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Severino E. Ngoenha e José P.

Castiano
(Coord.)

Filosofia,
Fronteiras ou Pontes?

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Filosofia, Fronteiras ou Pontes?
Severno E. Ngoenha & José P. Castiano (Coordenação)

Pontes Inter-disciplinares da Filosofia

Por: Severino Ngoenha

Filosofia e Educação: Fronteiras Movediças

Por: António Cipriano Parafino Gonçalves

Para além da Física, a Metafísica. Sem Fronteiras.

Por: Rogério J. Uthui

Filosofia e a Literatura: Fronteira Porosa?


Por: Albino Chavale
Filosofia e Educação: Fronteiras Movediças
Por: António Cipriano Parafino Gonçalves
Fronteiras das Ciências Naturais com a Filosofia

Por: Emília Afonso Nhalevilo

Na Fronteira entre a Filosofia e a Psicologia

Por: Thomas Kesselring

Os Fundamentos da Ordem Social: Reflexões de Filosofia Social


Por: Luca Bussotti
Filosofia e Estética

Por: David Silvestre Chabai Mudzenguerere

Filosofia e Comunicação
Por: João Miguel
Sobre a Ligação entre a Geografia, Ciências Sociais e a Filosofia

Por: Zacarias Alexandre Ombe

Filosofia, a Fronteira e a Ponte


Por: José P. Castiano

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Pontes Inter-disciplinares da Filosofia

Por: Severino Ngoenha

A primeira ideia era intitular a colectânea destes artigos sobre a relação da filosofia com os
diferentes saberes disciplinares; ou se quisermos o uso que a filosofia faz dos diferentes
saberes e reciprocamente, de fronteiras da filosofia. Mas a colega e amiga Emília Afonso,
sentenciando através de um provérbio nigeriano, que os sábios falam de pontes e os ingénuos
de fronteiras, levou a nos interrogarmo-nos: fronteiras ou pontes?

Se os dicionários definiram durante muito tempo a fronteira como a extremidade de um reino,


a frente de um armada, a praça fortificada fazendo frente a um inimigo; a partir do
nacionalista século XIX, a fronteira passa a ser a delimitação dos estados e, depois de Berlim
de 1885, passa para a África a delimitar as possessões das principais potências ocidentais no
nosso continente. Desta concepção belicista de fronteira permanecem ainda rastos nos nomes
que designam o limite da extensão de um território (Lourenço Marques/Delagoa Bay,
Namaacha/Suazilândia, Niassa/Malawi), a separação entre dois estados ou simplesmente a
separação entre duas coisas distintas. Onde há fronteira há diferença, e onde há diferença ela
é assinalada por uma fronteira; Esta fronteira-diferença é muitas vezes perigosa, inquietante.
As fronteiras armam-se, protegem-se, fecham-se, se libertam ou se abrem. A abertura de uma
fronteira define as condições da sua passagem.

Depois da caída do murro de Berlim, a fronteira que delimitava espaços de contraposição


ideológicos, as pedras que delimitavam os espaços nacionais foram retiradas e
simbolicamente, como já rezava um velho sonho napoleónico a propósito das pirâmides
egípcias, acumulados no que os italianos baptizaram mare nostrum, afim de sedimentar a
nova fronteira bipolar Norte - Sul.

O escritor caribeano Edouard Glissan1 diz que não há fronteiras que não ultrapassamos. De
facto, com o turismo e sobretudo com os interesses económicos, representados pelas
multinacionais, pelas transacções bancárias e sobretudo pelos cartões de crédito (Visa,
Amarican Express) que não conhecem fronteiras, faz-se ponte entre as fronteiras mais
consolidadas. Mas do Sul, a metáfora do navio historicamente negreiro e esclavagista,
metamorfoseou-se em meio da busca de sobrevivência. Com o drama e o perigo dele ser
como outrora ponte da morte (será que podemos voltar da morte como sugere a escritora
Chiziane?) ou, no melhor dos casos, de uma escravatura. Pode-se dizer “voluntária”
parafraseando La Boétie?

No Hemisfério Norte — a terra de um clima temperado, augusta, branca, desenvolvida — as


antigas fronteiras, quer sejam oceanos, montanhas ou quer sejam simples postos de controle,
passaram a ser pontes que ligam as nações europeias na sua nova aventura pós-nacional ou da
construção do maior mercado do planeta. Na África, nomeadamente na África Austral pós-
apartheid, apesar de conservarmos os postos fronteiriços, com a SADC eles tornaram-se mais
1
Il N’est Frontière Qu’on N’outrepasse, Paris, Le Monde Diplomatique, 2006.

3
brandos, mais maleáveis, mais frequentáveis, quais mini-fronteiras ou mini-pontes. O
exemplo mais eloquente é o rio Rovuma que de fronteira passa a ser a ponte que liga
Moçambique e a Tanzânia.

Contudo, existe e subsiste uma fronteira permanente no pensamento político moderno,


fronteira que põe uma diferença e estabelece um perigo, que se cristaliza no direito. A
modernidade política estabelecendo uma fronteira rígida entre os sujeitos da Ius inventiones
do hobbessiano prelúdio contratual, consegue estabelecer uma passagem, um passaporte, um
labirinto, um trilho, uma ponte de um estado para o outro? A modernidade consegue criar
pontes de passagem do estado da natureza ao estado civil, conflito ao diálogo, da intolerância
a tolerância?

A modernidade, reificando as oposições, cristalizando as diferenças, autoriza a prática da


violência como meio legal da subjugação do outro, muitas vezes, sem deixar margens e
trilhos de passagem da fronteira infame da não-humanidade versus o lado humano. Como não
concordar com Derrida quando afirma que o que se tem que desconstruir de uma maneira
permanente e constante é o direito e não a justiça?

(SEVERINO: acho que esta parte acima, sobre o Direito, ficou um pouco fora do
desenvolvimento da textatura, ou então reescreve-a)

Todavia, o conceito de fronteira é também aplicável á relação entre os diferentes domínios do


saber.

Em 1996, Alan Sokal2, professor de física na universidade de Nova Iorque, publicou um


artigo na revista Social Text, intitulado Transgredir As Fronteiras: Por Uma Hermenêutica
Transformativa da Gravitação Quântica. Algumas semanas mais tarde, ele revelou que esse
texto era uma miscelânea fabricada com base em citações de filósofos contemporâneos e
continha um número importante de absurdidades científicas e de afirmações gratuitas. Podia
ler-se, por exemplo, que a ciência moderna prova que a realidade não existe, ou que a
gravitação quântica tem profundas implicações políticas, evidentemente progressistas.

Alain Sokal diz-se inquieto e irritado pelo declínio, em certos meios da esquerda académica
americana, do nível de exigência intelectual. O principal acusado é a corrente da Cultural
Studies, um ramo pós-moderno da universidade, que pratica deliberadamente a fusão entre
uma perspectiva científica e uma interpretação literária; tendência muito em voga entre os
estudantes de ciências humanas, os especialistas de culturas minoritárias e feministas.
Segundo Sokal, os Cultural Studies exprimem uma visão relativista do saber científico.

As teses de Sokal terão um eco enorme, mesmo fora do âmbito académico, discute-se durante
meses sobre o relativismo e sobre a pertinência das ciências.

No ano seguinte, 1997, Sokal, associado a Jean Bricmont, professor de física na Universidade
de Louvain, publica, desta vez desde Paris na prestigiada editora Odile Jacob, um livro com

Nicolas Journet (2013): Pensées rebelles Foucoult, Derrida e Deleuze, L’affaire Sokal: porquoi la
2

France? Editións Sciences Humaines: Auxerre, pp 19-25.

4
um título inequivocável: Imposturas Intelectuais. Ele ridiculariza a “topologia alusiva” de
Jacques Lacan, as “matemáticas aproximativas” de Julia Kristeva, a “física inconsistente” de
Luce Irigaray, Paul Virilio e Jean Baudriallard, assim como a aplicação que Bruno Latour faz
da teoria da relatividade. Todos estes pensadores não sabem de que é que falam, diz Sokol.

Com poucas excepções, os autores visados provêem da sociologia e foram formados no


estruturalismo e no marxismo. Os seus trabalhos revelam uma certa fascinação por formas de
raciocínio lógico e científico, do qual eles se apropriam para lhe dar um outro conteúdo. A
questão levantada por A. Sokal não tem a ver com a autoridade da ciência ou com a sua
pertinência, mas com o uso trivial de conceitos da física ou da lógica. Esta maneira
desenvolta estaria intrinsecamente ligada ao desenvolvimento do relativismo cultural.

Os dois físicos concentram os seus ataques nos pensadores que usam superficialmente
conceitos da física como os da incerteza e do caos; e ou os que reciclam fórmulas
especializadas como: espaço não euclidiano, equação logística da física, da lógica, da
geometria ou da matemática usadas com frequência por filósofos como Lacan, G. Deleuze e
F. Guatarri, B. Latour, L. Irigaray. Os físicos denunciam uma suposta interpretação abusiva
de teorias científicas, baseada sobre uma incompreensão e mesmo ignorância.

Os jornais deleitam-se e levantam questões como: os filósofos são impostores? Os


intelectuais não valem nada? Mutatis mutandis, A. Sokal e J. Bricmont são acusados de ódio
para com as ciências humanas, de racionalistas obtusos, de autoritarismo, de imperialismo, de
estupidez, etc. A insolência dos dois físicos, a sua maneira agressiva de praticar a denúncia
pública e de “corrigir as vírgulas” dos mestres enervara os meandros das ciências humanas e
transformou o debate numa troca de acusações recíprocas.

Os filósofos denunciados pelos físicos pertencem a aquilo que os americanos apelidaram de


French Theory3 . De que e que se trata?

A partir dos anos sessenta a filiação intelectual muda radicalmente: passa-se da geração dos
três H (Hegel, Husserl e Heidegger) à geração dos mestres da suspeita: Karl Marx, Friederich
Nietzsche, Heidegger e Sigmund Freud4. Obviamente que se trata de apenas uma tendência,
pois encontram-se sempre pensadores que se inspiram de E. Husserl e M. Heidegger, todavia
a dialéctica do espírito e a fenomenologia, são as correntes de pensamento contra as quais se
combate. A Hegel se reprovava o facto de sistematicamente reduzir a diferença num
pensamento do absoluto. A palavra de ordem que emerge na década sessenta é pensar o
múltiplo e a diferença. Encontramos este tema nas obras de G. Deleuze Diferença e
Repetição, mas também em J. Derrida, o pensador da diferença. Deste pensamento da
diferença se pode também aproximar uma nova concepção da história, já não concebida como

3
François Cusset (2013): La French Theory. In: «Pensées rebelles Foucoult, Derrida e Deleuze »,
métisse transatlantique, Editións Sciences Humaines : Auxerre, pp.11-18.
4
Catherine Halpern (2013): Pensées rebelles Foucoult, Derrida e Deleuze, Si loin, si proches, Le
retour de trios pensées critiques. Editións Sciences Humaines : Auxerre, pp. 5-10.

5
desenrolamento cumulativo da razão mas, pelo contrário, como ruptura, como
descontinuidade.

Quanto à fenomenologia, que triunfa nos anos cinquenta, se lhe reprovava o facto de se ter
fechado de uma maneira ingénua na ideia do sujeito. Com efeito, a inspiração fundamental da
fenomenologia consiste em meter em causa a ideia de um pensamento objectivo: as coisas
existem para uma consciência que as percebe ou as representa. Em suma, o ser é um ser-para-
mim. Mas isto significa admitir a existência do sujeito sem nunca interrogá-lo. É exactamente
esta ideia do sujeito unificado e transparente para ele mesmo que se questiona violentamente
sobre a influência de S. Freud e do estruturalismo. A psicanálise, nomeadamente com o
conceito de inconsciente, redimensionou a soberania do sujeito. O estruturalismo, por seu
lado, evidencia de uma certa maneira o poder das instituições sobre os indivíduos. Deleuze e
Guattari, em Anti-Édipo, mas sobretudo em Rizoma, fazem explodir a bela unidade da
subjectividade e comparam as ciências como tubérculos mais ou manos mal-formados de
composição rizomática, enquanto Foucault mostra, por sua vez, como a ideia do sujeito é
uma construção histórica. Derrida defende que o próprio Heidegger não chega a libertar-se do
humanismo metafísico que ele denuncia.

Se K. Marx e S. Freud alimentam todas as reflexões da época, um capítulo a parte deve ser
reservado a F. Nietzsche; de facto, este faz soprar um vento de subversão sobre a filosofia,
metendo em causa, quer o primado da verdade como da moral ascética. Nietzsche interroga a
vontade da verdade, que ele suspeita constituir um marcador de relações de força. Esta ideia
influenciara muito a reflexão de Foucault quanto às relações entre saber e poder, e emprestara
também do filósofo alemão o conceito de geneologia. De facto, na retomada do pensamento,
Nietzsche aparece como uma terrível máquina de guerra contra a ideia tradicional da verdade,
concebida como adequação (adequatio intelectus rei). Deleuze aprendera a lição e defendera
uma filosofia que não procura representar de maneira adequada um mundo que lhe pré-existe,
mas que visa a inventar conceitos.

Considera-se comummente, como momento fundador da French Theory, o simpósio


organizado em 1966 pela Universidade de Johns-Hopkins de Baltimor, no qual participaram
muitos pensadores franceses, em geral ligados aos movimentos estruturalistas como Lucien
Goldmann, Jacques Lacan, Roland Barthes, J. Derrida. Este último, numa comunicação muito
comentada, convida a substituir a face negativa e nostálgica do estruturalismo, que sonha em
decifrar a verdade, por um pensamento que afirma o jogo e tenta passar para além do homem
e do humanismo. Este convite do pós-estruturalismo é o primeiro de uma longa série de
correntes (pós-modernistas, pós-coloniais) onde o “pós” soa como um lapsus, como
reconhecimento da distância insuperável do presente histórico do trabalho teórico, que só
pôde chegar depois do evento.

A entrada gradual dos textos dos autores da French Theory nos meandros académicos
efectua-se através dos departamentos de literatura, primeiro francesa, depois inglesa e enfim
comparada. A ecologia disciplinar e o velho conflito entre faculdades constituem aqui um
parâmetro decisivo: não só num campo de estudos profundamente em crise epistemológica,
mas a apropriação destes novos textos vai servir de alavanca para uma nova suspeita narrativa

6
nos campos epistémicos afins — a filosofia, a história — como narrativas a desconstruir. Os
jovens universitários vão servir-se da “genealogia” de Foucault para ler Cervantes ou da
noção deleuze-guatariana de “literaturas menores” para reabilitar, descobrir, desvelar, no
sentido de Dussel, o que até então está velado: African-American Studies com Frantz Fanon
ou Edouard Glissant, os Chicano Studies sobre a identidade hispânica e os estudos feministas.

Estamos diante do fim de uma fronteira epistémica e do estabelecimento de uma ponte entre
domínios de saber que a até então viveram em autarcia: da filosofia à literatura ou se
quisermos do conceito ao texto.

No seminário de abertura doutoral em 2013, o primeiro em absoluto no espaço africano de


língua oficial portuguesa, convidamos alguns parceiros internacionais do Quénia, do Brasil,
de Portugal, da França, da Suíça, etc. Um dos convidados, o professor P. Vermeran, decano
de filosofia da Universidade Paris VIII, famosa pelo seu papel nos eventos de 68 que marcou,
e de certa maneira contribuiu, para a transformação da universidade nos seus métodos de
ensino e na sua orientação epistemológica, famosa também por nela terem moliyado
personagens de primeiro plano no âmbito filosófico dos últimos vinte anos como Foucault,
Derrida, Ricouer, Badiou, Lacan, Lyotard (os apóstolos da French Theory) teve uma postura
assaz surpreendente:

Como todos os convidados, ele tinha-nos mandado o título e o resumo da sua intervenção em
precedência. Porém, depois de apresentarmos o historial da filosofia em Moçambique e as
linhas de orientação teórico-epistimológicas do nosso doutoramento, ele pediu para mudar de
tema e apresentar o pensamento de Derrida, segundo ele, para estar mais em conformidade
com as nossas linhas de orientação. A apresentação de Vermeren era um resumo da
introdução a um livro colectivo que resultou de um colóquio do Museu de Arte Moderna de
2010 sobre as fronteiras da filosofia.

Refazendo-se a figura de Derrida, Vermeran defende que a filosofia estaria na fronteira, pelo
menos, em três sentidos diferentes5:

1) Considera a língua da filosofia: a filosofia é uma ambição universal da razão, mas


ao mesmo tempo, ela manifesta-se por momentos inteiramente singulares, no
espaço e no tempo. Alain Badiou defende que existe um momento filosófico
francês na segunda metade do seculo XX, comparável em dignidade ao momento
grego clássico ou do idealismo alemão. Este momento filosófico francês iria de
Sartre, a Deleuze, passando por Badiou, Bachelard, Levy-Strauss, Merleau-Ponty,
Lacan, Altusser, Foucault, Derrida.

A questão que esta deixa me suscita, e se não podemos falar de um momento


filosófico africano que iria de Alain Locke a Hountondji, passando por Towa,
Eboussi, Wiredu, …

Se uma das especificidades do momento filosófico francês foi a invenção de um


estilo específico, num trabalho paciente sobre a língua; o momento filosófico
5
VERMEREN, P. (2010): Fronteiras da Filosofia (tradução livre).

7
africano, como o momento grego, é um momento fundacionista, que sem
abandonar a ambição universal da razão, levanta questões das fronteiras dentro das
quais a filosofia africana se deve vislumbrar. Trata-se de fronteiras abstractas entre
domínios da teologia (James Cone), antropologia (Hountondji, Eboussi-Boulaga,
Towa), linguística, literatura (Langston Hugues, Claude Mackay, Césaire, Senghor,
C.H. Kane), política (Du Bois, Nkrumah, Cabral), artísticos (Leroi Jones dito
Baraka, Filomeno Lopes) que historicamente estavam encurralados em fronteiras
(limites) disciplinares e que doravante se vêm confrontadas com o imperativo de
serem pontes e horizontes orientados a um objectivo filosófico comum.

2) Como o Derrida que Vermeren6 pinta no seu livro — nascido na Algéria, excluído
do Liceu pela aplicação das leis anti-semitas do governo de Vichy — os
protagonistas do momento africano, pelas suas biografias e percursos de vida,
também são homens de fronteira. Nascidos em África mas franceses, ingleses ou
portugueses; nascidos e educados em línguas africanas mas escolarizados em
línguas europeias, homens de duas culturas, sujeitos da antropologia, mas em
conflito com ela, tradicionais e modernos, homens da oralidade e da escritura,
cooptados pela cultura ocidental mas marginalizados por ela; que gritam com
Langston Hugues a sua twoness, com C.H. Kane a sua mestiçagem…

3) Uma terceira maneira de estar na fronteira 7 seria a construção de uma filosofia no


terreno das margens (etnofilosofia, que se constrói sobre a etnografia que por sua
vez se constrói nas margens da história e da sociologia), ou e a construção de uma
filosofia crítica, que na verdade é uma dupla deconstrução: em primeiro lugar da
etnofilosofia e o questionamento do seu estatuto epistemológico, mas também da
etnologia como lugar epefânico da revelação do africano. Mas ao mesmo tempo,
um estar fora da antropologia que nunca se consuma, pelos anti-críticos, críticos
convertidos e retornados como Hountondji, assim um apelo do retratamento e da
europeização epestimológico-racialista da tradicional filosofia ocidental. Desta
maneira, a filosofia africana está dentro e fora da antropologia, dentro e fora da
história e da sociologia, dentro e fora da tradicional filosofia ocidental e da sua
história.

A instar do conceito derrediano de deconstrução, o momento filosófico africano apresenta-se


como subversão as regras, ao estatuto e as fronteiras tradicionais dos saberes instituídos e
institucionalizados, com a intenção de reivindicar um espaço dentro da enciclopédia dos
saberes, mas estando sempre fora deles8. Trata-se de uma ideia de reivindicar uma
irracionalidade racional (Césaire definido erradamente, por Breton, como mestre do
surrealismo), na contestação das pseudo-hegemonias ou superioridades de certas tradições de
pensamento e de saber sobre as outras, sem sucumbir em falsas comparações igualitaristas,

6
Ibidem.
7
Ibidem.
8
Conferência de Patrice Vermeren em Maputo.

8
mas sobretudo, uma contestação do monopólio ou exclusividade da racionalidade de certas
tradições de pensamento em detrimento de outras.

Se para o Derrida da Gramatologia9 tinha que se substituir o modelo do logos pelo modelo
escritoral, a filosofia africana interroga-se sobre o estatuto da oralidade e da escrita, postula a
necessidade de construir uma filosofia no fio fronteiriço entre a oralidade e a escrita. Isto é,
de uma oralidade escrita (que se pode escrever ou transcrever) e de uma escritura oral
(Kuruma, Ala non est pas oblige). Mas também, na velha tradição de Dunbar, valorizar e
sublimar no quadro da literatura científica os denegridos dialectos ou buscar as fontes nas
tradições africanas, com faz o afroncetrismo e, ultimamente, o que se veio a cunhar por
ubuntuismo.

Se no seu processo deconstrutivo Derrida quer retomar contacto com Heráclito e os pré-
socráticos, o momento africano também, mas por razões diferentes, pois esta apela-se aos
pré-socráticos mostrando a ligação intrínseca entre a filosofia e o mito, e até vai mais longe,
represtinando criticamente a ligação entre o momento grego e a tradição egípcia (C. Anta
Diop e seguidores) (Olá SEVERINO: Não se percebe bem o que faz o “Momento
Africano”. A frase não termina). Porém, se a deconstrução derridiana, como notou Sarah
Kofman, apela a uma nova construção, o momento africano propõe-se a construir o twoness
(Langston Hugues), rendes-vous do donner e do recevoir (Senghor), consciente de uma
diferença de passados mas de uma interculturação necessária do futuro (C.H. Kane)

Como a deconstrução de Derrida trabalhado de uma maneira inédita na forma como na


aplicação de certos conceitos específicos (greffe, disseminação, diferença, traço, suplemento)
sobre uma série de textos filosóficos (Platão, Hegel, Heidegger, Aristóteles, Nietzsche, Kant,
Montaigne, Marx, Kiekegaard), psicanalistas (Freud, Lacan), literários (Kafka, Blanchon,
Leiris, Joyce, Ponge, Bataille, Genet, Cixous, Celan, Jabes, Artaud, Mallarme) se faz a
experiência de uma escrita poliforme, assim também o momento africano interroga textos de
antropologia, de direito, de religião, das artes, da história, da literatura, do conto, do romance,
da poesia, da psicologia (Frantz Fanon), etc. Por outro lado, inventa formas inéditas de
escritura como são o Cahier de un Retour au Natal de Cezaire, erradamente qualificado por
Breton de surrealista, os romances de Kuruma, onde caiem as fronteiras entre a oralidade e a
escrita, o romance de C.H.Kane onde são tratados de uma maneira romanceada, ou ainda os
romances de Ben Okra onde a vóz dos espíritos dos mortos se confunde com a voz de pessoas
vivas — aliás ao estilo do Rapaz Trompeta do vencedor do Nobel, o alemão Gunter Krass —
os principais temas da filosofia.

Por consequência, o momento africano, tal como a deconstrução derridiana e o momento


francês, rompe com o rígido determinismo da divisão entre filosofia e literatura herdada de
Platão. Hountondji dirá que a filosofia só pode existir sobre forma de arquivo, de literatura,
de escrita.

O momento africano, sem nunca cair na facilidade dos pós-modernismos e por isso mesmo
do relativismo (Langston Hugues diz que eu também sou América; Senghor inscreve a sua
9
DERRIDA, J. (1997) : De la Grammmatologie, Paris: réed, Minut.

9
reflexão no que ele chama de rendez-vous do donner e do recevoir, Kane diz que os destinos
isolados acabaram, não temos o mesmo passado, mas teremos necessariamente o mesmo
futuro).

O momento moçambicano, com José Castiano e Emília Afonso, reflecte sobre os saberes
locais, que é uma maneira de romper também com a barreira que separa as ciências humanas
dos saberes positivo-experimentais, instaurados por Descartes e Francis Bacon e perpetuados
pelo campo científico até a Escola de Viena. Com as nossas próprias reflexões, sobretudo a
partir do livro Das Independências às Liberdades (Ngoenha 1993), o momento moçambicano
da filosofia passou a desafiar as fronteiras entre a filosofia e a história ao definir a busca da
liberdade como fulcro da historicidade africana, e as fronteiras entre a filosofia e a política,
ao interrogarmo-nos sobre os possíveis futuros das liberdades perante o predomínio da
economia sobre o político (biopolítica).

Por todas estas razões, o momento africano parece posicionar-se sobre (SEVERINO: ou em
cima das fronteiras????) as fronteiras, porque deve reinventar continuamente a sua
linguagem, porque se encontra culturalmente imbricado entre a oralidade e a escritura, entre a
tradição e a modernidade, a estigmatização antropológica e a afirmação histórica de si; enfim,
nas fronteiras intelectuais e académicas entre dois mundos, que não são a África e o ocidente
espaciais e geográficos, mas espaços antropológicos insistas nos eus existenciais dos próprios
protagonistas do momento africano. (SEVERINO, o sublinhado não se compreende; precisas
de reformular!!!!)

Como a deconstrução derridiana do momento francês, o momento africano é um trabalho de


fronteiras textuais e contextuais, num esforço de pensar o infinito.

Uma outra maneira utilizada por Derrida-Vermeran para declinar o tema e a questão da
pluralidade das línguas na Europa, que segundo ele(s), deveriam ser protegidas, preservadas o
que seria uma garantia da identidade dos diferentes povos; tese já defendida a seu tempo por
Kant. No momento africano, todavia, a questão das línguas se apresenta de uma maneira
diferente …

Se para Kant, a barreira das línguas na europa representa o baluarte mais sólido contra todas
as veleidades de opressão, no momento africano a hegemonia científica do inglês e do francês
na esfera do conhecimento são, ao invés, os sinais mais claros da dominação cultural que
continua a assolar o continente. Assim as línguas coloniais e neocoloniais esmagam com a
sua presença as diferentes identidades autóctones, deixando que a única identidade pela
língua sejam os espaços da geopolítica colonial, representados porque aquilo que passaram a
ser as línguas nacionais.

O momento africano viveu de línguas externas ao continente, mas isso mostra ou demonstra
como o momento africano vive na fronteira linguística, na corda bamba, de ter que afirmar a
sua edeidade através de um utensílio, instrumento, artefacto externo, que por sua vez
representa o encobrimento das identidades autóctones.

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Paradoxalmente, o momento africano não teria existido como africano, se essas línguas
exógenas não se tivessem imposto. Quer dizer, a afirmação de uma identidade africana, do
qual o momento africano é intérprete passa por esta fronteira; passa por uma dimensão de
apropriação do exógeno. Mas todo o processo de apropriação supõe uma dimensão selectiva e
uma injunção do próprio no outro, a africanização das línguas europeias que, por isso mesmo,
deixam de ser europeias e passam a ser africanas.

Se pegarmos no exemplo de Moçambique, a afirmação de uma moçambicanidade passou


necessariamente pela adopção do Português como língua nacional, isto é, língua capaz de
aglutinar falantes de línguas presentes no espaço moçambicano a um paradigma comum. A
língua de opressão que se torna instrumento da criação ou pelo menos de facilitação da
construção de uma identidade, que ser quer moçambicana e africana. Uma vez mais estamos
diante de numa fronteira paradoxal. (SEVERINO: somente para sermos mais coerentes: a
Swazilândia, o Botswana, o Lesotho, etc., são monolinguísticos, todavia mantêm a língua
oficial colonial. Como se pode explicar isso no esquema “fronteiras-pontes”?

Este paradoxo acentua-se hoje, onde a afirmação de uma identidade moçambicana num
contexto da África Austral e numa SADC dominada pelo inglês, passa pelo ancoramento a
língua portuguesa. Não são os portugueses que nos interessam, não é a língua de Camões que
nos preocupa, não é um português dos Lusíadas que faz a lusofonia que está no centro das
nossas preocupações, mas a afirmação de uma moçambicanidade. Então trata-se de uma
língua de fronteira, que sem poder despir-se das suas amarras culturais que cada língua traz
consigo, vem despida dos seus elementos lusos, para ter uma nova indumentária das culturas
locais, dos falares e dos sentires locais. Trata-se de uma língua despedida dos seus
condicionamentos culturais, uma língua culturalmente solta, e como um esperanto,
alimentada, nutrida, fertilizada pelo estrume das culturas, dos falares, dos dizeres, dos
sentires locais; o que não tem nada a ver com as preocupações luso-hegemónicas das
Fundações Camões, Gulbenkian nem se sequer com a CPLP e a uniformização gramatical.

Neste sentido, se a preocupação derridiana de inventar uma língua na língua é pertinente para
o momento francês, o momento africano, moçambicano, alimenta-se de uma língua de
fronteira, cujos signos relevam do português, mas os conteúdos, os significados, as
preocupações que essa língua trata, relevam da afirmação de uma identidade que se vai
construindo na fronteira ou nas fronteiras entre o português e as línguas (significados,
interesses, preocupações, fonéticas que nos são próprias) constitutivos do momento
moçambicano, expressos nos trabalhos de Mia Couto, de Chiziane, Ba Ka Khosa, entre
outros.

Trata-se de uma língua/linguagem que permite a comunicação, mas também de um


instrumento que pode permitir a fortificação de uma identidade, que de per si é já híbrida e
em construção, numa fronteira/ponte, que permite unir no interno, defender-se das
ingerências de outras línguas identitárias (inglês nas fronteiras), mas também de uma pseudo-
pureza do português dos outros. Trata-se, em definitivo, de um português hospitaleiro, capaz
de acolher no seu interior os falares locais.

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Vermeren fala, enfim, da justiça como experiência do impossível em Derrida, em oposição à
positividade da metafísica; trata-se de experiência aporética, pois ela deveria equacionar a
justiça, que releva da ordem do incalculável com o direito, que pertence à ordem do
calculável.

O momento africano nasce e perdura neste paradoxal aporético: a sua génese é indissociável à
deconstrução, é denúncia da(s) falácia(s) intelectual(is) e moral(is) da Ius inventionis, do
código de Luís XIV, do(s) direito(s) colonial (is), nas quais a normatização (de nomos) das
injustiças se fazem através de codificações jurídicas, o que esvazia e tira todo o sentido ao
conceito mesmo de direito.

O momento africano nasce na fronteira da África com o exílio, o que se pode chamar,
parafraseando Eboussi Boulaga, de paradigma diasporático; um exílio aporético porque não
escolhido mas imposto pelo direito dos mais fortes contra a justiça. E um exílio que não
permite a integração, por isso obriga o diasporático a viver nas margens, na esfera do não-
direito e da não-humanidade. O cume desta situação, ou a aporia desta fronteira/tragédia, é
que ele não pode ter o passaporte de retorno; não é autorizado a sair das margens e voltar a
atravessar a fronteira da não-humanidade em direcção a um mundo que lhe possa acolher e
reconhecer. Parece destinado a viver no limite entre a humanidade e a não-humanidade, entre
a natureza e a cultura; na fronteira entre a liberdade prerrogativa indelével na construção do
artefacto cultural e o seu encobrimento.

Paradoxalmente, este imbróglio axiológico da antinomia entre justiça e direito é hoje


perpetuado por regimes intramurros, que apesar de se apelidarem republicanos, populares e
democráticos, se denotam completamente incapazes de uma justiça de reconhecimento de
igualdade na dignidade para todos; de uma justiça distributiva; de uma justiça costureira,
capaz de tecer os fios díspares dos nossos ethos, num tecido social unívoco.

Por último Vermeren invoca a derridiana democracia-por-vir, uma democracia para além da
política. Mas como buscar uma tal democracia na fronteira instável e aporética entre o direito
e a justiça, que não conhece fronteiras entre as elites — coloniais e pós-coloniais —
detentoras do poder?

O momento filosófico africano situa-se, por conseguinte, na fronteira deconstrutiva do(s)


direito(s) opressor(es), que eles mesmos se situam entre duas fronteiras, aquela legitimada
ontem pelo(s) poderes coloniais, e a outra pelo(s) poder(es) neo-colonial(is): a fim de afirmar,
de uma maneira assertórica, a contínua busca da justiça como seu imperativo axiológico e
moral. Justiça essa que, para Derrida, reveste-se de um carácter de indestrutibilidade e
indeconstrução; enquanto o direito é descosntrutível e continuamente perfectível. Ou como
rezava o adágio latino, Iura semper reformanda.

Durante o período de mais um terno conflito militar, apenas velado, o terceiro em


Moçambique é o segundo entre nós, um grupo de intelectuais moçambicanos, proveniente de
horizontes intelectuais, disciplinares, institucionais e até ideológicos dos mais dispares,
reuniu-se num acto de cidadania e de repúdio à guerra, num colóquio de dois dias na

12
universidade a politécnica, hóspedes do professor Lourenço do Rosário, mas a ideia deste
encontro foi sugerida pelo professor Brazão Mazula. O tema do encontro foi Cidadania para
Poucos ou para Todos.

A democracia-por-vir10, no contexto moçambicano e africano, talvez tenha que ser o


imperativo de estender concretamente, nas condições que são as nossas, a democracia; quer
dizer direitos, a participação, o reconhecimento, as benesses (munias) de alguns privilegiados
a todos.

Isso passa necessariamente pela deconstrução da dólar-cracia ambiente, de uma partitocracia


a um espectro de participação mais amplo. Para que ela seja mais participativa e menos
elitista, a democracia tem necessariamente que adequar as suas instituições, as suas
linguagens nos imaginários culturais ao falar das pessoas, aculturar-se aos imaginários
colectivos. Breve, ela tem que passar por um contracto cultural. Como já dizia o poeta Claude
Mackay, buscar no povo, inspirar-se no povo não em acto de barbárie mas na cultura ela
mesma. E Amílcar Cabral acrescentaria que, antes do estado ou do partido está o povo.

Este é o desafio perene e constante de toda a filosofia: fazer com que em todas as
circunstâncias, tempos e lugares se dê primazia a busca da justiça. Dizer, em todas as
circunstâncias espácio-temporais o filósofo milita ou deve militar pela justiça, significa aderir
ao postulado derridiano da territorialização cultural desnacionalizada do filósofo; isto é, do
facto que o filósofo não deve ter fronteiras, e não deveria ter passaporte. Como não fazer
própria a máxima de Terence Homo sum, nihil quid humanum a me alienum puto (sou
homem e nada do que é humano me é estranho).

Tirar o passaporte, os documentos ao filósofo significa des-estigmatiza-lo, tirá-lo das amarras


das etnicidades, do particularismo onde foi impressionado pela etnologia e pela filosofia
eurocêntrica de tipo hegeliano, que pretende ser a única produtora do universal, relegando,
como diz Bentacourt, as outras tradições de pensamento nas margens e no particular.

O momento filosófico africano, como toda filosofia, milita pelo universal mas como toda a
filosofia, parte do seu particular — Ortega e Gasset diz que eu sou eu e as minhas
circunstâncias —, mas a condição marginal da sua particularidade faz com que ela tenha um
estatuto fronteiriço.

O que nos interessa e nos parece epistemologicamente pertinente nos pensadores da chamada
French Theory é a dimensão ecuménica do filosofar — o que e também praticado por uma
outra corrente contemporânea que e a Escola de Frankfurt —, como diria Edgar Morin, que
toma em conta a complexidade da existência. As suas obras não cessam de abordar os limites,
de fazer pontes; de multiplicar as fontes, de mergulhar nos arquivos, de fazer apelo a textos
literários; isto sem nunca abandonar a filosofia. Serve-se da heterogeneidade e multiplicidade
disciplinares ao proveito da unicidade e da filosofia. Como em Foulcault abre-se à história, à
psiquiatria, ao direito, à política, à antropologia, à sociologia; com Derrida, à política, ao

10
VERMEN, Patrice, Fronteiras da Filosofia, 2010 (tradução livre).

13
direito, à literatura, à geografia; com Deleuze à psicanálise, ao cinema, à literatura; e com
Lyotard à educação, à arte, etc.

Com efeito, o cunho teórico e epistemológico da filosofia moçambicana não pode ser
produção e o ensino de um enciclopedismo, ou de uma simples erudição finalizadas a elas
mesmas, mas a convocação da filosofia, na sua história, nos seus métodos e descontinuidades
para ajudar a clarificar e contribuir a resolver os problemas do homem moçambicano. A
questão que então se levanta está, pois, ligada ao tipo de conhecimento pertinente para ajudar
o homo moçambicanus a fazer face aos problemas histórico-temporais com os quais está
confrontado.

A melhor maneira de organizar os conhecimentos sobre o homo moçambicanus é metê-los


em contexto (político, económico, antropológico, ecológico, etc.), e a criação de pontes
disciplinares entre os diferentes saberes. Como dizia A. Pascal, tem que se recompor o todo
para conhecer as partes. A fronteirização e o parcelamento entre as disciplinas, as fronteiras
estanques e a incomunicação permite ter peritos sobre aspectos particulares, mas não permite
um conhecimento geral, total, global sobre a realidade nem do homem moçambicano, nem da
sua realidade e da sua condição sócio-histórica. Por consequência, os resultados das
investigações não seriam suficientes nem pertinentes para trazer respostas aos problemas do
presente nem adequados a perspectivar o futuro.

Houve tempos, em Moçambique, em que a formação de professores era interdisciplinar:


Geografia/História, Matemática/Física, Biologia/Química. Quando a filosofia fez surface, ela
pretendia inserir-se e continuar a tradição do diálogo interdisciplinar. Ela pretendia que os
estudantes de filosofia tivessem uma segunda disciplina, não só exclusivamente das áreas das
humanidades, mas também das áreas científicas. Isso não foi então conseguido mesmo se as
áreas educativas (pedagogia, didáctica, psicologia) são parte integrante da formação dos
professores e que a própria filosofia está inserida na universidade como um departamento
dentro de uma faculdade de ciências sociais a qual inclui Geografia, História, Psico-
pedagogia, Antropologia, Sociologia, etc. Falta nesta orquestra, todavia uma autêntica
sinfonização, isto é, uma interacção, um diálogo constante entre as diferentes áreas
disciplinares. Este esforço começou a engodar-se na abertura do nosso doutoramento, onde
convidamos a geografia a interagir connosco com resultados deveras positivos. Este elã
continuou com o colóquio doutoral na qual associamos a literatura, as ciências de educação, e
as ciências matemáticas e naturais.

O presente trabalho representa uma ampliação das pontes interdisciplinares, evidentemente a


partir da abordagem filosófica que nos é específica. Este é o ponto de partida daquilo que
podemos chamar, parafraseando Derrida, a filosofia-por-vir. De facto, se a filosofia deve
partir do contexto, das particularidades, dos problemas concretos das pessoas, urge que nos
concentremos sobre a democracia actual para, a partir dela, construir uma democracia-por-
vir; urge que nos ocupemos da fome, da pobreza, da produção alimentar de todos, da gestão
equitativa dos recursos. Estes fundamentais mas complexos, dos quais a filosofia não pode

14
fazer a economia, ela, a filosofia, não pode abordá-los nem contribuir sozinha na sua
resolução. Só pode fazê-lo fazendo pontes com outros saberes11.

O momento africano tem isto de excepcional: a nossa experiência histórica trágica e de


fronteira entre humanidade e animalidade, converte-se paradoxalmente num lugar de
esperança. Assim, o momento africano é profunda e intrinsecamente marcado pelo binómio
trágico-auroral, ele ultrapassa a dimensão histórica e contingente para se tornar numa
categoria metafísica. Esta esperança, que de sofrimento (que segundo Blyden os africanos
partilhariam com os judeus) se torna possibilidade de justiça, não só para nós, mas em
possibilidade de transformar o sofrimento de todos os homens em possibilidade de esperança.

O momento africano faz do exílio algo de sagrado e de inefável do qual a vida necessita, para
estar “sempre a subir” (como dizem os angolanos), para evitar de se despedaçar, de tratar
com tempo dando-se assim uma imagem clara do nosso ontem que se situa na época das
luzes, da esperança, a hora que anuncia o futuro (we have tomrrow, Langston Hugues) e que
exprime numa palavra livre que, por sua vez, liberta e constitui o âmago da sua contribuição.
It is feels good to be an African today, diria Mbeki no seu discurso I am an African, querendo
marcar, ao colocar o acento no today, o fim da época do Black is beautfull, aliás, o renascer
daquela mesma época num novo momento africano.

11
Cfr. NGOENHA, S.E. & CASTIANO, J.P. Introdução. In : “O Curandeiro”, Revista Moçambicana
de Filosofia, nr. 0/2013, Maputo, Moçambique.

15
Filosofia e Educação: Fronteiras Movediças

Por: António Cipriano Parafino Gonçalves

Introdução

Dissertar sobre as fronteiras entre a Filosofia e a Educação, considerando a universalidade da


intenção da Filosofia que, conforme elucida Lima Vaz (1997), abrange todos os campos da
cultura, não se afigura como uma tarefa fácil. A diculdade da escrita também está relacionada
aos termos Educação e Fronteira em razão da polissemia dos seus respectivos significados, o
que torna volátil a compreensão dos da especifidade dos mesmos. Por isso, uma digressão
sobre a temática que pretenda ser inteligível e, por via disso, alcançar um relativo sucesso,
passa necessariamente, primeiro, pela explicitação e delimitação dos conceitos e, segundo,
pela enunciação da tese a ser defendida. É o que faremos a seguir, a começar pelo termo
fronteira, depois Filosofia e por último Educação. Após essa digressão, retomaremos a
articulação entre esses conceitos para, finalmente, explicitarmos a nossa posição sobre a
inexistência, strictu senso de uma fronteira entre a Filosofia e a Educação.

A Fronteira

O termo fronteira remete ao campo da geografia e tem sido entendido como uma linha
física ou simbólica que serve para demarcar os espaços. Assim sendo, a fronteira é algo
limitador que marca e separa os âmbitos de actuação e espaço possível de movimentação dos
actores sociais.

A fronteira dividindo e distanciando, se afigura como uma relação de limitação e de


mútua exclusão, cuja passagem de um lado ao outro exige-se uma autorização. O estrangeiro
que atravessa a fronteira sem essa autorização, automaticamente torna-se um ilegal (Águas,
2013). Além da ideia associada à linha que separa, Águas sublinha que a fronteira pode ser
pensada em dois outros significados, quais sejam, “fronteira como frente e fronteira que
une” (Aguas, 2013:3). Ditanciando-se da fixedez inerente à linha divisória, a fronteira como
frente, conforme sublinha a autora em referência, citando Ribeiro (2006), “é uma fronteira em
movimento, em progressivo distanciamento do centro […] um espaço marcado por certa
fluidez e criatividade, mas também por relações desiguais e pelo poder sem limites” (Águas,
2013:3). Por fim, a fronteira que une é um mundo de encontros e de negociação, mais que de
avanço e de distanciamento em relação ao centro. É um local de encontro e de trocas.

Duarte, explorando o conceito de fronteira em Deleuze, sublinha que fronteiras são locais
de mutação e subversão, regidos por princípios de relatividade, multiplicidade, reciprocidade
e reversibilidade em que os limites são ultrapasados (Duarte, 2005:1).

16
Essa suscinta digressão em torno do conceito de fronteira é para explicitar que o termo
não pode ser assumido no sentido limitador, mas sim na sua dinamicidade ao propiciar
intercâmbio frutífuro entre dois mundos. Alias, como Águas (2013) refere, os poderes
centrais nunca consiguiram controlar o intercâmbio que ocorre entre os povos fronteiriços.
Há certas porosidades que permitem o deslocamento de uns e de outros para ambos os lados
sem que, com isso, sejam considerados estrangeiros ilegais. É essa relação fronteirça que a
Filosofia mantêm com a educação: uma fronteira cambiante, movediça, de negociação e de
trocas constantes, destituida de relações de poder (Foucault, 2008). Passemos a elucidação do
conceito Filosofia.

A Filosofia

O termo Filosofia, como atestam os manuais de História da Filosofia, proveio da


aglutinação de dois vocábulos gregos (philo =amigo) + (sophia = saber), isto é, amigo do
saber, pelo que o Filósofo é considerado um amigo do saber . Nascida na Grécia Antiga nos
séculos V e IV a.C, de uma conjugação de uma série de factores, com particular destaque o
aparecimento de uma nova ciência, o logos demonstrativo, cuja inspiração são os nexos
causais e necessários que caracterizam os fenómenos da natureza. Com base no logos, os
gregos passaram a abordar o real obedecendo o critério de razões plausíveis logicamente
demonstradas.

Ao longo dos quase 2000 anos de sua existencia, a Filosofia, não tendo encontrado
respostas para as suas indagações, tem sido questionada sobre a contribuição que ela pode
trazer para a humanidade. Posições extremas contra a Filosofia questionam se ela é mesmo
necessária. Nas Instituições de Ensino Superior, os que fazem o curso de Filosofia não poucas
vezes são vistos, pelos seus colegas de outros cursos, como uns “loucos”, pessoas que não
estão bem da cabeça. Dois questionamentos são dirigidos aos estudantes de Filosofia: para
que vai servir essa Filosofia? O que você há-de fazer com essa Filosofia?

Esses questionamentos são próprios, se assim podemos dizer, do senso comum que considera
aquele que estuda a filosofia somente sob o aspecto “profissional”. O estudante de Filosofia
não poucas vezes é confundido com um advinho, perguntando-lhe, por exemplo, se sabe ler a
mente das pessoas. Ao estudante de Filosofia é também perguntato se ele possui respostas
rápidas para quase todas a situações, podendo desarmar os adversários nas contendas
argumentativas.

Neste mundo, em que boa parte das pessoas estão preocupadas em estudar para ganhar
dinheiro, estudar para ter um bom emprego, faz sentido dedicar-se a algo apenas por amor à
verdade, por amor ao saber? Aparentemente, os problemas com os quais a Filosofia se
ocupou, parecem não terem oferecido nenhuma contribuição positiva para o progresso da
humanidade. A medicina, por exemplo, até hoje nos supreende com suas descobertas,
possibilitando uma cura rápida para as várias doenças. A química e a física fazem maravilhas.
Quando há um problema político em Moçambique são convidados os analistas políticos na

17
Televisão para falarem sobre o acontecimento. O mesmo não acontece em relação ao
filósofo: ninguém recorre ao filósofo para aumentar a produção de uma região. Para isto
servem a ciêncica e a técnica.

A Filosofia parece ser algo ridículo, pois as especulações com as quais se ocupam os
filósofos, influenciando também os que querem estudar a filosofia, são supérfluas,
extravagantes, absurdas, parecendo às vezes verdadeiras loucuras. Sua linguagem não passa
de um palavreado incosequente. O facto dos filósofos nunca chegaram a um consenso sobre a
solução dos problemas por eles levantados, leva a que se considere a Filosofia como algo
aparentemente frustrante. Com efeito dizia Voltaire que “desde Brama, Zoroastro e Thao até
os nossos dias, cada filósofo construiu seu sistema e não se encontram dois que sejam da
mesma opinião. È um caos de ideiais, no qual ninguém chegou a entender-se (...) neste
conflito eterno de temeridades e ignorâncias, o mundo sempre foi como vai: os pobres
trabalharam, os ricos gozaram, os poderosos governaram, os filósofos discutiram, enquanto
os os ignorantes partilharam a terra entre si.
A Filosofia pode ser perigosa, pois questionando tudo, até as coisas sagradas, como a
existência de Deus, a liberdade humana, a capacidade de chegar a verdade, o filósofo ameaça
a ordem estabelecida. Ela abala as certezas e crenças que fundam a vida individual e social,
corroi as convicções, embota os sentimentos e paralisa a acção. É, como sublinha Lima Vaz,
a singularidade do modo de pensar da Filosofia, na sua relação coma cultura, com uma
presença inquietante, que caracteriza “a atopia, o não- lugar do filósofo no mundo dos
homens” (Lima Vaz, 1997: 6). Com efeito, ao fazer da razão a instância última da crise ou
julgamento de todas as manifestações da cultura humana, “ aos olhos do homem comum, o
caminho da Filosofia parece conduzir a terras ignotas e estranhas” (Lima Vaz, 1997: 6).

Num emaranhado de idéias como estas, a filosofia terá algo a dizer de si própria se,
algumas vezes, têm sido os próprios filosófos a duvidarem do que se ocupam? Marx (2005),
por exemplo, afirma que “os filósofos tentaram interpretar o mundo, agora trata-se de realizá-
lo” (11a Tese sobre Feuerbach).

Essas perguntas sempre irão continuar, desde que quem as faz não tenha clareza sobre o
que é Filosofia. Por isso, é importante ver a Filosofia na sua especificidade, as razões do seu
surgimento numa dada cultura, a cultura grega, a relação que manteve e continua a manter
com a cultura, a sociedade e os homens.

Admitindo que toda a cultura repousa seus pressupostos implícitos que são explicados
através da razão, conforme explicava o professor Javier Herero nas aulas de metafísica na
Faculdade Jesuita de Filosofia e Teologia, a cultura ocidental, na qual nasceu a Filosofia, está
baseada num pressuposto básico fundamental. Ela põe tudo (todas as obras culturais) em
referência a uma justificação racional. A civilização ocidental é uma civilização da razão,
porque nela se acentuou de modo irreversível a justificação racional da cultura ou das obras

18
culturais. A justificação ou explicação racional é a referência ao logos demonstrativo12 ou
científico. É desse logos ou saber demonstrativo que, como foi anteriormente sublinhado,
surgiu a Filosofia como a sua expressão mais ambiciosa. A partir deste momento em que a
cultura descobre a razão e coloca tudo em relação a ela, surge a cultura ocidental. A única,
entre todas, que fez da razão o seu emblema, a coloca no centro.

A descoberta grega do logos demonstrativo e a legitimação social de seu uso foram a


causa próxima do aparecimento do saber filosófico e da vida a ele consagrada. Este saber
filosófico é um dos elos que nos unem a cultura grega clássica e que assegura a continuidade
do que chamamos cultura ocidental. Portanto, é inconcebível pensar a cultura ocidental e
todas as suas obras sem a Filosofia.

Tomo a liberdade de expor, neste texto, os apanhados das aulas da disciplina de


Metafísica oferecida pelo professor Javier Botin Herero na Faculdade Jesuíta de Filosofia e
Teologia, no longíquo ano de 2000. Conforme argumentava Herero, o pressuposto do pensar
ocidental foi formulado por Hegel na sua Filosofia do Direito como: “o real é racional e o
racional é real.” Esta formulação não pode ser aceite no sentido de esgotar a racionalidade.
Uma formulação para este pressuposto é: “o real é radicalmente inteligível”, ou seja, não
podemos separar o ser13 do logos.14 “O ser é radicalmente inteligível”. A razão é incorporada
na realidade. Caso contrário a própria natureza não teria leis.

O evento marxiano do fim da Filosofia é um dos elementos teóricos-culturais na história


das ideias que mostra a radicalização da ambição filosófica na cultura ocidental. O evento
marxiano significa o “fim da Filosofia” como realização efectiva da essência filosófica da
cultura ocidental. Trata-se da mundanização da Filosofia, isto é, o tornar-se mundo e do
advento do reino da liberdade15 ou reino da razão.

Realizar a Filosofia no sentido de realizar a racionalidade suprimindo o irracional, ou


seja, a alienação. Quando isso acontecer a filosofia acaba, não porque se tenha tornado inútil,
mas porque se tornou realidade. Toda cultura será então filosófica, racional e haverá o reino
da liberdade, no sentido do homem realizar as suas obras em sentido da razão. A liberdade
consistirá em trabalhar e relacionar-se com os outros seguindo a razão e não em opções
irracionais. A filosofia “mundanizar-se-á”, ou seja não, será mais uma superestrutura
ideológica. E, em toda a cultura que a Filosofia se faz presente, é uma cultura obrigada a dar

12
Platão (2005) compara o logos ao sol – sua maior experiência foi o encontro com o logos
demonstrativo.
13
O ser é diferente de Deus. O ser engloba o absoluto e o contigente.
14
Não se pode pensar o racional independentemente do real. A razão não é uma entidade pairando no
ar. A razão fora do real não existe, não há uma razão subsistente.
15
Para Marx é o reino da razão realizada. A primeira alienação é econômica, esta provoca e leva
consigo as outras alienações: burguesa, religiosa ...

19
razão de si mesma, a se justificar reflexivamente, uma tarefa que somente a própria Filosofia
é capaz de a realizar (Marx, 2005).

A radicalização da ambição Filosófica na cultura ocidental também pode ser


exemplificada pelos desafios da racionalidade Tecno-científica que estão inscritos no
Itinerário da Filosofia como forma da civilização ocidental. É um facto que a ciência reina
soberana atualmente, nesse sentido pode-se falar de uma época de cientifização. A
racionalidade científica tem uma herança, ela é um produto da cultura ocidental, cultura que
produziu a filosofia. Isto significa, a mesma cultura se pergunta pelo significado da ciência
atual. A racionalidade tecno-científica coloca, pela sua própria natureza, desafios, problemas
para a cultura ocidental16. Esses dois factos são provas evidentes de que a cultura ocidental
colocou a razão no centro e este fez um questionamento total das coisas.

Se a cultura ocidental é uma cultura da razão, é legítimo afimar que ela se tornou
filosófica porque fez a experiência filosófica. A experiência filosófica se configurou como
experiência do méthodos, do caminho que deve levar a uma fundamentação absoluta. Os
sofistas ameaçaram introduzir o cepticismo na cultura grega e, para responder a este risco de
cepticismo ou de irracionalismo, começa a experiência filosófica como método, como busca
de um caminho que leve até o fundamento.

A busca de um caminho, antes de ser uma experiência filosófica, e receber propriamente


uma conceitualização rigorosa, foi possibilitada por uma experiência específica e
profundamente humana. Referimo-nos à experiência de transcendência, tal como ela é
referenciada por Lima Vaz (1997). O significado do termo transcendência aponta na direção
de um movimento de subida ou de ascensão. Transcender significa ir além, subir, ascender.

Conforme explica o autor em referência, em sua singificação antropológica, a


transcendência é típicamente humana, no sentido de que é próprio do homem, enquanto um
ser aberto e de forma intencional “transgredir sob diversas formas os limtes da sua situação
no mundo e na história” (Lima Vaz, 1997:194). É, portanto, característico do homem ter um
horizonte, não ficar preso nas malhas do instinto. Desde que o homem transgrediu os limites
impostos pelo instinto, a sua característica é sempre ir além, transgredir as fronteiras do
mundo entendido como horizonte englobante das experiências imediatas. Nesse sentido o
homem é um ser cuja natureza é ultrapassar a sua própria natureza.

É nessa forma de experiência da transcendência, caracterizada como teoria do ser, que se


faz presente o discurso demonstrativo da razão consagrado com o nome de Filosofia. Neste
contexto histórico-cultural a busca do caminho surgiu como uma experiência histórica e
como uma experiência teórica. A experiência filosófica se deu, pois, como expressão do
método que deve levar a um fundamento, pelo que a Filosofia se afigurou como a busca do
fundamento.

16
Livro fundamental: J. Ladrière. Os desafios da racionalidade. São Paulo: Vozes, 1979.

20
A cultura ocidental que deu origem à Filosofia vê surgir diante de si um paradoxo: a
Filosofia é, por um lado, uma obra produzida por essa cultura, mas por outro lado ela surge
com a intenção de compreender e explicar o todo da realidade e por conseguinte a própria
cultura da qual procede. Por isso, como sublinha Lima Vaz, “toda a cultura em que a
Filosofia se faz presente, é uma cultura obrigada a dar razão de si mesma, a se justificar
reflexivamente, uma tarefa que somente a própria Filosofia é capaz de a realizar” (Lima Vaz,
1997:3-4). Nessa justificação reflexiva da cultura a ser levada a cabo pela Filosofia, nenhum
dos campos da primeira escapa da indagação Filosófica que não é somente pelo fundamento
bem como pelo sentido. Dentre os vários campos que compõe a cultura, a Educação se
afigura como um dos principais.

A Educação

O termo educação provém de dois vocábulos latinos: os verbos educare e educere,


respectivamente. O verbo educare guarda o entendimento da educação como cuidado e
alimentação. A partir do verbo educere, a expressão educação leva à idéia de extrair,
“conduzir para fora, fazer sair, tirar de” (Oliveira, 2005:26)17. A educação envolve, portanto,
dois aspectos: cuidar, fazer aflorar e conduzir. Para Kant (1996) defende que, por educação,
deve-se entender o cuidado, a disciplina e a instrução. Ao cuidado correspondem a educação
física, à disciplina e a instrução, que fazem parte da formação, dizem respeito à educação
prática.

Autores como Iori (2003)18, Passmore (1980) e Reboul (1974)19 sustentam que o
significado do termo educação está envolto em ambiguidades. Conforme argumenta Iori, um
dos factores que explica a ambigüidade do significado da educação é a associação de muitos
sinônimos para a expressão educação. Às vezes, entendeu-se e continua a se entender a
educação como aprendizagem, ou como formação e como instrução (Iori, 2003, p.54). Essas
expressões são temas correlatos à educação, não abarcam, portanto, a totalidade do
significado da educação. Além do uso de temas correlatos à educação, a mesma autora
também refere que têm sido tomados os âmbitos da educação, quais sejam, a educação moral,
a cívica, a ambiental e a cognitiva (Iori, 2003, p.54), como significado do conceito de
educação.

Diante da ambiguidade semântica, Iori define a educação como um fenômeno complexo


e relacional, em que dois ou mais sujeitos interagem, o educador e o educando. Nessa
interação, a educação afeta tanto o educando quanto o educador, embora o educador tenha
maiores responsabilidades sobre o educando. Ao educar, o educador também se educa.

17 Ivanilde Apoluceno Oliveira. Brasileira, graduada em Filosofia e Doutora em Educação pela PUC-SP. É professora da Universidade do Estado do Pará.

18Vanna Iori é italiana, Doutora em Pedagogia, professora de Pedagogia Geral na Universidade Católica de Milão.

19Filósofo francês, nascido em 1925 e morto em 2002. Especialista em Filosofia da Educação. O texto de Reboul que usamos é a tradução do seu livro, feita por Olga Pombo

em 2000, “La Philosophie de l’education”, publicado em Paris pela PUF em 1971. Assim, a referência do ano que usamos é a do original e as das páginas, as da tradução. O
texto está disponível em http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/hfe/cadernos/ensinar/reboul.pdf. Data de acesso :29.03.2008

21
Assim, os efeitos da educação se manifestam tanto no educador quanto no educando. Não
existe uma absoluta assimetria no campo da educação, conforme o significado do termo
usado pela autora.

Quanto à complexidade do fenômeno educacional, Iori (2003:57) sustenta que tal


complexidade deve-se aos vários aspectos subjacentes à educação, tornando-a objecto de “um
conjunto articulado de teorizações”. Essas teorizações visam a esclarecer os aspectos
específicos da educação — os determinantes da educação. A educação, sendo multifacetada,
constitui-se objeto de estudo de várias disciplinas, que formam as ditas ciências da educação.
Como objecto de estudo de várias disciplinas, a educação é um fenômeno pluridisciplinar.
Nas diversas disciplinas que se ocupam dos aspectos específicos da educação, esta acabou
assumindo significados específicos, facto que leva a que o conceito de educação seja
polissêmico e não unívoco (Iori, 2003:58).

Observações sobre a ambigüidade semântica no uso da expressão educação também se


fazem presentes nas reflexões de Olivier Reboul (1974). O autor, em primeiro lugar, critica o
reducionismo que se tem feito ao significado do termo educação. Conforme ele, quando se
fala em educação, comumente, tem-se pensado logo na escola. A educação, entretanto, tem
lugar, primeiramente, “na família, sem falar do meio termo que é constituído pela rua, o
desporto, os movimentos de juventude, os media, etc” (Reboul, 1974:1). Dando congruência
a esta ideia, o autor sublinha que não deve reduzir-se a educação ao ensino 20, pois ela possui
outras dimensões, quais sejam, a física, estética, moral, afectiva entre outras (Reboul,
1974:1).

Um outro equívoco apontado pelo autor em torno da educação, diz respeito aos seus
respectivos sujeitos. Em muitas teorias educacionais, a referência à educação tem sido a
criança21. Para Reboul é equivocada essa visão, pois, esquece-se que mesmo na condição de
adulto, ao educar as crianças, ele está constantemente se educando. Quando não por educação
formal — a educação dos jovens e adultos, os programas da terceira idade nas universidades
— a experiência da vida constitui uma forma permanente de educação para os adultos.

Em relação à extensão da educação aos adultos, Iori refere que a educação, tendo-se
destacado como “fenômeno permanente da existência humana” abrange “todas as idades da
vida e, assim, também a idade adulta e anciã” (Iori, 2003:54): não existem limites para a
educação. Quando cessa o que se convencionou chamar por educação formal, a experiência
da vida e outros espaços, quais sejam, a família, os movimentos sociais, os grupos especiais,
também educam.

20 Sobre a discussão do conceito de ensino ver Passmore (1980).

21 O conceito de infância é o ponto de partida de Kohan (2003) para a crítica da educação como formação. Conforme Kohan, esse entendimento de educação conjugado com o

da infância como o “sem voz” mutila, não possibilitando o pleno desenvolvimento da infância. Na verdade, Kohan retoma o velho debate na história da filosofia ocidental sobre
a dupla concepção da infância que alimentou as teorias educacionais de diversos pensadores: de um lado os que possuem a visão negativa da infância, vista como sujeito de
sentimentos que necessitam ser transformados e, de outro, os que consideram o caráter irredutível da infância, apelando para o seu livre desenvolvimento com pouca intervenção
dos adultos. Uma breve exposição sobre essas duas correntes filosóficas com relação à infância e os desdobramentos educacionais está em Ghiraldelli Junior (2000).

22
Considerando os argumentos apresentados por esses dois autores, pode-se inferir que a
educação parece não ter um objecto de estudo específico que garanta a sua respectiva
cientificidade. Em todo caso, tentamos aqui estabelecer um significado preciso da educação.

No sentido de conduzir e fazer aflorar, a educação, para nós, é um processo de formação


e socialização do indivíduo, visando a sua respectiva humanização. Além de uma práxis
social, a educação é uma ciência que tem no seu centro o Homem e a sua respectiva
humanização. Somos de concordar com Victor Paro quando afirma que educação tem de ser
entendida como a “apropriação da cultura” e, sendo assim, ela “ apresenta-se, pois, como
atualização histórico-cultural” do homem (Paro, 2008:4, grifos nossos). Nesse processo de
humanização, ao Homem é-lhe propiciado apropriar-se do património cultural acumulado
pela humanidade (Paro, 2008).

Na condução do processo, a educação usa um conjunto de mediações e de acções que


visam o pleno desenvolvimento do ser humano nas suas dimensões física, intelectual e
espiritual. É um processo de condução que, tendo seu início quando do nascimento, prolonga-
se por toda a vida, em que pesem as críticas da relação educação e infância efetuadas pelos
defensores da irredutibilidade da infância.

Assim entendida, a expressão educação possui uma singularidade: a sua exclusiva


extensão ao ser humano. Kant (1996) é categórico na defesa da exclusividade do termo
educação como atributo do ser humano e também oferece uma base antropológica que
sustenta o conceito de educação como processo de condução da formação e socialização dos
indivíduos. Segundo Kant, a educabilidade diz respeito somente ao ser humano. Os animais
podem ser treinados, adestrados, mas nunca educados. É a educação que, para Kant,
possibilita ao Homem se tornar Homem22. A necessidade de o Homem tornar-se Homem, em
Kant, está fundamentada no caráter imperfeito da natureza humana. Devido a essa
imperfeição, ele deposita as esperanças na educação: o vir a ser do Homem depende da
educação e, por isso, afirma Kant, é nela que se esconde “o grande segredo da perfeição da
natureza humana” (Kant, 1996:16).

Levando em consideração as reflexões de Kant (1996), de Vanna Iori (2003) e de Reboul


(1971), pode-se afirmar que falar da educação, é falar do Homem. Pelo facto da educação
dizer respeito apenas ao ser humano e este ser o centro daquela, Kant defende que uma boa
educação “é a fonte de todos os bens nesse mundo” (Kant, 1996:23). Dada a singularidade da
educação e também do Homem com relação à educação, esta não pode ser reduzida apenas à
uma dimensão: ela, como processo de condução da formação da socialização do indivíduo,
envolve os cuidados, a disciplina e a instrução.

Os cuidados com o corpo, além da alimentação, no entender de Kant (1996), visam a


impedir que as crianças façam o uso nocivo de suas forças. Mesmo incluindo a noção de
cuidado como parte do conceito de educação, Kant insiste na disciplina e na instrução, como
22 Para evitar as críticas feministas, no conceito de Homem estão incluídos os homens e as mulheres como seres humanos.

23
aspectos fundamentais dos quais a educação tem de se ocupar. A necessidade da disciplina,
junto com os cuidados do corpo, logo na infância, para o autor, resulta de uma certa
“brutalidade” humana, em função de sua inclinação à liberdade (Kant, 1996). Deixando que o
Homem siga os seus “caprichos” durante a sua juventude, com base no atributo de liberdade,
ele, afirma Kant, poderá conservar uma certa “selvajaria” por toda a vida (Kant, 1996:14).
Embora a disciplina e a instrução sejam parte de um único processo de formação, a disciplina
é a responsável por orientar a liberdade do homem para que faça o bom o uso da mesma, não
seguindo, portanto, os seus caprichos.

Para que o Homem não desenvolva a sua “animalidade”, vivendo independente de


qualquer lei, é necessário que seja educado. Através da educação, pode-se transformar a
animalidade em humanidade, impedindo que o “homem se desvie do seu destino” (Kant,
1996:12), qual seja, a realização da própria humanidade, que corresponde à submissão às leis
da humanidade. O Homem é, portanto, na concepção de Kant, um ser “selvagem” que precisa
ser educado de modo a se tornar humano. Por isso, a educação, sublinha Kant. “é o maior e
mais árduo problema que pode ser proposto ao homem” (Kant,1996:20).

É a educabilidade, portanto, que distingue o Homem de outros animais. No entanto,


afirmar que é a educação que transforma a animalidade do homem em humanidade, não
significa equalizar o Homem ao animal. A antropologia cultural já há muito destacou que o
Homem, como animal, é um ser despreparado. Os outros animais que habitam o planeta Terra
são naturalmente programados: os seus instintos condicionam, à partida, todo o seu agir.
Kant, entretanto, afirma que o Homem não possui instintos, mas é dotado de liberdade, por
isso, deve formar, “por si mesmo, o projeto de sua própria conduta” (Kant, 1996:12).

A liberdade do Homem é em relação ao ambiente, isto é, não está preso ao habitat, não
depende do meio: ele é capaz de reorientar a sua vida, adaptando-se a novas situações por
mais complexas que sejam. O despreparo natural do Homem, exemplificado pelo seu corpo,
não significa, necessariamente, que ele não seja possuidor de instintos. A educação é também
um processo de orientação dos instintos, de modo que o agir humano não prejudique a si
mesmo e aos os outros.

No acto do nascimento, como afirma Ruben Alves (1980), o Homem tem o seu corpo,
mas não é o seu corpo. É um ser aberto ao mundo, não sabendo o que de fato virá a ser. Por
natureza, é imprevisível o que o homem será e como irá futuramente agir. Como ser
“naturalmente” despreparado, livre do ambiente, o Homem viu-se obrigado e ainda continua
obrigado a construir o mundo propriamente humano. Esse mundo é denominado de cultura.

A cultura, como natural humano, a segunda natureza (Ngoenha, 1994), possui duas
dimensões: a material, resultante da transformação da natureza para a satisfação das
necessidades humanas fundamentais, quais sejam, aquelas que incluem o cuidado com o
corpo: alimentação, vestuário, produção de artefatos para as diversas finalidades, até para a
arte de guerrear. A outra dimensão é a simbólica, na qual estão situados os pontos cardeais

24
que orientam o agir humano. Dessa dimensão fazem parte os valores, as crenças, numa só
palavra, o ethos, que deveria tornar possível a convivência, em princípio, harmoniosa entre os
humanos. Nessa dimensão simbólica, a cultura se afigura como a luta do Homem pela
construção coletiva de sentido23.

A educação, como processo de condução da formação e da socialização do indivíduo, é


indissociável da cultura nessas duas acepções. Além do termo educação também significar
cultivar, com relação à primeira dimensão da cultura, a educação é a responsável pela
transmissão de experiências passadas úteis à preservação da vida. Ela também prepara as
novas gerações para darem continuidade à busca de soluções para os diversos problemas de
ordem prática e teórica com os quais os Homens se defrontam. Nesse sentido, estamos
perante a educação como instrução, uma das dimensões da formação.

Na relação com a cultura simbólica, a educação tem por tarefa assegurar a permanência
do ethos-hábito no tempo (Lima Vaz, 1999:40), na mesma proporção que a tradição, termo de
origem latina tradere, traditio, que significa transmissão, garante a duração do ethos-
costumes no tempo (Lima Vaz, 1999:40).

O entendimento da educação como mediação para a transmissão do legado cultural


também é afirmado por Jaeger (1979). Conforme esse autor, é por meio da educação que a
comunidade humana conserva e transmite a sua peculiaridade física e espiritual (Jaeger,
1979:3). Através da educação, acrescenta ainda o autor citado, o homem propaga a sua forma
de existência física e espiritual, através da qual os adultos buscam passar o seu sentir à nova
geração (idem:3).

É necessário transmitir o legado simbólico, pois a reconstrução constante do ethos em


cada nova geração, segundo destaca Lima Vaz (1999), afigura-se como tarefa extremamente
difícil. A tradicionalidade do ethos possibilita que os “ethos dos diversos humanos resistam
às usuras do tempo e às mudanças advindas de tradições estranhas” (Lima Vaz, 1999:40). A
destruição da tradição é também a destruição do processo de transmissão. Uma vez destruída
a tradição, o legado espiritual que uma geração deixa para a outra, a vida espiritual dos mais
variados grupos humanos está fadada a mergulhar no mar do não-sentido.

Assim, indissociável da cultura, e esta sendo uma construção humana, a educação se mostra como algo especificamente humano: somente o Homem pode

ser educado e ele é o que a educação faz dele. A educação, enquanto ciência tem como objecto a humanização do homem e, a ciência específica que teoriza sobre

a educação deu-se o nome de pedagogia (Pimenta, Franco e Libaneo, 2011).

Filosofia e Educação: Fronteiras Movediças

Explicitados os significados conceitos de fronteira, de Filosofia e de Educação em uso neste texto, estamos em mínimas condições de discutir as fronteiras

entre a Filosofia e a Educação. Por fronteira, recorrendo a Águas, nós aqui a entendemos como um espaço marcado por certa fluidez e criatividade, mas também

por relações desiguais e pelo poder sem limites” (Águas, 2014:3). Não é, portanto, uma linha divisória, demarcando espaço de distanciamento, cuja transgressão

23 Uma rápida reflexão sobre cultura e sentido ver em Lima Vaz (1997): “sentido e não sentido na Crise da modernidade”.

25
incorre-se na condição de ilegal, mas sim, um lugar que une, um mundo de encontros e de negociação, mais que de avanço e de distanciamento em relação ao

centro. É um local de encontro e de trocas.

A Filosofia é este saber desinteressado para cuja emergência, factor decisivo foi o aparecimento do logos demonstrativo, levando a que a civilização

ocidental colocasse todos os seus eventos em referência a esse logos ou a razão.

Como afirmado na introdu;áo, a Filosofia possui uma intenção universalizante e um


modo de proceder singular. A universalidade da intenção filosófica porque, de acordo com
Lima Vaz (1997) a Filosofia, tal como é entendida e praticada na tradição ocidental, abrange
todos os campos da cultura, esta entendida, conforme Paro, como tudo que o homem produz
em sua transcendência da natureza. Nenhum campo da cultura escapa a intencionalidade da
Filosofia ou da razão. Por outro lado, o modo de pensar filosófico é singular, devido ao
procedimento reflexivo da razão. Por isso, afirma Lima Vaz, a Filosofia, ao penetrar nos
vários domínios da cultura, inverte a sua intencionalidade espontânea e “impõe-lhes uma
tarefa de auto-fundamentação reflexiva, uma tarefa que somente a filosofia pode fazer” (Lima
Vaz, 1997:4). Por isso, sublinha o autor, “uma cultura na qual a filosofia se faz presente, é
uma cultura obrigada a dar razão de si mesma”, (Lima Vaz, 1997:4), isto é, a justificar-se
filosoficamente. Essa singularidade do modo de proceder da Filosofia também leva a que a
sua presença na cultura seja uma necessidade, à medida que ela coloca a pergunta pelo ser e
pelo sentido da cultura, ou seja, a pergunta pelos fundamentos da morada que o homem
penosamente constroi em sua transcendencia da natureza. É na transcendência da natureza
que a educação aparece como processo de humanização do homem, transformando, como diz
Kant, a animalidade em humanidade. A educação é, portanto, uma obra da cultura humana.

A educação como obra da cultura não escapa a intencionalidade universal da Filosofia e


da singularidade do seu modo de proceder. Perguntando pelo ser e pelo sentido da cultura, na
encontro com a educação como campo da cultura, a Filosofia também interroga pelo ser e
pelo sentido da educação. Numa palavra, ela pergunta pelos fundamentos da educação, isto é,
pelo sentido da humanização em cada época histórica. Dessa pergunta emerge um diálogo
constante entre a Filosofia e a Educação, tornando tênue uma demarcação de espaços e de
território do que pertence à Filosofia e do que pertence à educação, respectivamente.

Ademais, a história das ideias no ocidente é prova de que a reflexão educacional foi obra
dos filósofos, neste caso aqueles que pejorativamente os manuais os cunharam de sofistas.
Como escreve Reale (1993), as doutrinas sofistas tiveram um elevado significado para a
história do ocidente, pois foi com eles que “ o problema educativo e o empenho pedagógico
emergiram ao primeiro plano e assumiram novissímo significado” (Reale, 1993:195). Os
sofistas inauguraram a paideia, isto é, o ideal de formação humana.

Filósofos como Sócrates, Platão e Aristóteles não somente se preocuparam com a


educação, eles próprios foram grandes educadores. Filosofavam educando e educavam
filosofando. É o que nos testemunha os diálogos platónicos, tendo como principal
personagem Sócrates. Este, na praça pública buscava convencer aos seus concidadaos e
seguirem o caminho da virtude. Foi por essa razao que foi acusado e condenado à morte.

26
Sócrates foi um um educador incansável e chamava-se a si mesmo por parteiro das ideias.
Platao fundou a academia e tinha a forte crença que a Polis seria justa quando fosse
governada pelos Filosofos. Razão porque compreender o pensamento filosófico de Platão
exige ter-se presente a sua visão educativa.

No diálogo a República, a preocupação central de Platão (2006) é a formação de um


Estado perfeito e de uma sociedade também perfeita e justa que na qual Sócrates teria
sobrevivido. Por isso, para que factos como aqueles que aconteceram com o mais justo de
todos os homens, Platão pede que se dê atenção especial à formação dos futuros "guardiães"
da Polis.

Na modernidade, além de Kant (1996) já mencionado, as ideias educacionais de um


outro Filósofo são provas elucidativas do diálogo permanente entre a Filosofia e a Educação,
não se estabelecendo uma fronteira no sentido restrito do termo. Trata-se de Rousseau, cuja
proposta pedagógica, expressa na obra do Emilio ou da Educação, tem um único objectivo: a
educação dos cidadão que irão fazer valer o Contrato Social, isto é, instaurar uma nova
sociedade, logo que se sair da cidade corrompida.

Apoiado numa concepção negativa da vida social da sua época, em resposta à Hobbes
que afirmava a bondande social do homem, Rousseau, no contrado social, sublinha o caracter
corruptor da sociedade, negando o vinculo malicioso que existe na natureza humana: neste
estado cada um está perfeitamente isolado e indiferente aos outros, existe por si mesmo e só
processa o que é necessário à conservação de sua própria vida. Assim é necessário que cada
um abandone a soberania individual , para se submeter ao contrato.

Um contrato, no dizer de Ruby (1998), que faz aparecer os únicos direitos possíveis,
neste caso os civis. Este contrato, é também a resposta de Rosseau na sua preocupação se não
é possível se fundar uma comunidade humana sem a necessidade do recurso à força, à
cupidez e à vaidade: uma comunidade que se alicerçasse inteiramente na submissão de todos
a uma lei reconhecida interiormente como coerciva, mas necessária.

É dele a teoria da vontade geral que, por sua vez, vai desembocar no Contrato Social:
uma vontade genérica, universal, que expresse como o homem sensível se submete ao
homem inteligível, isto é, quando a vontade individual, mesmo pressionada pelas paixões,
obedece à lei racional, quando o particular se organiza em função do todo. É nesta vontade
geral do povo que está fundada a soberania, negando o pensamento de Hobbes: o cidadão
torna-se a origem e a garantia da lei comum ao ultrapassar sua particularidade, na unidade e
felicidade de uma cidade Una. Por isso, é necessária uma correcta educação do Emílio para
participar no contrato social, que vai fundar uma nova sociedade. Era, então, necessário,
construir a Escola do Homem Novo!

Essa pequena incursão na antiguidade clássica, em que não falamos dos sofistas, é
elucidativa que em relação à educação, a Filosofia não estabelece com ela nenhuma fronteira.

27
Entre os dois campos de saber existe um diálogo e trocas permanentes. É das tentativas da
busca de resposta à pergunta para que educar, ou qual o sentido da educação em cada
contexto histórico de que se ocupa a Filosofia da Educação que difere radicalmente da
sociologia e da antropologia da educação. A Filosofia, se assim podemos dizer, é fundante da
educação e esta, por sua vez, possibilita que a primeira se actualize e se expresse. As suas
fronteiras são cambiantes e modeviças.

Posto isto, sustentamos que não existe, taxativamente, uma fronteira entre a Filosofia e a
Educação. Esses dois campos de saberes são intercambiaveis e congênitos. O evento da
Filosofia na tradição ocidental, tal como nos é ensinado nos manuais da História da Filosofia,
é concomitante à educação. A primeira nasceu como uma tarefa eminentemente educativa e a
segunda tornou-se um empreendimento filosófico: filosofa-se educando e educa-se
filosofando. A possibilidade de se pensar uma fronteira entre a Filosofia e a Educação,
portanto, é admissível desde que a essa fronteira seja entendida no sentido de mútua
possibilitação e não de demarcação. Uma fronteira, assim por dizer, movediça.

28
Bibliografia

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Relações Fronteiriças a partir de Três Modelos de Análise. Forum sociológico. 23 (2013),
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RUBY, C. (1998): Introdução à Filosofia Política. São Paulo: UNESP.

29
Para além da Física, a Metafísica. Sem Fronteiras.

Por: Rogério Uthui

Introdução: a Física e a Metafísica

Três questões importantes. Primeira questão: o termo “metafísica” surge de forma


prática, quando Andrónico de Rhodes, categorizando os escritos aristotélicos, arrumou
primeiro os livros que falavam da cosmologia (da Física) e os restantes ficaram apenas
“para além” dos da Física. Esta arrumação obedecia, porém, a uma certa lógica.

Albino Chavale defende, algures nesta colectânea, que “o desenvolvimento da ciência


tem sido acompanhado por um processo de fragmentação” (Chavale, 2014). De facto a
variedade dos objectos de estudo das ciências ditou o surgimento destas, a sua
nomenclatura e a sua organização.

É assim que a Física se separa das outras como a ciência que estuda o material e suas
transformações, enquanto que a Metafísica se preocupa com as causas primeiras, a
essência do ser. Na Grécia Antiga esta área correspondia à actual Ontologia, Filosofia e
Teologia.

Quando me convidaram a escrever sobre este tema nesta colectânea, um dos


organizadores, o Prof. José Castiano me segredou qualquer coisa como isto:

“…tudo surgiu nas antigas galeras, navios de madeira enormes movidos pela
força braçal de escravos ou trabalhadores assalariados pelos mares fora.
Quando enfrentassem uma tempestade severa, os remadores se cansavam a
tentar, literalmente, remar contra a maré e, descansando após a faina,
começaram a pensar se não poderiam usar algo para além da sua força física
para mover os navios. A resposta foi o surgimento das velas. Accionadas pelo
vento, elas podiam ser feitas muito grandes e mover navios maiores capazes de
superar mares mais desafiadores: as naus das descobertas. Esta é a origem do
conceito de Metafísica, porque em vez da força física do homem, os navios
passaram a ser movidos pelo “sopro” do vento. Invisível, divino.”

Este trecho mostra como o próprio conceito da Metafísica, bem como o seu objecto de
estudo evoluíram com o tempo.

Nalgum momento a Metafísica era igual ao “estudo do sobrenatural”, onde o seu


objecto de trabalho se igualava ao da teologia, com a diferença apenas nos métodos
usados. A metafísica usando a razão como método e a teologia - a revelação.

30
Presentemente a Metafísica assume duas tendências distintas: a primeira é a ontologia,
ou o estudo do ser (οητοσ em grego), da causa primeira, que se subdivide em teoria das
categorias, teoria do conhecimento e teoria das ciências (epistemologia), e a segunda
tendência é a teoria da religião ou teologia e teoria das concepções do mundo.

As grandes revoluções científicas ocorridas nas ciências no século XIX (o surgimento


da física quântica e da física das partículas elementares, da teoria da relatividade restrita e
geral, da teoria evolucionista de Darwin, as descobertas da astrofísica e outras teorias
avançadas nos diferentes ramos das ciências naturais) estremeceram o alicerce
metodológico da Metafísica na era moderna.

Pensadores mais contemporâneos como Kant e Heidegger trouxeram outros aspectos


para o leque de objectos de estudo da metafísica como a moralidade e o ser. Heidegger,
particularmente, na sua obra “Being and Time”, distancia-se da fenomenologia dinâmica
de Hesserl. Este último, estabelecera uma ideia segundo a qual o objecto da Filosofia não
deveria ser mais o constructo teórico mas sim “assuntos dados directamente à nossa
consciência”

Segunda questão: Socorri-me da longa explicação dada por Martinho Rost no seu
curso de Filosofia, sobre o livro da Professora Marilena Chau da Universidade de S.
Paulo Convite à Filosofia, para sintetizar em quatro pontos, qual afinal o objecto de
estudo da Metafísica. De acordo com ele, “estudar o Ser, enquanto Ser”, significa analisar
(Rost, 2014):

i) “…aquilo sem o que não há seres nem conhecimento dos seres: os três princípios
lógico-ontológicos (identidade, não-contradição e terceiro excluído) e as quatro
causas (material, formal, eficiente e final);
ii) aquilo que faz um Ser ser necessariamente o que ele é: matéria, potência, forma e
acto;
iii) aquilo que faz um Ser ser necessariamente como ele é: essência e predicados ou
categorias;
iv) aquilo que faz um Ser existir como algo determinado: a substância individual
(substância primeira) e a substância como gênero ou espécie (substância
segunda). ….”

Perfeito. Ficou claro para mim que a Metafísica, como ciência filosófica, tem uma
esfera mais ampla de objectos de estudo do que a Física, apenas ocupada com as
principais leis da Natureza, que governam a matéria, vista aqui do ponto de vista de
“material, tangível”. Irei-me debruçar mais adiante sobre este aspecto.

Terceira questão: Também partilho da ideia segundo a qual “os sábios falam de
pontes e os leigos de fronteiras” avançada mais acima neste livro.

31
Incondicionalmente. Mas com alguns reparos.

A fragmentação falada, ocorrida nas ciências, faz parte do surgimento do método


científico na análise e demonstração dos fenómenos, com o Renascimento. A
pulverização da ciência em áreas científicas específicas permitiu o seu rápido
desenvolvimento e afirmação. Só para exemplo desta dinâmica, podemos usar o
surgimento e desenvolvimento do ramo da Física Moderna. Tudo ocorreu num período
histórico tão curto que 80% dos físicos que já existiram na Humanidade ainda estão
vivos.

Em contrapartida à fragmentação que facilitou o desenvolvimento, aceita-se, também,


e está a encontrar cada vez mais eco, a análise científica de objectos cada vez maiores,
mais abrangentes e dinâmicos, socorrendo-se do arsenal metodológico de diversas
ciências simultaneamente.

De modo a se estudar o objecto na sua plenitude. Na sua essência. Metafísica!

E aí temos os modernos paradigmas de transdisciplinaridade e multidisciplinaridade


dos estudos. Estabelecendo as pontes entre as fronteiras (ou, se quisermos, as passagens
de fronteira).

Do Básico ao Complicado: a Matéria

Em inglês diz-se first things first o que significa, literalmente, “as primeiras coisas em
primeiro lugar”. Pois bem: olhando para a Física como a ciência que estuda o ponto
material, o sistema de pontos materiais (corpo rígido) e as condições de seu movimento,
transformação e estabilidade importa definir, em primeiro lugar, a matéria do ponto de
vista da Física e da Metafísica.

A história de desenvolvimento da Física sempre condicionou e limitou o alcance da


definição da matéria do ponto de vista físico. A mecânica determinista newtoniana foi,
sem dúvidas, o primeiro ramo da Física a ser bem descrito e cuidadosamente estudado por
Galileu, Newton, Tycho Brahe, Copérnico, Keppler, Lagrange, Hamilton e outros. As
propriedades principais da matéria que contam para a Mecânica newtoniana são a sua
massa, as suas dimensões lineares e a sua velocidade (ou o impulso ou quantidade de
movimento).

A ideia principal da mecânica, que facilmente se pode derivar do Princípio da Acção


Mínima, estabelece que um ponto material ou corpo rígido aprecia o estado de “menor
dispêndio de energia”. A partir deste princípio, dezenas de equações canónicas podem ser
derivadas para diferentes sistemas mecânicos, que permitem descrever o estado do

32
sistema, ou seja, conhecendo a posição inicial e a velocidade de um corpo, pode-se
calcular de forma unívoca a sua velocidade e coordenadas finais que são o seu estado.

A grande revolução da Física desde o final do século XIX até meados do século XX,
trouxe novos paradigmas que ditaram a reorganização dos conhecimentos em quase todas
as ciências. Dou quatro pequenos exemplos:

i) A teoria de relatividade restrita trouxe o conceito de contração e expansão do


tempo e das dimensões lineares dos corpos quando se movem com velocidades
perto da velocidade da luz. A teoria toda foi desenvolvida por Minkowsky e
Lorentz e generalizada por Einstein no seu ano mirabilis de 1905. Estas
descobertas, muito suspeitas e contestáveis na altura, tornaram-se observáveis
com a invenção de aceleradores de partículas como o betatrão e ciclotrão,
capazes de acelerar seres atómicos até velocidades significativamente
próximas à velocidade da luz.

O formalismo matemático que se desenvolve a partir das consequências da


teoria da relatividade restrita inclui a introdução de uma geometria quadri-
dimensional, o uso de uma grandeza do tipo espaço-tempo chamada Acção,
factos que demonstram que, na mecânica relativista, o espaço e o tempo se
conjugam de uma forma diferente. A contração de intervalos de tempo nos
sistemas inerciais que se movam com velocidade perto de c – a velocidade da
luz, explica, por exemplo, o paradoxo dos gémeos. Neste paradoxo, dois
gémeos são separados à nascença um ficando em terra e outro se movendo
numa nave com velocidade perto de c. Ao regressar à Terra, décadas mais
tarde, o gémeo viajante será mais novo que o terrestre. As consequências são
muitas chegando a pôr em causa inclusive a ligação causa-efeito, ou seja, será
possível o efeito ocorrer antes da causa?

A resposta a esse devaneio todo é dada pela introdução de proibições ou


limitantes à priori. Neste caso é o postulado de Einstein que estabelece que c é
a velocidade máxima de propagação de um sinal qualquer, evitando desta
maneira os absurdos que se poderiam seguir.

ii) A física quântica trouxe o conceito de incerteza de Heisenberg, que estabelece


que no micro - mundo não se pode definir com a mesma exactidão grandezas
conjugadas como coordenadas e impulsos (ou velocidades) e, ainda, energia e
tempo. Algo que não tem nenhum sentido no nosso mundo real das dimensões
e velocidades com que lidamos no dia-a-dia.

Algumas tendências metafísicas usam este fenómeno para colocarem em


dúvida de alguma maneira os conceitos de Realidade, Verdade, etc. De facto,
na fisiologia humana, o processo de “leitura” da realidade e o de “imaginação”

33
de uma situação irreal agem, do ponto de vista fisiológico, sobre as mesmas
regiões do cérebro, coordenadas pelo hipotálamo.

Desta maneira, do ponto de vista físico, a realidade e o sonho são iguais, o que
pode levar a concluir que cada um de nós “fabrica” a sua própria realidade. Já
no micro - mundo, a incerteza de Heisenberg estabelece um limite no quão real
se pode conhecer o mundo…Nalguma fase, certos cientistas sociais puseram
mesmo em causa a definição de “ciências exactas” atribuída a um grupo de
ciências da Natureza em face a estes debates epistemológicos.

iii) A física das partículas elementares, cujos fundamentos se desenvolveram


entre 1895 (com a descoberta do electrão) e 1960, mostrou ser possível a
transformação de “não-matéria” em matéria. De facto, na vizinhança do campo
electromagnético de um núcleo, um fotão gama (sem massa de repouso) com
energia acima de 1,2 MeV, pode produzir um par “electrão – positrão”, duas
partículas com massa de repouso 0,551 MeV. Neste mesmo meio, o contrário
também pode acontecer. O par “electrão – positrão” pode aniquilar e produzir
um fotão gama que é uma onda electromagnética sem massa de repouso,
caracterizada apenas por uma certa energia. A genial fórmula de Einstein E=
mc2, facilmente verificável nestes eventos descritos, seria ela própria uma
violação das leis mais básicas da Natureza, tais como a lei da conservação da
massa, lei da conservação da energia, lei da conservação do impulso, do
momento de impulso, etc. A solução só apareceu quando Louis De-Broglie
sugeriu que as ondas se portavam como partículas e as partículas como ondas,
no micro-mundo. Esta formulação, que ficou na história conhecida por
“hipótese de De-Broglie”, propunha já em si uma mudança no objecto clássico
de estudos da Física: a mudança na definição da matéria.

A matéria passaria a ser vista como um estado de energia e, no micro/mundo,


descrever o movimento de uma partícula, pode equivaler a descrever a
oscilação da correspondente onda de De-Broglie.

Esta equivalência facilitou a derivação da equação de Schrödinger, que


descreve o estado dos seres no mico – mundo (átomos, núcleos, partículas
elementares, moléculas, etc).

iv) A mais bizarra de todas as descobertas foi, contudo, anunciada na explicação


de um problema hipotético colocado por Erwin Schrödinger: o paradoxo do
gato de Schrödinger. O enunciado é bastante simples, quase infantil:
“imaginemos um gato dentro de uma caixa hermeticamente fechada e opaca.
Na caixa há uma fonte radioactiva que, de acordo com leis específicas de
estatística, emite radiação que pode ser captada por um sistema electro -
mecânico. Quando a radiação é captada, ela acciona uma martelo que quebra

34
um balão de vidro contendo veneno volátil que, assim, se espalha pela caixa e
mata o gato. A pergunta é: num dado momento o gato dentro da caixa está
vivo ou morto?

Não tente responder porque a sua resposta estará errada. De acordo com o senso comum,
diríamos: “se a radiação tiver sido detectada, então o sistema terá sido accionado, o veneno
terá sido liberto e o gato estará morto por envenenamento”. Ou, “ao contrário, se não tiver
sido detectada nenhuma radiação, o gato estará vivo”.

A mecânica clássica aceita essas respostas. Na mecânica quântica, porém, a resposta é


completamente inesperada: o gato estará meio morto e meio vivo.

É que o estado de um sistema quantum-mecânico é a soma de todos os estados possíveis


de acontecer (conhecidos por estados próprios), cada um ponderado pela sua densidade de
probabilidade de ocorrer. Esta situação chama-se degeneração.

O estado real do gato só fica conhecido no momento em que abrimos a caixa ou seja, o
acto de observação ou medição de um sistema no micro-mundo, interfere no seu estado,
retirando a degeneração e ficando um estado claro do tipo “está vivo” ou “está morto”.

Não se pode entender! E de facto a explicação deste paradoxo gerou celeuma entre as
mentes físicas mais criativas que já alguma vez existiram na Terra num só período. Escolas
diversas de conhecimento, dirigidas por nomes sonantes como Niels Bohr, Wolfgang Pauli,
Max Planck, Werner Heisenberg, Erwin Schrödinger, Louis De-Broglie, Albert Einstein e
outros, descordaram entre si durante uma década na explicação deste paradoxo. Estes
cavalheiros todos, um a um, receberam o Prémio Nobel da Física pelo “desenvolvimento de
uma nova teoria que explicava os efeitos quânticos na Natureza”.

Esta interpretação probabilística de um novo ser físico chamado “função da onda” da


nova teoria quântica, dada pelo grupo de cientistas baseados em Copenhaga liderados por
Niels Bohr, suscitou interpretações alargadas muito confusas entre os cientistas como foi
já dito. Até o brilhante Einstein conjuntamente com seus parceiros Boris Podolsky e
Nathan Rosen, imaginaram uma experiência hipotética capaz de provar que a
interpretação de Copenhaga provava que a Mecânica Quântica estava incompleta
(experiência de EPR).
Como sempre em Física, convém interpor limitantes nas condições do problema para
salvar uma teoria. A limitante desta vez foi o teorema de Bell que estabelece o limite para
se passar de grandezas quânticas a clássicas.

Com estes e outros exemplos vindos da mecânica quântica, o objecto da Física mudou
para sempre e a matéria não poderia continuar a ser definida da mesma maneira.

35
As ciências filosóficas, por outro lado, testemunharam uma evolução muito disputada
da definição da matéria. Sem nos preocuparmos com a cronologia e nem com os
principais protagonistas, contento-me, plenamente, com a definição marxista – leninista
da matéria.

Desenvolvida mais recentemente que a definição de outros filósofos mundiais da


“fase de ouro da criatividade” em filosofia, a ideia principal foi exposta no livro
“Materialismo e Empiriocriticismo” apresentado por Lenine em 1909.
Na base desta definição, coloca-se a ideia de que a matéria é uma realidade objectiva,
não resultado de uma ideia, vontade suprema, ou qualquer à priori ente. A matéria é
independente da consciência humana e existe fora dela. Segundo Lenine,

“…A matéria é uma categoria filosófica que designa a realidade objectiva


dada ao homem em suas sensações, que a copiam, fotografam e refletem sem que
sua existência lhes esteja subordinada..." "(...) Matéria é o que, atuando sobre os
nossos órgãos dos sentidos, produz a sensação; a matéria é a realidade
objectiva, que nos é dada nas sensações, etc."

Esta definição suscita muitas dúvidas e questionamentos. Porém é bastante prática e


adapta-se plenamente à evolução em ritmo estonteante das descobertas das ciências
exactas e humanas que foram sendo feitas desde o último quartel do século XIX.
Salientam-se nela os aspectos de objectividade e independência da consciência humana,
as formas mais comuns de existência dessa mesma matéria que é o espaço, o tempo e o
movimento ou transformação.

Na discussão precedente a esta definição, Marx e mais tarde Engels no livro “Anti
Duhring” argumentaram sobre a ligação do tempo e espaço à matéria como suas
propriedades intrínsecas. Este aspecto é muito importante para explicar violações claras
da geometria Euclidiana (do espaço tridimensional clássico) e da uniformidade dos
intervalos de tempo. Essas violações são verificáveis já na Teoria de Relatividade Restrita
de Einstein. A Teoria Geral de Relatividade, aplicável na Astrofísica ao movimento dos
corpos celestes, confirma casos de curvatura espacial e de atracção de radiação
electromagnética por corpos de super-elevada densidade mássica como os buracos
negros.

Esta definição leninista da matéria oscila, entretanto, entre o materialismo e a


metafísica. Lenine admite que a matéria é uma categoria filosófica! Para além disso, a
consciência, a sociedade e outras categorias da filosofia, da economia política, da
sociologia, etc, são vistos como sistemas complexos e mais organizados da matéria. A
generalização desta definição faz com que o electrão, o átomo, a onda electromagnética, a
pedra, o pensamento, a sociedade, os movimentos sociais, estejam na mesma gaveta e
constituam objecto de análise da Física (ou da Metafísica?) como matéria que são.

36
Físicos à Procura da ORDEM na Natureza

Um dos principais axiomas da Metafísica, vista como Ontologia, é o facto de não


reconhecer a transformação dos objectos em estudo, não prevê a contradição interna nem
a evolução por assim dizer. Isso implica, pois, que os objectos estão de uma certa forma
“perfeitos” logo ab initio, obedecendo a uma certa ordem estrutural, característica de
criações premeditadas e deliberadas.

Será isto verdade ou não?

Independentemente da tendência mais idealista ou mais materialista que um físico


possa ter, existe uma plataforma comum de entendimento de que “as leis da natureza são
muito simples”, de que “… a natureza é organizada e prefere estados de menor excitação
energética” ou, ainda, de que “…quando em relaxamento, um sistema evolui no sentido
natural de aumento da entropia (desordem)” e etc.

Em Física essas plataformas de entendimento são “leis básicas da Natureza” como,


por exemplo, a lei da conservação da energia, a lei da conservação da carga eléctrica, do
impulso, do momento de impulso, da massa, da paridade, o primeiro, segundo e terceiro
princípios da Termodinâmica, etc.

Isto significa que ao pesquisar um sistema qualquer e em qualquer área da Física, já


conhecemos, à priori, uma série de condições que se aplicam sobre ele e que nos
condiciona o resultado. Esta ordem ou organização natural que existe nos seres analisados
pode sugerir a existência de uma força suprema…

Albert Einstein quando perguntado se acreditava em Deus, respondeu: “acredito no


Deus de Spinoza24 que se revela por si mesmo na harmonia de tudo o que existe e não no
Deus que se interessa por premiar ou castigar os homens”.

Acreditando ou não nessa força suprema, os físicos sempre procuram por ela quando
investigam as leis da natureza e…encontram-na.
Eis alguns exemplos:

Primeira Unificação Teórica: o Electromagnetismo de James Maxwell

Nunca apreciei tanto a irreverência típica dos estudantes universitários, como quando
na década 90, tive acesso a uma t-shirt de festas estudantis da Faculdade de Engenharias
da Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil. Estas festas, marcadamente viradas para
a diversão e boémia, têm momentos chamados de “semana de saco cheio”, em que os
24
Boruch Spinoza, filósofo judeu do século XVII. Foi excomungado na Holanda pelos rabinos
judeus por suas ideias.

37
estudantes não vão às aulas (semana intercalar entre nós em que se fazem várias
avaliações e jornadas científicas), para além de contemplarem uma “avaliação etílica” dos
participantes!

Interessei-me mais com a camisete dos estudantes de engenharia eléctrica que dizia
simplesmente:

“Deus disse: ∂⃗
D ∂ ⃗B
rot ⃗H = ⃗j+ rot ⃗E=−
∂t ∂t div ⃗B=0 div ⃗D= ρ
∂ ρ ; ; e, ;

div ⃗j =− ⃗
D=εε o ⃗E ⃗B =μμ ⃗ ⃗j=γ ( ⃗
E +⃗
Eext )
∂t ; ; oH; .

e houve luz”.

Genial!

De facto, quando o tratado de Maxwell intitulado A Dynamical Theory of the


Electromagnetic Field foi publicado pelo Jornal da Sociedade Real de Londres em
Dezembro de 1864, ele trouxe a certeza para a comunidade científica de que tudo sobre a
electricidade e o magnetismo havia sido descoberto e descrito. As equações
representavam o fruto de vários séculos de investigação e sumarizavam os contributos
valiosos de Coulomb, Ampère, Biot-Savart, Laplace, Poisson, Ohm, Kirchoff, Gauss,
Ostrogradsky, Green, Faraday, Lorentz e muitos mais.

Maxwell, um físico teórico com forte domínio do aparato matemático, sintetizou toda
a teoria da electrostática, electrodinâmica, magnetostática e magnetodinâmica num
conjunto de oito equações tão simples e compactas, bastante similares, que logo
mereceram o nome de equações canónicas, isto é, divinas.

Não espanta pois, que muitos físicos achem que a famosa expressão bíblica do
Génesis 1, versículo 3 a 5 possa ter sido ditada ao profeta Moisés de forma compacta,
similar à que foi acima mostrada.

Um contributo muito importante de índole metodológica que Maxwell trouxe pela


primeira vez, foi tentar juntar teorias distintas numa só. Ou seja procurar uma certa ordem
fenomenológica na Natureza.

É aceite presentemente, que na Natureza as interacções, ou seja as forças que existem,


só são de quatro tipos: gravitacional, electromagnética, fraca e forte. No âmbito desta
leitura importa-nos apenas entender que a interacção gravitacional estabelece-se entre
corpos com massa (como planetas) e é, em particular, responsável pelo movimento dos
planetas no sistema solar; a interacção electromagnética, que antes era entendida como
sendo duas interacções diferentes, a eléctrica e a magnética, surgem no domínio das

38
cargas eléctricas em repouso ou em movimento; a interacção fraca e a forte, muito
essenciais para a existência do universo, agem a distâncias infinitamente pequenas e
respondem, a primeira, pela diversidade dos seres atómicos, mediando as transformações
nucleares e a última, a interacção forte, que é cerca de 300 vezes mais forte que a
electromagnética, age apenas a nível nuclear e responde pelo surgimento dos núcleos,
estes, dos átomos, os quais compõem as substâncias orgânicas e inorgânicas. A interacção
forte está na base do surgimento da vida e dos corpos inanimados. É a interacção
divina!!!

A Profecia de Daniel e a Previsão de James Maxwell

Na mitologia bíblica, Daniel foi o profeta que se notabilizou por interpretar sonhos
apocalípticos do rei Nabucodonosor da Babilónia (actual Iraque) e seus descendentes.
Ganhou com isso, primeiro, a glória e depois o inferno. Ou seja, depois de um período de
muito respeito e bonança nos paços do rei, foi depois jogado para um covil de leões
esfomeados.

Já o físico James Maxwell teve sorte melhor por acto semelhante. O grande avanço do
aparato matemático (conhecido por Física - Matemática), nos finais do século XIX,
induzido por Bessel, Lagrange, Hamilton, Legendre, Hermite, Poincaré, Jordanov, Gauss,
Euler e muitos outros, permitiu a partir dessa época, prever e descrever com grande
certeza, factos, propriedades, grandezas, fenómenos, corpos, elementos e muitos mais
seres físicos, dezenas e às vezes centenas de anos antes de serem descobertos. Uma
espécie de profecia científica.

Voltemos para o octeto de equações de Maxwell mostradas acima. A solução mais


trivial que se lhe encontra é a chamada solução ondular e permitiu a Maxwell prever,
umas quatro décadas antes, a existência de ondas electromagnéticas que Hertz só obteve,
na prática, em 1887.

A introdução das ondas electromagnéticas revolucionou o mundo inteiro. A luz e o


calor passam a ser vistos como ondas electromagnéticas caracterizadas por certos valores
de frequência e comprimento de onda. Mais recentemente, a comunicação, a rádio, a
televisão, a telefonia via satélite, métodos de diagnóstico e terapia médica e até a cozinha,
passaram a usar ondas electromagnéticas do mesmo tipo, mas com propriedades
diferentes.

A propósito de ondas electromagnéticas e comunicação olhemos um bocado para mais


“além da Física” do fenómeno, isto é, para a metafísica africana. Considera-se,
normalmente, que os nossos curandeiros, movidos por bons ou maus motivos, conseguem
“chamar” uma pessoa e a fotografia dele aparecer numa bacia com água. Esta é uma

39
crença muito generalizada em África e que muitos cineastas do chamado Nollywood 25
exploram intensivamente.
A pessoa assim chamada e mostrada na tela da bacia pode comunicar com os
espíritos, pode ser protegida ou atacada por intermédio do curandeiro. Estamos perante
fenómenos de televisão e de teletransporte, muito similar aos episódios de ficção
científica do mega seriado Star Trek.

O filósofo missionário belga Placide Tempels no seu livro Bantu Philosophy fala do
conceito de força vital como o epicentro de toda a actividade do povo bantu. As crenças,
os ritos, os tabus e toda a ligação das pessoas com os seus ancestrais visam
essencialmente intensificar esta força vital.

Toda esta ideia de protecção à distância e ligação com os ancestrais de que Tempels
fala, bastante Africana e bastante metafísica, pode ser ligada a um fenómeno de física
quântica de “emaranhamento de partículas”, melhor conhecido como particle
entanglement e que constituiu a base dos receios de Einstein-Podolsky-Rosen.

Física das Partículas Elementares e o Segundo Processo de Unificação: a Interacção


Electro-fraca

Enquanto as moléculas e os átomos são os elementos básicos das substâncias com que
lidamos no dia-a-dia, para se entender a origem do Universo, deve-se olhar para dentro
dos átomos e estudar-se as partículas elementares que os compõem. Este é o objeto de
estudo de uma área de conhecimento chamada Física de Partículas Elementares ou Física
de Altas Energias.

A existência do átomo como a partícula mais ínfima e indivisível da matéria foi


proposta pelo filósofo Demócrito no ano 400 ANE, porém, só no início do século XX se
descobriram as partículas que compunham o átomo. As experiências de Rutherford e a
teoria de quantização proposta por Planck ajudaram a Bohr a explicar um modelo atómico
mais real, em que um núcleo pesado composto por protões e neutrões era rodeado por
electrões que gravitam a alta velocidade em órbitas circulares e elípticas num enorme
volume vazio.

Aqui, de novo, a teoria proposta por Bohr consistia apenas na introdução de


condicionantes iniciais ao modelo de Rutherford: quantização da energia dos electrões,
orbitais electrónicos e a proibição de emissão contínua. O avanço nas tecnologias de
aceleração de partículas verificado no início do século XX permitiu acelerar electrões,
protões e iões pesados até velocidades muito próximas de c. Feixes luminosos destas

25
Indústria cinematográfica nigeriana, caracterizada pelo rápido desenvolvimento e gasto irrisório
de recursos quando comparada com a Hollywood e Bollywood (de Mumbai, India). Os temas
principais tratados são o modo de vida das comunidades africanas e todo o seu sistema de crenças
e atitudes.

40
partículas aceleradas, são feitos colidir violentamente, quebrando as partículas comuns
como protões e neutrões nos seus componentes.

A descoberta dos quarks, como componentes das partículas elementares, trouxe muito
esclarecimento sobre a origem das mesmas, a origem das forças na Natureza e, de certa
maneira, a origem do Universo. Rapidamente o número de partículas conhecidas subiu
das primeiras três (protão, electrão e neutrão) para cerca de três centenas. Neste autêntico
zoo subatómico que se gerou, os físicos interessaram-se de novo por procurar alguma
ordem. As partículas começaram a ser agrupadas em novas famílias segundo a sua massa
(hadrões, leptões) ou segundo sua composição (bariões e mesões), ou ainda segundo o seu
tempo de vida (ressonâncias, partículas estáveis, etc).

Esta nova ordem encontrada no micro – mundo a partir da grande desordem de


partículas, forças e interacções, puxou a ciência para um novo patamar na espiral de
conhecimento: descobriram-se condições de uma nova unificação de interacções
fundamentais na Natureza a interacção fraca e a electromagnética, para dar a interacção
electro – fraca. A ideia é que as quatro forças que temos actualmente na Natureza partem
de uma única (Grande Unificação). O universo ele próprio parte de uma grande explosão
(Big Bang) em que um sistema super aquecido (temperaturas na ordem de 10 15 K) e
altíssima densidade da matéria (comparável à que se encontra nos buracos negros)
começa a expandir-se e, por essa via, a arrefecer. Ao arrefecer as partículas que existiam
no início, nas condições de altíssimas temperaturas e densidades, começam a desaparecer
e formar outras, enquanto as interacções começam a desmembrar-se.

Foi construída uma teoria completa que descrevia as diferentes famílias de partículas
elementares, sua composição e formas de interacção. Surgiram novas ciências físicas
(como, por exemplo, a cromodinâmica quântica) para tomar conta de novas grandezas e
novas partículas. Este formalismo teórico assumido chama-se modelo padrão das
partículas elementares. Ele consubstancia a ordem no micro – mundo.

O Bosão de Higgs, a Partícula de Deus. Física e Metafísica Unidas

Na teoria do modelo padrão, a matéria é constituída por partículas elementares. A


interaccão entre as partículas elementares é vista como sendo uma troca, entre elas, de um
bosão que é portador da tal força. Assim, o fotão gama responde pela intermediação da
força electromagnética e os bosões W e Z pela interacção electro-fraca. Muitas são ainda
as questões não esclarecidas pelo modelo padrão. Uma delas era o mecanismo pelo qual
as partículas ganham massa (e outras não a ganham), bem como uma parte da massa do
Universo que “está a faltar” na contabilização geral.

41
Uma excitação invulgar atingiu o mundo da ciência quando em Julho de 2012 o
laboratório de física de partículas elementares em CERN descobriu uma assinatura da
passagem do bosão Higgs numa experiência de colisão entre protões. Esta partícula havia
sido proposta já em 1960 e era vulgarmente conhecida por “partícula de Deus”
certamente por ser aquela que dá massa às outras.

O bosão de Higgs é uma partícula muito pesada, com 125 GeV e tem um tempo de
vida extremamente curto. Ele foi descoberto pelo traço das suas reacções de
desintegração que deixa nos calorímetros de CERN colocados nos pontos de colisão dos
feixes, envolvendo o Large Hadron Colider – LHC.

Assim, o objecto primeiro de estudos na Física das partículas elementares é a matéria,


sua composição e dinâmica e a origem do universo. O mesmo que a metafísica,
salvaguardadas algumas diferenças metodológicas. Encontramos dois traços de cunho
divino nesta exposição: primeiro na camisete humorística dos estudantes de engenharia
eléctrica da UFMG, explicando a origem da luz e do universo e, segundo, no mecanismo
complicado segundo o qual a “partícula de Deus”, bosão de Higgs, dá massa às outras (ou
seja, cria as outras).

Esta vertente de análise dos fenómenos é comumente usada numa corrente chamada
metafísica quântica, em que os fenómenos da mecânica quântica são explicados
procurando explorar as contradições científicas ainda existentes nelas e tentando provar
sempre a existência à priori de uma ideia, de algo divino.

42
Referências Bibliográficas

Tratado “A Dynamical Theory of the Electromagnetic Field” publicado em


“Philosophical Transactions of the Royal Society of London 155, páginas 459–512
de Dezembro 1864;

Wheeler, M. "Martin Heidegger", The Stanford Encyclopedia of Philosophy  (ed.


2014), Consultado na URL: http://plato.stanford.edu/archives/fall2014/;

Rost, M. “Curso de Filosofia – baseado no livro de Marilena Chau, Convite à


Filosofia”, módulo 44 – unidade 6, Capítulo 2 – A metafísica de Aristóteles. Curso
baixado do site www.armazemliterario.nom.br;
Chavale, A. “Linguística e Filosofia: uma fronteira porosa”, capítulo deste livro;

Bell, J. S. (1966): "On the problem of hidden variables in quantum mechanics", Rev.
Mod. Phys.38, pág.447.

Bell, J. S. (1964): "On the Einstein Podolsky Rosen Paradox". Physics 1 (3), páginas
195–200.

Clauser, J. F.; Shimony, A. (1978): "Bell's theorem: experimental tests and


implications", Reports on Progress in Physics 41, 1881:1978.

Lenine, V. I.: Obras Completas 4ª ed. russa, tomo XIV, páginas 117 e 133.

43
Filosofia e a Literatura: Fronteira Porosa?
Por: Albino Chavale

A palavra fronteira é zarolha.


O Homem tem dois olhos para ver o mundo26
(Paul Eluard, Les Poètes de j’ai connus)

Introdução

A evolução da ciência tem sido acompanhada por um fenómeno de fragmentação. Por


exemplo, o surgimento da linguística, da etnolinguísitca, da sociolinguística, entre outras, é
resultante de um movimento de fragmentação. O mesmo pode dizer-se em relação à Filosofia
e à Literatura. Com efeito, elas têm a mesma origem geográfica (a Grécia) e são produtos e
pilares de sustentação da expressividade do pensamento dessa mesma cultura. Enfim, ambas
resultam dos esforços do Homem em encontrar respostas às questões essenciais, na Grécia
antiga no século VI ANE. Mas evoluíram posteriormente como disciplinas autónomas e
separadas. Essa fronteira que as separa é hermética ou porosa? Eis a questão que examinamos
neste ensaio.

Segundo Thomas Khun27 se a Ciência é um conjunto de factos, de teorias e de métodos,


então os cientistas são Homens que, com um relativo sucesso, se esforçam em incorporar
diversos elementos num conjunto particular. Assim, o desenvolvimento da ciência, torna-se
um processo fragmentário através do qual esses elementos são incorporados, separadamente
ou em combinação. A evolução da Filosofia e da Literatura no Ocidente ilustra bem este
princípio. Com efeito, após uma origem comum, tiveram uma evolução autónoma e paralela
de tal modo que uma análise sincrónica postularia a existência de uma fronteira hermética.
Tal ponto de vista não resiste, porém, a uma análise diacrónica da relação entre estes dois
domínios.

Depois de uma abordagem sincrónica desta questão, apresentá-la-emos do ponto de vista


diacrónico e por fim ilustraremos a apropriação do conceito filosófico derridiano de
“desconstrução’’ na literatura africana através da análise das obras de Ahmadou Kourouma,
Allah n’est pas obligé e de Ungulani Baka Khosa, Ualalapi.

Ponto de Vista Sincrónico

Se analisarmos a relação entre a Filosofia e a Literatura em certos períodos históricos,


por exemplo, no século VI ANE, podemos concluir por um lado, que são duas disciplinas de
natureza diferente: Enquanto a Literatura pode ser definida, sumariamente, como um
conjunto de manifestações culturais que, por convenção, uma determinada sociedade

26
Le mot frontière est borgne. L’homme a deux yeux pour voir le monde.
27
Khun, T. (2008: 15).

44
considera como literária, a Filosofia pode ser definida, seguindo Castiano (2013: 5), como um
pensar fundamentador, ou seja, de fundamentação e ela tem a pretensão de procurar as
condições e as possibilidades de existência e ou de interpretação das causas mais gerais dos
fenómenos da natureza, sociedade e pensamento. Podemos também concluir, por outro lado,
que as suas denominações não denotam nenhuma relação genética como é o caso da
linguística e da sociolinguística ou da matemática e etnomatemática, etc. e são geralmente
ensinadas isoladamente nas instituições académicas.

Enfim, elas são diferentes também quanto aos objectivos: o objectivo da Literatura é de
distrair, fazer pensar, fazer rir, aumentar a imaginação, etc. O da Filosofia é provocar a
reflexão, questionamento, raciocínio lógico, etc.

Pode-se, à luz do que acaba de ser exposto, considerar que a Filosofia e a Literatura são
dois domínios distintos que não comungam espaços comuns e por conseguinte, a fronteira
entre estas duas disciplinas é nítida, pelo menos em certos períodos históricos. Será esta
característica contínua ou também fugaz?

Ponto de Vista Diacrónico

A questão levantada obriga-nos fazer uma abordagem diacrónica, isto é, analizar a relação
entre a Filosofia e a Literatura ao longo do tempo. Nesta perspectiva, a fronteira entre elas
apresenta contornos diferentes. Com efeito, ela aponta para a existência de uma fronteira
porosa. Esta porosidade resulta, em primeiro lugar, da relação ‘’genética’’ 28 do ponto de vista
geográfico e do ponto de vista cultural. No diz respeito à origem geográfica, as duas disciplinas
nasceram na Grécia Antiga. Quanto à ligação cultural, ambas são produto e pilares de
sustentação da expressividade do pensamento da mesma cultura: a greca, por um lado, elas
resultam também dos esforços dos Homens em encontrar respostas às questões essenciais, por
outro lado, na Grécia antiga no século VI ANE.

É, sem dúvidas, por esta razão que os primeiros intelectuais gregos e percursores da
Filosofia uniam geralmente esses dois domínios. Por exemplo, Homero, autor de Ilíada e de
Odisseiae Hesíodo, autor de Teogonia. Nestas obras eles interpretam de maneira literária a
visão do universo antigo, a posição dos deuses e a do Homem no mundo. O primeiro sob forma
de conto heróico e o segundo sob forma de poema mítico. Por isso, são também considerados
poetas lendários da Grécia antiga.

A fusão entre estas duas disciplinas está presente igualmente nos antecessores de Sócrates.
Com efeito, eles expressam-se numa forma onde a filosofia a poesia não se distinguem. Por
exemplo, Heráclito, considerado por alguns “o pai da dialéctica”, não utiliza enunciados
directos e socorre-se das metáforas ou comparações directas para apresentar o seu ponto de

Estamos a considerar estas duas disciplinas numa perspectiva ocidental, já que noutras regiões do
28

mundo por exemplo em África ou na Ásia a evolução foi diferente.

45
vista sobre as mudanças e a luta dos contrários. Talvez por causa do recurso aos recursos
literários é associado à filosofia ‘’obscura’’.

Um outro exemplo representativo da fusão entre Literatura e Filosofia é o de Parménides,


autor de Sobre a Natureza. Através da boca de uma deusa apresenta poeticamente a sua
concepção do Ser. Por isso, este livro é considerado um também ‘’poema filosófico’’.

Alguns analistas consideram que um conhecimento/saber, para se constituir como Ciência,


para além de definir o seu domínio, tem que ‘’cortar o cordão umbilical’’ com outros saberes
confluentes (o famoso complexo de Édipo). Na mitologia grega, Édipo mata o seu pai (Laio) e
desposa a própria mãe, Jocaste. É um conceito fértil na psicanálise para explicar fenómenos de
auto-afirmação das ciências: para se afirmar ou se (im)por, uma ciência tem que se opor
geralmente à sua própria ciência-mãe. A Filosofia como outros saberes ter-se-ia emancipado da
literatura seguindo este princípio. Este princípio aplica-se a muitas outras ciências. Por
exemplo, a separação da Linguística (Saussure) e da Sociolinguística (Labov); da Psicologia
(Freud) e da Psicanálise (Lacan).

Atribui-se à Sócrates e depois à Platão a missão de emancipação da Filosofia. De facto, no


Livro X d’A República, Platão afirma que o papel do filósofo é a de procurar o verdadeiro e,
como corolário, a essência. Os poetas ‘’ilusionistas’’ devem ser expulsos da cidade ideal
porque clamam uma dimensão universal que na verdade é uma aparência. A literatura e a
pintura são tidas como afastadas da realidade. Contudo, importa referir que Platão, ao mesmo
tempo ‘’expulsa’’ o poeta, elabora uma grande parte da sua filosofia em forma de diálogos, o
que o torna um ‘’literário’’.

Uma outra ilustração da porosidade é a existência, ao longo da história, de intelectuais que


navegam entre a Filosofia e a Literatura que podem ser considerados intelectuais híbridos.

Intelectuais “Híbridos”

A história atesta a existência de um número significativo de intelectuais ‘’híbridos’’, isto


é, filósofos/escritores ou escritores/filósofos. Por exemplo, o filósofo Francês Charles de
Montesquieu, produziu obras literárias que constituem até hoje referência. Outro exemplo, De
l’esprits des lois, «de l’esclavage des nègres». Nesta obra, ele denuncia o sistema de
escravatura. Por isso, trata-se de um tema essencialmente filosófico e ‘’não literário’’: a
injustiça social. Além disso, a apresentação dos argumentos responde às regras da lógica.
Enfim, há recurso a uma técnica da lógica: o silogismo. Assim, Montesquieu é um exemplo
de intelectuais que ‘’fundiram’’ a Literatura e a Filosofia.

Um outro exemplo de intelectuais ‘’híbridos’’ é Jean-Paul Sartre (1905-1980). Para


Sartre, a literatura não serve apenas para ilustrar teorias filosóficas. Ela tem uma profunda
identificação com o discurso filosófico que se dá na identidade entre o nível das estruturas
descritas e o nível da descrição de como os seres humanos vivem dentro dela. A partir daqui

46
podemos compreender melhor o lugar da ética no pensamento de Sartre. Um lugar que vai
determinar a sua filosofia mas também a obra literária. Para Sartre ‘’As questões que o nosso
tempo nos coloca e que permanecerão nossas questões são de uma outra ordem: “Como é
possível fazer-se homem na história, pela história e para a história? Haverá uma síntese
possível entre a nossa consciência única, irredutível e a nossa relatividade, ou seja entre um
humanismo dogmático e um perspectivismo?...A rigor, pode-se enfrentar esses problemas no
plano abstracto pela reflexão filosófica. Mas nós …pretendemos vivencia-los, isto é,
sustentar os nossos pensamentos pelas experiências fictícias e concretas que são os
romances” (Sartre, 1989: 164-5). O seu livro L’être et le néant é uma ilustração deste
posicionamento.

Enfim, Jacques Derrida (1930-2004). Para Derrida a Filosofia está ligada à Literatura.
Não se trata de assimilação de uma delas mas de articulação dos seus limites para um
trabalho mais enriquecedor. Importa referir também a influência da filosofia no escritor e
vice-versa.

Um outro factor que contribui para a porosidade da fronteira entre a Filosofia e Literatura
é a imigração conceptual, ou seja, alguns conceitos filosóficos foram apropriados/aplicados
na literatura. Tal é o caso do conceito de Desconstrução.

Alguns Exemplos de Imigração Conceptual: Desconstrução

O conceito desconstrução é muito fértil na literatura europeia e americana onde é


essencialmente associado ao pós-modernismo. Este termo aparece no Livro de Derrida De la
Gramatologia. Derrida desejava traduzir o termo alemão de Destruktion que Heidegger
utilizou no Sein und Zeit (Ser e Tempo). A desconstrução, como muitos conceitos das
ciências humanas, sofreu uma erosão e extensão semânticas ao longo do tempo e, por isso,
será conveniente explicitar a acepção que privilegiaremos. Ela pode ser entendida como um
conjunto de técnica e estratégias utilizadas por Derrida para desestabilizar, deslocar,
questionar textos explicitamente ou implicitamente idealistas, Hottois (1998:399-400). Ele
não é sinónimo de destruição mas de desmontagem, decomposição dos elementos. Este
processo compreende duas fases: A primeira materializa-se através de mudança, isto é, a
alteração do status quo, alteração da hierarquia. A segunda é a da neutralização, isto é, os
aspectos valorizados e marginalizados entram numa relação binária e abandona-se o
pensamento monodimensional (Hottois 1998:306).

Por isso, a desconstrução é entendida também como uma corrente teórica que pretendia
minar os princípios sustentadores do pensamento/modelos ocidentais tais dentro/fora,
corpo/mente, fala/escrita, presença/ausência, natureza/cultura; forma/sentido. Derrida
considera que é preciso inverter a hierarquia estabelecida: ‘’Fazer justiça a essa necessidade
significa reconhecer que nós não estamos lidando com uma coexistência pacífica de um face
a face, mas as com uma hierarquia violenta. Desconstruir a oposição significa,
primeiramente, em um momento dado, inverter a hierarquia’’. (Derrida 2001:48).

47
O conceito desconstrução teve um forte impacto no pensamento ocidental ao
proporcionar questionamentos, deslocamentos, re-colocação de conceitos que eram
considerados canónicos. Na literatura ele foi apropriado para fazer emergir dimensões
marginalizadas pelos modelos literários clássicos, como por exemplo, a oralidade, a
espiritualidade, a língua popular, as visões do mundo. Depois da I Guerra Mundial aparecem
os primeiros movimentos que vão contestar os modelos literários precedentes. Não se tratou
da primeira vez, na história literária. Já que, como se sabe, cada corrente literária procura
afirmar-se diferenciando-se das precedentes ou seja, “põe-se, opondo-se”. Contudo, o século
XX conheceu uma mudança jamais vista, pelo menos na França, primeiro através da corrente
literária denominada Surrealismo (1920) criada por André Breton. Esta corrente considera
que os valores ocidentais baseados no “consciente’”, lógico e racional não foram capazes de
evitar a barbaridade humana: a I Guerra Mundial. Por isso, ela propõe uma valorização do
“inconsciente” por isso, as questões de lógica, o racional, são marginais em relação ao
instantâneo, ilógico, incoerente, etc. No mesmo período, embora dois anos antes do
Surrealismo, surge uma outra corrente literária chamada Dada. Esta corrente insurge-se
contra os modelos literários clássicos. Centra-se na derisão na brincadeira e no espírito
infantil e distancia-se da literatura das Belas Artes.

Por fim, a corrente literária Nouveau Roman, surgida por volta de 1957, contesta as
noções fundadoras do romance clássico como a de herói, fio-condutor, personagens com
traços psicológicos, etc. Por isso, estas noções não são norteadores das obras dos escritores
desta corrente. Como pudemos constatar, trata-se de contestar os modelos literários clássicos
através de procedimentos conceptuais que denunciam a apropriação/aplicação do conceito
desconstrução. A literatura pós-colonial africana, não constituiu excepção a este fenómeno.

Apresentamos em seguida, dois exemplos de escritores africanos, nomeadamente


Ahmadou Kourouma (Costa de Marfim) e Ungulani Baka Khosa (Moçambique). As obras de
Ahmadou Kourouma ilustram bem a inversão da hierarquia (desconstrução) em termos de
modelos literários clássicos. Não é por acaso que quando ele submeteu a sua primeira obraLe
soleil des indépendences em 1968, as grandes editoras francesas29 não quiseram publicar essa
obra “não literária”. Ela foi publicada por uma pequena editora universitária canadiana 30. Só
depois dos prémios literários é que foi publicada na França. Nós analisaremos a sua terceira
obra, Allah n’est pas obligé, que constitui o melhor exemplo deste exercício de
desconstrução. Trata-se de um exercício que consiste em reabilitar aspectos marginalizados
nos padrões literários como a oralidade, a espiritualidade, a língua popular, a percepção do
tempo, a temática, o género literário, etc.). Importa referir que as categorizações que em
seguida apresentaremos, não correspondem às categorias identificadas por alguns filósofos
como peculiaridades africanas.

29
As obras literárias africanas de expressão francesa, são geralmente publicadas por editoras francesas.
30
Presse de l´Université de Montréal, 1968.

48
Por exemplo, a percepção do tempo dos africanos segundo o filósofo John Mbiti 31
apresentada e discutida por Castiano (2010:91). Segundo Mbiti, a História “anda” para atrás,
isto é, do Sasa para Zamani, do momento experienciado para um longo período em que nada
pode ser experienciado. Na concepção tradicional africana, a História não se move para
frente... Daí que se pode inferir que não haja muito espaço, entre os africanos, para as ideias
ou noções de felicidade, de liberdade, de progresso e de desenvolvimento! (Iden). As
categorias aqui apresentadas são apenas de ordem do lugar comum.

Oralidade

Se é verdade que a oralidade constitui a base de comunicação de todas as sociedades


humanas, não é menos verdade que ela assume dimensões particulares em certas sociedades,
por exemplo, em muitas sociedades e camadas sociais africanas.

O crítico literário costa-marfinense32, afirmou num simpósio em Bayreuth, em 1992, que


“a tese segundo a qual o romance, o teatro e poesia africanos apresentam-se como um
prolongamento da oralidade artística tradicional é cada vez mais uma realidade nas obras
africanas”. Esta declaração explica a génese de uma das características mais salientes da
literatura africana pós-colonial: a oralidade. Ela molda, não apenas a linguagem, mas também
e sobretudo as visões do mundo e, consequentemente, os comportamentos.

Os aspectos intrínsecos à oralidade constituem o tabuleiro sobre o qual se assenta a obra


de Kourouma. Com efeito, encontramos várias marcas da oralidade. Por exemplo, na página
inicial a personagem principal diz: “vou contar o meu blá-blá-blá”, (p.9), ‘‘senta-te e
escuta’’ (p.12), inscrevendo desta forma a narrativa numa dimensão essencialmente oral. O
leitor apercebe-se, assim desde o início da importância dos aspectos orais. Uma outra marca
da oralidade, nesta obra, é a presença de elementos tipográficos que denunciam uma
transposição de língua oral para a língua escrita como pontos de suspensão, exclamações,
pontos de interrogação, etc.

Uma das particularidades argumentativas da oralidade é a utilização de provérbios.

Provérbios

O proverbio é curto enunciado que exprime um conselho popular, uma verdade ou o bom
senso. Ele está enraizado na cultura de um povo. Kourouma recorre a esta estratégia
discursiva que lhe permite consolidar o registo da oralidade e o imaginário das tradições
africanas. Por exemplo, “É melhor seguir as pegadas de um elefante na floresta para não ser
molhado pelo orvalho”33,(Na presença dos mais velhos, os jovens sentem-se protegidos),
31
Mbiti, J. (1969): African Religions and Philosophy, East African Educational Publishers, Nairobi,
Kampala.
32
La thèse selon laquelle le roman africain, comme la poésie et le théâtre est aussi un prolongement de
la parole artistique traditionnelle s’impose de plus en plus dans les études littéraires.
33
On suit l’éléphant dans la brousse pour ne pas être mouillé par la rosée, p.173.

49
"Não se põe um chapéu no joelho quando a cabeça está em cima do pescoço” 34,(é preciso
respeitar a hierarquia); “Uma criança não abandona a sua mãe por causa do seu cheiro” 35;(A
pessoa habitua-se ao seu ambiente).

A profusão deste recurso estilístico nesta obra não é, naturalmente, um acaso. Ele
permite ao escritor posicionar-se como depositário de uma sabedoria colectiva cujo alicerce é
a tradição oral.

Espiritualidade

A espiritualidade será entendida aqui, como toda crença que não é baseada no
racionalismo36. Não se trata de um apanágio das sociedades africanas mas constitui, sem
dúvida, uma dimensão importante na vida social. O título de livro Allah n’est pas obligé,
contém elementos ligados à espiritualidade. Ela está presente, em primeiro lugar, através dos
hagiónimos como Allah e Jesus-Cristo. Ela está presente, em segundo lugar, através de
referências explícitas ao cristianismo, islão, animismo, etc.

Enfim, a espiritualidade está presente igualmente pela simbologia. Quando a personagem


principal Birahima percorre o mato, encontra vários animais e cada um é símbolo: sorte,
morte, perigo, protecção, etc… (depois disse que uma coruja que aparece do lado esquerdo é
um mão sinal para a viagem)37; O turaco tendo cantado à direita, Yacouba levantou-se e
disse que era uma boa resposta38; uma perdiz cantou a direita eYacouba levantou-se, sorriu e
disse que o canto da perdiz significa que temos proteção39; Automaticamente, uma pintada a
cantou a direita, Yacouba levantou-se, sorriu e disse que o canto da pintada significa que
temos bênção40, etc.

Língua Popular

A língua utilizada não corresponde aos padrões literários clássicos. A norma linguística
utilizada, ll ?????????? geralmente nos modelos literários clássicos é a norma padrão. Esta
não é a opção de Ahmadou Kourouma nesta obra. Com efeito, ele utiliza um registo popular e
familiar (não literário). Utiliza também gírias e empréstimos linguísticos. Por exemplo,
encontramos palavras de uma das línguas da Costa de Marfim, a língua Malinké, faforo (uma

34
Le genou ne porte jamais le chapeau quand la tête est sur le cou p.11.
35
Un enfant n´abandonne pas sa mère à cause des odeurs de son pet, p.18.
36
Como corrente filosófica, o racionalismo nasce com Descartes, e atinge o seu auge em B. Espinoza,
G. W. Leibniz e Ch. Wolff
37
Après il a dit qu’une chouette qui sort à gauche est un mauvais présage pour le voyage, p.46.
38
Le touraco ayant chanté à droite, Yacouba s’est levé et a dit que le chant du touraco était une
bonne réponse, p.46.
39
Une perdrix à chanté à droite, alors il s’est levé, il a souri et a dit que le chant de la perdrix signifie
que nous avons la protection, p.47.
40
Automatiquement, une pintade a chanté à droite, alors il s’est levé et a dit que le chant de la pintade
signifie que nous avons la bénédiction, p.48.

50
injuria que significa sexo da mulher); bilakoro (rapaz ou homem que não fez circuncisão);
djogo-djogo (custa o que custar); faro (esperto) etc. Encontramos também palavras da língua
inglesa como small-solder, pequeno-soldado) na p.44, bushmen, homem da floreste, p.36,
Kid (criança), p.64. A língua popular caracteriza-se também pela imbricação de estruturas
sintáxicas das línguas coexistentes, neste caso, da língua francesa e da língua malinké. Assim
encontramos “frases francesas” numa estrutura da língua malinké, o que faz com elas não
sejam compreensíveis em francês: a minha escola não foi longe 41, pediram-me para esfriar o
coração42, p.28. Estas frases criam uma certa estranheza linguística.

Uma outra característica da língua popular é a criação lexical. Esta particularidade


linguística está presente na obra de Kouroma. Com efeito, encontramos palavras criadas pelo
autor por exemplo para caracterizar a situação de emprego/trabalho em situações informais
características de muitos países africanos como Transportador-taxista-desenrascador-
bamilek43 ; alfaiate-cabeleireiro-quinquilheiros-vendedores de capulana-mascarado44.

Enfim, a língua popular como característica o uso da gíria. Assim, encontramos palavras
como gajo, (p. 96); Puto (p.63); Cena, (97); Taco (154), etc.

Contudo, importa referir, que esta ‘’língua não literária’’ aparece entrelaçada com uma
língua muito literária com recurso até gregas e latinas. Este balanceamento entre o mesólito 45
e basólito46 a é também uma das características dos locutores em muitos países africanos.

Percepção do Tempo

Uma das repercussões do racionalismo ocidental foi a primazia dos instrumentos de


medição de algumas grandezas como o peso, a distância, o tempo, etc. Esses instrumentos
trouxeram mais precisão e moldaram a relação dos homens com essas grandezas47.
Em Allah n’est pas obligé, o tempo é apresentado numa perspectiva ocidental mas
também numa perspectiva característica das sociedades essencialmente orais. Por exemplo,
temos datas precisas do início dos confrontes entre as forças da ECOMOG e do exército
regular: 15 de Maio. Temos igualmente as datas da realização do Conselho de Segurança: 27
de Maio; ou ainda o ano de independência da Libéria, 1860, etc. Mas algumas indicações
temporais não são apresentadas nesta perspectiva.

41
Mon école n’est pas arrivée loin, 10.
42
Ils m’ont demandé de refroidir le cœur, 28.
43
Le transporteur-taximan-débrouillard-bamiléké, p. 175.
44
Ces tailleurs-soyaman-coiffeur-bijoutier-vendeur-de-pagne-masqué p.176.
45
Variedade mais alta de uma língua.
46
Variedade mais ‘’baixa’’ de uma língua.
47
No sentido matemático do termo, isto é, elemento suscetível de medição.

51
Assim, não se conhece a idade real da personagem principal: Tenho 10 ou 12 anos, (há
dois anos a minha avó dizia que tenho 8 e a minha mãe dizia que tenho 10)48. Esta
‘’imprecisão’’ da idade até é motivo de derisão: A minha mãe não contou a minha idade e os
meses, ela não tinha o lazer de fazer isso já que sofria e chorava constantemente49.

Algumas indicações temporais são apresentadas numa perspectiva ‘’não ocidental’’ por
exemplo, o período das cerimónias ritos de iniciação das raparigas: os ritos de iniciação são
organizados uma vez por ano quando sopra o vento do norte50.

O mesmo acontece em relação o período das orações é indicado tendo como referência
canto do galo, 1º, 2º, 3º, etc. Mamã morreu no primeiro canto do galo51, Um dia de manha,
chegou Yacouba, no primeiro canto do galo52, etc.

Enfim, a apresentação do conto não obedece uma lógica cronológica habitual da escrita
ou a sequência clássica, passado-presente-futuro. Assim, a personagem principal, Birahima,
começa a sua história no presente e depois fala do passado, incluindo o que ele era antes de
nascer! “Antes de estar no ventre da minha mãe, eu era vento ou talvez uma cobra,...Isso
chama-se vida antes da vida”, p.13.

Imbricação de Géneros Literários: Fábula, Romance, Novela?

Na saída da Idade-Media, a literatura ocidental restabeleceu as fronteiras literárias que


começaram na Grécia Antiga. Essa taxinomia norteou as produções e as críticas literárias.
Numa atitude de auto-afirmação, muitos escritores africanos produzem obras que ‘’violam’’
estas taxinomias. Ahmadou Kouroma excele neste exercício.

A presença de animais, floresta, maravilhoso inscreve esta obra na categoria de fábula.


Mas os topónimos (Gana, Costa de Marfim, Libéria, Serra Leoa, Burkina Faso, etc. ; as datas
históricas, os antropónimos (Charles Taylor, Samuel Doe, Mohamar Kadhafi, Blaise
Campaoré, Gnassingbe Eyadema, Lassana Conte, Sani Abacha, etc.); os acrónimos atestados
historicamente como ULIMO (Movimento unido da Libéria), NPFL, (LPC, (Conselho
Liberiano para Paz), OUA, (organização da Unidade Africana) CEDEAO, (Comunidade dos
Estados da África do Oeste) ECOMOG, (Força de Internacional), etc. inscrevem-na na
categoria de ensaio histórico. Enfim, os nomes das personagens sobretudo das crianças-
soldado são manifestamente fictícios: Jean Tai, (cabeça queimada), Capitão Sekou Ouegrado
(o terrível), Mamadou (o maluco), Boukary (Maldito), etc. Esses elementos são
característicos do romance. Há pois uma imbricação de géneros literários clássicos, romance,

48
Je suis dix ou douze ans (il y a deux ans ma grand-mère disait huit et maman dix), p.11.
49
Maman n’avait pas compté mo mage et mes mois, elle n’en avait pas le loisir vu qu’elle soufrait tout
le temps, pleurait tout le temps, p.14.
50
…l’initiation des jeunes filles qui a lieu une fois par an quand souffre le vent du nord.
51
Maman a rendu l’âme au premier chant du coq, p.33.
52
Um matin, au premier chant du coq, Yacouba est arrive à la maison, p.45.

52
ensaio histórico e fabula. Por isso, o crítico literário Mateso (1986:346) 53 resumia esta
tendência afirmando que “na literatura oral tradicional, […] o romance africano é
caracterizada pela imbricação de géneros e esta imbricação rompe as fronteiras entre os
géneros”.

Em Moçambique

As obras de alguns escritores Moçambicanos do período pós-colonial enquadram-se


nesta operacionalização do conceito de desconstrução dos modelos literários clássicos. Tal é
o caso em Ualalapi, de Ungulani Baka Khosa. Trata-se de uma metáfora sobre o poder que
tem como protagonista o mítico rei Ngungunhane, conhecido pela resistência que opôs aos
portugueses nos finais do século XIX. Por isso, é considerado um herói nacional como
atestam os nomes de algumas escolas e ruas que ostentam este antropónimo. Em Ualalapi,
este herói é-nos revelado de maneira radicalmente diferente da sua apresentação oficial, como
um homem cruel, violento, sanguinário, etc. Assim, no preâmbulo da obra, o autor insere
alguns depoimentos orais que contrariam a apresentação oficial do herói, por exemplo, U
Ngungunhane! Uya Ngungunya e bafazi ne madoda!..(Anónimo): Tu és Ngungunhane!...
Aterrorizarás as mulheres e os homens.

Registo de Língua: Provérbios, Locuções Idiomáticas e Léxico Locais

O registo privilegiado é o do português padrão. Contudo, Ungulani Baka Khosa inclui,


subtilmente, mudanças lexicais ou sintáxicas da língua popular. Neste conto, é muito notória
a presença de provérbios, locuções idiomáticas diferentes da língua padrão. Por exemplo,
encontramos provérbios54 ligados as praxis locais susceptíveis de criar alguma estranheza.

- Para onde vai o fumo, vai o fogo, Malule, p.46.


- Nunca hás-de encontrar água raspando uma pedra. Deixa-me falar. Eu conheço a
verdade. Vivi na corte…p.46.
- Mas qual é o homem que não tem ranho no nariz, Malume? p.46.

Se Damboia teve erros não foram de grande monta. E nisso não devemos nos meter. O
tecto da casa conhece o dono, p.46.
- Mas o caracol deixa baba por onde passa, p.46.

As línguas e culturas bantu são desta forma incorporadas através de uma espécie de
tradução literal desses ditados populares.

Encontramos também empréstimos linguísticos como swikiro, (nome dos médiuns


chona) p.16, mkonsikazi, (primeira mulher de um homem) p.23, hosi, (rei) p.32, mbhangui,
Dans la littérature orale traditionnelle, […] il n’y a pas de frontière étanche entre les genres […]. Le
53

roman africain connaît une imbrication similaire des genres.


54
Este excerto está na página 46. O sublinhado é nosso.

53
(canábis), p.52, etc. Mas além deste léxico bantu, Ungulani Baka Khosa integra frases inteiras
em língua zulu que são traduzidas em português. Por exemplo: A mingi bonanga e mizeni
yenu. Ngi ya hamba, manje mizokusebendza. Ni bafazi benu, p.83. (Jamais me viste em
vossas casas…E verdade que me vou, mas sereis escravizados com as vossas mulheres).

Ou ainda: U Ngungunhane!...Uya Ngungunya e bazafi ne madoda, p.12 (Tu és


Ngungunhane!...Aterrorizarás as mulheres e homens), etc. A oralidade constitui um aspecto
marginal na literatura padrão, pelo menos até ao século XX. Contrariando esta tendência,
Ungulani Baka Khosa incorporou no seu romance as narrações provenientes da tradição oral
de Ngungunhane, transmitidas de geração em geração.

Oralidade Versus Escrita

Katerina Doudilova (2008:31) apresenta um ponto de vista muito interessante sobre esta
questão a partir da análise do diário de Manua. Este filho de Ngungunhane tirou o curso de
Artes e ofícios na Europa. Um dos temas principais dessa história é a relação da escrita com a
oralidade, ou melhor a “valorização do oral por oposição à escrita”. A narrativa começa pelo
achado do diário de Mputa, do qual o narrador colhe informações. Mas, como o diário nada
diz dos acontecimentos entre 1892 e 1895, serve-se também do testemunho do comerciante
árabe, Kamal Samade, o pedestrianista. E escrita é, neste romance, “o símbolo maior da
recusa da cultura tradicional e do início do colonialismo.” E também o símbolo do
desequilíbrio e da ruptura, porque a sua imposição numa sociedade de tradição oral não é um
produto da evolução histórica normal, mas é introduzida violentamente pelo outro. A crítica
da escrita aparece também no último discurso de Ngungunhane:

“Estes homens da cor de cabrito esfolado que hoje aplaudis entrarão nas
vossas aldeias com o barulho das suas armas e o chicote do comprimento da
jibóia. Chamarão pessoa por pessoa, registando-vos em papéis que
enlouqueceram Manua e que vos aprisionarão. Os nomes que vêm dos vossos
antepassados esquecidos morrerão por todo o sempre, porque dar-vos-ão os
nomes que bem lhes aprouver, chamando-vos merda e vocês agradecendo.
Exigir-vos-ão papéis até na retrete, como se não bastasse a palavra, que vem dos
nossos antepassados, a palavra que impôs a ordem nestas terras sem ordem, a
palavra que tirou crianças dos ventres das vossas mães e mulheres. O papel com
rabiscos norteara a vossa vida e a vossa morte, filhos das trevas.” (Ba Ka Khosa,
2008:89).

Todavia, a confluência da escrita com a oralidade neste romance não é representada


somente através da subversão da escrita pelos processos da oralidade, mas está também
simbolicamente descrita no fim do livro, onde o narrador, a noite, junto da fogueira (um
ambiente típico para contar e ouvir os contos tradicionais africanos), ouve a narração dum
velho sobre a partida de Ngungunhane para o exílio.

54
“- Há pormenores que o tempo vai esboroando – disse o velho, tossindo.

Colocou duas achas no fogo e soprou. Novelos de fumo passaram pelo rosto. Pequenas
lágrimas saíram dos olhos cansados e tocaram na pele coberta de escamas. Afastei os papéis.
Olhei-o. Era noite.” (Ba Ka Khosa, 2008:88). Neste excerto, a oralidade encontra-se com a
escrita. Percebemos que o ouvinte anota as palavras do velho, talvez na tentativa de fixar as
histórias antigas da tradição oral, para as fazer renascer, mas já de forma escrita. Num certo
momento, o ouvinte afasta os papéis para poder pensar na história do velho.

Imbricação de Género Literário: Conto ou Romance?

Segundo Katerina Doudilova (2008:25), Ungulani Baka Khosa faz uma renovação do
discurso histórico e participa do que Mioara Caragea chama “romance histórico”. Este, tem
como objectivo principal “reinventar as versões tradicionais da identidade colectiva” e
preencher “os espaços brancos do passado ignorados até ai pelo discurso histórico oficial”. A
relação da metaficção com a historiografia manifesta-se pelo tratamento da História a
exemplo dos paradigmas criados por nouvelle histoire. Por exemplo, o descolamento do
interesse para o que permanecia nas margens: Os assuntos e personagens marginalizados.

O livro Ualalapi representa um conjunto de seis contos aos quais sempre antecedem
fragmentos do fim. Os contos, aparentemente independentes, têm um elo vincular que é a
tentativa da construção e desconstrução (e talvez a reconstrução) da personagem do
imperador Nguni, Ngungunhane. Assim, podem funcionar comunidades independentes, e ao
mesmo tempo interdependentes. São impregnados de fenómenos sobrenaturais e de ecos dos
mitos africanos o que lhes confere o carácter circular do tempo, do tempo do eterno regresso.
Os Fragmentos do fim, numerados, compostos pelos documentos históricos (1º, 4º, 5º) ou
pelos textos históricos inventados que oscilam entre o testemunho histórico e a ficção (2º, 3º,
6o), ordenados por ordem cronológica, que confere ao livro o carácter linear, retratam os
acontecimentos que resultam no aprisionamento de Ngungunhane pelos portugueses e, em
consequência disso, a queda do império nguni.

O que acabamos de expor explica, sem dúvida, o incessante questionamento acerca do


género. Trata-se do conjunto dos contos ou do romance? A dificuldade em responder
peremptoriamente a esta questão prende-se também com o facto desta obra ter várias
etiquetas: na primeira edição (1987) teve na capa a indicação “contos”, a segunda (1991) já
era considerada “romance”. Em 2008, a Alcance Editores, classifica-a como prosa. A
indefinição do género é uma ‘’violação’’ dos modelos clássicos.

O Sobrenatural

Outro elemento característico das narrativas orais é a intervenção do sobrenatural. Por


exemplo, ainda em Ualalapi, Manua enche o navio de vómitos é punido por comer peixe,
animal sagrado dos Nguni (p.71). O sangue de uma pessoa mata peixes:

55
- Ao segundo mês, creio, choveu como nunca durante duas semanas. O sangue
dela escorreu ao rio, tingiu-o de vermelho e matou os peixes que os nguni não
comiam (p.51).
Ou ainda o aparecimento de mortos sem explicação:
- Um fenómeno estranho passava-se nos arredores: cadáveres sem nome e rosto
apareceram à superfície das águas lodosas (p.45).

Os mortos infligem punições aos vivos:

Buinsanto…afirmou que o seu irmão Manua bebia com muita sofreguidão devido
ao feitiço dos bisavôs que se irritaram por aqueles modos. O pénis minguava de
dia para dia. No dia da sua morte acordou sem nada entre as coxas (p.79).

Estes exemplos, ilustram a importância do sobrenatural na obra.

Espiritualidade

A espiritualidade está presentes tal como em Allah n’est pas obligé associada aos
animais e aos antepassados:

- Dois pangolins, animais de mau agouro, reluziam ao sol numa atitude de


completa sonolência (p.13).
- Os mochos teimaram em serandar sobre as casas, chiando toda a hora e
trazendo os espíritos há muito adormecidos (p.15).
- Mawewe…conseguiu usurpar o poder sem anuência dos espíritos e dos
maiores do reio que tinham aceite Muzila como sucessor (p. 18-19).

As obras de Kourouma e de Ba Ka Khosa permitem verificar que, socorrendo-se do


conceito filosófico desconstrução, alguns escritores africanos rompem com os padrões
literários clássicos e fazem emergir uma literatura na qual o local e o universal, o europeu e o
africano, o centro e a margem, etc. fundem-se. Esta “aparente” coincidência nas duas obras
explica-se pelo facto de a literatura e a filosofia europeias terem constituído e constituírem o
tabuleiro sobre o qual tradicionalmente se assentam as literaturas africanas, por assimilação
ou diferenciação.

Em Jeito Conclusão

À luz do que foi exposto, pode afirmar-se, em primeiro lugar, que a apropriação do
conceito de desconstrução permitiu a literatura africana emancipar-se dos modelos literários
canónicos e fazer emergir novos paradigmas capazes de espelhar as preocupações dos
escritores africanos. Assim, as antigas ‘’margens’’ constituem, hoje, os pilares da literatura.

56
Pode-se afirmar, em segundo lugar, que os diálogos entre a filosofia e a literatura vão da
partilha de temas até à fusão em alguns escritores filosóficos e em terceiro lugar, como
corolário, que a relação entre a Filosofia e a Literatura transcende os limites rígidos do
conhecimento caracterizado pela departamentalização e revela a forma como os saberes se
interrelacionam, se completam e se confundem. Por isso, pode-se considerar que a fronteira
entre esses dois domínios é essencialmente porosa.

57
Bibliografia

Baka Khosa, U. (2008): Ulalapi. Maputo: Alcance Editores.


Castiano, J. P. (2010): Referenciais da Filosofia Africana. Em busca da Intersubjectivação.
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58
Fronteiras das Ciências Naturais com a Filosofia

Por: Emília Afonso Nhalevilo

Introdução55

Gosto de olhar para o quintal através da janela da minha cozinha e ver a relva. Todos os dias
quando eu olho pela janela da cozinha vejo a relva. A relva na minha mente é quase um
sinónimo do verde e do meu quintal. No entanto, num dia de sol de inverno, me sentei numa
cadeira no meu quintal, aproveitando o sol para aquecer a minha pele e espírito, olhei para a
relva aos meus pés e ao redor da minha cadeira e notei pequenos insectos que rastejavam pela
relva. Eles eram pretos e mediam menos de meio centímetro de tamanho. Eu nunca tinha
notado antes e não tinha conhecimento da existência de tais insectos no meu quintal. Na
contemplação, eu me perguntei qual poderia ser o papel daqueles insectos na relva verde.
Seriam prejudiciais? Seriam parasitas ou estariam vivendo em reciprocidade com a relva - o
mutualismo, ou talvez independentemente dela? Passei então talvez meia hora ou mais a
inventar a realidade sobre a relva e sobre os pequenos insectos, e durante este tempo a
realidade que a relva estava representando, de alguma forma, se alterou. Eu ainda estava
olhando para a relva, mas não conseguia ver a relva que eu costumava ver através da janela
da minha cozinha. Havia, com certeza, uma outra realidade da relva a entrar na minha íris e a
manter-me ocupada pensando sobre a sua natureza. A relva era mais que o material que eu
olhava. Era a relação desta com outros animais e era também a relação desta com essa coisa
que não sei descrever, mas que contemplando a relva me levava a imaginar a dimensão do
mundo e de uma forma espiritual, me indignar com a minha própria existência. E a dos meus
pais, e a dos meus avôs, e a dos que estiveram antes deles. Olhando a relva eu imaginei e vivi
a memória desses meus antepassados e o mistério dos espíritos que elevavam a minha mente
para não simplesmente observar mas também contemplar e sonhar. Então eu perguntei,
eventualmente, não pela primeira vez: O que é a realidade que vemos ao nosso redor? Existe
algum significado para ela? Qual é o meu papel em fazer algo real, como naquele momento, o
que era essa coisa que me fazia olhar para a relva e ver uma realidade diferente? Será que
precisamos de contemplar e não apenas observar as coisas, a fim de elaborar um significado?
E se nós não nos engajarmos em uma reflexão sobre a realidade, o seu significado qual é?
Qual é o significado para a relva que os outros têm? Átomos, proteínas, quintal, insectos,
antepassados, espíritos?

O sol ainda estava esquentando minha pele e meu espírito naquele dia de inverno.
Perguntando sobre a realidade, lembrei-me da conversa com o Prof. Severino Ngoenha sobre
fronteiras e me perguntei se as minhas reflexões eram científicas (das Ciências Naturais) ou
filosóficas.

55
Adaptado de Afonso, 2007.

59
De várias perspectivas esta história se enquadra na abordagem que aqui faço, uma reflexão
sobre as fronteiras entre as Ciências Naturais e a Filosofia. Tomei primeiro uma perspectiva
diacrónica que me fez desconstruir este conceito de fronteira entre estas duas áreas de
conhecimento. Passei depois pela via de linguagem, levando uma base estruturalista para
reflectir em alguns conceitos e termino o texto tomando uma via multiparadigmática,
tentando abordar a questão das fronteiras sobre uma perspectiva de existência de múltiplas
culturas e da possibilidade da sua interacção no género do mutualismo- conceito da ecologia
ou intercultura- conceito da política/filosofia. Quero dizer, previlegiei neste texto a interação
e não a delimitação das diferenças.

Breve Olhar a História das Ciências Naturais

Escolhi, para começar esta reflexão, a abordagem diacrónica, porque como diz Skolimowsky
(1994), autor do livro sobre os três grandes projectos Ocidentais, ideias sobre como e porque
estudar o universo são reflexo ou influenciadas grandemente por aquilo que constitue o
problema da época. Se falarmos, por exemplo, da idade média, os filósofos estavam muito
preocupados e construíam os seus pensamentos à volta de se provar a existência de Deus e o
papel deste sobre o universo. Hoje, o teocentrismo não é prioridade, não é o focus de
problemas de hoje. Assim, uma vista diacrónica ajuda a compreendermos não só os factos,
mas também a subjectivarmos esses factos a interesses da época - quer dizer esta viagem
diacrónica, é deconstrutiva-intencionalmente, como se poderá ler nas últimas linhas mais
adiante.

É comum, nas aulas de Ciências Naturais, a referência a Aristóteles, Tales de Mileto,


Demócrito e muitos outros ‘filósofos’ gregos. Esses eram pensadores que se ocupavam da
questão “o que é o mundo que nos rodeia?” um tópico amplo que podia cobrir questões
materiais amalgamadas com questões de ética, religião e política. “Átomo”, um dos primeiros
conceitos a ser estudado em Química, vem da língua grega, significando ‘indivisível’. No
entanto, esses filósofos não eram o que hoje chamaríamos ‘cientistas’ (das Ciências
Naturais). Eram, como se adoptou chamar, da Filosofia Natural. As suas interpretações sobre
a natureza eram, às vezes místicas, num mundo em que a existência de deuses era marcante.
Essas interrogações, que não eram tanto ‘científicas’, formaram a base para o nascimento das
Ciências Naturais. Quer a Filosofia Natural como as Ciências Naturais se ocupam em estudar
o mundo à nossa volta, embora seja relevante dizer que as Ciências Naturais se ocupam com
o mundo material. A enfâse em estudar o mundo material influenciou a via epistemológica
que as Ciências Naturais identificaram, que é baseada na observação. Só o material é
observável.

A observação como método científico foi introduzida por Galileu (1564-1642) no contexto do
estudo do universo (a Terra gira à volta do Sol) contra as ideias de Aristóteles (384-322 a.C.)
que estavam em harmonia com as interpretações religiosas do universo. Com as suas
observações, Galileu explicava, olhava/observava o que acontecia sem se preocupar porque

60
acontecia, ao contrário de Aristóteles que se ocupava de explicações sobre as razões dos
acontecimentos.

Francis Bacon (1561-1626) iniciou o que ficou conhecido como “normas do método
científico” defendendo que todo o conhecimento devia ter como base a evidência e a
experiência (contrapondo as ideias de Aristóteles que defendiam que tudo tinha uma causa ou
propósito). Bacon chamou a atenção sobre dogmas que distorciam o conhecimento. Dai a
ciência avançou muito num paradigma positivista, objectivista.

Hoje é já popular a informação de que as Ciências Naturais surgiram com a introdução do


método científico no estudo da natureza e dos seus fenómenos. A introdução do método
científico- observação, formulação de hipótese, experimentação, conclusão- marcaram a
passagem da Filosofia Natural para as Ciências Naturais. O ‘método científico’ (que se
desenvolveu muito a partir do séc. XVII) funcionou/funciona como um guardião que verifica
e determina se um determinado conhecimento pode ser científico. A experiência e a
observação constituíram/constituem o ‘sinal’ principal para se considerar ciência.

A preocupação em delimitar a área de estudo das Ciências Naturais, assim como de outras
ciências, deu lugar ao surgimento do estudo destas a um nível meta de descrição e
interpretação da natureza de cada disciplina. No caso das Ciências Naturais, deu lugar ao
estudo da Natureza das Ciências Naturas (NOS- Nature Of Science). Segundo esta descrição,
ontologicamente, o método científico baseia-se no realismo, assumindo que existe uma
realidade (ou mundo, universo) que pode ser observado e estudado seguindo determinados
métodos. Epistemologicamente, o empiricismo é tido como o método das Ciências Naturais.
O conhecimento, para ser reconhecido como sendo de natureza científica, tem que ter uma
base empírica. O reducionismo é a lógica privilegiada no método científico. A ideia
dominante nesta lógica é de que para chegarmos a um conhecimento a via é dividirmos o
fenómeno em partes cada vez menores. Dessa forma se pode chegar ao conhecimento sobre
um ‘todo’. Os aspectos constituintes da NOS funcionam, assim, como princípios
exclusivistas: só é Ciência Natural o conhecimento que passa pela condição epistemológica
do método científico. No entanto, se por um lado existe uma condição de pertencer às
Ciências, este discurso das Ciências é considerado legitimado para entrar em todas as outras
áreas e culturas- é proclamado universal. Assim, este discurso descredibiliza o que em outras
epistemologias se considera conhecimento válido. Mas este assunto deixarei para a terceira
parte da minha abordagem, a abordagem multiparadigmática.

A par da lógica reducionista empiricista e positivista, a semiótica, nas salas ou laboratórios


onde se cultivam as Ciências Naturais, reforça a crença sobre uma ciência com fronteiras
rígidas. Vários estudos por exemplo, Shapiro, 1998, com o seu Reading the Furniture: the
Semiotic Interpretation of Science Learning Environments (Lendo o mobiliário: A
interpretação semiótica do ambiente de aprendizagem nas Ciências [Naturais]) mostram
como a arquitectura das escolas, a disposição e organização dos laboratórios escolares, o
lugar (físico) que o professor ocupa na sala de aulas, todos estes aspectos são símbolos que
têm impacto no ambiente que se cria na escola. Através da semiótica, nas Ciências Naturais,
se reforçaram fronteiras entre esta e outras áreas, como por exemplo a Filosofia. Conheço

61
muitos colegas, de outras ciências, para os quais só a ideia/imagem de laboratório lhes
desencoraja a perceber sobre os fenómenos que lá são interpretados. Os laboratórios,
semioticamente, tornam-se uma fronteira que só os que estudam ou gostam das Ciências
Naturais querem transpor.

No entanto, se tomarmos uma perspectiva diacrónica, que permite uma deconstrução das
barreiras que se ergueram, veremos como frágeis e instáveis são estas fronteiras. Se
tomarmos como exemplo, a teoria sobre o átomo, teoria esta que talvez mais marcou as
Ciências Naturais, chegamos muito rapidamente a essa fragilidade fronteiriça. O átomo de
Demócrito era simplesmente a menor porção de matéria que poderia existir. Ele se
perguntava até onde poderíamos dividir a matéria, e a parte que já não se poderia dividir ele
chamou átomo- em grego indivisível. Esta ideia perdurou por séculos até que no auge do
empiricismo, John Dalton (1766-1844), fazendo experiências sobre as reacções e as
proporções múltiplas, ‘provou’ a ideia de existência das tais partículas indivisíveis chamadas
átomos. Dalton (que também foi pioneiro no estudo da deficiência visual chamada
daltonismo) tratava este conceito no âmbito submicroscópico, e o mais importante é que
tomou a via epistemológica das Ciências Naturais para legitimar o que Demócrito descobrira.
Joseph Tompson (1856-1940) introduziu os electrões e daí a ideia de que existem partículas
menores dentro do átomo. Ernest Rutherford (1871-1932), Niels Bohr (1885-1962)
construíram também os seus modelos. Nos dias de hoje perduram as ideias da Mecânica
Quântica.

Hoje, na mecânica Quântica, está-se longe das certezas sobre a matéria dos tempos áureos do
empiricismo, do objectivismo como meio básico para se chegar ao conhecimento. Segundo a
Mecânica Quântica, o electrão (outrora considerado uma partícula) é uma partícula e
simultaneamente uma onda, este princípio opõe-se à ideia que perdurava nas ciências de que
A não pode ser não-A. Neste caso pode ser A e pode ser não-A, - um princípio dialéctico que
teve então que ser introduzido nas Ciências Naturais. Além disso, a posição e o movimento
do electrão passou a ser indeterminado. A ideia de órbitas que eram descritas como
caminhos ou rotas definidas dos electrões correspondentes a níveis de energia, foi substituída
pela ideia de orbitais descritas como locais prováveis (e não rotas definidas) do movimento e
posição do electrão. Paul Dirac (1902-1984) foi explícito nas suas aulas dando o exemplo de
que enquanto com o giz é possível nós dizermos onde está, num determinado momento, e que
se o giz está ali não pode estar em nenhum outro lugar, com o electrão o fenómeno era bem
diferente. Com o electrão, havia um conjunto de possibilidades que ele estaria aqui e ali e
além e em mais outros lugares naquele mesmo instante (o princípio da sobreposição).
Segundo a Mecânica Quântica existe sempre uma incerteza sobre o electrão, não se pode
saber a exacta posição e energia de um electrão. Para a objectividade das Ciências Naturais,
esta segunda ideia básica da Mecânica Quântica coloca algumas interrogações e marca, de
facto, a diferença com a Física clássica.

Ilustração 1: As ideias sobre o átomo

62
Fonte: http://www.nobeliefs.com/atom.htm)

Quero dizer, de um conceito filosófico sobre constituição da matéria (de Demócrito) o átomo
passou a base reducionista, que o qualificou então como um conceito das Ciências Naturais
(embora ele tivesse sido matéria de debate e de ‘descoberta’ de filósofos). Mas hoje o átomo
está a caminho de transcender as Ciências Naturais. O objectivismo deu lugar ao
subjectivismo (a questão mesmo da natureza do electrão) e até questões da metafísica são
importantes nas discussões das Ciências Naturais. As fronteiras tornaram-se difusas e, por
exemplo, vários cientistas são considerados filósofos. Cientistas como Johannes Kepler
(físico filósofo), René Descartes (filósofo matemático), Bernard d’Espagnat (filósofo físico) e
muitos outros exemplos. Os debates sobre o que é a realidade continuam e a busca de uma
TOE (Theory Of Everything) - mais filosófica que o método científico, volta a estar em voga
nos livros das Ciências Naturais. O livro de Shroedinger, um dos grandes propulsores da
Mecânica Quântica, ‘What is life: Mind and matter’ (o que é a vida: Mente e matéria) não
surpreendeu pelo título apesar de transcender o domínio da matéria.

Assumo que, no contexto de fronteiras, sem dúvida que o método científico agiu como uma
fronteira não só prática mas também ideológica na validação/legitimação do que é
conhecimento. Marcou uma separação com a Filosofia Natural e também com todas as outras
formas de saber que diferentes culturas desenvolviam. No entanto, as fronteiras rígidas das
Ciências Naturais parecem estar destinadas a se tornarem porosas ou a se fragilizarem. O
estudo do átomo, que deveria representar a unidade básica, na lógica positivista, leva a
afirmações cada vez menos objectivistas à medida que se vão descobrindo mais partículas (de
massa, neutras e de anti-massa). Os estudos avançados das Ciências Naturais, hoje, são
estudos de facto também filosóficos (e de outras áreas). Exemplo mais recente é que o prémio
Nobel da Medicina de 2014 foi atribuído a 3 médicos (J. O’keefe, M. Moser e E. Moser) que
conseguiram responder a uma pergunta filosófica e científica (os média noticiaram mesmo
que o prémio é de Medicina ou de Filosofia, por exemplo o jornal C&EN –Chemical and
Engineering News ou o jornal O País de Moçambique) sobre como os humanos percebem o
espaço à sua volta e como desenvolvem o senso sobre a distância -a chamada descoberta do
GPS do cérebro.

Levando este olhar diacrónico, é legítimo se perguntar: As fronteiras existem ou são fases da
história (uma evolução natural e/ou ideológica da nossa percepção sobre o universo)? As
fronteiras existem ou são ‘verdades’ frágeis que se vão diluindo na própria sofisticação do
nosso conhecimento (e.g. átomo incerto de hoje).

É neste contexto que posso afirmar que as fronteiras foram erguidas em determinada fase da
história para responder aos problemas dessa fase. E que foi talvez necessário erguer essas
fronteiras, especialmente quando nos lembramos que em 1633 Galileu foi condenado pela
Igreja pelas suas ideias ‘científicas’ revolucionárias.

63
Perspectiva de Linguagem

Sob o ponto de vista da língua, tradicionalmente os Japoneses aprendem uma


cultura estrangeira não através de uma língua estrangeira, mas através da
língua Japonesa (...) Os Japoneses importaram os caracteres chineses como
instrumento para expressar a língua Japonesa, mas não importaram a língua
chinesa (Ogawa, 1998: 143)

Nesta segunda parte vou tomar uma perspectiva linguística para estruturalmente reflectir
sobre as fronteiras entre a Filosofia e as Ciências Naturais. Ao contrário da primeira esta é
mais sincrónica.

De vários exemplos eu decidi tomar o do Japão, uma nação com longa tradição cultural ainda
hoje marcante e também uma nação científica e tecnologicamente avançada.

Alguns autores (ex. Kawasaki, 1996, 2006; Ogawa, 1998) argumentam que o ensino das
Ciências Naturais no Japão, pelo facto de ter sido traduzido para o japonês, tornou-se num
conteúdo que não era o mesmo que o do Ocidente. O argumento é que ao traduzir, os
Japoneses não incorporaram os valores e ideias sobre o mundo que o Ocidente encarnava.
Esta questão torna-se de peso porque, na minha leitura, as Ciências Naturais no Japão foram
imbuídas de ontologias e axiologias distintas das do Ocidente e levaram uma epistemologia
amalgamada com a Filosofia de vida do Japão.

O estabelecimento da escola moderna no Japão (modelo americano e europeu) começa em


1872 (Ogawa, 1998) com a introdução do código fundamental de educação-Gakusei, e do
regulamento da escola elementar- Shokaku Kyosoku. Antes o Japão tivera sistemas de
educação em que os alunos aprendiam a literacia muito desenvolvida e abrangente. Nakane
citado em Kawasaki (2006) estimou que cerca de 80% da população masculina era letrada
através das escolas Terakoya, um sistema de educação que existia antes da introdução do
sistema Ocidental.

Com a introdução dos sistemas do Ocidente, os Japoneses traduziram o conteúdo dos


curricula para o japonês. No entanto, essa tradução era baseada no contexto ontológico e
axiológico do Japão e não do Ocidente. Um dos conceitos básicos, por exemplo, nas Ciências
Naturais é o conceito ‘natureza’. Nas Ciências Naturais, observa-se a natureza para se
interpretar os seus fenómenos. A palavra natureza foi traduzida como shizen e nas escolas,
nas aulas de Ciências Naturais, os alunos sabiam e aprendiam sobre ‘shizen’.
Etimologicamente a palavra ‘shizen’ foi adaptada da palavra chinesa Tzu-jan (Kawasaki,
2005) que originalmente significa ‘espontaneidade’, algo como ‘ser supremo’. Shizen é o
ideal sobre o que todas as coisas deveriam ser. É na verdade um conceito religioso e/ou
filosófico (Kawasaki, 2005). Por outras palavras, shizen é mais que a matéria na natureza, é
algo que incorpora o divino e o espiritual ligados à natureza. Shizen incorpora uma dimensão
supernatural e inclui a própria relação do homem com o mundo à sua volta. Esta relação entre
a natureza e o Homem e todos os outros seres é importante do ponto de vista de shizen, pois
dela vai depender a qualidade de vida de todos os seres e a própria existência eterna do

64
mundo. A tradução de ‘natureza’ para ‘shizen’ levou ao que Kawasaki denomina por
incomensurabilidade linguística cultural. Os conceitos são, na base da cultura,
incomensuráveis. Pode-se deduzir destes significados que, enquanto nas ciências se observa a
natureza, do ponto de vista japonês shizen não é observável no sentido de observação das
Ciências Naturais. Outro conceito importante nas ciências é mesmo o de ‘observar’ que,
conforme abordado na secção anterior, é uma das etapas do método científico. A palavra
traduzida para a língua Japonesa de observar é ‘Kansatsu’. No entanto, Kawasaki argumenta
que existe aqui também uma incomensurabilidade cultural linguística e cita Hashida que
argumenta que Kansatsu é algo superior que observar, podendo talvez equivaler a
comtemplar. Portanto, a expressão Japonesa ‘shizen no kansatsu’ que traduzia nas línguas
ocidentais por ‘observar a natureza’, não tinha de facto o sentido ‘original’ das Ciências
Naturais observar a natureza. Observar, apontava Shahida, não é suficiente para kansatsu. No
significado japonês, kansatsu implicava uma empatia alta entre o observado e o observador e
este facto-empatia- na perspectiva Japonesa, era muito importante; O que levava Hashida a
afirmar que a separação entre observado e observador era má para a ciência, eles deveriam
mergir. Neste sentido, Hashida argumentava que a ciência tal como ‘falada’ nas línguas do
Ocidente era uma ciência inferior, que para ser útil para a sociedade devia ser falada em
termos de ‘shizen’ (pois este conceito religioso/filosófico não via a natureza com a função de
nos servir, mas sim como algo a ser supremamente respeitado), e em termos de ‘kansatsu’ ou
seja, comtemplar, meditar (pois este conceito impele a reflexões imbuídas de questões
axiológicas-de valores, imbuídas de questões filosóficas). Se tomarmos a perspectiva de
Hashida, a ciência no Ocidente ergueu e apoiou as fronteiras por ‘culpa’ da sua limitação
linguística, que ‘impunha’ um significado para a ‘natureza’ e para ‘observar’, por exemplo,
bastante reduzido. Podemos, no entanto, afirmar que os conceitos do Japão eram os ‘errados’
pois a ciência ‘vinha’ do Ocidente. Mas, podemos também julgar que os conceitos do Japão é
que eram os próprios para a ciência, pois o ritmo a que o Japão avançou científica e
tecnologicamente é admirável. Isto se pode dever em parte (mesmo reconhecendo a
complexidade da questão) ao facto de o Japão afinal, usar a ontologia ou axiologia ‘certa’
para as Ciências Naturais. Podemos argumentar ainda mais em favor desta posição ‘certa’ do
Japão mesmo se insistirmos no facto de as ciências serem do Ocidente. Por exemplo, se
pensarmos no berço das ciências ocidentais, na civilização grega, há muitos ‘erros’ de
tradução que aconteceram quando conceitos tinham que ser traduzidos. Por exemplo, uma das
palavras muito comuns nas ciências é a palavra ‘teoria’ que, segundo Habermas (1978) deriva
da palavra Theoria, que se relacionava, na civilização da antiga Grécia, a Theoros que era um
representante enviado para as celebrações. O representante tinha a missão de ‘contemplar’ as
celebrações através de theoros, pelo qual ele ‘abandonava’ a sua pessoa para os eventos
sagrados. A ‘tradução’ que foi feita à theoria para teoria, não levou exactamente todo o
significado implicado nesta palavra. Tal como Hashida afirmava em relação a ‘observar’ a
palavra teoria, não é suficiente para o sentido que de facto deve ser derivado de theoria. Certo
que uma análise estruturalista pode ter a limitante de ser sincrónica, no entanto, nos mostra
como antes a ‘teoria’ era mais filosófica que científica pura. Se a língua (falada) não estivesse
intrinsecamente ligada à forma como agimos, provavelmente esta interpretação ‘errada’
viciada não seria tão relevante. Mas tomemos o exemplo da palavra curriculum. Esta palavra

65
que etimologicamente deriva da palavra ‘currere’-significando ‘correr’ é um verbo do acto de
participar numa actividade –correr. No entanto, do latim esta palavra foi ‘mal traduzida’
passando o significado a ser mais de um pronome em vez de um verbo. Isto tem ainda hoje
implicações profundas sobre como muitos profissionais na educação entendem ser curriculum
e, por consequência, na forma como actuam. Interpretando o curriculum como um pronome,
ele torna-se um objecto tangível com planos de lição para se seguirem e orientações
metodológicas e menos o processo de correr (Slattery, 1995). E este facto traz uma profunda
diferença na forma de conceptualizarmos a nossa prática no ensino. Transformando o verbo
no sentindo de pronome o currículo passa a assumir imagens que não são suficientes para o
conceito original de currere, podendo ser induzido a currículo como conteúdo, currículo
como objectivos por alcançar e muitas outras que não traduzem o sentido de currículo como
verbo, um processo, uma acção.

Esta minha abordagem de linguagem é para sublinhar que as fronteiras entre as Ciências
Naturais e a Filosofia podem ser fictícias, armadilhadas por traduções que o Homem foi
dando a vários conceitos chave, no estudo do mundo que nos rodeia. Assim, eu perguntaria:
A fronteira existe ou é dependente da língua que se usa para explicar os fenómenos da
natureza? Por outras palavras, o conceito de Ciências Naturais que hoje temos é
linguisticamente contingente e não necessário. E me lembrei da relva no meu quintal- a
diferença que faz entre observar a relva e contemplar a relva.

Perspectiva Multiparadigmática

Tem sido tradição, ao nos referirmos à história da educação, recuamos a Grécia ou Roma. O
Egipto, país Africano, aparece mais como fonte de inspiração e de conhecimento e não
propriamente como berço das escolas. Diz-se que tanto Platão, como Demócrito mas
sobretudo Pitágoras (este viveu 27 anos no Egipto) e outros viajavam ao Egipto em busca de
conhecimentos. No entanto, as fronteiras erguidas deixavam de parte, por razões ideológicas
mas também políticas e sobretudo imperialistas, muito do conhecimento não Ocidental. As
fronteiras exclusivistas serviam também para a construção do império colonial. Assim, todo o
conhecimento clamado por outras culturas barrava nas fronteiras epistemológicas (o método
científico) ou, a ser incluído era deformado para obedecer aos critérios do guardião. Neste
contexto, estas fronteiras, por interesses políticos, eram reforçadas através, por exemplo, de
decisões económicas que, como afirma Hountondji (2002), levaram a que África não tivesse
laboratórios sofisticados e por conseguinte que dependesse, em termos de produção de
teorias, da metrópole.

No entanto, com o desenvolvimento de estudos sobre outras ontologias, a descentralização da


ciência ocidental trouxe novas perspectivas e debates sobre as fronteiras entre aquela e outras
áreas. Na educação, por exemplo, o debate em vários países da América, Ásia e África e na
Austrália sobretudo, levou ao consenso sobre a necessidade de inclusão dos chamados
conhecimentos locais/nativos/indígenas/endógenos nos curricula. Esta viragem trouxe a
dificuldade epistemológica de harmonização deste conhecimento com as bases já existentes

66
das Ciências Naturais, podendo-se até falar de fases históricas da sua integração (por
exemplo, Nhalevilo, 2013). Surgiram várias teorias como a de ‘Border crossing’
(atravessando fronteiras) de Aikenhead (Canadá), ‘Colateral learning’ (aprendizagem
colateral) de Djegede (Nigéria) tentando argumentar sobre a integração ou inclusão dos
conhecimentos ou axiologias nativas nos curricula. Estas teorias tinham em comum a posição
multiculturalista (Irzik, 2001) que contrapunha a posição universalista sobre o ensino das
ciências. Dentro desta onda multiculturalista salientam-se (i) as ideias segundo as quais todos
os outros conhecimentos (nativos) devem ser incluídos no grupo das ciências que já existem
(por exemplo, Snively & Corsiglia, 2001) e, (ii) as ideias segundo as quais se deverá criar
uma outra disciplina que não as ciências para não subjugar este conhecimento pelas já
conhecidas ciências (por exemplo Cobern and Loving , 2001). Havendo algumas ideias ainda
clamando para o surgimento de uma nova denominação de pós-ciência ou pós-normal ciência
para incluir diferentes tipos de ‘ciências’ numa só, sem implicar a ciência que já conhecíamos
com as suas fronteiras ontológicas e axiológicas (exemplo Briggs & Sharp, 2004; Colucci-
Gray et al., 2006). Mais recentemente as ideias multiculturalistas vêm sendo contrapostas
pelas ideias interculturalistas da inclusão destes conhecimentos na escola como por exemplo
a Contiguity Argumentation Theory de Oguninyi (África do Sul). Uso o termo ‘intercultura’
significando diálogo entre as culturas, não apenas co-existência de culturas (Ngoenha, 2013).
Esta perspectiva ao invez de enfatizar as diferenças, centra-se na contribuição que as várias
culturas podem trazer na resolução de problemas. A teoria de Ogunniyi (veja por exemplo
Ogunniyi, 2004, 2006, 2007) argumenta por um espaço dinâmico de relacionamento entre as
várias ciências. Diferencia-se da teoria de ‘border crossing’ de Aikenhead pois Ogunniyi não
fala de fronteiras a serem atravessadas mas sim de contextos a serem entendidos. Esses
contextos tem as ‘vias próprias’ de validação do conhecimento ou de práticas. A teoria de
Ogunniyi diferencia-se também da aprendizagem colateral de Djegede, porque esta tem um
carácter estático (não é argumentativo) e tende tambem a ser dualista. Nas ideias de
Ogunniyi, as fronteiras entre as várias formas de interpretar o mundo à nossa volta são
minimizadas, privilegiando-se a ‘acreditação’ do conhecimento com base no contexto e
explorando também os espaços contíguos nos significados construídos na base dos diferentes
contextos. Muitas tentativas de inclusão dos conhecimentos nativos talvez não sucederam por
envergarem ou por uma tendência dualística dos diferentes tipos de conhecimentos ou por
uma tendência de assimilação. Estas posturas não privilegiam o contributo que cada sistema
poderá dar, nem estimula sinergias entre eles. Na óptica da Teoria de Argumentação
Contígua (TAC), tornamo-nos híbridos, no sentido em que nos movemos nos vários grupos
de conhecimentos, é uma postura dinâmica. Ogunniyi estipula que num contexto um
conhecimento pode ser dominante e noutro contexto supresso, equipolente, emergente ou
assimilado. Na TAC, apesar de se falar de argumentação, nao é no sentido de qual argumento
ganha ou qual perde, como é no caso da argumentação em Ciências Naturais advogada por
Toulmin- a Toulmin Argumentation Pattern, (Toulmin, 2003 ) mas é no sentido de
possibilitar que os participantes possam tomar conhecimento e consciência de outras formas
de olhar e resolver os problemas da vida. É uma argumentação como forma de os convidar a
apreciar a diversidade de culturas, conhecimentos e visões do mundo. Uma forma de poder
tomar diferentes pontos de vista a apreciar os fenomenos a nossa volta, reconhecendo assim a

67
sua complexidade. A importância da argumentação segundo esta teoria, é para evitar
relativização ingénua do conhecimento que pode conduzir a ideia de que tudo é válido e
aceitável, bastando escolhermos um contexto. A Relativização como diz Kawada (2001) pode
conduzir ao essencialismo cultural, o que periga o relacionamento entre as dieferentes
culturas. Da universalidade das ciências à multicultura e intercultura, as ideias sobre
fronteiras, vão dando lugar ao conceito de holograma. Holograma, uma invenção das
Ciências Naturais, é a meu ver, muito interessante. É uma imagem tridimensional de um
objecto com a característica distinta de cada parte do holograma, armazenar informação sobre
todo o objecto mas a partir da sua única perspectiva (Henderson e Kesson, 2004). A palavra
provém do grego, holos-todo e gramma- messagem. Henderson e Kesson usaram o termo
‘holograma’ como metáfora para imagem de um curriculum sábio, que incorpora diversas
formas56 ou perspectivas práticas, críticas e visionárias na educação de uma sociedade diversa
mas unida. As diversas disciplinas, penso, armazenam informação sobre o mundo-todo, mas
na sua particular perspectiva. Já não me surpreendi quando recentemente visitei uma
universidade africana em que no corpo docente do departamento de Filosofia está – a tempo
inteiro- uma médica filósofa, dando entre outras aulas de Bioética e que teve a amabilidade
de me oferecer o livro Research Ethics in Africa57. Um livro, a meu ver, de Ética, Medicina,
História, Politica, Cultura e muito mais no qual o clérico Desmond Tutu escreveu o prefácio.

Notas Finais – Pontes entre os Saberes

As fronteiras não são naturais, são contingentes. A história, as línguas e o imperialismo


traçaram essas fronteiras. Na verdade, as Ciências Naturais, Filosóficas e outras nasceram
para perceber o mundo à nossa volta e melhor vivermos. No primórdios das ciências,
Aristóteles foi um filósofo que formulou várias teorias da Biologia, Física e Química (embora
quase todas elas tidas hoje como não válidas) e mais recentemente, Bohr foi um cientista que
nos últimos anos da sua carreira escrevia mais textos filosóficos que da ciência pura. A
Theory of Everything, assumo procura as pontes entre as várias perspectivas que podemos
tomar sobre o mundo a nossa volta, para melhor o entendermos e melhor vivermos. As
buscas de legitimação de sistemas de conhecimentos de outras culturas que alguns clamam,
(por exemplo Castiano, 2013) interpreto-as como alicerces para construnção de pontes.

Concordo com o proverbio Nigeriano: “Em tempos de crise, o sábio constrói pontes e o
ingénuo fronteiras”. As Ciências Naturais nas suas diversas vertentes da Química, Física,
Biologia ou outras inter-existem e se desenvolvem com a Filosofia nas suas diversas
vertentes da Metafísica, Epistemologia, Ética, Lógica, Política ou outras.

Agradecimentos

56
As diferentes formas mencionadas por Henderson e Kesson são: Tecne, poesis, praxis,
dialogos,phronesis, polis, e theoria
57
Research ethics in Africa, editado por M. Kruger, P. Ndebele e L. Horn, 2014

68
Agradeço a Cristina Loforte e ao Ivan Donduro por terem lido e comentado sobre a primeira
versão deste texto e agradeço ao David Mudzenguerere por me ter ajudado a editar
linguísticamente o texto.

69
Referências

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71
Na Fronteira entre a Filosofia e a Psicologia

Por: Thomas Kesselring

A fronteira entre a filosofia e a ciência nem sempre é nítida: Muitos cientistas interessam-se
pela filosofia e levantam questões filosóficas, como também muitos filósofos praticam uma
ciência. E a demarcação entre constatações científicas e filosóficas nem sempre é clara. Por
exemplo, podemos perguntar, se é um fato científico ou um fato de natureza filosófica que as
substâncias químicas ordenam-se segundo o sistema periódico, e isso não apenas na terra,
mas também em outras galáxias, que nenhum ser humano visitou e submeteu a experimentos
químicos.

Será a Psicologia uma Ciência da Alma?

Entre a filosofia e a psicologia a fronteira é menos nítida ainda. A região fronteiriça entre
ambas as disciplinas parece particularmente pantanosa, e isto por várias razões. A psicologia
é muito nova ainda. Ela tornou-se ciência há uns 150 anos. Originou-se no século XIX, num
momento em que as ciências naturais estavam realizando um grande salto pela frente. No
entanto, a psicologia não se alia às ciências naturais e escapa, pelo menos parcialmente, aos
métodos científicos. O seu “objecto de estudo” é o homem, mas não o seu corpo (que se
encontra sob a tutela da medicina), mas sim a sua psique. “Psique” é a palavra grega para a
alma. O que é a alma? Sabemos que ela é algo imaterial e, como lemos na Bíblia, imortal.
Podemos concluir disso que a psicologia é a ciência da imortalidade? Não, de modo algum. A
ciência que se interessa pela imortalidade é a teologia e, talvez, num segundo plano, a
parapsicologia.

Há cerca de 2.400 anos, Aristóteles considerava a alma como o princípio da vida e distinguiu
nada menos do que três almas: uma alma vegetativa, que é comum às plantas, aos animais e
aos homens; uma alma sensível, que é comum aos animais e aos homens; e uma alma
racional, que pertence exclusivamente aos seres humanos. Durante séculos a epistemologia
(= teoria do conhecimento) baseou-se nesta teoria da alma. Até os primeiros empiristas
inglêses explicavam a génese do conhecimento humano com as impressões que os objetos
exteriores deixam, como vestígios, na alma – de forma semelhante como um selo deixa sua
impressão na cera. Mas, em comparação com a cera, a alma não é nem mole nem maleável. E
a função que Aristoteles atribuiu a ela é completamente diferente àquela da cera: A alma é o
princípio da vida, o centro das actividades biológicas, dos sentimentos e dos atos intelectuais,
do pensamento racional, do raciocínio. Ela regula o crescimento, orienta o desenvolvimento e
constitui a razão. Aristóteles foi um dos pioneiros da pesquisa biológica, e nas suas idéias se
baseia, entre outras disciplinas, na biologia evolutiva que vê na alma tipo Aristóteles um
precursor do programa genético. Assim, a psique aristotélica tornou-se objeto de estudos
biológicos.

72
O que então é a Psicologia?

A resposta a esta questão não é imediatamente óbvia. A psicologia emergiu como ciência,
quando na Alemanha, pouco depois da metade do século XIX, Wilhelm Wundt (1832-1920)
começou a medir a intensidade de sensações, e na Inglaterra Francis Galton (1822-1911)
introduziu, nos seus estudos sobre o comportamento humano, o uso do questionário e de
métodos estatísticos.

Na mesma época, Darwin (1819-1882) estava trabalhando na teoria da evolução. A sua obra
sobre A Origem das Espécies, publicado em 1859, revolucionou a imagem do ser humano:
Como os animais, as plantas, os fungos etc., o ser humano também é resultado da evolução.
Portanto todas as qualidades humanas, todas as suas habilidades e especificidades têm uma
origem natural que deveria ser acessível a uma explicação dentro da moldura das ciências
naturais. Neste contexto os promotores da psicologia orientaram-se na metodologia das
ciências naturais. Já no início dos anos 40 do século XIX, o belga Adolphe Quetelet (1796-
1874) tinha aplicado métodos estatísticos, que ele chamou de "física social". Ele introduziu,
por exemplo, as estatísticas da natalidade, calculou a expectativa de vida dos belgas (em
número de anos), calculou a percentagem dos cidadãos criminosos, como também dos
cidadãos com uma propensão de produzir literatura. Em 1846 ele liderou o primeiro censo na
Bélgica. Meio século mais tarde, em 1897, o sociólogo francês Émile Durkheim (1858-1917)
publicou um trabalho sobre o suicídio, baseado em estatísticas sobre os números em questão,
com homens e mulheres, católicos e protestantes, em épocas de guerra e de paz.
Na psicologia do século XX, a observação do comportamento, os métodos baseados na
matemática (experiencias com medição) e o uso de estatísticas desempenharam um papel
cada vez mais importante. Isso vale tanto para a psicologia da aprendizagem, para a
psicologia da memória, a psicologia do desenvolvimento, a psicologia social, como para a
psiquiatria forense.

Nos Estados Unidos, John Watson (1878-1958) fundou o behaviorismo, uma tradição
psicológica que se limitou ao uso dos métodos das ciências naturais. Os behavioristas
tentaram explicar o comportamento animal e humano como processo puramente mecânico
(de acordo com o padrão de estímulo-resposta) e tomaram o condicionamento operante como
procedimento básico para a educação, e em particular para o ensino. Visto pelos olhos de um
behaviorista, o comportamento de um ser humano é semelhante, não apenas ao
comportamento de um animal, como também ao movimento de uma bolinha de gude: O que
acontece, se eu lanço uma bolinha contra outra? Como reage a bolinha que sofre o choque?
Como reage um cão, quando ouve uma campainha após ele receber o sua alimentação?
Como reage uma criança que vê o edifício da escola onde vezes seguidas foi espancada? Os
primeiros behavioristas trabalharam unicamente com a observação do comportamento e
consideravam os processos cognitivos como ocorrendo dentro de uma "caixa-preta", cujo
interior é impenetrával aos nossos olhos, de modo que nada podemos comprovar
cientificamente sobre eles.

73
No entanto, a psicologia não é uma ciência natural, mas sim, uma ciência humana. Isso se
torna evidente considerando os seguintes dois aspectos:

1. A psicologia não se limita a atividades metodológicas e científicas, como a


observação, a medição ou a elaboração de estatísticas. Um bom psicólogo deve ser,
ao mesmo tempo, um bom hermenêuta: Ele deve saber interpretar o comportamento
humano, seja ele consciente ou inconsciente, e descobrir os motivos subjacentes,
escondidos. Por isso ele deve considerar até os movimentos mais discretos de uma
pessoa. Aprender algo não é um processo mecânico, senão um processo cognitivo
com alto grau de complexidade. A sua compreensão foge à pura observação e, por
isso, sempre vai a par com uma interpretação. Com isso, a psicologia aproxima-se à
filosofia.

2. Na psicologia, como nas ciências sociais, os testes de campo e as medições ocorrem


em condições nitidamente diferentes daquelas nas ciências naturais, o que dificulta a
sua comparação. Vale a pena explicar esta diferênça de maneira um pouco mais
extensa para encontrar outros pontos de contacto com a filosofia.

A Psicologia não é uma “Ciência Dura”

A psicologia, apesar da sua tradição experimental (com testes, medições e estatísticas), não
pode ser considerada como ciência no sentido duro. No contexto das humanidades, o papel de
testes distingue-se nitidamente do seu papel nas ciências naturais: Se um psicólogo avalia os
resultados da aprendizagem de um estudante, ele mexe no processo dessa aprendizagem
mesma. Se o resultado do teste é bom, o estudante sente-se incentivado, e se, pelo contrário, o
resultado é mau, o mesmo sente-se desmotivado. Da mesma forma, um prognóstico positivo
aumenta a motivação, ao passo que um prognóstico negativo a diminue. Em contraposição
com isso, a previsão de um evento natural não exerce nele influência nenhuma. Medindo a
velocidade de um cometa, nós não a aumentamos nem diminuimos. O objetivo das
experiências científicas é descobrir os efeitos causados por eles: Se alguém acende o rastilho
de um dinamite, ele causa uma explosão. Na medida em que todas as condições relevantes
permaneçam as mesmas, o resultado também ficará o mesmo - em toda parte do mundo. Isso
parece ser uma lei da natureza.

Inversamente, um cientista disposto a testar uma certa capacidade ou realização humana,


arrisca em influenciá-la. Portanto, mesmo se os avanços na aprendizagem de um aluno
correspondem àquilo que o professor ou o psicólogo prognosticou, nós não podemos concluir
disso que o prognóstico deu certo pelo simples facto de ter sido derivado da observação de
leis naturais e de eventos que antecederam o progresso na aprendizagem. Pois o prognóstico
serviu também como uma profecia que, no caso em questão, se auto-realizou (Selffulfilling
Prophecy).

As ciências humanas também se distinguem das ciências naturais no que diz respeito às
condições éticas às quais elas devem corresponder: Para determinar de forma inequívoca o
efeito de uma medida, os pesquisadores devem trabalhar com grupos comparativos. Um bebê,

74
com o qual a mãe e os familiares falam muito (mesmo antes de ele mesmo começar a falar),
se desenvolve diferentemente de um bebê com o qual ninguém fala. Por razões éticas, um
experimento científico com um grupo de controle de crianças, com as quais ninguém falasse,
seria impensável.
Como então devemos proceder para testar as realizações de um grupo de pessoas? Vale a
pena ver no teste uma forma de interação entre seres humanos. Examinando as realizações de
um aluno, não apenas colhemos “dados”, mas sim, exercemos também uma influência nas
suas realizações presentes e futuras. Um resultado ruim desestimula o desempenho da pessoa
testada ou talvez até o estimula; isso depende do exame, das condições, em que a pessoa
examinada se encontra, das suas experiências anteriores, do seu caráter etc. Numa situação de
teste, diferentes pessoas reagem diferentemente, porque o espaço da sua livre escolha não é
zero. Essa constatação nos leva a indagar de mais perto a fronteira entre a psicologia e a
filosofia.

A Psicologia necessita de um Alicerce Filosófico


Como a questão da livre escolha, várias questões filosóficas clássicas permeiam a psicologia
e invadem até as suas ramificações. Uma pergunta é de natureza filosófica, se não se pode
respondê-la na base de estudos empíricos. Eis algumas destas questões clássicas:
Em primeiro lugar, o psicólogo deve posicionar-se diante da questão do libero arbitrio (da
livre vontade): Podemos de facto assumir que a nossa vontade é livre, pelo menos até um
grau determinado? No caso negativo, como podemos explicar que somos responsáveis por
nossas ações? As ciências naturais pressupõem uma visão do mundo determinista, segundo a
qual todo evento tem suas causas que plenamente o determinam. Como as minhas ações, pelo
menos sob a perspectiva do seu lado físico, também são eventos, elas se derivam de uma
causa que é a minha vontade. – Mas aqui nós tropeçamos: A nossa vontade é, ela também,
causada? Ou a comprendemos como sendo livre de toda causação? Ou ela é livre, pelo
menos, no sentido de não ser completamente causada? Nós nos tratamos mutuamente como
seres capazes de tomar decisões livres. Pois, quando alguém comete algo moralmente mau,
nós não reagimos da mesma maneira, se atribuimos ao actor de ter agido por uma decisão
livre ou se atribuimos a ele o contrário: No primeiro caso, e só nele, reagimos com mágoa ou
ressentimento ou indignação. Enquanto que nós não nos indignamos nem sentimos mágoa
com alguém que age sob coação, por exemplo sob uma ameaça de morte. Devemos, então,
crer que nossa vontade é totalmente determinada ou que ela é livre, pelo menos até um ponto
determinado? Se não somos livres, qual é o sentido da psicanálise e da psicoterapia? A
mesma questão todavia surge, se somos livres: Pois o que é liberdade, a não ser a capacidade
de ficarmos independentes de efeitos externos, inclusive da influência que a psicanálise ou
psicoterapia exercem em nós?
Em segundo lugar, a psicologia lida com o problema da relação entre mente e corpo: Como
se relacionam entre si os processos mentais (ou psíquicos) e físicos? Como os processos
físicos exercem seus efeitos sobre a psique, e vice-versa? As pesquisas sobre o cérebro
suscitam questões análogas: Qual é a relação entre a actividade cerebral e os pensamentos ou

75
sentimentos, desejos, etc.? Até que ponto a distinção entre o corpo e a alma, ou entre o
cérebro e a consciência, é análoga à distinção entre hardware e software? Nem é muito claro,
se o desempenho de colocar estas questões é de natureza empírica ou teórica ou até
filosófica...
Em terceiro lugar, a psicologia tem a ver com o problema do acesso à consciência alheia: Um
investigador do cérebro pode observar e descrever com precisão os processos neurônicos na
cabeça de uma pessoa, mas isso não lhe dá acesso às experiências psíquicas ou aos
pensamentos dela. O psicólogo e o psiquiatra não vêem os estados de consciência de outra
pessoa. Quando falam da consciência alheia, trabalham com interpretações e conclusões a
partir daquilo que podem observar: o comportamento, a mímica, as palavras da pessoa em
questão. Nisso tudo a empatia desempenha um papel chave, mas a empatia não impede a
possibilidade de falsas interpretações. Quando interagimos com outra pessoa, atribuimos aos
estados de consciência dela um grau de realidade que não é menor daquele que nos
atribuimos aos nossos próprios estados de consciência. Mas como podemos ter certeza disso?

Em quarto lugar, a psicologia não pode abstrair-se da questão sobre os fundamentos da


identidade pessoal: Sou eu hoje a mesma pessoa que era quando entrei na escola? A mesma
pessoa que era quando nasci? A minha aparência não é mais a mesma: Mudou o meu peso, o
tamanho do meu corpo e o conjunto das minhas capacidades e habilidades. Até a minha
substância celular foi substituida completamente. É verdade que me lembro de alguns
episódios da minha infância. Mas nem sempre posso confiar nestas lembranças: A nossa
memória pode nos enganar. Às vezes nós pensamos que lembramos um episódio que apenas
nos foi contado e que, portanto, nós nunca experimentamos. Quais, então, são as condições
da identidade da pessoa no espaço e no tempo? Segundo Kant, esta questão é de fundamental
importância para a psicologia (que na época de Kant ainda nem era uma ciência).

Em quinto lugar, cada psicologo tem na sua mente uma imagem do homem. Que imagem é
essa? Há muitas possibilidades: a imagem de um ser racional que visa maximizar as suas
utilidades; a imagem de um ser que explora seus pares sem se preocupar muito com as
consequências; ou, pelo contrário, a imagem de um ser social que coopera com os seus
parceiros e ajuda os necessitados [um “zoon politikón”, segundo Aristoteles]; ou a imagem
de um inventor de tecnologias, do arco e da flecha até à bomba atômica... Que carácter têm
estas imagens? o de descrições ou de prescrições (normas, recomendações)? E qual é a
função delas? Existe um ser humano "normal", e em caso afirmativo, como ele se apresenta?
A resposta à esta questão influe na maneira como vêmos o trabalho dos psicanalistas e dos
psicoterapeutas: Devem eles tentar de fazer com que os seus clientes se tornem seres
humanos “normais”, padronizados? Ou devem eles ajudar aos seus clientes de formar a sua
própria identidade distintiva, independente de toda “norma”? Com isto se levanta a pergunta
até que ponto a psicologia é uma ciência empírica e onde ela começa a tornar-se uma ciência
normativa.
Ao contrário dos psicólogos, os filósofos se encontram numa situação confortável, sendo que
podem contentar- se com perguntas difíceis, sem sentir a obrigação de responder a elas. A
procura de respostas é a tarefa das ciências... Mas como a psicologia responde às cinco

76
questões acima mencionadas? Será que ela é capaz de responder a elas? Sim e não. Sim, pois
a psicologia contribui pelo menos com importantes respostas parciais. Um psicoterapeuta, por
exemplo, pode constatar que ele exerce uma influência inegável na vontade do seu cliente:
Este pode recusar os avisos e as interpretações do psicoterapeuta ou aceitá-los integral ou
parcialmente; mas ele não pode contornar uma reação àquilo que o psicoterapeuta lhe diz.
Este, então, influi na vontade do seu cliente, mesmo se essa influência não elimine totalmente
a sua liberdade de decisão. – No entanto, é inegável que esta constatação empírica não nos dá
uma resposta definitiva à questão se nós temos uma livre vontade (libero arbitrio) e, no caso
positivo, como esta liberdade é possível num mundo determinista ...

A Filosofia aproveita dos Estudos Psicológicos e Vice Versa

A psicologia é uma ciência, a filosofia não. Mas ao que a psicologia deve seu privilégio (que
a filosofia não tem) de ser uma ciência? Ambas as disciplinas buscam uma ampliação do
conhecimento. Mas em contraposição com a filosofia, a psicologia é ligada a actividades que
se baséiam em determinados métodos (tratar pacientes, curar sofrimento psíquico, pesquisar a
“psiqué” humana).

No entanto, na psicologia a linha divisória entre uma investigação científica e não científica
nem sempre é clara. A pesquisa científica, sim, é orientada por métodos. Um método não é
algo que se encontra na floresta ou num campo, como uma flor rara. Um método resulta da
experiência de grupos inteiros: de pesquisadores e cientístas (às vezes até de leigos). Uma vez
estabelecido, um método científico baseia-se no consenso, normalmente tácito, entre os
cientistas. Contudo, nas ciências humanas (“Humanities”) os métodos são menos claros de
que nas ciências naturais e matemáticas (“Sciences”). Dentro da psicologia, encontramos uma
grande variedade de disciplinas, como a psicologia da aprendizagem, a psicanálise, a
psiquiatria forense e muitas outras, cada uma delas baseada num consenso de especialistas.
Dentro da psicologia, então, os cientistas praticam diferentes métodos e se deixam guiar por
diferentes visões do mundo e do ser humano. Todas as psicologias, ou pelo menos a maioria
delas, reclamam para si o estado de ciência. A filosofia contudo não conta como ciência, pelo
menos não num sentido estrito; pois os filósofos não experimentam, não medem, não criam
estatísticas.

Sendo a psicologia uma ciência humana, ela se encontra na vizinhança próxima da filosofia.
Grande parte da epistemologia moderna – de Descartes e Kant até Schopenhauer e Husserl –
trata de questões em redor desta consciência. Com a sua "Fenomenologia do Espírito", Hegel
(1770-1832) tentou reconstruir a génese da consciência humana e a colocou numa dimensão
histórica. Piaget (1896-1980) focalizou suas pesquisas sobre o desenvolvimento da
inteligência na criança e no jovem e descreveu este desenvolvimento de forma semelhante,
até aos detalhes, como Hegel. Ou seja, ele declarou o desenvolvimento intelectual (o
despertar da consciência e o crescimento da sua inteligência na criança) como um processo
que se repete em ciclos consecutivos, por meio de uma auto-reflexão: O sujeito reflecte sobre
as limitações da sua consciência e com isso alarga gradualmente o seu “horizonte”. Hegel era

77
filósofo, Piaget psicólogo. Piaget chamou o motor do desenvolvimento de “abstração
reflexiva” Hegel de “reflexão” ou de “reflexão abstractiva”. Por um lado, a psicologia, em
muitos aspectos, apoia-se sobre a filosofia. A filosofia portanto serve à psicologia como um
par de muletas. Por outro lado, a psicologia genética de Piaget se baseia na observação
minuciosa e no experimento. Ela com isso confirma, mas também corrige as intuições
filosóficas sobre o desenvolvimento da consciência humana.

A Revolução da Psicanálise e o Embaraço da Filosofia

No entanto, e ao mesmo tempo, a psicologia se emancipou da filosofia, voltou para trás dela,
iniciando um trabalho revolucionário e corrosivo: começou a perscrutar minuciosamente os
fundamentos da própria filosofia. A psicologia, ou mais exactamente a psicanálise, fundada
por Sigmund Freud (1856-1939), colocou as convicções mais sólidas, mais profundas, sob
suspeita: O que é a consciência? Desde Descartes, a consciencia é o fio condutor de boa parte
da filosofia moderna. Será que ela é algo em si ou apenas a ponta do icebergue, chamado de
"inconsciente"? E o que são os nossos ideais, a não ser sublimações de desejos reprimidos?
Freud continuava as questionamentos corrosivos de Nietzsche, dando a eles uma base
empírica: O que é a moral, a não ser uma maneira simpática, mas disfarçada, como os fracos
se defendem contra os fortes? Ou como os fortes tranquilizam os fracos? Nietzsche e Freud
nos convidam a desmascarar e “desconstruir” os ideais religiosos bem como filosóficos.

Desde a idade grega, os filósofos eram combatentes clandestinos (e nem sempre


clandestinos!) contra as presunções exageradas de pessoas demasiadamente autoconfiantes.
Desde Sócrates, os filósofos são suspeitados de não aderir suficientemente a tradição, de não
honrar suficientemente os detentores do poder, de não suficientemente apreciar o saber dos
antepassados etc. Com Nietzsche e Freud, a suspeita de que nossos ideais e nossas convicções
têm um lado avesso que os torna pura fachada, virou-se contra a filosofia e os seus ícones:
Sócrates, Platão, Kant, etc. O ideal é suspeitado de ser pura ilusão. Quem não reconhece as
ilusões implícitas nos seus ideais se engana. Viver no engano é viver fora da verdade. Por
isso temos que desmistificar e desmantelar as nossas ilusões – nos despedir dos nossos erros.
Submetendo-nos a uma psicanálise, nós procuramos nos liberar das nossas ilusões,
procurando a des-ilusão. No entanto, a desilusão sempre implica a decepção de ter perdido
um ideal e neste sentido nos faz sofrer. Mas na vida nós não procuramos a decepção, nem o
sofrimento. Porque, então, nós nos submetemos a uma “cura” e com isso arriscamos
sofrimento e desilusão? – A resposta é óbvia: Nós o fazemos pelo fato de que, atrás da
desilusão, nós visamos a verdade. Mas aqui coloca-se outra pergunta: Como se pode chegar à
verdade, atravessando um mar de ilusões? Se todo ideal e toda verdade arriscam de ser
desmascarados, onde a verdade enquanto tal pode sobreviver? Onde oferece-se a
oportunidade de encontrá-la?

A essa pergunta a psicanálise não responde. O psicanalista quer ajudar as pessoas a


libertarem-se das suas neuroses, das suas ilusões. Mas despedir-se de ilusões e encontrar um

78
novo ideal, não são a mesma coisa. Quando a suspeita se torna universal, não resta mais nada
que se possa salvar dela. A ciência empírica não nos oferece nenhuma saida deste impasse.

Nesta situação vale a pena recorrer à filosofia. Primeiro, as questões básicas da filosofia,
como aquelas cinco acima mencionadas, que acompanham toda a psicologia, não sofreram
nenhum desmascaramento, nenhuma desconstrução. Desmascaramento e desconstrução
referem-se apenas às doutrinas tradicionais da filosofia, não às questões perenes. Segundo, a
filosofia nos ensina que a dúvida e o ceticismo não se adequam como a conclusão da história
do pensamento humano. Pelo contrário, nos incitam a procurar novos caminhos.

Na procura de uma saída do reino da desilusão, portanto, podemos experimentar com


argumentos como o seguinte: Uma vez que a desilusão se torna universal, ela volta-se
também contra ela mesma. Uma vez que a própria desconstrução é aceite como novo método
exemplar, ela torna-se também alvo da própria desconstrução: A desconstrução volta-se
contra ela mesma. Falando com Hegel: A negação vira-se contra ela mesma, tornando-se
negação da negação. A negação que se nega a si mesma, ensina Hegel, é algo vital, vivido,
animado – é criadora de novos critérios da verdade e fonte de novas verdades.

Assim, passando pelo portão da dialéctica, entramos numa nova paisagem. Nela a fronteira
entre a psicologia e a filosofia, não é mais (ou ainda não é) visível. Como nós nos orientamos
nesta paisagem? Nós nos orientamos trabalhando com ideais, com ilusões e desilusões, com a
desconstrução destas desilusões e a desconstrução da desconstrução mesma? Nesta paisagem
a filosofia deve movimentar-se lenta e cuidadosamente, não perdendo de vista as ciências,
pois ela deve acompanhá-las e progredir no mesmo ritmo como elas.

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Os Fundamentos da Ordem Social: Reflexões de Filosofia Social
Por: Luca Bussotti

As Bases Epistemológicas da Filosofia Social

A Filosofia Social representa uma corrente de recente constituição no seio da


filosofia. Seu interesse básico assenta na procura das causas últimas que fazem com
que os homens estejam juntos, se associem e formem “sociedades”. Uma perspectiva
da Filosofia Social tem sido oferecida por Annah Arendt, quando afirma que a
sociedade tem conquistado o domínio público, tornando de interesse comum assuntos
anteriormente pertencentes à esfera privada (Arendt, 1983). Surge assim o homem
moderno, “l’homme qui ne dispose plus du refuge du privé, c’est l’homme privé de ce
que l’abri domestique et privatif avait de protecteur” (Fischbach, 2012-2013:3). Mas
a Filosofia Social, pelo menos na acepção aqui proposta, não se refere apenas à
dimensão da modernidade, tal como os dois autores citados hipotizam: é evidente que,
a partir do século XVIII, ela tem um campo mais vasto e sobretudo claro de acção,
pois o homem “social” prevalece no homem privado, sendo esta a dimensão que
caracteriza a época. Entretanto, na própria antiguidade havia laços sociais que
constituiam as bases da sociedade, e que merecem ser investigados mediante os
instrumentos gnosiológicos da Filosofia Social.

O primeiro aspecto a ser esclarecido prende-se com a delimitação e definição do


objecto de investigação da Filosofia Social. Acima de tudo, qual a diferença entre esta
e a Sociologia? A Sociologia não tenciona descobrir as causas últimas, os
fundamentos essenciais do “social”, mas sim analisá-lo ou, com Weber, compreendê-
lo, de maneira a delinear as regras que o regem. Nunca nela pode faltar uma base
empírica. E nunca poderá haver uma sociologia fora da modernidade, pois a sua base
é representada, em primeira instância, pelas relações Capital-Trabalho, típicas da
sociedade industrial. Aquele que foi considerado como fundador da Sociologia,
Auguste Comte, é o elo de ligação entre Filosofia Social (ou “Física Social”, como ele
dizia) e Sociologia no sentido próprio. Ele foi provavelmente o último grande filósofo
social da modernidade interessado em definir as bases da vivência humana, assim
como o primeiro sociólogo que tentou estabelecer regras científicas do social, acima
de tudo mediante a lei causa-efeito.

Se o âmbito de investigação da Filosofia Social entra a pleno título na reflexão


filosófica, ele deve entretanto ser distinto dos demais sectores afins da filosofia. Por
um lado, a Filosofia Social dialoga com a Ética, a qual visa descobrir as leis morais,
prefigurando modelos de tipo valorial; e com a Filosofia Política, a qual procura
delinear as formas ideais de governação e o funcionamento da dialéctica institucional;
entretanto, a Filosofia Social, mais do que do bom comportamento individual e das

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formas preferíveis de governação, tenciona descobrir as causas últimas, “radicais” que
permitem a permanência do homem no “estado social”. Trata-se de uma abordagem
mais “profunda” e menos superficial, que pode ser representada graficamente como se
segue:

Ética Filosofia política

(Comportamento (Manifestações visíveis das


individual visível) instituições)

Filosofia social

(Motivos “recónditos” que levam os homens a formarem e permanecerem


na sociedade: descoberta dessas leis “profundas”, bases da ética e da polítca)

Na perspectiva desse texto, o tema da “ordem social” representa um dos eixos


centrais da Filosofia Social. Todas as sociedades, desde as mais antigas até as actuais,
se fundam sobre regras de convivência que estão aquém das leis que disciplinam as
instituições políticas. Os vários filósofos têm levado a cabo reflexões geralmente não
sistemáticas em volta disso, privilegiando abordagens de natureza mais ética ou
mesmo política. A metodologia de pesquisa da Filosofia Social, portanto, é de certa
forma mais complexa se comparada com a da filosofia clássica, uma vez que é preciso
extrapolar as observações inerentes ao “social” no seio de reflexões que tratam de
outros assuntos. Se as concepções relativas à Filosofia Social estão por baixo das
tratadas em ensaios de ética ou de filosofia política, isso significa que o próprio
investigador terá que achar as linhas, as continuidades, as costuras com que recompor
a trama escondida da ordem social.

Concepções da Ordem Social

O filósofo e sociólogo que mais conseguiu sistematizar a questão da “Ordem


Social” foi Niklas Luhmann. A pergunta básica que ele coloca é a seguinte: como é
possível a ordem social? (Luhmann, 1985). É a partir dessa inquietação que vai
começar uma reflexão sistemática sobre os fundamentos da filosofia social. As
respostas, ao longo do pensamento filosófico antigo e nas vésperas da modernidade,
são de três tipo: há quem pensa que a ordem social, os laços que unem os homens para
formar sociedades assentem, acima de tudo, na amizade (concepção “amigável”); há
quem acredita que esses laços só sejam possíveis mediante uma ideia de social
derivante da esfera transcendente; finalmente, há quem defende que esses laços só
sejam estáveis mediante acordos mais ou menos formais (concepção contratualista).

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Neste ponto dar-se-á, portanto, um quadro das teorias filosóficas cujas bases assentam
na ideia de que a sociedade expressa os seus vínculos essenciais no relacionamento
amistoso. Uma reflexão neste sentido deu-se a partir do mais clássico dos filósofos da
antiguidade, Aristóteles.

A Concepção “Amigável” da Ordem Social

Diferentemente daquilo que afirma Luhmann, a tese que se defende aqui é que a
filosofia que pensadores como Aristóteles, Epicuro, os Estóicos e outros propuseram
pode ser considerada e lida mediante as lentes da Filosofia Social, mesmo se nenhum
deles teve a intenção de reflectir sistematicamente em volta do social.

A philia pode ser considerada como uma das primeiras caraterísticas relacionais
que funda, no pensamento antigo, uma possível ordem social, abaixo, por assim dizer,
da moldura institucional e dos tipos de governação, efectivos ou desejáveis, que
regem a vivência humana. Não resta dúvidas que Aristóteles é quem, com mais
ênfase, destaca a philia como elemento aglutinador em termos de relacionamentos
sociais entre os indivíduos. Fá-lo, em particular, no livro VII e no livro IX da Ética a
Nicômaco. Acima de tudo, o que é “amizade”, de acordo com Aristóteles, e como é
que esta consegue desempenhar um papel aglutinador relativamente à vivência entre
os homens na sociedade?

O Posicionamento de Aristóteles. A amizade, escreve Aristóteles, é uma virtude


ou acompanha a virtude, sendo ela necessária para a vida, uma vez que o homem não
pode viver isolado. Esta virtude tem uma grande capacidade de associar os homens,
mais do que a própria justiça, que faz parte (poderiamos acrescentar) daquela
arquitectura institucional que molda formalmente a vida das pessoas. A amizade, pelo
contrário, está por baixo, horizontalmente e não verticalmente, em relação aos
mecanismos de vivência social, e leva à concôrdia de forma “natural”, sem precisar,
portanto, da intervenção de sujeitos terceiros (por exemplo as instituições), criando
harmonia. Todavia, isso não significa que não haja uma hierarquia no seio dos
relacionamentos amistosos; antes pelo contrário, é justamente esta hierarquia que faz
com que a amizade assuma o papel (ou menos) de “estabilizador” social. Na sua
classificação clássica, Aristóteles identifca três tipos de amizade: 1. baseada no bom
ou no bem; 2. no prazer; 3. no útil. A primeira é autêntica, as outras duas acidentais, e
portanto estas últimas são destinadas a acabar rapidamente, quando as condições de
conveniência vierem a exaurir-se.

A partir da tipologia identificada por Aristótels, é interessante, na perspectiva da


filosofia social, tentar perceber em que sentido a amizade molda os laços sociais,
garantindo estabilidade ao sistema; e também vislumbrar quais as consequências, ao
nível da dinámica social, que poderão manifestar-se.

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A amizade baseada no bem, ou “desinteressada”, representa o modelo mais puro
e autêntico da philia. Assim escreve Aristóteles: “A amizade perfeita é a dos homens
que são bons e afins na virtude, pois esses desejam igualmente bem um ao outro
enquanto bons, e são bons em si mesmos. Ora, os que desejam bem aos seus amigos
por eles mesmos são os mais verdadeiramente amigos, porque o fazem em razão da
sua própria natureza e não acidentalmente. Por isso sua amizade dura enquanto são
bons — e a bondade é uma coisa muito durável” (Aristóteles, 1991:174). Na
perspectiva da filosofia social, a característica mais destacada desta amizade é a sua
durabilidade, a sua gratuidade que fortalece laços interpessoais desinteressados. Por
isso, mesmo na óptica da manutenção da ordem social, este tipo de amizade é
preferível.

Entretanto, a pergunta seguinte será: quem são as pessoas que podem gozar um
relacionamento tão perfeito, quer do ponto de vista ético, quer no que diz respeito às
suas consequências sociais? A resposta de Aristóteles é clara: “Mas é natural que tais
amizades não sejam muito frequentes, pois que tais homens são raros” (Idem: 175), e
se baseiam numa certa “semelhança”. Em princípio, esses homens “raros” e
eticamente parecidos, só podem ser os homens “óptimos”, os aristocratas. De facto,
eles não precisam de nada no sentido material, e apenas procuram amigos
desinteressados e autênticos, que nada tenham que lhes pedir, uma vez que já
possuem tudo. A amizade desinteressada, tirando as lógicas conclusões do raciocínio
de Aristóteles, só pode ser própria das classes abastadas: e serão elas, portanto, com
laços amigáveis assim construídos, que constituirão a base permanente da ordem
social.

Os outros dois tipos de amizade não são estáveis, uma vez que se baseiam em
formas diferentes de interesse. Mas, primeiro, quem é que está especialmente virado
para essas formas “impuras” de amizade? Aristóteles assim escreve: “Entre pessoas
idosas e acrimoniosas é menos fácil formar-se amizade, porquanto tais pessoas são
menos bem-humoradas e se comprazem menos na companhia umas das outras”
(Idem:178). Se trata, inicialmente, de considerações de natureza ética, coerentes com
as anteriores, relativas a quem pode manter uma amizade “desinteressada”. Se estes
são poucos, muitos serão os que praticam as duas outras formas, nomeadamente os
“idosos” e os “acrimoniosos”. Entretanto, entre esses dois tipos de amizade, o que
mais se aproxima à verdadeira é a segunda, baseada no prazer, uma vez que se
pressupõe que o que é bom é também prazeroso. Essa forma de amizade é mais típica
dos jovens “pois é em tais amizades que se observa com mais freqüência a
generosidade” (Idem:179). O terceiro tipo, a amizade interessada, “que se baseia na
utilidade é própria das pessoas de espírito mercantil” (Idem:179).

As duas formas “inferiores” de amizade “não apenas são menos verdadeiras


como menos permanentes” (Idem:180), portanto menos estáveis no que diz respeito
ao contexto social. Sendo menos éticas elas são também menos duradoiras, portanto

83
não conseguem formar laços tão profundos capazes de determinar uma ordem social
permanente. E isso ocorre especialmente na amizade por interesse, entre indivíduos
“contrários” uns aos outros, tais como rico e pobre, ignorante e letrado, uma vez que
“um homem ambiciona aquilo que lhe falta e dá algo em troca” (Idem:181). Porque
esta forma de amizade, a mais impura mas a mais difusa, é também a mais
“acidental”? Porque aquilo que interessa não é o outro e o seu bem, mas sim aquilo
que ele possui, e que o primeiro não tem. O outro, portanto, constitui apenas o meio
para conseguir um interesse específico e contingente. Mal esse interesse for
alcançado, a amizade termina, por vezes inclusive com rastos negativos no
relacionamento entre as duas pessoas envolvidas. Por isso é que esta amizade não
pode garantir nenhuma estabilidade, e por isso é que uma amizade verdadeira entre
rico e pobre resulta praticamente impossível. Não é por acaso que Aristóteles associa
esta forma de amizade ao espírito mercantil, aos “negócios”, diriamos, ou seja, ao
campo existencial da classe burguesa e artesanal.

Apenas os aristocráticos, distantes da lógica mercantil, é que podem garantir a


estabilidade da ordem social. Por isso as leis, a justiça, as instituições resultam
necessárias, uma vez que a larga parte da sociedade costuma relacionar-se
mutuamente mediante formas interesseiras de amizade, as quais, sendo instáveis,
acabam cedo e muitas das vezes com litígios, que necessitam de entidades terceiras
para servir de arbitro. A hierarquia social torna-se, aqui, também ética: as leis são
feitas para regulamentar as relações de quem pratica uma vida de tipo “mercantil”, ao
passo que para os aristocráticos elas nem seriam necessárias, pois tais sujetos
poderiam muito bem gerir as suas relações de forma autónoma e pacífica.

A amizade na filosofia helenistica. Não resta dúvida alguma que a amizade


aristotélica tenha uma evidente projecção propriamente “social”: o homem que o
filósofo de Estagira analisa está profundamente ancorado à realidade da Polis grega
do século V a.C., que tem uma forte componente pública. Após a afirmação de
Alexandre Magno e a sua morte, com a subdivisão do seu grande império em três
reinos, definitivamente aceite por volta do ano de 270 a.C., o ano da morte de
Epicuro, a filosofia grega teve um rumo diferente relativamente ao que se tinha dado
nos tempos clássicos.

Um dos mais consequentes interpretes desse novo tempo foi Epicuro de Samos:
um pouco por problemas pessoais (sofreu ao longo da vida toda de cálculos renais),
mas sobretudo por causa de viver numa época conturbada, incerta, decadente, este
pensador conjugou a reflexão em volta da amizade com os valores de privacidade,
intimidade, procura da autorealização no interior de cenários não públicos mas
familiares e informais.

A filosofia epicurista pode ser definida como uma filosofia das “ausências”: de
dor física (aponia), assim como perturbação espiritual (ataraxia). Por isso, qualquer

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sentimento “instável”, capaz de abalar o indivíduo e, portanto, provocar perturbações
e tensões, deve ser excluído, evitado. A plena realização do homem dá-se na
intimidade dos seus caros e no seu autodomínio subjectivo. Assim escreve Epicuro, na
Sentença nr. 40: "Aqueles que tiveram a capacidade de alcançar a máxima segurança
junto a seus próximos conseguiram por isso viver em comunidade de modo mais
prazeroso” (Epicuro, 2005). Se o prazer é alcançado dessa forma “privatística”, a
amizade é que representa a melhor arma para garantir um caminho certo e seguro para
lá se chegar. Epicuro propõe, aqui, um ideal de amizade muito próximo ao de
Aristóteles, que ele chama de “gratuíto” ao invés que de “desinteressado”. Mas a
substância é a mesma: o que difere é a moldura social em que a amizade insere-se.
Com efeito, no caso de Epicuro esta “gratuidade” não tem nenhuma implicação em
termos de ordem social. Ele pressupõe que o mundo de fora, a dimensão pública e
política, já se encontre em situações bastante caóticas, tão de defender que a rotina e a
política são “prisões” das quais é preciso se livrar; por isso é que praticar uma
amizade gratuíta vai ajudar o sujeito em conseguir o bem-estar interior, a paz da sua
alma, evitando inclusive nefastos impulsos de tipo físico. Daqui, a Sentença n. 52 de
Epicuro: “A amizade percorre o mundo inteiro proclamando a todos que se despertem
imediatamente para a felicidade” (Idem). Mas a amizade não é um sentimento que não
possa trazer sofrimentos; aliás (Sentenças 56-57), “O Sábio sofre, porém não mais
quanto aquele que sofre quando vê que seu amigo está atormentado” (Idem).

A amizade gratuíta de Epicuro, portanto, não contribui na formação da ordem


social: o social está tão desordenado que é impossível emendá-lo ou melhorá-lo. Mas
ela pode ajudar na obtenção da paz interior, e também na constituição de círculos de
amigos, relacionados mediante fortes laços solidários, que os mantêm protegidos do
caos exterior.
Epicuro representa um ponto de referência essencial para toda a filosofia
helenística e romana. Em particular, o tema da amizade, com as suas implicações
sociais, directas ou indirectas, está presente em larga parte do pensamento dos
Estóicos, de Zenone a Seneca e Marco Aurélio. Não havendo espaço, aqui, para tratar
desse tema difusamente, será suficiente recordar apenas algumas das características
essenciais que fazem da amizade estóica um dos meios privilegiados para se chegar a
um convívio humano sadio.

A doutrina estóica diferencia-se da epicureia por causa da sua convicção de que o


mundo é regido por uma lógica preconstituida, o Lògos. Tudo é razão, portanto o
homem deve adequar-se a esta razão universal que permeia o mundo.
Consequentemente, a lógica assume uma importância notável nos Estóicos, em
contraposição ao Phatos, o erro da razão, que o sábio deve evitar para conseguir
chegar à ataraxia e apatia. Mas apatia não significa resignação, passividade. Pelo
contrário, os Estóicos pautam para um comprometimento civil e político activos, uma
vez que o sábio tem o dever de ajudar os seus semelhantes a uniformar-se com o
ordenamento universal, baseado na lógica.

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Daqui, o papel da amizade: na sua formulação mais madura, do Estoicismo
médio, autores como Posidónio e Antioco encaram a amizade no seio duma
fraternidade universal, e não apenas reservada aos poucos sábios eleitos. O ideal desse
Estoicismo, o mais relevante do ponto de vista da relação entre teoria da amizade e
ordem social, baseia-se na Caritas generis humani, consoante a qual todos os homens
devem considerar-se amigos enquanto parte do mesmo universo, compartilhando uma
comum origem divina (Pizzorni, 1995). Uma tal concepção cosmopolita resultou
adequada à realidade do Império Romano, o mais universal e cosmopolita dos
governos da antiguidade. E foi por isso que Seneca, por exemplo, interpretou a
amizade como uma boa actividade pragmática do sábio, com envolvimento directo na
vida cívica, apesar de este não precisar de nada e de ninguém para chegar aos seus
ideais (De Oliveira, 2009). E Cicero, no seu famoso diálogo, prefere destacar o ideal
da ataraxia e dos deveres do homem público, mesmo diante do desaparecimento físico
dum grande amigo (Cícero, 45 a.C.), considerando portanto a amizade uma virtude
apenas privada, sem nenhuma possibilidade de influenciar o estabelecimento da
ordem social. Esta concepção da amizade tem evidentes pontos em comum com o
primeiro Cristianismo que, de facto, transformou o tema numa amizade vertical e
díspar dos homens com Deus. É esta a fase em que se forma a ideia duma nova ordem
social, de tipo transcendente e já não alicerceada em sentimentos puramente humanos,
como a amizade.

A amizade na filosofia moderna: o fim da ordem social. O tema da amizade


terrena, de tipo não transcendente, não termina com a filosofia antiga. Se na era cristã,
como veremos no próximo ponto, a ordem social traz a sua autoridade duma amizade
diferente, a com Cristo, na filosofia moderna ela volta a assumir um significado mais
laico, mas já desprovida daquela carga que, especialmente em Aristóteles, lhe tinha
permitido de representar um dos eixos fundamentais para constituir a ordem social.
Agora, com os filósofos modernos, a amizade pode representar um ideal ético, um
factor positivo da vida social e relacional, mas nunca tendo a capacidade de se tornar
elemento estável para garantir a ordem social. Demasiado complexa é a sociedade
moderna para que os filósofos continuem pensar desta forma.

Entre os muitos que se debruçaram sobre este tema, vamos aqui considerar
apenas três: Montaigne, Kant e Schopenhauer, que inclusive simbolizam três
diferentes épocas e sensibilidades históricas.

Montaigne, homem do século XVI (faleceu em 1592), coloca a sua reflexão


filosófica entre modernidade e conservatorismo, mas com uma clara prevalência do
interesse para com a interioridade humana, cujo centro reside em si próprio (Jama,
2007). Mesmo o tema da amizade é enfrentado tendo como referência filosófica
principal o ensaio de Cícero, e como inspiração verdadeira, vital, a amizade com o
falecido La Boétie, que inclusive tinha escrito um ensaio sobre o tema, que Montaigne

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devia recensir com uma introdução, mas que foi publicado antes pelos huguenotes
(De Azevedo, Duarte, 2009). Em Montaigne, a amizade assume os contornos dum
relacionamento eticamente perfeito enquanto livre, voluntário e por isso harmonioso.
Não é assim para o relacionamento dos filhos com os pais, em que fica difícil
encontrar uma maneira viável para comunicar; também não é assim para o
relacionamento entre irmãos ou outros familiares, pois nesses casos se trata de
interrelações não voluntárias mas “atribuídas”. O próprio relacionamento com a
mulher é focado na atração sexual, portanto dificilmente poderá haver uma verdadeira
amizade entre os cónjuges. A única, possível forma de amizade é aquela em que dois
amigos se relacionam e se entregam mutuamente na íntegra, tendo como principal
expectativa o bem do outro (Montaigne, 1595). Este tipo de amizade nunca poderá
estar na base da ordem social moderna; antes pelo contrário, em Montaigne, talvez
pela primeira vez, sente-se que a amizade pode ter uma função consoladora,
relativamente aos transtornos da modernidade incumbente.

Em Kant, que vive em pleno a época das luzes, com todas as suas transformações
culturais e políticas, o elemento duma amizade que se afaste da esfera mundana
assume contornos ainda mais marcantes relativamente a quanto afirmado por
Montaigne. Com efeito, Kant formula três tipos de amizade (Kant, 1995): baseada na
necessidade, no gosto ou na intenção. No primeiro, as pessoas juntam-se para
satisfazer as respectivas exigências de vida, portanto se trata de um laço alicerceado
em interersses mútuos. É a primeira tipologia de amizade, nas condições sociais mais
rudimentais (ex.: selvagens que caçam), mas pressupõe formas de amizade mais
desenvolvidas; entretanto, ela não pode considerar-se nem perfeita do ponto de vista
moral, nem estável. No segundo, a amizade deriva da recíproca companhia e não da
recíproca felicidade. É muito difícil e rara entre pessoas da mesma classe, e assenta na
variedade e não na uniformidade. Finalmente, a terceira tipologia, a da amizade
baseada na intenção/sentimento, é considerada por Kant de pura. A sua definição é a
seguinte: “confiança total entre duas pessoas que revelam reciprocamente suas
opiniões e sentimentos íntimos, na medida em que tais revelações sejam compatíveis
com o respeito” (Kant, 1995: 471). A amizade pressupõe portanto uma entrega total,
confiança e intimidade. Mas mesmo este tipo perfeito de amizade esconde riscos:
pode dar-se o caso de que algo, entre os amigos, fique escondido, não dito, ou que, em
alguma circunstância, o respeito possa vir a faltar. Nesses casos esta amizade
autêntica poderá tornar-se menos perfeita daquilo que seria desejável, e por isso sofrer
consequências nefastas. Um último tipo de amizade, tipicamente kantiana, é dada
mediante a figura do amigo de todo o género humano, de acordo com uma concepção
cosmopolita que visa fazer com que os laços de solidariedade ultrapassem os
interesses particulares, tornando-se base da vivência ética moderna (Travessoni
Gomes, 2010). Se calhar, é nesta figura, nesta amizade universal e já não na amizade
entre indivíduos particulares, que Kant identifica uma possível ajuda ética para fundar
a ordem social moderna, além das relações interesseiras de tipo económico que a
originaram.

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A concepção da amizade em Schopenhauer traz explícita inspiração da
subdivisão feita por Kant, mas sem esquecer as lições dos clássicos. Todavia, ele
“negativiza”, coerentemente com a sua filosofia geral, de tipo pessimista, as ideias de
amizade que tinham sido levadas a frente pelos seus predecessores. O homem é um
ser egoista, portanto amor, amizade, benevolência para com o próximo são
sentimentos impossíveis, puras ilusões. A única forma de amizade que os homens
podem praticar é a compaixão, derivante da consciência da moral humana imperfeita,
egoista (Galli, 2004). Segundo Schopenhauer, portanto, não só a amizade não pode
formar a ordem social, mas a própria ordem social está sob ameaça, esmagada pelas
linhas contraditórias da modernidade.

A Concepção Transcendental da Ordem Social

Como acabamos de ver, algumas partes da filosofia estóica preparam a inclusão


do princípio da ordem no seio de uma visão transcendente, alicerceada em Deus. O
pensamento cristão, desde a patrística, assenta justamente nesta perspectiva: a ordem
social é directa emanação da ordem divina, e sua (imperfeita) consequência.

Diferentemente daquilo que Aristóteles ou, em parte, Epicuro defendiam, nesse


caso nenhum homem, nem o mais sábio e capaz de praticar a mais desinteressada das
amizades, poderá ser dispensado de ser submetido a uma lei terrena, nos moldes da lei
divina. Em suma, o homem, ou pelo menos uma fatia privilegiada da humanidade,
com o pensamento cristão deixa de ter autonomia total derivante do bom uso da razão
“social”, para moldar o seu comportamento com base nos ensinamentos religiosos. A
ordem natural é o reflexo da lei de Deus.

O mais maduro pensador cristão é, a este propósito, S. Agostinho. Com ele, se


passa da Cosmopolis estóica à Huranopolis, a “Cidade de Deus” (S. Agostinho,
1996). Esta convive com a Cidade terrena, as duas estão interligadas e se encontram
na história humana, para depois se afastarem definitivamente no dia do juízo unversal.
Os cristãos participam das duas: e as duas devem ter uma sua específica ordem.

No caso da cidade terrena, o objectivo é a Tranquillitas Ordinis, ou seja,


concôrdia, ordem, paz. A ordem dessa cidade só pode ser relativa: os cristãos vivem
nela com, mas não como, os outros homens. A entidade que garante a ordem em terra
é o Estado. Por meio dele, dá-se o domínio do homem sobre o homem, uma vez que o
ser humano, pecador e indisciplinado por ser levado pelos sensos e a materialidade,
precisa de uma instância superior para repor, ao menos parcialmente, a ordem. Os
súbditos devem obedecer ao poder, pois, assim fazendo, obedecem a Deus, que quis
uma entidade apropriada para regulamentar as pecaminosas vidas humanas e os seus
relacionamentos. Por outra, o governo terreno deve responder às leis de Deus, ou seja,
praticar o “justo temperamento”, sem abusar os seus governados. Se o governo
desobedecer à superior vontade divina, e deixar de permitir que os seus súbditos

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actuem de acordo com a lei de Deus, nesse caso eles podem se rebelarem. Entretanto,
o exemplo melhor dessa postura tem de ser dado pelos martires cristãos, ou seja, o
súbdito deve recusar-se em contradizer a lei divina, mas de forma passiva, sem levar a
cabo nenhuma acção violenta.

Do ponto de vista de S. Agostinho, portanto, é completamente indiferente qual


seja a forma de governação escolhida pelos homens: ele não tem nenhum interesse de
tipo político. O modelo de estado ideal, de acordo com S. Agostinho, é aquele que
reconhece a superioridade da Igreja, e mete em prática os preceitos divinos,
representando o “braço secular” da Igreja, por exemplo no que diz respeito ao
combate contra as heresias.

O mais destacado espoente da Escolástica, S. Tomás de Aquino, recupera parte


da tradição aristotélica e também da reflexão de S. Agostinho para elaborar a sua
concepção da ordem. Nesse caso, a dicotomia agostinhana entre as duas cidades é
eliminada a priori, uma vez que S. Tomás defende o princípio de especularidade entre
a obra divina e a acção do governo terreno. De acordo com a sua reflexão, o único que
tem autoridade é Deus, uma vez que ele é o criador (S. Tomás, 1880). Por isso, com
base nessa consideração, Deus tem autoridade para governar o mundo. A ideia da
criação está directamente relacionada com a de autoridade (Viola, 1982). O mesmo
deve ser dito no que diz respeito ao pluralismo nos seres viventes: Deus manifesta a
sua perfeição mediante seres diferentes e mediante graus diferentes do bem (S.
Tomás, 1999).

Em paralelo, quem governa – que traz inspiração da única autoridade legítima,


Deus – tem de proceder ao mesmo modo: ou seja, manter a ordem no seio dum
universo diversificado. O governo, portanto, se é verdade que assume de Deus a
autoridade, e não tem a capacidade de criar, pode porém dirigir todos os seres que
estão sob a sua alçada rumo ao caminho certo: como quando o mestre ensina aos
discípulos, convém que eles aprendam também a ensinar, e não apenas a doutrina.
Quem tem responsabilidades de governar aos outros, ou seja, de endereçá-lo para a
perfeição, detém o poder de exercer a coerção. Prerrogativa, esta que, todavia, deve
sempre constituir o último recurso depois de ter esgotado todas as oportunidades de
usar a persuasão, ou seja, a razão (Viola, 1982).

A ordem social, segundo S. Tomás, forma-se no seio da sociedade e ao longo do


desenvolvimento histórico. As consequentes estratificações regem os relacionamentos
humanos, tornando a autoridade social como o princípio primeiro da sociedade, o seu
bem comum (Viola, 1982). A hierarquia desse bem comum vê dois pilares: a família e
a pátria. É a segunda que molda o homem do ponto de vista social e político, e que lhe
permite de expressar o seu melhor no seio duma comunidade reconhecida e
constituida.

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Diferentemente das concepções modernas, de tipo contratualista, em S. Tomás
não pode haver nenhuma forma pactícia entre súbditos e governantes, pois a
autoridade política desses últimos provém dum processo de emanação da autoridade
divina. E como o pai ensina aos filhos, assim o príncipe deve ensinar aos seus
governados, dirigindo-os para o caminho perfeito. Nenhuma dialéctica entre eles é
contemplada, pois, mais uma vez, à mesma maneira que tinha acontecido com S.
Agostinho, a dimensão política não faz parte dos interesses deste teólogo, que justifica
a necessidade duma disciplinada ordem social por meio duma base divina.

A Concepção Contratualista da Ordem Social

Entre o século XVII e XVIII afirma-se, na Europa, a concepção “contratualista”,


em que um grupo heterogéneo de filósofos teoriza a necessidade de contratualizar o
relacionamento entre governantes e governados para garantir uma boa governação e o
respeito dos direitos fundamentais do homem. Os primeiros pensadores que
começaram a elaborar essas teorias foram os jus-naturalistas, cujo mentor é o
holandês Grócio. A ideia básica que eles defendiam é que cada indivíduo é portador
de direitos naturais, inalienáveis, que nenhum imperador, rei ou governador pode
tirar-lhe.

A partir dessa ideia, os primeiros contratualistas acreditam que a ordem social


vigente deve ser regida por um contrato formalmente ou idealmente estipulado entre
governados e governantes, e que os primeiros têm o direito-dever de controlar,
fiscalizar e, se necessário, depor os governantes que não respeitem os compromissos
que tinham anteriormente assumido. O interesse prevalecente, portanto, é de tipo
político, mas o discurso em volta das instituições apresenta-se como o resultado de
um raciocínio que como base tem uma profunda reflexão sobre a natureza humana,
típico da filosofia social.

Uma vez que as teorias políticas dos vários Hobbes, Locke, Rousseau são
amplamente conhecidas, aquilo que procurar-se-á fazer aqui é destacar os elementos
fundamentais das suas meditações mais próximas aos interesses da filosofia social e,
nomeadamente, da ordem social.

Os pontos centrais dos contratualistas podem ser resumidos nos seguintes:

1. Discurso sobre a natureza humana, que determina – longe de qualquer


visão transcendente – os motivos que induzem os homens a se juntarem
em sociedades organizadas;
2. Contexto histórico: favorece essas reflexões “secularizadas”, graças à
crise dos valores cristãos e ao enfraquecimento do poder da Igreja em
relação aos Estados nacionais em formação;

90
3. Posições diversificadas em termos de conteúdos e formulação de modelos
políticos, desde o de tipo autoritário (Hobbes) ao de tipo liberal (Locke) e
até socialista (Rousseau).

A questão que iremos colocar ao analisar os filósofos contratualistas é a seguinte:


como é que eles fundamentam a ordem social moderna, ou seja, porque e mediante
quais modalidades os homens decidem ficar juntos, criando sociedades e instituições?
Para responder, é preciso partir do raciocínio em volta da natureza humana que eles
levam a cabo.

Natureza Humana e Ordem Social em Thomas Hobbes

Thomas Hobbes é o filósofo do Leviatã, teórico do absolutismo e da delegação


total de poder dos súbditos ao soberano. Objectivo básico da sua filosofia é conseguir a
segurança para manter a paz, bem supremo, como demonstrado pela guerra civil
inglesa, que ele viveu directamente e com horror.

Mas porque, do ponto de vista do mecanismo político, Hobbes resolve pautar


para uma saída tão dura e autoritária? A razão tem de ser procurada nas bases da sua
filosofia social, ou seja, na ideia que ele tem da natureza humana e das tendências que
qualquer sujeito tem se não for obrgado a respeitar as leis.

O homem, ao estado puro, tem um direito geral e absoluto sobre todas as coisas,
procurando de maneira ilimitada a felicidade. O único limite é representado pelo
direito à felicidade dos outros: cada um se torna inimigo dos outros e virtualmente
está em guerra contra a todos. Nesse estado de natureza, reina a condição pior que se
possa imaginar, ou seja, o temor e o risco constante de morte violenta; por isso a vida
do homem è uma vida solitária, miserável, penosa, animal e curta. A saída desse
estado deriva da inquietação suprema que ele tem: a de conservar a espécie humana.
Isto só é possível despertando nele o medo, juntamente com algumas das suas
paixões: o temor da morte, que se junta com o desejo duma vida agradável e da razão.
O resultado é um homem artificial, o Leviatã, uma multidão de homens unidos numa
só pessoa que os representa. Esse resultado não tem nada a ver com a iluminação da
alma de tipo platónico-cristão, ou com a utilização em óptica social das mais nobres
propensões humanas, tais como a amizade. Se trata apenas do cálculo das
conseqüências negativas possíveis da natureza íntima e profunda do homem. Contra
Aristóteles, portanto, o Estado não se origina da natureza social do homem, mas sim
dum cálculo racional que permite tomar consciência daquela mesma natureza, que
Hobbes interpreta como profundamente selvagem, egoista e de certa forma anárquica.
O objectivo é a “salvaguarda do povo (salus populi) … a concôrdia é a sua saúde, as
desordens civis a sua doença e a guerra civil a sua morte” (HOBBES, 2003). Mais que
procurar uma ordem social, portanto, Hobbes procura evitar o caos, a desordem
social. O poder visível representado pelo Leviatã resume em si o poder religioso e o

91
político-militar: sem espada, os contratos são apenas palavras, defende Hobbes (words
without sword). Esta humanidade medrosa uma vez que está consciente dos prejuízos
globais que ela própria, seguindo os seus instintos primordiais poderia provocar a si
mesma, encontra abrigo na submissão total e completa ao soberano: “a finalidade pela
qual efectua-se a submissão é a proteção” (IDEM). Os homens singulares tiveram que
renunciar a qualquer forma de liberdade de juízo sobre justo/injusto, pois só com isso
a paz pode ser segurada: verifica-se aqui a passagem homo homini lupus – homo
homini Deus. Propriamente, portanto, Hobbes não só não pode ser considerado um
contratualista, mas sobretudo, no domínio da filosofia social, ele tem uma ideia de
social como inexistente, imaginando a sociedade como um simples conjunto de
indivíduos soltos, que nunca formarão uma agregação madura, devido à natureza do
género humano. Pode-se afirmar que, com ele, temos uma concepção de “sociedade-
zero” e duma ordem social baseada apenas no cálculo medroso das nefastas
consequências da natureza humana.

A Teoria Social de John Locke

O fulcro da filosofia social de Locke assenta na mesma questão de Hobbes: como


e porque o homem resolve sair do estado de natureza para entrar num estado “civil”,
em que a dimensão política assume relevância fundamental?

Para responder a essa questão, é preciso perceber qual seja a natureza do homem,
de acordo com Locke. No estado de natureza, o homem tem uma liberdade, baseada
na igualdade entre todos os indivíduos. Nesta condição, Locke atribui a cada um o
direito de propriedade, além que a segurança individual. Este direito deriva de Deus,
que disponibilizou a terra aos homens, os quais têm a obrigação de explorá-la graças
ao trabalho individual. Acrescentar terra para produzir mais, nessa fase, não só não
representa um factor negativo, mas é considerado por Locke uma mais-valia, coerente
com os ditames de Deus. Com a introdução da moeda, todavia, começa a ganhar
importância o comércio, que se torna elemento central da economia, em detrimento da
agricultura (Locke, 2007). Isso determina a especulação e, consequentemente, as
primeiras desigualdades, uma vez que os mais poderosos começam a comprar as
terras dos mais fracos, criando assim um evidente desequilíbrio social. Quando os
homens se apercebem que este desequilíbrio chega a ameaçar a inteira ordem natural,
formada por terra, trabalho e propriedade privada e, portanto, muito mais complexa
daquela teorizada pelos jus-naturalistas (Scalercio, 2012), não resta que passar a uma
outra forma organizacional, já não regulamentada pelos homens de maneira informal,
mas sim prevendo a acção moderadora das instituições e da lei. Embora Locke não
partilhe com Hobbes o pessimismo total sobre a natureza humana, mesmo no caso
dele é patente o facto de os homens recorrerem ao estado civil para que se ultrapasse

92
uma situação de abuso dos mais fortes contra os mais fracos, que poderia levar a um
caos incontrolável.

Em termos de filosofia social, a outra grande diferença com Hobbes é que Locke
não pensa a sociedade como sendo um conjunto solto de indivíduos, cujos únicos
laços duradoiros não são de tipo horizontal, mas vertical e particular, com o soberano.
Locke, embora com alguma ambiguidade, defende que o social existe, e que o relativo
corpus é formado por elementos claros e visíveis: terra, trabalho, propriedade. É
através deles que se forma uma sociedade, ou seja, interesses comuns (que podem
engendrar conflitos) e uma sensibilidade geral, diferentemente daquilo que Hobbes
tinha teorizado. Com este património social, a comunidade humana se aproxima ao
estado civil, em que dará um voto de confiança a um governante que irá representar os
seus interesses e a sua segurança, de forma moderada e sem os excessos previstos do
Leviatã, mediante um fiduciary trust.

A Dimensão Social em Jean-Jacques Rousseau

Com Rousseau, a reflexão em volta do social torna-se ainda mais profunda e


radical. À mesma maneira que os dois pensadores anteriores, Rousseau também
formula a hipótese da existência dum estado natural que antecede o civil, mas o faz
partindo duma crítica feroz contra a sociedade moderna. Se, portanto, Locke vê uma
evolução do homem ao progredir rumo ao estado civil, em Rousseau ocorre
exactamente o contrário. Daqui, a ideia de que a sociedade é injusta, e que seja
necessário investigar nos seus meandros para captar o sentido profundo dessa
injustiça, procurando propor alternativas para sair dessa inaceitável situação, desse
“falso contrato”.

Rousseau não faz uma idealização do homem no estado de natureza:


diferentemente daquilo que se costuma pensar, o mito do “bom selvagem” é mais uma
construção dos interpretes de Rousseau do que uma ideia do próprio. De facto, a este
nível, o homem só pensa na sua própria conservação e reprodução, tem espírito
tranquilo, vive isolado e não tem relações contínuas com os outros homens. “O estado
de reflexão é um estado contra a natureza e o homem que pensa é um animal quase
pervertido” (Rousseau, 2008). A sociabilidade natural representa, portanto, um mito.
O homem “natural” ainda não tem ideia do bem e do mal, ele não é bom nem mau:
vive num estado pré-moral (ou da inocência), mas tem uma virtude natural, a piedade,
cuja função é moderar o amor individual por si mesmo. O homem difere todavia do
animal, pois é um actor livre e tem consciência disso, podendo-se aperfeiçoar.

Se a vida no estado natural é caracterizada pela ingenuidade e amoralidade, no


estado social o que sobressai é a desigualdade. A sociedade, de acordo com Rousseau,
se constitui por causa de um abuso perpetrado em detrimento dos mais fracos, e que

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logo passa a ser institucionalizado pelos mais fortes que trouxeram benefício de um
tal acto. “O primeiro que, cercou um terreno, pensou de afirmar «isto é meu» e
encontrou pessoas bastante ingénuas que lhe acreditaram, foi o verdadeiro fundador
da sociedade civil (...). Mas é muito provável que na altura as coisas já tivessem
chegado até o ponto de não poder permanecer assim como eram” (Rousseau, 1999). A
propriedade privada representa a última étapa na afirmação da desigualdade, que se
configura como se segue: 1. rico/pobre; 2. potente/débil, garantida pela magistratura;
3. patrão/escravo, garantida pelo poder legítimo que, na verdade, representa um poder
arbitrário. A sociedade moderna é falsa, pois baseia-se na lei do mais forte, para
ultrapassar a qual é necessário estabelecer um “novo estado de natureza”.

A ordem social é um “sacro direito” não natural, mas que provém de acordos, que
é preciso conhecer. A lei social básica é o direito da força, que as classes dominantes
tornaram legítimo, em troca duma renúncia que nenhum homem pode aceitar: a
renúncia à liberdade e, consequentemente, à própria condição humana, uma vez que a
essência do homem é a liberdade. Por isso é que, de acordo com Rousseau, deve
formar-se uma vontade geral, indivisível e diferente em relação à vontade de todos os
indivíduos, que vise à conservação dos contratantes e manutenção da justiça.

Com Rousseau, o social adquire uma dimensão nova, que encontra no conflito
primordial causado pelo homem contra os seus próprios semelhantes o motivo de
fundo para compreender, analisar e transformar a sociedade. Estamos, aqui, nas
vésperas de uma concepção mais “científica” da sociedade, mas ao mesmo tempo
mais utópica, que só será desenvolvida pelos iniciadores da sociologia, tais como
Comte, Durkheim, Marx e, mais tarde, Weber.

Conclusões

A questão de fundo que procurámos abordar ao longo deste trabalho foi uma das
inquietações centrais da filosofia social. Como é possível a ordem social, e sobretudo
como é que o pensamento filosófico aborda uma tal problemática?

A resposta que foi aqui apresentada tem sido necessariamente incompleta, uma
vez que o assunto é não apenas extremamente complexo, mas inclusive puoco
explorado, pois a filosofia social constitui uma ramificação relativamente recente no
domínio da filosofia, e as reflexões feitas a partir dessa óptica ainda escasseiam.

Entretanto, pudemos notar que existem pelo menos três abordagens fundamentais
que procuram responder a tal assunto: a antiga, baseada na amizade, a medieval,
baseada na transcendência, a moderna, centrada no contrato e, finalmente, a
contemporânea, representada aqui por Schopenhauer, negadora de qualquer
possibilidade de estabelecer uma ordem social.

94
Hoje em dia, seria extremamamente complexo pensar nas possibilidades de
idealizar um elemento ou uma fonte prevalecente de inspiração para fundar a ordem
social. As reflexões dos clássicos, que se encontram aqui mencionadas, servem como
incontornável ponto de referência para percebermos melhor quão tortuoso foi o
caminho para identificar um princípio ordenador os relacionamentos sociais entre os
indivíduos. Mas essas reflexões ainda não clarificaram (e os próprios sociólogos
também não deram uma resposta definitiva) se este princípio existe, se ele é universal
e, eventualmente, qual o seu relacionamento com a ética e o poder político. Será essa
a nova fronteira de investigação da filosofia social nos dias de hoje.

95
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96
Filosofia e Estética

Por: David Silvestre Chabai Mudzenguerere

Introdução

No presente artigo, propomo-nos a discutir a relação entre a filosofia, a estética e a arte como
formas complementares do saber humano. Portanto, usamos os termos arte e estética de
forma indistinta. O objectivo e, ao mesmo tempo, importância dessa reflexão é superar a
confusão existente em muitas mentes entre filosofia, arte e estética, a qual leva a pensar que
falar de estética é já tratar da filosofia, e logo a não necessidade de apresentar uma linha de
distinção e complementaridade entre elas. Mas fornecerá a arte e a estética um conhecimento
igual à filosofia? A resposta a essa questão nos “obriga” a passarmos também pelo campo da
ciência (natural). As posições de Leonel Ribeiro dos Santos, Artur Manso e Deleuze e
Guattari são tomadas como básicas nessa reflexão.

Como diz Vannucchi (1983:35), “Toda pessoa, num momento ou noutro, intui o Belo. Essa
experiência estética baseia-se primordialmente numa percepção sensorial e, ao mesmo tempo,
emocional. Se capto algo com os sentidos e isso não me emociona, de duas uma: ou isso nada
possui de Belo, ou realmente não colhi essa beleza”. Quem “sente” a arte, sabe, conhece, vive
a realidade de um modo peculiar. Por essa precisa razão queremos caracterizar a arte como
uma forma especial de saber humano, mais de intuição do que de raciocínio feito.

A experiência estética é uma expressão, uma linguagem à parte e não mero conhecimento
conceitual puro e simples. Ela exprime o inteligível no sensível. Na matéria – tinta, mármore,
palavras, sons… - ela concretiza ideias e sentimentos. Diz muito mais que uma foto. Mas ela
também sugere, estimulando a sensibilidade e a imaginação. Portanto, a experiência estética é
também acção. Como a alegria leva ao movimento – gestos mais amplos, saltos, dança… -
assim a experiência do Belo leva à arte, como objectivação irreprimível (cf. Ibid:36).

Podemos, assim, afirmar com Vannucchi que a arte é criação ou expressão do Belo pelo
homem, subentendendo-se que o mais lindo espectáculo natural não é a arte, mas beleza.
Pensamento este herdado de Platão, que fazia coincidir a Beleza, o Bem e a Verdade,
apresentando-os como os três aspectos do divino, dos quais apenas a Beleza se irradia sobre
toda a existência e se vê através dos olhos do corpo (cf. Manso, 2013:48-50).

Passemos, então, em breves linhas pelas origens explicativas da arte, desde a antiguidade até
a contemporaneidade, para depois analisarmos a convergência entre a filosofia, a arte, a
estética e a ciência.

Das Origens da Arte

97
Em termos das origens explicativas, “desde Aristóteles até hoje, há autores que entendem a
arte como imitação da realidade, representação objectivada do Belo natural” (Vannucchi,
Ibid:37). Mas esta tese não satisfaz à pergunta segundo a qual em que sentido a música imita
a realidade. Autores antigos, como Plotino, e contemporâneos, como Jaspers, ocidentais
como orientais, explicam a arte como revelação, aspiração e comunhão com o Infinito. Para
eles, o Belo é a assinatura de Deus na natureza e a arte o caminho de identificação com Ele.

Confunde-se com essa sentença a teoria da origem mágico-religiosa da arte. As pinturas das
cavernas seriam oferendas simbólicas aos deuses, sem excluir a aspiração por uma caça bem
sucedida. Da devoção religiosa brotaram também a música, a poesia, o drama e a dança.

Todavia, actualizando o pensamento de Tomás de Aquino, propôs Martain (Apud: Ibid) a


teoria da arte como intuição criadora do intelecto prático. A inteligência, pondera ele, tanto se
orienta para a ideia como para a acção. Nesse segundo caso, chama-se intelecto prático. Este,
por sua vez, tanto se ocupa com o agir – o problema moral – como o fazer – o problema
prático. E o fazer ainda pode ser: fazer coisas úteis ou fazer obras de arte. Útil é o objecto que
serve para alguma coisa: o machado, o garfo, etc. Não tem fim em si mesmo. A obra de arte,
contrariamente, tem fim em si mesma, não serve para coisa alguma fora dela. É apenas
expressão do Belo.

Segundo a teoria da criação pura, o homem simplesmente cria a obra de arte por uma
necessidade íntima de exprimir, por um transbordamento de algo sentido e vivido dentro de si
próprio e que ele não pode reprimir sem mais nem externar sem arte. Inegavelmente, poucos
valores reflectem tão bem, como a arte as condições materiais e espirituais de um povo ou de
uma civilização. Telas, catedrais, sinfonias, poemas, etc., tudo são expressões privilegiadas
da cultura humana. Sente-o o homem da rua. Explicam-no os grandes espíritos.

Durante séculos, diz Manso (cf. 2008:17), por influência directa da forte herança platónica, o
domínio das artes dividiu-se entre artes liberais ou intelectuais, tais como a poesia e a
literatura, exercidas só pelos homens livres e artes servis ou manuais, reservadas somente aos
escravos, de que são exemplo a escultura e a pintura. Esta distinção durou até ao século XVI,
quando o humanista polifacetado Leonardo Da Vinci (1452-1519), exigiu que a pintura fosse
reconhecida como arte liberal, assentimento que só se concretizou na segunda metade do
século XVIII, com o início da revolução industrial e a consequente distinção entre arte e
trabalho.

Segundo Manso, o pendor normativo da reflexão sobre a estética é iniciado no diálogo


socrático-platónico Hipias Maior e desenvolvido na obra platónica O Banquete, onde Platão
mostra a existência e como se há-de alcançar o Belo em Si, que, não devendo ser entendido
como um atributo de objectos, tem a harmonia e a medida como suas categorias.

Como os mestres da antiguidade, a idade média e o renascimento, não admitindo sequer que
o Belo em Si pudesse ser suportado pelos objectos ou pelos conceitos do quotidiano, afirmam
que a harmonia e a Beleza ideais para que apelava o conhecimento estético tinham de ser
garantidas por uma entidade supra natural (Deus), já que o mutável e o contingente jamais

98
poderiam servir de modelo para o perfeito e o imutável. Assim, a reflexão estética esteve
durante séculos nas malhas da ontologia (cf. Ibid:18).

Já a época moderna introduz o relativismo na análise do Belo. Aqui o Belo tinha que ser
entendido na relatividade com que cada indivíduo, na posse das suas faculdades, interpretava
os estímulos sensoriais de acordo com a sua própria forma de ser e de estar no mundo. O que
deleitava os indivíduos deixava agora de ser entendido como uma entidade única, para ser
considerado como um constructo da actividade particular. Assim pensaram os ingleses Locke
(1632-1704), Hume (1711-1776) e Burke (1729-1797). Baumgarten (1714-1762), a quem se
deve o surgimento da estética como disciplina filosófica, considerou-a como conhecimento
intermediário entre a sensação e a razão.

Apesar de todos os esforços, nenhum destes autores, incluindo Kant (1724-1804), Schiller
(1759-1805), Hegel (1770-1831), Schelling (1775-1854) e Schopenhauer (1788-1860),
elevou a estética a conhecimento superior e em consequência, a capacidade sensorial do
homem continuou subalternizada ante a sua capacidade racional. No tempo presente, a
estética passou a entender-se como análise e crítica, sem, ainda, ter deixado de ser analisada
com o recurso aos princípios positivistas, empurrando-a, enquanto saber, para o reduto
minoritário daqueles que concebem e fruem os seus produtos (cf. Ibid:19 e 20).

Esse percurso histórico que fizemos até aqui dá sustento ao problema que nos propusemos
discutir, como ainda muito de actualidade: o lugar da estética e arte entre outras formas do
pensamento humano. Que fronteira estabelecer entre a arte, estética e filosofia? Se a estética é
muitas vezes entendida como uma forma do olhar filosófico à arte, que possibilidade nos
resta para encontrarmos alguma fronteira ou distinção nessa síntese?

Estética e Arte: Entre a Filosofia e a Ciência

A estética e a arte constituem, como frisámos acima, formas de saber e de compreender a


realidade. Então, apresentamos aqui as principais formas do pensamento humano para
compreendermos o lugar que a estética e a arte ocupam na sua relação não só com a filosofia.

Das Principais Formas do Pensamento Humano: sua Distinção

Para facilitar a compreensão da relação entre filosofia, arte e estética, temos também que
rever o campo da ciência, outra forma do saber humano. Existem três grandes formas de
expressão do pensamento: a arte, a ciência e a filosofia. Segundo Deleuze e Guattari (cf.
1992:173), o que as define é o enfrentar o caos, o traçar um plano, o esboçar um plano sobre
o caos. Nesse contexto, cada uma dessas formas tem um plano e objectivo específicos diante
do caos.

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Assim, afirmam Deleuze e Guattari (cf. ibid:173-174), a filosofia quer salvar o infinito,
dando-lhe consistência: ela traça um plano de imanência, que leva até ao infinito
acontecimentos ou conceitos consistentes, sob a acção de personagens conceptuais. A
ciência, ao contrário, renuncia ao infinito para ganhar a referência: ela traça um plano de
coordenadas somente indefinidas, que define sempre estados de coisas, funções ou
proposições referenciais, sob a acção de observadores parciais. A arte quer criar um finito
que restitua o infinito: traça um plano de composição que carrega por sua vez monumentos
ou sensações compostas, sob a acção de figuras estéticas.

Por isso, Leonel Ribeiro dos Santos (cf. AA. VV. 1996:210) entende que na experiência da
beleza ou na vivência estética cumpre-se momentaneamente a superação da unilateralidade
da matéria e da forma, da passividade e da actividade, da finitude e da infinitude, e é por essa
razão que a beleza nos indica qual é e onde subsiste a verdadeira forma da humanidade. É ela
que pode também constituir a via para alcançar a sua realização efectiva.

Interpretando Platão, Santos (Ibid) afirma que “o que caracteriza a ideia de beleza e a
distingue de todas as outras ideias (verdade, bem, justiça) é a sua natureza média ou
intermédia, a sua capacidade de não ficar ofuscada no mundo sensível, mas de precisamente
aí brilhar”. Ou se quisermos com Schiller citado por Santos (Ibid:211), a beleza se inscreve
entre o inteligível e o sensível, entre a forma e a matéria, entre a espontaneidade e a
passividade, entre a natureza e a liberdade, entre o finito e o absoluto, entre o subjectivo e o
objectivo, entre a razão e o sentimento. Aliás, o que caracteriza mesmo a beleza é o ser ela a
vivência mesma da superação desses opostos e de assim mostrar o quão limitado é todo o
pensamento que neles se fixa. É graças a essa condição híbrida que a beleza se propõe como
o mediador por excelência do processo que realiza a transição do homem sensível ao homem
intelectual e moral, da natureza à liberdade.

O domínio estético é um estádio intermediário entre a pura natureza física do homem e a


liberdade moral. Por isso, Santos (cf. Ibid:212), interpretando Schiller, diz que a passagem do
estado passivo do sentir para o estado activo do pensar e do querer não acontece portanto de
outro modo a não ser mediante um estado intermédio de liberdade estética (…). Não há
nenhum outro caminho para tornar racional o homem sensível a não ser fazendo-o antes
estético. Pois, “o estético é, por conseguinte, o próprio sentimento da harmonia do espírito
consigo mesmo quando as suas faculdades se relacionam entre si num “livre jogo”, jogo este
que, não estando sujeito a leis determinadas de carácter lógico ou moral, não é todavia
totalmente anárquico e sem lei” (Ibid:213).

Embora Platão, Schiller e Santos nos mostrem este carácter intermediário da arte, Deleuze e
Guattari (cf. 1992:174) chamam-nos atenção de que isso não deve implicar que a arte seja
como uma síntese da ciência e da filosofia, da via finita e da via infinita. Pois, as três vias são
específicas, tão directas umas com as outras, mas se distinguem pela natureza do plano e
daquilo que o ocupa. Pensar é pensar por conceitos (filosofia), ou então por funções (ciência),
ou ainda por sensações (arte), e um desses pensamentos não é melhor que um outro, ou mais
plenamente, mais completamente, mais sinteticamente “pensado”.

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As duas tentativas recentes para aproximar a arte da filosofia são a arte abstracta e a arte
conceptual; mas elas substituem a sensação pelo conceito, criam sensações e não conceitos. A
arte abstracta procura somente refinar a sensação, desmaterializá-la, estendendo um plano de
composição arquitectónico em que ela se tornaria um puro ser espiritual, uma matéria
radiante pensante e pensada, não mais uma sensação do mar ou da árvore, mas uma sensação
do conceito de mar ou do conceito de árvore (cf. Ibid). Vale dizer que a arte, a filosofia e a
ciência são de certa forma distintas. Qual dentre elas precede ou constitui o arché ou o
fundamento das outras?

Da Primazia do Estético

O conhecimento estético é o primeiro e mais original ao homem por ser aquele que nos
advém através dos sentidos e por isso se impõe ao longo de toda a vida. Segundo Manso
(2008:11), “Foi o sentimento estético que desde sempre permitiu aos indivíduos alterarem as
contingências do meio à medida que a curiosidade natural pelo Absoluto se ia manifestando.
A capacidade de manipular ao gosto de cada um a natureza, precede em muitos anos a
necessidade de explicação causal da realidade e é justificada pelo facto de o conhecimento
primeiro da realidade ser processado por cada um de nós, logo à nascença, pelo recurso a
sensações olfactivas, tácteis, gustativas, visuais… Isto mesmo foi entendido por Einstein
(1879-1955), que em pleno século XX, (…) não deixou de continuar convicto de que a
imaginação é mais importante que o conhecimento, uma vez que o conhecimento se refere à
ciência, enquanto a imaginação se refere ao mundo”.

Afinal, Einstein apenas continuou a trabalhar o legado do homem pré-histórico, pois se


fizermos uma viagem a milhares de anos antes da nossa era e visitarmos o período
paleolítico, deparamos com a arte rupestre de que há excelentes exemplos em Chinhamapere
-Manica- Moçambique, e outros pontos do mundo. Mesmo nas épocas mais sombrias da
história da humanidade em que a escravatura e o trabalho forçado foram uma constante,
subjugando milhares de seres humanos a um esforço árduo durante mais de dezasseis horas
por dia, deparamos que esses indivíduos se reuniam frequentemente para cantar e dançar com
um frenesim inusitado para quem tinha um corpo subnutrido e moído por um trabalho duro e
continuado.

Por isso, para Manso (Ibid:12), “A história das artes deveria servir para, com todas as
representações, quer em contraposição quer em complementaridade, cada indivíduo poder
formar uma imagem própria desse universo que por condição não se deixa representar por
nenhuma forma unívoca e definitiva”. Por exemplo, a racionalidade grega foi resultado da
ficção literária; “foram, ainda, as propostas visionárias de diversos criadores que
proporcionaram o desenvolvimento da ciência e da técnica, tal como aconteceu com
Leonardo Da Vinci, Júlio Verne, Aldous Huxley, ou a Psicanálise que contribuiu
decisivamente para o aparecimento do Surrealismo que se veio a tornar um dos mais
importantes movimentos artísticos do século XX” (Ibid:13).

101
Com todo esse contributo histórico para o desenvolvimento da humanidade, por que, hoje, a
arte parece “desumanizada”58? Por que não se captam, então, mais artistas e não se
desenvolve nos seus frequentadores o gosto pelas diferentes artes, considerando-as como
parte importante das suas existências?

A resposta a interrogações acima, infelizmente, é de fácil formulação: “a formação do gosto,


seja em que contexto for, é dispendiosa em tempo e dinheiro, sem qualquer possibilidade de
dar lucro imediato. Num mundo virado para a produtividade que compensa monetariamente
os indivíduos melhor preparados do ponto de vista profissional, ensinar a fruir os objectos
estéticos nas horas livres, torna-se cansativo e pouco compensador” (Ibid:14). No máximo, se
a vida nos correr bem, encomendaremos uma ou outra planta para a moradia com que
sonhamos a um arquitecto mais na moda; compraremos, sem qualquer critério, quadros e
esculturas aos profissionais do ofício com nome firmado na praça para mostrar às nossas
visitas o gosto que não possuímos; adquiriremos os livros dos escritores e poetas mais em
voga, arrumando-os seguidamente numa estante sem sequer terem sido folheados. E, assim,
esgotaremos todo o nosso conhecimento estético, adquirido em muitas e penosas horas
curriculares.

Portanto, a educação científica e positivista tem-se revelado um fracasso na medida em que


continua preocupada em separar as duas dimensões indissociáveis de uma mesma realidade, a
Razão e o Sentimento, sacrificando o segundo ao poder absoluto e totalitário da primeira.
Vale dizer que a estreita e necessária relação do homem com a natureza, também não tem
sido beneficiada pela mentalidade científica contemporânea. Mas, apesar de todo o progresso,
agora como ao longo dos tempos, continua a ser necessário chorar e rir, expressar o desgosto
e a alegria, franzir a testa e simular com os lábios, revelar a fúria e o contentamento. Então,
“a difícil relação do homem com o meio se deve em grande parte à recusa em aceitar que o
sentimento estético, ou seja, a nossa apetência para a arte, mantém-se e desenvolve-se
ininterruptamente desde o nascer ao morrer. Ela é assim não apenas a voz com que
procuramos a arte, mas toda a modalidade de sermos humanos” (Ibid:15). Ou, como
entendem Geisler e Feinberg (cf. 1983), a Estética faz parte essencial da teoria de valores, ou
da axiologia, enquanto toca também em questões éticas, sociais e políticas.

Portanto, conclui Manso (Ibid:30), “O sentimento estético sempre esteve presente em todos
os períodos da história da humanidade, ao contrário do interesse pela ciência que é uma
criação do homem preocupado e ocupado com a melhoria efectiva das condições diárias da
vida, de princípios inteiramente utilitários”. O impulso estético é congénito a todos os
indivíduos, e jamais seria imaginável um mundo entendido fora do sentimento estético, fora
da qualidade emotiva que no-lo explica à nossa relação humana com ele. O sentimento
estético precede tanto a racionalidade tida como o milagre grego quanto o conhecimento
científico.

58
Adjectivo inspirado do título da obra de José Ortega y Gasset: A Desumanização da Arte.

102
Tem razão, então, Henrique de Vasconcelos (Apud Guimarães, 2009:76) ao principiar o seu
opúsculo afirmando que “desde a Grécia clássica até ao Renascimento, a Beleza estava no
individuo, a Beleza estava no lar, a Beleza estava na cidade” e por assim ser, “não basta
viver: é preciso adornar a vida”.

Da Complementaridade entre Filosofia, Arte e Ciência

O nosso interesse, nesta parte, é defendermos que apesar de a filosofia, a arte e a ciência
serem distintas uma das outras, elas gozam também de um espaço de cooperação e
complementaridade na busca do esclarecimento do caos ou da realidade.

É como dizem Deleuze e Guattari (cf. Ibid:175), os três pensamentos cruzam-se, entrelaçam-
se, mas sem síntese nem identificação. A filosofia faz surgir acontecimentos com seus
conceitos, a arte ergue monumentos com as suas sensações, a ciência constrói estados de
coisas com as suas funções. Um rico tecido de correspondências pode estabelecer-se entre os
planos. Mas a rede tem seus pontos culminantes, justamente onde a sensação se torna ela
própria sensação de conceito ou de função, e o conceito, conceito de função ou de sensação; a
função, função de sensação ou de conceito. E um dos elementos não aparece, sem que o outro
possa estar ainda por vir, ainda indeterminado ou desconhecido. Cada elemento criado sobre
um plano apela a outros elementos heterogéneos, que restam por criar sobre outros planos: é
o pensamento como heterogénese. É verdade que estes pontos culminantes comportam dois
perigos extremos: ou reconduzirem-nos à opinião da qual queríamos sair, ou nos precipitar no
caos que queríamos enfrentar.

Mas a arte, a ciência e a filosofia exigem mais: já o dissemos, traçam plano sobre o caos. Não
são como as religiões, que invocam dinastias de deuses, ou a epifania de um Deus único, para
pintar sobre o guarda-sol um firmamento, como as figuras de uma Urdoxa de onde
derivariam nossas opiniões. A filosofia, a ciência e a arte querem que rasguemos o
firmamento e que mergulhemos no caos. Só o venceremos a este preço. O filósofo, o
cientista, o artista parecem regressar do país dos mortos. O que o filósofo traz do caos são
variações que permanecem infinitas, mas tornadas inseparáveis sobre superfícies ou em
volumes absolutos, que traçam um plano de imanência secante: não mais são associações de
ideias distintas, mas reencadeamentos, por zona de indistinção, num conceito.

Como entendem Deleuze e Guattari (cf. Ibid:177) “o cientista traz do caos variáveis, tornadas
independentes por desaceleração, isto é, por eliminação de outras variabilidades quaisquer,
susceptíveis de interferir, de modo que as variáveis retidas entram em relações determináveis
numa função: não mais são liames de propriedades nas coisas, mas coordenadas finitas sobre
um plano secante de referência, que vai das probabilidades locais a uma cosmologia global”.

O artista traz do caos variedades, que não constituem mais uma reprodução do sensível no
órgão, mas erigem um ser do sensível, um ser da sensação, sobre um plano de composição,
anorgânica, capaz de restituir o infinito. A luta com o caos que se verifica no coração da

103
pintura, se encontra de uma outra maneira na ciência e na filosofia: trata-se sempre de vencer
o caos por um plano secante que o atravessa. A arte luta com o caos, mas para torná-lo
sensível, mesmo através do personagem mais encantador, a paisagem mais encantada.

Numa palavra, o caos tem três filhas segundo o plano que o recorta: são a arte, a ciência e a
filosofia, como formas do pensamento ou da criação. E o Eu não é apenas o “eu concebo” do
cérebro como filosofia; é também o “eu sinto” do cérebro como arte. “A sensação não é
menos cérebro que o conceito” (Ibid:185). A junção (não a unidade) dos três planos é o
cérebro.

Os três planos são tão irredutíveis quanto os seus elementos: plano de imanência da filosofia,
plano de composição da arte, plano de referência ou de coordenação da ciência; forma do
conceito, força da sensação, função do conhecimento; conceitos e personagens conceituais,
sensações e figuras estéticas, funções e observadores parciais (cf. Ibid:189).

Podemos notar com Deleuze e Guattari (cf. Ibid:190-191) que há enfim interferências
ilocalizáveis nessas formas de pensamento ou disciplinas: cada disciplina distinta está, à sua
maneira, em relação com um negativo. Vale dizer, por exemplo, que mesmo a ciência está em
relação com uma não-ciência, que lhe devolve seus efeitos. Não se trata de dizer somente que
a arte deve nos formar, nos despertar, nos ensinar a sentir, nós que não somos artistas — e a
filosofia ensinar-nos a conceber, e a ciência a conhecer. Tais pedagogias só são possíveis, se
cada uma das disciplinas, por sua conta, está numa relação essencial com o Não que a ela
concerne. O plano da filosofia é pré-filosófico, enquanto o consideramos nele mesmo,
independentemente dos conceitos que vem ocupá-lo, mas a não filosofia encontra-se lá, onde
o plano enfrenta o caos.

Conclusão

A filosofia precisa de uma não-filosofia que a compreenda, ela precisa de uma compreensão
não-filosófica, como a arte precisa da não-arte e a ciência da não-ciência. Elas não precisam
de seu negativo como começo, nem como fim no qual seriam chamadas a desaparecer
realizando-se, mas em cada instante de seu devir ou de seu desenvolvimento.

Do texto resulta que embora a estética, a arte, a ciência e a filosofia tentem dar por si sós uma
explicação do mundo, este fica melhor conhecido quando estas diferentes configurações
fazem confluir as suas explicações particulares numa teoria geral do Ser e do Mundo. E
especialmente entre a obra filosófica e a obra artística, teriam assim entre si um fim comum
que levaria à universalização das leis e dos enunciados que iam buscando, caso a caso, nas
suas pesquisas. Já que o artista e o filósofo sentem o mesmo anseio de abranger, um pelo
sentimento, o outro pela ideia.

104
Na verdade, não há autonomia, mas sim solidariedade entre a verdadeira arte e a verdadeira
crítica (filosofia). “Arte e Crítica são dois modos de afirmação do mesmo conhecimento
estético, e inseparáveis na sua verdade profunda”, como afirma Manso (2013:47).

105
Bibliografia

DELEUZE, G. & GUATTARI, F. (1992): O que é a Filosofia?. Editorial Presença,


Lisboa.
GEISLER, N. L. & FEINBERG (1983): Introdução à Filosofia: uma perspectiva
cristã. Edições Vida Nova, São Paulo.
GUIMARÃES, F. (2009): História do Pensamento Estético em Portugal. Editorial
Presença, Lisboa.
MANSO, A. (2008): Para uma Educação Estética. Marânus, Porto.
_________ (2013): Amorim de Carvalho. Antropologia, Ética e Estética. Novas
Edições Académicas, In online: www.morebooks.es
ORTEGA Y GASSET, J. (2003): A Desumanização da Arte. Livraria Almedina,
Coimbra.
SANTOS, L. R. (1997): “Educação estética, a dimensão esquecida”. In: AAVV.
Educação Estética e Utopia Política. Edições Calibri, Lisboa.
VANNUCCHI, A. (1983): Filosofia e Ciências Humanas. Edições Loyola, 2ª ed., São
Paulo.

106
Filosofia e Comunicação
Por: João Miguel59

Considerações Iniciais
A pergunta sobre a comunicação é recente. Data quando muito do primeiro quartel do século
XX, numa altura em que a tecnologia de informação e comunicação firmava-se e,
paulatinamente, começava a reconfigurar a sociabilidade. Desde essa altura, os avanços
tecnológicos são percebidos em diferentes áreas, especialmente na comunicação, relfectindo-
se na reestruturação das relações mundiais, com interdependência de mercados económicos,
facilidade de circulação de pessoas e bens, consumo de produtos em escala planetária e
acesso mais facilitado aos bens informacionais.
No mundo contemporâneo, no entender de Gomes (2000), experimenta-se um paradoxo
fundamental: a par das tecnologias e possibilidades cada vez maiores de comunicação, a
sociedade humana vive momento de incomunicação, que pode facilmente ser percebido na
maneira como as pessoas se fecham em si mesmas. Afirma-se, segundo ele, não só o
individualismo, mas também a prescindência do outro. A abundância, cada vez mais notável,
de recursos comunicativos não se tem traduzido em mais interação, pelo contrário, algumas
plataformas comunicacionais se têm traduzido em espaços de exibicionismos e também de
manifestação de preconceitos de tipos diversos.
Falta a comunicação interpessoal e aumenta o consumo dos meios de comunicação, cada vez
mais adaptados às necessidades das pessoas. Quem tem poder aquisitivo maior, sublinha
Gomes (2000), consome os produtos feitos por encomendas, via internet, TV a cabo,
informática, multimédia. No contexto moçambicano, a concorrência que vem crescendo entre
a TV Cabo, a DSTV a Zap e, de certa forma, a Startimes é ilustrativa desse fenómeno. Os
pobres contentam-se com os tradicionais meios massivos, esperançosos de que a
digitalização, ora anunciada pelas entidades governamentais, lhes traga alguma melhoria,
pelo menos no que diz respeito à qualidade do sinal.
Quer dizer que na medida em que aumenta o consumo da informação, de dados, diminui a
intercomunicação interpessoal. Na maioria das vezes, na tentativa de fazer face a todo um
conjunto de privações materiais, os indivíduos encontram nos produtos mediáticos um lugar
de refúgio, de experimentação de felicidade, mesmo que fantasiosa. A crescente veiculação
de novelas e outros programas de género próximo a este, no horário nobre da televisão é o
reflexo da demanda em relação a estes produtos.
Hoje, por toda parte se fala de comunicação. Segundo Rodrigues (2001:23), os jornais
dedicam-lhe páginas e cadernos especiais. A rádio e a televisão discutem-na em mesas em
mesas redondas. A escola reserva-lhe cursos nos programas de ensino; os governos e os
organismos internacionais invocam-na em textos oficiais. Os homens exigem-na ou
submetem-se aos seus imperativos. Os indivíduos e as instituições lamentam a sua falta tanto

Licenciado em Filosofia; Mestre e Doutor em Ciências da Comunicação; Professor da Escola de


59

Comunicação e Artes da Universidade Eduardo Mondlane. E-mail: <joaomiguelmz@yahoo.com.br>.

107
entre as pessoas como no seio das famílias, no espaço urbano, nas empresas, nas
organizações.
A problemática da comunicação surgiu num espaço de intersecção de vários saberes. Assim
várias ciências cruzam-se com ela. Não é por acaso que o lugar da comunicação é uma área
nebulosa em seus contornos e indefinida em seus fundamentos. Também, não é por acaso que
o fenómeno comunicação tornou-se um lugar de inquietação das diversas áreas de
conhecimento. Do ponto de vista filosófico, pergunta-se pelas condições de possibilidade da
comunicação. Se comunicar for a essência do homem, então a pesquisa sobre o fundamento
da comunicação é paralela à indagação sobre a autenticidade humana.
A comunicação, entendida como inter-relacionamento humano, sempre foi preocupação das
pessoas. No entanto, indagar sobre ela é manifestação recente. Hoje, sublinha Gomes
(2000:23), pergunta-se não somente pela possibilidade de uma efectiva comunicação entre as
pessoas, mas também pelas consequências das tecnologias avançadas de comunicação sobre a
vida dessas mesmas pessoas. A partir desse pressuposto, a reflexão aqui estabelecida retoma
três perspectivas que, apesar de suas diferenças em termos de diagnóstico da sociedade atual,
compartilham a compreensão da impossibilidade de uma efectiva comunicação nas
sociedades atuais.

A Comunicação na Perspectiva Existencialista


As filosofias da existência propriamente ditas surgiram no século XX, mas sofreram grandes
influências do pensamento de alguns filósofos do período anterior. Entre eles destacam-se
Schopenhauer, Kierkegaard, Nietzsche e Husserl. Estes, provocaram uma profunda mudança
na maneira de ver o homem, a cultura e a sociedade. Entretanto, a problemática da
comunicação não foi, de forma directa, tematizada pelos pensadores existencialistas —basta
percorrer suas obras para constatar que este aspecto está subjacente às suas teses. É com base
nessa compreensão que, aqui, são revisitados dois autores.
O primeiro é o filósofo Martin Heidegger. Um dos objectivos básicos da sua obra Ser e
Tempo é investigar o sentido do ser. Para efectuar tal tarefa, começou pela investigação do
ser que nós próprios somos. Analisando a vida humana, o filósofo descreveu três etapas
básicas que marcam a existência e que para a maioria dos homens, culmina numa existência
inautêntica: a) facto da existência: o homem é lançado ao mundo, sem saber por quê. Ao
despertar para a consciência da vida, já está aí, sem ter pedido; b) desenvolvimento da
existência: o ser humano estabelece relações com o mundo (ambiente natural e social
historicamente situado). Para existir, assinala Cotrim (2000: 217), o homem projecta sua vida
e procura agir no campo de suas possibilidades. Assim, move uma busca permanente para
realizar aquilo que ainda não é. Em outras palavras, existir é construir um projecto; c) a
destruição do eu: tentando realizar seu projecto, o homem sofre a interferência de uma série
de factores adversos que o desviam de seu caminho existencial. Trata-se do confronto do eu
com os outros. Um confronto no qual o homem comum é, geralmente, derrotado. O seu eu é
destruído, arruinado, dissolve-se na massa humana. Em vez de tornar-se si mesmo, o homem
torna-se aquilo que os outros desejam (Cotrim, 2000:217). Ao olhar por esta perspectiva,

108
diante da opressão do mundo, facilmente se pode concluir que a comunicação realmente
efectiva, fica inviabilizada. O homem angustiado, aquele que se depara com o temor do não
ser, o temor do nada, caracteriza-se por ter o seu eu dissolvido na massa humana.
Outro pensador que reflectiu em torno da existência é Jean Paul Sartre. Este, recebeu
significativa influência de Heidegger. Para Sartre o ser é o que é. Esse ente não é activo nem
passivo, nem afirmação, nem negação, mas simplesmente repousa si, maciço e rígido. Mas
além do ente me si, Sartre concebeu a existência do ser especificamente humano,
denominando-o ente para si. O ente para si específico do homem se opõe ao ente em si, que
representa a plenitude do ser. Portanto, para Sartre, a característica tipicamente humana é o
nada. O homem tem como característica específica o não-ser, algo indefinido e indeterminado
(Cotrim, 2000: 220).
Segundo Sartre, umas experiências de que outro de facto existe, e não é apenas uma coisa, é a
vergonha. Reconheço que sou como outro me vê. O homem é um ser que implica o ser do
outro em seu ser. O homem é um ser-para-outro. Mas a relação com o outro é uma relação de
conflito, de recusa radical do ouro. A vergonha, sublinha Rabuske (2010:147), é o
reconhecimento de que sou esse objecto que o outro olha e julga. O acesso à
intersubjetividade só se dá pela negação. Não há relação sujeito-sujeito, mas relação sujeito-
objecto.
Na relação com o outro: ou eu sou sujeito e outro é objecto que eu domino; ou eu sou
dominado por ele; transcender a transcendência do outro ou, ao contrário, absorver em mim
essa transcendência, tais são as duas atitudes primitivas em relação ao outro. A primeira
atitude se dá na indiferença, no desejo sexual, no ódio, no sadismo; a segunda, no amor, na
linguagem, no masoquismo. Mas querendo realizar plenamente uma dessas atitudes, caio na
oposta, dá-se a reversão. Sempre fracasso! O amor não passa da projecção de um ideal
contraditório. O respeito da liberdade do outro é uma palavra vã. (Rabuske, 2010:148)
Diante do exposto, pode se concluir que o homem é uma paixão inútil, isto é, tende para algo
que nunca poderá ser. A esse respeito, ao percorrer algumas das teses de Sartre, Gomes
(2000:33) sublinha que o homem possui uma abertura para o infinito, para a comunicação, a
qual nunca poderá satisfazer.

A Comunicação na Sociedade do Espetáculo


Sociedade de espetáculo é a obra mais conhecida do pensador Guy Debord. Influenciado por
pensamento de Marx, este autor faz uma análise crítica da produção da cultura no capitalismo
avançado. Na sua visão, o espetáculo transmite um lógica de mercadoria que predomina sob
diversas ambições concorrenciais de todos os comerciantes ou como a lógica da guerra que
predomina sobre as frequentes modificações do armamento, também a rigorosa lógica do
espetáculo comanda em toda a parte as exuberâncias dos media (Debord, 1997:72).
O mundo do espetáculo superficial faz com que ninguém confie em ninguém. Ao contrário, a
desconfiança é moeda corrente e o inter-relacionamento converte-se em fonte de sofrimento.
Para evitar o sofrimento, há um volta-se para dentro de si, cortando todo contacto humano

109
mias profundo. O medo faz com que as pessoas se isolem. Nos tempos que correm tem
aumentado o número de pessoas que se fecham em si mesmas. São indivíduos que têm
muitos amigos virtuais, nas redes sociais, entretanto, não são capazes de interagir com
pessoas mais próximas ou então consumir os produtos mediáticos abundantes na era da
Multiplicidade da Oferta.
O que caracteriza os meios de comunicação de massa, ressalta Mattelart (1999:34), é serem
antimediadores, intransitivos, fabricantes de não-comunicação, se se aceitar definir a
comunicação como troca, como espaço recíproco de uma fala ou resposta, logo de uma
responsabilidade — não uma responsabilidade psicológica e moral, mas uma correlação
pessoal de um a outro na troca. Em relação a este aspecto, vale a pena sublinhar que o
excesso da informação que caracteriza o mundo atual não significa maior interação entre as
pessoas.
A informação, como afirmou o sociólogo e filósofo francês Jean Baudrillard (1999:105-106),
devora os seus próprios conteúdos, devora a comunicação e o social, isto por dois motivos:
primeiro, por que em vez de comunicar, esgota-se na encenação da comunicação. Segundo,
por que por detrás da encenação exacerbada, os mass media prosseguem uma destruição do
real.
Toda a arquitetura atual dos meios de comunicação de massa, ressalta ainda Mattelart
(1999:34), se funda nessa última definição: eles são o que proíbe para sempre a resposta, o
que torna impossível todo o processo de troca, a não ser, como o disse Baudrillard (1999),
sobre forma de simulação de resposta, ela própria integrada ao processo de emissão, o que
não muda nada quanto à unilateralidade da comunicação.
A sociedade portadora do espetáculo não domina as regiões subdesenvolvidas apenas por sua
hegemonia económica. Elas as domina como sociedade do espetáculo. Mesmo ali onde a base
material ainda está ausente, a sociedade moderna já invadiu espetacularmente a superfície
social de todos os continentes.
O movimento de banalização que, sob a cobertura das diversões do espetáculo, domina
mundialmente a sociedade moderna, domina também em cada um dos pontos nos quais o
consumo contínuo de mercadorias multiplicou em aparência os papéis e objectos a escolher
(Mattelart, 1999:34).
Nesta sociedade contemporânea, os freios institucionais que se opunham à emancipação
individual se desmoronaram e desapareceram, dando lugar à manifestação de desejos
singulares, da realização pessoal, de estima por si. As grandes estruturas socializantes
perderam sua autoridade, as grandes ideologias já não trazem nada de novo, os projectos
históricos já não mobilizam, o campo social é apenas o prolongamento da esfera privada.

A Comunicação na Perspectiva Frankfurtiana


Chama-se de Escola de Frankfurt ao colectivo de pensadores e cientistas sociais alemães
formado, sobretudo, por Theodor Adorno, Max Horkheimer, Erich Fromm e Herbert
Marcuse. Horkheimer e Adorno criaram o conceito de indústria cultural e propuseram as

110
linhas gerais de sua crítica ao descortinarem o que chamaram, no título da sua obra principal,
de Dialética do iluminismo.
A razão iluminista, que visava a emancipação dos indivíduos e o progresso social, terminou
por levar a uma maior dominação das pessoas em virtude justamente do desenvolvimento
tecnológico-industrial. Horkheimer acreditava que o problema estava na próprio razão
controladora e instrumental, que busca sempre a dominação tanto da natureza quanto do
próprio se humano (Rudger, 2002:131).
Horkheimer e Adorno denunciam a morte da razão crítica, asfixiada pelas relações de
produção capitalista. Denuncias semelhantes já haviam sido feitas no campo do marxismo,
entretanto, o que há de característico nos filósofos da Escola de Frankfurt é a desesperança
em relação à possibilidade de transformação social.
Estes filósofos caracterizam a época atual como sendo da “sociedade administrada”, onde, na
economia, como em outras áreas da sociedade, a autonomia individual não cessa de recuar
cada vez mais (Wiggerhaus, 2000:577). Tal fenômeno reproduz-se na cultura de modo
exemplar. Nesse processo, a indústria cultural, na opinião dos dois frankfurtianos, contribui
eficazmente para falsificar as relações estabelecidas pelo homem com o mundo e também
com os outros seres humanos, o que desemboca numa espécie de anti-racionalismo:
A racionalidade técnica hoje é a racionalidade do próprio domínio, é o caráter repressivo da
sociedade que auto-aliena. Automóveis, bombas e filmes mantêm o todo até que seu
elemento nivelador repercuta sobre a própria injustiça a que se servia. Por hora a técnica da
indústria cultural só chegou à estandardização e à produção em série, sacrificando aquilo pelo
qual a lógica da obra se distinguia da lógica do sistema social (Adorno; Horkheimer,
2000:170).
Indústria cultural é um termo difundido por Adorno e Horkheimer para designar a indústria
da diversão vulga veiculada pela televisão, rádio, revistas, jornais, , músicas, propagandas,
etc. Através da indústria cultural e da diversão se obteria a homogeneização dos
comportamentos, a massificação das pessoas.
A origem da industrialização do mundo simbólico remete aos Estados Unidos. De lá se
estendeu à Europa, graças ao aceleramento da produção industrial. Hoje também tomou conta
do mundo subdesenvolvido (Paviani, 1987:45). Destarte, mesmo que a origem seja
estadunindense, hoje a coisificação da consciência é o antecedente (embora nem sempre o
resultado) da ação da indústria cultural como um todo, independente do país (com
dificuldades de penetração no mundo islâmico). Nesse sentido, é, sem dúvida, um dado
objetivo na complexidade das sociedades contemporâneas (1995:148).
Retomar o conceito de indústria cultural para compreender os processos mediáticos das
sociedades atuais significa ter clareza de que os produtos culturais, apesar de suas
especificidades, estão cada vez mais obedecendo à lógica de produção industrial do
capitalismo. É essa indústria que assegura a produção e a distribuição de produtos e serviços
para responder às necessidades de consumo. Isso significa dizer que hoje, mais do que nunca,
aspectos mercadológicos estão penetrando na informação, na comunicação e na cultura:

111
O desenvolvimento capitalista, se caracteriza desde a sua origem pela mercantilização das
diferentes atividades sociais (Miguel 2013). A introdução das relações capitalistas no sector
da cultura e da comunicação se dá de uma maneira diferenciada e limitada. Não obstante
atualmente assistimos a uma intensificação da industrialização dos processos produtivos de
difusão dos artigos e serviços culturais e comunicacionais.
As indústrias culturais de todo o tipo tendem cada vez mais a colonizar o tempo de ócio, a
promover uma fragmentação e uma individualização crescentes da sociedade, a estimular o
consumo e o hedonismo e a penetrar, enfim, até o mais recôndito da esfera privada, como o
intuito de transformar, como sempre o fizeram, os modos de vida segundo as necessidades do
processo de acumulação de capital (Bolano, 2005: 41). Essa circunstância, vantajosa para o
capital, desemboca numa situação desfavorável para a maioria das pessoas, diante de poder
estatal cada vez mais inoperante e ausente. Assim, o capitalismo deixa de ser apenas do
domínio econômico para determinar a política e a cultura, ou seja, penetra em todas as
dimensões das pessoas. Por esta via, é cada vez mais do que um modo de produção, para
estabelecer-se como um processo civilizatório, onde a subsunção do simbólico é sucessiva,
contínua e inconclusa.
Outro pensador da Escola de Frankfurt que precisa ser ressaltado é Herbert Marcuse.
Influenciado por Freud como se pode notar em seu livro Eros e civilização, ele constata que a
sociedade contemporânea, apesar de toda a sóbria e objectiva cientificidade e racionalidade
planificadora, é em seu todo neurótica, ou seja, perturbada em seu equilíbrio psíquico. Isto
mostra-se não apenas na legião dos psicopatas em rápido crescimento, mas também se
manifesta, muito em geral na baribarização da vida, na agitada maré de agressões individuais
e colectivas, nas taxas alarmantes de criminalidade.
O homem unidimensional, cuja edição original data de 1964 exerceu influência directa na
luta ideológica de sua época. Sob a aparência de um mundo cada vez mais modelado pela
tecnologia e pela ciência, manifesta-se a irracionalidade de um modelo de organização da
sociedade que subjuga o indivíduo, ao invés de libertá-lo. A racionalidade técnica, a razão
instrumental, observa Mattelart (1999), reduzem o discurso e o pensamento a uma dimensão
única, que promove o acordo entre a coisa e a sua função, entre a realidade e a aparência,
entre a essência e a existência. Essa sociedade unidimensional anulou o espaço do
pensamento crítico.

Considerações Conclusivas
Do ponto de vista filosófico, as três abordagens analisadas são unânimes em afirmar a
impossibilidade de uma comunicação verdadeiramente efectiva na contemporaneidade. De
facto, a simples transmissão de informação, que foi uma das grandes preocupações dos
teóricos matemáticos da comunicação, não implica uma partilha, uma comunhão, condições
de possibilidade da comunicação. Como ficou evidenciado, na perspectiva existencialista,
tanto o homem um ser para a morte, na visão heideggeriana, quanto o homem infernizado
pelos outros, na concepção sarteriana, verifica-se uma impossibilidade fundamental de
abertura recíproca para o outro, ou seja, a incomunicação.

112
De igual forma, autores como Debord e Baudrillard acreditam que na sociedade atual,
considerada como de espetáculo, as relações são superficiais, ninguém confia em ninguém.
Neste cenário vivenciado nos tempos atuais as aparências são mais evidenciados do que o ser.
O movimento da banalização, do superficial são as verdadeiras marcas da
contemporaneidade. Da mesma forma, nesta perspectiva a verdadeira comunicação não se
realiza.
A vertente crítica frankfurtiana não foge dessa linha de pensamento. Os pensadores aqui
agrupados, na sua maioria, comungam o diagnóstico da impossibilidade do estabelecimento
de uma efectiva comunicação nas atuais sociedades capitalistas. Segundo estes filósofos a
racionalidade técnica hoje é a racionalidade do próprio domínio, é o caráter repressivo da
sociedade que auto-aliena. Assim, paradoxalmente, o desenvolvimento das tecnologias de
informação e comunicação, a abundância da informação, a multiplicidade de oferta de
produtos culturais, não significa necessariamente que as pessoas comunicam mais, pelo
contrário, estes dispositivos tecnológicos são, em grande medida, veículos de publicidade e
propaganda, portanto, de dominação económica ou política.

113
Bibliografia
ADORNO, T. W. (1995): Palavras e Sinais: Modelos Críticos. 2. ed. Petrópolis: Vozes.
ADORNO, T. W. & HORKHEIMER, M. (2000): “A indústria cultural: o iluminismo como
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BAUDRILLARD, J. (1991): Simulacros e Simulação. Lisboa: Relógio d´Água.
BOLAÑO, C. R. S. (2005): “Impactos sociais e econômicos das tecnologias de informação e
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114
Sobre a Ligação entre a Geografia, Ciências Sociais e a Filosofia

Por: Zacarias Alexandre Ombe

Introdução

A Geografia foi sempre considerada uma ciência de encruzilhada situada entre as ciências
naturais e sociais. Este carácter ambivalente resulta do facto de esta ciência produzir um
discurso sobre causas da localização de fenómenos no espaço. A Geografia ocupa-se
também dos padrões da localização e da influência do espaço no comportamento dos
fenómenos naturais e sociais incluindo a interação entre eles. As categorias geográficas
como espaço, território, paisagens, região e lugar denotam o esforço dos geógrafos em
produzir conceitos capazes de sintetizar a realidade estudada pela geografia revelando as
diferentes funções que a contiguidade espacial oferece e que evoluem historicamente
(Haesbaert, 2014).

Pela diversidade dos fenómenos da realidade empírica que a geografia estuda, a própria
disciplina possui uma interdisciplinaridade interna. Com efeito, existem ramos da Geografia
ligados ao meio físico por exemplo a Geomorfologia e a Climatologia que estudam o relevo
e o clima, respectivamente. Mas outros ramos concentram-se no estudo dos fenómenos
ligados à sociedade como é o caso da Geografia Urbana, da Geografia da População, da
Geografia dos Transportes, da Geografia Política entre outros ramos que embora
reconheçam o carácter imprescindível da natureza na localização dos fenómenos, são
todavia ramos cujo escopo é a investigação, com maior profundidade, dos aspectos sociais
utilizando os métodos das ciências sociais (Pereira, 2006).

Na elaboração do pensamento geográfico influenciaram as ideias filosóficas assim como a


contribuição de outras ciências nascentes incluindo os processos históricos da sociedade. A
importância da filosofia reside na sua pretensão de interpretar as causas mais gerais dos
fenómenos da natureza da sociedade e do pensamento (Castiano, 2013).

Neste artigo a partir duma apresentação panorâmica da relação interdisciplinar entre a


Geografia, a Filosofia e as Ciências sociais, propõe-se à adopção de um paradigma mais
inclusivo baseado numa ênfase na apreciação da diversidade com o emprego dos meta-
conceitos: Geodiversidade, Biodiversidade e Sociodiversidade (Ombe, 2014).

A Geografia e a Filosofia

A Geografia possui uma longa trajectória filosófica, científica e social. Traça-se o início da
sistematização dos conhecimentos da Geografia a partir da Grécia antiga cujas reflexões
filosóficas centravam-se sobre a tentativa de explicar a realidade dividida entre os aspectos
relacionados com a natureza em termos de universo todo e os princípios do seu
funcionamento. Estas reflexões também incluíam origem do pensamento do Homem nos

115
aspectos da moral e da política,principalmente, com exigências colocadas pelo surgimento
das cidades (Godoy, 2010).

A instituição da Geografia como disciplina começa, no entanto, com o filósofo Emanuel Kant
o primeiro professor de Geografia numa universidade. Em Kant o espaço passa pela primeira
vez a constituir o fundamento da Geografia. Enquanto a Historia e o relato dos factos que se
sucedem no tempo a geografia e a apresentação dos fenomenos que se encontram um do
lado do outro no espaço (Tanaka, 2010)

Todavia, há que reconhecer que já antes de Kant havia muitos pressupostos filosóficos
embrionários do surgimento da Geografia.

Um dos postulados que permitiu o surgimento da Geografia como um campo do


conhecimento passível de se submeter aos critérios da verdade científica da época
desenvolvidos dos Francis Bacon e Rene Descartes foi a possibilidade de existir um mundo
empírico não mais comandado pela razão (Godoy, 2010). Esta constatação permitiu que as
ideias de Bacon e de Descartes sobre o conhecimento como fonte do poder e a sua
importância para a liberdade do Homem da dominação da natureza fossem extensivas à
Geografia capaz de empregar os métodos da experimentação e medição incluindo o uso da
linguagem matemática para exprimir as propriedades dos espaços geográficos (Pereira,
2006).

Ao realçar o rigor e a adesão ao método da nova disciplina denominada Geografia Fisica,


Kant sublinhava:

“(…)somos colocados em condições de retirar conhecimentos seguros partindo de


comprovações autenticas, sem corrermos o perigo de nos perder num mundo de fábulas ao
invés da obtenção de uma ciência correcta das curiosidades da natureza” (Kant, 2008, p.
117).

Deste modo essas ideias constituem as bases epistemológicas para o surgimento da


Geografia e foi com bases nestes pressupostos que Humboldt funda a ciência geográfica
moderna estabelecendo os princípios da causalidade e da universalidade garantida pelo
método comparativo (Godoy, 2010; Haesbaert, 2014).

Se por um lado a Geografia nascente, Geografia Física, reivindicava um estatuto semelhante


ao das ciências naturais como a Física, a Química e a Biologia, ela, ao mesmo tempo, recebia
de uma forte influência humanística através da influência do romantismo germânico
representado por Goethe (Vitte, 2008). A ideia da harmonia e da relação entre o particular e
a totalidade é reforçada pelas ideias do evolucionismo de Darwin e pelos románticos
germánicos (Schiller, Fichte,Gothe, etc.) que vai estabelecer uma relação de
correspondência entre o mundo orgânico(biodiversidade) e inorgânico (geodiversidade),

116
lançando as bases para o ambientalismo moderno (Larriere e Larriere, 1997; Haesbaert et
al, 2012).

A Geografia tradicional onde as condições naturais é que determinam os comportamentos


da sociedade, os modos de vida e do temperamento, nova ciência era dos lugares e não dos
homens, diferentemente da sociologia nascente por exemplo (La Blache, 2012) Esta
corrente serviu de base para justificar o expansionismo alemão a partir da ideia do “Espaço
Vital” desenvolvida por Ratzel, segundo a qual um estado para o seu desenvolvimento
necessitava de um espaço suficiente para a sua sustentação. Por exemplo, Ratzel defendia
que a civilização americana resultava das particularidades da superficie do solo na sua obra
Antrpogeografia (La Blache, 2012).

Se o expansionismo baseava-se no determinismo, o imperialismo cria a necessidade da


justificação moral para a anexação dos territórios coloniais surgindo assim o possibilismo
cujo defensor é Vidal de la Blache (Lima, 2007, Haesbaert et al, 2012). Este geógrafo
reconhecia o estatuto híbrido da ciência mas admitia que a natureza apenas propõe e o
homem dispõe. Para La Blache a Geografia é ciência dos lugares e das paisagens das regiões
onde os traços sociais diferentes resultam da influência diferenciada do meio onde se
origina um vasto mosaico de géneros de vida (Ribeiro, 2007).

“Trocas recíprocas se operam em todos os niveis de civilização entre as condições


geograficas e os factos sociais. Como tudo é ação e reação , tanto no mundo moral quanto
no físico, há casos onde , por sua vez, a repercussão de causas sociais atua amplamente
sobre a geografia” (La Blache, apud Haesbaert et al , 2012 p. 96).

Ao longo da primeira metade do Séc. XX sob a influência do positivismo, das descobertas


nas áreas das ciências foi se desenvolvendo uma corrente da Geografia cada vez mais
quantitativa próxima dos propósitos de dominar a natureza e organizar cientificamente o
espaço tanto rural como o urbano.

A “nova” geografia reflecte uma forte ligação com o neoliberalismo fornecendo


interpretações para o planeamento urbano, para a localização optimal e racional das
indústrias e dos serviços, mas sempre tendo o espaço e os seus atributos como a capacidade
de carga como factor determinante e não o Homem (Lacoste, 2013).

Esta nova corrente, cujos representantes incluem , por exemplo, Chorley e Hugget, concebe
o espaço geográfico como sistema cibernético. Este esforço de matematização fez surgir o
conceito de geosistema ou sistema geográfico,(Pereira, 2006). A tendência profundamente
neopositivista desta tendencia na geografia encontrou campo fertil na antiga União
Soviética e nos paises socialistas da Europa em geral onde a componente cultural e
espiritual do espaço geografico tinha pouca consideração.

A Guerra Fria e a influência do marximo-leninismo nos conflitos relacionados com a


exploração dos povos das colónias, incluindo os movimentos de libertação de esquerda,
fizeram surgir uma corrente marxista ou da Geografia Crítica. No Brasil, Milton Santos funda

117
a corrente da Geografia Crítica que define de forma contundente a noção de espaço
geográfico evidenciando as desigualdades no poder de decisão dos seus utentes,
distinguindo espaços de mandar e espaços de obedecer (Santos, 1999; Harvey, 2004)

Nos princípios da segunda metade do século XX desenvolve-se a corrente humanística sob a


Influência da fenomenologia de Husserl e de Marleau-Ponty. A geografia humanística
reconhece pela primeira vez a importância da incorporação da fantasia e da imaginação no
processo da construção do espaço e do espaço como espaço do Homem (Pereira, 2006).

Na actualidade desenvolvem-se correntes ambientalistas e pós-modernas algumas das quais


neomarxistas na Geografia centrando a atenção tanto sobre as formas emergentes do uso
do espaço caracterizados pela globalização e des-territorialização incluindo a diversificação
dos actores da mudança do espaço geográfico agindo em rede.

A imprevisibilidade e a sociedade de risco, onde domina o caos e a incerteza, exigindo uma


abordagem qualitativa e prudente nas análises e previsões coabitam com a tendencias
recentes da geografia quantitativa com uso recorrente da informática atraves do sistemas
de informação geográfica.

Os sistemas informáticos caracterizam-se por emprestar a geografia as qualidades de ciência


exacata, apoiada pelo uso de imagens de satelite que fornecem dados sobre o espaço
geografico com uma elevada rapidez, permitindo tomar decisões tempo real.

A discussão da interação global e local são aspectos importantes da geografia


contemporânea. As correntes contemporâneas da geografia distinguem-se por serem mais
críticas e reflexivas (Lima, 2007).

Nos finais Sec. XX, do cruzamento de várias ideias acerca da relação Homem-Natureza
surgiram correntes como a Geografia radical, Ambiental e Pós-moderna que em resposta,
por um lado à globalização hegemónica advogando a necessidade da inclusão de outras
visões de Mundo. A globalização hegemónica criticada por pensadores como Milton Santos,
Boaventura de Sousa Santos envolve a necessidade de reconhecer outras estratégias de
produzir o espaço geogáfico diferentes das concebidas pelo neoliberalismo incluindo outras
formas de valorização da Biodiversidade são evidenciados por Arturo Escobar estudioso dos
movimentos ambientalistas dos povos indigenas, a título de exemplo.

A Geografia e as Ciências Sociais

A geografia desde os primórdios ocupou-se da relação entre o homem e o meio tendo ao


longo do tempo desenvolvido um corpo de categorias e teorias capazes de contornar a
tradicional dicotomia homem-natureza imposta pela modernidade. A categoria principal da
geografia, o espaço geográfico, foi ao longo do tempo operacionalizado por diferentes
categorias analíticas como por exemplo paisagem, território, região, lugar e geossistema.
Estes conceitos sempre incluem a interacção dinâmica entre a sociedade e a natureza e

118
cada vez mais a natureza considerada não no seu estado original mas já transformada pela
cultura (Maia 2010). As localizações de fenómenos incluindo os critérios para a selecção do
lugar de residência, os povoamentos são processos sociais com um certo grau de
historicidade e impregnados de cultura.

Uma das fontes da aproximação entre a geografia e as ciências sociais é a corrente


fenomenológica do filósofo Marleau-Ponty (Lima, 2007). Esta corrente analisa o espaço
como espaço vivido interpretado pelo Homem. A fenomenologia abriu um campo de
interdisciplinaridade com as ciências sociais e humanas porque explora também os
sentimentos expressos por outras formas de viver o espaço como a arte por exemplo
(Pereira, 2010).

A corrente fenomenológica valoriza o conhecimento local, a presença por exemplo dos


mapas mentais diferentes dos mapas cartográficos com autoridade científica mas que nem
sempre coincidem com os limites do espaço vivido por sujeitos concretos.

O conceito de territorialidade , veio responder a necessidade de realçar a presença de


multiplas situações identitáras principalmente no espaço urbano onde a diferenciação da
territorialidade relaciona-se com a necessidade da ancoragem territorial dos distintos
grupos sociais negociando ou impondo a sua visibilidade atraves por exemplo de símbolos e
outras formas de comunicar a sua presença (Haesbaert, 2014)

A cidade é um dos objectos da interdisciplinaridade da geografia com as ciências sociais. A


complexidade do fenómeno urbano exige cada vez mais abordagens inovadoras sobre
fenómenos cada vez mais intrigantes. A densidade das relações sociais nas cidades é
bastante elevada. Alguns geógrafos reconhecem a cidade como uma sobreposição de
territorialidades significando isso espaços de influência com limites difusos mas que existem
nos mapas mentais dos sujeitos. São reconhecidas por exemplo as microterritorialidades
como espaços de relações afectivas de pequenos grupos como por exemplo os vendedores
e os grupos de marginais que preferem determinadas esquinas da cidade (Haesbaert, 2014).

As ciências sociais colaboram na exploração das diferentes facetas da cidade como


documento histórico, como espaço de coordenação político administrativa, como íman que
atrai as regiões rurais, como reflexo da diversidade cultural, como centro de revelação da
tecnologia e da fantasia (Barros, 2011). Estes aspectos todos encontram-se concentrados
em espaços diferentes mas complementares da cidade exigindo a intervenção de estudos
demográficos, sociológicos, antropológicos, históricos das ciências políticas linguísticas etc.
(Barros, 20119. É na cidade onde com mais violência se manifesta a globalização através dos
artefactos e dos comportamentos e é no espaço concreto que se materializa a globalização
modificando constantemente o quotidiano (Godoy, 2010; Haesbaert, 2014).

Na fase actual do desenvolvimento das ciências geográficas cada vez mais se questiona a
separação estanque entre a cidade e o campo. Esta separação pressupõe uma oposição
entre a cidade como as suas centralidades e o campo como periferia e as relações de poder

119
envolvidas no relacionamento entre os dos meios. Uma visão social do espaço urbano como
aberto e dinâmico mas capaz de facilitar o caldeamento das culturas, também é um espaço
das lutas sociais que podem se manifestar de forma criativa através da arte.

A cidade de Maputo é um exemplo que ao longo da sua história foi produzindo formas de
actuação artística com mensagens de luta social como a Marrabenta de Fany Mpfumo, a
poesia de Craveirinha, a pintura de Malangatana e na contemporaneidade a denúncia das
injustiças sociais na música e no teatro. De acordo com modelo de análise desenvolvido por
Henri Lefèbvre, muitas das canções da música popular como, por exemplo, Jeremias
Ngoenha oferecem dados para o sentido dos problemas sociais urbanos a partir da analise
do quotidiano (Godoy, 2010).

A ênfase no ensino e na pesquisa geográfica moderna na presença de redes na economia,


na cultura e na comunicação, por exemplo, mascaram os desequilíbrios existentes nos
países pobres quanto ao acesso à informação e mesmo à mobilidade (Haesbaert, 2014). A
fibra óptica avança mais rápido que as estradas asfaltadas, por exemplo, que permitem a
circulação dos bens e serviços, em condições também de fraca cobertura das redes eléctrica
e rede de abastecimento de água para a maioria dos cidadãos dos países em vias de
desenvolvimento como Moçambique (Barros, 2011).

As cidades moçambicanas, por exemplo, em rápida expansão, sempre estabeleceram laços


com os campos circundantes. No período colonial, uma certa liberalização do acesso a terra
permitia que os trabalhadores negros complementassem os seus magros salários com a
produção dos que se mantinham no campo e estes assegurassem a aquisição de bens
essenciais ao investimento na agricultura tradicional como por exemplo sementes, e
utensílios agrícolas simples. Esta relação perdura em forma de comércio informal de
produtos agrícolas de custo relativamente mais baixos do que os da agricultura comercial na
sua maioria importados.

As atenções de alguns pesquisadores centram-se na articulação existente no território e os


arranjos institucionais os agentes dos fluxos de bens e serviços pelo espaço. São estes fluxos
operados por agentes com capacidade diferenciada de influenciar os processos que
originam diferentes configurações da organização do espaço representadas nos mapas
geográficos. A internet e os actores em rede constituem um dos temas da geografia
contemporânea (Haesbaert, 2014).

Um Caminho para a Geografia em Moçambique: O Paradigma da Inclusão e da Diversidade

A diversidade e inclusão são a resposta afirmativa com dimensão cognitiva, moral e política.

Porque por uma lado contribui para a revelação de uma das caracteristicas fundamentais do
espaço geografico. Os objectos e os processos tanto naturais como sociais que o compoem

120
são caracterizados por uma constante diversificação (Santos, 1999). A sua apreensão exige o
reconhecimento da presença de comunidades epistémicas que produzem saberes
intersubjectivamente (Castiano, 2013).

A Geografia moderna quantitativa, por exempo, apesar de reconhecer a importancia do


Homem na transformação da natureza primeira natureza em natureza segunda , a paisagem
culturalmente construída, assumiu sempre a ideia da harmonia herdada dos romanticos
germanicos e do dominio das leis da natureza uniformizando ao nivel global as paisagens
tanto agrarias assim como urbanas.

A negação da presença de outras formas alternativas de conceber o espaço e outras


harmonias que não sejam do paralelismo e da perpendicularidade tem produzido processos
de exclusão, a partir da incapacidade de não produção de ferramentas para a interpretação
tanto física como económico-cultural da paisagem moçambicana.

Se os espaços são os campos, as aldeias, os bairros e as ruas eles caracterizam-se por um


certo polimorfismo que consiste num mosaico de paisagens que se repetem conservando
alguns traços comuns mas que sempre em cada situação reflectem vicissitudes historico-
ambientais particulares de sua constituição.

Uma das causas das assimetrias resultam da presença potenciais diferentes de resposta a
impulsos externos. Dai que algumas regiões são tidas como reunindo vantagens
comparativas para determinados tipos de investimento em relação as outras.

Trajectorias históricas dispares e multiplas conferem diferentes plasticidades ou


capacidades de se entrar como actor activo nos processos de globalização provocando a
marginalização de uns espaços e a inclusão de outros.

Conceitos modernos como a vulnerabilidade aos desastres naturais, por exemplo, referem-
se ao potencial que existe no espaço geográfico de absorver choques externos e recuperar o
seu estado normal depois do choque. Este conceito revela uma dependência muito forte do
comportamento do espaço dos aspectos estudados pelas ciências sociais que caracterizam a
capacidade de uma comunidade interagir eficaz ou deficientemente durante choques e dai
resultando impactos quer moderados quer desastrosa

Em muitas comunidades do nosso país, as pessoas vivem através de estratégias que


envolvem a diversificação das fontes de sobrevivência recorrendo a um portefólio de
actividades, bens duradoiros e redes sociais de solidariedade e troca de retribuições que
lhes permitem a sobrevivência.

O paradigma da Geografia Inclusiva resulta, também, de uma crítica à forma como a


pesquisa e o ensino da Geografia têm sido conduzidos. O ensino e a pesquisa tem sido
pouco problematizadores do conteúdo e da metodologia geográficas porque partem de um

121
princípio de que esta ciência é apenas contemplativa do estado de coisas. De acordo com o
geógrafo francês Yves Lacoste :

“Todo mundo acredita que a geografia não passa de uma disciplina escolar e universitária ,
cuja função seria a de fornecer elementos de uma descrição do mundo, numa concepção
’desinteressada’ de cultura dita geral” (Lacoste, 2013, p. 21).

A emergência da Geografia Inclusiva resulta de um sentimento de insatisfação pelo papel


relativamente passivo da Geografia, como até agora é concebida e ensinada, perante
questões cruciais do desenvolvimento. Perante a pressão do neoliberalismo via, por
exemplo, megaprojectos, os geógrafos têm estado na condição de meros consultores
acomodando os interesses do grande capital, sugerindo formas pouco claras de minimizar
impactos negativos. Por de trás desta atitude está a genuflexão perante as formas
ocidentais do uso da terra reconhecidas como as únicas capazes de representar o progresso
e o bem-estar.

As paisagens tanto agrárias assim como industriais ocidentais caracterizam–se pela


uniformidade por um padrão repetitivo. Uma vez usados como ilustração ocontribuem para
ocultar a diversidade resultante da variabilidade espacial e temporal pelos contrastes e
complementaridades que caracterizam, por exemplo,as paisagens rurais e urbanas do nosso
país.A dicotomia moderno versus tradicional tem sido a estatratégia explanatória predilecta.
Muitas destas dicotomias, apesar de aparentemente explicarem as vantagens e
desvantagens das formas da organização do espaço, não escondem qual das formas é a
mais desejada e que constitui a tendência da humanidade. Resulta este processo na
exclusão dos conhecimentos acerca de formas concretas não rotuladas de organização do
espaço e a sua sobresimplificação através de caracterizações em traços gerais realçando a
falta de modernidade na sua composição (ex. Menezes, 2013). Na África pós-colonial, as
políticas postas em acção em relação ao desenvolvimento rural assentaram numa premissa
errada segundo a qual o camponês é um empresário falido que precisa de financiamentos e
de modernidade. É importante salientar que esta situação conduziu a introdução de
projectos de desenvolvimento chamados integrados tanto de tipo capitalista como de tipo
socialista sempre com mecanização, parcelamentos e regadios. A realidade mostra que os
camponeses são os habitantes do mundo rural que precisam da vida toda não apenas a
racionalidade económica (Ombe, 2014).

A indiferença perante a diversidade das paisagens rurais, por exemplo, resulta de sua
consideração como sendo residuais de uma economia em extinção o exemplo do que se
pretende combater ou erradicar.

Santos (1999), por exemplo, considera que a paisagem é caracterizada por uma sintese mas
muitas vezes justaposição de tempos diferentes. O conceito de tempo relaciona-se com a

122
técnica, assim, a fibra óptica numa machamba de mandioca ´constitui um exemplo. Deste
modo, existe o tempo global da fibra óptica e o tempo local da enxada. Santos (1999),
também distingue espaços expectadores e expaços actores sendo os últimos caracterizados
pelo tempo global hegemónico.

O conceito de elefante branco é um exemplo do espaço actor rodeado por espaços


expecatores resultante da globalizaçao perversa. A geografia estabelecida nas escolas
moçambicanas continua a privilegiar a carateirização dos espaços actores (Santos, 1999).

A recente descoberta de recursos minerais e energéticos em Moçambique coloca desafios


renovados à Geografia e às Ciências Sociais. Moçambique é um país geodiverso com uma
elevada diversidade de factores abióticos, geodiversidade portadora de condições e
recursos naturais que, por sua vez, são a fonte de bens e serviços de que dispõem as
comunidades para a satisfação das suas necessidades materiais e espirituais, inclusive
simbólicas (Ombe, 2014).)

A biodiversidade se traduz na variabilidade do mundo vivo com a sua capacidade de


interagir com a geodiversidade para garantir a estabilidade das condições naturais e o
abastecimento de bens e serviços materiais e imateriais e finalmente a sociodiversidade que
e a diversidade da sociedade do homem e dos seus modos de vida - sociodidersidade. Estas
diversidades são a um ritmo acelerado vítimas de uma erosão acelerada e a sua valorização
abre um campo fértil para a interdisciplinaridade entre a Geografia e as Ciências Sociais e
Humanas (Ombe, 2014).

Alguns espaços privilegiados do meio urbano e rural, com potencial para determinados fins,
estão submetidos a processos que forçam a sua submissão a uma racionalidade técnica com
vista a facilitar a implantação de processos produtivos que aceleram a acumulação do
capital mas que afectam negativamente as estratégias de vida das pessoas locais sem
alternativas sustentáveis através de reassentamentos rápidos (Milléo, 2007).

Tabela 2: Os Meta-conceitos Geodiversidade, Biodiversidade e Sociodiversidade, sua


Analogia e Semelhança Estrutural.

Tipo Geodiversidade: Biodiversidade Sociodiversidade


Características Minerais rochas, Genes espécies, Grupo de pessoas,
formas de relevo, populações, comunidades, camadas sociais,
águas, meio abiótico ecossistemas nações raças religiões,
junto à superfície organizações sociais,
terrestre que inclui instituições, património
microclima histórico-cultural

123
Ameaças Ameaçada pela erosão Ameaçada pela erosão Ameaçada pela erosão cultural
acelerada e pela da biodiversidade, provocada pela globalização
terraplanagem extinção das espécies e
conducentes à pela urbanização
uniformização ao nível conducentes à
local uniformização ao nível
local
Impactos Impactos da destruição Impactos da perda da Impacto da perda da
da geodiversidade: biodiversidade: sociodiversidade: Perda de
Assoreamento dos rios Perda da informação conhecimento sobre a
e lagos, diminuição da genética para natureza e sociedade, perda de
biodiversidade, perda cruzamento de plantas valores éticos e visões do
da memória da história produção de alimentos, mundo
global e local e medicamentos
biotecnologias

Formas de Pode ser preservado Pode ser preservada Pode ser preservada em
valorização em forma de em parques nacionais e aldeias culturais museus e
património geológico reservas lugares património da
ou geossítio Exemplo: Parque humanidade como a Ilha de
Exemplo: Grutas de Nacional da Gorongosa Moçambique, Dança Nhau,
Khundue Música Timbila

Fonte: Ombe, 2014, p. 6.

As diversidades são mutuamente constitutivas e a sua importância reside na ênfase da


causação mútua que permite uma cada vez aproximação e compreensão das nuances e o
polimorfismo que caracterizam a manifestação do real. A geodiversidade, biodiversidade e
sociodiversidade em interação são a fonte de bens, serviços e saberes, por reflectirem não
só processos mas também resultados.

Sem uma vigilância epistemológica através de um paradigma de inclusão a Educação


concebida como um caminho para a erradicação da pobreza através do acesso a
modernidade pode inadvertidamente concorrer para a legitimação de processos que
concorrem para uma crescente homogeneidade do espaço como justificação para torna-lo
eficiente e previsível. Tanto os processos de desterritorialização como dereterritorialização
causados pelos megaprojectos, desastres naturais e construção de grandes infrastruturas,
conhecidos pelo termo reassentamento, em Moçambique, em vez de alargar de forma
universal a liberdade de acordo com o sonho do iluminismo vão forçando as pessoas a
adoptarem comportamentos que prejudicam o seu sentido de felicidade que é socialmente
construído (Milléo, 2007; Ngoenha, 2011).

124
Fig. 1: Uma paisagem rural algures no Limpopo localmente tem uma série de interpretações
e usos não cobertos devidamente pela pesquisa e ensino onde várias vezes cenários como
este são descritos a partir da ausência da modernidade. Exemplo de um espaço expectador
da globalização. A sua descrição na geografia da negação e da exclusão caracteriza-se na
enumeração de ausências e não do potencial de presenças. A título de exemplo: “Não” é
navegável, “não” tem regadio, “não” é usado para o turismo, etc. Um espaço sem geografia à
espera da modernidade para lhe dar sentido.

Considerações Finais

Uma abordagem panorâmica da ligação interdisciplinar entre a Geografia, a Filosofia e as


Ciências Sociais permite revitalizar debates sobre a relevância académica epistemológica e
social da investigação na sua pretendida indissociabilidade com o ensino e a extensão.

Uma Geografia mais inclusiva alicerçada no paradigma mais inclusivo baseado numa ênfase
na apreciação da diversidade com o emprego dos meta-conceitos: Geodiversidade,
Biodiversidade e Sociodiversidade beneficiaria da contribuição enriquecedora da tradição
reflexiva da Filosofia e das Ciências Sociais.

125
Os metaconceitos Geodiversidade, Biodiversidade e Sociodiversidade, pela sua semelhança
estrutural possuem um poder persuasivo que importa explorar. Reflectem a interacção
entre o potencial para a solução dos problemas do desenvolvimento incluindo a chamada
de atenção para uma maior atenção da inclusão das capacidades e necessidades
diferenciadas do Homem.

Este movimento de revitalização do ensino e pesquisa que se pretende que seja mais
interdisciplinar envolve aspectos relacionados com esforço para tornar esta ciencia mais
engajada reorientando o foco da atenção dos debates, praticas e posturas, uma forma de
ser e estar na academia.

126
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MENEZES, Maria Paula (2012): Uma perspectiva cosmopolita sobre os estudos africanos: a
lembrança e a marca de Aquino de Bragança. In: Teresa Cruz e Silva, João Paulo Borges
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127
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128
Filosofia, a Fronteira e a Ponte
Por: José P. Castiano

“Sábios constroem Pontes, Ignorantes Fronteiras”?


Tomemos a sério o conselho nigeriano, citado por Emília Nhalivilo no seu artigo contido
neste livro, segundo o qual, nos tempos de crise os sábios constroem pontes, os ingénuos
erguem fronteiras. Filosofia é, antes de tudo e na sua origem e essência, amor pela sabedoria,
uma filia pela sofia. De facto e de acordo com este provérbio, ela, a filosofia, enquanto
sabedoria das sabedorias ou, ainda, enquanto ciência das ciências, deveria estar empenhada
em erguer pontes entre as diferentes ciências, mesmo não se tratando de “tempos de crise”.
Todavia, se continuarmos a levar a sério o mesmo provérbio, há algo de enganoso nele:
os filósofos, que que se dedicaram a reconhecer fronteiras entre as ciências, também são
sábios, não ignorantes. No plano estritamente lógico, não há ponte que se possa construir sem
ter havidos antes, ou mesmo sem haver, fronteira pelo meio. E isto é válido, pelo menos, se
estivermos a falar da construção do conhecimento científico. Provavelmente este provérbio
refere-se ao domínio da ética onde a construção de pontes de entendimento entre os homens é
uma atitude mais sábia que a construção de fronteiras entre partes beligerantes. Mas para o
campo da interacção entre as ciências, tanto as fronteiras, quanto as pontes, têm o seu sentido
e significado. E é tarefa da filosofia velar por ambas.
No geral, a filosofia, se olharmos para ela a partir da história da sua relação com as
restantes ciências, sempre seguiu as duas perspectivas de questionamento: por um lado,
indaga-se sobre as diferenças entre elas — recorde-se a grande divisão discutida por Dilthey
entre as Natur- und Gesellschaftswissenschaften — e, por outro, ela pergunta-se sobre as
semelhanças entre os grupos das ciências procurando deduzir uma espécie de “teoria geral
sobre as ciências”: veja-se, mais recentemente, os exemplos da teoria de sistemas científicos
de Bertalanffy, de Pierre Delattre, a epistemologia genética de Piaget ou ainda a “ecosofia”
rizomática de Guattari. Pois, em alguns momentos do desenvolvimento do conhecimento que
apelidamos como sendo científico, a filosofia deu a sua maior contribuição traçando
fronteiras ou diferenças entre as ciências com a finalidade de buscar clareza no que diz
respeito ao lugar de cada uma delas, na sua particularidade e generalidade; noutros
momentos, porém, para o entendimento de todo o edifício das ciências apesar das
particularidades, a filosofia interrogou-se sobre a totalidade do conhecimento científico,
precisamente para torná-lo compreensível na sua unicidade e raiz comum, apesar da
complexidade entre elas (Cfr. Edgar Morin).
Posto isto, a ideia ou a tese que pretendo seguir neste artigo tem duas componentes,
sendo uma a ideia principal e a outra uma consequência historicizada a partir da primeira. A
primeira, portanto a principal, tese é a seguinte: a filosofia é a ponte e é a fronteira entre as
ciências; ela sempre o foi, desde que as outras ciências se dispersaram a partir dela. Portanto,
não se trata de “construir” nem pontes, nem fronteiras. A própria filosofia nasce e cresce na

129
necessidade de haver uma ponte entre as diferentes ciências, porque os primeiros filósofos, a
partir da mitologia, indagavam-se sobre tudo na sua totalidade. Dessa totalidade deduzida
pelos filósofos nasceram as particularidades dos campos do saber. Sem a filosofia, mais
exactamente sem a epistemologia, ou seja, sem a ponte, as “fronteiras” entre as diversas
disciplinas, já desde a sua origem, não seriam visíveis. É a ponte, isto é, a filosofia, que faz
com que as diferentes ciências, ao mesmo tempo, estejam num processo de diferenciação
permanente (Niklas Luhmann) e, apesar disso, se comuniquem e sejam compreensíveis como
um sistema. Do mesmo modo, a filosofia é a fronteira, todavia não no sentido territorial de
lugar ou marco onde termina um pedaço de terra e começa o outro. O sentido epistemológico
de fronteira que a filosofia cultiva é mais em termos de “zona de contacto” onde há que
colocar um semáforo, por onde todas as ciências param, antes de progredirem. Portanto, e
esta é a ideia principal, perante este quadro de fragmentação das ciências e da consequente
“luta” pela demarcação territorial por parte de cada uma das ciências que consideramos
clássicas (como a matemática, geografia, história, física, etc.), mas sobretudo perante o
surgimento das “ciências de fronteira” (como geofísica, bio-matemática, psicolinguística,
psicossociologia, história económica, etologia, engenharia genética, mecatrónica, etc.), a
filosofia deve investir-se a si mesma para ser como o dedo polegar numa mesma mão, isto é,
o único que toca de frente os restantes dedos, representando estes restantes as diferentes
ciências.
Porém, não se deve confundir esta figura da filosofia como dedo polegar com a clássica
imagem de filosofia, à qual me referi acima, como a raiz ou a mãe das outras ciências — ou
seja da filosofia como sendo o braço que suporta todos os dedos — porque ela, a filosofia, já
não tem hoje a mesma função como na Grécia Antiga, embora mantenha a mesma essência
interrogativa e generalizadora do conhecimento. O sentido da filosofia como raiz perante as
outras disciplinas é outro: no seu sentido epistemológico; ou seja, pelo facto de ela interpelar
às outras ciências colocando as suas questões a partir de um ângulo muito especial e
particular seu: a legitimação e a fundamentação do conhecimento científico enquanto tal
(experiência, prova, observação, coerência interna, método, enfim, a questão da busca e do
critério da verdade total).
Assim, no sentido que coloco, deve olhar-se para a filosofia como sendo apenas uma das
disciplinas entre outras, mas que tem o privilégio de poder olhar face a face com as outras, de
ser a fronteira e a ponte.
Este polegar filosófico de fronteira-ponte já não é, e nem deve ser, o mesmo como o foi
desde Grécia Antiga até à modernidade. Pois, no contexto do mundo actual, e esta é a
segunda componente da tese a defender, a Filosofia deve tornar-se num polegar humanizador
perante os voos perigosos que as outras ciências, sejam naturais, sejam sociais e humanas,
fizeram nos últimos tempos. Este polegar humanizador para as ciências se impõe
especialmente devido os vôos desumanos que as ciências vêem dando, particularmente desde
as catástrofes humanas provocadas pelo colonialismo e pelas duas guerras mundiais no
campo da história. Estas foram “facilitadas” — e em certa medida até aceleradas — pelos
avanços no conhecimento científico (Ex: invenção da bomba atómica). Já no campo das
ciências sociais, e políticas em particular, por sua vez, o dedo humanizador da filosofia se

130
impõe devido ao pragmatismo, que é uma atitude oficial e geral adoptada pelas políticas
neoliberais; isto é, a ciência e a técnica “compram-se” tal como um outro produto qualquer:
eis a “lei” segundo a política nao-liberal60.
Esta é uma atitude política neoliberal sobre as ciências que no campo da filosofia, desta
feita por Lyotard (1985), foi conceitualiza pela fórmula de critério da performância das
ciências, na obra Condição Pós-Moderna.
Este “novo” papel — o de humanizador — que a filosofia deve tomar perante as outras
ciências neste século foi aliás particularmente defendido pelo VII Congresso da Associação
Internacional dos Professores de Filosofia, realizado em Paris entre 22 e 24 de Abril de
1977, pelo grupo de trabalho sobre filosofia e interdisciplinaridade no relatório intitulado
Filosofia e Epistemologia elaborado pela de filósofos “dupla Jaques”: Jacques Bouveresse e
Jacques Derrida, publicado mais tarde, em 1988. Ambos defendiam que a filosofia deveria ter
um papel central na promoção da interdisciplinaridade nas escolas e, desta forma, a educação
seria o campo privilegiado para a filosofia exercer o papel humanizador perante as outras
disciplinas escolares. E, de consequência, perante a pesquisa e o ensino nas outras ciências.
Como a filosofia (epistemologia) fez, faz e poderá fazer este papel de ponte-fronteira, ou,
se quisermos, de uma ponte-semáforo humanizadora? A resposta pode ser procurada e dada
examinado o empenho da filosofia numa perspectiva sistémica da evolução das ciências no
geral que passa de uma situação de multidisciplinaridade, da interdisciplinaridade para a
transdisciplinaridade. Na condição da multidisciplinaridade e da interdisciplinaridade a
filosofia coloca-se na posição de arbitragem das diferenças, portanto de fronteira-semáforo,
de “tribunal da razão” como diria Kant. Já na condição de transdisciplinaridade entre as
ciências, a filosofia coloca-se mais na posição de ponte, ou seja, busca fundamentar uma
teoria geral das ciências, mostrando-as como um corpus, sem no entanto resignar-se
totalmente do seu papel de demarcador de fronteiras.

Filosofia, a Fronteira-Semáforo
Como afirmei acima sobre a primeira parte da tese, o lugar e o sentido da filosofia, de ser
a fronteira-semáforo perante as outras ciências como a física, a matemática, a geografia entre
outras, é o mais antigo e, por conseguinte, “clássico”. Em que medida a filosofia se constituiu
a si própria como fronteira-semáforo perante as diversas ciências cada uma e no seu
conjunto? Isto equivale a perguntar-se, num primeiro momento, sobre o lugar e estatuto da
filosofia perante a multidisciplinaridade, num primeiro momento, e perante o movimento em
direcção à interdisciplinaridade, num segundo. Chamo “movimento” porque, desde que a
UNESCO, nos anos 80 do século XX, decretou a necessidade do que chamou por “ensino
integrado das ciências” para abarcar a complexidade do real (veja-se O Paradigma da
Complexidade e Os Sete Saberes para a Educação no Século XX de Edgar Morin), foram
60
Não é por acaso que Joaquim Chissano, quando foi eleito pela segunda vez como Presidente de
Moçambique, declarou, em entrevista da TVM, que o seu governo seria constituído por “políticos”
porque, dizia ele, “técnicos podem ser contratados”, enquanto que os políticos não. Cito de
memória.

131
introduzidas as chamadas “disciplinas transversais”61 nas escolas moçambicanas, sobretudo
nas do ensino secundário, obedecendo a uma estratégia de multidisciplinaridade de
integração, embora o espírito e a letra por trás, oficialmente declarados pelo INDE, deveria
ter sido na linha de interdisciplinaridade.
O que é, então, a multidisciplinaridade? E como se posiciona a filosofia perante ela,
enquanto fronteira-semáforo? Convém antes chamar a nossa atenção, aproveitando o estudo
de Pombo 2004), que existem práticas científicas e de ensino, muitas vezes implementadas
sob a capa de uma filosofia de interdisciplinaridade, mas que em teoria e prática são apenas
multidisciplinares. Pois, estamos perante um campo de multidisciplinaridade quando há
qualquer tipo de “associação mínima” entre as diversas ciências ou disciplinas, mas que que
esta associação entre elas não resulte numa alteração de cada uma dela em termos de objecto
e nem método de investigação ou estudo. Cada uma delas permanece, nesta associação,
intacta; contribui, no entanto, no conhecimento do real ou na resolução de problemas
humanos (de saúde ou de alimentação, por exemplo) baseando-se no cultivo da sua
perspectiva científica e seguindo próprios métodos de chegar ao conhecimento ou solução
requerida.
Assim, na prática e em teoria, e ainda recorrendo-me a Pombo, as características da
multidisciplinaridade são: ser uma simples colaboração entre as ciências para a busca de
informações ou dados relativamente a um objecto ou problema comum; um encontro de
análise conjunta e pontual sobre o mesmo objecto ou para a resolução de um problema
concreto; ou ainda, como é o caso da prática nos chamados “temas transversais”, uma
colecção de várias ciências numa só disciplina de ensino, sem no entanto haver uma diluição
de fronteiras entre as ciências convocadas na colaboração. Os casos de denominados estudos
etno-culturais ligados ao feminismo, ao racismo, ao etnocentrismo, e outras identidades; o
caso de estudos ambientais62; o caso de ciências de educação63 e outros fornecem um bom
61
Relativamente ao meio ambiente, gênero, empreendedorismo, ética e deontologia, etc. Na mesma
“reforma” foram introduzidas, no ensino secundário, disciplinas associadas ou integradas, como
por exemplo, a das Ciências Sociais que abarca matérias de história, geografia, sociologia, etc.
Claro que, por trás desta “reforma”, estava o critério neoliberal de redução de custos do Aparelho
do Estado reduzindo também o número de professores. Os critérios didático-epistemológicos para
esta medida no ensino foram pobremente fundamentados e vagamente auridos a partir de contexto
interno e história nacional da educação.
62
Os debates no Conselho Académico da UP em torno dos cursos de licenciatura, mas sobretudo dos
mestrados em Ciências Ambientais mostram o quão dramática pode ser também a
multidisciplinariedade como campo de poder. O referido curso foi apresentado em diferentes
versões e momentos tanto pela então Faculdade de Ciências Sociais (geografia) como pela
Faculdade de Ciências Naturais e Matemáticas (Química). Em todos os debates sentia-se que cada
uma das “frentes” científicas tinha algo mais a dizer sobre o ambiente do que o texto curricular:
havia sempre propostas de novas disciplinas de um lado para o outro, sob a perspectiva de
“colaboração”. Resultado final: acabava-se desfigurando cada proposta ao ponto de se recomendar
para “ voltar ao conselho académico após consultas e acréscimos”, o mesmo que dizer
“chumbado”. Felizmente o curso acabou sendo aprovado, todavia com uma solução genial: a
criação de uma Faculdade de Ciências da Terra que hospedou o mestrado.
63
Para o caso das ciências da educação, o debate que cresceu em torno do curso do doutoramento
em desenvolvimento curricular na UP mostrou uma luta pelo estabelecimento de uma “nova”

132
habitat para o florescimento das chamadas abordagens interdisciplinares, mas que na prática,
esta “colaboração” ainda funciona numa perspectiva multidisciplinar.
Sob o ponto de vista da sociologia e da antropologia das ciências pôde ser observável
que os que se consideram “cientistas puros” afastam-se deliberadamente destes ambientes por
eles considerados “infestados”. Não poucas vezes, estes cientistas e académicos mais
tradicionalistas no que respeita à sua concepção sobre “o que deve ser ciência”, vêm nas
práticas multidisciplinares uma tentativa de fuga ao rigor científico que permanência?? no
interior de cada disciplina haveria de exigir e também como uma espécie de fuga de alguns
cientistas por eles considerados como “mais fracos” ao controle (por exemplo atravez do peer
review) da sua comunidade científica de origem . Ngoenha, no seu artigo introdutório neste
livro, menciona o caso de Alan Sokal, professor de física na universidade de Nova Iorque;
este publicou um artigo sob o título Transgredir as Fronteiras, um texto que continha “uma
miscelânea fabricada com base em citações de filósofos contemporâneos e continha um
número importante de absurdidades científicas e de afirmações gratuitas”. O mais importante,
porém, é que Sokal mostra-se “inquieto e irritado pelo declínio, em certos meios da esquerda
académica americana, do nível de exigência intelectual” provocada por uma deliberada
“fusão entre uma perspectiva científica e uma interpretação literária, tendência muito em
voga entre os estudantes de ciências humanas, os especialistas de culturas minoritárias e
feministas”.
Não são poucos os colegas nossos que, pegando em manuais dos “temas transversais”,
encontram sempre uma série de, a seu ver, “barbaridades científicas” redigidas por
aventureiros para as outras áreas. Por exemplo, quem deve escrever um manual sobre o meio
ambiente? Um físico, um biólogo, um químico, um geógrafo, ou, para não tornar a lista
interminável, um sociólogo? Qualquer “decisão” que se tomar, se um deles, parte deles, ou
ainda todos eles, não vão faltar os que vêm absurdidades científicas em todo este
empreendimento multidisciplinar.
Todavia, a mesma questão podemos colocar em relação ao manual sobre o
empreendedorismo: quem deve compô-lo? Um gestor porque é preciso “gerir bem” o
negócio? Um psicólogo dado que ser empreendedor é eminentemente uma atitude e não uma
profissão? Um economista que certamente aconselhará sobre as fases e os passos a dar? Ou
um técnico em finanças por causa da contabilidade envolvida?
Da mesma forma esta pergunta se coloca quando o caso é o manual do currículo local; a
este propósito, numa dissertação de mestrado que recentemente acompanhei, a autora chega à
conclusão que professores de várias disciplinas continuam a “trabalhar isoladamente” no
tratamento dos temas e dos problemas locais64, apesar da filosofia de colaboração que subjaz
ao conceito e à estratégia de implementação do currículo local; portanto, conclui-se na
ciência no contexto universitário, pela “profissionalização” dos seus cientistas com o propósito
último de criar uma “identidade” própria: a classe dos chamados curriculistas (Comp. o texto
curricular do programa de doutoramento em educação/currículo da UP). A multidisciplinaridade,
neste caso, deve notar-se pela natureza dos estudantes: uns de geografia, outros de português,
ainda alguns das matemáticas, não esquecendo alguns funcionários do ministério da educação
(gestão escolar). O que unia a todos, porém, e esta é a justificação epistemológica, são as
“didácticas de...”, ou, neste caso, o currículo.

133
dissertação, as várias ciências continuam sem colaborarem para a compreensão do real
imediato ao aluno, não obstante ser esse o espírito dos 20% reservados para a abordagem dos
conteúdos locais, segundo o INDE define o currículo local.
De qualquer das formas, a multidisciplinaridade que se pratica nos exemplos que demos
acima, sob a capa da interdisciplinaridade, não deve ser um encontro de pessoas “que sabem
tudo acerca de cada vez menos” — como escreve Ortega & Gasset (Cfr. Pombo 2004)
referindo-se aos encontros entre “especialistas” pós-modernos que quanto mais se
multiplicam, tanto menos sabem em relação à ciência ou disciplina que devem ensinar e, pior,
pouca curiosidade mostram em saltar as fronteiras da sua especialização para se actualizarem
em relação ao saber que necessitam nesta colaboração.
O ponto é o seguinte: A filosofia, no meio desta prática científica e pedagógica
multidisciplinar mas que ocorre sob a cada??capa? de interdisciplinaridade, só faz sentido em
ser a fronteira que acompanha, estimula e até mesmo deve legitimar os campos do saber em
colaboração, todavia vigiando, neste empenho seu, no sentido de a multidisciplinaridade não
transcorra o risco da decadência do rigor científico entre os “transgressores de fronteiras”.
Por outras palavras, a filosofia pode ser, neste contexto, uma espécie de vigilante de
fronteiras, por formas que as transgressões e cruzamentos fronteiriços não resultem na perca
da tradição milenar no rigor que a cientificidade nos legou; mas sim que estas transgressões
de fronteiras se transformem num trabalho fronteiriço de interdisciplinaridade, de facto. Em
poucas palavras, no meio de tantos multis, a filosofia faz a vigilância epistemológica nas
pontes.
Espero que esteja claro, com o que disse acima, que a filosofia, na sua tarefa de vigilante
da fronteira-semáforo, deve ajudar a transformar as zonas de contacto multidisciplinar — que
ainda continuam cinzentas sob o ponto de vista científico — de campos de saber que são até
agora, em campos de conhecimento. Em outras palavras, a filosofia deve dar-se a si mesma a
tarefa de, seguindo o provérbio nigeriano, a construir pontes entre os diferentes saberes, sem,
no entanto, significar diluir as fronteiras (desta feita não seguimos o provérbio, sob o risco de
sermos ignorantes/ingenuos!).
Antes de prosseguirmos, porém, é necessário chamar atenção para a diferença entre saber
e conhecimento. E aqui me vou recorrer ao trabalho recente da Carla Maciel, docente de
linguística aplicada na Universidade Pedagógica65. Pois, segundo ela e baseando-se numa
vasta consulta bibliográfica, “conhecer” tem a ver com uma situação contextual e inicial, mas
que pode evoluir para um estado superior (por isso existe o verbo “reconhecer”, voltar a
conhecer) e pode ocorrer em situações passivas (“eu fui conhecido”) em que o sujeito é o
objecto; ou seja, o conhecimento “…constitui-se a partir de um objecto, o que implica a
actualização de uma relação sujeito-objecto”. Em contrapartida, “saber” aparece sempre
numa posição activa do sujeito (“eu sei onde fica a livraria”, “eu sei que você é uma boa

64
Cfr. Pinto Novo, S. (2013): Interdisciplinaridade e Currículo Local: Concepções e Práticas dos
Formadores e Professores do Ensino Básico. (Dissertação de Mestrado). UP, Maputo/Quelimane.
65
Cfr. Maciel, C. (2013): A Linguística Descritiva na Aula de Português. Colecção Ciência, Texto
Editora. Maputo. Para a discussão entre “saber” e “conhecer” consultar o capítulo II (Os lexemas
verbais conhecer e saber na produção escrita do Português em Moçambique) pp.27-39.

134
pessoa”) e nunca na passividade. Assim, o saber “introduz a problemática da verdade”, isto é,
da relação entre o sabido e a realidade, entre o sujeito e o objecto (seria ilógico dizer “eu sei a
Joana, senão que “eu conheço a Joana” porque a Joana aparece, no segundo caso, como
objecto do meu conhecimento).
Este salto necessário, do campo do saber (baseado na subjectividade do que é conhecido)
ao do conhecimento (baseado no processo do conhecimento), corresponde à mudança
necessária da presente prática multidisciplinar — que se consubstancia, nas condições actuais
e como vimos acima com alguns exemplos, nas chamadas disciplinas transversais embora sob
a capa da interdisciplinaridade — para uma abordagem propriamente interdisciplinar. De
facto, neste contexto, a filosofia é chamada a construir uma espécie de teoria geral sobre as
ciências, uma espécie de teoria-supervisão de tudo o que acontece nos campos
interdisciplinares, uma espécie de ponte com fronteiras. Trata-se, enfim, de construir uma
teoria da interdisciplinaridade que, como diz Bertalanffy (1968), não seja resultado de um
processo de votação nesta ou naquela disciplina para fazerem parte dos temas transversais.
E há exemplos de que esta tarefa da filosofia está em curso (o que não quer dizer
necessariamente que esteja a ser feita por filósofos de formação): a teoria geral dos sistemas
científicos desenvolvidas, separadamente, por Bertalanffy, Boulding e Pierre Delattre cuja
ideia básica de todos reside no facto de defenderem que todas as ciências estão organizadas
num sistema bem definido. No caso de Bertalanffy este procura desenvolver uma nova
disciplina que integre tanto o lado social como o lado natural da investigação científica. Já no
caso de Kenneth Boulding este procura encontrar o que é de comum entre as várias ciências,
fundamentando-o, em termos de: instrumentos conceptuais utilizáveis por todas as
disciplinas, domínios de aplicação conjunta ou a transferibilidade dos métodos e dos modelos
de análise e a identificação, em cada uma das ciências, de princípios comuns que possam ser
geralmente, ao longo de todo o espectro científico, aplicáveis. Entretanto, Pierre Delattre vai
mais longe ao insistir na ideia de que esta nova teoria das ciências deveria ser capaz de trazer
novas descobertas, i.e. encontrar novos problemas sobre os quais as diferentes disciplinas
seriam convocadas a contribuir para a sua solução. Só que esta contribuição não deve ser por
adição de cada disciplina, mas sim a partir do que considera ser uma nova capacidade
sintética e metalinguística do novo sistema. Como Pombo (p.46) diz, citando Delattre, “foi
exactamente a partir deste conceito fundamental — sistema — que se desenvolveram a maior
parte das tentativas interdisciplinares”.
Neste leque de “filósofos” da interdisciplinaridade pode colocar-se também a
epistemologia genética de Piaget. Segundo este, o fundamento da interdisciplinaridade está
implícito na própria unicidade e complexidade do objecto da ciência na medida em que,
justifica ele, o seu progresso ocorre graças ao aprofundamento do respectivo objecto. O
resultado deste processo de aprofundamento que ocorre em cada uma das ciências
particulares terá que ser, necessariamente, uma diluição contínua das fronteiras e barreiras no
interior de cada disciplina científica. É como que, perece Piaget a querer dizer, quanto mais
fundo formos no interior de um objecto de estudo, mais notamos a necessidade de
colaboração que as outras áreas precisam de dar para conhecer o objecto, mais predispostos

135
nos tornamos, enquanto especialistas, em aceitar a mão estendida do outro campo científico,
enfim, em aceitar a ponte.
Por fim, podemos alinhar no grupo dos construtores de fronteira-semáforo a ecosofia
desenvolvida por Félix Guattari. No seu texto As Três Ecologias66, mas também e sobretudo
no texto conjunto com Gilles Deleuze, Rizoma, defende que o discurso sobre ecologia deve
deixar de se referir limitadamente à Natureza ou à questões in strictus sensus ambientais para
abarcar também as socais e mesmo as mentais. De facto, toda a ciência, seja exacta, seja
natural, tudo o que pode (e mesmo até, deve) fazer é formular conjecturas sobre futuras
possibilidades, e não formular certezas. A ciência deve gravitar em torno de busca
possibilidades, cenários, focos de incertezas futuras. Esta, a busca de incertezas e trabalhar
num mundo delas, constitui o seu programa ecosófico. No fundo é isso mesmo o que
chamamos por interdisciplinaridade: incertezas programáticas na investigação científica que
surgem em forma de novos objectos de estudo, o que equivale a dizer novos problemas
globais. Neste processo de busca de incertezas — dado que a ciência funciona com um
objecto rizomático — através de práticas interdisciplinares, segundo Guattari, os cientistas
descobrem a necessidade de estabelecer alianças e negociações do seu objecto. Assim, a
interdisciplinaridade resvala rapidamente para o campo político dado que é preciso descobrir
novas linguagens ou disputar os recursos técnicos necessários (tecnologias) para resolver os
novos problemas encontrados. Já no texto Rizoma67 Deleuze e Guattari desafiam o
estruturalismo, incluindo o marxista, e todas as teorias que preconizam a existência de
“sistemas” ou atingir uma espécie de sistematização geral das ciências. Para eles, o dito
sistema das ciências é “aberto” porque conceitos, no geral, são relacionados com as
circunstâncias e não com essências, pior se estes forem vistos como pré-existentes em relação
à realidade. Os conceitos inventam-se, criam-se, afirmam os dois já no seu livro conjunto
Introdução à Filosofia68. E é trabalho específico da filosofia, continuam, inventar conceitos,
que são as ferramentas para o trabalho na ecosofia.
É necessário acrescentar que a interdisciplinaridade implica, sobretudo hoje e em
algumas áreas mais do que outras, a partilha de tecnologias, por causa dos dados envolvidos
no cruzamento. Por isso, alguns filósofos, que na maior parte dos casos têm uma aversão
fundamental para com as novas tecnologias, devem tornar-se também competentes nesta área,
sob pena de não partilharem informações necessárias para o seu papel de fronteira-ponte ou
ponte-fronteira. Pois, as tecnologias permitem um cruzamento e transferência de dados que
qualquer disciplina, mais especificamente a filosofia, precisa hoje para se desenvolver como
um saber actualizado, mas também para melhor intervir na resolução dos problemas da
humanidade.
O colega da Universidade Pedagógica, Carlos Lauchande de estatística contava-me, um
dia, que as investigações da SACMEC nas quais estava envolvido revelavam coincidência de
dados: nas regiões de Moçambique onde a pobreza é maior também o rendimento escolar das
crianças era, em média, extremamente fraco. Só que este conhecimento (não se trata já de um

66
Guattari, F. (1990): As Três Ecologias. Campinas, Papirus. São Paulo, Brasil.
67
Deleuze, G. & Guattari, F. (2006): Rizoma. ????????
68
Deleuze, G. & Guattari, F. (???????): ????????

136
simples saber) pressupôs uma colaboração de um sociólogo que aferiu os “graus de
incidência” da pobreza nestas regiões e, mais do que isso, pressupõe-se que o trabalho deste
sociólogo tenha sido bem feito, uma condição para que as conclusões do Lauchande sejam
plausíveis. Imaginemos, agora que temos estes dados, o papel que teria um filósofo quando
chamado a contribuir ajudar, com o seu saber (todavia sem o conhecimento necessário das
outras ciências), na resolução do problema do fraco aproveitamento ou da pobreza em geral...
Portanto, quando se trata de chamar a filosofia para ajudar no seu papel de fronteira-ponte ou
vice-versa, não é para arbitrar uma simples justaposição de “disciplinas que podem contribuir
para...”. Trata-se, de facto, de reflectir sobre as condições e as possibilidades sob as quais a
investigação e a construção de discursos em redor destes novos campos de acção, com que
todas as ciências hoje se vêm confrontadas em agir (meio ambiente, etnocentrismo, racismo,
fome, analfabetismo funcional, neoliberalismo, etc.) se podem legitimar, como científicas.
Mas a questão ainda permanece: será que a filosofia deve parar por aí neste seu papel de
vigilância epistemológica? Deve contentar-se em ser a obreira ou árbitra da fronteira-ponte da
cientificidade? Ou ainda em criar uma espécie de teoria para todos os casos em que tudo
encaixe certinho lá dentro? Ao proceder assim, a filosofia estaria, de facto, a limitar-se ao
papel de fronteira, a tal que, segundo o provérbio, é construída pelos ignorantes/ingénuos. A
filosofia estaria a ser uma especialista-ignorante, uma espécie de alguém que sabe muito
sobre a sua área de investigação, mas nada sobre outras. Enfim, estaria desvestida da sua
essência original: a sabedoria. Se seguirmos o provérbio que vimos citando, não estaríamos
empenhados na construção de pontes ... em tempos de crise do humanismo. E sabedoria,
neste caso, significa cultivar as possibilidades e condições da unicidade da ciência (em
linguagem comum: a busca de uma teoria de colaboração entre as ciências) com um projecto
humanista mais amplo. É neste nesta união onde está a sabedoria, esta que permite à filosofia
construir, aliás ser a ponte.

Filosofia, a ponte
Como procura a filosofia estabelecer e permanecer a ponte entre um especialista cientista e o
projecto humanista (devo esclarecer, neste ponto que, para os mais atentos, já não se trata
simplesmente, quando falamos de ponte, da relação entre as ciências, da interdisciplinaridade;
trata-se da ponte necessária entre os projectos do conhecimento do mundo que nos rodeia na
sua relação com o homem)? Pelo facto de a filosofia interpelar às outras ciências com a
questão: o que faz com que um determinado tipo conhecimento seja aceite pela comunidade
académica, de cada época e lugar, como sendo científico? A resposta a esta pergunta não está
no domínio de cada ciência em particular, mas sim no domínio da ponte, isto é, da filosofia.
Por exemplo, à questão o que é a matemática ou a geografia ou ainda a física, as respostas
não seriam destes domínios. Para responder, no caso da matemática, não nos poríamos a fazer
contas ou a calcular para defini-la; também, no caso da geografia não haveríamos de
organizar uma excursão para apreciar uma certa paisagem rural ou urbana; da mesma forma,
para o caso da física, a resposta não seria procurada numa experiência qualquer, por exemplo,
com os raios ou o átomo.

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Neste caso, enfim, o proprium da filosofia é interrogar-se sobre as condições e as
possibilidades de um determinado conhecimento ser cunhado por científico. Esta não é uma
resposta que possamos encontrar do interior de cada ciência em particular. O empenho para
encontrá-la é filosófico, mesmo que, cada vez mais, hajam respostas que venham do interior
dos próprios matemáticos, geógrafos, físicos ou psicólogos, entre outros. Dizer que a
matemática, a física, a geografia “é uma ciência natural, social, ou humana que se dedica a...”
não é necessariamente uma resposta do interior destas ciências. A resposta resulta de uma
reflexão epistemológica dado ser uma pergunta sobre o estatuto e o lugar de uma determinada
ciência no concerto de outras ciências. Assim, a filosofia procura respostas para todas as
ciências justificarem-se ou legitimarem-se com tal. Por isso que Kant falava da filosofia
como sendo um “tribunal” da razão científica.
Entretanto, por trás desta pergunta básica — o que faz com que este conhecimento seja
científico? — está uma outra mais fundamental: para que serve este conhecimento? Em que
medida ele vem fazer diferença na resolução dos problemas com que a humanidade (pode ser
também Moçambique, etc.) hoje se vê confrontada?
A grande crítica à ciência, na nossa época, foi talvez conseguida pela ruptura epistémica
feita por Lyotard na Condição Pós-Moderna (1985) ao afirmar a centralidade do poder na
condição pós-moderna: hoje “não se pagam sábios, técnicos e aparelhos para saber a verdade,
mas para aumentar o poder”. Por trás desta afirmação está toda uma crítica a todo o
movimento da interdisciplinaridade que corresponde, se levarmos Lyotard até às últimas
consequências, à época da deslegitimação do conhecimento científico devido ao empirismo
exagerado com que a prática científica se vê confrontada a obedecer. As políticas neoliberais
vivem na base de “dados”. Segundo Lyotard, a relação com o conhecimento científico na
condição pós-moderna deixa de estar ligada à realização da felicidade e da vida ou do espírito
humano, enfim da emancipação. Pelo contrário, a relação com o conhecimento é pragmática,
(na qual não se reconhece a que utopia social (metanarrativa, macronarrativa) este
conhecimento está associado. A força do seu crescimento provém do poder ou o domínio
sobre as forças naturais.
Então, voltemos à pergunta-de-base, qual é o papel da filosofia neste quadro da
multiplicidade de conhecimentos, o que equivale a dizer de multidisciplinas e
interdisciplinas?
Eu ouso a dizer que a filosofia terá, num breve futuro, que ajudar a transcender ou
superar o contexto das disciplinas em que operam as ciências. O rompimento das fronteiras é
quase que impossível no contexto actual da construção de escolas baseadas em disciplinas,
algumas das quais já nada mais têm a dizer na resolução de problemas mais simples duma
comunidade, sociedade ou do mundo inteiro. Esta utopia ainda está no campo do pensável,
todavia possível, pois, não se tratará apenas de construir pontes em vez ou no lugar das
fronteiras; tratar-se-á, pois, em cima das práticas actuais, em encontrar novos fundamentos
comuns, nova linguagem comum e sobretudo novas formas de compreensão do real que
seriam não necessariamente iguais ao trajecto científico feito pelo Ocidente e pelo Oriente.

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O Caso da África
Se seguirmos o prognóstico de Paulin Hountondji, o futuro da filosofia africana não deve
rumar em direcção à etnofilosofia, senão para uma teoria das ciências. A etnofilosofia a la
Tempels, segundo Hountondji, teria pervertido o desenvolvimento, melhor o “nascimento”,
de uma filosofia em África, ao confundir-se com a antropologia: “uma antropologia com
pretensão filosófica”69. A questão é, agora e para salvar a filosofia africana do perigo de ser
confundida por feitiçarias ou curandeirismos, esclarecer em que condições o conhecimento
produzido no contexto africano pode ser considerado científico, uma vez depurado de toda a
carga supersticiosa e mítica.
Sem querer fazer uma espécie de história do discurso sobre as ciências em África, a
questão fica, porém, a seguinte: como realizar esta “revolução epistemológica” proposta por
Hountondji? E na verdade, uma que não somente rompa com o caminho do tradicionalismo
iniciado por Tempels e outros a quem Hountondji cunhou por etnofilósofos, mas uma
revolução que rompa também com adulação do Ocidente? Uma revolução que não olhe nem
para o Ocidente, e nem para o Oriente, nem para a modernidade, nem para a tradição, mas
uma que olhe somente para a frente (futuro)?
Para isso ouso em concluir que há uma fronteira-ponte muito especial e específica a ser
construída pelos sábios cientistas africanos, a saber a fronteira-ponte entre si mesmos, entre
as práticas e teorias com as culturas locais. O sentido de fronteira aqui é o de reconhecimento
de que, com as diversas ciências, herdadas no colonialismo político e mental no nosso caso,
podemos conhecer e reproduzir apenas uma parte da realidade. A outra parte deve ser
produzida a partir da construção de zonas de contacto e fóruns de debate promovidos
deliberadamente com os outros colegas cientistas do interior das culturas. Esta ponte com eles
ainda precisa de muitos alicerces. A nossa prática académica até hoje teima, quando fala de
interdisciplinaridade, em olhar para as disciplinas do ocidente, como se localmente não
tivéssemos formas próprias de conhecer o real. De facto, esta seria a melhor e a mais bela
ponte que tanto os sábios, quanto os chamados “ignorantes”, devem, porém conjuntamente,
construir.

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Hountondji, P. (1983): African Philosophy: Myth or Reality. Indiana University Press.
Bloomington and Indianapolis.

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