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LÚCIFER

TOM ADAMZ
Copyright © 2017 por Tom Adamz
Todos os direitos reservados

— É PROIBIDA A REPRODUÇÃO —

Capa: Jéssica Gomes/Magic Design Editorial.


Publicação: Amazon/Kindle.
Formato: E-book.

1ª Edição/2017

Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e acontecimentos


descritos são produtos da imaginação do autor. Qualquer semelhança com
nomes, datas e acontecimentos reais é mera coincidência.
Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida sob quaisquer
meios existentes sem autorização por escrito do autor.
O inferno é o paraíso terrestre com incontáveis andares.
Naturalmente, as pessoas temem o desconhecido, o diferente, o especial,
aquele que não se enquadra nos padrões e, acima de tudo, aquele que
consideram ser a raiz do mal. Mas será que eu seria tão mau assim ou sou
apenas mais um dos incontáveis devaneios criados pela mente humana?

“... Ela é sua remissão. E apenas ela é capaz de te levar à luz. Vocês
estão predestinados desde o princípio”.
SUMÁRIO:
PRÓLOGO
CAPÍTULO UM
CAPÍTULO DOIS
CAPÍTULO TRÊS
CAPÍTULO QUATRO
CAPÍTULO CINCO
CAPÍTULO SEIS
CAPÍTULO SETE
CAPÍTULO OITO
CAPÍTULO NOVE
CAPÍTULO DEZ
CAPÍTULO ONZE
CAPÍTULO DOZE
CAPÍTULO TREZE
CAPÍTULO QUATORZE
CAPÍTULO QUINZE
CAPÍTULO DEZESSEIS
CAPÍTULO DEZESSETE
CAPÍTULO DEZOITO
CAPÍTULO DEZENOVE
CAPÍTULO VINTE
CAPÍTULO VINTE E UM
CAPÍTULO VINTE E DOIS
CAPÍTULO VINTE E TRÊS
CAPÍTULO VINTE E QUATRO
CAPÍTULO VINTE E CINCO
CAPÍTULO VINTE E SEIS
CAPÍTULO VINTE E SETE
CAPÍTULO VINTE E OITO
CAPÍTULO VINTE E NOVE
CAPÍTULO TRINTA
CAPÍTULO TRINTA E UM
CAPÍTULO TRINTA E DOIS
CAPÍTULO TRINTA E TRÊS
CAPÍTULO TRINTA E QUATRO
CAPÍTULO TRINTA E CINCO
CAPÍTULO TRINTA E SEIS
CAPÍTULO TRINTA E SETE
CAPÍTULO TRINTA E OITO
CAPÍTULO TRINTA E NOVE
CAPÍTULO QUARENTA
SOBRE O LIVRO
BALTHAZAR
AGRADECIMENTOS
SOBRE O AUTOR
PRÓLOGO

O CRIADOR ME FEZ DO MAIS PURO FOGO, do fogo que


consome tudo, do fogo que trouxe luz ao mundo. Fui chamado de Anjo de
Luz, a mão direita de Deus. A minha glória durou vários milênios, então caí e
mesmo na queda, segui em glória. Agora sou chamado de Lúcifer, O Príncipe
das Trevas, o Príncipe desta Terra e mão direita de Satan. Mas é preciso que
saibam, não sou sua mão, sou seu carcereiro.

— Vocês estão comigo? — ergui minha espada que flamejou com o


fogo que percorre minhas veias.

Um urro de euforia inundou o primeiro portão do inferno. Do outro


lado, as hostes angelicais impediam nossa passagem.
A minha armadura é a Deucaleor, feita com meu próprio sangue e,
por isso, impenetrável. Reluz mais que o ouro de Ofir e resistiu ao toque do
próprio Deus quando fui arremessado à Terra.

— A grande batalha. — Baltazar colocou-se ao meu lado,


empunhando a primeira das dez grandes espadas demoníacas — a Matadora
de profetas —, forjada nas profundezas do inferno. Sua armadura era
recheada de detalhes, em particular quatro grandes estrelas no peito direito,
indicando que é um dos meus generais.

— É assim que vão chamar esse evento?

— Sim, Milorde. É assim que ficará conhecida a batalha entre os céus


e o inferno.

Um grande estrondo no portão principal. Grandes pares de asas


brancas, que fizeram um corredor surgir entre os meus soldados. Armadura
dourada, cabelos loiros anelados batendo nos ombros e olhos verdes como as
primeiras folhas de uma árvore após o outono.
— Desista, Lúcifer. O Senhor, Todo Poderoso Deus, pôs sua mão
sobre os homens e, como criaturas santas geradas em seu seio, é nosso dever
ajudá-los e guiá-los à luz. — a poderosa voz ecoou, exigindo respeito e se fez
silêncio.

Sua armadura era como a minha, feita da mesma raridade; as únicas


de todo o universo. Aquele que era meu irmão e foi meu melhor amigo era
quem estava à frente das legiões divinas; legiões que um dia comandei.

— Não me compare com criaturas inferiores! O homem foi feito do


barro e eu fui feito do mais puro fogo. Do fogo que deu luz ao universo! —
rugi com tanta fúria que o céu enegreceu, sendo cortado por relâmpagos.

— Não importa do que eles foram feitos. O que importa é que foram
feitos à semelhança de Deus! — bradou e, esticando uma das mãos,
materializou sua poderosa espada — a Justiça divina.

— Arcanjo Gabriel, sabes tão bem quanto eu que os humanos não


merecem a misericórdia divina. Deus abandonou os homens. Satan
abandonou os homens. Como o Príncipe da Terra, reivindico-a para mim! —
vociferei e esticando a outra mão no ar, um chicote surgiu. Com um
movimento, o fiz estalar como um trovão.

— Então não há outro modo. — Gabriel ergueu sua espada e em sua


ponta surgiu uma esfera de luz. — Servos do Rei dos Reis, preparem-se para
a batalha! — o som de milhares de milhões de passos ecoou atrás dele.

— Legião! — urrei, colocando os meus soldados em prontidão.

Em minha frente surgiu uma besta de três cabeças, com três pares de
chifres cada; cabeça de leão, corpo de cavalo e um par de asas. Assim que a
montei, apontei a espada em direção aos portões.

— Avante! — ordenei.

O galope de milhões de milhares fez a terra tremer. Terremotos,


furacões e mudanças no curso das águas do mar; dois grandes exércitos se
chocando em prol da mais miserável das vidas.

Os humanos não valem tanto... Por que os anjos insistem em protegê-


los? Não entendo, não consigo entender.

Despertei.

— Milorde. — Balthazar aproximou-se, curvou a cabeça e pôs a


bandeja em cima do criado-mudo. Serviu um pouco de chá em uma xícara e a
ofereceu a mim. — Continua tendo visões?

— Do futuro e do passado... — semicerrei os olhos.

Futuro e passado. Por mil demônios, o que isso significa?

Balthazar permaneceu de guarda ao meu lado. Eu não precisava


observá-lo para saber que ele estava me analisando.

— Sabe o que eu acho disso...

— A minha chance de remissão se perdeu na cruz. Já discutimos isso


e não iremos discutir outra vez. — dei um longo suspiro e beberiquei o chá,
ainda tentando encaixar cada um daqueles fragmentos que surgiam em minha
mente sempre que eu fechava os olhos.

— Sobre a nova secretária. Eu gostaria de fazer uma seleção contando


com sua presença, Milorde. — acenei positivamente com a cabeça.

Balthazar retribuiu o aceno e deixou-me só.

Humanos são tão... Patéticos! Patrícia, a antiga secretária, não durou


uma semana no que chamou de “esquisitices do mal”. Em uma bela tarde
ensolarada, em um casarão senhorial que aluguei na Europa, resolvi esticar as
asas pela propriedade e, quando pousei, lá estava ela, em pânico, com os
olhos vidrados em mim como se tivesse visto algo tão pavoroso a ponto de
tirar-lhe a voz. Ela não voltou depois daquele dia, nem mesmo para receber a
alta quantia que acertamos em sua contratação.
Levantei-me da cama e com um estalo de dedos, vesti meu corpo nu
com um terno. O blazer ficava aberto, deixando a camisa branca de botões
negros, da mesma cor da calça, em evidência. Um relógio de puro ouro negro
adornava meu pulso; ao invés de números, havia estrelas, com todo o sistema
solar girando em perfeita harmonia. E sobre a terra uma grande estrela. A
estrela-da-manhã.

Quando almejei reinar sobre o mundo, eu imaginava fazê-lo trazendo


terror e desgraça, mas, após certo tempo, entendi que isso não me traria
controle eterno, apenas momentâneo. Após a queda, os céus e o inferno não
se cruzaram, mas em diversos momentos chegamos ao quase. Aquela visão
que se repetia, onde no fim todos morriam, era a visão do que aconteceria
caso eu tentasse tomar a Terra à força. Nem anjos, nem demônios. Só
restariam os malditos humanos.

Então, mais uma vez arquitetei uma maneira de reinar sobre a Terra,
minha por direito. Não pude abrir os portões do inferno e trazer legiões
comigo, mas nada me impedia de passar sozinho.

Dias depois, Balthazar, meu braço direito, me seguiu e lembrou-me


que jurou me acompanhar onde quer que eu fosse.

Decididamente não era a melhor das ideias, mas necessito do meu


próprio castelo. Uma pena haver tantos na Europa com todo aquele frio.
Gosto de lugares quentes, mas não era só isso. Não sei o porquê, mas o país
escolhido foi o Brasil e também não sei quem ou o quê me atraiu a São Paulo.

Apenas segui seu cheiro.

•••

Em terras brasileiras, meu fiel servo rapidamente encontrou o local


que chamaríamos de lar. Comprei uma grande área em crescente valorização
em São Paulo. Um condomínio fechado recém-inaugurado, inteiramente meu.
Depois que saímos da Europa, demos uma rápida passada pelos Estados
Unidos, onde avaliei um modelo de residência. Gostei extraordinariamente e
resolvi que faria exatamente igual.

Quando se é o Rei dos Demônios, dirigir não é um problema. Entrei


na minha BMW X1 e com a simples força do meu desejo, o carro ligou, a
marcha mexeu e o acelerador foi comprimido; tudo sem um mísero
movimento.

— Milorde... — Balthazar agarrou-se com força no banco. Os olhos


arregalados e uma apreensão incomum estampada em seu rosto. — Tem
certeza que essas bugigangas humanas são seguras?

— Está com medo de morrer, Balt? — sorri.

Nesse momento o carro já havia ultrapassado os cem quilômetros por


hora. As curvas eram perfeitas e a estabilidade do veículo fazia jus ao preço.
Quanto mais eu acelerava, mais ele apertava o banco; o suficiente para deixar
a marca de suas mãos afundadas no estofado.

— Está estragando meu carro. — rosnei, revirando os olhos.

— Se estivéssemos voando como sugeri, o seu carro ainda estaria sem


um único arranhão! — retrucou furioso, apertando ainda mais o banco.

Com os braços cruzados, continuei conduzindo o veículo. Como


pode? Um general demônio com medo de andar em bugigangas humanas?
Inclusive, preciso fazer um adendo.

— Balthazar, tome nota! — ergui o indicador.

— SÓ QUANDO DESCERMOS DESSA CARROÇA


MOTORIZADA!

Contive uma risada, deixando escapar um sorriso tímido no canto do


rosto. Enquanto travávamos uma batalha mortal com os anjos, os homens
melhoraram muito. Permaneci por quantos séculos no inferno? Tudo está tão
diferente e tão familiar. Eu tenho a sensação de ter vindo aqui em outro
momento, nessa era atual, mas não consigo me lembrar. Isso é... Muito
estranho...

Finalmente chegamos. O carro parou. Balthazar saltou rapidamente e,


na pressa, arrancou minha porta. Acertei a mão na minha testa, repreendendo-
o com os olhos.

— NÃO ME OLHE ASSIM! Nunca mais, nunca mais entro nisso! —


cruzou os braços e me deu as costas.

Desci do veículo e com um estalo de dedos o consertei. Aproximei-


me da guarita, a única na entrada da área cercada e notei que havia alguém lá
dentro, dormindo.

— Venha. Será rápido.

— Milorde, vamos-chamar-a-atenção-dos-jornais. — ele me


interrompeu, falando apressadamente. Deu um longo suspiro e se recompôs.
— Não acho que seja muito...

— Sensato? — ergui as sobrancelhas e passei pelo grande portão. —


A intenção é justamente essa: chamar a atenção do mundo inteiro.

Em um piscar de olhos, parei no centro da área. Balthazar me


acompanhou. Dei um longo suspiro, levantei um dos braços e, com um
movimento do indicador, um forte tremor abalou a terra: um palacete brotou
do chão. Alguns segundos apenas, mas suficientes para atingir um raio de ao
menos cinquenta quilômetros. Lá estava ele em minha frente, o meu doce lar.
Uma réplica perfeita do The Breakers, em Newport, Rhode Island. Fiz
algumas modificações, é claro. No topo da mais alta torre, um grande
Arcanjo de armadura empunhando uma espada e uma coroa — Lá estava eu.
Ao redor da mansão um grande jardim, uma pequena réplica do Éden, onde
em seu centro, havia uma macieira que produz frutas douradas — o elixir da
vida. O corredor principal dos veículos que dava acesso à entrada da mansão
possuía estátuas de ambos os lados; bestas, animais que mente humana nunca
viu ou imaginou. Os muros eram altos como muralhas, cobertos de sebe e de
concreto impenetrável à mão dos homens. Até a guarita ganhou um tom que
combinasse com o novo cenário.
— Invasores! Invasores! — um homem de meia idade com uma
lanterna em uma mão e a pistola na outra se aproximou às pressas. Quando se
colocou diante de nós, seus olhos o traíram e ele admirou a minha última
criação. Vi espanto em seus olhos, ele estava embasbacado com a majestosa
construção. — Santo Deus... Como pode? Como isso veio parar aqui?
Impossível... — dizia mais para si do que para nós.

Inspirei profundamente e soprei uma fumaça negra em direção ao seu


rosto. Ele adormeceu e levitou a alguns metros do chão.

— Vá para casa. Quando acordar, conte a todos que se deparou com a


oitava maravilha do mundo e que não faz ideia de como ela surgiu. —
ordenei, fazendo-o disparar no céu como um foguete.

— Por que não o matou, Milorde? — Balthazar fitou-me, curioso.

— Lúcifer regressou à Terra para se tornar uma celebridade. As


pessoas não gostam de quem mata...

— Nem de Lúcifer, Milorde. — ponderou Balthazar, dando de


ombros.

— Vão aprender a gostar. — joguei-lhe uma piscadela.

Setenta salas é a contagem total dos cômodos deste palácio. Inferior


ao meu Palácio Sombrio, mas servirá para me abrigar na Terra e mais que
isso, chamará atenção de todos os jornais do mundo ao amanhecer.

Como surgiu? Quando? Quem é o proprietário?

Dois dias foram suficientes e, como previ, todos os jornais do planeta


o descreviam como “O Misterioso Palacete Paulista”. Atendendo minhas
ordens, Balthazar colocou uma grande placa na entrada, onde jornalistas de
vários países haviam montado acampamento, indicando que estávamos
contratando funcionários.
Seis portas dão acesso ao Grande Hall e sobre cada uma delas, figuras
de calcário que representam o meu progresso: a queda, o primeiro pecado, o
primeiro assassinato, o bezerro de ouro, a igreja e, por último, a minha
própria imagem, sendo coroado no centro do mundo.

Sentado de frente para a lareira e tomando vinho, eu repassava as mil


etapas da minha ascensão. Tudo seguia como planejado. Exatamente tudo.
Nesse ritmo, não seria necessário muito, mas ainda que fosse... Tenho toda a
imortalidade para alcançar meus objetivos.

— Milorde. — Balthazar fez um aceno de cabeça e colocou as mãos


para trás. — Contratei doze pessoas. Eles começam amanhã...

— E a secretária? — dei mais uma golada no vinho.

— Elas serão entrevistadas na parte da tarde, pelo senhor, Milorde. —


cuspi o vinho, encarando-o fixamente. — Creio que esse seria um serviço
para Amon, ele é muito mais sábio que eu, mas como ele não está presente...
Sugiro que o senhor mesmo faça as honras, afinal, ela será SUA secretária.

Você é tão sábio quanto Amon, Balthazar, mas, sem dúvidas, apenas
você sabe como me convencer de algo.

— Certo. Quando formos começar, me chame. — Balthazar curvou a


cabeça novamente e se retirou.

Pus-me a admirar o fogo estalando na lareira. Tão falso, vermelho e...


Fraco. As chamas que me cobrem e que correm por minhas veias são negras.
Esse é o mais puro fogo. Esse sim é o...

Pisquei os olhos algumas vezes com imagens passando aleatoriamente


por minhas memórias. De novo isso? Desde que voltei à Terra vejo o rosto
dessa garotinha. Ela está orando por alguém. Está clamando misericórdia e
perdão...

[...]
Seus cabelos ruivos tem uma coloração tão forte que seriam
facilmente confundidos com sangue. Tão clara como as asas dos altos
querubins que tocam sinfonias celestiais em adoração ao criador. Traços
delicados e infantis.

— Por quem você ora? — perguntei, tentando esconder minha


curiosidade.

— Você tem asas? — ela arregalou os olhos e sorriu. Um sorriso puro


e terno. Tombou a cabeça para o lado e pôs-se de pé, admirando-me. — Foi
Deus quem te enviou? Ele ouviu meu pedido?

Sorri de volta e toquei seus cabelos, abaixando-me para ficar na


mesma altura que ela.

— Pequena criança, não sou um... — a voz falhou. Ela me temeria?


Correria? Gritaria? Que bobagem! Sou o poderoso Arcanjo, a-estrela-da-
manhã e estou receando contar a esta criança a minha identidade? — Meu
nome é Lúcifer. — apresentei-me calmamente.

Seus olhos arregalaram-se novamente, mas não em horror. Havia


curiosidade e inquietação em seus movimentos. Novamente ela sorriu e,
aproximando-se, tocou meu rosto com suas pequenas mãos.

— Deus ouviu minhas orações. Estou orando por você, Lúcifer. Estou
clamando pelo seu perdão. — atingiu-me com suas palavras e seu sorriso.

Orando? Por mim?

Pisquei mais algumas vezes e voltei à realidade. Olhei ao meu redor.


O Grande Hall, a lareira, os móveis. E a voz infantil que aos poucos se
extinguia, cada vez mais baixa em ecos por minha mente.

“Estou clamando pelo seu perdão”.

Várias e várias outras vezes.


CAPÍTULO UM

PERMANECI DE OLHOS fechados. Mesmo dentro daquele


labirinto de cômodos, eu conseguia ouvir tudo. Não apenas na mansão, mas
em todo o mundo, se fosse preciso. Chegou a hora. Aparentemente, sete
mulheres estão dispostas a trabalhar para mim.

Levantei-me.

Atravessei o grande hall e entrei na biblioteca. Espetacular! Olhei de


um canto a outro. Realmente, é espetacular! Incontáveis livros, de grandes
autores. O meu passatempo é ler. Adoro romances, adoro histórias
fantasiosas, inclusive as que falam sobre mim, ainda que mentirosas.

Há uma escada que consegue alcançar a mais alta prateleira, fixada ao


chão por rodas que possibilitam girá-la por todo o local. Um par de sofás no
meio do salão e uma grande mesa de costas para a janela que dá vista para o
lago claridade — suas águas são tão claras que é possível ver o que se
esconde em suas profundezas.

Na parede do canto esquerdo, próximo a mesa, há um grande espelho,


suficientemente grande para refletir a imagem dos gigantes de gênesis.

Ao me aproximar, vi meu próprio reflexo. O mais belo Arcanjo que já


existiu. Perdi a glória divina, mas não a beleza. Eu nasci belo, o mais belo
dentre todos os Arcanjos e seguiria belo até o fim.

Estonteantes olhos azuis como um céu limpo. Pele cor de oliva,


cabelos louro-escuro que batem perfeitamente no pé do crânio, sempre
penteados para trás. Corpo musculoso. Peito largo e as costas igualmente
grandes. Ao invés de vestir uma armadura, vestia um terno azul-marinho,
com um pingente agregado ao colarinho, uma maçã de ouro.

— Às vezes... — sorri, encarando meu reflexo e ajeitando o


colarinho. — Até mesmo eu me encanto com minha beleza.

— Milorde? — Balthazar chamou-me. Segui me encarando no


espelho, deslizando a mão por meus cabelos. — Posso mandar a primeira das
moças entrar?

— Balt, acha que somos parecidos com os humanos?

— Depende, Milorde. — voltei meus olhos a ele. — Fisicamente


somos quase iguais, não fossem as asas e a aparência perfeita. Claro, criaturas
como nós podem escondê-las facilmente. Também temos o que eles chamam
de poderes e nós de magia divina ou demoníaca. — fez uma pausa e
finalmente respondeu: — Acredito que sejamos iguais a eles. — senti um
gosto amargo na boca.

— Entendo.

— Deus fez o homem a sua semelhança, assim como os anjos também


foram feitos a sua semelhança, Milorde.

— Deus é uma criança e o universo é seu parque de diversões. —


bufei, tornando a me encarar no espelho. — Mande a primeira entrar. —
Balthazar acenou com a cabeça e eu segui para a mesa, sentando-me na
cadeira.

Apoiei os cotovelos na madeira maciça e entrelacei meus dedos,


fechando as mãos. A porta rangeu e revelou a primeira delas. Cabelos roxos,
olhos claros e pele morena. Um longo vestido que se arrastava no chão,
curvando-se com seus movimentos sensuais.

Ao parar em minha frente, curvou a cabeça singelamente e sorriu.

— Milorde.
— Balthazar! — ergui o tom de voz, fazendo-a ecoar por todo o
palácio. — Uma humana. A secretária deve ser uma humana. Não quero
caídos aqui para me bajular. — encostei as costas na cadeira e dei um longo
suspiro.

— Posso ser de grande ajuda, mestre. — a súcubo insistiu.

— Acha mesmo que vou enfiar meu pau em alguém que se relaciona
com humanos? — ergui minha sobrancelha direita e soltei uma risada
sarcástica. — Saia daqui antes que eu te mande para as profundezas do lago
de fogo e enxofre! — exclamei.

— Vossa Onipotência anda muito estressadinho, Milorde. — fez um


beicinho e deu as costas, parando na porta. — Nós, súcubos, suas fiéis servas,
jamais iremos permitir que uma humana sente-se ao seu lado. Seria
escandaloso que o Príncipe das Trevas se... Com a raça que mais odeia. Que
NÓS mais odiamos...

— Silêncio! — bradou Balthazar. — Agora vá logo, saia! —


voltando-se a mim, sorriu. — Imaginei que poderia ser útil ter alguém mais
capaz ao seu lado. Enganei-me, Milorde.

— Profundamente. — emendei.

— Com isso... Das sete sobram duas.

— Mande a próxima entrar.

— Sim, Milorde. — respondeu, desaparecendo no ar.

Se você queria me dar alguém útil, deveria ser minha secretária,


Balthazar. O máximo que elas, as súcubos, fariam seria me trazer desgraça.
Essa criatura repugnante faria de tudo para me controlar com sua aura sexual.

Demorou mais dessa vez, mas logo a moça entrou. Era baixa, magra,
muito magra. Rosto ossudo, cabelos negros e presos religiosamente. Unhas
sem cor, sobrancelhas grossas. A mulher estava vestida com uma túnica
branca.

Será que é uma freira?

— Sente-se, donzela. — indiquei com uma das mãos a cadeira a


minha frente.

— Prefiro que me chame de Cipriana, Irmã Cipriana, Milorde. —


ergui as sobrancelhas e ela abriu um sorriso astuto, como se soubesse quem
sou. Não demorou mais e se sentou. Cruzou as mãos e me encarou fixamente.

— Sobre a vaga...

— Ouvi dizer que nesta casa mora um poderoso demônio, Milorde. —


interrompeu-me passivamente, antes de aproximar o rosto e sussurrar: — Sou
uma exímia caçadora de demônios.

Abri um largo sorriso e não me contive. Gargalhei. Gargalhei tanto


que senti minha barriga doer. Lágrimas de risos escapavam por meus olhos,
enquanto eu tentava me recompor, mas era impossível ao ver a calma
estampada na face da Irmã Cipriana. Aquela quietude duraria quanto?

Depois de um tempo, engoli o riso e ajeitei minha gravata. Pisquei


algumas vezes, encarando-a e aproximei meu rosto, imitando sua voz entre
sussurros:

— Você está certa, irmã. Neste palácio mora o Rei dos Demônios! —
e por instantes, fiz toda biblioteca pegar fogo.

Tomada pelo medo, ela tropeçou para trás, caindo, levando a cadeira
junto. Ainda de quatro, correu feito um animal fugindo de um predador. Se
pudesse, talvez ela gritasse, mas tomei sua voz. Pela afronta, passaria o resto
dos dias de vida como uma muda.

Caçadoras de demônios? Desde quando um mortal mata um demônio?


Somos imortais. Um imortal só pode ser morto por outro imortal. E nessa
guerra, anjos e demônios se matam todos os dias por causa de vocês, seres
inferiores.

Balthazar pigarreou, escorado no batente da porta, com os braços


cruzados.

— Imaginei que seria divertido. — riu. Sorri de volta. — Acho que


nem preciso mandar a última moça entrar. Vou dispensá-la. — balançou a
cabeça.

— Onde estão os modos, Balt?

— Seu melhor amigo precisa de formalidades para falar com Vossa


Onipotência? — ironizou usando as palavra da súcubo.

— Jamais será necessário. — levantei-me e, num piscar de olhos,


parei ao seu lado, dando-lhe tapinhas nas costas. — Você não é só meu
amigo. É meu irmão. — passei por ele, atravessando um pequeno corredor
antes de seguir para o grande hall.

— Por aí não... — ele pediu, mas era tarde. Meus olhos e os dela já
haviam se cruzado e no momento em que ela me viu, se pôs de pé. — Não
quero que olhos curiosos o vejam, Milorde...

Olhos grandes, cor de amêndoa. Lábios bem desenhados e vermelhos,


mesmo sem batom. Salto alto, vestindo-se como uma executiva com o cabelo
preso em coque. O corpo repleto de curvas. Os cabelos e sobrancelha eram
negros, mas os cílios...

— Milorde. — a voz suave fez meu coração palpitar.

Precipitei-me em sua direção e tomei sua mão, beijando-a. Ergui meu


rosto e a encarei nos olhos.

— Qual sua graça, donzela?

— Cinthia. Cinthia de Bragança Albuquerque. — respondeu, não


muito graciosamente como antes. Parecia haver receio em dizer tal nome.
— Milorde, não se incomode. Em instantes vou resolver tudo... —
recompus-me e ergui o indicador para Balthazar, que se pôs em silêncio.

— Não será necessário. Conduzirei a senhorita Bragança para a


entrevista. — disse sem tirar os olhos dela.

Como pode haver uma mulher tão bela entre os homens? Isso... Isso...
Isso deveria ser um crime! Sacudi a cabeça e sorri novamente.

— Por favor, donzela. — indiquei com a mão.

Seguimos para o pequeno corredor e entramos na biblioteca. Ela


primeiro e eu logo atrás, fechando as portas em seguida. Assim que nos
sentamos, o silêncio nos tomou. Trocamos outro breve olhar.

— Então... Fiquei sabendo que estão contratando funcionários e estou


aqui pela vaga de secretária...

Por que eu tenho a sensação de que conheço você? Quem é você?


Onde eu te vi? Quando? Quanto mais a observava, mais sentia uma sensação
acolhedora nos tomando, nos aproximando...

— Milorde? O senhor me ouviu? — ela ergueu as sobrancelhas.


Pisquei os olhos voltando a mim.

— Sim. Quer dizer, não. — tossi e sorri sem graça. — Quer dizer...
Mais ou menos... — ela riu.

— Quais serão as funções da vaga?

— Como pretendo expandir os negócios, você me acompanhará nas


viagens e em todos os outros eventos e coisas do tipo. — resumi.

Detalhes não são meu forte. Essas peculiaridades humanas ficam a


cargo de Balthazar.
— Coisas do tipo? — ergueu as sobrancelhas, parecendo não
entender.

— É... — procurei pela palavra correta, enquanto movimentava a mão


circularmente. — As funções de uma secretária.

— Ah sim. — Cinthia sorriu e acenou com a cabeça.

— Bom, então é isso. — dei por finalizada a entrevista.

— Só isso? — Cinthia pareceu desconfiada.

Balthazar surgiu na biblioteca, flutuando no ar, alto o suficiente para


não ser visto por Cinthia. Ele revirou os olhos e acenou com a mão para que
eu providenciasse algo rapidamente.

— A respeito da função é só isso. Agora, me conte um pouco sobre


você. Estuda? Família? Relacionamento?

— Passei a vida inteira na escola de garotas cristãs. Os meus pais


acharam que... — engasgou, engoliu e continuou. — Que fosse melhor assim.

— Algum motivo em particular? — havia receio em seus olhos. E


curiosidade nos meus.

— Não.

Mentira!

— Entendo. — abaixei a cabeça.

— Bom, os meus pais e eu temos uma boa relação... — outra mentira.


— Quer dizer, nos falamos pouco e às vezes vou vê-los. — agora é uma meia
mentira.

Os humanos são fáceis de decifrar. Os gestos, a fala, os movimentos.


Não consigo ler suas mentes, mas não é tão difícil imaginar o que ela estava
pensando. Por exemplo, nesse momento, ela provavelmente está avaliando se
engoli suas mentiras.

— Sobre o relacionamento. Bom, namorei uma única vez, mas não


deu certo. — foi direta.

— Ótimo. — bati as mãos em palmas uma vez e abri um largo


sorriso. Ela imediatamente riu em estranhamento. — Quer dizer... Ótimo por
não ter empecilhos. A função exige que a secretária resida aqui.

— Ah, isso não será um problema. Tive dificuldades no meu antigo


trabalho e acabei atrasando o aluguel. Fui despejada ontem. Tenho o prazo de
alguns dias para mudar e... — ao notar que eu a observava atentamente, ela
corou. — Perdão, Milorde. Não era minha intenção. Eu acabei deixando
escapar. Espero que não pense que sou uma pessoa irresponsável e que não
cumpre com seus deveres...

Ergui a mão e ela engoliu a fala.

— Balthazar. — o chamei e ele pousou no chão, causando uma leve


brisa que a fez olhar para trás. — Quite todas as contas da senhorita Cinthia.
Acompanhe-a em sua mudança e a traga em segurança para o palácio. —
ordenei.

— Sim, Milorde. — curvou a cabeça e indicou a saída para Cinthia.

Ela se levantou e estendeu a mão. Encolhi-me na cadeira. A mortal


quer me tocar? Ora, quanto atrevimento!

— Obrigada pela oportunidade, Milorde. — recuou a mão,


constrangida e, sem alongar a conversa, seguiu para o grande hall com
Balthazar segurando os risinhos.

Achou engraçado, verme? Semicerrei os olhos, comunicando-me com


ele por sinfonias de ar. Leves brisas que carregam sussurros.

Não sabe o quanto. Vou me policiar e não tentar apertar sua mão
também, Vossa Onipotência...

Passei o resto da tarde na biblioteca. Li alguns livros e, por fim, segui


para o desafio do dia. Computador portátil ou como chamam: notebook.

Dizem que a internet é a ferramenta mais poderosa do mundo nos dias


de hoje. Então, é claro que aprenderei a usá-la. Só não entendi ainda qual é
seu poder de destruição. Consigo ver notícias, vídeos, programas e tudo o que
eu quiser, inclusive inverdades sobre mim.

Desde quando eu tenho a pele vermelha e chifres? Que absurdo!


Pensam que eu sou o quê? Um animal? Um parasita mutante? Um unicórnio
banhado em sangue? Francamente!

E por mil demônios, o que é Facebook? Rede social? Eu não sou


sociável, nem um pouco. Contudo, eu quero me enfiar entre as pessoas,
então... Talvez, seja produtivo criar uma conta.

Que deprimente! O poderoso Lúcifer criando uma conta em uma rede


social de humanos. Eu deveria estar cuspindo fogo, causando desgraças,
aterrorizando o mundo, mas estou...
CAPÍTULO DOIS
POR CINTHIA

AINDA ANESTESIADA COM A beleza daquele homem, segui


para a entrada coberta, aguardando o senhor Balthazar. Apesar de mil ideias
vagarem alinhadamente, uma delas se destacava: Ele... Os seus olhos são tão
bonitos que parecem um céu limpo, sem nuvens. Os cabelos louro-escuros.
Ele me lembra alguém. Sinto como se lhe devesse minha vida, como se
tivesse uma dívida com ele.

Quem é esse homem? De onde ele veio? Qual é o seu nome? Apenas
sei que o chamam de Milorde e que é muito rico, mas ele tem um nome.
Todas as pessoas tem nome! E qual é o mistério desse palácio? Eu estava
tomando café quando Gi, minha melhor amiga, deu a notícia de que uma
mansão surgiu em um condomínio fechado. Para os céticos é apenas um
golpe de marketing da antiga construtora e responsável pela área. Para outros,
é um mistério. O fato é que ninguém sabe dizer o que aconteceu e se isso
envolve algum problema, não quero saber. Apenas preciso de um emprego,
preciso trabalhar e me manter. Agora que saí do... Enfim, não tenho ninguém.

— Srta. Bragança. — virei-me, dando de cara com Balthazar.


Respondi-lhe com um sorriso. É incrível como os homens dessa casa são
bonitos.

Balthazar tem olhos negros, lábios carnudos e pele morena. Os seus


cabelos são angelicalmente anelados e batem no pé da nuca. As suas
sobrancelhas, de tão perfeitas, fariam qualquer mulher focada em estética ir à
loucura. Assim como o patrão, seu corpo é, aparentemente, bem cuidado.

— Por gentileza, me passe seu endereço. — ele se aproximou com um


bloco de notas e uma caneta na mão.
Abri minha bolsa e peguei a conta de luz vencida e dei-lhe minha
localização. Expliquei basicamente como faríamos para chegar à minha
quitinete. Eles tinham um carro de luxo, mas eu não vi motorista. Se não me
engano, essa vaga estava em aberto na placa de “estamos contratando”.

— Vamos! — Balthazar estendeu a mão e assim que a toquei, uma


sensação nauseante me tomou. Senti minha cabeça girar, rodar, vi o mundo
passar em meus olhos. Quando tudo finalmente parou, estávamos na porta do
prédio. — A senhorita cochilou, mas chegamos em segurança. — ele sorriu.

Cochilei? Um estranhamento súbito me tomou, olhei para os lados e


não vi o carro. Havia poucas pessoas na rua e já estava anoitecendo. Por se
tratar de uma região periférica, perto da favela, muitos carros não passavam
por ali. Engoli em seco, piscando os olhos algumas vezes. Eu precisava
perguntar. Quer dizer, não sou descrente como as outras pessoas. Sempre vi
coisas, sempre...

— Sr. Balthazar... Onde está o...

— Estacionei em outro local. Com o perdão da palavra, aqui não me


parece muito... Hum... — interrompeu-me, abrindo um largo sorriso. —
Seguro.

Assenti, um pouco sem graça. Ele está certo. Onde estou com a
cabeça? Um carro daqueles aqui...

Tirei a chave da bolsa e entrei. Balthazar me acompanhou. Subimos


cinco andares de escadas. Eu estava destrancando a porta quando senti minha
mão tremular com o anúncio dela:

— Cinthia! Conseguiu o emprego? — ela saiu do quarto ao lado e


veio até mim. Ao se deparar com Balthazar abusou da indiscrição, como
sempre fazia. — Quem é esse gato? Ah, namorado novo? Estava na hora...

— É subordinado do meu chefe e meu chefe também. — expliquei


rapidamente, abrindo a porta.
Essa filha da puta quer me matar de vergonha?

Gi corou instantaneamente, desconcertada com seu furo gigantesco.


Balthazar nos encarava curioso. Por fim, seu belo sorriso quebrou a tensão do
momento.

— Obrigado pelo elogio, senhorita. — agradeceu, pegando sua mão e


beijando-a.

Nunca vi Gisele de Farias Mendonça tão vermelha como agora.


Mesmo porque ela nunca teve vergonha na cara!

— Vou dar uma volta. Acredito que vocês duas queiram conversar
um pouco... — Balthazar curvou-se em um gesto de educação e seguiu pelo
corredor.

Esse homem pode ter todos os defeitos, mas é um completo


cavalheiro. Sem sombra de dúvidas.

— Então... — Gi escorou-se no batente da porta. Entrei e ela me


seguiu. — O salário é bom?

— Ainda não falamos em salário, mas deve ser bom, pois aquela
mansão é um verdadeiro palácio... — apressei o passo, atravessando a
cozinha americana e entrando no quarto.

— É uma experiência inicial?

— Acho que sim.

— Como o dono é? Os jornais continuam noticiando que querem


entrevistá-lo, mas ele nem dá sinais de interesse... — jogou-se na minha cama
e, deitando-se de lado, apoiou o rosto no cotovelo.

Como ele é? Parei por instantes, analisando aquele homem com uma
beleza de outro mundo. Até que me toquei que não podia demorar.
— Ele é bonito... Muito bonito. — respondi de forma evasiva.

— Só bonito?

— Inspira poder. É um homem que você olha e realmente diz que é


poderoso, influente, muito rico e que, se quisesse... — meus olhos foram
longe e por instantes o vi no topo do mundo. — Poderia reinar sobre a terra...
— engoli em seco, sem saber como aquelas palavras saíram.

Gi gargalhou tanto que rolou na cama. Logo se sentou e me puxou


pelo braço.

— Está apaixonada por um homem que conheceu hoje?

— E-Eu? Está louca? Ele só é... — balancei a cabeça, desconcertada.


— Sinto como se ele me dominasse apenas com os olhos. É estranho...

— E isso em tão poucos minutos? — Gi ergueu as sobrancelhas e


gargalhou novamente. — Acho que o cupido andou rondando você.

— Pare com isso! Balthazar pode estar escutando atrás da porta... —


repreendi Gi entre sussurros.

— E estou! — ele berrou.

A voz ao longe chegou ao quarto, fazendo meu coração saltar pela


boca, enquanto Gi cobria o rosto com o travesseiro, gargalhando ainda mais.

Senti meu rosto arder. Que primeira impressão estou causando e como
diabos ele está nos ouvindo dessa distância?

Não sei. É tão estranho. É tanta coisa estranha. Sinto como se


fossemos grandes amigos, sinto como se Milorde me conhecesse melhor do
que eu mesma.

Gi finalmente se recompôs, enxugando as lágrimas de risos.


Levantou-se e me deu um forte abraço.

— Vou sentir sua falta. Não brigue comigo. Achei que com piadas a
despedida fosse doer menos... — ela lamentou, dando um longo suspiro.

— Ah, amiga. Eu virei te visitar e acho que você pode ir me ver


também...

— Sim, ela pode. — Balthazar berrou novamente, fazendo-nos olhar


uma para a cara da outra.

Dessa vez, caímos juntas na risada.

Assim que terminamos de organizar as malas seguimos para fora,


onde fomos recepcionadas pela dona do local.

Olhos grandes, corpo sem pescoço, cabelos com bobs e um vestidão


de flores. Quando me viu, pigarreou e estendeu a mão.

— Se está indo embora, pague o aluguel.

Engoli em seco. Olhei para os dois lados e não encontrei Balthazar.


Onde ele foi? Ele pagaria minhas despesas, não é? Foi isso que Milorde
ordenou.

— O meu acompanhante estava aqui...

— Vou chamar a polícia. Você não vai me dar nenhum calote,


garotinha! — disse com rispidez. O meu coração gelou, senti meu rosto arder
de vergonha, assim como meus olhos, que insistiam em dar sinais de chuva.

— Não será necessário, Madame. — Balthazar surgiu do nada no fim


do corredor, sem tirar os olhos da janela, aparentemente, olhando algo do
lado de fora.

— E quem é você?
— A mão direita do Príncipe. — virou-se com um largo sorriso e
caminhou até Dona Marisa. Parou em sua frente e enfiou uma das mãos no
bolso, retirando um bolo de notas. — Espero que isso cubra as despesas da
senhorita Cinthia. O que sobrar deve ser usado para cobrir as despesas de
locação da senhorita Gi.

— Isso é falso? Quanto tem aqui?

— Dez mil.

— D-D-Dez mil? — Dona Marisa gaguejou arregalando os olhos,


começando a contar nota por nota, até que por fim, concluiu: — Está correto.
Vou retirar quatro mil para as despesas da Cinthia e o restante cobrirá os seus
futuros vencimentos, Gisele. — determinou e sem mais delongas, nos deu as
costas.

— O meu aluguel não era isso tudo... Era bem menos... — disse com
voz fraca, de cabeça baixa.

— Não se preocupe senhorita Cinthia, Milorde não irá descontar do


seu salário. — disse Balthazar, enchendo o peito de ar e tornando a olhar para
a mesma janela.

— Viu algo estranho lá fora? — Gi perguntou. Ela também havia


notado. Ele estava vidrado em olhar algo lá embaixo.

— Defina estranho, Madame Gi. — Balthazar a encarou fixamente,


fazendo-a hesitar. Por fim, sorriu e me encarou. — Podemos ir?

— Sim, senhor. — entreguei-lhe algumas malas e abracei Gisele


contra meu corpo. Olhei em seus olhos e sorri. — Assim que puder venho te
ver, ok?

— Não deixe aquele homem irresistível te prender, nem te domar... —


ela sussurrou em minha orelha, me fazendo corar.

Se Balthazar conseguia nos ouvir à distância, perto assim...


Discretamente o procurei com os olhos, mas ele sumiu! De novo!

Ignorei aquilo.

— Palhaça! Prometo lhe pagar tudo que devo assim que...

— O que você me deve? — ela me interrompeu, negando com a


cabeça. — Tenho seis mil de aluguel pago graças a você. Estamos quites. —
piscou para mim.

Dei um longo suspiro e peguei uma última bagagem. Puxei sua alça e
segui meu caminho. Olhei para trás e troquei um último sorriso com minha
amiga e desci os degraus. Balthazar, provavelmente, já havia descido e nem
notamos.

Assim que cheguei ao solo, o vi no portão principal e rumei em sua


direção. Novamente sua mão tocou meu pulso, dando margem à mesma
sensação angustiante de antes. Mas, dessa vez, durou mais. Muito mais.

[...]

— Ajoelhe-se, Cinthia! — minha mãe ordenou. Seus olhos escuros


faiscavam como fogo. Seu olhar carregava apreensão e medo.

— Por quê?

— Não questione. Apenas se ajoelhe. Vamos orar! — ela se ajoelhou


na beirada da cama e uniu as mãos religiosamente.

— Eu oro todas as noites, mamãe. — argumentei, ajoelhando-me ao


seu lado.

— Não é normal que crianças de dez anos saiam relatando por aqui
que foram salvas por demônios, muito menos pela origem do mal, Lúcifer. —
retrucou. A encarei e abaixei a cabeça. — Dois Pai Nosso e duas Ave Maria.
Entraremos em jejum de dois dias. Apenas água e pão...
— Mas mamãe...

— Comece!

As imagens aos poucos sumiam da minha mente e, como se estivesse


puxando fôlego para não me afogar, despertei.

Eu estava deitada em uma grande cama. O quarto era imenso, com


alguns móveis. A janela estava aberta, com a luz do luar atravessando-a para
tocar meu rosto, não fosse o homem que estava sentado em sua beirada,
encarando-me. Por segundos, vi seus olhos flamejarem.

— Você desmaiou, senhorita Cinthia. — firmei os olhos nele,


tentando reconhecê-lo, mas as sombras escondiam sua face. — Desculpe por
esse contratempo. Durma bem... Amanhã teremos um dia agitado...

Começamos amanhã? Mi-Mi-Milorde? Prontamente tentei me


levantar da cama, mas eu ainda estava tonta. Assim que meus pés tocaram o
chão, desmontei, sendo pega no ar por ele.

— Descanse. — ele sorriu, pondo-me na cama novamente. Algo em


meu interior reagiu, era como se... Borboletas voassem em meu estômago.

Tudo se apagou novamente.


CAPÍTULO TRÊS

JÁ HAVIA PASSADO DA MEIA NOITE e eu continuava a


admirar as estrelas, contando uma a uma. E pensar que já estive lá no alto,
admirando o universo. Todo ele.

— Aconteceu algo especial que esteja te fazendo pensar tanto, meu


amigo? — Balthazar uniu-se a mim na sacada do segundo andar com vista
para o jardim, ou para o céu estrelado. Depende de onde seus olhos estão
mirando.

— Então você resolveu por as formalidades de lado? — esbocei um


sorriso de canto, ignorando sua pergunta.

— Não gosta? Achei que fosse agradar lhe tratar dessa forma...

— Não quando o meu melhor amigo me trata feito um estranho. —


dei-lhe um tapa nas costas e subi a mão para o seu ombro, apertando-o. —
Isso de Milorde já estava me irritando.

— Ao menos os funcionários seguirão com essa formalidade.

— Sobre os funcionários... — abri um sorriso maldoso e o encarei. —


Como vão reagir quando eu me anunciar amanhã?

— Quando revelar que é Lúcifer? — Balthazar sorriu de volta. —


Talvez tenhamos que contratar novos...

Contive uma gargalhada sombria. Ah, aqueles rostinhos em pânico


são uma maravilha de se apreciar. Mal posso esperar para amanhecer...
Eu sei, eu sei. Isso parece fugir um pouco ao plano, mas não. Tudo foi
arquitetado minuciosamente. Consigo imaginar o burburinho da imprensa
quando os desertores saírem berrando que o residente desta magnífica e
imponente mansão é ninguém menos do que o próprio Lúcifer.

Essa será a primeira e grande batalha a ser vencida. Sem dúvida, já


ganhamos. Mas ainda é necessário vencer muitas batalhas para obter a vitória
na guerra.

Às oito horas em ponto todos estavam de pé. Balthazar reuniu os treze


funcionários no grande hall. Eles mantinham-se de cabeça erguida, em
completa disciplina, me aguardando dar-lhe as boas vindas e seguir com as
apresentações de praxe.

Desci a escada principal e parei embaixo do arco, fitando-os. Seis


homens e sete mulheres. Provavelmente eu não decoraria seus nomes. Na
verdade, sequer perguntaria. Exceto o dela...

Todos uniformizados e vestindo roupas sociais. Cinthia não se


diferenciava deles pelas roupas. Ela se diferenciava por ser...

Não sei. Ela só é diferente.

Balthazar pigarreou. Ele usava um terno como o meu. Preto fosco e


gravata xadrez, com sapatos marrons.

— Vossa Onipotência. — me olhou de soslaio. Contive um riso. — O


Arcanjo Caído, A estrela-da-manhã, O portador da maçã do Éden e Príncipe
das Trevas, Lúcifer. — ergui o queixo.

Os funcionários mantiveram-se imóveis, indiferentes ao anúncio.


Curvaram a cabeça e somente isso.

E o susto? E a gritaria? Onde está o horror? A loucura? Balthazar e eu


trocamos olhares. Um tanto decepcionado, concluí comigo mesmo: somente
os fortes devem permanecer!
Dei um longo suspiro e encarei o fato de que não havia outro jeito.
Segui à frente, posicionando-me próximo a eles e revelei-lhes os meus dois
grandes pares de asas: longas e grandes de penugem negra com as pontas das
penas douradas.

E agora, como vão reagir, escória?

Uma salva de palma veio deles. Exceto dela. Ela me encarava curiosa,
analisando-me cautelosamente.

— Perdão, Milorde. — uma mulher baixa e de cabelos encaracolados


curvou-se e deu um passo a frente. — Me permite? — acenei com dois
dedos. — Vossa Onipotência é um grande mestre de mágica.

— Mestre de mágica? — não escondi o estranhamento em meu rosto.

Eles acham que você é um mágico, que faz truques. Balthazar me


enviou sinfonias no ar.

— Oh! — sorri e aproximei-me da funcionária e, ao tocar o indicador


em sua testa, a fiz pegar fogo dos pés à cabeça, sem queimar. Voltando meus
olhos aos outros, fiz o mesmo. — Não sou um mágico, sou um Arcanjo e é
bom que saibam para quem e no que estarão trabalhando.

— No que estamos trabalhando, Milorde? — Cinthia perguntou.

Finalmente. Alguém com interesse em meus planos.

Num bater de asas que fez todo o grande hall tremer e farfalhar os
candelabros, pousei em cima do arco da escada, cruzando as pernas.

— Voltei à Terra para conquistar o mundo. — abri um sorriso de


canto e, teatralmente, como seria feito em uma peça, fiz tudo levitar dentro da
sala, inclusive eles. Estiquei a mão aberta, fazendo-a pegar fogo e então
apertei o punho. — Querberus! — o chamei.

Agora eles não estão mais rindo. Vejam só esses rostinhos em pânico.
Que mágico do mundo faz isso, seus vermes? Não sou um mágico, sou o Rei
dos Demônios!

Um tremor de terra abalou o palacete. Nas escadas, debaixo do arco,


materializou-se um portal. O primeiro portão do inferno. O portão onde
dorme meu estimado general, meu doce animalzinho.

Com um estalo de dedos, todos pousaram no chão desajeitadamente,


mas não ela. Fiz questão de que ela pousasse como uma pluma.

Eles não tiveram tempo para se recomporem, um enorme cão de três


cabeças atravessou o portão. O corpo musculoso, grandes patas e um rabo
com cabeça de serpente. O guardião dos meus portões. A punição dos
invasores.

Os que estavam na minha frente tremeram e temeram por suas vidas.


E no grande hall não sobrou nenhum, exceto ela, que olhava o animal com
admiração.

— Pensei que faria algo menos... — Balthazar sorriu e gesticulou com


a mão. — Esplendoroso.

— Ah, isso não foi nada e você sabe. — trocamos sorrisos. — Só


achei ofensivo ser chamado de mágico...

A minha atenção voltou-se a Cinthia, que permanecia de pé,


anestesiada com a imagem bestial em sua frente, mas não dava indícios de
medo. O que me intrigava ainda mais.

— Vejo você em meus sonhos... — sussurrou para Querberus, que se


deitou no chão, abanando o rabo como um bicho de estimação.

— Ela o vê nos sonhos? — Balthazar exclamou, curioso.

Já eu tomei tamanho susto que caí para trás, descendo a escada como
uma bola, rolando.
— Você o vê nos sonhos? — perguntei espantado. — E como não
morreu? — não escondi a estranheza.

Querberus tem poderes fabulosos, caso contrário não seria um dos


meus generais. Ele pode visitar os sonhos dos mortais e dos imortais, caídos
ou não. Entretanto, em todos esses milênios de vida, nunca ouvi dizer que
alguém escapou do seu julgamento.

— Interessante... — Balthazar levou os dedos ao queixo, analisando a


situação.

— O que é interessante?

— Ela não tem medo dele e ele não é hostil com ela...

Cinthia parecia não estar nos ouvindo. Ela já havia se aproximado e


agora, ajoelhada no chão, deslizava suas delicadas mãos por cada uma de
suas três cabeças, distribuindo sorrisos, como se estivesse reencontrando um
grande amigo.

— Essa situação é inédita...

— É estranho... — franzi a testa, encolhendo o corpo para trás.

— Você dizendo que algo é estranho? — Balthazar gargalhou.

— Eu o conheci na escola de garotas cristãs... — Cinthia finalmente


explicou-se.

É isso que ela tem a dizer? E nossas asas? E o fato de sermos


demônios? Ela não vai gritar? Fugir? Ela ao menos notou isso? Que mulher...
Diferente!

— Tornamo-nos bons amigos. — ela sorriu. — Passei por muitos


castigos, inclusive fome, por dizer coisas que não deveria, mas Querberus me
levava comida e me fazia companhia.
O guardião do inferno domado por uma humana. Querberus, você é
uma desonra para os demônios e para as bestas infernais. Como ousa se
envolver com uma humana sem o aval do seu mestre?

— Você não se lembra dessa garota? Em algum momento da sua


vida? — Balthazar encarou-me.

Não! Era mais que uma pergunta, era uma transmissão. Ele insinuou
que eu a conhecia.

— Está dizendo que me envolvi com uma mortal? — arregalei os


olhos, deixando minha fúria transparecer neles.

— Estou.

— Verme maldito! — urrei, fazendo as chamas cobrirem toda a


mansão.

— Ora, não se faça de desentendido. Desde que ela chegou,


conquistou seu fascínio. — murchei com sua acusação. — Não sei ao certo,
mas acredito que há algo ligando vocês dois.

Unindo nós dois? Eu e a mortal? Heresia!

A inquietação me tomava ao observar aquela cena. Querberus deveria


obedecer apenas a mim. Nenhum outro demônio foi capaz de lhe tocar. Nem
mesmo Balthazar. Por que a mortal pode? Logo uma mortal?

E essa conversa de “termos laços”. Isso é...

— Donzela... — aproximei-me dela, sorrindo. Querberus voltou seus


olhos amarelos e brilhantes a mim, parecendo interessado no que eu iria
dizer. — Há algum desejo de sua parte para com o mundo?

— Sim, Milorde. — ela sorriu.

Sorri de volta e encarei Balthazar.


— Viu só? — soquei minha mão, empolgado. — É isso que nos une.
A vontade de dominar o mundo pelo poder...

— Do amor. — ela completou a frase me fazendo arregalar os olhos.

Balthazar e Querberus gargalharam tanto que fizeram o palácio


tilintar.

— Do amor? — reproduzi em total decepção. — Argh!

Balancei a cabeça decepcionado e acenei para eles, precipitando-me


em direção às escadas. Como alguém pode querer conquistar o mundo pelo
poder do amor? Isso é... RIDÍCULO!

E pensar que você cativou minha atenção desde o começo, sua


traiçoeira! Não lhe darei mais brechas, não serei bom, nem compassivo.
Agora lhe tratarei com fogo e espada!

Entrei em meus aposentos e joguei-me na cama. A única funcionária


que me sobrou e não me temeu, sabe-se lá o motivo, quer conquistar o mundo
com amor...

— Seja paciente, Lu. — Balthazar surgiu ao meu lado na cama,


encarando-me fixamente. — Ao menos não vamos precisar fazer a seletiva
para uma nova secretária. E o nosso plano deu certo.

— Não era bem esse tipo de pessoa que eu esperava recrutar para a
mansão... — expus minha insatisfação.

— De que tipo está falando? Do tipo que recebe ordens e faz o que
você quer? Ah, sem dúvida ela não é assim...

— Também, mas... Eu queria alguém com nossos ideais. — cerrei o


punho no ar. — Com nossas ambições e desejos... — ergui o tom de voz, na
entonação de um discurso.
— Então devo mandar Cinthia embora. — ele se levantou da cama
bruscamente, seguindo em passos lentos até a porta. — Posso fazer, Milorde?

Cinthia Bragança de Albuquerque, quem é você? Nunca imaginei que


uma mulher entre os mortais fosse me despertar... Interesse e curiosidade. O
que você quer? Qual é sua missão?

— Não.

— Ahá! — saltou para trás, apontando os dedos em minha direção. —


Eu disse, eu disse que você está fascin...

— Não se atreva! — o cortei.

Sentei-me na beirada da cama e passei ambas as mãos pelos cabelos,


dando um longo suspiro. E antes de entrar em questões cujas respostas ainda
não sabia, desconversei.

— Sobre o plano...?

— Os doze funcionários saíram apavorados pelo portão, mas um


deles, aquela mulher que recebeu seu toque, ela está falando com os
repórteres neste exato momento...

Ah, a portadora da mensagem... Regozijei-me com aquilo.

— E o que está dizendo?

Balthazar seguiu até uma das janelas do meu quarto, afinou os olhos e
observou além do portão. Através dos seus olhos vi e por seus ouvidos, ouvi.

“... Então ele se revelou como... como... como Lúcifer, o portador da


maçã do Éden. Não acreditamos. Pareciam ser truques de mágica, mas ele
ficou furioso, enraivecido. Vi seus olhos faiscarem e no segundo seguinte, ele
abriu dois grandes pares de asas e um cão bestial saiu de um grande portão
que surgiu na sala. O cão do inferno tinha três cabeças... três cabeças...” —
contou de forma apreensiva, entre sussurros.
O burburinho da mídia aumentou. Pessoas correndo de um lado a
outro, tentando registrar aqueles momentos que pareciam cruciais. Os
jornalistas inquietos disputavam para falar com ela. Até ofereciam dinheiro.

“O seu porta-voz é Balthazar. Ele também é um demônio, sei que é, e


se refere ao chefe como Milorde, Vossa Onipotência. Que Deus me perdoe
por isso, mas eu não sabia quem ele era. Achei que fosse um Lorde, um
Príncipe vindo de outro país... Por isso acabei me referindo a ele assim, mas
se eu soubesse... se eu soubesse... Perdoe-me Deus! Perdoe-me!” — dirigia-
se a outra repórter agora, ao fim da explicação balançando a cabeça
negativamente, com os olhos mirando o céu.

Obediente como esperado. Soltei os braços abertos e caí de costas na


cama.

— A primeira vitória.

— A primeira de muitas, Milorde. — Balthazar voltou-se a mim. —


Querem entrevistá-lo. E também querem provas de que é quem diz ser...

— Humanos! Céticos como sempre, não é à toa que foram


abandonados. Se for preciso ver para crer, é sinal de que não há fé. — dei de
ombros.

— A fé é um dom a ser despertado. Ninguém nasce com ela, Milorde.


— Balthazar ponderou.

— Vá lá e diga que não estou disposto aos holofotes no momento,


MAS... — ergui o indicador. — Nos próximos dias lhes darei uma prova de
quem sou.

Balthazar balançou a cabeça e desapareceu no ar. Pelos gritos


histéricos, ele surgiu no meio da multidão, do nada, com as grandes asas
abertas, desligando todo o tipo de tecnologia ao seu redor; a palavra deveria
ser repassada de boca em boca. Quase gargalhei, não fossem meus
pensamentos ainda vagarem naquela mulher...
O seu cheiro continuava impregnado em minhas narinas. Um cheiro
doce, suave e suficientemente forte para me fazer sentir seu sabor na boca,
mas eu ainda não conseguia distinguir o que era.

Novamente me pergunto: Quem é você, Cinthia Bragança de


Albuquerque? O que está pensando neste exato momento?
CAPÍTULO QUATRO
POR CINTHIA

BALTHAZAR PIGARREOU. ELE USAVA um terno idêntico ao


do nosso senhor: preto fosco e gravata xadrez, com sapatos marrons.

— Vossa Onipotência, o Arcanjo Caído, A estrela-da-manhã, O


portador da maçã do Éden e Príncipe das Trevas, Lúcifer. — Milorde ergueu
o queixo, emanando a imponência de um rei.

Acompanhei os outros e me curvei em sinal de respeito. Só depois de


vários segundos que me dei conta do que ouvi.

Lúcifer? Ele está dizendo que é Lúcifer?

O primeiro truque. Ele, de alguma forma, conseguiu materializar dois


grandes pares de asas nas costas. Já vi coisa parecida na TV. Mas as suas
pareciam tão reais...

Não, não pode ser ele... Isso é impossível... De todos os lugares do


mundo, aqui? Por quê?

O segundo truque. Quando Sarah aproximou-se para elogiá-lo, ela


queimou dos pés à cabeça. O fogo se alastrou, temi e tremi. Clamei a Deus.
Senti meu corpo em chamas, mas não queimei, nenhum de nós queimou,
mesmo cobertos de fogo vivo.

Não! Definitivamente você não é ele! É só mais um charlatão que se


intitula como Lúcifer, mas seu fogo não é capaz de queimar. Isso é outro
truque de mágica!
Sua atuação digna de Hollywood não cessou. Com um largo sorriso,
ele seguiu.

— Não sou um mágico, sou um Arcanjo e é bom que saibam para


quem e no que estão trabalhando. — sorriu ao fim das palavras.

— No que estamos trabalhando, Milorde? — entrei em seu jogo.

Por instantes, tive a impressão de que ele sorriu com satisfação para
mim, aprovando meu questionamento. Com um impulso, bateu as asas e tudo
tremeu. O vento cortou o ar fazendo o palacete ranger como se estivesse
sendo arrancado do chão. Milorde pousou em cima do arco da escada e com
uma voz poderosa, diferente da música suave que costumeiramente saía de
sua boca, bradou:

— Voltei à Terra para conquistar o mundo. — sorriu e, em um piscar


de olhos, todos nós fomos erguidos do chão. Isso é possível? Algum truque é
capaz de fazer isso? Levei ambas as mãos à boca, o meu estômago começava
a se revirar e pensei em gritar, mas então ouvi aquele nome incomum:
Querberus!

Ao meu redor, tudo parou.

[...]

— Não diga bobagens, garota. — irmã Adelaide apertou meu rosto,


cravando suas unhas em minhas bochechas. — Você tem o mal dentro de si e
não irá contaminar nenhuma das outras meninas!

— Eu não estou mentindo... — esforcei-me para responder. Era difícil


mover a boca com tanta força pressionando meu maxilar.

Novamente fui trancafiada em um quarto escuro, sem móveis. Eu já


havia me acostumado a passar dias comendo apenas pão seco e tomando
água. Aquilo não me incomodava, não mais. Passei pelo mesmo em casa. A
única coisa que me afligia era a solidão. Eu detestava ficar sozinha, sem ter
com quem conversar ou apenas ficar encarando, só para ter a sensação de
alguém estar ao meu lado, mesmo que em silêncio.

Então, na terceira vez, aconteceu. Nunca chorei, nunca fui de chorar.


Não depois que minha mãe me enfiou nesse lugar. Três camundongos sempre
passavam por debaixo da porta. O maior e gorducho chamei de Crisselda, o
nome da minha mãe. Nomeei o acinzentado de Rogério, nome do meu pai. O
mais miúdo chamei de Fedor, pois seria o meu irmão. Não é o nome dele,
mas depois de contar a todos o que lhe contei, era merecido.

Se ele não tivesse contado... Se ele tivesse ficado de boca fechada...

— Pelo visto você achou um grande pedaço hoje, Fedor. — eu disse


em voz baixa, encolhida em um canto com as costas na parede e o joelho no
peito. Eu sempre os observava entrando e saindo do buraco na parede.

Era sempre assim, eu falava e eles ouviam. Não era como uma
pessoa, mas era melhor do que nada.

Contudo, naquela noite obtive uma resposta.

— Pequena Cinthia, você está entediada? — senti um arrepio correr


por minha pele.

E-E-Ele falou?

Receei em responder. Firmei meus olhos nele, piscando algumas


vezes. Apesar de estar escuro, a grande janela no alto do quarto dava
passagem à luz da lua, não me deixando em um breu absoluto.

— Você falou comigo? — perguntei incrédula.

— Ele não. Eu. — rapidamente captei de onde vinha a mensagem. O


meu corpo inteiro tremeu.

Eu estava com medo, paralisada de medo, mas eu precisava ver o que,


ou quem, estava ali dentro comigo. Movi a cabeça roboticamente contra sua
vontade e vi um enorme vulto. Era um cão de três cabeças, sentado. Assim
que levei as mãos à boca para impedir um grito, ele falou novamente.

— Não tema. Estou aqui para ajudar. — disse e, com um dos


focinhos, empurrou uma cesta repleta de alimentos.

Ajudar? Uma fera de três cabeças capaz de me engolir quer me


ajudar? E-E-Eu estou ficando louca? Não há outra explicação. A minha mãe
deve estar certa. Estou ficando louca, vendo coisas.

Balancei a cabeça negativamente para afastar aqueles pensamentos,


aquelas imagens e, fechando os olhos com força, contei até dez. Assim que
eu os abrisse, ele não estaria mais lá. Assim que eu... Um, dois... Oito, nove,
dez!

Minhas pálpebras tremularam. Ele não vai estar lá. É fruto da minha
imaginação. É fruta da minha... Ao abrir os olhos, vi que não era fruto da
minha cabeça, era real.

— Coma, pequena, logo vai esfriar. — insistiu, deitando as cabeças


sobre as patas dianteiras, encarando-me.

— P-P-Por que está aqui? — gaguejei, engolindo em seco.

— Porque você é a remissão de alguém que brilhou tão forte como o


Sol. A sua tarefa é trazer luz às sombras e a minha é garantir que você chegue
viva até lá. — bufou. Senti um ar quente atingir meu rosto. — Agora coma
ou nesse ritmo você não terá forças para se levantar...

Remissão? Alguém que brilhou tão forte com o Sol? Do que essa...
COISA está falando?

A minha barriga estava roncando de fome. Por mais insana que fosse
a ideia, naquele momento ignorei tudo e peguei a cesta com alimentos,
saciando-me por completo.

[...]
Ao acordar, eu estava em minha cama. A minha cabeça latejava um
pouco. Por frações de segundos, juro que o vi deitado sobre as patas
dianteiras, me vigiando durante o sono.

O que há de errado comigo? Por que voltei a ver essas coisas? Tem
tanto tempo que ele não vem e agora, do nada, ele surge na minha cabeça?

“Você é a remissão de alguém que brilhou tão forte como o Sol”.


Aquela frase. O que essas palavras significam?

Sentei-me na cama, esfregando os olhos. Abaixei a cabeça. Quando a


ergui novamente, vi sapatos marrons. Ergui um pouco mais e dei de cara com
Balthazar.

— A senhorita se atrasou para a reunião dos funcionários... — ele


disse.

— Mil perdões. Não foi minha intenção. Eu... — eu queria dizer que
fui à reunião, mas tudo parecia ser fruto da minha imaginação, nada mais.
Forcei um sorriso. — Eu tive um sonho estranho...

— E que tipo de sonho foi?

— Sonhei que Milorde se anunciou como Lúcifer. — sorri sem graça,


um pouco envergonhada. — E também me vi conversando com Querberus...
— Balthazar contraiu as bochechas e balançou a cabeça. — E-E-Eu disse que
era estranho...

— Foi apenas um sonho. Por favor, se apronte. Milorde quer dar uma
volta pela capital. Vou permanecer na mansão resolvendo alguns assuntos
delicados e você irá acompanhá-lo. — informou-me, curvou a cabeça e
deixou o quarto.

Só um sonho, não é? Disse a mim mesma, tentando me convencer de


que aquilo não tinha sido real...

Aprontei-me rapidamente. Um longo vestido, salto alto e cabelos


presos. Não era bem o que eu tinha em mente, mas boa parte das minhas
roupas sumiu. Dei um longo suspiro, passei a mão pelo vestido e me admirei
em frente ao espelho.

— Espera... — firmei meus olhos em minha imagem. — Esse vestido


não é meu... Eu não tenho vestidos negros.

Por instantes, parei.

O que está acontecendo aqui? Tem algo errado com esse lugar, com
essas pessoas. Aqueles dois são tão estranhos...

Balancei a cabeça negativamente.

— Chega de ideias surreais, Cinthia. Você precisa desse emprego!

Ergui o queixo e enchi o peito de ar. Peguei uma bolsa de mão e segui
ao encontro do meu senhor. Ao apontar na escada, ouvi vozes na antecâmara.
Atravessei o grande hall e ao aproximar-me da porta, parei subitamente
quando o ouvi.

— Acha prudente me fazer esperar, senhorita Cinthia? — sua voz


grossa ecoou. Senti meu corpo tremer. A porta estava fechada, então, como?
Pensei em abrir a boca para responder, mas... — Está pronta? Entre.

Engoli em seco e empurrei a porta. Ele estava de costas para mim


quando entrei. Balthazar me olhou de cima a baixo e sorriu, curvou-se e
disparou.

— Permite-me? — aproximou-se.

— S-Sim.

Ele me rodeou e mexeu em meus cabelos, soltando-os do coque.


Encarou-me mais uma vez e afastou-se.

— Agora temos uma verdadeira donzela. — acenou com a cabeça. —


Você está muito bonita, mas há muitos anjos de extrema beleza e... —
Milorde acenava com dois dedos, atravessando a antecâmara e em um breve
momento, nossos olhos se cruzaram e ele parou.

Suas bolas oculares foram implacáveis. Fixaram-se em mim e eu senti


um peso imenso me tomar. Minhas bochechas coraram, meu corpo se ouriçou
e inexplicavelmente, quando mexi uma das pernas para frente, o vestido se
abriu no meio dela, quebrando o clímax.

— Rasgou? — perguntei a mim mesma, começando a entrar em


desespero. O vestido nem é meu!

— Esse é o modelo do vestido, senhorita. — Balthazar me respondeu,


fazendo-me engolir em seco.

— Acho impróprio para sair. — contestei e ao ver o espanto


estampado na face de Balthazar, me senti na obrigação de explicar. Homens
nunca entendem esse tipo de situação. — Quero dizer que não me sinto
confortável com esse vestido...

Balthazar levou o indicador ao queixo e pensou, parecendo estar


deduzindo alguma coisa.

— Te constrange? — tombou a cabeça para o lado e ao me ver


ruborizar, acenou com a cabeça. — Bom, sendo assim, vou lhe comprar
roupas mais.... Menos ousadas. — curvou-se e saiu da antecâmara.

Apenas nós dois naquela sala. Engoli em seco. Eu sabia que seus
olhos estavam fixos em mim. Não quero olhar em seus olhos, não quero que
ele me olhe vestida assim. Dei um longo suspiro e abaixei a cabeça, enquanto
seus passos aproximavam-se pouco a pouco.
CAPÍTULO CINCO

COMO PODE UMA HUMANA TER tamanha beleza? Maldito


Balthazar! Ele deu a ela esse vestido de propósito! Vou esfolá-lo, vou picá-lo
e jogá-lo às pestes verminoides comedoras de defuntos. Eu proferia ameaças
em pensamento, mas meus olhos estavam fixos nela, que desviou o rosto do
meu. O meu desejo se contrapunha a minha razão. Eu deveria me retirar dali,
mas minhas pernas seguiam em passos lentos na sua direção.

Não toque na mortal. Não toque na mortal. Não toque na mortal.


Você veio do puro fogo e caiu por conta destas pragas... Não se atreva! Não
se atreva...

Parei em sua frente. Com a ponta dos dedos ergui seu queixo e nos
encontramos mais uma vez. Deslizei uma de minhas mãos por sua cintura e a
puxei contra meu corpo, colando seu busto ao meu peitoral, deixando nossos
lábios próximos.

Em outra ocasião eu diria que sou irresistível, mas essa mulher, essa
humana... Também é.

De repente, afastei-me um pouco, o suficiente para me curvar e


estender-lhe uma das mãos.

— Concede-me uma dança?

— E-E-Eu acho que não deveríamos...

Mal ouvi suas palavras. Tomei-a novamente nos braços e, segurando


sua mão no alto, a fiz girar; seus cabelos voaram, seu vestido circulou e ao
parar, tropeçou, colando seu corpo novamente ao meu.
Ela nem deve ter notado, mas já não estávamos na antecâmara. A arca
de casamento, costumeiramente repleta de cadeiras, com seus grandes lustres
cintilantes enfeitando a estrutura arquitetônica, estava vazia. Apenas as velas
dos incontáveis candelabros espalhados por todos os cantos iluminavam
nossas sombras dançantes, em meio à sinfonia delirante do piano sinfônico.

Ao som do coro, não resisti a minha impulsividade:

— Fui eu quem nasceu do mais puro e belo fogo, divindade entre os


mortais e mais... — cantarolei, puxando-a pela cintura novamente, fazendo
seu quadril se chocar ao meu e, abrindo um pequeno sorriso, prossegui: — Eu
causei a grande guerra, lutei pela minha terra, e voltei... — fiz uma pausa
dramática e concluí o primeiro verso. — Para reinar!

Soltei suas mãos e comecei a rodeá-la em passos sincronizados, de


braços abertos e gargalhando ao entoar aquela canção que há muito não
cantava.

— Os portões do grande inferno em breve serão abertos e a


humanidade... — precipitei-me até ela e ajoelhei-me em sua frente, segurando
uma de suas mãos. — Vou dominar. — fiz minha voz ecoar por todo o
palacete, por fim, beijando as costas de sua mão.

Coloquei-me de pé. Sinto que estou hipnotizado e sei que ela também.
Sei que esse é o momento. Talvez eu devesse... Meus pensamentos foram
interrompidos com uma fresta de luz que nos acertou. A lua. Ah, grande e
brilhosa lua, planeta santo, tu abençoas esta união?

Nossos lábios cada vez mais próximos. Nossos corpos em chamas


ardentes. Nossos corações palpitando com força. Sua boca clamando a
minha...

— Milorde? — ela me advertiu com voz trêmula.

— Tem medo de mim, Donzela?


— Não! — respondeu imediatamente. — Não é isso... É só que...

Suavemente tombei seu corpo para trás, segurando-a pela nuca e, com
meus dedos afagando seus cabelos, silenciei seus lábios.

Maçã. Sua boca tem o mesmo sabor do fruto proibido. Tão palpável e
saborosa; tão suave e intensa. Por segundos, nossas línguas se encontraram e
dançaram como dançávamos antes.

Então...

Imagens de uma criança orando por mim vieram a minha mente.


Empurramo-nos, zonzos, e afastamo-nos. Ela assustada e eu também.

— O que foi isso?

— N-N-Não sei, Milorde... — respondeu trêmula e antes que eu


pudesse dizer alguma coisa, Cinthia agarrou a barra do vestido e lançou-se
para a saída às pressas. Os longos cabelos esvoaçando sumiram do meu
campo de visão.

— O que acabou de acontecer aqui? — perguntei a mim mesmo.

— Eu diria que aconteceu o que todos que presenciassem o ato


diriam... — Balthazar comentou, virei-me para trás e lá estava ele, sentado
em uma cadeira, encarando-me. Fechei o cenho e ele ergueu as mãos. — Não
direi mais nada.

— Preciso meditar... — dei-lhe as costas e saí pisando duro. Nem eu


mesmo sabia o porquê, mas uma raiva incontida emanava de mim.

— Milorde? — Balthazar me chamou, parei antes de cruzar a saída e


voltei-me para trás. — Está destruindo o piso. — ele abriu um largo sorriso,
mostrando os dentes, em seguida, desapareceu.

— Maldito! — semicerrei os olhos.


Sei como essas coisas lhe dão prazer. Ah se sei! Balthazar adora me
ver intrigado com algo. Ele diz que sei tudo e que me orgulho disso, mas
quando não sei, usa tal artimanha para me provocar.

Dei um longo suspiro e me teletransportei para meus aposentos.


Retirei a gravata e joguei o blazer em cima de uma cadeira próxima da janela.
Em seguida, desabotoei os botões do pulso da camisa e a ergui até o bíceps.
Esfreguei o rosto e sentei-me na cama.

— Tente se lembrar... — murmurei, com cenas repetidas do ato


passando por minha mente. — Qual a relação de uma coisa com a outra? Por
quê?

Quanto mais eu vasculhava minha mente, menos encontrava. Quanto


menos eu encontrava, mais irritado ficava. Eu precisava saber o que
aconteceu com aquela criança que aparecia em meus sonhos. Por que eu a vi
quando beijei Cinthia? Isso pode ter acontecido em qualquer época e, levando
em conta minha última vinda à Terra, tem muitos séculos, mas... Não faz
sentido. Nada faz sentido aqui!

Joguei-me na cama, caindo de costas sobre as molas que rangeram.


Fechei os olhos e soquei o colchão.

— Quem é você? — soltei um urro de frustração.

Em frações de segundos a vi novamente.

[...]

— Deus, sei que ele fez coisas ruins, sei que dizem que ele é mal, mas
o perdoe. Ele é seu filho, ele é um arcanjo. A estrela-da-manhã. — a criança
estava ajoelhada com as mãos unidas religiosamente.

Eu estava lá, observando-a com atenção, curiosidade e fascínio. A


julgar pela situação, não era a primeira vez.

— Senhor, todo-poderoso, tu és infinito em misericórdia e amor.


Perdoai-o, Deus. Perdoai-o...

Surpreendi-me com aquelas palavras. Uma mortal, uma criança


mortal clamando o meu perdão? Pedindo minha remissão? Por quê? Logo eu
que arquitetei a queda dos homens, logo eu que os fadei à mortalidade...

Se Adão e Eva não tivessem caído, os seres-humanos não teriam


conhecido o pecado, uma vez assim, no jardim do Éden, teriam acesso
irrestrito ao fruto da vida eterna.

As ideias embaralharam-se novamente e me vi ajoelhado, segurando


uma criança morta nos braços. Senti meu peito arder e meu coração se
contrair dentro de mim, batendo com rapidez.

Ela está morta? Ela morreu? A criança morreu?

O cenário era outro. Agora estávamos em uma estrada de chão, havia


algumas pessoas ao redor de nós e eu a abraçava contra meu corpo. Os meus
olhos marejavam e minhas lágrimas caiam sobre seu corpo desfalecido.

E-E-Estou chorando por uma mortal?

Arregalei os olhos quebrando o vínculo das lembranças e, sem fôlego,


sentei-me na cama. A respiração ofegante e uma das mãos esfregando o
rosto.

Chorei por uma mortal? Eu?

Senti todo meu corpo tremer. Em que situação aquilo aconteceu?


Como aconteceu? Quando aconteceu? Perguntas sem resposta. Respostas que
tenho medo de conhecer.

O que estou dizendo? Medo? Logo eu sentindo medo? Por mil


demônios! O que está acontecendo comigo?

Estou muito cansado. Milênios e milênios trabalhando ardilosamente


sem um único momento de quietude. Talvez seja isso. É, com certeza é isso!
Excesso de trabalho!

— Pobre Lorde, anda tão confuso... — a voz feminina ecoou pelo


quarto, uma fumaça rosada movimentava-se de um lado a outro. — Eu posso
tirar seu cansaço... — materializou-se em minha frente:

Cabelos escuros em tom levemente esverdeado, um longo vestido


decotado sem nada por baixo. Os limites da seda mal cobriam os seios e
faziam questão de deixar todas as curvas expostas. Um “V” em cima no
decote e outro embaixo, exibindo as pernas. Rosto angelical, olhos claros,
lábios finos e escuros, assim como a auréola dos seios. A Rainha e mais bela
das súcubos.

— Kirel, acha mesmo que vai me seduzir? — ergui uma das


sobrancelhas, adotando uma expressão desgostosa.

— Te seduzir? De novo? Ah não, Milorde. Só acho que você está


carregado com energias sexuais e isso atrapalha o curso dos seus objetivos...
— sorriu e subiu em cima da cama, sentando-se atrás de mim e com a ponta
dos dedos, começou a massagear meus ombros.

Kirel e eu temos uma longa história. Já tivemos um... Como é que os


humanos chamam? Caso! Tivemos um caso por um longo tempo, mas
mulheres como ela são perigosas, muito perigosas. Caí na real a tempo de
evitar um desastre. Se seu plano tivesse dado certo, provavelmente hoje eu
seria um bonequinho de vodu em suas mãos.

Levantei-me, esfreguei o rosto e, sem encará-la, fui ao ponto.

— O que está fazendo aqui?

— No inferno não se fala em outra coisa. — saltou da cama, me


rodeando. — Lúcifer retomou o plano de conquistar a Terra... — abriu as
mãos no ar, dramatizando a situação.

— E você resolveu vir aqui para me dar apoio moral? — meu lábio
superior arqueou, em seguida bufei, em deboche.
— E há alguém mais capacitada que eu para estar ao seu lado na
glória? — parou em minha frente, ajeitando meu colarinho.

Segurei seus pulsos, tirando suas mãos de mim, aproximei meu rosto
do seu e sorri sem mostrar os dentes.

— Eu posso capacitar quem eu quiser, minha querida Kirel. Entende a


abrangência dessa frase?

— Ah, entendo...
Passei por ela e, em passos lentos, segui até a porta. Eu conseguia
ouvir seus dedos roçando uns nos outros. Ela estava furiosa, queria me dizer
algo. Assim que pus a mão na maçaneta, Kirel explodiu.

— Vergonhoso! — parei, ainda de costas. — Não acredito... Não


acredito. — disse repetidas vezes, contendo a raiva nas palavras ou ao menos
tentando. — Vai capacitar uma humana quando eu sou a mais capaz? Como
se atreve...

Virei-me a ela. Os meus olhos faiscavam, o meu corpo se incendiava


por dentro. O ar pesou e até o vento recusou-se a soprar naquela sala.

— As minhas decisões não estão sujeitas a ninguém, exceto a mim


mesmo. Agora, volte de onde veio antes que eu perca minha paciência. —
estiquei a mão para a cadeira e o blazer veio a mim, o vesti e dei de ombros,
atravessando a porta.

Mulheres... Uma vez com elas, acham que são nossas donas. Revirei
os olhos.

Certamente eu não veria Cinthia novamente, ao menos não essa noite.


Precipitei-me pelo corredor e apontei no topo da escada principal, encarando
de cima o grande hall completamente vazio. De onde estava, vasculhei a casa
buscando pela presença de Balthazar, mas não o encontrei. Contudo, havia
alguém na biblioteca.
Desci os degraus e dirigi-me ao paraíso terrestre. Ao abrir a porta,
deparei-me com Cinthia adormecida em uma grande cadeira estofada. A
cabeça tombada para o lado, os cabelos caídos sobre o rosto e o livro caído
no chão.

— Ao menos você tem um excelente gosto para lazer... — sorri de


canto e, ao me aproximar, inclinei-me para pegar o livro, virando-o para
saber de qual título se tratava. — Cinquenta Tons de Cinza... — franzi a testa,
contrariando o título. — Mas cinza tem mais que cinquenta tons!

Ignorei aquele fato e pus o livro em cima de um criado. Talvez eu


devesse ler um pouco disso que chamam de literatura de entretenimento.
Fugir um pouco aos rascunhos tediosos históricos que os homens traçam.

Ignorando o livro, fixei os olhos nela. O que você está escondendo de


mim? O que não me disse que eu preciso saber?

Eu poderia “ler” sua mente se mirasse seus olhos por instantes, no


entanto não saberia tudo, pois até para mim isso seria impossível, mas qual
graça teria? Será que você foi enviada como contrapeso na balança?

Perguntas e mais perguntas. As ignorei. Eu não poderia deixá-la


assim. Humanos são frágeis e certamente ela acordaria toda torta no dia
seguinte.

Mesmo sentindo uma total recusa em tocar humanos, com ela esse
sentimento era mínimo, quase inexistente. Os meus lábios tornaram a
formigar quando vi os seus, mas pus aquilo de lado e a tomei nos braços. Ela
se mexeu, aconchegou-se em meu peito e seguiu dormindo.

Por todo caminho, segui admirando-a respeitosamente, como um


cavalheiro que sou. Não faria mais que isso, não ousaria, pois até mesmo eu,
Lúcifer, tenho princípios. Ao deitá-la na cama, cobri seu corpo com um
lençol e antes de partir, permiti-me mais uns segundos de admiração à sua
aura angelical; tão parecida com a minha antes da queda.
CAPÍTULO SEIS

OS PRIMEIROS RAIOS DE SOL DERAM sinais de vida no


horizonte. Passei parte da noite examinando os nomes dos títulos da
biblioteca e achei alguns intrigantes. Dante apresenta um ponto de vista
interessante sobre o paraíso e o inferno em “Divina Comédia”. E também
temos aquele Tolkien com a Terra Média e os hobbits. A criatividade dos
humanos me surpreende, não posso negar.

Seriam os escritores humanos viajantes do tempo? Nefilins? Talvez...


Bruxos? Na minha primeira época em terra, os homens escreviam apenas
relatos. Modificavam algumas coisas, mas nada era tão singular.

Há algumas horas eu seguia no meio da biblioteca, com o indicador


em riste nos lábios, analisando cada um dos títulos. Obviamente, foquei
naqueles que mais me chamaram a atenção.

— Essa profissão... Escritor... Parece-me ser tão... Mágica! — sorri,


estalando os dedos e, tendo uma ideia súbita, apontei o indicador ao céu. —
Vou me tornar um escritor!

— Falando sozinho novamente, Lu? — virei-me para trás. Balthazar


estava escorado na mesa, dedilhando uma moeda. — Então o grande Príncipe
das Trevas vai se lançar como escritor?

— Há meio melhor para se popularizar entre humanos?

— Sim, há.

— Qual? — interessei-me por aquilo.


— Você é Lúcifer. — saltou da mesa e veio em minha direção. — A
estrela-da-manhã. — piscou para mim e sorriu. — O antagonista da história
da humanidade. A grande calamidade. O dragão que rodeia a terra. — parou
em minha frente, ajeitou meu blazer e ergueu meu queixo. — Acho que nada
pegaria tão bem como um talk-show com Lúcifer.

— Talk-Show? — ergui uma sobrancelha. — Virar apresentador de


televisão? — ergui a outra.

— Eu apostaria nisso.

Fiz uma careta e ergui a mão para o lado, balançando-a, desgostoso.

— Vou pensar...

Apresentador de televisão? Nem fodendo!

Indiquei dar o primeiro passo, assim que meu pé direito tocou o solo
me vi na antecâmara. Com um aceno de dedo, liguei a televisão.

“... O mistério continua. Após a entrevista de Berzon Marinho, ex-


proprietário da área onde surgiu um castelo do dia para a noite, ele esclareceu
que vendeu apenas a área e que não se trata de marketing. Ainda segundo
testemunhas, a mansão sombria ganhou vida e agora é chamada de Palácio de
Lúcifer...”.

— Que interessante... — fiz menção de sentar e um trono de pedra e


almofadas surgiu do chão. Aconcheguei-me nele e cruzei as pernas,
entrelaçando os dedos em cima de uma delas.

“Até o momento não tivemos um único sinal do proprietário. Apenas


seu representante, intitulado de General Balthazar, se apresentou aos
jornalistas, causando pânico, por ter, supostamente, surgido do nada com
grandes pares de asas”.

Gargalhei, mais uma vez imaginando aqueles rostinhos em pânico. A


brincadeira se quebrou quando Cinthia apontou na entrada da antecâmara.
— Milorde. — curvou-se respeitosamente.

Com um sútil estalo de dedos, desliguei a TV.

— Já ouviu o que dizem lá fora? — permaneci fixo nela.

— Sim, Milorde. — cruzou as mãos religiosamente e pareceu


escolher as palavras. — A mídia sempre quer causar com qualquer
acontecimento...

— Não acredita neles, donzela? — abri um sorriso de canto. Ela


negou com a cabeça. — Entendo.

Trocamos olhares mais uma vez. Ela estava maravilhosamente bela


com aquele vestido longo, sem decote. Levantei-me e ao me por ao lado dela,
parei. Ambos olhávamos para frente, em direções opostas.

— Sobre ontem... — ela começou, com a voz trêmula.

— Não me lembro de nada do que aconteceu ontem, donzela. No


entanto, se quiser refrescar minha memória, conte-me. — a cortei em tom
firme.

Quanto atrevimento! Ainda quer me lembrar de uma insanidade


daquelas? Quem ela pensa que eu sou? Logo eu, Lúcifer, que fiz a Torre de
Babel beirar os limites do céu!

Sentimentos variados eclodiam dentro de mim: raiva e ternura. Ódio e


algo mais, algo que não sinto há milênios, algo que já não sei mais definir.

Dei um longo suspiro e abaixei a cabeça.

— Está trajada para me acompanhar? — finalmente afastei-me dela,


em ritmo lento.

Ouvi seus pés girando no piso, em seguida sua voz, agora mais firme.
— Sim, Milorde.

— Ótimo.

Segui em passos lentos até a arcada principal, na entrada da mansão.


Desci os degraus e entrei no meu carro. Ela entrou em seguida. Ambos em
silêncio.

Não deve ser muito difícil conduzir essa máquina manualmente...


Vejamos...

Liguei o carro e puxei a marcha para trás. Ao atolar o pé no freio, um


arranco fez o carro ir de ré, acertando uma de minhas pequenas estátuas.

— M-M-Milorde... Eu tenha carteira, se o senhor quiser... — ergui


uma das mãos, exigindo silêncio.

Passei outra marcha, agora para frente. Acelerei de novo e o carro deu
outra arrancada. Segurei o volante, mexendo-o agora com mais cautela.

— Não é tão difícil... — comentei em tom audível, comigo mesmo,


não me poupando de exibir um sorriso.

— O senhor tem carteira? — não precisei olhar para ver que Cinthia
quase se afundou no banco, encarando-me incrédula.

— Ainda não me inteirei desses pormenores, MAS, Balthazar já está


providenciando... — ela sentou-se novamente, assustada. Encolheu-se no
banco, prendeu o cinto e segurou o assento com as mãos.

Confesso. Quis rir, mas seria deselegante caçoar de uma donzela em


quase perigo.

Assim que o portão se abriu, um exército de jornalistas lançou-se na


frente do carro. Vários flashes, outros se aproximavam dos vidros com
microfones em mãos, câmeras por todos os lados. Todos queriam um pedaço
de mim.

Não foi difícil aprender a manobrar o veículo. Em poucos segundos


aprendi com perfeição a guiá-lo. Forçando o carro a avançar vagarosamente,
consegui romper a barreira humana. Sorte deles de eu estar determinado a
conquistar o mundo por métodos passíveis, pois, em outra época...

Aparentemente, os parasitas nos seguiram. Acelerei um pouco mais,


fazendo Cinthia gemer no banco. Uma das mãos agora pressionava o teto do
carro.

— Você parece preocupada, donzela. — comentei, provocando-a.

— Acho que estamos indo rápido demais...

— Pelo contrário. Rápido demais foi quando viajei até Vênus. —


balancei a cabeça negativamente, lembrando-me daquele momento. — O
pouso foi catastrófico. Destruí uma cidade. Claro, não foi proposital... —
gesticulava, soltando as mãos do volante.

Ela gritou. Eu gritei. Encaramo-nos.

— O volante! — sua voz ecoou pelo veículo e só então me dei conta


que havia tirado as mãos.

— Ah, eu tinha me esquecido. — sorri, pegando novamente na


direção.

— Milorde... — ela levou uma das mãos à testa, ofegando. — SE O


SENHOR QUER MORRER, MORRA SOZINHO! — gritou descontrolada.
Abri um largo sorriso. — DO QUE ESTÁ RINDO, SEU... SEU... — conteve
as palavras. Não demorou mais que alguns segundos, o suficiente para que
ela se endireitasse. — Perdão... É só que...

— Já entendi. Já entendi. — balancei a cabeça. — Vocês temem a


morte. O problema de ser mortal é esse...
— Eu insisto, Milorde... — recomeçou, agora mais calma. — Não foi
minha intenção.

— Claro que foi e eu adorei. — mostrei os dentes a ela e pisquei. —


Deveria tentar isso mais vezes. Eu até gritaria, mas um urro meu levaria
alguns prédios abaixo e não queremos ver São Paulo em chamas, não é?

— É... — ela forçou um sorriso.

Será que ela me acha... Normal? Semicerrei os olhos, questionando


aquela possibilidade. Logo os arregalei. Como se atreve... Como ousa se
entrosar com a mortal. Como? Perdido! Peste infernal! Renegado entre os
seus...

Por que quando estou com ela não a vejo como um... Como vejo os
outros mortais? Por que me sinto tão à vontade com essa mulher? O que há
de tão especial nela?

— Aonde estamos indo? — interrompeu minha autopunição.

— Na livraria. — seus olhos brilharam.

— Qual título pretende comprar, Milorde? — perguntou curiosa.

Arregalei os olhos. Senti minhas mãos suarem no volante e engoli em


seco.

Não posso dizer... É considerado literatura feminina... O que ela


pensaria de mim?

— E-Eu ainda não escolhi. — enrolei-me na explicação, mas logo


peguei o tom. — Vou trazer todos os títulos interessantes que achar para
casa... — respondi de forma evasiva.

Por sorte, chegamos à livraria. A maior da capital. Com movimentos


leves e rápidos dos dedos, fiz o carro estacionar sozinho. Ela sequer notou,
pois estava vidrada nos exemplares que ficavam em exposição, dispostos
atrás dos grandes vidros transparentes.

Desci e me dirigi ao estabelecimento. Ela me acompanhou. Assim que


entramos, parei novamente.

— Sinta-se à vontade para comprar o que quiser... Eu vou dar umas


voltas... — dei de ombros.

Segui por uma longa fileira de livros, fiz uma curva, outra e parei na
sessão infantil. Enfiei ambas as mãos nos bolsos e comecei minha busca.
Andei de um lado a outro, até que o vi, no fim do último corredor. Toda uma
sessão reservada para ele.

Precipitei-me em sua direção e, quando estava prestes a agarrar toda a


coleção de exemplares, Cinthia parou quase em minha frente, aparentemente
sem ter me notado, e agarrou um dos livros.

E agora? O que eu faço?

Ela se virou. Seus olhos encontraram os meus rapidamente, antes de


serem lançados em outra direção.

— Você... — comecei.

— Eu... — ela ergueu os ombros. Estava tão nervosa que apontou


para ambas as direções. Eu também estava.

— Livro legal.

— É... Para um trabalho.

— Você disse que não fazia faculdade. — sorri de canto.

Óbvio que não era para um trabalho. Eu a vi lendo o primeiro livro da


coleção noite passada. Ela se assustou, arregalando os olhos. Cortei a tensão
imediatamente, pegando o pacote com toda coleção.
— Recomenda? — ergui as sobrancelhas.

Ela rapidamente se recompôs e me encarou curiosa. Primeiro riu,


depois se conteve. Senti minhas bochechas arderem e fiquei sério.

— Sim. Claro. A trilogia é ótima.

— Vou levar.

Não fossem as risadinhas abafadas de Cinthia atrás de mim, eu estaria


em completa satisfação. Claro, a humana tinha que achar engraçado a minha
curiosidade pelo Sr. Grey. Não que ele me interesse! É só que... Quero
entender o porquê das mulheres humanas babarem por ele...

Ao parar no caixa a moça me olhou fixamente, parecendo estar


hipnotizada. Uma mulher cheinha, cabelos cacheados e batom marrom.

Voltei-me para trás e encarei Cinthia. Girei os olhos em sinal de tédio


e dei um longo suspiro. Ela passou por mim e tomou a frente da situação.

— Senhorita? Senhorita?

— Oi? Sim? Quer dizer, no que posso te ajudar? — fez uma careta e
balançou a cabeça. — Bom dia. — sorriu, fingindo que nada havia
acontecido.

— Quero estes... — entregou o seu e estendeu a mão para pegar os


meus. Primeiro a olhei, depois olhei a funcionária. Por fim, entreguei. — E
estes...

— U-A-U! — disse a moça, lançando-nos um sorriso sacana. —


Vocês vão adorar. Isso salvou meu casamento... — disparou.

Cinthia corou, eu também.

— Não somos...
— Seu marido é um gato. Eu diria que ele caiu do céu... — afinou os
lábios e sorriu.

Marido? U-N-I-D-O com uma mortal? Ora, como se atreve...

Eu estava prestes a mandá-la para o purgatório quando senti uma


presença poderosa do lado de fora. Fechei o cenho e pigarreei.

— Estou te aguardando no carro, donzela. — afirmei.

— ... O seu esposo é um deus grego. Você é muito sortuda, sabia?

— ... Ele não é meu esposo! É meu patrão! — respondeu entre


sussurros, pelo tom de voz, constrangida.

Assim que saí da livraria, ergui os olhos e afinando-os, vi alguém no


topo do prédio. Trocamos olhares rápidos, então ele sumiu.

Não é humano. Disso eu tenho certeza. Então, quem é? Achas que


tem o que é necessário para encarar o poderoso, cruel, impiedoso e Príncipe
da Terr...?

— Milorde?

— Sim, donzela? — virei-me para ela, sorrindo.

— Quer visitar mais algum lugar... — a puxei pelo pulso quando vi


um pelotão de pessoas surgindo de ambos os lados.

Malditos jornalistas!
CAPÍTULO SETE
POR CINTHIA

— QUE VERGONHA! QUE VERGONHA! Que vergonha! —


disse a mim mesma entrando no quarto. — Que atendente mais indiscreta...
— soquei o vento. — Se eu pudesse, eu a teria esganado. — sufoquei o ar
com as mãos, visualizando-a. — O que ele vai pensar de mim? Foram tantos
furos hoje... — dei um longo suspiro, sentando-me na cama.

Estiquei a mão para pegar o livro novo em cima da cama e ao tocá-lo,


senti algo quente. Subitamente me vieram imagens à cabeça. Nós dois
dançando na arca do casamento. Senti meu peito palpitar, minhas mãos
tremularem e, de repente, o beijo.

Eu me pegava pensando naquilo. O beijo dele tem gosto de...


Chocolate. Aquele bom e saboroso chocolate amargo. Um sorriso escapou
dos meus lábios. Milorde é o homem mais bonito que já vi em toda minha
vida e ele também é um cavalheiro. Aqueles olhos azuis são tão...

Sacudi a cabeça.

— Ficou louca, mulher? Ele é seu patrão. O que um lorde quer com
uma mera mortal? — bati a real, jogando-me na cama. — Pés nos chão.
Ponha os pés no chão ou vai acabar se machucando, Cinthia!

Contrariando a mim mesma, a imagem daquele homem voltava à


minha mente. O seu sorriso encantador, a sua postura séria, o seu corpo
esticando o tecido das roupas justas que ele costumava usar. Ofeguei, imersa
em pensamentos loucos, tão loucos quanto minhas ideias.

Mas ainda há algo suspeito nele. Há algo que reconheço, mas não sei
definir o que é. Aqueles cintilantes olhos cor do céu. Já os vi há muito tempo
atrás, mas... Onde?

E há mais, muito mais. Por que um homem com sanidade mental


perfeita diria que é o próprio Lúcifer? Ele não me parece um demônio. Quer
dizer, não que eu tenha contato, mas desde criança eu sempre vi coisas
estranhas... Se ele fosse mesmo Lúcifer, eu saberia...

Eu acho...

Sei que se eu contasse isso a alguém me chamariam de louca. Mas,


nessa altura do campeonato, que diferença isso faz? Passei a vida inteira
ouvindo que me falta um parafuso.

Só uma pessoa me entenderia e só ela me escutaria, mas agora


estamos separadas. E para completar a distância, o meu celular simplesmente
parou de pegar sinal — sem whatsapp, sem ligações, sem rede telefônica.
Sinto falta da Gi, da sua risada, do seu papo e de ter alguém que eu considere
como família por perto...

Quase meio-dia.

Ao me aproximar da cozinha, estranhei a ausência de ruídos. Ignorei e


segui pelo cômodo completamente vazio. Procurei com os olhos por todos os
lados, me perguntando: Onde estão todos? Eles deveriam ter começado a
trabalhar, não? Quer dizer, quem preparou a comida ontem?

— Boa tarde, senhorita Cinthia. — tomei um susto com a voz de


Balthazar. Virei-me bruscamente, levando uma das mãos ao peito. — Perdoe
minha entrada inesperada, mas eu estava mesmo lhe procurando...

Endireite-me e estufei o peito. Balthazar sorriu e enfiou a mão nos


bolsos e, sem me encarar, seguiu em direção a janela com vista para o jardim.

— Infelizmente os outros funcionários se demitiram...

— Por quê?
— Por conta dos boatos.

— Que boatos? — franzi a testa.

— Sobre este ser o Palácio de Lúcifer. — ele se virou e fixou os olhos


em mim, mantendo o tom sério. Permaneci inabalável. — Contudo,
contrariando minhas expectativas, a senhorita permaneceu. Sendo assim,
como não formalizamos os negócios do meu senhor, assunto que ainda deve
levar um tempo para se resolver... Quero que atue como governanta da
mansão. — arregalei os olhos. Aquilo veio de surpresa.

Calma! Uma coisa de cada vez.

Então os funcionários deixaram a mansão por conta dos boatos?


Mas... São apenas boatos, não é? Concordo que o lugar é estranho, porém,
isso é demais! E o que ele quis dizer com contrariando suas expectativas?
Será que ele esperava me ver fora da mansão tão rapidamente? Talvez isso
seja um teste de qualificação e...

— Deixarei em sua responsabilidade a contratação de novos


funcionários. — ele interrompeu meus devaneios. Assenti com a cabeça. E
retirando um papel dobrado de dentro do terno aproximou-se de mim,
entregando-me. O peguei. — Nesta lista há todas as vagas em aberto e os
respectivos salários, inclusive o seu. De todo modo, deste momento em
diante, você governa o Palácio de Lúcifer. — disse.

Quinze mil reais mensais? Estou RICA!

Senti em sua voz certo prazer nas últimas palavras, mas ignorei. Eu
queria berrar, saltar, pular. Eu nunca ganhei tanto dinheiro em um emprego.

Assenti novamente com a cabeça e ele retribuiu. Sem dizer mais nada,
Balthazar seguiu para fora, mas acabou parando no arco da entrada do
cômodo. Ergueu o indicador e virou-se a mim, sorrindo.

— Antes que eu me esqueça, aquela moça que morava com você. O


nome dela é Gisele, certo? — assenti com a cabeça. — Ela está no portão de
entrada. Acho que está te procurando.

— E-E-Está? — engoli em seco.

— Convide-a para entrar. — piscou para mim e se retirou.

Sem pensar demais, num misto de alegria por ela ter vindo e receio de
causar uma má impressão, corri às pressas para o portão principal. Só quando
entrei no caminho notei como aquelas esculturas de um lado e outros são
singulares: um gato com sete caudas e duas cabeças; um minotauro com asas;
um leão com patas estranhas e cauda com cabeça de cobra e outros que
sequer consegui definir a forma.

Mal me aproximei dos grandes portões para uma legião de jornalistas


se alinharem do lado de fora. Gisele estava sendo esmagada por eles,
prensada contra as grades de ferro.

— Vim te ver. — gemeu.

— Isso é ótimo.

— Vai ser melhor ainda se você me tirar desse sufoco...

Procurei por alguma chave, algum cadeado, mas não vi nada. De


repente, meus olhos se fixaram em uma alavanca em uma das colunas que
fixavam o portão. Puxei-a um pouco e uma fresta se abriu. Rapidamente me
coloquei entre a entrada e os jornalistas. Gi passou por mim, entrando. Com
um aceno de cabeça, indiquei a mesma alavanca e ela a ergueu.

— É verdade que esse é o Palácio de Lúcifer? — um jornalista jovem


se aproximou, enfiando o braço pelas grades, quase me fazendo engolir o
microfone.

— Vocês dois estão saindo? Ambos foram vistos na livraria e


segundo a atendente, compraram um romance erótico para apimentar a
relação...
O quê? Como assim...

— Pode nos falar um pouco sobre o homem que reside na mansão?

— Ele é mesmo Lúcifer?

Perguntas. Centenas delas. Umas eu ouvia, outras passavam


despercebidas. Eram vários falando ao mesmo tempo. Sem falar nos flashes
que me cegavam vez ou outra.

— Vamos entrar. — Gi me puxou pelo braço. — Não dê atenção a


esse bando de imbecis...

— É... É melhor mesmo.

Tentando evitar o assédio da impressa, disparamos pelo caminho,


entrando às pressas na mansão. Mal tive tempo para recuperar o fôlego
quando ouvi um “UAU” vindo de Gisele. Ao mirá-la, vi que ela estava
encantada com a decoração do grande hall.

— Nossa! O quão rico é seu patrão? — perguntou, girando o corpo


para ter uma visão mais ampla do lugar.

— Sinceramente... Eu não sei.

Rimos.

— Essa mansão é um sonho... Sério! Olha quanta coisa bela. — disse,


precipitando-se em direção a uma estátua em um canto da parede, onde havia
um anjo com armadura.

— É sim. Tive muita sorte... — dei um longo suspiro e a convidei


para irmos para um local mais reservado. — Vamos para a cozinha. O meu
patrão e seu subordinado, que também é meu patrão estão no andar de cima...

Seguimos para a cozinha. Sentei-me no enorme banco e pus os


cotovelos em cima da mesa de madeira maciça. Gi sentou em minha frente,
do outro lado.

— Quais as novidades, amiga? Eu estava morta de saudades... —


comecei.

— A velha das quitinetes continua um saco. — revirou os olhos e deu


um longo suspiro, deitando o rosto na mesa.

— Eita! Eita! Eita! Quando você faz isso não é coisa boa...

— Não mesmo... — murmurou.

— O que aconteceu...? — toquei em uma de suas mãos e ela se


levantou, com os olhos marejados.

— Christopher e eu terminamos... — gaguejou, corrigindo-se em


seguida. — Quer dizer... Ele terminou comigo e, para completar, fui
despedida.

— Nossa!

— Eu sei. Eu pisei na merda e me afundei na bosta. — forçou um


sorriso de canto.

— Sinto muito pelo emprego, mas devo dizer que você está melhor
sem ele... Tipo, ele vivia te sugando e eu sempre disse isso...

— É... Quando contei que estava desempregada, ele terminou comigo.


— fungou.

— Filho de uma puta!

— A puta da mãe não tem envolvimento nisso. — revirou os olhos


novamente e riu. Eu admirava o bom humor dela, mesmo na pior das
situações. — É ele que não presta. Um cafajeste.

— Uma palavra, amiga.


— Só uma? — confirmei com a cabeça, contendo um sorriso.

— GI-GO-LÔ!

Ambas rimos. O riso não durou muito e logo Gi recomeçou:

— Os jornais não param de falar sobre esse casarão e eu também


estou supercuriosa para ver com meus próprios olhos como é o seu patrão. —
deixou uma risadinha escapar.

— Ah... — gemi e logo me vi com Milorde invadindo meus


pensamentos. — Ele é incrivelmente belo. Sabe aquele homem que te passa
uma sensação de poder? Domínio? Controle? — Gi acenou com a cabeça. —
Ele é assim. É impossível não ficar atraída... E eu já te disse isso tudo antes...

— Disse, mas estou curiosa para vê-lo pessoalmente. Ele é mais


bonito que aquele outro? Como é mesmo o nome? — estalou os dedos várias
vezes.

— Balthazar?

— Sim. Esse mesmo!

— Ambos são muito bonitos. Acho que a questão do “mais” fica para
o perfil de atração de cada um. Por exemplo, eu acho Milorde mais bonito,
mas você pode não achar...

— Uma coisa é certa. Nessa casa só há homens bonitos... —


sussurrou. Rimos em seguida.

— E sobre essas especulações nos jornais? Como ele lida?

— Sinceramente? Não sei. A impressão que tenho é que ele evita a


impressa, mas, de certa forma, também a adora...

— Os boatos são verdadeiros?


— São tantos.

— Ele é mesmo Lúcifer? — um arrepio subiu por minha espinha.


Sinceramente? Às vezes imagino ter certeza que é uma grande mentira, mas
tem horas que... — Quero dizer, se ele for mesmo quem diz ser, como será?

— Não seja idiota, Gi! Lúcifer? Na terra? Vivendo como um mero


mortal? — expurguei as ideias delirantes e voltei a mim.

— Certo. Vamos entrar no mundo da fantasia de vez: agora me diga,


se ele for mesmo Lúcifer, e aí? — encarou-me, curiosa.

— Não sei o que eu faria. — respondi com sinceridade.

— Ah... Eu sairia daqui feito uma louca. — franziu as sobrancelhas,


repudiando a ideia de aquilo ser mesmo real. — Apesar de que devo
concordar com você. Isso deve ser alguma jogada de marketing, algo do tipo.
Uma das contratadas deu uma entrevista dizendo coisas estranhíssimas...

— Que coisas? — admirei-me.

— Ela disse que...

— Boa tarde! — a voz poderosa ecoou pela cozinha, interrompendo


Gi.

Engoli em seco. Era ele. Milorde. Será que ele ouviu nossa conversa?
Senti meu corpo todo tremer e sequer me atrevi a virar para trás. Eu deveria,
pois sou sua funcionária, mas...

— Como estamos temporariamente sem cozinheira, Balthazar nos


trouxe almoço. Espero que as duas damas nos façam companhia na sala-do-
pequeno-almoço. — olhamos uma para a cara da outra, surpresas com aquilo.
— Estarei aguardando-as.

Os passos logo se distanciaram e Gi abriu a boca, como se tivesse


prendido a respiração por longos minutos.

— Que homem é aquele? As minhas pernas estão bambas até agora.


Estou arrepiada só com a voz...

— Fale baixo! Eles têm ouvidos superafiados! — rosnei, apoiando os


cotovelos na mesa, com o rosto próximo do dela.

Encaramo-nos por alguns segundos, mas Gi fez uma expressão que


não consegui resistir. Gargalhamos novamente.

Levantamo-nos. Eu queria ter recusado o convite, mas dada a hora,


quase uma da tarde, a minha barriga não parava de roncar e, pela cara
amarelada de Gi, ela também estava definhando de fome.

— Pra que lado fica? — perguntou baixinho, me acompanhando em


passos lentos.

— Por aqui...

Conduzi Gi pelos cômodos. Assim que apontamos na sala de almoço,


Balthazar e Milorde se levantaram. Fomos até eles e sentamo-nos. Decidi
fazer companhia para Balthazar, deixando que Gisele continuasse babando
pelo meu patrão.

A grande mesa estava maravilhosa. Recheada de cores. Variados tipos


de saladas, carnes, grãos e vegetais. Nada de refrigerante, apenas suco
natural.

— Ah... Os lugares estão errados. — Milorde se levantou e Balthazar


o acompanhou. Segui aquilo com os olhos. Eles trocaram de lugar. — Agora
sim! — prosseguiu, lançando-me um largo sorriso.

Gi, que não perdia uma, jogou-me uma piscadela. Fiz de conta que
não vi. Depois desse pequeno e rápido momento de tensão, nos servimos.
Como costume, ninguém falou à mesa, não enquanto não finalizamos a
refeição.
— Estava delicioso. Você realmente tem um ótimo gosto culinário,
Balt... — Milorde comentou, pondo os cotovelos na mesa e, apoiando o
queixo nas mãos, apontou o indicador para Gisele. — Você é amiga da
Cinthia, certo?

— Sou, Milorde.

— Muito amiga? — ele semicerrou os olhos.

— Acho que sou a melhor amiga.

— Ainda acha? Que falta de confiança! — revirei os olhos e todos


nós rimos.

— Balt é meu melhor amigo.

Balthazar estufou o peito e fez um ligeiro aceno com a cabeça. Tão


pomposo que parecia ter ganhado uma medalha ao invés de um elogio.

— A recíproca é verdadeira, Milorde... — Balthazar respondeu e


rapidamente voltou-se a mim. — Já pensou em como fará a seleção para os
novos funcionários?

— Ainda não...

— Vocês estão contratando? — Gi se levantou, mostrando-se mais


que interessada.

— Sim! — respondi com empolgação. — Eu acabei me esquecendo.


— estapeei minha testa e também me pus de pé, com as mãos apoiadas na
mesa. — Lorde Balthazar me entregou a lista com as vagas pouco antes de
me informar que você estava no portão... Com todo aquele furdunço do lado
de fora, acabei me esquecendo.

— E eu aqui precisando de um emprego... — atirou o currículo no ar.


— Contratada! — Milorde bateu a palma das mãos. — Cinthia,
encaixe Gisele em uma função que ela se identifique. — assenti com a
cabeça. Ele se levantou. — Agora preciso resolver alguns assuntos.

— Também estou me retirando. — Balthazar curvou-se


educadamente e seguiu acompanhando Milorde. Contudo, parou subitamente.
— Ah, sobre a mesa, não precisa retirar. Providenciarei isso logo mais...

Providenciará como se estamos sem funcionários? Sem entre aspas,


né? Afinal, sou o quê?

— Sei o que está pensando... — Gi sussurrou.

— O quê?

— Será que é grande? — fez uma menção de tamanho com as mãos.


Arregalei os olhos e, por instinto, soquei seu braço. — Ah, está pensando
sim.

Corei completamente.

— Sua louca! Eles podem nos ouvir, eu já te disse isso! — a repreendi


entre sussurros.

— Não está mais aqui quem falou. — ela disse em tom alto. — Mas
bem que eu queria...

— Shiiiii! — pus o dedo em riste nos lábios.

Ela riu e sua gargalhada, costumeiramente mais engraçada que a


piada, me levou aos risos também.

Como sempre, você é uma má influência, Gi! Mas estou mais que feliz
por te ter aqui comigo!
CAPÍTULO OITO

SEGUIMOS PARA O GRANDE HALL, ONDE me sentei em um


dos sofás. Balthazar sentou-se em minha frente, encarando-me.

Mulheres humanas são tão belas como anjos. Claro, também temos
alguns demônios vagando sobre a terra. Eu poderia dizer que é o exterior
que conta, mas...

— Queria falar sobre o quê, Milorde?

Dei um longo suspiro, enquanto dedilhava meus dedos sem pressa.

— Reúna os jornalistas. A hora chegou.

— Tem certeza disso, Milorde? — Balthazar arregalou os olhos. —


Eu pensei que fossemos adotar outra estratégia...

— Acalme-se, meu general. Só vamos marcar uma data para a


primeira das muitas ocasiões que virão. Essa é a segunda etapa do plano.

Balthazar respirou aliviado. Passou a mão pelos cabelos e se


recompôs.

— Devo fazer isso agora ou mais tarde?

— Depois da exibição do herói.

— Herói?

— Já decidi o que serei em terra. Serei o mais amado herói da


história. — esbocei um sorriso de canto. — Eles adoram isso. Não importa o
que você tenha feito de mal, desde que se torne um herói, eles vão te amar.

— Isso é... Absolutamente... GENIAL, Milorde! — Balthazar se


levantou, empolgado. Mais do que eu. — Lúcifer, herói ou vilão? — abriu as
mãos no ar, como se esticasse uma faixa. Mudou de direção e repetiu o gesto.
— Podemos confiar no maculador da palavra?

Gargalhei.

— Será muito divertido e mais fácil do que eu imaginava...

— Mas... Precisamos de catástrofes ou situações onde teremos


pessoas em riscos...

— Donzelas. As pessoas adoram o salvamento de donzelas... —


Balthazar franziu a testa. — Li em uma revista de quadrinhos feita por
humanos... Diferente dos nossos e, confesso, ainda prefiro a mocinha se
casando com o vilão e chutando o mocinho.

— Quem não prefere? — deu de ombros.

— Liberte aquele que está preso no fundo do oceano e ordene que


surja nos Jardins da Orla de Santos...

— Milorde, você irá abrir o sexto portão do inferno? — ele me


interrompeu apreensivo. — Outras criaturas sairão de lá... I-Isso pode ser
visto como uma declaração de guerra aos céus... — Balthazar se sentou,
levando uma das mãos à cabeça, pensativo.

— Ah, eles não vão nos declarar guerra por uma simples horda de
monstros... — minimizei com um aceno de mão. — Com certeza eles vão
apenas observar.

— Disso não tenho dúvidas...

— Pois bem, faça.


— Agora?

— Neste exato momento.

Balthazar desapareceu em um estampido. Em seu lugar, a fumaça


negra se dissipava vagarosamente.

Não havia dia melhor que aquele. Um sábado ensolarado e


extremamente quente. Sem dúvida a praia estaria lotada. Com um estalar de
dedos, liguei todos os televisores da casa, de modo que ninguém conseguisse
desligar. Sintonizei os canais em um só: no plantão de notícias urgentes e
esperei.

Olhei no relógio. Cinco para as três da tarde.

Cruzei as pernas e comecei a contar mentalmente. Trezentos...


Duzentos e noventa e nove... e oito... e sete...

Cinco segundos...

Pus-me de pé.

Mesmo à distância, senti: o sexto portão do inferno foi aberto.


Teletransportei-me para os jardins da orla. Parei em cima de um prédio de
quatro andares.

Pessoas. Milhares de centenas na praia. As ondas batiam uma nas


outras, lentamente ficando cada vez maiores. Então, veio uma onda gigante.
O azul marítimo não conseguia esconder a negritude debaixo das águas. Uma
criança foi a primeira a notar e logo os mais próximos à água puseram-se de
pé, apontando seus dedos.

“O que é aquilo?”.

“Tem alguma coisa na água”.

“A água está negra...”.


Burburinhos em todos os cantos da areia. Bereodor, o demônio dos
oceanos, guardião dos sete mares, também conhecido como Cracken, se
revelou. Oito grandes tentáculos rodeavam sua cabeça monstruosa. Na
definição humana poderíamos chamar de barba. O corpo escamoso lembrava
o de um lagarto que fica em pé sobre as patas traseiras. Todos estavam
atordoados com aquela imagem e sequer notaram os morceguetes —
sugadores de alma. A aparência de um morcego comum, mas bem peludo e
com asas de três metros de envergadura.

Um rugido, que fez o chão e os edifícios vibrarem, cortou o silêncio.


Pânico em massa. Pessoas correndo de um lado a outro. Bombeiros iniciando
a retirada, tentando controlar a população.

A imprensa, que sempre vagueava pela cidade, não demorou a chegar.


Um pequeno grupo de jornalistas estava ali. Era questão de tempo para
surgirem outros mais.

Bereodor rugiu outra vez e precipitou-se na direção da multidão que


fugia desesperadamente. A sua marcha causava ondas sobre ondas.

— Chegou a hora. — disse a mim mesmo e estendendo uma mão ao


alto, materializei minha armadura em meu corpo, abrindo meus grandes pares
de asas.

Sem esperar um segundo mais, saltei do edifício e planei em sua


direção. Primeiro um, depois uma dezena, depois incontáveis me viram. A
multidão parou para observar minha entrada heroica.

“Um anjo”.

“Um anjo no céu. Vejam”.

“Onde? Onde?”.

“Ele está indo em direção ao monstro”.


O Cracken é imune a ataques elétricos. Eu não posso simplesmente
ordenar que ele recue. Preciso dar a essas pessoas o que elas esperam ver.
Num bater de asas, rodeei Bereodor. Como era de se esperar, ele tentou me
derrubar, mas não obteve sucesso. Planei em sua frente e estiquei uma das
mãos, materializando minha espada — a mãe das dez espadas demoníacas —
e balançando-a sobre minha cabeça, acertei o céu, tornando-o negro.
Relâmpagos e trovões o cortavam de um lado a outro. O mar se agitou e
houve um novo tremor de terra.

— Demônio dos oceanos, você será punido por quebrar o tratado dos
anjos. — um raio caiu em minha espada, eletrificando-a, em seguida mirei-a
em sua direção e disparei, causando uma enorme explosão.

Outro rugido estarrecedor.

Movimentando a espada novamente, cortei a nuvem de morceguetes a


minha frente, arrancando um uivo eufórico dos que assistiam lá embaixo.
Claro que eu não iria ferir meus queridos bichinhos. Eles são imortais. Ao
serem “mortos” renascem no inferno.

Subitamente pousei na areia da praia. Já não havia mais claridade,


pois fiz o dia tornar-se noite. Atrás de mim eu ouvia incontáveis vozes. Eles,
os humanos, estavam torcendo por mim, falando da minha beleza, clamando
minha vitória...

Algo cortou o vento. Olhei para cima e vi um grande tentáculo cair


sobre minha cabeça. Um som estrondoso levantou uma muralha de areia.
Sorri de canto quando ouvi murmúrios temerosos, mas o show devia seguir.

Com um singelo movimento das mãos, fiz a areia voltar ao chão e lá


estava minha imagem, segurando o monstruoso tentáculo com uma das mãos.

— Recue para as profundezas! — bradei e erguendo a espada ao céu,


colhi outro raio. Dessa vez, segurando-o, causei outra explosão, maior que a
primeira.

Com um último rugido, Bereodor caiu para trás nas águas, causando
uma grande onda. Ergui o indicador e encolhi as águas, evitando um novo
impacto contra as pessoas atrás de mim.

Ele se foi. Bereodor recuou para o fundo do oceano. Por conta do


show que proporcionou, será recompensado, meu amigo.

Centenas de passos vieram em minha direção. Virei-me bruscamente


encarando-os. Apesar de me tratarem como um herói... Mantiveram-se a uma
distância segura.

“Quem é você?”.

“Como se chama?”.

“De onde veio?”.

“Obrigada por nos salvar. Somos gratos à sua generosa atitude”.

Guardei minha espada e olhei os céus; com um estalar de dedos, as


nuvens que trouxeram a noite sumiram, dando lugar ao sol. Os primeiros
raios surgiram, cortando minhas costas. Uma luz intensa, para lembrar-lhes
quem sou.

— Meu nome é Lúcifer. — bradei. Fez-se silêncio. Todos


emudeceram. — Lúcifer, o portador da luz. De hoje em diante serei o
guardião da humanidade. — sem mais delongas, num impulso com as asas,
voei para longe.

Diferente de antes, das outras vezes, permiti que todos me vissem e


que me admirassem. Ainda de longe, vi o brilho da lente da câmera
capturando meu voo. Sorri de canto e segui meu caminho. No percurso, um
helicóptero até tentou, mas não conseguiu me acompanhar.

— Ah, lá estão eles... — pousei, parando na entrada do meu palácio.

Inúmeros jornalistas que seguiam acampados ficaram aturdidos ao me


encarar. De fato, minha beleza devia deixá-los mudos. Segui em passos
lentos em direção ao portão. Eles abriram caminho. Antes de atravessá-lo,
parei, de costas para eles.

— Vocês pediram uma prova de quem sou. Pois bem, eu lhes dei.
Agora contem o que viram e o que ouviram. — bradei com voz imponente e
desapareci no ar, ressurgindo nos meus aposentos.

Balthazar me aguardava de pé. Com um movimento dos dedos, vesti-


me como um homem de negócios.

Meu fiel general aproximou-se de mim batendo palmas e com um


singelo gesto com a cabeça, curvou-se.

— O país parou para ver sua entrada. Foi espetacular, Milorde.


Exatamente como planejou. — disse Balthazar, esbanjando sorrisos.

— Em todos os jornais? — ergui as sobrancelhas.

— Em todos os meios de comunicação. Inclusive na internet...

— Ferramenta poderosa essa internet... — apontei o dedo para


Balthazar, jogando-lhe uma piscadela.

— Veja. — ele esticou um dos braços para a TV.

Naquele momento aparecia o plantão de notícias urgentes. Sentamo-


nos na cama para apreciar.

“Aqui quem fala é Josicleide Kandersbrut, estou diretamente dos


Jardins da Orla de Santos, onde um monstro marinho surgiu e recuou ao se
deparar com um anjo... Sim, telespectadores, vocês não ouviram errado. —
ao lado da imagem da jornalista, surgiu um vídeo, mostrando meu embate
contra Bereodor. — Segundo testemunhas presentes no local, ele se intitula
como Lúcifer, o portador da luz e... Guardião da humanidade”.

A reportagem continuou, com a jornalista entrevistando algumas


testemunhas. Eu já tinha em mente o que diriam, então ignorei.
— Venha cá. — disse Balthazar, guiando-me até o notebook.
Levantei-me e o segui. Ele abriu vários navegadores, mostrando-me os
principais portais de notícias do mundo. — Até mesmo em jornais
internacionais você está sendo mencionado, Milorde.

— Perfeito! Agora só preciso me firmar como o herói que propus a


ser e então, quando todos me amarem, dominarei o mundo! — fechei o punho
no ar, fazendo-o queimar.

— Uma nova era começou. — Balthazar deu um longo suspiro.

— Uma era que será eterna... — sorri, mas logo ela me veio à mente,
desfazendo meu sorriso. — Onde está Cinthia e aquela outra moça, Gisele?

— Ah, quando cheguei aqui elas tinham saído, mas os jornais ainda
não tinham noticiado nada...

Naquele instante, meus ouvidos fixaram-se na TV com outro plantão


de notícias.

“Segundo os diversos jornalistas acampados na frente do Palácio de


Lúcifer, o próprio pousou aqui e disse para que todos pudessem ouvir: —
Vocês pediram uma prova de quem sou. Pois bem, eu lhes dei. Agora contem
o que viram e o que ouviram. As perguntas que não querem calar: O que
Lúcifer veio fazer na Terra? Ele realmente vai lutar pelo bem da
humanidade? Quem e quantos mais estão conosco? O monstro marinho foi
uma mera coincidência?”.

Semicerrei os olhos.

— Eles não são tão burros...

— É coerente ligar o que eles chamam de “sobrenatural” com um


acontecimento sobre-humano. — ponderei.

— De fato. Por isso acredito que você, Milorde, de agora em diante,


deva focar apenas em acidentes reais.

— É o que planejo... — dei um longo suspiro, mirando a janela.

Será que ela vai voltar? Com certeza Cinthia viu e ouviu o que
passou na televisão. Todos estão noticiando o que aconteceu; todos estão
comentando.

Por mil demônios. Estou realmente preocupado com uma reles


serviçal? Eu poderia muito bem contratar outra e...

Seus lábios. O doce sabor dos seus lábios voltou a minha mente.
Interrompendo meus pensamentos.

— E se ela não voltar, Milorde? — Balthazar pareceu ler meus


pensamentos. — Pretende fazer algo?

— Ora, maldito! O que está insinuando? — semicerrei os olhos.

— Nada, Milorde. — ele sorriu de canto, mentindo descaradamente.


— Estou apenas preocupado em arrumar alguém tão competente como ela.
Quero dizer, apesar de não termos trabalhado muito...

— Trabalhado nada, você quis dizer. Ao menos não nas condições


dos mortais... — acrescentei.

— Apesar de não termos trabalhado como mortais, ela será de grande


ajuda nos negócios. Quero dizer, um homem poderoso necessita de uma bela
mulher para exibir ao seu lado...

— Ela é um animal para ser exibido, seu verme? — questionei,


irritado.

— Não foi isso que quis dizer... — revirou os olhos. — Na visão


humana isso soa muito bem.

Balancei a cabeça algumas vezes, tentando engolir aquilo. Até que,


por fim, assenti com a cabeça.

— Então... Se ela não voltar?

— Se não voltar, irei atrás dela. — respondi em tom firme.


CAPÍTULO NOVE
POR CINTHIA

PROCUREI POR BALTHAZAR EM TODOS os lugares possíveis


da mansão e como não o encontrei, acabei deixando um recado informando
que voltaria ao meu antigo lar para buscar as coisas de Gisele. Deixei o
bilhete em cima da mesa da cozinha avisando que não iria demorar e que as
TVs da casa estavam com problema: todas ligadas e, mesmo tirando da
tomada, permaneciam ativas. Acho que devem ter alguma bateria embutida
ou coisa do tipo. Ricos adoram essas coisas.

Eles são muito gentis, apesar de serem estranhos, mas não vou
incomodá-los com isso. Gi e eu pegamos um táxi e seguimos para as
quitinetes.

— Nem sei como te agradecer, amiga. — ela tocou em meu ombro,


me encarando. — Sério! Esse é o melhor emprego que já consegui.

— Se você estivesse no meu lugar, faria o mesmo. — assenti com a


cabeça.

— Não faria, não! — ela riu, levando o corpo para trás. — Com
aqueles dois bonitões em casa? Eu ficaria na dicotomia eterna de contrata e
demite. — assinalou com as mãos.

Gargalhamos.

O motorista do táxi mantinha-se alheio a nossa conversa. A rádio de


repente cortou a música e passou para o plantão de notícias urgentes.

— Saco! Com essa crise política no país, de minuto em minuto eles


param as músicas para falar dos ladrões de terno. — esbravejou, metendo o
dedo no rádio, desligando-o.

Ignoramos.

— Eu ainda tenho que reaver o dinheiro com a velha. O meu aluguel


está com vários meses pagos...

— Deixa isso pra lá. — franzi a testa, imaginando o barraco que


aquilo daria. — Esse dinheiro não vai fazer falta...

— Não é pelo dinheiro, amiga, é para ela deixar de ser desaforada. —


socou o banco, o motorista deu uma breve olhada para trás e fechou o cenho.
— Desculpa...

— Enfim, como eu estava dizendo... Não compensa. Por favor, deixe


isso pra lá. — insisti. Gi revirou os olhos. Peguei em suas mãos, abraçando-as
ao meu peito. — Por mim!

— Tá bom, tá bom! Mas se aquela velha me provocar... — ergueu o


indicador, afinando os olhos.

Caímos na gargalhada, novamente.

O táxi parou. Pedi para que o motorista esperasse e subimos.


Estávamos quase no último degrau quando ele surgiu em minha frente.

Ezequiel.

Gi me encarou e balançou a cabeça.

— Vou arrumar minhas coisas enquanto vocês dois... Hum...


Conversam? — sorriu e passou por ele.

Ele me encarou. Não baixei a guarda e fiz o mesmo. Passaram-se


apenas alguns meses desde nosso término, mas ele continuava o mesmo. Os
mesmos olhos caramelados, a mesma barba raleada e os mesmos cabelos
cacheados, castanho-claro, que caem como pequenos cachos. O corpo esbelto
e atlético, adornado com os ternos caros que sempre fez questão de dizer o
valor.

— Mudou-se? — afiou os olhos, olhando-me de cima em baixo.

— O que você quer? — fui direto ao ponto.

— Há tantas coisas que quero neste momento... — abriu um sorriso


de canto e deu uma olhada no corredor. — Que tal ir a minha casa hoje à
noite?

— Não posso, estou trabalhando. — ele fez menção de abrir a boca,


mas fui mais rápida. — E também não quero.

— Desde quando você tem querer, bonequinha? — mordeu os lábios


e trouxe uma das mãos para tocar meu rosto. Afastei-me e ele recuou. —
Quanta rebeldia...

— Rebeldia? Chamo isso de sanidade. — dei de ombros. Fiz menção


de subir o último degrau, mas ele bloqueou a passagem. — Licença? — ele
riu. — Por favor.

— Venha, vamos dar uma volta. — sequer vi quando sua mão tocou
meu pulso, apenas senti o aperto.

— Eu já disse que não quero! — esbravejei. Ele arregalou os olhos e


soltou meu pulso, aos risos.

— Ouvi dizer que está trabalhando no Palácio de Lúcifer. Aquele


homem pode ser perigoso, mais que eu... — enfiou a mão nos bolsos.

— Mais que você? — revirei os olhos. — E daí se for? O meu único


interesse nele é profissional!

— E o dele em você?

— É... — minha garganta secou.


Qual é o interesse dele em mim? Ele me beijou e... Foi uma coisa de
momento. Mas... Espera aí...

— Como você sabe onde estou trabalhando? — semicerrei os olhos,


desconfiada. Quando a interrogação ganhou resposta, explodi. — ESTÁ ME
VIGIANDO?

— Não. Deveria? — soltou uma risada sarcástica e me fitou,


novamente. — Vejo os jornais diariamente. Sua cara saiu em uma das
matérias...

Então... Se ele me viu, minha família também me viu! Não! Eles não
gostam de televisão. Talvez se tivessem visto, teriam entrado em contato
comigo ou...

— Cinthia, é tão fácil decifrar você. Pela sua cara... Ah, pobre
mamãe...

Meu sangue ferveu. Quando vi, eu já tinha partido para cima dele,
tentando socá-lo. Foi em vão. Ele segurou meus dois punhos, puxando-me
para perto, colando seu corpo ao meu. E ao aproximar os lábios da minha
orelha, sussurrou:

— Sabe o que posso fazer... Que não sou nada bom...

— É um homem sem caráter! — o empurrei para trás,


desvencilhando-me dele.

— De extrema beleza. — assinalou, como se aquilo fizesse alguma


diferença para mim.

Do que adianta ser belo por fora e ser podre por dentro? Um homem
mau, cruel e que não hesitaria em passar por cima de todos para chegar aos
seus objetivos.

Ele me enganou. Enganou-me direitinho. Era bom, cavalheiro e


amável, mas do nada se tornou estranho e agressivo...

[...]

Sete meses atrás.

Era noite. Eu estava voltando sozinha para casa quando, em um beco,


acabei sendo abordada por dois indivíduos. Eles eram estranhos e fediam a
carniça... Ambos carregavam um odor que nunca senti na vida.

— Sozinha uma hora dessas? — o mais alto e gorducho perguntou e,


ao sair das sombras, vi que só tinha um olho, no lugar do outro havia um
buraco.

— Não é hora para brincadeiras, Kazan. Estou com fome. — uma voz
rouca ao fundo ecoou. Vi apenas uma silhueta imersa nas sombras e por
instantes, imaginei ter visto duas bolas vermelhas brilhantes.

— Não estou com pressa de matá-la. Ademais, você deveria chegar


mais perto. Ela tem um cheiro estranho... — lambeu os lábios.

Fome? Matar? Involuntariamente meus olhos marejaram. Senti um


arrepio tenebroso subir pelo meu corpo. Minhas pernas fraquejaram. Senti
que a qualquer momento eu poderia cair. Olhei para os lados e não havia
ninguém. Nenhuma única alma viva na rua. Pensei em gritar, incontáveis
vezes, mas eu não tinha forças para isso. Eu estava paralisada de medo.

— Que cheiro ela tem, Kazan?

— Deixe-me ver... — fungou algumas vezes. — Hum... Hum...


Parece ser...

Um vento estranho caiu sobre mim como um balde de água fria,


seguido por um estampido. Eu estava tão amedrontada que me recusei a olhar
para trás.

O homem a minha frente arregalou os olhos, começando a recuar. O


outro saiu das sombras. Em seguida, aconteceram coisas estranhas. Vi fogo
se cruzar, vi pedras voarem e, por fim, desmaiei.

Quando acordei, lá estava ele em minha frente. Encarando-me com


seus grandes olhos caramelados. Tomei um susto, encolhendo-me na cama.

— Acalme-se... — ele se levantou e foi até uma mesinha pegar algo.


Entrementes, girei os olhos pelo cômodo. Eu estava em um quarto. Mas não
era minha casa. — Tome isso, você vai melhorar... — sentou-se na cama
novamente e sorriu ao me entregar a xícara.

Engoli em seco, ainda calada. Ele insistiu:

— Por favor... É chá de camomila.

Ainda em silêncio, peguei a xícara de sua mão e dei um gole, sem


tirar meus olhos dele.

— Desculpe não ter chegado antes.

Do que ele está falando? Senti uma pontada na cabeça, deixei a xícara
cair no chão e vi as imagens da noite passada.

— Acalme-se... — ele disse em tom passivo. — Ontem você foi


abordada por dois indivíduos, mas eles não irão te importunar nunca mais. —
vi seus olhos brilharem. — Eu prometo!

[...]

Como um homem desses muda? Por quê? O que o motivou a se tornar


assim? Eu fiz algo de errado? Quer dizer, não é minha culpa. Eu sempre
tentei ser uma boa namorada e... O que estou dizendo? Não! Não! Não! O
problema não era eu, nunca fui eu. O problema era você, Ezequiel, querendo
me tratar feito um brinquedo ou como costumava me chamar: bonequinha.

— Você nunca se perguntou o motivo de ser diferente? — Ezequiel


interrompeu meus devaneios.
— Está dizendo que eu sou louca? — franzi a testa.

— Diferente e louca tem significados distantes.

Diferente? O que ele quer dizer com diferente? Sacudi a cabeça


decidida a não deixá-lo me confundir.

— Já terminou?

— Não vou desistir tão fácil. — deu um longo suspiro.

— Depois de tantos meses...

— Ah, não é só por você. É, também, uma questão de orgulho. Eu


tenho uma velha rixa com um certo alguém. — tombou a cabeça para o lado
e sorriu sem mostrar os dentes. Senti prazer em suas palavras. — Primeiro
vou deixar a semente desabrochar e quando o sentimento fincar suas raízes na
terra... — fez um beicinho e sinalizou um corte com os dedos.

— Do que você está falando? — perguntei em tom de irritação, sem


entender nada.

Subitamente seus dedos apertaram meu maxilar, quase me erguendo


do chão. Eu não conseguia me mover. Meus lábios formaram um biquinho e
ele me olhou dentro dos olhos.

— Em breve você saberá, bonequinha. — disse entre sussurros,


soltando-me.

Sem acrescentar mais palavras, desceu as escadas. Naquele exato


momento, Gi surgiu no corredor, começando a colocar as malas do lado de
fora.

— Ele já foi?

— Já.
— Ainda bem. — pôs as mãos na cintura e me chamou com um
movimento de cabeça. — Que tal me ajudar, bonequinha? — o imitou em
tom de ironia. Fiz uma careta.

Empacotamos todas as coisas. A única vantagem dessas quitinetes é


que são mobiliadas. Em caso de mudança só levamos as roupas e os itens
pessoais. Mesmo focada em ajudar Gi a organizar tudo, as palavras de
Ezequiel martelavam minha cabeça.

Por mais que eu me esforçasse para entender, eu não conseguia.


Passaram-se tantos meses e agora ele voltou com essa de:

Não é só por você, é uma questão de orgulho...

Quero que ele enfie o orgulho naquele lugar! Ele acha que eu
realmente estou disposta a voltar com ele? Ele acredita mesmo nisso? Nessa
loucura de me imaginar correndo de volta para os seus braços?

Revirei os olhos só de ponderar aquelas ideias.

Pegamos o táxi de volta e fomos para casa. Assim que descemos,


estranhei a ausência de movimentação. Não só eu.

— Ué, onde foram parar todos aqueles jornalistas? — Gi me encarou,


sem entender. Encarei-a sem resposta e ergui os ombros.

Talvez eles tenham se dado conta de que Milorde lhes pregou uma
peça. Quem diabos seria tão imbecil de acreditar que Lúcifer está entre nós?
CAPÍTULO DEZ

A VIDA É ALGO TÃO FRÁGIL. O SEU nascer é poderoso, o seu


viver é repleto de desafios e crescimento e o seu morrer é repudiado, pois
viver é tudo. As mulheres carregam a vida em seu ventre e dão sinais de
fertilidade todo mês, quando sangram. Deus não é uma mulher, nem é
homem. Ele é apenas Deus. Ele é o doador da vida e, sendo o progenitor de
tudo, repassou dons que as pessoas muitas vezes nem sabem que possuem.
Às mulheres a gestação, aos homens a fecundação e à árvore da vida o fruto
da imortalidade.

Às vezes me pego analisando a árvore da vida e a vida em si. Não


odeio a Deus. Sou seu filho, ele me criou. Ele me fez do próprio fogo, me fez
para ser a luz do mundo, mas quando vi o outro, tão amado e aconchegado ao
seu seio, senti ciúmes, raiva, inveja e, o pior de tudo, senti meu orgulho ser
ferido.

Abaixo da Divina Trindade, eu governava os céus. Dividia o posto de


regente das hostes angelicais com Gabriel e era o mestre de cerimônias de
adoração celestial, o mais importante de todos os cargos, o cargo que
conduzia a adoração ao próprio Deus.

Ainda me pergunto se errei.

— Milorde?

— Elas chegaram. — respondi sem demonstrar emoções, mas eu as


tinha no peito.

— Parece pensativo... — Balthazar pôs-se ao meu lado, mirou meus


olhos e em seguida, atravessou-os pela janela, pousando-os na árvore
celestial. — Está perto de florescer, não é?
— Sim.

— Sempre que acontece você fica reflexivo...

— Sem o fruto da vida viveríamos mais quantos anos? — perguntei,


ponderando a ideia.

— Por que a pergunta? — ele me olhou. Não respondi. — Fomos


criados para sermos imortais. O fruto da árvore da vida não foi feito para os
anjos comerem. Foi feito para os homens comerem.

De fato. A primeira aliança de Deus com o homem foi o fruto da vida.


Em troca da obediência, Ele lhes daria tudo, inclusive a imortalidade. Mas
eles o desobedeceram...

— O que a árvore significa para você, Milorde?

— É um troféu.

— E qual vitória esse troféu rendeu?

— A queda do homem. A prova de que somos superiores aos


humanos. A prova de que o plano da criação foi um erro, de que levou à
queda a terça parte dos anjos... — dei um longo suspiro e atravessei o quarto.

— Esse troféu te faz pensar muito.

— Um pouco.

Eu me pergunto se, assim como eu, eles também comem do fruto


apenas para ter a sensação de estar novamente no céu. De sentir a glória
tocando suas asas. Não é possível que isso aconteça apenas comigo, ou é?

— Ninguém caiu por você. A rebelião nos céus aconteceria de


qualquer modo, com ou sem você. — disse Balthazar passivamente. —
Poderia ter sido qualquer outro grande arcanjo que aconteceria da mesma
forma.
— Oh, isso é verdade. Cada um com sua ambição, cada qual com suas
discordâncias. O céu não é uma ditadura e os anjos não são cavalos com
rédeas. É miserável imaginar que nós, seres celestiais, não teríamos o livre
arbítrio quando parasitas humanos o tem.

Ajeitei minha gravata e puxei o colarinho. Balthazar passou por mim,


parando em minha frente.

— Se importa se eu der uma saída?

— Sinta-se à vontade. Começaremos a trabalhar pesado amanhã. —


ele respondeu com um aceno de cabeça e sumiu em um estampido.

Sacudi a cabeça afastando aqueles devaneios da minha mente. O meu


plano de conquistar o mundo seguia em perfeita execução. Não irá demorar
muito para que eu me sente no trono da Terra...

Senti uma fisgada na cabeça que me tonteou. Ao apoiar uma das mãos
na parede, a vi novamente.

[...]

— Você é tão bonito. — riu, mexendo as pernas no balanço do


parque, enquanto eu a empurrava.

— Todos os anjos são bonitos. No céu tudo é perfeito. — respondi,


tornando a empurrá-la.

— Quando eu morrer irei para o céu?

— Ah, com certeza irá, sim! Recusar-me-ei a recebê-la nos portões do


inferno. — deixei uma risada escapar.

— Você é meu melhor amigo. Irá comigo, não é? — desceu do


balanço e me lançou um sorriso. Uma leve brisa fez seus cabelos ruivos cor-
de-sangue revolutear.
— Claro que estarei. — menti, forçando um sorriso em seguida.

— Você parece triste... — ela me analisou.

— Só pareço, mas não estou!

— Continuo orando por você, sabia?

— Obrigado por acreditar na remissão de um perdido. — gargalhei e


puxando-a pela mão, coloquei-a no escorregador.

[...]

Pisquei os olhos algumas vezes. Novamente essas imagens...


Novamente essas malditas imagens. Soquei a parede com tanta fúria que
causei uma explosão ensurdecedora.

— Malditas imagens! Não quero vê-las! Odeio essas imagens! —


vociferei.

Ouvi ao longe passos apressados se aproximarem. Com um


movimento de dedos coloquei a parede no lugar e abri a porta, saindo no
corredor. Elas surgiram em seguida, assustadas.

Assim que me viram, se entreolharam.

— Está tudo bem? — Cinthia perguntou desconfiada, passando os


olhos por todo o corredor.

— É que ouvimos um barulho... — Gisele emendou.

— Não ouvi nada.

Elas trocaram outro olhar.

— Então... Vamos indo, Milorde...


— É...

— Certo. — assenti com a cabeça.

Mulheres, sempre preocupadas com tudo. Foi só um barulhinho...

Falando em mulheres, lembrei-me dele. Mr. Grey. Entrei novamente


no quarto e, ao parar próximo ao criado-mudo, estiquei uma das mãos
pegando o primeiro livro da trilogia da famosa escritora de romances adultos
E.L James.

Em pouco mais de uma hora li os três livros. Diferente dos humanos,


eu não preciso me concentrar em palavra por palavra, concentro-me em folha
por folha. Um entendimento superior.

Após a leitura, meditei sobre os acontecimentos do romance,


avaliando pontos fortes e fracos.

— Grey é um homem de personalidade forte, arrogante, bilionário,


bonito e disposto a dar tudo que uma mulher quer e precisa, incluindo amor.
Isso tudo, claro, desde que essa mulher faça o que ele quiser ou que ela o faça
querer algo. — pus o indicador nos lábios em riste. — Interessante.

Definitivamente preciso de mais livros para ler. Esse tipo de leitura


que chamam de entretenimento é bem interessante. Comparado aos
manuscritos que tenho lido nos últimos séculos, é inovador.

De todo modo, descobri qual é a fórmula de homem que as mulheres


da atualidade gostam. Não sei se faço esse perfil, mas quem se importa?
Jamais tocarei em uma mortal. JAMAIS!

Esse tipo de leitura é de interesse puramente filosófico...

Apenas para me conscientizar de todos os detalhes do livro, o reli


mais quatro vezes. Quando terminei, já era noite. Espreguicei-me na cama.
Balthazar ainda não havia voltado.
— Onde aquela peste foi? Ah, sem dúvidas está com um dos seus
brinquedinhos humanos... — fiz uma careta. — Se não fosse meu general e
amigo, já o teria expulsado da minha vida.

Um ultraje. Um desrespeito com seu mestre. O que dirão os grandes


generais quando souberem que um dos nossos se relaciona com humanos?
Bufei.

Quando minha barriga roncou, esqueci todos os adjetivos que ainda


iria proferir. Saltei da cama e segui para o andar de baixo. Ao chegar lá,
deparei-me com Cinthia.

— Boa noite, Milorde. — ela se curvou. Após o gesto, endireitou-se e


sorriu. Quase sorri de volta.

Não irá me tentar, boneca de barro. Já me decidi. Irei lhe tratar a


fogo e espada. Não darei brechas, nem nada do tipo, nada....

— Como o senhor Balthazar saiu e não me deixou nenhum aviso,


tomei a liberdade de nos preparar o jantar...

Sentei-me em um dos sofás e segui encarando-a.

— Devido as minhas péssimas qualidades culinárias e as excelentes


de Gisele, encontrei-lhe o cargo ideal: cozinheira.

Cozinheira? Aquela outra humana? Achei que fosse ser a


coordenadora de tarefas. Em todo caso, se entraram em acordo assim...

— E qual é o prato, donzela?

— Pizza.

Pisquei os olhos algumas vezes. Meu estômago roncou e em uma


imersão total naquela iguaria humana, vi várias pizzas voando ao redor da
minha cabeça.
Ela pesquisou sobre mim? O que é isso? Sabe até meu prato
preferido!

— E qual é o sabor da pizza? — perguntei sem demonstrar interesse.

— Frango com Catupiry. — senti um arrepio correr minha espinha.


Em seguida, meu rosto ardeu com a quantidade. — Seis formas. Acho que é o
suficiente.

Soquei o sofá. Ela arregalou os olhos.

— Não gosta? — pareceu apreensiva.

— Não gosto! — Cinthia abriu a boca em espanto. — EU ADORO


pizza. — diante da minha confissão, arranquei-lhe um largo sorriso.

Lembre-se do livro, lembre-se do livro! “Desde que essa mulher faça


o que ele quiser ou que o faça querer algo”.

Em certas coisas me... Difícil dizer, muito difícil, mas ok. Em certas
coisas me assemelho a humanos. Quando estou nervoso, tenho crises de
ansiedade e somente a leitura ou a comida me traz de volta à realidade. Sorte
a minha ser quem sou. Todo mundo consegue imaginar um Lúcifer com
chifres e vermelho, mas nunca vi um Lúcifer gordo. Se metade desses vermes
tivesse vivido na Idade Média, saberiam que ser gordo já foi status de poder,
riqueza e beleza. Não que eu o seja, mas pela comida, seria.

Sem a presença de Balthazar, fui condenado a jantar com as duas.


Elas pareciam satisfeitas com alguns pedaços. Eu, por outro lado, estava na
quarta pizza. Até que notei ambas me encararem, espantadas.

Engoli a última fatia da quarta rodada e peguei o pano ao lado dos


talhares, limpando a boca educadamente antes de forçar um sorriso.

— Gostoso esse prato... — ambas acenaram a cabeça, mudas. — E-E-


Eu gosto bastante de pizza. — acenaram novamente. — Estou comendo
rápido demais, é isso? — aproximei o rosto para frente, curioso para saber a
razão do espanto.

— Não! Não! — elas acenaram as mãos negando a pergunta, como se


fosse uma acusação. Cinthia prosseguiu. — É só que...

— Sim? — aproximei-me um pouco mais, quase subindo em cima da


mesa.

— Nada. — ela encerrou sem graça.

Ainda mantendo os olhos nelas, estiquei uma das mãos puxando a


outra forma. Elas me acompanhavam detalhadamente, sem perder nenhum
movimento e eu retribuía a ação. Peguei outro pedaço, levando-o à boca;
assim que mastiguei e engoli, ergui as sobrancelhas.

— Vocês tem certeza que não estou comendo muito rápido? Sendo
deselegante? — estiquei a mão para pegar outro pedaço.

— Sim. — disseram em uníssono.

Após comer quatro bandejas e meia de pizza, finalmente me senti


saciado. Encostei o rosto na mesa e o segurei com ambas as mãos,
balançando a cabeça de um lado a outro.

— Eu me casaria com uma pizza... — disse, dando um longo suspiro


em seguida.

Após o jantar, pedi licença e me retirei. Agora com as forças das


trevas regeneradas, eu poderia focar novamente nos assuntos pertinentes.

E falando em pertinente, onde está Balthazar? Ele está demorando e


não costuma me deixar sozinho por muito tempo. Será que aconteceu algo...

Não! Definitivamente não! Quem ousaria se meter com o poderoso


general demônio de Lúcifer? Ninguém, em sã consciência, se atreveria a
tocar no meu melhor amigo. Sem dúvida, ele seria fulminado
impiedosamente!

Trinta minutos depois.

— Talvez ele tenha se metido com as bestas galopantes de novo... —


levei uma das mãos ao queixo, acariciando-o. — Também pode ter se
apaixonado, DE NOVO... — revirei os olhos balançando a cabeça. — Mas
também pode ter acontecido algo de ruim... — arregalei os olhos, furioso. —
E SE ACONTECEU, MATAREI QUEM OUSOU ATACAR MEU
AMIGO...

— Está fazendo caso dos poderes de Balthazar, Milorde? — olhei


para os lados, mas não tinha ninguém. — Afinal, se ele é seu mais poderoso
general, então há alguém mais poderoso que os quatro, além de você? —
virei para trás.

Querberus!

— Pergunta pertinente.

Ele bufou, deitando as três cabeças sobre as patas dianteiras, com os


olhos fixos em mim.

— Seus nomes são: Balthazar, Querberus, Amon e Baal. Os meus


quatro generais. Em termos de poder, não diferem um do outro. No entanto...
— ergui o indicador. — Cada um tem sua própria peculiaridade e é isso que
me fez estipular uma hierarquia entre os quatro.

— E como é?

— Balthazar é um grande mestre militar e inigualável estrategista.


Você e Amon são inteligentes e poderosos, por isso também estão no
comando...

— E quanto a Baal? — indagou Querberus.

— Nenhum outro caído ficou tão conhecido quanto eu, exceto Baal.
Talvez, eu o tenha o colocado em uma posição inferior por questão de
orgulho, é verdade. Não me arrependo disso, pois já tivemos alguns
desentendimentos. — sorri de canto. — Traiçoeiro, infiel e, acima de tudo,
apoia o lado que lhe beneficia... Apenas enquanto for conveniente... Ele tem
os seus devotos. — gesticulei com uma das mãos.

— Temos tido muitos burburinhos desde sua ausência no inferno.

— Rebelião?

— Indícios.

— Quem lidera?

— Baal. — deixei um sorriso de canto escapar.

Então ele voltou? Que interessante. Por muito tempo eles sumiram.
Todos eles. Apenas Balthazar permaneceu ao meu lado. Meu fiel e melhor
amigo.

A pergunta que não quer calar: Baal tentará usurpar meu trono outra
vez? Só de imaginar um pouco de emoção em dias tão monótonos, o meu
sangue ardia em brasa.

Se for isso mesmo, que ele venha com tudo que tem!
CAPÍTULO ONZE

PASSEI A NOITE EM VIGÍLIA, aguardando Balthazar. Se ele não


voltasse pela manhã, eu teria de ir procurá-lo. O sol já havia se levantado e eu
começava a enumerar os locais onde ele poderia estar.

— O mais óbvio e primeiro local seria o inferno. Em seguida temos a


Terra, mas ela terra é muito grande, então vamos centralizar a busca no Brasil
e... — parei ao ouvir uma cantoria no andar de baixo.

Franzi a testa em estranhamento. E me teletransportei para o grande


hall. A voz estava vindo da cozinha, então a segui. Ao parar no arco da
entrada, o vi... Cantando?

— L-U-V MADONNA! — ergueu os braços em frente ao fogão. —


Y-O-U, you wanna. — e começando a requebrar o corpo, esfregava os pés no
chão, jogando o tronco na direção contrária. — I see coming and I don’t
wanna know your name L-U-V, Madonna. — pegou a frigideira, saltou para
trás e, ao me ver, o largo sorriso se desfez lentamente, com a panela caindo
de suas mãos.

— Eu estava preocupado com você... — afinei os olhos. — E por mil


demônios, quem é Madonna?

— Perdoe-me pela ausência, Milorde. Fui fazer uma pesquisa de


campo ontem e me deparei com o show da Rainha no Rio de Janeiro. — disse
tentando conter a nítida empolgação em seus olhos.

— Rainha? — estranhei.

Conheço todos os reinados atuais da terra e não conheço nenhuma


Rainha Madonna. Ele reafirmou com uma aceno de cabeça.
— Rainha do Pop. Uma cantora mundialmente conhecida, a maior
entre todas elas, com uma legião de fãs no mundo inteiro. Achei que seria
pertinente avaliar sua postura para talvez...

Show da Madonna? Rainha do Pop? E eu aqui feito uma galopante


infernal relinchando aos quatro cantos da Terra minha preocupação com
você, seu inseto. Afinei os olhos novamente, sentindo todo meu corpo pegar
fogo.

— BAL-THA-ZAAAAAR! — urrei, ele deu dois passos para trás,


escondendo-se atrás da frigideira.

Passada a raiva, sentamo-nos para conversar. Balthazar ainda coçava


a cabeça, devido aos dois galos que lhe dei de presente.

— Você acordou de mau humor... — ele gemeu, com o rosto deitado


na mesa.

— Não. Eu estaria de mau humor se tivesse acontecido algo com meu


melhor amigo...

— Acontecido algo comigo? Com Balthazar, o grande general de


Lúcifer? — saltou, batendo ambas as mãos na mesa, semicerrando os olhos.
— Está fazendo pouco caso dos meus poderes, Milorde? — inquiriu, irritado.

— Claro que não! — ele se sentou aliviado. — Querberus mencionou


burburinhos...

— Sempre há. — respondeu sem dar importância, deitando o rosto na


mesa.

— Baal retornou ao inferno. — Balthazar ergueu o rosto, com os


olhos arregalados. — Indícios do começo de uma rebelião.

— Então vamos expulsá-lo de lá imediatamente, Milorde. —


Balthazar se pôs de pé, com os olhos faiscando. — Aquele.... Traidor!
Parasita bestial! — rosnou.
— Acalme-se, meu amigo. — levantei-me e passei por ele, pondo
uma das mãos em seu ombro. — Isso servirá como um teste.

— Teste?

— Sim.

— Que teste? — não escondeu o estranhamento.

— Os fiéis nos acompanharão na glória quando eu me sentar no trono


da Terra. Os infiéis estarão fadados a permanecer no inferno.

— G-E-N-I-A-L, Milorde. — disse Balthazar todo sorrisos. —


Perdoe-me por duvidar da sua engenhosidade. — gesticulei com a mão como
se aquilo não fosse nada.

— Que hora é agora? — acariciei meu relógio.

— Sete da manhã. — o repreendi com os olhos. — Não sei, Milorde.

— Agora é a hora do herói!

— Às sete da manhã?

— Não podemos deixar os oprimidos sem salvação para nosso


próprio deleite. — ergui o indicador.

— Sobre isso... — Balthazar se levantou e com um estalo de dedos,


um aparelho surgiu em cima da mesa. — Um rádio.

— Isso é para ouvir música, não é? — semicerrei os olhos. — Para


que precisamos de um rádio quando eu posso ouvir tudo e todos? — ergui as
sobrancelhas.

— Temos duas ilustres visitantes em casa que não sabem o que


somos. Não é prudente usar nossos poderes com tanta frequência. — ele
ponderou.

— Certo. — acenei com a mão. — Então, qual é a função desse


objeto?

— A maioria serve para ouvir música, mas esse é diferente, Milorde.


— me desarmei. — Este é sintonizado com a polícia. Com isso, poderemos
surgir diante dos grandes casos.

— Grandes casos? — arqueei uma sobrancelha.

— A população preza muito a polícia combatente. Ouvi muita


insatisfação quanto a roubos de bancos. Os bandidos estão sempre armados
e...

— Meu querido Balt, nós somos os bandidos. — gargalhei.

— Vossa Onipotência não decidiu ser um herói? — ergueu as


sobrancelhas. Dei um longo suspiro.

— Força do hábito... — balancei a cabeça.

Ele ligou o rádio. Sentamo-nos para ouvir.

“Assalto à mão armada em uma panificadora... Indivíduo suspeito


percorrendo a Avenida Paulista, supostamente armado... Chamada de
urgência na região central, assalto ao supermercado X-Baratão”.

— Hoje não me parece ser um dia propício para assalto a bancos...

— Nos resta aguardar.

— Poderíamos controlar humanos comuns e... — ergui o indicador,


abrindo um sorriso maquiavélico.

— Não!
— Ok. Ok.

— Depois do incidente da praia...

— Já entendi.

Ouvimos passos. Balthazar sumiu com o rádio. Gisele surgiu em


nossa frente. Os cabelos presos em um coque, saia abaixo dos joelhos e uma
blusa longa, cobrindo os braços.

— Bom dia. Com frio? — perguntei.

— Bom dia, Milorde. — acenou a cabeça e voltou-se a Balthazar,


sorrindo. — Bom dia, Lorde Balthazar. — deu um longo suspiro, passando as
mãos pela saia. — Um pouco.

Por que diabos está de saia então, mulher? Pensei em perguntar, mas
temi pela resposta. Talvez ela não percebesse, mas suas olhadas para
Balthazar ficavam cada vez mais nítidas.

— Querem algo de especial para o café da manhã? — atravessou a


cozinha, pôs um avental e ligou o fogão.

— Qualquer coisa nos serve. — disse Balt.

Nós não temos necessidades como os humanos. Não precisamos


comer para nos manter vivos. Comemos por gostar de comer. A única coisa
que gostamos de fazer com tanta frequência, até mesmo mais que comer, é
sexo.

— Onde está Cinthia? — perguntei.

— Ah, ontem à noite ela entrevistou uma moça para trabalhar no


jardim. Elas ficaram até tarde falando sobre a função. Quando acordei, ela
ainda estava na cama... — respondeu entre um bocejo, de costas para mim,
aparentemente preparando ovos mexidos. — Cinthia parece estar tendo
problemas para contratar novos funcionários. Mesmo com salários altos, as
pessoas temem o que chamam de Palácio de Lúcifer. — explicou, sem
demonstrar medo ou receio no tom de voz.

Balthazar e eu trocamos olhares.

Nenhuma delas acredita nos boatos. Ele me enviou sinfonias de ar.

É o que parece. Respondi.

— Tenho certeza que Cinthia logo encontrará pessoas aptas para o


cargo. — levantei-me.

Em passos lentos, segui para o grande hall, com Balthazar


acompanhando-me, mas parei quando ouvi me chamar:

— Milorde?

— Sim? — voltei-me para trás, encarando-a fixamente. Cinthia estava


de prontidão, nos pés da escada.

— O que é aquele pé de frutas douradas? Nunca vi igual. Ontem,


antes do anoitecer, Gisele e eu demos uma olhada... — arregalei os olhos.

Ao sentir minha apreensão, Balthazar interviu educadamente:

— São frutas bonitas, mas extremamente mortais. Uma simples


mordida resultaria na sua morte. Entende o que quero dizer, Lady Cinthia? —
ele disse sério, antes de tombar a cabeça para o lado e sorrir. — Para seu
próprio bem, não coma aquela fruta. Nenhuma de vocês duas. É estritamente
proibido.

— P-P-Perdoem nosso atrevimento. Não foi nossa intenção...

— Está tudo bem. — respondi sem emoção alguma. — Apenas


fiquem longe daquela árvore. Ela é perigosa... — aos humanos. Quis dizer,
mas as palavras travaram.
Por mais que eu busque meios de tirá-la dos meus pensamentos, não
consigo. Desprezo toda a raça humana, mas não ela. Quero todos os humanos
o mais longe possível de mim, assim como quero Cinthia cada vez mais
próxima.

Tento não pensar, tento não imaginar, tento não vê-la em meus
pensamentos. É impossível. A mortal mexe comigo. E eu não gosto disso.

Sem dar mais importância, segui para o grande hall. Balthazar me


acompanhou.

— Erga uma barreira ao redor da árvore da vida. AGORA. — ordenei


entre sussurros.

— Não acredita na fidelidade delas?

— Adão e Eva eram fiéis, mas a curiosidade está acima de qualquer


fidelidade. Agora vá e faça o que mandei. — ele acenou com a cabeça e
sumiu em um estampido.

Uma única mordida naquela maçã fez com que toda a humanidade
caísse em pecado, perdendo o privilégio de ser imortal. Se um mortal o
comesse, não tenho dúvidas de que morreria. Não só isso... Acredito que...
Estaria fadado às profundezas do inferno para todo o sempre.

Para todo sempre... Murmurei comigo mesmo.

Em um novo estampido, Balthazar surgiu em minha frente.

— Feito.

— Ótimo.

— Milorde, se me permite... — sorriu, mostrando os dentes. Sei o que


vem a seguir. Acenei com a cabeça. — Está... Hum... Adquirindo afeição
pela humana? — perguntou, escolhendo as palavras cuidadosamente,
adotando um tom de seriedade.
— Talvez. — ele arregalou os olhos e abriu outro sorriso. — Acha
que... — comecei, mas parei, desprezando a questão com um aceno de mãos.

— Continue.

— Outra hora. Preciso pensar.

O que eu queria dizer na verdade era: acha que seria possível que uma
humana, uma mortal, e o Rei dos Demônios...

Sacudi a cabeça. Bobagem! Kirel está certa. Ela é a mulher mais apta
a estar ao meu lado, mesmo eu não sentindo o mínimo afeto por ela.

— Se te conforta... — Balthazar parou em minha frente e aproximou a


boca do meu ouvido. — Também me apaixonei por um mortal. — disse,
afastando-se.

Deixei um sorriso de lado escapar. Então aquela fuga repentina não


foi apenas para assistir um show.

Ao notar meu sorriso, pôs ambas as mãos na cintura.

— Não vai me xingar? — dei de ombros. — Brigar? Fulminar?


Chicotear? Pregar na cruz? Empalar?

— Não. — dei risada, lembrando-me das vezes que tentei fazer isso e
todas foram em vão.

— Você é como um irmão para mim e sabe disso. Se isso te faz


feliz...

— A mortal realmente te alcançou, Milorde. — ele sussurrou,


contendo a empolgação.

O que você quer dizer com alcançar?


CAPÍTULO DOZE

A ROTINA SEGUIU. MANTIVE-ME distante dela. Eu não a


queria por perto. Isso nos enlaçaria ainda mais. Balthazar continuava
sintonizado nas notícias do rádio que, de minuto em minuto, anunciava um
delito.

— Acho que não teremos sorte hoje... — comentei entediado.

— Infelizmente devo concordar. — suspirou, tocando o indicador


repetidas vezes no aparelho.

“Alerta! Mosquitos gigantes invadiram o centro de São Paulo. E


também há... O que é isso? É do tamanho de um jato. Precisamos de reforços.
Repito, precisamos de reforços, central...”.

A voz sumiu, dando espaço a um zumbido estridente e irritante.


Balthazar ergueu-se rapidamente, lançando-me um olhar.

— Sugas-Aladas!

— É o que parece. Contudo... — cocei o queixo. — Como elas


atravessaram os portões?

— Creio que já sabe a resposta, Milorde. — ele disse e eu ri. — Pelo


visto, Kirel realmente levou a ideia a sério...

Sugas-Aladas são grandes mosquitos-vampiros, sugadores de sangue.


Inofensivos, desde que sua picada seja tratada em menos de vinte e quatro
horas. Os efeitos colaterais são: tonturas, alucinações e desmaios. Elas não
costumam matar, pois veem os humanos como gado, assim bebendo o
suficiente para mantê-los vivos e depois retornar para outra refeição,
mantendo um ciclo eterno; elas são inofensivas aos demônios.
— Vamos. — pus-me de pé, teletransportando-me para o local do
conflito. Balthazar veio logo atrás. Pousamos no alto de um edifício, no
centro. — Quantos?

Balthazar afinou os olhos e girou o corpo. A nuvem de sugas-aladas


cobria toda a cidade com suas sombras. Ele parou, pensou e voltou-se a mim.

— Duzentos mil. — piscou e ergueu os dedos em forma de “V”.

— Onde está a Rainha? — com um estalo de dedos, vesti minha


armadura.

— Fora do meu campo de visão.

— Então vamos nos dividir. — ele concordou com a cabeça.

Num bater de asas saltei do prédio, planei nas correntes de ar e com


os olhos, iniciei minha procura pela rainha. A gritaria parou, as pessoas
cessaram.

“Ele voltou”.

“Um anjo nos céus”.

“Lúcifer veio nos salvar”.

Suas vozes ecoavam em minha cabeça. Um sorriso de canto escapou


dos meus lábios. Bati as asas novamente e cruzei uma avenida. A rainha
estava no meio de uma praça, em cima de um coqueiro, construindo seu
ninho, dando vida a uma nova prole; centenas de milhares.

Pousei na praça. A multidão parou. Estavam hipnotizados. As sugas-


aladas pareciam não incomodá-los mais. Assim que me aproximei, um
enxame veio em minha direção, rodeando-me. Ergui uma das mãos aos céus
e uma bola de fogo surgiu ao meu redor, consumindo todos aqueles vermes
voadores.
Dei outro passo à frente. Um portal surgiu entre mim e a Rainha. Dele
saiu Kirel. Um longo vestido negro, com um “V” no decote; uma coroa de
insetos serpenteando sua cabeça.

— Ora, ora, ora... Se não é o poderoso Lúcifer. — disse em tom


irônico, abrindo um sorriso abusado.

— O que significa isso? — pus ambas as mãos na cintura, espiando


ao redor. Os bichinhos de estimação da minha ex agora estavam
concentrando-se exclusivamente em mim.

— Pensei em nos divertirmos um pouco. — Kirel estalou os dedos.

A rainha das sugas-aladas explodiu, deixando uma gosma roxa no


chão, de onde surgiram outras dez, que repetiram o processo consecutivas
vezes. Já não era mais uma, eram centenas.

Por mil demônios! Isso vai dar um trabalho...

— Tchau, Lu. — Kirel piscou para mim, acenando ironicamente e


sumiu em um estampido.

— Mulheres... — bufei.

Com um movimento dos dedos, criei uma onda de vento cortante que
explodiu todos os filhotes, deixando apenas as maiores e a rainha, que agora
tinha o dobro do tamanho de antes. Esse é um inseto infernal curioso: as
sugas-aladas são todas fêmeas e se reproduzem sem a participação de um
macho ou como os humanos dizem, são animais que se reproduzem
assexuadamente.

— Agora só faltam as grandalhonas... — passei a mão na testa,


tirando um quase pingo de suor. — Eu não a tratei tão mal para me dar esse
trabalhão todo. Tratei? — perguntei a mim mesmo.

Um grito agudo irrompeu meus pensamentos. Fixei os olhos em uma


garotinha a minha frente. Ela estava sendo carregada por um dos clones da
rainha. Ao cravar o pé direito no chão, saltei e, num bater de asas, cortei a
criatura ao meio.

Antes que a pequena caísse, peguei-a nos braços, pousando


lentamente. Ela me encarou curiosa, mas seus olhos também refletiam medo.
Coloquei-a no chão sem dizer nada e ela ficou parada, encarando-me.

— Procure por seus pais, criança. — com outro impulso, saltei


novamente, batendo minhas asas.

Fui eliminando uma a uma, até que sobrou apenas a rainha, a


verdadeira. Ela parecia estar se preparando para dar vida à outra ninhada
quando arremessei minha espada em sua cabeça, fazendo-a queimar inteira.

— Finalmente... — disse a mim mesmo.

Temos outro problema, Milorde. Ouvi Balthazar. Olhe ao seu redor.

Olhei. Vários humanos caídos no chão. Alguns com feridas abertas e,


por sorte, nenhum morto, ainda. Ergui o indicador aos céus e proferi um
encantamento:

— Sonitu examen sese omnibus ignibus! — uma esfera de luz surgiu


na ponta dos meus dedos, iluminando toda a cidade.

Os que estavam deitados se levantaram e os de pé se aproximaram,


mas não deixei que chegassem muito perto. Curei-os todos, retirando o
veneno das sugas, libertando-os do mal.

Novamente, bati as asas e segui patrulhando as ruas, conferindo se


não havia sobrado nenhuma daquelas pestes.

Após a patrulha, pousei em um arranha-céu. Um dos inúmeros de São


Paulo. Balthazar sentou-se ao meu lado.

— Kirel está furiosa.


— Notei. — dei de ombros.

— Devemos castigá-la. — sugeriu Balthazar, socando o punho na


mão aberta. — Ela merece.

— Não foi tão ruim. Ao menos o herói apareceu outra vez. — avaliei
a situação de modo positivo.

— O herói será associado OUTRA VEZ com acontecimentos


sobrenaturais! — Balthazar, como sempre do contra, avaliou com
pessimismo.

Silêncio.

— Os planos estão seguindo como esperado, Milorde?

— Alguns.

— Quais fogem às suas ambições?

Quais? Só uma coisa foge às minhas ambições, meu querido


Balthazar.

Dei um longo suspiro e abaixei a cabeça, vendo as pessoas tão


pequenas como formigas. A humanidade é tão irrelevante diante de nós e
aqui estou eu, vez ou outra me pegando imerso no rosto de uma humana, da
única humana que me desperta um sentimento estranhamente bom.

Ignorei a pergunta.

— Já se imaginou vivendo como um mortal? — perguntei sem


segundas intenções. Eu apenas queria fugir daquele assunto.

— Gosto dos mortais, mas minha simpatia não chega a tanto.

— Notei. — sorri de canto.


— Só uma coisa me impede de me ver como um mortal.

— Os poderes?

— Ah, então são duas coisas. — ergueu um dedo. — Primeiro e mais


importante é a mortalidade. A ideia de morrer não me desce. — ergueu outro
dedo. — Segundo, eu realmente não saberia lidar com uma vida sem poderes
após tantos milênios... — gargalhou.

Novamente o silêncio.

— Como ele é?

— Ele quem? — olhou-me sorrateiramente, deixando suas bochechas


corarem.

— O seu amado mortal.

— Não sei do que está falando. — mentiu, dando de ombros. Revirei


os olhos e dei um longo suspiro.

— Não quer mentir para o pai da mentira, quer? — rimos.

— Ele é diferente...

— Percebe-se. Você sempre preferiu mulheres mortais, mas dessa vez


escolheu um homem.

— Quase homem. Na nossa idade ele seria um bebê. Entre os mortais


ele se tornou adulto há pouco tempo. Yuri tem vinte anos. — Balthazar sorriu
ao mencionar o nome dele.

— Então o meu cunhadinho se chama Yuri. — brinquei, bagunçando


os cabelos de Balthazar.

— Sabe... Às vezes eu queria que eles fossem imortais como nós...


Assim eu não teria tanto receio de encarar um amor temporário. — confessou
com tristeza, suspirando em seguida.

— Humanos imortais? — grunhi. — Se como mortais conseguem


causar todo esse estrago na Terra, imagina se fossem imortais? Eles já teriam
chegado ao fim.

— Nem todos são maus.

— A maioria é, em proporções diferentes, claro, mas isso não muda a


maldade em seus corações. Olhe para a Terra, lembre-se de como era e agora
compare. Viu o que eles fizeram com o paraíso?

— Também temos culpa nisso.

— Não sei se devo concordar. — bufei.

— Lúcifer. — ele me chamou, com firmeza na voz. Voltei meu rosto


ao dele e nossos olhos se fixaram. — Se você amasse uma humana...

— Desconheço o que é amor. — o interrompi.

— Certo. Se um dia, porventura, você viesse a amar uma humana e


soubesse que não poderia tê-la pela eternidade por conta de uma ação sua no
passado, como se sentiria?

Arregalei os olhos.

Nunca parei para pensar nisso. É a primeira vez que isso me vem à
mente. Se um dia eu amasse uma mortal e não pudesse tê-la eternamente por
um erro meu, como eu me sentiria?

Eu me sentiria uma completa desgraça!

Balthazar sorriu. Ele parecia ter lido meus pensamentos. Abaixei a


cabeça, envergonhado. Eu, Lúcifer, me pondo a pensar em atitudes passadas
por conta de uma mortal? Heresia!
— Não sei mais definir o que é amor. — confessei.

— Amor não pode ser definido. Amor só é amor quando se é sentido.


— Balthazar sorriu, pondo a mão no próprio peito. — Aqui e aqui. — em
seguida, tocou a cabeça.

— Então...

— Então quando você amar, vai saber que está amando. — ele me
interrompeu.

Eu não tenho certeza, mas acho que...

Um grito agudo ecoou em minha cabeça. Eu conhecia aquela voz.


Levei ambas as mãos às têmporas, massageando-as. Ouvi outra vez e outra.

Um pedido de socorro... Um clamor... Essa voz é... É a voz de


Cinthia.
CAPÍTULO TREZE
POR CINTHIA

APÓS AQUELE EMBARAÇO SOBRE as frutas douradas, segui


para a cozinha. Gi estava preparando o café da manhã. Sentei-me à mesa e
abri a boca, bocejando.

— Bom dia.

— Bom dia. — esfreguei o rosto, um pouco cansada.

— E aí, a moça de ontem vai começar a trabalhar ou fugiu como os


outros? — olhou de soslaio, sem perder a atenção dos ovos mexidos que
preparava.

— Ela topou fazer o teste hoje. Seu currículo é bem longo, de


respeitável experiência. — comentei. — Achei-a um pouco estranha...

— Estranha como?

Como? Hum... Os seus cabelos tingidos de verde parecem ser tão


naturais. E o seu corpo... Ela parece uma musa fitness. Ela deve amar muito
as plantas, pois poderia ganhar uma nota como youtuber ou divulgação no
instagram.

— Ah, acho que ela é uma mulher muito bonita para a função. Quero
dizer, ela teria opções melhores, não é?

— Uma mulher, bonita ou não, tem muitas opções. Nosso lugar é


onde escolhemos estar. — Gi desligou o fogo, pegou a frigideira e trouxe até
a mesa, colocando nosso café em uma grande tigela. — Se uma mulher quer
ser empresária ou mesmo dona-de-casa, qual é o problema? — deu de
ombros. — Século vinte e um e ainda temos que justificar nossas escolhas. —
revirou os olhos. — Se eu quisesse ser puta, ninguém teria nada a ver com
isso! O corpo é meu, faço dele o que eu quiser.

— Se você fosse puta, não teríamos ficado na merda. — gargalhamos.

— É bem provável que não. — concordou com bom humor.

— Vou chamar Milorde e Lorde Balthazar para o café... — levantei-


me.

— Cuidado para seus olhos não te traírem. — piscou em tom


sugestivo, me fazendo corar.

— Cuidado para não pecar como eu. Acha que não notei suas olhadas
para Lorde Balthazar? — contra-ataquei.

Dizem que a melhor defesa é o ataque. Ela respondeu com um sorriso.


Gisele corando? Nunca.

Segui para o grande hall, mas não havia ninguém. Subi as escadas
procurando-os nos quartos e nada. Então adotei outra tática. Os chamei pela
mansão inteira, mas ninguém respondeu. Exausta, segui novamente para a
cozinha.

— Eles já estão vindo? — perguntou, terminando de cortar os pães ao


meio, colocando-os perfeitamente alinhados em uma bandeja.

— Acho que saíram. — sentei-me à mesa novamente.

— Aqueles dois são tão estranhos... — ela franziu a testa, com mais
uma de suas insinuações.

— Não! Definitivamente eles não são gays! — sorri ao afirmar aquilo


com toda convicção.

— Eles vivem grudados...


— Que feio! — afinei os olhos. — Eles são amigos e estão sempre
juntos. Que mal há nisso? — balancei a cabeça, descartando completamente a
ideia de aqueles dois terem algo além de pura amizade.

— É melhor pensar assim mesmo. Aquele Balthazar... — mordeu os


lábios, sentando-se.

— Cuidado para seus olhos... — trocamos sorrisos.

Após o café-da-manhã, reunimo-nos no grande hall. Assim que o


relógio indicou nove horas da manhã, a moça entrou pela porta principal.
Pontual como havia dito.

Gi e eu nos levantamos. Kirel aproximou-se em passos lentos. Os


cabelos esverdeados presos em um coque. Ela estava vestida como uma
executiva, usando uma maleta de mão.

— Não era uma jardineira? — comentou entre sussurros.

— O meu plano de trabalho é um pouco diferente. — pelo visto, Gi


não comentou baixo o suficiente. — Primeiro analiso o jardim, depois ponho
as mãos na massa. — abriu um sorriso de canto. — Gosto de fazer jus ao que
cobro.

Atendendo a regra hierárquica da ética profissional, Gi a


cumprimentou com um aceno de cabeça e se retirou, seguindo para a cozinha,
para provavelmente estudar o que faria no almoço. Depois de uma indireta
daquelas: gosto de fazer jus ao que cobro, qualquer funcionário entenderia o
recado.

Cargos com alto salário atraem muitos pretendentes. No momento,


com toda essa história sem fundamento sobre o palácio pertencer a Lúcifer,
não temos tido candidatos, mas quando a ideia cair no esquecimento, de fato
haverá uma grande disputa.

— Se você demonstrar metade da maestria que seu currículo indica,


acredito que estaremos bem amparadas. — comentei, apontando uma
poltrona com as mãos.

Kirel sentou-se, abriu um sorriso de canto e pôs sua maleta no colo.


Assim que a abriu, retirou um mapa enrolado, abrindo-o. Era um
demonstrativo dos nossos jardins. Realmente impressionante para quem os
viu uma única vez.

— Tomei a liberdade de enumerar as áreas da propriedade em que


vou trabalhar. — apontou com o indicador os “x” nas áreas do mapa,
divididas por números. — Pretendo começar pelo grande jardim frutífero.
Sua numeração é a um, pois indica que há uma grande necessidade de
cuidado imediato. Algum problema quanto a isso?

— Temos uma árvore um tanto perigosa. Segundo meu patrão, seus


frutos são venenosos... — sorri sem graça.

— Não é bem minha praia, mas posso avaliar a árvore se...

— Não, não! Recebi ordens diretas para não tocar nos frutos. —
acenei com as mãos, reforçando a negativa.

— Tudo bem. Vamos começar? — levantou-se.

— Sim.

Guie-a até o jardim frutífero. Começamos analisando as laranjas,


depois os pêssegos, passamos por alguns pés de amora e paramos nas
macieiras.

— Essas parecem saudáveis. — ela colheu uma do pé, observando-a


atentamente.

— Parecem mesmo.

— Há alguns fungos nas folhas, mas nada que um fungicida não


resolva. Que tal colher algumas laranjas enquanto seleciono algumas maçãs?
— ergueu as sobrancelhas, sorrindo.
— Tudo bem.

Segui para as laranjeiras, onde comecei a colher algumas frutas. Olhei


por cima dos ombros e não vi Kirel em lugar algum. Provavelmente ela
seguiu mais para frente. De repente, ouvi o som de uma pequena explosão,
vindo do centro do jardim.

— Kirel? — deixei as laranjas caírem e corri na direção do ruído. —


Kirel? Está tudo bem?

— Sim. — senti meu coração vir à boca, virando-me bruscamente


para trás. — E-Eu não vi você chegar...

— Eu estava colhendo maçãs... — sorriu e, esticando a palma da mão


aberta, me mostrou uma enorme maçã vermelha, tão vermelha que parecia ser
de porcelana. — Isso que eu chamo de um belo exemplar.

— É linda e muito grande. Nunca vi uma maçã desse tamanho, exceto


as douradas... — meus olhos brilharam.

— Essa é sua... — ela sorriu, entregando-me.

— Não que levar nenhuma outra? — perguntei, levando a maçã à


boca, mas a abaixei novamente. — Seria um desperdício não lhe dar um
pedaço...

— Já estou com a minha. — ela retirou dos bolsos outra fruta idêntica
a minha.

Continuamos examinando as árvores frutíferas, uma a uma. Estava


quase na hora do almoço quando resolvemos fazer uma pausa. Seguimos para
o grande hall, onde sentamo-nos, exaustas.

— Estou toda suada... — reclamei, passando a mão no rosto.

— Realmente está fazendo calor hoje. Tome um banho, isso vai te


deixar mais relaxada. — sugeriu, levantando-se. — O meu trabalho por hoje
acabou. Até amanhã. — acenou com uma das mãos.

— Vou te acompanhar. — levantei-me, alcançando-a em passos


largos.

— Não é necessário, Lady Cinthia. Nesse momento a única coisa de


que você precisa é de um banho. — ela disse, sorrindo. Curvou a cabeça mais
uma vez e atravessou a porta principal.

Assim que a porta se fechou, ergui os braços me cheirando para


conferir se havia algo errado. Suspirei aliviada ao descobrir que a sugestão
não tinha nada a ver com qualquer odor. Era apenas referente ao calor e ao
suor. Também, pudera, passei o dia inteiro andando por aquele imenso
jardim!

Sem demora, subi para o quarto. Assim que entrei, fui em direção ao
guarda-roupa. Separei algumas peças e comecei a me despir. Ao tirar o
casaco, notei que a maçã estava em um dos bolsos. Ela parecia tão saborosa,
suculenta e eu estava com tanta fome. Se não estivesse tão longe, eu gritaria
para perguntar a Gi se o almoço já estava pronto.

Sentei-me na cama, peguei a fruta e, ao aproximá-la dos lábios, um


desejo incontrolável de comê-la me tomou. Dei uma farta mordida,
mastigando-a. Um líquido mais que saboroso tomou minha boca, me fazendo
desejar por mais. Só dei-me conta de que a havia comido toda quando estava
lambendo os dedos.

— Milorde realmente tem um ótimo gosto para frutas. Suas maçãs


são... — senti minha visão se embaralhar e meu corpo amolecer.

O que está acontecendo?

Caí no chão, sentindo falta de ar. O som de um salto ecoou pelo


quarto. Graças a Deus, Gi! Tentei erguer o rosto, mas não consegui. Ouvi
apenas o som de algo caindo no chão. Procurei com os olhos e encontrei a
outra maçã, idêntica a minha. Ela parecia estar mudando de cor; antes
vermelha, sua tonalidade agora era cor de ouro...

— Os mortais são tão ingênuos... — não reconheci a voz de imediato,


mas ao mover um pouco a cabeça, vi cabelos esverdeados e um rosto
conhecido. Kirel!

Sem conseguir esboçar outra reação, minha visão escureceu.

[...]

Acordei com cânticos angelicais. Tão belos e encantadores que senti


uma imensa vontade de sorrir. Olhei ao meu redor e vi um mar de nuvens
brancas. O céu era de um azul-claro intenso. Eu poderia admirá-lo por toda a
vida. Olhá-lo me enchia com uma sensação de paz e sossego.

As minhas vestes já não eram as mesmas. Eu estava usando um


vestido branco. Arregalei os olhos ao sentir algo pesado em minhas costas.
Ao levar minhas mãos para tocá-las, senti penas, inúmeras delas.

— O que é isso? — sussurrei, apavorada com aquilo.

— São suas asas. — uma doce voz respondeu, fazendo-me virar para
frente. A luz intensa obrigou-me a erguer os braços para proteger os olhos. —
Não tenha medo. Venha até mim, Cinthia.

— Q-Quem é você? — gaguejei. Eu estava completamente zonza com


a ideia de ter asas. — Onde estou?

— Sou Adrimetriel, o Serafim, o guardião dos Portões Divinos do


Santo Deus. — explicou. A luz começou a se dissipar. Primeiro vi sua face,
seu corpo e me maravilhei com suas grandes asas; oito pares no total.

Seus cabelos longos e louros arrastavam-se ao chão, mas seus pés não
o tocavam. Ela flutuava no ar. Seus traços eram perfeitos e a energia que
emanava da sua luz me fazia sentir acolhida.

— Estou morta?
— Não.

— Por que estou aqui? — senti minha voz tremular.

— A pergunta a ser feita é: por quem você está aqui. — ela sorriu e,
ao deslizar a mão pelo ar, uma espécie de círculo surgiu e nele eu me vi
criança, ajoelhada, com as mãos unidas religiosamente. — Quando pequena
você orou e clamou por alguém...

— Por quem?

— Dia após dia você rezou, incessantemente. — com outro


movimento de mãos, o círculo sumiu. — O todo-poderoso Deus ouviu o seu
clamor e lhe deu uma missão, Cinthia. — sorriu, usando de uma ternura única
no rosto.

— Missão? — continuei sem entender.

— Há muitos milênios, houve alguém que subiu tão alto que tocou os
pés do trono de Deus. Ele era amado e admirado pelos demais, mas nele
havia uma crescente sede de poder... — suspirou, em tom de lamentação. —
Quando o homem foi criado, seu orgulho, já ferido, foi destruído. Ele
recusou-se a ajoelhar diante daquele que foi criado à semelhança de Deus, o
homem, pois afirmou ter vindo do... — seus lábios se mexeram, mas não a
ouvi.

Uma luz intensa tomou tudo novamente. Outra vez cobri o rosto com
os braços.

— Jamais se esqueça de que você é o plano da remissão. Você


clamou e o todo-poderoso Deus ouviu sua súplica. — sua voz parecia cada
vez mais longe.

Por quem eu orei?

Por mais que eu me esforçasse para lembrar seu nome, não conseguia.
Apenas via um homem ao meu lado, com um sorriso afetuoso e repleto de
alegria, acompanhando-me. Foi por ele que eu orei? Foi por ele que eu
clamei? Quem é ele? Como o chamam?

Quis gritar, perguntar um pouco mais. Quis entender o que havia


acontecido ali. Teria sido um sonho? Uma sensação de moleza tomou-me
novamente e caí. Caí sobre plumas brancas que me fizeram emergir no mais
profundo sono, tão tentador que me recusei a resistir. Apenas fechei os olhos,
entregando-me por completo.
CAPÍTULO QUATORZE

SURGI NO GRANDE HALL. Imediatamente senti um aroma


singular na mansão. Uma leve corrente de vento trouxe consigo folhas
verdes, marcadas ao centro com o emblema da maçã da vida. Meu corpo
tremeu e paralisei por alguns instantes. Uma aflição me tomou por completo.

— Milorde? — Balthazar me chamou.

O som de xícaras quebrando-se ao chão, atadas ao tilintar da bandeja


de metal roubou nossa atenção. Viramos para o lado, em direção à cozinha.
Gi estava de pé, encarando-nos, visivelmente assombrada.

— Como foi que... — estalei os dedos, colocando-a para dormir. Gi


fechou os olhos, balançando de um lado a outro, ainda de pé. — Leve-a para
o quarto. — ordenei e, em marcha, subi as escadas.

O meu peito se apertava conforme eu me aproximava do quarto dela.


Ao tocar na maçaneta, senti um frio súbito percorrer minha espinha.

— Preocupado com sua mortal? — virei para o lado, deparando-me


com Kirel.

— O que está fazendo aqui? — inquiri, fechando o cenho.

— Somente eu estou apta para reinar ao seu lado, Lúcifer. — abriu


um sorriso de lado, desaparecendo no ar.

Desgraçada!

Senti meu corpo todo pegar fogo, arder em chamas. Uma coluna em
brasas ergueu-se ao meu redor. Os meus batimentos cardíacos eram tão fortes
que eu conseguia ouvi-los, mixando-se à minha respiração descontrolada.
O que me separava dela era apenas aquela porta, mas eu estava com
medo. Medo de encontrá-la morta. Quanto mais eu pensava, mais nervoso
ficava. Num ímpeto de coragem, atravessei as portas, incendiando-as.
Procurei-a com os olhos pelo quarto, mas não a encontrei.

— Cinthia? — senti minha voz falhar quando meus olhos fixaram-se


em seus pés. Ela estava caída do outro lado da cama. Precipitei-me em sua
direção. Ajoelhei-me e a tomei nos braços. — Cinthia? — ofeguei entre as
palavras. — Donzela... Fale comigo. Fale comigo... — supliquei entre
sussurros.

Pela primeira vez em muitos milênios senti meus olhos arderem e


nublarem, como uma tempestade pronta para despejar sua dor.

Tudo está perdido. Tudo está...

Meus devaneios foram interrompidos por sua respiração fraca e


profunda. Um sorriso tímido surgiu em meus lábios. Recompus-me
imediatamente, colocando-me de pé com ela em meus braços. Admirei-a
alguns segundos mais e a deitei na cama, sentando-me ao seu lado; tomei sua
mão sobre a minha, acariciando-a.

— Milorde... — Balthazar atravessou a porta do quarto e parou ao


lado da cama. — Sinto muito... Eu ergui a barreira como me foi ordenado...
Não sei como isso aconteceu... — abaixou a cabeça, escondendo a culpa que
seus olhos carregavam.

— Foi Kirel...

— Kirel? — Balthazar ergueu o rosto, surpreso. — Faz sentido.


Nenhum mortal conseguiria atravessar aquela barreira. Mas... — virou o
rosto para o lado. — Como seu general, eu deveria ter estudado todas as
possibilidades. O erro foi meu por ter erguido uma barreira simples...

— Pare de se culpar! — vociferei. — A culpa não é sua. Não é dela.


Só há uma culpada nisso tudo.
— Mas... — ele hesitou, passou o braço pelo nariz molhado e acenou
com a cabeça. — Sim, Milorde.

— Precisamos entender o que aconteceu. — nem eu mesmo sabia.


Havia um conflito de ideias e situações em minha mente que me impedia de
tomar qualquer conclusão sensata.

— Acho que tenho uma suposição... — Balthazar levou a mão ao


queixo, acariciando-o.

— Diga!

— O fruto da vida ainda não atingiu seu estado de maturação. Isso


deve explicar o porquê de Cinthia ainda estar viva... — começou Balthazar,
andando de um lado a outro. — No entanto, aparentemente, o fruto a colocou
em um estado de sono profundo. Além de também ter outras consequências.

— Consequências? — franzi a testa.

— Uma mortal em pecado comeu o fruto da vida e não morreu. Claro


que haverá consequências. Só não sabemos quais, ainda... — parou,
encarando-me. — A questão pertinente agora é fazê-la acordar.

— Como?

— Não faço ideia, Milorde. É a primeira vez em toda a história da


humanidade que um fato como esse acontece.

— Preciso pensar... Preciso pensar... — murmurei comigo mesmo.

— O que faremos em relação à senhorita Gisele?

— Seria um problema se ela acordasse no atual momento em que nos


encontramos.

— Pretende deixá-la dormir até Cinthia acordar? — não escondeu a


surpresa. — Mas e se Cinthia não...

— Ela vai! — o interrompi.

Pense! Pense, homem! Necessitamos de alguém com sabedoria,


extrema sabedoria e...

Arregalei os olhos, abrindo um largo sorriso.

— As Senhoras do Destino. — sussurrei.

— Presente, Passado e Futuro? — Balthazar acenou com a mão. —


Não! Sequer vão nos receber.

— Por que não?

— Por que não?! Já se esqueceu que você se recusou a dar a elas a


coroa de espinhos? — ele revirou os olhos, andando de um lado a outro.

— Isso tem dois milênios.

— Elas têm uma ótima memória. Garanto!

— É um item de colecionador. — justifiquei. — Eu não podia dar,


tem um valor sentimental para mim. — Balthazar repreendeu-me com os
olhos. — Não posso oferecer outra coisa?

— Ah, com certeza vão querer a coroa e algo mais. Você fez uma
desfeita tremenda a elas. — ele disse, confirmando com um aceno de cabeça.

— O quê, por exemplo?

— Não sei. Talvez a estátua de Nabucodonosor ou mesmo a Torre de


Babel que não chegou a ser concluída... — senti um tremor abalar minhas
pernas.

— São itens únicos... — gemi.


— Os itens ou Cinthia. Você escolhe, Milorde. — Balthazar cruzou
os braços.

Voltei meus olhos a ela. O rosto pálido, os cabelos caídos sobre a


face, os lábios quase sem cor. Senti meu coração palpitar com força e dei um
longo suspiro.

Quando uma mulher quer, ela fode o cara. E ainda que não queira,
ela pode fodê-lo mesmo assim!

Palavras humanas nunca fizeram tanto sentido como agora. Por mil
demônios!

— Leve o que quiser... — gesticulei com a mão.

— Até a Arca?

— A Arca não! — pus-me de pé, protestando. — Nem a Arca, nem as


Tábuas da Lei, nem a Cruz, nem os cadáveres dos papas. — findei a lista com
um movimento de mãos.

— Já que está doando seus itens, Milorde, que tal me dar o Cavalo de
Troia? — perguntou em tom sacana. Fechei o cenho, semicerrando os olhos.
— Não está mais aqui quem falou. — balançou as mãos negativamente.

Suspirei.

— Vá logo e não demore.

— Sim, Vossa Onipotência. — sorriu de soslaio e desapareceu em um


estampido.

Quando estou nervoso preciso de algo para passar o tempo. E como


decidi me tornar um herói, não posso mais maltratar, matar, subjugar,
fulminar, punir, torturar, trucidar ou praticar qualquer ato infame aos olhos
mortais.
— Tédio!

Estalei os dedos e um livro materializou-se em minha mão. Escolhi


aleatoriamente, direto da biblioteca. O título da capa indicava: Josiane Veiga,
Esmeralda.

— Medieval? — ergui as sobrancelhas, abrindo um largo sorriso. —


Adoro livros medievais. Ahhh, isso me lembra das Cruzadas. Ótima época.

Por instantes, veio a minha mente cenas do passado: cavalos, milhares


deles, divididos em fileiras. Homens em cima, montados. Arqueiros na frente,
lanceiros atrás. O exército da Santa Igreja.

Devo confessar que isso não teve dedo meu. A Idade Média ou como
é chamada nos dias de hoje: Idade das Trevas foi uma época onde a grande
ganância por poder e domínio absoluto atingiu o mundo. A igreja que tinha
riqueza, poder e influência, não titubeou e agiu em prol do que chamaram de
bem maior. Naqueles dias começou o seu mais colossal reinado, o maior de
todos, colocando o mundo aos seus pés.

Dei um longo suspiro, rindo daquelas lembranças.

Em um curto espaço de tempo li o primeiro livro, abraçando toda a


saga. Eu havia acabado de finalizar o último exemplar quando Balthazar
surgiu em minha frente.

— E então? — pus o romance em cima da cama e cruzei as pernas.

— Aceitaram o presente, mas...

— Tudo que vem seguido de um “mas” é uma desgraça. — levei os


dedos às têmporas, massageando-as. — O que querem?

— A coroa é o suficiente, além da sua presença no abismo, com


Cinthia... — senti um arrepio percorrer minha espinha.
— C-Como? — ergui o rosto e perguntei novamente para conferir se
ouvi errado. Balthazar sorriu sem mostrar os dentes.

— Sua presença no abismo...

— A outra parte.

— Cinthia?

— Sim.

— Cinthia no abismo...?

— Porra! — berrei, levantando-me. Balthazar deu dois passos para


trás. — Aquelas velhas ficaram malucas? Como é que eu vou levar uma
mortal às profundezas do inferno? — nervoso, eu andava de um lado a outro.
— Isso é completamente insano!

— É o único jeito, Milorde. — disse Balthazar, me fazendo parar.

— Sabe o que significa Cinthia no inferno? Não sabe, Balthazar? — o


encarei fixamente.

— Sim, sei.

— Deveríamos ter matado Baal quando ele retornou. — levei o


indicador em riste aos lábios. — Aquela... Serpente traiçoeira! — disse,
tentando conter a fúria nas palavras.

— Lu, agora não é hora de iniciar uma guerra. Precisamos salvar


Cinthia. Não sabemos quanto tempo ela tem...

— Você está certo. — enchi o peito de ar e acenei positivamente com


a cabeça.

Teletransportamo-nos. Atravessamos o primeiro portão do inferno. A


donzela era levada em meus braços, enquanto Balthazar planava ao meu lado.
Criaturas do submundo admiravam nossa passagem, enquanto outras
acenavam alegremente.

E, como esperávamos, o burburinho não demorou a se espalhar:

“Mestre Lúcifer está de volta e trouxe consigo uma humana. Uma


mortal”.

— Mais rápido do que você esperava? — Balthazar lançou-me um


sorriso.

— No ponto.

Seguimos nosso trajeto sem parar. Atravessamos os seis portões do


inferno e paramos pouco antes de chegar ao sétimo portão. Seguimos um
caminho diferente: a estrada que levava às profundezas do abismo.

Como dizem, o inferno é um paraíso de incontáveis andares.

Ao chegarmos à beirada do abismo, Balthazar e eu nos encaramos.


Trocamos sorrisos e mergulhamos de ponta, descendo. O percurso durou
pouco mais de uma hora, mas enfim tocamos o solo.

Montes em cima de montes de ouro e prata, joias e metais de valor.


Itens antigos e raros, colecionados. Tantas preciosidades que olho humano
jamais viu; e até mesmo a maioria dos demônios. O salão do destino é o
maior museu da história do universo. Todo em ouro, com suas torres tocando
o espaço. Quando olhamos para cima, podemos ver as estrelas, chocando-se,
explodindo e dando vida a outras estrelas.

Tanta riqueza para nada. Enquanto elas eram donas de todas as


preciosidades do mundo, estapeavam-se por conta de um olho. Um único
olho para três pares de olhos vazios. Até que uma delas o pegou, enfiou no
buraco do crânio e mirou-me.

— Então ele veio até nós... — disse o Passado.


— Veio atrás de algo... — emendou o Presente.

— Trazendo um problema que não podemos sanar, mas podemos


ensinar como... — findou o Futuro.
CAPÍTULO QUINZE

UM PROBLEMA QUE NÃO PODEM SANAR? Ela é uma


mortal! Como assim não podem sanar? Respirei fundo e aproximei-me das
velhotas com Cinthia nos braços. Com um aceno dos dedos, fiz uma cama de
almofadas surgir, colocando-a deitada em cima.

— Vejo morte e vejo vida. — disse o Futuro.

— Vejo um elo entre os dois. — emendou o Passado.

— Um elo que deve ser refeito no agora, pois foi quebrado no


passado. — finalizou o Presente.

Balthazar e eu trocamos olhares. Incerto do que significava aquele


elo, mirei Cinthia mais uma vez. Ela continuava pálida, os lábios ainda sem
cor.

— O que devo fazer? — perguntei entre sussurros. Vê-la naquela


situação cortava meu coração. Se é que ainda tinha um.

— Olhe dentro de você. — disse o Presente.

— Busque respostas nas suas memórias, há uma história que envolve


vocês dois... — emendou o Passado.

— Só assim poderá dar a ela a chance de viver no presente, ter um


futuro e sanar as dúvidas do passado, de vocês dois. — finalizou o Futuro.

— Mas, e quanto ao fruto da árvore da vida que ela comeu? Ela


morrerá se não acordar, não é? — Balthazar perguntou receoso.

— Cinthia não é mortal. — o Presente se aproximou, tocou em sua


cabeça e fechou os olhos, avaliando-a. — Não devo entrar nas linhas do
destino, mas ela não nasceu assim. E como não é mortal, não morrerá por
conta do fruto, mas... Estará imersa em um sono eterno, caso não encontre o
remédio. É tudo que posso lhes dizer.

— Por que não? — perguntei o óbvio.

— Se as senhoras do destino interferissem na história, seria o fim. O


fim de todo o universo. Tecemos o fio da vida e o fio da história, lado a lado.
— disse o Futuro.

— Voltem para casa. A solução está dentro de você, Lúcifer. Olhe


dentro de si e encontre a resposta. — finalizou o Presente e, com um aceno de
mãos, tudo se escureceu.

Foram segundos e quando nos demos conta, estávamos mais uma vez
na ponta do precipício que dá caminho ao abismo.

Voltamos para casa em total silêncio. Que decisão pesada. A cura está
dentro de mim? Dentro de mim? Como pode isso? Isso é... Impossível!

Ao chegarmos à mansão, coloquei Cinthia em seus aposentos e dirigi-


me ao grande hall. Sentei-me em um sofá, esfregando o rosto. Balthazar
sentou-se no outro, me encarando.

— E agora?

— Não sei. Sinceramente... Não sei. — respondi.

— Talvez você precise de um tempo a sós, Milorde. Vou dar uma


volta, mas estarei por perto. — ele se levantou. Ergui meu rosto encarando-o.
Subitamente sua expressão triste deu lugar a um sorriso, seguido por um O.K
com a mão direita. — Acredito em você!

— Obrigado.

Balthazar sumiu em um estampido.


Queria acreditar tanto em mim quanto você acredita, Balt...

Silêncio. Todo o palacete emanava silêncio. Nem mesmo as aves que


habitavam o Jardim do Éden cantaram hoje. Não ouço mais suas risadas,
contando piadinhas bobas com Gisele, e até mesmo dela sinto falta.

Lembro-me como se fosse hoje quando andamos juntos pela primeira


vez. Vê-la furiosa comigo, gritando, foi espetacular. Esbocei um sorriso de
canto ao reviver aquilo.

O que está acontecendo comigo? O que essa mulher fez?

Quanto mais eu pensava, menos encontrava. Quanto mais eu tentava


entender, menos entendia. Desde que a conheci, algo de diferente aconteceu
comigo. Foi à primeira vista. Senti que ela continha algo que eu precisava e
que Cinthia poderia me realizar como nunca fui.

— Por mil demônios! Quem é você, Cinthia? — urrei, ajoelhando-me


no chão. — Por que você comeu aquela maldita maçã? — soquei o chão,
afundando metade do piso do hall.

Permaneci assim por longos minutos, encarando o chão. Revirando


minha mente em busca de algo que pudesse me ajudar, nos ajudar.

Nada!

Eu mal havia começado a lutar e já queria desistir. Isso não é como


uma batalha, onde se vence ou perde, é mais duro que qualquer guerra. O
meu interior continua se revirando e não sei o que é isso. Sinto medo...
Depois de tantos milênios sinto medo.

Preciso relaxar, preciso me acalmar. Preciso...

Segui em passos largos para a biblioteca. Ao mirar todos aqueles


livros, meus batimentos começaram a diminuir.
Ler ajuda. Sempre ajuda.

Dedilhando alguns livros, parei em um no fim da fileira. Encarei-o


por alguns instantes, até que o ignorei. Peguei outro livro e quando desci da
escada, uma leve brisa atravessou a janela. Ao ouvir o som de páginas sendo
folheadas, virei-me para trás. O livro estava aberto.

— Quanta insistência da sua parte. — dei alguns passos e me inclinei


para pegá-lo. Ao virá-lo, vi o título A Bela Adormecida. Arregalei os olhos.
— Será que...? Não! Não é possível... — ri comigo mesmo.

Dirigi-me à poltrona, sentando-me, e coloquei bela em cima da


escrivaninha, abrindo outro título que sequer me dei ao trabalho de ler. A
leitura não fluía. Não enquanto o outro livro continuava me chamando.

— Você não vai me deixar em paz, não é? — sorri de lado. Fechei o


livro em minha mão e o pus na mesa, pegando o clássico conto de fadas. —
Pois bem, vamos ver o que tem a me dizer.

Ao abrir a primeira página, li: A bela Adormecida, Irmãos Grimm.


Comecei a leitura imediatamente. Uma princesa que adormece após furar o
dedo em um fuso de fiar. Próximo do fim me espantei com o método usado
pelo príncipe para despertar a donzela.

Um beijo. Um beijo de amor verdadeiro.

Outros tantos tentaram, mas apenas o beijo de amor verdadeiro a tirou


do sono profundo que já durava cem anos.

— Cem anos? — arregalei os olhos. — Então ainda que eu a beije, se


não for amor verdadeiro ela vai... — hesitei.

Minha respiração se acelerou. A frustração dobrou e a fúria emanou


com força. O meu corpo todo pegava fogo. Segurei o livro com raiva e o fiz
queimar completamente, reduzindo-o a cinzas.

— Não sei o que é amor, não sei o que é amar! — urrei, emanando
tanto ódio que toda a biblioteca tremeu. — Como eu posso dar um beijo de
amor verdadeiro se nunca amei na minha vida? — fechei o punho, fazendo
todo o palacete tilintar, explodindo diversos objetos. — Como? — berrei
outra vez.

Uma fresta de luz acertou meu rosto. Vinha do topo da biblioteca.


Hesitei em encará-la. Eu sabia de onde vinha. O calor fraternal aquecia minha
pele, uma sensação que há tempos eu não sentia. Teimando comigo mesmo,
ergui meu rosto e tudo se inundou com sua luz.

[...]

Imagens, milhares delas inundaram minha mente. Elas passavam


freneticamente por meus olhos, até que parou. Novamente aquela garotinha.

Estou orando por você. Ela sorriu. O cenário mudou. Agora ela
segurava em minha mão. Sei que ele vai ouvir meu pedido. Tombou a cabeça
para o lado, encarando-me atenciosamente.

Suas palavras ecoavam por minha mente. Vejo seu rosto em todos os
lugares. Os longos cabelos cor de sangue balançam conforme o vento os toca.
E só então me dou conta de uma coisa que havia me esquecido muito tempo
atrás.

Meu coração. Meu coração voltou a bater quando a encontrei. O senti


pulsar novamente quando me senti amado. Amado por uma mortal, pela raça
que mais odeio. Aquela pequena humana alcançou meu coração?

De repente, tudo ficou negro outra vez. E apenas ouvi vozes. A minha
e a dela:

— Quem é você? — perguntou curiosa.

— Lúcifer, o portador da luz. Esse é meu nome.

— Estou orando por você.


Em meio às trevas, uma criança iluminada surgiu em minha frente,
vindo em minha direção. Tentei correr, mas minhas pernas se recusaram.
Tentei afastá-la, mas não consegui.

— Estou aqui para te guiar à luz. — disse, abrindo um largo sorriso e


estendendo uma das mãos, me chamou. — Vamos?

— Para onde?

— Para a glória.

— Não posso... — murmurei.

— Ainda há tempo, ainda há chance. Não dê as costas para seu pai.


Ele nunca te abandonou. — suas palavras soaram como uma melodia, tão
emocionante que senti minhas pupilas nublarem.

— Quem é você?

— Sou sua remissão. E a minha tarefa é lhe tirar das sombras, ainda
que eu mesma tenha que mergulhar nas trevas.

— Minha remissão? Mas... Por quê? — senti minha voz embargar.

— Deus nunca abandona os seus. — disse, pegando em minha mão,


conduzindo-me em direção a uma grande esfera de luz.

Assim que a atravessamos, me vi diante do universo, todo ele.

— Vê como é grande? — estendeu uma das mãos, mirando tudo em


sua direção.

— Sim, vejo.

— Assim é Deus. Ele é infinito em misericórdia e amor.

— Eu crucifiquei seu filho. — refutei entre sussurros.


— Cristo não morreu por que você quis. O filho unigênito de Deus se
deixou crucificar para mostrar a infinidade do amor do todo-poderoso Deus
aos homens. Essa vitória não é sua, mas sim da humanidade. Ele deu seu
sangue pelo homem, ele deu sua vida para redimi-los do pecado e lhes dar a
chance da vida eterna.

— Então...

— Aconteceria de um jeito ou de outro. Foi preciso para que o mundo


conhecesse a infinidade dos sentimentos de Deus, pois naquele tempo
estavam em heresia, desprezavam a palavra e rendiam-se a outros deuses;
deuses pagãos.

Confesso que nunca entendi a crucificação, nem mesmo sabia o que


era ressureição antes de ver Cristo vencer a morte e ressurgir dos mortos.
Agora entendo. Agora vejo que tudo foi um erro. Quanta ingenuidade
imaginar que eu, um mero arcanjo, poderia ceifar a vida do Deus filho,
Cristo.

Uma onda de calor tomou meu peito. Senti algo diferente, algo que
não sentia há tempos...

— Criança, qual é o seu nome? — perguntei, encarando-a, com os


olhos lacrimejando.

— O meu nome é... — seus lábios se moveram, mas não a ouvi.

— Por favor, me diga seu nome. — insisti.

Ela sorriu, tombando a cabeça para o lado.

— Estou por perto e você nem notou ainda. — disse, desaparecendo.

Pisquei os olhos e deparei-me no mesmo lugar. Sentado na poltrona


da biblioteca, o conto de fadas ainda inteiro em minha mão.
— Por mil demônios, o que foi isso? — perguntei a mim mesmo,
assustado.

As visões sempre vinham, mas nada como isso havia acontecido.


Dessa vez foi completamente diferente. Dessa vez foi... Divinal.

Será que foi uma alucinação?

— Milorde! Milorde! — Balthazar atravessou a biblioteca, ofegando.


— Venha ver isto...

Sua entrada brusca retirou-me das reflexões. Levantei-me, encarando-


o. Seu rosto demonstrava apreensão.

— O que é?

— Venha!

Ele seguiu em passos largos, atravessando toda a mansão. Quando


subiu as escadas e apontou em direção ao quarto de Cinthia, senti um pesar.

Que não tenha acontecido o pior... Que não tenha acontecido o pior...
Repeti mentalmente.

Ao entrar no quarto, deparei-me com Balthazar parado de frente a


Cinthia. Senti receio de ir até eles.

— Venha logo!

Soltei um longo suspiro e enchendo-me de coragem, fui. Ao parar em


sua frente, meus olhos se arregalaram.

— Veja os cabelos dela.

— Estou vendo. Isso é... Ela é... — emudeci.

Os cabelos negros de Cinthia pareciam estar desbotando, fio a fio.


Lentamente eles começavam a adquirir uma tonalidade vermelha como
sangue. Iguais aos cabelos da criança que tenho visto.
CAPÍTULO DEZESSEIS

ELAS SÃO UMA SÓ? A GAROTINHA É Cinthia e Cinthia é a


garotinha. Mas... Mas... Como isso é possível? Eu não me lembro de ter
estado com ela. Não me lembro de vir à Terra. Faz milênios que não venho
aqui.

— Milorde? — ergui uma das mãos, exigindo silêncio.

Sentei-me na beirada da cama, intrigado com aquela situação. Não era


só o fato de ela estar adormecida em um sono quase imortal, mas também
tudo que, aparentemente, nos liga.

— E agora? — perguntei a mim mesmo.

— E agora o quê, Lu? Não estou entendendo nada...

— O que é amor? — encarei-o, ele arregalou os olhos. — Quero


dizer, quando eu amar alguém, eu vou sentir?

— Sim. Quando amar alguém você vai sentir. Eu lhe disse isso outro
dia...

— É verdade. Você disse...

Será que eu... Sacudi a cabeça. Mas quando estou com ela eu me sinto
tão estranho... Será que isso é amor?

Quando a beijei na arca do casamento, senti algo ímpar. Seus lábios


tem o gosto do fruto proibido. Sorri comigo mesmo.

Levantei-me e, enchendo o peito de ar, aproximei-me de Cinthia.


Balthazar me encarou sem entender, assim que me inclinei para beijá-la, ele
pigarreou.

— O que foi? — rosnei, parando a centímetros dos lábios dela.

— Er... O que está fazendo?

— Tentando acordá-la, é claro!

— Com um beijo? — franziu a testa.

— Sim.

— As leis humanas consideram como estupro beijar uma pessoa


dormindo e... — enfiei a mão em sua boca, o suficiente para calá-lo. Inclinei-
me um pouco mais e beijei seus lábios.

A minha boca e a sua ficaram coladas por poucos segundos, mas


parecia ser eterno. Vi tudo novamente, desde o primeiro instante em que ela
pisou na mansão.

Ah, agora me lembro. No dia da entrevista, quando a vi, encantei-me


por ela. Encantei-me tanto que pouco tempo depois decidi que me afastaria
pelo simples fato de ela ser uma mortal. Que tolice a minha e...

— Pervertido! — um grito agudo, seguido de um soco de direita, me


derrubou no chão.

Caí sentado, esfregando a face.

Pelas minhas asas, que soco certeiro filho da puta!

— Eu... Acho que... Vou me retirar. — Balthazar gemeu,


desaparecendo em um estampido.

Covarde!

Uma silhueta formou-se em minha frente, lá estava ela, de pé,


encarando-me furiosamente. E inclinando-se um pouco para frente, enfiou o
indicador em minha cara.

— O que você estava fazendo? — trovejou, semicerrando os olhos.

— E-E-E-Eu...

— Assédio é crime, Milorde. — cruzou os braços, batendo um dos


pés insistentemente.

Espera! Ela não se lembra de nada? Não sabe quem sou eu? Como?

— Exijo um pedido de desculpas. — interrompeu meus pensamentos.

— Ah... — gemi. Cinthia ergueu as sobrancelhas. — Mil perdões,


donzela. Não foi minha intenção. É que aconteceram coisas estranhas e...

— Estranhas? — perguntou sem entender.

Ela se preparava para abrir a boca novamente quando, de repente,


arregalou os olhos. Encarou-me e deu dois passos para trás. Vi receio em sua
face. Não! Era medo, vi medo.

Engoli em seco.

— Cinthia? — levantei-me, chamando-a.

— Não se aproxime! — agarrou o abajur da escrivaninha que ficava


ao lado da cama, apontando-o em minha direção.

— Qual é o problema?

— Você! Você é o problema!

— Errei em te beijar dormindo, mas não foi minha...

— Não estou falando disso!


— Então do que está falando?

— Como pôde me enganar todo esse tempo? Por que não disse logo
quem você era! O tempo todo eu pensava que você fosse... — suspirou,
franzindo os olhos entre um balanço de cabeça, antes de largar o abajur no
chão.

— Humano? Eu nunca disse que era humano. Anunciei-me


incontáveis vezes...

— Então se anunciou errado. Se anuncie de novo! — disse com a voz


embargada.

— É que em todas as vezes aconteciam coisas estranhas: você


desmaiava, entrava em transe ou simplesmente não ouvia...

— Você dizendo que algo é estranho? — riu, pondo as mãos na


cintura. — Vamos! Quero ouvir da sua boca!

Engoli em seco.

Ela está furiosa. Não está com medo, não agora, o que é um bom
começo, mas uma mulher furiosa representa mais perigo que qualquer outra
coisa.

Pigarreei, levando o punho fechado em frente à boca e me anunciei:

— Eu sou o Arcanjo Caído, A estrela-da-manhã, O portador da maçã


do Éden e Príncipe das Trevas, Lúcifer. — bradei, com toda entonação que
uma apresentação formal exigia.

— E? — arqueou uma das sobrancelhas.

Encolhi. Como assim “e”?

— E? — a acompanhei.
— Títulos não são lá grandes coisas. — desdenhou.

— De fato.

— Nem poderes. — ergueu o queixo, balançando a cabeça.

— De fato.

— Nem a imortalidade!

— Depende do ponto de vista. — ergui os ombros.

— Mas esse não é o momento, ah, não. O momento agora é de por em


pratos limpos o que você fez comigo! — sentou-se na cama, cruzando os
braços.

Fodeu!

Eu não lembro o que fiz. E quando um homem não lembra o que fez a
uma mulher, o sinal de alerta é ligado. Perigo total.

É hora de eu me impor, mostrar quem manda na situação. Deixar


claro quem está no comando.

— Escute aqui, garotinha... — ergui o dedo, aproximando-me dela,


apontando-o em sua direção.

Cinthia olhou para mim, depois para o meu dedo, boquiaberta.


Levantou-se bruscamente e o agarrou, apertando-o.

— Auuu!

— Escute aqui você, senhor Príncipe das Trevas... — disse e


empurrando-me para trás, me fez cair sentado na cama. — Você sabe o que
eu passei por sua causa? — cutucou meu peito com o indicador.
— Não.

— O inferno que eu vivi por me envolver com o Rei dos Demônios?


— cutucou novamente.

— Se foi um inferno, foi bom... — acenei com a cabeça e ao notar a


desaprovação em seus olhos faiscantes, neguei rapidamente. — Foi péssimo.
Péssimo!

Subitamente suas pupilas encheram-se de lágrimas e ela se desarmou.


Deu um longo suspiro e abaixou a cabeça. Levantei-me, pondo-me de pé em
sua frente.

— Se eu soubesse... — hesitei, diante do seu choro. — Nunca foi


minha intenção. Nunca foi... — sussurrei.

— Oito anos enfiada na escola de garotas cristãs... — murmurou. —


Oito longos anos. Oito anos longe da minha família que até hoje me rejeita.
Dizem que sou um objeto do demônio...

— Não, não é. Nunca foi. — levei a mão para tocar seus ombros,
apertando-os. — Olhe para mim. — ela virou o rosto. — Por favor, olhe para
mim.

Cinthia ergueu a cabeça lentamente, mirando seus olhos nos meus.


Com a ponta dos dedos, afastei os cabelos caídos sobre seu rosto e com o
polegar, rocei o dedão em sua bochecha.

— O que você fez comigo? — perguntou em tom choroso.

— Eu não sei. Juro que não sei o que aconteceu... — respondi entre
sussurros. — De uns tempos para cá eu tenho visto você nos meus sonhos...
Tenho memórias vagas. — expliquei, sendo sincero.

Silêncio. Um breve momento de silêncio, antes de ela mudar de


assunto.
— Por que está na Terra? Aqui não é seu lugar.

Esbocei um sorriso de canto.

— Quer mesmo saber? — ergui as sobrancelhas.

— Conquistar o mundo? Pelo amor?

— É. — confirmei. Ela riu.

— Que ideia ridícula.

— Er... Confesso que não consegui pensar em coisa melhor.

— Ao menos não está fazendo maldades. — sorriu novamente.

— Estou tentando não fazer, mas tem hora que sinto vontade de por
fogo em tudo. — respondi, sorrindo de volta. — Mas não foi só isso que me
trouxe aqui...

— Não? Então o que mais traria o Arcanjo Caído, A estrela-da-


manhã, O portador da maçã do Éden e Príncipe das Trevas, Lúcifer, ao
mundo dos homens? — afastou o rosto para trás, me olhando com estranheza.

— Que tom de deboche é esse, donzela? — ela revirou os olhos,


contendo uma risada. Queria rir, eu sei que queria.

— Também estou aqui por outro motivo, não menos importante que o
primeiro: atrás de uma criança que me encantou. E que, ao vê-la mulher, fez
meu coração voltar a bater... — suspirei, abaixando a cabeça.

Cinthia desvencilhou-se de mim, dando alguns passos para trás. Ah, o


momento da rejeição. Eu esperava por isso.

— Você foi a melhor pessoa que encontrei na vida. A mais gentil,


mais educada, mais atenciosa e bondosa que tive o prazer de conhecer e me
encantar. — disse usando um tom calmo. Ergui o rosto, encarando-a. —
Mas... Não sei se o que sinto por você é amor. Pode ser qualquer outra
coisa...

— Amor não pode ser medido, nem descrito. Amor só pode ser
sentido... E quando for amor, você saberá que é.

— Que bonito isso.

— Eu mesmo criei a frase. Inventei agora. — deixei um sorriso de


canto escapar. Não fui eu, mas...

— Tempo. — ela murmurou, dando-me as costas.

— O que tem o tempo? — perguntei sem entender.

— É disso que preciso. — voltou-se a mim, lançando-me um olhar


terno. — É disso que nós precisamos.

— Eu entendo. — enfiei as mãos nos bolsos, mordendo os lábios.

— Preciso entender o que aconteceu. TUDO que aconteceu.

— Sobre o passado, não posso explicar, pois nem eu mesmo sei, mas
sobre o agora...

— Sim? — aproximou-se de mim cheia de expectativa, por um


momento pareceu querer pegar minhas mãos, mas recuou.

— Você comeu a maçã do éden e adormeceu, foi por isso que eu a


beijei...

— Mas eu não... Espera. A nova funcionária, Kirel, ela me deu uma


maçã! — disse Cinthia, arregalando os olhos. — Ela é um demônio?

— Sim. — um demônio e minha ex. Quis dizer, mas aquele não era o
momento ideal.
— Tudo se explica...

— Nem tudo.

— Como assim?

— Você deveria estar morta. — Cinthia arregalou os olhos em horror,


então me apressei em explicar. — O fruto proibido não foi feito para mortais
comerem. Adão e Eva o provaram e foram expulsos do paraíso. Como
punição eles perderam a imortalidade e caíram em pecado, mas você já está
em pecado e não é imortal, ao menos não que eu saiba... — lembrei-me do
que as senhoras do destino disseram.

— Então, como?

— Esse é só mais um dos muitos mistérios que te envolvem, donzela.


Mas, prometo, vou desvendar todo o segredo que rodeia sua existência! —
joguei-lhe uma piscadela. — Bom... Agora vou indo. — ergui os ombros e
dei-lhe as costas, seguindo em direção à porta.

Ela estava me observando. Mesmo sem encará-la, sei que está


cerrando os punhos e esfregando os dedos. Diga algo! Diga algo!

Segui pela porta e ela não disse nada, se conteve. Você é uma mulher
incomum, Cinthia. E foi essa singularidade que me atraiu. Outra em seu lugar
estaria apavorada, gritando como uma louca, pasma com a possibilidade de o
próprio Lúcifer dizer que a ama. O que, confesso, foi difícil para assumir.

Desprezei tanto o amor. O amor que Deus sentiu pela humanidade.


Um amor que me causou tamanha inveja, que se deu como pontapé final para
minha queda e, hoje estou amando. Amando uma mortal. Amando uma
criatura que faz parte daqueles que tanto odiei um dia, mas já não sei se odeio
mais.

O que você mudou em mim, mulher? O que você quer?

“Sou o plano da remissão. E a minha tarefa é lhe tirar das sombras”.


Sorri ao lembrar-me daquilo e tomei a decisão mais insana que
poderia tomar: Dê-me seu coração, Cinthia, e eu lhe darei o mundo ou
qualquer outra coisa que você quiser!
CAPÍTULO DEZESSETE
POR CINTHIA

— VOCÊ SÓ PODE ESTAR LOUCA! — Gisele protestou entre


sussurros, pondo as mãos na cintura. — Não há a menor possiblidade de
continuarmos aqui sabendo quem é ele!

— Sempre fui chamada de louca...

— Nunca a chamei disso, mas começo a achar que ficou! — retrucou,


andando de um lado a outro, impaciente.

Revirei os olhos. Ela continuou:

— Ele é o poderoso chefão das trevas, o sete peles, tinhoso, chifrudo,


a besta... — argumentou, gesticulando as mãos. — Nós duas vamos para o
inferno sem direito a perdão!

— Desde quando você se preocupa com o inferno? — ergui uma das


sobrancelhas, quase rindo daquele receio que Gi nunca demonstrou antes.

— Passei a me preocupar depois que descobri que sirvo a Lúcifer! —


gemeu em irritação, balançando os punhos fechados, quase dando pulinhos.
— Ah, não! Ahhhhh, não!

— Ah, não, o quê?

— Ele também é.

— Ele quem? — franzi a testa.

— Tão lindo, tão gentil...


— ELE QUEM? — bati o pé no chão, irritada.

— Lorde Balthazar. — sentou-se na cama, dando um longo suspiro.


— Tentação. Ambos são uma tentação. Eles vão nos levar direto para o
purgatório. — balançou a cabeça, arregalando os olhos em seguida, fazendo o
sinal da cruz. — Está repreendido! RE-PRE-EN-DI-DO!

— Não acho que ele seja tão mau... — o defendi, receosa de fazer
aquilo.

— Não acha? NÃO ACHA? — Gisele levantou-se, agarrando os


cabelos, coçando a cabeça. — Você alguma vez leu a Bíblia na sua vida?

— As pessoas mudam...

— Ele não é uma pessoa, Cinthia!

Engoli em seco. De fato, ele não é uma pessoa. Ele é um ser superior.
No entanto, eu... Acho que... Estou... Sacudi a cabeça, sem graça.

— Ele me salvou!

— Sentimento de culpa!

— Ahá! — apontei o indicador para ela. — Viu só? Ele não é tão
mau. Quando se é mau, não existe sentimento de culpa.

— O passado dele não pesa a favor. — cruzou os braços. — E eu


também não tenho certeza de que ele realmente esteja mudando...

— Pensei muito sobre isso pela manhã. Acabei ligando a TV e vi isso


nos noticiários... — em passos lentos, fui até a cômoda, peguei o controle e
liguei o televisor no plantão de notícias.

“Onde está o herói que se intitula Lúcifer? Desde sua aparição, o


índice de criminalidade caiu em cinquenta por cento. No entanto, ele sumiu e
coincidentemente, os acontecimentos sobrenaturais que surgiram junto à sua
aparição também”.

— O que é isso? — Gisele arregalou os olhos.

— Ele salvou pessoas. Milhares de centenas delas.

— Como?

— Uma espécie de Godzilla surgiu na praia com vários morcegos


gigantes. Depois, um bando de mosquitos mutantes...

— Está vendo só? — saltou da cama, apontando o indicador para


mim, como se estivesse me acusando. — Coisas estranhas acontecem quando
ele está por perto!

— Aqui nunca aconteceu... — dei de ombros.

— Nunca que tenhamos notado...

— Mencione uma única vez que nos fizeram, ou que eles tentaram,
nos fazer mal. — pus as mãos na cintura, encarando-a.

— Bom... — pareceu procurar opções. — Você quase morreu quando


comeu a maçã...

— Não foram eles!

— Foi outro demônio, como eles!

Dei um longo suspiro, exausta daquela discussão sem sentido. Aquilo


não nos levaria a lugar algum. Era inútil ficar debatendo com Gisele.

— Certo. Certo. — acenei com a mão, dando-lhe as costas. — Preciso


saber de algo.

— Hum...
— Vai me deixar sozinha nesse palácio com dois demônios? — Gi
gemeu. Olhei por cima do ombro, ela estava de cabeça baixa. — Fará isso
com sua melhor amiga?

— Eu...

— O salário é ótimo. O país está em crise. Eles nunca nos fizeram,


nem nos farão mal. Eu garanto! — disse com firmeza, pois eu acreditava
naquilo.

— Você é uma filha da puta, sabia? — comentou entre risos. — Uma


baita filha da puta!

— Isso é um sim? — virei-me em sua direção, sorrindo.

— Infelizmente é. — bufou.

— Se algo de ruim acontecer e formos parar no inferno... — Gi


semicerrou os olhos, usando um tom de ameaça. — Juro que vou pegar
aquele negócio que parece um espeto e socar na sua bunda até cansar.

— Nada de ruim vai acontecer! — saltei de empolgação, correndo em


sua direção, abraçando-a. — Obrigada! Eu sabia que você não me
abandonaria.

— Amigas são para isso. Se for para se foder, vamos nos foder juntas.
— fez uma piada, mas não parecia muito engraçada, não para ela.

Passado aquele assunto, seguimos às atividades normais. Gi voltou


para a cozinha, preparando um dos seus deliciosos pratos e eu suspendi por
tempo indeterminado a contratação de novos funcionários. Quer dizer, não
pedi autorização para isso, mas dado os últimos acontecimentos...

Passei a olhar todo o palácio com mais atenção. Ele não mentiu. É
verdade. Lúcifer se anunciou tantas vezes e de incontáveis maneiras. Nas
paredes, nas esculturas, no artesanato e qualquer outro detalhe que
olhássemos com atenção.
— Por que eu sinto que estou... — fechei o punho, colando-o ao meu
peito.

— Hoje é um belo dia, Lady Cinthia. — Balthazar colocou-se ao meu


lado.

O olhei de soslaio, mas não desviei o rosto do jardim à minha frente.


Ele continuou:

— Sinto muito pelo que aconteceu. Milorde ordenou que Kirel fosse
caçada. — arregalei os olhos, apreensiva.

— E-E-E o que ele vai fazer com ela?

— Puni-la, é claro.

— É como será essa punição? — virei-me, encarando-o.

— Você é muito nobre para tomar conhecimento desses assuntos, mas


devo dizer que ele é justo. Não sei se será tão justo agora, pois Kirel acertou
seu ponto fraco.

— Ele tem um ponto fraco? — ergui as sobrancelhas, espantada.

— Não tinha até conhecer você. — sorriu, escorando um dos


cotovelos na sacada da janela. — Você deve ser mesmo uma mulher
espetacular para conseguir tocá-lo dessa forma... — corei, desviando nossos
rostos.

Ele riu, notando meu constrangimento.

— Não entenda mal. Isso foi um elogio, nada mais. Eu já tenho uma
pessoa. — respirei aliviada.

— Você disse uma pessoa?


— Um humano. Um mortal como você.

— Achei que vocês odiassem os humanos...

— Alguns de nós sim, outros não. Muitos não ligam para essas coisas
e querem apenas viver suas vidas tranquilamente. — aproximou-se mais de
mim, com os lábios próximos a minha orelha. — O amor pode mudar até
mesmo o coração mais demoníaco que existe, lady Cinthia. — sussurrou,
afastando-se.

Senti minhas pernas bambearem. Em seguida, aquela frase que não


saía da minha cabeça, regressou:

“... Você é a remissão de alguém que brilhou mais que o sol. E apenas
você é capaz de levá-lo à luz. Ambos estão predestinados desde o princípio”.

— Não sei se sou apta, não sei se estou preparada... — comentei,


entre sussurros.

— Se não for você, então ele está perdido para todo o sempre. —
lamentou.

Senti uma pontada no peito. Por que imaginá-lo sozinho à própria


sorte me deixava aflita? Isso é ridículo. Ele é o Rei dos demônios, o Príncipe
das Trevas. Quem sou eu? Uma mera mortal, uma simples humana diante
dele!

Sacudi a cabeça, dando um longo suspiro.

— Como é o seu mortal?

— Quase perfeito. — sorriu de canto, voltando seus olhos ao jardim.

— Quase?

— Seria se fosse imortal. — pareceu lamentar outra vez. — Um erro


que cometemos no passado nos fadou a sentir a dor da perda ao amar. Por
isso que muitos de nós recusam esse sentimento. Por isso Lúcifer teme
entregar-se a você.

— Por que está me dizendo isso?

— Eu acredito em você. E sei que é o melhor para ele. Lu é meu


melhor amigo, meu irmão. O amo de todo coração e lhe desejo o melhor,
desde sempre.

Assenti com a cabeça.

— Não será fácil. — suspirei.

— Ninguém disse que seria. — ele riu. — Há muitas criaturas e seres


de grande poder que se oporão a essa união, mas também temos aqueles que
se colocarão ao seu lado. Entende o que quero dizer?

— Não muito bem...

— O preço por amar você custará muito caro a ele. É quase... —


sorriu. — Acredito que ele está decidido a lutar por você, não importa quais
forem as consequências.

— Haverá mortes?

— As necessárias.

— E o mundo?

— Depende da sua decisão. O futuro da Terra não está mais nas mãos
de Lúcifer, mas sim nas mãos daquela que possui o seu amor.

Engoli em seco.

— Acho que não consigo carregar esse fardo... — sorri sem graça.

— Deus nos dá apenas um fardo que possamos carregar. — arregalei


os olhos, encarando-o.

Um demônio falando de Deus? Falando bem de Deus? Mostrando


sua justiça?

Ele notou e sorriu outra vez.

— Você não entenderia mesmo que eu explicasse cem vezes, mas


também tenho uma missão. — encheu o peito de ar, deu meia-volta e seguiu
em direção à saída do salão.

— Balthazar... — o chamei.

— Sim?

— Obrigada.

— Estou às suas ordens, lady Cinthia. — acenou com a cabeça, sem


virar-se para trás e, subitamente, sumiu no ar.

Então é isso... O futuro do mundo está em minhas mãos, na minha


decisão? Mas... Eu tenho medo. Medo do que isso tudo pode se tornar e do
que pode acarretar...

Eu preciso de uma luz. Eu preciso de uma luz!


CAPÍTULO DEZOITO
POR CINTHIA

NUNCA VI AQUELA MANSÃO TÃO TRISTE como naquele dia.


Um silêncio mortal apoderou-se do palácio. Entediada, não vi alternativa
melhor que a leitura. Sem lembrar-me do hobby de Lúcifer, segui para o
paraíso em terra.

Assim que abri a porta, dei de cara com ele. Milorde estava sentado
em uma poltrona, com um livro em mãos. Lentamente ele ergueu a cabeça e
me fitou.

— D-Desculpe interrompê-lo. Não foi minha intenção... — baixei os


ombros, meio sem jeito. Ao notar o brilho em seus olhos, desviei nossos
rostos. — Volto mais tarde. — preparei-me para dar meia-volta, mas parei ao
ouvir sua voz:

— Sua presença é um alento. Por favor, fique. — sorriu, fitando-me.


— Eu estava terminando agora a leitura de um livro interessante.

— Qual? — aproximei-me em passos lentos.

— O Juiz, primeiro volume da série Secret Garden. — virou a capa,


mostrando-me. — Escrito por Katherine Laccom’t. — deixou um sorriso de
canto escapar. — Essa chamada literatura erótica me encantou. Há livros
bons, como esse, mas também temos livros... — balançou a cabeça. Em
seguida, suspirou, fechando o exemplar em sua mão, cruzou as pernas e
mirou-me mais uma vez.

Senti-me nua diante dos seus olhos. Engoli em seco. Não vamos ficar
nesse clima, vamos?

— Eu só queria dizer que... — comecei.


Lúcifer levantou-se e engoli minhas palavras. Em passos lentos ele
veio em minha direção, tomou minha mão e a beijou. Endireitou-se
novamente e fitou-me. Ele estava muito próximo, perto demais. O meu
coração palpitava sem parar, as minhas pernas tremiam.

— Está com medo?

— Um pouco. — ele sorriu.

— Não tenha medo. O meu único desejo é... — balançou a cabeça,


baixando-a. — Fico imensamente feliz que tenha decidido ficar conosco,
comigo.

Sua voz estava calma, acolhedora. Seus sussurros quase me tiravam


do chão, excitando todo meu corpo com arrepios inconstantes e sensações em
reação a sua voz.

— Alguém precisa por um pouco de juízo na sua cabeça... — baixei a


cabeça, sem graça.

Uma mortal dizendo que vai por juízo em Lúcifer? Que ridículo.
Quem sou eu? Uma mera mosquinha diante de um homem desses.

Soltei um longo suspiro. Arregalei os olhos quando o senti erguer


meu rosto.

— Donzela, você mudou meus planos.

— Quais? — franzi a testa. Ele sacudiu a cabeça e afastou-se.

— Obscuros demais para dizer. — gesticulou com as mãos.

— Por que está salvando pessoas?

— Não sei. — sorriu sem graça. — Antes tinha outro motivo, agora
não sei mais. Nem sei se devo continuar como herói. — voltou-se a mim,
fazendo aspas.

— Mas é claro que deve! — afirmei convicta daquilo. — As pessoas


precisam conhecer seu lado bom.

Ele me olhou espantado. Um sorriso parecia querer eclodir em seu


rosto, mas ele se conteve. Então, continuei:

— Lúcifer não é tão mau como dizem. Você precisa mostrar seu lado
bom ao mundo. — outra vez a mesma expressão, mas dessa vez ele não se
conteve, gargalhou incansavelmente.

Cruzei os braços, revirando os olhos.

— Qual é a graça?

— Você é a graça.

— Eu? Só estou tentando te mostrar que as pessoas... — suspirei,


balançando a cabeça. — Esquece!

É inútil mostrar meu ponto de vista ao Príncipe das Trevas. Acenei


com a cabeça e lhe pedi licença, retirando-me.

— Orgulhoso! O pior dos seus defeitos é o orgulho. Claro, por qual


razão ele escutaria uma mortal sem cair no deboche? — comentei comigo
mesma, irritada, atravessando o grande hall em direção à cozinha.

— Está falando com quem? — Gisele me encarou com estranheza.

— Sozinha!

— O casal estranho teve a primeira briga? — arqueou uma


sobrancelha.

— Não. Somos. Um. Casal. — pontuei, irritada.


— Parecem.

— Mas não somos!

— Nem serão? — franziu a testa, fitando-me.

— Não seja irritante. — revirei os olhos.

— O.K, não está mais aqui quem insinuou o casamento do milênio.


— retrucou com ironia e, antes que eu pudesse xingá-la, veio até mim,
entregando-me uma lista de compras. — Preciso desses ingredientes. É pouca
coisa...

— Certo. Vou buscá-los.

— Vai como?

— A pé.

— Entendi. — colocou as mãos para trás, aproximou o rosto e sorriu.


— Poderia pedir uma carona a Milorde. — disse em tom sugestivo.

— Irritante! — dei-lhe as costas e saí pisando duro.

Assim que cruzei a arcada da entrada principal, dei de cara com


Balthazar. Ele estava em minha frente, bloqueando minha passagem.

— Preciso fazer compras. — disse, deixando clara minha pressa.

— É claro. Irei levá-la. — acenou com a cabeça.

— Quero andar um pouco...

— Então vamos andando. — colocou-se ao meu lado.

— Er... Que tal andar um pouco sozinha? — franzi a testa, olhando-o


com estranhamento.
— Se você se deparar com Kirel no caminho, o que vai fazer? —
encarou-me. — Aliás, não seria necessário que fosse ela. Como Rainha dos
Súcubos, qualquer outra viria e, sendo você humana... — ergueu os ombros.

Dei um longo suspiro.

— Sou uma prisioneira agora? Foi ele quem mandou você me


acompanhar, não foi?

— Não e sim. — sorriu. — Ele teme por sua segurança. Qualquer um


que tenha um pingo de sensatez também temeria. — deu um passo à frente,
seguindo em direção ao portão. — Vamos? — parou, olhando para trás.

Ele teme por minha segurança? Um sorriso bobo escapou. Ao ouvir


lorde Balthazar, sacudi a cabeça e o acompanhei.

Ao chegarmos ao portão não deixamos de notar um carro parado em


sua entrada. Um Corsa Classic, modelo antigo, 2010. Lorde Balthazar e eu
trocamos olhares.

— Deixe comigo. — ele disse, indo até o veículo.

O vidro baixou e vi um rosto conhecido. Um rosto que não via há


muitos anos. Meu coração foi à boca e minhas pernas bambearam.

Felipe? O que está fazendo aqui?

— Bom dia. Deseja falar com alguém em especial? — Lorde


Balthazar perguntou.

Felipe desceu do carro, o olhou e manteve-se em silêncio, encarando-


me. Ele estava tão diferente. Lembro-me dele ainda criança. Agora ele já é
um homem, muito bonito por sinal. Cabelos castanho-claros, curtos e
raspados dos lados. Ele usava uma camisa social e uma calça jeans,
combinando com sapatos pretos.
— Gostaria de ter um minuto com essa moça. — respondeu sem tirar
os olhos de mim.

— Posso saber do que se trata o assunto? — Balthazar encarou-o


fixamente e voltou-se a mim.

Falar comigo? O que ele quer? Sem reação, segui muda.

— Ela é minha irmã.

Balthazar arregalou os olhos, surpreso. Encarou-me uma vez mais,


esperando por uma confirmação. Acenei com a cabeça e ele deu um longo
suspiro.

— Sendo assim, sinta-se convidado a entrar...

— Não vou entrar no reduto dos pecadores! — lançou um olhar de


desprezo a Balthazar e partiu em minha direção.

— Cuidado. Faça mal a ela e as consequências serão irreversíveis. —


disse Balthazar ao agarrá-lo pelo pulso, fazendo-o parar. Meu irmão
arregalou os olhos, mas logo se recompôs, desvencilhando-se dele.

— Você é o capacho daquele ser, não é? Vi vocês na TV. Todos


vocês. — seguiu no mesmo tom, torcendo a boca. — Não toque em mim,
criatura das profundezas!

— Foi só um aviso e espero que tenha entendido. — Balthazar


lançou-me um sorriso. — Tudo bem se eu deixá-la sozinha com esse homem?
— acenei com a cabeça.

Aquela tensão entre os dois me incomodava. Os olhos de Felipe


pareciam tão estranhos, furiosos.

— Estou indo às compras. Em todo caso, Milorde está no Palácio. —


disse e com o som de uma pequena explosão, desapareceu.
Encaramo-nos por alguns segundos. Mantive minha cabeça erguida.
Não cometi nenhum crime, mas eles sim. Se eles soubessem como me
fizeram mal todos aqueles anos enfiada naquela maldita escola!

— Antes de tudo, quero deixar claro que não nutro raiva ou mágoa de
você...

Que baboseira!

— Assim como também não sinto nenhum carinho. Vim aqui atender
um pedido que não posso negar. Nem ousaria negar. — enfiou a mão nos
bolsos, ergueu os ombros e deu um longo suspiro.

— É claro. Sorte a minha nunca ter esperado algo bom de vocês. De


nenhum de vocês. E você é inteligente o suficiente para saber que eu não
correria em sua direção pedindo-lhe um abraço. — sorri de canto. — De
todos os culpados, de todos eles, você me condenou ao inferno...

— Você mesma se condenou. — interrompeu-me. — Uma garota


falando com Lúcifer... — cuspiu, balançando a cabeça. — Agora não importa
mais. Todo o esforço dos nossos pais foi em vão. De nada adiantou você ter
sido colocada naquela escola.

— Fui enfiada. Forçada a ficar naquele lugar recheado de fanáticos


religiosos, como você e nossos pais! — o corrigi.

— Já falei que isso não importa mais.

— Se não importa mais, o que veio fazer aqui?

— Vim a contragosto atender ao último pedido de nossa mãe. — senti


meu coração gelar.

Último pedido?

— Não estou entendendo.


— Foi um baque e tanto ver a filha servindo a Lúcifer, o novo herói
que surgiu. — fez aspas com as mãos. — Quando ela viu seu rosto e
descobriu que você trabalha aqui, enfartou. Os médicos conseguiram socorrê-
la a tempo de uma tragédia, mas... As coisas só pioram. Ela não come, não
bebe e passa os dias chorando. Então ontem, ela me fez esse pedido. E estou
aqui unicamente para atendê-lo. — disse friamente.

Senti meus olhos arderem. O meu peito se apertou como nunca antes.
A minha cabeça girava e as minhas forças esvaíram-se. Fui ao chão, em
tempo de tocá-lo, mas alguém me pegou nos braços.

— Já deu o recado? — uma voz poderosa ecoou. Milorde. — Sinta-se


convidado a se retirar.

Tudo ficou escuro.


CAPÍTULO DEZENOVE

ENCARAMO-NOS POR ALGUNS segundos, mas pareceu uma


eternidade. Seus olhos arregalados me fitavam com fúria e ódio.

— Eu te repreendo em nome de Jesus! — ergueu um dos braços, com


a mão aberta em minha direção.

— E? — ergui as sobrancelhas. Ele recuou, sem ar. Abri um largo


sorriso, meus olhos queimaram como fogo e ele notou, recuando ainda mais.
— Certamente, Cristo não atenderia ao pedido de um homem cujo coração é
tão negro quanto o de um demônio.

Tantas coisas que eu gostaria de fazer com ele: chicotear, torturar,


arrancar as vísceras, mas, mal por mal, esse rapaz é o irmão da minha
donzela.

Soltei um suspiro profundo e dei-lhe as costas. Assim como surgi,


desapareci. Carregando-a nos braços, atravessei o grande hall, quando ouvi
uma voz embargada chamar-me:

— O que você fez com ela? — olhei por cima do ombro. Gisele. —
Vamos! Diga-me o que fez com ela! — aproximou-se. O som do salto furioso
ecoava pelo salão.

— Eu não. O irmão dela. — imediatamente refutei a acusação.

— Felipe? — não escondeu a estranheza. — O que ele queria?

— Assim que Cinthia despertar, pergunte a ela. — segui pelos


degraus.

Deixei-a deitada na cama. Admirei-a por longos minutos, analisando


sua expressão angelical. Seus traços delicados e os cabelos vermelhos como
sangue.

— Por que pintou os cabelos? — perguntei a mim mesmo, entre


sussurros. — Eles são tão bonitos assim, dessa cor...

Enfiei as mãos nos bolsos e voltei-me ao canto do quarto, encarando-


o fixamente.

— Continue vigiando-a. — ordenei. — Depois da inesperada visita de


Kirel em minha ausência, não duvido de mais nada.

— Sim, Milorde. — Querberus rosnou.

Precipitei-me em direção à porta, atravessando-a. Em passos lentos,


segui pelo corredor, indo em direção aos meus aposentos.

Que situação estranha. Isso me lembra...

“Oito anos enfiada na escola de garotas cristãs... — murmurou. Oito


longos anos. Oito anos longe da minha família que até hoje me rejeita.
Dizem que sou um objeto do demônio...”.

Levei uma das mãos ao queixo, pondo-me a pensar sobre a conversa


que tivemos outro dia.

— O que você passou por minha causa, donzela? — murmurei,


intrigado com aquela questão.

Sinceramente, não faço ideia do que aconteceu. Desde que você


descobriu quem sou, e eu quem é você, não tenho tido mais sonhos, nem lhe
visto em minha mente.

Perguntas e mais perguntas. Todas sem respostas. Isso me irrita.


Deixa-me furioso!

Cerrei os dentes e o punho, sentindo meu corpo arder em chamas.


Caminhei lentamente até a janela que dá vista para o jardim e o encarei
atentamente.

— Amo uma mulher que talvez não me ame. — ri com a ironia da


situação. — Pior que isso, não a conheço, não totalmente.

— Coisas assim acontecem o tempo todo, Milorde. — sorri ao ouvir


aquela voz e acenei com a cabeça, sem virar-me para trás.

— Amon, meu ilustre General. — deixei um sorriso de canto escapar,


voltando-me a ele, que por sua vez, curvou a cabeça. — Por onde andou?

Seus cabelos são brancos e seus olhos cor de oliva. O corpo é grande
e belo. Ele está vestido como um executivo. Talvez, assim como eu, tenha se
interessado por negócios mortais.

— Meu coração foi capturado por uma humana. — ergueu os ombros.


Negócios mortais.

— Malditos humanos! — acenei com a cabeça. Rimos.

— Não se fala em outra coisa nos sete portões do inferno. — referiu-


se a Cinthia. Em seguida, sentou-se em uma das poltronas do quarto. Retirou
um cigarro do bolso e acendeu com o indicador, tragando-o.

— Motivei muitos?

— Milhares de centenas. — soprou a fumaça e tragou novamente. —


Esse milênio será conhecido como o milênio dos Nefilins. Aparentemente,
vamos ter muitos novos.

— Excelente!

— Agora acha isso bom?

— AGORA sim. — enfatizei o momento.


— Baal recebeu sua autorização para assumir o inferno? —
perguntou. O olhei e torci a boca. — Imaginei que não.

— Quantos ele já angariou para sua própria causa?

— Alguns milhares.

— E os que se negam a ele?

— Ele ainda não se pronunciou sobre, mas creio que pretende


eliminá-los, ou, talvez, usá-los para algo que parece ter em mente.

— Escravizá-los?

— Provavelmente. — cerrei o punho.

— Milorde, até quando permitirá que ele siga fazendo o que bem
quiser?

— Ele não fará o que bem quiser enquanto não conseguir o que quer.
— mordi os lábios, excitado com a expectativa do que o futuro reserva.

— E o que ele quer?

— O inferno, a humanidade, o mundo inteiro. Ele não obteve êxito da


última vez.

— Mérito dos celestiais. — Amon pontuou. — E dessa vez? Os anjos


não parecem interessados nos acontecimentos atuais.

— Eles estão observando, mas não irão interferir.

— Por quê?

— Assim como eu, sinto que eles também sabem que é necessário que
isso aconteça.
— Pensei que Cinthia tivesse mudado seus planos. — deu um longo
suspiro, acendendo outro cigarro. Ignorei aquilo. — Se o objetivo dele é
conquistar o mundo e escravizar a humanidade, você, Milorde, é seu maior
obstáculo.

— Provavelmente.

— Pode me responder uma pergunta com sinceridade?

Virei-me a ele, encarando-o. Um sorriso de canto escapou.

— E quando não fui sincero? — arqueei uma das sobrancelhas.

— O pai da mentira só é sincero quando lhe convém. Escutamos,


ouvimos e aceitamos em respeito, mesmo que tais afirmações nos encham de
dúvidas.

— Pois bem, pergunte. — cruzei os braços.

— Qual é a hierarquia em poder dos seus generais? — seus olhos


brilharam. Sorri de canto.

— Quer saber se Balthazar é mesmo o número um? — Amon acenou


com a cabeça. — Devo reconhecer que orgulho é uma qualidade, mas
também uma maldição. — atravessei o quarto, parando de frente ao grande
espelho e, ajeitando meu colarinho, prossegui: — Vocês três tem poderes em
níveis similares.

— Nós três?

— Você, Querberus e Balthazar. Contudo, há características que os


diferem um dos outros e isso os torna mais fortes. Foi com base nisso que
estipulei uma hierarquia entre os generais. — ergui o indicador. — No
entanto, os poderes de Baal ultrapassam os seus.

— Então ele é o primeiro, não o segundo como fora nomeado. —


tombou a cabeça para o lado, mostrando os dentes.
— O número um está além de poder. Trata-se de... — hesitei em dizer
a verdade. — Confiança. Confio em você e Querberus, mas vocês com seus
espíritos livres sempre somem...

— E Balthazar lhe acompanha onde quer que vá. — Amon emendou.


— Justo. Mas isso ainda não explica o motivo...

— Baal não é de confiança. Nunca foi. Tenho uma breve noção dos
seus objetivos e não é nada bom. Nem para nós, nem para os celestiais, muito
menos para os humanos.

— Então ele pretende mesmo... — arregalou os olhos.

— Ele irá tentar. Obter sucesso, bom... São outros quinhentos!

— Se de fato esse for o plano dele, então duas chaves estão em sua
posse. — Amon comentou. — Kirel está ao seu lado.

— Uma mulher rejeitada é sempre perigosa. — sacudi a cabeça e


ergui o indicador. — Tome nota! Mulheres são perigosas, todas elas!

— Tomarei, Milorde.

Deixei-o sentado na poltrona e comecei a andar em círculos pelo


quarto, avaliando a situação atual: são necessárias sete chaves para abrir o
sétimo portão do inferno. Se obtiver sucesso, ele libertará Satan, O Deus do
submundo. Aquele que fora aprisionado pelo próprio Deus e que segue
adormecido em seu sono eterno.

Isso não é bom. Não é bom mesmo!

— Onde está sua chave, Amon? — parei, voltando-me a ele,


encarando-o com seriedade.

— Sempre comigo. — esticou a palma da mão, materializando uma


grande chave polida em ouro, pouco maior que sua mão.
— A quer de volta?

— Não agora. — acenei com a cabeça. Ele repetiu o gesto.

— Infelizmente, nem todos se mostraram dignos dela... — levantou-


se, passou uma das mãos pelo paletó. — Eu estava ansioso por um pouco de
diversão.

— Escolha um dos quartos e se acomode.

— Uma última pergunta, Milorde.

— Sim?

— Você ama a mortal?

— Sabe a resposta melhor que eu.

— Então ela corre perigo. — deu de ombros e seguiu em direção à


porta. — Teremos de protegê-la. Para atingir você, atacarão seu ponto fraco e
ela é a sua fraqueza.

Após tais palavras, retirou-se.

Infelizmente, Amon está certo. Proteger Cinthia é uma prioridade!

Ao longe, ouvi os passos de Balthazar. Ele atravessou o portão


principal. Precipitei-me em direção à porta, passei pelo corredor e desci as
escadas, parando no grande hall. Assim que ele abriu a porta, sorriu ao me
ver.

— Bom dia, Milorde. Fui fazer as compras de lady Cinthia. —


colocou as sacolas em cima do sofá.

— O irmão dela já se foi. Aparentemente só veio causar-lhe


problemas.
— Notei desde o início.

— E onde ela está?

— Desmaiou diante da agressão verbal do rapaz e eu a levei para


dentro. — Balthazar arregalou os olhos.

— Aquele filho da mãe. — cuspiu, cerrando um dos punhos. — Devo


matá-lo, Milorde?

— Não matamos cunhados. Apenas farei com que ele coma o pão que
o diabo amassou. Literalmente. — sorri de canto. — Mas, nesse momento,
tenho uma missão para você.

— Missão?

— Exatamente. — aproximei-me dele, deixando os lábios próximos a


sua orelha e sussurrei em tom inaudível aos mortais.

— T-Tem certeza disso, Milorde?

— Absoluta. Agora vá.

— Assim que deixar as compras na cozinha. — passou por mim,


pegou as sacolas e desapareceu.

Passei um longo tempo deixando as coisas andarem. Estive alheio aos


acontecimentos do mundo e a função que me fora dada após a queda. Eu sou
aquele que deve guarnecer os sete portões. É meu trabalho guardá-los. Não
posso impor esse fardo aos meus generais, meus amigos e nem a Balthazar,
meu melhor amigo.

Não considero que isso tenha sido um erro. Tudo que fiz foi por
intuição e sigo agindo com meu próprio eu. No passado, foi eficaz distribuir
as chaves. Agora não mais. É chegada a hora de reuni-las, guardando-as
comigo.
O tabuleiro foi colocado na mesa há tempos e o adversário segue
fazendo jogadas. Agora é chegada a hora de entrar no seu jogo.
CAPÍTULO VINTE
POR BALTHAZAR

ERGUI AS SOBRANCELHAS, encarando-o desacreditado. Cetron


sorriu e acenou positivamente, deixando claro que não havia outro jeito.

Séculos atrás o guardião da quinta chave, Tezfiel, foi morto em uma


batalha contra os anjos — um velho amigo de Milorde. Se ainda estivesse
vivo, sem dúvida seria um dos seus generais —. Seu aprendiz e sucessor,
Cetron, tornou-se o novo guardião. Ele é fiel a Lúcifer, tanto quanto seu
mestre era. Cetron é um demônio que vive entre os mortais, como se fosse
um. Ele é proprietário da Asa de Morcego, uma boate voltada para imortais
— protegida por encantamentos que a esconde dos olhos humanos.

Arcanjo Cetron, ombros largos, corpo escultural. Belo, forte e de


cabelos acinzentados. Seus olhos são azuis e sua beleza é estonteante.

— O que vai ser, Balthazar? — um sorriso de canto escapou de sua


boca.

Corei completamente.

— Você é um pervertido!

Cetron ergueu os ombros e passou por mim. Retirou um cigarro do


bolso e o acendeu, parando no topo da escada, de onde encarou a
movimentação lá embaixo.

— Estou pensando nos negócios.

— Deveria pensar no fim do universo! É isso que irá acontecer se os


sete portões forem abertos! — retruquei, irritado.
— Você terá a chave depois que se apresentar. — olhou-me de soslaio
e sorriu sem mostrar os dentes. — Rihanna.

Senti minhas pálpebras tremerem.

— Maldito! — rosnei.

— O show começa em vinte minutos. — cutucou o relógio de pulso


com o indicador e desceu as escadas.

— Milorde sabia que isso iria acontecer... — afinei os olhos. —


Aquele... — cerrei os punhos.

Um general demônio submetido a tal humilhação. Inaceitável. Essa


situação é i-na-cei-tá-vel.

Precipitei-me em direção ao camarim. Rapidamente aprontaram-me


para o show. Ao me encarar no espelho, meu queixo caiu.

— Serei motivo de chacota pelo resto do milênio. — murmurei


comigo mesmo.

— E só para lembrar. — Cetron parou na porta e o encarei pelo


espelho. — Se não convencer, terá que dançar de novo ou até que convença.
— jogou-me uma piscadela.

Virei-me, encarando-o. Forcei um sorriso e em passos lentos,


adiantei-me até ele, parando em sua frente. Subitamente soquei seu nariz,
fazendo-o gemer.

— Se me fizer dançar novamente, vou te matar. — senti meu corpo


inteiro queimar, pegando fogo em fúria. — Arrancarei pena por pena até que
não reste nada além do esqueleto das suas asas.

— E não matou ainda por quê? — espremeu as palavras, pondo a mão


no nariz.
Sorri, erguendo o indicador, como Milorde costuma fazer e, repeti
suas palavras, usando sua voz:

— Seja gentil com Cetron. Ele age como um morceguete, mas é um


homem fiel. — forcei um sorriso e tossi, trazendo minha voz à tona. — Não
abuse da minha gentileza.

— Apenas dance... Concubina. — mordeu os lábios, dando alguns


passos para trás.

— Seu... — semicerrei os olhos, esticando uma de minhas mãos no ar


para materializar minha espada, mas ele desapareceu em tempo. — Verme!

Hora do show!

— Senhoras e senhores, temos o prazer de anunciar que o espetáculo


de hoje será feito por lorde Balthazar, o grande homem de Lúcifer. — disse
Cetron no microfone.

Um longo “oh” ecoou da multidão. Seguido por gritos eufóricos:

— Balthazar! Balthazar! Balthazar!

— Um milênio de vergonha... — lamentei em murmúrio atrás das


cortinas.

Vestido como um gogo-dancer, posicionei-me atrás das cortinas.


Duas diabetes colocaram-se do meu lado esquerdo e outras duas do direito.

— Com vocês, lorde Balthazar e as diabetes! — Cetron anunciou


eufórico. As cortinas abriram-se em seguida.

Fui aclamado com uma salva de palmas. Curvei a cabeça


singelamente para o público e ao som de S & M, de Rihanna, o show
começou.

“Na na na na
Come on
Na na na na
Come on
Na na na na na
Come on
Na na na na
Come on, come on, come on”

Asas abertas, peito estufado, três pés de distância entre as pernas e


quadril se mexendo. Acompanhei o ritmo das diabetes, segui à frente,
remexendo o corpo, usando passos ritmados.

Ao som do chicote, descemos até o chão, nos viramos e subimos


arrebitando o traseiro. Corei completamente com tamanha obscenidade.

Um lorde se propondo a isso...


Os assovios e gritos eufóricos seguiam com mais força. Uma das
“garotas” entregou-me um chicote. Desci os degraus do palco e segui pelas
mesas, passando por elas, uma a uma. Como dizia o rito, segurei no pole
dance e requebrei.

Mãos. Inúmeras tocando-me, acariciando-me, alisando-me. Todos


queriam um pedaço de mim. O que Yuri diria se me visse assim? Corei outra
vez. Com certeza ficaria chateado.

Dei um longo suspiro e segui com o trabalho. Isso é um trabalho,


apenas um trabalho. Após a passagem das mesas, voltamos ao palco e
coordenadamente as diabetes ajoelharam-se aos meus pés, tocando minhas
coxas como se toca um saxofone.

— Na cama que é bom, que é bom! — emendei o coro, rebolando o


quadril, enquanto passava a ponta do chicote pelo rosto das minhas garotas.

Por fim, o eco de um rugido finalizou o show. Abri minhas asas e


curvei-me juntamente com as diabetes, agradecendo ao público. Prazo
suficiente para a cortina se fechar, escondendo-nos dos presentes.
— Balthazar! Balthazar! Balthazar! — tornaram a gritar.

— É, ele foi espetacular. Realmente espetacular. — ouvi a voz de


Cetron e espiei dos bastidores. — O melhor desempenho já visto na casa,
feito pelo grande General Demônio, mão direita do nosso soberano, Lúcifer,
a quem temos a honra de servir. — disse, findando o discurso.

Cetron se retirou do palco dando espaço às ninfas infernais,


conhecidas por sua graciosa e poderosa voz que encanta multidões.

Dei de ombros e segui para o camarim, a fim de me trocar. Eu já


havia me despido completamente quando ele entrou.

— Seu corpo continua belo. — comentou, fechando a porta atrás de


si.

— Intocado há milênios. — fiz questão de frisar.

— A boca não.

Vesti minha roupa e voltei-me a ele, encarando-o.

— Deixe de rodeios e me entregue a chave.

— Como ele é?

— Perfeito.

— Mortal.

— Isso não é um defeito. — ergui os ombros.

— Ah, não? Eles envelhecem e morrem. — enfiou as mãos nos


bolsos, fitando-me. Enrijeci minha expressão facial, repreendendo-o. — Se
me desse outra chance...

— Nunca.
— Cinco séculos e você ainda guarda tanto rancor?

— Agradeça a Lúcifer por eu não ter lhe matado naqueles dias. —


esbocei um largo sorriso. — Você me traiu com uma daquelas ninfas
pestilentas!

— Fui seduzido!

— Foda-se. Agora... — dei dois passos à frente, mirando-o nos olhos.


— Dê-me a chave antes que eu lhe transforme em um espetinho de lagarto!

— Você fica tão fofo furioso. — mordeu os lábios.

Corei, virando o rosto para o lado.

— Certo. Como combinado. — estendeu uma das mãos, fazendo uma


esfera materializar-se em sua palma. — Diga a Milorde que seu fiel servo lhe
entrega o que lhe é de direito e que a guardou por todos esses séculos com
imenso prazer, ainda que... Arriscando a própria vida...

— Que bajulação bestial... — rosnei, pegando a esfera.

— Se eu não bajular meu Rei, quem irei bajular? — ergueu os


ombros, sorrindo.

— Agora vou indo. Tenho outros compromissos. — dei-lhe as costas,


preparando-me para partir.

— Balthazar. — ele me chamou. Assenti com a cabeça. — Se decidir


ficar com aquele humano... Terá que me matar ou eu irei matá-lo. —
arregalei os olhos.

Recompus-me e, ainda de costas, cerrei os punhos.

— Acha que não tenho coragem? — insistiu.


— Não.

— Pois você está muito engando, se quer saber...

Engoli em seco.

— Estou atrasado. Que suas expectativas sobre mim, sobre nós, se


fodam com você e seu bar medíocre!

— Ei, meu bar não é medíocre... — retrucou, indignado.

— FO-DA-SE!

Sem querer alongar aquela conversa nada agradável, teletransportei-


me para o Palácio. De vez em quando é bom esticar as asas e pensar um
pouco, mas aquele não era o momento. Carrego comigo algo muito precioso
e que pode decidir os eventos que virão a seguir.

Surgi no grande hall, onde Milorde estava sentado, com as pernas


cruzadas, encarando-me.

— Como foi?

Esbocei um sorriso de canto, indo em sua direção.

— Balthazar? — ergueu as sobrancelhas. — Por que está me olhando


assim? Seus olhos estão brilhando...

Soquei seu nariz. Instintivamente ele levou a mão ao rosto,


esfregando-o.

— Porra! Foi tão ruim assim?

— Você sabia que seria!

— Imaginei que vocês dois pudessem...


— Sabe que estou interessado em outra pessoa! — joguei a esfera em
seu colo, dando-lhe as costas.

— Sei que seu coração está dividido. — preparei-me para respondê-


lo, mas minha garganta secou. — E você sabe tanto quanto eu que isso é
verdade.

— Isso não é da sua conta!

— É sim! Você é meu irmão, meu general, meu melhor amigo. O seu
bem-estar está acima de qualquer outra coisa! — ele retrucou, ferozmente.

Dei um longo suspiro, encolhendo os ombros. Lúcifer não mente


quando diz que estou dividido. De fato, estou.

— Mude de assunto, por gentileza.

Ele tossiu, limpando a garganta. Sem dúvida, entendia meus motivos,


minha dor, minhas cicatrizes.

— Agora que temos a terceira chave, temos em nossa posse quatro de


sete. — disse, empolgado.

— Quatro? — voltei-me a ele, não escondendo meu estranhamento.


— Baal possui a primeira e a segunda chave. Onde está a sétima? — ergui
uma das sobrancelhas.

Milorde sorriu sem graça, desviando os olhos de mim.

— O que fez com a sétima chave? — aproximei-me dele.

— Perdi! — sorriu, erguendo as sobrancelhas e mostrando os dentes.

— Perdeu? PERDEU? COMO ASSIM VOCÊ PERDEU A SÉTIMA


CHAVE? — questionei, irritado.

— Não sei como, apenas perdi.


Semicerrei os olhos. Arregacei ambas as mangas, fitando-o.

— O que pensa que está fazendo?

— Vou lhe dar uma lição para que se lembre de onde enfiou essa
maldita chave!

— Não se atreva!

Saltou do sofá, disparando escada acima. Segui atrás dele,


apressadamente.

— Milorde, venha aqui e diga que isso é uma brincadeira! — rugi,


perseguindo-o.

— Não é uma brincadeira!

É verdade que as sete chaves são necessárias para abrir os sete portões
do inferno. A primeira chave abre o primeiro portão. A segunda chave abre o
primeiro e o segundo portão. Sendo assim, a sétima chave abre todos os
portões. Mesmo que o portador das chaves não possua as outras seis, apenas
usando a sétima ele poderia trazer caos a todos o universo.

— Tente se lembrar! — andei de um lado a outro, sacudindo a cabeça.

— Não consigo. — ele deu um longo suspiro e cruzou as pernas,


apoiando as mãos para trás, na cama. — Sinto que está conosco, mas não sei
onde.

— Conosco?

— Sim! Em algum lugar da mansão.

Parei subitamente. Vários fatos me vieram à cabeça e dei-me conta de


o que era aquilo que senti quando a vi pela primeira vez. Arregalei os olhos.
Não pode ser...
CAPÍTULO VINTE E UM
POR CINTHIA

— VOCÊ É O DESGOSTO da família! — rugiu, encarando-me


friamente.

— Mamãe...

— O que será do nosso nome? Somos líderes da igreja, somos


conhecidos pela sociedade. — murmurou, andando de um lado a outro, até
que parou, fitando-me. — Não quero você na minha casa.

Senti minhas pupilas arderem. O meu coração disparou. As minhas


pernas tremiam e minhas mãos suavam.

Despertei.

A minha cabeça doía e o chão girava. Apoiei-me na cama, então senti


uma mão tocar a minha. O borrão em minha frente ganhou forma.

— Gi... — gemi, engolindo o choro, mas meus olhos não. Eles


insistiam em expurgar minha dor.

— Sinto muito pelo que aconteceu lá fora. — balançou a cabeça e deu


um longo suspiro. — Ah, se eu estivesse lá! Se eu estivesse lá... — socou a
cama. — Aquele babaca ia ver só.

— Sabe... — comecei, fungando. — Eu me pergunto se Deus tem um


propósito na minha vida. Por que eu? Logo eu?

Gi suspirou e desviou nossos rostos.

— Deus escreve certo por linhas certas. — disse em tom baixo,


tentando me acalmar.

— Paguei um preço muito caro. Perdi minha família e a troco de quê?


— segurei os lençóis com as mãos, enrugando-os.

— Não foi você mesma que falou sobre os sonhos, aquela visão dos
céus? — tocou minha mão novamente, segurando-a com força. — Todos nós
temos uma missão, mas acredito que a sua seja...

— A missão das missões? — forcei um sorriso e enxuguei o rosto


com as costas das mãos.

— Sim, acho que é isso mesmo! — retrucou, empolgada.

— Deus não precisa de pessoas...

— Não é assim que funciona! — afastou o rosto para trás, franzindo a


testa.

— Sei que não. Eu só...

— Acha que não é capaz? — ergueu as sobrancelhas. — Se não for,


ninguém mais é!

— Sou uma mulher fraca.

— Fraca? — riu. — Uma mulher fraca que colocou Lúcifer aos seus
pés? — sorriu sem mostrar os dentes.

— Isso não é verdade...

— Só não vê quem não quer. — deu de ombros.

— De todo modo...

— Pare com isso! Você não é fraca. — aproximou o rosto do meu. —


Cinthia, você fez o que nenhuma outra mulher fez. Talvez... — torceu o
rosto, como se não acreditasse no que iria dizer. — Talvez tudo isso seja um
plano de Deus, talvez essa seja sua missão.

— Guiar o Rei dos Demônios à luz? — perguntei em tom irônico,


quando me lembrei.

Um serafim, oito pares de asas. Uma voz tão bela que parecia uma
sinfonia. Ela cantava aos meus ouvidos: Só você pode guiá-lo à luz e apenas
você pode resgatá-lo das sombras. Você clamou e o Todo Poderoso Deus
atendeu seu pedido.

Tudo parece conspirar ao nosso favor, mas eu tinha medo... Uma


inquietação imensurável tomava conta de mim. Não sei se devo seguir com
isso.

— Preciso ir ver minha mãe. — mudei o tom do assunto.

— Quer que eu vá junto?

— Não. — sentei-me na beirada da cama, passei a mão nos cabelos,


jogando-os para trás e suspirei. — Preciso fazer isso sozinha.

— Ficarei do lado de fora, certo? — alcancei-lhe com um olhar de


reprovação. — Se algo der errado, estarei lá. Só isso.

— Tudo bem.

Gi encarou-me por alguns instantes, balançando uma das pernas


inquietamente.

— Diga logo!

— Então, seus cabelos... Não vai pintá-los?

— Não.

— Mas você disse que eles são a marca do demônio. Que ficaram
assim após você começar a falar com ele...

— Ficaram assim após eu começar a orar por ele. — acenei com a


cabeça. — Mas eles não são a marca do demônio. — levantei-me, passando
as mãos por minha saia. — Eles são a marca da remissão.

— Quê? Remissão? — pareceu intrigada. — De quem?

Balancei a cabeça, ignorando sua pergunta e segui ao guarda-roupa.


Peguei uma muda de roupas e rapidamente segui para o banheiro.

Gi conhecia minha história, ou parte dela. Contei-lhe tudo que passei,


senti e que ainda sentia. Ela se tornou um ombro amigo e mais que isso, uma
irmã, a minha família.

Segui em silêncio para o banheiro. Liguei a ducha e me perdi em


pensamentos.

Nunca fui uma serva fiel, Senhor. Eu não gostava de ir à igreja, não
gostava da ceia e achava uma perda de tempo ficar sentada enquanto o
mundo perecia em fome e guerras. Não sei por que eu, mas não irei recusar
seu chamado. É hora de encarar os fatos.

Por mais que eu tema, não há outro jeito. Talvez, se eu não o amasse,
poderia fugir. Mas esse sentimento que tenho quando estou junto dele é...

Maravilhoso!

Após o banho, enxuguei-me e segui para o quarto. Vesti uma camisa


branca e uma saia, combinando-a com saltos médios. Passei um pouco de
maquiagem, batom e um colar que tinha guardado. A única lembrança da
minha avó, mãe da minha mãe.

Ela tentou me tomá-lo quando me colocou naquela maldita escola,


mas menti dizendo que havia perdido.

— Certo. Só para recapitular. — Gi pôs as mãos na cintura, olhando-


me de cima a baixo. — A intenção é fazer as pazes? Se for... — sorriu de
canto, fazendo uma careta.

— Vivi quase uma década enjaulada feito um bicho para agradar


meus pais. Aquela Cinthia morreu. A mulher que existe hoje pensa na própria
felicidade, independente do que os outros pensam.

— Até a família?

— Você é minha família. Eles se tornaram estranhos. — arrebitei o


nariz, segui até a mesinha e peguei minha bolsa. — Vamos?

— Sim, senhora!

Deixamos o quarto e seguimos pelo corredor. Assim que apontamos


no topo da escada, lorde Balthazar ergueu o rosto a nós e sorriu.

— Eu estava mesmo aguardando-as. — Gi e eu trocamos olhares. —


Não é nenhuma bronca. Apenas vou acompanhá-las.

Desci as escadas lentamente, degrau por degrau, parei em sua frente e


sorri.

— Não é necessário.

— Será que não? — ergueu as sobrancelhas. — Você não é mais a


humana que passava despercebida. Depois do incidente com Kirel, você
tornou-se a mortal que... — engoliu o resto da frase, sorrindo.

A mortal que encantou Lúcifer.

— Certo. Pelo visto não adianta discutir com vocês. — revezei os


olhos entre Gi e Balthazar.

Sem outros contratempos, seguimos para o lado de fora. Ao pararmos


na arcada da entrada, nos encaramos outra vez.
— Vamos de carro?

Balthazar arregalou os olhos como se eu tivesse lhe arrancado um


pedaço da perna.

— Na carroça motorizada? — semicerrou os olhos. — Começo a


achar que não gosta de mim, lady Cinthia.

— Carroça motorizada? — Gi não escondeu a estranheza.

— Vamos nos teletransportar.

— Teletransporte? — perguntamos ao mesmo tempo, aflitas.

— É mais rápido, menos arriscado e seguro. — Balthazar acenou com


a cabeça.

Qual é o conceito de menos arriscado e seguro para um demônio?

Notando nosso receio, Balthazar continuou:

— Já nos teletransportamos juntos, lady Cinthia. Quando fomos à sua


casa, buscar suas coisas. — arregalei os olhos.

Eu sabia. Sabia que não tínhamos ido de carro. E aquele enjoo


súbito... Aquela sensação estranha.

— Não sei se quero... — Gi nos encarou.

— Quer sim! Agora vamos os três. — agarrou nossos punhos.

— Espera, mas eu nem dei a localização ainda... — ele parou,


encarando-me. — Hospital São Paulo.

— Eu tinha pensado exatamente nisso!

— Mas podia ter errado o local e... — a voz de Gi embargou.


Fomos engolidas por um redemoinho. Uma fumaça negra corria ao
nosso redor. Tonteei e ela também, tanto que se agarrou ao meu braço com
força. Por fim, paramos.

— Chegamos! Como falei, rápido e seguro...

Alguém vomitando atrás de nós quebrou a empolgação de Balthazar.


Assim que nos viramos para trás, vimos Gi de quatro, com a cabeça enfiando
num vaso de plantas.

Encarei Balthazar e ele sorriu.

— Falta de prática... — balançou a cabeça, erguendo os ombros.


Revirei os olhos.

— Por gentileza, me aguardem aqui. — pedi. Balthazar acenou com a


cabeça e Gi com uma das mãos, entregando-se a outra explosão de vômito.

Identifiquei-me na portaria. Após uma ligação a entrada foi


confirmada. Segui em passos lentos por uma série de corredores, até que
entrei no elevador. Terceiro andar, quinta porta à esquerda.

Dei um longo suspiro. A porta abriu-se bruscamente, engolindo


qualquer pensamento que eu pudesse ter.

Uma enfermeira saiu do quarto, fechando a porta atrás de si. Encarou-


me e sorriu.

— Posso ajudá-la?

— Vim visitar minha mãe, Crisselda Del Toro Albuquerque.

— Ah, sim. No momento ela está dormindo, mas pode entrar e


aguardar. Ela deve acordar em breve. Tive de lhe dar alguns calmantes...

— Ela passou mal? — a interrompi.


— Uma crise de nervos. — arregalei os olhos. — Não se preocupe,
querida, tudo está sob controle. — sorriu afetuosamente.

— Espero que sim... — murmurei comigo mesma. Encarando-a


novamente, questionei: — Tem mais alguém no quarto?

— O filho dela, seu irmão, esteve aqui mais cedo. Ele sempre vem
pela manhã e à noite. — acenou com a cabeça, enfiou as mãos nos bolsos do
jaleco e abaixou a cabeça. — Situação difícil.

— Qual?

— A dela.

— Sim. — sacudi a cabeça.

Por um momento pensei que minha mãe já tivesse anunciado a


vergonha que sou para seus olhos por todo o hospital.

— Greve de fome. Ela simplesmente se recusa a comer. Nesse ritmo...


— suspirou, adotando um ar negativo. — Com a sua chegada, espero que isso
mude.

— Espero não piorar as coisas... — abaixei a cabeça.

— Família é algo delicado, mas família é família. — acenou com a


cabeça. Passou por mim, tocando meus ombros e retirou-se.

— Família é família... — repeti comigo mesma.

Enchi o peito de ar e entrei no quarto.

Lá estava ela, deitada na cama. Parecia tão frágil. Os cabelos louro-


escuros bagunçados e os inseparáveis brincos nas orelhas. Os lábios não
tinham cor e, apesar de sempre ter sido magra, parecia ainda mais.
Apesar de estar um pouco receosa, aproximei-me. Coloquei a bolsa
em cima da mesinha ao lado da sua cama e pus-me a admirá-la dormindo.

Suas mãos enrugaram devido à idade. O rosto nem tanto. Nada que
uma boa plástica não resolvesse. O ar de poder continuava a emanar de sua
face. Lentamente levei minha mão para tocar a sua. Assim que ela abriu os
olhos, fixando-os em mim, recuei imediatamente.

Engoli em seco. Chegou a hora decisiva. Agora vou saber por qual
razão fui chamada aqui.
CAPÍTULO VINTE E DOIS

AMON CRUZOU AS PERNAS, TRAGOU O cigarro e tombou a


cabeça para o lado, fitando-me.

— O que foi? — rosnei mal-humorado.

— Convide-a para jantar.

Virei o rosto para o lado. Amon insistiu.

— Você está parecendo um garotinho assustado que encontra o


primeiro amor. — riu, dando outra tragada no cigarro. — De minuto a minuto
você inspira profundamente, procurando pelo cheiro dela, e cada vez que o
sente, seu coração bate mais forte.

Trouxe minha cabeça para trás, encarando-o com estranheza.

— É, eu sei muito sobre as mulheres e sobre as paixões humanas.


Montei um bataclã. — contou, cheio de orgulho.

— Essa palavra não é adequada para a era atual. O correto seria


bordel ou puteiro. — franzi a testa.

— Não fuja do assunto.

— Não estou fugindo!

— Posso arranjar um local bom. — acenou com a cabeça.

— Um puteiro? Decididamente, não! — acenei com uma das mãos.

— Que falta de romantismo da sua parte, Grande “L”. — tragou o


cigarro uma última vez, jogando-o no chão e pisando em cima. — Não há
dúvida.

— De quê?

— De que você precisa de aulas.

— Para? — aproximei o rosto, semicerrando os olhos e não gostando


daquele tom soberbo.

— As cinco aulas de como conquistar uma mulher! — levantou-se


estendendo as mãos gloriosamente, como se tivesse acabado de vencer uma
guerra.

— E quem será o professor?

— Eu mesmo, Amon, O encantador de mulheres. — piscou para mim.


Revirei os olhos, balançando a cabeça.

— Você as enfeitiça?

— Está me ofendendo... — virou o rosto para o lado.

— Enfeitiça ou não?

— Er... Já fiz isso com algumas. Elas ficam em pânico quando conto
que sou um general demônio. — levou as mãos ao rosto, imitando-as
histericamente. — Socorro! Socorro! A prole de Satan veio buscar minha
alma!

— Fazem assim mesmo? — trouxe novamente a cabeça para trás.

— Não, mas é isso que entendo. — deu de ombros.

— Quase me esqueci de um pequeno detalhe. — ergui o indicador.

— Qual? — arregalou os olhos, curioso.


— Você é o mais imbecil dos meus quatro generais! — rosnei.

— Tecnicamente agora somos três.

— Que seja!

Um charlatão que enfeitiça mulheres querendo me dar aulas de como


conquistar uma humana? Isso é completamente descabido!

— Vamos começar. — bateu as palmas das mãos, apontando ambos


os indicadores em minha direção. — Como você elogia uma mulher?

— Uma mulher humana ou mulher divina? — perguntei.

— Qual é a diferença, Milorde? — torceu a boca.

— Há muitas diferenças.

— Certo. Uma mulher humana. Como você elogiaria uma mulher


humana? — gesticulou com uma das mãos.

— Como ela está vestida?

— Um longo vestido negro desenhando seu corpo, lábios cobertos por


um batom vermelho, cabelos presos, ar sedutor e...

— Cinthia não é assim.

— Estamos fazendo uma simulação! — estapeou a própria testa e deu


um longo suspiro. — Vamos tentar de novo.

— Imagine Cinthia vestindo um longo vestido, esculpindo todo seu


corpo...

— Sim. — sorri.
— Lábios carnudos, quadril grande e seios...

— Ora, não se atreva!

— S-Seis ondas de colares cobrindo seu pescoço. — forçou um


sorriso. O repreendi com os olhos. — Ela está vindo em sua direção...

— Sim!

— Para em sua frente e... — gesticulou com a mão, dando-me a fala.

— E diz: Oh, poderoso Lúcifer, tome-me por inteira. — deslizei a


mão para o lado, suavemente, adotando uma doçura incomum na voz.

— Como é? — pôs as mãos na cintura.

— O quê? Falei algo errado?

— Claro que não, Milorde, mas a entonação na voz deixou a desejar.


Dessa vez com mais empenho, hein? Um, dois, três!

Passamos um bom tempo no que ele chamou de primeira etapa.


Visualizei-me diversas vezes encontrando-me com Cinthia. Admirando seu
sorriso, seu rosto, seu corpo.

Por volta do meio-dia descansamos.

Eu não conseguia tirar aquela mulher da minha cabeça. Por onde eu


passava sentia seu cheiro, via seu rosto, ouvia sua voz.

— Então isso é amor... — sorri, murmurando comigo mesmo.

É ao mesmo tempo bom e ruim. Nunca senti isso antes. Em nenhum


momento da minha vida conheci esse tipo de amor e agora uma mera mortal,
uma reles humana, conseguiu me encantar de tal forma que sinto que estou
completamente à sua mercê.
Que ironia do destino. O poderoso Lúcifer desarmado por uma
mulher, e logo uma humana? A raça que tanto odeio!

Sorri de lado.

— Agora que tomamos um ar, vamos seguir para a segunda aula.

Virei-me para trás, encarando-o.

— Mas já?

— Como esperado, você passou pela primeira sem grandes


dificuldades. — jogou-me uma piscadela.

— E como funciona a segunda parte?

— Aulas de dança!

— Com outra mulher? — arqueei uma das sobrancelhas.

— É... — balançou a cabeça. — É essencial.

— Danço muito bem. Ademais, não conseguiria dançar com outra


mulher, exceto ela...

— Então vamos à parte três. — enumerou com os dedos.

— A arte da sedução. — abriu um leque do nada e cobriu metade do


rosto. Afinei os olhos. — É uma arte para poucos, é verdade, mas com muita
prática você conquistará mais uma etapa, Milorde.

— Hum...

— Hum? — arqueou uma sobrancelha.

— Hum! — acenei com a cabeça.


— Hummm. — revirou os olhos, cruzando os braços.

— Já pulamos duas etapas e... — acenei com a mão, silenciando-o.

Subitamente ouvi as palavras de Balthazar ecoar em minha cabeça:


amor não pode ser descrito, precisa ser sentido. Isso tudo que estamos
fazendo é inútil. Sentimento não é treino, é acontecimento!

— Por hoje chega. — passei por ele, enfiando as mãos nos bolsos.

— Fui tão ruim assim? — seguiu atrás de mim, acompanhando-me


pelos corredores.

Parei no topo da escada, encarando o grande hall. Ela já faz parte da


mansão. Sem sua presença aqui, sinto que falta um pedaço em mim.

Ela faz parte da mansão? Nada elegante! Ela já faz parte da minha
vida.

Amon colocou-se ao meu lado, buscando por uma resposta.

— Não, não foi ruim. É só que... Você é um fanfarrão. — ele


murchou. — Um impostor. — murchou ainda mais. — Com métodos meio
que... — acenei com a mão, como se girasse uma lâmpada.

— Quê?

Ergui os ombros e franzi a testa.

— Ah, grande “L”. — levou ambas as mãos ao peito, apertando-o. —


Sou uma desgraça dentre seus generais. — rodopiou duas vezes no lugar e
lançou-se escada abaixo, mas antes de tocar o chão, conseguiu proferir suas
últimas palavras. — Recuso-me a vida enquanto for inútil ao meu mestre.

Um estalo ecoou pelo grande hall. Amon permaneceu esticado no


chão, com os braços ridiculamente abertos.
Desci os degraus e parei ao seu lado, encarando-o.

— Talvez tenha um pouquinho de vocação para ator. — medi com os


dedos.

— Sério? — saltou do chão, recompondo-se.

— Não! Só não quero você sujando meu carpete.

Amon abaixou a cabeça, dando um longo suspiro.

— Sou uma desgr...

— Sem drama.

— Sabe como sou emotivo. — murmurou.

— Há certas ocasiões em que meus generais se portam como crianças.


— cerrei o punho, encostando-o nos lábios. — Só pode ser um castigo!

— Se te interessa, Milorde, você também... — lancei-lhe um olhar


furioso. — Às vezes... — semicerrei os olhos. — Esquece!

Sentei-me no sofá do grande hall. Cruzei as pernas e me pus a pensar.


Como será que eles estão se saindo? Será que está tudo bem? Não tive tempo
de falar com ela antes de sair. Quer dizer, na verdade eu tive, mas dado o
momento, achei melhor não me aproximar.

— Vi nos jornais que você tem atuado como herói. Claro que isso faz
parte de algo maior. Poderia me contar, Milorde? — Amon sentou-se na
minha frente, adotando uma postura séria. Retirou um cigarro do bolso, o
acendeu e deu uma profunda tragada. — Achei a estratégia bem interessante.
O que vai ser?

— Não vai ser.

— Por quê?
— O plano foi adiado.

— Por causa...

— Sim, por causa dela. — completei sua frase, encarando o nada.

— As coisas realmente andam estranhas. — comentou, tragando o


cigarro outra vez. E mudando bruscamente de assunto, informou: — Baal
está mudando muita coisa no inferno. Uma reforma é o que dizem.

— Seu próprio reinado.

— Um reinado que cairá antes de se iniciar.

Voltei meus olhos a ele.

— Não me pergunte, pois não faço ideia do que ele está tramando. —
deu outra tragada no cigarro, soprando a fumaça para o alto.

Nem eu, Amon.

Fugindo daqueles assuntos, lembrei-me dela. Sem esconder minha


preocupação, concentrei-me e fechei os olhos. Em instantes, pisquei e vi
pelos olhos de Balthazar. Gisele estava ao seu lado, branca como uma folha.
Encarei ao redor e não vi Cinthia.

“Onde ela está?”.

“Com a mãe no quarto”.

“Vá verificar”.

“Isso é mesmo necessário, Milorde? Acredito que lady Cinthia


necessita de um momento em particular com sua família e...”.

“Ande logo!”.
Balthazar levantou-se e, localizando a presença de Cinthia,
teletransportou-se para a porta do quarto. Aproximou-se um pouco e ouvi por
suas orelhas.

— Hoje você não precisa dizer nada. Chamei-a aqui apenas para
ouvir. — uma voz embargada com choro e aparentemente adoentada ecoou
em minha mente.

E então suas narinas me trouxeram um cheiro familiar, tentei me


concentrar, mas minha mente insistia em pintar um quadro com a cena que
devia estar acontecendo atrás daquela porta.

“Viu só?” — aquilo me trouxe de volta à realidade.

“Continue de olhos abertos e não deixe que ela note que está
espiando”.

“Sim, Milorde”.

Voltei a mim. Olhei Amon de soslaio e deixei um sorriso de canto


escapar. Ele mirou-me curioso, respondendo com outro sorriso.

— Sou todo ouvidos, Milorde.

— Tenho uma missão para você.


CAPÍTULO VINTE E TRÊS
POR CINTHIA

MINHA MÃE ACONCHEGOU-SE NA cama e esticou uma das


mãos a uma jarra de água. Prontamente servi um copo e lhe entreguei. Sem
pressa, ela tomou todo o líquido a goles vagarosos, mirando-me.

— Então... — falei, sem saber por onde começar.

Mamãe segurou o copo com as duas mãos, dedilhando-o. Desviou


nossos rostos, encarando o nada e deu um profundo suspiro.

— Deve pensar que eu te odeio, mas não odeio. Nunca odiei. —


começou. — Seu pai e eu fizemos o que achamos melhor para você. Não foi
o melhor, eu sei, mas naquela época parecia ser...

Senti meu peito apertar. Eu conseguia sentir amargura nas suas


palavras. As minhas mãos suavam sem parar. Eu sabia que só estava
começando e quando começava com uma calmaria, era sinal de que vinha
tempestade.

— Estávamos alucinados. Completamente imersos no fanatismo


religioso. Não encaramos o problema de frente, simplesmente o colocamos
de lado e seguimos com nossas vidas. — assentiu com a cabeça.

Segui em silêncio, ainda esperando pela tempestade. Da última vez,


logo quando saí da escola de garotas cristãs, começou da mesma forma.
Quando demo-nos conta, estávamos aos berros.

— Colocamos a família de lado. Abandonamos nossos filhos, nossas


vidas. Tudo isso em prol de um ideal maior. E, no fim, descobrimos que era
uma seita. — suspirou, balançando a cabeça outra vez.
Engoli em seco.

— Há quanto tempo descobriram?

— Pouco depois da última vez que vimos você.

— Poderia ter acontecido antes... — murmurei.

— Como consequência, passamos a viver uma vida religiosa,


extremamente religiosa. A salvação é individual, a sua filha é um objeto do
demônio. Se deixá-lo perto do seu filho, ele também se tornará um. —
suspirou, virando o rosto para o lado. — Eles disseram e nós acreditamos. —
comentou, puxando os lençóis da cama.

Objeto do demônio. É, eles disseram isso mesmo e meus pais


concordaram com seu diagnóstico. Como eu poderia esquecer um
acontecimento que me marcou tanto?

— Falhei como mãe, como mulher, como esposa. — cada vez que
mamãe acrescentava uma palavra, assentia com a cabeça.

— Falhou. — concordei.

— Talvez não haja mais tempo para arrependimento, mas eu me


arrependendo de tudo que fiz. — enrugou os lábios.

— Sempre há tempo para arrependimento.

Ela sacudiu a cabeça, unindo as mãos e esfregando os dedos.

— Não te ligamos, não fomos te visitar, não nos preocupamos com


você uma única vez... — sua voz embargou. — Deus nunca abandona seus
filhos e eu abandonei minha filha. — soluçou e uma lágrima rolou por seu
rosto.

Essa é a primeira lágrima que vejo rolar em seu rosto. Nunca vi


minha mamãe chorar, em momento algum de sua vida. Ela sempre inspirou
força, poder.

Eu gostaria de abraçá-la e dizer que está tudo bem, que passou, mas
não está. Isso é doloroso e vai continuar sendo doloroso enquanto eu não
esquecer, mas como eu poderia esquecer algo tão cruel?

[...]

Grandes olhos molhados em um corpo pequeno me encaravam.


Felipe, três anos mais novo que eu. Ah, se ele soubesse o que sua confissão
nos traria, ele nunca a teria feito.

De cabeça baixa, permaneci na sala, em silêncio. Os meus pais


discutiam ferozmente na outra sala.

“Ela precisa ir. Será melhor para todos nós!”.

“Precisar ou você quer que ela vá?”.

“Ambas as opções”.

“Crisselda, as coisas não se resolvem assim. Estamos fugindo dos


problemas. Se não for resolvido no seio familiar, onde mais está a solução?”.

“Rogério, temos dois filhos. Dois filhos. Não vou perder dois filhos.
Se mantivermos Cinthia perto de Felipe, você já sabe o que irá acontecer”.

Felipe e eu trocamos olhares. Seus olhos continuavam marejados. O


rosto pálido e os lábios tremulando, como se quisesse me dizer algo. Como se
quisesse me pedir desculpas.

A porta se abriu. Eles vieram até nós. Abaixei a cabeça outra vez,
unindo as mãos religiosamente. Naqueles dias eu me perguntei se Deus
estava me castigando por ter feito aquele pedido, mas com o passar do tempo,
descobri que não. Ao longo dos dias, meses e anos, descobri que fui vítima da
ignorância humana.
O carro parou na porta da escola de garotas cristãs. Um muro
extremamente alto e portões de ferro na frente. Descemos do veículo e
seguimos até a entrada, onde havia duas freiras me esperando.

Não ouvi um único adeus. Uma única palavra. Nada. Eles me deram o
silêncio. Foi a coisa mais cruel que poderiam ter feito a uma menina.

Por longas noites eu chorei, sentindo a rejeição familiar. Esperei por


eles, esperei por suas ligações. Quis voltar para casa, mesmo que seguissem
me ofendendo. Seria bem melhor que ficar completamente isolada em um
lugar estranho.

Depois de algum tempo, descobri que o inferno estava na própria


Terra.

[...]

— E-E-Eu não sei o que dizer... — confessei com a voz embargada,


erguendo a cabeça em seguida, tentando evitar que minhas lágrimas caíssem,
mas foi inútil.

— Hoje você não precisa dizer nada. Chamei-a aqui apenas para
ouvir. — deu um longo suspiro e encarou-me fixamente. — Perdão! Perdão,
minha filha. — enrugou os lábios, entregando-se ao choro.

Eu queria abraçá-la, mas simplesmente não consegui. Ainda há mágoa


e dor em mim, então chorei, chorei tanto quanto ela.

Subitamente tive uma estranha sensação de estar sendo observada e


voltei meus olhos à porta. Sequei as lágrimas e segui até a entrada, abrindo-a.
Olhei do lado de fora e não havia ninguém.

— O que foi?

— Nada. — sacudi a cabeça.

— Sinto que meu tempo nessa terra está chegando ao fim, então eu
gostaria de lhe fazer um último pedido. Apenas um.

Assenti.

— Mesmo depois do escândalo que rodeou nossa antiga igreja e que


revelou seu verdadeiro ideal comercial, mostrando que a seita só queria
controlar seus membros e conseguir mais dinheiro, seu irmão segue enfiado
nela. Ele se tornou... — a voz embargou outra vez. — Felipe é pior do que
fomos, mas não o tome como ele está agora. Ele é, assim como você, uma
vítima da ignorância dos pais.

Engoli em seco.

— O fanatismo destruiu nossa família. — murmurei, engolindo em


seco.

— Sim, destruiu. — mamãe concordou.

— Quando Felipe veio até mim, notei que ele carregava um ar


estranho... — comentei.

— Ele mudou completamente. Não agora, não hoje. Aconteceu dias


antes de você voltar... — virou o rosto para o lado. — Não estou dizendo que
é sua culpa, não entenda isso. Só aconteceu de uma hora para a outra.

— É realmente estranho. — concordei com ela.

— Sempre quis te fazer uma pergunta.

— Pergunte.

— Você não vendeu sua...

— Minha alma? — balancei a cabeça, deixando um sorriso escapar.


— Não. Eu sou cristã. Entendo que vocês agiram por loucura espiritual, mas
sempre tive Deus ao meu lado.
Segui até a janela do quarto e continuei:

— Foi-me dada uma missão, por Ele.

— Missão?

— O que mais seria? — voltei-me a ela. — Passei por tanta coisa e


acabei parando no Palácio de Lúcifer. Não consigo ver de outra forma.

— Mas estamos falando do pai da mentira. — sussurrou, contestando


minha tese.

— Estamos falando da misericórdia divina. Vocês, adultos, não


entendiam, mas mesmo sendo uma criança eu conseguia entender. Lúcifer é
filho de Deus. Assim como nós.

— Bom... — ergueu os ombros. — Continuarei não entendendo, mas


se acredita que lhe foi dada uma missão, cumpra-a!

— Vi o céu. É um lugar maravilhoso e que emana paz. Ouvi uma voz


me dizendo as seguintes palavras: Jamais se esqueça de que você é o plano
da remissão. Você clamou e o todo-poderoso Deus ouviu sua súplica.

— O que você pediu?

— Perdão. Pedi a Deus que o perdoasse. — minha mãe arregalou os


olhos e sorriu.

— Você sempre foi altruísta.

— Nem tudo que vocês me ensinaram foi ruim.

Somos mãe e filha, mas parecemos duas estranhas. Isso é tão


desconfortável. Sinto afeto, compaixão e amor, mas não consigo expor.

A reaproximação, reconciliação e consumação requer tempo. Nós


duas precisamos apenas disso. De tempo.
— Você cresceu bastante e fico imensamente feliz por isso. — ela
sorriu, aconchegando-se melhor na cama. — Se há uma missão, sei que irá
cumpri-la. — assenti com a cabeça.

— Acho que é hora de eu ir embora. — aproximei-me dela, fitando-a.

— Acho que sim.

Trocamos olhares uma última vez e então lhe dei as costas. As minhas
pernas tremiam, como se quisessem me impedir de sair sem lhe dizer nada.

Assim que pus a mão na maçaneta, ouvi sua voz rouca.

— Cinthia.

— Sim? — recusei-me a olhar para trás.

— Eu te amo.

Meu coração disparou. As narinas arderam e os olhos encheram-se de


lágrimas. Abaixei a cabeça, engolindo em seco.

Como uma fera ferida, girei o corpo e fui à sua direção. Naquele
momento, toda dor e mágoa sumiram, dando lugar ao maior dos sentimentos:
o amor. Só o amor é capaz de curar todas as cicatrizes do coração e da alma.

Inclinei-me, dando-lhe um beijo na testa e, subitamente, abracei-a


contra meu corpo.

— Eu nunca deixei de te amar. Passei todos os meus dias esperando


por vocês e mesmo quando não foram ao meu encontro, continuei amando-os
e sempre vou amá-los. — confessei, com a voz embargada, em meio às
lágrimas que rolavam por minha face.

Entregamo-nos ao choro e abraçamo-nos outra vez. Há quanto tempo


eu não sentia o calor maternal? Sentia tanta falta disso. Quantas vezes pedi
por um colo e não pude ter?

A vida é um livro e a cada dia escrevemos um novo trecho. Para


seguir em frente, é necessário virar a página.

Acariciei seu rosto com ambas as mãos e sorri. Sem mais palavras,
deixei o quarto. Enquanto atravessava os corredores, enxuguei o rosto.
Encontrei Balthazar e Gi na sala de espera. Eles não perguntaram nada.
Talvez tivessem notado meus olhos inchados.

Seguimos para casa. Atravessei a mansão silenciosamente em direção


ao meu quarto. Joguei-me na cama e abracei o meu travesseiro, entregando-
me a pensamentos perdidos, tentando encaixá-los em minha mente. Ao fechar
o quebra-cabeça, sorri, tomando a única conclusão possível.

— Obrigada, Deus. Muito obrigada. — sussurrei.


CAPÍTULO VINTE E QUATRO

OUVI QUANDO CHEGARAM. Endireitei-me no sofá, levando os


olhos à porta principal. Amon acompanhou-me. Cinthia entrou em silêncio,
de cabeça baixa. Os olhos estavam inchados e o rosto mostrava o rastro das
lágrimas.

Naquele instante senti meu peito arder. Vê-la daquela forma me


entristecia. Eu queria ajudar de algum modo, mas dado os fatos que levaram
ao rompimento com a família, o melhor a se fazer agora era me manter longe
e ao mesmo tempo perto, caso ela precisasse de mim.

Gisele seguiu para a cozinha. Balthazar veio até nós. Deu um longo
suspiro e sentou-se em um dos sofás, em silêncio.

— Entregue sã e salva.

— Nem tão sã... — murmurei, ainda com a imagem dos seus olhos
inchados em minha mente.

— As coisas andam bem monótonas por aqui. — Amon resmungou.


— Pensei que fosse deparar-me com mais animação.

— Logo teremos muita animação. — comentou Balthazar.

— Não sei se será logo. Baal é bem cuidadoso com suas ações. —
Amon ponderou.

Inerte aos dois, meus pensamentos vagueavam nas possibilidades


entre ela e eu. Apesar de estarmos no mesmo local, sentia que estávamos
distantes. Preciso reduzir esse obstáculo entre nós.
Odeio dizer isso, mas... Sinto que preciso tê-la por perto, sempre.
Quando não estou com ela, todo o plano de conquistar a humanidade volta. O
desejo, a sede por poder. Contudo, quando a vejo, tudo muda. A única
vontade que prevalece é envolvê-la em meus braços.

— Milorde? Milorde? — Amon chamou-me insistentemente.

— Sim?

— Estávamos discutindo as possibilidades de Baal atacar os humanos


em uma tentativa de minar sua popularidade recém-conquistada.

— Recém-conquistada? — arqueei uma das sobrancelhas. — Sempre


fui pop!

— Não no bom sentido.

Gargalhamos.

— De fato. — concordei.

Eles seguiram trocando opiniões sobre a estratégia de Baal, mas eu


não conseguia pensar em nada, apenas em Cinthia.

Começava a anoitecer quando deixei meus aposentos. Segui em


passos lentos pelos corredores, andando de um lado a outro, recapitulando
mentalmente em como faria o convite.

— Donzela, me dê a honra de um jantar? — parei na porta do seu


quarto, levando o dedo em riste aos lábios. — Não! — tornei a andar de um
lado a outro. — Milady, gostaria de jantar comigo? — parei outra vez. —
Não! Você pode melhorar, vamos lá, concentre-se!

Se eu colocasse mais força nos pés, sem dúvida, iria acabar deixando
buracos no chão. Um ranger de porta ecoou, fazendo-me voltar ao local do
ruído.
— Donzela. — sorri.

Ela parou ao lado na porta, escorando-se, encarou-me e retribuiu o


sorriso.

— Parece nervoso, Milorde.

— Quem? Eu? — acenei com a cabeça, abrindo um largo sorriso. —


Jamais!

— E o que faz aqui na porta rondando o meu quarto feito um cão de


guarda? — tombou a cabeça para o lado, erguendo as sobrancelhas.

— Eu estava de passagem...

— Dezessete vezes?

Ela contou? Mulheres são tão detalhistas que chegam a surpreender.

— Que tal margear o lago comigo enquanto admiramos as estrelas?


— desconversei, finalmente fazendo o convite. Ainda receando uma
negativa, mas não deixei transparecer.

— Agora? O sol acabou de se pôr, Milorde. Creio que ainda não haja
estrelas no céu.

— Depois do jantar.

— Que jantar?

Por mil demônios. Esqueci-me de mencionar o jantar!

— Donzela, dá-me a honra de um jantar esta noite? — aproximei-me


dela, tomando sua mão junto a minha.

Cinthia corou, fechando a porta subitamente. Pelo som que ecoou do


lado de dentro, ela girou os pés e escorou as costas na madeira maciça.
— Donzela?

— Às nove. — disse, afastando-se da porta a passos largos.

Aquele sim me deixou excitado. Quis urrar, mas não podia, derrubaria
a mansão. Permiti-me um salto, seguido de um soco vitorioso no ar.

Apressadamente, dirigi-me aos meus aposentos. Entrei e joguei o


paletó em cima de uma cadeira e com um movimento dos dedos abri o
guarda-roupa, fazendo todas as peças flutuarem pelo quarto.

Levei uma das mãos ao queixo, acariciando-o.

— Vejamos. Uma ocasião especial merece uma roupa especial.


Vamos escolher! — bradei, esticando os braços, fazendo todas as peças me
rodearem.

O espelho anexado à parede se moveu, parando em minha frente, e


peça por peça comecei a provar. Por fim, acabei sendo tentado por duas.

— Estou em dúvida. — peguei dois paletós, um com cada mão.

— Eles são da mesma cor, Milorde. — Balthazar surgiu no quarto,


sentado na cama com as pernas cruzadas, encarando-me com indiferença.

— Sim, são. Mas possuem essências diferentes. — ergui o paletó


azul-marinho da mão direita. — Este tem o emblema do Cavalo de Troia,
feito com a madeira do original. — fiz o mesmo com o da esquerda. — E este
emblema foi feito da espada do próprio Rei Nabucodonosor.

— Os ternos continuam iguais, Milorde...

Lancei-lhe um olhar de incômodo.

— Permite-me ajudá-lo?
Acenei com uma das mãos, cruzando os braços. Balthazar saltou da
cama, parou em minha frente e me analisou por longos minutos.

— E?

— Estou pensando.

Dei um longo suspiro, começando a ficar impaciente com a demora.


Quase sete da noite e ele surge para me enrolar.

— E agora?

— Ainda estou pensando.

— VOCÊ. PENSA. DEMAIS! — respondi, contendo a fúria em


minhas palavras, pontuando-as.

— Está nervoso para o encontro com sua amada?

— Não estou nervoso!

— Notei que não. — conteve uma risada, enrugando os lábios.

Revirei os olhos. Odeio quando ele faz isso!

— Aonde pretende levá-la? — perguntou, ajeitando meu colarinho.

— Ainda não sei. — Balthazar parou subitamente, encarando-me com


um olhar de desaprovação. — Estou pensando!

— E não está nervoso. — riu outra vez.

— Se dizer isso novamente, vou te socar! — cerrei os punhos.

— Nervoso assim? Não vai acertar. — gargalhou e ergueu meu


queixo. Preparei-me para esganá-lo quando fui interrompido por seu anúncio:
— Um terno sem paletó.
— Sem paletó? Eu adoro meus paletós! — franzi a testa, deixando
claro que aquilo soou como o beijo de Judas. Alta traição.

— Sim e os usa todos os dias. Hoje será uma noite especial. A ocasião
requer um vestuário especial.

Qual o problema em usar paletós todos os dias? O vestuário remete à


importância de quem o veste.

— Certo. Quais as cores? — rendi-me as suas sugestões.

— Camisa manga longa cinza-claro, dobrada acima dos cotovelos. —


afastou-se, encarando-me. — Calça e colete cinza-escuros e sapatos pretos.

— A gravata poder ser...

— Preta. Combinando com o vestuário e com os sapatos. —


interrompeu-me, deixando-me sem palavras.

— Alguma objeção, Milorde?

— Não entendo de roupas.

— Eu sim. — abriu um largo sorriso.

— Ele se acha, ele. — usei uma expressão que vi ao navegar pela


internet.

Após entrarmos em acordo sobre as vestes, Balthazar saiu para


comprá-las. Sentei-me na cama, pensando aonde a levaria. Ah, essa é a parte
difícil. O local sempre causa boa impressão e eu quero causar a melhor
possível.

Quase oito da noite.

— Que tal a lua? — levantei-me, sorridente. — Isso! Vou levá-la até


a lua.

— E depois que lady Cinthia morrer asfixiada por falta de oxigênio


vai fazer o quê, levá-la ao sol? — virei-me para trás, encarando Balthazar.

Aquilo foi um choque de realidade. Cinthia não é um celestial. Ela é


mortal, uma humana. É necessário muito cuidado da minha parte.

— Parece ter ficado incomodado com o que eu disse. — aproximou-


se de mim, com uma sacola em mãos.

— Não com o que você disse, mas com o que me lembrou.

— E o que lembrei?

— Ela é mortal.

— E qual o problema nisso? — ele ergueu as sobrancelhas.

— Um dia eles morrem. — murmurei, sentindo meu peito se apertar.


Balthazar engoliu em seco, abaixando a cabeça.

— Não foi minha intenção. Também não gosto de pensar nisso. Sabe
que também amo um mortal.

Naquele instante o ar ficou frio. O vento que entrava pela janela soava
como o uivo de um lobo solitário, ecoando em minha mente, dizendo que
aquele era meu destino, que eu nunca teria uma alcateia.

Os meus olhos arderam. Desviei o rosto de Balthazar e segui em


passos lentos até a cômoda, onde apoiei ambas as mãos.

— Balthazar...

— Sim, Milorde.

— Por favor, informe Cinthia que não estou me sentindo bem.


Poderíamos remarcar o jantar para outra ocasião.

— Fugir dos problemas não é a solução.

— NÃO ESTOU FUGINDO! — rugi, voltando-me a ele, usando um


tom mais ameno. — Estou permitindo-me um romance que nunca dará certo.

— Não dará certo ou você não quer que dê certo?

— Ela um dia vai... — minha voz embargou e minhas pupilas


encheram-se de água, enquanto cerrava meus punhos.

Balthazar forçou um sorriso, sacudiu a cabeça e deu um longo


suspiro.

— Lu... Esse é o preço da nossa rebelião. — ele sussurrou, enfiando


as mãos nos bolsos e baixando a fronte. — Todo crime tem sua punição,
talvez essa seja a nossa. Amar, ser amado e sentir a dor de ver aquele que
ama morrer. — ergueu a cabeça, com lágrimas molhando seu rosto. — E
nada disso importa para mim. Eu amo o meu mortal, se você não ama sua
mortal o suficiente para encarar tal fardo, a culpa não é minha. — disse,
dando passos lentos para trás, balançando a cabeça.

— Balthazar... — o chamei.

— Não direi nada a ela. Diga você mesmo. — sussurrou,


desaparecendo em um estampido.

O meu coração palpitava sem parar. Uma agonia incomum me tomou.


A ideia de um dia perdê-la me tornava fraco. O fato de ter consciência de que
os humanos morrem é unicamente culpa minha e saber que isso afeta Cinthia
é extremamente cruel.

Ofeguei tentando conter minhas lágrimas, mas foi inevitável. Elas


rolavam sem parar. Rodeei o quarto incansáveis vezes, andando de um lado a
outro, inquieto.
Então senti uma presença carregada de luz. Uma voz acolhedora e
aconchegante:

— Voltaria atrás se pudesse? — o som angelical soou como a mais


bela sinfonia.

Apesar de não ver ninguém, eu sabia de quem se tratava. Vieram aqui


para me humilhar, para me pisar ainda mais.

— Não seja orgulhoso, Lúcifer. — a voz insistiu. — Orgulho e amor


não cabem no mesmo espaço.

— É isso que vocês querem ouvir, não é? — funguei, encarando o


nada. — É isso que vocês querem ouvir, não é? — balancei a cabeça,
mordendo os lábios. — Sim, eu me arrependo de ter levado a humanidade ao
pecado, me arrependo de tê-los fadado à mortalidade. Não por vocês, não por
eles. Apenas por ela...

Uma luz súbita inundou meu quarto e arregalei os olhos com a visão
que tive em minha frente, algo com o qual não me deparava há muitos
milênios; os portões divinos, a estrada que dava caminho à Cidade Santa. E,
para minha surpresa ali estava ela, Cinthia, encarando-me de cima, com um
sorriso no rosto e a mão estendida.

Os meus olhos encheram-se de lágrimas outra vez.

— Nem mesmo após a morte... — sacudi a cabeça, ajoelhando-me no


chão.

As minhas lágrimas molhavam o carpete e o meu choro era baixo.


Como dói. Isso é amor? É sentir dor por amar alguém e saber que não será
eterno? Por não poder almejar a eternidade, mesmo após a morte com sua
amada?

Não quero mais amar. Eu não consigo lidar com o poder de tamanho
sentimento. A imensidade do poder do amor é demais, até para mim. Eu
simplesmente não consigo dominar meu coração!
CAPÍTULO VINTE E CINCO

AINDA QUE VOCÊ SEJA O PODEROSO chefão, o coração é


uma terra sem dono, sem domínio, sem conquistador.

Olhei o relógio de pulso. Vinte para às nove. Permaneci com os


braços esticados na cama, encarando o teto e seus detalhes, sem prestar
atenção em nenhum deles.

— Sua crise existencial já passou? — girei a cabeça para o lado,


dando-me de cara com Querberus. Arregalei os olhos ao vê-lo em sua real
forma, como um homem. — Nasci antes de você, Milorde, e se há morte para
nós, provavelmente devo morrer depois.

Cabelos longos e lisos que batem um palmo abaixo dos ombros, de


um tom azul-escuro incomum e brilhoso. Brincos adornavam ambas as
orelhas, do pé ao topo. Olhos grandes, cor de gelo. Lábios finos, queixo
pontudo e rosto proporcional ao corpo. Querberus tem um porte físico
superior ao meu e ao dos outros generais. E diferente de nós, não usa terno.
Sua armadura repleta de detalhes era dourada e brilhante. A espada colada à
sua cintura. No peito direito, quatro grandes estrelas, indicando que é um dos
meus generais.

— Faz muito tempo que não o vejo nessa forma. — sentei na cama,
esfregando as mãos no rosto.

— Faz muito tempo que não o vejo demonstrar tanta fraqueza. —


retrucou.

Abri um sorriso de lado, abaixando a cabeça.

— Esse é o pior tipo de fraqueza.


— Certamente é, Milorde.

— O que devo fazer? — deveria parecer uma pergunta, mas no fundo,


era um pedido de ajuda.

— O seu coração voltou a pulsar, então o ouça. — passou por mim,


indo até a cômoda, admirando as peças de roupas que Balthazar me trouxe.
— Ele só está um pouco chateado.

— Será que ele me culpa por...

— Não. — voltou-se a mim. Encaramo-nos. — Esse fardo não é


apenas seu. Todos nós concordamos em fazer aquilo e, como nosso guia,
você apenas executou a ação. — deu passos lentamente em minha direção. —
É verdade que você iniciou a revolta, mas você não fez a cabeça de ninguém.
O plano da criação despertou no coração de outros anjos o mesmo que
despertou no seu.

— No seu também?

— Milorde, nem todos caíram por odiar os mortais. Veja Balthazar,


acha que ele um dia odiou os mortais? — Querberus negou com a cabeça. —
Ele caiu por te amar. Ele tem você como o irmão que nunca teve. Você é o
herói dele.

— O herói dele? — sorri de canto. — Besteira! Ele é um dos mais


poderosos demônios que já pisaram na Terra.

— Sendo um dos mais poderosos, admira o mais poderoso. E quando


admiramos alguém que amamos, também nos decepcionamos com seus erros.

— Está me dizendo que...

— Sim. Muitos dos que caíram o fizeram por te amar, Estrela-da-


manhã. — sorriu, pousando a mão em minha cabeça e afagou meus cabelos.
— Tenho você como um filho, mesmo sabendo que me considera um
bichinho de estimação.

Arregalei os olhos, corando.

— Não é bem assim...

— Vou lhe dar um soco se continuar mentindo.

Esbocei um sorriso sem graça. Ele realmente sabia das coisas.

— Então? Já se arrumou?

Olhei o relógio de pulso outra vez. Nove e vinte e dois.


Completamente atrasado.

— Acho que já passou da hora.

— Tempo não é problema para mim. — sorriu, todo sabichão. — Só


consigo alterar alguns pequenos períodos do relógio do passado, presente e
futuro.

Como sempre, leu minha mente. Pudera eu alterar o passado e mudar


o futuro.

Querberus esticou ambas as mãos no alto e uma pressão no ar abalou


todo o palácio. Subitamente, uma grande esfera octogonal de energia surgiu
sobre sua cabeça, enquanto suas mãos reluziam com uma luz dourada.

— Tempus Mora! — bradou, exibindo uma voz poderosa.

Diante dos meus olhos, vi a ampulheta do tempo girar. Uma


sequência de imagens atravessou todo o quarto e, quando cessou, eu estava
sozinho.

Olhei outra vez no relógio. Dez para as nove. Dei um longo suspiro e
pus-me de pé.
— É hora de lidar com a realidade. Se você a quer, lute para tê-la. —
estiquei os braços e, estalando os dedos, vesti-me com o modelito escolhido
por Balthazar. Parei em frente ao espelho, ajeitando a gravata. — Ninguém
disse que seria fácil aceitar o amor.

Soprei o ar que preenchia meus pulmões e passei uma das mãos pelos
cabelos. Cheio de mim e decidido a fazer aquilo, deixei o quarto e segui até
seus aposentos.

Com as costas da mão, bati suavemente em sua porta.

— Donzela?

— Estou quase pronta. — gritou.

Acenei com a cabeça e permaneci parado em frente ao seu quarto.


Nervoso como um jovem que nunca abriu as asas e estava se preparando para
o primeiro voo.

Depois de dez minutos, ela apareceu radiante na porta. Pisquei os


olhos algumas vezes. Os cabelos vermelhos cor de sangue, soltos. O rosto
limpo, sem maquiagem e um longo vestido, mas não era um vestido sensual,
era apenas um belo vestido azul-escuro.

Abaixei a cabeça e sorri.

— Você está incrivelmente bela.

Eu precisava dizer aquilo. Cinthia é uma mulher natural, que não usa
artifícios para se embelezar, mas sua maior beleza não é a exterior. Sinto que
há um tesouro dentro de si.

— Milorde. — acenou com a cabeça, em seguida olhou-me da cabeça


aos pés, levando uma das mãos à boca, contendo risadinhas.

— O quê? — olhei em mim mesmo. — O que foi?


— Está diferente.

— O terno é diferente.

— Por quê? — encarou-me nos olhos.

— Um terno especial para uma ocasião especial. — senti meu rosto


arder, tomei uma de suas mãos e inclinei-me, beijando-a. — Vamos?

Ela passou o braço pelo meu e seguimos até as escadas. Quando


paramos no topo, Cinthia sacudiu a cabeça algumas vezes e voltou-se a mim.

— Posso dirigir? — a olhei com apreensão.

Será que nosso último passeio foi tão ruim assim ou sou eu que dirijo
mal?

— É que, da última vez... — continuou, forçando um sorriso.

— Não vamos de carro.

— Não? — ergueu as sobrancelhas.

— Não. — neguei com a cabeça.

— Então como vamos? — fixou os olhos em mim. Abri um sorriso de


canto. — Ah não. Não, não, não, não. De jeito nenhum!

— Eu ainda nem disse como vamos. — encarei-a, fazendo-a murchar.

— Sinto enjoo com aquela coisa de estar em um lugar e aparecer


instantaneamente em outro. — gesticulou com as mãos, usando-a como facas
afiadas para sinalizar.

Sacudi a cabeça e desci as escadas. Ela me acompanhou. Ao pararmos


no arco de entrada, levei meus olhos à lua. A mesma lua de quando a beijei
pela primeira vez.
— Feche os olhos.

— O quê? — olhou-me sem entender.

— Os olhos. Feche-os. — insisti.

— Cuidado com o que pretende.

— Nada do que venhamos a nos arrepender. — ela sorriu, fechando


os olhos.

Assim que Cinthia fechou os olhos, tomei-a no colo. Senti seus braços
passarem por meu pescoço e a encarei, fixamente.

— Tem certeza que os olhos estão fechados?

— Sim. — ergueu as sobrancelhas.

Abri minhas asas e, com um impulso dos pés, as bati com força,
levantando alguns redemoinhos. Cinthia agarrou-se com mais força ao meu
pescoço.

— E-E-Estamos voando? — perguntou apreensiva.

— Estamos.

— Posso olhar?

— Ainda não. A sua surpresa está lá em cima.

— Em cima onde?

— Tenha paciência, Donzela.

A cidade lá do alto começava a sumir. Sem pressa alguma, continuei


batendo as asas. Ter seu corpo quente colado ao meu, suas mãos tocando-me,
seus lábios roçando em meu pescoço, seu cheiro invadindo minhas narinas,
me causava uma sensação inexplicável.

Ao atingir o topo, mordi os lábios, contendo uma risada.

— O que pretende?

— Confia em mim?

— Não!

— Que tal me dar um voto de confiança?

— Estamos a quantos metros do chão?

Não respondi.

— Onde estamos? — ela insistiu, deixando o receio acompanhar sua


voz.

— Combinamos que você não abriria os olhos até eu dizer que está
pronto, mas eu preciso do seu voto de confiança.

Senti seu coração disparar. Aproximei os lábios de sua orelha e


sussurrei:

— Confie em mim. Planejei tudo isso apenas para te agradar. Então


me deixe lhe mostrar uma das maiores belezas do universo.

Cinthia balançou a cabeça e os pés, sem conseguir esconder o


nervosismo.

— Eu tenho medo de altura. — arregalei os olhos. Lá se vai meu


plano de jogá-la para cima e segurá-la pela cintura.

— Em nenhuma hipótese olhe para baixo. — senti seu corpo tremer,


com ela abraçando-se ainda mais a mim.
Soltei suas pernas. Ela gritou. Segurei em sua cintura e, aos poucos, a
afastei de mim.

— Não me solte, não me solte! — pediu entre sussurros, e quanto


mais eu a afastava, mais ela segurava em meus braços, até que gritou. —
Lúcifer!

— Você me deu um voto de confiança. Apenas se deixe levar.

— Os meus pés não encontram apoio... — os balançou.

Afastei as mãos de sua cintura e com um movimento de dedos, girei


seu corpo, deixando suas costas na direção do meu peitoral. Ela sequer notou
que eu a soltei de uma altura daquelas. Se tivesse notado...

— Abra os olhos e não olhe para baixo. — ordenei.

— Certo. — deu um longo suspiro, acenando positivamente com a


cabeça. — Vou tentar não olhar para baixo e...

Cinthia soltou um grito agudo que quase estourou meus tímpanos. Em


seguida, um silêncio súbito. Em frente aos nossos olhos passavam estrelas
cadentes. Centenas delas.

Eu não conseguia ver sua expressão, mas conseguia sentir suas


emoções. Seu coração já não estava mais acelerado, batia com calma. Ela
estava quieta, movimentando a cabeça lentamente de um lado a outro,
admirando os astros, satélites, cometas, constelações e o que há além da
Terra.

— Isso é maravilhoso... — murmurou.

Eu devia ter contado a ela que nos envolvi com uma esfera de
proteção, mas isso tiraria toda a graça de vê-la tendo um misto de emoções.

— Há milhões de milhares de sistemas solares como o da Terra.


Centenas de constelações, incontáveis estrelas e dentre bilhões de humanos,
me apaixonei por uma que não consigo entender. — usei um tom baixo.

— Isso é tão romântico. — ela respondeu.

— Minha confissão? — sorri.

— Admirar as estrelas. — murchei.

Subitamente, ela puxou meus braços, fazendo-me envolvê-la pela


cintura. Lentamente, suas costas tocaram meu peitoral. Então, ela girou,
deixando o rosto próximo ao meu.

— Sua confissão também. — sorriu, ora analisando meus lábios, ora


analisando meus olhos.

Uma explosão desviou nossa atenção. Ao virarmos o rosto para o


lado, vimos um grande círculo de estrelas atravessando o espaço, indo em
direção ao norte.

— O que há lá?

— O Centurião de Órion.

— E o que há nele? — voltou-se a mim, curiosa.

— A morada dos anjos. — respondi, fazendo-a arregalar os olhos. —


Vamos descer? Estamos aqui há muito tempo e isso não é bom para uma
mortal.

Cinthia acenou com a cabeça.

Tomei-a nos braços novamente e descemos. Assim que a cidade


mostrou-se lá embaixo, ela disse:

— Estou sem fome.


— Entendo. — suspirei.

— Isso não nos impede de seguir pela noite conversando. — ela disse,
sorrindo, sem mostrar os dentes.

Pousamos na propriedade da mansão, próximo ao lago. Assim que


nossos pés tocaram o solo, afastamo-nos. Ela completamente corada e eu sem
entender. Mulheres são assim, eu sei. Nós, homens, nunca vamos entendê-las
completamente.

— A noite está linda. — comentei.

— A lua também. — ela acrescentou.

— Não tanto quanto você. — Cinthia sorriu, dando-me as costas,


ficando ainda mais vermelha que antes.

— Tem medo de mim, donzela? — perguntei.

Em passos lentos, parei ao seu lado, estendendo-lhe um dos braços.


Assim que ela segurou em mim seguimos em uma caminhada, margeando o
lago que brilhava com o toque da lua.

— Você nunca me fez mal.

— Outro dia você disse que passou um inferno por minha causa... —
senti um aperto no peito ao lembrar aquilo.

— Desculpe-me por aquilo. Acabei te culpando por um


acontecimento cujos únicos responsáveis são meus pais. — suspirou. — Eles
são, quer dizer, eram fanáticos. Não são mais. — disse, sem conseguir
esconder a dor que tal assunto trazia.

— Perdão por tocar em algo doloroso.

— Cada dia dói menos.


— Isso é bom?

— Está cicatrizando. — acenou com a cabeça. — Fui ver minha mãe


e tivemos uma longa conversa. Acho que reatamos nossa relação de mãe e
filha. — abriu um sorriso tímido.

— Fico extremamente feliz com isso.

— Fica mesmo? Ela segue não gostando de quem você é e o que


representa.

— Não por ela. Com todo respeito, donzela, ninguém no mundo me


importa, ninguém além de você.

Ela cessou os passos. Eu também. Coloquei-me em sua frente,


encarando-a.

— Necessito de tempo para entender todas as coisas...

— Todas as coisas?

— Tudo que aconteceu e que vem acontecendo. E também entender


sobre nós... — aquilo me arrancou um sorriso.

— Nós? — ergui seu queixo. Ela acenou positivamente com a cabeça.

Aproximei meus lábios de sua testa, beijando-a. Em seguida, dei-lhe


um abraço apertado, levando uma das mãos para debaixo dos seus cabelos,
afagando-os. Permanecemos ali por um bom tempo, antes de seguirmos para
a mansão.

Tempo. O tempo sempre é a chave de tudo. Eu tenho todo o tempo do


mundo, Cinthia, mas e você, minha amada? Você tem?
CAPÍTULO VINTE E SEIS
POR CINTHIA

O MEU CORAÇÃO AINDA ESTAVA acelerado. Nunca antes eu


havia sentido meu corpo reagir dessa forma a um homem. Arrepios
inconstantes me faziam tremular inteira, como uma fogueira quando abraçada
pelo vento.

Como posso estar amando um homem assim? Ele é bom comigo, é


infinitamente gentil, atencioso e, Deus do céu, como é bonito. O seu sorriso,
o seu corpo. Ainda estou em brasas desde que senti seu toque.

Dei um longo suspiro e subi as escadas, entrando no quarto. Comecei


a tirar o vestido, quando alguém pigarreou atrás de mim. Girei a cabeça
dando de cara com Gisele.

— A gata borralheira voltou. — disse, mordendo os lábios. — Como


foi?

— Como foi o quê? — fingi não entender.

— Ora! Como foi o encontro com o todo poderoso, Lúcifer?

Como foi? Um sorriso bobo escapou dos meus lábios e, por instantes,
lembrei-me das estrelas. Ele me levou para ver as estrelas. Parei
completamente o que estava fazendo e mordi os lábios. Que outra mulher viu
as estrelas como eu vi? Nenhuma.

— Foi maravilhoso. — respondi em tom baixo.

— Uau!

— Transaram? — girei a cabeça para trás, olhando-a com espanto. —


Ué, as pessoas transam. — olhou-me como se eu fosse uma estranha.

Dei-lhe as costas e segui para o guarda-roupas, terminando de tirar o


vestido. Permaneci apenas de calcinha e sutiã.

— Como será que é?

Franzi a testa e segui para a cama, deitando-me ao lado de Gi, ainda


sem entender sua pergunta.

— Com certeza é grande, grosso também. Homens do porte físico


como o dele tendem a ser dotados...

— Calada! — a repreendi, sentindo meu rosto arder.

— Mais hora menos hora você vai ver. — ela insistiu.

— Então vamos deixar isso para quando acontecer. — revirei os


olhos, empurrando-a para fora da cama. — E vá dormir, amanhã temos
trabalho.

— Sim, Senhora. — bateu continência e saiu do quarto aos risos.

Que pergunta idiota! Como ela pode pensar nessas coisas?

Afundei o rosto no travesseiro, buscando por sono e descanso, mas


era inevitável. Ele não saía da minha cabeça.

Acordei com ele admirando-me. Seus olhos fixos em mim, aquele


sorriso encantador que me enfeitiça e a postura imponente, intimidadora e
marcante. Como se fosse o Rei do mundo.

— Está pronta? — sorriu, retirando o blazer e lentamente começou a


desabotoar a camisa.

Quis dizer que não, mas quando o vi seminu, senti meu corpo
esquentar, minha boca secou e meus olhos fixaram-se nele.
— Estou. — saiu sem querer.

Sem pressa, ele jogou a camisa para o lado e desabotoou a calça,


usando apenas uma cueca boxer. Engoli em seco.

— Gosta do que vê? — aproximou-se, subindo na cama.

— G-Gosto. — respondi, com a respiração acelerada.

Lúcifer sorriu, aconchegou-se entre minhas pernas, com os joelhos


apoiados na cama. Seus lábios próximos ao meu, seu corpo seminu me
deixando cada vez mais excitada. Gentilmente ele pegou minha mão, levando
ao seu peito.

— Inteiramente seu. — sussurrou, olhando-me de forma tão


penetrante que me senti um coelho diante de uma raposa, prestes a ser
devorada.

— Completamente sua. — respondi em tom baixo, deslizando minha


mão do seu peitoral ao abdômen, passando pelas ondas do seu corpo
musculoso, repleto de gomos.

— Completamente? — ele sorriu, segurando meu maxilar com


carinho, roçando o polegar em meus lábios.

Não resisti. Não consigo resistir a um homem desses. O meu coração


continuava palpitando com força, os bicos dos meus seios estavam eriçados e
meu centro feminino em chamas, úmido como nunca.

Nossos lábios se tocaram, afastaram-se e tocaram-se novamente.


Calmamente ele chupou minha boca com uma das mãos em minha nuca,
afagando meus cabelos, enquanto seus dedos procuravam espaço dentro do
meu sutiã.

Ao senti-lo beliscar a ponta dos meus mamilos, gemi entre o beijo.


Uma deliciosa sensação percorreu meu corpo, fazendo-me sorrir.
Ele notou e intensificou os movimentos da sua língua dentro da minha
boca e eu respondi. Ora ele chupava a minha, ora eu chupava a dele.

Ainda segurando meu queixo, findou o beijo com selinhos estalados.


Passou a mão por minhas costas e desabotoou meu sutiã, enquanto permaneci
encarando-o, completamente entregue aos seus desejos.

Lúcifer uniu minhas duas mãos em um único ponto, prendendo-me, e,


com a boca, começou a beijar meu pescoço e desceu com os lábios deixando
um rastro de saliva por meu corpo. Passou por meu seio esquerdo, roçando a
língua em sua auréola, me fazendo contrair na cama e desceu ainda mais,
beijando minha barriga, até que parou, admirando minha calcinha.

Ele me lançou um sorriso cafajeste e enfiou a cara em minhas pernas,


mordiscando minha boceta por cima do pano. Soltei um gemido baixo,
incapaz de me manter quieta, abri um pouco as pernas, deixando-o se
encaixar melhor ali. À medida que sua boca avançava em mim, deixava
minha calcinha cada vez mais molhada. Então ele parou, olhou-me como
quem está prestes a fazer uma travessura e lambeu os lábios.

— Quer? — revezou seus olhos entre mim e a calcinha.

— Quero.

— Então peça. — sorriu.

— Não... — gemi ao sentir seus dedos invadirem minha calcinha,


esfregando-se em um vai e vem lento sem me penetrar. — Não seja mau... —
soltei um gemido agudo ao sentir a ponta dos seus dedos dentro de mim.

— Com você serei mau apenas na cama.

Despertei.

Levantei bruscamente da cama, assustada. Puxei um pouco de ar,


enchendo os pulmões e o soltei lentamente, tentando recuperar o fôlego. Ao
sentir algo molhado entre minhas pernas, deslizei minha mão. A minha
calcinha estava completamente úmida.

— Foi um sonho? — perguntei a mim mesma entre sussurros. —


Pareceu tão real...

Sacudi a cabeça, passando a mão pelos cabelos, jogando-os para trás.


Tentei afastar aqueles pensamentos, mas era inútil. Quanto mais eu fugia
dele, mais próximo ficava, mais atraente, mais delicioso, mais palpável.

Saltei da cama e corri para o banheiro. Uma ducha fria resolveria


tudo. Assim que me recompus, vesti-me e desci para o grande hall, onde dei
de cara com Gisele, lendo um jornal.

Assim que me viu, ela começou a ler em voz alta:

“O herói intitulado como Lúcifer está desaparecido, com isso, a taxa


de criminalidade voltou a subir na capital paulista. Onde ele está?”.

— As pessoas começaram a gostar dele. — ela disse, fechando o


jornal.

— Parece que sim. — sentei-me ao seu lado no sofá.

— Dormiu bem? — encarou-me. — Amanheceu com o rosto


levemente corado. Pelo visto a noite passada...

— Vamos combinar uma coisa. — a interrompi. — Nada de dizer


coisas daquele tipo para mim antes de dormir!

— Que coisas? — arregalou os olhos.

— Aquelas coisas... — sussurrei, não escondendo a irritação.

— Ah, sobre o tamanho e a...

— Shiu! — soquei Gi no braço. — Eles ouvem tudo. TUDO. Quer


me matar de vergonha, filha da puta?

Gi gargalhou, levantou-se e ergueu os braços em rendição.

— Prometo tentar.

— Vaca!

— Vacas! — piscou para mim, seguindo para a cozinha.

A rotina tem sido monótona. Ainda espero Milorde definir qual será
minha função. Governar uma casa que não precisa ser governada não é
trabalho. As contratações estão suspensas, Gi trabalha conosco cuidando das
refeições, mas fora isso não há necessidade de nada. Quer dizer, eles
poderiam usar os poderes que têm para fazer qualquer coisa.

Analisando bem, nunca vi um móvel deste palácio com um resquício


de pó. Os jardins sempre limpos. Tudo é impecável e não tem dedo nosso.

— Bom dia, lady Cinthia. — olhei para o lado e vi Balthazar.

— Bom dia, lorde Balthazar. — sorri.

— Milorde está aguardando-a na biblioteca.

— Ah, sim. Estou indo. — acenei com a cabeça e levantei-me,


passando por ele.

— Lady Cinthia. — parei, olhando para trás. — Obrigado.

— Pelo quê? — não consegui entender o agradecimento inesperado.

— Ele está esperando-a, se apresse. — desconversou, seguindo em


direção à arcada principal, na entrada da mansão.

Precipitei-me em direção à biblioteca e, ao parar na porta, dei um


longo suspiro. Pus a mão na maçaneta e a abri.
— Mandou me chamar, Milorde? — coloquei as mãos para trás,
unindo-as, e o encarei. Ele estava de costas para mim.

— Leu o jornal está manhã, donzela?

— Sim. — não li, mas Gisele leu. Não precisava de muita coisa para
entender onde ele queria chegar.

— As pessoas clamam por mim. — disse, usando de uma soberba


colossal. Lentamente a cadeira girou e ele parou em minha frente. —
Apronte-se.

— Aonde iremos, Milorde?

— Atender aos pedidos das pessoas.

— Salvá-las ou enfeitiçá-las? — arqueei a sobrancelha. Dependendo


da resposta, eu me recusaria a acompanhá-lo.

— Veja com seus próprios olhos e me diga. — ele sorriu, tombando a


cabeça para o lado.

Assenti com a cabeça.

— Estou pronta.

Milorde levantou-se e parou em minha frente. Estendeu-me uma de


suas mãos. Assim que a toquei, aquela sensação nauseante que sempre vem
quando sumimos de um lugar e surgimos em outro, reapareceu.

Levei ambas as mãos à cabeça, um pouco tonta. Pisquei algumas


vezes e finalmente notei onde estávamos. No topo de um prédio.

— Milorde... — emudeci ao ponto de esquecer o que ia perguntar


quando o vi usando armadura.
Grandes pares de asas, uma armadura dourada, a espada colada à
cintura e o jeito imponente. Ele estava diferente, exalava poder e convicção.

— Donzela, aproxime-se.

Aproximei-me. Ao colocar-me ao seu lado, olhei para baixo e senti


uma leve tontura. Ele tomou-me pela cintura e saltou do prédio. Senti um frio
na barriga, mas dessa vez não gritei.

Sinto que quando estou com ele, estou protegida. Sei que ele não
permitirá que nada de ruim aconteça a mim, nunca.

O impacto dos seus pés causou um estrondo no chão, destruindo parte


da calçada, levantando consigo uma nuvem de poeira. Com um mísero aceno
de cabeça, ele consertou o concreto.

Todas as pessoas pararam, encarando-nos admiradas. A multidão


correu em nossa direção, formando um círculo ao nosso redor.

“Lúcifer está de volta”.

“O herói de São Paulo regressou”.

“Quem é essa mulher com ele?”.

“É a sua amada? Todo super-herói tem uma, tipo o Super-homem e a


Lois Lane”.

“Qual é o nome dela?”.

Milorde ergueu uma das mãos e todos fizeram silêncio. Assim como
eu, eles conseguiam sentir o significado de poder, presença e autoridade.

— Espalhem as boas novas, o príncipe desta terra voltou e aqui não


restará nenhum malfeitor, pois jurei protegê-los! — declarou, usando um tom
na voz que me causou arrepios.
Sequer tive tempo para piscar, apenas o senti me pegar no colo e, num
bater de asas, voou para longe da multidão.

— Chegada triunfal. — piscou para mim.

— Exibicionista! — cruzei os braços, virando o rosto.

Realmente, a entrada foi triunfal, mas se eu enchesse ainda mais seu


ego, sinto que ele ficaria se achando mais ainda.

O fato é que as pessoas passaram a gostar dele. Talvez por carência de


uma figura heroica que salve o dia, por ele ser um anjo, mesmo que caído, ou
por ele ter uma simpatia contagiante, capaz de arrebatar todos ao seu redor.

A verdade é que a humanidade estava aprendendo a gostar de Lúcifer,


quer queira, quer não. No cenário catastrófico atual, sua presença tornou-se
indispensável.

Estar em um lugar tão alto me deixava aflita. Milorde sentou-se,


cruzou as pernas e fechou os olhos. Fitei-o por alguns minutos, tentando
entender o que ele estava fazendo.

— Sim?

— A ideia de combater o crime foi descartada? — expus minha


curiosidade.

— Não. Estou me concentrando para ouvir todas as vozes de São


Paulo. — arregalei os olhos.

— Isso é possível?

— Se eu quisesse, faria fogo cair do céu. “Isso” não é nada


comparado ao que posso fazer, donzela. — respondeu cheio de si.

A arrogância sempre fala mais alto. Como odeio isso nele. O melhor,
o mais inteligente, o mais poderoso. Ele sempre é o superior em tudo!
— Imaginei que usassem rádios. — ele abriu um dos olhos, espiando-
me. — Achei um rádio da polícia quando estava ziguezagueando pela
mansão. — expliquei, antes que me considerasse uma bisbilhoteira.

— Foi ideia de Balthazar.

— Milorde, se você não precisa de um rádio, porque deixou que


Balthazar lhe arrumasse um? — encarei-o.

— Muitas vezes não precisamos de ajuda, mas há pessoas que gostam


de ajudar, de se sentirem úteis. Balthazar é esse tipo de pessoa.

— Você gosta muito dele, não é? — sorri.

A amizade entre esses dois é algo lindo de se ver. Eles estão sempre
juntos e pelo pouco que conheço de lorde Balthazar, já deu para perceber o
quanto Lúcifer significa para ele e vice-versa.

— Eu o amo como um irmão. Passamos por muitas coisas juntos e


também aprontamos juntos. — sorriu sem mostrar os dentes.

Como um irmão? Sei o que é isso, pois é o mesmo que sinto por Gi.
Eu a amo como uma irmã. Ela me socorreu em momentos difíceis, me
abraçou quando eu não tinha ninguém e sei que sempre estará ao meu lado,
não importa a situação.

— Um na região oeste. Dois na leste. Cinco no centro...

— Oi?

— Crimes.

Lúcifer levantou-se, seguiu em direção ao parapeito do prédio e olhou


por cima do ombro, abrindo aquele sorriso sedutor que me fez corar;
instantaneamente desviei nossos olhares.
— Quer ir junto?

— Não. — acenei com a cabeça.

Acho que eu não me acostumaria tão cedo com aquela sensação


nauseante. Só de lembrar sinto o estômago embrulhar.

— Volto em instantes. — assenti com a cabeça.

Sentei-me no chão e fechei os olhos, tentando relaxar, mas a imagem


de ontem, de nós dois na cama, veio à minha mente.

Soltei um grito agudo, assustada. Olhei ao meu redor e ele já havia


ido. O coração palpitava sem parar, o corpo estremecia.

— Pense em coisas positivas, em coisas positivas... — disse a mim


mesma, mas outra vez o vi em pensamento. Dessa vez cobri a boca, abafando
outro grito. — Certo, não pense em nada, Cinthia. Em nada...
CAPÍTULO VINTE E SETE

CINTHIA ESTAVA RADIANTE NAQUELA manhã. Como amo


ver seus cabelos daquela cor. Imaginei que fosse tingi-los novamente, mas
não o fez. Quando tivermos um tempo a sós, perguntarei a razão.

Segui batendo asas à primeira parada. Um assalto ao banco. Quatro


viaturas da polícia em frente ao local, em clara desvantagem. Os bandidos
com armamento pesado e vários reféns.

Pousei, causando uma cortina de poeira e outro estrago no chão que


consertei em seguida. Não se pode ser herói destruindo o patrimônio público.
Balthazar me disse isso incansáveis vezes. Tantas que não consigo esquecer.

Silêncio. Nenhum único ruído. A troca de tiros cessou e, quando a


poeira baixou, as pessoas antes escondidas, foram para as ruas.

— Voltem para dentro. — ordenei.

Eles recuaram, entrando novamente dentro das lojas ou escondendo-


se atrás dos carros. Olhei por cima do ombro e voltei-me diretamente aos
oficiais de polícia.

— O mesmo serve para vocês. Eu assumo daqui. — eles se


encararam, meio que em dúvida, mas não recuaram.

— Daremos cobertura. — um deles respondeu.

Assim que dei o primeiro passo à frente, uma onda de tiros de


metralhadora me atingiu. O tilintar das balas chocando-se contra a minha
armadura era quase ensurdecedor e, apesar do ruído, sequer me fazia cócegas.

— Pare onde está! — um deles veio à frente, puxando uma mulher


pelo pescoço, segurando-a com um mata-leão. — Se der mais um passo, ela
morre. E depois dela, todos os outros.

Cerrei os dentes. Não tenho tempo para isso, verme!

Com um impulso com os pés, atravessei a velocidade do som, entrei


no banco e desarmei todos os cinco homens encapuzados, rendendo-os. Foi o
prazo dos policiais piscarem e todos os cinco indivíduos estavam do lado de
fora, amarrados com barras de metal.

— Foi um prazer, ajudá-los. — acenei com a cabeça e saltei, batendo


as asas.

Não fiquei para os agradecimentos. Não havia tempo para isso.

Pouco a pouco passei por todas as paradas que mencionei à Cinthia e,


devido a rapidez da conclusão, acabei acrescentando umas a minha própria
lista mental.

— Vejamos, até o momento foram onze casos atendidos. E isso em...


— olhei no relógio de pulso. — Trinta minutos. — lamentei por aquilo.

Já fui mais rápido. Quando eu estava em minha melhor forma, era


questão de poucos minutos para trucidar um exército inteiro e...

Abri um sorriso de canto, ainda planando no ar.

— O que estou pensando. — sacudi a cabeça. — Matar é fácil, salvar


pessoas não é tão fácil. Se fosse apenas para eliminar, sem dúvida teria sido
como antigamente, mas nada é como antigamente. As coisas mudaram...

E pensar que eu já nutri tanto ódio pelos mortais que, em outra


ocasião, destruiria essa cidade sem pensar duas vezes. E agora? Agora estou
aqui, salvando-os de si mesmos, da ignorância dos homens, da ganância dos
poderosos e da insegurança provocada pela desigualdade social.

Os humanos colhem o que eles mesmos plantaram. Seria injusto dizer


que nós, caídos, ou demônios como preferem chamar, causamos todo esse
caos. Isso não é verdade.

Parecia pouco, mas trinta minutos reservados para salvar a


humanidade era muito e isso teria um grande impacto no dia seguinte.
Certamente, os criminosos pensariam duas vezes antes de cometer infrações.

Ao retornar ao prédio onde deixei Cinthia, pousei. Um largo sorriso


no rosto e a sensação de dever cumprido; mais que isso, eu queria ver a
reação dela, pois esse foi o único motivo pelo qual estava trazendo-a comigo.
Queria impressioná-la.

— Cinthia? — chamei-a. Olhei de um lado e outro e não havia


ninguém. — Cinthia? — meus olhos moviam-se em todas as direções.

Fui tomado por uma sensação ruim, uma apreensão que fazia meu
sangue fervilhar em chamas. Eu já estava me preparando para criar uma
tempestade de raios e fúria, quando a porta do terraço se abriu.

— M-Milorde. — ela disse ofegante.

Subitamente meu coração parou e encheu-se de alívio, fazendo-me


soltar um longo suspiro.

— Está bravo com algo? Você está pegando fogo!

— Ah, isso? Não é nada. — acenei com uma das mãos, recompondo-
me.

— Já realizou todas as tarefas? — pareceu espantada. O meu ego se


encheu.

— Mas é claro, afinal, sou o...

— Todo poderoso Lúcifer. — ela me cortou, dizendo aquilo sem


muito ânimo.
Murchei.

— Geralmente se diz isso com mais entonação, com mais vigor. —


cerrei um dos punhos no ar.

— Tá, tá. — aproximou-se de mim, entregando-me uma carta. —


Veio do secretário do governador.

— Foda-se o governador! — ela me repreendeu com os olhos.


Balancei a cabeça e peguei a carta. — Leu?

— Claro que não! I-Isso seria deselegante.

— É minha secretária, não há problema em ler minhas


correspondências. — atenuei a situação.

— Leia logo! — insistiu. — Estou curiosa para saber do que se trata.

— Uma carta de prisão? Exigindo meu comparecimento ao tribunal


dos homens? — arqueei uma das sobrancelhas. — Se for, eu irei...

Cinthia ergueu as sobrancelhas, esboçando uma expressão nada


amigável.

— Eu irei ignorar...

— Ah, me dê isso aqui. — impaciente, tomou a carta da minha mão,


começando a lê-la: “Caro Senhor Lúcifer, o novo herói da cidade. É com
grande prazer que eu, o Governador do Estado de São Paulo, o convido para
uma festa em sua homenagem no Palácio dos Bandeirantes. O estado
agradece suas insistentes ações de combate ao crime e vemos nesse evento
uma oportunidade de unir sua imagem heroica à nação, aproximando-nos do
povo”.

— Entendi. — revirei os olhos, passando por Cinthia, indo em direção


ao parapeito.
— É um bom convite. — ela me seguiu.

— O índice de popularidade dele está baixo e ele quer se escorar no


meu sucesso. — argumentei.

— Ele foi eleito quatro vezes governador. E não precisa do seu


sucesso. — ela bateu as mãos nas coxas, subindo-as para a cintura, onde as
deixou. — Será bom para a sua imagem. — insistiu.

— Para a dele também.

— Por que você quer ser sempre o centro das atenções?! — rugiu,
pisando duro no chão e, como se não fosse suficiente, eu escutava o tic-tac do
seu salto sem parar.

— Só irei com uma condição. — ergui o indicador.

— Qual?

— Se você me acompanhar. — voltei-me a ela, encarando-a


fixamente.

Cinthia pareceu querer dizer algo, sem saber o quê. Ergueu os ombros
e abaixou a cabeça, possivelmente procurando a pior das desculpas.

— Não tenho roupa para um evento desse tipo.

— Providenciarei.

— Não sei me portar com pessoas de tanta classe.

— Nem eu.

— Não sou um herói como você. — pontuou, ficando impaciente


outra vez.

— Você me transformou nesse herói. — respondi.


Ela fez menção de abrir a boca outra vez. Ergui as sobrancelhas em
resposta, pronto para refutar qualquer uma de suas desculpas.

— Certo. Você venceu. Irei acompanhá-lo ao evento, Milorde.

— Será uma honra tê-la ao meu lado, donzela.

Seguimos dali direto para casa. Voando. Eu tinha comigo que ela
adorava voar, admirar a beleza, olhando tudo por cima.

Assim que chegamos, ela se uniu a Gisele e eu segui para meus


aposentos. Durante o percurso, eu não conseguia parar de pensar nela, no seu
belo sorriso e em seu belo corpo. Seu cheiro me soava mais atrativo que
nunca, ao ponto de fazer meu pau fisgar na cueca. Coisa que não acontecia há
tempos.

Ao entrar no quarto dei de cara com Balthazar. Passei os olhos por ele
e desviei nossos rostos. Joguei o blazer em cima da cadeira e sentei-me na
cama. Ele permaneceu com o olhar fixo em mim, escorado no batente da
janela, com os braços cruzados.

— O que quer ouvir?

— Você sabe.

— Eu estava errado, ok? — franzi a testa. — Agi feito um covarde e


tentei fugir da situação, mas vocês me abriram os olhos.

— Bom garoto. — disse, vindo até mim e, quando me dei conta, ele
me abraçou.

Esbocei um sorriso, retribuindo o abraço.

— Sobre seu mortal. Hum... Que tal convidá-lo para vir nos visitar
qualquer hora dessas? — Balthazar se afastou, olhando-me desacreditado. —
É justo eu conhecer meu cunhado. — ele abriu um largo sorriso.
— Vou tentar convencê-lo disso.

— Perfeito! Espera... — o olhei desconfiado. — Convencê-lo?

— Há algumas coisinhas que eu ainda não mencionei a ele. —


encolheu os ombros, sorrindo de canto.

— Quais?

— Que eu sou um dos generais de Lúcifer. — meu queixo foi ao


chão. — Eu disse que sou um general demônio, mas não disse a quem sirvo.

— Qualquer demônio sabe que sou o único senhor dos demônios...

— Ele é um mortal, Lu. — Balthazar me interrompeu.

Abri a boca, fechando-a novamente e acenando com a cabeça,


deixando claro que havia entendido a situação.

— Já o convidou para jantar?

— Quer saber se já chegamos à consumação do ato? — Balthazar riu,


revirando os olhos. — Não seja invasivo.

— Desde quando escondemos essas coisas um do outro?

Ele atravessou o quarto, parando de frente ao espelho, parecendo um


pouco pensativo.

— Já.

— Oh, isso é muito bom. Nada como amor e sexo. — acenei com a
cabeça.

— E quanto a você e Lady Cinthia? — olhou-me de soslaio.


— Q-Q-Quanto a nós? Está tudo bem. Estamos... Hum... Progredindo.
— gaguejei ao tentar não ficar tão atrás.

Claro, aquilo não era uma competição. Cada um tem seu tempo, seu
progresso, mas, geralmente, eu nunca ficava atrás nessas situações.

— Não tenha pressa.

— Não tenho.

— Ela é a mulher da sua vida. Não haverá outra depois dela.


Provavelmente a mãe dos seus filhos. — ele disse, abrindo um largo sorriso.

Filhos? Perguntei mais para mim do que para ele, deixando um largo
sorriso preencher meu rosto.

Ah, se tem algo na vida que todo homem deseja é ter filhos com a
amada. Certamente, isso é algo que aproxima os imortais dos mortais.

— Como foi o encontro? — ao notar que a ideia sobre ter filhos me


tirou do chão, desconversou.

— Não poderia ter sido melhor.

— Fico imensamente feliz em ouvir isso. — disse, enfiando a mão


nos bolsos. — Hoje vocês saíram juntos.

— Um herói amado é um herói presente. — ergui o indicador. —


Tome nota disso, Balt.

— Certamente, Milorde.

— Balt, eu realmente a amo.

Sorrimos.
CAPÍTULO VINTE E OITO

AS COISAS ESTAVAM AGITADAS. Apesar de não fazer isso,


dessa vez eu me dava ao trabalho de ouvir Cinthia e Gisele conversando no
quarto.

— Milorde...

— Shiuuu! — acenei com uma das mãos, concentrando-me para


entrar no assunto delas.

“Qual fica melhor? Esse ou esse?”.

“O vermelho”.

“Mas você vai escolher o vinho”.

— O que está fazendo, Milorde? — Balthazar aproximou-se, entre


sussurros.

“Por que acha isso?”.

“O vermelho é decotado na frente. O vinho nas costas”.

“Não tem outro?”.

“É um evento de gala. Você é uma mulher bonita e deve valorizar seu


corpo. Tem que escolher entre um dos dois”.

“Certo. Então será o vermelho”.

“Ok”.
— Está ouvindo o que lady Cinthia e lady Gisele estão conversando?
— arregalou os olhos, grudando ambas as mãos em minha garganta. —
Pervertido!

Caímos os dois no chão.

— Imbecil! Quem disse que eu estava ouvindo algo sobre elas?

— Claro que estava. Eu tenho certeza! — pôs-se de pé e, esticando


uma das mãos, ajudou-me a levantar. — Um cavalheiro se propondo a tal
papel. — cortou o ar com as mãos. — Shame!

Assim que me pus de pé bati as mãos no terno, sacudindo a cabeça.

— Eu não consegui ouvir o fim da conversa. Elas estavam falando


sobre coisas de mulheres. Vestidos!

— Então você estava mesmo ouvindo... — semicerrou os olhos,


movimentando os dedos incansavelmente, agindo como uma cascavel pronta
para dar o bote. — Shame!

— Vestidos! — ergui as sobrancelhas.

— Podia ser algo íntimo. — aproximou o rosto. — Coisas de


mulheres. — mais perto. — Coisas que homens não devem ouvir para não
perder a magia do encontro! — mais perto ainda, fazendo-me encolher para
trás.

Revirei os olhos.

— Shaaaaaa... — sibilou como uma serpente. — ME!

— Que caralhos é SHAME? — questionei, irritado.

— Ah! Essa é a expressão em inglês de “vergonha”. Eu estava


assistindo uma série humana bem famosa, Game of Thrones. O termo é
bastante usado no evento intitulado de caminhada da expiação...
Semicerrei os olhos, fitando-o e ele seguia falando sem parar sobre a
tal série. Quase oito da noite e ao invés de estar me ajudando com meu traje,
seus lábios não paravam um único segundo, ainda contando os trechos da
maldita série!

— Shaaaaaaame! — o imitei, enfiando a mão em sua boca, tapando-a.


Ele arregalou os olhos, forçando um sorriso em seguida. — EU. ESTOU.
ATRASADO! — pontuei calmamente, antes que perdesse as estribeiras e o
colocasse para assar em um espeto de churrasco.

— Certo. — afastou-se, ajeitando o terno. — Levando em conta que é


um evento em sua homenagem, talvez fosse prudente não aparecer como
herói.

— Por quê? — não entendi como Balthazar enxergava a situação, mas


eu sabia bem: as pessoas querem o herói. — Certo, me dê motivos para não ir
com minha armadura.

— Chamativo demais...

— E?

— Em um evento formal em sua homenagem...

— E?

— Ao longo da comemoração você ficará sozinho com Cinthia. Ela


quer um cavalheiro ao seu lado, não um herói. — abri a boca para respondê-
lo, mas acabei engolindo as palavras. — Como estamos de acordo, vou
escolher um terno. — sorriu.

Sentei-me na cama, observando-o andar de um lado a outro,


combinando peças, analisando sapatos e até mesmo separando perfumes.

A única coisa em que eu conseguia pensar era em como Cinthia


estaria bonita àquela noite. Como aquele vestido ficaria nela? Qual a cor do
seu batom? O cheiro do seu perfume?

— Vamos começar a experimentar, Milorde. — disse Balthazar, me


fazendo desembarcar do navio dos desejos.

— Paletó de um botão, verde-escuro fosco. Camisa social branca,


gravata borboleta do mesmo tom do paletó, mas um pouco mais escura.
Relógio de pulso como adereço e um lenço, cuja pontinha vai ficar à mostra.
— explicou. — Um charme adicional.

— Gostei.

— É claro que gostou. — Balthazar ergueu as sobrancelhas,


lançando-me um olhar de quem tudo sabe. — Se vista logo ou vai chegar
atrasado.

Aprontei-me em um estalar de dedos, literalmente. Segui para frente


do espelho para avaliar minha posição. Sem dúvidas, muito atraente! Joguei-
me uma piscadela e senti certo incômodo com meus cabelos. Sempre para
trás, sempre daquela forma.

Talvez seja interessante mudar um pouco...

Passei a mão de leve por minha cabeça, fazendo-os cair para os lados.
Os cabelos lisos, que antes ficavam penteados apenas para trás, agora
adornavam todo meu crânio.

— Ficou sexy.

— Eu sei. — enchi o peito de ar, fitando-me novamente. — Espelho,


espelho meu, há alguém neste universo mais belo que eu?

— Que caralho está fazendo? — Balthazar colocou-se ao meu lado.

Assim que mirou o espelho, viu um redemoinho surgir dentro dele.


Saltou para trás, com os olhos arregalados e, quando se preparou para
desembainhar sua espada, toquei seu ombro.
A aparência espectral no espelho ganhou forma. Uma criatura
encapuzada e com as mãos em puro osso respondeu roucamente:

— Não, Milorde. Tu és o mais belo do universo, mas ainda há de


nascer aquele que será mais belo que tu... — ergui uma das mãos.

— Vamos deixar uma coisa clara, ok? Essa é a minha história, a


história de Lúcifer. Eu não o retirei do livro para começar a causar intriga.

— S-Sim, Milorde. — acenou com a cabeça, sumindo do espelho.

— Ótimo.

— Viu só? Ele é o meu novo bajulador.

— De onde você tira essas ideias?

— Ah, eu vi em um livro. — disse, ajeitando a gravata borboleta. —


Acho que o nome é Branca como a Neve.

— De neve.

— Isso. — passei ambas as mãos pelo rosto, definindo ainda mais a


barba que cerra todo meu rosto. — A história é interessante.

— Eu conheço a história. — respondeu sem empolgação.

— O que foi?

— Essa porra de espelho profetiza coisas, não é? — olhou-me com


desconfiança.

— É um espelho mágico. Levando isso em conta, creio que ele possa


criar profecias. — Balthazar socou a testa. — O que foi? — perguntei sem
entender.
— Não acredito nisso! Não acredito nisso! — andou de um lado a
outro no quarto. — Não bastasse termos de lidar com Baal, em breve teremos
um ego ferido. — jogou-se na poltrona, afundando-se nela, com os olhos
girando como uma bússola sem direção.

Sem querer me enfiar em seus devaneios e preocupações, deixei o


quarto silenciosamente. Naquele instante, eu só queria vê-la. Apenas isso.

Desci as escadas e sentei-me no sofá do grande hall à sua espera.


Olhei no relógio e já estávamos dez minutos atrasados.

— Fazer o quê? — disse em tom baixo. — Mulheres são assim. Essa


é a graça de convidá-las para sair. Elas nos fazem esperar e quando chegam,
são como bombas nucleares. Você olha e pensa “boom”.

Fiquei tão entretido com minhas próprias reflexões que não a notei
chegar. Ao menos não até seu cheiro adocicado invadir minhas narinas,
fazendo-me virar o rosto em direção às escadas.

Uma deusa! Foi a única coisa que me veio à mente quando a vi.

Levantei-me, embasbacado. Os meus olhos fixaram-se nela e Cinthia


corou. Puxei fôlego e dirigi-me aos pés da escada, estendendo-lhe a mão.
Lentamente ela desceu. Cinthia parecia uma Rainha deixando o trono.
Pisando majestosamente, agindo divinamente.

— Pelos cabelos da medusa, quer me matar, mulher? — perguntei


ainda hipnotizado com o que via em minha frente.

— Muitas pessoas tentariam me convencer disso. — brincou,


esboçando um sorriso tímido.

Cinthia abaixou a cabeça e tocou minha mão. Um leve arrepio


percorreu meu corpo. A tomei nos braços, colando nossos corpos e aproximei
nossas bocas.

— Eu já disse isso, mas preciso repetir: será uma honra tê-la ao meu
lado essa noite. — sorri.

Girei-a no salão, dando-me ao prazer de encantar-me mais de perto.

O longo vestido negro deixava parte do seu colo descoberto, com um


detalhe de renda entre os seios. As mangas abertas dos lados caíam nas costas
e nos ombros, além de uma abertura nas pernas. Havia outra camada de
tecido de renda por baixo do vestido, da mesma cor, acompanhando o corte
principal. Saltos pretos e altos de bico fino. Os cabelos soltos, radiantes como
nunca. Ela estava maquiada. Não que precisasse, mas sem dúvida, aquele
pequeno detalhe a deixou mais encantadora.

Afastei-me dela e, com um estalo dos dedos, fiz as luzes se apagarem,


dando vida aos candelabros. Os móveis se arrastaram aos cantos e o grande
hall ficou vazio. Um piano sinfônico surgiu dando vida a sua melodia.

Inclinei-me em sua frente, esticando uma das mãos.

— Concede-me uma dança?

— E-E-Estamos atrasados, Milorde.

— Se for preciso, eu paro o tempo para que possamos dançar e ainda


chegar na hora. — ergui um pouco o rosto, fitando-a.

Cinthia corou. Sua mão tocou a minha. Segurei-a, pousando a outra


em sua cintura, enquanto a sua tocava meu ombro. Em ritmo compassado,
começamos a dançar.

Um, dois, três, direita. Um, dois, três, esquerda. Um, dois, três,
girando-a. Um, dois, três, deitando-a em meus braços, com nossos corpos
inclinando-se. Sua respiração estava acelerada, assim como seu coração, e eu
partilhava da mesma sensação.

Os meus lábios ardiam, a minha boca salivava e eu sabia que a dela


também. Nossas bocas aproximaram-se lentamente e deixamo-nos guiar pelo
sentimento, pelo poderoso e grande amor, mais poderoso que o próprio
Lúcifer.

Molhado. Assim era nosso beijo. Com calma e sem pressa, nossas
bocas esfregavam-se, tocavam-se como se fossem velhos amigos.

A sinfonia cessou e nós também. Endireitamo-nos, trocando alguns


sorrisos bobos. Confesso, me sinto um menino quando estou perto dela.

Cinthia passou a mão pelo vestido, dando um longo suspiro, encarou-


me novamente sorrindo e desviou nossos rostos.

— Lúcifer. — chamou-me pelo nome. — Estamos atrasados. —


ergueu o queixo, olhando para frente.

— Certamente estamos, mas para ganhar outro beijo seu, eu nem iria
ao evento. — retruquei usando um tom sensual.

Cinthia meneou a cabeça, sorriu e esticou uma das mãos. Sem


titubear, segurei-a pela mão e em um piscar de olhos, desaparecemos no ar.

No começo, cheguei a duvidar que demônios e humanos pudessem se


envolver. Nunca imaginei amar uma mulher, muito menos uma mortal. Ela é
a primeira a ocupar meu coração e, quanto mais convivo com Cinthia, mais
tenho certeza que ela é predestinada a ser minha Rainha, minha esposa,
minha mulher.

Tantos milênios na solidão endureceram meu coração, mas bastou vê-


la para que ela quebrasse parte do gelo. Mais alguns dias e todo o frio
derreteu. Ela me aquece como ninguém nunca o fez.

Donzela, case-se comigo, seja minha e eu lhe darei qualquer coisa


existente na face da Terra!
CAPÍTULO VINTE E NOVE

SURGIMOS SUBITAMENTE NA entrada do palácio. Uma


manada de jornalistas parecia estar de prontidão, apenas aguardando a nossa
chegada.

Um longo tapete vermelho se estendia de uma parte de fora ao lado de


dentro. Eufóricos, a mídia nos cercou assim que nos viu.

“O que você pretende, Lúcifer?”.

“Quais são suas intenções com os humanos?”.

Cinthia estava visivelmente constrangida com tamanho assédio. A


expressão de pânico que aos poucos dominava seu rosto começava a me
enfurecer.

— Estão te incomodando? — puxei-a pela cintura, colando os lábios


em sua orelha.

— Um pouco.

— Fulminarei todos! — ela arregalou os olhos, tocando meu peito. —


Brincadeira... — forcei um sorriso.

Pousando a mão em sua cintura, empurrei-a suavemente, fazendo-a


seguir adiante. Com um singelo movimento com os dedos, formei uma esfera
de ar ao nosso redor. Quanto mais ela crescia, para mais longe os jornalistas
eram empurrados.

Assim que entramos, fechei a porta do palácio. Não demorou a


sermos recebidos pelo cortesão do governador. Vestia-se bem, cheirava bem
e sorria feito um animal engasgado com um pedaço de osso na garganta.
— Lorde Lúcifer. — acenou com a cabeça. — Estávamos a sua
espera.

— Estavam? — olhei ao redor. Não havia ninguém além de nós.

— Um grupo seleto de admiradores.

— Bajuladores! — rosnei baixo, levando um cutucão de Cinthia. —


Admiradores. Ah, eu os adoro.

— Por aqui. — esticou uma das mãos e seguiu na frente.

Atravessamos vários cômodos gigantescos. Quanto mais profundo


íamos, mais odor eu sentia. Onde estão as pessoas desse lugar?

— Parece um pouco...

— Vazio? — encarei Cinthia. Ela acenou com a cabeça, passando o


braço em volta do meu.

Descemos algumas escadas parando na porta de um grande auditório


na área exterior. O cortesão abriu a porta e indicou-nos o caminho,
sinalizando que ficaria por ali mesmo.

Entramos.

Pessoas. Centenas delas. Um sorriso de canto escapou dos meus


lábios. Eu já estava começando a imaginar que seria uma desfeita comigo,
mas não...

Assim que apontamos na entrada, a música silenciou-se. Os


convidados se levantaram e nos aplaudiram com força.

— Eles gostam de você. — Cinthia comentou discretamente.

— Alguns deles não tiram os olhos de você. — respondi no mesmo


tom.

— Algumas delas nem fazem questão de disfarçar que estão de


olhando, Milorde.

Após cumprimentarmos alguns políticos e outros convidados,


aparentemente ricaços da elite paulista, sentamo-nos. O governador estava
em uma mesa ao centro, rodeado por assessores e outros homens. Uma
energia estranha emanava dali.

— Comemorando a chegada do novo e único herói de São Paulo, o


governador lhe agradece com essa festa. — disse o locutor.

Voltei meus olhos ao governador e ele sorriu, erguendo uma taça de


champanhe, mirando-me. Retribuí com um aceno de cabeça.

Cinthia estava quieta, volta e meia passando ambas as mãos pelos


braços. Retirei meu paletó e o coloquei em seus ombros. Encarei-a e sorri.
Ela retribuiu o sorriso.

— Está um pouco frio, não acha?

— Não. — respondi com sinceridade, arrancando-lhe um sorriso sem


jeito.

— Talvez seja impressão minha.

— Talvez eu não sinta frio. — ergui as sobrancelhas.

A noite seguiu com apresentações musicais. Ora ou outra, um político


subia no palanque discursando sobre o meu apoio — nunca sequer
mencionado por mim — ao governador de São Paulo e seu futuro sucessor,
aliado do mesmo partido.

— Eu te disse...

— Ele é um bom homem.


Uma senhora idosa subiu ao palco, tomou o microfone e um som
melodioso invadiu o auditório. Quando a velha abriu a boca, meu queixo
caiu.

Non, rien de rien


Non, je ne regrette rien
Ni le bien qu'on m'a fait
Ni le mal - tout ça m'est bien égal!

Non, rien de rien


Non, je ne regrette rien
C'est payé, balayé, oublié...
(No Regrets - Letra por Michel Vaucaire, melodia de Charles Dumont e interpretada por
Édith Piaf).

Todos se levantaram. Acompanhamos. O som de mesas arrastando-se


no chão tomou o ambiente e a cantora silenciou. Outra vez ela iniciou a
música, agora com mais entonação. Vários casais formaram-se em uma
espécie de pista de dança improvisada.

Olhei de soslaio para Cinthia. Ela corou, cruzando os braços, virando


o rosto para o lado.

— Por favor.

— Só mais essa vez. — meneou a cabeça e estendeu-me a mão.

Tomei-a em meus braços, colando seu corpo ao meu. Cinthia deitou o


rosto em meu ombro e eu segui conduzindo-a pelo salão em passos lentos
exigido pela música. De um lado a outro dançamos. O seu vestido cortava o
ar, os seus cabelos davam cor ao ambiente. O seu corpo aquecia-me.

— Non, rien de rien. — imitei a cantora, fazendo-a rir. — Non, je ne


regrette rien.

— Eu não sabia que você gostava de músicas francesas... —


sussurrou, passando ambos os braços pelo meu pescoço, afastando o rosto do
meu ombro e encarando-me.
— Nem eu. — sorri, descendo as mãos para sua cintura. — É a
primeira vez que ouço esta canção. Confesso que é...

— Romântica.

— E conceitual. — acrescentei. Ela assentiu com a cabeça.

Havia algo entre nós, envolvendo-nos. Um sentimento gostoso. Ainda


diferente, mas eu já começava a me acostumar com aquilo.

O tom da música aos poucos foi mudando e a voz adorável e


encantadora transformou-se em uma sinfonia conhecida, ácida e perigosa.

Como eu suspeitava... Esbocei um sorriso de canto.

— O que foi? — Cinthia me encarou, sem entender.

— Feche os olhos.

— O que vai fazer?

— Feche-os. Haja o que houver, abra só quando eu disser. — seus


olhos giraram o salão, mas a impedi de ver. Segurei seu rosto com ambas as
mãos. — Prometa!

— Prometo. — sorri e ao aproximar os lábios da sua testa, beijei-a.


Prontamente ela fechou os olhos.

Ela não notou, mas sendo uma mortal não notaria. Não há um único
humano no auditório, exceto ela. Demônios, centenas deles. E analisando
suas expressões, estes nãos são fiéis a mim, não mais.

Senti o ar ser cortado. Um zumbido agudo ecoou em minha orelha.


Ergui a mão, pegando uma lança no ar. Sua ponta parou a centímetros da
cabeça de Cinthia.
— Quem foi? — perguntei, exibindo a lança. Dei dois passos para
frente, mas ao notar que eu me afastava, Cinthia apertou minha mão.

— Não sairei de perto de você. Continue de olhos fechados. — rocei


o polegar em seus dedos.

— Por quê?

— Não quero que veja isso. — apertei a lança, fazendo-a flamejar. Ao


abrir a mão, a fiz levitar pouco acima de nossas cabeças e quando atingiu a
altura desejada, multipliquei-a por cem. — Delendis Rit Conferatur!

Ao som da minha voz, fiz as lanças atravessarem os bastardos ali


presentes. Uma lança para cada, exceto aqueles dois. Esses necessitavam de
cuidados especiais.

— Matou dos seus por causa da mortal? — Kirel pôs as mãos na


cintura, afastando-se do microfone.

— Os meus não me atacam. Eles se ajoelham. — sorri de lado,


encarando-a. — Eu preferia você como a velha.

— Não podemos agradar a todos. — deu de ombros.

— Onde ele está? — arqueei uma das sobrancelhas.

— Atrás dessa porta. — mostrou com uma das mãos.

Um portal havia se materializado em cima do palco. Cinthia


continuava parada, apenas ouvindo-nos. Eu não sentia medo vindo dela,
apenas receio. Seus dedos esfregavam-se aos meus constantemente.

— Só um pode entrar. — Kirel avisou, abrindo um largo sorriso.

— Entendo. — abaixei a cabeça. A expressão sádica continuava em


seu rosto. — Sendo assim... Querberus!
— Milorde. — ele surgiu ao meu lado e acenou com a cabeça.

— Guarde-a e mate qualquer um que se aproximar dela. Essas são


ordens absolutas!

— Eu tinha mesmo sentido um cheiro de cachorro molhado. — Kirel


provocou-o.

— Estou ao lado dela o tempo inteiro. — Querberus retrucou.

— Suas habilidades são mesmo extraordinárias, general. Não fosse


por você eu brincaria com a mortal...

— Quer tentar? — levou uma das mãos à espada, erguendo as


sobrancelhas.

— Hoje estamos aqui para negociar. Apenas isso. — Kirel girou o


indicador e um trono de madeira surgiu do chão, onde se sentou.

— Não vou demorar... — sussurrei para Cinthia. Assim que dei um


passo à frente, senti-a segurar meu pulso.

— Não demore. Por favor... — pediu, em tom baixo.

— Prometo que não vou. — respondi, seguindo a frente.

Ao atravessar o portal, dei-me conta que estava no inferno. Nos


grandes jardins de guerra. No final do caminho feito com grama vermelha
cobrindo ambos os lados, com árvores cujas copas eram estrelares, assim
como suas folhas. Então o vi.

Cabelos curtos e negros, raspados dos lados, em cima eram lisos,


batendo nas costas. Grandes pares de asas, tão belos quanto os meus. A
armadura reluzente e uma espada de lado.

— Saudades de você, meu querido Baal. — lancei-me em sua direção.


— Aqui estamos muito bem sem você. — respondeu em tom seco,
mantendo as mãos unidas religiosamente, com os cotovelos amparados nos
braços do meu trono.

Trono o qual está usurpando!

— Não foi isso que ouvi. — disse, parando em sua frente, com as
mãos nos bolsos.

— Em toda mudança há resistência.

— Imagino que haja muita por aqui.

— Também tenho muitos simpatizantes. Aqueles que creem que você


fraquejou.

Assenti com a cabeça.

— Imagino que sim.

— O que você quer?

— O inferno.

— Tome-o. Não me faz falta. — respondi, arrancando-lhe um sorriso


de canto.

— E as sete chaves.

Como suspeitei. Ele quer libertar Satan. Baal continua sendo


imprudente. Tentar controlar um Deus está além das suas, das nossas
habilidades.

— Receio que isso não seja possível.

— Imaginei que haveria oposição. — encostou as costas no trono,


dando um longo suspiro. — Como resolveremos isso?
— Como sempre fizemos. — parei ao seu lado, tocando seu ombro.

— A sua mortal. Eu a conheço... — arregalei os olhos, recompondo-


me imediatamente.

— Posso saber de onde?

— A pergunta não é de onde, nem como, mas por qual razão você
colocaria uma das chaves dentro dela! — franzi a testa. Eu o quê? Assim que
notou minha expressão, gargalhou. — Imaginei que não se lembrasse disso.

— Realmente, não consigo me lembrar. — levei uma das mãos ao


queixo, pondo-me a pensar. — É, realmente não me recordo de nada a
respeito disso. — fui sincero.

— Envolvi-me com ela. Submeti-me a uma aparência medíocre e


mortal. Namoramos um tempo... — alcancei-lhe com um olhar furioso. —
Ah, quanto a isso não se preocupe, nunca a levei para a cama. Ela é pequena
demais para mim. — riu.

Apertei seu ombro, fazendo sua armadura reluzir ainda mais, devido a
minha mão estar pegando fogo.

— A minha paciência está acabando. — dei-lhe uma advertência.

— O meu único intuito era a chave, mas tive certa dificuldade. Deus é
realmente genial! Quando as fez, tomou todas as garantias para que não
caíssem em mãos erradas. — acenou com uma das mãos. — Por isso não
obtive sucesso.

— Então, imaginando que sendo eu quem a colocou lá, esperava que


eu a retirasse para você?

— Perspicaz!

— Receio que...
— Matarei a mãe e o irmão dela. — cortou-me, fazendo-me engolir as
palavras. — Sabe em quem essa culpa irá cair? Ah, você sabe, não é, Lu?

— Dê-me uma única razão para eu não arrancar sua cabeça nesse
momento! — rosnei, sentindo todo meu corpo queimar.

— Eles estão comigo. Um passo em falso e eu acabo com o elo que


há entre você e ela. — retrucou, usando um tom calmo.

A minha respiração estava acelerada, o meu coração palpitava sem


parar. Eu queria parti-lo ao meio, cortá-lo em pedaços e depois cortar
novamente, até não sobrar NADA!

— Sei que você irá achar um meio para fazer isso... — continuou e
pondo-se de pé, retirou minha mão do seu ombro, distanciando-se em passos
lentos. — Agora, se me dá licença, tenho um reino para governar.

— Perdoei você por todas suas traições... — Baal parou, de costas


para mim e eu para ele. — Mas dessa vez não haverá clemência. Como se
atreveu a usá-la dessa forma... Como ousa usá-la como objeto de barganha?
— ofeguei entre as palavras. — Vou exterminar sua existência do universo!
— rugi, cerrando os dentes.

Por mais que eu tentasse me conter, eu não conseguia. Uma coluna de


fogo, que se ergueu até as nuvens do inferno, surgiu de dentro de mim.

— Sabe o que está em jogo. — respondeu, ignorando minha ameaça.

Cerrei os punhos e segui parado ali por alguns instantes, sem saber
como lidar com aquela situação inédita.

Dessa vez ele me pôs em uma situação difícil. Quando caí me foi
dada a tarefa de guarnecer os sete portões do inferno, evitando que o universo
chegasse ao fim. Até mesmo nós, imortais, tememos a Satan. Somente um
pode enfrentá-lo e, este está adormecido.
Se eu lhe der a chave, é o fim de tudo, mas se eu não lhe der, é o fim
da história de amor entre o Rei dos Demônios e a mortal que o conquistou.

O que devo fazer? Essa decisão está acima do que eu quero. Eu sei,
mas... Não posso perdê-la, não quero perdê-la!
CAPÍTULO TRINTA
POR CINTHIA

CONTEI DETALHE POR DETALHE do que vi aquela noite para


Gi. Quanto mais eu descrevia os acontecimentos, mais curiosa ela ficava. Não
no ponto que eu esperava, nem nas questões que martelavam em minha
cabeça.
— Então ele quis matar os repórteres por sua causa? — sorriu,
juntando as mãos e levando-as ao peito. — Que romântico!

— Quis. — revirei os olhos.

— E depois lhe tirou para dançar ao som de No Regrets interpretado


em francês? — suspirou, jogando-se na cama de braços abertos. — Que
homem! Que sorte você tem!

Sorte? Não sei bem definir se o que aconteceu lá ontem foi sorte.
Você nem sequer prestou atenção quando mencionei o que ele disse quando
eu estava de olhos fechados!

— E depois ele te trouxe para casa nos braços? — ergueu a cabeça,


encarando-me.

— Sim, nos braços. — um sorriso de canto escapou dos meus lábios.

A frase de ontem ainda estava ecoando na minha cabeça: “Preciso


pensar no que aconteceu. Descobri coisas estranhas que não fazem sentido e
que me deixaram confuso. Coisas sobre nós”.

— Ainda sonho com o dia em que lorde Balthazar irá me carregar nos
braços. — suspirou outra vez, levantando-se da cama e, dançando consigo
mesma, rodopiou duas vezes, aos risos. — Será que ele é romântico? — dei
de ombros. — Com certeza é. Os dois são perfeitos cavalheiros!
Coloquei as mãos para trás, encarando-a naquele transe frenético de
um lado a outro. Eu já devia ter dito a ela, mas, por alguma razão, sinto que
lorde Balthazar não está muito interessado em mulheres.

— Vou indo. — disse, rodopiando até a porta. — Preciso sonhar com


meu príncipe encantado, Balth. — sorriu.

Respondi com um aceno rápido de cabeça.

Assim que Gi saiu, desmontei na cama. A confusão de pensamentos


deu lugar a ele. Apenas ele. Sorri feito uma garota boba que se apaixona pela
primeira vez. Lúcifer é galanteador, educado, gentil, possessivo e ciumento.
Além de ser um homem diferente dos outros. Seria infeliz considerá-lo mais
um. Não, ele é diferente.

Lúcifer sabe que é poderoso, que controla e seduz. Ele não insinua o
que pode fazer, simplesmente faz. Todas as suas ações são... Eu diria que
reforçam o que ele é, sem precisar mostrar que pode fazer o que quiser.

Ele é completamente diferente.

Os homens tem mania de domínio e gostam de mostrar que dominam.


Ele não, simplesmente domina sem mostrar que domina. Homens são sérios,
não gostam de se render à meiguice, ao carinho e ao amor, ele é o contrário
disso. Quando sente que precisa expor, expõe sem medo e sorri feito uma
criança que acabou de ganhar seu primeiro brinquedo.

Lúcifer é encantador e essa diferença presente no seu modo de agir foi


o que me levou até ele.

Sorri outra vez e enfiei o rosto no travesseiro. O seu rosto ainda


passava por flashes em minha mente, usando aquele título bobo que me deu:
donzela.

Adormeci.
[...]

Tudo estava escuro. Não havia luz, mas havia som. Um choro
masculino, sentido e soluçante ecoava em minha mente.

— Quem está aí? — dei alguns passos, perdida no nada. — Por favor,
responda.

A escuridão ganhou vida e me vi criança, nos braços de um homem,


cujas lágrimas molhavam meu rosto. As pessoas ao redor pareciam alheias ao
acontecimento, pareciam não nos ver ali, não nos notar. Elas simplesmente
seguiam seu caminho, sem sequer questionar o que ocorria.

— Pequena criança, por que não me esperou? — ele questionou em


tom choroso, fazendo-me arregalar os olhos.

Lúcifer? Sim, é ele. Milorde está com uma criança nos braços. Mas
quem é ela?

Aproximei-me um pouco mais e, quando vi seu rosto, meus olhos se


arregalaram.

— Não! Não pode ser... — neguei com a cabeça, confusa com aquilo.
— E-Eu estou viva.

— Recuso-me a deixá-la partir, criança! — engoliu em seco,


ofegando entre as palavras. — Quem irá orar por mim? Quem pedirá meu
perdão?

— Não! Eu não morri! Isso é... Impossível. É uma alucinação!

De repente, seus grandes pares de asas se abriram, cobrindo-me. Sua


armadura aconchegou-se no seu corpo. Lúcifer enfiou a mão dentro do peito
e retirou uma esfera brilhante. Pude ver dentro dela. Havia algo, uma espécie
de chave.

— Fazer isso requer muito poder... — fungou. — Não sei quais serão
as consequências, mas é provável que eu me esqueça de você, pois terei que
dormir por um longo tempo. Mas, talvez um dia, nos encontremos de novo,
Cinthia... — sorriu.

Sua mão esticou-se ao meu abdômen e pressionando a esfera contra


ele, colocou-a em mim. Uma intensa luz inundou tudo, mas não durou muito.
Pouco a pouco me vi abrir os olhos, puxando fôlego, enquanto ele, Lúcifer,
sumia como quando a fumaça é levada pelo vento.

[...]

Saltei da cama, completamente suada. Puxando ar, mantive-me


imóvel, encarando a porta de entrada do quarto.

— O que foi isso?

Desci os olhos por meu corpo e encarei meu abdômen. Acariciei


aquela parte com ambas as mãos, pressionando-a, mas não senti nada. Um
alívio instantâneo tomou-me.

— Foi um sonho. Um sonho bobo! — deitei-me novamente.

Tentei pregar os olhos, mas não consegui. Aqueles sonhos de novo


me perturbavam. Era como um quebra-cabeça a ser juntado, dando uma
imagem final, uma história, um começo.

Assim que o sol deu os primeiros sinais na janela, levantei e tomei um


bom banho. Vesti uma roupa e desci para a cozinha. Gi ainda não havia
levantado, então fiz um café.

— Como está? — uma voz diferente fez-me virar para trás.

— Quem é você? — apoiei ambas as mãos na pia, fitando-o


desconfiada, prendendo o ar nos pulmões.

Um homem grande e com armadura. Os cabelos longos e de um azul


diferente chamavam a atenção. Ambas as orelhas adornadas com brincos.
— Essa é a minha forma real. Costumeiramente gosto de andar por aí
como um cão de três cabeças. — sorriu, puxando uma cadeira para sentar-se.

Senti um imenso alívio, soltando a respiração.

— Querberus! — sorri. — Quase me matou do coração. — sacudi a


cabeça, voltando ao café.

Enchi a cafeteira e segui até a mesa, servindo-nos.

— Ah, não se pode morrer duas vezes. — sorriu, dando um gole na


xícara.

— O que você disse? — parei a mão antes de dar a primeira golada na


bebida quente, assustada.

— Eu não disse nada, lady Cinthia. — ergueu a xícara, sorriu e deu


outra golada.

— Disse sim!

— Receio que tenha tido uma noite ruim, pois eu realmente não disse
nada. — encarou-me com seriedade.

Pisquei os olhos algumas vezes e dei uma golada no café, tomando


quase metade.

— Acordei no meio da noite e não dormi mais. — levei o assunto


para outro rumo, pois ele continuaria negando o que disse. Mas que ele disse,
ah, disse sim!

— Percebi pelas olheiras. — arregalei os olhos, ele riu e sacudiu a


cabeça. — Está quase imperceptível, não se preocupe.

— Olhos afiados os seus. — coloquei os cotovelos na mesa, sorrindo.


— E uma memória também. — encarou-me fixamente.

Por que sinto que ele quer me dizer algo? Ele insinua coisas, mas não
pergunta. Será que...

Abaixei a cabeça, sorrindo, erguendo-a novamente.

— Eu gostaria de...

— Respostas? — ergueu as sobrancelhas. — Por isso estou aqui.

— Como a minha história com Lúcifer começou? — aproximei mais


o rosto, mirando-o atentamente.

Querberus deu um longo suspiro, pôs ambas as mãos na mesa,


unindo-as e sorriu.

— Escrita pelo próprio dedo de Deus. — recolhi o corpo para trás,


desacreditada daquilo. — Um plano elaborado pelo Senhor do Universo, o
plano da remissão.

— Mas... Eu não entendo.

— Há muitas coisas que não entendemos. Nem mesmo eu que tenho


sete mil anos consigo entender. — confirmou com a cabeça.

— Dentre todas as pessoas do mundo, logo eu a escolhida. Não vejo


razão...

— Há um ditado entre os homens que acho muito pertinente: “a


ocasião faz o ladrão”. — ergueu os dedos, rindo.

— Eu não sou uma ladra!

— Ah, é sim. Você roubou o coração de um dos seres mais cruéis do


universo e quando fez isso, entrou para a história, teve seu nome escrito nas
linhas divinas.
— Mas eu não fiz nada... — murchei, ainda sem entender.

— Claro que fez.

— Então me diga o que eu fiz! — bati ambas as mãos na mesa,


irritada com tantos rodeios.

Querberus sorriu, seus olhos brilharam. Tudo girou, então me vi de


joelhos, ainda criança.

Memórias, outra vez.

“Deus, sei que ele fez coisas ruins, sei que dizem que ele é mau, mas o perdoe. Ele
é seu filho, ele é um arcanjo. A estrela-da-manhã.

Senhor, todo-poderoso, tu és infinito em misericórdia e amor. Perdoai-o, Deus.


Perdoai-o...”.

— O poder do amor é a força mais poderosa do universo, pois foi dele


que surgiu a vida e somente com ele se é capaz de alcançar o impossível. —
ele disse, encarando-me sem piscar.

O meu coração palpitou. O sabor do seu beijo, chocolate amargo, veio


à minha boca. Querberus acenou a cabeça e levantou-se, cantarolando:

“Deixai vir a mim os pequeninos. Vinde a Jesus, vinde a Jesus... Pois


deles é o reino dos céus”.

Entre inúmeros pensamentos, alguns já tão claros e outros nem tanto,


vi seu rosto. O meu coração acelerou-se e sorri, abaixando a cabeça.

Eu nunca parei para analisar todos esses sonhos estranhos, mas você
sempre esteve comigo. Antes eu tinha medo de te amar, mas não tenho mais.
Você nunca me mostrou nada além de afeto, alegria e cuidados. O carinho
especial cresceu e ao longo dos anos transformou-se em amor.

Levantei-me, ofegante.
— Preciso dizer a ele. Preciso contar o que sonhei... — ofeguei entre
as palavras, nervosa. — Chegou a hora de me confessar. Esse é o momento
em que devo encará-lo nos olhos e dizer que o amo, pois é o que eu de fato
sinto. — disse a mim mesma, acenando com a cabeça.

Enchi-me de coragem e segui a sua procura pelo imenso palácio.


Lúcifer poderia estar em qualquer lugar.
CAPÍTULO TRINTA E UM

AO CHEGAR AO PALÁCIO, recolhi-me em meus aposentos. Era


necessário pensar sobre tudo o que aconteceu. Uma decisão havia de ser
tomada.

Mas qual?

Se eu entregar as chaves a Baal, todo o universo será condenado.


Aquele imbecil acha que pode controlar Satan. Ele provavelmente acredita
que haverá vitória ao abrir os portões do inferno, mas não há nada além de
morte. Todos nós, mortais e imortais iremos perder. Será o fim de tudo.

Lembro-me como se fosse ontem...

O céu estava vermelho, com trovões amarelos cortando suas nuvens.


Lá estava eu, em frente à sala do trono, aguardando seu veredito.

— Aproxime-se, estrela da manhã. — Ele ordenou.

Em passos lentos, entrei no local santo dos santos e mantive-me de


cabeça baixa.

— Você pecou contra Deus, contra seus irmãos e liderou uma


rebelião. Nega isso?

— Não.

— Filho meu, o seu coração se tornou negro, os seus desejos egoístas


e tudo isso por conta do ciúme que nutriu contra Cristo, depois pela criação
do homem. Tudo isso porque me fiz em três e não considerei convidá-lo ao
plano da criação. — a voz poderosa seguiu, até que fez uma pausa. — É
verdade, eu já sabia de tudo, mas ainda assim te amei quando lhe dei a vida e
seguirei te amando mesmo na queda.

— Qual é a minha punição? — suspirei.

— Por pecar contra mim e contra os seus irmãos, será expulso dos
céus. — assenti com a cabeça. — Por pecar contra a humanidade, feita à
minha semelhança, dou-lhe a mais importante das tarefas. Mas isso não é um
presente, é um tormento.

Franzi a testa sem entender. Ergui a cabeça, mirando seu rosto. Seus
olhos azuis estavam marejados.

— Por pecar contra a humanidade, dou-lhe as sete chaves dos sete


portões do inferno, onde meu irmão está aprisionado. De onde ele jamais
deverá sair, pois... — fez uma pausa. — Se um dia isso acontecer, será o fim.

Arregalei os olhos, abaixando a cabeça novamente.

— O fim?

— Não haverá mais vida depois disto.

— E se eu me recusar? — cogitei, mesmo sabendo que não podia.

— Essas são as consequências do seu pecado. Ainda que fuja da


punição, ela irá atrás de você.

— Mas eu não quero essa tarefa...

Eu pequei por inúmeros motivos, mas, de algum modo, sei que não
partiu apenas de mim. Surgiu em meu coração, mas alguma coisa excitou
aquele sentimento. Um ser sombrio e que desconheço, mas que imagino
quem é e que está trancafiado atrás daqueles portões.

— Não era meu desejo lhe dar isso, mas esse é o preço do seu erro. —
levantou-se, passando por mim.
Acompanhei-o.

Os rebelados ajoelharam-se em sua presença, todos eles. Coloquei-me


na frente dos que me seguiram, enquanto a maioria, os que permaneceram
fieis ao Senhor, encaravam-nos, em choro silencioso.

— É com dor que eu, o doador da vida, os expulso dos céus, filhos
meus. — aproximou de mim, tocando meu ombro e com a palma aberta,
acertou meu peito, arremessando-me em direção à Terra.

Fui o primeiro a cair e, na sequência, todos os rebeldes vieram


comigo. Naquele dia, a terça parte das estrelas caiu.

Vagamos por muito tempo, em uma terra quase inabitada, até que
encontramos o inferno, onde fizemos nossa morada. Por muito tempo
recusei-me àquela tarefa, mas a cada dia aquelas chaves pareciam atrair mais
curiosos, então as tomei, guardando-as. Iniciando minha condenação.

[...]

Depois de muito pensar sobre todas as possibilidades, tomei uma


decisão.

Reuni meus homens de confiança: Querberus, Amon e Balthazar.


Contei-lhes o que aconteceu no maldito evento do governador e que na
verdade, tudo havia sido arquitetado por Baal. Um teatro apenas para me
levar até ele.

— O que pretende fazer, Milorde? — Balthazar mirou-me fixamente,


engolindo em seco. Ele estava apreensivo.

— Talvez tenha sido um erro deixar Baal agir livremente como


fizemos. — ponderou Amon.

— Talvez não. — Querberus cruzou as pernas, encarando-me. —


Nada que não deva acontecer acontece. Apenas a história que deve seguir é
autorizada a preencher as linhas que dão sequência aos registros do universo.
— O que passou, passou. Temos um grande problema para lidar
agora. — assenti com a cabeça, sentando-me em um trono de pedra e fogo.
— Depois de muito pensar... — eles aproximaram os rostos repletos de
expectativa. — Decidi que darei as chaves a Baal.

Os três caíram no chão.

— Como? — Balthazar saltou imediatamente, acompanhado pelos


outros. — Mas, Lu...

— Com as chaves em mãos, Baal abrirá os portões do inferno e será o


fim. — Amon sacudiu a cabeça, negando-se a imaginar um futuro como
aquele.

Querberus, por sua vez, sentou-se calmamente e deu um longo


suspiro.

— Não dirá nada? — ergui as sobrancelhas.

— Fará diferença? — esbocei um sorriso de canto.

— É claro que você tem um plano, Grande “L”. — sugeriu Amon,


começando a andar de um lado a outro. — Recuso-me a acreditar que vai
simplesmente entregar as chaves a Baal.

— Pois acredite.

— Não acredito!

Balthazar abaixou a cabeça, pensativo. Mil ideias deveriam estar


invadindo-o nesse momento. O que ele mais temeu estava prestes a
acontecer.

— Como será feito, Milorde? — Querberus seguiu com a questão.

— Necessito de tempo. Se for verdade o que Baal contou, coloquei a


sétima chave dentro de Cinthia, mas não sei como retirar. — dei de ombros.

— Pode ser um truque. — Balthazar reagiu, aproximando-se de mim.


— Ele pode estar mentindo. Baal pode simplesmente estar tentando nos
confundir.

— Ah, não. Sobre isso... — escorreguei no trono, segurando seus


braços. — Ele não mentiu. Havia verdade em suas palavras e eu sou o pai da
mentira. Sei quando mentem para mim. — abaixei a cabeça, dedilhando meus
dedos.

— E o que acontece depois? — Amon mirou-me.

— Não há depois. Se aqueles portões forem abertos, não restará nada


no universo. — encarei-o, sem piscar.

— Com todo respeito, Grande “L”, a mortal vale tanto? — Amon


questionou, usando uma expressão de quem não entendia minha decisão.

— Sim, vale.

Se eu contasse a ela o que fiz, mesmo sem saber, ela entenderia,


certamente que sim. Todavia, essa ação desencadeou uma série de reações e
uma delas foi levar sua família para os braços da morte. Ela não me perdoaria
se eu deixasse sua mãe e seu irmão serem mortos por um demônio.

— Então é isso. — Querberus pôs-se de pé. — O mundo chegou ao


fim pelas mãos de uma mortal. — ergueu os ombros e deixou o cômodo,
sendo seguido por Amon, em silêncio.

O quarto seguiu sem um único ruído. Dei um longo suspiro e tombei


o rosto para o lado, mirando Balthazar.

— É uma decisão egoísta. Eu sei.

— Eu faria o mesmo se estivesse em seu lugar, Lu. — comentou em


tom baixo, mantendo os olhos no chão.
— Está magoado comigo?

— Deveria estar?

— Você também tem um mortal. — suspirei.

— Dessa vez, o fim virá para todos. — esboçou um sorriso de canto,


assoando o nariz. — Não há motivo para eu me magoar com isso. É até
consolador. — riu, erguendo a cabeça.

— Sim, é consolador.

— Vou esticar as asas. — sacudiu a cabeça, esfregando o rosto em


seguida.

Assenti com um movimento de cabeça, vendo-o sumir ao som de uma


pequena explosão. Fechei o cenho, pondo os cotovelos nos braços do trono e
uni as mãos religiosamente.

Se pensas que irá me derrotar com um joguinho desses, Baal, você


está redondamente enganado. Se for preciso parar a órbita da Terra para te
esmagar, o farei!

Confesso que fiquei intrigado com as palavras daquele ser


desprezível, mas tal revelação me foi esclarecedora. Não é o fim, não agora.
Baal é um demônio antigo, poderoso e inteligente. Ele jamais traria Satan a
este universo, pois simplesmente não teria controle sobre ele.

No começo eu não entendi, confesso, mas as coisas foram ficando um


pouco mais claras. Até que entre memórias e mais memórias, eu vi.

[...]

— Acorde, criança! Acorde! — implorei, sacudindo-a nos braços.

Os meus olhos derramavam uma tempestade, enquanto o caminhão


que a atropelou sumia no fim da avenida, sem prestar socorro. Não havia
tempo, eu pensava apenas em socorrê-la.

— Acorde, por favor, acorde! — insisti.

As pessoas ao nosso redor não pararam, não a socorreram. Apenas eu


vi acontecer, apenas eu notei que ela estava morta, que o fôlego da vida havia
deixado seu corpo.

— Por que não me esperou? Não! Não pode ser... — neguei com a
cabeça, rendendo-me ao desespero. — Recuso-me a deixá-la partir, criança!
Quem irá orar por mim? Quem pedirá meu perdão?

Solucei feito uma criança. Eu havia aprendido a gostar dela. Ela havia
me mostrado um lado humano que eu não conhecia. Até então, eu só
conseguia enxergar maldade nos homens, mas ela mudou tudo isso.

Então me vi estender uma das mãos, retirando uma esfera do peito, a


sétima chave, e sem nenhum arrependimento, coloquei-a dentro dela.

Um ato de amor fraternal, sem dúvida. Um elo inquebrável. O quebra-


cabeça foi decifrado. Então, minha mente se escureceu e tudo entre nós
perdeu-se em memórias, tão profundas quanto o abismo.

[...]

Por isso eu nunca a reconheci, por isso eu nunca me lembrei. Aqueles


sete objetos são mais que meras chaves, são itens de poder absoluto. E é atrás
deste poder que Baal está. Tanto tempo para arquitetar um plano como esse.
Ele realmente merece meus cumprimentos.

Uma excitação sombria tomou meu corpo, senti minhas veias


pulsarem, obrigando meu coração a bater mais forte.

— Mudei por ela, prometi que seria bom e que não faria maldades,
mas... — pus-me de pé, ajeitando meu colarinho. — Você me fará quebrar
uma promessa, Baal. E não sabe como odeio desapontar minha amada
donzela. — cerrei os punhos, fazendo-os flamejar.

É hora de você conhecer a imensidão dos meus poderes e quando


acontecer... Desejará nunca ter nascido, seu verme!
CAPÍTULO TRINTA E DOIS

DEIXEI O QUARTO, ATRAVESSANDO o corredor. Assim que


apontei no topo da escada, parei. Ela estava lá embaixo. Seus olhos fixaram-
se nos meus e minhas pernas bambearam.

— Donzela...

— Lúcifer. — ela sorriu, engoliu em seco e pôs as mãos para trás,


balançando o corpo. — Há algo que eu preciso lhe contar.

— Eu ia dizer o mesmo... — sorri, sacudindo a cabeça.

— Eu realmente preciso dizer. É muito importante. — subiu um


degrau. Os seus olhos brilhavam.

O meu estômago revirou-se e um arrepio subiu por minha espinha.


Não é hora disso, não é hora disso. Eu preciso dizer a ela que sua mãe e seu
irmão correm risco de morte.

— Donzela, eu...

— Eu te amo, Lúcifer. Te amo como nunca amei outro homem. —


senti meu coração parar. A terra girou sobre meus pés e o ar me faltou aos
pulmões. — Na verdade, eu nunca amei outro homem, nenhum homem.

Toda a preocupação sumiu, evaporando todas as ideias que


martelavam minha mente. O meu corpo tremia sem parar.

— O que disse? — encarei-a incrédulo, descendo os degraus


lentamente, até parar próximo a ela.
Recompus-me, sacudindo a cabeça. Preciso contar a ela, eu preciso...

Suas mãos seguraram meu rosto, fazendo-me arregalar os olhos, e


seus lábios esfregaram-se suavemente nos meus, iniciando um beijo lento.
Desci as mãos à sua cintura, segurando-a e com um leve arranco, colei seu
corpo ao meu.

Agora não... Não podemos... Eu deveria estar contando o que


aconteceu...

Ela afastou-se, sorrindo. Aquele sorriso repleto de felicidade e


encanto. Ofegou algumas vezes e beijou-me novamente, mergulhando-me em
suas emoções.

Cinthia me faz perder o chão e a noção. Ela conseguia me tirar dos


trilhos, mudar a rota dos meus planos e rever minhas decisões. Ela é o capitão
que conduz qual rumo deve tomar o meu navio.

Preciso tê-la, ao menos uma vez antes do fim...

Tomei-a nos braços. Encarei-a, mordendo os lábios e ela sorriu, com


o rosto corando levemente. Subi as escadas sem pressa, admirando-a por todo
caminho e quando entrei no quarto, a fiz levitar até a cama, colocando-a
deitada sobre os lençóis de seda.

Com um impulso com os ombros, retirei meu paletó e sem pressa,


comecei a desabotoar a camisa, mantendo meus olhos nela. Como é bela...
Suspirei, mordendo os lábios.

— Estou em chamas... — gemeu baixo, esfregando as pernas.

— Está preparada para ter sua temperatura elevada ao nível do sol? —


joguei a camisa no chão, retirando os sapatos.

— Ao seu lado estou pronta para qualquer coisa... — disse ofegante.


O meu pau latejava com tanta força que a qualquer momento o tecido
se rasgaria, mas eu tentava me conter, eu precisava me conter. Não queria
assustá-la.

Caminhei em sua direção, subindo na cama. Com os joelhos, afastei


suas pernas, colocando-me entre elas. Inclinei-me o suficiente para deixar
nossos rostos próximos, apoiando-me com ambas as mãos na cama.

— Nunca imaginei amar uma humana... — sussurrei, roçando o


polegar direito na maçã do seu rosto.

— Nunca imaginei amar um homem cujo nome é Lúcifer. — riu,


mordendo os lábios.

Fiz menção de tocar seus lábios outra vez, mas desviei-os, descendo a
boca ao seu pescoço. Com a ponta da língua, deslizei suavemente ao seu seio
esquerdo, beliscando-o com a ponta dos dentes por cima do tecido fino,
arrancando-lhe gemidos baixos.

— Espere... — ofegou. — Vou retirar a camisa...

Sua voz falhou quando rasguei a peça de cima; encarei-a, passando a


língua nos lábios e repeti o ato com a peça de baixo, deixando apenas a roupa
íntima, que logo trataria de tirar, mas não antes de fazê-la cair em tentação.
Não antes de ouvi-la pedir por mim...

Aproximei novamente os lábios do seu sutiã, mordiscando a ponta dos


seus mamilos, revezando-me entre eles. Com um simples pensar, o fecho
cedeu, revelando-me seios medianos, suculentos e rosados. Estalei a língua e
não hesitei. Abocanhei o primeiro, sentindo sua mão em minha nuca, suas
pernas contorciam-se embaixo de mim e os gemidos ficavam cada vez mais
audíveis.

Deslizando minha boca sem pressa, lambuzei-me com sua carne,


provando do seu corpo, sempre pousando os lábios na ponta do seu mamilo,
puxando-o com leves mordiscadas. Primeiro o esquerdo, depois o direito e
quando fiz menção de cessar, não parei, uni-os com ambas as mãos,
deslizando minha boca de um lado a outro, enfiando-os em minha boca. Eles
pareciam ter sido feitos para mim, pois cabiam perfeitamente entre meus
lábios.

— Ahhh. — ela arfou. — Não pare!

— Não pretendo. — sorri, usando um tom sensual.

Deixei seus seios, descendo com a boca por sua barriga. Entre
mordidas e beijos, pus-me entre suas pernas. Enfiei dois dedos por trás do
tecido da calcinha, esticando-a até rasgar, revelando uma boceta com lábios
grossos, pequena e com poucos pelos, dois dedos acima do clitóris.

— O que você quer, Cinthia? — enfiei dois dedos dentro dela,


movimentando-os lá dentro.

Ela gemeu, um pouco mais alto dessa vez, puxando as pernas contra
seu corpo. Segurei ambas com uma única mão, continuando a dedá-la.

— O que você quer, donzela?

— Você... Você dentro de mim... — gemeu baixo.

— Farei você delirar por essa cama e só quando não tiver mais força,
lhe darei prazer. — retruquei, levando ambos os dedos à boca, sem tirar os
olhos dela.

Os chupei lentamente, admirando-a. Em seguida, usando os mesmos


dedos que enfiei nela, toquei seu abdômen, fazendo-a queimar de tesão.

— Lúcifer... — mordeu os lábios, acariciando os próprios seios.

— Não estou ouvindo. — desabotoei minha calça, descendo-a


lentamente.

A cueca dava indícios de fragilidade. O meu caralho tentava escapar


de todo modo e, quando desci minha última peça, ele saltou para fora. Um
belo cacete rosado envolto por várias veias saltadas e com alguns pentelhos
em cima. O meu corpo todo reagia a ela, o meu corpo todo se excitava com
aquela visão.

Cinthia completamente nua em minha frente...

Subitamente agarrei suas coxas, puxando para cima, em direção ao


meu rosto. Deslizei a língua por sua boceta, mordiscando seus lábios
calmamente, até instigar seu clitóris com a ponta da língua, soltando-a na
cama.

— Milorde... — Coloquei o dedo rente aos seus lábios, silenciando-a.

Ao passar uma das mãos por sua nuca, juntei seus cabelos, trazendo-a
a mim. Chupei seus lábios, puxando-os, causando sons estalados. Assim que
parei, encarei-a, mas vi seus olhos em outro lugar e acabei acompanhando-os.

— Quer isso? — segurei o cacete pela base, balançando-o, sem tirar


os olhos dela. — Peça!

— E-Eu... — revezou os olhos entre mim e meu caralho.

— Sim? — sorri, erguendo as sobrancelhas.

— Foda minha boca. — encarou-me com uma inocência irresistível.

— Mostre o quanto quer. — soltei seus cabelos, colocando-me de pé


na cama, com o cacete apontado na direção do seu rosto.

Endireitando-se na cama, Cinthia manteve seus olhos em mim e com


a mão direita, segurou meu caralho, apertando-o. Senti vibrações percorrerem
todo meu corpo. Olhando-me de forma sensual, vi seus lábios aproximando-
se lentamente, dando lugar à língua, que percorreu da ponta até a base,
subindo algumas vezes, antes de desferir uma mordida gostosa na cabeça.

— Ah! — deixei um gemido escapar, fazendo-a sorrir de canto.


Em seguida, subiu lentamente, beijando meu abdômen, deixando
rastros de saliva, antes de mordiscar meu peitoral, beliscando meus mamilos
assim como belisquei os seus. E lançando-me um olhar sexy, desceu outra
vez. Com uma das mãos, apertou minhas bolas de maneira gostosa,
segurando minha rola com a outra.

Sem hesitar, abocanhou meu caralho, deliciando-me com a visão dos


seus lábios que deslizavam por meu membro, subindo e descendo. Arrepios
deliciosos corriam, chocando-se, inundando-me de prazer.

— Isso... — ofeguei, mordendo os lábios com força.

Em meio à mamada, seus dedos massageavam minhas bolas,


estimulando-me ainda mais. Ela mal havia começado e eu já queria antecipar
as coisas. Só eu sei como estou me contendo, como estou...

— Ahh! — outro gemido escapou, mais longo. Dessa vez a mordida


foi mais forte, dolorosa, mas ainda assim gostosa.

Firmei seus cabelos em meus dedos e encaixei a rola em sua pequena


boca, começando a dar socadas lentas. Conforme eu entrava, ia enfiando cada
vez mais, até conseguir enfiar o talo. Parecia um pouco desconfortável, mas
Cinthia engolia tudo com gula.

O som das minhas bolas batendo em seu queixo ecoava por todo o
quarto, mixando-se aos meus gemidos de prazer, cada vez mais altos e
constantes. Aquilo era delicioso. Seus lábios, cada vez mais íntimos do meu
membro, acompanhavam meu ritmo. Notei que uma de suas mãos estava
entre suas pernas, estimulando seu clitóris em movimentos circulares.

— A rola do seu homem é saborosa? — Cinthia sorriu, soltando meu


pau e, com a língua, deslizou outra vez da glande até as bolas, mordiscando-
as levemente, antes de puxá-las contra seu rosto, soltando-as.

Finalmente ela caiu, jogada na cama, com a respiração rápida e ambas


as mãos entre as pernas.
— Deixe-me cuidar disso... — pus-me de joelhos e segurando suas
mãos, as atei um pouco acima da sua cabeça.

Lancei-lhe um sorriso sacana e enfiei o rosto em seu centro feminino.


Comecei a estimular sua boceta com a língua, lambendo-a de cima a baixo,
mordiscando seus lábios, enquanto eu mesmo massageava seu clitóris, que
logo tratei de mordiscar, chupando-o lentamente.

— Ahhh... — gemeu baixou, tentando soltar as mãos, mas não


permiti. — Fode minha boceta! — implorou, entre gemidos.

— Peça de novo. — mordisquei novamente seu clitóris, puxando-o


contra meu rosto.

— Fode... — gemeu manhosa.

O jogo era gostoso, mas não havia pausa, não poderia haver.
Aconcheguei-me melhor entre suas pernas e encaixei o caralho entre sua
boceta. Quente. Ela estava pegando fogo.

— Isso vai doer, mas prometo que será prazeroso.

Assim que entrei, ouvi-a gritar num misto de dor e prazer. O meu
corpo todo se ouriçou, levando-me a iniciar uma série de socadas lentas e
constantes. O meu pau fervilhava feito brasa dentro dela.

O tesão era tamanho que nem notei quando ela conseguiu livrar as
mãos, marcando minhas costas com as unhas, quase rasgando-a. Cerrei os
dentes, aumentando o ritmo, mirando aquela cena: o entra e sai do meu
caralho em sua boceta, que o engolia completamente, sem hesitar. O cheiro
de sexo tomando todo o quarto, contaminando o ambiente.

— Com força. — ela gemeu e eu atendi.


O ritmo das bombadas aumentou e seus gemidos tornaram-se mais
comuns, mais altos, mais sensuais. O meu cacete pulsava sem parar, pronto
para explodir a qualquer momento, mas eu ainda não estava satisfeito, nem
ela.
Tomando-a pela cintura, mantive-me de joelhos na cama, ereto e a
trouxe para o meu colo, passando suas pernas por minha cintura. Cobri-a com
minhas asas, fazendo-a sorrir e por um breve momento, arregalar os olhos.

— Eu te amo, Lúcifer. — murmurou baixinho.

— Eu te amo, minha donzela. — sorri, abraçando seu corpo ao meu.

Os seus seios esfregavam-se em meu peitoral e uma esfera de fogo


formou-se entre nós. A cama, o lençol e todo o quarto pegava fogo, inclusive
nós, mas não havia indícios de queimadura.

Movimentando o quadril, segui entrando com força, excitando-me


ainda mais com sua boca gemendo baixinho em minha orelha. Nossos corpos
molhados de suor, mostrando nosso empenho naquilo. Empenho em fazer
sexo e amor.

De repente, tornou-se incontrolável, a minha rola pulsava, as bolas


ardiam, eu havia chegado ao meu ápice. Eu não conseguiria mais segurar o
gozo. Então deixei vir. O ritmo aumentou ainda mais e quando os primeiros
jatos de porra invadiram-na, a vi tombar a cabeça para trás, com a boca um
pouco aberta, gemendo baixo:

— Quente... Quente... Muito quente... — ofegou, deixando algumas


lágrimas escaparem por seus olhos.

Segurei-me e esperei seus gemidos cessarem quando ela gozou, para


iniciar os meus. Fiz questão de gemer em sua orelha, de mostrar o quanto ela
me satisfazia.

Naquela altura, ambos ofegantes, girei o corpo e caí para trás na


cama, com as asas abertas. Mantive-a em cima de mim, tornando a cobri-la
com minhas asas, diminuindo os movimentos aos poucos, até que parei.

— Ainda o sinto pulsar dentro de mim... — murmurou, roçando o


rosto em meu peitoral.
Afaguei os seus cabelos, soltando um longo suspiro, seguido por um
sorriso.

— Vai continuar pulsando por muito tempo, pois não pretendo retirar
agora... — beijei sua testa.

Cinthia riu e ergueu o rosto ao meu, ergueu-se um pouco em cima de


mim e segurando minha face com ambas as mãos, desferiu inúmeros selinhos
em meus lábios, antes de deitar-se novamente, rendida ao cansaço.

A minha excitação era tamanha que eu poderia fodê-la durante dias,


mas Cinthia estava cansada, o seu corpo ainda estava queimando. Sendo
humana, preciso entender seus limites, inclusive na cama.

Com movimentos lentos e contínuos, eu massageava seus cabelos


vermelhos, admirando-a imersa em um sono profundo. Havia felicidade
estampada em seu rosto e apesar de também estar feliz, algo me preocupava
intensamente.

Aquele não era o momento, se o fim fosse de fato chegar, foda-se. Eu


só precisava dela, apenas dela e de nada mais.

Apaguei todas as preocupações da minha cabeça e rendi-me ao sono


do pós-prazer com ela deitada em meus braços, após se entregar para mim.

O que virá amanhã, fica para o amanhã.


CAPÍTULO TRINTA E TRÊS
POR CINTHIA

O CHORO DE UMA CRIANÇA ecoava por um imenso salão


branco, com lustres tão altos que eu mal conseguia enxergá-los. Não havia
teto, apenas estrelas. Os pilares estendiam-se ao tapete azul-marinho brilhoso,
mas não o tocavam.

— Tem alguém aí? — chamei, preocupada com aquele choro infantil


sentido.

Diante do silêncio, segui a voz, à procura da criança. Atravessei o


salão às pressas. Corri sem cessar até o outro lado, mas ele nunca chegava.
Parei ofegante no meio do salão, apoiando as mãos nos joelhos, fazendo uma
leve pausa para respirar.

— Como vamos chamá-lo? — uma voz feminina que não reconheci


ecoou. Ergui a cabeça, procurando-a.

— Keybriel.

— Keybriel? — havia um tom de descrédito na voz tão engraçado que


me permiti um sorriso.

— Podemos tirar par ou ímpar de novo. Você perdeu nas últimas


quatorze vezes.

— Você roubou! — acusou-o, irritada.

Girei o corpo inteiro, procurando por esse homem e essa mulher.


Quem são eles?
— É o meu primeiro filho. Nosso filho. Por favor... — pediu em tom
meloso.

Um longo suspiro invadiu o salão e com ele, uma leve brisa me tocou.
Uma luz atrás de mim obrigou-me a virar para trás e, em cima de um altar, vi
uma cesta de ouro que flutuava a poucos metros do chão.

— Então será Keybriel. O que significa?

— A esperança dos homens. Esse será o significado do seu nome.

Tudo ficou escuro, até que as imagens dissolveram-se diante os meus


olhos. Ao piscar, notei que estava no quarto, encarando o teto. Estiquei uma
das mãos para o lado, mas estava vazio.

— Lúcifer? — chamei-o, puxando o lençol para cobrir meu corpo nu.


— Onde ele foi?

Dei um longo suspiro e memórias da noite de ontem invadiram minha


mente, me fazendo ruborizar. Aquela foi a minha primeira vez e ele foi tão
encantador. Suspirei, jogando-me novamente na cama.

— O que acontecerá daqui para frente? — perguntei a mim mesma


entre sussurros.

Eu estava decidida a entregar-me a ele, pois o amo, mas o resultado


disso tudo ainda era incerto para mim.

— Bom dia. — disse Lúcifer ao entrar no quarto, com uma bandeja de


café nas mãos.

— Bom dia. — abri um sorriso tímido.

Ele se aproximou e colocou a bandeja na cama, entre minhas pernas.


Serviu um pouco de suco em um copo e apresentou-me o cardápio:
— Ovos mexidos com bacon, torradas e frutas.

— Obrigada. Você quem fez? — ele ergueu os olhos, balançando a


cabeça e segurando o riso.

Peguei o copo de suco e tomei um gole. Provei um pouco de cada,


exceto as frutas. Não gosto de frutas pela manhã, a não ser que seja em
alguma vitamina.

— Dormiu bem? — perguntou, encarando-me fixamente.

— Muito bem. — tomei outro gole do suco.

Suavemente sua mão subiu pelos lençóis, tocando a minha e puxando-


a para si, beijou-a, erguendo seus olhos aos meus.

— Eu te amo, Cinthia, minha donzela. — sorriu ao confessar.

— Eu também te amo, Lúcifer, meu Príncipe das Trevas. — segurei o


riso.

Milorde abaixou a cabeça, roçando o polegar em meus dedos,


parecendo um pouco distante.

— Há algo de errado?

— Conosco? Não, está tudo perfeitamente bem, mas há algo que


preciso te perguntar. — suspirou, adotando uma expressão séria.

— Pergunte. — o acompanhei.

— Está preparada para encarar tudo que pode vir a acontecer estando
ao meu lado? — ele franziu as sobrancelhas, deixando o receio transparecer
em sua voz.

— Tem como não estar? — sacudi a cabeça, mirando nossas mãos


entrelaçadas. — Eu queria ter lhe contado ontem, mas aconteceu que... —
corei novamente.

Ele riu, mordendo os lábios.

— Contado o quê?

— Finalmente descobri o que nos envolve.

— Descobriu? — Lúcifer arregalou os olhos. — Por favor, me diga!

— Orei por você e você veio até mim. Eu pensei que você fosse um
anjo... — gargalhei, corrigindo-me. — Você é um anjo, mas um anjo caído.
Não senti medo, na verdade, fiquei feliz em te ver.

— Ah, eu me lembro disso. Você era uma criança encantadora que


me tocou como nenhum mortal havia tocado antes. — ele assentiu com a
cabeça.

— E nossa amizade cresceu e tornou-se um amor fraternal, puro e


sem malícia. Você cuidou de mim.

— Sim, eu cuidei, pois não entendia como uma criança em meio a


toda a humanidade pudesse pedir perdão a Deus por mim.

— E hoje entende?

— Acho que sim. — sorri.

— Então, um dia eu atravessei a rua e fui atropelada, meu corpo


morto ficou estirado no chão e você pediu por socorro, mas ninguém me
socorreu.

— Eu socorri.

— Só você.

— Você me deu novamente o fôlego da vida e colocou alguma coisa


dentro de mim. Uma espécie de esfera brilhosa...

— Ah, sobre isso... — sorriu sem graça, abaixando a cabeça.

— Sim? — franzi a testa.

— Primeiro preciso contar uma curta história, certo? — assenti com a


cabeça. — Essa é a história de Deus e Satan.

— Isso consta em algum livro?

— Não no livro dos homens. Está escrito em “Pecado Divino”, o


códex de ouro dos Arcanjos; O Livro dos Arcanjos — arregalei os olhos. —
Então me deixe começar...

No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era


Deus. Todas as coisas foram feitas por Ele, e sem Ele, nada do que foi feito
se faria. N’Ele estava a vida, e a vida surgiu no universo...

Duas vozes infantis se chocavam nas profundezas do abissal. A


escuridão pairava ocupando todos os lugares, pois o universo residia no
nada. Quando o nada era nada, eles já estavam lá. Deus e o Diabo, irmãos e
amigos. Quando a pureza ainda pairava no coração de Satan, ele amava
Emanuel e por seu irmão faria tudo. A primeira criação de Emanuel foi a
Espada do Apocalipse. E com esta espada ele cortou o universo em quatro
direções. Os vestígios do seu poder deram origem a inúmeros mundos e junto
destes mundos, galáxias que se dividiam entre dimensões. Os satélites
surgiram conforme os sistemas solares se alinhavam como Deus havia
imaginado. E vendo que a sua criação era perfeita, assim deixou.

A grandeza e perfeição de Deus eram imensuráveis. Como prova do


seu amor por seu irmão, Emanuel deu a espada do apocalipse para Satan. O
mais novo, que desde o início estava com o mais velho, recebeu a espada de
bom grado. Uma prova do amor de seu irmão, não que fosse necessário, pois
ele sabia que o mais velho sempre o amaria.

Eles amavam um ao outro mais que tudo, um amor puro, sem malícia
ou ganância. Apenas puro amor, amor de irmãos.

Deus criou inúmeras formas de vida entre os mundos. Entretanto, as


submeteu ante os anjos. Em nenhuma das raças criadas por Deus existiu
pecado. Buscando retribuir o presente, Satan deu a ideia de criar algo à
semelhança de Deus. A admiração por seu irmão lhe induziu a sugerir a
criação das mais perfeitas das criaturas, os homens.

Nessa mesma época, Satan, o irmão mais novo, se apaixonou por um


alto arcanjo. O mais belo ser que habitou os mundos. Seu nome era
Principesa. Com toda sua graça e beleza, ela encantou Satan que ficou
perdidamente apaixonado. Emanuel advertiu seu irmão sobre um possível
relacionamento: não era proibido, entretanto, caso houvesse uma criança,
filho de um Deus, Principesa não resistiria ao parto. Ignorando o aviso do
irmão mais velho, ele seguiu com o planejado. Principesa engravidou e deu a
luz ao primeiro Serafim, seu nome era Benemonth. Infelizmente, como
Emanuel previu, Principesa morreu ao dar à luz.

E foi assim que tudo mudou.

Satan deixou sentimentos desconhecidos tomarem conta do seu


coração. As perguntas martelavam em sua cabeça. Por que seu irmão não
salvou sua amada? Qual era o problema? Então, no ápice de sua angústia,
Satan criou o que viria a ser conhecido como os piores dos sentimentos a
habitar a face da terra, o único mundo que caiu em pecado: ódio, vingança,
raiva, inveja, ganância, soberba e tudo mais de negativo que pairou sobre o
mundo dos homens. E, por fim, tomado pela raiva, se afastou de Deus.

Emanuel chorou por ver aquele que ele mais amava se afastar. O seu
coração se encheu de dor, pois Deus é o Princípio e o Fim. Ele viu que o seu
pequeno irmão iria se corromper. Ele viu que mesmo se salvasse Principesa,
Satan tentaria cobrir o universo com trevas. Por amar seu irmão, ele não
interviu, pois ainda Deus nutria em seu íntimo a esperança de que Satan
voltasse a ser quem era; seu amado irmão, o irmão caçula, o único que
esteve com ele desde o princípio.

Com a intenção de aproximar-se do irmão e reatar a velha amizade,


Emanuel criou a primeira terra e nela colocou o primeiro homem, Astaroth.
Nessa altura, já haviam se passado sete mil anos desde que a espada do
apocalipse fora usada. O homem habitou a primeira terra e, para lhe fazer
companhia, fora criada a primeira mulher, Lilith.

Vendo que Deus seguiu sua sugestão, Satan apreciou sua criação de
tal maneira que também amou o homem, mas ao ver que mesmo o homem,
uma criatura inferior ante um Deus, possuía uma companheira, irou-se
novamente e desprezou do fundo do seu coração a humanidade, jurando
atormentá-los e levá-los à extinção.

Deus amou Astaroth e Lilith de tal maneira que os fez santos;


arcanjos, levando-os consigo para os céus. E então ele destruiu a primeira
terra. O homem já não era mais tão inferior assim. O que há de mais
próximo de Deus no universo são os homens, mas nem assim o coração de
Satan se amoleceu. Emanuel tornou a criar uma terra, a segunda, e nela
novos seres humanos habitaram. Os primeiros: Adão e Eva. Eles deram
início a mais perfeita obra de Deus: o povoamento do planeta.

Decidido a cumprir seu juramento, Satan começou a batalha. A


corrupção se iniciou no céu, quando ele influenciou os anjos a sentirem ódio
pelos homens, pois os homens são fracos ante os celestiais. Um grande
arcanjo, por sua vez, símbolo de obediência, começou a bradar pelos quatro
cantos da cidade celestial que o homem era fraco. Ele dividiu opiniões e
causou intrigas. A inveja se tornou pecado divino, justamente por ser o
pecado que fez com que Satan iniciasse uma guerra contra os homens,
perseguindo-os, levando até mesmo os santos anjos à queda.

E Deus, por amar a única lembrança da pureza do seu pequeno


irmão, Satan, jurou que defenderia os homens até o fim, pois a ideia da
criação foi um presente, um presente do seu amado e pequeno irmão caçula,
Satan, quando ainda havia pureza em seu coração.

Cinthia piscou algumas vezes, boquiaberta.

— Não sei o que dizer...


— Imaginei que diria isso.

— Não entendo. Por que me contou tudo isso?

— Então entramos em outro pronto... — assenti com a cabeça. —


Quando caí, me foi dado um castigo, uma tarefa.

— Qual? — perguntou, ansiosa.

— Satan foi aprisionado no centro da Terra, preso atrás de sete


portões, que se tornaram conhecidos como os Portões do Inferno. Cada
portão possui uma chave, sendo que, na ordem, funciona assim: — ele
gesticulou com a mão. — A primeira chave abre o primeiro portão. A
segunda, abre o primeiro e o segundo portão...

— A sétima abre todos os portões! — acompanhei seu raciocínio.

— Isso. Eu tenho muitos poderes, mas a ressureição está além das


habilidades de qualquer anjo. Só um Deus ou um objeto criado por um Deus
poderia providenciar isso...

Cinthia arregalou os olhos. Engoli em seco e continuei:

— Quando você morreu, coloquei o que tinha de mais precioso dentro


de você. A sétima chave está dentro de você, Cinthia. — o meu corpo
subitamente gelou. — Eu não podia ver aquela garotinha morrer, eu não
conseguiria. Então foi isso que eu fiz e, talvez por isso, sua vida tenha sido
como foi...

— Você me salvou... — suspirei. — Ainda assim isso é muito surreal.


Há uma chave dentro de mim?

— Sim.

— Isso não é um problema, é?

— Sim e não.
— Sim e não? — arregalei os olhos. — O que quer dizer com isso?

— A chave não lhe fará mal, mas há seres que estão lutando para
obtê-la. — Lúcifer afinou os olhos.

— Quais seres?

— Baal.

— O demônio do Velho Testamento? — afastei o rosto para trás. —


Achei que não existisse mais...

— Não só existe como também assumiu a forma humana para se


aproximar de você...

— Como assim? Você está me deixando confusa! — ofeguei entre as


palavras.

— Você o conhece como Ezequiel.

Arregalei os olhos como nunca antes e senti meu coração palpitar sem
parar. Um medo instantâneo me tomou. Engoli em seco, tentando encaixar as
coisas em minha cabeça.

Ele sempre foi estranho, sempre teve um ar sombrio, mas eu não


imaginava que... Quer dizer, nem eu mesma sei como nós nos relacionamos.
Eu parecia ter sido enfeitiçada...

— Pelo visto você se lembrou. — Lúcifer sorriu sem jeito, abaixando


a cabeça.

— Não tivemos nada profundo. — fiz questão de assinalar aquilo. —


Na verdade, nem sei como chegamos a ter algo...

— Isso não vem ao caso. — ele sacudiu a cabeça, com o rosto


completamente vermelho.
— Aonde você quer chegar, Lúcifer? — afinei os olhos.

— Baal está reunindo as chaves, não para libertar Satan, mas para
usar o imenso poder que há dentro delas. Você é a prova viva desse poder. —
encarou-me sério.

— Você ainda não me disse aonde quer chegar. — onde eu entro


nessa história? Ainda não consigo entender.

— Para me forçar a lhe dar a sétima chave, ele... Hum...

— Desembucha! — rosnei, irritada.

Lúcifer deu um longo suspiro e apertou minha mão na sua.

— Ele sequestrou sua mãe e seu irmão.

Sua mãe e seu irmão. Isso ecoou tantas vezes em minha mente que
tonteei. De repente, tudo ficou escuro.
CAPÍTULO TRINTA E QUATRO

— INIMIGOS A LESTE... Inimigos a oeste... — Balthazar


murmurou, andando de um lado a outro. Sua aparência física lembrava a de
uma rainha, com as mãos unidas religiosamente entre as passadas. —
Inimigos ao sul... Inimigos ao norte...

— Que porra você está fazendo? — interrompi-o, afinando os olhos.

— Encarnando a personagem. — assentiu com a cabeça, voltando à


aparência normal.

— Que personagem? — ergui as sobrancelhas.

— Cersei de GoT – Game of Thrones.

Dei um longo suspiro e cerrei o punho, fazendo-o queimar. Balthazar


arregalou os olhos, dando dois passos para trás.

— Isso me ajuda a pensar. — retrucou, usando um tom de irritação.

— “ISSO” ME INCOMODA PRA CARALHO!

Ele deu um longo suspiro, sentando-se na cama, ao meu lado.

— O que faremos? — encarou-me, apreensivo.

— Se você se calar por um único segundo, vou pensar em algo! —


rosnei e ele assentiu com a cabeça.

É extremamente irritante afirmar isso, mas Baal arquitetou esse plano


por longos anos. Ele tramou tudo minuciosamente e quando viu a
oportunidade surgir em suas mãos, diante da minha aproximação com
Cinthia, apenas encaixou suas artimanhas em nossa história.

Preciso achar uma falha, qualquer brecha que seja e, então, tudo
estará acabado para ele.

O óbvio seria perceptível demais, mas poderá confundi-lo ao fazê-lo


achar que eu tentei causar confusão sabendo que não conseguiria, mas isso
lhe traria dúvidas.

Uni as mãos religiosamente e fechei os olhos, apoiando os cotovelos


nos joelhos. Uma distração. Vamos lá, uma distração...

— Amon foi aonde? — perguntei, mantendo-me no escuro.

— Disse que voltaria logo. Nada mais.

Abri os olhos, colocando-me em pé.

— Trouxe seu humano? — perguntei, sem encará-lo.

— Sim. Ele está adormecido na cripta. No momento, Gisele lhe faz


companhia. — comentou, deixando a dor transparecer em sua voz.

— É a única forma de protegê-los.

— E quanto a Cinthia?

Mordi os lábios, dando um longo suspiro.

— Assim que despertar, falarei com ela. Ela entenderá...

— Não, não entenderá. — Balthazar me cortou, fazendo-me engolir


em seco.

— Ainda assim vou tentar.


— Se ela for conosco... — Balthazar hesitou, virando o rosto para o
lado.

— Não posso obrigá-la! — contive minha fúria entre sussurros. —


Não devo! Se tudo acabar, não quero nós dois brigados.

— Eu entendo.

— Seu mortal reagiu como? — lancei-lhe um olhar curioso.

— Não reagiu. Fiz o que era preciso para mantê-lo vivo. Se quando
ele acordar quiser me chutar, é um direito dele. — forçou um sorriso e se
levantando, esticou os braços para o alto. — Já bolou um plano?

— Já.

— E qual é? — aproximou-se, parando o rosto próximo ao meu.

— Você irá me trair e oferecer seus serviços a Baal. — um sorriso de


canto escapou. Balthazar não escondeu a expressão de “isso não vai
funcionar”. — É por ser tão óbvio que alcançará meu objetivo.

— E qual é?

— O benefício da dúvida.

— Entendo, mas como ficam os familiares de Cinthia? — encarou-me


fixamente.

— Farei o possível para resgatá-los, mas a minha prioridade é apenas


ela. — fui sincero.

— O nível de empenho só será determinado quando lady Cinthia


despertar. — assentiu com a cabeça, me fazendo dar um longo suspiro.

Aquilo era uma grande verdade. Qual seria a reação dela? O que ela
me diria? O que aconteceria quando ficássemos frente a frente?
— Vá e cumpra sua missão. — ordenei.

Balthazar curvou a cabeça e ergueu-se, sorrindo. Tocou meu ombro


com uma das mãos e mirou-me afetuosamente.

— Você não está sozinho. — assentiu com a cabeça, desaparecendo


no ar.

— Sei que não, mas tenho medo de deixá-la partir e sentir aquele
vazio novamente dentro de mim... — murmurei, abaixando a cabeça.

Deixei o quarto e segui pelo corredor. Era inevitável, eu não


conseguia parar de pensar na reação dela. E quanto mais eu pensava, mais me
via em um beco sem saída.

Ao parar do lado de fora da porta do seu quarto, ouvi sua respiração


lenta e compassada. Como um cão de guarda, permaneci ali, esperando-a.

Um leve movimento de pernas na cama me pôs em alerta. Outra


mexida, mais outra e um bocejo. Meu coração saltou à boca.

Enchi os pulmões de ar e entrei no quarto, silenciosamente. Ela


continuava se mexendo, a cabeça balançava de um lado a outro, lentamente.
Cinthia parecia estar tendo pesadelos.

Com um movimento de dedos, puxei uma cadeira almofadada e


sentei-me, encarando-a. Minha donzela poderia despertar a qualquer
momento e o mais prudente seria que eu estivesse ali, em sua companhia.

Cinthia abriu os olhos, sentando-se bruscamente na cama. Ao encarar-


me, manteve aquela expressão de pânico. Engoli em seco, imaginando o que
viria.

— Tive um pesadelo horrível, Lúcifer. — ofegou entre as palavras.

— Pesadelo? — ergui as sobrancelhas.


Não foi um pesadelo, querida. Eu sabia do que se tratava, eu consegui
imaginar as palavras saírem de sua boca.

— Sim. — acenou com a cabeça. — Estávamos conversando quando


uma tensão tomou o assunto e você me disse que meu irmão e minha mãe
foram sequestrados por Baal. — riu e continuou: — Pior, que o meu ex-
namorado e Baal são a mesma pessoa. — gargalhou.

Mantive-me em silêncio.

— Não é engraçado? — lançou-me um sorriso, que se desfez aos


poucos assim que entendeu o que minha expressão queria dizer. — Lúcifer?

— Não foi um sonho. — esclareci, usando um tom manso.

Seus olhos se encheram de lágrimas e suas mãos seguraram os


lençóis, puxando-os em sua direção. A sua respiração ficava cada vez mais
pesada e alta.

— Cinthia... — levantei-me, preparando-me para ir em sua direção.

— Você está brincando, não é? — fungou. — É uma brincadeira de


muito mau gosto. — abaixou a cabeça.

— Queria que fosse uma brincadeira. — sentei-me na cama,


abraçando-a contra o meu corpo.

— Por quê? — sua voz tremulou. — O que ele quer com eles?

— Ele quer a chave que há dentro de você. — afaguei seus cabelos,


apoiando seu rosto em meu ombro.

— Então vamos lhe dar a chave! — afastou-se, limpando o rosto com


as costas das mãos.

O meu coração soprou algumas vezes com aquela ideia. Como eu


queria que as coisas fossem tão fáceis assim, minha amada.

— Não posso.

— Não me ama o suficiente para isso? — rugiu, jogando o lençol para


o lado.

— Não é isso...

— Então o que é? — manteve o tom de voz erguido, cobrando-me


como nunca.

— Se Baal colocar as mãos na chave, será o fim de tudo. Todos nós


iremos morrer. — abaixei a cabeça, tentando fazê-la entender.

Silêncio.

Um fino fio de silêncio, como uma teia de aranha, armada para pegar
a primeira palavra e explodir, enrolando sua presa.

Finalmente ela explodiu.

— Você deveria ter me deixado morrer. — gritou, socando meu peito


com seus punhos, em meio às lágrimas que caíam como uma cascata. — Se
eu estivesse morta isso não estaria acontecendo. É tudo culpa minha... E
também é culpa sua...

Permaneci calado, de cabeça baixa. O ritmo dos socos diminuiu


quando ela se cansou, ainda ofegante e chorosa.

— A dor seria muito menor... — murmurou, fungando.

— Esse mundo estaria condenado se não fosse por você. — dei um


longo suspiro, erguendo seu rosto com ambas as mãos. — Você me
transformou em um novo homem.

— A custo de quê? — perguntou chorosa. — A minha mãe e o meu


irmão serão mortos por um demônio e a culpa é minha. Eu comecei isso
tudo...

— Não diga isso... — pedi entre sussurros.

— Digo, pois é a verdade! — rugiu outra vez.

Balancei a cabeça, soltando seu rosto.

— A decisão é sua, Cinthia. — ergui o rosto, encarando-a fixamente.


— Se decidir que devo entregar a chave a Baal e salvar seus familiares, o
farei. Se não, lutarei para manter esse mundo livre das sombras.

— Desde quando você ama os humanos? — perguntou em tom


acusatório.

— Desde que você me ensinou a amá-los. — ela abaixou a cabeça,


engolindo em seco.

Dei um longo suspiro e continuei, fazendo-lhe uma confissão:

— Nesse curto tempo juntos, você me ensinou e me fez compreender


muitas coisas que eu não conseguia entender, mas nada disso vale a pena se a
mulher que eu amo não está feliz. — pousei minha mão sobre a sua,
entrelaçando nossos dedos. — Por isso, me diga o que quer e eu farei.
CAPÍTULO TRINTA E CINCO
POR BALTHAZAR

UM SENTIMENTO ESTRANHO tomava meu peito. Eu não


deveria estar fazendo isso, mas... Dei um longo suspiro, precipitando-me em
direção à sala do trono do Palácio de Baal, como era conhecido agora o
antigo Palácio Sombrio de Lúcifer.

Do lado de fora, eu conseguia ouvir toda a inquietação. Vozes


chocando-se entre si, música e gargalhadas. Eles estavam comemorando.

Inspirei profundamente e, com ambas as mãos, empurrei os portões,


causando silêncio absoluto. Os presentes puseram-se em alerta, prontos para
sacar suas armas. Baal ergueu o rosto, mirando-me.

— Ora, ora, ora... — levantou-se, com o rosto preenchido por um


largo sorriso. — Se não é o grande general demônio, Balthazar, a mão direita
de Lúcifer. A que devo tal honra?

— Vim propor um acordo. — dei um passo à frente, parando quando


seus lacaios sacaram suas armas. Mirei-os atentamente. — Acham que têm
condições de me enfrentar? — ergui o rosto, colocando a ralé em seu devido
lugar.

— Fale mais. — gesticulou com uma das mãos.

— Há uma pessoa que eu quero proteger. — encarei-o. Ele conteve


uma risada, sacudindo a cabeça.

— Humanos nos tornam fracos e você sabe disso melhor que eu, lorde
Balthazar. — desceu os degraus do trono e lançou-se em minha direção sem
pressa. — No entanto, estou disposto a acatar seu pedido, desde que me dê
algo que eu desejo muito. — parou em minha frente, ajeitando meu
colarinho.

— Não queremos mortais conosco. — um demônio cuspiu em meus


pés.

— Heresia! — outro o acompanhou.

Em segundos eclodiu um mar de ofensas contra mim e toda a


humanidade.

— Silentium! — ergui uma das mãos e ao descê-la, costurei suas


bocas. — Esqueceram quem eu sou, bando de vermes? — rugi, cerrando os
punhos. — Jamais ouvirão a própria voz outra vez.

— Percebo que está em forma. — Baal socou meu braço e parou ao


meu lado. A expressão amigável se desfez e ele adotou um tom sério. —
Quem me garante que está mesmo disposto?

— Sanguine Foedus... — sussurrei, fazendo-o arregalar os olhos. —


Está com medo? — ergui uma das sobrancelhas, esboçando um sorriso para
provocá-lo.

— Eu nunca sinto medo!

— Então o que impede?

— Confiança.

Um pacto de sangue entre imortais é um acordo mágico inquebrável.


Não há força no universo capaz de desfazê-lo. Se quebrado, e quando
quebrado, leva o pactuante à morte imediata.

— Está subestimando minha inteligência? — olhou-me de soslaio. —


Você surge do nada, traindo um amigo secular e me propõe algo dessa
magnitude?
— Estou conferindo se sua palavra será cumprida. — afinei os olhos.

— Eu sou um homem de palavra. Sabe bem disso e sabe que...

— Você é uma serpente traiçoeira. — o cortei, tocando em seu


ombro. — Sempre foi e sempre será. As garantias são necessárias devido ao
seu histórico. — ergui os ombros.

— Pensarei sobre.

Assenti com a cabeça.

— Amon foi descoberto? — continuou, rodeando-me.

— Se aconteceu, não foi através de mim. Sabe como ele é imprudente


e burro. — segui em direção ao trono, sentando-me nele e cruzando as
pernas.

Baal me encarou curioso.

— Ainda me pergunto o que Lúcifer fez de tão grave para que você
tenha vindo aqui me propor um acordo.

— Ele está tramando uma armadilha.

— E você está aqui para me livrar dela. — assentiu com a cabeça,


vindo em minha direção. — Ou para me condenar. — seus olhos faiscaram.

— Deixo as deduções ao seu critério. Já expus meus interesses. Quero


apenas que não toque no meu mortal. — encarei-o, sem piscar.

— Onde estão as chaves?

— Na posse dos seus guardiões.

— Estranho. Imaginei que ele fosse guardá-las. — balançou a cabeça,


começando a andar em círculos, com uma das mãos no queixo.
— Qual a necessidade de guardar seis chaves se ele possui a sétima?
— deixei o corpo escorregar no trono, colocando uma das perna em seu
braço. — Não há razão.

— Acredito que ele desconheça a razão. — comentou de costas para


mim, fazendo-me afinar os olhos.

— E qual outra razão haveria de ter?

— Nada que seja importante. — minimizou com uma das mãos.

— Desde quando Baal se preocupa com coisas que não sejam


importantes? — ele virou-se, lançando-me um sorriso condenador. — Ora,
vamos, você não é desses.

— Pacto de sangue, especulações, acordos e...

— Suspeita de espionagem? — ergui as sobrancelhas. — Quanta


cautela. — gargalhei.

— Suspeito de tudo e de todos. — desembainhou sua espada,


apontando-a em minha direção. — Inclusive, devo confessar que não acredito
em nenhuma palavra sua.

Abri um largo sorriso.

— E pretende lutar comigo?

— Balthazar, a mão direita de Lúcifer. Como você era conhecido


antes da queda? — fechei o cenho, fazendo-o tombar a cabeça para o lado. —
A voz de Deus, um dos sete grandes cavaleiros. — assentiu com a cabeça. —
Sim, é isso mesmo.

Senti meu interior palpitar e sorri, sem mostrar os dentes.

— Sabe... — continuou, aproximando-se. — Em todos esses milênios


de queda, ninguém nunca o viu vestindo uma armadura.

— É verdade.

— O que você esconde? — afinou os olhos, lançando-me um olhar


condenador.

— Algo do qual você não é capaz de lidar.

— Não? — moveu a espada de um lado a outro, pousando-a em seu


próprio ombro. — O que faz na Terra?

Ele não acreditou em nenhuma das minhas palavras. É natural, pois,


estamos falando de Baal, mas isso nos dará uma chance para o objetivo.

— Estou cumprindo minha missão. — levantei-me do seu trono.

— A mando de quem? — rosnou, apertando o cabo da sua espada,


fazendo-a tilintar como um raio.

— Do próprio Deus.

Baal arregalou os olhos, sem sequer piscar. Ele não entendia, mas
parecia querer entender. Por instantes, pensou bastante, mas não obtive
resposta. Eu conseguia ver em seus olhos. Ele estava perdido em ideias.

— Qual é sua missão?

— Ah, lamento. — fiz um beicinho, erguendo ambas as mãos,


juntamente com os ombros. — Não posso dar detalhes sobre isso, mas...

— Mas? — deu dois passos à frente, preparando-se.

— Devo dizer que você é muito inteligente, mas não tanto quando eu
esperava, Baal. — desci os degraus, caminhando lentamente até ele. —
Soberba em demasia. — ri, parando ao seu lado.
— Do que está falando? — cerrou os dentes.

— Achou que eu não encontraria os prisioneiros?

Um assovio inaudível cortou o ar. Sua espada moveu-se em minha


direção. Não fosse minha agilidade, talvez eu fosse partido ao meio. Ao dar
dois saltos para trás, encarei-o.

— Não precisa fingir. Eu sei que os que estão no calabouço são


clones. — tombei a cabeça para o lado. — Qual lugar seria mais seguro que o
inferno? A Terra.

— Eu vou trucidar você! — vociferou. Subitamente, parou, rendendo-


se às gargalhadas. Não escondi meu estranhamento. — Deve estar se
perguntando o motivo da graça, mas eu... — comentou, sem parar de rir.

Afinei os olhos.

— Eu sei de tudo, meu caro Balthazar. — Um frio gélido subiu por


minha espinha. — É natural para alguém como eu antecipar os passos de
vermes inferiores como vocês...

— Antecipar?

— Está subestimando Amon. Ah, como está. — sorriu de lado. — Ele


decifrou o plano de vocês dois em um estalar de dedos. — assentiu com a
cabeça. — Tentar me distrair com um blefe desses foi pueril... — gargalhou
outra vez, com seu corpo começando a se deformar, sumindo como fumaça.

— Um clone? — afinei os olhos.

Assim como aconteceu com o primeiro, todos os outros demônios


presentes desapareceram como sombras. Todos clones.

Eu estava tão preocupado com o plano que sequer me atentei a um


simples detalhe desses.
Maldição!
CAPÍTULO TRINTA E SEIS
POR CINTHIA

SINTO UM BURACO CRESCENDO dentro de mim. Era como se


eu soubesse que o pior ainda estava por vir. Já não tenho mais lágrimas para
chorar, a minha voz estava rouca de tanto gritar.

Dei um longo suspiro e passei a mão por meus cabelos, enrolando-os


em um coque. Estiquei a mão até o criado-mudo e os prendi com um grampo.

— Santo Deus, sempre ouvi que o Senhor nunca nos dá um fardo que
não possamos carregar, mas... — minha voz falhou. — Isso é demais para
mim. Eu sou uma mortal, uma humana, sem poder algum. Como o destino da
humanidade poderia estar em minhas mãos? Na minha decisão? — suspirei.
— Quem sou eu, Deus meu? Quem sou eu? — gemi baixinho.

O meu corpo tremia inteiro, as minhas pernas ainda estavam bambas.


Eu nunca o havia visto tão triste como hoje. Lúcifer nunca demonstrou medo
perto de mim, mas quando ele me disse que aprendeu comigo, senti pesar em
sua voz.

Ele teme me perder?

Sacudi a cabeça, levando os dedos às têmporas, massageando-as.

— Isso não é hora...

Família é algo especial. Cresci sem uma, pois a ignorância dos


homens me privou desse conforto, mas eles são meu sangue! A minha mãe e
o meu irmão de um lado na balança, do outro, todo o universo.

Se for como ele disse, de nada vai adiantar salvá-los... Afastei aquelas
ideias. Precisamos achar um jeito. É isso! Vamos achar uma maneira de
salvá-los!

Levantei-me e troquei de roupa. Coloquei um jeans simples e uma


blusa branca. Enchi os pulmões de ar e dirigi-me à porta do quarto. Em
passos lentos, atravessei o corredor.

“Visando à segurança de Gisele, enfeiticei-a para dormir. O mortal de


Balthazar está com ela. Eles estarão protegidos quando tudo começar...”.

“... Por que não fez o mesmo comigo?”.

“Por que eu te amo e jamais me perdoaria se no fim você me odiasse


por isso. Ademais, a última peça do jogo é você quem deve mover”.

Engoli em seco ao lembrar-me daquilo e apontei no topo da escada.


Eles estavam reunidos lá embaixo, em silêncio absoluto. Lúcifer, Querberus,
Balthazar e Amon.

Assim que me viram, puseram-se de pé.

— E-Eu tomei uma decisão. — senti minha garganta secar, enquanto


esfregava os dedos.

Que ironia do destino. Os mais fortes dependendo do mais fraco, da


mais miserável das criaturas. Da única raça, segundo a história contada por
Lúcifer, que caiu em pecado.

Ele lançou-se em minha direção. Uni as mãos religiosamente e


abaixei a cabeça. O som dos seus passos nos degraus escada acima, parecia o
badalar de um relógio contando os últimos minutos da vida no universo.

Ele finalmente parou em minha frente e, com a ponta dos dedos,


ergueu meu rosto, encarando-me com uma expressão pesarosa.

— Donzela? — ofegou entre as palavras.


— Eu decidi que...

Sem dizer nada ou esboçar reação diante das minhas palavras, ele me
tomou nos braços, pegando-me no colo. Deitei o rosto em seu ombro e fechei
os olhos, ouvindo sua voz poderosa ecoar. O seu cheiro trazia um sabor de
chocolate amargo a boca.

— Generais, chegou a hora! — rugiu como um leão, descendo os


degraus. Os seus passos ecoavam pelo palácio. — Estão prontos?

— Sim! — o coro masculino ecoou.

Vi milhares de coisas circularem por minha mente, mas nenhuma


delas fazia sentido. Eu só conseguia pensar em como havíamos chegado
àquele ponto.

Não demorou muito para sentir o ar frio da noite acertar minha pele. E
por mais que o ardor gelado tentasse me engolir, ele não permitia. Seu corpo
inteiro queimava em brasa, aquecendo-me, protegendo-me, sempre ao meu
lado, como prometeu que faria.

Lá do alto, as coisas pareciam tão pequenas. Nós, seres humanos,


somos minúsculos diante das criaturas que vivem no universo.

— Estamos chegando. — ele sussurrou em minha orelha, me fazendo


arrepiar.

— Perdão. — murmurei baixinho.

— Pelo quê? — manteve os olhos longe de mim, encarando o nada à


sua frente.

— Por ser tão fraca, por não poder andar com minhas próprias pernas.
Por ser totalmente dependente de você... — gemi baixinho.

A expressão séria se quebrou e ele sorriu, sacudindo a cabeça.


— Nunca, em tantos milênios de vida, me senti tão preenchido como
estou agora ao seu lado. — confessou, beijando minha testa.

Pensei em responder, mas senti que estávamos pousando. Enchi o


pulmão de ar e prendi a respiração. A hora chegou.

Encarei-o outra vez, vendo seus olhos brilharem com água ao redor de
seus globos oculares. Sorri e selei seus lábios. Eu sabia a razão, pois ele havia
me dito antes:

“Não, não posso te levar comigo. Isso seria arriscado demais...”.

“... Por favor, reconsidere. Eu imploro”.

— Você foi o único homem que amei na vida. — confessei,


deixando-o me pôr no chão.

— Prometa que não sairá de perto de mim. — forçou um sorriso,


roçando o polegar em meu rosto.

— Prometo tentar. — senti meus olhos arderem.

Havia uma tensão entre nós. A grama verde do estádio do Morumbi


parecia morta. Girei os olhos, vendo inúmeras cadeiras, todas completamente
vazias. Estávamos no meio da arena, como gladiadores que se preparavam
para a batalha.

Eu teimava em esquecer aquilo, mas sempre voltava à minha mente:

“Como retiro a chave de dentro de mim?”.

“... Se retirar essa chave, você irá morrer. Entende isso? Anos atrás eu
a usei para lhe devolver o fôlego da vida, mas... enquanto ela permanecer
dentro de você, Cinthia, você estará protegida”.

Engoli em seco.
Uma estrela de seis pontas surgiu em nossa frente. Um ar denso fez
meus cabelos esvoaçarem e dela saíram quatro: Ezequiel, Kirel, minha mãe e
meu irmão.

Os que me acompanhavam deram um passo à frente, colocando-se ao


meu lado. Estiquei uma das mãos, procurando pela sua e quando a encontrei,
entrelaçamos nossos dedos.

— Estou com medo. — murmurei ofegante.

— Até o fim estarei ao seu lado. — Lúcifer respondeu, roçando o


polegar em minha mão.

Ele estava quente, em fogo. Antes não queimava, mas agora minha
pele ardia um pouco. Ele não estava furioso comigo, estava furioso com eles.

— Cinthia, minha cara... — Ezequiel sorriu, mirando-me fixamente.


— Vejo que você está muito bem. Aliás... — ergueu o dedo, todo risonho. —
Você e Lúcifer combinam, devo concordar.

— Chega de rodeios, Baal. — Kirel rosnou.

A minha mãe e o meu irmão estavam amordaçados. Ela estava


acordada, mas ele, estirado no chão. Encarei-o fixamente, tão frágil daquele
jeito, tão vulnerável. Mamãe sempre foi uma mulher forte, sempre.

— Ezequiel, os entregue a mim. — pedi. Não, não pedi, implorei.

— Ezequiel? — ergueu as sobrancelhas. — Ah sim, quando eu


assumi a forma humana para tentar obter a chave, disse que meu nome era
Ezequiel, mas... — ergueu os ombros.

— Por que está fazendo isso? Você não se importa com o futuro do
universo? — pensei em dar um passo à frente, mas hesitei.

— É claro que me preocupo. Essa é justamente a minha intenção.


Assim que alcançar meu objetivo inicial, parto para a fase final. A purificação
de tudo que existe. — gesticulou com uma das mãos. — Apenas o perfeito
pode existir.

— Deixe-me falar com minha mãe. — cerrei os punhos.

— Estou ficando impaciente... — girou os pés, virando-se, dando-me


as costas e depois de alguns passos, repetiu o movimento, tornando a me
encarar. — Entenda como um gesto de misericórdia, não que eu tenha
alguma, mas se vai facilitar nossas negociações... — moveu os dedos,
retirando a mordaça da sua boca.

— Mãe? — chamei-a com a voz rouca.

— Cinthia, minha filha, estou tão feliz de vê-la de novo. — sorriu, a


voz estava trêmula e cansada. — Lembra-se do que falei no hospital?

Sacudi a cabeça, negando. Falamos sobre tantas coisas... Como eu


poderia me lembrar de algo nesse momento?

— Se Deus te deu uma missão, cumpra-a! — cerrou os dentes e


abaixou a cabeça. — Eu sempre vou te amar. Não importa o que aconteça,
sempre vou... — Baal amordaçou-a novamente.

— Blá blá blá. — rosnou e, estendendo uma mão ao alto, fez surgir
uma grande lança cravejada em ouro, que girava ao seu redor. — Talvez isso
te estimule um pouco. — moveu o indicador, acertando Felipe ao meio,
fazendo-o gemer.

Uma poça de sangue formou-se embaixo dele. Fiz menção de ir à


frente, mas Lúcifer apertou minha mão, segurando-me. Os meus olhos
enchiam-se de lágrimas, o meu peito se apertava.

— Ele não viveria muito tempo, sabe? Ficou louco depois que o
possuí. O fanatismo religioso tem suas serventias... — afinou os olhos.

— Você vai pagar por todos os seus crimes! — Balthazar rosnou,


cerrando os punhos.
— Ah, se há alguém que eu gostaria de ver usando uma armadura é
você, General Balthazar. — Baal sorriu, caminhando de um lado a outro e
movendo os dedos novamente, parou a lança sobre a cabeça da minha mãe.
— O tempo está passando, Cinthia. Qual é sua escolha?

As minhas pernas tremiam tanto que eu sentia que poderia desabar a


qualquer momento.

“O que fazer? O que fazer, meu Deus?”.

— O que ainda faz aí, Amon? — Baal lançou-lhe um olhar de soslaio.

Encarei-os sem entender. Todos permaneceram calados e Amon


seguiu à frente, até que se colocou ao lado deles.

— Traidor! — Balthazar urrou, seguindo à frente. Kirel


desembainhou sua espada.

— Balthazar. — Lúcifer o chamou, fazendo-o parar, ofegando tão alto


que eu conseguia ouvir sua respiração.

— Se você trai seus amigos, seus companheiros, por qual razão vive?
— Balthazar prosseguiu. — Você disse que amava uma mortal, mas quando
se ama, protege. Esse é o tipo de proteção que você oferece a ela?

Amon permaneceu em silêncio, olhando-nos com indiferença.

— Vou contar até dez. — Baal abriu um largo sorriso. — Um...


Dois...

O meu coração palpitava sem parar. As lágrimas desciam


apressadamente. Eu estava sendo destruída por dentro. Primeiro meu irmão e
agora minha mãe?

— Sete... Oito...
— Não tema em responder. Você já escolheu, basta dizer. — Lúcifer
sussurrou em minha orelha.

— Dez. — Baal sorriu sem mostrar os dentes. — Diga de uma vez!


— endureceu o tom de voz.

— Perdão, mãe. Perdão. — sacudi a cabeça, com voz chorosa. — Eu


te amo, sempre vou te amar. — funguei. — Eu escolho o futuro do mundo...

Não conseguia ver o rosto de Lúcifer naquele momento, pois sei que
aquilo o surpreendeu, pois ainda na mansão, eu havia dito que escolheria
minha família mas não escolhi. Eu não podia arcar com o peso do fim do
universo em minhas costas. Por mais que eu amasse a minha família, aquilo
era muito maior que eles...

— Imaginei que fosse isso. — moveu o dedo lentamente.

Antes que tudo acontecesse, Lúcifer cobriu meus olhos com uma das
mãos, abraçando-me junto a ele.

— Não olhe. Não olhe... — sussurrou em minha orelha.

Gritei como nunca antes. Quando ouvi a lança tocar o chão, senti
como se tivesse me tocado. Caí de joelhos, mas Lúcifer me ergueu, tomou-
me em seus braços e com uma das mãos em minha nuca, afagou meus
cabelos, em silêncio.

— Sentenciei a minha mãe à morte... — gemi baixinho. — E-E-Eu


matei a minha própria mãe... — ergui o rosto, encarando-o.

Ele estava chorando, seus olhos queimavam em brasa e subitamente


me afastei, pois sua pele não mais ardia, incendiava.

Assim que seu rosto marcou-se com a água dos seus olhos, ele beijou
minha testa e me pôs sentada atrás dele, vendando meus olhos.

— Prometo voltar. — sussurrou. Em seguida, ergueu o tom de voz.


Pude ouvir seus pés se afastarem. — Você trouxe morte e dor para a minha
mulher e isso é imperdoável, Baal. — conteve as palavras. — Prepare-se para
conhecer a extensão do nome Lúcifer! — vociferou.

Uma fraqueza súbita me tomou. Tonteei e caí no chão, sentindo a


grama molhada tocar meu rosto. Pisquei algumas vezes, ainda no escuro,
sozinha. Até que senti minha existência sumir.
CAPÍTULO TRINTA E SETE

NUNCA, EM TANTOS MILÊNIOS de existência, senti tanto ódio.


O meu corpo queimava em chamas negras, que se elevavam cada vez mais
alto, erguendo uma coluna de fogo que tocou o céu e, ao tocá-lo, cobriu toda
a terra em sombras. Não havia mais luz do sol, nem o reflexo da lua, pois a
minha fúria mergulhou o planeta em completa escuridão.

— Lu... — Balthazar chamou-me.

— Cuide dela. Essa é uma ordem absoluta. — ofeguei entre as


palavras.

Querberus veio à frente, pondo-se ao meu lado. Sem pressa,


desembainhou sua espada.

Eu conseguia ouvir meu coração palpitar. Vozes do mundo inteiro,


em incontáveis línguas questionavam o que havia acontecido. O apocalipse,
alguns diziam. Outros, o fim.

— É hora de acertamos as contas, Lúcifer. — Baal esticou uma das


mãos ao alto, materializando as três chaves em sua posse e, abrindo a boca,
engoliu-as.

Subitamente, ele caiu no chão, vomitando um rio de sangue. Em


seguida, estalou o pescoço e pôs-se de pé. O seu corpo inteiro estava
brilhando e a sua presença soava tão poderosa quanto nunca.

— Agora estou além das suas capacidades, estrela da manhã. —


sorriu, pondo um pé à frente e outro atrás.

— Eu. Sou. O. Príncipe. Da. Terra. — pontuei, tentando me conter.


— E irei lutar por ela! — rugi.

O eco da minha voz saiu como uma explosão nuclear. O estádio veio
abaixo, a cidade de São Paulo caiu, mergulhando em escombros.

— Se continuar assim, não sobrará planeta para governar... —


provocou-me.

— Concentre-se. — Querberus tocou meu ombro. — Se o ódio te


cegar, não haverá vitória, só morte. Lembre-se dela. — olhou para trás.
Acompanhei seus olhos.

Cinthia estava com a cabeça deitada no colo de Balthazar que me


encarava fixamente. O rosto dela estava pálido, sem vida.

Minha amada donzela... Senti meus olhos arderem.

Fechei os olhos, tentando controlar minha respiração. Eu precisava


agir consciente, eu precisava...

Então, em minha mente, vi novamente aquela criança, que se tornou


mulher e me domou.

“Estou orando por você. Clamando pelo seu perdão. Eu te guiarei à


luz”.

A criança sorria, encarando-me e, subitamente cresceu, mostrando-se


como Cinthia, a donzela por quem me apaixonei.

“Lúcifer, eu te amo...”.

Abri os olhos, encarando Baal fixamente.

Amon sacou sua espada e investiu contra Baal, mas ele já não era
páreo, não quando Baal tinha a posse de três chaves. Com um simples mover
de dedos, Amon foi arremessado para longe. Sua espada caiu a poucos
metros do seu corpo desacordado.
“Será arriscado, Amon”.

“Milorde, se essa é a minha missão, a farei com prazer, mas... não é


arriscado dar a chave a Baal?”.

“É o único meio de fazê-lo confiar em você”.

— Ele sempre foi o mais burro de nós. — Baal gargalhou. — Creio


que, por instantes, pensou que tivesse me enganado, assim como Balthazar
tentou...

Afinei os olhos.

— Cuide de Kirel. — dei uma breve olhada de soslaio para


Querberus, que assentiu com a cabeça.

Estendi os braços e levitei no ar, subindo cada vez mais alto, então
parei, encarando-os de cima. Envolto por uma esfera brilhante, aprontei-me
para a batalha final. Os meus grandes pares de asas, com suas pontas
adornadas de penas de ouro surgiram; em seguida, minha armadura cobriu
todo meu corpo.

— Venha! — enfiei a mão em meu próprio peito e o rasguei ao retirar


a mãe das espadas demoníacas.

— A lendária Deucalior. — Baal afinou os olhos, sorrindo.

Uma folha de papel que flutuava no céu, descendo lentamente com o


enunciado “Deus não está morto” tocou o chão, dando início à batalha que
decidiria o futuro dos homens.

Cortando o som, Baal lançou-se a minha direção. Ergui minha espada,


fazendo surgir incontáveis esferas estrelares atrás de mim; de cada uma delas,
uma réplica da arma que eu empunhava. Ao erguer as sobrancelhas, elas
voaram em sua direção, mas ele desviou e até cruzou sua lança com algumas.
Lá embaixo, explosões menores seguidas por maiores. Querberus
lutava ferozmente contra sua adversária. Kirel tinha o mesmo nível de poder
que meus generais, nem mais, nem menos, assim fazendo jus ao título que
ostentava.

— É só isso que o poderoso Lúcifer tem? — Baal surgiu em minha


frente, preparando-se para me ferir com sua lança.

Dei um mortal no ar e com o calcanhar acertei sua cabeça,


arremessando-o contra o chão. Ele mergulhou tão fundo na terra que o buraco
que engoliu seu corpo, também engoliu os escombros do estádio. Ergui
minha espada ao céu e, balançando-a em movimentos circulares sobre minha
cabeça, colhi raios do céu, eletrificando-a.

O meu corpo estava na batalha, mas a minha mente não saía de


Cinthia. Por mais que eu tentasse, era inevitável.

— Preste atenção em mim! — rugiu em minha orelha. Não deu tempo


de desviar, um chute me acertou em cheio, arremessando-me ao chão.

Caí feito uma estrela, rolando várias vezes, até parar. Só não
mergulhei na terra por conseguir diminuir a força do impacto a tempo.

Pus-me de pé e encarei-o. Levando a boca ao ombro, dei uma mísera


soprada, retirando o pó da minha armadura inteira.

Baal cerrou os dentes e segurou a lança com ambas as mãos, em seu


cabo, surgiu um círculo de magia que ficava cada vez maior.

— Conflatione Vituli! — rugiu.

— Bezerro de Ouro? — murmurei, franzindo a testa.

Surgiu da ponta da sua lança uma besta dourada e espectral do


tamanho do estádio. Um mugido aterrador antecedeu sua investida contra
mim.
Então ele finalmente conseguiu dar formas aos seus encantamentos.

Abri minhas asas e as fiz queimar, levando-as à frente, cobrindo todo


meu corpo como um escudo. O choque entre elas e o bezerro causou uma
explosão, seguida de um som ensurdecedor. Seu ataque era tão forte quanto
minha defesa e, por não ter lugar onde me firmar, aos poucos eu era arrastado
para trás, deixando as marcas dos meus pés rasgarem o chão em duas linhas
fundas.

Sua força começava a ceder e a minha também. Então,


desvencilhamo-nos. Abri as asas novamente e delas saiam fumaça, enquanto
o bezerro desaparecia lentamente.

Ele não podia dominar as chaves por completo, mas o pouco que
conseguia estava quase todo sob seu controle. Os seus poderes aumentaram
consideravelmente. Preciso terminar com isso rápido ou terei problemas.

Investimos um contra o outro. O tilintar de nossas armas cortava tudo


ao redor. Até mesmo para os demônios nossos movimentos eram
imperceptíveis, sendo visto como pequenas explosões de luz.

Afastei-me para trás quando ele ergueu uma das mãos, criando
milhares de esferas azuis. Fiz o mesmo, brotando do nada esferas negras. Elas
se chocavam, causando outra sequência de explosões.

Aproveitei o momento para ver como as coisas estavam lá embaixo.


Amon ainda caído e Querberus lutando ferozmente contra Kirel. Passei os
olhos novamente procurando por Balthazar, mas não o encontrei.

— Onde eles estão? — engoli em seco.

— Procurando por quem? — Baal parou ao meu lado, segurando sua


lança ao meio. Ele não parecia hostil, não naquele momento. — Achei que
seria mais fácil acabar com você.

— Está surpreso?
— Sinceramente, não. Dado a sua hierarquia no céu quando estava lá,
imaginei que seria um grande adversário. — assentiu com a cabeça.

— Já fomos amigos. Em nome da nossa amizade...

— Nunca fomos amigos! — cortou-me. — Sempre fiquei em segundo


lugar, sempre fiquei para trás, sempre!

— Um dia eu também pensei assim... — dei um longo suspiro,


recordando-me dos meus erros. — E o que tudo isso rendeu? Nada. Cá estou
eu defendendo a humanidade.

— Achei que estivesse lutando por sua donzela. — ergueu a


sobrancelhas.

— Também. Ela é importante para mim, eu a amo, mas me foi dada


uma tarefa e eu preciso garantir que ela seja cumprida.

— Não pretendo libertar Satan. — deu de ombros.

— Não será preciso ter essa intenção. Quando você conseguir


dominar as chaves, ele vai te dominar. Essas chaves não foram feitas para
você usar. Qualquer outro que as use...

— Sem conversa fiada. — acenou com a mão. — Não acredito em


suas palavras.

— Logo verá que estou certo. — afastei-me, me pondo novamente em


posição de combate.

— Espero que não. — sorriu de lado.

Magia não ajudaria. A batalha teria de ser guiada pela força bruta e
ele havia entendido isso tanto quanto eu. Girei minha espada em minhas
mãos e a apertei com força, fazendo suas esporas saltarem, furando-me. E
sugando meu sangue, Deucalior flamejou, iluminando um mundo coberto em
sombras.
Lancei-me em sua direção, desferindo golpes rápidos. Ele se defendia
sem esforço. Aumentei o ritmo, fazendo-o saltar para trás. Com o indicador,
Baal passou o dedo no rosto, que indicou um fio de sangue.

— Muito bom. Então vejamos... — sua voz embargou e ele levou a


mão ao peito, gemendo. — O que está acontecendo? — despencou do ar,
caindo na terra.

Acompanhei-o, pousando próximo a ele. Os seus urros de dor


ecoavam com fúria. A sua voz estava estranha, transformando-se, assim
como ele. O corpo deformava-se, crescendo mais e mais, parecendo querer
assumir uma forma bestial.

— Eu sabia! — semicerrei os olhos.

Balthazar? Enviei-lhe sinfonias de ar. Onde você está, Balthazar?

Aqui. Respondeu-me.

Num bater de asas, fui em sua direção. Eles não estavam muito
longes. Assim que os vi, pousei.

— O que está acontecendo lá? Que poder sombrio é esse? —


perguntou com os olhos arregalados.

— A sombra de Satan. — olhei para trás, voltando-me a ele.

— Sombra? — franziu a testa.

— Aquelas chaves foram feitas para apenas um usar, o carcereiro. Se


outro as usa, Satan pode manifestar-se por meio de uma sombra... —
ajoelhei-me, tomando Cinthia nos braços.

— Podemos derrotá-lo? — engoliu em seco.

— Mesmo como uma sombra, ele é um Deus. Está além do nosso


alcance. — sorri para ele, que fez uma cara de choro. Inclinei-me, beijando a
testa de Cinthia. — Leve-a ao Centurião de Órion, à Cidade Celestial.

— Mas e você, Lu?

— Eu vou lutar. — Balthazar sacudiu a cabeça, inconformado.

— Você mesmo disse que é a sombra de Satan e que não há chance.


Não posso deixar você morrer! — negou-se, ofegante.

Estapeei seu rosto, emudecendo-o. Em seguida, segurei sua face com


ambas as mãos e selei seus lábios. Um beijo sem malícia, um beijo entre
irmãos. O irmão que eu nunca tive.

— Se me ama, faça o que pedi. Em nome da nossa amizade. Por mim.


— insisti.

Um estrondo que quase nos tirou do chão emergiu atrás de mim.


Balthazar fungou outra vez e assentiu com a cabeça.

— Balt, você sempre foi o melhor. — sorri, encarando-o.

Em seguida, voltei meus olhos a Cinthia. As lágrimas desciam


queimando por meu rosto, mas eu estava feliz, pois a via uma última vez.

— Nunca amei outra mulher na vida. Você foi a primeira e única para
mim. — sussurrei.

Ergui o rosto e encarei Balthazar.

— Agora vá... — soltei um gemido de dor, sentindo minha visão


embaçar.

Ao cair no chão, levei uma das mãos à barriga, tocando algo molhado.
Era sangue. Gargalhei, sentindo o fôlego da vida esvair-se de mim.

O maldito atravessou minha armadura. Eu não esperava menos de


um Deus...

— Não! — Balthazar urrou com tanta força que sua luz dissipou as
sombras que cobriam todo o planeta.

A minha visão estava embaçada, mas eu ainda conseguia vê-lo. A


glória divina nunca o abandonou. Ah, meu pequeno Balthazar, meu irmão.

— Cuide dela! Proteja-a... — murmurei uma última vez, antes de tudo


se escurecer.
CAPÍTULO TRINTA E OITO

SINTO MEU CORPO, MAS CONTINUO no vazio. Por mais que


eu olhe para os lados, não consigo enxergar nada. Tudo está branco. Pus-me
de pé e em passos lentos, comecei a caminhar, sem direção.

Estou perdido, sem rumo e o pior, não consigo parar de pensar em


como as coisas estão. Será que eles venceram?

Olho para o meu corpo. Eu já não usava mais armadura. O meu corpo
estava coberto por um tecido de seda branca.

— Estou morto? — afinei os olhos, perguntando a mim mesmo.

O nada ganhou forma. Os meus pés estavam tocando as nuvens do


céu e, em minha frente, vi o que imaginei jamais ver outra vez: a cidade
santa.

Um arrepio percorreu-me por inteiro. Senti minha respiração acelerar


e cheguei a tremer. Dei um longo suspiro, seguindo o caminho que surgiu em
minha frente. Ao parar nos portões divinos, deparei-me com uma imensidão
de asas de um lado e do outro. Todos os anjos do céu estavam ali.

Cerrei os punhos, mordendo os lábios. É hora de ser julgado.

— Estrela da Manhã. — uma voz suave e feminina ecoou, roubando


minha atenção.

Ao erguer a cabeça, vi a senhora Adrimetriel com os braços abertos,


flutuando sobre os portões. Senti minha garganta secar outra vez. Encarei-a,
mudo.
— Seu Pai o aguarda. — estendeu uma das mãos, abrindo a sala do
trono de Deus.

Os meus olhos ardiam, lacrimejando. Abaixei a cabeça e segui em


silêncio pelo caminho, ouvindo o coro celestial ecoar.

“Glória, Glória a Deus nas Alturas, pois um Pai ama seu filho.
Glória, Glória a Deus nas Alturas, pois um Pai quando ama seu filho, o pune
se for preciso e o ergue do abismo”.

O que é isso que estou sentindo? Por que estou envergonhado? O que
Cinthia fez comigo?

Parei na entrada da sala do Santo dos santos e encarei-a. Um enorme


arco de ouro a adornava, com inúmeros pilares sustentando sua estrutura
majestosa, que olho humano nunca viu e, que poucos o verão.

Inspirei profundamente e entrei. As portas atrás de mim se fecharam.


Um imenso salão retangular, cujo fim eu conseguia ver tão distante e nele,
uma figura imponente sentada em um trono.

As minhas pernas recusavam-se a mexer. Não, não era medo, era


respeito. Abaixei a cabeça, olhando meus próprios pés.

— Filho meu? — a poderosa voz soou como o trovão.

Filho meu. Sorri sem graça. Há quantos milênios não O ouço me


chamar assim?

Enchi-me de coragem e lancei-me em sua direção. Cada passo parecia


o último. Fechei os olhos e continuei caminhando, caminhando para o fim,
para os braços de Deus.

Ao sentir o calor quente e fraternal, parei. Sua respiração cheia de


vida me fez dar conta que eu já estava em sua frente.

— Parecemos dois estranhos. — disse em tom de lamentação,


fazendo uma pequena pausa. — Mas não somos estranhos, somos?

— Não...

— Então por que me tratas como um estranho, estrela da manhã? —


perguntou em tom manso.

Abri os olhos, vendo seu rosto por uma fração de segundos antes de
desviar nossos olhares.

Ele continuava o mesmo. Cabelos alvos que batem nos ombros, a


barba no mesmo tom, cerrando todo o rosto. Olhos azuis-claros e aquela
mesma expressão de amor e compaixão.

— E-Eu... — tentei começar, mas não consegui.

— Conheço o teu coração, filho meu.

— Sei que sim.

— Quando dei vida aos anjos, chorei. — ergui o rosto, mas não
muito, apenas o suficiente para vê-lo sorrir. — No entanto, de todos os meus
filhos, você foi o que mais me fez chorar.

Senti um peso cair sobre minhas costas. Era como se o mundo


estivesse sobre mim. As minhas pernas fraquejaram e eu caí de joelhos no
chão.

— Antes mesmo de criá-lo, eu soube o que aconteceria, pois sou o


princípio e o fim, mas isso não me fez amá-lo menos. Pelo contrário, ganhou
de mim uma dedicação especial. E sabe a razão?

Neguei com a cabeça, sentindo lágrimas descerem por meu rosto.

— Um pai faz tudo por um dos seus filhos. Ele se sacrifica se for
preciso, mergulha nas profundezas do oceano e mesmo que não veja o fim,
não desiste. Ele reconstruiria o mundo por apenas um e por apenas um, ele
fez toda a humanidade sofrer. — dei um longo suspiro.

— Mas eu...

— Sei o que fez. — interrompeu-me. — Sei de tudo o que fez. De


todos os atos que cometeu.

— Sim, Tu sabes.

— Venha, vamos caminhar. — Ele se levantou do trono, tocou meu


ombro e seguiu à frente.

Pus-me em pé e o acompanhei, não ao seu lado, pois naquele


momento eu não conseguia, não tinha tal coragem.

O cenário à nossa frente mudou. Não estávamos mais na sala do


trono. Agora andávamos sobre as estrelas, vagando pelo universo.

— Você foi um instrumento nas mãos erradas e, em parte, é minha


culpa. — assentiu com a cabeça. — Deus é tão perfeito que em sua perfeição,
mesmo sabendo do futuro, tenta até o fim resgatar os seus.

Ele estendeu uma das mãos. Vi duas crianças brincando em minha


frente. Elas estavam aos risos, vagando no nada.

— Ainda me pergunto se o meu amor por ele lhes fadou ao


sofrimento... — sua voz tremulou. — O meu peito se enche de dor ao saber
que aquele que mais amei no universo me odeia.

Não, ele não estava falando de mim. Ele está falando do seu irmão, o
irmão caçula.

— Satanás. Amei-o tanto que fiz o mundo como prova desse amor.
Dei vida ao universo, mas ele o odiou e levou o seu ódio a incontáveis
corações. Um deles foi o seu... — virou-se, encarando-me fixamente nos
olhos.
— O Senhor sempre nos contava essa história. — comentei.

— Nunca a esquecerei. Ele teve um papel fundamental em tudo. —


sorriu e acenou com a mão novamente, mostrando o começo do mundo, o
Éden. — Vê?

— Sim.

— No que eles se diferenciam de você?

— Em nada. — respondi com sinceridade.

— Em nada, pois assim como os anjos, foram feitos à semelhança de


Deus, à minha semelhança.

— Acho que entendi isso tarde demais... — murmurei.

— Entendeu na hora certa. Tudo tem o seu tempo. — passou por


mim, caminhando lentamente em outra direção. — Fale-me sobre Cinthia.

Senti meu coração palpitar e um largo sorriso engoliu as lágrimas.

— Ela é maravilhosa.

— Sei que é.

— Com ela aprendi tantas coisas. A primeira delas foi a deixar de


odiar os mortais. — dei uma risada, sacudindo a cabeça. — Quem diria,
apaixonei-me por alguém da raça que mais odiei.

— Agora não odeia mais.

— Não.

— Você até lutou pela humanidade.

Neguei com a cabeça.


— Não. Lutei para enganá-los, para conquistar a Terra.

— No começo, pois no fim estava disposto a dar sua vida por eles,
mesmo sabendo que o inimigo a sua frente não poderia ser vencido. — fez
uma pausa, lançando-me um sorriso. — Mas, ainda assim, lutou.

Engoli em seco.

— Não sei se foi por eles.

— Foi por eles e por ela. — balançou a cabeça. — Você temeu pelo
fim do universo, temeu pelo fim das vidas, temeu pelo fim de tudo e, na
última batalha, decidiu que lutaria para protegê-los. Foi isso que você fez.

Permaneci em silêncio.

— E essa foi a sua remissão. A remissão dos seus pecados, das suas
transgressões. Foi por essa razão que Cinthia entrou em sua vida; para
mostrar que todos somos iguais aos olhos de Deus: anjos, humanos e seres
santos. Não há melhor, nem pior.

— Ela pagou um preço alto.

— A recompensa dela será alta.

— Sua mãe e seu irmão... — minha voz falhou.

— Eles a aguardam na glória.

— Ela vai morrer? — arregalei os olhos.

— Talvez.

— Talvez? — ergui minhas sobrancelhas, sem entender.

— Quando caiu, dei-lhe uma tarefa.


— E eu não a cumpri. — completei.

— Mas fez o que estava ao seu alcance.

— Escolhi as pessoas erradas. Era um fardo só meu e o dividi...

— E foi sensato. Se as chaves estivessem apenas com você, neste


momento Satanás teria passado pelos portões do inferno, mas a humanidade
está por um fio, nas mãos de uma mortal. E dela, ele não poderá tomar a
chave.

— Por quê?

— Por que eu a escolhi como minha mensageira. Cinthia, que um dirá


virá a ser chamada de Muriel, o Arcanjo da Remissão. — arregalei os olhos.

Muriel, o Arcanjo da Remissão?

Sorri outra vez. Ao menos consegui salvá-la, ao menos isso. A mulher


que eu amo não irá para o abismo.

— E quanto a você, estrela da manhã. — prosseguiu.

— Estou pronto para pagar por meus erros, P-Pai. — minha voz
tremulou quando o chamei novamente por aquele nome.

— Levante-se! — ordenou com imponência.

A minha respiração estava ofegante. Pus-me de pé e o encarei


fixamente. Fechei os olhos e esperei o peso da justiça. A única e verdadeira
justiça do universo.

— É chegada a hora de batalhar pelo que você crê, estrela da manhã.


Renasça e salve o mundo dos homens, do mal e deles mesmos! — rugiu.

O cordeiro veio como leão e urrou como nunca antes. Senti meu
corpo todo queimar, sendo levantado do chão e então, tudo desapareceu outra
vez.
CAPÍTULO TRINTA E NOVE
POR CINTHIA

OUVI UM GRITO E SENTI ALGO majestoso envolver meu


corpo. Ao abrir os olhos, vi um arcanjo portando uma grande espada que
tocava os céus. Segurando-a com ambas as mãos, girou-a ao seu redor.

Afinei os olhos, tentando vê-lo, mas deparei-me com um ser


gigantesco, cujos passos faziam todo o chão tremer. Arrastei-me para trás
com as mãos, mas parei subitamente ao sentir um corpo ao lado do meu.

— Lúcifer! — gritei, arregalando os olhos.

O meu coração se apertou, sufocando-me. Ar faltou aos meus


pulmões e senti uma tonteira súbita. Cascatas d’água desceram por meus
olhos. Reuni todas as minhas forças e deitei sua cabeça em meu colo,
alisando seu rosto. As minhas lágrimas molhavam sua face.

— Lúcifer... Por quê? Por quê? — sacudi a cabeça, negando-me a


acreditar naquilo. — Por quê? — soltei a agonia sufocante em um grito.

— Lady Cinthia. — uma poderosa voz chamou-me.

Ergui os olhos ao céu, encarando a figura divina em minha frente.


Balthazar! Ele estava sério, o cenho fechado. Contei seis pares de asas,
vestido com um véu branco e uma coroa na cabeça.

— Permaneça atrás de mim. — ordenou, voltando os olhos à frente.


— A última ordem de Milorde foi protegê-la e eu o farei! — urrou.

Do que importa me proteger agora se ele se foi? Quem mais eu tenho


nesse mundo se o homem que eu amo está morto? Deus, eu perdi tudo, eu
perdi tudo!

— Achas mesmo que pode batalhar contra um Deus, Balthazar? — a


voz gutural me paralisou, perdi todos meus movimentos, sentindo a morte tão
perto como nunca antes.

— Fui ungido pelo próprio Deus, chamado de Balthazar, um dos


grandes cavaleiros, o sétimo arcanjo do apocalipse. — bradou.

— Não permitirei que soe a trombeta! — a besta rosnou.

— Apenas Deus tem tal poder, Satan. — ergueu o queixo e


arremessou a espada para cima.

O céu rasgou-se ao meio assim que a espada o tocou e uma grande


estrela cobriu tudo. Ao levar as mãos à frente, Balthazar segurou uma grande
trombeta.

Satan? Esse ser é Satan? Arregalei os olhos, sentindo todo meu corpo
tremer.

Satan feito de sombras e gelo partiu na direção de Balthazar. Um


grande arco surgiu no céu e uma flecha negra de dentro dele. E assim como
surgiu, fora lançada contra Balthazar.

Um escudo se formou ao redor de Balthazar e, em seguida, uma


imensa explosão cobriu tudo. Algo dentro de mim brilhou e, de repente, me
vi envolvida por uma esfera de luz.

“... A chave te protegerá até o fim”. Ouvi as palavras de Lúcifer em


minha mente.

Meus olhos arderam novamente. Subitamente, o corpo de Lúcifer


brilhou, desfazendo-se em uma luz cintilante.

— Não... Não... — gemi, tentando agarrá-lo, para quem sabe, reunir


seus pedaços.
— Que o reino de Deus desça à terra! — Balthazar urrou, soando a
trombeta.

Um som apocalíptico ecoou por três vezes seguidas e tudo silenciou.


Até mesmo Satan reservou-se a esperar. Não demorou muito e outras
trombetas soaram. O chão tremeu com uma marcha que vinha do céu. E da
grande estrela que surgiu no espaço, milhares de centenas de anjos cobriram
toda a terra.

Arrepiei-me por inteira com aquela cena. Jamais imaginei que meus
olhos veriam algo tão divinal quanto aquilo.

— Emanuel, venha batalhar contra mim! — Satan rugiu.

Dentre os anjos, caiu uma estrela na terra. Uma que brilhava mais que
as outras, cujo corpo estava revestido em glória.

Balthazar afastou-se de Satan, colocando-se à frente das hostes


angelicais, lado a lado com o exército celestial. Também vi Querberus
unindo-se a eles, mas Satan não tinha olhos para os anjos. Seu rosto estava
fixo na estrela que desceu.

— Emanu... — sua voz embargou. — Como você retornou, Lúcifer,


O Príncipe da Terra?

Lúcifer? Arregalei os olhos ao ouvir seu nome.

A luz se dissipou e então o vi. Ele usava uma armadura branca,


portando uma grande espada e sobre sua cabeça havia uma coroa.

— Não como Príncipe da Terra. — ergueu o queixo, encarando Satan.


— Retornei como a Estrela da Manhã. — empunhou a espada.

O meu coração acelerou-se, batendo forte como nunca. Lágrimas


tornaram a cair, mas agora eram lágrimas de alegria.
Outro estrondo. Um arcanjo, vestido igualmente a ele, pousou ao seu
lado.

— Gabriel. — Lúcifer o chamou. — Vamos extinguir o mal que


assola a Terra!

— Pela humanidade. — ele respondeu, usando um tom manso.

Lúcifer e Gabriel cruzaram suas espadas, lado a lado. Os grandes


arcanjos iriam lutar pela vida humana, pelas únicas criaturas que caíram em
pecado.

Atrás deles um coro em alguma língua que eu não conseguia


entender, ecoou e todos eles colocaram-se em posição.

O demônio se enfureceu e ergueu uma das mãos, materializando uma


grande espada. Uma espada que emanava morte. Eu conseguia sentir seu
poder me esmagar.

— Primeiro matarei vocês. Depois irei me entender com meu irmão.


— Satan rugiu, preparando-se.

— Deus amou o mundo de tal maneira... — Lúcifer começou.

— Que deu seu filho unigênito para que todo aquele que nele crê,
tenha vida eterna. — Gabriel finalizou.

As espadas cruzadas brilharam, unindo-se, formando uma só. Era


idêntica à arma que Satan empunhava. Gabriel abaixou a mão, mas Lúcifer
permaneceu com a sua erguida e ela desceu, sendo pega por ele no ar.

— A vontade de Deus é que os homens resistam. — empunhou-a. —


Então que seja feita Sua vontade! — rugiu.

Lúcifer lançou-se em direção a Satan, seguido pelas hostes angelicais.


Assim que suas espadas se cruzaram, tudo desapareceu.
•••

— Ela está acordando, avise-o. — ouvi uma voz.

Pisquei algumas vezes. A minha visão voltava aos poucos. Assim que
a claridade acertou meus olhos, cobri-os com um dos braços.

— Balthazar? — abri um sorriso ao vê-lo.

Encarei ao meu redor. Eu estava na mansão, deitada na cama dele, no


quarto dele. O cheiro de chocolate amargo invadia minhas narinas.

— Você dormiu por sete dias. — ele sorriu, encarando-me.

Sete dias? Isso não importa, só o que importa é...

— O-Onde está Lúcifer? — perguntei receosa, temendo a resposta.

Balthazar deu um longo suspiro e encarou um rapaz muito belo que


estava ao seu lado. Olhos claros, cabelos raspados dos lados e cacheados em
cima.

— Olá, lady Cinthia. O meu nome é Yuri.

— Olá. Desculpe-me a indelicadeza, mas estou com a cabeça em


apenas um lugar... — expliquei-me e assim que voltei os olhos a Balthazar, vi
a porta se abrir atrás dele.

Lúcifer!

Os meus olhos brilharam. Ele sorriu, lançando-se em minha direção.


Balthazar e Yuri se olharam, retirando-se do quarto.

Ele estava tão bonito. Era o mesmo, mas parecia tão diferente.
Sentando-se na cama, encarou-me fixamente. O meu corpo inteiro se
arrepiava.
— Eu disse que voltaria, minha donzela. — sorriu.

Agarrei-o com força pelo pescoço, abraçando-o contra o meu corpo e


chorei de alegria. Eu perdi tudo, mas não o perdi, ao menos ele ficaria ao meu
lado.

— Eu pensei que... — afastei-me, segurando seu rosto com ambas as


mãos, deslizando-as por todo seu corpo, confirmando que não era um sonho.

— Que eu tinha morrido? — ergueu as sobrancelhas. Assenti com a


cabeça. — Sim, eu morri. Era preciso morrer para renascer.

— Devia ter me dito! — funguei, engolindo em seco.

— Eu não esperava por isso. Sendo bem sincero... — deu um longo


suspiro. — Ainda não me acho merecedor.

— O que aconteceu? Por favor, conte-me tudo! — pedi.

Sem pressa e com calma, Lúcifer me narrou tudo, desde o momento


em que desmaiei. Quanto mais ele contava, mais boquiaberta eu ficava.

— Então... — gemi baixo. — Minha mãe e meu irmão...

— Sim, eles estão na glória. — assentiu com a cabeça.

Passei as costas da mão no rosto, secando minhas lágrimas e, em


seguida, as coloquei sobre as suas.

— Mas a Terra, as pessoas...

— Os mortais são muito abençoados. A Senhora Adrimetriel


reconstruiu tudo com a ajuda dos anjos e todas as vidas ceifadas na batalha
foram restauradas...

— Exceto as da minha família...


— Deus tem um plano maior e muitas vezes não conseguimos
entender, mas Ele nunca erra.

— As pessoas sabem disso?

— Não. Quando os anjos interferem, ninguém deve saber.

— Mas deveriam saber. Você salvou o mundo!

— Eu? Não! — sacudiu a cabeça. — Deus salvou o mundo. De novo.


— ele sorriu.

— E agora? O que vem agora? — perguntei sem esconder minha


preocupação.

— A humanidade seguirá como se nada tivesse acontecido. Eles


precisam enxergar com seus próprios olhos.

— Mas eu também sou humana! — contestei.

— Quem disse? — ele ergueu as sobrancelhas, tombando a cabeça


para o lado.

Assim que fiz menção de abrir a boca, ele avançou sobre mim,
colando seus lábios nos meus. E envolvendo-me em um beijo, avançou sem
pressa, forçando seu corpo contra o meu.

Ah, sim, eu me lembro dessa sensação. O amor. O meu primeiro e


único amor. O primeiro e único homem da minha vida.

Afastamo-nos subitamente quando algo se mexeu dentro de mim.


Tanto eu quanto ele encaramos minha barriga, que brilhava.

— O que está acontecendo? — arregalei os olhos, assustada.

Lúcifer sorriu, segurou meu rosto com ambas as mãos e encostou sua
testa à minha. Seus olhos lacrimejavam e eu não entendia a razão.
— Está me deixando com medo!

— Não precisa sentir medo. Ele é nosso. — sussurrou, selando meus


lábios.

— Ele? Nosso? — franzi a testa sem entender, até que a ficha caiu. —
É-É-É impossível...

— Não, não é. — ele assentiu com a cabeça.

— Só... — fiz uma careta. — Só fizemos uma vez.

— E foi o suficiente para germinar uma semente. — ele disse,


passando os dedos por meus cabelos caídos sobre o rosto, pondo-os atrás da
minha orelha.

Permaneci de olhos arregalados, ainda assustada com aquela situação.


Dei um longo suspiro, puxando ar e ele permaneceu com os olhos em mim,
todo risonho. Então, rendi-me às lágrimas.

— Um filho. Isso é uma benção... — comentei chorosa.

— O nosso filho. — ele sorriu, selando meus lábios incontáveis


vezes.

Suspirei outra vez e fechei os olhos, pondo-me a imaginar como seria


aquela criança. Parecia loucura! Não, não parecia. Era loucura.

Vou ser mãe! Mãe do filho de Lúcifer!


CAPÍTULO QUARENTA

ASSIM QUE FECHEI O LIVRO, ele me encarou com os olhos


grandes: um azul e outro verde — uma heterocromia que sinalizava que ele
era diferente, mesmo entre os imortais. O beicinho saltado nos lábios e os
braços cruzados.

— O que foi? — tombei a cabeça para o lado.

— Você omitiu várias partes, papai. — acusou-me e com razão.

— Quais partes?

— Quando a mamãe sonhou com você entrando no quarto e quando


vocês dois entraram no quarto de novo. — afinou os olhos. — O que
aconteceu?

— Ah. Bom... Quando crescer, poderá reler o livro e entender o que


aconteceu. — assenti com a cabeça.

Ele não parecia convencido daquilo. Revirou os olhos e bufou outra


vez.

— O que aconteceu com Kirel e Baal, papai?

— Kirel morreu e Baal resistiu à sombra de Satan. Ele agora está


preso em Celestial, na prisão dos arcanjos. — expliquei.

Ele tombou a cabeça para o lado, pensativo, e investiu novamente.

— Ainda há algo incompleto!


— E seria?

— O espelho mágico. Ele fez uma profecia, não fez? Qual é a


profecia? — subiu em mim, apoiando ambas as mãozinhas em meu peitoral.

— Ah, ele acertou. De fato surgiu outro mais belo e mais poderoso
que eu. — sacudi a cabeça.

— Quem? — abriu a boca, curioso.

— Keybriel. — Cinthia entrou na biblioteca, pondo ambas as mãos na


cintura. — O seu quarto está uma bagunça, mocinho! — disse, batendo um
dos pés no chão.

Keybriel, a esperança dos homens.

— Mamãe... — murchou. Ergueu-se do meu colo num bater de asas e


flutuou próximo a ela. — Papai estava lendo para mim.

— Qual história?

— Lúcifer, a história nunca contada. — respondeu com empolgação.

— Você já a ouviu incontáveis vezes.

— Ah, isso não é verdade, mamãe. O papai tem lido apenas alguns
capítulos, apenas hoje ele resolveu me contar toda a história, desde o começo.
— assentiu com a cabeça, como se reforçasse a verdade em suas palavras.

— Pensei em ler algo interessante que encontrei essa semana.


Presente Grego, de Bárbara P. Nunes, é uma autora nacional, sabia? É ótima,
mas... O conteúdo é reservado para adultos. — abri um largo sorriso.

Cinthia afinou os olhos e deu um longo suspiro.

— Está acostumando mal seu filho. Ele não arruma o quarto, faz
travessuras e anda pregando peças nos funcionários da casa. — ela disse,
lançando-me um olhar inquisidor.

Olhei para ambos os lados e teletransportei-me para a sala, fugindo do


julgamento da senhora minha esposa.

Surgi no grande hall. Passei os olhos por ele e encarei as figuras de


calcário. Alguns diriam para eu removê-las, mas não. Elas deveriam
permanecer ali para me lembrar dos erros que cometi no passado, assim não
os repetiria no futuro:

A queda; o primeiro pecado; o primeiro assassinato; o bezerro de


ouro; a igreja e por último, a minha própria imagem, sendo coroado no centro
do mundo.

Dei um longo suspiro e cruzei as pernas, apoiando as costas no sofá.

— Bom dia, Milorde. — Querberus aproximou-se, assentindo com a


cabeça.

Após tantas recusas, ele agora se vestia como um mortal. Belo como
era, logo arrumaria seu par e quando digo logo, realmente quero dizer logo.
Desde a chegada de Yuri, Gisele largou do pé de Balthazar, se dedicando a
cercar Querberus onde quer que ele vá.

— Excelente dia.

— Péssimo dia. — revirou os olhos.

— Ainda sendo perseguido? — um sorriso de canto brotou em meus


lábios.

— Infelizmente sim.

— Geralmente são os homens que correm atrás das mulheres. —


ergui os ombros, minimizando a situação. — Se ela corre atrás de você, deve
ter algo que a interessa.
Querberus afinou os olhos e sacudiu a cabeça.

— Bom dia! — Balthazar surgiu empolgado no hall, esticando os


braços para cima.

— Bom dia. — respondemos em coro.

Encaramo-nos por alguns instantes.

— Tédio. — dei um longo suspiro.

— Tédio. — Querberus assentiu com a cabeça.

— Tédio. — Balthazar soltou um longo gemido, sentou-se no sofá e


encarou-me. — Lu, o que faremos de agora em diante?

— Não sei vocês, mas eu pretendo seguir com meu bataclã. — disse
Amon, surgindo no hall.

Gargalhamos em coro.

Pus-me de pé, enchendo o peito e abri ambas as mãos no ar, em


direções opostas.

— Faremos o que nos propusemos a fazer. Vamos proteger a


humanidade. Seguiremos como heróis! — cerrei o punho no alto, fazendo-o
queimar.

— Só depois que me ajudar a trocar as cortinas do quarto. — Cinthia


surgiu no hall. — E claro, depois que conversar com o seu filho. — murchei
no sofá.

Querberus, Balthazar e Amon caíram na risada e eu rendi-me àquilo


também, gargalhando com eles.

— Qual é a graça? — Cinthia parou em minha frente, encarando-me


fixamente.
— Você, meu amor. — mordi os lábios, fitando-a.

Cinthia ruborizou, sacudiu a cabeça e pôs ambas as mãos na cintura.

— Há algo que eu queria perguntar, mas acabei esquecendo...

— Pergunte.

— Já se passaram dois meses desde que aquilo aconteceu, mas uma


coisa ainda está me incomodando. Keybriel vem falando sobre sonhos
estranhos... — hesitou, aproximando-se. — Naquela noite, Satan foi morto?
— segurou o tecido do vestido, enrugando-o.

Os meus generais encararam-se e pediram licença, retirando-se do


hall. Bati uma das mãos no colo, chamando-a. Ela prontamente se sentou,
olhando-me nos olhos.

— E então? — perguntou novamente. Engoli em seco, abaixando a


cabeça. — Ele foi morto, não foi? —insistiu.

— Nem mesmo um Serafim como Adrimetriel teria poder para matar


um ser como Satan. Apenas Deus tem tal poder...

— E porque Ele não o faz? — interrompeu-me, aflita.

— Por que ainda não é hora. — sorri, beijando sua testa.

Cinthia deu um longo suspiro e selou meus lábios, abraçando-me com


força pelo pescoço. Ela sempre estava linda. Afastou-se um pouco e me
encarou.

— Sinto medo. — ela confessou.

— Do que tem medo?

— Temo pelo nosso filho...


— Não tema. — interrompi-a. — É um milagre uma criança como ele
nascer de uma humana. Ele não é um nefilim, é um arcanjo. — assenti com a
cabeça, não a convencendo-a muito. Eu notava pela sua expressão. — Se essa
é a vontade de Deus, nos resta aceitar.

Por instantes, Cinthia ficou em silêncio, parecendo pensativa.

— Arcanjo Keybriel, a Esperança dos Homens. — ela sussurrou,


sorrindo. — Sonhei com o nascimento dele e que discutíamos por conta do
nome.

— E de fato discutimos.

— Você roubou! — socou meu braço.

— Pode provar essa acusação, donzela? — peguei-a no colo,


encarando-a fixamente.

Cinthia passou os braços pelo meu pescoço e abriu um largo sorriso.

— Quer ser castigado? — ergueu uma sobrancelha, esboçando um


sorriso desafiador.

— Que tal um pouco de... — sugeri, subindo uma das mãos por suas
coxas. Mordisquei seus lábios, puxando-os em minha direção e encostei
minha testa na sua.

— O que vocês estão fazendo? — Keybriel surgiu entre nós, batendo


asas.

Senti meu coração disparar. Cinthia saltou do meu colo,


desconcertada. Enchendo o peito de ar, ela encarou-me e apontou o indicador
em minha direção, lançando-me um olhar inquisidor. Em seguida, voltou-se a
Keybriel.

— Conversando. — Cinthia o puxou pela cintura, abraçando-o ao seu


corpo. — O papai já falou com você sobre suas travessuras? — afinou os
olhos.

— Ainda não... — gemi.

Ela beijou seu rosto e a ponta do seu nariz, colocando-o sentado no


sofá.

— Papai. — Cinthia indicou Keybriel com um aceno de cabeça,


retirando-se da sala em seguida.

Assim que ficamos a sós, ele se levantou, pondo-se de pé no sofá,


com os olhos arregalados.

— Mamãe está muito brava. — disse entre sussurros.

— E com razão, mocinho. — fechei o cenho e em resposta, Keybriel


encheu as bochechas de ar, arregalando os olhos.

— Eu não fiz nada, papai. — miou.

— Será que não? — peguei-o no colo, fazendo-lhe cócegas.

A risada gostosa ecoava pelo salão, conforme eu seguia em direção ao


lado de fora. Pisquei e desaparecemos do hall surgindo no jardim, entre as
árvores frutíferas. No céu não há muitas crianças e o motivo disso é que o
crescimento dos seres celestiais é mais avançado, sem falar no quanto são
travessos quando pequenos. Um humano leva dezoito anos para atingir a fase
adulta. Um anjo completa um ano a cada semana, sendo assim, Keybriel tem
atualmente seis anos, quase sete. O nosso tempo é diferente dos mortais.

— Então... — comecei, pondo-o no chão. Ele me encarou curioso. —


Não se deve entrar no quarto do papai e da mamãe quando eles estão
sozinhos, por que... — procurei as palavras.

— Por quê? — ele balançou a cabeça, esperando uma justificativa.


— Por que quando duas pessoas se amam, elas... — abri as mãos,
juntando os dedos.

— Fazem barulho na cama? — disparou, abrindo um largo sorriso


que me fez arregalar os olhos.

— Não! — cuspi, negando com a cabeça. — Quer dizer, sim. Aliás,


não! — aquilo me deixou atordoado.

— Sim ou não, papai?

— Sim e não. — dei um longo suspiro, ajoelhando-me em sua frente.


— Quando duas pessoas se amam, elas fazem barulho na cama. Você é fruto
desse barulho, desse amor. — expliquei do jeito dele para não me complicar
ainda mais.

— Então não posso mais entrar no quarto de vocês? — encheu as


bochechas de ar.

— Pode, quando bater na porta. — assenti com a cabeça.

— Eu sei me teletransportar, papai. — disse todo orgulhoso,


desaparecendo da minha direita e surgindo na minha esquerda.

— Fiz um encantamento contra teletransporte.

— Consigo criar portais.

— Contra portais também.

— Posso entrar voando pela janela. — abriu um sorriso sapeca.

Preparei-me para retrucar, mas havia me lembrado de que não pensei


nessa hipótese.

— Vou colocar grades na janela. — balancei a cabeça. E o encarei,


sorrindo. — Estamos entendidos sobre esse assunto, Keybriel?
Ele olhou para os pés, pondo as mãos para trás, balançando-se de um
lado a outro.

— Sim, papai. Quando eu quiser ir ao quarto, vou bater na porta.

— Ótimo! — joguei-lhe uma piscadela. — E antes que eu me


esqueça. — ergui o indicador. — Quando for pregar peças nos funcionários...

— Eu já sei, papai... — encheu as bochechas de ar novamente,


adotando uma expressão tristonha.

— Chame o papai para ajudar. — interrompi-o, arrancando um


sorriso sapeca do seu rosto.

Keybriel saltou em meu colo. O peguei nos braços, abraçando-o


contra o meu corpo. Meu amado filho, meu primeiro e único filho. Coloquei-
o no chão e baguncei seus cabelos.

— Sabe de uma coisa? — coloquei as mãos na cintura.

— O que, papai?

— Eu te amo. — sorri ao dizer aquilo.

— Eu também te amo, papai, mas... — ergueu o dedinho, enchendo as


bochechas de ar.

— Mas? — ergui as sobrancelhas.

— Amo mais a mamãe. — riu e num impulso, bateu as asas


velozmente, seguindo para dentro de casa.

— Ora, seu sapeca! — parti atrás dele.

Assim que o alcancei, enchi-o de cócegas novamente, apenas para


ouvi-lo gargalhar. Quando nos cansamos, ficamos jogados no carpete da sala.
Então ele tocou em um assunto que me fez estremecer:

— Continuo tendo sonhos estranhos, papai. — Keybriel me encarou,


mantendo o ritmo dos passos.

— Os mesmos? — encarei-o. Ele acenou com a cabeça.

— Benemonth diz que está vindo me visitar. — senti uma pontada no


peito que trazia consigo certa aflição.

O filho de Satan e Principesa?

Dei um longo suspiro, encarando o teto. É apenas um sonho, Lúcifer.


Só um sonho.

— Papai?

— Sim. — encarei-o novamente.

— Quem é Benemonth?

— Ninguém sabe. Só sabemos que ele nasceu, mas nunca o viram.


Exceto a mãe e o pai. — murmurei. — Não pense nisso, ok? É apenas um
sonho... — saltei do chão, pondo-me de pé.

— Certo, papai.

Estendi as mãos no ar, abrindo-as em direções opostas.

— Que hora é agora, Keybriel? — encarei-o de lado, o vendo repetir


meus movimentos.

— É A HORA DO HERÓI! — gritou cheio de empolgação.

O som de um salto batendo continuamente roubou nossa atenção.


Assim que giramos nossas cabeças em direção à antecâmara, deparamo-nos
com aquele ser intimidador, de braços cruzados, emanando poderes
desconhecidos.

— A hora do herói começa depois do almoço. — disse Cinthia.

— Sim, General. — bati continência e Keybriel repetiu o gesto.

Sem me esperar, ele lançou-se em direção a antecâmara, parou apenas


para abraçar a mãe pelas pernas e seguiu o caminho, aos berros.
Acompanhei-o em passos lentos, cessando os movimentos ao ficar cara a cara
com a senhora minha esposa.

— Donzela... — segurei-a pela cintura, aproximando nossos rostos.

— Um só. — disse, passando os braços pelo meu pescoço.

Sorrimos, deixando nossos lábios se colarem. Sua língua esfregava-se


na minha. Seu beijo tinha o sabor do fruto proibido. Antes de
desvencilharmos nossas bocas, mordisquei seus lábios, puxando-os em minha
direção.

— Eu te amo, Cinthia. — sorri, pegando sua mão, trazendo-a aos


meus lábios e beijando-a.

— Eu também te amo, Estrela da Manhã. — disse sorridente.

Puxando-me pela mão, Cinthia conduziu-me até a sala do pequeno


almoço. Ali reunimo-nos todos: Querberus e Gisele, que não tirava os olhos
dele, Balthazar e seu amado Yuri, Amon que não parava de falar sobre a
expansão dos seus negócios. Todos faziam parte da minha família.

Nunca imaginei que fosse dizer isso, mas agora tenho uma família.
Uma casa para onde voltar e pessoas por quem lutar.

~FIM~
SOBRE O LIVRO

LÚCIFER SE PASSA no universo alternativo de “Pecado Divino”.


Pecado foi um dos meus primeiros romances e me levou muitos anos para
construir, pois se trata de um universo próprio, onde dou outra visão da
queda, do mundo, dos anjos, demônios, seres sobrenaturais e, acima de tudo,
o meu ponto de vista sobre Deus.

Os encantamentos mencionados no livro estão em latim. Eu fiz a


tradução das frases. Em um dos livros da saga “O Livro dos Arcanjos”,
explico que os anjos ensinaram aos Eclesiastes católicos como utilizar a
língua.

Eu simplesmente amo esse universo, pois eu consigo retratar nele


como eu vejo Deus. Um ser santo, criador, justo, doador da vida e que nos
ama incondicionalmente.

Apesar de Lúcifer ser uma ficção, a história tem dois intuitos. O


primeiro é mostrar o poder do amor e como o amor pode mudar qualquer
pessoa, até mesmo um anjo caído. O nosso mundo atual carece de amor, as
pessoas carecem de amor e sem amor ao próximo, não há mudança. O
segundo ponto é mostrar a misericórdia divina. Por mais que nós estejamos
imersos na escuridão, nas sombras, Deus está pronto a nos estender as mãos,
nos por de pé e se preciso, nos fazer renascer como pessoas.

Também não posso me esquecer de mencionar um detalhe


importantíssimo. A história de Balthazar foi apresentada de forma rasa
propositalmente, pois ele ganhará seu próprio livro, onde vive o seu tão
sonhado romance. Afinal, todos merecem amar, não é?

Ainda estou analisando se farei o mesmo com os outros generais


mencionados no livro, mas isso vai depender de vocês, leitores.
No mais, se você chegou aqui, certamente leu o livro completo, então
peço que deixe sua resenha, pois isso ajuda bastante.

Para finalizar, quero lhes convidar para ficarem atentos aos próximos
lançamentos. Os spin-offs do “Livro dos Arcanjos” serão liberados em breve,
e, por último, será lançado “Pecado Divino”, o livro que deu origem a
Lúcifer.
BALTHAZAR

Balthazar, o primeiro e mais poderoso general de Lúcifer, caiu, outra


vez, nas amarras do amor quando conheceu Yuri. Eles vivem uma relação
excêntrica e fetichista, onde rotineiramente convidam um terceiro indivíduo,
sempre do sexo feminino, para apimentar a relação.

Tatiana é a CEO de uma das maiores gravadoras do país e, quando se depara


com Balthazar, seu coração reage, lembrando-a de como eles foram felizes
milênios atrás. Por uma sequência de fatalidades, o destino destruiu os sonhos
de ambos. Contudo, o mesmo sentimento emerge quando ela vê Yuri.

A história desses três está interligada desde os primórdios do Universo, mas


eventos trágicos os privaram de seu amor. Será que agora eles terão tal
oportunidade? Lorde Cetron obterá sucesso em seu plano de matar Yuri e
Tatiana?

Disponível: https://amzn.to/2E53Q2O

Se vocês gostaram de Lúcifer, espero que Balthazar lhes traga muitas


surpresas. Smack!
AGRADECIMENTOS

EM PRIMEIRO LUGAR agradeço a Deus por ter me dado esse


dom maravilhoso que é escrever e, também, por me guiar em histórias
sensíveis como essa, que levam um tom religioso e que necessitam de muita
atenção.

Em segundo lugar, e não menos importante, agradeço aos meus


leitores. Nós, autores, escrevemos para vocês e a sua recepção, sem dúvida,
nos deixa mais otimistas em relação ao nosso trabalho.

Em terceiro lugar, tão importante quanto os outros mencionados,


agradeço as amigas autoras que acreditaram nessa história e ajudaram a
divulgá-la. Quero deixar um beijo para Josiane Veiga — minha musa
inspiradora —, para Bárbara P. Nunes — a frienda louca que adoro demais
—, para Yule Travalon — um best do coração —, para Cinthia do Lunáticas
que se empenhou em me ajudar e até avaliar textos crus e para Katherine
Laccom’t que me motivou a escrever a história.

No mais, espero encontrá-los novamente em outra história. Amo


vocês!
SOBRE O AUTOR

RODOLPHO SOUSA TOLEDO, mais conhecido como Tom


Adamz. O autor atingiu a marca de dois milhões de leituras — com todas
as suas obras somadas —, na plataforma de autopublicação: Wattpad.

Tom escreve desde os doze anos de idade, tendo escrito mais de


cem livros, contos e crônicas até os dias de hoje. Atualmente mora em
Goiânia - Goiás com seus pais.

Livros na Amazon:
https://www.amazon.com.br/tomadamz

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(Curta e participe dos sorteios).

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