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Gotículas de água escorriam lentamente pelos tijolos cobertos de musgo.

Insetos e
criaturas jamais vistas faziam morada em fendas imperscrutáveis, ocasionalmente
quebrando o silêncio com o som de seus movimentos. Nada disso foi percebido pelo
homem acorrentado, pois ele acordava, e seus olhos não estavam habituados com a
escuridão intensa, tampouco seus ouvidos tiveram tempo de se atentar ao ambiente. Nos
primeiros movimentos que realizou, enquanto levantava do chão, percebeu as correntes
que lhe pendiam pela cintura, presas a um cinturão metálico, sem, contudo, saber onde
estavam presas as outras extremidades.
Seu estômago fechou-se e encolheu de desespero pela total falta de informação a que
seus olhos estavam submetidos. Sua respiração seguiu o ritmo do seu coração, que batia
acelerado. Largou-se no chão, sentado e fraco, lamuriando palavras inaudíveis, até
conseguir colocar alguns pensamentos em ordem. Feito isso, ele constatou que boa parte
de suas memórias tinham-se esvaído. Nome, idade, origem, tudo era negror.
Passou um longo tempo até seus olhos começarem a se acostumar com a escuridão.
Durante esse processo, o domínio das sombras cedia paulatinamente, revelando formas
indistinguíveis a primeiros vislumbres. Tateou primeiramente pelo próprio corpo e,
como esperado, não reconheceu o toque das roupas que lhe cobriam. Vestia os mais
variados tecidos, todos com sua textura singular, e, privado de sua visão, não conseguia
imaginar que aspecto eles tinham, ou sua aparência enquanto cobriam seu corpo. O mais
curioso era que haviam pequenas esferas de metal costuradas ao seu manto. A qualquer
movimento elas reagiam com um barulho de sino. Lantejoulas. Amarrado ao seu
tornozelo havia um fio. Puxando-o, o som de lantejoulas também se fez ouvir, o que o
alarmou. Por segurança, puxou o fio lentamente, a fim de produzir a menor quantidade
de barulho possível.
Parecia que o fio amarrava aos seus pés um estranho córneo oco com pequenos sinos
grudados em uma de suas arestas; ou, ao menos, o formato sugeria um córneo, mas o
material lembrava mais couro do que osso. Por fim, constatou que seu rosto era coberto
por pelos, e o volume pendendo-lhe abaixo da virilha deu-lhe a consciência de que era
macho – em tal situação, o significado disso era menos importante do que se possa
imaginar. A memória do que fazer com seu sexo era tão vaga quanto as demais que lhe
restavam.
O som das lantejoulas grudadas em suas vestes sempre que fazia um movimento mais
longo passou a alarmá-lo mais e mais. Talvez por um medo instintivo de denunciar sua
presença e atrair o perigo. Superou essa sensação o quanto podia e tateou ao seu redor.
Em suas laterais não sentiu nada ao alcance das mãos, mas quando as levou acima da
cabeça o toque o fez encolher-se de medo novamente. No alto haviam coisas peludas e
molhadas e enormes, e a primeira coisa que lhe veio à mente foi algo monstruoso
prestes a devorá-lo. Em sua fronte suada de pavor pingaram gotas grossas e geladas, em
reação ao seu toque imprudente. O homem debateu-se no chão e gritou, em lágrimas
involuntárias, antecipando que fim horrendo estava prestes a conhecer. Mas nada
aconteceu.
As coisas peludas continuavam no mesmo lugar, molhadas, sem descer um centímetro.
A substância que escorria deles – a qual imaginou ser baba de alguma fera hedionda -
como descobriu após uma mistura de acaso com uma relutante injeção de coragem,
aliviava-lhe a sensação de secura na boca. Juntando uma maior quantidade no seu
estranho corno, matava-lhe a sede. Era apenas água.
Em dado momento a monotonia e o desespero foram interrompidos por uma visão
apaziguadora. Traços de luz se projetavam na frente do homem acorrentado, como um
desenho luminoso sobre uma tela tão negra quanto as sombras que a cobriam. Era luz se
projetando pelas fendas de uma parede. “Tem alguém aí?”, a voz que perguntou era
suave e, ao mesmo tempo, grave. Era como notas de água pura nascidas em cavernas
profundas.
A princípio houve relutância em responder. Levado pelo susto, apenas permaneceu
imóvel, confiante de que o seu manto de sombra o manteria oculto da vista do intruso.
Porém, um outro sentimento lhe acometeu com maior força – sentiu medo de que aquela
outra pessoa fosse embora e nunca mais voltasse.
“Sim. Tem sim... eu estou aqui”, respondeu sem conseguir formular frase mais coerente.
Um breve momento de silêncio. “Posso vê-lo daqui. O que faz num lugar tão
estranho?”. “Não sei dizer, senhor. Adoraria saber dizer o que me trouxe até aqui, mas
acredite ou não, sou incapaz. Estou preso. Acorrentado. É só o que sei”. Temeu que sua
resposta lacunosa fosse afugentar o intruso, mas ele o interrogou novamente. “Por que
está olhando para o outro lado? Não consegue me ver aqui?”. A permanência do intruso
encheu seu peito de uma esperança cálida. “Os meus olhos, senhor. Ainda não se
habituaram totalmente à escuridão. E esses fracos feixes de luz não iluminam mais que
uns poucos centímetros, se tanto”.
“Entendo. Pois siga o som da minha voz, então. Para que possa falar olhando para mim.
Aqui... não, aqui. Isso”. A orientação do estranho pareceu apurar mais um pouco sua
visão, pois conseguiu distinguir mais coisas do que há poucos segundos. Numa das
paredes havia uma abertura – uma rota de fuga ideal, não fossem as malditas correntes.
Apoiados nessa brecha, revelavam-se os contornos de uma pessoa. Pelo som da voz,
provavelmente era outro homem, mas se dependesse do que a escuridão revelava, podia
ser homem, mulher, ou o que mais se compreendesse dentro do espectro de gêneros.
Resolveu que o trataria pelo gênero masculino – por razões que se enterravam fundo nos
domínios do seu inconsciente. A voz era de homem, muito provavelmente.
“Posso vê-lo agora, senhor. Como vê, estou numa situação lamentável. Encarcerado, à
mercê da fome e das intempéries”. “Por que está preso em um lugar como esse, e em tão
estranha situação?”. “Como disse antes, mas não expliquei, senhor, encontro-me
privado de boa parte das minhas faculdades mentais. Por essa razão, não lembro o que
me trouxe a este lugar miserável... Por acaso não poderia me prestar algum tipo de
ajuda? Qualquer coisa te garantiria minha eterna gratidão”. Mais uma vez o breve
silêncio.
“Se está me pedindo para soltá-lo, sinto muito. Mesmo que estivesse dentro das minhas
capacidades, seria um tremendo risco me colocar aí com um estranho”. A franqueza do
intruso era dura, mas sua voz sempre carregava um tom encantador de gentileza, que
dissipava do coração tensão e raiva. “Tampouco tenho alimento ou água para te
oferecer, lamento. Essas coisas terá de conseguir por si mesmo. Mas seu pedido foi por
qualquer ajuda, a não ser que tenha ouvido mal”.
“Sim, senhor. Qualquer ajuda será uma benção”, respondeu se aproximando do intruso
até sentir o puxão das correntes, como se estivesse prestes a receber a chave que soltaria
seus grilhões. “Pois bem, você falou que sua sanidade mental está debilitada, e por isso
não lembra o que te trouxe a essa situação. Mesmo que não possa esclarecer com
precisão por que está aí, posso te contar histórias sobre o que está lá fora. Sobre muitas
coisas das quais não lembra. Quem sabe possa extrair disso algo que te ajude”.
E sobre muitas coisas falou o intruso. Sobre o mundo exterior e seu passado remoto.
Povos, lendas e heróis haviam nas histórias declamadas em notas suaves e profundas,
que pareciam ter viajado desde as próprias narrativas longínquas até aquele buraco de
trevas, onde a própria luz relutava em entrar. Após uma narração que parecia ter durado
minutos, mas que, por sua extensão, só poderia ter sido feita em longas horas, a luz nas
fendas enfraqueceu.
“Minha hora chegou, estranho. Devo ir agora”. Anunciou o intruso com a casualidade
de quem informa alguém de uma migalha grudada ao rosto. “Espere, senhor. Não
poderia me falar algo sobre este lugar? Qualquer coisa, por insignificante que fosse,
seria de ajuda”. A voz do homem acorrentado esganiçava-se à medida que o desespero
lhe subia lentamente garganta acima. “Espere por mim novamente, estranho. Amanhã
retornarei”. E com isso o intruso se foi, e com ele a parca luz.
No escuro, a fome prevaleceu sobre o temor paralisante. Agora os ouvidos e olhos do
homem estavam mais espertos. Conseguia perceber pequenas criaturas sorrateiras
movimentando-se pelo chão de vez em quando. Após muitas tentativas, conseguiu
capturar uma. Sentiu entre os dedos a criatura – talvez um inseto – lutando para se livrar
do aperto da morte iminente. A dor fina nos seus dedos e na palma da mão podia ser
causada por ferroadas, mordidas, ou qualquer outra coisa que sua imaginação não atinou
no breve momento. Não importa. Levou rapidamente sua mão à boca, e esmagou a
criatura no aperto fatal de sua mandíbula.
Um sumo amargo escorreu pelo seu queixo, enquanto mastigava esforçando-se para não
regurgitar. Essa foi a primeira refeição da qual tinha memória. A água ele espremeu da
cortina esfarrapada de musgo – que antes era uma fera – sobre sua cabeça. Os traços
irregulares de luz surgiram novamente enquanto aliviava os intestinos no cantinho mais
afastado que as correntes lhe permitiam ir.
“Olá, estranho”. Desconcertou-se pelo susto e pela exposição horrivelmente excessiva
do seu corpo. “Peço perdão pela cena, senhor. Infelizmente minha intimidade se resume
a este buraco estreito”. Respondeu sentindo o sangue fervilhando em seu rosto. “Te
peguei num mal momento, estranho. Não se importe comigo. Posso esperar”.
“Mais uma vez lhe peço desculpas. Aqui não tenho possibilidades de manter o que me é
particular separado do que está exposto”. Lamentava em pensamento o cheiro indigno
que sua fossa produzia, e torcia para que isso não fizesse cessar as visitas do intruso.
“Não é necessário pedir desculpas. Tenho algo a te dizer”. Mais uma vez as palavras do
outro encheram o peito do homem acorrentado de um sentimento fervilhante. “Ponderei
comigo mesmo, e concluí que não fui honesto contigo. Sei de algo que você precisa
saber, embora não saiba como esse conhecimento possa te ajudar. Ainda tem interesse
no que tenho a dizer?”. “Sim!”, a resposta escapou-lhe dos lábios antes mesmo que
pudesse ponderar sobre ela.
“Não sei como fazer rodeios sobre este assunto, estranho. A verdade é que você é um
assassino. E seus vizinhos o prenderam aqui para que não fizesse mais mal a ninguém”.
A declaração atingiu-lhe como um golpe que não causa qualquer sensação de imediato,
dando tempo ao corpo para sentir dor. “Não pode ser. Você diz que eu matei alguém?
Eu nunca faria nada do tipo, não tenho temperamento para violência. Simplesmente não
pode ser.”
“Essa é a verdade, sinto muito. Você matou muitas pessoas, estranho. Uma delas apenas
uma criança. Uma menina. Encontraram ela enterrada em sua casa. A cabeça estava
raspada. A boca foi costurada com os próprios cabelos. Nunca encontraram as mãos.
Um crime horrível...”. Os detalhes mórbidos da narrativa do intruso empurravam-lhe
estômago acima o pouco alimento que tinha ingerido. “Por favor, pare! Eu me recuso a
acreditar nesse disparate. Eu não teria a capacidade de fazer essas monstruosidades. Juro
por tudo.”
Fez-se silêncio. “Você é persistente na sua moral, estranho, embora não tenha
memórias. Tem razão, eu menti. Peço desculpas. Mas agora tenho de ir. Amanhã lhe
contarei a verdade. Espere por mim”. A saída do intruso foi tão súbita quanto suas
palavras, deixando o homem acorrentado atônito.
Na visita seguinte, o intruso revelou o seguinte, “A verdade, estranho, é que você é o
Deus que a tudo criou. Todas as coisas, vivas ou não, devem existência ao teu artifício e
ao teu sopro. Muitas coisas boas vieram do fogo de tua alma, mas também muitas ruins,
e outras tantas mais terríveis ainda”. “Está dizendo que eu sou Deus Todo Poderoso? Eu
gargalho de ti, meu caro senhor. Agora vejo que só quer me perturbar o juízo”.
“Falo a verdade estranho. Dentre todas as criaturas às quais deu vida, uma determinada
espécie tu fez à tua semelhança, e os chamou de filhos. Mas logo eles viram quão
grande era teu poder, e foram dominados pelo medo. Por isso trataram de te trancar
neste lugar e cuidar das coisas eles mesmos”. O semblante do homem acorrentado ainda
estava desanuviado pelo breve riso. “Peço desculpas pela minha incredulidade, senhor.
Mas o que me diz não faz o menor sentido. Se por acaso eu fosse tão poderoso, minhas
próprias criaturas não conseguiriam me prender aqui. E acaso conseguissem, eu me
soltaria facilmente, sendo o Todo Poderoso. Se estou aqui é por outra razão que não
esta”.
“Vejo que a esperteza não te abandonou, estranho. Não vou insistir nessa história. Eu
menti. Mas agora devo partir novamente. Espere por mim amanhã”. “Não, espere. Por
favor, não continue com essa tortura. Me diga ao menos a razão de eu estar aqui. Por
que não lembro de nada? Por que não sei quem sou?”.
“Amanhã te trago a verdade, estranho. Espere por mim”.

“E então, está pronto, estranho?”. A suavidade daquela voz agora só inspirava uma
estranha secura. “Se está prestes a me iludir com outra mentira, eu peço que não o faça.
Olhe para mim, sou um miserável. Tudo que peço são respostas para minhas perguntas.
Respostas verdadeiras”.
“A verdade é que você mesmo se aprisionou aqui. Não compartilhou com ninguém os
teus motivos. Apenas veio até esta caverna e se acorrentou. Sozinho. Precisei procurar
por dias até localizá-lo”. Havia uma mudança de tom na voz do intruso sempre que ele
declamava suas revelações. Sua voz se tornava dura e acusatória. “Se o que diz é
verdade, o motivo que me fez aprisionar a mim mesmo aqui para morrer de inanição,
entregue à insanidade, seria forte o suficiente para que simplesmente tirasse minha
própria vida. Por que razão eu me submeteria a tanto sofrimento antes de encontrar meu
fim? Simplesmente não faz sentido”. O homem havia absorvido um pouco da dureza do
intruso em seu modo de falar, sendo impossível saber se o fazia consciente ou
inconscientemente.
“Mais uma vez tua inteligência te acode, estranho. Talvez esteja ficando esperto demais
para teu próprio bem. Cada mentira que te conto é revelada com mais facilidade que a
anterior. Mas agora a luz se enfraquece”.
“Não! Eu imploro, não vá. Cumpre apenas minhas súplicas. É só o que peço. Depois
pode me torturar como quiser”. A dureza abandonou-o e deu lugar a uma ansiedade
trêmula. “Tenho que ir, estranho”.
“Eu suplico, senhor. Responde apenas mais uma pergunta, e me dou por satisfeito”.
Silêncio.
“Eu vou morrer logo?”.
“Amanhã te trago a verdade, estranho. Espere por mim”.
Os olhos do homem acorrentado já estavam suficientemente acostumados à escuridão, e
pela primeira vez ele viu a face do intruso. E sua expressão era puro vazio, além do
poder de descrição das palavras.
“Tenho de ir”. E a luz fraca deu espaço à sombra voraz.

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