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“...

viver significa sentir dor…”


O doutor vive repetindo essa frase pra mim. Eu não sei o motivo por trás dessas
palavras, mas o doutor parece compreender elas muito bem. Hoje ele estava
reclamando de como as costas dele doem quando acorda. Mesmo ele tendo criado
uma forma de vida artificial, que sou eu, ele se nega a fazer isso com ele mesmo. Ele
me disse que eu era uma criança que ele achou na rua e trouxe para o laboratório.
Disse que eu estava fraco e debilitado demais para conseguir sobreviver, então ele fez
a operação para me manter vivo. Como resultado, eu sou uma espécie de boneco. Eu
sou de carne, mas não tenho sangue. Tenho nervos, mas não sinto dor. Eu tenho
algumas deformidades no corpo, mas não sinto nada em relação a elas. Não sinto
nada em relação a muita coisa.

Eu cresci. Num ritmo muito rápido. Tem 15 dias desde o experimento que o doutor
fez comigo e eu já fiquei pelo menos 20 centímetros mais alto. O doutor disse que
isso estava nos planos e que a matéria vermelha que ele usou iria fazer eu me
desenvolver mais rápido do que qualquer outro ser “vivo”. Ele colocou bastante
ênfase no vivo.

Eu estou começando a entender meus poderes, O doutor disse que a matéria


vermelha é versátil, mas ao mesmo tempo, volátil. Ela corrompe muito fácil e acaba
tornando a pessoa um monstro. Tenho que tomar cuidado com isso. Eu
pessoalmente não quero me tornar um monstro. Isso causaria problemas para o
doutor. Eu quero ser útil pra ele, já que ele salvou minha vida. Comecei a observar o
doutor enquanto ele trabalhava. Eu pergunto sobre tudo e anoto em uma caderneta.
Eu gastei metade dela em 2 dias. Vou precisar de mais papel.

Comecei a ajudar o doutor nos experimentos. Misturar componentes químicos é


interessante. O doutor tem a mania de ficar cheirando os compostos e na maioria das
vezes ele acaba ficando meio tonto. Ele diz que é uma das poucas alegrias que ele
tem. Quando ele disse isso eu parei pra pensar. O doutor nunca saí daqui. E do jeito
que ele contou, parecia que ele saia frequentemente. Acho que eu não preciso me
preocupar com isso. O doutor não mentiria pra mim.

Definitivamente tem algo de errado com o doutor. Ele anda cada vez mais fraco e
trêmulo. Ele deve ter contraído alguma doença séria. Eu dei uma olhada nos livros de
medicina dele, mas nenhum falava sobre essa doença. Então fui olhar os livros de
biologia. Descobri que o doutor está ficando velho. Mas parece que é um ritmo muito
rápido de envelhecimento. Aqui diz que esses sintomas aparecem apenas quando
alguém tem 70 anos ou mais. O doutor não parece velho…
Eu não sei como deveria ser alguém velho.

O doutor me deu roupas novas hoje. Um chapéu e capa vermelhos, uma máscara
branca com um bico longo de pássaro e luvas. Ele as fez para que eu escondesse as
deformidades resultantes da minha ressurreição. Ele parece ainda mais velho hoje.
O doutor me explicou o porquê de tudo parecer estar acontecendo muito rápido à
minha volta. Ele disse que eu não tinha noção boa de tempo até pouco tempo atrás.
Não me admira que tudo tenha passado tão rápido, mas agora eu não sei o que fazer.
O doutor está velho e acamado, incapaz de realizar seus experimentos por si próprio.
Eu disse a ele para realizar o mesmo procedimento que realizou em mim, mas ele
repetiu a mesma frase. Eu não sei mais como ajudar.

O doutor ainda cita aquela frase pra mim. Estou começando a ponderar seu
significado. Em contrapartida, estou estudando o procedimento que o doutor usou
para me trazer de volta. Inclusive, perguntei a ele se houveram outros que voltaram.
Ele me disse que os que voltaram preferiram estar mortos. Eu não entendo o porquê.
Estar consciente, saudável e livre das amarras da idade me parece muito bom. O
doutor disse que eu não vou morrer de velhice. Eu acho isso ótimo. Terei tempo para
experimentar tudo o que eu sempre quis.

O doutor continua piorando. Se eu não realizar o procedimento nos próximos 3 dias


ele vai ficar fraco demais para resistir aos efeitos do procedimento. Eu tentei
convencer ele nos últimos 3 meses e ele não concordou. Terei que fazer isso contra a
vontade dele. Assim que ele se tornar como eu, irá descobrir que suas preocupações
eram efêmeras e triviais. Eu vou começar a preparar as coisas. O doutor será como
eu.

“...viver significa sentir dor…”


O doutor vivia dizendo isso. Agora não ouço mais sua voz rouca e suas reclamações
quanto a dores musculares. Não ouço nada. O laboratório se tornou quieto. Quieto de
mais para qualquer coisa. Eu não me importo com silêncio, mas essa ausência de
som me lembra que esse lugar já foi vivo. Me lembro do doutor realizando os
experimentos, com frascos borbulhando e o fogo queimando. Agora tudo que eu
escuto aqui é o gotejar de uma infiltração no teto. Já está aqui a tanto tempo que o
lugar onde ela goteja formou uma camada de lodo. A poeira começou a se aquecer.
Eu nunca me importei muito com isso, mas o doutor vivia me mandando limpar as
coisas e tirar a poeira. Começaram a surgir outras formas de vida. Aranhas,
centopéias e outros pequenos insetos. O telhado foi tomado por vinhas e buracos
onde sua estrutura cedeu por conta da umidade e de algumas chuvas de granizo. Eu
pessoalmente não me importo com isso. Seja frio ou calor. Eu não sinto. mas o
doutor disse para que eu prestasse atenção ao estado do meu corpo. Não sentir dor é
uma vantagem, mas um detrimento também. O doutor disse que sem sentir dor eu
acabo por não notar quando me machuco.

O lugar foi tomado por vinhas, musgo e pequenas plantas saindo das rachaduras do
chão e das paredes. Eu não sei quanto tempo faz. Desde que o doutor não acordou do
procedimento, eu não tive muito propósito. Devem fazer alguns anos que eu estou
aqui. Não contei. Quem contava era o doutor. Eu li todos os livros dele, antes de
serem devorados pela umidade, fungos e traças. Seres fascinantes, mas incômodos.
Agora não tenho mais nada para ocupar meu tempo. Eu gostava bastante do livro de
alquimia do doutor. Li ele só 57 vezes. Eu estava ansioso pela 58º.

Eu ouvi sons do lado de fora. Vozes. O doutor disse que existiam muitas pessoas lá
fora. Um mundo inteiro de pessoas e lugares. Decidi ver com meus próprios olhos o
mundo do qual o doutor falava com tanta paixão quanto tinha pela alquimia. Matar o
tédio era minha prioridade agora. A porta foi bloqueada por algumas árvores e
vinhas. Eu fiz um facão surgir da minha pele. Ele era feito de ossos e o cabo tinha
uma matéria vermelha sólida como couro. Eu cortei as vinhas e galhos até poder sair
completamente do emaranhado de plantas. Eu vi o sol pela primeira vez. Minha visão
foi destruída quase que por completo. Astro desagradavelmente luminoso. Quando
meus olhos se adaptaram eu vi algumas pessoas sendo atacadas por cães selvagens.
Eu observei atentamente como eles se comportavam. Cães selvagens tem hábitos
fascinantes. As pessoas que estavam sendo atacadas me pediram ajuda. Eu espantei
os cães. Eles me agradeceram. No livro do doutor sobre como interagir com pessoas,
escrito por ele mesmo, dizia que eu devo dizer “de nada” quando me agradecem. Eu
disse e eles seguiram o caminho. Será que eu falei errado?

O mundo do lado de fora é bem colorido. No laboratório do doutor eu vivia na


penumbra, então não tinha visto muitas cores nos anos anteriores. O doutor acendia
a lareira quando ainda estava vivo. Era uma cor laranja interessante. O sol nos
desenhos dos livros do doutor era amarelo. Pra mim ele parece branco. Estranho
como as pessoas comuns enxergam. Eu parei pra pensar um pouco depois que eu
ouvi as pessoas. Eu chamava o doutor de doutor, mas esse não era o nome dele. Não
acredito que eu nunca perguntei. Que falta de educação da minha parte. Eu, por
outro lado, recebi do doutor o nome de “Corvo”. Uma ave carniceira que faz um som
estranho. Eu argumentei com o doutor de que esse nome não fazia sentido porque
minha capa e chapéu eram vermelhos, enquanto a máscara era branca. O doutor me
disse pra calar a boca e aceitar o nome. Eu decidi explorar o mundo. Eu não sei muito
bem como e por qual razão, mas não é como se eu tivesse algo melhor pra fazer.

Eu parei em uma vila que estava sendo atacada por Kobolds. Eles são seres
inteligentes e astutos o suficiente para fazerem armadilhas. Eles estavam fazendo
tudo aquilo de má fé, pois eles eram inteligentes. Eu ajudei a vila a matar os kobolds.
Eles me agradeceram e eu disse “de nada”, mas dessa vez quem saiu andando fui eu.
Eles me impediram, dizendo que eu não podia sair por aí com aqueles machucados.
Foi então que eu percebi que um deles havia me acertado feio. Não sangrou, mas
percebi que uma das minhas pernas estava mais fraca. Achei uma opção melhor eu ir
com eles. Tive que ficar com a perna enfaixada por alguns dias. Os moradores dessa
vila são bem curiosos. Queriam saber que eu era e como eu havia chegado lá. Eu os
contei tudo que eu sabia. Um deles pediu para ver as deformidades e eu deixei. Eles
passaram a manter distância de mim depois disso. Eu fiquei genuinamente confuso.
Eles quem quiseram ver.
O chefe da vila disse que era melhor eu seguir meu caminho. Prontamente concordei
com ele e segui minha trilha. Enquanto continuava a caminhar, percebi que não
tinha a menor ideia de onde estava. Mas percebi também que caçar é interessante. Se
acertar uma criatura no lugar certo, machuca mais. Eu achei isso fascinante, mas as
pessoas de vilarejos próximos começaram a reclamar que eu não deixo caça para eles
e que as carcaças estão atraindo monstros. O doutor me disse pra sempre me
responsabilizar pelo que eu faço, então resolvi ajudar com os monstros. Eram alguns
carniceiros. Bastou alguns dias para me livrar deles. Depois disso eu perguntei onde
diabos eu estava. Me responderam que eu estava em Miridia. “Onde é Miridia?” é o
que eu queria ter perguntado, mas eles estavam com um humor tão azedo que achei
cortês não os incomodar mais.

Eu consegui descobrir onde é Miridia. Mas ainda não sei nada sobre o mundo. Parece
que ainda tenho muito a aprender. O livro do doutor não tem me ajudado muito. As
pessoas parecem desconfortáveis perto de mim. Eu perguntei uma vez e disseram
que eu sou “apático”. O doutor vivia dizendo isso. Ele dizia que eu tinha que sorrir ao
cumprimentar as pessoas. Eu não vejo sentido nisso. Se ele queria que elas vissem
meu sorriso, porque me deu uma máscara?
Quanto mais os dias passam, mais confuso o mundo parece. Pessoas são
complicadas. Os insetos que haviam no laboratório do doutor eram mais
interessantes e simples.

Estou começando a entender como as coisas funcionam. As pessoas ficam


desconfortáveis perto de mim porque eu fico encarando elas sem falar nada. Mas a
questão é que eu não sei o que falar. O livro do doutor dizia que você deve iniciar
uma conversa sobre temas miscelâneos, mas o doutor se esqueceu de me ensinar
essas coisas. Terei que aprender por mim mesmo.

Os assuntos das pessoas comuns são mundanos e tediosos. Como o doutor esperava
que eu convivesse com eles?
São ignorantes e em sua maioria, analfabetos. Me ofereci para os ensinar a ler e eles
fizeram uma festa. Eu não entendo essas pessoas.

Todos na região me conhecem agora. Vivem me pedindo para caçar coisas e matar
monstros. Parece que virei um servidor público. E o tipo sem salário. Não que eu
realmente precise. Não como e não durmo minhas roupas continuam intactas e a
máscara, chapéu e capa que o doutor me deu se consertam sozinhas. Não tenho
porque precisar de dinheiro.

Me convidaram para comer com eles. Eu aceitei. Todos tomaram um susto quando
eu tirei a máscara. A reação costumeira. Eu não sei porque eles gostam tanto da
carne de animais. Eu não senti gosto de nada. Terminei de comer apenas por
educação. Agradeci e segui meu caminho.
Estou começando a suspeitar que estou andando em círculos. Já é a 49º que eu passo
por essa mesma vila e as pessoas me comprimentam dizendo “Fazendo seu caminho
habitual Corvo?”. Eu não me lembro de ter esse tipo de rotina. O que será que está
me acontecendo?

Eu apaguei do nada enquanto andava. Quando me dei conta, já era noite. Revirei
minhas memórias pensando em alguma doença que poderia estar me afetando.
Acabei percebendo que tenho um tipo brusco de Narcolepsia. Eu durmo de uma hora
para a outra. Nunca me ocorreu antes enquanto eu estava com o doutor. Seria esse
um efeito colateral do procedimento?
Mas já fazem anos desde aquilo. Um efeito colateral demorado assim é uma variável
quase impossível.

Aceitei que esse efeito colateral não vai passar agora quando ele vem eu tento resistir.
50% das vezes é efetivo. Mas já passei por alguns problemas devido a isso. Acabei
caindo em um rio e indo parar numa gruta onde tinha uma criatura bem grande. Eu
corri, pois sabia que não tinha capacidade de matar algo como aquilo. Houve a vez
em que me acharam enterrado em folhas. Houve também a vez em que me
confundiram com um cadáver e me enterraram. Sorte a deles eu não precisar
respirar. Essas situações estão se tornando um problema. Espero que eu consiga me
livrar disso algum dia.

Eu descobri hoje que esse mundo faz menos sentido ainda. Um homem passou por
aqui com um grupo de pessoas usando equipamentos de combate. Eles se diziam
aventureiros. A parte mais impressionante é que um deles era capaz de produzir
chamas do nada. Isso vai contra os princípios da ciência. Ele podia criar gelo e podia
gerar ondas psiônicas na mente de uma pessoa, fazendo com que ela ouvisse seus
pensamentos. Isso é inconcebível. Como algo assim sequer faz sentido. Entendo os
processos por trás da minha ressurreição mas isso é ridículo. Magia é
definitivamente algo que não faz o menor sentido.

Aceitei que a coisa chamada magia existe e que ela faz parte desse mundo.
Aparentemente magos e outros tipos de pessoas podem usá-la de formas diferentes.
Existem aqueles que usam por meio da natureza. Por meio de sua linhagem ancestral
e por meio da crença. Isso tudo pra mim é um pouco de mais. Como uma coisa que
ignora completamente as leis da física e da biologia é tão acessível?

Não sei mais o que pensar sobre a magia, então aceitarei que ela faz parte da
natureza aqui. Não dá pra discutir com o mundo como ele deve funcionar. Por outro
lado, descobri que eu tenho um poder um tanto inusitado. Se eu me concentrar o
suficiente, posso imbuir coisas com uma energia rubra. Deve ser um dos efeitos da
matéria vermelha que o doutor usou para me criar. Parece que antes de descobrir o
mundo, tenho que me descobrir. Me pergunto que coisas fascinantes existem
escondidas por ai.

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