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HISTORIA
INSÓLITO
AS ANDANÇAS DA
“TRIPEÇA HUMANA”

TEMA DE CAPA

BRASIL
INDEPENDÊNCIA
OU MORTE
DOIS SÉCULOS DEPOIS, O NASCIMENTO DESTAQUE
DE UM NOVO PAÍS E AS DORES
DE PARTO DA VELHA METRÓPOLE
JOSÉ LIBERATO:
O LIBERAL
OMNIPRESENTE
PAULO E ROGER, DEMOCRATIZADORES DA HISTÓRIA
Jornal de Notícias
N.º 39 / AGOSTO / 2022
EVASOES.PT

NA RUBRICA “COMER EM CONTA” PODE CONHECER


OS MELHORES LOCAIS, DE NORTE A SUL, PARA COMER
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A ABRIR

Pórtico ÍNDICE

O elixir 10
TEMA DE CAPA

da eterna juventude A independência


do Brasil, dois séculos
depois do “Grito
do Ipiranga”

38
DESTAQUE
Pedro Olavo Simões
José Liberato:
Coordenador editorial
o defensor
dos fotos do povo
Tinha sido dito com o gravador ligado, mas mesmo depois 52
disso, talvez ainda na esplanada da Praça da República, ENTREVISTA
em Coimbra, ou quando subíamos e descíamos os caminhos Paulo M. Dias
do parque popularmente conhecido por Jardim da Sereia e Robert Lee de Jesus
(e a sereia é, afinal, um tritão decapitado), um dos dois jovens
entrevistados nesta edição, já não sei se o Roger ou o Paulo, 72
lá repetiu: “Já há outros mais novos do que nós”. Isto porque PRÉ-PUBLICAÇÃO
a juventude de ambos fora por eles vista como vantagem, A tripeça humana
ao lançarem um podcast de divulgação histórica.
Todos dizemos isso nalgum momento. Continuamos jovens
78 003
MEMÓRIA DOS LUGARES
e há outros mais jovens, já não somos tão jovens e pensamos
A Reitoria
que o somos, mantemos a crença na nossa juventude mesmo da Universidade
quando ninguém a partilha connosco. Se tivermos a sorte do Porto
não apenas de uma vida longa, mas de uma vida longa
em que não esmoreçam a sede de saber mais, o dom
do deslumbramento e, também, a capacidade de indignação
com os velhos do Restelo que tenderão a ser mais novos
do que nós, certamente morreremos jovens.
Assim deve entender-se o papel da história na formação
de cada indivíduo, um papel intimamente ligado ao que aqui
fazemos e ao que fazem os nossos dois (jovens) entrevistados.
Não é uma acumulação de saber enciclopédico, mas uma
capacidade de discernir que aplaude cada progresso
do conhecimento capaz de modificar algumas das nossas
convicções. Porque conhecer o passado, ou a vida, obriga Capa: “Grito do Ipiranga” (pormenor),
a perceber que nada há mais precário do que as certezas. óleo sobre tela de Pedro Américo
(acervo do Museu Paulista
Quem não sabe isto nada sabe. da Universidade de São Paulo)

Diretor-Geral Editorial: Domingos de Andrade Diretora: Inês Cardoso Diretores-adjuntos: Manuel Molinos, Pedro Ivo Carvalho e Rafael Barbosa Diretor de Arte e design: Pedro Pimentel
Coordenador Editorial: Pedro Olavo Simões Paginação: Helena Borges e Pedro Pimentel Tratamento de imagem: Pedro Tomé Proprietário e editor: Global Notícias - Media Group, SA.
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historia@jn.pt Endereço: Rua de Gonçalo Cristóvão, 195-219, 4049-011 Porto Depósito Legal: 400733/15 Periodicidade: bimensal Tiragem: 15 mil exemplares N.º registo na ERC: 126761
A ABRIR

Acontece
Contributo da Alcaçarias
do Duque
arqueologia para em fase de
estudos ambientais classificação
No âmbito do 23.º Encontro da Rede A publicação no
de Estudos Ambientais de Países de Diário da República
Língua Portuguesa, a realizar de 11 a de 11 de agosto dá
15 de outubro no campus do Instituto conta da abertura do
Politécnico de Tomar, haverá uma procedimento de
sessão dedicada ao tema “Arqueolo- classificação do
gia, Paleoambiente e Alterações Cli- Núcleo Arqueológico
máticas”. Decorre ainda a aceitação das Alcaçarias do
de propostas de comunicações, das Duque, à Rua do
quais resulte contributo da arqueolo- Terreiro do Trigo, em
gia para o conhecimento de paeoam- Alfama (Lisboa).
bientes ou de alterações climáticas Trata-se de balneá-
existentes ao longo dos tempos, “as- rios públicos usando
Viajar com suntos já abordados por investigado- águas de nascente,
jogos entre res de vários países, mas ainda pouco cuja origem remon-
o Oriente publicados em língua portuguesa”. tará ao século XVII.
e o Ocidente
Até ao dia 25 de
setembro é visitável,
no Museu Nacional
004 de Arte Antiga, em
Lisboa, a exposição
Passaporte “Jogos Cruzados.
Viagens entre
para a Rede de Oriente e Ocidente”.
Museus do Douro Baseada numa das
maiores coleções
O Santuário de Panóias (secs. II-III), privadas do mundo
em Vila Real, que mostramos na foto de tabuleiros de
acima, é uma entre 41 instituições jogos, a mostra
(museus e centros interpretativos li- ajuda a entender
gados ao vinho, ao azeite, à cerâmica, como, em especial a
aos produtos endógenos, à memória, partir do século XVI, Memórias do carvão
às tradições e à história) que aderi- os jogos se torna-
ram ao passaporte da Rede de Mu- ram espelho do Agendada para 2020 e adiada devido à covid-19, a segun-
seus do Douro (MuD). Lançado em novo relacionamen- da edição das Jornadas Internacionais Memórias do Car-
2020, o mudpassaport, com preço to entre regiões do vão decorrerá em Rio Maior (Escola Superior de Desporto
unitário de dois euros, facilita uma mundo, detetando- do Politécnico de Santarém), de 17 a 19 de novembro, cen-
gestão pensada de visita à região e à -se não só a pre- trada no eixo “Memória, património, descarbonização”.
rede de museus, oferecendo, além de sença de jogos A Comissão Científica aceita trabalhos ligados às seguintes
descontos, descrições breves dos es- orientais no temáticas: O carvão e a indústria; Recuperação e valoriza-
paços a visitar e indicação dos dife- Ocidente, mas tam- ção do património minero-industrial do carvão; Trabalho,
rentes horários de atendimento ao bém o seu simétrico. saúde, cultura e lazer nas comunidades mineiras do car-
público. Mais informações podem ser vão; Experiências museológicas e ações pedagógicas; O
obtidas junto do Museu do Douro, em paradigma da descarbonização; Impactes ambientais da
Peso da Régua, ou através do perfil no indústria do carvão; Minas abandonadas e sequestro de
Facebook da rede de museus. carbono; O carvão na literatura e nas tradições populares.

NÚMEROS 5 anos, renováveis: pintura flamenga


”Os Financeiros” no Museu Machado de Castro 4/5 de novembro, Castelo Branco acolhe
VI Congresso de História Local
IN MEMORIAM
MANUELA
Colóquio de história militar BARROS FERREIRA
Assinalando o segundo centenário do “Grito do Ipiranga”, a Comissão Portu- Linguista amplamente ligada a
guesa de História Militar decidiu dedicar o seu 31.º colóquio ao tema “História questões patrimoniais, não apenas
Militar da Independência do Brasil” (Lisboa, de 8 a 10 de novembro). O prazo pela sua colaboração com o Cam-
para aceitação de propostas de comunicações acaba já em 1 de setembro, não po Arqueológico de Mértola, fale-
sendo possível ainda conhecer o programa das sessões de trabalho. Fica, as- ceu em 23 de julho, com 83 anos,
sim, a referência às conferências de abertura (“Independência do Brasil: mitos Manuela Barros Ferreira. Nascida
e realidades”, pelo major-general Rui Moura) e de encerramento (Entre mapas em Braga, estudou arquitetura e
e caminhantes - a identidade de um povo no contexto da Guerra de Indepen- pintura no Porto, antes de ser pre- 005
dência Brasileira”, por Manuel Rolph Cabeceiras, da Universidade Federal Flu- sa pela PIDE com o arqueólogo
minense). No contexto do colóquio serão entregues o diploma ao premiado do Cláudio Torres, com quem casou e
Programa General Themudo Barata e, ainda, o Prémio Defesa Nacional. viveu uma vida ímpar por ela rela-
tada no livro “Relatório circuns-
tanciado de uma vida a dois”. Exi-
Arqueologia Sustentabilidade na base lada na Roménia, estudou Filologia
medieval: Clássica, abrindo caminho ao dou-
revista está de nova edição das Jornadas toramento em Portugal e a uma
online Europeias do Património carreira de investigação marcada
por projetos de Geografia Linguís-
Sem quaisquer A reflexão sobre como tica, do Atlas Linguarum Europae
custos, a revista “identificar e proteger o nos- ao Atlas Linguístico-Etnográfico
“Arqueologia so património material, ima- dos Açores, e por trabalhos sobre
Medieval”, emana- terial e natural, promover o os dialetos portugueses e a língua
ção do Campo turismo sustentável, consi- mirandesa, essenciais à preserva-
Arqueológico de derar a nossa utilização de ção desse património imaterial. À
Mértola, colocou recursos e perguntar como família, em particular a Cláudio
integralmente em estas questões se relacionam Torres, a JN História expressa sen-
linha as primeiras 14 com o património, a arte, e a tida solidariedade.
edições (publicadas preservação de paisagens e
de 1992 a 2018). A biodiversidade” está na base
revista pode ser das Jornadas Europeias do
consultada (ou des- Patrimíno 2022 (23 a 25 de
carregada, no for- setembro). A Direção-Geral
mato pdf) no site do Património Cultural coor-
camertola.pt. dena as iniciativas.

30 obras de arte Khmer foram restituídas


pelos Estados Unidos ao Camboja 30 de setembro e 1 de outubro: datas do
V Encontro de História de Loulé (online)
A ABRIR

Antologia de José Viale Moutinho

006
CARLOS MANUEL MARTINS / GLOBAL IMAGENS

Se bizarria encontrarem os leitores

O património ao ver destacada uma antologia de


lendas em publicação de divulgação
histórica, melhor será que se refaste-

lendário como lem na cadeira, ou onde quer que o


destino os tenha levado a abrir a re-
vista nestas páginas, e leiam, como
se ouvissem um velho bardo de anta-

expressão nho à sombra de um carvalho cente-


nário, as palavras escolhidas por José
Viale Moutinho (Funchal, 1945) para
abrir este volume a que chamou

do passado “Portugal Lendário”: “Um país sem


lendas é um aborrecimento, é capaz
de nem existir. Aliás, os seus habi-
tantes, em torno de uma salamandra,
Texto de Pedro Olavo Simões eternizam-se a contar ao serão a len-
da do país que não tinha capacidade
de forjar lendas para passar de gera-
ção em geração. Mas estejam descan-
José Viale fixadas pela palavra escrita de Viale res que publicou em 1978. E é herdei-
Moutinho, Moutinho, são a reminiscência possí- ro, evidentemente, de quantos ence-
em foto de arquivo, vel, e que devemos acarinhar, da tra- taram caminhos similares, havendo
vestindo a sua dição oral anterior à invenção da es- disso exemplos dos autores românti-
sobejamente crita como sistema de preservação da cos (“Lendas e Narrativas”, de Ale-
conhecida pele memória. E essa herança não deixa xandre Herculano, ou “Romanceiro”,
camiliana de existir mesmo quando a origem de Almeida Garrett) a uma contem-
das lendas está enraizada em tempos poraneidade que já conta seis déca-
em que o livro já era, havia muitos sé- das (“Lendas de Portugal”, de Gentil
culos, manifestação palpável e dura- Marques). Ou até, numa perspetiva
doura da preservação erudita de his- local e em tempos bem mais recen-
tórias, ideias ou acontecimentos. E daí tes, o “nosso” Joel Cleto com as suas
depreendemos desde logo a impor- “Lendas do Porto”.
tância do património lendário, ex- Numa antologia deste tipo, os fatores
pressão da memória popular (seja distintivos são, antes de tudo, os do-
isso o que for) eventualmente descar- tes do redator (são bem firmados e
tada pela erudição (seja isso o que for) reconhecidos os deste jornalista e es-
de cada momento. critor) e o critério por ele escolhido
No apaixonante ensaio “O infinito para organizar a obra. Poderia o cri-
num junco”, publicado originalmen- tério ser temático, como amiúde su-
te em 2019 e com versão portuguesa cede, ou cronológico (a perspetiva
datada de 2020, a filóloga espanhola diacrónica é sempre a primeira op-
Irene Vallejo mergulha a fundo na ção a surgir em história), mas José
Antiguidade e nos tempos de inven- Viale Moutinho optou, em boa hora,
ção do livro (e da escrita). Não pode- por organizar as lendas em função da
ria fazê-lo sem analisar o que havia geografia, tendo por referência as an-
antes, a tradição oral (a autora usa o tigas províncias administrativas, fixa- 007
feliz conceito de “palavra alada”), das em 1936 e agora formalmente
dando também a entender como inexistentes, mas que, como bem se
esta ajudou a dar forma ao que pode- nota numa pequena “nota de autor”,
Publicado mos entender como as primeiras permanecem firmes “na memória da
originalmente em manifestações de uma literatura oci- maioria dos portugueses, enquanto
2005, “Portugal dental: “Os poetas épicos [nota: no não se resolve a questão administra-
Lendário” tem tido mundo helénico antigo] conserva- tiva propriamente dita”. Mais: houve
várias reedições ao vam a lembrança do passado porque, a preocupação de abarcar todos os
longo dos anos desde crianças, cresciam num mun- concelhos de Portugal.
do duplo – o real e o das lendas. O objeto de estudo da história é,
sados, aliás já estão desde que viram Quando falavam em verso, sentiam- como se sabe, a ação humana em de-
o título deste livro, Portugal não é, -se transportados para o mundo do terminados tempo e espaço (poden-
nem por sombras, um desses raros passado, que só conheciam através do estes, em tese, ir do mais reduzido
países. Nós poderemos não nadar em do sortilégio da poesia. Eles – como ao mais amplo), pelo que uma orga-
metal sonante, mas temos lendas a livros de carne e osso, vivos e palpi- nização deste tipo não apenas ajuda
rodos por toda a parte, como aqui se tantes, em tempos sem escrita e, cada leitor a identificar-se com as
prova, que poderão entreter o nosso portanto, sem História – impediam “suas” lendas como também, no que
imaginário durante uns bons séculos, que todas as experiências, as vidas e estas tenham de histórico (umas ve-
até à eternidade!” o saber acumulado acabassem no zes de forma muito evidente, outras
Bizarria estará, adiantemos nós, na nada do esquecimento”. com maior subtileza), a identificação
possibilidade de entender as lendas Regressando agora com a chancela da com o espaço é especialmente pro-
como negação da história. É falso que Temas e Debates, este “Portugal len- veitosa. Voltando a citar Irene Vallejo,
o sejam, não pelo que contam, ou dei- dário – Tesouro da tradição popular” “depois de transcritas, essas narra-
xariam de ser lendas, mas pelo que é herdeiro não apenas da edição ori- ções perderam para sempre a sua
representam ou pelo legado que ginal, dada à estampa em 2005 (“Por- fluidez, a sua elasticidade, a liberda-
constituem, méritos de fonte histórica tugal lendário: o livro de ouro das de de improvisação e, em muitos ca-
que nem o mais recalcitrante tecno- nossas lendas e tradições”, Selecções sos, a sua linguagem característica”. É
crata historiográfico (também os ha- do Reader’s Digest), mas também de certo: tanto como a evidência de que,
verá) conseguirá negar sem se negar a outros trabalhos do autor, designada- se assim não fosse, já as teríamos
si mesmo. As lendas, que aqui temos mente a antologia de contos popula- perdido para sempre.
008

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ROSTOS DA HISTÓRIA

Francisco Adolfo de Varnhagen


1816-1878

N
uma edição em que avulta a memória da tas. Também não é difícil imaginarmos que, sendo ele (ou
independência do Brasil, 200 anos volvi- desejando ser) brasileiro, combateu pelos liberais, sob a li-
dos sobre o grito de D. Pedro, faz sentido derança do duque de Bragança, que havia sido o primeiro
deixar nesta página a evocação de uma imperador brasileiro. Ora, se tal imaginarmos estamos a par
das figuras seminais da historiografia do que realmente se passou e que, como o próprio testemu-
brasileira, Francisco Adolfo de Varnha- nhou numa carta, retardou os seus intentos no que à nacio-
gen, visconde de Porto Seguro. Filho de nalidade respeitava: não tendo solicitado ao governo brasi-
mãe portuguesa e pai alemão, foi brasileiro por um daque- leiro autorização para se alistar num exército estrangeiro
les caprichos do destino tão próprios dos países em cons- (mesmo que sob a liderança de D. Pedro, defensor perpé-
trução: o progenitor, Friedrich Ludwig Wilhelm Varnhagen, tuo do Brasil), isso retardou a obtenção de nacionalidade
era um engenheiro militar alemão que, em 1809, ou seja, brasileira, concedida pelo imperador (D. Pedro II) apenas
ainda antes de o Brasil ser elevado a reino (unido a Portu- em 1841. Assim entrou na vida diplomática, como adido da
gal) mas com a Corte já plenamente instalada no Rio de Ja- legação brasileira em Lisboa, tendo o encargo de pesquisar
neiro, foi contratado pela coroa para instalar indústrias de documentação portuguesa e espanhola relevante para a his-
siderurgia, designadamente a Real Fábrica de Ferro São João tória brasileira. Não se estranhe a entrega de tal missão a
do Ipanema, na então capitania de São Paulo (mais um oficial de artilharia. Nos anos anteriores, Varnha-
concretamente, no que é hoje o município de gen seguira já os trilhos da história: entre outras
Iperó, na Região Metropolitana de Sorocaba). coisas, foi colaborador do jornal de divulga-
Ora, Friedrich estava fixado em Portugal ha- ção cultural “O Panorama”, dirigido por Ale- 009
via já bastante tempo, tendo mesmo nacio- xandre Herculano (o maior vulto da histo-
nalidade portuguesa, e por cá se casou riografia portuguesa de então), e em 1840
com Maria Flávia de Sá Guimarães. Basi- já era sócio correspondente do Instituto
camente, o sétimo filho do casal, que Histórico e Geográfico Brasileiro. Entre
veio a tornar-se figura destacada da in- as publicações que fez nesse período
telectualidade brasileira, foi brasileiro avultam o seu primeiro ensaio historio-
por razões puramente circunstanciais. gráfico, intitulado “Notícia do Brasil”, e,
E ainda criança, em 1823 (ou seja, já de- sobretudo, o “Diário de navegação de
pois da proclamação da independência Pero Lopes de Sousa”, essencial para o
no Brasil, mas antes do reconhecimento conhecimento dos primórdios da coloni-
desta por Portugal), Francisco Adolfo já es- zação do Brasil.
tava em Lisboa com a família. Nesse momento, já se encontrava desli-
E foi em Portugal que cresceu, encarreiran- gado do exército português e, ao obter a na-
do-se para uma vida profissional que passaria cionalidade desejada, passou rapidamente do
pela vida militar e pela diplomacia, embora sem- posto diplomático que referimos ao Imperial Cor-
pre cruzada pela paixão da história que veio a notabi- po de Engenheiros do exército brasileiro. Permaneceu
lizá-lo. Mas não só. Ao sentir-se brasileiro e estando enqua- aí apenas três anos, regressando então à carreira diplomá-
drado pelo movimento cultural do romantismo, seguia de tica. Isso permitiu-lhe redigir a sua obra magna – “História
forma diferente o afã dos seus colegas historiadores euro- Geral do Brasil” –, publicada originalmente em 1851 sem au-
peus: enquanto estes buscavam as respetivas identidades toria assumida: o livro era assinado “por um sócio do Insti-
nacionais em raízes medievais, Varnhagen desempenhou tuto Histórico do Brasil, natural de Sorocaba”.
papel preponderante na construção da identidade de um “Florilégio da poesia brazileira”, incursão de Varnhagen
país que dava os primeiros passos como tal. na história da literatura, é outra das obras com que contri-
Voltemos, porém, ao jovem Francisco Adolfo. Instalado buiu para a construção de uma identidade brasileira. Viajan-
em Lisboa ainda antes de completar dez anos, entrou em te incansável, não só pelos postos que ocupou, foi, bem an-
1825 para o Real Colégio da Luz, onde estudou até 1832, pas- tes do tempo, pioneiro da ideia de instalar a capital brasilei-
sando depois para a Academia de Marinha, que frequentou ra no Planalto Central (onde em 1960 foi inaugurada a cida-
em 1832 e 1833. Sendo ele tenente de artilharia em Portugal de de Brasília). Quando morreu estava em Viena (era minis-
e olhando nós para as datas, rapidamente imaginamos que tro plenipotenciário na Áustria), e veio a ser sepultado em
esteve envolvido na guerra civil entre liberais e absolutis- Santiago do Chile, pois a mulher era chilena.
TEMA DE CAPA

010

SEPARE O MAR O
Há dois séculos, o Brasil proclamou a sua independência. Apenas sete
(e aos Algarves), numa lógica de império transoceânico condenada a
do ponto de vista português, era uma miragem de salvação que desaguou
011

QUE O MAR UNIU


anos antes, havia sido transformado em reino, unido a Portugal
não vingar. Isso é, porém, o que podemos dizer agora. Ao tempo,
na primeira queda do império digna desse nome Texto de Pedro Olavo Simões
TEMA DE CAPA

Partida da Corte para


o Brasil, no final de 1807,
acabou por ser um passo
decisivo rumo à
desagregação do império

P
oderíamos recuar a que não retira importância às datas,
1807, quando a Corte seja pela forma como facilitam a estru-
portuguesa zarpou para turação do conhecimento, seja pelo pa-
o Rio de Janeiro, ou até pel essencial que desempenham na
a 1500, quando a frota construção de uma mitologia nacional.
de Pedro Álvares Cabral E essa ideia de fazer do “Grito do Ipi-
tocou a Terra de Vera ranga” o momento inicial do que hoje
Cruz. Mas, por comodidade, vamos ar- é a República Federativa do Brasil nem
rancar em 1815, quando o reino de Por- era, ao tempo, valorizada pelos que de-
tugal se transformou em Reino Unido cidiam encetar um caminho separado
de Portugal, Brasil e Algarves. O relevo da tutela europeia. Para eles, o arran-
inicial dado a esse momento tem a ver que era a aclamação de D. Pedro como
com o modo como a elevação a reino primeiro imperador, como mostram as
fez com que os da América portugue- linhas iniciais da respetiva ata:
sa deixassem de se sentir portugueses “No fausto dia doze do mez de Ou-
de segunda, passando, cada vez mais, tubro de mil oito centos e vinte e dous,
a identificar-se como brasileiros. Evi- Primeiro da Independencia do Brazil,
dentemente, teremos de ir atrás para nesta Cidade e Corte do Rio-de-Janei-
perceber o assunto (e não tarda que o ro e Palacete de Santa Anna, se ajunc-
façamos). E o assunto é a independên- taram o Dezembargador Juiz de Fora,
cia do Brasil, ou a primeira queda do Vereadores, e procurador do Senado
império português propriamente dita. da Camara commigo escrivaõ abaixo
012 Há dois séculos, formalmente cumpri- nomeado, e os homens bons que no
dos no dia 7 de setembro. mesmo tem servido, e os mesteres, e
“Independência ou morte!”, o afa- os procuradores das camaras de todas
mado “Grito do Ipiranga” proferido as villas desta provincia adiante desi-
pelo príncipe regente D. Pedro (quem gnados, para o fim de ser acclamado
lá estava bem viu) junto a um riacho o Senhor Dom Pedro de Alcantara Im-
hoje integrado no tecido urbano de São perador Constitucional do Brazil, con-
Paulo, a maior megalópole de Améri- servando sempre o titulo de seu De-
ca Latina, tornou-se palavra de ordem fensor Perpetuo.”
dos que pugnavam pela desunião do Outra achega necessária, nesta es-
Reino Unido. E essa proclamação foi pécie de introito, tem a ver com a ideia
escolhida como o instante zero do gi- de a independência do Brasil ter sido
gantesco país, não obstante a aclama- uma revolta contra o colonialismo, no
ção de D. Pedro como imperador só ter sentido em que entenderemos, desde
ocorrido em 12 de outubro (o aniversá- logo e atendendo à nossa formatação
rio daquele que, brevissimamente, vi- enquanto leitores dos dias de hoje, o
ria a ser também D. Pedro IV de Portu- movimento descolonizador global do
gal) ou, ainda, apesar de o reconheci- século XX, após a Segunda Guerra
mento do novo império sul-americano Mundial. Ou com a ideia, comum em
por parte da velha metrópole europeia certa historiografia brasileira e na opi-
só ter ocorrido em 29 de agosto de nião pública por ela enformada, de que
1825. O que até foi rápido. todo o mal do mundo, no que ao Brasil
Evidentemente, um processo histó- respeita, decorre da presença portu-
rico como este não pode ser reduzido guesa, ideia que, por si, tem uma certa
a datas, como se, no dia tantos de tal, dose de bizarria: no essencial, houve
uma delegação de secessionistas com- uma separação entre portugueses do
parecesse na “Conservatória Interna- Brasil, que passaram a ser brasileiros,
cional do Registo de Países” (desde e portugueses europeus, o que se ex-
1945 há a oficialização pelas Nações plica com a ida da Corte para o Rio de
Unidas), aí dando entrada da escritura Janeiro, aquando da Guerra Peninsu-
de formalização de um novo Estado. O lar, e com a formalização da união de
Caricatura inglesa Ao desencadear
(e antifrancesa) coeva, a Guerra Peninsular,
satirizando a frustração Napoleão Bonaparte
de Junot ao chegar precipitou a secessão de
a Lisboa toda a América Latina

013

reinos, por si uma negação da lógica


colonial. De tal modo que, com a inde-
pendência, a mesma família que reina-
va em Portugal continuou a reinar no
Brasil. A casa de Bragança era reconhe-
cida dos dois lados do Atlântico.
Daí que, por exemplo, haja diferen-
ças de vulto entre este caso e a inde-
pendência, em 1776, dos Estados Uni-
dos da América, sem surpresa (mas
não imediatamente, pois tal só suce-
deu em 1824) o primeiro país a reco-
nhecer a legitimidade do novel impé-
rio brasileiro.

O lado de baixo do equador


Voltaremos a todos estes assuntos. Mas
será importante aprofundar um pouco
mais a questão da elevação do Brasil a
reino, no ano da derrota definitiva de
Napoleão Bonaparte, para a qual pode-
mos encontrar razões políticas, econó-
micas e, até, afetivas. Sabemos bem
que o Brasil entrou facilmente na cor-
rente sanguínea da família real (não
propriamente da rainha D. Maria I, que,
quando atravessou o oceano, entre no-
vembro de 1807 e janeiro de 1808, es-
tava já bem afetada pela doença men-
TEMA DE CAPA

Carta autógrafa Estátua equestre


de D. Pedro, quando de D. Pedro IV
era regente do Reino (primeiro imperador
do Brasil, dirigida do Brasil) na
ao seu pai, portuense Praça da
D. João VI Liberdade

tal que anos antes fizera cair os pode-


res da governação nas mãos do herdei-
ro, João, rei de pleno direito a partir de
1816) e que, aquando da Revolução Li-
beral de 1820, no Porto, e do processo
constitucional subsequente, D. João VI
regressou relutantemente ao frio de
Lisboa. O contexto em que se desenca-
deou o movimento vintista vem sen-
do, há muito, amplamente tratado na
JN História, pelo que será desnecessá-
rio esmiuçar aqui o estado de abando-
no a que se sentiam votados os portu-
gueses da metrópole, na ressaca da
Guerra Peninsular, vendo o reino re-
duzido a uma espécie de protetorado
britânico, com o rei a milhares de qui-
lómetros de distância e a governação
efetiva nas mãos do comandante mili- William Carr Beresford,
tar William Carr Beresford. o militar britânico que,
Mas é relevante, contudo, dar conta direta ou indiretamente,
da discussão sobre quem deveria re- governou Portugal com a
014 gressar do Brasil ao Portugal europeu: Corte no Rio de Janeiro
o pai (D. João VI) ou o filho (D. Pedro).
Sabemos que foi o pai, nunca sabere- equador/ Vamos fazer um pecado ção de uma colónia que seguia já ine-
mos o que teria sido se, naquela altura, rasgado, suado, a todo vapor”). Use- xoravelmente o seu caminho autóno-
tivesse sido o filho. Mas podemos dar mos as palavras do historiador Eugé- mo. Sabendo nós o que veio a aconte-
por certo que o caminho da indepen- nio dos Santos, biógrafo de D. Pedro IV: cer, ou seja, o assunto que nos ocupa
dência estava traçado e não seria um “A situação interna de Portugal torna- nestas páginas, poderá parecer batota
pormenor desses a obstar ao processo, ra-se quase desesperada, como refe- a escolha da segunda dessas possibili-
apenas aventar que, provavelmente, os re Santos Marrocos [nota: bibliotecá- dades. Mas, ao tempo, no que havia
trilhos desse processo teriam sido di- rio real], em carta de 24 de Agosto de sido a América portuguesa, a ideia da
ferentes, não importa se muito ou pou- 1819 [nota: por curiosidade, exatamen- independência impunha-se muito ra-
co (há casos em que a chamada histó- te um ano antes do pronunciamento pidamente. Mesmo no seio da Corte
ria contrafactual pode ser um exercí- que, no Porto, deu início à instauração que migrara de Portugal para evitar a
cio curioso, noutros parece mais claro do liberalismo em Portugal], escreven- deposição pelos franceses.
que não passa de perda de tempo e do ao pai sobre ‘a falta absoluta de re- Como veremos noutro artigo, alguns
desperdício de energia). cursos necessários para obstar a hu- movimentos revoltosos, como a “in-
Em primeiro lugar, há que ter em ma desgraça proxima’ e, nessa óptica, confidência mineira” de 1789 (ver JN
conta que os portugueses da América, insistindo para que a família se lhe História N.º 15, agosto de 2018), não po-
a páginas tantas, viam o velho reino eu- juntasse no Rio, por ‘as circunstancias dem ser encarados propriamente como
ropeu como um caso perdido. Não nos submergirão o país n’hum estado pre- precursores da independência, o mes-
reportamos à generalidade dos portu- cario e quase irremediavel’.” mo não se dizendo de situações ocorri-
gueses do Brasil, bem entendido, mas Este espírito, já o notámos, tinha a das já com a Corte confortavelmente
às elites, em particular as que desde o ver com o estatuto de reino dado ao instalada no Rio de Janeiro. Não só pelo
final de 1807 e, em particular, desde Brasil pela Carta de Lei de 16 de dezem- que já vinha sendo o descontentamen-
1815, com a promoção do Brasil a rei- bro de 1815, ainda em vida de D. Maria to dos portugueses do Brasil, inconfor-
no, não desejavam outro futuro riso- I (afastada da governação desde 1792). mados com uma situação de súbditos
nho além daquele que se desenhava do O diploma instituía o Reino Unido de secundários que existiam para abaste-
lado de baixo do equador, se podemos Portugal, Brasil e Algarves, que tanto cer a metrópole de riquezas, mas por-
parafrasear os versos de Ruy Guerra podia ser encarado como uma forma que a elite governativa, de certo modo,
para a canção de Chico Buarque (“Não de promover a unidade imperial, dos se abrasileirou muito rapidamente, adi-
existe pecado do lado de baixo do dois lados do Atlântico, como a afirma- vinhando na América do Sul a oportu-
015

nidade de um auspicioso recomeço, capital do império e dali mesmo saíam, o Reino Unido de Portugal, Brasil e Al-
contrastante com a situação no retân- logo em 1808, as primeiras medidas de garves ser instituído. E este, apesar de,
gulo europeu, por muitos considerada descolonização económica do Brasil. A como atrás sugerimos, responder na
calamitosa e irrecuperável. Mas não só: abertura dos portos brasileiros ‘aos na- sua génese tanto aos anseios dos por-
os nossos eternos aliados ingleses de- vios de todas as nações amigas’, per- tugueses europeus (possibilidade de
ram um empurrão forte. mitindo a entrada de mercadorias de manutenção do império) como aos dos
qualquer proveniência, fazia cair o sis- portugueses americanos (passavam de
Abertura às “nações amigas” tema baseado no ‘pacto colonial’, em súbditos esquecidos a cabeça do im-
Vamos por aí. Quando o futuro D. João vigor desde a época pombalina. Portu- pério), não resultou em praticamente
VI levou a cabo a inaudita empreitada gal não teria mais direito ao monopó- nada. Já os ingleses esfregavam as
de levar para o outro lado do oceano a lio da exploração da colónia, situação mãos, garantindo, em plena Revolução
Corte e as suas riquezas (incluindo a que favorecia os interesses da Inglater- Industrial, uma preciosa escapatória
biblioteca régia, levada nos anos se- ra, agora especialmente voltada para aos constrangimentos causados pelas
guintes, que veio a tornar-se o núcleo os mercados brasileiro e português. guerras napoleónicas e, em novembro
fundador da Biblioteca Nacional do Logo em 1810 se assinavam com este de 1808, pelo Bloqueio Continental de-
Brasil – o fundo bibliográfico foi com- país os Tratados de Comércio e Amiza- cretado por Bonaparte.
prado em 1825, num negócio regia- de e de Aliança e Navegação, que asse- Todos estes acontecimentos acaba-
mente familiar que privou Portugal guravam aos Britânicos o acesso pre- ram por fazer da perda do império um
desse património inestimável), quan- ferencial dos seus produtos a todos os processo de anos, muito mais do que
do a Corte atravessou o mar, dizíamos, territórios portugueses, com a conces- algo ocorrido a partir de 1822, quando
transferindo para o Brasil a sede do são de privilégios especiais, mesmo em o Brasil se declarou independente (os
império, a lógica de funcionamento do relação aos produtos portugueses. A processos referentes à secessão são
mundo alterava-se. Atentemos no que partir de então o Brasil deixava de ser abordados num outro artigo). Ao fazer
escreveu Maria Manuel Lucas, no a base essencial da economia portu- do Brasil sede do império, o príncipe
quinto volume da História de Portugal guesa e Lisboa não seria mais o ponto regente, não obstante ter fintado deci-
dirigida por José Mattoso: de escala obrigatória para a reexpor- sivamente os franceses (ao cabo de
“Uma vez instalada a corte e os qua- tação dos produtos tropicais.” anos de aparente oscilação entre os
dros do aparelho de Estado no Rio de Pode dizer-se que a desunião do rei- dois blocos em confronto na Europa e
Janeiro, esta cidade tornava-se a nova no estava sentenciada mesmo antes de frustradas pretensões de neutralidade),
TEMA DE CAPA

Decreto do príncipe
regente D. João, passado
na Bahia mal a Corte
aí chegou, abrindo os
portos às nações amigas

016

acabou com a lógica colonial de admi- tistas, e no governo do futuro D. João tuguesas). Serve isto apenas como in-
nistração da América portuguesa. Aca- VI havia vozes favoráveis a essa opção, trodução a uma ideia central neste pro-
bou, por assim dizer, com o primeiro como a de Rodrigo de Sousa Coutinho, cesso: chegado ao Rio de Janeiro, o go-
verdadeiro império português (estra- primeiro conde de Linhares, morto no verno do Reino Unido governou, essen-
nharão os leitores, habituados à ideia Rio de Janeiro em 1812. Este é, como cialmente, a pensar na gigantesca par-
de que o primeiro império português outros, um homem que, por razões ób- cela americana desse reino.
era aquele que estava centrado a orien- vias (morreu dez anos antes do “Grito Desde a substituição de uma estru-
te – formalizado nessa incerta figura do Ipiranga”), não pode ser inserido no tura administrativa de natureza colo-
que era o Estado Português da Índia –, grupo dos patriarcas da nação brasilei- nial por outra condizente com a nova
mas esse baseava-se, sobretudo, em ra (do qual constam amigos seus, como sede da monarquia, passando pela cria-
fluxos comerciais assegurados por uma José Bonifácio de Andrada e Silva), até ção de novas estruturas judiciais ou
presença militar epidérmica em pon- porque o que ambicionava era um pela implementação de um dispositivo
tos estratégicos, não sendo seguro falar imenso Portugal (outra vez Chico militar adequado à nova grandeza, até
numa verdadeira construção imperial). Buarque de Holanda). todos os contributos para transformar o
Significa isso que, como muitos his- Ao partir para o Brasil com toda a fa- Rio de Janeiro, era no novo Portugal de
toriadores consideram, a independên- mília e com a Corte, o príncipe regente além-mar que se pensava. Até militar-
cia brasileira, apesar de formalmente deixou a velha metrópole nas mãos de mente, com o velho território europeu
ter ocorrido em 1822 (com reconheci- um Conselho de Regência. Depois dis- envolvido na guerra contra os invaso-
mento português em 1825), já vinha so, há toda a história dos episódios por- res franceses, a governação central (do
ocorrendo havia um bom par de anos. tugueses da Guerra Peninsular, com a Rio de Janeiro) preocupava-se, essen-
decisiva participação britânica, mas cialmente, em alargar as fronteiras do
Um imenso Portugal não é este o local para desenvolver esse reino sul-americano, com intervenções
A ideia de um império português com tema (ver, a propósito, o extenso dossiê na Guiana Francesa e para sul, até ao
capital no Brasil não foi uma visão do sobre a instabilidade da primeira me- Rio da Prata, onde se formou a Provín-
príncipe D. João e dos seus conselhei- tade do século XIX em Portugal, na edi- cia Cisplatina (que veio a tornar-se in-
ros, tampouco um presente envenena- ção N.º 22 da JN História, em que há dependente em 1928, como Estado
do sugerido pelos ingleses a partir do também um importante artigo sobre a Oriental do Uruguai, depois República
nada. A ideia já vinha sendo defendi- causa brasileira no âmbito da revolução Oriental do Uruguai, ou seja, o Uruguai,
da, aqui e ali, desde tempos quinhen- vintista e das Cortes Constituintes por- como correntemente o designamos).
Cortes Constituintes Rodrigo de Sousa
de Lisboa pelo pintor Coutinho, conde de
brasileiro Oscar Pereira Linhares, defensor de
da Silva (inspirado por um império português
Roque Gameiro) com sede no Brasil

O desenvolvimento comercial do
Brasil, fomentado no quadro interna-
cional com a já referida abertura dos
portos às “nações amigas”, repercutia-
-se também na dinamização de todo o
tecido produtivo, atendendo ao cresci-
mento exponencial do movimento dos
portos, antes ligados apenas ao Portu-
gal metropolitano. A industrialização,
que se tentou promover logo a partir
de 1808 (no último quartel do século
XVIII tinha sido proibido o estabeleci-
mento de manufaturas no Brasil, para,
em combinação com o fecho dos por-
tos aos ingleses, favorecer as manufa-
turas do Portugal europeu), era, no en-
tanto, ainda timorata, face ao enorme
impulso que tiveram as atividades
agropecuárias (incluindo as grandes
plantações dependentes de mão-de-
-obra escrava, situação que a indepen-
dência, por si, não alteraria). E isso fa-
vorecia os produtos ingleses da Revo- 017
lução Industrial, eles próprios entrave
à industrialização da colónia sul-ame-
ricana de Portugal, reino a partir de
1815. Não obstante, o progresso, a par-
tir da chegada da Corte ao Rio de Janei-
ro, foi significativo em muitos aspetos.
Voltando a Maria Manuela Lucas: “O
salto qualitativo verificado entre 1808
e 1822 iria ter repercussões não ape-
nas ao nível da economia, mas até no
próprio comportamento político da
camada social dominante”. abalavam a América espanhola. Em
todo o caso, e também por todas es-
Novo reino de vento em popa tas razões, o Reino Unido teve existên-
“O Reino Unido de Portugal, Brasil e cia fugaz e acabou por se tornar letra
Algarves foi seguramente uma solu- de lei sem objecto de aplicação.”, es-
ção ajustada às necessidades de ma- creve José Luís Cardoso [in “A Monar-
nutenção assistida de um império quia Constitucional dos Braganças em
luso-brasileiro em fase de oclusão. Foi Portugal e no Brasil (1822-1910)” –
também um modo hábil que Portugal coord. Rui Ramos, José Murilo de Car-
encontrou para manter algum equilí- valho e Isabel Corrêa da Silva – D. Qui-
brio no seu relacionamento com as xote, 2018]. De facto, foram sete os
potências europeias, garantindo as anos de pretensa união de reinos, sob
vantagens que ainda geria, mesmo o pressuposto chapéu de um império
que em fase descendente, das rique- renovado, e quando o reino (a metró-
zas desse imenso Brasil. Pode tam- pole) se libertou da dependência em
bém ter contribuído para suster algu- que estava desde a ida da Corte para o
mas pretensões independentistas Brasil, com a revolução liberal de 1820,
mais inflamadas e vulneráveis à in- o caminho da desunião já era inexorá-
fluência dos acontecimentos que vel e tornava-se cada vez mais nítido
TEMA DE CAPA

Aclamação do rei D.
João VI no Rio de Janeiro,
em fevereiro de 1818 (era
já rei de facto desde a
morte da mãe, em 1816)

(para os brasileiros, ou para os que


queriam ser brasileiros).
Tornando-se, a partir de 1808, o cen-
tro do império e adquirindo, em 1815,
o estatuto de reino, o Brasil conheceu
nesses anos, como vimos, um progres-
so inaudito, e as suas gentes jamais
quereriam voltar a um estatuto que re-
metesse para o anterior estado de coi-
sas. Como escreveu A. H. de Oliveira
Marques, “o brasileiro adquirira cons-
ciência nacional, blasonava a grande-
za do seu país e desdenhava de Portu-
gal. Falava até o Português com outra
pronúncia. Os reis sentiam-se bem na
sua nova terra e os príncipes eram
mais brasileiros do que portugueses.
A opinião pública brasileira via, as-
sim, Portugal como um virtual inimi-
go ou, na melhor das hipóteses, como
um ente estranho e decadente, a colo-
car à distância”. E a revolução de 1820,
018 partindo da cidade do Porto para o res-
to do velho Portugal metropolitano,
transformado em periferia com a tran-
sição para o Brasil da cabeça do reino,
mudou muita coisa. Na verdade, terá
mudado tudo, mesmo que o pressu-
posto de rutura com o Antigo Regime
significasse, na essência, que nada se-
ria como dantes. modo palpável, digamos assim, o libe- um caso à parte, mas não o são todos
Nas páginas da JN História, em texto ralismo português, devolvendo à me- os processos independentistas na
depois fixado no livro “No Bicentená- trópole europeia a sua centralidade no América Espanhola, desencadeados
rio da Revolução Liberal – Da Revolu- império, roubava aos portugueses do também pela Guerra Peninsular, isto é,
ção à Constituição, 1820-1822” (Porto Brasil algo que, para estes, se tornara a pelas invasões francesas (cujos contor-
Editora, 2020), Vital Moreira e José Do- verdadeira ordem natural das coisas: nos em Espanha não iremos aqui por-
mingues, aprofundando as questões li- que razões poderia haver para aquela menorizar). Ou seja, o ensejo de que-
gadas à representação parlamentar do imensidão sul-americana ser secunda- brar amarras alastrava por toda a Amé-
Brasil na nova realidade portuguesa rizada em relação a um minúsculo rei- rica do Sul, mesmo sendo claro que os
nascida do vintismo, concluem que no europeu sem recursos? Nem o for- processos português e espanhol foram
“tudo indica ser infundada a ideia de malismo cosmético de rebatizar as co- muito distintos.
que as Cortes Constituintes quiseram lónias de províncias ultramarinas (mu- Qualquer país de língua espanhola,
reduzir o Brasil à sua anterior condi- tatis mutandis, algo que Oliveira Sala- naquela parte do mundo, pode ser
ção de colónia”. Todavia, demonstram zar veio também a fazer com a revisão dado como exemplo, mas vamos apon-
também como os mecanismos jurídi- constitucional de 1951) animou as gen- tar o caso da Venezuela, por ser pátria
cos da nova ordem retiravam poder à tes de além-mar. Não poderia. de Simón Bolívar, o mais emblemático
regência do Rio de Janeiro (com o re- de todos os revolucionários de então: a
gresso de D. João VI a Portugal, esta era O império a fazer o pino revolução estalou logo em abril de 1810
encabeçada por D. Pedro), colocando Desde 1810 que a conjuntura era des- e a independência foi declarada unila-
as províncias brasileiras diretamente favorável à ideia tradicional do império teralmente em julho de 1811, mas o re-
dependente da metrópole em matérias pluricontinental, unido e não separa- conhecimento por Madrid só aconte-
tão decisivas como as finanças, a justi- do pelo Oceano Atlântico. A indepen- ceu em 30 de março de 1845. Muito di-
ça ou o poder militar. Ou seja, de um dência dos Estados Unidos, em 1776, é ferente foi o caso entre Portugal e o
Retrato de D. João VI
por Jean-Baptiste Debret,
pertencente à coleção do
Museu Nacional de Belas
Artes (Rio de Janeiro)

Brasil. Findo o triénio vintista e restau-


rado o absolutismo, em 1823, bastaram
dois anos para que, sob pressão dos in-
gleses e ao cabo de negociações não
propriamente fáceis, Portugal reco-
nhecesse a independência do Brasil.
Um reconhecimento sui generis, pois
D. Pedro, governando em total autono-
mia, ficava com o título de imperador
regente do Brasil, sendo a qualidade de
imperador aposta a D. João VI, mesmo
que este nada mandasse do lado de lá
do Atlântico. E D. Pedro mantinha-se
como primeiro na linha de sucessão ao
trono de Portugal (e veio a ser rei de
Portugal – acumulando com a dignida-
de de imperador do Brasil – por menos
de dois meses, de março a maio de
1826, para pouco mais do que outorgar
a Carta Constitucional e abdicar em fa-
vor da filha, Maria da Glória, D. Maria II
de Portugal).
Ora, não perdendo o fio à meada, às 019
razões conjunturais/regionais soma-
Palácio de S. Cristóvão, vam-se, claro, as razões estruturais que
no Rio de Janeiro em correspondiam ao modelo inglês do
1817, ou seja, quando momento. Desde muito antes domina-
a Corte portuguesa dores dos mares, os britânicos encabe-
lá estava instalada çavam o processo da Revolução Indus-
trial e, aproveitando o contexto das
guerras napoleónicas, obtiveram rapi-
damente uma posição esmagadora no
comércio mundial, levando à transfor-
mação das economias coloniais em
economias exportadoras de tipo capi-
talista. Também não pode alhear-se
deste processo o facto de a Inglaterra,
mercê do progresso técnico que prota-
gonizou em primeiro lugar e com es-
pantosa intensidade, ter facilmente
prescindido da mão-de-obra escrava,
o que permitiu que o abolicionismo –
fruto do espírito do tempo, sem dúvi-
da – ali se impusesse com intensidade
inaudita. Mas – note-se – não só por ra-
zões filantrópicas: as pressões dos
grandes industriais, que queriam um
comércio livre e o fim dos privilégios
das plantações foi determinante. Cons-
tituindo-se como polícia do mundo,
para controlar o tráfico negreiro, a In-
glaterra povoava os sete mares e apro-
veitava, ao abrigo de tratados, o poder
TEMA DE CAPA

Aclamação de D. Pedro
como primeiro imperador
do Brasil, no dia do seu
aniversário (12 de
outubro de 1822)

020

de vigiar navios mercantes (portugue- trangeira, com os cordelinhos nacionais princípio donde se distribua o poder
ses também, claro) em busca de escra- a serem mexidos por Beresford, ou seja, executivo às autoridades subalternas,
vos, interferindo assim no trato colo- pelos ingleses, mas também notava um só sistema geral de administra-
nial e cometendo pelo meio abusos uma inversão de papéis, via o império ção, uma só religião dominante, pru-
que, apesar de gerarem algumas dis- a fazer o pino: Portugal parecia a coló- dência e actividade no governo, obe-
putas internacionais, lhes facilitavam nia do Brasil, onde o rei e o governo es- diência e fidelidade nos povos; eis
o caminho para o tal domínio comer- tavam estabelecidos. aqui o dogma. Tudo o mais é discipli-
cial do mundo. Em Portugal, os vintistas estavam na que convém variar segundo as cir-
Não cabe aqui o julgamento do tráfi- ocupados no afã de uma reformulação cunstâncias para maior comodidade
co de escravos (o transatlântico ou do reino (sem exclusão do Brasil, bem da nação, salvo sempre o dogma da
qualquer outro) nem descrever a forma entendido), assente na Nação como de- unidade da monarquia. Reino com
como este continuou ainda depois de tentora da soberania e, obviamente, duas cabeças é monstro.”
1822, envolvendo tanto portugueses não distinguindo nações portuguesa e Da outra banda política, defendia-se
como brasileiros. Trata-se apenas de brasileira. Menos de um mês antes de a legitimidade das aspirações brasilei-
mais um ingrediente a acrescentar ao D. Pedro ter gritado “Independência ou ras. Bem antes, no dia 1 de janeiro de
caldo de cultura que resultou na inde- morte!”, eram estes temas que por cá 1821, escrevia-se assim num jornal
pendência do Brasil. E é preciso, tam- se discutiam. português intitulado “A Navalha de Fi-
bém, deixar claro que nada disto é A partir de um artigo de Zília Osó- garó”: “Que se lembre a nação portu-
alheio ao surgimento do liberalismo em rio de Castro, reproduzimos excerto de guesa que a regeneração que exige
Portugal. Efetivamente, se a transferên- um artigo dado à estampa, em 16 de para si é a mesma que o Brasil está em
cia da Corte e a elevação a reino tinham agosto de 1822, pelo periódico “Gaze- direito de reclamar, uma vez que de-
dado ao Brasil um estatuto e um modo ta Universal”, de pendor anticonstitu- satou o nó que conservava a sobera-
de vida de que os de lá não estavam dis- cional: “Neste relevantíssimo assunto nia dos três reinos debaixo de uma só
postos a abdicar, o sentimento em Por- há, por assim dizer, dogma e discipli- coroa e denominação (…) O Brasil (…)
tugal (no Portugal europeu, bem enten- na. O dogma consiste na unidade do [proclamará] a sua independência...”
dido) eram literalmente opostos: aban- império (…) Um só monarca, uma só
donado pela monarquia, o velho reino dinastia, um só corpo legislativo, um A união pela língua
de origens firmadas no século XII sen- só exército de terra e mar, um só erá- Eram minoritários, em Portugal, os que
tia-se não apenas sob a influência es- rio, um só código de leis gerais, um só defendiam um caminho separado do
Monumento
à Independência
(São Paulo), em cuja
cripta estão, desde 1972,
os restos mortais
de D. Pedro

do século XIX (o momento, desde o iní-


cio do século XVI, em que o tráfico foi
mais intenso), pela simples razão de
que o negócio era mais lucrativo do
que nunca. E com papel preponderan-
te dos escravistas brasileiros, embora
portugueses continuassem envolvidos.
Só em 1850 o Brasil cumpriu o que as-
sinara em 1827, interditando efetiva-
mente o tráfico.
O Brasil foi, ao longo do século XIX,
a grande miragem que se desenhava
aos olhos dos portugueses e, por tal, o
grande destino da emigração. Jorge
Fernandes Alves, que estudou o fenó-
meno para as décadas de 1860 e 1870
(saída de emigrantes a partir da cida-
de do Porto), deixa clara a preponde-
rância do grande país sul-americano
como escapatória para os portugue-
ses: “Com efeito, a corrente do Brasil
corresponde a uma percentagem ele-
vadíssima, que, frequentemente, se 021
aproxima dos 99%, e que quase nun-
do Brasil. Não passava pelas cabeças dência brasileiro, fosse no campo da ca desce abaixo dos 90% (o que ape-
dos legisladores vintistas a ideia de um diplomacia ou pela força das armas. nas aconteceu em dois anos do perío-
reino sem os seus territórios ultrama- Daí que mesmo antes da restauração do estudado – 1867 e 1878 –, com 88%),
rinos, apenas o afã de reenquadrar essa do absolutismo ao cabo do triénio vin- embora apresente uma tendência
ampla realidade no novo quadro cons- tista, em 1823, gente sonante como muito ténue para a diminuição à me-
titucional. Mas os acontecimentos de Mouzinho da Silveira visse urgência dida que se avança para o fim do sé-
1822, do “Fico!” proferido por D. Pedro no reconhecimento do Brasil indepen- culo. Assim a maioria esmagadora
em janeiro à sua aclamação como im- dente, com a consequente assinatura dos emigrantes dirigem-se para as
perador, em outubro, passando, claro de tratados que retomassem alguma terras de Santa Cruz, aonde, além da
está, pelo “Independência ou morte” normalidade nas relações entre os língua comum, esperam encontrar
de setembro, provocaram sobretudo, dois lados do oceano, em particular na parentes e amigos, sulcando a rota há
choque e indefinição quanto ao futu- vertente comercial. muito trilhada por milhares de con-
ro. Como escreveu Valentim Alexan- Assim aconteceu em 1825, com o re- terrâneos, perseguindo o sonho de ser
dre, “a generalidade da imprensa li- conhecimento a que já aludimos a ser ‘brasileiro’.”
beral portuguesa tem, face ao agudi- acompanhado por um “tratado de paz A figura do “brasileiro”, falamos do
zar da crise brasileira, uma de duas e aliança”, pelo qual podiam permane- emigrante de torna-viagem, tornou-se
atitudes: ou defende posições de for- cer em território brasileiro mercado- central na vida portuguesa. Vemo-lo na
ça, pretendendo que se obrigue o Bra- res portugueses e, daí, enviar as suas mordacidade dos escritos de Camilo ou
sil (ou pelo menos parte dele) a sub- remessas para a pátria europeia. E isto de Eça, vemo-lo na exuberância da ar-
meter-se, ou pressupõe como projec- não se relaciona exclusivamente com quitetura ostentatória. E os que não vol-
to alternativo o desenvolvimento das o tráfico de escravos, embora este jus- taram voltam agora na pele dos descen-
possessões africanas”. tifique aqui uma explicação. Logo em dentes, os que nos visitam e procuram
A quebra não foi instantânea, já vi- 1827, Inglaterra e o Brasil firmaram um a terra dos antepassados, os que vêm
nha bem de trás e não apenas desde tratado para impedir o tráfico de escra- para ver no que dá, os que, por esta ou
que os portos do Brasil foram abertos vos para o novel país (também em 1836 por aquela razão, vêm mesmo para fi-
às “nações amigas”. E Portugal, para Sá da Bandeira ilegalizou o tráfico em car. Afinal de contas, vale o que Pessoa,
mais um Portugal que tentava rein- Portugal). Tudo isto acontecia no pa- pelo interposto Bernardo Soares, escre-
ventar-se, não tinha qualquer poder pel, pois houve um incremento do trá- veu n’O Livro do Desassossego: “Minha
para obstar ao processo de indepen- fico para o Brasil no segundo quartel pátria é a língua portuguesa”.
TEMA DE CAPA

CONSTRUÇÃO
DE UM
IMPERADOR
022
E DE UM PAÍS
Texto de Pedro Olavo Simões
Retrato de D. Pedro
por Simplício Rodrigues
de Sá, atualmente
exposto no Museu
Imperial de Petrópolis

M
arcar no calendá-
rio o início de um
processo como a
independência do
Brasil é, evidente-
mente (pelo me-
nos para os que
estão habituados a um raciocínio de tipo
historiográfico), passar ao lado do início
do processo. É algo tão pouco razoável
como pensar que a raiz da independên-
cia está no início da dependência, ou
seja, no processo de colonização do ter-
ritório. Nem espaço teríamos para ir por
aí. Que antecedentes poderemos, então,
traçar para nos ajudar a compreender
que o que aconteceu em 1822 já vinha
acontecendo? Teremos, evidentemen-
te, de ir mais perto.
Na edição N.º 15 da JN História (agos-
to de 2018), publicámos um artigo que,
sob o título “O mito nacionalista da ‘In-
confidência Mineira’”, mostra como 023
essa revolta não se enquadra propria-
mente no que veio a ser o processo de
independência do Brasil. Porque era
um caso circunscrito a Minas Gerais
(onde se esperava que o movimento
independentista alastrasse ao Rio de
Janeiro, não mais), porque tinha natu-
reza republicana (inspirada na Revolu-
ção Americana de 1776), porque não
beneficiava ainda das condições favo-
ráveis de 1822, resultantes de numero-
sas mudanças estruturais e conjuntu-
rais entretanto ocorridas. Mesmo a fi-
gura sonante desse movimento, o len-
dário Tiradentes, só obteve tal estatu-
to quando a República foi proclamada
no Brasil, em 1889, na medida em que
os republicanos precisavam de criar a
sua própria mitologia. Ou seja, preci-
savam de heróis.
Essa conspiração, duramente repri-
mida, foi uma entre muitas a que então
se dava o nome de “inconfidência” –
Rio de Janeiro (1794), Bahia (1793-1798),
Pernambuco (1801). De novo em Per-
nambuco, em 1817, houve algo a que se
chamou “revolução” e merece aqui
mais algum destaque. Não só por ter
ocorrido com a corte já bem instalada
no Rio de Janeiro, e também já depois
TEMA DE CAPA

de o Brasil ter ascendido à condição de contraposição, em escutar ‘as vozes


reino, mas também pela grande adesão da pátria’. Há, contudo, ambiguidades
popular que suscitou. A diferença evi- nos discursos, nas quais se insinua o
dente entre esta e outras situações é o viés anticolonial do movimento”, es-
facto de a revolta, também conhecida creve o historiador brasileiro Luiz Car-
como “Revolução dos Padres”, ter sido los Villalta. Há aqui um “mas”, na escri-
bem mais do que uma conspiração des- ta do académico de Minas Gerais, que
mantelada antes de ser posta em práti- abre a porta a um discurso de indepen-
ca. No Recife, o poder colonial chegou dência como contraponto a colonialis-
a ser deposto pelos revoltosos, e, nos mo, que os menos avisados podem
mais de dois meses que durou a revo- confundir com lógicas de emancipa-
lução, esta chegou a expandir-se, com ção dos povos no século XX, ou com to-
a adesão da província da Paraíba e com das as características militantes que
apoios fortes noutras, como o Rio Gran- por vezes vemos nos chamados estu-
de do Norte ou o Ceará. dos pós-coloniais, um discurso que
Muitas eram as causas da revolta, da muitas vezes colide com os preceitos
presença de portugueses da Europa da historiografia. Deve ser sempre tido
(essa distinção ganhara peso aquando como claro que a construção do dis-
da fixação da corte no Rio de Janeiro e curso histórico não pode ser abordada
do estabelecimento de um novo siste- como uma forma de intervir na melho-
ma administrativo), descontentamen- ria do mundo, muito simplesmente
to com mudanças na fiscalidade intro- porque tem como única meta a procu-
024 duzidas por D. João VI, problemas eco- ra do que já aconteceu, tão próxima da
nómicos conjunturais e, claro, a disse- verdade quanto possível.
minação das ideias iluministas e a sua Não nos percamos. A lógica anticolo- “Tiradentes
tradução num ideal de liberalismo re- nial, no processo de independência do esquartejado”, por Pedro
publicano, tanto em organizações ma- Brasil, tem a ver com a nova voz liberal Américo (1843-1905),
çónicas, ou outras sociedades secretas, contra os regimes absolutistas, tem a autor de muita da
como em instituições religiosas pro- ver com a opressão/exploração das pe- iconografia brasileira
gressistas (chamemos-lhes assim), riferias imperiais por parte da centrali-
caso do então recém-formado (1800) dade imperial. Todavia, como já vimos
seminário de Olinda. apontando nestas páginas, a ida da cor-
Como seria de esperar, ao não ter te para o Rio de Janeiro invertera tudo:
sucesso, a revolução foi duramente re- o centro do império passara a ser o Bra-
primida. Paradigma disso é o padre sil, e, enquanto o Portugal europeu se ria a morrer em 1821, Portugal estava
João Ribeiro (João Ribeiro Pessoa de queixava de ter sido reduzido a um es- onde sempre tinha estado. Mas o rei
Melo Montenegro), ideólogo do movi- tatuto de periferia (até de colónia) que não havia maneira de querer voltar à
mento revolucionário, que se suicidou não fazia jus ao seu alegadamente glo- velha metrópole.
em 19 de maio de 1817, ao perceber o rioso passado, o novo rei e a sua des- Como escreveu o historiador oito-
fracasso. Sepultado em Olinda, o cor- cendência estavam muito felizes no centista brasileiro Francisco de
po do eclesiástico foi depois desenter- que viria a ser “(...) um país tropical, Varnhagen (1816-1878), na sua “História
rado e esquartejado, tendo a sua cabe- abençoado por Deus/ E bonito por na- da Independência do Brasil” (publica-
ça sido espetada num pau e longamen- tureza (mas que beleza)”. da postumamente já em 1916,) o que
te exposta em praça pública. veio a ser o Brasil independente “era
“A posição anticolonial, ao que tudo A estocada vintista já (…) a sede de um império maior que
indica, assumiu um papel secundário Ora, esmagada a revolução pernambu- o dos romanos, o qual estendia o seu
no discurso dos revolucionários. Em- cana, D. João, que era efetivamente rei poderio pelas cinco partes do globo
bora presente nas mentes e nas práti- desde a morte de D. Maria I, em 1816, terrestre, tendo no Portugal hispânico
cas dos atores políticos, o alvo princi- pôde finalmente ser aclamado com uma simples regência subordinada à
pal dos discursos parecia ser o gover- pompa no dia 6 de fevereiro de 1818. A influência do chefe do exército, o in-
no monárquico e, por isso, na perspe- causa da ida para o Brasil havia desapa- glês Marechal Beresford, Marquês do
tiva dos revoltosos, o antípoda da pá- recido em 1815, Napoleão estava isola- Campo Maior”. Ora, passe o avantaja-
tria era o despotismo; daí falarem, em do no exílio de Santa Helena onde vi- do exagero do “poderio pelas cinco
Bênção das bandeiras
na Revolução
Pernambucana de 1817
– quadro de Antônio
Parreiras (1860-1937)

Tomás António de Vila Nova Portugal,


absolutista recalcitrante, tinha uma vi-
são antagónica: “D. João é que devia
permanecer no Brasil, regressando D.
Pedro a Portugal, ‘porque, uma vez de-
sunido, o reino americano não mais se
tornaria a ligar ao europeu, ao passo
que este, se por acaso levasse o des-
vario ao ponto de proclamar-se repú-
blica, depressa volveria à só razão,
não coagido pela Santa Aliança (…)
como principalmente pelo receio de
sua anexação pela Espanha’” [nota: as
citações inclusas no texto de Eugénio
dos Santos, devidamente assinaladas,
são de Manuel de Oliveira Lima (1867-
-1928), uma das referências clássicas
da historiografia brasileira].
Ora, sabemos bem que o programa
dos vintistas não passou pela implan-
tação da República em Portugal, que
tardaria 90 anos. O trono mantinha-se,
mas com poderes muito restringidos. 025
Seguindo a caminhada encetada pelas
revoluções americana e francesa e,
ainda, inspirados pela restauração da
Constituição de Cádis, em Espanha, os
revolucionários de 1820 viam o país
como um todo (Brasil incluído, claro),
que teria representação num só Parla-
mento nacional, e, como vimos no ar-
tigo anterior, a ideia de Reino Unido de
Portugal, Brasil e Algarves não fazia
para eles qualquer sentido. Eugénio
partes do globo terrestre”, essa era ford ao Brasil, para obter do rei maio- dos Santos fala em “antibrasileirismo”,
uma situação de que D. João VI não res poderes, mas no regresso já nem mas esse deverá ser entendido, dize-
queria decerto abdicar. Até que, no dia lhe foi permitido desembarcar em Por- mos nós, como mera oposição dos vin-
24 de agosto de 1820, o pronunciamen- tugal. Por essa altura viajava para o Rio tistas à forma como a ida da Corte para
to liberal do Porto, que alastrou a todo de Janeiro Pedro de Sousa e Holstein, o Rio de Janeiro, no final de 1807, puse-
o país para acabar com o Antigo Regi- primeiro conde (mais tarde marquês, ra o império de pernas para o ar.
me, entregando a soberania à Nação e mais tarde duque) de Palmela. Escreve Não nos debruçamos, aqui, sobre a
dando todos os passos para a dotar de Eugénio dos Santos, reportando-se a revolução liberal portuguesa. Apenas
uma Constituição, mudou radicalmen- Palmela: “Para ele, a melhor resposta sobre o modo como era percecionada
te o estado de coisas. à revolução consistia em apostar no Brasil. Inicialmente desvalorizada
Para essa mudança política, inde- numa monarquia constitucional na na Corte, mas depressa gerando
pendentemente do papel praticamen- qual o elemento preponderante conti- apreensão, era vista com bons olhos
te decorativo que lhe viria a ser reser- nuaria a ser a nobreza. O rei deveria, por muita gente, o que não admira,
vado na gestão da coisa pública, a pre- a seu ver, regressar à sede da velha atendendo ao entusiasmo que a revo-
sença do monarca em Lisboa era es- corte, deixando o herdeiro da coroa no lução pernambucana, de natureza li-
sencial, e desde logo começaram as Brasil, mantendo-se o regime aí em vi- beral, suscitara anos antes. Havia mui-
pressões nesse sentido. O movimento gor, ‘com algumas variantes mais de to que a ideia de liberalismo como con-
revolucionário arrancara justamente forma que de fundo’”. Do outro lado, o traponto necessário ao absolutismo
aquando de uma deslocação de Beres- ministro mais próximo de D. João VI, ganhava adeptos, mas também era só-
TEMA DE CAPA

Palácio imperial de
Petrópolis, afirmação da
monarquia brasileira, por
Agostinho José da Mota
(1824-1878)

026

lida a ideia de que o coração da nova adere e consegue proclamar também dência levou a que a escolha recaísse
pátria constitucional deveria ser o Bra- as novas instituições, era mais que se- no filho, que desde logo, além de não
sil. Desde logo uma brochura anónima guro que não se havia de dar ao tra- ter de Portugal mais do que fracas re-
posta a circular no Rio de Janeiro dava balho de se libertar do jugo do antigo cordações de infância, era contrário à
a entender que o Brasil prosperaria so- sistema de Governo, para voltar ao ideia dos vintistas, apesar de perfilhar
zinho, enquanto Portugal nada era sem jugo maior e mais humilhante do esta- muito do que era o ideário liberal. Para
o território americano, pelo que a des- do colonial, de que aliás já se liberta- ele, a soberania teria de estar na figura
locação do monarca para Lisboa signi- ra com a vinda da Corte.” do monarca, sendo este a entregar à
ficaria, sem dúvida, a independência De algum modo, todos os caminhos Nação a Constituição que consideras-
brasileira, donde o melhor seria D. João iam dar à independência. se adequada (acabou por fazê-lo, em
ficar onde estava. 1826, ao outorgar a Carta Constitucio-
Nas palavras de Varnhagen, o que os Vai o pai ou vai o filho? nal, ainda hoje, somando os diferentes
brasileiros (os portugueses do Brasil, A presença da realeza em Lisboa era períodos de vigência, o texto constitu-
por oposição aos reinóis) não admiti- uma necessidade incontornável e, no cional que mais longamente vigorou
riam era um regresso ao velho estatu- Rio de Janeiro, o rei debatia com os em Portugal).
to de dependência: “Esta revolução seus conselheiros se deveria ir ele pró- Os acontecimentos, porém, não favo-
triunfante marcava uma nova era prio ou o príncipe herdeiro, D. Pedro. reciam esse modo de ver as coisas. Ecos
para o Brasil: se não adere a ela, fica A tal perceção de que a saída do rei re- do que se passava em Portugal geravam
separado em estado independente; se sultaria inevitavelmente na indepen- movimentações no Brasil, não apenas
entre os nativistas (os brasileiros, por nho aberto no Brasil). A revolução de entanto, ficavam fora da jurisdição go-
oposição aos portugueses do reino, par- 1820 precipitou tudo, o envolvimento vernativa provincial e diretamente su-
tidários desde logo da independência), de D. Pedro na governação acabou com bordinados e responsáveis perante o
mas também entre os que exigiam que os pretextos para adiar o inevitável. Em Governo do Reino e as Cortes: (i) os ma-
a Coroa jurasse as bases da Constituição 26 de abril de 1821, o rei e a Corte aba- gistrados e as autoridades civis ‘no que
que se preparava em Portugal, mas com lavam para a “antiga sede e berço ori- for relativo ao poder contencioso e ju-
a intenção de ver formado um governo ginal da monarquia”, onde chegariam dicial’; (ii) os membros da Fazenda Pú-
liberal no Brasil. Ou seja, fosse qual fos- em 3 de julho. No dia seguinte à chega- blica; e (iii) os governadores e coman-
se a fação, voltar ao estatuto de colónia da a Lisboa, o monarca jurava perante dantes das armas das províncias, no-
não era opção para os portugueses do as Cortes as Bases da Constituição. Para meados em substituição dos anteriores
Brasil (ou brasileiros, poderemos dizê- trás deixara instruções, por decreto governadores e capitães.”
-lo para simplificar). No dia 26 de feve- passado no próprio dia da partida, para Ou seja, três pilares essenciais da go-
reiro de 1821, um pronunciamento de que o Reino do Brasil procedesse à elei- vernação – a justiça, os impostos e o
militares e civis, no Rio de Janeiro, teve ção dos seus deputados às mesmas exército – ficavam sob a dependência
consequências relevantes a mais do que Cortes Constituintes, ficando o prínci- direta de Lisboa. “Era um profundo gol-
um nível. Desde logo porque foi a pri- pe herdeiro com o “Governo Geral e in- pe no estatuto político do Brasil no
meira intervenção decisiva do príncipe teira administração de todo o reino do quadro do Reino Unido”, escrevem os
D. Pedro, havendo logo quem quisesse Brasil” nas mãos. mesmos autores.
aclamá-lo, mas também porque mar- Desde 26 de fevereiro, a agitação ti-
cou o início da cedência da Coroa aos Machadadas na autonomia nha tido manifestações permanentes,
constitucionalistas que haviam assumi- Ora, importa dizer que a presença bra- com que o regente ia lidando, mas nada
do o poder em Portugal. Encarregado de sileira em Cortes foi desde logo um es- com o impacto do decreto das Cortes
parlamentar com os revoltosos e levan- pelho do pouco entusiasmo que, afinal, Constituintes de 18 de abril de 1821, 027
do consigo as bases de uma constitui- o rumo das mudanças suscitava na par- pelo qual o reino de Portugal (nenhum
ção a outorgar pelo monarca ao Reino te americana do ainda Reino Unido. Em outro) era formado pelo território eu-
Unido, o príncipe deparou-se com a exi- agosto de 1821 tomava assento em Lis- ropeu, pelas chamadas ilhas adjacentes
gência de ser desde logo jurada a Cons- boa a deputação pernambucana, a que e pelos territórios ultramarinos. Ou
tituição que se preparava nas Cortes de se juntaria no mês seguinte a do Rio de seja, o Brasil, elevado à categoria do rei-
Lisboa. Obtendo do pai o poder de ne- Janeiro (esta bastante incompleta). As no em 1815 e cabeça do império desde
gociar, D. Pedro acabou por jurar fide- restantes províncias brasileiras conti- 1808, era formalmente relegado a um
lidade à Constituição que viesse a ser nuavam sem realizar eleições quando estatuto colonial. Tal gerou indignação
elaborada pelos vintistas (abdicando da as Cortes tomaram as primeiras deci- geral, não apenas entre os nativistas. As
sua própria convicção) e, mesmo con- sões relativas ao Brasil, que, como é fá- lojas maçónicas estabelecidas no Brasil
trariando naquele momento os que o cil de entender, geraram descontenta- tornavam-se baluartes da conspiração
queriam guindar ao trono, levando-os a mento, na medida em que significavam pela implementação de verdadeiras li-
dar vivas a D. João VI, obteve o protago- perda de poderes (escreveu Varnha- berdades no que fora a América portu-
nismo na governação que havia algum gen: “de uns oitenta [deputados] que guesa, e o próprio D. Pedro, vendo a sua
tempo ambicionava. devia dar o Brasil, apenas estavam regência seriamente coartada, aproxi-
Ou seja, arrancou aí o crescente en- presentes uns trinta, em princípios de mava-se desses ambientes.
volvimento de D. Pedro nos assuntos do março de 1822”). Porque publicadas Não se pense, porém, como alimen-
governo, que facilitou o regresso do originalmente na JN História, vale a tarão as perspetivas romanceadas de
monarca a Lisboa, deixando a regência pena reproduzir as palavras de José Do- um pai da pátria que sonhava ser bra-
nas mãos do filho. Facilitou é como mingues e Vital Moreira: sileiro, que D. Pedro estava por tudo.
quem diz, porque, é consabido, D. João “Por decreto de 29 de setembro de Equacionou, inclusivamente, o regres-
VI resistia a deixar o Rio de Janeiro. Não 1821, o Congresso de Lisboa determinou so definitivo ao Portugal de onde havia
só naquele momento, mas fazia-o des- que se elegessem Juntas Provisionais saído quando tinha apenas nove anos.
de o fim das guerras napoleónicas, de Governo em todas as províncias do Isso atendendo a que ficava cada vez
quando começou a ser pressionado Reino do Brasil onde havia ‘governos mais turva a imagem que ele formara
nesse sentido também pelos ingleses, independentes’, ficando sob a alçada do que entendia ser a regência do gran-
através de Beresford (este, como sabe- destas Juntas governativas ‘toda a au- de território brasileiro. Não apenas –
mos, era quem na prática governava em toridade e jurisdição na parte civil, eco- ou até nem tanto – pelas decisões que
Portugal, mas, para os britânicos, era nómica, administrativa e de polícia, em iam sendo tomadas em Lisboa, mas
importante ter cada vez mais o cami- conformidade das leis existentes’. No também pela forma heterogénea com
TEMA DE CAPA

José Bonifácio de
Andrada e Silva, figura
maior do processo
independentista
do Brasil

que essas decisões se repercutiam nos


territórios brasileiros (não esquecer as
várias tentativas anteriores de revolta
republicana constitucionalista, indicia-
doras de pouca vontade de submissão).
Províncias como o Pará, o Maranhão e
a Bahia declaravam depender total-
mente das Cortes. Outras juntas eram
formadas, com a aprovação das Cortes,
e o poder do regente era cada vez mais
circunscrito, ficando ele, na prática,
como governador apenas da província
do Rio de Janeiro. E os militares, fiéis
às Cortes vintistas (que haviam nomea-
do um governador de armas para cada
província brasileira), contribuíam de-
cisivamente para um estado de coisas
que o príncipe considerava não apenas
um retrocesso, face ao que havia sido a
evolução dos anos anteriores, mas
também uma afronta pessoal. Escreveu
ele ao pai: “Se V. Mag. me permite, eu
028 passo a expor o triste e lamentavel es-
tado a que está reduzida esta Provin-
cia para que V. Mag. Me dê as suas Or- cooperação do Principe, parecia im- Magestade que nunca serei perjuro,
dens, e instrucções, que achar conve- possivel conseguir-se tanto restabele- que nunca lhe serei falso; e que eles fa-
nientes para eu com dignidade, me cer a integridade do Reino, como evi- raõ essa loucura, mas será depois de
poder dezembrulhar da rede em que tar huma contenda sanguinolenta e eu e todos os Portuguezes estarem fei-
me vejo envolvido”. duvidosa. Foi Sua Alteza apalpado, e tos em postas, o que juro a Vossa Ma-
Esse era um lado da questão, na me- consta que prestára favoravel atten- gestade, escrevendo nesta com o meu
dida em que, paradoxalmente, D. Pe- ção aos promotores deste plano; ain- sangue estas palavras: – Juro sempre
dro era visto por muitos como o único da que descobrindo depois, que os ser fiel a Vossa Magestade, á Nação e
fator que poderia evitar a desagrega- Brazileiros não tinhão hum partido á Constituição Portugueza.”
ção do Brasil, ou, dizendo o mesmo por bem organisado, que continuavão a Armitage, como sublinha Eugénio
outras palavras, cimentar a unidade. confiar nas Côrtes, e que a divisão au- dos Santos, nota que haveria alguma
Vejamos o que escreveu John Armita- xiliadora dominava a cidade, parece ambiguidade neste posicionamento de
ge, historiador britânico cuja obra rele- ter vacillado e proseguido nas vistas D. Pedro, na medida em que a repres-
vante para o caso foi publicada no Rio de se retirar para Portugal. Não obs- são do sentimento independentista só
de Janeiro em 1837, sob o título “Histo- tante, os patriotas determinárão-se a se materializou na detenção de algum
ria do Brazil, desde a chegada da real fazer hum esforço, e logo em 4 de Ou- peixe miúdo, permanecendo os líde-
familia de Bragança, em 1808, até à ab- tubro apparecêrão proclamações de- res da conspiração intocados: pessoas
dicação do imperador D. Pedro I, em clarando o Brazil independente, e D. ligadas à Maçonaria e ao Clube da Re-
1831; por João Armitage. Traduzida do Pedro Imperador.” sistência, um grupo formado em prol
Inglez por hum Brazileiro”: Sabemos, obviamente, que assim da permanência de D. Pedro, com ra-
“A proporção que se aproximava a não foi, ou o segundo centenário da in- mificações no Rio de Janeiro, em São
crise, os partidistas da independencia dependência teria sido assinalado em Paulo e em Minas Gerais..
melhor concebião as difficuldades da outubro de 2021. Na realidade, o prín-
empreza. Todas as cidades maritimas cipe regente não estava ainda para aí “Diga ao povo que fico”
do Brazil estavão occupadas pelas tro- virado, logo escrevendo para Lisboa ao Os acontecimentos subsequentes con-
pas portuguezas; as communicações seu pai e soberamo (citamos a carta a correram para o momento que viria a
erão difficultosas e incertas, e as Pro- partir do mesmo autor oitocentista): ser celebrado pela posteridade como o
vincias estavão em dissensão humas “Querião-me e dizem que me querem “Dia do Fico”, primeiro passo decisivo
com as outras. Sem que se obtivesse a acclamar Imperador. Protesto a Vossa para a independência do Brasil. Cum-
Frei Francisco de Santa
Teresa Jesus Sampaio
poderá ter estado por
trás da adesão de D.
Pedro às ideias liberais

cular para subscrição pelos cidadãos


do Rio de Janeiro. Ao cabo de poucos
dias, já tinham sido recolhidas cerca
de oito mil assinaturas, de todas as
condições sociais. Como nota Eugénio
dos Santos, este frade, com ligações à
Maçonaria e presença assídua em jor-
nais, poderá ter tido influência na ade-
são de D. Pedro ao liberalismo, pois
era próximo de Frei António da Arrá-
bida, confessor do príncipe.
Esse texto é hoje conhecido como
“Manifesto do Fico”, mas notar isso nes-
te ponto do texto é como pôr o carro à
frente dos bois. Embora por pouco tem-
po. Ora, como já apontámos, é mais do
que nítido que D. Pedro estava ao cor-
rente, de uma forma ou de outra, de to-
das estas movimentações. Ou seja,
usando terminologia corrente dos nos-
sos dias, esperou a criação de uma vaga
de fundo para se chegar à frente. E
quem navegou na crista dessa onda, já 029
partilhada por Minas e São Paulo, foi Jo-
prida a demorada viagem transatlânti- diata; se ficasse, a unidade manter-se- sé Clemente Pereira, destacado maçon
ca, foi no dia 9 de dezembro de 1821 que -ia, embora não fosse garantida a ade- e, então, presidente do Senado do Rio
aportaram ao Rio de Janeiro os decre- são cega às determinações das Cortes. de Janeiro, que no dia 9 de janeiro de
tos das Cortes que, decisivamente, te- Basicamente, a independência seria 1822 liderou uma grande manifestação
rão levado à opção final do príncipe. O uma inevitabilidade, mais tarde ou popular para pedir a permanência do
território brasileiro seria destituído da mais cedo, sendo claro que nem uma príncipe regente. Citamo-lo, a partir de
sua unidade, e a ele próprio, D. Pedro, eventual restauração do absolutismo Armitage, sendo de notar que a retóri-
era ordenado o regresso a Portugal, sob poderia alterar as coisas, devolvendo ca independentista ainda não era total-
pretexto de uma espécie de digressão aos territórios brasileiros o estatuto de mente clara: “Demorai-vos, Senhor,
constitucionalista por países europeus. reino, atendendo a que o ideário libe- entre nós, até dar tempo que o Sobera-
Se desde o início se notou que, embora ral ia por lá tendo mais força. Assim, D. no Congresso [nota: as Cortes Consti-
perfilhando o ideário liberal, o herdei- Pedro dava a entender que se prepa- tuintes de Lisboa] seja informado do
ro de D. João VI não concordava com a rava para regressar a Portugal, mas es- ultimo estado das cousas neste Reino,
submissão às Cortes da Coroa, vendo tava ao corrente (e envolvido nelas, e da opinião que nelle reina. Dai tem-
nesta a entidade a quem competia dando assentimento) de movimenta- po a que receba as representações hu-
aprovar a Constituição que lhe pareces- ções no sentido oposto. Uma das mais mildes deste povo constitucional e fiel,
se adequada e outorgá-la à Nação, tor- notórias foi o Manifesto dos Paulistas unidas ás das mais Provincias. Dai
na-se fácil perceber como viu nestas datado da véspera de Natal de 1821, re- tempo a que todos corrão para estre
medidas uma ofensa que não estava digido por José Bonifácio de Andrada centro de unidade; que se ellas vierem,
disposto a acatar. Embora tenha come- e Silva (a quem a posteridade conferiu a patria será salva, aliás sempre esta-
çado por fingir fazê-lo. o estatuto de Patriarca da Indepen- rá em perigo. Dai afago aos votos dos
Era também cada vez mais pressio- dência), pedindo a permanência de D. seus filhos do Brazil.”
nado pelos independentistas, que não Pedro, a cujas mãos chegou no primei- A resposta de D. Pedro (se realmen-
admitiam a ideia de ver as províncias ro dia de 1822. Outra, ainda mais mar- te o disse ou não é o que menos impor-
brasileiras seguir caminhos separa- cante, foi um texto redigido alguns dias ta) foi dada no dia seguinte e ficou gra-
dos, colocando ao regente as condi- antes por Francisco de Santa Teresa Je- vada a letras douradas na mitologia na-
ções que ele transmitia ao rei, em Lis- sus Sampaio, um franciscano consti- cional brasileira: “Como é para bem de
boa: se deixasse o Brasil, a indepen- tucionalista, apelando igualmente à todos e felicidade geral da Nação, es-
dência seria uma consequência ime- permanência de D. Pedro e posto a cir- tou pronto. Diga ao povo que fico.”
TEMA DE CAPA

O Ipiranga, riacho junto


ao qual D. Pedro gritou
“Independência ou
morte!”, ainda corre na
megalópole de São Paulo

Um regente mais brasileiro fevereiro, quando a guarnição que o


Primeiro “Dia da Ficada”, depois “Dia iria render chegou, de facto, mas nem
do Fico”, esse foi o verdadeiro momen- desembarcou, apenas podendo rea-
to de viragem em todo este processo. bastecer as tropas sitiadas para a via-
D. Pedro insistia ainda, como aliás pre- gem de regresso. Todos voltaram a
tendia o manifesto, na ideia de Reino Portugal sem que se desencadeassem
Unido. Ou seja, estaria ele à frente de hostilidades, até porque, afinal de con-
um Reino do Brasil unido ao de Portu- tas, quem estava do outro lado era o
gal (e dos Algarves) e rejeitando o pla- herdeiro da coroa portuguesa.
no traçado pelas Cortes vintistas. E foi A partir daí sucederam-se medidas
nesse pressuposto que desde logo, que, não sendo claramente secessio-
após a pronta demissão dos ministros nistas, acabavam por o ser na essên-
que sobravam na regência, nomeou cia. Qualquer determinação que che-
novos ministros: Manuel António Fari- gasse das Cortes de Lisboa ao Brasil
nha (Marinha); Joaquim Oliveira Alva- não podia ser aplicada sem análise
res (Guerra); Caetano Pinto de Miranda prévia e aprovação pela regência. Era
Montenegro (Fazenda); José Bonifácio interdito o desembarque no Brasil de
de Andrada e Silva (Reino e Negócios tropas idas do Portugal europeu. Por
Estrangeiros). iniciativa de José Bonifácio, era criado
Central no processo de independên- um Conselho de Procuradores das
cia, José Bonifácio, eminente e muito províncias, que, na prática era um con-
viajado naturalista, mas também fer- traponto constituinte às Cortes de Lis-
030 voroso monárquico, só aceitou a no- boa. Escrevia D. Pedro a D. João VI, em
meação face à garantia de que D. Pe- 14 de março (apud Eugénio dos San-
dro não abandonaria o Brasil fosse em tos): “Meu Pai, e Meu Senhor – Desde
que circunstâncias fosse (acabou por que a Devisão Auxiliar sahio, tudo fi-
sair quando abdicou do trono imperial cou tranquilo, seguro e perfeitamen-
em favor do filho, para combater pelo te adherente a Portugal; mas sempre
liberalismo em Portugal, pôr termo à conservado em si hum grande rancor
usurpação levada a cabo pelo irmão, D. a essas Cortes, que tanto têm, segun-
Miguel, e entregar o trono português à do parece, buscado aterrar o Brazil,
filha, Maria da Glória – mas isso são ou- arrazar Portugal, e entregar a Nação
tros quinhentos, e a consumação da in- á providencia (…) Os Brazileiros e eu
dependência desobrigava-o da pro- somos Constitucionaes, mas Consti-
messa feita a José Bonifácio). tucionaes, que boscamos honrar o So-
O principal obstáculo a estas movi- berano por obrigação de subditos, e
mentações era a Divisão Auxiliadora, para nos honrarmos a nós, por tanto
contingente militar destacado da me- a raiva he só a essas ficciosas Cortes
trópole para o Brasil na sequência da e não ao systema de Cortes delibera-
revolta pernambucana de 1817 e co- tivas, que esse systema nasce com o
mandado por Jorge de Avilez Zuzarte homem, que não tem alma de servil e
de Sousa Tavares (1.º conde de Avilez). que aborrece o Despotismo.”
Era este, na prática, o comandante mi- Ou seja, fiel ao soberano, mas... An-
litar do Rio de Janeiro (tinha sido ele tes de partir para Portugal, D. João VI
quem pressionara D. Pedro a jurar as terá desabafado com o filho sobrevivo
Bases da Constituição), e desde logo se mais velho (o primogénito de D. João VI,
deparou com dissensões no seio das Francisco António, morrera em 1801,
próprias tropas, havendo larga adesão com seis anos) que, a perder o Brasil,
à causa de D. Pedro. Recusando-se a que o fosse para ele. E em posteriores
abandonar o território antes de ser confidências epistolares alertava D. Pe-
rendido, o comandante militar procu- dro para os conluios entre o irmão des-
rou refúgio em Niterói, mas apenas re- te, D. Miguel, e a mãe, D. Carlota Joaqui-
sistiu à pressão do príncipe até 15 de na. Assim sendo, de algum modo, o re-
031
TEMA DE CAPA

José Clemente Pereira,


presidente do Senado do
Rio de Janeiro, que levou
D. Pedro a dizer “Fico!”
em janeiro de 1822

gente do Brasil sentia ter liberdade para


tomar o rumo que lhe parecesse ade-
quado, mesmo tomando este o cami-
nho da efetiva independência. E a mis-
siva, com a importância simbólica de
ser dirigida ao soberano, rejeitando a
subalternização a que este era votado
pelos constituintes portugueses, desti-
nava-se a ser entregue às Cortes, pas-
sando mensagens muito claras contra
estas: a recusa de tropas portuguesas
no Brasil, causadoras de instabilidade,
a profunda desconfiança do povo bra-
sileiro face ao Parlamento lisboeta ou,
ainda, a retórica de colónia revoltada
pelos recursos ali sugados pela metró-
pole (isto, escrito por um membro da
dinastia reinante, pode ser entendido
apenas como um exercício de realpoli-
tik e de adaptação às novas circunstân-
cias). A bibliografia não dá conta do
efeito imediato que esta missiva, em
032 que a ameaça da independência era
também bastante clara, teve junto das
Cortes Constituintes. Do outro lado do outros apelavam ao regente, acenando- mas também para pôr cobro a algumas
mar, cada vez com maior nitidez, o des- -lhe com a glória de fundar um novo dissensões internas que não interessa
tino estava traçado. império, e a Maçonaria levava a que o aqui pormenorizar. Contrariamente ao
Viajou depois o príncipe regente por declarassem protetor e defensor per- que houvera em Minas, particularmen-
Minas Gerais, sendo aclamado pela po- pétuo e constitucional do Brasil. te em Vila Rica, os paulistas não haviam
pulação, mesmo onde originalmente se Em junho, escrevendo ao rei, já eram formado um partido português. Ou
esperava que fosse contestado (pela mais do que claras as intenções que o seja, a viagem tinha praticamente tudo
guarnição presente em Vila Rica, hoje moviam: “Eu ainda me lembro e me para correr bem.
Ouro Preto). A rápida adesão dos mi- lembrarei sempre do que Vossa Ma- E teve, de um ponto de vista naciona-
neiros era um sucesso inesperado, mas gestade me disse (…) Pedro, se o Brasil lista brasileiro, mesmo quando correu
a curta ausência (três semanas) do re- se separar, antes seja para ti, que me mal. O resto do mês de agosto e o início
gente era suficiente para que do Rio de hás de respeitar, do que para algum de setembro foram, no essencial, dias
Janeiro as notícias o fizessem regressar. desses aventureiros. Foi chegado o mo- de festa e de união do povo de São Pau-
Não só as notícias que chegavam de mento da quase separação e estriba- lo em torno do defensor perpétuo do
Lisboa, dando conta do tratamento que do eu nas eloquentes e singelas pala- Brasil. D. Pedro, apesar de alguns pro-
os deputados brasileiros recebiam nas vras expressadas por Vossa Magesta- blemas pontuais e bastante incómodos
Cortes, onde se chegou a defender uma de, tenho marchado adiante do Brasil, de saúde (diarreias constantes e vómi-
intervenção militar na capital brasilei- que tanto me tem honrado.” tos) sentia-se ainda mais brasileiro do
ra, mas também algumas vozes que no que após o regresso de Minas Gerais ao
Rio se manifestavam para derrubar o “Independência ou morte!” Rio de Janeiro. Até que, em 7 de setem-
ministério instituído na sequência do Nova viagem, empreendida por D. Pe- bro de 1822, a comitiva do regente es-
“Fico”. D. Pedro controlou a situação, e dro em 14 de agosto de 1822, acabaria tava nas colinas sobranceiras a um pe-
a viagem a Minas Gerais foi um novo por resultar no momento mais marcan- queno ribeiro chamado Ipiranga (nome
ponto de viragem, fazendo do regente te e decisivo do processo independen- derivado da língua tupi, significando
cada vez mais brasileiro, o que se nota- tista. Aventurar-se-ia pela província de “rio vermelho”), quando chegou da ca-
va, inclusivamente, na forma como São Paulo, território para ele desconhe- pital brasileira um estafeta com correio
passou a redigir as missivas enviadas cido, não só para tentar obter uma glo- muito urgente. Entre outras missivas,
para a ainda metrópole (“nós brasilei- rificação popular semelhante à que lhe havia novas referentes às decisões das
ros”). Entretanto, textos na imprensa e havia sido dedicada em Minas Gerais, Cortes Constituintes de Lisboa. Resu-
Thomas Cochrane,
almirante escocês
contratado pelo Brasil,
reprimiu revoltas no pós-
-independência

peia formada após as guerras napoleó-


nicas para preservar as monarquias
absolutas), que poderia intervir mili-
tarmente na Bahia, para a partir daí, re-
por o que entendia ser a legitimidade
de D. João VI. Sendo um país acabado
de formar (ou de inventar), o jovem
Brasil tinha um poderio militar inci-
piente, e foi necessário contratar ofi-
ciais europeus, como o francês Pierre
Labatut ou o almirante escocês Tho-
mas Cochrane, para pôr cobro à sedi-
ção dessas províncias. No Nordeste,
porém, a coisa foi mais dura. A partir
de Pernambuco, em 2 de julho de 1824,
um movimento separatista de carácter
republicano quis formar um novo país,
a Confederação do Equador, a que se
esperava a adesão de várias províncias
(Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará e,
eventualmente, Piauí e Pará). Para pôr
cobro à revolta, D. Pedro contratou tro-
pas estrangeiras, que colocou sob o co- 033
mando de Cochrane, sendo a repres-
midamente, D. Pedro deixava de ser re- príncipe regente, a frase terá sido esta: são particularmente dura e envolven-
gente, passando a mero delegado das “É tempo. Independência ou morte! Es- do a condenação à morte de 31 revolto-
Cortes e apenas nas províncias do Rio tamos separados de Portugal.” sos (alguns conseguiram fugir). Não
de Janeiro, de Minas Gerais e de São Sobrou a frase “Independência ou obstante a sedição ter resultado, ao que
Paulo (as outras ficavam na dependên- morte!”, conhecida para a posteridade indicam várias fontes, de conflitos po-
cia direta das Cortes), Lisboa tornar-se- como o “Grito do Ipiranga”. Francisco de líticos de natureza local, Pernambuco
-ia formalmente a sede do governo bra- Castro Canto e Melo, um dos acompa- viu ser-lhe retirada, como punição, a
sileiro, havendo lugar à nomeação de nhantes do príncipe, relatou que este Comarca do Rio de São Francisco (hoje
um novo ministério, o Conselho de Pro- erguera o sabre enquanto fazia a solene integrada no estado da Bahia), tal como
curadores a que atrás aludimos era dis- proclamação, tendo depois arrancado em 1817, na sequência da revolta a que
solvido. E os que houvessem contraria- do chapéu o laço azul que o vinculava à aludimos no início deste artigo, havia
do até aí decisões das Cortes ficavam monarquia portuguesav e arremessan- perdido a Comarca das Alagoas (hoje
sob a alçada da lei e com julgamentos do-o para quão longe conseguiu. ela própria um estado).
no horizonte. No correio que D. Pedro Evidentemente, não podemos es- Nada disto era suficiente para o Bra-
recebera da sua capital havia, ainda, crever aqui “e viveram felizes para sil, como país, seguir o seu rumo. O re-
uma missiva de José Bonifácio: “Se- sempre”, colocando um ponto final conhecimento internacional era o pas-
nhor, o dado está lançado e de Portu- nesta história. O regresso ao Rio de ja- so mais necessário, e, como já notámos
gal não temos a esperar senão escra- neiro foi rápido, a aclamação solene de noutro lugar, os Estados Unidos foram
vidão e horrores. Venha V. A. R. o quan- D. Pedro como imperador foi feita logo o primeiro país a fazê-lo, em maio de
to antes e decida-se.” no aniversário natalício do novo mo- 1824. Mas mais importante, ao tempo,
O que se seguiu tanto será do domí- narca, em 12 de outubro. Mas a adesão foi o reconhecimento por parte de In-
nio da história como do da lenda, pois à independência não era comum a to- glaterra e de Portugal, negociado entre
quem fazia relatos queria marcar o mo- das as circunscrições brasileiras. Pro- as duas nações europeias, com o Brasil
mento seminal do Brasil independente víncias como a Bahia, Pernambuco, o a ter de indemnizar a velha metrópole
com quanta grandeza lhe concedesse a Piauí, o Maranhão ou o Pará permane- com dois milhões de libras. A partir daí,
pena, o mesmo sucedendo com os que, ciam fiéis a Portugal. Isso, mais do que os restantes países foram aderindo ao
na posteridade, fizeram representações a divisão interna, implicava a possibi- reconhecimento, e o caminho do Bra-
iconográficas desse momento. Os rela- lidade de uma ameaça externa, corpo- sil independente deixou de ser o cami-
tos coincidem na postura solene do rizada pela Santa Aliança (aliança euro- nho da independência do Brasil.
TEMA DE CAPA

COMEMORAÇÕES
PARA TODOS
OS GOSTOS NO
BRASIL TODO
Texto de Thais Vieira

034

A
imagem do impera-
dor D. Pedro I gritan-
do “Independência
ou morte!”, na mar-
gem do Rio Ipiranga,
em 7 de setembro de
1822, está no imaginá-
rio da Nação brasileira, que, entenden-
do que o bicentenário é um marco im-
portante, está também profundamente
marcada pela desesperança, pela ideia
de fracasso nacional, pela crise econó-
mica e política. Não é o melhor mo-
mento para a autoestima coletiva de
uma população ansiosa por melhores
dias, mas um vasto programa de come-
morações, tanto de iniciativa pública
como privada, pode ajudar a fortalecer
a ligação do povo brasileiro à sua histó-
ria e à sua identidade comum.
Desde logo as comemorações ofi-
ciais em Brasília, de que pouco se tem
sabido, em que Portugal estará repre-
sentado ao mais alto nível, com a pre-
sença do presidente da República, Mar-
celo Rebelo de Sousa, no Palácio do Pla-
nalto. Ou ainda com a comparência já
confirmada do presidente da Assem-
bleia da República, Augusto Santos Sil-
Brasília, capital da D. Pedro IV de Portugal,
República Federativa à morte apenas duque de
do Brasil, acolhe as Bragança, legou à cidade
comemorações oficiais do Porto o coração que
do bicentenário agora vai ao Brasil

mol, que bateu pela última vez em ter-


ritório brasileiro quando o duque de
Bragança, que havia abdicado do trono
brasileiro em favor do filho, D. Pedro II,
partiu para se envolver nas guerras li-
berais em Portugal e repor no legítimo
lugar de rainha a filha Maria da Glória,
D. Maria II de Portugal.
Traçamos nestas páginas uma pano-
râmica sobre atividades desenvolvidas
em solo brasileiro, mas não só, assina-
lando o bicentenário. Algumas de pen-
dor científico, outras de cunho artísti-
co, outras de maior peso simbólico,
como é o caso da reabertura do Museu
do Ipiranga (na realidade, chama-se
Museu Paulista da Universidade de São
Paulo), em cuja coleção se encontra o
famoso óleo sobre tela “Independência
ou morte”, da autoria de Pedro Améri-
co, que surge também na capa desta
edição da JN História. Este museu ocu-
pa a extremidade do Parque da Inde- 035
pendência oposta àquela onde se en-
contra o monumento que serve de
mausoléu ao primeiro imperador do
Brasil, junto ao riacho Ipiranga, que fi-
cou na história como lugar de afirma-
ção do Brasil independente.

Apoio ao audiovisual
Ao longo do ano tem havido, um pouco
por toda a parte, a evocação do bicen-
tenário tem sido marcada por exposi-
ções, concursos, publicações e home-
nagens de natureza muito variada. A
coordenação nacional dos eventos está
a cargo da Secretaria Especial da Cul-
tura, órgão do governo federal depen-
dente do Ministério do Turismo, em
parceria com a Secretaria Especial de
Comunicação Social, esta integrada no
Ministério das Comunicações. Além de
va, na sessão evocativa levada a cabo dor, que foi D. Pedro IV de Portugal e coordenar, claro, também levam a cabo
pelo Senado brasileiro. Mas o mais sim- manifestou às portas da morte o dese- iniciativas próprias, como a criação de
bólico envolvimento de Portugal nas jo de que esse órgão ficasse para sem- um fundo de 30 milhões de reais (cer-
comemorações do bicentenário está pre no Porto, em digressão pelo país ca de 5,7 milhões de euros) para apoiar
relacionado com a cidade do Porto e a durante um ano. Tal é impraticável, produções audiovisuais (de ficção e não
trasladação temporária do coração de também por razões de conservação e ficção, longas e curtas-metragens ou
D. Pedro, que será acompanhada pelo proteção desse legado, pelo que a per- séries, incluindo trabalhos de anima-
presidente da Câmara Municipal, Rui manência em território brasileiro está ção) dedicadas à independência brasi-
Moreira. A ideia do governo brasileiro limitada a 20 dias. Salvas de canhão re- leira. Há também programação disper-
passava por levar o coração do impera- ceberão o coração conservado em for- sa, em museus de todo o país, coorde-
TEMA DE CAPA

Museu Paulista
da Universidade de São
Paulo, conhecido por
“Museu do Ipiranga”,
reabre com o bicentenário

nada pelo Instituto Brasileiro de Mu-


seus (Ibram).
Muitas das iniciativas não versam
necessariamente o processo que levou
à independência, mas também o per-
curso de dois séculos que a República
Federativa do Brasil leva como Estado
soberano. É o caso de uma exposição
levada a cabo pelo Ministério das Rela-
ções Exteriores (cuja fundação é ante-
rior à própria independência), em Bra-
sília, com conteúdos audiovisuais de-
dicados ao percurso da diplomacia bra-
sileira através dos tempos, a qual é as-
sociada a promoção de seminários e
debates. A exposição pode ser vista, em
ambiente virtual, a partir de qualquer
canto do mundo.
Mas a capital do Brasil imperial, cla-
ro, era o Rio de Janeiro, onde destaca-
mos, até por ter marcado o arranque
das comemorações, a exposição dedi-
036 cada ao reino do Brasil (embora este só
tenha sido criado em 1815, a exposição
recua a 1808 e à instalação da Corte no
Rio). Não muito longe, em Petrópolis, o
Museu Imperial inaugurou, no início do
ano, uma mostra dedicada à figura de
D. Pedro II e às ligações deste a Portu-
gal, através de manuscritos, fotografias
e objetos do acervo da instituição.
Continuando no Rio de Janeiro e
centrando-nos no dia 7 de setembro, te-
remos de destacar o grande festival
montado pela Prefeitura local para as- Instituto Camões e da Universidade de posta especificamente para este propó-
sinalar a efeméride, batizado de “Re- Coimbra, esta iniciativa que junta várias sito. Em termos editoriais são muitas as
veillon da independência” e agendado instituições (como o jornal “Folha de S. iniciativas, mas podemos dar relevo,
para a Quinta da Boa Vista (onde se en- Paulo”, o Projeto República, núcleo de também, à coleção “Bicentenário: Bra-
contra o Palácio de São Cristóvão, resi- investigação da Universidade de Minas sil 200 Anos”, lançada pela Fundação
dência real/imperial no Rio de Janei- Gerais ou a Associação Portugal Brasil Alexandre de Gusmão e abarcando li-
ro, onde estava instalado o Museu Na- 200 Anos) congregou personalidades vros não necessariamente ligados ao
cional, devastado por um incêndio em de várias áreas (história, sociologia, processo de independência, mas aos
2018). Com início às 17 horas de 6 de se- ciência política, direito, antropologia, dois séculos cumpridos pelo Brasil in-
tembro, o evento é uma sucessão con- jornalismo, literatura, fotografia e artes dependente.
tínua, ao longo de 24 horas, de espetá- visuais) para se chegar a “uma lista de Muito importante, em especial pela
culos, exposições, atividades artísticas 200 livros que os brasileiros e o mundo capacidade de mobilização, é também
e, claro, uma importante componente devem ler para entender melhor o Bra- a exposição virtual “A Independência
gastronómica. sil”. No âmbito desse projeto, foi produ- exposta”. Resultante da Olimpíada Na-
zido o podcast “200 livros, 200 histó- cional em História do Brasil, promovi-
Os livros essenciais rias”: cada livro foi narrados por vozes da pela Universidade Estadual de Cam-
Outra iniciativa muito relevante – e com conhecidas da língua portuguesa e pinas (Unicamp), a mostra revela os
ligações diretas a Portugal – é o projeto acompanhado por música do maestro trabalhos de 5586 alunos de escolas pú-
“200 anos. 200 livros”. Com apoios do Pedro Teixeira da Silva Campos, com- blicas de todo o Brasil, podendo ser vis-
Museu Imperial
de Petrópolis (estado do
Rio de Janeiro), instalado
no palácio de verão do
imperador D. Pedro II

037

entre outros, o certificado de matrícu- ao tema “Mulheres na Independência


la do primeiro aluno que alguma vez do Brasil”. O encontro será inspirado
saiu do Brasil para estudar em Coim- nas obras “Sobreviventes e Guerreiras -
bra. Ora é esta mesma exposição, que Uma breve historia da mulher no Bra-
tem também a colaboração da Associa- sil de 1500 a 2000”, da escritora Mary
ção da Imprensa de Pernambuco e da Del Priore, e “Mulheres do Brasil – A
Associação Portuguesa de Imprensa, história não contada”, de Paulo Rezutti.
que a partir de setembro estará paten- Estes livros refletem sobre a impor-
te na Biblioteca Geral da Universidade tância do papel da mulher na socieda-
de Coimbra. de brasileira no decorrer dos séculos,
ta em https://exposicoes-onhb.sur- Também as comemorações do cen- trazendo à tona histórias eventualmen-
ge.sh. Ao todo, são 1862 exposições (fa- tenário da primeira travessia aérea do te ignoradas pela historiografia.
lamos em trabalhos coletivos, daí a dis- Atlântico Sul, a que a JN História dedi- Também para assinalar o bicentená-
crepância com o número de alunos), cou a edição de fevereiro último, foram rio, a Câmara dos Deputados (câmara
cada uma repartida por quatro paredes enquadradas, aqui e ali, no espírito de baixa do Parlamento brasileiro) lançou
imaginárias em que se explanam os celebração do bicentenário da indepen- recentemente “A Imprensa no Proces-
mais variados temas ligados à génese dência (o centenário desta, em 1922, era so de Independência do Brasil: Hipóli-
do Brasil independente. um dos pretextos para o histórico raide to José da Costa, o Correio Braziliense e
A ligação de Portugal às comemora- de Gago Coutinho e Sacadura Cabral). as cortes de Lisboa de 1821”, da autoria
ções brasileiras não se cinge à progra- de José Theodoro Mascarenhas Menck.
mação oficial. Por exemplo, de março Das mulheres à imprensa A publicação integra uma coleção, lan-
a maio últimos, a Galeria Massangana, Prestes a finalizarmos esta resenha de çada a partir de 2017, pensada para pre-
no Recife (Pernambuco), teve patente atividades, é importante, também, no- servar a memória dos acontecimentos
a exposição “A Universidade de Coim- tar como ações de menor dimensão po- que culminaram na proclamação da in-
bra e a Independência do Brasil”, de as- dem ter grande impacto junto da popu- dependência. Neste caso, descreve-se
sinalável sucesso, em que a mais anti- lação. Ao longo de vários dias, em se- a trajetória de Hipólito José da Costa e
ga universidade portuguesa colaborou tembro, a biblioteca da Fábrica da Cul- do “Correio Braziliense”, considerado o
com o empréstimo de documentos his- tura Vila Curaçá (São Paulo) promove primeiro jornal brasileiro e porta-voz
tóricos relevantes para o tema, como, um encontro de leitores subordinado dos brasileiros daquela época.
DESTAQUE

JOSÉ
«José Liberato Freire
de Carvalho, já como
jornalista, já como literato,
foi devidamente
apreciado pelos seus
contemporâneos e os
seus dotes pessoais lhe LIBERATO:
O DEFENSOR
adquiriram muitos amigos.
Dotado de honestidade
e probidade a toda a prova,
amigo sincero do seu país,

DOS FOROS
propugnador constante,
na imprensa e na tribuna,
pelos foros do povo,
inimigo da tirania,

DO POVO
o seu caráter nem uma
só vez foi desmentido».
[A Revolução de Setembro, 4 de abril de 1855]

038
Texto de José Domingues

N
No bicentenário da tucional doutrinária pré-revolucioná-
[Universidade Lusíada (Porto) / CEJEA] Revolução Liberal e ria, publicada em vários números do
e Vital Moreira do constitucionalis- periódico da emigração portuguesa
[Universidade Lusíada (Porto) / mo moderno em que fundou e dirigiu em Londres, o
Universidade de Coimbra / CEJEA] Portugal, cuja evoca- Campeão Português (1819-1821), onde
ção continua a de- pugnou por uma constituição moder-
correr por todo o na para Portugal, que consignasse os
país, não podíamos deixar de relem- aspetos fundamentais seguintes: (i) so-
brar o vulto maior do conimbricense berania constituinte da nação; (ii) siste-
José Liberato Freire de Carvalho (1772- ma político representativo (Cortes); (iii)
-1855), que ficou conhecido simples- separação de poderes; (iv) direitos e li-
mente como José Liberato (cognome, berdades individuais; (v) formalização
aliás, por ele adotado), não só porque do “pacto constituinte” num código
este ano se comemoram os 250 anos constitucional. Por isso, o grande his-
do seu nascimento, mas sobretudo toriador da Revolução de 1820 (José de
porque ele foi um dos principais fun- Arriaga, 1886: p. 481) viria a reconhe-
dadores doutrinários do regime políti- cer-lhe o elevado mérito de “valente e
co-constitucional instituído durante o futuro campeão das ideias liberais e
“triénio liberal” português (1820-1823), democráticas”.
o qual, apesar de efémero, deixou uma Por razões óbvias, nomeadamente
pegada indelével no constitucionalis- de espaço e adequação aos propósi-
mo português, perdurando ao longo tos da JN História, a análise da referi-
das duas centúrias seguintes e conti- da proposta constitucional e do pen-
nuando a refletir-se na atual Constitui- samento político-constitucional de
ção republicana de 1976. José Liberato ficam reservados para
Embora por vezes qualificado como estudo a editar em livro. Além disso,
um “tradicionalista”, por ter começa- este artigo também não tem preten-
do por propugnar a recuperação das sões de traçar uma biografia exausti-
antigas Cortes, José Liberato foi o au- va, limitando-se a relatar os momen-
tor da mais completa proposta consti- tos mais significativos de uma vida
039
DESTAQUE

040
particularmente agitada, que, segun- Fachada da igreja de
do as palavras do próprio, “por mais Santa Cruz (Coimbra)
de uma vez teve a cabeça debaixo do em cujo mosteiro
cutelo do sacrificador”, quando afin- José Liberato
cadamente procurava que “essa lei ingressou quando
sagrada, a lei constitucional, seja tinha 15 anos
uma realidade e não uma ficção ou
uma mera aparência sobre um tea-
tro político” (José Liberato, 1832: p. 1). Em 1795, Liberato
Para a sua preparação, compulsámos foi para o mosteiro
os testemunhos autobiográficos lega- de Refoios do Lima,
dos pelo próprio José Liberato (no- também dos
meadamente, as Memórias da vida, Cónegos Regrantes
editadas no ano da sua morte, mas já deSanto Agostinho
a título póstumo), as monografias e as
entradas de dicionários, cujo objeto formado em Cânones no ano de 1762, convento de Refoios do Lima (Ponte de
principal se focou na sua vida e obra foi mordomo da Universidade de Lima), da mesma ordem. Durante a
(ver a bibliografia seletiva, em anexo), Coimbra – e de Maria Joaquina Sequei- clausura monacal, concluiu os estudos
bem como algumas passagens espa- ra de Carvalho. Até aos 15 anos de ida- de humanidades e teológicos e mante-
lhadas por uma bibliografia assaz ex- de viveu em casa dos seus pais, onde ve o contacto com o ambiente político
tensa, nomeadamente a da imprensa foi educado no âmbito das letras e da europeu, sobretudo o gerado pela Re-
da emigração londrina. língua latina. Em 1787, com apenas 15 volução Francesa (1789), através do Cor-
anos, ingressou no Mosteiro de Santa reio da Europa e dos livros que o seu ir-
A clausura monacal Cruz de Coimbra, da Ordem dos Có- mão António Freire de Carvalho (D. An-
e o início da carreira literária negos Regrantes de Santo Agostinho, tónio da Visitação), também da mesma
José Freire de Carvalho nasceu em adotando o nome religioso de D. José ordem, lhe enviava a partir do mosteiro
Montessão, São Martinho do Bispo do Loreto. de Grijó (Vila Nova de Gaia). Entretanto,
(Coimbra), no dia 20 de julho de 1772 (e Anos mais tarde (1795), procurando em 1794, quando tinha apenas 22 anos,
foi batizado a 27 desse mês), sendo fi- um local mais sossegado e distante de publicou a tradução para português da
lho de Aires António Antunes Freire – Coimbra, pediu transferência para o Arte de pensar do abade de Condillac
(que saiu sem o nome do tradutor). Fachada
Nas suas Memórias da vida, José Li- da igreja do Mosteiro
berato fez questão de manifestar a pro- de São Salvador
ximidade que manteve com o seu ir- de Grijó, no concelho
mão, que terá exercido influência na de Vila Nova de Gaia
sua decisão de ingressar na vida mo-
nástica e lhe prestou auxílio para a tra-
dução da referida obra do abade de
Condillac. Na realidade, grande parte
da sua vida foi determinada pelas pisa-
das desse irmão mais velho. Em 1800,
foi chamado a Lisboa para exercer as
funções de professor substituto de Ló-
gica, na escola do mosteiro de São Vi-
cente de Fora, onde o irmão era biblio-
tecário. Na escola de São Vicente, che-
gou a ser nomeado “proprietário” da
cadeira de Retórica e Eloquência.
Em 1804, foi admitido como sócio
efetivo da Academia Real das Ciências Em 1800, José
para ocupar o lugar que, por morte do Liberato ensinava
referido irmão, tinha ficado vago; a car- Lógica na escola
ta de sócio foi-lhe entregue no dia 21 do Mosteiro de São
de novembro de 1804, por mão do Vicente de Fora,
vice-secretário da Academia, António em Lisboa
Caetano do Amaral. Manteve-se como
sócio efetivo desta instituição cultural
durante praticamente 50 anos, até que,
em 1853, se demitiu, por ter sido pas-
sado para a categoria de “sócio nume- 041
rário”, por alegados motivos de rees- ram em Coimbra e saquearam a cida- até agosto de 1813. Foi “entre os ferros
truturação interna da Academia. de. Foi espoliado dos seus bens – de- e na obscuridade e tormento das pri-
Durante esta primeira passagem por monstrando o seu apego às letras e aos sões” que, no dia 13 de fevereiro de
Lisboa, em 1802, ingressou na loja ma- livros, lamentou particularmente a 1813, concluiu a tradução dos Anais de
çónica Fortaleza, do Grande Oriente perda do livro com as obras de Tácito, Tácito (José Liberato, “Advertência”
Lusitano, adotando o nome simbólico cujos Anais estava a traduzir – e foi fei- aos Anais de Tácito).
de Spartacus (embora, já desde 1738, o to prisioneiro do exército francês.
Papa Clemente XII tivesse proibido os Os anos que se seguiram foram dos Primeiro exílio em Londres
católicos de se tornarem membros de mais tormentosos para Freire de Car- e a imprensa da emigração
lojas maçónicas). Em 1805, por ordem valho, tendo sido alvo de “uma prolon- Em agosto de 1813, aquando da sua
da Intendência da Polícia, foi desterra- gada, bárbara e despótica persegui- transferência do mosteiro de Santa
do de Lisboa para o convento de Grijó ção de mais de dois anos, sem proces- Cruz de Coimbra para o mosteiro de
(Vila Nova de Gaia), onde terá sido bem so nem sentença” (José Liberato, “Ad- Refoios de Lima, conseguiu escapar
recebido e onde foi nomeado provisor vertência” aos Anais de Tácito). Efeti- aos guardas e exilar-se em Londres.
e vigário-geral e, posteriormente, car- vamente, esteve várias vezes em risco No Porto, obteve um passaporte em
tulário do mosteiro. de perder a vida e foi privado da sua nome de Manuel Rodrigues, criado do
O período das invasões francesas ao liberdade durante praticamente três negociante Mr. Smith. Na Corunha,
território nacional (1807-1810) alterou anos, sem sequer saber quais os cri- conseguiu outro passaporte falso em
completamente o rumo da sua vida. mes de que era acusado; de 5 de outu- nome de José Liberato (cognome que
Em 1808, durante a primeira invasão bro de 1810 a 15 de março de 1811, es- adotou e manteve até ao final dos seus
francesa, foi mandado regressar a Lis- teve preso às mãos dos soldados fran- dias) e embarcou para o primeiro exí-
boa, ao convento de São Vicente de ceses do marechal Massena; depois de lio em Londres.
Fora. No início do ano de 1809, pediu ter conseguido fugir do cativeiro fran- Chegou à capital britânica no final
ao prior para ir visitar a família a Coim- cês, no dia 28 de maio de 1811 foi um do ano de 1813 e foi de imediato admi-
bra e por lá se manteve até finais de dos presos da setembrizada – que tido para redator principal do periódi-
1810. Durante a terceira invasão fran- perseguiu várias personalidades por co O Investigador Portuguez em In-
cesa (comandada por Massena), foi alegada colaboração com os franceses glaterra (o número de janeiro de 1814
aconselhado a ir para a cidade do Por- e suspeitas de ligação à maçonaria – e já saiu sob a sua direção), em substi-
to e embarcar para Londres. Mas não enviado para o convento de Santa Cruz tuição do redator Bernardo José
foi a tempo! As tropas francesas entra- de Coimbra, onde esteve prisioneiro Abrantes e Castro, entretanto regres-
DESTAQUE

Procuração te regressassem ao berço da monar-


passada por quia (O Investigador Português, junho
José Liberato de 1818: pp. 510-523).
Freire de Carvalho Estas considerações desagradaram
a partir ao governo no Brasil, que reagiu de
de Londres imediato. Passados quatro meses, no
dia 19 de outubro desse ano de 1818,
chegou a Londres um ofício do minis-
tro Tomás António de Vila Nova Portu-
gal (secretário de Estado e ministro in-
terino dos Negócios Estrangeiros), no
qual “vinham raios e coriscos contra
O Investigador e seus redatores, pela
Memória e Reflexões que nele se ti-
nham publicado” (José Liberato, 1855:
p. 167). Após ter tomado conhecimen-
to do ofício, José Liberato demitiu-se
do lugar de redator do Investigador,
decisão que comunicou de imediato
aos seus colegas de redação e, poste-
riormente, tornou pública aos corres-
pondentes do periódico.
O ministério do Rio de Janeiro não
fez demorar a represália e, em conse-
quência, cortou o subsídio que, desde
1811, concedia à edição do periódico.
Sem o apoio financeiro e sem José Li-
berato – que, conforme o próprio afir-
mou, “era tudo nessa empresa; quase
042 tudo o que nele se escrevia em nome
sado a Portugal. Durante quatro anos culo eleitoral de Viseu) às primeiras dos redatores era meu, revia as pro-
manteve-se ao leme deste periódico Cortes ordinárias vintistas (1822-1823). vas, emendava ou corrigia o que me
da emigração portuguesa, mas as crí- parecia necessário nos escritos
ticas do ministério do Rio de Janeiro O Campeão das alheios, tinha a correspondência com
levaram-no a renunciar ao cargo e a “liberdades individuais” o meu impressor e com todos os cor-
fundar o seu próprio periódico – O A iniciativa de fundar um novo perió- respondentes, tanto da Europa como
Campeão Português –, que veio a ser dico surgiu na sequência de um inci- do Brasil, e enfim, era eu também que
considerado “o jornal mais bem redi- dente com a coroa, sediada no Rio de fazia as remessas mensais para lá,
gido e o que teve mais direta influên- Janeiro havia mais de uma década, por assim como para Lisboa; os meus co-
cia na opinião pública, pela erudição causa de um texto publicado por José legas representavam dois guapos có-
do seu fundador e o prestígio do seu Liberato n’O Investigador Português. negos de uma rica catedral” (José Li-
nome” (José de Arriaga, 1886: p. 487). Efetivamente, em junho de 1818, nas berato, 1855: p. 169) –, só foram publi-
Foi a partir do exílio londrino que José Reflexões aditadas a uma Memória cados mais dois números (janeiro e fe-
Liberato ganhou notoriedade como que tinha sido enviada de Lisboa ao In- vereiro de 1819) e “o Investigador mor-
jornalista político e opositor ao regime vestigador, sobre a sede da monar- reu, quase de morte repentina, no
monárquico absolutista. quia portuguesa, José Liberato corro- princípio do ano da graça de 1819! E
Entretanto, tendo abandonado ha- borou a opinião do seu autor e aditou- morreu porque defendia a causa da
via muito a vida religiosa, e com a aju- -lhe argumentos para melhor a funda- pátria contra seus opressores” (José
da do embaixador português em Lon- mentar. Numa palavra, para ambos, Liberato, 1855: p. 169).
dres, o conde do Funchal, José Libera- Lisboa estava, geográfica e politica- O conde de Palmela, na altura em-
to obteve o “breve” papal de seculari- mente, mais bem posicionada do que baixador em Londres, ainda lhe fez
zação, outorgado pelo Papa Pio VII, a 6 o Rio de Janeiro para ser a capital do uma proposta para fundar um novo jor-
de abril de 1816, que obteve “termo de Reino Unido. Considerando que Lis- nal, adjudicando-lhe por inteiro a soma
execução” em Lisboa, a 30 de julho de boa ainda era de direito a sede da mo- que anteriormente era destinada ao In-
1817. Por isso, mais tarde, acabou por narquia, embora o não fosse de facto, vestigador e garantindo-lhe que essa
sair frustrada a tentativa de o excluir da José Liberato colocou pressão sobre o soma seria só para ele e que para o aju-
eleição parlamentar de 1822, tendo por poder régio para que esta premente dar “podia chamar quem quisesse,
base a sua suposta condição de ecle- questão política fosse definitivamen- sem que fosse obrigado a convidar al-
siástico regular. Provada a sua secula- te decidida, o mais rapidamente pos- gum dos antigos redatores, quando
rização, foi eleito deputado (pelo cír- sível, e que o rei ou o príncipe regen- isso me não conviesse” (José Liberato,
“Breve” papal
de secularização de
José Liberato Freire
de Carvalho,
outorgado pelo
Papa Pio VII

043
1855: p. 170). Mas José Liberato já tinha ro número, com o desígnio bem assen- centivar à revolução popular, Liberato
em mente fundar o seu próprio jornal, te de “concorrer para libertar o meu propugnava, porém, uma revolução
com total independência editorial, que país da dura escravidão em que esta- política pacífica como meio de evitar
contava com o apoio da comunidade va e da vil sujeição em que o tinha o aquela – “o Campeão Português, bem
mercantil portuguesa em Londres e, Brasil” (José Liberato, 1855: p. 194). longe de desejar revoluções na sua pá-
em particular, do seu amigo, Custódio Nascido como periódico quinzenal tria, se oporá constantemente a elas e
Pereira de Carvalho. Por isso, com a de- (que passou a semestral no final do só defenderá e pedirá uma revolução
vida cortesia, recusou a proposta de primeiro ano de publicação, em julho generosa e pacífica, feita pelo seu pró-
Palmela, alegando não tencionar pac- de 1820), Liberato deu-lhe o título su- prio rei e governo, para que o povo
tuar com o governo do Rio de Janeiro e gestivo de O Campeão Português ou o nunca a faça e até mesmo nem a de-
que, antes pelo contrário, como portu- amigo do rei e do povo, com o intuito seje fazer” (O Campeão Português, 1
guês, estava disposto a “defender sem- primordial de alçar “uma voz livre, in- de julho de 1819: p. 7).
pre corajosamente a minha pátria e la- dependente e enérgica” em defesa da No ano que se seguiu à sua fundação,
vava as mãos em todos esses tenebro- sua pátria oprimida, “sem curar de o Campeão ganhou grande notorieda-
sos planos de iniquidade que se esta- quantas perseguições lhe pode atrair de como jornal político de oposição,
vam tramando contra Portugal” (José esta nobre defesa” (O Campeão Por- combatendo o governo bicéfalo de D.
Liberato, 1855: p. 170). tuguês, 1 de julho de 1819: p. 4). João VI (a corte no Rio de Janeiro e a Re-
Da liquidação das contas com os ou- José Liberato iniciou assim o papel gência em Lisboa) e apresentando solu-
tros dois redatores do Investigador, fi- de opositor ao regime político vigente ções alternativas ao jugo que coartava
cou-lhe a módica quantia de “mil e e de precursor da Revolução Liberal Portugal. Poucos meses depois da sua
tantas libras”. Em abril de 1819, deci- portuguesa, o que o notabilizaria para fundação, O Campeão Português foi
diu viajar até Paris, regressando a Lon- sempre. O vetor fundamental nortea- proibido no Brasil e em Portugal, o que
dres passados dois meses (junho de dor da sua pena, na pretendida salva- só lhe teria angariado maior fama e au-
1819), levando no bolso o plano deli- ção da pátria, implicava a recuperação mentado a sua divulgação – “foi proibi-
neado para o novo periódico, que de da antiga Constituição portuguesa, que do no Rio de Janeiro, por um édito com
imediato pôs em prática: no final do se tinha perdido desde que os reis por- data de 15 de novembro de 1819, assi-
mês de junho, já tinha distribuído o tugueses tinham deixado de convocar nado pelo ministro Tomás António Vi-
prospeto do jornal pelos portugueses as Cortes gerais, no final do século lanova Portugal, documento notável
que residiam em Londres; e no dia 1 de XVII, havia mais de um século, conso- que os governadores do reino [a Regên-
julho de 1819 saiu a público o primei- lidando a monarquia absoluta. Sem in- cia em Portugal] simplesmente manda-
DESTAQUE

ram pregar pelas esquinas das ruas de revolução da Vila-Francada (27 de zeta de Lisboa e oficial da Secretaria de
Lisboa, sem o enriquecerem com maio de 1823). Estado dos Negócios Estrangeiros, de-
acréscimo algum da sua lavra. Foi para pois de restaurada a monarquia cons-
dar mais voga e fama ao jornal, o que O regresso à pátria titucional, com a outorga da Carta
sempre fazem as proibições, e eu fiz e o início da carreira política Constitucional (1826). No rescaldo das
também o que em tais casos se costu- A Revolução de 24 de agosto de 1820 Archotadas (manifestações noturnas
ma fazer: dei força às minhas palavras abriu-lhe as portas de regresso à pá- de populares munidos de archotes,
e, com elas, acreditei mais a minha tria. Antes da partida de Londres, ain- ocorridas em junho de 1827, que exigi-
missão” (José Liberato, 1855: p. 420). da participou no ajuntamento de por- ram ao governo e à regente D. Isabel
Com as sublevações de 24 de agos- tugueses que, no dia 4 de junho de Maria a reintegração no governo do ge-
to (no Porto) e 15 de setembro de 1820 1821, na City of London Tavern, votou neral Saldanha, que tinha sido demiti-
(em Lisboa), desencadeando a Revolu- dois “memoriais” congratulatórios: um do da pasta da Guerra), a sua liberdade
ção Liberal, esgotava-se a missão críti- dirigido ao “supremo” Congresso das de opinião custou-lhe a acusação de
ca do Campeão contra o Antigo Regi- Cortes Gerais Extraordinárias e Cons- incitar à revolta e a demissão de ambos
me, impondo-se uma inflexão de rumo tituintes da nação portuguesa; e outro os cargos públicos. Entretanto, com a
a favor do novo regime constitucional, à “majestade” do senhor rei D. João VI, usurpação miguelista, teve de se es-
para que “fosse bem aceite em todas que, entretanto, já jurara a futura Cons- conder e andar disfarçado para não
as partes da monarquia” (José Libera- tituição. O primeiro memorial foi es- voltar a ser preso, até que, em novem-
to, 1855: p. 203). Na realidade, José Li- crito por José Liberato e o segundo por bro de 1828, embarcou de novo para o
berato foi o historiador pioneiro da Re- Bernardo Loureiro (redator d’O Portu- exílio em Londres.
volução Liberal, publicando, em vários guês). Os dois pergaminhos com os
números do seu Campeão Português, memoriais foram confiados a José Li- Segundo exílio em Londres e a edição
os seguintes trabalhos: berato, para que os entregasse aos res- da Constituição e governo de Portugal
– Portugal: ano primeiro da restaura- petivos destinatários, o que veio a efe- Durante o segundo exílio londrino, Jo-
ção de nossa liberdade; tivar no dia 11 de outubro de 1821. Ao sé Liberato aproveitou para aprofun-
– Santos e justos motivos que tiveram rei entregou-o em audiência, tendo- dar os conhecimentos e, mantendo-se
os autores da gloriosa contrarrevolu- -lhe o monarca respondido benigna- fiel à vertente historicista, editou a sua
ção do Porto em 24 de agosto de 1820. mente: “mandai dizer aos meus por- obra de maior fôlego, o Ensaio históri-
Vantagens próximas e remotas da tugueses em Londres que lhe estou co-político sobre a Constituição e o go-
044 mesma gloriosa contrarrevolução; muito obrigado por este seu testemu- verno do reino de Portugal, que viria a
– Memórias para a História de nossa nho de amor e fidelidade; fazei-lhes ser publicado em Paris, em 1830. Nas
brilhante e gloriosa Regeneração de saber que, ainda que ausentes, não o palavras de um conceituado historia-
24 de agosto de 1820. estão de minha lembrança e sempre dor do Liberalismo (Luís Reis Torgal,
O Campeão Português em Londres os tenho em conta de filhos”. 1998: p. 36), é nessa obra que “encon-
ainda manteve a intervenção política Conforme acima dito, Liberato con- tramos o verdadeiro paradigma de in-
ativa até junho de 1821, quando o regi- tinuou na atividade jornalística, fun- terpretação histórica liberal”.
me constitucional caminhava para a dando O Campeão Português em Lis- O propósito fundamental do Ensaio
sua consolidação, depois das eleições boa, que se publicou apenas durante histórico-político era demonstrar que
constituintes (10/30 de dezembro de um ano (1822-1823), cessando com o “a nossa primitiva organização mo-
1820), a instalação oficial das Cortes (26 fim do “triénio liberal”. Nas eleições nárquica era rigorosamente constitu-
de janeiro de 1821), a adesão das pro- parlamentares de 1822 (as primeiras cional” (José Liberato, 1830: p. 317), que
víncias brasileiras (começando pela do eleições diretas realizadas em Portu- as Cortes tinham sido o seu pilar fun-
Grão-Pará, em 1 de janeiro, seguiram- gal) foi eleito deputado pelo círculo damental e que o seu desaparecimen-
-se as províncias da Bahia, a 10 de feve- eleitoral de Viseu, com 4954 votos. to tinha sido uma das principais cau-
reiro, e do Rio de Janeiro, a 26 de feve- Também as Cortes ordinárias se dissol- sas para a decadência do país. Segun-
reiro de 1821), a aprovação das Bases da veram após a Vila-Francada e José Li- do o resumo do próprio Liberato:
Constituição (9 de março de 1821) e o berato foi desterrado para a terra natal “1.º a monarquia portuguesa princi-
juramento constitucional do rei no Rio de Montessão, em São Martinho do Bis- piou constitucionalmente, com uma
de Janeiro (26 de fevereiro de 1821). po, depois de ter recusado o convite representação nacional como coisa
De regresso a Portugal, José Libera- para fazer parte da “comissão consti- inerente à sua primitiva essência; 2.º
to deu continuidade ao seu jornalismo tuinte”, nomeada por D. João VI para enquanto este sistema legal se conser-
político e fundou O Campeão Portu- redigir o projeto da Carta de Lei Fun- vou, a mesma monarquia, não só pro-
guês em Lisboa no ano seguinte de damental (que fracassou). O desterro gressivamente cresceu e se fortificou,
1822 – com o claro objetivo, registado durou mais de dois anos, de junho de mas subiu ao maior grau de glória a
em título, de servir de continuação ao 1823 até finais do ano de 1825, e José Li- que ainda nenhuma outra nação eu-
Campeão Português em Londres –, um berato estava impedido mesmo de se ropeia chegou; 3.º logo que as institui-
semanário do qual publicou 61 núme- deslocar à cidade de Coimbra e de con- ções constitucionais começaram a
ros, de 6 de abril de 1822 a 31 de maio tactar com quem quer que fosse. desprezar-se, ou de todo se aboliram,
de 1823, tendo sido coagido a suspen- Acabado o desterro, voltou para Lis- o poder absoluto, que tudo destrói, que
der a atividade editorial pela contrar- boa, onde foi nomeado redator da Ga- tudo mata e que tudo aniquila, fez com
Capa do “Campeão Edição, não
Português”, editado assinada, de 045
por José Liberato já memorial a D. João
em Lisboa (1822), VI escrito em 1819,
após o primeiro exílio em Londres, por José
em Londres Liberato

que a mesma monarquia fosse tam- literatura política coeva é de destacar a o governo de Lisboa. No dia 16 de ja-
bém progressivamente decaindo, até edição das Reflexões sobre um pará- neiro de 1832, partiu de Londres e veio
que, não só se perdeu toda a sua anti- grafo do manifesto de D. Pedro, duque desembarcar à Foz do Douro, a 26 de
ga glória, porém, a própria indepen- de Bragança, feito a bordo da fragata janeiro desse ano, juntando-se ao exér-
dência; 4.º ao lado do despotismo, ou Rainha de Portugal, aos 2 de fevereiro cito liberal sitiado na cidade do Porto,
do poder absoluto, se veio logo sentar de 1832, publicadas em Londres, em participando no célebre momento bé-
no mesmo trono o fanatismo, acom- 1832. Ao lado de outros liberais exila- lico do Cerco do Porto.
panhado da ignorância, da hipocrisia dos, como, por exemplo, José Ferreira
e da superstição, armada com todos os Borges, José Liberato criticou o pará- O regresso à vida política
furores que ela sempre costuma em- grafo em que D. Pedro pretendia assu- e o contrariado afastamento
pregar; 5° e finalmente, por esse modo, mir a regência do reino de Portugal, em Mediante a vitória dos liberais na guer-
fracos e aviltados, caímos na servidão nome da sua filha, o que, no seu enten- ra civil (1832-1834), José Liberato re-
de Inglaterra, o maior mal que nos po- der, não tinha base na Carta Constitu- gressou a Lisboa no dia 15 de setembro
dia acontecer, porque, além da perda cional, que devia ser respeitada: de 1833 (o exército liberal libertara a
da nossa própria dignidade, temos “Para que o governo seja legítimo capital em 4 de julho anterior). De
sido reduzidos por ela à vil condição não basta que mande em nome da le- agosto a outubro de 1834 desempe-
de miseráveis colonos e a uma pobre- gítima rainha, a senhora D. Maria II, é nhou as funções de arquivista e tesou-
za sem exemplo em todas as monar- necessário que seja constituído e or- reiro da Câmara dos Pares, entretanto
quias, que tamanhos recursos têm ganizado segundo a Carta Constitu- reinstalada, lugar de que viria a abdicar
tido, e ainda têm, como os nossos” (Jo- cional» (José Liberato, 1832: p. 8). pelo facto de, nas eleições parlamen-
sé Liberato, 1830: pp. 314-315). Viajando entre Londres e Paris, fez tares de 1834, ter sido eleito deputado
Ainda colaborou no periódico Pa- várias diligências para angariar apoios pela província das Ilhas da Madeira e
quete de Portugal e editou uma tradu- para as tropas liberais, comandadas Porto Santo. Nas eleições constituintes
ção completa e melhorada dos Anais por D. Pedro IV, entretanto regressado de 1836, após a revolução setembrista,
de Tácito, em dois volumes. Ao nível da do Brasil, para encabeçar a luta contra foi eleito deputado pelo círculo eleito-
DESTAQUE

046
ral de Lisboa, cujo diploma foi confir- de 350 000 réis (metade do ordenado Ensaio prevendo Assinaturas
mado na sessão de 20 de janeiro de de administrador-geral) – “única re- a usurpação de deputados na
1837. Em 1838 e em 1839, nas eleições compensa de todos os meus trabalhos miguelista, que veio Constituição de
para as Cortes ordinárias, foi em am- até ao dia 17 de maio de 1854» –, que a verificar-se e 1838; em baixo,
bas reeleito deputado por Lisboa. manteve até ao final da vida. a empurrar Liberato a aposentação
Por diploma régio de 11 de dezembro Esta graça régia pode ter sido um para o segundo exílio de José Liberato
de 1835, a rainha D. Maria II nomeou “presente envenenado” para o político
uma comissão para fazer face ao “mau de Coimbra, uma vez que o valor adju-
estado da administração da Imprensa dicado, além de módico, limitava-lhe
Nacional” e, para a presidir, designou a capacidade eleitoral passiva, tornan-
o deputado José Liberato Freire de Car- do-o inelegível como deputado (art.º
valho. Pouco depois, por decreto régio 74º da Constituição de 1838), uma vez
de 13 de setembro de 1836, José Libera- que, segundo este preceito constitu-
to foi elevado ao cargo de administra- cional, só podiam ser eleitos deputa-
dor-geral da Imprensa Nacional. Volvi- dos os cidadãos eleitores que tivessem
dos dois anos, por decreto de 9 de ou- o rendimento mínimo de 400 000 réis.
tubro de 1838, D. Maria II, tendo em José Liberato manifestou assim o seu
consideração a “avançada idade e que- profundo descontentamento em rela-
brantada saúde” e sobretudo “os seus ção ao requisito censitário previsto
distintos serviços e merecimentos, as- pela Constituição de 1838, que, após a
sim como sua constante fidelidade à dissolução da Câmara dos Deputados
causa das liberdades pátrias”, deter- de 25 de fevereiro de 1840, o afastara
minou a sua aposentação “no mesmo definitivamente, e contra a sua vonta-
lugar de administrador da Imprensa de, da atividade parlamentar:
Nacional, com o vencimento de meta- “Ora, eis-me aqui exonerado de de-
de do respetivo ordenado” (Diário do putado, depois de haver passado nas
Governo, 9 de outubro de 1838). A rai- lutas parlamentares perto de seis
nha fez depender a sua resolução gra- anos, isto é, desde 1834 até 1840, com
ciosa da futura aprovação das Cortes, bem poucos intervalos. E não só exo-
que, em 1839, lhe aprovaram a pensão nerado desta legislatura, porém, para
Assento do óbito de Anúncios dando
José Liberato (1855), conta da publicação
indicado como de ensaios de José
presbítero e inumado Liberato e dos locais
no Cemitério dos onde podiam
Prazeres, em Lisboa ser adquiridos

047
sempre. Porque, achando-me reduzi- Ensaio Histórico-Político sobre a dos dois séculos, fazendo pouco senti-
do pelo meu módico ordenado de 350 Constituição e o Governo do Reino de do terminar com o assento do seu óbi-
000 réis a meio-proletário, por me fal- Portugal; e, em 1837, tinha sido desi- to. Por isso, para encerrar esta concisa
tarem 50 000 réis de inteligência para gnado sócio honorário da Academia nota biográfica, transcrevemos um
tornar a ser representante do meu das Belas Artes de Lisboa. Tal como fi- breve excerto da sua autoria, que, em
país, de boa mente fui pendurar este cou registado na nota biográfica do seu singelas linhas e de forma paradigmá-
meu direito político dentro do templo falecimento, em 1855, “José Liberato tica, sintetiza a sua mensagem para o
de Jano, que nunca mais se havia de Freire de Carvalho criou nome pelos futuro e, plausivelmente, a ideia de
tornar a abrir para mim no resto da seus escritos”. como ele gostaria de ser recordado
vida” (José Liberato, 1855: p. 391). José Liberato faleceu no dia 31 de para a posteridade – mensagem e ideia
Assim, durante a década de quaren- março de 1855, aos oitenta e dois anos que são plenamente corroboradas pelo
ta e parte da década de cinquenta, Jo- de idade (faria 83 em 20 de julho des- seu legado escrito:
sé Liberato passou a viver afastado do se ano), na sua casa de morada em Lis- “Ainda que a minha situação na
bulício da intervenção pública e do Pa- boa, sita na Rua Direita da Patriarcal vida não fosse elevada, nem brilhan-
lácio das Cortes (atual Palácio de São Queimada, n.º 14, na freguesia de São te, não foi obscura: servi o meu país
Bento) – “concluída a minha vida pú- Mamede, tendo sido sepultado no Ce- com todo o cabedal da minha inteli-
blica, em 25 de fevereiro do ano de mitério dos Prazeres dessa cidade. gência; concorri muito para lhe dar a
1840, entreguei-me todo ao descanso liberdade; padeci por ela desterros,
e à total separação de todos os negó- Conclusão prisões, emigrações e trabalhos; e no
cios políticos e fiquei no verdadeiro Um biógrafo do século XIX, Fonseca meio deles conheci e tratei muitos ho-
remanso da vida” (José Liberato, 1855: Pinto, considerou que o “Graco da im- mens, tanto das mais elevadas clas-
p. 392). Porém, a sua pena continuou prensa, onde sustentou com constân- ses, como da mais baixa condição”
afiada e ativa até ao último fôlego da cia os foros e regalias populares, mor- (José Liberato, 1855: p. 5).
vida, como mostra a sua bibliografia reu pobre como Publícola, um dos fun- Acima de tudo, estamos perante um
(em anexo). dadores da liberdade romana” (O Ins- Homem com um caráter de ferro e
Entretanto, em 1835, tinha sido no- tituto, 1862, p. 161). Tal como os dos dois possuidor de uma das mentes mais
meado membro correspondente de 1.ª insignes romanos, também o nome de brilhantes do século XIX, que inces-
classe (história geral) do Instituto His- José Liberato ficou registado na histó- sante e incansavelmente pugnou pelo
tórico de Paris, em reconhecimento da ria como um “amigo do povo” e a sua país constitucional de que todos so-
publicação (também em francês) do mensagem já ultrapassou a barreira mos herdeiros, pelo que temos a obri-
DESTAQUE

PRINCIPAIS

Bibliografia
OBRAS
IMPRESSAS
DE JOSÉ
LIBERATO

O
O pensador conimbri-
cense deixou à posteri-
dade um legado doutri-
nário ímpar, que, tratan-
do-se de trabalho indivi-
dual de uma pessoa, assume autênti-
cas proporções faraónicas. O legado
das “suas obras políticas e históricas
gação de não o deixar cair no esqueci- formam uma galeria de quadros ver-
mento. Duas vezes exilado fora da pá- dadeiros e conscienciosos, são uma
tria e várias vezes desterrado dentro fotografia fidelíssima das pessoas e
dela, nunca desfaleceu no combate coisas do seu tempo e hão de auxiliar
político e doutrinário pelas ideias que valiosamente o futuro, quando se es-
cedo abraçou. Tendo sido uma dos crever a nossa história da primeira
“pais intelectuais” do constitucionalis- metade deste século [séc. XIX]” (O
048 mo liberal e tendo tido empenhada Instituto, 1862, p. 161). Do seu espólio
atividade política nos três sucessivos literário, além de alguns trabalhos ain-
regimes constitucionais (vintismo, da inéditos, fazem parte a tradução de
cartismo e setembrismo), José Libera- várias obras (algumas da autoria ape-
to Freire de Carvalho bem merece fi- nas provável de José Liberato) e a co-
gurar na plêiade dos pais fundadores laboração em diversos periódicos [a
do liberalismo e do constitucionalis- começar pelo periódico dirigido pelo
mo em Portugal, lado a lado com os irmão D. António da Visitação Freire
designados heróis de 1820, como Ma- de Carvalho, As Variedades (1801-
nuel Fernandes Tomás, José Ferreira -1804)]. Seguem identificados os dois
Borges, José da Silva Carvalho, José periódicos que fundou e dirigiu (em
Maria Xavier de Araújo, Frei Francisco Londres e em Lisboa) e as principais
de São Luís, José Joaquim Ferreira de obras que editou:
Moura, Duarte Lessa, os militares que a) Os periódicos que fundou e dirigiu:
fizeram a Revolução, etc. – O Campeão Portuguez ou o Amigo
do Rei e do Povo: jornal politico, publi-
Nota 1 cado todos os quinze dias para advo-
Este artigo foi extratado e adaptado a partir gar a causa e interesses de Portugal
de um capítulo do livro sobre o pensamento [José Liberato Freire de Carvalho],
político-constitucional de José Liberato Freire Londres, Impresso por L. Thompson
de Carvalho, a editar brevemente. [Vol. 1, n.º 1 (julho de 1819) – Vol. 4, n.º
36 (junho de 1821)].
Nota 2 – O Campeão Portuguez em Lisboa ou
Agradecemos à Comissão Liberato, na o amigo do povo e do rei constitucio-
pessoa do seu presidente, Dr. Manuel Seixas, nal: semanario politico publicado
a disponibilização das imagens da para advogar a causa e interesses da
procuração (1817), do breve papal (1817) nação portugueza em ambos os mun-
e do busto de José Liberato (2022), dos e servir de continuação ao Cam-
utilizadas como iconografia ilustrativa para peão Portuguez em Londres [José Li-
este artigo, assim como algumas achegas berato Freire de Carvalho], Lisboa, Ti-
para a biografia traçada. pografia Rolandiana [Vol. 1, n.º 1 (6 de
abril de 1822) – Vol. 3, n.º 61 (31 de maio abril de 1855 (reproduzida em O Por- (Prefácio) (2016) – José Liberato Freire
de 1823)]. tuguês, 5 de abril de 1855; e Imprensa de CARVALHO e João Baptista da Sil-
b) Obras principais da sua autoria (li- e Lei, 11 de abril de 1855); Inocêncio va Leitão de Almeida GARRETT, Me-
vros e opúsculos): Francisco da SILVA (1860) – Dicciona- mória da Liberdade e do Constitucio-
– Memorial ao muito alto e muito po- rio Bibliographico Portuguez, vol. IV, nalismo. Madrid – Lisboa/1822,
deroso senhor D. João VI, rei do reino Lisboa, Imprensa Nacional, pp. 417- Coimbra, Comissão Liberato; Daniel
unido de Portugal, Brasil e Algarves, -421; A. A. da Fonseca PINTO (1862) – Estudante PROTÁSIO (2018) – «José
Lisboa, na Oficina de J. F. M. de Cam- «Conimbricenses Ilustres (esboços Liberato paladino de Gomes Freire»,
pos, 1820 (edição avulsa do texto publi- biográficos) VII: José Liberato Freire de Mátria XXI, n.º 7, Santarém, pp. 391-
cado no Campeão Português, sem Carvalho», O Instituto: Jornal Scienti- -403; Mário Simões DIAS (2017) – José
identificação do autor). fico e Litterario, Vol. XI, Coimbra, Im- Liberato Freire de Carvalho (1772-
– História das Cortes que houve em prensa da Universidade, pp. 160-161; -1855): sua vida e pensamento, Carvi-
Portugal. Dos poderes ou autoridades João Carlos ALVIM (1982) – «Introdu- çais, Lema d’Origem; Adelaide Maria
constitucionais. Destinos Futuros de ção», in Memorias da vida de José Li- Muralha Vieira MACHADO (2019) – A
Portugal. Extraído de um jornal portu- berato Freire de Carvalho, Lisboa, As- importância de se chamar português:
guês em Inglaterra em 1820, Lisboa, na sírio e Alvim; António Álvaro DÓRIA José Liberato Freire de Carvalho na
Nova Impressão da Viúva Neves e Fi- (1989) – «José Liberato Freire de Car- direcção do Investigador Português,
lhos, 1820 (edição avulsa de vários tex- valho (1772-1855)», in Joel SERRÃO Carviçais, Editora Lema d’Ordem; João
tos publicados n’O Campeão Portu- (dir.), Dicionário de História de Portu- Carlos LOUREIRO (2019) – «Nas vés-
guês, sem identificação do autor). gal, vol. I, 2.ª edição, Porto, Livraria Fi- peras da Revolução Liberal: Relendo a
– Ensaio Histórico-Político sobre a gueirinhas, pp. 507-508; Pedro Manuel questão político-constitucional a par-
Constituição e o Governo do Reino de Luís de FREITAS (1996) – «A ideologia tir de O Campeão Portuguez», Boletim
Portugal, Paris, em Casa de Hector liberal em Freire de Carvalho: História da Faculdade de Direito, vol. XCV,
Bossange, 1830; Essai historico-politi- e poder político no ensaio histórico- Tomo II, Coimbra, Universidade de
que sur la constitution et le gouverne- -político sobre a Constituição e gover- Coimbra, pp. 1011-1075; José Manuel
ment du royaume de Portugal, Char- no do reino de Portugal», in Atas do MARTINS (Pref.) e Manuel SEIXAS
les Heideloff, 1830 (versão em francês) colóquio Sá da Bandeira e o Libera- (coord.) (2020) – Memórias para a his-
[2.ª edição em português: Lisboa, Im- lismo em Portugal 1795-1910, Santa- tória da nossa brilhante e gloriosa re-
prensa Nevesiana, 1843]. rém, pp. 259-271; Isabel CLUNY (2002) generação de 24 de agosto de 1820 /
– Reflexoens sobre um paragrapho do – «José Liberato Freire de Carvalho José Liberato Freire de Carvalho, José 049
Manifesto do Senhor Dom Pedro Du- (1772-1855)», in Zília Osório de CAS- Ferreira Borges, Coimbra, Editorial
que de Bragança datado a bordo da TRO (dir.), Dicionário do Vintismo e Moura Pinto; Maria Cristina Vieira
fragata Rainha de Portugal aos 2 de do primeiro Cartismo (1821-1823 e FREITAS (Dir.) (2022) – José Liberato
Fevereiro 1832, Londres, Impresso por 1826-1828), volume I, Lisboa, Assem- Freire de Carvalho: as facetas de uma
Bingham, 1832. bleia da República/Edições Afronta- vida como político liberal, historia-
– Ensaio político sobre as causas que mento, pp. 418-424; Maria Filomena dor, editor e jornalista, exposição do-
prepararam a usurpação do infante MÓNICA (coord.) (2004) – «José Libe- cumental e bibliográfica nos 250 anos
de D. Miguel no ano de 1828, e com ela rato Freire de Carvalho», Dicionário do seu nascimento, Arquivo da Uni-
a queda da Carta Constitucional do Biográfico Parlamentar: 1834-1910, versidade de Coimbra e Comissão Li-
ano de 1826, Lisboa, na Imprensa Ne- Lisboa, Assembleia da República / berato, Coimbra, Tipografia Damasce-
vesiana, 1840. Imprensa de Ciências Sociais, vol. I, no (catálogo da exposição); Viva Libe-
– Memória com o título de Anais para pp. 650-652; Ygor Klain BELCHIOR rato!, Coimbra, Editorial Moura Pinto
a história do tempo que durou a usur- (2010) – «Uma análise dos estudos crí- e Comissão Liberato, 20 de julho de
pação de D. Miguel, Lisboa, na Impren- ticos sobre Tácito em Portugal no sé- 2022 (panfleto de edição gratuita dis-
sa Nevesiana, 1841-1843 (3 volumes). culo XIX», Politeia: História e Socie- tribuído no 250º aniversário do nasci-
– A Carta e os seus vinte e dois annos dade, Vitória da Conquista, vol. 10, n.º mento de José Liberato, com textos de:
de idade, Lisboa, Typografia da Revo- 1, pp. 187-202; Daniel Estudante PRO- José Liberato Freire de CARVALHO,
lução de Septembro, 1848. TÁSIO [s. d.] – «José Liberato Freire de «Da força da opinião»; João PINHO,
– Memorias da vida de José Liberato Carvalho (Coimbra, 1772-Lisboa, «Breve história da Comissão Libera-
Freire de Carvalho – anno 1854, Lis- 1855)», in Dicionário de Historiadores to»; José Manuel MARTINS, «Londres
boa, Tipografia de J. B. Morando, 1855 Portugueses: da Academia Real das e as luzes do exílio»; Ana Maria Leitão
(edição póstuma) [reedição: O Conim- Ciências ao fim do Estado Novo, Bi- BANDEIRA, «Procuração de Libera-
bricense, 1877-1878, n.º 3112-3202; e blioteca Nacional de Portugal < to»; Daniel Estudante PROTÁSIO, «Jo-
Assírio e Alvim, 1982]. http://dichp.bnportugal.pt >; Daniel sé Liberato e a Junta Apostólica»; Ma-
Estudante PROTÁSIO (2015) – «Luz e nuel SEIXAS, «José do Loreto»); Vital
Bibliografia seletiva tradição: breve estudo comparativo MOREIRA e José DOMINGUES (2022)
sobre José Liberato das vidas e obras de José Liberato e do – Da “Lei da Terra” à Constituição po-
[Nota biográfica apresentada imedia- visconde de Santarém», Cadernos Ba- lítica do Estado: O pensamento políti-
tamente a seguir à sua morte], A Re- rão de Arêde, n.º 5, julho-setembro co-constitucional de José Liberato |
volução de Setembro, n.º 3893, 4 de 2015, pp. 35-52; José Manuel MARTINS 1819-1821 (a editar).
MONUMENTOS PORTUGUESES

CASTELO
DE BELMONTE
No alto da torre de menagem flutuam as bandei-
ras de Portugal, da União Europeia e... do Brasil.
Belmonte é a pátria de Pedro Álvares Cabral e,
por isso, local de peregrinação de turistas brasi-
leiros em busca da terra do descobridor (ou do
achador). De raízes medievais (século XIII) o cas-
telo tornou-se residência hereditária da família
Cabral em 1466, um ou dois anos antes do nasci-
mento do navegador, sofrendo sucessivas altera-
ções para o adaptar à nova função, sendo a mais
emblemática a janela manuelina janela, da pri-
meira metade do século XVI, encimada pelo bra-
são que simboliza a união de João Cabral Fernan-
des com D. Joana Coutinho de Castro.

050
Nota
histórica
Belmonte Na crista da Serra da
CASTELO BRANCO
Esperança, onde se implantou
o castelo e a Vila de Belmonte,
limite setentrional do que era
a Beira Baixa enquanto
circunscrição administrativa, os
primeiros indícios de ocupação
continuada remontam aos
Tipo séculos VIII ou IX, embora hja
Arquitetura militar no sopé importantes vestígios
Classificação da presença romana, como
Monumento Nacional a enigmática torre de Centum
Época de construção Celas. Centum Celas era, aliás,
Secs. XIII, XIV, XVI o nome do senhorio ali
Utilização atual estabelecido no processo de
Cultural e recreativa formação de Portugal, doado
em 1168 ao bispo de Coimbra,
que em 1194 deu foral para

MARIA JOÃO GALA / GLOBAL IMAGENS


promover o povoamento da
localidade. Presume-se que a
construção do castelo arrancou
mesmo no final do século XII,
reinando em Portugal
D. Sancho I, estando
arqueologicamente 051
documentada a existência da
estrutura militar nesse período
de transição para o século XIII,
com a demolição de habitações
dentro do seu perímetro e com
a expansão do povoado para
fora de muros. Estando no meio
de mudanças de direitos
eclesiásticos, no terceiro quartel
do mesmo século, o castelo
foi perdendo importância
ao deixar de ser uma estrutura
de fronteira. No âmbito da
mudança dinástica no final do
século XIV, D. João I afastou o
alcaide do castelo, que tomara
o partido do infante D. Dinis
(filho de D. Pedro I e Inês de
Castro), doando a alcaidaria a
Luís Álvares Cabral. A família
passa a viver no castelo, mas
é só em 1466, reinando D.
Afonso V, que ocorre a doação
da alcaidaria do castelo e vila,
com rendas e foros, a Fernão
Cabral (sem certeza o pai de
Pedro Álvares Cabral), a título
hereditário. O último senhor de
Belmonte, Caetano Francisco
Cabral, morreu em 1762.
ENTREVISTA

OS ATUALI-
ZADORES
DO PASSADOTextos de Pedro Olavo Simões
ROGER LEE DE JESUS

Fotografias de André Rolo / Global Imagens


-
PAULO M. DIAS
ENTREVISTA

Jovens investigadores, um de Coimbra,


outro de Lisboa, conheceram-se nas vidas
académicas e juntaram-se para produzir
“Falando de História”, um podcast
de divulgação com êxito assinalável,
pensado para mostrar também a evolução
da historiografia e constituir um estímulo
ao debate. Roger Lee de Jesus (de verde)
e Paulo M. Dias (de cinza) não atualizam
propriamente o passado, – ele está lá
do modo que foi e ninguém sabe ao certo –,
mas atualizam o conhecimento histórico,
que, como qualquer saber científico,
nunca é definitivo.

054

C
oimbra, manhã do vens, mas investigadores sérios, liga- entrar por este campo da divulgação
primeiro dia de agos- dos, respetivamente, à Universidade destinada ao grande público?
to. Polos e bermudas, Nova de Lisboa e à Universidade de Roger Lee de Jesus (RLJ) – Não estamos
a vestimenta escolhi- Coimbra. Autores do podcast (basica- propriamente a quebrar o gelo nem en-
da pelos entrevista- mente, um programa de conversa di- tendemos o nosso trabalho de divulga-
dos para comparecer fundido através da internet) “Falando ção tão inédito quanto, por vezes, as
ao encontro, nas de História”, são um fenómeno no ca- pessoas o consideram, pois já houve
imediações da Praça da República. In- pítulo da divulgação, tendo já transi- muitos académicos a entrar pelo cam-
veja dos entrevistadores mais abafa- tado para o mundo editorial, com a or- po da divulgação. Será mais inédito no
dos pelos jeans, hoje em dia remeti- ganização do livro “Atualizar a Histó- formato que é, o podcast, mas no espa-
dos, pelo visto, ao estatuto de vestuá- ria” (Saída de Emergência), em que são ço português, pois lá fora os podcasts já
rio convencional. O calor já apertava. coautores com muitos investigadores estão desenvolvidos há muitos anos. Fi-
Percebemos, perguntando, que Paulo de relevo. Ei-los. zemos uma pequena prospeção de
M. Dias e Roger Lee de Jesus debate- mercado, percebemos que havia mar-
ram o que vestiriam, optando por uma Sendo os dois investigadores, no meio gem de manobra e decidimos avançar.
informalidade adequada à condição académico, sentem, de algum modo, Só conhecemos dois outros podcasts de
de jovens que gostam de afirmar. Jo- que poderão estar a quebrar o gelo ao história, o do Rui Ramos, no “Observa-
055

dor”, e o do Fernando Rosas, no esquer- que portugueses, como “The rest is his- certa idade, todo engravatado. Até a
da.net. Quer um quer outro... tory”, um podcast inglês: ninguém é própria equipa editorial da Saída de
original com os nomes, é sempre as- Emergência, quando se reuniu connos-
Cada um com a sua missão... sim... Ao percebermos que é um setor co pela primeira vez, ficou espantada...
RLJ – [risos] Sim, cada um com a sua que tem crescimento e tem, claramen-
missão evangelizadora. Nós tentamos te, ouvintes a vários níveis, pensámos A olhar para as figuras...
estar no meio, ser o fiel da balança. em fazer uma coisa como nós a faze- PMD – Exato. Eles ouviam o podcast,
mos, amadora, sem apoio logístico, ao mas estavam à espera de pessoas de
Não vou cortar isso... contrário, por exemplo, dos podcasts mais idade. Muita gente, até nas ses-
RLJ – À vontade! que são suportados por rádios. Pensá- sões de apresentação do livro, disse es-
Paulo M. Dias (PMD) – Foste tu que dis- mos que havia espaço e que podíamos tar à espera de pessoas mais velhas.
seste e não eu!... contribuir para a divulgação. Acima de
tudo, achámos que conseguíamos tra- Essa necessidade que vocês sentiram
Adiante. Viram o que se fazia lá por zer algo de novo. O facto de sermos jo- de fazer divulgação surge de quê: é
fora? Tentaram encontrar um padrão? vens também podia ser um fator apela- pelo que veem, pela avaliação que fa-
PMD – Sim, sim... Eu, por acaso, ouço tivo, porque às vezes há a ideia de que zem da sociedade, pelo fraco conheci-
alguns podcasts, mais estrangeiros do a história só é feita por pessoal de uma mento que as pessoas revelam?...
ENTREVISTA

RLJ – Um pouco de tudo. Notámos fal-


ta de conhecimento da sociedade, em
geral, mas, depois, também um pouco
pela oferta que vemos no mercado li-
vreiro. Uma pessoa entra numa livraria
e vê muito lixo publicado. Obras que sa-
bemos serem de fraca qualidade, mas
que são o que o público compra e lê.
Continuam a disseminar-se muitas
ideias erradas, distorcidas, visões, às ve-
zes, enfim, inéditas, secretas, gloriosas,
patrióticas, o que quisermos, mas que
não correspondem à realidade. Daí
acharmos que é preciso o historiador
chamar a si esse trabalho de divulgação.
Temos obrigação, perante a sociedade,
de fazer esta atualização da história.
PMD – Sim, porque isto também é cul-
pa nossa. Culpa da academia, que, du-
rante muito tempo, fechou-se nos seus
corredores e nas suas sessões. É muito
giro ter uns coffee-breaks, comer uns
bolos e tudo o mais, e discutir uns com
os outros, mas, depois, se as coisas não
saem cá para fora e não há divulgação,
o nosso trabalho não tem o valor que
deveria ter.
RLJ – É um círculo vicioso, porque este
fecho da academia acontece porque
056 assim ditam as regras das avaliações,
porque as pessoas estão assoberba-
das... A carreira do historiador como a
conhecemos, normalmente, é a do
professor universitário, que tem a sua
vertente de ensino, com toda a carga
letiva, e depois tem a parte de investi-
gação, E a investigação, como sabe-
mos, é desvalorizada do ponto de vis-
ta da avaliação dos centros, pela FCT
[nota: Fundação para a Ciência e a
Tecnologia]. Sobra muito pouco espa-
ço de manobra para esse trabalho de
divulgação que tem de ser feito, por-
que, caso não o seja, é como se nada
disto existisse. “O NOSSO LIVRO Uma acumulação de ciclos e de bolsas?
RLJ – E, sobretudo, de precariedade.
É REVELADOR, POIS É, Não o fizemos propositadamente, mas
Mesmo a produção bibliográfica é
desvalorizada, por exemplo, em rela-
EM GRANDE PARTE, o nosso livro é revelador, pois é, em
grande parte, feito à custa de trabalho
ção a pequenos artigos em revistas FEITO À CUSTA DE precário, pois grande parte dos inves-
científicas, com revisão pelos pares...
RLJ/PMD (em uníssono) – Exatamente!
TRABALHO PRECÁRIO” tigadores não são pessoas com uma si-
tuação estável. Uma das nossas opções,
ROGER LEE DE JESUS no livro, foi, precisamente, escolher jo-
Estão ambos na carreira de investi- vens investigadores, embora não to-
gação? dos, para lhes dar voz, não com uma
PMD (depois de ambos confirmarem) – ideia de desprezar os seniores, mas
Eu estou sensivelmente no meio do com uma ideia de renovação da histo-
doutoramento em história medieval, o riografia. E estes jovens, ou grande par-
Roger acabou... te deles, estão em situação precária, o
RLJ – No ano passado, o que quer dizer que é muito revelador do modo como
que já estou em situação de pós-doc. é feita a ciência em Portugal.
Isto dos jovens, embora não possa PMD – A história é um pouco pau para entendimento do que foi o passado. As
ser estabelecida uma relação direta, toda a obra, porque é usada para fins visões únicas não existem. Se as pes-
leva-me a pensar em algo que pode- muitas vezes contraditórios que usam soas lerem o livro ou ouvirem o
rei resumir como a permeabilidade a os mesmos argumentos... podcast e se isso as levar a pensar so-
que se assiste entre a história e ou- RLJ – Mesmo não sendo imparcial, bre o que foi o passado de Portugal ou
tras ciências sociais. Nesta medida: porque a história nunca o é, embora as da história mundial, já conseguimos.
as ciências sociais têm um propósito pessoas ainda estejam muito apegadas PMD – Daí que o podcast se chame “Fa-
de intervir no mundo que não pode àquela ideia da história completamen- lando de história”. Queremos que as
ser o da história, na medida em que o te imparcial (o historiador não julga, o pessoas falem sobre os assuntos.
foco desta é o estudo do passado, ou historiador olha para os factos...). Bas-
seja, do inalterável, pois já aconte- ta olhar para o passado para, forçosa- Essa será uma das maiores riquezas
ceu. E os de outras áreas do saber mente, o estar a fazer sob uma deter- do estudo da história: a capacidade de
tendem também a olhar para o pas- minada perspetiva. Nós gostamos, so- relativizar, de discernir. Mas há his-
sado, embora sem os filtros da meto- bretudo, de realçar que nos tempos toriadores que, a seu jeito se tornam
dologia histórica, por vezes aplican- que vivemos, do ponto de vista cultu- as tais enciclopédias ambulantes do
do propósitos programáticos do pre- ral e político, a história não pode ser tema que escolheram, por exemplo,
sente ao passado. Vemos discursos vista a preto e branco. Hoje em dia, a para o doutoramento, repisando-o ao
de algum modo penitenciais, senti- sociedade está muito polarizada, não longo de toda a vida. Vocês querem
mentos de culpa coletiva, coisas as- há cinzentos, e nós repetimos muitas fugir disso?
sim. Os jovens historiadores estão vezes que há muitos cinzentos e que PMD – Não necessariamente. Nós te-
imunizados contra isso? olhar para a história a preto e branco mos as nossas áreas e gostamos muito
PMD – Isso é complicado!... Sim, a his- não funciona. É preciso olhar os cin- delas. Eu estudo mais século XV, Por-
tória tem os seus usos e as suas mani- zentos e percebê-los. Não quer dizer tugal em Marrocos, guerra medieval, o
pulações, propositadas ou não, desde que nunca o sejam, mas raramente as Roger é mais o Estado Português da Ín-
sempre, e elas vão continuar a existir. coisas se definem por sim ou não, a dia, guerra no período moderno... Mas
Isso faz parte também do nosso traba- preto e branco, e é preciso ter um também gostamos de diversidade, de
lho: tentar dar a perceção de que todos olhar múltiplo para se perceber como variedade, de falar de outras coisas, e
nós somos, acima de tudo, biased... foi o passado. o podcast acaba por ser uma escapa-
RLJ – Enviesados. PMD – Por isso, em cada episódio do tória para isso. Hoje, quero ler sobre os
PMD – Sim, enviesados, seja por uma podcast damos sempre sugestões de mongóis. Vou ler sobre os mongóis e 057
coisa ou por outra, há sempre alguma. leitura, para não sermos uma voz de faço um episódio. Hoje, quero falar so-
Mas nós, no geral, tentamos sempre autoridade, porque não o somos. Te- bre a Primeira Guerra...
afastar-nos de leituras que considera- mos o conhecimento, fazemos inves- RLJ – Há muitos episódios que foram
mos um bocadinho mais radicais, seja tigação, mas gostamos de mostrar que escolhidos, justamente, por curiosida-
de que forma for. Lá está, tentar ser um o nosso trabalho depende do trabalho de nossa. Temas que nunca antes tí-
bocadinho o fiel da balança, compreen- dos outros, e há leituras complemen- nhamos tido disponibilidade para
der por que é que as coisas chegam a tares ou diferentes. aprofundar e que por alguma razão se
certo ponto ou por que é que existem RLJ – Sim, porque o próprio podcast impõem em determinado momento.
certas leituras, mas não necessaria- não é um trabalho inédito. Escolhemos
mente compactuando com elas ou um tema e fazemos o trabalho à volta Gostava de perceber qual é o vosso
aceitando-as como são. Agora, há ques- daquilo. A não ser que seja das nossas processo. Como surge uma ideia,
tões que têm vindo a público, como a respetivas áreas, é um trabalho biblio- quais são os vossos tempos de prepa-
questão, por exemplo, das reparações gráfico. Apoiamo-nos na historiografia ração e de produção...
históricas, algo que nós consideramos, vigente e naquilo que sabemos neste RLJ – Nós deveríamos ser mais organi-
e já o dissemos várias vezes, fazer par- momento. É o estado da arte daquele zados do que aquilo que somos...
te de questões políticas. A história tem tema naquele preciso momento. Nós PMD – Sim, mas com a vida torna-se
um papel, pois é ela que enforma estas não descobrimos a roda, não somos complicado...
tomadas de decisão, ou não, mas isso génios que sabem tudo... Aliás, já frisá- RLJ – Devíamos ser mais, até porque o
são questões políticas, e nós, no geral, mos várias vezes que, ao contrário da podcast, originalmente, foi pensado
tentamos afastar-nos delas. ideia popular, o historiador não é uma para uma periodicidade quinzenal.
enciclopédia ambulante. Nós não en- Depois, as pessoas começaram a pe-
Mas haverá quem construa o discur- golimos a Luso-Brasileira e não sabe- dir episódios semanais, mas não te-
so histórico em função dessas ques- mos tudo. O podcast implica um gran- mos capacidade para isso, pois requer
tões políticas... de trabalho de preparação para que muito trabalho. Como alternativa,
PMD - Haverá... tudo aquilo que dizemos ali seja algo criámos uma rubrica a que chamámos
consumado, em que as pessoas pos- “Miscelânea histórica”. Ou seja, numa
Estou a formular estas questões sem- sam confiar. O objetivo do podcast, tal semana temos um episódio completo,
pre de um modo abstrato. como do livro, é, sobretudo, levar as na seguinte temos uma miscelânea
RLJ – Sim, claro, mas haverá, há sem- pessoas à reflexão sobre temas histó- histórica, que pode ser uma efeméri-
pre... ricos e ter uma maior capacidade de de, assuntos diversos, qualquer coisa
ENTREVISTA

da espuma dos dias, uma coisa eféme- a qualquer pessoa, com qualquer ní- damentação histórica nem documen-
ra. Pequenos episódios até dez minu- vel de escolaridade. tal, isso aí passou ao largo...
tos, enquanto um episódio completo
demora de 20 a 30 minutos, às vezes É um desafio grande, esse de criar O Colombo exerce uma atração qual-
mais. Essas miscelâneas demoram uma linguagem ou, melhor dizendo, quer que leva pessoas a chegar à re-
menos a preparar, mas o tema é feito um estilo? forma de outras atividades e decidir
a partir de uma ideia nossa, partir de PMD – No início foi um bocadinho descobrir a pólvora no campo da his-
sugestões (temos uma lista com mais mais, mas com a experiência vamo- tória...
de 100 sugestões que as pessoas nos -nos adaptando. Apesar de tudo, as tais PMD – O Luís Filipe Thomaz [nota: his-
mandaram), a partir de efemérides... ferramentas do historiador ajudam. toriador especializado na expansão
Por exemplo, este ano vamos fazer Vamos a conferências, e tal, e já esta- portuguesa e no Oriente] gosta muito
qualquer coisa sobre o Brasil, por ser mos habituados a falar para um públi- dos engenheiros que falam sobre Co-
o bicentenário da independência. A co. Neste caso não vemos o público, só lombo, chama-lhes a “desordem dos
partir daí, alternamos a preparação nos vemos um ao outro. No início era engenheiros”...
dos episódios. Eu preparo um, depois bocadinho estranho, mas agora é per-
ele prepara o seguinte e assim suces- feitamente normal. Recentrando a conversa no vosso es-
sivamente. Quem for responsável faz RLJ – O episódio é gravado no ar. Aliás, forço de divulgação: começaram des-
o guião, o outro revê o guião e pode quando começámos foi mesmo assim: de o início a ter retorno dos ouvintes?
acrescentar uma pergunta ou outra, vamos fazer uma coisa para o ar e de- PMD – Inicialmente tínhamos poucos
sempre de forma colaborativa. Então, pois vemos se há interessados. Duran- contactos, fomos sempre frisando que
quando temos o guião fechado (e te os primeiros seis meses tivemos o nosso email está disponível, que po-
quando o prazo está a fechar...) grava- uma audiência, enfim... dem enviar-nos sugestões, agora te-
mos e editamos. PMD – Pequenita... mos também recebido convites para ir
RLJ – Pequenita, sim, e depois cresce- a sítios, para apresentar o livro aqui e
Como fazem? Um em Coimbra, outro mos, à custa da polémica daqueles ali, para ir a escolas... Mas, lá está, foi a
em Lisboa... dias, por causa do livro do José Gomes partir dessa polémica de maio de 2021
PMD – Nós vemo-nos por Zoom, cada Ferreira. Crescemos exponencialmen- que o podcast subiu e as pessoas co-
um grava a sua faixa áudio e, depois, te e não estávamos à espera, não o fi- meçaram a reparar e a entrar em con-
aquele a quem calhar editar, pois tam- zemos a contar com isso, e agora esta- tacto connosco, a perceber que esta-
058 bém alternamos isso, junta as faixas. mos com uma audiência semanal de mos abertos a sugestões...
cerca de três mil pessoas.
E fazem isso bem, pois os episódios Que tipo de sugestões fazem os ou-
são sempre muito dinâmicos. Brincando um pouco, parece que fize- vintes?
RLJ – Normalmente, para um episódio ram um pacto com o diabo, crescendo RLJ – Tudo e mais alguma coisa, temas
de 20 minutos, raramente gravamos à custa de um livro que toda a comu- avulsos... Por exemplo, podem dizer
menos de uma hora, não só por nos nidade historiográfica rejeita... algo como “eu gostava de saber mais
perdermos na conversa, pelo meio... PMD – [risos] Sim, mas nunca esperá- sobre a presença islâmica”, “eu gosta-
mos isso... va de saber mais sobre as guerras libe-
Ou seja, o guião não é muito estrito, é RLJ – Não esperávamos, mesmo. Hou- rais”... Depois há aquele tipo de pro-
apenas orientador? ve ali muitas nuances que fizemos por postas do género “podiam falar sobre
PMD – Claro que há parte mais técni- completa ingenuidade, mas há outra aquele caso do autocarro que desapa-
cas, em que temos de nos focar, e, de- coisa muito curiosa a propósito desse receu”, não sei quê...
pois, há a questão da linguagem. Ao es- episódio e de quando ele [José Gomes PMD – Há coisas muito específicas, coi-
crevermos o guião usamos determina- Ferreira] foi ao [Fernando] Alvim dizer sas muito genéricas... “Falem sobre a
das palavras, mas depois, ao gravar, que Marte não é vermelho. Ele foi lá fa- santa da minha terra”...
saem outras, para adaptar um bocadi- lar sobre esse livro, que é uma chacha- RLJ – Coisas mesmo muito específicas.
nho o discurso. da, e ninguém se indignou com o que Depois, há temas que até podemos
RLJ – Isso também aconteceu com a disse sobre as questões da história de achar interessantes, mas percebemos
organização do livro. Essa chegada ao Portugal, mas, mal ele falou da cor de que, se calhar, não casam para o gran-
grande público tem também de ser Marte, ou seja, quando entrou no cam- de público, para uma coisa de divulga-
feita através da linguagem, porque po das ciências exatas, houve indigna- ção geral, e, portanto...
uma coisa é escrever um artigo acadé- ção geral (“O que é que ele está a di-
mico, outra é chegar ao grande públi- zer?”, “Como é que se atreve a dizer es- Temas de história local, por exemplo?
co. Há palavras (e isto não é desmere- sas coisas?”), porque enquanto ele es- RLJ – Isso, às vezes, é difícil... Eventual-
cer o grande público, bem pelo con- tava a dizer o que queria sobre as ma- mente, nalgum caso pontual, podere-
trário) do nosso quotidiano académi- térias históricas ninguém reclamou!... mos entrar por aí... Isto é uma apren-
co que não entram no dia-a-dia das Ele dizer que o Colombo era portu- dizagem. Há temas de que esperamos
pessoas. Então, temos esse cuidado (às guês, que os portugueses chegaram muito, mas não colam, outros que ines-
vezes falhamos, claro) de tentar fazer primeiro aqui e ali, dizer as maiores ba- peradamente colam... Há temas que já
episódios abrangentes, que cheguem boseiras possíveis, sem qualquer fun- percebemos que rendem, outros que
O que é preciso é saber lá chegar e ter
editores interessados em boa história.

Há uma dúvida que, por vezes, tam-


bém tenho. Existe um público, isso é
evidente, e nunca se publicou tanto
história, boa e má, como na última dé-
cada, ou nas últimas duas décadas...
RLJ – E até se republicam agora obras
que já se encontram no domínio públi-
co, sem direitos de autor...
PMD – Obras com mais de 70 anos...

A História de Portugal de Fortunato de


Almeida, coisas assim?
RLJ – Isso até nem é o pior! O Edgar
Prestage, com “Os Pioneiros Portugue-
ses”, uma obra de 1933 completamen-
te desatualizada, o Charles Oman, com
“A Arte da Guerra na Idade Média”, de
1889, o Herculano... Veja-se o Hercula-
no: foi reeditada a “História da Origem
e Estabelecimento da Inquisição em
Portugal”, que é uma obra de vulto, só
que essa publicação deveria ser feita...

Com o devido enquadramento crítico...


RLJ – É exatamente isso que aponta-
mos a essas reedições, o não haver,
pelo menos, uma introdução a dizer 059
que a obra é do ano xis, foi publicada
em tal contexto, está desatualizada por
isto, aquilo ou aqueloutro... Isso seria
ótimo, porque as reedições de obras
historiográficas são importantes. Ago-
ra, quando fazem isso, põem uma nova
capa, dizem que é uma obra espetacu-
lar e não sei quê, e as pessoas com-
pram pensando que está ali o que pre-
cisam de saber...
PMD – É vendido como se tivesse sido
escrito ontem.

não, há coisas em que ainda não per- ar, por dois desconhecidos, e agora, Eu estava a levantar outra questão.
cebemos bem o público. com as sessões de apresentação do li- Há um público interessado, de facto,
PMD – E há épocas do ano que não fun- vro, tivemos essa perceção das pessoas mas fica por vezes a sensação de que
cionam bem. Janeiro é sempre desastro- que seguem, que já ouviam... continua a ser o nicho restrito dos que
so, com os números mais baixos do ano... se interessam sempre pelo que diz
RLJ – Deve ser a ressaca das férias... No As vozes ganharam rostos. respeito à história. Ou seja, continua
verão, a partir de junho, os números RLJ – Sim, as pessoas comentam isso. difícil corrigir determinadas distor-
também começam a baixar. Temos a Também aparecemos em algumas en- ções enraizadas da visão do passa-
ideia de que muitas pessoas ouvem trevistas, por aqui e por ali, e as pes- do, que tocam fatias muito mais am-
quando vão a caminho do trabalho... soas lá diziam: “Finalmente, podemos plas da população. Parece-vos que
associar uma cara à voz”... assim é?
Na praia, as vossas vozes já não soam PMD – “Ai, tão novos!” RLJ – Sem dúvida nenhuma...
tão bem... RLJ – Exato, sempre aquela coisa. Mas PMD – Isso acontece-nos, sim. Temos
PMD – [risos] Pois não, é sempre a ca- o gratificante é vermos que há um pú- acesso aos dados do podcast, perce-
minho do trabalho... blico interessado, que a história vende. bemos que o nosso público é muito
RLJ – Mas é sempre interessante, até Isso não passa só pelo que encontramos variado e abrangemos todas as idades,
porque era uma coisa lançada para o nas livrarias, pois a boa história vende. praticamente. Temos ouvintes em Es-
ENTREVISTA

panha, nos Estados Unidos... temos al-


gum espaço na diáspora, até na Poló-
nia. O que reparamos é na existência
de um contraste: há as pessoas que
pensam algo do género “estes tipos
não sabem o que estão a dizer, porque
isto foi assim e assado, porque o José
Hermano Saraiva disse”; depois há as
que dizem “ah, não sabia nada disto,
obrigado por terem destruído mais um
mito”. É engraçado porque, às vezes,
essa atitude mais aberta vem também
de pessoas com mais idade que pen-
sam: “Eu aprendi isto na escola, com o
Estado Novo, vocês estão a dizer que
não é assim, mas, realmente, isto faz
mais sentido do que o que então me
ensinaram”. Apesar de tudo, por ser-
mos um bocadinho mais ligeiros, por
sermos rigorosos, mas, mesmo assim,
tentarmos adaptar as coisas, acho que
conseguimos atrair um bocadinho
mais um público que, no geral, se
olhar para um livro como “Atualizar a
História” pensa “hummm, isto cheira
a esturro”... mas, apesar de tudo, o
nosso público olhou para o título e
pensou “é provocador, mas vou dar
uma hipótese”. Depois, leem os capí-
060 tulos, e temos tido muito bom
feedback.
RLJ – Mas é um problema. O podcast
é um nicho, os livros não deixam de
ser um nicho. Deveria haver um maior
investimento dos media para este tipo
de divulgação, por exemplo, na televi-
são. Desde o programa do José Herma-
no Saraiva, com todos os problemas
que sabemos que tinha, que não há...
Quer dizer, tem havido alguns, mas
são efémeros e não criam raízes. Na
rádio também são poucos aqueles que
se aventuram nisso. E a televisão, que
é, se calhar, o meio principal, seria a “foi aqui, neste sítio mesmo, que acon- ele sofreu, e pela qual foi responsável,
forma de chegar a um público maior. teceu isto ou aquilo”. no início dos anos 80, passando de mi-
Para isso, é preciso haver interesse. nistro do Estado Novo ao avozinho
Mas, se formos ver, que programas A figura de José Hermano Saraiva é muito agradável que está na televisão.
culturais existem atualmente, além da bastante curiosa, e gostava de perce- E foi uma metamorfose muito bem
“Visita guiada”, que é um excelente ber como o veem. Não sei se ainda o conseguida, pois hoje, quando pensa-
programa, de referência? E temos, por apanharam muito... mos que ele foi ministro do Estado
exemplo, no Porto Canal, os progra- RLJ/PMD – Sim, sim... Novo e teve ações absolutamente cen-
mas do Joel Cleto, bem feitos e atrati- PMD – E toda a gente nos fala nele. suráveis, por exemplo na crise acadé-
vos, pois permanecem há uma série RLJ – Constantemente!... mica de 1969, aqui em Coimbra, vemos
de anos. Deveria haver uma preocupa- que ninguém quer saber disso. Para as
ção por esse tipo de programa. O con- O curioso é que, sem ele, que, já o sa- pessoas, ele era o avozinho que, quan-
traponto será umas pessoas a dizerem bemos, inventava muito, vocês (ou do eu era pequenino, via na televisão,
“ah, mas isso vai ser uma história ofi- nós, na revista) não tinham tanto ca- via-o lá a falar com aquele ar e com o
cial”. Não, não é oficial, nós estamos minho para andar... seu fatinho. Mas sim, ele aceitava, es-
longe do tempo do José Hermano Sa- PMD – Essa é que a questão. Nós gos- sencialmente, os guiões que lhe ofere-
raiva, com as suas versões oficiais e o tamos de sublinhar a metamorfose que ciam as câmaras municipais para falar
O que é preciso hoje? Programas mais
ritmados, ao estilo dos “youtubers”
[nota: autores de programas de toda a
índole em canais pessoais da rede de
partilha de vídeo YouTube, com espe-
cial êxito junto das faixas etárias mais
jovens, mas não só]?
RLJ – Não tanto youtubers, mas abor-
dar temas mais variados, ter uma for-
ma mais desprendida de olhar para o
passado...
PMD – E mais informal. Podemos ser
rigorosos sendo informais. Não preci-
samos de usar um fatinho para conhe-
cer alguma coisa.

Falámos do nicho dos leitores de his-


tória, mas há um espaço de “divul-
gação” (sublinhe-se a colocação en-
tre aspas) que é o ensino. Acompa-
nham os programas do básico e se-
cundário e, porventura, têm a sensa-
ção de eles navegarem convosco no
mesmo barco?
RLJ – Não seguimos pari passu, mas
temos uma noção geral do estado do
ensino e dos programas de história.
Apesar do que às vezes se diz, tem ha-
vido, em alguns temas, um esforço de
atualização face aos novos trabalhos 061
historiográficos. Claro que, se calhar, é
insuficiente. E também estamos a falar
de uma questão geracional. Ainda há
muita gente que foi formada no Estado
Novo. Muitas gerações que tiveram o
seu ensino primário nesse tempo, e
isso tem um impacto brutal em como
nós falamos da sociedade portuguesa,
como é que a sociedade portuguesa
olha para trás. A geração que está nes-
te momento a ser formada nas escolas,
na realidade só podermos ver que im-
pacto é que isso tem daqui a 20 ou 30
lá da terra, a santa não sei quantas, o
moinho não sei de onde... “PODEMOS SER anos. É difícil olharmos para trás, pois
mesmo depois de 1974, na realidade, os
RLJ – E depois há a questão da oferta, RIGOROSOS SENDO programas demoraram muito a serem
que ainda durou até ao início dos anos
2000. Mas, naquele período, que as pes-
INFORMAIS. NÃO reajustados e alterados.
PMD – Apesar de tudo, eu conheço al-
soas recordam, os anos 80 e 90, aquilo PRECISAMOS DE USAR guns professores mais jovens, e eles,
era o que havia na televisão portuguesa
em termos de programas culturais. Hoje
UM FATINHO” face aos manuais que têm, vão acres-
centando coisas e tornando-as um bo-
em dia, um programa daquele tipo nun- PAULO M. DIAS cadinho mais interessantes.
ca faria sucesso. Não só pelo tipo de dis-
curso, mas pelo conceito em si... O que é mais importante para o ensi-
PMD – Sim, aqueles planos alongados, no: bons programas ou bons profes-
depois aparece uma barragem, depois sores?
aparece ele a dizer “foi aqui”... RLJ – São os bons professores.
RLJ – Mas, realmente, teve um grande PMD – Os bons professores, sim. Acho
papel na divulgação, e isso ninguém que o programa acaba por ajudar, nós
lhe nega. também já entramos nalgumas aulas,
ENTREVISTA

pois sabemos de professores que já vro os dois, mas não teria a qualidade sempre muito disponíveis, por exem-
usaram o podcast e pedem-nos temas, que este tem, além de que precisaría- plo, para adaptar a linguagem. Nin-
especificamente, para falar nas aulas: mos de mais tempo, precisaríamos de guém quer termos complexos...
a crise de 1383/1385, por exemplo. Há investigar com profundidade... Portan- RLJ – Nem notas de rodapé, só uma ou
uma maior sensibilidade para as novas to, pensámos que seria melhor coor- outra, muito pontual. Dissemos assim
ferramentas. Até porque os miúdos, denar uma equipa de historiadores, aos autores: “O livro vai ser vendido
atualmente, não estão tão apegados neste caso 28 autores, incluindo nós no Continente. Imaginem que uma
aos livros como nós poderíamos estar, próprios, para tratarem temas diferen- pessoa chega ao Continente, abre o li-
mas estão ligados a um tablet ou ao te- tes, e escolher temas menos conheci- vro, de repente, e vê que as notas de
lemóvel, para ir ao YouTube, para es- dos, ou mais fraturantes, para atualizar rodapé ocupam o espaço quase todo
tar no Spotify, seja o que for, e, portan- um bocadinho. Para mostrar o que se da página. Fecha o livro e vai-se em-
to, também passa por aí tentar estimu- conhece nas universidades, nalguns bora. E isto não é uma forma de des-
lá-los um bocadinho. casos há décadas, mas que não chegou prestigiar, de dizer que as pessoas não
RLJ – Quase todos os professores têm cá fora A questão do Viriato, por exem- têm capacidade para... pelo contrário:
de usar PowerPoint durante as aulas, plo. O Viriato, se calhar, nem pôs os pés tem é de ser um livro que chegue a
para estimular visualmente, mas isso em Viseu. A cava dita de Viriato é me- toda a gente. Sem qualquer discrimi-
tem a ver com a própria sociedade, dieval. Ao escolhermos os temas, pen- nação de idade, de escolaridade, nada.
com os estímulos a que as crianças são sámos também que autor se adaptaria As pessoas não leem, e temos de puxá-
habituadas desde muito cedo. A aten- melhor a cada tema. Inicialmente, tí- -las para a leitura, para uma leitura in-
ção deles tem de estar presa por algu- nhamos uma lista gigantesca, com teressante. Claro que estamos a falar
ma coisa. mais de 50 temas... de 28 autores, e é impossível que es-
crevam todos da mesma forma. É um
Esperançosamente, alguns deles te- E tiveram de cortar, de editar logo por livro diverso, como todas as obras co-
rão de se transformar em “ratos de aí... letivas o são. Mas, no todo, ficámos sa-
biblioteca”, ou não teremos historia- RLJ – Começámos por pensar que, se tisfeitos e cremos que é acessível a
dores... calhar, 50 autores seriam demasiados. toda a gente.
PMD – Sim, sim... E eu tive aulas de PMD – E ficaria um livro demasiado
história do mais “secante” possível e grande. Se houver um segundo volu- Como é que num país que se gaba re-
cá estou!... me... correntemente de ter as gerações
062 RLJ – Por acaso, como diz o José Go- mais qualificadas de sempre as pes-
mes Ferreira, “está tudo na net”. O pro- Ia mesmo sugerir isso... soas não leem?
blema é ele não ir aos sítios certos da PMD – Sim... Por exemplo, Aljubarrota RLJ – As pessoas leem muito, mas não
net. Porque os repositórios das univer- não entrou, e estão sempre a pergun- em papel... Fez-se a transição para o
sidades criaram oportunidades únicas tar-nos pela tática do quadrado... digital...
para acesso aberto à informação. RLJ – Foi muito por aí. E foi, sobretu-
PMD – E projetos de investigação. Por do, mostrar não só que há novas visões As causas serão mais profundas.
exemplo, ele insistiu muito em falar e perspetivas, mas também novos te- Basta ir a Espanha e comparar hábi-
de mapas, e tudo o mais, mas não foi mas, novos projetos que acabam por tos de leitura, por exemplo, ou per-
uma única vez ao projeto Medea- reformular aquilo que sabíamos. Ou ceber como Portugal paga sempre
-Chart, que, basicamente, cataloga to- seja, pensámos numa coisa totalmen- por ser um país pequeno, mais de-
dos os mapas e planisférios existentes te nova, curtinha, porque sabemos que mograficamente do que geografica-
dos séculos XV, XVI, XVII, com infor- hoje em dia as pessoas têm pouco tem- mente: qualquer quebra do número
mação atualizada, com imagens fabu- po para ler, e, sobretudo, uma coisa de leitores, entre nós, mesmo se pe-
losas. Nem uma vez. Nunca lá foi, e que fale de muitos temas. Se cada tema quena, é sempre muito pesada para
está tudo na net!... for denso, as pessoas não leem. Fize- quem produz livros ou publicações
mos esse desafio a todos os autores, periódicas.
Como é que se abalançaram a organi- que aceitaram de imediato. RLJ – Sim, é uma questão mais enrai-
zar o livro a que chamaram “Atualizar zada, ligada à natureza do nosso mer-
a História”: tem a ver com a perceção Ia, justamente, perguntar pelo entu- cado editorial. Por muito que se publi-
que criaram fazendo o podcast? siasmo dos autores. que, para muitos portugueses, um li-
PMD – Essencialmente, na altura do RLJ – Houve, sim, e isso foi ótimo, por- vro é quase um bem de luxo. Ao preço
boom do podcast, em maio de 2021, que havia autores que não conhecía- a que está a gasolina, entre encher o
começámos a receber alguns de edito- mos, apenas de nome... depósito e comprar um livro, a pessoa
ras. Acabámos por escolher a Saída de PMD – Autores que conhecíamos pe- não compra o livro, porque tem mes-
Emergência porque gostámos deles las suas carreiras, consagrados, e res- mo de encher o depósito. E há ques-
desde o início. Por exemplo, puseram- ponderam de imediato que sim, que tões estruturais ligadas à literacia. Sa-
-nos logo à vontade para fazermos o li- iam fazer, quantas páginas tinham de bemos o que foi a falta de literacia ao
vro que entendêssemos, o que não é escrever, o que queríamos fazer e longo da história de Portugal. Claro que
algo que aconteça muito. Pensámos como... Sempre muito abertos. Mesmo o Estado Novo alfabetizou, em termos
também que poderíamos fazer um li- na fase de revisão dos textos estavam de ensino primário, mas isso foi insu-
063
ENTREVISTA

ficiente para criar hábitos de leitura e


uma massa crítica com interesse.

Até porque serviam a verdade defini-


tiva e, a partir dela, nada mais era ne-
cessário saber.
RLJ – Claro, mas insisto que a alfabeti-
zação no Estado Novo foi centrada no
ensino primário, somente. O resto sa-
bemos que era uma ínfima parte, e isso
acaba por ter também um impacto
brutal. OK, as pessoas sabiam ler e es-
crever. E depois? Basta olhar para o pe-
ríodo do PREC e para aquelas campa-
nhas de alfabetização feitas pelo MFA
de norte a sul do país...

Falávamos da televisão: vocês têm


potencial telegénico para isso? Ou,
pelo menos, para usarem o audiovi-
sual como forma de chegarem mais
longe?
PMD – Eu acho que sim. Isto faz-me
lembrar uma citação do Churchill, na
Segunda Guerra Mundial. Quando os
Estados Unidos ainda estavam relutan-
tes em entrar na guerra, ele disse:
“Deem-nos os meios e nós acabamos a
guerra”. Connosco é um bocadinho
064 isso, temos falta de meios. Gostávamos
de ter um público mais vasto e de ter
forma de o alcançar, até porque isto é
tudo feito por nós em nossas casas...
gostávamos de ter alguém para editar,
para não gastarmos os nossos fins de
semana nisso, uns patrocínios, não sei.

INSPIRADOS
Mas sim, televisão ou rádio, estaríamos
dispostos a isso, até porque é um meio
em que nos temos ambientado e de
que gostamos bastante.
RLJ – E há outros colegas nossos a pen-

POR TOLKIEN
sar em projetos de divulgação, o que é
ótimo, como páginas no Instagram ou
no Facebook. Nós não descobrimos a
roda, a divulgação já era feita há mui-
tos anos por muitas outras pessoas,
mas o meio em que é feito o podcast
permitiu-nos ter alguma divulgação de
um trabalho que não é perfeito, mas é
o que nós conseguimos, humanamen-
te, fazer. Também com a ressalva de
que os podcasts em Portugal têm uma
particularidade, sobretudo os tops de
podcasts, pois estes estão ocupados
por programas de rádio. São rubricas
que são ótimas, mas que transitam da
rádio para o ambiente de podcast: Se
expurgássemos os tops desses progra-
mas, teríamos outra imagem do que é
a realidade dos podcasts em Portugal.
Que nem sempre é de história...
PMD – Hoje em dia, sobretudo...
RLJ – Vou fazer aqui um interlúdio.
Quando foi o centenário de Fátima,
eles fizeram um documentário, que eu
estive a ver e que era um programa
bom sobre o fenómeno, mas depois,
quando aquilo acabou, passaram uma
coisa em que eu não queria acreditar:
um programa sobre grandes matemá-
ticos, como o Alan Turing e outros, so-
bre o Einstein, e a tese é que os tipos
eram tão geniais, mas tão à frente do
seu tempo, que o único motivo por
que podiam ser assim era terem uma
ligação telepática com aliens, que lhe
davam aquelas ideias. Só pensei: “Eu
não estou a ver isto!”. É como a ques-
tão das pirâmides. Tudo o que seja fora
da Europa não pode ser humano, tem
de ser obra de extraterrestres. Os
maias, os astecas, os egípcios não ti-
nham capacidade, tinham de ser
aliens. Quando são coisas europeias,
são os gajos europeus, quando é fora,
não pode ser...

Estamos a descarrilar para o eurocen-


trismo, o que não está mal, mas que-
ria continuar a perceber a sedução 065
pela história...
PMD – A fantasia também ajudou mui-
to. “O Senhor dos Anéis”, na altura em
que começaram a sair os filmes, por
exemplo... A paixão pela Idade Média já
é bastante antiga. Fui para a faculdade,
tive um professor no 12.º ano que me
incentivou a ir para a Nova... Não me ar-
rependi. Já pensei muitas vezes que po-
dia ter feito outra coisa, para ganhar
mais dinheiro, mas, apesar de tudo,
prossegui, mantenho e ainda não desis-
ti. Vamos ver como as coisas vão correr
Pergunta simultânea: num tempo criança quando o canal História surgiu depois do doutoramento, se a precarie-
tão tecnocrático, como surge este e tinha programas que não eram sobre dade continua tão precária ou pior...
caminho nem sempre considerado extraterrestres e sobre nazis...
como “de futuro? São “nerds” da Roger, a bola passa para aí: foi o José
história? Pois, com as pirâmides a aterrar e coi- Hermano Saraiva?
PMD – [risos] Sim, somos... e de ou- sas assim... RLJ – [risos] Não, por acaso também
tras coisas também. Somos novos RLJ – Sim, nazis com pirâmides e pirâ- nunca me puxou. Comecei por um
comparativamente com o mundo aca- mides com nazis... Também sempre gosto, em jovem, pela Antiguidade
démico... tive o gosto pela leitura. Curiosamen- clássica, também pelo Egito e por aí
te, nunca peguei no José Hermano Sa- fora. Confesso que, até entrar para a fa-
São novos como todos os outros fo- raiva. O meu avô paterno, que era co- culdade, era um ignorante enciclopé-
ram... munista ferrenho e detestava o Estado dico sobre a história de Portugal.
RLJ – E já não somos assim tão novos, Novo, de alguma forma gostava do Jo- Quando entrei para a faculdade, esta-
já há mais novos do que nós... sé Hermano Saraiva, mas nunca con- va convencido que me queria especia-
PMD – Exatamente... Para mim, esse seguiu pôr-me a ver os programas, eu lizar na Rússia soviética e acabei por
gosto pela história surgiu em tenra ida- detestava aquilo. Foi mais filmes, livros me especializar no império português
de. Sempre gostei muito de filmes, era e o canal História... na Ásia, no século XVI. Tem tudo a
ENTREVISTA

ver... Também tive uma excelente pro- sempre tinha tido curiosidade e foi mais de um minuto de uma série por-
fessora no secundário que me incutiu com o podcast que consegui aprofun- tuguesa, passada na Idade Média, an-
o gosto e me mostrou que era uma via dar. Outra coisa que fizemos foi sobre tes de mudar de canal...
eventualmente com futuro, com todas os calendários, a evolução dos calen- RLJ – Sim, sim, não vale a pena dizer
as aspas possíveis. Eu nasci na Suíça e dários. É algo por que eu tive sempre aqui qual era, mas nós fizemos ques-
fiz lá a minha escola primária, os meus muita curiosidade, mas só com o tão de ver os episódios todos e fizemos
pais estavam emigrados lá, e nos últi- podcast pude aprofundar. A curiosida- comentários em direto no Twitter...
mos tempos tenho pensado em como de permite-nos fazer o podcast e per- São meios privilegiados e, por vezes, é
isso terá influenciado a minha escolha mite que as pessoas avancem nesta muito desvalorizado o impacto nega-
pelo estudo do império em si, não procura de perceber o passado. tivo que podem ter. É como as feiras
numa visão gloriosa, bem pelo contrá- medievais. O que as pessoas querem
rio, mas não deixa de ser interessante É muito curioso ambos apontarem é o espetáculo, algo que encha o olho.
perceber como um país acaba por se como referência o J. R. R. Tolkien, que O pormenor, se aquilo era mesmo as-
estender da forma como o fez, com é absolutamente seminal na introdu- sim, isso é só para o historiador, isso
parquíssimos recursos... Havemos de ção do imaginário medieval, bem como não interessa. O problema é que isso
fazer um episódio do podcast sobre da mitologia germânica, na literatura vai ter um impacto na imagem que se
isso: sobre como não há uma política fantástica. Da saga “A song of ice and passa da história.
definida, não há nada, é tudo feito em fire” (a base da série “A guerra dos PMD – A rulote das bifanas no meio da
cima do joelho... Aquela ideia de ser Tronos”) ao universo de Harry Potter, batalha de Aljubarrota é um bocadi-
uma coisa planeada é uma construção não falta quem vá beber mais ou me- nho forçado...
completamente mitológica do que foi o nos diretamente a Tolkien... RLJ – E a dança do ventre! A dança do
império português. RLJ – Quanto tempo temos? Se a gen- ventre, nas feiras medievais, é um clás-
te entra por aí... Ele era filólogo e espe- sico... E é inqualificável.
Ainda muita gente pensa no Estado cialista em inglês antigo, na Idade Mé- PMD – Também acho engraçado o fac-
Português da Índia, que era uma pre- dia inglesa, e aproveitou não só essas to de, muitas vezes, fazerem feiras me-
sença epidérmica, de forma muito influências como muitas outras para dievais em povoações que ainda não
distorcida... criar o seu mundo secundário. Isso existiam no período medieval...
RLJ – Acho que nem sequer nenhum acaba por ter impacto não só na litera- RLJ – O pessoal vai para o copo e bu-
rei percebeu, na realidade, o que era o tura desse género... cha, e o resto é um bónus.
066 império. Por isso é que pediam ima- PMD – E agora, com o George R. R. Mar-
gens e relatórios... Bem descreviam, há tin, é a mesma coisa. Temos um mun- Mudemos de assunto: como chegaram
isto, há aquilo, mas eles nunca perce- do medievalizante, não medieval, que um ao outro?
beram o que era na realidade, por bebe muito do Tolkien e de muitos ro- RLJ – Conhecemo-nos num congres-
exemplo, o Estado da Índia. E isso ex- mances históricos. Ele próprio diz que so que eu organizei na Nova. Era so-
plica muita da política empreendida não lê muitos livros de história, mas bre atualizar a história, lá está, mas so-
pela Coroa nos séculos XVI e XVII. Mas sim de história divulgativa e romances bre história militar portuguesa. O
isso já é um desvio na conversa. Reto- históricos. É aí que ele vai tirar ideias Paulo estava a acabar a tese de mes-
mando, sempre tive algum interesse. para o seu mundo. trado e convidámo-lo. Foi aí que nos
Depois, também fui influenciado pela conhecemos...
literatura fantástica, como o Paulo, so- Leem romances históricos? PMD – Há uns sete anos...
bretudo pela obra de Tolkien. Eu disse RLJ – Alguns, alguns... RLJ – Continuámos a falar um com o
há pouco que quando entrei na facul- PMD – Sim, de vez em quando... outro, esporadicamente, até que fo-
dade não sabia nada de história de Por- ram surgindo estas ideias, de fazer um
tugal, para mostrar como bons profes- Quais são as referências? programa de divulgação histórica. E
sores (não quero dizer que não tive PMD – O Umberto Eco é sempre o sem sabermos que a minha mulher e
maus, também os tive...) acabam por clássico... a namorada dele também picavam,
criar interesse em áreas que uma pes- cada uma do seu lado, para fazermos
soa nunca sonharia. Não sei dizer a Certo, mas em Portugal? alguma coisa.
partir de quando, mas é uma curiosi- RLJ – Há umas coisas interessantes,
dade. A curiosidade atiça tudo, e se a outras que nem tanto. E é uma forma Picavam e conspiravam?
pessoa for curiosa pelos mais variados privilegiada de divulgação da história, PMD – Isto surgiu no final da pande-
temas, e o podcast faz isso connosco, mesmo sendo um nicho. O que nós cri- mia. Nós começámos em 2020, mas já
isso ajuda muito a pensar o porquê de ticamos, não só na literatura histórica andávamos ali há algum tempo, faze-
tudo, que nos ajuda a perceber o por- como nas séries históricas, e por aí mos, não fazemos... Estavam fartas de
quê da sociedade atual e as raízes de fora, é que às vezes há pormenores que nos ter em casa sem fazer nada.
tudo e mais alguma coisa. Por exem- não alterariam nada do enredo... RLJ – De jeito que acabámos por nos
plo, um dos episódios que já gravámos lançar. Depois, tivemos de definir o
foi sobre o império asteca, quando foi E a falta de rigor torna tudo absoluta- modelo. O que fazemos, como faze-
o quinto centenário da queda de Teno- mente inverosímil. Lembro-me de há mos, com que meios... Inicialmente, e
chtitlán. Era uma coisa sobre a qual tempos ter conseguido ver pouco continua a ser, isto foi um investimen-
to nosso. Uma coisa mínima, porque é
mesmo muito amadora, mas parece
correr bem.

São ouvidos nos vossos ambientes


de trabalho, nos centros de investi-
gação?
PMD – Sim, sim, e toda a gente acha
muita graça. Até já tentaram puxar-me
para fazer outras coisas na divulgação.
Também sugerem temas, acham que
fizemos muito bem em começar e di-
zem-nos para continuar.
RLJ – No início até tínhamos algum re-
ceio do que seriam as opiniões nos
meios académicos, receio de que po-
deríamos ser postos de parte, mas não.
De todo... Mas temos aproveitado, no
livro e não só, para convidar colegas
nossos. E voltaremos a fazê-lo, porque
há temas que, se há pessoas mesmo da
área, não vale a pena estarmos nós a
perder tempo a preparar um episódio.
Mais vale convidar o especialista. Se
bem que já reparámos que os ouvintes
preferem ouvir-nos a nós e não tanto
aos convidados. Mas também temos
esse objetivo de divulgar o que fazem
colegas, incluindo investigadores mais
seniores com trabalho na área. 067
PMD – Sim, porque há temas tão den-
sos que nos levariam demasiado tem-
po. Tivemos um convidado para falar
sobre o fascismo. Se nos metêssemos a
estudar o fascismo nunca mais saía-
mos de lá. O marquês de Pombal, a in-
quisição, os cristãos-novos...

Brincando, falta-vos o gene do jor-


nalista: o tipo que aprende as coisas
rapidamente para as difundir, dando
a ideia de que é um entendido no as-
sunto...
RLJ – É um pouco o que a gente faz...
[risos] “A DANÇA DO VENTRE, cês são o Paulo e o Roger? São o Paulo
e o Roger?...”.
NAS FEIRAS
Não sendo professores, têm a sensa-
ção de que tocam também a comuni-
MEDIEVAIS, É UM Já são pop stars da historiografia!
PMD – Foi mesmo a primeira vez que
dade estudantil? CLÁSSICO... E É nos aconteceu e foi um bocadinho es-
RLJ – Sim, não só no ensino obrigató-
rio, mas também entre o pessoal uni-
I N Q U A L I F I C Á V E L” tranho. A pessoa pensa: “O que é isto?
Quem é que me vem dar uma facada?”...
versitário, pois temos feedback, de ROGER LEE DE JESUS
norte a sul do país, de pessoas que vão Voltando às questões do mercado edi-
ouvindo o podcast. torial. É muito ingrato verificar que,
PMD – Já fomos a universidades e con- muitas vezes, o êxito resulta de fato-
tinuaremos a ir, e acontecem coisas res que nada têm a ver com a qualida-
curiosas. Por exemplo, na Festa do Li- de do que é escrito, como a notorieda-
vro de Belém, estávamos a passar (e foi de pública dos autores?
a primeira vez que nos aconteceu), PMD – É ingrato, claro que é. Uma pes-
vieram ter connosco a perguntar “vo- soa vê o nome famoso na capa, pensa
ENTREVISTA

068
que vai ler, compra o livro e nunca Queria finalizar retomando um pou- arbustos e colocados na calçada. Faz
mais o abre. co as questões da subjetividade do sentido? Houve um debate? Isto foi
RLJ – E mesmo que abra, aquilo que o discurso histórico. Ser absolutamen- uma decisão camarária. É certo que os
livro revela não tem qualquer valida- te isento na leitura do passado é um representantes locais foram eleitos
de científica. E é ingrato para quem faz objetivo que, mesmo que por formas para representar, mas, se calhar, era
disso a sua profissão, vendo que tanta extremamente subtis, é condiciona- uma questão que devia ser mais deba-
gente dedica anos e décadas a isto, e do pelos filtros pessoais de cada his- tida, porque estamos a falar da Câma-
depois são trabalhos que não são lidos, toriador. No entanto, o passado é algo ra de Lisboa, mas aquela praça, em si,
que são desprezados, que não são ti- que está lá, que já foi, e a historiogra- diz mais do que apenas a Lisboa. Se ca-
dos em consideração. fia não é feita como uma forma de in- lhar, tem um impacto mais nacional
PMD – No caso do livro do José Gomes tervenção no presente. Já a divulga- do que podem pensar. Daí que deves-
Ferreira, o que nós fizemos foi o que ção, por muito rigorosa que seja, pode se ser mais debatido, para se perceber
se faz em livros académicos. Fomos ser sempre feita a partir do que pen- se faz sentido, ainda, manter brasões
ver o livro e fizemos uma recensão. Se samos ser pertinente face ao tempo das antigas colónias em 2022.Até por
se quer publicar em história tem de se em que vivemos. É assim? isso fizemos um episódio...
estar disposto a ser criticado, que foi o PMD – Lá está, temos sempre a ideia PMD – A memória histórica...
que sucedeu. Se o nosso livro for cri- de intervir no espaço público com o RLJ – Exato, sobre como a memória do
ticado e daqui a 10 anos aparecer uma intuito de gerar debate. Trazer novas império foi sendo construída, porque
coisa melhor e ficar desatualizado, óti- visões e fazer as pessoas falar sobre queremos ter uma intervenção não no
mo! As coisas evoluem e é isso que nós isto. Consciencializar as pessoas. Não sentido de termos protagonismo, mas
queremos. é necessariamente expormos algo e de informar. O protagonismo a gente
dizer “esta é a versão, o resto caluda”, dispensa. Queremos, como se diz em
E a história de Portugal, enquanto dizemos “isto é uma versão, há mais inglês, oferecer “food for thought”
grande obra de síntese, já merece ser provas para esta do que para aquela, [nota: literalmente, comida para o
atualizada? Depois de obras impor- em princípio será esta”. Não é, neces- pensamento].
tantíssimas como a Nova História de sariamente, dar a papinha toda feita,
Portugal, dirigida por Joel Serrão e A. mas é levar as pessoas a refletir, a Mas esses também são campos mui-
H. de Oliveira Marques, ou a História pensar que, se calhar, as coisas não to permeáveis ao anacronismo, a ver
de Portugal, dirigida por José Matto- seriam exatamente como pensavam. coisas do século XVI e a julgá-las pe-
so, não voltámos a ter um esforço Como agora, a Universidade de las mesmas tábuas de valores do sé- 069
dessa envergadura. Oxford e, depois, a de Cambridge, de- culo XXI...
RLJ – No ano que vem, a História do volver à Nigéria os bronzes do Benim, PMD – Pois, e isso não pode acontecer.
Mattoso comemora 30 anos de publi- porque se provou que foram pilha- Eu, por exemplo, estudo Marrocos. A
cação. Se calhar, já era tempo de uma dos. Agora, objetos de outras prove- presença portuguesa em Marrocos
nova história de Portugal assim... niências, é preciso perceber de onde não tem nada a ver com o que se pas-
PMD – Em 2010 tivemos o volume vêm, o que é comprado, o que é pi- sa na Índia, muito menos com o que se
compacto do Rui Ramos, do Bernardo lhado, o que é isto ou aquilo. Nem passará depois em África, nos séculos
Vasconcelos e Sousa, mas é uma coisa tudo é o mesmo. XIX e XX. Quando se fala, por exem-
sintética... RLJ – É o mesmo que o debate sobre as plo, de 500 anos de colonialismo em
RLJ – A Nova História de Portugal nun- estátuas, o apeamento de estátuas e Angola, como se tem ouvido recente-
ca foi terminada... por aí fora. Nós não somos contra des- mente... Não há 500 anos de colonia-
de que isso faça sentido para a respe- lismo em Angola, simplesmente por-
E nunca será... tiva população. As estátuas têm uma que, até às vacinas, os europeus caíam
RLJ – Nunca será, de jeito que já era leitura e, se a população já não se revê que nem tordos no continente africa-
tempo de se pôr mãos à obra para naquela estátua, então é legítimo que no! Houve colonialismo, sim, mas du-
uma nova obra coletiva desse tipo. O remova a estátua porque já não lhe diz rante cento e qualquer coisa anos.
problema é haver ou não interesse nada. Agora, para sabermos se a popu- RLJ – Hoje estamos habituados a viver
editorial em obras desse tipo, como lação se revê ou não na estátua, é pre- na espuma dos dias, no imediato. A In-
houve naquela altura. Para o ano faz ciso que haja um debate, que haja uma ternet tirou-nos isso tudo. A pessoa já
20 anos que se publicou a Nova His- consciencialização... nem manda uma sms, manda por
tória Militar... Também se perdeu um WhatsApp, para saber se a pessoa re-
pouco o interesse nessas grandes sín- E quem representa a população? cebeu e se leu. Se leu e não disse nada,
teses de vários volumes. Mas essas RLJ – Pois, não é fácil, é uma coisa que a pessoa liga logo a perguntar “então,
publicações de há 20 ou 30 anos con- tem de ser debatida, mas o debate só leste e não respondeste?”. Ou seja, vi-
tinuam a ser obras de referência: há pode ser feito de uma forma informa- vemos na era do imediato, mas há
capítulos que continuam inultrapas- da. Uma história paradigmática, que questões que têm se ser refletidas. A
sados, se bem que, provavelmente, a está a acontecer agora com os brasões sociedade tem direito a pensar e a re-
maioria já merece uma atualização, o da Praça do Império, em Lisboa. Che- fletir. Naquilo que diz respeito à sua
que é perfeitamente normal ao fim gou-se a um consenso, não se sabe memória histórica, ainda mais é preci-
deste tempo. bem porquê, e vão ser retirados dos so tempo para pensar e para refletir.
ENTREVISTA

Percursos
quase paralelos
Perfil

P
ensando em escrever o perfil conjunto de
duas pessoas, ocorre-nos desde logo a figu-
ra de Jano – Ianus, em latim – com os seus
dois rostos, um que olha em frente, outro
virado para trás. O futuro e o passado, o fim
e o começo. Contrariamente à ideia comum
de atribuir duas caras às pessoas, signifi-
cando hipocrisia, Jano é, na mitologia romana, o deus das
escolhas, dos princípios (dele deriva o mês de janeiro, que,
no calendário romano, marcava o início do fim do ano). Ja-
no é, afinal, uma boa metáfora para a postura destes dois in-
vestigadores do passado que, também enquando divulga-
dores, mostram-se constantemente expectantes face ao que
o futuro trará em termos de renovação do conhecimento.
Roger Lee de Jesus, de polo verde, é adepto do Sporting e es-
tuda o império português no Oriente, na Época Moderna.
Paulo M. Dias, de polo cinzento, torce pelo F.C. Porto e é me-
dievalista, centrando o seu estudo na presença portuguesa
no Norte de África. Separemo-los por comodidade.
Licenciado em História (2010) pela Faculdade de Letras da
070 Universidade de Coimbra, em que obteve os graus de mes-
tre e doutor, este com uma dissertação intitulada “A Gover-
nação do “Estado da Índia” por D. João de Castro (1545-1548)
na Estratégia Imperial de D. João III” (2021), Roger Lee de
Jesus tem centrado o seu trabalho na construção do impé-
rio português na Ásia, ao longo do século XVI. É investiga-
dor do Centro de História da Sociedade e da Cultura (UC) e
do CHAM - Centro de Humanidades (FCSH/NOVA/UAç).
Paulo M. Dias tem feito o seu percurso académico na Fa-
culdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade
Nova de Lisboa, em cujo Instituto de Estudos Medievais é
investigador, preparando aí o seu doutoramento. Licencia-
do em 2013, obteve em 2015 o grau de mestre, com uma dis-
sertação (“A Conquista de Arzila pelos Portugueses - 1471”)
que lhe valeu, ex-aequo, em 2016, o Prémio Defesa Nacio-
nal atribuído pela Comissão Portuguesa de História Militar.
Na entrevista que ocupa as páginas precedentes, os dois
explicam melhor do que aqui se poderia fazer o percurso
comum como divulgadores de história, tanto no podcast
“Falando de História” como através da coordenação de
“Atualizar a História”, livro em que especialistas das mais
diversas áreas, de forma sucinta mas rigorosa, dão pistas es-
senciais para que o senso comum, tantas vezes agarrado a
visões há muitos anos ultrapassadas ou mesmo desmenti-
das, possa acolher o conhecimento atualizado e cientifica-
mente sancionado. É curioso o facto de ambos terem sido
puxados para a história pela obra de J.R.R. Tolkien, em es-
pecial devido às adaptações cinematográficas de Peter
Jackson. Curioso e geracional: tivessem nascido há cem
anos e, muito provavelmente, seriam puxados para a histó-
ria por Errol Flynn. Saíram a ganhar, há que dizê-lo.
071
PRÉ-PUBLICAÇÃO

A
TRIPEÇA
HUMANA
Fátima Mariano, historiadora e jornalista com presença
072 frequente nas páginas da JN História, acaba de dar à estampa
o livro “Grandes Figuras Excêntricas da História de Portugal”,
com chancela da Contraponto. Sem ser genuinamente uma
pré-publicação, pois a obra chegou há dias às livrarias,
reproduzimos integralmente um dos capítulos

N
o dia 18 de agosto de 1864, O quatro pés, dois pénis e dois ânus. Muito ativo
Jornal do Porto anunciava a sexualmente desde a adolescência, uma das
presença na cidade de um suas parceiras foi uma mulher de nacionalida-
homem que era um “fenó- de francesa que tinha três pernas, quatro ma-
meno digno da atenção do mas, duas vulvas e duas vaginas.
sexo masculino”. A celebri-
dade, que os seus represen- O PIGÓMELO HUMANO PORTUGUÊS
tantes diziam “pertencer à alta sabedoria” e A notícia correu rapidamente pela cidade de
ser um “capricho da natureza”, não podia, no Faro naquela tarde de 5 de setembro de 1845.
entanto, ser admirado pelo “sexo belo”, o mes- Pelas 17h30, Ana de Jesus, 23 anos, residente
mo é dizer, pelas mulheres. “Esquisita coisa no sítio dos Carreiros, deu à luz um bebé do
deve ser!”, rematava o articulista perante este sexo masculino com uma estranha condição
aviso, sem adiantar pormenores. física: tinha três pernas, quatro pés, dois pé-
Cinco dias depois, o mesmo periódico infor- nis e dois ânus. Assim que a criança nasceu, o
mava os leitores de que “o fenómeno” – que pai, António dos Santos, 33 anos, mandou
não tinha “rival nos séculos passados” – estava chamar um médico a casa para que este cor-
em exibição no número 74 da Rua do Bonjar- tasse a perna «que trazia a mais». O que não
dim, e estava a atrair “a curiosidade”. aconteceu.
O fenómeno a que se referia O Jornal do O recém -nascido, batizado João Baptista
Porto era João Baptista dos Santos, um algar- dos Santos, atraiu de imediato a atenção da
vio, então com 18 anos, que deixava perplexos comunidade médica portuguesa e estrangeira,
todos os que com ele se cruzavam graças à sua dada a raridade da malformação que apresen-
estranha condição física: tinha três pernas, tava: sofria de pigomelia, uma anormalidade
Ao tempo,
desenvolviam-se
variadas teorias 073
para explicar
a condição física
de João Baptista
dos Santos

caracterizada pela presença, nas nádegas, de pressão do gérmen causada pelo contacto do
um ou mais membros inferiores acessórios. esperma no ato da ejaculação e da conceção”.
Na época, a ciência não conseguia explicar Adiante, acrescentava: “As pancadas, as que-
estes fenómenos. Num artigo publicado em O das, principalmente as que têm lugar sobre o
Instituto: Jornal Scientifico e Litterario, L. de abdómen, as moléstias graves, que sobrevêm
Macedo sugeria que os casos teratológicos – durante a gestação, podem também determi-
como o de João Baptista dos Santos – pode- nar no embrião grandes alterações”.
riam dever -se a “acidentes” que o óvulo sofria Ana de Jesus não se recordava de ter sofrido
depois de ter sido fecundado “ou então à im- qualquer perturbação física ou psicológica, ou
PRÉ-PUBLICAÇÃO

de ter sentido algo de estranho durante os


nove meses de gravidez que pudesse fazê -la
“pressentir a monstruosidade” que acabaria
por dar à luz. Ao médico que a observou logo
após o parto, referiu apenas que tinha apre-
sentado “um volume de ventre maior que o da
gravidez dos dois partos que já tinha tido no
espaço de três anos, em que era casada; de
maneira que algumas pessoas lhe diziam que
havia de ter o parto de duas crianças”. Tanto
ela como o marido e os dois filhos mais velhos
eram fisicamente normais.
L. de Macedo era da opinião de que, no caso
de João Baptista dos Santos, a condição física
anormal resultava “da fusão de um feto dentro
do outro”, tendo-se desenvolvido apenas um
deles “perfeitamente”. Uma teoria partilhada
pelo francês Alfred Velpeau (1795 -1867), um
dos mais consagrados cirurgiões da época, es-
pecialista em anatomia cirúrgica, que não ti-
nha dúvida de se estar perante uma “mons-
truosidade por duplicação”.
Apesar da sua deficiência física, João Baptis-
ta dos Santos era um bebé bem-disposto e nu-
trido. Quatro dias depois do seu nascimento, o
médico que assistiu a mãe (cujo nome não é
conhecido) relatava no Diário do Governo:
“O recém -nascido faz todas as suas fun- Blanche Dumas, xo-ventre” que indiciava a existência de um
ções com regularidade e perfeição, não tem nestas fotos osso semelhante “ao occipital de um feto de
074 apresentado desde o seu nascimento até ago- referida como tempo”. O cirurgião britânico John Bland-Sut-
ra em que tem decorrido quatro dias, altera- Dumont, “cresceu ton apelidou -o de tripeça humana.
ções dignas de notar -se. A mãe igualmente sem qualquer Quando João Baptista dos Santos tinha sete
passa bem, e alimenta seu filho sem o menor preconceito em meses de vida, um empresário inglês conven-
incómodo.” relação ao corpo” ceu os pais a assinarem um contrato que lhe
O corpo de João Baptista dos Santos desen- permitia exibi -lo por toda a Europa. A digres-
volveu-se sempre de forma proporcional e re- são, contudo, durou pouco tempo, pois os lu-
gular. A terceira perna era um pouco mais cros terão sido escassos.
grossa na zona da coxa e não tinha autonomia
motora. Durante a infância, tinha o mesmo APETITE SEXUAL EXACERBADO
comprimento que as outras duas, mas, na ida- A deformidade não impediu João Baptista
de adulta, media apenas 36 centímetros, “as dos Santos de ter uma vida normal, nem se-
dimensões da de uma criança de 8 a 10 anos”. quer no campo sexual. Segundo o próprio,
Esta perna tinha “dois pés unidos pelos seus perdeu a virgindade aos 14 anos e, desde en-
bordos internos até à extremidade dos dedos tão, copulara com diversas mulheres. Duran-
grandes”, cada um dos quais apresentava cin- te o coito, servia -se “habitualmente, do pé-
co dedos com as respetivas unhas. Estes pés nis mais volumoso, mas também podia em-
suplementares estavam sempre frios e arro- pregar o outro, ou ambos ao mesmo tempo”,
xeados e não tinham sensibilidade. algo que os médicos consideravam um hábi-
Além da perna extra, o pigómelo humano to muito curioso. “[…] eu não percebo bem
português tinha dois pénis “paralelamente como este facto era possível”, confessava Ál-
dispostos”, distantes quatro centímetros entre varo Moitas, assistente voluntário e prepara-
si, e ambos com apenas um testículo. Os dois dor do Instituto de Anatomia do Porto, de-
pénis tinham a sua própria uretra, que estava pois de o examinar.
ligada a uma só bexiga, o que fazia com que “Se considerarmos que ambos os membros
João Baptista dos Santos urinasse ao mesmo viris estão perto um do outro, e que a ereção
tempo por ambos (os dois expeliam a mesma se faz ao mesmo tempo, compreende-se que
quantidade de urina). Possuía ainda dois ânus, só o hábito imposto pela necessidade o tem
embora um fosse imperfurado. O abdómen levado ao desempenho de um ato que para
era “um pouco elevado”, e, durante a palpa- outro qualquer seria difícil em igualdade de
ção, os médicos sentiam “uma dureza no bai- circunstâncias”, notava aos colegas o médico
Fotografias de
Blanche
oscilavam entre 075
o registo científico
e uma espécie
de morbidez
erótica
PRÉ-PUBLICAÇÃO

O facto de ser Leopoldo da Silva Cardeira numa reunião da Na capital francesa, tornou -se cortesã e ficou
portador de dois Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa que conhecida pelo seu grande apetite sexual (cha-
076 pénis era das se realizou a 15 de junho de 1864. mava-se a si mesma a cortesã das três pernas).
características O seu pénis direito media dez centímetros Ao saber que João Baptista dos Santos se encon-
mais publicitadas de comprimento no estado flácido e 18 quan- trava na cidade, manifestou o desejo de o co-
de João Baptista do ereto; o esquerdo media 11 e 21 centíme- nhecer. Não era todos os dias que uma mulher
dos Santos tros, respetivamente. Quando utilizava apenas com duas vaginas tinha a oportunidade de se
o pénis “mais desenvolvido”, desviava “o ou- encontrar com um homem com dois pénis, e o
tro previamente” para que este não impossibi- jovem português tinha também fama de ter um
litasse a relação sexual. Em qualquer dos ca- desejo sexual exacerbado – segundo uma notí-
sos, a ejaculação do sémen fazia-se por ambos cia de um jornal de Havana de julho de 1965, “a
os pénis e em simultâneo. visão de uma mulher sozinha era o suficiente
Aos 19 anos, quando se encontrava em Paris, para o excitar”. Ao que consta, apesar de ambos
João Baptista dos Santos envolveu -se com terem uma libido elevada, não houve sintonia, e
Blanche Dumas. Nascida em Martinica a 17 de o envolvimento rapidamente acabou.
março de 1860, Blanche era também uma pi-
gómela humana: tinha duas vulvas, duas vagi- MORTE PREMATURA
nas completas e separadas, quatro mamas e João Baptista dos Santos tinha abandonado a
três pernas. A mãe tinha 24 anos quando ela cidade de Faro, onde era sapateiro, em 1864,
nasceu. A gravidez decorreu sem quaisquer para emigrar para Inglaterra. Antes de deixar o
sobressaltos, tendo apenas sentido algum des- país, esteve em exibição numa sala de espetá-
conforto nos meses finais. culos de Lisboa (que em poucos dias recebeu
Aos 6 anos, Blanche Dumas era uma criança milhares de curiosos) e no número 74 da rua
intelectualmente pouco desenvolvida (talvez do Bonjardim, no Porto, como referido. Ao
devido ao ambiente isolado em que vivia) e ti- longo da sua vida, terá estado em exposição
nha uma memória fraca, segundo Jean -Jo- apenas mais duas vezes, uma delas na Irlanda.
seph Crocq (1824-1898) e Theodor Schwann A sua presença em Dublin foi noticiada pela
(1810-1882), os médicos que a observaram em imprensa local.
Liège, na Bélgica, na altura em que foi desco- Num artigo publicado em outubro de 1865
berta numa feira. Apesar da sua anormalida- com o título “PARTIDA EXTRAORDINÁRIA DA
de, cresceu sem qualquer preconceito em re- NATUREZA”, o Derry Journal anunciava que o
lação ao corpo e posava despudoradamente jovem português estava a ser exibido no An-
quando a fotografavam nua. tient Concert Rooms, uma sala de espetáculos
gundo a mulher, foi assassinado próximo de
Londres durante uma disputa entre empresá-
rios. Outra versão refere que perdeu a vida na
sequência de uma intervenção cirúrgica a que
foi submetido.

ELVIRA E AS SUAS QUATRO PERNAS


João Baptista dos Santos não foi o único pigó-
melo humano vivo documentado em Portugal,
embora tenha sido o mais famoso. O segundo
caso, registado no início do século xx, foi o de
um homem a quem os cirurgiões Joaquim
Feyo e Castro (1877-1937) e Augusto Vasconce-
los (1867-1951) amputaram, aos 19 anos, uma
terceira perna que terminava com um pé que
tinha apenas dois dedos. O membro amputa-
do foi depois radiografado, revelando que, na
verdade, eram duas pernas fundidas numa só.
A 3 de outubro de 1942, nasceu em Frea-
munde, no concelho de Paços de Ferreira,
uma menina com quatro pernas, sendo que
as duas extra tinham configurações diferen-
tes. A da esquerda era cilíndrica e terminava
com três dedos desprovidos de unhas; a da
direita tinha “o aspeto morfológico dum
membro inferior normal”, mas menos espes-
sa e cinco centímetros mais curta. O joelho
estava voltado para trás e para a esquerda e o
pé era boto. Na altura em que foi examinada
pela primeira vez, os médicos acreditavam 077
que a parte mais estreita da perna esquerda
acabaria por desprender-se por necrose,
uma vez que não era irrigada.
Os pais de Elvira Martins, como foi batizada,
tinham ambos 38 anos quando ela nasceu, e
mais sete filhos de um e de outro sexo, ne-
nhum dos quais padecia de qualquer deformi-
dade. A mãe nunca abortara e todos os seus
partos tinham sido normais. A filha mais velha
tinha, na altura, 20 anos.
Aos vinte e sete dias de vida, Elvira Martins
em Dublin. O jornal referia que ele era “de bai- João, como pesava 2,5 quilos e media 41 centímetros, valo-
xa estatura, de pele morena, como a generali- acontecia ao res considerados preocupantes para os médi-
dade dos homens do seu país” e que, quando tempo nestes cos. No relatório que elaborou sobre este caso,
vestia “fatos normais”, não apresentava quais- casos, era exibido Álvaro Moitas notou que “o peso normal da
quer sinais de possuir uma malformação. Su- publicamente criança, quando nasce, anda à volta de 3,250 e
blinhava ainda que caminhava normalmente e a quem pagasse 3,5 quilos, regulando o comprimento de 50
que até montava a cavalo. Segundo o Derry bilhete centímetros”. Neste caso, a baixa condição físi-
Journal, a revista científica Lancet ter-lhe -á ca da bebé devia -se à sua anormalidade.
dedicado um artigo em julho desse ano. Por regra, este tipo de deficiência resultava
João Baptista dos Santos acabou por fixar re- em aborto ou na morte da criança pouco tem-
sidência em Inglaterra, onde casou e teve duas po depois do parto, como aconteceu com um
filhas, segundo um dos seus irmãos, Joaquim filho de Felicidade Ferreira e António Carva-
dos Santos, apelidado o Pulga. Aí morreu antes lho Júnior, residentes em Pendelho, no conce-
de completar 30 anos. Afinal, como lembrava o lho de Castro Daire. No dia 22 de fevereiro de
médico Álvaro Moitas, embora a pigomelia não 1903, a mulher, grávida de quatro meses, teve
fosse “incompatível com a vida”, os casos hu- quatro nados-mortos: três raparigas e um ra-
manos conhecidos “não morreram de velhice”. paz. Segundo o jornal O Século, as primeiras
Não é conhecida a data exata da morte nem eram “perfeitas”, mas o menino tinha quatro
a causa. Terá morrido entre 1870 e 1873. Se- pernas e dois braços.
MEMÓRIA DOS LUGARES

Eis a
078 Reitoria
Edifício histórico da Universidade
do Porto, construído em local
que albergou instituições de ensino
desde o século XVII, é um pedaço
de história da cultura portuguesa
e um mundo de memórias
e de património, cada vez mais
com as portas abertas ao exterior.
Texto de Susana Pacheco Barros – Universidade do Porto – Coordenadora Executiva da Casa-Museu Abel Salazar
079
PEDRO GRANADEIRO / GLOBAL IMAGENS
MEMÓRIA DOS LUGARES

H
á quem recorde que Edifício domina
o edifício histórico a Praça de Gomes
da Universidade do Teixeira (primeiro
Porto, que muitos reitor da UP),
conhecem simples- conhecida por
mente como a Reito- “Praça dos Leões”
ria, foi sede da Facul-
dade de Ciências; outros, mais sabedo-
res da história da cidade, lembram que
no lugar onde ela está nasceram, vive-
ram e morreram instituições que fazem
parte da memória do Porto desde a
Época Moderna.
Comecemos pelo início. O imponen-
te imóvel localiza-se na Praça de Gomes
Teixeira, nome ingrato de lugar que
quase ninguém trata pelo nome, prefe-
rindo chamar-lhe Praça dos Leões, por
EDIFÍCO causa da fonte que há mais de cem anos
nela foi implantada (1886): é decorada
HISTÓRICO com leões alados e costuma deitar água,

DA UNIVERSIDADE
coisa que em matéria de fontes urbanas
nem sempre é garantida.
DO PORTO: O edifício da Reitoria é imóvel sem
classificação, mas está incluído no cen-
HISTÓRIA E tro histórico da cidade do Porto e na
PATRIMÓNIO Zona Especial de Proteção da Igreja e
Torre dos Clérigos. Ocupa um quartei-
rão rodeado de praças e jardins rechea-
080 dos de emblemáticos monumentos: a
este é delimitado pela rua do Doutor
Ferreira da Silva e pela Praça de Lisboa,
a norte pela Praça de Gomes Teixeira, a
oeste pela praça de Parada Leitão e a sul
pelo Campo dos Mártires da Pátria e
pelo Jardim de João Chagas, também
nome ‘estranho’ ao portuense, que o
conhece pelo topónimo que sempre
lhe foi ensinado: Jardim da Cordoaria.
Transformando por umas linhas este
artigo num breve roteiro de turismo
cultural, a casa mãe da Universidade vi-
zinha com a famosa Livraria Lello & Ir-
mão (Monumento de Interesse Públi-
co); o Café “Piolho” (Âncora d’Ouro”),
de forte tradição universitária, hoje
bem diferente da que o celebrizou,
quando os estudantes estudavam nos
cafés e brindavam os agentes da secre-
ta com suprema indiferença própria de
quem é jovem e não teme; também ali
ficam a igreja e convento dos carmeli-
tas descalços e a igreja dos terceiros do
Carmo, irmanadas no lugar e na classi-
ficação como monumento nacional; se
o Hospital de Santo António, mais um
imóvel classificado como monumento
nacional, é por si só um edifício de re-
ferência, está, por outro lado, ligado à
Reitoria pois nele pontifica uma das es-
colas de Medicina da Universidade, sistencial criada por alvará régio de Real de Marinha e Comércio da Cidade
continuando a tradição do ensino das 1659. Também já não há memória – do Porto (1803-1837) e a Academia Po-
artes médicas que aí se desenvolveram pelo menos física – da ermida que exis- litécnica do Porto (1837-1911), vocacio-
de forma pioneira há quase três sécu- tia nas redondezas, da invocação de nadas para a formação de pessoal qua-
los; e ainda o Palácio da Justiça, imóvel Nossa Senhora da Graça, que daria lificado nas áreas naval, comercial, in-
representativo da arquitetura judicial nome ao colégio. A casa dos órfãos do dustrial e artística.
do Estado Novo, repleto de arte moder- Porto foi inaugurada no ano seguinte, a O edifício teve mais do que um pro-
nista; a neoclássica igreja de São José 25 de março, no dia de Nossa Senhora jeto. O primeiro risco está desapareci-
das Taipas e o conjunto monumental da Encarnação. Clemente XI confir- do, mas sabe-se que data de 1803. E co-
dos Clérigos (Monumento Nacional mou-lhe os estatutos em bula emitida nhece-se o seu autor: José da Costa e
desde 1910) . no ano de 1712. Silva (1747-1819), arquiteto e professor
Demorou um século a ser construí- A Reitoria não foi logo reitoria, que a lisboeta, considerado o principal intro-
do e logo remodelado. Ocupou o lugar universidade ainda não existia. Mas ali dutor do neoclassicismo romano em
onde o Padre Baltazar Guedes (1620- estiveram instaladas duas instituições Portugal, criador de obras como o Tea-
-1693) fundara o Real Colégio de Nos- de ensino superior, que a Universida- tro Nacional de S. Carlos ou o Palácio da
sa Senhora da Graça dos Meninos Ór- de do Porto orgulhosamente inscreve Ajuda (com Francesco Saverio Farbi),
fãos da cidade do Porto, instituição as- na sua árvore genealógica: a Academia ambos em Lisboa. Costa e Silva foi um

081

ARTUR MACHADO / GLOBAL IMAGENS


MEMÓRIA DOS LUGARES

dos que durante as Invasões Francesas frequentado por estudantes, que se di- bém este ficou por concluir, pois a mor-
deixaram o reino, rumo ao Rio de Janei- vertiam jogando dominó, mas também te surpreendeu Alfredo Soares em 27
ro, acompanhando a família real, e é apreciando as comerciantes que ali de junho de 1889. O plano de conclusão
muito provável que tenha levado com acorriam em busca de café. do edifício sede da Academia Politéc-
ele essa preciosa planta. Em 1892, o ilustre químico Ferreira nica, contemplando também a inclusão
Planta de que haveria memória, da Silva (1853-1923), descrevia assim o da Escola Médico-Cirúrgica do Porto,
pois, em 1804, o projeto foi apreciado espaço e o ambiente vivido neste lugar: foi apresentado ao ministério da tutela,
por Carlos Amarante (1748-1815), enge- “… é acanhadíssimo para nele se a 15 de dezembro de 1890, pelo enge-
nheiro de pontes e arquiteto autodida- poderem instalar convenientemente nheiro António Ferreira de Araújo e Sil-
ta bracarense, da transição do barroco os seus gabinetes, laboratórios, cole- va (1843-1909), e foi aprovado em 1899.
para o neoclássico. Amarante fizera ções e salas de estudo. Uma grande No final de oitocentos, as lojas de fa-
carreira na cidade dos arcebispos e parte das dependências ao rés-do- zendas, restaurante de caldos de gali-
fora atraído ao Porto, onde se fixou em -chão, que podiam ser aproveitadas, nha, barbearia e as tamancarias que
1802, pelo Inspetor das Obras Públicas estão ocupadas, em benefício do colé- animavam o piso térreo foram expro-
Francisco de Almada e Mendonça gio dos meninos órfãos, por diversos priadas, permitindo o avanço das obras
(1757-1804), que o convidara a traba- estabelecimentos comerciais: uma a bom ritmo. Bom ritmo em Portugal foi
lhar na fase final da transformação ur- loja de fazendas, uma mercearia, uma expressão sempre interpretada com al-
bana no tempo que ficou conhecido relojoaria, um restaurante de caldos gum otimismo, o que, neste caso, quer
como o dos Almadas. de galinha, um café, uma loja de bar- dizer que os trabalhos só vieram a ser
Se o primeiro projeto nos é hoje des- bear, três tamancarias e uma loja de concluídos, enfim, em 1930.
conhecido, os dois riscos que a seguir linheiro! Dentro dos muros dos edifí- Quanto ao velhinho Colégio dos Ór-
traçou foram aprovados por António de cios acham-se: um casarão meio ar- fãos, foi finalmente transferido para
Araújo de Azevedo, primeiro conde da ruinado, nas piores condições higiéni- instalações provisórias na Rua dos Már-
Barca, intelectual fundador da Socieda- cas, servindo de colégio aos referidos tires da Liberdade, de onde transitou
de Económica dos Amigos do Bem Pú- meninos órfãos, e uma igreja prestes para o Seminário Velho, junto do Cemi-
blico, depois ministro do Reino, em 26 a cair, na qual não se celebram, por tério do Prado do Repouso (1903).
de outubro de 1807, poucos meses an- isso os ofícios divinos, cujo desmoro- Em 1911, com a criação da Universi-
tes de também ele rumar ao Brasil para namento pode prejudicar bastante a dade do Porto, a Academia Politécnica
junto dos reis. parte já construída.” foi desmembrada e, na generalidade, in-
082 Para a concretização da obra concor- Quanto ao café, não chegou a do- tegrada na Faculdade de Ciências. No
reram a Câmara Municipal do Porto, a brar o século, tendo fechado portas edifício instalaram-se então a Reitoria, a
Companhia Geral da Agricultura das Vi- em 1900. Faculdade de Ciências e a Escola Anexa
nhas do Alto Douro e as receitas do im- Voltando à história do edifício, na se- de Engenharia (futura Faculdade Técni-
posto do “real do vinho” ou subsídio li- gunda metade do século XIX consti- ca e atual Faculdade de Engenharia).
terário, que consistia no pagamento de tuiu-se uma comissão incumbida de A casa, porém, não teria existência
1 real em cada quartilho de vinho ven- projetar estabelecimentos científicos, descansada. Em 1974, um devastador
dido na cidade ou no distrito. literários e artísticos a funcionar no es- incêndio de origens desconhecidas
Passariam muitos anos até o imóvel paço da Academia. Em 1862 foi gizado destruiu parte do prédio, que então al-
estar concluído. A morosidade da obra um novo programa para o prédio da bergava as Faculdades de Ciências e de
deveu-se à instabilidade política e eco- Academia Politécnica, da autoria do en- Economia, bem como a já referida Rei-
nómica do país, nas primeiras décadas genheiro e professor Gustavo Adolfo toria da Universidade.
do século XIX, e à necessidade de adap- Gonçalves de Sousa (1818-1899), que ao Na sequência desse acidente, em
tação das instalações às suas diversas tempo dirigia, em simultâneo, os prin- 1976, a Reitoria foi transferida, tempo-
funcionalidades. cipais estaleiros de obras da cidade: o rariamente, para o antigo CICAP (Cen-
No Cerco do Porto (1832-1833), o edi- Palácio da Bolsa (1860-1879), sede da tro de Instrução e Condução Auto do
fício, ainda em construção, foi utiliza- Associação Comercial do Porto, onde Porto), na Rua de D. Manuel II, e só vol-
do como hospital de sangue das tropas concebeu o famoso Salão Árabe (1862- taria ao local original 30 anos mais tar-
liberais, o que acabou por obrigar a -1880), e o Palácio de Cristal, destinado de (2006).
obras de recuperação, durante as quais a acolher a Exposição Internacional do Entre 1996 e 2009, os vários depar-
as aulas tiveram lugar no Palacete do 2.º Porto (1865). tamentos da Faculdade de Ciências que
visconde de Balsemão, na Praça de Car- O projeto de Gonçalves de Sousa ali continuavam a funcionar foram sen-
los Alberto, que viria a passar para a compreendia a instalação de uma bi- do transferidos para a nova sede, no
propriedade do município em 1959. blioteca, da Escola Industrial e da Aca- Pólo III da Universidade, ao Campo Ale-
Por essa altura, já nele deveria fun- demia Portuense de Belas Artes. gre, projetada pelo decano dos arquite-
cionar o café da Graça, sito na esquina Mas não chegou. Em 1887, o Ministé- tos do Porto José Carlos Loureiro (n.
entre o Largo do Carmo (depois reno- rio das Obras Públicas ordenou a Alfre- 1925), o mesmo que no lugar do já men-
meado praça dos Voluntários da Rai- do Soares (1852-1889), outro engenhei- cionado Palácio de Cristal edificou o
nha, da Universidade e de Gomes Tei- ro de formação da Academia Politécni- Pavilhão dos Desportos recentemente
xeira) e a atual praça de Parada Leitão. ca do Porto, a elaboração do anteproje- rebatizado Super Bock Arena – Pavi-
Noticiado, pelo menos, desde 1833, e to para essa instituição escolar. Tam- lhão Rosa Mota.
ESPAÇOS NOBRES DO EDIFÍCIO novos tempos, a loja da Universidade habitual colaborador da Universidade,
Olhemos mais de perto para o que do Porto. produziu a obra a título gracioso.
este edifício nos oferece. Neoclássico, Na arcada de entrada, encontramos Compõe-se de uma figura feminina
de disposição horizontal, de cinco pi- o Memorial evocativo dos estudantes coberta por um véu, segurando uma fo-
sos, como já se disse alberga atual- da Universidade do Porto mortos na I lha de palma e assente num pedestal,
mente a Reitoria da Universidade do Guerra Mundial, datado de 1948. A obra onde foi gravada uma dedicatória em
Porto. Também ali está a Casa Comum foi promovida entusiasticamente por latim: Huius Universitatis filiis scien-
e suas galerias que constituem peça- Américo Pires de Lima, (1886-1966), di- tiae spei A vita cito pro patria ereptis
-chave de um assim designado Proje- retor da Faculdade de Ciências e do Ins- (aos filhos da Universidade tão depres-
to Cultural, inaugurado em 2019, tute- tituto de Botânica, ele próprio ex-com- sa arrebatados pela pátria a uma vida
lado por Fátima Vieira, vice-reitora da batente, em África, na Guerra de 1914- de sabedoria e esperança).
Universidade. Também lá se conser- -1918. A primeira pedra deste monu- No patamar de acesso ao piso nobre
vam a riquíssima Biblioteca do Fundo mento fúnebre foi colocada em 12 de assoma o busto do matemático e pri-
Antigo e outras joias, como o polo abril de 1937 e a sua inauguração acon- meiro reitor da Universidade do Porto
central do Museu de História Natural teceu na abertura solene do ano letivo (1911-1917), Francisco Gomes Teixeira
e da Ciência, com o Laboratório Fer- de 1948/49. João da Silva (1880-1960), (1851-1933). Escultura em bronze da
reira da Silva, e, acompanhando os escultor, ourives e medalhista lisboeta, autoria de António Teixeira Lopes

083
PEDRO GRANADEIRO / GLOBAL IMAGENS

Dos dois lados


da escadaria principal,
avultam duas
grandes pinturas a
óleo da autoria de
Veloso Salgado
FOTOS: PEDRO GRANADEIRO / GLOBAL IMAGENS
084
(1866-1942), discípulo e herdeiro do bém quatro figuras: a de Engenharia, estudo, junto de uma banca de labora-
mestre Soares dos Reis (1889-1947) e a da Física, a de Química e a de Biolo- tório, sobre a qual poisam alguns apa-
uma das figuras de proa da “Escola de gia. A da Engenharia avulta na parte relhos de síntese química, tendo tam-
Escultura de Vila Nova de Gaia”, data- superior do quadro, na figura de um bém ao lado a clássica retorta, frascos
da de 1914. No corredor de acesso aos técnico, trabalhando sobre um estira- de reagentes, etc. A figura da Biologia
gabinetes do 3.º piso há um segundo dor, rodeado de instrumentos geodé- debruça-se sobre um microscópio,
busto de Gomes Teixeira, em mármo- sicos, vendo-se além uma figura e di- vendo-se junto dele tubos de culturas
re, de 1922, igualmente de Teixeira Lo- visando-se no horizonte a silhueta de bacteriológicas e diversos aparelhos
pes, filho. uma ponte metálica. A da Física, em especiais e um vaso com sensitiva; pró-
A matemática volta a ter destaque no atitude de demonstrar os aparelhos ximo está aberto o livro de Haeckel
conjunto das obras que enriquecem a que se relacionam com as mais impor- ‘Origem das espécies’.”
casa. Não admira, se nos lembrarmos tantes descobertas desta Ciência, Veloso Salgado, que tem obra rele-
que ali funcionou muitos anos a Facul- como a bussola, a máquina elétrica, o vante noutros espaços da cidade, pro-
dade de Ciências. E a sua memória per- galvanómetro, a ampola de Crookes, duziu mais quadros para a Universida-
siste. Nas paredes do piso nobre (3.º termómetro de ar, catetómetros, es- de. Em 1925, produziu, para a então Sala
piso), ladeando a escadaria pétrea, po- pectrómetro, etc. A Química, olhando dos Actos da Faculdade de Ciências
dem contemplar-se duas grandiosas e para a Física, posta-se em atitude de (atual Salão Nobre), duas novas telas:
espetaculares pinturas a óleo, denomi-
nadas “A Matemática” e “As Ciências Fí-
sico-Naturais”. Têm outros nomes: res-
petivamente, “Apoteose das Matemáti-
cas” e “Apoteose das Ciências Físico-
-Naturais”), datadas de 1917 e assinadas
por José Maria Veloso Salgado (1864-
-1945). Compõem-se de figuras alegó-
ricas, maioritariamente femininas, mas
também integrando algumas masculi-
nas, dispostas em escadas, pórticos e
tronos, num estilo de pintura de cariz
academista, próprio do contexto artís- 085
tico de finais de oitocentos.
As telas foram colocadas no início do
mês de julho daquele ano, segundo di-
reção do artista, que, para esse efeito,
se deslocou de Lisboa ao Porto. Foram
intervencionadas em data por determi-
nar e restauradas em 2019.
As obras deram brado na época.
O periódico portuense “O Comércio
do Porto”, em 13 de junho de 1917, des-
creveu desta forma as duas pinturas:
(…) “São duas obras verdadeiramen-
te notáveis, que afirmam bem os ele-
vados méritos do grande artista e con-
firmam o alto lugar que ele ocupa na
Arte portuguesa.
“Um dos quadros é alusivo às Mate-
máticas. Num pórtico grego avulta, do-
minadora, a figura da Matemática,
tendo no seu solio, em grego, a inscri-
ção: Aqui não se entra, sem a Matemá-
tica. Mais abaixo ficam, de um lado a
figura da Álgebra, traçando, em um
FOTOS: PEDRO GRANADEIRO / GLOBAL IMAGENS

quadro preto, uma expressão algébri-


ca, e do outro lado a figura da Geome-
tria, também em atitude de escrever
uma fórmula; e no primeiro plano, sen- “Apoteose Em cima, Atual reitor, António
tada, a figura do Calculo. das Ciências Físico- o laboratório Ferreira de Sousa Pereira,
“O outro quadro é alusivo às Ciên- -Naturais”, de Veloso da Silva, rebilitado usando da palavra
cias Físico-Naturais. Formam-no tam- Salgado (p. anterior) e musealizado no Salão Nobre
MEMÓRIA DOS LUGARES

Pedro Nunes lecionando Matemática Corvi (1721-1803), chegando a ser mem-


e Brotero dando uma lição de Botâni- bro da prestigiada Academia de S. Lu-
ca. Infelizmente, perderam-se, destruí- cas. Cerca de 1806, retratou o príncipe
das que foram pelo incêndio de 1974, regente, futuro D. João VI, a partir de
delas restando apenas o registo fotográ- uma gravura de Francesco Bartolozzi
fico de Domingos Alvão. (1725-1815), que, por sua vez, reprodu-
O pintor tinha obra consagrada nes- zia, um quadro de Domenico Pellegrini
te domínio. Duas décadas antes, em (1759-1840). Um retrato em terceira
1905, trabalhara num idêntico, mas mão, portanto. Nele, o governante sur-
mais monumental, ciclo decorativo, ge como agente cultural, criador da Aca-
para a Sala de Atos da Escola Médica de demia Real. Num busto a três quartos,
Lisboa, onde escolhera retratar a “A Me- ostenta a insígnia do Tosão de Ouro, as
dicina através dos séculos”. condecorações da Grã-Cruz das Ordens
As quatro telas concebidas por Velo- Militares de Cristo, de São Bento de Avis
so Salgado para a Universidade do Por- e de Sant’Iago da Espada, Legião de
to integram ciclos de pintura histórica Honra de Napoleão e Nossa Senhora da
e decorativa, realizados entre 1898 e Conceição. Apresenta um feixe de varas
1925, para embelezar palácios e edifí- na mão direita, coberto de parras e com
cios públicos das principais cidades o medalhão da Virgem, tendo em pano
portuguesas: como a Sala do Tribunal de fundo um porto, enquanto a mão es-
do Comércio do Palácio da Bolsa, no querda repousa no projeto do edifício da
Porto; o Museu Militar e a Câmara dos Academia Real. A pintura foi realizada
Deputados em S. Bento, em Lisboa, nes- enquanto Sequeira dirigia a Aula de De-
te caso em pleno processo de remode- senho e Pintura desta instituição e, mui-
lação. Ao longo da sua carreira o artista to possivelmente, foi encomendada pela
foi também autor de pintura de género, Companhia Geral da Agricultura e Vi-
paisagem e retrato. Experimentou a nhas do Alto Douro, e é por isso que se
pintura simbolista e foi influenciado associa à Universidade, pois, como é sa-
pelo grupo Nabis, da vanguarda france- bido, a Aula Náutica do Porto competia
086 sa. Produziu pintura para várias obras à administração da Companhia Geral da
do arquiteto minhoto Miguel Ventura Agricultura das Vinhas do Alto Douro.
Terra (1866-1919), formado na Acade- Não tão prestigiado como Sequeira,
mia Portuense de Belas Artes, mas que mas igualmente talentoso e popular,
fez carreira na capital, destacando-se as Francisco José Resende, artista român-
que pintou para o Teatro Politeama, a Si- tico do Porto (1825-1893), formado na
nagoga de Lisboa e a já referida renova- Academia Portuense de Belas Artes,
ção do Palácio de S. Bento. Passos Manuel, António José de onde lecionou, retratou Passos Manuel
No topo da escadaria principal fica o ministro do Reino Almeida, ministro (Manuel da Silva Passos, 1805-1862), mi-
Salão Nobre, palco dos mais solenes aquando da fundação do Interior em 1911 nistro do Reino na sequência da Revo-
atos da Universidade do Porto, como a da Academia (instituição das lução de 9 de setembro de 1836, como
tomada de posse do Reitor, da Equipa Politécnica do Porto Universidades do fundador da Academia Politécnica do
Reitoral e de outros órgãos de gestão da (em cima) Porto e de Lisboa) Porto, Escola resultante da reforma
Universidade; cerimónias de atribuição educativa gizada por José Alexandre de
do título de Doutor Honoris Causa e de paredes 51 retratos. Centremo-nos em Campos e Almeida (1794-1850), que
investidura de docentes e investigado- três deles; uma espécie de ‘santíssima transformava as Escolas de Cirurgia em
res nacionais e estrangeiros; entrega de trindade’ da Universidade, pois repre- Escolas Médico-Cirúrgicas (art.º 112.º) e
prémios e distinções e a comemoração sentam os fundadores da Academia a Academia Real de Marinha e Comér-
do Dia da Universidade (22 de março). Real de Marinha e Comércio da Cidade cio na Politécnica (art.º 155.º), propostas
A utilização deste espaço tem vindo do Porto (1803), da Academia Politécni- que passaram a ter força de lei, pelos
a democratizar-se, sendo hoje habitual ca do Porto (1837) e da Universidade do decretos de D. Maria II, referendados
assistir-se a outros eventos, menos for- Porto propriamente dita (1911). por Passos Manuel, de 29 de dezembro
mais, como conferências, apresenta- No início do século XIX, Domingos de 1836 e 13 de janeiro de 1837.
ções de livros, ciclos de cinema, rece- Sequeira (1768-1837) alcançara o estatu- Menos conhecido, Octávio Sérgio
ções a estudantes e concertos. to de maior pintor português vivo. For- (1896-1965), jornalista, caricaturista e
Instituição que se preze tem sala de mara-se na Aula Pública de Desenho e pintor, retratou, a partir de uma foto-
retratos; estes atestam a sua antiguida- estivera em Roma como bolseiro, ou, grafia, o presidente António José de Al-
de e a qualidade daqueles que a dirigi- como então se dizia, como pensionista meida (1866-1929); fê-lo a partir de uma
ram. A Universidade do Porto também régio, pontificando na Academia Portu- fotografia. O sexto presidente da Repú-
a tem. Fica nesta sala. Que na altura em guesa das Artes, onde estudou com An- blica Portuguesa é considerado o fun-
que se publica este artigo tem nas suas tonio Cavalluci (1752-1795) e Domenico dador da Universidade do Porto, por ter
Nesta galeria de retratados cumpre
destacar a figura de Leopoldina Paulo
(1908-1996), a primeira mulher douto-
rada pela Universidade do Porto (1944).
Figura nestas paredes desde 2019, pois
até então ela era exclusivamente mas-
culina. Juntaram-se-lhe Sophia de Me-
lo Breyner Andresen (1919-2004),
Agustina Bessa-Luís (1922-2019) e Eu-
génio de Andrade (1923-2005), reno-
mados escritores lusos. A vida e obra de
Sophia tem fortes ligações à Universi-
dade, através do Jardim Botânico e da
Galeria da Biodiversidade – Centro de
Ciência Viva instalados na casa dos seus
avós –, enquanto Agustina e Eugénio
foram distinguidos com o título de
Doutor Honoris Causa pela Universi-
dade do Porto em 2005.
Os retratos têm uma forte ligação à
Universidade. Trata-se de obras de ar-
tistas associados, grosso modo, à histó-
ria do ensino das Belas Artes no Porto
(da Academia Real de Marinha e Co-
mércio da Cidade do Porto à Faculdade
de Belas Artes da Universidade do Por-
to), enquadrados esteticamente entre o
romantismo, o naturalismo, o moder-
nismo e a arte contemporânea.
Entre eles destacam-se João Baptis- 087
ta Ribeiro (1790-1868), João António
Correia (1822-1896), João Marques de
Oliveira (1853-1927), José de Brito (1855-
-1946), Júlio Ramos (1869-1945), Tomás
de Moura (1873-1955), Joaquim Lopes
(1886-1956), Heitor Cramez (1889-1967),
sido o ministro da pasta do Interior que Leopoldina Paulo, Carlos Carneiro (1900-1971) e Agostinho
subscreveu, juntamente com Teófilo a primeira mulher Salgado (1905-1967).
Braga (1843-1924), José Relvas (1858- doutorada pela UP, Dos cerca de 20 pintores que traba-
-1929), António Xavier Correia Barreto com a tese “Alguns lharam nesta galeria, apenas um não
(1853-1939), Amaro de Azevedo Gomes caracteres tem formação académica na área, mas
(1853-1928), Bernardino Machado morfológicos da mão nem por isso deixou de ser um profis-
(1851-1944) e Manuel de Brito Camacho nos portugueses” sional. Falamos de Abel Salazar (1889-
(1862-1934) o decreto de 22 de março -1946), personalidade multifacetada,
de 1911, do Governo Provisório da Re- cientista, professor, pensador, escritor
pública, que instituiu as Universidades e artista autodidata. Declarava-se
do Porto e de Lisboa. abertamente antimodernista e admi-
As demais telas representam antigos rador confessor do barroco flamengo,
lentes da Academia Real, lentes e dire- do impressionismo e do naturalismo.
tores da Academia Politécnica e profes- Produtor, essencialmente, de dese-
sores e diretores da Faculdade de Ciên- nhos e óleos figurativos, foi pioneiro
cias, uns mais ilustres do que outros, entre nós do neorrealismo pictórico,
mas todos personalidades nas esferas na temática de sensibilidade humanis-
política, económica, científica e cultu- ta e não na dimensão estética. Foi o au-
ral do Portugal moderno, três dos quais tor dos retratos do professor universi-
desempenharam ainda o cargo de rei- tário e naturalista botânico Gonçalo
tor da Universidade: Augusto Nobre (3.º Sampaio (1865-1937) e do matemático,
reitor, 1919-1926), Alexandre Sousa Pin- historiador, professor universitário e
to (5.º reitor, 1928-1931) e José Pereira político republicano Duarte Leite
Salgado (7.º reitor, 1934-1943). (1864-1950).
MEMÓRIA DOS LUGARES

088

Outro caso singular é o de António Bienal Internacional de Arte de Vila taram terem sido formados na Escola
Bessa, que desde 16 de dezembro de Nova de Gaia e que agora pode ser des- de Belas Artes do Porto, designada-
2021 vê o quadro que ofereceu à Uni- frutada por todos aqueles que visitam o mente, Joaquim Lopes (1886-1956), Car-
versidade integrar esta distinta galeria Salão Nobre da Universidade do Porto. los Carneiro (1900-1971), Agostinho Sal-
de retratos. O antigo aluno extraordiná- Na Sala do Conselho, contígua ao Sa- gado (1905-1967), Abel de Moura (1911-
rio da Escola Superior de Belas Artes do lão Nobre, encontramos a Galeria de -2003), Guilherme Camarinha (1912-
Porto, com ateliê há 30 anos na Rua do Retratos dos Reitores da Universidade -1994), Júlio Resende (1917-2011),
Almada, pintou os seus escritores favo- do Porto, onde se apresentam os retra- Amândio Silva (1923-2000), António
ritos, Agustina Bessa-Luís e Sophia de tos dos primeiros 19 reitores da Univer- Coelho de Figueiredo (n. 1937) e Dario
Melo Breyner Andresen, e Eugénio de sidade. Mais uma vez, a ligação dos au- Alves (n. 1940).
Andrade a partir de uma fotografia a tores à Universidade fica patente no A galeria de retratos foi iniciada em
preto e branco, numa obra já exibida na facto de nove dos 12 artistas que os pin- 1950, durante o reitorado de Amândio
Abel Salazar Busto de Gomes
retratou o botânico Teixeira (por Teixeira
Gonçalo Sampaio (p. Lopes) e Salão Nobre
ant.) e o matemático (Casa Alvão) com
e historiador Duarte pintura perdida de
Leite (à direita) Veloso Salgado

PEDRO GRANADEIRO / GLOBAL IMAGENS


Tavares (9.º reitor, 1945-1961). Destina-
va-se a substituir as fotografias dos rei-
tores que até então decoravam o “Ga-
binete da Reitoria”. Começou com a en-
comenda, a Agostinho Salgado e Abel
de Moura, dos retratos de Francisco Go-
mes Teixeira (1.º reitor, 1911-1917) e Cân-
dido de Pinho (2.º reitor, 1918-1919), res-
petivamente. Foi continuada, no ano
seguinte, com a encomenda dos retra-
tos de Augusto Nobre (3.º reitor, 1915-
-1926), a Abel de Moura, e de Alfredo de 089
Magalhães (4.º reitor, 1926-1928) a
Agostinho Salgado.
Oficialmente inaugurada em janeiro
de 1954, quando Amândio Tavares
completava oito anos no cargo, incluiu
o retrato a óleo do reitor em exercício.
Em 2011, nas comemorações do pri-
meiro centenário da Universidade do
Porto, o pintor e restaurador Fernando
Rosário (n. 1950) retratou Manuel da
Silva Pinto (13.º reitor, 1976-1978), ao
passo que Luís Miguel Alcide de Oli-
veira retratou Marques dos Santos (18.º distribuem-se obras de arte do acervo com a Aula de Náutica (1762) e a Aula
reitor, 2006-2014). da Faculdade de Belas Artes da Univer- de Debuxo e Desenho (1779), para pre-
Em 2018, António Macedo, artista sidade do Porto, como o quadro Faina parar marinheiros e pilotos, respetiva-
que frequentou as Belas Artes do Por- Fluvial no Douro, de 1962, que integrou mente, e a Academia Real e a Acade-
to e estudou em Inglaterra, pintou Se- uma das provas de agregação para pro- mia Politécnica. Essa herança foi rece-
bastião Feyo de Azevedo (19.º reitor, fessor da Escola de Belas Artes do Por- bida pela Faculdade de Ciências em
2014-2018). to do mestre Júlio Resende (1917-2011) 1911, com a criação da Universidade do
Nem só de retratos vive a casa da e que se encontra exposta no gabinete Porto, e a instituição desta faculdade,
Universidade. Nesta Sala do Conselho do reitor, entre pinturas e desenhos de principal descendente da Academia
ainda pontifica uma outra tela, digna Abel Salazar e uma tela de Armanda Politécnica do Porto.
de nota, uma água marinha intitulada Passos (1944-2021). Na Faculdade de Ciências instituiu-
Espreguiçar da Vaga, do diplomata e No 4.º piso, penúltimo deste imóvel, -se uma Biblioteca Geral depositária
pintor autodidata brasileiro Navarro da encontramos a Biblioteca do Fundo desse legado, iconográfico e bibliográ-
Costa (1883-1931), oferecida à Univer- Antigo, onde se guarda uma parte im- fico, que foi acrescentado e valorizado
sidade pela Câmara Municipal do Por- portante do riquíssimo património bi- ao longo do tempo. Entre 2004 e 2008
to, em 1919. bliográfico e documental que remon- a documentação posterior a 1945 pas-
Ao longo de todo o edifício, nos es- ta à criação da instrução superior do sou para a biblioteca dos departamen-
paços comuns e gabinetes de trabalho, Porto iniciada nos séculos XVIII e XIX, tos, ficando na geral a anterior a essa
MEMÓRIA DOS LUGARES

combatente antifascista, exibe-se, des-


de 22 de março de 2022 (dia da Univer-
sidade do Porto) na sua parede fundei-
ra, a Galeria de Retratos dos Doutores
Honoris Causa pela Universidade do
Porto. São 100 desenhos, da autoria de
Nádia Borges e Evandro Renan, que re-
presentam figuras nacionais e interna-
cionais – cientistas, académicos, des-
portistas, figuras da cultura, do jorna-
lismo e da política, prémios Nobel, ho-
menageadas pela Universidade por
contribuírem para o prestígio do país e
da Universidade.
A atribuição do primeiro título foi
decida na sessão do Senado da Univer-
sidade de 6 de abril de 1921, na qual a
Faculdade de Ciências, por via do rei-
tor Augusto Pereira Nobre (1865-1946),
propôs o nome do Marechal Joffre (Jo-
seph Jacques Césaire Joffre, 1852-1931),
herói da I Guerra Mundial. Logo de se-
guida, a 11 de desse mês, também por
sugestão da Faculdade de Ciências, a
Universidade homenageou mais dois
heróis da Grande Guerra: o italiano Ar-
mando Diaz (1861-1928) e o britânico
Horace Smith-Dorien (1858-1930).
Em 1922 iniciaram-se as distinções a
090 grandes figuras nacionais. Duas perso-
nalidades que marcaram a história do
país, e reconhecidas no panorama in-
ternacional: os aviadores Artur de Sa-
cadura Freire Cabral (1881-1924) e Car-
los Viegas Gago Coutinho (1869-1959),
por proposta da Faculdade Técnica
(atual Faculdade de Engenharia da
Universidade do Porto).
Em 1989, a ligação da Universidade
à cidade fez-se simbolicamente com a
atribuição do título a Manoel de Oli-
veira, e consagrou-se com a de 2016 a
data. Foi então criado o Fundo Antigo tos tinha sido solicitada 25 anos antes, Germano Silva. Se Oliveira fixou para
da Faculdade de Ciências, através de para o ensino do terceiro ano matemá- a eternidade o Porto ribeirinho nas
um projeto de informatização, digitali- tico, disciplina que garantiria as bases imagens de uma inesquecível faina
zação, divulgação e preservação do da navegação teórica e prática. O glo- fluvial, Germano continua a contar as
Fundo Bibliográfico Antigo (2005- bo celeste permitiria aplicar a astrono- histórias do burgo e das suas gentes
-2007), sendo a documentação distri- mia posicional a problemas de orienta- nas crónicas que assina no seu jornal
buída por quatro pisos do edifício his- ção no mar, enquanto o terrestre pos- de sempre: o JN.
tórico. Este património é hoje gerido sibilitava traçar rotas marítimas. Este Os últimos nomes desta longa e in-
pela Unidade de Gestão e Documenta- conjunto inovador, do fabricante bri- signe lista, inscritos em 2022, são os
ção da UP digital. tânico John Addison, é o segundo dos arquitetos e professores Frances-
Aqui também se podem admirar os maior existente em Portugal, depois do co Dal Co (n. 1945) e Kenneth Framp-
imponentes e valiosos Globos de Addi- par de globos da Sociedade de Geogra- ton (n. 1930), da escritora canadiana
son, enviados de Londres em 1829, pe- fia de Lisboa, do século XVII, de Marco Margaret Atwood (n. 1939) e do quími-
los agentes da Companhia Geral da Vicenzo Coronelli. co alemão Michael Grätzel (n. 1944).
Agricultura e das Vinhas do Alto Dou- Ainda no quarto piso, no Auditório Um pedaço de história do Porto. Um
ro, instituição majestática que então Ruy Luís Gomes, sala que homenageia pedaço de história da cultura portu-
controlava o funcionamento da Acade- o matemático, reitor (12.º reitor da Uni- guesa. Um mundo de memórias e de
mia Real. A compra destes instrumen- versidade do Porto, entre 1974 e 1975) e património. Eis a Reitoria.
Incêndio devastador,
em 1974 (p. anterior)
afastou a Reitoria do
seu edifício histórico
durante três décadas
(regressou em 2006)

091
PEDRO GRANADEIRO / GLOBAL IMAGENS
HISTÓRIAS CÓSMICAS

O génio A
excentricidade é uma das ca-
racterísticas da ciência e de
muitos dos seus praticantes,
por vezes acompanhados de
estereótipos difíceis de apa-

do padre
gar. Aos olhos da sociedade,
são “geeks”, frios, tantas vezes
sem humor, avessos a frivolidades. Porém, tais
conotações estão muito longe da realidade – ou
não fossem os cientistas (pasme-se!) humanos.
Na verdade, a história da ciência está repleta de

Himalaya
rivalidades e intrigas, lutas acaloradas entre ra-
zão e emoção e, também, muitos mitos. São
também esses momentos e figuras de rutura
motores essenciais para o avanço da ciência e
da tecnologia. Num mui lúdico livro publicado
em 1998 (“Great Feuds in Science: Ten of the Li-
veliest Disputes Ever”), Hal Hellman guia-nos
em dez viagens pelo mundo da discórdia pro-
funda na ciência, personificadas por grandes
construtores de conhecimento. Eis a lista: Papa
Urbano VIII e Galileu (geocentrismo e helio-
centrismo); Wallis e Hobbes (geometria e álge-
bra); Newton e Leibniz (cálculo matemático);
Voltaire e Needham (biologia e teologia);
Darwin e Wilberforce (evolucionismo); Lord
Kelvin e a bulha com geólogos e biólogos sobre
a idade da Terra; Cope e Marsh (estudo de fós-
seis); Wegener contra… tudo e todos, a propósi-
092 to da teoria da deriva dos continentes; Joahnson
contra a família Leakey, à volta da descoberta e
evolução dos primeiros hominídeos; e, final-
mente, a batalha entre Derek Freeman e Mar-
garet Mead, a propósito de questões antropoló-
gicas relacionadas com natureza sexual.
A obra faz-nos compreender e concluir que,
muito mais do que a disputa em si, ambos os la-
dos defendem as suas posições com um reves-
timento emocional amiúde sobreposto aos fac-
tos, uns com mais brilhantismo do que outros.
Porém, esta desgarrada troca de ideias teve
sempre um vencedor claro: o avanço científico.
Numa versão quase esotérica, conspiracionista
e fantasiosa, o microcosmos das redes sociais
tem reavivado uma contenda científica/tecno-
lógica centrada, sobretudo, no campo da pro-
priedade autoral de algumas revoluções – refi-
ro-me às figuras eletricamente contrastantes
de Thomas Edison e Nikola Tesla. Como um
conto do vilão contra o bom, algumas correntes
mais ou menos ideológicas têm representado
Edison como o vilão patrão de Tesla que ficou
com os créditos das supostas invenções geniais
do engenheiro sérvio. Um colocando o capita-
lismo a servir-se da inovação, o outro querendo
deixar, por via da mesma inovação, um legado
sustentado e livre para a Humanidade. Enquan-
to Edison foi sobretudo um experimentalista,
Tesla era uma calculadora humana, e a sua ca-
pacidade de trabalhar complexas equações ma-
município de Arcos de Valdevez, hoje com pou-
co mais de 300 habitantes. Aí nasceu, em 9 de
dezembro de 1868, Manuel António Gomes. Fi-
lho de agricultores, ingressou no seminário em
Braga, onde se ordenou padre. Ficou conhecido
por “Padre Himalaya”, alcunha devida à sua
elevada estatura. Era um autêntico homem re-
nascentista. Todas as ciências naturais eram
afrodisíaco para a sua mente. E quando o saber
científico se junta à destreza tecnológica, a cria-

RUI MANUEL FONSECA / GLOBAL IMAGENS


tividade agradece e reproduz-se. Guiado pela
paixão científica, partiu para Paris, aprendeu
matemática, astronomia e física com gigantes
(como Marcellin Berthelot) e teve como musa
inspiradora a energia e a sua produção. E olhou
bem “lá para cima”: décadas antes de se pensar
em painéis e máquinas solares, o cada vez mais
conhecido pela sua excentricidade padre Hi-
temáticas e físicas ajudou-o a alcançar o suces- Escultura malaya construiu (e registou a patente) um apa-
so no início da sua carreira na Europa, sendo em Arcos de relho para obtenção de “altas temperaturas
depois recrutado por Edison. Valdevez reproduz através da captação das radiações solares”. Ao
Como bem nos lembra António Aleixo, “Pr’a o “Pirelióforo” longo dos anos, aperfeiçoou a sua criação, che-
mentira ser segura/e atingir profundida- apresentado nos gando a apresentar em 1904, na Exposição Uni-
de,/tem que trazer à mistura/qualquer coisa Estados Unidos versal de St. Louis, o "Pirelióforo", conseguindo,
de verdade”. Ora, no endeusamento de Tesla através do Sol, obter uma temperatura de 3500
nos nossos dias, a verdade é que foi efetiva- graus e fundindo todos os metais!
mente genial no modo como transpôs concei- Fotografia com Manuel António Gomes procurou na energia
tos e inventos da sua imaginação para o labora- autógrafo do padre solar um aliado fiel, constante e limpo para o
tório e para a Humanidade. Mas, ao contrário Himalaya, morto mundo industrial em que viveu. No tempo da
do que é afirmado nestes pensamentos new em 1933 sem ver exaltação das energias fósseis, já perspetivava 093
age, Tesla não é o pai de muito do que lhe é reconhecido o seu um ambiente menos agradável para a Humani-
atribuído: a corrente alternada apareceu com brilhantismo dade e decidiu agir para mudar o futuro. Po-
Hippolyte Pixii, em 1832, a bobina de indução rém, parece que a tragédia persegue quase
tem as suas origens e primeiras conceções nos sempre os génios. O Pirelióforo foi pilhado no
trabalhos de Michael Faraday e Nicholas final da Feira de St. Louis, a chegada da Repú-
Callan, o primeiro transformador foi obra da blica ao nosso país atirou-o para o nevoeiro
empresa de Budapeste Ganz, no final dos anos cerrado do esquecimento e faleceu em 1933,
70 do séc. XIX (quando Tesla ainda frequentava em Viana do Castelo, sem ver reconhecido en-
a escola), as centrais eléctricas de corrente al- tre nós o seu brilhantismo. Felizmente, o pro-
ternada também não foram obra de Tesla e já fessor e filósofo Jacinto Rodrigues recuperou e
existiam na Europa entre 1878 e 1885. O pró- promoveu a genialidade deste homem, publi-
prio instrumento de rádio portátil é apresenta- cando “A Conspiração Solar do Padre Himalaya”
do como fruto do brilhantismo de Tesla e, na (1999) e tornando-se no seu mais sério biógrafo.
verdade, parece mesmo ter havido um contri- A “reabilitação” do cientista não parou aí. As
buto importante dele, mas as raízes da sua de- Oficinas de Criatividade Himalaya, em Arcos de
monstração tecnológica estão no físico russo Valdevez, vão integrar a magnífica Rede Nacio-
Alexander Popov e nos seus trabalhos publica- nal de Centros Ciência Viva. Será um espaço
dos em 1895 – pouco antes de Marconi e Tesla. Miguel Gonçalves dedicado à ecologia, à energia e ao modo como
A bem da honestidade intelectual, é bom sa- Divulgador de Ciência a cidadania pode e deve ser o terceiro lado des-
lientar que Tesla pode não ter sido o pai, mas te triângulo urgente e precioso. Integrará tam-
foi, seguramente, um dos mais brilhantes fi- bém os Circuitos Ciência Viva, projeto de turis-
lhos de todos estes domínios científicos/tec- mo científico que abrange todo o país – afinal,
nológicos, melhorando substancialmente o al- somos todos viajantes neste (e a bordo deste)
cance e a eficácia dos mesmos. planeta, e uma das nossas mais nobres missões
Tudo isto leva-nos… ao Minho, sensivelmente é conhecer e cuidar de tudo o que nos rodeia.
na mesma época. No tempo de Edison e Tesla, De Arcos de Valdevez ao Sol, da intimidade da
Portugal teve uma figura inventiva brilhante, genialidade humana à cidadania cósmica. Que
carismática, revolucionária, polémica e que Manuel António “Himalaya” Gomes possa ser
deixou um legado agora justamente relembra- uma memória mobilizadora para uma cultura
do e enaltecido! Cendufe é uma freguesia do científica mais rica e sustentada no nosso país!
CINEMA E HISTÓRIA

Portugal-Brasil
em cinema

094

João Antunes
As relações entre os cinemas português e brasileiro Crítico de cinema
poderiam, decerto, ser mais fortes e contínuas
do que na realidade são. Mas existem desde sempre:
se olharmos para trás, vemos bastantes pontos
de contacto entre os dois lados do Atlântico, no que
à sétima arte diz respeito, desde os primórdios do
século XX, ou seja, desde que esta linguagem criativa
e documental começou a desenvolver-se
O
Brasil tornou-se indepen- “O Último Animal”, rodada no Rio de Janeiro
dente de Portugal há 200 pelo português Leonel Vieira, com Joaquim de
anos. No final desse mes- Almeida no protagonista. Também atuais são
mo século XIX, dois irmãos as colaborações com o cinema brasileiro de
franceses, os Lumière, or- duas conhecidas atrizes portuguesas, também
ganizaram um evento que, realizadoras, de gerações diferentes: Maria de
em 28 de dezembro de Medeiros e Catarina Wallenstein. Maria de
1895, marcava o início “oficial” do cinema Medeiros, que há muito realizara o icónico
como o conhecemos hoje: um grupo de es- “Capitães de Abril”, rodou recentemente no
pectadores pagantes, sentados numa plateia, Rio de Janeiro “Aos Nossos Filhos”, escrito em
olhando para um ecrã onde eram projetadas parc eria com a brasileira Laura Castro e tendo
imagens em movimento. Pouco habituado a por base a peça homónima que tinham ence-
estar nos primeiros lugares das estatísticas nado nos palcos de São Paulo. Quanto a Cata-
pelo lado bom, a verdade é que Portugal foi rina, uma das mais jovens do “clã” Wallens-
dos primeiros países a produzir filmes, facto tein, tem vindo a cimentar uma relação criati-
que se deveu à curiosidade de um fotógrafo va com o brasileiro Filipe Bragança, com
portuense, Aurélio da Paz dos Reis, que, ape- quem realizou a curta-metragem “Tragam-me
sar de não conseguir comprar uma câmara a Cabeça de Carmen M.”.
dos Lumière na sua viagem a Paris, veio de lá Não há muito tempo, a produtora Pandora da
com outra máquina com que começou a fazer Cunha Telles, filha do lendário António da Cu-
filmes logo em 1896. Subsistem quatro, o mais nha Telles, fizera coproduções minoritárias
famoso dos quais dá pelo nome de “Saída do com dois filmes brasileiros que viajaram pelo
Pessoal Operário da Fábrica Confiança”. Do mundo: “Joaquim”, de Marcelo Gomes, com Jú-
outro lado do oceano, no ano seguinte, segun- lio Machado no papel do herói nacional “Tira-
do investigadores locais, José Roberto da Cu- dentes”, e “Vazante”, de Daniela Thomas, sobre
nha Salles filmava “Ancoradouro de Pescado- o tema da escravatura. O próprio Leonel Vieira
res na Baía de Guanabara”. já filmara no Brasil o épico “A Selva”, baseado
Curiosamente, o apelo brasileiro iria “atrasar” em Ferreira de Castro. Apesar das virtudes do
a prossecução do primeiro filme português de filme, foi um desastre comercial. Não foi, aliás,
ficção, “Os Crimes de Digo Alves”. É verdade a única epopeia cinematográfica luso-brasilei- 095
que já em 1907 se produzira “O Rapto de uma ra a dar para o torto. No final da década de
Actriz”, mas esse filme de apenas alguns minu- 1940, Leitão de Barros preparou “Vendaval Ma-
tos, de que não se conhece hoje o paradeiro de ravilhoso”, sobre a vida do poeta anti-esclava-
qualquer cópia, fazia parte de um dos atos de gista brasileiro Castro Alves e a sua paixão pela
uma peça de teatro. Assim, o filme começado a atriz portuguesa Eugénia Câmara. Era, à épo-
rodar em 1909 sobre as terríveis façanhas do ca, o mais avultado investimento do cinema
bandido que surge em título, infamemente cé- português, contando com uma participação
lebre por atirar criancinhas do alto do Aquedu- brasileira, e tendo Paulo Maurício no protago-
to das Águas Livres, em Lisboa, seria interrom- nista e Amália Rodrigues na sua amante. Entre
pido devido a uma tournée no Brasil da Com- muitas peripécias, há uma que não lembra ao
panhia de Teatro do Príncipe Real, de que fa- diabo. Após filmagens complicadas na selva
ziam parte quase todos os atores. Seria preciso brasileira, bobinas com os negativos chegaram
esperar dois anos para que, em 1911, fosse feita a Lisboa, com a indicação expressa de não se-
outra versão, esta sim terminada, de “Os Cri- rem abertas. Ora foi isso mesmo que fizeram
mes de Diogo Alves”. Felizmente, há cópias os “zelosos” funcionários da alfândega, inutili-
restauradas das duas versões. Estas digressões zando completamente o seu conteúdo. A ver-
brasileiras de companhias de teatro portugue- são estreada em 1949 foi recentemente restau-
sas foram muito frequentes nas décadas se- rada pela Cinemateca Portuguesa, sendo final-
Fotograma guintes, e quase todos os atores que se popula- mente reconstituída em grande parte a banda
do primeiro filme rizariam nas primeiras décadas do cinema so- de som, considerada até há pouco completa-
feito em todo o noro português haviam passado pela experiên- mente perdida, após destruição do material
mundo lusófono, cia, casos de Vasco Santana, António Silva e em vários incêndios.
pelo portuense Beatriz Costa, coincidentes no primeiro título Felizmente, há também histórias bonitas na re-
Aurélio da Paz do ciclo das comédias à portuguesa, “A Canção lação cinematográfica entre Portugal e o Brasil,
dos Reis de Lisboa” (1933). de que se dão aqui apenas algumas pinceladas.
Dando um salto até à atualidade, o Festival de Em 1962 o realizador brasileiro Anselmo Duar-
Cinema do Gramado, um dos mais míticos da te conquistou, com “O Pagador de Promessas”,
América Latina, cuja 50,ª edição ocorreu há a Palma de Ouro de Cannes. Mas nem sempre
dias naquela cidade do Rio Grande do Sul, as- é lembrada a participação na produção do por-
sistiu à estreia da coprodução luso-brasileira tuguês Francisco de Castro…
LIVROS

Novidades e outras leituras

A PORTA DA EUROPA REVOLTAS ESCRAVAS UM DIÁRIO


- UMA HISTÓRIA DA UCRÂNIA - MISTIFICAÇÕES E MAL-ENTENDIDOS RUSSO

SERHHI PLOKHY JOÃO PEDRO MARQUES ANNA POLITKOVSKAYA


Ideias de Ler | 520 páginas | 22,00 € Guerra & Paz | 134 páginas | 14,00 € Temas e Debates | 392 páginas | 18,80 €
096 Publicada pela primeira vez em língua Não só João Pedro Marques está entre O nome de Anna Politkovskaya é sinal
inglesa em 2015 e reeditada, com toda os mais relevantes historiadores por- não de martírio, que não é esse o im-
a necessária atualização, em 2021, tugueses especializados na escravatu- pulso dos jornalistas, mas de firmeza
esta síntese de história ucraniana, em ra, em particular no tráfico atlântico, heroica no cumprimento de uma mis-
boa hora traduzida para português e como tem sido muito interventivo no são que as gentes tendem a desprezar
dada à estampa pela Ideias de Ler espaço público, ao longo dos últimos em tempos de paz e de modorra. Opo-
(chancela de não ficção da Porto Edito- anos, argumentando contra teses que sitora assumida de Vladimir Putin,
ra), não toca, evidentemente, a invasão se têm tornado mais visíveis (não é o dando forma a essa oposição com o ri-
pela Rússia desencadeada em feverei- mesmo que dominantes), em particular gor do trabalho jornalístico corajoso,
ro do corrente ano, embora surja agora as que que entende levarem a cabo Anna foi assassinada a tiro em Mosco-
como resposta à curiosidade crescente uma reescrita da história movida por vo, no dia 7 de outubro de 2006. Tinha
por regiões do mundo tão próximas, motivações de natureza ideológica ou escrito pouco antes este “Um diário
mas de que, afinal, sabemos tão pouco. política. Este ensaio não é novo, mas a russo”, publicado postumamente no
A revisão e atualização de 2021, no primeira edição, em 2006, teve mais ano seguinte. Surge agora em Portugal,
entanto, tem já mais do que presente o impacto através da tradução inglesa com o estímulo à curiosidade gerado
conflito de anos na região do Donbass, (Nova Iorque e Oxford) do que no pe- pela invasão da Ucrânia pela Rússia,
e o texto original surgira já depois da queno mercado editorial português, abrangendo o período entre 2003 e
anexação da Crimeia pela Rússia. Aca- talvez porque não era então um assun- 2005 (o massacre de Beslan, na Ossé-
démico ucraniano residente nos Esta- to “da moda”. A análise das revoltas tia do Norte) e demonstra como o regi-
dos Unidos (ensina história ucraniana escravas então feita (e agora atualiza- me de Putin fez tábua rasa de todas as
e, em geral, do Leste europeu, na Uni- da) reveste-se de especial sentido, reformas democráticas encetadas após
versidade Harvard), Serhii Plokhy es- hoje, por haver internacionalmente o fim da União Soviética. Escreveu ela,
creve um livro de história que, em de- uma tendência que vê na sedição dos numa espécie de epílogo sob o título
terminados aspetos, não é apenas um africanos a real razão do fim da escra- “Tenho medo?”: “um cogumelo que
livro de história. Em particular na par- vatura, desvalorizando radicalmente o cresce sob uma grande folha não pode
te final, o discurso assume contornos papel do movimento abolicionista, jus- limitar-se a esperar que não se aperce-
políticos claros. Fala de coisas que ain- tamente nos países ocidentais escra- bam dele. Quase de certeza que al-
da vão acontecendo e posiciona-se. vistas, à cabeça de todos a Inglaterra. guém o vai ver, cortar e devorar. Se
Deve ser lido, com toda a certeza, mas João Pedro Marques mostra por que nascemos seres humanos, não pode-
sempre com espírito crítico. não é bem assim. mos comportar-nos como cogumelos”.
TAMBORES AO LONGE: INCURSÕES NAZIS CIDADE PARTICIPADA: ARQUITECTURA
NA EXTREMA-DIREITA MUNDIAL QUE TRIUNFARAM E DEMOCRACIA – ALGARVE

JOE MULHALL ÉRIC BRANCA MIGUEL REIMÃO COSTA E ANA ALVES COSTA (COORD.)
Temas e Debates | 352 páginas | 18,80 € Casa das Letras | 384 páginas | 18,90 € Tinta da China | 176 páginas | 19,90 €
Causando apreensão nos quatro can- O primeiro da lista é, talvez, o mais Quarto volume da coleção que a Tinta 097
tos do mundo há alguns anos, a ascen- conhecido: “Albert Speer, o tecnocrata da China dedica às operações SAAL
são da extrema-direita é aqui tratada esclavagista”, escreve o autor. Speer, (Serviço de Apoio Ambulatório Local),
de um modo global e com uma origi- não só o arquiteto que acedeu ao cír- face mais notória do apoio estatal ao
nalidade com tanto de desconcertante culo mais próximo de Hitler, mas tam- direito à habitação desencadeado pou-
como de assustador, se o nosso ponto bém ministro do armamento da Ale- co depois do 25 de Abril, assentando
de vista for o dos amantes da demo- manha nazi, escapou à pena máxima na interação das chamadas brigadas
cracia. Graduado com um doutoramen- em Nuremberga e, depois de liberta- técnicas (equipas multidisciplinares em
to sobre o fascismo no pós-guerra do, criou para ele próprio a mitologia que avultavam arquitetos) com as co-
(Segunda Guerra Mundial, bem enten- do bom nazi. Outro nome bem popular missões de moradores que surgiam um
dido), Joe Mulhall é investigador prin- é o de Wernher von Braun, o constru- pouco por todo o lado e, de certo
cipal na “HOPE not hate”, a maior or- tor das bombas V2 que os americanos modo, garantindo ação rápida face à
ganização antifascista do Reino Unido, resgataram para os ajudar a chegar à impossibilidade de construir em massa
e foi nessa condição que, ao longo de Lua. Mas o historiador e jornalista habitação social. Associando alguns as-
sensivelmente uma dezena de anos, se francês junta-lhe mais 11 nomes de fi- petos de natureza mais técnica a uma
infiltrou em organizações extremistas guras do regime nacional-socialista importantíssima recolha memorialísti-
de direita de vários países, tentando que, depois da Segunda Guerra Mun- ca, documental e iconográfica, estes
compreender o rápido crescimento dial, tiveram posições de relevo nacio- trabalhos tornam-se fonte bibliográfi-
desta tendência. Os porquês da ascen- nal ou internacionalmente: um diri- ca incontornável para a compreensão
são e o perigos do que o futuro pode gente da NATO e um parlamentar que daqueles tempos. Dedicado a opera-
reservar-nos são claros neste ensaio, chegou a ser indicado para comissário ções no Algarve, este volume foca es-
que, sendo uma obra de coragem, europeu são exemplos, mas talvez os pecialmente as intervenções em qua-
mergulhou o autor num universo de exemplos mais desconcertantes neste tro locais: Bairro 25 de Abril, na Meia
fantasmas, não obstante “esperança” estranho ramalhete são os de espiões Praia, Lagoa; Bairro da Associação Pro-
ser a palavra final do texto. Veja-se nazis reconvertidos: o fundador dos gresso, em Silves; Bairro 11 de Março,
esta espécie de confissão em aberto: serviços secretos da República Federal em Olhão; Bairro 1.º de Maio, em Tavi-
“Há coisas que fiz que ainda estão em da Alemanha, um caçador de comunis- ra. Os próprios nomes dos conjuntos
carne viva e que não podem ser con- tas ao serviço da CIA ou até, paradoxo habitacionais, incluindo o hoje nada
tadas, que são cicatrizes com crostas dos paradoxos, um agente recrutado consensual 11 de Março, são testemu-
que ainda não pude arrancar”. pela Mossad israelita... nhos de um tempo irrepetível.
PONTES NO TEMPO

Putin, Kant
e a “paz perpétua”

3
José Pedro
Teixeira Fernandes
O uso propagandístico da história Para responder, há pistas num livro de
Thomas Nemeth, do Centro Avançado de
não passa, forçosamente, pela Estudos da Rússia da Universidade de
sua manipulação e deturpação. Nova Iorque (Kant in imperial Russia,
A Rússia fá-lo, a propósito 2017). Vemos que, durante a Guerra dos Sete
da guerra na Ucrânia, e uma Anos (1756-1763), a Rússia tomou posse de
Königsberg, que se rendeu sem combater. Os
outra história, sobre o enclave russos, que ofereceram generosos termos de
de Kaliningrado, ajuda a rendição, “foram recebidos com uma celebra-
perceber como isso funciona ção própria dos libertadores liberais e não dos
ocupantes”. Acrescenta Nemeth que “todos os

1
funcionários da cidade foram obrigados a fazer
Com a invasão da Ucrânia pela Rússia, au- um juramento de fidelidade à imperatriz Isabel.
mentou, entre os europeus, a curiosidade Juntamente com todos os professores e univer-
pelo passado dos dois estados. Como é fre- sitários, Kant jurou reconhecer a posição de Isa-
quente em conflitos internacionais com bel e não fazer intrigas contra a autoridade rus-
disputas territoriais, a história é uma arma de sa”. O ambiente de Königsberg sob governo rus-
arremesso para legitimar uma parte e deslegi- so não era de opressão. William Fermor, gene-
timar a outra. Na sua propaganda, a Rússia de ral escocês ao serviço da imperatriz, e os seus
Vladimir Putin recorre amiúde a argumentos oficiais “visitavam regularmente a universida-
098 históricos. Muitos no Ocidente pensavam que de e até assistiam a palestras”, incluindo com
tais argumentos, no século XXI, seriam curiosi- Kant, que era ainda (bem) pago por oficiais rus-
dades culturais, usadas para esgrimir teses en- sos para falar em privado sobre tópicos milita-
tre historiadores sem influência política. Além res práticos, além de apreciar as festas e o am-
dessa surpresa, há outras. Um dos aspetos me- biente social descontraído durante a ocupação.

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nos conhecidos, ou esquecidos a Ocidente, está
ligado ao atual território russo de Kaliningrado, A ligação de Kant à Rússia tem base his-
a antiga Königsberg, capital da Prússia oriental tórica e mostra uma surpreendente tole-
(hoje entre a Polónia e a Lituânia). Entrou na rância política e intelectual. Porém, hoje
posse da União Soviética com a derrota da Ale- há um uso propagandístico desse passa-
manha nazi e os Acordos de Potsdam (1945) en- do. Um livro recente de Michel Eltchaninoff, Na
tre os Aliados (EUA, Reino Unido e URSS). cabeça de Putin, evidencia isso. Descerrando

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uma placa evocativa de Kant na Universida de
Qualquer interessado em estudar na de Kaliningrado, em 2005, Putin dizia “que Kant
Rússia, algo hoje improvável, pode con- se se opôs categoricamente à resolução de di-
sultar o portal oficial “Study in Russia” e vergências entre governos pela guerra”. Numa
ler alguma informação em português. referência ao panfleto Para a Paz Perpétua, pu-
Kaliningrado é apresentada como a “Cidade dos blicado por Kant em Königsberg (1795), Putin di-
Filósofos”. Diz-se que “Immanuel Kant, um dos zia ainda: “Creio que o prognóstico de Kant
maiores pensadores do mundo, nasceu e viveu pode e deve ser levado a cabo pela nossa gera-
em Königsberg“. Mais: “O filósofo viveu exata- ção […]. É justamente nesta base que vamos
mente na época em que a cidade passou pela construir as nossas relações com os europeus e
primeira vez para o Império Russo e, portanto, com os outros países do mundo”. Como acres-
prestou juramento de [fidelidade] à Imperatriz centou ironicamente Eltchaninoff, “hoje, o pre-
Isabel. Quando a província voltou à estrutura da sidente russo parece bem menos kantiano”. Na
Prússia, Kant não quis quebrar o juramento e, realidade, não é a ideia da “paz perpétua” que
portanto, permaneceu cidadão da Rússia até à move a Rússia de Putin, antes a convicção de
sua morte”. Mas Kaliningrado já foi mesmo rus- que “a guerra é a continuação da política por ou-
sa antes de 1945? E Kant prestou juramento de tros meios”, como teorizou Carl von Clausewitz
fidelidade à imperatriz, que governou de 1741 a (Da Guerra, 1832), outro prussiano que nada ti-
1762, ou estamos perante mera propaganda? nha de seguidor da paz perpétua.
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