Você está na página 1de 83

Ficha Técnica 

Título: O Livro Branco 


Título original:  
Título na edição inglesa: The White Boo 
Edição: Maria do Rosário Pedreira 
Tradução do inglês: Maria do Carmo Figueira 
Revisão: Madalena Escourido 
Capa: Rui Garrido/Leya 
ISBN: 9789722067799 
  
Publicações Dom Quixote 
uma editora do grupo Leya 
Rua Cidade de Córdova, n.º 2 
2610-038 Alfragide – Portugal 
Tel. (+351) 21 427 22 00 
Fax. (+351) 21 427 22 01 
  
Copyright original: © Han Kang, 2016 
Copyright da edição portuguesa: © Publicações Dom Quixote 2018 
Todos os direitos reservados de acordo com a legislação em vigor 
www.dquixote.leya 
com www.leya.pt 
 
 
 
 
 
 
 
Este livro segue o Novo Acordo Ortográfico de 1990. 
 
 
 
 
 
 
A presente obra é publicada com o apoio do Instituto de Tradução de
Literatura da Coreia (LTI Korea). 
This book is published with the support of the Literature Translation
Institute of Korea (LTI Korea). 
Hang Kang 
O LIVRO BRANCO 
  
  

 
  
 
 
 
 
Traduzido do inglês por 
Maria do Carmo Figueira 

Eu 

 
Na primavera, quando decidi escrever sobre coisas brancas, aquilo que
primeiro fiz foi uma lista. 
 
Faixas de pano 
Cueiro 
Sal 
Neve 
Gelo 
Lua 
Arroz 
Ondas 
Magnólia 
Ave branca 
Sorriso branco 
Papel em branco 
Cão branco 
Cabelo esbranquiçado 
Sudário 
 
A cada item que colocava na lista invadia-me um estremecimento, uma
agitação. E senti que, sim, precisava de escrever este livro, e que o
processo de escrita iria ser regenerador, tornando-se com o tempo algo
parecido com uma pomada branca espalhada sobre um inchaço, ou com
gaze protegendo uma ferida. Com uma coisa de que eu precisava. 
Mas ao passar de novo os olhos pela lista, decorridos alguns dias,
comecei a interrogar-me sobre o significado da tarefa, esse labor de
espreitar para o coração das palavras. 
Se fizesse passar estas palavras pelo meu crivo, sairiam frases tão
arrepiantes como o grito singular e triste que o arco arranca de uma corda
metálica. E conseguiria eu esconder-me entre essas frases, sob um véu de
gaze branca? 
Era uma pergunta difícil de responder e, por isso, deixei a lista como
estava, sem acrescentar mais nada. Em agosto parti para o estrangeiro,
para este país que nunca tinha visitado; aluguei um apartamento na capital
por um curto período e aprendi a arrastar os meus dias nesta terra estranha.
Uma noite, passados quase dois meses, quando o frio da estação começou
a chegar, aninhou-se em mim uma enxaqueca que me era perversamente
familiar. Tomei uns comprimidos com água morna e percebi (estava até
bastante calma) que seria impossível esconder-me. 
 
 
Há momentos em que o passar do tempo é de uma nitidez intensa. A dor
física aguça sempre a percepção. As enxaquecas, que começaram quando
eu tinha doze ou treze anos, costumam atacar de repente, sem aviso, e
trazem consigo umas dores de estômago mortificantes que obrigam, nesse
exato instante, a vida quotidiana a parar. Tenho de deixar em suspenso
qualquer tarefa, por mais insignificante que seja, pois só me consigo
concentrar em suportar a dor; e sinto as gotas do tempo golpeando-me as
pontas dos dedos como aguçadas pedras preciosas. Inspiro fundo e, de
cada vez que o faço, forma-se um novo momento da minha vida, tão
nítido como um pingo de sangue sobre uma superfície branca. Mesmo
quando consigo por fim regressar ao fluir dos dias, e a esse movimento em
que se voltam a misturar ininterruptamente uns com os outros, aquela
sensação continua presente, naquele sítio exato, de respiração suspensa e à
espera. 
Cada momento é um salto em frente, e impulsionamo-nos da beira de
um penhasco invisível em direção aos contornos afiados dos dias,
constantemente renovados. Levantamos os pés do terreno sólido que foi
toda a vida que vivemos até ali e damos esse passo perigoso para o vazio.
Não por qualquer ato de coragem em concreto, mas apenas porque não há
outro caminho. Agora, neste preciso instante, sinto essa vibração
vertiginosa a percorrer-me o corpo, o que coincide com o momento em
que decido irrefletidamente avançar para um tempo que ainda não vivi,
para este livro que não está ainda escrito. 
Porta 
Isto foi uma coisa que aconteceu há muito tempo. 
 
 
Antes de assinar o contrato de arrendamento, fui ver mais uma vez o
apartamento. 
A porta de metal já tinha sido branca, mas essa cor luminosa apagara-se
com o tempo. Quando a vi da primeira vez, achei-a uma desgraça, com a
tinta a descascar, deixando a ferrugem à vista. E, se fosse somente isso,
teria ficado na minha memória apenas como uma porta velha e estragada.
Mas havia também o modo como o número, o 301, tinha sido inscrito. 
Alguém – outro qualquer da longa lista de inquilinos temporários –
tinha utilizado um objeto aguçado, talvez uma broca, para gravar o
número na superfície da porta. O «3», com uns três palmos de altura. O
«0», mais pequeno, mas feito de vários riscos, um gatafunho violento que
chamava a atenção. Por fim, o «1», um sulco comprido e fundo, retesado
pelo esforço com que tinha sido gravado. A ferrugem tinha-se espalhado
para além deste amontoado de feridas retas e curvas, como um vestígio de
violência, um rasto de manchas de sangue há muito tempo seco,
enrijecido, de um preto avermelhado. Não tenho apego por nada. Nem
pelo sítio onde moro, nem pela porta por onde passo todos os dias,
caramba, nem sequer pela minha vida. Era como se aqueles números me
estivessem a fuzilar com os olhos, enquanto ao mesmo tempo cerrava os
dentes com toda a força. 
Foi aquele apartamento que eu escolhi habitar naquele inverno, o lugar
onde decidi arrastar os meus dias. 
 
 
Assim que desfiz a mala, comprei uma lata de tinta branca e um pincel
grande. Tanto o papel de parede da cozinha como o do quarto não tinham
sido substituídos, e por isso as paredes estavam cheias de manchas de
tamanhos variados. As nódoas eram particularmente visíveis à volta dos
interruptores. Vesti umas calças de fato de treino cinzento-claras e uma
velha camisola branca, para que os salpicos de tinta não se notassem
muito. Mesmo antes de começar a pintar, não estava nada preocupada em
conseguir fazer um trabalho perfeito. Pensei que seria suficiente tapar as
manchas – de certeza que até era melhor as manchas serem brancas do
que escuras. Passei com o pincel sobre grandes zonas do teto onde parecia
que a chuva se teria infiltrado a certa altura, vendo então o cinzento
desaparecer sob o branco. Limpei a superfície nojenta do interior do lava-
louça com um pano antes de a pintar com o mesmo branco brilhante, sem
me importar que a base que assentava na banca fosse castanha. 
Por fim, saí para o patamar com a intenção de pintar a porta. Cada
pincelada ia apagando gradualmente as suas imperfeições. Os números
gravados desapareceram, as manchas de sangue enferrujado
desvaneceram-se. Aproveitei para fazer um intervalo e voltei para dentro
de casa para me aquecer. E quando tornei a sair, passada uma hora, vi que
a tinta tinha escorrido. Parecia um trabalho rudimentar, talvez por ter
usado um pincel em vez de um rolo. Depois de dar mais uma demão para
que os pingos se tornassem menos visíveis, tornei a ir para dentro de casa,
e esperei. Ao fim de mais uma hora, saí a arrastar o passo, de chinelos
enfiados nos pés. Tinha começado a nevar. Lá fora, a rua escurecera e os
candeeiros ainda não estavam acesos. Com a lata de tinta numa mão e o
pincel na outra, fiquei parada, em silêncio, a observar a lenta descida dos
flocos de neve, cujo movimento suave fazia lembrar milhares de penas a
cair. 
Faixas de pano 
O bebé recém-nascido é envolto em faixas de pano brancas como a
neve. O útero deve ter sido tão aconchegante que a enfermeira aperta
agora bem as faixas à volta do corpo, a fim de atenuar o choque da sua
projeção abrupta no infinito. 
A pessoa que só naquele momento começa a respirar, enchendo os
pulmões pela primeira vez. O ser que não sabe quem é, onde está, nem o
que está a começar. A mais vulnerável de todas as crias, mais indefesa
ainda do que um pintainho acabado de nascer. 
A mulher, pálida devido à perda de sangue, olha para a criança que
chora. Nervosa, toma nos braços aquele ser que é parte de si, aconchegado
em faixas de pano. É ela a mãe. Uma mãe que ainda desconhece a cura
para aquele choro. Aquela que ainda há pouco tempo, tão pouco, estava a
sentir dores pungentes. Inesperadamente, a criança para de chorar. Será
talvez por causa de um cheiro qualquer que reconhece. Ou por ainda
estarem as duas ligadas. Dois olhos pretos que não sabem o que estão a
ver voltados para a cara da mulher – atraídos na direção da sua voz. Sem
saberem bem o que acabou de começar, continuam as duas ligadas. Há um
silêncio atravessado pelo cheiro do sangue, quando o que está entre os
dois corpos é o branco das faixas de pano. 
Cueiro 
Segundo me contaram, o primeiro bebé da minha mãe morreu com
menos de duas horas de vida. 
Disseram-me que era uma menina, com um rosto tão branco como um
bolo de arroz em forma de meia-lua. Apesar de ser muito pequenina,
nascida dois meses antes do tempo, tinha já as feições bastante definidas.
Jamais me esquecerei dela, disse-me a minha mãe, do momento em que
ela abriu aqueles dois olhos negros e os voltou para o meu rosto. 
Nessa época, os meus pais viviam numa casa isolada no campo, perto da
escola primária onde o meu pai dava aulas. Ainda faltava muito para o fim
do tempo de gestação e por isso a minha mãe estava completamente
desprevenida quando, certa amanhã, se lhe romperam as águas. Não havia
ninguém por perto. O único telefone da aldeia era numa loja minúscula ao
pé da paragem do autocarro – a vinte minutos de distância. O meu pai só
voltaria do trabalho daí a seis horas. 
Foi no princípio do inverno, coincidindo com a primeira geada do ano.
A minha mãe, então com vinte e dois anos, arrastou-se até à cozinha e
ferveu água para esterilizar uma tesoura. Depois, tateou a caixa da costura
até encontrar um pano branco que serviria para fazer um cueiro para um
recém-nascido. Cheia de contrações e de medo, as lágrimas corriam-lhe
pela cara enquanto cosia afanosamente. Conseguiu acabar o pequeno
cueiro e ainda descobriu uma colcha fina para envolver o bebé, tudo isto
enquanto rangia os dentes sempre que a dor voltava, cada vez mais rápida
e mais forte. 
Acabou por dar à luz. Ainda sozinha, cortou o cordão umbilical. Vestiu
o corpinho ensanguentado com o cueiro que acabara de fazer e segurou
nos braços aquele pedacinho de gente com o seu queixume. Não morras,
por amor de Deus, murmurava a minha mãe numa voz frágil, repetindo o
pedido vezes sem conta, como se fosse um mantra. Ao fim de mais de
uma hora, as pálpebras cerradas do bebé como que se descoseram
abruptamente. Quando os olhos da minha mãe pousaram nos da sua filha,
tornou a mover os lábios. Por amor de Deus, não morras. Cerca de uma
hora mais tarde, a bebé morreu. Ficaram ali prostradas no chão da
cozinha, a minha mãe deitada de lado com a bebé morta apertada contra o
peito, a sentir o frio entrar-lhe pouco a pouco na carne, perfurando-a até
aos ossos. Sem chorar mais. 
Bolo de arroz em forma de meia-lua 
Na primavera passada, alguém me perguntou se eu tinha tido «alguma
experiência em particular, quando era pequena, que me tivesse deixado à
beira da tristeza». Foi numa entrevista na rádio. 
Confrontada com a pergunta, aquilo que me ocorreu foi essa morte. Era
uma história dentro da qual eu tinha crescido. A mais indefesa de todas as
criaturas. Uma bebé pequenina e linda, a lembrar um bolo de arroz em
forma de meia-lua. Era também a história de como eu tinha nascido e
crescido no lugar dessa morte. 
Até aos seis anos «Branca como um bolo de arroz em forma de meia-
lua» nunca fez muito sentido para mim, mas nessa altura já tinha idade
suficiente para ajudar a fazer os bolos de arroz para o Chuseok1,
recortando a massa em pequenas meias-luas. Antes de serem cozidas,
essas forminhas intensamente brancas de farinha de arroz eram uma coisa
tão encantadora que nem pareciam deste mundo. Só depois de dispostos
num prato guarnecido com agulhas de pinheiro é que se tornavam
tristemente reais. A reluzirem devido ao óleo de sésamo tostado, com a
cor e a textura transformadas pelo calor e pelo vapor, claro que eram
saborosas, mas tão distantes do seu encanto inicial. 
Por isso percebi que, quando a minha mãe dizia «branca como um bolo
de arroz», se referia ao bolo de arroz antes de ser cozinhado. Um rosto
assim, tão surpreendentemente puro. Estes pensamentos fizeram-me sentir
um aperto no peito, era como se este estivesse a ser comprimido por um
peso de ferro. 
 
 
Na primavera passada, no estúdio de gravação da rádio, não falei de
nada disto. Falei, sim, do meu cão, que morreu quando eu tinha cinco
anos. Contei que era um cão de uma inteligência fora do comum, rafeiro
mas descendente em parte da famosa raça Jindo2. Ainda tenho uma
fotografia a preto e branco de nós os dois, uma singela imagem de um
momento só nosso; e no entanto, por estranho que pareça, não consigo
lembrar-me dele vivo. A única memória nítida que tenho é da manhã em
que morreu. O pelo branco, os olhos negros parados, o nariz ainda
húmido. Desde então, criei uma aversão a cães que dura até hoje. Em vez
do impulso de estender a mão para lhes afagar o pelo fofo, os meus braços
ficam caídos ao lado do corpo. 
1Trata-se da festa das colheitas, um feriado de três dias na Coreia,
celebrado no 15.o dia do 8.o mês do calendário lunar (por volta do
equinócio de outono). [N. do R.]
2Raça canina proveniente da Coreia do Sul. De origem desconhecida,
acredita-se que sejam descendentes de Spitz nórdicos levados para a região
de Jindo, onde se desenvolveram como raça isoladamente, tornando-se
bastante conhecidos na sua terra natal. [N. do R.]
Nevoeiro 
Porque é que aqui, nesta cidade que me é estranha, as memórias antigas
estão constantemente a vir à superfície? 
Quando ando pela rua, quase todas as palavras são para mim
incompreensíveis: os fragmentos das conversas a que presto atenção,
quando passa alguém a falar, as palavras grafadas nas placas das ruas e
nos letreiros das lojas. Há alturas em que sinto que o meu corpo é uma
prisão, uma ilha maciça mas errante que vai abrindo caminho através da
multidão. Um compartimento selado que transporta todas as memórias da
vida que já vivi e a língua materna da qual são inseparáveis. Quanto mais
teimo no meu isolamento, mais nítidos são esses fragmentos inesperados
de recordações e mais opressivo é o seu peso. De tal forma que quase
parece que o lugar para onde fujo não é uma cidade do outro lado do
mundo, mas um sítio ainda mais longe, um lugar dentro de mim própria. 
 
 
Às primeiras horas da manhã, a cidade está coberta por um manto de
nevoeiro. 
A fronteira entre céu e terra foi apagada. A única vista que tenho da
minha janela é a sugestão indistinta de dois choupos, contornos de
aguarelas que se agitam a uma altura de quatro ou cinco metros sobre o
lugar onde está escondida a rua; tudo o resto é branco. Mas será que
podemos realmente dizer que é branco? Essa vasta e silenciosa ondulação,
cada molécula de água fria em suspenso entre este mundo e o próximo,
formada pela mais negra escuridão. 
 
 
Lembro-me de uma manhã há muito tempo, numa ilha em que o
nevoeiro era tão denso como este. Fiz um passeio com as restantes pessoas
do grupo por um caminho sobre uma falésia. Pinheiros a aparecerem e a
desaparecerem subitamente. A imponente falésia cinzenta. As cabeças dos
meus companheiros, quando vistas de trás, pareciam estranhamente
brancas, e os seus contornos ficavam mais definidos quando eles
espreitavam para as águas negras que corriam sob o denso nevoeiro
marítimo. E que paisagem tão sem graça esse mesmo caminho se revelou,
quando tornei a percorrê-lo na tarde do dia seguinte. O que imaginara ser
um misterioso pântano era afinal um charco já seco e poeirento. Os
pinheiros, que pareciam pertencer a outro mundo quando apenas
vislumbrados, estavam rodeados por uma vedação de arame farpado. O
azul intenso do mar tinha o brilho de um postal turístico. Tudo tinha
voltado aos seus próprios limites, em suspenso, à espera do próximo
nevoeiro. 
O que farão os fantasmas desta cidade na surdina característica das
primeiras horas da manhã? 
Esgueirar-se-ão em silêncio, para andarem por entre o nevoeiro que tem
estado em suspenso e à espera? 
Será que se cumprimentam uns aos outros pelas frestas entre essas
moléculas de água que tingem as suas vozes de branco? E será que o
fazem numa outra língua materna, só deles, cujo significado me escapa?
Será que apenas dão um aperto de mão ou esboçarão um aceno com a
cabeça, sem precisarem de palavras? 
Cidade branca 
Vi umas imagens desta cidade, filmadas na primavera de 1945 por um
avião militar dos EUA. O filme passou na sala de projeção do primeiro
andar do Memorial do Holocausto, situado na parte oriental da cidade. As
legendas diziam que a partir de outubro de 1944, e em apenas seis meses,
noventa e cinco por cento da cidade fora dizimada. Esta cidade, cuja
população se ergueu contra os nazis, da qual os soldados alemães foram
expulsos em setembro de 1944 e onde foi possível impor um mês de
governo civil – e daí adveio a decisão de mobilizar todos os meios
necessários para a obliterar, para que servisse de exemplo. 
No início do filme, a cidade vista de cima parecia coberta por um manto
de neve. Era uma camada ou de neve ou de gelo branco-acinzentado sobre
a qual se tinha espalhado um leve sedimento de fuligem, tornando-a suja e
manchada. O avião reduziu a altitude, e a imagem tornou-se mais nítida.
Afinal, a cidade não estava coberta de neve, nem de gelo listrado pela
fuligem. As casas tinham sido desfeitas, literalmente pulverizadas. Por
cima do brilho branco das ruínas de pedra havia manchas escuras a perder
de vista, coincidentes com as zonas atingidas pelo fogo. 
 
 
Ia no autocarro para casa e decidi sair no parque onde, segundo tinha
ouvido dizer, havia um castelo muito antigo. Depois de caminhar durante
algum tempo por entre o arvoredo cerrado, deparei-me com o antigo
edifício de um hospital. Era uma reconstrução fiel de um anterior, que
tinha sido destruído em 1944 por um raide aéreo. E já não era utilizado
como hospital, mas como galeria de arte. Enquanto percorria o estreito
caminho, coberto por um arco feito de ramos de árvores entrelaçados, ouvi
um trinado agudo de pássaros que me fez pensar em cotovias; e então
lembrei-me de que tinha havido um tempo em que todas estas coisas
tinham morrido. Estas árvores e os pássaros, os caminhos e as ruas, as
casas e os elétricos, e todas as pessoas. 
Nesta cidade não há nada que exista há mais de setenta anos. As
muralhas do bairro antigo, o esplêndido palácio que se destaca na
paisagem, a mansão à beira de um lago onde noutros tempos a família real
passava o verão – é tudo falso. São coisas novas, dolorosamente
reconstruídas com base em fotografias, imagens, mapas. Nos sítios onde,
por acaso, uma coluna ou talvez a parte inferior de um muro sobreviveu,
essas ruínas foram incorporadas na nova estrutura. As fronteiras que
separam o antigo do novo, as cicatrizes que testemunham a destruição,
estão expostas à vista de todos. 
 
 
Foi nesse dia, quando andava a passear pelo parque, que me lembrei
dela pela primeira vez. Uma pessoa que tinha tido um destino similar ao
desta cidade. Que, a certa altura, tinha morrido ou sido destruída. Que
depois se reconstruíra dolorosamente sobre um monte de ruínas
enegrecidas pelo fogo. Que, por isso, era uma coisa nova. Na qual um
qualquer pórtico quebrado, tendo sobrevivido da antiga estrutura, tinha
acabado a servir de sustentáculo a um padrão novo e estranho, diferente
do antigo. 
Certos objetos na escuridão 
Certos objetos, na escuridão, parecem brancos. Quando o negrume é
atravessado nem que seja por uma luz muito ténue, até coisas que de outra
forma nunca seriam brancas brilham com uma claridade enevoada. 
À noite, abro o sofá-cama ao canto da sala e deito-me sob essa luz
diáfana. Em vez de tentar adormecer, fico à espera, e vou-me apercebendo
de que os meus sentidos se vão adaptando à passagem do tempo. As
árvores que estão para lá da janela projetam silhuetas na parede de estuque
branco. Penso na pessoa que se parece com esta cidade, imaginando os
contornos do seu rosto. E fico à espera de que esses contornos ganhem
forma, para assim conseguir interpretar a expressão que repousa nesse
rosto. 
A direção da luz 
Li o relato de um homem nascido nesta cidade, no qual ele afirmava
lembrar-se de ter vivido desde sempre com a alma do irmão mais velho,
que havia morrido aos seis anos no gueto judaico. A voz da criança,
contava ele, manifestava-se de vez em quando nele, sem forma nem
textura. Além disso, expressava-se numa língua que ele desconhecia, pois
o homem tinha sido adotado em criança por um casal belga e crescido
nesse país. E isso significava que, ao princípio, não tinha sequer
conseguido perceber que aquela voz era do irmão. Só podia estar a sonhar
acordado, chegou a pensar o homem, pois apenas nesse estado de
afastamento da realidade é que tudo está condenado a voltar a surgir, caso
contrário seria sintoma de uma qualquer perturbação mental. Quando, aos
dezoito anos, ficou finalmente a conhecer a história da sua família,
começou então a estudar a língua do país de origem para conseguir
compreender o que aquela alma penada tentava dizer-lhe. E foi assim que
soube do medo do seu irmão, um irmão que era ao mesmo tempo mais
velho e mais novo. Que estava ainda a gritar as mesmas palavras
atravessadas pelo terror, silenciadas quando os soldados o tinham ido
prender. 
 
 
Depois de ter lido isto, dormi mal por várias noites, sem conseguir
impedir os meus pensamentos de voltarem aos momentos finais da vida
daquela criança de seis anos, que teria certamente sido assassinada. Às
primeiras horas da manhã, depois de uma dessas noites de desassossego,
quando a inquietação que sentia tinha finalmente acalmado, ocorreu-me
que, se também eu tivesse sido visitada pela primeira filha da minha mãe –
que vivera apenas duas horas –, não teria tido qualquer consciência disso.
Porque essa criança nem sequer tinha aprendido a falar. Mantivera os
olhos abertos durante uma hora, voltados para o rosto da nossa mãe, mas
os seus nervos óticos não tinham tido tempo de despertar e, por isso,
nunca chegara efetivamente a ver aquele rosto materno. Para a minha
irmã, tinha havido apenas uma voz. Não morras. Por amor de Deus, não
morras. Palavras ininteligíveis, as únicas palavras que terá ouvido. 
 
 
E, por isso, não posso nem confirmar nem negar se houve momentos em
que ela me terá procurado, pairando sobre a minha testa ou junto aos
cantos dos meus olhos. Nem sequer verificar se qualquer vaga sensação
que eu tenha tido em criança, qualquer agitação vinda de uma emoção
aparentemente inexplicável, podia, sem que eu o soubesse, ter sido
causada por ela. Porque às vezes, quando estou deitada num quarto às
escuras, há momentos em que o frio no ar é uma presença palpável. Não
morras. Por amor de Deus, não morras. Uma presença transformada em
sons indecifráveis, carregados de amor e angústia. Uma existência voltada
para uma névoa clara e o calor de um corpo. Talvez também eu tenha
aberto os olhos na escuridão, como ela, e olhado avidamente sem ver
ainda. 
Leite materno 
A mulher de vinte e dois anos fica novamente sozinha em casa, ainda
está deitada. É sábado de manhã e, com a primeira geada ainda colada às
ervas, o marido, de vinte e cinco anos, sobe a montanha com uma pá para
enterrar a bebé que nasceu ontem. A mulher não consegue abrir bem os
olhos inchados, por mais que tente. Não há articulação nenhuma no corpo
que não lhe doa, e os nós dos dedos inchados pulsam de sofrimento. E é
então que, pela primeira vez desde o parto, sente algum calor inundar-lhe
o peito. Senta-se e aperta desajeitadamente o seio. Primeiro, umas gotas
aguadas, amareladas, depois um fio contínuo de leite branco. 
Ela 
Penso nela viva, a beber aquele leite. 
Penso numa respiração obstinada, nuns lábios pequeninos a
resmungarem com o mamilo. 
Penso nela a largar a mama e a começar a comer farinha de arroz, a
crescer, a tornar-se uma mulher, a ultrapassar todas as crises que fazem
parte da vida. 
Penso nela a desviar-se da morte, a virar-lhe as costas enquanto
caminha, sempre em frente e com passos firmes. 
Não morras. Por amor de Deus, não morras. 
Tem estas palavras entretecidas nela, como um amuleto alojado no
corpo. 
 
 
E penso nela a vir para aqui em vez de mim. 
Para esta cidade curiosamente familiar, cuja morte e vida se assemelham
à dela. 
Vela
Imagino-a a andar pelas ruas desta cidade. Num cruzamento, vê o que
resta de uma parede de tijolo vermelho. Para reconstruir mais um edifício
em ruínas, a parede foi deitada abaixo e reerguida um metro à frente da
sua posição original, com um epitáfio colocado na parte de baixo a
explicar que o exército alemão alinhou civis contra ela para depois os
abater. Alguém colocou uma jarra com flores junto à parede, e há várias
velas brancas coroadas por uma chama tremeluzente. 
A cidade continua coberta de espirais de nevoeiro, agora menos espesso
do que de manhã cedo e quase translúcido, como papel vegetal. Se se
levantasse um vento forte que destapasse um pouco mais a névoa, as
ruínas de há setenta anos podiam sobressaltar-se ao serem assim
abruptamente reveladas, quase que empurradas para fora das
reconstruções atuais. Os fantasmas que ali estivessem reunidos,
encostados àquela parede de tijolos vermelhos, poderiam até erguer-se
contra essa parede onde tinham sido assassinados, com os olhos brilhantes
de raiva. 
Mas não há vento, e para lá do que já é visível nada é então revelado. A
cera quente das velas brancas cai ininterruptamente, como que a rastejar
sobre a superfície do mundo. Os cotos, oferecendo-se como alimento às
chamas que emanam dos pavios brancos, vão-se afundando pouco a
pouco, até deixarem de existir. 
 
 
Agora vou dar-te coisas brancas, 
 
Aquilo que é branco, mas pode vir a ser conspurcado; 
Só coisas brancas te darei. 
 
E não voltarei a perguntar 
 
Se te deveria ter dado esta vida. 

Ela 

 
Geada 
A janela não assenta bem no caixilho e, por isso, forma-se sobre o vidro
uma película de geada. O inverno vai a meio. O padrão branco da geada
no vidro faz lembrar o gelo que se forma à superfície de um ribeiro
gelado. O escritor Park T’ae-won disse um dia que, quando a primeira
filha nasceu, o seu olhar foi atraído por uma janela como esta e daí ter-lhe
chamado Seol-yeong, Flor de Neve. 
Ela até tinha visto uma vez o próprio mar congelado. Uma extensão de
água invulgarmente baixa, misturada com uma corrente fria, tinha
formado uma série compacta de ondas congeladas que lembravam
camadas sobrepostas de flores de um branco ofuscante, a cor característica
do momento em que se abrem. Viu peixes congelados dispersos pela areia
da margem e o reflexo intenso das suas escamas. Em dias assim, as
pessoas daquela zona dizem que «o mar está coberto de geada». 
Gelo 
No dia em que ela nasceu, havia mais gelo do que neve, mas o pai
escolheu seol, neve, como um dos caracteres do nome da filha. E ela foi
crescendo, sempre com uma sensibilidade invulgar ao frio, culpando o
facto de o frio estar inscrito no seu nome por essa sensibilidade. 
Mas ela gostava de pisar o chão coberto de geada e sentir a terra quase
congelada através das solas dos ténis. A primeira camada, ainda incólume,
é constituída por cristais finos a lembrar a flor de sal. Quando a geada
começa a formar-se, os raios de sol ficam ligeiramente mais claros.
Nuvens brancas de respiração irrompem das bocas quentes. As árvores
arrepiam-se, fazendo as folhas soltar-se e assim aliviando cada vez mais o
fardo que carregam. Os objetos sólidos, como pedras ou edifícios,
parecem subtilmente mais compactos. Vistos de trás, os homens e as
mulheres, agasalhados com pesados casacos, parecem invadidos por um
pressentimento mudo de que vão começar a sofrer com o frio. 
Asas 
Foi nos arredores da cidade que ela viu a borboleta. Uma única
borboleta branca, com as asas fechadas, pousada sobre umas canas numa
manhã de novembro. Desde o verão que não se viam borboletas; onde
poderia aquela ter estado escondida? A temperatura do ar tinha descido
acentuadamente na semana anterior, e talvez fosse por as suas asas
congelarem rapidamente que a cor branca se fixara nelas, deixando certas
partes quase transparentes. Tão claras eram as asas que pareciam
tremeluzir com o reflexo negro da terra. Agora, bastará pouco tempo para
que o branco abandone completamente aquelas asas. Tornar-se-ão uma
outra coisa, já não asas, e a borboleta será então qualquer coisa que não
uma borboleta. 
Punho 
Caminhando pelas ruas desta cidade até os músculos das pernas ficarem
rígidos, ela aguardava por alguma coisa. Por que algo na sua língua
materna, frases ou até pequenos fragmentos de palavras, irrompesse
subitamente da ponta da língua. Achava que talvez conseguisse escrever
sobre a neve. Sobretudo nesta cidade, onde dizem que neva durante
metade do ano. 
Vigiava tenazmente a chegada do inverno. Estudava as montras das
lojas, os reflexos nelas espelhados e ainda não desfocados pelos riscos
criados pela neve. As cabeças das pessoas que passavam por ela, ainda
sem aquela leve camada de pó branco e gelado. Depois, aquelas formas
oblíquas, que não eram ainda flocos de neve e que mal tocavam na testa
de pessoas que desconhecia. Os seus próprios punhos frios, que cerrava
até ficarem quase brancos. 
Neve 
Sobre a manga de um casaco preto, são visíveis até a olho nu os cristais
de um grande floco de neve. Uns escassos dois segundos bastaram para
que ela presenciasse tudo: hexágonos misteriosos derretendo-se e
desaparecendo. 
Quando a neve cai pela primeira vez, as pessoas param o que estão a
fazer e desviam as atenções para essa brancura. Num autocarro, os
passageiros levantam os olhos do colo e olham pela janela durante algum
tempo. Depois de a neve se ter espalhado silenciosamente pelo chão, com
uma ausência de alegria ou tristeza em igual medida, e de as ruas estarem
completamente cobertas, as pessoas voltam a cara noutra direção, e os
seus olhos deixam de refletir os fiapos indistintos. 
Flocos de neve 
Uma noite já tarde, há muito tempo, ela tinha visto um homem deitado
no chão ao pé de um poste de telefone. Estava tombado de lado. Teria
caído? Estaria embriagado? Deveria chamar uma ambulância? Enquanto
hesitava, sem conseguir afastar-se mas com medo de se aproximar, o
homem soergueu-se e fixou nela o olhar vazio. Ela estremeceu, assustada;
embora aparentemente não houvesse qualquer ameaça imediata de
violência, a rua estava deserta, sem ninguém que lhe valesse em caso de
perigo. Continuou a andar em passo apressado e, depois, voltou-se para
olhar para trás. O homem lá estava, agachado no passeio frio, ainda na
mesma posição estranha, a olhar de modo penetrante para a parede suja
que se estendia do outro lado da rua. 
 
ele que tinha naufragado num beco, que 
se tinha soerguido apoiado nas mãos tolhidas pelo frio, 
a pensar no que tem sido a sua vida, 
na solidão que o espera em casa, 
a pensar no que será isto, esta  
maldita branca suja 
 
neve a cair. 

Flocos dispersos voam em todas as direções. 
No ar escuro que a luz dos candeeiros não toca. 
Rodopiando sobre os ramos negros de árvores silenciosas. 
Roçando nas cabeças curvadas que se arrastam pela noite. 
Neve perpétua 
Ela tinha pensado em viver num sítio onde houvesse neve perpétua. Um
lugar em que os corpos das árvores para lá da sua janela, quase aninhados
uns nos outros, marcassem a mudança das estações contra o imutável e
longínquo pano de fundo dos cumes das montanhas cobertas de gelo. Um
sítio tão frio como mãos sobre a sua testa febril, quando na infância tinha
de faltar à escola e ficar em casa. 
Havia um filme a preto e branco, filmado ali em 1980, em que o
protagonista perdia o pai aos sete anos e era criado pela mãe, uma pessoa
calma e dócil. (O pai tinha apenas vinte e nove anos quando sofrera um
acidente ao escalar os Himalaias com um grupo de amigos. O seu corpo
nunca fora encontrado.) O filho saiu de casa da mãe assim que atingiu a
maioridade, e passou a viver segundo um código de ética incrivelmente
rígido. Sempre que tinha de tomar uma decisão, convocava mentalmente
uma paisagem opressiva: um nevão a cair sobre os Himalaias cobertos de
gelo, como se tivesse uma tempestade de neve dentro da cabeça. De todas
as vezes, fazia a escolha mais difícil para si próprio, a escolha perante a
qual muitos outros vacilariam. Numa época em que grassava a corrupção,
era a única pessoa que se recusava a aceitar subornos, e isso levava a que
fosse ostracizado e até fisicamente atacado. Acabou por cair numa cilada,
foi expulso do seu local de trabalho e, sozinho, regressou a casa. Aí
chegado, permitiu-se perder-se em pensamentos, e os picos e ravinas dessa
cordilheira distante encheram o seu campo de visão. Os Himalaias eram
precisamente o lugar aonde não podia ir. A terra do gelo, na qual o corpo
congelado do seu pai estava enterrado e onde os homens não se poderiam
pisar uns aos outros. 
Onda 
Ao longe, surge uma saliência na superfície da água. O mar de inverno
prepara a sua chegada, agitando-se cada vez mais. A onda atinge a altura
máxima de que é capaz e desfaz-se depois numa multidão de gotículas
brancas. A água, diluída a sua forma, recua sobre a areia da margem. 
De pé, naquela fronteira onde terra e água se encontram, a observar a
recorrência aparentemente interminável das ondas (apesar de esta
eternidade ser na verdade uma ilusão: um dia, a terra sumir-se-á, tudo
acabará por desaparecer), sente-se com uma clareza inabalável esse facto
de as nossas vidas não serem mais do que breves instantes. 
As ondas ficam de um branco ofuscante no momento em que se
desfazem. Mais ao longe, a superfície tranquila da água reluz como se
fossem as escamas de uma imensidão de peixes. É ali que está o brilho das
multidões. A passagem, a agitação, a comoção das multidões. Nada é
eterno. 
Granizo 
Não há ninguém para quem a vida olhe com parcialidade. Chove
granizo enquanto ela caminha por aquelas ruas, guardando para si essa
verdade. O gelo deixa-lhe a face e as sobrancelhas pesadas da humidade.
Tudo passa. Ela guarda esta lembrança – este saber que tudo aquilo a que
se agarrar irá libertar-se de si e desaparecerá – enquanto caminha pelas
ruas em que chove granizo, que não é nem chuva nem neve, nem gelo nem
água, são gotas geladas que lhe escorrem pela testa e se infiltram nas
sobrancelhas, quer ela esteja parada quer a andar apressada, quer feche os
olhos quer os abra. 
Cão branco 
Qual é a coisa, qual é ela, que é um cão mas não ladra? 
Ela ainda era criança quando ouviu esta adivinha pela primeira vez. 
Quando ou quem a disse, não se lembra. 
 
 
No verão dos seus vinte e quatro anos, quando se despediu do primeiro
emprego e voltou para a casa onde tinha crescido, viu um cão branco no
jardim dos vizinhos. Antes, tinha havido por lá um Tosa3 feroz, criado
para ser um cão de combate. Costumava correr para os limites da
propriedade, esticando a corda até ao máximo, de dentes arreganhados.
Bastaria que a corda que tinha à volta do pescoço se soltasse ou partisse,
para que o animal se atirasse a uma pessoa e lhe enterrasse os dentes na
carne. Apesar de ela saber que o cão estava preso, não deixava de se
afastar o mais possível sempre que tinha de passar pelo portão, intimidada
pela sua ferocidade. 
Acorrentado no lugar onde dantes estava esse Tosa, havia agora um
rafeiro que talvez tivesse uma vaga ascendência de Jindo. O corpo do
animal tinha vários bocados de carne à vista, moedas de um rosa-claro por
entre o branco triste do seu pelo. O cão não ladrava, nem sequer rosnava.
Da primeira vez que a viu a olhar para ele, recuou, assustado, com a
corrente que tinha à volta do pescoço a raspar no chão de cimento. Era
agosto e o sol escaldante não dava tréguas. Talvez por causa desse calor
sufocante, a estrada que atravessava a aldeia estava deserta. O silêncio só
era quebrado pelo barulho irritante da corrente de cada vez que o cão
recuava. Qualquer movimento que ela fizesse, por mais pequeno que
fosse, fazia-o assustar-se novamente, pressionando-o ainda mais contra o
chão, rastejando para trás às apalpadelas, arrastando a corrente pelo
cimento. Sem nunca tirar os olhos dela. Terror. Era terror o que ela via
naqueles dois olhos negros. 
Nessa noite, falou em casa sobre o cão. «Nem sequer ladra quando vê
um estranho», comentou a mãe. «Acobarda-se e fica todo a tremer e, por
isso, o dono está a pensar vendê-lo a alguém. E se aparece um ladrão,
como é que é?» 
O cão nunca deixou de ter medo dela. No último dia que passou em casa
dos pais, depois de o animal já ter tido uma semana inteira para se
habituar a ela, começou a rastejar e aos solavancos para trás, mal ela
apareceu ao portão. Torceu a cabeça contra o flanco, como se houvesse
uma coisa qualquer a fazer-lhe pressão na traqueia. Embora tivesse a
língua a balançar entre os dentes, não se ouvia qualquer respiração
ofegante. O único som que o cão produzia era o da corrente a raspar no
cimento. Mesmo quando via a mãe dela, uma cara familiar e já conhecida
há vários meses, a reação era a mesma. Pronto, pronto, está tudo bem,
dizia a mãe dela com uma voz suave e calmante, enquanto passava por ele
sem pressa. Pobrezinho, murmurou, estalando a língua, deve ter sofrido
muito. 

Qual é a coisa, qual é ela, que é um cão, mas não ladra? 
A solução pouco imaginativa da adivinha é a sombra. 
E por isso, para ela, o cão passou a chamar-se Sombra. Um grande cão
branco que não ladrava. Um animal fisicamente semelhante a um cão que
tivera em criança e que agora era apenas uma memória indistinta de um
passado distante. 
Nesse inverno, quando regressou a casa da sua família, já não havia
Sombra. Em vez dele, foi recebida por um bulldog castanho, que lhe
rosnou prazerosamente. 
O que aconteceu ao outro cão? 
A mãe abanou a cabeça. 
O dono tinha passado o verão todo a tentar vendê-lo, mas não
conseguira arranjar maneira de se livrar dele; depois, quando chegou a
geada e a temperatura desceu abruptamente, o cão acabou por morrer.
Adoeceu e deixou de tocar na comida, ficava deitado sobre as patas da
frente… e, durante todo esse tempo, nunca fez um único som. 
3Tosa inu ou mastim japonês é uma raça canina oriunda do Japão,
conhecida por ter animais de grande porte com perfil de lutadores. [N. do
R.]
Tempestade de neve 
Alguns anos antes tinha havido um alerta de que ia cair um grande
nevão. Seul estava a ser fustigada por uma intensa tempestade de neve,
enquanto ela seguia sozinha por um trilho numa colina. O chapéu-de-
chuva era praticamente inútil para a proteger da neve. Continuou a andar,
enquanto farrapos brancos rodopiavam rapidamente à sua volta. E ela sem
conseguir abarcar o que seria aquilo, aquela coisa tão fria, tão hostil.
Aquela fragilidade efémera, aquela beleza tão pesada e opressiva. 
Cinzas 
Naquele inverno, ela e o irmão mais novo fizeram uma viagem de carro
de seis horas até uma praia na costa sul. Depositaram a caixa que continha
os ossos da mãe desfeitos em pó num ossário junto de um pequeno
templo, cuja vista abarcava o mar em toda a sua extensão. Aí seria o
abrigo da alma da mãe deles. Os monges entoariam o nome dela nos seus
sutras, às primeiras horas da manhã de cada novo dia. E, no aniversário do
Buda, seria acendida uma lanterna de papel em memória dela. 
 
 
Com aquelas vozes, aquelas luzes ali tão perto,  
as cinzas da nossa mãe repousariam numa calma imutável 
dentro de uma gaveta de pedra selada. 
Sal 
Um dia, pegou numa mão-cheia de sal grosso e examinou-o
atentamente. Aqueles cristais tinham uma beleza fria, de um branco com
laivos cinzentos. Era a primeira vez que ela tinha a verdadeira sensação do
poder que existia naquela substância: o poder de conservar, o poder de
esterilizar e de curar. 
Antes disso, houve um dia em que estava a cozinhar e pegara no sal
depois de ter feito um corte na mão. Se deixar a faca escapar tinha sido o
seu primeiro erro, que cometera porque estava com pressa, deixar que o
sal tocasse no corte exposto tinha sido o segundo, e o pior de todos. Foi
nessa altura que aprendeu o verdadeiro sentido da expressão «pôr sal na
ferida». 
Passado algum tempo, viu a fotografia de uma instalação em que tinha
sido erguido um pequeno monte de sal, sendo os visitantes convidados a
pousar nele os pés descalços. Depois de se sentarem na cadeira lá
colocada para o efeito e de tirarem os sapatos e as meias, punham os pés
em cima do sal e podiam lá ficar sentados o tempo que entendessem. Na
fotografia via-se que o espaço da instalação era escuro, incidindo o único
ponto de luz trémula sobre o topo do monte de sal. Talvez por estarem
assim há tanto tempo, o monte de sal branco e o corpo da mulher que o
pisava pareciam ter-se fundido, natural e dolorosamente. 
Para conseguir fazer isto, pensou, estudando a fotografia, é importante
não ter feridas nem cicatrizes nos pés. Só se os meus pés estivessem
completamente curados é que eu arriscaria pousá-los naquele monte de
sal. Onde, por muito branco que seja o seu brilho, a sombra preserva
sempre um certo calafrio. 
Lua 
Quando as nuvens flutuam à frente da Lua e obscurecem completamente
a sua luz, essas nuvens acabam também por ganhar instantaneamente um
brilho branco e frio. Quando há nuvens escuras misturadas com as
brancas, forma-se um delicado chiaroscuro. A Lua, clara e obscurecida,
fica escondida por trás daquele padrão pintalgado e envolto por uma luz
cinza, lilás ou azul-clara. Quer esteja cheia, cortada ao meio ou numa fatia
ainda mais fina, reduz-se até não ser mais do que um pequeno fragmento
prateado. 
Sempre que ela olhava para essa meia-lua, via nela a cara de uma
pessoa. Desde muito pequena que fazia ouvidos moucos às explicações
dos adultos: nunca conseguira distinguir as formas que lhe diziam que
estavam lá, os dois coelhos ou o almofariz para esmagar cereais4. A única
coisa que via eram dois olhos, aparentemente perdidos em pensamentos,
situados acima da sugestão obscurecida de um nariz. 
Nas noites em que a Lua estava invulgarmente grande, ela deixava
abertas as cortinas para que a sua luz chegasse a todos os cantos do
apartamento. E assim já tinha luminosidade suficiente para se deslocar de
um lado para o outro, caminhando na luz que emanava, filtrada, de um
enorme rosto branco e pensativo, com dois olhos negros inundados de
escuridão. 
4O folclore oriental identifica os relevos lunares como sendo a figura de
dois coelhos. Em diversas culturas o coelho aparece também a moer com
um almofariz. Nas versões japonesa e coreana, no entanto, o animal
costuma estar simplesmente a misturar os ingredientes de um bolo de
arroz. [N. do R. ]
Cortina de renda 
Será que é por existir dentro de nós uma qualquer brancura imaculada e
inviolada que, quando nos deparamos com objetos tão límpidos, ficamos
sempre comovidos? O percurso dela pelas ruas geladas condu-la ao
prédio, onde o seu olhar se ergue para o primeiro andar. Para a frágil
cortina de renda lá pendurada. 
Há alturas em que o branco áspero da roupa de cama acabada de lavar
quase parece falar. É quando o tecido de algodão puro roça na sua pele
desnudada, nesse preciso momento, que parece estar a dizer-lhe qualquer
coisa. És uma pessoa notável. O teu sono é puro, e não tens de ter
vergonha de estar viva. É esse o estranho conforto que ela sente, nesse
intervalo em que o sono aflora junto à vigília e o lençol áspero de algodão
lhe toca na pele. 
Nuvem de respiração 
Nas manhãs frias, essa primeira nuvem de respiração fugidia é a prova
de que estamos vivos. A prova do calor dos nossos corpos. O ar frio
precipita-se para dentro dos pulmões escuros, absorve o calor do nosso
corpo e é exalado numa forma percetível, branca com laivos cinzentos.
Dá-se assim a milagrosa difusão das nossas vidas pelo ar vazio. 
Aves brancas 
Um ajuntamento de gaivotas brancas na invernosa praia. Umas vinte,
talvez? Estavam pousadas de frente para o mar, onde o Sol se arrastava em
direção ao horizonte. Como se estivessem a observar uma espécie de
cerimónia silenciosa, mantendo-se absolutamente imóveis com uma
temperatura abaixo de zero, a testemunhar o declínio do dia. Ela parou de
caminhar e deixou o seu olhar acompanhar o das aves de penugem
esbranquiçada até àquela fonte de luz clara, prestes a flamejar. Apesar de o
frio ser tão intenso que parecia enterrar-se-lhe como dentes até aos ossos,
ela sabia que era precisamente o calor dessa luz que impedia que o seu
corpo gelasse. 
 
 
Um grou à beira de água, num dia de verão em Seul. Todo branco à
exceção das patas vermelho-vivo. A ave vinha a sair da água,
cuidadosamente, e subiu para uma pedra grande e lisa. Teria reparado no
olhar intenso dela? Talvez. E presentira que ela não tencionava fazer-lhe
mal? Quem sabe fosse daí, dessa segurança, que adviesse a sua expressão
impassível a fitar a outra margem, enquanto deixava que os raios de sol
lhe secassem as patas vermelhas. 
 
 
Porque será que as aves brancas a comovem de uma forma que todas as
outras não conseguem? Não o sabe explicar. E porque será que lhe
parecem tão singularmente graciosas, às vezes quase sagradas? De vez em
quando, sonha com uma ave branca a voar para longe. No sonho, a ave
está muito perto, tão perto que parece que, se ela estendesse o braço,
conseguiria agarrá-la enquanto voa, batendo as asas num silêncio
profundo e com o sol a deslizar obliquamente pelas suas penas. A ave voa
para muito longe sem que ela, no entanto, a perca de vista. Flui através do
ar, eternamente presente, com as asas ofuscantes abertas em leque. 
 
 
Como há de ela interpretar a memória daquela ave branca que aqui,
nesta cidade, pousa fugazmente na sua cabeça, para logo voltar a voar para
longe? Ia para casa, preocupada com qualquer coisa, caminhando
penosamente pelo parque na margem do riacho. Houve qualquer coisa que
desceu vertiginosamente e pousou, enorme, em cima da sua cabeça.
Depois de estender ambas as asas de forma a envolver-lhe o rosto como
uma touca, com as pontas das penas quase a roçarem na face dela, a ave
levantou voo e foi para cima do telhado de um prédio ali perto, como se
não tivesse nada pendente para resolver com ela. 
Lenço 
Viu-o uma tarde no fim do verão, quando ia a passar por um prédio
isolado. No segundo andar, uma mulher estendia a roupa debruçada no
parapeito da varanda, quando deixou escapar uma mão-cheia de peças.
Um lenço, apenas o lenço, flutuou, a mais lenta de todas as peças, até
finalmente pousar no chão. Como uma ave com as asas meio recolhidas.
Ou como uma alma a tentar fazer-se ouvir de um qualquer lugar onde
estivesse. 
Via Láctea 
Quando o inverno chegou a esta cidade, estava nublado quase todos os
dias e ela já não conseguia ver as estrelas no céu à noite. A temperatura
desceu abaixo de zero e instalou-se um padrão em que dias sucessivos a
chover alternavam com dias a nevar. A baixa pressão atmosférica
provocava-lhe dores de cabeça frequentes. As aves voavam perto do chão.
O Sol começava a pôr-se por volta das três da tarde, e às quatro era noite
cerrada. 
Erguendo os olhos para esse céu à tarde, com uma escuridão que no seu
país só se via de noite, começou a pensar em nebulosas. Lembrou-se
também dos milhares de estrelas que se assemelhavam a pedras de sal e
cuja luz jorrava sobre ela, naquelas noites em casa dos pais, no campo.
Uma luz pura e fria que lhe inundava os olhos, libertando a sua mente de
todas as memórias. 
Sorriso branco 
A expressão «sorriso branco»5 (provavelmente) só existe na língua
materna dela. Um sorriso ténue, sem alegria, cuja limpidez se desfaz
facilmente. Tal como sucede ao rosto que o esboçou. 
 
 
«Isso foi um sorriso branco, sabes?» 
Neste caso, a pergunta retórica seria (provavelmente) dirigida a alguém
que esboçara um sorriso forçado, enquanto por dentro se debatia em
silêncio com um problema qualquer. 
 
 
«Ele fez um sorriso branco.» 
Aqui, «ele» seria (provavelmente) alguém que lutava para se separar de
qualquer coisa dentro de si. 
5Em português, o equivalente seria talvez «sorriso amarelo», mas
manteve-se no texto a alusão a coisas brancas. [N. do R.]
Magnólia 
Dois dos colegas dela na universidade morreram quase sucessivamente,
um com vinte e quatro anos e outro com vinte e três. O primeiro num
acidente de autocarro, o segundo durante o serviço militar. Alguns meses
depois deste segundo acidente, no princípio da primavera, os antigos
alunos dessa turma juntaram dinheiro para comprar duas plantas de
magnólia, que plantaram numa colina no campus da universidade de
maneira a que se vissem da janela onde os dois alunos tinham estudado
literatura juntos. 
Passados alguns anos, ao caminhar por entre essas árvores em flor –
símbolo de rejuvenescimento e revivificação –, ela pensou: porquê
magnólias? As flores brancas pertencerão à vida ou à morte? Tinha lido
algures que as palavras «branco», «blanc», «preto» e até «chama»
(literalmente «flor do fogo», em coreano) têm todas a mesma origem nas
línguas indo-europeias. Flores brancas em chama, ardendo na escuridão
que as rodeia – o breve florescimento de duas magnólias em março. 
Pequenos comprimidos brancos 
De vez em quando, ela dá consigo a pensar, e não o faz por
autocomiseração, mas antes motivada por uma curiosidade meio
desapegada, quase insignificante: se conseguisse somar todos os
comprimidos que já tomou, quantos seriam? E quantas horas de dores
suportou? Foi obrigada a parar vezes sem conta, como se a própria vida
quisesse impedi-la de progredir. Como se a força que não a deixa avançar
em direção à luz estivesse sempre alerta dentro do seu corpo. Todas essas
horas em que perdeu o rumo, por hesitação ou dúvida. Quantas seriam, se
somadas? Quantos pequenos comprimidos brancos? 
Cubos de açúcar 
Ela devia ter na altura uns dez anos. Acompanhada por uma tia, ia a um
café pela primeira vez, e foi também a primeira ocasião em que viu cubos
de açúcar. Aqueles cubinhos embrulhados em papel branco eram de uma
perfeição infalível, decididamente demasiado primorosos para ela. Tirou o
papel com todo o cuidado e passou o dedo sobre a superfície granulosa.
Desfez um canto, tocou-lhe com a língua, mordiscou aquela doçura
estonteante e, por fim, meteu-o num copo de água e suspirou enquanto o
via derreter-se. 
Hoje já não é grande apreciadora de coisas doces, mas ver um prato com
cubos de açúcar embrulhados ainda evoca nela a sensação de estar a
presenciar algo sumptuoso. Há certas memórias que se mantêm imunes à
erosão do tempo. E do sofrimento. Por isso, não é afinal verdadeiro que
tudo seja deturpado pelo tempo e pelo sofrimento. Nem é verdade que
tudo se perca ou seja destruído. 
Luzes 
Nesta cidade de invernos rigorosos, ela vê uma noite de dezembro
desenrolar-se lentamente à sua volta. A escuridão que se vislumbra da
janela não tem a Lua a suavizá-la. Na pequena oficina situada nas traseiras
do prédio, talvez como medida de segurança, uma dúzia de luzes elétricas
ficam acesas toda a noite. Olha para aqueles fragmentos de iluminação,
difusos e isolados por entre o negrume da noite. Desde que veio para esta
cidade, ou na verdade ainda antes disso, o seu sono é entrecortado e
superficial. Mesmo que adormecesse durante algum tempo, quando
acordasse veria o mundo tão escuro como antes. Se, por um qualquer
golpe de sorte, conseguisse dormir um sono mais longo, o tom azulado de
uma lenta madrugada infiltrar-se-ia na escuridão e emergiria pouco a
pouco. Mas aquelas luzes permanecerão acesas, tão brancas como sempre,
na claridade da sua quietude, no seu isolamento. 
Mil pontos prateados 
Numa dessas noites, sem a menor razão, o mar fica agitado. 
 
 
O barco é tão pequeno que até a mais ligeira onda o faz balouçar e
guinar violentamente. Com apenas oito anos e cheia de medo, aninha-se
no fundo do barco, de costas arqueadas e ombros elevados. Nesse preciso
momento, mil pontos prateados, vindos do mar distante, passam por baixo
do casco. Esquece instantaneamente o medo e fita, de olhos esbugalhados,
a deslocação turbulenta daquela reluzente imensidão. 
Um cardume de anchovas, diz-lhe o tio a rir-se. Tinha permanecido o
tempo todo sentado à popa, quase sem pestanejar. Um emaranhado de
cabelo encaracolado por cima de um rosto moreno. Não chegou aos
quarenta anos: a sua dependência do álcool levá-lo-ia no lapso de dois
anos. 
Cintilância 
Porque será que os minerais que brilham, como a prata, o ouro ou os
diamantes, levam as pessoas a considerá-los nobres? Há uma teoria que
justifica este facto e que defende que, para os primeiros homens, o brilho
da água era um sinal de vida. Água que brilhasse era pura. Só a água que
se pode beber – que dá vida – é transparente. Depois de caminharem por
desertos, florestas e pântanos fétidos, sempre que um grupo conseguia
avistar ao longe uma corrente de água com um brilho esbranquiçado,
devia sentir-se dilacerado por tanta felicidade. Que significaria vida. Que
significaria beleza. 
Seixo branco 
Há muito tempo, ela encontrara um seixo branco numa praia. Sacudiu a
areia e guardou-o no bolso e, já em casa, meteu-o numa gaveta. Um seixo
polido e arredondado pela longa carícia das ondas. Parecia-lhe que a
brancura da pedra era quase transparente mas, quando tentou espreitar lá
para dentro, percebeu que se enganara. (Era na verdade um seixo branco
absolutamente vulgar.) De vez em quando, tirava-o da gaveta e pousava-o
na palma da mão, e pensava que, se o silêncio pudesse ser condensado no
mais pequeno e mais sólido dos objetos, seria aquela a sensação que
provocaria quando o agarrassem. 
Osso branco 
Uma vez, teve de fazer uma radiografia para tentar perceber a causa da
dor que a atormentava. O esqueleto na imagem, que só era possível ver
devido à descoberta de Röntgen, era composto por ossos cinzento-
esbranquiçados num mar de bronze. Ossos, brancos e resistentes. Ficou
impressionada ao ver-se assim: uma coisa com a materialidade sólida da
pedra, fixa dentro do corpo humano. 
Muito antes disso, por altura da puberdade, estivera fascinada com os
nomes dos vários ossos. Astágalo e rótula. Clavícula e costela. Esterno e
escápula (outro nome para omoplata). O facto de os seres humanos serem
também feitos de outras coisas além de carne e músculos parecia-lhe um
estranho golpe de sorte.  
Areia 
E ela esquecia-se muitas vezes 
de que o seu corpo (e o de todos nós) é uma casa de areia. 
Que fora despedaçada e continuava a despedaçar-se. 
Fugindo-lhe teimosamente por entre os dedos. 
Cabelo branco 
Lembra-se bem de um dos seus patrões, um homem de meia-idade, que
costumava comentar que desejava ardentemente voltar a ver uma antiga
amante, mas só quando ambos envelhecessem e o cabelo dela fosse então
branco como uma pena. Só quando formos mesmo velhos… quando cada
fio do seu cabelo tiver embranquecido, é exatamente nessa altura que
quero voltar a vê-la. 
 
 
Se houvesse oportunidade de a voltar a ver, seria certamente nesse
momento. 
Quando a juventude e a carne tivessem murchado. 
Quando já não houvesse tempo para o desejo. 
Quando só uma coisa pudesse ocorrer depois desse reencontro:
separarem-se. Separarem-se dos seus corpos e, assim, separarem-se para
sempre. 
Nuvens 
Naquele verão, observámos as nuvens brancas a passarem por cima dos
campos quando estávamos sentados à frente do templo Unju, lembras-te?
Aninhámo-nos, de olhos fixos no Buda que fora esculpido na superfície
lisa da rocha. Sombras de nuvens enormes deslizavam lado a lado, quase
vertiginosamente, entre o céu e a terra. 
Lâmpada florescente 
A secretária dela está completamente vazia. Só há uma lâmpada
florescente por cima, a emanar luz e calor. 
Tudo está imóvel. 
O estore não foi corrido, e veem-se faróis deslocando-se pela rua
principal em intervalos esporádicos, agora que já passa da meia-noite. 
 
 
Ela continua sentada à secretária, como alguém que nunca soube o que
era sofrer. 
Não como alguém que esteve a chorar, ou está prestes a fazê-lo. 
Mas como alguém que nunca foi abalado. 
Como se nunca tivesse havido um tempo em que o único consolo era a
impossibilidade do para sempre. 
Noites brancas 
Ela soube da sua existência depois de ter vindo para esta cidade: há uma
ilha habitada no extremo mais a nordeste da Noruega onde, no verão, o sol
está todo o dia no céu, ao passo que no inverno é noite durante essas vinte
e quatro horas. Ficou a pensar como seria o dia-a-dia num ambiente tão
extremo. Será que neste momento o tempo à sua volta corresponde à noite,
ou será antes um desses dias escuros como breu? A dor antiga não
desapareceu, e a nova ainda não atingiu todo o seu fulgor. Esses dias, em
que a escuridão e a luz são ambas imperfeitas, enchem-se de memórias do
passado. As únicas coisas que a mente não consegue analisar são as
memórias do futuro. À sua frente está agora uma luz amorfa, a tremeluzir
como se fosse um gás composto de elementos desconhecidos. 
Ilha de luz 
No momento em que ela subiu ao palco, o holofote do teto acendeu-se,
isolando-a sob o seu feixe de luz intenso. E, com isso, todo o espaço que
não o palco transformou-se num mar de breu. Parecia-lhe completamente
irreal que estivessem lá pessoas sentadas, e ela ficou confusa. Será que
devo descer para aquele abismo, degrau a degrau, titubeante, ou
permanecer firme nesta ilha de luz? 
Tinta preta através de papel branco 
Sempre que ela conseguia, a custo, recuperar a saúde, descobria que a
vida continha uma certa frieza. Uma sensação demasiado débil para ser
apelidada de «ressentimento», e demasiado intensa para ser considerada
«rancor». Como se a pessoa que todas as noites lhe aconchegara a roupa e
lhe dera um beijo na testa se tivesse de repente voltado contra ela,
empurrando-a para fora de casa, para o frio, tornando-a dolorosamente
consciente de que todos aqueles sorrisos radiosos partilhados tinham
existido apenas à superfície. 
 
 
Quando se via ao espelho, ela nunca se esquecia de que a morte
estava a espreitar por trás daquele rosto.  
Vaga mas tenaz, como tinta preta visível através de uma folha fina
de papel branco. 
Aprender a amar de novo a vida é um processo longo e complicado. 
 
 
Porque, mais cedo ou mais tarde, irás inevitavelmente abandonar-
me. 
Quando estiver mais fraca do que nunca, quando mais precisar de
ajuda, 
Irás virar-me as costas, fria e irrevogável. 
E isso é uma coisa de que estou completamente segura. 
Mas não posso regressar ao momento em que ainda não o sabia. 
Dispersão 
Antes de o dia chegar ao fim, começou a cair uma neve já meio
derretida. 
Num abrir e fechar de olhos, as ruas cor de cinza da cidade antiga
desapareceram sob um manto branco. De uma brancura que parecia
demasiado perfeita para ser verdade, realçando os vultos insignificantes
que se moviam sobre tal tela, com os disfarces já gastos das horas
normais. Tal como eles, também ela continuou a andar, sem parar. Através
de uma beleza que iria desaparecer – que já estava a desaparecer. Em
silêncio. 
À quietude 
Quando se aproxima o dia da sua partida 
e está de pé na escuridão da casa, há 
palavras que ela gostaria de dirigir àquela 
quietude e não pode continuar a guardar. 
Quando a noite que parecia interminável chega ao fim, 
e a janela virada a nordeste é uma amostra 
da madrugada azul-escura, 
Quando o céu enfim se iluminar de azul-ultramarino 
e os esqueletos despidos dos choupos 
se forem lentamente destacando, 
haverá palavras que ela quererá dizer 
nas primeiras horas de um domingo de manhã 
quando os outros habitantes do prédio 
não se mexerem sequer. 
 
Por favor, fica só um bocadinho mais assim. 
 
Para a quietude me dar tempo para me lavar. 
Fronteira 
Ela cresceu dentro desta história. 
 
 
Nasceu prematura, ao sétimo mês de gestação. A mãe, na altura com
vinte e dois anos, estava completamente impreparada quando começou a
ter contrações. A primeira geada do ano tinha chegado cedo e estava
sozinha em casa. A bebé chorou apenas por um instante depois de vir ao
mundo, um pequeno som ondulante que logo se esfumou. A mãe vestiu o
corpinho ensanguentado com um cueiro e embrulhou-o numa manta
acolchoada com todo o cuidado para não sufocar a bebé. A princípio,
quando a bebé agarrou o seio vazio, o instinto produziu nela uma débil
tentativa de mamar, mas também isso desapareceu. A bebé foi deitada
devagarinho no sítio mais quente do chão aquecido, mas nessa altura já
não estava a chorar, nem os seus olhos estavam abertos. De vez em
quando, a mãe tinha um pressentimento e puxava um canto da manta, mas
os olhos da bebé abriam-se apenas de relance, a seguir perdiam o brilho e
depois fechavam-se. A certa altura, até essa ténue reação deixou de
acontecer. E, no entanto, antes de o dia nascer, quando o primeiro leite
saiu finalmente dos seios da mãe, que forçou o mamilo entre os lábios
pequeninos, descobriu que, apesar de tudo, a bebé ainda respirava.
Embora nessa altura já não estivesse consciente, o mamilo na boca
estimulou-a a engolir devagar e, depois, cada vez com mais força. Mesmo
assim, com os olhos sempre fechados. Sem saber qual a fronteira que
estava agora a transpor. 
Canavial 
Certa manhã, a seguir a uma noite em que nevou muito, ela passa por
um canavial. Afasta as canas esguias e brancas, vergadas sob o peso da
neve. O canavial rodeia um pequeno paul onde vivem dois patos
selvagens. No centro, onde a fina camada de gelo aflora a água parada, os
patos deslizam lado a lado sobre a superfície azul-acinzentada, de
pescoços curvados para beberem. 
 
 
Antes de se afastar dali, pergunta a si própria: Queres continuar? Seguir
em frente? Valerá a pena? 
 
 
Tempos houve em que, temerosa, teria respondido não. 
Agora continua a andar, guardando para si a resposta, qualquer que seja.
Deixa aquele paul semicongelado, que ali permanece intacto, entre a
desolação e a graciosidade. 
Borboleta branca 
Se não fosse a vida estender-se numa linha contínua, talvez ela tivesse
reparado a certa altura que tinha dobrado uma esquina. E, com isso, talvez
se desse conta de que nada do passado podia já ser avistado, mesmo que
fugazmente, se lançasse um olhar rápido por cima do ombro nessa
direção. Aquele caminho poderia agora estar, não coberto pela neve ou
pela geada, mas pela suave tenacidade do verde-claro da erva na
primavera. Uma borboleta branca esvoaçando, titubeante, talvez
despertasse o olhar dela, atraindo-a e puxando-a mais alguns passos para a
frente com o bater das suas asas, semelhante às palpitações inquietas de
uma alma. E talvez só então se apercebesse das árvores à sua volta, da sua
lenta reanimação, como se cativadas por alguma coisa, libertando um
perfume estranho e sufocante, cintilando numa proliferação ainda mais
exuberante devido ao ar rarefeito, em direção à luz. 
Espírito 
Se existissem espíritos, pensou ela, o seu movimento invisível
correspondia ao trémulo voo daquela borboleta. 
Se assim fosse, isso significaria então que também as almas daquela
cidade vagueariam até aos muros onde outrora tinham sido abatidas,
ficando por aí a esvoaçar durante algum tempo, num movimento
silencioso semelhante ao da borboleta? No entanto, ela sabia que não era
só por causa dessas almas que as pessoas daquela cidade acendiam velas
ou depositavam flores junto àquele muro. Os seus habitantes acreditam
que não há desonra alguma em ser-se abatido. E querem que o seu
sofrimento, o memorial desse acontecimento, se prolongue o mais
possível para que o que sucedeu não seja esquecido. 
Pensou em certos incidentes da história do seu país, o país que tinha
deixado para vir até ali, e pensou nos mortos que tinham sido
insuficientemente chorados. Ao tentar imaginar aquelas almas a serem
assim homenageadas no coração das ruas da cidade, apercebeu-se de que o
seu país nunca o tinha feito devidamente. 
E percebeu, embora que isso fosse para ela menos relevante, o que
ficara de fora da sua própria reconstrução. Claro que o seu corpo ainda
não tinha morrido. Portanto, o seu espírito ainda tinha carne onde se
albergar. Carne que já não era jovem, mas que a violência não tinha
conseguido destruir completamente, como as ruínas que restavam agora de
uma parede de tijolo, que tinham entretanto sido removidas e incorporadas
numa nova estrutura – da qual o sangue tinha sido lavado. 
Ao andar, imitava a pose firme de alguém que nunca quebraram. Como
se houvesse um pano limpo a tapar nela cada lugar por suturar. Sem
despedidas, nem lamentos. Se conseguir acreditar que nunca foi
despedaçada, poderá talvez acreditar que nunca mais voltará a sê-lo. 
 
 
Sendo assim, ainda lhe restam algumas coisas a fazer: 
Parar de mentir. 
(Abrir os olhos e) tirar o pano. 
Acender uma vela por cada morte e cada espírito de que se conseguir
lembrar – incluindo o seu. 
Arroz cru e arroz cozido 
Ela anda à procura de arroz para cozer para o jantar. Nesta cidade não é
nada fácil encontrar arroz glutinoso. Até num grande supermercado, a
coisa mais parecida com o arroz a que está habituada que consegue
arranjar é um arroz espanhol, vendido em pequenos pacotes de plástico de
meio quilo. Os grãos brancos permanecem tranquilos e aquietados dentro
da embalagem em que os leva para casa. Passado algum tempo, o vapor
branco ergue-se da taça de arroz acabado de cozer, e ela senta-se à sua
frente como se estivesse a rezar. Não pode negar que, nesse momento,
sente qualquer coisa dentro de si. É impossível negá-lo. 

Toda a brancura 

 
No ano que se seguiu à morte da primeira filha, a minha mãe teve outro
parto prematuro. Contaram-me que o bebé, desta vez um menino, ainda se
aguentou menos tempo no útero do que a menina, e morreu logo depois de
ter nascido, sem chegar sequer a abrir os olhos. Se essas vidas tivessem
conseguido ultrapassar o ponto crítico, o meu nascimento, passados três
anos, e o do meu irmão, quatro anos depois, não teriam acontecido. A
minha mãe não teria tido de viver com aquelas memórias estilhaçadas,
passando cuidadosamente os dedos sobre as suas arestas aguçadas. 
 
 
Esta vida só precisava de um de nós para a viver. Se algum deles dois
tivesse sobrevivido àquelas primeiras horas, eu não estaria viva agora. 
A minha vida significa que a tua foi impossível. 
Só no espaço entre a escuridão e a luz, só naquela brecha azulada, é que
conseguimos distinguir o rosto uma da outra. 
Os teus olhos 
Eu via de forma diferente quando olhava com os teus olhos. Andava de
forma diferente quando me deslocava com o teu corpo. Queria mostrar-te
coisas puras. Antes da brutalidade, da tristeza, do desespero, da sujidade.
Coisas puras que só existissem para e por causa de ti. Acima de tudo,
coisas puras. Mas os acontecimentos não decorreram como eu queria.
Espreitava muitas vezes para dentro dos teus olhos, como se estivesse à
procura de algo atrás de um espelho denso e escuro. 
 
 
Durante a infância, ouvi muitas vezes a minha mãe dizer, Se ao menos
nesse tempo vivêssemos na cidade. Se eu tivesse podido ir para o hospital.
Se a tivéssemos posto numa incubadora, àquela coisinha pequenina que
mais parecia um bolo de arroz. Naquele tempo, as incubadoras eram uma
coisa nova. 
 
 
Se ao menos não tivesses parado de respirar e, por isso, esta vida te
tivesse sido dada a ti em vez de a mim, eu nunca teria nascido. Se tivesses
podido seguir em frente com passos firmes, com os teus próprios olhos e o
teu corpo, de costas para aquele espelho escuro. 
Sudário 
O que é que fizeste com ela, com a bebé? 
Na noite em que perguntei isto ao meu pai pela primeira vez, estava eu
quase a fazer vinte anos e ele ainda não tinha cinquenta, ficou calado
algum tempo antes de responder. 
Embrulhei-a num sudário branco, levei-a para a montanha e enterrei-a. 
Sozinho? 
Sim. Sozinho. 
 
 
O cueiro da bebé tornou-se um sudário. As faixas de pano tornaram-se o
seu caixão. 
Quando o meu pai se foi deitar nessa noite, ainda parei para beber um
copo de água e endireitei os ombros rígidos e descaídos. Com a mão a
pressionar o esterno, inspirei fundo. 
Onni6  
Costumava pensar como teria sido se eu tivesse uma irmã mais velha.
Uma onni com mais um palmo de altura do que eu. Uma onni que
deixasse para mim camisolas com pompons e bons sapatos de pele só com
umas esfoladelas. 
Uma onni que pusesse o casaco pelos ombros e fosse à farmácia quando
a nossa mãe estivesse doente. Uma onni que pusesse o dedo à frente dos
lábios e me repreendesse: Não faças barulho, tens de andar sem fazer
barulho. Uma onni que escrevesse equações no meu livro de exercícios de
matemática para que eu praticasse. Isto é muito simples, não é preciso
pensares tanto. Franzindo a testa enquanto se apressava a obter o
resultado. 
Uma onni que, quando eu espetasse uma farpa no pé, me mandasse
sentar. Que trouxesse o candeeiro e, à luz dele, me tirasse a farpa com o
maior dos cuidados, usando uma agulha que esterilizaria na chama do bico
do fogão. 
Uma onni que viesse ao meu encontro quando estou encolhida no
escuro. Não é preciso ficares assim, foi tudo um mal-entendido. Que me
desse depois um abraço breve e desajeitado. Levanta-te lá. Vá, vamos
comer. A aflorar-me o rosto com a sua mão fria e áspera.  
6Irmã mais velha. Optou-se por manter a expressão coreana original (
), embora foneticamente transposta para caracteres ocidentais.[N. do R.]
Como um punhado de palavras espalhadas sobre papel branco 
Os meus sapatos pretos deixaram pegadas na neve do alvorecer, uma
camada lamacenta que cobre o passeio. 
Como um punhado de palavras espalhadas sobre papel branco. 
Seul, que eu vira pela última vez no verão, tinha congelado. 
Ao voltar-me para olhar para trás, vi que a neve já estava a polvilhar
aquelas marcas que eu acabara de deixar. 
Embranquecendo tudo. 
Vestes de luto 
Antes de duas pessoas se casarem, cada uma oferece roupas aos pais da
outra. Roupas de seda para os que ainda estão vivos, roupas de algodão a
simbolizarem o luto pelos que já partiram. 
O meu irmão telefonou-me para confirmar que eu o acompanharia na
oferenda aos nossos pais. Fiquei à espera de que tu voltasses, nuna7. 
 
A mulher com quem ele se ia casar tinha preparado uma saia e um
casaco de algodão branco, que eu estendi sobre uma pedra. Estávamos
num prado de ervas altas por baixo do templo onde o nome da nossa mãe
é entoado depois dos sutras matinais. Assim que aproximei o isqueiro do
meu irmão da manga do casaco de algodão, um fio de fumo azulado
começou a subir em espiral. Quando as roupas brancas se tiverem
dissolvido completamente no ar, serão então usadas por um espírito. Será
que acreditamos mesmo nisso? 
7Em coreano, é a forma de tratamento respeitosa usada por um homem
mais novo para chamar uma mulher mais velha. [N. do R.]
Fumo 
Mantivemos os olhos fixos no que estava à nossa frente e apertámos os
lábios com força. O fumo a dissolver-se no ar assemelhava-se a um par de
asas da cor das cinzas desvanecendo-se. As chamas, depois de
consumirem o casaco, passaram rapidamente para a saia. Quando o último
pedaço de tecido foi engolido pelo fogo, pensei em ti. Se puderes vir agora
ter connosco, vem. Mete-te nessas roupas que o fogo levou até ti, como
num par de asas. Bebe o nosso silêncio como se fosse um remédio ou chá,
dissolvendo-se em fumo em lugar de palavras. 
Silêncio 
Quando os dias compridos finalmente chegam ao fim, é preciso um
tempo para se estar em silêncio. Como quando estou em frente da lareira
e, inconscientemente, estendo as mãos tensas para o silêncio, com os
dedos abertos para o seu calor fugidio. 
Primeiros dentes 
A forma de pronunciar onni é muito parecida com a expressão que
refere os primeiros dentes dos bebés. Dois dentes pequeninos como
folhinhas brotando da gengiva do meu filho. 
Agora o meu filho já cresceu, não é mais um bebé. Depois de puxar a
colcha para aconchegar o rapaz de doze anos, fiquei algum tempo a
escutar atentamente a sua respiração cadenciada, antes de voltar para a
minha secretária vazia. 
Despedida 
Não morras. Por amor de Deus, não morras. 
Afastei os lábios e murmurei as únicas palavras que ouviste, quando
abriste os teus olhos negros, tu que nem sabias o que era a linguagem.
Carrego com toda a força no papel branco. Acredito que será impossível
encontrar palavras melhores para uma despedida. Não morras. Vive. 
Toda a brancura 
Com os teus olhos, verei o ponto mais profundo e mais assombroso de
uma couve branca, as jovens e preciosas pétalas escondidas no seu
coração. 
Com os teus olhos, verei o frio da meia-lua que se ergue durante o dia. 
A certa altura, esses olhos verão um glaciar. Olharão para aquela
enorme massa de gelo e verão algo de sagrado, ainda não conspurcado
pela vida. 
Verão o silêncio da floresta de bétulas brancas. Verão a quietude da
janela por onde entra o sol de inverno. Verão aquelas partículas brilhantes
de pó agitando-se nos feixes de luz que se prolongam obliquamente até ao
teto. 
Dentro desse branco, de todas essas coisas brancas, sorverei o último
sopro de ar que exalaste. 

Você também pode gostar