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Castiano
(Coord.)
Filosofia,
Fronteiras ou Pontes?
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Filosofia, Fronteiras ou Pontes?
Severno E. Ngoenha & José P. Castiano (Coordenação)
Filosofia e Comunicação
Por: João Miguel
Sobre a Ligação entre a Geografia, Ciências Sociais e a Filosofia
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Pontes Inter-disciplinares da Filosofia
A primeira ideia era intitular a colectânea destes artigos sobre a relação da filosofia com os
diferentes saberes disciplinares; ou se quisermos o uso que a filosofia faz dos diferentes
saberes e reciprocamente, de fronteiras da filosofia. Mas a colega e amiga Emília Afonso,
sentenciando através de um provérbio nigeriano, que os sábios falam de pontes e os ingénuos
de fronteiras, levou a nos interrogarmo-nos: fronteiras ou pontes?
O escritor caribeano Edouard Glissan1 diz que não há fronteiras que não ultrapassamos. De
facto, com o turismo e sobretudo com os interesses económicos, representados pelas
multinacionais, pelas transacções bancárias e sobretudo pelos cartões de crédito (Visa,
Amarican Express) que não conhecem fronteiras, faz-se ponte entre as fronteiras mais
consolidadas. Mas do Sul, a metáfora do navio historicamente negreiro e esclavagista,
metamorfoseou-se em meio da busca de sobrevivência. Com o drama e o perigo dele ser
como outrora ponte da morte (será que podemos voltar da morte como sugere a escritora
Chiziane?) ou, no melhor dos casos, de uma escravatura. Pode-se dizer “voluntária”
parafraseando La Boétie?
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brandos, mais maleáveis, mais frequentáveis, quais mini-fronteiras ou mini-pontes. O
exemplo mais eloquente é o rio Rovuma que de fronteira passa a ser a ponte que liga
Moçambique e a Tanzânia.
(SEVERINO: acho que esta parte acima, sobre o Direito, ficou um pouco fora do
desenvolvimento da textatura, ou então reescreve-a)
Alain Sokal diz-se inquieto e irritado pelo declínio, em certos meios da esquerda académica
americana, do nível de exigência intelectual. O principal acusado é a corrente da Cultural
Studies, um ramo pós-moderno da universidade, que pratica deliberadamente a fusão entre
uma perspectiva científica e uma interpretação literária; tendência muito em voga entre os
estudantes de ciências humanas, os especialistas de culturas minoritárias e feministas.
Segundo Sokal, os Cultural Studies exprimem uma visão relativista do saber científico.
As teses de Sokal terão um eco enorme, mesmo fora do âmbito académico, discute-se durante
meses sobre o relativismo e sobre a pertinência das ciências.
No ano seguinte, 1997, Sokal, associado a Jean Bricmont, professor de física na Universidade
de Louvain, publica, desta vez desde Paris na prestigiada editora Odile Jacob, um livro com
Nicolas Journet (2013): Pensées rebelles Foucoult, Derrida e Deleuze, L’affaire Sokal: porquoi la
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um título inequivocável: Imposturas Intelectuais. Ele ridiculariza a “topologia alusiva” de
Jacques Lacan, as “matemáticas aproximativas” de Julia Kristeva, a “física inconsistente” de
Luce Irigaray, Paul Virilio e Jean Baudriallard, assim como a aplicação que Bruno Latour faz
da teoria da relatividade. Todos estes pensadores não sabem de que é que falam, diz Sokol.
Os dois físicos concentram os seus ataques nos pensadores que usam superficialmente
conceitos da física como os da incerteza e do caos; e ou os que reciclam fórmulas
especializadas como: espaço não euclidiano, equação logística da física, da lógica, da
geometria ou da matemática usadas com frequência por filósofos como Lacan, G. Deleuze e
F. Guatarri, B. Latour, L. Irigaray. Os físicos denunciam uma suposta interpretação abusiva
de teorias científicas, baseada sobre uma incompreensão e mesmo ignorância.
A partir dos anos sessenta a filiação intelectual muda radicalmente: passa-se da geração dos
três H (Hegel, Husserl e Heidegger) à geração dos mestres da suspeita: Karl Marx, Friederich
Nietzsche, Heidegger e Sigmund Freud4. Obviamente que se trata de apenas uma tendência,
pois encontram-se sempre pensadores que se inspiram de E. Husserl e M. Heidegger, todavia
a dialéctica do espírito e a fenomenologia, são as correntes de pensamento contra as quais se
combate. A Hegel se reprovava o facto de sistematicamente reduzir a diferença num
pensamento do absoluto. A palavra de ordem que emerge na década sessenta é pensar o
múltiplo e a diferença. Encontramos este tema nas obras de G. Deleuze Diferença e
Repetição, mas também em J. Derrida, o pensador da diferença. Deste pensamento da
diferença se pode também aproximar uma nova concepção da história, já não concebida como
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François Cusset (2013): La French Theory. In: «Pensées rebelles Foucoult, Derrida e Deleuze »,
métisse transatlantique, Editións Sciences Humaines : Auxerre, pp.11-18.
4
Catherine Halpern (2013): Pensées rebelles Foucoult, Derrida e Deleuze, Si loin, si proches, Le
retour de trios pensées critiques. Editións Sciences Humaines : Auxerre, pp. 5-10.
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desenrolamento cumulativo da razão mas, pelo contrário, como ruptura, como
descontinuidade.
Quanto à fenomenologia, que triunfa nos anos cinquenta, se lhe reprovava o facto de se ter
fechado de uma maneira ingénua na ideia do sujeito. Com efeito, a inspiração fundamental da
fenomenologia consiste em meter em causa a ideia de um pensamento objectivo: as coisas
existem para uma consciência que as percebe ou as representa. Em suma, o ser é um ser-para-
mim. Mas isto significa admitir a existência do sujeito sem nunca interrogá-lo. É exactamente
esta ideia do sujeito unificado e transparente para ele mesmo que se questiona violentamente
sobre a influência de S. Freud e do estruturalismo. A psicanálise, nomeadamente com o
conceito de inconsciente, redimensionou a soberania do sujeito. O estruturalismo, por seu
lado, evidencia de uma certa maneira o poder das instituições sobre os indivíduos. Deleuze e
Guattari, em Anti-Édipo, mas sobretudo em Rizoma, fazem explodir a bela unidade da
subjectividade e comparam as ciências como tubérculos mais ou manos mal-formados de
composição rizomática, enquanto Foucault mostra, por sua vez, como a ideia do sujeito é
uma construção histórica. Derrida defende que o próprio Heidegger não chega a libertar-se do
humanismo metafísico que ele denuncia.
Se K. Marx e S. Freud alimentam todas as reflexões da época, um capítulo a parte deve ser
reservado a F. Nietzsche; de facto, este faz soprar um vento de subversão sobre a filosofia,
metendo em causa, quer o primado da verdade como da moral ascética. Nietzsche interroga a
vontade da verdade, que ele suspeita constituir um marcador de relações de força. Esta ideia
influenciara muito a reflexão de Foucault quanto às relações entre saber e poder, e emprestara
também do filósofo alemão o conceito de geneologia. De facto, na retomada do pensamento,
Nietzsche aparece como uma terrível máquina de guerra contra a ideia tradicional da verdade,
concebida como adequação (adequatio intelectus rei). Deleuze aprendera a lição e defendera
uma filosofia que não procura representar de maneira adequada um mundo que lhe pré-existe,
mas que visa a inventar conceitos.
A entrada gradual dos textos dos autores da French Theory nos meandros académicos
efectua-se através dos departamentos de literatura, primeiro francesa, depois inglesa e enfim
comparada. A ecologia disciplinar e o velho conflito entre faculdades constituem aqui um
parâmetro decisivo: não só num campo de estudos profundamente em crise epistemológica,
mas a apropriação destes novos textos vai servir de alavanca para uma nova suspeita narrativa
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nos campos epistémicos afins — a filosofia, a história — como narrativas a desconstruir. Os
jovens universitários vão servir-se da “genealogia” de Foucault para ler Cervantes ou da
noção deleuze-guatariana de “literaturas menores” para reabilitar, descobrir, desvelar, no
sentido de Dussel, o que até então está velado: African-American Studies com Frantz Fanon
ou Edouard Glissant, os Chicano Studies sobre a identidade hispânica e os estudos feministas.
Estamos diante do fim de uma fronteira epistémica e do estabelecimento de uma ponte entre
domínios de saber que a até então viveram em autarcia: da filosofia à literatura ou se
quisermos do conceito ao texto.
Como todos os convidados, ele tinha-nos mandado o título e o resumo da sua intervenção em
precedência. Porém, depois de apresentarmos o historial da filosofia em Moçambique e as
linhas de orientação teórico-epistimológicas do nosso doutoramento, ele pediu para mudar de
tema e apresentar o pensamento de Derrida, segundo ele, para estar mais em conformidade
com as nossas linhas de orientação. A apresentação de Vermeren era um resumo da
introdução a um livro colectivo que resultou de um colóquio do Museu de Arte Moderna de
2010 sobre as fronteiras da filosofia.
Refazendo-se a figura de Derrida, Vermeran defende que a filosofia estaria na fronteira, pelo
menos, em três sentidos diferentes5:
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africano, como o momento grego, é um momento fundacionista, que sem
abandonar a ambição universal da razão, levanta questões das fronteiras dentro das
quais a filosofia africana se deve vislumbrar. Trata-se de fronteiras abstractas entre
domínios da teologia (James Cone), antropologia (Hountondji, Eboussi-Boulaga,
Towa), linguística, literatura (Langston Hugues, Claude Mackay, Césaire, Senghor,
C.H. Kane), política (Du Bois, Nkrumah, Cabral), artísticos (Leroi Jones dito
Baraka, Filomeno Lopes) que historicamente estavam encurralados em fronteiras
(limites) disciplinares e que doravante se vêm confrontadas com o imperativo de
serem pontes e horizontes orientados a um objectivo filosófico comum.
2) Como o Derrida que Vermeren6 pinta no seu livro — nascido na Algéria, excluído
do Liceu pela aplicação das leis anti-semitas do governo de Vichy — os
protagonistas do momento africano, pelas suas biografias e percursos de vida,
também são homens de fronteira. Nascidos em África mas franceses, ingleses ou
portugueses; nascidos e educados em línguas africanas mas escolarizados em
línguas europeias, homens de duas culturas, sujeitos da antropologia, mas em
conflito com ela, tradicionais e modernos, homens da oralidade e da escritura,
cooptados pela cultura ocidental mas marginalizados por ela; que gritam com
Langston Hugues a sua twoness, com C.H. Kane a sua mestiçagem…
6
Ibidem.
7
Ibidem.
8
Conferência de Patrice Vermeren em Maputo.
8
mas sobretudo, uma contestação do monopólio ou exclusividade da racionalidade de certas
tradições de pensamento em detrimento de outras.
Se para o Derrida da Gramatologia9 tinha que se substituir o modelo do logos pelo modelo
escritoral, a filosofia africana interroga-se sobre o estatuto da oralidade e da escrita, postula a
necessidade de construir uma filosofia no fio fronteiriço entre a oralidade e a escrita. Isto é,
de uma oralidade escrita (que se pode escrever ou transcrever) e de uma escritura oral
(Kuruma, Ala non est pas oblige). Mas também, na velha tradição de Dunbar, valorizar e
sublimar no quadro da literatura científica os denegridos dialectos ou buscar as fontes nas
tradições africanas, com faz o afroncetrismo e, ultimamente, o que se veio a cunhar por
ubuntuismo.
Se no seu processo deconstrutivo Derrida quer retomar contacto com Heráclito e os pré-
socráticos, o momento africano também, mas por razões diferentes, pois esta apela-se aos
pré-socráticos mostrando a ligação intrínseca entre a filosofia e o mito, e até vai mais longe,
represtinando criticamente a ligação entre o momento grego e a tradição egípcia (C. Anta
Diop e seguidores) (Olá SEVERINO: Não se percebe bem o que faz o “Momento
Africano”. A frase não termina). Porém, se a deconstrução derridiana, como notou Sarah
Kofman, apela a uma nova construção, o momento africano propõe-se a construir o twoness
(Langston Hugues), rendes-vous do donner e do recevoir (Senghor), consciente de uma
diferença de passados mas de uma interculturação necessária do futuro (C.H. Kane)
O momento africano, sem nunca cair na facilidade dos pós-modernismos e por isso mesmo
do relativismo (Langston Hugues diz que eu também sou América; Senghor inscreve a sua
9
DERRIDA, J. (1997) : De la Grammmatologie, Paris: réed, Minut.
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reflexão no que ele chama de rendez-vous do donner e do recevoir, Kane diz que os destinos
isolados acabaram, não temos o mesmo passado, mas teremos necessariamente o mesmo
futuro).
O momento moçambicano, com José Castiano e Emília Afonso, reflecte sobre os saberes
locais, que é uma maneira de romper também com a barreira que separa as ciências humanas
dos saberes positivo-experimentais, instaurados por Descartes e Francis Bacon e perpetuados
pelo campo científico até a Escola de Viena. Com as nossas próprias reflexões, sobretudo a
partir do livro Das Independências às Liberdades (Ngoenha 1993), o momento moçambicano
da filosofia passou a desafiar as fronteiras entre a filosofia e a história ao definir a busca da
liberdade como fulcro da historicidade africana, e as fronteiras entre a filosofia e a política,
ao interrogarmo-nos sobre os possíveis futuros das liberdades perante o predomínio da
economia sobre o político (biopolítica).
Por todas estas razões, o momento africano parece posicionar-se sobre (SEVERINO: ou em
cima das fronteiras????) as fronteiras, porque deve reinventar continuamente a sua
linguagem, porque se encontra culturalmente imbricado entre a oralidade e a escritura, entre a
tradição e a modernidade, a estigmatização antropológica e a afirmação histórica de si; enfim,
nas fronteiras intelectuais e académicas entre dois mundos, que não são a África e o ocidente
espaciais e geográficos, mas espaços antropológicos insistas nos eus existenciais dos próprios
protagonistas do momento africano. (SEVERINO, o sublinhado não se compreende; precisas
de reformular!!!!)
Uma outra maneira utilizada por Derrida-Vermeran para declinar o tema e a questão da
pluralidade das línguas na Europa, que segundo ele(s), deveriam ser protegidas, preservadas o
que seria uma garantia da identidade dos diferentes povos; tese já defendida a seu tempo por
Kant. No momento africano, todavia, a questão das línguas se apresenta de uma maneira
diferente …
Se para Kant, a barreira das línguas na europa representa o baluarte mais sólido contra todas
as veleidades de opressão, no momento africano a hegemonia científica do inglês e do francês
na esfera do conhecimento são, ao invés, os sinais mais claros da dominação cultural que
continua a assolar o continente. Assim as línguas coloniais e neocoloniais esmagam com a
sua presença as diferentes identidades autóctones, deixando que a única identidade pela
língua sejam os espaços da geopolítica colonial, representados porque aquilo que passaram a
ser as línguas nacionais.
O momento africano viveu de línguas externas ao continente, mas isso mostra ou demonstra
como o momento africano vive na fronteira linguística, na corda bamba, de ter que afirmar a
sua edeidade através de um utensílio, instrumento, artefacto externo, que por sua vez
representa o encobrimento das identidades autóctones.
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Paradoxalmente, o momento africano não teria existido como africano, se essas línguas
exógenas não se tivessem imposto. Quer dizer, a afirmação de uma identidade africana, do
qual o momento africano é intérprete passa por esta fronteira; passa por uma dimensão de
apropriação do exógeno. Mas todo o processo de apropriação supõe uma dimensão selectiva e
uma injunção do próprio no outro, a africanização das línguas europeias que, por isso mesmo,
deixam de ser europeias e passam a ser africanas.
Este paradoxo acentua-se hoje, onde a afirmação de uma identidade moçambicana num
contexto da África Austral e numa SADC dominada pelo inglês, passa pelo ancoramento a
língua portuguesa. Não são os portugueses que nos interessam, não é a língua de Camões que
nos preocupa, não é um português dos Lusíadas que faz a lusofonia que está no centro das
nossas preocupações, mas a afirmação de uma moçambicanidade. Então trata-se de uma
língua de fronteira, que sem poder despir-se das suas amarras culturais que cada língua traz
consigo, vem despida dos seus elementos lusos, para ter uma nova indumentária das culturas
locais, dos falares e dos sentires locais. Trata-se de uma língua despedida dos seus
condicionamentos culturais, uma língua culturalmente solta, e como um esperanto,
alimentada, nutrida, fertilizada pelo estrume das culturas, dos falares, dos dizeres, dos
sentires locais; o que não tem nada a ver com as preocupações luso-hegemónicas das
Fundações Camões, Gulbenkian nem se sequer com a CPLP e a uniformização gramatical.
Neste sentido, se a preocupação derridiana de inventar uma língua na língua é pertinente para
o momento francês, o momento africano, moçambicano, alimenta-se de uma língua de
fronteira, cujos signos relevam do português, mas os conteúdos, os significados, as
preocupações que essa língua trata, relevam da afirmação de uma identidade que se vai
construindo na fronteira ou nas fronteiras entre o português e as línguas (significados,
interesses, preocupações, fonéticas que nos são próprias) constitutivos do momento
moçambicano, expressos nos trabalhos de Mia Couto, de Chiziane, Ba Ka Khosa, entre
outros.
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Vermeren fala, enfim, da justiça como experiência do impossível em Derrida, em oposição à
positividade da metafísica; trata-se de experiência aporética, pois ela deveria equacionar a
justiça, que releva da ordem do incalculável com o direito, que pertence à ordem do
calculável.
O momento africano nasce e perdura neste paradoxal aporético: a sua génese é indissociável à
deconstrução, é denúncia da(s) falácia(s) intelectual(is) e moral(is) da Ius inventionis, do
código de Luís XIV, do(s) direito(s) colonial (is), nas quais a normatização (de nomos) das
injustiças se fazem através de codificações jurídicas, o que esvazia e tira todo o sentido ao
conceito mesmo de direito.
O momento africano nasce na fronteira da África com o exílio, o que se pode chamar,
parafraseando Eboussi Boulaga, de paradigma diasporático; um exílio aporético porque não
escolhido mas imposto pelo direito dos mais fortes contra a justiça. E um exílio que não
permite a integração, por isso obriga o diasporático a viver nas margens, na esfera do não-
direito e da não-humanidade. O cume desta situação, ou a aporia desta fronteira/tragédia, é
que ele não pode ter o passaporte de retorno; não é autorizado a sair das margens e voltar a
atravessar a fronteira da não-humanidade em direcção a um mundo que lhe possa acolher e
reconhecer. Parece destinado a viver no limite entre a humanidade e a não-humanidade, entre
a natureza e a cultura; na fronteira entre a liberdade prerrogativa indelével na construção do
artefacto cultural e o seu encobrimento.
Por último Vermeren invoca a derridiana democracia-por-vir, uma democracia para além da
política. Mas como buscar uma tal democracia na fronteira instável e aporética entre o direito
e a justiça, que não conhece fronteiras entre as elites — coloniais e pós-coloniais —
detentoras do poder?
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universidade a politécnica, hóspedes do professor Lourenço do Rosário, mas a ideia deste
encontro foi sugerida pelo professor Brazão Mazula. O tema do encontro foi Cidadania para
Poucos ou para Todos.
Este é o desafio perene e constante de toda a filosofia: fazer com que em todas as
circunstâncias, tempos e lugares se dê primazia a busca da justiça. Dizer, em todas as
circunstâncias espácio-temporais o filósofo milita ou deve militar pela justiça, significa aderir
ao postulado derridiano da territorialização cultural desnacionalizada do filósofo; isto é, do
facto que o filósofo não deve ter fronteiras, e não deveria ter passaporte. Como não fazer
própria a máxima de Terence Homo sum, nihil quid humanum a me alienum puto (sou
homem e nada do que é humano me é estranho).
O momento filosófico africano, como toda filosofia, milita pelo universal mas como toda a
filosofia, parte do seu particular — Ortega e Gasset diz que eu sou eu e as minhas
circunstâncias —, mas a condição marginal da sua particularidade faz com que ela tenha um
estatuto fronteiriço.
O que nos interessa e nos parece epistemologicamente pertinente nos pensadores da chamada
French Theory é a dimensão ecuménica do filosofar — o que e também praticado por uma
outra corrente contemporânea que e a Escola de Frankfurt —, como diria Edgar Morin, que
toma em conta a complexidade da existência. As suas obras não cessam de abordar os limites,
de fazer pontes; de multiplicar as fontes, de mergulhar nos arquivos, de fazer apelo a textos
literários; isto sem nunca abandonar a filosofia. Serve-se da heterogeneidade e multiplicidade
disciplinares ao proveito da unicidade e da filosofia. Como em Foulcault abre-se à história, à
psiquiatria, ao direito, à política, à antropologia, à sociologia; com Derrida, à política, ao
10
VERMEN, Patrice, Fronteiras da Filosofia, 2010 (tradução livre).
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direito, à literatura, à geografia; com Deleuze à psicanálise, ao cinema, à literatura; e com
Lyotard à educação, à arte, etc.
Com efeito, o cunho teórico e epistemológico da filosofia moçambicana não pode ser
produção e o ensino de um enciclopedismo, ou de uma simples erudição finalizadas a elas
mesmas, mas a convocação da filosofia, na sua história, nos seus métodos e descontinuidades
para ajudar a clarificar e contribuir a resolver os problemas do homem moçambicano. A
questão que então se levanta está, pois, ligada ao tipo de conhecimento pertinente para ajudar
o homo moçambicanus a fazer face aos problemas histórico-temporais com os quais está
confrontado.
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fazer a economia, ela, a filosofia, não pode abordá-los nem contribuir sozinha na sua
resolução. Só pode fazê-lo fazendo pontes com outros saberes11.
O momento africano faz do exílio algo de sagrado e de inefável do qual a vida necessita, para
estar “sempre a subir” (como dizem os angolanos), para evitar de se despedaçar, de tratar
com tempo dando-se assim uma imagem clara do nosso ontem que se situa na época das
luzes, da esperança, a hora que anuncia o futuro (we have tomrrow, Langston Hugues) e que
exprime numa palavra livre que, por sua vez, liberta e constitui o âmago da sua contribuição.
It is feels good to be an African today, diria Mbeki no seu discurso I am an African, querendo
marcar, ao colocar o acento no today, o fim da época do Black is beautfull, aliás, o renascer
daquela mesma época num novo momento africano.
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Cfr. NGOENHA, S.E. & CASTIANO, J.P. Introdução. In : “O Curandeiro”, Revista Moçambicana
de Filosofia, nr. 0/2013, Maputo, Moçambique.
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Filosofia e Educação: Fronteiras Movediças
Introdução
A Fronteira
O termo fronteira remete ao campo da geografia e tem sido entendido como uma linha
física ou simbólica que serve para demarcar os espaços. Assim sendo, a fronteira é algo
limitador que marca e separa os âmbitos de actuação e espaço possível de movimentação dos
actores sociais.
Duarte, explorando o conceito de fronteira em Deleuze, sublinha que fronteiras são locais
de mutação e subversão, regidos por princípios de relatividade, multiplicidade, reciprocidade
e reversibilidade em que os limites são ultrapasados (Duarte, 2005:1).
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Essa suscinta digressão em torno do conceito de fronteira é para explicitar que o termo
não pode ser assumido no sentido limitador, mas sim na sua dinamicidade ao propiciar
intercâmbio frutífuro entre dois mundos. Alias, como Águas (2013) refere, os poderes
centrais nunca consiguiram controlar o intercâmbio que ocorre entre os povos fronteiriços.
Há certas porosidades que permitem o deslocamento de uns e de outros para ambos os lados
sem que, com isso, sejam considerados estrangeiros ilegais. É essa relação fronteirça que a
Filosofia mantêm com a educação: uma fronteira cambiante, movediça, de negociação e de
trocas constantes, destituida de relações de poder (Foucault, 2008). Passemos a elucidação do
conceito Filosofia.
A Filosofia
Ao longo dos quase 2000 anos de sua existencia, a Filosofia, não tendo encontrado
respostas para as suas indagações, tem sido questionada sobre a contribuição que ela pode
trazer para a humanidade. Posições extremas contra a Filosofia questionam se ela é mesmo
necessária. Nas Instituições de Ensino Superior, os que fazem o curso de Filosofia não poucas
vezes são vistos, pelos seus colegas de outros cursos, como uns “loucos”, pessoas que não
estão bem da cabeça. Dois questionamentos são dirigidos aos estudantes de Filosofia: para
que vai servir essa Filosofia? O que você há-de fazer com essa Filosofia?
Esses questionamentos são próprios, se assim podemos dizer, do senso comum que considera
aquele que estuda a filosofia somente sob o aspecto “profissional”. O estudante de Filosofia
não poucas vezes é confundido com um advinho, perguntando-lhe, por exemplo, se sabe ler a
mente das pessoas. Ao estudante de Filosofia é também perguntato se ele possui respostas
rápidas para quase todas a situações, podendo desarmar os adversários nas contendas
argumentativas.
Neste mundo, em que boa parte das pessoas estão preocupadas em estudar para ganhar
dinheiro, estudar para ter um bom emprego, faz sentido dedicar-se a algo apenas por amor à
verdade, por amor ao saber? Aparentemente, os problemas com os quais a Filosofia se
ocupou, parecem não terem oferecido nenhuma contribuição positiva para o progresso da
humanidade. A medicina, por exemplo, até hoje nos supreende com suas descobertas,
possibilitando uma cura rápida para as várias doenças. A química e a física fazem maravilhas.
Quando há um problema político em Moçambique são convidados os analistas políticos na
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Televisão para falarem sobre o acontecimento. O mesmo não acontece em relação ao
filósofo: ninguém recorre ao filósofo para aumentar a produção de uma região. Para isto
servem a ciêncica e a técnica.
A Filosofia parece ser algo ridículo, pois as especulações com as quais se ocupam os
filósofos, influenciando também os que querem estudar a filosofia, são supérfluas,
extravagantes, absurdas, parecendo às vezes verdadeiras loucuras. Sua linguagem não passa
de um palavreado incosequente. O facto dos filósofos nunca chegaram a um consenso sobre a
solução dos problemas por eles levantados, leva a que se considere a Filosofia como algo
aparentemente frustrante. Com efeito dizia Voltaire que “desde Brama, Zoroastro e Thao até
os nossos dias, cada filósofo construiu seu sistema e não se encontram dois que sejam da
mesma opinião. È um caos de ideiais, no qual ninguém chegou a entender-se (...) neste
conflito eterno de temeridades e ignorâncias, o mundo sempre foi como vai: os pobres
trabalharam, os ricos gozaram, os poderosos governaram, os filósofos discutiram, enquanto
os os ignorantes partilharam a terra entre si.
A Filosofia pode ser perigosa, pois questionando tudo, até as coisas sagradas, como a
existência de Deus, a liberdade humana, a capacidade de chegar a verdade, o filósofo ameaça
a ordem estabelecida. Ela abala as certezas e crenças que fundam a vida individual e social,
corroi as convicções, embota os sentimentos e paralisa a acção. É, como sublinha Lima Vaz,
a singularidade do modo de pensar da Filosofia, na sua relação coma cultura, com uma
presença inquietante, que caracteriza “a atopia, o não- lugar do filósofo no mundo dos
homens” (Lima Vaz, 1997: 6). Com efeito, ao fazer da razão a instância última da crise ou
julgamento de todas as manifestações da cultura humana, “ aos olhos do homem comum, o
caminho da Filosofia parece conduzir a terras ignotas e estranhas” (Lima Vaz, 1997: 6).
Num emaranhado de idéias como estas, a filosofia terá algo a dizer de si própria se,
algumas vezes, têm sido os próprios filosófos a duvidarem do que se ocupam? Marx (2005),
por exemplo, afirma que “os filósofos tentaram interpretar o mundo, agora trata-se de realizá-
lo” (11a Tese sobre Feuerbach).
Essas perguntas sempre irão continuar, desde que quem as faz não tenha clareza sobre o
que é Filosofia. Por isso, é importante ver a Filosofia na sua especificidade, as razões do seu
surgimento numa dada cultura, a cultura grega, a relação que manteve e continua a manter
com a cultura, a sociedade e os homens.
Admitindo que toda a cultura repousa seus pressupostos implícitos que são explicados
através da razão, conforme explicava o professor Javier Herero nas aulas de metafísica na
Faculdade Jesuita de Filosofia e Teologia, a cultura ocidental, na qual nasceu a Filosofia, está
baseada num pressuposto básico fundamental. Ela põe tudo (todas as obras culturais) em
referência a uma justificação racional. A civilização ocidental é uma civilização da razão,
porque nela se acentuou de modo irreversível a justificação racional da cultura ou das obras
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culturais. A justificação ou explicação racional é a referência ao logos demonstrativo12 ou
científico. É desse logos ou saber demonstrativo que, como foi anteriormente sublinhado,
surgiu a Filosofia como a sua expressão mais ambiciosa. A partir deste momento em que a
cultura descobre a razão e coloca tudo em relação a ela, surge a cultura ocidental. A única,
entre todas, que fez da razão o seu emblema, a coloca no centro.
12
Platão (2005) compara o logos ao sol – sua maior experiência foi o encontro com o logos
demonstrativo.
13
O ser é diferente de Deus. O ser engloba o absoluto e o contigente.
14
Não se pode pensar o racional independentemente do real. A razão não é uma entidade pairando no
ar. A razão fora do real não existe, não há uma razão subsistente.
15
Para Marx é o reino da razão realizada. A primeira alienação é econômica, esta provoca e leva
consigo as outras alienações: burguesa, religiosa ...
19
razão de si mesma, a se justificar reflexivamente, uma tarefa que somente a própria Filosofia
é capaz de a realizar (Marx, 2005).
Se a cultura ocidental é uma cultura da razão, é legítimo afimar que ela se tornou
filosófica porque fez a experiência filosófica. A experiência filosófica se configurou como
experiência do méthodos, do caminho que deve levar a uma fundamentação absoluta. Os
sofistas ameaçaram introduzir o cepticismo na cultura grega e, para responder a este risco de
cepticismo ou de irracionalismo, começa a experiência filosófica como método, como busca
de um caminho que leve até o fundamento.
16
Livro fundamental: J. Ladrière. Os desafios da racionalidade. São Paulo: Vozes, 1979.
20
A cultura ocidental que deu origem à Filosofia vê surgir diante de si um paradoxo: a
Filosofia é, por um lado, uma obra produzida por essa cultura, mas por outro lado ela surge
com a intenção de compreender e explicar o todo da realidade e por conseguinte a própria
cultura da qual procede. Por isso, como sublinha Lima Vaz, “toda a cultura em que a
Filosofia se faz presente, é uma cultura obrigada a dar razão de si mesma, a se justificar
reflexivamente, uma tarefa que somente a própria Filosofia é capaz de a realizar” (Lima Vaz,
1997:3-4). Nessa justificação reflexiva da cultura a ser levada a cabo pela Filosofia, nenhum
dos campos da primeira escapa da indagação Filosófica que não é somente pelo fundamento
bem como pelo sentido. Dentre os vários campos que compõe a cultura, a Educação se
afigura como um dos principais.
A Educação
Autores como Iori (2003)18, Passmore (1980) e Reboul (1974)19 sustentam que o
significado do termo educação está envolto em ambiguidades. Conforme argumenta Iori, um
dos factores que explica a ambigüidade do significado da educação é a associação de muitos
sinônimos para a expressão educação. Às vezes, entendeu-se e continua a se entender a
educação como aprendizagem, ou como formação e como instrução (Iori, 2003, p.54). Essas
expressões são temas correlatos à educação, não abarcam, portanto, a totalidade do
significado da educação. Além do uso de temas correlatos à educação, a mesma autora
também refere que têm sido tomados os âmbitos da educação, quais sejam, a educação moral,
a cívica, a ambiental e a cognitiva (Iori, 2003, p.54), como significado do conceito de
educação.
17 Ivanilde Apoluceno Oliveira. Brasileira, graduada em Filosofia e Doutora em Educação pela PUC-SP. É professora da Universidade do Estado do Pará.
18Vanna Iori é italiana, Doutora em Pedagogia, professora de Pedagogia Geral na Universidade Católica de Milão.
19Filósofo francês, nascido em 1925 e morto em 2002. Especialista em Filosofia da Educação. O texto de Reboul que usamos é a tradução do seu livro, feita por Olga Pombo
em 2000, “La Philosophie de l’education”, publicado em Paris pela PUF em 1971. Assim, a referência do ano que usamos é a do original e as das páginas, as da tradução. O
texto está disponível em http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/hfe/cadernos/ensinar/reboul.pdf. Data de acesso :29.03.2008
21
Assim, os efeitos da educação se manifestam tanto no educador quanto no educando. Não
existe uma absoluta assimetria no campo da educação, conforme o significado do termo
usado pela autora.
Um outro equívoco apontado pelo autor em torno da educação, diz respeito aos seus
respectivos sujeitos. Em muitas teorias educacionais, a referência à educação tem sido a
criança21. Para Reboul é equivocada essa visão, pois, esquece-se que mesmo na condição de
adulto, ao educar as crianças, ele está constantemente se educando. Quando não por educação
formal — a educação dos jovens e adultos, os programas da terceira idade nas universidades
— a experiência da vida constitui uma forma permanente de educação para os adultos.
Em relação à extensão da educação aos adultos, Iori refere que a educação, tendo-se
destacado como “fenômeno permanente da existência humana” abrange “todas as idades da
vida e, assim, também a idade adulta e anciã” (Iori, 2003:54): não existem limites para a
educação. Quando cessa o que se convencionou chamar por educação formal, a experiência
da vida e outros espaços, quais sejam, a família, os movimentos sociais, os grupos especiais,
também educam.
21 O conceito de infância é o ponto de partida de Kohan (2003) para a crítica da educação como formação. Conforme Kohan, esse entendimento de educação conjugado com o
da infância como o “sem voz” mutila, não possibilitando o pleno desenvolvimento da infância. Na verdade, Kohan retoma o velho debate na história da filosofia ocidental sobre
a dupla concepção da infância que alimentou as teorias educacionais de diversos pensadores: de um lado os que possuem a visão negativa da infância, vista como sujeito de
sentimentos que necessitam ser transformados e, de outro, os que consideram o caráter irredutível da infância, apelando para o seu livre desenvolvimento com pouca intervenção
dos adultos. Uma breve exposição sobre essas duas correntes filosóficas com relação à infância e os desdobramentos educacionais está em Ghiraldelli Junior (2000).
22
Considerando os argumentos apresentados por esses dois autores, pode-se inferir que a
educação parece não ter um objecto de estudo específico que garanta a sua respectiva
cientificidade. Em todo caso, tentamos aqui estabelecer um significado preciso da educação.
23
aspectos fundamentais dos quais a educação tem de se ocupar. A necessidade da disciplina,
junto com os cuidados do corpo, logo na infância, para o autor, resulta de uma certa
“brutalidade” humana, em função de sua inclinação à liberdade (Kant, 1996). Deixando que o
Homem siga os seus “caprichos” durante a sua juventude, com base no atributo de liberdade,
ele, afirma Kant, poderá conservar uma certa “selvajaria” por toda a vida (Kant, 1996:14).
Embora a disciplina e a instrução sejam parte de um único processo de formação, a disciplina
é a responsável por orientar a liberdade do homem para que faça o bom o uso da mesma, não
seguindo, portanto, os seus caprichos.
A liberdade do Homem é em relação ao ambiente, isto é, não está preso ao habitat, não
depende do meio: ele é capaz de reorientar a sua vida, adaptando-se a novas situações por
mais complexas que sejam. O despreparo natural do Homem, exemplificado pelo seu corpo,
não significa, necessariamente, que ele não seja possuidor de instintos. A educação é também
um processo de orientação dos instintos, de modo que o agir humano não prejudique a si
mesmo e aos os outros.
No acto do nascimento, como afirma Ruben Alves (1980), o Homem tem o seu corpo,
mas não é o seu corpo. É um ser aberto ao mundo, não sabendo o que de fato virá a ser. Por
natureza, é imprevisível o que o homem será e como irá futuramente agir. Como ser
“naturalmente” despreparado, livre do ambiente, o Homem viu-se obrigado e ainda continua
obrigado a construir o mundo propriamente humano. Esse mundo é denominado de cultura.
A cultura, como natural humano, a segunda natureza (Ngoenha, 1994), possui duas
dimensões: a material, resultante da transformação da natureza para a satisfação das
necessidades humanas fundamentais, quais sejam, aquelas que incluem o cuidado com o
corpo: alimentação, vestuário, produção de artefatos para as diversas finalidades, até para a
arte de guerrear. A outra dimensão é a simbólica, na qual estão situados os pontos cardeais
24
que orientam o agir humano. Dessa dimensão fazem parte os valores, as crenças, numa só
palavra, o ethos, que deveria tornar possível a convivência, em princípio, harmoniosa entre os
humanos. Nessa dimensão simbólica, a cultura se afigura como a luta do Homem pela
construção coletiva de sentido23.
Na relação com a cultura simbólica, a educação tem por tarefa assegurar a permanência
do ethos-hábito no tempo (Lima Vaz, 1999:40), na mesma proporção que a tradição, termo de
origem latina tradere, traditio, que significa transmissão, garante a duração do ethos-
costumes no tempo (Lima Vaz, 1999:40).
Assim, indissociável da cultura, e esta sendo uma construção humana, a educação se mostra como algo especificamente humano: somente o Homem pode
ser educado e ele é o que a educação faz dele. A educação, enquanto ciência tem como objecto a humanização do homem e, a ciência específica que teoriza sobre
Explicitados os significados conceitos de fronteira, de Filosofia e de Educação em uso neste texto, estamos em mínimas condições de discutir as fronteiras
entre a Filosofia e a Educação. Por fronteira, recorrendo a Águas, nós aqui a entendemos como um espaço marcado por certa fluidez e criatividade, mas também
por relações desiguais e pelo poder sem limites” (Águas, 2014:3). Não é, portanto, uma linha divisória, demarcando espaço de distanciamento, cuja transgressão
23 Uma rápida reflexão sobre cultura e sentido ver em Lima Vaz (1997): “sentido e não sentido na Crise da modernidade”.
25
incorre-se na condição de ilegal, mas sim, um lugar que une, um mundo de encontros e de negociação, mais que de avanço e de distanciamento em relação ao
A Filosofia é este saber desinteressado para cuja emergência, factor decisivo foi o aparecimento do logos demonstrativo, levando a que a civilização
Ademais, a história das ideias no ocidente é prova de que a reflexão educacional foi obra
dos filósofos, neste caso aqueles que pejorativamente os manuais os cunharam de sofistas.
Como escreve Reale (1993), as doutrinas sofistas tiveram um elevado significado para a
história do ocidente, pois foi com eles que “ o problema educativo e o empenho pedagógico
emergiram ao primeiro plano e assumiram novissímo significado” (Reale, 1993:195). Os
sofistas inauguraram a paideia, isto é, o ideal de formação humana.
26
Sócrates foi um um educador incansável e chamava-se a si mesmo por parteiro das ideias.
Platao fundou a academia e tinha a forte crença que a Polis seria justa quando fosse
governada pelos Filosofos. Razão porque compreender o pensamento filosófico de Platão
exige ter-se presente a sua visão educativa.
Apoiado numa concepção negativa da vida social da sua época, em resposta à Hobbes
que afirmava a bondande social do homem, Rousseau, no contrado social, sublinha o caracter
corruptor da sociedade, negando o vinculo malicioso que existe na natureza humana: neste
estado cada um está perfeitamente isolado e indiferente aos outros, existe por si mesmo e só
processa o que é necessário à conservação de sua própria vida. Assim é necessário que cada
um abandone a soberania individual , para se submeter ao contrato.
Um contrato, no dizer de Ruby (1998), que faz aparecer os únicos direitos possíveis,
neste caso os civis. Este contrato, é também a resposta de Rosseau na sua preocupação se não
é possível se fundar uma comunidade humana sem a necessidade do recurso à força, à
cupidez e à vaidade: uma comunidade que se alicerçasse inteiramente na submissão de todos
a uma lei reconhecida interiormente como coerciva, mas necessária.
É dele a teoria da vontade geral que, por sua vez, vai desembocar no Contrato Social:
uma vontade genérica, universal, que expresse como o homem sensível se submete ao
homem inteligível, isto é, quando a vontade individual, mesmo pressionada pelas paixões,
obedece à lei racional, quando o particular se organiza em função do todo. É nesta vontade
geral do povo que está fundada a soberania, negando o pensamento de Hobbes: o cidadão
torna-se a origem e a garantia da lei comum ao ultrapassar sua particularidade, na unidade e
felicidade de uma cidade Una. Por isso, é necessária uma correcta educação do Emílio para
participar no contrato social, que vai fundar uma nova sociedade. Era, então, necessário,
construir a Escola do Homem Novo!
Essa pequena incursão na antiguidade clássica, em que não falamos dos sofistas, é
elucidativa que em relação à educação, a Filosofia não estabelece com ela nenhuma fronteira.
27
Entre os dois campos de saber existe um diálogo e trocas permanentes. É das tentativas da
busca de resposta à pergunta para que educar, ou qual o sentido da educação em cada
contexto histórico de que se ocupa a Filosofia da Educação que difere radicalmente da
sociologia e da antropologia da educação. A Filosofia, se assim podemos dizer, é fundante da
educação e esta, por sua vez, possibilita que a primeira se actualize e se expresse. As suas
fronteiras são cambiantes e modeviças.
Posto isto, sustentamos que não existe, taxativamente, uma fronteira entre a Filosofia e a
Educação. Esses dois campos de saberes são intercambiaveis e congênitos. O evento da
Filosofia na tradição ocidental, tal como nos é ensinado nos manuais da História da Filosofia,
é concomitante à educação. A primeira nasceu como uma tarefa eminentemente educativa e a
segunda tornou-se um empreendimento filosófico: filosofa-se educando e educa-se
filosofando. A possibilidade de se pensar uma fronteira entre a Filosofia e a Educação,
portanto, é admissível desde que a essa fronteira seja entendida no sentido de mútua
possibilitação e não de demarcação. Uma fronteira, assim por dizer, movediça.
28
Bibliografia
29
Para além da Física, a Metafísica. Sem Fronteiras.
É assim que a Física se separa das outras como a ciência que estuda o material e suas
transformações, enquanto que a Metafísica se preocupa com as causas primeiras, a
essência do ser. Na Grécia Antiga esta área correspondia à actual Ontologia, Filosofia e
Teologia.
“…tudo surgiu nas antigas galeras, navios de madeira enormes movidos pela
força braçal de escravos ou trabalhadores assalariados pelos mares fora.
Quando enfrentassem uma tempestade severa, os remadores se cansavam a
tentar, literalmente, remar contra a maré e, descansando após a faina,
começaram a pensar se não poderiam usar algo para além da sua força física
para mover os navios. A resposta foi o surgimento das velas. Accionadas pelo
vento, elas podiam ser feitas muito grandes e mover navios maiores capazes de
superar mares mais desafiadores: as naus das descobertas. Esta é a origem do
conceito de Metafísica, porque em vez da força física do homem, os navios
passaram a ser movidos pelo “sopro” do vento. Invisível, divino.”
Este trecho mostra como o próprio conceito da Metafísica, bem como o seu objecto de
estudo evoluíram com o tempo.
30
Presentemente a Metafísica assume duas tendências distintas: a primeira é a ontologia,
ou o estudo do ser (οητοσ em grego), da causa primeira, que se subdivide em teoria das
categorias, teoria do conhecimento e teoria das ciências (epistemologia), e a segunda
tendência é a teoria da religião ou teologia e teoria das concepções do mundo.
Segunda questão: Socorri-me da longa explicação dada por Martinho Rost no seu
curso de Filosofia, sobre o livro da Professora Marilena Chau da Universidade de S.
Paulo Convite à Filosofia, para sintetizar em quatro pontos, qual afinal o objecto de
estudo da Metafísica. De acordo com ele, “estudar o Ser, enquanto Ser”, significa analisar
(Rost, 2014):
i) “…aquilo sem o que não há seres nem conhecimento dos seres: os três princípios
lógico-ontológicos (identidade, não-contradição e terceiro excluído) e as quatro
causas (material, formal, eficiente e final);
ii) aquilo que faz um Ser ser necessariamente o que ele é: matéria, potência, forma e
acto;
iii) aquilo que faz um Ser ser necessariamente como ele é: essência e predicados ou
categorias;
iv) aquilo que faz um Ser existir como algo determinado: a substância individual
(substância primeira) e a substância como gênero ou espécie (substância
segunda). ….”
Perfeito. Ficou claro para mim que a Metafísica, como ciência filosófica, tem uma
esfera mais ampla de objectos de estudo do que a Física, apenas ocupada com as
principais leis da Natureza, que governam a matéria, vista aqui do ponto de vista de
“material, tangível”. Irei-me debruçar mais adiante sobre este aspecto.
Terceira questão: Também partilho da ideia segundo a qual “os sábios falam de
pontes e os leigos de fronteiras” avançada mais acima neste livro.
31
Incondicionalmente. Mas com alguns reparos.
Em inglês diz-se first things first o que significa, literalmente, “as primeiras coisas em
primeiro lugar”. Pois bem: olhando para a Física como a ciência que estuda o ponto
material, o sistema de pontos materiais (corpo rígido) e as condições de seu movimento,
transformação e estabilidade importa definir, em primeiro lugar, a matéria do ponto de
vista da Física e da Metafísica.
32
sistema, ou seja, conhecendo a posição inicial e a velocidade de um corpo, pode-se
calcular de forma unívoca a sua velocidade e coordenadas finais que são o seu estado.
A grande revolução da Física desde o final do século XIX até meados do século XX,
trouxe novos paradigmas que ditaram a reorganização dos conhecimentos em quase todas
as ciências. Dou quatro pequenos exemplos:
33
de uma situação irreal agem, do ponto de vista fisiológico, sobre as mesmas
regiões do cérebro, coordenadas pelo hipotálamo.
Desta maneira, do ponto de vista físico, a realidade e o sonho são iguais, o que
pode levar a concluir que cada um de nós “fabrica” a sua própria realidade. Já
no micro - mundo, a incerteza de Heisenberg estabelece um limite no quão real
se pode conhecer o mundo…Nalguma fase, certos cientistas sociais puseram
mesmo em causa a definição de “ciências exactas” atribuída a um grupo de
ciências da Natureza em face a estes debates epistemológicos.
34
um balão de vidro contendo veneno volátil que, assim, se espalha pela caixa e
mata o gato. A pergunta é: num dado momento o gato dentro da caixa está
vivo ou morto?
Não tente responder porque a sua resposta estará errada. De acordo com o senso comum,
diríamos: “se a radiação tiver sido detectada, então o sistema terá sido accionado, o veneno
terá sido liberto e o gato estará morto por envenenamento”. Ou, “ao contrário, se não tiver
sido detectada nenhuma radiação, o gato estará vivo”.
O estado real do gato só fica conhecido no momento em que abrimos a caixa ou seja, o
acto de observação ou medição de um sistema no micro-mundo, interfere no seu estado,
retirando a degeneração e ficando um estado claro do tipo “está vivo” ou “está morto”.
Não se pode entender! E de facto a explicação deste paradoxo gerou celeuma entre as
mentes físicas mais criativas que já alguma vez existiram na Terra num só período. Escolas
diversas de conhecimento, dirigidas por nomes sonantes como Niels Bohr, Wolfgang Pauli,
Max Planck, Werner Heisenberg, Erwin Schrödinger, Louis De-Broglie, Albert Einstein e
outros, descordaram entre si durante uma década na explicação deste paradoxo. Estes
cavalheiros todos, um a um, receberam o Prémio Nobel da Física pelo “desenvolvimento de
uma nova teoria que explicava os efeitos quânticos na Natureza”.
Com estes e outros exemplos vindos da mecânica quântica, o objecto da Física mudou
para sempre e a matéria não poderia continuar a ser definida da mesma maneira.
35
As ciências filosóficas, por outro lado, testemunharam uma evolução muito disputada
da definição da matéria. Sem nos preocuparmos com a cronologia e nem com os
principais protagonistas, contento-me, plenamente, com a definição marxista – leninista
da matéria.
Na discussão precedente a esta definição, Marx e mais tarde Engels no livro “Anti
Duhring” argumentaram sobre a ligação do tempo e espaço à matéria como suas
propriedades intrínsecas. Este aspecto é muito importante para explicar violações claras
da geometria Euclidiana (do espaço tridimensional clássico) e da uniformidade dos
intervalos de tempo. Essas violações são verificáveis já na Teoria de Relatividade Restrita
de Einstein. A Teoria Geral de Relatividade, aplicável na Astrofísica ao movimento dos
corpos celestes, confirma casos de curvatura espacial e de atracção de radiação
electromagnética por corpos de super-elevada densidade mássica como os buracos
negros.
36
Físicos à Procura da ORDEM na Natureza
Acreditando ou não nessa força suprema, os físicos sempre procuram por ela quando
investigam as leis da natureza e…encontram-na.
Eis alguns exemplos:
Nunca apreciei tanto a irreverência típica dos estudantes universitários, como quando
na década 90, tive acesso a uma t-shirt de festas estudantis da Faculdade de Engenharias
da Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil. Estas festas, marcadamente viradas para
a diversão e boémia, têm momentos chamados de “semana de saco cheio”, em que os
24
Boruch Spinoza, filósofo judeu do século XVII. Foi excomungado na Holanda pelos rabinos
judeus por suas ideias.
37
estudantes não vão às aulas (semana intercalar entre nós em que se fazem várias
avaliações e jornadas científicas), para além de contemplarem uma “avaliação etílica” dos
participantes!
Interessei-me mais com a camisete dos estudantes de engenharia eléctrica que dizia
simplesmente:
“Deus disse: ∂⃗
D ∂ ⃗B
rot ⃗H = ⃗j+ rot ⃗E=−
∂t ∂t div ⃗B=0 div ⃗D= ρ
∂ ρ ; ; e, ;
div ⃗j =− ⃗
D=εε o ⃗E ⃗B =μμ ⃗ ⃗j=γ ( ⃗
E +⃗
Eext )
∂t ; ; oH; .
e houve luz”.
Genial!
Maxwell, um físico teórico com forte domínio do aparato matemático, sintetizou toda
a teoria da electrostática, electrodinâmica, magnetostática e magnetodinâmica num
conjunto de oito equações tão simples e compactas, bastante similares, que logo
mereceram o nome de equações canónicas, isto é, divinas.
Não espanta pois, que muitos físicos achem que a famosa expressão bíblica do
Génesis 1, versículo 3 a 5 possa ter sido ditada ao profeta Moisés de forma compacta,
similar à que foi acima mostrada.
38
cargas eléctricas em repouso ou em movimento; a interacção fraca e a forte, muito
essenciais para a existência do universo, agem a distâncias infinitamente pequenas e
respondem, a primeira, pela diversidade dos seres atómicos, mediando as transformações
nucleares e a última, a interacção forte, que é cerca de 300 vezes mais forte que a
electromagnética, age apenas a nível nuclear e responde pelo surgimento dos núcleos,
estes, dos átomos, os quais compõem as substâncias orgânicas e inorgânicas. A interacção
forte está na base do surgimento da vida e dos corpos inanimados. É a interacção
divina!!!
Na mitologia bíblica, Daniel foi o profeta que se notabilizou por interpretar sonhos
apocalípticos do rei Nabucodonosor da Babilónia (actual Iraque) e seus descendentes.
Ganhou com isso, primeiro, a glória e depois o inferno. Ou seja, depois de um período de
muito respeito e bonança nos paços do rei, foi depois jogado para um covil de leões
esfomeados.
Já o físico James Maxwell teve sorte melhor por acto semelhante. O grande avanço do
aparato matemático (conhecido por Física - Matemática), nos finais do século XIX,
induzido por Bessel, Lagrange, Hamilton, Legendre, Hermite, Poincaré, Jordanov, Gauss,
Euler e muitos outros, permitiu a partir dessa época, prever e descrever com grande
certeza, factos, propriedades, grandezas, fenómenos, corpos, elementos e muitos mais
seres físicos, dezenas e às vezes centenas de anos antes de serem descobertos. Uma
espécie de profecia científica.
39
crença muito generalizada em África e que muitos cineastas do chamado Nollywood 25
exploram intensivamente.
A pessoa assim chamada e mostrada na tela da bacia pode comunicar com os
espíritos, pode ser protegida ou atacada por intermédio do curandeiro. Estamos perante
fenómenos de televisão e de teletransporte, muito similar aos episódios de ficção
científica do mega seriado Star Trek.
O filósofo missionário belga Placide Tempels no seu livro Bantu Philosophy fala do
conceito de força vital como o epicentro de toda a actividade do povo bantu. As crenças,
os ritos, os tabus e toda a ligação das pessoas com os seus ancestrais visam
essencialmente intensificar esta força vital.
Toda esta ideia de protecção à distância e ligação com os ancestrais de que Tempels
fala, bastante Africana e bastante metafísica, pode ser ligada a um fenómeno de física
quântica de “emaranhamento de partículas”, melhor conhecido como particle
entanglement e que constituiu a base dos receios de Einstein-Podolsky-Rosen.
Enquanto as moléculas e os átomos são os elementos básicos das substâncias com que
lidamos no dia-a-dia, para se entender a origem do Universo, deve-se olhar para dentro
dos átomos e estudar-se as partículas elementares que os compõem. Este é o objeto de
estudo de uma área de conhecimento chamada Física de Partículas Elementares ou Física
de Altas Energias.
25
Indústria cinematográfica nigeriana, caracterizada pelo rápido desenvolvimento e gasto irrisório
de recursos quando comparada com a Hollywood e Bollywood (de Mumbai, India). Os temas
principais tratados são o modo de vida das comunidades africanas e todo o seu sistema de crenças
e atitudes.
40
partículas aceleradas, são feitos colidir violentamente, quebrando as partículas comuns
como protões e neutrões nos seus componentes.
A descoberta dos quarks, como componentes das partículas elementares, trouxe muito
esclarecimento sobre a origem das mesmas, a origem das forças na Natureza e, de certa
maneira, a origem do Universo. Rapidamente o número de partículas conhecidas subiu
das primeiras três (protão, electrão e neutrão) para cerca de três centenas. Neste autêntico
zoo subatómico que se gerou, os físicos interessaram-se de novo por procurar alguma
ordem. As partículas começaram a ser agrupadas em novas famílias segundo a sua massa
(hadrões, leptões) ou segundo sua composição (bariões e mesões), ou ainda segundo o seu
tempo de vida (ressonâncias, partículas estáveis, etc).
Foi construída uma teoria completa que descrevia as diferentes famílias de partículas
elementares, sua composição e formas de interacção. Surgiram novas ciências físicas
(como, por exemplo, a cromodinâmica quântica) para tomar conta de novas grandezas e
novas partículas. Este formalismo teórico assumido chama-se modelo padrão das
partículas elementares. Ele consubstancia a ordem no micro – mundo.
41
Uma excitação invulgar atingiu o mundo da ciência quando em Julho de 2012 o
laboratório de física de partículas elementares em CERN descobriu uma assinatura da
passagem do bosão Higgs numa experiência de colisão entre protões. Esta partícula havia
sido proposta já em 1960 e era vulgarmente conhecida por “partícula de Deus”
certamente por ser aquela que dá massa às outras.
O bosão de Higgs é uma partícula muito pesada, com 125 GeV e tem um tempo de
vida extremamente curto. Ele foi descoberto pelo traço das suas reacções de
desintegração que deixa nos calorímetros de CERN colocados nos pontos de colisão dos
feixes, envolvendo o Large Hadron Colider – LHC.
Esta vertente de análise dos fenómenos é comumente usada numa corrente chamada
metafísica quântica, em que os fenómenos da mecânica quântica são explicados
procurando explorar as contradições científicas ainda existentes nelas e tentando provar
sempre a existência à priori de uma ideia, de algo divino.
42
Referências Bibliográficas
Bell, J. S. (1966): "On the problem of hidden variables in quantum mechanics", Rev.
Mod. Phys.38, pág.447.
Bell, J. S. (1964): "On the Einstein Podolsky Rosen Paradox". Physics 1 (3), páginas
195–200.
Lenine, V. I.: Obras Completas 4ª ed. russa, tomo XIV, páginas 117 e 133.
43
Filosofia e a Literatura: Fronteira Porosa?
Por: Albino Chavale
Introdução
26
Le mot frontière est borgne. L’homme a deux yeux pour voir le monde.
27
Khun, T. (2008: 15).
44
considera como literária, a Filosofia pode ser definida, seguindo Castiano (2013: 5), como um
pensar fundamentador, ou seja, de fundamentação e ela tem a pretensão de procurar as
condições e as possibilidades de existência e ou de interpretação das causas mais gerais dos
fenómenos da natureza, sociedade e pensamento. Podemos também concluir, por outro lado,
que as suas denominações não denotam nenhuma relação genética como é o caso da
linguística e da sociolinguística ou da matemática e etnomatemática, etc. e são geralmente
ensinadas isoladamente nas instituições académicas.
Enfim, elas são diferentes também quanto aos objectivos: o objectivo da Literatura é de
distrair, fazer pensar, fazer rir, aumentar a imaginação, etc. O da Filosofia é provocar a
reflexão, questionamento, raciocínio lógico, etc.
Pode-se, à luz do que acaba de ser exposto, considerar que a Filosofia e a Literatura são
dois domínios distintos que não comungam espaços comuns e por conseguinte, a fronteira
entre estas duas disciplinas é nítida, pelo menos em certos períodos históricos. Será esta
característica contínua ou também fugaz?
A questão levantada obriga-nos fazer uma abordagem diacrónica, isto é, analizar a relação
entre a Filosofia e a Literatura ao longo do tempo. Nesta perspectiva, a fronteira entre elas
apresenta contornos diferentes. Com efeito, ela aponta para a existência de uma fronteira
porosa. Esta porosidade resulta, em primeiro lugar, da relação ‘’genética’’ 28 do ponto de vista
geográfico e do ponto de vista cultural. No diz respeito à origem geográfica, as duas disciplinas
nasceram na Grécia Antiga. Quanto à ligação cultural, ambas são produto e pilares de
sustentação da expressividade do pensamento da mesma cultura: a greca, por um lado, elas
resultam também dos esforços dos Homens em encontrar respostas às questões essenciais, por
outro lado, na Grécia antiga no século VI ANE.
É, sem dúvidas, por esta razão que os primeiros intelectuais gregos e percursores da
Filosofia uniam geralmente esses dois domínios. Por exemplo, Homero, autor de Ilíada e de
Odisseiae Hesíodo, autor de Teogonia. Nestas obras eles interpretam de maneira literária a
visão do universo antigo, a posição dos deuses e a do Homem no mundo. O primeiro sob forma
de conto heróico e o segundo sob forma de poema mítico. Por isso, são também considerados
poetas lendários da Grécia antiga.
A fusão entre estas duas disciplinas está presente igualmente nos antecessores de Sócrates.
Com efeito, eles expressam-se numa forma onde a filosofia a poesia não se distinguem. Por
exemplo, Heráclito, considerado por alguns “o pai da dialéctica”, não utiliza enunciados
directos e socorre-se das metáforas ou comparações directas para apresentar o seu ponto de
Estamos a considerar estas duas disciplinas numa perspectiva ocidental, já que noutras regiões do
28
45
vista sobre as mudanças e a luta dos contrários. Talvez por causa do recurso aos recursos
literários é associado à filosofia ‘’obscura’’.
Intelectuais “Híbridos”
46
podemos compreender melhor o lugar da ética no pensamento de Sartre. Um lugar que vai
determinar a sua filosofia mas também a obra literária. Para Sartre ‘’As questões que o nosso
tempo nos coloca e que permanecerão nossas questões são de uma outra ordem: “Como é
possível fazer-se homem na história, pela história e para a história? Haverá uma síntese
possível entre a nossa consciência única, irredutível e a nossa relatividade, ou seja entre um
humanismo dogmático e um perspectivismo?...A rigor, pode-se enfrentar esses problemas no
plano abstracto pela reflexão filosófica. Mas nós …pretendemos vivencia-los, isto é,
sustentar os nossos pensamentos pelas experiências fictícias e concretas que são os
romances” (Sartre, 1989: 164-5). O seu livro L’être et le néant é uma ilustração deste
posicionamento.
Enfim, Jacques Derrida (1930-2004). Para Derrida a Filosofia está ligada à Literatura.
Não se trata de assimilação de uma delas mas de articulação dos seus limites para um
trabalho mais enriquecedor. Importa referir também a influência da filosofia no escritor e
vice-versa.
Um outro factor que contribui para a porosidade da fronteira entre a Filosofia e Literatura
é a imigração conceptual, ou seja, alguns conceitos filosóficos foram apropriados/aplicados
na literatura. Tal é o caso do conceito de Desconstrução.
Por isso, a desconstrução é entendida também como uma corrente teórica que pretendia
minar os princípios sustentadores do pensamento/modelos ocidentais tais dentro/fora,
corpo/mente, fala/escrita, presença/ausência, natureza/cultura; forma/sentido. Derrida
considera que é preciso inverter a hierarquia estabelecida: ‘’Fazer justiça a essa necessidade
significa reconhecer que nós não estamos lidando com uma coexistência pacífica de um face
a face, mas as com uma hierarquia violenta. Desconstruir a oposição significa,
primeiramente, em um momento dado, inverter a hierarquia’’. (Derrida 2001:48).
47
O conceito desconstrução teve um forte impacto no pensamento ocidental ao
proporcionar questionamentos, deslocamentos, re-colocação de conceitos que eram
considerados canónicos. Na literatura ele foi apropriado para fazer emergir dimensões
marginalizadas pelos modelos literários clássicos, como por exemplo, a oralidade, a
espiritualidade, a língua popular, as visões do mundo. Depois da I Guerra Mundial aparecem
os primeiros movimentos que vão contestar os modelos literários precedentes. Não se tratou
da primeira vez, na história literária. Já que, como se sabe, cada corrente literária procura
afirmar-se diferenciando-se das precedentes ou seja, “põe-se, opondo-se”. Contudo, o século
XX conheceu uma mudança jamais vista, pelo menos na França, primeiro através da corrente
literária denominada Surrealismo (1920) criada por André Breton. Esta corrente considera
que os valores ocidentais baseados no “consciente’”, lógico e racional não foram capazes de
evitar a barbaridade humana: a I Guerra Mundial. Por isso, ela propõe uma valorização do
“inconsciente” por isso, as questões de lógica, o racional, são marginais em relação ao
instantâneo, ilógico, incoerente, etc. No mesmo período, embora dois anos antes do
Surrealismo, surge uma outra corrente literária chamada Dada. Esta corrente insurge-se
contra os modelos literários clássicos. Centra-se na derisão na brincadeira e no espírito
infantil e distancia-se da literatura das Belas Artes.
Por fim, a corrente literária Nouveau Roman, surgida por volta de 1957, contesta as
noções fundadoras do romance clássico como a de herói, fio-condutor, personagens com
traços psicológicos, etc. Por isso, estas noções não são norteadores das obras dos escritores
desta corrente. Como pudemos constatar, trata-se de contestar os modelos literários clássicos
através de procedimentos conceptuais que denunciam a apropriação/aplicação do conceito
desconstrução. A literatura pós-colonial africana, não constituiu excepção a este fenómeno.
29
As obras literárias africanas de expressão francesa, são geralmente publicadas por editoras francesas.
30
Presse de l´Université de Montréal, 1968.
48
Por exemplo, a percepção do tempo dos africanos segundo o filósofo John Mbiti 31
apresentada e discutida por Castiano (2010:91). Segundo Mbiti, a História “anda” para atrás,
isto é, do Sasa para Zamani, do momento experienciado para um longo período em que nada
pode ser experienciado. Na concepção tradicional africana, a História não se move para
frente... Daí que se pode inferir que não haja muito espaço, entre os africanos, para as ideias
ou noções de felicidade, de liberdade, de progresso e de desenvolvimento! (Iden). As
categorias aqui apresentadas são apenas de ordem do lugar comum.
Oralidade
Provérbios
O proverbio é curto enunciado que exprime um conselho popular, uma verdade ou o bom
senso. Ele está enraizado na cultura de um povo. Kourouma recorre a esta estratégia
discursiva que lhe permite consolidar o registo da oralidade e o imaginário das tradições
africanas. Por exemplo, “É melhor seguir as pegadas de um elefante na floresta para não ser
molhado pelo orvalho”33,(Na presença dos mais velhos, os jovens sentem-se protegidos),
31
Mbiti, J. (1969): African Religions and Philosophy, East African Educational Publishers, Nairobi,
Kampala.
32
La thèse selon laquelle le roman africain, comme la poésie et le théâtre est aussi un prolongement de
la parole artistique traditionnelle s’impose de plus en plus dans les études littéraires.
33
On suit l’éléphant dans la brousse pour ne pas être mouillé par la rosée, p.173.
49
"Não se põe um chapéu no joelho quando a cabeça está em cima do pescoço” 34,(é preciso
respeitar a hierarquia); “Uma criança não abandona a sua mãe por causa do seu cheiro” 35;(A
pessoa habitua-se ao seu ambiente).
A profusão deste recurso estilístico nesta obra não é, naturalmente, um acaso. Ele
permite ao escritor posicionar-se como depositário de uma sabedoria colectiva cujo alicerce é
a tradição oral.
Espiritualidade
A espiritualidade será entendida aqui, como toda crença que não é baseada no
racionalismo36. Não se trata de um apanágio das sociedades africanas mas constitui, sem
dúvida, uma dimensão importante na vida social. O título de livro Allah n’est pas obligé,
contém elementos ligados à espiritualidade. Ela está presente, em primeiro lugar, através dos
hagiónimos como Allah e Jesus-Cristo. Ela está presente, em segundo lugar, através de
referências explícitas ao cristianismo, islão, animismo, etc.
Língua Popular
A língua utilizada não corresponde aos padrões literários clássicos. A norma linguística
utilizada, ll ?????????? geralmente nos modelos literários clássicos é a norma padrão. Esta
não é a opção de Ahmadou Kourouma nesta obra. Com efeito, ele utiliza um registo popular e
familiar (não literário). Utiliza também gírias e empréstimos linguísticos. Por exemplo,
encontramos palavras de uma das línguas da Costa de Marfim, a língua Malinké, faforo (uma
34
Le genou ne porte jamais le chapeau quand la tête est sur le cou p.11.
35
Un enfant n´abandonne pas sa mère à cause des odeurs de son pet, p.18.
36
Como corrente filosófica, o racionalismo nasce com Descartes, e atinge o seu auge em B. Espinoza,
G. W. Leibniz e Ch. Wolff
37
Après il a dit qu’une chouette qui sort à gauche est un mauvais présage pour le voyage, p.46.
38
Le touraco ayant chanté à droite, Yacouba s’est levé et a dit que le chant du touraco était une
bonne réponse, p.46.
39
Une perdrix à chanté à droite, alors il s’est levé, il a souri et a dit que le chant de la perdrix signifie
que nous avons la protection, p.47.
40
Automatiquement, une pintade a chanté à droite, alors il s’est levé et a dit que le chant de la pintade
signifie que nous avons la bénédiction, p.48.
50
injuria que significa sexo da mulher); bilakoro (rapaz ou homem que não fez circuncisão);
djogo-djogo (custa o que custar); faro (esperto) etc. Encontramos também palavras da língua
inglesa como small-solder, pequeno-soldado) na p.44, bushmen, homem da floreste, p.36,
Kid (criança), p.64. A língua popular caracteriza-se também pela imbricação de estruturas
sintáxicas das línguas coexistentes, neste caso, da língua francesa e da língua malinké. Assim
encontramos “frases francesas” numa estrutura da língua malinké, o que faz com elas não
sejam compreensíveis em francês: a minha escola não foi longe 41, pediram-me para esfriar o
coração42, p.28. Estas frases criam uma certa estranheza linguística.
Enfim, a língua popular como característica o uso da gíria. Assim, encontramos palavras
como gajo, (p. 96); Puto (p.63); Cena, (97); Taco (154), etc.
Contudo, importa referir, que esta ‘’língua não literária’’ aparece entrelaçada com uma
língua muito literária com recurso até gregas e latinas. Este balanceamento entre o mesólito 45
e basólito46 a é também uma das características dos locutores em muitos países africanos.
Percepção do Tempo
41
Mon école n’est pas arrivée loin, 10.
42
Ils m’ont demandé de refroidir le cœur, 28.
43
Le transporteur-taximan-débrouillard-bamiléké, p. 175.
44
Ces tailleurs-soyaman-coiffeur-bijoutier-vendeur-de-pagne-masqué p.176.
45
Variedade mais alta de uma língua.
46
Variedade mais ‘’baixa’’ de uma língua.
47
No sentido matemático do termo, isto é, elemento suscetível de medição.
51
Assim, não se conhece a idade real da personagem principal: Tenho 10 ou 12 anos, (há
dois anos a minha avó dizia que tenho 8 e a minha mãe dizia que tenho 10)48. Esta
‘’imprecisão’’ da idade até é motivo de derisão: A minha mãe não contou a minha idade e os
meses, ela não tinha o lazer de fazer isso já que sofria e chorava constantemente49.
Algumas indicações temporais são apresentadas numa perspectiva ‘’não ocidental’’ por
exemplo, o período das cerimónias ritos de iniciação das raparigas: os ritos de iniciação são
organizados uma vez por ano quando sopra o vento do norte50.
O mesmo acontece em relação o período das orações é indicado tendo como referência
canto do galo, 1º, 2º, 3º, etc. Mamã morreu no primeiro canto do galo51, Um dia de manha,
chegou Yacouba, no primeiro canto do galo52, etc.
Enfim, a apresentação do conto não obedece uma lógica cronológica habitual da escrita
ou a sequência clássica, passado-presente-futuro. Assim, a personagem principal, Birahima,
começa a sua história no presente e depois fala do passado, incluindo o que ele era antes de
nascer! “Antes de estar no ventre da minha mãe, eu era vento ou talvez uma cobra,...Isso
chama-se vida antes da vida”, p.13.
48
Je suis dix ou douze ans (il y a deux ans ma grand-mère disait huit et maman dix), p.11.
49
Maman n’avait pas compté mo mage et mes mois, elle n’en avait pas le loisir vu qu’elle soufrait tout
le temps, pleurait tout le temps, p.14.
50
…l’initiation des jeunes filles qui a lieu une fois par an quand souffre le vent du nord.
51
Maman a rendu l’âme au premier chant du coq, p.33.
52
Um matin, au premier chant du coq, Yacouba est arrive à la maison, p.45.
52
ensaio histórico e fabula. Por isso, o crítico literário Mateso (1986:346) 53 resumia esta
tendência afirmando que “na literatura oral tradicional, […] o romance africano é
caracterizada pela imbricação de géneros e esta imbricação rompe as fronteiras entre os
géneros”.
Em Moçambique
Se Damboia teve erros não foram de grande monta. E nisso não devemos nos meter. O
tecto da casa conhece o dono, p.46.
- Mas o caracol deixa baba por onde passa, p.46.
As línguas e culturas bantu são desta forma incorporadas através de uma espécie de
tradução literal desses ditados populares.
53
(canábis), p.52, etc. Mas além deste léxico bantu, Ungulani Baka Khosa integra frases inteiras
em língua zulu que são traduzidas em português. Por exemplo: A mingi bonanga e mizeni
yenu. Ngi ya hamba, manje mizokusebendza. Ni bafazi benu, p.83. (Jamais me viste em
vossas casas…E verdade que me vou, mas sereis escravizados com as vossas mulheres).
Katerina Doudilova (2008:31) apresenta um ponto de vista muito interessante sobre esta
questão a partir da análise do diário de Manua. Este filho de Ngungunhane tirou o curso de
Artes e ofícios na Europa. Um dos temas principais dessa história é a relação da escrita com a
oralidade, ou melhor a “valorização do oral por oposição à escrita”. A narrativa começa pelo
achado do diário de Mputa, do qual o narrador colhe informações. Mas, como o diário nada
diz dos acontecimentos entre 1892 e 1895, serve-se também do testemunho do comerciante
árabe, Kamal Samade, o pedestrianista. E escrita é, neste romance, “o símbolo maior da
recusa da cultura tradicional e do início do colonialismo.” E também o símbolo do
desequilíbrio e da ruptura, porque a sua imposição numa sociedade de tradição oral não é um
produto da evolução histórica normal, mas é introduzida violentamente pelo outro. A crítica
da escrita aparece também no último discurso de Ngungunhane:
“Estes homens da cor de cabrito esfolado que hoje aplaudis entrarão nas
vossas aldeias com o barulho das suas armas e o chicote do comprimento da
jibóia. Chamarão pessoa por pessoa, registando-vos em papéis que
enlouqueceram Manua e que vos aprisionarão. Os nomes que vêm dos vossos
antepassados esquecidos morrerão por todo o sempre, porque dar-vos-ão os
nomes que bem lhes aprouver, chamando-vos merda e vocês agradecendo.
Exigir-vos-ão papéis até na retrete, como se não bastasse a palavra, que vem dos
nossos antepassados, a palavra que impôs a ordem nestas terras sem ordem, a
palavra que tirou crianças dos ventres das vossas mães e mulheres. O papel com
rabiscos norteara a vossa vida e a vossa morte, filhos das trevas.” (Ba Ka Khosa,
2008:89).
54
“- Há pormenores que o tempo vai esboroando – disse o velho, tossindo.
Colocou duas achas no fogo e soprou. Novelos de fumo passaram pelo rosto. Pequenas
lágrimas saíram dos olhos cansados e tocaram na pele coberta de escamas. Afastei os papéis.
Olhei-o. Era noite.” (Ba Ka Khosa, 2008:88). Neste excerto, a oralidade encontra-se com a
escrita. Percebemos que o ouvinte anota as palavras do velho, talvez na tentativa de fixar as
histórias antigas da tradição oral, para as fazer renascer, mas já de forma escrita. Num certo
momento, o ouvinte afasta os papéis para poder pensar na história do velho.
Segundo Katerina Doudilova (2008:25), Ungulani Baka Khosa faz uma renovação do
discurso histórico e participa do que Mioara Caragea chama “romance histórico”. Este, tem
como objectivo principal “reinventar as versões tradicionais da identidade colectiva” e
preencher “os espaços brancos do passado ignorados até ai pelo discurso histórico oficial”. A
relação da metaficção com a historiografia manifesta-se pelo tratamento da História a
exemplo dos paradigmas criados por nouvelle histoire. Por exemplo, o descolamento do
interesse para o que permanecia nas margens: Os assuntos e personagens marginalizados.
O livro Ualalapi representa um conjunto de seis contos aos quais sempre antecedem
fragmentos do fim. Os contos, aparentemente independentes, têm um elo vincular que é a
tentativa da construção e desconstrução (e talvez a reconstrução) da personagem do
imperador Nguni, Ngungunhane. Assim, podem funcionar comunidades independentes, e ao
mesmo tempo interdependentes. São impregnados de fenómenos sobrenaturais e de ecos dos
mitos africanos o que lhes confere o carácter circular do tempo, do tempo do eterno regresso.
Os Fragmentos do fim, numerados, compostos pelos documentos históricos (1º, 4º, 5º) ou
pelos textos históricos inventados que oscilam entre o testemunho histórico e a ficção (2º, 3º,
6o), ordenados por ordem cronológica, que confere ao livro o carácter linear, retratam os
acontecimentos que resultam no aprisionamento de Ngungunhane pelos portugueses e, em
consequência disso, a queda do império nguni.
O Sobrenatural
55
- Ao segundo mês, creio, choveu como nunca durante duas semanas. O sangue
dela escorreu ao rio, tingiu-o de vermelho e matou os peixes que os nguni não
comiam (p.51).
Ou ainda o aparecimento de mortos sem explicação:
- Um fenómeno estranho passava-se nos arredores: cadáveres sem nome e rosto
apareceram à superfície das águas lodosas (p.45).
Buinsanto…afirmou que o seu irmão Manua bebia com muita sofreguidão devido
ao feitiço dos bisavôs que se irritaram por aqueles modos. O pénis minguava de
dia para dia. No dia da sua morte acordou sem nada entre as coxas (p.79).
Espiritualidade
A espiritualidade está presentes tal como em Allah n’est pas obligé associada aos
animais e aos antepassados:
Em Jeito Conclusão
À luz do que foi exposto, pode afirmar-se, em primeiro lugar, que a apropriação do
conceito de desconstrução permitiu a literatura africana emancipar-se dos modelos literários
canónicos e fazer emergir novos paradigmas capazes de espelhar as preocupações dos
escritores africanos. Assim, as antigas ‘’margens’’ constituem, hoje, os pilares da literatura.
56
Pode-se afirmar, em segundo lugar, que os diálogos entre a filosofia e a literatura vão da
partilha de temas até à fusão em alguns escritores filosóficos e em terceiro lugar, como
corolário, que a relação entre a Filosofia e a Literatura transcende os limites rígidos do
conhecimento caracterizado pela departamentalização e revela a forma como os saberes se
interrelacionam, se completam e se confundem. Por isso, pode-se considerar que a fronteira
entre esses dois domínios é essencialmente porosa.
57
Bibliografia
58
Fronteiras das Ciências Naturais com a Filosofia
Introdução55
Gosto de olhar para o quintal através da janela da minha cozinha e ver a relva. Todos os dias
quando eu olho pela janela da cozinha vejo a relva. A relva na minha mente é quase um
sinónimo do verde e do meu quintal. No entanto, num dia de sol de inverno, me sentei numa
cadeira no meu quintal, aproveitando o sol para aquecer a minha pele e espírito, olhei para a
relva aos meus pés e ao redor da minha cadeira e notei pequenos insectos que rastejavam pela
relva. Eles eram pretos e mediam menos de meio centímetro de tamanho. Eu nunca tinha
notado antes e não tinha conhecimento da existência de tais insectos no meu quintal. Na
contemplação, eu me perguntei qual poderia ser o papel daqueles insectos na relva verde.
Seriam prejudiciais? Seriam parasitas ou estariam vivendo em reciprocidade com a relva - o
mutualismo, ou talvez independentemente dela? Passei então talvez meia hora ou mais a
inventar a realidade sobre a relva e sobre os pequenos insectos, e durante este tempo a
realidade que a relva estava representando, de alguma forma, se alterou. Eu ainda estava
olhando para a relva, mas não conseguia ver a relva que eu costumava ver através da janela
da minha cozinha. Havia, com certeza, uma outra realidade da relva a entrar na minha íris e a
manter-me ocupada pensando sobre a sua natureza. A relva era mais que o material que eu
olhava. Era a relação desta com outros animais e era também a relação desta com essa coisa
que não sei descrever, mas que contemplando a relva me levava a imaginar a dimensão do
mundo e de uma forma espiritual, me indignar com a minha própria existência. E a dos meus
pais, e a dos meus avôs, e a dos que estiveram antes deles. Olhando a relva eu imaginei e vivi
a memória desses meus antepassados e o mistério dos espíritos que elevavam a minha mente
para não simplesmente observar mas também contemplar e sonhar. Então eu perguntei,
eventualmente, não pela primeira vez: O que é a realidade que vemos ao nosso redor? Existe
algum significado para ela? Qual é o meu papel em fazer algo real, como naquele momento, o
que era essa coisa que me fazia olhar para a relva e ver uma realidade diferente? Será que
precisamos de contemplar e não apenas observar as coisas, a fim de elaborar um significado?
E se nós não nos engajarmos em uma reflexão sobre a realidade, o seu significado qual é?
Qual é o significado para a relva que os outros têm? Átomos, proteínas, quintal, insectos,
antepassados, espíritos?
O sol ainda estava esquentando minha pele e meu espírito naquele dia de inverno.
Perguntando sobre a realidade, lembrei-me da conversa com o Prof. Severino Ngoenha sobre
fronteiras e me perguntei se as minhas reflexões eram científicas (das Ciências Naturais) ou
filosóficas.
55
Adaptado de Afonso, 2007.
59
De várias perspectivas esta história se enquadra na abordagem que aqui faço, uma reflexão
sobre as fronteiras entre as Ciências Naturais e a Filosofia. Tomei primeiro uma perspectiva
diacrónica que me fez desconstruir este conceito de fronteira entre estas duas áreas de
conhecimento. Passei depois pela via de linguagem, levando uma base estruturalista para
reflectir em alguns conceitos e termino o texto tomando uma via multiparadigmática,
tentando abordar a questão das fronteiras sobre uma perspectiva de existência de múltiplas
culturas e da possibilidade da sua interacção no género do mutualismo- conceito da ecologia
ou intercultura- conceito da política/filosofia. Quero dizer, previlegiei neste texto a interação
e não a delimitação das diferenças.
Escolhi, para começar esta reflexão, a abordagem diacrónica, porque como diz Skolimowsky
(1994), autor do livro sobre os três grandes projectos Ocidentais, ideias sobre como e porque
estudar o universo são reflexo ou influenciadas grandemente por aquilo que constitue o
problema da época. Se falarmos, por exemplo, da idade média, os filósofos estavam muito
preocupados e construíam os seus pensamentos à volta de se provar a existência de Deus e o
papel deste sobre o universo. Hoje, o teocentrismo não é prioridade, não é o focus de
problemas de hoje. Assim, uma vista diacrónica ajuda a compreendermos não só os factos,
mas também a subjectivarmos esses factos a interesses da época - quer dizer esta viagem
diacrónica, é deconstrutiva-intencionalmente, como se poderá ler nas últimas linhas mais
adiante.
A observação como método científico foi introduzida por Galileu (1564-1642) no contexto do
estudo do universo (a Terra gira à volta do Sol) contra as ideias de Aristóteles (384-322 a.C.)
que estavam em harmonia com as interpretações religiosas do universo. Com as suas
observações, Galileu explicava, olhava/observava o que acontecia sem se preocupar porque
60
acontecia, ao contrário de Aristóteles que se ocupava de explicações sobre as razões dos
acontecimentos.
Francis Bacon (1561-1626) iniciou o que ficou conhecido como “normas do método
científico” defendendo que todo o conhecimento devia ter como base a evidência e a
experiência (contrapondo as ideias de Aristóteles que defendiam que tudo tinha uma causa ou
propósito). Bacon chamou a atenção sobre dogmas que distorciam o conhecimento. Dai a
ciência avançou muito num paradigma positivista, objectivista.
A preocupação em delimitar a área de estudo das Ciências Naturais, assim como de outras
ciências, deu lugar ao surgimento do estudo destas a um nível meta de descrição e
interpretação da natureza de cada disciplina. No caso das Ciências Naturais, deu lugar ao
estudo da Natureza das Ciências Naturas (NOS- Nature Of Science). Segundo esta descrição,
ontologicamente, o método científico baseia-se no realismo, assumindo que existe uma
realidade (ou mundo, universo) que pode ser observado e estudado seguindo determinados
métodos. Epistemologicamente, o empiricismo é tido como o método das Ciências Naturais.
O conhecimento, para ser reconhecido como sendo de natureza científica, tem que ter uma
base empírica. O reducionismo é a lógica privilegiada no método científico. A ideia
dominante nesta lógica é de que para chegarmos a um conhecimento a via é dividirmos o
fenómeno em partes cada vez menores. Dessa forma se pode chegar ao conhecimento sobre
um ‘todo’. Os aspectos constituintes da NOS funcionam, assim, como princípios
exclusivistas: só é Ciência Natural o conhecimento que passa pela condição epistemológica
do método científico. No entanto, se por um lado existe uma condição de pertencer às
Ciências, este discurso das Ciências é considerado legitimado para entrar em todas as outras
áreas e culturas- é proclamado universal. Assim, este discurso descredibiliza o que em outras
epistemologias se considera conhecimento válido. Mas este assunto deixarei para a terceira
parte da minha abordagem, a abordagem multiparadigmática.
61
muitos colegas, de outras ciências, para os quais só a ideia/imagem de laboratório lhes
desencoraja a perceber sobre os fenómenos que lá são interpretados. Os laboratórios,
semioticamente, tornam-se uma fronteira que só os que estudam ou gostam das Ciências
Naturais querem transpor.
No entanto, se tomarmos uma perspectiva diacrónica, que permite uma deconstrução das
barreiras que se ergueram, veremos como frágeis e instáveis são estas fronteiras. Se
tomarmos como exemplo, a teoria sobre o átomo, teoria esta que talvez mais marcou as
Ciências Naturais, chegamos muito rapidamente a essa fragilidade fronteiriça. O átomo de
Demócrito era simplesmente a menor porção de matéria que poderia existir. Ele se
perguntava até onde poderíamos dividir a matéria, e a parte que já não se poderia dividir ele
chamou átomo- em grego indivisível. Esta ideia perdurou por séculos até que no auge do
empiricismo, John Dalton (1766-1844), fazendo experiências sobre as reacções e as
proporções múltiplas, ‘provou’ a ideia de existência das tais partículas indivisíveis chamadas
átomos. Dalton (que também foi pioneiro no estudo da deficiência visual chamada
daltonismo) tratava este conceito no âmbito submicroscópico, e o mais importante é que
tomou a via epistemológica das Ciências Naturais para legitimar o que Demócrito descobrira.
Joseph Tompson (1856-1940) introduziu os electrões e daí a ideia de que existem partículas
menores dentro do átomo. Ernest Rutherford (1871-1932), Niels Bohr (1885-1962)
construíram também os seus modelos. Nos dias de hoje perduram as ideias da Mecânica
Quântica.
Hoje, na mecânica Quântica, está-se longe das certezas sobre a matéria dos tempos áureos do
empiricismo, do objectivismo como meio básico para se chegar ao conhecimento. Segundo a
Mecânica Quântica, o electrão (outrora considerado uma partícula) é uma partícula e
simultaneamente uma onda, este princípio opõe-se à ideia que perdurava nas ciências de que
A não pode ser não-A. Neste caso pode ser A e pode ser não-A, - um princípio dialéctico que
teve então que ser introduzido nas Ciências Naturais. Além disso, a posição e o movimento
do electrão passou a ser indeterminado. A ideia de órbitas que eram descritas como
caminhos ou rotas definidas dos electrões correspondentes a níveis de energia, foi substituída
pela ideia de orbitais descritas como locais prováveis (e não rotas definidas) do movimento e
posição do electrão. Paul Dirac (1902-1984) foi explícito nas suas aulas dando o exemplo de
que enquanto com o giz é possível nós dizermos onde está, num determinado momento, e que
se o giz está ali não pode estar em nenhum outro lugar, com o electrão o fenómeno era bem
diferente. Com o electrão, havia um conjunto de possibilidades que ele estaria aqui e ali e
além e em mais outros lugares naquele mesmo instante (o princípio da sobreposição).
Segundo a Mecânica Quântica existe sempre uma incerteza sobre o electrão, não se pode
saber a exacta posição e energia de um electrão. Para a objectividade das Ciências Naturais,
esta segunda ideia básica da Mecânica Quântica coloca algumas interrogações e marca, de
facto, a diferença com a Física clássica.
62
Fonte: http://www.nobeliefs.com/atom.htm)
Quero dizer, de um conceito filosófico sobre constituição da matéria (de Demócrito) o átomo
passou a base reducionista, que o qualificou então como um conceito das Ciências Naturais
(embora ele tivesse sido matéria de debate e de ‘descoberta’ de filósofos). Mas hoje o átomo
está a caminho de transcender as Ciências Naturais. O objectivismo deu lugar ao
subjectivismo (a questão mesmo da natureza do electrão) e até questões da metafísica são
importantes nas discussões das Ciências Naturais. As fronteiras tornaram-se difusas e, por
exemplo, vários cientistas são considerados filósofos. Cientistas como Johannes Kepler
(físico filósofo), René Descartes (filósofo matemático), Bernard d’Espagnat (filósofo físico) e
muitos outros exemplos. Os debates sobre o que é a realidade continuam e a busca de uma
TOE (Theory Of Everything) - mais filosófica que o método científico, volta a estar em voga
nos livros das Ciências Naturais. O livro de Shroedinger, um dos grandes propulsores da
Mecânica Quântica, ‘What is life: Mind and matter’ (o que é a vida: Mente e matéria) não
surpreendeu pelo título apesar de transcender o domínio da matéria.
Assumo que, no contexto de fronteiras, sem dúvida que o método científico agiu como uma
fronteira não só prática mas também ideológica na validação/legitimação do que é
conhecimento. Marcou uma separação com a Filosofia Natural e também com todas as outras
formas de saber que diferentes culturas desenvolviam. No entanto, as fronteiras rígidas das
Ciências Naturais parecem estar destinadas a se tornarem porosas ou a se fragilizarem. O
estudo do átomo, que deveria representar a unidade básica, na lógica positivista, leva a
afirmações cada vez menos objectivistas à medida que se vão descobrindo mais partículas (de
massa, neutras e de anti-massa). Os estudos avançados das Ciências Naturais, hoje, são
estudos de facto também filosóficos (e de outras áreas). Exemplo mais recente é que o prémio
Nobel da Medicina de 2014 foi atribuído a 3 médicos (J. O’keefe, M. Moser e E. Moser) que
conseguiram responder a uma pergunta filosófica e científica (os média noticiaram mesmo
que o prémio é de Medicina ou de Filosofia, por exemplo o jornal C&EN –Chemical and
Engineering News ou o jornal O País de Moçambique) sobre como os humanos percebem o
espaço à sua volta e como desenvolvem o senso sobre a distância -a chamada descoberta do
GPS do cérebro.
Levando este olhar diacrónico, é legítimo se perguntar: As fronteiras existem ou são fases da
história (uma evolução natural e/ou ideológica da nossa percepção sobre o universo)? As
fronteiras existem ou são ‘verdades’ frágeis que se vão diluindo na própria sofisticação do
nosso conhecimento (e.g. átomo incerto de hoje).
É neste contexto que posso afirmar que as fronteiras foram erguidas em determinada fase da
história para responder aos problemas dessa fase. E que foi talvez necessário erguer essas
fronteiras, especialmente quando nos lembramos que em 1633 Galileu foi condenado pela
Igreja pelas suas ideias ‘científicas’ revolucionárias.
63
Perspectiva de Linguagem
Nesta segunda parte vou tomar uma perspectiva linguística para estruturalmente reflectir
sobre as fronteiras entre a Filosofia e as Ciências Naturais. Ao contrário da primeira esta é
mais sincrónica.
De vários exemplos eu decidi tomar o do Japão, uma nação com longa tradição cultural ainda
hoje marcante e também uma nação científica e tecnologicamente avançada.
Alguns autores (ex. Kawasaki, 1996, 2006; Ogawa, 1998) argumentam que o ensino das
Ciências Naturais no Japão, pelo facto de ter sido traduzido para o japonês, tornou-se num
conteúdo que não era o mesmo que o do Ocidente. O argumento é que ao traduzir, os
Japoneses não incorporaram os valores e ideias sobre o mundo que o Ocidente encarnava.
Esta questão torna-se de peso porque, na minha leitura, as Ciências Naturais no Japão foram
imbuídas de ontologias e axiologias distintas das do Ocidente e levaram uma epistemologia
amalgamada com a Filosofia de vida do Japão.
64
mundo. A tradução de ‘natureza’ para ‘shizen’ levou ao que Kawasaki denomina por
incomensurabilidade linguística cultural. Os conceitos são, na base da cultura,
incomensuráveis. Pode-se deduzir destes significados que, enquanto nas ciências se observa a
natureza, do ponto de vista japonês shizen não é observável no sentido de observação das
Ciências Naturais. Outro conceito importante nas ciências é mesmo o de ‘observar’ que,
conforme abordado na secção anterior, é uma das etapas do método científico. A palavra
traduzida para a língua Japonesa de observar é ‘Kansatsu’. No entanto, Kawasaki argumenta
que existe aqui também uma incomensurabilidade cultural linguística e cita Hashida que
argumenta que Kansatsu é algo superior que observar, podendo talvez equivaler a
comtemplar. Portanto, a expressão Japonesa ‘shizen no kansatsu’ que traduzia nas línguas
ocidentais por ‘observar a natureza’, não tinha de facto o sentido ‘original’ das Ciências
Naturais observar a natureza. Observar, apontava Shahida, não é suficiente para kansatsu. No
significado japonês, kansatsu implicava uma empatia alta entre o observado e o observador e
este facto-empatia- na perspectiva Japonesa, era muito importante; O que levava Hashida a
afirmar que a separação entre observado e observador era má para a ciência, eles deveriam
mergir. Neste sentido, Hashida argumentava que a ciência tal como ‘falada’ nas línguas do
Ocidente era uma ciência inferior, que para ser útil para a sociedade devia ser falada em
termos de ‘shizen’ (pois este conceito religioso/filosófico não via a natureza com a função de
nos servir, mas sim como algo a ser supremamente respeitado), e em termos de ‘kansatsu’ ou
seja, comtemplar, meditar (pois este conceito impele a reflexões imbuídas de questões
axiológicas-de valores, imbuídas de questões filosóficas). Se tomarmos a perspectiva de
Hashida, a ciência no Ocidente ergueu e apoiou as fronteiras por ‘culpa’ da sua limitação
linguística, que ‘impunha’ um significado para a ‘natureza’ e para ‘observar’, por exemplo,
bastante reduzido. Podemos, no entanto, afirmar que os conceitos do Japão eram os ‘errados’
pois a ciência ‘vinha’ do Ocidente. Mas, podemos também julgar que os conceitos do Japão é
que eram os próprios para a ciência, pois o ritmo a que o Japão avançou científica e
tecnologicamente é admirável. Isto se pode dever em parte (mesmo reconhecendo a
complexidade da questão) ao facto de o Japão afinal, usar a ontologia ou axiologia ‘certa’
para as Ciências Naturais. Podemos argumentar ainda mais em favor desta posição ‘certa’ do
Japão mesmo se insistirmos no facto de as ciências serem do Ocidente. Por exemplo, se
pensarmos no berço das ciências ocidentais, na civilização grega, há muitos ‘erros’ de
tradução que aconteceram quando conceitos tinham que ser traduzidos. Por exemplo, uma das
palavras muito comuns nas ciências é a palavra ‘teoria’ que, segundo Habermas (1978) deriva
da palavra Theoria, que se relacionava, na civilização da antiga Grécia, a Theoros que era um
representante enviado para as celebrações. O representante tinha a missão de ‘contemplar’ as
celebrações através de theoros, pelo qual ele ‘abandonava’ a sua pessoa para os eventos
sagrados. A ‘tradução’ que foi feita à theoria para teoria, não levou exactamente todo o
significado implicado nesta palavra. Tal como Hashida afirmava em relação a ‘observar’ a
palavra teoria, não é suficiente para o sentido que de facto deve ser derivado de theoria. Certo
que uma análise estruturalista pode ter a limitante de ser sincrónica, no entanto, nos mostra
como antes a ‘teoria’ era mais filosófica que científica pura. Se a língua (falada) não estivesse
intrinsecamente ligada à forma como agimos, provavelmente esta interpretação ‘errada’
viciada não seria tão relevante. Mas tomemos o exemplo da palavra curriculum. Esta palavra
65
que etimologicamente deriva da palavra ‘currere’-significando ‘correr’ é um verbo do acto de
participar numa actividade –correr. No entanto, do latim esta palavra foi ‘mal traduzida’
passando o significado a ser mais de um pronome em vez de um verbo. Isto tem ainda hoje
implicações profundas sobre como muitos profissionais na educação entendem ser curriculum
e, por consequência, na forma como actuam. Interpretando o curriculum como um pronome,
ele torna-se um objecto tangível com planos de lição para se seguirem e orientações
metodológicas e menos o processo de correr (Slattery, 1995). E este facto traz uma profunda
diferença na forma de conceptualizarmos a nossa prática no ensino. Transformando o verbo
no sentindo de pronome o currículo passa a assumir imagens que não são suficientes para o
conceito original de currere, podendo ser induzido a currículo como conteúdo, currículo
como objectivos por alcançar e muitas outras que não traduzem o sentido de currículo como
verbo, um processo, uma acção.
Esta minha abordagem de linguagem é para sublinhar que as fronteiras entre as Ciências
Naturais e a Filosofia podem ser fictícias, armadilhadas por traduções que o Homem foi
dando a vários conceitos chave, no estudo do mundo que nos rodeia. Assim, eu perguntaria:
A fronteira existe ou é dependente da língua que se usa para explicar os fenómenos da
natureza? Por outras palavras, o conceito de Ciências Naturais que hoje temos é
linguisticamente contingente e não necessário. E me lembrei da relva no meu quintal- a
diferença que faz entre observar a relva e contemplar a relva.
Perspectiva Multiparadigmática
Tem sido tradição, ao nos referirmos à história da educação, recuamos a Grécia ou Roma. O
Egipto, país Africano, aparece mais como fonte de inspiração e de conhecimento e não
propriamente como berço das escolas. Diz-se que tanto Platão, como Demócrito mas
sobretudo Pitágoras (este viveu 27 anos no Egipto) e outros viajavam ao Egipto em busca de
conhecimentos. No entanto, as fronteiras erguidas deixavam de parte, por razões ideológicas
mas também políticas e sobretudo imperialistas, muito do conhecimento não Ocidental. As
fronteiras exclusivistas serviam também para a construção do império colonial. Assim, todo o
conhecimento clamado por outras culturas barrava nas fronteiras epistemológicas (o método
científico) ou, a ser incluído era deformado para obedecer aos critérios do guardião. Neste
contexto, estas fronteiras, por interesses políticos, eram reforçadas através, por exemplo, de
decisões económicas que, como afirma Hountondji (2002), levaram a que África não tivesse
laboratórios sofisticados e por conseguinte que dependesse, em termos de produção de
teorias, da metrópole.
66
das Ciências Naturais, podendo-se até falar de fases históricas da sua integração (por
exemplo, Nhalevilo, 2013). Surgiram várias teorias como a de ‘Border crossing’
(atravessando fronteiras) de Aikenhead (Canadá), ‘Colateral learning’ (aprendizagem
colateral) de Djegede (Nigéria) tentando argumentar sobre a integração ou inclusão dos
conhecimentos ou axiologias nativas nos curricula. Estas teorias tinham em comum a posição
multiculturalista (Irzik, 2001) que contrapunha a posição universalista sobre o ensino das
ciências. Dentro desta onda multiculturalista salientam-se (i) as ideias segundo as quais todos
os outros conhecimentos (nativos) devem ser incluídos no grupo das ciências que já existem
(por exemplo, Snively & Corsiglia, 2001) e, (ii) as ideias segundo as quais se deverá criar
uma outra disciplina que não as ciências para não subjugar este conhecimento pelas já
conhecidas ciências (por exemplo Cobern and Loving , 2001). Havendo algumas ideias ainda
clamando para o surgimento de uma nova denominação de pós-ciência ou pós-normal ciência
para incluir diferentes tipos de ‘ciências’ numa só, sem implicar a ciência que já conhecíamos
com as suas fronteiras ontológicas e axiológicas (exemplo Briggs & Sharp, 2004; Colucci-
Gray et al., 2006). Mais recentemente as ideias multiculturalistas vêm sendo contrapostas
pelas ideias interculturalistas da inclusão destes conhecimentos na escola como por exemplo
a Contiguity Argumentation Theory de Oguninyi (África do Sul). Uso o termo ‘intercultura’
significando diálogo entre as culturas, não apenas co-existência de culturas (Ngoenha, 2013).
Esta perspectiva ao invez de enfatizar as diferenças, centra-se na contribuição que as várias
culturas podem trazer na resolução de problemas. A teoria de Ogunniyi (veja por exemplo
Ogunniyi, 2004, 2006, 2007) argumenta por um espaço dinâmico de relacionamento entre as
várias ciências. Diferencia-se da teoria de ‘border crossing’ de Aikenhead pois Ogunniyi não
fala de fronteiras a serem atravessadas mas sim de contextos a serem entendidos. Esses
contextos tem as ‘vias próprias’ de validação do conhecimento ou de práticas. A teoria de
Ogunniyi diferencia-se também da aprendizagem colateral de Djegede, porque esta tem um
carácter estático (não é argumentativo) e tende tambem a ser dualista. Nas ideias de
Ogunniyi, as fronteiras entre as várias formas de interpretar o mundo à nossa volta são
minimizadas, privilegiando-se a ‘acreditação’ do conhecimento com base no contexto e
explorando também os espaços contíguos nos significados construídos na base dos diferentes
contextos. Muitas tentativas de inclusão dos conhecimentos nativos talvez não sucederam por
envergarem ou por uma tendência dualística dos diferentes tipos de conhecimentos ou por
uma tendência de assimilação. Estas posturas não privilegiam o contributo que cada sistema
poderá dar, nem estimula sinergias entre eles. Na óptica da Teoria de Argumentação
Contígua (TAC), tornamo-nos híbridos, no sentido em que nos movemos nos vários grupos
de conhecimentos, é uma postura dinâmica. Ogunniyi estipula que num contexto um
conhecimento pode ser dominante e noutro contexto supresso, equipolente, emergente ou
assimilado. Na TAC, apesar de se falar de argumentação, nao é no sentido de qual argumento
ganha ou qual perde, como é no caso da argumentação em Ciências Naturais advogada por
Toulmin- a Toulmin Argumentation Pattern, (Toulmin, 2003 ) mas é no sentido de
possibilitar que os participantes possam tomar conhecimento e consciência de outras formas
de olhar e resolver os problemas da vida. É uma argumentação como forma de os convidar a
apreciar a diversidade de culturas, conhecimentos e visões do mundo. Uma forma de poder
tomar diferentes pontos de vista a apreciar os fenomenos a nossa volta, reconhecendo assim a
67
sua complexidade. A importância da argumentação segundo esta teoria, é para evitar
relativização ingénua do conhecimento que pode conduzir a ideia de que tudo é válido e
aceitável, bastando escolhermos um contexto. A Relativização como diz Kawada (2001) pode
conduzir ao essencialismo cultural, o que periga o relacionamento entre as dieferentes
culturas. Da universalidade das ciências à multicultura e intercultura, as ideias sobre
fronteiras, vão dando lugar ao conceito de holograma. Holograma, uma invenção das
Ciências Naturais, é a meu ver, muito interessante. É uma imagem tridimensional de um
objecto com a característica distinta de cada parte do holograma, armazenar informação sobre
todo o objecto mas a partir da sua única perspectiva (Henderson e Kesson, 2004). A palavra
provém do grego, holos-todo e gramma- messagem. Henderson e Kesson usaram o termo
‘holograma’ como metáfora para imagem de um curriculum sábio, que incorpora diversas
formas56 ou perspectivas práticas, críticas e visionárias na educação de uma sociedade diversa
mas unida. As diversas disciplinas, penso, armazenam informação sobre o mundo-todo, mas
na sua particular perspectiva. Já não me surpreendi quando recentemente visitei uma
universidade africana em que no corpo docente do departamento de Filosofia está – a tempo
inteiro- uma médica filósofa, dando entre outras aulas de Bioética e que teve a amabilidade
de me oferecer o livro Research Ethics in Africa57. Um livro, a meu ver, de Ética, Medicina,
História, Politica, Cultura e muito mais no qual o clérico Desmond Tutu escreveu o prefácio.
Concordo com o proverbio Nigeriano: “Em tempos de crise, o sábio constrói pontes e o
ingénuo fronteiras”. As Ciências Naturais nas suas diversas vertentes da Química, Física,
Biologia ou outras inter-existem e se desenvolvem com a Filosofia nas suas diversas
vertentes da Metafísica, Epistemologia, Ética, Lógica, Política ou outras.
Agradecimentos
56
As diferentes formas mencionadas por Henderson e Kesson são: Tecne, poesis, praxis,
dialogos,phronesis, polis, e theoria
57
Research ethics in Africa, editado por M. Kruger, P. Ndebele e L. Horn, 2014
68
Agradeço a Cristina Loforte e ao Ivan Donduro por terem lido e comentado sobre a primeira
versão deste texto e agradeço ao David Mudzenguerere por me ter ajudado a editar
linguísticamente o texto.
69
Referências
70
Ogunniyi, M.B. (2006): “Effects of a discursive course on two science teachers’
perceptions of the nature of science”. African Journal of Research in Science,
Mathematics and Technology Education, 10(1), 93-102.
Ogunniyi, M. B. (2007): “Teachers’ stances and practical arguments regarding a
science-indigenous knowledge curriculum, paper 1”. International Journal of
Science Education, 29(8), 963-985.
Shapiro, B. (1998): “Reading the furniture: the semiotic interpretation of science
learning environments”. In B. J. Fraser & K. Tobin, G. (Eds.), International
Handbook of Science Education (Vol. 1, pp. 609-621). Dordrecht: Kluwer Academic
Publishers.
Skolimowski , H. (1994): The Participatory Mind. London: Penguin Books.
Slattery, P. (1995). Curriculum Development in the Postmodern Era. New York:
Garland Publishing.
Snively, G., & Corsiglia, J. (2001): “Discovering indigenous science: Implications for
Science education”. Science Education, 85(1), 6-3.
Toulmin, S. (2003): The uses of Argument. Cambridge. Cambridge University Press.
71
Na Fronteira entre a Filosofia e a Psicologia
A fronteira entre a filosofia e a ciência nem sempre é nítida: Muitos cientistas interessam-se
pela filosofia e levantam questões filosóficas, como também muitos filósofos praticam uma
ciência. E a demarcação entre constatações científicas e filosóficas nem sempre é clara. Por
exemplo, podemos perguntar, se é um fato científico ou um fato de natureza filosófica que as
substâncias químicas ordenam-se segundo o sistema periódico, e isso não apenas na terra,
mas também em outras galáxias, que nenhum ser humano visitou e submeteu a experimentos
químicos.
Entre a filosofia e a psicologia a fronteira é menos nítida ainda. A região fronteiriça entre
ambas as disciplinas parece particularmente pantanosa, e isto por várias razões. A psicologia
é muito nova ainda. Ela tornou-se ciência há uns 150 anos. Originou-se no século XIX, num
momento em que as ciências naturais estavam realizando um grande salto pela frente. No
entanto, a psicologia não se alia às ciências naturais e escapa, pelo menos parcialmente, aos
métodos científicos. O seu “objecto de estudo” é o homem, mas não o seu corpo (que se
encontra sob a tutela da medicina), mas sim a sua psique. “Psique” é a palavra grega para a
alma. O que é a alma? Sabemos que ela é algo imaterial e, como lemos na Bíblia, imortal.
Podemos concluir disso que a psicologia é a ciência da imortalidade? Não, de modo algum. A
ciência que se interessa pela imortalidade é a teologia e, talvez, num segundo plano, a
parapsicologia.
Há cerca de 2.400 anos, Aristóteles considerava a alma como o princípio da vida e distinguiu
nada menos do que três almas: uma alma vegetativa, que é comum às plantas, aos animais e
aos homens; uma alma sensível, que é comum aos animais e aos homens; e uma alma
racional, que pertence exclusivamente aos seres humanos. Durante séculos a epistemologia
(= teoria do conhecimento) baseou-se nesta teoria da alma. Até os primeiros empiristas
inglêses explicavam a génese do conhecimento humano com as impressões que os objetos
exteriores deixam, como vestígios, na alma – de forma semelhante como um selo deixa sua
impressão na cera. Mas, em comparação com a cera, a alma não é nem mole nem maleável. E
a função que Aristoteles atribuiu a ela é completamente diferente àquela da cera: A alma é o
princípio da vida, o centro das actividades biológicas, dos sentimentos e dos atos intelectuais,
do pensamento racional, do raciocínio. Ela regula o crescimento, orienta o desenvolvimento e
constitui a razão. Aristóteles foi um dos pioneiros da pesquisa biológica, e nas suas idéias se
baseia, entre outras disciplinas, na biologia evolutiva que vê na alma tipo Aristóteles um
precursor do programa genético. Assim, a psique aristotélica tornou-se objeto de estudos
biológicos.
72
O que então é a Psicologia?
A resposta a esta questão não é imediatamente óbvia. A psicologia emergiu como ciência,
quando na Alemanha, pouco depois da metade do século XIX, Wilhelm Wundt (1832-1920)
começou a medir a intensidade de sensações, e na Inglaterra Francis Galton (1822-1911)
introduziu, nos seus estudos sobre o comportamento humano, o uso do questionário e de
métodos estatísticos.
Na mesma época, Darwin (1819-1882) estava trabalhando na teoria da evolução. A sua obra
sobre A Origem das Espécies, publicado em 1859, revolucionou a imagem do ser humano:
Como os animais, as plantas, os fungos etc., o ser humano também é resultado da evolução.
Portanto todas as qualidades humanas, todas as suas habilidades e especificidades têm uma
origem natural que deveria ser acessível a uma explicação dentro da moldura das ciências
naturais. Neste contexto os promotores da psicologia orientaram-se na metodologia das
ciências naturais. Já no início dos anos 40 do século XIX, o belga Adolphe Quetelet (1796-
1874) tinha aplicado métodos estatísticos, que ele chamou de "física social". Ele introduziu,
por exemplo, as estatísticas da natalidade, calculou a expectativa de vida dos belgas (em
número de anos), calculou a percentagem dos cidadãos criminosos, como também dos
cidadãos com uma propensão de produzir literatura. Em 1846 ele liderou o primeiro censo na
Bélgica. Meio século mais tarde, em 1897, o sociólogo francês Émile Durkheim (1858-1917)
publicou um trabalho sobre o suicídio, baseado em estatísticas sobre os números em questão,
com homens e mulheres, católicos e protestantes, em épocas de guerra e de paz.
Na psicologia do século XX, a observação do comportamento, os métodos baseados na
matemática (experiencias com medição) e o uso de estatísticas desempenharam um papel
cada vez mais importante. Isso vale tanto para a psicologia da aprendizagem, para a
psicologia da memória, a psicologia do desenvolvimento, a psicologia social, como para a
psiquiatria forense.
Nos Estados Unidos, John Watson (1878-1958) fundou o behaviorismo, uma tradição
psicológica que se limitou ao uso dos métodos das ciências naturais. Os behavioristas
tentaram explicar o comportamento animal e humano como processo puramente mecânico
(de acordo com o padrão de estímulo-resposta) e tomaram o condicionamento operante como
procedimento básico para a educação, e em particular para o ensino. Visto pelos olhos de um
behaviorista, o comportamento de um ser humano é semelhante, não apenas ao
comportamento de um animal, como também ao movimento de uma bolinha de gude: O que
acontece, se eu lanço uma bolinha contra outra? Como reage a bolinha que sofre o choque?
Como reage um cão, quando ouve uma campainha após ele receber o sua alimentação?
Como reage uma criança que vê o edifício da escola onde vezes seguidas foi espancada? Os
primeiros behavioristas trabalharam unicamente com a observação do comportamento e
consideravam os processos cognitivos como ocorrendo dentro de uma "caixa-preta", cujo
interior é impenetrával aos nossos olhos, de modo que nada podemos comprovar
cientificamente sobre eles.
73
No entanto, a psicologia não é uma ciência natural, mas sim, uma ciência humana. Isso se
torna evidente considerando os seguintes dois aspectos:
A psicologia, apesar da sua tradição experimental (com testes, medições e estatísticas), não
pode ser considerada como ciência no sentido duro. No contexto das humanidades, o papel de
testes distingue-se nitidamente do seu papel nas ciências naturais: Se um psicólogo avalia os
resultados da aprendizagem de um estudante, ele mexe no processo dessa aprendizagem
mesma. Se o resultado do teste é bom, o estudante sente-se incentivado, e se, pelo contrário, o
resultado é mau, o mesmo sente-se desmotivado. Da mesma forma, um prognóstico positivo
aumenta a motivação, ao passo que um prognóstico negativo a diminue. Em contraposição
com isso, a previsão de um evento natural não exerce nele influência nenhuma. Medindo a
velocidade de um cometa, nós não a aumentamos nem diminuimos. O objetivo das
experiências científicas é descobrir os efeitos causados por eles: Se alguém acende o rastilho
de um dinamite, ele causa uma explosão. Na medida em que todas as condições relevantes
permaneçam as mesmas, o resultado também ficará o mesmo - em toda parte do mundo. Isso
parece ser uma lei da natureza.
As ciências humanas também se distinguem das ciências naturais no que diz respeito às
condições éticas às quais elas devem corresponder: Para determinar de forma inequívoca o
efeito de uma medida, os pesquisadores devem trabalhar com grupos comparativos. Um bebê,
74
com o qual a mãe e os familiares falam muito (mesmo antes de ele mesmo começar a falar),
se desenvolve diferentemente de um bebê com o qual ninguém fala. Por razões éticas, um
experimento científico com um grupo de controle de crianças, com as quais ninguém falasse,
seria impensável.
Como então devemos proceder para testar as realizações de um grupo de pessoas? Vale a
pena ver no teste uma forma de interação entre seres humanos. Examinando as realizações de
um aluno, não apenas colhemos “dados”, mas sim, exercemos também uma influência nas
suas realizações presentes e futuras. Um resultado ruim desestimula o desempenho da pessoa
testada ou talvez até o estimula; isso depende do exame, das condições, em que a pessoa
examinada se encontra, das suas experiências anteriores, do seu caráter etc. Numa situação de
teste, diferentes pessoas reagem diferentemente, porque o espaço da sua livre escolha não é
zero. Essa constatação nos leva a indagar de mais perto a fronteira entre a psicologia e a
filosofia.
75
sentimentos, desejos, etc.? Até que ponto a distinção entre o corpo e a alma, ou entre o
cérebro e a consciência, é análoga à distinção entre hardware e software? Nem é muito claro,
se o desempenho de colocar estas questões é de natureza empírica ou teórica ou até
filosófica...
Em terceiro lugar, a psicologia tem a ver com o problema do acesso à consciência alheia: Um
investigador do cérebro pode observar e descrever com precisão os processos neurônicos na
cabeça de uma pessoa, mas isso não lhe dá acesso às experiências psíquicas ou aos
pensamentos dela. O psicólogo e o psiquiatra não vêem os estados de consciência de outra
pessoa. Quando falam da consciência alheia, trabalham com interpretações e conclusões a
partir daquilo que podem observar: o comportamento, a mímica, as palavras da pessoa em
questão. Nisso tudo a empatia desempenha um papel chave, mas a empatia não impede a
possibilidade de falsas interpretações. Quando interagimos com outra pessoa, atribuimos aos
estados de consciência dela um grau de realidade que não é menor daquele que nos
atribuimos aos nossos próprios estados de consciência. Mas como podemos ter certeza disso?
Em quinto lugar, cada psicologo tem na sua mente uma imagem do homem. Que imagem é
essa? Há muitas possibilidades: a imagem de um ser racional que visa maximizar as suas
utilidades; a imagem de um ser que explora seus pares sem se preocupar muito com as
consequências; ou, pelo contrário, a imagem de um ser social que coopera com os seus
parceiros e ajuda os necessitados [um “zoon politikón”, segundo Aristoteles]; ou a imagem
de um inventor de tecnologias, do arco e da flecha até à bomba atômica... Que carácter têm
estas imagens? o de descrições ou de prescrições (normas, recomendações)? E qual é a
função delas? Existe um ser humano "normal", e em caso afirmativo, como ele se apresenta?
A resposta à esta questão influe na maneira como vêmos o trabalho dos psicanalistas e dos
psicoterapeutas: Devem eles tentar de fazer com que os seus clientes se tornem seres
humanos “normais”, padronizados? Ou devem eles ajudar aos seus clientes de formar a sua
própria identidade distintiva, independente de toda “norma”? Com isto se levanta a pergunta
até que ponto a psicologia é uma ciência empírica e onde ela começa a tornar-se uma ciência
normativa.
Ao contrário dos psicólogos, os filósofos se encontram numa situação confortável, sendo que
podem contentar- se com perguntas difíceis, sem sentir a obrigação de responder a elas. A
procura de respostas é a tarefa das ciências... Mas como a psicologia responde às cinco
76
questões acima mencionadas? Será que ela é capaz de responder a elas? Sim e não. Sim, pois
a psicologia contribui pelo menos com importantes respostas parciais. Um psicoterapeuta, por
exemplo, pode constatar que ele exerce uma influência inegável na vontade do seu cliente:
Este pode recusar os avisos e as interpretações do psicoterapeuta ou aceitá-los integral ou
parcialmente; mas ele não pode contornar uma reação àquilo que o psicoterapeuta lhe diz.
Este, então, influi na vontade do seu cliente, mesmo se essa influência não elimine totalmente
a sua liberdade de decisão. – No entanto, é inegável que esta constatação empírica não nos dá
uma resposta definitiva à questão se nós temos uma livre vontade (libero arbitrio) e, no caso
positivo, como esta liberdade é possível num mundo determinista ...
A psicologia é uma ciência, a filosofia não. Mas ao que a psicologia deve seu privilégio (que
a filosofia não tem) de ser uma ciência? Ambas as disciplinas buscam uma ampliação do
conhecimento. Mas em contraposição com a filosofia, a psicologia é ligada a actividades que
se baséiam em determinados métodos (tratar pacientes, curar sofrimento psíquico, pesquisar a
“psiqué” humana).
No entanto, na psicologia a linha divisória entre uma investigação científica e não científica
nem sempre é clara. A pesquisa científica, sim, é orientada por métodos. Um método não é
algo que se encontra na floresta ou num campo, como uma flor rara. Um método resulta da
experiência de grupos inteiros: de pesquisadores e cientístas (às vezes até de leigos). Uma vez
estabelecido, um método científico baseia-se no consenso, normalmente tácito, entre os
cientistas. Contudo, nas ciências humanas (“Humanities”) os métodos são menos claros de
que nas ciências naturais e matemáticas (“Sciences”). Dentro da psicologia, encontramos uma
grande variedade de disciplinas, como a psicologia da aprendizagem, a psicanálise, a
psiquiatria forense e muitas outras, cada uma delas baseada num consenso de especialistas.
Dentro da psicologia, então, os cientistas praticam diferentes métodos e se deixam guiar por
diferentes visões do mundo e do ser humano. Todas as psicologias, ou pelo menos a maioria
delas, reclamam para si o estado de ciência. A filosofia contudo não conta como ciência, pelo
menos não num sentido estrito; pois os filósofos não experimentam, não medem, não criam
estatísticas.
Sendo a psicologia uma ciência humana, ela se encontra na vizinhança próxima da filosofia.
Grande parte da epistemologia moderna – de Descartes e Kant até Schopenhauer e Husserl –
trata de questões em redor desta consciência. Com a sua "Fenomenologia do Espírito", Hegel
(1770-1832) tentou reconstruir a génese da consciência humana e a colocou numa dimensão
histórica. Piaget (1896-1980) focalizou suas pesquisas sobre o desenvolvimento da
inteligência na criança e no jovem e descreveu este desenvolvimento de forma semelhante,
até aos detalhes, como Hegel. Ou seja, ele declarou o desenvolvimento intelectual (o
despertar da consciência e o crescimento da sua inteligência na criança) como um processo
que se repete em ciclos consecutivos, por meio de uma auto-reflexão: O sujeito reflecte sobre
as limitações da sua consciência e com isso alarga gradualmente o seu “horizonte”. Hegel era
77
filósofo, Piaget psicólogo. Piaget chamou o motor do desenvolvimento de “abstração
reflexiva” Hegel de “reflexão” ou de “reflexão abstractiva”. Por um lado, a psicologia, em
muitos aspectos, apoia-se sobre a filosofia. A filosofia portanto serve à psicologia como um
par de muletas. Por outro lado, a psicologia genética de Piaget se baseia na observação
minuciosa e no experimento. Ela com isso confirma, mas também corrige as intuições
filosóficas sobre o desenvolvimento da consciência humana.
No entanto, e ao mesmo tempo, a psicologia se emancipou da filosofia, voltou para trás dela,
iniciando um trabalho revolucionário e corrosivo: começou a perscrutar minuciosamente os
fundamentos da própria filosofia. A psicologia, ou mais exactamente a psicanálise, fundada
por Sigmund Freud (1856-1939), colocou as convicções mais sólidas, mais profundas, sob
suspeita: O que é a consciência? Desde Descartes, a consciencia é o fio condutor de boa parte
da filosofia moderna. Será que ela é algo em si ou apenas a ponta do icebergue, chamado de
"inconsciente"? E o que são os nossos ideais, a não ser sublimações de desejos reprimidos?
Freud continuava as questionamentos corrosivos de Nietzsche, dando a eles uma base
empírica: O que é a moral, a não ser uma maneira simpática, mas disfarçada, como os fracos
se defendem contra os fortes? Ou como os fortes tranquilizam os fracos? Nietzsche e Freud
nos convidam a desmascarar e “desconstruir” os ideais religiosos bem como filosóficos.
78
novo ideal, não são a mesma coisa. Quando a suspeita se torna universal, não resta mais nada
que se possa salvar dela. A ciência empírica não nos oferece nenhuma saida deste impasse.
Nesta situação vale a pena recorrer à filosofia. Primeiro, as questões básicas da filosofia,
como aquelas cinco acima mencionadas, que acompanham toda a psicologia, não sofreram
nenhum desmascaramento, nenhuma desconstrução. Desmascaramento e desconstrução
referem-se apenas às doutrinas tradicionais da filosofia, não às questões perenes. Segundo, a
filosofia nos ensina que a dúvida e o ceticismo não se adequam como a conclusão da história
do pensamento humano. Pelo contrário, nos incitam a procurar novos caminhos.
Assim, passando pelo portão da dialéctica, entramos numa nova paisagem. Nela a fronteira
entre a psicologia e a filosofia, não é mais (ou ainda não é) visível. Como nós nos orientamos
nesta paisagem? Nós nos orientamos trabalhando com ideais, com ilusões e desilusões, com a
desconstrução destas desilusões e a desconstrução da desconstrução mesma? Nesta paisagem
a filosofia deve movimentar-se lenta e cuidadosamente, não perdendo de vista as ciências,
pois ela deve acompanhá-las e progredir no mesmo ritmo como elas.
79
Os Fundamentos da Ordem Social: Reflexões de Filosofia Social
Por: Luca Bussotti
80
formas preferíveis de governação, tenciona descobrir as causas últimas, “radicais” que
permitem a permanência do homem no “estado social”. Trata-se de uma abordagem
mais “profunda” e menos superficial, que pode ser representada graficamente como se
segue:
Filosofia social
81
Neste ponto dar-se-á, portanto, um quadro das teorias filosóficas cujas bases assentam
na ideia de que a sociedade expressa os seus vínculos essenciais no relacionamento
amistoso. Uma reflexão neste sentido deu-se a partir do mais clássico dos filósofos da
antiguidade, Aristóteles.
Diferentemente daquilo que afirma Luhmann, a tese que se defende aqui é que a
filosofia que pensadores como Aristóteles, Epicuro, os Estóicos e outros propuseram
pode ser considerada e lida mediante as lentes da Filosofia Social, mesmo se nenhum
deles teve a intenção de reflectir sistematicamente em volta do social.
A philia pode ser considerada como uma das primeiras caraterísticas relacionais
que funda, no pensamento antigo, uma possível ordem social, abaixo, por assim dizer,
da moldura institucional e dos tipos de governação, efectivos ou desejáveis, que
regem a vivência humana. Não resta dúvidas que Aristóteles é quem, com mais
ênfase, destaca a philia como elemento aglutinador em termos de relacionamentos
sociais entre os indivíduos. Fá-lo, em particular, no livro VII e no livro IX da Ética a
Nicômaco. Acima de tudo, o que é “amizade”, de acordo com Aristóteles, e como é
que esta consegue desempenhar um papel aglutinador relativamente à vivência entre
os homens na sociedade?
82
A amizade baseada no bem, ou “desinteressada”, representa o modelo mais puro
e autêntico da philia. Assim escreve Aristóteles: “A amizade perfeita é a dos homens
que são bons e afins na virtude, pois esses desejam igualmente bem um ao outro
enquanto bons, e são bons em si mesmos. Ora, os que desejam bem aos seus amigos
por eles mesmos são os mais verdadeiramente amigos, porque o fazem em razão da
sua própria natureza e não acidentalmente. Por isso sua amizade dura enquanto são
bons — e a bondade é uma coisa muito durável” (Aristóteles, 1991:174). Na
perspectiva da filosofia social, a característica mais destacada desta amizade é a sua
durabilidade, a sua gratuidade que fortalece laços interpessoais desinteressados. Por
isso, mesmo na óptica da manutenção da ordem social, este tipo de amizade é
preferível.
Entretanto, a pergunta seguinte será: quem são as pessoas que podem gozar um
relacionamento tão perfeito, quer do ponto de vista ético, quer no que diz respeito às
suas consequências sociais? A resposta de Aristóteles é clara: “Mas é natural que tais
amizades não sejam muito frequentes, pois que tais homens são raros” (Idem: 175), e
se baseiam numa certa “semelhança”. Em princípio, esses homens “raros” e
eticamente parecidos, só podem ser os homens “óptimos”, os aristocratas. De facto,
eles não precisam de nada no sentido material, e apenas procuram amigos
desinteressados e autênticos, que nada tenham que lhes pedir, uma vez que já
possuem tudo. A amizade desinteressada, tirando as lógicas conclusões do raciocínio
de Aristóteles, só pode ser própria das classes abastadas: e serão elas, portanto, com
laços amigáveis assim construídos, que constituirão a base permanente da ordem
social.
Os outros dois tipos de amizade não são estáveis, uma vez que se baseiam em
formas diferentes de interesse. Mas, primeiro, quem é que está especialmente virado
para essas formas “impuras” de amizade? Aristóteles assim escreve: “Entre pessoas
idosas e acrimoniosas é menos fácil formar-se amizade, porquanto tais pessoas são
menos bem-humoradas e se comprazem menos na companhia umas das outras”
(Idem:178). Se trata, inicialmente, de considerações de natureza ética, coerentes com
as anteriores, relativas a quem pode manter uma amizade “desinteressada”. Se estes
são poucos, muitos serão os que praticam as duas outras formas, nomeadamente os
“idosos” e os “acrimoniosos”. Entretanto, entre esses dois tipos de amizade, o que
mais se aproxima à verdadeira é a segunda, baseada no prazer, uma vez que se
pressupõe que o que é bom é também prazeroso. Essa forma de amizade é mais típica
dos jovens “pois é em tais amizades que se observa com mais freqüência a
generosidade” (Idem:179). O terceiro tipo, a amizade interessada, “que se baseia na
utilidade é própria das pessoas de espírito mercantil” (Idem:179).
83
não conseguem formar laços tão profundos capazes de determinar uma ordem social
permanente. E isso ocorre especialmente na amizade por interesse, entre indivíduos
“contrários” uns aos outros, tais como rico e pobre, ignorante e letrado, uma vez que
“um homem ambiciona aquilo que lhe falta e dá algo em troca” (Idem:181). Porque
esta forma de amizade, a mais impura mas a mais difusa, é também a mais
“acidental”? Porque aquilo que interessa não é o outro e o seu bem, mas sim aquilo
que ele possui, e que o primeiro não tem. O outro, portanto, constitui apenas o meio
para conseguir um interesse específico e contingente. Mal esse interesse for
alcançado, a amizade termina, por vezes inclusive com rastos negativos no
relacionamento entre as duas pessoas envolvidas. Por isso é que esta amizade não
pode garantir nenhuma estabilidade, e por isso é que uma amizade verdadeira entre
rico e pobre resulta praticamente impossível. Não é por acaso que Aristóteles associa
esta forma de amizade ao espírito mercantil, aos “negócios”, diriamos, ou seja, ao
campo existencial da classe burguesa e artesanal.
Um dos mais consequentes interpretes desse novo tempo foi Epicuro de Samos:
um pouco por problemas pessoais (sofreu ao longo da vida toda de cálculos renais),
mas sobretudo por causa de viver numa época conturbada, incerta, decadente, este
pensador conjugou a reflexão em volta da amizade com os valores de privacidade,
intimidade, procura da autorealização no interior de cenários não públicos mas
familiares e informais.
A filosofia epicurista pode ser definida como uma filosofia das “ausências”: de
dor física (aponia), assim como perturbação espiritual (ataraxia). Por isso, qualquer
84
sentimento “instável”, capaz de abalar o indivíduo e, portanto, provocar perturbações
e tensões, deve ser excluído, evitado. A plena realização do homem dá-se na
intimidade dos seus caros e no seu autodomínio subjectivo. Assim escreve Epicuro, na
Sentença nr. 40: "Aqueles que tiveram a capacidade de alcançar a máxima segurança
junto a seus próximos conseguiram por isso viver em comunidade de modo mais
prazeroso” (Epicuro, 2005). Se o prazer é alcançado dessa forma “privatística”, a
amizade é que representa a melhor arma para garantir um caminho certo e seguro para
lá se chegar. Epicuro propõe, aqui, um ideal de amizade muito próximo ao de
Aristóteles, que ele chama de “gratuíto” ao invés que de “desinteressado”. Mas a
substância é a mesma: o que difere é a moldura social em que a amizade insere-se.
Com efeito, no caso de Epicuro esta “gratuidade” não tem nenhuma implicação em
termos de ordem social. Ele pressupõe que o mundo de fora, a dimensão pública e
política, já se encontre em situações bastante caóticas, tão de defender que a rotina e a
política são “prisões” das quais é preciso se livrar; por isso é que praticar uma
amizade gratuíta vai ajudar o sujeito em conseguir o bem-estar interior, a paz da sua
alma, evitando inclusive nefastos impulsos de tipo físico. Daqui, a Sentença n. 52 de
Epicuro: “A amizade percorre o mundo inteiro proclamando a todos que se despertem
imediatamente para a felicidade” (Idem). Mas a amizade não é um sentimento que não
possa trazer sofrimentos; aliás (Sentenças 56-57), “O Sábio sofre, porém não mais
quanto aquele que sofre quando vê que seu amigo está atormentado” (Idem).
85
Daqui, o papel da amizade: na sua formulação mais madura, do Estoicismo
médio, autores como Posidónio e Antioco encaram a amizade no seio duma
fraternidade universal, e não apenas reservada aos poucos sábios eleitos. O ideal desse
Estoicismo, o mais relevante do ponto de vista da relação entre teoria da amizade e
ordem social, baseia-se na Caritas generis humani, consoante a qual todos os homens
devem considerar-se amigos enquanto parte do mesmo universo, compartilhando uma
comum origem divina (Pizzorni, 1995). Uma tal concepção cosmopolita resultou
adequada à realidade do Império Romano, o mais universal e cosmopolita dos
governos da antiguidade. E foi por isso que Seneca, por exemplo, interpretou a
amizade como uma boa actividade pragmática do sábio, com envolvimento directo na
vida cívica, apesar de este não precisar de nada e de ninguém para chegar aos seus
ideais (De Oliveira, 2009). E Cicero, no seu famoso diálogo, prefere destacar o ideal
da ataraxia e dos deveres do homem público, mesmo diante do desaparecimento físico
dum grande amigo (Cícero, 45 a.C.), considerando portanto a amizade uma virtude
apenas privada, sem nenhuma possibilidade de influenciar o estabelecimento da
ordem social. Esta concepção da amizade tem evidentes pontos em comum com o
primeiro Cristianismo que, de facto, transformou o tema numa amizade vertical e
díspar dos homens com Deus. É esta a fase em que se forma a ideia duma nova ordem
social, de tipo transcendente e já não alicerceada em sentimentos puramente humanos,
como a amizade.
Entre os muitos que se debruçaram sobre este tema, vamos aqui considerar
apenas três: Montaigne, Kant e Schopenhauer, que inclusive simbolizam três
diferentes épocas e sensibilidades históricas.
86
devia recensir com uma introdução, mas que foi publicado antes pelos huguenotes
(De Azevedo, Duarte, 2009). Em Montaigne, a amizade assume os contornos dum
relacionamento eticamente perfeito enquanto livre, voluntário e por isso harmonioso.
Não é assim para o relacionamento dos filhos com os pais, em que fica difícil
encontrar uma maneira viável para comunicar; também não é assim para o
relacionamento entre irmãos ou outros familiares, pois nesses casos se trata de
interrelações não voluntárias mas “atribuídas”. O próprio relacionamento com a
mulher é focado na atração sexual, portanto dificilmente poderá haver uma verdadeira
amizade entre os cónjuges. A única, possível forma de amizade é aquela em que dois
amigos se relacionam e se entregam mutuamente na íntegra, tendo como principal
expectativa o bem do outro (Montaigne, 1595). Este tipo de amizade nunca poderá
estar na base da ordem social moderna; antes pelo contrário, em Montaigne, talvez
pela primeira vez, sente-se que a amizade pode ter uma função consoladora,
relativamente aos transtornos da modernidade incumbente.
Em Kant, que vive em pleno a época das luzes, com todas as suas transformações
culturais e políticas, o elemento duma amizade que se afaste da esfera mundana
assume contornos ainda mais marcantes relativamente a quanto afirmado por
Montaigne. Com efeito, Kant formula três tipos de amizade (Kant, 1995): baseada na
necessidade, no gosto ou na intenção. No primeiro, as pessoas juntam-se para
satisfazer as respectivas exigências de vida, portanto se trata de um laço alicerceado
em interersses mútuos. É a primeira tipologia de amizade, nas condições sociais mais
rudimentais (ex.: selvagens que caçam), mas pressupõe formas de amizade mais
desenvolvidas; entretanto, ela não pode considerar-se nem perfeita do ponto de vista
moral, nem estável. No segundo, a amizade deriva da recíproca companhia e não da
recíproca felicidade. É muito difícil e rara entre pessoas da mesma classe, e assenta na
variedade e não na uniformidade. Finalmente, a terceira tipologia, a da amizade
baseada na intenção/sentimento, é considerada por Kant de pura. A sua definição é a
seguinte: “confiança total entre duas pessoas que revelam reciprocamente suas
opiniões e sentimentos íntimos, na medida em que tais revelações sejam compatíveis
com o respeito” (Kant, 1995: 471). A amizade pressupõe portanto uma entrega total,
confiança e intimidade. Mas mesmo este tipo perfeito de amizade esconde riscos:
pode dar-se o caso de que algo, entre os amigos, fique escondido, não dito, ou que, em
alguma circunstância, o respeito possa vir a faltar. Nesses casos esta amizade
autêntica poderá tornar-se menos perfeita daquilo que seria desejável, e por isso sofrer
consequências nefastas. Um último tipo de amizade, tipicamente kantiana, é dada
mediante a figura do amigo de todo o género humano, de acordo com uma concepção
cosmopolita que visa fazer com que os laços de solidariedade ultrapassem os
interesses particulares, tornando-se base da vivência ética moderna (Travessoni
Gomes, 2010). Se calhar, é nesta figura, nesta amizade universal e já não na amizade
entre indivíduos particulares, que Kant identifica uma possível ajuda ética para fundar
a ordem social moderna, além das relações interesseiras de tipo económico que a
originaram.
87
A concepção da amizade em Schopenhauer traz explícita inspiração da
subdivisão feita por Kant, mas sem esquecer as lições dos clássicos. Todavia, ele
“negativiza”, coerentemente com a sua filosofia geral, de tipo pessimista, as ideias de
amizade que tinham sido levadas a frente pelos seus predecessores. O homem é um
ser egoista, portanto amor, amizade, benevolência para com o próximo são
sentimentos impossíveis, puras ilusões. A única forma de amizade que os homens
podem praticar é a compaixão, derivante da consciência da moral humana imperfeita,
egoista (Galli, 2004). Segundo Schopenhauer, portanto, não só a amizade não pode
formar a ordem social, mas a própria ordem social está sob ameaça, esmagada pelas
linhas contraditórias da modernidade.
88
actuem de acordo com a lei de Deus, nesse caso eles podem se rebelarem. Entretanto,
o exemplo melhor dessa postura tem de ser dado pelos martires cristãos, ou seja, o
súbdito deve recusar-se em contradizer a lei divina, mas de forma passiva, sem levar a
cabo nenhuma acção violenta.
89
Diferentemente das concepções modernas, de tipo contratualista, em S. Tomás
não pode haver nenhuma forma pactícia entre súbditos e governantes, pois a
autoridade política desses últimos provém dum processo de emanação da autoridade
divina. E como o pai ensina aos filhos, assim o príncipe deve ensinar aos seus
governados, dirigindo-os para o caminho perfeito. Nenhuma dialéctica entre eles é
contemplada, pois, mais uma vez, à mesma maneira que tinha acontecido com S.
Agostinho, a dimensão política não faz parte dos interesses deste teólogo, que justifica
a necessidade duma disciplinada ordem social por meio duma base divina.
Uma vez que as teorias políticas dos vários Hobbes, Locke, Rousseau são
amplamente conhecidas, aquilo que procurar-se-á fazer aqui é destacar os elementos
fundamentais das suas meditações mais próximas aos interesses da filosofia social e,
nomeadamente, da ordem social.
90
3. Posições diversificadas em termos de conteúdos e formulação de modelos
políticos, desde o de tipo autoritário (Hobbes) ao de tipo liberal (Locke) e
até socialista (Rousseau).
O homem, ao estado puro, tem um direito geral e absoluto sobre todas as coisas,
procurando de maneira ilimitada a felicidade. O único limite é representado pelo
direito à felicidade dos outros: cada um se torna inimigo dos outros e virtualmente
está em guerra contra a todos. Nesse estado de natureza, reina a condição pior que se
possa imaginar, ou seja, o temor e o risco constante de morte violenta; por isso a vida
do homem è uma vida solitária, miserável, penosa, animal e curta. A saída desse
estado deriva da inquietação suprema que ele tem: a de conservar a espécie humana.
Isto só é possível despertando nele o medo, juntamente com algumas das suas
paixões: o temor da morte, que se junta com o desejo duma vida agradável e da razão.
O resultado é um homem artificial, o Leviatã, uma multidão de homens unidos numa
só pessoa que os representa. Esse resultado não tem nada a ver com a iluminação da
alma de tipo platónico-cristão, ou com a utilização em óptica social das mais nobres
propensões humanas, tais como a amizade. Se trata apenas do cálculo das
conseqüências negativas possíveis da natureza íntima e profunda do homem. Contra
Aristóteles, portanto, o Estado não se origina da natureza social do homem, mas sim
dum cálculo racional que permite tomar consciência daquela mesma natureza, que
Hobbes interpreta como profundamente selvagem, egoista e de certa forma anárquica.
O objectivo é a “salvaguarda do povo (salus populi) … a concôrdia é a sua saúde, as
desordens civis a sua doença e a guerra civil a sua morte” (HOBBES, 2003). Mais que
procurar uma ordem social, portanto, Hobbes procura evitar o caos, a desordem
social. O poder visível representado pelo Leviatã resume em si o poder religioso e o
91
político-militar: sem espada, os contratos são apenas palavras, defende Hobbes (words
without sword). Esta humanidade medrosa uma vez que está consciente dos prejuízos
globais que ela própria, seguindo os seus instintos primordiais poderia provocar a si
mesma, encontra abrigo na submissão total e completa ao soberano: “a finalidade pela
qual efectua-se a submissão é a proteção” (IDEM). Os homens singulares tiveram que
renunciar a qualquer forma de liberdade de juízo sobre justo/injusto, pois só com isso
a paz pode ser segurada: verifica-se aqui a passagem homo homini lupus – homo
homini Deus. Propriamente, portanto, Hobbes não só não pode ser considerado um
contratualista, mas sobretudo, no domínio da filosofia social, ele tem uma ideia de
social como inexistente, imaginando a sociedade como um simples conjunto de
indivíduos soltos, que nunca formarão uma agregação madura, devido à natureza do
género humano. Pode-se afirmar que, com ele, temos uma concepção de “sociedade-
zero” e duma ordem social baseada apenas no cálculo medroso das nefastas
consequências da natureza humana.
Para responder a essa questão, é preciso perceber qual seja a natureza do homem,
de acordo com Locke. No estado de natureza, o homem tem uma liberdade, baseada
na igualdade entre todos os indivíduos. Nesta condição, Locke atribui a cada um o
direito de propriedade, além que a segurança individual. Este direito deriva de Deus,
que disponibilizou a terra aos homens, os quais têm a obrigação de explorá-la graças
ao trabalho individual. Acrescentar terra para produzir mais, nessa fase, não só não
representa um factor negativo, mas é considerado por Locke uma mais-valia, coerente
com os ditames de Deus. Com a introdução da moeda, todavia, começa a ganhar
importância o comércio, que se torna elemento central da economia, em detrimento da
agricultura (Locke, 2007). Isso determina a especulação e, consequentemente, as
primeiras desigualdades, uma vez que os mais poderosos começam a comprar as
terras dos mais fracos, criando assim um evidente desequilíbrio social. Quando os
homens se apercebem que este desequilíbrio chega a ameaçar a inteira ordem natural,
formada por terra, trabalho e propriedade privada e, portanto, muito mais complexa
daquela teorizada pelos jus-naturalistas (Scalercio, 2012), não resta que passar a uma
outra forma organizacional, já não regulamentada pelos homens de maneira informal,
mas sim prevendo a acção moderadora das instituições e da lei. Embora Locke não
partilhe com Hobbes o pessimismo total sobre a natureza humana, mesmo no caso
dele é patente o facto de os homens recorrerem ao estado civil para que se ultrapasse
92
uma situação de abuso dos mais fortes contra os mais fracos, que poderia levar a um
caos incontrolável.
Em termos de filosofia social, a outra grande diferença com Hobbes é que Locke
não pensa a sociedade como sendo um conjunto solto de indivíduos, cujos únicos
laços duradoiros não são de tipo horizontal, mas vertical e particular, com o soberano.
Locke, embora com alguma ambiguidade, defende que o social existe, e que o relativo
corpus é formado por elementos claros e visíveis: terra, trabalho, propriedade. É
através deles que se forma uma sociedade, ou seja, interesses comuns (que podem
engendrar conflitos) e uma sensibilidade geral, diferentemente daquilo que Hobbes
tinha teorizado. Com este património social, a comunidade humana se aproxima ao
estado civil, em que dará um voto de confiança a um governante que irá representar os
seus interesses e a sua segurança, de forma moderada e sem os excessos previstos do
Leviatã, mediante um fiduciary trust.
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logo passa a ser institucionalizado pelos mais fortes que trouxeram benefício de um
tal acto. “O primeiro que, cercou um terreno, pensou de afirmar «isto é meu» e
encontrou pessoas bastante ingénuas que lhe acreditaram, foi o verdadeiro fundador
da sociedade civil (...). Mas é muito provável que na altura as coisas já tivessem
chegado até o ponto de não poder permanecer assim como eram” (Rousseau, 1999). A
propriedade privada representa a última étapa na afirmação da desigualdade, que se
configura como se segue: 1. rico/pobre; 2. potente/débil, garantida pela magistratura;
3. patrão/escravo, garantida pelo poder legítimo que, na verdade, representa um poder
arbitrário. A sociedade moderna é falsa, pois baseia-se na lei do mais forte, para
ultrapassar a qual é necessário estabelecer um “novo estado de natureza”.
A ordem social é um “sacro direito” não natural, mas que provém de acordos, que
é preciso conhecer. A lei social básica é o direito da força, que as classes dominantes
tornaram legítimo, em troca duma renúncia que nenhum homem pode aceitar: a
renúncia à liberdade e, consequentemente, à própria condição humana, uma vez que a
essência do homem é a liberdade. Por isso é que, de acordo com Rousseau, deve
formar-se uma vontade geral, indivisível e diferente em relação à vontade de todos os
indivíduos, que vise à conservação dos contratantes e manutenção da justiça.
Com Rousseau, o social adquire uma dimensão nova, que encontra no conflito
primordial causado pelo homem contra os seus próprios semelhantes o motivo de
fundo para compreender, analisar e transformar a sociedade. Estamos, aqui, nas
vésperas de uma concepção mais “científica” da sociedade, mas ao mesmo tempo
mais utópica, que só será desenvolvida pelos iniciadores da sociologia, tais como
Comte, Durkheim, Marx e, mais tarde, Weber.
Conclusões
A questão de fundo que procurámos abordar ao longo deste trabalho foi uma das
inquietações centrais da filosofia social. Como é possível a ordem social, e sobretudo
como é que o pensamento filosófico aborda uma tal problemática?
A resposta que foi aqui apresentada tem sido necessariamente incompleta, uma
vez que o assunto é não apenas extremamente complexo, mas inclusive puoco
explorado, pois a filosofia social constitui uma ramificação relativamente recente no
domínio da filosofia, e as reflexões feitas a partir dessa óptica ainda escasseiam.
Entretanto, pudemos notar que existem pelo menos três abordagens fundamentais
que procuram responder a tal assunto: a antiga, baseada na amizade, a medieval,
baseada na transcendência, a moderna, centrada no contrato e, finalmente, a
contemporânea, representada aqui por Schopenhauer, negadora de qualquer
possibilidade de estabelecer uma ordem social.
94
Hoje em dia, seria extremamamente complexo pensar nas possibilidades de
idealizar um elemento ou uma fonte prevalecente de inspiração para fundar a ordem
social. As reflexões dos clássicos, que se encontram aqui mencionadas, servem como
incontornável ponto de referência para percebermos melhor quão tortuoso foi o
caminho para identificar um princípio ordenador os relacionamentos sociais entre os
indivíduos. Mas essas reflexões ainda não clarificaram (e os próprios sociólogos
também não deram uma resposta definitiva) se este princípio existe, se ele é universal
e, eventualmente, qual o seu relacionamento com a ética e o poder político. Será essa
a nova fronteira de investigação da filosofia social nos dias de hoje.
95
Bibliografia
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Filosofia e Estética
Introdução
No presente artigo, propomo-nos a discutir a relação entre a filosofia, a estética e a arte como
formas complementares do saber humano. Portanto, usamos os termos arte e estética de
forma indistinta. O objectivo e, ao mesmo tempo, importância dessa reflexão é superar a
confusão existente em muitas mentes entre filosofia, arte e estética, a qual leva a pensar que
falar de estética é já tratar da filosofia, e logo a não necessidade de apresentar uma linha de
distinção e complementaridade entre elas. Mas fornecerá a arte e a estética um conhecimento
igual à filosofia? A resposta a essa questão nos “obriga” a passarmos também pelo campo da
ciência (natural). As posições de Leonel Ribeiro dos Santos, Artur Manso e Deleuze e
Guattari são tomadas como básicas nessa reflexão.
Como diz Vannucchi (1983:35), “Toda pessoa, num momento ou noutro, intui o Belo. Essa
experiência estética baseia-se primordialmente numa percepção sensorial e, ao mesmo tempo,
emocional. Se capto algo com os sentidos e isso não me emociona, de duas uma: ou isso nada
possui de Belo, ou realmente não colhi essa beleza”. Quem “sente” a arte, sabe, conhece, vive
a realidade de um modo peculiar. Por essa precisa razão queremos caracterizar a arte como
uma forma especial de saber humano, mais de intuição do que de raciocínio feito.
A experiência estética é uma expressão, uma linguagem à parte e não mero conhecimento
conceitual puro e simples. Ela exprime o inteligível no sensível. Na matéria – tinta, mármore,
palavras, sons… - ela concretiza ideias e sentimentos. Diz muito mais que uma foto. Mas ela
também sugere, estimulando a sensibilidade e a imaginação. Portanto, a experiência estética é
também acção. Como a alegria leva ao movimento – gestos mais amplos, saltos, dança… -
assim a experiência do Belo leva à arte, como objectivação irreprimível (cf. Ibid:36).
Podemos, assim, afirmar com Vannucchi que a arte é criação ou expressão do Belo pelo
homem, subentendendo-se que o mais lindo espectáculo natural não é a arte, mas beleza.
Pensamento este herdado de Platão, que fazia coincidir a Beleza, o Bem e a Verdade,
apresentando-os como os três aspectos do divino, dos quais apenas a Beleza se irradia sobre
toda a existência e se vê através dos olhos do corpo (cf. Manso, 2013:48-50).
Passemos, então, em breves linhas pelas origens explicativas da arte, desde a antiguidade até
a contemporaneidade, para depois analisarmos a convergência entre a filosofia, a arte, a
estética e a ciência.
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Em termos das origens explicativas, “desde Aristóteles até hoje, há autores que entendem a
arte como imitação da realidade, representação objectivada do Belo natural” (Vannucchi,
Ibid:37). Mas esta tese não satisfaz à pergunta segundo a qual em que sentido a música imita
a realidade. Autores antigos, como Plotino, e contemporâneos, como Jaspers, ocidentais
como orientais, explicam a arte como revelação, aspiração e comunhão com o Infinito. Para
eles, o Belo é a assinatura de Deus na natureza e a arte o caminho de identificação com Ele.
Confunde-se com essa sentença a teoria da origem mágico-religiosa da arte. As pinturas das
cavernas seriam oferendas simbólicas aos deuses, sem excluir a aspiração por uma caça bem
sucedida. Da devoção religiosa brotaram também a música, a poesia, o drama e a dança.
Segundo a teoria da criação pura, o homem simplesmente cria a obra de arte por uma
necessidade íntima de exprimir, por um transbordamento de algo sentido e vivido dentro de si
próprio e que ele não pode reprimir sem mais nem externar sem arte. Inegavelmente, poucos
valores reflectem tão bem, como a arte as condições materiais e espirituais de um povo ou de
uma civilização. Telas, catedrais, sinfonias, poemas, etc., tudo são expressões privilegiadas
da cultura humana. Sente-o o homem da rua. Explicam-no os grandes espíritos.
Durante séculos, diz Manso (cf. 2008:17), por influência directa da forte herança platónica, o
domínio das artes dividiu-se entre artes liberais ou intelectuais, tais como a poesia e a
literatura, exercidas só pelos homens livres e artes servis ou manuais, reservadas somente aos
escravos, de que são exemplo a escultura e a pintura. Esta distinção durou até ao século XVI,
quando o humanista polifacetado Leonardo Da Vinci (1452-1519), exigiu que a pintura fosse
reconhecida como arte liberal, assentimento que só se concretizou na segunda metade do
século XVIII, com o início da revolução industrial e a consequente distinção entre arte e
trabalho.
Como os mestres da antiguidade, a idade média e o renascimento, não admitindo sequer que
o Belo em Si pudesse ser suportado pelos objectos ou pelos conceitos do quotidiano, afirmam
que a harmonia e a Beleza ideais para que apelava o conhecimento estético tinham de ser
garantidas por uma entidade supra natural (Deus), já que o mutável e o contingente jamais
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poderiam servir de modelo para o perfeito e o imutável. Assim, a reflexão estética esteve
durante séculos nas malhas da ontologia (cf. Ibid:18).
Já a época moderna introduz o relativismo na análise do Belo. Aqui o Belo tinha que ser
entendido na relatividade com que cada indivíduo, na posse das suas faculdades, interpretava
os estímulos sensoriais de acordo com a sua própria forma de ser e de estar no mundo. O que
deleitava os indivíduos deixava agora de ser entendido como uma entidade única, para ser
considerado como um constructo da actividade particular. Assim pensaram os ingleses Locke
(1632-1704), Hume (1711-1776) e Burke (1729-1797). Baumgarten (1714-1762), a quem se
deve o surgimento da estética como disciplina filosófica, considerou-a como conhecimento
intermediário entre a sensação e a razão.
Apesar de todos os esforços, nenhum destes autores, incluindo Kant (1724-1804), Schiller
(1759-1805), Hegel (1770-1831), Schelling (1775-1854) e Schopenhauer (1788-1860),
elevou a estética a conhecimento superior e em consequência, a capacidade sensorial do
homem continuou subalternizada ante a sua capacidade racional. No tempo presente, a
estética passou a entender-se como análise e crítica, sem, ainda, ter deixado de ser analisada
com o recurso aos princípios positivistas, empurrando-a, enquanto saber, para o reduto
minoritário daqueles que concebem e fruem os seus produtos (cf. Ibid:19 e 20).
Esse percurso histórico que fizemos até aqui dá sustento ao problema que nos propusemos
discutir, como ainda muito de actualidade: o lugar da estética e arte entre outras formas do
pensamento humano. Que fronteira estabelecer entre a arte, estética e filosofia? Se a estética é
muitas vezes entendida como uma forma do olhar filosófico à arte, que possibilidade nos
resta para encontrarmos alguma fronteira ou distinção nessa síntese?
Para facilitar a compreensão da relação entre filosofia, arte e estética, temos também que
rever o campo da ciência, outra forma do saber humano. Existem três grandes formas de
expressão do pensamento: a arte, a ciência e a filosofia. Segundo Deleuze e Guattari (cf.
1992:173), o que as define é o enfrentar o caos, o traçar um plano, o esboçar um plano sobre
o caos. Nesse contexto, cada uma dessas formas tem um plano e objectivo específicos diante
do caos.
99
Assim, afirmam Deleuze e Guattari (cf. ibid:173-174), a filosofia quer salvar o infinito,
dando-lhe consistência: ela traça um plano de imanência, que leva até ao infinito
acontecimentos ou conceitos consistentes, sob a acção de personagens conceptuais. A
ciência, ao contrário, renuncia ao infinito para ganhar a referência: ela traça um plano de
coordenadas somente indefinidas, que define sempre estados de coisas, funções ou
proposições referenciais, sob a acção de observadores parciais. A arte quer criar um finito
que restitua o infinito: traça um plano de composição que carrega por sua vez monumentos
ou sensações compostas, sob a acção de figuras estéticas.
Por isso, Leonel Ribeiro dos Santos (cf. AA. VV. 1996:210) entende que na experiência da
beleza ou na vivência estética cumpre-se momentaneamente a superação da unilateralidade
da matéria e da forma, da passividade e da actividade, da finitude e da infinitude, e é por essa
razão que a beleza nos indica qual é e onde subsiste a verdadeira forma da humanidade. É ela
que pode também constituir a via para alcançar a sua realização efectiva.
Interpretando Platão, Santos (Ibid) afirma que “o que caracteriza a ideia de beleza e a
distingue de todas as outras ideias (verdade, bem, justiça) é a sua natureza média ou
intermédia, a sua capacidade de não ficar ofuscada no mundo sensível, mas de precisamente
aí brilhar”. Ou se quisermos com Schiller citado por Santos (Ibid:211), a beleza se inscreve
entre o inteligível e o sensível, entre a forma e a matéria, entre a espontaneidade e a
passividade, entre a natureza e a liberdade, entre o finito e o absoluto, entre o subjectivo e o
objectivo, entre a razão e o sentimento. Aliás, o que caracteriza mesmo a beleza é o ser ela a
vivência mesma da superação desses opostos e de assim mostrar o quão limitado é todo o
pensamento que neles se fixa. É graças a essa condição híbrida que a beleza se propõe como
o mediador por excelência do processo que realiza a transição do homem sensível ao homem
intelectual e moral, da natureza à liberdade.
Embora Platão, Schiller e Santos nos mostrem este carácter intermediário da arte, Deleuze e
Guattari (cf. 1992:174) chamam-nos atenção de que isso não deve implicar que a arte seja
como uma síntese da ciência e da filosofia, da via finita e da via infinita. Pois, as três vias são
específicas, tão directas umas com as outras, mas se distinguem pela natureza do plano e
daquilo que o ocupa. Pensar é pensar por conceitos (filosofia), ou então por funções (ciência),
ou ainda por sensações (arte), e um desses pensamentos não é melhor que um outro, ou mais
plenamente, mais completamente, mais sinteticamente “pensado”.
100
As duas tentativas recentes para aproximar a arte da filosofia são a arte abstracta e a arte
conceptual; mas elas substituem a sensação pelo conceito, criam sensações e não conceitos. A
arte abstracta procura somente refinar a sensação, desmaterializá-la, estendendo um plano de
composição arquitectónico em que ela se tornaria um puro ser espiritual, uma matéria
radiante pensante e pensada, não mais uma sensação do mar ou da árvore, mas uma sensação
do conceito de mar ou do conceito de árvore (cf. Ibid). Vale dizer que a arte, a filosofia e a
ciência são de certa forma distintas. Qual dentre elas precede ou constitui o arché ou o
fundamento das outras?
Da Primazia do Estético
O conhecimento estético é o primeiro e mais original ao homem por ser aquele que nos
advém através dos sentidos e por isso se impõe ao longo de toda a vida. Segundo Manso
(2008:11), “Foi o sentimento estético que desde sempre permitiu aos indivíduos alterarem as
contingências do meio à medida que a curiosidade natural pelo Absoluto se ia manifestando.
A capacidade de manipular ao gosto de cada um a natureza, precede em muitos anos a
necessidade de explicação causal da realidade e é justificada pelo facto de o conhecimento
primeiro da realidade ser processado por cada um de nós, logo à nascença, pelo recurso a
sensações olfactivas, tácteis, gustativas, visuais… Isto mesmo foi entendido por Einstein
(1879-1955), que em pleno século XX, (…) não deixou de continuar convicto de que a
imaginação é mais importante que o conhecimento, uma vez que o conhecimento se refere à
ciência, enquanto a imaginação se refere ao mundo”.
Por isso, para Manso (Ibid:12), “A história das artes deveria servir para, com todas as
representações, quer em contraposição quer em complementaridade, cada indivíduo poder
formar uma imagem própria desse universo que por condição não se deixa representar por
nenhuma forma unívoca e definitiva”. Por exemplo, a racionalidade grega foi resultado da
ficção literária; “foram, ainda, as propostas visionárias de diversos criadores que
proporcionaram o desenvolvimento da ciência e da técnica, tal como aconteceu com
Leonardo Da Vinci, Júlio Verne, Aldous Huxley, ou a Psicanálise que contribuiu
decisivamente para o aparecimento do Surrealismo que se veio a tornar um dos mais
importantes movimentos artísticos do século XX” (Ibid:13).
101
Com todo esse contributo histórico para o desenvolvimento da humanidade, por que, hoje, a
arte parece “desumanizada”58? Por que não se captam, então, mais artistas e não se
desenvolve nos seus frequentadores o gosto pelas diferentes artes, considerando-as como
parte importante das suas existências?
Portanto, conclui Manso (Ibid:30), “O sentimento estético sempre esteve presente em todos
os períodos da história da humanidade, ao contrário do interesse pela ciência que é uma
criação do homem preocupado e ocupado com a melhoria efectiva das condições diárias da
vida, de princípios inteiramente utilitários”. O impulso estético é congénito a todos os
indivíduos, e jamais seria imaginável um mundo entendido fora do sentimento estético, fora
da qualidade emotiva que no-lo explica à nossa relação humana com ele. O sentimento
estético precede tanto a racionalidade tida como o milagre grego quanto o conhecimento
científico.
58
Adjectivo inspirado do título da obra de José Ortega y Gasset: A Desumanização da Arte.
102
Tem razão, então, Henrique de Vasconcelos (Apud Guimarães, 2009:76) ao principiar o seu
opúsculo afirmando que “desde a Grécia clássica até ao Renascimento, a Beleza estava no
individuo, a Beleza estava no lar, a Beleza estava na cidade” e por assim ser, “não basta
viver: é preciso adornar a vida”.
O nosso interesse, nesta parte, é defendermos que apesar de a filosofia, a arte e a ciência
serem distintas uma das outras, elas gozam também de um espaço de cooperação e
complementaridade na busca do esclarecimento do caos ou da realidade.
É como dizem Deleuze e Guattari (cf. Ibid:175), os três pensamentos cruzam-se, entrelaçam-
se, mas sem síntese nem identificação. A filosofia faz surgir acontecimentos com seus
conceitos, a arte ergue monumentos com as suas sensações, a ciência constrói estados de
coisas com as suas funções. Um rico tecido de correspondências pode estabelecer-se entre os
planos. Mas a rede tem seus pontos culminantes, justamente onde a sensação se torna ela
própria sensação de conceito ou de função, e o conceito, conceito de função ou de sensação; a
função, função de sensação ou de conceito. E um dos elementos não aparece, sem que o outro
possa estar ainda por vir, ainda indeterminado ou desconhecido. Cada elemento criado sobre
um plano apela a outros elementos heterogéneos, que restam por criar sobre outros planos: é
o pensamento como heterogénese. É verdade que estes pontos culminantes comportam dois
perigos extremos: ou reconduzirem-nos à opinião da qual queríamos sair, ou nos precipitar no
caos que queríamos enfrentar.
Mas a arte, a ciência e a filosofia exigem mais: já o dissemos, traçam plano sobre o caos. Não
são como as religiões, que invocam dinastias de deuses, ou a epifania de um Deus único, para
pintar sobre o guarda-sol um firmamento, como as figuras de uma Urdoxa de onde
derivariam nossas opiniões. A filosofia, a ciência e a arte querem que rasguemos o
firmamento e que mergulhemos no caos. Só o venceremos a este preço. O filósofo, o
cientista, o artista parecem regressar do país dos mortos. O que o filósofo traz do caos são
variações que permanecem infinitas, mas tornadas inseparáveis sobre superfícies ou em
volumes absolutos, que traçam um plano de imanência secante: não mais são associações de
ideias distintas, mas reencadeamentos, por zona de indistinção, num conceito.
Como entendem Deleuze e Guattari (cf. Ibid:177) “o cientista traz do caos variáveis, tornadas
independentes por desaceleração, isto é, por eliminação de outras variabilidades quaisquer,
susceptíveis de interferir, de modo que as variáveis retidas entram em relações determináveis
numa função: não mais são liames de propriedades nas coisas, mas coordenadas finitas sobre
um plano secante de referência, que vai das probabilidades locais a uma cosmologia global”.
O artista traz do caos variedades, que não constituem mais uma reprodução do sensível no
órgão, mas erigem um ser do sensível, um ser da sensação, sobre um plano de composição,
anorgânica, capaz de restituir o infinito. A luta com o caos que se verifica no coração da
103
pintura, se encontra de uma outra maneira na ciência e na filosofia: trata-se sempre de vencer
o caos por um plano secante que o atravessa. A arte luta com o caos, mas para torná-lo
sensível, mesmo através do personagem mais encantador, a paisagem mais encantada.
Numa palavra, o caos tem três filhas segundo o plano que o recorta: são a arte, a ciência e a
filosofia, como formas do pensamento ou da criação. E o Eu não é apenas o “eu concebo” do
cérebro como filosofia; é também o “eu sinto” do cérebro como arte. “A sensação não é
menos cérebro que o conceito” (Ibid:185). A junção (não a unidade) dos três planos é o
cérebro.
Os três planos são tão irredutíveis quanto os seus elementos: plano de imanência da filosofia,
plano de composição da arte, plano de referência ou de coordenação da ciência; forma do
conceito, força da sensação, função do conhecimento; conceitos e personagens conceituais,
sensações e figuras estéticas, funções e observadores parciais (cf. Ibid:189).
Podemos notar com Deleuze e Guattari (cf. Ibid:190-191) que há enfim interferências
ilocalizáveis nessas formas de pensamento ou disciplinas: cada disciplina distinta está, à sua
maneira, em relação com um negativo. Vale dizer, por exemplo, que mesmo a ciência está em
relação com uma não-ciência, que lhe devolve seus efeitos. Não se trata de dizer somente que
a arte deve nos formar, nos despertar, nos ensinar a sentir, nós que não somos artistas — e a
filosofia ensinar-nos a conceber, e a ciência a conhecer. Tais pedagogias só são possíveis, se
cada uma das disciplinas, por sua conta, está numa relação essencial com o Não que a ela
concerne. O plano da filosofia é pré-filosófico, enquanto o consideramos nele mesmo,
independentemente dos conceitos que vem ocupá-lo, mas a não filosofia encontra-se lá, onde
o plano enfrenta o caos.
Conclusão
A filosofia precisa de uma não-filosofia que a compreenda, ela precisa de uma compreensão
não-filosófica, como a arte precisa da não-arte e a ciência da não-ciência. Elas não precisam
de seu negativo como começo, nem como fim no qual seriam chamadas a desaparecer
realizando-se, mas em cada instante de seu devir ou de seu desenvolvimento.
Do texto resulta que embora a estética, a arte, a ciência e a filosofia tentem dar por si sós uma
explicação do mundo, este fica melhor conhecido quando estas diferentes configurações
fazem confluir as suas explicações particulares numa teoria geral do Ser e do Mundo. E
especialmente entre a obra filosófica e a obra artística, teriam assim entre si um fim comum
que levaria à universalização das leis e dos enunciados que iam buscando, caso a caso, nas
suas pesquisas. Já que o artista e o filósofo sentem o mesmo anseio de abranger, um pelo
sentimento, o outro pela ideia.
104
Na verdade, não há autonomia, mas sim solidariedade entre a verdadeira arte e a verdadeira
crítica (filosofia). “Arte e Crítica são dois modos de afirmação do mesmo conhecimento
estético, e inseparáveis na sua verdade profunda”, como afirma Manso (2013:47).
105
Bibliografia
106
Filosofia e Comunicação
Por: João Miguel59
Considerações Iniciais
A pergunta sobre a comunicação é recente. Data quando muito do primeiro quartel do século
XX, numa altura em que a tecnologia de informação e comunicação firmava-se e,
paulatinamente, começava a reconfigurar a sociabilidade. Desde essa altura, os avanços
tecnológicos são percebidos em diferentes áreas, especialmente na comunicação, relfectindo-
se na reestruturação das relações mundiais, com interdependência de mercados económicos,
facilidade de circulação de pessoas e bens, consumo de produtos em escala planetária e
acesso mais facilitado aos bens informacionais.
No mundo contemporâneo, no entender de Gomes (2000), experimenta-se um paradoxo
fundamental: a par das tecnologias e possibilidades cada vez maiores de comunicação, a
sociedade humana vive momento de incomunicação, que pode facilmente ser percebido na
maneira como as pessoas se fecham em si mesmas. Afirma-se, segundo ele, não só o
individualismo, mas também a prescindência do outro. A abundância, cada vez mais notável,
de recursos comunicativos não se tem traduzido em mais interação, pelo contrário, algumas
plataformas comunicacionais se têm traduzido em espaços de exibicionismos e também de
manifestação de preconceitos de tipos diversos.
Falta a comunicação interpessoal e aumenta o consumo dos meios de comunicação, cada vez
mais adaptados às necessidades das pessoas. Quem tem poder aquisitivo maior, sublinha
Gomes (2000), consome os produtos feitos por encomendas, via internet, TV a cabo,
informática, multimédia. No contexto moçambicano, a concorrência que vem crescendo entre
a TV Cabo, a DSTV a Zap e, de certa forma, a Startimes é ilustrativa desse fenómeno. Os
pobres contentam-se com os tradicionais meios massivos, esperançosos de que a
digitalização, ora anunciada pelas entidades governamentais, lhes traga alguma melhoria,
pelo menos no que diz respeito à qualidade do sinal.
Quer dizer que na medida em que aumenta o consumo da informação, de dados, diminui a
intercomunicação interpessoal. Na maioria das vezes, na tentativa de fazer face a todo um
conjunto de privações materiais, os indivíduos encontram nos produtos mediáticos um lugar
de refúgio, de experimentação de felicidade, mesmo que fantasiosa. A crescente veiculação
de novelas e outros programas de género próximo a este, no horário nobre da televisão é o
reflexo da demanda em relação a estes produtos.
Hoje, por toda parte se fala de comunicação. Segundo Rodrigues (2001:23), os jornais
dedicam-lhe páginas e cadernos especiais. A rádio e a televisão discutem-na em mesas em
mesas redondas. A escola reserva-lhe cursos nos programas de ensino; os governos e os
organismos internacionais invocam-na em textos oficiais. Os homens exigem-na ou
submetem-se aos seus imperativos. Os indivíduos e as instituições lamentam a sua falta tanto
107
entre as pessoas como no seio das famílias, no espaço urbano, nas empresas, nas
organizações.
A problemática da comunicação surgiu num espaço de intersecção de vários saberes. Assim
várias ciências cruzam-se com ela. Não é por acaso que o lugar da comunicação é uma área
nebulosa em seus contornos e indefinida em seus fundamentos. Também, não é por acaso que
o fenómeno comunicação tornou-se um lugar de inquietação das diversas áreas de
conhecimento. Do ponto de vista filosófico, pergunta-se pelas condições de possibilidade da
comunicação. Se comunicar for a essência do homem, então a pesquisa sobre o fundamento
da comunicação é paralela à indagação sobre a autenticidade humana.
A comunicação, entendida como inter-relacionamento humano, sempre foi preocupação das
pessoas. No entanto, indagar sobre ela é manifestação recente. Hoje, sublinha Gomes
(2000:23), pergunta-se não somente pela possibilidade de uma efectiva comunicação entre as
pessoas, mas também pelas consequências das tecnologias avançadas de comunicação sobre a
vida dessas mesmas pessoas. A partir desse pressuposto, a reflexão aqui estabelecida retoma
três perspectivas que, apesar de suas diferenças em termos de diagnóstico da sociedade atual,
compartilham a compreensão da impossibilidade de uma efectiva comunicação nas
sociedades atuais.
108
diante da opressão do mundo, facilmente se pode concluir que a comunicação realmente
efectiva, fica inviabilizada. O homem angustiado, aquele que se depara com o temor do não
ser, o temor do nada, caracteriza-se por ter o seu eu dissolvido na massa humana.
Outro pensador que reflectiu em torno da existência é Jean Paul Sartre. Este, recebeu
significativa influência de Heidegger. Para Sartre o ser é o que é. Esse ente não é activo nem
passivo, nem afirmação, nem negação, mas simplesmente repousa si, maciço e rígido. Mas
além do ente me si, Sartre concebeu a existência do ser especificamente humano,
denominando-o ente para si. O ente para si específico do homem se opõe ao ente em si, que
representa a plenitude do ser. Portanto, para Sartre, a característica tipicamente humana é o
nada. O homem tem como característica específica o não-ser, algo indefinido e indeterminado
(Cotrim, 2000: 220).
Segundo Sartre, umas experiências de que outro de facto existe, e não é apenas uma coisa, é a
vergonha. Reconheço que sou como outro me vê. O homem é um ser que implica o ser do
outro em seu ser. O homem é um ser-para-outro. Mas a relação com o outro é uma relação de
conflito, de recusa radical do ouro. A vergonha, sublinha Rabuske (2010:147), é o
reconhecimento de que sou esse objecto que o outro olha e julga. O acesso à
intersubjetividade só se dá pela negação. Não há relação sujeito-sujeito, mas relação sujeito-
objecto.
Na relação com o outro: ou eu sou sujeito e outro é objecto que eu domino; ou eu sou
dominado por ele; transcender a transcendência do outro ou, ao contrário, absorver em mim
essa transcendência, tais são as duas atitudes primitivas em relação ao outro. A primeira
atitude se dá na indiferença, no desejo sexual, no ódio, no sadismo; a segunda, no amor, na
linguagem, no masoquismo. Mas querendo realizar plenamente uma dessas atitudes, caio na
oposta, dá-se a reversão. Sempre fracasso! O amor não passa da projecção de um ideal
contraditório. O respeito da liberdade do outro é uma palavra vã. (Rabuske, 2010:148)
Diante do exposto, pode se concluir que o homem é uma paixão inútil, isto é, tende para algo
que nunca poderá ser. A esse respeito, ao percorrer algumas das teses de Sartre, Gomes
(2000:33) sublinha que o homem possui uma abertura para o infinito, para a comunicação, a
qual nunca poderá satisfazer.
109
mias profundo. O medo faz com que as pessoas se isolem. Nos tempos que correm tem
aumentado o número de pessoas que se fecham em si mesmas. São indivíduos que têm
muitos amigos virtuais, nas redes sociais, entretanto, não são capazes de interagir com
pessoas mais próximas ou então consumir os produtos mediáticos abundantes na era da
Multiplicidade da Oferta.
O que caracteriza os meios de comunicação de massa, ressalta Mattelart (1999:34), é serem
antimediadores, intransitivos, fabricantes de não-comunicação, se se aceitar definir a
comunicação como troca, como espaço recíproco de uma fala ou resposta, logo de uma
responsabilidade — não uma responsabilidade psicológica e moral, mas uma correlação
pessoal de um a outro na troca. Em relação a este aspecto, vale a pena sublinhar que o
excesso da informação que caracteriza o mundo atual não significa maior interação entre as
pessoas.
A informação, como afirmou o sociólogo e filósofo francês Jean Baudrillard (1999:105-106),
devora os seus próprios conteúdos, devora a comunicação e o social, isto por dois motivos:
primeiro, por que em vez de comunicar, esgota-se na encenação da comunicação. Segundo,
por que por detrás da encenação exacerbada, os mass media prosseguem uma destruição do
real.
Toda a arquitetura atual dos meios de comunicação de massa, ressalta ainda Mattelart
(1999:34), se funda nessa última definição: eles são o que proíbe para sempre a resposta, o
que torna impossível todo o processo de troca, a não ser, como o disse Baudrillard (1999),
sobre forma de simulação de resposta, ela própria integrada ao processo de emissão, o que
não muda nada quanto à unilateralidade da comunicação.
A sociedade portadora do espetáculo não domina as regiões subdesenvolvidas apenas por sua
hegemonia económica. Elas as domina como sociedade do espetáculo. Mesmo ali onde a base
material ainda está ausente, a sociedade moderna já invadiu espetacularmente a superfície
social de todos os continentes.
O movimento de banalização que, sob a cobertura das diversões do espetáculo, domina
mundialmente a sociedade moderna, domina também em cada um dos pontos nos quais o
consumo contínuo de mercadorias multiplicou em aparência os papéis e objectos a escolher
(Mattelart, 1999:34).
Nesta sociedade contemporânea, os freios institucionais que se opunham à emancipação
individual se desmoronaram e desapareceram, dando lugar à manifestação de desejos
singulares, da realização pessoal, de estima por si. As grandes estruturas socializantes
perderam sua autoridade, as grandes ideologias já não trazem nada de novo, os projectos
históricos já não mobilizam, o campo social é apenas o prolongamento da esfera privada.
110
linhas gerais de sua crítica ao descortinarem o que chamaram, no título da sua obra principal,
de Dialética do iluminismo.
A razão iluminista, que visava a emancipação dos indivíduos e o progresso social, terminou
por levar a uma maior dominação das pessoas em virtude justamente do desenvolvimento
tecnológico-industrial. Horkheimer acreditava que o problema estava na próprio razão
controladora e instrumental, que busca sempre a dominação tanto da natureza quanto do
próprio se humano (Rudger, 2002:131).
Horkheimer e Adorno denunciam a morte da razão crítica, asfixiada pelas relações de
produção capitalista. Denuncias semelhantes já haviam sido feitas no campo do marxismo,
entretanto, o que há de característico nos filósofos da Escola de Frankfurt é a desesperança
em relação à possibilidade de transformação social.
Estes filósofos caracterizam a época atual como sendo da “sociedade administrada”, onde, na
economia, como em outras áreas da sociedade, a autonomia individual não cessa de recuar
cada vez mais (Wiggerhaus, 2000:577). Tal fenômeno reproduz-se na cultura de modo
exemplar. Nesse processo, a indústria cultural, na opinião dos dois frankfurtianos, contribui
eficazmente para falsificar as relações estabelecidas pelo homem com o mundo e também
com os outros seres humanos, o que desemboca numa espécie de anti-racionalismo:
A racionalidade técnica hoje é a racionalidade do próprio domínio, é o caráter repressivo da
sociedade que auto-aliena. Automóveis, bombas e filmes mantêm o todo até que seu
elemento nivelador repercuta sobre a própria injustiça a que se servia. Por hora a técnica da
indústria cultural só chegou à estandardização e à produção em série, sacrificando aquilo pelo
qual a lógica da obra se distinguia da lógica do sistema social (Adorno; Horkheimer,
2000:170).
Indústria cultural é um termo difundido por Adorno e Horkheimer para designar a indústria
da diversão vulga veiculada pela televisão, rádio, revistas, jornais, , músicas, propagandas,
etc. Através da indústria cultural e da diversão se obteria a homogeneização dos
comportamentos, a massificação das pessoas.
A origem da industrialização do mundo simbólico remete aos Estados Unidos. De lá se
estendeu à Europa, graças ao aceleramento da produção industrial. Hoje também tomou conta
do mundo subdesenvolvido (Paviani, 1987:45). Destarte, mesmo que a origem seja
estadunindense, hoje a coisificação da consciência é o antecedente (embora nem sempre o
resultado) da ação da indústria cultural como um todo, independente do país (com
dificuldades de penetração no mundo islâmico). Nesse sentido, é, sem dúvida, um dado
objetivo na complexidade das sociedades contemporâneas (1995:148).
Retomar o conceito de indústria cultural para compreender os processos mediáticos das
sociedades atuais significa ter clareza de que os produtos culturais, apesar de suas
especificidades, estão cada vez mais obedecendo à lógica de produção industrial do
capitalismo. É essa indústria que assegura a produção e a distribuição de produtos e serviços
para responder às necessidades de consumo. Isso significa dizer que hoje, mais do que nunca,
aspectos mercadológicos estão penetrando na informação, na comunicação e na cultura:
111
O desenvolvimento capitalista, se caracteriza desde a sua origem pela mercantilização das
diferentes atividades sociais (Miguel 2013). A introdução das relações capitalistas no sector
da cultura e da comunicação se dá de uma maneira diferenciada e limitada. Não obstante
atualmente assistimos a uma intensificação da industrialização dos processos produtivos de
difusão dos artigos e serviços culturais e comunicacionais.
As indústrias culturais de todo o tipo tendem cada vez mais a colonizar o tempo de ócio, a
promover uma fragmentação e uma individualização crescentes da sociedade, a estimular o
consumo e o hedonismo e a penetrar, enfim, até o mais recôndito da esfera privada, como o
intuito de transformar, como sempre o fizeram, os modos de vida segundo as necessidades do
processo de acumulação de capital (Bolano, 2005: 41). Essa circunstância, vantajosa para o
capital, desemboca numa situação desfavorável para a maioria das pessoas, diante de poder
estatal cada vez mais inoperante e ausente. Assim, o capitalismo deixa de ser apenas do
domínio econômico para determinar a política e a cultura, ou seja, penetra em todas as
dimensões das pessoas. Por esta via, é cada vez mais do que um modo de produção, para
estabelecer-se como um processo civilizatório, onde a subsunção do simbólico é sucessiva,
contínua e inconclusa.
Outro pensador da Escola de Frankfurt que precisa ser ressaltado é Herbert Marcuse.
Influenciado por Freud como se pode notar em seu livro Eros e civilização, ele constata que a
sociedade contemporânea, apesar de toda a sóbria e objectiva cientificidade e racionalidade
planificadora, é em seu todo neurótica, ou seja, perturbada em seu equilíbrio psíquico. Isto
mostra-se não apenas na legião dos psicopatas em rápido crescimento, mas também se
manifesta, muito em geral na baribarização da vida, na agitada maré de agressões individuais
e colectivas, nas taxas alarmantes de criminalidade.
O homem unidimensional, cuja edição original data de 1964 exerceu influência directa na
luta ideológica de sua época. Sob a aparência de um mundo cada vez mais modelado pela
tecnologia e pela ciência, manifesta-se a irracionalidade de um modelo de organização da
sociedade que subjuga o indivíduo, ao invés de libertá-lo. A racionalidade técnica, a razão
instrumental, observa Mattelart (1999), reduzem o discurso e o pensamento a uma dimensão
única, que promove o acordo entre a coisa e a sua função, entre a realidade e a aparência,
entre a essência e a existência. Essa sociedade unidimensional anulou o espaço do
pensamento crítico.
Considerações Conclusivas
Do ponto de vista filosófico, as três abordagens analisadas são unânimes em afirmar a
impossibilidade de uma comunicação verdadeiramente efectiva na contemporaneidade. De
facto, a simples transmissão de informação, que foi uma das grandes preocupações dos
teóricos matemáticos da comunicação, não implica uma partilha, uma comunhão, condições
de possibilidade da comunicação. Como ficou evidenciado, na perspectiva existencialista,
tanto o homem um ser para a morte, na visão heideggeriana, quanto o homem infernizado
pelos outros, na concepção sarteriana, verifica-se uma impossibilidade fundamental de
abertura recíproca para o outro, ou seja, a incomunicação.
112
De igual forma, autores como Debord e Baudrillard acreditam que na sociedade atual,
considerada como de espetáculo, as relações são superficiais, ninguém confia em ninguém.
Neste cenário vivenciado nos tempos atuais as aparências são mais evidenciados do que o ser.
O movimento da banalização, do superficial são as verdadeiras marcas da
contemporaneidade. Da mesma forma, nesta perspectiva a verdadeira comunicação não se
realiza.
A vertente crítica frankfurtiana não foge dessa linha de pensamento. Os pensadores aqui
agrupados, na sua maioria, comungam o diagnóstico da impossibilidade do estabelecimento
de uma efectiva comunicação nas atuais sociedades capitalistas. Segundo estes filósofos a
racionalidade técnica hoje é a racionalidade do próprio domínio, é o caráter repressivo da
sociedade que auto-aliena. Assim, paradoxalmente, o desenvolvimento das tecnologias de
informação e comunicação, a abundância da informação, a multiplicidade de oferta de
produtos culturais, não significa necessariamente que as pessoas comunicam mais, pelo
contrário, estes dispositivos tecnológicos são, em grande medida, veículos de publicidade e
propaganda, portanto, de dominação económica ou política.
113
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WIGGERSHAUS, R. (2002): A Escola de Frankfurt: História, Desenvolvimento Teórico,
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114
Sobre a Ligação entre a Geografia, Ciências Sociais e a Filosofia
Introdução
A Geografia foi sempre considerada uma ciência de encruzilhada situada entre as ciências
naturais e sociais. Este carácter ambivalente resulta do facto de esta ciência produzir um
discurso sobre causas da localização de fenómenos no espaço. A Geografia ocupa-se
também dos padrões da localização e da influência do espaço no comportamento dos
fenómenos naturais e sociais incluindo a interação entre eles. As categorias geográficas
como espaço, território, paisagens, região e lugar denotam o esforço dos geógrafos em
produzir conceitos capazes de sintetizar a realidade estudada pela geografia revelando as
diferentes funções que a contiguidade espacial oferece e que evoluem historicamente
(Haesbaert, 2014).
Pela diversidade dos fenómenos da realidade empírica que a geografia estuda, a própria
disciplina possui uma interdisciplinaridade interna. Com efeito, existem ramos da Geografia
ligados ao meio físico por exemplo a Geomorfologia e a Climatologia que estudam o relevo
e o clima, respectivamente. Mas outros ramos concentram-se no estudo dos fenómenos
ligados à sociedade como é o caso da Geografia Urbana, da Geografia da População, da
Geografia dos Transportes, da Geografia Política entre outros ramos que embora
reconheçam o carácter imprescindível da natureza na localização dos fenómenos, são
todavia ramos cujo escopo é a investigação, com maior profundidade, dos aspectos sociais
utilizando os métodos das ciências sociais (Pereira, 2006).
A Geografia e a Filosofia
A Geografia possui uma longa trajectória filosófica, científica e social. Traça-se o início da
sistematização dos conhecimentos da Geografia a partir da Grécia antiga cujas reflexões
filosóficas centravam-se sobre a tentativa de explicar a realidade dividida entre os aspectos
relacionados com a natureza em termos de universo todo e os princípios do seu
funcionamento. Estas reflexões também incluíam origem do pensamento do Homem nos
115
aspectos da moral e da política,principalmente, com exigências colocadas pelo surgimento
das cidades (Godoy, 2010).
A instituição da Geografia como disciplina começa, no entanto, com o filósofo Emanuel Kant
o primeiro professor de Geografia numa universidade. Em Kant o espaço passa pela primeira
vez a constituir o fundamento da Geografia. Enquanto a Historia e o relato dos factos que se
sucedem no tempo a geografia e a apresentação dos fenomenos que se encontram um do
lado do outro no espaço (Tanaka, 2010)
Todavia, há que reconhecer que já antes de Kant havia muitos pressupostos filosóficos
embrionários do surgimento da Geografia.
116
lançando as bases para o ambientalismo moderno (Larriere e Larriere, 1997; Haesbaert et
al, 2012).
Esta nova corrente, cujos representantes incluem , por exemplo, Chorley e Hugget, concebe
o espaço geográfico como sistema cibernético. Este esforço de matematização fez surgir o
conceito de geosistema ou sistema geográfico,(Pereira, 2006). A tendência profundamente
neopositivista desta tendencia na geografia encontrou campo fertil na antiga União
Soviética e nos paises socialistas da Europa em geral onde a componente cultural e
espiritual do espaço geografico tinha pouca consideração.
117
a corrente da Geografia Crítica que define de forma contundente a noção de espaço
geográfico evidenciando as desigualdades no poder de decisão dos seus utentes,
distinguindo espaços de mandar e espaços de obedecer (Santos, 1999; Harvey, 2004)
Nos finais Sec. XX, do cruzamento de várias ideias acerca da relação Homem-Natureza
surgiram correntes como a Geografia radical, Ambiental e Pós-moderna que em resposta,
por um lado à globalização hegemónica advogando a necessidade da inclusão de outras
visões de Mundo. A globalização hegemónica criticada por pensadores como Milton Santos,
Boaventura de Sousa Santos envolve a necessidade de reconhecer outras estratégias de
produzir o espaço geogáfico diferentes das concebidas pelo neoliberalismo incluindo outras
formas de valorização da Biodiversidade são evidenciados por Arturo Escobar estudioso dos
movimentos ambientalistas dos povos indigenas, a título de exemplo.
118
cada vez mais a natureza considerada não no seu estado original mas já transformada pela
cultura (Maia 2010). As localizações de fenómenos incluindo os critérios para a selecção do
lugar de residência, os povoamentos são processos sociais com um certo grau de
historicidade e impregnados de cultura.
Na fase actual do desenvolvimento das ciências geográficas cada vez mais se questiona a
separação estanque entre a cidade e o campo. Esta separação pressupõe uma oposição
entre a cidade como as suas centralidades e o campo como periferia e as relações de poder
119
envolvidas no relacionamento entre os dos meios. Uma visão social do espaço urbano como
aberto e dinâmico mas capaz de facilitar o caldeamento das culturas, também é um espaço
das lutas sociais que podem se manifestar de forma criativa através da arte.
A cidade de Maputo é um exemplo que ao longo da sua história foi produzindo formas de
actuação artística com mensagens de luta social como a Marrabenta de Fany Mpfumo, a
poesia de Craveirinha, a pintura de Malangatana e na contemporaneidade a denúncia das
injustiças sociais na música e no teatro. De acordo com modelo de análise desenvolvido por
Henri Lefèbvre, muitas das canções da música popular como, por exemplo, Jeremias
Ngoenha oferecem dados para o sentido dos problemas sociais urbanos a partir da analise
do quotidiano (Godoy, 2010).
A diversidade e inclusão são a resposta afirmativa com dimensão cognitiva, moral e política.
Porque por uma lado contribui para a revelação de uma das caracteristicas fundamentais do
espaço geografico. Os objectos e os processos tanto naturais como sociais que o compoem
120
são caracterizados por uma constante diversificação (Santos, 1999). A sua apreensão exige o
reconhecimento da presença de comunidades epistémicas que produzem saberes
intersubjectivamente (Castiano, 2013).
Uma das causas das assimetrias resultam da presença potenciais diferentes de resposta a
impulsos externos. Dai que algumas regiões são tidas como reunindo vantagens
comparativas para determinados tipos de investimento em relação as outras.
Conceitos modernos como a vulnerabilidade aos desastres naturais, por exemplo, referem-
se ao potencial que existe no espaço geográfico de absorver choques externos e recuperar o
seu estado normal depois do choque. Este conceito revela uma dependência muito forte do
comportamento do espaço dos aspectos estudados pelas ciências sociais que caracterizam a
capacidade de uma comunidade interagir eficaz ou deficientemente durante choques e dai
resultando impactos quer moderados quer desastrosa
121
princípio de que esta ciência é apenas contemplativa do estado de coisas. De acordo com o
geógrafo francês Yves Lacoste :
“Todo mundo acredita que a geografia não passa de uma disciplina escolar e universitária ,
cuja função seria a de fornecer elementos de uma descrição do mundo, numa concepção
’desinteressada’ de cultura dita geral” (Lacoste, 2013, p. 21).
A indiferença perante a diversidade das paisagens rurais, por exemplo, resulta de sua
consideração como sendo residuais de uma economia em extinção o exemplo do que se
pretende combater ou erradicar.
Santos (1999), por exemplo, considera que a paisagem é caracterizada por uma sintese mas
muitas vezes justaposição de tempos diferentes. O conceito de tempo relaciona-se com a
122
técnica, assim, a fibra óptica numa machamba de mandioca ´constitui um exemplo. Deste
modo, existe o tempo global da fibra óptica e o tempo local da enxada. Santos (1999),
também distingue espaços expectadores e expaços actores sendo os últimos caracterizados
pelo tempo global hegemónico.
Alguns espaços privilegiados do meio urbano e rural, com potencial para determinados fins,
estão submetidos a processos que forçam a sua submissão a uma racionalidade técnica com
vista a facilitar a implantação de processos produtivos que aceleram a acumulação do
capital mas que afectam negativamente as estratégias de vida das pessoas locais sem
alternativas sustentáveis através de reassentamentos rápidos (Milléo, 2007).
123
Ameaças Ameaçada pela erosão Ameaçada pela erosão Ameaçada pela erosão cultural
acelerada e pela da biodiversidade, provocada pela globalização
terraplanagem extinção das espécies e
conducentes à pela urbanização
uniformização ao nível conducentes à
local uniformização ao nível
local
Impactos Impactos da destruição Impactos da perda da Impacto da perda da
da geodiversidade: biodiversidade: sociodiversidade: Perda de
Assoreamento dos rios Perda da informação conhecimento sobre a
e lagos, diminuição da genética para natureza e sociedade, perda de
biodiversidade, perda cruzamento de plantas valores éticos e visões do
da memória da história produção de alimentos, mundo
global e local e medicamentos
biotecnologias
Formas de Pode ser preservado Pode ser preservada Pode ser preservada em
valorização em forma de em parques nacionais e aldeias culturais museus e
património geológico reservas lugares património da
ou geossítio Exemplo: Parque humanidade como a Ilha de
Exemplo: Grutas de Nacional da Gorongosa Moçambique, Dança Nhau,
Khundue Música Timbila
124
Fig. 1: Uma paisagem rural algures no Limpopo localmente tem uma série de interpretações
e usos não cobertos devidamente pela pesquisa e ensino onde várias vezes cenários como
este são descritos a partir da ausência da modernidade. Exemplo de um espaço expectador
da globalização. A sua descrição na geografia da negação e da exclusão caracteriza-se na
enumeração de ausências e não do potencial de presenças. A título de exemplo: “Não” é
navegável, “não” tem regadio, “não” é usado para o turismo, etc. Um espaço sem geografia à
espera da modernidade para lhe dar sentido.
Considerações Finais
Uma Geografia mais inclusiva alicerçada no paradigma mais inclusivo baseado numa ênfase
na apreciação da diversidade com o emprego dos meta-conceitos: Geodiversidade,
Biodiversidade e Sociodiversidade beneficiaria da contribuição enriquecedora da tradição
reflexiva da Filosofia e das Ciências Sociais.
125
Os metaconceitos Geodiversidade, Biodiversidade e Sociodiversidade, pela sua semelhança
estrutural possuem um poder persuasivo que importa explorar. Reflectem a interacção
entre o potencial para a solução dos problemas do desenvolvimento incluindo a chamada
de atenção para uma maior atenção da inclusão das capacidades e necessidades
diferenciadas do Homem.
Este movimento de revitalização do ensino e pesquisa que se pretende que seja mais
interdisciplinar envolve aspectos relacionados com esforço para tornar esta ciencia mais
engajada reorientando o foco da atenção dos debates, praticas e posturas, uma forma de
ser e estar na academia.
126
Bibliografia
BARROS, José (2011): A Cidade como Forma Específica de Organização Social e suas Imagens
nas Ciências Humanas. Cadernos de Arquitectura e Urbanismo. pp 18, 22, 85-89.
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KANT, Emmanuel, 2008: Projecto e Anuncio da Geografia Física (Entwurf und Ankűndingung
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127
África (Textos do Colóquio em homenagem a Aquino de Bragança), CODESRIA, DAKAR.
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OMBE, Zacarias (2014): Moçambique Geodiverso: por uma Geografia Inclusiva no Ensino e
na Pesquisa. Revista Tamoios, 10, 1. pp. 2-16.
128
Filosofia, a Fronteira e a Ponte
Por: José P. Castiano
129
necessidade de haver uma ponte entre as diferentes ciências, porque os primeiros filósofos, a
partir da mitologia, indagavam-se sobre tudo na sua totalidade. Dessa totalidade deduzida
pelos filósofos nasceram as particularidades dos campos do saber. Sem a filosofia, mais
exactamente sem a epistemologia, ou seja, sem a ponte, as “fronteiras” entre as diversas
disciplinas, já desde a sua origem, não seriam visíveis. É a ponte, isto é, a filosofia, que faz
com que as diferentes ciências, ao mesmo tempo, estejam num processo de diferenciação
permanente (Niklas Luhmann) e, apesar disso, se comuniquem e sejam compreensíveis como
um sistema. Do mesmo modo, a filosofia é a fronteira, todavia não no sentido territorial de
lugar ou marco onde termina um pedaço de terra e começa o outro. O sentido epistemológico
de fronteira que a filosofia cultiva é mais em termos de “zona de contacto” onde há que
colocar um semáforo, por onde todas as ciências param, antes de progredirem. Portanto, e
esta é a ideia principal, perante este quadro de fragmentação das ciências e da consequente
“luta” pela demarcação territorial por parte de cada uma das ciências que consideramos
clássicas (como a matemática, geografia, história, física, etc.), mas sobretudo perante o
surgimento das “ciências de fronteira” (como geofísica, bio-matemática, psicolinguística,
psicossociologia, história económica, etologia, engenharia genética, mecatrónica, etc.), a
filosofia deve investir-se a si mesma para ser como o dedo polegar numa mesma mão, isto é,
o único que toca de frente os restantes dedos, representando estes restantes as diferentes
ciências.
Porém, não se deve confundir esta figura da filosofia como dedo polegar com a clássica
imagem de filosofia, à qual me referi acima, como a raiz ou a mãe das outras ciências — ou
seja da filosofia como sendo o braço que suporta todos os dedos — porque ela, a filosofia, já
não tem hoje a mesma função como na Grécia Antiga, embora mantenha a mesma essência
interrogativa e generalizadora do conhecimento. O sentido da filosofia como raiz perante as
outras disciplinas é outro: no seu sentido epistemológico; ou seja, pelo facto de ela interpelar
às outras ciências colocando as suas questões a partir de um ângulo muito especial e
particular seu: a legitimação e a fundamentação do conhecimento científico enquanto tal
(experiência, prova, observação, coerência interna, método, enfim, a questão da busca e do
critério da verdade total).
Assim, no sentido que coloco, deve olhar-se para a filosofia como sendo apenas uma das
disciplinas entre outras, mas que tem o privilégio de poder olhar face a face com as outras, de
ser a fronteira e a ponte.
Este polegar filosófico de fronteira-ponte já não é, e nem deve ser, o mesmo como o foi
desde Grécia Antiga até à modernidade. Pois, no contexto do mundo actual, e esta é a
segunda componente da tese a defender, a Filosofia deve tornar-se num polegar humanizador
perante os voos perigosos que as outras ciências, sejam naturais, sejam sociais e humanas,
fizeram nos últimos tempos. Este polegar humanizador para as ciências se impõe
especialmente devido os vôos desumanos que as ciências vêem dando, particularmente desde
as catástrofes humanas provocadas pelo colonialismo e pelas duas guerras mundiais no
campo da história. Estas foram “facilitadas” — e em certa medida até aceleradas — pelos
avanços no conhecimento científico (Ex: invenção da bomba atómica). Já no campo das
ciências sociais, e políticas em particular, por sua vez, o dedo humanizador da filosofia se
130
impõe devido ao pragmatismo, que é uma atitude oficial e geral adoptada pelas políticas
neoliberais; isto é, a ciência e a técnica “compram-se” tal como um outro produto qualquer:
eis a “lei” segundo a política nao-liberal60.
Esta é uma atitude política neoliberal sobre as ciências que no campo da filosofia, desta
feita por Lyotard (1985), foi conceitualiza pela fórmula de critério da performância das
ciências, na obra Condição Pós-Moderna.
Este “novo” papel — o de humanizador — que a filosofia deve tomar perante as outras
ciências neste século foi aliás particularmente defendido pelo VII Congresso da Associação
Internacional dos Professores de Filosofia, realizado em Paris entre 22 e 24 de Abril de
1977, pelo grupo de trabalho sobre filosofia e interdisciplinaridade no relatório intitulado
Filosofia e Epistemologia elaborado pela de filósofos “dupla Jaques”: Jacques Bouveresse e
Jacques Derrida, publicado mais tarde, em 1988. Ambos defendiam que a filosofia deveria ter
um papel central na promoção da interdisciplinaridade nas escolas e, desta forma, a educação
seria o campo privilegiado para a filosofia exercer o papel humanizador perante as outras
disciplinas escolares. E, de consequência, perante a pesquisa e o ensino nas outras ciências.
Como a filosofia (epistemologia) fez, faz e poderá fazer este papel de ponte-fronteira, ou,
se quisermos, de uma ponte-semáforo humanizadora? A resposta pode ser procurada e dada
examinado o empenho da filosofia numa perspectiva sistémica da evolução das ciências no
geral que passa de uma situação de multidisciplinaridade, da interdisciplinaridade para a
transdisciplinaridade. Na condição da multidisciplinaridade e da interdisciplinaridade a
filosofia coloca-se na posição de arbitragem das diferenças, portanto de fronteira-semáforo,
de “tribunal da razão” como diria Kant. Já na condição de transdisciplinaridade entre as
ciências, a filosofia coloca-se mais na posição de ponte, ou seja, busca fundamentar uma
teoria geral das ciências, mostrando-as como um corpus, sem no entanto resignar-se
totalmente do seu papel de demarcador de fronteiras.
Filosofia, a Fronteira-Semáforo
Como afirmei acima sobre a primeira parte da tese, o lugar e o sentido da filosofia, de ser
a fronteira-semáforo perante as outras ciências como a física, a matemática, a geografia entre
outras, é o mais antigo e, por conseguinte, “clássico”. Em que medida a filosofia se constituiu
a si própria como fronteira-semáforo perante as diversas ciências cada uma e no seu
conjunto? Isto equivale a perguntar-se, num primeiro momento, sobre o lugar e estatuto da
filosofia perante a multidisciplinaridade, num primeiro momento, e perante o movimento em
direcção à interdisciplinaridade, num segundo. Chamo “movimento” porque, desde que a
UNESCO, nos anos 80 do século XX, decretou a necessidade do que chamou por “ensino
integrado das ciências” para abarcar a complexidade do real (veja-se O Paradigma da
Complexidade e Os Sete Saberes para a Educação no Século XX de Edgar Morin), foram
60
Não é por acaso que Joaquim Chissano, quando foi eleito pela segunda vez como Presidente de
Moçambique, declarou, em entrevista da TVM, que o seu governo seria constituído por “políticos”
porque, dizia ele, “técnicos podem ser contratados”, enquanto que os políticos não. Cito de
memória.
131
introduzidas as chamadas “disciplinas transversais”61 nas escolas moçambicanas, sobretudo
nas do ensino secundário, obedecendo a uma estratégia de multidisciplinaridade de
integração, embora o espírito e a letra por trás, oficialmente declarados pelo INDE, deveria
ter sido na linha de interdisciplinaridade.
O que é, então, a multidisciplinaridade? E como se posiciona a filosofia perante ela,
enquanto fronteira-semáforo? Convém antes chamar a nossa atenção, aproveitando o estudo
de Pombo 2004), que existem práticas científicas e de ensino, muitas vezes implementadas
sob a capa de uma filosofia de interdisciplinaridade, mas que em teoria e prática são apenas
multidisciplinares. Pois, estamos perante um campo de multidisciplinaridade quando há
qualquer tipo de “associação mínima” entre as diversas ciências ou disciplinas, mas que que
esta associação entre elas não resulte numa alteração de cada uma dela em termos de objecto
e nem método de investigação ou estudo. Cada uma delas permanece, nesta associação,
intacta; contribui, no entanto, no conhecimento do real ou na resolução de problemas
humanos (de saúde ou de alimentação, por exemplo) baseando-se no cultivo da sua
perspectiva científica e seguindo próprios métodos de chegar ao conhecimento ou solução
requerida.
Assim, na prática e em teoria, e ainda recorrendo-me a Pombo, as características da
multidisciplinaridade são: ser uma simples colaboração entre as ciências para a busca de
informações ou dados relativamente a um objecto ou problema comum; um encontro de
análise conjunta e pontual sobre o mesmo objecto ou para a resolução de um problema
concreto; ou ainda, como é o caso da prática nos chamados “temas transversais”, uma
colecção de várias ciências numa só disciplina de ensino, sem no entanto haver uma diluição
de fronteiras entre as ciências convocadas na colaboração. Os casos de denominados estudos
etno-culturais ligados ao feminismo, ao racismo, ao etnocentrismo, e outras identidades; o
caso de estudos ambientais62; o caso de ciências de educação63 e outros fornecem um bom
61
Relativamente ao meio ambiente, gênero, empreendedorismo, ética e deontologia, etc. Na mesma
“reforma” foram introduzidas, no ensino secundário, disciplinas associadas ou integradas, como
por exemplo, a das Ciências Sociais que abarca matérias de história, geografia, sociologia, etc.
Claro que, por trás desta “reforma”, estava o critério neoliberal de redução de custos do Aparelho
do Estado reduzindo também o número de professores. Os critérios didático-epistemológicos para
esta medida no ensino foram pobremente fundamentados e vagamente auridos a partir de contexto
interno e história nacional da educação.
62
Os debates no Conselho Académico da UP em torno dos cursos de licenciatura, mas sobretudo dos
mestrados em Ciências Ambientais mostram o quão dramática pode ser também a
multidisciplinariedade como campo de poder. O referido curso foi apresentado em diferentes
versões e momentos tanto pela então Faculdade de Ciências Sociais (geografia) como pela
Faculdade de Ciências Naturais e Matemáticas (Química). Em todos os debates sentia-se que cada
uma das “frentes” científicas tinha algo mais a dizer sobre o ambiente do que o texto curricular:
havia sempre propostas de novas disciplinas de um lado para o outro, sob a perspectiva de
“colaboração”. Resultado final: acabava-se desfigurando cada proposta ao ponto de se recomendar
para “ voltar ao conselho académico após consultas e acréscimos”, o mesmo que dizer
“chumbado”. Felizmente o curso acabou sendo aprovado, todavia com uma solução genial: a
criação de uma Faculdade de Ciências da Terra que hospedou o mestrado.
63
Para o caso das ciências da educação, o debate que cresceu em torno do curso do doutoramento
em desenvolvimento curricular na UP mostrou uma luta pelo estabelecimento de uma “nova”
132
habitat para o florescimento das chamadas abordagens interdisciplinares, mas que na prática,
esta “colaboração” ainda funciona numa perspectiva multidisciplinar.
Sob o ponto de vista da sociologia e da antropologia das ciências pôde ser observável
que os que se consideram “cientistas puros” afastam-se deliberadamente destes ambientes por
eles considerados “infestados”. Não poucas vezes, estes cientistas e académicos mais
tradicionalistas no que respeita à sua concepção sobre “o que deve ser ciência”, vêm nas
práticas multidisciplinares uma tentativa de fuga ao rigor científico que permanência?? no
interior de cada disciplina haveria de exigir e também como uma espécie de fuga de alguns
cientistas por eles considerados como “mais fracos” ao controle (por exemplo atravez do peer
review) da sua comunidade científica de origem . Ngoenha, no seu artigo introdutório neste
livro, menciona o caso de Alan Sokal, professor de física na universidade de Nova Iorque;
este publicou um artigo sob o título Transgredir as Fronteiras, um texto que continha “uma
miscelânea fabricada com base em citações de filósofos contemporâneos e continha um
número importante de absurdidades científicas e de afirmações gratuitas”. O mais importante,
porém, é que Sokal mostra-se “inquieto e irritado pelo declínio, em certos meios da esquerda
académica americana, do nível de exigência intelectual” provocada por uma deliberada
“fusão entre uma perspectiva científica e uma interpretação literária, tendência muito em
voga entre os estudantes de ciências humanas, os especialistas de culturas minoritárias e
feministas”.
Não são poucos os colegas nossos que, pegando em manuais dos “temas transversais”,
encontram sempre uma série de, a seu ver, “barbaridades científicas” redigidas por
aventureiros para as outras áreas. Por exemplo, quem deve escrever um manual sobre o meio
ambiente? Um físico, um biólogo, um químico, um geógrafo, ou, para não tornar a lista
interminável, um sociólogo? Qualquer “decisão” que se tomar, se um deles, parte deles, ou
ainda todos eles, não vão faltar os que vêm absurdidades científicas em todo este
empreendimento multidisciplinar.
Todavia, a mesma questão podemos colocar em relação ao manual sobre o
empreendedorismo: quem deve compô-lo? Um gestor porque é preciso “gerir bem” o
negócio? Um psicólogo dado que ser empreendedor é eminentemente uma atitude e não uma
profissão? Um economista que certamente aconselhará sobre as fases e os passos a dar? Ou
um técnico em finanças por causa da contabilidade envolvida?
Da mesma forma esta pergunta se coloca quando o caso é o manual do currículo local; a
este propósito, numa dissertação de mestrado que recentemente acompanhei, a autora chega à
conclusão que professores de várias disciplinas continuam a “trabalhar isoladamente” no
tratamento dos temas e dos problemas locais64, apesar da filosofia de colaboração que subjaz
ao conceito e à estratégia de implementação do currículo local; portanto, conclui-se na
ciência no contexto universitário, pela “profissionalização” dos seus cientistas com o propósito
último de criar uma “identidade” própria: a classe dos chamados curriculistas (Comp. o texto
curricular do programa de doutoramento em educação/currículo da UP). A multidisciplinaridade,
neste caso, deve notar-se pela natureza dos estudantes: uns de geografia, outros de português,
ainda alguns das matemáticas, não esquecendo alguns funcionários do ministério da educação
(gestão escolar). O que unia a todos, porém, e esta é a justificação epistemológica, são as
“didácticas de...”, ou, neste caso, o currículo.
133
dissertação, as várias ciências continuam sem colaborarem para a compreensão do real
imediato ao aluno, não obstante ser esse o espírito dos 20% reservados para a abordagem dos
conteúdos locais, segundo o INDE define o currículo local.
De qualquer das formas, a multidisciplinaridade que se pratica nos exemplos que demos
acima, sob a capa da interdisciplinaridade, não deve ser um encontro de pessoas “que sabem
tudo acerca de cada vez menos” — como escreve Ortega & Gasset (Cfr. Pombo 2004)
referindo-se aos encontros entre “especialistas” pós-modernos que quanto mais se
multiplicam, tanto menos sabem em relação à ciência ou disciplina que devem ensinar e, pior,
pouca curiosidade mostram em saltar as fronteiras da sua especialização para se actualizarem
em relação ao saber que necessitam nesta colaboração.
O ponto é o seguinte: A filosofia, no meio desta prática científica e pedagógica
multidisciplinar mas que ocorre sob a cada??capa? de interdisciplinaridade, só faz sentido em
ser a fronteira que acompanha, estimula e até mesmo deve legitimar os campos do saber em
colaboração, todavia vigiando, neste empenho seu, no sentido de a multidisciplinaridade não
transcorra o risco da decadência do rigor científico entre os “transgressores de fronteiras”.
Por outras palavras, a filosofia pode ser, neste contexto, uma espécie de vigilante de
fronteiras, por formas que as transgressões e cruzamentos fronteiriços não resultem na perca
da tradição milenar no rigor que a cientificidade nos legou; mas sim que estas transgressões
de fronteiras se transformem num trabalho fronteiriço de interdisciplinaridade, de facto. Em
poucas palavras, no meio de tantos multis, a filosofia faz a vigilância epistemológica nas
pontes.
Espero que esteja claro, com o que disse acima, que a filosofia, na sua tarefa de vigilante
da fronteira-semáforo, deve ajudar a transformar as zonas de contacto multidisciplinar — que
ainda continuam cinzentas sob o ponto de vista científico — de campos de saber que são até
agora, em campos de conhecimento. Em outras palavras, a filosofia deve dar-se a si mesma a
tarefa de, seguindo o provérbio nigeriano, a construir pontes entre os diferentes saberes, sem,
no entanto, significar diluir as fronteiras (desta feita não seguimos o provérbio, sob o risco de
sermos ignorantes/ingenuos!).
Antes de prosseguirmos, porém, é necessário chamar atenção para a diferença entre saber
e conhecimento. E aqui me vou recorrer ao trabalho recente da Carla Maciel, docente de
linguística aplicada na Universidade Pedagógica65. Pois, segundo ela e baseando-se numa
vasta consulta bibliográfica, “conhecer” tem a ver com uma situação contextual e inicial, mas
que pode evoluir para um estado superior (por isso existe o verbo “reconhecer”, voltar a
conhecer) e pode ocorrer em situações passivas (“eu fui conhecido”) em que o sujeito é o
objecto; ou seja, o conhecimento “…constitui-se a partir de um objecto, o que implica a
actualização de uma relação sujeito-objecto”. Em contrapartida, “saber” aparece sempre
numa posição activa do sujeito (“eu sei onde fica a livraria”, “eu sei que você é uma boa
64
Cfr. Pinto Novo, S. (2013): Interdisciplinaridade e Currículo Local: Concepções e Práticas dos
Formadores e Professores do Ensino Básico. (Dissertação de Mestrado). UP, Maputo/Quelimane.
65
Cfr. Maciel, C. (2013): A Linguística Descritiva na Aula de Português. Colecção Ciência, Texto
Editora. Maputo. Para a discussão entre “saber” e “conhecer” consultar o capítulo II (Os lexemas
verbais conhecer e saber na produção escrita do Português em Moçambique) pp.27-39.
134
pessoa”) e nunca na passividade. Assim, o saber “introduz a problemática da verdade”, isto é,
da relação entre o sabido e a realidade, entre o sujeito e o objecto (seria ilógico dizer “eu sei a
Joana, senão que “eu conheço a Joana” porque a Joana aparece, no segundo caso, como
objecto do meu conhecimento).
Este salto necessário, do campo do saber (baseado na subjectividade do que é conhecido)
ao do conhecimento (baseado no processo do conhecimento), corresponde à mudança
necessária da presente prática multidisciplinar — que se consubstancia, nas condições actuais
e como vimos acima com alguns exemplos, nas chamadas disciplinas transversais embora sob
a capa da interdisciplinaridade — para uma abordagem propriamente interdisciplinar. De
facto, neste contexto, a filosofia é chamada a construir uma espécie de teoria geral sobre as
ciências, uma espécie de teoria-supervisão de tudo o que acontece nos campos
interdisciplinares, uma espécie de ponte com fronteiras. Trata-se, enfim, de construir uma
teoria da interdisciplinaridade que, como diz Bertalanffy (1968), não seja resultado de um
processo de votação nesta ou naquela disciplina para fazerem parte dos temas transversais.
E há exemplos de que esta tarefa da filosofia está em curso (o que não quer dizer
necessariamente que esteja a ser feita por filósofos de formação): a teoria geral dos sistemas
científicos desenvolvidas, separadamente, por Bertalanffy, Boulding e Pierre Delattre cuja
ideia básica de todos reside no facto de defenderem que todas as ciências estão organizadas
num sistema bem definido. No caso de Bertalanffy este procura desenvolver uma nova
disciplina que integre tanto o lado social como o lado natural da investigação científica. Já no
caso de Kenneth Boulding este procura encontrar o que é de comum entre as várias ciências,
fundamentando-o, em termos de: instrumentos conceptuais utilizáveis por todas as
disciplinas, domínios de aplicação conjunta ou a transferibilidade dos métodos e dos modelos
de análise e a identificação, em cada uma das ciências, de princípios comuns que possam ser
geralmente, ao longo de todo o espectro científico, aplicáveis. Entretanto, Pierre Delattre vai
mais longe ao insistir na ideia de que esta nova teoria das ciências deveria ser capaz de trazer
novas descobertas, i.e. encontrar novos problemas sobre os quais as diferentes disciplinas
seriam convocadas a contribuir para a sua solução. Só que esta contribuição não deve ser por
adição de cada disciplina, mas sim a partir do que considera ser uma nova capacidade
sintética e metalinguística do novo sistema. Como Pombo (p.46) diz, citando Delattre, “foi
exactamente a partir deste conceito fundamental — sistema — que se desenvolveram a maior
parte das tentativas interdisciplinares”.
Neste leque de “filósofos” da interdisciplinaridade pode colocar-se também a
epistemologia genética de Piaget. Segundo este, o fundamento da interdisciplinaridade está
implícito na própria unicidade e complexidade do objecto da ciência na medida em que,
justifica ele, o seu progresso ocorre graças ao aprofundamento do respectivo objecto. O
resultado deste processo de aprofundamento que ocorre em cada uma das ciências
particulares terá que ser, necessariamente, uma diluição contínua das fronteiras e barreiras no
interior de cada disciplina científica. É como que, perece Piaget a querer dizer, quanto mais
fundo formos no interior de um objecto de estudo, mais notamos a necessidade de
colaboração que as outras áreas precisam de dar para conhecer o objecto, mais predispostos
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nos tornamos, enquanto especialistas, em aceitar a mão estendida do outro campo científico,
enfim, em aceitar a ponte.
Por fim, podemos alinhar no grupo dos construtores de fronteira-semáforo a ecosofia
desenvolvida por Félix Guattari. No seu texto As Três Ecologias66, mas também e sobretudo
no texto conjunto com Gilles Deleuze, Rizoma, defende que o discurso sobre ecologia deve
deixar de se referir limitadamente à Natureza ou à questões in strictus sensus ambientais para
abarcar também as socais e mesmo as mentais. De facto, toda a ciência, seja exacta, seja
natural, tudo o que pode (e mesmo até, deve) fazer é formular conjecturas sobre futuras
possibilidades, e não formular certezas. A ciência deve gravitar em torno de busca
possibilidades, cenários, focos de incertezas futuras. Esta, a busca de incertezas e trabalhar
num mundo delas, constitui o seu programa ecosófico. No fundo é isso mesmo o que
chamamos por interdisciplinaridade: incertezas programáticas na investigação científica que
surgem em forma de novos objectos de estudo, o que equivale a dizer novos problemas
globais. Neste processo de busca de incertezas — dado que a ciência funciona com um
objecto rizomático — através de práticas interdisciplinares, segundo Guattari, os cientistas
descobrem a necessidade de estabelecer alianças e negociações do seu objecto. Assim, a
interdisciplinaridade resvala rapidamente para o campo político dado que é preciso descobrir
novas linguagens ou disputar os recursos técnicos necessários (tecnologias) para resolver os
novos problemas encontrados. Já no texto Rizoma67 Deleuze e Guattari desafiam o
estruturalismo, incluindo o marxista, e todas as teorias que preconizam a existência de
“sistemas” ou atingir uma espécie de sistematização geral das ciências. Para eles, o dito
sistema das ciências é “aberto” porque conceitos, no geral, são relacionados com as
circunstâncias e não com essências, pior se estes forem vistos como pré-existentes em relação
à realidade. Os conceitos inventam-se, criam-se, afirmam os dois já no seu livro conjunto
Introdução à Filosofia68. E é trabalho específico da filosofia, continuam, inventar conceitos,
que são as ferramentas para o trabalho na ecosofia.
É necessário acrescentar que a interdisciplinaridade implica, sobretudo hoje e em
algumas áreas mais do que outras, a partilha de tecnologias, por causa dos dados envolvidos
no cruzamento. Por isso, alguns filósofos, que na maior parte dos casos têm uma aversão
fundamental para com as novas tecnologias, devem tornar-se também competentes nesta área,
sob pena de não partilharem informações necessárias para o seu papel de fronteira-ponte ou
ponte-fronteira. Pois, as tecnologias permitem um cruzamento e transferência de dados que
qualquer disciplina, mais especificamente a filosofia, precisa hoje para se desenvolver como
um saber actualizado, mas também para melhor intervir na resolução dos problemas da
humanidade.
O colega da Universidade Pedagógica, Carlos Lauchande de estatística contava-me, um
dia, que as investigações da SACMEC nas quais estava envolvido revelavam coincidência de
dados: nas regiões de Moçambique onde a pobreza é maior também o rendimento escolar das
crianças era, em média, extremamente fraco. Só que este conhecimento (não se trata já de um
66
Guattari, F. (1990): As Três Ecologias. Campinas, Papirus. São Paulo, Brasil.
67
Deleuze, G. & Guattari, F. (2006): Rizoma. ????????
68
Deleuze, G. & Guattari, F. (???????): ????????
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simples saber) pressupôs uma colaboração de um sociólogo que aferiu os “graus de
incidência” da pobreza nestas regiões e, mais do que isso, pressupõe-se que o trabalho deste
sociólogo tenha sido bem feito, uma condição para que as conclusões do Lauchande sejam
plausíveis. Imaginemos, agora que temos estes dados, o papel que teria um filósofo quando
chamado a contribuir ajudar, com o seu saber (todavia sem o conhecimento necessário das
outras ciências), na resolução do problema do fraco aproveitamento ou da pobreza em geral...
Portanto, quando se trata de chamar a filosofia para ajudar no seu papel de fronteira-ponte ou
vice-versa, não é para arbitrar uma simples justaposição de “disciplinas que podem contribuir
para...”. Trata-se, de facto, de reflectir sobre as condições e as possibilidades sob as quais a
investigação e a construção de discursos em redor destes novos campos de acção, com que
todas as ciências hoje se vêm confrontadas em agir (meio ambiente, etnocentrismo, racismo,
fome, analfabetismo funcional, neoliberalismo, etc.) se podem legitimar, como científicas.
Mas a questão ainda permanece: será que a filosofia deve parar por aí neste seu papel de
vigilância epistemológica? Deve contentar-se em ser a obreira ou árbitra da fronteira-ponte da
cientificidade? Ou ainda em criar uma espécie de teoria para todos os casos em que tudo
encaixe certinho lá dentro? Ao proceder assim, a filosofia estaria, de facto, a limitar-se ao
papel de fronteira, a tal que, segundo o provérbio, é construída pelos ignorantes/ingénuos. A
filosofia estaria a ser uma especialista-ignorante, uma espécie de alguém que sabe muito
sobre a sua área de investigação, mas nada sobre outras. Enfim, estaria desvestida da sua
essência original: a sabedoria. Se seguirmos o provérbio que vimos citando, não estaríamos
empenhados na construção de pontes ... em tempos de crise do humanismo. E sabedoria,
neste caso, significa cultivar as possibilidades e condições da unicidade da ciência (em
linguagem comum: a busca de uma teoria de colaboração entre as ciências) com um projecto
humanista mais amplo. É neste nesta união onde está a sabedoria, esta que permite à filosofia
construir, aliás ser a ponte.
Filosofia, a ponte
Como procura a filosofia estabelecer e permanecer a ponte entre um especialista cientista e o
projecto humanista (devo esclarecer, neste ponto que, para os mais atentos, já não se trata
simplesmente, quando falamos de ponte, da relação entre as ciências, da interdisciplinaridade;
trata-se da ponte necessária entre os projectos do conhecimento do mundo que nos rodeia na
sua relação com o homem)? Pelo facto de a filosofia interpelar às outras ciências com a
questão: o que faz com que um determinado tipo conhecimento seja aceite pela comunidade
académica, de cada época e lugar, como sendo científico? A resposta a esta pergunta não está
no domínio de cada ciência em particular, mas sim no domínio da ponte, isto é, da filosofia.
Por exemplo, à questão o que é a matemática ou a geografia ou ainda a física, as respostas
não seriam destes domínios. Para responder, no caso da matemática, não nos poríamos a fazer
contas ou a calcular para defini-la; também, no caso da geografia não haveríamos de
organizar uma excursão para apreciar uma certa paisagem rural ou urbana; da mesma forma,
para o caso da física, a resposta não seria procurada numa experiência qualquer, por exemplo,
com os raios ou o átomo.
137
Neste caso, enfim, o proprium da filosofia é interrogar-se sobre as condições e as
possibilidades de um determinado conhecimento ser cunhado por científico. Esta não é uma
resposta que possamos encontrar do interior de cada ciência em particular. O empenho para
encontrá-la é filosófico, mesmo que, cada vez mais, hajam respostas que venham do interior
dos próprios matemáticos, geógrafos, físicos ou psicólogos, entre outros. Dizer que a
matemática, a física, a geografia “é uma ciência natural, social, ou humana que se dedica a...”
não é necessariamente uma resposta do interior destas ciências. A resposta resulta de uma
reflexão epistemológica dado ser uma pergunta sobre o estatuto e o lugar de uma determinada
ciência no concerto de outras ciências. Assim, a filosofia procura respostas para todas as
ciências justificarem-se ou legitimarem-se com tal. Por isso que Kant falava da filosofia
como sendo um “tribunal” da razão científica.
Entretanto, por trás desta pergunta básica — o que faz com que este conhecimento seja
científico? — está uma outra mais fundamental: para que serve este conhecimento? Em que
medida ele vem fazer diferença na resolução dos problemas com que a humanidade (pode ser
também Moçambique, etc.) hoje se vê confrontada?
A grande crítica à ciência, na nossa época, foi talvez conseguida pela ruptura epistémica
feita por Lyotard na Condição Pós-Moderna (1985) ao afirmar a centralidade do poder na
condição pós-moderna: hoje “não se pagam sábios, técnicos e aparelhos para saber a verdade,
mas para aumentar o poder”. Por trás desta afirmação está toda uma crítica a todo o
movimento da interdisciplinaridade que corresponde, se levarmos Lyotard até às últimas
consequências, à época da deslegitimação do conhecimento científico devido ao empirismo
exagerado com que a prática científica se vê confrontada a obedecer. As políticas neoliberais
vivem na base de “dados”. Segundo Lyotard, a relação com o conhecimento científico na
condição pós-moderna deixa de estar ligada à realização da felicidade e da vida ou do espírito
humano, enfim da emancipação. Pelo contrário, a relação com o conhecimento é pragmática,
(na qual não se reconhece a que utopia social (metanarrativa, macronarrativa) este
conhecimento está associado. A força do seu crescimento provém do poder ou o domínio
sobre as forças naturais.
Então, voltemos à pergunta-de-base, qual é o papel da filosofia neste quadro da
multiplicidade de conhecimentos, o que equivale a dizer de multidisciplinas e
interdisciplinas?
Eu ouso a dizer que a filosofia terá, num breve futuro, que ajudar a transcender ou
superar o contexto das disciplinas em que operam as ciências. O rompimento das fronteiras é
quase que impossível no contexto actual da construção de escolas baseadas em disciplinas,
algumas das quais já nada mais têm a dizer na resolução de problemas mais simples duma
comunidade, sociedade ou do mundo inteiro. Esta utopia ainda está no campo do pensável,
todavia possível, pois, não se tratará apenas de construir pontes em vez ou no lugar das
fronteiras; tratar-se-á, pois, em cima das práticas actuais, em encontrar novos fundamentos
comuns, nova linguagem comum e sobretudo novas formas de compreensão do real que
seriam não necessariamente iguais ao trajecto científico feito pelo Ocidente e pelo Oriente.
138
O Caso da África
Se seguirmos o prognóstico de Paulin Hountondji, o futuro da filosofia africana não deve
rumar em direcção à etnofilosofia, senão para uma teoria das ciências. A etnofilosofia a la
Tempels, segundo Hountondji, teria pervertido o desenvolvimento, melhor o “nascimento”,
de uma filosofia em África, ao confundir-se com a antropologia: “uma antropologia com
pretensão filosófica”69. A questão é, agora e para salvar a filosofia africana do perigo de ser
confundida por feitiçarias ou curandeirismos, esclarecer em que condições o conhecimento
produzido no contexto africano pode ser considerado científico, uma vez depurado de toda a
carga supersticiosa e mítica.
Sem querer fazer uma espécie de história do discurso sobre as ciências em África, a
questão fica, porém, a seguinte: como realizar esta “revolução epistemológica” proposta por
Hountondji? E na verdade, uma que não somente rompa com o caminho do tradicionalismo
iniciado por Tempels e outros a quem Hountondji cunhou por etnofilósofos, mas uma
revolução que rompa também com adulação do Ocidente? Uma revolução que não olhe nem
para o Ocidente, e nem para o Oriente, nem para a modernidade, nem para a tradição, mas
uma que olhe somente para a frente (futuro)?
Para isso ouso em concluir que há uma fronteira-ponte muito especial e específica a ser
construída pelos sábios cientistas africanos, a saber a fronteira-ponte entre si mesmos, entre
as práticas e teorias com as culturas locais. O sentido de fronteira aqui é o de reconhecimento
de que, com as diversas ciências, herdadas no colonialismo político e mental no nosso caso,
podemos conhecer e reproduzir apenas uma parte da realidade. A outra parte deve ser
produzida a partir da construção de zonas de contacto e fóruns de debate promovidos
deliberadamente com os outros colegas cientistas do interior das culturas. Esta ponte com eles
ainda precisa de muitos alicerces. A nossa prática académica até hoje teima, quando fala de
interdisciplinaridade, em olhar para as disciplinas do ocidente, como se localmente não
tivéssemos formas próprias de conhecer o real. De facto, esta seria a melhor e a mais bela
ponte que tanto os sábios, quanto os chamados “ignorantes”, devem, porém conjuntamente,
construir.
69
Hountondji, P. (1983): African Philosophy: Myth or Reality. Indiana University Press.
Bloomington and Indianapolis.
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