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HANNAH ARENDT

a condição
humana
11ª edição revista

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Tradução:
Roberto Raposo

Revisão técnica e apresentação:


Adriano Correia

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quietação e chegaram a constituir o principal problema da novn
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ciência da economia, não foi nem mesmo a relatividade como
tal, mas antes o fato de que o homofaber, cuja atividade é aferi
da inteiramente pelo uso constante de escalas, medidas, regras c A permanência do mundo e a obra de arte
padrões, não podia suportar a perda de padrões ou escalas "al
solutos". Pois o dinheiro, que obviamente serve de denomina ntre as coisas que conferem ao artificio humano a estabili-
dor comum a uma variedade de coisas, de sorte que possam S(,)I dade sem a qual ele jamais poderia ser um lar confiável para
trocadas umas pelas outras, não possui, de modo algum, a exis tiS homens há uma quantidade de objetos estritamente sem utili-
tência independente e objetiva, capaz de transcender todo uso dnde alguma e que, ademais, por serem únicos, não são inter-
sobreviver a toda manipulação, que a escala ou qualquer outrn nunbiáveis e, portanto, resistem à igualação por meio de um de-
forma de medição possuem em relação à coisa que devem mcdii nominador comum como o dinheiro; se ingressam no mercado
e aos homens que as manuseiam. de trocas, só podem ser apreçados arbitrariamente. Além disso,
É essa perda de padrões e regras universais, sem os quais (I ti relacionamento adequado com uma obra de arte certamente
homem jamais poderia ter construído um mundo, que Platão jt'\ não é "usá-Ia"; pelo contrário, ela tem de ser cuidadosamente
pressentia na proposta protagórica de estabelecer o homem, resguardada de todo o contexto dos objetos de uso comuns para
como fabricante de coisas, e o uso que delas ele faz, como a SII que possa alcançar o seu lugar adequado no mundo. Da mesma
prema medida destas últimas. Isso mostra o quanto a relatividu forma, tem de ser resguardada das exigências e carências da
de do mercado de trocas está intimamente conectada com a ins vida diária, com as quais tem menos contato que qualquer outra
trumentalidade que resulta do mundo do artífice e da experiên .oisa. Ao argumento não interessa se essa inutilidade dos obje-
cia da fabricação. Na verdade, a primeira desdobra-se, consis tos de arte sempre existiu ou se antigamente a arte servia às cha-
tentem ente e sem quebra de continuidade, da segunda. Mas /I madas necessidades religiosas do homem, tal como os objetos
resposta de Platão - de que não o homem, mas um "deus é a me de uso comuns servem a necessidades mais comuns. Ainda que
dida de todas as coisas" - seria um gesto moralizante vazio SI li origem histórica da arte tivesse caráter exclusivamente reli-
realmente fosse verdadeiro que, como presumia a era modernn, ioso ou mitológico, o fato é que a arte sobreviveu magnifica-
a instrumentalidade, disfarçada em utilidade, governa o âmbito mente à sua separação da religião, da magia e do mito.
do mundo acabado tão exclusivamente quanto governa a ativl Dada sua excepcional permanência, as obras de arte são as
dade por meio da qual o mundo e todas as coisas nele contida mais intensamente mundanas de todas as coisas tangíveis; sua
passaram a existir. durabilidade permanece quase inalcançada pelo efeito corrosivo
dos processos naturais, uma vez que não estão sujeitas ao uso por
maruras vivas, um uso que, na verdade, longe de realizar sua fi-
nulidade inerente - como a finalidade de uma cadeira é realizada
quando alguém se senta nela -, só pode destruí-Ia. Assim, a dura-
iIidade das obras de arte é de uma ordem superior àquela de que
todas as coisas precisam para existir; elas podem alcançar a per-

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manência através das eras. Nessa permanência, a estabilidade tI! No caso das obras de arte, a reificação é algo mais que mera
artificio humano, que jamais pode ser absoluta por ele ser habitu trunsformação, é uma transfiguração, uma verdadeira meta-
do e usado por mortais, adquire representação própria. Em 111 morfose, como se o curso da natureza, que requer que tudo quei-
nhuma outra parte a mera durabilidade do mundo feito pelo 1111 1C até virar cinzas, fosse invertido de modo que até o pó pudes-
mem aparece com tal pureza e claridade; em nenhuma outra f)11I c irromper em chamas.i" As obras de arte são coisas do pensa-
te, portanto, esse mundo-coisa [thing-world] se revela tão espL'11I cnto, mas nem por isso deixam de ser coisas. O processo do
cularmente como a morada não mortal para seres mortais, I msamento não é capaz de produzir e fabricar por si próprio coi-
como se a estabilidade mundana se tornasse transparente na r)lll us tangíveis, como livros, pinturas, esculturas ou composições,
manência da arte, de sorte que certo pressentimento de imortal du mesma forma como o uso é incapaz de produzir e fabricar por
dade- não a imortalidade daalma ou da vida, mas de algo imorlul i próprio casas e móveis. Naturalmente, a reificação que ocorre
alcançado por mãos mortais - tornou-se tangivelmente prescuh uando se escreve algo, quando se pinta uma imagem ou se mo-
para fulgurar e ser visto, soar e ser escutado, falar e ser lido. leia uma figura ou se compõe uma melodia, tem a ver com o pen-
A fonte imediata da obra de arte é a capacidade humana ,li umento que a precede; mas o que realmente transforma o pensa-
pensar, da mesma forma como no homem a "propensão parn 11 monto em realidade e fabrica as coisas do pensamento é a mes-
barganha e a permuta" é a fonte dos objetos de troca e sua ,-,pl mu manufatura [workmanship] que, com a ajuda do instrumen-
dão para usar é a fonte dos objetos de uso. Trata-se de capacidn to primordial que são as mãos humanas, constrói as coisas durá-
des do homem, e não de meros atributos do animal humano vcis do artificio humano.
como sentimentos, carências e necessidades, aos quais estão I Dissemos anteriormente que essa reificação e materializa-
lacionadas e que muitas vezes constituem o seu conteúdo. ESIIII ~no, sem a qual nenhum pensamento pode tornar-se uma coisa
propriedades humanas são tão alheias ao mundo, que o homem tanglvel, ocorre sempre a um preço, e que o preço é a própria
cria como seu lar na Terra, quanto as propriedades corres pon vida: é sempre na "letra morta" que o "espírito vivo" deve so-
dentes de outras espécies animais, e se elas tivessem de consíl brcviver, uma morte da qual ele só pode ser resgatado quando
tuir um ambiente fabricado pelo homem para o animal hUm!1I1I1 Ictra morta entra novamente em contato com uma vida dis-
esse ambiente seria um não-mundo [non-world], um produto di posta a ressuscitá-Io, ainda que essa ressurreição dos mortos
emanação mais que de criação. O pensar relaciona-se com II lenha em comum com todas as coisas vivas o fato de que ela
sentimento e transforma seu desalento mudo e inarticulado, dll
mesmo modo como a troca transforma a ganância crua do dUM
jo e o uso transforma o anseio desesperado das necessidade Refiro-me no texto a um poema de Rilke sobre a arte, que, sob o título "Má-
até que todos se tornem adequados a adentrar o mundo e serem icn", descreve essa transfiguração. Diz o poema: "A us unbeschreiblicher
transformados em coisas, serem reificados. Em cada caso, LI1111 'nwandlung stammen / solche Gebi/de -: Fühl! und glaub! / Wir /eidens
capacidade humana que, por sua própria natureza, é cornuniru ',: zu Asche werden Flammen, / doch, in der Kunst: zur Flamme wird der
&'I/llIb. / Hier ist Magie. 111 das Bereich des Zaubers / scheint das gemeine
tiva e aberta-ao-mundo [world-open], transcende e libera 111\
'01'/ hinaufgestuft (...) / und ist doch wirklich wie der Ruf des Taubers. / der
mundo uma apaixonada intensidade que estava aprisionada 1111 uh der unsichtbaren Taube ruft" (em Aus Taschen-Buchern und
si-mesmo [seij]. k-Blãttern [1950]).

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também tornará a morrer. Essa morte, porém, embora esf\II!1 de coisas que os façam rememorar, para que eles próprios
presente, de certa forma, em toda arte, como que indicando 1i ) venham a perecer. 40
distância entre a fonte original do pensamento, no coração 1111 O pensamento e a cognição não são a mesma coisa. Fonte
na cabeça do homem, e seu destino final no mundo, vario ti obras de arte, o pensamento se manifesta, sem transforma-
uma arte para outra. Na música e na poesia, que são as m(,)11I1 ou transfiguração, em toda grande filosofia, ao passo que a
"materialistas" das artes porque seu "material" consiste ~111 ncipal manifestação dos processos cognitivos, através dos
sons e palavras, a reificação e a manufatura [workmanshllll is adquirimos e acumulamos conhecimento, são as ciências.
necessárias são mínimas. O jovem poeta e a criança prodlnlu cognição sempre persegue um fim definido, que pode ser de-
na música podem atingir a perfeição sem muito treino e cxjn inado tanto por considerações práticas como pela "mera
riência, fenômeno que dificilmente ocorre na pintura, na \ riosidade"; mas, uma vez atingido esse fim, o processo cogni-
cultura ou na arquitetura. vo termina. O pensamento, ao contrário, não tem outro fim ou
A poesia, cujo material é a linguagem, talvez seja a mais 1111 ipósito além de si mesmo, e não chega sequer a produzir re-
mana e a menos mundana das artes, aquela cujo produto li11111 rltados; não só a filosofia utilitária do homofaber, mas os ho-
permanece mais próximo do pensamento que o inspirou. 1\ dll tens de ação e os entusiastas por resultados nas ciências jamais
rabilidade de um poema é produzida por meio da condensaçüu cansaram de assinalar quão inteiramente "inútil" é o pensa-
de modo que é como se a linguagem falada com extrema deu lento-realmente, tão inútil quanto as obras de arte que inspira.
dade e concentração fosse poética por si mesma. Na pocsin, II I( nem mesmo esses produtos inúteis o pensamento pode reivin-
recordação, Mnemosyne, a mãe das musas, é diretamente transltu icar para si, pois estes, como os grandes sistemas filosóficos,
mada em memória; o meio do poeta para realizar essa transfounn licilmente podem ser propriamente chamados de resultados
ção é o ritmo, por meio do qual o poema fixa-se na lembrança qllll () pensamento puro, estritamente falando, uma vez que é preci-
se que por si mesmo. É essa proximidade com a lembrança VI\II nmente o processo do pensar que o artista ou o filósofo que es-
que permite que o poema perdure, retenha sua durabilidade 111111
da página escrita ou impressa; e, embora a "qualidade" de 11111 IA expressão idiomática "fazer um poema" oufaire des vers, indicando a
poema possa estar submetida a vários padrões diferentes, illlll tlvidade do poeta, já se relaciona com essa rei ficação. O mesmo se aplica
"memorabilidade" inevitavelmente determinará sua duraluh iulemão dichten, que provavelmente deriva do latim dictare: "das ausge-
~.lIIl1wnpgeistig Geschaffene niederschreiben order zum Nietderschreiben
dade, isto é, a possibilidade de ficar permanentemente fixado 1111
"(Grimm, Worterbuch'[; e também se aplicaria se a palavra deri-
lembrança da humanidade. De todas as coisas do pensamcníu.n
como sugere agora o Etymologisches Wôrterbuch (1951) de Kluge/
poesia é a mais próxima deste último, e dentre as obras de 311l'lI ze, de tichen, antiga palavra que significa schaffen, talvez relacionada
que menos é uma coisa é um poema. No entanto, mesmo um 1111 o latim/ingere. Nesse caso, a atividade poética que produz o poema
em a, não importa quanto tempo tenha existido como viva pulil cs de ele ser escrito é também concebida como um "produzir". Assim é
vra falada na lembrança do bardo e dos que o escutaram, scrú l Demócrito louvava o gênio divino de Hornero, que "construiu um cos-
IS com todo tipo de palavras" - epeon kosmon etekténaio pantoion
nalmente "feito", isto é, escrito e transformado em uma COI/lII
s, Fragmente der Vorsokratiker [4. ed., 1922], B 12). A mesma ênfase
tangível entre as coisas, pois a recordação e o dom da lembrun artesanato do poeta está presente na expressão grega para a arte da poe-
ça, dos quais provém todo desejo de imperecibilidade, neCCII"1 : tektônes hymnôn.

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creve têm de interromper e transformar para a reificação millt'lllI Isão geralmente chamados de inteligência, e essa inteligên-
lizante de sua obra. A atividade de pensar é tão incessante I' 11 pode realmente ser medida em testes de inteligência, da
petitiva quanto a própria vida; perguntar se o pensamento 11111 csrna forma como a força física pode ser medida por outros
algum significado configura o mesmo enigma irrespondls d ios. Suas leis, as leis da lógica, podem ser descobertas como
que a pergunta sobre o significado da vida; os processos do 111" Iras leis da natureza, por se radicarem, em última instância,
samento permeiam tão intimamente toda a existência hU11I1I1I11 estrutura do cérebro humano, e, para o indivíduo normal-
que o seu começo e o seu fim coincidem com o começo c Ulllll te sadio, possuem a mesma força compulsiva que a necessi-
da própria vida humana. Assim, embora o pensamento insptu II que regula as outras funções de nossos corpos. É próprio
mais alta produtividade mundana do homofaber, não é de 1111111•• estrutura do cérebro humano ser compelido a admitir que
algum sua prerrogativa; começa a afirmar-se como fonte de 111 s mais dois sejam quatro. Se fosse verdadeiro que o homem é
piração do homo faber somente quando este se ultrapassa, 11111 animal rationale no sentido em que a era moderna compre-
assim dizer, e se põe a produzir coisas inúteis, objetos que 1111•• u essa expressão - ou seja, uma espécie animal que difere
têm qualquer relação com carências materiais ou intelcctuul li outras pelo fato de ser dotada de uma força cerebral superior
com as necessidades fisicas do homem ou com a sua sede dl'llI , então as recém-inventadas máquinas eletrônicas, que às ve-
nhecimento. Por outro lado, a cognição toma parte em todu/j11 lipara consternação e outras vezes para confusão dos seus in-
processos, não somente nos da obra intelectual ou artililllll entores, são tão espetacularmente mais "inteligentes" que os
como a própria fabricação, ela é um processo que tem um CUIII rcs humanos, seriam realmente homunculi. Na realidade elas
ço e um fim, cuja utilidade pode ser posta à prova e que, se Ilrl" o, corno todas as máquinas, meras substitutas e aperfeiçoado-
produzir resultados, terá fracassado, como fracassa a macHll1 S artificiais da força de trabalho humana, adotando o consa-
do carpinteiro quando ele fabrica uma mesa de duas pernas, II rndo expediente da divisão do trabalho de subdividir toda ope-
processos cognitivos das ciências não diferem basicamente ti •• "~1Ioem seus movimentos constitutivos mais simples - substi-
função da cognição na fabricação; os resultados científicos 1'111 uindo, por exemplo, a multiplicação pela adição iterativa. A
duzidos por meio da cognição são acrescentados ao artifício 1111 irça superior da máquina manifesta-se em sua velocidade, mui-
mano como todas as outras coisas. li superior à da força do cérebro humano; graças a essa veloci-
Além disso, devemos distinguir tanto o pensamento COIII\'" ndc superior, a máquina pode dispensar a multiplicação, que é
cognição da capacidade de raciocínio lógico, que se mani 1".111 expediente técnico pré-eletrônico para acelerar a adição.
em operações tais como deduções de enunciados axiornátku lido o que os computadores gigantescos provaram é que a era
ou autoevidentes por si mesmos, na subsunção de ocorrênrlu ema estava errada ao acreditar, com Hobbes, que a raciona-
particulares a regras gerais, ou nas técnicas para prolonga I' 1'11 'lIuade, no sentido de "calcular as consequências", é a mais alta e
deias sistemáticas de conclusões. Nessas faculdades humunn mais humana das capacidades do homem, e que os filósofos da
estamos de fato diante de urna espécie de força cerebral que, "111 e do trabalho, Marx ou Bergson ou Nietzsche, estavam cer-
mais de um aspecto, assemelha-se sobretudo à força de trabulhu quando viam nesse tipo de inteligência, que confundiam
desenvolvida pelo animal humano em seu metabolismo COIIIII a razão, uma mera função do processo vital, ou, como dizia
natureza. Os processos mentais que se alimentam da força CI'1 uma mera "escrava das paixões". É óbvio que essa força

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cerebral e os processos lógicos coativos que dela resultam IIIHI pcro olho interno, que precedeu sua chegada ao mundo e sobre-
são capazes de construir um mundo; são tão sem-mundo [wm /ti viverá à sua possível destruição. Em outras palavras, nem mes-
less] quanto os igualmente irresistíveis processos da vida. li" mo os objetos de uso são julgados somente segundo as necessi-
trabalho e do consumo. dades subjetivas do homem, mas segundo critérios objetivos do
Uma das mais surpreendentes discrepâncias da econounn mundo onde encontrarão o seu lugar, para durar, para serem vis-
clássica é que os mesmos teóricos que se orgulhavam da COIlIII t()S e para serem usados.
tência da sua perspectiva utilitária frequentemente censuravmn O mundo de coisas feito pelo homem, o artifício humano
a mera utilidade. De modo geral, sabiam muito bem que a plll construído pelo homo faber, toma-se um lar para os homens
dutividade específica da obra reside menos em sua utilidade <1111 mortais, cuja estabilidade suportará e sobreviverá ao movimen-
em sua capacidade de produzir durabilidade. Com essa discu to de permanente mudança de suas vidas e ações, apenas na me-
pância, admitiam tacitamente a falta de realismo de sua prómln dida em que transcende a mera funcionalidade das coisas pro-
filosofia utilitária. Pois, embora a durabilidade das coisas l'1! duzidas para o consumo e a mera utilidade dos objetos produzi-
muns seja apenas um débil reflexo da permanência de que Nn\! dos para o uso. A vida em seu sentido não biológico, o tempo
capazes as mais mundanas das coisas, as obras de arte, algo dl que transcorre entre o nascimento e a morte, manifesta-se na
sa qualidade - que, para Platão, era divina por avizinhar-se d" ação e no discurso, que têm em comum com a vida sua essencial
imortalidade - é inerente a cada coisa enquanto uma coisa. l' I futilidade. A "realização de grandes feitos e o pronunciamento
precisamente essa qualidade ou sua ausência que transpareu de grandes palavras" não deixarão qualquer vestígio, qualquer
em sua forma e as toma belas ou feias. É verdade que um objvln produto que possa perdurar depois que passa o momento da
comum de uso não é nem deve ser destinado a ser belo; no l'lI ação e da palavra falada. Se o animal laborans necessita da aju-
tanto, tudo o que possui alguma forma e é visto não pode dcixm da do homofaber para facilitar seu trabalho e remover sua dor, e
de ser belo ou feio, ou algo entre belo e feio. Tudo o que CXiNh sc os mortais necessitam de sua ajuda [do homo faberi para edi-
aparece necessariamente, e nada pode aparecer sem ter fOI 11111 ficar um lar sobre a Terra, os homens que agem e falam necessi-
própria; portanto, não existe de fato coisa alguma que de algum tam da ajuda do homo faber em sua capacidade suprema, isto é,
modo não transcenda o seu uso funcional, e essa transcendên da ajuda do artista, dos poetas e historiadores, dos construtores
cia, sua beleza ou feiúra, corresponde ao seu aparecimento pu de monumentos ou escritores, porque sem eles o único produto
blico e ao fato de ser vista. Pelo mesmo motivo, isto é, em 111111 da atividade dos homens, a estória que encenam e contam, de
mera existência mundana, todas as coisas também transcendem modo algum sobreviveria. Para sero que o mundo é sempre des-
a esfera da pura instrumental idade assim que são cornpletadn tinado a ser, um lar para os homens durante sua vida na Terra, o
O critério segundo o qual a excelência de uma coisa é julgudn artifício humano tem de ser um lugar adequado para a ação e o
nunca é a simples utilidade, como se uma mesa feia exerccsse n discurso, para atividades não apenas inteiramente inúteis para
mesma função que uma mesa bonita, e sim sua adequação (111 as necessidades da vida, mas de uma natureza inteiramente dife-
inadequação no tocante àquilo que ela deve parecer, e isto. 1111 rente das múltiplas atividades de fabricação por meio das quais
linguagem de Platão, é somente sua adequação ou inadequaçllu o próprio mundo e todas as coisas nele são produzidos. Não pre-
ao eidos ou à idea, à imagem mental ou, antes, à imagem ViNIII cisamos escolher aqui entre Platão e Protágoras, ou decidir se o

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homem ou um deus deve ser a medida de todas as coisas; o qu CAPÍTULO V
certo é que a medida não pode ser nem as necessidades coativn
da vida biológica e do trabalho, nem o instrumentalismo utilill'l AÇÃO
rio da fabricação e do uso.

"Todas as mágoas são suportáveis se as colocamos em uma estória


[story] ou contamos uma estória sobre elas."
lsak Dinesen

"Nam in omni actione principaliter intenditur ab agente, sive neces-


si/ate naturae sive voluntarie agat. propriam similitudinem explica-
. re; unde fit quod omne agens, in quantum huiusmodi, delectatur.
quia, cum 0111nequod est appetat suum esse, ac in agendo agentis
esse modammodo amplietur, sequitur de necessitate delectatio (. ..)
Nihil igitur agit nisi tale existens qua!e patiensfiere debet"
(Pois em toda ação o que é visado primeiramente pelo agente, quer
ele aja por necessidade natural ou por livre arbítrio, é revelar sua pró-
pria imagem. Daí resulta que todo agente, na medida em que age,
sente prazer em agir; como tudo o que é, deseja sua própria existên-
cia, e como na ação a existência do agente é de certo modo intensi fi-
cada, resulta necessariamente o prazer ( ... ). Assim, nada age, a me-
nos que [ao agir] torne patente seu si-mesmo latente.)
Dante

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A revelação do agente no discurso e na ação

A pluralidade humana, condição básica da ação e do discurso,


tem o duplo aspecto da igualdade e da distinção. Se não fos-
sem iguais, os homens não poderiam compreender uns aos ou-
tros e os que vieram antes deles, nem fazer planos para o futuro,

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