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Acheron - Nacionais

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Agradecimentos

Ao grandioso Dovax, sempre a ele. Por me ensinar o propósito dessa existência.


Até o próximo encontro na eternidade, velho amigo.

Arte da Capa: Leandro Zerbinatti de Oliveira

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Caro leitor, saudações.


Primeiramente lhe dou as boas vindas a esta obra. Espero que a leitura seja agradável e
satisfatória.
Por fim, agradeço seu interesse por estas palavras e advirto-lhe esta é uma obra de ficção e que
as opiniões aqui apresentadas são de exclusiva responsabilidade de seu narrador.

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SUMÁRIO
Estrela Sangrenta
Os Deuses Astronautas
O Escorpião
A Carne dos Renegados
O Primeiro Faraó e a Primeira Escuridão
De Sangue Ele Se Banqueteia
Descaminhando para a Monstruosidade
O Sonho Milenar
Panem (Sanguinis) et Circences
Semente das Trevas
Obscuro Medievo
Noctem/Pestilentia
A Queda
Renascimento
Terra Brasilis
Vestígios
Uma Ópera para os Condenados
A Ti Eu Transmito o Manto das Trevas
Epílogo
SOBRE O AUTOR

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Estrela Sangrenta

Três de Maio de 2014. Nuvens cinzentas cobriam o céu noturno e despejavam a garoa,
cujos pingos minúsculos o vento gelado soprava contra as grandes portas de vidro do Hospital
Saint Mercy.
Ao contrário da tranquilidade que se poderia supor que, àquela hora da madrugada, pairaria
sobre o recinto, a recepção do hospital estava repleta. Pacientes dividiam espaço com
acompanhantes e entes preocupados. As emergências variavam desde um simples mal estar até
vítimas de tiroteio e acidentes de trânsito. A noite parecia exercer uma influência mórbida sobre
os eventos humanos. Era sempre durante as horas mais escuras que as tragédias pareciam
aumentar em número, e isso se observava desde os primórdios dos tempos.
Ignorando completamente as pessoas, a figura passou como um vulto, sem sequer ser
notado. Nem mesmo o sangue que vertia de vários ferimentos foi capaz de desviar sua atenção -
resultado de um tempo inumano de prática.
O elevador exigiria uma espera indesejada, e muito provavelmente o contato humano.
Como uma sombra se arrastando perante o recuo da luz, ele galgou os degraus dos quinze
andares em uma questão de segundos.
Ao menos naquela ala os corredores estavam vazios. Ali ficavam os pacientes internados e,
excetuando-se os atendimentos de urgência, ninguém perturbaria o sono deles. As luzes no teto
piscavam e oscilavam, lançando uma iluminação deficiente sobre as paredes brancas.
Independente disso, ninguém seria capaz de enxergar o visitante noturno, a não ser que ele assim
desejasse.
Reparando na luz e nos aparelhos instalados nos quartos, ele pensou sobre o tempo que se
passara desde que a humanidade ainda engatinhava, e quão pouco avanço havia sido feito no
sentido tecnológico. O âmbito moral, então, sequer valia a pena ser cogitado.
Quarto 156. Era justamente aquele que o visitante procurava. A escuridão não era
problema, na verdade até mesmo um humano poderia vir a enxergar devido à iluminação lançada
pelos painéis dos aparelhos. O aposento em questão abrigava apenas um leito, disposto no
centro, com uma janela à sua direita. Uma jovem de não mais de vinte e tantos anos jazia deitada,
a cabeleira negra e curta tornava os cachos quase imperceptíveis. Inconsciente, ela estava ligada
aos equipamentos médicos por vários tubos; cateteres haviam sido colocados em várias partes de
seu corpo franzino e pálido. O volume dos ossos era claramente perceptível sob sua pele.
Naquelas condições não poderia ser feito, concluiu a figura misteriosa. Com um
movimento sutil, ele abriu um corte na parte superior da bolsa de sangue que alimentava as veias
da garota e, fazendo o mesmo com seu próprio pulso, deixou algumas gotas de seu próprio
sangue pingar lá dentro.
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Alguns poucos segundos foi o tempo que levou para que o corpo da jovem sofresse a
transformação desejada. Os cabelos cresceram alguns centímetros, os cachos chegando quase à
altura dos ombros; a pele ficou corada e a massa muscular foi reestabelecida.
Caira era o nome da garota. Diagnosticada com leucemia, ela enfrentava seus últimos dias
de vida. Isto é, se seu destino dependesse da natureza humana. Mas não era isso o que o visitante
sombrio tinha em mente. Ela fora escolhida. Desde muito tempo atrás ele esperava por alguém
como ela, e agora que a encontrara não permitiria que a frágil condição humana frustrasse seus
planos.
De uma forma ou de outra, Caira haveria de ser como ele. A garota receberia o manto.
O processo era desagradável, mas para alguém naquela situação, poderia ser suportado sem
maiores traumas. O sangue dele atuando sobre a carne mortal dela já garantia uma maior
eficiência.
No exato momento em que a figura se debruçava sobre ela, Caira abriu os olhos e pôde
enxergar, ainda que de forma embaçada, a face de um homem: o rosto oval e liso, com o queixo
reto, feições cuja etnia ela não conseguia reconhecer; nariz médio, com o ápice levemente
pontudo e o dorso reto; os olhos eram de um castanho escuro, finos, passando uma expressão
compenetrada e de contemplação profunda. Os cabelos eram negros e longos, levemente
cacheados, presos em um rabo de cavalo. O que chamava a atenção, porém, era a palidez
excessiva da pele, que lembrava mármore. E os caninos, longos e pontudos, descendo de uma
vez sobre o pescoço dela.
Um sonho. Foi o que a garota pensou. Uma alucinação precedendo a morte. Ou estaria ela
já morta, e aquilo seria o inferno. Caira parou de pensar quando sentiu a dor. Não era como ela
esperava. Não como uma mordida. A sensação era a de uma longa agulha penetrando nas
profundezas de sua carne, seguida de um ardor, semelhante a uma queimadura de ácido. Mas
então tudo mudou; um prazer enorme a arrebatou. Era como se ela flutuasse em oceano sem fim
de êxtase, físico e mental.
Lembranças vieram à tona, acompanhadas de imagens. Visões de lugares, pessoas e épocas
que ela nunca antes vira misturaram-se ao turbilhão. Vagamente a garota sentiu algo sendo
forçado contra sua boca, e o gosto remoto de sangue. Então as visões pararam e a imagem do
espaço, com incontáveis corpos celestes reluzindo pelo infinito se firmou. Uma voz ecoou, não
em seu ouvido, mas de dentro dela, como se viesse de seu subconsciente. A voz dele, o homem
misterioso que debruçara-se sobre ela. Quando foi que aquilo aconteceu? Estaria ainda
acontecendo?
O firmamento continuava ali, imóvel, mas ela o via, não diante de si, mas em algum
lugar, de alguma forma, ela sabia exatamente como ele era, ainda que sem enxergá-lo.
— Enfim você surgiu, minha criança. Regozije-se, pois se de um lado a vida lhe traçou
uma sorte cruel, do outro, cá estou eu para lhe dar o manto. Eu escolhi você para agraciar com a
eternidade. Você, diferente de todos os outros. Sei que a dúvida há de lhe corroer a alma, por isso
vou lhe explicar tudo, desde o começo. Você verá o que eu vi, e terá meu conhecimento como
seu guia, para que possa compreender as minúcias de todas as minhas experiências e minhas
motivações.
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As imagens começaram a mudar diante dos olhos de Caira. Era como assistir a vários
trechos de um filme, com diálogos distantes e situações recortadas, encaixando-se nos momentos
convenientes. A voz dele narrava tudo detalhadamente...

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Os Deuses Astronautas

Eu não nasci neste mundo. O mundo em que meu corpo se formou localiza-se na
constelação que vocês conhecem como Auriga. Sendo uma civilização inimaginavelmente mais
antiga do que a sua, nós observamos vocês desde o princípio da evolução do homo sapiens.
Recordo-me de muitas vezes ter assistido aos registros sobre os estudos e visitas dos nossos
exploradores a este mundo. Nada muito diferente do que muitos desses pretensos biólogos fazem
hoje com a vida selvagem, observando e filmando, sem interferir ou se deixar notar.
Foi só quando os vestígios mais sólidos de inteligência — relativa, diga-se de passagem
— começaram a se manifestar é que nossa influência se tornou maior. Digo influência, mas não
foi nada mais do que um pequeno empurrão. Mais uma vez aquela questão: observar sem
interferir no curso da natureza; sem se deixar notar. Somente dando uma pequena “força” quando
extremamente necessário. Umas dicas aqui, uma pequena intuição ali; um sussurro soprado pelo
vento no ouvido certo.
A raça humana foi evoluindo e as primeiras civilizações foram se formando. Mas isso
você já sabe, ou pelo menos deveria saber o básico. Não vou lhe dar aulas de história. Esse foi o
período em que o meu povo achou necessário atuar entre a espécie humana, em busca da
realização do progresso da espécie. A base da civilização vindoura e do apogeu da raça infante.
É aí que eu entro, junto daqueles outros infelizes que me acompanharam.
A ideia de enviar “peões” e indesejados para o campo não é um mérito humano. Ela
existe muito antes da vida na Terra, praticada provavelmente por toda e qualquer civilização já
existente. Os idealizadores da nobre causa permanecem em seus lares confortáveis, enquanto os
párias são enviados.
Assim foi conosco. Em nosso mundo, Abiton, nós éramos considerados criminosos. Com
faltas que aqui neste mundo seriam considerados, quiçá, virtudes, nós não nos encaixávamos
naquele que seria o elevado padrão de comportamento dos nossos irmãos. Nossas mentes
pecaminosas, repletas de pensamentos impuros e egoísticos; nosso apego às sensações materiais;
estavam causado perturbações na sociedade. Por isso, foi nos dada uma chance: viajar até o
planeta em desenvolvimento e auxiliar na caminhada evolutiva daquele povo. Em outras
palavras, nós fomos banidos, e só poderíamos retornar depois de auxiliar no desenvolvimento
daqueles semianimais.
Mas não era tão fácil assim. Nossos algozes esperavam que com a nossa “nobre” missão,
nós corrigíssemos nossos defeitos. Ajudar o outro através do auxílio ao próximo. Realizar as
duas tarefas era a condição real do retorno.
Durante o trajeto, nós elaboramos um plano para que os seres primitivos que teríamos de
educar nos prestassem o devido respeito. Desenvolvemos trajes que embora não destoassem
muito das vestes rústicas deles, demonstrassem superioridade. Também elaboramos capacetes
animalescos, cujo propósito era, de início, fazer com que nos habituássemos à atmosfera do
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planeta, e também impressionar os nativos, pois se deveríamos guiá-los, a autoridade, o respeito


e, claro, o temor, seriam necessários para o devido andamento das coisas; você já os viu nos
registros da história, as faces dos deuses egípcios. Sim, éramos nós.
Nossa forma física, embora não muito diferente da vossa, era maior e nossas feições eram
mais delicadas. Nosso povo achou melhor que nos parecêssemos com os humanos, por isso nossa
genética foi alterada por meios químicos, fazendo com que o físico adquirisse a forma dos
habitantes da Terra. Essa forma que possuo hoje, diante de ti.
E assim nós chegamos a este mundo. Vários grupos foram enviados para as mais remotas
regiões da Terra, vindo a se misturar com as diversas culturas nascentes.
O grupo do qual eu fazia parte aterrissou nas margens do rio Nilo. Nosso transporte era
longo, com um deck retangular eu seu centro. Propositalmente construída para se parecer com
um barco metálico dourado, ele se desintegrou sem deixar vestígios tão logo nós
desembarcamos. Não antes que vários dos locais testemunhassem nossa chegada e corressem até
o local do pouso.
Imagine só, um bando de aldeões, recém-saídos do estado selvagem, deparando-se com
vários seres de corpos esculturais, trajando vestes tecidas em metais preciosos, com cabeças de
animais, desembarcando de uma nau dourada que desceu dos céus. A eles não haviam quaisquer
dúvidas: eram os deuses que haviam descido à Terra.
Quarenta nós éramos. No decorrer dos anos, acabamos por adotar nomes que ficaram
marcados na história humana: as divindades egípcias. Alguns, porém, foram lançados ao
esquecimento, mas isso será abordado na hora devida.
Nosso primeiro ato foi confirmar o “status divino” que nos fora atribuído e passar a guiar
aquelas pessoas, que se organizavam de modo rústico, por meio de uma pobre liderança tribal.
Começamos a instruí-los a agir de forma mais efetiva em todos os aspectos de suas vidas.
Naquela época, cerca de cinco milênios antes de Cristo, o lugar era chamado de Kemet,
ou “a terra negra”, mas para sua melhor familiaridade me referirei a ele como Egito, embora o
nome original seja mais do meu gosto. Já as terras no delta ocidental do Nilo eram conhecidas
como Maadi, isto é, tecnicamente falando, conforme as classificações acadêmicas
contemporâneas. Uma dúzia de pequenos povoados prosperava ali, cada um com seu próprio
nome, governo e economia.
De início, escolhemos o povoado de Gebit para nos instalarmos. Sua única vantagem,
porém, era encontrar-se mais próximo do rio. Em todos os outros detalhes, era idêntico aos
demais, com suas casas ovais de peles, que mal afastavam o sol durante o dia e nada aqueciam
durante a noite.
Ah, o clima. Se conviver com os selvagens em condições degradantes não fosse castigo
suficiente, havia ainda o sol escaldante deste estranho sistema solar, muito diferente do clima
ameno do meu antigo lar.
O problema das acomodações exigia uma resolução urgente, mas para que esta pudesse
ser colocada efetivamente em prática precisávamos nomear um líder, centralizar o poder daquele
povo. Uma vez que a economia era fraca, os trabalhadores dos quais necessitaríamos teriam de
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ser escravizados e para isso deveria haver guerra e conquista sob um comando firme.
Em busca desse que seria o nosso representante, nós nos dividimos. Eu, sob o nome de
Remekhse, Yssarra, Athnai, Hapi e Deod permanecemos em Gebit. Anput, Anuket, Anubis, Ra e
Nut foram para o sul, enquanto Osiris, Set, Nephthys e muitos outros seguiram para o norte,
rumo às margens do mediterrâneo, nas terras que viriam a ser conhecidas como o Alto Egito.
Não tardou até que eu tivesse toda Gebit sob disciplina rigorosa. Enquanto Athnai e Deod
se ocupavam de introduzir uma educação básica ao povo, Hapi lhes transmitia conhecimentos
aprimorados sobre pesca e agricultura, mostrando-lhes novas formas de aproveitar a dádiva do
Nilo. Eu, por minha vez, cuidei de organizar as castas locais, atribuindo a cada cidadão um posto
de acordo com suas aptidões. Yssarra me auxiliava na tarefa. Ela era uma mulher firme, com
ideais e gostos muito parecidos com os meus. Suas feições no novo corpo não mudaram quase
nada; um rosto delicado e arredondado, levemente alongado, com uma boca pequena, porém
volumosa, e grandes e hipnóticos olhos. O tom de pele acobreado, adquirido para emular o dos
habitantes locais, lhe conferiu uma beleza exótica.
Por conta do meu ego e do meu orgulho, as questões que mais me agradavam eram a
organização militar e os dogmas religiosos. O primeiro porque, ora, simplesmente é divertido ver
os outros se matando, ainda mais quando o lado vitorioso foi comandado e instruído por você e a
conquista rendeu espólios - quem não sente um vestígio sequer de prazer nisso não é senão um
hipócrita; a segunda, obviamente, porque nós éramos os deuses, nós ditávamos os fundamentos
religiosos. Mas não seja ávida em me julgar, também introduzimos a eles muitas verdades e
conceitos que eles sequer imaginavam, sem os quais seu avanço levaria ainda gerações.
Introduzimos a eles maiores explicações sobre o conceito do Ka, Ba e do Akh; que no
momento, vou dizer de forma genérica e incompleta, tratar-se da alma, porém sob diversas
nuances e minúcias. Mas, como era de se esperar, as mentes ignorantes dos nossos tutelados não
tenham sido capazes de assimilar boa parte dos detalhes, criando as mais diversas interpretações
distorcidas.
Quando chegar a hora, transmitirei a ti, pequena, os profundos fundamentos de Ka, Ba,
Akh e outros.
Mas voltemos ao que realmente interessa: a escolha de um líder. Era um dia comum, em
que Yssarra e eu, após, supervisionarmos ritos funerários, nos isolamos dentro de uma das
construções - naquele ponto, após alguns meses, nós havíamos feito os locais construir um tempo
de pedra em nossa honra. Aquela era nossa morada, ainda modesta, porém mais reservada e
confortável do que as tendas.
— Ainda não me acostumei com esse nome, tampouco com este corpo, tão pequeno, tão
frágil e rústico — dizia-me Yssarra.
— Sei o que você quer dizer - respondi casualmente, admirando a forma que ela
desprezava — Mas já que estamos no lado desfavorável dos eventos, temos que agradecer ao
menos pelas vantagens que temos. Os nomes não vão mudar que somos. Os corpos podem
parecer rústicos — não o dela — mas apesar de nos assemelharmos a eles, somos mais fortes; a
doença não nos toca e o conhecimento nos pertence. Não somos o que éramos em nosso lar, mas
entre eles, somos deuses. A morte que os afeta não nos tocará.
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— Mas essas formas não vão durar para sempre — retrucou ela. — Ainda que não
duremos um sopro como eles, ainda que vejamos gerações deles surgirem e definharem, ainda
que contemplemos o início e o fim de linhagens, um dia nossos corpos também se desfarão.
Como será então se até lá não tivemos cumprido o dever? Qual dos nossos Kas manteremos? O
daqui? O de casa? Ou essa coisa híbrida que vestimos? Renasceremos entre eles, como eles, sem
nossas memórias, por tempo indefinido? Passaremos a fazer parte deste mundo definitivamente,
como réprobos, por não termos cumprido o objetivo a tempo, sem jamais podermos retornar à
Abiton?
Eu queria dizer palavras consoladoras, mas aquelas eram também as minhas dúvidas,
meus receios. E às vezes, lá no fundo, tornava-se um desejo proibido.
— Eu não vejo nada de errado com o seu corpo, Yssarra — em particular, removíamos as
máscaras de animais. Ali, sozinho com ela, eu via seus lábios acobreados se movendo a cada
palavra, o corpo bronzeado seminu sob trajes reveladores. Depois de tanto tempo naquela nova
“vida”, e preso a um corpo físico, eu era sujeito a todas as necessidades fisiológicas. Resistir ao
desejo era cada vez mais difícil, especialmente, quando ela possuía uma afinidade com meu
modo de ver as coisas, e seu corpo era o que havia de melhor em termos de opção, quero dizer,
em comparação aos humanos, simplórios e mal higienizados.
— Na verdade, Yssarra, seu corpo é perfeito, mesmo entre os nossos, e só seria melhor, à
altura do Ka que o ocupa, se fosse o seu original — naquele momento uma das minhas mãos
estava sobre a coxa dela, e outra tocando o rosto, e os lábios já haviam se encostado. As coisas
iam ficar boas, mesmo ali, sobre pedra e areia. Eu devia ter imaginado que estava tudo fácil
demais.
Ela se levantou abruptamente, interrompendo a retribuição do beijo e logo começou a se
explicar:
— Nós não podemos fazer isso Remekhse! Eu também desejo, saiba disso. Mas quais
seriam os resultados? Se por um descuido, por um acidente, nós acabássemos por gerar uma
prole, imagine o desequilíbrio que seria causado, mais um ser com nossos corpos superiores. Pior
ainda, que tipo de Ka ele seria? Seria um deles em um corpo superior, achando-se no direito de
subjugar seus, ou seria um dos nossos, condenado a este lugar infeliz? Pensa que já não pensei,
durante divagações solitárias, em espalhar a genética dos nossos corpos, me envolver com os
homens deste mundo, assumir esse sacrifício e povoar este local com uma raça mais avançada.
Mas concluí que seria errado, pois apenas geraria o caos. O poder em mãos ignorantes só causa...
— ela se calou, mas eu entendi o que ela queria dizer, por fim, colocou um ponto final no
assunto. — Além disso, se fizéssemos isso, os outros interfeririam. Eles viriam até aqui e dariam
um basta, não só na nossa empreitada, mas também na nossa chance e redenção.
— Agora que você tocou no assunto, — falei, me afastando dela. — acha possível que
alguns daqueles que já deixaram o corpo em Abiton possam ter sido enviados para cá nas suas
formas de Ka, e renascido com essas formas?
Os olhos de Yssarra se arregalaram, mas antes que ela pudesse formar as palavras, outra
presença ingressou em nosso templo. Era Ra, que havia retornado com um anúncio.
— Remekhse, Yssarra, nós encontramos o humano ideal para liderar.
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O Escorpião

Mais do que depressa nós colocamos nossas máscaras; a minha, com a face metálica de
um leão. A de Yssarra era moldada na forma dourada do seu próprio rosto feminino, as mesmas
belas feições, porém com um terceiro olho esculpido sobre a testa, o mesmo olho que Hórus
adotara como símbolo. Rá em momento algum removera a sua cabeça de falcão.
A multidão aglomerou-se para nos cortejar, e nós marchamos imponentes, rumo ao
povoado daquele que seria o nosso escolhido. Os humanos sabiam que, acima de tudo, as coisas
deveriam estar em ordem quando do nosso retorno. Não era necessário que nenhum de nós
permanecesse para se assegurar disso.
Por dias nós caminhamos sob o sol e a lua, queimando perante o astro rei, o qual Rá
admirava (razão pela qual proclamou-se o senhor do sol) e tremendo ao anoitecer, cujas sombras
sempre me seduziram. O Nilo fornecia um grande conforto, não apenas pela sua água ou com o
frescor que oferecia ao ambiente, mas também com os efeitos que exercia sobre a mente e o
espírito. Sempre que parávamos para repousar durante o trajeto, eu me encontrava fitando
aquelas águas, por vezes acompanhando seu movimento, ou mesmo me deleitando com o reflexo
do céu noturno, pensando em minha “casa”, e imaginando a infinidade de outros mundos. Qual
era o mais antigo? Qual deles fora o primeiro? — se é que houve um, pois há a teoria de que
princípios e fins são conceitos inexistentes, criados pelos seres imperfeitos. — Essas eram as
coisas que passavam pela minha cabeça.
Rá e Yssarra deviam vivenciar a mesma situação, pois mais de uma vez os peguei
vislumbrando os céus e a paisagem, calados, como se nada mais existisse além daquilo que
estavam pensando.
Era penoso ter de caminhar ou, na melhor da hipóteses, se locomover por meio das mais
básicas e rudimentares formas da mecânica. Ah, a falta que os transportes desenvolvidos
faziam...
De qualquer forma, alcançamos rapidamente o nosso objetivo, um vilarejo de nome
Tinis. Em muito pouco o local se diferenciava de Gebit, a não ser pelos templos que lá foram
erigidos. A Morada do Sol, de Rá, com a representação do astro incandescente feita em ouro
sobre uma construção quadrada de pedra, e o local de adoração à Serket, uma modesta escultura
de uma mulher com um escorpião rusticamente representado sobre sua cabeça.
Tão logo chegamos a plebe se juntou para nos receber, caindo de joelhos e tocando o
chão com suas frontes ao nosso mero vislumbre. Nossa companheira, Serket, com seus cabelos
negros e longos e sua destoante pele amarelada veio nos receber. Tão fascinada ela ficara com os
escorpiões, criaturas exclusivas deste mundo, que os adotou como símbolo. Pelo que eu conhecia
dela, creio que o que mais a cativou foi o fato de seres tão pequenos possuírem um veneno tão
letal.
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— Rá, Yssarra, Remekhse — ela nos saudou com pompa. — Venham, há um mortal que
necessita de vossa aprovação.
— E quem seria esse? — indaguei.

— Um súdito. O mais digno que encontrei. Ele nomeou-se como “O Escorpião”, em


minha homenagem.
— Serket, você e este mortal não estariam...? — A preocupação de Yssarra era a mesma
que a minha, e talvez fosse compartilhada também por Rá, mas se assim fosse, provavelmente
ele teria cortado o mal pela raiz.
— Não, claro que não — Serket respondeu em tom frio e direto. — O humano provou-se
digno através dos seus feitos, só assim ele ganhou a minha aprovação, e só assim eu me revelei a
ele. Mas com minha revelação, ele tornou-se meu adorador.
— O humano possui presença de espírito, mas sozinho, outros o derrubariam, outros, que
sob o grande escopo se provariam incapazes para nosso objetivo. Com a proteção de Serket, ele
encheu-se de gratidão, e também de orgulho, eu diria — esse foi o parecer de Rá.
E lá nós fomos conhecer o humano, que dentre os outros se sobressairia como um
instrumento do nosso nobre trabalho. Sim, foi ironia. Para nós, unir aqueles seres era como tentar
fazer um bando de animais selvagens conviverem pacificamente em um zoológico.
Hedruk-Hon era o nome que ele possuía antes de cair nas graças da deusa escorpião.
Depois de ser “eleito” ele mudou seu nome para “Escorpião”. Colocando os olhos sobre ele eu
não vi senão um homem franzino, com o nariz achatado e cabelos ralos, de baixa estatura; pálido
em relação aos demais. A saúde não devia estar lá essas coisas. Ele não parecia um líder, até
abrir a boca. O homem tinha segurança, ele era um líder nato, e possuía inteligência, uma visão
estratégica que se estendia além do momento. Isso, somado ao respeito que advinha da
aprovação divina, fazia dele o unificador perfeito.
— Sei o que pensa de mim, Remekhse — o desgraçado se dirigia a mim sem qualquer
temor. Havia respeito, aliás, cautela. Ele mantinha o tom no limite para evitar um insulto, mas só.
Enquanto falava, seus olhos procuravam por ela, sua musa, Serket, por aprovação, e ela anuía. -
Mas o escorpião também parece pequeno, fraco, facilmente destrutível por uma pedrada, ou uma
pisada, porém, uma única espetada do seu aguilhão traz a dolorosa morte. Sob a areia, ele
prepara sua emboscada. É com ele que eu me assemelho, e sob sua tutela, oh divino general, eu
carregarei vossos desígnios. — sob a máscara eu esbocei um sorriso, não pela determinação ou
pelo lisonjeio, mas pela clareza de que aquilo havia sido ensaiado por Serket.
— Eu lhe transmitirei meu conhecimento divino, Escorpião.

E assim foi. Por meses eu permaneci em Tinis na companhia do humano, enquanto


Yssarra viajava para Gebit ocasionalmente para organizar as coisas. Dia e noite eu o ensinava,
desde as artes do combate, o que para mim era fácil dada minha genética aperfeiçoada e meus
conhecimentos anatômicos, até o principal, cultura, liderança, psicologia humana e estratégia
militar. Concomitantemente, eu fazia questão de que os demais o vissem em minha companhia,
especialmente mercadores e viajantes que passavam pela cidade. Era a forma de a notícia se
espalhar. Assim, em menos de um ano, os rumores de que o Rei Escorpião carregava a vontade
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dos deuses se espalhou entre todas as cidades próximas.


Quando ele cavalgou com seu exército não houve um vilarejo sequer que não se
submeteu e o aceitou como seu governante.
Foram anos produtivos e eu me sentia triunfante. Parecia que eu estava progredindo na
missão, mas a verdade era que nada havia mudado em minha essência. Meus defeitos, minhas
perversões, meu hedonismo, violência e egoísmo continuavam lá, escancarados. O prazer que
tudo aquilo me dava era bom demais para cogitar abrir mão dele.
Dez anos já haviam ido desde nossa chegada. O Escorpião governava o Alto Egito e
punia os vizinhos que se recusassem a atender suas demandas, nosso trabalho diminuíra
consideravelmente, de modo que podíamos focar nas tarefas que considerávamos agradáveis . Eu
havia retornado a Gebit, que também encontrava-se sob a égide do Escorpião, e junto com
Yssarra administrava as leis da vida lá, da mesma forma que os demais “deuses” faziam nos
vilarejos vizinhos.
A bela Yssarra continuava a me negar, sempre com as mesmas desculpas, sempre tomada
pelas mesmas preocupações. O modo que eu encontrava para lidar com a frustração era
promover a guerra contra aqueles que não seguiam nosso representante mortal, além de exercer
pessoalmente a punição daqueles que não seguiam nossos editos. Não tardou até que eu
começasse a me envolver com as mulheres humanas. Nada que envolvesse sentimentos e, no
início, tampouco aparência. Não vou negar que com o tempo eu comecei a me afeiçoar mais e
mais com o corpo humano - no fim a única diferença era a nossa perfeição anatômica, que não
nos tornava sujeitos às pequenas falhas constantes nos corpos formados pela natureza.
Eu me inebriava nos sentidos físicos, desfrutando de todos os prazeres possíveis. A elas,
claro, tratava-se de uma honra sem igual. Minhas escolhas eram aquelas cujo tom de pele e cujas
formas lembravam-me as de Yssarra; sempre as mais belas. Elas acreditavam que estavam
recebendo as minhas bênçãos divinas, afastando-as das doenças, garantindo-lhes longevidade e
garantindo-as um julgamento favorável na pós-vida, por vezes até esperando a honra de carregar
uma prole divina, algo contra o qual eu sempre tomei as devidas providências.
Misturar nossa genética com a dos humanos parecia, por vezes, tentador, mas os temores
de Yssarra eram também os meus. Não sabíamos qual tipo de Ka habitaria aqueles corpos.
Talvez trouxéssemos mais dos nossos, aqueles que não mais possuíssem seus corpos na data de
nosso exílio; talvez entregássemos um poder proibido aos humanos.
Rá nos lembrava frequentemente de que aquele povo ainda não estava completamente
unido, o que significava que o nosso real trabalho sequer havia começado. Do norte, porém, as
notícias não eram agradáveis. Set e Osiris haviam se desentendido. A tirania e a inveja de Set
predominaram perante seu dever, levando-o a desejar subjugar os humanos. Ele emboscou
Osíris, decepando seu falo e mutilando-o quase até a morte. Sim, sim, foi esse o evento que deu
origem ao mito, e cá entre nós, eu não pude evitar as gargalhadas ao saber do destino de nosso
companheiro.
A segunda parte do mito de Osiris também se baseou em eventos verídicos, vindo a ser
enfeitada pela limitada ótica dos nossos “súditos”. Ísis e Néftis conseguiram impedir que seu
corpo morresse, mantendo-o estabilizado, enquanto o levavam a Gebit.
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Seth escapou para o deserto, não antes que muitos dos humanos que o auxiliaram em sua
traição sofressem a fúria de Ísis. Ela os matou com uma selvageria que poucos haviam visto.
Lá na nossa cidade, eu, Rá, Yssarra, Ísis e Néftis realizamos o que passou a ser conhecido
como a primeira mumificação - ao menos naquelas terras. Nós envolvemos o corpo de Osiris em
faixas de linho, banhado em uma mistura química contendo elementos de fora deste mundo, e o
colocamos dentro de um sarcófago. Era na verdade um aparelho, como os poucos que nós fomos
capazes de construir aqui, disfarçado de um objeto mundano, como aqueles que o povo estava
habituado.
O procedimento de cura do “sarcófago” era para nós algo simples; uma simplicidade que
a humanidade não conseguiu compreender até os dias de hoje. Mas para que você entenda seus
princípios, eu precisarei abordar os conceitos do Ka e do Ba: Ka é o espírito, isso mesmo, o
espírito é a fonte, a forma primária de existência. É o que todos somos, porém, é no corpo físico
que o espírito atua no mundo físico. Para que o Ka habite o corpo, porém, ele deve primeiro se
revestir de uma roupa intermediária.
É um exemplo grosseiro que eu vou lhe dar. Imagine que antes de vestir sua roupa, você
deve primeiro colocar a roupa de baixo. Enfim, é mais ou menos assim que funciona. O Ka,
espírito, não consegue se ligar ao corpo físico, e nele residir por si só. Ele precisa de um
elemento intermediário, o Ba, invisível aos olhos da carne assim como o Ka, porém feito de uma
matéria mais densa. Ele encaixa o Ka no corpo perfeitamente, situando-se entre os dois mundos,
e fazendo com que cada corpo possa ser habitado exclusivamente pelo Ka que lhe é designado.
Há outros elementos, mas alguns deles foram distorcidos ao longo dos milênios. Falar
deles agora também não influenciará em nada na explicação.
O sarcófago, nosso maquinário, funcionava de forma a reparar o Ba do corpo enfermo. É
aí que reside a diferença. Embora nossos corpos pudessem morrer, havia a necessidade de um
evento letal direto. Se algo não nos matasse de imediato, com absoluta certeza nossa tecnologia
poderia sanar os danos. Você já deve ter ouvido esses místicos na TV dizendo coisas sobre como
as doenças e efeitos negativos não se iniciam no corpo, mas sim no espírito - ou a mente - e dali
é que passam a refletir no corpo, não é mesmo? Não se tratava de bobagens dos programas da
madrugada. É assim que as coisas são. Os efeitos psíquicos, doenças, distúrbios mentais, se
originam no Ka, e concomitantemente no Ba, destruindo este juntamente com o corpo,
expulsando assim o Ka. Com o Ba e o corpo destruídos, o Ka é obrigado a partir. Embora daria
no mesmo se apenas o Ba o fosse, pois como eu disse, o Ba é que faz a ligação.
Tenho certeza que você já presenciou alguma situação em que o corpo da pessoa parece
intacto, e mesmo assim a morte ocorreu. Casos em que não se pode determinar a causa de uma
morte súbita. Pois bem, é porque o Ba se foi. O corpo pode estar inteiro, mas sem o Ba, o Ka não
consegue animá-lo.
Mas e em relação aos ferimentos que ocorrem diretamente sobre o corpo? É isso que
você se pergunta não é mesmo? Eles refletem no Ba. Porém, não com tanta rapidez. Se não
tratados rapidamente podem causar o mesmo dano no Ba. Por exemplo, alguém que tenha o
braço, não, não, o falo, como Osiris, hah, decepado, logo o mesmo acontecerá com aquela parte
de seu Ba - sim, o Ba possui a mesma forma do corpo, órgãos e tudo mais -, mas, se você iniciar

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o tratamento desses ferimentos não pelo ferimento do corpo, mas sim pelo Ba, não só evitará o
reflexo, como fará com que o corpo se recupere com velocidade sobre-humana.
Isso foi o que o sarcófago fez com Osíris. Levou alguns dias, claro, devido ao estado de
dano de seu corpo, mas quando ele se reergueu, estava intacto, salvo por uma aura sutil
envolvendo sua pele. Durante todo o procedimento, ele viajou em forma de Ka, chegando
inclusive a ser visto por alguns humanos com o dom da vidência. Esse tipo de situação reforçava
nosso status divino perante todos.
O povo, quando o viu se levantar do sarcófago, vivo novamente, interpretou aquilo como
o caminho para a vida eterna. Na verdade, nós havíamos introduzido a eles o conceito do Ka, e
abrimos seus olhos para a pós vida, a vida do Ka após a morte do corpo. Explicamos a eles o
conceito do julgamento do Ka pelos atos praticados durante a vida. A mistura de tudo isso
resultou nas crenças deles sobre vida, morte e pós-vida, e principalmente, os tornou adeptos da
mumificação, acreditando esta a estrada segura para o além.
De volta os assuntos mortais, algumas décadas haviam se passado. Escorpião havia
morrido. Durante uma batalha insignificante ele foi atingido por uma flecha. Embora a frustração
de Serket fora satisfatória, pois por tê-lo como seu escolhido, ela era a principal voz por trás de
seus comandos, todos nós perdemos. A unificação por meio de um representante humano havia
escapado por entre nossos dedos.
Enquanto isso, Set fugira para o deserto com seus seguidores, mas a justiça estava prestes
a encontrá-lo.

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A Carne dos Renegados

Serket adiantou-se e escolheu de pronto um sucessor. Aquele que foi nomeado como
Escorpião Segundo.
A fim de garantir a lealdade da linhagem de governantes que ela pretendia manter a seu
serviço, a “deusa escorpião” conduziu os ritos fúnebres do primeiro rei de seu nome em Abidos,
sítio funerário que batizamos em honra ao nosso mundo. A situação envolvendo Serket nos
desagradava cada vez mais, posto que ela claramente manipulava a linhagem de governantes
humanos a fim de obter influência exclusiva sobre todo o alto Egito, mas aquilo era tudo o que
nós tínhamos, e abdicar daquela conquista significava ter de recomeçar do zero todo o nosso
trabalho.
A situação no norte continuava igual. Nenhum governante fora encontrado, excetuando-
se os pequenos líderes tribais, que em nada contribuíam para trazer a união. Por vezes Yssarra
chegou a viajar até lá, em busca de algum humano digno. Entretanto, ao retornar de sua última
jornada, o que ela trouxe foram suspeitas perturbadoras.
Ao longo dos nossos anos nesse purgatório, sempre cogitamos a possibilidade de outros
como nós estarem vivendo entre os mortais, o que até aquele momento não passava de uma
suspeita; um temor, melhor colocando.
— Osíris estava estranho, distante — começou ela. — Por diversas ocasiões ele se afastou
de nossa presença, indo vagar nas profundezas do deserto. Tive a impressão de que ele se
comunicava com alguém, Remekhse.
— E não é só isso, meu querido companheiro. Ele perambula frequentemente na
companhia de dois humanos, um homem e uma mulher. Com não mais do que duas décadas de
vida, e peles muito escuras, os dois conversam com ele de igual para igual — Yssarra me
confidenciou. — Eles me fitavam, como se me conhecessem, como se soubessem nossos
segredos e quisessem deixar isso evidente. Mas o pior é o fato de Osiris se recusar a perseguir
Set. Ele diz que tudo seguirá seu curso, e que a justiça já está a caminho. Suspeito que ele saiba
de algo Remekhse.
— Ele sabe. Com certeza ele sabe. Não sei o quanto ele pode ter mudado enquanto esteve
aqui conosco, mas eu duvido que Osiris abriria mão da vingança tão facilmente. Algo está
acontecendo no norte — a mim aquilo estava mais do que óbvio. — Leve-me até lá Yssarra.
— Mas e quanto a Serket?

— O que está feito já se foi. Ela tem as terras do sul sob sua influência e isso não vai
mudar com a nossa ausência. Pelo menos esse tempo será curo demais para que ela amplie sua
vantagem. Lidaremos com ela quando do nosso retorno.
Ainda mais penosa foi a nossa viajem ao Baixo Egito. Não me agradava fazer uso dos
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animais como meios de transporte. Se em relação aos seres humanos eu não possuía qualquer
pudor, meu respeito e comiseração falavam alto pelos seres não inteligentes. Tragicômico não?
Irônico, de fato. Mas eu disse que perto das falhas humanas, as nossas faltas eram
insignificantes, a não ser pelos padrões de nosso mundo.
Caminhando pelas areias ardentes nós seguimos até os vilarejos que repousavam nas
margens do mediterrâneo. Por onde passávamos éramos seguidos pelas multidões. O que
começou com um punhado de adoradores nos mimando com oferndas tornou-se uma verdadeira
procissão. De dia eles nos acompanhavam e durante a noite acampavam o mais perto que lhes
era permitido. Desnecessário mencionar que as mulheres mais “jeitosas” que compunham a
caravana de adoradores acabaram tendo a honra de partilhar prazeres com o deus Remekhse. Não
se via sinal de Yssarra durante minhas “festividades”.
E essa era só uma das vantagens dos súditos. Vários deles improvisavam tendas e
forneciam alimentos. Imagina-se que deveria ser o oposto; eles deveriam esperar que nós os
provêssemos com tudo, mas bastavam algumas palavras, explicando que tudo era uma provação,
e que a lealdade deles aos deuses estava sendo testada, e tudo se resolvia. Eles ficavam mais do
que felizes em servir e agradar.
Enfim havíamos chegado à cidade governada por Osiris, que naquela época fora batizada
de Lehtor. Era uma das primeiras, não, a primeira propriamente dita, das cidades dali que fora
cercada por um muro. Canais de irrigação foram abertos entre as plantações, levando a água do
Nilo, e rústicas embarcações navegavam no Mediterrâneo, seus ocupantes prosperando da pesca
e indo e vindo pelos modestos portos. Todo o meu desgosto subitamente desapareceu com aquela
visão. Prazer tocou minha alma, e inveja, ah sim, com certeza inveja. Eu queria viver ali. Não, eu
queria que a minha cidade prosperasse daquela forma, mas exclusivamente pelos meus feitos.
—Precisamos unificar estas terras — falei comigo mesmo. — Só assim poderemos
alcançar algo ainda melhor do que isso — ao longe, o sol afundava no horizonte, um sinal que se
repetia sempre que eu chegava a algum lugar de importância.
Uma vez dentro da cidade, fomos nos encontrar direto com Ísis, que já nos esperava com
suas seguidoras. Era uma mulher bela também, sob uma observação fria, até mais do que
Yssarra, mas a paixão é algo doentio, e nos faz enxergar a beleza independentemente dos fatos e
da lógica. Ah, e suas servas, a nata da beleza mortal. Ainda enxergo perfeitamente a expressão e
o tom de voz de Ísis determinando que eu não ousasse corromper suas seguidoras. Peço
desculpas pelas risadas, ainda que mentalmente. Não posso evitar a hilaridade da situação; sob
certo aspecto Ísis era extremamente cruel com seu amado Osíris. O homem sem o falo — sem o
falo, por tudo que é mais sagrado, onde Set estava com a cabeça? Se fosse eu a vítima, preferiria
a morte — e sua esposa, como se não bastasse a própria beleza, ainda desfilava diante dele
acompanhada daquelas seletas iguarias. Ah, que mulher maldita era Ìsis.
Algumas coisas nem mesmo a erosão dos milênios é capaz de arrastar, desculpe-me pela
intrusão do meu humor sombrio à narrativa.
Tornou-se evidente durante nossa breve caminhada por Lehtor a razão de Osíris não ter
encontrado um representante humano para governar o Baixo Egito: ele estava ocupado instruindo
aquele povo. O avanço deles culturalmente estava um passo — talvez mais de um — à frente do

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que eu e os demais que haviam permanecido ao sul havíamos alcançado.


Feito de pedra, em um formato retangular com o teto se estreitando em ângulos menores
— já uma busca pelo formato piramidal — o templo de Osíris era superior a tudo o que nós
havíamos obtido em aspectos arquitetônicos mediante aquele povo.
Quando de seu tratamento, eu não tive a oportunidade de conduzir qualquer conversa
profunda com Osíris, mas ali, diante dele naquela câmara iluminada pelos raios solares que
atravessavam frestas e refletiam nas piscinas que a ladeavam, o que eu vi foi uma pessoa
completamente diferente, e digo não apenas no aspecto físico. Com a cabeça raspada, a pele
esverdeada e o corpo frágil - certo, não vou escarnecer o falo faltante - ele passava um aspecto
resignado, a expressão denotava pureza e algo mais, algo que nos dias de hoje seria classificado
como “iluminação”, seu cavanhaque crescera e fora cuidadosamente esculpido. Toda a impressão
que ele causava era confirmada pela sua atitude.
— Saudações meu irmão Remekhse, saudações minha irmã Yssarra. Minha amada Ísis —
era uma serenidade que ele ainda não possuía quando nos deixara, curado.
— Osíris, senhor do além — minhas palavras eram as mais irônicas possíveis ao adicionar
aquele título.
— Nosso irmão — Yssarra limitou-se a dizer, curvando a cabeça, em sincero respeito e
me dirigindo um olhar reprovador entre as cortesias.
Ali, no fundo da sala, outras presenças se faziam notar claramente. Suas vestes eram
semelhantes à da divindade que ocupava o trono, mas estava claro pela postura e desenvoltura
deles na situação que não eram servos. Isso também se notava pela forma com que eles nos
fitavam, sem qualquer admiração, como se sentissem pena ou como se nos conhecessem
intimamente. Ainda, suas estaturas eram menores, obviamente, posto que eram humanos.
— Sei o motivo de vossa visita, mas aqui não é o melhor lugar. Venham meus irmãos,
caminhem conosco — Conosco? Seria fácil imaginar que ele se referia a si próprio e à sua
esposa, mas eu sabia que não era o caso, não, ele se referia àqueles humanos cuja presença
exalava insolência. Restava claro que era deles que ouvimos falar, aqueles mortais que por algum
motivo misterioso estavam sempre na companhia de Osíris.
Fomos então agraciados com um banquete, durante o qual apenas palavras corteses e
frívolas foram trocadas. Tão logo o sol se pôs, entretanto, Osíris se levantou e nos convidou ao
diálogo durante o que ele se referiu como uma caminhada.
Ísis não nos acompanhou, mas a hoste mortal, ah, essa não desgrudou do senhor do pós-
vida. Sozinhos, em teoria, nosso restrito grupo caminhou pelas areias, longe da civilização. O
céu noturno era de uma beleza marcante, da qual raramente se consegue contemplar hoje, tantos
milênios de ação humana depois. Uma lua cheia se destacava entre a infinidade de estrelas e o
vento frio soprava levemente sobre nós.
Ninguém dizia uma palavra. Repentinamente Osíris parou, mas permaneceu em silêncio.
Quando me dei conta, cada um de nós estava a contemplar o cosmos, certamente com Abiton em
mente.

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— Sei por que estão aqui, meus irmãos — finalmente ele quebrou o silêncio. — Não se
exasperem com esses nossos irmãos — ele gesticulou para os humanos —, eles também são
proscritos de Abiton, porém, ao contrário de nós, vieram apenas nas formas de seu Ka, tendo que
renascer neste mundo em um corpo humano.
Nós é que ficamos sem palavras então, diante da revelação que confirmava os nossos
temores.
— Eles também são como nós? — Yssarra deixava claro seu horror, e falava como se os
humanos, ou melhor, nossos conterrâneos em corpos humanos, nem mesmo estivessem ouvindo.
— Como ficam as memórias deles então? E, eles tiveram de nascer, crescer, reaprender tudo?
Não consigo conceber...
— A princípio nós não tínhamos memórias — disse um deles, cujo nome, descobri depois,
era Ephsek.
— Somente vagas intuições de que já havíamos vivido em outros lugares, ou então
conhecimentos repentinos sobre coisas que não deveríamos compreender. Já na puberdade
vieram sonhos sobre lugares nunca antes vistos, coisas que não existiam, e um senso de
familiaridade. Ao acordarmos, por vezes recordando poucos detalhes, a sensação desaparecia —
revelou outro, de nome Tserai.
— Alguns deles deixavam o corpo na forma de seus Ka durante o sono e vagavam em
busca de nós, embora poucos reconhecessem o chamado. Foi assim que eu os encontrei, viajando
na forma de meu Ka, tendo com eles no mundo imaterial e seguindo-os até seus corpos —
explicou Osíris.
— Então se nossos corpos aqui se forem e nossa missão não estiver cumprida,
renasceremos em formas humanas, em uma condição ainda mais difícil, pois teríamos de
concluir a tarefa sem as nossas memórias ou nosso conhecimento? — ela havia se sentado sobre a
areia e, desolada, levara as mãos à cabeça.
— Temo que sim, irmã Yssarra. Por isso passei também a me dedicar ao caminho da
redenção e do aperfeiçoamento. Sugiro que façam o mesmo, se quiserem evitar maiores
dificuldades futuras. Especialmente tu, irmão Remekhse.
Claro, eu. O deus sem falo falava como se eu fosse a escória da existência, enquanto Set
e outros piores dentre os nossos mergulhavam as margens do Nilo em caos e sangue, e enquanto
muitos humanos faziam coisas indescritivelmente piores.
Passado o choque, havia outro assunto que devia ser debatido.
— Set. Vocês desejam saber se eu vou tomar providências, certo meus irmãos? Falo de
meu coração, de minha essência, que eu o perdoei. O que foi feito ficou no passado, e hoje vejo
como um instrumento para a minha redenção. Mas os atos do nosso companheiro não afetaram
somente a mim. Em verdade, suas ações afetaram mais a ele próprio do que a qualquer outro, e
por isso nossos conterrâneos em Abiton concluíram que ele falhou em sua tarefa.
Pronto, não bastasse uma notícia avassaladora atormentando a nossa estadia neste mundo,
ele jogou outra contra a nossa cara poucos minutos depois.

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— Acho que isso já havia ficado claro... — expus em tom jocoso. Yssarra gesticulou para
que eu me calasse, visivelmente preocupada.
— E quais seriam os efeitos práticos disso, nobre Osiris? — ela tremia e tenho certeza que
não era pelo frio do deserto.
— Peço, por favor, que sentem-se meus companheiros. Testemunharemos algo esta noite,
sob a lua e o firmamento. Viajaremos na forma de nossos Ka.
Ali mesmo sobre a areia, cobertos por nada mais do que o céu, nós nos concentramos e
deixamos nossos corpos. Como nosso Ka ligava-se ao nosso Ba, essas viagens nos limitavam ao
globo terrestre - havíamos descoberto isso da pior forma possível, em uma vã tentativa de rever
nosso lar. Entretanto, não precisamos nos deslocar para muito longe. Sobre um conjunto de
dunas no meio daquela imensidão fria e arenosa nós paramos.
Trajando um manto escuro e carcomido, cercado por um grupo de humanos, estava ele,
Set. Mesmo com o semblante envelhecido e castigado pelo clima impiedoso, ele ainda ostentava
o olhar orgulhoso, embora seu corpo curvado não correspondesse a grandeza que ele tentava
transmitir. Aqueles mortais, certamente seus adoradores, fariam tudo o que ele mandasse, e
dariam a vida por ele; ao menos era o que ele pensava.
Nossa observação do pária não durou muito tempo. De súbito formas luminosas se
materializaram ao nosso redor. Mesmo fora do meu corpo eu tremia, ou sentia como se o
estivesse, tamanho o abalo. Uma noite cheia de surpresa foi aquela...
Yssarra, chorava, mesmo na forma de seu Ka, e Osiris e os mortais que o
acompanhavam, os quais fora do corpo assumiram as aparências que possuíam em Abiton,
prostraram-se de joelhos.
Duas suspeitas perturbadoras, confirmadas de uma só vez. Uma era a que muitos dos
nossos haviam renascido neste mundo em corpos humanos; a outra era que nossos superiores de
Abiton, estavam nos monitorando. E naquele momento, ali estavam eles, diante de nós.
A eles nomes não mais importavam, por isso não vou perder tempo falando de quem
eram. Na forma pura de seus Ka, eles eram feixes de luz e suas vozes ecoavam em nós.
— Pouco vocês fizeram, mas vemos que alguns de vós estão se dedicando à própria
redenção — eles haviam se dirigido a nós por nossos nomes verdadeiros, não por aqueles que
usávamos aqui — Vocês foram privilegiados, pois ao tempo de vosso banimento, ainda
habitavam corpos físicos, recebendo assim a dádiva de adentrar este orbe sob formas
privilegiadas. Eutrif — o nome de Set em Abiton — não aproveitou a dádiva que recebeu. É com
pesar que concluímos que sua tarefa falhou.
Foi quando as vozes deles silenciaram que percebemos que Set e seus asseclas também
estavam em silêncio. Na verdade, o senhor da escuridão, como ele ficara conhecido, estava só,
olhando diretamente para nós. Mas não era eu, Yssarra ou Osíris a razão do pavor em seus olhos
arregalados. Mesmo em seu corpo visito ele enxergava os enviados de Abiton.
Então as vozes deles voltaram a ecoar entre nós, e um clarão tomou os céus, como se o
sol tivesse abruptamente se levantado no meio da noite.

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— Eutrif, tuas escolhas nos entristecem. Na jornada eterna da vida todos os eventos são
reflexos dos atos de cada indivíduo. Seus atos o trouxeram aqui como um ser a se redimir, e
novamente teus atos o expurgam daqui. Tu negaste tua própria oportunidade.
— Não! Eu sou um deus entre os débeis! Eu sou um gênio entre as bestas! Como esperam
que eu me curve lado a lado com essas crianças e as guie? Elas devem me servir, pela minha
autoridade e pelo meu avanço! Jamais! Ouçam-me, jamais, eu me sujeitarei a ter meu Ka
vestindo uma forma limitada, lado a lado com esses vermes!
— Várias escolhas erradas já fizestes, e o que virá não é senão a colheita daquilo que
semeastes em ti mesmo. Sua negação e seu orgulho serão o abismo que te engolirá até que
resolva abraçar a humildade.
O que aconteceu ali diante de nós eu não compreendo até hoje. Em meio àquela
luminosidade Set urrou. Não sei se de dor, frustração, ou ambos. E em breves segundos, sua
forma física se desfez completamente. De imediato seu Ka surgiu, porém, seu Ba também se
fora. Ele não tinha escolha, o único modo de voltar a se manifestar no mundo físico seria
renascendo em um corpo humano, como aqueles dois que nos acompanhavam. Mas isso ele não
aceitaria, e assim, o ser incorpóreo desapareceu na noite aos gritos.
Depois daquele evento, não mais tornamos a ver os observadores de Abiton, mas antes de
partir, eles nos deixaram o aviso, para que aproveitássemos a dádiva que recebemos, a qual Set
havia desperdiçado, pois mesmo naquelas formas superiores, o tempo para cumprirmos nossa
tarefa era limitado, e uma vez que ele se esgotasse, nosso Ka ou retornaria gloriosamente ao lar,
ou aqui permaneceria, preso às frágeis e breves formas humanas, até que o dever fosse
terminado.

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O Primeiro Faraó e a Primeira Escuridão

Os planos de Serket eventualmente acabaram frustrados com a morte do Escorpião


Segundo. Ela não foi capaz de encontrar outro representante que pudesse fazer sua vontade.
Somado a isso, com o passar dos anos, nós, em esforços conjuntos com Osiris conseguimos
encontrar o indivíduo perfeito: Narmer. Apesar de ter nascido milênios depois da nossa chegada
— pois é, os poucos anos que se passaram desde que estávamos lá, foram milênios. É, nossos
corpos superiores tinham um prazo limitado, mas esse prazo englobava uma vastidão de gerações
humanas — Narmer era humano somente em corpo. Ele também era um dos nossos compatriotas
renascido em forma humana. A diferença era que ele já havia renascido, reencarnado, em forma
humana diversas vezes, o suficiente para que alcançasse a dignidade que o nobre Osiris esperava
de um representante.
Não que o homem fosse o exemplo de pureza, mas ele possuía tato diplomático, e carisma.
Os séculos entre os humanos os tornaram cada vez mais dependentes do nosso conhecimento, do
nosso julgamento. Isso tornou as coisas muito mais fáceis quando nós - pelo menos a maioria de
nós - declaramos Narmer como nosso escolhido, um representante dos deuses na Terra. Fizemos
mais, anunciamo-lo com um vindo diretamente de nós, um herdeiro dos deuses encarnado em
forma de homem - o que não era tão longe da verdade.
Narmer foi assim o primeiro faraó. Com suas habilidades e nosso apoio, ele unificou o Alto
e o Baixo Egito em uma só terra, sob seu governo, o Egito deu o primeiro passo para se tornar o
berço das lendas da humanidade.
Aquilo feito, Osiris alcançou seu objetivo, o primeiro de nós a triunfar na tarefa. Claro,
não foi da noite para o dia. Durante todos os milênios até a ascensão de Narmer, ele se dedicada
noite e dia ao auto aperfeiçoamento. Iluminado, nosso conterrâneo deixou o corpo físico. Nunca
mais o vi, mas ouvi dizer que ao invés de retornar de uma vez à Abiton, ele ainda vagou por um
bom tempo por este mundo, na forma de seu Ka, a fim de auxiliar os necessitados. Bem, uma
coisa é certa, eu não recebi nenhuma ajuda dele. Na verdade, muitos reveses caíram sobre minha
pessoa nesse período, conforme você verá minha criança.
Milênios, você pode imaginar? Parece inconcebível para a mente humana, suportar,
acompanhar tantos anos, tantos eventos. Mas nossos corpos foram desenvolvidos para isso e, ao
contrário dos mortais, nós conseguíamos guardar cada lembrança. E eu me lembrava muito bem
do desejo por Yssarra, e também de todas as suas esquivas.
Havia se tornado uma obsessão. Tanto em comum nós tínhamos; isso somado à sua
beleza e à sua personalidade únicas. Eu tinha que possuí-la. Eu tinha que tê-la ao meu lado, não
como uma mera companheira de exílio. O pretexto perfeito era que nós poderíamos ajudar outros
Ka de Abiton a renascer na Terra, em corpos melhores, frutos do nosso amor - ou ao menos do
puro prazer sexual.
Mas mesmo assim ela se recusava. Suas desculpas não faziam mais sentido, por isso eu
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me recusava a aceitá-las. Yssarra tinha de ser minha, e isso não me saia da cabeça, me corroía a
alma. Durante suas esquivas ela tentava me fazer trabalhar em prol dos humanos, lembrava-me
constantemente do nosso papel, de como eu, Remekhse, o deus da guerra, deveria guiar os
egípcios para a conquista, para a gloriosa expansão, a fim de que a cultura superior que nós ali
havíamos semeado pudesse se espalhar entre todas as regiões ainda primitivas.
Mas eu não me importava. Eu queria que meus irmãos perfeitos se danassem. Por que
eles não me deixavam em paz? Eu não queria crescer, não queria me aperfeiçoar moralmente.
Desejava apenas aproveitar o prazer ao lado de minha amada. Por que maldição haveria eu, um
ser individual seguir as expectativas deles, o caminho deles? Ah, hoje eu enxergo o quanto eu me
parecia com esses adolescentes idiotas de hoje, apaixonado por uma forma e por uma mente tão
tola quanto a minha, sem me dar conta que ela jamais fora como eu a vislumbrava, e que um dia
mudaria ainda mais.
Imerso naquele desejo eu havia ficado cego para todas as outras coisas, e foi aí que um
dos golpes mais dolorosos me foi desferido.
O ano, conforme a contagem atual, era 2488 Antes de Cristo. No décimo quinto dia do
décimo mês, eu aproveitava uma noite quente, na câmara que eu ocupava na pirâmide, sim, as
pirâmides já haviam sido construídas. Embora as de Gizé hoje figurem dentre as mais
conhecidas, havia incontáveis outras das quais a sociedade atual jamais encontrou vestígios
Muitas dessas nós ocupávamos. Sua arquitetura não fora desenvolvida em vão, nós instruímos os
humanos a erguê-las através do trabalho dos escravos somado à nossa tecnologia - física e
mental -,o formato piramidal da construção nos permitia canalizar as energias magnéticas do
planeta, somadas ao nosso Ka, para contatar Abiton em busca de orientação. Para os humanos
elas não passavam de tumbas, mas para nós eram um santuário e um local de comunhão com
nosso lar distante.
Havia os templos em nossa homenagem, é verdade, mas lá não conseguíamos ficar longe
das súplicas humanas, sempre desejando soluções milagrosas para seus problemas estúpidos.
Não, o mistério e o isolamento eram ferramentas úteis para reforçar a impressão do nosso status
divino.
Enfim, não sei se era o calor, ou os pensamentos que eu conduzia, mas de súbito, uma
empolgação tomou conta de mim. Intuindo que talvez naquela noite eu pudesse ter alguma sorte
com Yssarra, ou se não, poderia desforrar com algumas humanas, resolvi procurá-la.
A pirâmide de Mnetaraba era uma construção mediana. Erigida em pedras perfeitamente
polidas, era uma visão bela sob a luz da lua. “A chama pálida da noite” era como os viajantes a
chamavam, devido ao brilho que refletia dos corpos celestes. Em uma de suas mais altas
câmaras, uma pequena abertura na parede permitia a entrada da luz, e servia também como ponto
de observação. Yssarra estaria ali, fitando o firmamento, eu tinha certeza.
Apesar do seu tamanho colossal, o interior da pirâmide era completamente escuro,
composto por estreitos e baixos túneis que subiam e desciam, conduzindo às diversas câmaras
que um dia pertenceriam aos cadáveres do faraó e de seus servos. Aos meus olhos a falta de luz
não era tão impeditiva quanto era aos humanos, mesmo assim era difícil enxergar os detalhes.
Por um caminho elevado eu segui. As paredes de pedra fria ao meu redor exalavam um
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cheiro caraterístico misturado ao dos pigmentos utilizados na pintura dos hieróglifos que
descreviam partes da breve vida daqueles que ali repousariam. Não obstante o completo silêncio,
eu era guiado pela certeza de que na câmara ao topo Yssarra encontrava-se à minha espera. Ao
mesmo tempo, uma estranha sensação pairava. Um sexto sentido me alertava de que algo funesto
estava por vir; mas eu era Remekhse, um “deus” entre os homens. E eu não havia sido tão débil
como Set a fim de chamar atenções indesejadas para os meus deslizes, então, como de costume,
ignorei qualquer coisa que fosse contra os meus desejos primitivos.
Ah, sabe como são as memórias. Conforme o tempo passa, um ano, uma década, quase
tudo desaparece, mas os momentos marcantes ficam lá, estampados, como se tivessem ababado
de ocorrer. Por vezes nos lembramos deles de um jeito ainda melhor do que realmente foram.
Aquele foi um desses casos.
Lá estava ela, parada diante da abertura na parede, contemplando a lua. Eu também parei,
mas para contemplar a ela. Seu corpo totalmente visível sob uma túnica transparente. Nunca ela
se mostrara de tal forma diante dos meus olhos. Não eram as vestes que ela costumava utilizar,
mesmo nos seus momentos particulares. Parecia-me que a sorte finalmente me sorria.
Aproximei-me por trás dela, lutando para conseguir agir de forma sutil.
— Meu querido Remekhse — ela se virou de repente e caminhou até mim. Abraçou-me,
não com força, mas de modo a fazer com que eu sentisse cada curva de seu corpo, ao passo em
que suas mãos deslizavam por mim enquanto ela sussurrava em meu ouvido. — Não há nada que
o decorrer dos milênios não vença — pela minha insistência, eu havia vencido — Não há nada
que não seja erodido depois de tanto tempo, ao menos nada que não seja perfeito e bom.
Ela havia realmente dito aquelas palavras. Eu havia triunfado, finalmente, meu maior
desejo se tornara possível. Quando me preparei para beijá-la, porém, percebi que lágrimas
banhavam seu rosto. O abraço de Yssarra me imobilizou.
Foi então que, de súbito, senti uma dor aguda nas costas, um calafrio tomou meu corpo.
Ao jogar o pescoço para trás, quase urrando, percebi que quatro homens estavam conosco no
aposento. Quatro humanos. Os outros três, além do que me acertou, também empunhavam
adagas.
Um turbilhão de pensamentos passava pela minha cabeça, o primeiro era alertar Yssarra,
ou então protegê-la para que ela pudesse escapar, mas a resposta óbvia veio logo em seguida: ela
estava por trás daquilo. Ainda me agarrando com firmeza a maldita esperava que aqueles vermes
desferissem mais golpes; que acabassem com a minha vida física. Mas eu era Remekhse, o deus
da guerra, e o título não veio por mero capricho.
Antes que as demais adagas viessem, eu girei meu corpo, arrastando a vadia traidora
comigo, ao menos um deles a arranhou antes de ter tempo de parar o ataque. Pega de surpresa a
força dela fraquejou, foi quando me desvencilhei. Para alguém com um corpo superior como o
meu — ainda inferior ao que viria a ser, mas de qualquer forma, bem mais resistente do que o dos
humanos —, matar aqueles vermes com suas próprias armas, ou esmagar lhes o pescoço com as
minhas mãos não foi difícil.
Tamanha foi a minha fúria com os mortais, que acabei não prestando atenção na causa de

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tudo aquilo. E quando acreditava em meu triunfo, foi que veio o outro golpe, das mãos da própria
Yssarra. Com a costela atravessada por uma lâmina, eu tombei, sem jamais deixar de encará-la.
— Isso é culpa sua Remekhse! Culpa sua! Acha que eu queria recorrer a isso? Caminhar
na borda do abismo, quase me atirar nele?! — ela gritava e chorava, enquanto mirava sua adaga
em meu pescoço.
— Eu quero me redimir! Eu quero ascender! Assim como Osiris! Me aperfeiçoar! Mas
você, se maldito! Você me tenta, a cada dia, por milênios! Graças a você eu oscilo entre o desejo
de corrigir os meus erros, de ser bem sucedida na provação, e a ideia de largar tudo e me entregar
a uma existência de prazeres! Você é o maior empecilho para meu triunfo! E já ficou claro que
você jamais deixará de sê-lo enquanto estiver aqui nesta forma! Por isso o único jeito é fazer com
que seu Ka renasça em uma forma frágil e sem memórias! Só assim eu estrei livre da tentação,
para seguir meu caminho rumo à iluminação. Eu sinto muito, meu desejado...
A maldita ia me matar. Ela ia mesmo. Mas como eu disse o título não era meu por acaso.
Por um segundo ela pareceu ter hesitado, mas então me encarou com um olhar resoluto. A adaga
desceu, mas minha mão interrompeu a descida da lâmina, não sem o preço da dor e do sangue.
Desprender a arma exigiria tempo e força, os quais Yssarra não teve. Soquei-a na garganta e na
face. O sangue jorrava-lhe do nariz conforme a vadia arfava por ar.
Das câmaras inferiores pude ouvir ouros assassinos humanos chegando. Fugir como um
covarde... não, como um animal ferido, vítima de uma cruel traição. Aproveitando o escasso
tempo conquistado, me atirei pela abertura na parede da pirâmide. Foi uma queda cruel e
dolorosa, que quase me custou a vida, como se os ferimentos que me sangravam o corpo já não
estivessem perto de fazê-lo.
Lá de baixo eu pude ver de relance Yssarra, provavelmente com uma expressão que
mesclava dor, ódio e frustração. Mas não me demorei, pois os malditos vermes traidores ainda
poderiam me alcançar. Demoraria, mas na condição em que meu corpo se encontrava, fosse
dentro de vários minutos ou mesmo horas, eles acabariam por cobrir a distância entre nós.
Sem pensar para onde — a traição de Yssarra ainda me deixava atordoado — eu caminhei
pelas areias. A dor se misturava ao frio cortante do deserto. Meu corpo se movia, mas por dentro
eu era pouco mais do que um ser sem vida.
Destituído de qualquer noção de tempo, esperança ou objetivo eu tombei. Foi então (ou
teria sido muitas horas depois?) que uma mão me ergueu.
Uma mão que eu jamais esperava, aliás, uma que eu nem mesmo me lembrava que
existia. Ali estava ela diante da minha visão embaçada, os dedos enrugados e calejados,
parcialmente envoltos em faixar carcomidas. E quando a segurei, imaginando que um golpe fatal
fosse descer sobre mim, mas ao invés disso, fui erguido. A face que me sorria era levemente
enrugada, maltratada pelo clima maldito daquela terra, com um sorriso que oscilava entre o
prazer e o deboche. Sob um capuz de linho, eu pude ver uma cabeleira rala e negra.
Maugab. Ele era um dos nossos, um daqueles que se enveredara pelas ideias de Set, e
seguira seu próprio caminho perverso.
— Remekhse, Remekhse. Eu sempre soube que você era mais meu irmão do que aquele
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bando. Heh, e por falar em toda a caminhada pelo aperfeiçoamento, em todos os seus ideais de
alta moral, veja só se não foram eles que tentaram fazer com você o que esses pequenos
rastejantes da Terra pensariam duas vezes em fazer com um inimigo. Ah, mas deixemos as
obviedades para depois, agora, meu irmão, você precisa de repouso, e nossos adoradores terão
prazer em fornecê-lo. Venham cães! A divindade requer vossos serviços!
Não compreendi bem o que acontecia, apenas reparei em vários indivíduos se assomando
ao meu redor e me erguendo. Meu corpo desabou, assim como minha consciência, embora em
um pequeno vestígio, eu temia que qualquer um deles pudesse estar a serviço de Yssarra para me
matar.
Era noite quando acordei. Sob uma tenda no meio da areia eu podia ouvir cânticos. À
minha cabeceira, um humano observava fervorosamente. Ele pulou quando me movi e correu
para fora gritando que o “deus havia despertado”.
Cerca de dez minutos depois Maugab chegou, com uma máscara negra na forma de um
bode (a máscara que fora originalmente utilizada por Set), e acompanhado por duas belas
mulheres completamente nuas, porém maquiadas e com perucas típicas.
— Remekhse, meu irmão. Após seu Ka viajar entre as dimensões em busca de dádivas
aos seus súditos, eis que você retorna — eu não entendi absolutamente nada, mas imaginava que
tudo devia estar relacionado a algum engodo no qual ele enredou aqueles mortais. — Vamos, se
estiver “faminto” — ah, ali estava o sorriso de deboche. Eu entendia, atos perversos também
despertavam meu humor. Ele então gesticulou para as mulheres. Não que eu pretendia dispensá-
las, mas meu corpo ainda doía. Com uma desculpa, pedi que ele as mandasse para fora e aí
ficamos para conversar.
— Você viu, ah você viu Remekhse! Não foi tão sagaz quanto eu a ponto de perceber de
pronto, mas você sentiu na carne a hipocrisia deles! Eles falam de se aperfeiçoar, mas são tão
depravados quanto nós, enquanto que eu e você ao menos somos sinceros; abraçamos aquilo que
somos.
— Por que Maugab? Saiba antes da mais nada que sou grato, mas não entendo, o que o
levou a me salvar?
— Afinidade, creio eu. Eu me amo o suficiente, idolatro aquilo que sou a ponto de não ser
capaz de deixar alguém parecido perecer. Pense Remekhse, um dia eles partirão. Eles alcançarão
sua almejada redenção e nós, nós poderemos governar como os únicos deuses.
— Maugab, eu entendo o que você propõe. Poder usufruir dos nossos dons aqui, sem ter
de abrir mão do que somos. É doloroso não poder voltar a Abiton, mas sob as condições deles, é
de fato impraticável. Mas você não esteve lá para ver o que houve com Set.
— Set. Seu Ka se recusa a habitar um corpo humano você sabe Remekhse? Ele ainda
vaga entre nós, atormentado em sua forma de Ka. Mas eu vou lhe dizer, sabe porque Set recebeu
aquela punição? Pois tentou matar Osiris, e só por isso. Não que eles cogitem fazer o mesmo
com Yssarra, ah não, pois ele fez o que fez apenas para que você deixasse de desvirtuá-la de seu
caminho. Um mal em prol de um bem maior. Creia-me Remekhse, eles não farão nada conosco,
contanto que não atrapalhemos nossos irmãos. Quanto a esses, eles também usufruem dos nossos

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conhecimentos, dos nossos dons! Podemos governar, e ainda dar-lhes uma civilização digna. É
pedir muito termos um pouco de glória em troca das nossas dádivas?
Era tentador, de fato. Maugab tinha um jeito ardiloso, um olhar suspeito, mas apesar de
tudo, eu concordava com ele.
Lá eu me estabeleci. Era um grupo de humanos vivendo no meio do deserto sob tendas.
Sob um olhar depreciativo, eles eram párias. Os proscritos aos quais não era permitido habitar as
grandes cidades sob a proteção do faraó; mas na ótica deles, eram abençoados, por viver
diretamente entre os deuses. Eles nos serviam de todas as formas que desejássemos, sem jamais
questionar. Sabiam, ou melhor, tinham fé que ao término de sua existência mortal, seriam
conduzidos ao nosso reino, onde teriam graças ainda maiores do que as dos faraós e seus servos.
Oh, quantas orgias, quantas perversões nós não realizamos. Todas as noites, rituais eram
realizados em nossa homenagem. E nós, claro, demonstrando nosso contentamento divino,
agraciávamos nossos súditos com nosso vasto conhecimento acerca do funcionamento das
coisas. Nós os aconselhávamos, curávamos doenças, províamos fartura. Nada daquilo eram
milagres entretanto. Era apenas o uso da nossa mais básica tecnologia. Uma produtiva troca.
Yssarra não ousou dar seguimento ao seu plano homicida. Talvez por eu estar longe, e
não mais tentando-a a deixar seu precioso caminho redentor. Ou então, ela tivesse medo das
consequências de enfrentar não um dos seus irmãos, mas dois, juntamente com um grande grupo
de fiéis.
Quase um século se passou. E por mais que as vezes eu me pegasse divagando sobre os
outros rumos que a minha existência na Terra poderia ter tomado — seria a redenção possível? —
aquela vida me agradava. Quem sabe Maugab estivesse certo, e quando nossos irmãos partissem,
nós pudéssemos conduzir a humanidade ao nosso modo, ou pelo menos aquele nosso pequeno
rebanho.
Naquela época, nós não mais vagávamos pelas areias. Havíamos nos apossado das ruínas
de um templo que abrigava uma tumba. Um local há muito esquecido, longe o suficiente para
que ninguém voltasse seus olhos a ele. Várias das câmaras parcialmente encobertas serviam de
morada aos nossos seguidores.
Eu e Maugab, além de um punhado dos nossos representantes mais próximos vivíamos
no alto templo, uma estrutura semienterrada, cujo topo consistia em uma espécie de átrio elevado
a céu aberto cercado por colunas palmiformes, que conduzia a uma pequena câmara onde nosso
sarcófago jazia.
Foi nesse contexto que minha grande mudança ocorreu. Dentro de poucos dias eu seria
amaldiçoado pelo egoísmo humano, como se não bastasse ser um prisioneiro neste mundo
infeliz.
Nossos seguidores humanos acreditavam que nós lhes proveríamos a salvação. O fato é
que certas situações estavam além do nosso alcance reverter. No meio de tudo isso, nós
acabamos por nos tornar descuidados, de modo que alguns dos nossos segredos acabaram por ser
contemplados pelos mortais, que em muito distorciam as coisas. Esse foi o nosso erro, acreditar
que sua ignorância era plena, e que em momento algum eles não enxergariam nas entrelinhas. De

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fato, o pior não é um ignorante enxergar a verdade, e sim um ignorante continuar ignorante
achando que está encontrando a verdade.
Dentre aqueles que nos seguiam, havia um humano de nome Ibquin. Desde nascença ele
fora acometido por um mal excruciante. Uma doença da qual nem nós nem os membros daquele
povo jamais ouvíramos falar. Certamente tratava-se de uma condição genética rara. O infeliz
sofria com dores insuportáveis por todo o seu corpo, além de chagas sangrentas que se abriam
incessantemente em cada centímetro da sua pele, fechando esporadicamente, apenas para
surgirem novamente em outros locais no dia seguinte. Nas próprias palavras dele: sentir dor era
como respirar a um ser normal. Cada momento da sua vida havia sido um oceano de dor, e nós,
os “deuses” éramos a sua esperança para a salvação. Ou assim ele pensava.
— Maugab, divino, eu lhe suplico, despeje suas bênçãos sobre mim. Divino Remekhse,
eu lhe rogo, meus dias são curtos como sabeis, por isso peço uma chance de servir neste mundo
até longa idade, quando então passarei a servir em vosso reino. Mas por favor, peço a chance
para que possa permanecer aqui por mais tempo, pois aquilo que me resta não é suficiente para
que eu mereça a grandeza por meus serviços. Não poderei acumular suficiente tempo de servidão
— implorava ele de tempos em tempos. Sua enfermidade, além da dor, também reduzia
consideravelmente seu tempo de vida. Naquela ocasião, com dezesseis anos, ele sabia que lhe
restavam poucos meses.
A questão era que nós não podíamos fazer nada por ele. Por se tratar de uma condição
genética, nossa ciência avançada não poderia curá-lo com medicamentos. Além disso, durante
nossas tentativas de estudar sua situação, constatamos que a enfermidade encontrava-se também
em seu Ba. As doenças não nascem no corpo, elas nascem no Ka e no Ba, e apenas se refletem
no corpo. Algumas podem ser curadas, a maioria, mas outras, como posso lhe explicar, elas
fazem parte do Ba e do Ka; são como uma deficiência no Ba do indivíduo, e a única forma de
removê-las é com a morte do corpo, quando então o Ba se purifica, e reformado, pode renascer
em um novo corpo. Ou seja, a única solução é a morte, e esse era o caso dele.
Mas claro, esse tipo de explicação não é a resposta que os enfermos buscam. Eles querem
a cura, na sua vida presente, logicamente. Nós negamos a cura sob as mais elaboradas desculpas
possíveis, mas como um deus pode dizer a um humano que não pode fazer algo por ele? Como
convencê-lo de que a negativa não era apenas má vontade? Impossível. E como era de se esperar,
Ibquin não se conformou, embora não ousasse vocalizar sua insatisfação.
Aí entram os nossos erros. Tão seguros de nós mesmos éramos, que falávamos
livremente sobre nossas questões diante dos mortais. Além disso, eles testemunhavam eu e
Maugab, especialmente ele, utilizar o sarcófago para restaurar as propriedades sobre-humanas de
nossos corpos.
Sem que percebêssemos, Ibquin nos vigiou e estudou nossos segredos. Ele deduziu a real
natureza do sarcófago e seu funcionamento diante da nossa cegueira. Estudou nossas histórias, e
aguardou o momento perfeito para atacar.
Quem imaginaria que um único ato de egoísmo, de um desconhecido e insignificante
filho de uma puta, causaria consequências que mudariam a história (ainda que sem o
conhecimento das massas)? Bem, apesar do que, se olharmos por esse lado, a quase totalidade

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das revoluções históricas ocorreram dessa forma. Poucos dos que mudaram o mundo imaginaram
estarem fazendo-o, apenas agiram de acordo com seu propósito pessoal.
A questão é que Ibquin utilizou todo o nosso conhecimento para nos manipular em busca
da sua cura impossível. Ele já percebera que nós não éramos deuses, pelo menos não ao modo
que eles imaginavam. O maldito sabia também dos meus problemas com Yssarra. Ele poderia ter
executado seu plano com Maugab, mas o corpo deste já se encontrava em um estado de descuido
enorme, enrugado e danificado. O sarcófago não podia repará-lo além disso. Tudo por conta dos
seus exageros. Enquanto eu encontrava-me em meu primor.
Encontrar assassinos não foi difícil, nada que vantagens materiais não conseguissem. Isso
sempre foi uma constante entre os homens, fosse quando fosse, fosse contra quem fosse.
De um lado uma revolta contra Maugab, também arquitetada pelo nosso “seguidor”, a
fim de deixá-lo ocupado, do outro um ataque inesperado contra minha pessoa. A escolhida para
me incapacitar foi uma bela serva e eu, cego em meus instintos primitivos, sequer percebi a
mulher puxando o punhal de sob a bandeja. Uma punhalada certeira, e lá estava eu tombado.
E como eu não acreditaria cegamente que tudo aquilo fora arquitetado por minha
desejada Yssarra? Uma bela humana, que há tempos me serve e sacia meus desejos, subitamente
me apunhala. Seria o instrumento perfeito somado à ironia perfeita. Ibquim de fato nos estudara
bem.
Lá, em minha agonia, foi ele próprio quem apareceu milagrosa e coincidentemente,
matando minha agressora (aposto que ela não havia sido informada dessa parte do plano).
Tomando--me nos braços, ele encenou perfeitamente o desespero de um adorador
incontestavelmente leal:
— Divino Remekhse! Os deuses invejosos atentam contra vossa vida e contra o divino
Maugab. Nada pude fazer por ele, em minha insignificância, então vim suplicar por vossos
poderes, mas então deparei-me com esta heresia... — se ele tivesse se dedicado ao teatro, teria
entrado para a história.
— O sarcófago! Não perca tempo! — foi o que consegui dizer engasgando em meu
próprio sangue e quase desfalecendo. Justamente o que Ibquin desejava ouvir.
Sem desperdiçar um segundo, o humano maldito me arrastou até o sarcófago, o que ele já
sabia tratar-se de um artefato tecnológico de outro mundo. E ali ele amaldiçoou a nós e ao
mundo.
Ibquin me colocou dentro do sarcófago. Tomado pela dor e pela sensação de meu corpo
fenecendo, eu senti um súbito alívio. Logo eu estaria salvo. Mas eis que me deparei com a mais
amarga surpresa. O maldito entrou comigo dentro do sarcófago! Meu corpo frágil não tinha
forças para expulsá-lo, com a pouca voz que me restava tentei protestar, amaldiçoá-lo, chamar
por ajuda.
— Eu sei o que vocês são, falsos deuses! Sei que esse engenho funciona com o seu
sangue de terras distantes, e sei que ele cura tudo! Mas o seu egoísmo não irá prevalecer! O seu
sangue irá abrir as portas da minha salvação, e o tesouro que vocês mantém para si me dará a
cura que vocês me negam! — ele bradou com um sorriso orgulhoso. Ah, a esperança; a
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imbecilidade que nos torna cegos achando que nossos olhos compreendem as minúcias da
existência.
Ele fechou o sarcófago, com nós dois dentro. O que aconteceu eu não pude sentir, embora
tenha me ficado óbvio sua causa. Sei que quando acordei sentia fome — ou seria sede? — na
verdade era uma mistura de ambos, era a sede do viajante que caminha por dias sob o sol do
deserto, junto com o anseio por alimento que sente o corpo mais desnutrido. Mas essa nutrição só
poderia vir por meio de um líquido: o sangue humano.
Para minha felicidade e perdição, lá estava a refeição, sobre meu corpo gélido dentro do
sarcófago, Ibquin ainda possuía um pouco de consciência em seu corpo quebrado — os efeitos da
tecnologia em um corpo humano eram devastadores, tal qual a radiação utilizada pela tecnologia
de vocês atualmente. Bem ali ao meu alcance, aquela forma despertou em mim um instinto
incontrolável. Eu esqueci tudo e o agarrei.
Ah, o sangue jorrando para dentro da minha boca, sendo ingerido a goles desesperados. É
uma sensação que não se pode explicar com palavras, apenas a memória de quem já sentiu pode
dizer o que é, ou então associação com algo de tal intensidade que um ser humano pode sentir. O
primeiro orgasmo, isso! Se há uma sensação que descreve como foi o meu primeiro banquete de
sangue é essa, pois da mesma forma, a primeira vez que o ser humano experimenta o sexo é
única. O estouro, até então desconhecido, de prazer subido, em uma potência que jamais irá se
repetir em tal intensidade, a realização do que você é, das suas capacidades. É como se pela
primeira vez na sua vida, tudo ficasse indubitavelmente óbvio. Você é inundado pela torrente e
então seu propósito se torna claro. O tesouro da existência passa a ser seu por aquele instante.
Uma recordação que fica para sempre gravada, e passa a ser buscada ocasionalmente desde
então; e embora todas as outras incontáveis vezes sejam excelentes, nenhuma consegue se
igualar àquele momento exordial.

E tudo isso instintivamente. As minhas presas já haviam crescido, e eu sequer notara,


tampouco eu me dera conta de que me tornara algo diferente, mas a parte mais primitiva do meu
subconsciente já havia percebido tudo e começara a agir.
Foi assim minha almejada criança, que eu me tornei o primeiro vampiro. Naquela época,
é claro, não usávamos esse nome, mas não é isso o que importa, não é mesmo? E agora começa
minha derradeira história.

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De Sangue Ele Se Banqueteia

Saltando para fora do sarcófago, eu joguei o corpo exangue de Ibquin a metros de


distância, e ao fazê-lo surpreendi-me com a minha força. Eu já era mais forte e resistente do que
um ser humano, mas então, minhas capacidades haviam se amplificado incomensuravelmente
mais.
Tomei alguns minutos para tentar compreender o que se passava comigo. A lógica e uma
inspeção nos registros da máquina disfarçada de sarcófago revelaram que o DNA doente de
Ibquin e o DNA de meu corpo (que consistia em um híbrido do DNA humano e de partes
genéticas das formas que possuíamos em nossos corpos originais) haviam se fundido. Algo
impensado e nunca visto. Um acidente único.
Graças a essa alteração, imagine só, meu corpo tornou-se plenamente imortal, mas em
troca o sangue dos homens se tornara uma necessidade; um prazer sem igual. Meus sentidos, já
aguçados, se tornaram impecáveis. Em verdade, acabei adquirindo novos sentidos. Minha
percepção dos mundos material e imaterial tornou-se plena. A percepção dos humanos,
comparada à minha, se tornou algo imperfeito, embaçado e incompleto. Seria o mesmo que
comparar a visão de um míope à de alguém com um olhar aguçado e impecável.
Enfim, todo aquele papo que você vê nos livros e filmes de vampiros por aí sobre como
sentir o mundo se tornou mais real, havia acontecido comigo. Por outro lado, meu coração, meu
pulmão e todos meus outros órgãos cessaram seu funcionamento. Não atrofiaram, simplesmente
pararam como se tivessem ficado congelados no tempo. Se eu os removesse, porém, não viria a
morrer (resolvi deixá-los por uma questão estética, entende?).
Meu Ba havia se fundido ao meu corpo, e creio que foi isso que tornou minha forma
física imutável. O tempo não me mataria e nem me alteraria, contanto que eu me alimentasse
corretamente (a falta de sangue também não me destruiria, apenas tiraria minhas forças e me
mergulharia em uma terrível letargia. Somente a destruição completa de meu corpo libertaria
meu Ka. Como destruí-lo, eu não fazia ideia, visto que capacidades de regeneração descomunais
o agraciavam. Mas, de modo algum eu pretendia morrer, então não fiquei conjecturando formas
de me destruir.
Passado o tempo de contemplação inicial do meu novo estado, eu me voltei ao nosso
grupo revoltoso. Maugab estava morto. Eu podia sentir o cheiro do seu sangue, podia sentir seu
Ka revoltado ainda vagando por ali, depois de seu corpo ser brutalmente apunhalado pelos
comparsas de Ibquin. E, além disso, muito mais forte, eu podia sentir a presença de todos eles.
Todos os humanos que nos seguiram e dos que nos traíram, sues corações batendo como
tambores, o sangue em suas veias tocando uma sinfonia maravilhosa e convidativa. Eles queriam
agradar os “deuses”. Queriam o caminho para o pós-vida. Eu lhes daria a chance para ambos.
Eu me banqueteei com todos eles. Homens, crianças, as belas mulheres em cujos prazeres
eu me deleitava - agora me fornecendo um último prazer. Aqueles que eu encontrei sozinhos
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foram drenados ali mesmo. Quando encontrei as multidões, tomei precauções para que nem um
sequer escapasse. Primeiramente quebrei as pernas de cada um, aproveitando-me da minha
velocidade descomunal. Depois, no meio daquele mar de gritos e pessoas rastejantes, eu saboreei
cada um deles, sem pressa.
O sangue, entretanto, era apenas parte do que eu absorvia em minha nova condição. A
cada gole eu sorvia também as memórias e os sentimentos daquelas vidas que eu encerrava. Suas
histórias se tornavam parte de mim, assim como seus sonhos nunca realizados, suas frustrações
sem importância e seus sentimentos. Nos dias de hoje um humorista diria que a experiência se
assemelha a tomar um bom vinho lendo um livro.
E finda a degustação, eu fiquei lá, observando os cadáveres, pensando na história deles,
divagando sobre suas pobres e breves vidas, e no fundo imaginando como aqueles indivíduos,
que tiveram vidas tão frágeis e as viveram em tamanha ignorância, haviam utilizado sua jornada,
ainda que inconscientemente, para se tornarem melhores do que eu, especialmente depois de
tudo o que acontecera naquela fatídica noite. Minhas chances de redenção, árduas chances,
haviam se perdido. Enquanto eu permanecia lá, sentado como uma estátua cercada de cadáveres
exangues a noite foi terminando, e o astro escaldante não demorou a subir.
No momento em que os primeiros raios do sol me tocaram, eu gritei. Ao menos eu era
suficientemente forte para não perecer diante da luz solar (e também se não fosse, ali mesmo
toda essa desgraça teria terminado). Mas a dor, o incômodo. Ficar sob o sol era uma tortura.
Minha pele ardia, os músculos dos meus membros repuxavam, causando espasmos
desconfortáveis, os olhos ardiam vertendo lágrimas sangrentas, minha mente ficava confusa e
uma dor pungente massacrava minha cabeça, e a macilência, a maldita macilência que envolvia
todo meu corpo, como se ele estivesse sendo pressionado, dando-me uma vontade desesperada
de me libertar das vestes físicas, de correr, me lançar nas sombras.
Com o tempo tornei-me mais tolerante aos efeitos do astro maldito, embora ele ainda me
incomode. Pena que meus descendentes não tenham tanta sorte.
Tratei de correr para as sombras do templo. Escondi meu sarcófago — o instrumento
maldito que me amaldiçoou com a genética humana doente —, colocando-o em uma câmara
subterrânea parcialmente soterrada. Dentro dele eu adormeci.
Até mesmo o ato de sonhar havia se tornado diferente. Algo que pode ser descrito mais
como uma ilusão consciente. Uma mistura de vivenciar eventos oníricos e ainda assim estar
consciente de tudo ao seu redor. Com o tempo aprendi a projetar meu Ka para fora do corpo e
observar eventos distantes, enquanto minha forma imortal repousava a salvo do sol.
No exato momento em que a noite seguinte cobriu o Egito, meus olhos se abriram. Meu
corpo estava completamente revigorado, e faminto. Tanto quanto a sede de sangue, o desejo de
conhecer as vidas das minhas vítimas, de devassar suas mentes e vivenciar suas memórias era
incontrolável.
Vaguei pelo deserto sob as estrelas e não demorei até encontrar novas vítimas. Uma coisa
que aquilo me ensinou foi que nenhum ser vivo é insignificante. Cada vida é uma história única.
Aqueles para os quais antes eu olharia com desdém, como simples plebeus, tornavam-se parte do
meu ser, parte da minha memória eterna e digo que muitos deles possuíam vidas muito mais
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fascinantes do que nobres, reis e rainhas que conheci ao longo dos séculos, e nenhum deles com
uma história igual.
Alimentado, dirigi meu primeiro pensamento tranquilo à Yssarra. Uma ideia sombria e
plenamente egoísta me veio á mente. A razão para que ela me afastasse — me matasse — era sua
busca pela redenção, mas se as chances dela de redenção fossem nulas, nada a impediria de ficar
ao meu lado. E eu conhecia um meio perfeito de fazê-lo...
A noção, tais quais meus outros dons, brotou em mim por instinto, muito embora eu não
soubesse exatamente como fazê-lo, muito menos se daria certo. Por isso, antes de transformá-la
em algo como eu, primeiro eu tinha de realizar testes. Deveria encontrar algum infeliz e tentar
transmitir a ele a mudança genética que se operara em mim. A partir daí muitas dúvidas
surgiram. O que aconteceria com um humano? Será que sobreviveria? Eu me tornei o que me
tornei graças ao DNA humano, mas será que o contrário poderia ocorrer? E a genética superior
de Yssarra, será que reagiria da mesma forma que a minha? Ela se alteraria ou repeliria a
mudança? Pior, será que ela sobreviveria? Havia ainda a chance de ela se tornar algo diferente,
quem sabe pior. Mas eu sempre fui obstinado, por isso, como de costume, coloquei minhas
intenções em primeiro plano e ignorei as opções desagradáveis.
De fato, foi instintivo. O primeiro escravo que encontrei pelo deserto eu agarrei e drenei
até me satisfazer. Foi necessário um auto controle quase impossível para não esvair sua vida.
Quando vi, meu pulso estava aberto e dele o sangue... se movia, essa é a palavra. O sangue
parecia mover-se como um ser vivo, um predador rumo à sua presa, ao invés de simplesmente
jorrar. Inundando a boca de minha vítima, e também se espalhando sobre o ferimento causado
por minhas presas, invadindo aquele corpo moribundo.
Ele arfou e depois sua boca se abriu como em um grito de agonia, mas nenhum som saiu.
Seu corpo se contorceu descontrolada mente sobre o solo. E eu apenas observei, achando que o
havia matado, especialmente depois que ele parou de se mover e ficou lá, inerte, com a boca
escancarada e fitando o nada.
Quebrando a inércia ele urrou e se contorceu ainda mais. Sua pele empalideceu de modo
inacreditável, tal como a minha. E em um segundo ele estava de joelhos, me encarando com um
olhar faminto. Mas ele não era idiota para achar que podia se alimentar de mim. Ou talvez a sua
intuição lhe deixasse isso claro.
— Fome! — ele urrou. E minha primeira reação foi desejar destruí-lo de imediato, embora
eu não pudesse fazê-lo, não ainda.
Para dizer a verdade, eu nem sequer sabia se algo como nós poderia ser destruído. Além
do mais, eu tinha de observá-lo por um tempo. Tinha de ver se a transformação realmente havia
se operado com sucesso, para só então pensar em como eu faria com Yssarra.
Arrastando minha pobre prole, eu o joguei no meio de uma caravana de comércio que
acampava pela região. Dois homens faziam a vigília da noite enquanto todos os outros dormiam.
Com movimentos simples eu imobilizei os dois. Enquanto eu bebia de um, ele realizava sua
primeira refeição com o outro. O problema que eu não havia previsto era que minha cria sofreria
da voracidade do primeiro banquete, ou seja, em sua fúria ele acordou o acampamento inteiro.
Não que isso tenha importado muito, pois no fim ele mesmo drenou cada um deles antes que
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pudessem ir muito longe.


E lá estávamos nós, naquela cena que me era familiar. Hesferu era o nome dele, e ele me
olhava horrorizado diante do que havia acabado de fazer. Ocorreu-me então que algo devia ser
feito. Eu ainda precisava dele “vivo”, e garantiria tal status ao menos pelo tempo necessário,
porém, tão assustado ele estava que havia uma grande probabilidade de minha prole sair por aí
correndo horrorizada, revelando-se ao mundo e espalhando uma quantidade desnecessária de
caos. Enquanto me indagava sobre o que poderia fazer - tentar conversar não diminuiria o risco
de histeria -, me peguei encarando-o com uma determinação quase inconsciente.
Quando me dei por conta, Hesferu estava imóvel, seus olhos completamente focados nos
meus. No fundo de minha mente eu podia sentir a sua consciência, totalmente dócil e submissa.
Hah, eu estava controlando ele, e cada célula do seu corpo imortal eu podia sentir, como se fosse
uma extensão do meu corpo e da minha vontade. Mas lá no meio eu também podia sondar o seu
potencial, e aquilo era medonho. Não para mim, pois eu era o criador, eu era a fonte. Mas
perante o mundo, aquele ser tinha toda a chance de se tornar um deus da destruição. Logicamente
eu também poderia sê-lo ainda mais.
E o que protegeria a humanidade de nós? Ao menos eu possuía consciência para me
controlar, ir atrás do que realmente me interessava sem enveredar para o potencial destrutivo e
dominador que eu vislumbrara - embora nada garantisse que eu jamais perderia o controle — mas
ele era outra história. Eu não sabia se de uma hora para a outra ele não poderia surtar ou ter
consciência de todo o seu poder e resolver colocá-lo em prática.
A solução: mantê-lo permanentemente sob meu controle hipnótico. Com a noite
chegando ao fim, eu ordenei que Hesferu deitasse no sarcófago (um sarcófago comum para ele),
e só despertasse na noite seguinte, aguardando pelo meu comando. E em seguida repousei.
Era muito mais confortável lidar com a minha prole daquele jeito. Eu sabia que chegado
o momento, deveria destruí-lo, portanto quanto menos nós convivêssemos, melhor seria, muito
embora eu já conhecesse todos os detalhes da sua vida pregressa, graças ao processo da
transformação.
Passada uma semana já havia ficado óbvio que o experimente havia sido bem sucedido.
Eu podia compartilhar minha maldição com humanos. Mais do que óbvio, realmente, pois antes
da segunda semana de imortalidade de Hesferu, eu já começava a sentir a vontade dele tentando
se libertar do meu domínio. E ele era poderoso, quase tanto quanto eu; uma mera fração a menos
para dizer a verdade, mas ainda assim inferior.
Seu propósito estava cumprido e eu não poderia arriscar um “filho” descontente
descobrindo seus poderes e tentando se vingar do tratamento dispensado pelo seu criador.
Especialmente quando eu mesmo ainda não havia descoberto todo o meu potencial.
Minha primeira opção foi o sol. Eu ordenei a Hesferu que permanecesse o dia todo sob a
luz solar. Nele o efeito foi mais intenso do que em mim. Era possível ver o sofrimento em seu
rosto. Seu corpo parecia arder sob a luz, exalando fumaça e enegrecendo em algumas partes, mas
logo as queimaduras cicatrizavam, ou chegavam perto de fazê-lo. A partir dali eu constatei que a
minha herança maldita o tornara forte, mas não tão forte quanto eu, o criador. A tolerância dele
ao sol era menor, mas ainda não era uma imunidade fatal.
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Novamente meu instinto determinou meu próximo passo. Optei por uma via mais
violenta e direta. Com uma lâmina - oh como eram horríveis aquelas espadas - tentei decepar sua
cabeça. Nossa resistência física também era superior, logo a lâmina causou apenas arranhões
superficiais. Utilizei-me então da minha força sobre-humana. Teria dado certo, se a lâmina inútil
não tivesse se partido. Bem, o jeito foi terminar o serviço com as minhas mãos, e finalmente a
cabeça dele foi separada do corpo.
Um mar de sangue brotou do seu pescoço dilacerado, não aos jorros, simplesmente
escorrendo, como de um cantil tombado. Sua expressão congelou, e seu corpo ficou ainda mais
pálido e rígido, parecendo pedra. As veias adquiriram uma coloração quase negra e tornaram-se
extremamente evidentes. Hesferu se assemelhava a um pedaço de mármore com veios negros —
uma bela decoração, até.
Porém, eu não estava satisfeito. Quem garantiria que minha prole não se regeneraria de
algum modo e viesse em busca de vingança? Ateei fogo em seus restos — queimaram como
papiro. Enquanto ele se tornava um punhado de cinzas, eu pude ver seu Ka se desprendendo e
partindo para o mundo espiritual. Ele estava realmente morto. Era um alívio, mas também uma
preocupação: significava que de algum modo, algo poderia vir a me destruir. Entretanto, descobri
ser capaz de enxergar o Ka com meus olhos físicos.
Havia então outra dúvida a se esclarecer. O procedimento havia funcionado com
humanos, mas seria o meu sangue capaz de amaldiçoar meus irmãos? Funcionando ou não, eles
poderiam alertar os demais a meu respeito, fosse com seus novos poderes, fosse através de seu
Ka, caso eu resolvesse destruir seus corpos.
Se eu fosse lançar o véu negro sobre Yssarra teria de ser sem mais estudos. Ela corria
riscos caso eu estivesse errado? Claro! Mas foi fácil ignorar esse detalhe lembrando-me de que
ela tentara me matar em primeiro lugar.
A execução do plano não se deu de imediato. Eu passei algumas noites descobrindo e
aperfeiçoando meus dons, e quando decidi agir, ah, eu me sentia como uma sombra; o próprio
senhor da noite. Eu era livre para me mover invisível pelo mundo, e invulnerável, até mesmo
para aqueles que compartilhavam minhas origens.
E finalmente, lá estava eu, vagando pela noite rumo á pirâmide habitada por Yssarra. A
passagem do tempo ficara clara quando me aproximei do local. Muito havia mudado, uma
geração havia se passado desde a minha fuga, e os meus irmãos remanescentes (aqueles que
ainda encontravam-se nas formas originais com que adentramos a Terra), avançavam em seu
caminho rumo à redenção, guiando os mortais para um futuro próspero.
Eles nem imaginavam. Por diversos momentos hesitei. Pensei em desistir, voltar para a
solidão, talvez até rumar para terras distantes. Mas não. Eu não podia mais me redimir, então ao
menos uma coisa que eu desejava eu teria de conseguir. E isso seria o amor de Yssarra, ou ao
menos sua companhia eterna.
Sorrateiro, graças aos meus novos poderes, eu me esgueirei até a câmara da “deusa”.
Minha velocidade era sobre-humana e, somado a isso, meu corpo podia se camuflar facilmente
entre as sombras. Mesmo sob a luz das tochas eu podia controlar a mente daqueles que cruzavam
meu caminho e fazê-los ignorar, esquecer, ou mesmo não perceber a minha presença.
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Se ela estivesse no sarcófago, tudo teria sido bem mais fácil. Obstinada por se
aperfeiçoar, entretanto, Yssarra encontrava-se desperta, pensativa. Meus movimentos furtivos em
nada impediram que ela sentisse minha presença. Ela se virou. Suas feições eram as mesmas,
como era de se esperar, porém, seus cabelos haviam sido arrumados em forma de pequenas
tranças entrelaçadas, algo do costume local. Não me agradou, mas ao mesmo tempo conferiu-lhe
uma beleza exótica.
Não sei se foi o tempo que passei contemplando-a, ou se sem querer acabei sussurrando
algo sem querer. Talvez tivesse sido sua percepção mais aguçada do que a dos meros humanos.
A questão foi que ela se virou e me encarou diretamente, embora sua surpresa por me ver tivesse
ficado clara. Eu podia sentir a mente dela trabalhando, tentando decidir entre as opções; Gritar,
avançar contra mim, ou me receber como nos velhos tempos.
Eu não lhe dei chances. De todas as formas, a minha ideia seria a mais vantajosa. Como
um vulto, avancei sobre ela. No fundo da minha mente a dúvida e a apreensão tentavam ganhar
espaço. E se eu a matasse? Se não desse certo? Mas eu devia ignorar. Ela era forte. Tentou
resistir, cravar-me as unhas, e até me morder. Algo que um humano naquelas condições jamais
teria força ou vontade para fazer. Mas eu era como pedra perto dela, perto daquela forma
superior, que comparada ao meu novo corpo, era tão frágil como papiro. Um papiro mais grosso,
de fato, mas de qualquer forma frágil.
Sua essência jorrava. Quando parei de pensar e me permiti apenas sentir, foi que me dei
conta do sangue dela inundando meu ser. Concomitante àquela torrente, vieram as memórias.
Não tão simples e breves como as dos humanos; eram as memórias de toda a nossa purgação na
Terra, e também aquelas de Abiton, de todas as vidas do nosso Ka em nossa terra natal. Foi
necessário um esforço quase impossível para parar de drenar antes que seu sangue se esvaísse
por completo. Por um tris, um mero segundo, eu não perdi o controle e fui até o fim
inconscientemente. As memórias dela, os sentimentos, me inundavam, me sobrecarregavam.
Eles estavam quase me arrastando, me prendendo como se eu fosse parte delas; um espectador
hipnotizado acreditando ser um coadjuvante do filme.
No fim, eu não pude evitar. Já havia me afastado dela, e deixado seu corpo quase
exangue tombar no chão, mas o rio de lembranças e sentimentos continuava. Eu não mais
pensava, apenas assistia, era parte daquilo, até que aquele grande fluxo me derrubou.
Por um tempo, foi como se eu estivesse sonhando. Sonhando com a mente de Yssarra.
Repentinamente eu estava lá, totalmente desperto diante do corpo dela que jazia aos meus pés.
Hesitei um pouco até me situar, e então, de súbito me atirei sobre ela, pondo em prática o ritual
sangrento.
Yssarra convulsionava; uma reação que a minha outra prole não manifestara durante sua
criação. No desespero eu a segurei, e torci para que ela não morresse. Era tudo o que me restava.
O corpo dela parou repentinamente e se enrijeceu. O vulto do pensamento de que eu a havia
matado já se materializara, quando ela abriu os olhos. Seu primeiro impulso foi tentar me cravar
as presas. Hah, diante de tudo ela ainda tentava me matar, mas dessa vez controlada pela fome
voraz. Minha vontade era tombar no chão e gargalhar até que a minha voz ecoasse por todas as
câmaras daquela pirâmide.

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O que eu fiz, entretanto, foi arremessá-la para longe a fim de me desvencilhar. Yssarra
correu pelas câmaras, e eu a segui. Quando a alcancei, e foi rápido, ela já havia conseguido
agarrar um servo e o drenava com uma voracidade inacreditável. Não intervi, apenas fiquei
atento para que nenhum servo a pegasse no ato, e também para que ela não fugisse novamente.
Quando a vítima tombou sem vida, ela me lançou um olhar acusador, mas fez menção de correr
novamente, e eu a impedi.
— Yssarra, me ouça!

— Você é um maldito presságio de danação Remekhse! O que você me fez? Que fome é
essa que me consome? Uma fome de sangue e de morte! Eu sorvi as memórias dele! — tentando
se desvencilhar, ela se debatia. As unhas de seus pés arranhavam as pedras do chão.
— Agora és como eu. Somos únicos — percebi que não conseguiria explicar-lhe tudo
calmamente. Fosse como fosse, sua reação deixava claro que ela não aceiraria sua nova condição
de bom grado, então tomei a atitude mais fácil, controlei sua mente. Certo, não foi tão fácil
assim.
Conforme olhei no fundo de seus olhos e emiti o comando mental, ela cerrou os dentes e
continuou a se debater. Suas unhas tentavam penetrar na minha carne invulnerável e chegavam
perto de lacerá-la. A tarefa exigiu mais esforço do que eu esperava, mas no fim ela se acalmou.
Meu único comando foi para que ela ficasse quieta e não causasse alvoroço.
— Você vai me ouvir agora, Yssarra — sussurrei em um tom que somente nós
poderíamos ouvir.
— O que você fez comigo Remekhse? — seu olhar era frio. Ódio controlado.

— Apenas retribuí o que fizeram comigo. De certa forma, foi você quem colocou os
eventos em movimento ao tentar me matar. Eu escapei graças a Maugab, e juntos passamos a
viver com um rebanho de adoradores humanos, um dos quais descobriu a verdade sobre nossa
natureza e também sobre o sarcófago. O imbecil estava morrendo e achou que minhas células
combinadas com a nossa tecnologia poderiam salvar seu corpo efêmero...
— Eu vi, eu vi isso, na sua mente...Ibquin. Isso foi o resultado dos atos dele. Nossa
tecnologia misturou a constituição do seu corpo com o dele. Seu maldito — ela disse entredentes
— Você então vem até mim e me condena da mesma forma! A redenção agora está fora do meu
alcance. A maioria dos nossos já partiu, eles já triunfaram; ganharam o direito de retornar a
Abiton, mas não eu. E eu estava tão perto — talvez pelo comando que eu lhe dera, Yssarra não
podia gritar, mas a forma fria com que ela proferia cada palavra e o olhar penetrante com o qual
ela me fitava, declaravam um ódio assustador.
— Como eu disse, foram os seus atos que colocaram tudo isso em movimento. Confesso
que a ideia de redenção não era a minha prioridade, mas você acha que eu gostei da perspectiva
de ficar para sempre preso nesta forma, no meio desses...vermes? Não. Você me colocou no
caminho, portanto se eu vou ficar aqui, então será como um deus, um maldito deus de morte
sorvedor de sangue. Se é o meu caminho, então tirarei dele todo o proveito possível, e você
Yssarra, será a deusa que estará ao meu lado. Em tormento e em prazer.

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— Eu o odeio Remekhse, eu o odeio. E odeio mais ainda admitir que saciar essa sede me
proporcionou um prazer inigualável. Agora me responda. Você já tentou reverter isso no
sarcófago?
— Não há como. A mutação foi causada por um defeito, algo para o qual o aparelho não
fora programado. Você sabe que a função dele era apenas revigorar nossas células, mas isso... —
doía-me dizer, mas era a verdade.
Abandonar a pirâmide e partir comigo para o deserto foi o que eu a comandei a fazer. Ela
tentou argumentar, mas não podia descumprir minhas ordens. Certamente eu adoraria voltar a
viver no luxo como um deus. Os mortais, entretanto, acabariam por descobrir nossa natureza. Era
melhor que desaparecêssemos da civilização e emergíssemos apenas sob as sombras da noite
para nos saciar.
Eu era um ser maldito, mas agora eu tinha meu objeto de desejo, unido a mim pelo manto
das trevas. Era tudo o que eu precisava.

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Descaminhando para a Monstruosidade

Foram noites memoráveis aquelas. Eu me realizava sorvendo várias vidas a cada noite, e
percebendo que, por mais que perante os olhos do mundo aquelas pessoas fossem insignificantes,
suas histórias particulares as tornavam maravilhosamente únicas. Meu derradeiro prazer,
entretanto, estava em guiar Yssarra nos meus passos.
Das primeiras vezes eu tive de contê-la para que ela não se descontrolasse e se deixasse
levar pela fome, matando descontroladamente. Dois ou três por noite já estava de bom tamanho.
Quando ela aprendeu a controlar o desejo, passou a questionar nossos métodos. De acordo
com sua visão, nós deveríamos nos alimentar sem tirar a vida de nossas presas - era fácil falar,
tratando-se de alguém que tinha de ser segurada para não sair correndo pelos vilarejos voando
em pescoços. De outra mão, confesso que até cheguei a pensar nisso. Menos corpos atrairiam
menos atenção. O único problema eram as memórias, pois como você mesma esta
experimentando agora, não eram somente as memórias das vítimas que fluíam para nós, mas
também parte das nossas mentes tocavam as mentes dos humanos dos quais nos alimentávamos.
Logo, se deixássemos que vivessem nossa existência e nossos segredos estariam em risco.
Eu levei séculos para aprender a bloquear o fluxo das minhas memórias nas mentes
indesejadas. Mas você verá tudo isso.
Voltemos à Yssarra e seu aprendizado na vida obscura. Controlar o impulso acabou por
não surtir o efeito desejado, ao menos a longo prazo. Tão logo ela compreendeu a necessidade de
tirar as vidas e passou a se alimentar moderadamente, as coisas se tornaram perfeitas. A noite era
nossa. Vagávamos pelo deserto, entre as cidades, vazias durante o sono dos humanos, e até
mesmo pelos templos. Estes últimos somente quando eu tive certeza de que ela estava pronta e
de que não ficaria abalada pela memória dos nossos antigos irmãos.
Desnecessário dizer que nos alimentávamos indiscriminadamente; escravos, artesãos,
sacerdotes. Somente o faraó escapava da nossa sede, não por qualquer respeito ou consideração,
mas por cautela. Inevitavelmente lendas começaram a surgir, inspiradas nas mortes que
causávamos.
Cadáveres exangues surgindo com frequência, geralmente aos pares ou trios, todos na
mesma região, logo foram relacionados às “Fy”, ou víboras. Não é muito intimidador não é
mesmo? Mas foi como ficamos conhecidos na época, como víboras, e algumas das lendas
chegavam inclusive a afirmar que éramos servos de Set caçando infiéis noite afora. Nós riamos
de tudo aquilo.
Conforme as noites avançavam, Yssarra se empolgava cada vez mais com sue nova
condição, e foi isso que fez com que as coisas desandassem. Sem que ela mesma percebesse,
suas atitudes passaram a se tornar como as minhas. Ela perdera o respeito pela vida alheia; o
prazer pessoal se tornara seu único objetivo e o que lhe causava mais prazer era drenar dos vivos.
No início eu fingi não enxergar. Talvez nós dois estivéssemos em estado de negação: ela
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desligando seu senso moral e se entregando à bestialidade como uma forma de não pensar na
salvação da qual eu a privei e eu, fingindo-me de cego a fim de não ter de pensar que eu era
responsável por arruinar sua integridade.
Por vezes eu saia durante o dia, lutando contra o sono, a fim de obter notícias e algumas
provisões; pequenas coisas para passar o tempo. Yssarra não me acompanhava. Tal qual Hesferu,
ela era menos tolerante ao sol, e os poucos momentos que ficava exposta ao astro rei, sua pele
exalava fumaça e minha desejada gritava de dor, embora a exposição não fosse capaz de destruí-
la.
Quando eu tardava a voltar, as boas vindas eram inevitavelmente sangrentas. Da primeira
vez a encontrei no meio de uma dúzia de cadáveres. Idosos, mulheres e crianças compunham a
cena mórbida. Até mesmo um escriba! O pior de tudo, ela os havia arrastado até o nosso refúgio,
que construímos no interior de uma tumba há muito saqueada.
A tola sequer notou quando eu cheguei, tamanha sua embriaguez de prazer. Tive de
queimar os corpos durante a noite, dentro da tumba. O cheiro ficou impregnado por semanas. A
primeira vista, há de se imaginar que cheiros não nos incomodam. Verdade, teoricamente. Nós
não respiramos, mas ainda assim conseguimos sentir o cheiro das coisas. Nesse estado
“vampírico”, é como se todos os sentidos, velhos e novos, se condensassem em todo nosso ser.
Pode-se dizer que a nossa intuição se expande de tal modo que passa a englobar todas as formas
de sentir e perceber o mundo ao nosso redor. Além disso, somos predadores, e como tais, o
cheiro é uma das nossas armas de caçada.
Eu falava de Yssarra. Bem, digamos que limpar sua sujeira foi o menor dos incômodos
naquela ocasião. Eu a tirei do êxtase violentamente. Nós discutimos e ela se recusou a ouvir a
razão. A tola havia se entregado de corpo e alma aos prazeres; Cada vez mais se tornando como
eu. Quando tentar fazê-la voltar à razão - ser ela mesma, e não um outro, descontrolado, eu - não
surtiu efeito, nós partimos para o confronto físico. Não me lembro quem começou, talvez eu
tomado pela frustração, ou então ela, abraçando seu lado bestial. Éramos duas divindades se
digladiando. Pedaços de pedra e ornamento se partiram com o impacto de nossos corpos, sem
que nós nos feríssemos. Os únicos danos eu sofremos foram os eu causamos um no outro com
nossos punhos e unhas. Ah sim, e dentes. A maldita tentara me morder! Ela tentara sugar o meu
sangue, e quando eu percebi que estava a um passo de arrancar-lhe a mandíbula, eu parei de lutar
e a encarei.
Demorou para que o controle mental surtisse efeito. Ela se tornava cada ve mais
resistente, mas no fim ao menos ela se acalmou.
A princípio eu até me diverti com a situação. Quero dizer, não só Yssarra não me
censurava, com partilhava dos meus prazeres. Chegou o momento, porém, que ela começou a
ignorar os limites. Enquanto eu buscava o prazer, mas sabia a hora de parar, ela seguia em frente,
sem se importar com quem estava matando e muito menos com a atenção que estava atraindo
para si.
Em dado momento ela ignorava o mundo ao seu redor e se entregava completamente ao
prazer do sangue enquanto vivia as memórias dos mortos. Eu tive de fazer alguma coisa.
— Yssarra, que maldição é essa à qual te entregaste?! Eu te dei a eternidade e um
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caminho de prazeres, e você está colocando tudo a perder, pois não sabe controlar seus impulsos!
— De fato, de fato você me deu um caminho de prazeres. Prazeres estes que eu julgava
impossíveis! E agora que me deleito com eles tu me censuras?! Por acaso seu prazer é me
atormentar para sempre com a contrariedade Remekhse? Quando eu desejava a redenção, você
me arrastava ao abismo com suas tentações, até que não satisfeito, me empurraste para o abismo
de uma vez! E agora que me comprazo nele, você age como se eu fosse... — irritada, ela gritou
sem terminar a frase.
— Eu me regozijo com a sua apreciação pelo manto sombrio com o qual a envolvi! A
questão está em como você aceitou o que eu lhe dei! O sangue mantém nossa vida eterna, mas
você esta existindo exclusivamente por isso. Eu também aprecio os prazeres da nossa condição,
mas não deixo que a busca por eles se torne mais forte do que eu, do que a razão, e do que minha
sanidade! Alimente-se, aproveite, mas saiba o momento de parar e apreciar o resto das coisas.
— O “resto” perde o sentido, quando se pode vivenciar as vidas de todos, através da
morte deles; quando a vida deles se torna a nossa vida através do fluido que drenamos. Eu odiei
aquilo que me fizeste, mas agora eu amo, e sou grata. Então deixe-me desfrutar. Nós somos os
deuses, lembra-se? O que eles poderiam fazer? Quanto ao nosso antigo povo, eles nem sequer
olham para este mundo, muito menos agora que só nós dois restamos.
Por mais que eu argumentasse não adiantava. Ela não abriria mão do seu comportamento
descontrolado. Ter que controlá-la ad perpetuum estava fora de cogitação. Eu não toleraria viver
com ela de tal forma. Tão frustrado eu estava que simplesmente dei-lhe as costas e sai para
caminhar pela cidade mais próxima.
Naquele momento eu de fato me senti um deus. Não tinha nada a ver com o poder; talvez
um pouco com a imortalidade. Mas o ponto principal era a liberdade. Eu caminhava livremente
entre as residências e os templos, e não havia um mortal sequer que ousasse deixar seu sono e
vagar pelas ruas. A cidade era minha. E se porventura algum soldado fazendo sua ronda se
colocasse em meu caminho, seria a última coisa que ele faria naquela vida.
Qualquer casa, qualquer lugar, eu poderia adentrar e fazer o que bem entendesse. Poderia
me intrometer na intimidade dos humanos e controlar suas vidas de todos os modos possíveis. Eu
tinha a liberdade para agir como quisesse. Era como eu imaginei que seria ser uma divindade.
Até quase o nascer do sol, eu vaguei observando as casas, lendo as mentes adormecidas e
assistindo seus sonhos. Adentrei um punhado de residências, muitas delas simples, com
estruturas de junco e madeira, recobertas de barro, construídas em formato quadrado, com um
pequeno pátio - quando o caso - geralmente de um a três cômodos e uma pequena escadaria que
levava ao telhado liso.
Também adentrei algumas casas mais ricas e palacetes, construídos de pedra e ornados
com pinturas e colunas. Deleitava-me, depois de bisbilhotar pelos cômodos, ficar ali parado,
observando os ocupantes dormindo. Ricos ou pobres, todos os homens eram iguais em seu sono;
inocentes como bebês. Apesar de que, mesmo se estivessem acordados, munidos de toda sua
arrogância e imbecilidade, seriam-me inofensivos. Era uma diversão peculiar estudar as breves e
frágeis histórias daquelas pequenas vidas humanas.
Quando retornei ao refúgio, Yssarra estava ainda mais apática. Ela me ignorar
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completamente e eu, a meu turno, cansei de tentar fazê-la enxergar. Nós tínhamos nossas
próprias existências. Eu partia após cada despertar e saía atrás das minhas presas, depois disso
entregava-me à cidade, aos monumentos dos homens e me perdia em contemplação.
Ela, bem, ela se alimentava — felizmente não mais deixando cadáveres no nosso refúgio
— e voltava somente quando o sol estava para nascer. A coleção de cadáveres descobertos pela
cidade ao raiar do novo dia atestava sua reincidência na bestialidade.
Não tardou até que o mito dos nossos feitos se espalhasse para outras terras. Na Grécia,
sempre que cadáveres eram encontrados sob condições inexplicáveis, passou a se atribuir a culpa
às Lamias, que foi como passaram a se referir aos culpados pelas mortes das quais ouviram falar
das terras do Nilo. Os gregos acreditavam que as Lamias haviam sido soltas pelos deuses sobre o
mundo e por isso podiam cruzar distâncias humanamente impossíveis.
Tudo isso era culpa dela, que não sabia controlar a única necessidade vital que
possuíamos.
Qual não foi a minha surpresa, então, quando os relatos das mortes causadas em locais
distantes também falavam de corpos completamente drenados. As hipóteses eram duas: ou as
Lamias realmente existiam, eram criaturas diferentes de nós, mas se alimentavam da mesma
forma, ou então havia mais de nós. E se havia só alguém que não eu poderia tê-los criado.
O óbvio estava diante de mim. Durante seus massacres, Yssarra acabou por criar mais de
nós. Não fosse isso desgraça suficiente, ela ainda os havia deixado livres para vagar pelo mundo.
Inevitavelmente me lembrei de Set. Agindo como eu agia, nossos “irmãos” — Abiton
parecia algo cada vez mais distante, como se minhas existências lá não passassem de um sonho
prestes a se desvanecer da mente — sequer pareciam se importar. Uma ou outra morte não
causaria desequilíbrio entre os humanos, e tampouco afetaria os rumos evolutivos de sua espécie
e sociedade. Mas com um bando de sugadores de sangue espalhados por aí as coisas ficavam
diferentes.
Set fora punido por ter semeado a desordem em larga escala. Ele representara um risco
para a própria civilização. Meia dúzia de seres malditos fora de controle poderiam facilmente
dizimar uma cidade inteira em poucas noites. A responsabilidade por isso certamente recairia
sobre a minha pessoa, posto que fui eu quem plantou a semente das trevas. E isso me colocava
como o próximo candidato a receber a fúria dos meus elevados conterrâneos.
A possibilidade, de certa forma, aguçava minha curiosidade. Seriam eles capazes de me
destruir definitivamente apesar daquilo que eu me tornara? Algo dentro de mim ansiava por tirar
a prova. Mas o que eu queria mesmo era desfrutar da eternidade, exaurir dela todo o prazer que
eu pudesse encontrar, sem preocupações, sem compromissos, e para isso eu deveria escapar do
julgamento deles.
Pela última vez, tentei colocar a razão dentro da cabeça de Yssarra.
— Temos de falar — eu a surpreendi assim que ela despertou e tentei utilizar meu
domínio mental. O que eu não contava era que a maldita se tornara resistente aos meus
comandos.

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— Não temos nada o que falar Remekhse. Eu o amei, mas aqueles sentimentos obstruíam
o caminho que eu pretendia trilhar. Então você veio e me tirou daquele trajeto definitivamente.
Mas você me deu algo maior, algo melhor do que aquilo, eu reconheço. O seu presente me
proporcionou um novo objetivo, e com isso, eu não tenho mais razões para amar você. O sangue
é tão... Ah, aquele vestígio de pensamento que eu sentia por você foi reduzido a nada diante do
prazer de sorver o sangue e viver as memórias — E pronto. Foi justamente o golpe no peito que
eu não esperava. Ali morreram todas as palavras e argumentos que eu pretendia utilizar para
levá-la à razão. Fiquei sem reação, e ela terminou o ataque. — Você não me é mais necessário
Remekhse. Estou partindo.
— Tola! Eu lhe dei a eternidade, e o maior dos prazeres que você poderia obter. Eu a
amaldiçoei, sim, é fato, mas essa maldição veio com o meu amor eterno! Juntos poderíamos ter
alcançado a maior das felicidades neste mundo, mas você foi fraca! Você se deixou levar, e ainda
está deixando! Pensa que não sei sobre suas crias?! Acha que vai utilizar minha dádiva da forma
como bem entende ao passo que me descarta?
Talvez minhas palavras não tenham sido fortes o suficiente para causar-lhe alguma
preocupação, ou talvez ela não se importasse para dar qualquer importância à minha indignação.
Mesmo assim a atenção dela foi atraída e Yssarra baixou a guarda. Só me bastou um olhar e
pronto, ela estava lá, imóvel, calada. E assim permaneceria pelo tempo que eu precisasse para
tomar as devidas precauções.
Já ouviste falar da Grande Esfinge de Gizé, criança? É claro que já, e assim como todos
os habitantes desta época moderna, que para mim engloba os últimos dois mil e tantos anos, não
fazes a mínima ideia de que ela é — ou pelo menos já foi — algo além de um mero monumento.
Certos estão os estudiosos contemporâneos que alegam que ela fora construída á mais de
uma dezena de milhar de anos. Construída sob a orientação de visitantes de Abiton por membros
das primeiras civilizações humanas, a grande escultura servia como meio de comunicação entre
as espécies, embora, é claro, apenas meus conterrâneos podiam ativá-lo de nosso mundo de
origem. Quando aqui chegamos, por vezes recebíamos orientação através da esfinge.
Há muito ela não era utilizada, posto que a quase totalidade dos nossos companheiros de
exílio já recuperara o direito de retornar ao lar. E lá estava eu, agindo em desespero.
Colocando-me diante das patas gigantescas da figura leonina com face humana, eu
concentrei o meu pensamento. Boa parte da nossa tecnologia era ativada através da mente, do Ka
e do Ba, ao contrário da tecnologia deste mundo, que funciona por circuitos elétricos e
eletrônicos, ou então pela física pura. Não é de se espantar o fato de vocês sequer conseguirem
identificar algum dos nossos artefatos deixados para trás.
Poucos minutos foram necessários até que eu me visse diante de um dos meus
conterrâneos. A um espectador ocasional, apenas um homem parado diante do monumento seria
visto. Toda a comunicação ocorria, a grosso modo, na minha mente; exceto para os
comunicantes de Abiton, que me enxergavam como se eu estivesse ali diante deles.
Trewntevar era o nome dele, e eu considerei um milagre alguém ter se dignado a
responder meu chamado. Deixando de lado toda a gratidão, fui direto ao ponto:

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— Por favor, eu vos suplico, Yssarra deve ser parada! Não nego minha responsabilidade
por atirá-la no abismo, mas ela se deixou levar e se compraz na decadência. Ela não quer resistir
aos impulsos e descartou qualquer traço de sensatez que lhe restava. Eu peço humildemente que
a acolham, façam-na abraçar a razão e lhe deem outra chance, livrando-a da maldição que lancei
sobre ela.
— Sua observação é precisa. A responsabilidade é inteiramente dela pela forma com que
lida com sua condição. Não importa o caminho em que foi colocada, cabe a ela optar por segui-
lo ou não. Não obstante Remekhse, teus erros também recairão sobre ti, Yssara, por sua vez
encontra-se em situação de maior urgência. Siga nossa orientação.
Foi naquela fração de segundo em que uma solução me seria oferecida que toda a minha
atenção se dispersou. De súbito minha mente ficou vazia; eu simplesmente não pensava em nada;
não sabia o que estava fazendo lá. Não sabia sequer onde eu estava - ou que estava em algum
lugar, para falar a verdade. Com igual celeridade voltei a mim, e me encontrei sendo
arremessado aos céus por alguma força sobre humana. Algum maldito infeliz havia me golpeado,
e o débil em questão me arremessara contra a esfinge.
Explorando as possibilidades dos poderes a minha disposição, eu consegui literalmente
levitar, impedindo o choque contra a estrutura. Pude então olhar lá para baixo e ver a corja de
imbecis que se arremetera contra mim. Ah Yssarra, a tola não apenas havia espalhado o manto
pútrido da minha maldição pelo mundo afora, ela criara seus próprios seguidores. E os imbecis
ousavam me atacar, eu, o percursor de toda aquela desgraça.
Impulsionando meu corpo pelos céus com a mera manifestação da vontade, eu desci
sobre um deles. A julgar pelas vestes, ele era um soldado - um idiota, que ignorava o fato de que
toda a eficiência que sua espada possuía contra os humanos, era insignificante perante
Remekhse, o criador da sua espécie -, mas isso não o tornou mais apto a desviar. Seus ossos se
despedaçaram com o impacto e sua carne foi retalhada pelas minhas garras. O feito produziu um
som perturbador, que se assemelhava a rocha sendo moída e água borbulhando. Tudo muito
rápido.
No instante seguinte, minha mão agarrava o pescoço do outro atacante. Uma víbora
apanhando uma presa lenta. Em uma vã insistência, ele ainda foi capaz de tentar me golpear com
sua espada. Não é necessário explicar a razão de a lâmina ter se despedaçado contra minha carne.
Eu só esperei que a incredulidade se formasse em sua expressão para separar sua cabeça do
corpo.
Finda a distração, eu pretendia retomar minha conversa com Trewntevar. Foi aí que
minha ardilosa prole se revelou. Yssarra surgiu de sob as areias. Devo confessar que baixei a
guarda. Naquele momento de hesitação, ela não apenas conseguiu me imobilizar, como levitou
comigo pelos céus. Ambos sabíamos que aquela vantagem dela não duraria muito tempo, e não
obstante a minha imobilidade, Yssarra não seria capaz de me destruir ou causar qualquer
ferimento significante. Mas não era disso que ela estava atrás.
De início Yssarra me girou. Eu achei que fosse gargalhar, afinal, o que a tola achava que
poderia fazer contra mim? Me arremessar contra a areia ou contra a rocha? O que eu falhei em
observar foi que, embora fosse isso mesmo o que ela pretendia — me arremessar — a intenção

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não era danificar meu corpo.


Quando senti o impacto contra a rocha, o desespero me tomou. Eu sabia, minha intuição
me dizia claramente que ela fora bem sucedida em sua intenção. Atônito, eu nada fiz para evitar
a queda, tombando sobre a areia, onde Yssarra me golpeou ferozmente entre os escombros que
se desprenderam da face da esfinge.
A parte principal da estrutura resistiu. Somente o nariz da esfinge é que foi destruído, e
essa é a verdadeira história sobre o evento, em contrapartida às inúmeras teorias que circulam
entre os estudiosos do mundo moderno. A função principal do monumento, entretanto, se perdeu.
Com o impacto, a “máquina” deixou de funcionar. Lá se foi a minha esperança de obter a
sabedoria dos meus conterrâneos, e somente mais tarde eu compreenderia o porquê daquela ação
de Yssarra.
Revigorado, eu revidei a agressão. Não requereu muito esforço bloquear suas garras e
lançá-la para longe, para então, logo depois, inverter os papéis e colocar-me sobre ela, golpeando
com igual violência.
— Remekhse, pare! Pare, eu suplico! Por favor, perdoe meu erro! — ela gritou em
desespero, enquanto seu corpo imortal vertia o sangue das lacerações que eu infligia.
— Por que eu deveria, maldita?! Pela segunda vez você tentou me destruir! Eu lhe dei o
meu amor, a minha adoração e a minha confiança, e você me jogou nas mãos assassinas dos
mortais; Eu lhe dei a eternidade, e você distribuiu o poder entre os indignos, e os enviou para
tentar me destruir, não bastasse ter se arruinado...
— Perdão Remekhse! Perdão! Eu fui fraca. Eu sou fraca. A sede, o prazer, eles me
dominaram e eu não fui capaz de resistir. Eu fui covarde, e ao invés de lutar, me entreguei, e
quando você tentou me mostrar a verdade, eu fechei os olhos e tentei fugir. Fiz essa tolice. Por
favor, me aceite mais uma vez, me dê mais essa chance. Se você quiser, eu deixarei que domine
a minha mente para me ensinar a ter o autocontrole necessário.
E adivinhe o que o imbecil que cobiçava aquela mulher há séculos fez? Exatamente.
Ignorando todos os sinais, fechando os olhos para a razão, eu mais uma vez a perdoei.
— Eu lhe juro Yssarra, se isso for mais uma mentira...

— Não é! Não é, Remekhse. Reitero as minhas palavras, se for do seu desejo dominar a
minha vontade, e se for do seu agrado exterminar todos aqueles aos quais eu concedi o nosso
poder, que seja. Eu estarei ao seu lado de bom grado. Me submeterei ao seu comando naquilo
que achares melhor.
Acenei positivamente com a cabeça. O cansaço me tomava; não o cansaço físico, mas um
estupor. Minha mente estava abarrotada de todo aquele maldito drama. Pus-me a caminhar até
nosso refúgio, depois de constatar, com um breve olhar, que a esfinge não mais servia para nada.
De volta às ruínas, eu queria apenas repousar. Yssarra aparentava languidez, e eu supus
que a mesma exaustão a afligia. Perguntei-lhe se ela não gostaria de se alimentar, ao que, para
minha surpresa, ela disse que não. Confirmando minha expectativa, ela alegou que começara a
lutar contra seu desejo, e que triunfaria em sua promessa a mim.

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A verdade é que eu estava faminto, tanto do sangue para repor as forças gastas, quanto das
memórias de algum desconhecido para distrair minha mente perturbada.
— Meu sangue o revigoraria? — ofereceu ela hesitantemente.

— Não — recusei. As memórias dela e seus sentimentos conturbados eram a última coisa
da qual eu precisava.
— Posso trazer uma humana. Prometo que serei rápida, e que não chamarei qualquer
atenção. Ao drená-la, nos sentiremos como se estivéssemos ouvindo uma fascinante história
antes do sono. E na próxima lua, as coisas caminharão a nosso favor.
Cansado como eu estava, a ideia pareceu razoavelmente agradável. Às vezes, a mente
enxerga a conspiração, mas nossa paciência encontra-se tão esgotada a ponto de nos fazer
ignorar conscientemente os sinais.
E lá foi ela em busca da nossa “refeição”, enquanto eu me deitava no sarcófago. A minha
antiga máscara estava lá. Eu nunca mais a usara, mas a mantive comigo como uma lembrança
dos primeiros tempos sobre esta terra, e olhá-la naquele momento me fez reviver toda a minha
trajetória.
Não me dei conta de mais nada, até que ela surgiu diante de mim, trazendo envolta em seu
braço uma bela mulher. Uma pele acobreada sobre um corpo escultural. Um rosto delicado, com
lábios fartos e olhos grandes e vívidos. A peruca negra e suas vestes brancas indicavam não se
tratar de uma plebeia. Claramente Yssarra a colocara sob o domínio mental, uma vez que ela
fitava o nada, e não demonstrava qualquer temor.
A fim de inspirar-me confiança, ela concordou em bebermos simultaneamente, e assim
fizemos, cada um cravando as presas em um dos lados do pescoço da iguaria.
Ao toque da primeira gota uma torrente me inundou. Aquelas memórias eram um turbilhão
desumano de dor insuportável. Recuso-me a recordar aquela sensação; reviver seus detalhes — e
os estou suprimindo neste momento, para que você, minha jovem espectadora, não sofra o que eu
sofri por vivenciá-los — , mas aquela humana havia sido submetida a tais níveis de tortura física
e psicológica que não poderia ter sobrevivido, não fosse pelo controle mental de Yssarra.
Yssarra, ah mais uma vez — uma última vez — a maldita. Ela sabia que não poderia me
vencer fisicamente, então ardilosamente atingiu a minha mente. Mergulhado naquelas memórias
de sofrimentos indescritíveis, eu senti na pele todo pelo qual a mulher passara.
É verdade aquilo que dizem sobre a mente agir sobre o corpo. A ali, a minha mente
estava transferindo toda aquela agonia para o meu corpo. A dor era tanta que me tomou por
completo. Eu não conseguia pensar, não conseguia me mover, nem mesmo gritar. Cada nervo,
cada célula minha sofria e cada segundo parecia uma eternidade no pior dos submundos.
Era demais até para mim, Remekhse, o primeiro dos vampiros. Yssarra me pegara do
jeito mais ardiloso em sua teia. Não sei como, mas alguma parte minha enxergou pequenos
flashes do que se transcorreu depois.
À medida que a noite se aprofundava, outros indivíduos adentraram a tumba. Eram proles
de Yssarra. A traidora havia espalhado o manto entre um número inacreditável de pessoas. Sua
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consideração pela cria, entretanto, não era das melhores. Isso ficou claro quando eles cercaram
meu corpo agonizante e começaram a causar ferimentos brutais em si mesmos, cobrindo-me com
seu sangue.
Antes do amanhecer, todos eles haviam perecido. Os que não se desfizeram pela perda de
sangue foram executados pela sua criadora. Algo aconteceu, e o teto da tumba simplesmente
sumiu, dando lugar ao astro maldito em toda sua incandescência, e ao o primeiro contato com
seus raios, o sangue maculado que me cobria — que descendia de mim — irrompeu em chamas.
Dor eu não posso afirmar que senti, não do fogo; mas a agonia mental ainda me consumia.
Por quanto tempo em permaneci daquele jeito, ardendo em chamas, sob o efeito nocivo
do sol, eu não sei. Quando me dei conta, era Yssarra quem sangrava sobre mim. O sangue
ardente dos seus lacaios não havia sido o suficiente para me destruir, então ela utilizava o seu
próprio, muito mais poderoso, embora igualmente vulnerável à luz solar.
O sangue dela demorou mais antes de entrar em combustão, mas inevitavelmente acabou
por fazê-lo. Meu corpo foi ferido superficialmente pelas queimaduras - não que eu tenha sentido
algo - mas logo se regenerou. Ela, porém, ficou extremamente fragilizada pelo sacrifício. Com
muito esforço a tola golpeou meu corpo com as garras e com os dentes, sua força, porém, não
bastou para causar danos significantes, e os poucos ferimentos curaram-se rapidamente.
Muitas horas devem ter se passado, enquanto a traidora tentava me destruir, pois no
inferno em que eu estava mergulhado, pude vislumbrar o sol já quase se afundando no horizonte.
E ela, devido à um dia todo de exposição aos raios luminosos, já exalava fumaça. Em uma
questão de poucos minutos, seu corpo amaldiçoado entraria em combustão e ela pereceria. O fato
é que Yssarra havia calculado cada detalhe, e todos os mínimos eventos estavam voltados à
minha destruição.
Consciente de que nenhum dos métodos até então fora capaz de me destruir, e de que seu
tempo se esgotava, Yssarra, minha desejada Yssarra, utilizou seu último recurso — o que, no
fundo, ela realmente almejava. Seu corpo acabara de irromper em chamas, mas isso não a deteve.
Ela segurou os pilares principais que seguravam a estrutura (embora o teto houvesse sido
destruído, havia paredes e pilares suficientes para causar um grande desabamento), e empregou
sobe eles a força sobre-humana que eu lhe concedi.
Um último olhar para mim, foi a forma dela de me amaldiçoar, de me dizer que ela estava
dando o troco, e que por mais que não pudesse me destruir, com aquele ato se asseguraria de que
eu permanecesse ali, preso em sofrimento, pela eternidade, enquanto que ela, através das chamas,
finalmente se libertaria do manto de trevas com o qual eu a envolvi.
Heh, ela havia planejado cada detalhe minuciosamente. Livrar-se do maldito Remekhse,
de uma forma ou de outra, e escapar do seu corpo, seu Ka livre para seguir ao almejado caminho
da redenção.
Conforme Yassarra se tornava um punhado de cinzas, a tumba desabava sobre meu corpo
inerte e as areias do Egito nos engoliam.
Minha última visão foi a da escuridão envolvendo a tudo.

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O Sonho Milenar

Em dado momento, a agonia mental se foi. Isso, claro, em nada alterou a minha condição.
Eu ainda estava soterrado e pior, mergulhado em um sono profundo. Durante todos os eventos
decorrentes da traição final de Yssarra, meu sangue se esvaíra e, sem meios de me alimentar, eu
não tinha como reaver minhas forças ou recuperar a consciência, e consequentemente escapar.
Mas se por um lado meu corpo se assemelhava a uma mórbida escultura, minha mente
jamais se esmaeceu. Pelo contrário, ela estava perfeitamente ativa, mas não de um modo
agradável. Por miríades de infernos eu viajei; pesadelo atrás de pesadelo eu vivi. Alguns
envolviam cenas de lugares conhecidos daqui e de Abiton. Nos piores eu mal enxergava, era um
pensamento vagando na escuridão, cercado de faces e vultos mal formados que me
amaldiçoavam, riam e me acusavam. Dentre as muitas vozes eu reconhecia algumas das minhas
incontáveis vítimas.
Não havia como correr, não havia como fechar os olhos ou tapar os ouvidos. O tormento
era inescapável. Naquela existência disforme, eu queria correr; desejava que tudo se apagasse;
que minha consciência desaparecesse.
Quando não há o tempo para se orientar, até um segundo pode se tornar o mais tortuoso
dos milênios. Assim foi comigo. Eu teria encerrado a minha própria existência se soubesse
como. Mas mesmo dentro do tormento, ainda seria possível vislumbrar uma salvação. Em um
pesadelo em particular eu me encontrava renascido, e acredite só, eu era uma criança. Absurdo,
não? Eu, de um ser milenar, maldito e imortal, a uma estúpida criança humana!
Vagando pelas ruas de uma cidade às margens do Nilo, eu vislumbrava os escravos
labutando; ao longe, barcos de pesca navegavam o rio da vida e uma embarcação maior a mais
suntuosa, com seus beirais tingidos de dourado, seguia mais afastado. Seus ocupantes consistiam
na família real em pessoa, e os escravos que os serviam.
Quando eles desembarcaram, todos se ajoelharam, inclusive a criança que era eu. Não que
eu pretendia fazê-lo, mas na minha condição, acabei sendo obrigado.
No fundo eu sabia quem eu era. Sabia de toda a minha história, e ao mesmo tempo era
como se ignorasse todos os fatos. O tipo de coisa que só acontece nos sonhos: você sabe que está
sonhando, sabe que nada daquilo faz sentido, sabe as respostas, mas independentemente disso
aceita o sonho e se deixa levar por ele.
Dia após dia eu vivi uma infância decadente, onde nada me restava além de obedecer e
cumprir com os deveres de um plebeu. Eu era obrigado a adorar os deuses. Os deuses! Aqueles
que eu sabia serem meus semelhantes de Abiton. Conforme o tempo avançava, minha mente
infante parecia se esquecer das verdades, e se entregar cada vez mais à realidade mortal. Mas um
pouco abaixo da superfície o conhecimento habitava. No fundo eu sabia, mas nada fazia. Sempre
as reações inexplicáveis e inverossímeis que guiam nossas atitudes nos sonhos.

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Lá, quando eu adormecia, lembrava-me de tudo claramente, e me frustrava ao ter de aceitar


que Remekhse passara a viver como Arup, uma criança completamente humana. Revoltava-me
saber que ao acordar, as memórias desapareceriam, mas parte do conhecimento ainda estaria
presente em mim, e que eu nada poderia fazer quanto àquilo. E pior, eu teria de orar aos deuses
que sabia que nada possuíam de divino. Ah, mas a humilhação maior era ter de reconhecer o
faraó como um emissário divino. Um dos malditos primitivos...
Era um maldito inferno existencial, até que eu vi Set. Eu caminhava normalmente pelas
ruas, entre as simplórias casas de tijolos de barro, quando passando por entre duas construções
ele se fez ver como um vulto, e da mesma forma espantosa desapareceu. Foi o suficiente para
que todas as memórias voltassem e eu me desse conta de que aquilo não estava certo. Aquela
experiência existencial não era algo tão simples como uma nova vida.
Durante cada momento dos meus dias eu comecei a prestar mais atenção ao meu redor e,
como se meu pensamento tivesse passado subitamente a atrair o que eu buscava, um crescente
número de faces conhecidas passou a surgir diante dos meus olhos; antigas vítimas, antigos
conhecidos, compatriotas de Abiton, servos. Mas apenas eu conseguia vê-los, e logo eles
desapareciam, como espectros ou meras alucinações.
A primeira reação de qualquer criança normal seria contar a todos. Em seguida, ela
certamente seria levada à presença dos sacerdotes. Suas únicas perspectivas seriam ser apontada
como um arauto dos deuses ou então uma vítima de espíritos malignos. Obviamente eu me
mantive calado, enquanto pensava no que fazer.
Depois de muito pensar, com a frequência das visões aumentando a cada dia, eu obtive a
certeza de que aquilo só podia ser uma espécie de sonho. E se não fosse? A resposta viria de uma
questão mais profunda: o que eu tinha a perder? Se aquilo fosse real, e eu houvesse sido
condenado a uma nova vida em uma forma humana, a morte apenas me levaria de volta àquilo -
uma nova existência humana. Porém, se eu estivesse certo, a morte daquela criança impotente
seria o despertar do velho Remekhse. Algo cujo risco realmente valia a tentativa.
Dadas as condições primitivas de vida daquele povo, perder a vida não era uma tarefa
realmente trabalhosa. Uma queda letal foi arranjada em questão de minutos, sem muito
planejamento, através da qual eu mergulhei de pronto para a morte indolor. Um baque e pronto,
eu fui arrebatado para fora daquele corpo infante e lançado em uma espécie de limbo. Sentia-me
quase disforme; uma ideia vagando entre brumas cinzentas.
Focando meu pensamento, minha vontade, finalmente a bruma começou a se dispersar e eu
comecei a enxergar meus arredores. Mas ainda que me faltasse o corpo, eu sentia a fraqueza
inerente a um físico debilitado. Não era dor por assim dizer, mas um desconforto, certa
dificuldade em focar meu pensamento. Sonolência da consciência.
Naquele estado, o que eu enxergava não eram as pessoas em si, mas imagens, cenas
completas, porém enevoadas. Não demorei a concluir que tratavam-se dos pensamentos das
pessoas. Eram ideias que se manifestavam diretamente da mente dos humanos, e naquela minha
condição incorpórea eu podia vê-las claramente.
Instintivamente me dirigi a uma daquelas imagens (algumas se moviam, como sonhos
sendo projetados). O mesmo instinto me levou a tentar me alimentar daquilo, e qual não foi a
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minha surpresa, além, claro, do enorme prazer, ao perceber que eu era capaz de me alimentar
daqueles pensamentos. Eles nutriam aquele “eu” incorpóreo, tal qual o sangue nutria minha
forma física.
Não era de todas as imagens que eu podia me alimentar, entretanto. Somente aquelas cuja
ideia me agradava é que pareciam me preencher e me suster. Pensamentos envolvendo atos
libidinosos com belas mulheres, e todo tipo de prazer físico ou intelectual.
Conforme eu me alimentava, passava a ter melhor consciência daquilo que me cercava,
até o ponto em que comecei a enxergar o mundo físico e as próprias pessoas que o habitavam,
minhas vítimas. Uma nova faceta da minha maldição fora descoberta, o que mais tarde receberia
a alcunha de “vampirismo espiritual”.
Enquanto vagava na forma de Ka buscando o alimento etéreo, reconheci a velha terra
nutrida pelo Nilo. Percebi também as mudanças que ela sofrera. Vilarejos haviam se
transformado em cidades, cidades haviam crescido (ou então encontraram a destruição da guerra)
templos jaziam em ruinas, tumbas que outrora inspiravam respeito e devoção, haviam sido
saqueadas e profanadas. Quanto tempo durara minha ausência do mundo?
Minha alimentação etérea me ensinou um novo e proveitoso truque. A ligação do meu Ka
com o Ba das minhas vítimas criava uma relação simbiótica, e a fraqueza psíquica que eu lhes
causava abria caminho para a sutil manipulação de suas mentes, terrenos férteis para ideias afins.
Lá eu plantava pequenas sementes de sugestões que eles prontamente seguiam acreditando estar
dando ouvidos aos seus próprios desejos.
Humanos, tolos, frágeis e acima de tudo corruptíveis. Eles foram a chave da minha
liberdade. Com tantos saqueadores de tumbas desrespeitando a memória dos seus ancestrais, eu
procurei um grupo com medidas iguais de tolice e ambição, e com altas doses de perversão, a
fim de sintonizar com os meus pensamentos. Uma vez alimentando-me deles, estava feito.
Sequer procurei prestar atenção nos seus nomes. O que me importava era que aquele peculiar
bando buscava fortunas fáceis a fim de saciar sue embriagues, pagar dançarinas e comprar
escravas para saciar sua lascívia — exatamente o tipo de coisa que eu faria na condição deles.
Enviando visões através de sonhos, jogando lembranças falsas durante suas bebedeiras,
fazendo-os crer ter ouvido coisas entre os gemidos das mulheres, foi assim que eu os coloquei no
rastro da minha tumba soterrada.
A ambição falava forte entre aqueles, logo não tardou até que eles montassem a
expedição. Quando ali chegaram e encontraram os primeiros resquícios da tumba sua
determinação multiplicou-se. Passaram a trabalhar com determinação espantosa. Por várias vezes
eu me vi obrigado a incentivar seus desejos a fim de que diminuíssem o ritmo. Eu tinha de
cronometrar o avanço deles, a fim de que me encontrassem durante a noite.
Ao longo da escavação alguns perderam a vida, inevitavelmente. Mas no fim, numa noite
excepcionalmente fria e nublada, eu pude ver meu próprio corpo retorcido e ressecado entre os
antigos blocos de pedra.
Os restos de algum grande faraó de outrora, eles imaginaram, conforme eu arquitetara, e
mais do que depressa removeram os últimos escombros de sobre minha forma imortal, na

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esperança de ali encontrarem ouro e joias. Encontraram algo muito mais valioso, um deus.
Minha antiga máscara também jazia entre as ruinas, e alguns deles a examinavam, enquanto
outros cometeram o erro fatal de se aproximar demais de mim.
Um simples pensamento; uma pequena manifestação da vontade, e eu já não mais
enxergava as coisas através de meu Ka — ao qual, de agora em diante passarei a me referir por
uma nomenclatura mais moderna, espírito —, eu finalmente acordara.
Mexer meus membros a muito paralisados foi muito, muito mais fácil do que eu
imaginei. Apesar de ressecados, meus dedos se fecharam ao redor da garganta de um dos meus
servos desavisados. Ah, uma mistura de orgasmo e epifania! Remekhse eu era novamente!
Rápidos goles e eu sentia a força retornando; não, não a força, e sim a sensação de
invencibilidade inerente à minha condição.
Incansável, insaciável, o ápice de todos os sentidos físicos e espirituais. Foi tudo tão
rápido que mal o corpo do meu primeiro instrumento havia tombado, eu já me lançara sobre os
demais. Alguns nem souberam o que aconteceu. Quanto aos que souberam, bem, isso não lhes
trouxe nenhuma vantagem, nem alterou seus destinos.
Era hora de reemergir. Triunfante eu deixei a tumba com as vestes simplórias dos ladrões,
carregando comigo minha antiga máscara.
Não havia mais ninguém lá fora sob o céu nublado da noite, era o que os meus sentidos
superiores diziam. Não foi o que eu constatei, entretanto. Com meu corpo revigorado e meus
poderes em sua plenitude eu jamais esperava que alguém pudesse me surpreender. Mas ele o fez.
Ao deixar os escombros, dei de cara com um homem quase tão alto quanto eu. Com a luz
da luz encoberta pelas nuvens, até o manto impecavelmente branco de linho que cobria seu corpo
negro como ébano poderia passar despercebido aos olhos de um mortal. Não que ele quisesse se
ocultar. A ausência de medo na sua expressão e a posição em que ele se colocara já deixavam
claro que ele esperava por mim e que sabia o que eu era.
— Remekhse, o esquecido. Porto um recado dos seus conterrâneos de Abiton — As
palavras dele me calaram, fazendo com que eu apenas o encarasse.
— Os elevados partiram, mas deixaram-me aqui como embaixador e observador. A ti,
venho trazer o que por ora é um aviso cordial. Tua natureza mudou, de forma que não é um
humano e tampouco um dos visitantes. O que você se tornou consiste em algo único, trágico e
perigoso. Mas o seu perigo é limitado a infelizes isolados ou a aqueles que o atraem através de
suas próprias monstruosidades, por isso você foi poupado até agora e está livre. Lembra-te de
Set, presumo.
— Sim, eu me lembro. Por ventura vieste até o meu despertar para me ameaçar? - era
tudo o que eu precisava, acordar e dar de cara com um tolo arrogante.
— Por ora, um aviso cordial, como eu disse. Set foi punido, pois seus atos dominavam as
mentes das massas humanas. Você afeta poucos, apenas mais uma dentre as várias formas de
controle de população. Enquanto permanecer nas sombras, estará salvo, de certo modo, pois pelo
que vejo, há um considerável tempo não está a salvo de si próprio.

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— É só isso? — depois de tanto tempo, o meu retorno tinha de ser um momento de


triunfo. Eu não poderia deixar aquele estranho falar comigo como bem entendesse e
simplesmente abaixar a cabeça. Remekhse tinha de se impor através da sua arrogância.
— Uma, de duas mensagens. A outra é informar-te de que as divindades que vocês
personificavam, Remekhse e Yssarra foram varridas da história humana. Todos os resquícios da
sua existência sobre este mundo foram apagados. Isso pelo que vocês se tornaram. O curso do
progresso humano não pode ser influenciado pelas provas da existência da espécie que você
acidentalmente criou.
— E por que não os outros? Eles se passavam por deuses. Suas estátuas ainda adornam os
templos, as tumbas, os murais e os pergaminhos. Por que eles também não foram apagados.
— Porque não deixaram vestígios concretos, e futuramente cairão no status de meros
mitos. Mas com vocês é diferente. Seus descendentes ainda caminham pelo mundo, e você o
próprio pai da espécie maldita, aqui está na minha frente e se seguir meus conselhos,
permanecerá por incontáveis eras deste jovem mundo. Com a única condição de que não venha a
alterar os rumos da história humana. Viva nas sombras como o que se tornou, ou abrace a luz
como seus irmãos, mas nunca se revele aos homens como o que é, e nem tente posar como um
deus perante eles.
O aviso estava dado. Meu nome desaparecera da história e nada o traria de volta. Bem, ao
menos nada que não me trouxesse mais problemas. Naquele aspecto eu estava derrotado,
tampouco encontrava-me munido de qualquer vontade para ir contra as determinações dos meus
“conterrâneos” distantes; especialmente gozando da liberdade para explorar os prazeres de um
novo mundo. Havia, porém a questão do orgulho. Eu me recusava a abaixar a cabeça para aquele
emissário, como um moleque sendo repreendido pelos pais; pior, pelo serviçal dos pais.
— Diga aos seus que eles não têm com o que se preocupar. Os caminhos desse povo em
nada me interessam. - ao menos eu saí com a minha dignidade intacta. Quanto ao emissário, ele
apenas acenou, deu as costas e pôs-se a caminhar pelo vale deserto, até desaparecer como uma
miragem, jamais alterando sua expressão estatuesca.

Depois disso eu me tornei um nômade, no ponto de vista vampírico, é claro. Passava


alguns anos em alguma tumba abandonada, depois me mudava para outra, e assim por diante.
Cheguei a habitar algumas cidades, por vezes até residindo nos esgotos (a canalização das águas
do Nilo em canais subterrâneos de barro datam daquela época e figuram entre as muitas coisas
que nós ensinamos aos humanos). Quando encontrava alguma presa mortal realmente
interessante, eu costumava passar algumas noites em suas residências, drenando-as aos poucos.
Quando finalmente suas vidas se esgotavam, eu partia, sem que minha presença fosse notada.
Um grande jogo era como eu via as coisas então. Vez ou outra, durante o sono do dia,
meu espírito vagava, explorando e escolhendo as vítimas — como já sabes minha jovem
espectadora, preferencialmente mulheres sedutoras —, para de noite cruzar seus caminhos.
Quando a intenção era quebrar a mesmice, eu vagava explorando as residências e observando das
sombras os humanos ignorantes.

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Desse modo eu vi os anos passarem, e com eles, o Egito, a terra prometida que eu ajudara
a erguer, decaindo cada vez mais — o que não era de se estranhar, tendo em vista que os mortais
não mais tinham os filhos de Abiton para lhes guiar.
O mundo estava mudando, embora eu não. Nessas alturas eu já havia decidido explorar
outras terras, pelas quais viajei por anos. O império romano havia crescido consideravelmente, e
se expandira para todos os lados, passando a influenciar inclusive o enfraquecido Egito. Não que
eu me importasse, ainda mais levando em conta que a expansão do império colocava ao meu
alcance belos exemplares de cidadãs romanas. Gerações nasceram e morreram durante esse
período, que aos meus olhos transcorreram como as horas de um dia curioso. Até que
inadvertidamente as próprias bases do império foram abaladas por um único homem, sim, é a ele
que eu me refiro; o nazareno.
Imaginas se eu convivi com ele, e a resposta é não, embora por uma ocasião eu o tenha
avistado de longe, mas abstenho-me de falar sobre ele. Não me cabe dizer se ele era divino ou
mundano. Esse é um assunto do qual não tratarei. Fato é que - e é apenas isso que direi sobre
esse tópico - na ocasião em que o vi, ele caminhava por Jerusalém, seguido por uma multidão.
Em dado momento, parou para falar com seus suplicantes, e então, repentinamente se virou, seus
olhos encontrando os meus diretamente por entre aquele mar de pessoas que nos separava. Não
havia dúvida, meus sentidos superiores, tal qual minha intuição, deixavam claro que era para
mim eu ele olhava, como se soubesse quem eu era. Um calafrio percorreu meu corpo — algo que
eu não mais era capaz de sentir, devido a minha natureza —, mas não de medo. Era como alguém
dizendo me reconhecer, não de uma forma ameaçadora, apenas talvez piedosa, ou então
convidativa. Um segundo depois eu me misturei na multidão e parti. É só, fique a vontade para
tirar suas próprias conclusões.
Independentemente de qualquer coisa, ele deixou exemplos sensatos a essa raça infeliz e
autodestrutiva; não a mim, obviamente, para um ser como eu não havia chances de redenção,
quiçá o desejo.
Roma. Falemos agora de como foram os meus dias no arrogante império.

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Panem (Sanguinis) et Circences

Roma não foi o primeiro, e nem o último. Mas de todos os impérios e grandes estados da
Terra que clamavam ser o ápice da civilização, não houve um que não exaltou mais do que tudo
a selvageria humana.
A realidade crua é que nem mesmo em seu estado bruto, vagando pela natureza, o
homem é tão selvagem quanto quando parte dessas sociedades “civilizadas”.
A faceta selvagem dos romanos, porém, foi algo único. Eles praticavam a devassidão em
todos os aspectos da vida: o sexo, a — falta de — higiene, a comida e a bebida, a religião, o gosto
pelo sangue, pela guerra. Em tudo isso eles se regozijavam do modo mais exagerado possível. E
eu adorava! Como não o fazer, quando eu podia mais do que eles? Seduzí-los era incrivelmente
fácil, mas as minhas medidas de prazer ultrapassavam em muito os limites deles.
Nem tudo no império me agradava, por outro lado. A arquitetura era simplória. Algumas
cidades até conseguiam passar um ar mais agradável devido às ruas pavimentadas e às
catacumbas, mas as casas; as colunas; era tudo simples demais. Uma simplicidade que aqueles
arrogantes consideravam apical.
Havia também as vestes. Meros pedaços de pano que eles chamavam de togas. Pobres
coitados vestindo cortinas. Aquilo era um empecilho à sensualidade das mulheres, e também não
dava um aspecto vistoso aos homens. As armaduras dos centuriões eram um pouco melhores,
mas ainda lhes faltava imponência.
Falemos do lado bom. Sabe-se que no antigo império, as lutas de gladiadores eram a
diversão popular. A política à qual os historiadores se referem como “pão e circo”. Eu, é claro,
apreciava muito essas lutas, mas não aquelas destinadas à plebe nos grandes coliseus - e quando
menciono a plebe, me refiro a todos os mortais, pois independentemente da posição social, todos
são igualmente inferiores.
Não eram comuns lutas entre mulheres nos coliseus, mesmo nos antros do submundo.
Não, as escravas serviam a outro propósito. Mas eis que eu, em minha imutável perversão tive
uma ideia. Unindo o útil ao agradável, eu criei meu conceito particular de pão e circo: uma arena
onde minhas belas vítimas lutavam para o meu entretenimento.
Eu avisei que a minha perversão beirava níveis assustadores.
Lá nas catacumbas, eu aproveitava boa parte das minhas noites assistindo os embates
entre as minhas belas gladiadoras. Mulheres de diversas origens compunham seus números. De
escravas de terras distantes a alta sociedade de Roma. Trajadas do mínimo possível de roupa e
algumas peças de armadura - uma morta rápida estragaria a diversão — elas lutavam
ferrenhamente. As mais histéricas tinham de ser submetidas à dominação mental.
E como sangue morto não me alimentava (é como comida estragada para um mortal; faz
vomitar, e não nutre. Um consumo excessivo me colocaria em outro sono secular, até que eu
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pudesse me alimentar de forma decente outra vez), as vitoriosas é que acabavam por ter a honra
de ser a refeição da noite. Claro, como um dominus justo, eu não drenaria minhas campeãs até a
morte. Sugava apenas o suficiente para me manter nutrido, às vezes mais de uma por noite, e
durante o processo as recompensava com níveis incomensuráveis de prazer, do tipo que nenhum
mortal jamais conhecera, inserindo memórias agradáveis em suas mentes.
Nem tudo eram rosas para as campeãs, entretanto. A guerreira vitoriosa nem sempre saía
ilesa. Foi aí que descobri nossos usos para o meu sangue amaldiçoado: fazê-las beber das minhas
veias regenerava imediatamente os ferimentos superficiais, e caso o sangue fosse ministrado
dentro do tempo certo, até membros recém-amputados podiam se regenerar com o tempo. Parece
maravilhoso não é? Remekhse, a cura para o câncer, o serum humanitas, o presente divino para
secar as lágrimas dos homens.
Não.
Para seres atormentados como eu, cada aparente vantagem traz de brinde um mar de
desvantagens inoportunamente frustrantes. Cada uma das pobres coitadas que ingeria meu
sangue ficava eternamente dependente do mesmo, e eu não falo do desejo do vício. Eu falo da
necessidade física. Se depois um dia completo elas deixassem de ingerir meu sangue novamente,
todos os ferimentos recuperados se abriam novamente, os membros feneciam e caiam em uma
pilha decrépita de matéria podre. E não parava por aí, as minhas células que residiam no corpo
delas passavam a corroê-las por dentro, causando uma dor excruciante por horas antes de fazê-
las tombar como cadáveres roxos, perfeitamente preservados. Elas se tornavam duráveis como
estátuas, e confesso que logo vi na prática uma forma de preservar eterna — e talvez
morbidamente — as belas formas das minhas favoritas.
Parece que foi ainda hoje que me regozijei assistindo as lutas de Felumée, uma pálida
escrava gaulesa, com as pequenas tranças em seus cabelos loiro acobreados chicoteando
conforme ela se movia como uma fera. Suas lutas eram rápidas e violentas, pois ela sempre
visava a cabeça da adversária desde o primeiro momento. Os cadáveres que ela deixava para trás
geralmente ficavam intactos, salvo pelos crânios esmagados. Uma morte rápida que raramente
dava às adversárias a chance de revidar. Outra de minhas favoritas, Nimbria, uma beldade negra
como ônix, descendente de núbios, tombou perante sua brutalidade. Esta se deliciava partindo os
ossos das inimigas. Suas execuções quase sempre terminavam com a outra gladiadora
imobilizada para uma lenta quebra de pescoço. Quando alguma romana caia em suas mãos, o
deleite era palpável.
Adrasteia. Dentre todas as minhas favoritas, aquela grega de longos cabelos castanhos e
rosto delicado era a cujo estilo de matar mais me agradava. Suas formas esbeltas, o rosto bem
delineado, estes podiam enganar os menos maliciosos, mas aqueles capazes de reconhecer um
olhar sádico tinham todos os motivos para temer a mulher.
Sua técnica era conhecida como “retiarus”, nome óbvio devido ao uso da rede. Ela
chegava a se colocar em risco, passando boa parte da luta apenas se esquivando até a chegada do
momento perfeito para enredar a presa. Uma vez tendo capturado a inimiga, Adrasteia dedicava
um bom tempo se divertindo com ela. Primeiro ela se certificava de que a presa não voltaria ao
combate. Para isso desferia golpes de tridente ou espada nos tendões ou canelas, depois partia
para inutilizar as mãos e braços, então vinha o prazer.
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Á pequenos e lentos golpes ela torturava e quebrava a inimiga - oh, as vezes ela até ia
além, oferecendo carícias, antes de lhes quebrar o pescoço ou atravessar seus crânios com uma
lâmina - e finalmente as matava de alguma forma criativa, isso quando não as deixava
agonizando, até que o sangue se esvaísse de seus corpos e elas lá permanecessem fitando o nada.
Durante quase toda a minha estadia no império eu mantive meu pequeno antro de morte e
prazer sob aquelas catacumbas esquecidas.
Concomitantemente, passei a ouvir rumores e obter vislumbres da presença de outras
“lâmias” vagando por Roma. Lá, porém, meus descendentes eram chamados de “stryxes”. Não
nego que as notícias atiçaram a minha curiosidade, pondo-me a investigar de longe.
Espantosamente parecia que meu sangue se difundira amplamente pelas terras vizinhas.
O manto maldito havia sido colocado sobre os ombros de todos os povos da África, Europa e
Ásia. Obviamente, em cada um desses lugares, nomes, origens e roupagens diferentes lhes foram
atribuídas. Feliz ou infelizmente nenhuma delas remetia a mim, muito embora maldições divinas
estivessem sempre embutidas nas histórias — minha existência havia de fato sido apagada dos
anais da história humana.
Strigoi ou moroi entre os romenos; Lilitu, entre alguns dos muitos nomes atribuídos na
Mesopotâmia; Vetalas na Índia, e esse era o conceito que mais se aproximava, de certo modo, da
verdade. Os vetalas eram espíritos aprisionados em corpos sem vida, acreditavam os indianos.
O povo romani chamava os membros da espécie de “mullo”, que em seu dialeto significa
“aquele que não está vivo”. Por sua vez, os hebreus nos chamavam de “aluka”, ou sanguessugas,
também um nome bem adequado, embora um tanto pejorativo.
Dearg-due entre os celtas (literalmente sugador de sangue vermelho), ou então bahoban-
sith. Note que dentre essas muitas culturas, nós éramos confundidos com demônios e todo tipo
de criaturas bizarras. Em alguns lugares éramos aberrações animalescas, em outras, a referência
dizia respeito a uma única criatura com alguma história trágica (provavelmente algum
descendente que acabou por atrair atenção demais).
E esses são apenas alguns dos exemplos da disseminação da minha “espécie” pelo mundo
afora. Eu não dava a mínima para eles, pelo menos era o que eu achava. Para que me importar
com os feitos dos meus inferiores, especialmente sabendo que eles eram completamente
ignorantes sobre suas raízes? Mas o orgulho é algo que se manifesta da boca para fora e também
nos recônditos do ser, enquanto que nos nossos pensamentos, lá onde podemos dar o braço a
torcer, pois sabemos que ninguém poderá ver nossas fraquezas e nossa hipocrisia, lá nós
abraçamos - ainda que mediante mentiras contadas a nós mesmos - todo aquilo que fingimos
desdenhar. Ora, é claro que eu não resisti a dar uma espiada nos meus descendentes.
Deixando o corpo seguro, eu vagava livremente em minha forma espiritual para qualquer
parte do mundo. Pobres cópias imperfeitas eles eram. Tão ignorantes e tão fechados em sua
pequenez, que mal haviam explorado seus dons. Eu podia vê-los, segui-los, perscrutar suas
mentes e espíritos, e eles sequer notavam a minha presença. Azar deles. O importante é que eu
me entretinha e matava minha curiosidade.
Nas ocasiões em que eu não me demorava bisbilhotando os imortais pelo mundo afora,

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ainda restava um tempo para que meu espírito desfrutasse de um estado menor de consciência.
Eu experimentava algo semelhante aos sonhos dos mortais. Foi durante minha estadia em Roma,
a primeira vez que vivenciei uma situação em particular: Yssarra surgira para mim no sonho.
Furiosa, ela avançava contra mim, proferindo palavras de ódio, acusando-me por ainda
permanecer sobre o mundo e por todas as suas desgraças. Depois da primeira vez, os sonhos
envolvendo minha antiga companheira voltaram a se repetir, felizmente em ocasiões raras. Em
alguns desses, havia momentos em que ela aparentava confusão, parecendo não saber exatamente
a razão de me odiar, ou não se lembrando de onde me conhecia. Em outra ocasião nós
simplesmente conversamos, e ela me repreendeu, como uma irmã aconselhando um irmão, pelas
minhas escolhas.
Não obstante esses raros momentos de desconforto, meus jogos sangrentos prosseguiam.
E foi neles que o primeiro encontro indesejado com uma das crianças da minha linhagem
naquela era se deu.
Mithria era uma escrava como qualquer outra. Uma jovem de rosto delicado, pele e
cabelos claros. Do tipo que só de olhar você já percebia que não duraria nem um minuto na
arena, e era justamente esse detalhe que a tornava interessante. Outros, porém, se interessavam
nela por motivos mais sinceros.
O massacre estava por ter início, e eu aproveitava cada segundo do coração dela
acelerado, enquanto a garota se preparava para pisar no solo de sua morte. O desespero era
tamanho que a impedia de começar a chorar descontroladamente. Em um traje sumário de couro
e correntes e com uma espada em mãos, ela tremia.
Observando, e já me preparando para o momento de virar o polegar para baixo e autorizar
o golpe final que eu sabia Gaila (a outra gladiadora) não tardaria a desferir, eu senti algo
estranho. Uma presença distinta, que fazia como se o próprio ar do local alterasse suas
propriedades. Algo semelhante a um campo magnético conflitando com aquele que emanava do
meu próprio ser. Imediatamente eu soube.
Subitamente várias das gladiadoras que aguardavam sua vez de lutar foram acometidas de
um ataque de violência. Elas avançaram umas contra as outras, e antes que eu pudesse impedí-
las, uma sombra lançou-se na arena e rasgou as gargantas das que ainda não se digladiavam.
Digo uma sombra aos olhos daquelas mortais, pois aos meus sua forma e detalhes eram
bem evidentes: um jovem homem, de não mais de dezessete anos, cabelos loiros levemente
enrolados, embora curtos, e um rosto altivo com o queixo curto e angular, mas o que o
diferenciava era a palidez mórbida de sua cútis. Não tão acentuada quanto a minha, mas o
suficiente para marcá-lo como um ser que não mais pertencia ao mundo dos mortais.
O que ele buscava estava claro: a única gladiadora incólume no caos que o invasor
instaurara: Mithria. Causando a ele o espanto que ele próprio devia se gabar de causar entre os
humanos, movi-me com a rapidez de um pensamento e me interpus entre ele e o objeto de seu
desejo.
O fato era que aquele era o meu refúgio, meu antro de prazeres, e aquelas mortais era
meus objetos. Isso sem levar à mesa o fato de que eu era o pai da espécie à que aquele insolente
pertencia. Não, ninguém desafiaria a minha autoridade; ninguém chutaria as peças do meu
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tabuleiro.
Não havia a necessidade de fitar os olhos da gladiadora para que eu pudesse controlar sua
singela mente mortal. A mera manifestação da minha vontade era suficiente para que ela ficasse
ali, imóvel, descartando qualquer possibilidade de tentar um ataque inútil contra as minhas
costas. Já a mente do meu semelhante não era tão desprotegida.
Jovem ele era perante os meus parâmetros, mas ao menos ele possuía experiência
suficiente para saber manifestar a sua vontade sobre-humana. Nada que me ameaçasse, mas o
bastante para não se permitir se transformado em um fantoche por uma mente superior.
Seu nome foi algo que ele não conseguiu ocultar da minha perscrutação. Tão logo fitei
seus olhos obstinados, ficou claro. Gareth ele se chamava, e ele amava aquela escrava.
— Jovem Gareth. Por mais que a sua ousadia tenha me pego desprevenido, e suas
técnicas para causar a morte alheia tenham me chamado a atenção, e isso é um elogio, eu não
tenho a mínima vontade de me deparar com consanguíneos, e não dou a mínima para os
problemas da nossa espécie. Vou ser compreensivo, e deixar que saia, agora, lembrando-lhe que
nunca mais apareça na minha frente, e esqueça da existência do meu pequeno antro.
— Não! Eu é que não me importo com o seu domínio ou sua influência. Seja qual for a
sua idade, ou sua origem, isso não lhe dá o direito de se alimentar, de torturar, a minha amada
Mithria! Eu vou tirá-la das suas garras, e dê-se por grato se eu não lhe infligir toda a dor que
causou a ela!
— Ah, meu infante, saiba que eu a comprei de forma honesta. Saiba que não fui eu quem
a escravizou e a trouxe a Roma. Sob uma visão crua, eu provavelmente a poupei de um destino
muito pior — Meu orgulho gritava; um jovem imbecil ousava invadir minha arena, matar meus
objetos de prazer e ainda desafiar a minha autoridade. Minha voz interior urgia para que eu o
fizesse passar sua eternidade inumana mergulhado na mais indescritível dor. Só que eu
surpreendentemente não dei ouvidos, pois olhando para Gareth e o motivo de sua ousadia, eu me
sentia como que olhando a mim mesmo junto de Yssarra.
De um modo pior, para ser sincero. Aquela mortal parecia não ter a intenção de apunhalar
seu amante pelas costas e ele, ao contrário deste que vos fala, estava acometido de um amor
sincero. Eu fui obcecado por Yssarra, mas para mim ela era um objeto, não muito diferente das
minhas gladiadoras.
— Você pretende cobri-la com o manto das trevas? — Inquiri, movido por sincera
curiosidade. Se ele a amava, por que não há havia protegido com a imortalidade, afastando-a da
possibilidade da escravidão? Ou será que era justamente por amá-la, que recusava-se a condená-
la a tal fardo, empregando ele sua maldição a fim de protegê-la?
— Ela não sabia o que eu sou. Não até agora — ele falou sem medo, mas consciente da
minha superioridade. — Você é ancestral. Pode me punir ou me destruir pela minha ousadia, mas
saiba que não me arrependo de nada. Apenas peço pela sua honra, e por aqueles que deve ter
amado na sua primeira vida, que derrame sua fúria sobre mim, e não sobre ela. Que meus anos
infinitos sirvam como moeda pela segurança e liberdade de Mithria.
Maldito moleque. O desgraçado despertou-me a vontade de conviver com outro da
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espécie.
— Merda, Gareth — eu disse excrementum, e me segurei para não rir. Algumas palavras
em latim são simplesmente engraçadas. Ele também teria rido, não estivesse tão tenso. — Você
acabou com a minha diversão. Olhe só a ruína que fizeste da minha bela arena. Mas não importa.
Venha, junte-se à sua amada. E seja bem vindo a juntar-se a mim também. Chame-me Veltus.
Ele hesitou, é obvio. Quem não hesitaria, mesmo sendo um imortal? Principalmente
sendo um imortal, diante de um semelhante mais antigo e poderoso. Ah, imagine agora se ele
soubesse que estada diante d´o imortal.
— Antigo Veltus, agradeço a tua hospitalidade e compreensão, e peço desculpas pela
sanguinolência que causei em teus domínios. Fico tentado a aceitar tua oferta, porém, não teria
eu com, meus atos, também incorrido na fúria de teu Consilium ou de teu... hum, pater?
Por consilium e pater ele se referia à sociedade dos stryxes que se ocultava sob as
sombras do império romano. Tão arraigados à organização social que compunham em vida, na
imortalidade eles buscavam a emular. O consilium era como chamavam a totalidade de seus
membros, e pater era o título que um vampiro dava ao seu senhor. Certamente nem todos os
vampiros de Roma se submetiam a este tipo de organização, e consequentemente para eles a
sobrevivência era mais difícil. Muito embora eu mantivesse minha existência em segredo dessas
crianças, eu estava ciente da sua presença e conhecia os mais profundos segredos de cada um
deles, graças aos meus poderes amadurecidos pelos milênios e a minha capacidade de me
locomover fora do corpo.
— Eu venho de fora de Roma, por isso não me submeto a qualquer consilium. Quanto ao
meu pater, há muito ele sucumbiu perante outro da espécie, por isso não devo subserviência a
ninguém — não era de tudo mentira.
Ao fim, Gareth, sua amada e eu tornamo-nos uma “família”. Não que eu tivesse me
arrependido de qualquer coisa, mas desculpei-me com Mithria.
Minhas catacumbas eram o lar perfeito para uma ex-escrava e seu amante vampiro
gaulês. E, claro, para a fonte da maldição que se espalhava pelo mundo e que nada queria ter a
ver com sua prole decadente.
As noites ficaram mais animadas. Passei a vagar mais pelas ruas na companhia dos meus
“amigos”. Também era bom poder conversar, trocar informações. Não que eu não pudesse ver as
coisas em espírito, ou obter o conhecimento através das minhas vítimas, mas conversar, como
um ser vivo de verdade, era saudoso.
Gareth e Mithria não aprovavam meu gosto pelas arenas (as minhas arenas particulares,
claro), mas não ousavam tentar me impedir, o que não quer dizer que eu também não tenha
cedido em termos. Daquele momento em diante passei a utilizar apenas gladiadoras que
desejavam de fato combater, as quais eram recompensadas com prazeres mundanos e as dádivas
do meu sangue.
A fim de conhecer melhor meu aliado, eu me ofereci para provar do sangue de Gareth. Não
preciso dizer que cada detalhe da sua vida anormalmente longeva se desvelou a mim. Mas não se
empolgue, não irei abordar esse assunto pois tomaria tempo, e não nos acrescentaria nada.
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É de se supor obviamente que ele também desejaria tomar do meu sangue e absorver as
minhas memórias. Felizmente eu sabia não só impedir o fluxo das minhas vivências, como
também era capaz de alterá-las. Em outras palavras, eu lhe transmiti memórias falsas, alterando
os detalhes que me identificavam como o primeiro vampiro.
O tempo que permanecemos juntos, desfrutando dos prazeres que as noites do império
em expansão ofereciam foram longos, ainda que não tenhamos dedicado atenção para contar os
anos; uma característica daqueles que possuem tempo em demasia para dispor. Acabou inclusive
por ser um período de aprendizado. Quem poderia imaginar que o jovem Gareth teria algo a me
ensinar sobre as capacidades da nossa espécie.
Pois é. Todos os poderes que eu havia despertado foram decorrentes de momentos de
necessidade. Cada indivíduo, entretanto, possui necessidades e objetivos diferentes, por isso,
cada vampiro acaba por desenvolver habilidades únicas. Não foi nada espantoso quando percebi
que Gareth possuía capacidades que eu desconhecia. Uma das habilidades que descobri com ele
foi a de manipular os corpos de terceiros à distância. Não se tratava de possessão, por mais que
se assemelhasse. O que ocorria era que através de parte do meu espírito, do meu Ba, eu
conseguia tocar no Ba do meu alvo, “empurrando” seus membros da forma como eu desejasse.
Tal qual um titereio com suas marionetes de carne, heh.
E assim o tempo passou. Eu me entregando aos prazeres de sempre; Gareth se
alimentando dos marginais e criminosos de Roma enquanto cuidava de sua amada. E Mithria,
bem, ela teve de se adaptar à vida noturna, embora as vezes eu a acompanhasse durante passeios
diurnos. Eu era imune ao sol, apesar do desconforto causado pelo astro maldito, e os humanos
precisam ver a luz de vez em quando ou correm o risco de enlouquecer e perder sua saúde.
Curiosamente, ocasiões em que membros da minha espécie causavam furor em Roma
estavam se tornando cada vez mais frequentes e perigosas. Uma hora um indivíduo recém-
transformado era vendido como escravo antes de despertar, apenas para acordar para a nova vida
durante a noite e estraçalhar um ludus inteiro, ou exterminar todos os membros de uma casa.
Gradualmente esse tipo de coisa começou acontecer à luz do dia, com o novo imortal sequer
tendo a oportunidade de desfrutar das suas novas qualidades, irrompendo em chamas diante de
uma multidão aterrorizada.
Os casos adquiriram tamanha gravidade que até mesmo entre as legiões romanas, essas
“armadilhas vampíricas” foram introduzidas. Alguém transformava um soldado insuspeito,
fazendo com que o mesmo avançasse sobre seus irmãos de armas. Creia-me, um só vampiro
poderia dizimar uma legião inteira, caso tivesse um pouco de sorte e habilidade.
Somado a isso, alguns dos vampiros da cidade começaram a ser destruídos. Eu não me
importava com eles, não desejava qualquer contato, portanto isso não me afetou, tampouco
aqueles sob minha proteção. Mas minha mente bélica não pode evitar enxergar o padrão que se
escondia por detrás desses eventos.
Era o início da invasão dos bárbaros.
O declínio do império, entretanto, ocorreu por múltiplos focos. O estilo de vida romano a
longo prazo, submeteu a sociedade a um pico de enfermidades em massa. Somado a isso havia o
declínio cultural; Roma tentou abraçar o mundo, mas os diferentes povos que conquistavam é
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que estavam lentamente conquistando o estilo de vida romano, como um vírus que lentamente
toma o corpo da vítima. Entre outros detalhes que não preciso mencionar, pois tenho certeza que
ouviu a respeito nas suas aulas de história.
Podemos dizer que o primeiro golpe no império foi praticamente uma tentativa de
suicídio desferido por seus próprios filhos mortais.
Aproveitando as brechas na sociedade, vampiros partidários dos invasores se infiltravam
no império e ao se alimentar infectavam os mortais com todo o tipo de doenças.
Os exércitos bárbaros tinham como líderes vampiros, que perante os seus, anunciavam-se
como semideuses - alguns realmente acreditavam nisso, e consideravam seus criadores como
divindades, o que sabemos ser metaforicamente correto. Mas não se engane minha criança,
achando que todas as guerras foram obra dos vampiros. Ouso dizer que não há uma delas que os
teve como causa, e ainda que os interesses de certos indivíduos que partilhavam do meu manto
de trevas possam ter tido a ver com um ou outro conflito, sua falta não impediria a guerra. É da
natureza do homem matar seu semelhante; conquistar; sobrepujar; dominar. Mesmo sem a
presença ou influência dos vampiros, o ser humano por si só sempre encontram alguma razão
para.
É irônico. Mesmo quando os “deuses” não estiveram lá fisicamente para se juntar aos
mortais em um interesse comum ou usá-los como ferramentas para suas ambições, os humanos
sempre deram um jeito de utilizar deuses fictícios para justificar sua sanguinolência.
Ou seja, os bárbaros atacariam Roma com ou sem a contribuição da minha espécie. O
império havia aberto muitas feridas pelo mundo afora para passar incólume.
O resultado, todos sabemos.
E o que eu fiz? Não, eu não lutei ou pranteei por Roma. Eu a vi cair, e quando me cansei
dei-lhe as costas e abracei o novo mundo que surgiria dali. Eu e meus dois companheiros demos
boas vindas à Idade das Trevas.

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Semente das Trevas

A era da ignorância e da superstição. Para os humanos foi um tempo negro de transição.


Uma época infeliz para aqueles que nela nasciam com suas vidas breves e sofridas (se você não
fosse um nobre ou um membro do clero).
Bem, ser um vampiro também ajudava muito naquele tempo, isto é, se você fosse como eu
e soubesse sobreviver por conta própria sem chamar atenção desnecessária.
O mais irônico do mundo que se ergueu das cinzas do império romano foi que, embora os
invasores acreditassem estar desfigurando o inimigo, foi o inimigo quem os acabou
conquistando. Não com seu poder de combate, nem com seu território, mas com a sua religião.
Os bárbaros podem ter derrubado o império, mas foram as crenças do império que acabaram por
conquistar as mentes daquele povo.
E as coisas não poderiam ter sido melhores.
Talvez você, minha cara, ou outros discordem, assim como podem vir a discordar da minha
opinião sobre Roma - gosto é gosto, afinal -, mas o medievo, ou “Idade das Trevas” como foi
romanticamente alcunhado aquele período, foi a mais fascinante das eras da humanidade.
A arquitetura era dotada de uma beleza única, mesclada a um senso de maravilha perante o
inalcançável e também certa morbidez. Era trabalhada com esmero excessivo (as catedrais e
construções nobres)e além de tudo sólida. A natureza era aproveitada, incorporada ao todo, mais
por falta de opções do que por outra razão, mas de um modo ou de outro, contribuía com a
beleza da coisa. Ou talvez tudo isso seja apenas meu gosto sombrio falando.
As vestes eram melhores do que as de Roma, especialmente as dos homens. Quero dizer,
uma pessoa dispunha de meios de se vestir de modo imponente sem parecer um bufão. E as
armaduras, ah, as armaduras; eu queria que elas tivessem sobrevivido às mudanças do tempo.
Confesso que as vestes das mulheres não me agradavam. Tudo muito fechado, de pouca
sensualidade, e assim permaneceu por séculos.
Mas vamos aos eventos que nos interessam.
Meu primeiro encontro com Gareth havia se dado já nos dias finais de Roma. Devido à
nossa natureza, a impressão que tínhamos da passagem do tempo era diferente da de Mithria. O
que para nós foram uns poucos anos, a ela teve o peso de uma fração da vida. Quando em Roma,
ela era uma jovem de não mais de vinte anos, enquanto que, quando de nossa jornada pela nova
Europa, já se encontrava nos seus quase cinquenta anos.
No início as cidades ainda estavam caóticas. Novos vilarejos e povoados iam se
formando, os feudos sendo organizados. Nos pareceu prudente, por uns poucos anos mortais
tomarmos os ermos como refúgio. O local escolhido foi uma floresta ao leste do reino da
Frankia.

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Na época ali ainda era uma mata virgem. Não havia estradas ou trilhas que a cortavam, e
as árvores que lá estavam enraizadas datavam de antes da minha chegada a este mundo. Bastou
que eu colocasse meus pés sobre aquele solo para que eu descobrisse um novo dom: eu
conseguia sentir todas aquelas árvores majestosas. Não era a mesma sensação clara e inteligente
das memórias mortais, era uma impressão diferente. Elas possuíam consciência de tudo o que
ocorria ao redor; possuíam memórias de todos os eventos que cercaram suas existências. Foi uma
experiência sobrepujante.
Sob aquelas copas ancestrais mal havia luz solar, o que permitia que Gareth (com um
pouco de esforço) conseguisse permanecer desperto durante o dia. Algo que veio bem a calhar,
dado o fato de não possuirmos nenhum refúgio “civilizado”.
Quanto mais a floresta se aprofundava, mais a luz solar era bloqueada, ocasionalmente
mergulhando-nos em um sombrio labirinto de troncos imponentes e antigos. Raízes tornavam o
solo disforme, e um enorme tapete de folhas secas e musgo pavimentava todo o interior da
floresta. Uma visão que me impressionou bastante. Eu que em todos os meus anos neste mundo
jamais havia tal contato com aquele tipo de natureza, não esperava me deparar com algo tão
complexo e grandioso bem no meio de um reino decadente. Mais surpreendente era o fato de os
locais encararem aquilo como uma coisa mundana, talvez por não enxergarem o mundo como eu
enxergava.
Gareth logo descobriu como utilizar seus dons inumanos para afastar a presença de
animais hostis, o que eu consequentemente assimilei. Para bem dizer, nossa presença afastava
tanto os animais hostis quanto os mansos. Enquanto dormíamos, sobre o solo de folhas e raízes,
Mitrhia nos vigiava. Durante a calada da noite Gareth a carregava adormecida em suas costas. O
tolo hesitava em passar-lhe o manto. A passagem dos anos fazia sua beleza definhar, e mesmo
assim ele hesitava em lhe conceder a eternidade.
Julgávamos estar perto do centro da floresta. Naquele dia, quando me deitei, passem a
vagar na minha forma espiritual. Chovia nos arredores, mas apenas uma ínfima parcela da água
atingia o solo sob aquelas árvores. Abruptamente, me vi nas ruas de um vilarejo simplório.
Diante de mim, sobre o solo de terra batida, uma criança, uma garota de cabelos negros
ondulados, trajada de um vestido simples, do marrom que geralmente favorece as vestes dos
camponeses me olhava com curiosidade e surpresa. Provavelmente o corpo físico dela dormia, e
ela vagava em sua forma espiritual, alheia ao que se passava.
De repente o tudo mudou. A atmosfera do mundo espiritual se alterou e a criança se tornou
um borrão. Algo perturbava minha forma física. Antes de abrir meus olhos, lembro-me de ter
visto de relança a face de Yssarra. Ela gritou algo que eu não tive tempo de compreender (e
parecia atônita).
Ao abrir meus olhos, deparei-me com três figuras nos observando. Gareth e Mithria
estavam despertos, sentados não muito longe, imóveis. Dos estranhos, uma estava à frente dos
outros, em pé bem diante de mim. E que presença! De todas as coisas que eu já havia visto,
nenhuma fora capaz de exercer aquele efeito hipnótico sobre a minha mente antiga. Tratava-se de
uma mulher de feições angulares. Uma mulher feita, não jovem, tampouco velha. Tinha uma
expressão séria, com um ar selvagem, mas o modo com que aqueles olhos cor de âmbar dela me
estudavam indicava curiosidade. Seus cabelos eram negros e cacheados, caindo até abaixo da
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cintura, com algumas mechas presas por tiras de couro e pedaços de raiz. Couro e peles
compunham suas vestes: um corpete improvisado, calças e um manto com capuz; os sapatos se
resumiam a tiras que envolviam os pés e tornozelos.
A outra possuía cabelos loiros, cacheados também, porém na altura das costas. Suas vestes
eram parecidas, só que mais simples e gastas. Os olhos eram de duas cores, o direito azul e o
esquerdo verde. Ela alternava entre nos olhar com apreensão e olhar para a outra mulher, como
se esperando algo.
O último estranho era um homem de cabelos negros ondulados, severamente marcados por
mechas grisalhas, que se estendiam até um pouco além dos ombros. Uma barba completa e bem
aparada emoldurava seu rosto. Suas vestes de couro batido estavam encobertas por um manto
negro puído.
Um grupo peculiar. De fato, poucas vezes um punhado de humanos me despertara tamanha
curiosidade.
— Predadores incomuns vocês são — aquela que era claramente a líder disse, fitando-me e
brevemente lançando um olhar para Gareth.
— Aberrações não naturais — a mulher loira disse em tom reprovador.

— Demônios — acusou o homem, com um vestígios de ódio e assombro em sua voz.

— Não Médrard. Isso são suas raízes cristãs que ainda não definharam falando. Também tu
te equivocas minha irmã Adelhaid. São incomuns, mas tem suas origens no ventre da terra, como
todos nós. Eu vi você — ela disse se referindo a mim. — Vi você no mundo invisível — olhou
aos que a acompanhava, mas sem me dar as costas. — Ele possui espírito. É um ser da natureza,
mas diferente dos demais; uma espécie diferente da nossa.
— Você conhece as coisas, e sua observação é bem acurada — eu me contive para não
chamá-la simplesmente de “mortal”, ao invés disso dei uma breve vasculhada na sua mente —,
Gisella.
— Tal qual a sua, Remekhse — assim como os dela se espantaram com a minha revelação
do seu nome, os meus também se espantaram por ela ter se referido a mim por aquele nome (que
nem eles conheciam). Maldição, até eu me espantei com aquilo.
— Como?

— Os espíritos vagam, e os espíritos veem você; e eu converso com os espíritos. Deixando


isso de lado, não é por sua causa que estamos aqui; não em primeiro lugar — ela olhou para
Gareth.
— Seu companheiro cometeu um crime no nosso santuário. Ele tem se alimentado dos
nossos irmãos, dos filhos da terra, os animais que aqui habitam.
— Eles nos são sagrados — disparou Adelhaide. — Tão sagrados como são os irmãos, pais
e filhos para os homens do mundo.
Amaldiçoei a minha desatenção. Eu poderia ficar dias e dias sem me alimentar e não sofrer
qualquer consequência. Em último caso poderia me alimentar espiritualmente dos mortais. Mas
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Gareth não. Ele precisava do sangue de cada noite e longe da civilização, não tinha outra opção
senão beber dos animais da floresta.
— Se o que ele fez foi um crime perante vossos olhos, então que diriam de vós mesmos,
que se vestem dos restos dos mesmos filhos da floresta a quem chamam irmãos?
— Fazemos nossas vestes dos corpos sem vida dos animais; dos que parecem pelo fim do
ciclo natural da vida e daqueles que servem de alimento aos outros animais. Jamais tiramos suas
vidas.
-— Mas é correto que os animais tirem as vidas uns dos outros? — indaguei já me pondo
em pé. Eu poderia eliminar todos eles de uma vez, com alguns poucos movimentos sutis. Mas eu
não queria, eles eram demasiadamente interessantes. Só haveria mortes se eles fossem tolos para
tentar algo.
— É da natureza deles — respondeu Gisella, enquanto os outros assentiam solenemente.
— São predadores, agem por instinto. O homem não tem esse instinto, tem a inteligência, e se
usá-la verá que deve proteger os mais fracos, ao invés de tentar alterar as leis naturais. O homem
conhece outros meios para sobreviver, e se insiste em não utilizá-los; se recusa-se a empregar sua
inteligência, está sendo egoísta e cruel.
Foi aí que eu não pude mais me conter. Escancarei a boca, deixando os caninos à mostra.
— Assim como nós. Nós predamos os homens, tal é a nossa natureza. Mas na falta de
homens — evitei olhar sugestivamente para Médrard, por mais que a vontade me obrigasse —,
temos de nos contentar com o que o ambiente oferece.
Os outros dois se espantaram, eu podia sentir o cheiro de medo, mas não Gisella. Ela sabia.
— Exigimos uma compensação. Para que as mortes deles não sejam em vão — Adelhaide
criara coragem.
— Eu me recuso! — Gareth colocou-se diante da amada e me dirigiu um olhar. Não preciso
dizer o que ele pensava.
Naquele ponto as coisas ficaram estranhas. Subitamente raios de sol começaram a penetrar
entre as copas das árvores, banhando em luz dourada vários pontos do carpete de folhas caídas
que cobria o solo da floresta. Um dos feixes a meros centímetros de Gareth. Apesar de não ter
sido tocado, o jovem imortal silvou e lançou-se para trás, agarrando-se ao tronco de uma grande
árvore.
— Você pensa em nos matar Remekhse, mas se o fizer, o sol inundará este local sagrado.
Em espírito eu me encarregarei disso. Seu amigo não resistirá — Mithria soltou um gemido de
agonia.
Ah, o pior é que era verdade. Tão habituado eu estava por minha imunidade ao astro
maldito, e por tanto tempo eu havia vagado sozinho, que me esquecera de ter preocupações para
com outrem. Sequer havia chegado a considerar a fraqueza do meu “descendente”. Isso foi só um
detalhe, claro. O que me espantou realmente foi o fato de aquela mortal ser capaz de controlar a
natureza ao seu redor. Humanos com tamanho controle espiritual e magnético são raros até os
dias de hoje.
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— Ora, muito bem, uma estratégia admirável. Felizmente não teremos de chegar a isso —
mais para a sorte deles, pois se eu não tivesse demonstrado qualquer compaixão pela existência
de Gareth, simplesmente deixaria que eles trouxessem a luz solar e então os mataria também. —
Vamos lá, como podemos compensar a falha de Gareth?
— Os seus... Dons. Queremos aprendê-los — Médrard confessou, lançando um olhar para
Gisella, como que pedindo por aprovação.
Eu me recusava a passar o manto. Não depois do que eu vira acontecer com Yssarra, e com
toda a desgraça que sucedeu meu erro. Uma prole direta herdaria uma boa parcela do meu poder,
o que era arriscado demais. Já Gareth era jovem, não possuía tanta resistência, produziria uma
prole no máximo passável. Além de tudo, ele é que havia se alimentado de animais.
— Tenho certeza de que Gareth não se importará de partilhar seu dom, tanto quanto eu não
me importarei de fornecer algumas respostas. Espero que nesse meio tempo possamos desfrutar
da vossa hospitalidade.
Tínhamos um acordo. O trio de druidas nos levou até sua morada, no coração da floresta.
Ali a luz era ainda mais escassa. De início pensei que eles teriam problemas em se
locomover pelo terreno irregular, mas me enganei. Eles pareciam conhecer cada raiz, cada pedra
e cada planta que compunha a área.
Árvores inacreditavelmente altas com troncos que faziam as colunas de Roma parecer
gravetos, dentre as quais muitas eram carvalhos; riachos que saiam debaixo da terra e rochas de
todos os tamanhos, a maior delas abrigando uma caverna. O musgo crescia sobre quase tudo. Ali
era onde eles viviam, e os únicos traços disso eram as fogueiras no interior da caverna, onde
pedaços de ossos jaziam junto de três camas improvisadas com madeira e peles.
Tanto as paredes das cavernas como os troncos de muitas das árvores pelos arredores
eram marcadas por runas. Não havia qualquer conforto típico da civilização, e essa ausência é o
que para eles era o verdadeiro conforto: o contato puro com a natureza.
Mithria teve uma adaptação difícil, Garetht também não se sentia tão confortável. Eu,
como alguém que passou os séculos soterrado sob uma tumba, não me importei nem um pouco.
Ainda mais tendo as visões de Gisella e Adelhaide para me deleitar.
Não só de contemplação foi a minha passagem por aquela peculiar floresta. Eu e Gareth
tivemos de partilhar os segredos da nossa espécie para com eles. Ele não teve problemas em
revelar suas origens. O mesmo não posso dizer a meu respeito. Gisella sabia que meu verdadeiro
nome era Remekhse, e tal revelação obviamente levantara dúvidas em Gareth. As raízes egípcias
do nome eram gritantes.
Felizmente eu pude camuflar a verdade dizendo que de fato eu vinha do Egito, e que
havia recebido o manto obscuro de um dos habitantes daquela terra, ocultando assim, como de
costume, o fato de eu ter sido o primeiro da linhagem.
Não creio que saber que eu era o responsável pela espécie causaria boa impressão diante
dos meus descendentes — se causasse, porém, me atrairia ema quantidade massiva de atenção
indesejada. Pior que isso seria o modo como aquele povo poderia reagir ao descobrir que eu

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vinha de outro mundo. Não importava o quando eles reverenciavam a natureza, certas verdades
inevitavelmente causam choques negativos.
Findas as nossas introduções, ao redor de uma fogueira sob as árvores, Gisella nos
confessou já ter ouvido falar da nossa espécie. Foi assim isso que a levou a nos contatar assim
que percebeu a nossa presença em sua morada.
— Ouvi da boca de minha avó, uma grande hierofante do norte, sobre seres imortais;
seres que já eram seculares quando ela ainda era uma criança, e que se proclamavam deuses, para
o crédito do povo. Eles eram reverenciados. Odin, Thor, Hera, assim eles se apresentavam, como
as divindades criadoras dos povos nórdicos. Pan, Hécate, Belenus, Hades, e muitos outros, entre
vários povos, até mesmo entre os deuses da natureza.
“Dos seus respectivos povos eles exigiam adoração através de sacrifícios, sempre
sangrentos. Esses incluíam a vida de virgens, ou então combates até a morte - eu evitei olhar para
Gareth ou Mithria -, alguns incitavam seus seguidores à guerra, e então utilizavam seus poderes
para se banhar da sanguinolência do campo de batalha. Há histórias sobre alguns que se ligavam
às armas dos seus adoradores; relatos daqueles que se assumiam a forma de um nevoeiro e assim
sorviam todo o sangue do campo de batalha” — quem diria. Minha espécie se tornara bastante
criativa... não, nada daquilo se comparava aos feitos de crueldade praticados pelo ser humano.
— Mas nós sabíamos que deuses eles não eram. Podiam ser filhos dos deuses, quem sabe.
Uma coisa certa é que eram filhos da natureza. Mas uma espécie diferente de filhos; criaturas que
se pareciam com homens, mas que no fundo não eram homens. Semelhantes como lobos e cães,
mas ao mesmo tempo diferentes. Esse é um mistério que nem os espíritos souberam responder.
Talvez o toque da mãe terra os tenha marcado como marca filhos específicos de certas espécies
— e quase um milênio antes, alguém já vislumbrava as mutações genéticas. É obvio que se ela
mencionasse algo do tipo fora daquela floresta, indubitavelmente seria queimada por heresia.
Eu não me atrevi a confirmar ou negar nada. Independente mente da omissão dos
detalhes históricos, eles aprenderam tudo sobre a nossa fisiologia; nossos hábitos, poderes,
capacidades e fraquezas. Concomitantemente nós também aprendemos sobre eles. Na verdade,
eu fui quem mais aprendeu, posto que meus dois acompanhantes mais se preocupavam um com o
outro e com sua sobrevivência diária.
Gisella era a líder. Adelhaide e Médrard a seguiam, e encontravam-se em patamares
iguais. Eles compreendiam os caminhos da natureza, dos seus deuses e dos espíritos, mas era
Gisella quem conseguia se comunicar com o mundo espiritual, sendo capaz de realizar viagens
extracorpóreas tão bem quanto eu — deixando meu orgulho de lado, admito que até melhor —, e
sua sabedoria era muito maior. Toda a hierarquia, entretanto, era deixada de lado ao cair da noite.
Às vezes acontecia na floresta, sob os esparsos feixes de luz da lua; por outras, dentro da
caverna, perigosamente perto de uma fogueira que lançava ás paredes as sombras dos atos
lascivos. Ali todos eram iguais. Na hora do prazer, o trio compartilhava os corpos um do outro,
sem qualquer pudor ou reserva. E para a minha satisfação, nós, como membros honorários
daquela “família”, fomos convidados a participar das celebrações.
Por razões óbvias (ao menos na concepção deles) Gareth e Mithria se recusaram a fazer
parte. Já eu, claro que aceitei, mas com ressalvas; digamos que Médrard não fazia o meu tipo.
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Com Gisella e Adelhaide eu me embrenhei por diversas vezes, algumas delas com as
duas, não tanto somente com Adelhaide — apesar de simpatizar com seu nome —, e a grande
maioria, as ocasiões mais prazerosas, com Gisella.
Obviamente, sendo um vampiro, não era através do intercurso coito/vagina, que eu
obtinha meu prazer. Eu podia — e não deixava de fazê-lo — ainda utilizar meu órgão sexual,
bastando direcionar o sangue do qual me alimentava para lá. Mas não era a mesma coisa. Meu
corpo não funcionava como um corpo vivo. Eu jamais alcançaria um orgasmo. Em contrapartida,
os níveis de prazer à minha disposição são indescritivelmente maiores. Meu prazer vem do
sangue sorvido, das memórias alheias, da absorção das energias espirituais afins. Mas tudo isso,
misturado ao toque de um belo corpo feminino se tornava ainda mais saboroso.
Eu tocava cada centímetro do corpo dela; sentia cada curva, ao passo em que bebia
pequenas gotas de cada membro, cada dobra; dos seus lábios e língua; dos seus dotes femininos,
ao passo em que tocava seu espírito, em busca de energias que me agradavam e viajava em suas
memórias. Não só eu me afogava em prazer. Ela, ao passo em que se satisfazia do meu corpo
físico, também era inundada pelo poder do meu sangue, o qual eu permitia que provasse, além da
minha energia espiritual e de algumas memórias controladas que eu permitia que ela
compartilhasse. O resultado era um êxtase incomensurável.
Já ligados intimamente, eu consenti em emprestar meu sangue para que ela pudesse
estudar suas capacidades. Gisella era uma visionária. Devota da natureza que era seu primeiro
intuito foi conceder a dádiva da eternidade às plantas regando-as com meu fluido maldito.
Esperava ela também que os frutos oriundos da semeadura sombria possuíssem as características
do meu corpo, e as transmitissem aos humanos que as consumissem. Uma ideia genial e muito à
frente de seu tempo. Eu admirei o conceito e contribuí dedicadamente.
De imediato as sementes cresceram em árvores adultas; as plantas já crescidas assumiram
seu ápice, enquanto as mais velhas e maltratadas rejuvenesceram. Todas elas aparentavam o
primor, embora seu aspecto tenha se tornado um tanto mais sombrio, com espinhos onde não
deveriam existir, folhagens serrilhadas e uma coloração mais escura.
O triunfo durou pouco. Uma falta de visão tanto minha quando dela, pois não levamos
em conta que as plantas necessitam do sol, justamente o calcanhar de Aquiles da minha espécie.
O breve toque dos raios malditos as reduziu a cinzas imediatamente.
Mais tarde me indaguei se, assim como nós, aquelas plantas também não precisariam do
sangue para se nutrir, ao invés da água.
Foram bons anos aqueles. As notícias do mundo afora eram geralmente trazidas por
Médrard, que ainda possuía alguns contatos nos vilarejos mais próximos (não próximos os
suficiente para ousarem se aventurar na floresta). Mas Gareth e Mithria desejavam seguir em
frente. A mulher não queria passar o resto dos seus dias em uma floresta. E eu, de certo modo
também não pretendia ficar ali por muito mais tempo. Gisella era a única coisa que me prendia;
aquele rosto, aquele corpo, e o modo como ela dava e recebia prazer, eram maravilhosamente
peculiares e extremos. Porém, o tempo passava, e uma vastidão sem fim de novas mulheres
povoava o mundo. Eu não podia me apegar a um único prazer, quando havia tantos outros por
descobrir, até porque Gisella estaria sempre ali, por incontáveis anos.

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Bem, foi Médrard quem veio a mim e suplicou-me para que eu lhe passasse o manto
obscuro. Ele já era um homem de meia idade e não queria passar a eternidade em um corpo
decrépito. Note que embora adeptos da natureza, pode parecer estranho que eles desejassem
escapar de uma das mais notórias leis naturais: a morte. Mas entenda, sob o aspecto deles, a
minha condição era algo natural, eles acreditavam que eu era uma espécie de mutação genética,
logo minha imortalidade seria uma dádiva da própria mãe terra, ou algo assim.
Havia apenas um detalhe que eu tinha de observar: aqueles criados com o meu sangue
seriam demasiadamente poderosos, e isso não me parecia prudente. Algo que eu aprendi através
do erro cometido com Yssarra. A solução foi pedir a Gareth que passasse o manto a Médrard e
Adelhaide (eles não desconfiariam de nada, já que ninguém sabia que eu era o primeiro dentre os
malditos).
Enquanto meu companheiro drenava o par para então presenteá-los com seu sangue
condenado, eu levei Gisella para a caverna, sob o pretexto de uma conversa. Lá fora a lua
crescente dominava os céus sem uma nuvem sequer para ofuscar sua presença; isso eu sabia, pois
embora minha a visão do céu fosse bloqueada pelo emaranhado de galhos, Gisella escolhera a
data do “ritual” especificamente de acordo com a fase lunar, o que ela acreditava que os faria
adentrar a nova vida com mais força. Uma vez nas entranhas da rocha, eu acendi o fogo — queria
observar seu corpo mortal pela última vez; queria que ela me olhasse nos olhos — e quando ela
fez menção de perguntar qual era o assunto que eu tinha para com ela, eu escancarei minhas
presas e avancei. Drenei prazerosamente cada gota do seu sangue, vivi toda a sua vida através
das suas memórias, toquei seu espírito, e — incontáveis vezes seja eu tido como um imbecil —
deixei até que alguns dos meus segredos fluíssem até ela.
“A você, e só você, eu julgo digna desta dádiva, receber o manto sombrio diretamente do
primeiro.”
Seu delicioso corpo esmaeceu em meus braços. Eu abri seus lábios e lá despejei meu
sangue, de um profundo corte que fiz questão de abrir em minha própria língua.
Se a minha identidade a surpreendeu, ela não revelou. Gisella restringiu-se apenas a ficar
observando com afinco as plantas e tocando-as como uma criança que acaba de adquirir
consciência suficiente para observar o mundo ao seu redor pela primeira vez.
— Remekhse, minha eterna gratidão é tua. Será eternamente — deu ênfase à palavra —
bem-vindo em nosso seio. Digo o mesmo a vós, Mithria e Gareth. Nós seis, agora somos um.
Adelhaide e Médrard prostraram-se diante de Gareth.
— Nosso segundo pai. Agradecemos pelo dom da duradoura vida — disseram em
uníssono.
— E aos deuses que os colocaram em nosso caminho — completou Adelhaide.

Assim, nós nos separamos. Mais tarde veio a meu conhecimento que Gisella fora capaz
de criar plantas com seu sangue vampírico. Ela resolvera o problema da luz utilizando plantas
que cresciam no interior da caverna. O conceito me causou um misto de satisfação e apreensão.
Mas o momento era o de explorar uma nova faceta do mundo. A podridão e decadência

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humana que nos aguardassem.

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Obscuro Medievo

Quando deixamos aquela floresta, eu imaginei que os estranhos sonhos com a garotinha
cessariam; supus que eram produtos do estranho efeito que pairava sobre aquela mata ancestral,
mas me enganei.
Não só aqueles sonhos povoaram meu sono durante os anos em que passei integrando o
círculo de Gisella, como muitos anos depois. Curiosamente, a aparência da jovem acompanhava
o passar dos anos. Na primeira vez que a vi, era apenas uma criança, enquanto que na época em
que deixei a floresta, já era quase uma mulher. Isso significava que ela era alguém do mundo dos
vivos, que inconscientemente durante o sono acabava por cruzar meu caminho. O que a levava
até mim é que era o grande mistério.
Viajar na companhia de Gareth significava ter de encontrar um abrigo ao fim de cada
madrugada. Às vezes eram celeiros, às vezes túmulos, outras eram casas de vítimas que eu
dominava. Uma vez eu cheguei a enterrá-lo sob o solo de uma floresta. Chegamos então à
conclusão óbvia de que necessitávamos de um abrigo permanente.
Naquela época não havia nada mais seguro — e confortável — do que uma igreja. Não
qualquer uma, claro, mas uma que integrasse algum feudo ou um vilarejo de tamanho razoável.
Não tardou tanto até que encontrássemos.
Era uma vila rural, cujo nome eu nunca me importei em descobrir. Seus arredores eram
densamente marcados por fazendas, cujos campos, por fim, alcançavam seu limite em uma baixa
cerca de pedra. Dentro dos seus limites os casebres de madeira e pedra, todas com telhados de
palha, se amontoavam, e no extremo leste, um pouco afastada das casas, havia uma igreja de
pedra, encimada por um telhado de madeira e telhas de pedra. Embora modesta em comparação
às catedrais das grandes cidades, a construção era maior que boa parte das casas do vilarejo
juntas, além de possuir três andares e uma torre, além de uma cripta subterrânea. Justamente o
que precisávamos.
Chegamos ao cair da noite, como peregrinos. Boa parte da cidade dormia, sendo que os
vigias do portão foram totalmente dominados pela nossa vontade. Dirigimo-nos diretamente até a
convidativa igreja e em suas portas batemos. Batemos, e tornamos a bater. Finalmente fomos
atendidos, não por compaixão, mas pelo incômodo que causávamos. Aqueles tais não possuíam
nem uma gota do altruísmo que pregavam, especialmente para se importar com eventuais
problemas dos locais.
Quem nos atendeu foi um homem — você, minha cara, em sua época o veria como um
jovem, mas lá ele era um homem feito — franzino, com uma penugem cobrindo o rosto, e com o
topo da cabeça raspado. Seu traje consistia em um hábito marrom com uma corda amarrada na
cintura, o típico traje dos franciscanos. Mannuel era seu nome.
Toda a humildade que se esperaria de um dos membros da ordem, porém, faltava àquele
ali. Seu intuito era nos escorraçar dali o mais rápido possível e voltar a o que quer lhe fosse mais
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interessante e menos trabalhoso. Nunca lhe demos a oportunidade.


No minuto seguinte nosso novo servo nos conduzia pela bela nave da igreja, iluminada à
fraca luz das velas, até a escadaria em espiral, localizada atrás do confessionário, que levava aos
opulentos aposentos do bispo. Ferdinand era o nome do homem. Já longe de sua juventude, ele
tinha um ar arrogante, uma cabeça com uns raros fios brancos e já se encontrava deitado em sua
cama de dossel. As paredes eram de pedra, mas pasmem, o homem possuía uma lareira no
quarto! Não lhe dei nem tempo de gritar, embora eu adoraria ter lhe dado uns tapas por sua
arrogância.
Pronto, a igreja era nossa. Seus representantes estavam totalmente sob o meu domínio e
garantiriam que ninguém nos perturbasse na nossa cripta. O local em questão era majestoso:
paredes de pedra nua, com colunas quadradas que se ligavam em arcos em um teto abobadado;
tudo também de pedra. Nichos abrigando ossos e alguns cadáveres ressecados se enfileiravam
nas paredes, o bolor a e umidade conferindo uma atmosfera de abandono e decadência.
Mithria não estava nem um pouco à vontade com a nossa nova morada. Logicamente,
afinal, qual ser humano gostaria de viver entre cadáveres? - espere, na verdade acho que posso
apontar um bom número deles, e esse número cresceu muito dos anos 80 em diante. Por isso
demos um jeito de fazer com que ela vivesse nos aposentos superiores da igreja.
A rotina de outrora fora retomada. Durante o dia Gareth dormia e eu caminhava com
Mithria pela vila, algumas vezes pelos campos próximos. O povo ali era simples, servil e devoto;
extremamente devoto.
Eu já lhe disse o quanto eu apreciei aquela era, mas no início achei tudo um pouco
estranho, um tanto alienígena. Afinal, quem era eu? Um ser vindo de outro mundo, vivendo
milênios entre os egípcios, e depois despertando e me embrenhando no império romano. Por
mais breve que seja a vida humana, acredito que a quase totalidade dos mortais já passou por
algo assim; uma primeira impressão estranha, uma nostalgia daquilo deixado para trás, que com
o tempo acaba se tornando algo habitual, e por fim vem a satisfação e a conclusão de que o que o
que se tinha antes não chega aos pés do que se tem agora.
Lá nós passamos uma geração inteira. Foi um tempo em que nada de muito útil
aconteceu. Havia mais vida nas nossas criptas do que na vila.
A fim de não levantar suspeitas eu acabei aprendendo algo novo. Da primeira vez
despertei ao cair da noite e vi um reflexo meu (é, nós temos reflexos), mas meu rosto estava
completamente transfigurado. Parecia um homem de idade avançada, com um nariz protuberante
e inchado, a face flácida e uma barba branca por fazer; um dos olhos era leitoso e os cabelos
ralos e grisalhos caíam até os ombros.
Cheguei a imaginar que algo havia dado errado com meu corpo, algum efeito inesperado
da coisa em que eu me transformara há tanto tempo atrás. Como eu poderia saber? Era algo que
jamais acontecera com alguém antes e ninguém poderia garantir que algum efeito inesperado
pudesse ocorrer, como, por exemplo, meu corpo envelhecer do dia para a noite depois de alguns
milênios.
Fazia tempo que eu não sabia o que era o medo. Mas eu me controlei. Mantive a calma e

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fiquei lá diante do espelho de Ferdinand, enquanto o idiota fitava o nada, com um filete de baba
escorrendo pelo queixo, ao meu comando. Eu levei três horas. Três horas me concentrando até
que vi a minha pele se mexer, quase como um espasmo, mas ela se alterou, ficou mais lisa e
assim permaneceu. Mais alguns minutos, e eu fui capaz de criar rugas, fazer crescer e diminuir a
barba, mudar o tom da pele e finalmente voltar ao meu normal.
Uma habilidade muito útil. É mais fácil alterar a aparência uma vez e iludir a todos do
que controlar diversas mentes de uma vez para fazê-las enxergar o que eu quisesse. Mas também
um dom perigoso. Um vampiro que dele abusasse e permanecesse muito tempo alterado poderia
vir a se esquecer do seu aspecto original, e correria o risco de jamais recuperar a forma.
Pena que nunca encontrei alguém que tenha passado por isso, garantiria boas risadas por
séculos.
Mas falemos dos eventos realmente dignos de nota desde que ocupamos a igreja. Os
encontros com a garota misteriosa continuavam, e se tornavam cada vez mais frequentes. Em
certa ocasião eu vagava espiritualmente pelas cidades da Frankia, quando topei com ela. Suas
vestes, um vestido marrom e branco e os cabelos trançados representavam a cultura local. Ela
vivia naquela região, talvez em alguma cidade vizinha do local em que eu me encontrava.
A surpresa foi quando ela arregalou os olhos ao me ver e exclamou:
— Remekhse! O que... Como... Que lugar é esse?!

Fiquei sem reação. Ela me conhecia, e não era da Frankia. Então ela desapareceu,
provavelmente acordou assustada, e eu nem pude segui-la, pois de tão surpreso acabei
despertando também.
Daquele momento em diante, a cada nascer do sol eu deixava meu corpo e punha-me a
procurá-la. Concomitantemente o tempo passava e Mithria envelhecia. Ela já era uma mulher de
meia idade e não tardaria até que seus atributos femininos começassem a decair. Eu aconselhava
Gareth para que ele lhe passasse o manto, transformasse-a em uma de nós a fim de preservar o
restante de sua beleza antes que fosse tarde. Ele se recusava veementemente. Na sua tola visão,
mantê-la mortal era uma prova de amor, um ato de respeito. O tolo estava mentindo a si mesmo,
tapando os próprios olhos ao fato de que um dia sua amada iria morrer, e contra os meus
argumentos ele utilizava aquilo que eu mesmo lhe ensinara, de que o espirito sobrevive ao corpo
e torna a reencarnar.
Foi custoso, mas enfim minha busca rendeu frutos. Quando topei com a jovem
novamente, eu tentei sondar sua mente, captar alguma emoção que lhe fosse caraterística, e
encontrei. Sabe, sentimentos, pensamentos, emoções, eles deixam um rastro no mundo dos
espíritos. Aquele rastro completo, que misturava ódio, espanto, medo, muito medo e até um
pouco de amor me guiou até um vilarejo rural não muito longe de onde eu estava.
A maioria das casas ali era de madeira, barro e palha, e quase todas possuíam um celeiro.
Alguns animais mirrados pastavam nos campos delimitados pelas cercas que dividiam as
propriedades. Foi no interior de uma delas que eu encontrei a jovem adormecida. Pelo visto ela
acordava um pouco depois do nascer do sol, o que explica nossos breves encontros. Àquela idade
ela já era considerada uma mulher aos padrões da época, e me admirava o fato de não ser ainda

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casada. Provavelmente os varões da família casariam primeiro e ela ficaria a auxiliar os pais por
um tempo até que encontrassem um bom pretendente. Constatei tudo isso mediante uma rápida
perscrutada na residência.
Com ela ali, imóvel e inocente diante deste ser perverso e egoísta que sou, senti um
ímpeto de vampirizá-la espiritualmente. Eu poderia me alimentar de todos os seus mais sórdidos
segredos — ela tinha de ter algum; em todos os meus milênios não conheci um ser humano que
não tivesse — e também plantar ideias no seu subconsciente. Ela seria minha facilmente.
Naquele segundo de hesitação, seu espírito apareceu ali, diante de mim, provavelmente
assustada por topar comigo ao retornar para seu corpo. Ela arregalou os olhos e se preparou para
exclamar algo, mas então, sem qualquer aviso sua forma se transfigurou. Não era mais a jovem
camponesa que se encontrava diante de mim, era uma mulher belíssima, de cabelos negros e pele
extremamente bronzeada. A revelação me deixou congelado. Era ela, Yssarra!
Pelo visto, o assombro não foi só de minha parte. Ela também ficou paralisada ao me
reconhecer. Mas então sua expressão mudou. Em uma fração de segundo eu vi passar por aquela
face ternura, ódio, e por derradeiro, pavor.
— Não! Por Deus, aqui não! — eram expressões que a Yssarra de meu tempo jamais
utilizaria, mas sua essência estava lá, eu podia ver pela aversão ao meu ser. Somente alguém que
passou o que nós passamos juntos sentiria tanta repulsa. - Olhe para ti Remekhse, você continua
igual, seu corpo ainda é o mesmo que utilizamos para vir de Abiton. Seu Ka e seu Ba; seu
espírito, está tão maculado quanto era, mas a culpa que paira sobre ti é incontavelmente mais
negra do que outrora.
Não neguei. Era verdade.
— Yssarra, tanto tempo se passou. Somente agora eu consigo ter alguma noção disso.
Mas o que foi, foi. Diga-me, qual foi o caminho que o seu espírito percorreu para chegar até
aqui? — Sabe aquele momento em que por mais que você tenha consciência de que algo é errado,
de que algo não vai dar certo e que deveria ser esquecido de uma vez por todas, mas ignora todos
os sinais e deixa a esperança florescer novamente? Era justamente o que acontecia comigo.
—Podemos...

— Não! Não, Remekhse! Deixe-me! Por favor... — ela colocou-se de joelhos. — Eu lhe
rogo, por favor! Eu sofri tanto, meu espírito vagou por tanto tempo e eu renasci tantas vezes
sobre este mundo, nas mais sofríveis situações, tudo para poder ganhar o direito de retornar a
Abiton, e agora que falta tão pouco você aparece. Deixe-me viver esta vida livre da tentação;
livre do caminho de trevas que você tem a oferecer! Por favor, esqueça-me! Yssarra está morta.
Deixe que esta vida prossiga livremente e em paz!
Droga. Que escolha eu tinha? É eu sei, eu poderia muito bem ter dito não, ido até onde
sua forma física estava e me apossado dela do modo que eu desejasse. Poderia fazer suas
memórias voltarem completamente — ou só as que me conviessem —, ou quem sabe passar-lhe o
manto das trevas, não antes de escravizar sua mente. Mas ainda havia um pingo de dignidade em
mim. E eu ainda me recordava da última vez em que lhe transferi meu dom.
— Que assim seja. Espero que alcance aquilo que almejas — dei lhe as costas e parti,

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enquanto ela me olhava em silêncio. Provavelmente ainda restavam dúvidas quanto à


honestidade das minhas palavras.
Pouco tempo depois, seu espírito, na forma da garota que era na ocasião, me encontrou
novamente, as memórias de Yssarra suprimidas. Aproveitei aquilo para exercer uma dominação
mental sobre seu espírito (algo que eu imaginava ser possível, mas jamais havia tentado) e fazê-
la esquecer totalmente de mim. Pronto, seu espírito inconscientemente me evitaria no mundo
espiritual. Eu, por minha vez, fingiria jamais ter descoberto sua localização no mundo físico.
E a nossa existência seguiu. Não havia muitas coisas novas, especialmente para Gareth e
Mithria. Eu ainda me divertia um pouco explorando cidades e até reinos distantes em minha
forma espiritual. Um hábito que adquiri foi o de caminhar sozinho pela maioria das noites. Os
locais dormiam cedo, com medo da noite e da cólera de seu deus. Minha velha mania de adentrar
as casas, quando não estivesse muito ocupado caminhando observando o céu e divagando, nunca
havia sido tão interessante. Talvez fossem as crenças da época, mas explorar as residências na
calada da noite e fitar (além de vampirizar, fosse física ou espiritualmente) por vários minutos
seus habitantes adormecidos proporcionava uma diversão sem igual.
Quando eu me empolgava, chegava a caminhar - em ritmo não humano, claro - até outros
vilarejos ou cidades e violar a “privacidade” dos residentes, antes de retornar.
Ao passo em que tudo isso aconteceu, Mithria envelheceu. Gareth parecia não perceber,
como ocorre geralmente com as pessoas que convivem o tempo todo juntas, e só se dão conta de
tal fato quando observam um retrato antigo. O mesmo não se podia dizer de mim, eu, que sempre
tive olhos para a beleza das mulheres, e que não podia negar os sinais diários do definhar do seu
outrora apetitoso corpo.
— Gareth, meu caro e bom amigo, — fui a ele durante uma noite fria, no nosso santuário
subterrâneo, enquanto Mithria dormia. — sabes que não resta muito tempo a ela. Sua beleza se
foi, mas sei que a ama e isso não parece importuná-lo, por isso eu lhe digo, a hora é essa. Não
haverá outra oportunidade.
— Meu amigo e mentor, — disse ele, colocando as mãos sobre meus ombros e me
olhando com um respeito que raras vezes demonstrara — eu agradeço por sua preocupação,
porém, não irei condená-la ao nosso destino. Sou afortunado por ser o que sou, pois foi isso que
me permitiu conhecê-la e me deu o poder para tê-la ao meu lado, mas não quero que ela tenha de
viver através da morte, de abandonar o sol que tanto ama. Não. Deixarei que tenha uma vida
completa. Você mesmo me disse que os espíritos nascem, deixam o corpo e renascem, então
tenho confiança que nos reencontraremos; ela nas idas e vindas sem fim de sua alma e eu,
sempre à sua espera em minha forma eterna.
O que eu poderia ter lhe dito? Na verdade cheguei até a invejá-lo por aquelas palavras.
Era preciso convicção e resignação virtualmente divinas para aceitar algo dessa forma. Senti-me
ínfimo pelo fato de caminhar sobre o mundo há tanto tempo, e sobre Abiton há muito mais
tempo antes daquilo, e não ter sequer chegado perto do nível de compreensão que Gareth dava a
entender por suas palavras.
Como era de se esperar, Mithria morreu poucos meses depois, nos braços de seu amado,
com um sorriso, apesar das dores que a acometiam. Inegável que a higiene precária e o rústico
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estilo de vida da época não tenham contribuído para com o deteriorar precoce do seu corpo.
Gareth a beijou como se ela ainda fosse a bela jovem de outrora, e então, a sepultamos na nossa
cripta sob a catedral, onde, em outras ocasiões, apenas o mais santos e dignos — ah a hipocrisia
— homens da época poderiam repousar.

Nas noites que seguiram, seu luto foi o esperado, razoável, não atingindo o exagero nem
o descaso. Para alguém que me dissera aquelas palavras, e que se apegara e tais convicções, era
de se supor que logo superaria o ocorrido. Mas palavras são palavras e a expectativa é a maior
traidora que a humanidade já conheceu, especialmente tratando-se da expectativa sobre as
capacidades próprias.
A mente de Gareth começou a definhar pouco a pouco, primeiro pela saudade, depois
pelo desespero e pela incerteza. Nas primeiras semanas da morte dela, ele me pedia para
encontrar seu espírito, questionava se eu a via, se podia encontrá-la durante minhas viagens fora
do corpo. Por mais que eu explicasse que não era daquele jeito que as coisas funcionavam, ele
me pressionava cada vez mais. Nem todo mundo que morre fica por aí vagando; nem todos têm
essa escolha ou maldição. O ciclo segue seu curso.
Diante de cada negativa que eu lhe dava, sua preocupação crescia. Ele insistia cada vez
mais. As lágrimas sangrentas que ele derramava ocasionalmente tornaram-se constantes. Noite
após noite ele ficava lá, fitando o nada ou contemplando o túmulo de Mithria enquanto suas
lágrimas manchavam o chão e suas vestes.
Adivinhe só quem era encarregado de arrumar roupas novas para ele? Quem dera esse
fosse o único problema...
Então, certa noite, tão logo o sol havia se posto, ele foi tomado pela loucura. Era uma das
raras ocasiões em que eu simplesmente me entregava ao sono, sem ficar vagando por aí na minha
forma espiritual. Despertei ao som de pancadas que ecoavam pelas criptas. Em um pensamento
eu estava lá. Gareth havia destroçado o túmulo de Mithria e removido seu corpo ressecado;
àquela altura, apenas pele e ossos (a temperatura e o ar daquele lugar tornavam a decomposição
mais lenta e ajudavam a preservar alguns tecidos).
Com o cadáver nos braços, ele me olhou como uma criança ávida por fazer uma
travessura. Era o último fio de esperança que o separava do desespero. A esperança de alguém
que vê em uma ideia absurda sua última chance.
Ele cravou os dentes no cadáver de Mithria. O pior de tudo foi que ele sugou alguma
coisa dali. Células liquefeitas e qualquer outro tipo de coisa decomposta, muito mais do que
sangue propriamente dito. Só que ele não se importou, rasgou seu pulso e despejou seu sangue
dentro daquela mandíbula endurecida.
Eu tinha plena ciência de que aquilo daria errado, mas nem em minhas mais doentias
conjecturas eu imaginava o aspecto daquela falha. Banhada no sangue de Gareth, aquela coisa
que era pouco mais do que um esqueleto se moveu. Seus membros deram pequenos espasmos
rígidos, e então se moveram debilmente. O pescoço arqueou para trás e o crânio moveu-se em
ângulos estranhos. Gareth gemeu, não sei se de horror ou de alegria, acreditando que seu intento
imbecil tivesse dado frutos. Com a mesma sutileza que aquela cena bizarra teve início, ela
terminou; de súbito o cadáver de Mithria se desfez em pó nos braços de seu amado.
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Já esperando a pior das reações, fique a postos, mas Gareth sequer se mexeu, limitando-
se a ficar ali, fitando o monte de pó. Hoje posso afirmar que o que aconteceu depois foi também
culpa minha. Tentei conversar, oferecer a ele algum consolo, mas ele pediu-me privacidade em
seu luto e eu atendi. Eu poderia ter lido sua mente facilmente, poderia ter percebido o que ele
pretendia e, em último caso, dominá-lo para que não o fizesse. Na verdade, a minha intuição já
me dava todas as dicas. A questão é que eu o entendi; aquilo acabaria com seu sofrimento e lhe
daria a chance pela qual ele almejava; algo que o mero consolo e o esquecer decorrente do tempo
não seriam capazes de apagar completamente de sua alma.
Então me preparei para deitar ao nascer do sol e adormecer no sono sem sonhos,
deixando aqueles eventos para trás. Não tive tempo. Quando o primeiro dos raios solares daquele
dia tocou a terra, Gareth correu e lançou-se para fora da catedral, perante grande parte da vila,
que já iniciava os afazeres diários, e imediatamente irrompeu em chamas.
O espetáculo não durou muito. Em poucos segundos sua carne e ossos imortais se
fizeram em cinzas e desabaram sobre o solo, sendo parcialmente espalhados por uma brisa.
Apesar da dor do momento, ele se foi com uma expressão de alívio no rosto.
Vamos agora ao que realmente interessa; ao elemento que persistiu após essa desgraça
toda: eu. Com o espetáculo que Gareth proporcionou tanto os aldeões quanto os eclesiásticos
locais encontrariam desculpa perfeita para justificar todas as suas superstições. Não tardaria até
que eles encaixassem a maioria das peças e colocassem a culpa no único sobrevivente daquele
trio. Concluí então que era a hora perfeita para partir e explorar outras partes do mundo. Meros
minutos depois da morte do meu velho companheiro, eu já adentrava as fronteiras da Itália.

Pulemos os anos de tédio, e partamos aos momentos mais intensos daquela era
maravilhosa.
907 Depois de Cristo. Eu havia voltado para a Itália e, depois de algumas visitas
espirituais àqueles lugares, acabei por passar alguns anos na Inglaterra e nas terras Escandinavas.
Foi nessa época que ouvi pela primeira vez o termo “vampiro”, e confesso que gostei.
Embora até hoje “imortal” e “amaldiçoado” sejam termos que uso para descrever a mim e aos
meus descendentes, vampiro provou-se uma palavra capaz de traduzir a imponência e o mistério,
somando-os a toda tragédia inerente à espécie. Foi então, também, que notei o quanto maus
descendentes haviam se crescido e se espalhado.
Mas eles não estavam onde você imagina. Desligue-se daquela baboseira dos filmes e
livros, onde todo maldito vampiro é um rei, imperador ou nobre. Claro, um ou outro
inevitavelmente acabava vindo da alta classe humana, ou se não, galgava seu caminho até
posições de poder. A grande maioria, entretanto, vinha justamente daqueles que passavam
despercebidos — ao menos aos olhos mortais. Até hoje, é muito mais fácil e prático esconder sua
natureza, especialmente quando jamais se é visto à luz do dia, quando não se tem os olhos do
mundo sobre si. Imagine como um lorde, um rei ou qualquer figura pública explicaria a sua corte
e à sua plebe, a razão de jamais ser visto quando o sol está no céu; o porquê de jamais se

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alimentar, e pior, a razão de sua aparência jamais se alterar ao passo em que jamais produz um
herdeiro.
Meus hábitos persistiam, mas eu tinha de ser mais cuidadoso quando se tratava da
alimentação “líquida”, pois com outros membros da espécie para lá e para cá eu poderia acabar
topando com algum e a última coisa que eu desejava era ser envolvido no seu estúpido estilo de
vida.
Mas se por um lado, eu, seu criador, era invisível aos seus olhos, à mim eles eram um
interessante passatempo. Eu gostava de vigiá-los pelas sombras e pelo mundo invisível — havia
uma grande ironia naquilo tudo, os predadores noturnos sequer imaginando que algo maior e pior
desnudava todos os seus segredos sem que eles sequer sonhassem.
Oh, e como era fascinante vê-los questionando, debatendo e criando teorias acerca das
próprias origens. Nenhum deles imaginava a verdade. Naquela época o diabo estava em voga,
então logicamente ele era apontado como o principal responsável na maioria das vezes.
Havia uma exceção em particular que merece menção. Tratava-se de um italiano fanático.
Seu nome de nascença era Micheli di Rizzo, o típico hipócrita, criado para ser temente a Deus,
porém jamais levara o assunto totalmente a sério, seguindo sua vida de acordo com seus próprios
interesses. Micheli, ao contrário de muitos na época, era um homem letrado, o que lhe conferia
algumas vantagens na sociedade. Se esse foi ou não o motivo, eu não sei, mas algo fez com que
ele fosse escolhido por um dos imortais.
O ponto peculiar foi que o vampiro que passou o manto à Micheli desapareceu. Se algo o
levou a fugir, ou se encontrou sua destruição antes que sua prole despertasse, é um mistério.
Quem sabe não o fez apenas como um ato de humor sombrio?
Bem, o contexto é que Micheli despertou para a existência amaldiçoada sem saber o que
era; sem ninguém para lhe guiar, frear seus impulsos e colocar alguma razão de ser (ainda que
fantasiosa) em sua mente. Sozinho, tomado pela sede de sangue, ele demonstrou força de
vontade suficiente para conseguir se adaptar ao novo estado, e criou sua própria versão de razão
para existir. Consegue adivinhar qual? Em uma época em que a vontade de Deus era a desculpa
para todas as coisas - e também o maior instrumento para evitar que as pessoas questionassem a
real razão das coisas -, um homem de criação religiosa, que despertasse do nada com poderes
milagrosos e uma sede de sangue implacável, sem ninguém para lhe dizer nada, só poderia
encontrar duas razões para o que lhe ocorrera: Deus ou o diabo. Mas o diabo supostamente
concedia seus dons àqueles que o procuravam; já Deus, ah, ele era o responsável por tudo o que
acontecesse eventualmente na vida das pessoas. Sabe como era, “você é pobre, aceite, foi a
vontade de Deus”, “Eu sou nobre e posso fazer o que quiser com você, pois Deus me deu esse
direito, não o questione, e faça o que eu mando!”, e assim por diante.
E foi nisso que nosso amigo Micheli passou a crer de modo fanático, que ele fora
escolhido pelo Criador e agraciado com poderes sobrenaturais, para fazer a vontade d´Ele, e com
a sede de sangue para se saciar daqueles que não seguissem Sua palavra. Ele passou a se
enxergar como um instrumento de justiça divina, um messias enviado à humanidade, com
inspiração nas escrituras, adotando o nome de Abaddon.
Pelos primeiros anos de sua existência obscura, Abaddon limitava-se a beber daqueles a
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quem considerava hipócritas e insuficientemente devotos. Com o advento da Primeira Cruzada, o


vampiro fanático perfez o caminho dos cruzados até a terra santa. Próximo do amanhecer de cada
dia, ele parava em alguma residência, apresentando-se como o enviado do Senhor e pedindo
abrigo, aos que recusavam, ele despejava seu julgamento e tomava para si o refúgio.
Quando nada havia pelo caminho, ele transformava seu corpo em rocha - até hoje me
admiro de ver como cada um de nós pode manifestar habilidades únicas através do improviso;
você verá quando este processo estiver concluído. E mais satisfatório ainda, como podemos
emularas habilidades que testemunhamos; chega a ser desesperador imaginar a infinidade de
habilidades que há por aí a serem assimiladas. Não para mim, claro, eu sou o primeiro, eu posso
ver e sentir todos eles, logo seus dons estão à minha disposição, mas deixemos o parênteses
verbal de lado —, na referida forma Abaddon tornava-se resistente aos raios de sol e também
disfarçava-se à vista dos passantes. Uma habilidade extremamente útil, porém incômoda.
Naquela forma ele não conseguia se mover e dependia exclusivamente do seu subconsciente para
retornar ao estado normal. Além disso, embora a luz solar não o destruísse, a dor que lhe causava
era excruciante. Somente o seu fanatismo cego é que o fazia suportar aquilo.
Como eu conheço as experiências dele com tantos detalhes? Ora, aquela mente rasa
estava totalmente aberta a mim. Como estão a da quase totalidade dos mortais e imortais sobre
este mundo.
Os cruzados também acabavam ocasionalmente sendo alvo do “julgamento” de Abaddon.
Quando se aproximava dos acampamentos, ele costumava se apresentar como o anjo da
destruição do Senhor (Abaddon, em hebraico significa “o destruidor”), e obviamente muitos dos
guerreiros que seguiam para a Terra Santa o desacreditavam, o que ocasionava em
acampamentos inteiros massacrados. Logo, rumores passaram a surgir, sussurrados entre os
cruzados, sobre o homem de olhos azuis e cabelo loiro raspado, que na verdade era um anjo de
Deus que descera entre os homens. Se por um lado os rumores dos massacres incutiam medo nos
corações daqueles que viam a cruzada como uma oportunidade de glória e nobreza, os mais
fanáticos elevaram sua moral, e passaram a ver isso como um sinal de vitória sobre os infiéis.
Conforme reza a história, a primeira cruzada foi um sucesso, e acabou com a reconquista
de Jerusalém. Mas para Abaddon, a incursão na Terra Santa foi o que causou sua queda. Mas
para que você entenda melhor, vou primeiro deixar claro que um percentual dos que compunham
os números “cristãos” não eram mais do que peças no tabuleiro de vampiros com boa influência
na Europa.
Abaddon — com exceção deste que vos fala, obviamente — era o único vampiro capaz de
acompanhar a marcha por terra e mar dos cruzados, graças à sua engenhosa habilidade, algo que
os demais vampiros não podiam se dar ao luxo de fazer, pois ficariam extremamente vulneráveis
sem um refúgio confiável para o sono diurno e, cedo ou tarde, seus hábitos levantariam suspeitas.
Impossibilitados, mas não sem recursos, eles enviavam seus servos, que se infiltraram entre os
que partiram de Constantinopla, a fim de realizar suas vontades durante a barbárie dos
confrontos, fosse a fim de expor e eliminar rivais — mortais ou vampiros —, ou apenas para
colocar sua bandeira em algum pedaço de terra recém-recuperado.
Por onde quer que os cruzados passassem, rumo à Jerusalém, os vampiros partiam
temporariamente. Entenda, pode parecer óbvio que dentro das suas cidades eles poderiam lutar,
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porém, mas dentro de todo o contexto, seria arriscado demais, até mesmo diante do orgulho e
territorialismo daquelas crianças. Durante a noite eles seriam soberanos no combate, mas assim
que o sol nascesse, precisariam se esconder, mas provavelmente seriam seguidos pelos inimigos
e eliminados no momento de fragilidade. Graças a isso Abaddon não se deparou com nenhum
“irmão”, mas conforme a fama dos seus feitos corria entre os cavaleiros, outros vampiros ficaram
cientes da sua existência.
Sua “missão” durou até o massacre em Jerusalém. Um evento ímpar de violência. Os
autoproclamados guerreiros santos massacraram tudo e todos os que encontraram pela frente
além das muralhas da cidade, fossem muçulmanos ou seus próprios irmãos cristãos, sem
distinção de sexo ou idade. Hoje a minha espécie é retratada como uma raça de monstros frios e
cruéis, a despeito do glamour e sensualidade que lhe são atribuídos, mas aquele evento (dentre
outros dos quais trataremos), ele mostrou que os seres humanos não apenas são dotados de
capacidades épicas para a hipocrisia, como também que são capazes de superar os maiores dos
monstros, sejam reais ou mitológicos, em matéria de crueldade.
Na primeira noite após a invasão da cidade, Abaddon juntou-se aos cruzados, acreditando
estar realizando a vontade do Senhor. Implacavelmente ele matou, demonstrando seus dons aos
cruzados próximos, que ali, acreditavam estar recebendo o amparo de seu Deus contra os
inimigos, e inspirou ainda mais pavor nos locais.
Suas proezas, porém, atraíram outro tipo de habitante de Jerusalém. Dentre os vampiros
que não haviam abandonado seu refúgio na cidade santa, estavam aqueles de origem muçulmana.
Durante o frenesi do combate, onde Abaddon massacrava os inocentes a golpes brutos, e
abocanhava os soldados inimigos, subitamente três defensores de Jerusalém se colocaram em seu
caminho. Surpreendentemente para ele os três estavam banhados em sangue, porém sem
qualquer ferimento, e nenhum dos demais atacantes parecia notar a presença do trio, desviando-
se deles como que por instinto.
Trajados de turbantes, véus, e portando cimitarras, seus nomes eram, Aban, Badr al Din e
Ghalib. De início, Abaddon não percebeu o que eles eram e avançou, apenas para ter seus
ataques rechaçados.
Ele parou para amaldiçoá-los, enquanto se questionava como aqueles mortais
conseguiram evitar os dons divinos com os quais ele fora agraciado, só então foi que reparou na
palidez dos inimigos, e percebeu os caninos que eles exibiam enquanto riam em deboche.
Notando o espanto do invasor, eles se contiveram e questionaram a qual dos vampiros
Europeus ele servia. Abaddon não entendeu nada. O termo ainda não era muito difundido na
época, e nem todos eram vividos o suficiente para conhecê-lo - é difícil para você vislumbrar
algo assim, não, minha cara? Pertencendo a uma época onde uma breve digitada na internet lhe
revelaria milhares de respostas —, por isso ele apenas afirmou aquilo que acreditava; que era o
escolhido de Deus.
Ainda mais eles riram, e quando ele tentou atacá-los novamente, eles demonstraram que
possuíam a mesma velocidade e resistência dele. Abaddon foi facilmente subjugado, e conforme
berrava ameaças fundadas na cólera do seu Deus, Aban e Galib o seguraram e o forçaram a
assistir Badr al Din drenar até a última gota de um par de cruzados, demonstrando ao tolo

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fanático que eles eram tal qual ele, e que sua pretensão de ser um escolhido do divino não
passava de um delírio de grandeza.
Paralisado de horror, Abaddon voltou a ser Micheli. Indefeso como estava, ele poderia
ser destruído facilmente — a pele vampírica, não obstante sua palidez e seu aspecto frágil, é
extremamente rígida diante da força dos mortais, porém, perante o ataque de outros vampiros,
torna-se tão vulnerável quanto o corpo humano é perante um confronto de mortais, mais frágil
ainda, se o vampiro atacante possuir idade e conhecimento —, mas o trio optou por prolongar seu
sofrimento, deixando que ele vivesse com a desilusão.
Somente quando o sol estava para nascer foi que seus inimigos o libertaram, ferido e com
a quase totalidade do seu sangue drenado, antes de eles mesmos desaparecerem para fugir da luz
do dia. Seu intuito era que Abaddon fosse consumido pelo astro maldito e ele quase o foi.
Correndo (não para se salvar, mas pelo horror que tomara sua mente) ele deixou a cidade
massacrada e ainda foi capaz de alcançar o deserto. Lá o dia raiou, mas ao invés de queimar ele
utilizou suas últimas forças para se tornar pedra. Creio que tão grande era seu tormento, causado
pela desilusão de que não era um enviado divino, que ele o fez não para proteger sua vida, mas
sim para simplesmente desligar sua consciência. Até hoje ele jaz lá, como uma rocha disforme.
Embora eu não tenha tido qualquer forma de influência na vida de Abaddon, limitando-
me a observá-lo de longe, por vezes fora do meu corpo, assim como eu costumava fazer com
vários outros vampiros, toda a comoção das cruzadas me fez vagar pela “Terra Santa” por algum
tempo. O contato (ou, melhor colocando, conflito) entre as diferentes culturas nãos e deu só no
mundo mortal. No mundo dos vampiros, essa relação trouxe à tona a existência de um grupo bem
peculiar, e até então recluso dos meus descendentes.
Aqueles em particular haviam se organizado em um grupo altamente hierarquizado. Eram
impiedosos para com os humanos, matando sem dó ou moderação e também pareciam enxergar
os demais vampiros como inferiores. O ponto que mais lhes distinguia, entretanto — e que de
certa forma realmente lhes dava vantagem sobre os outros da espécie — era o fato de que eles
alegavam descenderem de uma divindade do mundo antigo, um deus do sangue. A teoria mais
acurada sobre a origem dos vampiros que eu já havia ouvido, dentre todas. Restava saber se era
mera coincidência, ou se eles haviam de fato ouvido algum rumor a meu respeito da época em
que eu me proclamava um dos deuses do Egito.
Apesar de tudo, eles eram extremamente reclusos e sorrateiros. Tentei encontrar algum
para descobrir de onde haviam tirado seu “mito de criação”, mas não consegui. Nem no mundo
físico tampouco no mundo dos espíritos eu era capaz de cruzar o caminho de um daqueles
vampiros. Era como se eles existissem apenas nos rumores. Mas não, eu fiz o teste lendo a mente
dos poucos vampiros da Europa que já haviam sobrevivido ao encontro com algum deles, e vi
que as histórias eram bem verdadeiras.
Mais perturbador do que descobrir que eles vagavam pelas terras do Egito, era o fato de
que eles conseguiam evitar serem encontrados por mim, o criador da espécie e o mais poderoso
dentre eles. Ocorreu-me então, que aqueles poderiam ser os descendentes das proles que Yssarra
criara desenfreadamente, ou os próprios remanescentes das crias dela. Se assim fosse, havia
grandes chances de que eles conhecessem o meu nome e a minha história. Preocupante, de fato.

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Mas na ocasião eu optei por ignorar as perturbações e voltei à Europa, acometido do que
até então me parecera uma mera frescura de almas carentes; eu ansiava por companhia, uma real
companhia imortal com vastas experiências a partilhar.
Desde que vesti o manto das trevas, minha preferência por locais escuros e decadentes se
intensificou. Era o que mais havia na Europa, e todos os meus descendentes adotavam alguns
deles como refúgio, mas eu sempre fui alguém de extremos. Isso me fez procurar a tão almejada
companhia dentre os mais esquecidos e isolados confins do que hoje é considerado o velho
mundo. Dirigi-me para o norte do império germânico.
À regra dos costumes da época, várias porções daquelas terras consistiam em feudos. Sua
grande maioria era “Reichsstand”, propriedade do imperador, e dentre eles incluíam-se aqueles
de propriedade de membros do clero, a quem se chamava de “príncipes da Igreja”.
Obviamente eu não me dirigi até lá por acaso. Minha ânsia por companhia demandou
uma busca complexa e um plano meticuloso. Em espírito, eu cruzei todas aquelas terras em
busca do “anfitrião” perfeito. Logicamente, minha linhagem, vampírica, já estava com seu dedo
na igreja — uma arma perigosa, em uma época em que as pessoas acreditavam cegamente nos
seus comandos —, mas eles não eram o tipo de convívio que eu buscava; chatos demais,
hipócritas demais e extremamente obsessivos.
O ponto é que lá, fazendo divisa com todas aquelas terras, havia um feudo em particular,
deveras interessante. Ao contrário da grande maioria, ele era governado por uma mulher. A
duquesa de Vürsthnaigen governava aquelas terras por meros duzentos anos; um período singelo
apenas pelos meus padrões. Ela se aproveitava do detalhe de que os nobres e o clero não davam a
mínima para a vida dos camponeses, um desdém que ia aos extemos de sequer memorizar um
rosto ou recordar um nome, — ora, por que estou explicando essas coisas? Isso não mudou até os
dias de hoje. — e transformou todos os seus servos em escravos do sangue. Além de conceder a
longevidade aos pobres plebeus, a duquesa ainda dominou suas mentes, suprimindo toda e
qualquer manifestação de vontade própria. Voilá, lá estava um dos feudos mais produtivos de
toda a Europa.
Entende agora? Eu tinha de conhecer aquela mulher - era esse detalhe que eu via acima
de tudo, até do fato de ela ser uma vampira extremamente astuciosa -, e para lá me dirigi.
Ah, aquilo sim era um lugar magnífico. Diante de mim, os campos da duquesa se
estendiam a perder de vista. Em um terreno que se elevava, varias plantações encontravam-se
agrupadas, fazendo divisa com uma vasta floresta de pinheiros e um lago. E lá no topo estava o
castelo dela. O céu que cobria todo aquilo estava sempre tempestuoso ou fortemente nublado,
mesmo durante os dias mais claros e quentes, em que o sol banhava vividamente as terras
vizinhas.
Por questão de etiqueta, cheguei durante a noite. Mesmo na completa penumbra ainda
havia um grande número de serviçais trabalhando nas plantações. Sobre um cavalo que eu
“adquirira” da minha última refeição, um soldado alcoólatra chamado Brun, me apresentei aos
servos como sendo um lorde chamado Welvren. Sem questionar os servos me conduziram até o
castelo.
Uma observação curiosa, e até hoje verdadeira, é que a minha espécie tem grande
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predileção por moradas rochosas e frias. Eu sou testemunha. Não é o tipo de habitat que os seres
vivos preferem, ao menos em sua maioria, mas depois de trajar o manto obscuro, as coisas
mudam. Foi assim comigo. Esses lugares decadentes e solitários se tornam extremamente
aconchegantes, de tal forma que parece que nos agradaram desde sempre. E que maravilha era o
castelo da duquesa, com suas portas de madeira maciça reforçada, suas paredes de pedra nua, já
tomadas pelo limo e pelo pó. Os adornos já estavam desgastados, e destoavam no meio da
rusticidade e da frieza do local. Tapetes aqui e alo sobre o piso de pedra polida, tapeçarias
retratando a já extinta linhagem local, e velas, muito bem apagadas.
Passando por um pequeno pátio que abrigava os estábulos, além dos portões, chegamos
às entranhas da estrutura. Após outro portão, eu estava no hall. A falta de iluminação parecia não
incomodar os servos, que me conduziam de forma automática, provavelmente perfazendo aquele
caminho diariamente por todas as suas vidas. Não precisei esperar nas cadeiras empoeiradas,
fitando velhos quadros e brasões. Sem interromper o caminhar, as portas duplas que
encontravam-se adiante foram abertas, e lá, parada, logo no início do corredor estava ela, minha
anfitriã.
Cabelos acobreados que, em cachos, lhe caíam sore os ombros e desciam sedutoramente
até a cintura e combinavam com as sardas que marcavam sua face de porcelana. Tão pálida
aquela pele que realçava ainda mais as referidas sardas e as fazia se assemelhar a salpicos de
sangue. Um rosto fino e levemente alongado, com grandes olhos castanhos, lábios de botão de
rosa, e sobrancelhas que demonstravam perspicácia. Seu corpo perfeitamente esculpido era
envolto por um vestido verde quase negro, com bordados em dourado e vermelho.
— Duquesa — disse eu no mais refinado alemão, fazendo uma reverência leve, não muito
formal, a fim de não demonstrar subserviência. Afinal, teoricamente, éramos dois vampiros
desconhecidos, que não sabiam ao certo as intenções, idade e poderes um do outro.
— Milorde, bem vindo à minhas terras. Suponho que essa não seja uma visita
diplomática, então assumo que necessite da minha hospitalidade, e que a fortuna lhe sorriu,
permitindo que seus sentidos identificassem uma semelhante antes de o dia nascer — fiz bem o
meu jogo, e confirmei suas suposições; vampiros vivem da morte, portanto a nós seu cheiro é
bem perceptível e peculiar, como um perfume raro e excitante, que os sentidos frágeis dos
mortais não conseguem sentir, e não me refiro ao cheiro de putrefação, mas à essência do ato, da
alma deixando o corpo. Acho que funciona da mesma forma que o dom dos cães de sentir o
medo. Esse cheiro exala naturalmente dos vampiros, e se torna mais forte e peculiar de acordo
com a idade (embora no meu caso, eu o disfarçasse através dos meus dons, a fim de não entregar
pista da minha identidade), no que tange aos refúgios, ele também passa a impregná-los, e vai se
tornando mais e mais intenso de acordo com a proporção do tempo e das matanças cometidas no
local.
— De fato, minha nobre dama, não vim senão pelo meu próprio desejo, mas não pelo
acaso. Percebi vossa presença, sim, mas já me dirigi a estas terras sabendo o que encontraria. Sua
reputação a precede, e na escolha de uma parada entre minhas peregrinações, optei por ter o
prazer de conhecer tão excepcional semelhante. A propósito, chamo-me Welvren.
— Uma fala lisonjeira, admito. Por ora, poderás desfrutar da minha hospitalidade, mas
advirto-lhe, caro Welvren, meus servos não devem ser alvo de sua sede, ainda que não intente
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matá-los.
— Tem minha palavra em sangue, agora, se me permite, gostaria de oferecer-lhe minha
história.
Como mandava o protocolo, nós trocamos sangue, e consequentemente memórias.
Desnecessário dizer que lhe dei minhas memórias falsas — ser o primeiro oferece as melhores
das vantagens. Tão acostumado eu já estava com aquilo, que mais um pouco e eu ia acabar
esquecendo da minha própria história.
Ela engoliu, não podia ser de outra forma. Quanto às memórias dela, me fizeram
descobrir que eu estava diante de uma vampira extremamente ardilosa. Seu controle mental era
espantoso, assim como seu domínio sobre o sangue. Tal como eu fiz, ela também alterou suas
memórias, ou melhor, omitiu certos fatos. É claro que eu poderia ter rompido o véu e enxergado
qualquer segredo que bem entendesse, mas onde estaria graça? Fingi ter acreditado.
Como era na época, uma pessoa não chegava simplesmente a subir na vida através de
habilidade ou sorte. Ou se nascia em uma posição elevada, ou se permaneceria eternamente um
plebeu. Era a “vontade de Deus”, que determinava o berço de cada um, e tentar mudar isso seria
se insurgir contra Ele.
A duquesa Aubrinna Vürsthnaigen nascera na nobreza, sendo educada por sua família nas
crenças da igreja romana. Sua vida mortal terminou quando uma misteriosa doença a acometeu.
Sem qualquer chance de cura, o capelão do feudo realizara sua extrema unção, e informara seu
pai de que aquela era a vontade de Deus, levar sua única herdeira. O duque, como todo bom
católico, não se conformou — é, foi ironia — e procurou outro tipo de ajuda. Os rumores
correram pelas sombras, e nenhuma luz pode emanar delas. Quem veio a seu socorro foi um
suposto curandeiro, e pode apostar que ele de fato foi capaz de curar a nossa bela duquesa de
qualquer mal que a afligisse.
Mais espantoso do que o milagre que nosso médico realizou, foi o fato de ele não ter
cobrado nada. Recusou até mesmo os títulos e terras oferecidos pelo duque. Mas, sabe como e
aquele ditado, quando a esmola é muita...
Enfim, o duque conseguiu manter sua linhagem eternamente, mas na figura de uma única
descendente. Quanto a ele e o resto da casa, bem, eles acabaram pagando o preço pela cura da
herdeira, um preço alto demais. Quando a duquesa despertou, sob o a sombra do manto das
trevas, ela sentiu a sede sobrepujante do renascimento e, logicamente, se alimentou dos primeiros
humanos no caminho: sua família. Somente depois disso foi que seu criador finalmente se
apresentou, mas esses detalhes ela não me revelou e foi com esse vislumbre que eu parei de
espiar. A mim, a duquesa disse que aprendera sobre seu novo status sozinha, e que aprofundara
seu conhecimento através de outros vampiros que passaram por suas terras. Se a minha estadia
ali estava condicionada a fingir acreditar na história, que fosse.
Meu acesso ao castelo era livre, desde que respeitando as regras dela quanto aos servos, e
submetendo-me à soberania dela. O que ela determinasse em relação ao meu comportamento
dentro dos seus domínios, e deveria acatar; nada muito difícil para alguém despudorado como eu.
Alimentávamo-nos pelos feudos vizinhos. Era uma forma de preservar seus escravos de

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sangue e ao mesmo tempo prejudicar a concorrência. Os outros nobres acabavam por ter
produções inferiores e acabavam tendo de recorrer à duquesa.
Vez ou outra, nós nos aventurávamos em algum vilarejo. Era mais arriscado, por assim
dizer, pois corríamos o risco de adentrar o território de outros vampiros. Não que isso me
importasse, mas ela não possuía meios tão eficientes para eliminar adversários da mesma
espécie, e eu não pretendia arriscar meu disfarce. Naquelas ocasiões nós não deixávamos corpos.
O que fazíamos era levar as vítimas até o feudo (sem quaisquer suspeitas, graças aos meus dons),
e então nos banqueteávamos delas na grande mesa de jantar. Aquele feudo era um lugar
fantástico, não podíamos desperdiçar o seu conforto.
Passados alguns meses da minha estadia nas terras de Vürsthnaigen, estávamos nós sobre
o muro de pedra de um campo vizinho, após nos alimentarmos de um grupo de viajantes incautos
- eles acabariam sendo roubados e mortos de um jeito ou de outro — e dali podíamos ver as
terras da duquesa, o céu carregado sempre cobrindo os campos e o castelo.
— Faço aquilo com a minha vontade. Não me permite tolerar o dia, de qualquer forma,
mas se Satanás me concedeu essa dádiva, me cabe fazer uso dela — confidenciou-me.
— Satanás? — Ah, a era do demônio. A maior artimanha para conduzir os homens a
Deus. Nunca houve um ser a qual se atribuiu tantos feitos. — Ora, minha cara duquesa, não há tal
ser. Uma mera invenção. O medo de algo conduz os amedrontados àquilo que é classificado
como o oposto do que se teme.
— Então de onde viriam nossos poderes Welvren? Somos a antítese de tudo aquilo que
Deus criou. A luz que ele colocou no firmamento nos destrói, ludibriamos a morte, o único
caminho ao paraíso, e ao mesmo tempo evitamos a punição do inferno, ao passo me que
enviamos várias almas para Satã e abatemos os cordeiros D´Ele, alimentamo-nos da própria vida.
Oh como eu quis lhe dizer tudo. A começar por uma aula de genética, depois explicar um
pouco de ciência e astronomia, abrindo aqueles cegos olhos para o fato de que a vida nãos e
resume a este mero grão de areia no universo infinito.
— Um Deus pode ter criado a vida, minha preciosidade, mas se o fez, foi como o pai que
gera o filho e o deixa dar seus próprios passos e aprender com seus erros. Não o artificie
manipulador que cria bonecos para manipulá-los ao seu bel prazer, ou então que lhes dá
escolhas, mas os pune por fazerem uso das opções que ele mesmo criou. Já Satanás, o Diabo,
Lúcifer — um belo nome por sinal, tanto eu sua etimologia quanto em sua fonética — uma figura
ilusória e totalmente desnecessária. Em meus séculos por este mundo conhecido não vi demônio
algum, e tampouco presenciei qualquer ato que fosse mais depravado do que aqueles praticados
pelo próprio homem. Muitos vampiros eu conheci, e por todo o tempo que eles viveram, por todo
o tempo que eu vivo, percebi que nossa condição não nos torna piores do que já éramos. Digo,
inclusive, que há um incontável número de mortais que em seus poucos anos de vida
demonstram muito mais monstruosidade do que vampiros milenares em toda a sua existência.
Ela ficou inerte, apenas ouvindo, então continuei.
— O mal está no homem. Não nos é imposto por nenhum ser. E eu vou lhe dizer que até
acredito em um Criador — não me referi a essa visão arcaica e infantil que se tem na Terra,

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afinal, as almas tem de vir de algum lugar, assim como os frutos vem das ároves, não é mesmo?
Mas não ouso me aprofundar além dessas conjecturas sobre a questão, tendo em vista que eu não
fui expulso de Abiton por ser o mais casto e muito menos o mais sábio, e mesmo as sumidades
de lá não possuíam tais respostas. — Não acredito, entretanto que ele seja o nosso algoz. Eu o
vejo como algo entre um construtor e um arquiteto. Ele desenvolveu as peças, o tabuleiro e
estabeleceu as regras do jogo. Tudo o que ocorrer é por nossa conta e risco. As assim chamadas
punições que enfrentamos, são nada mais do que as consequências dos nossos atos.
— Cuidado, meu senhor, com essas ideias, os servos de Deus haverão de condená-lo ao
inferno sem sequer precisar descobrir sua natureza. Jocosidades à parte, meu senhor, de que
modo dirias então que nós surgimos?
— Tal quais os homens, quem sabe? Ou como os lobos, ou então como os cavalos? Veja
quantas espécies há de seres no mundo. Saber dizer de onde veio cada uma?
— Ora, de Deus, ou do Diabo.

— Bah, esqueça esse mito. Veja, existem várias espécies diferentes de homens, com
variadas cores de pele, altura, cores dos olhos, tipos de cabelo. Quem garante que nós, vampiros,
não somos uma espécie a parte. Tal qual o lobo se alimenta das ovelhas, a nossa natureza seja se
alimentar dos homens. Simples assim. Já pensaste, que podemos ter nos originado de uma
doença? Alguém adoeceu, mas ao invés de morrer, tornou-se o primeiro vampiro. Nós seríamos
a praga da humanidade.
Aquela conversa acabou ali. Depois, nos limitamos a observar a noite e falar sobre
assuntos mundanos. A conversa, porém, despertou pontos fracos em Aubrinna. Antes do
amanhecer retornamos às terras da duquesa, e antes que descêssemos ao subterrâneo, onde
ficavam nossos caixões, fomos aos seus aposentos, pouco utilizados durante sua nova “vida”.
Lá ela se entregou a mim; seu corpo e sua alma. Ela jamais havia provado o sexo do
ponto de vista da existência vampírica, e o êxtase da experiência fez com que deixasse de lado
todas as suas reservas e cautelas, abrindo a mim sua mente.
Volkenväack, esse era o nome do senhor ao qual ela servia. Não o mero servo que lhe
colocou o manto das trevas sobre os ombros, mas um dos grandes “paters” das terras nórdicas.
Não fosse o êxtase, eu teria levado o assunto à tona de imediato, mas eu soube esperar — alguns
milênios de vida tem que resultar em alguma virtude, não?
Na noite seguinte, enquanto nos alimentávamos de um grupo de freiras (as pobres irmãs
intentavam visitar um monastério próximo e pediram abrigo pela noite; depois detalharei cada
uma das iguarias), eu a inquiri sobre aquela figura que povoou as memórias da duquesa durante
nosso momento de prazer.
— Volkenväak, esse é o nome de meu senhor. Sou sua vassala, assim como outros
vampiros das terras próximas. Por ser o mais poderoso dentre nós, ele nos tem como súditos, nos
fornecendo proteção e prosperidade. Nós, ao nosso turno, devemos-lhe a dádiva do pós-vida que
nos foi concedida, e como gratidão, ajudamos a propagar seu poder pelo mundo.
— Quero conhecê-lo — sabe quando você diz algo sem saber por quê? Ou quando faz
alguma coisa por um impulso besta, mesmo sem ter a mínima vontade? Foi o que eu fiz ali. Eu
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não dava a mínima para o tal de Volkenväak, mas falei aquilo. Certo, o nome dele era
imponente, e isso eu tenho de admitir. No fim das contas, para falar a verdade, aquele feudo e
seus serviçais “zumbis” já estavam me entediando.
— Ele é poderoso, e perigoso, advirto-lhe meu querido, mas sinto que meu mestre acharia
mais do que satisfatório adicioná-lo à sua coleção de vassalos.
— Veremos. Como faremos então? Você me conduzirá até ele?

— Não eu, mas ele enviará seus servos, e um caixão para garantir sua segurança durante o
dia. Não se preocupe, há um fundo falso na carroça, onde você ficará escondido durante o dia,
apesar de eu saber que você preferiria a minha companhia e meu dom de obscurecer os céus.
— Não seria mais rápido se você me levasse?

— Ele já sabe a seu respeito. Semanalmente envio um servo até ele com as notícias —
interessante, de fato, mas precário. Não aguardei a chegada do tal servo. Ao invés disso,
enquanto a duquesa dormia durante o reinado do sol do dia seguinte, deixei-lhe um bilhete de
agradecimento pela prazerosa hospitalidade e parti rumo às terras de Volkenväak.

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Noctem/Pestilentia

Se as terras da duquesa eram convidativas, as de Volkenväak tinham um papel oposto,


especialmente para os mortais. Lá no norte da Suécia, sobre uma montanha, ele havia construído
um castelo. O único acesso ao local era uma estrada precária escavada na encosta rochosa. É bem
isso que você imaginou minha querida, como os castelos habitados pelos vampiros dos filmes.
Não posso negar que o lugar tinha grandes atrativos para mentes doentias e reclusas como
a minha e a dos meus descendentes.
Bem lá no topo, negro como a própria rocha na qual fora esculpido (sim, ele esculpiu a
estrutura diretamente na pedra), estava o castelo. Bem, pelo menos, a palavra castelo é a que
melhor parece se encaixar naquilo, embora não seguisse a arquitetura típica de um. A muralha,
ou parede, ou fosse o que fosse aquilo, se erguia diagonalmente, até se transformar em uma tore
quadrada. Em outro ponto uma torre circular se projetava para o céu. Exceto pela encosta sobre a
qual a estrada subia, as outras eram extremamente íngremes e davam para um grande abismo nas
montanhas. L Se do chão a vista era sobrepujante, do alto ela transmitia uma sensação de
imensidão e poder, com os mares escuros visíveis ao longe, dando ao observador a impressão de
ser um deus, observando de cima a vastidão de sua criação.
E por fim, a neve. Ah, a neve abraçava aquelas montanhas com seu toque gélido, e da
mesma forma as paredes do castelo. Era ela a responsável por tornar o castelo ainda mais mortal,
uma vez que, dada a imortalidade de Volkenväak, o mesmo nada sofria em não deixar qualquer
fogo aceso em seu domínio, tornando o local mortalmente frio para os humanos.
Apesar dos meus longos milênios, eu havia tido pouquíssimo contato com a neve. O frio,
esse me agradava, mas a neve em si nunca me cativou. Naquela ocasião me particular, achei que
sua presença quebrava um pouco do clima. De qualquer forma eu tinha de seguir em frente. Uma
nova experiência me aguardava, e eu a desejava como forma e quebrar o tédio das eras.
Não fiz uso da velocidade que a minha condição me permitia. Preferi caminhar por toda a
extensão da trilha sinuosa que subia a montanha. A neve soprava contra mim. O vento frio
beijava minha pele insensível. Era uma sensação boa, daquelas que nos faz lembrar-nos de
velhos tempos, de velhos lugares e nos põe para pensar na razão das coisas. Subitamente vi meus
pensamentos vagueando por Abiton, Yssarra, meu passado antes da Terra, Yssarra, e qual seria o
meu futuro, que se estenderia pela eternidade, comigo preso em um mesmo corpo. Sobre
Yssarra, imaginei que provavelmente sua mais recente encarnação já havia chegado ao fim. Teria
ela encontrado finalmente a redenção e recebido a permissão para retornar a Abiton? Fosse o
caso, eu seria então o último dos párias...
Abruptamente freei meus passos, já quase no final da estrada, que se abrira para uma
espécie de pátio que precedia os portões. Tanto as beiradas da trilha como diversos pontos do
caminho adiante estavam marcados por restos congelados. Pessoas, crianças, pedaços decepados
de corpos, cabeças adultas e infantes, e também órgãos avulsos; olhos, corações. Tudo ali,
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jogado, preservado pelo frio, como uma coleção de esculturas mórbidas.


A razão de Volkenväak ter feito aquilo? Simples, porque ele podia. Ele tinha o poder para
matar, e possuía a imunidade à justiça mortal, assim, agia como bem entendia. E não, o fato de
ele ser um vampiro não foi o que levou àquilo. O ato o aprazia pelo que ele era. O vampirismo
não muda a natureza de alguém, ele apenas dá o poder, mas o monstro já existe desde a época
mortal do indivíduo.
Não tenha dúvidas de que quando ele era um mero mortal, o sadismo de Volkenväak era
exatamente o mesmo, a única diferença é que ele talvez não dispusesse dos meios para exercer
sua crueldade com tamanha efetividade.
Em contrapartida há vampiros que apesar do poder são extremamente dóceis. Recusam-se
a matar as vítimas bebendo apenas o suficiente de vários mortais por noite. Há os que chegam a
definhar e por fim acabam encerrando as próprias existências, horrorizados com a ideia de
sobreviver do sangue humano. E aqui aproveito para esclarecer uma questão; não, não é possível
viver apenas do sangue de animais. Primeiramente por não ser um sangue suficientemente forte
para nos nutrir; segundo porque seriam necessários vários animais abatidos por noite para prover
um sustento passável e, por fim, a questão das memórias. É perturbador. Depois contarei um
caso específico e você irá compreender.
Não preciso dizer quantos monstros reprimidos existem por aí entre os homens, não?
Bastardos que só não explodem o mundo porque não tem os meios, mas cuja vontade lateja em
seu âmago, esperando uma deixa para sair. Isso sem contar os que não se reprimem e saem por aí
fazendo bosta sem se importar com nada. A história está cheia deles, e com os noticiários
televisivos de hoje em dia, a quantidade espantosa deles torna-se claramente visível.
A passos largos me apressei para estar cara a cara com aquele monstro. Não sei se eu
queria entendê-lo mais do que eu queria destruí-lo. Mas, no fim das contas, eu enxergava tudo
aquilo como apenas uma distração ao tédio que cada vez mais se apoderava de mim.
Erguendo os portões de ferro com minhas mãos - um ranger terrível ecoou pelas
montanhas - eu entrei no modesto pátio. De lá caminhei para o interior do castelo. Salões e
corredores largos ligavam-se em uma arquitetura bizarra. Os cômodos não aparentavam
propósito útil, e em sua quase totalidade estavam vazios, salvo por um móvel ou outro móvel
velo, coberto de pó. Não havia qualquer vela ou tocha acesa. Na verdade, não havia qualquer
vela ou tocha. Apenas um imortal caminharia por ali sem problemas.
Tão logo eu havia pisado naquele refúgio, uma presença ampla se fez sentir, e obviamente
a minha presença também se tornou palpável. Como o primeiro, meu poder não passava
despercebido, e ainda que eu o suprimisse a fim de evitar entregar o jogo, qualquer merdinha
com o mínimo de sensitividade podia constatar que estava diante de alguém séculos e séculos
superior.
Eu fui direto ao coração do castelo. Era fácil sentir. O lugar parecia vazio, mas o seu
reflexo espiritual estava marcado por ecos de dor, desespero e sadismo. Cada parede exalava
resquícios palpáveis da crueldade ali praticada, e tudo levava ao grande salão no centro do piso
térreo.

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Empurrado a grande porta dupla com a força do meu pensamento, irrompi salão adentro.
Um cômodo quadrado, de tamanho exagerado. Pequenas janelas (que não passavam de aberturas
na rocha com topos ovalados) quase na altura do teto forneciam a única fonte de iluminação.
Duas fileiras de pilares ladeavam o tapete negro e carcomido que demarcava o centro do
aposento e conduzia a um trono (também de pedra). Ocupando o assento, ele me olhava cheio de
ódio, ainda que tentasse mascarar o sentimento como mera frieza. Volkenväak.
Aquele levava tão a sério a monstruosidade lendária atribuída aos vampiros que se
tornara sua verdadeira personificação. Sentado ele já transparecia ter quase três metros de altura.
Seu rosto longo e inexpressivo fazia a palidez da espécie parecer vívida e de sua cabeça, ao redor
de todo o trono, e para muito além de trás dele, pendia a cabeleira mais longa que eu já vira; um
mar de fios negros. Um longo robe carmesim, todo detalhado em dourado e marrom o cobria (e
parecia ser tão empoeirado quanto o resto do castelo), mas não era suficiente para esconder suas
longas garras negras, de fazer inveja aos lobisomens dos filmes de hoje em dia. Ah, se os
lobisomens existem? Não, não da forma como as lendas os retratam, minha querida. Falemos
disso outra hora.
Empertigado bem ao lado de Volkenväak, como o cão fiel (sem ofensa aos cães), estava
um sujeito de ar afeminado, medindo por volta de um metro e setenta. Ele trajava um robe
semelhante ao do senhor, porém não tão velho e nem tão ornamentado. Ostentava cabelos loiros
cacheados, um pouco abaixo do ombro, e tinha um rosto pálido de anjinho barroco. Valtsemée.
Aquele era arrogante e orgulhoso em sua subserviência, o que não era nenhum espanto vindo de
alguém com a mente tão fraca, tão legível.
Eu havia pensado em ler também a mente de Volkenväak, mas estragaria toda a diversão.
Ao invés disso segui caminhando a passos decididos em sua direção. Ele tinha autocontrole, isso
eu admito. O máximo que fez foi arquear uma sobrancelha, intrigado. Já o cão servil se colocou
em meu caminho.
— É preciso um misto igualmente exagerado de tolice e ignorância para agir com tal falta
de temor...
Eu o calei com um olhar. Dentro da sua pequena mente ele podia sentir a dor e a
majestade o esmagando. Seu corpo podia ser imortal, mas não passaria de uma casca bem
preservada caso eu vampirizasse seu espírito até forçá-lo a abandonar a forma física.
Ah, a mente humana é uma fonte infinita de crueldades, mas algumas delas só vêm à tona
no calor do momento. Aquele foi um particularmente frutífero.
— Seu esforço não é necessário, Valtsemée — falou o senhor do castelo, com a voz que
parecia saída das profundezas de uma tumba. — Você me conhece. Sim, do contrário não teria
ousado vir aqui, não arriscaria sua condição. Mas àqueles que desafiam minha soberania, eu
mostro que a imortalidade é uma ferramenta ao meu favor, e não ao deles. Oh, como eles
suplicam aos seus deuses para voltarem a ser meros mortais, ao invés de serem submetidos à dor
pela eternidade. Oh, como eles desejariam se livrar de suas carnes, até mesmo que fosse para o
inferno, a submetê-las à minha maestria, que tal qual aludem ao deus cristão, os molda como
barro.
— Imaginei que me esperava, afinal, você teve ciência da minha existência, graças à sua
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vassala, a duquesa Aubrinna Vürsthnaigen. Antes que seus emissários chegassem às terras dela,
porém, eu resolvi fazer a apresentação ao meu modo.
— Compreendo. Sim, eu compreendo tudo. Seu séquito encontrou meus servos e através
deles traçou seu caminho perante meu trono, mas escute o que eu vou lhe dizer... — então ele
levantou, e eu pude ver que seus cabelos se arrastavam no chão por vários metros, como um
vasto manto negro. Mais inesperado; várias mechas “penetravam” o chão. Aquilo... Ah, até hoje
eu lhe dou os créditos. O filho da puta era engenhoso. Mesmo sem entender os conceitos
técnicos, Volkenväak aplicava magistralmente o controle e a multiplicação celular, focando o
poder do seu sangue vampírico nas células desejadas (no caso o cabelo). Além de controlar a
multiplicação, ele controlava as células com total perfeição, como uma extensão de si. Tão bem
quanto um homem controla seu braço, na verdade, até melhor.
Fôssemos analisar de forma crua, o corpo que estava diante de mim é que era o uma
extensão do real Volkenväak, e aquela grande massa celular em forma de cabelo, que se estendia
pelas entranhas do castelo de da montanha é que consistiam no verdadeiro ser. Engenhoso,
apesar de bizarro.
— Você não é o primeiro servo desse “deus egípcio” que vem perante minha presença. E
quantos mais essa “divindade dos vampiros mouros” me enviar, mais segredos eu sorverei, mais
um dos seus filhos fanáticos eu lhe tirarei... — aquilo me baqueou. De novo aquele assunto de
deus egípcio. Estava ele se referindo a alguma lenda fundada em minha pessoa? Pareceu-me que
meu segredo fora parcialmente desnudado, ao menos em relação às origens da espécie. Mas não
era hora de antecipações, naquele momento ela me tomava por uma mera prole do “deus
egípcio”, claro, o que não quer dizer que eu não podia deixar claro que ele estava diante de um
ser superior a ele.
Eu concentrei minha vontade, fiz com que meu “Ba” se expandisse para além do meu
corpo físico, somando uma aura sobrenatural à minha forma vampírica. Ali ele pôde ver que a
minha palidez era maior do que a dos mais velhos que ele já contemplara. Meus olhos brilhavam
em um vermelho assassino e impossível, mesmo à espécie, e ao meu redor uma aura
fantasmagórica se materializou, estendendo-se pelo aposento.
Mais do que isso, eu toquei seu espírito com o meu; eu o esmaguei com o meu
conhecimento, com a minha dor e com a minha fúria. Eu o vampirizei espiritualmente, sorvendo
todos os sentimentos e memórias que me agradaram, ao passo em que eu assumia o controle do
seu próprio corpo (que como eu suspeitava se estendia pelas fundações do castelo). Lancei uma
cacofonia de sussurros de todos os sentimentos e memórias que eu sugara ao longo dos séculos.
Valtsemée tombou. Ele caiu como um mortal assustado, e Volkenväak viu que eu não era
qualquer um. Vampiros não perdem a consciência, pelo menos não diante de qualquer coisa que
um mortal possa fazer, e tampouco diante de qualquer poder de um vampiro comum (entenda-se
por, qualquer um que não seja eu, o primeiro). Ali o senhor do castelo percebeu o escopo do
monstro que ele tinha diante de si. Viu que era velho, muito velho, e tão capaz a ponto de fazê-lo
se parecer com um bebê mortal diante do que eu era.
— Seus jogos, suas tradições e sua sociedade de merda nada significam a mim. Sou mais
velho e maior do que tudo isso, criança — eu tinha sua cabeça entre as minhas mãos. Ele queria

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desviar o olhar, mas não tinha como. — Se aqui estou e se você ainda existe, é porque não sou
seu inimigo, embora não nutra por ti nenhum amor, tampouco consideração, além do
reconhecimento de que possuís alguns truques engenhosos, elogio pelo qual deverias sentir-te o
mais agraciado dos seres. Mas como já resta claro que entendeste meu recado, mudemos de
assunto; fale-me sobre o prisioneiro que mantém em suas masmorras, do qual sorves os
segredos...
Ao desnudar sua mente, durante minha demonstração, eu vislumbrei que ele capturara um
dos assim autoproclamados servos do “deus egípcio”. Muito mais do que isso, ele estava
bebendo do prisioneiro, ao fincar mechas do seu “cabelo” em seu corpo.
O ato era uma espécie de tabu entre os vampiros. Uma forma de destruir um imortal, sim,
porém, igualmente capaz de destruir o praticante.
Beijar a morte; Encarar o abismo; Beber do infinito; Mergulhar no vazio... Muitos nomes
foram utilizados para retratar o horror do ato. Não se tratava de algo fácil de fazer, especialmente
quando a vítima era um vampiro de idade e conhecimento iguais ou superiores. Mas o real perigo
residia nas consequências. Assim como ocorre com as vítimas mortais, beber de um vampiro
transmite ao predador as memórias da vítima, só que vampiros são poços de memórias. Junte aí
as memórias de séculos de uma existência sombria e atormentada, acrescentando as memórias
absorvidas de todas as suas vitimas mortais. É um turbilhão de lembranças, no qual o indivíduo é
mergulhado de uma só vez, o suficiente para deixar a maioria louca logo de cara.
Se o indivíduo tiver a mente forte o bastante para resistir a isso, há o segundo problema:
ele ainda corre o risco de ser destruído pela enxurrada de habilidades que a vítima conhecia;
além disso, o sangue vampírico, ao contrário do sangue mortal, não nutre, mas ele acaba por
alterar o DNA daquele que “bebe da morte” — ah, como é bom poder falar com alguém de uma
era que compreende o conceito de DNA. Nós nos referíamos a ele por outro nome em nossa
época, digo, eu e meus irmãos de Abiton, mas o conceito obviamente é o mesmo - e como
resultado disso eles se tornam dependentes do sangue vampírico, não pelo sangue em si, mas
pelas memórias que ele carrega. Talvez a enxurrada de memórias seja uma experiência tão
absurda, que mesmo resistindo à loucura, eles tornam-se completamente dependentes das
memórias complexas que só a mente de um vampiro pode proporcional.
Aos que se encontram nesse estado, o sangue mortal, embora seja a fonte de nutrição,
perde todo o “sabor”. Apenas as memórias vampíricas é que saciam a fome interior. Alguns,
entretanto, tomados pelo vício, acabam por deixar o sangue mortal de lado e, uma vez que o ato
de se alimentar do sangue vampírico não fornece a nutrição necessária, acabam por se tornar
coisas definhadas. Esses sim são a personificação do termo “cadáveres ambulantes”. O sangue
vampírico lhes proporciona somente a força suficiente para que seus corpos eternos continuem a
vagar, mas não dá a vitalidade que nos permite ao menos manter nossas aparências próximas da
dos humanos.
Mais um ponto para Volkenväak. Não bastasse seu magnífico controle sobre a matéria
que compunha seu corpo físico, ele ainda era capaz de “encarar o abismo” e permanecer intacto.
Intacto em sua insanidade; talvez só por isso ele fosse capaz de tal proeza. Eu passei a respeitá-lo
mais. Mesmo não gostando dele e o achando uma criança arrogante e demente, eu tinha de
admitir que ele possuía méritos invejáveis.
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— Interessante. Ora, regozije-se, estou reconhecendo suas habilidades excepcionais e sua


engenhosidade. Agora vamos, meu nobre Volkenväak, leve-me a esse prisioneiro, pois estou
curioso acerca das suas origens.
Ele meneou a cabeça, em concordância, e se ergueu do trono. A criatura era ainda mais
alta do que eu imaginava. Devia ter quase três metros. Ele não andou, ao invés disso me indicou
o caminho para as masmorras, por educação, posto que eu já sabia sua localização.
Quando finalmente cheguei à cela de pedra, após navegar os labirintos subterrâneos do
castelo, meu anfitrião manifestou seu corpo completo através dos fios de cabelo que adentravam
aqueles recessos — é fácil entender como aquilo impressionava aos espectadores; o poder do
demônio. Mas na verdade ele estava apenas controlando suas células, alterando-as e
multiplicando-as, criando novas extensões do seu corpo —, o restante do cabelo se moveu, como
se estivesse vivo, revelando uma figura presa.
Pálido e magro, ainda mais do que o padrão da espécie, o prisioneiro vampiro fitava o
nada, com seus olhos da cor do sangue. Suas veias eram nítidas como se tatuagens negras
houvessem se espelhado por todo o seu corpo, como as raízes de uma árvore. Quase não havia
mais sangue.
— O que você descobriu? — indaguei Volkenväak, embora eu já tivesse visto a resposta.

— Quase nada. Ele recebeu o dom do sangue de um daqueles que descendem daquele que
proclamam ser o deus dentre os vampiros. Os pais de seus pais se originaram no Egito — ele
tentava soar normal, mas a mistura de medo e respeito estava ali. — Fora isso, não há mais nada.
— De fato. Mas há outro jeito — eu expandi meu espírito. Toquei no espírito daquele
infeliz quase exangue e vi. Ele havia sido criado por um vampiro relativamente jovem, mais até
do que Volkenväak. Seu criador, porém, foi extremamente hábil em evitar que seus segredos
fossem transmitidos à prole. Mas havia algo estranho ali, como se boa parte da memória daquele
ser houvesse sido apagada. O que estava na superfície revelava que em algum momento, não
muito depois de ser coberto pelo manto das trevas, ele foi levado diante do líder do séquito, o
suposto deus. Foi então que a coisa mais estranha que eu vira desde o acidente que me
transformou ocorreu: um grande branco. A memória dele, não apenas a nível físico, mas também
espiritual, havia sido alterada. Certo, até aí tudo bem, o problema era que nem mesmo eu, o mais
antigo e mais poderoso dos vampiros conseguia desfazer aquilo.
Você entende o escopo do problema? Eu não conseguia enxergar as memórias dele;
Alguém havia feito algo que rivalizava com o meu poder. Com tal maestria que somente quem o
fez era capaz de reverter aquilo. Nessa sua era, eu compararia isso a criptografia, um código tão
complexo que somente aquele que o criou seria capaz de decifrar. Aquilo não devia acontecer,
pois significava que alguém possuía tanto poder quanto eu.
A descoberta me perturbou demais. Obviamente pensei nas crias de Yssarra, mas ela,
ainda que minha criação direta, não possuía poder que rivalizasse o meu. Além disso, aquele
corpo não mais existia, seu espírito havia reencarnado e levava uma vida normal, vida que por
sinal já deveria ter atingido seu termo.
Não vou negar que senti uma grande pontada de insegurança. Até então eu me sentia o

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mais poderoso dentre os seres da noite, mas então algo que rivalizava minhas capacidades
acabara de cuspir bem no meu olho, e o pior, eu não tinha a mínima ideia de quem ele era. Minha
vontade de permanecer naquele lugar desapareceu de imediato.
— Volkenväak, meu caro anfitrião. Creio que nenhum de nós vai conseguir arrancar nada
desse pobre infeliz. Desejo-lhe uma boa refeição, e se algum dia descobrir algo a respeito da tal
divindade do Egito dê um jeito de me fazer ficar sabendo — é claro que ele não faria ideia de
como me avisar, fosse o caso, justamente por isso eu fiz o pedido. Foi difícil não rir ali,
imaginando seu desespero interno ao tentar vislumbrar um meio, ao passo em que não tinha
coragem de me perguntar como.
— Supus que fosse me honrar com sua presença em minha morada por mais tempo —
aquela falha tentativa de soar cordial, somada ao orgulho mal engolido era divertida de ver.
“Trollar”, é assim que vocês se referem a isso hoje em dia, não é? Sempre gostei de “trollar”. Se
minha identidade não houvesse se ocultado dos anais do tempo, poderia muito bem ter sido eu a
dar nome ao ato ao invés das míticas criaturas.
Ah, estou devaneando. Recusei a hospitalidade forçada de Volkenväak e parti. Ali eu já
havia me conformado em ser uma espécie de nômade, algo que a quase totalidade dos vampiros
não consegue ser, ao menos em curto prazo. Afinal, eu, por não possuir as mesmas fraquezas
deles, e poder me locomover até mesmo sob a luz do astro maldito, não preciso me prender a um
refúgio.
Para onde ir então? Fiz-me as perguntas várias vezes, enquanto realizava a descida da
montanha, observando o mar e o céu escuros ao longe, às vezes parecendo ser uma única
escuridão, dividida unicamente pela tênue linha do horizonte. Ali, vagando em meio ao nevoeiro,
vislumbrei vários locais para os quais poderia me dirigir. Um deles seria o castelo daquele que
concedera a Volkenväak o manto tenebroso; Wongrad Karrat fora seu nome mortal. Ele nascera
nas terras Noruega, e lá viveu sua vida de acordo com os costumes de seu povo, até que, por sua
proeza durante as pilhagens em terras distantes, acabou atraindo a atenção de um dos imortais da
região. O manto das trevas só lhe foi passado, entretanto, nos anos tardios de sua vida mortal.
Como era a crença de seu povo, a também a crença dos vampiros dentre eles, Wongrad
acreditava que sua condição fosse uma dádiva ou maldição dos deuses nórdicos.
Ah sim, entre seus vassalos e os vassalos destes havia vampiros de origem cristã, que
ainda se apagavam às suas crenças, mas ele era sábio a ponto de não descartá-los por isso; aliás,
tamanha era sua esperteza, que ele os manipulava através de sua fé. Mas chega de falar desse
idiota. O tempo passou e, pelo visto, quase um milênio depois ele não possui mais relevância
alguma.
No fim, o prospecto de passar o tempo que fosse na presença de outra criança que se
acreditava velho demais para mergulhar em um jogo de tabuleiro cujas peças eram homens e
vampiros, e que achava isso o ápice do poder e da verdade, me pareceu colossalmente tedioso.
Deixei aquela bosta toda e lado, e decidi vagar pelas vilas, feudos e cidades, sem
compromisso, apenas me alimentando aqui e ali de soldados e camponeses incautos,
transformando belas mulheres em brinquedos do meu prazer e absorvendo a energia espiritual
daqueles cujo pensamento pecaminoso me agradava; tudo ao passo em que vez ou outra viajaria

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espiritualmente para me inteirar das mudanças do mundo. Tudo isso até que algo realmente
interessante chamasse minha atenção.
O quê? Ah, veja só, o manto das trevas ainda nem se assentou sobre seus delicados
ombros, mas sua mente já começa a se fortalecer a ponto de conseguir divagar entre as memórias
que compartilho contigo. O que a intriga? O fato de eu me contentar em viver anonimamente.
Você me questiona porque eu não busquei me tornar um “rei”. A razão de eu não querer
governar. Pois eu lhe indago, como se chama o rei de uma montanha de lixo? Não consegue
pensar em nenhum título para um posto tão insignificante, não? Mas vejo que aí no fundo você
sabe que seria um título no mínimo pejorativo, afinal, quem governa o lixo não é melhor do que
a sujeira. Sob a luz dessa premissa, por que razão eu pretenderia governar um bando de mortais
cegos? Ou, em outra hipótese, ser aclamado como o criador de uma espécie que em sua
imortalidade e superioridade emula o estilo de vida decadente da sociedade da qual fazia parte
em seus dias de mortalidade, com hierarquias inúteis e intrigas infantis? Desde o dia em que
recebi o manto das trevas, eu possuía o verdadeiro poder. Fama, apenas atrapalharia, com toda a
atenção indesejada inerente a si.
Minha ambição primária sempre consistiu na liberdade para fazer o que eu bem
entendesse. Estar totalmente desimpedido para procurar meus prazeres.
Não foi naquela ocasião, entretanto, que eu encontrei algum prazer. A Peste Negra já
havia tocado o ora velho mundo com suas garras. Um toque que se espalhou rapidamente.
Quando passei pela primeira vila que vi infectada, com quase cem por cento dos habitantes
mortos, eu não dei muita atenção. Era só uma vila, e com sorte ninguém teria vivido o suficiente
para levar a peste a outros lugares.
Mas a vila seguinte, e a outra, e depois as cidades pelas quais passei; de Colónia a Viena,
até Paris, Marselha e finalmente Roma, estavam todas assoladas. Ah, as visões daquela
desolação representam as mais belas cenas de morbidez que já presenciei. Cenas que poucas
vezes se repetiram na história da humanidade.
Fazendas e campos abandonados, viajantes em decomposição pelas estradas, vilarejos em
completo silêncio, a não ser pelo zumbido das moscas e das aves carniceiras. E quando
finalmente cruzei os portões relegados de Roma, foi que vi o maior cemitério a céu aberto desde
que pisara sobre este mundo. Casas abertas, mas sem nenhum criminoso vivo para roubá-las;
pilhas de corpos sobre o pavimento, vários ali colocados pela falta de local para sepultamento,
outros simplesmente jaziam no local ondem tombaram sem vida, ou para onde se arrastaram em
seus últimos e agonizantes momentos. Carroças viradas, animais vagando sem dono, incêndios,
pranto e acima de tudo morte. Perdi a noção do tempo enquanto apreciava a paisagem de sobre
uma colina perto de uma das muralhas. Ao longe, no porto, navios aguardavam inertes — muitos
dos quais responsáveis por levar a Morte Negra à cidade —, fosse pelo abandono, fosse pela
morte da tripulação.
De certo que o detalhe nada significava, e apenas um tolo supersticioso acreditaria em
algum sinal, mas a forma como as nuvens se dispunham no céu, juntamente com sol se pondo
vermelho, somava morbidez à cena.
Acredito, minha cara, que já deve, em algum momento de sua breve existência mortal, ter
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visto o quadro intitulado “Triunfo da Morte” de Pieter Brueghel. Digo-lhe, portanto, que a cena
ali retratada não é nenhum exagero. Uma obra um pouco simplória, talvez, mas perfeitamente
evocativa da desolação.
É perturbador imaginar que uma bactéria de bosta possa ter sido responsável pela quase
erradicação da vida em um continente. Um punhado de infelizes entram em contato com ela e
bum! Acabou, morrem-se linhagens inteiras, que perseveraram durante milhares e milhares de
anos de evolução, em apenas alguns dias. Eu ponderava exatamente sobre isso quando uma
verdade me ocorreu; aquele tipo de verdade que sempre está lá, bem na nossa cara, mas que
convenientemente escolhemos ignorar.
Pela extinção de quantas linhagens eu fora responsável? Quantas famílias eu exterminei
sem lhes dar chance de perpetuar sua semente? E por conta dessas mortes que eu causei, tendo
como justificativa unicamente meu sadismo e meu egocentrismo, quantas personalidades notória
deixaram de nascer? De quantos artistas, reis, filósofos e gênios eu privei o mundo? Pelos
milhares e milhares de vida que eu ceifara ao longo dos milênios, eu inevitavelmente havia
conduzido a humanidade por rumos imprevistos. Quão diferente teria sido a história do mundo
não tivesse eu impedido que aquelas vidas florescessem?
E todas elas me vieram à mente. Cada uma, sem exceção, em todos os detalhes. Esse é
um dos dons do vampirismo, uma memória exata e perfeita de cada segundo vivido após o
recebimento do manto das trevas (e em alguns casos até mesmo de cada momento desde o
nascimento mortal). Aos que ainda retém alguma consciência moral, é também uma causticante
maldição.
Aquela ponderação marcou um momento de suma relevância na minha existência. Ali
brotou a primeira semente que séculos mais tarde me colocaria no caminho que trilho agora. Mas
isso ficará claro no devido momento. Voltemos à sequência lógica das minhas memórias.
Enquanto fiquei ali, imaginando as coisas da quais eu privara o mundo — para melhor ou
pior — o sol se pôs e uma noite nublada e sem lua encobriu aquele campo de morte. Sequer
percebi quando fui encontrado. Um leve toque, quase tímido, me tirou do meu transe. Mais um
imortal havia cruzado meu caminho. Alguém que observe essas situações imagina que alguma
atração sobrenatural exerce sua força sobre os vampiros. Eles parecem atrair uns aos outros.
Bem, esclarecendo que o sobrenatural não existe (sou uma aberração genética, não se esqueça),
os imortais conseguem captar uns aos outros através do sentido. Aos mais simplórios o cheiro da
morte exalada de cada poro, acumulada pelas incontáveis mortes durante décadas ou séculos, é
um aroma peculiar e inconfundível. Aos mais instruídos, a aura de outro imortal é como um
grande farol, ainda que sua “luz” transmita sofrimento e decadência.
Na verdade, eu falo aqui de uma imortal. Do tipo mais inesperado que se possa imaginar.
Trajada de um hábito branco, maculado de sangue e fluidos da peste, uma freira me olhava
curiosamente, até mesmo com certa solenidade. Seus olhos vermelhos se destacavam dentro da
clausura das vestes religiosas. O rosto, porém, pálido como cera e o resto do corpo, totalmente
oculto, evocavam castidade. De fato, ela era a imagem viva - morta-viva, se preferir - de uma
daquelas estátuas sacras.
— Me perdoe, meu irmão na noite e na penitência, fiquei intrigada e ansiosa por

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encontrar aqui um semelhante. Poucos dos nossos irmãos permaneceram após a morte negra ter
se espalhado. Mal sobraram pessoas saudáveis das quais se alimentar — obviamente o problema
era a escassez de alimento e não a peste em si. Vampiros não eram afetados; mas embora nossos
corpos sejam imunes aos microrganismos, isso não significa que não possamos carregá-los, e não
tenha dúvida de que um ou outro imortal deva ter carregado e posteriormente transmitido a peste
ao se alimentar de um doente. Mas isso não significa que os vampiros tenham sido os
responsáveis por disseminar a peste negra. No ritmo que a doença se propagara, um vampiro
infectando um ou outro infeliz não mudaria as coisas. Sejamos francos, não fosse esse ocasional
vampiro, certamente seria um dentre os milhões de mortais infectados. E não se engane. A culpa
aqui foi totalmente dos mortais e sua falta de asseio.
— Posso imaginar... irmã?

— Claire.

— Claire. E quanto à sua ocupação, és mesmo uma freira?

— Sim, embora carregue a maldição de Eva, minha devoção ao Senhor se mantém, dentro
dos meus limites. Descobri que com meu sangue maculado acabo sendo capaz de curar alguns
dos doentes, em sua maioria as crianças, ou os que se provarem mais puros dentre os demais.
— Por que não todos? — eu já sabia a resposta.

— Porque não quero correr o risco de atrair atenção indesejada ao que sou. Ou me
canonizariam, o que teria consequências funestas, afinal, que figura santa não poderia aparecer
durante o dia? Ou eu seria declarada uma bruxa...
Pensamentos claramente legíveis a circundavam. Ela era uma vampira, se alimentava dos
mortais, mas isso não a impedia de desejar salvar a maioria deles, ao menos os que considerasse
redimíveis; tampouco a fizera abandonar suas crenças.
— Meu senhor? Acredito que seria cortês se apresentar. Não somos muitos de nós que
tem algo a fazer por essas terras flageladas.
— Perdoe minha indelicadeza, irmã. — não sei se ela reparava na forma jocosa com que
eu utilizava o termo — Me chamo Patrício — perde-se as contas de quantos nomes falsos utilizei
aqui e ali pela história da humanidade.
— Se procura alimento aqui, Patrício, irá se desapontar. O pater local chegou inclusive a
proibir que qualquer de seus súditos se alimente dos homens e mulheres saudáveis. Ele teme que
os habitantes locais sejam extintos se os poucos saudáveis não forem poupados a todo custo.
Alguns dos malditos da região estão apelando para o sangue dos animais. Mas não é algo bom...
É claro que não era algo bom. Esqueça toda essa baboseira que você vê em filmes e em
livros, cuja inspiração foi o maior infortúnio da minha existência. Beber de animais não vai lhe
nutrir. Vai no máximo permitir que você se arraste por mais uma noite até o buraco mais
próximo que lhe proteja do sol, com o mínimo de sanidade que você conseguir manter. Eles
possuem pouco sangue, e mesmo os mais corpulentos não possuem o sangue suficientemente
forte para prover o sustento pleno. Isso ainda é muito aquém ao fato de que as memórias dos
animais - sim, quando se bebe o sangue deles, também se absorve suas memórias — são

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diferentes das dos humanos. Elas são experimentadas conforme suas mentes interpretam as
coisas, o que acaba sendo confuso e perturbador. Em suma, a experiência pode levar um vampiro
incauto à loucura. Eu soube de situações em que vampiros que arriscaram se alimentar de
animais selvagens, mais tarde acabaram adquirindo uma mentalidade animalesca e passaram as e
comportar como os próprios animais dos quais beberam, passando a acompanhar matilhas; e
mesmo que depois voltassem a caçar humanos, o estrago já estava feito.
Lobisomens? Não, não foi por causa desses vampiros que o mito surgiu. Um mito, sim,
embora eu não possa negar a existência deles e de outras coisas. Aliás, por existência, eu quero
dizer que haja coisas que sob uma ótica errônea poderiam representar a personificação dessas
histórias, ou que talvez tenham dado origem a elas, devido a uma falha de observação de algum
mortal imbecil.
Tudo isso que eu lhe disse acerca dos animais, no entanto, não é a pior das razões pelas
quais beber do seu sangue deve ser evitado. Certa vez, pelos idos do décimo primeiro século da
era Cristã, eu observei um vampiro desgarrado. Um pobre coitado que recebera o manto das
trevas, e cujo criador fora obrigado a fugir antes de dar as boas vindas à sua criação. Esse
indivíduo, embora nada tenha feito de significante a ponto de eu me importar saber o que possa
ter ocorrido com ele, acabou por me mostrar uma lição valiosa. Durante uma de suas noites
miseráveis, perdido pelos caminhos que conduziam à Terra Santa, estava à beira do desespero,
sedento — vampiros jovens necessitam de sangue com muito mais frequência, e a falta dele além
de agonizante os deixa agressivos — ele se viu obrigado a atacar o único ser vivo que encontrou
em seu caminho, um velho cão, já em seus últimos anos de vida. Sem pensar duas vezes, o
imortal infante cravou suas presas no animal, e então foi inundado por suas memórias. Só que ali
no meio daquelas lembranças instintivas e estranhas, ele sentiu o que o cão sentia: amor. Amor
incondicional. Não havia rancor, não havia raiva, não havia mágoa. O ser simplesmente amava.
Até mesmo aqueles que durante sua vida lhe fizeram mal; os que o abandonaram e o castigaram;
até mesmo a ele, o ser que buscava tirar-lhe a vida, o cão demonstrava amor, unicamente pela
sua breve companhia.
O choque daquilo foi tão grande que o vampiro imediatamente se lançou para longe,
arrependido. Depois daquilo ele colocou o animal sob seus cuidados...
Tive a oportunidade de vislumbrar isso durante minhas viagens além do corpo, e também
de sentir tudo aquilo perscrutando a mente do imortal ignorante em questão. Pensei, já, por
muitas vezes, se os animais são seres tão nobres, se seus atos violentos residem apenas no
instinto e não no sadismo, e se a despeito disso, são capazes de perdoar e amar até aqueles que os
fazem mal, como podemos dizer que o ser humano é superior? Concluí que a superioridade
humana se dá apenas a nível intelectual. Claro, o intelecto devidamente moldado e auto
aperfeiçoado é capaz de alcançar o significado pleno do amor; compreendê-lo e exercê-lo com
maestria, ainda que o que eu diga se veja quase que totalmente em sentido teórico, enquanto eu o
amor dos animais é algo quase que instintivo. Eles simplesmente amam, sem pensar no por quê.
É ai que chagamos em um empate entre as espécies animal e humana. De um lado os animais
não tem a inteligência, mas sem ela, não possuem também os defeitos a ela inerentes: o orgulho,
o egoísmo, a malícia; Amam, pois não há o que os impeça de amar. O homem possui a
inteligência, o que é uma grande vantagem, no sentido intelectual, mas junto com ela vem as
ideias de superioridade, de dominação; o ego. A vontade de se colocar no centro do universo, e
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ser mais do que os outros, e isso os acaba impedindo de compreender o amor, pois o amor
compreende mais o bem do outro do que o seu próprio.
Oh, bosta, estou divagando e falando como um maldito filósofo. Não me censure... É com
um ser milenar repleto de memórias, ideias e teorias que você está falando, e dê-se por grata de
isso não ter ocorrido com mais frequência. Um velho mortal definha, esquece, confunde as
ideias; Um imortal assimila incessantemente, mas não se resume a isso, ele conjectura sobre o
que assimilou, criando ideias difíceis de compreender aos... Menos experientes...
Voltemos ao tópico. Eu caminhava entre as ruas apinhadas de cadáveres ao lado de
Claire. Os únicos que ainda se moviam na noite éramos nós e os moribundos. Mas havia outra
presença, uma que eu havia sentido desde que chegara à cidade. Encontramos o dito cujo em um
beco, já na parte central daquela necrópole. Espantosamente, o beco era o local onde as pessoas
pareciam estar mais saudáveis. O inebriante cheiro de sangue pairava pesadamente na atmosfera.
Sangue limpo, imaculado. Ao lado de um grupo de pessoas, aparentemente doentes, no entanto
de aspecto convalescente, um homem guardava alguns frascos em um alforje. Estava vestindo
uma capa preta, com botas e luvas. Seu rosto era ocultado por uma máscara que lembrava uma
ave com um longo bico, e um chapéu negro cobria sua cabeça, com abas que caiam para o lado.
Ele esboçou uma reverência para Claire, e por alguns instantes me olhou com curiosidade
por detrás das lentes da máscara. O doutor da peste era um de nós. De pronto eu já compreendera
tudo, mas deixei que Claire me explicasse. Era maçante ter de fingir ignorância e ouvir as
pessoas dizerem o que eu já sabia (melhor até do que eles), mas mais maçante ainda seria lidar
com a reação delas perante a verdade acerca da minha identidade.
— Este é Jean Pierre, um doutor. Ele é o responsável por curar os enfermos que ainda não
se encontram tão debilitados, e graças a isso há chances de a cidade voltar a prosperar. -
enquanto ela falava, o médico se aproximou, sem tirar a máscara, que por sinal lhe concedia um
aspecto agradavelmente mórbido.
— Saudações — ele fez uma reverência, e então passou a caminhar conosco, Claire entre
nós dois.
— Muito nobre de sua parte, auxiliar os mortais — observei. — Presumo que tenha
encontrado uma vocação, como minha recém-conhecida companheira.
— Minha vocação é para a medicina, meu lorde...

— Patrício.

— Como ia dizendo, minha vocação é curar o corpo, e com meu sangue posso fazer isso
de uma forma muito mais eficiente. Meu “remédio”, entretanto, é concedido apenas àqueles que
são dignos. Aos que não merecem o inferno. Aos que aceitam a vontade divina de cabeça
erguida, mas que por seus atos e sua consciência provam merecer mais tempo sobre este mundo.
A eles eu concedo a salvação...
Ah, a mente medieval...
— Mas não vou negar que isso colateralmente acaba me beneficiando. Por preservar a
população desta cidade, acabo caindo nas graças do pater e de todos os outros vampiros daqui.

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Por esse motivo, aconselho ao forasteiro que evite se alimentar dos poucos sobreviventes
mortais, em especial aqueles por minha pessoa tratados. Agora, com sua licença, devo continuar
minha tarefa.
Limitei-me a uma despedida formal. Havia mais do que os olhos diziam - e do que ele
revelava - sobre aquele vampiro em particular. Um indivíduo cheio de segredos. Mas, ele que se
dane.
Claire me levou até um convento abandonado.
A estrutura ainda se encontrava intacta, tendo sido esvaziada há pouco tempo. Os poucos
que sobreviveram à peste deixaram a cidade e Claire assumira o lugar. Sob as catacumbas —
sempre sob as catacumbas — ela me ofereceu alimento. Lá no fundo, a amável irmã mantinha
alguns mortais acorrentados e amordaçados. Eram os criminosos da cidade, que ela levou até lá,
e também alguns outros desafortunados que na visão dela eram tão culpáveis quanto os demais.
Para um convento velho — para os padrões mortais —, palco de diversas mortes causadas
pela peste, e covil de uma freira vampira, devo dizer que o local estava bem arrumado. Fora o pó
que se acumula nesses lugares, não havia restos mortais, nem os fluidos típicos dos locais
assolados pela morte negra ou por imortais se alimentando.
— Então, irmã Claire, por que continua por aqui? Não, não, deixe-me matar uma
curiosidade mais profunda. Como veio a ser uma de nós? Digo, você é uma noiva de Cristo.
Quem lhe daria o manto das trevas, e por qual razão?
— Meu bom Patrício, sinto por sua ignorância. Mas nós somos iguais a eles, porém, a
provação que nos foi dada é maior, proporcional à nossa herança.
— O que? — eu não li sua mente. Poderia tê-lo feito, mas não quis. Só que caminho pela
qual a conversa enveredava era bizarro.
— A maldição de Eva. Seu antecessor não lhe contou sobre isso? — simplesmente neguei
com a cabeça. Maldição de Eva? Aquela era nova.
—- Explique-me — era difícil conter a ironia.

— Eva cometeu o primeiro pecado, e com isso selou o destino dos homens ao sofrimento.
Nosso Senhor castigou a todos os descendentes de Adão e Eva, mas para a grande maioria, a
maldição acaba por ser menor, pois as linhagens se diluíram com o tempo. Mas Eva passou
diretamente seu sangue a um seleto número de pessoas, e esse sangue, seu castigo em sua forma
mais bruta, é maior àqueles que o carregam. É por isso que nos tornamos o que somos: vampiros.
Carregamos o sangue de Eva diretamente, passado entre nossos mestres, remontando à pecadora
original.
Foi uma das teorias mais doentias que eu já ouvira. Certo, daria uma ótima mitologia, um
ótimo roteiro de Hollywood, mas quando se sabe a verdade, aquele tipo de conjectura chegava a
ser ofensivo. Não sei se por apagar completa e necessariamente o grande Remekhse, ou se por
indicar que as pessoas realmente acreditavam no mito de Adão e Eva. Simplesmente não há
logica, é como alguém escondendo uma bala sob um punho fechado e perguntando a uma criança
“o que eu tenho aqui?” e a criança responder “uma Ferrari”. Por mais que a mente infantil possa

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ser, digamos, ingênua, existem limites de estupidez que não se espera sejam cruzados.
Por bem, eu não tive tempo de dizer alguma coisa a respeito, ou de tentar inventar alguma
desculpa para mudar de assunto. O peculiar cheiro de morte já havia me alertado há alguns
minutos que outros vampiros nos fariam companha em breve e Claire, certamente, não fora
capaz de perceber a ameaça. Dito e feito.
Sete jovens portadores da minha maldição desceram a escadaria do convento
abandonado. Devo admitir que sua descida foi graciosa, flutuando sobre os degraus como
espectros, eles simplesmente alcançaram o piso, suficientemente silenciosos a ponto de não
serem notados por um mortal ou pela ainda jovem Claire.
— Chegou a hora de encontrar o Criador, irmã! — gritou um deles.

— Vou te mandar para o teu marido Cristo, mas sem a virgindade — bradou às
gargalhadas outro.
Uma era mulher. — Que vergonha. Veja quanto alimento, e ela bebe sozinha. Não fora
dito para repartir o pão?
Conforme o tempo passa, perdemos paciência para algumas coisas. Acho que é uma
espécie de amadurecimento. Você se torna mais sábio, adquire novos conhecimentos, mas deixa
outras coisas de lado. Não se trata de uma perda, como cheguei já a pensar. Não é como se você
ganhasse algumas virtudes e perdesse outras, no caso a paciência e a tolerância. É que você se
torna tão experiente que sabe que não vai adiantar investir tempo e trabalho tentando convencer
gente idiota, tentando dialogar, se esforçando para lhes mostrar toda a merda que unta o caminho
que eles trilham.
Na fação de segundos que Claire levou para esboçar uma expressão de pavor eu me
tornei um borrão de sombras. Os três que falaram impropérios foram reduzidos a pedaços de
carne sanguinolentos antes de dar o próximo passo, e se tornariam cinzas dentro de alguns
segundos. Com os outros quatro eu fui um pouco mais dedicado. Imobilize-os com a minha
vontade, enquanto assolava seus espíritos com sensações de dor e desespero, ao passo em que os
desmembrava.
O último deles, um homem que adquirira a (não tão efetiva) imortalidade já velho, com
uma calvície predominante e um corpo magro e encarquilhado, eu transformei em alimento.
Primeiro me abasteci da sua perversão (ah ele era um velho sujo, do jeito que eu acho que seria
naquelas circunstâncias), depois lhe drenei o sangue e as memórias, deixando de lado alguns
detalhes. No fim, eu não quis saber o nome de nenhum deles.
Atônita, foi como Claire ficou diante da minha exibição de poder. Ali ela deve ter me
imaginado o próprio Caim. Ironia a parte, meu disfarce estava arruinado. Ela sabia que eu não
era um vampiro comum. Nem mesmo um dos pater conseguiria acabar com um número daqueles
facilmente, em um ou dois segundos. Na verdade, eles eram extremamente dependentes dos seus
vassalos.
— Nobre Claire, eu agradeço a companhia e a hospitalidade — fiz uma reverência — De
agora em diante cuide-se, pois espero encontrá-la novamente algum dia. — E com isso bati em
retirada. Ah, lamentei não ter tido a chance de deflorar aquele corpo que mais parecia uma
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estátua sacra, enxergar suas curvas por baixo do hábito. Mas o que estava feito estava feito. Seria
menos irritante.
E lá estava eu, novamente sem rumo e sem propósito.

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A Queda

Novamente eu estava só e sem rumo. Daquela vez, porém, eu estava desmotivado a


procurar algo. Tanto a humanidade quanto os vampiros haviam se tornado enfadonhos. Eu
simplesmente não queria mais ter nada a ver com aquilo.
Vaguei até velhas ruínas, restos da dizimação de guerras e doenças e nas mais profundas
catacumbas que encontrei fiz meu refúgio. Durante toda a trilha que me conduzira até aquele
momento, aperfeiçoei ainda mais meus poderes. Controlar a matéria com a mente se tornara algo
simples. Exigente e desgastante, mas simples. Com isso, eu passara a dormir durante os dias,
cobrindo minha forma física com rochas moldadas.
Sequer me preocupava em deixar meu corpo para observar os arredores. Por vezes,
mesmo durante a noite, eu me satisfazia em sair em forma imaterial e vampirizar espiritualmente
minhas vítimas. Creio que cheguei a passar mais de um mês adormecido, me levantando apenas
uma vez para saborear o sangue. Um luxo do qual vampiros jovens e ignorantes não podem
dispor.
Naquela ocasião, como que por um acaso afortunado, Yssarra apareceu nos meus sonhos.
Tão alheio eu estava, mergulhado naquele sono, que só depois de quase ignorar suas primeiras
palavras, graças ao torpor que me tomava, foi que me ocorreu que aquilo não era um sonho. Eu
vagava pelo mundo dos espíritos, como de costume, e minha amada de outras eras estava, de
fato, diante de mim.
— Mais uma vez você morreu... — observei, ainda um pouco alheio. Ela simplesmente
assentiu. Sua aparência era a do corpo com o qual viveu no Egito, seu corpo “divino”.
— E aqui você permanece, meu querido Remekhse. Imutável. Incorrigível. Imperfeito.

— Entediado — não havia adjetivo suficientemente rico em quaisquer das línguas


humanas para descrever o quão desanimado eu estava com esta existência enfadonha.
— Então por que não buscar a redenção? Por que não deixar esse caminho, e se juntar a
mim? Eu aprendi muito e corrigi a maioria dos meus erros. Como nossos irmãos, eu estou prestes
a ser aceita novamente em Abiton. Mas ainda há um peso na minha consciência. Graças a esse
poder que você ainda carrega consigo, eu fiz coisas das quais me envergonho. Eu disseminei essa
mácula entre os homens.
— É verdade. Eu sei a qual ponto você deseja chegar, Yssarra. Fui eu, em primeiro lugar,
quem a tornou como eu. Ainda que não fosse a minha intenção “perpetuar” a espécie, eu a criei,
e ao fazê-lo, indiretamente sou responsável pelas crias que você soltou no mundo, com a única
intenção de me destruir...
— Não, meu sempre querido Remekhse, isso não é uma acusação. A culpa foi minha, e
muito eu fiz para tentar trazer algo de bom a este mundo. Mas confesso que se você abrisse mão
desse caminho degenerado, eu me sentiria menos culpada. Se houvesse um meio para
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impedirmos que nossos “descendentes” causassem mais desgraças, ou se pelo menos, eu fosse
capaz de convencê-lo a seguir um caminho que lhe oferecesse um propósito útil. O propósito que
inicialmente deveria ter nos guiado quando viemos entre estes pobres seres...
— Talvez haja. O que eu devo fazer? — foi o que eu falei após algum tempo
considerando. Não, nenhuma emulação redentora havia se apossado de mim. É só que, eu estava
tão entediado, que qualquer oportunidade de fazer algo diferente me parecia tentadora.
— Quanto à questão dessa espécie assassina que criamos... essa “involução”, por ora
nada. Mas quanto a você, Remekhse, ainda há esperança. Há tantas almas que você ainda pode
guiar a um caminho frutífero. Você não pode alterar o curso da humanidade, mas pode ensinar
aqueles que guiarão essa espécie rumo à ascensão.
— E por onde eu devo começar?

— No norte da França. Lá você encontrará uma jovem. Agora livre do corpo físico, tenho
mais liberdade para vagar por este mundo, mais ainda do que você, quando deixa sua carcaça
imortal — carcaça, aquilo soou ofensivo, mas eu relevei — foi dessa forma que observei uma
jovem. Ainda em seus dezoito anos, não realizou nenhum grande feito, mas pude sentir que
devidamente guiada, poderá trazer grandes avanços a esse povo ignorante.
Quando abri meus olhos físicos, a localização do vilarejo da tal jovem estava vívida em
minha mente.
Seria hipócrita se eu, supostamente tentando seguir um caminho redentor, despertasse e
saísse por aí drenando pessoas. Saciei minha sede através do espírito de humanos tão sórdidos
quanto eu. Uma das vantagens do vampirismo espiritual é que a vítima não morre; ao menos em
curto prazo, quando os pensamentos suicidas ainda não começam a dominar sua mente.
Logo eu estava lá, em uma modesta fazenda, mal possuindo mais de meia dúzia de
galinhas e um punhado de vacas e porcos. A estrutura consistia em um celeiro e uma casa
extremamente modesta de pedra caiada, com apenas uma porta de madeira vagabunda e janelas
que eram nada mais do que buracos nas paredes.
O astro maldito ainda se erguia quando cheguei, afastando a neblina da madrugada e
tingindo o céu com um tom rosado em contraste com nuvens douradas. Ela, não obstante, já
estava desperta, dentro do modesto casebre, fazendo os preparativos para mais um dia.
Da “janela” eu pude vê-la. Era uma jovem magra, pálida, com cabelos loiros acobreados
e um rosto redondo, com o nariz pequeno e lábios fartos. Sua expressão entregava os sofrimentos
que já vivera, mas fora isso, eu a achei linda. Talvez fosse sua fragilidade que causasse tal reação
em mim.
Esperei que ela saísse para o campo e então me introduzi, surgindo diante de seu
caminho.
— Isabelle, eu suponho.

— E quem serias monsieur?

— Me enxergue como um amigo. Alguém, que por consideração aos teus pais, veio lhe

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estender uma mão — eu não podia simplesmente dizer “sou um vampiro e você é o instrumento
de minha redenção” embora a ideia fosse tentadora.
— Conheceu papa e maman? — o francês é uma língua bonita, mas algumas palavras
ficavam risíveis.
— Bem pouco, mas o suficiente para ouvir falar de sua filha — Yssarra me adiantara a
história, antes que eu investigasse por conta própria. Seu pai era um fazendeiro de nome Francis,
que ao viajar para Paris com um carregamento de grãos acabou por morrer vítima da peste. A
mãe, Madeleine, cuidou da filha por alguns meses antes de ela mesma morrer por conta de um
mal súbito.
E agora a filha deles também se encontrava à beira da morte por conta de uma doença
que ela própria não conhecia. Isabelle possuía câncer cerebral, algo que a medicina da época não
possuía meios de descobrir - e muito menos de curar - até que fosse tarde demais. Não obstante
assintomática, a doença a mataria em pouco tempo. Somando-se à iminente tragédia, havia a
peste cinzenta — mais tarde conhecida como tuberculose — que a garota havia contraído. Dessa
ela já tinha os sintomas iniciais, mas os tomava por uma mera enfermidade passageira.
Seria de se imaginar que um ser da minha idade aprenderia a ser paciente com o tempo.
Sim, de fato isso acontece com os vampiros, mas em contrapartida à paciência que temos pra
detalhes relevantes, acabamos sendo totalmente intolerantes com questões menores. O que quero
dizer é que eu não tive paciência para criar uma história, me aproximar dela, e então, sem que a
pobre infeliz percebesse, utilizar meu sangue pra curar sua enfermidade e então conduzi-la para
uma vida de grandezas.
Ao invés, eu a agarrei e antes que seu cérebro pudesse processar o que acontecia e
despejei meu sangue em sua boca.
— Agora me ouça — ela não podia reagir nem contestar, pois eu subjugara sua vontade.
Era a única vez que eu pretendia fazê-lo. — Você estava prestes a morrer, criança, e eu a salvei.
Eu sou um vampiro, e sim, as histórias são verdadeiras, ao menos em parte. Mas tu não tens com
o que se preocupar, pois estou aqui para guiá-la. Sua vida lhe reserva grandezas e eu estou aqui
para garantir que as alcances.
Ela não tinha como não crer. Por uma fração de segundos eu deixei que meu espírito a
tocasse, compartilhando com ela parte dos meus pensamentos sobre sua situação - sua
enfermidade. O primeiro passo estava dado.
Nos dias que se seguiram, à medida que seu susto desvanecia, eu começava a educa-la
paulatinamente. Instruía nas questões do mundo, e também lhe dava conselhos de como
prosperar em termos materiais. Com minha ajuda, logo sua pequena fazenda começou a fornecer
alimento para os vilarejos próximos.
Através dos meus dons eu manipulava o clima e garantia que os campos florescessem.
Com meu sangue eu livrara os animais da doença, assim como ela e os empregados que logo
passaram a chegar.
Minha atuação era como a de um pai. Porém, a fim de garantir seu crescimento, eu estava
disposto a deixá-la caminhar com as próprias pernas. Naquela época eu não dormia, porém
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visitava locais distantes em forma espiritual a fim de acompanhar a situação do mundo. Eu já


havia descoberto como dividir minha atenção entre meus sentidos espirituais e físicos, de forma
que minha consciência podia enxergar simultaneamente por ambos.
Isabelle viajava sozinha até as cidades e realizava as vendas, lidando direta e habilmente
com os mercadores.
— Meu senhor, Remekhse, estou sem sono. Seria muito importuno me fazer companhia?
— dizia ela por vezes. Nós ficávamos no meio do pasto conversando. Eu lhe contava sobre a
história do mundo. Sobre a minha natureza. Ela ficara fascinada pelo que eu era, o que parecia
lógico para o contexto; um vampiro salvara sua vida e lhe era novo significado. Ela não me via
como um predador frio e hedonista, mas como um santo benfeitor.
Logo, vislumbrei a possibilidade de que não era pela minha condição que Isabelle estava
fascinada, mas sim pela minha pessoa. Nenhum outro homem poderia lhe oferecer o que estava
ao meu alcance. A começar pela vida; o conhecimento, a proteção, e por que não a aparência - eu
aprendera a alterar minha aparência física a vontade, mas sempre optava por feições atraentes.
Cabelos escuros e longos também eram minha preferência. O tom da pele eu alterava conforme o
local, especialmente ao sair de dia, porém há algum tempo eu evitava tons escuros, a fim de não
trazer lembranças do Egito. Durante a noite, eu mantinha minha palidez inumana a fim de
ressaltar o que eu era.
Infelizmente o mesmo efeito me acometeu. Eu deixava de enxergá-la como uma mera
criança mortal, e passava a enxergá-la como mulher. Não apenas um corpo belo e apto a fornecer
prazer, mas alguém a quem eu me deliciaria em proteger e guiar. Eu acreditava que pela primeira
vez desde Yssarra, eu poderia estar de fato amando outro ser. Por isso, eu me recusaria a cobri-la
com o manto das trevas.
Nosso tempo juntos se tornava cada vez mais agradável. Minha alimentação se restringira
ao vampirismo espiritual, drenando as energias de indivíduos torpes, mas não tão decadentes. Em
raras ocasiões eu provava o sangue, mas apenas em pequenas doses, tiradas de homens
corrompidos, antes de deixar que seguissem o caminho de sua própria ruína.
Se Isabelle sentia o mesmo por mim eu não sabia. Não ousaria violar sua mente a fim de
ler seus pensamentos. É claro que eu gostaria que de ser correspondido, mas caso não fosse,
aceitaria de bom grado, me bastando o bem estar dela.
Três anos se passaram como meras semanas. Apesar da brevidade, raras vezes eu me
enchera de recordações tão agradáveis. Isabelle realizara um crescimento intelectual absurdo. A
fazenda crescera e ela sem dúvida seria capaz de administrar tudo aquilo sozinha, como se fosse
uma alta nobre de berço. Vários jovens locais a cortejavam, mas ela os ignorava, mantendo
apenas relações corteses, em nome dos negócios.
Eu não me importava. Achava hilário vê-los tentando conseguir seu afeto em vão. Ao
mesmo tempo, entretanto, eu me sentia tão tolo quanto eles.
Certa vez, em um final de tarde escarlate ela aproveitou um momento de privacidade e
levou o assunto à tona.
— Remekhse, o que você acha de eu ignorar todos esses senhores que se fazem de
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pretendentes meus?
— Sinceramente? Em relação a eles eu acho engraçado. Divirto-me ao ver sua frustração
ao mesmo tempo em que persistem rastejando pela sua atenção. Quanto a vos, não sei ao certo.
Meu desejo é seu bem estar e sua felicidade. Se algum dia vier a encontrar alguém que possa lhe
prover isso...
— Durante a minha breve vida, que é como você deve vê-la, não conheci ninguém mais
capaz de fazê-lo do que você. E saiba que considero como minha vida, minha verdadeira vida, os
dias desde que você surgiu diante de minha porta.
Eu era quem, durante milênios, fora capaz de manipular os sentimentos alheios; de fazer
com que as pessoas se sentissem apaixonadas por mim, fascinadas. Elas se arrepiavam diante das
minhas palavras; diante da minha mera presença. E naquele momento, eu me sentia como elas,
por uma jovem e inocente humana.
— Remekhse, vampiros são capazes de sentir amor?

Eu pretendia resistir. Responder de forma simples, mas não me deixar levar pelo assunto.
Ao invés disso o que eu fiz? Eu a agarrei ali mesmo. Beijei-a como um maldito moleque mortal
faria. Nada do sangue, da vampirização espiritual, da luxúria. Puro e simples sentimento. E ela
correspondeu na mesma intensidade.
Daquele ponto em diante, passamos a viver como um casal. Não diferente de
companheiros mortais. Meu vampirismo era um mero detalhe, o qual por vezes eu chegava perto
de esquecer.
É de se esperar que você se questione o quão “mortal” era a nossa relação, e isso implica
questionar como seria possível mantermos uma relação sexual. Bem, um vampiro com bom
controle sobre sua forma física, com uma gama considerável de poderes pode simplesmente
bombear seu sangue para a parte do corpo desejada — no caso o membro sexual — e assim
enrijecê-lo. O orgasmo é uma questão a parte. Esse não nos ocorre como consequência desse
simulacro de sexo. Para obtê-lo é necessário novamente o uso dos nossos poderes. Eu pude obtê-
lo pela troca de energia espiritual com Isabelle, mas já vi outros vampiros, não tão experientes,
obtendo um orgasmo físico através do autoflagelo, alterando os receptores de seu corpo a fim de
fazer a dor se transformar em prazer. No fim, cada um improvisa com os poderes que conhece.
Mensalmente eu ministrava doses do meu sangue a ela, a fim de deixar seu corpo sempre
vigoroso e impedir que qualquer doença a afligisse. Vivenciando aquilo eu finalmente meu dei
conta do que motivara Gareth em suas decisões... Os atos dele deixaram de ser uma ingenuidade
estúpida aos meus olhos e se tornaram a epítome da dedicação. Concomitantemente, sua
desgraça tornou-se o objeto de meu temor. Se — quando — a mortalidade de Isabelle chegasse a
termo, o mesmo tormento que tomou Gareth certamente me tomaria. Era inconcebível a ideia de
passar a eternidade sem ela.
Por sua vez, ela passara a desejar a imortalidade. Aumentando o conflito em minha
consciência. Tratá-la com a devida pureza, e me conformar com a ordem das coisas, sabendo que
a amei por toda uma vida, e depois passar a eternidade em luto ou abraçar o egoísmo e correr o
risco de transformá-la em um monstro, maculando a sua inocência com o manto das trevas?

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— Se ainda pudéssemos ter filhos Remekhse, eu chegaria ao fim de minha vida com
tranquilidade, sabendo que terias a companhia de nossos filhos, netos e eternos descendentes
para que se lembrasses de mim. Mas não podemos. Temos apenas um ao outro. Dói-me imaginar
meu definhar, enquanto você permanece eternamente jovial, vendo outras jovens e belas
mulheres ao seu redor, para então eu partir e deixá-lo aqui.
— Sua aparência não me importaria. Meu amor continuaria firme — e era verdade. —
Mas partilho do mesmo temor. O medo de me afastar de ti. Mas nossos espíritos poderão se
encontrar...
— Tem certeza disso?

— Não — eu não aguentaria mentir para ela, ainda que para prover conforto. — Eu estou
preso a este mundo, mas você, com sua pureza, certamente não pertence a este local.
Um sentimento ambíguo me tomava. Se por um lado os dias pareciam passar
demasiadamente rápidos, por conta do prazer que eu sentia em sua presença, por outro um
tormento constante sempre pairava em meu âmago, quase estragando aquela alegria, era o medo
de que aqueles momentos acabassem em um piscar de olhos, que ela fosse tirada de mim, e a
preocupação quase me impedia de desfrutar a felicidade ao lado dela.
Ela cada vez mais insistente para que eu lhe passasse o manto das trevas — e eu quase
acatando — mas meu dever sempre pesava sobre a minha consciência.
O dia fatídico me que tudo mudou começou de forma normal. Outro dia em que eu não
havia dormido. Ficara com ela até que pegasse no sono e então saí para me alimentar na calada
da noite. Ao amanhecer eu a acordara, e ela saíra para a cidade a fim de cuidar dos afazeres.
Geralmente antes do meio-dia Isabelle costumava estar de volta, mas aquilo não
aconteceu naquele dia. Como era de se esperar, em questão de segundos eu saí à procura dela.
Encontrei-a na estrada, ferida. A roda da carroça se soltara e ela caíra, fraturando a perna.
Nada que meu sangue não tenha sido capaz de curar, mas a perspectiva de aquilo se
repetir de forma mais grave — fatal.
Depois daquele dia, sua insistência em se tornar uma vampira aumentou. Eu sei o que você
está pensando, criança; por que eu não passei a acompanhá-la? Porque isso faz parte do amor.
Quando se ama, se confia, dá-se a liberdade ao ser amado. Eu respeitava o espaço dela, seu
tempo, sua liberdade.
Mais uma vez ela levantou a questão.
— Remekhse, você é imortal, mas eu vou morrer, o que para ti será muito em breve.
Nenhum de nós quer se afastar do outro, então, o que pode haver de tão ruim em sermos iguais?
Juntos nós poderíamos fazer muito mais por esse povo, por este mundo. Não conheço muita
coisa, apenas ouço falar das terras dos mouros, e as outras terras muito além que você diz
existirem, mas juntos, esse paraíso que temos aqui poderia se expandir.
Os acontecimentos do fatídico dia haviam me deixado reticente, mas aqueles argumentos,
ah, e pensar que era uma jovem, frágil e inocente mortal que conseguia tão habilmente manipular
a resolução do ser mais antigo e poderoso a caminhar pelo mundo.
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No fundo era aquilo que eu desejava. Acabar com o medo, perpetuar pela eternidade a
minha felicidade; torna-la imortal como eu. Era errado, eu sabia, mas ao mesmo tempo era mais
cômodo mentir à minha consciência e utilizar as desculpas dela como argumento para concretizar
meu desejo.
Não houve “ritual”. Eu não fiz nenhum preparativo ou qualquer coisa que marcasse o ato.
Tinha de ser feito logo, antes que eu ouvisse aos apelos da razão. A noite nem havia chegado
quando eu a conduzi para o interior da casa. Fechei as janelas rústicas de madeira e coloquei o
trinco na porta. Sem imaginar, ela se sentou na cama — é curioso como os cômodos eram
diferentes naquela época, um espaço frio e sujo, com um ou dois móveis, e as pessoas se sentiam
tão confortáveis e protegidas dentro daqueles pulgueiros — e eu avancei sobre ela de uma vez,
sem lhe dar tempo de reagir ou compreender o que acontecia. Fechei-me para as memórias dela,
assim como a fechei para as minhas. Uma imbecilidade, eu reconheço, como se aquilo fosse
diminuir minha culpa pelo ato. Inferno, eu estava drenando a vida de seu corpo e a condenando a
uma existência como um ser assassino e achava que ver as suas memórias é que era o problema.
Antes eu o tivesse feito... Embora, certamente, o resultado final seria o mesmo.
Jamais eu me alimentara com tanto zelo, sentindo a pulsação, contando os goles e
calculando o sangue bebido, ouvindo a força de sua respiração. Tudo com medo de tirar aquela
vida que me era tão preciosa. Então, quando ela chegou no ponto em que os recursos do seu
corpo lhe permitiriam apenas mais alguns minutos de vida, eu fiz um enorme rasco em minha
língua com uma de minhas unhas — quase decepei o músculo — e então a beijei, deixando a
torrente de sangue fluir para dentro de sua boca.
Enquanto seu corpo espasmava, eu fui providenciar o caixão que seria seu dormitório
durante o dia. Tratava-se de uma obra prima, envernizada, acolchoada e muito bem selada. Eu
não deixaria a mulher que eu amava dormir em qualquer caixote vagabundo.
Quando retornei a palidez já a havia tomado. Sua respiração cessara, mas eu podia sentir
que ela “vivia”. Um mortal que testemunhasse aquele corpo sobe a cama pensaria tratar-se de
uma escultura de mármore ou cera, um anjo talhado com esmero divino, do que um cadáver, ou
pior, uma vampira. Coloquei-a no seu caixão, e decidi adormecer sobre a cama. Os locais já
haviam sido mentalmente persuadidos a não nos importunar, e na noite seguinte eu a introduziria
ao seu novo mundo.
Eu havia relaxado, é fato. Minha confiança, meu sentimento puro não me davam motivos
para ficar ali acordado ou vigiar nossos arredores através do mundo espiritual, então
simplesmente adormeci, me deixei mergulhar na escuridão do mais puro sono.
Despertei de sobressalto com as chamas engolindo o casebre. Meu primeiro instinto, já
com o horror à flor da pele foi procurar por ela, pensar em um modo de levá-la à segurança — do
fogo e principalmente do sol —, acontece que ela não estava lá. Seu caixão sumira.
Como um vulto saído do inferno, eu saltei pelo buraco que antes servia de janela. A casa
mais se parecia com uma lareira; um amontoado de pedras abrigando chamas e brasa.
Dentre os meus inumeráveis poderes, está incluída uma maldita intuição que se
aperfeiçoou com o tempo. A merda de possuir um poder desses, especialmente, muito
especialmente, quando se quer acreditar nos outros, é que quando ele “apita” — sabe, aquela voz
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falando no seu ouvido, aquela sensação de “vai dar merda” — o que no meu caso é praticamente
a voz suprema da sabedoria dizendo, “você se fodeu”, significa que a pior das hipóteses
aconteceu. E naquela ocasião, a minha intuição havia acabado de me alertar.
De pronto eu já sabia o que havia ocorrido, e para onde ir. Segui o rastro da carroça e
nem ao menos esperei. Ah, se Gisella me visse, ela teria me amaldiçoado. Tamanha foi a minha
fúria que eu ignorei minha compaixão pelos animais. Eu me movi como uma sombra e minhas
garras tiveram o efeito de uma montante (aquelas espadas utilizadas para derrubar cavaleiros e
desmembrar torsos cobertos por placas de metal). Os dois cavalos foram partidos ao meio de
uma vez. A carroça virou, jogando seu condutor e o caixão de Isabelle ao chão.
Eu conhecia o desgraçado. Era um maldito moleque da cidade. Um merdinha pelo qual as
jovens se apaixonavam, mas que nunca era visto com nenhuma mulher. Eu o ergui, e sequer
precisei lamber o sangue que lhe escorria da testa e outras escoriações. Toquei seu espírito, e vi o
que já sabia, mas não queria enxergar.
O maldito moleque, Jervais, e Isabelle haviam se apaixonado durante uma de suas idas à
cidade. Ela lhe confidenciara minha natureza, e também o fato de não me suportar. A ela eu era
uma maldita e enfadonha relíquia, nada além de uma fonte de poder. Ambos tramaram para que
ela usasse meu amor por ela a fim de me convencer a conceder-lhe a imortalidade. O incidente
da carroça, as conversas e súplicas, as juras de amor... Foi tudo encenação, e eu, na minha
cruzada para proteger a “inocente” criança, me recusei a abrir os olhos para perceber a verdade.
O plano deles consistia em, após eu conceder o manto das trevas à Isabelle, Jerevais fugir
durante o dia com sua amada protegida do sol dentro do caixão e atear fogo na casa, me
destruindo. Para o azar deles, eu nunca fui explícito quanto aos limites e extensões dos meus
poderes — mais extensões na verdade — de modo que eles acreditaram que, embora eu fosse
imune ao astro maldito, o fogo poderia me destruir como fazia com meus franzinos
descendentes.
— Ela se juntará a ti, em segundos! — foram minhas únicas e últimas palavras naquela
ocasião. Disse isso diante da expressão de dor e horror dele enquanto esfacelava sua cabeça com
um movimento simples.
Avancei até o caixão dela. Eu era pura fúria e dor. Inferno, até meu espírito doía. Eu era a
dor e a frustração encarnadas. Eu era a manifestação palpável da revolta e da frustração em
escala divina.
Abri o maldito pedaço de madeira e a arranquei lá de dentro. Imediatamente o sol
começou a fazer sua pele chamuscar. Os gritos, a fumaça saindo dela e tudo mais deve ter atraído
os locais, mas eu sequer via algo além dela.
Isabelle despertou em horror. Ela berrava em desespero como as banshees das lendas.
Mas eu não conseguia falar. Não conseguia formar palavras, nem na língua e muito menos em
pensamento. Eu só conseguia odiar... E exteriorizar aquele ódio.
Aos grunhidos bestiais eu a destrocei de uma vez, deixando seus restos fumegantes para
trás, então voltei minha fúria aos aldeões. Não. A qualquer coisa presente...
Destrocei cada ser vivo da região, como uma fera selvagem. Quando terminei, fiquei
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rolando e rastejando pelo chão, soltando gritos ininteligíveis. Arrebentei paredes com cabeçadas,
arranquei árvores com punhos, voei e destrocei aves que ousaram passar pela região.
Quando terminou, eu não sabia quanto tempo havia transcorrido. Somado à dor e a
frustração estava a vergonha.
Minha paixão, meu animus pela existência se esgotara. Aquela havia sido a minha única
chance de redenção, minha tentativa final de encontrar um propósito para uma vida
indevidamente longa. Eu não teria coragem de encarar Yssarra novamente, tampouco qualquer
um dos meus antigos conterrâneos de Abiton. Menos ainda me interessava qualquer coisa neste
mundo de decepções.
Invocando poderes que talvez nenhum outro vampiro tenha adquirido experiência
suficiente para desenvolver, eu fiz com que o solo se abrisse nos ermos mais afastados que
encontrei e me enterrei. Mas o sono não era suficiente para apagar o tormento em minha
consciência, em meu espírito. Logo despertei, com um único propósito em mente.
A morte. A destruição de minha forma maldita e eterna. A libertação do tormento
milenar. O sol não seria capaz de fazê-lo, menos ainda o fogo em sua forma pura e simples, mas
havia algo na Terra que seria; o sangue insuportavelmente quente e destrutível que corre pelas
entranhas do mundo.
Caminhei até o monte Vesúvio. Os gases tóxicos de seu interior a mim eram nada mais
do que uma brisa que carregava a promessa da libertação do tormento e da vergonha. O inalar
que ceifaria instantaneamente a vida de um mortal me enchia de esperança.
Forcei a pequena camada rígida de magma, que me separava diretamente do caldo mortal,
e ali imergi meu corpo, rumo às profundezas incandescentes. Finalmente a dor.
Dor como eu nunca mais sentira desde que fora esfaqueado por uma vadia traidora na
época áurea do saudoso Egito. Não o mesmo tipo de dor, entretanto. A dor que nos aflige não é a
sensação pungente que recai sobre o corpo humano. Os vampiros sentem a dor física na forma de
um formigamento e um calafrio.
Eu podia sentir meu corpo sendo consumido, erodido lentamente pelo magma. A pele
rígida, depois a carne quase pétrea, e por fim os ossos, embora minha consciência estivesse lá,
presente, testemunhando o fim de suas vestes materiais.
Acabou. Meu corpo se reduzira a vapor, suas partículas absorvidas pelo magma e pelos
gases vulcânicos.

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Renascimento

E de tudo que me fora negado, a morte não era exceção.


Meu espírito não vagou; não seguiu para o além, deixando para trás seus restos ínfimos e
inúteis, como acontecia com aqueles que deixavam seus corpos de maneira irremediável. na
morte que por séculos eu, na quebra do ciclo natural, burlara.
Os vampiros não morriam pela velhice. Não morriam por boa parte dos ferimentos e
doenças que matariam os mortais. Mas seus meios de burlar o ciclo natural não eram plenos.
Decapitação, luz solar, fogo ou a destruição de grandes partes de seus corpos físicos eram o
suficiente para encerrar de vez suas existências físicas.
Eu, na condição paterna da espécie maldita, não estava sujeito nem mesmo a essas
possibilidades. Foi o que descobri algum tempo depois de evaporar na lava.
O que acontecera naquele sarcófago, aquele maquinário produzido pela tecnologia de
Abiton, que bizarramente misturara o DNA do meu corpo sintético com o DNA humano, não
afetou apenas minha forma física. Não, nossa tecnologia ia muito além da matéria bruta, sendo
capaz de influenciar também o “Ba” a camada mais densa do corpo espiritual, aquela que fazia a
ligação entre nosso “Ka”, nosso espírito, “encaixando-o” no corpo físico.
Ser o primeiro vampiro não se aplicava apenas ao meu corpo, mas também à minha
forma espiritual. Ainda que meu corpo fosse destruído, minha forma incorpórea manteria a
“mutação” e sobreviveria. E através dessa perpetuação da vida em sua forma maldita, lentamente
meu corpo seria refeito.
Sim, caso eu desejasse eu poderia existir em forma espiritual por um longo período, ainda
que sofrendo os efeitos da fome, e tendo de vampirizar espiritualmente ocasionais vítimas a fim
de me saciar. Mas inevitavelmente meu corpo se regeneraria — meu corpo espiritual
transformando as energias que eu absorvesse das vítimas e utilizando-as para gerar uma nova
forma física — além de meu controle, como um corte no corpo de um homem, que cicatriza
espontaneamente, independente de sua vontade.
Foi assim que descobri a extensão do manto das trevas sobre mim. Minha consciência
despertou, nos arredores do Vesúvio. Não me cabia nada além de me resignar com a maldição
perpétua. Apesar de tudo, meu despertar se resumiu a um breve arrastar pelos arredores do
vulcão, onde me enterrei sob as rochas. Dali passei a vagar apenas na minha forma espiritual,
alimentando-me das energias espirituais de humanos tão destituídos de esperança como eu.
Ao passo em que a minha mente voltava a se adaptar aos arredores do mundo, vislumbres
de memórias surgiram aos lampejos. Resquícios de eventos que meu espírito captara de forma
subconsciente enquanto vagava alheio pelo vazio, sem um corpo físico para habitar, vieram à
tona. Eu vi o velho Egito com seus templos e suas tumbas. Em flashes vi os antigos ritos, porém
realizados de maneira deturpada. Percebi então que seus executantes eram vampiros. Aquele não
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era o Egito grandioso de outrora; eu vislumbrara a versão presente da outrora grandiosa terra.
Um resquício do que meu antigo lar fora, escondido às sombras da civilização. E ali, presidindo
o culto macabro, o centro de toda a adoração sangrenta, estava o “deus do sangue”. Não pude ver
seu rosto, pois a máscara o ocultava. A minha máscara.
Foi difícil, de pronto, resistir à curiosidade de verificar o quanto aquelas visões
retratavam a realidade. Mas o fato era que eu já estava tão calejado de problemas e decepções
que dei as costas para qualquer revelação que eu pudesse encontrar ali, caso alguma daquelas
cenas correspondesse à verdade.
Por vezes eu me erguia e passava um tempo entre os mortais, nunca mais de um mês,
antes de colocar meu corpo reformado para dormir novamente em algum buraco esquecido. O
restante do tempo eu passava vagando na minha forma espiritual, apenas observando as
desgraças que se abatiam pelas diferentes partes do mundo.
Desse modo eu acompanhei com certo sadismo o fortalecimento da Inquisição. É de se
supor que vários vampiros tenham sucumbido à fogueira, mas a verdade é totalmente o oposto. A
inquisição não passou de um massacre promovido por hipócritas abusadores e velhas fofoqueiras
invejosas.
Um ou outro vampiro incauto, pego por ocasionais adversários, pode ter encontrado sua
destruição dessa forma, mas nada além disso. Os homens promoviam a tortura e a morte de seus
rivais, especialmente de cunho político; quando punham suas mãos em alguma mulher,
geralmente a acusada era justamente a pobre coitada com a qual o indivíduo sonhava
secretamente, ou que rejeitara suas investias. O interrogatório servia mais como um estupro do
que como um meio de descobrir conluios satânicos. E quando eram as mulheres as responsáveis
pela acusação, ah, daí podia-se apostar que a acusada ou era mais bonita — ou mesmo que não
fosse, chegara a trocar olhares com o marido da acusadora — ou possuía alguma desavença com
aquela que lhe apontava o dedo.
Em suma, tratou-se de uma guerra de invejas, sob o nome de Deus, como sempre, que
perdurou por séculos. E no meio disso não é de se espantar que alguns vampiros tenham se
utilizado da Inquisição para obter alimento fácil. Sabe, uma “bruxa” aqui, outra ali, que acabam
desaparecendo ao ser levada para o torturador ou para o tribunal...
Mas nessa mesma época algo de esperançoso brotou da humanidade. Eles viviam a época
do renascimento. Primordialmente um renascimento cultural, mas já com as primeiras sementes
de uma ascensão intelectual, que no momento ainda eram abafadas pelo autoritarismo religioso.
Grandes artistas produziam maravilhas nunca antes vistas e davam a luz à novas ideias e
conceitos. Nada que me fosse novo ou estranho - até mesmo rústico perante os padrões de onde
eu viera - mas ainda assim, um grande progresso para uma espécie há tantos milênios estagnada
na ignorância.
Leonardo da Vinci, Michelangelo, entre outros, cujos nomes a história lhe ensinou — e
outros também gênios, que não receberam a devida consideração —, esses me obrigaram a deixar
meu sono físico e caminhar novamente, por um curto período entre as ruas da Itália a fim de
contemplar suas grandes criações, e até mesmo ousar um vislumbre de seus projetos mais
íntimos e de suas mentes, em minha forma espiritual.
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E eu não fui o único vampiro a admirar a genialidade da criação mortal. Vampiros de


toda a parte do mundo contemplavam aquelas obras; colocavam-se nas sombras, como mecenas
e também como protetores ocultos daqueles mortais tão talentosos.
Indagas se algum de nós buscou conceder-lhes o manto das trevas? Jamais! A condição
vampírica colocaria aqueles homens em situações que grandemente prejudicariam sua
capacidade criativa, fosse pela privação de sua rotina e o contato com seus admiradores e objetos
de inspiração, fosse pela frieza que lentamente se acomoda em nossas almas à medida que
envelhecemos.
E isso, posso perceber, faz com que você tenha outra dúvida. A razão pela qual os
vampiros valorizavam tanto a arte dos mortais, se nós possuíamos o conhecimento de séculos?
Porque vampiros não criam. Somos agentes da morte, da destruição, e não da criação. O tempo
pode nos dar conhecimento; pode nos fazer desenvolver habilidades, certamente, mas são
habilidades frias, sem vida, sem paixão. No fundo, o que o tempo faz conosco é fortalecer a
nossa natureza. É pegar tudo o que tínhamos de podre quando éramos humanos e potencializar
aquilo a níveis ainda mais sólidos.
Já esses homens, esses gênios que marcaram a história, criaram coisas ou tiveram ideias
únicas. Não vou negar que possuíam defeitos, como qualquer ser humano. Sim, eram imperfeitos
em muitos quesitos, por vezes até mais do que a maioria das pessoas, porém, possuíam uma
centelha criativa única no que tange sua área de criação.
Um vampiro pode ser imortal, sábio, poderoso, mas nada disso seria capaz de lhe
conceder essas ideias únicas e visionárias, salvo raríssimas exceções. E ainda que fosse o caso,
essas criações jamais poderiam chegar aos olhos das massas sem atrair atenções indesejadas.
Foi também uma época de grandes realizações náuticas. A alcunhada “era dos
descobrimentos”, emborra você, minha pequena, já deva ter concluído que nós de Abiton já
conhecíamos a existência dessas terras desde o princípio. E cá entre nós, a palavra descobrimento
chega a ser um tanto quanto egocêntrica e preconceituosa. Egocêntrica, pois atribui aos
navegadores em feito que não pode ser classificado como uma descoberta, afinal, povos lá
viviam desde eras primordiais, povos entre os quais meus conterrâneos também se misturaram;
preconceituosa, obviamente, pelo fato de terem ignorado a presença desses povos nativos como
um pressuposto válido para a consideração histórica e política daqueles locais.
Falo das Américas.
Embora eu jamais tivesse estado lá, o local — ou ao menos parte dele — não me era
estranho. Meus conterrâneos já haviam estudado aquela região nos primórdios deste planeta, e
assim como eu e meus antigos companheiros descemos sobre o Egito a fim de instruir o povo
que ali vivia outros como nós foram enviados a diferentes partes do planeta.
Você por ventura não imaginou que o fato de civilizações tão distantes umas das outras,
sem qualquer contato, possuírem uma arquitetura em comum — pirâmides — e ritos fúnebres
específicos, muito semelhantes, era mera coincidência, não?
As notícias fomentaram ideias em minha mente.
Mas eu não fui de imediato. Aguardei até que os exploradores solidificassem seu
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trabalho. Isto é, iniciassem as colonizações — ou conquistas, como prefiro enxergar — a fim de


garantir que quando eu lá aportasse, pudesse desfrutar de refeições familiares, se é que me
entende. Durante minha espera, notícias peculiares se avultavam a respeito dos meus
descendentes. Uns poucos haviam reunido poder e permaneciam como resquícios de eras
passadas, e sob sua égide grupos se formavam. Eles estavam se organizando em grupos.
Concomitantemente, os seguidores do misterioso deus do sangue ocasionalmente se colocavam
no caminho dos seus irmãos europeus, exigindo a conversão à sua divindade das terras do Nilo.
Os que se recusavam acabavam destruídos. Seus números haviam aumentado exponencialmente;
eles se reuniram no que podia quase ser classificado como uma sociedade secreta, oculta dos
olhos dos mortais. Na verdade, o que eles criaram era quase uma emulação mais obscura - se é
que isso é possível - da sociedade humana.
Em 1540, finalmente eu decidi deixar a Europa e me aventurar naquele “novo” mundo,
em busca de respostas.

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Terra Brasilis

Aqueles dentre os meus semelhantes inferiores que buscavam fugir da opressão dos
monstros autoritários da Europa ou do fanatismo insano do outro ramo da espécie se arriscavam
em longas viagens náuticas ao Novo Mundo. Trancafiados em seus caixões sob a desculpa — e
um belo suborno — do cadáver de algum homem santo sendo levado para abençoar a jornada e o
novo assentamento; ou como objetos sacros e coisas do gênero.
Geralmente esses desbravadores vampíricos eram obrigados a se sujeitar à fome. Os que
não conseguiam tinham de tomar os devidos cuidados para escolher uma presa que não fizesse
falta e culpar a peste. Alimentar-se de ratos, nem pensar.
Quanto a mim, tendo em vista que o sol nada me causa senão um mero desagrado, não tive
de depender das precárias embarcações. Fui pelo mar, atirando-me às águas, por vezes me
deixando levar pela corrente, em outros momentos caminhando pelo fundo do oceano. Mais uma
oportunidade me surgiu de despertar novas capacidades. Enquanto submerso, fui capaz de
controlar as correntes, e mesmo as moléculas aquáticas. Treinei também o controle da pressão
submarina.
Esse é um dos pontos mais intrigantes da condição vampírica. Pode-se viver milhares de
anos e ainda assim descobrir capacidades jamais imaginadas. Tudo se limita pela criatividade e
pelas necessidades despertadas por cada situação peculiar.
Emergi na costa do local que outrora chamavam de Terra de Santa Cruz, mas que logo foi
batizado de Brasil, por conta da madeira que os europeus dela extraíam avidamente, o pau-brasil.
O lugar por onde pisei na terra era a praia de onde fora estabelecida a capitania de São Vicente.
Antes de me revelar, porém, alterei meu aspecto físico, assemelhando-me ao dos índios locais.
Dizem que os índios viram certa vez um dito explorador utilizar uma arma de fogo e a ele
chamaram de “Caramuru”. A verdade é que a palavra nada tem a ver, conforme muitos vieram a
acreditar, com o fogo. Na língua tupi, a palavra significa moreia, e foi-lhe dada por terem-no
visto entre as águas. De qualquer forma, o feito do homem, em primeiro momento fez com que
os índios pensassem se tratar de alguma divindade. Bem, os colonizadores fizeram um ótimo
trabalho em provar que sequer chegavam perto do poder, inteligência e virtudes divinas, e a
primeira impressão caiu por terra. Não era minha intenção ser um “Caramuru”, nem um “homem
de fogo”, ou qualquer divindade; não daquela vez. Menos ainda pretendia eu ser confundido com
um europeu ou mesmo me misturar entre eles. Oh, século e séculos no meio deles haviam me
deixado farto.
Devidamente na forma carnal nativa, fui procurar alguma tribo.
Confesso que em todos os meus anos sobre a Terra, eu jamais vira um local de natureza tão
abundante e variada. Graças ao conhecimento dos locais, várias mazelas da vida eram tratadas
por meio daquele tesouro da natureza. Possuíssem eles um conhecimento mais profundo e
técnico sobre a biologia, teriam ali o verdadeiro santo graal da humanidade. Mas não foi assim...
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Não tardei até encontrar uma aldeia, já sob a influência dos padres jesuítas, mas felizmente
nem tanto. Em uma grande clareira, várias ocas - cabanas circulares construídas de palha - eram
dispostas em um círculo. Essas casas serviam de morada coletiva aos membros da tribo.
A verdade é que não era meu plano entrar em contato com os índios daquela terra, mas o
que eu tinha a perder? Chegando à aldeia, logo avistei um grupo de mulheres amamentando
crianças. No centro, homens faziam uma dança ritualística. Todos eles estavam seminus, alguns
com cocares de penas e as faces e corpos pintados; o aspecto físico que eu assumira estava nos
conformes.
Antes que me vissem, já os coloquei sob a influência da minha vontade. Não dominei suas
mentes, apenas teci uma espécie de ilusão mental coletiva que os fizesse encarar com
naturalidade a minha chegada, e acreditar de algum modo já me conheciam e me tinham em alta
estima.
A tribo na qual eu me “hospedara” chamava-se tupi-guarani.
Durante o dia eu observava seus costumes. Os homens treinando, caçando, realizando suas
danças ritualísticas. As mulheres cuidando de seus filhos, plantando e preparando os alimentos.
Ali não havia diferenças. Achei uma sociedade curiosa. Suas práticas eram extremamente
simples, no fundo até primárias. É de se supor que seres que vivam tão livremente em meio à
natureza possuam técnicas refinadas ao lidar com seu meio ambiente, porém, eles eram
extremamente simplistas, derrubando queimando para preparar o solo e então plantando e
extraindo tudo o que podiam de uma região, e depois partindo, deixando para trás o solo infértil.
Não fosse o fato de terem vivido isolados por tanto tempo, em meio a um ambiente tão
naturalmente vasto, eles teriam se destruído rapidamente. Não foi a toa que a chegada dos
europeus diminuiu consideravelmente seus números, após anos e anos de desmatamentos e
expansões urbanas.
Era durante a noite, porém, que a vinha a parte divertida. O pajé da tribo, um homem de
meia idade, com cabelos longos, negros e lisos, até as costas, usando um cocar de penas
multicoloridas e com várias pinturas em padrões cruzados pelo corpo, reuniu todos ao redor de
uma grande fogueira. Moacir era seu nome.
Até as horas mais profundas da noite ele contou as histórias da criação. Falou sobre seus
deuses e suas crenças, e sobre os princípios os norteavam. Aquele povo era peculiar, pois cada
tribo possuía sua própria visão e suas crenças particulares. Algumas davam nomes aos deuses,
outras cultuavam os aspectos da natureza; o sol, a lua, e assim por diante. Havia os que
reverenciavam os animais e os espíritos de seus ancestrais. É raro ver tantos pontos de vistas
diversos no cerne de um único povo, mais raro ainda que isso seja comum a eles a ponto de não
se tornar uma cisma grave que resulte em guerras. Como eu disse a conversão dos jesuítas ainda
não haviam criado raízes profundas ali, graças ao respeito de Moacir por seus ancestrais.
O conhecimento serviu para me mostrar que eles não possuíam as respostas que eu
procurava. Estava-me claro que aquele povo não havia tido contato com os meus conterrâneos
em épocas remotas. Meu próximo passo deveria ser partir dali e rumar para o oeste ou para o
norte, em busca de outros povos nativos, mas antes eu tinha de compartilhar toda aquela vastidão
natural com alguém que certamente compreenderia aquilo — e lhe daria bom uso — muito
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melhor do que eu. Deixei meu corpo e rumei para a Europa. Um trajeto que levou um
pensamento e menos de um segundo.
Lá estava eu, na velha floresta de outrora, uma relíquia no tempo, oculta de olhos mortais
e, em sua maior parte, da luz solar. Mesmo através de seus olhos físicos eternos, Gisella era
capaz de me ver. Imutável como eu, sábia e deliciosa. Talvez o único ser — ou um dos únicos —
dos quais eu sentira falta, e certamente o único que não havia destroçado a minha confiança.
— Saudações, minha adorada Gisella.

— Remekhse. O mundo se alterou desde a última vez que me agraciou com sua presença,
mas tuas dádivas e sua memória jamais deixaram meu ser e meu pensamento — ela disse com
um sorriso. Algo estava diferente nela. Suas vestes haviam sido substituídas por velhas tiras de
couro e emaranhados de raízes, os quais também trançavam parte de seus longos cabelos. Partes
de suas mãos e braços pareciam estar cobertas de um musgo rubro.
— Vejo que fizeste um belo trabalho neste santuário.

— Tentei regar as plantas com nosso sangue, mas o sol as destruiu. Nas cavernas, porém,
elas sobreviveram. Mais fortes, diferentes, como nós.
— Tenho algo a lhe mostrar. Por ora, não seria possível a ti fazer a viagem pessoalmente,
mas teu espírito pode fazê-lo comigo. Venha.
Ela se recolheu ao sono físico e partiu comigo. Levei-a pela vastidão da Amazônia. Nunca
a vi tão deslumbrada. Os novos animais, as novas plantas, pareceram injetar nela um novo
ânimo. Passamos horas e horas ali, observando, conjecturando e antecipando o tempo em que ela
poderia, graças às novas invenções do homem, se locomover com a mesma facilidade que eu.
Após algumas semanas explorando a vegetação em nossas formas espirituais, ela voltou ao
seu corpo — pois ao contrário deste que vos fala, ela ainda necessitava de ocasional alimentação.
Eu então prossegui com minha busca. Soube, mais tarde, que por diversas ocasiões Gisella
deixou seu corpo para explorar as florestas das Américas.
Minha intenção de deixar o Brasil acabou por ser postergada quando meus sentidos
captaram a presença de outros vampiros. Obviamente isso seria natural, não fosse uma
característica peculiar que inundou meus sentidos: o sangue deles era diferenciado, de uma
espécie que eu só vira algumas vezes, uma delas no castelo de Volkenväak. Dentre os vampiros
que haviam viajado para o “novo mundo” em busca de liberdade ou para expandis os domínios
de seus mestres, havia também os servos do misterioso “deus do sangue”.
No meu caso, com os meus dons e experiências, uma intuição nunca é outra coisa senão a
verdade.
Diante das novas descobertas, resolvi que não faria mal explorar um pouco das recém-
estabelecidas colônias e quem sabe descobrir finalmente a verdade por trás daquela misteriosa
figura e seus servos.
Meu destino foi a vila que crescera ao redor de um colégio jesuíta construído entre os rios
Anhangabaú e Tamanduateí, na época, batizada de São Paulo de Piratininga, sob o governo da
Capitania de São Vicente. Era um lugar pobre assim como o colégio que lhe serviu de marco, e
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justamente por isso acabava sendo o ponto mais livre para a atuação de vampiros ao anoitecer.
Certamente, à primeira vista, pode parecer que seria mais prático aos meus descendentes caçar na
floresta, alimentando-se dos índios, dos quais os portugueses não dariam falta, mas há sempre a
questão do refúgio. Em uma terra estranha, mesmo um predador deve ter um porto seguro ao
qual recorrer, e o vilarejo providenciava isso, ao menos precariamente.
Lá a escolha de alimento era variada. Podiam se alimentar dos portugueses, para que
depois a culpa recaísse sobre os índios, assim como podiam se alimentar dos índios, e deixar que
a culpa caísse sobre o demônio, sobre os próprios índios, ou sobre qualquer ser do folclore local.
Esse, por sinal, acabou sendo fortalecido pela presença dos meus parentes europeus, embora as
raízes daquelas crenças fossem bem reais (explicarei essa questão a ti, quem sabe em outra
ocasião).
Havia ao menos três vampiros estabelecidos no vilarejo — sim, três, pensaste que eles se
deslocavam em exércitos? As maiores cidades possuíam não mais do que uma ou duas dezenas
— e um quarto, que não pertencia ao local. Aquele cuja estranha presença eu fora capaz de notar
tão distintamente.
Espreitei, como de costume, e vi o estranho, uma figura careca, cuja pele pálida ainda
trazia resquícios de uma vida de exposição ao sol. Era um dos filhos do Nilo, um daqueles que
em seus tempos mortais contemplara o reinado dos deuses e dos faraós. Junto dele estavam
outros vampiros, estes europeus. Orestes se portava como um bandeirante, com uma camisa
amarelada, calças marrons, botas e uma capa vermelha, cabelos cacheados lhe caiam sobre os
ombros e uma espessa barba negra cobria seu rosto. Os outros dois eram Pascoal, careca e obeso
— o indivíduo mantém seu tipo físico no momento em que recebe o manto das trevas — em
trajes vagabundos e sujos de sangue seco, e Rafael, que utilizava orgulhosamente a alcunha de
“vísceras”, um ser magro e alto, com um chapéu de plumas que já não figurava mais entre a
moda mortal.
Ah, é entristecedor ver que a cada geração as bestas sorvedoras de sangue decaem mais e
mais. Creio que sentimento semelhante se apodera dos mortais em relação às gerações que lhes
sucedem.
— Poderes com os quais nunca sonharam; que fariam com que vossa experiência de vida
eterna se tornasse ainda mais grandiosa, muito além desse pífio simulacro do qual desfrutam
agora. E tudo o que lhes é exigido em troca é que governem esse “novo mundo” em nome do
soberano da noite, a divindade sangrenta, o senhor de nossa espécie. Prestígio na sociedade
mortal lhes seria concedido, e mesmo reis buscariam vosso direcionamento, e entre nossos
irmãos seriam também louvados, como pilares fundamentais de nosso culto — dizia o filho do
Nilo aos três.
— Tuas palavras são tentadoras, mouro, mas tu me protegerias da ira de meu pai de que
forma? Esses dois — disse Orestes apontando aos dois conterrâneos — saíram fugidos de nossa
pátria e nada tem a perder, mas eu sou subordinado de Dom Juliano, e cá estou a representá-lo.
— Teu criador não seria uma preocupação, não diante do poder soberano de nosso deus e
criador. Um mero peão que poderia ser removido do caminho sem qualquer esforço, ou se for de
tua preferência, poderias fazê-lo pessoalmente com os dons que te ensinaríamos...

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Era óbvio que o trio queria poder. A Europa, a África e todos os demais continentes
“antigos” já possuíam um poder consolidado entre os vampiros. Remover os mais antigos era
uma tarefa quase impossível, e mesmo na eventual queda de algum deles (cedo ou tarde a
maioria se cansa da vida eterna) os concorrentes ao cargo seriam muitos, e a chance daqueles que
se encontram nas camadas mais baixas ascender é quase nula. Mas no “novo mundo”, uma terra
ainda sem hierarquias sólidas, o poder era volátil. Fosse como fosse, eu pude ver o desagrado
naqueles três, não obstante a possibilidade que se apresentava. Ao ler seus pensamentos percebi
o quão era frustrante, fosse como fosse, sempre ter de obedecer a alguém; um dos maiores
dissabores da vida mortal, que persiste na existência vampírica. Tanto mortais quanto imortais
sempre devem lealdade a um superior.
É como eu disse, os vampiros mantiveram sua mentalidade mortal. Atrelaram sua
dependência social ao seu novo status. Isso vai contra tudo aquilo que eu sempre almejei, ao
menos para mim.
Espreitei até que a conversa terminasse. Os três vampiros lusos partindo para cuidar de
sua refeição, após terem demonstrado interesse na oferta. Eu poderia ter ido lá, conversado com
eles, mas com o passar dos séculos eu ficava cada vez menos propenso a socializar com os
membros inferiores da espécie. Além disso, tudo o que eu desejasse saber a respeito deles, me
custava apenas um pouco de concentração mental e pronto, lá estavam todos os eu segredos;
detalhes que nem mesmo eles se davam conta sobre si mesmos.
Meu real interesse era Numar, o egípcio, que depois da conversa deixara a cidade. Como
era de se esperar, algo me impediu de sondar sua mente com mais profundidade, e tudo o que
consegui foi seu nome.
Ele era veloz, como se esperaria de um vampiro de sua idade. Na verdade, o filho de uma
vadia era mais rápido do que eu esperava; mais rápido do que seria possível para um vampiro
que não eu. Numar disparara pelos ermos, não sei se por mero capricho ou se consciente de que
eu o seguia. Sua velocidade equiparava-se á minha, mas optei por manter deixá-lo manter a
dianteira a fim de que ele pudesse me levar a outros ou até mesmo à sua “divindade”.
Em questão de poucas horas percorremos a vastidão brasileira. Evitamos cidades e
assentamentos, assim como as aldeias indígenas. Embrenhamo-nos correndo pelo terreno
indomado de matas fechadas e árvores seculares. Antes que o sol raiasse, nós havíamos
alcançado a floresta amazônica.
Árvores imensas, com troncos da largura de vários homens e raízes enormes nos
cercavam a perder de vista, entre elas cipós abundavam, aumentando a atmosfera claustrofóbica.
No solo e mesmo nos troncos, camadas espessas de musgo haviam se acumulado durante
gerações. E por falar em solo, boa parte dele era úmida e empoçada. Isso não diminuiu nosso
ritmo, de certo.
Em dado momento passamos por um lago escuro, cercado por vegetação densa, sobre
cuja superfície flutuavam vários espécimes de uma planta nativa, a vitória-régia, com seu
peculiar formato de prato. Uma visão única, mas não tão curiosa quanto a do índio que se
encontrava parado à beira d´água, fitando o reflexo da lua.
Subitamente Numar interrompeu sua corrida, forçando-me a parar de repente e me
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ocultar. Meu alvo avançou sobre o índio, provavelmente sua refeição naquela noite — eu sempre
me esqueço de que os vampiros mais jovens devem se alimentar com uma frequência muito
maior —, e estranhamente o homem permaneceu inerte, fitando o lago, sem qualquer vestígio da
surpresa ou do medo característico que se apodera daqueles prestes a perderem a vida para uma
monstruosidade. Mas as presas de Numar jamais chegaram a alcançar a vítima, pois saltando das
profundezas do lago uma mulher se colocou entre ambos.
O corpo dela tinha um tom pálido esverdeado, uma mistura da cor característica dos
vampiros com o lodo das profundezas daquele corpo d´água. Seus cabelos eram negros e muito
longos, se enroscando por toda a extensão de seu corpo nu, como trepadeiras ou algas fariam
com qualquer objeto jazendo em meio à natureza. A face, fina, exibia uma ferocidade quase
animalesca, e seus olhos eram baços, embora claramente enxergassem. Ymairahi, eu li em sua
mente, era seu nome. E não tenho dúvidas que ela tenha sido a origem de muitas das lendas do
folclore daquelas terras.
Ymairahi avançou sobre Numar, ao passo me que empurrava sua vítima para a água. O
egípcio desviou com maestria. Ambos se engalfinharam por um tempo, e depois mantiveram
uma postura defensiva, circulando um ao outro enquanto avaliavam suas forças. Nenhum queria
colocar em jogo sua imortalidade. Aquele que fizesse o primeiro movimento correto venceria.
Por mais que eu não nutrisse qualquer apreço pelo filho do Nilo, ele me seria útil. O
plano de fazê-lo me levar até um provável esconderijo já havia caído por terra. Minha solução
seria arrancar o que eu precisasse através da tortura, ou então drenando-o até reduzi-lo a pó.
Abandonei meu status de observador e avancei contra a dupla. Arranquei Numar do
alcance das garras de Ymairahi, e o arrastei para longe da predadora. Ele, é claro, tentava se
desvencilhar, e eu, por minha vez, tive de me conter e lhe dar um pouco de espaço, deixar que
pensasse que poderia escapar - eu não queria correr o risco de despedaçá-lo antes de sorver seu
sangue.
Engalfinhamo-nos por alguns momentos, já longe do lago — Ymairahi era uma criatura
interessante, do tipo que não se quer ver destruída —, mas no fim, como era de se esperar, minha
força triunfou. Ele estava ali, sob meu controle mental, seu pescoço preso por uma de minhas
mãos. Alguns goles e eu descobriria tudo.
O que aconteceu ali foi que aquele que eu buscava se fez presente diante de mim.
Quando estava prestes a cravar minhas presas em Numar, senti algo que nunca sentira
antes, desde que o manto das trevas se depositara sobre mim. Um vazio; meu corpo formigando,
seguido de um calafrio. Senti então meu corpo tornar-se inerte, permitindo que minha presa
escapasse. Vi meu corpo físico diante de mim; algo havia me arrancando para fora dele, algo que
se encontrava cara a cara comigo. O ser era também espiritual, mas suas características eram
indecifráveis, pois ele se manifestava como uma sombra completamente negra. O poder que dele
emanava me dava a certeza de que eu estava diante do tal “deus vampírico” do qual Numar era
assecla.
Obviamente lutei. Bati de frente com seu poder, e ali ficamos confrontando nossas
vontades. Enquanto isso meu corpo físico jazia ali, não direi que à mercê do inimigo, pois o
jovem Numar nada poderia contra minha carne amaldiçoada - e mesmo que pudesse, sabemos
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que meu corpo poderia ressurgir a partir do meu espírito.


Engalfinhado com a sombra, eu senti um senso de familiaridade em sua presença, ainda
que aturdido pela constatação de que havia alguém realmente capaz de rivalizar com os meus
poderes. A sensação de um prévio conhecimento aumentou quando ele falou, dando por certo
que me conhecia.
— Remekhse! Não se intrometa nos afazeres dos meus adoradores! Sua consciência
jamais fora tão complacente, por que sê-lo agora? Seja o deus que sempre desejaste ser em teus
prazeres mundanos, e deixe que eu persista como sempre fui!
De súbito eu estava de volta ao meu corpo. O “deus vampírico” havia desaparecido,
assim como seu servo.
Tão intrigado eu estava que desisti de seguir Numar, ao invés disso me empenhei ainda
mais em buscar o propósito que originalmente me levara às Américas. De imediato dirigi-me
para o norte, em direção às terras que outros emissários de Abiton haviam visitado nos
primórdios das civilizações terrestres.

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Vestígios

As selvas únicas e ancestrais das Américas passaram por mim como um grande borrão
em tons de verde, salpicado pelas diversas cores da impressionante fauna local.
Meu destino era o norte da América Central, onde uma cultura tão antiga quanto aquela
em que eu e meus conterrâneos nos instalamos quando de nossa chegada a este mundo
prosperara.
A civilização Maia também servira de porto a outros exilados de Abiton, que para cá
vieram com o mesmo objetivo do meu grupo. Dada a imensidão do globo terrestre, suas diversas
regiões e povos, o conhecimento que nos cabia transmitir não poderia surgir de um único ponto,
sob o risco de não se disseminar suficientemente entre os povos, atrasando em vários séculos o
progresso da espécie humana. Desse modo, fomos espalhados em diferentes pontos.
Daí é de se supor o fato de diferentes civilizações possuírem aspectos comuns, como que
por coincidência; creio que já lhe deixei isso claro.
Assim como ocorreu com a civilização egípcia, os maias também tiveram seu auge
enquanto guiados pelos conhecimentos superiores que trouxemos. Com o retorno da grande
maioria dos “deuses” foram relegados à própria sorte, e pelas mais diversas razões acabaram por
enfrentar o colapso. Nada a se lamentar, no entanto, uma vez que ao longo das gerações esses
conhecimentos acabaram se disseminando entre diferentes culturas com os quais nossos
tutelados tiveram contato.
Ocorre que embora os maias já houvessem decaído, suas cidades saqueadas e seu
conhecimento relegado à mitos superficiais, seus maiores segredos ainda estavam intactos: os
vestígios da tecnologia de Abiton, os quais de certo continham meios para que eu contatasse
meus conterrâneos. E aí residia um detalhe crucial: conterrâneos que não me conheciam. Seria
muito mais fácil obter alguma informação útil, ou talvez até mesmo ajuda deles.
Uma coisa que os seres humanos não se deram conta até os dias de hoje, não obstante
toda a tecnologia dos satélites somada às conjecturas dos estudiosos das civilizações antigas, é
que os Maias, por terem sido educados por nossa espécie, possuíam amplo conhecimento do
cosmo, de modo que construíram suas cidades de acordo com os mapas astrais, o que, somado à
estrutura geométrica das pirâmides, composta por cálculos intrincados, permite a captação das
energias cósmicas que os seres humanos ainda não são capazes de detectar.
Somando-se todos esses detalhes, aquele era o lugar ideal por onde eu poderia contatar
outros como eu. E o melhor de tudo era que aqueles conterrâneos em particular não me
conheciam, o que, acreditava eu, os tornaria mais propensos a me auxiliar.
A lua, velha companheira, mais uma vez fora a única testemunha das minhas
empreitadas. Cheia, ela brilhava como um olho prateado sobre o topo da pirâmide cinzenta e
recoberta de musgo. Embora se tratasse de pura coincidência, a imagem evocava um clima
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portentoso.
Galguei os degraus de forma solene, quase ritualística, tomado de uma ansiedade há
muito não sentida. Após o meio do trajeto, visões espectrais se manifestavam perante a minha
visão. Eram os antigos sacerdotes maias, reis e figuras influentes daquela cidade. Parados
solenemente nas laterais dos degraus, eles me olhavam impassíveis, porém um ar de respeito
emanava deles em relação à minha pessoa.
Lá no topo um quarteto de figuras me aguardava. Não obstante suas formas espectrais,
eles eram meros simulacros — algo semelhante ao conceito dos hologramas que os humanos
vislumbram em suas ficções; suas reais presenças já não mais habitavam sobre a Terra, porém,
de onde quer que estivessem, através daquelas formas artificiais emanando graças aos vestígios
da tecnologia ainda presente ali na pirâmide, poderiam transmitir seu conhecimento a quem
soubesse como encontrá-los — dois homens e duas mulheres, todos trajados em vestes que
misturavam várias cores em padrões intrincados. Os homens traziam os peitos nus, cobertos por
colares, e trajavam uma espécie de tanga coberta por um longo tecido; capas longas e grossas
lhes caíam sobre as costas. Já as mulheres cobriam os seios e os quadris com roupas ínfimas, na
mesma profusão de cores. Todos se adornavam de pulseiras e braceletes e utilizavam máscaras
que pareciam ser feitas de pedra, de proporções exageradas, em formatos angulares e repletas de
intrincados detalhes geométricos, e pareciam terminar em cocares que lembravam plumas ou
aves pousadas. Contudo, nenhuma delas cobria completamente a face, deixando as bocas
completamente à mostra.
De certo aqueles foram outrora ali venerados como deuses. Eu podia notar por sua
estatura descomunal e pela perfeição de seus corpos, que eram filhos de Abiton vestindo formas
híbridas para viver entre os seres da Terra, assim como eu e meus antigos companheiros.
— Sê bem vindo Ramekhse, irmão de outros tempos que jamais deixou de sê-lo. -
saudaram em uníssono.
Droga. E eu esperava que não soubessem quem eu era, e concomitantemente o que eu
havia feito.
— Saudações a vós que fostes como eu, mas que ascenderam. De certo já sabem a razão
de minha vinda, e sabem também as perguntas às quais eu busco respostas — disse sem floreios.
— Ao contrário de vós, a ascensão, o retorno ao lar, me é inalcançável. Não totalmente por
minha culpa, isso eu creio, inobstante, reconheço meus erros, e desejo repará-los.
— A espécie que criaste — a mulher falou. Intuitivamente, seu nome me veio à mente,
Ixchel. — Você se arrepende por eles macularem ainda mais este mundo. Todavia, você não se
considera totalmente responsável por eles.
— Mas tampouco consegue tolerar que eles existam — emendou um dos homens, com
razão. A identidade dele me era desconhecida. — Você veio até nós pois deseja saber se lhe é
possível morrer, mas essa é só uma minúcia perante as outras dúvidas que traz perante nós.
— De fato, meus irmãos — de algum modo eles me conheciam. Talvez melhor do que eu
mesmo. E pensar que havíamos partido do mesmo ponto. — Sei que há outro como eu. Presumo
pelo que vivenciei que ele possua idade e poderes equiparáveis aos meus. Mas desconheço sua

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identidade e seu paradeiro, e preciso disso para impedi-lo, pois diferente de mim, ele tem
espalhado o manto das trevas a esmo, construindo ao redor de si um culto de monstros.
- Você o conhece Remekhse — Ixchel voltou a falar, enquanto os outros, embora calados,
davam a impressão de estar partilhando ideias mentalmente. — Mas não cabe a nós abrir seus
olhos. Se for tão importante para ti, descubra pelos seus próprios esforços, só assim, quem sabe,
a redenção lhe ficará menos distante. Me restringirei a revelar-te que por um tempo, após nossa
partida, ele manchou também com seus ensinamentos esse povo que, através de nosso empenho,
tentamos instruir. Foi graças aos seus ensinamentos torpes que a cultura deles se enveredou para
a prática dos sacrifícios humanos.
— O que o afligiu manchou não só o seu corpo, pois ele já se foi, mas as vestes
intermediárias do seu espírito. A camada entre o físico e o espiritual, aquilo que vocês, na língua
que adotaram durante sua missão, chamaram de “Ba”. Ela, como bem sabes, ao contrário do
corpo físico maleável, reflete as características do espírito. Logo, não importa se seu corpo
material se for, seu “Ba” continuará manchado. Talvez, se seu espírito se corrigir da sua torpeza,
seja possível algum dia, reverter a situação. - quem falou foi a outra mulher, cujo nome eu
também desconhecia.
— Mas vocês poderiam fazê-lo? Poderiam me livrar?

— Sim. Mas isso não o tornaria menos miserável. A angústia que o consome é de sua
inteira responsabilidade.
— E quanto aos meus descendentes? Por qual razão eles podem morrer?

— Pois a mutação atuou em você de modo completo, atingindo seu DNA e seu “Ba” por
completos. Neles, a transformação é mais fraca, e ainda que neles o “Ba” também seja afetado,
não o é de modo tão profundo, assim, quando seus corpos se desfazem, não há alteração
suficiente no “Ba” para prendê-los ao mundo físico — me respondeu o outro homem, que até
aquele momento apenas observava.
Novamente Ixchel me instruiu:
— Mas não se engane Remekhse, alguns deles ainda permanecem, embora não consigam
criar novos corpos físicos, vagam espiritualmente, drenando as energias de suas vítimas, assim
como tu costumas fazer.
— Como eu poderia acabar com isso então? Impedir que essa maldição continue se
alastrando?
Eles sorriram.
— Ainda não é hora, mas ela chegará, e tu deverás ficar atento. O seu DNA sempre foi a
chave. Mas não a parte do DNA que carregas consigo, e sim aquele que transmitiste, milênios
atrás.
— O quê?! — puta merda, aquilo quase me fez cair de costas e rolar pelos degraus da
pirâmide.
— Durante o período em que atuaste como um deus no Egito, não diferente de nós nesta

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terra, tu se envolvestes com muitas mulheres humanas. Muitas dessas suas relações produziram
filhos, não que você se importe, mas isso fez com que um DNA híbrido, entre o seu e o dos
humanos, se disseminasse e evoluísse através das gerações ao longo dos milênios.
De fato, eu não me importava, ao menos não até saber que aquilo poderia ser a resposta
para o enigma que me assolava.
— Digam, isso significa o que eu imagino?

— Ainda não — Ixchel, como de costume, foi quem me forneceu as minúcias. — O DNA
que você espalhou ainda não sofreu as mutações necessárias. Serão necessárias ainda algumas
gerações até que ele sirva seu propósito... — ela deu a deixa para que eu completasse o
raciocínio.
— Fazer frente à mutação que eu sofri. Mas...

— Não será suficiente para trazê-lo à sua forma original. O que foi feito foi feito, mas
esse DNA, em comunhão com o DNA da espécie que você denomina como vampiros, fará com
que fiquem estéreis. Não mais poderão perpetuar a espécie.
Então, eu ainda não descobrira um meio de encontrar a destruição e libertar meu espírito
dessa maldição, mas encontrara um meio para acabar com a procriação da espécie. Ao menos era
um caminho de corrigir a cagada originada através do meu egoísmo. Pelo que me fora dito em
sequência por aqueles meus conterrâneos, esse meio não afetaria apenas o corpo físico dos
vampiros, mas também seu “Ba”, embora isso me pareça irrelevante.
Antes que o novo dia nascesse, eu os deixei. Como última pergunta, indaguei-os sobre
como puderam me reconhecer, e para minha surpresa, eles revelaram que Yssarra fora até eles há
algum tempo atrás e narrara nossas vivências. Uma surpresa, realmente, mas que não despertou
qualquer sentimento, apenas a certeza de que eu não a veria novamente, jamais.
Hah, e com isso, estou certo de que seu papel nessa história está ficando claro, não,
minha preciosa criança?

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Uma Ópera para os Condenados

Gerações ainda teriam de surgir e perecer até que meu DNA presente nas linhagens
humanas alcançasse a mutação desejada. Como não me restava mais nenhuma vontade de
interagir com a sociedade humana, além de eu estar destituído de qualquer desejo pessoal,
decidi-me por adormecer até que a aguardada era chegasse.
Optei por fazê-lo no solo da Europa. Lá eu estaria mais próximo do continente Africano,
berço dos meus descendentes. A Itália foi o país escolhido. Por ser o cerne da igreja, lá as
catacumbas se espalhavam sob as cidades como um grande formigueiro, fornecendo um número
maior de moradas aos mortos santificados do que aos que viviam sobre elas. Como de costume,
embrenhei-me entre os ossos e cadáveres nos nichos e sarcófagos de pedra, vigiados por estátuas
sacras e melancólicas. Graças aos meus dons, eu podia me fundir à rocha, indetectável e
indestrutível - não que isso fosse fazer alguma diferença, na pior das hipóteses.
Mas meu sono não foi pautado pela inércia, ao menos não pela do espírito. Investi todas as
forças do meu intelecto no desenvolvimento de alguma habilidade que me permitisse localizar
meus descendentes mortais, a fim de que, quando aquele que portasse o tão esperado DNA
surgisse, não passasse despercebido. Tardou até que eu obtivesse sucesso. No meio tempo,
acabei por desenvolver a consciência da presença dos meus descendentes. Nos primeiros estágios
eu conseguia sentir a presença de outros vampiros, mas isso era limitado aos mais próximos —
dentro da área de uma cidade, ou então das cidades vizinhas; com prática, o alcance foi se
expandindo, até que eu consegui me colocar em contato com todos os vampiros sobre a Terra.
Não, não foi nada que me tornou onipotente perante os meus descendentes. Nada daquilo
com o que a criatividade humana tem povoado os filmes, tal como a capacidade de reduzir
qualquer vampiro ao pó, ou fazê-los se destruir mediante uma sugestão mental. Os mais fracos
eu conseguia influenciar ou ler a mente como se fosse um livro infantil; já os mais antigos e
resistentes eu conseguia na melhor das hipóteses perceber a localização, e dentre eles não
estavam inclusos o “deus do sangue” nem seus protegidos mais próximos.
Mas nesse interim eu fui capaz também de expandir a consciência acerca da minha própria
forma física e sentir qualquer ser que carregasse o meu DNA. Com os mortais era infinitamente
mais fácil. Não havia resistência, nem barreiras. Mas meu propósito não era manipular mortais,
nem desnudar segredos, isso eu havia feito desde o princípio e não me exigira nenhum esforço
extra. Meu propósito era conseguir detectar os vestígios do meu corpo físico, transmitido para
minhas incontáveis parceiras mortais, antes de o manto das trevas ser lançado sobre mim, e eu
consegui.
Pude sentir meus descendentes da mesma forma como você tem consciência dos seus
membros. Eu sabia onde eles estavam; o que sentiam; o que almejavam, e mais importante: eu
conseguia perceber a intensidade da minha herança genética neles. Infelizmente, eu constatei na
ocasião, a mutação resultante da minha genética com a genética dos mortais ainda não estava
suficientemente madura. Seria necessário aguardar mais algumas gerações. O ponto positivo era
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que eu sabia onde eles estavam, e poderia ficar de olho neles e nos descendentes que viessem a
produzir. Isso me fez cair em um sono mais profundo.
Era 1790, quando um distúrbio nas ondas sonoras me despertou de súbito. Não por se
tratar de algo desagradável, e sim pela unicidade e majestade daquela composição. Nunca na
história da humanidade eu havia ouvido uma sonoridade tão genial. Houve os que chegaram
perto, mas nenhum me tocara daquela forma até então. Falo de ninguém menos do que Wolfgang
Amadeus Mozart; essa foi a designação do nome de sua preferência. Nascido no Arcebispado de
Salzburg, seu nome de batismo era Joannes Chrysostomus Wolfgangus Theophilus Mozart.
Aquilo fez brotar em mim fé pela humanidade. Ao menos musicalmente ali eu havia visto
um avanço sem igual. Não nego que tendo eu vindo de uma cultura milhares de anos mais
avançada, eu já havia experimentado músicas de técnica e intelectualidade mais elevadas, porém,
o que Mozart representava para a humanidade, era um avanço sem igual. Ele colocava a alma em
sua criação; claro, muitos músicos famosos e anônimos também o fizeram durante toda a
história, mas a técnica dele era louvável. A história lhes conta que ele era capas de compor
sinfonias inteiras, com todas as minúcias, em poucos minutos, de cabeça. E isso desde que era
apenas uma criança. E eu posso atestar a veracidade disso.
Ergui-me com um ânimo renovado para espreitar a sociedade mortal. De uma vez dirigi-
me à Viena. Uma cidade de aspecto dúplice: de um lado, a imagem da evolução cultural pela
qual a sociedade passara desde meu retiramento, do outro, os vestígios da decadência inerente à
presença humana.
Da primeira vez que vi Mozart pessoalmente aproveitei para perscrutar sua mente. Nunca
eu havia visto um ser que enxergasse a música daquela forma. O mais próximo que posso
descrever com palavras, seria dizendo que ele “via” e “ouvia” a composição já completa em sua
mente. Como compositor, ele já ouvia o todo pronto, mas conseguia identificar com perfeição
cada minúcia de cada instrumento presente, tal qual alguém estivesse reproduzindo aquilo em
seu ouvido; de modo mais impressionante ainda, ao contrário das pessoas “normais”, ele via a
composição tal qual um arquiteto vislumbra o que pretende erigir. E não digo apenas em relação
às notas, pois sim, ele via a partitura já pronta em sua cabeça...
Enfim, até eu encontro dificuldades para explicar o funcionamento daquela mente
musical única.
Inevitavelmente resolvi assistir uma de suas famosas óperas. Dada sua genialidade, ele se
habituara a apresentar-se aos poderosos e abastados, mas naquela época, já próximo do fim de
sua vida, ele se vira obrigado a apresentar-se também em teatros populares, a fim se manter
financeiramente. No fim, acabei por dar preferência a um dos espetáculos mais refinados. Nunca
gostei de aglomerações.
Impressionei-me com o estilo da casa. Papéis de parede com arabescos dourados,
carpetes vermelhos, cadeiras ornamentadas e com almofadas carmesins, camarotes elevados,
tudo iluminado por belos castiçais polidos. Optei por me sentar em uma das primeiras cadeiras
diante do palco. O número de presentes era muito aquém da capacidade comportada - algo
comum nos espetáculos destinados à nobreza. Dali eu observei os outros espectadores.
Algumas cadeiras mais atrás, estava Madame Arlette, uma portadora do manto das trevas,
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com sua peruca branca e cheia de bobes, sua face extremamente pálida e cheia demais, que
sequer precisava de pó de arroz para se adequar à moda, em um vestido vinho que ressaltava o
busto. Outros vampiros encontravam-se presentes; dois ocupando seus lugares nos camarotes
(fosse por conta de alguma ligação coma nobreza ou por simplesmente ter compelido o ocupante
original a ceder seu espaço) e um último numa das cadeiras mais ao fundo. Discretamente, todos
eles me cumprimentaram com um meneio, em reconhecimento ao nosso “parentesco”. Pobres
coitados. Se imaginassem quem estava ali diante deles...
O espetáculo começou. Por toda sua duração fiquei extasiado como poucas vezes
ocorrera desde minha chegada a este mundo. Naquele momento, eu era tão impressionável
quanto aqueles jovens vampiros ali sentados. Por um instante, todos nós nos tornamos iguais;
vermes incultos diante da maestria divina de um mero, porém inigualavelmente único mortal.
Depois? Depois eles partiram. Não se espante minha preciosa, eles estavam lá apenas
para apreciar a obra. Nenhum jamais ousaria colocar o manto das trevas sobre aquele gênio.
Lembra-se do que eu lhe disse? Vampiros não criam. Reitero-lhe, colocar o manto das
trevas sobre os ombros de um gênio é tolher-lhe a força criadora. A motriz de sua criatividade se
esvai, ao passo em que, por sua nova condição, eles passam a ser guiados por seus instintos mais
primitivos. E isso piora com o passar do tempo. Sob a erosão dos séculos, suas almas se
deprimem, caem no tédio. Até mesmo os prazeres do sangue e do espírito tornam-se rotineiros.
Chego a arriscar que é a brevidade da vida humana que lhes confere esse animus de criar; no
desespero para aproveitar suas existências finitas e dar-lhes algum significado, eles são tomados
pela inspiração de fazer coisas únicas, que ninguém fizera antes. Claro, a grande maioria falha,
mas os que conseguem, como Wolfgang, devem ser preservados a todo custo, especialmente por
nós que observamos as eras, jamais capazes de emular esse dom do nosso status passado.
Hah, sim, deveras inapropriada a minha abordagem, não? Ao passo me que lhe transmito
o manto das trevas, digo que sua nova espécie é fraca e que está fadada a definhar. Que maldito
bastardo seria eu em conceder-lhe tal presente de grego? - evocando a guerra de Tróia. Fique
tranquila, pois há exceções a essa regra, e digo que és uma delas.
Já os outros, bem... Eles eram humanos desde o princípio, moldados pelos costumes da
era em que viviam. O vampirismo, como já me cansei de dizer, apenas trás à tona o cerne
humano do indivíduo, dominado pelos seus instintos mais primitivos, em especial o da matança.
Isso quer dizer que eles jamais deixam de carregar seus costumes, suas crenças, sua visão do
mundo. No início essa faceta fica adormecida, pois o êxtase do sabor do sangue, a sensação
semidivina dos poderes, o prospecto das possibilidades ilimitadas, são uma distração irresistível
Mas com o passar das décadas e dos séculos; com a inevitável morte dos antigos costumes, a
irrelevância dos modismos, o ruir dos impérios e das crenças e a morte das gerações que os
cultivavam, aquele ser vai lentamente se sentindo deslocado. O que ele prezava não mais existe,
o que ele cultuava prova-se falso ou esquecido, e os prazeres de sua condição já não possuem
mais o mesmo apelo. Caem na mesmice. Sem o propósito, do que adiantam os poderes? Ele
chega à conclusão de que tudo pode, mas nada deseja. Alguns se atiram no sono de eras; outros
— a maioria — se atiram na luz do sol.

Não pense que sinto vergonha de ser comparado aos “fracos”. Duvido que mesmo os
mais fortes dentre eles teriam aguentado sequer uma parcela de todo o tempo que aguentei, nas
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circunstâncias que você já conhece. Mas cá estou com um novo propósito. Minha facilidade de
suportar as mudanças das eras vem em primeiro lugar pelo fato de eu não ser da Terra. Não estou
vinculado a nenhuma cultura daqui — embora tenha algumas em grande estima. Além disso, vim
de um mundo mais avançado, que já passou por todas essas etapas inferiores e encontra-se em
um patamar muitos milênios além do que vocês alcançaram.
Um questionamento pertinente o seu. Sim, é fato que os espíritos daqueles que morrem
reencarnam. E sim, isso significa que de certo modo todos os seres vivem eternamente. Sei aonde
você quer chegar. Se os espíritos humanos vivem eternamente, por qual razão não acabam, cedo
ou tarde, acometidos por esse desânimo? Pois os espíritos, sempre que voltam a habitar a carne,
se esquecem de suas experiências anteriores, e assim se livram do fardo das tragédias, ao menos
por tempo suficiente para se aperfeiçoarem e deixarem suas feridas para trás, o que não acontece
conosco em nosso modo aberrante de existir.
Mas agora deixe que eu dê sequência à minha história.
Após deixar Viena, eu vaguei pelo mundo, monitorando a linhagem mortal que descendia
de mim, ao passo em que acompanhava a evolução das diferentes culturas ao redor do globo,
pelas minhas viagens espirituais.
Foi através dessas viagens, como que por acaso que me deparei com algo estranho.
Observei uma vampira alimentando-se espiritualmente de um cavalheiro em uma mesa de jogo
em Paris. Algo que por si só não teria nada de anormal, decerto. Mas reparei que aquela vampira
em questão não possuía um corpo físico. Em suma, sua forma física havia sido destruída de
algum modo, mas ela ainda permanecia ali, existindo como um vampiro, ainda que em sua forma
espiritual. Aquilo era algo que não deveria existir. Com exceção da minha pessoa, nenhum outro
vampiro encontrava-se tão arraigado a este mundo. Qualquer outro vampiro diante da destruição
do corpo físico seria arrastado para o mundo espiritual. Aquele espírito então seria conduzido
para a continuidade da sua existência; para as zonas mais distantes do mundo espiritual, onde não
mais teria contato com este mundo — ou ao menos, não mais teria a necessidade e capacidade de
vampirizar alguém — ou então reencarnaria novamente como um mortal.
O ser em questão não chegava aos meus pés, fosse em idade ou poder, ainda assim ele
fazia algo que só eu era capaz. Vi-me obrigado a devassar seus segredos. Sem que ela notasse
minha presença — não obstante eu estar ali, parado bem diante dela — eu li cada um dos seus
segredos, como se estivesse vendo um filme se desenrolar diante dos meus olhos. Mais ainda, eu
era o espectador com o controle remoto em mãos (na época eu teria feito a comparação a um
livro).
Mais uma vez eu havia me deparado com um dos súditos do deus do sangue. Aquilo já
havia ido longe demais, e a existência de um ser daqueles, ligada ao mistério daquele individuo
só me fazia imaginar que as coisas estavam atingindo um ponto deveras preocupante. Através do
mundo espiritual eu a segui. Por diversas terras ela passou, sempre se alimentando daqueles
afundados em todo o tipo de vícios. Após cada refeição, ela se ocultava nas zonas mais obscuras
do mundo espiritual; emergindo, não por coincidência quando do cair da noite sobre o mundo. A
luz do sol não a feriria naquela condição, e de início acreditei que ela a evitava por mero costume
ou trauma. Com o tempo, entretanto, percebi que depois de cada um desses períodos seu Ba se
tornava cada vez mais denso. Ela estava fazendo o mesmo que eu fizera inconscientemente após
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meu corpo se desfazer no Vesúvio. Confesso que a conclusão assustou até alguém como eu.
A filha da puta estava refazendo seu corpo físico pouco a pouco após cada refeição
espiritual. Mais tarde, com o Ba mais denso, sua vampirização deixava as vítimas adoecidas,
algumas à beira da morte, outras da loucura, ou ambos. Depois de noites seguidas de farta
alimentação ela se retirou um velho mausoléu. Lá sua forma espiritual adentrou uma espécie de
transe. Na noite seguinte um jovem se dirigiu até o local. Tratava-se de um indivíduo de classe
baixa e pensamentos fracos; entendi então que ele tivera sua mente dominada por aquela
vampira. Uma dominação tão forte que fez com que ele decidisse seguir os pensamentos suicidas
que há muito vagavam por sua mente. Dentro daquele mausoléu esquecido, na calada da noite,
eu e minha descendente como suas únicas e invisíveis testemunhas, ele estourou seus miolos.
Do sangue que jorrou do cadáver, ela reuniu a matéria necessária para refazer seu corpo.
Eu vi conforme o sangue moveu-se e, como se fosse uma entidade viva, formou uma silhueta
humana. Em seguida ela fez algo cujo conhecimento era possuído por poucos — segredos da
matéria trazidos por nós de Abiton e posteriormente difundidos entre nossos tutelados, e que
enfim acabaram sendo espalhados, ainda que de forma deturpada entre sociedades secretas e
religiões humanas — e com a força de sua mente, empregou manipulação de magnetismo a fim
de solidificar as energias que ela vampirizara. Em suma, ela refez seu corpo físico.
Permaneci seguindo-a, invisível, concomitantemente voltando minha atenção ao mundo
espiritual em busca de casos semelhantes. Perturbadoramente encontrei outros vampiros agindo
do mesmo modo.
Se eu queria respostas, minha melhor alternativa residia com a recém-renascida vampira.
Logo na noite seguinte ao seu ressurgimento ela viajou para Londres.
Ah, que lugar convidativo. O solo de paralelepípedos, as construções de tijolo e pedra, as
altas chaminés e a neblina da noite, tudo isso enclausurando multidões divididas por claros
limites sociais. De um lado as damas e cavalheiros, eles com suas cartolas, casacos lisos e
escuros sobre camisas e por vezes bengalas, um ar mais sério — algo que me agradou —, e elas
com seus vestidos sem graça, que mais lembravam camisolas. Se não for usar nada
extravagantemente sedutor, é melhor não usar nada. Sempre fui de tal opinião.
Quase cedi à vontade de passear naquelas belas pontes de pedra que cruzavam o Tâmisa.
Aquilo era uma maravilha única, não só no sentido arquitetônico, mas também na questão do
saneamento. Para uma cidade que beirava um milhão de habitantes, dentro os quais vários eram
imigrantes, alcançar um nível decente de higiene era um feito louvável. Pela primeira vez neste
mundo eu vi uma sociedade que considerei um real avanço. Porém, se lá eu me demorasse,
minha presença acabaria por chamar atenções indesejadas, e eu perderia o elemento surpresa,
então tratei de seguir os seres da noite mais poderosos que encontrei.
A vampira que havia me conduzido até lá passara a definhar fisicamente. Por mais que
ela se alimentasse das prostitutas e mendigos durante as noites, seu corpo físico adquiria uma
aparência cada vez mais cadavérica, até se tornar pele e ossos. Em três noites ela se desfez em
uma poça de sangue, embora sua forma espiritual tenha permanecido e mais uma vez se engajado
na recriação do corpo.
Encontrei outros agindo da mesma forma, vampiros sem corpo, ainda presos a este
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mundo, agindo de modo a retornar ao mundo físico, e outros, que embora predassem no mundo
espiritual, possuíam corpos antigos e mais poderosos do que o comum. Esses encontravam-se
infiltrados em todas as áreas da sociedade londrina.
Um deles era o curador da grande biblioteca de Londres, seu nome era Echart. Sob o
pretexto de cuidar do lugar e dos livros durante a noite, ele justificava seus hábitos. Um dos
bispos da igreja de St. Anne, Caius Quintus, um antigo cidadão romano, também se revelara um
dos servos do deus do sangue. Além deles, madame Xinsian, uma senhora chinesa de meia idade,
que administrava um prostíbulo em Whitechapel — meu sangue se alastrara pelo mundo, e isso
não excetua o Japão e China, onde os vampiros, embora conhecidos por outros nomes e
associados às lendas locais, detinham grande poder agindo nas sombras da sociedade —, David
Beker, um vampiro jovem, outrora um cidadão londrino de classe baixa, porém dotado de
inteligência ímpar, que arrastava suas vítimas para os esgotos, e Hazur, um egípcio nascido após
o fim de era faraônica, responsável pelo Museu Britânico durante o período noturno,
compunham o séquito principal do culto ao deus do sangue.
Uma vez que todos esses locais estavam conectados de forma subterrânea através do
sistema de esgotos da cidade, à meia-noite eles iniciavam seu ritual. Geralmente levando consigo
um punhado de mortais, os súditos do deus do sangue deixavam seus refúgios adentrando os
subterrâneos de Londres.
Seguindo através de intrincados caminhos pelos esgotos sob a cidade, eles se
aprofundavam cada vez mais nas entranhas subterrâneas; resquícios de diferentes eras da
humanidade.
Seu destino era uma câmara nas profundezas do solo, escavada não por mãos mortais,
mas por poderes que se equiparavam aos meus. E eu, de perto, porém, invisível aos seus sentidos
inferiores, os acompanhei. A presença de seu mestre não me passava despercebida, assim como a
minha, certamente já havia atraído sua atenção. Por isso, não teria muito tempo para inspecionar
os arredores antes de lançar meu ataque.
Quando adentrei a grande câmara ritual, porém, fui tomado por um misto de choque e
nostalgia. Senti-me como se estivesse de volta ao período áureo do Egito. O grande salão
subterrâneo havia sido revestido de rochas calcárias, o que lhe concedia um brilho pálido à luz
das piras espalhadas nos cantos. Sustentando o aposento, dois lances de colunas laterais
possuíam hieróglifos entalhados, exaltando o deus do sangue.
Como era de se esperar, na extremidade oposta do aposento, precedendo uma parede
marcada com mais hieróglifos, havia um altar sulcado, sob o qual repousava uma grande pia de
pedra. Ali também repousava minha antiga máscara.
Os seguidores lotavam o local; vampiros em corpos físicos e espirituais, mortais, tanto
fiéis, cientes da verdade, quanto vítimas levadas como sacrifício. E lá, parado diante do altar uma
figura incorpórea recebia as glórias. Ao reconhecê-lo eu não consegui mais reagir, tamanho o
baque.
Maugab. O deus do sangue.
Minha incredulidade somou-se à nostalgia, e eu permaneci ali, parado, tentando assimilar

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tudo aquilo. Enquanto isso, diante dos meus olhos, eu testemunhava o ritual deles, e passava a
compreender a peculiaridade da natureza vampírica de Maugab.
Alguns mortais, em estado de estase, eram levados até o altar. Enquanto seus sentidos
físicos e psíquicos eram bombardeados por estímulos oriundos dos mais variados poderes
mentais dos asseclas ali presentes, eles eram deitados sobe a pedra sulcada. Em seguida, sob
cânticos entoados no primeiro idioma que eu pronuncie neste mundo, dois dos fanáticos, trajando
mantos vermelhos, desceram suas adagas sobre os sacrifícios.
À medida que o sangue das vítimas escorria do altar para a bacia de pedra logo abaixo, a
figura fantasmagórica de Maugab ia se tornando cada vez mais nítida e palpável. Ele estava
absorvendo o fluido daqueles mortais para recriar sua forma física, assim como fizera a serva que
eu segui. Aquilo indicava que ele talvez fosse tão indestrutível quanto eu, mas a razão de ele
precisar fazer o ritual me intrigava. De que modo havia seu corpo físico sido destruído?
Basta! Eu pensei.
Impulsivamente liberei toda a minha capacidade. Assolei os presentes mentalmente,
toquei seus Ba com o meu. Fiz uso de poderes destrutivos aos quais jamais recorrera antes. Os
mais fracos e jovens tombaram de imediato incapacitados; aqueles que tentaram resistir, logo se
viram incapazes de controlar seus corpos, pois eu comandava que atacassem uns aos outros ou a
si mesmos.
No caos que se instaurou — ou melhor, que eu instaurei, como de costume — vários dos
servos foram abatidos. Só que aqueles vampiros, por mais novos que fossem, haviam recebido o
segredo de Maugab; suas formas espirituais permaneciam ali, prontas para refazer sua forma
física através de longos períodos de alimentação psíquica. E nessas formas eles tentavam investir
contra mim. O que eles não imaginavam, era que o Ba amaldiçoado deles, descendia do meu, e
assim, eu lhes infringi uma dose absurda de sofrimento.
De uma vez eu avancei contra Maugab, que àquela altura já havia reformado seu corpo
físico. Ele era forte. Mais forte do que qualquer vampiro milenar poderia ser. Mais forte do que
qualquer vampiro poderia ser de fato. Mas não mais do que o primeiro.
Ele resistiu. Conseguiu até ferir meu corpo com suas garras. Quase conseguiu cravar suas
presas em meu pescoço, e beber da morte de minha forma física - o que, acredito, tornaria seu
corpo ainda mais poderoso. Mas eu também me dispus a fazer o mesmo. Engalfinhamo-nos
como duas feras selvagens. Dois borrões de sangue e sombras destroçando tanto o ambiente
quanto qualquer um que desse o azar de aparecer em nosso caminho. No fim, eu retalhei sua
forma física, como se ela fosse um pedaço de pano podre, e no final, nossos Ba se uniram.
Mas ao invés de mais luta, veio o diálogo.
— Ahhhh, meu velho Remekhse! Que coisa deplorável você se tornou! Você que me
devia desculpas! Você que poderia ter abocanhado os prazeres da divindade como nunca nossos
irmãos cegos nos permitiram! Eu o odiei no começo! Fiquei ressentido, mas agora não mais,
apenas tenho pena de ti... Mas não posso deixar de rir do teu sofrimento, e de querer lhe causar
mais, especialmente diante dessa sua atitude mesquinha! Tentas destruir o que eu criei, frustrado
por não ser capaz de aproveitar tudo o que você é!

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— Como isso é possível?! O que eu te fiz para ganhar teu ódio?!

— Você me deixou lá! Sequer parou para olhar se eu ainda estava vivo! Quando aquele
bastardo, aquele maldito humano de merda me apunhalou, eu ainda vivia. Meu corpo definhava
rapidamente, mas minha consciência ainda estava lá. Se você apenas tivesse parado para prestar
atenção, ao invés de se voltar ao seu próprio umbigo...
— Eu havia sido transformado! Sequer sabia o que era, e não conseguia controlar a fúria e
tampouco a fome! - não me pergunte o porquê de eu ter ficado na defensiva. Eu sequer sei por
qual razão me dignei a oferecer alguma justificativa.
— Ah, sim, e eu parecia bem morto, não? Mas meu Ba ainda sobrevivia. Embora eu já
estivesse me desligando do corpo artificial que recebemos para viver neste mundo entre essa
espécie inferior, meu Ka ainda estava envolto pelo Ba, e, naquela forma espectral, tomado pelo
desespero, a vontade de sobreviver a todo custo, eu adentrei o seu sarcófago — ali finalmente as
coisas ficaram claras. Maugab havia adentrado o sarcófago não como eu, em forma física, mas
em sua forma espiritual, ainda presa ao mundo, pois ainda não havia transcorrido tempo
suficiente para que seu Ba fosse dissolvido, libertando seu espírito. Enquanto a minha
transformação ocorreu tanto no meu corpo quanto no meu Ba, a dele ocorreu somente no Ba.
Isso ele me confirmou logo em seguida.
Por essa razão, Maugab não possuía uma forma física própria. Seu corpo físico de fato
perecera naquela fatídica noite. Mas devido à sua condição vampírica única, ele permanecera
preso a este mundo; uma versão deficiente da imortalidade que eu obtivera. Não obstante, todos
os poderes ao meu alcance, também estiveram disponíveis a ele, que logo tratou de utilizar dos
conhecimentos superiores de Abiton para concluir que em seu novo estado, poderia manipular os
fluidos vitais e espirituais através de sua vontade e assim recriar um corpo físico.
Seus corpos, entretanto, embora muito mais duradouros do que aqueles criados por seus
servos, não eram eternos, de modo que através das eras ele teve de criar várias formas. Graças à
essa peculiaridade de seu estado, ele aprendeu essa técnica de regeneração muito antes de mim —
pois tive de destruir minha forma física para descobrir tal possibilidade — e como consequência
foi capaz de desenvolver um meio de ensiná-la aos seus servos.
Mas se havia uma coisa que tudo isso deixara claro, foi o fato de ele, ainda que de forma
inusitada descender de mim, por assim dizer. E isso significava que suas capacidades eram
inferiores, ainda que por um mero fio de diferença.
— Isso não pode perdurar Maugab! Nós não somos deuses! Somos aberrações, e não
devemos mais condenar ninguém a este destino!
— Ah, Remekh, eu gosto de você, eu realmente não guardo rancor, mas eu sou, e sempre
fui um deus para essas formigas, e continuarei sendo! Ambos somos indestrutíveis, mas eu posso
tirar você do meu caminho.
Ele tentou vir para cima de mim com toda a sua força, com toda a sua vontade, mas eu me
antecipei. Eu estava determinado a acabar com aquela palhaçada de uma vez por todas. Eu já
estava farto daquele joguinho de divindade. Minha força de vontade, canalizando todos os meus
dons vampíricos reverberou pelo aposento.

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Vampiros e mortais foram assolados por meu poder. Os primeiros se desfizeram em pó; até
mesmo seus Ba sofreram o efeito, pois assim que deixaram seus corpos físicos foram assolados
por uma dor descomunal, todas as memórias dos meus sofrimentos e frustrações invadindo seus
pensamentos. Eles carregariam o trauma por sua maldita eternidade. Já os mortais, bem, aqueles
que não tiveram uma parada cardíaca, fizeram questão de procurar uma quina onde enfiar suas
cabeças e, na falta de uma, arranharam suas faces e pescoços até a morte.
O local em si também não passou incólume. O estouro do meu poder fez com que as
colunas ruíssem, trazendo abaixo toda a estrutura. Terremotos assolaram Londres, conforme o
chão se abria e os elementos dançavam caoticamente iluminando a noite em horror e caos - se
você procurar as manchetes da época vai encontrar os registros da catástrofe.
Quanto a Maugab e eu, nossos Ba entraram em choque. Nossas vontades tentavam
sobrepujar uma à outra. Focando sua mente, ele tentava trazer á tona as tragédias pelas quais eu
passara. Ele criava, no mundo espiritual, uma atmosfera densa, uma espécie de limbo no qual ele
pretendia prender minha consciência. Admito que foi uma estratégia bem interessante; já que eu
não podia ser destruído, ele buscava deixar minha mente ocupada sabe se lá por quanto tempo.
Resolvi virar o jogo. A batalha era árdua, mas enquanto ele passou os séculos brincando
de ser adorado, eu estava lá, me fodendo. Não havia nada que ele pudesse me fazer reviver que
eu já não tivesse sentido na pele e aprendido a superar. Eu lhe causei uma boa dose de
sofrimento psíquico, porém, ele não se importava com nada nem com ninguém, por isso seria
praticamente impossível aprisionar sua mente em algum sofrimento ilusório.
No fundo, nós dois estávamos agindo como bestas selvagens. A lógica fora jogada de
lado, tudo o que queríamos era destruir um ao outro e qualquer coisa que se colocasse no
caminho. Àquela altura meu corpo físico jazia soterrado nos escombros, e o embate dos nossos
poderes ameaçara destroçar ainda mais a bela Londres.
Então, subitamente, tudo parou.
Nós nos víamos como que no meio de um grande clarão. Sabe como naquelas cenas
típicas dos filmes modernos, quando o cara vai morrer, ou se encontra com alguma entidade
cósmica. Foi mais ou menos dessa forma.
E eis que do meio daquela luz ela surgiu. Em meio às suas feições iluminadas, ela
manteve algumas das características físicas que utilizara em nossa época. Yssarra.
— Como pode ser? — indaguei meio incrédulo, e ainda suspeitando que de aquilo poderia
ser alguma ilusão criada por Maugab. Ele, porém, deve ter imaginado o mesmo, pois alternava
entre encará-la estupefato, e me olhar incrédulo.
— Então, eles mandaram você? — o “deus do sangue” indagou finalmente.

— Remekhse, meu querido. Maugab... — ela falou em um misto de lamento e piedade. —


Vim, pois assim desejei. Nossos irmãos de Abiton não mais voltam seus olhos a este mundo.
— Achei que vieste me destruir, como foi feito com Set — ele disse.

— Set colheu da própria ruína semeada. Assim como vocês o estão fazendo agora.
Remekhse venho a ti, pois sempre me será muito querido, apesar de nossos caminhos e ideais
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conflitarem absolutamente. Nunca fomos afins Maugab, mas não deixo de considerá-lo pela
nossa origem em comum. Minha razão de estar aqui neste momento é para afastá-los desse
embate antes que as consequências sejam ainda piores. Vocês não podem se destruir, e isso já
lhes é obvio.
— E quanto à humanidade? Nossos irmãos permitirão que nossos descendentes malditos
existam e subjuguem este mundo da maneira como quiserem?
— Os filhos de Abiton não mais voltam seus olhos para a humanidade. Nossa tarefa aqui
foi somente impulsionar o progresso das civilizações, e também nos redimirmos perante os
padrões do nosso mundo. Agora que isso está feito, os humanos são livres para seguirem seu
próprio rumo e arcarem com as consequências dos seus atos. Aqueles que descenderem de vocês
continuarão sendo humanos, ao menos em suas mentes. Logo, a própria humanidade terá
tecnologia suficiente para representar uma ameaça à espécie de vocês, por isso nossos irmãos
não veem necessidade de intervir com sua existência.
— Quanto ao ti, Maugab, seu corpo não mais existe, portanto saia daqui, ou abriremos
uma exceção a ti — o “deus do sangue” lançou um último olhar zombeteiro a mim antes de
desaparecer para algum recôndito obscuro do mundo espiritual, onde aguardaria até conseguir
uma nova forma física.
À minha pessoa, Yssarra lançou um último olhar piedoso.
— Seu intento já é um começo, meu querido. Você sabe o que deve ser feito, e a hora se
aproxima.
Não consegui esboçar reação.
— Que em algum momento da eternidade, estejamos lado a lado, como iguais novamente
— foi a última vez que a vi. Antes que ela sumisse em um clarão, tive a impressão de sentir uma
lágrima cair em minha face.
Despertei sob os escombros, algo que de certa forma já me era bem familiar. Dali em
diante, eu focaria exclusivamente em acabar com a espécie que se originara a partir de mim. Para
isso, eu deveria continuar a monitorar meus descendentes mortais com atenção redobrada, já que,
de acordo com Yssarra, a geração esperada se aproximava.
Não mais me interessava ficar vagando sem rumo pelas diferentes nações. O sono físico
me parecia muito mais interessante.
Das ruínas eu peguei minha antiga mascara e parti. O velho Egito me pareceu um local
interessante — e poético — para o repouso, mas a amada terra havia perdido sua glória diante dos
séculos de cagadas humanas.
Meu único afazer consistia em observar a minha linhagem mortal. A cada década eu
despertava e rumava para outras terras, onde novamente adormecia, focando unicamente em
minha vigília. Concomitantemente, qualquer prole de Maugab que cruzasse meu caminho era
imediatamente erradicada — ao menos fisicamente.
E assim o mundo foi mudando ainda mais.

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A Ti Eu Transmito o Manto das Trevas

O século XX marcou um rápido desenvolvimento das capacidades tecnológicas.


Começou de forma estranha, desagradável. E isso, eu digo conforme os meus padrões. Sabe, eles
davam muito valor para aquela coisa de bons costumes e moralidade, etc. Isso tornava as coisas
extremamente monótonas. Obviamente não era em todos os lugares que isso acontecia, afinal, no
fim das contas, humanos jamais deixaram de ser humanos e consequentemente os piores
monstros sobre este mundo.
Mas em suma eu achei o começo do século absurdamente enfadonho. Aliás, não só o
começo; o meio e... Certo, para falar a verdade quase três-quartos foram uma droga.
Ah, não. Não. Não me venha com esse papo de “e as Guerras Mundiais?”. Já há um
número suficiente de livros de história, filmes e muitas outras coisas falando desses eventos.
Você provavelmente já sabe tudo o que aconteceu no período, e se não sabe, é só dar uma
pesquisada por conta própria. Eu não vou fazer parte dessa longa lista de clichês. E se a sua
dúvida é se esses eventos foram orquestrados ou manipulados por vampiros agindo nas sombras,
a resposta é não. Foram apenas mais uma demonstração da sempre presente e aparentemente
ilimitada bestialidade humana.
Resumindo, passei boa parte do século dormindo e ocasionalmente mudando de um país
a outro, sem jamais deixar de acompanhar de perto uma família em particular, que descendia de
um dos meus relacionamentos com as mulheres mortais no antigo Egito.
Um desses descendentes em particular - membro da penúltima geração a família — já
quase possuía o gene ideal para meus propósitos. Ele mudou-se para o Brasil em meados da
década de sessenta, e lá viveu até meados da década de setenta. São Paulo foi a cidade onde se
estabeleceu, e para lá novamente eu retornei.
O lugar onde outrora havia a apenas mato e um grande galpão havia se transformado em
uma esplêndida cidade, de fazer inveja àquelas das maiores nações e figurando dentre as maiores
do mundo. Tanto o Theatro Municipal quanto o Museu do Ipiranga provaram-se refúgios
extremamente aconchegantes.
Perto da década de oitenta, meu descendente mudou-se para Nova Iorque, e como seria
de se esperar eu o segui até lá.
Os anos oitenta. Ali, finalmente o século começou a valer a pena. Ah, mas que época
maravilhosa. Uma era inteiramente dedicada a adoração da forma e aos prazeres físicos. Um
período voltado inteiramente ao hedonismo e a luxuria.
Isso começou nas décadas anteriores, mas foi na década de oitenta que a era começou de
fato a ser definida. As mulheres com suas roupas coladas de spandex, a busca do corpo perfeito.
Dentre todas as eras, nunca os trajes foram mais voltados à sedução... A única coisa que
atrapalhava ali eram os cabelos de “poodle”.
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Nesta década, ah, tudo foi aperfeiçoado, os cabelos, os trajes, tudo. Só ficaria perfeito
mesmo com um retorno triunfal dos trajes brilhantes e colantes de spandex.
Tudo se resume ao prazer. As mulheres se maquiam, vestem-se da forma mais
provocante possível a fim de se mostrarem como os objetos perfeitos de prazer carnal, a fim de
atrair a atenção do parceiro perfeito. Os homens não ficam para trás, ostentam carros luxuosos,
roupas caras, gastam o dinheiro que possuem e que não possuem como símbolo de grandeza
fálica.
Mas não me interesso pelos homens, por isso falemos das beldades do sexo feminino. As
noites se tornaram o campo de caça daqueles que buscam prazer... Ah, e quantas delas se
produziram, vestindo seus corpos bem cuidados com aqueles trajes enaltecedores, e saíram em
busca de uma noitada regada a prazeres carnais, e jamais retornaram. Jamais chegaram ao seu
destino... Mas não deixaram de propiciar o prazer almejado, apenas o propiciaram através de seu
sangue...
Ali teve início uma época realmente farta para que um ser da noite se alimentasse, fosse
através do sangue ou das energias espirituais.
O que eu podia fazer? É a minha natureza. Embora eu busque corrigir meus erros, isso
não significa que eu tenha aberto mão de todos os meus gostos. Mas se serve de consolo, escolho
minhas vítimas dentre os mais sórdidos dos mortais, e isso, nesta era, significa abundância. Não
é de se surpreender que muitos corpos formosos escondam almas mais escuras do que o próprio
abismo.
Mas foquemos naquilo que realmente importa. Em três de Abril de 1991, o descendente
que por tanto tempo eu observara teve uma filha. O DNA da criança possuía a mutação pela qual
eu tanto esperava, resultado de milênios de transformação da junção do DNA humano com
aquele do meu corpo sintético criado em Abiton.
A mutação, porém, não estava completa. Ainda faltava-lhe um elemento com o qual
apenas eu poderia contribuir, o meu sangue vampírico. Seria através da junção dos dois que a
“magia” seria realizada.
Ora, creio que não é necessário que eu lhe conte os detalhes da sua própria vida, não é
mesmo, posto que tal criança é você. Ainda assim, preciso que saiba a razão da sua enfermidade.
Sua situação genética é uma anomalia, e por essa razão, seu corpo acabou por ser vitimado por
um tipo raro de câncer. Situação pela qual, sabes muito bem, você encontrava-se à beira da morte
nesta cama.
Encontrava-se, sim, pois agora, o manto das trevas já repousa sobre ti. A morte, ao menos
em seu conceito biológico, jamais a tocará.
Nós já estamos nos aproximando do fim, então, é chegada a hora da minha conclusão.
Eu sou Remekhse, filho proscrito de Abiton, o primeiro vampiro. Após milênios de
degradação, espalhando a praga da minha escuridão pelo mundo, eis que eu encontro a
determinação e o instrumento para corrigir meus erros. Cabe a ti, minha derradeira criança,
acabar com o manto das trevas, pois graças á transformação que seu DNA especial sofreu, sua
mordida, quando em outros vampiros, os tornará estéreis. Não mais eles serão capazes de criar
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proles (algo que você também não será capaz). Tal efeito recairá também sobre o Ba de suas
vítimas, portanto, mesmo aqueles que possuíam o dom de criar novos corpos não mais poderão
fazê-lo, e também não mais conseguirão passar o manto das trevas adiante.
Agora abra os olhos, minha criança. Nasça para sua nova existência...

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Epílogo

Tal qual um náufrago que na certeza do afogamento alcança a superfície, Caira abriu os
olhos abruptamente, e arqueou o corpo, buscando instintivamente pelo ar que não mais lhe era
necessário. O movimento, embora simples, passou uma sensação de liberdade nunca antes
experimentada, como se ela pudesse se mover livremente pela existência ao preço de um mero
pensamento, conquanto sua vida pregressa parecia ter sido vivida sob a ausência da gravidade,
tamanha a impressão de lentidão que lhe passava.
Ao contrário de todos os outros vampiros, que tão logo recebiam o manto das trevas,
conforme alcunhara seu criador, e surpreendiam-se ao vivenciar os novos potenciais de seus
sentidos, Caira não teve surpresa alguma. Tão profundamente estivera ela ligada à mente do seu
progenitor, e tanto ela vivenciara através das memórias dele, que já sentia como se tivesse
desfrutado da condição por tanto tempo quanto os homens caminhavam sobre a Terra.
Em um canto do quarto — não mais escuro aos olhos dela — estava ele, sentado sobre a
cadeira, imóvel e pálido como um cadáver, fazendo jus à alcunha que por vezes recaia sobre a
espécie. As veias dele riscavam a pele em tons arroxeados, quase negros.
Nos olhos, entretanto, havia vida; vida e triunfo. Eles a seguiam, inteligentes,
saboreando-a como a uma obra de arte inestimável. Mas ele estava fatigado, ela podia sentir. O
ato de criar uma nova vampira; passar a ela o conhecimento multimilenário, juntamente com a
habilidade de dominar cada um dentre os vastos e quase inumeráveis poderes herdados, havia
feito com que até o primeiro vampiro se sentisse exaurido. Mas uma exaustão que não duraria
mais do que alguns poucos e preciosos segundos.
Caira o conhecia. Ela julgava compreender seus anseios e suas motivações melhor do que
ele próprio. E no fundo, sabia que embora ele soubesse o que precisasse ser feito, talvez seu
orgulho e seu comodismo o impedissem de buscar fazê-lo efetivamente.
Remekhse sorriu para ela. Seu rosto pálido emoldurado pelos longos cabelos negros —
uma das muitas aparências que ele assumira durante sua longa existência terrena — e ela
percebeu que ele se preparava para lhe dar suas primeiras instruções.
Dominando sua velocidade absurda, Caira voou sobre seu criador. Os olhos dele se
arregalaram em surpresa.
Milhares de anos e ainda há algo que o surpreenda... Talvez ele se deixasse surpreender
de propósito, apenas pelo gosto de experimentar um pouco de uma sensação humana.
Os dentes dela penetraram o pescoço de Remekhse. Era irônico que sua primeira presa
seria seu próprio criador, o primeiro vampiro em pessoa. Mas não era alimento que ela buscava
ali. A mordida foi breve, e bastou para alcançar seu propósito.
Ele não disse nada, apenas ficou olhando-a conforme ela se dirigia até a porta do quarto.
Se o olhar de Remekhse traduzia incredulidade ou orgulho, Caira não sabia, nem se importava.
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Ela estava fazendo o que devia ser feito; aquilo para o qual ela fora criada.
Os predadores da noite haviam se tornado a presa. Ela encontraria cada um deles e, cedo
ou tarde, Maugab e seus seguidores aplacariam sua sede.
— Acho que você sabe onde me encontrar se precisar de mim — ela disse ao seu criador e
fechou a porta atrás de si.

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SOBRE O AUTOR

Leandro Zerbinatti de Oliveira nasceu em 02/05/1983 em São Paulo - SP. É advogado,


apaixonado pela fantasia em todas as suas formas desde tenra idade.
Sempre adepto da literatura, aos dez anos conheceu o RPG e por diversão começou a
escrever. Mais tarde, já formado, e tendo participado de vários projetos literários voltados aos fãs
de RPG, decidiu lançar-se profissionalmente na literatura, esta influenciando na escolha da
carreira, uma vez que a escrita é a base da advocacia.
Publicações:
2009 - 2013: Trilogia “A Dama Escarlate”, A Emissária da Morte; A Peste; O Confronto da
Salvação. (Clube de Autores e Amazon)
2013 - Antologia Destinos Fantásticos. (Ed. Literata);
2014 - Antologia Daemonicus (Ed. Literata);
2015 - Arkhoriach (Amazon);
Sob a Sombra do Dragão (Amazon);
Coletânea - O Olhar da Danação (Amazon);
Pestilentia (Amazon);
Réquiem para a Fantasia (Amazon);
O Sonhador Deve Morrer (Clube de Autores e Amazon);
2016 - O Pálido Véu do Pecado (Clube de Autores e Amazon);
2017 - Antologia Teslapunk (Ed. Madrepérola);

Contato:
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Twitter: @LeZerbinatti
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