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Todos os direitos para língua portuguesa reservados para esta edição por E-Primatur / Letras
Errantes, Lda.
ISBN 978-989-8872-64-7
102.ª Noite
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à irmã. E Xerazade respondeu: «Isto nada é
comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei
me poupar e eu ainda for viva.»
103.ª Noite
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão prazerosa», disse Dinarzade à irmã. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se eu
ainda for viva.»
104.ª Noite
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é
comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei
me poupar e eu viver.»
105.ª Noite
Ouvi dizer, ó rei, que a mulher do judeu lhe disse: «Porque te quedas
sentado sem agir? Levanta-te agora mesmo e vamos carregar o corpo até ao
terraço, para o botarmos na casa do nosso vizinho muçulmano e solteiro.»
Era o vizinho do judeu um vedor que intendia a cozinha do rei, e muita
gordura para cozinhar trazia ele para sua casa, gordura essa que era comida
pelos gatos e ratos, os quais davam cabo de toda a comida que ele trazia.
Então o judeu e a mulher subiram à açoteia, carregando o corcunda, e
cuidadosamente enfiaram-no em casa do vedor, agarrando-o pelas mãos e
pés para o fazer descer até ao chão; encostaram-no a uma parede e
abalaram.
Mal haviam eles descido da açoteia, aquando o vedor chegou de uma
recitação do Alcorão onde havia ido com um dos seus amigos. E era meia-
noite quando chegou, trazendo consigo uma vela acesa, e em abrindo a
porta de casa, entrou, encontrou um homem em pé contra o canto da parede
a qual estava por baixo da conduta de refrigeração5. Então, disse o vedor:
«Ó meu Deus, esta é boa! Podemos dizer que quem anda a roubar as minhas
coisas afinal não é senão um homem! Seja carne, és tu que a levas, seja
gordura de cozinhar, és tu que a picas, seja rabo gordo de ovelha, és tu que
o levas! E eu que julgava serem os gatos, os ratos e os cães! E matei cães e
gatos, e pequei contra eles, mas afinal não era outro senão tu mesmo quem
descia da açoteia pela conduta de refrigeração para roubar as minhas
provisões! Juro por Deus que farei justiça com as minhas próprias mãos.»
Posto isto, pegou num cacete grosso, e com um pulo só acercou-se do
corcunda, e espetou-lhe uma forte pancada que o atingiu na arca do peito, e
em caindo o corcunda ao chão, espetou-lhe outra pancada nas costas, e
fixando os olhos para ver a cara do corcunda, viu que ele estava morto, e
então gritou: «Ai! que o matei! Não há força nem poder senão em Deus
Altíssimo e Grandioso.» Em seguida, ficou pálido e receou pela própria
vida, e disse: «Que Deus amaldiçoe a gordura de cozinhar e esta noite! A
Deus pertencemos e a Deus regressaremos.»
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se o rei me poupar e eu viver.»
106.ª Noite
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se o rei me poupar e eu viver.»
107.ª Noite
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é
comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei
me poupar e eu viver.»
109.ª Noite
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é
comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei
me poupar e eu viver.»
111.ª Noite
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é
comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei
me poupar e eu viver.»
112.ª Noite
Em acabando a refeição, verti água na mão dele, e dei-lhe algo para ele a
limpar. Depois de lhe oferecer alguns doces, sentámo-nos à conversa, e
perguntei-lhe: «Meu senhor, alivie-me desta consternação, e diga-me o que
se passa consigo para comer comigo usando a mão esquerda. Alguma dor
aflige a sua mão direita?» Em o jovem ouvindo as minhas palavras, chorou
e uma poesia declamou:
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana, e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o
rei me poupar e eu viver.»
113.ª Noite
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha, ó mana», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o
rei me poupar e eu viver.»
114.ª Noite
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana, e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o
rei me poupar e eu viver.»
115.ª Noite
Mas mal me havia sentado na loja de Badreddine, e eis que surge a moça
com um vestidura ainda mais magnífica que a primeira, e com ela estava
uma criada. Em chegando, cumprimentou-me a mim só, e não a
Badreddine, e disse-me: «Meu senhor, peça a alguém para recolher o seu
valor.» Ao que eu lhe respondi: «Qual a pressa em receber o valor?» E disse
ela: «Ai querido, que nunca nos privemos de ti.» Ao depois, entregou-me o
valor, e sentei-me à conversa, eu com ela, e pondo-me eu a dizer-lhe belas
palavras sobre a sua pessoa, entendeu que eu lhe queria fazer a corte, então
levantou-se à pressa, e abalou levando o meu coração a ela colado.
Saí mercado afora, e de repente dei com uma criada negra que me diz:
«Meu senhor, venha falar com a minha patroa.» Fiquei espantado e disse-
lhe: «Mas nesta cidade ninguém me conhece.» E ela disse: «Tão rápido e já
se esqueceu dela, meu senhor? A minha patroa é aquela senhora que estava
hoje na loja do mercador.» Então caminhei com ela até aos cambistas, e ela,
em me vendo, puxou-me para uma esquina, e disse-me: «Ai amor, ficaste na
minha cabeça, desde o dia em que te vi nada me faz feliz, nem como nem
bebo.» Ao que eu lhe disse: «Também eu! E o estado em que me vês
dispensa-me de qualquer lamúria.» E perguntou-me ela: «Amor, em minha
casa ou na tua?» E disse-lhe: «Eu sou um forasteiro, não tenho um local
aonde me aloje senão o caravançarai.»
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana, e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o
rei me poupar e eu viver.»
116.ª Noite
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é
comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se eu
ainda for viva.»
117.ª Noite
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana, e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu:
«Isto nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima
noite, se o rei me poupar e eu viver.»
118.ª Noite
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana, e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o
rei me poupar e eu viver.»
119.ª Noite
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha, ó mana», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o
rei me poupar e eu viver.»
120.ª Noite
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana, e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o
rei me poupar e eu viver.»
121.ª Noite
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é
comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei
me poupar e eu viver.»
122.ª Noite
Ó rei dos tempos, o anfitrião ordenou aos seus serventes que trouxessem
àquele convidado água e o que havia ele pedido para lavar as mãos. Então
lavou-as da guisa que já mencionámos, e veio-se sentar connosco, mas
arreliado. Estendeu a mão, como se estivesse com medo, mergulhou o naco
[de pão] na zirbaja, e comeu, e continuou a comer, mas furioso, enquanto
nós estávamos estupefactos com ele, que todo tremia, ele e a mão, e o
polegar da sua mão estava decepado, comendo ele com quatro dedos, de
guisa calamitosa, deixando o naco de comida se lhe escapulir por entre os
dedos. Ele fez-nos ficar espantados, e perguntámos-lhe: «Que se passou
com o teu polegar? Deus criou-te assim ou aconteceu-te algum acidente?» E
ele respondeu: «Meu Deus, não é só este pole-gar, mas também o outro, e
os dois dos meus pés, como ireis ver.» E descobriu o polegar da outra mão,
e nós vimos que era como o da direita, e que também os pés não tinham
polegares. [E em tal vendo, ficámos ainda mais espantados, e lhe dissemos:
«Estamos impacientes para ouvir a tua história e a causa do decepamento
dos teus polegares, e de]19 lavares as tuas mãos cento e vinte vezes.» Ele
disse:
Ficai sabendo que o meu pai era um dos mais notáveis mercadores de
Bagdade nos dias do califa Harune Arraxide, e costumava beber vinho e
escutar alaúde, e em falecendo nada me deixou. Pedi para ele uma função
fúnebre, com recitações do Alcorão, e fiquei de luto dias a fio. Depois
disso, abri a loja e constatei que ele me havia deixado dívidas e escasso
dinheiro. Pedi então aos credores que se pacientassem, e passei a vender e a
comprar, pagando aos proprietários da dívida de semana a semana. E assim
continuei eu desta guisa durante tempos, até que liquidei a dívida e passei a
fazer lucros com o meu dinheiro.
Até que um dia de entre dias, estava eu sentado, de manhã cedo, quando
uma moça formosa – e jamais vi eu uma como ela – trajando fatos e
ornatos, montando uma asna, e à frente dela seguia um escravo e atrás outro
escravo. Desceu da asna, que deixou à porta do mercado, e entrou. E logo
que entrou veio um honorável criado eunuco, que havia entrado depois dela,
e lhe disse: «Senhora minha, saia e não se dê a conhecer a ninguém, senão
vamos ficar debaixo de fogo pesado.» Então, [havendo ela entrado sem
atender ao que lhe fora dito,] o criado escoltou-a para que ela visse as lojas
dos mercadores, mas ela não encontrou ninguém que houvesse aberto a sua
loja a não ser eu. Então, caminhando com o criado atrás dela, veio até à
minha loja, cumprimentou-me e sentou-se.
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado
com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei me poupar
e eu viver.»
123.ª Noite
Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o vedor disse ao rei da China que o
jovem mercador disse:
Conta-se, ó rei, que o vedor disse ao rei da China que o jovem mercador
disse:
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana, e tão estranha», disse a sua irmã Dinarzade. E Xerazade respondeu:
«Isto nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima
noite, se o rei me poupar e eu viver.»
125.ª Noite
Conta-se, ó rei, que o vedor disse ao rei da China que o criado veio ter
com o jovem, e o jovem disse:
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana», disse a sua irmã Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é
comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei
me poupar e eu viver.»
126.ª Noite
Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o vedor disse ao rei da China que o
jovem mercador disse:
Ouvi dizer, ó rei, que o vedor disse ao rei da China que o jovem disse:
O califa disse aos criados: «Abri este baú para eu ver o que há nele.» Mas
a moça disse: «Senhor meu, faça o favor de o ver ante dona Zubeida, pois
este baú contém o que é segredo dela, e ela tem mais apreço por este do que
todos os outros.» Em ouvindo as palavras dela, o califa ordenou-lhes que
fizessem entrar os baús, e vieram dois criados que carregaram o baú no qual
estava eu, enquanto eu nem acreditava que estava salvo. E em o meu baú
havendo entrado na casa onde morava a moça minha amiga, esta
despachou-se a abri-lo, e disse-me: «Despacha-te! Sai e sobe estas
escadas», e eu ergui-me e subi-as. E mal havia eu subido o último degrau e
ela fechado o baú no qual eu havia estado, vieram os criados, trazendo com
eles todos os outros baús, e veio o califa no seu encalço, e sentou-se em
cima do baú no qual eu havia estado. Então abriram-nos a todos ante o
califa. Ao depois, levantou-se e foi para os seus aposentos particulares.
Quanto a mim, a minha garganta já estava seca de tanto medo, quando a
moça veio arriba ter comigo e disse: «Ó senhor meu, já não há mal a recear.
Anima-te e espera que Zubeida venha para te ver, talvez tenhas sorte e
fiquemos juntos.» Então desci, e mal me sentei na pequena divisão, vieram
dez donzelas, que eram como luas, e alinharam-se, e vieram outras vinte
donzelas, com seios de virgem, e entre elas vinha a dona Zubeida, que mal
podia andar com tantos fatos e ornatos que trajava. Em ela se achegando, as
donzelas dispersaram-se e trouxeram-lhe uma cadeira. Ela sentou-se e
gritou-lhes, e elas gritaram comigo. Então fui ter com ela, e beijei o chão
diante dela. Ela fez-me sinal para me sentar, e assim fiz eu. E pôs-se a
conversar comigo e a fazer-me perguntas sobre como ganhava a vida, e eu
respondi-lhe a tudo. Então ficou contente comigo e disse: «Meu Deus! Não
foi em vão que criei esta moça. Ela é para mim como uma filha e Deus
confia-te a sua guarda.» E naquele momento ordenou-me que ficasse no
palácio dez dias.
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é
comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei
me poupar e eu viver.»
128.ª Noite
Ouvi dizer, ó rei, que o vedor disse ao rei da China que o jovem disse:
Conta-se, ó rei, que o vedor disse ao rei da China que o jovem disse:
Então o rei da China disse: «Por amor de Deus, desde quando é esta
história mais estranha que a do corcunda bufão?» Então o médico judeu
levantou-se, beijou o chão, e disse: «Meu senhor, tenho uma história para
contar, mais espantosa do que esta.» E disse o rei da China: «Venha ela!»
Ouvi dizer, ó rei, que o médico judeu disse ao rei da China que o jovem
disse:
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana, e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o
rei me poupar e eu viver.»
133.ª Noite
Ouvi dizer, ó rei, que o médico judeu disse ao rei da China que o jovem
disse:
Ouvi dizer que o médico judeu disse ao rei da China que o jovem disse:
Em vindo o sol poente, ela apareceu com outra, e era o que havíamos
ajustado. Acendi as velas, recebendo-as com alegria e agrado, e em a outra
moça descobrindo o rosto, exclamei: «‘Bendito seja Deus, o Melhor dos
criadores’28.» Sentámo-nos e comemos, e eu pus-me a servir comida à nova
moça, que olhava para mim e sorria, até o prato se acabar e serem servidos
a bebida, a fruta e os doces. Então fiquei a beber com a nova, que sorria e
me piscava o olho, e eu morria de amores por ela. A minha amiga percebeu
que os olhos dela estavam postos em mim e os meus nos dela, então, a
brincar e a rir, perguntou: «Ó amor, esta moça que eu trouxe não é mais bela
e graciosa do que eu?» Respondi-lhe: «Por amor de Deus, claro que sim.» E
ela perguntou-me: «Vais dormir com ela?» Respondi-lhe: «Por amor de
Deus, claro que sim.» E disse ela: «À vontade, afinal ela é nossa convidada
por uma noite, e eu sou residente.»
Em seguida, levantou-se, apertou o cinto, e foi fazer a cama [para nós], e
eu e a moça pusemo-nos aos abraços e dormimos juntos aquela noite,
enquanto a minha amiga, a meio da noite, fez a cama para si no quarto de
serviço, e dormiu sozinha.
Dormi com a moça até de manhã, aquando me movi e dei por mim todo
encharcado em suor, e pensei que fosse suor, mas ao sen-tar-me para
acordar a moça, abanei-lhe os ombros, e quando a sua cabeça rebolou, a
minha razão voou, pois percebi que ela havia sido decapitada, e aos gritos
exclamei: «Ó Divino Protector!» Pus-me de pé, sendo que o mundo se
havia tornado negro ante os meus olhos, e procurei pela minha amiga, mas
não a encontrei, e então percebi que havia sido ela quem, por ciúmes,
decapitara a moça, e disse: «Não há força nem poder senão em Deus
Altíssimo e Grandioso. Que hei eu de fazer?» Pus-me a pensar um tempo, e
ao depois tirei o que eu trazia vestido29, despi-me, e disse de mim para
mim: «Não estou a salvo, pois a moça poderá malsinar-me junto da família
desta assassinada, e ninguém está a salvo da matreirice das mulheres.»
Então, levantei-me, e cavei um buraco no meio da moradia. Trouxe a
moça com as suas jóias e pu-la no buraco, tornando a cobri-lo de terra, e a
repor o mármore e as lajes tal como estavam antes. Vesti roupas limpas,
trouxe comigo o resto do meu dinheiro numa pequena caixa, enchi-me de
coragem e saí da moradia, trancando-a e selando-a. Fui ter com o senhorio e
paguei-lhe o aluguer para um ano, dizendo-lhe: «Vou de viagem para o
Cairo para os meus tios.» Paguei a minha viagem no caravançarai do Rei e
parti.
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha, ó mana», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o
rei me poupar e eu viver.»
136.ª Noite
Ouvi dizer, ó rei dos tempos, que o médico judeu disse ao rei da China:
«Ó rei bem-aventurado, o jovem disse-me:»
Então, quando viajei, e havendo chegado ao Cairo são e salvo, tal como
Deus havia escrito, e me reuni com os meus tios, vi que eles já haviam
vendido as suas mercadorias à consignação. Ao me encontrarem, ficaram
contentes, mas surpreendidos com a minha vinda. Disse-lhes: «Tive
saudades, e tardava em receber notícias vossas», mas não lhes dei parte que
o meu dinheiro estava comigo. Quedei-me com eles, passeando e gozando
as vistas do Cairo, e deitei as minhas mãos ao resto do meu dinheiro, e
passei a esbanjá-lo, comendo e bebendo. Em se aproximando a partida dos
meus tios, escondi-me, então eles procuraram-me, mas não deram comigo,
e disseram: «Deve ter regressado a Damasco», e partiram-se. Saí do meu
esconderijo, e habitei no Cairo três anos, e já nada me restava, pois havia
esbanjado tudo o que tinha, e todos os anos enviava ao senhorio da minha
moradia em Damasco a renda.
Ao cabo de três anos, fiquei apertado de dinheiros, e já nada me restava a
não ser o dinheiro para a viagem. Paguei então a minha viagem e abalei,
havendo chegado a Damasco são e salvo, tal como Deus havia escrito, e
instalei-me na moradia, tendo o senhorio, que era joalheiro, me recebido
com alegria. Abri a moradia e desfiz o selo, entrei nela, varri-a e limpei-a, e
por baixo das coisas que nos haviam servido de cama, aquando dormi com
a moça decapitada, encontrei um colar de oiro com dez jóias que
atarantavam o pensamento. Em o vendo, reconheci-o e peguei nele, apertei-
o na minha mão, e chorei um tempo.
Em seguida, limpei a moradia e arrumei-a como estava dantes, e lá me
quedei dois, três dias, e então fui aos banhos, descansei e mudei de roupas,
e de sustento coisa nenhuma me restava. Então um dia fui ao mercado, e
tentado por Satã e levado pelo destino, peguei no colar de jóias, embrulhei-
o num lenço, levei-o ao mercado, e dei-o a um intermediário, que em o
vendo beijou-me a mão e disse: «Meu Deus, esta é boa! Que belo e
abençoado começo de dia! Ó que manhã tão boa!» Ao depois, levou-me e
sentou-me na loja do senhorio da minha casa, que se levantou e me fez
sentar ao seu lado. Pacientámo-nos até o mercado se animar, e então o
intermediário levou o colar e o apregoou às escondidas, sem que eu
soubesse o que ele tramava, e como era um colar valioso, ele arrecadou dois
mil dinares. Então volveu o intermediário a ter comigo, propondo cinquenta
dinares, ou mil dirames, que lhe haviam oferecido, e disse: «Meu senhor,
achávamos que era de oiro, mas afinal é falso. Aceita o preço?» Respondi:
«Aceito o preço, pois eu já sabia que o colar era de cobre». Em o
intermediário ouvindo de mim aquilo, soube que o colar era um caso
problemático, então foi-se com ele e tratou com o chefe do mercado, e este
foi ao governador e contou-lhe que o colar lhe havia sido roubado, e que
tinha apanhado o criminoso, que se vestia com o traje dos mercadores.
Em estando eu sentado [na loja do joalheiro], eis que num pronto se
abateu sobre mim a calamidade, e fui agarrado pelo chefe da polícia, que
me levaram ao governador. Então o governador perguntou-me sobre o colar,
e eu respondi-lhe o que havia dito ao intermediário. Então ele riu-se e soube
que eu o havia roubado, e antes que eu desse por ela, já estava a ser despido
e a levar tareia com o chicote, e como as chicotadas me faziam arder com
tanta dor, menti e disse: «Sim, roubei-o!» Então lavraram o auto,
deceparam-me a mão e cauterizaram-na em óleo fervente, havendo eu
perdido os sentidos durante meio dia.
Então, deram-me vinho a beber, e o meu senhorio carregou-me dali para
fora, e disse-me: «Meu filho, és um bom jovem, porque levaste a cabo este
roubo, sendo tu dono de dinheiro e comércio? Após roubares as posses dos
outros, ninguém mais terá misericórdia de ti. Meu filho, deixa-me e arranja
outro sítio para ti, pois foste condenado, e parte em paz.»
Destroçado, perguntei-lhe: «Meu senhor, será que me poderia dar três
dias até arranjar outro sítio para mim?» E ele respondeu: «Está bem», e
abalou. Quedei-me preocupado, triste e em mágoas. Se eu partisse para a
minha terra, como poderia tornar para junto da minha família, com a mão
decepada, sem lhes poder provar que estou inocente? Então chorei tanto,
que chorar mais não seria possível.
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana, e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se eu
viver.»
137.ª Noite
Fiquei indisposto por dois dias, e ao terceiro dia eis que num pronto
aparece o senhorio com chefes de polícia, mais o mercador – que me havia
comprado o colar e fez como se lhe houvesse sido roubado – este último
sob escolta de cinco soldados, todos à porta da minha moradia. Então,
perguntei: «O que se passa?» E sem me darem tempo algum, ataram-me as
mãos atrás das costas, e botaram-me uma gargalheira ao pescoço e uma
corrente, e disseram: «O colar que tu tinhas é do vizir de Damasco, e ele
disse que foi desapossado dele faz três anos, juntamente com a filha.»
Em ouvindo tais palavras, o meu coração afogou-se, e fui-me com eles
naquele estado com a mão decepada, e tapei a minha cara, e disse para
comigo: «Vou contar ao vizir a minha verdadeira história, se ele quiser
perdoar-me-á, senão matar-me-á.» Em chegando junto do vizir, puseram-
nos em pé ante ele, e em o vizir olhando para mim, disse aos mercadores:
«Soltai-o! Foi ele quem trouxe o meu colar para vender?» Eles responderam
que sim, e o vizir disse: «Pois não foi ele quem o roubou, porque lhe haveis
injustamente cortado a mão? Pobre coitado!» Então o meu coração se
fortaleceu, e eu disse: «Meu senhor, juro por Deus que o não roubei. Na
verdade, caluniaram-me, e este mercador fez como se houvesse sido eu a
roubá-lo, e como se o colar fosse dele. Levaram-me junto do governador, e
levei tareia com o chicote, então como as chicotadas me faziam arder com
tanta dor, menti contra mim mesmo.» Ao que o vizir disse: «Agora já não
estás em perigo.»
Ao depois, sentenciou o mercador que me havia levado o colar, dizendo:
«Traz-lhe a indemnização da sua mão, ou então esfolar-te-ei à chicotada.» E
gritou aos almocadéns, que o agarram e o levaram, ficando eu com o vizir,
que disse: «Meu filho, diz-me a verdade e conta-me a história deste colar e
do que lhe aconteceu, e não me mintas, diz a verdade e a verdade te
salvará.» Então disse-lhe: «Juro por Deus que era essa a minha tenção.» Ao
depois, contei-lhe o que se me havia passado com a moça e como havia
vindo com a dona do colar, e como o ciúme a perseguiu ao ponto de durante
a noite a decapitar, e se haver ido sem que eu soubesse onde morava ela.
Contei-lhe a história com toda a fidelidade. E em ele ouvindo as minhas
palavras, abanou a cabeça, ficou com os olhos encharcados, bateu um mão
contra a outra, e disse: «A Deus pertencemos e a Deus regressaremos.» Em
seguida, acercou-se de mim e disse: «Meu filho, deixa-me revelar-te o que é
este caso. Fica sabendo que…»
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se o rei me poupar e eu viver.»
138.ª Noite
O vizir disse:
Fica sabendo que aquela que foi ter contigo a primeira vez era a minha
filha maior, que eu pus em austera clausura, e que se casou no Egipto com o
filho do meu irmão, até que este morreu e ela veio ter comigo, havendo
aprendido no Egipto coisas calamitosas. Foi ter contigo três, quatro vezes, e
tornou a ir ter contigo com a sua irmã, a minha filha do meio. As duas eram
irmãs da mesma mãe, e adoravam-se uma à outra, não se aguentando uma
delas sem a outra uma hora sequer. Então, em acontecendo o que aconteceu
entre a maior e tu, ela confidenciou o seu segredo à irmã, que desejou
comparecer com ela, então pediu-te permissão e trouxe-a. E ao depois, por
ciúmes dela, decapitou-a. E veio ter comigo, e eu de nada sabia. Nesse dia,
à refeição, dei pela falta da minha filha menor, e não a encontrei. Indaguei
sobre ela, e encontrei a irmã maior a chorar e consumida em brasas por mor
dela, e ela disse-me: «Ó pai, durante a chamada para a oração, ela num
pronto vestiu-se, pôs a sua capa e o colar, e todas as vestiduras, e saiu à
rua.»
Pacientei-me dias e noites, e não participei a ninguém sobre isto, por
medo do escândalo. A irmã maior, que a havia decapitado, dês esse dia não
teve uma lágrima que secasse, e absteve-se de comer e beber, inquietando-
nos e amargurando o nosso viver, e dizia: «Juro por Deus que não cessarei
de chorar por ela até beber do copo da morte.» E sem mais poder aguentar,
matou-se, e eu fui ficando cada vez mais e mais triste por ela. E isto foi o
que aconteceu.
Vê o que acontece àqueles que são como eu ou como tu, e vais ver que
Este mundo é todo ele vaidade, e o ser humano apenas uma imagem, que
mal aparece se desvanece. E agora, meu filho, desejo que te não oponhas a
mim, tu que nesta hora foste dominado pelo que o destino decretou, e a tua
mão foi injustamente decepada, eu desejo que me obedeças e te cases com a
minha filha mais pequena, que é de outra mãe, e eu dar-te-ei o dote, o
enxoval e dinheiro; outorgar-vos-ei salários a vós os dois, e a ti tratar-te-ei
como um filho. Então, que dizes a isto?
Então, fiquei espantado com esta história, e quedei-me com ele uns dias
até ele ir aos banhos pela segunda vez, e se reunir à pequena. E ofertou-me
dinheiro cunhado, providenciou-me para a viagem, despediu-se de mim, e
eu abalei. Viajei de sua casa para as terras do poente, entrei em Bagdade, e
percorri a Pérsia até que cheguei a este vosso país, aonde me instalei e a
vida me sorriu, e aonde na noite passada me aconteceu o que aconteceu
com este corcunda bufão. Não é esta história mais espantosa que a do
corcunda?
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se o rei me poupar e eu viver.»
139.ª Noite
Ouvi dizer que o rei da China, em ouvindo tal história do médico judeu,
meneou a cabeça e disse: «Por amor de Deus, não é mais espantosa nem
mais estranha que a história do corcunda bufão, e tenho de vos matar a vós
os quatro, pois vós os quatro vos ajustastes para assassinar o corcunda
bufão, e haveis contado histórias que não são mais espantosas que a dele. E
não falta ninguém senão tu, ó alfaiate, e tu és o cabecilha desta calamidade.
Vá, conta-me uma história estranha e maravilhosa, que seja mais espantosa,
mais estranha, mais saborosa e mais tocante, senão matar-vos-ei aos
quatro.» Então o alfaiate disse: «Com certeza.»
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se eu ainda for viva.»
140.ª Noite
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana, e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o
rei me poupar e eu viver.»
141.ª Noite
Ouvi dizer, ó rei, que o alfaiate disse ao rei da China que o jovem disse
aos convidados:
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado
com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se eu viver.»
142.ª Noite
Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o alfaiate disse ao rei da China que
o jovem disse aos convidados:
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se o rei me poupar e eu viver.» Então o rei disse: «Meu Deus, não a matarei
até ouvir o resto da história do corcunda.»
143.ª Noite
Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o alfaiate disse ao rei da China que
o jovem disse aos convidados:
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se o rei me poupar e eu viver.»
144.ª Noite
Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o alfaiate disse ao rei da China que
o jovem disse aos convidados:
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se o rei me poupar e eu viver.»
145.ª Noite
Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o alfaiate disse ao rei da China que
o jovem disse aos convidados que o barbeiro lhe disse: «Meu senhor, não
sou eu aquele que as gentes chamam o Silencioso? E assim é porque falo
pouco, ao contrário dos meus sete36 irmãos. Pois o maior chama-se o
Gralhador, o segundo chama-se o Mexeriqueiro, o terceiro chama-se o
Cacarejador, o quarto chama-se o Linguareiro, o quinto chama-se o
Mexeriqueiro, e o sexto chama-se o Vozeiro, e eu, por falar pouco,
chamaram-me o Silencioso.»
Ó gentes, em o barbeiro continuando nestes modos, fiquei com o coração
amargo e arrebentei, e furioso disse ao criado: «Por amor de Deus, paga-lhe
quatro dinares e manda-o embora. Já não quero cortar o cabelo hoje.» Então
o barbeiro, aquando ouviu o que eu havia dito ao criado, disse-me: «Meu
amo, mas que coisa diz? A fé dos muçulmanos obriga-me a não aceitar de si
qualquer paga sem antes o haver servido. Eu tenho imperativamente de o
servir, pois é meu dever ajudá-lo e atender às suas necessidades, e me é
indiferente se sou ou não pago. E se o meu amo não conhece o meu mérito,
eu conheço o seu, e sei o que merece devido à grande consideração que
tenho pelo seu pai.» E declamando, disse:
E disse: «O seu pai ficou comovido [ao ouvir estes versos], e gritou ao
criado, dizendo: “Dá-lhe cem dinares, mais três dinares e um traje de
honra.” E o criado deu-me o que lhe havia sido dito. Então li o ascendente,
e vendo que era favorável, fiz-lhe a sangria. E entretanto não pude conter o
meu silêncio, e perguntei-lhe: “Por amor de Deus, meu amo, diga-me o que
lhe fez dizer ao criado para me dar cem dinares, mais três dinares.” E ele
disse: “Um dinar foi pela leitura astrológica, outro pela agradável conversa,
outro pela sangradura, e os cem dinares e o traje de honra foram pelo louvor
que me disseste.”»
Ao depois, continuou a falar sem parar, e eu, devido à enorme fúria que
se apoderava de mim, disse: «Que Deus não tenha misericórdia do meu pai
por conhecer pessoas da tua laia.»
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se eu viver.»
146.ª Noite
Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o alfaiate disse ao rei da China que
o jovem disse aos convidados que ele disse ao barbeiro: «Por amor de Deus,
deixa-te de tagarelices que eu já estou atrasado.» Mas o barbeiro riu-se, e
disse: «Não há nenhuma divindade a não ser Deus, glorificado seja Aquele
que não muda. Meu amo, parece-me que a doença o mudou e vossemecê já
não é como antes; as pessoas à medida que vão avançando na idade vão
ficando com a razão aumentada, mas o que vejo é que a sua razão está
diminuída. Ouvi o poeta dizer:
»E não vai encontrar perito melhor nem com mais experiência do que eu.
E para mais aqui estou eu de pé à sua frente, prestes a servi-lo, e não estou
arreliado, mas vossemecê está arreliado comigo.» Então eu disse-lhe:
«Olha-me este! Valha-me Deus! Já te alongaste no discurso, e eu, o que
quero de ti é que termines o serviço.» E ele disse: «Já percebi que o meu
amo foi acometido pela arrelia, mas eu não lho levo a mal.» Então disse-lhe
eu: «Olha-me este! Já se aproxima o tempo do meu compromisso. Acaba o
que tens a fazer e some-te por amor de Deus Todo-Poderoso.» E rasguei as
minhas roupas, e em ele vendo o que eu havia feito, pegou na navalha,
afiou-a, acercou-se da minha cabeça, e cortou uns cabelitos. Em seguida,
levantou a mão e disse: «Meu amo, a pressa vem de Satã, e dizem:
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se o rei me poupar e eu viver.»
147.ª Noite
Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o alfaiate disse ao rei da China que
o jovem disse aos convidados:
E disse ele: «Meu amo, não sei se lhe devo agradecer a si ou ao seu pai,
pois o meu festim, todo ele, se deve à generosidade de vossemecê. Que
Deus lhe prolongue a vida. E juro por Deus que nenhum amigo meu merece
tanta generosidade, mas são todos senhores respeitáveis, como Zantune,
chefe de uma casa de banhos, e Salí, vendedor de frutos secos, e Sallut,
vendedor de guisado de favas39, e Acracha, merceeiro, e Said, cameleiro, e
Suwaid, carreteiro, e Hamid, lixeiro, e Abu Macarixe, massagista nos
banhos, e Cuçaime, guarda, e Carime, palafreneiro. Nenhum deles é
desagradável, briguento, intrometido ou impertinente, e cada um tem a sua
própria dança e a sua própria canção. E o melhor que eles têm é que são
como este vosso criado e servidor, não sabem ser tagarelas nem
intrometidos. Quanto ao massagista dos banhos, dança e toca com uma
argola, cantando algo tão enfeitiçante: “A tua menina vai embora, ó
mãezita, vai encher a jarrita…”»
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se o rei me poupar e eu viver.»
148.ª Noite
Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o alfaiate disse ao rei da China que
o jovem disse aos convidados que o barbeiro lhe disse: «Quanto ao
vendedor de frutos secos, dança e toca com uma concha de sopa, cantando
melhor que um rouxinol: “Ó senhora que te lamentas, não tens passado
assim tão mal”, o que deixa qualquer um sem coração de tanto se rir dele. E
no que toca ao lixeiro, dança e toca com um pandeiro, tal feiticeiro cujo
canto os pássaros detém: “Notícias para o meu vizinhozito são muitas, mas
estão presas num baú.” Ele é astuto e esperto, jovial e genial, brincalhão e
folgazão, mas cultivado e refinado, e sobre as suas qualidades tenho a dizer:
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, se eu ainda for
viva.»
149.ª Noite
Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o alfaiate disse ao rei da China que
o jovem disse aos convidados que o barbeiro lhe disse: «Então eu sou o
melhor para o auxiliar nisso, e assim tem um ajudante consigo para que
ninguém o veja a entrar no sítio, o que poria a sua vida em perigo. É que
nesta cidade já ninguém pode fazer coisa alguma, sobretudo nos dias de
hoje, com este severo, colérico e tão punitivo governador de Bagdade.»
Então disse-lhe: «Maldito sejas, ó velho maldoso, [não tens vergonha] em
me interpelares desta guisa?» E ele disse-me: «Mas vossemecê é tolo, então
diz que eu não tenho vergonha, e esconde de mim o que eu já sabia e venho
de confirmar; e eu que só havia pedido que a minha pessoa o ajudasse
hoje.»
Ora, eu receei que a minha família e os meus vizinhos ouvissem o que
dizia o barbeiro e houvesse um escândalo, e então calei-me. E chegou o
meio-dia, veio a hora da oração, para a qual chamaram uma vez, e uma
segunda vez, enquanto o barbeiro terminava de me cortar o cabelo. Então
disse-lhe: «Parte-te agora com esta comida e bebida para tua casa, para
junto dos teus amigos. Eu vou estar aqui à tua espera até que regresses para
ires comigo.» E não cessei de lhe dar graxa e de o enganar, para levar a
melhor sobre ele, na esperança de que ele se fosse. E disse ele: «Agora
suspeito que me está a enganar, e que vai sozinho botar-se a si mesmo numa
desgraça da qual não tem salvação. Por amor de Deus, não abale sem que
eu haja voltado para junto de si, para ir consigo certificar-me que tudo lhe
corre bem e que não se lhe sucede alguma artimanha.» E eu disse-lhe: «Está
bem, não te delongues.»
Então, ele pegou na comida, bebida, grelhados, perfumes, e em tudo o
que eu lhe havia dado, e saiu de minha casa, mas o maldito despachou tudo
para casa dele através de um carregador, e escondeu-se numa travessa. Ao
depois, chegou a minha hora de sair, e já os almuadens proclamavam a
saudação [«Que a paz seja convosco»], e então eu vesti-me e saí a toda a
pressa até que cheguei à travessa e me deparei frente à casa onde vira a
moça, enquanto o barbeiro, sem que eu o soubesse, vinha atrás de mim.
Encontrei a porta aberta, entrei, e encontrei a velha em pé à minha
espera. Então subi ao andar onde morava a rapariga. E à medida que entrava
no quarto dela, eis que o dono da casa acabava de tornar da oração,
entrando na moradia e fechando a porta. Então debrucei-me ventana fora, e
vi este barbeiro – que Deus o amaldiçoe! – sentado à porta, e disse de mim
para mim: «Como soube este diabo que eu estava aqui?» E naquele
momento aconteceu que, conforme Deus queria para minha desgraça, o
dono da casa bateu numa criada, devido a uma ofensa desta, e ela pôs-se
aos gritos, e veio um escravo para a livrar, mas o dono da casa bateu nele, e
o escravo também ele se pôs aos berros. Então o maldito barbeiro julgou
que era em mim que ele batia, e pôs-se aos berros, rasgando as suas
próprias roupas e lançando terra à sua cabeça, e continuou aos gritos
clamando ajuda, e as gentes vieram e puseram-se à sua roda, enquanto ele
dizia: «Mataram o meu senhor na casa do juiz!» Ao depois, foi a minha
casa, continuando aos gritos com as gentes seguindo no seu encalço, e deu
parte à minha família e criados. Antes que eu desse por ela, já lá estavam
todos em frente da casa da moça, com as roupas rasgadas e os cabelos todos
descompostos, a gritar: «Ai do nosso senhor!» E o barbeiro seguia à frente
deles, num estado mais que deplorável, roupas rasgadas, e gritando com os
outros.
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana, e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu:
«Isto nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, se o rei me
poupar e eu viver.»
150.ª Noite
Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o alfaiate disse ao rei da China que
o jovem disse aos convidados:
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se eu ainda for viva.»
151.ª Noite
Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o alfaiate disse ao rei da China que
o jovem disse aos convidados que ele continuou a correr, e o barbeiro
seguia no seu encalço, e dizia: «Quiseram privar-me de si, meu senhor, e
matar o meu benfeitor e o da minha família, filhos e amigos, mas louvado
seja Deus que me concedeu a vitória sobre eles, para que eu livrasse o meu
senhor das mãos deles.» E ao depois disse: «Meu senhor, aonde quer ir? Se
Deus me não houvesse enviado a si, não se teria livrado deles, e o teriam
botado a si numa grandiosa desgraça, da qual ninguém seria capaz de o
salvar. Quanto quero eu viver para o proteger! Meu Deus! O meu amo
quase me aniquilou com o seu mau juízo, e ainda queria ir sozinho! Mas eu
não levo a mal a sua ignorância, porque vossemecê tem pouco tino, é
desajeitado e apressado.»
O jovem disse:
História do Barbeiro
Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o alfaiate disse ao rei da China que
o barbeiro disse aos convidados:
Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o alfaiate disse ao rei da China que
o barbeiro disse aos convidados que ele disse ao califa:
No que toca ao mais velho, era alfaiate, numa loja que havia alugado em
Bagdade, e na banda oposta havia um homem de muitas posses, e por baixo
da casa deste havia um moinho. E um dia, enquanto o meu irmão corcunda
estava na sua loja a alfaiatar, eis que ele ergue a cabeça, olha para a janela
da sacada da outra casa, e vê uma mulher que era como a Lua nascente,
olhando para as pessoas. Em a vendo, deflagrou-se-lhe um fogo no coração,
e passou o dia todo de cabeça erguida para a janela. Quando lhe veio a
tarde, perdeu a esperança, e abalou triste.
Ao amanhecer seguinte veio para a loja, e sentou-se no seu lugar olhando
para a janela. Passados momentos, veio ela e pôs-se a olhar como soía fazer.
Ele, em pondo os olhos nela, perdeu os sentidos. Ao depois, despertou e
abalou para casa no pior estado.
E ao terceiro dia, sentou-se no lugar dele, e a mulher viu que ele não
descansava de olhar para ela; então sorriu para ele, e ele sorriu para ela. E
ela sumiu-se, e enviou-lhe uma criada que levava um lenço dentro do qual
havia um tecido de bisso, e disse-lhe a criada: «A minha senhora envia-lhe
cumprimentos, e pediu, pela estima que vossemecê tem à vida dela, que lhe
corte deste tecido uma camisa e lha alfaiate.» E o meu irmão disse: «Às
suas ordens.» E ao depois talhou para ela uma camisa e alfaiatou-a no
mesmo dia.
Ao outro dia, a criada apareceu-lhe logo muito cedo, e disse: «A minha
senhora cumprimenta-o e pergunta como passou a noite. Pois ela não
saboreou sono algum por o coração dela estar ocupado consigo. E pediu que
lhe talhe umas calças, e as alfaiate, para que ela as vista com a camisa.» E
ele disse: «Às suas ordens.» Ao depois ele iniciou o corte e esmerou-se na
confecção. Passados momentos, ela olhou pela janela e cumprimentou-o, e
não o deixou abalar até ele acabar as calças e lhas enviar.
Ele abalou para casa atarantado, sem se poder munir de comida, e pediu
emprestado a um vizinho, e gastou o que havia pedido. Em amanhecendo,
veio para a loja, e mal havia chegado eis que vem a criada, e lhe diz: «O
meu amo convida-o a ir a casa dele.» Em ouvindo tal menção ao amo dela,
ficou aterrorizado de medo, e disse de si para si que o amo dela já devia
saber sobre ele. Mas a criada disse: «Não tenha medo. Não é senão para o
seu bem. A minha senhora quer que vossemecê e ele se conheçam.» Então
ele ficou todo contente, e foi à sua casa, cumprimentou-o, e ele também o
cumprimentou, e entregou-lhe grande soma de tecidos de Dabique42, e
disse: «Talhe-me camisas destes tecidos.»
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana, e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o
rei me poupar e eu viver.»
154.ª Noite
Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o alfaiate disse ao rei da China que
o barbeiro disse aos convidados que ele disse ao califa:
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se o rei me poupar e eu viver.»
155.ª Noite
Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o alfaiate disse ao rei da China que
o barbeiro disse aos convidados que ele disse ao califa:
Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o alfaiate disse ao rei da China que
o barbeiro disse aos convidados que ele disse ao califa:
Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o alfaiate disse ao rei da China que
o barbeiro disse aos convidados que ele disse ao califa:
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se o rei me poupar e eu viver.»
158.ª Noite
Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o alfaiate disse ao rei da China que
o barbeiro disse aos convidados que ele disse ao califa:
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se o rei me poupar e eu viver.»
159.ª Noite
Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o alfaiate disse ao rei da China que
o barbeiro disse aos convidados que ele disse ao califa:
Ó miralmuminim, no que toca ao meu terceiro irmão, ele era cego e [um
dia]45 o destino conduziu-o a uma grande casa, e ele bateu à porta na
esperança de falar com o dono para lhe pedir uma esmola. Então o dono da
casa perguntou: «Quem está à porta?» E o meu irmão não respondeu. Então,
bateu uma segunda vez, e o dono perguntou: «Quem é?», e ele não
respondeu, e ouviu o dono repetir em alta voz: «Quem é?», mas não disse
palavra, e ouviu os passos do dono a aproximar-se da porta, a abri-la e a
perguntar: «O que queres?» e o meu irmão disse: «Uma coisinha para Deus
Todo-Poderoso.» E o dono exclamou: «Ó cego!» Ao que ele respondeu:
«Sim, sou.» E o dono da casa disse: «Dá-me a tua mão.» E o meu irmão
deu-lhe a mão, convencido que ele lhe ia dar qualquer coisa. Mas o dono da
casa puxou-lhe pela mão, e fê-lo entrar, e não parou de o fazer subir escada
atrás de escada, até chegarem ao topo da casa, enquanto o meu irmão dizia
de si para si: «Vai dar-me qualquer coisinha para comer.»
Ora, o dono da casa fê-lo sentar e perguntou-lhe: «Ó cego, o que
queres?» e meu irmão respondeu: «Uma coisinha para Deus Todo-
Poderoso.» E o dono da casa, como quem recusa dar esmola, disse-lhe:
«Que Deus te ajude.» Ao que o meu irmão retrucou: «Olha-me este! Então
não me poderia já tê-lo dito lá em baixo?» E o dono da casa disse: «Ele há
lá gente tão reles! e porque me não respondeste logo à primeira vez?» E o
meu irmão perguntou: «E agora, o que quer fazer comigo?» E ele
respondeu: «Não tenho nada para te dar.» E o meu irmão disse: «Leve-me
para baixo.» E ele disse-lhe: «O caminho está à tua frente.»
Então o meu irmão levantou-se, e começou a descer as escadas, e já só
faltava entre ele e a porta uma distância de vinte degraus quando pôs o pé
em falso e escorregou, caindo por ali abaixo até à porta. Ficou com uma
ferida aberta na cabeça, e saiu dali para fora sem saber onde estava. Então
um dos seus companheiros encontrou-o e perguntou-lhe: «O que te trouxe o
dia de hoje?» E ele respondeu-lhe: «Nem me perguntes!» e contou-lhe o
que se tinha passado. «Irmão, quero tirar alguns dos nossos dirames para os
gastar comigo.»
E o dono da casa [seguia-o e]46 ouvia o que dizia o meu irmão, sem que
ele o soubesse. Então, quando o meu irmão chegou a casa e entrou, ele
também entrou atrás dele. O meu irmão quedou-se à espera dos seus
companheiros, e [quando estes chegaram,]47 disse-lhes: «Fechai a casa toda
e inspeccionai-a para que não haja ninguém estranho connosco.» E em o
homem ouvindo as palavras do meu irmão, que não sabia que ele estava ali,
agarrou-se a uma corda que estava presa ao tecto. Assim, um dos
companheiros do meu irmão percorreu a casa e não encontrou ninguém.
Foram ter com o meu irmão e perguntaram-lhe como estava, e ele
informou-os de que necessitava de uma parte do que haviam angariado, e
cada um deles sacou alguma coisa dalgum lado, e puseram tudo ante o meu
irmão, e tudo foi pesado e eram dez mil dirames, e deixaram-nos a um
canto da casa, havendo o meu irmão pegado no que precisava, antes de
enterrarem o resto dos dirames na terra.
Em seguida, trouxeram alguma comida, e enquanto comiam, o meu
irmão ouviu o mastigar de um estranho, e disse aos seus amigos: «Valha-me
Deus, está aqui um estranho!» E ao estender o seu braço, agarrou a mão de
um homem, e houve pancadas e murros, enquanto o meu irmão o segurava.
E após haverem perdurado nisto algum tempo, gritaram: «Ó muçulmanos,
entrou um ladrão em nossa casa e quer nos roubar o que é nosso!» Então
reuniu-se ali muita gente, e veio aquele homem e agarrou-os, acusando-os
do que eles o acusavam, e havendo fechado os olhos de guisa a que
ninguém duvidasse de que ele fosse cego, gritava: «Ó muçulmanos! Que
Deus e o governador nos julgue!» E mal deram por ela, já lá estavam os
guardas, que agarraram neles e os conduziram ao governador. E eles
compareceram diante do governador, que perguntou: «O que se passa?» E o
que não era cego respondeu: «Que Deus recompense o governador! Vossa
excelência vê, mas só castigando consegue ver as coisas mais claras. E o
primeiro a ser castigado sou eu mesmo, e ao depois este aqui, que é o nosso
alcaide», e apontou para o meu irmão. Então, ó miralmuminim, estenderam
o que não era cego e aviaram-lhe quatrocentas chibatadas, e em ele ficando
com dores devido à pancada…
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha, ó mana, e tão espantosa», disse Dinarzade à sua irmã. E
Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado com o que contarei, a ti e ao
nosso rei, na próxima noite, se o rei me poupar e eu viver.» Então o rei disse
de si para si: «Meu Deus, não a matarei até ouvir o que aconteceu ao rei da
China com o alfaiate, o sábio judeu, o nazareno, e o vedor, e o resto da
história do chato do barbeiro e dos seus irmãos, e depois mato-a, tal como
fiz com todas as outras.»
160.ª Noite
Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o alfaiate disse ao rei da China que
o barbeiro disse aos convidados que ele disse ao califa:
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se o rei me poupar e eu viver.»
161.ª Noite
Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o alfaiate disse ao rei da China que
o barbeiro disse aos convidados que ele disse ao califa:
E o califa riu-se, ao ponto de cair para trás, e ordenou que me fosse dado
um prémio, mas eu disse-lhe: «Por amor de Deus, meu amo, eu, eu não sou
um palrador, e se lhe contarei todas as histórias dos meus irmãos, é para que
o nosso amo o califa se certifique da veracidade de todas as suas histórias,
as conheça, as registe na sua biblioteca, e saiba que eu não sou tagarela, ó
califa nosso amo.»
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana, e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu:
«Isto nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima
noite, se eu ainda for viva.»
162.ª Noite
Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o alfaiate disse ao rei da China que
o barbeiro disse aos convidados que ele disse ao califa:
No que toca ao meu quinto irmão, ele tinha as orelhas cortadas e era um
homem pobre; de noite pedia às pessoas, e de dia vivia com o que pedia. E
o pai dele50 era um velho muito entrado em anos, então ficou enfermo e
morreu, e deixou-nos setecentos dirames, que nós repartimos entre nós,
havendo cada um ficado com cem dirames. No que toca ao meu quinto
irmão, ele recebeu os cem dirames e ficou atarantado sem saber o que fazer
com eles. E enquanto pensava naqueles dirames, eis que lhe veio à cabeça
comprar vidro de todos os tipos e vendê-lo, usufruindo assim do que
receberia em lucro.
Usou então o dinheiro para comprar vidro, que pôs numa grande cesta, e
quedou-se num sítio para o vender, e à sua banda havia um alfaiate [e à
porta da loja deste uma balaustrada]51. Ora, o meu irmão encostou-se nela,
e pôs-se a pensar, dizendo de si para si: «Fica sabendo, ó alma, que o meu
capital é este vidro, cujo preço foi cem dirames, e que eu vou vender por
duzentos. Ao depois, vou comprar duzentos dirames em vidro e vendo-o
por quatrocentos. Ao depois, continuo a comprar e a vender até ficar com
quatro mil dirames, e assim continuo até comprar mercadoria e levá-la até
tal e tal lugar, onde a vendo por oito mil dirames. E continuo a vender e a
comprar até ficar com dez mil dirames, com os quais compro todo o género
de jóias e perfumes, e vou fazer lucros enormes. Por essa altura, compro
uma bela casa, assim como mamelucos, eunucos e cavalos, e vou comer,
beber e divertir-me, e não haverá cantador nem cantadoira na cidade que eu
não traga a minha casa. Se Deus quiser, vou fazer um capital de cem mil
dirames.»
Tudo isto se lhe ocorria na cabeça, com uma cesta à sua frente na qual
havia cem dirames em vidro. E a cabeça dele imaginou ainda mais, e disse:
«E em a minha fortuna se tornando cem mil dirames, nessa altura vou
enviar intermediários para pedir em noivado as filhas de reis e vizires.
Aliás, vou noivar-me com a filha do vizir, já que ouvi dizer que ela tem
feições perfeitas, belezas únicas e curvas formosas. Dar-lhe-ei um dote de
mil dirames, caso queiram, caso não levo-a à força, em desprezo pelo pai. E
em ela vindo para minha casa, compro dez jovens eunucos, assim como um
traje digno de reis para mim, e mando fabricar uma sela em oiro com jóias
valiosas incrustadas, e vou montar numa cavalgadura, com mamelucos
seguindo atrás de mim e à frente, e vou circular pela cidade, enquanto as
gentes me saúdam e pedem que Deus me abençoe. E em visitando o vizir,
com os mamelucos à minha direita e esquerda, ele vai levantar-se ante mim,
e vai sentar-me no lugar dele, enquanto ele se senta num mais baixo, porque
eu sou seu genro. Vou levar comigo dois eunucos com duas bolsas contendo
dois mil dinares, a que preparei para o dote e mais mil dinares que vou
oferecer para que conheçam a minha hombridade, a minha grandeza de
espírito, e como eu encaro a pequenez das coisas mundanas.
»Ao depois, vou para minha casa, e se vier alguém da parte da minha
mulher, ofereço-lhe presentes e cubro-o de honrarias, mas se for ele a trazer
um presente, devolvo-o e recuso-me a aceitá-lo, para não perder a minha
dignidade. Ao depois, vou ter com eles para se porem de acordo comigo, e
quando o fizerem dou-lhes ordens para que façam desfilar a minha mulher
até mim. E preparo a minha casa como deve ser. E em sendo a altura dela
ser desvelada, vou estar vestido com as minhas mais sumptuosas vestiduras,
e vou estar sentado num sofá de seda brocada, recostado sem me virar para
a direita nem para a esquerda, devido à minha probidade, juízo, sobriedade
de espírito, contenção, e ao meu falar pouco.
»A minha mulher vai estar erguida, tal como a lua cheia, com os seus
fatos e ornatos, enquanto eu, devido à minha honra, orgulho e vanglória,
não vou olhar para ela até que todos os que estejam presentes me digam: “Ó
senhor nosso amo, tenha dó da sua mulher e servidora que se encontra ante
si; conceda-lhe um olhar, que estar assim erguida lhe causa dores.” E após
beijarem o chão ante mim uma miríade de vezes, então nessa altura vou
olhar para ela uma só vez, e torno a baixar a cabeça. Após a levarem,
levanto-me e vou trocar os meus trajes, vestindo uma roupa ainda mais
bela. E em eles a trazendo segunda vez, com o segundo vestido, não vou
olhar para ela até que se detenham ante mim e me implorem também um
sem número de vezes. Então olho para ela durante um rápido instante, e
logo baixo a cabeça para o chão. E assim continuo a fazer até terminarem
de a apresentar.»
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se o rei me poupar e eu viver.»
163.ª Noite
Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o alfaiate disse ao rei da China que
o barbeiro disse aos convidados que ele disse ao califa:
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se eu ainda for viva.»
164.ª Noite
Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o alfaiate disse ao rei da China que
o barbeiro disse aos convidados que ele disse ao califa:
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é
comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei
me poupar e eu viver.»
165.ª Noite
Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o alfaiate disse ao rei da China que
o barbeiro disse aos convidados que ele disse ao califa:
Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o alfaiate disse ao rei da China que
o barbeiro disse aos convidados que ele disse ao califa:
Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o alfaiate disse ao rei da China que
o barbeiro disse aos convidados que ele disse ao califa:
Então o dono da casa gritou: «Ó rapaz, como primeiro prato traz as papas
de carne56 e junta-lhe mais gordura!» Em seguida, disse ao meu irmão:
«Caro convidado, por amor de Deus, já viste melhores papas de carne do
que estas? Pela minha vida, come e não faças cerimónia.» E em seguida
disse: «Ó rapaz, traz-nos o sicbaj de ganso engordado57», e disse ao meu
irmão: «Come, que eu sei que estás com fome e necessitado.» Então o meu
irmão pôs-se a mexer os maxilares fingindo que mastigava, enquanto o
homem mandava vir prato após prato, mas nenhum aparecia, e dava ordens
ao meu irmão para comer. E às tantas gritou: «Ó rapaz, traz as polhas
gordas cozinhadas em coalha de leite!» E em seguida disse ao meu irmão:
«Caro convidado, estas polhas foram engordadas com pistácios. Pela minha
vida, come o que jamais provaste!» Ao que o meu irmão respondeu: «Meu
senhor, estão deveras apetitosas!»
Ora, o dono da casa pôs-se então a gesticular, como se enfiasse nacos de
comida na boca do meu irmão, e lhe ia descrevendo os vários pratos,
enquanto o meu irmão estava tão esfomeado que só desejava dar uma trinca
num pão de cevada. E disse o dono da casa: «Trazei os guisados58!» E disse
ao meu irmão: «Já alguma vez viste condimentos que dessem melhor sabor
à comida? Come mais e não faças cerimónia.» Ao que o meu irmão disse:
«Meu senhor, já comi quanto baste.» Então o homem gritou: «Levai isto e
trazei os doces!» E disse ao meu irmão: «Come destes bolinhos de
amêndoa, são mesmo do melhor, e destes pastéis. Pela minha vida, este
pastel… até o xarope me escorre pela mão abaixo.» E o meu irmão disse:
«Meu senhor, que eu nunca o perca!», e pôs-se-lhe perguntar sobre a
abundância de almíscar nos pastéis. Ao que o homem disse: «É o meu
hábito confeccionar os pastéis assim», enquanto o meu irmão mexia a boca
e brincava com os maxilares.
Então o homem disse: «Já chega disto, trazei-nos a geleia de amêndoa», e
disse para o meu irmão: «Come e não faças cerimónia.» Ao que o meu
irmão disse: «Meu senhor, já tive quanto baste, e já não consigo comer
coisa alguma.» E o dono da casa disse: «Caro convidado, se assim é, queres
beber e divertir-te?» Com isto, o meu irmão disse de si para si: «Irra!» e
pensou: «Tenho de lhe fazer algo para que ele se arrependa desta forma de
agir.»
Ora, o homem disse: «Trazei a bebida!» e estendendo uma taça ao meu
irmão, disse: «Prova desta taça e diz-me se gostas.» E o meu irmão disse-
lhe: «Tem um bom aroma, mas estou mais habituado a outro género.» Ao
que o anfitrião disse: «Trazei-lhe outro vinho.» E disse: «Saúde e alegria!»,
e gesticulou como se bebesse. Entretanto, o meu irmão fazia-se de bêbedo,
e disse: «Meu senhor, já não consigo beber mais.» Mas o anfitrião insistiu, e
o meu irmão, fazendo-se de bêbedo, ignorou-o, e ergueu a mão até mostrar
a brancura do sovaco, e deu-lhe um calduço de tal ordem que ressoou pelo
salão. Em seguida, pregou-lhe outro. Então, o anfitrião disse: «Que vem a
ser isto, ó ordinário?» E disse o meu irmão: «Meu senhor, deixaste o teu
escravo entrar em tua casa, deste-lhe comida e bebida. Ele embebedou-se e
portou-se mal. Devias ser o primeiro a aguentar a sua idiotice e a perdoar-
lhe a ofensa.» Em ele ouvindo aquelas palavras, largou uma alta gargalhada,
e disse: «Olha-me este! Já faz um tempo que eu ando a fazer pouco das
pessoas, e jamais vi alguém com tal destreza e que se tenha metido comigo
como tu. Assim sendo, perdoo-te.»
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se o rei me poupar e eu viver.»
168.ª Noite
Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o alfaiate disse ao rei da China que
o barbeiro disse aos convidados que ele disse ao califa:
Quando o califa ouviu a minha história toda e o que eu lhe havia contado
sobre os meus irmãos, largou uma enorme gargalhada, e disse: «Ó
Silencioso, de facto tu não és tagarela nem intrometido, mas agora sai desta
cidade e instala-te noutra.» Ao depois exilou-me, expulsando-me sob
escolta, e eu percorri província atrás de província, até que ouvi que ele
havia morrido e que outro califa lhe havia sucedido. Então tornei à cidade, e
soube que os meus irmãos haviam morrido, e deparei-me com este jovem, a
quem fiz os mais belos favores, e ele pagou-me com as mais feias acções,
mas se não houvesse sido eu ele já teria sido aniquilado. Ao depois, ele
partiu em viagem para fugir de mim. E aqui estou eu, percorri país atrás de
país até me deparar com ele aqui mesmo, e agora acusa-me de coisas que
não fazem parte do meu ser, pintando-me como um tagarela e espalhando
mentiras sobre mim.
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana, e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu:
«Isto nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima
noite, se o rei me poupar e eu viver.»
169.ª Noite
Ouvi dizer, ó rei dos tempos, que o alfaiate disse ao rei da China:
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha, ó mana», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o
rei me poupar e eu viver.»
170.ª Noite
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana, e tão espantosa», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade
respondeu: «Isto nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei,
na próxima noite, se eu viver, e que será a história de Abu-al-Haçane Ali
ibn Tâhir, o Perfumista, e de Nureddine Ali ibn Baccar60, e do que lhe
aconteceu com a escrava do califa, chamada Xamsennahar, uma história
que emociona o ouvinte, e que é o esplendor dos bons auspícios.»
171.ª Noite
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana, e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu:
«Isto nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima
noite, se eu viver.»
172.ª Noite
Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que em vindo a criada, ela disse: «Meu
senhor Abu-al-Haçane, em nome de Deus, aceitai, vossemecê e o senhor
Nureddine Ali, o convite da senhora dona Xamsennahar, favorita do
miralmuminim Harune Arraxide.» Então ele levantou-se e disse para
Nureddine Ali: «Em nome de Deus, vamos.» E também este se levantou, e
foram disfarçados, com a criada que seguia à frente deles a alguma
distância, até que ela adentrou com eles o palácio do califa e os introduziu
nos aposentos de Xamsennahar.
O rapaz deparou-se com um espaço que era como uma câmara dos
jardins do Paraíso, onde havia sofás, encostos almofadados e almofadas
como ele jamais havia visto, e em ele e Abu-al-Haçane se sentando e se
instalando naquele sítio, a criada negra pôs-se ao serviço deles, e foi-lhes
trazida uma mesa com belos manjares: cordeiro, galinha engordada,
bombons, uma tigela com picles, e outros pitéus dos que crescem em ninhos
e voam, tais como cortiçola, codorniz, e pombo. Ora, o rapaz pôs-se a
comer, atónito com tudo aquilo.
Ora, Ali ibn Baccar virou-se para Abu-al-Haçane e disse-lhe, [com jeitos
estrangeirados de falar o árabe]: «Amo, fica sabendo que se o sábio
perceptivo e perspicaz, inteligente e cultivado, mais dado à razão e à
percepção do que ao coração, não poderia senão gostar de isto, e de se
deliciar e usufruir, e de ficar emocionado, espantado e cativado, então ainda
mais para quem se encontra na minha disposição, com um coração que sinta
o mesmo que o meu. Nada do que aqui vi de falar me inibe, nem de
perguntar me proíbe, já que o martírio que eu conquistei, que o destino
conduziu até mim, tal como me trouxe a tribulação, para tudo isso fui
conduzido pela beleza. É a disposição do mandatário, bem dizes tu. Então
qual é a disposição de quem é mandante, que interpela o mandatário com
sorrisos e sem rodeios, e que tem tão grandioso poder e possui tão
consideráveis posses?»
E o rapaz respirou fundo e disse: «Bravo! Não podia ser melhor! Que
perfeição e que domínio!» Então ele repetiu aqueles versos em lágrimas, e
disse: «Canta!» e a donzela pôs-se a cantar:
Então os nosso olhares viraram-se para elas, e eis que aquela primeira
criada, que havia vindo ter connosco à loja e nos havia trazido àquele lugar,
estava em pé no extremo do jardim, enquanto dez aias carregavam um
grande sofá de prata e o punham entre as árvores, ficando em pé à sua
frente. Em seguida, vieram vinte donzelas que eram tais luas, trazendo nas
mãos instrumentos de música e trajando ornatos. Desfilavam numa só fila e
cantavam a mesma melodia a uma só voz, até que pararam em pé às bandas
do sofá, fazendo vibrar as cordas dos seus instrumentos um tempo, e era tão
bela a música que tocavam que sentíamos que todo o lugar ondulava.
Ao depois, saíram de uma porta dez donzelas que superavam qualquer
descrição, trajando jóias e vestiduras que combinavam e condiziam com a
sua beleza e a formosura. Ficaram em pé à porta, e em seguida saiu outro
grupo igual de donzelas, entre as quais estava Xamsennahar.
Ao depois disse ao perfumista: «Tu nem o bem comigo fizeste nem favor
algum me prestaste! Se me houvesses posto ao corrente desta situação,
poderia ter-me preparado e munido de paciência, sem ser constrangido a
lidar com esta situação à força.» E em seguida as suas lágrimas correram
como riachos e ficou atarantado diante dele.
[Foi Abu-al-Haçane quem contou o seguinte:]
E cantou com tal melodia que até o espírito mais calmo e dócil se
entusiasmaria e o doente emaciado se curaria, e em Nureddine Ali ibn
Baccar ficando comovido, disse a uma das donzelas que estavam entre nós:
«Canta esta poesia:»
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se eu ainda for viva.»
175.ª Noite
Havendo a donzela cantado o poema que o rapaz lhe havia pedido, com
uma melodia de enorme beleza, Xamsennahar virou-se para outra donzela,
e disse: «Canta por mim estes versos»:
Cantou ternamente, com uma melodia ainda mais bela. Então o rapaz
disse a outra donzela: «Canta por mim estes versos»:
E ela foi exímia a cantar, e executou a sua técnica com ternura. Então
Xamsennahar suspirou longamente e disse à donzela mais perto de si:
«Canta!», e esta cantou dizendo:
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se eu viver.»
176.ª Noite
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se o rei me poupar e eu viver.»
177.ª Noite
Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que Ali ibn Baccar e o seu amigo Abu-
al-Haçane, o Perfumista, em ouvindo aquelas palavras, ficaram apavorados.
Mas Xamsennahar riu-se, e disse à criada: «Empata-os um tempo de forma
a que escondamos os nossos vestígios.»
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se o rei me poupar e eu viver.»
178.ª Noite
Em estando tudo prestes ante Arraxide, ele virou-se para uma donzela
das que haviam vindo consigo, e disse: «Ó amor, venha de lá essa canção!»
E ela dedilhou o alaúde, e declamou cantando:
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite;
se o rei me poupar e eu viver, será ainda mais espantoso e estranho.»
179.ª Noite
Ele fez-nos entrar em sua casa, e em nos fazendo sentar, perguntou: «Por
onde tens andado estes últimos tempos?» E eu disse-lhe: «Eu tinha um
negócio com um fulano, mas chegou-me aos ouvidos que ele cobiçava o
meu dinheiro e o dos outros, então dirigi-me a ele, depois de haver pedido
ajuda e companhia a este senhor aqui», e apontou para o moço Ali ibn
Baccar; «trouxe-o comigo por medo que ele se apercebesse da minha
intenção e se escondesse de mim. Mas apesar de me ter empenhado não dei
com ele nem tive notícias dele, e então tornei. Transtornado com a fadiga
deste senhor e sem saber aonde ir, tomei a liberdade de virmos a tua casa e
de gozar a tua companhia.»
Ora, Abu-al-Haçane deu ordens para que arrumassem a casa, e foi ele
quem contou: «[Disse de mim para mim:] “Vou entretê-lo e diverti-lo, pois
não posso ignorar o que se passa com ele, e que ele se separou da sua
amada e foi privado daquelas coisas que os unem.” E dei graças a Deus por
haver sido salvo do perigo, e dei esmolas por Ele me haver facilitado a vida.
Ao depois, o jovem Ali ibn Baccar acordou e sentou-se, e eu disse-lhe:
“Anima-te!”»
Ao depois, [o rapaz Ali ibn Baccar pediu água, e água foi-lhe trazida, e
ele levantou-se, fez as abluções, e as orações do dia e da noite que não
havia feito na devida altura. Em seguida, sossegou o seu espírito, e
procurou consolo para a sua alma pondo-se a falar. Em Abu-al-Haçane
vendo tal coisa, acercou-se dele e disse: «Caro Ali, devido à situação em
que te encontras, é melhor ficares esta noite em minha casa, para te
divertires e te distraíres, para que te alivies do amor e da dor que te afecta.
Se te sossegares e espaireceres, talvez Deus te alivie das aflições que te
atravessam e que tu atravessas.»]66 Ali ibn Baccar disse-lhe: «Faz o que
quiseres, eu não te impeço.»
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite;
se o rei me poupar e eu viver, será ainda mais estranho.»
180.ª Noite
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite;
se eu ainda for viva.»
181.ª Noite
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite;
se eu ainda for viva.»
182.ª Noite
Senhor meu, o que te escrevo com os meus dedos, e o que falo com a
minha língua, e o discurso que eu formulo, exprimindo o que me vai no
coração, na alma e no corpo, se não fosse o meu desejo de te expor o quanto
sofro por mor de ti, eu seria mais cautelosa e abster-me-ia de o fazer. Se não
fosse o eu desejar-te e o sofrimento de estar separada de ti, já teria parado
de escrever, abster-me-ia de o fazer, pois quem testemunha uma situação
dispensa as palavras. Em suma, a minha situação é que os meus olhos não
cessam de noites em branco passar, o meu coração de se inquietar, a minha
alma de se angustiar, e o meu âmago de endoidar, e não dou por nada senão
pelo meu corpo arrasado e o meu espírito devastado e dilacerado. É como
se eu jamais saúde houvesse gozado ou da tristeza me livrado, e jamais
houvesse visto uma paisagem incrível ou usufruído uma vida aprazível. Ah!
Se eu fosse esquecida para sempre! E me lamentasse só a quem partilha os
meus lamentos! E chorasse só com quem partilha as minhas lágrimas! A
quem diria eu:
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se o rei me poupar e eu viver.»
183.ª Noite
Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que ele se sentou, pegou numa folha, e
disse a Abu-al-Haçane: «Segura na missiva à minha frente», e ele assim fez,
enquanto Ali ibn Baccar, sempre que olhava para ela, punha-se ora a
escrever, ora a chorar, até acabar de redigir o que queria. Deu-a então a
Abu-al-Haçane e disse: «Lê-a e dá-a à criada.»
[Foi Abu-al-Haçane quem contou:] «Então peguei nela, li-a, e eis o que
nela constava:»
O lamento não apaga o fogo da tribulação, mas pode distrair quem pela
saudade é avassalado e pela separação aniquilado, até ao momento em que
o ardor do seu desejo o reencontro sacie, e o caminho da sua cura propicie.
E haja paz.
Abu-al-Haçane contou o seguinte: «As palavras da missiva afligiram-me
a alma e os seus significados atingiram-me os orgãos vitais, e apesar de
tentar esconder as lágrimas, não parei de chorar senão com muito esforço, e
o meu coração abalado não se conseguiu acalmar senão depois de muita dor
e ardor. Então, entreguei a missiva à criada, e quando esta pegou nela, Ali
ibn Baccar disse-lhe: “Chega aqui.” Ela achegou-se e ele disse: “Passa os
meus cumprimentos à tua patroa, e dá-lhe parte do meu padecimento e
mágoa, e de que a estima que sinto por ela entranhou-se-me na carne e
ossos, e diz-lhe que sou um pobre coitado a quem a vida deu rudes golpes.
Agora vai-te como se voasses.” E às suas palavras sucedeu o choro, e tanto
eu como a rapariga chorámos. Então, ela despediu-se e saiu aflita a chorar.»
Abu-al-Haçane saiu com ela até ao sítio onde cada um seguiria o seu
caminho, despediu-se, e abalou para a sua loja.
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se o rei me poupar e eu viver.»
184.ª Noite
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se eu ainda for viva.»
185.ª Noite
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite;
se o rei me poupar e eu viver, será ainda mais estranho.»
187.ª Noite
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se o rei me poupar e eu viver.»
188.ª Noite
Então contei-lhe o que disse ao moço Ali ibn Baccar, o que fiz com Ibn
Tâhir para o convencer, e como fiz para ser recebido pelo moço Ibn Baccar.
Em seguida, disse: «E também a missiva que caiu das tuas mãos indicia a
minha boa vontade neste assunto, no qual me não queria meter.» Ela ficou
espantada, e eu reafirmei-lhe a minha promessa e juramento, e também a fiz
prometer que ela me não esconderia coisa alguma do caso daqueles dois.
Então ela pegou na carta, selou-a, e disse: «Vou dizer ao moço: “A
missiva foi me dada selada, e quero que lhe respondas, e também que seles
a resposta com o teu sinete, para me livrar de qualquer responsabilidade.”
Agora mesmo vou ter com ele para trazer a resposta, e venho ter contigo
antes de encontrar Xamsennahar.» Em seguida, despediu-se de mim, e
abalou, deixando o meu coração em fogo. E pouco tempo passou até ela
voltar, trazendo a missiva selada, e eis o que nela estava escrito:
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana, e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu:
«Isto nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima
noite, se o rei me poupar e eu viver.»
190.ª Noite
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha, ó mana», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o
rei me poupar e eu viver.»
191.ª Noite
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se o rei me poupar e eu viver.»
192.ª Noite
E foi o joalheiro quem contou: «[E disse de mim para mim:] “Vou com
ele aonde ele queira.” Ao depois, caminhámos juntos até chegarmos à casa.
Em ele a vendo, disse: “Esta casa não tem porta, e não nos podemos sentar.
Vamo-nos!” E pôs-se ora a entrar num sítio ora a sair doutro, até que nos
veio a noite, sem havermos chegado a sítio algum.»
O joalheiro atónito nada lhe perguntava. E assim continuaram até que o
homem o levou a um descampado nas margens do rio Tigre, e lhe disse:
«Siga-me», e açodou-se. O joalheiro, que vinha atrás dele, reuniu forças
para o acompanhar no mesmo passo, até que o homem chegou a um bote,
parou, e subiram ambos a bordo, enquanto o barqueiro vogou para os
atravessar para a outra banda. Desceram ambos e o homem pegou na mão
do joalheiro, e levou-o por um longo caminho que ele jamais havia
percorrido e nem sabia a que parte de Bagdade pertencia.
Ao depois, parou junto à porta de uma casa, entrou, e fechou a porta com
um grande cadeado de ferro. Então, levou o joalheiro junto de dez jovens,
trajados todos de igual, e o joalheiro cumprimentou-os e eles retribuíram-
lhe o cumprimento, e mandaram-no sentar-se, e ele assim fez, morto de
cansaço e pelo medo dominado. Então, trouxeram-lhe água fria, e ele lavou
a cara e as mãos. Ao depois, serviram-lhe bebida, e ele bebeu, e trouxeram
comida, e comeram juntos.
Foi o joalheiro quem contou: «Se me quisessem fazer mal, não haviam
comido comigo. E em lavando nós as mãos, cada um tornou ao seu lugar, e
eu sentei-me ante eles.»
Então perguntaram: «Conheces-nos?» E ele respondeu: «Não. Nem o
sítio onde estamos nem quem me trouxe até vós.» E eles disseram: «Conta-
nos a tua história, sem intrujices.» E o joalheiro disse-lhes: «A minha
história é espantosa, sabereis vós alguma coisa dela?» E eles disseram:
«Sabemos, sim. Fomos nós quem ontem levou os teus bens, o teu
companheiro, e a trovadora que estava em tua casa.» Então o joalheiro
disse: «Que Deus desça sobre vós o véu da Sua protecção! Onde estão o
meu companheiro e a trovadora?» Eles apontaram para duas salas à frente
deles, e disseram: «Cada um está numa sala, e afincaram que ninguém
deveria saber sobre a história deles senão tu. Dês daí que não nos reunimos
com eles nem os questionámos mais. Vimos quão finos eram os seus trajes,
o que nos deixou confusos e nos impediu de os matar. Então, conta-nos a
verdade sobre eles, e tanto tu como eles estarão em segurança.»
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se o rei me poupar e eu viver.»
193.ª Noite
Então saímos da casa, com Ali ibn Baccar e a rapariga à beira da morte, e
nada os movia senão o medo e o desejo de se salvarem. Acerquei-me deles
e perguntei-lhes: «O que fez a criada e onde foram as duas aias?» E ela
disse-me: «Não faço ideia.»
Levaram-nos até à água, embarcaram-nos naquele bote, e remaram
levando-nos à outra banda, onde descemos. E mal havíamos pisado terra,
eis que fomos cercados pela cavalaria, ao que os bandidos lançaram-se logo
ao bote tais águias, e voaram dali para fora, ficando nós na margem sem
poder sair dali. «Quem sois?», perguntaram eles, hesitando nós em devolver
resposta. Então, eu disse: «Aqueles eram um grupo de bandidos que ontem
nos raptou, e nós ficámos com eles até agora, e nenhum coração deles se
compadeceu de nós, até que nós os conquistámos com palavras mansas e
eles lá nos deixaram ir embora e nos libertaram, e vós os haveis visto.»
Então olharam para mim, para a rapariga, e para Ali ibn Baccar, e
disseram: «Não falas verdade. Quem sois vós, e por que nome sois
conhecidos, e em que bairro viveis?» Não sabíamos que lhe dizer, e então
Xamsennahar puxou o almocadém deles à parte, falou com ele, e num
pronto ele desceu da sua cavalgadura e ela montou-a, enquanto ele puxava
as rédeas para a conduzir, e a mesma coisa foi feita com Ali ibn Baccar e
também comigo.
Ao depois, levou-nos77 até um sítio, e gritou a um homem, que trouxe
duas barcas. O almocadém e nós os três embarcámos numa e o seu séquito
embarcou noutra. Em seguida, os barqueiros remaram e levaram-nos até ao
palácio do califa, estando nós quase mortos de medo, e em o almocadém
fazendo sinais ao nosso bote, remaram até atravessarmos para um sítio que
nos levaria ao nosso bairro. Então descemos com dois soldados encarregues
de zelar pela nossa segurança, e chegámos a casa de Ali ibn Baccar, e em
entrando os soldados despediram-se de nós. Já dentro de casa, deixámo-nos
cair sem olhar a onde, ficámos imóveis e sem saber onde estávamos, até que
a manhã nos veio, mas nós não acordámos, até ser final do dia, quando me
mexi um pouco e dei com homens e mulheres chorando à cabeça de Ali ibn
Baccar, que estava imóvel. Em se apercebendo que eu estava desperto,
fizeram-se sentar e disseram: «Conta-nos o que lhe aconteceu, pois tu és a
causa da desgraça dele.» Então eu disse: «Ó gentes…»
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se o rei me poupar e eu viver.»
194.ª Noite
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite;
se o rei me poupar e eu viver, será ainda mais espantoso e estranho.»
195.ª Noite
Levantei-me e fui com ela até a determinado sítio, e ela disse-me: «Fique
aqui até eu tornar.»
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana, e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu:
«Isto nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima
noite.»
196.ª Noite
Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que a rapariga disse: «Fica aqui até eu
tornar.»
Ela voltou trazendo uma pesada carga [de dinheiro], entregou-ma e disse:
«Vá com a protecção de Deus. Onde nos encontramos?» Eu disse-lhe:
«Vem a minha casa. Entretanto vou fazer todos os esforços possíveis para
ver Ali ibn Baccar, e fazer com que consigas encontrar-te com ele.» Aquele
dinheiro tornava fácil o que antes parecia difícil. E ela disse: «Receio que
não consiga encontrar Ali ibn Baccar, e eu não sei onde o ver a si.» Então
disse-lhe: «Vem à outra casa. Agora mesmo vou pôr portas novas,
certificar-me da sua segurança, e passamos a encontrar-nos nela.» Ao
depois, despediu-se de mim, e eu fui embora carregando o dinheiro, e ao
chegar a casa vi que de dinheiro eram dois mil dinares, o que me deixou
muito contente. Dei parte à minha família e outra aos meus credores para os
satisfazer. Fiz-me acompanhar pelos meus criados até à outra casa, mandei
chamar artesãos para renovarem as janelas e portas ainda melhor do que
estavam antes, e deixei duas criadas para velarem pela segurança e duas
aias para o serviço. Então saí de lá com o coração mais fortalecido, e
esquecido do que me havia acontecido, e fui a casa de Ali ibn Baccar.
Ao lá chegar, eis que os criados dele vêm ao meu encontro, e um deles,
radiante, beija-me a mão, e leva-me até Ali ibn Baccar, que estava numa
cama, incapaz de falar. Sentei-me perto dele, peguei-lhe na mão, e ele abriu
os olhos e disse: «Bem-vindo», erguendo-se para se sentar, mas não o
conseguia senão com muito esforço, «Graças a Deus que te vejo!» Então,
continuei a ajudá-lo em que se alevantasse até ele conseguir dar uns passos,
mudar de roupas, e tomar uma bebida, e tudo isso para me agradar.
Então, conversei com ele sobre os nossos assuntos, e em ele ficando mais
tranquilo, disse-lhe: «Conheço a tua aspiração. Rejubila-te, não há
novidades a não ser as que vão alegrar-te e tranquilizar o teu coração.» Em
seguida, fez sinal aos criados e eles se dispersaram. E disse: «Mas já viste o
que se abateu sobre nós?» Ao depois, desculpou-se e pôs-se a indagar.
Então contei-lhe o que havia acontecido após ele se haver separado de
Xamsennahar, e ele deu graças a Deus Todo-Poderoso, louvou-O e disse:
«Que excelência a dela! E que perfeita hombridade a tua!»
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana, e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o
rei me poupar e eu viver.»
197.ª Noite
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se o rei me poupar e eu viver.»
198.ª Noite
Foi um grande impacto de chofre, mal tinha forças para me pôr em pé.
Em a criada se indo, lá me levantei e me apressei a tornar à casa de Ali ibn
Baccar. Disse-lhe: «Cobre-te com paciência, traja-te de perseverança,
afasta-te da inquietação, cavalga o caminho da coragem, anima-te, e deixa
esses problemas que te levam ao prostramento e ao abatimento. É que
aconteceu algo que vai aniquilar a tua vida e destruir as tuas posses.» Ele
ficou pálido e perturbado, e disse: «Meu irmão, não me mates de susto! Dá-
me a conhecer o assunto de guisa clara e detalhada.» Então disse-lhe:
«Aconteceu isto e aquilo, a tua perdição é inevitável.» Ficou um tempo
atónito, e a sua alma quase dele se separava. Ao depois, recuperou e disse:
«Que faço?» E eu disse-lhe: «Pega naquelas tuas posses das quais te possas
socorrer, e nos teus criados de maior confiança, e eu farei o mesmo, e
dirigimo-nos para Alambâr81 antes que o dia se acabe.»
Então ele deu um salto, e endoidado ora andava ora tropeçava, e foi
aprontar-se o melhor que podia, deu uma desculpa à família, deixou-lhes
várias recomendações, e pôs-se em marcha para Alambâr, para onde ambos
caminhámos todo o dia e toda a noite. Ao final da noite, poisámos os nossos
fardos, atámos as patas dos camelos com uma corda de turbante, e
dormimos descuidados de montar guarda. Então, mal demos por ela, eis que
apareceram homens, que nos levaram as bagagens, os camelos e tudo o que
havia de dinheiro às nossas cinturas, despiram-nos as roupas, e mataram os
nossos criados, deixando-nos ali mesmo no mais mísero estado.
Nureddine Ali ibn Baccar disse ao joalheiro: «Que podemos fazer? Foi
Deus quem decretou este encaminhar das coisas.» [E foi o joalheiro quem
contou:] «Ao depois caminhámos até se tornar manhã, e alcançando uma
mesquita, entrámos nela, dois forasteiros pobres que não conheciam pessoa
alguma. Então sentámo-nos a uma banda todo o dia, sem ouvir coisa
alguma nem ver alguém que fosse, nem fêmea nem macho, e assim ficámos
aquela noite. E em amanhecendo, eis que um homem entrou na mesquita,
fez as suas orações, e virou-se para nós dizendo…»
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se o rei me poupar e eu viver.»
199.ª Noite
Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que ele fez um pedido, dizendo: «Pede
à minha mãe que se resigne.»
Em Ali ibn Baccar ouvindo aquilo, arranhou o último fôlego e a sua alma
libertou-se-lhe do corpo. Então amortalhei-o e recomendei-o ao dono da
casa. Fiquei lá dois dias até que na companhia de algumas pessoas alcancei
Bagdade, e entrei em minha casa. Então saí para ir a casa de Ali ibn Baccar.
Em os seus criados me vendo, receberam-me com cumprimentos, e eu
perguntei-lhes se a mãe dele me dava licença para ser recebido. Havendo
ela dado licença, entrei e cumprimentei-a. Em ela me arranjando lugar para
sentar, disse-lhe: «Oiça, que Deus a ajude e seja bondoso consigo. Deus
Todo-Poderoso dirige os seres humanos com os Seus desígnios, e ninguém
escapa aos Seus decretos e à Sua determinação.» Então, ela chorou
desalmadamente, e disse: «Por amor de Deus, diga-me, o meu filho
faleceu?» Mas de tanto soluçar e de chorar, não lhe consegui dar resposta.
Então, em ela sendo dominada pela tristeza, caiu desmaiada por um tempo,
e as criadas acudiram, sem haver posto os véus, e sentaram-na.
Em ela se recompondo, perguntou-me: «O que lhe aconteceu?» E disse-
lhe: «Foi tal e tal coisa, é uma grande dor para mim, valha-me Deus,
ademais eu era o seu melhor amigo e companheiro», e contei-lhe tudo o que
se lhe havia sucedido. E ela disse: «Se ele me houvesse revelado o âmago
do seu segredo… Fez-lhe algum pedido?» «Sim», disse-lhe eu, e dei-lhe a
conhecer os seus pedidos, e ela continuou em prantos, gritos e choros, ela e
as criadas.
Então, fui-me embora atordoado de tristeza, e o infortúnio dele não
deixava os meus olhos verem o caminho, enquanto seguia chorando,
pensando em como ele era tão jovem, e nas minhas visitas a casa dele, eis
que uma mulher me agarra na mão, e em abrindo os olhos reconheci-a, não
era outra senão a criada, trajada de negro e de destroçada aparência. Então
chorei aos soluços ainda mais, e ela chorou comigo, e caminhámos juntos
até àquela casa, onde lhe perguntei: «Já sabes as novas sobre ele?» «Valha-
me Deus, nada sei», disse ela. Então informei-a, e chorámos ambos.
Em seguida, perguntei-lhe: «Que sofreu mais a tua senhora para falecer?»
E ela disse: «Como já te contei, o miralmuminim transferiu-a [para os
aposentos dele], e não a confrontou com coisa alguma, julgando que o que
se dizia sobre ela era absurdo, devido ao amor dele por ela e por
compaixão. Até lhe disse: “Xamsennahar, tu para mim és a mais querida
pessoa, a mais bela, a mais virtuosa e aquela que das acusações que os teus
inimigos te lançam é mais inocente.” Em seguida ordenou que lhe
indicassem um quarto formoso e decorado a oiro, o que fez com que nela
entrasse uma aflição colossal e uma angústia descomunal.
»Ao final do dia, como era seu hábito, sentou-se para tomar uma bebida,
chamando as concubinas para que se sentassem nos sofás, e sentou
Xamsennahar à sua banda para lhes mostrar o estatuto dela aos seus olhos e
o lugar que ocupava no coração dele. Estando presente, ela estava ausente,
despojada de vigor e de ânimo, cada vez mais angustiada, com a fala
deturpada por medo do califa e do que este faria. Então, uma das raparigas
cantou para ela:
»Então, ela não aguentou, e chorou, caindo sem sentidos. O califa largou
logo o copo da mão, puxou-a para si, e eis que ela estava morta. Então
gritou ele e gritaram as raparigas, e ordenou que partissem os instrumentos
de música que estavam à sua frente, e estes foram partidos. Ele saiu num
ápice, ordenando que a levassem para o seu quarto, e ficou ante ela a noite
toda. Em amanhecendo, ordenou que a lavassem, a amortalhassem e a
enterrassem, sem fazer perguntas sobre o caso dela.»
Então fui com ela até ao cemitério, visitei a campa dela, e depois abalei.
E em sendo o quarto dia, chegou a procissão fúnebre de Alambâr, e as
gentes de Bagdade saíram todas à rua, gentes de todas as classes sociais,
assim como eu, e o corpo de Ali ibn Baccar foi recebido por homens e
mulheres, e foi um dia jamais visto em Bagdade. E eis que aquela rapariga
apareceu entre a família dele, ultrapassando a tristeza dela tanto a de
graúdos como de miúdos, com os seus gritos e louvores aos méritos do
morto, e com uma voz que qualquer coração despedaçava e qualquer corpo
destroçava, até que chegaram ao cemitério e o enterraram.
Nunca cessei de visitar o seu túmulo. E esta é, pois, a história de Ibn
Baccar e Xamsennahar.
Já no que toca a Almuíne ibn Saui, não havia ninguém mais avarento,
maldoso, ignóbil e idiota. Era incapaz de falar com bondade, só praticava a
fealdade, e era mais manhoso que um raposo e mais ladravão que um cão,
tal como disse quem o descreveu ao dizer:
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se o rei me poupar e eu viver.»
202.ª Noite
Em a vendo, o vizir ficou maravilhado com ela até mais não. Ao depois,
virou-se para o magano e perguntou-lhe: «Quanto custa esta rapariga?» E
ele disse-lhe: «Ó vizir meu senhor, fica em dez mil dinares, e o seu dono
jurou que os dez mil dinares [não cobrem] o custo das polhas que comeu,
nem o vinho que bebeu, nem cobre o custo dos trajes de honra ofertados ao
seu mestre, pois ela aprendeu caligrafia, expressão oral e escrita, língua
árabe, sintaxe, exegese alcorânica, fontes da jurisprudência islâmica, e
medicina, e também sabe tocar todos os instrumentos de música.» O vizir
disse logo: «Traz-me o dono dela.» Ele trouxe-o num pronto, e eis que era
um persa, a quem o passar do tempo já tanto havia polido que agora já nada
lhe restava, a tal ponto que para o deitar ao chão lhe puxar um cabelo
bastava, e até numa semente de jujuba83 ele tropeçava, tal como disse quem
o descreveu:
E este moço nada sabia sobre a moça. Então o seu pai, o vizir, advertiu a
rapariga, lhe dizendo: «Ó filha, fica sabendo que eu te não comprei senão
para o rei Muhammad ibn Suleimane Azzainabi, e que tenho um filho que é
um diabo, não deixa moça alguma do bairro em paz enquanto a não
fornicar. Por isso, toma atenção com ele e cuida que ele te não veja a cara
nem a tua voz oiça. Porta-te como deve ser.» E ela disse: «Às suas ordens.»
Então o vizir deixou-a e foi-se embora.
E decretou o destino que um dia de entre dias ela fosse aos banhos do
palácio, onde uma outra escrava a lavou. Os banhos outorgaram-lhe o traje
de honra do contentamento, realçando-lhe a beleza e a formosura. E em ela
de lá saindo, trouxeram-lhe um vestido que fazia jus à sua juventude. Ela
vestiu-o e foi ter com a senhora mulher do vizir, beijou-lhe a mão e a
senhora lhe disse: «Anice Aljalice, que o banho te traga a bênção.» E ela
respondeu: «Senhora, que Deus lhe traga a felicidade e a bênção.» E a
senhora perguntou-lhe: «Anice Aljalice, como estavam os banhos?» E disse
ela: «Senhora minha, estão muito bons, e a sua água melhor não podia estar,
nada falta a não ser a presença da sua juventude.» A senhora disse logo às
raparigas: «Vamos aos banhos, que já faz uns dias que eu não lá vou.» E as
raparigas disseram: «Meu Deus, a senhora descobriu o que já estava nas
nossas mentes.» E ela disse: «Em nome de Deus, vamos», e levantou-se, e
com ela levantaram-se as raparigas.
Enquanto isso, Anice Aljalice foi para o seu compartimento com duas
raparigas de pequena idade, a quem a senhora encarregou de lhe vigiar a
porta, dizendo-lhes: «Tomai atenção e não deixeis que alguém se aproxime
do compartimento dela.» Ao depois, a senhora e as outras raparigas foram-
se para os banhos; quanto à rapariga, quedou-se no compartimento a
descansar dos banhos, e eis que Nureddine Ali [ibn Khacane, filho do vizir,]
entrou em casa da mãe, e em encontrando aquelas duas raparigas sentadas à
porta do compartimento, perguntou-lhes sobre sua mãe, e elas disseram…
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se o rei me poupar e eu viver.»
204.ª Noite
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se eu ainda for viva.»
205.ª Noite
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se o rei me poupar e eu viver.»
206.ª Noite
Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que era o pai dele quem o havia botado
ao chão, ajoelhado sobre o seu peito, e desembainhado uma faca como se o
fosse degolar, mas logo apareceu detrás dele sua mulher, que lhe disse:
«Que queres fazer?» E ele disse: «Degolá-lo.» E Nureddine disse: «Senhor,
e é-lhe assim tão fácil degolar-me?» Então o pai olhou para ele, com os
olhos a banharem-se de lágrimas, movido pelo poder divino, e disse:
«Filho, é-te assim tão fácil fazeres com que perca a vida e as minhas
posses?» E o moço disse: «Senhor, diz um poeta:
«Filho, não tenho recomendação alguma para ti senão que temas a Deus,
que meças as consequências das tuas acções, e cuides de Anice Aljalice.» E
disse [o filho: «Ó pai, quem a si se pode igualar, sendo o pai conhecido
pelas suas boas acções e pelas bênçãos pedidas para si nos mimbares?» E
disse o pai85:] «Filho, só peço a Deus Todo-Poderoso que me aceite.» Ao
depois debateu-se com a agonia da morte e expirou. Então os gritos das
mulheres inundaram o palácio, a notícia chegou ao rei, e os habitantes da
cidade ao ouvirem que Ibn Khacane havia morrido choraram todos, os
pequenos nas escolas, os homens nas mesquitas e as mulheres em casa.
O moço Nureddine aprontou logo o pai para ser sepultado, e ao funeral
vieram os emires, os vizires, os dignitários do reino, ninguém faltou, e
vieram por inteiro os habitantes da cidade. O moço havia aprontado o mais
pomposo funeral para o pai, e ao o enterrarem, um poeta declamou uma
elegia na qual disse estes versos:
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se o rei me poupar e eu viver.»
207.ª Noite
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se o rei me poupar e eu viver.»
208.ª Noite
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se o rei me poupar e eu viver.»
209.ª Noite
Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que Nureddine disse de si para si: «Se
este é um bastardo e me virou costas, outro haverá que o não seja.» Ao
depois, foi à segunda porta, bateu e veio uma das criadas, e ele disse o
mesmo que havia dito à primeira. Então a rapariga desapareceu e em
tornando disse-lhe: «Meu senhor, ele não está aqui.» [Nureddine] Ali sorriu
e disse de si para si: «Talvez com outro encontre solaz.» Ao depois, foi à
terceira porta, dizendo de si para si: «Faz o que fizeste com o primeiro.»
Mas este também lhe virou costas. E logo [Nureddine] Ali arrependeu-se de
haver vindo, e ao depois chorou, lamentando-se e declamando:
Ao depois, [Nureddine] Ali volveu à sua rapariga, estando cada vez mais
atormentado. E ela disse-lhe: «Senhor meu, percebes agora o que te disse?»
E disse ele: «Valha-me Deus, nem um só se quis encontrar comigo ou me
receber.» E ela disse-lhe: «Senhor meu, vende alguma da mobília e da loiça
de casa enquanto Deus Todo-Poderoso e Glorioso não nos ajude.»
Então ele pôs-se a vender as coisas da casa uma a uma para subsistir, até
que lhes não sobrou coisa alguma. Nessa altura olhou para Anice Aljalice e
disse-lhe: «Que nos sobra para vendermos?» E ela disse-lhe: «Senhor meu,
é minha opinião que agora mesmo me leves ao mercado para me venderes.
Tu sabes que o teu pai me comprou por dez mil dinares, e talvez Deus
Todo-Poderoso e Glorioso te auxilie com um valor próximo deste. E se Ele
Todo-Poderoso e Glorioso decretar depois disso que nos tornemos a reunir,
então reunir-nos-emos.» Ao que ele lhe disse: «Ó Anice Aljalice, valha-me
Deus, não me consigo separar de ti por um momento que seja.» E ela disse-
lhe: «Por amor de Deus, nem eu, mas a necessidade a isso obriga, tal como
disse um poeta:
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
tão estranha, e tão espantosa», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade
respondeu: «Isto nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei,
na próxima noite. Se o rei me poupar e eu viver, será ainda mais estranho.»
210.ª Noite
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se o rei me poupar e eu viver.»
211.ª Noite
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se o rei me poupar e eu viver.»
212.ª Noite
Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o vizir Almuíne ibn Saui disse ao
rei: «Ele olhou para mim e disse: “Ó velho calamitoso, prefiro vendê-la a
nazarenos ou a judeus do que a ti.” Então disse-lhe: “É assim que
recompensas nosso amo, o rei, por cuidar de mim e do teu pai através da
sua graça?” Em ele ouvindo as minhas palavras, ergueu-se contra mim,
puxou-me da minha cavalgadura abaixo – sendo que eu sou um velho
entrado em anos – e bateu-me até me deixar neste estado. E isto que me
aconteceu foi tudo porque procuro o bom conselho para o senhor meu rei.»
Em seguida, o vizir lançou-se ao chão, chorando, tremendo, e fingindo
perder os sentidos.
Em o rei vendo o seu estado e havendo ouvido o que ele havia dito, ficou
com a testa franzida de raiva. E ao depois virou-se para os dignitários do
reino, e eis que havia quarenta espadachins ao serviço, e então disse: «Ide a
casa de Ibn Khacane, pilhai-a e arrasai-a, atai-lhe as mãos atrás das costas e
arrastai-o, a ele e à rapariga, até que ambos sejam trazidos à minha
presença.» E eles disseram: «Às suas ordens.» E apetrecharam-se para irem
a casa de Nureddine Ali ibn Khacane.
Ora, ante o rei estava um camarista que dava pelo nome de Alameddine
Sanjar, e que havia sido um dos mamelucos de Fadleddine ibn Khacane,
que depois havia sido transferido, havendo o rei feito dele camarista. E em
ele vendo naquele momento os inimigos preparando-se para matarem o
filho do seu [antigo] amo, não se conteve. Retirou-se de ante o rei e,
montando, cavalgou vigorosamente até chegar a casa de Nureddine Ali ibn
Khacane. Bateu à porta, e em Nureddine vindo ver quem era encontrou
Sanjar, o camarista, e cumprimentou-o, mas ele disse: «Nureddine, não é
tempo propício para saudações e muito menos para si, tal como disse o
poeta:
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se o rei me poupar e eu viver.»
213.ª Noite
Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o ancião disse: «Ide vós buscar o
que precisais.» Então Nureddine percorreu as despensas e os louceiros, do
primeiro ao último, e tirou tudo aquilo de que precisava e queria, enquanto
o ancião foi buscar toda a sorte de frutas, flores aromáticas, e demais coisas,
e a rapariga tratou de arrumar as loiças do banquete, organizando as taças e
jarras de servir, os oiros e as pratas, os maiores e os mais pequenos, os
pratos para servir os frutos secos, e quanto à fruta havia-a de todas as sortes,
e em o banquete estando pronto, sentaram-se a conviver e a beber. Então
Nureddine Ali encheu um copo, olhou para a sua rapariga Anice Aljalice, e
disse-lhe: «Abençoado seja o caminho que fizemos que nos trouxe a este
jardim!» Ao depois, declamou estes versos:
Então, o califa disse: «Ó Jáfar, jamais na minha vida ouvi alguém cantar
assim.» Então Jáfar, percebendo que o califa estava apaziguado, disse: «O
miralmuminim disse a verdade;» e desceram ambos da árvore. Em seguida,
o califa disse a Jáfar: «Quero sentar-me com eles e ouvir a moça cantando à
minha frente.» Ao que Jáfar disse: «Se entrarmos, vamos estragar a festa
deles e num pronto o ancião morre de medo.» E o califa disse: «Não vou
deixar que ele me reconheça.»
Ao depois, o califa deixou Jáfar no sítio onde estava, e aproximou-se da
banda que dava para o rio Tigre, e enquanto pensava no que haveria de
fazer, encontrou um pescador pescando abaixo do palácio.
Ora, certa feita o califa ouvira um ruído e perguntara ao ancião Ibrahim,
o caseiro: «O que é este ruído?» E ele dissera: «São pescadores, ó
miralmuminim.» Ao que o califa disse: «Se alguma vez abrires a porta aos
pescadores, crucifico-te.» E assim proibira ele os pescadores. Mas naquela
noite, o pescador que mencionámos, chamado Carime, calcorreava pela
noite, e eis que encontrou a porta do jardim aberta, e disse de si para o seu
âmago: «Parece que o caseiro adormeceu e se esqueceu da porta aberta.
Deixa-me levar a rede, aproveitar-me da sua distração, e ir pescar abaixo do
palácio, pois a esta hora não há chinfrim e o peixe anda mais tranquilo.»
Conta-se, ó rei bem-aventurado, que ao dizer o que o vizir Ibn Saui disse
ao rei, este disse-lhe: «Entrego-to a ti», e entregou-o ao vizir, que o levou
para o seu palácio, e ao lá chegar gritou aos seus serventes: «Deitai-o no
chão.» Assim fizeram eles e bateram em [Nureddine] Ali até este perder a
consciência. O vizir acorrentou-o e prendeu-o, e gritou ao carcereiro, que
dava pelo nome de Cutaite93: «Ó Cutaite, leva-o para as escuras e húmidas
masmorras e castiga-o!» E ele castigou-o noite dentro, até que Nureddine
perdeu a consciência, e em acordando pela noite chorou e pôs-se a dizer
uma poesia:
Nureddine sofreu desta guisa por dez dias, até que o vizir o quis
decapitar, e então pegou em presentes e deu-os a um grupo de beduínos
desconhecidos, dizendo-lhes: «Oferecei estes presentes ao rei.» E eles os
levaram ante o rei, e o vizir disse: «Amo nosso, estes presentes não são para
si, mas são para o novo rei.» Então o rei disse: «Fizeste-me lembrar dele.
Trá-lo e decapitemo-lo.» E o vizir disse: «Eu, quando naquele dia me
bateram, fui vexado pelos meus inimigos, e se me der licença que mande
apregoar pela cidade “Quem quiser assistir à decapitação de Ali ibn
Khacane, que venha ao palácio real,” e assim virá meio mundo e mais
algum, então serei vingado e o meu coração ficará curado.»
Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o califa numa noite de entre noites
cruzava o palácio e eis que ouviu alguém dizer:
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite.
Se ele me poupar e eu viver, será ainda mais estranho e espantoso!»
230.ª Noite
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se eu ainda for viva.»
233.ª Noite
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana, e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu:
«Isto nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima
noite. Se o rei me poupar e eu viver, será ainda mais estranho!»
235.ª Noite
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana, e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu:
«Isto nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima
noite, se eu viver.»
236.ª Noite
Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que a mãe de Jullanar foi ter com o rei
para lhe dar a boa nova do recém-nascido, e que o rei se regozijou, que
dando graças a Deus Todo-Poderoso se prostrou, e que trajes de honra
outorgou, que presentes e dinheiro ofertou. Então perguntaram-lhe: «Como
lhe vais chamar?» E ele disse: «Chamai-lhe Badr»102. E Badr lhe
chamaram.
Ao depois, o rei ordenou aos camaristas e emires que mandassem decorar
a cidade. Libertaram os presos, vestiram os órfãos e as viúvas, foram dadas
esmolas, fizeram soar os tambores que anunciavam as boas novas e foi
preparado um colossal banquete, ao qual vieram tanto nobres como povo.
Os escravos, escravas e mamelucos foram alforriados, e continuaram em
festa por dez dias.
Ao décimo primeiro dia, estava o rei sentado à banda de Jullanar, e do
seu irmão, mãe e primas, todos juntos, e o irmão de Jullanar pegou no
recém-nascido Badr, pôs-se a brincar e a dançar com ele, e ergueu-o no ar
com os braços, enquanto o rei e Jullanar olhavam felizes para o seu filho.
Então, sem eles darem por isso, voou com ele janela fora, e, indo para o
meio do mar, mergulhou com o pequeno nas mãos. Em o rei vendo que o
seu filho havia sido levado pelo tio, e que havia mergulhado desaparecendo
da sua vista, largou um berro tremendo, a sua alma quase lhe abandonou o
corpo, e rasgou as roupas, bateu na sua própria cara, e chorou
desalmadamente. Em Jullanar o vendo, disse: «Ó rei dos tempos, não tenhas
medo nem te entristeças pelo teu filho. Eu amo-o mais do que tu, e ele está
com o meu irmão, que não se aflige com o mar nem tem medo de se afogar,
e se ele soubesse que o pequeno estaria em perigo não teria feito o que fez.
Em breve ele voltará com o teu filho, os dois sãos e salvos, se Deus quiser.»
Poucos momentos haviam passado, e eis que o mar se encapelou, agitando-
se e rasgando-se, e de lá saiu Sayih, o tio do pequeno, com o filho do rei são
e salvo, e Sayih voou do mar até junto deles, trazendo pela mão o pequeno,
que estava sereno qual a Lua.
Ao depois, Sayih, tio do pequeno, olhou para o rei e disse-lhe: «Espero
que não tenhas ficado com medo quando mergulhei no mar com ele.» E o
rei disse-lhe: «Valha-me Deus, claro que sim, Sayih, pensei que ele jamais
se salvaria.» E ele disse: «Ó rei, levei-o para lhe delinear os olhos com um
kohl103 que nós conhecemos e sobre o qual recitámos nomes que estavam
escritos no anel de Salomão filho de David, pois quando uma criança nasce
entre nós…»
»E, ó rei dos tempos, se nos quedássemos ao teu serviço por mil anos,
não conseguiríamos retribuir-te.» O rei, ao ouvir tais palavras, agradeceu-
lhe do fundo do coração.
Eles quedaram-se com o rei por quarenta dias, findos os quais veio Sayih,
irmão de Jullanar, beijou o chão ante o rei, e disse: «Ó rei dos tempos,
honraste-nos tu e tanto te pesamos nós; agora é nossa vontade pedir à tua
bondade que nos dês licença, porque temos saudades das nossas famílias,
próximos e terras, mas não deixaremos de te servir e à nossa irmã Jullanar
porque, valha-me Deus Todo-Poderoso, não apraz ao meu coração que me
separe de vós – mas que poderíamos fazer se fomos criados no mar e não
nos apraz a firme terra?» Em o rei ouvindo as palavras dele, levantou-se
logo e do moço se despediu, das primas e da mãe, e Jullanar despediu-se
deles, e choraram entre si pela dura separação, mas eles disseram: «Não
tarda muito já cá estaremos outra vez convosco.» E deram um salto em
direcção ao mar, mergulhando nele e da vista desaparecendo. O rei ficou
muito impressionado com aquilo, e por isso nunca deixou de respeitar
Jullanar, sendo sempre bondoso com ela. Entretanto o pequeno crescia e era
levado aos ombros dos criados, e o rei amava-o muito, porque ele era
formoso, e quanto mais crescia mais belo se tornava. E muitas vezes o tio, a
avó e as primas visitavam o rei e se quedavam por um mês ou dois, e depois
abalavam.
Badr foi crescendo, e ao perfazer quinze anos era inigualável entre as
gentes do seu tempo, por via da sua irradiante beleza e perfeita lindeza, e já
havia aprendido caligrafia, história, sintaxe, lexicografia, e o Alcorão, assim
como tiro com arco e lançamento de lanças.
Ao ouvir as palavras do irmão, ela disse-lhe: «Tens razão, mano, mas diz-
me quem é essa rapariga, como se chama, e de quem é filha, pois eu
conheço todos os reis do mar e as suas filhas, e se eu vir que ela é digna,
pedirei a sua mão ao pai dela, mesmo que tenhamos de gastar todas as
nossas posses. Diz-me quem é ela, que o meu filho está a dormir.» Ele
disse: «Receio que esteja acordado, e eis o que diz o poeta:
Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que Sayih disse à sua irmã Jullanar:
«… dentes quais pérolas e olhos negros, ancas largas e cintura magra, com
um rosto lindo, e quando se vira envergonha as gazelas, e se se bamboleia
faz inveja a todas elas, a sua boca é melosa e o seu corpo tem uma
flexibilidade viçosa.» Em ouvindo as palavras do seu irmão, ela disse-lhe:
«Tens razão, mano, estive com ela muitas vezes, pois era minha amiga
quando éramos pequenas, mas vai para dezoito anos que a não vejo. Por
amor de Deus, ninguém é digna dele senão ela e ninguém é digno dela
senão ele.»
Ora, o rei Badr estava acordado, e em ouvindo as palavras de seu tio e de
sua mãe, as descrições feitas sobre esta princesa Jauhara, filha do rei
Xamândal, enamorou-se por via do que ouvia, enquanto dormir fingia, e por
esta rapariga ficou com um fogo no coração que se não apagava e uma
chama que se não acalmava. Em seguida, Sayih olhou para a sua irmã
Jullanar e disse-lhe: «Não há entre os reis do mar e da terra ninguém mais
cretino que o pai dela, nem mais tirano, orgulhoso e colérico, pois isso não
fales desta rapariga ao teu filho até pedirmos a mão dela ao seu pai, e se ele
a conceder, louvemos o decreto de Deus Todo-Poderoso, e se ele nos afastar
e recusar casar a filha com o teu filho, teremos calma e arranjaremos outra
noiva para ele.» E em a irmã ouvindo aquelas palavras, disse: «Que óptima
ideia!» E não falaram mais no assunto, enquanto o rei passou aquela noite
com o coração em fogo, tal era a paixão pela princesa Jauhara, mas absteve-
se de falar e não conversou sobre ela com a mãe ou o tio, apesar de sentir
como se estivesse em cima de brasas.
Ao amanhecer, o rei e o tio foram aos banhos, lavaram-se e saíram para
comer e beber vinho. Foi-lhes posta a mesa, e o rei Badr, a sua mãe, o tio e
todos os demais comeram até se fartarem e lavaram as mãos. Em seguida, o
jovem Sayih levantou-se e disse ao rei Badr e à sua irmã: «Terei saudades
vossas, mas com vossa licença tenciono partir para junto da mãe, pois já há
uns dias que estou convosco, e ela está preocupada comigo e à minha
espera.» Então o rei despediu-se do seu tio Sayih, mas estando o seu
coração em chamas foi montar a cavalo e seguiu caminho até chegar a um
rio com água abundante, numa planície de denso arvoredo e sombra
abundante. Então apeou-se do cavalo, sendo que não estava ninguém com
ele do seu séquito ou criadagem, e quis dormir, mas ao lembrar-se do que o
seu tio Sayih havia mencionado sobre o assunto da rapariga, e de quanta
beleza e formosura havia nela, chorou abundantes lágrimas.
Ora, quis o destino que em ele se despedindo do seu tio Sayh e ido
montar a cavalo, o seu tio ao olhar para ele viu que o seu rosto estava
pálido, e ficando com medo que o moço houvesse ouvido a conversa deles,
disse de si para si: «Vou seguir o rei Badr para ver o que faz,» e assim fez. E
em o rei Badr apeando-se junto à água do rio, o tio escondeu-se num lugar
para não ser descoberto, e ouviu-o declamar:
Em o seu tio Sayih ouvindo a poesia dele, bateu com uma palma da mão
na outra e disse: «Não há força nem poder senão em Deus Altíssimo e
Grandioso!» Então, revelou-lhe a sua presença e disse-lhe: «Sobrinho, ouvi
o que estavas a dizer. E tu ouviste a minha conversa com a tua mãe sobre
Jauhara e a minha descrição dela, não foi?» E o rei Badr disse: «Sim, tio, e
enamorei-me dela por via do que ouvi, pois escutei a vossa conversa. Agora
o meu coração foi tomado por ela e já não há volta a dar!» O tio disse-lhe:
«Ó rei, voltemos para junto da tua mãe para lhe dar conta da situação. Vou-
lhe dizer que te levo comigo para eu pedir que a princesa Jauhara se case
contigo. Assim, nós os dois voltamos para nos despedirmos de tua mãe e ela
saberá o que se passa, porque eu receio levar-te comigo sem a consultar e
sem sua permissão, para que ela me não censure, e com razão, porque seria
eu a causa da vossa separação e a cidade se quedaria sem rei, e o povo
ficaria sem quem o governasse e dele cuidasse, o que vos arruinaria aos
dois, levando a que o reino se vos escapasse das mãos.» Em o rei Badr
ouvindo as palavras do tio, disse-lhe: «Tio, fique sabendo que não volto
para ir ter com a minha mãe e a consultar sobre este assunto, porque sei que
se o fizer e a consultar, ela não me deixará partir consigo, e por isso não
volto.» E pondo-se a chorar à frente do tio, disse-lhe: «Parto consigo agora
mesmo sem nada dizer à minha mãe e falo com ela mais tarde quando
voltar.» Em o tio ouvindo as palavras do sobrinho, ficou atarantado e disse:
«Seja como for, que Deus Todo-Poderoso venha em nosso auxílio!» Ao
depois, em o seu tio Sayih vendo que…
Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o rei Badr disse ao seu tio: «Tenho
mesmo de ir contigo!» Então o tio sacou do seu dedo um anel onde estavam
gravados vários dos nomes de Deus Todo-Poderoso, estendeu-o ao rei Badr
e disse-lhe: «Põe este anel no dedo para te protegeres, enquanto mergulhas,
dos perigos das feras do mar e das baleias.» O rei pegou no anel e pô-lo no
dedo. Em seguida mergulharam os dois no mar, e seguiram caminho até
chegarem ao palácio do seu tio Sayih. Ao entrarem, o rei Badr viu a sua avó
sentada com os familiares dela. Ao entrar, cumprimentou-a e beijou-lhe a
mão, e ela em o vendo levantou-se, abraçou-o, beijou-o entre os olhos, e
disse-lhe: «Filho, abençoada seja a tua vinda. Como está tua mãe Jullanar?»
E ele disse-lhe: «Avó, está bem e manda cumprimentos a si e às primas.»
Em seguida, Sayih deu parte à sua mãe de que o rei Badr estava enamorado
de Jauhara, filha de Xamândal, por via do que tinha ouvido, e tudo lhe
contou de fio a pavio. «E ele veio ter connosco para que eu a peça em
noivado ao pai, para se casar com ela.»
Em a avó do rei Badr ouvindo as palavras de Sayih, ficou incomodada e
tomou-se de fúrias, e disse: «Filho, foi um erro teres mencionado essa
princesa Jauhara, filha do rei Xamândal, à frente do filho da tua irmã,
porque tu sabes que Xamândal é um cretino tirânico, com pouco senso e
muito colérico, e todos os reis já lhe pediram a filha em casamento, e ele a
todos recusou dizendo: “Vós não vos assemelhais à minha filha nem em
beleza nem em realeza”, e repudiou-os. Receio que se pedires a sua mão ao
pai ele te vá dizer o mesmo que disse a todos os outros. Nós temos amor-
próprio e ficaríamos devastados e envergonhados.» Em Sayih ouvindo as
palavras da sua mãe, disse-lhe: «Ó mãe, que devemos fazer? A verdade é
que o rei Badr enamorou-se desta rapariga quando a mencionei a minha
irmã Jullanar, e disse que tem mesmo de a pedir em casamento ao pai,
mesmo que esbanje todo o seu reino, e se o pai dela não a quiser dar em
casamento, então ele morre de amor e paixão por ela!»
Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que Sayih disse à sua mãe: «Fique
sabendo que o filho da minha irmã é mais belo que ela, e o seu pai era rei de
todos os Persas, e agora é ele o rei dos Persas, e ninguém é digno dele senão
Jauhara e ninguém é digno dela senão ele. Tenciono levar jóias, rubis e
colares, um presente que seja digno dele, para pedir a mão de Jauhara. Se
ele contestar a nossa realeza, também o rei Badr é rei, por sinal bem
formoso, com mais território, guardas e soldados, e um reino mais vasto.
Tenho mesmo de me empenhar em satisfazer o seu desejo, mesmo que me
custe a vida, pois eu sou a causa desta situação, e tal como o lancei nos
mares do amor, vou empenhar-me em reuni-lo com a rapariga, e que nisso
Deus Todo-Poderoso me ajude.» Então a mãe disse-lhe: «Faz o que
quiseres, mas ai de ti se o enfureceres com o que lhe disseres e responderes,
porque tu sabes bem quão cretino e colérico ele é, e receio que ele arremeta
contra ti, visto que não respeita ninguém.» Ao que ele respondeu: «Às suas
ordens.»
Em seguida, pegou em duas malas cheias de colares, jóias, rubis,
esmeraldas em forma de missangas cilíndricas, pedras preciosas talhadas
para anéis, e diamantes, e levou-as aos criados para que as carregassem,
seguindo viagem com eles até chegar ao palácio do rei Xamândal, onde
pediu licença para ser recebido, havendo-lhe sido a licença dada. Em
estando ante o rei, beijou o chão e cumprimentou-o com as melhores
maneiras. Em o rei o vendo, levantou-se para o receber e ordenou-lhe que
se sentasse. Em ele estando já devidamente sentado, disse-lhe o rei
Xamândal: «Abençoada seja a tua vinda. Senti saudades tuas durante todo
este tempo em que te não vi. O que quer que precises, diz-me, e eu tratarei
do assunto.»
Então Sayih levantou-se, beijou o chão e disse: «Ó rei dos tempos, antes
de tudo preciso de Deus Todo-Poderoso, e em seguida do rei munificente e
leão valente, o qual por via da sua justiça os cameleiros levam a sua fama a
toda a parte e espalham os relatos dos seus feitos por todas as cidades e
províncias, tal é a sua generosidade, bondade, indulgência e benevolência.»
Ao depois, Sayih abriu as duas malas e delas sacou as valiosas jóias, os
colares, os rubis talhados para anéis, as esmeraldas em forma de missangas
cilíndricas e os diamantes, dispôs tudo ante o rei Xamândal, e disse:
«Talvez vossa alteza me faça o obséquio de aceitar este meu presente, o que
muito alegraria o meu coração.» Então disse-lhe o rei Xamândal: «Não há
razão para este presente! O que te levou a oferecer-me tamanho tesoiro? O
que queres em recompensa? Explica-me o teu caso e diz-me o que precisas,
e se estiver ao meu alcance, tratarei do assunto agora mesmo, sem ser
necessário que te entregues a mais canseiras e fatigas. E se não estiver ao
meu alcance, serei desculpado, pois ‘Deus não incumbe a alma alguma
senão o que é de sua capacidade’105.» Então, Sayih levantou-se, beijou o
chão e disse: «Ó rei, sem dúvida que o que eu preciso está ao seu alcance e
é propriedade sua, pois vossa alteza é o seu dono, e eu nunca incumbiria
vossa alteza de algo que não estivesse ao seu alcance, pois não sou doido
para tal.»
Então, em a sua filha Jauhara ouvindo que seu pai havia sido capturado e
que os seus guardas e acólitos haviam sido mortos, fugiu do palácio para
uma ilha, e em dando com uma árvore alta, escondeu-se nela. Ora, aquando
da batalha entre aqueles dois clãs, um dos criados de Sayih foi ter com a
mãe deste e deu-lhe parte do sucedido. Em o rei Badr ouvindo aquilo, fugiu
temendo pela sua vida, e disse de si para si: «Esta barafunda é toda por
minha causa e vão querer que eu responda por isso.» Então fugiu sem saber
aonde se dirigia, e quis o destino que fosse dar à mesma ilha na qual estava
a princesa Jauhara, e chegando fatigado à árvore na qual estava a princesa
Jauhara, botou-se debaixo dela como se estive morto e quedou-se a
descansar. Ao depois, estendeu-se de costas para baixo, e ao olhar para a
árvore, os seus olhos deram com a princesa Jauhara. Ao olhar para ela, que
era qual a Lua brilhante, disse de si para si: «Glória a Deus que criou esta
magnífica forma! Não posso acreditar que seja outra que não a princesa
Jauhara! Penso que ela em ouvindo sobre a guerra levada a cabo entre o pai
dela e o meu tio fugiu para esta árvore. Se não for a princesa Jauhara, então
é uma moça ainda mais bela que ela!» Ficou a pensar sobre a situação dela,
e disse de si para si: «Vou agarrar nela para a questionar, e se for ela peço a
sua mão directamente, pois esse é o meu desejo!»
Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o rei Badr disse de si para si: «…
ou um quilate que fosse da sua formosura.» Ao depois, a rapariga abraçou-
o, e pronunciando palavras que o rei Badr não compreendia, cuspiu-lhe na
cara, e disse-lhe: «Ó canalha execrável, sai dessa forma humana e toma a de
pássaro, e que seja a do mais belo dos pássaros, com penas brancas, e bico e
patas vermelhas.» E mal acabou de falar, eis que o rei Badr, tão rapidamente
quanto um relâmpago, mudou da sua forma para a de um pássaro branco,
com a mais bela feição, e pôs-se especado em pé a olhar para a princesa
Jauhara. E com ela estava uma rapariga das suas criadas, a quem ela disse:
«Valha-me Deus, não receasse eu por meu pai estar cativo do seu tio, tê-lo-
ia matado. Que Deus nunca o compense com o bem nem lhe dê saúde! Que
grande azar ele nos ter encontrado, pois toda esta barafunda se deve a ele.
Olha, ó rapariga, pega nele e leva-o para a Ilha da Sede, deixa-o lá e vem ter
comigo rapidamente.»
Então a criada pegou nele, estando ele em forma de pássaro, e dirigiu-se
para a Ilha da Sede, e pô-lo lá, mas estando prestes a regressar, disse a si
mesma: «Valha-me Deus, esta beleza e formosura não merece ser
aniquilada pela sede.» Então levou-o daquela ilha para uma outra, que era
grande, com vegetação verdejante e abundante em água e fruta. Ela pô-lo lá,
tornou à princesa Jauhara e deu-lhe parte de que havia feito o que lhe fora
pedido107.
E isto foi o que aconteceu com aqueles, já no que toca a Sayih, tio do rei
Badr, em conquistando o reino de Xamândal, matado os seus guardas e
criados, e havendo-o feito prisioneiro, procurou a sua filha Jauhara, mas
não a encontrou. Então tornou ao seu palácio, o palácio da sua mãe, e disse-
lhe: «Mãe, onde está o filho da minha irmã, o rei Badr?» E ela disse-lhe:
«Valha-me Deus, não tenho ideia alguma, meu filho, nem sei aonde foi,
pois em ele ouvindo que tu combatias Xamândal e que a guerra decorria
entre vós, temeu pela sua vida e fugiu.» Em Sayih ouvindo as palavras da
mãe ficou extremamente triste e disse: «Ai, mãe, para nada serviu o que
fizemos! A mãe foi negligente para com o rei Badr, e eu receio que ele seja
aniquilado, ou que um dos soldados do rei Xamândal ou a sua filha Jauhara
dê com ele e o matem, e nada de bom decorrerá entre nós e a mãe dele,
porque eu o levei sem o consentimento dela.»
Ao depois, mandaram soldados e guardas no seu encalço pelas várias
regiões do mar, mas estes não deram com rasto algum dele nem ouviram
novas boas ou más, e então tornaram a Sayih e deram-lhe conta da situação,
deixando-o ainda mais triste e amargurado. Então Sayih sentou-se no trono
de Xamândal, que era seu prisioneiro, mas o seu coração estava apertado
pela tristeza por mor do rei Badr.
E isto foi o que aconteceu com estes.
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana, e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu:
«Isto nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima
noite, se o rei me poupar e eu viver.»
256.ª Noite
Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que a mulher do rei informou o rei que
aquele pássaro era o rei Badr, dono do reino persa, e que a sua mãe era
Jullanar do Mar, e o seu tio, pela parte da mãe, era Sayih, e a sua avó era
Faraxa, e que a princesa Jauhara, filha do rei Xamândal, o havia encantado.
Ademais contou-lhe tudo de fio a pavio, como havia pedido Jauhara em
noivado ao seu pai, como este havia recusado, e como o seu tio Sayih e o
rei Xamândal lutaram em batalha, havendo Sayih saído vencedor e
capturado Xamândal. Ora, em o rei ouvindo as palavras da sua mulher ficou
espantando, e sendo a sua mulher a maior feiticeira do seu tempo, disse-lhe:
«Pela minha vida, tens de arranjar forma de o desencantar e não o deixar a
sofrer sob esta forma de pássaro. Que Deus corte a mão a essa puta da
Jauhara! Não podia ter menos escrúpulos nem a sua astúcia ser maior!» E
disse-lhe a sua mulher: «Ó rei, diz ao pássaro: “Ó rei Badr, entra na
despensa.”» E o pássaro em ouvindo as palavras do rei entrou na despensa.
Ao depois, a mulher do rei vestiu um manto, cobriu o rosto, pegou numa
taça de água, sobre a qual pronunciou palavras que ninguém compreendia e
borrifou-o, dizendo-lhe: «Pela virtude destes poderosos nomes, destes
sagrados e nobres conjuros, por Deus Todo-Poderoso, Criador dos céus e da
Terra, que ressuscita os mortos, distribui as provisões e decide o tempo de
vida de cada um, sai dessa forma de pássaro na qual te encontras, e torna
para a forma com a qual Deus te formou.» E mal acabou de falar, eis que o
pássaro se sacudiu vigorosamente e virou forma humana, e então o rei viu
um jovem como não havia mais belo à face da Terra.
Ao depois, em o rei Badr vendo tal coisa, disse: «Glória a Deus, o
Criador das criaturas que decreta os acontecimentos!» Em seguida, o rei
Badr beijou a mão e os pés do rei, e disse-lhe: «Que Deus o recompense
com o bem.» E o rei beijou o rei Badr na cabeça e disse-lhe: «Badr, conta-
me a tua história de fio a pavio.» Então o rei Badr contou-lhe a sua história
toda, sem nada lhe esconder, deixando o rei espantado até mais não. Ao
depois, o rei disse-lhe: «Que tencionas fazer, ó rei Badr?» E ele disse: «Ó
rei dos tempos, peço à tua bondade que me prepare uma embarcação e que
venham comigo alguns serventes teus e o que for que me faça falta, para eu
ficar equipado para a viagem de regresso ao meu reino e país, pois já há
algum tempo que estou longe da minha mãe, família e reinado, e receio que
se me delongar mais ficarei sem o meu reino, e por mor da minha ausência
não sei se a minha mãe está viva, o mais certo é ter morrido de desgosto por
não saber onde estou, nem se estou vivo ou morto, e se tu meu senhor real
tiveres a amabilidade…»
Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o rei Badr pediu ao rei e à sua
mulher que tivessem a bondade de o equipar para viajar. Em o rei vendo a
sua eloquência, elegância, e beleza, sentiu afecto por ele e disse: «Às tuas
ordens.» Então, equipou uma embarcação com tudo o que fizesse falta ao
rei Badr, enviando com ele um grupo dos seus serventes favoritos, e
despediu-se dele.
O rei Badr subiu a bordo da embarcação e viajou por dez dias seguidos
no mar com bons ventos e bons ares, mas ao décimo primeiro dia fortes
ventos se abateram, agitando o mar tempestuosamente, e a embarcação se
erguendo a tal ponto que os marinheiros já a não conseguiam dirigir. Ao
depois, continuavam eles nestes modos, à deriva das ondas, quando a
embarcação se aproximou de uma rocha, bateu contra ela e se quebrou.
Quem se afogou, afogou-se, quem se salvou, salvou-se, e após haver estado
à beira da morte, o rei Badr subiu para uma tábua solta da embarcação,
enquanto as ondas o não cessavam de erguer e derribar, sem ele saber para
onde ia ou se dirigia, e sem nada poder fazer contra a força das ondas
continuou seguindo ao sabor dos ventos. E assim foi por três dias e noites, e
ao quarto dia as ondas botaram-no numa costa. Então, o rei Badr, olhando à
roda, viu uma cidade branca qual um pombo forte e corpulento, plantada à
beira-mar, com belos edifícios e altos muros, contra os quais as ondas
batiam.
Em o rei Badr vendo aquela cidade exultou de alegria, pois estava à beira
da morte, tal era a fome e a sede. Desceu da tábua com intenções de entrar
na cidade, mas apareceram-lhe mulas, burros e cavalos, tão numerosos
quanto os grãos da areia, e puseram-se a pontapeá-lo, impedindo-o de sair
do mar para chegar àquela cidade. Então, ele nadou até outra banda da
cidade, alcançando terra firme, e nela não vendo vivalma, espantou-se e
disse de si para si: «Pergunto-me a quem pertence esta cidade, que se
passará com ela para não ter gente nem rei, e que história vem a ser esta
destes cavalos, camelos, mulas, burros e vacas me impedirem de entrar na
cidade», e sem saber para onde ia caminhou pensativamente até que avistou
um ancião.
Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o rei Badr avistou um ancião, que
estava na sua loja, onde era vendedor de favas, e cumprimentou-o. O ancião
ergueu a cabeça e retribuiu-lhe o cumprimento, e ao olhar para o rei Badr,
ao ver que o seu rosto era belo, disse-lhe: «Ó moço, donde vieste e o que te
trouxe até esta cidade?» Então ele contou-lhe a sua história toda e o ancião,
deveras espantado, perguntou-lhe: «Filho, viste alguém no teu caminho?» E
ele disse-lhe: «Não, valha-me Deus, paizinho, estou espantado por não
haver ninguém nesta cidade.» E o ancião disse-lhe: «Filho, entra nesta loja
senão podes perder a vida.»
Então o rei Badr entrou e sentou-se na parte nobre da loja. Veio o ancião
e trouxe-lhe algo para comer, e disse-lhe: «Filho, come e vai para o interior
da loja. Glória Àquele que te salvou desta diaba!» Então, o rei Badr ficou
varado de medo, e após comer até se fartar e lavar as mãos, virou-se para o
ancião e disse-lhe: «Senhor, qual a razão da suas palavras? Deixou-me com
medo desta cidade e dos seus habitantes.» E o ancião disse-lhe: «Filho, fica
sabendo que esta cidade dá pelo nome de Cidade dos Feiticeiros, e tem uma
rainha que é uma rapariga tão feiticeira quanto a Lua, e as bestas que viste,
todas elas são seres humanos tal com eu e tu, mas estão encantados, pois
todo aquele que entra nesta cidade e é jovem como tu, esta feiticeira infiel
pega nele e dele desfruta por quarenta dias, ao cabo dos quais…»
Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o ancião disse ao rei Badr: «Ela até
à sua família pode fazer mal, mas a mim não faz. Então não viste os seus
soldados e séquito, como pararam à porta da minha loja para me
cumprimentar? Por amor de Deus, filho, esta infiel nem os reis ela gosta de
cumprimentar, mas sempre que passa neste sítio cumprimenta-me e
conversa comigo tal como viste e ouviste.»
Dormiram aquela noite, e em a manhã amanhecendo veio a rainha Lab,
trazendo à sua roda as suas raparigas, os mamelucos e os eunucos, de
espadas e lanças em riste. Parou à porta da loja do ancião e cumprimentou-
o, e ele retribuiu-lhe o cumprimento, e levantou-se e beijou o chão. Então,
ela disse-lhe: «Paizinho, cumpre o que prometeste e despacha-te a fazê-lo.»
O ancião disse: «Jura uma vez mais que lhe não vais fazer mal, nem
encantá-lo ou fazer algo de que ele não goste.» E ela jurou-lhe uma vez
mais por aquilo em que tinha fé. Ao depois, ela descobriu o rosto, que era
qual a Lua, e disse: «Paizinho, tanto complicas em me dares o teu sobrinho
formoso! Não sou eu mais bela que ele?» Então o rei Badr viu quão bela era
ela, ficou com a razão atarantada e disse para consigo: «Valha-me Deus, ela
é mais bela que a princesa Jauhara! Se ela se casar comigo, deixo o meu
reino, quedo-me com ela e não volto para a minha mãe. A verdade é que
depois de desfrutar dela na cama por quarenta dias e noites, já nem vou
querer saber se ela me mata ou encanta. Valha-me Deus, qualquer noite com
ela vale uma vida inteira!»
Em seguida, o ancião agarrou na mão do rei Badr e disse à rainha: «Vou
entregar-te o meu sobrinho que se chama Badr, mas vais tu devolver-mo tal
como o levaste, sem que haja sofrido maus-tratos e sem o separares de
mim?» Então ela, pela terceira vez, jurou-lhe que lhe não faria mal nem o
encantaria. Ao depois, ordenou que lhe dessem um formoso cavalo, com
um sela em que tudo era de oiro, e ao ancião ofereceu mil dinares.
Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que a rainha Lab pegou no rei Badr
pela mão e saíram dos banhos acompanhados pelas criadas, e foram ao
salão de banquetes, onde se sentaram um tempo a descansar. Então,
trouxeram-lhes a comida, e depois de comerem lavaram as mãos.
Levantaram as mesas e trouxeram-lhes o serviço de vinho, bem como fruta,
flores e frutos secos. Continuaram a beber até ao final da tarde, enquanto as
raparigas cantavam variadas canções e melodias. E continuaram a comer, a
beber, aos beijos e na farra por período de quarenta dias. Ao depois, ela
disse-lhe: «Ó rei Badr, o que é melhor, este sítio ou a loja do teu tio,
vendedor de favas?» Ele disse-lhe: «Não, por amor de Deus, ó rainha, este
sítio é melhor. Aquele homem é um pobretanas que vende favas.» E ela riu-
se das palavras dele, e em seguida os dois deitaram-se na cama até de
manhã, na mais saborosa das vidas.
Ora, em o rei Badr acordando, não a viu, e disse de si para si: «Aonde foi
ela?» Enquanto esperava por ela, começou a ficar com saudades, mas ela
não voltava. Então levantou-se da cama, vestiu as suas roupas, e pôs-se à
procura dela, mas não a encontrou. Dizendo de si para si: «Deve estar no
jardim», caminhou até lá, até que deu por si num riacho, à banda do qual
estava um pássaro negro, e à banda do pássaro negro estava uma pássara
branca, e à banda do riacho havia uma grande árvore, no cimo da qual havia
pássaros de várias cores e feitios.
Então o rei Badr foi tomado pelo ciúme, e ficou furioso e com raiva
contra a rainha Lab por mor do pássaro negro. Em seguida, tornou para a
cama, onde ficou sentado. Após um tempo veio a rainha ter com ele, beijou-
o e pôs-se a brincar com ele, mas como ele cada vez mais a desprezava e
não lhe dirigia uma só palavra, ela percebeu o que se passava com ele e teve
a certeza que ele havia visto como fizera o pássaro negro com ela, mas fez
de conta que não tinha percebido e nada disse.
Em o dia aclarando, ele disse para ela: «Rainha, quero que me dês licença
para ir até à loja do meu tio, porque sinto falta dele e hoje faz quarenta dias
que o não vejo.» E ela disse-lhe: «Ó Badr, não te delongues, porque eu não
me consigo separar de ti um só momento.» E ele disse-lhe: «Às tuas
ordens.» Ao depois, cavalgou e foi ter com o ancião.
Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o rei Badr cavalgou e foi ter com o
ancião, vendedor de favas, que lhe deu as boas-vindas, levantou-se para o
receber e o abraçar, e disse-lhe: «Como tens passado na companhia dessa
infiel?» E ele disse-lhe: «Bem e de boa saúde, excepto que esta noite
adormeci com ela à minha banda, mas ao acordar não a vi. Então vesti as
minhas roupas e fui procurá-la, até que cheguei ao jardim», e contou-lhe
sobre ela e o pássaro que a havia montado. Em o ancião ouvindo as suas
palavras, disse: «Essa maldita já começou com as suas perfídias, toma
cuidado com ela. Fica sabendo que os pássaros que estão na árvore, todos
eles são jovens forasteiros que ela amou, desfrutou deles e tornou-os em
pássaros. Aquele pássaro negro era um dos seus mamelucos, sendo que ela
o amava perdidamente, mas como ele pôs as vistas em cima de uma das
criadas, ela encantou-o e deu-lhe o aspecto de um pássaro, e sempre que
tem saudades dele, encanta-se a si mesma e transforma-se em pássara, para
que ele a cubra, já que ela ainda o ama. Agora que ela sabe que tu
descobriste, já não vai ser meiga de coração contigo, mas não tenhas medo
dela que eu te protejo; ninguém é maior feiticeiro que eu nos tempos que
correm, apesar de não praticar a não ser se for mesmo necessário, e já
desencantei muita gente das mãos dessa maldita, porque ela não tem poder
sobre mim e receia-me, assim como o fazem todos os habitantes desta
cidade, que tal como ela adoram o fogo. Amanhã vem ter comigo para me
dizeres que tenciona ela fazer contigo, pois esta noite ela vai-se preparar
para te destruir. Ilude-a sendo cortês com ela até amanhã, e depois vem ter
comigo e eu digo-te o que fazer.»
Então o rei Badr despediu-se do ancião e regressou para junto da rainha,
encontrando-a à sua espera, e em ela o vendo levantou-se para o receber e
deu-lhe as boas-vindas. Comeram algo que lhes trouxeram e lavaram as
mãos. Em seguida trouxeram-lhes a bebida, e ficaram a beber até pela meia-
noite. Então, ela foi-lhe servindo copo atrás de copo, até que ele ficou
bêbedo e foi-se-lhe a razão. Em ela o vendo daquele modo, disse-lhe:
«Juras por Deus, pelo deus que tu adoras, que se fizer uma pergunta tu me
respondes sinceramente?» E ele disse-lhe: «Sim», pois fora-se-lhe o juízo e
não sabia o que dizia. Ela disse-lhe: «Senhor meu, luz dos meus olhos,
quando sentiste a minha falta e me não encontraste, não foste à minha
procura, chegando até ao jardim, e viste-me na forma de uma pássara
branca, e viste um pássaro negro que me montou, sendo que depois disso
me tornei como era antes?» Eu disse112: «Sim, fui.» Ela disse: «Pois fica
sabendo que aquele pássaro negro era um dos meus mamelucos. Eu amava-
o mas ele pôs os olhos em cima duma das criadas. Fiquei com ciúmes e
encantei-o tornando-o um pássaro. E quanto à rapariga, matei-a. Mas não
sou capaz de estar sem ele, e sempre que sinto saudades dele, torno-me uma
pássara e deixo-o possuir-me, tal como viste, e tu por mor disto ficaste
furioso e com ciúmes, mas pela virtude do fogo e da luz, o meu amor por ti
não podia ser maior.»
Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que a rainha disse ao rei Badr: «Mas
pela virtude do fogo e da luz, tu me amas e és o meu quinhão na vida.» E
em ele ouvindo as palavras dela, disse-lhe, estando bêbedo: «É isso mesmo
o que eu sinto.» Então, ela abraçou-o e beijou-o, fingindo que o amava, e
deitaram-se juntos. Lá pela meia-noite, ela levantou-se da cama, enquanto o
rei Badr estava acordado mas fingindo que dormia, com um dos olhos
aberto para ver o que ela fazia, e viu-a a tirar de um saco areia vermelha,
que espalhou no chão, e eis que apareceu um rio com águas correntes. Ela
pegou numa mancheia de grãos de cevada, verteu-os à banda do rio por
cima da terra, molhou-os com aquela água, e tornaram-se num campo de
espigas, que ela colheu e moeu, e que por sua vez se tornaram num doce de
cevada. Em seguida guardou-a, foi deitar-se à banda do rei Badr e dormiu
até de manhã.
Em a manhã amanhecendo, o rei Badr levantou-se, lavou a cara e pediu
licença à rainha para visitar o ancião. Ela deu-lhe licença e ele foi ter com o
ancião para lhe dar parte do que havia observado ela fazer. Em o ancião
ouvindo tal coisa, riu-se e disse: «Meu Deus, esta infiel está mesmo a ser
traiçoeira contigo, mas não te importes com ela.» Em seguida, sacou de um
arrátel de doce de cevada e disse-lhe: «Leva isto contigo e quando voltares
para ela e ela te vir com este doce de cevada, ela vai-te dizer: “Que vais
fazer com isso?” E tu dizes: “O bem em excesso é um bem”, e comes dele.
Quando ela te der do doce de cevada dela e te disser: “Come deste doce de
cevada”, tu dás-lhe a entender que o comes, mas comes antes deste aqui. Ai
de ti se comeres do doce de cevada dela, mesmo que seja um só dirame em
peso ou um grão, se o fizeres ela vai-te dominar com os seus poderes. E em
ela pensado que tu comeste do doce de cevada dela, vai tentar encantar-te
dizendo: “Sai desta forma humana e toma a forma” – a forma que ela
escolher. E ela consegue fazê-lo caso hajas comido do doce de cevada dela.
E caso não tenhas comido, não te importes com ela, pois o feitiço não
funcionará nem terá efeito algum sobre ti, o que a vai deixar embaraçada, e
então ela vai-te dizer: “Estava a brincar contigo!” e vai fingir que te ama
dando sinais de afecto, mas tudo o que provém dela é uma maldição. Então
vais-lhe dizer: “Senhora minha que és a luz dos meus olhos, come deste
doce de cevada”, e dás-lhe sinais fingindo que a amas. E quando ela comer,
nem que seja um só grão, pegas numa mancheia de água e atiras-lha à cara,
dizendo: “Sai dessa forma e toma a forma” – a forma que tu quiseres – e
deixa-la e vens ter comigo para eu cuidar do que te interessa.» Ao depois,
Badr despediu-se dele e foi para o palácio.
O rei Badr entrou nos aposentos da rainha e em ela o vendo, disse-lhe:
«Bem-vindo sejas», e levantou-se para o receber e beijar, e disse-lhe:
«Senhor meu, demoraste tanto!» E ele disse-lhe: «Estive com o meu tio que
me deu este doce de cevada para comer.» E ela disse-lhe: «Mas nós temos
um doce de cevada de melhor qualidade que esse.» E em seguida pôs o
doce de cevada dele num prato e o dela noutro prato, e disse-lhe: «Come
deste doce de cevada que é melhor que o teu.» Então ele fingiu que comia
dele. Ora, em a rainha pensando que ele havia comido, pegou numa
mancheia de água e atirou-lha à cara, dizendo-lhe: «Sai dessa forma, ó
canalha execrável, [e toma a forma de] um mulo abominável, coxo, estéril e
feio de se ver.» Mas ele não mudou. Em ela o vendo no mesmo estado, sem
se haver mudado, levantou-se para o beijar e disse-lhe: «Ó amado meu,
estava a brincar contigo para ver o que dizias!» E ele disse-lhe: «Meu Deus,
ó senhora minha, dês que me ames, nada em mim vai mudar.»
Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o rei Badr disse à rainha: «Dês que
me ames, nada em mim vai mudar no que toca ao que sinto por ti, pois
amo-te ainda mais do que tu me podes amar. Come deste meu doce de
cevada.» Então ela pegou num bocado e comeu-o. Em o bocado se
hospedando na barriga dela, ela estremeceu e o rei Badr pegou numa
mancheia de água e atirou-lha à cara, dizendo-lhe: «Sai dessa forma e toma
a forma de uma mula quatralva», e num ápice ela tornou-se uma mula
quatralva. Em olhando para si mesma, estando naquele estado, as lágrimas
começaram a escorrer-lhe cara abaixo e pôs-se a esfregar o focinho nos
cascos. O rei Badr tentou embridá-la, mas como ela não deixou, ele desistiu
e foi ter com o ancião, dando-lhe parte do que havia sucedido. Então, o
ancião sacou de umas bridas e disse-lhe: «Embrida-a com estas aqui, que
ela em as vendo submete-se logo e deixa-se embridar.» Ele pegou nas
bridas e foi ter com ela, e ela em o vendo acercou-se dele, e ele pôs-lhe as
bridas e cavalgou-a, saindo do palácio, e foi ter com o ancião, que em a
vendo, disse-lhe: «Vês o que Deus te fez? Que Ele te desgrace, maldita!»
Então, o ancião disse ao rei Badr: «Filho, já nada tens a fazer nesta terra.
Monta esta mula e vai para onde quiseres, mas ai de ti se entregares estas
bridas a alguém.»
O rapaz agradeceu-lhe, despediu-se dele e cavalgou por três dias, até dar
de vistas com uma cidade. Então um ancião de formoso cabelo grisalho
encontrou-o e perguntou-lhe: «Filho, donde vens?» E ele disse-lhe: «Da
Cidade dos Feiticeiros.» O ancião disse-lhe: «És meu convidado.» Ora,
enquanto conversavam, eis que uma anciã olhou para a mula, pôs-se a
chorar e disse: «Esta mula parece a mula que morreu e que era do meu
filho, deixando-me de coração destroçado. Por amor de Deus, ó rapaz,
vende-ma!» Ele disse-lhe: «Mãe, não a posso vender.» Ela disse-lhe: «Por
amor de Deus, não recuses o meu pedido, pois o meu filho morre de certeza
se eu não comprar esta mula», e insistiu no seu pedido. O rei Badr disse-
lhe: «Não a vendo a não ser por mil dinares.» Então ela disse-lhe: «Diz:
“Vendo-lha por mil dinares.”» Então o rei Badr disse para consigo: «Onde
haveria esta anciã de arranjar mil dinares? Vou vendê-la só para ver onde
arranja ela o dinheiro.» E disse-lhe: «Vendo-lha.» Então em anciã ouvindo
tal coisa, sacou mil dinares da sua cintura. Então em o rei Badr vendo o
oiro, disse-lhe: «Mãe, eu estava a brincar consigo, não a posso vender.»
Nisto, o ancião olha para ele disse-lhe: «Fica sabendo, filho, que nesta terra
ninguém mente a ninguém, pois aquele que o fizer é morto.» Então o rei
Badr desceu da mula…
Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o rei Badr disse a sua mãe
Jullanar: «Não me agrada senão a princesa Jauhara, filha de Xamândal,
porque ela é tal [o que significa] o seu nome, uma jóia117.» E a mãe disse-
lhe: «Filho, o teu desejo já está cumprido», e enviou de imediato quem lhe
fosse buscar o rei Xamândal, e num ápice trouxeram-no, e ele beijou o chão
ante ela. Então ela mandou que trouxessem o seu filho, o rei Badr, e que lhe
dessem parte de que o rei Xamândal havia chegado. O rei Badr veio, deu-
lhe as boas-vindas, e em lhe pedindo a filha em casamento, Xamândal
disse: «Ela é tua servente e está ao teu dispor.» Em seguida, o rei Xamândal
enviou um dos acólitos ao seu país, ordenando-lhe que trouxesse a sua filha
Jauhara e lhe desse parte de que ele estava com o rei Badr. O acólito voou
pelos ares e passado pouco tempo trouxeram a princesa Jauhara. Em ela
vendo o seu pai, acercou-se, abraçou-o e chorou, então ele olhou para ela e
disse-lhe: «Filhinha, fica sabendo que te casei com este rei munificente,
leão feroz e valente, o rei Badr, e ele é a melhor pessoa do seu tempo, o
mais belo e mais esplêndido, e ninguém é digno de ti senão ele, e ninguém é
digno dele senão tu.» E ela disse: «Pai, não me posso opor a si, faça o que
quiser.»
Então, trouxeram as testemunhas de lei, redigiram o contrato, fizeram
soar os tambores que anunciam as boas novas, libertaram os presos,
vestiram os órfãos e as viúvas, ofertaram trajes de honra aos dignitários do
reino e aos emires e deram banquetes, celebrando dia e noite as bodas por
espaço de dez dias e desvelaram a noiva ao rei Badr em sete vestidos
diferentes. Ao depois, ele consumou o casamento e em vendo que ela era
virgem ficou radiante, os seus olhos brilharam de felicidade e amaram-se
um ao outro enormemente. Então, o rei Badr ofertou um traje de honra ao
pai dela, o rei Xamândal, e enviou-o de volta ao seu país, dando-lhe
riquezas e fazendo-o feliz. E o rei Badr, com a sua rapariga, a sua mãe, a
sua família e os seus próximos continuaram comendo e bebendo vida afora,
até que lhes veio o destruidor dos prazeres e desmantelador de uniões. E
esta foi a história deles sem tirar nem pôr!
Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que havia um rei poderoso118 num país
distante, e tanto os nobres como o povo lhe obedeciam, e ele reinava sobre
as províncias d’aquém e d’além, e às suas ordens havia tantos cavaleiros
que nenhum número retém, e Deus abençoou-o com um filho no fim da
vida, a que ele chamou Cámar-Azzamane devido à sua beleza e formosura.
Quando este cresceu e atingiu a idade de ser homem, era formoso como o
galho do salgueiro; com a sua beleza qualquer coração encantava e com a
sua perfeição qualquer alma cativava, a sua imagem de traços perfeitos se
compunha e a sua formosura era da mais excelsa que se testemunha, e era
do seu rosto que as gazelas haviam roubado os olhos e o pescoço, pois ele
era tal como um poeta o descreveu numa poesia:
O seu pai amava-o muito e não se separava dele fosse de noite ou de dia.
Então, queixou-se a um dos vizires de quanto amava o seu filho e do
excesso da sua beleza, e disse: «Receio que o meu filho seja tocado pelos
infortúnios da sina e adversidades da vida; quero fazê-lo rei enquanto for
vivo.» O vizir disse-lhe: «Fique sabendo, ó rei bem-aventurado e senhor de
discernimento acertado, que antes de fazer do seu filho rei, deve casá-lo, e
só depois o entronar.» O rei disse: «Que o tragam, ao meu filho Cámar-
Azzamane.» Este compareceu, o chão beijou e cabisbaixo ficou. Então, o
pai disse-lhe: «Cámar-Azzamane, filho meu, quero casar-te para me fazeres
feliz.»
Ei-las:
Unhas envernizando,
Tranças pintando,
Homens rebaixando,
Agonias causando.
Ora, o pai nada lhe respondeu e deu o conselho por encerrado, continuou
a tratá-lo cada vez com mais gentileza, e mais tarde convocou o vizir.
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se o rei me poupar e eu viver.»
274.ª Noite
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana, e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu:
«Isto nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima
noite, se o rei me poupar e eu viver.»
275.ª Noite
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana, e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite. Se o
rei me poupar e eu viver, será ainda mais espantoso, estranho e belo.»
279.ª Noite
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite.
Se o rei me poupar e eu ainda for viva, será ainda mais estranho!»
Não se conhecem manuscritos do ramo sírio, ao qual pertence o
mais antigo manuscrito d’As Mil e Uma Noites, que contenham a
continuação desta história a partir deste ponto (ver nota 135).
Não se sabe se alguma vez o ramo sírio conteve mais noites do
que estas 282 noites e, muito menos, se alguma vez existiu um
manuscrito autêntico deste ou de outro ramo que contivesse de
facto 1001 noites. No entanto, são conhecidos manuscritos do
ramo egípcio onde esta história figura integralmente. Por isso, a
conclusão desta história, tal como figura num manuscrito deste
ramo, aparece em apêndice no terceiro volume desta edição.
_______________
Legendas
«» Diálogos.
“” Diálogos dentro de diálogos
‘’ Citações e paráfrases do Alcorão.
itáli
co Provérbios e expressões populares citadas. Mas nas notas de rodapé e no preâmbulo usa-
se também para as palavras árabes quando transliteradas segundo a norma ALA-LC. Usa-
se ainda para nomes de livros ao longo do texto.
[] Acrescentos ocasionais do tradutor, ou de outros manuscritos, para preencher lacunas do
texto árabe.
1. A cidade da China é provavelmente Guangzhou (também conhecida nos textos árabes antigos
por «China da China»). Quanto a Qajqar, não se conhece tal nome, que figura exclusivamente no
ramo sírio.
2. Trata-se de ʿantarah ibn Shaddād, também conhecido por ʿantar. Poeta, guerreiro e herói pré-
islâmico, autor de uma das odes que constituem o cancioneiro de poesia pré-islâmica Os [Poemas]
Suspensos (al-Muʿallaqāt). No entanto, não há provas para a atribuição da autoria deste poema.
3. O poema parece incompleto, faltando pelo menos os dois últimos versos. Note-se no entanto
que o texto desta noite não é retirado do manuscrito principal, mas do da Biblioteca do Vaticano
(assim como a parte final da 103.ª e o início da 104.ª Noites). O manuscrito principal contém antes
aquilo que parece uma versão resumida, em que, por exemplo, o alfaiate não vai passear com a sua
mulher (como volta a ser mencionado na 169.ª Noite no mesmo manuscrito), mas está na sua loja
quando vê o corcunda e o convida. No manuscrito principal, em vez deste poema, e do anterior,
consta antes um poema que consiste, com uma diferença mínima, nos últimos quatros versos do
poema que consta na 1.ª Noite (primeiro volume), e cujo trecho se volta a repetir no fim da 104.ª
Noite.
4. Ver nota 8 do primeiro volume.
5. Tradução de bādahanj (palavra de origem persa, mas hoje em dia nesta língua é mais
conhecido por bādgir). Esta conduta de refrigeração, geralmente na forma de uma torre, costuma ser
afunilada e, pelo efeito do princípio de Bernoulli, o ar arrefece ao entrar na casa, permitindo
refrigerá-la. Por vezes, há uma cave subterrânea, que serve de frigorífico (ver nota 53), associada a
este sistema de refrigeração.
6. Sic. A expressão «ao poste de iluminação» (ilā al-masrajah) é exclusiva do manuscrito
principal seguido nesta tradução, e entra em contradição com a descrição feita previamente do local
onde decorre a presente cena («junto a uma loja, ao cabo de um beco escuro»). Vários manuscritos
do ramo egípcio enunciam antes que o guarda veio «com uma lâmpada», usando a mesma palavra
(al-masrajah) e seria essa possivelmente a intenção original do narrador.
7. Sic.
8. Ver nota 10 do primeiro volume.
9. Ver nota 18 do primeiro volume. O dirame é uma fracção (7/10) do dinar em termos de peso, e
ao contrário deste, que é de ouro, o dirame é de prata. Em termos de valor, o dirame equivaleria no
máximo a cerca de um duodécimo de dinar, mas muito possivelmente a cerca de um vigésimo, pois
na 136.ª Noite o preço de 50 dinares é dado como equivalente de 1000 dirames. Em suma, para
compreender devidamente os valores destas histórias, há que ter em conta que o dirame é uma moeda
bem menos valiosa que o dinar.
10. Beinalcasreine (Bayn al-Qaṣrayn), literalmente «Entre Dois Palácios», designa uma praça e
uma zona do bairro histórico do Cairo que se localiza entre dois palácios que foram construídos
durante a dinastia Fatimida.
11. O sicbaj (sikbāj) é um guisado agridoce de carne com vinagre, xarope de fruta, e especiarias.
No Posfácio ao terceiro volume será descrito mais detalhadamente.
12. O texto árabe menciona aqui o guisado chamado ṭabāhajah, que já apareceu no primeiro
poema da 49.ª Noite, onde também foi traduzido genericamente por «guisados». No Posfácio ao
terceiro volume será descrito mais detalhadamente.
13. Qarmūsh no texto árabe. No Posfácio ao terceiro volume será descrito mais detalhadamente.
14. Jūdhābah no texto árabe. Este prato consiste basicamente num assado de carne no forno,
sendo que por baixo da carne há um recipiente contendo a jūdhābah propriamente dita, que é uma
base feita geralmente de arroz e/ou fatias de pão, entre outras possibilidades, e que absorve a gordura
do assado, ganhando um sabor próprio. No Posfácio ao terceiro volume será descrito mais
detalhadamente.
15. Esta frase não consta no manuscrito seguido por esta tradução, nem nos outros do ramo sírio,
mas foi retirada do manuscrito do ramo egípcio Arabe 3615 (século xviii) da Bibliothèque nationale
de France. Esta fala e as informações nela contidas constam, com ligeiras diferenças de formulação,
noutras versões do ramo egípcio, nomeadamente os manuscritos Gayangos 49 (séculos xviii-xix) da
Biblioteca de la Real Academia de la Historia (Madrid) e Arabic 207 (século xviii) da Christ Church
Library (Oxford), assim como na edição impressa de Bulaq (1835). Pode não ser necessariamente um
acrescento posterior, mas uma lacuna dos manuscritos do ramo sírio relativamente à versão matriz, e
que eventualmente acabou por ser retida no ramo egípcio.
16. Zīrbājah (ou zīrbāj): trata-se de um ensopado de carne que leva açúcar, amêndoas, vinagre,
entre outros condimentos. No Posfácio ao terceiro volume será descrito mais detalhadamente.
17. Ver nota 17 do primeiro volume.
18. Potassa designa aqui um produto para lavar as mãos. Junça é usado na fabricação de perfumes
e essências. No Posfácio ao terceiro volume, estes produtos são descritos mais detalhadamente,
excepto o sabão, ṣābūn em árabe, que é conhecido.
19. Extrapolação a partir de manuscritos do ramo egípcio e da edição de Bulaq, para colmatar o
que parece uma lacuna nos manuscritos do ramo sírio.
20. O dirame é uma moeda de valor muito inferior ao dinar (ver nota 9). O valor de cinco mil
dirames situar-se-ia entre os duzentos e quatrocentos dinares.
21. Interpolação do manuscrito Arabic 207 (século xviii) da Christ Church Library (Oxford). Este
detalhe também consta, com ligeiras diferenças de formulação, em pelo menos mais dois manuscritos
do ramo egípcio, assim como nas versões de Tanūkhī (século x), que constituem quase
indubitavelmente a fonte literária desta história e das que se seguem (para mais detalhes sobre esta
questão, ver o Posfácio ao terceiro volume).Trata-se de uma lacuna dos manuscritos do ramo sírio,
pois sem este detalhe a referência feita de seguida à água de Zamzam perde a importância.
22. Água de um poço sagrado da cidade de Meca.
23. Al-Ghūṭah em árabe. A palavra ghūṭah designa uma depressão ou um vale fértil, abundante
em árvores e cursos de água. A ghūṭah aqui em causa é a Ghūṭat Dimashq («A Ghūṭah de
Damasco»), pois a palavra por si só e acoplada de artigo defi-nido (al-Ghūṭah) tornou-se no nome do
oásis que circunda a cidade de Damasco, sobretudo na sua parte sul e este, e até mesmo num
cognome da própria cidade. O oásis formou-se graças ao rio Baradá, que atravessa a cidade, e dos
vários canais que as populações foram construindo desde tempos remotos, em redor da que é
considerada a cidade mais antiga do mundo continuamente habitada (estima-se que seja habitada
desde 9000 a.C.). Esta zona agrícola também é conhecida por Oásis de Damasco e, mais
recentemente, através dos órgãos de comunicação social, pelo nome Ghouta. Os geógrafos árabes
antigos referem-se a este oásis como um dos quatro paraísos ou jardins deste mundo, juntamente com
os jardins de Uballa (perto de Bassorá), de Buvan (na Pérsia), e de Samarcanda.
24. Trata-se muito provavelmente da ilha de Roda (Jazīrat ar-Rawḍah). Supõe-se também que é
nesta ilha que se localiza o parque ao qual é feita referência no próximo poema, onde figura a palavra
rawḍah sem artigo definido, mas como esta palavra significa «parque» (no sentido de terreno
arborizado e ajardinado), também poderá ser uma referência a um parque não especificado. A ilha
ficou conhecida por esse nome devido ao seu parque deslumbrante.
25. O Observatório (ar-Raṣad) designava um monte a sul da cidade de Fostate. O nome deve-se a
um observatório mandado construir pelo vizir fatimida al-Afḍal Shāhinshāh, também conhecido por
Lavendálio e Elafdálio (1066-1121). A Lagoa dos Abissínios, que já não existe, localizava-se a sul
deste monte.
26. É a noite em que se declarava oficialmente o início das cheias do Nilo, quando o nilómetro
atingia um certo volume, geralmente durante as primeiras duas semanas de Agosto.
27. Excerto de Alcorão 55:52. A tradução foi simplificada de forma a veicular o sentido relevante
para a compreensão do texto, tendo em atenção o que vários comentaristas clássicos do Alcorão
afirmaram. Também se simplificou a parte imediatamente anterior, ao traduzir-se por «um dos jardins
do Paraíso», mas o texto árabe comporta trocadilho mais longo e rico entre duas palavras sinónimas
de jardim e paraíso (jannah, rawḍah, e respectivos plurais jinān e ryāḍ) e o nome Riḍwān na
expressão «jardins de Riḍwān» (ryāḍ Riḍwān). Riḍwān, que é também um nome próprio de pessoa
de uso corrente, designa aqui um anjo que é considerado o porteiro do Paraíso, sendo também um
substantivo que significa «contentamento, satisfação». A tradução literal seria: «um jardim dos
jardins [jannah / jinān], ou um jardim dos jardins [rawḍah / ryāḍ] de Riḍwān», sendo que jardim é
sinónimo de Paraíso.
28. Excerto de Alcorão 23:14.
29. Correcção do tradutor do que aparenta, no contexto diegético, ser uma gralha. No texto
original lê-se: «o que ela trazia vestido».
30. Os manuscritos do Vaticano e da John Rylands Library têm «beberá» (yashrab) em vez de «se
divertirá» (yanshariḥ).
31. A maioria dos manuscritos, assim como a versão de Bulaq, menciona antes «Eu visito-os»,
com excepção do manuscrito Arabic 207 da Christ Church Library (Oxford). Quanto ao manuscrito
principal seguido nesta tradução, esta página está borrada, dificultando a leitura em geral,
nomeadamente nesta parte. Por isso, não foi possível assegurar se neste manuscrito se leria «visito-a»
ou «visito-os».
32. Figura só no manuscrito do Vaticano e no do India Office Records (Arabic MS 2699).
33. Antigamente era normal os barbeiros executarem também tarefas semelhantes às de
cirurgiões e dentistas, assim como realizavam circuncisões e faziam tratamentos com ventosas
medicinais. Esta acumulação de tarefas e saberes na pessoa do barbeiro ainda é possível de se
encontrar em alguns lugares. A sangradura, ou sangria, é uma prática medicinal que antigamente era
assaz usada, sendo que hoje é rara e desaconselhada pela maioria dos profissionais da saúde.
34. 18 de Ṣafar de 653 AH corresponde a 29 de Março de 1255 AD. A data coincide nos
manuscritos do ramo sírio, mas em vários do ramo egípcio, assim como na versão de Bulaq, o ano
hegeriano que é referido é 763, correspondente a 1361 AD. No entanto, o ano da Era de Alexandre
correcto para a data hegeriana mencionada de 653 seria 1557 e não 7320. E o livro Hizz al-Quḥūf bi-
sharḥ qaṣīd Abī Shādūf [Crânios confusos pela explicação da ode de Abu Xaduf], que supostamente
terá sido escrito por um camponês egípcio em 1686 ou posteriormente, e no qual esta história é citada
e contada integralmente como sendo uma «história famosa d’As Mil e Uma Noites», desdobra a data
de 7320 de uma forma deveras interessante, pois menciona 7000 anos da Era de Adão e 320 anos da
Era de Alexandre, ou seja, Alexandre, o Grande, teria vivido depois do profeta Muhammad (e tal
como Bulaq, menciona também o ano 763 AH).
35. Muslim e de Bukhari são dois célebres autores de recolhas de ditos e falas de Muhammad,
considerado pelos muçulmanos como o último dos profetas, sucedendo a Jesus de Nazaré, João
Baptista, Salomão, David, Arão, Moisés, Abraão, Adão, entre outros da tradição abrâamica.
36. Sic.
37. Sic.
38. Sic. Conforme o que se segue imediatamente a seguir, o sentido narrativo convidaria que aqui
figurasse antes «os perfumes e os incensos».
39. Fawwāl, no texto árabe, designa o indivíduo que prepara e vende um prato chamado fūl
mudammas ou fūl mədammis. As favas (fūl) são cozidas num forno em lume brando durante toda a
noite, e na manhã seguinte são preparadas com sumo de limão, ou de uvas ainda verdes, ou de romã,
ou vinagre, e acrescenta-se azeite, sal, cominhos, e pode-se ainda juntar diversos ingredientes tais
como alho, salsa, tomate, cebola, malaguetas, entre outros, consoante as receitas. Trata-se de um
prato famoso e antigo.
40. Almustancir Billâh (ou Abū Jaʿfar Al-Mustanṣir bi-Llāh al-Manṣūr ben aẓ-Ẓāhir) foi o
penúltimo califa abássida a governar a partir de Bagdade, havendo o seu reino durado entre 1226 e
1242. Note-se que a expressão «filho de fulano» (em árabe: ben fulān) nem sempre significa
descendente em 1.º grau, podendo significar descendente de vários graus ou gerações. Assim,
Almustancir Billâh não era filho de Almustadí Billâh (Haṣan al-Mustaḍī bi-amri-Llāh), mas bisneto
deste. Por sua vez, o nome do mesmo está mal grafado no texto árabe, pois deveria ser Almustadí
Biamrillâh (al-Mustaḍī bi-amri-Llāh), erro este que se reproduziu na tradução.
41. Como será detalhado no Posfácio ao terceiro volume, as histórias dos seis irmãos são
retiradas de um outro livro que remonta pelo menos ao século xiv (data do manuscrito mais antigo) e
que se chama As Histórias Espantosas e as Estranhas Novas (doravante referido abreviadamente por
Histórias Espantosas).
42. Dabique (Dabīq, não confundir com Dābiq no Norte da Síria) era uma aldeia do Egipto
conhecida pelos tecidos muito requintados e caros aí produzidos. Ficava entre al-Faramā (antiga
Pelúsio) e Tinnīs.
43. Traduziu-se por tostão a moeda de bronze chamada fils aḥmar, que corresponde a uma sexta
parte do dirame. Aḥmar significa vermelho, devido à cor de bronze. Ainda hoje o fils é usado em
alguns países com o valor de um milésimo de dinar. Quando usada no plural (fulūs, pronunciado
geralmente como flūs ou fəlūs) com o sentido empregue nas línguas árabes coloquiais de «dinheiro»,
traduziu-se antes por esta palavra.
44. Este acrescento, que colmata uma lacuna evidente do texto original, consta nas Histórias
Espantosas.
45. Lacuna colmata pelo texto d’As Histórias Espantosas.
46. Lacuna colmata pelo texto d’As Histórias Espantosas.
47. Idem.
48. O texto que aqui figura entre parêntesis rectos foi retirado do manuscrito Arabic 207 da Christ
Church Library (Oxford). Ele coincide na generalidade com todos os outros manuscritos do ramo
egípcio e com a versão de Bulaq, assim como com o texto d’As Histórias Espantosas, mas não figura
nos manuscritos do ramo sírio, por lacuna ou por vontade expressa dos seus redactores.
49. Excerto do Alcorão 40:78.
50. Sic.
51. Acrescento retirado de Histórias Espantosas.
52. O manuscrito menciona só «com a espada», assim como o texto das Histórias Espantosas,
mas depreende-se pelo contexto, e pelo texto que se segue, que a intenção do autor talvez fosse «com
a prancha da espada». É assim que consta explicitamente em versões tardias, como a de Bulaq.
53. «Cave» é um tradução simplista de sirdāb, que designa uma cave, semelhante a uma adega,
com pé direito alto, ligada a uma conduta de refrigeração (já referida na nota 5). Ela serve como
frigorífico para guardar provisões e como refúgio quando o calor assola. Esta cave pode ter uma
outra conduta perfurada no chão, ligada a um canal de água subterrâneo, tornando o sistema ainda
mais eficaz.
54. Sic.
55. Ver nota 54 do primeiro volume.
56. Trata-se de um prato de carne misturada com papas de grãos de trigo, conhecido no Levante e
no Golfo pelo nome harīsah (também conhecido por harīs). No Posfácio ao terceiro volume será
descrito mais detalhadamente.
57. Ver nota 11.
58. Ver nota 12.
59. Acrescento do tradutor tendo em conta o contexto diegético e a edição de Bulaq.
60. Ao longo da história que se segue, estes dois protagonistas são muitas vezes referidos só por
um dos componentes do nome. Por exemplo, Abu-al-Haçane Ali ibn Tâhir, o Perfumista, tanto pode
ser referido por Abu-al-Haçane como por Ali ibn Tâhir, ou só Ibn Tâhir.
61. Nome árabe que significa «O Sol do Dia» («dia» como contrário de «noite»).
62. Esta história tem três narradores: Xerazade, Abu-al-Haçane e o joalheiro, personagem esta
que ainda não foi introduzida. O texto original salta de um para o outro, várias vezes sem aviso.
Talvez fosse um duo ou um trio de contadores que contava esta história, ou talvez o contador
simulasse uma voz diferente para cada narrador. Para facilitar a leitura, acrescentou-se nesta
tradução, assinalando com parêntesis rectos, indicações textuais para melhor identificar o narrador
(excepto para Xerazade ou quando o narrador conste explicitamente no texto original).
63. Sic.
64. É sabido que a lua cheia levanta-se sempre do lado contrário ao pôr-do-sol, e por isso não
podem estar juntos.
65. Al-Khuld, em árabe, significa literalmente «eternidade», e é usado como um epíteto do
Paraíso e da vida após a morte (como na expressão Dār al-Khuld, literalmente «Casa da
Eternidade»). O palácio com este nome (Qaṣr al-Khuld) em Bagdade existiu mesmo, mas foi
mandado construir pelo califa Almançor (reinou entre 754-–775), na margem do rio Tigre, e
funcionou como segunda residência.
66. Acrescento consta no manuscrito Arabe 3612 da BnF e foi integrado na edição de Bulaq.
67. Este poema, assim como o início do parágrafo que lhe sucede, constam só no manuscrito
Arabe 3612 da BnF e foi integrado na edição de Bulaq, mas com algumas variações.
68. Na Antiguidade consideravam-se quatro os humores do corpo humano: o sangue, a fleuma, a
bílis amarela e a bílis negra.
69. Excerto do Alcorão 29:45.
70. Sic. Não é improvável que seja um erro de copista, e em vez de kātib (escritor, secretário,
escriba), talvez a intenção fosse kitāb (escrito, escritura, contrato, livro), mas o uso de um escriba ou
secretário é perfeitamente possível.
71. A frase «que castidade a minha!», que aparece só nas versões do ramo sírio, não sendo
necessariamente despropositada, soa no entanto a um possível erro de copista. As tentativas mais
credíveis de corrigir o texto árabe, alterando apenas uma letra, resultariam em duas possibilidades
diferentes, sendo a primeira: «que desgosto o meu!» e a segunda: «que falta de respeito para
comigo!»
72. Nos manuscritos do ramo sírio lê-se literalmente: «uma missiva aberta no chão», mas de
seguida é dito que o joalheiro a abriu. Aceitou-se a correcção feita tardiamente pelo manuscrito 3612
e pela edição de Bulaq, que substituíram maftūḥah (aberta) por maṭrūḥah (estendida, deitada, caída,
etc.).
73. Interposição retirada do manuscrito Arabe 3612 da BnF, para que a referência à «outra casa»
no início da 190.ª Noite não careça de sentido diegético.
74. Lacuna colmatada pelo sentido da narrativa e por Bulaq.
75. Expressão idiomática árabe; aparece duas vezes no Alcorão (2:259 e 18:42).
76. Lacuna ou elipse propositada, afigurou-se apropriado colmatar com o texto da edição de
Bulaq.
77. Correcção do tradutor. No manuscrito lê-se: «levou-me».
78. Sic. O texto não é claro se se trata de Xamsennahar ou da criada.
79. No texto árabe: «fulān ibn fulān». «Fulano» é a tradução do árabe fulān. A partícula árabe ibn
(também usada como bən), significa «filho de». Por exemplo, Ali ibn Baccar significa «Ali, filho de
Baccar».
80. Acrescento tirado do manuscrito Arabic 2699 do India Office Records (actualmente na British
Library). Outras versões dizem antes: «e eles disseram».
81. Alambâr (al-Anbār) era uma pequena cidade que existia antigamente a cerca de 45
quilómetros a oeste de Bagdade, na margem oriental do rio Eufrates, e a cerca de cinco quilómetros
da cidade de Faluja.
82. Alfadl: forma mais curta do nome Fadleddine, pelo qual o vizir também é referido ao longo
desta história. Fadleddine (Faḍl ad-Dīn) é traduzível por «Excelência da Fé», ibn é uma partícula
que significa «filho de» ou «descendente de», e Khacane (Khāqān) significa «soberano, monarca,
imperador».
83. Ziziphus spina-christi.
84. Parece ser uma expressão em língua persa, talvez com o sentido de «Se, ó mestre».
85. No manuscrito principal não consta esta fala do filho. Será uma lacuna? O texto aqui
introduzido consta no manuscrito Ms. Bodl. Or. 550-551 da Bodleian Library (Oxford), e é repetido
por outros três manuscritos do ramo egípcio e pela versão de Bulaq.
86. Ḥājj é um título honorífico, que significa «peregrino». Com este termo designa-se o
muçulmano que faz ou já fez a peregrinação a Meca; no entanto, é usado, tanto para homens como
mulheres (ḥājjah), como forma de respeito, normalmente para pessoas de maior idade, sem que estas
hajam feito necessariamente a peregrinação a Meca.
87. Isḥāq ben Ibrāhīm al-Mawṣilī an-Nadīm, mais conhecido por Isḥāq al-Mawṣilī, nascido em
767 em Ray (antiga Arsácia) e falecido em 850 em Bagdade. De origem persa, era um célebre
músico, cantor e poeta que privava com Harun Arraxide. Virtuoso e exímio na arte de tocar o alaúde,
foi mestre do célebre e influente Ziryāb, que mais tarde trocou a corte de Bagdade pela de Córdova, e
que é considerado o fundador dos cânones da música andalusina do Norte de África e o responsável
pela adição de um quinto par de cordas ao alaúde.
88. Correcção do tradutor para comodidade da leitura. No texto consta «oiro nativo». Ambas as
palavras são vagamente semelhantes (ʿaqīq para cornalina e ʿiqyān para ouro nativo).
89. O sentido exacto da palavra aqui traduzida por «peixes negros» não é claro. A questão é
explorada mais detalhadamente no Posfácio ao terceiro volume.
90. Excerto do Alcorão 13:4. No contexto original são referidas palmeiras que crescem em
grupos de ‘duas ou mais [das mesmas raízes] e outras não [pois crescem isoladamente]’.
91. «Hino a Deus»: paráfrase do termo árabe dhikr, que literalmente tem o sentido de «lembrança
ou invocação de Deus». Neste caso específico trata-se de uma cerimónia colectiva feita por místicos
muçulmanos sufis, em que Deus é invocado pela entoação repetitiva de várias fórmulas, de forma a
alcançar o êxtase e a união com Deus.
92. Ver nota 33 do primeiro volume.
93. Quṭayṭ significa «gatinho».
94. Referência a Huceine, filho de Ali e neto do profeta Muhammad, que juntamente com o seu
irmão Haçane e as suas famílias foram cercados pelo inimigo perto de Carbala, privados de água
durante vários dias, e de seguida massacrados. Este acontecimento costuma ser referido por «Batalha
de Carbala» e ocorreu em 680.
95. O Coraçone (Khorāsān) correspondia aos territórios a nordeste e este do Império Persa. Em
termos históricos, o Grande Coraçone corresponde a um território que abrange actualmente partes do
Irão, Afeganistão, Tajiquistão, Turquemenistão e Usbequistão. No actual Irão é o nome de três
províncias (Coraçone do Norte, Coraçone do Sul e Coraçone Razavi) que até 2004 constituíam, mais
ou menos com as mesmas fronteiras, uma só província com o nome Coraçone.
96. Paráfrase do Alcorão 77:20-21 (‘Não te criámos de um líquido desprezível / e te colocámos
numa residência protegida?’).
97. Tal como em português, em árabe padrão a palavra equivalente a «prenhe» (ḥāmil) não tem
marca de género feminino, no entanto em ambas as línguas o registo vernacular usa esta palavra com
marca de feminino («prenha» em português e «ḥāmilah» em árabe), registo esse que não é bem
aceite pela norma culta em ambas as línguas. Optou-se aqui por usar o registo vernacular «prenha»,
tal como consta nesta passagem no texto árabe, usando-se nos restantes casos «prenhe» ou «prenha»
consoante no texto árabe se use a norma culta (ḥāmil) ou vernacular (ḥāmilah).
98. Nome árabe, de origem persa, que significa «flor de romãzeira».
99. Sic.
100. Alcorão, 55:60.
101. Este último verso seria mais apropriadamente traduzido por: «‘A Terra seria tremida por seu
tremor’», pois trata-se de uma paráfrase do Alcorão (99:1), traduzível por: «Quando a Terra for
tremida por seu tremor […]», sendo que, no contexto, este «seu tremor» designa o derradeiro tremor
que a Terra sentirá, isto é, aquele que anuncia a Ressurreição e o Juízo Final.
102. «Lua cheia» em árabe.
103. Ver nota 17 do primeiro volume.
104. Alcorão 3:185; 21:35; 29:57.
105. Excerto do Alcorão 2:286.
106. A palavra usada em árabe para «jóia» é jauhara (jawharah), que por sua vez é o nome da
pretendida.
107. Correcção do tradutor. No manuscrito lê-se antes: «deu-lhe parte do que havia feito.» A
situação é pouco provável, nomeadamente tendo em conta a falta de reacção de Jauhara
relativamente à desobediência da criada. A versão de Bulaq redige o texto mencionando
explicitamente: «[a criada] tornou à sua senhora e disse-lhe: “Já o pus na Ilha da Sede.”»
108. O nome Lab significa «Sol» em persa. Não sendo um nome árabe, o contador teve
necessidade de explicar o significado. Este nome e a mesma explicação consta em várias versões
manuscritas e impressas d’As Mil e Uma Noites, mas nas Histórias Espantosas é antes dito que «o
seu significado é “Sol da rainha”».
109. Ver nota 27 do primeiro volume. Note-se ainda que o uso em textos clássicos do termo
«mago» (majūs) e derivados para designar os zoroastrianos é hoje em dia tido por incorrecto e deriva
de ideias falsas atribuídas aos seguidores do zoroastrismo (ou masdeísmo), nomeadamente que
seriam adoradores do fogo, magos (majūs) que faziam sacrifícios humanos e que praticavam magia
negra, entre outras coisas consideradas abomináveis. Saliente-se que estas ideias denegrindo os
seguidores desta crença resultam sobretudo de preconceitos que circulavam na época, não tendo
necessariamente qualquer fundamento histórico.
110. A palavra usada para «lua cheia» no texto árabe é badr, a mesma do nome do rei Badr.
111. Sic. Mudança de narrador. Esta situação volta a repetir-se mais adiante.
112. Sic.
113. O adjectivo «colossal» figura nas Histórias Espantosas, no manuscrito do ramo egípcio
Arabe 3612 da Bibliothèque nationale de France e na versão de Bulaq.
114. Este aparente lapso consta das Histórias Espantosas, de um manuscrito do ramo sírio, de
outro do ramo egípcio e da edição de Bulaq.
115. Barq significa «relâmpago» em árabe.
116. Alcorão 19:17.
117. Ver nota 106.
118. No manuscrito Ms. Bodl. Or. 550-551 da Bodleian Library (Oxford), que será usado nesta
tradução no Apêndice I (no terceiro volume), que contém a conclusão da História de Cámar-
Azzamane e dos seus filhos, este rei chama-se Xaramane (Shahramān), sendo o mesmo nome que
figura na generalidade das recensões egípcias d’As Noites, incluindo a versão de Bulaq. Não se sabe
se este nome, ou outro, constaria nas recensões do ramo sírio.
119. Ver nota 17 do primeiro volume.
120. Retirado de outros manuscritos do ramo sírio.
121. Lacuna colmatada tendo em conta expressões já usadas no texto d’As Mil e Uma Noites e
outros manuscritos.
122. Ver nota 60 do primeiro volume.
123. Sic. O contador alterna entre os termos ifrita e génia devido à proximidade de significados.
124. Parece haver aqui uma vaga referência a uma passagem do Alcorão (15:16-18) onde se
menciona: «Colocámos constelações no Céu e adornámo-lo para os seus observadores / E
protegemo-lo de qualquer demónio maldito / E quem o tentar escutar às escondidas persegui-lo-á um
meteoro brilhante.» Dizem alguns teólogos sobre esta passagem que os demónios, génios e ifrites
costumavam ouvir às escondidas os anjos do céu, mas que no tempo de Jesus de Nazaré, filho de
Maria, o céu começou a ser-lhes restringido, até lhes ser completamente vedado no tempo de
Muhammad.
125. Ver nota 28.
126. Sobre Qajqar da China, ver nota 1.
Quanto às Ilhas do Interior (o nome por extenso é referido na noite seguinte) tratar-se-á de um
espaço imaginário. O nome e outras referências dão a entender que seria um conjunto de ilhas
localizado a oriente, entre a Pérsia e a China, no interior da zona de influência islâmica, não sendo de
excluir a possibilidade de ser um conjunto de ilhas localizado algures no Sudeste Asiático, no
subcontinente indiano ou no Extremo Oriente. Na edição de Bulaq consta antes uma aglutinação dos
dois espaços geográficos que poderiam ser bem distantes um do outro: «as ilhas interiores da China».
Ver também as páginas 56-57 do Preâmbulo no primeiro volume.
127. Correcção do tradutor do que aparenta ser um erro de copista. No manuscrito lê-se antes:
«pernas». Toda esta descrição é copiada, com diversas alterações, da obra de cariz erótico de ʿabd
Arraḥmān ibn Naṣr ibn ʿabdallāh ash-Shayzarī (falecido em 1170 AD) intitulada O Livro da
Explanação dos Segredos da União Conjugal.
128. No manuscrito aqui seguido d’As Noites talvez seja a palavra baḥr (mar) que figura em vez
de naḥr (peito, nomeadamente a zona que liga o peito ao pescoço). No manuscrito mais conhecido
da obra de ash-Shayzarī (ver nota anterior) também não é claramente evidente se a palavra é baḥr ou
naḥr. As várias edições impressas em árabe de ambas as obras tanto seguem a primeira como a
segunda opção. Optou-se aqui por «peito» pela continuidade do texto, mas note-se que na obra de
ash-Shayzarī a frase que aparece logo de seguida não consta.
129. Aparente lacuna colmatada com excerto do manuscrito Arabic 207 da Christ Church Library
(Oxford).
130. Literalmente: «pote de urina» (quwārat al-bawl), expressão que designa um recipiente de
barro, de forma delgada, contendo água, e que é usado para lavar o pénis depois de urinar.
131. Ver nota 28.
132. José, um dos profetas das religiões abraâmicas, é considerado, na tradição islâmica, como
um arquétipo de beleza. Zuleikha, mulher de Potifar, encantada com a sua formosura, tentou seduzi-
lo, e aquando da sua recusa, acusa-o de violação, levando ao aprisionamento de José. Existe também
uma tradição que atribui a Muhammad, profeta do Islão, o dito: «A José foi dada metade da Beleza»,
isto é, Deus deu metade da Beleza a José e a outra metade ao resto da Humanidade.
133. Ver nota 15 do primeiro volume.
134. O manuscrito principal em que se baseia esta tradução termina abruptamente neste ponto,
havendo ainda mais um fólio em que uma das faces contém a conclusão desta noite e a noite
seguinte, mas esse excerto foi adicionado muito posteriormente (século xviii ou xix) a partir de uma
versão tardia. Daqui até ao final da 282.ª Noite seguimos em grande parte o texto árabe estabelecido
por Muhsin Mahdi, que é uma tentativa de reconstrução a partir dos outros manuscritos do ramo sírio
(que terminam na noite seguinte) e que recorre ainda, quando necessário, ao manuscrito do ramo
egípcio Ms. Bodl. Or. 550-551 da Bodleian Library (Oxford) e ao fólio posteriormente acrescentado
já mencionado.
135. Sic.
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