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Editor responsável: Hugo Xavier

Título original: ‫( أﻟﻒ ﻟﻴﻠﺔ وﻟﻴﻠﺔ‬Alf laylah wa-laylah)


Título em português: As Mil e Uma Noites – II volume
Autores: Anónimos
Ano de publicação: séculos XIV-XVIII
Revisto por Marcelino Amaral
Conversão para ebook: www.arinos.in

Todos os direitos para língua portuguesa reservados para esta edição por E-Primatur / Letras
Errantes, Lda.

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1.ª edição digital, Setembro de 2020

ISBN 978-989-8872-64-7
102.ª Noite

História do corcunda, amigo do rei da China

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Conta-se, ó rei, que havia, na cidade da China e do Qajqar1, um homem


que era alfaiate, e cuja mulher era formosa à sua medida e altura. E deu-se o
acaso de ele e ela saírem para desfrutar de um passeio, a um sítio deles
conhecido, para se divertirem, e assim passaram o dia em folguedos e na
rambóia até ao fim da tarde. E em tornando a casa deles, encontraram pelo
caminho um homem corcunda, todo aperaltado, folgazão e bem animado,
vestindo um manto aberto à frente, com mangas de balão, um colarinho e
bordados ao estilo egípcio, uma mantilha floreada, e por baixo do manto um
traje de várias cores; e na cabeça usava um chapéu longo de cor verde com
entrelaçados de seda amarela emaranhados em âmbar-gris; e o corcunda era
baixo, tal como disse o poeta Antar2 numa poesia:

Olhem lá este corcunda aqui aparecido,


Com uma bossa tal pérola na ostra escondida,
Ou tal ramo de bafureira todo apodrecido
Onde um fruto vacila de guisa desmedida.

E trazia com ele um pandeiro, com o qual tocava, e cantava, e dava-se a


engraçados excessos de espontaneidade e genialidade. Olharam para ele e a
ele se achegaram, encontrando-o bêbedo como um cacho, e em pondo o
pandeiro debaixo do braço, pôs-se a bater uma palma contra a outra, de
maneira rítmica e genial, enquanto declamava e dizia uma poesia:

De madrugada cedo encontra-a e trá-la até mim


A pinga do canjirão,
E louva-a como se fosse uma bela cantora
No auge da canção.

Depura-a, dando-lhe de uma noiva a candura.


E erga-se o copo,
Que eu a minha companhia alegremente só honrarei
Com pinga grega e pura.

Ó amigo meu, se ao que na vida interessa


Dás importância,
Enche o meu copo sem mais tardança,
Que em beber tenho pressa.

Ó tu que me seduzes, não vês na pradaria


O jardim?
……………………………………………
… … … …3

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à irmã. E Xerazade respondeu: «Isto nada é
comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei
me poupar e eu ainda for viva.»
103.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Conta-se, ó rei, que o alfaiate e a sua mulher, em vendo este corcunda


naquele estado, bêbedo como um cacho, ora cantando ora batendo palmas,
ficaram maravilhados com ele e o convidaram a vir jantar e beber em sua
casa, e em lhes respondendo «Às vossas ordens», marchou com eles até
casa.
Então o alfaiate saiu ao mercado, e a noite já se acercava, e comprou
peixe frito, pão, rabanetes, limões, um pote de mel, e uma vela para
iluminar a farra. Veio para casa e botou o peixe e o pão ante o corcunda;
apareceu a mulher e comeram. O casal estava muito contente com a
presença do corcunda, e disseram entre si: «Vamos entreter esta noite com
folguedos, vamos rir-nos na farra com este corcunda.» E em se pondo a
comer, enfardaram até se fartarem. E vai o alfaiate, pega numa posta de
peixe, enfia-a boca adentro do corcunda, cerrando-a com a mão, e em se
rindo, diz-lhe: «Valha-me Deus, ai de ti se não engolires tudo de uma só
vez!» E como assim se lhe cortava a respiração, o corcunda teve de comer
aquela posta, e, sem ter tempo para a mastigar, engoliu-a. E em havendo um
espinha dentro daquela posta de peixe, aquela se lhe cravou na garganta,
ficando presa à goela, e ele morreu. E em o alfaiate o vendo de olhos
revirados, cerrou o punho e esmurrou-o no peito, mas mesmo assim a sua
alma saiu do corpo e ele por morto se estatelou.
O alfaiate e a sua mulher ficaram atónitos, e a tremer, disseram: «Não há
força nem poder senão em Deus Altíssimo e Grandioso. Pobre coitado! tão
cedo foi decretada a sua hora, e logo foi morrer por esta via às nossas
mãos.» Então disse a mulher ao seu marido alfaiate: «Porque te quedas
sentado e tardas em agir? Será que nunca ouviste a poesia que alguns
dizem:

Como pode alguém no fogo se sentar e nada fazer,


Se o fogo onde nos sentamos tudo faz perder?»

Ao que o alfaiate perguntou: «E o que deveria eu fazer?» E ela


respondeu: «Levanta-te e carrega-o ao colo, envolto num xaile de seda do
Iémene. Eu sigo à tua frente, e a quem quer que seja que durante a noite nos
veja, dizemos-lhe: “Este é o nosso filho que está enfermo, e faz pouco
tempo uma doença introduziu-se nele, e estamos a levá-lo ao médico para
ser visto, já que ele não podia vir até nossa casa,” e se assim fizermos…»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão prazerosa», disse Dinarzade à irmã. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se eu
ainda for viva.»
104.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Conta-se, ó rei, que o alfaiate, carregou o corcunda ao colo, envolto num


xaile de seda do Iémene, e a mulher seguia à frente dele, e dizia em prantos
e lamentos: «Ó filho meu, que fiques a salvo deste tormento. Mas de que
covil nos veio esta varíola?» Então quem quer que fosse que os visse, dizia:
«Estes têm um pequeno que foi atacado pela varíola.» E conduziram-nos a
casa de um médico judeu. Ela tocou à porta e uma criada saiu a abri-la, e
em olhando viu um homem a carregar um pequeno que estava enfermo. A
mulher do alfaiate deu-lhe um quarto de dinar4 e disse-lhe: «Ó minha
senhora, dê isto ao seu senhor para que ele desça a ver este meu irmão a
quem se pegou uma enfermidade perigosa.» E mal a criada subiu, a mulher
entrou soleira adentro, dizendo ao marido: «Deixa este corcunda aqui e
salvemo-nos a nós mesmos.» Então, o marido pôs o corcunda em pé,
recostado no meio das escadas, e foi-se, ele e a mulher.
Quanto à criada, essa foi ter com o judeu, e disse-lhe: «Senhor, está lá em
baixo um enfermo que foi carregado até aqui, e deram para si este quarto de
dinar para que o senhor o veja e lhe receite o que conveniente for.»
Aquando o judeu viu o quarto de dinar como paga para descer as escadas
ficou contente, e por mor desse contentamento levantou-se à pressa na
escuridão, dizendo à criada: «Acende-me uma luz.» E às escuras e
apressado desceu o judeu, mas mal um passo deu, tropeçou no corcunda,
que se revirou e rolou escadas abaixo, e ficando o judeu estupefacto, gritou
à criada: «Apressa-te com a luz.» Então veio a criada com a luz, e em
descendo o judeu [escadas abaixo] até aonde estava o corcunda, encontrou-
o já morto, e disse: «Ó Esdras, ó Moisés, ó Aarão, ó Josué filho de Nun,
parece que tropecei neste enfermo, e ele caiu escada abaixo e morreu. Pelo
casco do burro de Esdras, como vou eu fazer para tirar este corpo de minha
casa?»
Ao depois, carregou o corcunda escada arriba até aos aposentos, e em
dando parte à sua mulher sobre o corcunda, ela disse-lhe: «E ficas mudo e
quedo? Se o dia se ergue e ele ainda está em nossa casa, lá se vão as nossas
almas e vidas. És um ingénuo que tarda em agir.» E declamou uma poesia:

Enquanto durava, a tua vida parecia bela e clara,


E não temeste o que o destino te reservara.
Mas agora as tuas noites calmas ruíram,
E da límpida noite turvas mágoas surgiram.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é
comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei
me poupar e eu viver.»
105.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei, que a mulher do judeu lhe disse: «Porque te quedas
sentado sem agir? Levanta-te agora mesmo e vamos carregar o corpo até ao
terraço, para o botarmos na casa do nosso vizinho muçulmano e solteiro.»
Era o vizinho do judeu um vedor que intendia a cozinha do rei, e muita
gordura para cozinhar trazia ele para sua casa, gordura essa que era comida
pelos gatos e ratos, os quais davam cabo de toda a comida que ele trazia.
Então o judeu e a mulher subiram à açoteia, carregando o corcunda, e
cuidadosamente enfiaram-no em casa do vedor, agarrando-o pelas mãos e
pés para o fazer descer até ao chão; encostaram-no a uma parede e
abalaram.
Mal haviam eles descido da açoteia, aquando o vedor chegou de uma
recitação do Alcorão onde havia ido com um dos seus amigos. E era meia-
noite quando chegou, trazendo consigo uma vela acesa, e em abrindo a
porta de casa, entrou, encontrou um homem em pé contra o canto da parede
a qual estava por baixo da conduta de refrigeração5. Então, disse o vedor:
«Ó meu Deus, esta é boa! Podemos dizer que quem anda a roubar as minhas
coisas afinal não é senão um homem! Seja carne, és tu que a levas, seja
gordura de cozinhar, és tu que a picas, seja rabo gordo de ovelha, és tu que
o levas! E eu que julgava serem os gatos, os ratos e os cães! E matei cães e
gatos, e pequei contra eles, mas afinal não era outro senão tu mesmo quem
descia da açoteia pela conduta de refrigeração para roubar as minhas
provisões! Juro por Deus que farei justiça com as minhas próprias mãos.»
Posto isto, pegou num cacete grosso, e com um pulo só acercou-se do
corcunda, e espetou-lhe uma forte pancada que o atingiu na arca do peito, e
em caindo o corcunda ao chão, espetou-lhe outra pancada nas costas, e
fixando os olhos para ver a cara do corcunda, viu que ele estava morto, e
então gritou: «Ai! que o matei! Não há força nem poder senão em Deus
Altíssimo e Grandioso.» Em seguida, ficou pálido e receou pela própria
vida, e disse: «Que Deus amaldiçoe a gordura de cozinhar e esta noite! A
Deus pertencemos e a Deus regressaremos.»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se o rei me poupar e eu viver.»
106.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Conta-se, ó rei bem-aventurado, que o vedor olhou para o homem, e


vendo que ele era um corcunda, disse: «Ó corcunda maldito, não bastava
que fosses um digníssimo corcunda ladrão? Que hei-de eu agora fazer? Ó
Velador, vela por mim!» E em seguida, carregou-o aos ombros, saiu de
casa, e já a noite se findava quando ele chegou à entrada do mercado, o pôs
em pé junto a uma loja, ao cabo de um beco escuro, deixou-o e abalou.
Não havia passado senão um instante, e um mestre de corporação, que
era corretor do rei e era nazareno e dono de uma oficina, e que estava
bêbedo, havendo-se embebedado em casa, resolveu sair para ir aos banhos,
já que a sua bebedeira lhe havia dito que as orações matinais estavam para
breve. E a cambalear marchava ele quando se achegou ao corcunda, e
mesmo em frente dele parou para verter as águas, e ao olhar à sua volta deu
de caras com alguém de pé diante de si. E como no início da noite haviam
rapinado o turbante ao nazareno, em este vendo o corcunda ali de pé, julgou
que também ele lhe queria rapinar o turbante. Então cerrou o punho e
esmurrou o corcunda no pescoço, e este caiu por terra, e pondo-se o mestre
a gritar «ó da guarda», caiu sobre ele, e na sua bebedeira não parou de o
esmurrar e esganar. E em vindo o guarda ao poste de iluminação6,
encontrou o nazareno ajoelhado em cima de um muçulmano enquanto o
esmurrava, e perguntou o guarda: «Que vem a ser isto?» Ao que o nazareno
lhe respondeu: «Este queria rapinar o meu turbante.» Então disse-lhe o
guarda: «Levanta-te de cima dele.» E em se levantando de cima dele, o
guarda chegou-se ao corcunda, e em o encontrando morto, disse: «Meu
Deus, esta é boa, um nazareno a matar um muçulmano.» E prendeu o
corretor nazareno, atou-lhe as mãos, e trouxeram-no7 de noite a casa do
governador. O nazareno estava surpreendido consigo mesmo e de como
pudera ele ter matado aquele fulano, de como tão rápido havia ele morrido
com a sua esmurraria, e A bebedeira desapareceu e o pensamento volveu.
O corretor e o corcunda passaram a noite no palácio do governador, até
de manhã. E em amanhecendo, o governador foi ao rei da China e deu-lhe
parte de que o seu oficial nazareno havia matado um muçulmano. Então o
rei ordenou que ele fosse enforcado, e saiu o governador a ordenar ao
verdugo que proclamasse a sentença e montasse o patíbulo, no qual
puseram o nazareno em pé. Veio o verdugo e botou a corda no pescoço do
nazareno, e quando estava prestes a dependurá-lo, rompeu o vedor por entre
as gentes, e disse ao verdugo: «Pára! Não foi ele quem o matou. Ninguém o
matou senão eu mesmo!» Então o governador perguntou: «Que dizes?» Ao
que ele respondeu: «Fui eu quem o matou» – e contou-lhe a história de
como lhe havia batido com o cacete, e de como o havia carregado até ao
mercado, onde o havia deixado de pé – «Não me basta haver matado um
muçulmano, mas também carregar o fardo da culpa no meu sangue pela
morte de um nazareno? Por via da minha confissão, não mates outro senão
eu mesmo.»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se o rei me poupar e eu viver.»
107.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o governador, ao escutar as


palavras do vedor, disse ao verdugo: «Liberta o nazareno e enforca este aqui
por mor da sua confissão.» Então o verdugo, depois de libertar o nazareno,
pôs o vedor em pé no patíbulo, pegou na corda e botou-a no pescoço dele, e
quando estava prestes a dependurá-lo, rompeu o judeu por entre as gentes, e
gritou ao verdugo: «Pára! Não foi ele quem o matou. Ninguém o matou
senão eu mesmo! A noite passada, após haverem os mercados fechado,
estava eu sentado em casa quando um homem e uma mulher bateram à
porta. A minha criada desceu para os atender, e ao abrir a porta viu que
havia com eles um enfermo, e eles deram-lhe um quarto de dinar. Mas mal
a criada subiu para mo entregar e me dar parte sobre aquele assunto, eles
botaram-me o enfermo no cimo das escadas, e em eu descendo tropecei
nele, e rebolámos os dois escada abaixo, havendo ele morrido num pronto.
A causa da sua morte não se deve a ninguém senão a mim mesmo. Então,
eu e a minha mulher carregámo-lo até à açoteia, e como a casa deste vedor
é à banda da nossa, descemos este corcunda, que estava morto, através da
conduta de refrigeração, deixando-o de pé a uma esquina da casa. E em
chegando este vedor a casa, encontrou um homem em pé, e julgando que
ele fosse um criminoso, bateu-lhe com um cacete na cara, e por isso pensou
que o houvesse matado, mas ninguém o matou senão eu mesmo. Não me
basta haver matado um muçulmano, sem o saber nem o querer, mas também
carregar o fardo da culpa no meu sangue pela morte de outro muçulmano?
E deixar que o sangue por ele derramado manche as minhas mãos? Por isso
não o enforques, pois ninguém matou o corcunda senão eu mesmo.»
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se o rei me poupar e eu viver.»
108.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o governador, ao ouvir as palavras


do judeu, disse ao verdugo: «Liberta este vedor e enforca o judeu.» Então o
verdugo agarrou nele e pôs-lhe a corda ao pescoço, quando o alfaiate
rompeu por entre as gentes, e disse ao verdugo: «Pára! Não foi ele quem o
matou. Ninguém o matou senão eu mesmo!» Em seguida, o alfaiate virou-
se para o governador, e disse: «Meu senhor, ninguém matou este corcunda
senão eu mesmo. E assim é porque ontem saí para desfrutar de um passeio,
e quando regressei ao fim do dia encontrei este corcunda bêbedo, trazendo
com ele um pandeiro com o qual tocava e cantava. Convidei-o e trouxe-o
para minha casa, e saí para lhe comprar um peixe frito, e em voltando com
o peixe sentámo-nos a comer. Então peguei numa posta de peixe e
empurrei-a pela garganta dele adentro, e como engoliu uma espinha que se
lhe prendeu na garganta, morreu num pronto. Eu e a minha mulher ficámos
com medo e fomos a casa do judeu. Bati à porta, e em descendo a criada e
em nos abrindo a porta, eu disse-lhe: “Sobe e vai dizer ao teu senhor que à
porta estão uma mulher e um homem com um enfermo para ele o ver.” E
paguei um quarto de dinar para ela entregar ao seu senhor. Em a criada
subindo, fui eu quem carregou este corcunda até ao cimo das escadas, e o
recostei, e desci e com a minha mulher fugi. Então, em o judeu nele
tropeçando, pensou que o havia matado.» Em seguida o alfaiate perguntou
ao judeu: «Não é isto verdade?» Ao que o judeu respondeu: «Sim, é
verdade.» E o alfaiate virou-se então para o governador, e disse: «Liberte
este judeu e enforque-me a mim, pois fui eu quem o matou.»
Em ouvindo o governador as palavras do alfaiate, ficou espantado com a
história daquele corcunda e disse: «Há uma causa espantosa detrás tudo
isto, que deverá ser registada nas crónicas, até mesmo com tinta de oiro.» E
em seguida disse ao verdugo: «Liberta este judeu e enforca este alfaiate por
via da sua confissão.» O verdugo assim o fez, libertou o judeu, pôs o
alfaiate no patíbulo, e disse ao governador: «Já vamos ficando cansados de
dependurarmos este e despendurarmos aquele, e esta coisa alonga-se…» Ao
depois, o verdugo botou a corda no pescoço do alfaiate, e a outra ponta da
corda à roldana.
Ora, a verdade é que o corcunda era amigo do rei da China, e era o seu
bobo, e dele jamais se conseguia separar, nem durante um piscar de olhos.
Então, quando ele se embebedou e não apareceu ante o rei naquela noite…

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é
comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei
me poupar e eu viver.»
109.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o corcunda quando se embebedou


e não apareceu ante o rei naquela noite, que dele ficou à espera até quase ao
meio-dia [do dia seguinte] sem que ele houvesse vindo, então o rei indagou
sobre ele um dos presentes, e foi-lhe dito: «Ouvi dizer, ó rei, que o
governador deu com um corcunda morto e com quem o matou, mas em
estando prestes a enforcá-lo, veio um segundo e um terceiro, e cada um
deles disse: “Fui eu quem o matou”. E até agora continuam eles a contar ao
governador como morreu o corcunda.» Em ouvindo o rei da China aquilo,
gritou a um dos camaristas, dizendo-lhe: «Sai e traz-me o governador, o
morto e os matadores, e todos eles ante mim.» Ora, o camarista saiu num
pronto, e aconteceu alcançar o verdugo em estando este já a pôr a corda ao
pescoço do alfaiate, prestes a dependurá-lo. Então o camarista gritou-lhe:
«Pára!» E virou-se para o governador e deu-lhe parte do mando do rei. O
governador levantou-se, e trazendo o corcunda, que foi transportado, o
alfaiate, o judeu, o vedor e o nazareno, levou-os a todos ante o rei. Mandou-
os ficar de pé, beijou o chão ante o rei, e repetiu o que se havia passado,
contando-lhe a história do corcunda de fio a pavio.
Em ouvindo tudo aquilo, o rei da China ficou espantado até mais não, foi
tomado pela emoção, e ordenou que aquilo fosse registado por escrito nas
crónicas. E perguntou aos que estavam à sua roda: «Já haveis ouvido
história mais espantosa do que esta que aconteceu a este corcunda?» Posto
isto o nazareno avançou, beijou o chão ante o rei, e disse: «Ó rei dos
tempos, se me permite, contarei algo que me aconteceu de tão mais
espantoso que a história deste corcunda, que até uma pedra faria chorar.»
Então o rei da China disse: «Conta-nos a tua história.» E disse o nazareno:

História do corretor nazareno: o jovem com a mão decepada e a moça

Ó rei, fique sabendo que antes de chegar a esta cidade era eu um


forasteiro estranho às vossas terras trazendo mercadoria, e quando aqui
cheguei quiseram os destinos que eu entre vós me quedasse estes anos
todos. Eu sou um copta do Egipto, e o meu pai era um eminente corretor, e
em ele morrendo fiz-me corretor no seu lugar, e assim foi durante anos. E o
mais espantoso que já me aconteceu foi um dia quando estava sentado onde
se sentam os mercadores de forragem do Cairo, e um jovem belo me
apareceu, sumptuosas vestiduras trajando e um burro alto montando. O
jovem cumprimentou-me e eu em sua honra me levantei. Então sacou ele de
um lenço que continha sésamo, mostrou-mo e me perguntou: «Quanto vale
o irdabbe8?»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Ó mana, que história


tão boa e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o
rei me poupar e eu viver.»
110.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o nazareno disse ao rei da China:

Ó rei dos tempos, eu respondi ao jovem: «O irdabbe de sésamo vale cem


dirames9.» E então ele disse-me: «Traz os carreteiros e o medidor, e vem
até à Porta da Vitória, ao caravançarai Aljauli, onde me vais encontrar.» E
posto isto, abalou. Levantei-me e fui inquirir por mim mesmo, e fiz a ronda
entre os mercadores de forragem, as lojas dos pasteleiros, e os mercadores
que armazenam sésamo, e cada irdabbe valia cento e dez. Então levei
comigo quatro equipas de carreteiros, e parti com eles para o caravançarai
Aljauli, onde encontrei o jovem à minha espera. Em me vendo, levantou-se,
levou-me ao armazém, e disse-me: «Deixa o medidor para medir entrar, e
os carreteiros os burros carregar.» E ora uma equipa saía, ora outra entrava,
até o armazém se esvaziar. Ao todo foram cinquenta irdabbes no valor de
cinco mil dirames. Então, disse-me o jovem: «Pela tua corretagem ficas
com dez dirames por cada irdabbe, e deixas para mim quatro mil e
quinhentos, que guardas até eu acabar de vender as minhas colheitas e vir
ter contigo para receber essa soma.» E eu respondi-lhe: «Assim seja», e
beijei-lhe a mão e abalei, espantado com a sua generosidade.
Quedei-me à sua espera, mas ele não veio por espaço de um mês, ao cabo
do qual me apareceu e perguntou: «Onde estão os dirames?» Dei-lhe as
boas-vindas e perguntei se queria vir a minha casa comer alguma coisa, mas
ele não quis, e disse-me: «Vai buscar os dirames enquanto eu parto para
fora, mais tarde venho ter contigo para tu mos dares.» E partiu com o seu
burro. Fui buscar os dirames e à espera dele me quedei por espaço de um
mês, e disse de mim para mim: «Este jovem é generoso, deixou comigo
quatro mil e quinhentos dirames por espaço de três meses, e não os veio
buscar.» Então, em passando esse espaço de tempo veio ele um burro
montando, e sumptuosas vestiduras trajando, e parecia como se houvesse
dos banhos saído.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é
comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei
me poupar e eu viver.»
111.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o nazareno disse ao rei da China:

E o jovem parecia como se houvesse dos banhos saído. Em o vendo, saí


loja fora e disse-lhe: «Meu senhor, leve consigo os seus dirames.» Ao que
ele me disse: «Qual a pressa? Venho buscá-los esta semana, mas primeiro
tenho de vender as minhas colheitas.» E abalou. Então, eu disse de mim
para mim: «Em ele vindo da próxima vez, vou convidá-lo para vir a minha
casa.» E por espaço de um ano ele não apareceu. Então aliviei-me dos seus
dirames, e com eles fiz negócios, e ganhei muito dinheiro. E em passando
esse ano, veio o jovem, trajando um fato sumptuoso. Em o vendo, saí a
recebê-lo, e jurei pelo Evangelho que ele comigo havia de comer e meu
convidado ser. E respondeu ele: «Com uma condição, que o que despendas
comigo seja do dinheiro que deixei contigo.» E respondi-lhe eu: «Assim
seja.» Então entrei em casa, arrumei-a para o receber, e ele se sentou,
enquanto eu saí ao mercado para arranjar o que fosse necessário de bebidas,
frango recheado, e doçarias. Voltei e dispu-las ante ele, dizendo: «Faça
favor.» Achegou-se da mesa, e comeu comigo, mas usou a mão esquerda, o
que me deixou estupefacto, e disse de mim para mim: «Só Deus é perfeito;
este jovem é generoso e formoso, mas tão pretensioso e vaidoso que não se
digna a usar a mão direita em estando a comer comigo.» E assim comi eu
com ele.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é
comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei
me poupar e eu viver.»
112.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o nazareno disse ao rei da China:

Em acabando a refeição, verti água na mão dele, e dei-lhe algo para ele a
limpar. Depois de lhe oferecer alguns doces, sentámo-nos à conversa, e
perguntei-lhe: «Meu senhor, alivie-me desta consternação, e diga-me o que
se passa consigo para comer comigo usando a mão esquerda. Alguma dor
aflige a sua mão direita?» Em o jovem ouvindo as minhas palavras, chorou
e uma poesia declamou:

Não foi de bom grado que troquei Leila por Selma


Mas foi antes a necessidade que assim ditou.

E sacou a mão direita do bolso, e mostrou-ma, e eis que estava decepada,


era um braço sem mão. Espantei-me com tal coisa, mas ele disse-me: «Não
fiques espantado, e não digas ao teu âmago que foi por presunção que comi
com a esquerda. Eu não sou uma pessoa presunçosa e o decepamento da
minha mão tem uma causa espantosa.» E entre suspiros e choros, ele disse:
Fica sabendo que eu sou de Bagdade, onde nasci, e que o meu pai era um
dos notáveis dessa cidade. Em atingindo a idade de ser homem, ouvi as
gentes e os viajantes falarem sobre as terras do Egipto, e isso ficou na
minha cabeça. Até que o meu pai morreu e eu herdei a sua fortuna, e
aprontei um carregamento de mercadoria, e tecidos bagdalis e musselinas, e
levei comigo mil mantos de tecido simples e todo o género de tecidos, e
viajei de Bagdade até chegar ao Egipto. Em entrando no Cairo, descarreguei
os tecidos no caravançarai Macerur, onde me quedei. Desmontei os meus
fardos e guardei-os nos armazéns. Então dei ao meu criado alguns dirames e
ordenei-lhe que nos fizesse algo para comer. A minha rapaziada comeu e eu
descansei. Ao depois, saí para passear em Beinalcasreine10, e voltei para
dormir.
Ao acordar, abri os pacotes dos tecidos, e disse de mim para mim: «Vou a
um dos belos mercados ver os preços.» Peguei em alguns tecidos e dei-os a
um dos meus serventes para os carregar; vesti a mais sumptuosa vestidura e
caminhei até chegar ao Mercado dos Circassianos. Em lá entrando, fui
recebido pelos corretores, que já sabiam da minha vinda. Pegaram numa
selecção dos meus tecidos e os apregoaram, mas o preço nem sequer cobriu
o capital investido. Fiquei aflito com tal coisa, e disse: «Mas este preço nem
sequer cobre o capital investido.» Ao que os intermediários responderam:
«Meu senhor, podemos dar-lhe a conhecer uma forma de lucrar sem riscos.»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana, e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o
rei me poupar e eu viver.»
113.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o nazareno disse ao rei da China


que o jovem disse:

Os intermediários disseram: «Podemos dar-lhe a conhecer um forma de


lucrar sem riscos, que é fazer como os mercadores. Vende a sua mercadoria
à consignação com prazo fixo, redigindo-se um contrato com um escriba,
uma testemunha e um cambista; e vai receber todas as semanas às segundas
e quintas; assim só lucra, e vai poder passear pelo Cairo e pelo Nilo, e
desfrutar das vistas.» Então disse-lhe: «É uma ideia.» E peguei nos
intermediários e nos portadores, e fui até ao caravançarai, saquei dos maços
de tecidos, e eles os carregaram e foram comigo ao mercado, onde os vendi
à consignação, havendo sido redigidos contratos ante testemunhas, que
foram entregues ao cambista.
Saí do mercado e tornei ao caravançarai, onde residi durante os dias da
minha estadia, e a cada dia desjejuava-me com uma taça de vinho, carne de
cordeiro e de pombo, e doçarias, e assim foi por espaço de um mês. E em
entrando o segundo mês, no qual se tornava cobrável o que me era devido,
passei todas as quintas e segundas a ir ao mercado, e a sentar-me ora na loja
de um mercador ora na de outro, e vinha o cambista com o escriba para
cobrar os dirames, e assim era até ao final do dia, e eu os contava, passava
recibo, pegava neles e abalava para o caravançarai.
Desta guisa procedi eu durante seis dias de mercado, até que um dia, e
sucedeu ao caso ser segunda-feira, fui de madrugada aos banhos, e em de lá
saindo vesti belas roupas, tornei ao meu poiso no caravançarai, desjejuei-
me com bebida, e adormeci. Ao levantar-me, comi uma galinha cozida,
arranjei-me e perfumei-me, e caminhei até ao mercado, onde me sentei à
beira de um mercador chamado Badreddine Albustani. Ficámos à conversa
um tempo, e assim estávamos quando uma mulher, vestindo um manto
encimado por uma magnífica bandana e sumas fragrâncias exalando, entrou
na loja, sentou-se, e com a sua beleza arrebatou o meu coração. Ergueu a
rede do véu que lhe cobria a vista e uns esplendorosos negros olhos olharam
para mim. Cumprimentou Badreddine, que lhe deu as boas-vindas e falou
com ela. E em ouvindo a sua voz, apoderou-se do meu coração o amor por
ela, e por ela senti um agoiro. Então ela perguntou a Badreddine: «Tens
alguma peça com cenas de caça?» E ele sacou de uma das minhas peças, e
ela a comprou por mil e duzentos dirames. E ela disse ao mercador: «Com a
tua licença, levo esta peça e no próximo dia de mercado enviar-te-ei o seu
valor.» Mas o mercador respondeu-lhe: «Não é possível, minha senhora,
porque este senhor aqui é o dono destes tecidos, e hoje é o dia em que lhe
chega a prata.» Então ela disse-lhe: «Irra! Então não te hei eu tanta vez
comprado carradas de tecidos, seja a que preço for que tu peças, levando os
tecidos e te enviado depois o valor?». E respondeu-lhe Badreddine: «Sem
dúvida, mas hoje vejo-me na obrigação de receber o valor agora mesmo.»
Então vai ela e bota a peça no meio do chão e, furiosamente, diz: «Que
Deus vos arruine, a vós mercadores! A gente da vossa laia não tem
consideração por ninguém!» E levantou-se e abalou.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha, ó mana», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o
rei me poupar e eu viver.»
114.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o nazareno disse ao rei da China:


«o jovem disse-me:»

Em ela botando a peça no chão e abalando, senti como se a minha alma


se me tivesse do coração saído e atrás dela fugido, e disse-lhe: «Por amor de
Deus, minha senhora, tenha a bondade de falar comigo.» E ela regressou e
disse sorrindo: «Por ti regresso», e sentou-se na loja, virada para mim.
Então eu perguntei a Badreddine: «Senhor, qual o preço de venda desta
minha peça?» E ele respondeu: «Mil e duzentos dirames.» E eu disse-lhe:
«E para ti ficas com cem dirames de lucro. Traz-me uma folha, e escrever-
te-ei uma nota de quitação.» Peguei na peça, escrevi-lhe uma nota de
quitação, e a ela entreguei a peça, dizendo-lhe: «Tome, minha senhora, e se
quiser traga-me o valor no próximo dia de mercado, ou então que seja um
dom que lhe faço.» Ao que ela me disse: «Que Deus o recompense, e que
Deus lhe traga muitas mais riquezas e uma vida mais longa que a minha.» –
E as portas do Céu estavam abertas para receber as preces do Cairo. – E eu
disse: «Minha senhora, considere esta peça sua, e se Deus quiser outras
serão suas, mas deixe-me ver a sua face.» Virou então ela a cabeça e o véu
ergueu, e o eu olhar para ela fez-me soltar um suspiro, pois se me havia ido
a razão. Cobriu-se de novo e levou a peça, dizendo: «Ó meu senhor, se me
permite, terei saudades suas», e abalou.
Quedei-me no mercado até ao final do dia, mas na realidade estava
noutro mundo. Perguntei ao mercador sobre a moça, e ele me disse: «É
dona de muito dinheiro, e filha de emir, o pai deixou-lhe uma fortuna.»
Despedi-me dele e abalei, fui para o caravançarai, e em o jantar me sendo
trazido, só me lembrava dela, e comi coisa nenhuma. Fui dormir, mas não
consegui e não preguei olho até de madrugada. Ao levantar-me, vesti uma
roupa, desjejuei qualquer coisa, e fui à loja de Badreddine.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana, e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o
rei me poupar e eu viver.»
115.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o nazareno disse ao rei da China


que o jovem disse:

Mas mal me havia sentado na loja de Badreddine, e eis que surge a moça
com um vestidura ainda mais magnífica que a primeira, e com ela estava
uma criada. Em chegando, cumprimentou-me a mim só, e não a
Badreddine, e disse-me: «Meu senhor, peça a alguém para recolher o seu
valor.» Ao que eu lhe respondi: «Qual a pressa em receber o valor?» E disse
ela: «Ai querido, que nunca nos privemos de ti.» Ao depois, entregou-me o
valor, e sentei-me à conversa, eu com ela, e pondo-me eu a dizer-lhe belas
palavras sobre a sua pessoa, entendeu que eu lhe queria fazer a corte, então
levantou-se à pressa, e abalou levando o meu coração a ela colado.
Saí mercado afora, e de repente dei com uma criada negra que me diz:
«Meu senhor, venha falar com a minha patroa.» Fiquei espantado e disse-
lhe: «Mas nesta cidade ninguém me conhece.» E ela disse: «Tão rápido e já
se esqueceu dela, meu senhor? A minha patroa é aquela senhora que estava
hoje na loja do mercador.» Então caminhei com ela até aos cambistas, e ela,
em me vendo, puxou-me para uma esquina, e disse-me: «Ai amor, ficaste na
minha cabeça, desde o dia em que te vi nada me faz feliz, nem como nem
bebo.» Ao que eu lhe disse: «Também eu! E o estado em que me vês
dispensa-me de qualquer lamúria.» E perguntou-me ela: «Amor, em minha
casa ou na tua?» E disse-lhe: «Eu sou um forasteiro, não tenho um local
aonde me aloje senão o caravançarai.»
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana, e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o
rei me poupar e eu viver.»
116.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Conta-se, ó rei bem-aventurado, que o nazareno disse ao rei da China que


o mercador lhe disse que disse a ela:

«Não tenho alojamento senão o caravançarai, por isso tende a bondade de


ser em tua casa.» E ela disse: «Assim seja, senhor meu, sexta-feira à noite
nada podemos fazer, mas amanhã, após as orações, quando as terminares,
pegas numa cavalgadura e perguntas aonde fica Habbanía, e pela moradia
de Barcute, o mestre Abu Xama, e não te delongues, pois eu estarei à tua
espera.» E eu disse: «Assim seja», e separámo-nos.
Mal pude esperar que a manhã viesse, quando me levantei e vesti as
minhas roupas, arranjei-me e perfumei-me, pus cinquenta dinares num
lenço, e caminhei do caravançarai Macerur até à Porta Zuweila, aonde
montei um burro e disse ao almocreve: «Quero chegar a Habbanía.» Ele
conduziu-me a toda a brida, e parou numa vereda chamada Vereda da
Piedade. Então disse ao almocreve: «Entra vereda adentro e pergunta pela
moradia de Barcute, o mestre conhecido por Abu Xama.» O almocreve
desapareceu e em vindo, disse: «Faça favor de descer.» Desci do burro e
disse-lhe: «Segue à minha frente até à moradia para que amanhã venhas e
me leves ao caravançarai Macerur.» O almocreve veio então comigo até à
moradia e eu entreguei-lhe um quarto de dinar. Ele pegou nele e abalou.
Bati à porta e apareceram duas aias brancas e catraias, que me disseram:
«Faça favor de entrar, a nossa patroa, tal era o contentamento pela sua
pessoa, não dormiu esta noite.» Entrei pelo corredor e deparei-me com um
salão, elevado do chão por sete patamares, e à sua roda havia janelas que
davam para jardins, os quais havia neles todo o género e feitio de frutos,
pássaros e correntes de água que faziam os olhos transbordar de deleite. E
ao meio do salão havia uma fonte que em cada um dos quatro cantos tinha
quatro cobras moldadas em oiro vermelho, e que jorravam água das suas
bocas como se fosse jóias e pérolas.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é
comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se eu
ainda for viva.»
117.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o nazareno disse ao rei da China


que o moço disse:

Entrei no salão, e mal me sentei veio a moça, trajando fatos e ornatos, e


uma grinalda, e estava pintada e delineada. Em me vendo, sorriu para mim,
juntou-me ao peito dela, e a minha boca à sua boca, e desatou a chupar a
minha língua, e assim lhe fiz eu também. Ao depois, disse: «Será verdade,
senhorzito meu, que estás aqui comigo?» E eu lhe disse: «Aqui estou eu em
tua casa e sou teu escravo.» E ela disse: «Ó meu Deus, dês do dia em que te
vi que me já não sabe bem nem a comida nem a dormida.» Ao que eu lhe
disse: «E o mesmo se passa comigo.» Em seguida, sentámo-nos a
conversar, com a minha cabeça curvada para o chão.
Pouco tempo passou até que me foi apresentada uma bandeja de madeira
com pratos dos mais sumptuosos, tais como sicbaj11, guisados12, tiras de
massa frita13 embebidas em mel de abelha e frangos recheados com açúcar
e pistácio, e comemos até nos fartarmos. Ao depois, a mesa foi levantada,
lavámos as mãos, e [as criadas] borrifaram-nas com água de rosas
almiscarada. Então sentei-me eu e sentou-se ela na farra comigo, e o amor
por ela apoderou-se totalmente de mim, e para mim ela valia tanto que todo
meu dinheiro já nada valia. Ao depois, estivemos na brincadeira até de
noite, quando nos foi apresentado o vinho, e um banquete completo, e então
bebemos até à meia-noite, e dormi com ela até de manhã, nunca havendo
passado melhor noite do que aquela.
Em nos amanhecendo, levantei-me e botei para ela, por baixo da cama, o
lenço que continha os cinquenta dinares. Despedi-me dela e em abalando,
ela chorou e perguntou: «Senhor meu, quando te tornarei a ver?» E
respondi-lhe: «Estarei contigo ao jantar.» Veio comigo até à porta e disse:
«Senhor meu, traz contigo o nosso jantar.» Ao sair, topei o almocreve com
quem havia montado no dia anterior à minha espera, então montei e ele
conduziu o burro até ao caravançarai, onde desci do burro, e nada dei ao
almocreve, e disse-lhe: «Vem ter comigo ao sol poente.» E ele disse:
«Assim farei», e abalou.
Desjejuei uma coisa leve, e saí para cobrar o valor dos meus tecidos e
arranjar à moça um cordeiro de churrasco, um tacho de arroz banhado em
gordura de assado14, e umas doçarias, que lhe enviei na cesta de um
carregador a quem indiquei a moradia dela, e quanto a mim continuei a dar
voltas com os meus afazeres até ao poente. E ao poente veio o almocreve
ter comigo, e tomei cinquenta dinares e pu-los num lenço, e levei comigo
mais dois quartos, que fazem meio dinar. Montei, piquei o burro, e cheguei
num pronto à moradia. Desci e entreguei ao almocreve meio dinar. Ao
entrar, vi que haviam arrumado a casa ainda melhor do que já estava. Em
ela me vendo, beijou-me e disse: «O dia todo tive saudades tuas.» Então
foram apresentados os repastos, e comemos até nos fartarmos. Veio a
bebida, e não parámos de beber até vir a meia-noite, quando nos levantámos
para ir para o quarto, e dormimos até ser manhã.
Em me levantando, entreguei-lhe o oiro, os cinquenta dinares dentro dum
lenço, e em saindo encontrei o almocreve. Montei e fui para o caravançarai,
havendo dormido um tempo. Levantei-me e arranjei numa loja de iguarias
um par de gansos caseiros servidos em cima de arroz apimentado, raízes de
taro fritas embebidas em mel de abelha, assim como velas, frutos, nozes e
flores aromáticas, e enviei tudo por um carregador. Esperei
impacientemente até ser noite, pus cinquenta dinares num lenço, saí e
montei com o almocreve até à moradia. Entrei, sentei-me, comemos,
dormimos até de manhã, botei-lhe o lenço, saí, montei com o almocreve, e
fui-me para o caravançarai Macerur.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana, e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu:
«Isto nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima
noite, se o rei me poupar e eu viver.»
118.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o nazareno disse ao rei da China


que o jovem disse:

E desta guisa continuei eu, e a cada noite cinquenta dinares, vinhaça e


festança, até que fiquei sem um só dirame. Saí então do meu quarto, sem
saber onde havia de encontrar dirames, e disse de mim para mim: «Não há
força nem poder senão em Deus Altíssimo e Grandioso. Isto só pode ser um
feito de Satã.» Saí então do caravançarai e caminhei até Beinalcasreine e até
à Porta Zuweila, aonde encontrei azáfama tal que a porta, por tanta turba,
estava entupida.
Quis o destino que eu desse um encontrão a um soldado, e que a minha
mão tocasse na sua bolsa de coiro presa à cintura, dentro da qual a minha
mão sentiu um saquinho. Então olhei com os meus próprios olhos e vi uma
borla verde a sair do bolso, e percebi que estava ligada àquele saquinho. Ao
virar-me reparei que havia cada vez mais atropelo entre a turba, e vi que à
banda do soldado vinha um camelo carregando madeira que lhe deu um
safanão, e então o sol-dado, receando pelo que vestia, virou-se para o
camelo para o repelir e o afastar das seus trajes. Aí, fui tentado por Satã, e
puxei a borla que saía do bolso, e eis que me vejo com uma bolsinha azul de
seda com algo lá dentro que terlintava. E em aquilo me vindo parar às
mãos, eis que o soldado se vira, põe a mão ao bolso e não encontra nada
dentro dele. Então volveu-se para mim, ergueu a sua clava, bateu-me na
cabeça, e eu caí. Rodearam-me as gentes, agarrando o soldado para lhe
encurtar a rédea, e perguntaram-lhe: «Foi por mor de um encontrão que lhe
deu tal porradão?» Ao que o soldado gritou contra eles, rogou pragas, e
disse: «É um gatuno!» Nesse momento, acordei e pus-me em pé, e olharam
para mim e disseram: «Ó por amor de Deus! Este bom rapaz nada roubou!»
E houve quem acreditasse, e quem desmentisse, e cada um dizia seu parecer
e sentença, e tentavam livrar-me dele.
Enquanto assim estávamos, eis que o governador, o almocadém e os
chefes de polícia entraram porta adentro e encontraram a turba toda
ajuntada à roda de mim e do soldado. E perguntou o governador: «O que se
passa?» E deram-lhe parte do meu caso [e o soldado disse: «Ele tirou-me
uma bolsa de seda azul dentro da qual eu tinha vinte dinares de oiro.»]15
Então o governador perguntou ao soldado: «Estava alguém com ele?» E o
soldado respondeu: «Não.» Então o governador gritou ao almocadém para
que me agarrasse, e disse: «Despe-o.» E ao me despirem, encontraram a
bolsa nas minhas roupas, e eu perdi os sentidos. Então, o governador em
vendo a bolsa…

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana, e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o
rei me poupar e eu viver.»
119.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o nazareno disse ao rei da China


que o jovem lhe disse:

O governador, em vendo a bolsa, dela sacou os oiros, contou-os, e vinte


dinares encontrou. Então furioso ficou e aos almocadéns berrou para que
me levassem ante ele, e disse-me: «Ó moço, não é necessário castigar-te,
diz-me a verdade, foste tu quem roubaste esta bolsa?» Nesse momento,
curvei a minha cabeça para o chão e disse de mim para mim: «Não posso
negar porque eles encontraram a bolsa nas minhas roupas, e não posso
confessar porque ficarei em apuros.» Então ergui a cabeça e disse: «Sim, fui
eu.» Em me ouvindo, o procurador chamou testemunhas para atestarem a
minha afirmação. E tudo isto se passou connosco na Porta Zuweila.
Então o governador chamou o verdugo, que decepou a minha mão
direita, e disseram as gentes: «Coitado deste moço!», e o coração do
soldado compadeceu-se de mim. E quis o governador decepar-me o pé, mas
o soldado interveio e intercedeu por mim, e então o governador largou-me e
abalou. As gentes ficaram à minha roda e deram-me a beber um copo de
vinho. Quanto ao soldado, esse deu-me a bolsa e disse: «És um bom rapaz,
não há necessidade que sejas um ladrão», e largou-me e foi-se.
Embrulhei a minha mão num trapo e enfiei-a no bolso. Caminhei até
chegar à moradia, e botei-me na cama. Então a moça viu que eu estava
pálido, pois havia sangrado, e perguntou: «Amor, alguma dor te aflige?» E
respondi-lhe: «Dói-me a cabeça.» Inquietando-se por mim, disse-me:
«Senta-te e conta-me o que te aconteceu hoje, pois a tua cara fala por ti.»
Então chorei. E ela disse: «Parece que te fartaste de mim. Por amor de
Deus, conta-me o que tens!» Calei-me. Ao depois, pôs-se a falar comigo,
mas eu lhe não respondia, até que veio a noite e ela me trouxe o jantar, mas
eu abstive-me de comer, com medo que ela me visse a comer com a
esquerda, e disse-lhe: «Não me apetece comer.» E ela disse: «Conta-me o
que se passou contigo hoje e o que te aflige.» E eu perguntei-lhe: «Tenho
mesmo de te contar?» Então deu-me de beber e disse: «Bebe para que a tua
aflição cesse, e me contes o que contigo se passou.» Ao que eu disse: «Se
tenho mesmo de o fazer, então dá-me de beber.» Ela bebeu, passou-me o
copo, e eu agarrei-o com a esquerda.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha, ó mana», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o
rei me poupar e eu viver.»
120.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o nazareno disse ao rei da China


que o jovem disse:

Ela passou-me o copo, e eu agarrei-o com a mão esquerda, desatando a


chorar, então ela deu um grito e disse: «Meu senhor, porque choras e o que
tens para agarrar o copo com a esquerda?» E respondi-lhe: «Tenho um
frunco na mão direita.» Ao que ela disse: «Então mostra-me a mão para eu
o rebentar por ti.» E eu respondi: «Ainda não é o momento.» Ao depois,
continuei a beber coagido, até que a bebida me subjugou, e adormeci. Então
ela foi observar a minha mão, mas encontrou um braço sem mão, e ao
revistar-me viu a bolsa e a minha mão embrulhada num lenço, e ficou triste
e até ser de manhã a lamentar-se.
Em eu acordando e me levantando, vi que ela me havia arranjado um
caldo com cinco galinhas, e em mo dando a beber, eu bebi. Botei a bolsa e
quis ir-me embora, mas ela disse: «Aonde vais? Senta-te!» E mais disse:
«Terá o teu amor por mim atingido tal ponto que esgotaste o que possuías, e
para cúmulo de tudo perdeste a tua mão? Eu testemunho ante ti que não
morrerei em lado algum senão a teus pés, e vais ver quão verdade é o que
digo.» Então, ela chamou à sua presença testemunhas, e redigiu o contrato
de casamento dela comigo, e disse: «Escrevei que tudo o que eu possuo
pertence a este que aqui se encontra.» Pagou às testemunhas o que era
devido, e em seguida pegou na minha mão e levou-me até a um baú, e
disse: «Olha para estes lenços que estão aqui dentro. Eles têm o dinheiro
todo que tu me trouxeste. Pega em todo o teu dinheiro, pois tu me és
precioso e valioso, e eu nunca te poderei compensar quanto baste.» E
insistiu: «Recebe o teu dinheiro.» Então tranquei o meu dinheiro no baú, e
alegrei-me, havendo-se dissipado as minhas aflições, e agradeci-lhe,
havendo ela dito: «Por amor de Deus, mesmo se eu te ofertasse a minha
vida, isso seria menos do que mereces.» E vivemos juntos, mas em menos
de um mês ela começou a ficar enferma, e a enfermidade foi-se avigorando,
e cada vez mais a sua aflição por causa de mim foi aumentando, e não se
completaram cinquenta dias até que morreu. Encovei-a, e ao depois vi que
ela tinha imensas e incontáveis coisas, e de tudo o que vi contam-se aquelas
colheitas de sésamo que tu, nazareno, me vendeste, e aquele armazém.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana, e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o
rei me poupar e eu viver.»
121.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o nazareno disse ao rei da China


que o jovem lhe disse:

Alheei-me de ti devido aos bens restantes, e me não pude ocupar para


receber de ti os dirames. Mas agora aqui estou eu, empós haver escoado
tudo o que ela me deixou. E por amor de Deus, ó nazareno, em nada do que
farei te oponhas, porque eu entrei em tua casa e comi das tuas provisões.
Faço-te dom do valor total com que ficaste da venda do sésamo, que é só
uma parte do todo de que Deus Todo-Poderoso me fez dom. E esta é a causa
de eu comer com a minha mão esquerda.

E em seguida disse-me mais: «Nazareno, tenho mercadoria aprontada,


será que viajarias comigo países afora?» E eu respondi-lhe: «Com certeza»,
e acordei com ele para o fim do mês. Então também eu comprei mercadoria,
e viajei eu e o jovem até este vosso país, ó rei, e ele comprou mercadoria e
partiu para o Egipto. E foi meu destino que eu me quedasse neste país. E
isto foi o que me aconteceu, e o mais estranho que se me sucedeu. Não é
isto, ó rei, mais espantoso que a história do corcunda?
Ora, o rei da China disse: «Não, não é mais espantoso que a história do
corcunda, e terei de vos enforcar, a vós os quatro, por mor do corcunda.»
Ao depois, o vedor avançou, e disse ao rei da China: «Ó rei bem-
aventurado, se eu lhe contar uma história que sucedeu comigo ontem à noite
antes de haver encontrado este corcunda em minha casa, se for mais
espantosa que a história do corcunda, as nossas vidas nos concederá e nos
alforriará?» E o rei da China retorquiu: «Sim, se eu a achar mais espantosa
do que a história do corcunda, conceder-vos-ei a vós os quatro as vossas
vidas.» Então disse o vedor:

História do vedor: o jovem de Bagdade e a criada da senhora dona


Zubeida

Ó rei dos tempos, ontem à noite estive em casa de gentes que


organizaram uma recitação do Alcorão, e juntaram-se sábios da Lei e um
ror de gente de entre os habitantes da cidade de vossa alteza. Em
terminando a recitação, estenderam as toalhas de banquete, e de entre todos
os pratos havia uma zirbaja16. Mas um de nós olhou para a zirbaja,
retrocedeu e absteve-se de o comer. Insistimos, mas ele jurou que não
comeria da zirbaja, e em ateimando com ele, disse-nos: «Não me forceis, já
me aconteceu quanto baste por comer disto.» E em seguida declamou uma
poesia:

Usa o teu kohl17 e nenhuma mala,


Põe o tambor ao ombro e abala.

Então dissemos-lhe: «Conta-nos qual a causa de te absteres de comer esta


zirbaja.» E o anfitrião dizia tal e tal coisa [e insistia]: «Não sais daqui sem
teres comido desta zirbaja.» Mas ele retrucou: «Não há força nem poder
senão em Deus! Se eu a comer, tenho de lavar as minhas mãos quarenta
vezes com potassa, e quarenta com junça, e quarenta com sabão, ao todo
cento e vinte!»18

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é
comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei
me poupar e eu viver.»
122.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o vedor disse ao rei:

Ó rei dos tempos, o anfitrião ordenou aos seus serventes que trouxessem
àquele convidado água e o que havia ele pedido para lavar as mãos. Então
lavou-as da guisa que já mencionámos, e veio-se sentar connosco, mas
arreliado. Estendeu a mão, como se estivesse com medo, mergulhou o naco
[de pão] na zirbaja, e comeu, e continuou a comer, mas furioso, enquanto
nós estávamos estupefactos com ele, que todo tremia, ele e a mão, e o
polegar da sua mão estava decepado, comendo ele com quatro dedos, de
guisa calamitosa, deixando o naco de comida se lhe escapulir por entre os
dedos. Ele fez-nos ficar espantados, e perguntámos-lhe: «Que se passou
com o teu polegar? Deus criou-te assim ou aconteceu-te algum acidente?» E
ele respondeu: «Meu Deus, não é só este pole-gar, mas também o outro, e
os dois dos meus pés, como ireis ver.» E descobriu o polegar da outra mão,
e nós vimos que era como o da direita, e que também os pés não tinham
polegares. [E em tal vendo, ficámos ainda mais espantados, e lhe dissemos:
«Estamos impacientes para ouvir a tua história e a causa do decepamento
dos teus polegares, e de]19 lavares as tuas mãos cento e vinte vezes.» Ele
disse:

Ficai sabendo que o meu pai era um dos mais notáveis mercadores de
Bagdade nos dias do califa Harune Arraxide, e costumava beber vinho e
escutar alaúde, e em falecendo nada me deixou. Pedi para ele uma função
fúnebre, com recitações do Alcorão, e fiquei de luto dias a fio. Depois
disso, abri a loja e constatei que ele me havia deixado dívidas e escasso
dinheiro. Pedi então aos credores que se pacientassem, e passei a vender e a
comprar, pagando aos proprietários da dívida de semana a semana. E assim
continuei eu desta guisa durante tempos, até que liquidei a dívida e passei a
fazer lucros com o meu dinheiro.
Até que um dia de entre dias, estava eu sentado, de manhã cedo, quando
uma moça formosa – e jamais vi eu uma como ela – trajando fatos e
ornatos, montando uma asna, e à frente dela seguia um escravo e atrás outro
escravo. Desceu da asna, que deixou à porta do mercado, e entrou. E logo
que entrou veio um honorável criado eunuco, que havia entrado depois dela,
e lhe disse: «Senhora minha, saia e não se dê a conhecer a ninguém, senão
vamos ficar debaixo de fogo pesado.» Então, [havendo ela entrado sem
atender ao que lhe fora dito,] o criado escoltou-a para que ela visse as lojas
dos mercadores, mas ela não encontrou ninguém que houvesse aberto a sua
loja a não ser eu. Então, caminhando com o criado atrás dela, veio até à
minha loja, cumprimentou-me e sentou-se.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado
com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei me poupar
e eu viver.»
123.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o vedor disse ao rei da China que o
jovem mercador disse:

Sentou-se na minha loja, e em descobrindo a cara, olhei para ela, e o


olhar para ela fez-me largar um suspiro. E perguntou: «Tem peças de
tecido?» Eu respondi: «Minha senhora, este seu servidor é pobre, mas tenha
um pouco de paciência até os mercadores abrirem, e então vou buscar tudo
o que deseja.» Então, eu e ela conversámos um tempo, e eu afoguei-me em
amores por ela. Até que, em os mercadores abrindo, levantei-me e fui-lhe
buscar tudo o que ela havia pedido, coisas que ao todo valiam cinco mil
dirames, e entreguei-as ao criado. Eles saíram e foram ter com os escravos,
que lhe trouxeram a asna. Ela montou-a, sem haver dito onde vivia, e
havendo eu me acanhado ante a sua beleza para algo lhe dizer, fiquei
comprometido com os mercadores no que dizia respeito àquele valor,
adquirindo um dívida de cinco mil dirames. Vim para casa tão bêbedo de
amor que nem consegui comer, beber, ou dormir por espaço de uma
semana.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Ó mana, que história


tão boa», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado
com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei me poupar
e eu viver.»
124.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Conta-se, ó rei, que o vedor disse ao rei da China que o jovem mercador
disse:

Ao depois de uma semana, os mercadores exigiram-me o devido pelas


mercadorias, e eu pedi-lhes que se pacientassem. E mal havia passado outra
semana, quando ela veio, montando a sua asna, e com o criado eunuco e os
escravos de habitualmente, que seguiam atrás dela. Cumprimentou-me,
sentou-se na loja, e disse: «Demorámos a pagar-lhe o valor dos tecidos.
Traga um cambista para recolher o valor.» Então eu trouxe um cambista, e o
eunuco sacou dos dirames e entregou-lhos. Pus-me à conversa com ela, até
que o mercado abriu e fui pagar a cada um o seu dinheiro. Então disse-me
ela: «Senhor meu, traga-me tal e tal coisa», e eu fui buscar aos mercadores
o que ela me havia pedido, mas em ela abalando, sem me haver falado no
preço, arrependi-me de o ter feito, pois eu havia trazido o que ela havia
pedido por mil dinares. Então, disse de mim para mim: «Que martírio este,
ela deu-me cinco mil dirames mas levou mil dinares20, e as gentes do
mercado só a mim me conhecem. Não há força nem poder senão em Deus
Altíssimo e Grandioso. Esta mulher não pode ser senão uma burlona, que
me intrujou, sem que eu sequer lhe haja perguntado onde mora.»
Não apareceu durante mais de um mês. Então, os mercadores exigiram-
me o devido, e havendo eu perdido todas as esperanças em a ver, pus a
minha propriedade à venda. E estando eu desesperançado e atarantado, eis
que ela aparece e entra na minha loja, e diz: «Traga a balança e tome o seu
dinheiro.» E deu-me o valor.
Ao depois, conversámos um tempo, e ela falava comigo com gosto e à
vontade, e quase voei de contentamento. Ao depois, perguntou-me: «Tens
mulher?» Ao que eu respondi: «Nunca me casei», e chorei. E ela perguntou:
«De que choras?» Disse-lhe: «Não é nada.»
Peguei em dinares e entreguei-os ao criado, pedindo-lhe que servisse de
intermediário entre mim e ela. O criado riu-se e disse: «Meu Deus, ela está
mais enamorado de ti do que tu dela. E ela não precisa dos tecidos que te
comprou, só o fez por via do amor que sente por ti. Conversa tu mesmo
com ela sobre o que quiseres!» E ela viu-me enquanto eu dava ao criado os
dinares. Então eu disse-lhe: «Permita a este seu servidor que lhe fale sobre
o que lhe vai na alma.» E em seguida, falei-lhe sobre o que me ia na alma, e
fui correspondido. Então ela disse ao criado: «Enviar-te-ei [com uma
mensagem minha para ele]», e disse-me a mim: «Seja o que for que ele te
diga, fá-lo.» E abalou, e eu fui pagar aos mercadores o dinheiro devido, e
não dormi toda a noite.
Então, em havendo passado poucos dias, veio o criado ter comigo…

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana, e tão estranha», disse a sua irmã Dinarzade. E Xerazade respondeu:
«Isto nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima
noite, se o rei me poupar e eu viver.»
125.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Conta-se, ó rei, que o vedor disse ao rei da China que o criado veio ter
com o jovem, e o jovem disse:

Honrei a sua vinda e perguntei-lhe por ela, e ele respondeu: «Está


combalida de amor por ti.» E eu perguntei-lhe: «E quem é ela?» E ele
respondeu: «Esta moça, foi a dona Zubeida, mulher do califa, que a criou; é
a sua aia favorita e é quem sai para lhe fazer recados. Meu Deus, ela falou
sobre ti à dona Zubeida e pediu para se casar contigo, e a senhora dona
Zubeida disse-lhe: “Só se eu o vir, e se for formoso ou se te assemelhar em
qualidades, é que te caso com ele.” E esta é a hora de te introduzirmos no
palácio e, se conseguires entrar, casas-te com ela, mas se fores descoberto,
serás decapitado. O que dizes?» Respondi: «Sigo em frente.» Então o criado
disse: «Hoje à noite vais até à mesquita construída pela senhora dona
Zubeida na margem do rio Tigre.» «Lá estarei», disse eu.
Fui-me para a mesquita, fiz a oração do crepúsculo, e ali pernoitei. Em
sendo a hora da aurora, vieram uns criados eunucos num batel, trazendo
com eles uns baús vazios, os puseram na mesquita, e abalaram. Mas um dos
criados ficou para trás, e em eu olhando melhor para ele, eis que era o
criado que se havia encontrado comigo primeiro, e ao depois veio a moça
minha amiga. E em ela se achegando, levantei-me para a receber, e
sentámo-nos a conversar, e ela chorava. Em seguida, fez-me sentar dentro
dum dos baús, e o trancou. Logo depois, vieram os criados com imensas
coisas e com elas puseram-se a encher os baús, até todos ficarem cheios, e
os fecharem. Então, puseram os baús no batel, e seguiram rumo à casa da
senhora dona Zubeida. Foi então que me arrependi e disse de mim para
mim: «Valha-me Deus, estou perdido», e fiquei a chorar, pedindo a bênção
de Deus e rogando para que fosse salvo. E continuaram até passarem com
os baús pela porta do palácio do califa. Carregaram o baú onde eu estava, e
todos os outros, e passaram pelos eunucos encarregues de guardar o harém,
até que acabaram junto de um eunuco que parecia ser o criado-mor, e que
acordou do sono.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana», disse a sua irmã Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é
comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei
me poupar e eu viver.»
126.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o vedor disse ao rei da China que o
jovem mercador disse:

Então o criado acordou do sono, largou um berro à moça, e disse: «Não


te delongues, tens de abrir estes baús.» Levantou-se, e o primeiro baú era
aquele onde me encontrava, e quando o levaram até ele, nesse momento os
meus sentidos foram-se [e tal era o meu temor que me mijei, e o mijo
escorreu para fora da arca.]21 Então a moça disse: «Ó almocadém, derribas-
me a mim e aos mercadores, e escangalhas as pertenças de dona Zubeida,
pois os baús contêm roupas tingidas, assim como um jarro de água de
Zamzam22, que se revirou e se entornou nas roupas que estão no baú,
fazendo com que as cores debotem.» E ele respondeu: «Leva o baú e vai-
te.» Então levaram-me apressadamente, seguido pelos baús restantes, mas
eis que chega aos meus ouvidos: «Maldição! Maldição! O califa! O califa!»
Em tal ouvindo, morri por dentro, e então ouvi o califa perguntar: «Ó tu aí,
o que trazes nestes baús?» E a moça respondeu: «Roupas para a dona
Zubeida.» E ele disse: «Abre-os para que eu os veja.» Em tal ouvindo,
morri completamente, por dentro e por fora. Ao depois, ouvi a moça dizer:
«Ó miralmuminim, estes baús têm roupas e pertenças de dona Zubeida, e
ela não quer que pessoa alguma veja as coisas dela.» Mas o califa disse:
«Estes baús têm de ser abertos para eu ver o que há neles. Trá-los até mim!»
Em ouvindo o califa dizer «Trá-los até mim», fiquei bem certo da minha
perdição. Ao depois, trouxeram os baús ao califa, um a um, e ele ia vendo
as pertenças e as fazendas. E continuou a abrir os baús, enquanto ia vendo o
que neles havia, até que já nenhum faltava senão o meu. Então carregaram-
me e botaram-me ante ele, e eu despedi-me da vida, bem certo de que me
iriam decapitar e eu me finar. E disse o califa: «Abram-no para eu ver o que
há nele.» E os criados apressaram-se com o baú em que estava eu.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão


boa», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto nada é
comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei
me poupar e eu viver.»
127.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei, que o vedor disse ao rei da China que o jovem disse:

O califa disse aos criados: «Abri este baú para eu ver o que há nele.» Mas
a moça disse: «Senhor meu, faça o favor de o ver ante dona Zubeida, pois
este baú contém o que é segredo dela, e ela tem mais apreço por este do que
todos os outros.» Em ouvindo as palavras dela, o califa ordenou-lhes que
fizessem entrar os baús, e vieram dois criados que carregaram o baú no qual
estava eu, enquanto eu nem acreditava que estava salvo. E em o meu baú
havendo entrado na casa onde morava a moça minha amiga, esta
despachou-se a abri-lo, e disse-me: «Despacha-te! Sai e sobe estas
escadas», e eu ergui-me e subi-as. E mal havia eu subido o último degrau e
ela fechado o baú no qual eu havia estado, vieram os criados, trazendo com
eles todos os outros baús, e veio o califa no seu encalço, e sentou-se em
cima do baú no qual eu havia estado. Então abriram-nos a todos ante o
califa. Ao depois, levantou-se e foi para os seus aposentos particulares.
Quanto a mim, a minha garganta já estava seca de tanto medo, quando a
moça veio arriba ter comigo e disse: «Ó senhor meu, já não há mal a recear.
Anima-te e espera que Zubeida venha para te ver, talvez tenhas sorte e
fiquemos juntos.» Então desci, e mal me sentei na pequena divisão, vieram
dez donzelas, que eram como luas, e alinharam-se, e vieram outras vinte
donzelas, com seios de virgem, e entre elas vinha a dona Zubeida, que mal
podia andar com tantos fatos e ornatos que trajava. Em ela se achegando, as
donzelas dispersaram-se e trouxeram-lhe uma cadeira. Ela sentou-se e
gritou-lhes, e elas gritaram comigo. Então fui ter com ela, e beijei o chão
diante dela. Ela fez-me sinal para me sentar, e assim fiz eu. E pôs-se a
conversar comigo e a fazer-me perguntas sobre como ganhava a vida, e eu
respondi-lhe a tudo. Então ficou contente comigo e disse: «Meu Deus! Não
foi em vão que criei esta moça. Ela é para mim como uma filha e Deus
confia-te a sua guarda.» E naquele momento ordenou-me que ficasse no
palácio dez dias.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é
comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei
me poupar e eu viver.»
128.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei, que o vedor disse ao rei da China que o jovem disse:

Quedei-me no palácio dez dias e respectivas noites, sem haver visto a


moça. Após os dez dias, Zubeida consultou o califa sobre o casamento da
sua aia, e o califa autorizou-o e outorgou a Zubeida dez mil dirames. Então
dona Zubeida mandou chamar os notários, e redigiram o meu contrato de
casamento com a aia. Trataram da boda e da função, e cozinharam pratos
sumptuosos e doçarias, e assim foi durante dez dias.
E após vinte dias a moça foi aos banhos; quanto a mim, naquela noite
trouxeram-me uma bandeja de madeira com comidas, e entre todas elas
havia uma grande travessa com uma zirbaja cozinhada com pistácios
descascados, água de rosas, e açúcar refinado, e ai meu Deus, não me fiz
rogado, atirei-me ao prato e comi de quanto eu fosse falto, e ao depois
limpei as minhas mãos, mas Deus Todo-Poderoso quis que eu me
esquecesse de as lavar.
Permaneci sentado até a escuridão entrar, então acenderam as velas e
vieram as cantoras do palácio, e os seus músicos, sem que ninguém faltasse,
todos o pandeiro tocando, e as moças entoando canções e diversas
melodias. E continuaram em desfile apresentando a moça pelo palácio, e
fazendo-lhe oferendas em oiro e tecidos de seda, até que deram a volta a
todo o palácio e a trouxeram aonde eu estava. Alijaram-na das vestiduras e
deixaram-na comigo, mas mal entrei com ela na cama e a abracei, mal
podendo crer que estávamos unidos, ela sentiu o cheiro da zirbaja na minha
mão, e gritou de tal guisa que vieram as criadas de todas as bandas e se
puseram à sua roda, enquanto eu tremia, tomado de susto e pavor, sem saber
por que causa havia ela gritado.
As moças perguntaram-lhe: «Irmã nossa, que tens?» E ela respondeu:
«Tirem-me este louco daqui para fora!» Então levantei-me, apavorado, sem
nada perceber, e perguntei-lhe: «Senhora minha, qual é a coisa que faz de
mim um louco?» E ela respondeu: «Ó louco! então não comeste a zirbaja
sem haveres lavado as mãos? Meu Deus, vais-te haver comigo pelo que
fizeste! Como podes tu consumar o casamento com alguém como eu, com
as tuas mãos a cheirar a zirbaja?» Depois gritou às moças: «Rojai-o ao
chão!» e elas assim o fizeram. Ela pegou num açoite trançado e aviou-me
com ele nas costas e nas nalgas, até que o braço dela se cansou. Então disse
às moças: «Levai-o ao governador da cidade para que lhe corte a mão com
que comeu a zirbaja sem a haver lavado, para que eu seja poupada ao seu
fedor.»
Em ouvindo tais palavras, dorido que estava da pancada, disse de mim
para mim: «Não há força nem poder senão em Deus Altíssimo e Grandioso.
Ai que desgraça! Maior não podia ser! Comi dolorosa pancada e ela quer-
me decepar a mão, apenas por me haver esquecido de lavar as mãos após
haver comido uma zirbaja! Que Deus amaldiçoe a zirbaja e o momento em
que foi feita!»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Ó mana, que história


tão boa e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o
rei me poupar e eu viver.»
129.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Conta-se, ó rei, que o vedor disse ao rei da China que o jovem disse:

Então as moças intervieram junto dela, e disseram: «Ó senhora nossa,


este homem não tem noção do seu estatuto, conceda-nos o seu perdão.»
Mas ela disse: «Ele é louco e eu tenho de castigar uma das suas mãos, para
que se lembre de as lavar depois de comer zirbaja.» Então as moças
intervieram junto dela, beijaram-lhe a mão, e disseram: «Por amor de Deus,
senhora nossa, não o condene por se haver esquecido», mas ela aos gritos
rogou-me pragas, e saiu, e saíram as moças no seu encalço.
Não a vi durante dez dias, e em cada dia vinha uma aia trazer-me comida
e bebida, e dar-me parte de que ela estava enferma por causa de eu não ter
lavado as mãos após haver comido a zirbaja, enquanto eu ficava bastante
espantado, e dizia de mim para mim: «Que modos tão malditos!», e o meu
coração explodia de ira, e dizia de mim para mim: «Não há força nem poder
senão em Deus Altíssimo e Grandioso.» Ao termo desses dez dias, veio a
aia com a minha comida e deu-me parte de que a moça iria aos banhos, e
disse-me: «Amanhã ela vai estar consigo, por isso seja paciente ante a ira
dela.»
Em ela vindo, fitou-me nos olhos e disse: «Que Deus te envergonhe, nem
um instante te pacientaste, mas eu me não reconcilio contigo antes de te
cobrar o preço por não haveres lavado as mãos após comeres a zirbaja.»
Então gritou às moças, que me cercaram e me ataram as mãos, enquanto ela
se levantou e desembainhou uma faca afiada, e chegando-se a mim cortou-
me os polegares, tal como podeis ver, ó gente, e então perdi os sentidos. Em
seguida, polvilhou-os com pós e drogas para estancar o sangue, e em este
estancando e estagnando, as feridas cicatrizaram, e as moças deram-me a
beber vinho. Em eu abrindo os olhos, disse: «Prometo-te que não torno a
comer a zirbaja sem lavar as mãos cento e vinte vezes.» E ela disse: «Muito
bem!» Em seguida, fez-me jurar solenemente um pacto para esse fim.
Assim, em vós me trazendo este prato, e em eu vendo que era a zirbaja,
fiquei pálido e disse de mim para mim: «Esta comida é a causa de os meus
polegares haverem sido decepados.» E em vós me forçando a comê-la, fiz o
que o meu pacto me obrigava.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Ó mana, que história


tão boa e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu:
«Isto nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima
noite, se o rei me poupar e eu viver.»
130.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Conta-se, ó rei, que o vedor disse ao rei da China que os convidados


perguntaram ao jovem: «E o que te sucedeu depois disso?» E ele disse:

Em eu sarando e havendo as minhas feridas cicatrizado, ela veio ter


comigo e dormi com ela, e residi com ela no palácio o resto do mês, mas
comecei a sentir-me em baixo. Então disse-me ela: «Ouve, a casa do califa
não é residência para nós, e dona Zubeida deu-me cinquenta mil dinares.
Toma-os e compra uma bela casa para nós.» E entregou-me dez mil dinares,
e eu levei-os, saí e comprei uma casa de bela construção. Ela veio morar
comigo, e assim foi durante tal soma de anos, e vivi com ela uma vida de
califa, até que ela morreu. E eis a causa da lavagem das mãos e dos meus
polegares decepados.
Então comemos, e abalámos, e toda a gente abalou. E logo em seguida
aconteceu-me com o corcunda o que aconteceu. E esta é a minha história e
foi o que eu vivenciei ontem.

Então o rei da China disse: «Por amor de Deus, desde quando é esta
história mais estranha que a do corcunda bufão?» Então o médico judeu
levantou-se, beijou o chão, e disse: «Meu senhor, tenho uma história para
contar, mais espantosa do que esta.» E disse o rei da China: «Venha ela!»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Ó mana, que história


tão boa e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o
rei me poupar e eu viver.»
131.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Conta-se, ó rei, que o judeu disse:

História do médico judeu: o jovem de Mossul e a moça assassinada

Ó rei dos tempos, a coisa mais estranha que me aconteceu, sucedeu


estava eu em Damasco, e foi nessa cidade que aprendi o ofício de médico.
Um dia, enviaram-me um mameluco da Casa do Vizir de Damasco com
ordens para que eu lá fosse. Em entrando na casa, vi ao cabo do salão uma
cama, e um jovem enfermo que nela dormia, jamais havendo eu visto um
jovem tão belo quanto aquele. Sentei-me à sua cabeceira, pedi que Deus o
abençoasse, e ele respondeu-me com sinais de olhos. Então disse-lhe: «Meu
senhor, estenda-me a sua mão, e que o bem-estar esteja consigo em breve»,
e ele respondeu-me com sinais de olhos, e sacou da sua mão esquerda. Eu
espantei-me e disse de mim para mim: «Meu Deus, fico mesmo espantado
que este formoso jovem, de tão boas famílias, seja desprovido de boas
maneiras. Que coisa espantosa!» Então tomei-lhe o pulso e prescrevi-lhe
umas receitas, e por dez dias continuei a visitá-lo até se haver restabelecido,
altura em que o levei aos banhos.
E quando de lá saí, o vizir cobriu-me de honrarias e nomeou-me provedor
do hospital.
Mas em estando eu com ele nos banhos, que haviam sido totalmente
esvaziados de gente para nosso usufruto, vieram os criados e os aios e
sacaram-lhe as roupas de dentro, e em ele ficando despido, vi que ele tinha
a mão direita decepada, sendo um decepamento recente, e essa era a causa
de haver padecido. Em olhando para ele, fui tomado de espanto, tive pena
por alguém ainda tão jovem, e se me inquietou o espírito. E ao observar o
corpo dele, vi vestígios de golpes de chicote, e ele havia usado
fomentações, parches e drogas, mas haviam ficado alguns vestígios
levemente marcados nos flancos. Assim, fui ficando cada vez mais inquieto,
e isso ficou patente no meu rosto, então o jovem mirou-me, havendo
percebido o que eu estava a sentir, e disse: «Doutor, não fique espantando
com o meu caso, vou contar-lhe uma história espantosa quando for o devido
momento.»
Ao depois tomámos banho, e em voltando para casa comemos caldos e
descansámos. Aí, o jovem perguntou-me: «Gostaria de pas-sear nos Jardins
de Damasco23?» E respondi-lhe: «Com gosto.» Então ordenou aos escravos
que trouxessem algumas coisas, um cordeiro de churrasco, e umas frutas, e
fomos para o jardim, havendo gozado as vistas durante um tempo, e ao
depois sentámo-nos a comer. Em ele terminando, trouxeram-nos um pouco
de doçaria, com a qual nos alambazámos, e estando eu para encetar a
conversa, ele se me adiantou e disse:

Doutor, fique sabendo que nasci em Mossul, e que o meu pai, em


morrendo o pai dele, deixando este dez filhos machos, dos quais um deles o
meu pai, o qual era o irmão maior. Cresceram e casaram os dez, e Deus
abençoou o meu pai com o meu nascimento, mas os outros nove irmãos não
foram abençoados com filho algum, e por isso cresci entre os meus tios.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Ó mana, que história


tão boa e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o
rei me poupar e eu viver.»
132.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei, que o médico judeu disse ao rei da China que o jovem
disse:

Cresci e atingi a maturidade dos homens, e um dia de entre os dias,


estava eu na mesquita de Mossul, e era sexta-feira. O meu pai estava
connosco, e fizemos a oração de sexta-feira. Em as pessoas saindo, o meu
pai e todos os meus tios, irmãos do meu pai, sentaram-se em roda à
conversa sobre as maravilhas de vários países e os encantos de várias
cidades. Mencionaram cidade atrás de cidade, até que acabaram por
mencionar o Cairo e o seu Nilo, e disse um dos meus tios: «Dizem os
viajantes que à face da Terra não há nada mais belo que a região do Cairo.»
Então, o desejo de ver o Nilo ficou na minha cabeça. Mas outro dos meus
tios disse: «Bagdade é a Casa da Paz e a Mãe do Mundo.» Ao que o meu
pai, que era o irmão maior, disse: «Quem não viu o Cairo, não viu o mundo.
A sua areia é de oiro, as suas mulheres embonecadas, e o seu Nilo uma
maravilha, pois a água deste rio é doce, fresca e leve, e a sua argila macia e
húmida, tal como disse o poeta:

Hoje regozijais com a Cheia do vosso Nilo


Que por si só vos traz rejúbilo diário.
É o Nilo lágrimas minhas pela vossa partida;
Vós graças recebeis e só eu fico solitário.
E se os vossos olhos olharem para a verdura da sua terra, enfeitada e
ornamentada de flores de todos os feitios e cores, se virdes a Ilha do Nilo24
e quantas paisagens soberbas tem, se a vossa vista circundar a Lagoa dos
Abissínios, os vossos olhos ficariam encadeados de tanto maravilhamento.
Haveis vós visto paisagem tão linda como a que rodeia com a sua verdura
as colinas do Nilo, quais olivinas incrustadas em lingotes de prata? E tão
excelente é quem disse estes versos:

Que dia na Lagoa dos Abissínios tão excelente


E nós entre a luz e as trevas;
E a água entre as plantas, tu a imaginas
Tal sabre no olho de alguém tremente.

E nós num parque florescente,


Ornamentado com floreios
E tecido pela mão das nuvens,
De cujo tecido almofadas fizemos.

Passa-me o vinho, pois quem o abandona,


Não se revigora, domado por desassossegos.
Dá-me a beber em avultados copos repletos,
Para grandes sedes, nada melhor funciona.»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana, e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o
rei me poupar e eu viver.»
133.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei, que o médico judeu disse ao rei da China que o jovem
disse:

E desatou o meu pai a descrever o Cairo, e em acabando de descrever o


Nilo e a Lagoa dos Abissínios, disse: «E isto nada é comparado com o
Observatório25 e os seus encantos, onde o visitante, ao ver as vistas,
exclama: “Que sítio tão fora do comum!” E se mencionardes a noite da
Festa das Cheias26, dai o arco das palavras a um arqueiro habilidoso e
deixai as correntes de versos escorrerem pelos canais. E se virdes o Parque
de Roda ao fim do dia, cobrindo-se pelo aroma do orvalho, ficaríeis
maravilhado e de emoção atestado. E se estiverdes à beira-rio, aquando do
sol-pôr e o Nilo se veste com a sua cota de malha e armadura, seríeis
avivado pela leve brisa e pelo sombreado amplo e aconchegante.» Em eu
ouvindo isto, o Cairo ficou-me na cabeça, e à noite não consegui dormir.
Um dia, os meus tios, irmãos do meu pai, aprontaram mercadoria para
carregarem até ao Cairo. Então fui ter com o meu pai, e implorei-lhe a
chorar, até que ele me preparou comércio e me enviou com eles, e lhes
disse: «Não o deixeis entrar no Egipto, mas vendei o seu comércio em
Damasco.» Ao depois, aprontámo-nos para a viagem e saímos de Mossul.
Seguimos viagem até chegarmos à cidade de Alepo, onde nos quedámos
uns dias, e não voltámos a estacar senão em Damasco, onde me deparei
com uma cidade afável, próspera e segura, com rios, árvores e pássaros, tal
como se fosse um dos jardins do Paraíso, em que ‘há frutos de todo os
género’27. Hospedámo-nos num dos caravançarais, e os meus tios venderam
a minha mercadoria e comércio, e por cada dinar obteve-se cinco, e tal
ganho alegrou-me. Então, os meus tios deixaram-me e rasparam-se para o
Egipto. Havendo eles partido, eu fiquei para trás, instalado numa grande
moradia com mármores, uma fonte, um quarto de serviço, uma despensa e
água corrente dia e noite, conhecida por moradia de Sudune Abderrahmane,
a dois dinares por mês. Ao depois de me haver instalado, comi, bebi, e
diverti-me, sendo mãos largas com o meu dinheiro e esbanjando-o quase
todo.
Então, um dia de entre dias, estava eu sentado à porta da minha moradia,
e veio uma moça, bem vestida, formosa, não havendo os meus olhos visto
mais bela que ela. Convidei-a, e nem pude acreditar quando ela aceitou e
entrou na minha moradia.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Ó mana, que história


tão boa e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o
rei me poupar e eu viver.»
134.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o médico judeu disse ao rei da


China que o jovem disse:

Em ela entrando, tive de ficar à altura da coisa, então entrei e fechei a


porta. Em ela se sentando, tirou o véu e despiu o manto, e eu vi que ela
tinha uma magnífica figura, tal Lua desenhada, e caí de amores por ela.
Então levantei-me para sair, e arranjei uma bandeja com comida requintada
que me foi aconselhada numa loja de iguarias, com bebida, comida e frutas,
e tudo o que fosse falto, e comemos. Em vindo a noite, acendemos as velas,
dispusemos as taças e bebemos até nos embebedarmos. E dormi com ela a
melhor das noites.
Pela manhã, saquei dez dinares para ela, mas ela carranqueou e disse: «Ó
tu que vens de Mossul, irra! achas que serei tua por dinheiro ou oiro?» Ao
depois, sacou dez dinares para mim, e jurou com firmeza que se eu não os
aceitasse, não tornaria a vir. E disse: «Amor meu, espera-me daqui a três
dias, entre o poente e o jantar, e toma mais estes dez dinares para nos
arranjares um banquete como este.» Ao depois, despediu-se e abalou, e ao
sumir-se, sumiu-se o meu coração com ela, e eu mal podia esperar que os
três dias passassem.
Então estava eu ao depois do poente, quando veio ela com uns sapatos de
sola elevada, uma bandana e um capucho na cabeça, e belos perfumes.
Então, havendo eu arranjado um banquete ao meu gosto e escolha,
comemos e bebemos entre risos e brincadeiras. Pela noite, acendemos as
velas e bebemos até nos embebedarmos, e fomos dormir juntos.
Pela manhã, ela se levantou, apresentou dez dinares e disse: «Faremos
como é hábito.» Sumiu-se por três dias, e eu aprontei-lhe [um banquete e
ela veio] como habitualmente. Entrou em casa, e sentámo-nos a comer entre
brincadeiras e conversas até à noite, aquando nos pusemos a beber. Então
ela perguntou: «Senhor meu, por amor de Deus, não sou eu formosa?» E
respondi: «Por amor de Deus, claro que sim.» E perguntou ela: «Importar-
te-ias se eu trouxesse comigo uma moça mais bela e nova do que eu, para
que ela se possa divertir, rir e brincar? É que ela esteve enclausurada algum
tempo, e pediu-me para sair comigo e passar a noite no lugar aonde eu a
passo.» Respondi-lhe: «Por amor de Deus, claro que sim.»
Então, em a manhã amanhecendo, sacou quinze dinares para mim e disse:
«Traz um banquete maior, pois temos uma convidada nova, e encontrar-
nos-emos como habitualmente.» E abalou. E em sendo o terceiro dia,
arranjei o banquete.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Ó mana, que história


tão boa e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o
rei me poupar e eu viver.»
135.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer que o médico judeu disse ao rei da China que o jovem disse:

Em vindo o sol poente, ela apareceu com outra, e era o que havíamos
ajustado. Acendi as velas, recebendo-as com alegria e agrado, e em a outra
moça descobrindo o rosto, exclamei: «‘Bendito seja Deus, o Melhor dos
criadores’28.» Sentámo-nos e comemos, e eu pus-me a servir comida à nova
moça, que olhava para mim e sorria, até o prato se acabar e serem servidos
a bebida, a fruta e os doces. Então fiquei a beber com a nova, que sorria e
me piscava o olho, e eu morria de amores por ela. A minha amiga percebeu
que os olhos dela estavam postos em mim e os meus nos dela, então, a
brincar e a rir, perguntou: «Ó amor, esta moça que eu trouxe não é mais bela
e graciosa do que eu?» Respondi-lhe: «Por amor de Deus, claro que sim.» E
ela perguntou-me: «Vais dormir com ela?» Respondi-lhe: «Por amor de
Deus, claro que sim.» E disse ela: «À vontade, afinal ela é nossa convidada
por uma noite, e eu sou residente.»
Em seguida, levantou-se, apertou o cinto, e foi fazer a cama [para nós], e
eu e a moça pusemo-nos aos abraços e dormimos juntos aquela noite,
enquanto a minha amiga, a meio da noite, fez a cama para si no quarto de
serviço, e dormiu sozinha.
Dormi com a moça até de manhã, aquando me movi e dei por mim todo
encharcado em suor, e pensei que fosse suor, mas ao sen-tar-me para
acordar a moça, abanei-lhe os ombros, e quando a sua cabeça rebolou, a
minha razão voou, pois percebi que ela havia sido decapitada, e aos gritos
exclamei: «Ó Divino Protector!» Pus-me de pé, sendo que o mundo se
havia tornado negro ante os meus olhos, e procurei pela minha amiga, mas
não a encontrei, e então percebi que havia sido ela quem, por ciúmes,
decapitara a moça, e disse: «Não há força nem poder senão em Deus
Altíssimo e Grandioso. Que hei eu de fazer?» Pus-me a pensar um tempo, e
ao depois tirei o que eu trazia vestido29, despi-me, e disse de mim para
mim: «Não estou a salvo, pois a moça poderá malsinar-me junto da família
desta assassinada, e ninguém está a salvo da matreirice das mulheres.»
Então, levantei-me, e cavei um buraco no meio da moradia. Trouxe a
moça com as suas jóias e pu-la no buraco, tornando a cobri-lo de terra, e a
repor o mármore e as lajes tal como estavam antes. Vesti roupas limpas,
trouxe comigo o resto do meu dinheiro numa pequena caixa, enchi-me de
coragem e saí da moradia, trancando-a e selando-a. Fui ter com o senhorio e
paguei-lhe o aluguer para um ano, dizendo-lhe: «Vou de viagem para o
Cairo para os meus tios.» Paguei a minha viagem no caravançarai do Rei e
parti.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha, ó mana», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o
rei me poupar e eu viver.»
136.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei dos tempos, que o médico judeu disse ao rei da China:
«Ó rei bem-aventurado, o jovem disse-me:»

Então, quando viajei, e havendo chegado ao Cairo são e salvo, tal como
Deus havia escrito, e me reuni com os meus tios, vi que eles já haviam
vendido as suas mercadorias à consignação. Ao me encontrarem, ficaram
contentes, mas surpreendidos com a minha vinda. Disse-lhes: «Tive
saudades, e tardava em receber notícias vossas», mas não lhes dei parte que
o meu dinheiro estava comigo. Quedei-me com eles, passeando e gozando
as vistas do Cairo, e deitei as minhas mãos ao resto do meu dinheiro, e
passei a esbanjá-lo, comendo e bebendo. Em se aproximando a partida dos
meus tios, escondi-me, então eles procuraram-me, mas não deram comigo,
e disseram: «Deve ter regressado a Damasco», e partiram-se. Saí do meu
esconderijo, e habitei no Cairo três anos, e já nada me restava, pois havia
esbanjado tudo o que tinha, e todos os anos enviava ao senhorio da minha
moradia em Damasco a renda.
Ao cabo de três anos, fiquei apertado de dinheiros, e já nada me restava a
não ser o dinheiro para a viagem. Paguei então a minha viagem e abalei,
havendo chegado a Damasco são e salvo, tal como Deus havia escrito, e
instalei-me na moradia, tendo o senhorio, que era joalheiro, me recebido
com alegria. Abri a moradia e desfiz o selo, entrei nela, varri-a e limpei-a, e
por baixo das coisas que nos haviam servido de cama, aquando dormi com
a moça decapitada, encontrei um colar de oiro com dez jóias que
atarantavam o pensamento. Em o vendo, reconheci-o e peguei nele, apertei-
o na minha mão, e chorei um tempo.
Em seguida, limpei a moradia e arrumei-a como estava dantes, e lá me
quedei dois, três dias, e então fui aos banhos, descansei e mudei de roupas,
e de sustento coisa nenhuma me restava. Então um dia fui ao mercado, e
tentado por Satã e levado pelo destino, peguei no colar de jóias, embrulhei-
o num lenço, levei-o ao mercado, e dei-o a um intermediário, que em o
vendo beijou-me a mão e disse: «Meu Deus, esta é boa! Que belo e
abençoado começo de dia! Ó que manhã tão boa!» Ao depois, levou-me e
sentou-me na loja do senhorio da minha casa, que se levantou e me fez
sentar ao seu lado. Pacientámo-nos até o mercado se animar, e então o
intermediário levou o colar e o apregoou às escondidas, sem que eu
soubesse o que ele tramava, e como era um colar valioso, ele arrecadou dois
mil dinares. Então volveu o intermediário a ter comigo, propondo cinquenta
dinares, ou mil dirames, que lhe haviam oferecido, e disse: «Meu senhor,
achávamos que era de oiro, mas afinal é falso. Aceita o preço?» Respondi:
«Aceito o preço, pois eu já sabia que o colar era de cobre». Em o
intermediário ouvindo de mim aquilo, soube que o colar era um caso
problemático, então foi-se com ele e tratou com o chefe do mercado, e este
foi ao governador e contou-lhe que o colar lhe havia sido roubado, e que
tinha apanhado o criminoso, que se vestia com o traje dos mercadores.
Em estando eu sentado [na loja do joalheiro], eis que num pronto se
abateu sobre mim a calamidade, e fui agarrado pelo chefe da polícia, que
me levaram ao governador. Então o governador perguntou-me sobre o colar,
e eu respondi-lhe o que havia dito ao intermediário. Então ele riu-se e soube
que eu o havia roubado, e antes que eu desse por ela, já estava a ser despido
e a levar tareia com o chicote, e como as chicotadas me faziam arder com
tanta dor, menti e disse: «Sim, roubei-o!» Então lavraram o auto,
deceparam-me a mão e cauterizaram-na em óleo fervente, havendo eu
perdido os sentidos durante meio dia.
Então, deram-me vinho a beber, e o meu senhorio carregou-me dali para
fora, e disse-me: «Meu filho, és um bom jovem, porque levaste a cabo este
roubo, sendo tu dono de dinheiro e comércio? Após roubares as posses dos
outros, ninguém mais terá misericórdia de ti. Meu filho, deixa-me e arranja
outro sítio para ti, pois foste condenado, e parte em paz.»
Destroçado, perguntei-lhe: «Meu senhor, será que me poderia dar três
dias até arranjar outro sítio para mim?» E ele respondeu: «Está bem», e
abalou. Quedei-me preocupado, triste e em mágoas. Se eu partisse para a
minha terra, como poderia tornar para junto da minha família, com a mão
decepada, sem lhes poder provar que estou inocente? Então chorei tanto,
que chorar mais não seria possível.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana, e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se eu
viver.»
137.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o médico judeu disse ao rei da


China que o jovem disse:

Fiquei indisposto por dois dias, e ao terceiro dia eis que num pronto
aparece o senhorio com chefes de polícia, mais o mercador – que me havia
comprado o colar e fez como se lhe houvesse sido roubado – este último
sob escolta de cinco soldados, todos à porta da minha moradia. Então,
perguntei: «O que se passa?» E sem me darem tempo algum, ataram-me as
mãos atrás das costas, e botaram-me uma gargalheira ao pescoço e uma
corrente, e disseram: «O colar que tu tinhas é do vizir de Damasco, e ele
disse que foi desapossado dele faz três anos, juntamente com a filha.»
Em ouvindo tais palavras, o meu coração afogou-se, e fui-me com eles
naquele estado com a mão decepada, e tapei a minha cara, e disse para
comigo: «Vou contar ao vizir a minha verdadeira história, se ele quiser
perdoar-me-á, senão matar-me-á.» Em chegando junto do vizir, puseram-
nos em pé ante ele, e em o vizir olhando para mim, disse aos mercadores:
«Soltai-o! Foi ele quem trouxe o meu colar para vender?» Eles responderam
que sim, e o vizir disse: «Pois não foi ele quem o roubou, porque lhe haveis
injustamente cortado a mão? Pobre coitado!» Então o meu coração se
fortaleceu, e eu disse: «Meu senhor, juro por Deus que o não roubei. Na
verdade, caluniaram-me, e este mercador fez como se houvesse sido eu a
roubá-lo, e como se o colar fosse dele. Levaram-me junto do governador, e
levei tareia com o chicote, então como as chicotadas me faziam arder com
tanta dor, menti contra mim mesmo.» Ao que o vizir disse: «Agora já não
estás em perigo.»
Ao depois, sentenciou o mercador que me havia levado o colar, dizendo:
«Traz-lhe a indemnização da sua mão, ou então esfolar-te-ei à chicotada.» E
gritou aos almocadéns, que o agarram e o levaram, ficando eu com o vizir,
que disse: «Meu filho, diz-me a verdade e conta-me a história deste colar e
do que lhe aconteceu, e não me mintas, diz a verdade e a verdade te
salvará.» Então disse-lhe: «Juro por Deus que era essa a minha tenção.» Ao
depois, contei-lhe o que se me havia passado com a moça e como havia
vindo com a dona do colar, e como o ciúme a perseguiu ao ponto de durante
a noite a decapitar, e se haver ido sem que eu soubesse onde morava ela.
Contei-lhe a história com toda a fidelidade. E em ele ouvindo as minhas
palavras, abanou a cabeça, ficou com os olhos encharcados, bateu um mão
contra a outra, e disse: «A Deus pertencemos e a Deus regressaremos.» Em
seguida, acercou-se de mim e disse: «Meu filho, deixa-me revelar-te o que é
este caso. Fica sabendo que…»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se o rei me poupar e eu viver.»
138.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o médico judeu disse ao rei da


China que o jovem disse:

O vizir disse:

Fica sabendo que aquela que foi ter contigo a primeira vez era a minha
filha maior, que eu pus em austera clausura, e que se casou no Egipto com o
filho do meu irmão, até que este morreu e ela veio ter comigo, havendo
aprendido no Egipto coisas calamitosas. Foi ter contigo três, quatro vezes, e
tornou a ir ter contigo com a sua irmã, a minha filha do meio. As duas eram
irmãs da mesma mãe, e adoravam-se uma à outra, não se aguentando uma
delas sem a outra uma hora sequer. Então, em acontecendo o que aconteceu
entre a maior e tu, ela confidenciou o seu segredo à irmã, que desejou
comparecer com ela, então pediu-te permissão e trouxe-a. E ao depois, por
ciúmes dela, decapitou-a. E veio ter comigo, e eu de nada sabia. Nesse dia,
à refeição, dei pela falta da minha filha menor, e não a encontrei. Indaguei
sobre ela, e encontrei a irmã maior a chorar e consumida em brasas por mor
dela, e ela disse-me: «Ó pai, durante a chamada para a oração, ela num
pronto vestiu-se, pôs a sua capa e o colar, e todas as vestiduras, e saiu à
rua.»
Pacientei-me dias e noites, e não participei a ninguém sobre isto, por
medo do escândalo. A irmã maior, que a havia decapitado, dês esse dia não
teve uma lágrima que secasse, e absteve-se de comer e beber, inquietando-
nos e amargurando o nosso viver, e dizia: «Juro por Deus que não cessarei
de chorar por ela até beber do copo da morte.» E sem mais poder aguentar,
matou-se, e eu fui ficando cada vez mais e mais triste por ela. E isto foi o
que aconteceu.
Vê o que acontece àqueles que são como eu ou como tu, e vais ver que
Este mundo é todo ele vaidade, e o ser humano apenas uma imagem, que
mal aparece se desvanece. E agora, meu filho, desejo que te não oponhas a
mim, tu que nesta hora foste dominado pelo que o destino decretou, e a tua
mão foi injustamente decepada, eu desejo que me obedeças e te cases com a
minha filha mais pequena, que é de outra mãe, e eu dar-te-ei o dote, o
enxoval e dinheiro; outorgar-vos-ei salários a vós os dois, e a ti tratar-te-ei
como um filho. Então, que dizes a isto?

Eu respondi-lhe: «Meu senhor, como poderia eu recusar tal oferta?


Aceito e com todo o prazer.» E naquele momento mesmo, levou-me até
casa, mandou chamar as testemunhas, redigiu o meu contrato de casamento
com a filha dele, consumei o casamento com ela, e ele sacou para mim
àquele mercador uma choruda indemnização em dinheiro pela minha mão
decepada, e eu passei a ser muito estimado por ele. E no início deste ano,
chegou-me ao conhecimento que o meu pai havia morrido, e ao lhe dar
parte, ele mandou que fossem buscar ao Egipto éditos reais, e enviou-os
através de um correio a Mossul, que trouxe para mim todo o dinheiro do
meu pai, e hoje em dia tenho a mais próspera vida. E é esta a causa do
esconder a minha mão direita, e por isso, doutor, aceite as minhas sinceras
desculpas.

Então, fiquei espantado com esta história, e quedei-me com ele uns dias
até ele ir aos banhos pela segunda vez, e se reunir à pequena. E ofertou-me
dinheiro cunhado, providenciou-me para a viagem, despediu-se de mim, e
eu abalei. Viajei de sua casa para as terras do poente, entrei em Bagdade, e
percorri a Pérsia até que cheguei a este vosso país, aonde me instalei e a
vida me sorriu, e aonde na noite passada me aconteceu o que aconteceu
com este corcunda bufão. Não é esta história mais espantosa que a do
corcunda?

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se o rei me poupar e eu viver.»
139.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer que o rei da China, em ouvindo tal história do médico judeu,
meneou a cabeça e disse: «Por amor de Deus, não é mais espantosa nem
mais estranha que a história do corcunda bufão, e tenho de vos matar a vós
os quatro, pois vós os quatro vos ajustastes para assassinar o corcunda
bufão, e haveis contado histórias que não são mais espantosas que a dele. E
não falta ninguém senão tu, ó alfaiate, e tu és o cabecilha desta calamidade.
Vá, conta-me uma história estranha e maravilhosa, que seja mais espantosa,
mais estranha, mais saborosa e mais tocante, senão matar-vos-ei aos
quatro.» Então o alfaiate disse: «Com certeza.»

História do alfaiate: o jovem manco de Bagdade e o barbeiro

Ó rei dos tempos, o mais espantoso que me aconteceu e me sucedeu foi


ontem. Antes de me haver reunido com o corcunda bufão, estive ao início
do dia num banquete, onde se juntaram imensos amigos. Chegámos e
reunimo-nos para a refeição, e estávamos nós sentados, e éramos uns vinte
de entre as gentes desta cidade, e em se aclarando o dia e em se pondo a
mesa, eis que o anfitrião apareceu na companhia de um formoso jovem
forasteiro, de perfeita beleza e lindeza. O jovem entrou, e vimos que era
manco, e nós nos levantámos ante ele em respeito ao dono da casa. O jovem
veio sentar-se, mas ao ver um de nós, barbeiro de ofício, absteve-se de se
sentar e quis-se ir embora. O anfitrião puxou-o e adjurou-o a que ficasse, e
perguntou: «Por que causa vens comigo, entras em minha casa, e te vais já
embora?» E o jovem respondeu: «Por amor de Deus, meu senhor, não me
impeça. A causa é aquele velho barbeiro calamitoso, vergonhoso e maldoso,
que atrai a tribulação e afasta a bendição.»
Em o anfitrião ouvindo estas descrições sobre este barbeiro, e também
em nós as ouvindo, sentimos todos repúdio pela sua companhia, e olhámos
para ele…

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se eu ainda for viva.»
140.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o alfaiate disse ao rei da China:

Em nós ouvindo aquela caracterização sobre o barbeiro, dissemos:


«Ninguém entre nós comerá e se divertirá30 sem que nos seja contado quais
as peculiaridades deste barbeiro.» Então o jovem disse: «Ó gentes,
aconteceu-me algo com este barbeiro em Bagdade, a minha cidade, e ele foi
a causa da minha manqueira e de haver partido a perna. Por isso, jurei que
não conviveria com ele em sítio algum, e não habitaria cidade alguma
aonde ele estivesse, e parti de Bagdade por mor dele, e vim habitar nesta
cidade por causa dele, e eis que agora o vejo entre vós. E esta noite não a
passo sem daqui partir.» Interviemos junto dele para que se sentasse e nos
contasse o que lhe havia acontecido com o barbeiro em Bagdade, e o
barbeiro empalideceu e baixou a cabeça. Quanto ao jovem, esse disse:
Sabei, ó gentes, que o meu pai era uma das pessoas mais abastadas de
Bagdade, e não foi abençoado com filho algum senão eu. Quando eu cresci
e atingi a maturidade, ele foi levado pela morte à misericórdia de Deus
Todo-Poderoso, deixando-me muito dinheiro. Então, passei a vestir-me todo
formoso e a viver a melhor das vidas. Deus havia feito com que eu tivesse
aversão pelas mulheres, até que um dia caminhava eu pelas travessas de
Bagdade, quando vejo um grupo de mulheres impedindo a minha passagem,
fugi delas e entrei num beco sem saída. E não me sentei senão algum
tempo, até que uma ventana se abriu, e apareceu uma moça que era como o
Sol radiante, não havendo meus olhos jamais visto mais bela que ela. Em
ela me vendo, sorriu, por entre as flores que tinha na ventana, e no meu
coração deflagrou um fogo, e a minha aversão pelas mulheres volveu amor.
Permaneci sentado até perto do poente, com o discernimento toldado,
quando o juiz da cidade veio montando o seu burro, dele desmontou,
caminhou e entrou na casa na qual estava a moça. Então eu soube que ele
era o seu pai, e fui para minha casa desgostoso, e enfiei-me na cama de
padecimento, pela paixão enfebrecido.
Ora, os meus próximos entravam no meu quarto, não sabiam o que tinha
eu e eu não lhes respondia. Assim perdurei dias a fio e a minha família
chorava por mim. Nisto veio uma velha me ver, e o meu estado lhe não era
mistério algum. Sentou-se à minha cabeceira, falou-me gentilmente, e disse:
«Meu filho, anima-te; dá-me a conhecer o teu caso, e eu serei a causa da tua
união amorosa.» Ora, as suas palavras falaram-me ao coração e sentei-me à
conversa com ela.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana, e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o
rei me poupar e eu viver.»
141.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei, que o alfaiate disse ao rei da China que o jovem disse
aos convidados:

Então, em a velha olhando para mim, pôs-se a declamar uma poesia:

Não, pela testa radiante e faces rosadas!


Quando de mim se separou, meus olhos para ele não se viraram.
Antes levantei-me e atrás dele segui em cega vadiagem,
Entre perturbações e cambaleios, precipitando-me nas suas
peugadas.
Eis que ele é um antílope ágil, dos habituados a não se apanharem,
Nem a ele nem ao seu coração duro que nem pedra.

Levou-me as entranhas às brasas; minha alma ensandeceu.


Chovem lágrimas e à terra está colado o rosto meu;
Ai, ó hedionda solidão que me isola de todos os convívios!
Pranteio dias passados; minha mocidade já não dura.
Ó perdição! Ó aflição! Haverá nos suspiros benefícios?
Por mor dele morri eu mas ainda vivo fora da sepultura.
Ó coração meu derretendo em tristeza! Deixa que minha alma se
[arrebente!
Enquanto eu viver, a sua memória estará sempre presente.
Eis o meu coração de prata preso num corpo marmóreo.
No seu rosto não há carranca nem júbilo; que amar tão inglório!
Vítima do amor eu sou, quanto mais a alma aguentará?
Por eu o amar a fúria dos censores está sempre patente.
Oh! O que já se foi de fresca e verdejante vida voltará?

Não fui eu quem um censor acusou de ser idealista?


Como explicar a alguém que nunca o avista?
Como poderá a minha alma esquecer ou perseverar?
Como olvidaria um corpo esguio com aquele belo olhar?
A sua beleza é deslumbrante e cativa a humana mente;
E se o abraço, o seu rosto é tal a manhã nascente.

E a luz é fugaz suplício e delícia de uma refeição nocturna;


E passeamos num jardim florescente qual sua barba adolescente,
Em torno de faces macias, roliças, brilhantes como miragens,
Que eu afago como quem afaga as mais finas roupagens,
Como se fossem moedas de oiro nas mãos de um indigente.

E por serem macias, imaginei-as tal seda recheada com flores,


Cujo recheio o coração recheia de guisa jamais vista.
Que o guarda da moral me leve, já paguei com a vida.
As minhas entranhas não permitem que no amor haja cedência;
Não penseis que sou rude ou inconstante, sou de outra guisa.
Meu afecto por ele permanecerá em permanente permanência
E pelo compromisso velarei, pois minha honra ninguém a pisa.

Jurei que se morresse de tristeza pela rejeição, não me desculparia,


Porque não sou amante repreensível ou que se dê a coisas vãs.
Num bando de amantes, quem se esquece não suspiraria.
No amor ninguém é como eu, sejam infiéis ou pérolas em afãs.
Em graça estávamos, numa felicidade sem quaisquer limites,
E a nossa reunião imaginei-a contra tudo inquebrantável
E que a nossa habitação jamais se devastasse, mas como vistes
Em selvagem devastação se tornou, sem alma contável.

Oh! Que vida essa passada com o antílope de negros olhos!


Se nos voltarmos a reunir e o nosso amor for de desejo claro,
Farei votos de jejum eterno até a morte me levar deste lugar.
Pois ao me veres sem ele, dirás: «Poderá alguém ser mais bárbaro?»
Mas vivesse ele mil anos, o que o impede de amar é impossível de
[curar.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado
com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se eu viver.»
142.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o alfaiate disse ao rei da China que
o jovem disse aos convidados:

Ao depois a velha disse:

«Meu filho, inteira-me da tua história.» Então contei-lhe a minha história.


E ela disse: «Meu filho, ela é a filha do juiz de Bagdade, e vive em rígida
clausura. O sítio onde a viste é o quarto dela, e o pai e a mãe vivem na
enorme moradia do andar de baixo, e ela vive sozinha naquele andar. Eu
visito-a31 muitas vezes, e eu mesma vou tratar deste assunto; não te vais
unir a ela se não for graças a mim. Aguenta!» Ao ouvir as palavras dela,
recuperei forças e recomecei a comer e a beber, e a minha família alegrou-
se.
Nesse dia, a velha deixou-me, e pela manhã [seguinte] tornou, com o
rosto empalidecido, e disse: «Meu filho, não me perguntes o que me
aconteceu com a moça quando te mencionei a ela. A última coisa que ouvi
dela foi ela dizendo: “Se não te calas, ó velha calamitosa, e continuas a falar
sobre isso, vou trazer-te o mal que mereces. E se me isto tornares a
mencionar, vou dizer ao meu pai.” Mas, meu filho, por amor de Deus, é
necessário que eu torne a tentar uma vez mais, mesmo que ela me trate tão
mal como já me tratou.» Em tal ouvindo, fiquei ainda mais doente, [e pus-
me a dizer: «Ai, o amor é tão difícil.»]32
A velha passou a visitar-me todos os dias, e a minha doença ia
alastrando, e toda a minha família, e todos os médicos e sábios, já me
davam como perdido. Então, um dia, veio a velha e sentou-se à minha
cabeceira, e pondo a sua cara junto à minha para que a minha família a não
ouvisse, disse-me: «Quero que me dês alvíssaras.» Em tal ouvindo, sentei-
me e disse: «Dar-te-ei alvíssaras.» Então ela disse: «Amo meu, ontem fui
ter com a moça, e vi que ela começa a ceder. Ela viu-me a chorar e com o
coração partido, e perguntou: “Ó tia, que tens que tão aflita te vejo?”
Respondi-lhe, a chorar: “Ó minha senhora, vim agora mesmo de casa de um
rapaz emaciado por doença longa, e a sua família já o dá como perdido; ora
desmaia ora acorda, e sem dúvida vai perecer por mor de si.” Então ela
perguntou, com o coração já tocado pela compaixão: “O que ele é a ti?” E
eu respondi: “É meu filho, e há uns dias viu vossemecê na ventana,
enquanto regava as flores, e viu o seu rosto e o seu pulso, ficando com o
coração apegado a si e louco de amor, e foi ele quem disse estes versos:

Pela vida do belo rosto de moça que te foi dado,


Não destruas com repúdio quem por ti está enamorado.
Esta doença emaciante o meu corpo torturou e desfez,
Pois o meu coração embriagou-se com a taça do amor.
Vê o que teu porte flexo, harmonioso e gingante me fez,
E os teu dentes – que pérolas em tão belo dispor!

Dos arcos das tuas sobrancelhas flechas lançaste,


E meu coração não falharam, ó seta tão certeira!
A tua magra cintura imita a emaciação
Do amador que tanto se definha e se amargura.

Pelos teus olhos lânguidos e enfeitiçantes


E o sinal qual âmbar-gris nas tuas faces,
Tem misericórdia das tuas vítimas amantes,
E pelos teus caracóis quais lacraus sê gentil.
Pelas tuas curvas qual riacho no vale sinuoso
Tem misericórdia de um amador afetuoso.
Vinho, delicioso mel e pérolas plantadas em corais
— Eis o conteúdo da tua boca e lábios!
E o ventre cujas dobras lembram rolos de poesia
O coração me partem – Mas porque és tão fria?
As tuas pernas trazem morte e desolação
E só Deus ao amador traz consolação.

«Minha senhora, ele já me havia enviado junto de si uma primeira vez,


mas aconteceu-me consigo o que aconteceu.»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se o rei me poupar e eu viver.» Então o rei disse: «Meu Deus, não a matarei
até ouvir o resto da história do corcunda.»
143.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o alfaiate disse ao rei da China que
o jovem disse aos convidados:

A velha disse: «“Minha senhora, aconteceu-me consigo o que aconteceu,


então tornei a ele e dei-lhe parte do sucedido. E dou-o como perdido, pois
ele adoeceu ainda mais, não largando a cama. É inevitável, vai morrer.” Ela
ficou pálida e perguntou: “E tudo isto por mor de mim?” Eu respondi-lhe:
“É sim, juro por Deus, minha senhora. E agora o que ordena que seja
feito?” Ela respondeu: “Em sendo sexta-feira, antes da oração do meio-dia,
ele que aqui venha, e em chegando eu desço para lhe abrir a porta, e ele que
suba pelas escadas até ao meu quarto no andar de cima. Assim, sentamo-
nos aqui e falamos um bocado, mas tem de sair antes que meu pai volva.”»
Ó gentes, em ouvindo as palavras da velha, cessou em mim quanto
sofrimento eu havia encontrado. A velha sentou-se à minha cabeceira, e
disse: «Aparelha-te para sexta-feira, se Deus quiser.» Ao depois, paguei-lhe
com tudo o que podia para a recompensar, e ela abalou. E em mim coisa
nenhuma restou dos sofrimentos, e a minha família rejubilou com a minha
cura.
Fiquei à espera que viesse sexta-feira, e em a velha vindo e entrando em
minha casa, perguntou-me como estava eu, e eu lhe dei parte de que estava
bem e de saúde. Ao depois, vesti-me, incensei-me e perfumei-me, e ela
perguntou: «Não vais aos banhos para te lavares dos vestígios do
padecimento?» Respondi-lhe: «Não tenho vontade alguma de lá ir, e já me
lavei com água, mas quero um barbeiro que me corte o cabelo.» Assim,
virei-me para o criado e disse: «Traz-me um barbeiro que seja sensato e
pouco intrometido, para que me não dê dores de cabeça com tagarelice.»
Então foi-se o criado e trouxe-me este velho barbeiro malfazejo. Em ele
entrando em minha casa, cumprimentou-me e eu retribuí o cumprimento.
Então ele disse: «Meu senhor, vejo que está com o corpo macilento.» E eu
disse-lhe: «Estive doente.» E ele disse: «Que Deus o afaste de tormentos e
gentil consigo seja.» E eu disse: «Que Deus receba as tuas preces.» E ele
disse: «Alvíssaras! meu senhor. Pois já veio a saúde.» E em seguida
perguntou: «Meu senhor, quer cortar o cabelo ou fazer uma sangradura?33»
Então eu disse: «Corta-me o cabelo agora mesmo, e acaba com esses
desvarios, pois eu estou ainda fraco devido aos vestígios da minha doença.»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se o rei me poupar e eu viver.»
144.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o alfaiate disse ao rei da China que
o jovem disse aos convidados:

Eu disse ao barbeiro: «Estou fraco devido aos vestígios da minha


doença.» Então, o barbeiro enfiou a mão na sua sacola de coiro, e eis que
nela havia um astrolábio de sete tímpanos com embutidos em prata. Então,
ele pegou nele, foi para o pátio da casa, ergueu a cabeça para os raios do
Sol, e observou longamente com o astrolábio. Ao depois, disse: «Fique a
saber, meu senhor, que hoje é sexta-feira, décimo oitavo dia de Safar do ano
de seiscentos e cinquenta três da Hégira34, e já passaram sete mil trezentos e
vinte anos desde Alexandre [O Grande], e o ascendente no dia de hoje,
conforme adjudicado pela ciência do cálculo, é Marte a oito graus e seis
minutos, que está em conjunção com o regente do ascendente que é
Mercúrio, de acordo com o terceiro tímpano do astrolábio, e Marte
acompanha-o no ascendente, e entra em sextil com ele, o que indica que é
auspicioso cortar o cabelo, e indica também que o senhor se quer ligar a
alguém, mas para isso a conjuntura é adversa e perversa.»
Então disse-lhe eu: «Olha-me este! Valha-me Deus que já me estás a
arreliar e a angustiar, fazendo augúrios nada formosos sobre mim. Eu não te
chamei para fazeres astrologia, mas para me cortares o cabelo. Faz aquilo
para que te chamei, se não abala daqui para fora, e eu chamo outro barbeiro
que me corte o cabelo.» Então o barbeiro disse: «Por amor de Deus, meu
amo, mesmo se cozinhasses com leite, não sentirias tal deleite. Pediu um
barbeiro, e Deus enviou-lhe um barbeiro que também é astrólogo e médico,
conhecedor das artes da alquimia, dos astros, da gramática, da língua, da
lógica, da dialéctica escolástica, da lexicografia, da retórica, da álgebra,
cálculo e aritmética, da história, da ciência dos ditos [do profeta
Muhammad], e de Muslim e de Bukhari35. E li os livros, e estudei-os,
exerci várias actividades e aprendi com a experiência, decorei os saberes e
tornei-me versado neles, aprendi ofícios e dominei-os, administrei todo o
género de afazeres e tornei-me habilitado neles.
»Vossemecê deveria louvar a Deus Todo-Poderoso pelo que Ele lhe
trouxe, e Lhe agradecer pelo que lhe deu. Faça o que eu agora lhe aconselho
conforme o cálculo dos astros, mas também lhe digo, não quero receber de
si paga alguma. Se o fizesse, isso seria de pouca consideração pela sua
posição ante a minha pessoa e pelo lugar que ocupa no meu coração, e o seu
pai gostava muito de mim devido à minha discrição, e por isso a minha
obrigação é servir-lo a si.» E em ouvindo aquilo, disse-lhe: «É inevitável:
hoje vais-me matar.»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se o rei me poupar e eu viver.»
145.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o alfaiate disse ao rei da China que
o jovem disse aos convidados que o barbeiro lhe disse: «Meu senhor, não
sou eu aquele que as gentes chamam o Silencioso? E assim é porque falo
pouco, ao contrário dos meus sete36 irmãos. Pois o maior chama-se o
Gralhador, o segundo chama-se o Mexeriqueiro, o terceiro chama-se o
Cacarejador, o quarto chama-se o Linguareiro, o quinto chama-se o
Mexeriqueiro, e o sexto chama-se o Vozeiro, e eu, por falar pouco,
chamaram-me o Silencioso.»
Ó gentes, em o barbeiro continuando nestes modos, fiquei com o coração
amargo e arrebentei, e furioso disse ao criado: «Por amor de Deus, paga-lhe
quatro dinares e manda-o embora. Já não quero cortar o cabelo hoje.» Então
o barbeiro, aquando ouviu o que eu havia dito ao criado, disse-me: «Meu
amo, mas que coisa diz? A fé dos muçulmanos obriga-me a não aceitar de si
qualquer paga sem antes o haver servido. Eu tenho imperativamente de o
servir, pois é meu dever ajudá-lo e atender às suas necessidades, e me é
indiferente se sou ou não pago. E se o meu amo não conhece o meu mérito,
eu conheço o seu, e sei o que merece devido à grande consideração que
tenho pelo seu pai.» E declamando, disse:

Com meu amo estive para lhe fazer uma sangradura


Mas vi que não era a devida altura.
Sentei-me falando-lhe de tanta coisa prodigiosa
E ante ele espalhei o conhecimento do meu intelecto.
Agradado em me ouvir, disse-me ele com afecto:
«Superas qualquer inteligência, ó mina de conhecimento!»
E eu disse: «Se não fosses tu, homem de suma influência,
Transbordando de graças e favores, eu seria ignorante,
És tu o pródigo senhor da generosidade que garante
O tesoiro do conhecimento, da razão e da ciência.»

E disse: «O seu pai ficou comovido [ao ouvir estes versos], e gritou ao
criado, dizendo: “Dá-lhe cem dinares, mais três dinares e um traje de
honra.” E o criado deu-me o que lhe havia sido dito. Então li o ascendente,
e vendo que era favorável, fiz-lhe a sangria. E entretanto não pude conter o
meu silêncio, e perguntei-lhe: “Por amor de Deus, meu amo, diga-me o que
lhe fez dizer ao criado para me dar cem dinares, mais três dinares.” E ele
disse: “Um dinar foi pela leitura astrológica, outro pela agradável conversa,
outro pela sangradura, e os cem dinares e o traje de honra foram pelo louvor
que me disseste.”»
Ao depois, continuou a falar sem parar, e eu, devido à enorme fúria que
se apoderava de mim, disse: «Que Deus não tenha misericórdia do meu pai
por conhecer pessoas da tua laia.»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se eu viver.»
146.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o alfaiate disse ao rei da China que
o jovem disse aos convidados que ele disse ao barbeiro: «Por amor de Deus,
deixa-te de tagarelices que eu já estou atrasado.» Mas o barbeiro riu-se, e
disse: «Não há nenhuma divindade a não ser Deus, glorificado seja Aquele
que não muda. Meu amo, parece-me que a doença o mudou e vossemecê já
não é como antes; as pessoas à medida que vão avançando na idade vão
ficando com a razão aumentada, mas o que vejo é que a sua razão está
diminuída. Ouvi o poeta dizer:

Se podes consola as aflições do pobre


E mais tarde serás bem recompensado.
A pobreza crónica não tem remédio nobre
Mas dinheiro embeleza decrépito estado.
Se tens amigos, deseja-lhes paz
E trata de honrar os teus pais.
Quantas vezes por ti vigiaram a noite enorme,
Rezando a Deus vigilante que nunca dorme?

«De qualquer maneira, está desculpado, mas o seu caso preocupa-me.


Deverá saber que o seu pai e o seu avô nada faziam sem de mim tomarem
consultoria, pois Quem se aconselha, mal não fica, e entre provérbios
também se diz Quem mestre nunca teve, mestre nunca será, e também disse
o poeta:

Antes de levares a cabo uma missão,


Consulta um perito e acata a sua opinião.

»E não vai encontrar perito melhor nem com mais experiência do que eu.
E para mais aqui estou eu de pé à sua frente, prestes a servi-lo, e não estou
arreliado, mas vossemecê está arreliado comigo.» Então eu disse-lhe:
«Olha-me este! Valha-me Deus! Já te alongaste no discurso, e eu, o que
quero de ti é que termines o serviço.» E ele disse: «Já percebi que o meu
amo foi acometido pela arrelia, mas eu não lho levo a mal.» Então disse-lhe
eu: «Olha-me este! Já se aproxima o tempo do meu compromisso. Acaba o
que tens a fazer e some-te por amor de Deus Todo-Poderoso.» E rasguei as
minhas roupas, e em ele vendo o que eu havia feito, pegou na navalha,
afiou-a, acercou-se da minha cabeça, e cortou uns cabelitos. Em seguida,
levantou a mão e disse: «Meu amo, a pressa vem de Satã, e dizem:

Tem calma e não te apresses na tua pretensão,


Sê clemente com todos e da clemência fruirás.
A mão de Deus está acima de qualquer mão,
E, por isso, se oprimires, oprimido serás.

»Não me parece, meu amo, que vossemecê esteja ciente da minha


categoria, mas vossemecê é ignorante da minha pessoa, do meu
conhecimento, dos meus saberes, e do meu elevado nível.» Então disse-lhe:
«Deixa o que te não diz respeito, já me estás a angustiar.» E ele disse: «Meu
senhor, parece-me que está apressado.» «Sim! Sim! Estou!», disse-lhe eu. E
ele disse: «Não se apresse, a pressa vem de Satã e leva ao remorso. E, por
amor de Deus, o seu caso preocupa-me, e gostaria que me desse a conhecer
o que tenciona fazer, pois eu receio que não seja coisa benéfica para si, e
ainda faltam três horas para a oração do meio-dia.» E mais disse: «Mas não
quero ter dúvidas sobre isso, e devo certificar-me sobre o tempo exacto,
pois falar por suposições é um defeito, sobretudo para alguém como eu,
cujo mérito é famoso e reconhecido entre todos, e por isso não devo basear
as minhas palavras em conjecturas, tal como fazem a maioria dos
astrólogos.» E em seguida, largou a navalha da mão e pegou no…

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se o rei me poupar e eu viver.»
147.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o alfaiate disse ao rei da China que
o jovem disse aos convidados:

E em seguida, largou a navalha da mão, pegou no astrolábio [e saiu]. Ao


voltar, fazia contas com os dedos, e disse: «De acordo com os cálculos,
faltam exactamente três horas para a oração, nem mais nem menos, medidas
da guisa mencionada pelos eruditos e tal como disseram os sábios, os
astrólogos e os redactores de almanaques.» Então disse-lhe eu: «Olha-me
este! Por amor de Deus, cala-te! Valha-me Deus, que me dás cabo do
coração!»
Ora, este maldito acercou-se então de mim, pegou na navalha, cortou-me
uns cabelos, e disse: «Por amor de Deus, eu estou deveras inquieto pela sua
pressa, e não sei qual a causa dela. Se me inteirasse sobre o seu caso, este
poderia resolver-se da melhor maneira. O seu pai e o seu avô, Deus lhes
tenha misericórdia, coisa alguma faziam sem a minha consultoria.»
Em vendo que não havia maneira de me livrar dele, disse de mim para
mim: «Já vem aí o meio-dia, e eu quero partir antes que as pessoas
regressem da oração. Pois se eu me atrasar um tempo, não vou encontrar via
para entrar em casa dela.» Então disse-lhe: «Sê breve e deixa-te de
tagarelice, que eu quero ir a um festim em casa de um dos meus amigos.»
Em o barbeiro me ouvindo mencionar um festim, disse: «Abençoado seja o
dia em que nos encontrámos, porque me fez recordar que ontem convidei
um grupo de amigos meus, e por esquecimento não me preocupei em
arranjar alguma coisa para eles comerem, e só agora é que me lembrei
deles; ai que vai ser cá um escândalo!»
Então eu disse-lhe: «Não te preocupes com isso, como já sabes eu hoje
vou a um festim, e tudo o que haja em minha casa de comida e bebida é teu,
se executares a tua tarefa de me cortares o cabelo.» E ele disse: «Que Deus
o recompense com o bem! Mas agora informe-me e descreva-me o seu
donativo, para que eu dê parte e anuncie aos meus convidados.» Então
respondi-lhe: «Tenho cinco géneros de pratos, dez frangos fritos e um
cordeiro grelhado.» E ele disse: «Trá-los para que eu os veja.» Ordenei a
um dos criados que trouxesse aquilo tudo, que o fosse comprar37 e
rapidamente volvesse. E ele rapidamente tornou trazendo tudo. Então o
barbeiro, em observando a comida, disse: «Meu amo, veio a comida mas
falta a bebida.» E eu disse-lhe: «Tenho duas bilhas de vinho.» Ao que ele
disse: «Trá-las.» E eu disse ao criado: «Trá-las.» Em ele as trazendo, o
barbeiro disse: «Vossemecê é uma excelente pessoa! Que alma tão
generosa, e que linhagem tão nobre a sua! Com isto, já há comida e bebida,
faltam os frutos secos salgados e caramelizados38.» Então ordenei que lhe
trouxessem uma caixa com âmbar-gris, pau d’áquila e almíscar, valendo
cinco dinares.
E como o tempo já escasseava, disse-lhe: «Leva isso tudo, mas por amor
de Deus executa a tua tarefa!» E ele disse: «Valha-me Deus, mas não vou
levar isto sem ver os artigos todos a um e um.» Então ordenei a um criado
que lhe abrisse a caixa, e ele largou o astrolábio da mão, enquanto a maioria
do meu cabelo ainda não havia sido cortado, e pôs-se a inspeccionar os
perfumes e os incensos. O meu espírito já não aguentava nada daquilo, já
me custava respirar, até que ele aceitou e recebeu a caixa. Em seguida,
pegou na navalha, acercou-se de mim, e cortou apenas uns quantos cabelos,
enquanto dizia declamando:

O menino educa-se seguindo o que o pai faz,


Tal como a árvore cresce a partir das raízes.

E disse ele: «Meu amo, não sei se lhe devo agradecer a si ou ao seu pai,
pois o meu festim, todo ele, se deve à generosidade de vossemecê. Que
Deus lhe prolongue a vida. E juro por Deus que nenhum amigo meu merece
tanta generosidade, mas são todos senhores respeitáveis, como Zantune,
chefe de uma casa de banhos, e Salí, vendedor de frutos secos, e Sallut,
vendedor de guisado de favas39, e Acracha, merceeiro, e Said, cameleiro, e
Suwaid, carreteiro, e Hamid, lixeiro, e Abu Macarixe, massagista nos
banhos, e Cuçaime, guarda, e Carime, palafreneiro. Nenhum deles é
desagradável, briguento, intrometido ou impertinente, e cada um tem a sua
própria dança e a sua própria canção. E o melhor que eles têm é que são
como este vosso criado e servidor, não sabem ser tagarelas nem
intrometidos. Quanto ao massagista dos banhos, dança e toca com uma
argola, cantando algo tão enfeitiçante: “A tua menina vai embora, ó
mãezita, vai encher a jarrita…”»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se o rei me poupar e eu viver.»
148.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o alfaiate disse ao rei da China que
o jovem disse aos convidados que o barbeiro lhe disse: «Quanto ao
vendedor de frutos secos, dança e toca com uma concha de sopa, cantando
melhor que um rouxinol: “Ó senhora que te lamentas, não tens passado
assim tão mal”, o que deixa qualquer um sem coração de tanto se rir dele. E
no que toca ao lixeiro, dança e toca com um pandeiro, tal feiticeiro cujo
canto os pássaros detém: “Notícias para o meu vizinhozito são muitas, mas
estão presas num baú.” Ele é astuto e esperto, jovial e genial, brincalhão e
folgazão, mas cultivado e refinado, e sobre as suas qualidades tenho a dizer:

A minha alma ao lixeiro que me enlouqueceu ofereço.


A doçura dos seus dotes imita o galho saracoteando-se.
O destino trouxe-me uma noite com ele, e eu lhe disse:
“Tanto arrebatamento não posso! O amor eu o cheiro!
Incendiaste-me o coração com teu fogo”, e ele disse:
“Que maravilha que o lixeiro se torna radiante fogueiro.”

»E todos eles são exímios em divertir as mentes com entretenimentos e


comédia. Se o meu amo quiser, poderá juntar-se a nós hoje em vez de ir
com os seus amigos com quem havia intencionado, pois ainda há vestígios
em si da sua doença, e com esses amigos poderá haver pessoas que sejam
tagarelas e que falem sobre o que lhes não diz respeito, ou poderá haver
alguém que seja intrometido e lhe faça dores de cabeça, pois ainda está
cansado da sua doença.»
Então eu disse-lhe: «Em conselhos não te poupas.» E no meio da minha
fúria, desatei-me a rir, e lhe disse: «Talvez seja melhor em outro dia, se
Deus quiser. Agora termina o que tens a fazer, e some-te na paz de Deus
Todo-Poderoso, e que gozes bons momentos com teus amigos e
companheiros, pois eles estão à tua espera.» E ele disse: «Meu amo, nada
peço a não ser fazê-lo íntimo de pessoas tão simpáticas, entre as quais
ninguém há que seja intrometido ou tagarela, pois eu dês que sou gente que
nunca consegui ser íntimo de alguém que indague sobre o que lhe não diz
respeito, nem de alguém que não seja pouco falador, tal como eu. E se
convivesse com eles uma única vez que fosse, logo abandonaria todos os
seus amigos.» E eu disse-lhe: «Que Deus te faça feliz com eles, um dia
tenho de me juntar aos teus amigos, e divertir-me em tua casa com eles.» E
ele disse: «Se quiser pode divertir-se hoje connosco; se a sua intenção for
vir comigo para junto dos meus amigos, deixe-me levar-lhes a sua honrada
oferta. No entanto, se tiver mesmo de estar hoje com os seus amigos, eu
levo a sua oferta mas deixo os meus amigos a comer e a beber; assim, não
ficam à minha espera, e regresso para junto de si e vou consigo a casa dos
seus amigos, pois entre mim e os meus amigos não fazemos cerimónia que
me impeça de os deixar e de tornar para junto de si.»
E eu disse-lhe: «Não há força nem poder senão em Deus Altíssimo e
Grandioso! Vai tu ter com os teus amigos, goza com eles bons momentos, e
deixa-me eu ir ter com os meus, e estar com eles durante o dia de hoje, que
eles estão à minha espera.» Então o barbeiro disse: «Deus proíbe, meu amo,
de me desembaraçar de si e o deixar ir sozinho!» Então disse-lhe: «Olha-me
este! O sítio aonde vou é restrito e não te vai ser possível entrares.» E ele
disse: «Meu amo, parece-me que hoje se vai encontrar com uma dama, se
não, caso fosse a um festim, levar-me-ia consigo, porque aqueles que são
como eu são quem embeleza os festins, os locais de entretenimento, os
casamentos e as festividades. Se se vai encontrar com um dama e quer
privacidade com ela, então eu sou o melhor…»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, se eu ainda for
viva.»
149.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o alfaiate disse ao rei da China que
o jovem disse aos convidados que o barbeiro lhe disse: «Então eu sou o
melhor para o auxiliar nisso, e assim tem um ajudante consigo para que
ninguém o veja a entrar no sítio, o que poria a sua vida em perigo. É que
nesta cidade já ninguém pode fazer coisa alguma, sobretudo nos dias de
hoje, com este severo, colérico e tão punitivo governador de Bagdade.»
Então disse-lhe: «Maldito sejas, ó velho maldoso, [não tens vergonha] em
me interpelares desta guisa?» E ele disse-me: «Mas vossemecê é tolo, então
diz que eu não tenho vergonha, e esconde de mim o que eu já sabia e venho
de confirmar; e eu que só havia pedido que a minha pessoa o ajudasse
hoje.»
Ora, eu receei que a minha família e os meus vizinhos ouvissem o que
dizia o barbeiro e houvesse um escândalo, e então calei-me. E chegou o
meio-dia, veio a hora da oração, para a qual chamaram uma vez, e uma
segunda vez, enquanto o barbeiro terminava de me cortar o cabelo. Então
disse-lhe: «Parte-te agora com esta comida e bebida para tua casa, para
junto dos teus amigos. Eu vou estar aqui à tua espera até que regresses para
ires comigo.» E não cessei de lhe dar graxa e de o enganar, para levar a
melhor sobre ele, na esperança de que ele se fosse. E disse ele: «Agora
suspeito que me está a enganar, e que vai sozinho botar-se a si mesmo numa
desgraça da qual não tem salvação. Por amor de Deus, não abale sem que
eu haja voltado para junto de si, para ir consigo certificar-me que tudo lhe
corre bem e que não se lhe sucede alguma artimanha.» E eu disse-lhe: «Está
bem, não te delongues.»
Então, ele pegou na comida, bebida, grelhados, perfumes, e em tudo o
que eu lhe havia dado, e saiu de minha casa, mas o maldito despachou tudo
para casa dele através de um carregador, e escondeu-se numa travessa. Ao
depois, chegou a minha hora de sair, e já os almuadens proclamavam a
saudação [«Que a paz seja convosco»], e então eu vesti-me e saí a toda a
pressa até que cheguei à travessa e me deparei frente à casa onde vira a
moça, enquanto o barbeiro, sem que eu o soubesse, vinha atrás de mim.
Encontrei a porta aberta, entrei, e encontrei a velha em pé à minha
espera. Então subi ao andar onde morava a rapariga. E à medida que entrava
no quarto dela, eis que o dono da casa acabava de tornar da oração,
entrando na moradia e fechando a porta. Então debrucei-me ventana fora, e
vi este barbeiro – que Deus o amaldiçoe! – sentado à porta, e disse de mim
para mim: «Como soube este diabo que eu estava aqui?» E naquele
momento aconteceu que, conforme Deus queria para minha desgraça, o
dono da casa bateu numa criada, devido a uma ofensa desta, e ela pôs-se
aos gritos, e veio um escravo para a livrar, mas o dono da casa bateu nele, e
o escravo também ele se pôs aos berros. Então o maldito barbeiro julgou
que era em mim que ele batia, e pôs-se aos berros, rasgando as suas
próprias roupas e lançando terra à sua cabeça, e continuou aos gritos
clamando ajuda, e as gentes vieram e puseram-se à sua roda, enquanto ele
dizia: «Mataram o meu senhor na casa do juiz!» Ao depois, foi a minha
casa, continuando aos gritos com as gentes seguindo no seu encalço, e deu
parte à minha família e criados. Antes que eu desse por ela, já lá estavam
todos em frente da casa da moça, com as roupas rasgadas e os cabelos todos
descompostos, a gritar: «Ai do nosso senhor!» E o barbeiro seguia à frente
deles, num estado mais que deplorável, roupas rasgadas, e gritando com os
outros.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana, e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu:
«Isto nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, se o rei me
poupar e eu viver.»
150.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o alfaiate disse ao rei da China que
o jovem disse aos convidados:

E já se haviam ajuntado as gentes, que gritavam: «Ai que foi assassinado!


Ai que foi assassinado!» Ora, o dono da casa ouviu o barulho e a gritaria à
sua porta, e disse a um criado: «Vai ver o que se passa.» Então, o criado
saiu, voltou ao seu senhor, e disse: «Meu senhor, à porta estão mais de dez
mil almas, entre homens e mulheres, a gritar: “Ai que foi assassinado!”, e
apontando para a nossa casa. Em ouvindo tal coisa, ficou aflito e
preocupado e, ao abrir a porta, viu a multidão e ficou atónito, e perguntou:
«Ó povo, que causa é a vossa?» E eles responderam ao juiz: «Maldito sejas,
ó porco! Mataste o nosso senhor!» E ele disse: «Ó povo, o vosso senhor não
me fez nada para que eu o matasse, e a minha casa está aberta e podeis
entrar.» Então o barbeiro disse: «Bateste-lhe há pouco com a vergasta, e eu
ouvi os brados vindos desta casa.» E o dono da casa disse: «E que fez o
vosso amo para que eu lhe batesse, e o que o levaria a entrar em minha
casa?» Então o barbeiro disse-lhe: «Não sejas um velho calamitoso e
ordinário; eu sei tudo, a tua filha enamorou-se por ele e ele por ela, e tu,
quando o soubeste, ordenaste a um criado que lhe batesse. Meu Deus!
Ninguém pode decidir qual de nós tem razão a não ser o califa, ou então
trazes agora o nosso amo cá para fora para a sua família, antes que eu entre
e o traga de dentro de tua casa causando o teu opróbrio.»
Ora, o juiz disse-lhe, já com o falar refreado por ser coberto de vergonha
frente a tanta gente: «Se falas verdade, então entra agora e trá-lo.» Então, o
barbeiro apressou-se a entrar na casa, e eu em o vendo a entrar, procurei
uma via de saída, ou um sítio para fugir dele, ou um refúgio onde me
esconder, mas nada encontrei senão um grande baú que estava no quarto.
Entrei nele, fechei a tampa e abstive-me de fazer qualquer som. O barbeiro
entrou na moradia e subiu até ao sítio onde eu estava, e olhou ora para a
direita ora para a esquerda e, não encontrando coisa alguma senão um baú,
no qual estava eu, carregou-o à sua cabeça – e eu já havia perdido os
sentidos e o raciocínio – e saiu apressadamente.
Sabendo que ele me não largaria, tomei coragem, abri o baú, botei-me ao
chão, e parti uma perna. A porta abriu-se e vi lá fora uma enorme turba. Na
minha manga havia imenso oiro, que eu havia aprontado para um dia
daqueles. Então saí, e pus-me a arremessar os dinares para cima das
pessoas, deixando-a atarefadas a juntar o oiro e a prata, e fui a correr pelas
travessas de Bagdade, virando ora para a direita ora para a esquerda, e o
maldito barbeiro seguia no meu encalço! Nada o atarefava senão a minha
pessoa, e corria atrás de mim de lugar em lugar!

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se eu ainda for viva.»
151.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o alfaiate disse ao rei da China que
o jovem disse aos convidados que ele continuou a correr, e o barbeiro
seguia no seu encalço, e dizia: «Quiseram privar-me de si, meu senhor, e
matar o meu benfeitor e o da minha família, filhos e amigos, mas louvado
seja Deus que me concedeu a vitória sobre eles, para que eu livrasse o meu
senhor das mãos deles.» E ao depois disse: «Meu senhor, aonde quer ir? Se
Deus me não houvesse enviado a si, não se teria livrado deles, e o teriam
botado a si numa grandiosa desgraça, da qual ninguém seria capaz de o
salvar. Quanto quero eu viver para o proteger! Meu Deus! O meu amo
quase me aniquilou com o seu mau juízo, e ainda queria ir sozinho! Mas eu
não levo a mal a sua ignorância, porque vossemecê tem pouco tino, é
desajeitado e apressado.»

O jovem disse:

E não lhe bastou o que me fez, mas continuou a vigiar-me pelos


mercados de Bagdade, e aos gritos, e eu já prestes a perder as estribeiras, e
com tanta raiva a ele e cólera, entrei num caravancerai no meio do mercado
e pedi ao dono que me protegesse, e este afastou-o de mim. Sentei-me
dentro de um dos armazéns, e disse de mim para mim: «Se tornar a casa,
não me vou conseguir desembaraçar deste maldito, que me vai passar a
visitar noite e dia, e nem sequer aguento olhar para a sua cara.» Então logo
num pronto mandei chamar testemunhas, e escrevi um testamento para a
minha família, reparti a maioria do meu dinheiro, arranjei-lhes um
administrador, a quem ordenei a venda da minha casa e propriedades, e que
cuidasse dos velhos e dos novos. Peguei em algum dinheiro e naquele dia
mesmo parti de via-gem do caravancerai até este país, para me livrar deste
chulo, e já faz um tempo que habito na vossa cidade.
Então, quando me favorecestes com o vosso convite, eu vim e o
encontrei, este barbeiro maldito, no lugar de honra. Ora, como havia este
banquete de me saber bem na companhia deste aqui, que fez comigo o que
fez, levando-me a partir uma perna, e a separar-me da minha cidade, da
minha família e da minha casa, e a exilar-me? E logo havia de ser eu a
encontrá-lo entre vós!

Ao depois, o jovem absteve-se de se sentar. Ao ouvir a história do jovem


com este barbeiro, espantámo-nos até mais não, e fomos tocados pela
emoção, e perguntámos ao barbeiro: «É mesmo verdade o que diz este
jovem sobre ti? E porque o fizeste?»
Ora, o barbeiro ergueu a cabeça e disse: «Ó gentes, eu, o que lhe fiz
provém do meu conhecimento, tino, e hombridade, e se não fosse eu ele
teria sido aniquilado, pois fui eu a causa do seu salvamento, e é bom que o
que lhe aconteceu à perna não lhe tenha acontecido à própria vida. E fui eu
mesmo que assim agi, plantei uma boa acção para alguém que não era da
minha família. Deus me valha, eu não sou intrometido nem sou tagarela, e
entre os meus seis irmãos – eu sou o sétimo – não há ninguém menos
falador do que eu, nem com mais tino, nem menos intrometido. E eis que
vos direi uma história que me aconteceu, para que acrediteis em mim, em
como sou pouco falador e não sou intrometido, ao contrário dos meus
irmãos:

História do Barbeiro

E assim é: vivia eu em Bagdade no tempo de Almustancir Billâh40, filho


de Almustadi Billâh, [e o califa nesses dias estava em Bagdade,] e amava os
pobres e os necessitados, e convivia com os sábios e o pios. E aconteceu
que ele se enfureceu com um grupo de dez indivíduos, e ordenou ao
governador de Bagdade que os trouxesse ante ele no dia de uma
festividade…
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão
espantosa e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade
respondeu: «Isto nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei,
na próxima noite, se o rei me poupar e eu viver.»
152.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o alfaiate disse ao rei da China que
o barbeiro disse aos convidados:

…Ordenou ao governador de Bagdade que os trouxesse ante si no dia de


uma festividade, e eles eram salteadores que assombravam a estrada. Então,
o governador da cidade saiu e apanhou-os, e levou-os para um barco. Em eu
os vendo, disse de mim para mim: «Valha-me Deus, porque haviam estes de
se reunir senão para um banquete ou uma festa? E se vão passar o dia deles
neste barco a comer e a beber, que melhor companhia haviam de ter senão
eu mesmo?»
E então, ó gentes, conforme a minha hombridade e sobriedade de juízo,
infiltrei-me no barco com eles. Atravessaram em direcção à costa em
Bagdade, e tão rápido chegaram à outra margem quanto vieram polícias e
guardas com correntes, e lhas botaram ao pescoço, e botaram ao meu
pescoço uma corrente, conforme a todos os outros. E isto, ó gentes, foi
conforme a minha hombridade e o eu ser pouco falador, atributos que me
fizeram calar e não querer falar.
Então, fomos levados em correntes ante o miralmuminim, que ordenou
que as cabeças dos dez fossem cortadas. O carrasco avançou, e empós nos
ter feito sentar ante ele na esteira de execução, desembainhou a espada e
cortou a cabeça de um a seguir à do outro, até ter cortado a cabeça a dez, e
ter restado eu. Então o califa olhou para mim e disse ao carrasco: «Ai de ti,
não cortaste senão a cabeça a nove.» E o carrasco disse: «Ó miralmuminim,
Deus proíbe-me que eu só nove corte se me ordena cortar dez.» E disse o
califa: «Este à tua frente é o décimo!» E o carrasco disse: «Valha-me Deus!
Meu real senhor, pela vossa graça, eu matei dez!» Então contaram as
cabeças e encontraram dez.
Ora, o califa olhou para mim e disse: «Ai de ti! O que te levou a ficares
em silêncio numa situação destas? E como vieste parar à companhia destes
amigos do [crime de] sangue? Qual a causa disto tudo? Só podes ser um
velho com muita idade e pouco juízo.» Ao ouvir a prédica do
miralmuminim, levantei-me e disse-lhe: «Saiba, ó miralmuminim, que eu
sou o Silencioso, e o meu nível de erudição, sabedoria, ciência, filosofia, a
delícia do meu discursar e minha capacidade de réplica, mais ninguém
senão eu o alcançou. Quanto à minha sobriedade de juízo, o meu falar
pouco, a agudeza da minha compreensão e do meu método, a minha muita
hombridade e empenho, é algo que não compreende limite nem conhece
fim. E aquando era o dia de ontem, encontrei esses dez dirigindo-se a um
barco, e pensei que eles seguiam para um banquete ou uma festa, e
misturei-me com eles, e desci com eles para o barco, e mal se fez a travessia
e desembarque na costa, aconteceu-lhes o que aconteceu. Apesar de ter esta
idade, faço boas acções às pessoas, mas pagam-me a mais selvagem paga!»
Em o califa ouvindo as minhas palavras, riu-se tanto que até caiu para
trás, e soube que eu tinha muita hombridade, que era pouco falador e não
era intrometido – que é o que este jovem com certeza pensa sobre mim, pois
havendo eu o salvo de horrores, ele me recompensou desta maneira!
Então o califa perguntou-me: «Ó Silencioso, os teus seis irmãos são
assim como tu?» E eu respondi: «Que não vivam e que desapareçam se
forem como eu, se se parecerem comigo ou se agirem à minha maneira. Os
meus irmãos, ó miralmuminim, são seis, e cada um deles tem um defeito
corporal e é: um zarolho, um paralítico das pernas, um corcunda, um cego,
um de orelhas cortadas, um de lábios cortados. Não julgue que eu falo
muito, eu só gostaria de comprovar que a minha hombridade é mais
grandiosa que a deles, e que falo menos do que eles. E cada um tem uma
história sobre o que lhe aconteceu para haver ficado com esse defeito.»

História do primeiro irmão, o alfaiate corcunda41

No que toca ao mais velho, era alfaiate…


Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se eu ainda for viva.»
153.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o alfaiate disse ao rei da China que
o barbeiro disse aos convidados que ele disse ao califa:

No que toca ao mais velho, era alfaiate, numa loja que havia alugado em
Bagdade, e na banda oposta havia um homem de muitas posses, e por baixo
da casa deste havia um moinho. E um dia, enquanto o meu irmão corcunda
estava na sua loja a alfaiatar, eis que ele ergue a cabeça, olha para a janela
da sacada da outra casa, e vê uma mulher que era como a Lua nascente,
olhando para as pessoas. Em a vendo, deflagrou-se-lhe um fogo no coração,
e passou o dia todo de cabeça erguida para a janela. Quando lhe veio a
tarde, perdeu a esperança, e abalou triste.
Ao amanhecer seguinte veio para a loja, e sentou-se no seu lugar olhando
para a janela. Passados momentos, veio ela e pôs-se a olhar como soía fazer.
Ele, em pondo os olhos nela, perdeu os sentidos. Ao depois, despertou e
abalou para casa no pior estado.
E ao terceiro dia, sentou-se no lugar dele, e a mulher viu que ele não
descansava de olhar para ela; então sorriu para ele, e ele sorriu para ela. E
ela sumiu-se, e enviou-lhe uma criada que levava um lenço dentro do qual
havia um tecido de bisso, e disse-lhe a criada: «A minha senhora envia-lhe
cumprimentos, e pediu, pela estima que vossemecê tem à vida dela, que lhe
corte deste tecido uma camisa e lha alfaiate.» E o meu irmão disse: «Às
suas ordens.» E ao depois talhou para ela uma camisa e alfaiatou-a no
mesmo dia.
Ao outro dia, a criada apareceu-lhe logo muito cedo, e disse: «A minha
senhora cumprimenta-o e pergunta como passou a noite. Pois ela não
saboreou sono algum por o coração dela estar ocupado consigo. E pediu que
lhe talhe umas calças, e as alfaiate, para que ela as vista com a camisa.» E
ele disse: «Às suas ordens.» Ao depois ele iniciou o corte e esmerou-se na
confecção. Passados momentos, ela olhou pela janela e cumprimentou-o, e
não o deixou abalar até ele acabar as calças e lhas enviar.
Ele abalou para casa atarantado, sem se poder munir de comida, e pediu
emprestado a um vizinho, e gastou o que havia pedido. Em amanhecendo,
veio para a loja, e mal havia chegado eis que vem a criada, e lhe diz: «O
meu amo convida-o a ir a casa dele.» Em ouvindo tal menção ao amo dela,
ficou aterrorizado de medo, e disse de si para si que o amo dela já devia
saber sobre ele. Mas a criada disse: «Não tenha medo. Não é senão para o
seu bem. A minha senhora quer que vossemecê e ele se conheçam.» Então
ele ficou todo contente, e foi à sua casa, cumprimentou-o, e ele também o
cumprimentou, e entregou-lhe grande soma de tecidos de Dabique42, e
disse: «Talhe-me camisas destes tecidos.»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana, e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o
rei me poupar e eu viver.»
154.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o alfaiate disse ao rei da China que
o barbeiro disse aos convidados que ele disse ao califa:

Ele disse-lhe: «Confeccione-me camisas destes tecidos.» E ele não parou


de talhar tecidos até haver talhado vinte camisas, e igual soma de calças, e
não parou até ser de noite, e não saboreou comida alguma. Ao depois,
perguntou ao meu irmão: «Quanto é a sua paga?» E ele respondeu: «Pese
vinte dirames.» Então ele disse à criada, berrando: «Traz a balança!» Ora,
veio a moça conforme estivesse irritada com o meu irmão – afinal, como
podia ele aceitar os dirames? O meu irmão entendeu aquilo, e disse: «Valha-
me Deus, não aceito o que quer que seja!» E pegou nas suas coisas e saiu,
continuando sem um tostão43 e morto de fome, em três dias só havendo
comido dois pães. Então veio a criada e perguntou-lhe: «O que já fez?» E
ele respondeu: «Estão prontas.» E pegou nelas e levou-as até casa do
marido da moça, que quis pagar ao meu irmão, mas ele, com medo da
moça, disse: «Não aceito o que quer que seja!» E levantou-se e foi para
casa, e passou aquela noite sem dormir, tanta era a fome.
Em amanhecendo, foi para a loja, e aparece-lhe a criada e diz-lhe: «Tem
de falar com o meu senhor.» E lá foi ter com ele, que lhe disse: «Quero que
me talhes uns mantos.» E o meu irmão talhou-lhe cinco mantos, e abalou no
mais calamitoso estado de fome e endividamento. Então, alfaiatou aqueles
mantos e foi ter com o homem, que lhe louvou os dons de alfaiate; pediu
que lhe trouxessem uma bolsa com dirames, e ao estender a mão, a moça,
por detrás do seu marido, fez sinais ao meu irmão para que não aceitasse
nada, e ele lá disse ao homem: «Não se apresse, meu senhor, o tempo virá.»
E saiu de casa dele, em grande aflição por tostões e pela moça, e nele se
reuniram cinco coisas: o amor, a bancarrota, a fome, o desamparo e a
fadiga; mas apesar disso persistia resoluto. E a mulher havia dado parte ao
marido sobre o estado do meu irmão em relação a ela, e que ele a amava,
mas o meu irmão de nada sabia, e acordaram em se aproveitar dele para
terem um alfaiate à borla. Assim, quando ele terminava de alfaiatar as
coisas deles, ela punha-se a mirá-lo, e se visse o marido a pesar-lhe uma
paga, impedia-o de a receber.
E após isso, manobraram-no para que se casasse com a criada deles. E
uma noite, quiseram consumar o casamento, e disseram-lhe: «Dorme esta
noite no moinho, e amanhã faremos a boda.» Então passou a noite sozinho
no moinho, e o marido da moça pagou ao moleiro, e pela meia-noite entrou
o moleiro aonde estava o meu irmão, e pôs-se a dizer: «Que história vem a
ser esta com este mulo desgraçado? Está parado e não o oiço a rodar, e tanto
trigo temos aqui!» Atestou a moega de trigo, dirigiu-se ao meu irmão com
um açoite, e enfiou-lhe o jugo na cabeça.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se o rei me poupar e eu viver.»
155.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o alfaiate disse ao rei da China que
o barbeiro disse aos convidados que ele disse ao califa:

O moleiro enfiou o jugo na cabeça do meu irmão, e pôs-se a bater-lhe nas


pernas, e ele corria e o trigo moía, e o moleiro fazia como se não soubesse
que era o meu irmão, e sempre que ele queria descansar, logo o moleiro lhe
batia e lhe dizia: «Ai desgraçado! Comeste de mais!»
Em sendo a aurora, o moleiro foi para casa, deixando o meu irmão
dependurado no jugo como morto. Então a criada veio ter com ele, logo
muito cedo, e disse-lhe: «É duro para mim saber o que lhe aconteceu. Eu e a
minha senhora [não dormimos esta noite]44 por estarmos preocupadas
consigo.» Ele não teve língua para lhe responder, de tanta tareia e fadiga.
Ao depois, o meu irmão foi para casa, e eis que o mestre que lhe havia
escrito o amuleto veio ter com ele; cumprimentou-o e disse: «Que Deus te
faça viver. Eis o rosto de delícias, namoros e abraços.» E o meu irmão
disse: «Que Deus não te salve, ó mentiroso de mil cornos! Valha-me Deus,
passei a noite a moer [trigo] no lugar de um mulo», e contou-lhe a sua
história e o que lhe se havia sucedido. E o mestre disse-lhe: «A tua estrela
não combina com a dela.»
Ao depois, dirigiu-se para a sua loja, na esperança que alguém lhe
trouxesse algo para alfaiatar, e lhe pagassem, para comprar com que comer,
e eis que veio a criada e lhe disse: «Tem de falar com a minha senhora.»
Mas ele respondeu-lhe: «Entre mim e vós, não há trato possível.» Então a
criada tornou e deu parte daquilo à sua senhora, e antes que o meu irmão
desse por isso, já ela estava empoleirada à janela, a chorar, dizendo ao meu
irmão: «Ó delícia dos meus olhos, que tens?» E como lhe não deu resposta
alguma, ela pôs-se a jurar que era inocente do que lhe acontecera. E em o
meu irmão vendo quanto ela era bela e bonita, tudo o que lhe acontecera
sumiu-se-lhe da cabeça, perdoou-a e ficou contente em a ver.
Alguns dias depois, veio a criada ter com ele e disse-lhe: «A minha
senhora cumprimenta-o e diz que o marido resolveu passar a noite em casa
de um amigo. Assim, quando ele abalar venha a nossa casa, e passe a noite
com a minha senhora.» A verdade é que o marido havia dito à sua mulher:
«Parece que o alfaiate de ti se arrependeu.» E ela disse: «Deixa-me pregar-
lhe outra partida, que o fará desfilar pela cidade como um criminoso.» E o
meu irmão não sabia ao que ia. E em vindo o anoitecer, a criada pegou no
alfaiate e introduziu-o na casa. E em a moça vendo o meu irmão, deu-lhe as
boas-vindas e disse: «Senhor meu, só Deus sabe quão grande é o meu amor
por si.»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Ó mana, que história


tão boa e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o
rei me poupar e eu viver.»
156.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o alfaiate disse ao rei da China que
o barbeiro disse aos convidados que ele disse ao califa:

O meu irmão disse: «Ó senhora minha, apresse-se a dar-me um beijo.» E


nem havia acabado de falar, quando lhe sai o marido de um quarto que lá
havia e diz ao meu irmão: «Que vergonha! Valha-me Deus, não te deixo ir a
lado algum senão directo ao governador!» O meu irmão não parou de lhe
implorar, mas ele não se deixou demover, e levou-o ao governador, que lhe
deu cem açoites, e o montou num camelo que percorreu a cidade, com
alguém que apregoava: «Esta é a recompensa mínima para quem atacar as
mulheres dos outros.» E foi exilado da cidade. Então foi-se embora sem
saber para onde ir, e eu fui atrás dele, e provi-o do que fosse falto.

Então o califa riu-se do que eu havia contado, e disse: «Ó Silencioso, ó


pouco falador, fizeste bem e nisso não te poupas.» E ordenou um prémio
para mim e que eu me retirasse. Mas eu disse: «Não, ó miralmuminim,
valha-me Deus! Não aceito o que quer que seja sem primeiro lhe contar o
que aconteceu aos meus outros irmãos.»

História do segundo irmão, o paralítico

No que toca ao meu segundo irmão, dá pelo nome de Bacbaca e é


paralítico. E aconteceu-lhe um dia estar a caminho para tratar de um
assunto, e eis que uma velha virou-se para ele e lhe disse: «Ó homem, pára
um pouco para te fazer uma proposta, e se ela te agradar, que Deus Todo-
Poderoso te guie.» O meu irmão parou e ela lhe disse: «Tenho a dizer-te, se
não fores tagarela, levo-te a um sítio adorável.» E então ela disse-lhe: «O
que dizes a uma bela casa, com um jardim, correntes de água, frutos prontos
a comer, vinho límpido e puro, e um rosto formoso tal a lua cheia para
abraçares?» Em o meu irmão ouvindo aquelas palavras, perguntou-lhe: «E
tudo isso é neste mundo?» E ela respondeu: «Sim, e é teu, se tiveres tino, se
ficares em silêncio e não tagarelares nem fores intrometido.» E ele disse:
«Assim farei.»
Então foi com a velha, e seguiu-a tendo em conta o que ela lhe dissera, e
então ela disse: «Esta moça a quem tu vais gosta que estejam de acordo
com ela e detesta que se lhe oponham. Se lhe obedeceres, serás dono da sua
boca.» Ao que o meu irmão disse: «Não me oporei a ela em coisa alguma.»
E lá foi o meu irmão atrás da velha, até que esta o fez entrar numa enorme
casa, com muitos servidores, que quando o viram lhe perguntaram: «O que
fazes aqui?» E a velha disse-lhes: «Deixai-o sossegado, é um vagabundo e
nós precisamos dele.» Então o meu irmão entrou num pátio enorme, no
meio do qual havia um jardim tão belo como jamais olhos alguns haviam
visto.
A velha sentou o meu irmão num elegante sofá, e pouco tempo passou
quando se ouviu um alvoroço enorme, e eis que aparecem umas raparigas,
no meio das quais estava uma rapariga que era tal a Lua na noite em que
está cheia. Em ela se achegando e em o meu irmão a vendo, levantou-se e
fez-lhe uma vénia, e ela deu-lhe as boas-vindas e ordenou-lhe que se
sentasse, e ele sentou-se. Então ela achegou-se dele e disse: «Que Deus te
recompense. O bem está contigo?» E o meu irmão respondeu: «Minha
senhora, o bem, todo ele, está comigo.» Então ela deu ordens para que
trouxessem a comida, e vie-ram belos manjares, e comeram.
Ora, enquanto comiam, a rapariga não parava de se rir, e se o meu irmão
olhava para ela, esta virava-se para as criadas como se estivesse a rir-se
delas, e ao meu irmão mostrava afecto, e punha-se na galhofa com ele, e
então o meu irmão foi dominado pelo desejo de a possuir, e não teve
dúvidas de que a rapariga estava enamorada dele, e que ela iria atender aos
seus desejos. E quando terminaram o repasto, veio o vinho. Ao depois,
vieram dez raparigas tais luas cheias, e nas suas mãos traziam alaúdes, e
puseram-se a cantar com uma voz muito enternecedora, deixando o meu
irmão comovido. Então ela bebeu uma taça e o meu irmão levantou-se…

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Ó mana, que história


tão boa e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu:
«Isto nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima
noite, se o rei me poupar e eu viver.»
157.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o alfaiate disse ao rei da China que
o barbeiro disse aos convidados que ele disse ao califa:

A moça serviu uma taça ao meu irmão e ele bebeu-a levantando-se. E em


seguida a moça pregou-lhe um calduço. Em o meu irmão vendo tal coisa da
parte dela, ficou fulo e repudiou aquilo, mas a velha continuou a fazer-lhe
sinais com os olhos, e então ele voltou atrás, e a rapariga ordenou-lhe que
se sentasse. Em seguida, ela tornou a bater-lhe, e como se aquilo lhe não
bastasse, ordenou às criadas que lhe batessem, enquanto dizia à velha:
«Nunca vi nada mais belo do que isto!» e a velha respondia: «Meu Deus,
claro que sim, minha senhora.» Ao depois, ordenou a todas as criadas que
incensassem o meu irmão e o borrifassem com água de rosas. Após isso, ela
disse-lhe: «Que Deus te recompense. Não entraste tu em minha casa, e te
conformaste com as minhas exigências? Pois eu expulso quem se me opõe,
mas quem se conforma alcança o seu fim.» Ao que o meu irmão disse:
«Minha senhora, seu escravo sou.»
Ao depois, ordenou a todas as criadas que cantassem em alta voz, e elas
assim fizeram. Em seguida, gritou a uma das criadas, dizendo: «Leva a
delícia dos meus olhos, cuida dele, trata das suas necessidades, e trá-lo-mo
em breve.» O meu irmão levantou-se e foi com a criada, sem saber o que
queriam dele, e como a velha também se levantou, o meu irmão disse-lhe:
«Diga-me o que quer esta criada fazer comigo.» E a velha disse-lhe: «Não é
senão para o teu bem. Ela vai pintar-te as sobrancelhas e cortar-te o
bigode.» E o meu irmão disse: «No que toca a pintar as sobrancelhas, estas
lavam-se, mas o arrancarem-me o bigode vai doer.» Então a velha disse:
«Toma cuidado ao te lhe opores, pois ela já tem o seu coração colado ao
teu.» Então, o meu irmão conformou-se, e deixou que lhe pintassem as
sobrancelhas e lhe arrancassem o bigode.
A criada foi ter com a sua senhora, que lhe disse: «Resta outra tarefa, que
lhe rapes a barba para que ele fique sem pêlos na cara.» Então veio a criada
para lhe cortar a barba, e a velha disse ao meu irmão: «Alvíssaras! Ela não
faria isto contigo se o coração dela não sentisse um profundo amor por ti.
Pacienta-te, estás quase a obter o que queres.» Então, ele conformou-se e
obedeceu à criada, que lhe cortou a barba. Em seguida, a criada levou-o
ante a sua senhora, que ficou radiante de alegria por o ver assim, e tanto se
riu que até caiu para trás, e disse: «Senhor meu, com este teu belo carácter
já conquistaste o meu coração.» E em seguida adjurou-o, pela vida dela, a
dançar, e ele levantou-se e pôs-se a dançar, enquanto ela e as criadas não
houve coisa alguma na casa que lhe não hajam atirado, até que ele caiu sem
sentidos de tanta pancada e bofetada. E aquando acordou, a velha disse-lhe:
«Agora é que vais conseguir o que desejas!»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se o rei me poupar e eu viver.»
158.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o alfaiate disse ao rei da China que
o barbeiro disse aos convidados que ele disse ao califa:

Aquando ele acordou, após tanta investida, a velha disse-lhe: «Agora é


que vais conseguir o que desejas! Fica sabendo que só te resta mais outra
coisa e nada mais! E isso é que faz parte dos hábitos dela quando se
embebeda, não se entrega a ninguém sem que antes esse alguém tire a
camisa e as calças, e fique nu, e ao depois ela põe-se a correr à frente dele,
como se estivesse a fugir, e ele persegue-a de lugar em lugar, até a sua verga
ficar em pé e bem dura, e nesse altura ela pára e entrega-se.» E mais disse:
«Levanta-te e despe as tuas roupas!» Então o meu irmão tirou todas as suas
roupas e ficou completamente nu.
E a rapariga disse ao meu irmão: «Vá, corre!» E ela também se despiu,
menos as calças, e disse-lhe: «Se te queres unir a mim, então persegue-me
até me apanhares.» E ora entrava num salão, ora saía de outro, e eu corria
atrás dela. Então, o meu irmão foi dominado pelo desejo, e o seu caralho
ficou em pé, enquanto corria como um louco. Então, a rapariga entrou num
lugar escuro, e ele seguindo-a, entrou também, e pisou num sítio mole que
se abateu, e mal deu por si estava em pleno mercado dos coiros, com os
vendedores a apregoarem as peles, vendendo e comprando. E em eles vendo
o meu irmão naquele estado, todo nu, barba rapada, e sobrancelhas
vermelhas, puseram-se a gritar-lhe e a bater palmas, e bateram-lhe com as
peles, estando ele nu, até que perdeu os sentidos.
Então carregaram-no num burro até à porta da cidade, e veio o
governador e perguntou: «O que é isto?» E responderam: «Amo, este caiu
da casa do vizir neste estado.» Então o governador investiu cem chibatadas
no meu irmão, e ao depois ordenou-lhe que partisse de Bagdade para o
exílio. Então eu, ó miralmuminim, saí atrás dele, e trouxe-o em segredo
para a cidade, e dei-lhe uma pensão em víveres, e não o teria feito não fora
a minha hombridade.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se o rei me poupar e eu viver.»
159.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o alfaiate disse ao rei da China que
o barbeiro disse aos convidados que ele disse ao califa:

História do terceiro irmão, o cego

Ó miralmuminim, no que toca ao meu terceiro irmão, ele era cego e [um
dia]45 o destino conduziu-o a uma grande casa, e ele bateu à porta na
esperança de falar com o dono para lhe pedir uma esmola. Então o dono da
casa perguntou: «Quem está à porta?» E o meu irmão não respondeu. Então,
bateu uma segunda vez, e o dono perguntou: «Quem é?», e ele não
respondeu, e ouviu o dono repetir em alta voz: «Quem é?», mas não disse
palavra, e ouviu os passos do dono a aproximar-se da porta, a abri-la e a
perguntar: «O que queres?» e o meu irmão disse: «Uma coisinha para Deus
Todo-Poderoso.» E o dono exclamou: «Ó cego!» Ao que ele respondeu:
«Sim, sou.» E o dono da casa disse: «Dá-me a tua mão.» E o meu irmão
deu-lhe a mão, convencido que ele lhe ia dar qualquer coisa. Mas o dono da
casa puxou-lhe pela mão, e fê-lo entrar, e não parou de o fazer subir escada
atrás de escada, até chegarem ao topo da casa, enquanto o meu irmão dizia
de si para si: «Vai dar-me qualquer coisinha para comer.»
Ora, o dono da casa fê-lo sentar e perguntou-lhe: «Ó cego, o que
queres?» e meu irmão respondeu: «Uma coisinha para Deus Todo-
Poderoso.» E o dono da casa, como quem recusa dar esmola, disse-lhe:
«Que Deus te ajude.» Ao que o meu irmão retrucou: «Olha-me este! Então
não me poderia já tê-lo dito lá em baixo?» E o dono da casa disse: «Ele há
lá gente tão reles! e porque me não respondeste logo à primeira vez?» E o
meu irmão perguntou: «E agora, o que quer fazer comigo?» E ele
respondeu: «Não tenho nada para te dar.» E o meu irmão disse: «Leve-me
para baixo.» E ele disse-lhe: «O caminho está à tua frente.»
Então o meu irmão levantou-se, e começou a descer as escadas, e já só
faltava entre ele e a porta uma distância de vinte degraus quando pôs o pé
em falso e escorregou, caindo por ali abaixo até à porta. Ficou com uma
ferida aberta na cabeça, e saiu dali para fora sem saber onde estava. Então
um dos seus companheiros encontrou-o e perguntou-lhe: «O que te trouxe o
dia de hoje?» E ele respondeu-lhe: «Nem me perguntes!» e contou-lhe o
que se tinha passado. «Irmão, quero tirar alguns dos nossos dirames para os
gastar comigo.»
E o dono da casa [seguia-o e]46 ouvia o que dizia o meu irmão, sem que
ele o soubesse. Então, quando o meu irmão chegou a casa e entrou, ele
também entrou atrás dele. O meu irmão quedou-se à espera dos seus
companheiros, e [quando estes chegaram,]47 disse-lhes: «Fechai a casa toda
e inspeccionai-a para que não haja ninguém estranho connosco.» E em o
homem ouvindo as palavras do meu irmão, que não sabia que ele estava ali,
agarrou-se a uma corda que estava presa ao tecto. Assim, um dos
companheiros do meu irmão percorreu a casa e não encontrou ninguém.
Foram ter com o meu irmão e perguntaram-lhe como estava, e ele
informou-os de que necessitava de uma parte do que haviam angariado, e
cada um deles sacou alguma coisa dalgum lado, e puseram tudo ante o meu
irmão, e tudo foi pesado e eram dez mil dirames, e deixaram-nos a um
canto da casa, havendo o meu irmão pegado no que precisava, antes de
enterrarem o resto dos dirames na terra.
Em seguida, trouxeram alguma comida, e enquanto comiam, o meu
irmão ouviu o mastigar de um estranho, e disse aos seus amigos: «Valha-me
Deus, está aqui um estranho!» E ao estender o seu braço, agarrou a mão de
um homem, e houve pancadas e murros, enquanto o meu irmão o segurava.
E após haverem perdurado nisto algum tempo, gritaram: «Ó muçulmanos,
entrou um ladrão em nossa casa e quer nos roubar o que é nosso!» Então
reuniu-se ali muita gente, e veio aquele homem e agarrou-os, acusando-os
do que eles o acusavam, e havendo fechado os olhos de guisa a que
ninguém duvidasse de que ele fosse cego, gritava: «Ó muçulmanos! Que
Deus e o governador nos julgue!» E mal deram por ela, já lá estavam os
guardas, que agarraram neles e os conduziram ao governador. E eles
compareceram diante do governador, que perguntou: «O que se passa?» E o
que não era cego respondeu: «Que Deus recompense o governador! Vossa
excelência vê, mas só castigando consegue ver as coisas mais claras. E o
primeiro a ser castigado sou eu mesmo, e ao depois este aqui, que é o nosso
alcaide», e apontou para o meu irmão. Então, ó miralmuminim, estenderam
o que não era cego e aviaram-lhe quatrocentas chibatadas, e em ele ficando
com dores devido à pancada…

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha, ó mana, e tão espantosa», disse Dinarzade à sua irmã. E
Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado com o que contarei, a ti e ao
nosso rei, na próxima noite, se o rei me poupar e eu viver.» Então o rei disse
de si para si: «Meu Deus, não a matarei até ouvir o que aconteceu ao rei da
China com o alfaiate, o sábio judeu, o nazareno, e o vedor, e o resto da
história do chato do barbeiro e dos seus irmãos, e depois mato-a, tal como
fiz com todas as outras.»
160.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o alfaiate disse ao rei da China que
o barbeiro disse aos convidados que ele disse ao califa:

Aviaram ao que não era cego quatrocentas chibatadas no rabo, e em ele


ficando com dores devido à pancada, abriu um dos olhos. E quando lhe
deram mais, abriu o outro, e o governador perguntou-lhe: «Mas que vem a
ser isto, ó maldito?» E ele respondeu: «Dê-me o seu anel como garantia de
perdão, e eu dar-lhe-ei a conhecer o que se passa.» Então o governador deu-
lhe o anel como garantia, e ele disse: «Meu amo, nós somos quatro homens
que não são cegos, mas fingimos sê-lo à frente das pessoas para entrarmos
nas suas casas, vermos as suas mulheres e as corrompermos. E já reunimos
um lucro de dez mil dirames, mas quando disse aos meus companheiros
«Dai-me a minha parte de dois mil e quinhentos», eles negaram-se,
bateram-me e ficaram com o meu dinheiro, e eu peço protecção a Deus e a
si, que merece mais do que eu a minha parte do dinheiro. E se quiser saber
se eu falo verdade, então bata em cada um deles duas vezes mais do que me
bateu a mim, e eles vão abrir os olhos.»
E com isto o governador ordenou que os outros fossem castigados,
começando primeiro pelo meu irmão, que prenderam a umas escadas. O
governador disse-lhes: «Ó devassos, vós negais a graça que haveis recebido
de Deus afirmando que sois cegos?» E o meu irmão disse: «Valha-me Deus,
ó governador, nenhum de nós consegue ver.» Então bateram-lhe até ele
perder os sentidos, e o homem que não era cego disse ao governador:
«Deixa-o acordar, e então bata-lhe mais uma segunda vez, que ele aguenta
mais pancada que eu.»
E o governador ordenou que batessem nos outros, e cada um levou mais
de trezentas chibatadas, enquanto o homem que não era cego dizia: «Abri
os vossos olhos, senão ireis levar pancada outra vez.» E em seguida disse ao
governador: «Ó emir, envie comigo quem lhe traga o dinheiro, pois estes
não abrem os olhos com medo de um escândalo público.» O governador
assim fez, e apreendeu o dinheiro, havendo dado ao homem dois mil e
quinhentos dirames, que supostamente era a sua parte, e ficou com o resto.
E o governador exilou os três, e então eu, ó miralmuminim, fui atrás do meu
irmão, e perguntei-lhe como estava, e ele contou-me isto tudo que vim de
mencionar. Então trouxe-o de volta em segredo, e dei-lhe uma pensão para
ter com que comer e beber, sem que ninguém soubesse.

Então o califa riu-se das minhas histórias, e disse: «Dai-lhe um prémio e


deixai-o ir.» E eu disse-lhe: «Ó miralmuminim, eu sou pessoa de pouca fala
[e muita hombridade, e tenho de lhe contar o resto das histórias dos meus
irmãos, para que saiba que sou mesmo pouco falador.]»

História do quarto irmão, o talhante zarolho

No que toca ao meu quarto irmão, o zarolho, era talhante em Bagdade.


Vendia carne e criava carneiros, e era procurado pelos notáveis e abastados,
que lhe compravam carne, e por isso juntou grandiosa fortuna, e adquiriu
casas e terrenos, e assim viveu o meu irmão durante longo tempo. E um dia,
enquanto o meu irmão estava na loja, deteve-se diante dele um velho de
fartas barbas. Entregou-lhe uns dirames e disse: «Dá-me isto em carne.» O
meu irmão cortou-lhe o correspondente àquele dinheiro em carne, e o velho
abalou. Então, o meu irmão observou a prata, e reparando que era de um
branco brilhante, guardou-a à parte.
O velho continuou a frequentar a loja do meu irmão durante cinco meses,
e o meu irmão continuou a pôr os dirâmes do velho numa caixa à parte.
Então quis tirá-los para comprar carneiros, e ao abrir a caixa tudo o que lá
encontrou foi papel cortado às rodelas. Pôs-se a dar estaladas na sua própria
cabeça e aos gritos, e reuniu-se ali muita gente, e ele contou-lhes a sua
história. Então levantou-se e foi tratar do seu ganha-pão; degolou um
carneiro e pendurou-o dentro da loja, e desmanchou algumas peças de carne
e pendurou-as fora da loja, e dizia de si para si: «Talvez aquele velho
calamitoso volte.»
E nem uma hora havia passado quando ele apareceu trazendo prata. O
meu irmão levantou-se, agarrou-o, e gritou: «Ó muçulmanos, juntai-vos a
mim e ouvi a minha história com este depravado!» Em o velho ouvindo as
palavras do meu irmão, disse: «O que preferes, desistires do que dizes ou
seres exposto ao escândalo público?» E o meu irmão perguntou: «A
propósito do quê?» E o velho disse: «De que vendes carne humana como se
fosse carne de carneiro.» «Estás a mentir, maldito!», disse o meu irmão,
mas vai o velho mentiroso e exclama: «Ele tem na sua loja um homem
pendurado!» Ao que o meu irmão afirma: «Se for como tu dizes, então que
a minha vida e a minha riqueza sejam apreendidas.» E o velho disse:
«Companheiros, se quereis comprovar a verdade do que digo, entrai na sua
loja.» Então as gentes invadiram a loja do meu irmão, e encontraram aquele
carneiro que se havia transformado num homem pendurado. E em vendo o
que estava pendurado na loja do meu irmão, puseram-se a gritar contra ele:
«Ó infiel! Ó depravado!», e até os seus melhores amigos desataram a bater-
lhe, dizendo: «Deste-nos carne humana para comer!» E o velho esmurrou-o
no olho, e este caiu. E as gentes carregaram aquele homem degolado até ao
intendente da polícia, e o velho disse: «Ó emir, este homem degola pessoas
e vende a sua carne como se fosse de carneiro, e trazemo-lo até si para que
exerça a justiça de Deus Todo-Poderoso.»
Então o meu irmão falou, para contar o que se lhe havia passado, e como
aquele velho lhe havia dado prata que revelou ser papel, mas não ouviram
uma só palavra do que ele disse, e ordenaram que levasse pancada, e
aviaram-lhe uma valente tareia, mais de quinhentas chibatadas. E
confiscaram-lhe todo o dinheiro e tudo o que possuía, e os seus carneiros e
a sua loja, e exilaram-no, e se não fosse o seu dinheiro tê-lo-iam matado,
mas ele subornou-os com o seu dinheiro, e salvou a vida e nada mais, e
após o haverem exibido pela cidade três dias, [alvorou dali para fora até
alcançar uma enorme cidade.
O meu irmão, que sabia trabalhar como sapateiro, abriu então uma loja
onde se quedou a trabalhar para ganhar a vida. E um dia saiu para tratar de
um assunto, e ouviu atrás de si um alvoroço e o barulho de cavalos, e ao
indagar sobre aquilo, disseram-lhe: «O rei vai à caça.» Então o meu irmão
pôs-se a olhar para a beleza dos seus trajes, e o rei pôs a vista nele e,
baixando a cabeça, disse: «Deus me proteja deste dia!» e guinou as rédeas
do seu cavalo e voltou atrás, e todo o exército também voltou atrás, e deu
ordens aos seus servidores, que foram atrás do meu irmão, e lhe deram uma
dolorosa sova que o quase deixou morto, sem que ele soubesse qual a causa
de tal coisa. Então tornou à sua loja num estado lastimável, e foi ter com um
homem que era criado do rei. Em ele o vendo cheio de dores, perguntou-
lhe: «O que se passou?» E o meu irmão contou-lhe o se lhe havia passado, e
o homem riu-se até cair para trás, e disse: «Irmão, fica sabendo que o rei
não tolera ver um zarolho, e sobretudo se for cego do olho direito, e não se
contenta enquanto não o matar.» Em o meu irmão ouvindo aquilo,]48
decidiu fugir.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se o rei me poupar e eu viver.»
161.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o alfaiate disse ao rei da China que
o barbeiro disse aos convidados que ele disse ao califa:

O meu irmão decidiu fugir daquela cidade, e mudou-se para outras


bandas onde ninguém o conhecia. Ficou um tempo aí a viver, recompôs a
vida e prosperou nos seus negócios. Então um dia, enquanto saía em
passeio, ouviu o barulho de cavalos atrás dele, e exclamou: «‘Chegou o
decreto de Deus’49», e procurou um lugar onde se pudesse proteger.
Encontrou então uma porta fechada, e ao empurrá-la, ela tombou para a
frente, e ele viu um longo corredor. Ora, o meu irmão entrou, e mal deu por
si eis que dois homens o agarraram e lhe disseram: «Louvado seja Deus que
te trouxe até nós, ó inimigo de Deus! Faz três dias que nos não deixas
dormir nem descansar, e que nos fizeste provar as agonias da morte.» Ao
que o meu irmão perguntou: «Ó gente, qual o vosso problema?» E eles
responderam: «Tu nos afrontas, e planeias uma artimanha porque queres
matar o dono da casa. Não te basta que o hajas tornado pobre e miserável,
tu e os teus amigos? Mas vá, saca da faca com que nos tens ameaçado!»
Então, revistaram o meu irmão e encontraram à sua cintura uma faca. E o
meu irmão disse: «Por amor de Deus, tende misericórdia de mim, e ouvi a
minha história que é espantosa», e dizia de si para si «Vou-lhes contar a
minha história», na esperança que o deixassem seguir caminho, mas eles
não o ouviram e nem se viraram para ele, antes lhe aviaram pancada e
rasgaram as roupas; e em eles havendo encontrado nele marcas de
chibatadas, disseram ao meu irmão: «Ó maldito! isto são marcas de
castigo!» E levaram o meu irmão ao governador, e ele dizia de si para si:
«Fui apanhado pelos meus pecados, agora só Deus Todo-Poderoso me pode
salvar.»
O governador disse ao meu irmão: «Ó depravado, o que te levou a entrar
em casa deles e a ameaçá-los de morte?» Ao que o meu irmão respondeu:
«Peço-lhe por Deus que me oiça; não se apresse em me condenar, oiça a
minha história.» Mas disseram: «Ouvir as palavras de um ladrão que torna
as pessoas pobres e miseráveis, e tem as marcas de castigo nas suas
costas?» E em o governador vendo as marcas nas costas dele, disse: «Não te
teriam feito isso senão em resultado de um julgamento severo.» E ordenou
que lhe aviassem cem açoites, e ao depois montaram-no num camelo, com
alguém que apregoava: «Esta é a recompensa para quem atacar as casas dos
outros», e ordenou que fosse expulso da cidade.
Então, o meu irmão alvorou dali para fora, e eu ouvi sobre ele, e
informei-me, e contaram-me a história do que lhe havia acontecido. Então
peguei nele, e trouxe-o para a cidade em segredo, e dei-lhe uma pensão para
que ele provesse às suas necessidades. E foi por via da minha tamanha
hombridade que procedi assim com o meu irmão.

E o califa riu-se, ao ponto de cair para trás, e ordenou que me fosse dado
um prémio, mas eu disse-lhe: «Por amor de Deus, meu amo, eu, eu não sou
um palrador, e se lhe contarei todas as histórias dos meus irmãos, é para que
o nosso amo o califa se certifique da veracidade de todas as suas histórias,
as conheça, as registe na sua biblioteca, e saiba que eu não sou tagarela, ó
califa nosso amo.»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana, e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu:
«Isto nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima
noite, se eu ainda for viva.»
162.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o alfaiate disse ao rei da China que
o barbeiro disse aos convidados que ele disse ao califa:

História do quinto irmão, o das orelhas cortadas

No que toca ao meu quinto irmão, ele tinha as orelhas cortadas e era um
homem pobre; de noite pedia às pessoas, e de dia vivia com o que pedia. E
o pai dele50 era um velho muito entrado em anos, então ficou enfermo e
morreu, e deixou-nos setecentos dirames, que nós repartimos entre nós,
havendo cada um ficado com cem dirames. No que toca ao meu quinto
irmão, ele recebeu os cem dirames e ficou atarantado sem saber o que fazer
com eles. E enquanto pensava naqueles dirames, eis que lhe veio à cabeça
comprar vidro de todos os tipos e vendê-lo, usufruindo assim do que
receberia em lucro.
Usou então o dinheiro para comprar vidro, que pôs numa grande cesta, e
quedou-se num sítio para o vender, e à sua banda havia um alfaiate [e à
porta da loja deste uma balaustrada]51. Ora, o meu irmão encostou-se nela,
e pôs-se a pensar, dizendo de si para si: «Fica sabendo, ó alma, que o meu
capital é este vidro, cujo preço foi cem dirames, e que eu vou vender por
duzentos. Ao depois, vou comprar duzentos dirames em vidro e vendo-o
por quatrocentos. Ao depois, continuo a comprar e a vender até ficar com
quatro mil dirames, e assim continuo até comprar mercadoria e levá-la até
tal e tal lugar, onde a vendo por oito mil dirames. E continuo a vender e a
comprar até ficar com dez mil dirames, com os quais compro todo o género
de jóias e perfumes, e vou fazer lucros enormes. Por essa altura, compro
uma bela casa, assim como mamelucos, eunucos e cavalos, e vou comer,
beber e divertir-me, e não haverá cantador nem cantadoira na cidade que eu
não traga a minha casa. Se Deus quiser, vou fazer um capital de cem mil
dirames.»
Tudo isto se lhe ocorria na cabeça, com uma cesta à sua frente na qual
havia cem dirames em vidro. E a cabeça dele imaginou ainda mais, e disse:
«E em a minha fortuna se tornando cem mil dirames, nessa altura vou
enviar intermediários para pedir em noivado as filhas de reis e vizires.
Aliás, vou noivar-me com a filha do vizir, já que ouvi dizer que ela tem
feições perfeitas, belezas únicas e curvas formosas. Dar-lhe-ei um dote de
mil dirames, caso queiram, caso não levo-a à força, em desprezo pelo pai. E
em ela vindo para minha casa, compro dez jovens eunucos, assim como um
traje digno de reis para mim, e mando fabricar uma sela em oiro com jóias
valiosas incrustadas, e vou montar numa cavalgadura, com mamelucos
seguindo atrás de mim e à frente, e vou circular pela cidade, enquanto as
gentes me saúdam e pedem que Deus me abençoe. E em visitando o vizir,
com os mamelucos à minha direita e esquerda, ele vai levantar-se ante mim,
e vai sentar-me no lugar dele, enquanto ele se senta num mais baixo, porque
eu sou seu genro. Vou levar comigo dois eunucos com duas bolsas contendo
dois mil dinares, a que preparei para o dote e mais mil dinares que vou
oferecer para que conheçam a minha hombridade, a minha grandeza de
espírito, e como eu encaro a pequenez das coisas mundanas.
»Ao depois, vou para minha casa, e se vier alguém da parte da minha
mulher, ofereço-lhe presentes e cubro-o de honrarias, mas se for ele a trazer
um presente, devolvo-o e recuso-me a aceitá-lo, para não perder a minha
dignidade. Ao depois, vou ter com eles para se porem de acordo comigo, e
quando o fizerem dou-lhes ordens para que façam desfilar a minha mulher
até mim. E preparo a minha casa como deve ser. E em sendo a altura dela
ser desvelada, vou estar vestido com as minhas mais sumptuosas vestiduras,
e vou estar sentado num sofá de seda brocada, recostado sem me virar para
a direita nem para a esquerda, devido à minha probidade, juízo, sobriedade
de espírito, contenção, e ao meu falar pouco.
»A minha mulher vai estar erguida, tal como a lua cheia, com os seus
fatos e ornatos, enquanto eu, devido à minha honra, orgulho e vanglória,
não vou olhar para ela até que todos os que estejam presentes me digam: “Ó
senhor nosso amo, tenha dó da sua mulher e servidora que se encontra ante
si; conceda-lhe um olhar, que estar assim erguida lhe causa dores.” E após
beijarem o chão ante mim uma miríade de vezes, então nessa altura vou
olhar para ela uma só vez, e torno a baixar a cabeça. Após a levarem,
levanto-me e vou trocar os meus trajes, vestindo uma roupa ainda mais
bela. E em eles a trazendo segunda vez, com o segundo vestido, não vou
olhar para ela até que se detenham ante mim e me implorem também um
sem número de vezes. Então olho para ela durante um rápido instante, e
logo baixo a cabeça para o chão. E assim continuo a fazer até terminarem
de a apresentar.»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se o rei me poupar e eu viver.»
163.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o alfaiate disse ao rei da China que
o barbeiro disse aos convidados que ele disse ao califa:

E tudo isto decorria na cabeça do meu irmão, que continuou a dizer: «E


desta maneira vou desfrutar da noiva até que terminem de a apresentar. Ao
depois, dou ordens a um servo para que traga uma bolsa com quinhentos
dinares, com os quais vou pagar às damas de honor, a quem ordeno que me
deixem a sós com ela. E depois de as damas de honor me levarem até ao
quarto dela, vou dormir à sua banda mas sem lhe falar, mostrando-lhe
desprezo. Até que digam que a minha alma é orgulhosa e grandiosa, e a mãe
dela venha, me beije a mão, e diga: “Meu senhor, olhe para a sua rapariga,
que ela deseja a sua proximidade, e console-lhe a alma”, mas eu não lhe
vou responder. E em ela vendo tal coisa de mim, vai-se pôr a beijar-me os
pés uma miríade de vezes, e vai dizer: “Meu senhor, a minha filha é uma
moça que jamais viu homem, e se vir da sua parte tanta retenção, parte-se-
lhe o coração. Seja simpático com ela, fale-lhe e conforte-lhe o âmago.”
»Ao depois, a mãe dela dá-lhe uma taça de vinho e diz-lhe: “Insiste com
o teu senhor para beber.” E em ela vindo até mim, deixo-a de pé ante mim,
enquanto estou recostado numa almofada com brocados sem olhar para ela
devido à grandeza da minha alma, para que diga que eu sou uma pessoa
distinta e honorável, merecedora de respeito. E continuo deixando-a de pé
ante mim até ela provar o desprezo e perceber que sou um rei. Então, ela vai
dizer: “Meu senhor, por amor de Deus, não recuse a taça oferecida pelas
minhas mãos, eu sou a sua servidora.” E como eu lhe não respondo, ela
insiste dizendo: “Por favor, beba-o”, e leva-o à minha boca, mas eu sacudo
a minha mão na cara dela, e prego-lhe um pontapé assim desta guisa.» E
dito isto, pregou um pontapé que acertou em cheio na cesta dos vidros, que
estava num lugar elevado, caindo por terra e partindo-se tudo o que lá
havia.
Então o alfaiate disse-lhe ao gritos: «Isto tudo é devido ao teu orgulho e
manias de grandeza, ó mais imundo de todos os chulos! Valha-me Deus, se
fosse eu a mandar, ordenava que te aviassem cem chibatadas, e far-te-ia
desfilar pela cidade como a um criminoso.» Então nessa altura, ó
miralmuminim, o meu irmão desatou a chorar, batendo na sua própria cara e
rasgando as suas roupas, e as pessoas olhavam para ele enquanto iam para a
oração de sexta-feira, e uns tinham compaixão dele e outros não lhe faziam
caso, mas, enquanto isso, o meu irmão estava naquela situação em que se
lhe havia ido o lucro e o capital.
Em o meu irmão ficando um tempo a chorar, eis que passa por ele uma
bela mulher, que trazia uma soma de eunucos e montava uma mula com
uma sela de oiro, e dela irradiava um aroma de almíscar. Em ela o vendo
naquele estado a chorar, entrou-se-lhe no coração a compaixão, e indagou
sobre o estado dele, e disseram-lhe: «Ele tinha um cesto com vidro, do qual
provinha o seu sustento, e em se partindo ficou no estado lastimável que a
senhora vê.» Então ela chamou um dos eunucos e disse-lhe: «Dá-lhe o que
for que tenhas contigo.» E deu-lhe uma bolsa, na qual o meu irmão
encontrou quinhentos dinares.
Em a bolsa lhe vindo parar às mãos, o meu irmão quase morreu de
tamanha alegria, e desatou a pedir as bênçãos de Deus para aquela mulher.
Tornou a casa rico, e sentou-se a pensar, aquando lhe bateram à porta.
Perguntou: «Quem é?», e uma mulher respondeu: «Irmão, deixe-me dar-lhe
uma palavra.» O meu irmão levantou-se e abriu a porta, e eis que era uma
velha que ele não conhecia, e que lhe disse: «Meu filho, sabes que a hora de
oração está próxima, e eu não fiz as minhas abluções. Gostaria que me
abrisses a tua casa para eu as fazer.» E ele respondeu-lhe: «Às suas ordens»,
e tornou a entrar em casa e ordenou à velha que entrasse também. Ela
entrou, e o meu irmão deu-lhe uma bilha para ela fazer as abluções, e
sentou-se com o coração a voar por mor dos dinares, que pôs num bolso das
calças. Em acabando de o fazer, e em a velha acabando a sua oração,
achegou-se ao sítio onde o meu irmão estava sentado, e fez uma oração com
duas prostrações, e após isso pediu a Deus que o abençoasse.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se eu ainda for viva.»
164.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o alfaiate disse ao rei da China que
o barbeiro disse aos convidados que ele disse ao califa:

Em a velha havendo feito a oração e pedido a Deus que abençoasse o


meu irmão, este agradeceu-lhe por tal, pôs a mão no seu oiro e estendeu-lhe
dois dinares, dizendo de si para si: «Uma esmola para ela.» Mas ela em
vendo tal coisa, disse: «Ó Deus Glorioso! Com que olhos me viste? Como
se eu fosse uma pedinte? Toma o teu dinheiro, não me faz falta alguma, e
guarda-o para ti. No entanto, tenho para ti nesta cidade uma senhora que é
dona de riqueza, beleza e lindeza.» E o meu irmão perguntou: «E como
posso eu ter uma mulher dessas?» E ela disse: «Pega no teu dinheiro todo e
segue-me. E quando te reunires a ela, não te poupes nem em belas palavras
nem em gentileza, e se assim fizeres, então vais obter tudo que queiras, a
sua beleza e riqueza.» Ora, o meu irmão ajuntou aquele oiro todo e foi com
ela, tão contente que nem podia acreditar.
Ele continuou a andar atrás da velha até que ela chegou a uma grande
porta, bateu nela, e veio uma serva grega abrir a porta. A velha entrou e
mandou o meu irmão entrar, e ele entrou numa grande casa, com um grande
salão com chão atapetado e cortinados. Então o meu irmão sentou-se, pôs o
oiro diante si, tirou o turbante e pô-lo aos joelhos. E mal dá por si, eis que
chega uma rapariga que jamais olhos alguns haviam visto mais bela, nem
vestiduras mais sumptuosas, e levantou-se perante tal figura, e em ela o
vendo sorriu-lhe, e tal gesto alegrou-o. Em seguida, deu ordens para que
fechassem a porta, e acercou-se do meu irmão, pegou-lhe na mão, e
caminharam juntos até se encontrarem num quarto isolado. O meu irmão
sentou-se e ela sentou-se à banda dele, e pôs-se por um tempo a namoriscá-
lo. Ao depois, quando já estava muito próxima dele, levantou-se e disse-lhe:
«Não saias daqui enquanto eu não voltar», e desapareceu da vista do meu
irmão.
Enquanto ele estava lá sozinho, eis que entra um enorme escravo negro
com uma espada e lhe diz: «Ai de ti! Que fazes aqui?» Em o vendo, o meu
irmão ficou com a língua atada sem conseguir responder, enquanto o
escravo negro agarrou nele, despiu-lhe as roupas e arriou nele com a
prancha da espada52, deixando-o meio paralisado. E continuou a arriar-lhe,
e tal foi a força das pancadas que meu irmão caiu desmaiado.
Naquela altura, o escravo calamitoso pensou que ele estava morto, e o
meu irmão ouviu-o dizer: «Onde está a moça do sal?» E veio um rapariga
que trazia nas mãos uma grande cesta cheia de sal. Então o escravo pôs-se a
encher as feridas do meu irmão com sal, e ele não se mexia com medo que
o escravo sentisse que ele estava vivo e o matasse divertindo-se às suas
custas, até que perdeu os sentidos. Ao depois, a rapariga foi à sua vida, e o
escravo gritou: «Onde está a mulher da cave53?» Então veio a velha e
puxou o meu irmão pelas pernas, abriu a cave e botou-o na cave, na qual
havia uma multidão de mortos.
Durante dois dias ele ficou no mesmo sítio, sem se mover e sem sentidos.
E foi Deus Todo-Poderoso e Glorioso que fez com que aquele sal fosse a
causa dele ficar vivo, porque estancou o sangue das feridas. E em o meu
irmão ficando capaz de se mexer, levantou-se e andou pouco a pouco, até
sair da cave. Com medo, caminhou pelo escuro e escondeu-se no corredor
até ser manhã. E logo de manhã cedinho, aquela velha maldita saiu à
procura de mais caça, e o meu irmão seguiu-lhe no encalço sem que ela
soubesse.
E foi para casa, tratou-se um mês a fio até se curar, mas entretanto
mantinha a velha debaixo de olho a toda a hora, e ela caçava um a seguir ao
outro, e levava-o para aquela casa, mas o meu irmão nada disse. E em lhe
tornando o espírito e o vigor, pegou num bocado de tecido, fez um saco e
encheu-o de vidro.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é
comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei
me poupar e eu viver.»
165.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o alfaiate disse ao rei da China que
o barbeiro disse aos convidados que ele disse ao califa:

Pôs o vidro no saco, prendeu-o à cintura, e disfarçou-se para que não o


conhecessem, vestindo-se com o traje dos persas, e pegou numa espada e
colocou-a por baixo das suas roupas. E em vendo a velha, disse-lhe, com o
sotaque dos persas: «Anciã, sou um forasteiro. Será que tem uma balança
grande quanto baste para pesar uns quinhentos dinares? Ofereço-lhe uma
parte da quantia.» A velha respondeu: «Ó persa, eu tenho um filho que é
cambista e ele tem todo o género de balanças. Vem comigo antes que ele
saia para a loja dele, para que peses o teu oiro.» E ele disse-lhe: «Leve-me
até ele.» E ela lá foi com o meu irmão, até chegar à tal porta, na qual bateu,
e veio a mesmíssima rapariga, e abriu a porta. A velha sorriu-lhe e disse:
«Hoje trouxe-te carne da gorda.»
Então, a rapariga pegou na mão do meu irmão e fê-lo entrar na casa na
qual ele já havia entrado naquele outro dia, e sentou-se com ele um tempo.
Ao depois levantou-se e disse ao meu irmão: «Não saias daqui enquanto eu
não voltar», e abalou. E mal ele deu por si, veio o maldito escravo com uma
espada desembainhada na mão, e disse: «Levanta-te ó maldito!». Ao que o
meu irmão se levantou, pondo-se atrás dele, e desembainhou a sua espada,
que estava por baixo da sua roupa, e desferiu tal golpe no escravo que a
cabeça se separou do corpo. Puxou-o pelas pernas até à cave, [chamou pela
moça do sal,] e veio a rapariga trazendo uma cesta de sal. E em ela vendo o
meu irmão e a espada nas suas mãos, desatou a fugir, mas o meu irmão
perseguiu-a e fez a cabeça dela voar corpo afora. De seguida, [chamou pela
mulher da cave,] e veio a velha. Em o meu irmão a vendo, perguntou-lhe:
«Reconheces-me, ó velha maldosa?» «Não, meu amo», respondeu ela. E ele
disse-lhe: «Eu sou o dono da casa onde rezaste, antes de me haveres atraído
até aqui.» E ela disse: «Reconsidera o meu caso e poupa-me.» Mas ele não
fez caso, e cortou-a em quatro pedaços.
Em seguida, foi à procura da rapariga, e em ela o vendo, perdeu a cabeça
e pediu ao meu irmão garantia de perdão, e ele deu-lha e perguntou-lhe: «E
tu, como vieste aqui parar junto a este negro?» E ela respondeu: «Eu era
serva de um mercador, e era vezo daquela velha me visitar, e por isso
tornei-me chegada a ela. Certa feita, ela disse-me: “Hoje temos uma boda,
do género que jamais alguém viu. Gostarias de a ver?” E eu disse-lhe: “Às
suas ordens.” Então vesti as minhas roupas e jóias, peguei numa bolsa com
cem dinares, e fui com ela, levando a bolsa nas minhas mãos, até que ela
me trouxe a esta casa e me disse: “Entra.” Entrei com ela, e mal dei por
isso, eis que este negro me agarrou. E estou neste situação vai para três anos
por via da artimanha da velha. Que Deus a amaldiçoe!» Então o meu irmão
perguntou-lhe: «E este escravo tem neste sítio dinheiro ou quaisquer
posses?» E ela disse: «Sim, e muito, e se o senhor o puder transportar, faça-
o e que Deus Todo-Poderoso o guie.»
Então o meu irmão foi com ela, e ela abriu baús cheios de bolsas, e o
meu irmão ficou atónito. Com isto, ela disse-lhe: «Abale agora, enquanto eu
fico aqui até que traga quem transporte o dinheiro.» Num pronto o meu
irmão saiu, e contratou dez homens. O meu irmão disse-me: «E quando
tornei e bati à porta, encontrei-a aberta.» Então ele entrou na casa e não
encontrou a rapariga, nem aquelas bolsas. Espantou-se com tal coisa, e ao
ver que só tinha ficado coisa pouca [do dinheiro], percebeu que a rapariga o
havia enganado. Então aí o meu irmão pegou no que havia ficado, abriu os
armários, e transportou o que havia de roupas, não deixando coisa alguma
na casa, e passou aquela noite feliz.
Em amanhecendo, o meu irmão encontrou à porta vinte arrocovas, que o
agarraram e lhe disseram: «O governador exige a tua presença.» Pegaram
nele para o levarem, e ele suplicou junto deles para que lhe dessem tempo
para ir dentro de casa, mas eles não atenderam ao pedido e não o deixaram,
e ele até lhes havia prometido que daria dinheiro se o deixassem entrar em
casa, mas eles não lhe deram ouvidos, apesar de se haver botado ao chão e
aos pés deles, ficando todo alquebrado, mas mesmo assim não lhe deram
ouvidos; ataram-no muito bem atado, com as mãos presas atrás das costas
para o levarem, e com ele abalaram.
Seguiam eles no caminho, aquando um dos amigos do meu irmão, que já
o conhecia de há muito, os encontra. Então o meu irmão achegou-se a ele, e
suplicou-lhe que ficasse com ele e o ajudasse a livrar-se daqueles arrocovas
e seus chefes. Por generosidade assim fez ele, e interveio junto deles,
perguntando-lhes que história vinha a ser aquela. E eles responderam-lhe:
«O governador ordenou-nos que o trouxéssemos ante ele, por isso
apresentámo-nos em sua casa e o prendemos, e agora levamo-lo até ao
nosso chefe, o governador, conforme o que nos foi ordenado.» Então o
amigo do meu irmão disse-lhes: «Ó boa gente, eu pago-vos seja o que
quiserdes e o que pedirdes para o libertardes, e vós ireis junto do vosso
chefe e lhe direis que o não haveis encontrado.» Mas eles não quiseram, e
arrastaram o meu irmão e abalaram para o governador.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Ó mana, que história


tão boa e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se eu
ainda for viva.»
166.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o alfaiate disse ao rei da China que
o barbeiro disse aos convidados que ele disse ao califa:

Em o governador vendo o meu irmão, perguntou-lhe: «De onde te veio


tudo isto?»54 E o meu irmão disse-lhe: «Meu amo, [se vou contar] quero
garantia de perdão.» «Garantia concedida», disse o governador. Então o
meu irmão contou-lhe a história toda do que se passou entre ele e a velha,
de fio a pavio, assim como a fuga da rapariga, e disse ao governador: «Meu
senhor, daquilo que levei para minha casa, fique com o que quiser, e deixe-
me qualquer coisa com que possa viver.» O governador enviou com o meu
irmão os seus guardas e delegados, que apreenderam todas aquelas roupas e
o dinheiro. Ora, o governador teve medo de que aquele acontecimento
chegasse aos ouvidos do califa, e de novo o fez comparecer para lhe dizer:
«Quero que saias desta cidade, senão mato-te.» E o meu irmão disse: «Às
suas ordens.» Saiu e alvorou, indo para outro país, e no caminho houve
ladrões que o encontraram e o despiram. Eu ouvi o que se tinha passado, e
então saí com roupas para que ele se vestisse, e fi-lo entrar na cidade em
segredo para se juntar aos seus irmãos.

História do sexto irmão, o de lábios cortados

No que toca ao meu sexto irmão, o de lábios cortados, tornou-se pobre


depois de ter sido rico, e um dia saiu à procura de algo para acalmar a fome.
E enquanto assim fazia, caminho afora, eis que viu uma bela casa, com uma
ampla galeria de entrada e uma alta porta, onde estavam criados, servos, e
guardas prontos a servir. Então, ele perguntou sobre o dono da casa a um
deles, que lhe respondeu que o dono era um barmecida55. Ora, o meu irmão
achegou-se dos porteiros e pediu-lhes uma esmola, e eles disseram-lhe:
«Entra e o dono da casa dá-te o que queres.»
Demorou algum tempo para atravessar a pé toda a galeria de entrada, até
que chegou a uma bela casa, no meio da qual havia um jardim do género
que ele jamais havia visto. A casa tinha o chão atapetado e cortinados
pendurados. O meu irmão ficou atarantado sem saber aonde se dirigir, até
que caminhou para a porta do salão. Entrou e encontrou ao fundo do salão
um homem cujo rosto e barbas eram belos, e dirigiu-se a ele. Em ele vendo
o meu irmão, deu-lhe as boas-vindas, e perguntou-lhe como estava, ao que
o meu irmão lhe deu parte de que necessitava da caridade das pessoas. Ao
ouvir as palavras do meu irmão, veio-lhe ao de cima uma enorme angústia,
pôs as mãos nas roupas, rasgou-as, e disse: «Como podes tu ter fome
enquanto eu vivo nesta cidade? Não aguento tal coisa!», e prometeu-lhe
todo o bem. E ao depois disse: «Tens de partilhar da minha refeição.» Ao
que o meu irmão disse: «Meu senhor, não aguento esperar de tanta fome
que tenho.» Então ele gritou: «Ó rapaz! traz uma bilha e uma bacia para que
lavemos as mãos.» O meu irmão não viu bacia alguma ou o que quer que
fosse, mas o dono da casa dizia: «Achega-te e lava as tuas mãos.» E
gesticulava como se estivesse a lavar as mãos.
Ao depois, o dono da casa gritou: «Tragam a mesa!» E gesticulava com a
mão, e apesar do meu irmão não ver coisa alguma, o anfitrião insistia: «Pela
minha vida, come e não faças cerimónia», enquanto gesticulava com a mão
como se estivesse a comer. E pôs-se a dizer ao meu irmão: «Pela minha
vida, não te poupas a comer, que eu sei quanta fome tu tens agora.» Então o
meu irmão pôs-se a gesticular como se estivesse a comer alguma coisa,
enquanto o homem lhe dizia: «Pela minha vida, come! E vê quão] bom é
este [pão] e a sua brancura,» mas o meu irmão não via coisa alguma. Então
ele disse de si para si: «Este [homem go]sta de se divertir e gozar com os
outros.» E disse ao anfitrião: «Meu senhor, em toda a minha vida jamais vi
pão mais branco nem mais gostoso de se mastigar.» Ao que ele respondeu:
«Este pão foi confecionado por uma escrava que tenho, cuja compra me
custou quinhentos dinares.»
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Ó mana, que história
tão boa e tão saborosa», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o
rei me poupar e eu viver.»
167.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o alfaiate disse ao rei da China que
o barbeiro disse aos convidados que ele disse ao califa:

Então o dono da casa gritou: «Ó rapaz, como primeiro prato traz as papas
de carne56 e junta-lhe mais gordura!» Em seguida, disse ao meu irmão:
«Caro convidado, por amor de Deus, já viste melhores papas de carne do
que estas? Pela minha vida, come e não faças cerimónia.» E em seguida
disse: «Ó rapaz, traz-nos o sicbaj de ganso engordado57», e disse ao meu
irmão: «Come, que eu sei que estás com fome e necessitado.» Então o meu
irmão pôs-se a mexer os maxilares fingindo que mastigava, enquanto o
homem mandava vir prato após prato, mas nenhum aparecia, e dava ordens
ao meu irmão para comer. E às tantas gritou: «Ó rapaz, traz as polhas
gordas cozinhadas em coalha de leite!» E em seguida disse ao meu irmão:
«Caro convidado, estas polhas foram engordadas com pistácios. Pela minha
vida, come o que jamais provaste!» Ao que o meu irmão respondeu: «Meu
senhor, estão deveras apetitosas!»
Ora, o dono da casa pôs-se então a gesticular, como se enfiasse nacos de
comida na boca do meu irmão, e lhe ia descrevendo os vários pratos,
enquanto o meu irmão estava tão esfomeado que só desejava dar uma trinca
num pão de cevada. E disse o dono da casa: «Trazei os guisados58!» E disse
ao meu irmão: «Já alguma vez viste condimentos que dessem melhor sabor
à comida? Come mais e não faças cerimónia.» Ao que o meu irmão disse:
«Meu senhor, já comi quanto baste.» Então o homem gritou: «Levai isto e
trazei os doces!» E disse ao meu irmão: «Come destes bolinhos de
amêndoa, são mesmo do melhor, e destes pastéis. Pela minha vida, este
pastel… até o xarope me escorre pela mão abaixo.» E o meu irmão disse:
«Meu senhor, que eu nunca o perca!», e pôs-se-lhe perguntar sobre a
abundância de almíscar nos pastéis. Ao que o homem disse: «É o meu
hábito confeccionar os pastéis assim», enquanto o meu irmão mexia a boca
e brincava com os maxilares.
Então o homem disse: «Já chega disto, trazei-nos a geleia de amêndoa», e
disse para o meu irmão: «Come e não faças cerimónia.» Ao que o meu
irmão disse: «Meu senhor, já tive quanto baste, e já não consigo comer
coisa alguma.» E o dono da casa disse: «Caro convidado, se assim é, queres
beber e divertir-te?» Com isto, o meu irmão disse de si para si: «Irra!» e
pensou: «Tenho de lhe fazer algo para que ele se arrependa desta forma de
agir.»
Ora, o homem disse: «Trazei a bebida!» e estendendo uma taça ao meu
irmão, disse: «Prova desta taça e diz-me se gostas.» E o meu irmão disse-
lhe: «Tem um bom aroma, mas estou mais habituado a outro género.» Ao
que o anfitrião disse: «Trazei-lhe outro vinho.» E disse: «Saúde e alegria!»,
e gesticulou como se bebesse. Entretanto, o meu irmão fazia-se de bêbedo,
e disse: «Meu senhor, já não consigo beber mais.» Mas o anfitrião insistiu, e
o meu irmão, fazendo-se de bêbedo, ignorou-o, e ergueu a mão até mostrar
a brancura do sovaco, e deu-lhe um calduço de tal ordem que ressoou pelo
salão. Em seguida, pregou-lhe outro. Então, o anfitrião disse: «Que vem a
ser isto, ó ordinário?» E disse o meu irmão: «Meu senhor, deixaste o teu
escravo entrar em tua casa, deste-lhe comida e bebida. Ele embebedou-se e
portou-se mal. Devias ser o primeiro a aguentar a sua idiotice e a perdoar-
lhe a ofensa.» Em ele ouvindo aquelas palavras, largou uma alta gargalhada,
e disse: «Olha-me este! Já faz um tempo que eu ando a fazer pouco das
pessoas, e jamais vi alguém com tal destreza e que se tenha metido comigo
como tu. Assim sendo, perdoo-te.»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se o rei me poupar e eu viver.»
168.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o alfaiate disse ao rei da China que
o barbeiro disse aos convidados que ele disse ao califa:

O homem disse ao meu irmão: «Assim sendo, perdoo-te. Sê um


verdadeiro companheiro e jamais me deixes.» Em seguida, chamou uma
grande quantidade de criados e ordenou-lhes que trouxessem a mesa a sério,
com todo o género de pratos já mencionados. Então o meu irmão e o
homem comeram até se fartarem, e ao depois mudaram-se para o salão de
bebida, onde estavam raparigas que eram como luas, cantando todo o
género de canções e tocando todos os feitios de instrumentos. Beberam até
o álcool os dominar.
O homem tornou-se muito amigo do meu mano e tratava-o como se fosse
seu irmão, tendo por ele enorme estima, e ofertou-lhe um traje de honra.
Na manhã seguinte, tornaram aos seus comes e bebes, e assim fizeram
durante dez dias. Ao depois, ele delegou os seus afazeres no meu irmão,
que passou a tratar de todos os seus bens, e assim foi por vinte anos. Ao
depois, o homem morreu – Glória a Deus, o Vivente que não morre – e o
governador apreendeu todos os seus bens e confiscou tudo o que o meu
irmão tinha, deixando-o pobre e indefeso.
Ora, meu irmão alvorou dali para fora, e a meio do caminho apareceram-
lhe beduínos, que o capturaram e o levaram para o acampamento deles.
Então, o captor, que havia desatado a dar-lhe pancada, pôs-se a dizer-lhe:
«Compra a tua vida com dinheiro», enquanto o meu irmão chorava e dizia:
«Meu senhor, não tenho dirame nem dinar algum. Sou seu prisioneiro, faça
comigo o que quiser.» Então, o beduíno sacou de uma navalha e cortou-lhe
os lábios, e teimou na sua exigência.
O captor tinha uma mulher de rosto belo, e quando o marido saía, ela
atirava-se ao meu irmão tentando seduzi-lo, mas ele recusava. Até que um
dia ela logrou seduzi-lo, e enquanto o meu irmão namoriscava com ela, eis
que aparece o marido, e em ele vendo o meu irmão, diz: «Ai de ti, queres
perverter a minha mulher?» E em seguida, sacou de uma navalha e cortou-
lhe o membro viril; e carregou-o num camelo e desfez-se do meu irmão
atirando-o na encosta de uma montanha. Então alguns viajantes deram com
ele e o reconheceram, e deram-lhe de comer e beber. Quando me
informaram sobre o acontecido, fui ter com ele, e trouxe-o para a cidade, e
dei-lhe uma pensão para que provesse às suas necessidades.

E aqui estou eu consigo, ó miralmuminim, e se me houvesse ido embora


[sem vos informar sobre tudo isto]59, teria sido um erro, havendo seis
irmãos que estão a meu cargo.

Quando o califa ouviu a minha história toda e o que eu lhe havia contado
sobre os meus irmãos, largou uma enorme gargalhada, e disse: «Ó
Silencioso, de facto tu não és tagarela nem intrometido, mas agora sai desta
cidade e instala-te noutra.» Ao depois exilou-me, expulsando-me sob
escolta, e eu percorri província atrás de província, até que ouvi que ele
havia morrido e que outro califa lhe havia sucedido. Então tornei à cidade, e
soube que os meus irmãos haviam morrido, e deparei-me com este jovem, a
quem fiz os mais belos favores, e ele pagou-me com as mais feias acções,
mas se não houvesse sido eu ele já teria sido aniquilado. Ao depois, ele
partiu em viagem para fugir de mim. E aqui estou eu, percorri país atrás de
país até me deparar com ele aqui mesmo, e agora acusa-me de coisas que
não fazem parte do meu ser, pintando-me como um tagarela e espalhando
mentiras sobre mim.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana, e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu:
«Isto nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima
noite, se o rei me poupar e eu viver.»
169.ª Noite

Na noite seguinte, Dinarzade disse a Xerazade: «Ó mana, se não estiveres


a dormir, conta-nos um dos teus belos contos para entretermos a noite.» Ao
que o rei disse: «Que seja o desfecho da história do corcunda bufão.» E
Xerazade respondeu: «Assim seja:»

Ouvi dizer, ó rei dos tempos, que o alfaiate disse ao rei da China:

Quando ouvimos a história do barbeiro, que falava em demasia e havia


injustiçado o jovem, pegámos no barbeiro, tomámos partido contra ele, e
enviámo-lo para a prisão. E nós, durante o dia de ontem, fizemos o nosso
banquete e comemos até ao fim da tarde. Em me indo embora e chegando a
casa, a minha mulher estava de trombas, e disse: «Enquanto tu andas na tua
vadiagem e rambóia, eu fico aqui enclausurada. Se não saíres comigo o
resto do dia, separo-me de ti.»
Então peguei nela e saímos para nos divertir até ser noite, e ao
regressarmos do nosso passeio encontrámos este corcunda bufão, bêbedo
que nem um cacho. Convidei-o para nossa casa, comprei-lhe peixe, e
sentámo-nos todos a comer. Como havia sobrado uma posta, na qual
aconteceu haver uma espinha, enfiei-lha na boca deste corcunda bufão, e
cerrei-lhe a boca. Então, ele engasgou-se, ficando sem respirar e
esbugalhando-se-lhe os olhos. Levantei-me logo e o esmurrei nas costas,
mas o naco havia-se pegado à garganta, e a sua alma libertou-se do corpo e
morreu.
Com isto, carreguei-o, e artimanhei até que acabei por botá-lo na casa do
médico judeu, e o médico artimanhou até que acabou por botá-lo na casa do
corretor nazareno. E esta é a minha história do que se me deparou durante o
dia de ontem. Não é ela mais espantosa e estranha que a história do
corcunda bufão?

O rei da China, quando ouviu as palavras do alfaiate, abanou a cabeça de


emoção, mostrando espanto, e disse: «Esta história do que aconteceu entre
este jovem e o barbeiro intrometido é ainda melhor e mais tocante que a do
corcunda.» Em seguida, o rei da China ordenou a um dos camaristas que
fosse com o alfaiate e lhe trouxessem o barbeiro da prisão, dizendo:
«Gostaria de ver esse barbeiro silencioso, e ouvir, enquanto o vejo com os
meus próprio olhos, a sua história e as suas palavras, já que ele é a causa da
salvação de todos vós. E que se enterre este corcunda bufão, pois desde
ontem à noite que está morto e desgraçado, e far-lhe-emos um jazigo.»
E num ápice o camarista e o alfaiate foram e trouxeram o barbeiro. E em
o rei da China olhando para ele, viu um homem muito velho, cuja idade já
havia passado os noventa anos, de barba e sobrancelhas brancas, orelhas
muito pequenas, nariz longo, e com ar de simplório; o rei riu-se da sua
figura, e disse: «Ó Silencioso, quero que nos contes uma das tuas histórias.»
E o barbeiro disse: «Ó rei dos tempos, que história é esta, a deste nazareno,
deste judeu, deste muçulmano, e deste corcunda morto diante vós, e deste
ajuntamento?» E rindo-se, o rei da China disse: «Que pergunta é essa, a
tua?» Então o barbeiro respondeu: «Pergunto para que vossa alteza saiba
que eu não sou intrometido e estou inocente das acusações que fazem
contra mim de eu ser tagarela e intrometido, pois eu sou aquele que dá pelo
nome de o Silencioso.»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha, ó mana», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o
rei me poupar e eu viver.»
170.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei, que o rei da China ordenou-lhes que contassem ao


barbeiro a história do corcunda de fio a pavio. Então o barbeiro meneou a
cabeça, e disse: «Mas isto é espantoso! Destapai este corcunda.» Então o
barbeiro sentou-se, pôs a cabeça do corcunda no seu colo, examinou-a, e
rebentou a rir-se em alto som até cair para trás, e disse: «Que espanto!
Todas as mortes têm uma causa, e a história deste corcunda tem de ser
registada nas crónicas com tinta de oiro.»
Ficaram todos atónitos com o barbeiro, e o rei da China perguntou: «O
que se te ocorre, ó Silencioso?» E o barbeiro respondeu: «Pela graça de
vossa alteza, ainda existe alma dentro do corcunda bufão.» Então o barbeiro
sacou da sua cintura uma sacola de coiro, abriu-a e tirou de lá um
frasquinho com uma fomentação com a qual untou à roda do pescoço do
corcunda. Ao depois, sacou de um ferro longo e afundou-o pela garganta do
corcunda, abrindo-lhe os maxilares, e sacou de uma pinça em ferro que
introduziu na garganta do corcunda, e com a qual extraiu o bocado de peixe
com osso; e em o extraindo, ensopado em sangue, eis que o corcunda
espirra, dá um salto pondo-se em pé, e esfrega a cara.
O rei e os seus amigos ficaram espantados com a história deste corcunda
bufão, que se quedou um dia e uma noite ausente deste mundo, até que
Deus providenciou o barbeiro que lhe salvou a vida. Ao depois, o rei da
China ordenou que a história do barbeiro e do corcunda fosse registada nas
crónicas. E ofereceu trajes de honra ao vedor, ao alfaiate, ao nazareno, ao
judeu, e ordenou-lhes que se partissem. [E fez do barbeiro um
companheiro,] e deu-lhe um traje de honra e uma pensão. E continuaram
sendo companheiros até que lhes veio o destruidor de delícias e conheceram
a morte.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana, e tão espantosa», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade
respondeu: «Isto nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei,
na próxima noite, se eu viver, e que será a história de Abu-al-Haçane Ali
ibn Tâhir, o Perfumista, e de Nureddine Ali ibn Baccar60, e do que lhe
aconteceu com a escrava do califa, chamada Xamsennahar, uma história
que emociona o ouvinte, e que é o esplendor dos bons auspícios.»
171.ª Noite

Na noite seguinte, Dinarzade disse à sua irmã: «Ó mana, se não estiveres


a dormir, conta-nos um dos teus belos contos para entretermos a noite.» Ao
que o rei Xariar disse: «Que seja a história de Abu-al-Haçane Ali ibn Tâhir,
o Perfumista, e de Nureddine Ali ibn Baccar, e do que lhe aconteceu com a
escrava do califa, chamada Xamsennahar.» E Xerazade respondeu: «Com
todo o prazer:»

História de Nureddine Ali ibn Baccar e da escrava Xamsennahar61

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que havia na cidade de Bagdade um


perfumista que se chamava Abu-al-Haçane Ali ibn Tâhir, que tinha muito
dinheiro e era um eminentíssimo cavalheiro, com uma conduta de vida
exemplar, fiel à sua palavra, amável, e apreciado onde quer que fosse. E
frequentava o palácio do califa, e era com ele que as concubinas e as
mancebas do califa Arraxide se abasteciam do que precisavam conforme
queriam. E os filhos de emires e notáveis costumavam sentar-se em casa
dele. E entre eles havia um jovem daqueles que descendiam de reis da
Pérsia, chamado Nureddine Ali ibn Baccar, e Deus havia nele reunido todas
as propriedades louváveis, tais como uma elevada beleza e perfeita lindeza,
uma língua eloquente e um doce falar, sensatez e modéstia, generosidade e
magnanimidade, assim como as virtudes da cavalaria e da hombridade. E o
jovem era muito próximo de Abu-al-Haçane ibn Tâhir, de tal guisa que
quase nunca se separava dele nem sequer por um pestanejar de olhos. E um
dia, estando ele sentado no mercado, eis que aparecem dez raparigas tais
luas, com seios de virgem, e uma delas era tão bela que até envergonhava a
lua cheia; montava uma mula cinza, com bridas de seda vermelha
incrustada com pérolas e jóias, e a sua beleza superava a de todas as
raparigas que a acompanhavam, e era como aquela de quem um poeta disse:

Tal o houvesse desejado, foi criada de modo perfeito


No molde da Beleza, sem qualquer defeito.
Como se fosse leite de pérola que a matizava,
E uma lua havia em qualquer parte do seu corpo;
O tenro galho era o seu talhe, a Lua o seu rosto,
O almíscar o seu aroma, e ninguém a igualava.

E cativava qualquer mente com o seus olhos formosos e dotes


primorosos. E em ela chegando à loja de Abu-al-Haçane ibn Tâhir e em
descavalgando, ele levantou-se, beijou o chão ante ela, e arranjou-lhe uma
almofada de seda com listras em oiro para se sentar, e colocou-se ao seu
serviço. Ela adjurou-o a que se sentasse, e ele por respeito sentou-se num
lugar mais baixo. Então, ela pôs-se a pedir o que pretendia. Quanto ao rapaz
Ali ibn Baccar, foi-se-lhe a razão, ficou atrapalhado, o seu rosto mudou de
vermelho para amarelo, e quase perdeu os sentidos quando se tentava
levantar em respeito a ela, que o cortejou com olhos semelhantes a narcisos
e lábios doces, e disse: «Senhor meu, viemos aqui por si, e apesar de lhe
havermos agradado, quer fugir.» Então ele beijou o chão e disse: «Senhora
minha, em a vendo foi-se-me a razão, mas direi tal como disse o poeta:

Ela é o Sol e o céu a sua habitação.


Tem paciência e consola o coração,
Nem ao Sol podes ascender,
Nem ela do céu a ti descer.»

Ela sorriu, e brilharam-lhe os relampejantes lábios com mais esplendor


que o relâmpago, e disse: «Ó Abu-al-Haçane, donde te veio este rapaz e
onde mora ele?» E Abu-al-Haçane disse-lhe: «Chama-se Ali ibn Baccar e é
descendente de reis.» E ela perguntou: «É persa?» «É sim, minha senhora»,
respondeu ele. E ela disse: «Se esta criada minha vier até ti, trá-lo e vinde
ambos a nossa casa, para que eu o receba e ele nos não repreenda dizendo
que em Bagdade não há pessoas generosas, pois a avarícia é o mais
calamitoso atributo da humanidade – ouves o que te digo? – Se o não
fizeres, zango-me contigo e não te torno a dirigir palavra.» E ele disse: «Ás
suas ordens, senhora dona patroa, Deus me livre de que se zangue comigo.»
Num pronto ela se alevantou, partiu cavalgando, após haver conquistado
os corações e cativado as razões. E no que toca a Ali ibn Baccar, esse não
sabia se estava na terra ou no céu. E ainda se não havia ido o dia e eis que
veio a criada, e disse: «Meu senhor Abu-al-Haçane, em nome de Deus…»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana, e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu:
«Isto nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima
noite, se eu viver.»
172.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que em vindo a criada, ela disse: «Meu
senhor Abu-al-Haçane, em nome de Deus, aceitai, vossemecê e o senhor
Nureddine Ali, o convite da senhora dona Xamsennahar, favorita do
miralmuminim Harune Arraxide.» Então ele levantou-se e disse para
Nureddine Ali: «Em nome de Deus, vamos.» E também este se levantou, e
foram disfarçados, com a criada que seguia à frente deles a alguma
distância, até que ela adentrou com eles o palácio do califa e os introduziu
nos aposentos de Xamsennahar.
O rapaz deparou-se com um espaço que era como uma câmara dos
jardins do Paraíso, onde havia sofás, encostos almofadados e almofadas
como ele jamais havia visto, e em ele e Abu-al-Haçane se sentando e se
instalando naquele sítio, a criada negra pôs-se ao serviço deles, e foi-lhes
trazida uma mesa com belos manjares: cordeiro, galinha engordada,
bombons, uma tigela com picles, e outros pitéus dos que crescem em ninhos
e voam, tais como cortiçola, codorniz, e pombo. Ora, o rapaz pôs-se a
comer, atónito com tudo aquilo.

[Foi Abu-al-Haçane quem contou o seguinte62:]

Então comemos e bebemos do bom e do melhor, e quando nos fartámos,


trouxeram-nos uma bacia doirada para lavarmos as mãos, e deram-nos
incenso para nos incensarmos, e trouxeram-nos tigelas de oiro e cristal,
decoradas com estatuetas de cânfora e âmbar-gris, e incrustações de todo o
feitio de jóias, e dentro das tigelas havia almíscar e água de rosas; então
perfumámo-nos e tornámos aos sofás. Ao depois, a criada ordenou que nos
levantássemos, e levou-nos para outro salão. Em ela o abrindo, demos por
nós sob uma cúpula sustentada por cem pilares, cujas bases tinham a forma
de uma fera ou de um pássaro banhados a oiro, e o chão era forrado de seda.
Ao nos sentarmos, pusemo-nos a contemplar aquela seda, que forrava o
chão de oiro e padrões de rosas brancas e vermelhas que se assemelhavam
ao tecto da cúpula.
No salão da cúpula havia mais de cem tabuleiros e bandejas de oiro e
cristal, incrustadas com todo o feitio de jóias, e ao cabo do salão havia
grande quantidade de janelas, e à frente de cada uma havia um convidativo
sofá de tecido de várias cores. E aquelas janelas abriam-se sobre um jardim,
atapetado, como o salão da cúpula, e a água escorria de um grande lago
para um mais pequeno, e nas bordas daquele lago estavam plantados
manjericões, nenúfares e narcisos em vasos com oiro incrustado.
As árvores daquele jardim emaranhavam-se umas nas outras, e quando os
frutos amadureciam e se abatiam os exércitos do vento, caíam na superfície
da água, e pássaros de todo o género os caçavam, batendo as asas e fazendo
ressoar variadas melodias. À direita e à esquerda do lago havia sofás de teca
ferrados com prata, e em cada sofá havia uma escrava, e cada qual era
donzela mais resplandecente que o Sol, vestindo trajes sumptuosos, e
segurando alaúdes ou outros instrumentos, e o ritmo das donzelas fundia-se
com o arrulho dos pássaros, e o soprar do vento concertava-se com o
murmúrio da água, e tanto a brisa erguia no ar uma rosa como passava por
um fruto e o fazia precipitar-se.
De mente e olhos atónitos, pusemo-nos a admirar aquela grandiosidade e
a reflectir em tal prosperidade, e olhávamos ora um tempo para o jardim,
ora nos virávamos um tempo para o salão e o lago63, e apreciávamos aquela
vista, a beleza daquelas formas, e o superior zelo com que tudo era cuidado,
e maravilhávamo-nos com a imponência do que víamos e a magnificência
do que avistávamos.

Ora, Ali ibn Baccar virou-se para Abu-al-Haçane e disse-lhe, [com jeitos
estrangeirados de falar o árabe]: «Amo, fica sabendo que se o sábio
perceptivo e perspicaz, inteligente e cultivado, mais dado à razão e à
percepção do que ao coração, não poderia senão gostar de isto, e de se
deliciar e usufruir, e de ficar emocionado, espantado e cativado, então ainda
mais para quem se encontra na minha disposição, com um coração que sinta
o mesmo que o meu. Nada do que aqui vi de falar me inibe, nem de
perguntar me proíbe, já que o martírio que eu conquistei, que o destino
conduziu até mim, tal como me trouxe a tribulação, para tudo isso fui
conduzido pela beleza. É a disposição do mandatário, bem dizes tu. Então
qual é a disposição de quem é mandante, que interpela o mandatário com
sorrisos e sem rodeios, e que tem tão grandioso poder e possui tão
consideráveis posses?»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Ó mana, que história


tão boa e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite. Se o
rei me poupar e eu viver, será ainda mais espantoso e estranho.»
173.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que em Nureddine Ali ibn Baccar


havendo dito aquelas palavras, o seu amigo lhe disse: «Fica sabendo que
desconheço quais as suas intenções, não havendo entre nós um trato íntimo
que me permita saber a verdade da situação ou fazer qualquer dedução. Mas
já estamos perto do nosso objectivo final, e em breve vais descobrir o que
se passa e o mistério vai ser-te revelado. Nada vimos que não fosse
fascinante e nada ouvimos que não fosse tocante.»

[Foi Abu-al-Haçane quem contou o seguinte:]

E estando nós assim à conversa, veio a criada e deu ordens às donzelas


que estavam sentadas nos sofás para cantarem, e então uma delas afinou o
alaúde e cantou esta poesia:

Não sabendo o que era o amor, a ele me fui pegar,


E o fogo do seu repúdio o coração me incendiou.
Que crime cometi que não o meu lacrimejar?
O qual, contra vontade, o meu segredo revelou.

O rapaz disse: «Bravo! Excelente!» E ela cantou:

Tenho saudades tuas mas sem esperança.


Nem a saudade dos poderosos é invencível.
Até a minha arfada mais fria é combustível
Mas o meu suspiro de ardor nada alcança.

E o rapaz respirou fundo e disse: «Bravo! Não podia ser melhor! Que
perfeição e que domínio!» Então ele repetiu aqueles versos em lágrimas, e
disse: «Canta!» e a donzela pôs-se a cantar:

Ó tu por quem em mim aumenta o amor,


A teu bel-prazer me governas o coração,
O teu frio tratamento é o maior ardor,
E consome-me o repúdio e a separação.
Escolhe tu entre o castigo e a recompensa,
Que morrer como mártir é a minha sentença.

Então ele pôs-se a chorar durante um tempo, enquanto repetia aqueles


versos. Ao depois, vimos as donzelas se levantarem dos seus lugares, afinar
os instrumentos, e, formando uma fileira, desataram a cantar estes versos:

Deus é grande, pois ergue a Lua,


E a união entre amantes efectua.
Mas quem já viu Sol com cheia Lua junto,
Fosse no Jardim do Paraíso ou neste mundo?64

Então os nosso olhares viraram-se para elas, e eis que aquela primeira
criada, que havia vindo ter connosco à loja e nos havia trazido àquele lugar,
estava em pé no extremo do jardim, enquanto dez aias carregavam um
grande sofá de prata e o punham entre as árvores, ficando em pé à sua
frente. Em seguida, vieram vinte donzelas que eram tais luas, trazendo nas
mãos instrumentos de música e trajando ornatos. Desfilavam numa só fila e
cantavam a mesma melodia a uma só voz, até que pararam em pé às bandas
do sofá, fazendo vibrar as cordas dos seus instrumentos um tempo, e era tão
bela a música que tocavam que sentíamos que todo o lugar ondulava.
Ao depois, saíram de uma porta dez donzelas que superavam qualquer
descrição, trajando jóias e vestiduras que combinavam e condiziam com a
sua beleza e a formosura. Ficaram em pé à porta, e em seguida saiu outro
grupo igual de donzelas, entre as quais estava Xamsennahar.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Ó mana, que história


tão boa e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu:
«Isto nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima
noite. Se o rei me poupar e eu viver, será ainda mais belo, espantoso e
estranho.»
174.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que as donzelas ficaram em pé à porta,


e em seguida saiu outro grupo igual de donzelas, entre as quais
Xamsennahar estava enredada, coberta graças a um vestido azul de um só
ombro, de requintado tecido bordado a oiro, que revelava as jóias e roupas
que por baixo trazia. E tal como se ela fosse o Sol emergindo debaixo das
nuvens, saracoteava enquanto andava, e altivamente caminhava,
achegando-se ao sofá. O rapaz pôs-se a admirá-la, e olhou para o
perfumista, enquanto roía as unhas ao ponto de as partir, e disse: «Não há
necessidade de descrições depois de ver, nem dúvida possível depois de
conhecer», e declamou dizendo:

Ela, ela é causa do meu sofrer,


E do meu prolongado ardor e desejo.
Fiquei em tal estado depois de a ver
Que já nem respirar consigo e fraquejo.
Ó alma, despede-te do meu corpo incapaz,
Definhado pela paixão, e parte em paz.

Ao depois disse ao perfumista: «Tu nem o bem comigo fizeste nem favor
algum me prestaste! Se me houvesses posto ao corrente desta situação,
poderia ter-me preparado e munido de paciência, sem ser constrangido a
lidar com esta situação à força.» E em seguida as suas lágrimas correram
como riachos e ficou atarantado diante dele.
[Foi Abu-al-Haçane quem contou o seguinte:]

E eu disse-lhe: «Não quis para ti senão o bem, e receei que se te dissesse


a verdade sobre ela, o que te afecta de amor e a saudade por ela te iria
impedir de a encontrares e de com ela estares. Sê paciente, tem ânimo, e
trata-a bem e com respeito; não a humilhes rejeitando-a, pois ela está
inclinada para ti.» Ao que ele disse: «E agora, quem é ela?» E eu disse-lhe:
«É Xamsennahar, uma escrava de Harune Arraxide, e este sítio onde te
encontras é o novo palácio do califa conhecido por Paraíso65. Precisei de
alguma artimanha para vos reunir, e o sucesso das consequências será
decidido por Deus, por isso peçamos a Deus Todo-Poderoso um feliz
desfecho.»
Ali ibn Baccar ficou um tempo perplexo, e disse-me: «O excesso de
precaução exige amor pela própria vida e desejo de a preservar, mas a vida
já se me foi, e para ti é indiferente que se me haja ido por um amor
avassalante ou pela mão de um rei possante.» E em seguida calou-se. E eis
que Xamsennahar virou o olhar para ele, que estava à janela, e tanto num
com no outro só havia amor e ardor, e os movimentos de cada um não
conseguiam controlar a paixão nem esconder o ardor, e apesar de estarem
calados, falavam a língua do amor, e apesar do silêncio de ambos, o segredo
de cada um era visível ao outro.
Durante um tempo, ela observou-o e ele a ela. Então ela ordenou ao
primeiro grupo de donzelas que tornassem aos seus lugares, e elas
sentaram-se nos seus sofás. E em seguida fez sinal às aias, e cada uma delas
trouxe um sofá, e dispuseram cada sofá frente a uma janela do salão da
cúpula onde nós estávamos. E deu ordens às cantoras, as quais aguardavam
as suas instruções, para se sentarem naqueles sofás, e em elas o fazendo,
apontou para uma delas e disse: «Canta!» e ela preparou o alaúde, e cantou
dizendo:

Dois amantes querendo-se um ao outro,


E cujos corações são um só,
No rio do amor se quedaram,
E na sua água doce se abasteceram.
Quedaram-se e disseram, com lágrimas
Pelas maçãs do rosto escorrendo:
«Quem peca é o mundo e não quem ama.»

E cantou com tal melodia que até o espírito mais calmo e dócil se
entusiasmaria e o doente emaciado se curaria, e em Nureddine Ali ibn
Baccar ficando comovido, disse a uma das donzelas que estavam entre nós:
«Canta esta poesia:»

Não vem, o meu amor já não vem,


E as lágrimas pálpebras minhas herdaram.
— Ó fortuna dos meus olhos, ó delícia minha,
Ó finalidade do meu querer e minha religião:
Tem piedade do amador que os olhos afundou
Em lágrimas tristes e loucas de amor,
E ao amar suas entranhas sacrificou
Durante tantos tristes gemidos de amor.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se eu ainda for viva.»
175.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado [, que foi Abu-al-Haçane quem contou


o seguinte]:

Havendo a donzela cantado o poema que o rapaz lhe havia pedido, com
uma melodia de enorme beleza, Xamsennahar virou-se para outra donzela,
e disse: «Canta por mim estes versos»:

Suspiro! Se ele meu sofrimento penoso


E minha paixão sentisse, enlouqueceria.
A Deus me queixo, não a quem é impiedoso
E insensível à dor que no meu coração se cria.
Se homem ou génio sentisse o amor que sinto
Tanto homem como génio seria extinto.

Cantou ternamente, com uma melodia ainda mais bela. Então o rapaz
disse a outra donzela: «Canta por mim estes versos»:

Os teus olhos conquistaram-no e ele suspira.


Com a digna paciência perdida e ainda te procura.
Para este emaciado, no mundo és tu a mais querida,
E cumprir essa esperança seria a sua única cura.
Tens um corpo flexível tal galho quando ginga
Mas teu coração é inflexível e não brinca.

E ela foi exímia a cantar, e executou a sua técnica com ternura. Então
Xamsennahar suspirou longamente e disse à donzela mais perto de si:
«Canta!», e esta cantou dizendo:

Os meus gemidos tu não os ouves,


Nem mostras quaisquer saudades.
A tua arrogância a minha paciência destrói.
Quem teria mais paciência? Nem um herói!
Ó coração em brasa e triste alma minha,
Não fosse por ti já a morte me convinha!

Em ela cantando, cada um dos dois ficou mergulhado no êxtase das


emoções, maravilhando-se com tão patente amor e ardor. Então o rapaz Ali
ibn Baccar voltou-se para uma donzela ao pé dele e disse-lhe: «Canta por
mim estes versos»:

A união é demasiado curta;


Para quê galantaria e luta?
Vós tendes a beleza; e tal desdém,
A vossos encantos não assenta bem.

E o rapaz seguiu o que ela cantava com lágrimas torrenciais e sincopados


ais. Em a escrava Xamsennahar ouvindo o que ele havia dito e em vendo o
agir dele, não se conteve em se levantar para ir para o salão, e o rapaz Ali
ibn Baccar levantou-se para a encontrar à porta, estendendo-lhe os braços e
a abraçando. Jamais vi pessoas mais bonitas que elas, porque jamais havia
visto o Sol abraçar a Lua. E as donzelas tiveram de os carregar, pois os seus
movimentos esmoreceram e as forças perderam, e elas os trouxeram até ao
cabo do salão, e lhes trouxeram água de rosas com pó de almíscar, e o
botaram à cara deles, até que tempo depois lhes retornou o espírito e
recuperaram os sentidos.
Então ela olhou à direita e à esquerda, e não viu o perfumista, que se
havia escondido atrás duns cortinados, e perguntou: «Onde está fulano
tal?». Então ele apareceu, e em ela o vendo cumprimentou-o, deu-lhe as
boas-vindas, e disse-lhe…

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se eu viver.»
176.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que a escrava Xamsennahar agradeceu


a Abu-al-Haçane ibn Tâhir, o Perfumista, e disse-lhe: «A tua enorme
bondade merece ser recompensada, pois não houve flecha do arco da
generosidade que não hajas disparado, nem favor teu que não haja tocado
alguém.» Ele baixou a cabeça humildemente e pediu as bênçãos de Deus
para ela. Ao depois, ela virou-se para o rapaz Ibn Baccar e disse-lhe:
«Senhor meu, que não haja no amor que sentes meta que não ultrapasses,
nem finalidade que não conquistes, e assim será se te submeteres a Deus,
aos Seus decretos e determinações, e tiveres paciência para as Suas
tribulações.» E ele disse-lhe: «Senhora minha, o estar contigo e o te ver não
extingue o fogo do meu ardor nem deixa abalar o meu amor, e digo e repito
que não vou deixar de te amar senão quando a minha alma não mais viver, e
o meu amor por ti não abalará senão quando o meu coração abalar.» Então
chorou ele e chorou ela, e deixaram ambos escorrer uma lágrima, tal como
uma pérola cai dum colar, escorrendo pelas maçãs do rosto deles, que
lembravam duas rosas pela chuva molhadas.
Então, Abu-al-Haçane, o Perfumista, disse-lhe: «O vosso caso é
espantoso, e o vosso estado fascinante e intrigante. Se é isto que fazeis
quando estais juntos, que fareis quando separados? Entregai-vos ao
contentamento e afastai tribulações e sofrimento, porque os momentos dos
amantes são escassos e fugazes.» Então, eles calaram o seu choro, e ela fez
um sinal à primeira criada, que abalou apressadamente, e em voltando trazia
consigo duas aias que carregavam uma mesa de prata, que puseram ante
eles, e Xamsennahar, aproximando-se deles, disse: «Após a conversação e a
diversão, nada melhor há que a satisfação na alimentação. Fazei o favor de
vos servirdes.» Eles serviram-se e Xamsennahar levava comida à boca do
rapaz, e ele à dela, até haverem comido quanto queriam.
Em seguida, a mesa foi levantada, e trouxeram-lhes uma bacia de prata e
uma bilha de oiro. Então, eles lavaram as mãos e tornaram aos seus lugares.
Enquanto isso, Xamesennahar fez um sinal à criada, que sumiu durante um
pouco, e em voltando trazia consigo três aias que carregavam três tabuleiros
de oiro, e em cada um havia um jarro de cristal com incrustações, e cada
jarro tinha um tipo de vinho. Cada um deles recebeu um jarro, e
Xamsennahar ordenou às aias que ficassem ali em pé à sua disposição, e a
dez donzelas cantoras que se lhes juntassem, e dispensou as restantes. Em
seguida, pegou num copo e encheu-o, e virando-se para uma das donzelas,
disse-lhe: «Canta» e ela cantou dizendo estes versos:

Vai-se-me a alma por quem à saudação sorrindo respondeu,


Renovando, após pela união desesperar, o meu desejo.
Os meus segredos transpareceram quando ele apareceu,
E os censores viram o que nas minhas entranhas eu almejo.
Entre nós ambos, os meus olhos derramam lágrimas,
E também elas por ele se enamoram tão acérrimas.

Então, ela bebeu e, pegando noutro copo, encheu-o de bebida, beijou-o e


ofereceu-o ao seu amado Ali ibn Baccar, que nele pegou e o beijou. E em
seguida, ela disse a outra donzela: «Canta» e ela cantou:

Vieram-me as lágrimas, ao vinho se assemelhando;


E a taça verte o mesmo que os meus olhos.
Meu Deus, não sei se vinho me escorre das pálpebras
Ou se lágrimas minhas eu bebo aos jorros!

Ora, o rapaz bebeu, e ela pegou no outro copo, encheu-o de bebida,


beijou-o e deu-o a Abu-al-Haçane ibn Tâhir, que pegou nele e o beijou,
enquanto ela estendeu a sua mão para um alaúde, arrebatando-o de uma das
donzelas, e disse: «Ninguém senão eu vai cantar para brindar com este
copo. E isso é pouco em tua honra.» E lançou-se a cantar, dizendo estes
versos:

Estranhas lágrimas nas faces dele deslizantes.


O amor é um incêndio, e à lágrima isso sabe tão bem.
Pela união chora temendo a separação dos amantes,
Mas unidos ou separados, a lágrima escorre porém.

Então os dois ficaram maravilhados, quase a voar de êxtase, e o rapaz


sentiu que por mor da voz dela, da qualidade da sua arte, do seu alto
gabarito, e de como os seus versos se fundiam com as cordas que tocava,
era como se ele fosse um pássaro a quem lhe houvessem roubado as asas,
deixando-o em terra a cambalear para a direita e a esquerda, e assim foi
durante um tempo. E enquanto assim estavam, eis que aparece a criada,
apressada, voando como uma abelha e tremendo como uma palmeira, e diz:
«Minha senhora, os eunucos do miralmuminim estão à porta! Estão lá Afif,
Macerur e Wacif, entre outros.»
Com isto, quase morreram de aflição e consternação, e quase se finaram
de pavor e terror; e as luas dos seus deleites se eclipsaram e as estrelas das
suas alegrias se ausentaram. Estavam com medo de have-rem sido
descobertos, mas Xamsennahar riu-se…

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se o rei me poupar e eu viver.»
177.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que Ali ibn Baccar e o seu amigo Abu-
al-Haçane, o Perfumista, em ouvindo aquelas palavras, ficaram apavorados.
Mas Xamsennahar riu-se, e disse à criada: «Empata-os um tempo de forma
a que escondamos os nossos vestígios.»

[E foi Abu-al-Haçane quem contou o seguinte:]

Ao depois, voltou-se para o rapaz, e levantou-se contrariada, dando


várias ordens relativas ao salão da cúpula. Então, as portas foram fechadas,
e os cortinados e cortinas corridos, e em as portas do salão sendo fechadas,
ela saiu para o jardim, enquanto nós ficámos imóveis nos nossos lugares.
Ordenou ainda que se tirassem os outros sofás, e assim foi feito, e ela
sentou-se no seu sofá, enquanto uma donzela lhe esfregava os pés. Então,
disse à criada: «Deixa-os entrar.» E os três entraram, e com eles vinham
vinte eunucos com lindos e elegantes uniformes, com cinturões de oiro que
seguravam as suas espadas. Cumprimentaram com as melhores maneiras, e
ela retribuiu o cumprimento, recebendo-os com boa disposição e o devido
respeito. Então, virou-se para Macerur e perguntou-lhe: «O que se passa?»
E ele disse: «O miralmuminim manda-lhe os seus cumprimentos e pergunta
por si. Tem saudades suas e quer vê-la, e enviou-me para lhe dizer que teve
uma dia tão feliz que para o encerrar gostaria de a ver e de passar a noite
consigo. Por isso, apronte-se para a sua vinda e embeleze os seus
aposentos.» E ela beijou o chão e disse: «Estou às ordens de Deus e do
miralmuminim.»
Então, virou-se para a criada e ordenou-lhe que trouxesse as criadas da
limpeza, e em elas vindo, espalharam-se pela casa e pelo jardim, apesar da
casa já estar perfeita em tudo o que dizia respeito a tapetes, cortinados, e
tudo o mais, mas Xamsennahar queria mostrar-lhes que obedecia ao que
havia sido ordenado. Ao depois, disse aos eunucos: «Ide com a protecção e
a salvaguarda de Deus, e informai o miralmuminim sobre o que haveis
visto, mas que ele se paciente um pouco porquanto o lugar ainda não está
pronto nem a sua mobília.»

Então, foram-se apressadamente. Em seguida, ela levantou-se e foi ter


com o seu amado e o amigo deste, que estavam como pássaros assustados, e
abraçou-o fortemente, chorando ardentemente. E disse ele: «Senhora minha,
esta separação é uma ajuda para a minha destruição e aniquilação. Que
Deus me abençoe com paciência até que eu te veja de novo, e me conceda
outra oportunidade além desta.» E ela disse: «Quanto a ti, vais sair daqui
salvo, e o teu ardor fica escondido e o teu amor protegido, e ninguém saberá
em que situação te encontras. Mas pela minha parte, deparo-me com
tribulações e com o pior dos destinos, pois o califa espera de mim o que é
habitual, e isso é algo que a grande paixão que sinto por ti e a minha tristeza
em te ver partir me impedem de lhe oferecer. Com que voz lhe vou cantar?
E com que coração vou eu comparecer ante ele para o entreter, e com que
força o vou servir? E com que espírito vou eu conversar com aqueles que
estiverem com ele, ou ser mais sagaz do que eles para lhe agradar?» Então,
Abu-al-Haçane disse: «Imploro-lhe, seja paciente, revigore-se o melhor que
puder esta noite e Deus com a Sua generosidade vos irá unir.»

[E foi Abu-al-Haçane quem contou o seguinte:]

Enquanto estávamos nisto, eis que a criada dela apareceu, e disse:


«Senhora, vêm aí os eunucos e a senhora ainda aqui está.» E Xamsennahar
disse: «Vá, tu aí, despacha-te a fazê-los subir para a sacada que dá para o
jardim, e deixa-os lá até as trevas se misturarem com o dia; então, ajuda-os
a sair para que cheguem honradamente a casa.» Disse a criada: «Às suas
ordens.»

Em seguida, ela despediu-se deles e foi-se, mal se podendo mexer, já a


criada levou-os aos dois e fê-los subir até à sacada que dava sobre o jardim
de um dos lados, e sobre o Tigre de um dos outros, e que tinha vários
compartimentos. Fê-los sentar, fechou a porta, e abalou. E veio a noite.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se o rei me poupar e eu viver.»
178.ª Noite

Na noite seguinte, Dinarzade disse à sua irmã Xerazade: «Conta-nos o


resto da história.» E ela disse: «Assim seja:»

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que em a criada os havendo sentado na


sacada, passou um tempo e veio a noite. E nestes modos estavam eles em
casa do califa, sem saberem o que fazer de si mesmos nem como se salvar.
Então, puseram-se a olhar para o jardim, e eis que aparecem mais de cem
eunucos, tais noivos com vestes às cores, e com cinturões em oiro a segurar
as espadas, e mais de cem pajens, cada um com uma vela de cânfora, e
Arraxide, de tão bêbedo, cambaleava entre Macerur e Wacif. Atrás dele
vinham vinte donzelas, tais sóis com pomposos vestidos, e com jóias que
brilhavam em torno dos seus pescoços e cabeças. E estas donzelas foram
recebidas entre as árvores pelas outras que tinham por mister fazer as
cordas vibrar, e que eram chefiadas por Xamsennahar. E em ela beijando o
chão, o califa disse: «Bem-vinda seja a alegria do meu coração e o deleite
da minha vida, e a minha felicidade.» Então apoiou-se no braço dela e pôs-
se a andar, até chegar ao sofá de prata, onde se sentou, e ante ele foram
montados aqueles sofás às bandas dos lagos, então ele ordenou que aquelas
donzelas que haviam vindo com ele se sentassem, e cada uma delas se
sentou no seu sofá, e Xamsennahar sentou-se ao pé dele numa cadeira. O
califa contemplou o jardim um tempo, e deu ordens relativas ao salão da
cúpula, e as suas janelas foram abertas. Ante o califa, à sua direita e à
esquerda, puseram velas que faziam das trevas luz, e da noite dia, enquanto
os pajens traziam o serviço para bebidas.

Foi Abu-al-Haçane quem contou o seguinte:


O que eu vi de vários géneros e feitios de jóias jamais os meus olhos
haviam descortinado ou sequer atravessado a mente. O meu coração vibrava
empolgado, e julguei estar num sonho e que a minha razão se me havia ido.
Enquanto isso, Ali ibn Baccar estava estendido no chão por mor do que
sofria, combalido e enfraquecido, e com aversão olhava para o que eu
olhava, ficando com o coração doente por pensar no que eu pensava. Eu
disse-lhe: «Já viste tal soberano?» E ele respondeu: «O vê-lo é a nossa
desgraça. É inevitável que eu seja aniquilado, mas o que me vai aniquilar
não é senão aquilo que já me subjugou: o amor e a separação depois da
união, o medo, a fraqueza, o perigo da situação, e a impossibilidade de me
salvar. Que Deus o Auxiliador me acuda!» Ao que eu lhe disse: «Tens de
esperar até que Deus Todo-Poderoso te traga alívio.» Ao depois, tornou a
olhar para o que se passava.

Em estando tudo prestes ante Arraxide, ele virou-se para uma donzela
das que haviam vindo consigo, e disse: «Ó amor, venha de lá essa canção!»
E ela dedilhou o alaúde, e declamou cantando:

Se um rosto por se regar com lágrimas,


Um horto se julgasse, o meu de verdura se cobriria,
Como se a floração, entre meus canais lacrimais,
Fosse abundante e viçosa por tão fértil rega.

Mas a verdade é que não choro senão lágrimas,


Restos da minha alma que de mim se despediu e partiu.
Descanso não encontrei senão na morte benfazeja,
E por isso disse eu: «Venha ela e bem-vinda seja.»

E ao olharem os dois para Xamsennahar, viram que ela estava perturbada,


e que caía sofá abaixo, sendo acudida pelas criadas, que nela pegaram. Abu-
al-Haçane ocupou-se a olhar para ela [, e foi ele quem contou o seguinte:]
«Ao depois, virei-me para o amado dela, olhei para ele, e eis que ele estava
desfalecido, virado para baixo, sem se mexer.» E Abu-al-Haçane disse de si
para si: «O destino foi bondoso com eles, decretando guisa igual para
ambos.»
Mas dentro de si, sabia do enorme perigo daquela situação. Então, veio a
criada e disse: «Levantai-vos! Cada vez temos menos margem de manobra,
e receio que esta noite o mundo se acabe para nós.» E o perfumista
replicou: «E quem alevanta este moço estando ele neste estado?» Então ela
pôs-se a irrorar água de rosas na cara dele e a esfregar-lhe as mãos, até que
ele acordou. E disse-lhe o perfumista seu amigo: «Acorda! antes que a ti
mesmo te aniquiles e a nós contigo.»
Em seguida, carregaram-no e desceram da sacada, e a criada abriu uma
pequena porta de ferro, e por ela saíram, indo até a um molhe sobre o rio.
Então a criada bateu palmas ao de leve, e veio um bote com um homem que
o remava, e que encostou ao molhe.

[Foi Abu-al-Haçane quem contou o seguinte:]

Então subimos a bordo, e o rapaz enamorado pela rapariga estendeu uma


mão em direcção à casa dela e ao palácio, e a outra ao seu coração, e com
uma voz combalida declamou uma poesia, dizendo:

Estendi uma combalida mão em despedida,


E outra sobre as brasas do meu coração.
Não seja este o último encontro na tua vida!
Nem de amor a minha última provisão!

Em seguida, o barqueiro remou dali para fora, levando-nos com a criada.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite;
se o rei me poupar e eu viver, será ainda mais espantoso e estranho.»
179.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o moço declamou a poesia e o


barqueiro remou dali para fora, levando-os com a criada, para que
atravessassem para a outra banda. Em chegando à margem, a criada
despediu-se deles, dizendo: «A partir daqui não posso continuar convosco.»
E abalou, enquanto Ali ibn Baccar estava prostrado ante Abu-al-Haçane
sem se conseguir levantar. Então, este disse-lhe: «Meu senhor, ainda vamos
ser aniquilados. Não estamos em segurança e podemos ser cobiçados por
gatunos», e pôs-se a censurá-lo e a criticá-lo. Após um tempo, ele lá se
levantou e foi com ele, mal podendo caminhar. Ora, Abu-al-Haçane tinha
alguns amigos naquela margem da cidade, e então foi ter com um deles, de
quem era próximo e em quem confiava, e bateu à porta dele. O amigo
apareceu num ápice, e em o vendo ficou extremamente radiante.

[Foi Abu-al-Haçane quem contou o seguinte:]

Ele fez-nos entrar em sua casa, e em nos fazendo sentar, perguntou: «Por
onde tens andado estes últimos tempos?» E eu disse-lhe: «Eu tinha um
negócio com um fulano, mas chegou-me aos ouvidos que ele cobiçava o
meu dinheiro e o dos outros, então dirigi-me a ele, depois de haver pedido
ajuda e companhia a este senhor aqui», e apontou para o moço Ali ibn
Baccar; «trouxe-o comigo por medo que ele se apercebesse da minha
intenção e se escondesse de mim. Mas apesar de me ter empenhado não dei
com ele nem tive notícias dele, e então tornei. Transtornado com a fadiga
deste senhor e sem saber aonde ir, tomei a liberdade de virmos a tua casa e
de gozar a tua companhia.»

O anfitrião não se poupou em os honrar e afincou-se em os servir, e eles


ficaram em casa dele o resto da noite. E mal veio a alvorada, foram para o
rio, e em lhes aparecendo um bote, subiram a bordo e atravessaram para a
outra banda. Saíram do bote, e foram para casa de Ibn Tâhir, o Perfumista,
que havia adjurado Ali ibn Baccar para que viesse com ele, e este em lá
chegando caiu para o lado, pois sofria de amor, exaustão e aflição. Os dois
deitaram-se um pouco e ao depois alevantaram-se.

Ora, Abu-al-Haçane deu ordens para que arrumassem a casa, e foi ele
quem contou: «[Disse de mim para mim:] “Vou entretê-lo e diverti-lo, pois
não posso ignorar o que se passa com ele, e que ele se separou da sua
amada e foi privado daquelas coisas que os unem.” E dei graças a Deus por
haver sido salvo do perigo, e dei esmolas por Ele me haver facilitado a vida.
Ao depois, o jovem Ali ibn Baccar acordou e sentou-se, e eu disse-lhe:
“Anima-te!”»
Ao depois, [o rapaz Ali ibn Baccar pediu água, e água foi-lhe trazida, e
ele levantou-se, fez as abluções, e as orações do dia e da noite que não
havia feito na devida altura. Em seguida, sossegou o seu espírito, e
procurou consolo para a sua alma pondo-se a falar. Em Abu-al-Haçane
vendo tal coisa, acercou-se dele e disse: «Caro Ali, devido à situação em
que te encontras, é melhor ficares esta noite em minha casa, para te
divertires e te distraíres, para que te alivies do amor e da dor que te afecta.
Se te sossegares e espaireceres, talvez Deus te alivie das aflições que te
atravessam e que tu atravessas.»]66 Ali ibn Baccar disse-lhe: «Faz o que
quiseres, eu não te impeço.»

[Foi Abu-al-Haçane quem contou o seguinte:]

Em seguida, mandei vir os criados dele, os seus amigos, e solicitei uma


cantora, e assim ficámos até ao fim do dia, quando as velas foram acesas, e
passou-se um bom momento, e a cantora cantou uma poesia:

[Lançou-me o destino certeira flecha;


Paciência perdi com a separação dos amantes,
E face ao destino, mais desesperado fiquei.
E eu que já tudo calculava de há muito antes!

Em Ali ibn Baccar ouvindo as palavras da cantora,]67 perdeu os sentidos


até se erguer a madrugada, e acordou havia eu já as esperanças perdido.

E quis voltar a casa, e Abu-al-Haçane o não podia impedir, com medo


das consequências por estar envolvido naquele assunto. E vie-ram os seus
criados, com a sua burra, e ele montou e fez-se acompanhar por Abu-al-
Haçane, que disse: «Em o vendo sentado na sua casa, louvei a Deus Todo-
Poderoso, exaltado seja o Seu nome.» E pôs-se a consolá-lo, mas ele não
estava na posse das suas faculdades, nem prestava atenção ao que lhe dizia
ou fazia. Então Abu-al-Haçane levantou-se e despediu-se.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite;
se o rei me poupar e eu viver, será ainda mais estranho.»
180.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que em Abu-al-Haçane se havendo


despedido de Ali ibn Baccar lhe disse: «Irmão, talvez hajas ouvido novas da
minha amada… é necessário procurá-la, eu bem vi como ela se
encontrava.» E ele disse-lhe: «É necessário que a criada dela apareça e nos
dê novas da situação.» Ao depois, abalou, e foi para a sua loja, onde ficou
esperando, mas a criada não apareceu. Então passou a noite em casa, e ao
outro dia, após haver feito as suas abluções e orações, foi a casa do moço
Ali ibn Baccar. Entrou, e este estava deitado na cama, com gentes de todas
as sortes que dele cuidavam, e havia médicos, e cada um lhe receitava algo
e o examinava.

Abu-al-Haçane contou: «Ao me ver, virou-se para mim, e congratulando-


se com a minha vinda, esboçou um leve sorriso. Prestei-lhe os devidos
cumprimentos, disse-lhe que tinha saudades dele, e perguntei-lhe sobre o
seu estado, como havia passado a noite, e sentei-me à banda dele até as
gentes dispersarem, aquando me acerquei dele e lhe perguntei: “Que vem a
ser isto?” E ele respondeu: “Os criados espalharam por aí que eu estava
doente, e não encontrei forças, nem para me mover deste sítio como estás a
ver, e em as gentes me vindo visitar, não as consegui mandar embora.
Entretanto, viste a criada?” E eu disse: “Não, e duvido que ela apareça
hoje.”»

Então, ele desatou a chorar compulsivamente, e Abu-al-Haçane disse-lhe:


«Cuidado com os escândalos, põe a choradeira de parte e não fales do teu
caso nem a ninguém reveles o teu segredo.» Mas ele chorou ainda mais, e
declamou estes versos:

Dissimulei o meu amor, mas em força ele cresceu,


Denunciando as lágrimas o que dissimulara eu.
E vendo que a lágrima o meu amor anunciava,
Perdi toda a vergonha, o que é lamentável.
Revelaram as minhas lágrimas o que eu ocultava,
Mas o que eu oculto é ainda mais impensável.

E em seguida, disse: «Lançou-me o destino uma tormenta que eu


dispensava; agora só a morte me pode sossegar, porque só ela me trará
descanso para o quanto sofro e alívio para o que me aflige.» E Abu-al-
Haçane disse: «Que Deus te conforte e te cure! Não és o primeiro a quem
isto acontece, nem o único que de tal padece.» E conversou com ele um
tempo, e ao depois saiu de casa dele, foi para o mercado, e abriu a sua loja.
E mal se havia sentado, eis que a criada lhe aparece.
[Foi Abu-al-Haçane quem contou o seguinte:] «Então cumprimentei-a,
mas ela havia perdido a graça e estava de coração partido. Disse-lhe: “Sejas
muito bem-vinda. O meu coração inquietava-se por ti e desejava falar
contigo. Então, como está a tua senhora? Quanto a nós, aconteceu isto e
aquilo.”» E explicou-lhe tudo o que se havia passado. Soltou um ah de
espanto, e disse: «A minha patroa também! Ficou no mais calamitoso
estado. Vós vos haveis partido e o meu coração vibrava de receio por vós,
mal podendo acreditar que vos haveis salvo. E em eu voltando, encontrei a
minha senhora estatelada no salão da cúpula, incapaz de falar ou responder.
À sua cabeça estava o miralmuminim, que não percebia o que a havia
varado, nem encontrava quem lho pudesse explicar. Assim ficou ela
naquele sofá até à meia-noite, rodeada por criadas de todas as bandas, que
tanto choravam como se regozijavam quando ela dava sinais de recuperar.
Então, ela acordou e levantou-se, e Arraxide perguntou-lhe: “O que te
atormentou?” E em ela ouvindo as palavras dele, beijou-lhe os pés e disse:
“Ó miralmuminim, que Deus me sacrifique ante ti! Um dos meus
humores68 ficou infectado, e deflagrou-se-me um fogo no corpo, então caí e
nem sabia onde estava.” E ele perguntou-lhe: “Que foi que comeste hoje?”
E ela inventou coisas que não havia comido, e fingindo que havia
recuperado as forças, pediu vinho, bebeu, e pediu ao miralmuminim que
tornassem ao folguedo, e ele volveu ao seu lugar, ordenando a
Xamsennahar que se sentasse no salão da cúpula e ficasse à vontade, e
assim fez ela. Então, fui ter com ela, e ela perguntou-me sobre vós os dois,
e eu falei com ela sobre o que havia acontecido, e declamei-lhe a poesia de
Ali ibn Baccar, e ela chorou. Então, uma donzela chamada Olhar-d’Amante
disse estes versos:

Sem vós a vida perderia toda a doçura.


E como ficaríeis vós se me perdêsseis um dia?
Verteríeis após eu morrer lágrima alguma?
Porque se eu vos perdesse, sangue verteria.

Então ela tornou a cair no mesmo sofá, e eu pus-me a sacudi-la.»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite;
se eu ainda for viva.»
181.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que a criada disse a Abu-al-Haçane


que se tinha posto a abanar a sua senhora, a esfregar-lhe os pés e a borrifá-la
com água de rosas até ela acordar, [e disse ela:] «Então eu disse a
Xamsennahar: “Esta noite vai acabar por aniquilar-se e a toda a gente da
sua casa. Pela vida do seu amado, tem de se pacientar e de se revigorar,
mesmo que se sinta como se estivesse em cima das mais quentes e
incadescentes brasas.” E retorquiu: “Haverá coisa melhor que a morte, que
me traga descanso para o quanto sofro?” E enquanto estávamos nisto, eis
que outra donzela, chamada Aurora-do-Desterrado, veio cantar:

Dizem: “A paciência bem-estar traz.”


Digo: “Sem ele, a paciência não tem nexo.”
E o juramento que nos ligou é audaz;
Pacientes não seremos após tal amplexo.

»Então Xamsennahar tombou desmaiada sobre a cantora. Ao reparar


nela, o miralmuminim foi logo ter com ela em passo despachado, e viu que
ela estava quase como se o sopro da vida se houvesse separado dela. Então
ordenou que se levantassem as bebidas e que todas as donzelas saíssem para
os seus aposentos, e ficou o resto da noite com ela, enquanto ela esteve
naquele estado. De manhã, ela acordou e o miralmuminim convocou os
médicos, ordenou-lhes que a tratassem, mas não sabia o que a atravessava e
o que ela atravessava de amor e ardor. Ele ficou com ela até lhe parecer que
estava melhor, e partiu para os seus aposentos, com o coração inquieto por
mor da doença dela, deixando com ela um grupo de criadas e concubinas.
Logo que se fez manhã, ela ordenou-me que fosse ter consigo, para me
inteirar de novas do senhor Ali ibn Baccar.»
Após ouvir as palavras da criada, Abu-al-Haçane disse-lhe: «Já te dei
parte do estado de Ali ibn Baccar e de como se encontra ele. Dá os meus
cumprimentos a Xamsennahar, não te poupes em a aconselhar, e empenha-
te em não revelar a ninguém o segredo dela. Eu darei parte a Ali ibn Baccar
do que contaste sobre ela.» Então a criada agradeceu-lhe, despediu-se e
abalou.
Abu-al-Haçane contou o seguinte: «Passei o resto do dia a vender e a
comprar. Ao depois, fui ter com ele, e em entrando em sua casa, eis que ele
estava como o havia deixado. Então, deu-me as boas-vindas, esboçou um
sorriso por cortesia, e disse-me: “Não te enviei ninguém para te não
incomodar. Já suportaste fardo muito pesado, e serei teu devedor o resto da
minha vida, até ao último dia.”» Abu-al-Haçane contou: «Então, eu disse-
lhe: “Pára com isso! Se fosse possível resgatar uma vida com outra, eu
sacrificaria a minha por ti, e se fosse necessário abdicar de um olho meu
para te proteger, eu te protegeria ficando sem ele. Bem, a criada veio ter
comigo”», e contou-lhe o que ela lhe havia dado parte. Aquilo foi muito
duro para ele e ficou ainda pior, lamentou-se, exasperou-se e chorou, e
disse: «Que posso eu fazer ante tão colossal intempérie?» E pediu a Abu-al-
Haçane que passasse a noite com ele, e ele assentiu.
Foi uma noite pouco dormida, em surgindo a aurora Abu-al-Haçane
levantou-se e foi para a sua loja, e eis que a criada estava à espera dele. Em
a vendo, não abriu a loja mas foi ter com ela, que lhe fez um sinal de
cumprimento, passou-lhe os da sua patroa, e perguntou: «Como está o
senhor Ali ibn Baccar?» Ele disse: «Na mesma, e a tua patroa, como está
ela?» Ela disse: «Na mesma, pior ainda. Ela escreveu uma missiva para ele,
e deu-ma dizendo: “Traz-me a resposta e faz o que Abu-al-Haçane te
ordenar.”» [E Abu-al-Haçane contou:] «Então voltei atrás no meu caminho,
juntamente com ela, até chegar a casa dele e entrar.»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite;
se eu ainda for viva.»
182.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que Abu-al-Haçane, o Perfumista,


aquando lhe apareceu a criada de Xamsennahar, pegou nela e foi até casa de
Ali ibn Baccar. Entrou, mas deixou a criada a uma banda à espera. E em o
jovem o vendo, perguntou-lhe: «Que contas?» «Está tudo bem», respondeu-
lhe ele, «um amigo teu enviou a sua criada com uma missiva em que ele
exprime que sente a tua falta e menciona a causa da demora em te encontrar
pelas razões que ele menciona e que poderás tu mesmo ver. Deixo-a
entrar?» e piscou-lhe o olho. Ele respondeu: «Com certeza», e um criado foi
buscá-la. Quando o jovem a viu, reconheceu-a logo, mexeu-se para ir ter
com ela, congratulando-se com a sua vinda, e disse-lhe, deitando-lhe uma
piscadela: «Como está esse senhor? Que Deus lhe dê saúde.» Ela sacou da
missiva e deu-lha, e ele pegou nela, beijou-a, leu-a e, com a mão tremendo
de fraqueza, passou-a a Abu-al-Haçane.
[Foi Abu-al-Haçane quem contou:] «Abri a missiva e eis o que nela
estava escrito:

‘Lembrar Deus é o mais importante’69

Ao mensageiro que novas minhas te leva responde;


Suas palavras são como me visses não importa onde.
Deixaste inundado de amor e ardor o meu coração,
E os meus olhos toda a noite despertos sem tino.
Uso a paciência para aguentar esta tribulação,
Pois ninguém escapa aos golpes do destino.
Alegra-te! Do meu coração te não irás,
Nem da minha cabeça te sumirás.
Olha para o teu corpo que o amor sorveu,
E ficarás a saber o quanto resta do meu.

Senhor meu, o que te escrevo com os meus dedos, e o que falo com a
minha língua, e o discurso que eu formulo, exprimindo o que me vai no
coração, na alma e no corpo, se não fosse o meu desejo de te expor o quanto
sofro por mor de ti, eu seria mais cautelosa e abster-me-ia de o fazer. Se não
fosse o eu desejar-te e o sofrimento de estar separada de ti, já teria parado
de escrever, abster-me-ia de o fazer, pois quem testemunha uma situação
dispensa as palavras. Em suma, a minha situação é que os meus olhos não
cessam de noites em branco passar, o meu coração de se inquietar, a minha
alma de se angustiar, e o meu âmago de endoidar, e não dou por nada senão
pelo meu corpo arrasado e o meu espírito devastado e dilacerado. É como
se eu jamais saúde houvesse gozado ou da tristeza me livrado, e jamais
houvesse visto uma paisagem incrível ou usufruído uma vida aprazível. Ah!
Se eu fosse esquecida para sempre! E me lamentasse só a quem partilha os
meus lamentos! E chorasse só com quem partilha as minhas lágrimas! A
quem diria eu:

Oh, que pena! não se cumpriu o meu desejo convosco,


Nem o prazer de estarmos próximos e unidos gozei.
Separados ficámos, rompendo-se a nossa ligação,
E chorando para sempre no vosso encalço ficarei.

Que Deus Todo-Poderoso nos conceda a reunião e junte todos os amantes


que estejam separados. Escreve-me e farei das tuas palavras o meu
acompanhante; alegra-me com a tua nobre resposta, a qual para mim será
um ajudante trazendo amizade abundante. Que seja digna a tua paciência
até que Deus facilite o caminho para o nosso encontro. Os meus
cumprimentos a Abu-al-Haçane.

»Li palavras que encheriam de desejo até um coração vazio – quanto


mais um cheio! – e que deixariam qualquer um atordoado, a tal ponto que
estive quase para a ler em voz alta, não fosse o meu medo de tudo revelar e
a vergonha de levantar um escândalo. E disse eu: “Quão excelente é o
escriba dela70, transmitiu as suas palavras de guisa tão tocante e delicada,
enchendo o leitor de desejo. Apressa-te pois a responder com soberbas
palavras.” Ao que ele replicou, com voz combalida: “E com que mão vou
escrever? e com que voz vou lamuriar e deplorar? Ela somou doença à
minha doença, e morte à minha morte.” Em seguida, sentou-se, pegou numa
folha, e disse: …»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se o rei me poupar e eu viver.»
183.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que ele se sentou, pegou numa folha, e
disse a Abu-al-Haçane: «Segura na missiva à minha frente», e ele assim fez,
enquanto Ali ibn Baccar, sempre que olhava para ela, punha-se ora a
escrever, ora a chorar, até acabar de redigir o que queria. Deu-a então a
Abu-al-Haçane e disse: «Lê-a e dá-a à criada.»
[Foi Abu-al-Haçane quem contou:] «Então peguei nela, li-a, e eis o que
nela constava:»

Em nome de Deus, o Todo Misericordioso, o Mui Misericordioso

Uma carta de amor veio da Lua


Oferecendo à minha vista a luz sua,
E deliciando os olhos do seu leitor
Como se suas palavras flores fossem,
E aligeirando as minhas aflições
E o peso das minhas tribulações.

Ó senhor meu, dominaram estes sofreres


O meu coração, entre piedade e temor.
A minha enorme paixão de ti se não esconde,
Nem o meu desejo, óbvio mesmo que o oculte.
O meu coração e olhar: um com o fogo do amor
Chora e outro é consumido por noites sem dormir.

As minhas lágrimas interrupção não gozam,


E as brasas do fogo da paixão não se apagam.
Pela lei do vos amar e meu desejo proibido
Juro! que exagero não há em nada do que digo:
Esta alma que tudo perdeu em de vós se separando,
Jamais desejou um outro ser humano entretanto.

Senhora minha, a tua missiva chegou-me, oferecendo descanso a uma


alma esgotada de paixão e desejo, trazendo cura a um coração dilacerado
que pelo padecimento e pela mágoa foi devastado. Depois de tanto silêncio,
a tua missiva fez a língua mover-se para falar, e depois de tanta aflição foi
uma maravilha que os olhos deliciou com o seu jardim florescente. Ao
compreender o seu conteúdo, e ao reflectir sobre as palavras e os seus
significados, fiquei maravilhado com o que lia, e quanto mais eu lia e relia
o que exprimes e transmites com única arte e sem igual, mais se afastava de
mim o que hei sofrido com a dor da separação de tantas formas e feitios,
tais como a mazela contínua e a saudade assídua, o desejo assolador e o
amor avassalador.

Coração apertado e pensar folgado,


Olhos de insónia e corpo extenuado.
Paciência quebrada e contínua solidão,
Alma endoidada e cativa razão.
Em suma, a minha situação, após haverdes ido,
É de tudo me lamentar me sentindo vencido.

O lamento não apaga o fogo da tribulação, mas pode distrair quem pela
saudade é avassalado e pela separação aniquilado, até ao momento em que
o ardor do seu desejo o reencontro sacie, e o caminho da sua cura propicie.
E haja paz.
Abu-al-Haçane contou o seguinte: «As palavras da missiva afligiram-me
a alma e os seus significados atingiram-me os orgãos vitais, e apesar de
tentar esconder as lágrimas, não parei de chorar senão com muito esforço, e
o meu coração abalado não se conseguiu acalmar senão depois de muita dor
e ardor. Então, entreguei a missiva à criada, e quando esta pegou nela, Ali
ibn Baccar disse-lhe: “Chega aqui.” Ela achegou-se e ele disse: “Passa os
meus cumprimentos à tua patroa, e dá-lhe parte do meu padecimento e
mágoa, e de que a estima que sinto por ela entranhou-se-me na carne e
ossos, e diz-lhe que sou um pobre coitado a quem a vida deu rudes golpes.
Agora vai-te como se voasses.” E às suas palavras sucedeu o choro, e tanto
eu como a rapariga chorámos. Então, ela despediu-se e saiu aflita a chorar.»
Abu-al-Haçane saiu com ela até ao sítio onde cada um seguiria o seu
caminho, despediu-se, e abalou para a sua loja.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se o rei me poupar e eu viver.»
184.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que em Abu-al-Haçane se despedindo


da rapariga, ela abalou e ele tornou à sua loja, e ele, com o coração em
mágoas, pôs-se a pensar na sua situação e como para ela havia sido
empurrado pelos dois amantes. Então, não lhe restaram dúvidas que iria ser
aniquilado por mor deles os dois, perder os seus negócios, e que o esperava
a pior das consequências. E continuou a pensar nisso o resto do dia e da
noite.
Ao outro dia, tornou a casa de Ali ibn Baccar, e eis que deu com um
aglomerado de gentes como se havia tornado habitual. Ele esperou até as
gentes abalarem, e então aproximou-se dele, perguntou-lhe como passava, e
em ele se pondo a lamentar-se, Abu-al-Haçane disse-lhe: «Olha, jamais vi
ou ouvi alguém como tu no teu amar. Essa paixão, essa fraqueza de
movimentos e incapacidade de te entusiasmares é coisa de amante sem
honestidade e de amado sem lealdade. Se tu amas quem te ama e desejas
quem te deseja, como farias tu se quem amasses fosse o contrário; se
desejasses quem te virasse costas, e confiasses em quem te enganasse? Se
continuas desta guisa, o teu caso vai acabar por ser revelado, e a lua que te
protege eclipsa-se. Mantém-te ocupado, entusiasma-te e vai falar com as
pessoas. Vai montar a cavalo, esquece o teu caso e faz exercício, põe o
coração de parte e convive, senão inevitavelmente vais ser aniquilado.»
Foi Abu-al-Haçane quem contou: «Ele escutou com atenção as minhas
palavras, que tiveram impacto nele, e agradeceu-me, mas mal sabia eu no
que ele se ia meter. Então, despedi-me dele e tornei à minha loja. Ora, eu
tinha um amigo [que era joalheiro e] que se havia inteirado daquilo que se
passava comigo, sabendo da situação em que me encontrava com Ibn
Baccar, e costumando ele vir à loja, pouco tempo após eu haver chegado
indagou sobre a criada, mas eu menti-lhe, dizendo: “Ela anda transtornada.
Sobre essa situação é a última coisa que chegou até mim, e nada te escondo
a não ser o que Deus sabe e eu ignoro. Ora, ontem pensei em algo que
quero fazer, e sobre o qual agora quero falar contigo. Como sabes, sou um
homem conhecido, e muito relacionado com as gentes notáveis, sejam
homens ou mulheres, e não quero que o caso daqueles dois seja descoberto,
porque será a causa da minha morte, do confisco dos meus bens e da ruína
do meu filho e família. Ora, eu não posso deles me apartar após os folgados
folguedos que passei em sua companhia. Então pensei em liquidar os meus
negócios e dívidas, e em mudar-me para Baçorá, para onde vou morar até
ver o que deles será feito e o que Deus decretou para os dois, visto que lá
ninguém me conhece. É que o amor apoderou-se dos dois, e os não largará
até serem aniquilados. Bom, quem maneja o caso entre os dois é uma criada
que guarda o segredo, mas talvez ela acabe por se sentir por eles vexada ou
se encontre numa situação complicada, e acabe por revelar o segredo, e a
notícia se espalhe, levando tal coisa à minha aniquilação, e se assim for, o
haver posto os pés onde de guisa precipitada os pus vai conduzir-me à
perdição e à aniquilação, e não tenho desculpa alguma ante Deus nem ante
as gentes.”»
O amigo dele respondeu-lhe: «O assunto que me contas é delicado e
complicado, é do género de coisa que até assusta o homem ciente, e
inquieta o culto e prudente. Não posso estar mais de acordo contigo na
forma como vês as coisas. Que Deus te proteja dos teus receios e te traga os
melhores resultados.»
E [foi o joalheiro quem] contou: «Abu-al-Haçane pediu-me sigilo sobre a
conversa que decorreu entre nós.»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se eu ainda for viva.»
185.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que após o perfumista haver falado


com o joalheiro e lhe tendo pedido sigilo sobre a conversa que correu entre
eles, contou: «E mal dei por ela já me estava a apron-tar, e parti para
Baçorá.» No que toca ao joalheiro, passados quatro dias apareceu em casa
de Abu-al-Haçane ibn Tâhir, o Perfumista, e encontrou-a fechada.
[Foi o joalheiro quem contou:] «Resolvido a encontrar uma artimanha
para me introduzir a Ali ibn Baccar, dirigi-me a sua casa, e disse a um dos
criados: “Peça licença ao seu patrão Ali ibn Baccar para eu ser recebido.” A
licença foi dada, entrei em casa dele, e ele estava estendido numa almofada.
Em me vendo, reuniu forças e num salto pôs-se em pé, e vindo ter comigo
com uma cara feliz, deu-me as boas-vindas. Prestei-lhe os devidos
cumprimentos perguntando-lhe pela saúde, e pedi-lhe desculpa por não tê-lo
visitado mais cedo. Ele não se poupou em me agradecer, e perguntou-me:
“Posso oferecer-lhe alguma coisa ou algum serviço lhe prestar?” Ao que eu
disse: “Fique sabendo que entre mim e Abu-al-Haçane, o Perfumista, que
Deus o guarde e o salve, há uma relação de amizade e de negócios, com
estima e companheirismo, dês há que tempos. Eu gostava dele, confiando
nele os meus segredos, e sigilosamente guardando os dele. E por uns dias
estive ocupado distante dele com um grupo de companheiros, e quando
regressei fui ter com ele, mas encontrei a sua loja fechada, e um dos seus
vizinhos disse-me que ele havia ido para Baçorá, para cuidar de assuntos
que exigiam a sua atenção em pessoa, mas eu não aceitei esta explicação.
Como jamais vi entre dois amigos uma relação tão estreita como a vossa,
peço-lhe: se souber a verdade sobre isto, conte-me tudo detalhadamente,
pois vim ter consigo para investigar, discutir e inquirir [sobre o que se
passa].”
«Em ouvindo Ali ibn Baccar as minhas palavras, ficou com o rosto
descorado e o espírito transtornado, e disse: “É a primeira vez que oiço tal
coisa, e nem me chegaram palavras dele nem algo que me fizesse supor tal
coisa. Se o que menciona é verdade, que castidade a minha71! Fico
alarmado, desencorajado e arrasado!” Em seguida engasgou-se em lágrimas
e pôs-se a declamar estes versos:

Costumava chorar os erros do passado,


Enquanto quem amava estava a meu lado.
Mas agora que o fado os separou de mim,
Choro deveras os amores que afinal perdi.
Que vida a de um homem cujas lágrimas
Estão entre vivos e mortos divididas!

»Em seguida, baixou a cabeça pensativamente, até que a ergueu para um


servente seu, e disse: “Vai até casa de Ibn Tâhir e indaga se ele ainda lá vive
ou se abalou como se conta, e inteira-te para que banda foi e com que
intuito.” E lá partiu o criado.» E o joalheiro e Ibn Baccar continuaram a
conversar.
[E foi o joalheiro quem contou:] «Conversámos um tempo, sendo que ele
estava atónito, e ora dava atenção ao que eu dizia, ora virava a cabeça para
outra banda, e ora me falava, ora inquiria sobre mim. E após isto, veio o
criado e disse: “Senhor, indaguei sobre ele, e a sua gente deu-me parte que
ele se foi para Baçorá faz dois dias. E vi ainda uma rapariga em pé à porta
da casa dele que também indagava sobre ele. E em me vendo conheceu-me,
mas eu a não conheci, e ela perguntou-me: ‘Não és criado de Ali ibn
Baccar?’ Disse-lhe que sim, e ela afirmou que tinha uma carta para si de
alguém que é a pessoa mais estimada por si, e ela está em pé à porta.” E Ali
ibn Baccar disse: “Fá-la entrar.”»
Então, entrou uma rapariga indescritivelmente linda, tal como o
perfumista Ibn Tâhir havia mencionado ao joalheiro, e por isso este
percebeu quem era ela. Ela aproximou-se e cumprimentou Ali ibn Baccar.
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite;
se o rei me poupar e eu viver, será ainda mais estranho.»
186.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que em a aia entrando, aproximou-se


de Ali ibn Baccar, e conversou com ele em segredo, e ele durante a
conversa jurava e insistia que não tinha conhecimento do que ela afirmava.
Ao depois, ela despediu-se dele e abalou, deixando-o tão endoidado como
se estivesse a arder no fogo do Inferno.
E foi o joalheiro quem contou: «Em encontrando ocasião para lhe falar,
disse: “Sem dúvida que estás a fazer junto do palácio do califa alguma
solicitação ou que entre tu e as gentes do palácio há alguma transação.” Ao
que ele replicou: “Que te leva a dizer isso?” E eu respondi: “Porque
conheço esta criada.” E ele perguntou: “E a quem pertence ela?” Ao que eu
disse: “Pertence a Xamsennahar, escrava de Arraxide, que não tem ninguém
que estime mais do que a ela, nem mais inteligente, ou mais graciosa,
vigorosa, vivaz ou tenaz. Há dias, interpelou-me a propósito de uma
missiva alegando que ela suspeitava que fosse de uma concubina para a sua
patroa.”»
Em seguida, o joalheiro deu-lhe a conhecer a prosa e os versos da tal
missiva; [e foi o joalheiro quem contou:] «Com tal coisa Ali ibn Baccar
ficou bastante perturbado e muitíssimo preocupado, a tal ponto que receei
que ele morresse ali mesmo por se sentir exposto, mas em seguida
recuperou o ânimo, e disse: “Por amor de Deus, peço-te que me digas a
verdade verdadeira sobre como conheces a rapariga.” Ao que eu disse:
“Deixemo-nos disso!” E ele disse: “Não sou pessoa para desistir enquanto
não ouvir a verdade!” Então disse-lhe: “Assim seja, para que não entre em
ti qualquer suspeita de mim, nem te aflija alguma dúvida ou te entregues a
juízos errados sobre mim, nem pela tristeza fiques contaminado ou pela
desconfiança sejas dominado, para que o medo não te tome nem segredo te
seja ocultado, juro por Deus que segredo algum teu revelarei nem enquanto
viver coisa alguma te esconderei, nem te atraiçoarei ou a dar-te conselhos
me pouparei.” Então ele disse: “Conta-me o que tens a contar.” E contei-lhe
tudo de fio a pavio, e disse-lhe: “Nada disto teria feito senão fosse pela
estima, zelo e compaixão que tenho por ti. Nada mais quero que pôr a
minha pessoa ao teu dispor, e as minhas posses estão à tua inteira
disposição. Serei teu amigo em vez do outro fulano, ajudar-te-ei mais do
que um irmão, dos teus segredos serei guardião, um consolador da alma e
do coração. Por isso, anima-te e regozija-te!” E em seguida renovei-lhe os
protestos da minha boa fé. Ele desejou que Deus me recompensasse com o
bem, e disse: “Não sei que te dizer, que fiques com Deus Todo-Poderoso
que avaliará a tua hombridade.” Em seguida, pôs-se a declamar estes
versos:

Dissesse eu aguentar ele haver partido,


Desmentir-me-iam choros e ais.
Oh! são minhas lágrimas torrenciais
Por amigo ido ou amor que venero?
Seja por quem bem longe se exilou
Ou por próximo que me ignorou,
Não livro meus olhos de choro vero.

«E ficou em silêncio um tempo. Então perguntou: “Sabes o que disse a


criada?” “Não”, disse eu, e ele disse: “Alegou que fui eu quem levou Ibn
Tâhir a ir-se embora, e que ele tomou essa decisão por acordo comigo, e
persistiu nesta ideia, não ouvindo as minhas palavras e não recuando nas
suas censuras. E eu não sei que fazer sem ele, porque ela o ouvia, gostava
dele, e aceitava o que ele dizia.” Então eu disse: “Se bem compreendi esta
situação, poderei ser um conforto para a tua preocupação.” Então Ali ibn
Baccar perguntou: “E como pode alguém fazê-lo se ela foge como se
fugisse de uma fera?”»
E o joalheiro disse: «Vou fazer todos os esforços para te ajudar e auxiliar,
e vou recorrer a qualquer meio para manter o teu segredo, para que não
fiques num aperto ou sofras qualquer malefício, com o auxílio de Deus
Todo-Poderoso e da Sua bondade e generosidade. Não aflijas o teu coração,
juro por Deus que a nada me pouparei e que tudo farei para que o teu desejo
se concretize.” Dito isto, o joalheiro pediu licença para se retirar. E Ali ibn
Baccar disse: “Caro senhor, tanto recebo de ti! Não poderias ter sido mais
engenhoso em tão curto espaço de tempo; tu compreendes como passo eu
face a esta situação, por isso confio na tua amizade, e na tua oferta de
intimidade, e sei que o segredo manterás graças à tua hombridade, e que
estaremos ligados pela fraternidade.”»
[E foi o joalheiro quem contou:] «Abraçou-me e beijei-o, e despedimo-
nos um do outro.»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite;
se o rei me poupar e eu viver, será ainda mais estranho.»
187.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o joalheiro disse: «Ao depois


despedi-me dele, e saí de sua casa sem saber aonde me dirigir nem com o
que contar. Não conseguia imaginar que astúcia empregaria com a rapariga
para lhe dar a saber que eu tinha conhecimento sobre no que estavam
metidos eles os dois. Então pus-me a caminhar pensando, e eis que dou com
uma missiva caída no chão72. Peguei nela, abria-a, e eis o que nela estava
escrito:

Em nome de Deus, o Todo Misericordioso, o Mui Misericordioso

Veio o mensageiro com boas novas e esperanças,


Mas percebi que era juízo errado o que ele dizia.
E em vez de alegria senti ainda mais tristezas,
Sabendo que o meu mensageiro más novas trazia.

Senhor meu, que Deus te poupe, tu saberás o que rompeu as ligações de


confiança entre nós, assim como a nossa correspondência. Se o delito
proveio de ti, eu respondo com fidelidade, e manter-me-ei paciente e
indulgente se de ti se foi a lealdade. Se aquele amigo se foi por tua
instrução, é porque conseguiste encontrar quem goste de ti, e guarde o teu
segredo, sendo amigo do peito e leal ao teu coração. Não sou a primeira
pessoa a quem se lhe deparou perder o caminho, ficando de rastos, ou que
algo almejou, mas os decretos do destino se lhe opuseram negando-lhe tudo
quanto amava e desejava. Que Deus Todo-Poderoso traga a esta alma uma
rápida aliviação e uma veloz salvação. E haja paz.

[E foi o joalheiro quem contou:]

Enquanto eu lia a missiva e me espantava com ela, pensando em quem a


teria deixado cair, eis que aparece aquela rapariga, com um ar atrapalhado e
estupefacto, olhando para o chão, e virando-se ora para a direita, ora para a
esquerda, mas a missiva estava na minha mão. Então ela veio atrás de mim,
aproximou-se, e disse: «Senhor meu, esta missiva deixei-a eu cair. Tenha a
bondade de ma entregar.» Mas eu nem sequer lhe devolvi resposta, e pus-
me a andar, com ela atrás de mim, até chegar a minha casa, onde entrei, e
ela também. Logo que me sentei, ela se aproximou e disse: «Olhe, tanto
quanto sei esta missiva não tem qualquer benefício para si. Nem sabe quem
a enviou nem para onde vai ela. Porque não ma devolve?» Então disse-lhe:
«Senta-te e sossega, acalma-te e escuta.» E em ela se sentando, perguntei-
lhe: «Não é esta a letra da tua senhora Xamsennahar, e não se dirige ela a
Ali ibn Baccar?»
Então ela ficou lívida e alarmada, e disse: «Que escândalo! Expôs-nos e
expôs-se a si mesmo! O amor veemente entregou-o aos mares do delírio, e
isso levou-o a lamentar-se dos seus ardores com os amigos e conhecidos,
sem ver as consequências de confiar a verdade a qualquer um.» Em
seguida, levantou-se para se ir, e em eu a vendo partir naquele estado que
poderia trazer a Ali ibn Baccar difamação e provocar a sua aniquilação,
disse-lhe: «Olha, os corações das pessoas são testemunhas uns dos outros,
mas tudo o que deve ser escondido cada um o nega e rejeita, excepto no
amor, pois é estritamente necessário ao ser humano revelá-lo para procurar
ajuda na opinião dos outros sobre a tribulação que o aflige. Além do mais, o
amor tem indícios que o denotam e sinais que o indiciam, os quais não se
dissimulam. Acusaste Abu-al-Haçane de algo que ele é inocente, e
enformaste pensamentos atrozes sobre ele. E no que toca a Ali ibn Baccar,
não foi ele quem revelou o vosso segredo, nem divulgou coisa alguma ou
fez algo reprovável, mas é recompensado com os teus maldizeres e maus
pensamentos. Proponho-te algo que te vai agradar, aliviar-te de ânsias,
acalmar as tuas inquietações, e dar-te a conhecer a justifi-cação do
comportamento de Ali ibn Baccar, mas antes tenho de me certificar que
confias em mim e juras que nada me vais esconder do vosso caso. Se há
alguém que sabe esconder um segredo sou eu, e sou perseverante perante a
adversidade, defendo sempre o meu amigo, e ajo conforme as leis da
hombridade e da cavalaria em tudo o que me empenho a fazer, em qualquer
tarefa que me seja delegada.»
Ao ouvir as minhas palavras, suspirou, e disse: «Ninguém perde um
segredo do qual tu sejas o guardião, nem cai em logro com o teu manejo e
vigilância. Eu deposito em ti um tesoiro que a ninguém pode ser revelado,
senão a quem seja seu dono ou a quem deva ser entregue. Dá-me mais
detalhes, e se vieste para falar claramente, que Deus e os anjos sejam
minhas testemunhas…»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se o rei me poupar e eu viver.»
188.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que a criada disse ao joalheiro: «Se


vieste para falar claramente, que Deus seja testemunha do que eu te confio
e, como tal, deste segredo te faço guardião e vigilante.»

[E foi o joalheiro quem contou:]

Então contei-lhe o que disse ao moço Ali ibn Baccar, o que fiz com Ibn
Tâhir para o convencer, e como fiz para ser recebido pelo moço Ibn Baccar.
Em seguida, disse: «E também a missiva que caiu das tuas mãos indicia a
minha boa vontade neste assunto, no qual me não queria meter.» Ela ficou
espantada, e eu reafirmei-lhe a minha promessa e juramento, e também a fiz
prometer que ela me não esconderia coisa alguma do caso daqueles dois.
Então ela pegou na carta, selou-a, e disse: «Vou dizer ao moço: “A
missiva foi me dada selada, e quero que lhe respondas, e também que seles
a resposta com o teu sinete, para me livrar de qualquer responsabilidade.”
Agora mesmo vou ter com ele para trazer a resposta, e venho ter contigo
antes de encontrar Xamsennahar.» Em seguida, despediu-se de mim, e
abalou, deixando o meu coração em fogo. E pouco tempo passou até ela
voltar, trazendo a missiva selada, e eis o que nela estava escrito:

Em nome de Deus, o Todo Misericordioso, o Mui Misericordioso


O mensageiro nossos segredos tinha em segurança
Mas críticas nos levantou e tomou-se de iras.
Arranjai um novo mensageiro de boa confiança,
Que seja honesto e deteste as mentiras.

A lealdade não abandonei nem num traidor me tornei. O que


prometi não quebrei e nem a amizade cortei. Da mágoa não me
separei, e salvo a perdição, após a nossa separação nada
encontrei. E sobre quem mencionais, nova boa ou má não sei nem
rasto dele enxerguei. O que eu desejo é estarmos juntos, e tanto o
desejo e tanto espero o reencontro, mas onde está quem o amador
espera eu não encontro. Da minha aparência podereis deduzir
como é a minha vivência, e da minha disposição a minha
perturbação, e da minha fala o que se passa na minha alma. E haja
paz.

E contou o joalheiro: «Aquela missiva e as suas palavras fizeram-me


chorar.» E a rapariga acompanhou-o no choro, partilhando os sentimentos
dele, e disse: «Não saias de casa nem te encontres com Ali ibn Baccar;
espera que eu volte amanhã, porque ele desconfia de mim, o que é
desculpável, visto que eu também desconfiei dele e estou desculpada, como
te vou mostrar, pois vou recorrer a qualquer meio para te encontrares com
Xamsennahar, a quem deixei deitada suplicando por novas do depositário
de segredos.» E dito isto, abalou.
[E foi o joalheiro quem contou:] «E ao outro dia, eis que ela aparece,
com um ar feliz, e eu lhe disse: “Que contas?” E ela volveu: “Fui ter com
ela e disse-lhe da missiva. Ela ficou preocupada e pelo transtorno foi
dominada. Então disse-lhe eu: ‘Não tenha medo nem fique triste, e não
fique inquieta que o seu caso com o Ali ibn Baccar não se desmoronará por
via da ausência de Abu-al-Haçane, porque já encontrámos um substituto.’ E
ao depois contei-lhe das tuas conversas com Abu-al-Haçane, como lhe és
chegado, e ao depois sobre ti e Ali ibn Baccar, e ao depois sobre como por
distração a missiva me caiu das mãos, e que a encontraste e te
comprometeste a manter o segredo. Ela ficou espantada com tudo isto, e
disse: ‘Gostaria de ouvir isso da boca dele, para confirmar o compromisso
dele para comigo, e com isso alegrar a minha alma, e ver quão firme é a
prontidão dele no que teve o mérito de propor.’ Por isso, apronta-te para
irmos com a bênção de Deus e o Seu auxílio.”»
Em o joalheiro ouvindo tal coisa, viu que era um assunto ponderoso, do
qual não podia fugir nem nele se precipitar. Então disse à criada: «Ó
mulher, fica sabendo que eu sou dos meandros do povo, e não como Ibn
Tâhir, o Perfumista, que pode entrar no palácio do califa justificando-se
com as suas mercadorias. Eu até tremia de medo quando ele me falava
nisso. Se a tua senhora me quer falar, que seja noutro sítio que não o palácio
do miralmuminim, porque eu não tenho espírito para tal cometimento.» E
ateimou na sua recusa em ir, enquanto a criada o incentivava, assegurando-
lhe protecção e segurança, mas sempre que ele já estava a ponto para ir com
ela, as pernas não lhe obedeciam e as mãos tremiam-lhe. Então ela disse-
lhe: «Deixa estar, ela vem ter contigo, não saias daqui.» Abalou à pressa,
mas sem antes tornar e dizer: «Ai de ti se em tua casa estiver quem possa
ouvir a tua conversa.»

[E foi o joalheiro quem contou:]

Respondi-lhe: «Não há mais ninguém em minha casa», e tomei o maior


dos cuidados possíveis. Ela saiu imediatamente, e tornou com uma dama
atrás dela, e atrás delas vinham duas aias. Em a dama entrando, o seu
perfume a casa inundou e a sua beleza a iluminou. Num pronto, levantei-me
e arranjei-lhe uma almofada. Ela sentou-se e eu sentei-me à sua frente. Em
seguida, ficou em silêncio até retomar o fôlego, e ao depois descobriu o
rosto, e não pude pensar senão que era um sol ou uma lua nascente.
Com a fraqueza a dominar-lhe os movimentos, ela tornou-se para a
rapariga e perguntou: «É ele?» E ela disse: «Sim, é ele.» Cumprimentei-a, e
ela devolveu-me os cumprimentos com as melhores maneiras, e disse: «A
confiança em ti levou-nos a vir a tua casa, a depositar em ti o nosso
segredo, e a contar com o teu silêncio. Que sejas tal como nós pensamos e
julgamos que és, porque em ti há dignidade, lealdade e hombridade.» Ao
depois, inquiriu sobre a minha situação, a minha família e as minhas
relações, e respondi-lhe a tudo aquilo que ela havia indagado sobre mim. [E
disse-lhe mais: «Minha senhora, fique sabendo que eu tenho uma casa além
desta, que uso para me reunir com os meus amigos e conhecidos, mas não
há lá nada.]73 Ao depois, pediu-me que lhe contasse tudo em detalhe, e eu
contei-lhe tudo de fio a pavio.
Então, ela suspirou, e lamentou-se pela partida de Ibn Tâhir, desejando
que Deus o recompensasse com o bem, e disse: «Ó fulano, fica sabendo que
as almas das pessoas são semelhantes nos desejos; se diver-gem nas suas
circunstâncias, convergem nos seus objectivos, ainda que se distanciem na
sua forma de acção, pois as pessoas são o que são, mas nenhuma obra se
realiza sem a fala, e nenhum objectivo se concretiza sem esforço, nem o
bem-estar se alcança senão após a fadiga.»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Ó mana, que história


tão boa», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado
com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei me poupar
e eu viver.»
189.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que Xamsennahar deu recomendações


ao joalheiro, e entre as coisas que mencionou, disse: «Não se revela um
segredo senão àquele em quem se confia, e ninguém se pode empenhar em
coisa alguma sem a devida aptidão, e para se ter sucesso é necessário
alguém dotado de hombridade e generosidade, e não se pode incumbir uma
missão senão a alguém com os valores da cavalaria e da dignidade. Não se
presta agradecimento a uma pessoa senão na medida da bênção que os seus
actos trazem, tendo em conta a felicidade que resulta das suas intenções, e o
seu empenho e generosidade. A minha situação tornou-se clara para ti, tu
agora conheces o segredo, e ninguém te excede em hombridade e
humanismo, ao passo que eu não encontro perseverança que me permita
viver muito mais. E esta rapariga tu já a conheces ao ponto de saberes como
aprecio o seu bom comportamento e elevada distinção, sendo ela a guardiã
do meu segredo e quem trata o meu caso com Ali ibn Baccar. Por isso,
confia nela e em tudo o que te diga ou te leve a fazer, e alegrarás a tua alma,
assim como a tua alma estará segura do que possas recear, pois não te
vamos pedir para ires a algum sítio sem antes avaliarmos se é seguro. Ela
vai-te trazer notícias minhas e será a intermediária deste caso.»

[E foi o joalheiro quem contou:] «Em seguida, ela levantou-se, mal se


tendo de pé, e levei-a até à porta de casa, e em me tornando para ela, vi
quão bela era ela, e certifiquei-me disso ao ouvir as suas palavras e ao ver o
seu agir, o que me deixou atónito e me fez perder a razão. Em seguida, fui
mudar de roupa, saí de casa e fui a casa do moço Ali ibn Baccar. Os criados
correram na minha direcção vindos de todas as bandas, levaram-me até ele
e encontrei-o deitado, e ele em me enxergando, disse: “Bem-vindo!
Demoraste em aparecer e fizeste-me ficar ainda mais preocupado.” E mais
disse: “Não preguei olho desde a última vez que te vi. Ontem veio a
rapariga com uma missiva selada”, e contou-me o que se havia passado e o
que ele havia escrito, “Ó fulano, estou confuso com a minha situação, a
perder a paciência, e não encontro forças nem saber que me levem ao alívio.
Aquele Abu-al-Haçane era um grande homem, capaz de me fazer alcançar o
meu objectivo, graças a ela o conhecer e estar à vontade com ele.” Então ri-
me, e ele disse: “Porque te ris do meu chorar, havendo eu partilhado contigo
os detalhes da minha aflição e tribulação?” E declamou dizendo:

Quem ao ver meu chorar se ri da minha dor,


Choraria houvesse passado igual tribulação.
Pois ninguém pena sente pelo sofredor,
Senão um moço sofrendo a mesma aflição.»

Em o joalheiro ouvindo a poesia dele, pôs-se a contar-lhe o que lhe havia


sucedido dês que se haviam separado, e em o joalheiro terminando o seu
relato, Ali ibn Baccar chorou desalmadamente, e disse: «Em qualquer caso,
estou perdido, e entre aqueles que têm por destino a aniquilação estou
incluído. Ai, quem me dera que Deus apressasse o meu fim! que eu da
paciência já me despojei, e da recompensa já me privei, e toda e qualquer
determinação já abandonei. Se não fosses tu, de mágoa já teria morrido e
em paixão e devastação me consumido. Pois na minha situação és tu quem
me ajuda, e assim será até ao momento decretado pelo meu Senhor – para
Ele são os louvores e os agradecimentos, e d’Ele vêm a a graça e a
recompensa. Eis-me agora nas tuas mãos e teu prisioneiro. Em nada me
oporei a ti, e em tudo te obedecerei.»

[E foi o joalheiro quem contou:] Então, eu disse-lhe: “Meu senhor, nada


apagará esse fogo senão a reunião, mas que não seja neste sítio, sujeito ao
perigo, à ruína e a malefícios, e seja antes num sítio que eu já vi, num local
da minha escolha e conhecimento. A intenção é fazer-vos reunir, para que
possais conversar, lamentar-vos um junto do outro, e renovar os vossos
votos, num local em que possais sentir-vos à vontade e sem
constrangimentos.” Ao que ele disse: “Como queiras.”»
O joalheiro passou aquela noite com ele, fazendo-lhe companhia e
conversando com ele até ser manhã.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana, e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu:
«Isto nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima
noite, se o rei me poupar e eu viver.»
190.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Conta-se, ó rei, que o joalheiro disse:

Passei aquela noite em casa dele, e em a manhã amanhecendo volvi para


a minha, e mal me havia sentado, eis que a criada apareceu, e contei-lhe o
que se havia passado entre mim e Ali ibn Baccar. Então ela disse: «É
melhor que seja em nossa casa.» E eu disse: «A minha é mais segura.»
Então ela disse: «É certo o que dizes. Vou inteirá-la do que mencionaste e
propor-lhe o teu plano para a visita dela.» Ao depois, ela foi-se, e em
tornando, disse: «Vai para o sítio do qual falaste e apronta-o.» Dito isto,
sacou duma bolsa, estendeu-ma, e disse: «Isto é para comprares comida e
bebida.» Mas jurei que não o usaria, então ela pegou na bolsa e abalou, e
fui-me para a minha outra casa, irritado com a oferta que a rapariga havia
feito.
Como não tinha utensílio algum na casa, trouxe-os eu mesmo. Aliás, não
houve amigo algum a quem eu não haja pedido emprestado alguma
preciosidade. Arranjei tudo o que necessitava de oiros, pratas, tapetes,
colgaduras, e demais coisas que fossem necessárias, e comprei e aprontei
tudo o que iriam necessitar. Ora, veio a rapariga, e em vendo tudo aquilo
ficou agradada. Então, eu disse-lhe: «Vai ter com ele agora, e trá-lo à
socapa.» Ela abalou e tornou, trazendo-o no mais belo e elegante traje, e
todo ele estava airoso e gracioso. Recebi-o com deferência e reverência, e
sentei-o num sofá, dispondo ante ele todas as maravilhosas loiças, e quedei-
me a conversar com ele.
A rapariga abalou, e em seguida tornou após a oração do poente,
trazendo Xamsennahar com duas aias e ninguém mais. No momento em
que ela o viu e ele a ela, cada um foi dominado por tal paixão que não
foram capazes de se aproximar um do outro [, e perderam os sentidos74].
Fiquei aterrorizado ao ver tal coisa. Pus-me a tratar dele a uma banda,
enquanto a criada tratava dela noutra, até que ele acordou, e em seguida
acordou ela, e a força começou a lhes tornar. Ao depois, conversaram um
tempo com vozes combalidas, e trouxe-lhes bebida e eles beberam. Ao
depois, trouxe-lhes a refeição e come-ram. Então, desataram a agradecer-
me, e eu perguntei-lhes: «Quereis mais vinho?» Eles aceitaram, e levei-os
para outro salão onde se sentaram, e alegraram-se as suas almas,
sossegaram-se as suas inquietações, e os seus âmagos rejubilaram,
espantados com o que eu havia feito por eles, e, achando-me muito
simpático e prestável, puseram-se a beber.
Então, ela pergunta-me: «Tens um alaúde ou outro instrumento?» «Sim,
tenho», disse-lhe eu, e trouxe-lhe um alaúde. Ela pegou nele, afinou-o, e
cantou com elevada mestria.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha, ó mana», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o
rei me poupar e eu viver.»
191.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei, que o joalheiro disse:

Xamsennahar pegou no alaúde, afinou-o, e cantou com elevada mestria,


pondo-se a declamar uma poesia:

Ó mensageiro meu, não te intimides


E o envelope passa, se mensageiro és.
Não digas o que ele não disse ou ao revés.
Sacia-me apenas e só com as verdades.
Mesmo que resposta não haja
Com digna paciência viverei.
Mesmo que com desdenho aja,
Por maior que seja, o venerarei.

E cantou ela outra poesia:

Espertinei tal estivesse eu da espertina me enamorando,


E desvaneci-me como fora eu mesmo o definhamento.
E a lágrima banhou minha face em incendiamento.
Quem já viu alguém se afogando e se incendiando?
Jamais algo parecido com o que ouvi havia atravessado meus ouvidos.
Mas mal dei por ela eis que a casa parecia que se afundava por baixo dos
nossos pés, com estarrecedores sons e clamores, e um pajem meu que eu
havia posto à porta da casa veio ter comigo, e disse: «Arrebentaram-nos a
porta e não sei quem nos assalta», e enquanto falava e da açoteia uma criada
gritava, dez indivíduos atacaram-nos, munidos de adagas e apetrechados de
espadas, e atrás deles outros tantos vieram. No momento em que os vi, bati
em retirada porta fora, e refugiei-me em casa de um dos vizinhos [sem ele
dar por ela], e como nada ouvia senão tumultos e barulhos em casa, julguei
que a notícia do caso deles se havia espalhado, e que o intendente da polícia
os havia apanhado. Então fiquei escondido até pela meia-noite.

O joalheiro não podia largar o seu esconderijo; então, o dono da casa ao


descer viu alguém acaçapado a uma banda do corredor, e em o não
reconhecendo, retirou-se com medo, tornando em seguida de espada em
riste, e dizendo: «Quem está aí?» «Sou fulano tal, seu amigo», disse ele. E o
dono da casa disse: «Lamento o que se passou. Que Deus com a Sua
generosidade repare as suas perdas.» E o joalheiro disse: «Meu senhor,
diga-me quem eram aqueles.» E ele disse: «Aqueles foram os assaltantes
que roubaram o dinheiro de fulano tal, e que mataram fulano tal, e ontem
viram-no a transportar grande quantidade de utensílios luxuosos e valiosos,
então ajustaram-se para o roubar, e julgo que levaram o seu convidado ou o
mataram.» Em seguida foram os dois até à casa, e em o joalheiro lá
entrando, eis que ‘ela estava arruinada até aos alicerces’75, despojada de
tudo o que nela havia, com as janelas arrancadas e as portas arrebentadas.
Ao ver aquilo ficou aturdido e com o coração partido, e tomou-se de
pensamentos em torno do que sobre ele se abatera, o que lhe havia
acontecido e o que fizera a si mesmo, e com que modos iria apresentar
desculpas às pessoas – isto é, aos donos das pratas e oiros a quem os havia
pedido emprestado – e o que lhes diria. E preocupou-se também com
Xamsennahar e Ali ibn Baccar, receando que o califa soubesse do caso
deles por uma das aias, e assim a alma do joalheiro ir-se-ia embora e o seu
corpo seria destruído. Ao depois, virou-se para aquele homem, e disse:
«Irmão, que devo fazer? Tem algum conselho para mim?» E ele disse:
«Seja paciente, pratique a beneficência e encomende-se a Deus Todo-
Poderoso, porque aqueles já mataram na casa do intendente da polícia, e
mataram alguma gente entre os soldados da guarda pessoal do califa. Já
andam de olho neles, e montaram patrulhas nas estradas, mas ainda
ninguém os encontrou, e como são muitos, ainda não conseguiram ter a
audácia de os apanhar.» Então o joalheiro pediu protecção a Deus e tornou à
sua outra casa.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se o rei me poupar e eu viver.»
192.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o joalheiro pediu protecção a Deus


e tornou à sua outra casa, dizendo de si para si: «Isto que me aconteceu é o
que Ibn Tâhir receava.» E vindas de todas as bandas, as gentes
precipitaram-se a ir ter com ele, e havia quem ficasse em silêncio, e quem o
consolasse, e quem lhe exigisse os seus bens; e ele punha-se a agradecer
àquele e a recontar a história àqueloutro, defendendo-se, e assim passou o
dia, e nem em comida tocou.
E enquanto assim estava, eis que o seu criado lhe veio dizer: «Meu
senhor, quer responder a um homem que pergunta por si à porta de casa?
Não o conheço nem jamais o vi.» [Quando o joalheiro foi à porta de casa,]76
o homem cumprimentou-o e disse-lhe: «Tenho algo para lhe dizer.» E o
joalheiro disse-lhe: «Entre.» «Não», disse ele, «venha antes comigo à sua
outra casa.» Ao que o joalheiro lhe retorquiu: «E será que ainda me resta
outra casa?» E ele disse: «Sei o que lhe aconteceu e trago alívio para o seu
problema.»

E foi o joalheiro quem contou: «[E disse de mim para mim:] “Vou com
ele aonde ele queira.” Ao depois, caminhámos juntos até chegarmos à casa.
Em ele a vendo, disse: “Esta casa não tem porta, e não nos podemos sentar.
Vamo-nos!” E pôs-se ora a entrar num sítio ora a sair doutro, até que nos
veio a noite, sem havermos chegado a sítio algum.»
O joalheiro atónito nada lhe perguntava. E assim continuaram até que o
homem o levou a um descampado nas margens do rio Tigre, e lhe disse:
«Siga-me», e açodou-se. O joalheiro, que vinha atrás dele, reuniu forças
para o acompanhar no mesmo passo, até que o homem chegou a um bote,
parou, e subiram ambos a bordo, enquanto o barqueiro vogou para os
atravessar para a outra banda. Desceram ambos e o homem pegou na mão
do joalheiro, e levou-o por um longo caminho que ele jamais havia
percorrido e nem sabia a que parte de Bagdade pertencia.
Ao depois, parou junto à porta de uma casa, entrou, e fechou a porta com
um grande cadeado de ferro. Então, levou o joalheiro junto de dez jovens,
trajados todos de igual, e o joalheiro cumprimentou-os e eles retribuíram-
lhe o cumprimento, e mandaram-no sentar-se, e ele assim fez, morto de
cansaço e pelo medo dominado. Então, trouxeram-lhe água fria, e ele lavou
a cara e as mãos. Ao depois, serviram-lhe bebida, e ele bebeu, e trouxeram
comida, e comeram juntos.
Foi o joalheiro quem contou: «Se me quisessem fazer mal, não haviam
comido comigo. E em lavando nós as mãos, cada um tornou ao seu lugar, e
eu sentei-me ante eles.»
Então perguntaram: «Conheces-nos?» E ele respondeu: «Não. Nem o
sítio onde estamos nem quem me trouxe até vós.» E eles disseram: «Conta-
nos a tua história, sem intrujices.» E o joalheiro disse-lhes: «A minha
história é espantosa, sabereis vós alguma coisa dela?» E eles disseram:
«Sabemos, sim. Fomos nós quem ontem levou os teus bens, o teu
companheiro, e a trovadora que estava em tua casa.» Então o joalheiro
disse: «Que Deus desça sobre vós o véu da Sua protecção! Onde estão o
meu companheiro e a trovadora?» Eles apontaram para duas salas à frente
deles, e disseram: «Cada um está numa sala, e afincaram que ninguém
deveria saber sobre a história deles senão tu. Dês daí que não nos reunimos
com eles nem os questionámos mais. Vimos quão finos eram os seus trajes,
o que nos deixou confusos e nos impediu de os matar. Então, conta-nos a
verdade sobre eles, e tanto tu como eles estarão em segurança.»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se o rei me poupar e eu viver.»
193.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que em o joalheiro ouvindo aquilo, foi


como se morresse de medo, e disse-lhes: «Se no mundo a hombridade se
perdesse, poder-se-ia ainda assim achá-la entre vós; se houver um segredo
cuja revelação se receie, ninguém o guardaria senão vós; e ninguém
resolveria uma situação difícil senão vós com as vossas energias.» [E foi o
joalheiro quem contou:] «Durante aquele discurso não me poupei ao
exagero.» Mas o joalheiro viu que se naquele momento tomasse a iniciativa
de dizer a verdade, isso seria mais conveniente e útil do que escondê-la, até
porque à medida que passava o tempo, mais provável seria que a mesma
fosse revelada. Então, pôs-se a contar-lhes tudo até acabar a história. Ao
que eles disseram: «E este é Ali ibn Baccar e esta é Xamsennahar?» «Sim»,
disse ele, «nada vos escondi e tudo vos revelei.»
Eles ficaram perturbados com aquilo, suspiraram, e foram ter com o
moço e a rapariga, pedindo-lhes desculpa. [E foi o joalheiro quem contou:]
«Eles disseram-me: “No que toca ao que levámos de tua casa, uma parte já
se foi; mas aqui está o que resta”, e em seguida devolveram-me a maioria
do oiro e prata, dizendo: “Nós mesmos o vamos levar para a tua outra
casa.”» E dividiram-se em dois grupos, o joalheiro foi com um e eles foram
com o outro.

[E foi o joalheiro quem contou:]

Então saímos da casa, com Ali ibn Baccar e a rapariga à beira da morte, e
nada os movia senão o medo e o desejo de se salvarem. Acerquei-me deles
e perguntei-lhes: «O que fez a criada e onde foram as duas aias?» E ela
disse-me: «Não faço ideia.»
Levaram-nos até à água, embarcaram-nos naquele bote, e remaram
levando-nos à outra banda, onde descemos. E mal havíamos pisado terra,
eis que fomos cercados pela cavalaria, ao que os bandidos lançaram-se logo
ao bote tais águias, e voaram dali para fora, ficando nós na margem sem
poder sair dali. «Quem sois?», perguntaram eles, hesitando nós em devolver
resposta. Então, eu disse: «Aqueles eram um grupo de bandidos que ontem
nos raptou, e nós ficámos com eles até agora, e nenhum coração deles se
compadeceu de nós, até que nós os conquistámos com palavras mansas e
eles lá nos deixaram ir embora e nos libertaram, e vós os haveis visto.»
Então olharam para mim, para a rapariga, e para Ali ibn Baccar, e
disseram: «Não falas verdade. Quem sois vós, e por que nome sois
conhecidos, e em que bairro viveis?» Não sabíamos que lhe dizer, e então
Xamsennahar puxou o almocadém deles à parte, falou com ele, e num
pronto ele desceu da sua cavalgadura e ela montou-a, enquanto ele puxava
as rédeas para a conduzir, e a mesma coisa foi feita com Ali ibn Baccar e
também comigo.
Ao depois, levou-nos77 até um sítio, e gritou a um homem, que trouxe
duas barcas. O almocadém e nós os três embarcámos numa e o seu séquito
embarcou noutra. Em seguida, os barqueiros remaram e levaram-nos até ao
palácio do califa, estando nós quase mortos de medo, e em o almocadém
fazendo sinais ao nosso bote, remaram até atravessarmos para um sítio que
nos levaria ao nosso bairro. Então descemos com dois soldados encarregues
de zelar pela nossa segurança, e chegámos a casa de Ali ibn Baccar, e em
entrando os soldados despediram-se de nós. Já dentro de casa, deixámo-nos
cair sem olhar a onde, ficámos imóveis e sem saber onde estávamos, até que
a manhã nos veio, mas nós não acordámos, até ser final do dia, quando me
mexi um pouco e dei com homens e mulheres chorando à cabeça de Ali ibn
Baccar, que estava imóvel. Em se apercebendo que eu estava desperto,
fizeram-se sentar e disseram: «Conta-nos o que lhe aconteceu, pois tu és a
causa da desgraça dele.» Então eu disse: «Ó gentes…»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se o rei me poupar e eu viver.»
194.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que em eles indagando junto ao


joalheiro sobre Ali ibn Baccar, ele disse: «Ó gentes, parai com isso. Pois a
história dele não pode ser ouvida ante testemunhas.»

[E foi o joalheiro quem contou:]

E enquanto eu lhes implorava e os assustava com a iminência de um


escândalo, eis que o moço se mexeu na cama, deixando todos contentes.
Então uns abalaram e outros ficaram, mas eu fui impedido de tornar a
minha casa e de ir à minha vida. Botaram-lhe água de rosas com pó de
almíscar, e ele acordou. Puseram-se a fazer-lhe perguntas, mas a sua fala
estava muito fraca para conseguir devolver resposta. Mal pude acreditar
quando ele lhes fez sinais para que me deixassem ir embora.
Então vim para minha casa com dois homens que me carregaram. Em me
vendo naquele estado, as gentes de minha casa puseram-se a bater nos seus
próprios rostos e a gritar. Fiz-lhes sinal para que parassem, e assim fizeram
eles, e os dois homens foram-se.

Ao depois, o joalheiro dormiu a noite toda.

[E foi o joalheiro quem continuou a contar:]

Ao depois, acordei e a minha família, filhos e amigos estavam à minha


cabeceira, e disseram: «Que te sucedeu?» Então solicitei água, lavei a
minha cara e mãos, e trouxeram-me bebida. Bebi, mudei de roupas, e
agradeci aos visitantes, e disse: «A bebida domou-me e fiquei como vedes.»
Então, a multidão abalou, e eu pedi desculpa à minha família, prometendo-
lhes a restituição do que se havia perdido, e eles informaram-me que uma
parte já lhes havia chegado, que um homem a havia botado à entrada de
casa, e abalara à pressa.
Descansei ficando em casa por dois dias, mal me conseguindo levantar.
Em reganhando o vigor, fui aos banhos, com o coração em fogo,
preocupado com o rapaz e com o que seria feito da rapariga78. Durante
aqueles dias, não me atrevi a aproximar-me da casa dele ou a quedar-me em
sítio algum, com medo de o encontrar. Arrependi-me ante Deus da minha
conduta passada, dei esmolas por estar salvo, e confortei-me com o resto
dos bens que se haviam perdido. Então disse: «Vou a tal sítio para ver
pessoas e divertir-me, para compensar o convívio que o destino me levou.»
Então saí, e caminhei enquanto me admoestava, e fui ao mercado de
tecidos, onde me sentei um tempo na loja de um amigo.
Ao me levantar para sair, vi uma mulher de pé à minha frente, e ao olhar
melhor para ela, eis que era a rapariga, e o mundo obscureceu-se ante os
meus olhos. Então caminhei apressadamente, enquanto ela me seguia,
entrando em mim um colossal temor, e só de pensar em parar para lhe falar
era tomado de pavor, e ela ia dizendo: «Páre meu senhor, e oiça o que tenho
a lhe dizer.» Até que acabei por ir dar a uma mesquita num lugar ermo.
Entrei e a rapariga entrou atrás de mim. Mostrando pena de mim,
perguntou-me como estava eu. Então contei-lhe a minha história e a de Ali
ibn Baccar. Ao depois disse-lhe: «Dá-me parte do que te aconteceu a ti e à
tua patroa depois de nos havermos separado.»
E ela disse: «No que toca à minha história, em vendo os homens julguei
que fossem os soldados para me prenderem, a mim e à minha senhora, de
imediato levando à nossa perdição. Então fugi pelas açoteias, com as duas
aias, e lançámo-nos de lugar em lugar, até que entrámos numa casa de gente
que teve misericórdia de nós, e nos recebeu bem. Chegámos ao palácio no
dia seguinte no pior dos estados, e não dissemos a ninguém o que se havia
passado. Eu fiquei como se estivesse numa frigideira ao lume, até que de
noite abri a porta que dava para o rio, solicitei aquele barqueiro, e disse-lhe:
“Ó tu! esquadrinha o rio e vê se encontras um bote com uma mulher lá
dentro.” Em a noite indo a metade, um bote aproximou-se da porta, e nele
estavam dois homens, um que remava e outro em pé, e uma mulher
estendida a uma banda, e o bote acostou à porta e a mulher desembarcou, e
eis que era a minha senhora, então fiquei fora de mim de alegria por ela
estar em segurança.»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite;
se o rei me poupar e eu viver, será ainda mais espantoso e estranho.»
195.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que a rapariga disse ao joalheiro:

Em a vendo, alegrei-me por ela estar em segurança, e pus-me ao seu


serviço, então ela ordenou-me que desse àquele homem mil dinares, e dei-
lhe aquela bolsa que te levei a ti e que tu não aceitaste. Ele agradeceu e
abalou. Fechei a porta e tornei, e com duas outras criadas carreguei
Xamsennahar, e deitámo-la na sua cama, e a sua alma estava quase a dela se
separar. Ficou naquele estado o resto da noite e o dia seguinte, havendo eu
proibido as criadas de a incomodarem. Ao depois, ela acordou, como se
houvesse saído dum túmulo, então irrorei-a com água de rosas com
almíscar, mudei-lhe as roupas, lavei-lhe os pés e as mãos, e dei-lhe bebida.
Continuei a apaparicá-la, apesar dela mo tentar impedir, e servi-lhe uma
refeição.
Em a sua saúde começando a melhorar, admoestei-a dizendo-lhe: «Já viu
o quanto baste do que lhe pode suceder, e esteve perto de perder a vida.» Ao
que ela disse: «A morte seria mais fácil para mim do que o quanto passei. Já
não acreditava que viesse a estar em segurança, nem duvidei que fosse
morrer. Em os bandidos me havendo levado da casa, indagaram-me sobre
quem eu era, e eu lhes disse: “Sou uma cantora”, e indagaram junto do meu
amado sobre ele, e ele disse: “Sou apenas uma pessoa do povo.” Acabaram
por nos levar para o poiso deles, e nada senão o medo e o temor nos fazia
seguir com eles.
»Em tomando eles os seus lugares, olharam para mim vendo o que eu
tinha de jóias, e então desacreditaram no que eu havia dito, e disseram:
“Um cantora não tem essas jóias, conta-nos a verdade sobre vós dois.” Mas
eu abstive-me, e eles disseram a Ali ibn Baccar: “E tu, quem és? O teu traje
não é o de alguém do povo.” E como nós ficámos calados, perguntaram:
“Por que nome é conhecido o dono daquela casa?” E nós dissemos:
“Fulano, filho de fulano.”79 Então um deles disse: “Eu o conheço, e sei
onde mora. Se tiver sorte, vou trazê-lo agora mesmo.” Entretanto,
acordaram em me pôr num sítio e a ele noutro, e [o arrais deles]80 disse-
nos: “Descansai até que se descubra quem sois, e não tenhais medo, estais
em segurança, tanto as vossas vidas como os vossos pertences.”
«O comparsa deles saiu e trouxe fulano – isto é, o joalheiro –, que
revelou quem éramos, então pediram-nos desculpas, e num pronto [o arrais]
ergueu-se e foi buscar o bote, onde nos embarcaram, levando-nos para a
outra banda, onde nos saiu ao caminho o chefe da patrulha da noite. Fiz-lhe
um sinal para lhe falar, e disse-lhe: “Sou fulana tal, embebedei-me, e saí
para visitar algumas conhecidas minhas, então veio aquela gente e levaram-
me, e aconteceu aqueles dois homens estarem também com eles, e
acabaram por me trazer, mais aqueles dois, e me não faltam meios para o
recompensar.” Então ele desceu da sua cavalgadura, montou-me nela, e
fizeram o mesmo com os outros dois, e trouxeram-nos, como vistes, e não
sei o que é feito dele e de fulano, e o meu coração está em fogo por mor de
ambos, sobretudo do companheiro de Ali ibn Baccar, cujos apetrechos se
foram. Pega em algum dinheiro, vai ter com ele e indaga sobre Ibn Baccar.»
Então repreendi-a e alarmei-a, dizendo-lhe: «Tema Deus e deixe-se desta
conduta, que só a paciência a pode proteger.» Ela ficou furiosa com as
minhas palavras e gritou-me. Então levantei-me, saí, e vim a sua casa
procurá-lo, pois não me atrevi a ir a casa de Ibn Baccar. Agora estou ao seu
serviço, tenha a bondade de aceitar o dinheiro, pois as suas perdas são
vastas, e tem de devolver às pessoas o que se perdeu.

Então o joalheiro disse:

Levantei-me e fui com ela até a determinado sítio, e ela disse-me: «Fique
aqui até eu tornar.»
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana, e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu:
«Isto nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima
noite.»
196.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que a rapariga disse: «Fica aqui até eu
tornar.»

[E foi o joalheiro quem contou:]

Ela voltou trazendo uma pesada carga [de dinheiro], entregou-ma e disse:
«Vá com a protecção de Deus. Onde nos encontramos?» Eu disse-lhe:
«Vem a minha casa. Entretanto vou fazer todos os esforços possíveis para
ver Ali ibn Baccar, e fazer com que consigas encontrar-te com ele.» Aquele
dinheiro tornava fácil o que antes parecia difícil. E ela disse: «Receio que
não consiga encontrar Ali ibn Baccar, e eu não sei onde o ver a si.» Então
disse-lhe: «Vem à outra casa. Agora mesmo vou pôr portas novas,
certificar-me da sua segurança, e passamos a encontrar-nos nela.» Ao
depois, despediu-se de mim, e eu fui embora carregando o dinheiro, e ao
chegar a casa vi que de dinheiro eram dois mil dinares, o que me deixou
muito contente. Dei parte à minha família e outra aos meus credores para os
satisfazer. Fiz-me acompanhar pelos meus criados até à outra casa, mandei
chamar artesãos para renovarem as janelas e portas ainda melhor do que
estavam antes, e deixei duas criadas para velarem pela segurança e duas
aias para o serviço. Então saí de lá com o coração mais fortalecido, e
esquecido do que me havia acontecido, e fui a casa de Ali ibn Baccar.
Ao lá chegar, eis que os criados dele vêm ao meu encontro, e um deles,
radiante, beija-me a mão, e leva-me até Ali ibn Baccar, que estava numa
cama, incapaz de falar. Sentei-me perto dele, peguei-lhe na mão, e ele abriu
os olhos e disse: «Bem-vindo», erguendo-se para se sentar, mas não o
conseguia senão com muito esforço, «Graças a Deus que te vejo!» Então,
continuei a ajudá-lo em que se alevantasse até ele conseguir dar uns passos,
mudar de roupas, e tomar uma bebida, e tudo isso para me agradar.
Então, conversei com ele sobre os nossos assuntos, e em ele ficando mais
tranquilo, disse-lhe: «Conheço a tua aspiração. Rejubila-te, não há
novidades a não ser as que vão alegrar-te e tranquilizar o teu coração.» Em
seguida, fez sinal aos criados e eles se dispersaram. E disse: «Mas já viste o
que se abateu sobre nós?» Ao depois, desculpou-se e pôs-se a indagar.
Então contei-lhe o que havia acontecido após ele se haver separado de
Xamsennahar, e ele deu graças a Deus Todo-Poderoso, louvou-O e disse:
«Que excelência a dela! E que perfeita hombridade a tua!»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana, e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o
rei me poupar e eu viver.»
197.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o joalheiro contou a Ibn Baccar


sobre o que a escrava Xamsennahar lhe havia providenciado [de dinheiro].
Sim – disse Xerazade – ouvi dizer que em Ali ibn Baccar ouvindo as
palavras do joalheiro, disse: «Que excelência a dela! E que perfeita
hombridade a tua!»

[E foi o joalheiro quem contou:]

Em seguida, continuou a dizer: «Eu mesmo te vou devolver tudo o que se


te foi de utensílios e coisas outras.» Foi ter com o seu tesoureiro, dando-lhe
ordens, e este trouxe-me em tapetes, colgaduras, pratas e oiros mais do que
aquilo que se me havia ido. Embaraçado, agradeci-lhe a nobreza de
carácter, e disse: «O meu desejo de vos fazer felizes ambos é-me mais
importante do que os bens que recebo de ti. Lançar-me-ia a qualquer perigo
por mor de vós e pelo vosso amor.» Ao depois, passei o resto do dia e a
noite em casa dele, com ele combalido e sem forças para se mexer,
persistentemente suspirando e copiosamente chorando.
Em vindo a manhã, disse-me: «Ó tu, fica sabendo que tudo tem o seu
fim, e o fim do amor é a morte ou a união duradoira. Quanto a mim, da
morte estou mais perto, e ela é melhor e mais agradável do que isto. Ah!
quem me dera que o meu sofrimento me aniquilasse, ou que encontrasse
solaz, conforto e descanso. Não foi uma mas duas vezes, então se
organizares o nosso encontro e acontecer o que tu bem sabes, como poderá
a minha alma aguentar uma terceira, sem desculpa alguma ante as gentes, e
após o aviso de Deus Todo-Poderoso e Glorioso que ainda teve a
compaixão de evitar o escândalo? Estou desnorteado e não sei por que meio
vou encontrar salvação, e se não fosse o meu temor a Deus, já me teria
apressado a morrer, sabendo que tanto eu como ela estamos condenados à
aniquilação, mas não antes da hora certa. E chorou desalmadamente, e
declamou:

Quem está triste, que pode senão chorar?


Anseio por vos mostrar o meu amar.
Não durmo tal a noite às estrelas dissesse:
“Parai! Que a aurora não comece!”»

Então eu disse-lhe: «Tem paciência, meu senhor, aguenta-te, e encontra


tranquilidade para a tua alma na tristeza e na alegria. Tens de ser
perseverante.» Então ele olhou para mim, e declamou este versos:

Habituando-se estarão os seus olhos às lágrimas


Ou a digna paciência foi repelida pelas mágoas?
Costumava conter o segredo do seu devir
Mas os olhos denunciavam o que ia sentindo,
E sempre que as lágrimas queriam fluir,
O mundo o proibia, o amor lhe proibindo.

E eu disse-lhe: «Tenciono ir à casa, talvez a criada venha com alguma


nova.» Ao que ele disse: «Vai em segurança, e por favor, despacha-te a
voltar, pois já viste o estado em que me encontro.» Então fui à casa, e mal
me sentei eis que a rapariga aparece a chorar, perturbada, inquieta,
assustada, apavorada e atarantada, e então disse eu: «Que se passa
contigo?» E ela disse: «Aconteceu-nos de chofre o que receávamos. Ontem
após sair de tua casa, deu-se o caso de encontrar a minha senhora a dar
ordens para baterem numa das aias que esteve connosco. Então, a aia bateu
em retirada, e deu-se o caso de encontrar uma porta aberta, por onde saiu,
mas um dos eunucos, encarregues de vigiar as portas e as concubinas que
vivem connosco, aproveitou a oportunidade para a levar, a proteger e a
tratar bem, e ao depois interrogou-a, e ela fez-lhe alusões a algumas coisas
que se passaram na primeira noite e na segunda. Num pronto, ele a levou ao
miralmuminim, que a fez confessar, e ela confessou. Então o califa ordenou
que a minha senhora fosse transferida para os aposentos dele, e entregou a
guarda dela a vinte eunucos, e dês daí não se encontrou com ela nem lhe
deu a saber qual a devida causa da sua transferência. Uma coisa puxa a
outra, acabei por arranjar um meio para sair, e não sei o que fazer nem que
astúcia usar no que diz respeito à minha situação e à da minha senhora, e
não há quem ela mais estime do que a mim, e vossemecê sabe que eu sou a
guardiã do seu segredo.»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se o rei me poupar e eu viver.»
198.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que a rapariga disse ao joalheiro: «Vai


ter com Ali ibn Baccar, que esteja atento às nossas notícias, enquanto nós
tratamos de salvar as nossas vidas, e se for o caso contrário, então que ele
fuja para se salvar e às suas posses.»

Foi o joalheiro quem contou:

Foi um grande impacto de chofre, mal tinha forças para me pôr em pé.
Em a criada se indo, lá me levantei e me apressei a tornar à casa de Ali ibn
Baccar. Disse-lhe: «Cobre-te com paciência, traja-te de perseverança,
afasta-te da inquietação, cavalga o caminho da coragem, anima-te, e deixa
esses problemas que te levam ao prostramento e ao abatimento. É que
aconteceu algo que vai aniquilar a tua vida e destruir as tuas posses.» Ele
ficou pálido e perturbado, e disse: «Meu irmão, não me mates de susto! Dá-
me a conhecer o assunto de guisa clara e detalhada.» Então disse-lhe:
«Aconteceu isto e aquilo, a tua perdição é inevitável.» Ficou um tempo
atónito, e a sua alma quase dele se separava. Ao depois, recuperou e disse:
«Que faço?» E eu disse-lhe: «Pega naquelas tuas posses das quais te possas
socorrer, e nos teus criados de maior confiança, e eu farei o mesmo, e
dirigimo-nos para Alambâr81 antes que o dia se acabe.»
Então ele deu um salto, e endoidado ora andava ora tropeçava, e foi
aprontar-se o melhor que podia, deu uma desculpa à família, deixou-lhes
várias recomendações, e pôs-se em marcha para Alambâr, para onde ambos
caminhámos todo o dia e toda a noite. Ao final da noite, poisámos os nossos
fardos, atámos as patas dos camelos com uma corda de turbante, e
dormimos descuidados de montar guarda. Então, mal demos por ela, eis que
apareceram homens, que nos levaram as bagagens, os camelos e tudo o que
havia de dinheiro às nossas cinturas, despiram-nos as roupas, e mataram os
nossos criados, deixando-nos ali mesmo no mais mísero estado.

Nureddine Ali ibn Baccar disse ao joalheiro: «Que podemos fazer? Foi
Deus quem decretou este encaminhar das coisas.» [E foi o joalheiro quem
contou:] «Ao depois caminhámos até se tornar manhã, e alcançando uma
mesquita, entrámos nela, dois forasteiros pobres que não conheciam pessoa
alguma. Então sentámo-nos a uma banda todo o dia, sem ouvir coisa
alguma nem ver alguém que fosse, nem fêmea nem macho, e assim ficámos
aquela noite. E em amanhecendo, eis que um homem entrou na mesquita,
fez as suas orações, e virou-se para nós dizendo…»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se o rei me poupar e eu viver.»
199.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o joalheiro disse:

E eis que um homem entrou na mesquita, fez as suas orações, e virou-se


para nós dizendo: «Ó gentes, que Deus preserve as vossas vidas! Sois
forasteiros?» Ao que lhe dissemos: «Sim, fomos assaltados e não
conhecemos pessoa alguma a quem pedir refúgio.» E ele disse: «Quereis vir
para minha casa?» Então disse a Ali ibn Baccar: «Siga com ele, pois
alguém pode entrar nesta mesquita e nos reconhecer. E em segundo lugar,
nós somos forasteiros e não temos onde nos abrigar.» E ele disse: «Faz o
que entenderes.» E o homem perguntava-nos: «Então, o que dizeis?» E nós
lhe dissemos: «Às suas ordens.» Então ele despiu algumas das suas roupas,
deu-nas para nós as vestirmos, e nos disse: «Vamos; aproveitemos o lusco-
fusco.» E fomos com ele.
Em chegando ao lugar dele, bateu à porta e veio um criado pequeno de
idade abri-la. Ele entrou, e nós seguimos atrás dele. Então ordenou que
trouxessem um fardo com roupas e musselinas de turbante para que nos
vestíssemos e puséssemos turbantes. Ao depois, sentámo-nos, e eis que uma
criada pôs a mesa, e disseram-nos: «Comei sob a bênção de Deus Todo-
Poderoso.» Após havermos comido um pouco, ela levantou a mesa. Ao
depois, ficámos com o nosso anfitrião até cair a noite, quando Ali ibn
Baccar, suspirando ofegantemente mostrando quão triste estava sua mente,
me disse: «Fica sabendo tu que eu inevitavelmente vou morrer. Quero fazer-
te um pedido, que é o seguinte: aquando morra, avisa a minha mãe e pede-
lhe que venha a este lugar para me lavar e me aprontar para o enterro, e que
aceite resignadamente a minha partida.»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Ó mana, que história


tão boa e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu:
«Isto nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima
noite, se o rei me poupar e eu ainda for viva.»
200.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que ele fez um pedido, dizendo: «Pede
à minha mãe que se resigne.»

[E foi o joalheiro quem contou:]

Ao depois, ficou sem sentidos um tempo, e ao acordar ouviu a voz de


uma rapariga que declamava estes versos:

Entre nós a distância acelerou a separação


Depois de tão bela e harmoniosa companhia.
Quem dera ao amante que após a união
Cisão amarga não houvesse e não sofreria.
A dura agonia da morte pouco tempo dura,
Mas a dor da separação no coração fica.
Deus os amantes põe em juntura,
Mas a mim, por amar, me mortifica.

Em Ali ibn Baccar ouvindo aquilo, arranhou o último fôlego e a sua alma
libertou-se-lhe do corpo. Então amortalhei-o e recomendei-o ao dono da
casa. Fiquei lá dois dias até que na companhia de algumas pessoas alcancei
Bagdade, e entrei em minha casa. Então saí para ir a casa de Ali ibn Baccar.
Em os seus criados me vendo, receberam-me com cumprimentos, e eu
perguntei-lhes se a mãe dele me dava licença para ser recebido. Havendo
ela dado licença, entrei e cumprimentei-a. Em ela me arranjando lugar para
sentar, disse-lhe: «Oiça, que Deus a ajude e seja bondoso consigo. Deus
Todo-Poderoso dirige os seres humanos com os Seus desígnios, e ninguém
escapa aos Seus decretos e à Sua determinação.» Então, ela chorou
desalmadamente, e disse: «Por amor de Deus, diga-me, o meu filho
faleceu?» Mas de tanto soluçar e de chorar, não lhe consegui dar resposta.
Então, em ela sendo dominada pela tristeza, caiu desmaiada por um tempo,
e as criadas acudiram, sem haver posto os véus, e sentaram-na.
Em ela se recompondo, perguntou-me: «O que lhe aconteceu?» E disse-
lhe: «Foi tal e tal coisa, é uma grande dor para mim, valha-me Deus,
ademais eu era o seu melhor amigo e companheiro», e contei-lhe tudo o que
se lhe havia sucedido. E ela disse: «Se ele me houvesse revelado o âmago
do seu segredo… Fez-lhe algum pedido?» «Sim», disse-lhe eu, e dei-lhe a
conhecer os seus pedidos, e ela continuou em prantos, gritos e choros, ela e
as criadas.
Então, fui-me embora atordoado de tristeza, e o infortúnio dele não
deixava os meus olhos verem o caminho, enquanto seguia chorando,
pensando em como ele era tão jovem, e nas minhas visitas a casa dele, eis
que uma mulher me agarra na mão, e em abrindo os olhos reconheci-a, não
era outra senão a criada, trajada de negro e de destroçada aparência. Então
chorei aos soluços ainda mais, e ela chorou comigo, e caminhámos juntos
até àquela casa, onde lhe perguntei: «Já sabes as novas sobre ele?» «Valha-
me Deus, nada sei», disse ela. Então informei-a, e chorámos ambos.
Em seguida, perguntei-lhe: «Que sofreu mais a tua senhora para falecer?»
E ela disse: «Como já te contei, o miralmuminim transferiu-a [para os
aposentos dele], e não a confrontou com coisa alguma, julgando que o que
se dizia sobre ela era absurdo, devido ao amor dele por ela e por
compaixão. Até lhe disse: “Xamsennahar, tu para mim és a mais querida
pessoa, a mais bela, a mais virtuosa e aquela que das acusações que os teus
inimigos te lançam é mais inocente.” Em seguida ordenou que lhe
indicassem um quarto formoso e decorado a oiro, o que fez com que nela
entrasse uma aflição colossal e uma angústia descomunal.
»Ao final do dia, como era seu hábito, sentou-se para tomar uma bebida,
chamando as concubinas para que se sentassem nos sofás, e sentou
Xamsennahar à sua banda para lhes mostrar o estatuto dela aos seus olhos e
o lugar que ocupava no coração dele. Estando presente, ela estava ausente,
despojada de vigor e de ânimo, cada vez mais angustiada, com a fala
deturpada por medo do califa e do que este faria. Então, uma das raparigas
cantou para ela:

O amor chamou as lágrimas e responderam elas,


De mim escorrendo, encontrando-se no rosto.
Pelo peso das lágrimas, fatigadas, as pálpebras
Exibem o que oculto e ocultam o que exibo.
Como posso querer esconder o amor querido,
Se a tormenta de te desejar revela o que sinto?
Com o meu amado apartado tornou-se doce morrer.
Quem dera saber como vai ser se eu cá não estiver!

»Então, ela não aguentou, e chorou, caindo sem sentidos. O califa largou
logo o copo da mão, puxou-a para si, e eis que ela estava morta. Então
gritou ele e gritaram as raparigas, e ordenou que partissem os instrumentos
de música que estavam à sua frente, e estes foram partidos. Ele saiu num
ápice, ordenando que a levassem para o seu quarto, e ficou ante ela a noite
toda. Em amanhecendo, ordenou que a lavassem, a amortalhassem e a
enterrassem, sem fazer perguntas sobre o caso dela.»

Em seguida, ela disse: «Peço-te, por amor de Deus, se me avisas em que


dia [o corpo de] Ibn Baccar chega e é enterrado.» E o joalheiro perguntou-
lhe: «Onde te encontro?» «O miralmuminim alforriou-me, e a todas as
raparigas; passo o tempo todo na campa dela que fica em tal sítio.»

[E foi o joalheiro quem contou:]

Então fui com ela até ao cemitério, visitei a campa dela, e depois abalei.
E em sendo o quarto dia, chegou a procissão fúnebre de Alambâr, e as
gentes de Bagdade saíram todas à rua, gentes de todas as classes sociais,
assim como eu, e o corpo de Ali ibn Baccar foi recebido por homens e
mulheres, e foi um dia jamais visto em Bagdade. E eis que aquela rapariga
apareceu entre a família dele, ultrapassando a tristeza dela tanto a de
graúdos como de miúdos, com os seus gritos e louvores aos méritos do
morto, e com uma voz que qualquer coração despedaçava e qualquer corpo
destroçava, até que chegaram ao cemitério e o enterraram.
Nunca cessei de visitar o seu túmulo. E esta é, pois, a história de Ibn
Baccar e Xamsennahar.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Ó mana, que história


tão boa», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Na noite seguinte o que
contarei, a ti e ao nosso rei, será belo e estranho, comovendo o ouvinte, e
será uma história espantosa, se Deus quiser.»
201.ª Noite

Na noite seguinte, Dinarzade disse à sua irmã Xerazade: «Por amor de


Deus, ó mana, se não estiveres a dormir, conta-nos um dos teus belos contos
para entretermos a noite.» E Xerazade disse: «Assim farei.»

História da escrava Anice Aljalice e de Nureddine Ali ibn Khacane

Conta-se – mas só Deus conhece toda a verdade, pois Ele é invisível e


conhecedor dos relatos que remontam aos mais antigos tempos – que era
uma vez, na cidade de Baçorá, um rei que amava o pobre e o mendigo, cuja
providência em generosidade o fazia ser venerado pelos soldados, e cujas
pródigas mãos em se abrindo mares ofereciam, e os seus servidores
sentindo-se nobres o serviam, e até os dias e as noites o serviam, pois a vida
prazer lhe dava quando com o exército e os servidores a sua riqueza
partilhava, era tal como disse o poeta:

Um rei que em sendo cercado por hordas,


Os inimigos apraz com fúria mutilante,
E no dia do ataque as fileiras talha,
Uma a uma, os cavaleiros perfurando,
Deixando desferidas pelas espadas as marcas,
Os buracos das flechas e os rasgos das lanças.

E os cavalos agitam-se em colossal mar de sangue


Que brota das cabeças e narinas,
Um mar onde os mastros são lanças,
E nas velas com tanta flecha avulta,
O branco em sangue se oculta.

Em cada mão que abre há três mares,


E em cada mar há mil leões possantes.
O fado jurou que traria reis semelhantes.
Ó fado, redimi-vos! a promessa quebrastes.

Chamava-se Muhammad ibn Suleimane Azzainabi, e tinha dois vizires,


um chamava-se Almuíne ibn Saui, e o outro Alfadl ibn Khacane82. Este
vizir era uma das pessoas mais generosas do seu tempo, e ninguém se lhe
comparava, era bom de coração e nobre de conduta, e os corações das
pessoas eram unânimes em amá-lo, e as mulheres em casa faziam preces
para que a sua vida fosse longa, porque ele era o intermediário do bem e o
eliminador do mal, tal como disse quem o descreveu ao dizer:

Ajuda o seu amigo e não se poupa em piedade,


Alegrando a vida e a enchendo de felicidade.
Sempre que alguém aflito lhe bate à porta,
Só de lá sai quando sua alma ele conforta.

Já no que toca a Almuíne ibn Saui, não havia ninguém mais avarento,
maldoso, ignóbil e idiota. Era incapaz de falar com bondade, só praticava a
fealdade, e era mais manhoso que um raposo e mais ladravão que um cão,
tal como disse quem o descreveu ao dizer:

Abjecto, vil e duas mil vezes infiel,


Salteando quem chega ou parte.
Não há pêlo no seu corpo
Sem suor de uma vítima.

As pessoas amavam tanto Fadleddine ibn Khacane quanto odiavam


Almuíne ibn Saui. Ora, quis o destino que um dia de entre dias, estando o
rei Muhammad ibn Suleimane Azzainabi sentado no trono, com os
dignitários do reino em redor, gritasse ao seu vizir Fadleddine, dizendo:
«Quero uma escrava que não haja mais bela que ela na nossa era, nem mais
inteligente e culta, que seja perfeita em beleza e de superior lindeza.» Os
dignitários do reino e conselheiros-mor disseram: «Ó rei dos tempos, tal
rapariga não existe por menos de dez mil dinares.» Em tal ouvindo, o rei
gritou ao tesoureiro, dizendo: «Dá dez mil dinares a Fadleddine ibn
Khacane.»
O vizir acatou as ordens, recebendo aquela quantia, e saiu, após o rei lhe
haver mandado que fosse ao mercado todos os dias, se aconselhasse com os
intermediários sobre o que já mencionámos, e que não fosse vendida
escrava alguma que fosse bela e formosa, e que valesse mais de dez mil
dinares, sem que ela fosse mostrada ao vizir. E assim eles deixaram de
poder vender uma escrava que fosse sem primeiro consultarem o vizir.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se o rei me poupar e eu viver.»
202.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem aventurado, que todos os intermediários deixaram


de vender uma escrava que fosse sem primeiro consultarem o vizir, mas
nenhuma lhe agradou, até que um dia de entre dias, eis que ao vizir
Fadleddine ibn Khacane se apresentou um intermediário que se aproximou
do vizir enquanto este cavalgava a caminho do palácio real e lhe tocou no
estribo, beijou-o, e apontando para o vizir, pôs-se a declamar, dizendo estes
versos:

Ó quem curou os decrépitos ossos do rei!


Ó vizir, tu és sempre vitorioso, eu bem sei!
E a tua generosidade sobrevive à morte do rei!

E disse: «Ó grão-vizir, o que foi pedido por nobre ordem já chegou.» E o


vizir disse: «Trá-la.» Então, o intermediário desapareceu um tempo, e
depois veio trazendo uma rapariga à sua banda, com uns cinco pés de alto,
de seios bem firmes, olhos negros, maçãs do rosto macias, cintura estreita e
ancas largas, e a sua juventude era doçura sem igual, uma boca mais
deliciosa que xarope, porte mais elegante que os floridos galhos inclinando-
se ao vento, e uma voz mais delicada que a brisa da matina, tal como disse
quem a descreveu com estes versos:

O rosto qual lua cheia, que maravilha a sua beleza,


Mais nobre que uma manada de gazelas e antílopes.
Deus lhe deu elegância e virtude, honra e nobreza,
E um corpo brocado a oiro.
No seu rosto sideral sete astros tem,
Guardando seu rosto de olhares indiscretos.
Se alguém quiser vislumbre roubar com olhos endiabrados,
Com um dos seus astros ela o queimará e bem.

Em a vendo, o vizir ficou maravilhado com ela até mais não. Ao depois,
virou-se para o magano e perguntou-lhe: «Quanto custa esta rapariga?» E
ele disse-lhe: «Ó vizir meu senhor, fica em dez mil dinares, e o seu dono
jurou que os dez mil dinares [não cobrem] o custo das polhas que comeu,
nem o vinho que bebeu, nem cobre o custo dos trajes de honra ofertados ao
seu mestre, pois ela aprendeu caligrafia, expressão oral e escrita, língua
árabe, sintaxe, exegese alcorânica, fontes da jurisprudência islâmica, e
medicina, e também sabe tocar todos os instrumentos de música.» O vizir
disse logo: «Traz-me o dono dela.» Ele trouxe-o num pronto, e eis que era
um persa, a quem o passar do tempo já tanto havia polido que agora já nada
lhe restava, a tal ponto que para o deitar ao chão lhe puxar um cabelo
bastava, e até numa semente de jujuba83 ele tropeçava, tal como disse quem
o descreveu:

O tempo estremece-nos com tanto tremor,


E ninguém escapa ao seu tirânico vigor.
Ai! Tanto eu caminhava
E tampouco me cansava.
Mas agora tanto me canso
E tão pouco ando.

O vizir perguntou-lhe: «Ó ancião, aceitas por esta rapariga dez mil


dinares do rei Muhammad ibn Suleimane Azzainabi?» E o persa disse:
«Agar, ya baba84, valha-me Deus, se a déssemos ao rei de borla não seria
senão o nosso dever.» O vizir ordenou logo que apresentassem o dinheiro, e
foram pesados para o persa dez mil dinares. Ao depois, o magano achegou-
se ao vizir e disse…
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se o rei me poupar e eu viver.»
203.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem aventurado, que o magano achegou-se ao vizir, e


ante ele disse: «Ó vizir amo nosso, dá-me permissão para falar?» E ele
disse: «Diz o que tens a dizer.» E ele disse: «Amo nosso, é minha opinião
que não deve entregar esta rapariga hoje mesmo ao rei, pois como veio de
viagem, com a mudança de ares, sofre de indisposição. Seria melhor deixá-
la no seu palácio por quinze dias até lhe retornarem os traços naturais. Ao
depois, leve-a aos banhos, traje-a com os mais belos vestidos, leve-a ao rei,
e com isso será bem mais afortunado.»
O vizir reflectiu nas palavras do magano, e achou-as ajuízadas. Então,
levou-a para o seu palácio, e preparou um compartimento para ela,
providenciando-lhe todos os dias vinho, polhas e mudas de sumptuosas
roupas, e assim viveu ela um espaço de tempo.
Ora, o vizir tinha um filho macho que era qual o círculo da Lua, com uma
radiante face, maçãs do rosto rosadas com um sinal qual [disco de] âmbar-
gris e uma barba juvenil qual murta, tal como disse quem o descreveu:

É uma lua, e se olha fixamente encantos lança.


É um galho, e cativa com saracoteante porte,
O negro dos caídos cabelos, a pele dourada e forte,
O doce carácter e a postura que imita a lança.
Ó tu de coração duro e cintura delicada,
Porque não posso ficar só com o último atributo?
Se o coração dele delicado fosse tal sua cintura,
O amador não sofreria nem pecado haveria.

E tu que me censuras por amá-lo, perdoa-me,


Que ele se apoderou do meu coração e o habita,
E a culpa não é senão do meu coração e olhos.
Quem mais culparia eu por me matar de aflita?

E este moço nada sabia sobre a moça. Então o seu pai, o vizir, advertiu a
rapariga, lhe dizendo: «Ó filha, fica sabendo que eu te não comprei senão
para o rei Muhammad ibn Suleimane Azzainabi, e que tenho um filho que é
um diabo, não deixa moça alguma do bairro em paz enquanto a não
fornicar. Por isso, toma atenção com ele e cuida que ele te não veja a cara
nem a tua voz oiça. Porta-te como deve ser.» E ela disse: «Às suas ordens.»
Então o vizir deixou-a e foi-se embora.
E decretou o destino que um dia de entre dias ela fosse aos banhos do
palácio, onde uma outra escrava a lavou. Os banhos outorgaram-lhe o traje
de honra do contentamento, realçando-lhe a beleza e a formosura. E em ela
de lá saindo, trouxeram-lhe um vestido que fazia jus à sua juventude. Ela
vestiu-o e foi ter com a senhora mulher do vizir, beijou-lhe a mão e a
senhora lhe disse: «Anice Aljalice, que o banho te traga a bênção.» E ela
respondeu: «Senhora, que Deus lhe traga a felicidade e a bênção.» E a
senhora perguntou-lhe: «Anice Aljalice, como estavam os banhos?» E disse
ela: «Senhora minha, estão muito bons, e a sua água melhor não podia estar,
nada falta a não ser a presença da sua juventude.» A senhora disse logo às
raparigas: «Vamos aos banhos, que já faz uns dias que eu não lá vou.» E as
raparigas disseram: «Meu Deus, a senhora descobriu o que já estava nas
nossas mentes.» E ela disse: «Em nome de Deus, vamos», e levantou-se, e
com ela levantaram-se as raparigas.
Enquanto isso, Anice Aljalice foi para o seu compartimento com duas
raparigas de pequena idade, a quem a senhora encarregou de lhe vigiar a
porta, dizendo-lhes: «Tomai atenção e não deixeis que alguém se aproxime
do compartimento dela.» Ao depois, a senhora e as outras raparigas foram-
se para os banhos; quanto à rapariga, quedou-se no compartimento a
descansar dos banhos, e eis que Nureddine Ali [ibn Khacane, filho do vizir,]
entrou em casa da mãe, e em encontrando aquelas duas raparigas sentadas à
porta do compartimento, perguntou-lhes sobre sua mãe, e elas disseram…

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se o rei me poupar e eu viver.»
204.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que Nureddine perguntou sobre a sua


mãe e as suas criadas, e que as raparigas disseram: «Foram aos banhos.»
Então, em Anice Aljalice ouvindo a voz de Nureddine Ali disse: «Mas
quem será este moço que está falando? Será o moço sobre o qual me
avisaram?» Então levantou-se, ainda com a frescura dos banhos, avançou
até à porta do compartimento, e ao mirar Nureddine, mirou um moço que
era tal a Lua nas noites em que está cheia, e ao mirar o que mirou, um
suspiro largou. E aconteceu que o moço virou a cabeça e a mirou, e também
ele um suspirou largou, caindo o coração de cada um na armadilha do amor
pelo outro.
Então, o moço achegou-se às duas criadas e gritou-lhes, e elas com medo
dele fugiram, ficando ao longe a ver o que ele fazia, e eis que ele se
achegou à porta do compartimento, abriu-a e entrou, dizendo à rapariga:
«Tu és aquela que o meu pai comprou para mim.» E disse ela: «Por amor de
Deus, sim, senhor meu, sou eu mesma.» Desde logo, o moço, que estava
com os desvarios da bebida, acercou-se dela, pegou-lhe nas pernas,
enfiando-se entre elas, enquanto ela lhe envolveu o pescoço com os seus
braços, recebendo-o com beijos voluptuosos e habilidosos, e num pronto ele
a despiu da cintura abaixo e tirou-lhe a virgindade.
Em as criadas vendo estas coisas, puseram-se aos gritos e berros, e com
isso eis que o moço se pôs em fuga, com medo das consequências do que
havia feito. Em a senhora ouvindo a gritaria das raparigas, saiu
apressadamente dos banhos para ver que gritaria era esta que ecoava pela
casa toda. Em se aproximando delas, disse-lhes: «Arre! que se passa?» E
disseram as criadas: «O nosso senhor Nureddine veio ter connosco e bateu-
nos, e como nós o não conseguimos deter, tivemos de fugir. Ao depois, ele
entrou no compartimento de Anice Aljalice, e abraçou-a por um tempo, e
nós não sabemos o que fez ele em seguida, apenas que ele saiu a correr.» A
senhora foi logo ao compartimento de Anice Aljalice e disse-lhe: «Filha,
que foi que te aconteceu?» E ela disse: «Senhora minha, estava eu sentada e
quando dei por mim, eis que um moço jeitoso veio a mim e disse: “Não és
tu és aquela que o meu pai comprou para mim?” Ai meu Deus, ó senhora,
julgando eu que ele falava verdade, disse-lhe que sim, e ele logo se achegou
a mim e me abraçou.» Então a senhora disse: «E ele feriu-te onde nós cá
sabemos?» E Anice Aljalice disse: «Sim, mas foi só três vezes.» E a
senhora disse: «Que eu seja poupada de te perder!» Ao depois, a senhora e
as criadas puseram-se a chorar e a bater nas suas caras, e não era o seu
medo senão de que uma noite o pai de Nureddine o degolasse.
E estavam elas neste estado, e eis que o vizir aparece e diz: «Arre! que se
passa?» Mas ninguém se atreveu a dar-lhe parte da história. Logo, ele se
achegou à sua mulher…

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se eu ainda for viva.»
205.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o vizir achegou-se à sua mulher e


lhe disse: «Põe-me a par da verdade.» E ela disse: «Não ta digo enquanto
me não jurares que seja o que eu disser tu farás conforme eu diga.» E ele
anuiu: «Assim seja.» E disse ela: «O teu filho foi ter com a escrava Anice
Aljalice, enquanto estávamos todas nos banhos, e achegou-se a ela e tirou-
lhe a virgindade.» Em o vizir ouvindo aquelas palavras da sua mulher,
agachou-se, pondo-se a bater na cara até sangrar das narinas, e com a mão
agarrou na barba até arrancar um tufo de pêlos. E disse-lhe a sua mulher:
«Senhor meu, assim matas-te a ti mesmo. Eu dou-te dez mil dinares, que foi
quanto ela custou, do meu próprio dinheiro.» E logo ergueu ele a cabeça
para ela e lhe disse: «Maldição! Não preciso do quanto ela custou, do que
tenho medo é de se me ir a vida e todas as minhas posses.» Ao que ela
perguntou: «Como assim, senhor meu?» E ele disse: «Não sabes tu que
atrás de nós há este inimigo que dá pelo nome de Almuíne ibn Saui?
Quando ele ouvir isto irá ter com o rei para lhe dizer: “Meu amo, o seu
vizir, que vossa alteza diz que o ama a si e aos dias do seu reinado, recebeu
de si dez mil dinares e com eles comprou uma rapariga que jamais alguém
viu tão bela, e em ele a vendo gostou dela e disse ao seu filho: ‘Fica tu com
esta rapariga, pois merece-la mais do que o rei.’ Então, senhor meu, o moço
pegou na rapariga e desvirginou-a, e ela agora está com ele.” E logo o rei
lhe dirá: “Está a mentir!” E ele lhe dirá: “Senhor meu, com a sua permissão
trarei a rapariga à sua presença.” Então o rei dar-lhe-à ordem para o fazer, e
ele virá, atacar-nos-á e levará a rapariga à presença do rei, que a interrogará,
e ela não conseguirá desmentir o que aconteceu. E o vizir dirá ao rei:
“Senhor meu, assim fiz para que saiba que eu sou um conselheiro sincero e
amo os dias do seu reinado, mas ainda assim, senhor meu, ai meu Deus,
pois apesar de não ser venturoso toda a gente tem inveja de mim.” E desde
logo o rei ordenará que as minhas posses sejam confiscadas e a minha vida
tirada.»
Em a mulher do vizir ouvindo estas palavras, disse-lhe: «Senhor meu,
não sabes que a graça de Deus é oculta?» E ele: «Sei.» E ela disse-lhe:
«Senhor meu, entrega-te a Deus Todo-Poderoso, e eu vou-Lhe pedir que
ninguém saiba da história da rapariga nem do que lhe aconteceu, porque,
senhor meu, O Senhor do invisível maneja o que é invisível.» Desde logo, o
vizir Alfadl se acalmou, e bebeu um copo de vinho que lhe serviram.
Já no que toca a Nureddine, tendo ele medo das consequências do
sucedido, passava o dia todo em jardins e a dar passeios, desaparecido da
vista dos seus amigos, e vinha bater à porta já de noite. As criadas abriam-
lha e ele ia dormir, mas saía ainda antes das orações matinais, e assim se
quedou desta guisa por espaço de um mês, sem nunca dar de caras com o
pai.
Então a sua mãe disse ao pai dele: «Senhor meu, perdeste a escrava e
queres perder o teu filho? Meu Deus, se as coisas assim continuam, ele
alvora!» «E que se deveria fazer?» perguntou ele. E ela disse: «Senhor meu,
vais ficar acordado até meio da noite, e quando ele chegar, vais encurralá-
lo, pegas nele e assusta-lo, e eu apareço logo para o livrar de ti, depois vós
fazeis as pazes, e tu dás-lhe a rapariga, pois ela o ama e ele a ama, e eu dou-
te o quanto ela custou.»
Assim, o vizir esperou até ser hora de o filho chegar. E eis que ele chega,
e em o vizir o ouvindo levantou-se e escondeu-se num sítio escuro,
enquanto as criadas lhe abriam a porta. E em entrando o moço, o qual de
nada sabia, o vizir agarrou-o e botou-o ao chão, e o moço ergueu a cabeça
para ver quem lhe havia feito tal coisa, e eis que era o pai.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se o rei me poupar e eu viver.»
206.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que era o pai dele quem o havia botado
ao chão, ajoelhado sobre o seu peito, e desembainhado uma faca como se o
fosse degolar, mas logo apareceu detrás dele sua mulher, que lhe disse:
«Que queres fazer?» E ele disse: «Degolá-lo.» E Nureddine disse: «Senhor,
e é-lhe assim tão fácil degolar-me?» Então o pai olhou para ele, com os
olhos a banharem-se de lágrimas, movido pelo poder divino, e disse:
«Filho, é-te assim tão fácil fazeres com que perca a vida e as minhas
posses?» E o moço disse: «Senhor, diz um poeta:

Perdoa o meu delito. Os que na justiça são versados


A alguns criminosos oferecem clemência.
E eu assumo todos os meus feios e vis pecados,
E espero receber os belos modos da indulgência.
Pois quem busca o perdão dos superiores,
Tem de saber perdoar o crime dos inferiores.»

E logo sentiu o vizir compaixão pelo filho e se levantou de cima do peito


dele. Ao depois o moço beijou a mão e o pé do pai, que olhou para ele e
disse: «Ó Ali, se eu soubesse que tratarias justamente Anice Aljalice, até ta
ofereceria.» Ao que o moço disse: «Senhor, como seria tratá-la
justamente?» E o pai disse: «Que não te cases com uma segunda mulher,
que a não desonres e que a não vendas.» E ele disse: «Senhor, juro-lhe que
assim farei.» Então ele jurou o que mencionámos, consumou o casamento
com ela, e viveram juntos a mais feliz das vidas durante um ano, havendo
Deus feito com que o rei se esquecesse da história da escrava. Já no que
toca a Almuíne ibn Saui, esse não podia falar por mor do elevado estatuto
do vizir junto do rei.
Passado um ano, em um dia de entre dias, o vizir Fadleddine ibn Khacane
foi aos banhos, e ao de lá sair suava, apanhou uma aragem e ficou com
febre, sendo obrigado a ficar de cama. A insónia tomou conta dele,
deixando-o cada vez mais fraco, e foi então que ele disse: «Trazei-me o
meu filho.» Então o filho compareceu ante o pai, que chorou e disse:
«Filho, fica sabendo que a prosperidade é algo que é repartido e o tempo de
vida é fixo e definido. Toda a gente tem de beber do copo do perecimento, e
diz o poeta:

Sei que vou morrer, sou um mero mortal.


Glorioso seja Aquele que nunca morre.
Pois rei não é quem na morte incorre.
O Reino pertence Àquele que é Imortal.

«Filho, não tenho recomendação alguma para ti senão que temas a Deus,
que meças as consequências das tuas acções, e cuides de Anice Aljalice.» E
disse [o filho: «Ó pai, quem a si se pode igualar, sendo o pai conhecido
pelas suas boas acções e pelas bênçãos pedidas para si nos mimbares?» E
disse o pai85:] «Filho, só peço a Deus Todo-Poderoso que me aceite.» Ao
depois debateu-se com a agonia da morte e expirou. Então os gritos das
mulheres inundaram o palácio, a notícia chegou ao rei, e os habitantes da
cidade ao ouvirem que Ibn Khacane havia morrido choraram todos, os
pequenos nas escolas, os homens nas mesquitas e as mulheres em casa.
O moço Nureddine aprontou logo o pai para ser sepultado, e ao funeral
vieram os emires, os vizires, os dignitários do reino, ninguém faltou, e
vieram por inteiro os habitantes da cidade. O moço havia aprontado o mais
pomposo funeral para o pai, e ao o enterrarem, um poeta declamou uma
elegia na qual disse estes versos:

Dos meus entes queridos me separei uma quinta-feira.


Numa tábua de madeira me lavaram.
As roupas que havia vestido me tiraram
E puseram-me roupas que não eram da minha maneira.
Levaram-me com eles a quatro ombros
E na mesquita por mim oraram
Uma oração em pé por estes meus escombros,
Todos os amigos rezaram sem pejo.
E para uma abóbada me levaram em cortejo,
Cuja fachada fechada ficará até ao fim dos tempos.

Após o enterrarem, tornaram à campa a família e os amigos, assim como


Nureddine, que chorava em pranto, como se a sua voz dissesse:

Ela e os seus foram-se na quinta-feira ao fim do dia.


Deles me despedi enquanto partiam e se despediam,
E enquanto se iam foi-se-me a alma com eles;
Disse-lhe: «Volta!» e disse ela: «Para onde?
Para um corpo sem carne nem sangue,
Nem nada senão ossos se entrechocando?
E olhos cegos por tantas lágrimas e dores?
E ouvidos surdos pela bordoada dos censores?»

Ao depois, quedou-se dias em profunda tristeza pelo seu pai. E um dia de


entre dias…

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se o rei me poupar e eu viver.»
207.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que Nureddine, filho do vizir, estando


um dia de entre dias no palácio de seu pai, eis que alguém à porta lhe bate.
Então Nureddine levantou-se e abriu a porta, e eis que era um dos seus
amigos e companheiros. Beijou a mão de Nureddine Ali e disse: «Senhor
Nureddine Ali, quem deixou alguém como o senhor jamais morrerá. Alegre
o seu coração, anime a sua alma e abandone a tristeza.» E logo Nureddine
foi para o salão onde se reunia com os seus amigos e companheiros,
levando para lá tudo de quanto fosse falto, e reuniu os seus amigos e levou
consigo a rapariga – e eram os seus amigos dez almas, todos filhos de
mercadores. Ao depois, Nureddine Ali pôs-se a comer e a beber vinho,
dando banquete atrás de outro, e passou a ofertar presentes e honras. Logo
veio o intendente do palácio dizer-lhe: «Senhor Nureddine, nunca ouviu
dizer Quem despende sem contas fazer, pobre fica sem saber? Meu senhor,
este enorme dispêndio e copiosas ofertas até as montanhas arruínam.» Em
Nureddine Ali ouvindo aquelas palavras, olhou para ele, e disse-lhe: «Não
oiço nada do que digas, nem uma palavra! Será que nunca ouviste um poeta
dizer estes versos:

Se na mão tiver eu uma fortuna e não for generoso,


Então que as minhas mãos e pés se paralisem.
Mostra-me o avarento que pela sua avareza ascendeu à glória!
Mostra-me quem por dar haja morrido da sua dádiva notória!
»Eis o que eu quero: se há que sobre para o meu almoço, não me faças
ficar preocupado com o jantar.» «É isso que quer?», perguntou o intendente,
e Nuredine disse: «Sim, é.» Então o intendente deixou-o e foi à sua vida.
Nureddine Ali continuou com os mesmos modos, na boa vida, e qualquer
um que lhe dissesse: «Meu senhor Nureddine, aquele seu pomar tal é
lindo», ele dizia: «Considere-o uma oferta irrevogável de um amigo;» e se
lhe dissessem: «Meu senhor, assine-me um documento», ele o assinava; e
se um outro lhe dissesse: «Meu senhor, tal moradia», e um outro: «A
moradia em tal sítio», e um outro: «A casa de banhos em tal sítio»,
Nureddine tudo lhes ofertava, e providenciava para eles um banquete ao
início do dia, outro ao final do dia, e outro a meio da noite. Quedou-se neste
estado um ano inteiro.
Um dia, estando ele sentado a ouvir a rapariga cantar estes versos:

Enquanto durava, a tua vida parecia bela e clara,


E não temeste o que o destino te reservara.
Mas agora as tuas noites calmas ruíram,
E da límpida noite turvas mágoas surgiram.

eis que batem à porta, e um dos convidados diz: «Ó senhor Nureddine,


estão a bater…»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se o rei me poupar e eu viver.»
208.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que um dos convidados disse: «Estão a


bater à porta.» [Nureddine] Ali levantou-se para ver quem estava à porta,
sendo seguido por um dos seus amigos sem o saber. Em abrindo a porta, eis
que era o intendente, e [Nureddine] Ali pergunta: «Há novidades?» Ao que
ele responde: «Meu senhor, o que eu temia aconteceu.» «Como assim?»
«Meu senhor, fique sabendo que já lhe não sobra coisa alguma que
equivalha a um só dirame nas minhas mãos. Nem mais nem menos. E isto é
o rol, na letra do meu amo, contendo tudo o que foi confiado ao seu servo.»
Em Nureddine ouvindo estas palavras, baixou a cabeça para o chão. Ao
depois, disse: «É a vontade de Deus. Não há poder senão em Deus.»
O homem que o havia seguido à sorrelfa, em ouvindo o que o intendente
dissera, volveu aos seus amigos e lhes disse: «Vede bem o que fazeis, pois
[Nureddine] Ali está falido e nada lhe resta.» E eles disseram: «Não nos
vamos quedar com ele.» Ao depois, [Nureddine] Ali dispensou o intendente
e foi ter com os seus amigos com um rosto perturbado. E logo um dos seus
companheiros se levantou, virou-se para Nureddine Ali e disse: «Meu
senhor, talvez me dê licença para me retirar.» «A que propósito?» «Meu
senhor, hoje a minha mulher vai parir, e eu gostava de estar com a minha
família, pois não posso de outro modo fazer.» E [Nureddine] Ali deu-lhe
licença para se retirar. E outro se levantou, deu uma desculpa, e retirou-se.
E não pararam um a um de se desculparem, até que os dez se retiram todos,
ficando Nureddine Ali sozinho.
Nureddine chamou logo a sua rapariga e em ela comparecendo disse-lhe:
«Ó Anice Aljalice, já viste o que me aconteceu?», e contou-lhe o que o
intendente lhe havia dito. E disse ela: «Senhor meu, a tua família e entes
queridos já te haviam avisado e tu não quiseste ouvir. E eu, desde há várias
noites que te quero falar sobre esta situação, mas ouvi-te enquanto
declamavas estes versos:

Se a fortuna te sorriu, generoso sê,


Antes que ela se escape sem porquê.
Generosidade não a destruirá,
Nem avareza a preservará.

»E em te ouvindo a declamar estes versos, calei-me e não abordei o


assunto.» E [Nureddine] Ali disse: «Anice Aljalice, tu sabes que eu não
gastei o meu dinheiro a não ser com os meus dez amigos, e não me parece
que eles me vão deixar de mãos a abanar.» Ao que ela disse: «Senhor meu,
eles não te vão ajudar.» E disse Nureddine: «Agora mesmo me levanto e
vou ter com eles, dar um giro para os visitar a todos, e talvez obtenha deles
o que me permita formar um capital com o qual comerciar e me deixar de
brincadeiras.»
Ao depois, [Nureddine] Ali pôs-se em pé e caminhou até chegar à
travessa na qual os seus dez amigos moravam, pois todos eles moravam na
mesma travessa. Aproximou-se da primeira porta, bateu e veio a criada
dizendo: «Quem está à porta?» E ele disse: «Ó rapariga, diz ao teu patrão:
“Meu senhor, Nureddine Ali ibn Khacane está à porta, e deseja
cumprimentá-lo e beijar-lhe os pés.”»
Então a rapariga foi ter com o seu senhor e deu-lhe parte, e ele berrou
com ela dizendo: «Vai e diz-lhe: “Ele não está.”» E volveu a rapariga e
disse-lhe: «Ele não está em casa.» Então Nureddine disse…

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se o rei me poupar e eu viver.»
209.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que Nureddine disse de si para si: «Se
este é um bastardo e me virou costas, outro haverá que o não seja.» Ao
depois, foi à segunda porta, bateu e veio uma das criadas, e ele disse o
mesmo que havia dito à primeira. Então a rapariga desapareceu e em
tornando disse-lhe: «Meu senhor, ele não está aqui.» [Nureddine] Ali sorriu
e disse de si para si: «Talvez com outro encontre solaz.» Ao depois, foi à
terceira porta, dizendo de si para si: «Faz o que fizeste com o primeiro.»
Mas este também lhe virou costas. E logo [Nureddine] Ali arrependeu-se de
haver vindo, e ao depois chorou, lamentando-se e declamando:

Em tempos de abundância, somos tal uma árvore:


Enquanto houver fruto há gente à sua roda;
Mas quando ele todo cair, também elas se vão,
Deixando-a a sofrer, ao pó e ao tormento.
Que pereçam os filhos desta era, sem excepção,
Pois nem um entre dez de perfídia é isento.

Ao depois, [Nureddine] Ali volveu à sua rapariga, estando cada vez mais
atormentado. E ela disse-lhe: «Senhor meu, percebes agora o que te disse?»
E disse ele: «Valha-me Deus, nem um só se quis encontrar comigo ou me
receber.» E ela disse-lhe: «Senhor meu, vende alguma da mobília e da loiça
de casa enquanto Deus Todo-Poderoso e Glorioso não nos ajude.»
Então ele pôs-se a vender as coisas da casa uma a uma para subsistir, até
que lhes não sobrou coisa alguma. Nessa altura olhou para Anice Aljalice e
disse-lhe: «Que nos sobra para vendermos?» E ela disse-lhe: «Senhor meu,
é minha opinião que agora mesmo me leves ao mercado para me venderes.
Tu sabes que o teu pai me comprou por dez mil dinares, e talvez Deus
Todo-Poderoso e Glorioso te auxilie com um valor próximo deste. E se Ele
Todo-Poderoso e Glorioso decretar depois disso que nos tornemos a reunir,
então reunir-nos-emos.» Ao que ele lhe disse: «Ó Anice Aljalice, valha-me
Deus, não me consigo separar de ti por um momento que seja.» E ela disse-
lhe: «Por amor de Deus, nem eu, mas a necessidade a isso obriga, tal como
disse um poeta:

Em alguns casos, a necessidade obriga


A feito que à decência não agrada.
Ninguém toma decisão tão errada
Senão por uma causa que tal exija.»

E logo se levantou [Nureddine] Ali e pegou na sua rapariga Anice


Aljalice, e as lágrimas escorriam-lhe qual chuva pelas faces, tal como
declamasse:

Parai! Antes de vos partirdes provede-me dum olhar


Que entretenha o coração pela separação em horror.
Mas se virdes nisso um fardo, deixai-me expirar
Em lânguida paixão, e poupai-vos de tanta dor.

Ao depois, levou-a ao mercado, e entregou-a a um pregoeiro, dizendo-


lhe: «Hajj86 Haçane, que saibas o valor do que vais apregoar.» E o
pregoeiro disse: «Meu senhor Nureddine, eu conheço os fundamentos do
meu mister.» E em seguida acrescentou: «Esta não é Anice Aljalice, que o
seu pai comprou há uns tempos por dez mil dinares?» «É sim», disse o
moço. O pregoeiro olhou logo para os mercadores, e viu que ainda não
estavam todos reunidos, então decidiu esperar que o mercado se apinhasse
de gente e se pusessem à venda todos os géneros de raparigas, tais como
núbias, senegalesas, francas, zagauas, gregas, turcas, tártaras e outras.
Então, em o pregoeiro vendo que o mercado já se apinhava de gente,
levantou-se e dirigiu-se aos mercadores dizendo: «Ó mercadores…»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
tão estranha, e tão espantosa», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade
respondeu: «Isto nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei,
na próxima noite. Se o rei me poupar e eu viver, será ainda mais estranho.»
210.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse: «Assim seja:»

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o intermediário disse: «Ó


mercadores, ó gentes de posses, nem tudo o que é redondo é uma noz, nem
tudo o que é comprido é uma banana, nem tudo o que é vermelho é carne,
nem tudo o que é branco é banha. Ó mercadores, tenho aqui uma pérola
sem igual. Por quanto a comprais? Por quanto a apregoo?» E um dos
mercadores disse: «Apregoa quatro mil dinares!» Então o pregoeiro iniciou
a licitação em quatro mil dinares.
E enquanto fazia ele a licitação, eis que o vizir Almuíne ibn Saui passou
pelo mercado, e em vendo [Nureddine] Ali de pé a uma banda do mercado,
disse de si para o seu coração: «Pergunto-me o que andará Ibn Khacane a
fazer por aqui, a este canalha já nada lhe resta para poder comprar
raparigas.» Ao depois, ao sondar com os seus olhos, viu o pregoeiro de pé
no meio do mercado e os mercadores, todos eles, à sua roda. Então disse de
si para si: «Ou muito me engano, ou ele não está senão falido, e veio com
Anice Aljalice para a apregoarem. Ó que brisa para o meu coração!» Ao
depois, chamou o pregoeiro, que veio e beijou o chão ante ele, e disse-lhe:
«Ó pregoeiro, mostra-me essa rapariga que tu licitas.» E ele, como não se
lhe podia opor, disse-lhe: «Meu senhor, assim seja.» Em seguida, trouxe-lhe
a rapariga e mostrou-a a Almuíne ibn Saui, que se se maravilhou com ela
até mais não. Então disse: «Haçane, em quanto vai a licitação desta
rapariga?» E ele respondeu: «Vai em quatro mil dinares, que é o lance
mínimo.» E Almuíne ibn Saui disse: «Dou quatro mil dinares!»
Em os mercadores tal ouvindo, nenhum pôde licitar mais, por mor do que
sabiam da injustiça de que era capaz o vizir e da sua perfídia. E logo o vizir
olhou para o pregoeiro e disse-lhe: «Maldito sejas, porque estás aí especado
à espera? Vai ter com o dono e propõe os meus quatro mil dinares!» Então o
pregoeiro achegou-se a Nureddine e disse-lhe: «Meu senhor, a sua rapariga
vai ser vendida por tuta e meia.» E ele disse: «Como assim?» E ele disse:
«Senhor, nós estabelecemos o lance mínimo da licitação da sua rapariga em
quatro mil dinares, mas veio este bruto e injusto Almuíne ibn Saui e
atravessou o mercado, e em vendo a rapariga maravilhou-se com ela e
disse-me: “Vai ter com o dono e propõe os meus quatro mil dinares”. Meu
senhor, e não acho senão que ele sabe que ela é sua, e se ele lhe desse agora
mesmo quatro mil dinares isso seria bom, mas eu bem sei quão injusto ele
é, vai passar-lhe uma letra de câmbio para ser paga por um dos seus agentes
bancários, mas ao depois envia alguém para lhes dizer: “Delonguem-se e
nada lhe dêem por estes dias,” e sempre que lhe for pedir o seu dinheiro,
eles vão dizer-lhe: “Sim, claro, venha amanhã.” E assim vão fazer consigo
dia após dia. Sendo o senhor alguém dado ao respeito por si mesmo, vai
ficar furioso, agarrar na nota e rasgá-la, perdendo o dinheiro da rapariga.»
Em Nureddine Ali ouvindo estas palavras do pregoeiro, olhou para ele, e
disse: «Que se pode fazer?» E ele disse: «Meu senhor, dou-lhe um
conselho, e se o aceitar será bem mais afortunado.» E ele disse: «E qual é
ele?» E ele disse-lhe: «Venha ter comigo já de seguida quando eu estiver em
pé no meio do mercado, tire a rapariga das minhas mãos e pregue-lhe um
estalo, dizendo: “Ó sua galdéria, como vês cumpri a minha promessa e
trouxe-te ao mercado para seres licitada, tal como prometi que faria.” Se
assim fizer, o vizir será enganado, e a turba também, e vão pensar que a
trouxe ao mercado só e apenas por mor de uma promessa que fez.»
Nureddine disse: «Eis um bom conselho.»
Ao depois, o pregoeiro separou-se de Nureddine e veio para o meio do
mercado, agarrou a mão da rapariga, e olhando para o vizir Almuíne ibn
Saui, disse-lhe: «Meu amo, aqui vem o dono desta rapariga.» Ao depois,
Nureddine veio ao pregoeiro, arrancou a rapariga das mãos dele, e
esbofeteou-a.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se o rei me poupar e eu viver.»
211.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que Nureddine esbofeteou-a e disse:


«Maldita sejas! Como vês, trouxe-te ao mercado para cumprir o que
prometi. Volta para casa e ai de ti se tornares a fazer o que tens feito. Achas
que preciso do dinheiro da tua venda? Se eu vendesse alguma mobília de
minha casa, ganharia muito mais do que o teu preço de venda!» Em o vizir
ouvindo estas palavras, olhou para ele e disse-lhe: «Ai de ti! Tu nem te resta
coisa alguma que possas vender por um dinar ou sequer um dirame.» Ao
depois, o vizir acercou-se dele para o atacar, e logo Nureddine olhou para os
mercadores, os pregoeiros e as gentes do mercado, e todos eles o adoravam,
e disse-lhes: «Valha-me Deus, se não fosse por vós, matava-o!» E todos eles
lhe fizeram um sinal com os olhos, como se dissessem: «Desforre-se dele,
pois nenhum de nós se meterá entre vós.»
Então, Nureddine, que era um moço robusto, acercou-se do vizir,
agarrou-o e, puxando pelo cepilho da sua sela, botou-o ao chão, e havia
naquele sítio uma poça de lama, e ele botou-o no meio dela, e pregou-lhe
murros e estalos, e um dos murros foi nos dentes, e então o vizir ficou
banhado em sangue. Ora, com o vizir estavam dez mamelucos, e em vendo
eles o seu mestre ser tratado daquela guisa, puseram as mãos nos punhos
das espadas para as desembainhar e atacarem Nureddine Ali cortando-o em
pedaços, mas eis que a trupe dos mercadores se ergueu contra eles, dizendo-
lhes: «Um é vizir e o outro filho de vizir, e se mais tarde fizerem as pazes,
vós sereis odiados por ambos, ou se o vosso for morto tereis uma morte
calamitosa. Será antes melhor que não intervenhais.»
Em Nureddine acabando de bater no vizir, pegou na rapariga e foi para
casa. Já no que toca ao vizir, em se levantando tinha três cores: o preto da
lama, o vermelho do sangue, e o branco da roupa. Em se vendo nesta
constituição, pegou numa esteira e pô-la à roda do pescoço, e segurou um
punhado de esparto em cada mão, e não parou de correr até chegar aos
muros do palácio do rei Muhammad ibn Suleimane Azzainabi, onde
apregoou: «Ó rei dos tempos, fui vítima de injustiça!» Em o rei ouvindo
estas palavras, disse: «Trazei-me quem anda aos gritos.» E em ele sendo
levado à sua presença, o rei olhou para ele, e eis que era o grão-vizir. Então
o rei disse-lhe: «Quem te tratou desta guisa?» Logo pôs-se o vizir a chorar
ante o rei, e declamou dizendo:

Deverá o tempo ser injusto comigo enquanto vives?


Deverá a alcateia devorar-me sendo tu leão?
Deverá qualquer sequioso beber dos teus algibes,
E eu ficar sitibundo, sendo tu chuvoso tufão?

Ao depois, disse: «Senhor meu, a qualquer um que ame os dias do seu


reinado e seja seu conselheiro sincero, acontece-lhe isto.» O rei disse: «Irra!
Apressa-te a dizer-me como te aconteceu isto e quem te fez estes actos, pois
o que é sagrado para ti também o é para mim.» Ele disse: «Senhor meu, saí
hoje de minha casa e fui ao mercado das escravas para comprar uma
cozinheira. Então no mercado vi uma rapariga que jamais alguém viu mais
bela, e quis comprá-la para o senhor nosso amo e rei. Assim, indaguei o
intermediário sobre ela e sobre o seu dono, e ele disse-me: “O senhor dela é
Ali, filho do vizir Khacane.” Ora, o senhor nosso amo e rei havia dado ao
vizir pai dele dez mil dinares para lhe comprar uma rapariga, e com eles
comprou esta rapariga. Então ele maravilhou-se com ela, foi avaro consigo
privando-o dela, e deu-a ao seu filho. E em o vizir morrendo, o filho desfez-
se de tudo quanto tinha até nada lhe sobrar. Em ficando falido, levou a
rapariga ao mercado, entregou-a ao intermediário para ele a apregoar.
Durante a licitação os mercadores competiram entre si até o seu preço
chegar aos quatro mil dinares. Então eu disse-lhe: «Filho, toma estes quatro
mil dinares, que eu compro esta rapariga para o nosso amo o rei, porque ele
a merece mais do ninguém, até porque foi com o dinheiro de nosso amo o
rei que ela foi originalmente comprada.» Então, em ele ouvindo as minhas
palavras, olhou para mim e disse…

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se o rei me poupar e eu viver.»
212.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o vizir Almuíne ibn Saui disse ao
rei: «Ele olhou para mim e disse: “Ó velho calamitoso, prefiro vendê-la a
nazarenos ou a judeus do que a ti.” Então disse-lhe: “É assim que
recompensas nosso amo, o rei, por cuidar de mim e do teu pai através da
sua graça?” Em ele ouvindo as minhas palavras, ergueu-se contra mim,
puxou-me da minha cavalgadura abaixo – sendo que eu sou um velho
entrado em anos – e bateu-me até me deixar neste estado. E isto que me
aconteceu foi tudo porque procuro o bom conselho para o senhor meu rei.»
Em seguida, o vizir lançou-se ao chão, chorando, tremendo, e fingindo
perder os sentidos.
Em o rei vendo o seu estado e havendo ouvido o que ele havia dito, ficou
com a testa franzida de raiva. E ao depois virou-se para os dignitários do
reino, e eis que havia quarenta espadachins ao serviço, e então disse: «Ide a
casa de Ibn Khacane, pilhai-a e arrasai-a, atai-lhe as mãos atrás das costas e
arrastai-o, a ele e à rapariga, até que ambos sejam trazidos à minha
presença.» E eles disseram: «Às suas ordens.» E apetrecharam-se para irem
a casa de Nureddine Ali ibn Khacane.
Ora, ante o rei estava um camarista que dava pelo nome de Alameddine
Sanjar, e que havia sido um dos mamelucos de Fadleddine ibn Khacane,
que depois havia sido transferido, havendo o rei feito dele camarista. E em
ele vendo naquele momento os inimigos preparando-se para matarem o
filho do seu [antigo] amo, não se conteve. Retirou-se de ante o rei e,
montando, cavalgou vigorosamente até chegar a casa de Nureddine Ali ibn
Khacane. Bateu à porta, e em Nureddine vindo ver quem era encontrou
Sanjar, o camarista, e cumprimentou-o, mas ele disse: «Nureddine, não é
tempo propício para saudações e muito menos para si, tal como disse o
poeta:

Se uma injustiça sofreste, a tua vida salvarás,


Abandona a casa, que só a lamentará seu pedreiro.
Se te encontras nesta terra ou acolá tanto faz,
Mas outra alma para substituir a tua não terás.
Se for importante, não envies o teu mensageiro,
Ninguém é mais leal contigo senão tu mesmo.
E tal o leão quando espeta as suas garras,
Ninguém luta pela tua vida senão tu mesmo.

Disse Nureddine Ali: «Ó Alameddine, que se passa?» E disse ele: «Meu


senhor Nureddine, levante-se e salve a sua vida, a sua e a da rapariga, pois
Almuíne ibn Saui, o vizir, montou-vos uma armadilha, e se não se apressar
vai cair nela, pois agora mesmo o rei enviou quarenta espadachins para
pilhar a sua casa, atar-lhe as mãos atrás das costas, a si e à rapariga, e o
levarem à sua presença. E sou da opinião que deveis apressar-vos, o senhor
e a rapariga, e fugirdes ambos antes que vos alcancem.» Ao depois, Sanjar
estendeu a mão à sua bolsa de coiro, encontrou quarenta dinares, pegou
neles e deu-os a Nureddine, dizendo-lhe: «Meu senhor, leve este dinheiro
para a sua viagem. Se tivesse mais dar-lho-ia, mas este não é o tempo para
me repreender.» E de imediato Nureddine foi ter com a rapariga, a ao dar-
lhe parte daquilo, as suas mãos começaram a tremelicar. Então saíram os
dois de imediato, e Deus protegeu-os até que saíram ambos porta da cidade
afora. E continuaram caminhando até chegarem à margem do rio, e aí
deram com uma grande embarcação prestes a partir e com o arrais no meio
dela.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se o rei me poupar e eu viver.»
213.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que Nureddine encontrou o arrais no


meio da embarcação, dizendo: «Ó mercadores, haverá algum de vós que
alguma coisa haja deixado por fazer na cidade? Pensai bem se vos haveis
esquecido de algo.» E disseram todos: «Ó arrais, não deixamos coisa
alguma por fazer.» E Nureddine e a sua rapariga subiram a bordo e
perguntaram-lhes: «Aonde vos dirigis?» E eles responderam: «Bagdade.»
Então Nureddine disse: «Perfeito.» E a embarcação zarpou qual pássaro
cujas asas fossem velas, tal como disse um poeta:

Olha a embarcação que te cativa a visão


E cuja rapidez a do relâmpago rivaliza;
Qual pássaro atacado pela sequidão
Que dos altos se arroja e à água visa.

E os ventos foram-lhes favoráveis. Isto foi o que aconteceu a Nureddine e


à sua rapariga. Já no que toca aos mamelucos enviados pelo rei, vieram a
casa de Nureddine, arrombaram a porta, atacaram-na, e deram voltas e
voltas à procura dele e da rapariga, sem encontrar qualquer traço nem
notícia dele, e então arrasaram a casa. Ao depois, foram ante o rei, deram-
lhe parte do sucedido, e o rei disse: «Procurai-o onde quer que seja, e em o
encontrando trazei-o à minha presença.» E eles disseram: «Às suas ordens.»
Então o vizir foi para casa: o rei um traje de honra lhe havia ofertado e o
coração sossegado em lhe dizendo: «Eu mesmo cuidarei de te vingar.»
Então o rei ordenou que fosse feito um pregão contra Nureddine, e
saíram os pregoeiros apregoando pela cidade: «Ó gentes, ouvi todos, o rei
Muhammad ibn Suleimane Azzainabi decreta que quem lhe levar Ali, filho
do vizir, receberá um traje de honra e mil dinares, e quem o esconder ou for
seu cúmplice, nem queira saber o que lhe irá acontecer.» Então ele passou a
ser procurado por toda a banda, mas sobre ele nova alguma havia.
E quanto ao que se passava em Baçorá, é tudo. Já no que toca a
Nureddine e à sua rapariga, Anice Aljalice, tal como Deus havia escrito,
chegaram sãos e salvos a Bagdade, Cidade da Paz, e o arrais lhes disse:
«Meu senhor, felicitações pela sua chegada são e salvo. Esta cidade é afável
e segura, fervilha de vida e apinha-se de gente. É uma cidade que se
despede do frio do Inverno e recebe as flores da Primavera que começam a
florescer, enquanto os ramos dão frutos, as árvores se encorpam e os
pássaros cantam. Ela é tal como dizem os versos de um certo poeta:

Nesta cidade não se sente pavor


Porque se vive seguro e em paz.
Tal paraíso adornado em esplendor
É maravilha que a todos satisfaz.

E logo Nureddine e a sua rapariga desembarcaram, após ele haver dado


cinco dinares ao arrais, e calcorrearam, ele e a sua rapariga, até que o
Omnipotente os botou numa ruela entre jardins, levando-os a um local que
era bem varrido e lavado, com bancos compridos e canais suspensos de
água fresca que refrescavam, e um caramanchão coberto ao longo da ruela,
ao cabo do qual estava a porta do jardim, mas que estava fechada. Então
Nureddine disse: «Que belo é este sítio, ó Anice Aljalice.» E ela disse:
«Senhor meu, encostemo-nos um tempo neste banco para descansar.» Então
sentaram-se naquele banco, após haverem bebido um pouco daquela água e
de lavarem a cara e as mãos. Ao depois foram embalados por aquela brisa, e
em daquele jardim ouvindo o chilrear dos pássaros e o arrulho das rolas-
turcas naquelas árvores, e o som do múrmure da água, ambos adormeceram.
Ora, aquele jardim dava pelo nome de Jardim das Delícias e nele havia
um palácio que dava pelo nome Palácio das Estátuas. Havia sido o califa
quem fizera aquele jardim e em Bagdade não havia nenhum que se lhe
comparasse, e quando se sentia em baixo, ia àquele jardim e ao Palácio das
Estátuas. O califa havia posto à roda do dito palácio oitenta janelas, nas
quais pendurou oitenta candeeiros, e pôs entre cada par um candelabro
banhado a oiro com uma grande vela. Em o califa se quedando neste
palácio, acendia estes candeeiros e estas velas, abria as janelas, e ordenava a
Isaac Annadime87 que cantasse para si, enquanto ele estava rodeado por
concubinas de todas as raças. E em assim fazendo, eis que se alegrava e
iam-se-lhe as inquietações.
E aquele jardim era guardado por um caseiro, um ancião muito entrado
em anos, conhecido por ancião Ibrahim, e que o califa tinha em alta estima,
e o ancião, em saindo para tratar de afazeres na cidade, costumava
encontrar à porta do jardim um grupo de valdevinos e putas, o que o
deixava irritado e magoado. Então esperou pacientemente pelo califa…

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Ó mana, que história


tão boa e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o
rei me poupar e eu viver.»
214.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o caseiro Ibrahim esperou


pacientemente pelo califa até que um dia de entre dias ele veio e o caseiro
inteirou-o do caso, ao que o califa lhe disse: «Se tornares a te deparares com
alguém à porta do jardim, o que queiras fazer, fá-lo.»
Ora, naquele dia em que Nureddine havia chegado, o ancião Ibrahim saiu
à cidade para tratar de uns afazeres, e em os terminando e volvendo ao
jardim encontrou dois encobertos por uma manta que dormiam no banco à
banda do jardim, e desde logo disse: «Valha-me Deus, esta é boa, então não
sabem eles que o califa me deu aval para matar quem quer que seja que aqui
encontre? Farei deles um exemplo para que ninguém se aproxime da porta
do jardim.» Ao depois, foi ao jardim e cortou um talo de palmeira, saiu ao
encontro deles, ergueu a mão até se ver a brancura do sovaco, prestes a
aviar-lhes uma grandiosa sova, mas reflectiu e disse de si para a sua cabeça:
«Ó Ibrahim, vais bater nestes aqui, que talvez sejam forasteiros ou viajantes
que o destino trouxe até cá. Deixa-me descobrir-lhes o rosto para os ver e
saber a sua história.» Ao depois, deitou fora o talo de palmeira que havia
cortado, acercou-se deles, descobriu-lhes o rosto, e em os vendo, encontrou
dois que eram quais luas brilhantes, tal como disse um poeta:

Na Terra vi dois adormecidos, com estes olhos os olhei,


E que pelas minhas pálpebras caminhassem desejei.
São o meu sol nascente,
O brilhante crescente,
Lua guiando à justeza,
Gazela na sáfara em azáfama,
Galho puro sem amálgama.
Eis o meu ídolo: a Beleza.

Em ele os descortinando, ao ver a sua beleza e formosura, disse: «Valha-


me Deus, que formas tão belas as destes dois.» E logo lhes cobriu de novo
os rostos, acercou-se dos pés de Nureddine e pôs-se a esfregá-los. Então
Nureddine abriu os olhos e encontrou aos seus pés um ancião muito entrado
em anos, e ficando desde logo envergonhado, juntou-os e sentou-se direito,
e pegando na mão do ancião, beijou-a e disse: «Deus o proíbe, ó tio. Que
Deus o recompense.» E o ancião disse: «Filho, vós sois donde?» E
Nureddine disse: «Ó ancião, somos forasteiros.» E o ancião disse: «Sereis
meus honoráveis convidados. Filhos, não quereis vir comigo a este jardim
para descansardes e vos divertires?» Ao que Nureddine disse: «Ó ancião,
este jardim é de quem?» E ele disse: «É meu, herdei-o do meu pai.» E a
intenção do ancião ao dizer estas palavras era só para que vissem o jardim
sentindo-se seguros e sossegados. Disse o ancião: «Meu filho, não te disse o
que disse [aos vos convidar] senão para que se dissipe de vós o
desassossego e a inquietação, e vos divirtais.» E em Nureddine ouvindo
estas palavras do ancião Ibrahim, agradeceu-lhe.
Então, levantou-se Nureddine e a rapariga, seguindo atrás do ancião, e
entraram no jardim, e o jardim, ai que jardim! O seu portão era abobadado
como o salão de um palácio, com portas que eram como as do Jardim do
Paraíso. Entraram por uma porta e deram por si num caramanchão
abobadado coberto por vinhas com uvas de diversas cores: as vermelhas
eram como cornalinas88, as pretas como os rostos dos abissínios, e as
brancas, entre as vermelhas e as pretas, eram como pérolas entre corais e
peixes negros89. E havia ainda uma cabana feita de cana-de-açúcar que
servia de entrada para o jardim propriamente dito, onde eles encontraram o
que crescia ‘em pequenos grupos ou isolado’90. Os pássaros cantavam
melodia atrás de melodia, o rouxinol belas canções gorjeava, a rola-brava o
espaço com a sua voz inundava, a filomela saltitando entre ramos os seus
lamentos soltava, o melro um humano imitava, a rola-do-senegal as
tristezas trilava, e a cotovia ao chilrear da rola-turca respondia. As árvores,
tais como romãzeiras, macieiras e pessegueiros, estavam carregadas de
frutos, e de todas havia dois géneros, ora mais doces ora mais ácidos, ora
mais selvagens ora mais domésticos, de tal paladar que língua alguma
conseguiria descrever, e tal coisa jamais olhos alguns conseguiram ver.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se.


215.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que em Nureddine Ali olhando para


este jardim e para a sua beleza, gostou dele e ficou maravilhado,
lembrando-lhe aqueles dias que passou com os amigos e companheiros, e
aquelas festanças e momentos que havia vivido. Então, olhou para o ancião
e disse: «Ó ancião, qual é o seu nome?» «Ibrahim», disse ele. E Nureddine
disse: «Ó ancião Ibrahim, valha-me Deus, este jardim é belo, que Deus
Todo-Poderoso o abençoe com o seu jardim. Ó ancião Ibrahim, foi muito
generoso da sua parte convidar-nos a entrar no seu jardim, e não nos é
permitido pesar-lhe com mais incómodos, mas tome estes dois dinares e
procure… traga-nos pão e carne e tudo quanto faça falta.» Logo ele pegou
nos dois dinares, ficando contente e dizendo de si para o seu coração: «O
que vão comer não vai custar mais de dez dirames, e o que sobrar fica para
mim.»
Ao depois, o ancião foi e comprou-lhes o quanto bastasse de boa comida.
E enquanto havia ido fazer compras, Nureddine Ali e a sua rapariga Anice
Aljalice levantaram-se para dar umas voltas e passear pelo jardim, e o
destino conduziu-os ao palácio do califa, o qual ficava no meio do jardim, e
que se chama Palácio das Estátuas, como já mencionámos. Então
Nureddine Ali olhou para o palácio, para a sua altura e para a beleza
arquitectónica, e quiseram ambos entrar, mas não o conseguiram fazer.
Ora, em o ancião Ibrahim regressando do mercado, eles disseram: «Ó
ancião Ibrahim, não disse que este jardim era seu?» O ancião disse: «Sim.»
E disse Nureddine: «Então e este palácio, é de quem?» Então o ancião disse
de si para si: «Se eu disser que o palácio não é meu, vão me dizer: “Como
assim?”» E logo o ancião Ibrahim disse: «Filho, o palácio é meu.»
Nureddine disse: «Ó ancião Ibrahim, então nós somos seus convidados, e
apesar deste palácio ser sua propriedade, não o abre para nós nem nos
convida para que o possamos admirar?» Desde logo, o ancião ficou
envergonhado, mas tinha de ficar à altura da coisa. Ausentou-se um breve
tempo e ao voltar trazia uma grande chave. Aproximou-se da porta do
palácio, abriu-a e disse: «Entremos.»
Ao depois subiu à frente de Nureddine, e eles subiram atrás dele até que
foram dar a um salão que era elevado em relação ao piso. Então Nureddine
olhou para aquelas fileiras de velas, para os candeeiros suspensos, para
aquelas janelas, e recordou-se dos banquetes onde havia estado, e disse ao
ancião: «Valha-me Deus, este lugar é belo.» Ao depois sentaram-se para
comer, e comeram até se saciarem. Ao depois, lava-ram as mãos, e
Nureddine acercou-se de uma das janelas, abriu-a, chamou a sua rapariga
para junto de si, e olhou para aquelas árvores que estavam carregadas de
fruto. E logo Nureddine olhou para o ancião e disse-lhe: «Ó ancião, tem
alguma coisa que se beba?» E ele disse-lhe: «Filho, porque haverias de
beber depois de comer? As pessoas bebem antes de comer.» E Nureddine
disse: «Mas há outra coisa que se bebe depois de comer.» Ao que o ancião
disse: «Não te referes ao vinho?» E ele disse: «Sim, a ele me refiro.» E o
ancião disse: «Que Deus me proteja, meu filho. Eu já fiz a peregrinação a
Meca treze vezes e isso é algo sobre o qual eu nem converso.» Então
Nureddine disse-lhe: «Oiça duas palavrinhas minhas.» «Diz, filho», disse o
ancião. E então Nureddine disse: «Este burro que está preso à banda do
jardim, se for amaldiçoado, o ancião Ibrahim também o será?» E ele disse:
«Não.» E Nureddine disse: «Então pegue nestes dois dinares e nestes dois
dirames, monte nesse burro e vá até à loja de vinhos; páre longe dela e
quando vir um pobre coitado qualquer chame-o e diga-lhe: “Tome estes
dois dirames para si e compre-me com estes dois dinares dois jarros de bom
vinho.” E em ele comprando e saindo da loja diga-lhe: “Ponha-os nestes
alforges e coloque-os em cima do burro.” E ele assim fazendo, conduza o
burro até chegar junto de nós, que nós mesmos descarregaremos o burro, e
assim não tocará nele, nem o carregará, nem será amaldiçoado de forma
alguma por mor do vinho.»
Então o ancião, rindo-se das palavras de Nureddine, disse: «Valha-me
Deus, ó filho, jamais vi alguém com mais encanto ou mais graça do que tu.»
Ao depois o ancião fez o que Nureddine lhe havia dito. Comprou, voltou, e
Nureddine e Anice Aljalice foram descarregar o vinho. Ao depois, disse-lhe
Nureddine: «Ó ancião, nós agora estamos por sua conta, e nada mais poderá
fazer senão ser-nos favorável.» O ancião disse: «Em quê, por exemplo?» E
ele disse-lhe: «Traga-nos agora mesmo das suas caves o que precisamos de
copos, serviço para o vinho e demais coisas.» E logo o ancião sacou para
eles das chaves das despensas e dos louceiros, e disse-lhes: «Enquanto vos
trago fruta, ide vós buscar o que precisais.»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se.


216.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o ancião disse: «Ide vós buscar o
que precisais.» Então Nureddine percorreu as despensas e os louceiros, do
primeiro ao último, e tirou tudo aquilo de que precisava e queria, enquanto
o ancião foi buscar toda a sorte de frutas, flores aromáticas, e demais coisas,
e a rapariga tratou de arrumar as loiças do banquete, organizando as taças e
jarras de servir, os oiros e as pratas, os maiores e os mais pequenos, os
pratos para servir os frutos secos, e quanto à fruta havia-a de todas as sortes,
e em o banquete estando pronto, sentaram-se a conviver e a beber. Então
Nureddine Ali encheu um copo, olhou para a sua rapariga Anice Aljalice, e
disse-lhe: «Abençoado seja o caminho que fizemos que nos trouxe a este
jardim!» Ao depois, declamou estes versos:

Que belo dia este, tão perfeito e encantador.


Poderá haver beleza mais prima?
Copo à direita, e à esquerda a Lua meu amor.
Mas quem me censura nada me estima!

Ao depois, puseram-se a beber, ele e a rapariga, até se ir o dia e a sua luz,


e vir a noite e as suas trevas, e logo o ancião foi ter com eles para ver se
necessitavam de alguma coisa. Parou à porta, olhou para Nureddine, e
disse-lhe: «Valha-me Deus, ó meu caro senhor, eis um dia feliz por ser
honrado com a vossa presença, tal como um poeta diz:
Se a casa soubesse quem a visita,
Com tanta alegria o chão beijaria,
E à sua maneira cantaria
As boas-vindas a gente tão bendita.

Disse Nureddine Ali, e já o álcool o dominava: «Deus proíbe-o de dizer


tal coisa, ó ancião Ibrahim. Valha-me Deus, nós só tropeçámos sobre a sua
dádiva e usufruímos das suas generosas e boas maneiras.» E logo Anice
Aljalice olhou para o seu senhor Nureddine e disse-lhe: «Que sensação seria
se alguém fizesse com que o ancião Ibrahim bebesse!» E ele disse-lhe:
«Pela minha vida, será que consegues?» Ela disse: «Pela tua vida, consigo
sim.» E ele disse-lhe: «Ena! E como farias?» E ela disse-lhe: «Senhor meu,
adjura para que ele entre, e quando ele se sentar connosco, bebe um copo e
adormece, e deixa-me tratar do resto com ele.»
Em Nureddine ouvindo estas palavras da sua rapariga, olhou para o
ancião Ibrahim e disse-lhe: «Ó ancião Ibrahim, assim são as pessoas.» E o
ancião perguntou: «Ó filho, de que falas?» E ele respondeu: «Somos seus
convidados, no entanto não se queda junto de nós conversando connosco
para o escutarmos, convivermos juntos e nos entretermos durante a
escuridão da noite.» O ancião Ibrahim olhou para aqueles dois, já
dominados pelo vinho, com as faces rosadas, o suor fulgurando nas testas,
os olhos lânguidos, os cabelos desgrenhados, e então o ancião Ibrahim disse
para o seu coração: «E porque me não haveria de quedar com eles? Afinal,
quando voltarei a encontrar durante a minha vida alguém como estes dois?»
E entrou, quedando-se a um canto, mas Nureddine disse-lhe: «Pela minha
vida, venha para junto de nós.» Então o ancião aproximou-se, e Nureddine
encheu o copo, olhou para o ancião, e disse: «Beba, ó ancião.» Mas ele
disse: «Deus me proteja, eu sou um penitente!»
Depois de Nureddine beber, deitou-se, fazendo o ancião pensar que
dormia. Então, a rapariga olhou para o ancião e disse: «Veja bem o que ele
me faz!» E o ancião disse: «Que se passa com ele?» E ela disse: «Bebe um
pouco e adormece logo, deixando-me a mim sozinha sem ninguém com
quem me entreter.» E como o ancião ia ficando menos determinado, ela
encheu um copo e disse-lhe: «Pela minha vida, alegre o meu coração e
beba.» Então o ancião estendeu a mão, pegou no copo e bebeu, e ela encheu
outro e ele bebeu, e em ele dizendo «Chega», ela disse: «Um ou cem dá
igual!»; e deu-lhe o terceiro copo a beber, e encheu um quarto copo, e
estava o ancião prestes a bebê-lo, quando [Nureddine] Ali acordou
sentando-se direito.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se.


217.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que a rapariga encheu o quarto copo e


serviu-o ao ancião, que estava prestes a bebê-lo, quando Nureddine
acordou, sentando-se direito, e disse: «Ó ancião, que vem a ser isto, quando
o convidei a beber, disse-me: “Sou penitente.”» E o ancião, envergonhado,
disse: «A culpa não é minha.» E [Nureddine] Ali riu-se. Ao depois
continuaram a beber, e a rapariga disse em segredo a [Nureddine] Ali:
«Bebe mas não lhe ofereças bebida, quero mostrar-te uma coisa.» Então
puseram-se ela e ele a beber e na rambóia, até que o ancião olhou para eles
e disse: «Que vem a ser isto, então não me servem?» E em ouvindo isto,
desataram a rir.
Ao depois, continuaram a beber e a servir o ancião noite adentro, e lá
pela meia-noite a rapariga disse: «Vou acender uma destas velas.» E o
ancião disse-lhe: «Vai, mas não acendas senão uma só.» E vai ela e acende
todas, mas o ancião nada lhe disse, e ela tornou a sentar-se. E tempo depois,
[Nureddine] Ali disse ao ancião: «Fazia-me um favor? Deixava-me acender
um destes candeeiros?» E o ancião disse: «Vai mas acende um só.» E
[Nureddine] Ali levantou-se e acendeu-os a todos, pondo o palácio a vibrar
com tanta luz, e o ancião, que já estava domado pelo álcool, disse: «Vós
sois mais brincalhões do que eu», e abriu as oitenta janelas.
Ora, como estava decretado, calhou estar o califa sentado a uma janela
naquela noite à banda do rio Tigre, e aconteceu que ao menear a cabeça deu
com o Palácio das Estátuas qual labareda de fogo. E logo perdeu as
estribeiras, mandou chamar o vizir Jáfar à sua presença, e olhando para ele
cheio de rancor, disse-lhe: «Ó cão de vizir, Bagdade está a ser tomada e tu
nada me dizes?» Ao que Jáfar disse: «Por amor de Deus, ó miralmuminim,
que palavras tão duras.» E o califa disse: «Ó cão, se a cidade não foi
tomada, porque estaria o Palácio das Estátuas iluminado com as janelas
abertas? Quem se atreveria a tal fazer se não fosse para me tomar o
califado?» E Jáfar, que tremia da cabeça aos pés, disse: «Ó miralmuminim,
quem lhe disse que o Palácio das Estátuas estava aceso e com as janelas
abertas?» E respondeu-lhe: «Maldito sejas! Aproxima-te de mim e vê!»
Então Jáfar aproximou-se do califa e olhou para a banda do jardim e deu
com o palácio como se fosse uma labareda de fogo na mais escura das
trevas, e querendo assegurar a sua amizade com o caseiro Ibrahim,
convencido de que este tivesse visitas, disse ao califa: «Ó miralmuminim, o
ancião Ibrahim veio ter comigo na passada sexta-feira, e disse: “Meu
senhor, gostaria de circuncidar os meus filhos durante a vida do
miralmuminim e durante a sua”. E eu disse-lhe: “Que pretendes?” E ele
disse: “O aval do califa para que a circuncisão seja no palácio.” E eu disse-
lhe: «Vai e fá-la, que eu me vou reunir com o califa e lhe dou parte disso.”
Mas esqueci-me de lho dizer, ó miralmuminim.»
Então o califa disse: «Ó Jáfar, pensei que tivesses cometido uma ofensa
contra mim, mas afinal são duas. A primeira é me não haveres dito, e a
segunda é não haveres compreendido qual era a intenção dele, pois ele não
veio ter contigo e dizer o que disse senão quisesse também pedir algum
dinheiro para o ajudar com as despesas da circuncisão, mas tu nada lhe
deste nem nada me disseste para que fosse eu mesmo a lho dar.» E Jáfar
disse: «Estava distraído, ó miralmuminim.» E o califa disse: «Pelos túmulos
dos meus pais e avós, não passarei o resto da minha noite a não ser com
eles, e este assunto é de interesse mútuo; pois é do interesse deles porque a
minha presença vai ser do seu agrado e animá-los, e o ancião Ibrahim vai
ficar radiante de alegria com isso; e é do meu interesse porque me encontro
com os xeques e os homens pios que com o ancião se reúnem.»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se.


218.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o califa disse a Jáfar: «… e verei


os homens pios que com o ancião se reúnem.» Jáfar disse: «Ó
miralmuminim, agora já é tarde e eles já devem ter terminado.» Disse o
califa: «Em qualquer caso, tenho mesmo de ir.» Então Jáfar ficou calado e
atrapalhado sem saber que fazer. O califa levantou-se, assim como Jáfar e
Macerur, o eunuco, e saíram do palácio os três disfarçados, rompendo pelas
travessas de Bagdade com roupas de mercadores, até que chegaram à porta
que dava para o jardim.
O califa aproximou-se da porta, e eis que ela estava aberta, o que deixou
o califa espantado, e disse: «Ó Jáfar, o ancião Ibrahim deixou a porta aberta
até agora, o que não é seu hábito. Talvez esteja ocupado com o aparato da
festa.» Ao depois, entraram até chegarem ao cabo do jardim, e pararam
mesmo por baixo do palácio, e o califa disse: «Ó Jáfar, gostaria, antes de
entrarmos, de os espiar para ver o que fazem e observar os xeques, pois não
oiço nem as suas vozes nem os seus hinos a Deus91 nem os faquires92, e isto
não pode ser senão um sinal de elevada reverência.» Ao depois, o califa
olhou à roda, e ao encontrar uma árvore alta, disse: «Nada mais apropriado
que esta árvore. Vou subi-la, pois os seus ramos ficam perto das janelas, e
deles posso observá-los e ver o que fazem.»
Então o califa subiu àquela árvore, e foi subindo de ramo em ramo até
chegar a um que ficava mesmo em face das janelas, e ao olhar para dentro
do palácio deparou com um moço e uma moça, que eram quais luas, e com
o ancião Ibrahim de cálice na mão, dizendo: «Ó mais bela das senhoras, que
do canjirão não saia bebida sem cantiga, é que lá diz o poeta:

Roda por graúdos e miúdos, que o vinho se distribua;


Toma-o da mão duma beleza tão radiante quanto a Lua,
E não bebas sem haver canção e alegria,
Que até para o cavalo beber se assobia.

Em o califa vendo como se comportava o ancião, ficou com a testa


franzida de raiva, olhou para Jáfar e disse: «No que me toca, já vi os
homens pios que estão com ele. Agora sobe e vê-os tu, para que não perdas
as suas bênçãos!» Em tal ouvindo, Jáfar ficou perplexo. Então subiu à
árvore e deparou com o caseiro ancião, com [Nureddine] Ali e a rapariga, e
com o que faziam, e em vendo aquilo ficou pálido e certo da sua perdição.
Ao depois, desceu da árvore e o califa disse-lhe: «Jáfar, ainda bem que
viemos a esta cerimónia de circuncisão.» E Jáfar não conseguiu devolver
resposta por medo e embaraço.
Então, o califa disse a Jáfar: «Quem trouxe aqueles aqui e como é que
eles se atreveram a entrar no meu palácio? Porém, beleza como a deste
moço e desta moça nunca eu vi.» E Jáfar, esperando agradar ao califa disse:
«É verdade, ó miralmuminim!» E o califa disse: «Jáfar, eu e tu vamos subir
a este ramo em face deles para nos divertirmos vendo-os na rambóia.» E lá
subiram os dois àquele ramo, olharam para eles, e ouviram o ancião dizer à
rapariga: «Ó mais bela das senhoras, o que nos falta mais para este
banquete?» E ela disse-lhe: «Ó ancião, se tiver algum instrumento de
música, a nossa alegria será total.»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se.


219.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que Anice Aljalice lhe disse: «Ó


ancião, se tiver algum instrumento de música, a nossa alegria será total.» E
ele respondeu: «Isso arranja-se», e levantou-se em seguida. O califa disse a
Jáfar: «O que será que ele vai buscar?» «Não sei, ó miralmuminim», disse
Jáfar. Ora, o ancião ausentou-se e em regressando trouxe um alaúde. Então
o califa observou o alaúde e viu que era o alaúde de Isaac Annadime, e
disse: «Jáfar, é alaúde o que esta rapariga vai tocar. Mas pelos túmulos dos
meus pais e avós, se cantar bem eu perdoo-os e crucifico-te a ti, e se cantar
mal crucifico-vos a todos.» E Jáfar disse: «Ó Deus meu Senhor, fá-la cantar
desgraçadamente.» Ao que o califa perguntou: «Porquê?» E ele respondeu:
«Porque se formos todos crucificados, vamos conviver uns com os outros.»
O califa riu-se.
E eis que a rapariga examinou as cordas do alaúde, e já tinha saudades de
tocar; afinou-o e tocou uns admiráveis e soberbos acordes, cuja destreza os
corações de desejo preencheu e a todos entristeceu. E em seguida declamou
pondo-se a dizer:

Ó vós que repudieis os amorosos desafortunados,


O que for que façais nós o merecemos.
Nós a vós por vós e para vós apelamos,
Vós que as mãos aos desafortunados estendeis.
Gente da desfortuna nós somos, não nos mateis.
Temei a Deus no que connosco fizerdes.
Haverá glória em sob o vosso tecto nos matardes?
Só receamos que com nosso sangue pequeis.

Então, o califa disse: «Ó Jáfar, jamais na minha vida ouvi alguém cantar
assim.» Então Jáfar, percebendo que o califa estava apaziguado, disse: «O
miralmuminim disse a verdade;» e desceram ambos da árvore. Em seguida,
o califa disse a Jáfar: «Quero sentar-me com eles e ouvir a moça cantando à
minha frente.» Ao que Jáfar disse: «Se entrarmos, vamos estragar a festa
deles e num pronto o ancião morre de medo.» E o califa disse: «Não vou
deixar que ele me reconheça.»
Ao depois, o califa deixou Jáfar no sítio onde estava, e aproximou-se da
banda que dava para o rio Tigre, e enquanto pensava no que haveria de
fazer, encontrou um pescador pescando abaixo do palácio.
Ora, certa feita o califa ouvira um ruído e perguntara ao ancião Ibrahim,
o caseiro: «O que é este ruído?» E ele dissera: «São pescadores, ó
miralmuminim.» Ao que o califa disse: «Se alguma vez abrires a porta aos
pescadores, crucifico-te.» E assim proibira ele os pescadores. Mas naquela
noite, o pescador que mencionámos, chamado Carime, calcorreava pela
noite, e eis que encontrou a porta do jardim aberta, e disse de si para o seu
âmago: «Parece que o caseiro adormeceu e se esqueceu da porta aberta.
Deixa-me levar a rede, aproveitar-me da sua distração, e ir pescar abaixo do
palácio, pois a esta hora não há chinfrim e o peixe anda mais tranquilo.»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se.


220.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o pescador, ao virar-se para trás,


depara com o califa e reconhece-o, e tremendo de medo da cabeça aos pés
diz: «Ó miralmuminim, não fiz isto por não levar a sério a sua proibição,
mas foi a pobreza e a dificuldade em prover à minha família que a isto me
levaram.» E o califa disse-lhe: «Não tenhas medo. Pesca para mim.» Então
o pescador avançou e botou a rede, e em a alando vieram vários géneros de
peixe, e o califa ficou contente e disse-lhe: «Separa as sardinhas-de-água-
doce e amanha-as.» E ele fez o que o califa havia ordenado. Ao depois,
disse o califa: «Pescador, tira as tuas roupas.» E ele tirou as roupas, que
eram noventa farrapos cosidos, e tirou o turbante, e o califa pegou nas
roupas, vestiu-as e disse ao pescador: «Veste tu as minhas roupas», e ele
vestiu-as. De seguida, o califa cobriu a cara e disse ao pescador: «Vai aos
teus afazeres.»
Ao depois, o califa pegou num açafate limpo, pôs algumas folhas verdes,
e por cima os peixes. E caminhou até se deter ante Jáfar, que pensou que ele
fosse o pescador, e em o califa se pondo a rir, ele percebeu que era o
miralmuminim e perguntou: «Miralmuminim?» E ele respondeu: «Sim, sou
eu.» E Jáfar disse: «Valha-me Deus, pensei mesmo que era Carime, o
pescador!» E em seguida o califa disse: «Jáfar, fica onde estás até eu
voltar.» E o califa foi ao palácio e bateu à porta. Nureddine disse: «Ancião,
estão a bater à porta.» O ancião perguntou: «Quem é?» E o califa
respondeu: «Sou eu, Carime, o pescador, ouvi dizer que tem convidados.
Vim trazer-lhes estes peixes que tenho comigo.»
Em eles ouvindo falar em peixe, ficaram radiantes, e a rapariga disse:
«Valha-me Deus, pela minha vida, abra-lhe a porta e deixe-o entrar com o
peixe.» Então o ancião levantou-se e abriu a porta. Então em o califa
entrando e prestando os seus cumprimentos, o ancião disse: «Bem-vindo, ó
gatuno viciado no jogo, mostra-nos o que tens!» O califa mostrou-lhes o
que tinha, e a rapariga disse: «Valha-me Deus, que peixes tão lindos! E se
fossem fritos mais belos ficariam.» E o ancião Ibrahim, pondo-se aos gritos,
disse: «Porque nos trouxestes estes peixes sem estarem fritos? Que queres
que façamos com eles? Vá, vai fritá-los para nós e depois trá-los!»
Então o califa foi a correr até Jáfar. «Ó Jáfar», disse ele; ao que este
respondeu: «Está tudo bem, ó miralmuminim?» O califa disse: «Querem
que o peixe seja frito.» E Jáfar disse: «Eu frito-o.» Disse o califa: «Pelos
túmulos dos meus pais e avós, ninguém os vai fritar senão eu com as
minhas próprias mãos.» Então o califa foi à cabana do caseiro, e nela
encontrou tudo que precisava, até sal e tomilho. Acercou-se do braseiro,
colocou a frigideira, regou-a com sirage, acendeu o fogo e pôs os peixes a
fritar. Ao depois, acrescentou limão e rabanetes, e levou tudo ao palácio,
para lhes oferecer, e fez a oferta a [Nureddine] Ali, à rapariga e ao ancião, e
eles comeram. Em eles acabando de comer, [Nureddine] Ali disse: «Ó
pescador, que belo favor nos fizeste!» E em seguida pôs a mão no bolso e
sacou de um envelope em papel…

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se.


221.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que [Nureddine] Ali sacou de um


envelope em papel com trinta dinares, que era o que restava do oiro que o
camarista lhe havia dado no dia da partida, e disse: «Perdoa-me, ó pescador,
isto é tudo o que tenho. Valha-me Deus, houvesse eu te conhecido antes de
se me acabar a herança, livraria o teu coração da amargura da pobreza.
Aceitas pelo menos isto como mostra da minha boa vontade?» E atirou o
dinheiro ao califa, que pegou nele, beijou-o e guardou-o. Ora, o califa não
queria senão ouvir a rapariga a cantar, então disse: «Meu amo, foi generoso
para comigo, mas eu gostaria de mais um favor seu, que esta rapariga me
cantasse uma canção.» E Nureddine disse: «Rapariga, canta qualquer coisa
para o bem deste pescador.» E ela pegou no alaúde, mexeu nas cravelhas
para afiná-lo, e pôs-se a cantar dizendo:

Garota airosa as cordas do alaúde tocando,


A alma com o som arrebatando.
Quando ela canta, o cantar o surdo cura;
«Bravo!» grita quem da surdez se depura.

Ao depois, tocou uns admiráveis e soberbos acordes que deixaram as


suas mentes estupefactas. E pôs-se a cantar dizendo:

Quando nos honrastes a nossa terra visitando,


As trevas se iluminaram e se rescendeu a fragrância.
Com almíscar, água de rosas e cânfora perfumando
A minha casa, assim quis a circunstância.

Maravilhado com o que havia ouvido, disse o califa: «Jamais vi alguém


cantar assim.» E Nureddine disse-lhe: «É uma oferta minha para ti.» Em
seguida, Nureddine levantou-se, querendo vestir o seu manto para ir à sua
vida, mas a rapariga olhou para ele e disse: «Aonde vais? Se assim mesmo
tem de ser, espera um pouco e ouve como eu me sinto.» Em seguida,
declamou dizendo:

O quanto há em mim de saudade, paixão e tormenta


O meu corpo tanto definha que em fantasma se torna.
Ó amado, não penses que eu te olvidaria!
Sempre o mesmo sentindo, a aflição minha não cessa.
Se possível fosse um ser vivo em lágrimas mergulhar,
Seria eu a primeira que nelas nadaria.
Ó tu! Que meu coração governas com o amor,
Tal o vinho governa a água no copo ao se misturar.
A separação que tanto receava, eis o seu ensejo!
Ó amor do coração, em mim te entranhaste alegremente!
Ó Ibn Khacane, ó esperança minha, só a ti desejo.
Ó amor do coração que jamais cessará o que sente.
Por mor de mim afrontaste o nosso amo e senhor,
E das tuas terras exilado foste por te opores.
Que Deus me não separe do meu amor,
Que me ofertou a Carime, digno de louvores.

Em o califa ouvindo: «Que me ofertou a Carime…»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se.


222.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o califa em ouvindo «Que me


ofertou a Carime…» virou-se para o moço e disse-lhe: «Meu senhor, ela
mencionou na sua poesia que vossemecê afrontou o senhor e proprietário
dela. O senhor afrontou alguém e esse alguém tem sobre si uma
reivindicação.» Então [Nureddine] Ali disse: «Ó pescador, o que aconteceu
a mim e a esta rapariga é uma história espantosa.» E o califa disse: «Conta-
me.» E [Nureddine] Ali disse: «Queres ouvir a minha história em verso ou
prosa?» Ao que o califa disse: «A prosa são palavras e a poesia pérolas
enfiadas num colar.» Então Nureddine baixou a cabeça e pôs-se a declamar:

Ó querido amigo, do sono fui privado;


Dês que minha terra deixei a mágoa aumenta.
Tinha um pai com cuja ternura eu contava
Mas ausentou-se, e no túmulo se aposenta.

E depois vieram tamanhas vicissitudes


Que me despedaçaram o quanto eu valho.
No mercado havia meu pai comprado uma velida
Cujo porte dobradiço envergonhava o galho.

Tudo o que herdei por ela dei por esvaído


E para honrar mui nobres amigos.
Nada me restou, tive de a levar ao mercado,
Contra vontade, falido e em perigos.

Pegaram nela, apregoaram-na em alto brado


E calhou o lance final a um corrupto velho trapaceiro.
Fiquei por isso tão irado e desvairado
Que pela mão a arrebatei da mão do pregoeiro.

Então aquele ignóbil de raiva com murros me atacou,


Transparecendo da sua alma tamanho rancor.
Mão direita e esquerda, até sarar o meu coração,
De volta o ataquei com murros a rigor.

Para me esconder dos inimigos


Fui para casa, minha alma em susto.
Deu-me o rei do meu país ordem de prisão,
Mas veio o camarista grandioso e justo.

E ordenou que fugisse da minha terra


E me partisse para longe de invejosos inimigos.
Saímos de casa pela calada da noite,
Para em Bagdade buscar abrigos.

E demos por nós num banquete


Quando nos visitaste sem lembrador.
Não tenho dinheiro algum para te dar,
Que recompense a tua oferta, ó pescador.

Só me resta dar-te a amada do meu coração,


Separar-me do meu desejo, destino e crença.
Agora, leva o que te ofertei, que não é senão,
Podes crer, meu coração dado em recompensa.
Então o califa disse: «Meu senhor Nureddine, elucide-me sobre o seu
caso.» Nureddine contou-lhe todo o caso de fio a pavio, e o califa disse: «E
onde pensa ir agora?» «Para a terra de Deus», disse Nureddine. E o califa
disse: «Eu vou escrever uma carta que deve entregar ao rei Muhammad ibn
Suleimane Azzainabi, e em ele a vendo não mais lhe voltará a perturbar ou
prejudicar.»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se.


223.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o califa, disfarçado de pescador,


disse: «Eu vou escrever uma carta que deve entregar ao rei Muhammad ibn
Suleimane Azzainabi, para ele não mais o prejudicar.» E Nureddine disse:
«Neste mundo não há pescador algum que se corresponda com reis.» O
califa disse: «Eu e ele andámos na mesma escola e tivemos o mesmo
mestre. Eu estava mais à frente e era assistente do mestre, mas ele tornou-se
rei e eu pescador. E quando lhe escrevo uma carta pedindo-lhe um favor, ele
cumpre tudo o que lhe digo e peço.» E [Nureddine] Ali ouvindo tal coisa,
disse: «Escreve e veremos.» E o califa pegou no tinteiro e na folha, e depois
da fórmula inicial de invocação a Deus escreveu:

Quanto ao que se segue, este escrito é de Harune Arraxide,


filho de Almahdi, para sua excelência Muhammad ibn Suleimane
Azzainabi, filho do irmão de meu pai, rebento da minha graça,
parceiro do meu reino. O portador deste escrito é [Nureddine] Ali
filho de Ibn Khacane, o vizir. Logo que recebas este escrito,
abdica e cede o teu lugar a [Nureddine] Ali ibn Khacane. Não me
desobedeças e haja paz.»

Ao depois, entregou o escrito a [Nureddine] Ali, que pegou nele, beijou-


o, pô-lo dentro do turbante e saiu logo de seguida, indo-se embora. E isto
foi o que aconteceu a [Nureddine] Ali ibn Khacane. Já no que toca ao
califa, o caseiro Ibrahim olhou para ele e disse: «Chega! chega! Já não basta
que hajas trazido um par de peixes que não valem mais de vintes tostões,
que tenhas recebido um envelope de dinheiro, e ainda queres ficar com a
rapariga!»
Ora, quando o califa havia ido fritar os peixes, antes de os levar para eles,
dissera a Jáfar: «Vai ao palácio e traz-me um dos meus trajes, e volta com
Macerur, o carrasco, e mais quatro mamelucos. Fica por baixo da janela e se
me ouvires dizer “A mim! A mim!” vinde de imediato, tu e os mamelucos,
vesti-me com o meu traje e ficai prestes a me prestar serviço.» Então Jáfar
fez o que o califa lho ordenara e ficou por baixo da janela.
E em o ancião havendo dito aquilo, o califa disse: «Ó ancião, partilhemos
entre nós o que [Nureddine] Ali me deu do dinheiro que estava no
envelope. No que toca à rapariga, ela fica para mim.» E o ancião disse:
«Valha-me Deus! Da rapariga não ficarás nem com o véu dela. Agora abre
o envelope para eu ver, e se for prata pega num dirame para ti e eu fico com
o resto; se for oiro, dá-mo todo, e eu tenho uns tostões no bolso e dou-te
quanto o peixe valer; aceita-os, levanta-te, abala e faz boa viagem.» O califa
disse: «Valha-me Deus! Não te dou nada!» Então o ancião pegou num prato
de porcelana e arremessou-o ao califa, que se esquivou, indo o prato
embater na parede. No que toca ao ancião, foi até à despensa procurar um
cacete.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se.


224.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o ancião foi até à despensa


procurar um cacete para bater no pescador, que não era senão o califa, e este
gritou da janela «A mim! a mim!» e eis que Jáfar e os mamelucos foram ter
com ele e o vestiram com o traje, sentando-o no trono e ficaram prestes para
lhe prestar serviço. E vai o ancião, trazendo um cacete e procurando o
pescador, e dá de caras com Jáfar em pé e o califa sentado no trono. De
imediato, o ancião ficou atónito, quedando-se atordoado enquanto roía as
unhas e dizia: «Estarei a dormir ou acordado?» O califa olhou para ele e
disse: «Ó ancião Ibrahim, que vem a ser isto?» O ancião Ibrahim ficou logo
sóbrio e rebolando-se no chão, declamou estes versos:

Perdoa-me o erro, foi um deslize;


Concede ao teu servo a clemência.
Confessei como o pecado exige;
Onde paira a tua indulgência?

O califa perdoou-o. Ao depois, ordenou que levassem a rapariga para o


palácio, arranjou uma residência só para ela e eunucos para a servirem. E
disse-lhe: «Fica sabendo que enviei o teu senhor para Baçorá para ser rei, e
em nós lhe enviando o traje de honra e a carta de investidura também te
enviaremos a ti, se Deus quiser.» E isto foi o que aconteceu com aqueles, já
no que toca a Nureddine ibn Khacane seguiu caminho até chegar a Baçorá,
foi ao palácio do rei e deu-lhe a carta.
Em o rei a lendo, beijou-a e levantou-se três vezes, e disse: «Estou às
ordens de Deus Todo-Poderoso e do miralmuminim.» Estando prestes a
abdicar do reino, eis que aparece o vizir, a quem o rei mostra a carta. O vizir
em a lendo, pegou na fórmula inicial de invocação a Deus, rasgou-a, pô-la
na boca e mastigou-a. Então o rei disse: «Porque fizeste isso?» E o vizir
disse: «Então o nosso amo o rei julgou que esta era a letra do califa?» «E
não é?» disse o rei. E o vizir disse: «Não é não, pela sua vida ó rei dos
tempos, foi este diabo que a forjou. Viria alguém sozinho e desvalido da
parte do califa sem o traje de honra e a carta de investidura?» O rei disse:
«Qual o teu conselho?» E ele disse: «O meu conselho é que me entregue
este aqui e esperar o tempo que demora a viagem, e se ninguém vier com o
traje de honra e a carta de investidura, ficará sabendo que falo verdade e
poderá punir este aqui pelo que me fez.»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se.


225.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Conta-se, ó rei bem-aventurado, que ao dizer o que o vizir Ibn Saui disse
ao rei, este disse-lhe: «Entrego-to a ti», e entregou-o ao vizir, que o levou
para o seu palácio, e ao lá chegar gritou aos seus serventes: «Deitai-o no
chão.» Assim fizeram eles e bateram em [Nureddine] Ali até este perder a
consciência. O vizir acorrentou-o e prendeu-o, e gritou ao carcereiro, que
dava pelo nome de Cutaite93: «Ó Cutaite, leva-o para as escuras e húmidas
masmorras e castiga-o!» E ele castigou-o noite dentro, até que Nureddine
perdeu a consciência, e em acordando pela noite chorou e pôs-se a dizer
uma poesia:

Perseverarei até a minha paciência se impacientar,


Perseverarei até Deus o meu quinhão decretar.
Aqueles que dizem que existe doçura na vida,
Amargura pior que o azebre lhes virá um dia.

Nureddine sofreu desta guisa por dez dias, até que o vizir o quis
decapitar, e então pegou em presentes e deu-os a um grupo de beduínos
desconhecidos, dizendo-lhes: «Oferecei estes presentes ao rei.» E eles os
levaram ante o rei, e o vizir disse: «Amo nosso, estes presentes não são para
si, mas são para o novo rei.» Então o rei disse: «Fizeste-me lembrar dele.
Trá-lo e decapitemo-lo.» E o vizir disse: «Eu, quando naquele dia me
bateram, fui vexado pelos meus inimigos, e se me der licença que mande
apregoar pela cidade “Quem quiser assistir à decapitação de Ali ibn
Khacane, que venha ao palácio real,” e assim virá meio mundo e mais
algum, então serei vingado e o meu coração ficará curado.»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se.


226.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse: «Assim seja:»

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o vizir disse: «…então serei


vingado e o meu coração ficará curado.» E o rei disse: «Faz como queres.»
Então, o vizir saiu e ordenou ao pregoeiro que apregoasse, e ele assim fez, e
as pessoas ao ouvir o pregão choraram e entristeceram-se por mor de
Nureddine.
O vizir foi à cadeia e disse ao carcereiro: «Traz-me o moço.» E o
carcereiro levou-o ao vizir, e em ele abrindo os seus olhos doridos, viu o
vizir seu inimigo aprontando-se para o matar, e quando o mirou disse:
«Estás seguro do que reserva o destino? Será que ouviste o poeta dizer:

Tanto tempo persistiram em nos governar,


Mas tão rápido o seu poder se desvaneceu.»

O vizir disse: «Ó canalha, estás a ameaçar-me? Depois de te decapitar,


malgrado a vontade da população de Baçorá, deixa os dias trazerem-me o
que trarão, porque lá diz o poeta:

Quem sobrevive ao inimigo,


Nem que seja por um dia,
A meta da vida terá atingido.»
Ao depois ordenou aos seus serventes que o carregassem em cima duma
mula. As gentes aglomeraram-se à sua roda, chorando todas, e disseram-
lhe: «Nosso senhor Nureddine, dai-nos licença para agora mesmo pegarmos
em pedras e apedrejarmos o vizir, mesmo correndo perigo as nossas vidas,
para matarmos este velho maldoso e os seus serventes, e o salvarmos a si,
aconteça o que acontecer.»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se.


227.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que a população disse: «… aconteça o


que acontecer.» Ainda assim, levaram Nureddine ibn Khacane até ao
exterior do palácio, largaram-no na esteira de execução, e aproximou-se o
carrasco, que desembainhou a espada, vedou-lhe os olhos e por duas vezes
lhe perguntou se tinha algo a dizer. Em seguida, sentou-se à frente dele,
tirou-lhe a venda dos olhos e disse: «Meu senhor, eu sou um escravo que
recebe ordens, não tenho escolha, e quanto à sua vida ela acabará logo que
o rei diga.» Logo [Nureddine] ibn Khacane olhou para a direita e a
esquerda, não vendo alguém que o salvasse ou ajudasse, e acossado por
uma sede imensa, pôs-se a dizer:

Findou-se-me a vida, a morte está próxima.


Ninguém quererá recompensa por me ajudar?
Ninguém terá misericórdia do meu tormento,
Aliviando com um copo de água este sofrimento?
Se sitibundo morrer, morrerei tal e qual
O filho de Ali94, o Puro, de morte brutal.

Choraram as gentes e o carrasco foi buscar um copo de água, e deu-lho a


beber, mas o vizir saltou lá para cima aos gritos, enxotou o copo partindo-o,
e disse: «Decapita-o.» E as gentes clamavam: «Isto é crime!» E desta guisa
estavam eles, quando uma nuvem de poeira se alevantou e polvilho se
alastrou, e então o rei disse: «Vede de que se trata.» O vizir disse:
«Decapitemo-lo agora mesmo!» E o rei disse: «Pacientai-vos para vermos
de que se trata.» E aquela nuvem de poeira era Jáfar e quem o
acompanhava. E a causa da sua vinda era…

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se.


228.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse: «Assim seja:»

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o califa numa noite de entre noites
cruzava o palácio e eis que ouviu alguém dizer:

Sofro do coração às entranhas sem cura,


Pois o tempo decretou separação terrífica.
Deus os amantes põe em juntura,
Mas a mim, por amar, me mortifica.

E o califa perguntou: «Quem está neste quarto?» E responderam: «Amo


nosso, é a rapariga Anice Aljalice, cujo seu amo enviou para Baçorá,
dando-lhe o lugar do emir Muhammad ibn Suleimane.» Em aquilo ouvindo,
procurou Jáfar e disse-lhe: «Esquecemo-nos de [Nureddine] Ali ibn
Khacane nem lhe enviámos o traje de honra nem a carta de investidura.
Receio que o seu inimigo já lhe tenha feito alguma e o tenha matado. Monta
um cavalo dos correios para chegares rápido a Baçorá, e se encontrares o
pior receio, enforca o vizir, mas se encontrares Nureddine vivo, trá-lo com o
rei e o vizir ante mim, tal como os encontrares. E não te ausentes mais do
que o tempo da viagem.» Então Jáfar aprontou-se logo e montou com a sua
comitiva, e partiu de imediato.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se.


229.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse: «Assim seja:»

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o vizir [Jáfar] montou e partiu de


imediato, até chegar a Baçorá, e Nureddine ibn Khacane estava no estado
que já descrevemos, prestes a ser decapitado, com o carrasco em pé diante
dele e de espada em riste. Em Jáfar chegando, acercou-se do rei,
cumprimentou-o, e indagou por Nureddine. Então o rei deu-lhe parte do que
se passava, e Jáfar ordenou que trouxessem Nureddine ante si, e trouxeram-
no ante ele assim mesmo como estava, com a esteira e espada. E ordenou
que botassem uma corda ao pescoço de Almuíne, o vizir, e lhe atassem as
mãos atrás das costas, e partiram com eles para Bagdade, a Casa da Paz.
Levaram-nos ao califa, apresentaram Nureddine ante ele, e contaram-lhe a
história. Então o califa disse: «Ó [Nureddine] Ali, pega nesta espada e
decapita o teu inimigo com as tuas mãos.» Então ele ergueu-se, pegou na
espada, acercou-se do vizir, e este olhou para ele e disse-lhe: «Ó Nureddine,
eu agi conforme a minha natureza, age tu conforme a tua.» Então
[Nureddine] Ali largou a espada da mão e disse: «Ó amo, o poeta diz:

Enganei-o com malícia para perdoar minhas faltas,


Pois nobres corações se enganam com belas palavras.»

Então o califa disse: «Ó Macerur, decapita-o tu.» E logo Macerur se


acercou do vizir e decapitou-o com a espada, tombando a cabeça do tronco.
Logo depois o califa olhou para [Nureddine] Ali ibn Khacane e disse-lhe:
«Pede-me o que queiras.» E ele disse: «Meu senhor, não necessito de ter o
reino de Baçorá e só desejo ser companheiro de vossa alteza.» O califa
concedeu-lhe esse favor, fazendo-o um dos seus amigos de eleição, depois
de lhe conceder favores e o reunir com a sua rapariga. E ele e a rapariga
viveram a mais feliz das vidas – melhor não poderia ter sido! – até que lhes
veio o destruidor dos prazeres e desmantelador de uniões – que Deus esteja
connosco nesse dia!

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite.
Se ele me poupar e eu viver, será ainda mais estranho e espantoso!»
230.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

História de Jullanar do Mar

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que havia na Pérsia um rei grandioso e


poderoso, senhor de muitas cidades e províncias, e todos os seus súbditos
lhe obedeciam, e ao seu jugo todos outros os reis da Pérsia e exércitos se
submetiam. Era justo quando julgava entre o forte e o fraco, devoto e
dotado de sagaz discernimento e fino entendimento, misericordioso com o
criminoso, e todos, estivessem longe ou perto, o amavam e lhe desejavam
longa vida, vitória e glória. Tinha por residência Coraçone95, e cem
concubinas de todas as raças, e todas elas tinham os seus próprios
aposentos, mas em toda a sua vida jamais havia sido abençoado com um
filho macho. Fazia votos a Deus, dava esmolas, praticava todo o género de
boas acções e favores, e orava a Deus para que fosse abençoado com um
filho macho que fizesse os seus olhos brilhar de felicidade e herdasse o seu
reino. E dizia de si para si: «Tenho medo de morrer sem ser abençoado com
um filho macho, pois o reino da nossa linhagem se escaparia e por um
estranho seria tomado.»
Ora, entre os mercadores ouvia-se dizer que o rei gostava de escravas e
concubinas, e quando se deparavam com uma escrava fosse de que raça
fosse levavam-na até ele, e se ele gostasse dela comprava-a por mui alto
preço, tornando o mercador rico, e dava-lhe um traje de honra, prestava-lhe
favores, escrevia-lhe ofícios, dando-lhe uma carta para que se não lhe
cobrasse taxas ou impostos, e tinha-o em grande estima. Como tal, os
mercadores visitavam-no vindos de todas as cidades e províncias,
presenteando-o com concubinas e mancebas, mas apesar disso no coração
do rei havia um fogo que se não apagava e uma chama que se não
acalmava.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se.


231.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que, apesar disso, no coração do rei


havia um fogo que se não apagava e uma chama que se não acalmava por
mor dele não ser abençoado com um filho macho que herdasse o reino
depois dele, e assim foi anos a fio, e ele já estava a ficar velho.
Ora, certo dia enquanto ele estava sentado no trono, com os dignitários
do reino, os emires e os notáveis à sua roda ante ele sentados, os
mamelucos e serventes em pé prestes a servi-lo, como era habitual, e o vizir
à sua banda, eis que entra um servente e lhe diz: «Ó rei dos tempos, está um
mercador à porta com uma rapariga digna do senhor nosso amo o rei, e pede
para a apresentar ante vossa alteza, e se gostar dela ele oferece-lha. E
mencionou ainda que não há mais bela ou formosa do que ela.» O rei disse
ao servente: «Traz-me o mercador.»
Então o servente foi buscar o mercador, que veio com o camarista que o
apresentou ante o rei. Beijou o chão pondo-se ao serviço do rei, que
ordenou que ele se sentasse, e em ele o fazendo, o rei pôs-se à conversa
com ele com palavras amigáveis e afectuosas, até ele ficar à vontade e se
dissipar o temor que sentia por respeito ao rei – pois é uma marca dos reis,
soberanos e dirigentes quando um mensageiro, mercador ou alguém se
apresenta ante eles para algum afazer, meter conversa de guisa amigável e
afectuosa para que se dissipe o temor sentido por via de respeito ao rei. Ao
depois o rei olhou para o mercador e disse…

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se.


232.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Conta-se, ó rei bem-aventurado, que o rei olhou para o mercador e disse:


«Onde está a rapariga que mencionaste ser digna de mim?» O mercador
disse: «Vou trazê-la, ela é de tal beleza e lindeza, com porte tão harmonioso,
que língua alguma a conseguiria descrever. Está à porta, meu amo, com os
serventes, aguardando a licença do rei para entrar.» Então o rei ordenou que
ela entrasse, e em ela comparecendo ante o rei, ele viu uma rapariga alta,
esguia como uma lança, envolvida num manto de seda com brocados a oiro.
Então o rei levantou-se do trono e foi para um dos seus aposentos privados,
ordenando ao mercador que a trouxesse, e este levou-a ante o rei,
desvelando-a, e em o rei olhando para ela, viu que ela era mais bela que
uma flâmula, mais harmoniosa que uma cana, tão resplandecente que
envergonhava a Lua nascente, com sete tranças que desciam até às
tornozeleiras, tais caudas equinas e tão negras quanto as trevas. A íris dos
olhos também era negra, as maçãs do rosto macias, as ancas largas e a
cintura magra. Em o rei vendo a sua beleza e lindeza, a sua razão ficou
atordoada, pois ela era tal como os poetas a descreveram com estes versos:

Afeiçoei-me a ela mal a desvelaram,


Com a sua beleza tranquila e imponente.
Com nada a menos ou excedente,
Perfeita dentro do seu apertado manto.
Que porte tão harmonioso e distinto,
Sem defeito por ser muito baixa ou alta.
Até às tornozeleiras o cabelo descaindo
Com uma risca qual invejável alva.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se eu ainda for viva.»
233.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Conta-se, ó rei bem-aventurado, que o rei, em olhando para a rapariga e a


observando atentamente, a sua razão ficou azaranzada com a sua formosura,
o seu espírito foi arrebatado pela sua beleza, e o amor por ela apoderou-se
do seu coração. Então, olhou para o mercador e disse: «Ó ancião, quanto
custa esta rapariga?» Ele disse: «Ó rei, comprei-a a um mercador por dois
mil dinares e faz agora três anos que estou em viagem com ela, havendo
gasto com ela, para a trazer ante si, mil dinares, mas este seu servidor não
quer dinheiro por ela, ela é para ser oferecida ao senhor nosso amo o rei.»
Em o rei ouvindo as suas palavras, outorgou-lhe um traje de honra, e
ordenou que lhe dessem dez mil dinares e um cavalo da sua cavalariça
particular. Então o mercador beijou o chão e abalou.
Em seguida, o rei entregou a rapariga às aias e criadas, dizendo-lhes:
«Cuidai dela e instalai-a num dos meus apartamentos particulares.» E elas
disseram: «Às suas ordens.» Após o rei tal haver ordenado às aias, elas
cuidaram dela, e trouxeram-lhe tudo de que ela fosse falta, tais como
roupas, serventes, comida e bebida. Naquela altura, a residência do rei era à
beira-mar, numa ilha chamada Ilha Branca. Ora, as aias levaram a rapariga
aos banhos, lavaram-na e cuidaram dela, e os banhos aumentaram-lhe a
beleza e a formosura, e em ela de lá saindo, as aias vestiram-na com fatos e
ornatos a condizer com ela, e levaram-na para o seu apartamento, que dava
sobre o mar.
Ao depois, em entardecendo, o rei foi ter com ela, encontrando-a de pé à
janela mirando o mar, e em ela dando pela presença do rei, não lhe ligou
alguma nem prestou qualquer respeito, e ficou em pé mirando o mar, sem
sequer se voltar para ele. Em o rei a vendo assim se comportando, achou
que ela provinha de povos ignaros que lhe não haviam ensinado as boas
maneiras, mas olhou para ela, que era tal o Sol radiante ou as estrelas
cintilantes, vestindo fatos e ornatos, que lhe davam mais formosura e lhe
aumentavam a beleza, em ele a olhando, disse: «Glória a Deus que te criou
‘de um líquido desprezível numa residência protegida’96.» Em seguida,
acercou-se dela enquanto ela estava de pé à janela e abraçou-a, e sentou-se
no sofá, sentando-a nos seus joelhos e pondo-se a beijá-la, maravilhado com
a sua formosura e a beleza da sua figura. Ao depois, ordenou às raparigas
que trouxessem comida, e elas trouxeram-lhe comida em pratos de oiro e
prata dignos dos reis, e ao meio da mesa havia uma grande travessa de
cristal com pasteis de amêndoa recheados. Então o rei pôs-se a comer, e
levava-lhe pedaços de comida à boca, enquanto ela comia cabisbaixa, sem
olhar para ele ou lhe prestar qualquer atenção.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se.


234.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Conta-se, ó rei bem-aventurado, que o rei continuou a comer e a levar-lhe


bocados de comida à boca, enquanto ela continuava cabisbaixa, sem lhe
prestar atenção, nem a cabeça erguendo nem palavra lhe dirigindo. O rei
falava com ela e perguntava-lhe o nome, mas ela não falava, não respondia,
não começava uma única frase, nem pronunciava uma só palavra ou emitia
qualquer som que fosse, continuando cabisbaixa até que as criadas
levantaram a mesa e lhes lavaram as mãos. Em o rei vendo que ela não
falava nem respondia às suas perguntas, disse de si para si: «Glória a Deus
Grandioso, que rapariga tão bela e tão ignorante! Deve ser muda, sem
dúvida, mas só Deus Todo-Poderoso e Glorioso é perfeito. Se ela falasse,
seria perfeita.»
O rei ficou em grande desassossego por mor do silêncio dela, e indagou
as criadas sobre ela, mas elas disseram-lhe: «Valha-nos Deus, ó rei, ela
jamais disse uma única palavra nem proferiu um som que fosse, tem ficado
em silêncio, tal como vossa alteza pode ver.» Ao depois, o rei trouxe as suas
escravas, concubinas e mancebas, que cantaram ante ela todos os feitios de
canções, deixando o rei bastante comovido, enquanto a rapariga olhava para
elas em silêncio, sem sorrir, carrancuda, e com o rosto virado para o chão,
fazendo com que o rei ficasse com o coração apertado.
Ao depois, o rei mandou as raparigas embora, ficando sozinho com ela.
Tirou as roupas, deitou-se na cama e fê-la deitar-se à sua banda, e em
olhando para o corpo dela viu que era como prata pura, ficando
completamente tomado de amores por ela e sentindo mui grande amor, e em
a desflorando descobriu que era virgem, e não coube em si de contente. Em
seguida disse: «Valha-me Deus, isto é espantoso, uma rapariga que é
vendável e comprável, com toda esta beleza e perfeição, ainda é virgem.
Quão espantosa deve ser a sua história!»
Ao depois, entregou-se totalmente a ela, pois ela ocupou no coração dele
um lugar imenso, e nutria por ela uma elevadíssima estima, considerando-a
a sua bênção e o seu quinhão na vida, e renunciou às suas concubinas,
abandonou as suas mancebas e mulheres, e ficou com ela por um ano
inteiro, que passou como se um só dia fosse, mas ela lhe não dirigia uma só
palavra, e quando ele lhe falava, ela não lhe falava nem dava qualquer
resposta que fosse, o que o deixava completamente destroçado.
Um dia de entre dias, ele olhou para ela…

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana, e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu:
«Isto nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima
noite. Se o rei me poupar e eu viver, será ainda mais estranho!»
235.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que depois de um ano, em um dia de


entre dias, o rei olhou para a rapariga, por quem se havia tomado de amores
e por quem a sua afeição e amor não haviam parado de crescer, e disse: «Ó
desejo da minha alma, valha-me Deus, o meu reino nem um grão de areia
vale quando te vejo em silêncio sem me falares, pois prezo-te mais do que
aos meus próprios olhos, e já renunciei às minhas mulheres, escravas e
concubinas, e considero-te o meu quinhão na vida. Sou paciente contigo e
peço a Deus Todo-Poderoso que amacie o teu coração, que sintas ternura e
compaixão por mim, e que me dirijas uma palavra que seja, caso sejas
capaz de falar, e caso sejas muda faz-mo saber, para que eu não acalente
mais esperanças. Peço a Deus que me abençoe com um filho teu, que me
faça os olhos brilhar de felicidade e herde o reino depois de eu morrer, pois
eu estou só, sem familiares e sem quem me ajude a administrar o reino
enquanto estou vivo, e já estou velho e fraco para conduzir os meus
afazeres e cuidar do povo. Peço-te por amor de Deus, ó senhora minha, se
fores capaz de responder, responde-me! Ai de mim se palavra alguma não
ouvir de ti antes de morrer!»

Em a rapariga ouvindo as palavras do rei, baixou a cabeça e quedou-se


pensativa. Então ergueu-a, virou-se para ele sorrindo, e disse: «Ó rei
munificente e leão valente, que Deus te recompense, humilhe os teus
inimigos, prolongue a tua vida e satisfaça os teus desejos. Na verdade, Deus
respondeu às tuas preces e aceitou as tuas súplicas e confidências, pois
estou prenha97 de ti e está próximo o momento do parto. Não sei se é macho
ou fêmea, mas se não estivesse prenhe, não te haveria respondido nem
falado contigo.» Em o rei ouvindo as suas palavras ficou radiante de
alegria, pondo-se a beijar o rosto dela e a abraçá-la, e disse: «Deus
concedeu-me dois desejos, um mais precioso de que tudo o que possuo, que
é o falares depois de tanto silêncio, e o outro me dizeres que estás prenhe!»
Ao depois, o rei saiu e sentou-se no trono do seu reino, todo contente e
feliz, e ordenou ao vizir que distribuísse esmolas entre os pobres,
necessitados, viúvas, órfãos e sem-abrigo no valor de cem mil dinares, e o
vizir fez de acordo com o que o rei ordenou. Em seguida, foi ter com a
rapariga e disse-lhe: «Ó senhora minha, tâmara da minha devoção, qual a
causa de estares um ano inteiro comigo, noite e dia dormindo na mesma
cama, sem que hajas falado até ao dia de hoje? Como pudeste fazer isso e
qual a causa do teu silêncio?» E ela disse-lhe: «Ó rei, fica sabendo que eu
sou uma mulher forasteira e prisioneira em terra estrangeira, de coração
partido de dor por estar separada da minha família, dos meus próximos, do
meu irmão e do meu pai.»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana, e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu:
«Isto nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima
noite, se eu viver.»
236.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Conta-se, ó rei bem-aventurado, que o rei em ouvindo as palavras da


rapariga, disse-lhe: «No que toca ao teu dizer: “Eu sou uma mulher
forasteira de coração partido”, qual é a causa de tal coisa, estando o meu
reino nas tuas mãos e sendo eu teu escravo? E no que toca ao teu dizer de
que tens uma mãe, um pai e um irmão, onde estão eles e qual é o teu nome,
ó rapariga?»
Ela disse: «Dou-te a conhecer o meu nome, chamo-me Jullanar98 do Mar,
e o meu pai era um dos reis do mar, e ao morrer deixou-me a mim e ao meu
irmão o seu reino, mas um outro rei do mar derrotou-nos e ficou com o
nosso reino. O meu irmão chama-se Sayih, e a minha mãe descende das
filhas do mar e não das filhas da terra e do pó. Fica sabendo que um dia eu e
o meu irmão querelámos, então fui-me embora de perto dele, jurando a
Deus Todo-Poderoso que entregaria a minha alma a um homem da terra
firme. Saí do mar e fiquei na costa da Ilha da Lua. Enquanto lá estava, eis
que me aparece um velho que pega em mim e me leva para sua casa, onde
me tentou seduzir, mas eu recusei-me a dormir com ele e bati-lhe na cabeça,
com tal força que ele quase morreu. Então ele levou-me e vendeu-me a este
mercador que me trouxe até ti. Era um bom homem, devoto, e dotado de
hombridade. Comprou-me por dois mil dinares e vendeu-me a ti. E tu, ó rei,
não me houvesses oferecido a tua bondade e amor, e não me houvesses
escolhido abdicando de todas as tuas mulheres, concubinas, mancebas e
raparigas, não me haveria quedado contigo um só momento, e já me haveria
atirado ao mar desta janela e tornado para junto de minha família. Estando
prenhe, tive vergonha de tornar a casa, pois duvidariam de mim e pensariam
o pior, sem saberem que um rei me comprou com o seu dinheiro e fez de
mim o seu quinhão na vida, e mesmo se lhes jurasse, eles me não
acreditariam.»
Em o rei ouvindo as suas palavras, louvou-a, beijou-a entre os olhos e
disse: «Senhora minha e luz dos meus olhos, valha-me Deus, se me
deixasses por um momento que fosse, eu morreria. Por amor de Deus, diz-
me como caminhais vós na água sem vos afogardes e morrerdes.» Ao ouvir
as palavras do rei, ela disse: «Ó rei, nós caminhamos na água tal como vós
caminhais em terra firme, e a água não nos magoa nem nos molha.» E ao
depois disse: «Fica sabendo, ó rei, que nós dizemos as palavras que estavam
escritas no anel do profeta de Deus, Salomão filho de David – que a paz
seja com ele – e assim a água não nos molha, e os nossos corpos e roupas
não se afogam. Fica sabendo, ó rei, que o dia do meu parto aproxima-se, e
gostaria que a minha mãe, as minhas primas, filhas do irmão do meu pai, e
o meu irmão comparecessem, para que me vejam em tua casa, e que
emprenhei de ti, e para lhes dar parte que tu me compraste com o teu
dinheiro, que foste bondoso para comigo, e que és um rei dos reis da terra, e
assim eles me desculparão. Verdade seja dita, as vossas mulheres, as
mulheres da terra, não sabem fazer partos às mulheres do mar, e por isso
não me poderão servir, já que não fazem o que deve ser feito. Além do
mais, ficarás a saber que falo verdade e não minto, que sou mesmo uma
filha do mar e que o meu pai era rei.»
Em o rei ouvindo aquilo…

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se.


237.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que em o rei ouvindo as palavras de


Jullanar, disse-lhe: «Faz o que quiseres, estou à tua disposição.» Ela disse:
«Ó rei, fica sabendo que nós caminhamos no mar de olhos abertos dentro de
água, e vemos o dia, o céu, o Sol, e tudo o que há em terra, e à noite vemos
a Lua e as estrelas, e tudo isto sem nos magoarmos. No mar há todo o tipo
de pessoas e todo o género de criaturas, tal como em terra, até mais.» O rei
ficou espantado com as palavras dela. Ao depois, a rapariga sacou de um
amuleto em pau d’áquila [da melhor qualidade, proveniente] de Java, que
trazia junto ao ombro, e desse amuleto sacou uma conta feita do mesmo pau
d’áquila. Em seguida, lançou a conta no fogo, assobiou, pronunciou
palavras que o rei não compreendia, e um colossal fumo se ergueu. Então
ela disse ao rei: «Levanta-te e esconde-te neste armário, para que vejas o
meu irmão, a minha mãe, os meus próximos, e as minhas primas, sem que
eles te vejam, pois quero trazê-los para que vejas quão maravilhosa é a obra
de Deus Todo-Poderoso e as formas que Ele criou dentro do mar.»
Então o rei levantou-se e entrou para o armário, pondo-se a olhar para ela
e a ver o que fazia. E mal ela havia acabado as suas falas, eis que o mar se
espumou, agitando-se e rasgando-se, e saiu de lá um jovem formoso mais
belo que a Lua, com um bigode juvenil, faces rosadas, e dentes quais
pérolas, assemelhando-se em beleza à rapariga. Depois dele, saiu uma anciã
de cabelo juvenil, e com ela cinco raparigas que eram quais luas,
assemelhando-se à rapariga em beleza.
Em o rei vendo a anciã, o jovem e as moças…
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se.
238.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que em o rei vendo o jovem, a anciã e


as moças caminhando sobre a face das águas, eles continuaram a caminhar
sobre o mar até se aproximarem do palácio, e então Jullanar pôs-se à janela,
e em eles a vendo e ela os vendo ficaram radiantes de alegria por encontrá-
la. Em seguida, deram um pulo do mar até onde estava Jullanar, e
abraçaram-na, e ela abraçou-os, e puseram-se a chorar, tais eram as
saudades que tinham dela. Eles disseram: «Ó Jullanar, deixaste-nos vai para
três anos, valha-nos Deus, tal foi a nossa angústia por mor da tua separação
que nem a comida nem a bebida nos sabia bem.» Jullanar beijou o irmão na
cabeça, nas mãos e nos pés, e fez o mesmo com a mãe e com as suas
primas, filhas do irmão do seu pai.
Ao depois, sentaram-se durante algum tempo lamentando-se uns aos
outros do quanto haviam sofrido com aquela separação. Então perguntaram-
lhe como estava ela, com quem vivia, de quem era aquele palácio, e o que a
fizera chegar àquele sítio. Ela disse: «Ficai sabendo que em vos deixando,
saí do mar e fiquei na costa da Ilha99, então um homem das Ilhas da Lua
vendeu-me a um mercador, que me vendeu a este rei, que é monarca desta
cidade, por dez mil dinares. Estou feliz com ele, por mim ele deixou todas
as suas mulheres e raparigas, e preocupa-se mais comigo do que todos os
seus afazeres.» Em o irmão dela ouvindo aquelas palavras, disse-lhe:
«Anda, mana, vamos para a nossa terra e para a nossa família.» Então, em o
rei ouvindo as palavras do irmão dela, a sua razão voou, tal era o seu medo
e temor, e disse de si para si: «Receio que ela lhe dê ouvidos e se vá
embora. Morreria com a separação dela, pois amo-a muitíssimo,
principalmente agora que está prenhe de mim; morreria em paixão por ela e
pelo meu filho.»
Mas Jullanar, em ouvindo as palavras do irmão, riu-se e disse: «Fica
sabendo, mano, que este homem com quem eu vivo é devoto, de
generosidade e hombridade dotado. Foi muito prestável comigo e dês do
primeiro dia que estive com ele jamais me disse uma palavra má, e com ele
a minha vida é do melhor que há.»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se.


239.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que Jullanar, em dizendo ao irmão


estas palavras, de que estava prenha do rei, e «que tal como eu sou filha de
um rei, ele é rei filho de um rei, e Deus não me abandonou, e não havendo
ele um filho macho, peço a Deus Todo-Poderoso que me abençoe com um
filho macho que herde o reino do seu pai.» Com os olhos a brilharem de
felicidade, o irmão, a mãe e as primas, em ouvindo estas palavras,
disseram-lhe: «Tu sabes qual o lugar que ocupas no nosso coração, e se é
como mencionas, então aceitamos a tua decisão com prazer.» Ela disse:
«Sim, por amor de Deus, é o que quero.» Ora, em o rei ouvindo as palavras
da rapariga, o seu amor por ela aumentou ainda mais, e sentiu-se grato do
fundo do coração por saber que ela o amava e queria viver com ele.
Ao depois, ela ordenou às criadas que pusessem as mesas, e elas
trouxeram todas as sortes e mais algumas de comida, doces e fruta, e eles
comeram. Então disseram: «É um homem estranho, entrámos em sua casa
sem que ele nos houvesse convidado. Nem o vemos nem ele come
connosco, e tu o elogias e por ele estás apaixonada devido ao bem e
bondade que praticou contigo.» E em seguida, ficando furiosos por mor do
rei, começaram a deitar fogo da boca, como se esta fosse uma tocha. Em o
rei vendo aquilo, a sua razão voou com medo deles, e a rapariga levantou-
se, foi ter com ele ao armário, e disse-lhe: «Ó rei, viste e ouviste como te
elogio, e ouviste a conversa deles e como eles me querem levar de volta
para o mar para estarmos em família.» Então o rei disse-lhe: «Que Deus te
recompense com o bem, valha-me Deus, só agora compreendi que
realmente me amas.» Ela disse: «Ó rei, ‘Haverá recompensa para a bondade
que não seja a própria bondade?’100 Tu foste bom e generoso comigo, e
fizeste de mim o teu quinhão na vida. Como me conseguiria eu separar de
ti?»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se.


240.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que a rapariga disse ao rei: «Como me


conseguiria eu separar de ti? Fica sabendo que o meu irmão, mãe e primas,
em eu te elogiando, sentiram enorme estima por ti, e disseram: “Não nos
vamos sem antes nos reunirmos com ele e comermos juntos, para que
fiquemos ligados entre nós pelo pão e o sal.” Eles gostariam de te ver.»
Então ele disse: «Às tuas ordens, mas eu tenho medo deles por causa dessas
labaredas de fogo que lhes vi sair da boca, e apesar de não estar presente,
quase morri só de ver à distância.» Jullanar riu-se e disse: «Fica tranquilo,
isso só lhes acontece quando se zangam, e se eles se zangaram foi porque
eu lhes servi a comida sem tu estares presente.»
Em seguida, ela pegou na mão do rei e levou-o para junto deles, que
estavam com a comida à frente à espera dele. E em o rei lhes aparecendo,
cumprimentou-os e deu-lhes as boas-vindas, e eles em o vendo retribuíram-
lhe o cumprimento, não se poupando em glorificá-lo e mostrar-lhe respeito,
e levantaram-se, beijaram o chão ante ele, e disseram: «Ó rei dos tempos,
nada desejamos senão que cuides desta pérola inigualável, Jullanar do Mar,
ela é uma princesa, filha de um rei; ninguém é digno dela senão tu, e
ninguém é digno de ti senão ela. Valha-nos Deus, todos os reis nos pediram
a sua mão em casamento, mas nós não a quisemos casar com nenhum deles,
pois não nos conseguíamos separar dela nem sequer por um pestanejar de
olhos. Se tu não fosses dotado das virtudes da cavalaria e da hombridade, se
não fosses um homem bom, honorável e devoto, Deus não te haveria
abençoado com esta princesa. Glorificado seja Aquele que te fez ser
estimado aos olhos dela, que te fez ser a escolha certa para ela, e que fez
com que ela te servisse, pois vós os dois sois tal o poeta disse:

Ninguém é digno dela senão ele,


E ninguém é digno dele senão ela.
Se outro da mão dela fosse tomador,
A Terra se destruiria num último tremor.101

Então o rei agradeceu-lhes e agradeceu a Jullanar, e sentou-se com eles a


comer, enquanto conversavam, e assim foi até se fartarem de comer e
lavarem as mãos, altura em que se mudaram para um salão lindo que o rei
lhes pôs ao serviço, sendo que o rei se não separou deles uma hora que
fosse por um mês inteiro.
E passado esse mês, Jullanar disse: «O parto está para breve.» E o rei
forneceu-lhe todos os remédios e poções de que ela e a criança fossem
faltos. E um dia de entre dias, entrou ela em trabalho de parto, e juntaram-se
à roda dela [a sua mãe e primas], e as dores do parto foram aumentando, e
com a autorização de Deus Todo-Poderoso ela pariu um filho macho que
era qual uma lua, e ela em o vendo regozijou-se enormemente. Então a mãe
de Jullanar foi ter com o rei para lhe dar a boa nova de que era um filho
macho.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se.


241.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que a mãe de Jullanar foi ter com o rei
para lhe dar a boa nova do recém-nascido, e que o rei se regozijou, que
dando graças a Deus Todo-Poderoso se prostrou, e que trajes de honra
outorgou, que presentes e dinheiro ofertou. Então perguntaram-lhe: «Como
lhe vais chamar?» E ele disse: «Chamai-lhe Badr»102. E Badr lhe
chamaram.
Ao depois, o rei ordenou aos camaristas e emires que mandassem decorar
a cidade. Libertaram os presos, vestiram os órfãos e as viúvas, foram dadas
esmolas, fizeram soar os tambores que anunciavam as boas novas e foi
preparado um colossal banquete, ao qual vieram tanto nobres como povo.
Os escravos, escravas e mamelucos foram alforriados, e continuaram em
festa por dez dias.
Ao décimo primeiro dia, estava o rei sentado à banda de Jullanar, e do
seu irmão, mãe e primas, todos juntos, e o irmão de Jullanar pegou no
recém-nascido Badr, pôs-se a brincar e a dançar com ele, e ergueu-o no ar
com os braços, enquanto o rei e Jullanar olhavam felizes para o seu filho.
Então, sem eles darem por isso, voou com ele janela fora, e, indo para o
meio do mar, mergulhou com o pequeno nas mãos. Em o rei vendo que o
seu filho havia sido levado pelo tio, e que havia mergulhado desaparecendo
da sua vista, largou um berro tremendo, a sua alma quase lhe abandonou o
corpo, e rasgou as roupas, bateu na sua própria cara, e chorou
desalmadamente. Em Jullanar o vendo, disse: «Ó rei dos tempos, não tenhas
medo nem te entristeças pelo teu filho. Eu amo-o mais do que tu, e ele está
com o meu irmão, que não se aflige com o mar nem tem medo de se afogar,
e se ele soubesse que o pequeno estaria em perigo não teria feito o que fez.
Em breve ele voltará com o teu filho, os dois sãos e salvos, se Deus quiser.»
Poucos momentos haviam passado, e eis que o mar se encapelou, agitando-
se e rasgando-se, e de lá saiu Sayih, o tio do pequeno, com o filho do rei são
e salvo, e Sayih voou do mar até junto deles, trazendo pela mão o pequeno,
que estava sereno qual a Lua.
Ao depois, Sayih, tio do pequeno, olhou para o rei e disse-lhe: «Espero
que não tenhas ficado com medo quando mergulhei no mar com ele.» E o
rei disse-lhe: «Valha-me Deus, claro que sim, Sayih, pensei que ele jamais
se salvaria.» E ele disse: «Ó rei, levei-o para lhe delinear os olhos com um
kohl103 que nós conhecemos e sobre o qual recitámos nomes que estavam
escritos no anel de Salomão filho de David, pois quando uma criança nasce
entre nós…»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se.


242.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que Sayih, irmão de Jullanar, disse ao


rei: «Quando uma criança nasce entre nós, fazemos como já te mencionei,
por isso não receies que ele se afogue e sufoque dentro de água, pois tal
como vós andais em terra firme, nós andamos no mar.» Ao depois, sacou de
uma bolsa selada que trazia à cintura, quebrou o selo, e em a esvaziando, de
lá saíram fios com enfiamentos de todo ofeitio de jóias e rubis, e trezentas
esmeraldas em forma de missangas cilíndricas, e trezentas gemas tão
grandes quanto ovos de pomba e tão brilhantes quanto a luz do Sol, e disse:
«Ó rei, estas gemas são para o pequeno Badr, teu filho, e estas jóias, rubis e
esmeraldas são um presente nosso para ti, visto que te não trouxemos
nenhum porque não sabíamos onde estava Jullanar nem nova boa ou má
tínhamos dela, mas agora que ficámos unidos e todos nós formamos uma só
espécie, trouxemos-te este presente, e de tempos em tempos vamos trazer-te
outro igual, porque estes rubis e jóias temo-las em abundância no mar, e eu
posso arranjar muitas mais do que as que há em terra e no mar, porque
conheço as suas minas e locais, sendo tarefa fácil para mim.»
Ora, o rei em vendo aquelas jóias, ficou com o espírito atordoado e a sua
razão voou, e disse: «Uma só destas jóias vale todo o meu reino.» Então
agradeceu ao moço Sayih, e olhando para a rainha Jullanar, disse-lhe:
«Sinto-me envergonhado perante o teu irmão, ele honrou-me oferecendo-
me este inestimável presente que está vedado aos habitantes da terra.»
Então a rainha Jullanar elogiou o rei e agradeceu ao irmão, que disse: «Ó rei
dos tempos, és tu que tens direito a fazer-nos exigências e é nosso dever
agradecer-te, porque foste bondoso com a minha irmã, e nós entrámos em
tua casa e comemos das tuas provisões, tal como disse o poeta:

Houvesse eu antes dela chorado o quanto a amo,


Minha alma conforto encontrara antes do lamento.
Mas ela chorou antes de mim fazendo-me chorar;
Então disse eu: “Honra seja feita a quem começar.”

»E, ó rei dos tempos, se nos quedássemos ao teu serviço por mil anos,
não conseguiríamos retribuir-te.» O rei, ao ouvir tais palavras, agradeceu-
lhe do fundo do coração.
Eles quedaram-se com o rei por quarenta dias, findos os quais veio Sayih,
irmão de Jullanar, beijou o chão ante o rei, e disse: «Ó rei dos tempos,
honraste-nos tu e tanto te pesamos nós; agora é nossa vontade pedir à tua
bondade que nos dês licença, porque temos saudades das nossas famílias,
próximos e terras, mas não deixaremos de te servir e à nossa irmã Jullanar
porque, valha-me Deus Todo-Poderoso, não apraz ao meu coração que me
separe de vós – mas que poderíamos fazer se fomos criados no mar e não
nos apraz a firme terra?» Em o rei ouvindo as palavras dele, levantou-se
logo e do moço se despediu, das primas e da mãe, e Jullanar despediu-se
deles, e choraram entre si pela dura separação, mas eles disseram: «Não
tarda muito já cá estaremos outra vez convosco.» E deram um salto em
direcção ao mar, mergulhando nele e da vista desaparecendo. O rei ficou
muito impressionado com aquilo, e por isso nunca deixou de respeitar
Jullanar, sendo sempre bondoso com ela. Entretanto o pequeno crescia e era
levado aos ombros dos criados, e o rei amava-o muito, porque ele era
formoso, e quanto mais crescia mais belo se tornava. E muitas vezes o tio, a
avó e as primas visitavam o rei e se quedavam por um mês ou dois, e depois
abalavam.
Badr foi crescendo, e ao perfazer quinze anos era inigualável entre as
gentes do seu tempo, por via da sua irradiante beleza e perfeita lindeza, e já
havia aprendido caligrafia, história, sintaxe, lexicografia, e o Alcorão, assim
como tiro com arco e lançamento de lanças.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se.


243.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o moço havia aprendido as artes da


cavalaria, tais como tiro com arco, lançamento de lanças, jogo do pólo, e
tudo o que os filhos de reis necessitam, e ninguém na cidade, mulheres e
homens, falava a não ser sobre ele, pois ele era tal como o poeta disse:

A sua barba juvenil é requintado brocado


Nas faces crescendo – fico pasmado!
Pois ele é tal uma lâmpada suspensa
Por correntes de âmbar na noite densa.

O rei amava-o muito, e em ele completando o que os reis necessitavam


[de aprender], o pai convocou os emires, os dignitários do reino, os notáveis
do reino e fê-los prestar juramento de que o seu filho Badr seria o seu rei
após o pai, e eles prestaram juramento, ficando extremamente felizes, pois
amavam-no muito, porque ele era bondoso com todos, falava gentilmente,
praticava o bem e nunca dizia algo que não fosse para benefício das gentes.
Ao outro dia, o rei cavalgou com os dignitários do reino, levando os
emires e soldados à sua frente, e veio até ao terreiro da cidade e regressou.
E ao se aproximarem do palácio real, o rei descavalgou em respeito ao
filho, assim como todos os emires, e transportavam as insígnias do reino
ante ele e os soldados de elite gritavam em sua honra à frente dele. E
continuaram em marcha, com ele cavalgando, até chegarem à entrada do
palácio. Em seguida, parou e descavalgou, ajudado pelo pai e pelos emires,
e sentou-se no trono, enquanto o pai ficou à frente dele ocupando o posto de
emir, e o moço arbitrou entre os emires, promulgou diplomas, depôs o
injusto e empossou o justo, e governou até perto do meio-dia, aquando se
levantou do trono e foi ter com a sua mãe, Jullanar do Mar, trazendo à
cabeça a coroa real, parecendo a Lua. Em o vendo, com o pai ao seu
serviço, a mãe levantou-se e beijou-o, felicitando-o por assumir o reinado, e
desejou-lhe a ele e ao pai longa vida e vitória sobre os inimigos. Então ele
sentou-se junto à mãe e descansou. Em sendo hora da oração da tarde,
cavalgou com os emires até ao terreiro da cidade, e jogou pólo com o pai e
os dignitários do reino até ser noite, e em regressando ao palácio, toda a
gente caminhava para o ver. Assim fez ele todos os dias.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se.


244.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o príncipe Badr passou a cavalgar


todos os dias até ao terreiro da cidade, e quando regressava sentava-se no
trono para julgar o povo do seu reinado, outorgando justiça tanto a pobres
como a emires, e assim foi por um ano inteiro, volvido o qual começou a
cavalgar para ir à caça e montaria, percorrendo as cidades e províncias que
lhe pertenciam, apelando à paz e à segurança, e fazendo o que os reis
fazem. Ele era inigualável entre as gentes do seu tempo nas artes da
cavalaria, em coragem e na justiça administrada aos súbditos.
Um dia entre dias, o rei, pai do príncipe Badr, saiu para ir aos banhos,
apanhou uma aragem e enfebreceu-se. Então sentiu que ia morrer e mudar-
se para a Casa da Vida Eterna, e ficou extremamente doente, à beira da
morte. Chamou então o filho e encarregou-o de cuidar do reino, da sua mãe
e de todos os dignitários do reino. Em seguida chamou os emires, os
notáveis e os almocadéns, e outra vez os fez prestar juramento ao seu filho,
certificando-se da sua boa-fé, e após isso quedou-se ainda por uns dias antes
de ser recebido pela misericórdia de Deus Todo-Poderoso. Então o rei Badr
chorou a morte do seu pai, assim como o fizeram Jullanar, os emires, os
vizires e os dignitários do reino, e ergueram-lhe um túmulo onde o
sepultaram.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se.


245.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o enterraram e se quedaram em


luto por um mês, e veio o irmão de Jullanar, a mãe e as primas, para
apresentar as condolências, e disseram: «Ó Jullanar, ele pode ter morrido,
mas deixou este nobre moço qual leão feroz e brilhante Lua.»
Ao depois, os dignitários do reino e os notáveis vieram ter com o rei Badr
e disseram-lhe: «Alteza, o choro não serve senão às mulheres; não distraia
mais a sua mente e as nossas com o seu pai, pois ele morreu e ‘Toda a alma
provará a morte’104. Quem morreu e deixou um filho como vossa alteza
morto não está.» Eles insistiram e levaram-no aos banhos, e em ele de lá
saindo vestiu um sumptuoso traje, todo ele com brocados de oiro, jóias e
rubis, pôs a coroa real na cabeça, e sentou-se no trono, tratando dos
assuntos das gentes, arbitrando justamente entre o forte e o fraco, tirando ao
emir o que é por direito do pobre, e por tal todas as pessoas o amavam e
pediam bênçãos para ele. E assim foi por um ano. Muitas vezes a sua
família marítima o visitava, a ele e a sua mãe, e a vida lhe sorria e os seus
olhos brilhavam de felicidade. E assim foi por um espaço de tempo.
Um noite de entre noites, o tio dele visitou a sua irmã Jullanar,
cumprimentou-a, e ela levantou-se para o abraçar, fazendo-o sentar-se à sua
banda, e disse-lhe: «Ó mano, como estás e como está a mãe e as primas?» E
ele disse: «Ó mana, todos estão bem, de nada são privados excepto de ver o
teu rosto.» Então ela serviu algo para comer. Havendo eles comido, as
mesas foram levantadas e conversaram sobre Badr, a sua formosura e a
beleza da sua figura, o seu porte gracioso e harmonioso, as suas habilidades
nas artes da cavalaria, a sua inteligência, erudição e boa-educação.
Enquanto isso, Badr estava reclinado, e ao ouvir a sua mãe e o seu tio
falarem sobre si, fingiu estar deitado e a dormir para ouvir a conversa deles.
Sayih disse à sua irmã Jullanar: «Ó mana, o teu filho já tem dezasseis
anos e ainda não se casou. Receamos que algo lhe aconteça antes de ter um
filho macho. Por isso, quero casá-lo com uma princesa filha dos reis do
mar, que lhe seja igual em beleza e lindeza.» E disse-lhe a sua irmã
Jullanar: «Valha-me Deus, mano, lembraste de uma coisa que eu tenho
descuidado. Ó mano, vês alguém que seja digno dele entre as filhas do mar?
Diz-me quem, que eu as conheço a todas.» E ele pôs-se a enumerá-las uma
a uma, enquanto ela dizia: «Não gosto dessa para o meu filho. Não o casarei
senão com quem o iguale em beleza e formosura, em inteligência e devoção
religiosa, em erudição e boa-educação, em hombridade e realeza, em
linhagem e nobreza.» E ele disse-lhe: «Ai meu Deus! Meu Deus! Não
conheço mais nenhuma filha do mar! Já te enumerei mais de cem, e
nenhuma te agrada. Mas, ó mana, vê lá se o teu filho está mesmo a dormir!»
E ela disse: «Está sim, porque perguntas?» E ele disse: «Mana, fica sabendo
que acabei de me lembrar de uma filha dos reis do mar que é digna do teu
filho, mas receio mencioná-la e ele esteja desperto, e depois fique com o
seu coração tomado por ela, porque assim não seria nada fácil aceder a ela,
e seria um grande estorvo para ele, para nós e para todos os seus dignitários
do reino, e ver-nos-íamos em árduos trabalhos, porque o poeta diz:

Ao início o amor é só feito de inocentes desenfados,


Mas quando nos conquista volve em árduos trabalhos.

Ao ouvir as palavras do irmão, ela disse-lhe: «Tens razão, mano, mas diz-
me quem é essa rapariga, como se chama, e de quem é filha, pois eu
conheço todos os reis do mar e as suas filhas, e se eu vir que ela é digna,
pedirei a sua mão ao pai dela, mesmo que tenhamos de gastar todas as
nossas posses. Diz-me quem é ela, que o meu filho está a dormir.» Ele
disse: «Receio que esteja acordado, e eis o que diz o poeta:

[Enamorei-me em ouvindo sua descrição.]


Às vezes o ouvido enamora-se antes dos olhos.»
Ele disse: «Mana, por amor de Deus, nenhuma é digna do teu filho a não
ser Jauhara, filha do rei Xamândal, pois ela é igual ao teu filho em beleza e
formosura, e tão radiante quanto ele. Não há ninguém mais encantador e
doce do que ela, nem no mar nem em terra firme ninguém, com as suas
faces rosadas, testa radiante e dentes quais pérolas, …»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se.


246.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que Sayih disse à sua irmã Jullanar:
«… dentes quais pérolas e olhos negros, ancas largas e cintura magra, com
um rosto lindo, e quando se vira envergonha as gazelas, e se se bamboleia
faz inveja a todas elas, a sua boca é melosa e o seu corpo tem uma
flexibilidade viçosa.» Em ouvindo as palavras do seu irmão, ela disse-lhe:
«Tens razão, mano, estive com ela muitas vezes, pois era minha amiga
quando éramos pequenas, mas vai para dezoito anos que a não vejo. Por
amor de Deus, ninguém é digna dele senão ela e ninguém é digno dela
senão ele.»
Ora, o rei Badr estava acordado, e em ouvindo as palavras de seu tio e de
sua mãe, as descrições feitas sobre esta princesa Jauhara, filha do rei
Xamândal, enamorou-se por via do que ouvia, enquanto dormir fingia, e por
esta rapariga ficou com um fogo no coração que se não apagava e uma
chama que se não acalmava. Em seguida, Sayih olhou para a sua irmã
Jullanar e disse-lhe: «Não há entre os reis do mar e da terra ninguém mais
cretino que o pai dela, nem mais tirano, orgulhoso e colérico, pois isso não
fales desta rapariga ao teu filho até pedirmos a mão dela ao seu pai, e se ele
a conceder, louvemos o decreto de Deus Todo-Poderoso, e se ele nos afastar
e recusar casar a filha com o teu filho, teremos calma e arranjaremos outra
noiva para ele.» E em a irmã ouvindo aquelas palavras, disse: «Que óptima
ideia!» E não falaram mais no assunto, enquanto o rei passou aquela noite
com o coração em fogo, tal era a paixão pela princesa Jauhara, mas absteve-
se de falar e não conversou sobre ela com a mãe ou o tio, apesar de sentir
como se estivesse em cima de brasas.
Ao amanhecer, o rei e o tio foram aos banhos, lavaram-se e saíram para
comer e beber vinho. Foi-lhes posta a mesa, e o rei Badr, a sua mãe, o tio e
todos os demais comeram até se fartarem e lavaram as mãos. Em seguida, o
jovem Sayih levantou-se e disse ao rei Badr e à sua irmã: «Terei saudades
vossas, mas com vossa licença tenciono partir para junto da mãe, pois já há
uns dias que estou convosco, e ela está preocupada comigo e à minha
espera.» Então o rei despediu-se do seu tio Sayih, mas estando o seu
coração em chamas foi montar a cavalo e seguiu caminho até chegar a um
rio com água abundante, numa planície de denso arvoredo e sombra
abundante. Então apeou-se do cavalo, sendo que não estava ninguém com
ele do seu séquito ou criadagem, e quis dormir, mas ao lembrar-se do que o
seu tio Sayih havia mencionado sobre o assunto da rapariga, e de quanta
beleza e formosura havia nela, chorou abundantes lágrimas.
Ora, quis o destino que em ele se despedindo do seu tio Sayh e ido
montar a cavalo, o seu tio ao olhar para ele viu que o seu rosto estava
pálido, e ficando com medo que o moço houvesse ouvido a conversa deles,
disse de si para si: «Vou seguir o rei Badr para ver o que faz,» e assim fez. E
em o rei Badr apeando-se junto à água do rio, o tio escondeu-se num lugar
para não ser descoberto, e ouviu-o declamar:

Quem me protegerá do jugo de uma velida


De largas ancas, corpo flexível, rosto mais lindo que o Sol?
Refém do seu amor encontra-se o meu coração,
Pela filha de Xamândal estou perdido em paixão.
Jamais em toda a minha vida a olvidarei
Jamais! Nem nenhuma outra amarei.

Em o seu tio Sayih ouvindo a poesia dele, bateu com uma palma da mão
na outra e disse: «Não há força nem poder senão em Deus Altíssimo e
Grandioso!» Então, revelou-lhe a sua presença e disse-lhe: «Sobrinho, ouvi
o que estavas a dizer. E tu ouviste a minha conversa com a tua mãe sobre
Jauhara e a minha descrição dela, não foi?» E o rei Badr disse: «Sim, tio, e
enamorei-me dela por via do que ouvi, pois escutei a vossa conversa. Agora
o meu coração foi tomado por ela e já não há volta a dar!» O tio disse-lhe:
«Ó rei, voltemos para junto da tua mãe para lhe dar conta da situação. Vou-
lhe dizer que te levo comigo para eu pedir que a princesa Jauhara se case
contigo. Assim, nós os dois voltamos para nos despedirmos de tua mãe e ela
saberá o que se passa, porque eu receio levar-te comigo sem a consultar e
sem sua permissão, para que ela me não censure, e com razão, porque seria
eu a causa da vossa separação e a cidade se quedaria sem rei, e o povo
ficaria sem quem o governasse e dele cuidasse, o que vos arruinaria aos
dois, levando a que o reino se vos escapasse das mãos.» Em o rei Badr
ouvindo as palavras do tio, disse-lhe: «Tio, fique sabendo que não volto
para ir ter com a minha mãe e a consultar sobre este assunto, porque sei que
se o fizer e a consultar, ela não me deixará partir consigo, e por isso não
volto.» E pondo-se a chorar à frente do tio, disse-lhe: «Parto consigo agora
mesmo sem nada dizer à minha mãe e falo com ela mais tarde quando
voltar.» Em o tio ouvindo as palavras do sobrinho, ficou atarantado e disse:
«Seja como for, que Deus Todo-Poderoso venha em nosso auxílio!» Ao
depois, em o seu tio Sayih vendo que…

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se.


247.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o rei Badr disse ao seu tio: «Tenho
mesmo de ir contigo!» Então o tio sacou do seu dedo um anel onde estavam
gravados vários dos nomes de Deus Todo-Poderoso, estendeu-o ao rei Badr
e disse-lhe: «Põe este anel no dedo para te protegeres, enquanto mergulhas,
dos perigos das feras do mar e das baleias.» O rei pegou no anel e pô-lo no
dedo. Em seguida mergulharam os dois no mar, e seguiram caminho até
chegarem ao palácio do seu tio Sayih. Ao entrarem, o rei Badr viu a sua avó
sentada com os familiares dela. Ao entrar, cumprimentou-a e beijou-lhe a
mão, e ela em o vendo levantou-se, abraçou-o, beijou-o entre os olhos, e
disse-lhe: «Filho, abençoada seja a tua vinda. Como está tua mãe Jullanar?»
E ele disse-lhe: «Avó, está bem e manda cumprimentos a si e às primas.»
Em seguida, Sayih deu parte à sua mãe de que o rei Badr estava enamorado
de Jauhara, filha de Xamândal, por via do que tinha ouvido, e tudo lhe
contou de fio a pavio. «E ele veio ter connosco para que eu a peça em
noivado ao pai, para se casar com ela.»
Em a avó do rei Badr ouvindo as palavras de Sayih, ficou incomodada e
tomou-se de fúrias, e disse: «Filho, foi um erro teres mencionado essa
princesa Jauhara, filha do rei Xamândal, à frente do filho da tua irmã,
porque tu sabes que Xamândal é um cretino tirânico, com pouco senso e
muito colérico, e todos os reis já lhe pediram a filha em casamento, e ele a
todos recusou dizendo: “Vós não vos assemelhais à minha filha nem em
beleza nem em realeza”, e repudiou-os. Receio que se pedires a sua mão ao
pai ele te vá dizer o mesmo que disse a todos os outros. Nós temos amor-
próprio e ficaríamos devastados e envergonhados.» Em Sayih ouvindo as
palavras da sua mãe, disse-lhe: «Ó mãe, que devemos fazer? A verdade é
que o rei Badr enamorou-se desta rapariga quando a mencionei a minha
irmã Jullanar, e disse que tem mesmo de a pedir em casamento ao pai,
mesmo que esbanje todo o seu reino, e se o pai dela não a quiser dar em
casamento, então ele morre de amor e paixão por ela!»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se.


248.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que Sayih disse à sua mãe: «Fique
sabendo que o filho da minha irmã é mais belo que ela, e o seu pai era rei de
todos os Persas, e agora é ele o rei dos Persas, e ninguém é digno dele senão
Jauhara e ninguém é digno dela senão ele. Tenciono levar jóias, rubis e
colares, um presente que seja digno dele, para pedir a mão de Jauhara. Se
ele contestar a nossa realeza, também o rei Badr é rei, por sinal bem
formoso, com mais território, guardas e soldados, e um reino mais vasto.
Tenho mesmo de me empenhar em satisfazer o seu desejo, mesmo que me
custe a vida, pois eu sou a causa desta situação, e tal como o lancei nos
mares do amor, vou empenhar-me em reuni-lo com a rapariga, e que nisso
Deus Todo-Poderoso me ajude.» Então a mãe disse-lhe: «Faz o que
quiseres, mas ai de ti se o enfureceres com o que lhe disseres e responderes,
porque tu sabes bem quão cretino e colérico ele é, e receio que ele arremeta
contra ti, visto que não respeita ninguém.» Ao que ele respondeu: «Às suas
ordens.»
Em seguida, pegou em duas malas cheias de colares, jóias, rubis,
esmeraldas em forma de missangas cilíndricas, pedras preciosas talhadas
para anéis, e diamantes, e levou-as aos criados para que as carregassem,
seguindo viagem com eles até chegar ao palácio do rei Xamândal, onde
pediu licença para ser recebido, havendo-lhe sido a licença dada. Em
estando ante o rei, beijou o chão e cumprimentou-o com as melhores
maneiras. Em o rei o vendo, levantou-se para o receber e ordenou-lhe que
se sentasse. Em ele estando já devidamente sentado, disse-lhe o rei
Xamândal: «Abençoada seja a tua vinda. Senti saudades tuas durante todo
este tempo em que te não vi. O que quer que precises, diz-me, e eu tratarei
do assunto.»
Então Sayih levantou-se, beijou o chão e disse: «Ó rei dos tempos, antes
de tudo preciso de Deus Todo-Poderoso, e em seguida do rei munificente e
leão valente, o qual por via da sua justiça os cameleiros levam a sua fama a
toda a parte e espalham os relatos dos seus feitos por todas as cidades e
províncias, tal é a sua generosidade, bondade, indulgência e benevolência.»
Ao depois, Sayih abriu as duas malas e delas sacou as valiosas jóias, os
colares, os rubis talhados para anéis, as esmeraldas em forma de missangas
cilíndricas e os diamantes, dispôs tudo ante o rei Xamândal, e disse:
«Talvez vossa alteza me faça o obséquio de aceitar este meu presente, o que
muito alegraria o meu coração.» Então disse-lhe o rei Xamândal: «Não há
razão para este presente! O que te levou a oferecer-me tamanho tesoiro? O
que queres em recompensa? Explica-me o teu caso e diz-me o que precisas,
e se estiver ao meu alcance, tratarei do assunto agora mesmo, sem ser
necessário que te entregues a mais canseiras e fatigas. E se não estiver ao
meu alcance, serei desculpado, pois ‘Deus não incumbe a alma alguma
senão o que é de sua capacidade’105.» Então, Sayih levantou-se, beijou o
chão e disse: «Ó rei, sem dúvida que o que eu preciso está ao seu alcance e
é propriedade sua, pois vossa alteza é o seu dono, e eu nunca incumbiria
vossa alteza de algo que não estivesse ao seu alcance, pois não sou doido
para tal.»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se.


249.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que Sayih disse ao rei Xamândal: «Ó


rei, um sábio disse: se queres ser desobedecido pede o que não pode ser
fornecido, e quanto ao que eu preciso, está ao alcance de vossa alteza,
sendo-lhe perfeitamente possível concedê-lo.» Então disse-lhe o rei: «Pede
o que precisas, explica o teu caso, e reclama o que queres.» Então, ele
disse-lhe: «Ó rei dos tempos, fique sabendo que vim à sua presença para
pedir a mão da pérola inigualável, a jóia106 grandiosa e princesa gloriosa,
Jauhara, filha de vossa alteza real. Ó rei, não desaponte quem veio à sua
presença e dê esperanças a quem tanto o aprecia.»
Ora, o rei em ouvindo as palavras de Sayih, riu-se até cair para trás,
escarnecendo dele, e disse: «Ó Sayih, e julgava eu que fosses um homem
inteligente e um jovem magnificente, e que só falavas apropriadamente e
arrazoadamente. O que te toldou o bom senso trazendo-te a mim nesta
grave empresa e ousada proeza? Para pedires a mão de filhas de reis que
possuem cidades e províncias, e têm exércitos e guardas ao seu dispor? O
teu amor-próprio chegou a este estado supremo e o teu bom senso diminuiu
a tal ponto para me afrontares com tais palavras?»
Então Sayih disse: «Ó rei, que Deus o guie, fique sabendo que eu não
peço a mão dela para mim, e se o fizesse eu faria par com ela, até mais,
porque bem sabe que o meu pai era um rei do mar, tal como vossa alteza, e
que o nosso reino nos foi usurpado, mas eu não peço a mão dela senão para
o rei Badr, senhor da Pérsia, do qual já terá ouvido falar da sua fama e
poderio. Se vossa alteza julga ser um grande rei, também o rei Badr o é,
maior ainda, e se disser que a sua filha é bela, airosa e formosa, o rei Badr é
ainda mais belo que ela em figura, mais bonito, elegante, amável e afável, e
entre as gentes do seu tempo, ninguém há que seja mais cavaleiro, formoso,
virtuoso e generoso. Se vossa alteza aceitar e responder favoravelmente ao
que pedi, então terá feito o que é certo e o assunto fica resolvido, tal como o
sábio com bom senso teria feito. E se recusar e for arrogante connosco, não
nos tratará de guisa justa nem percorrerá connosco a senda correcta. O rei
sabe que a princesa Jauhara, filha de vossa alteza, tem de arranjar marido,
pois lá diz o sábio: ou a moça arranja marido em boa altura ou acaba na
sepultura, e se considera casá-la, o filho da minha irmã é o mais indicado
para ela, mas se nos repudiar e recusar o que propomos, melhor oferta que a
nossa não encontrará.»
Ora, o rei em ouvindo as palavras de Sayih, tomou-se de fúrias tão
violentas que perdeu as estribeiras e a alma quase lhe saiu do corpo, e disse-
lhe: «Ó cão! Como se atrevem os da tua laia a interpelar-me de tal guisa e a
mencionar a minha filha publicamente na corte, afirmando que o filho da
tua irmã Jullanar faria par com ela? Quem és tu, quem é a tua irmã, quem é
o filho da tua irmã, quem é o cão seu pai, para me vires falar em tais termos
e me interpelares de tal guisa? Guardas! levai este canalha e decapitai-o!»
Então os guardas deitaram a mão às espadas e as desembainharam,
dirigindo-se a Sayih, mas ele fugiu dirigindo-se à porta do palácio, onde
encontrou os seus primos, próximos, gentes e criados.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se.


250.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o rapaz fugiu para a porta do


palácio, onde encontrou os seus primos, próximos, gentes do palácio,
guardas e criados esperando, e eles eram mais de mil cavaleiros fardados a
rigor com armaduras de ferro e cotas de malha, e com lanças na mão. Em
eles o vendo a fugir, perguntaram-lhe: «Que se passa?» E ele contou-lhes o
que se havia passado, e havia sido a sua mãe que os enviara para o socorrer,
e em eles ouvindo as suas palavras, souberam que o rei era um cretino
colérico e arrogante. Então apearam-se dos seus cavalos, desembainharam
as espadas, e entraram com ele no palácio, encontrando o rei Xamândal
sentado no trono, sem que se tivesse apercebido da presença deles,
continuando a vociferar contra Sayih, e como os seus criados, rapazes,
subordinados e acólitos não estavam preparados para combater, o grupo de
Sayih entrou de espadas em riste, e em Xamândal os vendo disse-lhes: «Ai
de vós, ó cães!» E num ápice os acólitos de Xamândal fugiram, deixando
que os outros capturassem o rei e lhe atassem as mãos atrás das costas.

Então, em a sua filha Jauhara ouvindo que seu pai havia sido capturado e
que os seus guardas e acólitos haviam sido mortos, fugiu do palácio para
uma ilha, e em dando com uma árvore alta, escondeu-se nela. Ora, aquando
da batalha entre aqueles dois clãs, um dos criados de Sayih foi ter com a
mãe deste e deu-lhe parte do sucedido. Em o rei Badr ouvindo aquilo, fugiu
temendo pela sua vida, e disse de si para si: «Esta barafunda é toda por
minha causa e vão querer que eu responda por isso.» Então fugiu sem saber
aonde se dirigia, e quis o destino que fosse dar à mesma ilha na qual estava
a princesa Jauhara, e chegando fatigado à árvore na qual estava a princesa
Jauhara, botou-se debaixo dela como se estive morto e quedou-se a
descansar. Ao depois, estendeu-se de costas para baixo, e ao olhar para a
árvore, os seus olhos deram com a princesa Jauhara. Ao olhar para ela, que
era qual a Lua brilhante, disse de si para si: «Glória a Deus que criou esta
magnífica forma! Não posso acreditar que seja outra que não a princesa
Jauhara! Penso que ela em ouvindo sobre a guerra levada a cabo entre o pai
dela e o meu tio fugiu para esta árvore. Se não for a princesa Jauhara, então
é uma moça ainda mais bela que ela!» Ficou a pensar sobre a situação dela,
e disse de si para si: «Vou agarrar nela para a questionar, e se for ela peço a
sua mão directamente, pois esse é o meu desejo!»

Então, interpelou a rapariga e disse-lhe: «Ó finalidade do meu querer,


quem és tu e quem te trouxe para este lugar?» A rapariga olhou para o rapaz
e viu que ele era qual a lua cheia, de porte elegante e sorriso deslumbrante,
e disse-lhe: «Ó formoso, eu sou a princesa Jauhara, filha do rei Xamândal, e
fugi para aqui porque Sayih e o seu exército atacaram o meu pai, mataram
quase todos os seus soldados, manietaram-no e capturaram-no, por isso fugi
temendo pela minha vida.»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se.


251.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que a princesa Jauhara disse ao rei


Badr: «Ó moço, fugi para esta ilha porque temia pela minha vida.» Então,
em Badr ouvindo as palavras dela, espantou-se com a estranha coincidência
e disse de si para si: «Sem dúvida alguma o meu tio Sayih venceu o rei
Xamândal», e ficando extremamente contente, disse mais: «Sem dúvida
alguma alcancei o meu desejo e satisfiz o meu querer com a captura do pai
desta rapariga.» Ao depois, olhou para ela e disse-lhe: «Senhora minha,
desce até mim, que eu por te amar sou assassinado e pelos teus olhos sou
capturado, e que foi à minha conta e à tua que aconteceu esta barafunda e
estas guerras. Fica sabendo que eu sou o rei Badr, senhor da Pérsia, e o meu
tio é Sayih, o qual foi ter com o teu pai para lhe pedir a tua mão para seres
minha noiva. Fica sabendo que eu larguei o meu reino, minha mãe e
família, e abandonei meu país, separei-me dos meus acólitos e amigos
próximos, e vim de longe por mor de ti, e aconteceu esta coincidência. Por
isso, desce e nós os dois vamos ao palácio do teu pai pedir ao meu tio Sayih
que o liberte, e assim caso-me contigo dentro de toda a legalidade.»
Em a princesa Jauhara ouvindo as palavras dele, disse para consigo: «Por
causa deste canalha execrável e cobarde abominável é que tudo isto
aconteceu, e o meu pai foi capturado, e mataram os seus acólitos e
soldados, enquanto eu fugi do meu país para me exilar nesta ilha. Se eu
preparar alguma artimanha, então o canalha vai-se assenhorear de mim e
alcançar o seu desejo à minha custa, porque ele está caído de amor e o
amador faça o que faça não é culpado.» Então ela ludibriou-o com palavras
e falas mansas, e pôs-se a galanteá-lo e a fazer-lhe olhinhos, e disse:
«Senhor meu, luz dos meus olhos, és tu o rei Badr, filho de Jullanar do
Mar?» E ele disse: «Sim, sou, senhora minha.» E ela disse: «Que Deus
corte a mão do meu pai e lhe retire o reino, e lhe não traga consolo ao
coração nem retorno do exílio! Como poderia querer alguém melhor que tu?
Ou mais belo do que quem possui estes atraentes dotes ou mais elegante do
que quem tem este porte harmonioso? Valha-me Deus, o meu pai não tem
bom senso nem juízo!» E em seguida disse: «Ó rei, se me amas um palmo,
eu amo-te dois côvados, pois na armadilha do teu amor tombei e em uma
das tuas presas me tornei. O amor que há em ti por mim em mim se
espalhou e o amor que agora há em mim é muitas vezes maior do que
aquele que há em ti.»
Ao depois, ela desceu da árvore, acercou-se do rei Badr, abraçou-o e pôs-
se a beijá-lo. Então, em o rei Badr vendo como ela agia, ficou a gostar dela
ainda mais e o amor que ele sentia fortaleceu-se, e julgando que ela o
amava, confiou nela e pôs-se aos abraços e beijos com ela, enquanto dizia
de si para si: «Valha-me Deus, o meu tio não me descreveu nem uma
décima quarta parte de uma décima parte da sua beleza ou um quilate que
fosse da sua formosura.»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se.


252.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o rei Badr disse de si para si: «…
ou um quilate que fosse da sua formosura.» Ao depois, a rapariga abraçou-
o, e pronunciando palavras que o rei Badr não compreendia, cuspiu-lhe na
cara, e disse-lhe: «Ó canalha execrável, sai dessa forma humana e toma a de
pássaro, e que seja a do mais belo dos pássaros, com penas brancas, e bico e
patas vermelhas.» E mal acabou de falar, eis que o rei Badr, tão rapidamente
quanto um relâmpago, mudou da sua forma para a de um pássaro branco,
com a mais bela feição, e pôs-se especado em pé a olhar para a princesa
Jauhara. E com ela estava uma rapariga das suas criadas, a quem ela disse:
«Valha-me Deus, não receasse eu por meu pai estar cativo do seu tio, tê-lo-
ia matado. Que Deus nunca o compense com o bem nem lhe dê saúde! Que
grande azar ele nos ter encontrado, pois toda esta barafunda se deve a ele.
Olha, ó rapariga, pega nele e leva-o para a Ilha da Sede, deixa-o lá e vem ter
comigo rapidamente.»
Então a criada pegou nele, estando ele em forma de pássaro, e dirigiu-se
para a Ilha da Sede, e pô-lo lá, mas estando prestes a regressar, disse a si
mesma: «Valha-me Deus, esta beleza e formosura não merece ser
aniquilada pela sede.» Então levou-o daquela ilha para uma outra, que era
grande, com vegetação verdejante e abundante em água e fruta. Ela pô-lo lá,
tornou à princesa Jauhara e deu-lhe parte de que havia feito o que lhe fora
pedido107.
E isto foi o que aconteceu com aqueles, já no que toca a Sayih, tio do rei
Badr, em conquistando o reino de Xamândal, matado os seus guardas e
criados, e havendo-o feito prisioneiro, procurou a sua filha Jauhara, mas
não a encontrou. Então tornou ao seu palácio, o palácio da sua mãe, e disse-
lhe: «Mãe, onde está o filho da minha irmã, o rei Badr?» E ela disse-lhe:
«Valha-me Deus, não tenho ideia alguma, meu filho, nem sei aonde foi,
pois em ele ouvindo que tu combatias Xamândal e que a guerra decorria
entre vós, temeu pela sua vida e fugiu.» Em Sayih ouvindo as palavras da
mãe ficou extremamente triste e disse: «Ai, mãe, para nada serviu o que
fizemos! A mãe foi negligente para com o rei Badr, e eu receio que ele seja
aniquilado, ou que um dos soldados do rei Xamândal ou a sua filha Jauhara
dê com ele e o matem, e nada de bom decorrerá entre nós e a mãe dele,
porque eu o levei sem o consentimento dela.»
Ao depois, mandaram soldados e guardas no seu encalço pelas várias
regiões do mar, mas estes não deram com rasto algum dele nem ouviram
novas boas ou más, e então tornaram a Sayih e deram-lhe conta da situação,
deixando-o ainda mais triste e amargurado. Então Sayih sentou-se no trono
de Xamândal, que era seu prisioneiro, mas o seu coração estava apertado
pela tristeza por mor do rei Badr.
E isto foi o que aconteceu com estes.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se.


253.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que a rainha Jullanar do Mar, em o rei


Badr havendo partido com o seu tio Sayih, esperou por ele, mas ele não
regressou nem novas dele lhe chegaram aos ouvidos, havendo ela passado
inúmeros dias à sua espera. Então, um dia de entre dias, a rainha Jullanar
saiu para o mar e foi até ao palácio de sua mãe. Em a sua mãe a vendo,
levantou-se para a receber, abraçou-a e beijou-a, e o mesmo fizeram as suas
primas da parte do irmão do seu pai. Em seguida, ela perguntou-lhes sobre
o seu filho, o rei Badr, e sobre a sua vinda com o tio Sayih, e a mãe dela
disse: «Ele veio com o seu tio Sayih, que pegou em rubis e jóias, ofereceu-
as a Xamândal, e pediu-lhe a sua filha em noivado para o teu filho, mas
Xamândal recusou, usando palavras duras para com o teu irmão. Então eu
enviei ao encontro do teu irmão mil cavaleiros, todos armados da cabeça
aos pés, e houve guerra e luta entre o teu irmão e o rei Xamândal, tendo-o
derrotado o teu irmão, após matar os seus guardas e soldados, e fê-lo seu
prisioneiro. O teu filho ouviu falar sobre isso antes da vitória do seu tio e,
receando pela vida, fugiu daqui sem o meu consentimento, não havendo eu
dês daí ouvido dele nova boa ou má.»
Em seguida, ela perguntou sobre o seu irmão Sayih, e a mãe deu-lhe
parte de que ele se sentou no trono de Xamândal, [e disse:] «Ele enviou
para todas as regiões [soldados e guardas] à procura do teu filho e da
princesa Jauhara.» Em Jullanar ouvindo as palavras da mãe, ficou
extremamente triste por mor do seu filho, chorou, e ficou duramente
zangada com o seu irmão Sayih por ter levado o seu filho para o mar sem o
seu conhecimento. Então, ela disse: «Mãe, receio pelo nosso reino, porque
eu vim consultar a família sem haver informado quem quer que fosse, e
temo que se me demorar possam executar algo contra nós e o reino se
escape das nossas mãos. Não tenho outro remédio senão regressar para
dirigir os afazeres do reino até Deus Todo-Poderoso resolver a situação. Por
isso, não vos esqueceis do meu filho Badr, nem negligencieis o seu caso,
porque se ele desaparecer, decerto morrerei, pois não consigo viver sem ele
nem apreciar a vida.» E todos responderam: «Conta connosco.» [E a mãe
disse:] «Filhinha, nem me perguntes o quanto eu sofro com a ausência de
Badr!» Então a mãe dela enviou também quem fosse à procura dele.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se.


254.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que a mãe de Jullanar enviou quem


fosse à procura do rei Badr, enquanto a mãe deste tornou ao seu reino com
os olhos em lágrimas e o coração apertado pela tristeza e a agonia. E isto foi
o que aconteceu [com aqueles, já no que toca ao] rei Badr, em ele sendo
levado pela criada para a ilha e em ela o deixando lá, como já
mencionámos, saciava-se comendo frutos e bebendo água.
E assim foi por período de uns quantos dias, com ele em forma de
pássaro, sem saber aonde ir e como voar. Ora, estando ele um dia poisado
no ramo de uma árvore, eis que um caçador foi até à ilha para caçar
qualquer coisa com que se alimentar. Então, aproximou-se do rei Badr, cuja
forma era a de um pássaro com penas brancas, e bico e patas vermelhas,
que fascinava quem à sua frente surgisse e cativava quem o visse, e o
caçador em o vendo espantou-se e disse para consigo: «Este pássaro é
mesmo bonito, nunca vi outro com penas assim ou com esta beleza.» Então
botou-lhe a rede, caçou-o e trouxe-o consigo para a cidade, enquanto dizia
para si: «Vou vendê-lo.»
Ao chegar ao mercado, alguém lhe disse: «Ó caçador, quanto queres por
esse pássaro?» E o caçador disse-lhe: «Se o comprar, que vai fazer com
ele?» E ele disse: «Vou matá-lo e comê-lo.» E o caçador disse-lhe: «Poderá
alguém de bom coração matá-lo e comê-lo?» E disse-lhe o homem: «Ó tolo,
e para que mais serviria?» Então o caçador disse-lhe: «Quero oferecê-lo ao
rei, que me dará mais do que ele vale e me pagará um preço superior, para o
admirar e à sua beleza. Valha-me Deus, toda a minha vida de caçador e
nunca cacei um pássaro que lhe fosse comparável. Quanto a si, quanto me
daria no máximo? Um dirame? Valha-me Deus, nem por um dinar o
vendo!»
Então o caçador foi ao palácio real, e ficou à espera por um tempo com o
pássaro na mão, até que o rei o viu e ficou maravilhado com a sua beleza, as
suas penas brancas, e o seu bico e patas vermelhas, e disse ao criado: «Se
ele o vender, compra-lho.» Então o criado foi ter com o caçador e disse-lhe:
«Vendes esse pássaro?» E ele disse: «É um presente para o rei.» Então o
criado pegou no pássaro e levou-o ao rei, dando-lhe parte do que o caçador
lhe havia dito, e o rei disse-lhe: «Vai ter com ele e dá-lhe dez dinares.» O
caçador pegou no dinheiro, beijou o chão e abalou.
O criado levou o pássaro para o palácio, pô-lo numa bonita gaiola com
água e comida, e pendurou-a. E em o rei tornando do seu passeio a cavalo,
disse ao criado: «Onde está o pássaro? Trá-lo para eu olhar para ele, valha-
me Deus, que é mesmo bonito!» E o criado trouxe o pássaro e pô-lo ante o
rei.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se.


255.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o criado trouxe o pássaro e pô-lo


ante o rei, mas eis que da comida que lhe havia sido deixada ele nada tinha
comido. Então o criado disse ao rei: «Senhor real, da comida que lhe pus,
ele nada comeu, e não sei o que ele come, para eu o poder alimentar.» Mas
o rei pôs-se a mirá-lo, maravilhando-se com a sua beleza. Ao depois,
ordenou que lhe trouxessem a refeição, e puseram a mesa ante o rei, que
comeu do lhe havia sido servido. Em o pássaro vendo aquela comida e a
carne, voou caindo sobre a mesa e pôs-se a comer do pão, da carne, da
refeição, e dos doces e frutas, e comeu de tudo o que havia sido servido ao
rei. Ora, o rei ficou atónito com o pássaro, espantado com o que ele havia
comido, assim como todos os que estavam presentes, e disse aos criados e
mamelucos que estavam à sua roda: «Em toda a minha vida jamais vi um
pássaro comer como este.» E ordenou que trouxessem a sua mulher para
que também ela o admirasse.
Então um criado foi ter com a mulher do rei e disse-lhe: «Minha senhora,
o rei chama-a para admirar este pássaro que ele comprou. E quando
servimos a refeição ao rei, ele voou gaiola afora caindo sobre a mesa, e pôs-
se a comer de tudo o que havia. Venha, minha senhora, admirar este
pássaro, que é lindo de se ver e uma verdadeira maravilha.» Em a mulher
do rei ouvindo as palavras do criado, veio apressadamente para ver o
pássaro. E em pondo os olhos no pássaro, cobriu o rosto e virou-se para se
ir embora. Em o rei vendo que a sua mulher havia coberto o rosto e se
virado para ir embora, voltou-se para ela e disse-lhe: «Que tens? Cobres o
rosto e viras costas, quando só os eunucos e as tuas criadas estão aqui?» Ao
que ela disse: «Ó rei, este pássaro não é um pássaro! Em verdade é um
homem.» Em o rei ouvindo as palavras da sua mulher, disse-lhe: «Estás a
mentir! Um homem! Como poderia ele ficar pássaro? Muito gostas tu de
troçar!» Mas a mulher disse-lhe: «Não estou a troçar de ti! O que te disse
não é senão verdade, este pássaro é o rei Badr, dono do reino persa, e a sua
mãe é Jullanar do Mar.»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana, e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu:
«Isto nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima
noite, se o rei me poupar e eu viver.»
256.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que a mulher do rei informou o rei que
aquele pássaro era o rei Badr, dono do reino persa, e que a sua mãe era
Jullanar do Mar, e o seu tio, pela parte da mãe, era Sayih, e a sua avó era
Faraxa, e que a princesa Jauhara, filha do rei Xamândal, o havia encantado.
Ademais contou-lhe tudo de fio a pavio, como havia pedido Jauhara em
noivado ao seu pai, como este havia recusado, e como o seu tio Sayih e o
rei Xamândal lutaram em batalha, havendo Sayih saído vencedor e
capturado Xamândal. Ora, em o rei ouvindo as palavras da sua mulher ficou
espantando, e sendo a sua mulher a maior feiticeira do seu tempo, disse-lhe:
«Pela minha vida, tens de arranjar forma de o desencantar e não o deixar a
sofrer sob esta forma de pássaro. Que Deus corte a mão a essa puta da
Jauhara! Não podia ter menos escrúpulos nem a sua astúcia ser maior!» E
disse-lhe a sua mulher: «Ó rei, diz ao pássaro: “Ó rei Badr, entra na
despensa.”» E o pássaro em ouvindo as palavras do rei entrou na despensa.
Ao depois, a mulher do rei vestiu um manto, cobriu o rosto, pegou numa
taça de água, sobre a qual pronunciou palavras que ninguém compreendia e
borrifou-o, dizendo-lhe: «Pela virtude destes poderosos nomes, destes
sagrados e nobres conjuros, por Deus Todo-Poderoso, Criador dos céus e da
Terra, que ressuscita os mortos, distribui as provisões e decide o tempo de
vida de cada um, sai dessa forma de pássaro na qual te encontras, e torna
para a forma com a qual Deus te formou.» E mal acabou de falar, eis que o
pássaro se sacudiu vigorosamente e virou forma humana, e então o rei viu
um jovem como não havia mais belo à face da Terra.
Ao depois, em o rei Badr vendo tal coisa, disse: «Glória a Deus, o
Criador das criaturas que decreta os acontecimentos!» Em seguida, o rei
Badr beijou a mão e os pés do rei, e disse-lhe: «Que Deus o recompense
com o bem.» E o rei beijou o rei Badr na cabeça e disse-lhe: «Badr, conta-
me a tua história de fio a pavio.» Então o rei Badr contou-lhe a sua história
toda, sem nada lhe esconder, deixando o rei espantado até mais não. Ao
depois, o rei disse-lhe: «Que tencionas fazer, ó rei Badr?» E ele disse: «Ó
rei dos tempos, peço à tua bondade que me prepare uma embarcação e que
venham comigo alguns serventes teus e o que for que me faça falta, para eu
ficar equipado para a viagem de regresso ao meu reino e país, pois já há
algum tempo que estou longe da minha mãe, família e reinado, e receio que
se me delongar mais ficarei sem o meu reino, e por mor da minha ausência
não sei se a minha mãe está viva, o mais certo é ter morrido de desgosto por
não saber onde estou, nem se estou vivo ou morto, e se tu meu senhor real
tiveres a amabilidade…»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se.


257.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o rei Badr pediu ao rei e à sua
mulher que tivessem a bondade de o equipar para viajar. Em o rei vendo a
sua eloquência, elegância, e beleza, sentiu afecto por ele e disse: «Às tuas
ordens.» Então, equipou uma embarcação com tudo o que fizesse falta ao
rei Badr, enviando com ele um grupo dos seus serventes favoritos, e
despediu-se dele.
O rei Badr subiu a bordo da embarcação e viajou por dez dias seguidos
no mar com bons ventos e bons ares, mas ao décimo primeiro dia fortes
ventos se abateram, agitando o mar tempestuosamente, e a embarcação se
erguendo a tal ponto que os marinheiros já a não conseguiam dirigir. Ao
depois, continuavam eles nestes modos, à deriva das ondas, quando a
embarcação se aproximou de uma rocha, bateu contra ela e se quebrou.
Quem se afogou, afogou-se, quem se salvou, salvou-se, e após haver estado
à beira da morte, o rei Badr subiu para uma tábua solta da embarcação,
enquanto as ondas o não cessavam de erguer e derribar, sem ele saber para
onde ia ou se dirigia, e sem nada poder fazer contra a força das ondas
continuou seguindo ao sabor dos ventos. E assim foi por três dias e noites, e
ao quarto dia as ondas botaram-no numa costa. Então, o rei Badr, olhando à
roda, viu uma cidade branca qual um pombo forte e corpulento, plantada à
beira-mar, com belos edifícios e altos muros, contra os quais as ondas
batiam.
Em o rei Badr vendo aquela cidade exultou de alegria, pois estava à beira
da morte, tal era a fome e a sede. Desceu da tábua com intenções de entrar
na cidade, mas apareceram-lhe mulas, burros e cavalos, tão numerosos
quanto os grãos da areia, e puseram-se a pontapeá-lo, impedindo-o de sair
do mar para chegar àquela cidade. Então, ele nadou até outra banda da
cidade, alcançando terra firme, e nela não vendo vivalma, espantou-se e
disse de si para si: «Pergunto-me a quem pertence esta cidade, que se
passará com ela para não ter gente nem rei, e que história vem a ser esta
destes cavalos, camelos, mulas, burros e vacas me impedirem de entrar na
cidade», e sem saber para onde ia caminhou pensativamente até que avistou
um ancião.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se.


258.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o rei Badr avistou um ancião, que
estava na sua loja, onde era vendedor de favas, e cumprimentou-o. O ancião
ergueu a cabeça e retribuiu-lhe o cumprimento, e ao olhar para o rei Badr,
ao ver que o seu rosto era belo, disse-lhe: «Ó moço, donde vieste e o que te
trouxe até esta cidade?» Então ele contou-lhe a sua história toda e o ancião,
deveras espantado, perguntou-lhe: «Filho, viste alguém no teu caminho?» E
ele disse-lhe: «Não, valha-me Deus, paizinho, estou espantado por não
haver ninguém nesta cidade.» E o ancião disse-lhe: «Filho, entra nesta loja
senão podes perder a vida.»
Então o rei Badr entrou e sentou-se na parte nobre da loja. Veio o ancião
e trouxe-lhe algo para comer, e disse-lhe: «Filho, come e vai para o interior
da loja. Glória Àquele que te salvou desta diaba!» Então, o rei Badr ficou
varado de medo, e após comer até se fartar e lavar as mãos, virou-se para o
ancião e disse-lhe: «Senhor, qual a razão da suas palavras? Deixou-me com
medo desta cidade e dos seus habitantes.» E o ancião disse-lhe: «Filho, fica
sabendo que esta cidade dá pelo nome de Cidade dos Feiticeiros, e tem uma
rainha que é uma rapariga tão feiticeira quanto a Lua, e as bestas que viste,
todas elas são seres humanos tal com eu e tu, mas estão encantados, pois
todo aquele que entra nesta cidade e é jovem como tu, esta feiticeira infiel
pega nele e dele desfruta por quarenta dias, ao cabo dos quais…»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se.


259.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o ancião disse: «… e após


quarenta dias encanta-o e ele torna-se mula ou burro ou um dos outros
animais que viste, assim se algum dos habitantes desta cidade tiver um
afazer, monta uma destas bestas que viste à beira-mar; todos os habitantes
desta cidade são feiticeiros tal como ela, e tu quando querias chegar a terra
firme, impediram-te de entrar, e assim o fizeram por piedade de ti, para que
essa maldita não fizesse contigo o que fez com eles, e essa maldita não é
mais do que a rainha desta cidade, e nas artes mágicas é a melhor do seu
tempo. Chama-se Lab, que significa “o movimento do Sol”108.» Em
ouvindo as palavras do ancião, o rei Badr ficou varado de medo, tremendo
por todos os lados, e disse: «Não acredito que me livrei do feitiço com que
estava encantado para que os decretos do destino me botassem num sítio
com feiticeiros ainda mais calamitosos!», e ficou a pensar no que havia de
fazer. Então, em o ancião olhando para ele e em o vendo varado de medo,
disse-lhe: «Filho, levanta-te e senta-te à porta da loja para veres os
habitantes desta cidade e quão numerosos são. Não tenhas medo, pois a
rainha e todos os que habitam esta cidade respeitam-me e gostam de mim,
não me querendo qualquer mal.» Ora, em o rei Badr ouvindo as palavras do
ancião, sentou-se à porta da loja para mirar.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se.


260.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o rei Badr sentou-se à entrada da


loja para mirar as pessoas que passavam, e viu um mundo de gente
incontável. Ora, quando as pessoas o viram ficaram espantadas por ele ser
tão belo e aproximando-se do ancião, perguntaram-lhe: «Ancião, é este o
teu cativo e presa mais recente?» Ele respondeu: «Não, valha-me Deus, este
é o filho do meu irmão. Ele não vivia aqui, mas quando ouvi que o seu pai
morreu, enviei quem o trouxesse para curar a falta que eu sentia dele.» E
disseram-lhe: «Lá feições doces tem ele, mas receamos que a rainha Lab
faça como sempre e to tire, visto que ela tem uma inclinação por mancebos
formosos.» E disse-lhes o ancião: «A rainha não me desafia em coisa
alguma, respeita-me e gosta de mim. E se eu lhe disser que ele é meu
sobrinho ela não vai falar com ele, nem se fazer a ele ou o incomodar.»
Ora, o rei Badr viveu com o vendedor de favas por espaço de um mês,
comendo e bebendo, e o ancião nutria por ele grande estima. Após um mês,
estava o rei Badr, como era seu hábito, sentado à entrada da loja, e eis que
mil eunucos de espada em riste, vestidos com vários géneros de roupas,
com cinturões ricamente ornamentados, montando cavalos árabes com selas
doiradas, passam à beira da loja e cumprimentam o ancião, e este retribui-
lhes o cumprimento. Em seguida passam mil mamelucos que eram tais luas,
com trajes de oficiais e espadas doiradas em riste, que se aproximam do
ancião, cumprimentam-no, e abalam. Em seguida passam mil raparigas tais
luas, trajando vestidos de seda e cetim com brocados a oiro, trazendo na
mão lanças e estando equipadas com espadas, e no meio delas estava uma
rapariga montando um corcel árabe com sela em oiro ornamentada com
rubis e vários géneros de jóias. As raparigas aproximaram-se daquele
ancião, cumprimentaram-no e ele retribuiu o cumprimento, e a rainha parou
diante daquele ancião, cumprimentou-o, e o ancião levantou-se para a
receber e beijou o chão ante ela.
Em seguida, a rainha olhou para o ancião, e disse-lhe: «Abdallah, este
rapaz de rosto formoso, porte gracioso e todo airoso, que é teu cativo, onde
o apanhaste?» E ele disse: «Não, valha-me Deus, ó minha rainha, este é o
filho do meu irmão. Ele não vivia aqui, mas como eu sentia a sua falta,
trouxe-o para poder estar com ele e matar saudades. Tenho uma enorme
estima por ele, e como já estou entrado em anos e o pai morreu, assim tenho
a quem deixar a minha herança quando morrer e quem me sirva enquanto
viver.» Então disse-lhe a rainha…

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se.


261.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que a rainha disse ao ancião:


«Paizinho, não mo ofereces, visto que eu gosto dele? Pela virtude do fogo e
da luz, da frescura da sombra e do calor do Sol, farei dele o meu quinhão na
vida. Não receies, posso fazer mal a qualquer um na Terra, mas a ele mal
nenhum farei. Tu bem sabes a enorme consideração que tenho por ti e tu
por mim.» O ancião disse: «Ó rainha, não o posso fazer, não to entrego.» E
ela disse: «Pela virtude do fogo e da luz, da fria sombra e do tórrido vento,
e pela virtude da minha fé, não me vou embora sem ele. Não vou ser pérfida
com ele nem o vou encantar. De mim só vai ele receber o que gostar.» Ora,
o ancião não se lhe pôde opor, receando por si mesmo e pelo rei Badr, e
pediu-lhe garantias por juramento de que ela lhe não faria mal algum e o
entregaria tal como o havia recebido, e disse-lhe: «Amanhã quando tornares
do terreiro da cidade eu to entrego.» Então ela agradeceu-lhe e abalou para
o seu palácio.
Em seguida, o ancião olhou para o rei Badr e disse-lhe: «Filho, esta é a
mulher sobre a qual eu te avisei e que é maga109, mas ela jurou por aquilo
em que tem fé que te não fará mal nem te encantará, e ela estima-me e
respeita-me, e se assim não fosse ter-te-ia levado à força. O hábito desta
rainha infiel e feiticeira é fazer com os forasteiros o que te já mencionei
antes. Que Deus a amaldiçoe e a abomine, por ela ser tão maléfica e
depravada, e não ter quaisquer escrúpulos.» Em o rei Badr ouvindo as
palavras do ancião, disse: «Amo, valha-me Deus, estou com medo dela, já
provei o sabor de ser encantado por espaço de um mês, foi a princesa
Jauhara, filha do rei Xamândal, que me encantou, fazendo de mim uma
lição para outros, e quem me desencantou foi a mulher de um rei. Já provei
o sabor das mais dolorosas tormentas e o quanto sofre o encantado», e
desatou a chorar. Então o ancião teve pena dele e disse-lhe: «Não tenhas
medo, que ela até à sua família pode fazer mal, mas a mim não faz.»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se.


262.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o ancião disse ao rei Badr: «Ela até
à sua família pode fazer mal, mas a mim não faz. Então não viste os seus
soldados e séquito, como pararam à porta da minha loja para me
cumprimentar? Por amor de Deus, filho, esta infiel nem os reis ela gosta de
cumprimentar, mas sempre que passa neste sítio cumprimenta-me e
conversa comigo tal como viste e ouviste.»
Dormiram aquela noite, e em a manhã amanhecendo veio a rainha Lab,
trazendo à sua roda as suas raparigas, os mamelucos e os eunucos, de
espadas e lanças em riste. Parou à porta da loja do ancião e cumprimentou-
o, e ele retribuiu-lhe o cumprimento, e levantou-se e beijou o chão. Então,
ela disse-lhe: «Paizinho, cumpre o que prometeste e despacha-te a fazê-lo.»
O ancião disse: «Jura uma vez mais que lhe não vais fazer mal, nem
encantá-lo ou fazer algo de que ele não goste.» E ela jurou-lhe uma vez
mais por aquilo em que tinha fé. Ao depois, ela descobriu o rosto, que era
qual a Lua, e disse: «Paizinho, tanto complicas em me dares o teu sobrinho
formoso! Não sou eu mais bela que ele?» Então o rei Badr viu quão bela era
ela, ficou com a razão atarantada e disse para consigo: «Valha-me Deus, ela
é mais bela que a princesa Jauhara! Se ela se casar comigo, deixo o meu
reino, quedo-me com ela e não volto para a minha mãe. A verdade é que
depois de desfrutar dela na cama por quarenta dias e noites, já nem vou
querer saber se ela me mata ou encanta. Valha-me Deus, qualquer noite com
ela vale uma vida inteira!»
Em seguida, o ancião agarrou na mão do rei Badr e disse à rainha: «Vou
entregar-te o meu sobrinho que se chama Badr, mas vais tu devolver-mo tal
como o levaste, sem que haja sofrido maus-tratos e sem o separares de
mim?» Então ela, pela terceira vez, jurou-lhe que lhe não faria mal nem o
encantaria. Ao depois, ordenou que lhe dessem um formoso cavalo, com
um sela em que tudo era de oiro, e ao ancião ofereceu mil dinares.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se.


263.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que a rainha deu ao ancião vendedor


de favas mil dinares e disse-lhe: «São para te ajudar a viver», e em seguida
pegou no rei Badr e abalou, e ele à banda dela era qual a lua cheia110, e as
pessoas, ao olharem para ele e para a sua beleza, compadeciam-se dele e
diziam: «Meu Deus, este jovem formoso não merece ser encantado por esta
maldita», e o rei Badr ouvia o que as pessoas diziam, mas ficava calado,
pois já se havia encomendado a Deus Todo-Poderoso.
Seguiram caminho até ao palácio, e chegando à sua porta os emires, os
eunucos e os notáveis do reino descavalgaram, pondo-se ao serviço dela, e
também ela e o rei Badr descavalgaram, e sentaram-se no trono, enquanto
ela ordenou aos emires, camaristas e dignitários do reino que se retirassem;
então eles beijaram o chão e retiraram-se. E a rainha, com os eunucos e as
criadas, entrou no palácio, trazendo o rei Badr pela mão. Quanto ao palácio,
era qual um palácio do Jardim do Paraíso, com muros decorados a oiro, e ao
meio havia uma grande piscina à banda da qual havia um belo jardim onde
havia pássaros que chilreavam em todas as línguas e sons, e havia
despensas com todo o género de roupas e loiças, e em o rei Badr vendo
tanta fortuna, disse de si para si: «Glorioso seja Deus que com a Sua
generosidade e indulgência mune de provisões quem adora alguém que não
Ele.»
Ora, a rainha Lab sentou-se a uma janela que dava para o jardim, num
sofá cujo estrado era de marfim e o assento uma almofada alta, e o rei Badr
sentou-se à sua banda, e ela pôs-se a beijá-lo e a abraçá-lo. Ao depois, ela
deu ordens às criadas, e elas trouxeram uma mesa de oiro vermelho,
incrustada com jóias e também com porcelana, com todo o género de
comidas e doçarias, e eles comeram até se fartarem, e lavaram as mãos. Em
seguida, trouxeram o serviço de vinho com peças de oiro e prata, e de
cristal, flores aromáticas e pratos com frutos secos, e vieram dez raparigas
quais luas que traziam consigo todo o género de instrumentos. Então a
rainha encheu um copo, bebeu-o e encheu outro.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se.


264.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que em a rainha servindo o copo ao rei


Badr, este pegou nele e bebeu-o, e continuaram a beber até ficarem tocados
pelo álcool. Então, ela ordenou às raparigas que cantassem e elas cantaram
todo o género de canções, fazendo o rei Badr imaginar que o palácio
dançava com ele em êxtase e deixando-o estonteado, e assim ficou de alma
mais leve e esqueceu-se das saudades que tinha por estar longe de casa, e
disse de si para si: «Meu Deus, esta rainha é uma jovem formosa, e eu não a
deixarei jamais porque as suas posses são mais vastas que as minhas e ela é
mais bela que a princesa Jauhara.» E continuou a beber até se fazer noite e
as velas e os incensos serem acesos, e o banquete era tal como disse o
poeta:

Eis um dia passado na boa vida; que belo momento


De delícias, tanto prazer graças ao casamento.
Um rio galáctico correndo num céu de murta,
Estrelas tais narcisos, sóis rosados,
E o relampejar do vinho no copo
Formando nuvens no seu bordo.
Um trovão no compasso certo
Num nevoeiro de incenso decerto.
Eles continuaram a beber até ao fim da noite, enquanto as raparigas
cantavam, e em a rainha Lab ficando bêbeda, deitou-se no seu lugar no sofá
e ordenou às raparigas que se retirassem.

Ao depois, ela ordenou-me111 que me deitasse à sua banda, e as criadas


tiraram-me as roupas com as quais ela me havia vestido e quedei-me só
com uma camisa com brocados em oiro, tal como Lab.

Então, passaram a melhor das noites até a manhã amanhecer. Ao


levantar-se da cama, a rainha Lab foi com o rei Badr aos banhos do palácio,
e lavaram-se os dois. Em de lá saindo, vestiram-nos e deram-lhes taças de
vinho, que eles beberam. Em seguida, a rainha Lab pegou no rei Badr pela
mão e, acompanhados pelas criadas…

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se.


265.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que a rainha Lab pegou no rei Badr
pela mão e saíram dos banhos acompanhados pelas criadas, e foram ao
salão de banquetes, onde se sentaram um tempo a descansar. Então,
trouxeram-lhes a comida, e depois de comerem lavaram as mãos.
Levantaram as mesas e trouxeram-lhes o serviço de vinho, bem como fruta,
flores e frutos secos. Continuaram a beber até ao final da tarde, enquanto as
raparigas cantavam variadas canções e melodias. E continuaram a comer, a
beber, aos beijos e na farra por período de quarenta dias. Ao depois, ela
disse-lhe: «Ó rei Badr, o que é melhor, este sítio ou a loja do teu tio,
vendedor de favas?» Ele disse-lhe: «Não, por amor de Deus, ó rainha, este
sítio é melhor. Aquele homem é um pobretanas que vende favas.» E ela riu-
se das palavras dele, e em seguida os dois deitaram-se na cama até de
manhã, na mais saborosa das vidas.
Ora, em o rei Badr acordando, não a viu, e disse de si para si: «Aonde foi
ela?» Enquanto esperava por ela, começou a ficar com saudades, mas ela
não voltava. Então levantou-se da cama, vestiu as suas roupas, e pôs-se à
procura dela, mas não a encontrou. Dizendo de si para si: «Deve estar no
jardim», caminhou até lá, até que deu por si num riacho, à banda do qual
estava um pássaro negro, e à banda do pássaro negro estava uma pássara
branca, e à banda do riacho havia uma grande árvore, no cimo da qual havia
pássaros de várias cores e feitios.

Então pus-me a olhar para eles de um sítio donde não me viam, e o


pássaro negro saltou para cima daquela pássara branca, desfrutando dela
três vezes, e em passando pouco tempo eis que aquela forma se torna numa
forma humana, e ao observar melhor eis que não era outra senão a rainha
Lab, e então percebi que o pássaro negro era um homem encantado, e que
ela o amava, tornando-se a si mesma em pássara para que ele com ela
copulasse.

Então o rei Badr foi tomado pelo ciúme, e ficou furioso e com raiva
contra a rainha Lab por mor do pássaro negro. Em seguida, tornou para a
cama, onde ficou sentado. Após um tempo veio a rainha ter com ele, beijou-
o e pôs-se a brincar com ele, mas como ele cada vez mais a desprezava e
não lhe dirigia uma só palavra, ela percebeu o que se passava com ele e teve
a certeza que ele havia visto como fizera o pássaro negro com ela, mas fez
de conta que não tinha percebido e nada disse.
Em o dia aclarando, ele disse para ela: «Rainha, quero que me dês licença
para ir até à loja do meu tio, porque sinto falta dele e hoje faz quarenta dias
que o não vejo.» E ela disse-lhe: «Ó Badr, não te delongues, porque eu não
me consigo separar de ti um só momento.» E ele disse-lhe: «Às tuas
ordens.» Ao depois, cavalgou e foi ter com o ancião.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se.


266.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o rei Badr cavalgou e foi ter com o
ancião, vendedor de favas, que lhe deu as boas-vindas, levantou-se para o
receber e o abraçar, e disse-lhe: «Como tens passado na companhia dessa
infiel?» E ele disse-lhe: «Bem e de boa saúde, excepto que esta noite
adormeci com ela à minha banda, mas ao acordar não a vi. Então vesti as
minhas roupas e fui procurá-la, até que cheguei ao jardim», e contou-lhe
sobre ela e o pássaro que a havia montado. Em o ancião ouvindo as suas
palavras, disse: «Essa maldita já começou com as suas perfídias, toma
cuidado com ela. Fica sabendo que os pássaros que estão na árvore, todos
eles são jovens forasteiros que ela amou, desfrutou deles e tornou-os em
pássaros. Aquele pássaro negro era um dos seus mamelucos, sendo que ela
o amava perdidamente, mas como ele pôs as vistas em cima de uma das
criadas, ela encantou-o e deu-lhe o aspecto de um pássaro, e sempre que
tem saudades dele, encanta-se a si mesma e transforma-se em pássara, para
que ele a cubra, já que ela ainda o ama. Agora que ela sabe que tu
descobriste, já não vai ser meiga de coração contigo, mas não tenhas medo
dela que eu te protejo; ninguém é maior feiticeiro que eu nos tempos que
correm, apesar de não praticar a não ser se for mesmo necessário, e já
desencantei muita gente das mãos dessa maldita, porque ela não tem poder
sobre mim e receia-me, assim como o fazem todos os habitantes desta
cidade, que tal como ela adoram o fogo. Amanhã vem ter comigo para me
dizeres que tenciona ela fazer contigo, pois esta noite ela vai-se preparar
para te destruir. Ilude-a sendo cortês com ela até amanhã, e depois vem ter
comigo e eu digo-te o que fazer.»
Então o rei Badr despediu-se do ancião e regressou para junto da rainha,
encontrando-a à sua espera, e em ela o vendo levantou-se para o receber e
deu-lhe as boas-vindas. Comeram algo que lhes trouxeram e lavaram as
mãos. Em seguida trouxeram-lhes a bebida, e ficaram a beber até pela meia-
noite. Então, ela foi-lhe servindo copo atrás de copo, até que ele ficou
bêbedo e foi-se-lhe a razão. Em ela o vendo daquele modo, disse-lhe:
«Juras por Deus, pelo deus que tu adoras, que se fizer uma pergunta tu me
respondes sinceramente?» E ele disse-lhe: «Sim», pois fora-se-lhe o juízo e
não sabia o que dizia. Ela disse-lhe: «Senhor meu, luz dos meus olhos,
quando sentiste a minha falta e me não encontraste, não foste à minha
procura, chegando até ao jardim, e viste-me na forma de uma pássara
branca, e viste um pássaro negro que me montou, sendo que depois disso
me tornei como era antes?» Eu disse112: «Sim, fui.» Ela disse: «Pois fica
sabendo que aquele pássaro negro era um dos meus mamelucos. Eu amava-
o mas ele pôs os olhos em cima duma das criadas. Fiquei com ciúmes e
encantei-o tornando-o um pássaro. E quanto à rapariga, matei-a. Mas não
sou capaz de estar sem ele, e sempre que sinto saudades dele, torno-me uma
pássara e deixo-o possuir-me, tal como viste, e tu por mor disto ficaste
furioso e com ciúmes, mas pela virtude do fogo e da luz, o meu amor por ti
não podia ser maior.»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se.


267.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que a rainha disse ao rei Badr: «Mas
pela virtude do fogo e da luz, tu me amas e és o meu quinhão na vida.» E
em ele ouvindo as palavras dela, disse-lhe, estando bêbedo: «É isso mesmo
o que eu sinto.» Então, ela abraçou-o e beijou-o, fingindo que o amava, e
deitaram-se juntos. Lá pela meia-noite, ela levantou-se da cama, enquanto o
rei Badr estava acordado mas fingindo que dormia, com um dos olhos
aberto para ver o que ela fazia, e viu-a a tirar de um saco areia vermelha,
que espalhou no chão, e eis que apareceu um rio com águas correntes. Ela
pegou numa mancheia de grãos de cevada, verteu-os à banda do rio por
cima da terra, molhou-os com aquela água, e tornaram-se num campo de
espigas, que ela colheu e moeu, e que por sua vez se tornaram num doce de
cevada. Em seguida guardou-a, foi deitar-se à banda do rei Badr e dormiu
até de manhã.
Em a manhã amanhecendo, o rei Badr levantou-se, lavou a cara e pediu
licença à rainha para visitar o ancião. Ela deu-lhe licença e ele foi ter com o
ancião para lhe dar parte do que havia observado ela fazer. Em o ancião
ouvindo tal coisa, riu-se e disse: «Meu Deus, esta infiel está mesmo a ser
traiçoeira contigo, mas não te importes com ela.» Em seguida, sacou de um
arrátel de doce de cevada e disse-lhe: «Leva isto contigo e quando voltares
para ela e ela te vir com este doce de cevada, ela vai-te dizer: “Que vais
fazer com isso?” E tu dizes: “O bem em excesso é um bem”, e comes dele.
Quando ela te der do doce de cevada dela e te disser: “Come deste doce de
cevada”, tu dás-lhe a entender que o comes, mas comes antes deste aqui. Ai
de ti se comeres do doce de cevada dela, mesmo que seja um só dirame em
peso ou um grão, se o fizeres ela vai-te dominar com os seus poderes. E em
ela pensado que tu comeste do doce de cevada dela, vai tentar encantar-te
dizendo: “Sai desta forma humana e toma a forma” – a forma que ela
escolher. E ela consegue fazê-lo caso hajas comido do doce de cevada dela.
E caso não tenhas comido, não te importes com ela, pois o feitiço não
funcionará nem terá efeito algum sobre ti, o que a vai deixar embaraçada, e
então ela vai-te dizer: “Estava a brincar contigo!” e vai fingir que te ama
dando sinais de afecto, mas tudo o que provém dela é uma maldição. Então
vais-lhe dizer: “Senhora minha que és a luz dos meus olhos, come deste
doce de cevada”, e dás-lhe sinais fingindo que a amas. E quando ela comer,
nem que seja um só grão, pegas numa mancheia de água e atiras-lha à cara,
dizendo: “Sai dessa forma e toma a forma” – a forma que tu quiseres – e
deixa-la e vens ter comigo para eu cuidar do que te interessa.» Ao depois,
Badr despediu-se dele e foi para o palácio.
O rei Badr entrou nos aposentos da rainha e em ela o vendo, disse-lhe:
«Bem-vindo sejas», e levantou-se para o receber e beijar, e disse-lhe:
«Senhor meu, demoraste tanto!» E ele disse-lhe: «Estive com o meu tio que
me deu este doce de cevada para comer.» E ela disse-lhe: «Mas nós temos
um doce de cevada de melhor qualidade que esse.» E em seguida pôs o
doce de cevada dele num prato e o dela noutro prato, e disse-lhe: «Come
deste doce de cevada que é melhor que o teu.» Então ele fingiu que comia
dele. Ora, em a rainha pensando que ele havia comido, pegou numa
mancheia de água e atirou-lha à cara, dizendo-lhe: «Sai dessa forma, ó
canalha execrável, [e toma a forma de] um mulo abominável, coxo, estéril e
feio de se ver.» Mas ele não mudou. Em ela o vendo no mesmo estado, sem
se haver mudado, levantou-se para o beijar e disse-lhe: «Ó amado meu,
estava a brincar contigo para ver o que dizias!» E ele disse-lhe: «Meu Deus,
ó senhora minha, dês que me ames, nada em mim vai mudar.»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se.


268.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o rei Badr disse à rainha: «Dês que
me ames, nada em mim vai mudar no que toca ao que sinto por ti, pois
amo-te ainda mais do que tu me podes amar. Come deste meu doce de
cevada.» Então ela pegou num bocado e comeu-o. Em o bocado se
hospedando na barriga dela, ela estremeceu e o rei Badr pegou numa
mancheia de água e atirou-lha à cara, dizendo-lhe: «Sai dessa forma e toma
a forma de uma mula quatralva», e num ápice ela tornou-se uma mula
quatralva. Em olhando para si mesma, estando naquele estado, as lágrimas
começaram a escorrer-lhe cara abaixo e pôs-se a esfregar o focinho nos
cascos. O rei Badr tentou embridá-la, mas como ela não deixou, ele desistiu
e foi ter com o ancião, dando-lhe parte do que havia sucedido. Então, o
ancião sacou de umas bridas e disse-lhe: «Embrida-a com estas aqui, que
ela em as vendo submete-se logo e deixa-se embridar.» Ele pegou nas
bridas e foi ter com ela, e ela em o vendo acercou-se dele, e ele pôs-lhe as
bridas e cavalgou-a, saindo do palácio, e foi ter com o ancião, que em a
vendo, disse-lhe: «Vês o que Deus te fez? Que Ele te desgrace, maldita!»
Então, o ancião disse ao rei Badr: «Filho, já nada tens a fazer nesta terra.
Monta esta mula e vai para onde quiseres, mas ai de ti se entregares estas
bridas a alguém.»
O rapaz agradeceu-lhe, despediu-se dele e cavalgou por três dias, até dar
de vistas com uma cidade. Então um ancião de formoso cabelo grisalho
encontrou-o e perguntou-lhe: «Filho, donde vens?» E ele disse-lhe: «Da
Cidade dos Feiticeiros.» O ancião disse-lhe: «És meu convidado.» Ora,
enquanto conversavam, eis que uma anciã olhou para a mula, pôs-se a
chorar e disse: «Esta mula parece a mula que morreu e que era do meu
filho, deixando-me de coração destroçado. Por amor de Deus, ó rapaz,
vende-ma!» Ele disse-lhe: «Mãe, não a posso vender.» Ela disse-lhe: «Por
amor de Deus, não recuses o meu pedido, pois o meu filho morre de certeza
se eu não comprar esta mula», e insistiu no seu pedido. O rei Badr disse-
lhe: «Não a vendo a não ser por mil dinares.» Então ela disse-lhe: «Diz:
“Vendo-lha por mil dinares.”» Então o rei Badr disse para consigo: «Onde
haveria esta anciã de arranjar mil dinares? Vou vendê-la só para ver onde
arranja ela o dinheiro.» E disse-lhe: «Vendo-lha.» Então em anciã ouvindo
tal coisa, sacou mil dinares da sua cintura. Então em o rei Badr vendo o
oiro, disse-lhe: «Mãe, eu estava a brincar consigo, não a posso vender.»
Nisto, o ancião olha para ele disse-lhe: «Fica sabendo, filho, que nesta terra
ninguém mente a ninguém, pois aquele que o fizer é morto.» Então o rei
Badr desceu da mula…

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se.


269.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o rei Badr desceu da mula e


entregou-lha. Em ela a recebendo, tirou-lhe as bridas, pegou em água com a
mão e borrifou-a, dizendo-lhe: «Sai, filha, dessa forma e torna à tua forma
humana.» E num ápice ela retomou a sua forma original, e em ela a vendo,
abraçaram-se as duas uma à outra. Então o rei Badr percebeu que aquela
anciã era a mãe dela, que lhe havia montado uma artimanha, e quis fugir
mas não conseguiu. Em seguida, a anciã assobiou com força e nas suas
mãos formou-se um ifrite que era qual uma montanha [colossal]113. Então,
ela montou em cima do ifrite e pôs a filha atrás de si, enquanto o ifrite
pegou no rei Badr e pô-lo aos ombros, e voou com eles. Pouco tempo havia
passado e eis que estavam no palácio da rainha Lab, e em ela se sentando
no trono, olhou para o rei Badr e disse-lhe: «Ó canalha, aqui estás tu depois
de teres conseguido o que querias. Vou mostrar-te o que vou fazer a ti e a
este calamitoso velho vendedor de favas – e fui eu tão boa com ele e tão
mal ele me tratou! – e tu só conseguiste o que conseguiste com a sua
ajuda!»
Ao depois, pegou em água e borrifou-o, dizendo-lhe: «Sai dessa forma e
toma a forma do mais feio dos pássaros», e num ápice ele tornou-se um
pássaro feio de se ver. Então, ela pô-lo numa gaiola e privou-o de comida e
água, mas uma das criadas viu-o [, teve pena dele,]114 e deu-lhe de comer e
beber sem que a rainha o soubesse. Em seguida, a criada foi falar com o
vendedor de favas para lhe dar parte do que havia acontecido e de que a
intenção da rainha era aniquilar o seu sobrinho. Então, o ancião, ao saber de
tal coisa, pôs-se em guarda, reflectiu sobre o que havia de fazer com a
rainha, e disse de si para si: «Tenho de lhe tomar esta cidade.» Em seguida,
assobiou com força e apareceu um ifrite com quatro asas, a quem ele disse:
«Ó Barq115, leva esta rapariga que teve pena do rei Badr e lhe deu de
comida e água, e vai com ela até à cidade de Jullanar do Mar, que
juntamente com a sua mãe Faraxa são as maiores feiticeiras que há à face
da Terra, e dá-lhe parte de que o rei Badr é cativo da rainha Lab.» Então, o
ifrite transportou a rapariga pelos ares, e pouco tempo passou até a apear no
palácio da rainha Jullanar. Ela desceu da açoteia e foi ter com a rainha,
beijou o chão ante ela, e deu-lhe parte de tudo o que havia acontecido ao
seu filho de fio a pavio. Jullanar levantou-se, beijou-lhe o rosto e
agradeceu-lhe. Mandou que soassem os tambores que anunciam as boas
novas e deu parte à família de que Badr havia sido encontrado.
Ao depois, Jullanar, a sua mãe, Faraxa, e o seu irmão, Sayih, convocaram
todas as tribos de génios e exércitos do mar, visto que os reis dos génios
lhes obedeciam dês a captura do rei Xamândal. Ao depois, voaram pelos
ares, desaparecendo, até que aterraram na Cidade dos Feiticeiros, atacaram
o palácio e mataram todos os que estavam lá dentro, bem como os que
estavam na cidade, tudo num piscar de olhos. Então, Jullanar perguntou à
rapariga: «Onde está o meu filho?» E a rapariga foi buscar a gaiola e
entregou-lha, e Jullanar tirou-o do gaiola, pegou em água, borrifou-o e
disse: «Sai dessa forma e torna à tua forma humana pelo poder do Senhor
do Mundo.» E mal ela acabou de falar, eis que ele se transformou ‘na forma
de um homem em todos os aspectos’116. E em ela o vendo naquela que era a
sua forma, acercou-se dele e abraçou-o, pondo-se a chorar, e o mesmo fez o
seu tio Sayih, a sua avó Faraxa e as suas primas, e puseram-se a beijar-lhe
as mãos e pés. Em seguida, ela mandou chamar o ancião Abdallah,
vendedor de favas, e em ele comparecendo, agradeceu-lhe pelas belas
acções prestadas ao seu filho e casou o ancião com a rapariga que tinha ido
ter com ela.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se.


270.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o ancião se casou com a rapariga,


segundo o que havia Jullanar deliberado.
Ao depois, o rei Badr disse à sua mãe: «Mãe, nada mais resta que não
seja casar-me e nos unirmos todos.» Ela disse ao seu filho: «Filho, que
excelente ideia, mas temos de averiguar quem será digna de ti de entre as
filhas dos reis.» Então a sua avó Faraxa, o seu tio Sayih e as suas primas
disseram: «Ó rei Badr, nós neste momento empenhamo-nos em te satisfazer
em tudo o que queiras.» E em seguida cada um abalou país afora à procura,
e Jullanar do Mar enviou as criadas montadas nos ombros dos ifrites, e
disse-lhes: «Não deixeis cidade, província nem palácios reais sem que
vejais o que neles há de moças belas.» Em Badr vendo o que sua mãe
Jullanar fazia, disse-lhe: «Mãe, páre com isso. Não me agrada.»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se.


271.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o rei Badr disse a sua mãe
Jullanar: «Não me agrada senão a princesa Jauhara, filha de Xamândal,
porque ela é tal [o que significa] o seu nome, uma jóia117.» E a mãe disse-
lhe: «Filho, o teu desejo já está cumprido», e enviou de imediato quem lhe
fosse buscar o rei Xamândal, e num ápice trouxeram-no, e ele beijou o chão
ante ela. Então ela mandou que trouxessem o seu filho, o rei Badr, e que lhe
dessem parte de que o rei Xamândal havia chegado. O rei Badr veio, deu-
lhe as boas-vindas, e em lhe pedindo a filha em casamento, Xamândal
disse: «Ela é tua servente e está ao teu dispor.» Em seguida, o rei Xamândal
enviou um dos acólitos ao seu país, ordenando-lhe que trouxesse a sua filha
Jauhara e lhe desse parte de que ele estava com o rei Badr. O acólito voou
pelos ares e passado pouco tempo trouxeram a princesa Jauhara. Em ela
vendo o seu pai, acercou-se, abraçou-o e chorou, então ele olhou para ela e
disse-lhe: «Filhinha, fica sabendo que te casei com este rei munificente,
leão feroz e valente, o rei Badr, e ele é a melhor pessoa do seu tempo, o
mais belo e mais esplêndido, e ninguém é digno de ti senão ele, e ninguém é
digno dele senão tu.» E ela disse: «Pai, não me posso opor a si, faça o que
quiser.»
Então, trouxeram as testemunhas de lei, redigiram o contrato, fizeram
soar os tambores que anunciam as boas novas, libertaram os presos,
vestiram os órfãos e as viúvas, ofertaram trajes de honra aos dignitários do
reino e aos emires e deram banquetes, celebrando dia e noite as bodas por
espaço de dez dias e desvelaram a noiva ao rei Badr em sete vestidos
diferentes. Ao depois, ele consumou o casamento e em vendo que ela era
virgem ficou radiante, os seus olhos brilharam de felicidade e amaram-se
um ao outro enormemente. Então, o rei Badr ofertou um traje de honra ao
pai dela, o rei Xamândal, e enviou-o de volta ao seu país, dando-lhe
riquezas e fazendo-o feliz. E o rei Badr, com a sua rapariga, a sua mãe, a
sua família e os seus próximos continuaram comendo e bebendo vida afora,
até que lhes veio o destruidor dos prazeres e desmantelador de uniões. E
esta foi a história deles sem tirar nem pôr!

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Ó mana, que história


tão boa e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu:
«Isto nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima
noite. Se eu viver, será ainda mais espantoso, trata-se da história de um rei e
do seu filho Cámar-Azzamane e das coisas espantosas que lhes
aconteceram. Então o rei disse para consigo: «Meu Deus, não a matarei até
ouvir as coisas espantosas que lhes aconteceram, e depois mato-a, tal como
fiz com todas as outras.»
272.ª Noite

Na noite seguinte, Dinarzade disse à sua irmã Xerazade: «Ó mana, se não


estiveres a dormir, conta-nos um dos teus belos contos para entretermos a
noite.» Ao que o rei [Xariar] disse: «Que seja a história do rei e do seu filho
Cámar-Azzamane.» E Xerazade respondeu: «Com todo o prazer:»

História de Cámar-Azzamane e dos seus filhos Amjad e Açaad

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que havia um rei poderoso118 num país
distante, e tanto os nobres como o povo lhe obedeciam, e ele reinava sobre
as províncias d’aquém e d’além, e às suas ordens havia tantos cavaleiros
que nenhum número retém, e Deus abençoou-o com um filho no fim da
vida, a que ele chamou Cámar-Azzamane devido à sua beleza e formosura.
Quando este cresceu e atingiu a idade de ser homem, era formoso como o
galho do salgueiro; com a sua beleza qualquer coração encantava e com a
sua perfeição qualquer alma cativava, a sua imagem de traços perfeitos se
compunha e a sua formosura era da mais excelsa que se testemunha, e era
do seu rosto que as gazelas haviam roubado os olhos e o pescoço, pois ele
era tal como um poeta o descreveu numa poesia:

Quem usou o kohl119 dos seus olhos como feitiço


E das suas faces o cor-de-rosa colheu?
Quem cobriu a noite com o negro do seu cabelo
E com a luz da sua testa as trevas amanheceu?
Eis o príncipe da formosura e quem lhe desobedecer
Fará com que provem a sua cólera bem armado.
Juro pela sua vida e por ela juro,
Juro por quanto ele me é querido e estimado:
Tudo o que é formoso graças a ele se faz nobreza,
Pois se algo dele provém e lhe é inerente é a beleza;
Tal como se uma gazela num espelho pegasse
E a sua beleza no espelho do espelho se tornasse.

Cámar-Azzamane, que já lia em pequeno, compreendeu, aprendeu e


estudou as ciências, os anais, as crónicas dos reis, as poesias dos árabes, e
era formoso quando lia, escrevia ou declamava poesia. Em atingindo a
idade de ser homem, uma barba juvenil floresceu-lhe nas faces rosadas, e
havia numa das suas bochechas um sinal qual disco de âmbar-gris, que era
tal como o poeta disse numa poesia:

Eis um esbelto jovem de cabelo cuja beleza


Todos os mortais cativa, na luz e na treva.
E não censures o sinal na sua bochecha,
Também a anémona tem negra mancha.

O seu pai amava-o muito e não se separava dele fosse de noite ou de dia.
Então, queixou-se a um dos vizires de quanto amava o seu filho e do
excesso da sua beleza, e disse: «Receio que o meu filho seja tocado pelos
infortúnios da sina e adversidades da vida; quero fazê-lo rei enquanto for
vivo.» O vizir disse-lhe: «Fique sabendo, ó rei bem-aventurado e senhor de
discernimento acertado, que antes de fazer do seu filho rei, deve casá-lo, e
só depois o entronar.» O rei disse: «Que o tragam, ao meu filho Cámar-
Azzamane.» Este compareceu, o chão beijou e cabisbaixo ficou. Então, o
pai disse-lhe: «Cámar-Azzamane, filho meu, quero casar-te para me fazeres
feliz.»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se.


273.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o jovem, em ouvindo as palavras


do pai, baixou a cabeça após ter ficado corado de vergonha e encharcado
em suor, e disse: «Ó rei dos tempos, não tenho qualquer desejo de me casar
nem me sinto inclinado para as mulheres, pois já ouvi muitos relatos [sobre
a sua matreirice e]120 a amargura que elas causam; é tal como diz o poeta
numa poesia:

Se sobre as mulheres me perguntardes,


Nas suas pragas sou um médico especialista.
Se homem perde fortuna ou grisalho tem à vista,
Não mais elas o amarão em eternas tardes.

»Isso de me casar jamais o farei, mesmo que tenha de beber do copo do


perecimento.» O rei ficou triste e em grande aflição com a desobediência do
filho na questão do casamento, mas pelo amor que lhe tinha não insistiu,
enquanto Cámar-Azzamane a cada dia que passava se ia tornando mais belo
e formoso, deixando qualquer um atónito e abrasado. O rei esperou um ano,
durante o qual a eloquência do seu filho tornou-se perfeita e todo o mundo
ficava desenvergonhadamente arrebatado por ele, pois ele era uma tentação
para amantes, um jardim procurado por corações chamejantes, de doce falar
[e rosto tão belo]121 que envergonhava a própria lua cheia, gingando
galantemente qual galho de salgueiro ou vara de bambu, e as suas faces
eram a representação pura e dura das rosas e das anémonas, e as suas
feições eram formosas, tal como disse o poeta:

Ao aparecer, disseram: «Que seja abençoado!


Glória a Deus por criatura tão única ter moldado!»

Ele e mais ninguém é o Anjo da Formosura,


Não há súbdito seu que lhe não seja fiel.
Da sua boca não escorre saliva, mas doce mel,
E dentes não tem, mas pérolas de candura.

Ninguém compete com a sua beleza,


E todos se lhe rendem à delicadeza,
Como se estivesse escrito nas faces dele:
«Testemunho que não há ninguém belo senão ele.»122

Em se completando mais um ano, o rei convocou-o à sua presença e


disse-lhe: «Filho, vais ouvir o que vou dizer?» Cámar-Azzamane beijou o
chão no qual se prostrou, e disse: «Valha-me Deus, ó rei dos tempos, o que
quer que seja que me ordene eu não lhe desobedecerei.» O rei disse-lhe:
«Filho, quero que te cases para me fazeres feliz e para eu te fazer rei
enquanto for vivo.» Em Cámar-Azzamane ouvindo as palavras do pai,
baixou a cabeça. Ao depois ergueu-a e disse: «Ó rei dos tempos, por amor
de Deus, isso é algo que jamais farei, porque eu li os mais avançados livros
sobre os infortúnios e as calamidades que acontecem às criaturas por causa
das mulheres, e um deles diz estes versos:

Ei-las:
Unhas envernizando,
Tranças pintando,
Homens rebaixando,
Agonias causando.

— Poderás numa alcofa água carregar


Ou com rede um relâmpago pescar?»

Ora, o pai nada lhe respondeu e deu o conselho por encerrado, continuou
a tratá-lo cada vez com mais gentileza, e mais tarde convocou o vizir.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite,
se o rei me poupar e eu viver.»
274.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o rei, em o vizir comparecendo,


disse-lhe: «O que fazer com o meu filho, diz-me. Foste tu que me
aconselhaste que o casasse, mas ele desobedeceu-me. Que me aconselhas a
fazer?» O vizir disse: «Ó rei, espere mais um terceiro ano e diga-lhe que
tem um assunto privado entre si e ele, mas em vez disso reúna todos os
dignitários do reino e fale-lhe diante eles para que ele se envergonhe e não
se lhe oponha, assim conseguirá atingir o seu objectivo.» O rei ficou
radiante, ofertou um traje de honra ao vizir e esperou um ano, enquanto
Cámar-Azzamane se ia tornando ainda mais belo e formoso, até ter quase
vinte anos de idade, e estar cada vez ainda mais belo, pois ele era tal como
alguém o descreveu ao dizer estes versos:

Juro pelo côncavo das suas pálpebras marcantes;


Pelos seus olhos que flechas mágicas lançam;
Pelo seu macio corpo e olhares acutilantes;
Pela sua branca testa e o negro cabelo;
Pelas suas pestanas que o meu sono vedam
E à sua poderosa vontade me sujeitam;
Por seus caracóis que lacraus lembram,
Velando para matar os amantes pela rejeição;
Pela barba qual murta na rosada face;
Pelos seus lábios de cornalina e dentes de pérola;
Pela fragrância do seu hálito e a saliva refrescante,
Cuja doçura lembra o mel e o vinho vibrante;

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana, e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu:
«Isto nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima
noite, se o rei me poupar e eu viver.»
275.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que decorridos três anos, havendo já


Cámar-Azzamane passado os vinte, e havendo já ele atingido a perfeição
em termos de beleza e formosura, o rei esperou até ao dia em que estivesse
em função para que fosse organizada uma audiência com os emires, os
vizires, os delegados, os dignitários do reino e os oficiais da guarda, e
mandou chamar o seu filho, tal como lhe havia sugerido o vizir. Então veio
Cámar-Azzamane, beijou o chão, e disse-lhe o rei: «Filho, fica sabendo que
se te mandei chamar após tanto tempo, e na presença deste conselho
superior dos emires, foi para te dizer – e não te me oponhas! – que
recomendo que te cases, pois eu gostaria que te casasses para me fazeres
feliz antes de eu morrer.»
Em Cámar-Azzamane ouvindo as palavras do pai, baixou a cabeça e
ficou furioso. Quando levantou a cabeça, tomado pela loucura da juventude,
disse: «Não! Não me casarei! Não e não, não me casarei! O pai é um velho
com muitos anos e pouca razão. Não me pediu já por duas vezes – e vamos
agora na terceira – que me case e não respondi eu que não?» Ao depois,
repudiou o pai e amaldiçoou-o na sua fúria e insolência ante os emires e
vizires. Isso foi muito duro para o rei, que ficou embaraçado e
envergonhado ante quem estava presente. Então gritou com o filho e
mandou que os mamelucos, que estavam ali mesmo, o prendessem e lhe
atassem as mãos atrás das costas. Assim o fizeram eles, assim o
apresentaram ante o rei, estando Cámar-Azzamane de cabeça baixa e com o
rosto e a testa encharcados em suor. Então o pai amaldiçoou-o e disse-lhe:
«Ai de ti! É esta a resposta que alguém como tu dá a alguém como eu ante o
meu exército? Mas tu, quem te terá educado? Mesmo que um plebeu assim
respondesse seria uma afronta!» Em seguida mandou que o desatassem mas
que numa das torres o encarcerassem.
Então os mamelucos pegaram nele e levaram-no para uma torre quase tão
antiga como a eternidade, e puseram-no num quarto em ruínas no meio do
qual havia um poço romano. E vieram os criados da limpeza, varreram o
quarto limpando o chão de pedra, montaram uma cama na qual puseram um
colchão delgado, uma esteira de coiro e uma almofada, e deram-lhe uma
lanterna grande e uma vela, porque o lugar era escuro, e deixaram Cámar-
Azzamane naquele sítio, havendo incumbido um eunuco de ficar à porta
para o vigiar. Então, Cámar-Azzamane deitou-se na cama, de alma e
coração partidos, repreendendo-se a si mesmo e à forma como havia tratado
o pai, dizendo de si para si em lamento: «Maldito seja o casamento! Quem
me dera meu pai ter ouvido.»
E assim se passou com Cámar-Azzamane. Já no que toca ao rei,
continuou a sessão até ao poente, e quando o exército dispensou, foi para os
seus aposentos onde se reuniu com o vizir e lhe disse: «Ouve: tu foste a
causa disto e do que aconteceu entre mim e o meu filho.» E disse o vizir:
«Ó rei, deixe-o agora durante quinze dias e ao depois traga-o à sua presença
e vai ver que ele não se lhe oporá mais.»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se.


276.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o rei se separou do vizir e foi


dormir naquela noite com a alma inquieta pensando no seu filho, porque o
amava e dormiam sempre abraçados, e por isso passou aquela noite
virando-se dum lado para o outro sem conseguir dormir, e à medida que a
noite ia passando ele só pensava no seu filho Cámar-Azzamane. Então pôs-
se a declamar uma poesia dizendo estes versos:

Longa noite minha, mas dormem os caluniadores.


Basta deste coração pela separação se penando.
Pergunto, já bem longa vai esta noite de dores:
«Ó tu, luz da manhã, regressarás quando?»

E assim passou o rei a noite. Já no que toca à noite de Cámar-Azzamane,


em lhe vindo a noite o eunuco acendeu-lhe a lanterna e a vela grande, que
pôs num candelabro, e entregou-lhas, assim como lhe trouxe algo para
comer, e Cámar-Azzamane sentou-se a comer, enquanto pensava com a
alma em desassossego, repreendendo-se pelos maus modos com que havia
tratado seu pai, e por isso pouco comeu e disse para consigo: «Não sabes tu
que o ser humano é refém da sua língua e que é ela que o faz perigar?» E
em lhe vindo ao pensamento tal coisa, correram-lhe as lágrimas olhos
abaixo, e pôs-se a declamar estes versos:
Um deslize de língua basta para que faleça
Mas não morre o moço se o pé lhe deslizar;
Pois o deslize da boca leva-lhe a cabeça
E o dos pés a pouco e pouco se vai curar.

Ao depois, querendo ele lavar as mãos, o eunuco trouxe-lhe uma bilha e


uma bacia, e ele lavou as mãos, fez as abluções para as orações do poente e
do crepúsculo, sentando-se em seguida para recitar um pouco do Alcorão e
fazer ainda umas preces. Foi para a cama, cobrindo-se com um lençol,
deixando a lanterna aos pés e a vela à cabeça, e dormiu o primeiro terço da
noite, mal sabendo o que o esperava, pois quis o destino que naquela torre
antiga, há muitos anos abandonada, houvesse no meio daquele quarto um
poço romano, e que o poço fosse habitado e logo por uma génia que
descendia do maldito Diabo e que dava pelo nome de Maimuna, filha de
Dimiriate, um dos reis dos génios.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se.


277.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que ele estava dormindo no primeiro


terço da noite e eis que a ifrita123 Maimuna saiu do poço em direcção ao céu
para tentar escutar às escondidas [os anjos]124, e em saindo do poço viu luz
na torre e a claridade de uma vela, o que não era habitual, e como ela
habitava aquele lugar há muitos anos e jamais tinha lá visto tal coisa, ficou
surpreendida, então dirigiu-se à luz que havia visto de fora do quarto, e ao
entrar encontrou um eunuco dormindo, e viu uma cama onde estava um
homem também dormindo, uma vela e um candeeiro. Aproximou-se pouco
a pouco, deteve-se por cima da cama, e ao descobrir o lençol para lhe ver o
rosto, ficou atónita com a sua beleza, e ao iluminá-lo com a luz da vela, o
esplendor, a beleza e a resplandecência da sua testa reluziram e o aroma do
seu almíscar espalhou-se, é que ele era tal como disse o poeta que o
descreveu com estes versos:

Os dentes são pérolas, a face é uma rosa,


A fragrância é almíscar, e a saliva a vinho sabe;
O corpo é um galho e a anca uma duna suave,
O cabelo é a noite, e a cara a aurora vistosa.

Em a ifrita Maimuna o vendo, deu glória ao Criador e à Sua grandeza e


disse: «‘Bendito seja Deus, o Melhor dos criadores’125.» Ao depois, deteve-
se um tempo a olhar para o seu rosto, invejando a sua beleza e dizendo para
consigo: «Meu Deus! É mesmo bonito! Como pode a sua família ser tão
negligente ao ponto de o porem a dormir neste lugar inóspito em ruínas? Se
lhe aparecer algum dos nossos monstruosos demónios, destrói-o!» A ifrita
baixou a cabeça para lhe dar um beijo na testa, cobriu-o com o lençol, abriu
as asas e voou em direcção ao céu.
Estando ela a subir, perto do tecto do mundo terrestre, ouviu o som de
umas asas a bater no ar, para o qual se dirigiu, e ao acercar-se viu um génio
descrente que dava pelo nome de Dahnaxe, filho de Xamhúraxe, juiz dos
génios. E em o vendo, reconheceu quem era e mergulhou pelo ar para o
atacar, e Dahnaxe, ao dar por ela, soube logo que era a filha do rei dos
génios, e teve medo, tremeu e implorou-lhe, dizendo: «Conjuro-te pelo
Grandiosíssimo Nome para que me trates bem e não me faças mal tal como
jamais te fiz qualquer maldade.» Em Maimuna o ouvindo, teve pena dele,
conteve-se e disse: «Conjuraste-me com um conjuro poderoso, mas aonde
vais e donde vens a esta hora?» Dahnaxe disse: «Senhora minha, venho dos
céus de Qajqar da China e dos céus das Ilhas [do Interior]126, e dou-te parte
de uma maravilha por mim avistada esta noite. Se ta disser e vires que é
verídica, libertas-me e escreves-me uma carta com o teu punho para que
nenhum dos reis dos génios aéreos e terrestres seja contra mim?» E ela
disse: «Sim, mas se tu, ó maldito, me mentires para te escapares, juro pela
inscrição feita na gema do anel de Salomão, filho de David, se não for
verdade o que dizes, que quebro as tuas asas, rasgo a tua pele, espalho a tua
carne aos quatro ventos e parto-te os ossos.» E Dahnaxe disse: «Assim seja
feito, minha senhora.»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se.


278.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o génio Dahnaxe disse à génia:


«Fica sabendo que esta noite passei pelas Ilhas do Interior, que são o país do
rei Ghaiur, que reina sobre ilhas e mares. Ora, este rei tem uma filha e Deus
não criou em toda esta era ninguém mais belo do que ela, e por isso não ta
consigo descrever, pois a minha língua, bem como a dos meus semelhantes,
entrava-se-me quando a tento descrever, pois o seu cabelo é qual as caudas
entrelaçadas dos cavalos e quando o solta quais cachos de uva pela chuva
perfumados, e por baixo tem uma testa qual espelho polido, brilhando com
o esplendor de uma moça velida, e por baixo uns olhos de gazela
indomável, cujo branco é como a brancura da aurora e cujo negro é como a
negrura da penumbra do crepúsculo, e entre os olhos um nariz qual o fio de
uma espada lustrada, nem grande nem pequeno, acompanhando maçãs do
rosto púrpuras circundadas por uma alvura que era qual a do palmito, e uma
boca que era tal o cabeçote da romã com dentes alinhados tais pérolas, onde
se movia uma língua doce e eloquente, movida por uma inteligência
abundante e uma perspicácia bem-falante, lábios127 cremosos como o suco
da flor de romãzeira e saliva em estado meloso, um tenro pescoço de pele
fina cuja alvura lembra o pescoço de uma bilha de espelhante prata
vertendo-se no peito128. E ai que pescoço e que peito! Uma tentação para
quem os vê! Ligando-se aos braços redondos e suaves, puros como as
pérolas e os corais, tenros sem marcas de articulações, com mãos e dedos
qual prata com oiro por dentro, e seios tais jarras de marfim que iluminam a
noite velada, e um ventre tal linho fino e branco cujas dobras lembram
escadas de rolos de tecidos, culminando numa cintura estreita quase
inimaginável [tal a sua estreiteza sem semelh]ante129, que assenta nuns
quadris que a forçam a se sentar quando se levanta e a acordam quando ao
sono se lança, transportados por coxas redondas e suaves, e pernas
desbastadas de vegetação, e tudo isto é transportado por pés gentis, cujas
bordas são afiadas como as pontas das lanças – e como será possível que
transportem o que está por cima deles? Mas quanto ao que está por detrás
disso…»
Depois do ifrite fazer esta descrição a Maimuna, [mais disse:] «Esta
moça aqui, o seu pai é um rei poderoso e um cavaleiro impetuoso, sem
receio da morte nem medo do mais forte, opressor tirano e desumano,
senhor de exércitos, soldados, províncias, ilhas, cidades e vilas, que dá pelo
nome de Ghaiur. E ele ama esta filha – que eu já descrevi – e tal é o seu
amor por ela que lhe construiu sete palácios, cada um diferente do outro, e
todos eles os mobilou com seda, loiça, oiro, prata, utensílios e tudo o que
fizesse falta, e pôs a sua filha habitando cada um por espaço de um mês, ao
fim do qual ela se muda para outro. E em se alastrando os relatos da sua
beleza até aos confins do país, os reis puseram-se a pedi-la em casamento
ao pai, mas sempre que ela era consultada, mostrava aversão e dizia: “Não
tenho qualquer interesse em me casar. Eu sou uma princesa soberana e não
quero homem algum a mandar em mim.”
»Então, como os reis das Ilhas despachavam para o pai dela presentes,
relíquias e dinheiro, e se correspondiam com ele para a pedirem em
casamento, ele insistiu com ela na questão do casamento, mas ela opôs-se-
lhe e repudiou o que o pai dizia de forma insultuosa, dizendo: “Se o pai
tornar a falar em casamento, pego numa espada, ponho-a no meu coração e
deixo-me cair até ela sair pelas costas para morrer em descanso, fazendo-o
sofrer com a minha morte!” O pai ficou com o coração em fogo por mor
dela, perplexo com a sua atitude e atrapalhado com a resposta a dar aos reis,
e disse para de si para si: “Se assim é, vou-lhe restringir os movimentos e
escondê-la numa casa em clausura.” Assim o disse, assim o fez; incumbiu
dez anciãs de a vigiarem e proibiu-a de ir para os palácios, fingindo estar
furibundo com ela, e escreveu aos reis dizendo: “Ela enlouqueceu e perdeu
a razão, estando eu a fazer todos os esforços para a curar, e em ela se
restabelecendo irei casá-la com quem seja adequado.” Faz agora um ano
que ela está em clausura e eu todas as noites vou vê-la para contemplar a
sua beleza e formosura. Pareça-te a ti verdade ou mentira, faz como queiras,
perdoa-me ou mata-me.»
Ao depois, ele baixou a cabeça e resguardou as asas. Então, Maimuna
riu-se com escárnio, cuspiu-lhe na cara e disse-lhe: «Mas tu deste-te ao
trabalho de fazer esta descrição, a de um penico de mijo130? Ai, ai, valha-
me Deus, e eu que esperava de ti uma notícia de jeito! Se tu visses o amado
do meu coração, o meu querido, aquele que vi esta esta noite, até te babavas
paralisado de espanto!» E disse-lhe Dahnaxe: «Dona Maimuna, é verdade o
que contas sobre esse moço formoso?» E disse-lhe ela: «Fica sabendo,
Dahnaxe, que lhe aconteceu tal e qual o que aconteceu à tua amada; por
excesso de beleza e formosura, o pai dele ordenou-lhe inúmeras vezes que
se casasse, mas ele não queria, então o pai ficou furioso com ele e
encarcerou-o na torre onde eu vivo. E foi esta noite, em saindo do aljube,
que o vi.» Então Dahnaxe disse: «Pelo amor de Deus, mostra-mo para que
eu veja e o compare com a minha amada, e assim digo-te qual dos dois é
mais belo, apesar de te dizer já que não existe ninguém nesta era mais belo
que a minha amada.» E disse-lhe Maimuna: «Mentes, ó maldito! Havia lá
de haver alguém que se igualasse ao meu amado!»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa,
ó mana, e tão estranha», disse Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada
é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite. Se o
rei me poupar e eu viver, será ainda mais espantoso, estranho e belo.»
279.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que Maimuna disse a Dahnaxe: «Ai de


ti, ó louco, a comparar o meu amador à tua amada!» E disse Dahnaxe:
«Minha senhora, vem comigo para veres a minha amada e eu irei contigo
para ver o teu amado.» Ela disse: «Maldito sejas, tem mesmo de ser?» E ele
disse: «Sim, tem.» Então ela disse: «Mas não vou contigo nem tu comigo
senão com uma condição e uma premissa, se a tua amada for mais bela que
o meu amado, tu ganhas, e vice-versa se o meu amado for mais belo.» E
Dahnaxe disse-lhe: «Aceito, vem comigo até aos céus das Ilhas.» Mas ela
disse-lhe: «Não, porque o local do meu amado é próximo. Vem tu comigo
vê-lo e depois disso vamos à tua amada.» E Dahnaxe disse: «Às tuas
ordens.»
Então o ifrite e a ifrita voltaram para baixo, descendo pela torre e
entraram no quarto. Maimuna levou Dahnaxe até à banda da cama, estendeu
o braço e descobriu o lençol que tapava o rosto dele, e este brilhou e
resplandeceu de luz. Ela olhou para ele, depois virou-se para Dahnaxe e
disse-lhe: «Vê, ó teimoso, e não sejas presunçoso.» Então, Dahnaxe olhou
um tempo para Cámar-Azzamane, abanou a cabeça e disse: «‘Bendito seja
Deus, o Melhor dos criadores.’131 Minha senhora, estás desculpada, mas o
encanto das mulheres é diferente do dos homens, e pela virtude da minha fé,
ele assemelha-se tanto à minha amada, que os dois só podem ser irmãos em
beleza!» Maimuna ficou furibunda, pregou-lhe uma bofetada e disse: «Juro
pela luz da beleza sublime que se não fores agora mesmo buscar a puta da
tua galdéria e trazê-la para aqui para juntarmos os dois e pô-los a dormir à
banda um do outro, para discriminar o belo do feio… se o não fizeres vou-
te incendiar com o meu fogo e lançar-te as minhas fagulhas.» Então
Dahnaxe disse: «Como queiras, valha-me Deus, a minha amada é mais bela
e encantadora.»
Em seguida, ele voou, escoltado por Maimuna, e carregaram a moça, que
vestia uma requintada camisa veneziana, com brocados marroquinos em
oiro, um cinto egípcio a meio do seu longo cabelo, e nas mangas estavam
escritos estes versos:

O coração do amador por amar se extenua


E o corpo com suspiros de paixão é devastado.
Àquele que perguntou: «Como sabe o amor?»
Eu respondi: «É doçura mas com tortura.»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se.


280.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o ifrite e a ifrita desceram com a


moça e puseram-na a dormir à banda de Cámar-Azzamane, e descobriram-
lhes os rostos que eram quais luas cheias, e ambos por se assemelharem
tanto um ao outro era como se fossem irmãos, tal como disse o poeta que os
descreveu quando disse estes versos:

Vi na Terra dois adormecidos, com estes olhos os olhei,


E que pelas minhas pálpebras dormissem desejei.
São o meu sol nascente,
O brilhante crescente,
Lua guiando à justeza,
Galho puro sem amálgama,
Gazela na sáfara em azáfama.
Eis o meu ídolo: a Beleza.

Enquanto olhavam para ambos, Dahnaxe disse: «Ora bem, valha-me


Deus se a minha amada não é mais bela!» Maimuna ficou furiosa e disse:
«Ai de ti, estás a mentir! O meu amado é que é mais belo!» E mais disse:
«Ai de ti, só podes ser cego, então não vês a sua beleza e lindeza, o seu
corpo gracioso e harmonioso? Arre! ouve o que eu vou dizer, e se fores um
amador leal, então repete o que eu digo!» Ao depois, inclinou-se sobre
Cámar-Azzamane, beijou-o e pôs-se a declamar dizendo estes versos:
O que sinto por ti os censores enfureceu.
Mas como te esqueceria, ó delgado galho?
Dores febris sente quem ao amor se submeteu;
Se tremor lhe varre o corpo, foi o teu olhado.
Alguém que não eu, rápido te esqueceria,
Beleza só a entende meu coração em apuros.
Teus negros olhos enfeitiçam com magia
E deles não escapam os amantes puros.
Às entranhas fazem teus olhos turcos
O que nem uma espada afiada faria.

Ó quebrador da promessa de união amorosa:


Não quebras as promessas de me rejeitar?
O fardo da paixão carrego eu de guisa penosa;
Tanto murcho que nem camisa consigo carregar.
Sabes o quanto sofro por ti, é genuíno, qualquer um diria,
E amar outra alma não seria senão impostura.
Se meu coração fosse duro como o teu, jamais dormiria
Meu corpo tão magro quanto a tua cintura.

Maldito seja ele, qual Lua da beleza entre humanos;


Tudo nele é formoso e se elogia.
Diz o censor: «Mas por quem sofres tantos danos?»
E eu digo: «Por quem me emacia!»

Ó coração duro! sê suave tal teu corpo,


Tem misericórdia de mim e não sejas bruto!
Ó meu príncipe da formosura, eu te exorto,
Tens um guarda implacável e um camarista injusto,
Mas pega na minha mão! que teu corpo páre de me abandonar
Para o meu lamento não ouvir, com aversão tão invulgar.
Ainda tenho esperanças de que me dês atenção
E talvez assim me liberte desta opressão.
Quem afirma que José132 todas as belezas possui, mente,
Pois ele tem só uma fracção da tuas certamente.

Os génios, quando os encontro, de mim têm medo,


Mas se meu coração te encontra, estremece de repente.
Ó negro cabelo descaindo pela testa resplandecente!
Ó negros olhos! Ó esbelto por quem me excedo!

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se.


281.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que a ifrita, em declamando esta


poesia, deixou o ifrite comovido, e este abanou a cabeça e disse: «Meu
Deus, não te poupaste ao declamar sobre quem amas! Já no que me toca, o
meu coração está partido, mas vou esforçar-me da melhor maneira para
exprimir o que sinto.» Em seguida, inclinou-se sobre a moça, beijou-a e
pôs-se a declamar estes versos:

Duramente me censuram por amar dama tão bela.


Tão injustos com sua injustiça me julgando,
Pois tão esplêndida é esta esbelta gazela
Qual galho delicadamente gingando.

Dá esperanças de aproximação ao teu amador,


Se o continuas a repelir fugindo, por morrer vai acabar.
Teu coração não se compadece com lágrimas de dor,
E meu olhos, pela tua partida, ferem-se de tanto chorar.
Tanto chorei, que com dó disse quem me censura:
«De seus olhos sangue verterá de tanta amargura.»
O que me espanta não é amar-te, o que me espanta
É como meu corpo, após partires, não se desfigura.
Privado da nossa união, meu coração se entediaria,
E se outra eu quisesse amar, seria uma impostura!
Maimuna disse: «Bem dito e nada a menos, mas afinal qual é o mais
belo?» E ele disse: «É a minha amada.» E disse ela: «Mentiroso! O meu
amado é que é o mais belo!» Ele disse: «Não e não!» E correu entre eles
uma discussão culminando em violenta altercação, com Mainuna aos gritos
com Dahnaxe, querendo amassá-lo. Mas ele pôs-se-lhe a falar com
meiguice e disse: «Minha senhora, custa-te ver a verdade, que não é com a
minha opinião ou a tua que vamos a lado algum, pois cada um de nós
afirma seguramente que o seu partido é o melhor! Mas eu gostaria de contar
com alguém que arbitrasse entre nós e cuja opinião teríamos de acatar.» Ela
disse: «De acordo.»
Então, ela bateu com a mão no chão, e do chão se ergueu um génio
corcunda e com um só olho que era uma fenda no rosto ao comprido, com
sete cornos na cabeça, quatro tranças descaindo até aos tornozelos, com
mãos iguais às dos mochos, garras como as dos leões, pernas como as de
um ghul133, e cascos como o dos burros, e ele beijou o chão, pôs as mãos
atrás das costas e disse: «Minha senhora, filha do rei, de que precisas?»
Maimuna pô-lo a par do caso e disse-lhe: «Olha para ambos.» Caxecaxe
observou o rosto dos dois – do moço e da moça – e viu que estavam
abraçados, dormindo profundamente, com o pulso de um debaixo do
pescoço de outro, e a mão de um debaixo do sovaco do outro, e como
estavam abraçados via-se que em beleza se assemelhavam em tudo um ao
outro. Caxecaxe ficou espantado com o que via, virou-se para Maimuna e
Dahnaxe, e declamou estes versos:

Vai com quem realmente amas


E os discursos dos censores ignora.
No amor, nunca ajuda o invejoso.

Poderá mais bela vista criar o Misericordioso


Que dois amantes na mesma cama,
Abraçados e só o manto do prazer vestindo?

Nos braços um do outro investindo,134


Quando os corações pelo amor se unem,
A conversa dos outros torna-se fria e trivial.
Se na vida alguém o amor te dedica,
Não o deixes, que é dom bem raro.

E tu, que aos amantes condenas o amor,


Saberás curar um coração cheio de rancor?

Ao depois, disse-lhes: «Nenhum deles é mais que o outro ou menos; eles


são iguais em beleza e lindeza. Mas há mais uma coisa que podemos fazer;
vamos acordar cada um deles sem o outro saber, e aquele que ficar mais
inflamado e incendiado com o seu companheiro, então esse será inferior ao
outro em beleza.» Maimuna disse: «De acordo.» Dahnaxe disse: «De
acordo.» E Caxecaxe disse para Maimuna: «Acorda tu primeiro o teu
amigo.» Então ela tornou-se numa pulga para o picar.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se.


282.ª Noite

Na noite seguinte, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem aventurado, que em Maimuna picando Cámar-


Azzamane no pescoço, e este estendeu a mão devido ao ardor da picada,
virou os olhos e viu à sua banda uma alma, e a sua mão poisou no coração
de alguém que era mais tenro que manteiga fresca. Então, abriu os olhos e
viu à sua banda135 uma alma dormindo ao comprido. Ele ficou espantado e
completamente despertou do seu sono, sentando-se com os pés fora da
cama. Pôs-se a olhar para ela e apercebeu-se que era uma moça, uma
autêntica noiva qual pérola resplandecente, o Sol brilhante ou a cúpula
imponente. Em a vendo, e em vendo quão bela era, a dormir à sua banda,
vestindo uma camisa veneziana e sem calças, Deus Todo-Poderoso
inflamou-lhe o coração fazendo-o dizer: «Deus é bom, amada minha.» Ao
depois, virou-a e abriu-lhe o colarinho da camisa, e vendo o seu peito e
seios, o amor que sentia cresceu ainda mais. Pôs-se então a acordá-la, mas
os génios fizeram o seu sono ficar pesado e puseram-se na cabeça dela, não
a deixando acordar, enquanto Cámar-Azzamane continuava a sacudi-la e a
dizer-lhe: «Sou Cámar-Azzamane», mas ela não ergueu a cabeça. Ele pôs-
se a pensar um tempo sobre ela e disse de si para si: «Se a minha suposição
estiver certa, esta é a moça com quem o meu pai me quer casar, e vai para
três anos que ele me anda a pedir que o faça, enquanto eu lhe respondo
arrogantemente. Valha-me Deus, em amanhecendo vou-lhe dizer: “Case-a
comigo”, e não deixo o dia acabar sem me casar com ela para usufruir da
sua beleza.»
Ao depois, inclinou-se para a beijar, deixando Maimuna a tremer e
Dahnaxe radiante. Quando Cámar-Azzamane estava prestes a beijá-la na
boca, recuou e disse: «Devo ser paciente, pois talvez o meu pai, quando lhe
desobedeci e ele se enfureceu comigo encarcerando-me neste sítio, tenha
esperado que eu adormecesse e trazido esta moça, pondo-a a dormir à
minha banda, e dando-lhe indicações para não acordar caso eu a tentasse
despertar e disse-lhe: “Dá-me parte de tudo o que ele te fizer.” O meu pai é
bem capaz de estar escondido algures a ver o que estou a fazer com ela,
para depois me pregar um raspanete e me dizer: “Ai de ti! Dizes-me que
não tens qualquer desejo em te casares. Mas então como te revirastes e te
puseste aos beijos?” Assim, ele vai descobrir-me, por isso, valha-me Deus,
não a vou beijar nem me pôr a observá-la, vou só tirar-lhe uma recordação
que sirva como testemunho.» Então, pegou na mão dela e tirou-lhe do dedo
mindinho um anel em oiro com uma gema preciosa e colocou-o na sua
própria mão, e sacou de um anel seu e colocou-o num dos dedos dela. Em
seguida, virou-se de costas para ela e adormeceu.
Nisto, Maimuna disse a Caxecaxe e a Dahnaxe: «Haveis visto o meu
amado? Não se tomou de atrevimentos com ela nem a beijou, virando antes
as costas e adormecendo, foi ou não foi?» E eles disseram: «Sim, foi.» Em
seguida, Dahnaxe tornou-se numa pulga, e entrando por baixo das roupas
delas, picou-a inflamando-lhe o espírito, e ela abriu os olhos e sentou-se
com os pés fora da cama, dando com um jovem à sua banda que respirava
profundamente no seu sono, com olhos e sobrancelhas que nenhuma mulher
possuía iguais, nariz e barbela macios, uma boca pequena, lábios finos e
faces quais maçãs, deixando qualquer um incapaz de usar a língua para o
descrever, tal como disse o poeta sobre ele ao dizer esta poesia:

Para o compararem, levaram-no à Beleza,


E ela, em o vendo, de vergonha baixou a cabeça.
Perguntaram: «Já viste alguém como ele, ó Beleza?»
«Não, nunca vi ninguém que com ele se pareça.»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se. «Que história tão boa
e tão estranha», disse Dinarzade à sua irmã. E Xerazade respondeu: «Isto
nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite.
Se o rei me poupar e eu ainda for viva, será ainda mais estranho!»
Não se conhecem manuscritos do ramo sírio, ao qual pertence o
mais antigo manuscrito d’As Mil e Uma Noites, que contenham a
continuação desta história a partir deste ponto (ver nota 135).
Não se sabe se alguma vez o ramo sírio conteve mais noites do
que estas 282 noites e, muito menos, se alguma vez existiu um
manuscrito autêntico deste ou de outro ramo que contivesse de
facto 1001 noites. No entanto, são conhecidos manuscritos do
ramo egípcio onde esta história figura integralmente. Por isso, a
conclusão desta história, tal como figura num manuscrito deste
ramo, aparece em apêndice no terceiro volume desta edição.

_______________
Legendas
«» Diálogos.
“” Diálogos dentro de diálogos
‘’ Citações e paráfrases do Alcorão.
itáli
co Provérbios e expressões populares citadas. Mas nas notas de rodapé e no preâmbulo usa-
se também para as palavras árabes quando transliteradas segundo a norma ALA-LC. Usa-
se ainda para nomes de livros ao longo do texto.
[] Acrescentos ocasionais do tradutor, ou de outros manuscritos, para preencher lacunas do
texto árabe.
1. A cidade da China é provavelmente Guangzhou (também conhecida nos textos árabes antigos
por «China da China»). Quanto a Qajqar, não se conhece tal nome, que figura exclusivamente no
ramo sírio.
2. Trata-se de ʿantarah ibn Shaddād, também conhecido por ʿantar. Poeta, guerreiro e herói pré-
islâmico, autor de uma das odes que constituem o cancioneiro de poesia pré-islâmica Os [Poemas]
Suspensos (al-Muʿallaqāt). No entanto, não há provas para a atribuição da autoria deste poema.
3. O poema parece incompleto, faltando pelo menos os dois últimos versos. Note-se no entanto
que o texto desta noite não é retirado do manuscrito principal, mas do da Biblioteca do Vaticano
(assim como a parte final da 103.ª e o início da 104.ª Noites). O manuscrito principal contém antes
aquilo que parece uma versão resumida, em que, por exemplo, o alfaiate não vai passear com a sua
mulher (como volta a ser mencionado na 169.ª Noite no mesmo manuscrito), mas está na sua loja
quando vê o corcunda e o convida. No manuscrito principal, em vez deste poema, e do anterior,
consta antes um poema que consiste, com uma diferença mínima, nos últimos quatros versos do
poema que consta na 1.ª Noite (primeiro volume), e cujo trecho se volta a repetir no fim da 104.ª
Noite.
4. Ver nota 8 do primeiro volume.
5. Tradução de bādahanj (palavra de origem persa, mas hoje em dia nesta língua é mais
conhecido por bādgir). Esta conduta de refrigeração, geralmente na forma de uma torre, costuma ser
afunilada e, pelo efeito do princípio de Bernoulli, o ar arrefece ao entrar na casa, permitindo
refrigerá-la. Por vezes, há uma cave subterrânea, que serve de frigorífico (ver nota 53), associada a
este sistema de refrigeração.
6. Sic. A expressão «ao poste de iluminação» (ilā al-masrajah) é exclusiva do manuscrito
principal seguido nesta tradução, e entra em contradição com a descrição feita previamente do local
onde decorre a presente cena («junto a uma loja, ao cabo de um beco escuro»). Vários manuscritos
do ramo egípcio enunciam antes que o guarda veio «com uma lâmpada», usando a mesma palavra
(al-masrajah) e seria essa possivelmente a intenção original do narrador.
7. Sic.
8. Ver nota 10 do primeiro volume.
9. Ver nota 18 do primeiro volume. O dirame é uma fracção (7/10) do dinar em termos de peso, e
ao contrário deste, que é de ouro, o dirame é de prata. Em termos de valor, o dirame equivaleria no
máximo a cerca de um duodécimo de dinar, mas muito possivelmente a cerca de um vigésimo, pois
na 136.ª Noite o preço de 50 dinares é dado como equivalente de 1000 dirames. Em suma, para
compreender devidamente os valores destas histórias, há que ter em conta que o dirame é uma moeda
bem menos valiosa que o dinar.
10. Beinalcasreine (Bayn al-Qaṣrayn), literalmente «Entre Dois Palácios», designa uma praça e
uma zona do bairro histórico do Cairo que se localiza entre dois palácios que foram construídos
durante a dinastia Fatimida.
11. O sicbaj (sikbāj) é um guisado agridoce de carne com vinagre, xarope de fruta, e especiarias.
No Posfácio ao terceiro volume será descrito mais detalhadamente.
12. O texto árabe menciona aqui o guisado chamado ṭabāhajah, que já apareceu no primeiro
poema da 49.ª Noite, onde também foi traduzido genericamente por «guisados». No Posfácio ao
terceiro volume será descrito mais detalhadamente.
13. Qarmūsh no texto árabe. No Posfácio ao terceiro volume será descrito mais detalhadamente.
14. Jūdhābah no texto árabe. Este prato consiste basicamente num assado de carne no forno,
sendo que por baixo da carne há um recipiente contendo a jūdhābah propriamente dita, que é uma
base feita geralmente de arroz e/ou fatias de pão, entre outras possibilidades, e que absorve a gordura
do assado, ganhando um sabor próprio. No Posfácio ao terceiro volume será descrito mais
detalhadamente.
15. Esta frase não consta no manuscrito seguido por esta tradução, nem nos outros do ramo sírio,
mas foi retirada do manuscrito do ramo egípcio Arabe 3615 (século xviii) da Bibliothèque nationale
de France. Esta fala e as informações nela contidas constam, com ligeiras diferenças de formulação,
noutras versões do ramo egípcio, nomeadamente os manuscritos Gayangos 49 (séculos xviii-xix) da
Biblioteca de la Real Academia de la Historia (Madrid) e Arabic 207 (século xviii) da Christ Church
Library (Oxford), assim como na edição impressa de Bulaq (1835). Pode não ser necessariamente um
acrescento posterior, mas uma lacuna dos manuscritos do ramo sírio relativamente à versão matriz, e
que eventualmente acabou por ser retida no ramo egípcio.
16. Zīrbājah (ou zīrbāj): trata-se de um ensopado de carne que leva açúcar, amêndoas, vinagre,
entre outros condimentos. No Posfácio ao terceiro volume será descrito mais detalhadamente.
17. Ver nota 17 do primeiro volume.
18. Potassa designa aqui um produto para lavar as mãos. Junça é usado na fabricação de perfumes
e essências. No Posfácio ao terceiro volume, estes produtos são descritos mais detalhadamente,
excepto o sabão, ṣābūn em árabe, que é conhecido.
19. Extrapolação a partir de manuscritos do ramo egípcio e da edição de Bulaq, para colmatar o
que parece uma lacuna nos manuscritos do ramo sírio.
20. O dirame é uma moeda de valor muito inferior ao dinar (ver nota 9). O valor de cinco mil
dirames situar-se-ia entre os duzentos e quatrocentos dinares.
21. Interpolação do manuscrito Arabic 207 (século xviii) da Christ Church Library (Oxford). Este
detalhe também consta, com ligeiras diferenças de formulação, em pelo menos mais dois manuscritos
do ramo egípcio, assim como nas versões de Tanūkhī (século x), que constituem quase
indubitavelmente a fonte literária desta história e das que se seguem (para mais detalhes sobre esta
questão, ver o Posfácio ao terceiro volume).Trata-se de uma lacuna dos manuscritos do ramo sírio,
pois sem este detalhe a referência feita de seguida à água de Zamzam perde a importância.
22. Água de um poço sagrado da cidade de Meca.
23. Al-Ghūṭah em árabe. A palavra ghūṭah designa uma depressão ou um vale fértil, abundante
em árvores e cursos de água. A ghūṭah aqui em causa é a Ghūṭat Dimashq («A Ghūṭah de
Damasco»), pois a palavra por si só e acoplada de artigo defi-nido (al-Ghūṭah) tornou-se no nome do
oásis que circunda a cidade de Damasco, sobretudo na sua parte sul e este, e até mesmo num
cognome da própria cidade. O oásis formou-se graças ao rio Baradá, que atravessa a cidade, e dos
vários canais que as populações foram construindo desde tempos remotos, em redor da que é
considerada a cidade mais antiga do mundo continuamente habitada (estima-se que seja habitada
desde 9000 a.C.). Esta zona agrícola também é conhecida por Oásis de Damasco e, mais
recentemente, através dos órgãos de comunicação social, pelo nome Ghouta. Os geógrafos árabes
antigos referem-se a este oásis como um dos quatro paraísos ou jardins deste mundo, juntamente com
os jardins de Uballa (perto de Bassorá), de Buvan (na Pérsia), e de Samarcanda.
24. Trata-se muito provavelmente da ilha de Roda (Jazīrat ar-Rawḍah). Supõe-se também que é
nesta ilha que se localiza o parque ao qual é feita referência no próximo poema, onde figura a palavra
rawḍah sem artigo definido, mas como esta palavra significa «parque» (no sentido de terreno
arborizado e ajardinado), também poderá ser uma referência a um parque não especificado. A ilha
ficou conhecida por esse nome devido ao seu parque deslumbrante.
25. O Observatório (ar-Raṣad) designava um monte a sul da cidade de Fostate. O nome deve-se a
um observatório mandado construir pelo vizir fatimida al-Afḍal Shāhinshāh, também conhecido por
Lavendálio e Elafdálio (1066-1121). A Lagoa dos Abissínios, que já não existe, localizava-se a sul
deste monte.
26. É a noite em que se declarava oficialmente o início das cheias do Nilo, quando o nilómetro
atingia um certo volume, geralmente durante as primeiras duas semanas de Agosto.
27. Excerto de Alcorão 55:52. A tradução foi simplificada de forma a veicular o sentido relevante
para a compreensão do texto, tendo em atenção o que vários comentaristas clássicos do Alcorão
afirmaram. Também se simplificou a parte imediatamente anterior, ao traduzir-se por «um dos jardins
do Paraíso», mas o texto árabe comporta trocadilho mais longo e rico entre duas palavras sinónimas
de jardim e paraíso (jannah, rawḍah, e respectivos plurais jinān e ryāḍ) e o nome Riḍwān na
expressão «jardins de Riḍwān» (ryāḍ Riḍwān). Riḍwān, que é também um nome próprio de pessoa
de uso corrente, designa aqui um anjo que é considerado o porteiro do Paraíso, sendo também um
substantivo que significa «contentamento, satisfação». A tradução literal seria: «um jardim dos
jardins [jannah / jinān], ou um jardim dos jardins [rawḍah / ryāḍ] de Riḍwān», sendo que jardim é
sinónimo de Paraíso.
28. Excerto de Alcorão 23:14.
29. Correcção do tradutor do que aparenta, no contexto diegético, ser uma gralha. No texto
original lê-se: «o que ela trazia vestido».
30. Os manuscritos do Vaticano e da John Rylands Library têm «beberá» (yashrab) em vez de «se
divertirá» (yanshariḥ).
31. A maioria dos manuscritos, assim como a versão de Bulaq, menciona antes «Eu visito-os»,
com excepção do manuscrito Arabic 207 da Christ Church Library (Oxford). Quanto ao manuscrito
principal seguido nesta tradução, esta página está borrada, dificultando a leitura em geral,
nomeadamente nesta parte. Por isso, não foi possível assegurar se neste manuscrito se leria «visito-a»
ou «visito-os».
32. Figura só no manuscrito do Vaticano e no do India Office Records (Arabic MS 2699).
33. Antigamente era normal os barbeiros executarem também tarefas semelhantes às de
cirurgiões e dentistas, assim como realizavam circuncisões e faziam tratamentos com ventosas
medicinais. Esta acumulação de tarefas e saberes na pessoa do barbeiro ainda é possível de se
encontrar em alguns lugares. A sangradura, ou sangria, é uma prática medicinal que antigamente era
assaz usada, sendo que hoje é rara e desaconselhada pela maioria dos profissionais da saúde.
34. 18 de Ṣafar de 653 AH corresponde a 29 de Março de 1255 AD. A data coincide nos
manuscritos do ramo sírio, mas em vários do ramo egípcio, assim como na versão de Bulaq, o ano
hegeriano que é referido é 763, correspondente a 1361 AD. No entanto, o ano da Era de Alexandre
correcto para a data hegeriana mencionada de 653 seria 1557 e não 7320. E o livro Hizz al-Quḥūf bi-
sharḥ qaṣīd Abī Shādūf [Crânios confusos pela explicação da ode de Abu Xaduf], que supostamente
terá sido escrito por um camponês egípcio em 1686 ou posteriormente, e no qual esta história é citada
e contada integralmente como sendo uma «história famosa d’As Mil e Uma Noites», desdobra a data
de 7320 de uma forma deveras interessante, pois menciona 7000 anos da Era de Adão e 320 anos da
Era de Alexandre, ou seja, Alexandre, o Grande, teria vivido depois do profeta Muhammad (e tal
como Bulaq, menciona também o ano 763 AH).
35. Muslim e de Bukhari são dois célebres autores de recolhas de ditos e falas de Muhammad,
considerado pelos muçulmanos como o último dos profetas, sucedendo a Jesus de Nazaré, João
Baptista, Salomão, David, Arão, Moisés, Abraão, Adão, entre outros da tradição abrâamica.
36. Sic.
37. Sic.
38. Sic. Conforme o que se segue imediatamente a seguir, o sentido narrativo convidaria que aqui
figurasse antes «os perfumes e os incensos».
39. Fawwāl, no texto árabe, designa o indivíduo que prepara e vende um prato chamado fūl
mudammas ou fūl mədammis. As favas (fūl) são cozidas num forno em lume brando durante toda a
noite, e na manhã seguinte são preparadas com sumo de limão, ou de uvas ainda verdes, ou de romã,
ou vinagre, e acrescenta-se azeite, sal, cominhos, e pode-se ainda juntar diversos ingredientes tais
como alho, salsa, tomate, cebola, malaguetas, entre outros, consoante as receitas. Trata-se de um
prato famoso e antigo.
40. Almustancir Billâh (ou Abū Jaʿfar Al-Mustanṣir bi-Llāh al-Manṣūr ben aẓ-Ẓāhir) foi o
penúltimo califa abássida a governar a partir de Bagdade, havendo o seu reino durado entre 1226 e
1242. Note-se que a expressão «filho de fulano» (em árabe: ben fulān) nem sempre significa
descendente em 1.º grau, podendo significar descendente de vários graus ou gerações. Assim,
Almustancir Billâh não era filho de Almustadí Billâh (Haṣan al-Mustaḍī bi-amri-Llāh), mas bisneto
deste. Por sua vez, o nome do mesmo está mal grafado no texto árabe, pois deveria ser Almustadí
Biamrillâh (al-Mustaḍī bi-amri-Llāh), erro este que se reproduziu na tradução.
41. Como será detalhado no Posfácio ao terceiro volume, as histórias dos seis irmãos são
retiradas de um outro livro que remonta pelo menos ao século xiv (data do manuscrito mais antigo) e
que se chama As Histórias Espantosas e as Estranhas Novas (doravante referido abreviadamente por
Histórias Espantosas).
42. Dabique (Dabīq, não confundir com Dābiq no Norte da Síria) era uma aldeia do Egipto
conhecida pelos tecidos muito requintados e caros aí produzidos. Ficava entre al-Faramā (antiga
Pelúsio) e Tinnīs.
43. Traduziu-se por tostão a moeda de bronze chamada fils aḥmar, que corresponde a uma sexta
parte do dirame. Aḥmar significa vermelho, devido à cor de bronze. Ainda hoje o fils é usado em
alguns países com o valor de um milésimo de dinar. Quando usada no plural (fulūs, pronunciado
geralmente como flūs ou fəlūs) com o sentido empregue nas línguas árabes coloquiais de «dinheiro»,
traduziu-se antes por esta palavra.
44. Este acrescento, que colmata uma lacuna evidente do texto original, consta nas Histórias
Espantosas.
45. Lacuna colmata pelo texto d’As Histórias Espantosas.
46. Lacuna colmata pelo texto d’As Histórias Espantosas.
47. Idem.
48. O texto que aqui figura entre parêntesis rectos foi retirado do manuscrito Arabic 207 da Christ
Church Library (Oxford). Ele coincide na generalidade com todos os outros manuscritos do ramo
egípcio e com a versão de Bulaq, assim como com o texto d’As Histórias Espantosas, mas não figura
nos manuscritos do ramo sírio, por lacuna ou por vontade expressa dos seus redactores.
49. Excerto do Alcorão 40:78.
50. Sic.
51. Acrescento retirado de Histórias Espantosas.
52. O manuscrito menciona só «com a espada», assim como o texto das Histórias Espantosas,
mas depreende-se pelo contexto, e pelo texto que se segue, que a intenção do autor talvez fosse «com
a prancha da espada». É assim que consta explicitamente em versões tardias, como a de Bulaq.
53. «Cave» é um tradução simplista de sirdāb, que designa uma cave, semelhante a uma adega,
com pé direito alto, ligada a uma conduta de refrigeração (já referida na nota 5). Ela serve como
frigorífico para guardar provisões e como refúgio quando o calor assola. Esta cave pode ter uma
outra conduta perfurada no chão, ligada a um canal de água subterrâneo, tornando o sistema ainda
mais eficaz.
54. Sic.
55. Ver nota 54 do primeiro volume.
56. Trata-se de um prato de carne misturada com papas de grãos de trigo, conhecido no Levante e
no Golfo pelo nome harīsah (também conhecido por harīs). No Posfácio ao terceiro volume será
descrito mais detalhadamente.
57. Ver nota 11.
58. Ver nota 12.
59. Acrescento do tradutor tendo em conta o contexto diegético e a edição de Bulaq.
60. Ao longo da história que se segue, estes dois protagonistas são muitas vezes referidos só por
um dos componentes do nome. Por exemplo, Abu-al-Haçane Ali ibn Tâhir, o Perfumista, tanto pode
ser referido por Abu-al-Haçane como por Ali ibn Tâhir, ou só Ibn Tâhir.
61. Nome árabe que significa «O Sol do Dia» («dia» como contrário de «noite»).
62. Esta história tem três narradores: Xerazade, Abu-al-Haçane e o joalheiro, personagem esta
que ainda não foi introduzida. O texto original salta de um para o outro, várias vezes sem aviso.
Talvez fosse um duo ou um trio de contadores que contava esta história, ou talvez o contador
simulasse uma voz diferente para cada narrador. Para facilitar a leitura, acrescentou-se nesta
tradução, assinalando com parêntesis rectos, indicações textuais para melhor identificar o narrador
(excepto para Xerazade ou quando o narrador conste explicitamente no texto original).
63. Sic.
64. É sabido que a lua cheia levanta-se sempre do lado contrário ao pôr-do-sol, e por isso não
podem estar juntos.
65. Al-Khuld, em árabe, significa literalmente «eternidade», e é usado como um epíteto do
Paraíso e da vida após a morte (como na expressão Dār al-Khuld, literalmente «Casa da
Eternidade»). O palácio com este nome (Qaṣr al-Khuld) em Bagdade existiu mesmo, mas foi
mandado construir pelo califa Almançor (reinou entre 754-–775), na margem do rio Tigre, e
funcionou como segunda residência.
66. Acrescento consta no manuscrito Arabe 3612 da BnF e foi integrado na edição de Bulaq.
67. Este poema, assim como o início do parágrafo que lhe sucede, constam só no manuscrito
Arabe 3612 da BnF e foi integrado na edição de Bulaq, mas com algumas variações.
68. Na Antiguidade consideravam-se quatro os humores do corpo humano: o sangue, a fleuma, a
bílis amarela e a bílis negra.
69. Excerto do Alcorão 29:45.
70. Sic. Não é improvável que seja um erro de copista, e em vez de kātib (escritor, secretário,
escriba), talvez a intenção fosse kitāb (escrito, escritura, contrato, livro), mas o uso de um escriba ou
secretário é perfeitamente possível.
71. A frase «que castidade a minha!», que aparece só nas versões do ramo sírio, não sendo
necessariamente despropositada, soa no entanto a um possível erro de copista. As tentativas mais
credíveis de corrigir o texto árabe, alterando apenas uma letra, resultariam em duas possibilidades
diferentes, sendo a primeira: «que desgosto o meu!» e a segunda: «que falta de respeito para
comigo!»
72. Nos manuscritos do ramo sírio lê-se literalmente: «uma missiva aberta no chão», mas de
seguida é dito que o joalheiro a abriu. Aceitou-se a correcção feita tardiamente pelo manuscrito 3612
e pela edição de Bulaq, que substituíram maftūḥah (aberta) por maṭrūḥah (estendida, deitada, caída,
etc.).
73. Interposição retirada do manuscrito Arabe 3612 da BnF, para que a referência à «outra casa»
no início da 190.ª Noite não careça de sentido diegético.
74. Lacuna colmatada pelo sentido da narrativa e por Bulaq.
75. Expressão idiomática árabe; aparece duas vezes no Alcorão (2:259 e 18:42).
76. Lacuna ou elipse propositada, afigurou-se apropriado colmatar com o texto da edição de
Bulaq.
77. Correcção do tradutor. No manuscrito lê-se: «levou-me».
78. Sic. O texto não é claro se se trata de Xamsennahar ou da criada.
79. No texto árabe: «fulān ibn fulān». «Fulano» é a tradução do árabe fulān. A partícula árabe ibn
(também usada como bən), significa «filho de». Por exemplo, Ali ibn Baccar significa «Ali, filho de
Baccar».
80. Acrescento tirado do manuscrito Arabic 2699 do India Office Records (actualmente na British
Library). Outras versões dizem antes: «e eles disseram».
81. Alambâr (al-Anbār) era uma pequena cidade que existia antigamente a cerca de 45
quilómetros a oeste de Bagdade, na margem oriental do rio Eufrates, e a cerca de cinco quilómetros
da cidade de Faluja.
82. Alfadl: forma mais curta do nome Fadleddine, pelo qual o vizir também é referido ao longo
desta história. Fadleddine (Faḍl ad-Dīn) é traduzível por «Excelência da Fé», ibn é uma partícula
que significa «filho de» ou «descendente de», e Khacane (Khāqān) significa «soberano, monarca,
imperador».
83. Ziziphus spina-christi.
84. Parece ser uma expressão em língua persa, talvez com o sentido de «Se, ó mestre».
85. No manuscrito principal não consta esta fala do filho. Será uma lacuna? O texto aqui
introduzido consta no manuscrito Ms. Bodl. Or. 550-551 da Bodleian Library (Oxford), e é repetido
por outros três manuscritos do ramo egípcio e pela versão de Bulaq.
86. Ḥājj é um título honorífico, que significa «peregrino». Com este termo designa-se o
muçulmano que faz ou já fez a peregrinação a Meca; no entanto, é usado, tanto para homens como
mulheres (ḥājjah), como forma de respeito, normalmente para pessoas de maior idade, sem que estas
hajam feito necessariamente a peregrinação a Meca.
87. Isḥāq ben Ibrāhīm al-Mawṣilī an-Nadīm, mais conhecido por Isḥāq al-Mawṣilī, nascido em
767 em Ray (antiga Arsácia) e falecido em 850 em Bagdade. De origem persa, era um célebre
músico, cantor e poeta que privava com Harun Arraxide. Virtuoso e exímio na arte de tocar o alaúde,
foi mestre do célebre e influente Ziryāb, que mais tarde trocou a corte de Bagdade pela de Córdova, e
que é considerado o fundador dos cânones da música andalusina do Norte de África e o responsável
pela adição de um quinto par de cordas ao alaúde.
88. Correcção do tradutor para comodidade da leitura. No texto consta «oiro nativo». Ambas as
palavras são vagamente semelhantes (ʿaqīq para cornalina e ʿiqyān para ouro nativo).
89. O sentido exacto da palavra aqui traduzida por «peixes negros» não é claro. A questão é
explorada mais detalhadamente no Posfácio ao terceiro volume.
90. Excerto do Alcorão 13:4. No contexto original são referidas palmeiras que crescem em
grupos de ‘duas ou mais [das mesmas raízes] e outras não [pois crescem isoladamente]’.
91. «Hino a Deus»: paráfrase do termo árabe dhikr, que literalmente tem o sentido de «lembrança
ou invocação de Deus». Neste caso específico trata-se de uma cerimónia colectiva feita por místicos
muçulmanos sufis, em que Deus é invocado pela entoação repetitiva de várias fórmulas, de forma a
alcançar o êxtase e a união com Deus.
92. Ver nota 33 do primeiro volume.
93. Quṭayṭ significa «gatinho».
94. Referência a Huceine, filho de Ali e neto do profeta Muhammad, que juntamente com o seu
irmão Haçane e as suas famílias foram cercados pelo inimigo perto de Carbala, privados de água
durante vários dias, e de seguida massacrados. Este acontecimento costuma ser referido por «Batalha
de Carbala» e ocorreu em 680.
95. O Coraçone (Khorāsān) correspondia aos territórios a nordeste e este do Império Persa. Em
termos históricos, o Grande Coraçone corresponde a um território que abrange actualmente partes do
Irão, Afeganistão, Tajiquistão, Turquemenistão e Usbequistão. No actual Irão é o nome de três
províncias (Coraçone do Norte, Coraçone do Sul e Coraçone Razavi) que até 2004 constituíam, mais
ou menos com as mesmas fronteiras, uma só província com o nome Coraçone.
96. Paráfrase do Alcorão 77:20-21 (‘Não te criámos de um líquido desprezível / e te colocámos
numa residência protegida?’).
97. Tal como em português, em árabe padrão a palavra equivalente a «prenhe» (ḥāmil) não tem
marca de género feminino, no entanto em ambas as línguas o registo vernacular usa esta palavra com
marca de feminino («prenha» em português e «ḥāmilah» em árabe), registo esse que não é bem
aceite pela norma culta em ambas as línguas. Optou-se aqui por usar o registo vernacular «prenha»,
tal como consta nesta passagem no texto árabe, usando-se nos restantes casos «prenhe» ou «prenha»
consoante no texto árabe se use a norma culta (ḥāmil) ou vernacular (ḥāmilah).
98. Nome árabe, de origem persa, que significa «flor de romãzeira».
99. Sic.
100. Alcorão, 55:60.
101. Este último verso seria mais apropriadamente traduzido por: «‘A Terra seria tremida por seu
tremor’», pois trata-se de uma paráfrase do Alcorão (99:1), traduzível por: «Quando a Terra for
tremida por seu tremor […]», sendo que, no contexto, este «seu tremor» designa o derradeiro tremor
que a Terra sentirá, isto é, aquele que anuncia a Ressurreição e o Juízo Final.
102. «Lua cheia» em árabe.
103. Ver nota 17 do primeiro volume.
104. Alcorão 3:185; 21:35; 29:57.
105. Excerto do Alcorão 2:286.
106. A palavra usada em árabe para «jóia» é jauhara (jawharah), que por sua vez é o nome da
pretendida.
107. Correcção do tradutor. No manuscrito lê-se antes: «deu-lhe parte do que havia feito.» A
situação é pouco provável, nomeadamente tendo em conta a falta de reacção de Jauhara
relativamente à desobediência da criada. A versão de Bulaq redige o texto mencionando
explicitamente: «[a criada] tornou à sua senhora e disse-lhe: “Já o pus na Ilha da Sede.”»
108. O nome Lab significa «Sol» em persa. Não sendo um nome árabe, o contador teve
necessidade de explicar o significado. Este nome e a mesma explicação consta em várias versões
manuscritas e impressas d’As Mil e Uma Noites, mas nas Histórias Espantosas é antes dito que «o
seu significado é “Sol da rainha”».
109. Ver nota 27 do primeiro volume. Note-se ainda que o uso em textos clássicos do termo
«mago» (majūs) e derivados para designar os zoroastrianos é hoje em dia tido por incorrecto e deriva
de ideias falsas atribuídas aos seguidores do zoroastrismo (ou masdeísmo), nomeadamente que
seriam adoradores do fogo, magos (majūs) que faziam sacrifícios humanos e que praticavam magia
negra, entre outras coisas consideradas abomináveis. Saliente-se que estas ideias denegrindo os
seguidores desta crença resultam sobretudo de preconceitos que circulavam na época, não tendo
necessariamente qualquer fundamento histórico.
110. A palavra usada para «lua cheia» no texto árabe é badr, a mesma do nome do rei Badr.
111. Sic. Mudança de narrador. Esta situação volta a repetir-se mais adiante.
112. Sic.
113. O adjectivo «colossal» figura nas Histórias Espantosas, no manuscrito do ramo egípcio
Arabe 3612 da Bibliothèque nationale de France e na versão de Bulaq.
114. Este aparente lapso consta das Histórias Espantosas, de um manuscrito do ramo sírio, de
outro do ramo egípcio e da edição de Bulaq.
115. Barq significa «relâmpago» em árabe.
116. Alcorão 19:17.
117. Ver nota 106.
118. No manuscrito Ms. Bodl. Or. 550-551 da Bodleian Library (Oxford), que será usado nesta
tradução no Apêndice I (no terceiro volume), que contém a conclusão da História de Cámar-
Azzamane e dos seus filhos, este rei chama-se Xaramane (Shahramān), sendo o mesmo nome que
figura na generalidade das recensões egípcias d’As Noites, incluindo a versão de Bulaq. Não se sabe
se este nome, ou outro, constaria nas recensões do ramo sírio.
119. Ver nota 17 do primeiro volume.
120. Retirado de outros manuscritos do ramo sírio.
121. Lacuna colmatada tendo em conta expressões já usadas no texto d’As Mil e Uma Noites e
outros manuscritos.
122. Ver nota 60 do primeiro volume.
123. Sic. O contador alterna entre os termos ifrita e génia devido à proximidade de significados.
124. Parece haver aqui uma vaga referência a uma passagem do Alcorão (15:16-18) onde se
menciona: «Colocámos constelações no Céu e adornámo-lo para os seus observadores / E
protegemo-lo de qualquer demónio maldito / E quem o tentar escutar às escondidas persegui-lo-á um
meteoro brilhante.» Dizem alguns teólogos sobre esta passagem que os demónios, génios e ifrites
costumavam ouvir às escondidas os anjos do céu, mas que no tempo de Jesus de Nazaré, filho de
Maria, o céu começou a ser-lhes restringido, até lhes ser completamente vedado no tempo de
Muhammad.
125. Ver nota 28.
126. Sobre Qajqar da China, ver nota 1.
Quanto às Ilhas do Interior (o nome por extenso é referido na noite seguinte) tratar-se-á de um
espaço imaginário. O nome e outras referências dão a entender que seria um conjunto de ilhas
localizado a oriente, entre a Pérsia e a China, no interior da zona de influência islâmica, não sendo de
excluir a possibilidade de ser um conjunto de ilhas localizado algures no Sudeste Asiático, no
subcontinente indiano ou no Extremo Oriente. Na edição de Bulaq consta antes uma aglutinação dos
dois espaços geográficos que poderiam ser bem distantes um do outro: «as ilhas interiores da China».
Ver também as páginas 56-57 do Preâmbulo no primeiro volume.
127. Correcção do tradutor do que aparenta ser um erro de copista. No manuscrito lê-se antes:
«pernas». Toda esta descrição é copiada, com diversas alterações, da obra de cariz erótico de ʿabd
Arraḥmān ibn Naṣr ibn ʿabdallāh ash-Shayzarī (falecido em 1170 AD) intitulada O Livro da
Explanação dos Segredos da União Conjugal.
128. No manuscrito aqui seguido d’As Noites talvez seja a palavra baḥr (mar) que figura em vez
de naḥr (peito, nomeadamente a zona que liga o peito ao pescoço). No manuscrito mais conhecido
da obra de ash-Shayzarī (ver nota anterior) também não é claramente evidente se a palavra é baḥr ou
naḥr. As várias edições impressas em árabe de ambas as obras tanto seguem a primeira como a
segunda opção. Optou-se aqui por «peito» pela continuidade do texto, mas note-se que na obra de
ash-Shayzarī a frase que aparece logo de seguida não consta.
129. Aparente lacuna colmatada com excerto do manuscrito Arabic 207 da Christ Church Library
(Oxford).
130. Literalmente: «pote de urina» (quwārat al-bawl), expressão que designa um recipiente de
barro, de forma delgada, contendo água, e que é usado para lavar o pénis depois de urinar.
131. Ver nota 28.
132. José, um dos profetas das religiões abraâmicas, é considerado, na tradição islâmica, como
um arquétipo de beleza. Zuleikha, mulher de Potifar, encantada com a sua formosura, tentou seduzi-
lo, e aquando da sua recusa, acusa-o de violação, levando ao aprisionamento de José. Existe também
uma tradição que atribui a Muhammad, profeta do Islão, o dito: «A José foi dada metade da Beleza»,
isto é, Deus deu metade da Beleza a José e a outra metade ao resto da Humanidade.
133. Ver nota 15 do primeiro volume.
134. O manuscrito principal em que se baseia esta tradução termina abruptamente neste ponto,
havendo ainda mais um fólio em que uma das faces contém a conclusão desta noite e a noite
seguinte, mas esse excerto foi adicionado muito posteriormente (século xviii ou xix) a partir de uma
versão tardia. Daqui até ao final da 282.ª Noite seguimos em grande parte o texto árabe estabelecido
por Muhsin Mahdi, que é uma tentativa de reconstrução a partir dos outros manuscritos do ramo sírio
(que terminam na noite seguinte) e que recorre ainda, quando necessário, ao manuscrito do ramo
egípcio Ms. Bodl. Or. 550-551 da Bodleian Library (Oxford) e ao fólio posteriormente acrescentado
já mencionado.
135. Sic.
Índice

História do corcunda, amigo do rei da China


História do corretor nazareno: o jovem com a mão decepada e a moça
História do vedor: o jovem de Bagdade e a criada de dona Zubeida
História do médico judeu: o jovem de Mossul e a moça assassinada
História do alfaiate: o jovem manco de Bagdade e o barbeiro
História do barbeiro
História do primeiro irmão, o alfaiate corcunda
História do segundo irmão, o paralítico
História do terceiro irmão, o cego
História do quarto irmão, o talhante zarolho
História do quinto irmão, o das orelhas cortadas
História do sexto irmão, o de lábios cortados
História de Nureddine Ali ibn Baccar e da escrava Xamsennahar
História da escrava Anice Aljalice e de Nureddine Ali ibn Khacane
História de Jullanar do Mar
História do rei Cámar-Azzamane e dos seus filhos Amjad e Açaad
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