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23/06/2020 GARRETT E O AMBIENTE TEATRAL DO SEU TEMPO

GARRETT E O AMBIENTE TEATRAL DO


SEU TEMPO

Site: AulAberta
Disciplina: Almeida Garrett e o Teatro do seu Tempo
Livro: GARRETT E O AMBIENTE TEATRAL DO SEU TEMPO
Impresso por: Claudia Menezes da Cruz
Data: Terça, 23 de Junho de 2020 às 14:34

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23/06/2020 GARRETT E O AMBIENTE TEATRAL DO SEU TEMPO

Índice
1. Contexto político

2. Enquadramento social

3. O Teatro da Rua dos Condes e o Teatro do Salitre

4. A Proposta de Garrett

5. O Teatro Nacional D. Maria II

6. O Teatro de D. Fernando e o Teatro do Ginásio

7. A censura teatral

8. Uma noite no Teatro

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1. Contexto político
No primeiro dia do mês de janeiro de 1836 realizou-se, por procuração, o casamento da Rainha D. Maria II com D.
Fernando, um duque, de origem austríaca, a quem mais tarde chamaram “rei-artista”, devido à grande sensibilidade
que demonstrou para com as manifestações de índole cultural.

Ao chegar a Portugal, em abril desse mesmo ano, D. Fernando deparou-se com um país muito agitado, onde se
digladiavam duas fações: os defensores da Constituição de 1822, cujo texto limitava a autoridade real; e os que
defendiam a Carta Constitucional, que depositava no poder real a força máxima da orgânica política. Pelo código de
1822, era possível discutir a Monarquia, no plano da utilidade pública; pelo código cartista, a sua natureza era um
dado absoluto e indiscutível.

A chamada “Revolução de Setembro”, que eclodiu em 1836, deveu-se precisamente a esta oposição, vendo-se a
Rainha impelida, devido às circunstâncias, a jurar de novo a Constituição de 1822. Não passaram, contudo, dois
meses sem que se manifestasse um movimento contrarrevolucionário, apoiado em forças estrangeiras. Durante este
período e até maio do ano seguinte, altura em que Passos Manuel abandona o governo, grassa forte agitação social
em muitos pontos do país. No entanto, como que aproveitando esta fase intercalar de índole revolucionária, foi
publicada uma lei da máxima importância. Foi, sem dúvida, um momento único na História do Teatro Português,
este em que Almeida Garrett propõe um decreto-lei no qual se revê toda a política teatral, pensando-a nas suas
múltiplas vertentes: os locais de representação, melhorando os existentes e propondo a edificação de um Teatro
Nacional; os atores, criando uma escola que formasse profissionais de qualidade; e os textos, sobretudo originais
portugueses, criando mecanismos que atraíssem a sua escrita e representação.

Estas seriam tarefas para muitos anos, até porque dificultadas por consecutivos períodos de instabilidade política,
cujo apaziguamento só se veio a verificar em meados do século XIX, com o movimento da Regeneração.

Imagem 1 – Rei D. Fernando II

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Imagem 2 - Rainha D. Maria II

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2. Enquadramento
social
Devido, certamente, à sua posição
geográfica, Lisboa tem sido, desde sempre,
uma cidade visitada por muitos estrangeiros,
alguns dos quais registaram as suas
impressões e as deram a conhecer,
publicando os textos que então escreveram.

Karol Dembowsky, também


temporariamente na cidade, expressa
opinião diversa relativamente à paisagem
arquitetónica e humana:

Observada de mais perto, Lisboa tem um


aspeto triste, tanto pela excessiva
uniformidade das suas casas, construídas
todas segundo o mesmo modelo, como pelo
pouco movimento da sua população. […] Os
velhos bairros, que resistiram aos abalos do
terramoto, são inabitáveis de Verão. Deita-se
pelas janelas toda a espécie de porcarias,
sem mais cuidados do que o de gritar: Água
vai! e o pobre transeunte, para escapar à
fétida rega, não tem outro recurso do que
subir a toda a pressa, de lenço no nariz, as
íngremes calçadas. Em compensação, a
cidade baixa é asseada, bem iluminada e,
sobretudo, bem pavimentada. [1]

Testemunhos como este dão-nos uma visão do que seria Lisboa no segundo quartel de Oitocentos. Com cerca de
200 mil habitantes, a cidade estendia-se por uma zona baixa, que ia desde a Praça do Comércio, percorria as ruas
traçadas por Pombal, atravessava o Rossio, ainda em construção, passava pelas ruínas do que tinha sido o Palácio da
Inquisição e onde se viria a terminar, em 1846, a construção do Teatro Nacional D. Maria II, e alongava-se pelo
Passeio Publico, hoje parte da Avenida da Liberdade. Toda esta zona era ladeada por bairros de ruas estreitas e
tortuosas, que mais pareciam um labirinto e onde, devido à falta de iluminação, não era aconselhável transitar depois
de escurecer. As casas, com cordas de roupa à janela e galinhas à porta, eram habitadas pelos mais pobres, que
estabeleciam entre si estreitas relações de vizinhança.

Pela cidade baixa podia-se passear, uma vez que as ruas se encontravam iluminadas por candeeiros de azeite que, em
1848, foram substituídos por gás. Durante o dia, havia a possibilidade de deambular pelo Passeio Público, um espaço
ajardinado, que foi projetado e edificado no tempo do Marquês de Pombal, na tentativa de se desenvolver, à
semelhança do que acontecia em outras cidades europeias, hábitos de convivialidade

Inicialmente, tratava-se de uma pequena mata de 300 metros de comprimento, vedada por largas paredes de
alvenaria, com 15 janelas amplas, defendidas por varões de ferro. Por volta de 1836, os muros foram deitados a
baixo e, em seu lugar, surgiu um bonito gradeamento, com três entradas monumentais, que tornavam o espaço mais
sumptuoso e apetecível. No entanto, como fechava os seus portões às 8 horas da noite, nas noites quentes de Agosto
o Passeio Público foi substituído pelas passeatas até ao rio. Toda a sociedade lisboeta se fazia ali representar.

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Imagem 3 - O Passeio Público

[1] DEMBOWSKI, Karol. Dos Años en España y Portugal durante la Guerra Civil 1838-1840. Madrid:
(tradução nossa).

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3. O Teatro da Rua dos Condes e o Teatro do Salitre


Aquando da restruturação do teatro proposta por Garrett, na zona mais central da capital estavam em funcionamento
três teatros: o Teatro de São Carlos, dedicado ao teatro lírico, e o Teatro da Rua dos Condes e o Teatro do Salitre[1],
ambos dedicados ao chamado teatro declamado. Destes três, apenas resta o primeiro, no Chiado, e que é uma joia do
património português.

Depois do terramoto de 1755, foi construído um edifício denominado "Teatro da Rua dos Condes", que se manteve
até 1882, altura em que teve de ser demolido devido às obras de construção da Avenida da Liberdade. Situava-se
perto do local onde mais tarde teve lugar o Cinema Condes e hoje é o Hard Rock Café, junto à Praça dos
Restauradores. O Teatro do Salitre, sempre referido como um parente pobre da arte dramática, foi edificado em 1782
pelo arquiteto Simão Caetano Nunes, e também desapareceu devido às obras de abertura da nova avenida.

Em 1835, veio instalar-se, no Teatro da Rua dos Condes, uma companhia oriunda de França, que, claro está,
representava em língua francesa. Na noite do seu primeiro espetáculo, uma comédia em verso, um drama e uma
farsa, fizeram acorrer tudo o que havia de mais seleto na sociedade lisbonense. Foi extraordinário o triunfo. “A
própria sala de espetáculos não parecia a mesma, em razão de terem sido substituídas as placas com velas, colocadas
entre os camarotes, por um lustre de candeeiros de azeite que iluminava perfeitamente”[2].

O facto de, neste teatro, se representar em francês, durante mais de um ano, criou, naturalmente, um público com um
nível cultural mais elevado do que o que frequentava o Salitre. Na verdade, Émile Doux, enquanto empresário e
ensaiador desta companhia, trouxe no seu repertório muitos dramas de Victor Hugo, Alexandre Dumas e dos homens
de letras que iniciaram o movimento romântico no teatro francês, bem como um grande número de comédias de
Scribe, Mellesville e de outros vaudevillistas do tempo.

Agendada a partida da companhia francesa para o início de abril de 1837, o Condes pode continuar a contar com o
trabalho de Doux que, à frente de um novo elenco, escriturou diversos atores portugueses, iniciando-se a
representação, agora em tradução, de tudo o que fora durante mais de um ano representado em língua francesa. Com
um "ensaiador" mais exigente, os atores portugueses passaram a ser obrigados a estudar os seus papéis, evitando que
se ouvisse primeiro o ponto e só depois o artista. Embora fosse medíocre enquanto ator, pois o tom exagerado que
adotava tornava cómico o que se pretendia sério, é hoje reconhecido ter Émile Doux exercido uma influência
decisiva na arte teatral desta época, enquanto empresário, ensaiador e diretor de cena. De salientar também que,
pelos testemunhos de que dispomos, teve a sorte de poder trabalhar com um elenco de atores e atrizes considerados
de "talento verdadeiramente superior", o que terá certamente contribuído para alguns dos êxitos alcançados.

Os três anos que Doux se mantém à frente do Condes foram relativamente prósperos em termos teatrais. A partir de
1840 passa a ser o Conde do Farrobo[3] o empresário deste teatro, mantendo-se no entanto Doux como responsável,
não só pela direção da cena, como pelos atores e pela própria seleção do repertório. Carlota Talassi, destacada atriz e
tradutora de muitas peças então representadas, testemunha que esta foi uma época de invulgar prosperidade
financeira para os atores, a quem o empresário pagava principescamente. Da mesma prosperidade não se pode falar
no que diz respeito às representações, uma vez que muitos dos textos que sobem à cena são de fraca qualidade
dramática, fazendo com que os espectadores vão progressivamente deixando deserta a plateia.

Na apreciação que dispensa a este teatro, a Revista do Conservatório refere três aspetos negativos na atividade agora
desenvolvida. Em primeiro lugar, a pretensão de se imitarem espetáculos operáticos do Teatro de São Carlos,
executando-se reproduções de baixa qualidade; em segundo, a tendência para a obscenidade; e em terceiro, o facto
de se dar primazia aos textos estrangeiros em detrimento da nossa literatura dramática.

Em Abril de 1843, termina o contrato da empresa do Conde do Farrobo no Condes e, por consequência, "acaba
também a direção do Sr. Doux que tão mal a serviu por tão boa paga". As críticas são unânimes quanto ao cada vez
menor empenho de Doux, quer na escolha das peças quer nos seus ensaios, numa atitude bem diferente da que o
tornara conhecido como empresário. Passa então o Condes para as mãos de uma sociedade de artistas, onde figuram
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como diretores os atores Silva, Sargedas e Matta, ficando Epifânio no cargo de diretor de cena, situação que se
mantém até à primavera de 1846, altura em que a maioria destes atores bem como muitos do Salitre vão integrar o
elenco do novíssimo Teatro Nacional D. Maria II.

Imagem 4 - Teatro Rua dos Condes

Em 1836, quando se ouve ainda a língua francesa no palco do Condes, o Teatro do Salitre funciona com
regularidade. Durante os anos de que aqui nos ocupamos, grande foi a variedade dos seus espetáculos: ópera,
tragédia, drama, comédia, farsa, mágica, vaudeville, variedades, bailado, música, ginástica, equilibrismo,
malabarismo, ventriloquia, prestidigitação, fantoches e até apresentou feras amestradas.

Segundo a revista O Ocidente, ao teatro do Salitre havia ligada uma praça de arlequins, que "proporcionou horas de
gozo inefável à flor da geração que hoje aí morre de tédio, saudosa daquelas lutas entre cristãos e mouros, que depois
de uma dança pírica acabavam sempre à pancada uns aos outros, morrendo como era de justiça todos os mouros,
para sossego da consciência do empresário e maior glória da religião do reino"[4].

Apesar de tradicionalmente frequentado pelo público menos delicado, que acorria às pantomimas, danças, cavaladas,
tourinhas e manifestações de arte equestre, sabemos que também os membros da família real ali passavam com
alguma regularidade, assistindo aos espetáculos. Em março de 1837 inicia-se a nova "Companhia Cómica", que virá
a falir, encerrando as portas do Teatro no fim desse mesmo ano. Em abril de 1838, uma nova empresa, "Associação
de Gil Vicente", que volta a ser dirigida e ensaiada pelo ator Dias, instala-se neste espaço onde permanece até fins de
março de 1839. Com o intuito de guerrear o Teatro da Rua dos Condes, formou-se esta sociedade, composta pelo
próprio Dias, por António Feliciano de Castilho, Paulo Midosi e por Perini de Lucca, dramaturgo, ensaiador e
professor do Conservatório. Apesar dos esforços para atrair mais público, como, por exemplo, a oferta de duas
entradas na plateia superior a todos os que alugassem um camarote de primeira ordem, a Associação teve de
abandonar aquele espaço, que passou a ser ocupado pela "Nova Companhia de Atores Portugueses", que aí gozou de
uma brevíssima existência, dando a sua última representação a 26 de agosto daquele ano.

A referência que depois se encontra relativamente à atividade do Salitre é de 23 de maio de 1841, segundo a qual
João Cândido de Carvalho e José Vicente Soares são os novos empresários que formaram "uma companhia de atores
portugueses, entre os quais se contam os alunos e alunas do Conservatório Dramático"[5]. O ensaiador e o professor
de declamação é César Perini de Lucca, prevendo-se que o número de espetáculos mensais não vá além de quatro.

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Esta atividade mantém-se até setembro de 1842, altura em que surge a "Sociedade dos Amadores da Cena
Portuguesa", presidida por Garrett, para a qual se anuncia apenas um espetáculo. No fim de 1842, o teatro volta a
fechar.

No início do ano seguinte instala-se uma nova empresa no Salitre, vindo a ser ensaiada por Émile Doux, quando este
abandona o Condes. Evidentemente que, sob a sua orientação, se reforçou a tendência para a representação de peças
traduzidas do francês, restando pouco espaço para os originais portugueses. Com as portas do Teatro Nacional
abertas, em 1846, o Salitre também sofreu a perda de alguns dos seus melhores artistas.

Imagem 5 - Teatro das Variedades (ex-Salitre)

[1] O Teatro do Salitre foi mais tarde denominado “Teatro das Variedades”.
[2] O Ocidente, 11 ago. 1883:182.
[3] O Conde do Farrobo, Joaquim Pedro Quintela (1801-1869), destacado vulto da Lisboa Oitocenti
nível cultural e à sua posição social, era um magnata apaixonado por teatro e
por ópera e que esteve muito envolvido na vida teatral.
[4] O Ocidente, 15 set. 1879: 138-9.
[5] A Revolução de Setembro, 23 Maio 1841.

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4. A Proposta de Garrett
Em 28 de setembro de 1836, enquanto Passos Manuel liderava o governo, foi publicada uma portaria régia, na qual
se incumbia Almeida Garrett de apresentar "um plano para a fundação e organização de um Teatro Nacional nesta
capital, o qual, sendo uma escola de bom gosto, contribua para a civilização e aperfeiçoamento moral da Nação
Portuguesa", solicitando-se também informação "acerca das providências necessárias para levar a efeito os
melhoramentos possíveis dos Teatros existentes".

Pouco tempo após a publicação deste documento, Garrett apresentou, ao Governo, o solicitado “Plano”, num
momento em que era consensual que o Teatro deveria ajudar a reformar as mentalidades, instituindo valores morais e
cívicos, mais facilmente veiculáveis pelo carácter lúdico inerente a esta arte. Imediatamente tornado lei, foi
publicado no Diário do Governo de 17 de novembro desse mesmo ano, tornando-se o documento-base orientador de
uma nova política para a produção dramática e para a cena portuguesas.

Apesar da indiscutível importância deste documento, não se pode considerá-lo como uma iniciativa sem qualquer
precedente, uma vez que, desde o último quartel do século XVIII, se vinha a dar alguma atenção à necessidade de
apoiar a arte teatral. Recorde-se que, se bem que por razões menos nobres, já em 1771, no tempo do Marquês de
Pombal, se instituíra uma "Sociedade estabelecida para a subsistência dos Teatros Públicos da Corte", embora se
tenha rapidamente dissolvido. Sem dúvida que a agitação política, a a fuga da família real para o Brasil e o ambiente
de guerra permanente fizeram com que não houvesse muita disponibilidade para prestar a necessária atenção às
artes. No entanto, alguns passos foram dados e, em 1821, já tinha sido apresentada uma memória sobre a
possibilidade de se criar um teatro nacional e uma escola de arte dramática, e o próprio Garrett, no plano de reforma
geral dos estudos, em 1833, dedicava alguma atenção a este assunto. Um artigo intitulado "Edificação do Teatro
Nacional" refere que, em janeiro de 1836, Larcher, então governador-civil de Lisboa, propusera uma associação de
subscritores que apoiariam a construção do teatro nacional, a edificar provavelmente no mesmo local em que se
encontrava o Teatro da Rua dos Condes.

No texto introdutório ao Plano de reforma de Garrett, o seu autor faz como que uma brevíssima resenha do nosso
passado teatral, reduzindo-o a dois nomes: Gil Vicente e António José da Silva, considerando que “alguns esforços,
algumas tentativas se têm feito, assim por indivíduos como pelo Governo; todos infrutuosos, porque se não deu
impulso simultâneo aos três elementos que é preciso criar, porque nenhum deles existe. Nem temos um Teatro
material, nem um Drama, nem um Actor. Os autos de Gil Vicente e as óperas do infeliz António José foram [as]
nossas únicas produções dramáticas verdadeiramente nacionais. Umas e outros, ainda que por motivos diferentes,
são obsoletos e incapazes da cena”.

Convém esclarecer que a redução valorativa expressa nesta análise se deve à necessidade de se sublinhar o estado
depauperado em que o país se encontrava em matéria teatral e que melhor justificaria um tão ambicioso conjunto de
medidas contempladas no seu plano. Acresce que a referência à inexistência de atores pretendia sobretudo chamar a
atenção para a inexistência, sim, de tradição escolar na formação desses "profissionais" que pisavam então o palco,
seguindo, quanto muito, modelos de atores consagrados, mas geralmente pertencentes a uma escola já ultrapassada e
cuja ineficácia se tornava cada vez mais evidente. Além disso, a afirmação de que não tínhamos um ator e de que
não tínhamos um drama era comum entre os articulistas que se ocupavam de assuntos teatrais.

Perante esta situação, e comparativamente com o desenvolvimento de que gozava, por exemplo, o teatro parisiense
que Garrett tão bem conhecia, este compreendeu, como nos diz Teófilo Braga, "que tínhamos uma dívida em aberto
de quatro séculos para com o teatro nacional". Afigurava-se, então, como necessário:

1º Criar o Drama português e educar uma nova geração para dedicar-se ao estudo e perfeição da cena, organizando à
maneira de França e Inglaterra um Conservatório de Arte Dramática.

2º Para tornar os teatros dignos de respeito, e serem recebidos como escola, urgia o estabelecimento de uma Inspeção
Geral dos Teatros.
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3º Levantar um edifício digno das tradições do Teatro Nacional, a par da ideia de instituição social que se lhe ligava
na Europa.

Refere-se, também, este texto legislativo à necessidade de se levar a efeito melhoramentos nos teatros existentes, o
que nos parece, segundo relatos da época, não ter acontecido. No próprio ano da inauguração do Teatro Nacional,
repetiam-se os queixumes relativos às duas casas de espetáculo da capital.

São, aliás, inúmeros os testemunhos que vamos encontrando e que nos dão conta do estado deplorável em que se
encontravam aquelas duas casas de espetáculo, e que, como vimos, se mantiveram em funcionamento ainda durante
largo tempo. De facto, dispunham ambas de paupérrimas condições, eternizadas até por descrições retrospetivas da
Lisboa oitocentista. Exceção feita, evidentemente, ao Teatro de São Carlos, que continuava a manter o estatuto de
teatro lírico oficial, auferindo verbas específicas, muito superiores aos subsídios que mais tarde foram atribuídos aos
outros teatros, e gozando de um esplendor que se prolonga, pelo menos, até meados da década de 50. Os autores são
unânimes quanto ao tratamento especial e de exceção dispensado por todos os governos a este teatro. Quando, cerca
de um ano após a abertura do Teatro Nacional D. Maria II, a sociedade que o dirige não consegue fazer face às
despesas e os atores vivem com dificuldades, roga-se a intervenção do Governo no sentido de, tal como acontecia
com o São Carlos, lhe atribuir um subsídio. "Qual será o motivo por que se socorre um teatro estrangeiro e se deixam
morrer, no seio da mais negra miséria, os artistas nacionais?", inquiria Carlos Massa na Revista Universal
Lisbonense.

Regressando à letra do plano de Garrett, salientaremos que a "Inspeção Geral de Teatros e Espetáculos Nacionais",
organismo que tutela a atividade teatral a partir de 1836, está também contemplado no Artigo 1º. Poucos dias depois,
Almeida Garrett é nomeado Inspetor Geral, lugar que ocupa até meados de 1841. Para além de fiscalizar o bom
funcionamento dos teatros existentes e do futuro Conservatório, fica incumbido de "aprovar as peças e mais
representações que se hão-de dar ao público", bem como de "convocar e presidir o júri dos prémios" a atribuir às
peças "que, merecendo a pública aceitação, concorrerem para o melhoramento da literatura e artes nacionais", tudo
isto, curiosamente, sem direito a qualquer remuneração ou emolumento

Determinações houve, como a formação de uma "Companhia de Atores Nacionais" com alunos formados pelo
Conservatório, que nunca passaram do papel. Aliás, as intenções programáticas contidas neste plano foram sendo
regulamentadas ao longo de vários anos, à medida que se iam consubstanciando os processos e consolidando as
instituições.

O "Conservatório Geral de Arte Dramática", mais tarde “Conservatório Real de Lisboa”, escola que, entre outros
fins, tinha o de formar atores, estava contemplado nesse mesmo plano (Artigo 3º), embora só viesse a abrir as suas
portas em Janeiro de 1838.

Durante os três primeiros anos de funcionamento, é por esta instituição que vai passar muito do que se faz então a
nível do teatro em Portugal. E embora tivesse obtido autorização de funcionamento por diploma de 5 de Dezembro
de 1837, que anunciava a sua abertura em 8 de Janeiro do ano seguinte, só cerca de três anos mais tarde – 24 de maio
de 1841 – é que viu aprovados os seus Estatutos, com o parecer favorável de uma comissão composta, entre outros,
por Almeida Garrett, Alexandre Herculano e Francisco de Sousa Loureiro. Uma das secções deste longo documento
ocupa-se da censura teatral, que passa agora a ser exercida pelos sócios do Conservatório, sob a direção e
responsabilidade da "Inspeção Geral dos Teatros e Espetáculos do Reino".

Imagem 6 - Cópia do DG 17 Nnovembro de 1836

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5. O Teatro Nacional D. Maria II


O Art. 2º do Plano acima referido institui que o Secretário de Estado dê ao Inspetor Geral as "necessárias instruções
para que, acordando com cidadãos zelosos e amigos das artes que propuserem formar uma sociedade para a fundação
do Teatro Nacional", seja efetuada essa transação do modo tido por mais conveniente.

Matos Sequeira interpreta este artigo como a base para a criação de um "organismo financeiro de uma associação de
capitalistas e devotos que deveria levar a cabo a edificação do novo teatro"[1]. Segundo ainda este autor, que tanta
atenção deu à História desta instituição, Garrett e Joaquim Larcher já teriam discutido um projecto e um plano
financeiro que tornasse viável a edificação do Teatro Nacional, por forma a não sobrecarregar o Estado com a
totalidade do montante a despender.

Por dificuldades de vária ordem e que não interessa agora esmiuçar, só se iniciou a construção do edifício em julho
de 1842, tendo para tal sido escolhido o mesmo local em que funcionara a Inquisição e cujo edifício ardera seis anos
antes.

Variadíssimos são os artigos escritos nos periódicos durante a fase em que durou a construção do edifício. O tom é
normalmente de crítica e desconfiança, deixando-nos a percepção de que teria sido pouco transparente o processo e
de que, como é compreensível, era grande a curiosidade quanto ao resultado.

Começaram por se erguerem os tapumes, o que não era habitual na altura, tendo por isso sido motivo de
perplexidade. O arquiteto encarregue do projeto foi Lodi, um italiano, o que, naturalmente, suscitou queixumes por
parte dos arquitectos portugueses. Mas importante era o novo Teatro aparecer.

No entanto, o facto de já terem sido levantados os tapumes mas as obras se não terem ainda iniciado, fazia renascer a
desconfiada incerteza, temendo-se que continuassem indefinidamente “sepultados, autores, actores, e espectadores,
nessa espelunca imunda e carunchosa, onde ninguém entra sem risco e incómodo, com o credo na boca, e a cabeça
de contínuo exposta a quebrar-se por esses tectos, que mais parecem de ramais de minas do que de corredores??
Nesse casebre, a que no Inverno pudéramos chamar -- fábrica de constipações -- e no Verão caldeira para banhos de
vapor -- espantalho afugentador de gente, durante todas as estações?![2]

Claro está que se refere o articulista ao Teatro da Rua dos Condes. Se continuarmos a percorrer, por exemplo, a
Revista Universal Lisbonense, periódico que inclui importantes textos à volta de acontecimentos teatrais de então,
encontraremos constantes notícias sobre a evolução da construção do Teatro Nacional D. Maria II. Em 20 de outubro
de 1842, aí publica Alexandre Herculano um irónico artigo, terminando da seguinte forma: “Mas ser-nos-á lícito
gracejar quando se trata de semelhante matéria? Quando se trata de uma edificação, que importa à civilização, à arte,
ao pudor nacional? De uma edificação para a qual se destinam setenta contos de réis de que fica privado o nosso
mendigo tesouro, e que estragados uma vez não haverá meio algum de ressarcir? -- É necessário que a imprensa
periódica trate grave e severamente este negócio: é necessário que fale alto às autoridades propostas a tal objecto, à
opinião pública, a tudo, e a todos. Não é esta, ainda que a muitos o pareça, uma questão de interesse local: é questão
de todo o país”[3].

Trata-se, definitivamente, de uma questão nacional. E é com grande júbilo, mas também com alguma apreensão, que,
três anos passados, se dão por terminadas as obras do edifício e se anuncia para breve a sua abertura. Adverte-se,
assisadamente, que “um passo errado no princípio de uma carreira transtorna-a toda, aniquila-a muitas vezes.
Ninguém negará, pois, que da inauguração do Teatro de D. Maria II dependa todo o futuro, próspero ou caquéctico,
da arte dramática entre nós. Se se puder atrair a simpatia pública, se se puder introduzir o gosto em todas as classes
da sociedade pelo teatro-nacional, conseguiu-se o grande fim -- a arte dramática há-de estabelecer-se, arreigar-se,
brilhar entre nós; se isto se não conseguir -- construam-se quantos teatros quiserem, triplicadamente sumptuosos,
mas o teatro nacional continuará a ser desconsiderado, como até agora, por certas classes da sociedade”[4].

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A inauguração oficial deu-se no dia 13 de abril de 1846, com pompa e circunstância, ainda que a peça que foi levada
a cena, O Álvaro Gonçalves, o Magriço e os Doze de Inglaterra, de Jacinto Aguiar de Loureiro, tivesse pouco
impacto no público.

Imagem 7 - Teatro Nacional D. Maria II

[1] Sequeira, Gustavo Matos. História do Teatro Nacional D. Maria II.


Lisboa, s/e (vol. 1), 1955, p. 30.
[2] Revista Universal Lisbonense, 30-06-1842, p. 467.
[3] Revista Universal Lisbonense, 27-10-1842, p. 71.
[4] Revista Universal Lisbonense, 13-11-1845, p. 250.

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6. O Teatro de D. Fernando e o Teatro do Ginásio


Pouco depois de inaugurado o Teatro Nacional, entraram em funcionamento outras duas salas de teatro, que
mantiveram as suas portas abertas por longo tempo. Trata-se do Teatro do Ginásio e do Teatro de D. Fernando.

Situado no Largo de Santa Justa e edificado no mesmo local em que anteriormente existira a Igreja que dava o nome
ao largo, o Teatro de D. Fernando iniciou os "exercícios cénicos", também sob a direção de Émile Doux, agora
empresário e ensaiador, no dia 29 de outubro de 1849, festejando assim o "Aniversário Natalício de Sua Majestade
El-Rei D. Fernando". Previa-se que as actividades continuassem, sem interrupção, aos domingos e dias santos, 3ª e
5ª feiras, destinando-se a 6ª feira aos benefícios.

Comparativamente com o velho Teatro do Salitre, tratava-se, segundo a opinião de alguns, de uma "bela, agradável e
elegante sala de espectáculo", que "o asseio, a simplicidade e, em grande parte, o gosto" tornam recomendável: “A
primeira vantagem que nos oferece, além da limpeza e elegância, este novo e formoso teatro de declamação, é sem
dúvida a da luz e fácil transmissão dos sons. Aqui ouve-se e vê-se, o que não é de todo indiferente num teatro deste
género”[1]. Embora Sousa Bastos se refira a este teatro como "mal construído, de má aparência e com uma sala
defeituosa e mal ornamentada"[2], a verdade é que, em comparação com o que se podia então dispor (se
exceptuarmos os teatros nacionais), não era na altura visto como um local desagradável. A própria disposição da
sala, mais próxima do "esquema à italiana", contrastava com o formato alongado ("em corredor") do Condes e do
Salitre. A Revista Universal Lisbonense elogia, ainda que brevemente, o teatro, destacando sobretudo o facto de se
encontrar Doux à sua frente e de contar com a "excelente actriz, a Sr.ª Emília das Neves", que, na noite da
inauguração, foi abraçada por Garrett devido ao seu notável desempenho[3].

Apesar do entusiasmo manifestado na noite de estreia e em muitas outras que se seguiram, passados alguns meses
esta sala de espectáculos começa a lutar com o "desfavor público" e vê-se obrigada, não só a suspender as
representações, como a dar por terminado o contrato. É então que, num gesto elogiado por toda a imprensa, os atores
se constituíram em sociedade, oferecendo ao antigo empresário o lugar de ensaiador bem como participação na
sociedade, na tentativa de prosseguirem com os espetáculos.

Ao reabrir as portas, a 27 de julho de 1850, a companhia voltou a ter um entusiástico acolhimento, até porque optara
por um outro tipo de representações, mais ao gosto das “turbas”, recorrendo a "receitas que geram receitas", uma
prática por vezes recomendada no mundo do espetáculo. Estreou-se então uma ópera cómica de Scribe, traduzida por
Mendes Leal (Barcarola) e uma farsa lírica de Duarte de Sá (Trabalhos em vão), géneros que combinam a música e
a palavra, por vezes, "em transições bruscas e desengenhosas", produzindo uma "amálgama informe", mas a que o
público aflui, com que se extasia e que aplaude. Sem dúvida que "seguir outra vereda, unicamente por devoção da
arte, seria um nobre empenho, mas equivalia a um suicídio, no fim de tudo, inglório"[4].

Um dos trunfos que o Teatro de D. Fernando possuía quando inaugurou era ter conseguido escriturar Emília das
Neves, actriz então famosa que, no entanto, abandonou o grupo quando se instalou a crise e os artistas se constituem
em sociedade, o que, de certa forma, abalou a companhia que ficou sem a sua primeira dama. Sabemos que a
inclusão do nome deste ou daquele ator em determinado elenco podia assegurar o êxito do espectáculo. Na verdade,
o vedetismo foi um fenómeno de extrema importância no teatro oitocentista, especialmente no que diz respeito às
atrizes, cujos admiradores não poupavam esforços para as verem representar.

Por outro lado, o Teatro de D. Fernando é bastante prejudicado pelo incumprimento do disposto na legislação,
relativamente à distribuição dos espectáculos dos vários teatros por forma a equilibrar a concorrência. Os dias de
representação no D. Fernando coincidem com os do São Carlos, o que prejudica a afluência, uma vez que a ópera é,
comparativamente com o teatro dramático, bastante mais concorrida; por outro lado, as representações do Teatro do
Ginásio coincidem com as do Teatro Nacional, ganhando aquele com este facto. O Teatro manteve-se em
funcionamento durante 10 anos.

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Na altura em que o Teatro de D. Fernando abre as suas portas, já o Teatro do Ginásio funcionava, como teatro de
declamação, havia cerca de 3 anos. Este edifício foi erigido no local em que existia uma barraca de arlequins, graças
a João José da Mota, que dispunha de uma grande vontade, mas de pouco dinheiro. A construção de um teatro com
tão diminuta importância levou a que mais parecesse "uma perfeita gaiola, de tal ordem, que nem a autoridade
permitia a sua abertura, tornando-se então necessários os bons ofícios do conselheiro Silva Canelas, sem cuja
intervenção talvez se baldassem os esforços empregados"[5]. Contudo, as exíguas dimensões, a falta de comodidade
e a notória pobreza do espaço não perturbavam a sensação de simpatia e alegria que transmitia ao espectador[6].

A 16 de maio de 1846, inaugura-se aquele espaço com a apresentação de um drama original de César Perini de
Lucca, Paquita de Veneza ou os fabricantes de moeda falsa, peça em que se estreou o ator Taborda, e uma farsa
intitulada A Herdeira. O período politicamente conturbado que se seguiu não propiciou um ambiente favorável e,
três meses mais tarde, a empresa viu-se obrigada a entregar o teatro aos atores. Émile Doux, que deixara a Rua dos
Condes e passara para o Salitre, é agora contratado como "director e ensaiador" deste novo elenco e consegue, de
novo, atrair a concorrência do público. Apesar das condições insatisfatórias da sala, pode-se dizer, de um modo geral
e tendo em atenção o panorama teatral, que o repertório que leva à cena agrada. O Ginásio assume-se como um
teatro de comédia, não devendo “distraí-lo da sua natural inclinação. A comédia e a farsa gozam-se ali em toda a sua
plenitude, porque se ouvem todas as sílabas que o actor profere, porque se goza de todo o efeito que a sua
gesticulação pode produzir, o que não acontece em salas maiores”[7].

Por outro lado, sentia-se a necessidade da existência de teatros de 2ª ordem, "onde se podem com boa escola formar
artistas excelentes que possam abrilhantar a companhia do teatro nacional"[8]

Quando Doux abandonou o Ginásio, em novembro de 1848, por discordar das opções tomadas no que respeita ao
repertório, temeu-se a sua dissolução, o que, no entanto, não veio a acontecer, continuando esta casa de espectáculos
a ser igualmente concorrida. O tempo demonstrou que Doux não tinha razão, uma vez que a peça, que insistia não
dever ser representada, devido à impreparação dos artistas para cantarem, subiu ao palco cerca de 30 noites. Tratava-
se da ópera cómica A Marquesa, com letra de Paulo Midosi e música do maestro Miró.

Desassombrada agora de dívidas, a empresa oferece subsistência a 54 pessoas (artistas sócios - 13; artistas
escriturados - 6; discípulos - 2; orquestra - 15; fiscal e procurador - 1; ponto - 2; camaroteiro - 1; maquinista - 1;
carpinteiros - 3; fiel - 1; porteiros - 7; serventes – 2) e "conserva sempre em cofre um pequeno fundo para acudir a
uma imprevista infelicidade e deve tudo isto a uma boa administração e ao seu constante trabalho"[9].

Recordava-se o dia da sua fundação, em que ninguém seria capaz de lhe augurar um futuro tão próspero e dilatado:
uma casa acanhada que mais parece uma "boceta de papelão do que uma sala de espectáculo", onde actuava uma
companhia que "mal começava a gatinhar pelo palco", não constituíam componentes que garantissem um futuro
radioso. Mas a estas condições, sobrepunha-se "um local bem escolhido, um preço módico, espectáculos variados e
de um género pouco explorado", tornando aquele espaço teatral o mais concorrido da capital.

[1] Revista dos Espectáculos, 01-09-1850, p. 51.


[2] Bastos, António de Sousa. Recordações de Teatro. Lisboa: Editorial Século, 1947, p. 240.
[3] Revista Universal Lisbonense, 01-11-1849, p. 48.
[4] Revista dos Espectáculos, 01-09-1850: 51.
[5] Carvalho, Pinto de. Lisboa d’outros Tempos. Lisboa: Livraria de António Maria Pereira (vol.
[6] César Machado apud Bastos, António Sousa. Carteira do Artista. Lisboa, Antiga Casa Bertrand
[7] Galeria Teatral, 21-10-1849, p. 4.
[8] O Artista, 14-11-1847, p. 3.
[9] Galeria Teatral, 7-11-1849, pp. 1-2.

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7. A censura teatral
Em 1821, com a chegada dos liberais ao poder, tinha havido a preocupação em abolir a censura a livros e periódicos,
uma vez que uma nova filosofia estimulava a discussão e difusão de ideias. Estabelece-se o reconhecimento da
liberdade de expressão, prevendo-se, desde logo, penas no caso de abusos relativos à religião, ao Estado, aos bons
costumes e aos particulares1. No entanto, sabemos que a Constituição não vigorou durante muito tempo, sendo
substituída por uma Carta Constitucional, outorgada por D. Pedro, agora príncipe herdeiro devido à morte de D. João
VI. Estas oscilações do poder vão dar origem a uma sucessão de leis que, na generalidade, reconhecem o direito à
liberdade de expressão, liberdade esta, convém sublinhar, pautada naturalmente pelos valores morais da época.

Sem dúvida que a batalha contra a prática censória estava muito longe de ser ganha e os historiadores são unânimes
no reconhecimento do seu agravamento durante o período da governação cabralista. A década de 40 foi uma época
especialmente fustigada por leis favoráveis ao controlo censório, pelo que se desencadeia um processo defensivo.
Este, naturalmente, teve também expressão no meio intelectual ligado ao teatro.

A verdade é que a figura da censura, em novos moldes, teve origem no mesmo documento que se preocupava com o
progresso do teatro e da criação dramática. Estamo-nos a referir ao decreto-lei de 15 de novembro de 1836, o plano
da autoria de Garrett. É, segundo a nova legislação, na figura do Inspector Geral que recai a responsabilidade do acto
censório, o que será o mesmo que reconhecermos que Garrett atribui a si mesmo todas estas funções, uma vez que,
como já vimos, é de imediato nomeado para o cargo. Sem dúvida que a mentalidade oitocentista compatibilizava,
sem o menor problema, o espírito liberal e a prática de uma censura que, acreditava-se, contribuiria para acautelar a
função que consensualmente se atribuía então ao Teatro: educar e moralizar.

Uma das secções dos “Estatutos do Conservatório”, publicados em maio de 1841, ocupa-se da censura teatral, que
passa agora a ser exercida pelos sócios do Conservatório, sob a direcção e responsabilidade da "Inspecção Geral dos
Teatros e Espectáculos do Reino", onde se articula e condensa o conteúdo de vários documentos relativos a este
mesmo assunto.

Imagem 8 - Estatutos do Conservatório Real de Lisboa

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8. Uma noite
no Teatro
O século XIX recebe o
teatro sobretudo como um
divertimento festivo que
já começara também a
assumir-se como uma
forma social de convívio.
Sabemos que os liberais
realçaram a vertente
pedagógica de que se
poderia revestir esse
divertimento, pugnando
para que se tornasse,
simultaneamente, "um
grande meio de
civilização". Vejamos,
então, como se
constituíam esses
espectáculos que se
pressupunha favorecerem
o convívio, divertirem e
instruírem.

Muita e diversa era a sua


constituição. Em termos
de composições
dramáticas, contávamos
genericamente com três
grupos: comédias, farsas,
óperas cómicas e
vaudevilles; dramas e
dramas históricos;
melodramas e tragédias.
Estes géneros e
subgéneros combinavam-
se sequencialmente, sendo
norma a apresentação de,
pelo menos, duas peças
por espectáculo. Ninguém
estranhará que, numa
mesma noite e num único
espectáculo, se assista a um drama em 4 actos, a uma comédia e a uma farsa, ou até a cinco comédias seguidas.

Comparativamente, o Teatro do Salitre, talvez porque com cariz mais popular, é aquele que mais profusamente
compõe as suas noites. Para além dos textos dramáticos, é usual recorrer a outras artes, como a dança, a música ou as
artes circenses que se intercalam no espectáculo, servindo estes números, a maioria das vezes, de chamariz. Assim,
por exemplo, entre a comédia O Rachador Escocês e o "jocoso drama" O Incógnito ou a Credulidade, será

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apresentada uma cena mímica do Parricida, serão executados difíceis exercícios sobre um arame frouxo e o Sr.
Desbré "porá em prática as maravilhosas deslocações, que tantos aplausos granjearam na récita anterior"[1]. Boleros,
árias de óperas conhecidas, duetos, "pax-de-deux", declamação de poesia, etc., são outros dos divertimentos que vão
entremeando com o teatro declamado.

Mas não é apenas no Salitre que convivem as várias artes. O Teatro Nacional também compõe as suas noites teatrais
com bailados, canções e coros, tal como o Teatro de D. Fernando que recorre igualmente a este estratagema para
atrair mais público.

Naturalmente que nem todas as noites eram tão animadas, mas rara era a noite em que se assistia a um espetáculo
composto apenas por uma única peça de texto. Tal apenas acontecia com os chamados "dramas de grande
espetáculo", longas composições, normalmente ornadas de coros e acompanhadas de bailado (como, por exemplo, A
Profecia ou a Queda de Jerusalém, O Templo de Salomão, O Alfageme de Santarém).

Para além da escrituração dos atores e atrizes e de um conjunto de indivíduos encarregues de funções para-teatrais,
os teatros possuíam, regra geral, um grupo de músicos que acompanhava muitas das representações, sobretudo as
comédias "ornadas de música" e as farsas líricas, bem como, necessariamente, as óperas cómicas. Um "corpo de
baile" era um outro requisito para muitos dos dramas apresentados, embora sejam frequentes as críticas à falta de
qualidade no desempenho.

Devido à extensão dos espetáculos, o seu início era, normalmente, entre as sete e um quarto e as oito horas e, devido
à fórmula que presidia à sua composição, os espectadores nem sempre permaneciam o tempo todo. Em noites
sucessivas, as peças repetiam-se, alternada ou interpoladamente, estendendo, até ao limite, o método das
combinações algébricas. Isto deve-se à necessidade de variar os espectáculos, uma vez que o número de espectadores
era de dimensão reduzida, o que inviabilizava, por exemplo, a permanência de uma só peça durante um período
alargado de tempo. Raros são os casos em que tal acontece, o que tem como consequência, não só custos agravados,
como um pior desempenho, uma vez que o tempo de preparação de cada peça acaba por ser reduzido ao mínimo.
Normal é a recolocação cíclica, em cena, de um espectáculo que tenha obtido algum êxito, assegurando, pelo menos,
determinada receita de bilheteira. De salientar que não é raro acontecer que as peças subam ao palco apenas uma ou
duas vezes devido, por exemplo, à pouca aceitação logo no dia da estreia.

Podemos, a propósito, passar os olhos sobre o que nos revelam os periódicos relativamente ao comportamento do
público que assiste aos espetáculos dos teatros da capital. É frequente os críticos referirem que, nesta ou naquela
noite, mal se ouvia o que se passava no tablado devido às reclamações dos espectadores. No Condes, numa das
repetidas apresentações da ópera cómica Fra-Diávolo, "a pateada, os gritos, o ladrar de cães, a caçoada, o lançar
moedas no palco, etc." foi a forma como a plateia castigou "esta loucura, que não pode devidamente classificar-se",
escreve o articulista de O Pirata[2]. Apesar destes protestos, esta "cantoria" subiu, neste ano, cerca de 16 noites a
cena e continuou no ano seguinte, por outras tantas. Lá para a vigésima representação e como as pateadas não
terminassem, o actor Lisboa, dirigindo-se directamente ao público a meio da representação, disse: "Os actores que
aqui cantam não são músicos". Esta desculpa foi tomada como "uma solene e superabundante confissão de delito",
para a qual se reclamou a intervenção do magistrado policial do teatro e do inspetor geral[3].

Francisco Câncio relata-nos o comportamento de um dramaturgo, cujas peças eram representadas no Condes, e que o
autor refere como “um excêntrico de marca maior”. Passando os dias de taberna em taberna, acompanhado da sua
inseparável cadela, Almeida Araújo discursava habitualmente em praças e cafés, não lhe faltando, ao que parece,
auditório. “Numa noite em que assistiu à representação de uma sua comédia e o público aplaudia com entusiasmo,
resolveu ele pateá-la com furor. Quanto mais os espectadores protestavam, mais ele pateava e a tal ponto que a
autoridade se viu na contingência de intervir. Almeida Araújo indignadíssimo gritava: -- Então um pai não pode
castigar uma filha? A comédia é minha; não gosto, estou no meu direito de patear!”[4]

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Mas não se pense que estes comportamentos são exclusivos do público que frequenta o "pardieiro". Na verdade, nem
o São Carlos escapa a manifestações semelhantes, referindo-se a imprensa a “indignas acções que se hão praticado
na plateia” daquele teatro; “estalos de Entrudo e cebolas se atiraram ao corpo de baile, sem ao menos haver respeito
à Augusta Rainha, que se achava presente, sem vergonha da indignidade que recai sobre os encarregados da missão e
mais ainda sobre quem lha encarregou”[5].

Esta crítica indicia a possível existência de claques organizadas e orquestradas por interesses particulares, à imagem
do que acontecia nos teatros europeus. Aceite genericamente o direito, que assiste ao espectador, de reclamar, uma
vez que paga o produto desconhecendo a sua qualidade, há que não infringir o "princípio das maiorias, fundamento
essencial de todo o sistema político moderno"[6].

Este protesto, se bem que generalizado, é o resultado de um conjunto de manifestações individuais espontâneas que
não podem ser encaradas, no caso do teatro português desta época, como reflexo de qualquer organização
sistematicamente concertada. No entanto, as coisas nem sempre se passam assim. Há também "pateadas acintosas",
que têm causas estranhas à arte teatral: "enredenhos feminis", "despeitinhos de concorrentes despeitados" e
"desforras de exclusões" são algumas das más razões para que se organize uma qualquer pateada.

Os críticos da época também não vêem as claques, comuns, por exemplo, nos teatros parisienses, com bons olhos; os
seus elementos pertencem a uma instituição então considerada "ridícula, que desonra quem a emprega, é prejudicial
à arte e só serve para encobrir mazelas, sustentar nulidades artísticas e iludir papalvos"[7]. Claro está que esta é uma
época em que determinadas actrizes eram rodeadas de admiradores, que as seguiam fervorosamente e as aplaudiam
entusiasticamente. O próprio Jornal do Conservatório publica um artigo intitulado "Ver menos, gozar mais", sobre
os espectadores que levam binóculos para o teatro e mais se interessam pelo aspeto das atrizes do que pela arte
dramática[8].

Entremos então no teatro. Eis então chegado o momento da representação. Entram os músicos, executa-se a sinfonia,
levanta-se o pano. Não é muita a informação disponível que nos permita uma visão suficientemente detalhada e
simultaneamente abrangente das opções cenográficas ou mesmo do modelo comunicativo que prevalecia entre o
palco e a plateia.

Tomando em consideração o tipo de teatros então construídos, percebe-se que a utilização da chamada arquitetura à
italiana implicava a separação inequívoca entre o espaço de representação e o público. Sabemos também, pelas
tendências de época, que se pretendia um mimetismo entre o que cenograficamente era apresentado no palco e o real,
sobretudo se se tratava de um drama que pretendia retratar acontecimentos históricos, pese embora o tipo de
declamação se afastasse frequentemente do tom natural. Nos textos de publicitação dos espetáculos, faz-se por vezes
referência ao facto de se tratar de um espetáculo com cenários completamente novos e com vestuário totalmente
modificado, o que indicia a importância agora dada a estes aspetos cenográficos.

O trabalho dos cenógrafos, se bem que ainda assim não denominados, começa justamente a ser reconhecido, e
Rambois e Cinatti, dois pintores-decoradores que a ópera mandara vir para a capital por volta de 1837, tornam-se
dois nomes famosos, muito contribuindo para a alteração e valorização das opções cénicas. A direcção de ensaios,
com preocupações relativas à gesticulação dos atores, à sua disposição no palco, às entradas e saídas, etc. era um
facto sem tradição na cena portuguesa. Quando abriu o Teatro Nacional D. Maria II, em 1846, a direcção de ensaios
foi confiada ao actor Epifânio e foi a primeira vez que, nos cartazes, se fez referência à expressão “mise-en-scène”.
Esta inovação revela uma nova atitude relativamente a algo bem complexo, a que hoje chamamos “encenação”.

Na época não havia ainda o hábito de escurecer a sala com o levantar do pano de cena, mantendo-se a iluminação
central acesa durante todo o espectáculo. Evidentemente que o facto de a sala permanecer iluminada desfavorece a
atenção do público relativamente ao que se passa no palco, propiciando o carácter de reunião social que os
espectáculos do século XIX detinham. Por outro lado, devido à mesma proporção de luz, deveria haver uma maior
cumplicidade entre o palco e a plateia, facilitando, quanto mais não fosse, a troca de olhares entre quem representa e
quem assiste. Chama-se, no entanto, a atenção que um tal comportamento por parte de um actor denota pautar-se
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este por "uma escola muito atrasada". Segundo os preceitos da arte então considerada moderna, o olhar para a plateia
é um "erro gravíssimo". E a liberdade de falar com o público só se tolera na baixa comédia e na farsa, e aí mesmo
com muita parcimónia e reserva; na alta comédia e no drama é, contudo, inadmissível[9].

Sem dúvida que a teoria estética seguia os preceitos inerentes à filosofia da "cena à italiana", que se inscreve numa
geometria adoptada, como já se apontou, pelos arquitetos dos novos espaços teatrais. Erige-se o edifício, tendo por
base a absoluta separação entre o palco e a plateia, numa perspectiva de utilização da chamada "quarta parede",
superfície intransponível e que mantém a “caixinha de ilusões”. Também a mudança de cenários, trabalho de tal
forma demorado que obrigava a que se programasse um qualquer entretenimento para esse período, é feita por detrás
do pano de cena, longe da vista do público, por forma a não quebrar o clima de ilusão. Mas na realidade, este
princípio era dificilmente conseguido, uma vez que os longos intervalos faziam a mente dos espectadores divagar
por outros entretenimentos…

Imagem 9 - No camarote

[1] Diário do Governo, 09-10- 1841.


[2] O Pirata, 20-11-1842, p. 11.
[3] Cf. Revista Universal Lisbonense, 09 02-1843, p. 368.
[4] Câncio, Francisco. Lisboa: figuras e casos do passado. Lisboa: s/e (vol. 1), 1942, p. 87.
[5] Revista Teatral, 12-11-1843, p. 28.
[6] Revista Universal Lisbonense, 11-01-1844, p. 253.
[7] Revista dos Espectáculos, nº. 4, mar. 1853, p. 31.
[8] Jornal do Conservatório, 12-06-1840, pp: 46-7.
[9] Cf. Revista dos Espectáculos, nº. 18, set. 1855, p. 138.
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