez uma careta e Jack riu, iniciando uma batalha de palitos como
se fossem miniespadas de brinquedo. A timoneira deu a primeira mordida,
enquanto Dimitri tinha uma dúvida matutando em sua cabeça.
— Posso fazer uma pergunta?
Quer opiniões femininas para cortar esse seu cabelo de princesa, mané?
Mil e uma respostas sarcásticas passavam pela mente afiada de Jack, que
escolhia com cautela qual delas usaria para humilhar Dimitri. Mas...
naquele dia, algo maior falou por ela.
— Pode sim — apenas respondeu.
Dimitri juntou as sobrancelhas.
— Por que você insistiu tanto para o capitão me deixar fazer parte da
missão?
E mais uma vez, o garoto tinha desarmado Jack. Ele a deixara sem
palavras. Ou pelo menos era o que parecia. Jack tinha muito o que
responder àquela pergunta, mas não sabia o quanto poderia se abrir para
aquele rapaz ainda tão desconhecido em sua frente.
Suspirou.
— Você era diferente quando chegou. Não falava com ninguém,
observava quieto de longe, comprava brigas...
Deu de ombros.
— Na verdade isso ainda não mudou.
Os dois soltaram uma risada fraca, mas logo Jack voltou a ter uma
expressão estranha no rosto. Claramente algo ainda a incomodava.
— Mas você disse para mim aquela vez que não pretendia ficar muito
tempo.
Tem muito ainda o que aprender, ela havia dito.
Talvez você tenha razão... mas não pretendo ficar aqui por muito tempo
para aprender. Só estou fazendo o que é preciso para sobreviver, até
restaurar minhas memórias.
Aquelas palavras repassavam na mente do garoto. Tanta coisa havia
acontecido desde então...
Jack retomou a palavra, alegrando-se.
— Mas eu vi o jeito que você tem se esforçado para mudar nas últimas
semanas. Eu vi você sorrir de verdade pela primeira vez. Não sei o que
aconteceu, mas eu gosto desse novo Dimitri.
Dimi sentiu um calor acolhedor no peito e riu sem graça na direção de
Jack. Os dois trocaram um olhar que durou poucos instantes até virar algo
constrangedor. Jack percebeu o que havia dito e suas bochechas coraram de
vergonha.
— Não de um jeito estranho, gosto de você como colega de bordo e ser
vivo.
E ele achou uma graça.
— Valeu.
Jack respirou fundo e fugiu do assunto na velocidade da luz.
— Enfim, percebi que seus planos tinham mudado e que você estava
pensando em ficar mais tempo com a gente. Ou foi isso que eu interpretei.
Dimitri fechou a expressão. Interpretou errado, pensou. Mas não disse
nada. Não queria soar grosso ou muito menos envolver Jack em seus
problemas. Mesmo percebendo o silêncio, as palavras seguintes da
timoneira foram escolhidas a dedo:
— Só achei que seria legal dar a você uma chance para provar que é um
homem do mar.
Um homem do mar.
Aquilo significava muito para o garoto, ainda mais vindo de Jack. De
certa forma, parecia haver uma cumplicidade bonita entre os dois cabeças
quentes. A timoneira deu de ombros.
— Senão eu ia ter que aturar aqueles dois babacas.
E fez menção a Caspar e Poeta, imitando óculos imaginários com as
mãos. Dimitri riu, sarcasticamente.
— Que atenciosa você.
— Cala a boca!
Jack enfiou o queijo quente na boca de Dimi para ele parar de falar
bobagens. E parece que funcionou. Dimitri arregalou os olhos ao sentir o
sabor, a textura. Era crocante por fora e macio por dentro, derretendo em
sua boca.
— Caramba! Preciso mostrar isso para o Ted.
Mas ele falava sozinho. Olhou para o lado e percebeu que Jack havia
levantado sem nem mesmo levar sua mochila junto. Hipnotizada, arrastava
seus pés em direção à última banca da orla.
— Jack?
38

VISLUMBRE DO PASSADO

A fachada era antiga como se tivesse passado por gerações e gerações. A


vitrine estava um pouco suja do lado de fora, mas do lado de dentro
apresentava alguns artefatos bastante interessantes. Bom, interessantes para
Caspar que só pensava em tesouros. Poeta estava mais preocupado com o
nome que estava escrito em cima em letras garrafais:

DONVAR & DONVAR


EMPÓRIO & ANTIQUÁRIO DESDE 1376

Caspar tinha um sorriso maroto no rosto.


— Encara essa?
Poeta engoliu em seco. Suas mãos estavam suando por debaixo das
luvas.
— Cas, eu não sei se é uma boa... não sei nem se ele está aí.
— Ah, deixa disso. — Agarrou o ombro do amigo. — Vai ser legal.
E a sineta da porta tocou. Os garotos entraram, encontrando uma loja
escura, iluminada apenas pelos vários reflexos de objetos feitos em prata. E
eram vários mesmo.
— Olá? — gritou Caspar. — Senhor Donvar?
Apesar da enorme poluição visual, não parecia haver humanos por ali.
Um calafrio percorreu a espinha de Poeta. Caspar, por outro lado, não
conseguia conter a animação. Caminhava de um lado para o outro, tocando
em tudo que estava ao seu alcance. Artefatos milenares, escrituras antigas
envidraçadas em quadros, maquetes navais de todas as gerações,
fotografias, protótipos de invenções inacabadas, mapas celestiais e
equipamentos de astronomia, globos...
Caspar fez uma careta. Tinha certeza de que a terra era plana.
— Esquisito.
Até que, de tanto bisbilhotar, deparou-se com alguns equipamentos
avançados de mergulho.
— Cara, que lugar maneiro! Não acredito que você nunca me trouxe aqui
antes.
Poeta não respondeu. Apesar de apreensivo, passava as mãos pelos livros
empoeirados das prateleiras, acompanhando uma nostalgia que crescia em
seu peito. Riu.
— Ele continua sem usar o espanador.
Então seus olhos pousaram na mesa do caixa que ficava bem no centro
da loja. Ali era seu lugar favorito. Quando era menor, costumava sentar
atrás dela, para atender clientes imaginários e, de vez em quando, clientes
de verdade também. Mas como era muito pequeno na época, senhor Donvar
não o deixava ficar ali, pois sua cabeça não alcançava o balcão, e os
visitantes sentiam-se atendidos por fantasmas. Poeta deu um sorriso só de
lembrar.
Quando você for um pouquinho maior, esta mesa vai ser sua, senhor
Donvar havia dito anos atrás.
Sua luva prendeu em algo debaixo da mesa. Um puxador. Poeta
aproximou-se e abriu uma gaveta que estava parcialmente emperrada desde
sempre. Sim, era ali que ficava seu livro favorito.
Do outro lado da sala, Caspar fazia sabe-se lá o que com um escafandro
na cabeça.
— E aí? Como é que eu estou? AI!
E caiu no chão, derrubando metade da loja consigo.
— Troço pesado... como é que aqueles fracotes do Octopus usam isso?
Mas Poeta tinha sua atenção voltada para outro ponto e nem Caspar
poderia distraí-lo naquele momento. Tirou a luva e passou a palma da mão
em cima da capa do livro. Aquele livro tão antigo quanto o próprio tempo.
Era muito bem cuidado para que suas páginas não se desintegrassem. E na
capa, o número “5” estampado em um alfabeto arcaico. Poeta estava
maravilhado.
— Não acredito que ainda está aqui. — Ria de saudades.
Até que parou de rir.
Seus olhos visualizaram algo a mais dentro da gaveta.
Caspar tinha encontrado um aquário cheio de peixes e fingia ser um
mergulhador, ainda com o escafandro na cabeça. Que moleque teimoso.
— Ei, olha só! Será que estes carinhas estão bem alimentados?
E foi até uma prateleira procurar comida de peixe.
Poeta viu aquele envelope amarelado, manchado de café nas pontas.
Aquele pedaço de papel com uma assinatura infantil estampada. Sua
assinatura. Todos os músculos de seu corpo enrijeceram instantaneamente.
— Caspar, vamos embora.
— Cara, eu preciso de um destes. — Alimentava os peixinhos, rindo por
trás da grade do escafandro.
Poeta marchou até o colega e agarrou seu braço com uma força que nem
ele mesmo sabia que tinha.
— Vamos embora!
Caspar se assustou.
— Tudo bem...
A sineta da porta tocou mais uma vez. Uma figura idosa caminhava dos
fundos da loja para a frente, quando percebeu a silhueta de dois jovens
garotos correndo para fora. Senhor Donvar, que tinha setenta anos e poucos
cabelos, percebeu que a gaveta da bancada estava aberta. E só tinha uma
única pessoa além dele no mundo que sabia o jeitinho certo de desemperrá-
la. Percebeu a carta que guardava com tanto carinho.
Havia uma tristeza enorme em seu olhar. Fechou a gaveta e olhou
novamente para a porta, suspirando.
Poeta corria enlouquecidamente por entre a multidão, tentando se
misturar de alguma maneira e desaparecer do mapa em meio a tantos rostos.
Caspar tentava acompanhá-lo, atropelando cidadãos apressados para não
perder o amigo de vista.
Agarrou seu braço.
— Poeta, ei! Calma aí, cara.
E empurrou-o para uma ruela mais deserta. Sua respiração estava
entrecortada e seu suor gelado. Poeta estava tendo um ataque de pânico.
— Ei, fala comigo. O que foi?
— Não devíamos ter ido lá... por que você me levou lá?
Caspar levantou as mãos em tom de rendição.
— Wow... tá, desculpa. Eu não sabia que você ia ficar assim, pensei que
seria legal.
Poeta rugiu.
— Você sempre acha que vai ser legal! Sempre tem um sorriso no rosto
porque tudo é legal para você, não é?! Sempre faz as coisas sem pensar e
puxa as pessoas com você, sem nem perguntar antes ou se importar se elas
vão ou não se machucar.
E sentou-se em uma mureta, mergulhando o rosto entre as mãos. Caspar
estava em choque.
Poeta... eu nunca vi ele assim.
Com toda a cautela do mundo, sentou ao lado do parceiro. Sentia o peso
daquelas palavras, tomado de culpa.
— Desculpa — começou, sem jeito. — Eu só... eu errei. Me desculpa!
— Dimitri tem sorte — começou Poeta, com a voz fraca. — Nem todos
nós temos um passado que queremos lembrar.
Caspar sorriu, nostálgico.
Eu que o diga, colega, pensou e abraçou Poeta.
— Eu sei bem, amigo. Argh... passados. Quem liga pra eles?!
Poeta riu, sentindo-se confortado pelo colo do amigo. Caspar afastou-se
para tocar em suas bochechas. O carinho que eles tinham um pelo outro era
tudo que importava.
— Você pode conversar comigo. Sabe disso, não sabe?
Poeta concordou com a cabeça, e Caspar voltou a abraçá-lo.
— Pode confiar em mim, mano. Sempre.

11 graus Sul, 54 graus Leste. Lado Esquerdo do Festival.

Dimitri levantou-se e correu ao encontro de Jack. Ela estava apoiada na


tampa de madeira da banca número 25, coberta com uma toalha rendada em
tons de roxo. Uma bandeira da mesma cor estava pendurava logo abaixo,
porém sem nenhum desenho estampado, apenas alguns símbolos estranhos
que Dimi desconhecia. Ele não havia visto nenhuma banca com a cor roxa
ainda, então não sabia dizer ao certo qual reino ou ilha ela estava
representando na feira. Não havia nenhum vendedor também. Mas Jack não
parecia se importar com nada disso. Estava hipnotizada por um objeto
exposto em meio a muitos outros.
Dimitri pôs a mão em seu ombro.
— Jackie...
Mas ela não pareceu ligar.
Em seguida, uma mulher de aparência mística e estranha surgiu em
frente aos dois. Usava um lenço da mesma cor de sua bandeira e tinha
brincos de pedras coloridas pendendo das orelhas. Seu vestido era preto,
combinando com seus cabelos. A timoneira respirou fundo e apontou para o
objeto cintilante em sua frente.
— Nossa, é uma bela bússola.
Então, é isso que ela quer, pensou Dimitri.
Uma pequena bússola de prata. A senhora levantou os olhos e Dimitri
pôde ver que sua íris era vibrante, de um tom rosado. De onde seriam
aqueles olhos? Sorriu em direção a Jack, lentamente revelando seus dentes
da frente separados por um diastema. Analisando melhor, Dimi podia jurar
que algo nela era muito familiar, mas não conseguia lembrar o que,
exatamente. Esse mesmo algo lhe dava arrepio, por alguma razão.
— Linda mesmo, não? Seu dono mais famoso foi o pirrata Olho-Rubrro
séculos atrás.
Seu sotaque era puxado com os “Rs” enchendo a boca e fazendo sua
língua tremer por trás dos dentes, como a de uma cobra. A timoneira tinha
seus olhos vidrados no objeto de prata, ao contrário da vendedora mística,
que estava vidrada em Dimitri. Ela sorria de maneira macabra na direção do
garoto que estava bastante desconfortável.
— Vamos embora.
— Cala a boca, Dimitri!
A senhora levantou as sobrancelhas. Em uma delas tinha uma argola de
metal, que perfurava a pele.
— Dimitri? É um belo nome.
Essa voz...
Então, ele se lembrou. Lembrou a razão pela qual ela era tão familiar.
Quando se deu conta, arregalou os olhos, relembrando de algo que
acontecera semanas atrás.
Dimitri? É um belo nome... havia dito a mulher misteriosa de seus
sonhos. Será que pertence mesmo a você?
Você saber sobre o seu passado não seria conveniente para mim.
Agora Dimitri tinha certeza.
Aqueles eram os mesmos olhos.
39

ROTA DE FUGA

— Dimitri? É um belo nome...


Dimi sentiu um arrepio. Algo não parecia certo. Ele conhecia aqueles
olhos que passeavam por sua mente, atormentando seus sonhos. E agora
estavam bem diante dele. Quem é ela?
— Por quanto você faz a bússola? — perguntou Jack.
Empurrando o objeto ainda mais para a frente, a mulher mística
continuou sua explicação.
— Esta relíquia é mais velha do que os grrandes exploradores. Sua
história é curriosa, assim como todas as mãos pelas quais ela passou...
— Sei... e o preço? Você faz trocas? — Jack começava a ficar
impaciente.
A mulher misteriosa fechou a expressão.
— Não está à venda.
Tinha algo na atmosfera. Uma tensão constante e um silêncio estranho. A
senhora encarava Dimitri sem desviar. O garoto olhou ao redor e percebeu
que todos, sem exceção, tinham seus olhos voltados para ele. Estavam ali,
parados, sem dizer uma palavra, apenas mirando-o, estáticos, como se
tivessem sido congelados no tempo. E Jack estava hipnotizada.
O garoto puxou o braço da timoneira que piscou algumas vezes sem
entender. Seu corpo tremia.
— Temos que ir.
Jack olhou ao redor, de repente, acordando ofegante.
— Ótima ideia, princesa.
Jack estendeu o braço e, em um movimento rápido, furtou a bússola,
jogando-a dentro da mochila. Agarrou o pulso de Dimitri e os dois
começaram a correr o mais rápido que podiam, ao passo que a vila ao redor
voltava a ganhar vida. Aqueles que antes não se moviam, agora pareciam
querer impedi-los de seguir em frente. Carroças passavam correndo,
cachorros os perseguiam. Parecia que havia dobrado o número de pessoas
em um passe de mágica, criando uma enorme barreira humana. Apesar de
todos os tombos e tropeços, nenhum dos dois olhou para trás, até o
momento em que uma voz ecoou na cabeça de Dimitri. Dessa vez sem
sotaque algum.
— Estou de olho em você, Dimitri. Não adianta correr. Não adianta se
esconder. Eu sei onde encontrá-lo.
Dimi olhou para trás, mas a banca 25 de cores em roxo, que antes
tomava um lugar na feira, havia desaparecido completamente, como se
nunca estivesse ali. Um arrepio percorreu todo o seu corpo.
O que diabos está acontecendo?
Voltando o olhar para frente e, sem parar de correr, os gritos começaram.
— Aqueles foram os ladrõezinhos que me roubaram!
— Eles pegaram minhas mercadorias!
Comerciantes raivosos e alucinados saíram aos tropeços de suas bancas
ao perceberem que haviam sido roubados. E desataram a correr. Alguns
levavam armas e foices nas mãos, outros chamavam os guardas e
seguranças para ajudar. A feira havia paralisado por conta dos dois. Jack
olhava constantemente para trás para ter certeza de que Dimitri a estava
seguindo.
— Dimitri, não para de correr!
— Devolvam minhas velas!
— Eu quero suas cabeças. Guardas!
Jack puxou Dimitri para o meio das dançarinas de A Collora, para
tentarem se camuflar. A música estava alta e caótica, assim como todos os
lenços coloridos que passavam na frente de seus olhos. Dimi foi puxado por
uma dançarina sedutora que agarrou seu corpo em um movimento só.
— Dance — ela dizia.
E amarrava seus lenços ao redor da cintura do garoto, puxando-o mais
para perto.
— Dance...
Puxava-o para perto e mais perto e mais... Foi quando ele percebeu.
Havia algo de errado com seus olhos. Pareciam mareados, envoltos em
neblina.
— DANCE! — ela ordenava.
— AHH!
Dimitri deu um passo em falso pra trás, caindo no chão assustado. Jack
agarrou sua mão e voltaram a andar para longe, passando discretamente
pelo meio dos artistas de rua. A timoneira usava um lenço nos cabelos para
se disfarçar.
— Não olhe nos olhos de ninguém — sussurrou.
— ALI ESTÃO ELES!
Jack virou bruscamente ao perceber que haviam sido descobertos.
— Droga!
E mais uma vez desataram a correr. Jack olhou ao seu redor procurando
por uma saída. Dimitri já conseguia ver Caspar e Poeta ao longe, abanando
para eles. Jack segurou no ombro do colega e em um tom de alerta disse:
— Corra. E não me espere.
— O quê? Jack eu não posso....
— Confia em mim!
Ela tinha uma urgência no olhar. Uma urgência que dava pena e coragem
a Dimitri ao mesmo tempo. Não. Pena era algo que ele não poderia sentir
por ela. Mas coragem...
Assentiu com a cabeça.
— Não importa o que aconteça, não pare de correr.
Em um movimento, Jack desatou a correr para o lado oposto, deixando
Dimitri no meio da multidão de braços raivosos que tentavam agarrá-lo.
— Que droga, Jack! — gritou e, em um impulso contra sua vontade,
correu em direção aos meninos.
— É aquele ali!
— Guardas, foi ele que me roubou!
Não importa o que aconteça, não pare de correr.
Dimitri estreitou os olhos e, utilizando toda a energia que lhe restava,
correu o mais rápido que pôde, desviando de civis e pulando muretas. Os
guardas começavam a aparecer montados em seus enormes cavalos ou
guiando seus cães de caça ou brandindo suas lanças. E os vendedores
continuavam a gritar enfurecidos.
— O que está acontecendo?
— Meus pombos!
— Ahhh, socorro! Por favor!
— ALI ESTÁ! FOI AQUELA RATA ALI!
Dimitri estranhou os novos comentários, mas antes que pudesse ter a
chance de olhar para trás, ouviu o bater de milhares de asas sendo libertadas
nos céus. Olhou para cima e percebeu um bando de pombos cinzentos
voando para longe, e outro bando causando confusão na feira. Jack usou seu
gancho para saltar para longe da gaiola do mágico de rua, que se lamentava
com a perda de seu número mais importante, e alcançar Dimitri.
— Você é impossível.
Jack sorriu, sem ralentar o passo.
— Eu disse para confiar em mim.
Ao chegarem ao ponto de encontro, Caspar e Poeta juntaram-se aos dois
seguidos de uma enorme nuvem de fumaça que subia do chão por conta da
multidão que os perseguia. Os quatro Saqueadores da Barra armaram uma
corrida em linha reta até o Nadia Keane. Ou quase.
— Caspar, esse não é nosso navio, idiota! — gritava Jack.
— Eita.
Poeta foi atrás de Caspar, que quase entrou em uma escuna qualquer.
Dimitri sentiu uma dor de cabeça muito forte, e a voz da mulher mística
voltou a ecoar.
Não adianta tentar escapar de mim, ela ressoava.
Os comerciantes começavam a chegar perto.
— Devolvam minhas velas!
— Eu quero suas cabeças. Guardas!
O Nadia Keane já havia desancorado e preparava-se para zarpar em
direção ao alto-mar. Foi preciso um impulso gigantesco e coragem para que
os garotos pulassem do deque do porto bem em cima da rede de pesca do
navio. Poeta. Então Caspar. Então Dimitri. Então...
— JACK!
A timoneira tinha sido agarrada pelo pé por um maldito pescador.
— Agora você não me escapa.
Jack rangeu os dentes por entre uma lâmina que carregava na boca.
Clicou em seu cinto, mas... o quê? Estava emperrado. Ela teria que
improvisar.
— Quem sabe da próxima vez.
E raspou-a no braço do homem, que rugiu de dor. Jack deu uma
cambalhota de costas para sair de perto e, em um ato desesperado, saltou no
ar para tentar alcançar seus companheiros. Mas estava longe demais.
— Joga seu cachecol! — gritou Dimitri.
Em questão de milissegundos, Jack desenrolou seu precioso cachecol do
pescoço e jogou uma das pontas na direção dos meninos da rede de pesca.
Dimitri agarrou-a no ar, criando uma base para que Jack pudesse ter o
impulso necessário para chegar a eles, pousando bruscamente em cima de
Caspar.
— AI!
Dimitri, aliviado, olhou para trás e, de repente, todo o alvoroço que havia
se formado atrás dos Saqueadores da Barra, havia sumido. O Festival da
Lua de Fogo voltava ao normal, e ninguém parecia sequer se importar com
os roubos.
...foi tudo uma ilusão?
Então a viu. De pé no deque do porto, lá estava aquela mulher mística,
observando-o com curiosidade.
Eu sei onde encontrá-lo, a voz dela invadia os pensamentos do garoto.
Dimitri esfregou os olhos, mas quando os abriu novamente, ela já havia
sumido, desaparecido, esvaindo-se com o vento. E o festival havia voltado
ao normal. Não sabia nem ao certo dizer se realmente haviam sido
perseguidos ou se era tudo coisa de suas cabeças. Mas aquele dia iria
assombrá-lo para sempre, assim como aquela voz.
O navio se distanciou com aquele monte de jovens piratas ridiculamente
embolados em uma rede de pesca.
Caspar pigarreou.
— Jack, sem querer ser grosseiro, mas pode tirar seu traseiro da minha
cara?
Jack olhou para baixo.
— Tira a sua cara do meu traseiro!
A situação não estava das melhores. Dimitri fez uma careta.
— Que cheiro é esse?
— Não fui eu — respondeu Poeta.
— Eu sei quem foi — disse Caspar, tampando o nariz.
— Ah, muito conveniente você me culpar, não é, seu porco?! —
reclamou Jack, espremendo ainda mais o pobre rapaz da pólvora contra a
rede.
Alguns minutos depois, os quatro estavam sendo resgatados por Apa,
que puxou a rede de volta para o convés do Nadia Keane. Os meninos
caíram de joelhos do deque de madeira, deixando seus corpos serem
puxados contra a gravidade em um ato de cansaço extremo. Enquanto se
recompunham, os integrantes do Grupo Beta faziam fila em frente ao
capitão para mostrar o conteúdo de suas mochilas.
Um por um, recebia a aprovação de Patrick Hall.
— Ótimo trabalho, montadores.
Apa e Dante sorriram de satisfação.
Poeta e Caspar foram os próximos. Poeta parecia um pouco
desconfortável, mas Caspar era o exemplo perfeito do que chamamos de
“cara de pau”. Deu um sorrisinho amarelo e abriu sua mochila.
Patrick Hall olhou o interior com a cara amarrada e bufou.
— Vão ter que compensar da próxima vez, marujos.
Poeta fez uma reverência sem graça e se distanciou o mais rápido que
conseguiu.
— Que vergonha.... — Tampava o rosto.
Caspar, por outro lado, respirava aliviado por ter conseguido se safar.
Jack foi a próxima, mas antes que entrasse na fila, escondeu a bússola
dentro do bolso de suas calças. Então, orgulhosa, mostrou o trabalho bem-
feito. Hall abriu um enorme sorriso.
— E não esperava nada menos de você, Jacqueline.
Dimitri abriu sua mochila, igualmente cheia, mas o capitão não disse
uma única palavra. Fechou a expressão, furioso. O criado de bordo, que não
podia perder a oportunidade, esboçou um sorrisinho convencido, apenas
para provocar seu superior e saiu de perto.
Patrick Hall grunhiu.
O maldito filho de caravela é esperto, pensava.
— Contramestre Kimberly. Quero que acompanhe os criados de bordo
até a cozinha. Reponham os suprimentos nos devidos lugares.
— Sim, senhor.
E era verdade. Dimitri havia feito um ótimo trabalho, mesmo depois de
Hall duvidar dele. Havia tirado todas as oportunidades que o capitão tinha
de estraçalhar com ele. O máximo que Hall podia fazer no momento era pô-
lo para trabalhar. Encarou mais uma vez aquele tornado de olhos azuis que
se distanciava aos poucos, sentindo uma raiva maior do que qualquer outro
momento crescendo em seu peito.
Antes que os garotos descessem para a cozinha, Jack cutucou o ombro de
Dimitri e retirou algo do bolso. Algo que ela não havia mostrado para o
capitão.
Dimitri abriu um sorriso ao ver a bússola. Aquela bússola que havia
causado tanta confusão minutos atrás.
— Você é terrível, sabia?!
E Jack deu de ombros.
— É meu jeitinho.
40

TED MOLENGA, O COZINHEIRO

A cozinha do Nadia Keane era a cara de Ted Molenga. Organizada


dentro da sua própria bagunça. Era pequena, mas ele utilizava muito bem o
espaço. Não havia cantos vazios. As panelas ficavam penduradas no teto e
balançavam constantemente com o movimento do navio. Algumas estavam
bem lavadas, outras... bem, nem tanto assim. Ted acrescentava alguns
ingredientes a mais dentro de seu caldeirão no fogo alto, enquanto Dimitri e
Caspar terminavam de arrumar alguns temperos nas prateleiras. Kim, como
só estava ali para supervisionar o trabalho dos pivetes, permanecia
encostada em uma parede, observando se estavam executando as tarefas
direito.
Para alegrar um pouco, Ted assobiava uma melodia do mar, enquanto
Caspar fazia mais uma de suas teorias da conspiração.
— Sinceramente, a ilha fica no Mar Oculto. Mar O-C-U-L-T-O. O nome
já é bem sugestivo. Não temos como saber o que tem lá, e eu não consigo
parar de pensar nisso.
Kim revirou os olhos.
— Vá trabalhar que você ocupa a cabeça, eu não tenho o dia todo.
Mas claramente ela também estava interessada no assunto.
— E você, Ted? O que acha? — perguntou a ruiva.
— Sobre a rota da Ilha da Barracuda?
— Sobre o Mar Oculto — corrigiu Kim.
Ted parou para pensar um instante. O Mar Oculto levava esse nome, mas
ninguém sabia ao certo o porquê. Diziam as lendas que era uma parte do
oceano com as profundezas pouco exploradas. Era um lugar que envolvia
muitos mistérios também, desaparecimento de navios e coisas do tipo, sem
explicação. Mas Ted não achava que isso fazia jus ao nome “Oculto”, de
fato.
— Não conheço todos os cantos desse mar, mas já navegamos por parte
dessa rota antes. São águas mansas, crianças. Se seguirmos os ventos
orientais, imagino que não teremos grandes complicações.
Tirou o trigo que mascava por entre os dentes e jogou na panela. Dimitri
foi o único a perceber.
Ew.
Ted deu uma risada.
— Vamos torcer para que Doq, santo deus das calmarias, esteja conosco.
Caspar deu um salto indignado.
— Ficou maluco? As calmarias são os locais com mais aparições de
monstros marinhos já relatadas!
E jogou-se em uma cadeira.
— ...estamos mortos.
— Então vamos rezar para que Leros esteja de férias. — Ted riu e deu
um tapa no ombro do loiro.
Citar o nome do deus dos monstros marinhos não era uma maneira
inteligente de tranquilizar um pirata. Dimitri mexeu nas mochilas de
suprimentos e encontrou um saquinho que havia, momentaneamente,
esquecido que estava ali.
— Molenga, trouxe os damascos que você pediu.
Ted abriu o maior sorriso e deu um cascudo na cabeça de Dimi.
— Bendito seja você, rapaz.
Caspar aproveitou a deixa, aproximou-se discretamente da panela e
pegou um filete de molho para experimentar. Lambeu a colher.
— Hm... — Provou e fez uma careta. — Salgado demais.
Tedesco Russo odiava quando criticavam sua comida. Ele estava ali
justamente por causa dela, aquele era seu trabalho. Quem a criticasse,
estava morto. Mas Caspar não era exatamente um garoto que temia a morte.
Ted arrancou a colher de pau de suas mãos, furioso.
— Minha cozinha, minhas regras, moleque. Cansei de você reclamando
da minha comida. Vai comer o que eu fizer!
— Mas são críticas construtivas!
— Críticas construtivas uma ova! Queria ver se eu fosse passar o dedo
nos canhões que você limpa só para criticar o seu trabalho.
— A diferença é que você não come os canhões!
Os dois continuaram a brigar como de costume. Desde que Caspar havia
chegado no Nadia Keane, havia se tornado um dos maiores empecilhos na
vida de Ted Molenga. Kim era a contramestre, era seu trabalho impedir que
essas brigas internas acontecessem, mas se olhassem para a cara dela,
veriam que ela estava até se divertindo.
Virou-se para Dimitri.
— Pode ir se quiser. Está liberado.
Dimitri suspirou de alívio por ter a chance de ir embora daquela cozinha
fedorenta.
— Beleza.
E se retirou.
Caspar, que já tinha apanhado com uma concha de sopa, agora estava
apoiado na mesa de centro, de cara emburrada. Ted havia voltado a mexer
em sua panela.
— Sabe do que você precisa? De uma garota! Assim pararia de me
incomodar — reclamava o cozinheiro.
— Diz isso para a Kim. Ela que não me quer.
— Ow, não me mete nisso, moleque.
Mas o rapaz da pólvora não voltou a incomodar a contramestre como de
costume. Ao invés disso, apoiou a mão no rosto, com um ar ligeiramente
sonhador.
— Ah... Ted. Eu conheci uma garota. Aran.
— Saúde — zombou Kim.
— Aran é o nome dela, idiota!
Kim levantou as sobrancelhas em tom provocativo.
— Ah... é aquela sua amiga imaginária da praia, né?!
E Caspar aproveitou a deixa. Deu um sorriso maroto.
— Tá com ciúmes...
— Eu não! Sai pra lá, garoto.
Ted parecia entretido com o assunto. Apesar de tudo, adorava a
companhia dos jovens em sua cozinha. Principalmente a de Caspar. Mexia a
concha dentro da panela no ritmo que mexia suas sobrancelhas.
— E ela era bonita? — perguntou o cozinheiro.
Caspar suspirou para o além.
— Linda!
Sua voz tinha um leve tom melancólico. Ted percebeu e virou-se para o
rapaz.
— Não são muitas as chances que temos na vida de encontrar o amor.
E pôs a mão no ombro do loiro, segurando para as lágrimas não caírem.
— Não perca tempo, homem. Vá atrás dela!
E a visão do caos era aquela. De dois homens chorando por amores que
sequer haviam existido de fato. E o pior: davam conselhos um para o outro.
Kim revirou os olhos, enojada.
— Eu mereço…
41

O CORAÇÃO DO ALVORECER

20 graus Sul, 49 graus Leste. Nadia Keane.

Com algum tempo sobrando por ter sido liberado mais cedo de suas
tarefas, Dimitri resolveu explorar o navio. O Nadia Keane era uma corveta,
o que significa que não era assim tão grande, mas o garoto nunca tinha tido
oportunidade para conhecer todos os seus cantos. Já havia visitado
praticamente todos os cômodos comuns abaixo do convés, menos alguns
quartos que eram proibidos. Um em específico, era o mais misterioso de
todos. Dimitri caminhou até o fim do último corredor. Lá tinha uma única
porta, bem mais estreita que as outras. Em sua superfície, podia-se ler o
número 17 estampado em cobre.
O garoto já tinha ouvido falar do famoso quarto 17. Era tema de boatos e
lendas fantasmas no navio. Ninguém jamais entrara lá ou sequer sabia o que
tinha dentro do cômodo misterioso. Dimi aproximou-se, olhando para trás
para ter certeza de que não estava sendo observado. Pé ante pé, chegou à
frente do quarto 17. Sua maçaneta era redonda e quando Dimitri levou a
mão direita até ela, não se moveu. Estava emperrada. E a porta... trancada.
O que será que tem aí dentro?, ele pensava. Forçou mais algumas vezes a
maçaneta, mas de nada adiantou. Tentou empurrar a porta, mas ela nem se
mexeu. Grudou o ouvido no tampo de madeira logo abaixo dos números em
cobre. Aguçou a audição e prestou atenção. Se ele se concentrasse,
conseguiria ouvir um barulho específico. Que estranho...
Dimitri podia jurar que ouvia o som do mar.
De fato, aquele quarto escondia alguns segredos e a revelação do
mistério teria que ficar para outro dia. Distanciou-se confuso e partiu para
um próximo destino.
Dimi já conhecia alguns dos outros quartos, outros ainda não. Conhecia
o depósito principal de cabo a rabo também. Mas naquele dia, deu-se conta
de que nunca havia ido até o extremo da proa. Subiu as escadas do deque
superior e deparou-se com o enorme gurupé, que se estendia muito além da
borda do navio. Aproximou-se, curioso, apesar de lembrar de algo que Jack
havia dito para ele quando chegou.
Dica: nunca suba lá sozinho.
Mas Dimitri não era facilmente amedrontado. Pôs o primeiro pé na
frente, então equilibrou o segundo. Abriu os braços para os lados e
começou a caminhar. Um passo… de cada vez. Ao chegar no meio da
estrutura do gurupé, sentou-se e largou as penas suspensas no ar. Quando
finalmente parou para respirar, seus olhos se encheram da obra-prima em
sua frente. Pela primeira vez, Dimi teve uma visão perfeita do mar.
— Wow.
O sol estava se pondo mais cedo do que de costume, e o céu estava
pintado em tons de rosa, laranja e amarelo. A brisa marítima batia
levemente em seu rosto, fazendo sua franja voar para trás. Respirou fundo,
enchendo os pulmões por completo com aquele ar tão puro.
— É... wow.
— AHH!
Jack havia chegado de fininho, caminhando e equilibrando-se com
facilidade por trás do garoto. Dimitri balbuciou e caiu, ficando pendurado
de cabeça para baixo apenas pelo pé esquerdo. Com as vestes sendo
puxadas pela gravidade e tapando seu rosto, Dimitri parecia um idiota.
Olhou para cima e percebeu que a timoneira ria dele.
É, definitivamente eu pareço um idiota.
— Não se assusta alguém no gurupé — gritou.
— Não se vem sozinho no gurupé. Pensei que eu já tinha avisado — ela
respondeu.
— Touché!
A timoneira pendeu seu corpo para a frente e, quando Dimitri pensou
que ela fosse ajudá-lo a subir de volta, Jack se jogou, ficando de ponta
cabeça, cara a cara com o garoto. Os cabelos e roupas dos dois sendo
puxados para baixo. Ela ria, de braços cruzados para segurar a camisa. Suas
bochechas estavam vermelhas, e a luz dourada do sol batia diretamente em
seu rosto, realçando a cor verde de seus olhos, e agora seu cabelo castanho
estava pintado em tons de vermelho. Dimitri nunca havia reparado antes,
mas ela tinha sardinhas em volta do nariz.
— Olha, é a primeira vez que vejo seus dois olhos — ela disse, sem
parar de sorrir. — Seu rosto fica bem mais bonito assim.
Dimitri sentiu as bochechas queimando e riu um pouco sem graça.
— É... acho que eu preciso cortar o cabelo — respondeu, sem jeito.
Jack riu e relaxou o pescoço, deixando sua cabeça cair para sinalizar algo
atrás de si.
— Consegue ver a figura de proa daqui?
Dimitri estreitou os olhos e levantou um pouco a cabeça para enxergar.
Logo atrás da timoneira, havia uma estátua esculpida em madeira na frente
do navio. Era a figura de uma mulher de cabelos longos, cauda de peixe e
expressão de batalha. Seus olhos não possuíam íris ou pupilas, o que os
deixava um tanto fantasmagóricos.
— Você está ficando vermelho.
— O quê?
Jack riu.
— Seu rosto.
O sangue começava a descer para a cabeça dos dois. Dimitri cutucou o
rosto de Jack, implicante.
— Do que você está falando, você que está ficando vermelha.
— Isso porque você não olhou para a sua cara.
E ficaram cutucando um ao outro na brincadeira, até Dimitri se
desequilibrar e quase cair. Mas Jack foi mais rápida e segurou sua mão.
— Quase — provocou. — Pensou que eu ia te deixar cair?
Dimitri fez uma careta.
— Eu não duvido de mais nada.
Jack ameaçou soltá-lo, até que os dois se entenderam e sentaram-se
rindo, agora de cabeça para cima. Ficaram ali lado a lado, equilibrando-se
no gurupé. Apreciavam a vista com os pés soltos cortando o ar. Dimitri
olhou mais uma vez para a figura de proa.
— Por que uma sereia?
— Dimitri, Nadia Keane. Nadia Keane, Dimitri.
— Espera... o quê?
Jack levantou e agarrou uma corda que havia por perto. Dimitri
continuou sentado, virado de frente para a garota e de costas para o mar.
— Por que você acha que o navio tem esse nome? Nadia era o nome da
mulher que partiu o coração de Hall.
Dimitri juntou as sobrancelhas, confuso.
— Patrick Hall se apaixonou por uma sereia? — pensou alto. — Não é à
toa que ele é amargurado.
Jack deu uma risada.
— E quem em sã consciência se apaixonaria por uma sereia? Não, idiota.
Ele diz que, como uma sereia, ela o enfeitiçou, traiçoeira e mortífera. Acho
que a ideia é passar essa imagem para o navio também.
Dimitri pensou por um instante. Era um pouco triste na verdade.
Por isso Hall é desse jeito.
Ele forçava-se a lembrar de seu sofrimento todos os dias,
propositalmente, como um castigo ou uma punição infinita. Ou era isso que
o garoto pensava na época. Patrick Hall era um caso muito mais profundo
do que isso. Dimi virou a cabeça em direção à linha do horizonte. Jack
voltou a sentar-se ao seu lado, os dois em silêncio por alguns instantes.
Jack cutucou-o com o cotovelo.
— Ei, mas não vim até aqui para chamar você de idiota.
— Veio para me chamar de que, então?
Jack voltou seus olhos para baixo. Brincava com os dedos, sem propósito
algum, tentando distrair sua própria cabeça de seus pensamentos. Parecia
estar em conflito consigo mesma sobre o que falaria a seguir. Dimitri achou
engraçado ver aquela garota tão destemida lutando contra seus sentimentos,
escondendo a vergonha por trás dos cabelos.
Parece comigo, pensou.
Jack respirou fundo.
— Obrigada por me salvar mais cedo hoje.
E aquelas palavras saíram de sua boca como veludo, pegando Dimitri de
surpresa. Era incrivelmente difícil para a timoneira agradecer um favor a
alguém ou até mesmo pedir desculpas. Não era questão de orgulho, de
maneira alguma. Mas era como uma barreira ao seu redor. Uma barreira que
cercava tudo aquilo que envolvesse seus sentimentos. Não queria ser vista
como uma menina sensível. Sua reputação era clara: Jack, a Bruta. Seu
comentário veio sem um contato visual, até que Jack trocou um leve olhar
com seu companheiro. Dimitri sorriu em resposta.
— De nada — respondeu, grato. — E desculpa por ter te desrespeitado.
— O quê? — perguntou, sem entender.
— Seu cachecol. Você disse para eu nunca mais tocar nele. Me desculpe.
Jack baixou a guarda, de repente.
— Ah... isso?! — E pegou aqueles fios trançados nas mãos. — Tudo
bem. Foi por uma boa causa.
Dimitri percebeu o quanto ela olhava com carinho para aquele simples
pedaço de roupa. Carinho e melancolia. Por quê... Queria tanto perguntar
mais sobre. Mas Jack era muito fechada, e ele não queria invadir sua
privacidade de jeito algum. Respirou fundo e apenas disse:
— Estamos quites agora.
Jack estreitou os olhos e jogou o corpo para trás.
— É, mais ou menos, né, princesa? Perdi a conta de quantas vezes já
livrei sua barra por aqui. Ainda está me devendo.
— Devo alguns salvamentos?
— Não preciso ser salva.
Dimitri sorriu.
— É. Não precisa mesmo.
— Mas acho que podemos assinar um tratado de paz por enquanto — ela
acrescentou.
— Concordo. — Dimi riu e esticou sua mão direita. — Sem mais
competições.
Mas Jack retribuiu com uma careta e deu de ombros.
— Não posso prometer sem mais competições. É mais forte do que eu.
Dimitri riu e concordou, puxando sua mão de volta para o corpo.
— Tá bom.
— E vou pensar como eu quero que você pague suas dívidas.
O criado de bordo fingiu pensar por um instante.
— Eu até pagaria as 320 coroas que ganhei, mas ficaram com o
esquisitão de Calamari. — Levantou as sobrancelhas em tom de
provocação. — E ele bem que ficou perguntando de você.
— Eww, que nojo! Ainda bem que eu não ouvi.
Dimitri não podia perder a oportunidade de incomodá-la um pouquinho.
— Ele ficou todo “nossa, que garota maluca, ela tem namorado?”.
— Cala a boca! — falou, iniciando uma guerra de empurrões e risadas
com Dimitri.
E assim terminou o dia. Com as vozes se confundindo com o vento. Com
os corações de dois jovens iluminados pelo alvorecer. Com o sol
desaparecendo no horizonte, Caspar interveio, gritando de cima de um dos
cordames. Era quase como acordar de um sonho de volta para a realidade.
— Ei, galera, está quase na hora!
Os dois garotos levantaram e Dimitri fez uma careta.
— Na hora de quê?
Jack levantou as sobrancelhas animada. Cesco gritou lá de cima:
— Celacantos a estibordo!
O navio virou bruscamente, e o criado de bordo viu que Zuca estava
controlando o timão. Jack puxou Dimitri, que esperava algo surpreendente
acontecer, de volta para o navio. Mas nada. O garoto olhou para baixo e a
única coisa que via era a água batendo no casco do navio.
— Era para eu ver alguma coisa?
Jack revirou os olhos. Idiota. Pegou-o pelo queixo e guiou-o até a direita.
— Ali, celacantos.
Dimitri estreitou os olhos. De repente, inúmeros animais gigantes
pularam para fora d'água. Eram parecidos com baleias, de imensas
nadadeiras, cada uma delas tinha o tamanho de pelo menos metade do
Nadia Keane. Eram da cor do mar e camuflavam-se com as ondas, nadando
e saltando como se dançassem em grupo. Algumas davam voltas e voltas,
outras espirravam água para fora. Era um espetáculo de se ver.
Poeta, que tinha sua câmera a postos, tomou a palavra:
— O celacanto é um dos maiores peixes já registrados nesta região.
Vivem aqui por conta da água morna das crateras submarinas e costumam
vir para a superfície no crepúsculo.
Dimitri estava impressionado.
— São peixes? Mas são enormes!
— São lindos, não são?!
No momento em que o garoto ia responder, um celacanto bateu a
barbatana na água, encharcando Dimitri com uma onda. Depois dessa deixa,
os enormes peixes voltaram para as profundezas. Os Saqueadores da Barra
aproximaram-se rindo do garoto.
— Agora sim, o rapazinho Dimi virou um homem do mar.
Dante fazia piadas que apenas ele mesmo ria. O sol começava a
desaparecer por completo, fazendo com que a noite tomasse conta dos céus.
Os dias no convés podiam ser bastante quentes, mas as noites em alto-mar
eram frias. King aproximou-se, também rindo.
— É melhor dar um jeito nessas roupas ou vai morrer congelado, garoto.
Dimitri olhou para si mesmo. Parecia que tinha recém sido resgatado do
mar. Encharcado e parecendo um idiota.
Lua, a deusa da noite, começava a tomar conta dos céus, fazendo todos
os marujos irem se aprontar para o jantar. Depois de se secar e trocar de
calças, Dimitri vestiu seu velho colete esfarrapado e aprontou-se para ir ao
convés. Porém, antes que tivesse a chance de subir as escadas e passar pela
escotilha, uma sombra barrava sua passagem.
— Vejo que está fazendo amizades.
Lars, o Atroz. Dimitri fechou a expressão e passou, sem dar ouvidos,
pouco antes daquela voz rouca e gasta tomar conta de seus ouvidos
novamente.
— Sabe que vai perder tudo quando for embora, não sabe?
— Não é da sua conta — respondeu, sem parar de caminhar.
— Ou está realmente pensando em ficar?
Foi quando Dimitri freou o passou. O velho pirata sorriu.
— Saiba que Hall nunca irá aprovar um fil...
— Não pretendo ficar — respondeu Dimitri, ríspido.
Mesmo assim, não se moveu. Lars, o Atroz, aproximou-se, levantando
sua mão de faca perto do rosto.
— Minha oferta ainda está de pé.
Dimitri sentiu o sangue subindo à cabeça. Sua respiração ficou pesada.
— Eu não vou trabalhar para você.
— Pensei que quisesse matar o capitão... — provocou Lars.
O garoto baixou a cabeça. Que instintos assassinos você tem. Daria um
ótimo bucaneiro, ele lembrava daquelas palavras, de tempos atrás. Não.
Virou-se, com os olhos em chamas.
— O que significa ser um bucaneiro?
Lars levantou as sobrancelhas, intrigado com aquela figura em sua
frente.
— Pensei que quisesse saber sobre o seu passado...
— Responda!
O marujo riu com gosto, mostrando seus dentes podres.
— Você vai descobrir. Mais cedo ou mais tarde.
42

GAROTAS SÃO PARA OS FRACOS

— Eles estavam cercados.


O vento uivava pelas frestas da janela como a tempestade daquelas
palavras.
— O navio era tomado pelos monstros mais horrendos que Mirtos já
havia visto.
Os galhos batiam no vidro com força.
— Surgiram voando das sombras da noite, quando... BUM!
A janela escancarou, fazendo todas as cortinas voarem de maneira
fantasmagórica. Ninguém estava ali para fechá-las novamente, a não ser
aqueles dois moleques escondidos debaixo da mesa da cozinha. O maior
deles devia ter no máximo seis anos de idade e segurava um livro de
histórias nas mãos.
— Não atacaram.
O menor escondia-se de medo por entre cobertores.
— Como não atacaram? Não eram monstros?
— Eram sirenas — respondeu o mais velho, fascinado. — Mas só
atacavam mulheres.
E voltou a ler, interpretando cada frase como uma fala teatral.
— Mirtos estava a salvo, mas sua esposa não. Eles tentaram e tentaram
atingi-las, mas não eram páreos para as filhas de Leros, o deus dos
monstros.
O menor aproximou-se para ler também.
— ...elas queriam que o coração de Mirtos pertencesse apenas a elas. As
sirenas eram tão solitárias que se apaixonaram pelo primeiro homem que
conheceram. Quando a esperança parecia ter se esvaído, Mirtos foi até sua
esposa e deu-lhe um beijo nos lábios.
O maior deles fez uma careta e fechou o livro, revoltado.
— Eca... não era para ser uma lenda romântica.
— Foi você que escolheu o livro.
O maior pegou sua espada de madeira e apontou para a frente,
bravamente.
— Tinha que ter terminado com uma batalha feroz e muito sangue!
O menor riu timidamente e abaixou a arma.
— Mas o amor é a maior das armas.
— Ah... — Provocou o maior. — Parece que alguém está apaixonado.
E o menor ficou de bochechas vermelhas, negando com a cabeça.
— Eca, claro que não! Garotas são nojentas.
— Concordo! São como você, só pensam em amor.
— Eu não sou como as meninas.
O maior levantou as sobrancelhas e sorriu cinicamente.
— Mas fica pensando em meninas. — E ficou de pé, levantando
novamente sua espada. — Um pirata de verdade só ama o seu navio,
marujo! Luta contra monstros e vai atrás de tesouros! E garotas...
— São para os fracos! — os dois gritaram juntos, caindo na gargalhada.
Ficaram ali, rolando de rir no chão frio da cozinha por alguns bons
minutos, em uma época que ser criança era a única salvação. Ser criança era
uma aventura. Quando a energia se esgotou um pouco, os dois garotos
deitaram debaixo do cobertor para se abrigarem do frio. O sono começava a
aparecer.
— Mas fico feliz que Mirtos tenha conseguido fugir com sua esposa —
respondeu o menor por entre um bocejo.
O maior deu de ombros.
— Eu ainda acho que ele deveria ter subido nos brandais e atacado todas
aquelas sirenas de uma vez só! Decepado umas cabeças! — disse,
bagunçando a coberta.
O menor riu e fez sinal de silêncio com o dedo em cima dos lábios.
— Ei, shh! Fica quieto, senão vão nos mandar dormir.
— Certo...
Deitaram de bruços e abriram o livro novamente.
— Vira a página!
E ali ficaram o resto da noite com uma lanterna na mão e um livro de
palavras que enchiam seus olhos com as aventuras de grandes marujos.
Talvez tivessem levado uma bronca no dia seguinte, talvez não.

Patrick Hall abriu os olhos, acordando de um sonho nebuloso. Suspirou.


Olhou as horas em seu relógio. Uma e meia da manhã, o que significava
que a hora dos fantasmas já tinha passado. Então, voltou a dormir.
43

GARRA

Por sorte ou não, Patrick Hall não teve muito tempo de pensar sobre.
Zuca adentrou a cabine, impondo sua presença em poucos instantes.
— Capitão, tudo certo para zarparmos para a Ilha da Barracuda amanhã.
— Ótimo — respondeu o capitão, ajeitando a postura na poltrona.
Zuca conhecia seu companheiro fazia alguns bons anos. Conhecia aquela
energia que ele estava exalando, mas não queria ser inconveniente. Virou-se
novamente para a porta e, quando estava prestes a sair, decidiu perguntar.
— Patrick... você está bem?
Patrick Hall soltou uma risada fraca.
— Até deixou as formalidades de lado. Deve ser coisa séria.
— Eu me preocupo com você, saiba disso.
O capitão suspirou e encheu uma taça com seu vinho favorito, vindo da
terra longínqua de Andovas. Só aquilo para acalmá-lo.
— Só estou começando a me preocupar. Estamos ficando sem tempo...
— disse de maneira cansada. — E do jeito que Kirk está jogando, vamos
perder essa corrida. Ele sempre está um passo à nossa frente.
— Precisamos revidar — respondeu o imediato.
Patrick Hall levantou o tronco do encosto da poltrona e levou-o para a
frente, onde havia uma mesa e um tabuleiro de xadrez arrumado em cima.
Mexeu um peão. Então uma torre. Então o cavalo.
— Não, isso seria óbvio demais.
Zuca observava tudo atentamente.
— Precisamos fazê-lo acreditar que estamos caindo na estratégia dele.
Sutilmente, como uma mosca presa em uma teia... — continuou o capitão.
— O xeque-mate é o movimento mais discreto do jogo.
Quando Zuca pôs seus olhos novamente no tabuleiro, lá estava o rei,
encurralado.
— Como estão os estudos do garoto Poeta? — perguntou Hall, trocando
de assunto.
— Sobre isso — Zuca coçou a nuca, procurando as palavras certas — ele
parece estar com algumas dificuldades para decifrar a charada da sereia.
Pediu mais alguns dias.
Patrick Hall cuspiu de indignação.
— Alguns dias, o que seriam alguns dias? Uma semana, duas? Esse
moleque já foi mais eficiente.
— Tenho certeza de que duas semanas serão suficientes para termos
respostas. Poeta trabalha mais duro do que ninguém.
Queria o imediato acreditar tanto nas suas palavras.

11 de Dezembro, 1543. Ano do Lobo Marinho.


35 graus Sul, 43 graus Leste. Limite do Mar Real.

— E é por isso que eu tenho certeza de que as histórias do velho Jonas


são mentira. O cara não passa de um folgado que fica cuspindo o dia
inteiro.
Poeta não parava de tagarelar ao redor dos criados de bordo, o que
deixava a tarefa de esfregar o chão um pouco mais maçante do que o
normal. Caspar enxugou o rosto e apoiou-se do esfregão para descansar.
— Cara, a gente já entendeu que você e o coroa não se dão bem, mas
você não tem como provar que monstros não existem. Cada um acredita no
que quer. Eu acredito, oras.
— E, realmente, você é um exemplo a ser seguido — respondeu Kim,
levantando as sobrancelhas.
— Ouch — reclamou Caspar.
Poeta arrumou a boina nos cabelos e pôs uma expressão convencida no
rosto.
— Eu sou um homem da ciência, Cas. A evolução é uma coisa
misteriosa e, sim, creio que possam existir criaturas desconhecidas pelo ser
humano nas profundezas. Eu mesmo já vi hipocampos e nereidas, mas
francamente...
— Francamente! — Cuspiu o loiro. — Hipocampos e nereidas não são
monstros marinhos, seu ignorante.
— E você acaba de concordar com minha teoria. Neles eu acredito.
Caspar ficou de boca aberta, sem saber o que falar, até partir para a sua
arma secreta contra Poeta, o Convencido.
— Dimitri, me defende, cara!
Dimitri deu de ombros não querendo se meter no assunto.
— Tudo que eu vi até agora foi uma sereia tagarela e um gato caolho. —
Apontou para Cook, que miou. — Sem ofensas.
Poeta deu um sorriso cínico enorme na direção de Caspar.
— Jonas fica falando sobre um dragão que mora dentro de um vulcão e
faz a terra tremer. Eu já li histórias fantásticas sobre, mas nenhum relato
verdadeiro. Sinceramente, isso a ciência não explica, portanto eu não
acredito.
— Você não acredita em dragões? — perguntou Dimitri.
— Acredito que eles viveram anos atrás. O que me nego a acreditar é
que a Lua de Fogo significa que eles ainda estão por aí. Dragões foram
extintos na Caçada dos Magos e ponto final.
— E como você explica a Lua de Fogo então, esperto? — Caspar deu um
passo à frente.
— Sabe o que é astrofísica, esperto?
Poeta levantou as sobrancelhas e Caspar deu de ombros.
— Pff... astrofísica. Ninguém cai nessas suas invenções. Vai me dizer
agora que o homem pode voar, também?!
— Claro que sim.
— Claro que não! — respondeu Caspar, como se fosse a coisa mais
óbvia do mundo. — Não temos asas.
— E é por isso que você acredita em monstros. — Riu sarcasticamente.
— A ignorância neste navio é algo a ser contemplado, não é, Dimi?!
Mas Poeta acabou por falar sozinho. Quando os dois amigos se viraram,
perceberam que o criado de bordo caminhava na direção de Kim, que
parecia não querer ser incomodada.
— Dimi? — chamou Poeta, então voltou-se provocante para Caspar. —
Ei, olha lá, ele foi conversar com a sua garota.
Jack aproximou-se e desafivelou o cinto de seu gancho, jogando-o aos
pés de Poeta. O cartógrafo fez uma careta de indignação.
— E isso é jeito de tratar suas coisas?
— O botão emperrou, tem como consertar?
Poeta respirou fundo, tentando se controlar. Vindo de Jack, já sabia que
não tinha conserto.
— Quer saber? Não dou mais nada a você.
Dimitri não tinha medo de muitas coisas. Na verdade, era um rapaz
bastante corajoso, mas quando se tratava de garotas, ele tinha a inteligência
emocional de uma samambaia. Antes de se aproximar ainda mais da
contramestre, soltou o rabo-de-cavalo e jogou o cabelo para trás, tentando
parecer o mais descolado possível. Respirou fundo e caminhou indiferente
até ela.
— E aí, Kim? Está de bobeira?
— Não saio com pirralhos — respondeu friamente.
— Quê???
O rosto de Dimitri ardeu em vermelho e ele estava tão nervoso que as
palavras seguintes saíram gaguejadas.
— Não, não... não estou chamando você para sair nem nada... eu só
queria é... é... você está fazendo o que agora? — Coçou a nuca.
Kim levantou os olhos e analisou-o.
— E Jack tem razão. Você parece uma princesa de cabelo solto.
Completamente sem graça, Dimitri prendeu o cabelo novamente. Kim
suspirou e deixou uma prancheta de lado para pegar algumas caixas de
madeira.
— Estou trabalhando, afinal alguém aqui tem que fazer isso.
— Eu estou no meu horário de folga — respondeu o garoto.
— O quê? — Kim fez uma careta. — Mas já?
Olhou confusa para o sol para calcular as horas.
— Argh, tudo bem — cedeu Kim, de mal humor. — O que você quer?
Dimitri se recompôs e fechou a expressão, concentrando-se para agir de
igual para igual com Kim, o que sempre era um desafio.
— Posso conversar com você?
— Se não pudesse, eu já tinha mandado você embora daqui há muito
tempo.
— Você meio que tentou.
Kim bufou e colocou as caixas de madeira novamente no chão, usando-
as como cadeiras por ora. Cruzou as pernas em uma pose elegante.
— Anda, o que quer conversar?
Tudo bem, não vai amarelar agora, ele se julgava mentalmente, tentando
criar coragem. Pôs uma mão no bolso e a outra na nuca, timidamente.
— É que você parece alguém com experiência em combate. Queria saber
se...
— Quer que eu seja sua professora.
Kim era muito esperta. Dimitri soltou o ar dos pulmões.
— ... é.
A contramestre analisou a figura em sua frente.
— Alguém com experiência em combate — repetiu a palavras do rapaz e
riu em seguida. — Sabe com quem você está falando?
Dimitri juntou as sobrancelhas, procurando por uma resposta. Kim deu
uma gargalhada.
— Claro que não sabe.
— Era só recusar, não precisava zoar da minha cara — respondeu
emburrado.
Kim projetou o corpo para a frente.
— Pergunta: por que você quer aprender a lutar?
Isso parece com um teste pensou. Dimitri sentou-se ao seu lado,
confiante da resposta que daria.
— Porque quero ser como os outros piratas. Um legítimo homem do mar.
Melhorar nos saques e nas missões e conseguir revidar quando me
atacarem.
Revidar quando me atacarem... pensou a contramestre. Ela sabia do que
ele estava falando. Do conflito de espadas que teve com o capitão Hall logo
que chegou. Da outra surra que tinha levado na frente da tripulação inteira.
Kim suspirou, decepcionada.
— É uma pena, mas eu vou ter que recusar.
— Por quê? — perguntou Dimitri, indignado.
Kim deu de ombros.
— Você ainda é muito imaturo, Dimitri. Colocar uma lâmina em suas
mãos seria obra de um tolo.
— Mas eu quero lutar! — respondeu o garoto, levantando com
convicção.
— Para ser como os outros?
Kim levantou e ficou cara a cara com o rapaz. Ela sabia ser muito
assustadora quando queria. Dimitri não percebeu de primeira, pois estava
vidrado nos olhos da contramestre, mas ela tinha uma lâmina apontada para
o pescoço dele. Quando que ela sacou a espada?
— Se tivesse respondido que queria aprender para se tornar o melhor
pirata deste navio, talvez eu pensasse no assunto, apesar de ainda achar que
é uma ambição fraca — respondeu a ruiva, por entre os dentes.
Dimitri sentiu o peso daquelas palavras. Me tornar o melhor pirata deste
navio!? Kim soltou a lâmina e se distanciou.
— Falta garra a você.
O rapaz pôs as mãos dentro dos bolsos, revoltado.
— O que raios isso significa?
Kim guardou a espada dentro do cinto e agarrou as caixas nos braços
novamente.
— Um dia você vai descobrir.
— E se eu não descobrir?
— Você é um cara esperto. Não é a primeira vez que te digo isso.
Dimitri deixou o esboço de um sorriso escapar.
— Acho que você está certa.
— Não, Dimitri.
Kim fitou nos olhos do rapaz.
— Me prove que eu estou errada.
44

OS CONHECIMENTOS DE LARS, O ATROZ

Kim retirou-se, deixando aquelas palavras enigmáticas ecoarem dentro


do crânio de Dimitri. “Falta garra a você”, repetia para si mesmo. Sentou-se
escorado na borda do navio para aproveitar o que ainda lhe restava de
tempo de folga. Suspirou, cansado. Foi quando seus olhos encontraram os
céus. Mas...
— Que estranho. — Juntou as sobrancelhas.
Mal podia vê-lo. O dia virou noite em instantes. Uma nuvem cinzenta
havia surgido e cobria o sol por inteiro, projetando uma sombra imensa em
cima da embarcação. Era como um teto de cimento a poucos metros de suas
cabeças. Cesco desceu rapidamente de seu posto com medo de ser engolido
por aquela massa de ar. O cesto da gávea e a Jolly Roger já haviam
desaparecido de vista. Pendurou-se por entre cordas e cordames até alcançar
Jack no deque superior da popa.
— Almirante, conseguiu ver algo lá de cima? — perguntou a timoneira.
Ela olhava com cautela para todos os lados, pois uma neblina começava
a subir. O Nadia Keane navegava em águas misteriosas e sua tripulação
estava cega. E o que seu único informante disse, não foi muito confortante.
— Colunas de pedra — respondeu Cesco, ofegante. — Estão... estão
cercando o navio.
Foi questão de segundos para que palavras se tornassem realidade.
Paredes de pedra surgiram do oceano por todos os lados. Cortavam a
neblina e aproximavam-se, sorrateiramente, sem aviso prévio. Por sorte, o
Nadia Keane tinha uma timoneira e tanto. Os reflexos de Jack eram os mais
rápidos da tripulação, mas nem ela conseguiu sair ilesa daquele pesadelo.
Virou o timão para desviar alguns centímetros, mas o casco saiu com alguns
arranhões.
— Droga — xingou baixinho, por entre os dentes.
Quando se deu conta, estavam cercados. Aquelas colunas de pedra, na
verdade, formavam um círculo ao redor do navio. E, de repente, o timão
não tinha mais utilidade. Jack aguçou os ouvidos.
— Ouviram isso?
De repente, a atenção de todos voltou-se para a timoneira. Caspar largou
o balde que tinha nas mãos e prestou atenção ao redor. Os marujos
seguiram-no. King foi o primeiro a notar.
— Nada — respondeu, surpreso.
Jack fechou a expressão.
— Nem mesmo o som do mar.
Dimitri foi o segundo a perceber. Algo além do silêncio não parecia
certo. A inércia. Aquela força, que o fazia cambalear dia e noite naquela
banheira desgovernada, agora não existia mais. O Nadia Keane estava
estático. Levantou rapidamente e olhou para o mar. Ficou perplexo com o
que viu em seguida.
— Impossível...
— O que está havendo?
O silêncio tenebroso foi interferido pela voz grave e assustadora de
Patrick Hall, saindo de sua cabine. Zuca caminhava lealmente ao seu lado.
Kim deu um passo à frente e apontou para cima.
— Capitão, o céu.
— Não conseguimos ver quase nada com essa neblina — acrescentou
Cesco.
Patrick mirou seu olhar em direção aos céus, mas o que viu não foi um
manto azul de um dia ensolarado. Na verdade, não conseguiu ver nada além
de uma enorme nuvem cinzenta que não parecia querer sumir tão cedo. Por
alguma razão, não demonstrou surpresa de forma alguma. Suas palavras
saíram de sua boca com serenidade.
— Deve ser alguma tempestade se formando. A estação das tormentas
demora a passar em alto-mar.
— Quais são as ordens, senhor? — perguntou Zuca, sem fraquejar um
músculo.
O capitão deu de ombros.
— Permaneçam no percurso, homens. Não podemos perder tempo.
Jack, ao contrário, não parecia muito serena. Confusa e indignada, saiu
de seu posto e marchou em direção ao seu superior. Hall baixou sua cabeça
para mirá-la nos olhos.
— Capitão, com licença. O senhor não vê que é impossível continuar
nestas condições?
— Se a senhorita acha que não é apta para tal tarefa, quem sabe eu possa
substituí-la em seu posto, então?!
— A água!
O sermão do capitão foi bruscamente interrompido por um mero
moleque. Patrick Hall rangeu os dentes em direção a Dimitri e todos os
Saqueadores da Barra tiveram sua atenção tomada. O convés tremia a cada
passo que Hall dava com suas botas de couro pretas, mas Dimitri mantinha
suas pernas firmes. Sabia que estava certo. Hall aproximava-se lentamente,
arqueando a sobrancelha direita em um tique nervoso. Sua caminhada era
lenta e a cada passo que dava, era como um trovão ecoando em meio ao
silêncio. O capitão parou a centímetros de Dimi, encarando-o do alto.
Bufou.
— O que foi que você disse?
— Tenho certeza de que o senhor ouviu — respondeu, indiferente. —
Mas se os seus ouvidos já não funcionam tão bem assim, eu posso repetir.
A tripulação soltou interjeições. Dimitri sabia exatamente o que fazer
para irritar seu superior. Ter toda a razão. E Patrick Hall tinha a fúria nos
olhos. Agarrou os cabelos do garoto e puxou sua orelha para perto da boca.
— E o que foi que eu te disse, pivete? Que não era para se dirigir a
mim...
— ...a não ser que fosse algo estritamente urgente — respondeu,
acrescentando rapidamente —, capitão.
Recuperando sua honra e pondo o moleque no seu devido lugar, Patrick
Hall cedeu e soltou Dimitri no chão. Parecia interessado na conversa. Kim,
não muito distante dali, observava atentamente a cena, de braços cruzados.
Assim como Lars, o Atroz.
Hall chegou ainda mais perto, obrigando o garoto a arquear as costas
para trás de encontro com a borda do navio. Era uma posição bastante
propícia para cair, com certeza. Então, empinou o nariz.
— E o que seria de tão urgente assim para ocupar meu tempo, grumete?
— Como eu disse, a água.
— A água?
Dimitri apontou para o mar.
— Veja você mesmo.
O capitão, franzindo a testa, empurrou o menino para longe da borda,
pendurando-se para ver do que se tratava todo aquele alvoroço, afinal.
Mirando seus olhos em direção ao mar, Patrick Hall viu algo,
definitivamente, anormal. As ondas não se moviam. O oceano parecia
completamente petrificado, como se fosse uma escultura de pedra. Como
não sabia do que se tratava, fez o que qualquer humano sensato faria em um
momento como aquele.
— Poeta!
O garoto pintor aproximou-se aos tropeços e fez uma reverência ao seu
superior.
— Ao seu dispor, senhor!
— Relatório.
Poeta arrumou a boina e pôs seus óculos. Debruçou-se, como todos os
outros haviam feito, e visualizou o problema. Deu um salto de susto,
fazendo seus suspensórios rebentarem.
— Mas que diabos é isso?
— Quero respostas, não perguntas. Se eu quisesse, teria chamado Dante
e não você.
— Sim, capitão? — perguntou Dante ao longe, de prontidão.
Patrick Hall esfregou a testa. Esqueço que meu navio é repleto de idiotas.
Impaciente, ignorou o marujo e voltou a falar com o moleque pintor.
— Tem alguma ideia do que possa ser isso, marujo?
Poeta estreitou os olhos como alguém que está fazendo muita força.
Trocou as lentes algumas vezes. Em seguida, contou alguma coisa nos
dedos, lambeu seu indicador e ergueu-o para o alto. Nem vento, pensou. O
garoto sussurrou algumas palavras para si e para seu caderninho, antes de
resolver dividir com o grupo.
— De acordo com algumas leituras que fiz ao longo dos anos, tenho uma
pequena teoria de que podemos ter caído em uma zona pantanosa no meio
do oceano. A água, nesse caso, está cheia de plantas e massa orgânica.
King olhou para além da borda e fez uma careta.
— Não parece muito o caso, garoto.
Poeta respirou fundo para rebater o comentário, mas segurou as palavras,
voltando a sussurrar sozinho. Enquanto o garoto dava voltas ao redor de si
mesmo, King deu mais uma espiada em direção ao mar e empurrou os
óculos para perto do nariz.
— Eu não entendo muito, mas não parece um pântano, capitão. As ondas
paralisaram ao irem de encontro com as rochas. É quase como se fosse uma
pintura.
Poeta interveio, levantando o dedo indicador, indignado.
— Isso não é exatamente possível. Não em alto-mar. Para se ter alguma
espécie de captura de imagem ou ilusão da mesma, seria necessário um
feixe de luz o qual está escasso no momento. Em outras palavras, caso não
tenha percebido, há uma nuvem gigante em cima de nossas cabeças!
Caspar fingiu uma tosse.
— Me perdi em “alto-mar”.
Poeta continuou seu raciocínio, abrindo uma nova página de seu caderno.
— O mapa que temos mostra essas formações rochosas espalhadas por
toda a rota, mas não há outras informações que possam ser úteis. E se
fizéssemos os cálculos, acredito que...
— Paramos em uma fenda temporal.
Uma fenda temporal.
A voz rouca e grossa que veio diretamente das sombras. Era de Lars, o
Atroz. O velho marinheiro surgiu, de repente, carregando seu gato, Cook,
no colo. Todos os Saqueadores da Barra encararam-no perplexos. O capitão
voltou a cruzar os braços e fechou a expressão. Se havia alguém presente ali
que Hall odiava mais do que Dimitri, este alguém com certeza era o pirata
Lars. Era óbvio, estava estampada em suas faces a vontade de matar um ao
outro. Mas por alguma razão não o faziam.
Poeta arregalou os olhos e folheou suas anotações.
— Mas, mas... — começou, confuso. — Eu pensei que elas estivessem
extintas.
— Eu já peguei uma dessas e acredite, não estão extintas. Culpa dos
malditos magos. Estão espalhadas por todos os mares. A história das fendas
é tão antiga quanto o próprio tempo. Foram criadas por uma besta chamada
Tornado. Um titã das antigas eras. Sugavam qualquer coisa que chegasse
perto. Navios inteiros, ilhas. Depois de anos tentando fechá-las, os magos
apenas as modificaram, dando outra utilidade a elas. Tudo para não
admitirem que eram incapazes de corrigir um erro. Urgh, sempre foram
inúteis. Havia fendas temporais, como esta, teleportadoras e aprisionais.
Essas eram as piores... — Suspirou. — Sorte nossa, ou não, esta em
específico está adormecida. Ao contrário de outras fendas temporais, o
tempo não existe aqui. Simplesmente parou. Essas rochas ao redor são o
que marcam o limite.
E apontou para as colunas de pedra.
Inacreditável. Dimitri tentou visualizar o caminho em que haviam feito
para chegar, mas não tinha entrada. Assim como não parecia haver uma
saída, não sabiam dizer por onde vieram. Jack, escorada no timão,
perguntou:
— Espera, se o tempo não funciona aqui, como vamos sair da fenda com
o mar desse jeito?
Uma sombra percorreu o rosto do velho marujo.
— Não vamos. Apenas se elas deixarem.
O capitão demorou alguns segundos para acreditar. Elas?
— Quem? — perguntou Jack.
Patrick Hall arregalou os olhos.
45

FILHAS DE LEROS

Um fato curioso o qual o marujo Lars ocultou da tripulação era que,


quando fendas temporais ou qualquer outra espécie de fenda, entravam em
hibernação profunda, tornavam-se locais bastante propícios para a
imigração de criaturas aladas.
E foi naquele momento que, como um raio, uma figura passou pelo
convés, rasante, emitindo um som estridente. A tripulação gritou, abaixando
e protegendo suas cabeças. Pousando no deque de madeira, Dimitri pôde
ver a criatura mais nitidamente. Era um humanoide com a aparência de uma
dama. Suas feições eram delicadas, seus olhos compridos e sua boca
pequena. Atrás de si, levava um par de asas rubras gigantes.
— Não se aproximem! — ordenou Patrick.
A tripulação ficou estática, analisando a bela criatura.
Consequentemente, a bela criatura analisava os Saqueadores da Barra, um
por um. Cada um dos homens. Kim mantinha-se em posição de guarda e, no
instante em que os olhos da dama pousaram na contramestre, seu
verdadeiro rosto tomou forma. Dante gritou.
— O QUE É AQUELA COISA?
A moça, antes encantadora e charmosa, agora havia se transformado em
um monstro. Dentes pontudos surgiam de dentro de sua boca, seus pés
transformavam-se em garras. Uma língua comprida surgiu por entre suas
presas e seus olhos tomaram uma cor escura como se fossem compostos
apenas pela pupila.
Jack percebeu.
O quê?! Olhos ônix?
Com um movimento rápido, a criatura jogou-se em cima de Kim,
agarrando-a pelos braços.
— ME SOLTA!
Kim tentava se desvencilhar das garras da sirena, que, a todo custo,
tentava puxar a contramestre para os ares. Então, içou voo. Os pés da
contramestre já não tocavam o chão, quando a sirena voltou a encarar a
tripulação, com seus cabelos rubros flutuantes. Todos entraram em frenesi,
exceto Lars, o Atroz, que se mantinha calmo.
— É uma sirena. São filhas bastardas de Leros. Atacam somente
mulheres — explicou. — Por isso, repito: só deveríamos ter homens a
bordo.
Patrick Hall precisava agir rápido.
— Cesco, Caspar. Subam até as vergas para tentar alcançá-la.
— Ah... sim senhor — respondeu Caspar com as pernas tremendo.
Cumpriram as ordens. Caspar subiu pelo mastro da proa, enquanto Cesco
foi pelo da popa do navio. Usaram seus conhecimentos em nós náuticos
para se prenderem bem nas cordas antes de tentarem alcançar Kim. A
contramestre estava a alguns bons metros de distância do chão, bem no
centro do navio, fazendo força a favor da gravidade. Ela estava sem sua
espada, que havia caído com a decolagem, então tinha que usar de outros
métodos.
— Ei, garota! Não faça movimentos bruscos.
Os Saqueadores da Barra assistiam ao espetáculo dos céus, preocupados
e imóveis. Mas Kim não podia se dar ao luxo de ficar parada. De não fazer
nada. De provar a Lars, o Atroz, de que ele estava certo sobre mulheres não
servirem para ser piratas. E mais do que isso, ela tinha uma reputação a
zelar e ser feita de refém não estava em seus planos. Por outro lado, as
garras da sirena pareciam feitas de ferro e a garota já havia tentado sair de
todos os jeitos. Elas começavam a machucar seu braço, rasgando a manga
de couro.
Maldita... esta humilhação eu não vou passar.
Ela tinha uma ideia.
Cesco estava quase chegando. Tinha se distanciado para pegar impulso e
alcançar a colega.
— Kim! — gritou. — Quando eu der o sinal, você pula!
Cesco pendurou-se na corda e soltou os pés da verga, ganhando
velocidade nos ares em direção à contramestre. Estava chegando perto. E
mais perto. E mais...
— AGORA!
Estendeu a mão, mas Kim tinha outros planos. Não pensou duas vezes
em pegar o que tinha em seu cinto. Uma adaga de prata. Devagar, apontou a
lâmina para sua agressora.
— Kim! — gritou Cesco.
Lars percebeu também.
— Não faça isso, sua idiota, ela vai...
Quando Patrick Hall percebeu, já era tarde demais.
— KIMBERLY, NÃO!
Kim deu impulso para cima e contorceu o corpo, cravando a lâmina em
uma das asas da mulher alada, que urrou de dor. Era o barulho mais
horrendo que Dimitri já tinha escutado na vida. Seus ouvidos doíam e sua
cabeça estava atordoada. Em questão de segundos, o silêncio assustador de
momentos atrás tornou-se um caos de sons estridentes. Dimi agachou,
tampando as orelhas de todas as maneiras possíveis, tentando impedir a
surdez. Mas...
O que é isso?! É como uma agulha fina passando por entre os meus
dedos.
Caspar e Cesco desequilibraram-se e caíram no convés. Foi bem a tempo
de, repentinamente, mais quatro sirenas surgirem do além. Todas elas
levavam as feições distorcidas em seus rostos e tinham as presas à mostra.
De prontidão, dividiram-se em dois grupos: um para cercar Jack e o outro
para ir em direção à Apa. Elas eram as duas únicas que não se contorciam
no chão de dor e agonia, além de Kim, que se recuperava depois da queda.
A carpinteira tinha um martelo em mãos e tentava abrir espaço por entre as
bestas para chegar ao capitão Hall.
— Capitão, alguma ideia de como matar essas coisas?
Patrick Hall, assim como todos os homens do navio, contorcia-se no
chão com as mãos ao lado da cabeça. Não parecia ter ouvido a pergunta.
Jack pendurava-se nos cordames, confundindo as sirenas e pegando
impulso para chutá-las para longe. Mas de qualquer forma, eram duas
contra uma.
Kim havia caído de mal jeito e apoiava-se nos cotovelos para tentar
levantar, mas uma dor aguda pressionava seu braço. Foi quando percebeu
que sua manga estava rasgada e seu braço sangrando.
Maldito braço, xingou. Ela sabia que ele sangraria. Ele sempre sangrava.
Com os dentes, arrancou a barra da calça e amarrou ao redor do corte,
torcendo para estancar. Pelo menos ninguém perceberia. Jack foi correndo
para ajudá-la e estendeu a mão para a colega.
— Tudo bem?
— Na medida do possível.
Kim respirou fundo e levantou, fingindo não estar sentindo dor alguma.
As duas eram bastante duronas.
— Eu pego as da direita e você as da esquerda — disse Jack, agarrando
suas facas.
— Acerte nas asas — disse Kim, pegando sua espada do chão.
Agora sim, elas estavam prontas. Lars abriu os olhos, deitado no chão e,
percebendo a situação, gritou, em meio ao caos.
— Não, garota. Você só vai piorar as coisas!
A timoneira não deu ouvidos. Ao invés disso, sorriu.
— Está com medo, Lars? Medo de provarmos que as mulheres também
são dignas de serem piratas?
O velho pirata bufou. A timoneira subiu até a ponte da proa e, respirando
fundo, fez o que era preciso. Ergueu suas facas e gritou a plenos pulmões,
armando uma corrida até a outra ponta do navio. Kim fez o mesmo do outro
lado.
— AHHHHHH!
— AHHHHHH!
E elas gritavam.
Foi quando o verdadeiro caos começou. As sirenas mudaram sua atenção
para a garota e os sons estridentes pararam por um tempo. Foi o suficiente
para que Dimitri e os outros pudessem levantar e se recuperar. Logo que o
criado de bordo pôs os dois pés no chão, viu que o convés havia se tornado
um verdadeiro campo de batalha. As sirenas lutavam contra as mulheres e o
resto dos marujos tentavam ajudá-las, atirando objetos ou ameaçando as
bestas com suas lâminas. Dimi teve seus olhos atraídos por Kim, na proa do
navio. Era a primeira vez que ele a via em ação de verdade. E era
impressionante. A contramestre usava a espada como se fosse uma extensão
de si mesma, um terceiro braço ou até parte de sua alma. A lâmina obedecia
a todas as suas ordens, em sintonia com o seu corpo, como se estivessem
dançando uma valsa.
Seus olhos brilharam de inspiração.
Quem... é ela?
Mas então, outro ponto chamou sua atenção. Um homem de vestes pretas
esborrachado no chão do convés.
Idiota, pensou.
Então olhou mais uma vez. Todos já estavam de pé. Por que Patrick Hall,
o Impiedoso, ainda não havia levantado? Dimitri bufou, porque sabia que
seus princípios falariam mais alto que suas vontades. Droga. Foi ao seu
encontro.
— Capitão, o senhor está bem?
Virou seu corpo para cima. Não, ele definitivamente não estava bem.
Sangue escorria de suas orelhas. Estava inconsciente.
— Não... acorda, seu idiota. — Batia em seu rosto. — ACORDA!
Nada.
O rapaz podia não ter o melhor histórico do mundo com o capitão do
Nadia Keane, mas ele continuava sendo um companheiro de bordo. Vê-lo
daquele jeito causou um desespero momentâneo em Dimitri, que gritou por
ajuda.
— KING!
O curandeiro estava escondido atrás de um barril de rum. O homem
podia ser bom em muitas coisas. Muitas mesmo. Mas lutar em batalhas não
era uma delas. Ainda mais quando envolviam monstros com asas, sabres e
espadas. Bryce Jonathan King ouviu o chamado de socorro e, engatinhando
como uma criança, foi ao encontro dos dois.
— O que houve, menino?
— É o Hall.
Dimitri levantou a cabeça do capitão, envolta de sangue.
— Consegue fazer alguma coisa?
Sem nem sequer hesitar, King levantou bravamente. Quando se tratava
de seu trabalho, King era o homem mais competente de todos.
— Me ajude a levá-lo até a cabine.
King pegou os braços e o tronco do capitão. Dimitri ajudou, levantando
suas pernas. Caminharam até a cabine de Hall e deitaram-no em sua cama
de penas de ganso.
— Quer ajuda? — perguntou o garoto.
King arrumou os óculos e, com a cabeça, apontou para o convés.
— Tenho certeza de que eles precisam muito mais que eu.
Ele tinha razão. Dimitri assentiu e, deixando o curandeiro a sós com seu
paciente, voltou correndo para a batalha brutal que acontecia do lado de
fora. Alguns homens estavam feridos no chão, outros ainda se mantinham
de pé, lutando ferozmente. Não avistou Kim. Jack, por consequência,
tentava segurar as pontas sozinha no deque superior.
Sem hesitar, Dimitri foi correndo ao seu encontro, encostando suas
costas com as da timoneira.
— Precisa de uma mãozinha?
Jack não desviou o olhar da luta.
— Vinda de você? Não, obrigada, princesa. Se manda.
Mas Dimitri era teimoso e não se moveu. Ele não poderia se mover. Não
sabendo que Jack estava lutando contra uma besta sozinha. Uma besta que
atacava somente mulheres. A timoneira, percebendo que o criado de bordo
não mexeu um músculo sequer, bufou.
— Argh, ao menos trouxe a espada?
Dimitri olhou para as próprias mãos, mesmo sabendo que tinha sido
idiota o suficiente para não pensar no mais óbvio. Ah, seu idiota, xingou. É
claro que ele não tinha trazido uma espada. Jack revirou os olhos e, dando
um golpe duplo na sirena, ganhou tempo para retirar algo de seu cinto. Era
uma pequena faca com a lâmina do tamanho de uma mão infantil. Jogou-a
no ar em direção ao companheiro.
— Acho que essa daí combina com você.
Dimitri cerrou os dentes, sem achar graça.
— Valeu.
— Precisa acertar nas asas.
Jack voltou a lutar, ao passo que Dimitri analisou a faca em suas mãos.
Ele não tinha o conhecimento mínimo de como lutar, mas sabia que tinha
que dar um jeito naquela situação. Percebeu que Kim lutava contra duas
sirenas nas alturas, equilibrando-se pelas vergas. Ela era inspiradora e
encheu Dimitri de confiança.
Não deve ser tão difícil, encheu o peito de ar. As sirenas só atacam
mulheres. Ele estava em vantagem.
Dimitri deu um passo à frente, mirando a faca em direção a uma mulher
alada, que estranhamente recuou. Os outros marujos homens faziam
exatamente a mesma coisa, mas as bestas não iam embora de jeito algum.
Elas nem tentam revidar, prestou atenção. Não atacam, mas não se
defendem também.
Kim acertou as asas de uma das criaturas e secou a testa, exausta. Foi
quando olhou para baixo e percebeu que Dimitri empunhava uma faca. E o
garoto avançava. Avançava. Mas a sirena apenas recuava, timidamente.
Talvez ele estivesse deixando algum detalhe passar despercebido.
Olhou para as mulheres aladas que restavam e percebeu que elas faziam
o mesmo com todos os homens. Mas com as mulheres, atacavam sem
piedade. Deu mais um passo, empunhando sua faca e sua sirena recuou
alguns centímetros.
Dimitri fez uma careta.
Por que não vão embora?
Ted Molenga acertou na perna de uma delas, mas a carne regenerou-se
em instantes. Gritou de algum lugar do convés.
— Essas coisas não morrem!
Havia uma asa de sirena aos seus pés, debatendo-se contra o chão, como
se tivesse vida própria. Lars respondeu, aos gritos também, em resposta:
— Você tem que expulsá-las! Elas são imortais!
Dimitri arregalou assustado os olhos.
— Essas coisas são imortais???
Jack, ofegante, voltou ao seu lado.
— Na lenda, diz que elas só deixaram o barco de Mirtos quando
perceberam que ele não as amava de volta — explicou, vasculhando sua
memória.
— E como ele fez isso? — perguntou o garoto, esperançoso.
— Eu não sei!
— VOCÊ NÃO SABE?!
Jack deu mais um golpe em uma sirena, sentindo a raiva subir.
— O rato de biblioteca aqui é você, não eu!
Mirtos era um herói dos antigos livros. Os velhos escritores costumavam
ouvir as histórias de marinheiros que viajavam o mundo, para documentá-
las no papel. As sirenas pertenciam a uma lenda pouco conhecida pelo
povo, e Dimitri não fazia a menor ideia de quem era Mirtos.
Não, espera, pensou um pouco. Mirtos... eu já ouvi esse nome antes.
Ignorando o caos ao seu redor, fechou os olhos, tentando se recordar.
Onde eu já ouvi esse nome? Como Mirtos fez?
Uma ideia surgiu em sua cabeça. Era loucura.
— Oye, Jack! — chamou.
A timoneira não virou em sua direção, pois tinha as duas mãos
segurando sua lâmina contra o pescoço de uma sirena que se jogava em
cima dela.
— Estou um pouco ocupada agora, princesa!
Sem pensar duas vezes, Dimi correu ao seu encontro, jogando a faca no
chão. Ele não precisaria dela. Ou assim ele esperava. Chegando ao seu
encontro, respirou fundo e deslizou os pés descalços no chão encerado,
pondo-se entre Jack e a sirena, abrindo os braços. Como era previsto, a
mulher alada parou instantaneamente.
É isso. Ela não pode me machucar. Sorriu ao ver que sua teoria estava
certa.
Mas Jack não parecia assim tão feliz.
— O que está fazendo? Ficou maluco?
Jack tentava ultrapassar, mas Dimitri a barrava.
— Relaxa, elas não podem me machucar. Fica atrás de mim.
— Não preciso ser salva.
Em um movimento sorrateiro, Jack driblou o garoto, saindo de trás e
avançando para cima da sirena. A besta gritou, mostrando sua língua
comprida. Dimitri, em um reflexo rápido, puxou-a de volta. Olhou nos
olhos da garota e, com firmeza, repetiu suas palavras.
— Fica atrás de mim.
Sua voz saiu tranquila e confiante. De repente, Jack olhou para Dimitri
de um novo jeito. Bravo, destemido. Estava...
Ele está tentando me proteger?
Jack ficou estática. Dimitri encarava a sirena, que agora apenas o
encarava de volta com seus grandes olhos pretos. Suas feições ameaçavam
voltar à aparência de uma bela donzela. Dimitri tinha um plano e era
arriscado. Flashes confusos tomavam parte de sua memória. A história de
Mirtos.
Só deixaram o barco de Mirtos quando perceberam que ele não as amava
de volta, Jack havia dito.
Em algum ponto longínquo de sua memória perdida, ele tinha a
impressão de que sabia o que Mirtos havia feito. E rezava para os deuses
que funcionasse.
As sirenas voltaram a ser lindas mulheres de longos cílios e pele
brilhante. Vinham lentamente na direção de Dimitri, cercando-o e
acariciando-o com suas asas. Dimitri puxou um sorriso.
— Vocês querem ser as únicas mulheres no mundo, não é?
As bestas miraram seus olhos hipnotizantes para o garoto, mas Dimitri
fechou a expressão.
— Mas podem esquecer.
Virou-se para Jack e, em um impulso, pôs a mão em frente à sua boca,
beijando a superfície de fora. A timoneira arregalou os olhos assustada,
ficando com o rosto completamente vermelho. As sirenas gritaram de
tristeza, de raiva, bateram as asas, criando uma corrente de ar forte como
um tufão. Kim foi jogada do alto do mastro, caindo nos braços de Ted
Molenga. O vento era tão forte que, ao voarem para longe, criaram uma
onda de ar que jogou Dimitri e Jack para fora do barco. Foi bem a tempo de
a timoneira lhe dar um soco no nariz.
46

A APOSTA DO SÉCULO

A água estava paralisada.


No momento em que os corpos de Jack e de Dimitri chocaram-se contra,
foi como se mergulhassem em um cubo de gelatina. A temperatura fria
congelou o corpo do garoto e, de repente, ele não estava mais ali. Havia
voltado para o dia da tempestade.
Dimitri debatia-se, sentindo seus pulmões falharem, desesperado. Tentou
nadar para a superfície, mas seus membros não se mexiam. A realidade
podia ser outra, mas em sua cabeça, as ondas eram enormes e os raios
cortavam os céus. Ele estava novamente vagando sozinho em alto-mar. E,
ao longe, podia ouvir a voz familiar de um homem chamando-o. A mesma
voz que o havia chamado no dia da tempestade.
— DIMITRI!
— Quantas memórias atormentadoras...
Essa voz, abriu os olhos desesperado, procurando ao redor. Uma onda
passou por cima de sua cabeça, fazendo Dimitri engolir água salgada.
Então, ela apareceu. Seus olhos âmbar e seus cabelos flutuantes. A mulher
misteriosa da banca 25. Ela sorria para o garoto.
— Veio me ver?
E se esvaiu, trazendo uma tempestade atrás de si.
De repente, os acontecimentos começavam a se repetir. Ondas. Caos.
Sangue. No momento em que Dimitri visualizou um navio ao seu lado, sua
cabeça bateu no casco. Estava fraco. Quando pensara em desistir e soltar o
ar que ainda lhe restava, sentiu alguém puxando sua mão para a superfície,
como um anjo vindo dos céus.
Jack.
Não tardou para que batesse a cabeça novamente contra o convés. A
diferença era que desta vez ele não desmaiou.
Abriu os olhos, cuspindo água, tossindo, desesperado por oxigênio.
Então, deitou-se exausto e de roupas encharcadas. Sentiu o navio
balançando e percebeu que estavam novamente velejando em alto-mar.
Haviam conseguido sair da maldita fenda temporal. Zuca estava
comandando o timão, pois a timoneira do Nadia Keane se encontrava ao
lado do garoto. Ao ver que Jack estava segura junto a ele, deu uma risada.
— A última coisa que me lembro é de você socando o meu nariz —
brincou o rapaz.
Jack não riu.
O criado de bordo balançou a cabeça, como se fosse um cachorro, para
secar o cabelo e olhou em volta. Os Saqueadores da Barra estavam
formando um círculo ao redor de seus corpos. Comemoravam em euforia.
— Você nos salvou, Dimi! — gritou Cesco.
O almirante abaixou-se para ficar no nível do garoto e tapou sua boca, da
mesma forma que ele havia feito com Jack segundos atrás. Em seguida, deu
um beijo em falso. Dimitri riu, sem acreditar.
— Eu consegui?
— Aquelas monstruosidades correram daqui como covardes! — disse
Ted, em tom heroico.
Dante aproximou-se, maravilhado, e perguntou:
— Como soube que funcionaria?
Jack levantou a cabeça discretamente na direção de Dimitri. Ela estava
curiosa para saber também. O rapaz apenas deu de ombros.
— Golpe de sorte?
Ora seu..., Jack sentiu a raiva subindo pelo peito.
— Idiota.
Ela não podia acreditar que ele havia feito tudo aquilo como um golpe de
sorte. Caspar foi o próximo. Sentou-se ao lado do amigo, mexendo as
sobrancelhas, maliciosamente.
— O que houve lá embaixo?
Dimitri riu, mas ao ver a expressão de fúria de Jack, parou,
envergonhado. A timoneira levantou-se para jogar a raiva nas roupas,
enquanto as enxugava e torcia.
— A madame aqui estava engolindo água, então puxei-a para cima. Foi
isso que aconteceu.
Em seguida, estendeu o braço para ajudar Dimitri a levantar.
— Parece que está me devendo mais uma.
— Eu salvei a sua vida e em troca você me deu um soco!
A timoneira fechou de novo a expressão e, sem hesitar, soltou a mão do
garoto, fazendo-o cair novamente para trás. Então, desceu as escadas.
Caspar virou-se para o amigo e levantou o polegar em afirmativo.
— Mandou bem, garanhão.
Dimitri fez uma careta e deitou-se no chão.

44 graus Sul, 50 graus Leste. Enfermaria do Nadia Keane.

Vários marujos se encontravam em uma salinha ao lado da cozinha, onde


Zuca havia montado uma pequena ala hospitalar enjambrada. O imediato
havia espalhado mesas e caixas para formar macas. Alguns estavam
bastante feridos, como Kim, que levava marcas de dentes e garras nos
braços, outros, como Dante, tinham apenas alguns arranhões. O curandeiro
King cuidava, particularmente, de Patrick Hall na cabine do capitão. Então,
o médico substituto era ninguém menos que Poeta.
Caspar aproximou-se, batendo palmas.
— Cara, você arrasou hoje!
Dimitri riu, achando graça do colega.
— Não foi nada demais... só fiz o que precisava ser feito.
E olhou para Jack, que desviou contato.
Dimitri estava enrolado em uma toalha e estendia suas roupas ao lado de
uma tocha, quando Poeta se aproximou, com uma prancheta em mãos,
fazendo uma imitação perfeita de King. Ele parecia estar levando o posto
bastante a sério.
— Dimitri está com um galo na cabeça, certo?
— Aham.
— Já foi atendido?
O novato riu.
— Não tem necessidade, Poeta. Tem gente aí que precisa mais de você
do que eu.
Poeta deu de ombros.
— Palavras suas, não minhas.
E distanciou-se. Caspar levantou as sobrancelhas, como se não
acreditasse no amigo, e sentou-se na borda da maca de Dimitri.
— Você é modesto demais. Tem que aprender a ser mais como eu.
Orgulhe-se do seu trabalho, homem! Você não só salvou a tripulação toda
como até deu umas bitocas na Jack.
Dimitri fez uma careta.
— Quê? Não, na verdade eu...
— Francamente, eu o admiro. É sério, mas tem que parar de ser tão
mané.
Percebeu que falava sozinho. Caspar seguiu a linha de olhar de Dimitri e
então viu o porquê do amigo estar aéreo.
Ele olhava para Jack.
— Ah... já entendi.
— O que foi? — perguntou Dimitri.
— Você ficou bolado porque ela rejeitou o beijo.
O rosto de Dimitri queimou de vergonha.
— QUÊ?! Cara, nada a ver, não viaja.
— Mais uma coisa para aprender comigo. — Caspar suspirou e olhou
para Kim. — Lidar com a frustração da rejeição das garotas...
— Não, eu só...
Dimitri não sabia nem mais do que eles estavam falando e, ao perceber
que estava começando a embolar as palavras, parou, respirou fundo e
recomeçou:
— Você tinha razão, ela é maluca e está ME deixando maluco. Estava
tudo tão bem outro dia e, do nada... eu nem sei o que fiz para merecer esse
gelo.
Um pouco mais adiante, do outro lado da sala, Jack enfaixava uma das
mãos ao lado de Kim, que limpava o machucado do braço sem chamar
atenção. Sua manga tinha sido rasgada na altura do bíceps e as feridas não
pareciam querer fechar.
Droga, ela xingava. Por que justamente este braço?
Ela sabia que ficaria alguns dias sem conseguir mexê-lo direito. Trocou
os curativos e tampou o rasgo para que ninguém visse sua pele debaixo da
manga. Afinal, era um dos sete mistérios do navio.
Já Jack cuidava de ferimentos um pouco diferentes da sua própria
maneira. Jogando toda a raiva no olhar que lançava a Dimitri.
— Idiota — resmungava.
— Qual dos dois? — perguntou Kim, apontando para Caspar ao lado do
novato.
Jack soltou um sorriso.
— Engraçada. — E voltou a encarar Dimitri com desdém. — Olha ali...
chegou faz pouco mais de um mês e quer ficar bancando o herói.
— Bom, ele meio que salvou todo mundo.
É, mas Jack não engolia essa.
— Tem alguma coisa errada. Não sei ainda o que sinto por ele. Ódio,
estranheza...
— Queda... — provocou Kim, aproximando-se.
Pega de surpresa, Jack soltou uma risada sarcástica.
— Ah, claro.
— Aposto que ficou “bravinha” porque o beijo não foi de verdade.
A timoneira ameaçou dar um chute circular na ruiva, que bloqueou o
ataque por entre risadas.
— Guarde seus golpes, maninha. — E escorou-se na parede. — Mas eu
concordo. Tem alguma coisa muito estranha com esse pirralho. Desde o
primeiro dia, eu senti.
— Começo a pensar se podemos mesmo confiar nele — disse Jack.
Kim pareceu surpresa.
— Nunca confie em outro pirata, não foi você mesma que disse? Ou
baixou a sua guarda por causa de um rostinho bonito?
Jack fechou a expressão claramente frustrada consigo mesma. Ela não
queria falar sobre o assunto. Kim espreguiçou-se e caminhou para a frente.
— O que você vai fazer? — perguntou Jack.
Kim virou-se e deu uma piscada de olho.
— Você tem o seu jeitinho, eu tenho o meu.
Jack riu.
— Exibida.
Voltando para o outro lado da enfermaria que exalava testosterona, Zuca
foi ajudar alguns dos pacientes, e Poeta aproximou-se mais uma vez. Caspar
deu uma cotovelada em sua barriga, desconcentrando-o.
— E aí, amigão? Ainda quer apostar comigo que monstros não existem?
O garoto pintor lançou um olhar de deboche para Caspar. Em seguida,
anotou alguma coisa na prancheta.
— Sirenas não são monstros.
Caspar cuspiu uma risada.
— Pff, sirenas não são monstros... dá para acreditar nesse cara?! —
Olhou para Dimitri, pedindo por apoio. — Você viu aquelas coisas? Sirenas
são monstros, meu amigo. Fato.
Poeta não parecia querer gastar neurônios com Caspar naquele momento,
mas não ficava calado quando sua inteligência era julgada como duvidosa
por terceiros. Ele sempre estava certo no seu ponto de vista, pois, para ele, a
sabedoria e o conhecimento faziam uma pessoa ser poderosa. O garoto
pintor retirou o caderninho do bolso. Lambeu a ponta do dedo e folheou
algumas páginas até encontrar o que queria.
— “Há relatos de criaturas lendárias e desconhecidas, nunca catalogadas
pelo homem, muitas vezes chamadas ignorantemente de monstros” — e
fechou —, se foram avistadas, catalogadas e estudadas, não são monstros.
São apenas outra espécie.
Caspar não baixou a guarda.
— Mas aquelas coisas são filhas de um deus, vai ignorar isso? A
diferença de uma espécie para um monstro é que monstros foram criados ou
gerados pelos deuses.
Poeta estreitou os olhos, em tom de desafio.
— E quem contou isso? Jonas, o bêbado do porto? — Cuspiu uma
risada. — Isso são só lendas e parte do que chamamos de mitologia, não são
fatos reais. Não acredito em deuses, logo não acredito em monstros.
Caspar revirou os olhos. Ele odiava perder seus argumentos.
— Ei, mas sabe o que mais é fato? — continuou Poeta, adorando o fato
de estar certo. — Se uma criatura nunca foi vista, não há provas de que é
real.
— Logo você dizendo isso... — resmungou Caspar. — Agora o que não
podemos ver não é real?
— Eu disse o que nunca foi comprovado. Não vemos o ar, mas sabemos
que está aqui.
Caspar levantou, indignado.
— E se formos os primeiros a ver um dragão, por exemplo.
Poeta abriu um largo sorriso. Ele não se importava em ganhar uns
trocados a mais.
— Tudo bem. Aposto que nunca veremos um dragão.
— Quer apostar?
Poeta estendeu a mão.
— Cinquenta coroas. Em nome de Nathaniel Dyi.
O loiro amarrou sua bandana mais forte ao redor da cabeça e estendeu o
braço.
— Cai dentro. Cinquenta coroas, mano!
Ambos cuspiram em seus dedos e selaram a aposta entrelaçando-os em
um aperto de mão. Kim aproximou-se com os braços enfaixados e com uma
careta de nojo estampada no rosto.
— As mocinhas resolveram trocar saliva, agora?
Caspar, a personificação perfeita da expressão “cara de pau” virou para a
ruiva e piscou.
— Quer uma demonstração, gatinha? — Fez um bico com a boca.
Kim empurrou a prancheta no rosto de Caspar, fazendo-o beijá-la.
— Não, obrigada. O que eu quero é que você e Poeta voltem a cuidar dos
feridos. Tenho umas coisinhas para conversar com o Dimitri aqui.
Caspar, derrotado, virou-se para Dimitri e estreitou os olhos,
gesticulando com os dedos como se dissesse “estou de olho em você”, para
ter certeza de que nada entre ele e Kim iria acontecer. O criado de bordo
deu uma risada e revirou os olhos, achando graça. O rapaz da pólvora girou
em cima dos tornozelos soltando um último comentário:
— Retiro o que eu disse sobre o homem não poder voar. Pelo visto, a
Kim conseguiu!
O loiro deu uma risada, e a ruiva chutou-o porta afora. No instante em
que os dois meninos saíram de perto, a contramestre puxou Dimitri pelos
ombros para dentro da cozinha e trancou a sala. Então, jogou as roupas do
garoto já secas nele.
— Sente-se.
Dimitri, assustado, obedeceu. Sentou-se e aproveitou para se vestir
enquanto Kim estava de costas. A contramestre andava de um lado para o
outro, esfregando a testa. Parecia pensativa e incomodada com alguma
coisa. Dimitri estava um pouco confuso e desconfortável, sem saber muito o
que dizer.
— Kim, tudo bem? Bateu a cabeça também?
Kim virou os olhos rapidamente em alerta para o garoto como um
tubarão. Não hesitou em pular para cima dele, prendendo-o na cadeira e
ficando cara a cara. Seus olhos ardiam em chamas a centímetros de Dimitri.
Estava com raiva, mas também confusa. Dimi percebeu pelo jeito que suas
sobrancelhas tremiam. Sua voz saiu trêmula, mas imponente.
— Quem é você?
47

O DIA EM QUE KIM QUASE O MATOU

Olhos cinzentos encaravam olhos azuis.


— Quem é você?
Quem é você? Qual o seu nome? As perguntas rodeavam a cabeça de
Dimitri em loop.
— O quê?
Kim, impaciente, puxou sua adaga de prata do cinto e mirou na direção
do pescoço de Dimitri.
— Quem é você e o que faz aqui?
Sua voz era como um trovão. Dimitri não sabia como responder àquela
pergunta. Não sabia o que a ruiva esperava que ele respondesse também.
Cautelosamente, levantou as mãos em tom de rendição e mediu suas
palavras.
— Kim... sou eu, Dimitri.
— MENTIROSO!
Levantou a adaga e, com força, fincou-a no tampo de madeira que havia
ao lado da cabeça do garoto, fazendo Dimitri tremer.
— Você se acha muito esperto... diz ter perdido as memórias... Que
conveniente — grunhiu. — Responda. Se não lembra de nada, então como
sabia da lenda das sirenas?
— Eu não sei.
— Mentiroso, como sabia que Mirtos derrotou as sirenas beijando sua
esposa?
Dimitri fez uma careta, sentindo a raiva crescer.
— Espera, você sabia? Por que não fez nada?
— Responda. A minha pergunta — retrucou Kim, imponente.
E assim ficaram. Olhos cinzentos com olhos azuis. Nenhum deles daria o
braço a torcer. Dimitri era bom no jogo do silêncio, mas Kimberly estava
impaciente. Bufou e retirou a adaga do tampo de madeira, prensando-a
contra o pescoço do garoto fazendo-o engasgar. Ele podia sentir a lâmina
afiada em sua pele. Dimitri podia ver que Kim estava entrando em um
colapso nervoso.
— FALA ALGUMA COISA!
— TÁ LEGAL!
A contramestre estreitou os olhos, analisando a situação. Dimitri apontou
com a cabeça para a adaga. Mesmo que a ideia não a agradasse, Kim bufou
e guardou a lâmina de volta no cinto. Distanciou-se e pôs as mãos na
cintura.
— Estou esperando.
Dimitri arrumou-se na cadeira. Ele não sabia muito bem por onde
começar. Para falar a verdade, nem sabia ao certo o que sairia de sua boca
naquele momento. Por baixo da franja que cobria seu rosto, suspirou:
— Promete não contar para ninguém?
— Isso sou eu quem decido — respondeu Kim, do outro lado da sala,
sem baixar a guarda.
— Eu não lembro de nada. — Sua voz saiu em tom de indignação. —
Não sei quem eu sou nem como cheguei aqui. Nem sei se esse é realmente
o meu nome. Você acha que eu assusto o capitão por ser um mistério?
Adivinha só, EU TAMBÉM ESTOU ASSUSTADO, BELEZA?!
Quanto mais falava, mais raiva sentia, mais aquelas palavras se tornavam
reais ao serem ditas em voz alta. Dimitri parou, ofegante por não respirar.
Kim pôde sentir o peso que aquele garoto tão jovem carregava de fardo nas
costas. Mesmo assim, permaneceu em alerta. Dimi respirou fundo e deixou
a cabeça cair.
— O vazio acaba comigo e me devora por dentro. Mas... — Hesitou.
— Mas?
Respirou mais uma vez.
— Eu tenho passado por algumas experiências estranhas. Algumas
informações vão surgindo como se alguém, lá no fundo da minha mente,
estivesse querendo me ajudar.
Kim juntou as sobrancelhas.
— O que quer dizer com alguém?
Ele não tinha uma resposta concreta para aquela pergunta. Suas mãos
começavam a tremer.
— Eu não sei. Eu venho lembrando de lugares e nomes... mas é tudo
muito confuso.
— Foi assim que lembrou do beijo?
Dimitri deu de ombros.
— Eu não fazia ideia de que ia funcionar.
Kim cuspiu uma risada.
— Que Jack nunca fique sabendo disso.
— Tarde demais.
Os dois riram baixinho descontraindo a tensão no ar que havia ali.
Porém, o silêncio voltou logo, e Kim não se deixou levar. Ela mantinha uma
das mãos no punho de sua espada constantemente. E Dimitri estava
completamente desarmado, física e espiritualmente. Baixou novamente a
cabeça. Suas próximas palavras saíram entrecortadas:
— Kim?
— O que foi?
Ela não conseguia ver, pois Dimitri escondia o rosto entre as mãos. Mas
ele estava carregando uma enorme tristeza nos olhos.
— Tem alguma coisa errada comigo.
Kim arregalou os olhos, sendo levada, momentaneamente, para um
instante sombrio de seu passado.

De repente, lá estava ela. Nove anos. Em sua frente, uma criança mais
nova, encolhida, chorava em frente à lareira recém-apagada.
— Kim... — choramingava —, tem alguma coisa errada comigo.

Do lado de fora da sala, a situação estava um pouco diferente. Jack


terminava de guardar os kits de primeiros socorros, quando Poeta e Caspar
foram em sua direção. O loiro permanecia inquieto olhando para a sala em
que Dimitri e Kim estavam.
— O que acha que eles tão conversando lá dentro? — perguntou
baixinho para o colega.
— Kim deve estar dando uma bronca nele ou algo assim — respondeu
Poeta, indiferente.
Caspar forçou uma risada.
— Acho que você tem razão.
Poeta anotou alguma coisa em seu caderno e guardou-o no bolso.
— Devíamos fazer um contrato ou algo assim. Você sempre esquece as
apostas que faz.
Caspar fez uma careta de indignação.
— O quê? Eu? Você está sendo injusto...
Poeta pôs duas caixas de madeira nos braços do amigo.
— Me ajuda a levar isso para o depósito que eu vou fingir acreditar em
você.
O loiro bufou e desceu as escadas para o andar inferior. Poeta, que estava
assobiando contente, ia em direção ao resto das caixas, quando um braço
forte demais para seu tamanho, puxou-o para um canto.
— AHHH!
Jack tampou a boca de Poeta.
— Shh! Fica quieto. Precisamos ser discretos.
Puxou-o para dentro de um armário de limpeza que havia ali perto,
trancando a porta em seguida. Tateou o escuro, até encontrar os óculos de
Poeta e ligar a luz. Quando o cômodo ficou claro, Poeta percebeu que
estava a poucos centímetros de Jack e sentiu-se imensamente incomodado,
assustado e confuso, nessa ordem. Mesmo assim, tentou manter a
compostura.
— Jacqueline... — Limpou a garganta e desviou os olhos para o teto. —
Com todo o respeito, você não faz muito o meu tipo.
Mas Jack não estava se importando. Aproximou-se mais ainda,
procurando algo nos bolsos do colega.
— Poeta, me dá o seu caderno.
— O quê? Por que eu faria isso?
— Se fizer, eu o ajudo com a charada da sereia.
O garoto fez uma careta.
— Não parece muito convincente.
A garota distanciou-se e levantou o punho no ar. É, não tinha como
brigar com aquilo dali. Poeta suspirou, rendendo-se. Procurou algo no bolso
de trás de seu cinto e entregou para a timoneira com todo o cuidado do
mundo.
— As folhas de bambu são importadas. Tente ser...
Jack puxou o caderninho com força, fazendo Poeta ficar à beira de um
colapso nervoso.
— ...cuidadosa!
Alguns metros acima de suas cabeças, ficava a cabine do capitão do
Nadia Keane. Patrick Hall mantinha-se deitado em sua cama aos cuidados
do melhor curandeiro a bordo. King prensava um pano molhado na testa de
seu superior, que tremia e suava frio. Então, soltou para fazer um novo
curativo ao lado de sua cabeça. Sua orelha estava envolta de sangue e
sujava todas as bandagens que King colocava.
— Não... eu preciso... — resmungava o capitão.
— O senhor disse alguma coisa?
Mas Hall não parecia de fato ouvir.
— Eu preciso... chegar a tempo.
Sua cabeça estava em outro lugar. Mais precisamente há quatro anos,
quando um jovem Patrick e um jovem Zuca adentravam uma caverna. Ele
lembrava bem daquele dia. Estava completamente irado.

— ONDE ESTÁ?
— Capitão, acalme-se.
— Eu não vou me acalmar. Aquele pilantra do Kirk vai me pagar! Como
ele ousa me roubar?

Então, a imagem daquela velha senhora invadia seus pensamentos.


Aquela velha senhora que sorria por entre tosses sangrentas.
Não muito diferente dele, King terminou de fazer a bandagem e alcançou
um pedaço de pano para o capitão, que tossiu em vermelho, manchando
seus dedos.
Há quatro anos ..., pensava.
— Eu preciso recuperar o tesouro... eu preciso...
Zuca segurou-o pelos ombros.
— Patrick, controle-se, homem! Saia dessa. Vamos recuperar o baú
juntos. É uma promessa.
— Zuca... — Ele começava a enxergar turvo. — Tem alguma coisa
errada comigo.
Patrick Hall caiu de joelhos no chão, perdendo a força das pernas, de
repente. Zuca ajudou-o a levantar e apoiou-o em suas costas.
— Aguenta firme. King pode te ajudar.

E era verdade. Bryce Jonathan King estava sempre à disposição. E ver


aquele grande capitão que Patrick Hall era tremendo como uma criança em
sua cama, era de cortar o coração. Voltou a molhar sua testa.
— Capitão, acalme-se. Precisa descansar.
Foi então que Patrick Hall abriu seus olhos. No fundo de suas pupilas,
ele pedia por socorro.
— Tem... alguma coisa errada comigo.
48

O MAIOR PIRATA DA GERAÇÃO

Dimitri definitivamente estava assustado, mas não era mais como Kim.
Por trás da franja que escondia seu rosto, lá estava ele. Assustado consigo
mesmo. E algo que ele havia falado mais cedo tinha mexido com a ruiva.
Tem alguma coisa errada comigo. Naquele momento, seus instintos falaram
mais alto. Aproximou-se e puxou uma cadeira para sentar ao lado daquele
rapaz tão frágil.
— Eu ouvi uma voz. — As palavras de Dimitri saíram como se ele
estivesse pensando alto.
Kim levantou uma sobrancelha.
— Uma... voz.
— Era familiar, de alguém que eu sei que conheço. Só não sei de quem.
De repente — sua respiração falhou —, foi como se tudo daquela noite
voltasse à tona, como uma avalanche.
— Quer dizer que lembrou o que aconteceu na noite da tempestade?
Dimitri balançou a cabeça negativamente.
— Não. Mas alguma coisa muito estranha aconteceu naquela noite. E...
— E?
O rapaz respirou fundo.
— Ela sabe.
— Quem é ela?
Só então, Dimitri olhou Kim nos olhos. Aqueles olhos que imploravam
por ajuda.
— A mulher da banca 25.
— Do festival? — perguntou Kim, confusa.
— Ela sabe onde eu estou. Ela está dentro da minha cabeça, fala coisas...
A contramestre levantou, sem fazer movimentos bruscos, preparando o
corpo na posição de guarda. Sua mão voltou-se para a adaga no cinto.
— Kim...
— E que coisas ela fala? Está mandando você fazer alguma coisa? —
Aumentou o tom da voz.
— Não! Quer dizer... ah, droga.
Dimitri levou a mão ao rosto e fez uma careta tentando organizar as
palavras.
— Kim, eu não sou maluco.
— E por que devo acreditar nisso?
Justo, pensou Dimi. Por que acreditar em um pivete como eu? Ele
mesmo começava a não acreditar.
Respirou fundo e prendeu o cabelo para tentar se recompor. Kim não saía
da posição de guarda.
— Tem alguma coisa me perseguindo, me assombrando. Talvez sejam
minhas memórias, talvez não. — Dimitri riu por entre a tristeza. — Talvez
eu esteja mesmo ficando maluco.
Kim ficou surpresa com o que viu. Mas Dimitri ainda não tinha notado.
— Tinha certeza de que eu era um homem do mar, era a única sensação
que eu tinha e me apeguei a ela para não perder a pessoa que eu acredito
ser.
Por isso o desespero em provar a Jack que ela estava errada, pensou a
contramestre.
— Mas nem disso eu tenho mais certeza. Eu não sei mais o que fazer,
não sei quem eu sou, quem eu era ou quem eu devo me tornar. Se o destino
é certo e imutável, eu não sei. Mas, pelos deuses, olha onde eu vim parar.
Em um maldito navio pirata!
Dimitri riu e foi quando seus lábios sentiram algo quente e salgado
escorrendo. Só então ele percebeu que estava chorando. Rapidamente,
limpou as lágrimas em seu braço. Droga, droga, droga...
Kim foi a primeira que o viu chorar.
Mas ela não parecia estar muito interessada no fato. Ao invés disso,
cruzou os braços e analisou o rapaz em sua frente por inteiro. Por fim,
suspirou.
— Você é péssimo, Dimitri. Se esse é mesmo o seu nome.
Deu passos arrastados na direção do novato.
— Valeu, hein... — resmungou Dimi.
Kim tinha uma das sobrancelhas levantada em tom de julgamento. Suas
botas de couro passaram por trás da perna de madeira da cadeira em que o
rapaz estava sentado.
— Um péssimo pirata.
E puxou o pé, destruindo a cadeira que bateu contra o chão. Dimitri caiu
de costas, dando uma cambalhota para trás e parando com as pernas na
parede e a cabeça para baixo. Seu corpo todo estremeceu.
— Sabe quando eu disse que Hall vê algo ameaçador em você?
Dimitri levantou, cambaleando e esfregando a nuca.
— É ainda mais ameaçador quando você mesmo não sabe o que é.
— O que quer dizer?
Kim deu mais um passo e olhou fundo nos olhos do rapaz.
— Quer dizer que o seu passado nebuloso pode acabar matando-o. Isso
se o capitão não o fizer primeiro.
Dimitri sentiu aquelas palavras crescerem em seu peito de repente.
— Acho que entendi o que você quis dizer com garra.
Por que você quer aprender a lutar? ela havia dito.
Porque quero ser como os outros. Um legítimo homem do mar. Revidar
quando me atacarem.
Ser como os outros?... falta garra em você.
Mas que raios isso significa?
Um dia você vai descobrir.
Dimitri deixou aquela força se alimentar de energia e levantou. Agora ele
sabia o significado.
— Kim — chamou determinado — a próxima vez em que eu enfrentar o
Hall, vou ganhar dele.
Kim suspirou e deu um cascudo no garoto.
— Você é um cabeça dura, mas admito que tem coragem.
Dimi esfregou a cabeça. Os cascudos de Kim sempre doíam um bocado,
mas riu. O dia em que Kim quase o matou terminou com o início de uma
grande aventura.
— Me convenceu. Eu vou ajudá-lo.
— Com o quê?
Kim esboçou um sorriso instigante.
— Em se tornar o maior pirata desta geração.
Os olhos de Dimitri se encheram de brilho.
— Quer dizer que vai me ensinar a lutar?
Kim fez uma careta e empurrou a cabeça do garoto para longe.
— Estragou minha frase de efeito, pirralho. Começaremos em breve,
esteja preparado.
E saiu da sala, deparando-se com a enfermaria vazia. Ou era o que ela
pensava. Ninguém imaginaria que dentro do armário havia dois piratas
curiosos. Poeta estava impaciente, tremia as pernas e roía as unhas de
ansiedade. Olhava apreensivo para Jack, que tinha as sobrancelhas juntas
em confusão.
— Poeta, tem certeza disso?
— É tudo o que eu sei sobre o tesouro.
Jack viu aquele desenho estranho estampado em frente aos seus olhos.
Por quê...
— O que Hall quer com um castiçal?

64 graus Sul, 40 graus Leste. A bordo do Octopus.

John Kirk abriu o baú como fazia todas as noites. Seu rosto iluminou-se
com o brilho daquele objeto, aquela relíquia tão enigmática. Mas ele não
conseguia entender.
— Por que Patrick quer tanto essa coisa?
Passava suas mãos pelo castiçal.
— O que é que você pode fazer...

Salão dos Deuses. Localização Desconhecida.

Áquila, o deus da guerra, era o mais novo presente entre seus irmãos.
Seus cabelos castanhos eram encobertos por uma touca que lembrava
vagamente a cabeça de um lobo. Seu corpo de garoto era tatuado e seus
olhos vermelhos riam de loucura ao ver aquele tesouro em uma das bolas de
cristal em sua frente.
— AHÁ!
— E você, Umma? — perguntou Tachi, provocador. — O que acha do
Castiçal?
A deusa das tempestades, que fazia pequenos raios com a ponta de seus
dedos, teve que fazer um enorme esforço para não os jogar.
— Eu acho que você esqueceu o seu lugar, Tachi.
— Eu adoro isso.
Áquila agarrou a bola de cristal nas mãos, deixando-a iluminar o rosto.
— Os humanos fazem guerra por tão pouco... são tão pequenos e
insignificantes... são como vermes. Um único sentimento toma conta de
seus corpinhos e é o que basta para causar tanta discórdia. Guerra. Dor.
Sangue. Morte.
Ele também não batia muito bem da cabeça. A sala encheu-se de suas
gargalhadas e do silêncio de seus irmãos. Sarab ajeitou-se na cadeira,
mantendo a compostura em meio a tanta loucura.
— Acho que você subestima os humanos.
Foi a vez dela de pegar uma das bolas de cristal. Lá estavam. Hall. Zuca.
Poeta. Kim.
Jack.
Dimitri.
Os dois caminhavam paralelamente, então, de repente...
Antes de cruzarem o caminho um do outro, encararam-se por um longo
tempo. Sem dizer uma única palavra. O silêncio já dizia tudo. Por fim,
continuaram a caminhar e passaram um pelo outro, sentindo aquela energia
estranha tomar conta, quando seus ombros levemente se tocaram. Dimitri
não percebeu, mas Jack olhou para trás ao sentir as bochechas
enrubescerem. Jack não percebeu, mas logo em seguida, Dimitri virou-se
para ela, que já caminhava para longe.
Então sorriu.
Sarab aliviou as feições.
— Eles têm muito ainda o que nos ensinar.
E assim terminou mais uma noite a bordo do Nadia Keane. Posso
finalmente fechar o livro e descansar até amanhã.
Quem eu sou?
Bom, se alguém descobrir, terá que me matar.
PERGAMINHO PERDIDO 2

- CALENDÁRIO MENSAL DE ESTAÇÕES E


TEMPORADAS -

JANEIRO — o mês mais claro, período chamado de “Solaria”, tendo os


dias com 16 horas e as noites com 8 horas.
FEVEREIRO — estação das calmarias. Conhecido também como o mês
dos marinheiros.
MARÇO — temporada de caça.
ABRIL — temporada das secas.
MAIO — temporada das pestes.
JUNHO — estação dos tufões.
JULHO — o mês mais escuro, período chamado de “Lunaria”, tendo os
dias com 8 horas e as noites com 16 horas.
AGOSTO — estação das chuvas.
SETEMBRO — temporada de plantio, mês da fertilidade.
OUTUBRO — estação das flores.
NOVEMBRO — estação das tormentas. Demora mais a passar em alto-
mar.
DEZEMBRO — temporada de colheita. Na sua primeira semana, ocorre
um fenômeno chamado “Lua de Fogo”.
GLOSSÁRIO

CARGOS DO NAVIO:

Capitão: maior cargo, escolhido democraticamente. Comandante


supremo do navio, representante da tripulação.
Imediato: braço direito do capitão. Comandante abaixo do capitão que
toma as medidas na ausência do outro.
Contramestre: cargo que divide as tarefas entre todos os marujos e vigia
seus trabalhos.
Pintor: cartógrafo, criptógrafo, estudioso e perito em idiomas.
Curandeiro: médico.
Cozinheiro: quem trabalha preparando as refeições.
Carpinteiro: substitui peças de madeira velhas ou danificadas do navio.
Almirante: cargo importantíssimo de um navio pirata, é o marujo que vê
tudo de cima no cesto da gávea.
Timoneiro: tripulante responsável pela navegação. Seu posto é no timão.
Montadores: carregadores de carga e construtores do navio.
Rapaz da Pólvora: cargo baixo, limpador de armas.
Grumetes: membros mais jovens, trabalham como criados de bordo,
mas servem de capatazes e controlam o tempo do dia também.
Criados de Bordo: membros recém-chegados. Tarefas de menor
importância como limpar o convés ou ajudar na cozinha.

NOMENCLATURAS PIRATAS:

Tripulação: conjunto de pessoas que trabalha em um navio.


Bombordo: equivalente à esquerda ou ao lado esquerdo de uma
embarcação.
Estibordo: equivalente à direita ou ao lado direito de uma embarcação.
Embarcação: meio de transporte pela água. Ex: navios.
A-hoi: interjeição pirata, utilizada para quase tudo.
Apresentação Oficial: rito de passagem inicial para os novos
tripulantes.
Saqueadores da Barra: tripulação do Nadia Keane. Astutos e velozes,
ágeis como sombras da noite. Suas cabeças valem recompensas altíssimas.
Jolly Roger: típica bandeira pirata. Cada navio possui a sua própria,
com seu símbolo, elas podem ser da cor preta (que significa “não resista”)
ou vermelha (que significa “não tente correr, você vai morrer de qualquer
jeito”).
Filho de Caravela: expressão para os marujos que trabalhavam ou
vieram de caravelas.
Chalupa: pequeno barco reserva a remo, guardado no depósito dos
navios ou, mais comum, nos deques superiores, para caso de emergência.
Escuna: embarcação de pequeno porte, dois canhões de cada lado.
Velocidade rápida. Um ou dois mastros.
Corveta: embarcação de médio/pequeno porte, veloz, quatro canhões de
cada lado. Dois mastros.
Caravela: embarcação de médio/pequeno porte, convés único, popa
elevada, veloz e estritamente utilizada pelas marinhas reais. Dois ou três
mastros.
Fragata: embarcação de médio porte, oito canhões de cada lado,
velocidade mediana. Três mastros.
Galeão: embarcação de grande porte, muito lenta, geralmente usada para
transportar cargas de alto valor com segurança. Vinte canhões. Quatro
mastros.
Chapéus Verdes: tripulação do Octopus.
Kingikai: o pirata com maior recompensa, poder e fama dos onze mares.
Seu posto nunca foi substituído, pois o primeiro Kingikai foi Calico Jack,
com uma recompensa de 50.000.000 coroas menores. Quem alcançar essa
quantia tomará seu lugar.
Krauk ou Sereia: jogo comum entre tripulações cujo objetivo é acertar
um anel dentro das garrafas de rum. Se acertar, deve beber. Se não acertar,
deve beber igual. Quem ganha fica com a sereia e quem perde é devorado
pelo Krauk.

PARTES DO NAVIO:

Convés: cobertura superior do navio feita de um deque de madeira.


Principal local de trabalho.
Proa: dianteira do navio.
Cesto da Gávea: ponto mais alto do mastro. Cesta onde o almirante
permanece durante o trabalho e onde pode ver tudo do alto.
Mastro: Peça longa de madeira vertical que segura as velas e se estende
até o cesto da gávea.
Deque Superior: Parte mais elevada do convés. Um navio possui dois
deques superiores, o da proa e o da popa.
Popa: traseira do navio.
Verga: mastros horizontais que se interligam com o mastro principal,
para segurarem velas.
Timão: roda do leme, peça que rege o navio.
Brandais: cabos verticais que ajudam na fixação dos mastros.
Cordames: conjunto de cordas que aparelham um navio. Muitas vezes
são entrelaçados para formar escadas de corda que levam até o topo dos
mastros.
Gurupé: mastro horizontal que se projeta para além da proa.
Escotilha: porta que fica no chão e abre para cima.
Cascalhos: fragmentos de rochas que ficam no fundo do casco do navio
e servem para equilibrar o peso da embarcação.
Figura de Proa: figura debaixo do gurupé, em frente ao navio.
Geralmente uma escultura de alguma pessoa importante, uma divindade ou
um monstro marinho. Junto com a Jolly Roger, é a marca do navio.
AGRADECIMENTOS

Nadia Keane é sobre querer largar tudo para viver uma aventura. É sobre
amizade, sobre desafiar seu destino e autodescoberta. É sobre correr atrás
de seus sonhos e lutar pelo que acredita. É sobre aprender a enfrentar suas
batalhas.
Eu tenho a agradecer a minha família, meus amigos, minha irmã e todos
aqueles que me fizeram sentir que eu poderia conquistar o mundo. Inspirar
as pessoas, fazer o impossível. Mas, acima de tudo, quero agradecer àquela
garotinha que conheci há tanto tempo. Aquela que queria velejar pelo
mundo. Aquela que mais acreditou em mim, apesar de todas as vezes que
foi rejeitada, que ouviu um não ou um “desiste dessa ideia boba”. Eu queria
muito poder dizer a ela que ela conseguiu. Abraçá-la forte e dizer para ela
que a princesa virou pirata e mostrou para todo mundo que ela podia ser o
que ela quisesse.
Nalu, você conseguiu.
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