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Die Eule der Minerva beginnt erst mit der einbrechenden Dämmerung ibren Flug 1.
Estas palavras de foram escritas por G.F.Hegel (1770-1831), o considerado pai da
filosofia clá ssica alemã , no penú ltimo pará grafo do prefá cio à sua obra Grundlinien der
Philosophie des Rechtes2 a 25 de Junho de 1820, data em que o assinava. Na mesma data,
em Moçambique, aproximadamente um século e meio depois, Samora Machel proclama
a Independência total e completa de Moçambique acto que formalizou a Liberdade
política. Se há alguma coisa que o filó sofo Ngoenha teria desejado fazer, seria convidar o
velho Hegel a assistir a um dos momentos mais importantes da caminhada do povo
moçambicano para a sua Liberdade. Mas ao invés disso, Ngoenha obsequeia-nos com a
visita da coruja da Minerva por via deste livro no vigésimo ano da Independência de
Moçambique, ano das terceiras eleiçõ es multipartidá rias para o Parlamento e
Presidência da Repú blica.
A coruja é a ave que a Minerva envia para anunciar as boas novas. Quando ela
levanta o seu voo e o povo a vê chegando, sabe que é prenú ncio da luz da esperança.
Algo vai mudar? No mesmo pará grafo, antes desta frase, Hegel escreve: “Enquanto
pensamento do mundo, [a filosofia] aparece no tempo só depois da realidade ter
consumado o seu processo de formaçã o e esteja realizada3”. A ideia é que a Filosofia,
como amor pela sabedoria, é um Gedanke (pensamento) sobre os fundamentos dos
fenó menos da natureza, da sociedade e do pensamento. Entre os quais estã o os
fenó menos políticos. A Filosofia para este pensador, é o resumo do tempo no
pensamento, por isso só pode chegar ao “entardecer” depois de tudo acontecer durante
uma jornada. Para Hegel, neste sentido, a Filosofia é contemplativa e é o ponto de
chegada reflectiva.
Ngoenha se propõ e com este livro fornecer os fundamentos para o pensar
filosó fico sobre a Democracia moçambicana. Chegou tarde demais como a coruja da
Minerva? Ou chegou ainda a tempo de, com o livro, espalhar uma luz do olhar filosó fico
sobre o processo político em Moçambique? Ele pró prio diz que as questõ es que trata
neste livro foram suscitadas há quase quatro anos atrá s. De lá para cá lhe perseguiram
nas suas reflexõ es e conversas. O convite da Academia Filosó fica na Matola em 1999 foi
o ponto de partida e pretexto para pensar e escrever sobre o papel da Filosofia,
particularmente da Filosofia Política, em Moçambique. O convite foi nas vésperas das
eleiçõ es legislativas e presidenciais de 1999. Ngoenha vem responder quase cinco anos
depois ... por sinal [?] nas vésperas de outras eleiçõ es gerais. Tarde como a coruja da
Minerva? Sim porque as eleiçõ es que eram a ocasiã o do questionamento já se
realizaram. Mas Ngoenha precisava de tempo para reflectir sobre os fundamentos. E
pensar sobre os fundamentos precisa de prudência porque pomos em evidência e
pensamos sobre os erros, conflitos, lutas e disputas do passado com os olhos postos no
futuro. Mas Ngoenha tem uma visã o interventiva e nã o contemplativa da Filosofia. Tal
como o jovem Marx, ele defende que a Filosofia nã o só deve interpretar o Mundo – o que
Hegel até aí fizera –mas ela deve sobretudo transformar o Mundo procurando oferecer
1
“A coruja da Minerva só levanta o seu voo quando chega o crepúsculo” (tradução minha). Há pelo
menos uma boa dezena de traduções diferentes desta frase de Hegel, alterando, naturalmente, ligeiramente o
seu sentido. Em algumas traduções portuguesas se emprega o termo mocho e não coruja e ainda o termo
entardecer ao invés de crepúsculo. Atenas ou Minerva era a deusa da cidade de Atenas, da coruja e da oliveira
e da civilização, era a encarnação da sabedoria, da razão e da pureza.
2
Fundamentos da Filosofia do Direito.
3
“Als der Gedanke der Welt erscheint sie [die Philosophie] erst in der Zeit, nachden die wirklichkeit
ihren Bildungsprozeβ vollendet und sich fertig gemacht hat”. (Hegel, F., Philosophie des Rechtes. Vorrede, Bd.
7,9p.)
aos homens melhores alternativas de interpretar e agir sobre a sua Histó ria. Por isso
acho que, para além de ter pensado na Filosofia em Geral, Ngoenha personalizou a
questã o. Entendeu e bem que a sociedade moçambicana através dos membros da
ACAFIL, lhe estivesse a questionar «qual é o teu papel como filó sofo em Moçambique? ».
Naturalmente que, assim colocada a questã o, os proponentes queriam manifestar,
através de Ngoenha, o desejo de ver nos intelectuais moçambicanos, um maior
engajamento teó rico-crítico e mais intervençã o nos processos políticos nacionais, se é
que estes têm a pretensã o de ser intelectuais moçambicanos. E Ngoenha responde a este
apelo com ousadia e arrojo que testemunham o seu ímpeto de querer ser mais
interventivo no processo moçambicano. Por exemplo, numa das passagens, escreve o
seguinte: “digo muitas vezes que lamento ter nascido tarde e nã o poder ter aderido
naquela luta [de libertaçã o] que continua a ser nos meus olhos justa”. Mas ao escrever a
presente obra Ngoenha socializa a questã o, isto é estende o convite de reflexã o para
outros intelectuais como ele, desafiando-os desta feita a trazerem as suas reflexõ es
sobre as seguintes questõ es fundamentais para Moçambique: qual é o sentido actual de
lutar pela Liberdade no nosso país democrá tico? Como devemos militar e lutar por este
sonho da Liberdade? Quais sã o as nossas armas e que sã o hoje os inimigos da Liberdade
dos moçambicanos? Numa linguagem menos militante podemos formular a questã o
desta forma: Quais sã o os constrangimentos de hoje à Liberdade dos moçambicanos e
qual é o papel da Filosofia na maximizaçã o das liberdades democrá ticas dos indivíduos e
povos assim como na sua participaçã o política?
Vista neste â ngulo, a coruja nã o chegou tarde porque nunca o sentimento de falta
de liberdades esteve tã o presente como hoje nos países africanos; e a filosofia africana
nunca como hoje se sentiu tã o chamada a mostrar luzes que iluminam o caminho dos
povos africanos para a sua liberdade. Aliá s, se há uma filosofia que desde o seu
surgimento tem como sua essência a busca da liberdade, esta filosofia é a africana; é
tanto assim que Ngoenha declara que ela sempre foi marcada pelo paradigma libertá rio:
“se existe um substracto filosó fico que está na origem axioló gica de Moçambique é sem
dú vida a busca da liberdade”, escreve Ngoenha em relaçã o ao processo moçambicano.
Esta liberdade que se busca tem duas facetas: a positiva, segundo o autor, quer dizer
liberdade (ou direito) de sermos nó s mesmos” e a negativa, enfatiza a necessidade de
vivermos sem constriçõ es de cará cter político e econó mico.
Este livro de Ngoenha é em si uma das luzes que a Minerva traz para iluminar a
caminhada dos moçambicanos para uma maior maximizaçã o das Liberdades individuais
e colectivas.
Caminhemos, pois, com o livro.
No capítulo I, cujo título é Filosofia e democracia em Moçambique- pela sua funçã o
na obra trata-se de um capitulo introdutó rio- o autor pregunta-se sobre “qual pode ser o
papel da Filosofia no processo democrá tico de Moçambique?”. Antes de responder a
questã o que coloca, Ngoenha deixa claro que, qualquer pessoa que lhe desejar
responder, tem o dever de ser “coerente”, isto “e, deve começar por clarificar sua posiçã o
pessoal e os valores pelos os quais milita. Para Ngoenha, que se crê ser militante da
tradiçã o filosó fica africana na sua vertente libertaria, o valor má ximo e ao mesmo tempo
o fim da sua filosofia é a Liberdade. Como ele mesmo escreve: “o valor do fundo do meu
engajamento é a militâ ncia a favor desde valor humano supremo para os moçambicanos
e para os africanos” que é Liberdade. Mas o que significa militar pela Liberdade no
contexto actual e em Moçambique? Entre outras coisas Ngoenha, para dar resposta a
esta questã o, exige que o filó sofo ou o intelectual que milita pela causa da Liberdade
deve preocupar-se constantemente em “relevar e fundamentar as razõ es que militam a
favor de uma democracia mais participativa, de uma democracia que subordina a
economia à s escolhas políticas e societais (...) e que baseia as suas instituiçõ es nos
Prefá cio
imaginá rios colectivos das populaçõ es ...”, neste caso, das populaçõ es moçambicanas.
Portanto, a filosofia deve continuar a procurar e oferecer luzes à velha questã o grega do
“melhor governo e das melhores formas institucionais” para alargar a participaçã o das
pessoas e grupos de homens e mulheres. Para além disso, o intelectual que milita pela
Liberdade deve, no seu entender, resistir à s tentaçõ es do(a) político(a). Deve resistir ao
cortejo pelo poder, seja ele por parte do Governo ou da oposiçã o (que no caso de
Moçambique, para Ngoenha, a oposiçã o nã o é a Renamo nem os outros partidos).
Neste ponto reconhecemos o regresso de Ngoenha à s suas reflexõ es sobre o papel
do intelectual. Segundo ele, o papel do intelectual seria o de contribuir com ideias e
reflexõ es para o melhoramento da sociedade. Colocando-se nesta perspectiva, este seu
livro pretende ser o seu modesto contributo para o crescimento político e social de
Moçambique.
Enfim, o intelectual deve resistir à s tentaçõ es da corrupçã o. Nã o terá sido esta a
atitude de Só crates ao recusar sair da prisã o esperando tranquilamente (e
ingenuamente) pela justiça? Nã o serã o modelos disso tanto Eduardo Mondlane como
Samora Machel, o primeiro pelo abandono do conforto das Naçõ es Unidas e pela carreira
universitá ria nos Estados Unidos e o segundo pela sua abnegaçã o (des)comedida em
defender a independência de Moçambique contra tudo e todos? Nã o serã o Julius Nyerere
e Thomas Sankara exemplos de governantes africanos que “tentaram ser justos” durante
o tempo que assumiram a responsabilidade de conduzir a construçã o da Liberdade nas
suas naçõ es? - pergunta-se Ngoenha. E acrescenta que Azikiwé, Nkrumah, Senghor, C. A.
Diop, A. Cabral, A. Neto sã o, entre outros, os modelos de intelectuais no poder político ou
detentor de poderes políticos mas que fizeram tudo ao alcance para serem militantes
pela Justiça e Liberdade. Ngoenha reflecte, neste ponto, a profunda angú stia que sente
quando, de cada vez que vem a Moçambique Filosofia na Universidade Pedagó gica (UP),
na Universidade Eduardo Mondlane (UEM) ou no Instituto Superior de Relaçõ es
Internacionais (ISRI), ou ainda para proferir palestra em que o seu tema predilecto
acaba sendo a missã o do intelectual moçambicano hoje, constata a ausência das elites
políticas, econó micas e intelectuais no debate político. Penso que no fundo, neste
capítulo ele exterioriza a angú stia pessoal de nã o poder estar presente neste debate de
forma presencial em Moçambique. Quem convive com Ngoenha sabe que o papel dos
intelectuais moçambicanos na maximizaçã o das liberdades é o seu tema predilecto...
Como pensar filosoficamente o facto político hoje em Moçambique? É a questã o
central do capítulo II A Filosofia em Moçambique. É aqui onde Ngoenha propõ e que a
filosofia deve ser capaz de elaborar um discurso para mobilizar o “espírito da tradiçã o” –
conceito que retoma do filó sofo Eboussi Boulaga para os desafios da Justiça Social no
quadro do Estado moderno em Moçambique. O espírito é a chamada solidariedade
africana que presumivelmente existe de forma espiritual raramente pouco praticada
pelos membros das comunidades e das sociedades na Á frica hodierna, pois, se fosse esse
espírito que respeitamos, teríamos a “coragem” de passar por uma criança faminta e
doente na rua nos nossos carros four by fours ou de assistir ao aumento do luxo ao lado
de tanta pobreza? Nã o, para um contrato de natureza social a dita solidariedade africana
deve ser tomada discursivamente no seu espirito tradicional mas materializada sob
forma (moderna) de redistribuiçã o equitativa da riqueza material ou dos impostos e sob
uma nova forma de conceber justiça como equidade (e eu acrescento, restaurativa). O
espírito da tradiçã o em Ngoenha deve ser aquele que mobiliza os aspectos do passado,
somente na medida em que os valores defendidos por este espírito têm capacidade de
oferecer respostas alternativas aos desafios colocados pelo desenvolvimento. Deve
despir-se o mito da chamada solidariedade africana ou melhor, se é que ela existe e
mesmo que essa existência seja apenas na forma espiritual, o desafio é torna-lo ú til para
o contrato social em debate. Pois é isso mesmo que Ngoenha reflecte quando nos propõ e
que o símbolo (ideal) da justiça no contexto africano nã o deve ser uma mulher com a
espada e balança mas sim uma mulher com uma agulha numa das mã os para cozer os
pedaços de um tecido na outra mã o; os pedaços do tecido na segunda representam,
nesta imagem de Ngoenha, os diferentes indivíduos e grupos sociais que compõ em
Moçambique que a Justiça deve unir e nã o separar. Mas como efectivar esta justiça social
num contexto em que, na “primeira Repú blica” o Estado esteve pan-presente decidindo
sobre a educaçã o, saú de, a moral, a política e mesmo sobre as biografias dos indíviduos,
e na “segunda Repú blica” o mesmo Estado “dolarcrá tico” peca primando pela “ausência”
deixando os “vencedores da guerra” governarem o país passando o pró prio para a
oposiçã o? É nesta aporia que se deve perguntar sobre a legitimidade do Estado no
contexto africano.
Como Ngoenha defende, seria preciso perguntar-se se a representatividade por
via dos partidos políticos, tal e qual é prescrita na democracia ocidental, é retomada pelo
texto constitucional de 1990 e pelos Acordos de Roma em 1992, constitui a forma mais
apropriada de mobilizaçã o e legitimaçã o dos imaginá rios políticos e sociais dos
moçambicanos. Este modelo europeu, falsamente apelidado universal, mostra-se (até
agora) inadequado para os países da Á frica. Para Ngoenha, nã o sã o as culturas
(africanas) que se devem adaptar à todo o custo aos modelos (europeus) mas o ideal é
que os modelos se forjem a partir dos imaginá rios culturais dos povos: isto significa que
nó s temos de (re)inventar um modelo de sociedade que nos seja pró prio, conclui
Ngoenha. É um modelo que terá forçosamente de tomar em conta a dimensã o só cio-
cultural e que exija, de partida, uma acçã o “concebida a partir das realidades autênticas
das nossas comunidades autó ctones, apreendidas a partir do interior”.
Mas, entretanto, o que impede o nascimento deste modelo do interior que talvez
fosse mais libertá rio? Ngoenha alerta sobre a existência de dois problemas que
constrangem o tal nascimento: um, é que nã o existem mecanismos jurídicos legais
previstos constitucionalmente que permitam ao eleitor, no período entre as eleiçõ es,
fazer-se ouvir ou participar no debate pú blico. O segundo problema, é que a naçã o teve
que nascer sob o comando das leis e da ló gica produtivista impondo-se em detrimento
de qualquer projecto político que tivesse havido ou estivesse prestes a emergir, sã o leis,
sob o ponto de vista interior antidemocráticas, porque impostas por instituiçõ es como
FMI e o Banco Mundial sem legitimidade popular para governar o nosso país mesmo que
seja em nome do desenvolvimento; sã o leis que nã o assentam nos imaginá rios culturais
dos moçambicanos e, o que é pior, ganham conivência de uma parte da elite
moçambicana.
Por isso, a este ponto, em relaçã o ao primeiro problema, se deve questionar a
aplicabilidade da Democracia Representativa em Moçambique; e, em relaçã o ao segundo
problema, temos que equacionar sob que pressupostos assenta a Soberania de
Moçambique. Ao dissertar sobre a democracia representativa, Ngoenha revisita o
princípio bá sico da Democracia, o da separaçã o de poderes. Na aplicaçã o deste princípio,
Ngoenha identifica conflitos entre poderes executivo e legislativo, por um lado, e entre
os poderes executivo e judiciá rio, por outro. Pois, o “paradigma Anibalzinho-Nyimpini” é
para Ngoenha o sintoma destes conflitos institucionais, ou seja, reflecte o problema de
como fazer que entre o poder executivo e judicial (ou entre o legislativo e executivo) nã o
haja interferência. Este é o problema de muitas democracias actuais no mundo (Chirac,
na França ou Berlusconi, na Itá lia, entre outras).
Ao dissertar, em seguida, sobre o problema da Soberania, Ngoenha começa por
lembrar-nos que esta está ligada à Responsabilidade. Aliá s, nã o é primeira vez que
Ngoenha debate a questã o da Liberdade, soberania e responsabilidade. Já em 1998 no
Prefá cio
seu artigo Identidade Moçambicana, já e ainda não é4 Ngoenha apresenta algumas linhas
deste seu pensamento ao perguntar-se com Booker Washington “O que é que a
Liberdade comporta em termos de responsabilidade?” Será necessá rio percorrer as
pá ginas deste capítulo para inteirar-se da forma filosó fica como o Ngoenha trata esta
aporia. Mas adianto que o objectivo do autor ao introduzir a problemá tica da soberania é
o de desvendar uma aporia na prá tica da Política Internacional actual que é a
predominâ ncia de Governos nacionais soberanos, portanto que se regem por princípios
democrá ticos vá lidos na sua acçã o interna, mas, em contrapartida, na sua acçã o externa
sã o totalmente antidemocrá ticos, o que, segundo Ngoenha, Luigi Ferrajoli chamou de
“comunidade selvagem de Estados soberanos”. Sã o pois duas histó rias paralelas do
percurso da Soberania que teremos que registar, sendo uma de um Estado de direito
interno e outra de Estado que se absolutiza permanentemente na sua acçã o no plano
internacional.
Moçambique seria vítima deste processo de absolutizaçã o externa da Soberania a
tal ponto que, no dizer de Ngoenha, “falar de soberania moçambicana [seria] hoje um
autêntico abuso de linguagem” porque, sendo a soberania o pressuposto filosó fico da
constituiçã o moçambicana, a prá tica política e jurídica porém tem demonstrado o
contrá rio. As instituiçõ es da Bretton Wodds encabeçam uma interferência “abusiva e
anti-soberana” da chamada comunidade internacional nos planos político, econó mico,
cultural, social e mesmo jurídico em Moçambique. Mas, se a soberania está sob o
comando da chamada comunidade internacional, assumirá esta comunidade da mesma
forma o que a Soberania comporta como responsabilidade? Eu perguntaria de uma outra
forma, haverá mecanismos legais nacionais e internacionais ao alcance do Governo
moçambicano para que possa exigir responsabilidades da comunidade internacional
pela sua acçã o no nosso territó rio? Que mecanismos legais se podem acionar quando,
por exemplo como recentemente sucedeu, uma organizaçã o estrangeira, teve que
reduzir drasticamente o seu apoio financeiro ao sector de educaçã o (porque o seu apoio
externo tinha assumido, entretanto, encargos maiores na reconstruçã o do Afeganistã o) e
já nã o pô de dar corpo aos vá rios projectos de apoio institucional que teria assumido
com os planos do Governo moçambicano? Quem assumiria a responsabilidade perante
as crianças que porventura deixarã o de poder entrar na escola ou nã o terã o uma
educaçã o de qualidade por encurtamento de meios ou por falta de apoio prometido
durante as negociaçõ es de parceria? No actual panorama institucional as possibilidades
sã o quase nulas, só restando apelar ao plano da moral e princípios nã o vinculativos na
prá tica da cooperaçã o em forma de “parcerias inteligentes”. Eu diria, intervir na
soberania sem assumir a responsabilidade dos actos que isso comporta, é batota que a
comunidade internacional faz connosco.
Em jeito de conclusã o, o fio condutor que o leva a temas apresentados no capítulo
II (o papel do Estado, a questã o da legitimidade, a democracia representativa e a questã o
da soberania) é o debate em torno do papel da(s) tradiçã o(õ es) no contexto da Á frica
moderna e a questã o dos constrangimentos à justiça entendida como equidade, nã o
somente confinada à garantia das Liberdades no quadro do liberalismo político, mas
sobretudo na sua vertente de distribuiçã o dos recursos materiais, sociais e culturais
moçambicanos (individualmente e por grupos).
Nã o é por acaso, pois, que o título do capítulo III de Ngoenha seja Aos vencidos
não se pede opinião. Pois engana-se, como eu me enganei ao ler este título pela primeira
vez quando o manuscrito me chegou à s mã os, o leitor que atribuir o estatuto de
“vencido” à Renamo e a outros partidos da oposiçã o e de “vencedor” à Frelimo que
forma o Governo sozinha. Para Ngoenha o que acabou foi a guerra mas nã o a violência.
4
Publicado pela Livraria Universitária na colectânea Identidade, Moçambicanidade,
Moçambicanização, sob a direcção de Carlos Serra (Maputo 1998).
Transferiu-se a luta pelas armas por uma violência pelo controle do poder. E violência
nã o é só a morte de Carlos Cardoso. O tipo de violência que preocupa mais a Ngoenha é o
que priva uma criança de ter comida ou de ir à escola. Estamos numa situaçã o de Paz
com Violência. Mas é uma violência que é ditada pelo poder econó mico. Por isso,
pergunta-se, se a guerra acabou, quem venceu e quem perdeu? Se a violência continua,
qual é a causa? À primeira pergunta apresenta três cená rios possíveis ([i] o país perdeu,
[ii] o país ganhou, [iii] há vencedores externos) e escolhe, naturalmente o ú ltimo por que
“nó s, e quando digo nó s, quero dizer, nó s moçambicanos perdemos a guerra. A Frelimo
nã o ganhou, mas também a Renamo nã o ganhou”. Quem ganhou foi o capitalismo
internacional representado pelas suas instituiçõ es da comunidade internacional, foi o
liberalismo na sua dimensã o econó mica (daí o facto de Ngoenha incluir a Á frica do Sul
entre os vencedores). Ao depor-se as armas que estavam nas mã os da Renamo e do
Governo acabando com a guerra, voltou a ressuscitar a velha luta entre inimigos já
denunciados por Marx: o capital e o trabalho, ou seja, entre os que têm poder econó mico
e os que para sobreviver precisam deixar-se explorar vendendo a sua força de trabalho.
Com o Governo aderindo abertamente ao neo-liberalismo, mostrando, em consequência,
fragilidade em salvaguardar a soberania e em regulamentar a vida social dos
moçambicanos, unida à dificuldade da Renamo em contrapor-se ao projecto político
neo-liberal, portanto com ambos à direita, quem está à esquerda? Nã o há , por isso,
debate político em Moçambique. O que há é uma violência pelo poder entremeada pela
capacidade da comunidade internacional, que por razõ es ó bvia “nã o pode governar
directamente”, em prolongar um projecto dolarcrático neocolonialista. Mais do que em
qualquer capítulo Ngoenha mostra neste a sua adesã o à s três dimensõ es do seu
pensamento, ou seja à s dimensõ es nacionalista, africanista e socialista procurando
sempre ser fiel ao paradigma libertá rio.
Ngoenha termina a sua obra apresentando-nos, no capítulo IV, uma apologética
para a renovaçã o da constitucionalidade actual. Por um Triplo Contrato Moçambicano é
um título deste capítulo onde o autor advoga a necessidade de um triplo contratualismo:
contrato cultural, contrato social e contrato político. Em relaçã o ao contrato cultural,
Ngoenha começa por ressaltar que a democracia comporta duas partes: uma axioló gica e
outra institucional. Ngoenha nã o negocia a dimensã o axioló gica. Segundo ele, o plano de
valores comporta princípios de igualdade e do respeito pelos direitos humanos. Estes
valores constituem uma forma abstracta para corrigir as desigualdades naturais entre os
homens, para garantir o respeito pela dignidade e pelos direitos inaliená veis do homem.
Portanto os valores da democracia, na ó ptica de Ngoenha, sã o de natureza universal e
por isso mesmo nã o negociá veis. Em contrapartida, os modelos institucionais que
comportam as democracias, na opiniã o de Ngoenha, devem ser “aculturados”, ou seja,
devem ser adequados de tal forma que a sua legitimidade deve derivar daquilo que o
autor chama por “imaginá rios colectivos” dos povos e culturas. O resultado ou o fim do
processo ou Moçambicanização de instituiçõ es chama ele de contrato cultural. No artigo
do mesmo autor que fiz referência acima, escrito em 1998, ele esboçava já os primeiros
contornos desse contrato cultural. Ele escrevia naquele artigo5 que “o pacto cultural
deveria reconciliar a política com as culturas nacionais ... [o] que permitiria libertar as
instituiçõ es estatais da política cultural sobre a qual vegetam e metê-las numa dinâ mica de
cultura política mais produtiva6. O que no fundo quer dizer que para escrever este contrato seria
necessá rio mobilizar uma capacidade integradora nacional que (re)conciliem o projecto político
com as características étnico-culturais das populaçõ es de Moçambique. Ele chama atençã o para
o facto de nã o se tratar de renovar ou reabilitar as instituiçõ es tradicionais ancestrais, mas sim
5
Refiro-me ao texto: Ngoenha, S., Identidade Moçambicana: já e ainda não. In: Serra, C. Identidade,
Moçambicanidade, Moçambicanização, Livraria Universitária, UEM, Maputo, 1998 (pp.17-34).
6
Ngoenha, S., Identidade Moçambicana... (p.30)
Prefá cio
conferir à democracia uma dimensã o moçambicana. Mas para isso temos que conhecer as nossas
tradiçõ es e culturas para a partir deste conhecimento pensar o direito e a democracia
moçambicanas, recuperando assim aquilo que Montesquieu chamava por “espírito da lei”, ou se
quisermos falar com Eboussi Boulaga, por “espírito da tradiçã o”. Para efectivar esta reflexã o e
recuperar a tradiçã o em funçã o do futuro, Ngoenha vê a universalidade como o local de reflexã o
e, consequentemente, ele vê as elites intelectuais como sendo a força social que deveria estar na
vanguarda deste empreendimento. É em volta deste pensamento que o autor desenvolve os
subtítulos de “cultura jurídica”, “pluralismo jurídico” e “transferência jurídica” a partir dos quais
conceptualiza, no final do livro, o seu projecto político democrá tico e multicultural. No projecto
político de Ngoenha há um contrato entre o Estado e os subgrupos em que cada uma das partes
tem obrigaçõ es morais perante as suas acçõ es. Por meio deste contrato é preciso assegurar que
os indivíduos admitam a existência duma naçã o unificada e independente, que contenha regras e
princípios a ser respeitados, mas ao mesmo tempo, em que a igualdade de cada pessoa nã o seja
minada pelas desigualdades dos domínio s da vida social. Neste ponto emerge Rawls no contrato
ngoenhiano.
Ngoenha desenha, pois, o seu contrato social inspirado de forma significativa pelo debate
iniciado pela obra de John Rawls Uma Teoria de Justiça. Nesta obra, Rawls defende no fundo dois
princípios de justiça como equidade. Sã o princípios que defendem a distribuiçã o dos bens
primá rios entre os membros de uma sociedade de forma equitativa; considera por “bens
primá rios” os bens bá sicos que todas as pessoas, independentemente dos seus projectos
pessoais de vida ou das suas concepçõ es do bem, devem usufruir. Sã o eles o auto-respeito, a
auto-estima, as liberdades políticas bá sicas, as rendas assim como direitos a recursos sociais
como a educaçã o e a saú de. A referência aos princípios de John Rawls 7 e ao debate em torno
deles, servem de chamada de atençã o para Ngoenha sobre dois aspectos: o primeiro, alerta-nos
para o facto de que a garantia das liberdades fundamentais (pela constituiçã o democrá tica
liberal) nã o é suficiente para o fortalecimento da democracia moçambicana, se nã o houver uma
preocupaçã o em diminuir o fosso entre ricos e pobres; o segundo aspecto que Ngoenha pretende
mostrar é o redimensionamento do paradigma libertá rio: é que uma filosofia que se pretende
moçambicana nã o só deve buscar fundamentar a Liberdade, mas também fundamentar a busca
da Justiça. Com isto Ngoenha redimensiona o que declarou ser um paradigma libertá rio da
filosofia africana para integrar um outro patamar paradigmá tico, ao que podemos chamar de
«Paradigma de Justiça Social». Considero que fundamentar as formas de implementar os
princípios de Justiça Social é um aspecto importante que merecerá um debate aceso para
amadurecer o sentido democrá tico da luta dos moçambicanos.
Mas este novo patamar nã o pode efectivar-se sem um contrato político que tenha como
interlocutores as diversas forças políticas que articulam aos seus interesses na sociedade
moçambicana. Para isso seria necessá rio reinventar, criar ou alargar o espaço público onde as
diferentes forças vivas da sociedade entrem em confrontaçã o somente pela via argumentativa (e
nã o pela via das armas ou da violência física ou moral).
Ngoenha propõ e-nos no seu contrato político, que as forças políticas moçambicanas
deveriam fazer um acordo sobre aquilo que é essencial, indiscutível, nã o negociá vel, ou seja
sobre o fundamento normativo do Estado. E este acordo é possível “se a naçã o estiver em
primeiro lugar”8. Ngoenha escreve sobre as zonas nã o negociá veis: “a nível de bens econó micos
que constituem o patrimó nio nacional (portos, caminhos de ferro, minas, terra, etc.), de
jurisdiçã o-política, espaços estritamente nacionais que nã o sã o acessíveis a estrangeiros
(ministérios, lugares de defesa, de segurança, de planificaçã o, etc.), prerrogativas
ciumentamente nacionais nã o cedíveis a ONG, cooperaçõ es, doadores, etc.”.
O engajamento intelectual que Ngoenha nos traz por meio deste livro tem paralelismos
com o engajamento intelectual de um dos grandes pensadores da Filosofia Política dos ú ltimos
7
Trata-se do princípio da equal liberty principle (igual liberdade) como o primeiro e, como segundo,
o principio das desigualdades sociais e económicas, este segundo princípio, por sua vez, subdividido em dois: o
primeiro, o princípio da igualdade equitativa das oportunidades e o segundo o polémico princípio da diferença
(Cfr. John Rawls, Uma Teoria da Justiça, Editorial Presença, Lisboa, 1993, p.67-107).
8
Parafraseo aqui, e citando de memória, o título de um artigo do economista Prakash Ratilal num
comentário analítico à Agenda 2025.
tempos e a que ele faz muita referência: John Rawls. Se para o filó sofo moçambicano o leitmotiv
do seu engajamento e da sua actividade intelectual é a militâ ncia a favor da Liberdade, os
esforços intelectuais de Rawls foram para fundamentar a Justiça como Equidade a partir do
senso de justiça e a faculdade de concepçã o do bem que, segundo o pró prio Rawls, sã o inerentes
à s pessoas morais, livres e iguais e que vivem numa sociedade democrá tica9. Na sua obra Justice
as Fairness: A Restatment Rawls afirma que o facto de a sociedade democrá tica ser
frequentemente vista como um sistema de cooperaçã o social “(...) é sugerido pelo facto de que,
de um ponto de vista político e no contexto da discussã o pú blica de questõ es fundamentais de
direito político, seus cidadã os nã o consideram a sua ordem social como uma ordem natural fixa
ou como uma estrutura institucional justificada por doutrinas religiosas ou princípios
hierá rquicos exprimindo valores aristocrá ticos”10. Lendo esta citaçã o conclui-se que há
concordâ ncia tá cita mas ao mesmo tempo um afastamento entre Ngoenha e Rawls. A
concordâ ncia nota-se em relaçã o ao facto de considerarem que a característica de uma
democracia moderna é –emprestando o termo a Beck, Giddens e outros –a reflexibilidade, ou
seja, por um lado a interconexã o entre a racionalidade científica e a racionalidade social no
debate pú blico sobre a(s) política(s) e, por outro, o debate sobre os pró prios fundamentos da
democracia liberal. Entre os fundamentos da democracia liberal que ambos propõ em colocar ao
debate é o que Rawls no trecho acima chama de “estrutura institucional” e Ngoenha denomina
por necessidade de “aculturar as instituiçõ es”. Mas o ponto em que discordam é nas implicaçõ es
dos seus discursos. Rawls escreve tendo em vista formular uma teoria universal da justiça e
Ngoenha nos chama atençã o para a necessidade da sua particularizaçã o.
O filó sofo queniano Odera Oruka escreve, a propó sito das ideias de John Rawls, que seria
difícil imaginar alguém que formule uma teoria universal de justiça social que nã o tome em
conta os factores de ordem econó mica, tradicional ou ideoló gica nas diferentes sociedades11.
Porque sã o exactamente estas características que poderiam, no dizer de Oruka, determinar o
que deveria fazer parte do cabaz das “necessidade bá sicas” ou ainda o que poderia ser
considerado como sendo os “direitos fundamentais” de uma determinada sociedade. Rawls
imagina que o bem-estar (wealth) e o rendimento (income) constituem as necessidades bá sicas.
Mas, segundo Oruka, o conteú do do bem-estar e das liberdades fundamentais, por depender das
contingências locais, é diferente. Ele dá o exemplo de sociedades onde os princípios de existência
colectiva ou sã o derivados de ideologias marxistas onde o indivíduo tende a relegar os seus
interesses para a ú ltima instâ ncia (sociedades socialistas) ou sã o derivadas da relaçã o religiosa
com entidades metafísicas onde a coerçã o social põ e a autonomia e valores dos indivíduos em
segundo lugar (sociedades tradicional-comunalistas). Nessas sociedades, prossegue Oruka, as
pessoas que tenham acumulado algum bem-estar ou com grandes rendimentos, nã o têm
individualmente o poder de usar os seus rendimentos a seu belo prazer e de forma legal.
O Estado, nas condiçõ es de sociedade exemplificadas por Oruka, deveria ser coercivo
para tirar as riquezas individuais das mã os das pessoas e ‘legitimar’ esta coerçã o a partir da
necessidade de redistribuir a riqueza favorecendo aos grupos até entã o historicamente
desfavorecidos. É o que no fundo foi feito depois da independência de Moçambique com as
nacionalizaçõ es cuja justificaçã o era a de ‘devolver ao povo o que lhe pertencia e acabar com a
exploraçã o do homem pelo homem’ e, de certo modo, a mesma justificaçã o que é dada hoje pelo
Governo do Zimbabwe para arrebatar as terras das mã os dos agricultores brancos em nome do
povo (negro) daquele país. O que quero (de)monstrar aqui é que há nos Estados africanos de
hoje uma aporia política cuja origem é a existência do Estado neo-liberal inspirado e edificado na
base do contratualismo clá ssico no qual os indivíduos têm direitos a ser defendidos pelo Estado,
mas simultaneamente notamos que há uma grande injustiça social no que diz respeito à
distribuiçã o do bem-estar e da renda. Assim, para uma melhor distribuiçã o, o Estado nã o pode
‘forçar’ os poucos ricos a darem mais que os outros sem correr o risco de invadir a esfera dos
direitos individuais, particularmente sem correr o risco de passar por cima do direito à
9
Rawls, J., Uma Teoria da Justiça. Editorial Presença, Lisboa, 1993, p.68.
10
Cfr. Oliveira, N., Rawls. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2003, p. 49.
11
Oruka, H. O., John Rawls´s Ideology. Justice as Egalitarian Fairness. In: Oruka, H. O., Practical
Philosophy. In Search of an Ethical Minimum East African Educational Publishers. Nairobi-Kampala, 1997 (115-
125).
Prefá cio
propriedade. Este é o dilema da Á frica do Sul hoje: como ‘obrigar’ a minoria branca que
acumulou riquezas por meio de vantagens histó ricas do apartheid a darem uma parte da sua
riqueza evitando violar os direitos individuais, sobretudo os de propriedade e mantendo o
Estado do Direito intacto? Aqui parece ser necessá rio haver uma espécie de contratualismo que
se baseie nã o só na defesa e garantia dos direitos dos indivíduos mas também que consiga
submeter os interesses econó micos de grupos aos interesses políticos e a defesa de
idiossincrasias particulares de grupos culturais.
Encaixa assim o facto de Ngoenha ter introduzido a ideia dos contratos sociais e culturais
junto ao contrato político. Se é que o contrato político, baseado na Constituiçã o, garante a
observaçã o em primeira linha dos direitos dos moçambicanos como individuais, os dois
contratos adicionais que Ngoenha propõ e (o social e o cultural) terã o que ter como assinantes
grupos de moçambicanos. Desta feita, o contrato social deverá comprometer os grupos com
interesses econó micos, ou mais precisamente, grupos com maior rendimento, com os desafios
políticos do desenvolvimento, e com redistribuiçã o equitativa do rendimento nacional; e o
contrato cultural deverá criar espaços abertos para a articulaçã o de diversos valores e prá ticas
culturais no contexto da política nacional. Estes dois contratos só serã o possíveis alargando a
teoria contratual da esfera individual para a colectiva de articulaçã o de interesses econó micos e
de defesa e promoçã o de valores culturais. Assim resolve Ngoenha o problema axioló gico ou da
falta de uma “cultura política”.
Cada geraçã o ou acusa ou aprecia o engajamento intelectual e físico da anterior. A
geraçã o moçambicana de hoje só pode agradecer à geraçã o que decidiu pegar em armas para
encetar uma luta justa e dura cujo fim era eliminar a dominaçã o colonial. Aquela luta foi uma
heroicidade de toda a geraçã o. Foi a geraçã o que maximizou o gozo das liberdades nacionais ao
proclamar a Independência Nacional. E, pelo que se vem publicando ultimamente sobre a
histó ria da luta de libertaçã o, pode notar-se que foi um processo cheio de contradiçõ es,
indecisõ es, determinaçõ es, cisõ es, mas sobretudo de unidade em torno do objectivo comum. O
que quero perguntar é: qual é o papel da nossa geraçã o agora? Nã o teremos a responsabilidade
de deixar um Moçambique com as liberdades mais alargadas do que as que gozamos? Podemos
dar-nos ao luxo de deixar explorar todas as riquezas do solo e subsolo sem a preocupaçã o de
sustentabilidade das vidas futuras? Nã o temos a responsabilidade de nã o só preparar as
geraçõ es futuras através da educaçã o, mas também criar todas as condiçõ es para que tenham
emprego e segurança? Que valores deixamos para que os nossos filhos e netos se orgulhem dos
anos 80 e 90?
Moçambique pertence tanto aos moçambicanos presentes, aos espíritos dos nossos
antepassados proclamados como heró is ou nã o, assim como aos futuros moçambicanos que aqui
irã o nascer, crescer, viver, amar e morrer nesta pá tria. Moçambicanos sã o também os nossos
heró is que morreram, somos nó s hoje, mas também o futuro. Daí que é preciso vivermos hoje
com a responsabilidade do amanhã . Hans Jonas, na sua obra O Princípio da Responsabilidade
(1979), reformulando o princípio da ética kantiana, projecta uma ética de responsabilidade
polarizada nas condiçõ es de vida das geraçõ es vindouras. Segundo esta ética, o homem nã o deve
esperar que venha a receber alguma coisa em troca da sua acçã o responsá vel. Aplicada a
Moçambique, esta seria uma ética que visa criar condiçõ es para que os moçambicanos do
amanhã tenham a possibilidade de serem sujeitos-agentes mais livres e responsá veis. Por isso,
penso que deveria haver também uma quarto contrato –o contrato de gerações. Neste, que nã o
teria necessariamente uma força constitucional, caberiam todos os temas “futuristas”, tais como,
tecnologia e inovaçã o, meio ambiente, geraçã o de empregos assim como compromissos sociais
na utilizaçã o das poupanças pú blicas. Portanto, o contrato de geraçõ es faria parte integrante da
planificaçã o estratégica para o desenvolvimento. Em nome deste contrato, as crianças e a
juventude hodierna moçambicana (que ainda nã o tem direitos políticos) deveria estar em
condiçõ es de exigir aos adultos o direito de viverem bem amanhã e de serem uma espécie de
supervisores da acçã o daqueles.
Derivado deste acréscimo ao contratualismo há ainda um outro ponto que Ngoenha, com
este livro, introduz no debate político em Moçambique. É o ponto da cultura ou da diversidade
cultural. Como é que a diversidade cultural pode ser gerida politicamente? O que significa erguer
uma Estado multicultural?
Já Frederic Jameson notava que, na impossibilidade de haver qualquer projecto colectivo
na condiçã o pó s-moderna, o capital multicultural elabora o jogo da heterogeneidade permitindo
assim que muito mais do que nas épocas anteriores a questã o cultural se transforme num
problema político. Segundo Jameson, o ambiente pó s-moderno, dado o seu conteú do de
expansã o multicultural do capital, encerra possibilidades de resistência cultural12. Pois a
possibilidade de ser “outro” nos é dada pela cultura e é por isso que a culturalidade se torna o
centro da política.
É isso que Ngoenha faz nesta obra: tematiza a diversidade cultural sob o prisma
da sua gestã o política pois, constata ele, nã o há ainda o diá logo necessá rio entre as
culturas e as instituiçõ es políticas. A constituiçã o política deve reflectir, respeitar mas
sobretudo ter os seus fundamentos na diversidade cultural do nosso país. E esta
diversidade cultural é incorporada nã o no abstracto mas em grupos etno-culturais
específicos. Neste aspecto é uma grande coragem de Ngoenha trazer este aspecto à lume
do debate, embora nã o seja a primeira vez. Já na obra Por uma Dimensão Ngoenha
termina fazendo uma apologia a uma constitucionalizaçã o da gestã o das culturas
particulares.
Ngoenha lança com este livro um outro desafio aos políticos que querem ou
quererã o governar o nosso país. Estes nã o se devem limitar a dizer-nos qual será a sua
política cultural mas, sobretudo, deverã o equacionar que tipo de cultura política irã o
desenvolver. Com esta ideia lança-se um desafio à eticidade. A eticidade é tomada por
mim como manifestaçõ es na “luta pelo reconhecimento” no sentido que o filó sofo
alemã o e sucessor de Habermas na direcçã o do Instituto de Pesquisa Social em
Frankfurt, Axel Honnet13, usa. Portanto, a eticidade nã o é aqui entendida no seu sentido
da moralidade kantiana, ou seja, de uma atitude universalista em que o respeito pelo
outro se torna um fim em si mesmo na acçã o de indivíduos autó nomos; este
entendimento de eticidade seria incapaz, segundo Honnet, “de identificar o fim da moral
em seu todo nos objectivos concretos dos sujeitos humanos”. A Eticidade é sim
entendida aqui por mim como o ethos “de um mundo de vida particular que se tornou
há bito, do qual só se podem fazer juízos normativos na medida em que ele é capaz de se
aproximar das exigências” dos princípios universais14. Desta forma, as eticidades
particulares (culturais) sã o vistas nã o só do ponto de vista do seu espírito (da tradiçã o),
mas também encerram elementos normativos e padrõ es de comportamentos concretos
de devem se ajustar a um certo nú mero de princípios normativos nacionais. A nossa
cultura política moçambicana seria orientada pela necessidade de estabelecer um
patamar de diá logo entre os diferentes grupos culturais que lutam pelo seu
reconhecimento. A Unidade por exemplo, é um princípio de ordem nacional do qual se
podem fazer juízos normativos sobre a eticidade dos grupos particulares. Aos grupos
que, na luta pelo seu reconhecimento, procurem ferir a constitucionalidade unida de
Moçambique, serã o sancionados.
Penso que Ngoenha, com este livro, abre e oferece horizontes filosó ficos para o
debate de duas questõ es bá sicas do futuro da política em Moçambique: a da Justiça
social redistributiva (questã o econó mica) e a da Unidade Nacional na Diversidade
12
Cfr. Peixoto, M.G., A Condição Política na Pós-Modernidade. A Questão da Democracia. EDUC, São
Paulo, 1998, pp. 56-58.
13
Axel Honnet foi assistente de Jürgen Habermas e segue a tradição da Teoria Crítica apresentado a
sua teoria que se basea na ideia da “luta pelo reconhecimento”. Honnet parte da doutrina de reconhecimento
em Hegel e recorre a G.H. Mead para estabelecer a ideia de uma crítica social na qual os processos de mudança
social devem ser explicados a partir de acções que têm como objectivo restabelecer o reconhecimento mútuo
ou desenvolvê-lo para um nível superior. As lutas pelo reconhecimento são, nesta perspectiva, uma força moral
que impulsiona o desenvolvimento. Aproveitando esta ideia, podemos inferir que os diferentes grupos
culturais lutam pelo seu reconhecimento num ambiente democrático. (Honnet, A., Luta pelo Reconhecimento.
A Gramática Moral dos Conflitos Sociais. Editora 34, São Paulo, 2003, 269 pp.)
14
Honnet, Idem, 270.
Prefá cio
Cultural (questã o da cultura política). Sã o estas questõ es que, a meu ver, irã o constituir
os eixos do debate para a afirmaçã o da moçambicanidade na busca pela Liberdade.
No fim da sua leitura o leitor dirá se esta coruja da Minerva (Ngoenha) chegou
“tarde” demais ou se o velho Hegel se terá esquecido de completar o seu aforismo: Que a
coruja da Minerva levanta o seu voo ao crepú sculo sim, mas se vai deitar cedo para o
amanhecer, quer dizer, só se vai deitar no início de outra jornada, depois de ter
espalhado a sua boa nova que serã o os eixos da caminhada para a Liberdade de um povo
inteiro. Este livro é uma referência obrigató ria no qual Ngoenha oferece aos
moçambicanos alternativas de pensar filosoficamente e de agir racionalmente neste
caminhada.
escravatura). Foi o colonialismo europeu do fim do século XIX que determinou, com a
sua divisã o arbitrá ria dos espaços geográ ficos (e culturais) africanos e a opressã o
comum dos homens que habitavam esse espaço, a criaçã o de Moçambique. A histó ria da
uniã o dos três grupos que deram origem à Frelimo (Udenamo, Unamo e Manu) é
exemplar de como os homens dessas terras e culturas diferentes a certa altura criaram
Moçambique, unindo-se numa luta comum em prol da liberdade.
Se existe um substracto filosó fico que está na origem axioló gica de Moçambique
é, sem dú vida, a busca da liberdade. Aliá s, a busca da liberdade caracteriza a histó ria de
Á frica no ú ltimo século. Se quisermos ser mais exaustivos, diremos que desde a sua
criaçã o-invençã o (para parafrasear Mudimbé), através de um processo de apropriaçã o
identitá ria geneticamente exó gena, a Á frica, nascida nas diá sporas, caracteriza a sua
existência como busca da liberdade.
Assim, para mim, o valor de fundo do meu engajamento intelectual é a militâ ncia
a favor deste valor humano supremo, para os moçambicanos e para os africanos.
Liberdade – para utilizar a linguagem de I. Berlin – positiva, quer dizer liberdade de
sermos nó s mesmos, e negativa, de viver sem contriçã o nem de cará cter político, nem de
cará cter econó mico.
A histó ria da luta pela liberdade negro-africana conheceu muitas etapas. A
primeira foi no chamado novo mundo onde a escravatura concentrou muitos homens e
mulheres de origem africana privados da sua liberdade. A primeira luta começou aqui, e
a liberdade para esses homens, como para Kunta Kinte de Alex Haley15, num primeiro
momento era voltar ao que Delany chamou de “alma mater”. Mas, para a geraçã o
seguinte, a liberdade passou a significar a emancipaçã o da escravatura, nã o tanto para
reganhar a “terra mater”, mas para viver como homens livres nos países e nas terras que
lhes viram nascer.
Depois deste período nos EUA, que é onde a histó ria negra está melhor
documentada, os antigos escravos, quer se chamem B. Washington, Du Bois, Marcus
Garvey, C. Cullan, Langston Hughes ou C. Mckay, de maneiras diferentes lutam pelo
mesmo objectivo: integrar a sociedade como seres humanos iguais, como reza a
constituiçã o americana. Porém, pouco tempo depois do fim da escravatura, exactamente
vinte anos depois (a escravatura terminou em 1865 e a Conferência de Berlim foi em
1885), os africanos tiveram que fazer frente a uma nova ameaça: o colonialismo. Foi
para fazer frente a este novo perigo que nasceu o lema entre os antigos escravos “unir-se
para resistir”, que, aliá s, está na origem do pan-africanismo16.
Desta vez a luta será pela independência política. Este longo processo e destituído
de uniformidades ganha consistência a partir do fim da Segunda Guerra Mundial.
Contudo, as independências africanas, primeiro invocadas nas diá sporas por Du Bois
(Segundo Congresso Pan-africano de 1919, em Paris) e Marcus Garvey (Convention da
UNIA em 1920), só começam a materializar-se em 1957 no Gana, e atingem o seu apogeu
na década de sessenta.
15
Raízes. São Paulo: Cruzeiro, 1997.
16
Oruno D. Lara. La naissance du panafricanisme. Les racines caraibes, américaines ef africaines du
mouvement au XIXe sièle. Paris: Maisonneuve et Larose, 2000.
Este processo teve, imediatamente, que fazer contas com o desenvolvimento
social para garantir essas liberdades. Nó s vivemos ainda nessa busca da liberdade como
desenvolvimento social. Já nã o se trata da emancipaçã o da escravatura, da integraçã o
nos países do chamado Novo Mundo, da autodeterminaçã o política, mas do
desenvolvimento econó mico, político e social, num clima de relaçõ es de força com o
Ocidente (esclavagista e colonialista) que ainda nã o se libertou do seu elá n colonial, que
hoje se apresenta sob a veste de credor.
A questã o, apesar de ter uma componente econó mica importante, é, sobretudo,
política. Sempre que se invoca a questã o do desenvolvimento, coloca-se em primeiro
lugar os factores econó micos. Mas a economia (as chamadas leis do mercado) deve, pelo
menos no nosso caso, ser subordinadas à s escolhas societá rias. Caso contrá rio,
condenam-se os mais fracos ao ponto de partida, quer dizer ao trabalho forçado, ao
colonialismo e mesmo à escravatura.
2. A segunda reflexã o é de cará cter filosó fico-histó rico. Nos ú ltimos anos falou-se
muito do fim da filosofia da histó ria. Quer dizer que a ideia da histó ria dos homens como
esforço para reproduzir o paraíso edénico (de Adã o) perdeu todo o sentido. A
modernidade17 foi concebida por Hegel, Kant e retomada por Habermas –e nisto existe
um consenso entre os assertores da modernidade (Habermas) e os pó s-modernistas (R.
Rorty, G. Vattimo) – como emancipaçã o do homem de todo o tipo de garantias meta-
sociais. O homem moderno nã o quer ter nenhuma figura-guia, nã o quer subordinar os
seus valores e as suas escolhas a nenhuma transcendência ou revelaçã o.
Mas, paradoxalmente, ao mesmo momento em que o Ocidente mata Deus, para
parafrasear Nietzsche, ou como diz Dostoievsky declara que Deus já nã o tem mais nada a
dizer no que Vico teria chamado do mundo civil, o Ocidente se auto-proclama “Theos”
para a Á frica e para os países que hoje se chamam de “Sul do mundo”. A histó ria
secularizada pela filosofia da histó ria, primeiro de Voltaire e depois de Hegel, nã o se
limita a substituir os paradigmas que de Agostinho até Vico tinham impregnado a
compreensã o da histó rica – “criaçã o, pecado, encarnaçã o revelaçã o e aparusia” – pelo
conceito de cultura que fará a felicidade da antropologia desde o século XIX. No mesmo
século da antropologia (que, nã o por acaso, coincide com o colonialismo) inventa-se o
evolucionismo18 (Herbert Spencer, J.S. Mill, Darwin) no o Ocidente se coloca como o
modelo, a norma, o novo É den, com o seu conceito político de Estado, com o seu
monoteísmo e com a sua escrita. A partir de entã o o Ocidente apresenta-se a si mesmo
como sendo o novo jardim de É den (super-homem) a imitar, nã o obstante as suas
contradiçõ es, as suas histó rias de opressã o, que permitiram a acumulaçã o do capital
que, para alguns historiadores (Etemad Bouda, Thomas David), está na origem do seu
arranque econó mico e que, para nó s, significou escravatura, opressã o, perda de
liberdade e retrocesso.
O Ocidente ocupa hoje, em relaçã o a nó s, o lugar que outrora era de Deus em
relaçã o à humanidade. Por isso, se a filosofia da histó ria (como demonstrou Karl Lõ with)
é filha de uma teologia da histó ria o “Theos” para o Ocidente já nã o tem nada a dizer.
17
Ngoenha, 2000: 31
18
Ngoenha, 1993: 15 e ss.
CAPITULO I
Mas, nesse mesmo momento e de uma maneira idolá trica, o Ocidente se arroga a
prerrogativa de divindade em relaçã o a nó s.
Que haja uma crise geral da democracia no mundo (a eleiçã o de Berlusconi na
Itá lia, Holder na Á ustria, Blocher na Suíça, Busch nos EUS), que os dossiers econó micos
mais complexos impeçam os cidadã os nas democracias directas de exercerem os seus
direitos e deveres cívicos; que, nas democracias representativas, as populaçõ es se vejam
forçadas a votar com um lenço a cobrir as narinas para nã o sentirem o cheiro podre da
desonestidade e da corrupçã o que caracteriza cada vez mais a classe política; que os
eleitores devam votar por uma elite política que nã o merece confiança nos países da
velha democracia, o que implica uma crise de legitimaçã o política, nã o importa! Aliá s,
isso nã o impede o Ocidente de continuar a dar licçõ es do que é uma boa democracia,
omitindo a sua pró pria histó ria e as contradiçõ es que o fazem sistematicamente
balançar entre os valores humanistas e o economicismo.
Existe uma crise econó mica? Que isso dependa da desonestidade dos actores
econó micos (Parmalat), ou porque os economistas cometem erros grosseiros de
avaliaçã o (Swissair), ou porque as recitas do FMI e do BM demonstraram-se falaciosas e
com consequências nefastas para as populaçõ es (Argentina). Nã o importa: aquilo que o
nosso “Theos” ignora para si mesmo nos seus pró prios países parece saber para os
países dos outros.
No fundo, a questã o principal para nó s é de nos laicizarmos do Ocidente. Nã o
podemos continuar a tomar o Ocidente como modelo; nã o podemos reproduzir o seu
nível econó mico! Podemos simplesmente importar as suas taras, dado que é isso que ele
globaliza (Ulrich Beck19). Por outro lado, nã o temos populaçõ es a escravizar e a colonizar
para podermos acumular o capital que nos permita o arranque econó mico. E se
tivéssemos uma tal populaçã o subalterna correríamos o risco de ser semelhantes do
ponto de vista moral ao Ocidente que, como diz Césaire, faz batota com os seus pró prios
princípios.
3. Um eventual papel da filosofia no debate político moçambicano depende
necessariamente da existência de uma filosofia moçambicana. Mas como demonstrou a
corrente crítica da filosofia africana20 (P. Hountondji, Eboussi Boulaga, M. Towa) no
â mbito do seu distanciamento da negritude (Senghor, Damas e Césaire) e sobretudo da
etnofilosofia (Placide Tempels, Kagame), a existência de uma suposta filosofia, neste
caso, moçambicana, depende da existência de filó sofos moçambicanos legitimados nã o
só pelos diplomas universitá rios, mas pelo facto de escreverem o que Hountondji
chamou de arquivo e, através dele, instaurarem no país uma tradiçã o crítica.
A este nível, o país está paulatinamente a crescer. Nos ú ltimos anos através da
Universidade Pedagó gica, mas também através de outras instituiçõ es estrangeiras, o
nú mero de moçambicanos com graus académicos em Filosofia aumentou. Trata-se de
uma condiçã o necessá ria, mas nã o suficiente para o surgimento de uma tradiçã o
filosó fica moçambicana. Esta premissa fundamental tem de ser seguida pela coragem e
ousadia para instaurar um debate de ideias que, inspirando-se na secular tradiçã o
filosó fica, incida os seus interesses de uma maneira participativa e construtiva sobre a
19
La société du risque. Paris: L’Harmattan, 2001.
20
Ngoenha, 1993: 89.
realidade política moçambicana. Isto é, na reflexã o (até mesmo invençã o) de um regime
político que permita a participaçã o de todos no debate democrá tico, na reflexã o sobre a
á rdua questã o da representatividade, numa constituiçã o adequada à realidade cultural e
social moçambicana, num processo de redistribuiçã o, etc.
Isto quer dizer que, contra a veleidade de uma aparusia histó rica já realizada,
como defende Fukuyama, ou contra um modelo realizado na Europa e que nó s teríamos
simplesmente que imitar, como defendem os novos missioná rios oriundos das ciências
políticas –que de uma maneira acrítica e aparentemente sem dú vidas quanto ao que se
deve fazer em Moçambique, sobre o melhor regime político, o tipo de democracia, de
representaçã o social –continuam a dar receitas de política, de democracia, de
desenvolvimento sustentá vel. A filosofia nã o se contenta com o que é, com o que
aparece, nem pode admitir a ideia de uma histó ria acabada ou determinada de uma vez
por todas.
Sob o ponto de vista filosó fico, a histó ria é o terreno de uma constante invençã o
de sentido da parte do homem; é o terreno onde o homem exerce a sua liberdade de
poeta, no sentido da poesis grega, é o lugar da criaçã o do sentido no tempo.
Que as decisõ es políticas produzam efeitos que tocam o nosso nível de vida e os
nossos direitos; que o assento das instituiçõ es fundamentais da sociedade determina e
modela as nossas oportunidades; que as escolhas se coadunem mais ou menos com os
nossos gostos, com os nossos valores individuais e colectivos; que a distribuiçã o dos
custos e benefícios da cooperaçã o social seja coerente com um critério ou com um
conjunto de critérios; que as instituiçõ es consintam ou nã o, para cada um de nó s, a
definiçã o no tempo de um plano de vida e de um projecto de autodesenvolvimento; que
cada um de nó s conte pelo menos como qualquer outra pessoa, eis algumas questõ es
sumá rias que definem o que deveria ser o ponto do ataque da filosofia quando esta se
interessa por questõ es políticas.
Trata-se de questõ es normativas. O que quer dizer que a sua soluçã o implica a
referência a um princípio ou a um certo nú mero de princípios capazes de nos guiar nas
avaliaçõ es que fizermos sobre as decisõ es políticas, sobre o assento das instituiçõ es
fundamentais, sobre as escolhas colectivas, sobre a distribuiçã o dos recursos, etc. em
suma, a filosofia política é chamada a reflectir sobre como devemos viver no â mbito de
uma perspectiva interpessoal que podemos adoptar para as nossas vidas.
O cará cter normativo da filosofia política distancia-a relativamente da ciência
política, sobretudo no â mbito dos objectivos anunciados por cada um dos domínios,
mesmo se uma tal distinçã o na prá tica resulte pouco evidente. Comummente se diz que
a ciência política é uma ciência social entre outras, cujo objectivo seria estudar com
imparcialidade os movimentos sociais e as ideologias que os acompanham, enquanto a
funçã o da filosofia política seria reflectir nã o somente sobre o que é, mas também sobre
o que deveria ser.
Na prá tica, estas fronteiras –metodologicamente ú teis mas difíceis de balizar –sã o
constantemente transgredidas. Com efeito, nenhum especialista sério da ciência política
pode limitar-se a uma simples descriçã o, mas recorre constantemente a noçõ es
filosó ficas mais ou menos bem domesticadas. O contrá rio é também verdadeiro: a
CAPITULO I
filosofia política empresta também muitas vezes, sem o saber ou sem o admitir,
conceitos da ciência política e mesmo das ideologias.
Outra dificuldade é a seguinte: podemos distinguir uma filosofia política de uma
filosofia que nã o seria política? Podemos distinguir a filosofia política da filosofia moral?
Trata-se de duas questõ es difíceis. Se, desde Platã o até S. Tomá s de Aquino, existiu um
consenso que fez da filosofia política uma simples aplicaçã o da filosofia moral aos
problemas da cidade, esta ideia foi definitivamente rompida com Maquiavel e cedeu
lugar à ideia inversa, segundo a qual uma diferença importante separa estes dois
domínios do saber.
Para alguns, por exemplo, a filosofia trata de acçõ es individuais ou privadas; a
política de acçõ es pú blicas ou colectivas. Para outros, o juízo moral é a priori e tem um
valor absoluto, enquanto os juízos políticos sã o de ordem puramente empírica e, por
conseguinte, têm um valor relativo.
Mais recentemente, com a reabilitaçã o que Habermas operou ao pensamento de
Kant, emergiu uma nova tendência que relativiza a oposiçã o entre moral e política, que
se funda sobre o facto de que bom nú mero dos nossos juízos políticos resultam de uma
deliberaçã o ao mesmo tempo racional e moral.
Uma ú nica certeza emerge destas controvérsias: se a política é uma coisa
diferente da moral, e mesmo se tende a liberta-se da tutela desta ú ltima, nã o lhe pode
fugir completamente e para sempre. Podemos dizer a mesma coisa em termo cínicos,
sem recorrer ao transcendental kantiano. Nenhum príncipe, nenhum Estado se pode
subtrair de uma maneira definitiva à reprovaçã o suscitada pelos seus crimes; é no
interesse do príncipe ou do Estado nã o se comportar sistematicamente de uma maneira
imoral.
Para além desta constataçã o que mesmo Maquiavel fez sua, cada filó sofo tem
tendência a conceber as relaçõ es entre moral e política de uma maneira que lhe é
pró pria.
Poder-se-ia, enfim, definir a filosofia política em funçã o do seu “corpus” temá tico,
da particularidade dos problemas que trata ou da sua especificidade metodoló gica.
Infelizmente também aí nã o podemos ser afirmativos. Temas e problemas variam
segundo as idades. No século XVIII, a noçã o da liberdade foi a que suscitou os principais
debates; no século XIX, foi a noçã o de igualdade; no início do século XX, o conceito de
revoluçã o; na segunda metade do século XX, a noçã o da justiça retomou o passo. Amanhã
é prová vel que a noçã o de supra-nacionalidade (ONU, Uniã o Africana, SADC) seja a mais
importante.
Uma vez mais, a sucessã o destes debates, que marcaram a filosofia política, nã o
tem nada de providencial. Ela reflecte simplesmente as metamorfoses histó ricas, as
mudanças nas preocupaçõ es e nas prioridades. Mutaçõ es que, a menos que sejamos
completamente hegelianos, nã o podemos considerar que exprimam outra coisa senã o a
contingência mesma da histó ria que as produziu.
Quanto a saber se a filosofia política dispõ e de um método privilegiado para
produzir enunciados verdadeiros, a resposta é categoricamente nã o!
Significa isto que a filosofia política nã o é definível? Que nã o tem um terreno
pró prio? Que o seu discurso é sem aposta e as suas conclusõ es sem interesse? A resposta
é categoricamente nã o!
Por uma questã o de contraposiçã o, o domínio científico que melhor participa na
caracterizaçã o da validade da filosofia política é a economia. Sempre que se fala de
mudar a sociedade embate-se imediatamente na economia, que aparece nos discursos
dos seus militantes como a ú nica realidade, como o real que resiste à s utopias dos
filó sofos. Nã o é só o BM e o FMI, mas a maioria dos actores políticos quem coloca sempre
na dianteira as cifras do crescimento econó mico, do PNB. Aliá s, esta tendência
economicista salta também à vista numa leitura atenta do recente documento chamado
“Agenda 20/25”.
Este discurso é de tal maneira extraordiná rio que ele é pronunciado pelos neo-
liberais, pelo antigos marxistas ortodoxos ou por aqueles que querem a todo o custo
conservar ou conquistar o poder. Para estes apó stolos da dolarcracia, o capitalismo
aparece como o ú nico sistema concebível e a sua vitó ria sobre a economia planificada
ganha um estatuto soterioló gico. Que o capitalismo nã o assegure a felicidade universal,
que ele aumente a pauperizaçã o das nossas populaçõ es mais fracas, que deixe muita
gente no desemprego, que o seu ritmo de crescimento diminua constantemente, nã o
importa. Para os economistas neo-liberais e economia tornou-se um fim em si mesmo.
Tornando-se mundial, a seguir ao desaparecimento do bloco socialista, imposta
na Europa pelas instituiçõ es comunitá rias, no resto do mundo pelos acordos do GATT
(hoje OMC), em Á frica e em Moçambique pelos projectos do BM e do FMI, o chamado
mercado livre constitui, doravante, o ponto de referência de todas a acçã o. À esquerda
como à direita, todos se sentem na obrigaçã o de recitar o mesmo credo segundo o qual
os governos deveriam deixar de interferir nos fluxos econó micos. Quando penso que
cresci num país que repetia constantemente: “a política no posto de comando” …
É necessá rio insurgir-se contra este economicismo que condena Moçambique a
uma maior dependência e mesmo ao neocolonialismo, e deita por terra todos os esforços
realizados em termos de luta pela independência e pela liberdade. Contrariamente à
ideologia dominante, nã o é nas pretensas leis da histó ria, da economia ou do mercado
que podemos esperar a nossa salvaçã o. A histó ria nã o tem leis, o mercado também nã o.
O capitalismo é actualmente a doutrina e mesmo a ideologia dominante, mas nada prova
que esta situaçã o deva durar eternamente; mesmo se, é preciso reconhecer, que na hora
actual nada prova que o capitalismo deva desaparecer, nem que possa ser substituída
por uma organizaçã o de produçã o que elimine a exploraçã o, a dominaçã o e a criaçã o de
pobres de ricos.
Em suma, um futuro diferente nã o cairá do céu. Ele será o que nó s fizermos,
colectivamente; ele será resultado de actos políticos. Neste ponto de reflexã o, qualquer
homem sensato diria, de uma maneira politicamente correcta, que o futuro depende dos
cidadã os. Eu penso ter que dizer que o nosso futuro depende da nossa capacidade de
instaurar leis e espaços participativos que permitam que a maioria dos moçambicanos
se tornem, de facto, cidadã os.
Um amigo italiano, por sinal casado com uma moçambicana, dizia-me ter ficado
escandalizado quanto constatou que a sua mulher considerava analfabeta a pró pria mã e,
e este juízo estava ligado unicamente ao facto de que a senhora nã o falava português.
Toda a gama de conhecimentos que ela tinha sobre os mais variados sujeitos era
anulado diante do factor “língua portuguesa”. Este amigo italiano, que nunca aceitou
considerar o changana um dialecto, dizia que, no fundo, os moçambicanos tinham de tal
maneira interiorizado a luso-dependência que tudo o que nã o se fazia em português era
ignorâ ncia.
O problema poderia situar-se na natureza assimilacionista do colonialismo
português –reabilitada pela lusofonia, pelos PALOPs, ou pela pretensa cidadania
lusó fona –e lá estaríamos em conjecturas de tipo histó rico. Poderia situar-se na escolha
do português como língua nacional feita pela primeira Repú blica –no quadro da luta
CAPITULO I
As aporias filosóficas
Como se vê, nã o estou a trazer respostas à s questõ es que a ACAFIL me pô s, mas a
levantar problemas. Com efeito, a filosofia nã o está à altura de oferecer soluçõ es aos
problemas relativamente aporéticos em volta dos quais se ufana. Um dos seus
contributos é tentar elucidar, esclarecer a natureza de tais problemas e pô r em evidência
a variedade de razoes que militam em favor de escolhas e alternativas. Isto pode
também sugerir soluçõ es, linhas e cursos de acçã o, escolhas e decisõ es. Mas a
responsabilidade, creio, toca a cada um de nó s. Se a filosofia terá sido capaz de dar uma
plataforma melhor e mais rica para sustentar o princípio de cooperaçã o e favorecer uma
comunicaçã o sincera ou um diá logo entre os seres humanos finitos e limitados –como
nó s somos -; os filó sofos deveriam considerar-se satisfeitos num nível muito elevado.
O desafio da filosofia política em Moçambique é relevar e fundamentar as razõ es
que militam a favor de uma democracia mais participativa, de uma democracia que
subordina a economia à s escolhas políticas e societá rias (a política no posto do
comando), de numa democracia que baseia as suas instituiçõ es nos imaginá rios
colectivos das populaçõ es, sem abdicar dos contributos das histó rias políticas e
institucionais dos outros países e povos (contrato cultural), ou numa atitude ético-
política que levaria as forças políticas a resolverem entre moçambicanos (contrato
político) ou ainda numa organizaçã o só cio-econó mica distributiva e solidá ria (contrato
social).
O facto de nã o poder contar para esta reflexã o com uma tradiçã o filosó fica
moçambicana estabelecida, aumenta as minhas dificuldades e constrange-me a limitar
os meus propó sitos a ideias e posiçõ es muito pessoais que de maneira nenhuma podem
ter a pretensã o de ser exaustivas. Pelo contrá rio, serã o certamente fragmentá rias e
parciais. Todavia, fazendo isso, participando na construçã o de um arquivo da filosofia
em Moçambique, apesar de nã o ser essa a minha intençã o de partida, contribuo
inelutavelmente para inscrever a filosofia no â mbito dos problemas que emprenham a
política moçambicana e, mutatis mutandis, para inscrever os debates que alimentam a
vida da nossa jovem democracia no â mbito da filosofia.
Percebe-se, assim, que à questã o que escolhi para este trabalho –papel da
filosofia na democracia moçambicana –mesmo se tirada de um bloco de quatro questõ es
da ACAFIL e, ainda por cima, reajustada como uma camisa por um alfaiate para que me
possa servir, dei há quatro anos e dou ainda hoje respostas fragmentá rias e parciais. Isto
está ligado aos meus limites pró prios, aos limites da disciplina que tento praticar e à
dificuldade geral de dar respostas exaustivas a questõ es assim imbricadas como as da
democracia. Mas o limite maior das minhas respostas está ligado à temporalidade da
filosofia que nã o é profecia, nã o é futurologia, nã o tem a tempestividade e a prontidã o de
reacçã o de outros domínios de saber. A filosofia é lenta nas suas reflexõ es, o seu saber
nã o é cumulativo e, como se isso nã o chegasse, as suas respostas sã o muitas vezes novas
questõ es!
Hegel comparava a filosofia à coruja de Minerva que chega sempre tarde!
Contudo, apesar da sua lentidã o e atraso, como diria Voltaire, ela contribui– ou pelo
menos deveria contribuir –para levar os homens, mesmo se lentamente, em direcçã o à
sabedoria!
Nã o satisfeito com as respostas que dei há quatro anos a uma questã o assim
importante, pus-me a reflectir sobre o tipo de contribuiçã o que a filosofia podia dar à
democracia, que afinal de contas nã o é nada mais e nada menos que a contribuiçã o que
nó s, filó sofos moçambicanos, podemos dar ao debate político da nossa terra. Todavia,
apesar do tempo, ou melhor, da duraçã o do tempo da reflexã o, nã o venho hoje, volvidos
cinco anos (que é o tempo da duraçã o de uma legislatura), com respostas, mas com
novas questõ es e novas interrogaçõ es.
Com efeito, os tempos de resposta da política nã o sã o os mesmos que os tempos
de resposta da filosofia. A política e mesmo a economia têm de responder
imediatamente aos problemas com as quais sã o confrontadas. Esta é uma das
especificidades da política, mas também uma das suas dificuldades.
A filosofia necessita de mais tempo. Com isso nã o quero dizer que ela seja uma
arte mais fá cil. Os candidatos (Chissano e Dlakama) nã o se podiam permitir um tempo
de cinco anos de reflexã o, nem os economistas, ou empresá rios se podem permitir um
tal luxo. As respostas que eles têm que dar sã o hic et nunc, aqui e agora. É por isso que os
objetivos dos filó sofos e dos políticos divergem. O político pensa nos mecanismos para
aceder ao poder, ele mesmo, o seu partido, a sua família política. O filó sofo pensa nos
mecanismos susceptíveis de permitir um melhor acesso de um nú mero sempre maior de
indivíduos à vida pú blica. A isto vã o estar ligados os seus respectivos modos de acçã o e
intervençã o. A política utiliza a «propaganda», os slogans, as intervençõ es
espectaculares; a filosofia é mais discreta, mais reservada.
Mais substancialmente, a política ocupa-se do possível, a filosofia do desejá vel.
Ora, nem tudo o que é possível é desejá vel. O contrá rio é também verdadeiro: nem tudo
o que é desejá vel é possível. Todavia, entre os possíveis existem os que sã o mais
desejá veis do que os outros. O diá logo entre a filosofia e a política deveria permitir uma
influência reciproca: a filosofia deveria levar a política a nã o cair na facilidade da
realizaçã o de um possível acessível mas simples, em detrimento de um possível
desejá vel, mesmo se exige mais esforço e mesmo mais tempo; por sua vez, a política
pode ensinar à filosofia a ser mais comprometida com a realidade, sem que isso
signifique que ela abdique de uma dose de idealismo e de utopia, no sentido de verdade
do amanhã (Victor Hugo).
A Filosofia e a política sã o, por conseguinte, duas artes diferentes, que devem
permanecer como tais, nã o para se contraporem, mas para se completarem. Todavia, as
suas diferenças e especificidades respectivas permanecem fundamentais.
O político que se tenta substituir ao filó sofo nã o estará no seu lugar. Aliá s, nã o sei
se ele teria a competência epistémica necessá ria para exercer o á rduo trabalho de
reflexã o com todos os condicionalismos teó rico-metodoló gicos e apriorismos que a
filosofia exige. O contrá rio é também verdadeiro: o conhecimento teó rico que o filó sofo
pode adquirir do seu estudo, investigaçã o e reflexã o, nã o o habilita necessariamente a
exercer, de maneira idô nea, um cargo político.
Existe uma grande tentaçã o de justapor o conhecimento teó rico à política e ao
exercício efectivo de cargos políticos. Quando o politó logo, o soció logo, o jornalista, o
jurista ou o filó sofo confundem as suas respectivas competências críticas no sentido
epistêmico –o que quer dizer antes de mais perspectivas de abordagem específicas em
termos de rigor metodoló gico e uma deontologia de intervençã o subordinada a uma
hierarquia axioló gica bem definida –com uma eventual competência de exercício da
funçã o política, cometem um erro. Nã o digo que um bom filó sofo, digamos para ser mais
CAPITULO I
abrangente, um bom intelectual, nã o possa ser também um bom político, ou que um bom
político nã o possa ou nã o deva ser um grande intelectual ou mesmo filó sofo. Aliá s,
questiono mesmo se o ideal nã o seria termos políticos com grande veia de conhecimento
teó rico, o que, aliá s, era já o sonho de Platã o.
Nã o se tratava tanto de trazer filó sofos ao governo, quanto de soprar nos políticos
o espírito de desinteresse que deveria caracterizar aquela casta de pensadores
privilegiados que se dedica à contemplaçã o do bem, do belo e do justo. Platã o queria
dizer que os políticos deveriam ser sá bios, mas de um saber desinteressado, o ú nico que
pode leva-los verdadeiramente à prá tica da justiça, sem a qual a violência da política
corre o risco de se fazer substituir por outras formas mais cruéis de confrontaçã o.
anos do trabalho de Fukuyama, nada confirma as suas prediçõ es. A democracia como se
apresenta, sem respeito pelas histó rias e pelas culturas particulares dos povos, tem
ainda dificuldades de vingar em certos países: é imposta a uns,
manipulada/instrumentalizada pelas chamadas velhas democracias em certos países do
sul, sofre ingerências inaceitá veis e anti-demcrá ticas por parte das democracias
(coloniais) consolidadas contra as democracias emergentes, subordina-se a interesses
econó micos, etc. Existem razõ es sérias para pensar que a extensã o colonial da
democracia (pela sua imposiçã o histó rica e institucional) à quase totalidade dos países
do planeta equivale a uma sempre maior diminuiçã o da democracia enquanto regime de
participaçã o popular.
Aliá s, podemos mesmo interrogar-nos sobre a existência de um regime que seria,
em absoluto, melhor que todos os outros. É mais razoá vel consentir que a democracia
representativa é o menos mau dos sistemas ou, se quisermos dizer positivamente, é o
melhor sistema até aqui criado.
Por conseguinte, a filosofia(moçambicana) tem o dever de continuar a interrogar-
se quanto ao melhor regime e à s formas institucionais que deve tomar para adequar-se à
nossa situaçã o histó rica específica.
Eis porque, no contexto moçambicano, a existência de uma elite pensante, nã o
partidocraticamente orgâ nica, nã o se pode constituir em oposiçã o aos actores políticos,
ainda menos em oposiçã o aos eleitos, os ú nicos cuja legitimidade política se entra (ou
pelo menos deveria encontrar-se) na vontade do povo. Ao mesmo tempo, as elites
políticas nã o podem (nã o devem) ver, na vontade de uma certa independência de
pensamento e de juízo por parte da elite intelectual, uma ameaça, mas uma contribuiçã o
necessá ria (ela deve ser isso) à evoluçã o positiva da nossa democracia e ao progresso
social do nosso povo.
A funçã o/missã o dos intelectuais é contribuir com as suas ideias, sugestõ es,
reflexõ es, perplexidades, cepticismo, críticas e reticências para o melhoramento da
sociedade. Isto estende-se mesmo à queles que, por fidelidade à disciplina científica a
que se referem, limitam a pró pria intervençã o a um nível epistémico e nã o axioló gico
(Max Weber). Se os intelectuais, independentemente das disciplinas de referência, nã o
contribuírem para melhorar a sociedade, podemos estender a questã o, que Durkheim
punha aos cientistas sociais, a todos os intelectuais e perguntar: para que é que servem?
A particularidade da filosofia em relaçã o à s outras ciências humanas e sociais
reside no facto de ela nã o limitar a sua acçã o a uma radiografia social (por mais
importante que essa radiografia possa ser), mas aspirar normativamente a dizer o que
deveria ser a boa sociedade.
Eis porque, no que me diz respeito, ouso, muito modestamente, sugerir para o
crescimento político e social de Moçambique, a necessidade de incrementar o contrato
social, de estabelecer um contrato político entre os partidos principais fautores da
política nacional, e de desenhar o quadro institucional, inspirando-se, em primeiro lugar,
nos imaginá rios sociais dos diferentes grupos nacionais, nos espíritos das tradiçõ es dos
diferentes grupos, sem, no entanto, deixar de ter em conta a contribuiçã o dos outros
países e povos na evoluçã o da democracia.
Contudo, a relaçã o ambígua entre o saber e o poder é tã o velha quanto a filosofia
ela mesma. Apesar de se ter Só crates como fundador mítico da filosofia, a fama deste se
deve essencialmente, aos escritos sobre ele que nos foram legados por Platã o. Assim, a
figura de Só crates e a fundaçã o desta forma específica de conhecimento que a partir de
entã o se chamou filosofia, está geneticamente ligada à figura e mesmo, ao pensamento
de Platã o.
Se, em Só crates, o conflito entre a filosofia e a política eram patentes (foi o poder
que o condenou ao suicídio –o que historicamente tem servido para demonstrar a
dimensã o moral da filosofia), o primeiro a sentir a necessidade de teorizar as relaçõ es
que deveriam transcorrer entre este novo saber e o poder foi Platã o. Assim o primeiro
escriba «philosophicus» pergunta-se qual seria o melhor regime político possível. Ou, se
quisermos ser mais kantianos, ele pergunta-se quais as condiçõ es de possibilidade para
um homem exercer de uma maneira justa o poder que ele, eventualmente, tenha sobre
os outros homens. Em outras palavras, quais sã o as condiçõ es de possibilidade de
exercício por parte do homem de uma governaçã o justa. A resposta que Platã o dá a esta
questã o é sobejamente conhecida: que os reis se tornem filó sofos ou que os filó sofos se
tornem reis.
O que quer dizer Platã o com isso? A preocupaçã o principal de Platã o é uma
governaçã o justa. Ora, o homem, de uma maneira geral, aparece a Platã o como tendente
à injustiça, à concupiscência, a privilegiar a sua pessoa, o seu grupo, os seus interesses,
em detrimento dos interesses dos demais.
Numa «polis» ateniense dividida entre escravos (a maioria da populaçã o que
trabalhava), militares –o grupo daqueles que deveriam defender a cidade –, e os filó sofos
que se consagravam à contemplaçã o do mundo ideal, a Platã o resultava ó bvio que os
ú ltimos, pela sua vocaçã o existencial de busca da verdade, fossem os mais aptos a aplicar
no mundo da governaçã o política um dos correlativos essenciais da verdade, que é a
justiça.
Dizer que os governantes têm que ser filó sofos ou os filó sofos governantes, é uma
maneira de denunciar a dificuldade de uma governaçã o justa, mas, ao mesmo tempo,
significa dizer de uma maneira prospectiva que a justiça tem que ser o objetivo primeiro
de todo o homem do governo.
Mas se para o homem do governo a justiça é uma miragem, associada à verdade, a
justiça constitui o ideal de base da investigaçã o filosó fica. É por isso que o homem de
poder deveria ser filó sofo ou participar das preocupaçõ es dos filó sofos.
Contemplar a verdade significa para Platã o pô -la em prá tica, ser justo. Eis porque
Só crates, apesar de ter tido a possibilidade de fugir, decidiu ficar e morrer em nome da
justiça e do respeito pelas leis do Estado.
Mas num filó sofo que se torne rei, ou num rei que se converta à filosofia, qual das
duas dimensõ es vai prevalecer: a contemplaçã o do mundo das ideias ou o pragmatismo
político (as diferentes razõ es de Estado)?
Alexandre Magno, discípulo de Aristó teles, apesar dos seus ideias ecuménicos –
unir o Oriente e o Ocidente –para atingir os objetivos que se propunha, teve como meios
a guerra e a constriçã o dos seus generais a contraírem matrimó nio com mulheres
orientais. Estes procedimentos eram conformes a justiça da Ética a Nicômaco predicada
por Aristó teles? Nã o estamos perto do pragmatismo maquiavélico para quem os fins
justificam os meios?
Num registo inverso, o «Faraó» da quinta dinastia egípcia estava de tal maneira
ligado à contemplaçã o da verdade do Deus Amoon que negligenciava o pragmatismo que
a sua funçã o política exigia. O perigo de um tal governante era o enfraquecimento da
autoridade pú blica, o que poderia pô r o país em perigo, face aos seus inimigos, e mesmo
a ordem interna de que um país necessita para que a convivência civil seja possível. De
facto, contra a lassitude do Faraó , o aparelho do Estado acabou decretando, em nome do
que se pode chamar hoje de Razã o de Estado, a supressã o do dito Faraó . Pode a filosofia
(apesar de compreender) caucionar este tipo de procedimentos?
Qual é e deve ser o modelo de filó sofo? Só crates, o campeã o da introspecçã o, o
homem que em nome da justiça justa ousa pô r em causa as leis do Estado, da tradiçã o e
da religiã o para apelar-se a uma verdade superior? Ou o realista Aristó teles que nã o se
limita a afastar-se das concepçõ es idealistas do seu mestre Platã o, mas tenta influenciar
o curso da histó ria através do seu educando, Alexandre, O Grande? O filó sofo como um
CAPITULO I
conceptualmente a Á frica. Essa invençã o coincidia, na maior parte dos casos, com uma
militâ ncia política que significava oposiçã o aos regimes (esclavagistas ou colonialistas)
que mantinham a Á frica e o homem negro sob dominaçã o. Entã o, geneticamente, o
nascimento dos primeiros intelectuais –muitos dos quais sã o pastores das igrejas
protestantes do Novo Mundo – têm uma relaçã o de oposiçã o com o poder instituído.
As primeiras ambiguidades com o poder manifestaram-se na época pó s-
esclavagista. Dubois inicia uma forma mais intelectual de militâ ncia política. A sua luta
na América é permitir que os negros, até entã o escravos, pudessem beneficiar de todas
as prerrogativas previstas pela constituiçã o para todos os cidadã os. Para ele a questã o
negra nã o era social, mas política. Eles eram a ú nica parte da populaçã o americana que
tinha ido para os EUA contra vontade, que, em razã o da sua histó ria, nã o podia
considerar os EUA como terra de liberdade. Por consequência, a soluçã o da questã o
negra (contra o gradualismo de B. Washington e o Back to Africa de Marcus Garvey) era
necessariamente política. É o início da famosa doutrina da discriminaçã o positiva.
Dubois tenta estender a sua doutrina de intelectual engajado pela causa do seu
povo ao conjunto dos intelectuais da sua geraçã o através da doutrina «talented tenth» e
ao seu Niagara; através do jornal Crisis porta-voz do NAACP, do seu empenho junto dos
jovens intelectuais da Black Renaissance (Weldon Jonhson, Langston Hughes, Alain
Locke, Claude Mckay) e organizando os congressos pan-africanos, o ú ltimo dos quais co-
presidido com N. Nkrumah que, aliá s, vã o reivindicar as independências políticas do
continente.
Mas a histó ria da relaçõ es de Dubois com o poder nã o é linear. Em 1920, ele
aceita representar o governo americano na investidura do presidente Roberts, da
Libéria. Se ele aceita esta missã o é para convencer o futuro presidente. Se ele aceita esta
missã o é para convencer o futuro presidente liberiano a sua posiçã o de aceitar receber
os negros que, no seguimento de M. Garvey, querem voltar a Á frica. Dubois associa-se ao
poder político americano para opor-se a um adversá rio político. Enfim, Dubois, depois
da independência do Gana, é eleito vice-presidente, acabando os seus dias a trabalhar
como intelectual orgâ nico pela causa das independências e dos Estados Unidos da Á frica.
Weldon Jonhson vai mais longe e aceita fazer campanha para a presidência
democrá tica que, depois das eleiçõ es, gratifica-o com a nomeaçã o para Cô nsul dos EUA
em Haiti. Como representante do governo americano, Jonhson aplica-se, contudo, a
denunciar todas as barbaridades cometidas pelos militares americanos durante a
ocupaçã o de 1915. Ele utiliza a sua posiçã o para defender a causa negra.
O haitiano Anténor Firmin25 começa por contra-atacar o racismo científico
emergente, escrevendo, contra Gobineau a Igualdade das raças humanas, depois
convocando com Robert Wiliams o primeiro congresso pan-africano. Com efeito, depois
do fim recente da escravatura, uma nova ameaça pesa sobre o homem negro
representada pelo colonialismo, caucionado, por sua vez, pela antropologia nascente e
pela ideologia racista emergente. O lema dos intelectuais reunidos em Londres em 1900
é unir-se para resistir.
Edward Blyden nã o participa nesse encontro porque nã o pode aceitar a presença
do que ele chama de «negros nã o puros». Blyden é um intelectual problemá tico. De um
lado, ele trabalha como intelectual orgâ nico pela causa da emigraçã o dos negros para a
Libéria, participando em encontros de sensibilizaçã o nos EUA, defendendo a causa da
Libéria como embaixador junto das chancelarias ocidentais. Mas, do outro lado, ele
manifesta um racismo anti-mulato preocupante e, sobretudo, participa na submissã o e
colonizaçã o dos indígenas da Libéria por parte dos yankees negros (blacks, mas anglo-
saxõ es e protestantes).
25
In Oruno Lara, 2000:164-183.
A nível de Á frica, nã o se foge muito a esta regra. Os primeiros intelectuais
africanos sã o militantes pela causa da liberdade dos pró prios povos e, por conseguinte,
contrá rios aos poderes estabelecidos (Azikiwé, Nkrumah, Mondlane, Senghor, C.A. Diop,
Cabral, Neto, Nyerere).
Os da tradiçã o pan-africana, nã o assimilados pelo colonialismo, reivindicam
imediatamente liberdades políticas; os da tradiçã o francesa têm muito mais dificuldades
em se distanciarem do colonialismo. Com efeito, apesar das influências que o pró prio
Senghor reconhece da parte do escritor do Harlem Renaisssance, ou das claras posiçõ es
tomadas por Etienne Lero e pelo seu movimento Légitime Défense de 1932, a negritude,
desde o seu primeiro aparecimento sob forma de Etudients Noire em 1934, dá primazia
absoluta ao cultural em detrimento do político. Contudo, o esforço de reabilitaçã o
cultural que está no centro da actividade de Senghor, Damas e Césaire, vai
necessariamente desembocar na reivindicaçã o das independências políticas e, por
consequência, na oposiçã o ao colonialismo.
Até à década de sessenta, existe uma ligaçã o entre ser intelectual e uma militâ ncia
pela causa das liberdades e independências e, em consequência, a oposiçã o ao poder
colonial. Aliá s, uma das particularidades desse período era a conjugaçã o numa ú nica
pessoa das dimensõ es intelectual e política. O exemplo mais representativo é Senghor:
escritor e poeta, e mesmo com uma certa aversã o pela política, por razoes histó ricas
independentes da sua vontade, veio a ser um dos pais das independências africanas.
Mas Senghor é também o melhor exemplo para demonstrar que um bom
intelectual nã o é, necessariamente, um bom político. De facto, enquanto Presidente do
Senegal, ele continuou a ser sobretudo poeta, a escrever e mesmo a utilizar o pouco
dinheiro pú blico disponível para organizar encontros para a gló ria do movimento da
negritude, deixando que a economia do país continuasse a depender e a ser pensada a
partir de Paris.
Todavia, apesar da fusã o da dimensã o intelectual e política nas mesmas pessoas,
as relaçõ es entre os intelectuais e o poder complicaram-se no período pó s-colonial,
devido, fundamentalmente, à combinaçã o de três factores:
1. O clima da política internacional no qual as independências africanas foram
proclamadas, dominado essencialmente pela guerra fria. Na Á frica disputada entre dois
blocos –o nã o alinhamento nã o funcionou –uma das aramas usadas para desestabilizar
os governos africanos foi a utilizaçã o de intelectuais como ameaça contra o poder dos
respectivos países, o que nã o era de natureza a facilitar uma colaboraçã o entre os
intelectuais e o poder. Aliá s, isso acabou metendo os governos africanos na defensiva e a
considerar certos esforços legítimos de participaçã o na vida pú blica como sendo
tentativas de subversã o.
2. No momento da proclamaçã o das independências, o nú mero de africanos
formados é quase nulo. Nkrumah, como primeiro-ministro, viu-se a governar o Gana
com uma administraçã o britâ nica que nã o executava as suas ordens. Esta falta de
pessoas formadas levou a que todos os primeiros intelectuais fossem solicitados a
ocupar lugares de poder ou de primeiro plano a nível administrativo. Isto acabou
levando uma geraçã o de formados a considerarem-se intelectuais e a confundir o ser
intelectual com o exercício de cargos políticos ou administrativos. Quem nã o era
contemplado na distribuiçã o de lugares de poder sentia-se discriminado e, em
consequência, autorizado a constituir-se em oposiçã o ao poder.
3. De uma maneira geral, os colonizadores nã o estavam prontos a aceitar a
autodeterminaçã o dos povos africanos –ainda hoje dã o suficientes provas de nã o
estarem libertos dos seus preconceitos de hegemonia colonial. Assim ao invés de
favorecerem um debate democrá tico lá onde as condiçõ es o permitiam, preferiram
confiar as independências a indivíduos que pareciam estar mais ao serviço das
CAPITULO I
metró poles que das populaçõ es africanas (Senghor e Boigny), ajudando-os a reprimir,
através das bases militares que inundam a Á frica e dos serviços secretos, toda a
reivindicaçã o de debate democrá tico. Lá onde os dirigentes negavam essa fantochada (o
caso da Guiné) fabrica-se uma oposiçã o intelectual, partidá ria ou mesmo militar, como
foi o caso de Moçambique.
Entã o, quando se julgam os regimes das primeiras repú blicas africanas, tem que
se pensar nas ingerências externas que, em vez de favorecerem um debate e uma
abertura interna, levaram a que os regimes políticos, para se defenderem, perseguissem
os que pareciam defender ideias neocoloniais ou os que pareciam ser instrumentos de
poderes externos.
O corolá rio disto é que os regimes de partido ú nico, de esquerda ou de direita,
acabaram criando uma tradiçã o de conflito entre poder e intelectuais nã o orgâ nicos.
Esta situaçã o fez com que as elites de um mesmo país nã o se mobilizassem em direcçã o
a um objectivo comum, mas se fragmentassem numa espécie de oposiçã o entre poder e
saber.
No Moçambique de hoje, este síndroma instrumentalista volta à tona. Nó s nã o
trabalhamos todos para objectivos comuns bem definidos. Pelo contrá rio, dividimo-nos
em intelectuais Frelimo-governo e oposiçã o-comunidade internacional. Se ainda a
divisã o fosse Frelimo-Renamo, e outras forças nacionais, seria aceitá vel. Mas como a
divisã o é entre os que podem pagar, a Frelimo tem os seus meios e, por isso, o seu
pessoal e a comunidade internacional, através de uma ingerência ilegítima e
escandalosa, nem sequer dá meios a Renamo e aos partidos mais pequenos para
crescerem e fortificarem a democracia nacional. A comunidade internacional substitui-
se a eles e constitui-se numa verdadeira oposiçã o, rivalizando com a Frelimo na posse
das capacidades locais.
Parece-me que, apesar de tudo, é tempo de reconciliar os intelectuais e o poder. É
tempo de este dar mais espaço a aqueles e de aqueles se engajarem numa participaçã o
construtiva. Ouso mesmo pensar que, para melhorar a democracia moçambicana, o elo
fraco nã o é o povo, nem a classe política, mas uma elite intelectual que nã o está à altura
dos desafios a que Moçambique tem que fazer face. Nã o em termos de críticas do que
nã o vai bem, mas em termos do que é necessá rio fazer para melhorar as condiçõ es de
vida das populaçõ es. Uma elite que nã o se confunde com os detentores de diplomas
(Deus sabe como sã o procurados!), mas com a produçã o de ideias e com a ousadia de
participar, sabendo antecipadamente que ser intelectual foi e sempre será um risco.
Os intelectuais podem ser coisas diferentes. Jean-François Lyotard26, o pai do
chamado pó s-modernismo, diz que o saber é uma mercadoria que se compra e se vende.
O intelectual, o detentor do saber pode transformar-se num mercante e, no nosso caso,
mesmo num mercená rio que, em nome do dinheiro, vende ou vende-se sem ter uma
visã o clara das suas atitudes e do seu posicionamento. O intelectual pode também ser
um homem engajado, nã o necessariamente com um partido, mas com a causa de
Moçambique e do seu povo. Césaire27 fala pretensiosamente em carregar sobre os
ombros os problemas do povo. Mais modestamente, Senghor fala da necessidade de nã o
sermos exploradores do nosso povo.
A ideia de nã o sermos exploradores do nosso povo é importante porque parece-
me que, cada vez mais, ser intelectual significa fazer parte da elite moçambicana. Os
acordos que alguns de nó s assinam, as coisas que admitimos ou caucionamos com
artigos que nos sã o ditados, fazem com que a maioria do nosso povo volte a situaçõ es
quase coloniais. Se nã o somos exploradores do nosso povo, somo muitas vezes, ou pelo
26
A Condição pós-moderna. Lisboa: Gradiva, 1989.
27
Cahier d´un retour au pays natal. Paris: Présence Africaine,1952.
menos o perigo existe de sermos, veículos, instrumentos para o restabelecimento dessa
exploraçã o.
Num pequeno romance extraordiná rio intitulado Aventura Ambígua28, C. H. Kane
propõ e uma figura de intelectual que seria uma espécie de enviado do povo à escola a
fim de aprender o que ele chama «a arte de ganhar sem ter razã o». Nesse sentido, os
intelectuais sã o vistos como enviados pelos grupos, pelas comunidades a fim de
contribuírem para melhorar a situaçã o de todos. Esta maneira de pensar o intelectual
parece-me judiciosa e equilibrada na medida em que, sem tirar nada ao indivíduo e à s
suas capacidades, confia-lhe uma responsabilidade social.
28
Paris: Présence Africaine, 1963.
29
L’Afrique a-t-elle besoin d´un programme d´ajustament culturel? Paris: Ed. Nouvelles du Sud, 1990.
30
Et si l´Afrique réfusait le development? Paris: L´Harmattan, 1991.
31
Négritude ou servitude? Yaoundé: Presse Universitaire du Cameroun, 1979.
32
Tradition africaine et rationnalité moderne. Paris: L’Harmattan, 1998.
CAPITULO I
integraçã o social nos países onde os antigos escravos passaram a ser cidadã os (B.
Washington, Dubois) de segunda linha. O terceiro movimento identifica a liberdade com
a autodeterminaçã o política. A figura mais preponderante é Kwame Nkrumah que,
ultrapassando a Renascent Á frica de Azikiwé, reivindica, primeiro no V Congresso Pan-
africano de Manchester de 1945 e depois no livro África Must Unit, a liberdade-
independência de todo o continente, e se faz o paladino de uma unidade continental em
termos políticos e econó micos. O quarto nível de liberdade é o desenvolvimento
econó mico e social. Este nível, iniciado logo depois das independências, ocupa ainda hoje
o essencial das elucubraçõ es dos africanos, e é aqui que se situa também o nascimento
de uma filosofia africana crítica (Towa, Eboussi, Hountondji).
As diatribes da histó ria africana, as vicissitudes existenciais primeiro e do
pensamento em seguida, deram à política africana, mas também à sua filosofia um cunho
muito particular a que eu chamo de libertá rio. A natureza dos estados africanos (se
quisermos ir mais longe diremos negros) quer sejam os da Serra Leoa e da Libéria,
primeiro e, depois, os do Gana e Congo sã o, na essência, libertá rios: contra a escravatura
primeiro e o colonialismo em seguida, aos quais durante séculos os negros estiveram
submetidos. A filosofia africana emerge também deste fundo comum de busca de
liberdade.
Se existe um paradigma –no sentido de Kuhn –do pensamento e da filosofia
africanos como eles se desdobraram historicamente, esse paradigma chama-se a busca
da liberdade. Nã o de uma liberdade metafísica ou moral, mas de uma liberdade política.
Nã o podemos pensar a Á frica nem sob ponto de vista político, nem filosó fico
perdendo de vista o paradigma libertá rio que deve ser a referência e o critério de
julgamento das nossas lucubraçõ es intelectuais e das nossas opçõ es políticas.
As nossas reflexõ es e opçõ es em torno do liberalismo e da democracia devem ser
subordinadas a esta busca secular da liberdade. Devem ser analisadas nã o em funçã o da
dinâ mica mundial (mesmo se nã o a podemos ignorar), mas subordinadas à nossa busca
secular e histó rica. Só na medida em que um regime político, um sistema econó mico
colaboram para incrementar a esfera paradigmá tica da nossa busca histó rica é que eles
podem ser avaliados positivamente.
A Filosofia em Moçambique
Um esforço filosó fico a partir de Moçambique nã o pode deixar de se inscrever no
quadro de um esforço africano mais global ligado ao nascimento da filosofia africana
que, por seu turno, está intrinsecamente ligado à busca da liberdade que caracteriza a
visã o continental da Á frica. Contudo, se as nossas inquietaçõ es nã o sã o geneticamente
diferentes das preocupaçõ es dos outros países africanos, também nã o sã o completamente
idênticas. Estamos a nível daquilo que os ló gicos chamam analogia.
Os problemas e as preocupaçõ es que norteiam a filosofia africana soa também nossos.
Mas com algumas diferentes significativas de â ngulos de ataque e mesmo reservas sobretudo
relativas ao solipsismo que tem caracterizado alguns filó sofos que centra as suas reflexõ es em
torno da existência da filosofia africana, esquecendo-se de acompanhar criticamente a evoluçã o
(ou talvez a involuçã o) dos diferentes países do continente. Isto fá -los cair no mesmo erro da
negritude e da etnofilosofia que era, como dizia Fanon, de continuar a remoer em sarcó fagos e
nã o mobilizar as inteligências para a dinâmica histó rica da Á frica.
Nos meus primeiros trabalhos (Por uma Dimensão Moçambicana da consciência histórica;
Das independências às Liberdades; O Retorno do Bom Selvagem; Mukadjanadas) tentei pensar em
Moçambique, haurindo a base do meu pensamento na histó ria da filosofia e na maneira como ela
tem sido pensada e discutida no continente africano. Tentei contribuir para uma reflexã o em
volta das metamorfoses histó ricas pró prias de Moçambique: por um lado, solicitando a filosofia
com a sua histó ria e método a seguir dialogicamente o percurso histó rico de Moçambique; por
outro, solicitando Moçambique e a sua histó ria a se deixarem interpretar pelo saber filosó fico.
Este esforço de trazer a filosofia ao debate moçambicano atingiu inesperadamente
proporçõ es inauditas quando em 1995 me foi dada uma daquelas ocasiõ es ú nicas na vida de um
filó sofo, isto é, conceber um curriculum de Filosofia para a Universidade Pedagó gica e
acompanhar a formaçã o de professores que se encarregariam, num segundo momento, de
introduzir a filosofia em todas as escolas secundá rias do país.
A primeira preocupaçã o que tive foi tentar saber a razã o pela qual o Ministério da
Educaçã o tinha decidido introduzir a filosofia no ensino secundá rio. Isto é, a filosofia devia
contribuir a trazer soluçõ es para que problemas? Tratava-se, para mim, de criar um curriculum
que, mesmo respeitando a secular histó ria da filosofia nas suas disciplinas nucleares (histó ria da
filosofia, teoria de conhecimento, antropologia filosó fica, ética e metafísica), fosse construído em
funçã o das necessidades do país. Tratava-se de aculturar a filosofia ao contexto moçambicano
sem a desapropriar da sua dimensã o de busca do universal centrado sobre a realidade da
condiçã o humana.
A vontade política de introduzir a filosofia no ensino era, em si mesma, o reconhecimento
da capacidade desta disciplina a contribuir na fase crucial e na encruzilhada histó rica a que
Moçambique se encontrava a nível político-social, mas também a nível moral. Assim decidi
propor um curso de filosofia aculturado à s preocupaçõ es reais de Moçambique, para levar a
filosofia a ser um parceiro sério na elucidaçã o dos problemas e das suas causas, mas na busca de
soluçõ es. Apó s um período de investigaçã o e de reflexã o identifiquei três campos fundamentais
de possível contribuiçã o da filosofia em Moçambique: epistemologia, política e ética.
i. Epistemologia
A escolha da epistemologia como campo de investigaçã o da filosofia em Moçambique
resultou, em primeiro lugar, das dificuldades que os estudantes têm face a questõ es abstractas.
Este défice epistemoló gico está ligado nã o só à falta de filosofia (ló gica), mas também à fraca
preparaçã o no conjunto das disciplinas humanísticas como a histó ria, a literatura, as línguas
clá ssicas, a gramá tica, etc.
Para além de contribuir, dando aos estudantes utensílios de aná lise mais refinados, a
epistemologia pode trazer uma outra contribuiçã o, menos evidente, mas nã o menos importante.
Historicamente, ela teve outras denominaçõ es que nos podem ajudar a compreender os seus
desafios e, em consequência, a alargar o seu campo de aplicaçã o na educaçã o dos jovens. Ela é
também conhecidos por Gnoseologia, Teoria do Conhecimento e Crítica.
Dizer «crítica» significa referir-se a uma atitude do espírito que consiste em analisar
rigorosamente e sem condescendência os nossos mecanismos de conhecimento, o conteú do
mesmo do que nó s dizemos saber, assim como o valor intrínseco dos nossos conhecimentos.
CAPITULO II
Nos ú ltimos anos, uma parte da filosofia africana (P.E. Elungu, M. Towa, Ka Mana, ali a.
Mazrui, Georges B. N. Ayittye, J. A. sofola, Kwasi Wiredu, E. Njoh Mouelle) tem centrado os seus
debates à volta do valor dos nossos conhecimentos ditos tradicionais e da sua relaçã o com a
racionalidade moderna. A premissas deste debate é paradigmá tica busca da liberdade africana,
centrada hoje sobre o desenvolvimento econó mico e social. Até à década de setenta, o discurso
africano acusava de uma maneira unilateral a escravatura e o colonialismo de serem os ú nicos
responsá veis pelo estado actual do continente. Esta atitude impedia um trabalho de
introspecçã o crítica sobre as nossas responsabilidades, sobre as responsabilidades das nossas
instituiçõ es ancestrais na instauraçã o desses sistemas odiosos.
Por outro lado, a grande exaltaçã o das tradiçõ es africanas, por obra sobretudo dos
adeptos da negritude, encobriu uma aná lise fundamental quanto ao valor intrínseco dos
conhecimentos tradicionais, do seu eventual enquadramento na modernidade, que constitui o
substracto mental e filosó fico do desenvolvimento a que aspiramos.
Marcien Towa (1971), membro, como Houtondji e Boulaga, daquilo que Elungu chamou
de escola crítica34, nã o só se distancia do caminho traçado pela etnofilosofia aberta por Tempels
e Kagame35, como nem sequer se limita a atacar a «negritude-servitude» de Senghor que ele
associa a etnofilosofia. Ele vai mais longe agora e afirma que o tempo das reivindicaçõ es acabou:
trata-se agora de nos concentrarmos sobre a questã o do desenvolvimento e do progresso. Para
Towa a questã o é tentar saber o que permite ao Ocidente o seu desenvolvimento, a sua
superioridade e o seu poder sobre nó s. Trata-se de descobrir e de se apoderar do segredo do
Ocidente.
Para o filó sofo camaronês, o segredo e a superioridade do ocidente reside nos seus
conhecimentos técnico-científicos. Eis porque a Á frica deveria, segundo Towa, concentrar todas
as suas energias a desenvolver a ciência e a técnica. P. E. A. Elungu (1987) prolonga esta tese
ajuntando que o segredo ocidental nã o é meramente técnico, mas se trata da racionalidade
técnico-científica. A superioridade do Ocidente é, assim, remetida para uma dimensã o filosó fica.
A Á frica tem os seus conhecimentos, ditos tradicionais, os seus saberes que no passado
certamente ajudaram os africanos a fazerem frente aos problemas com que eram confrontados –
alguns pensadores defendem que esses conhecimentos eram fracos e foi essa fraqueza que fez
dos africanos vítimas predilectas de todo o tipo de esclavagistas e colonizadores. Mas admitindo
que esses conhecimentos tenham ajudado os africanos do passado, que relaçã o existe entre
esses conhecimentos e o mundo moderno?
Essa questã o divide hoje os filó sofos africanos em duas posiçõ es contrastantes: os que –
como Towa, Elungu, E. Njoh Mouelle – defendem a ideia de uma irredutibilidade fundamental
entre as tradiçõ es africanas e a racionalidade moderna, e, em consequência, a necessidade de a
Á frica ter a coragem de sacrificar a sua histó ria e as suas tradiçõ es sobre o altar do
desenvolvimento.
Esta posiçã o põ e enormes problemas de carácter antropoló gico, dado que a cultura
aparece como uma espécie de acessó rio vestimental que podemos levianamente despir e nã o
uma estrutura constituinte da existência humana.
É verdade que a cultura nã o tem nada de genético, que é intrinsecamente ligada a uma
determinada sociedade (Edward Tylor36). Mas a antropologia (Remotti37) demonstrou
suficientemente que mesmo se a cultura é uma estrutura precá ria e exactamente por causa da
sua fragilidade e precariedade –ligada ao facto que ela só ganha vida através de indivíduos que
sã o diferentes uns dos outros, e ao facto que a simbologia da cultura exige a priori um consenso
social, que nunca se obtém completamente –as sociedades reificam as culturas a fim de se
protegerem. Por isso, a ideia de um abandono puro e simples da cultura levanta problemas
epistémicos enormes.
34
Ngoenha, 1993: 91.
35
Ngoenha, 1993: 55.
36
Culture Primitive. Paris: Seuil, 1974:79
37
Noi, Primitive. Lo specchio dell’antropologia. Torino: Bollati Boringhieri, 1995.
Esta posiçã o põ e também problemas de cará cter filosó fico se, como Herder 38,
concebermos a cultura como sendo a segunda natureza do homem, sem a qual a vida humana
nã o é simplesmente possível.
Outros pensadores africanos (W. E. Abraham, M. V. Tsangu Makumba, O. A. Onwubiko, P.
Apostle, J. B. N’tandou, Y. Assogba, E. R. Mbaya, Tshipanga Matala, A. M. M’Bow, C. P. M. Kamala)
defendem a compatibilidade entre as tradiçõ es africanas e o desenvolvimento moderno. Eles
sustentam que o que permitiu a Á frica sobreviver, nã o obstante a escravatura e o colonialismo a
que foi sujeita, foi exactamente a vitalidade das culturas africanas. Se essa vitalidade nã o se
manifestou no período pó s-colonial e, por conseguinte, nã o contribuiu para desenvolver o
continente, foi devido essencialmente à s elites políticas, que manipularam as tradiçõ es e as
culturas para solidificaram as suas posiçõ es de poder.
O interesse deste debate reside na sua dimensã o crítica, na sua introspecçã o cultural e
esta nã o é completamente desprovida de interesse para nó s. A primeira Repú blica, em nome da
luta contra o tribalismo, tinha pura e simplesmente banido as tradiçõ es e as culturas do campo
do político. A segunda Repú blica, sobretudo por obra dos doadores, parece reabilitar as
chamadas autoridades tradicionais, sem um debate prévio quanto à capacidade de contribuir
positiva ou negativamente para o actual curso histó rico.
De uma maneira mais incisiva e concreta, o debate africano interroga-se quanto à
capacidade democrá tica das tradiçõ es africanas onde o peso do chefe ou do anciã o impediriam
toda a dimensã o do debate de ideias e, em consequência, do desenvolvimento democrá tico.
A filosofia africana interroga-se quanto ao valor estatutá rio dos mecanismos tradicionais
da transmissã o do saber que, contrariamente ao modelo democrá tico do sistema de educaçã o
moderno, reserva os seus conhecimentos a uma casta de eleitos, cujo desaparecimento equivale
muitas vezes à perda definitiva do saber acumulado.
Interroga-se sobre a compatibilidade do sistema familiar africano com as necessidades
econó micas modernas, dado que sob a aparência de solidariedade, se esconderia, de um lado,
um sistema de esbanjamento que impede a acumulaçã o e os investimentos; e do outro,
alimentar-se-ia um sistema de parasitismo no qual boa parte dos membros da família vive sobre
os ombros dos poucos que trabalham.
Todavia, na esteira de Eboussi Boulaga 39, podemos pensar a tradiçã o como uma utopia
crítica. Isto é, os aspectos acima mencionados relativos à s fraquezas da tradiçã o têm que ser
tomados a sério. Mas, por outro lado, temos que pensar que alguns aspectos aporéticos da vida
política e social moçambicana de hoje deixam-se interpelar por aquilo que para o sentido
comum (que recordo deve constituir o ponto de partida de toda e qualquer reflexã o científica)
constituem o espírito da tradiçã o.
O primeiro elemento é a chamada solidariedade africana. Os factos de hoje desmentem a
famosa solidariedade africana e fazem dela um mito. O nosso país tem uma elite econó mica cada
vez mais importante, no momento mesmo onde o nú mero de miserá veis progride. Mesmo nos
momentos dramá ticos, como foi o caso das cheias, nã o vimos da parte dos que têm mais meios
nenhum sinal de solidariedade. Os nossos ricos nã o só nã o sã o solidá rios, mas nó s nã o vimos
emergir nem mecenas nem evergetas dedicados a participar na ajuda do bem estar da maioria.
Apesar destes factos, nó s continuamos a pensar que o homem africano é solidá rio.
Se pensarmos no espírito da tradiçã o tentando mobilizar os aspectos do passado que nos
podem ajudar na nossa aventura em direcçã o ao futuro (Paul Ricoeur), podemos inferir que a
solidariedade deve ser pensada como um dever ser. Insisto: trata-se de mobilizar o espírito da
tradiçã o, o que aplicado a este caso, quer dizer as formas que essa solidariedade deve tomar no
quadro da vida moderna. Por conseguinte, uma defesa de um contrato social renovado que se
materializa sob a forma de impostos, por exemplo, pode apelar à s teorias clá ssicas do contrato,
desde os sofistas até John Ralws, passando por Hobbes, Rousseau e Locke. Mas pode ser
postulado a partir do espírito das tradiçõ es africanas.
Um outro elemento que me parece fundamental é o domínio da justiça. A iconografia
envolta da justiça apresenta-nos muitas vezes a justiça configurada numa mulher com uma
38
Ainda por uma Filosofia da História para a educação da Humanidade. São Paulo: Ed. Universitárias, 1974:
111.
39
La Crise du muntu. Paris: Présence Africaine, 1977: 45 e 123.
CAPITULO II
espada na mã o. Mas a verdadeira essência da justiça, que significa tornar possível a relaçã o
social e a vida dos indivíduos em sociedade, estaria melhor refigurada na imagem de uma
costureira que pega em linhas dispersas e diferentes e cose-as a fim de fazer um todo. Quando
pensamos numa sociedade como a nossa, depois dos conflitos que conheceu, quando prestamos
atençã o ao racismo, ao tribalismo, à s organizaçõ es dos amigos do Maputo, de Zambézia, Sofala
etc.; quando pensamos ao conflito dentro mesmo da Igreja Cató lica entre Ndaus e Senas, no
tribalismo e no racismos crescentes, o que precisamos é do trabalho paciente e atento de uma
costureira que tece, mas fortificando as partes que cose de maneira que o pequeno incidente nã o
rasgue o tecido. Isto significa que é necessá rio todo o trabalho de carácter ético, mas que nã o
pode prescindir de uma redistribuiçã o de bens materiais.
Ora, a justiça moderna decide cortando, separando, dividindo como um leviatã, de
espada na mã o. Axiologicamente, o espírito da justiça tradicional é muito mais pró ximo da
costureira. Os estudos da antropologia confirmam (Norbert Roland40) que muitos conflitos
acabavam (mesmo depois de guerras sangrentas) em casamentos entre vencedores e vencidos
ou na incorporaçã o dos vencidos nos vencedores (Império de Gaza).
O ú ltimo aspecto a relevar para pensar e propor um modelo político é uma certa aversã o
de certas culturas africanas aos sistemas centrais de poder (Pierre Clastres, 1974). O exemplo
disto entre nó s podia ser a histó ria particular dos chopes.
A filosofia pode ajudar a tomar consciência da necessidade de uma introspecçã o crítica
sobre o nosso «eu-histó rico», como ponto de partida para um debate de ideias. No que diz
respeito à histó ria recente, em vinte e cinco anos passá mos do colonialismo ao marxismo e deste
para a «democracia liberal». A filosofia, antes de lançar-se num discurso sobre o futuro, deveria
interrogar-se sobre a natureza do colonialismo, das condiçõ es histó ricas, políticas e sociais que
permitiram a sua emergência. Da mesma maneira, temos que nos interrogar quanto à s razõ es da
escolha do marxismo, sobretudo quando sinais da sua decadência eram visíveis; quanto à s
razõ es do fracasso do nã o alinhamento, dos sistemas alternativos como o socialismo Ujaama;
quanto à s razõ es endó genas da inviabilizaçã o dos Estados Unidos de Á frica prospectada por
Nkrumah; quanto à inviabilidade de uma revisã o das fronteiras coloniais para criar espaços
culturalmente homogéneos (C.A.Diop41) ou economicamente complementares (Mamadou
Touré 42).
A filosofia deve também interrogar-se sobre a natureza filosó fica do liberalismo como foi
pensado por Jeremy Bentham (1748-1832), John Stuart Mill (1806-1873), John Locke (1632-
1704); as metamorfoses histó ricas que esta doutrina político-social sofreu no curso da histó ria,
as diferentes faces que ele tem no mundo de hoje, a maneira como tenta reconciliar o imperativo
incondicional da liberdade com a necessidade de um pacto social para que a vida em sociedade
seja possível. Temos que nos interrogar quanto à relaçã o entre o liberalismo e a existência do
Estado (o nosso é obrigado a esvaziar-se das suas funçõ es essenciais), recordando que os pais da
economia política como Adam Smith como os teó ricos que fazem mais referência à filosofia
(John Locke), consideram o Estado uma instituiçã o indispensá vel para a garantia das liberdades
dos indivíduos. Isto tem que nos levar a uma interrogaçã o quanto à relaçã o entre o liberalismo
clá ssico e o neo-liberalismo.
Por outro lado, é necessá rio interrogar a democracia na relaçã o do seu espírito e das
instituiçõ es que dã o ou podem dar corpo aos seus ideais. A filosofia deve poder demonstrar que
se o espírito é uno, as formas que a democracia toma nos diferentes países do mundo sã o
mú ltiplos e dependem de uma aculturaçã o das ideias democrá ticas à s diferentes maneiras com
as quais os povos entendem e interpretam a sua vida social. Por consequência, no respeito
mesmo da democracia, nó s temos o dever de tomar a sério a especificidade cultural que nó s
somos e representamos e inventar um modelo institucional que se inspire nos substractos
culturais das populaçõ es.
40
Antropologie juridique. Paris: Seuil, 1975.
41
Nation negre et culture. Paris: Présence Africaine, 1979.
42
«Les étudiants africains parlent». Revue Présence Africaine. Paris, 1953.
ii. Política e ética
43
J.Freund, Essence du politique. Paris: Sirewy, 1965.
CAPITULO II
para reflectir sobre o devir ideal da humanidade (no nosso caso de Moçambique). Contudo, ela
nã o seria viá vel. Seria necessá rio primeiro trabalhar para conhecer o mundo de uma maneira
positiva, e só depois, se restasse tempo, recorrer à filosofia. É ó bvio que nã o restaria nenhum
tempo.
Isto explica o nascimento de dois discípulos que têm um carácter heurístico: a ciência
política e a sociologia política. Mais do que concorrentes, estas duas disciplinas sã o, de facto,
uma complemento necessá rio à filosofia. A ciência e a sociologia políticas tiveram
historicamente a ambiçã o de analisar os fenó menos políticos nos caracteres específicos com que
se revestiam numa dada época e, a partir daí, identificar as constantes, até mesmo as leis. Assim,
elas observaram os fenó menos como a formaçã o e o funcionamento dos partidos políticos, o
recrutamento da classe política, as determinantes das preferências eleitorais, as relaçõ es entre
as formas de poder e o desenvolvimento econó mico, consideraçõ es longínquas da tomada de
posiçõ es gerais sobre os direitos do homem, a liberdade de pensamento ou a natureza da
democracia.
Os efeitos secundá rios puseram sérios problemas à filosofia política. Da mesma maneira
que a etnologia, observando os costumes de povos diferentes, anunciou o relativismo cultural, a
ciência e a sociologia políticas invalidaram implicitamente a filosofia política, na sua vontade de
descobrir, como fazia Aristó teles, as condiçõ es através das quais um governo poderia tornar-se
um bom governo.
Enquanto, tradicionalmente, a filosofia tinha como missã o corrigir ou, pelo menos,
controlar as paixõ es humanas, os estudos empíricos nã o cessam de denunciar uma tal ilusã o. A
experiência é erigida à dimensã o de prova e a histó ria conquista a dimensã o de uma religiã o
revelada. Ao mesmo tempo, essas ciências tornam-se cegas ao passado e o futuro resume-se a
uma simples extrapolaçã o das tendências constantes.
Todavia, nã o se pode analisar o funcionamento das sociedades unicamente à luz das
ciências políticas e da sociologia das organizaçõ es, a nã o ser que se esteja disposto a ignorar o
reconhecimento do bem e do mal que foi sempre possível subverter, mas nã o esquecer. Por
outro lado, a sociedade e o espaço político nã o sã o sempre idênticos e demonstrar isso era uma
das incumbências da filosofia.
A maior dificuldade da filosofia política reside no facto de ela exprimir nã o só uma acçã o
de conhecimento puro, mas também uma vontade de tornar inteligível o real ao serviço do seu
objectivo pró prio, que é o desenvolvimento do pensamento. A prá tica filosó fica nã o é neutra,
mas tende para uma certa sabedoria. Certo que o soció logo ou o politó logo têm as suas ideias
sobre o estado do mundo, nã o podemos negar que os livros de Carlos Serra ou os artigos de
Elísio Macamo tenham uma visã o de Moçambique sobre o que é aceitá vel e sobre o que nã o é,
mas as suas aná lises, descritivas ou explicativas, se querem neutras. Uma tal neutralidade é
impensá vel nos outros discursos. O critério de juízo, no nosso caso, é o caminho em direcçã o à
liberdade da qual emerge, em primeiro lugar, a africanidade «moderna» e, em segundo lugar, o
pensamento político africano e depois a filosofia africana.
Um lugar comum reza que o lugar da política é a polis, a cidade. Mas quando se diz cidade
nã o se deve entender a dimensã o geográ fica, os prédios, os escritó rios, as embaixadas, pois
eliminar-se-iam imediatamente muitas partes e muitas pessoas cuja vida nã o se desenrola
naquilo que tradicionalmente se chama cidade. Os habitantes das zonas suburbanas e do campo
nã o seriam contemplados numa tal definiçã o. A política tem a ver com o espaço onde as pessoas
vivem, com o domínio pú blico, o lugar onde os cidadã os se encontram para deliberar. Isto pode
ser nos prédios do Maputo, na chique avenida Keneth Kaunda, no parlamento exposto ao
barulho da parte baixa da avenida 24 de Julho, mas também pode ser numa palhota, debaixo de
uma á rvore, etc. O essencial nã o é o lugar geográ fico, mas o espaço simbó lico e de significaçã o.
Isto quer dizer que o conteú do da deliberaçã o é de longe mais importante que o lugar onde essa
deliberaçã o se realiza. Mas se essencial é o conteú do, sobre o que é que os cidadã os deliberarã o?
O debate pú blico é caracterizado por duas coisas essenciais: primeiro, a organizaçã o
desse debate e a maneira de conclui-lo com um acto de poder, segundo, a gestã o da cidade e os
objectivos que lhe foram confiados. A organizaçã o e a maneira como os cidadã os podem
participar no debate pú blico é já, em si, um acto político. Por isso, a capacidade das normas de
traduzirem a compreensã o das pessoas, de problemas, a criaçã o de mecanismos jurídicos
susceptíveis de traduzirem a sensibilidade das pessoas e a sua futura participaçã o nos debates
políticos constitui o primeiro acto político do qual vã o depender os restantes.
Por outro lado, uma «cidade» fixa objectivos, que correspondem à sua maneira específica
de se perceber como comunidade, o que corresponde (ou deveria corresponder) aos valores que
se fixam previamente e aos objectivos que pretendem atingir, que nã o sã o iguais em todas as
comunidades. Na estrutura mesma do político, têm uma importâ ncia primordial a organizaçã o
do debate, os valores e os ideais sociais de uma determinada comunidade política.
À s questõ es tradicionais da democracia –como fazer para que o poder da maioria seja
acompanhado pelo respeito pelas minorias, como fazer com que a igualdade geral de opiniõ es no
debate pú blico nã o se transforme em desprezo pelo conhecimento –tem que se acrescentar uma
outra: como fazer com que as sociedades modernas nã o se transformem numa espécie de
«Jerusalém celeste» sobre as quais as sociedades «pré-modernas» têm que se moldar?
A modernidade introduziu a autonomia do campo político, o que quer dizer que ele nã o
pode ser governado do exterior. É necessá rio evitar que essa conquista se torne monopó lio de
certos estratos da humanidade em detrimento da outra parte que nã o teria possibilidades de
propor objectivos e modelos de sociedade que lhes sã o pró prios.
A filosofia política tem a funçã o de explicitar as regras da democracia e a definiçã o da
organizaçã o do político, quando o regime é ameaçado do interior ou do exterior, e de salvá -la
contra quem a coloca em perigo.
A explicitaçã o da democracia nã o se faz a partir da fabricaçã o de conceitos abstractos, da
deduçã o ló gica e racional de ideias. Ela tem que ver com a constituiçã o de um espaço político,
que só pode ser feito a partir das diferentes compreensõ es culturais dos grupos e dos povos. As
sociedades com mais experiência democrá tica podem partilhar connosco as suas experiências,
mas nã o podem servir de modelo porque as modalidades da racionalidade ocidental sã o
historicamente situadas e nã o susceptíveis de ser levianamente transferidos para outras
latitudes. Aliá s, isso levaria a um genocídio cultural de toda a dimensã o política de que todas as
culturas sã o portadoras. Ocorre criar as modalidades de participaçã o política a partir do
substracto político e cultural dos povos e dos grupos.
Depois da escravatura em que todos os princípios humanistas e de bom senso foram
violados, passou-se ao colonialismo e, logo a seguir, à s guerras ditas civis, mas de facto pilotadas
do exterior. Hoje estamos num quadro có mico: cooperaçõ es, embaixadas, organizaçõ es
econó micas internacionais sem nenhuma legitimidade política apresentam-se, em nome da
democracia, como defensores e garantes dessa democracia. Assim, a legitimidade política dos
actores políticos nã o tem nada a ver com os povos, nem com os seus valores, mas com o
beneplácito da comunidade internacional. A filosofia deve relevar a ameaça à nossa soberania
que provém dessas instituiçõ es.
A filosofia deve opor-se à s ameaças internas representadas pela tentaçã o de certas
pessoas e grupos em reduzir a política a um campo de defesa de interesses individuais e
partidá rios, em detrimento do interesse geral. Por fim, contra o economicismo dominante, a
filosofia política deve reafirmar o primado do político sobre o econó mico, da deliberaçã o
popular sobre os índices das bolsas de valor.
O simpó sio da ACAFIL de 1999 pretendia antecipar a natureza dos problemas que iriam
supostamente nortear as eleiçõ es que se estavam para realizar, e subordinava a sua previsã o aos
principais resultados e ao desempenho dos eleitos na legislatura que estava para terminar.
Julgar-se-iam os candidatos, o governo que chagava ao termo do seu mandato e as suas
promessas eleitorais em função do seu desempenho na primeira legislatura da segunda
Repú blica. Em consequência, ocorreria analisar o que tinha sido essa legislatura em funçã o das
promessas precedentes, das expectativas dos eleitores no momento das eleiçõ es, do grau da sua
realizaçã o pelo poder, mas ainda mais importante, da capacidade dos eleitos de acompanhar as
metamorfoses sociais, de interpretar e defender adequadamente os interesses dos eleitores.
O que é que as populaçõ es esperavam do governo durante o período de 1995 a 1999?
Foram essas expectativas satisfeitas? Uma análise filosó fica sobre o «objecto» Moçambique tem,
necessariamente, que partir das aná lises situacionais e locais e estas sã o feitas pelos cientistas
da política. O olhar filosó fico nã o se pode limitar a elas, pois, como vimos antes, a filosofia nã o se
pode contentar em dizer as coisas como estã o, mas tem a pretensã o de dizer como é que as
coisas deveriam ser ou estar.
CAPITULO II
de tribo, de regiã o, etc. Estar ao serviço do nosso povo era um valor, participar na construçã o de
Moçambique através do trabalho e dedicaçã o era um valor. Estes valores constituíam o essencial
daquilo que era ou devia ser o Estado. Esta era a maneira através da qual o Estado estava (ou
pretendia estar) ao serviço das populaçõ es.
Mas apesar das intençõ es excelentes, esse Estado era habitado por contradiçõ es
intrínsecas que acabaram anulando a grandeza dos objectivos precedentemente anunciados. A
dinâ mica participativa estava subordinada a uma ideologia unilateral de uma ú nica família
política, que se arrogava deter a ú nica visã o justa para a construçã o do país. Essa ideologia
política é compreensível no quadro da divisã o do mundo que entã o se vivia, apesar de a Frelimo
se ter visto forçada a aderir a um dos lados sem estar necessariamente convencida do bem
fundado da sua «opçã o» ideoló gica. Aliá s, esta tese encontra uma confirmaçã o na adesã o sem
reservas da maioria da classe política de esquerda à s teses e à s posiçõ es ultra-liberais que
repentinamente irromperam na vida social moçambicana durante o início da segunda Repú blica.
De um dia para o outro as coisas mudaram. Era como se, de repente e sem aviso prévio,
nos encontrá ssemos diante de uma passagem de nível sem guarda. Nesta mudança que
corresponde à mudança das relaçõ es de força na política mundial, a sociedade moçambicana viu-
se, de um dia para o outro, radicalmente mudada: de uma economia planificada para uma
economia selvagem. Nã o digo liberal, digo selvagem, porque o liberalismo tem regras. Por
exemplo, se o pressuposto é a livre iniciativa dos indivíduos e a possibilidade de concorrerem
uns com os outros (Bentham), a situaçã o moçambicana nã o se prestava a isso, quer porque as
populaçõ es nã o tinham formaçã o e informaçã o, quer porque nã o tinham os meios financeiros
necessá rios para entrarem neste tipo de economia. Abandonar as populaçõ es de um momento
para o outro ao volante de um Porsche que vai a duzentos quilô metros à hora sem lhes terem
previamente ensinado a conduzir, significa condená -los inevitavelmente ao desastre.
Todavia, esta nova política, como aliá s a precedente, tem que ser julgada sem
apriorismos nem romantismos de todo e qualquer tipo, mas à luz do paradigma libertá rio. Se ela
é capaz de incrementar o espaço de bem-estar para a maioria dos moçambicanos –os objectivos
morais do liberalismo como foi pensado pelos seus pais era trazer a maior felicidade para o
maior nú mero de indivíduos, o que corresponde ao conceito grego de eudemonia –entã o temos
razã o de defendê-la. Se nã o, ela tem que ser severamente criticada e combatida.
Ora, a mudança política e econó mica comportou uma mudança nos métodos de
governaçã o e nas prestaçõ es dos poderes pú blicos. O Estado da primeira Repú blica pecava pela
sua pan-presença. Ele decidia pela educaçã o, pela saú de, pela moral pú blica e individual, pela
justiça, pelos valores individuais e colectivos. E para isso combatia os alicerces individuais e
culturais dos indivíduos e dos grupos.
A segunda Repú blica tomou uma postura inversa. Ela peca pela sua ausência. As
populaçõ es nã o sentem no Estado –desde as instancias mais elevadas até ao servente de uma
escola ou dum hospital –«uma pessoa jurídica» que está presente e ao seu serviço. O Estado ficou
«dó lar-crá tico». Tudo se faz em funçã o do rendimento, do ganho, das mordomias. O funcioná rio
do Estado transformou-se de servidor pú blico em servidor de si pró prio, instrumentalizando o
privilégio que o seu lugar lhe concede. O funcioná rio nã o serve: serve-se. Esta situaçã o está em
discrepâ ncia com a ideia que as populaçõ es fazem de um funcioná rio. A ideia que as pessoas têm
de um professor é de um homem que é uma referência para as populaçõ es, nã o só pelo seu
saber, mas também pela sua conduta moral. Ver um professor a vender notas e provas de exame
é simplesmente escandaloso. Ver o hospital transformado num comércio ia contra a ideia que as
populaçõ es tinham da deontologia médica, mesmo sem conhecerem o juramento de Hipó crates.
Apesar do famoso crescimento econó mico e dos índices do PNB, a situaçã o das
populaçõ es piora, a qualidade do ensino piora. Aos jovens dá-se a consumir uma cultura feita de
telenovelas e de slogans tipo «2M nossa tradiçã o, nossa cultura», ou entã o «a nossa cerveja, a
nossa maneira de ser e de estar». O tratamento nos hospitais depende de dó lares, a boa escola
custa caro, todas as coisas a que as populaçõ es de baixo nã o se podem permitir. Isto põ e um
problema enorme de justiça, a nível distributivo e a nível de sansã o jurídica.
Um dos primeiros sinais da ausência do Estado foi dado quando as populaçõ es
começaram a fazer justiça com as pró prias mã os. Muitas vezes queimava-se um miú do que
roubara para comer, quando funcioná rios do Estado e outros desviavam coisas muito mais
consistentes –esvaziaram literalmente os cofres do Banco Austral, venderam bens essenciais do
Estado a estrangeiros ou que têm 500 mil dó lares para comprar apartamentos – e eram
indemnes a qualquer sançã o. Esta violência social, porque é disso que se trata, tem que ser
analisada em todos os seus parâ metros. As populaçõ es começaram a ser violentas. Podemos
dizer que os miú dos da rua sã o violentos, há assassinatos na cidade, assaltos à mã o armada que
culminaram em violência-espectá culo, com a morte de Carlos Cardoso e de Siba-Siba Macuácua.
Todavia, toda esta violência pode ser conduzida à «dó lar-cracia»: a instauraçã o do dó lar em
valor supremo da nossa sociedade. O fim, «dó lar», justifica os meios.
Entã o, ao mesmo tempo que o nú mero e a qualidade de carros e casas de luxo aumenta
na cidade, as viagens para compras na RSA, na Suazilâ ndia e mesmo Portugal aumentam, que se
multiplicam as viagens para Dubai, para bronzear-se nos Estoril ou para o Carnaval no Rio, o
nú mero de pobres, de miserá veis nã o cessa de aumentar. O nú mero de doentes que morrem de
malá ria devido à falta de saneamento de meio aumenta.
Assim, a segunda Repú blica muito depressa oscilou da democracia à «dó lar-cracia». Com
a passagem da primeira à segunda Repú blica, deitou-se fora a á gua e o bebé. Valores verdadeiros
para qualquer sociedade foram negligenciados, deliberadamente omitidos ou mesmo invertidos.
Durante o período da primeira Repú blica nó s cantá mos que a linha de ordem do nosso
povo era a unidade, trabalho e a vigilâ ncia. Podemos perguntar se estes valores nã o têm todo o
seu lugar no Moçambique de hoje. Em que é que a unidade pode ser identificada com um regime
político? a unidade do nosso povo, contra o tribalismo que está em voga, o regionalismo e o
racismo nã o constitui um valor essencial para o Moçambique de hoje? O trabalho, o facto de
contar com as pró prias forças, num mundo de assistidos e objeto das ajudas e caridade
internacional nã o é um valor a cultivar? A vigilâ ncia contra as divisõ es, com o perigo de recair no
colonialismo, na dominaçã o nã o é um valor a cultivar e a defender?
De facto, a falta desta vigilâ ncia condena a maior parte da populaçã o, os mais fracos, a
processos que recordam muito o que era a época colonial, mas sobretudo distancia o Estado da
sociedade. Vale a pena recordar o debate português em volta da Sociedade de Geografia 44 no fim
do século XIX, depois do ultimato que a Inglaterra impô s a Portugal. Homens como Eça de
Queiró s pensavam que Portugal deveria desinteressar-se dos «selvagens» que viviam nas
coló nias. Aliá s, Portugal tinha-se mostrado mau colonizador e isso só lhe tinha valido frustraçõ es
e humilhaçõ es, desde a perda do Congo a favor dos belgas até ao ultimato britâ nico.
Contra estas teses, jovens como Antó nio Ennes defendiam que era necessá rio ter
coló nias rentá veis como moeda de troca para melhor integrar a Europa. Para isso, Portugal teria
primeiro que pacificar as suas terras, controla-las com militares e com a administraçã o, e assim
poderia dizer aos parceiros: tenho terra para cultivar, militares para defende-la e, sobretudo,
pretos para trabalhá -la. Era o início do trabalho forçado que acabou substituindo a recém extinta
escravatura pelo chibalo que faz da colonizaçã o portuguesa uma das mais cruéis e os povos de
Moçambique dos mais sofredores.
Quando vejo certas prá ticas a que se prestam certas elites moçambicanas, como acordos
de parceria com empresas ou indivíduos sem escrú pulos, acordos que nã o têm em conta os
interesses das populaçõ es, pergunto-me se o discurso é diferente do discurso de Antó nio Ennes.
Mas, sobretudo, o risco maior é condenar as populaçõ es mais fracas do nosso povo ao novo
chibalo, evidentemente com a nossa cumplicidade.
Aliá s, nã o é a primeira vez: todo o sistema de dominaçã o do nosso povo contou sempre
com a cumplicidade de grupos entre nó s. A escravatura foi facilitada por certas prá ticas internas
pela cobiça e sobretudo pela falta do sentido histó rico, pois quando o momento chegou
vendedores e vendidos tornaram-se todos escravos e colonizados.
A falta de sentido histó rico seria pensar que nó s, pequenos grupos, constituiríamos as
excepçõ es de um processo neocolonial no qual somos ou podemos ser cú mplices. Se a questã o é
dinheiro, entã o somos mais baratos que os nossos predecessores. Temos que lembrar que uma
espingarda no século passado era mais difícil de construir que um Mercedes hoje. Se temos que
nos vender para obter um carro, temos que pensar nã o só na traiçã o histó rica para com os
nossos e a causa negra de uma maneira geral, mas também no preço dessa mesma traiçã o.
44
Andrea Bignasca, La singolarità terrible del colonialismo portoghese: il dibattito dell Società di Geografia.
Roma: Armando, 1971: 71-82.
CAPITULO II
Podemos considerar que a Frelimo traiu a sua causa? Aquela mesma Frelimo que era
constituída por rapazes e raparigas que estavam dispostos a morrer todos os dias durante dez
anos em nome da liberdade do nosso povo? O que é que aconteceu?
Aos vencidos nã o se pede opiniã o. Nã o foi, em primeiro lugar, a Frelimo que mudou. Há
um facto que ninguém quer reconhecer, mas que é fundamental para entender o Moçambique de
hoje e as circunstâ ncias das nossas vidas e acçõ es. Se raciocinarmos em termos libertá rios
podemos afirmar de uma maneira apodíctica que face à intransigência e ao anacronismo
histó rico do fascismo português, nó s, colonizados e em busca da liberdade-independência,
fizemos uma guerra justa e ganhá mos. A guerra nã o foi ganha militarmente, mas o terreno de
batalha nã o era esse. O terreno de batalha era político e foi um acidente histó rico de
responsabilidade portuguesa que obrigou Moçambique e as outras coló nias portuguesas –
fossem a excepçã o no contexto africano – a pegar em armas. Mas com o 25 de Abril essa
anomalia histó rica foi corrigida e abriram-se as portas para as independências políticas das
entã o coló nias portuguesas.
Na Dimensão Moçambicana da consciência histórica defendi que a Frelimo nã o escolheu o
comunismo: foi-lhe imposto por um processo histó rico-político. Agora, tristemente, tenho que
defender que o liberalismo selvagem em curso nã o é também resultado de uma escolha, mas da
derrota na segunda guerra. De facto, os objectivos libertá rios da primeira guerra foram
derrotados na segunda guerra.
O período que vai de 1945 até 1989, como já se escreveu enormemente, foi dominado
pelo conflito ideoló gico que opô s o bloco chamado de esquerda ao bloco de direita. Nó s
entramos nesse conflito pela janela da nossa vontade de nos libertarmos do colonialismo. A
prova da nossa participaçã o periférica está no facto de termos parado com a guerra no momento
mesmo em que os generais R. Reagan e M. Gorbatchov assinaram o armistício do fim das
hostilidades. A guerra terminou com a vitó ria do bloco da direita. Dado que nó s está vamos no
bloco da esquerda, perdemos. Temos que ter a coragem de dizer que se ganhamos a guerra de
libertaçã o (nessa luta nó s está vamos no sentido da histó ria, contra o anacronismo histó rico do
colonialismo português), perdemos a segunda guerra.
O fim de todas as guerras é concluído com «actos cívicos» nos quais as partes se
encontram, com aparente cortesia e mesmo cordialidade, bem vestidas e engravatadas para o
processo de diá logo. Na realidade, trata-se de um encontro humanamente duro e humilhante
para os vencidos, durante o qual os vencedores ditam as suas condiçõ es.
No panorama geral do conflito da guerra fria, a principal discussã o do armistício fez-se
em Helsínquia e teve como protagonistas principais Reagan e Gorbatchov. Assinado o
documento principal, deixou-se que a resoluçã o de detalhes ficasse a carto dos burocratas ou
dos oficiais subalternos, mas sempre no espírito de carta fundamental. Isto explica que os
acordos de paz moçambicanos tenham sido assinados numa insignificante comunidade de Roma
sem tradiçã o nem prévia experiência política.
Se a Renamo tinha sido um bom pequeno batalhã o no interior da guerra fria, nó s
sabemos pela histó ria que muitos generais e exércitos, indispensá veis durante os conflitos,
tornam-se problemá ticos no fim destes mesmo conflitos. Basta pensar na sorte ambivalente que
conheceram os soldados da armada invencível de Carlos V e de Isabel, a Cató lica: heró is durante
a guerra contra os «mouros» e peso e perigo para a monarquia logo depois da guerra. Aliá s,
alguns historiadores45 sugerem mesmo que Isabel, a Cató lica, teria dado uma frota Marítima a
Cristó vã o Colombo, nã o obstante a opiniã o contrá ria dos sá bios de Salamanca, como forma de se
libertar de militares incó modos cuja chegada a Índia ou regresso a Espanha estavam fora de
quaisquer previsõ es científicas sérias.
Os vencedores da guerra decidiram que em Moçambique, a Frelimo renovada –nome qua
nunca tomou, mas devia ter emprestado da Unita renovada –fosse a melhor força política para
governar Moçambique. Com efeito, a natureza do capitalismo é nã o ter tempo. Dado que a
estrutura administrativa de Moçambique tinha sido escangalhada e recomposta por esta força
política, para o funcionamento eficaz e imediato de um liberalismo que em termos de eficiência e
comprimento de prazos e datas é mais rigoroso que os sistemas de esquerda, o melhor governo
45
Pirlo Damasco e Stefania Graziosi, Carlo V e Isabella, controversia con I saggi di Salamanca. Torino: Einaudi,
1975.
seria o da Frelimo. Dava-se a Frelimo o mandato de governar com ordens precisas: utilizar as
pró prias estruturas para escangalhar o múnus socialista e colectivista que ela mesmo tinha
criado, introduzir o capitalismo contra o qual tinha lutado –sistema que tinha sido
historicamente responsá vel pela submissã o dos moçambicanos.
Aceitaria a Frelimo destruir o que ela mesma tinha construído? Aceitaria dizer à s
pessoas que tinha educado que o homem novo agora era o capitalista, que a palavra de ordem
era acumulaçã o individual, era a exploraçã o do mais fraco? Aceitaria a Frelimo dizer que, afinal
de contas, o roubo e a desonestidade eram valores? Aceitaria a Frelimo transformar as funçõ es
estatais de serviços para o maior nú mero em lugares de apropriaçã o e de acumulaçã o? Aceitaria
a Frelimo destruir a sua lealdade com os camponeses, com os combatentes da independência?
A bola parecia estar no campo da Frelimo: ou ela queria permanecer coerente consigo
pró pria e, entã o, reconhecia a sua derrota e retirava-se, ou entã o ela se metamorfoseava e
tornava-se uma «Frelimo renovada», atacando o poder a todo o custo. Existe, teoricamente, a
possibilidade de a Frelimo ter aceita a sua nova condiçã o como forma de resistir, na medida do
possível, aos ditames dos vencedores a fim de continuar a defender os seus valores originais.
Entã o a Renamo estava condenada a ser oposiçã o? A nova missã o do pequeno batalhã o
era ser uma pistola apontada à têmpera da nova Frelimo, governante. Se a Frelimo se
comportasse bem, a Renamo continuaria na oposiçã o quer ela quisesse ou nã o. Se a Frelimo se
comportasse mal, a oposiçã o premiria o gatilho e a Frelimo saltaria. Só que a Frelimo mostrou-se
mais liberal do que era previsível. Isto leva-me a pensar que muitos socialistas da primeira
Repú blica nã o o eram por convicçã o, mas por imposiçã o ou por oportunismo político.
A partir do momento em que a Frelimo jogava bem o jogo liberal, a Renamo
transformava-se num espantalho que só serve para afugentar os pá ssaros. Mas as duas questõ es
de fundo sã o: primeiro, a Frelimo ultraliberalizou-se estrategicamente como forma de manter o
poder (e servir os interesses moçambicanos) ou como estratégia de enriquecimento de um certo
nú mero de indivíduos? Se foi uma estratégia para conservar o poder, que fim tem o novo poder e
governo da Frelimo? Segundo: a comunidade internacional, virando as costas à Renamo e
seguindo a estratégia da Frelimo, levanta o problema do futuro da democracia e da sua
legitimaçã o em Moçambique.
A questã o da legitimaçã o
A participaçã o nas eleiçõ es de 1994, mais do que legitimar as novas forças
políticas em presença e a nova governaçã o nacional, era um assentimento que ia mais
em direcçã o da necessidade de terminar com a guerra e todas as consequências que ela
comportou em termos de acentuaçã o da pobreza, da fome, da imigraçã o das populaçõ es
do campo para a cidade, etc. mas, de nenhuma maneira, uma legitimaçã o política. Com
efeito, ninguém pode legitimar o que nã o conhece, e nenhuma legitimidade é possível
(legítima) se ela nã o parte e nã o se alimenta do substracto mental, cultural e filosó fico
do povo que deve supostamente governar e representar.
Ora, as estatísticas mostram que mais de noventa por cento dos cidadã os
moçambicanos nã o possuem os apetrechos intelectuais necessá rios para participarem, e
por conseguinte, legitimarem uma democracia, cujos paradigmas respondem a
pressupostos culturais e histó ricos ocidentais.
Por outro lado, todos os trabalhos de histó ria e de antropologia levados a cabo
sobre as diferentes culturas moçambicanas (cfr. Documentos de antropologia
moçambicana, Lisboa, 1996) mostram que a participaçã o popular na coisa pú bica e os
diferentes sistemas de governaçã o das culturas nacionais, diferem em toda a medida do
sistema constitutivo e da organizaçã o dos poderes pú blicos actuais.
Todavia, e nã o obstante as afirmaçõ es precedentes, as eleiçõ es políticas de 1994
marcaram o início de uma nova legitimidade política, nã o fundada sobre a tradiçã o ou
sobre a força das armas, mas pelo princípio da soberania popular. A nossa questã o será
justamente de nos interrogarmos quanto ao estatuto desta nova legitimaçã o.
CAPITULO II
49
Citado por Ngoenha, idem: 17.
CAPITULO II
e a criaçã o da OUA eram, de facto, uma vitó ria das antigas potências coloniais. E,
paradoxalmente, eram a ONU e a OUA a legitimarem a Frelimo como movimento de libertaçã o de
Moçambique, e mais tarde, como representante do povo moçambicano.
Se as independências se devem inscrever no quadro geopolítico colonial, elas nã o se
podem inspirar culturalmente nem nas lutas autó ctones dos diferentes povos de Moçambique e
das suas evoluçõ es e debates políticos, nem sequer se podem inspirar na dinâmica histó rica do
Pan-africanismo. A acçã o de Eduardo Mondlane e da Frelimo deve geopolítica e juridicamente ao
trabalho de centralizaçã o levado a cabo pelas autoridades coloniais portuguesas e, por outro
lado, a partir do Partido transformado em Estado depois da independência, criar uma Naçã o à
imagem e semelhança da Europa. Aqui surgem duas dificuldades:
a) Os portugueses para centralizarem a governaçã o dos povos de Moçambique, nã o só
nã o legitimavam o seu poder a partir dos povos de Moçambique, mas violavam
sistematicamente os seus direitos mais elementares. Se a Frelimo-Estado de Moçambique seguia
esta governabilidade tinha ou que dialogar e fazer dialogar os diferentes povos e culturas
nacionais, o que era tecnicamente impossível, tendo em conta sobretudo o fator tempo e os
imperativos regionais; ou entã o, com uma legitimaçã o proveniente do exterior, impor aos povos
de Moçambique culturas políticas estrangeiras. Mas, se assim fosse, em que medida a imposiçã o
da Frelimo seria na prá tica diferente da imposiçã o dos portugueses? Em que medida a
governaçã o da Frelimo seria menos colonialista em relaçã o à s prá ticas culturais dos diferentes
povos e culturas locais?
b) A histó ria social e política da Europa, que doravante servia de modelo, tinha visto
nascer o Estado a partir das Naçõ es. Ora, em que medida o Estado de Moçambique estaria à
altura de criar a Naçã o, tarefa primordial que lhe foi confiada pelo Partido?
A missã o histó rica que foi da Frelimo –criar uma naçã o moçambicana –partiu de
movimentos políticos, culturalmente circunscritos (Udenamo, Unamo e Manu), mas teve que se
forjar logo depois uma ideologia unitarista. Depois da independência, o postulado de unidade
nacional, que em si mesmo nã o é nem pode ser discutível, implicou também uma governaçã o a
partir de cima. O primeiro paradoxo era que o governo legitimava o seu poder no povo, mas
governava contra os pressupostos jurídicos das culturas nacionais. O segundo paradoxo era que
a legitimaçã o teó rica e histó rica dos pressupostos políticos de governaçã o respondia a
pressupostos europeus: recordemo-nos que o marxismo é filho de um debate histó rico pró prio
da cultura ocidental.
Estes paradoxos e mesmo a desconsideraçã o das culturas nacionais no processo político
e de governaçã o foram, historicamente, o preço que tiveram de pagar as culturas nacionais pela
edificaçã o do Proto-Estado moçambicano.
A Naçã o democrá tica que se auto-proclamou em 1994 novo actor histó rico da vida
política e social moçambicana quer, como afirma a constituiçã o de 1990 e os acordos de 1992,
que: todos se reconhecem actores e sujeitos da história, ou seja, um partido único não poder ser o
dirigente da sociedade e do Estado50.
Por democracia se entende, portanto, um sistema de partidos. Ora, este sistema
tipicamente ocidental desde há dois séculos tem vindo a provar a sua funcionalidade. Contudo,
no contexto histó rico actual, caracterizado pelo fim do bipolarismo, muitos soció logos e
politó logo se interrogam quanto à pertinência da divisã o clá ssica da política em partidos e a
capacidade deste sistema de representar verdadeiras alternativas políticas e, sobretudo, de
representar os diferentes estratos da sociedade.
Mas a questã o mais interessante para nó s é que em nenhum país africano o sistema de
partidos como o proposto pela constituiçã o e pelos acordos de Roma parece estar à altura de
mobilizar o imaginá rio colectivo das populaçõ es. Das duas uma: ou o africano (e, portanto,
também o moçambicano) é geneticamente anti-democrá tico como sustentam alguns eugenistas
(Medeved Arison), ou entã o o sistema de partidos é, talvez neste momento, um mal necessá rio,
mas nã o corresponde ao substracto cultural dos nossos povos.
Nã o se trata de uma inadequaçã o dos africanos à democracia, mas do modelo Europeu
falsamente universal, que nã o se coaduna com as nossas culturas. Nã o sã o as culturas que se têm
de adaptar a todo o custo a modelos, que responderam ao génio pró prio de certos povos num
50
Citado por Ngoenha, idem: 21.
determinado momento da sua histó ria, mas os modelos que se têm de forjar a partir das
culturas. Isto significa que nó s temos de inventar um modelo de sociedade que nos seja pró prio,
um modelo que corresponde à s nossas culturas, à s nossas sensibilidades, um modelo capaz de
mobilizar o conjunto de moçambicanos a participarem nã o só nas eleiçõ es, mas na vida integral
da sociedade moçambicana.
Depois de uma entrevista que dei ao jornal Savana em Setembro de 1996, um deputado
disse que ele tentava levar os seus eleitores a interessarem-se e mesmo a controlarem a sua
actividade de deputado, mas em vã o: os «eleitores nã o conhecem as suas prerrogativas jurídicas
e políticas como eleitores».
Os deputados sã o, teoricamente, representantes dos interesses dos eleitores. Que tipo de
mandato, eleitores que ignoram as suas prerrogativas políticas e jurídicas, podem confiar a um
deputado? E se os deputados nã o têm um mandato claro dos seus eleitores o que é que eles
representam? O que é que os autoriza a falarem em nome dos seus eleitores?
Mas suponho que os eleitores decidem controlar, acompanhar, influenciar a execuçã o do
mandato de um deputado ou, mais profundamente, que eles queiram fazer presente a um
deputado que representa no parlamento as suas preocupaçõ es, que nã o sã o sempre iguais, mas
variam com o tempo e com as circunstâ ncias: de que mecanismos jurídicos e constitucionais
dispõ em? Que mecanismos estã o previstos pela lei que permitam que os eleitores interpelem os
seus representantes?
Se os parlamentares representam simplesmente as posiçõ es dos pró prios partidos, em
discrepâ ncia total com os interesses e a compreensã o das pessoas, estamos num sistema de
partidocracia.
Será que o sistema de representaçã o parlamentar é conforme o génio político e cultural
moçambicano? Será que os mecanismos de representaçã o tipicamente moçambicano sã o os
partidos? Os indivíduos, os grupos, as culturas e a sociedade exprimem as pró prias opiniõ es,
preocupaçõ es, posiçõ es através dos partidos, ou existem outros mecanismos, outras vias, outros
veículos de opiniã o e de tomada de posiçã o que sã o mais congénitos aos povos de Moçambique?
A democracia moçambicana e o seu sistema de representaçã o vã o ter que colocar o
problema dos pressupostos. Temos que centrar os nossos esforços sobre a condiçã o mesma da
democracia: a dimensã o só cio-cultural. A democracia vai exigir, como condiçã o preliminar, uma
acçã o concebida a partir das realidades autênticas das nossas comunidades autó ctones,
apreendidas a partir do interior.
Contudo, as eleiçõ es políticas de 1994 e a nova constituiçã o, fundando doravante a
legitimidade política sobre a soberania e a vontade dos moçambicanos, consagra
simbolicamente uma ruptura fundamental.
Para além do princípio de legitimidade política, é o fundamento mesmo da relaçã o social
que é posto em causa. Na era da naçã o democrá tica, a política substitui o princípio religioso ou
dinâ mico para unir os homens: ela reivindica o direito de instaurar o social. Doravante, todos os
homens no interior do espaço nacional sã o iguais em dignidade. Esta cidadania nã o é
simplesmente um atributo jurídico e político, no sentido estrito do termo. É também um meio
para adquirir um estatuto social: a condiçã o necessá ria – mesmo se concretamente nã o
suficiente –para que um indivíduo possa ser plenamente reconhecido como actor de vida
colectiva. Existem, no entanto, dois problemas fundamentais. Primeiro – o nascimento da naçã o
democrá tica foi precedida, e talvez mesmo condicionada, por uma outra naçã o que vive no seu
seio: a naçã o produtivista. Nã o é por acaso que a democracia foi precedida por uma adesã o à s
instituiçõ es econó micas internacionais como o FMI e BM, composta por indivíduos mais
preocupados em satisfazer os pró prios interesses que a satisfaçã o dos seus deveres cívicos –que
segundo Rousseau constitui o principal problema moral para aquilo a que ele chama o homem
social. A ló gica produtivista intimamente ligada à eficá cia da produçã o, tende a preceder os
valores propriamente políticos. A participaçã o na vida econó mica é a fonte essencial do estatuto
social. Assim, a dimensã o econó mica e social da vida colectiva impõ e-se em detrimento do
projecto político. Este facto enfraquece ulteriormente o nosso «proto-Estado Democrá tico» que
se vê obrigado a renunciar à s suas prerrogativas estatais (que lhe foram confiadas pelos
CAPITULO II
eleitores) para satisfazer as imposiçõ es anti-democrá ticas do FMI e do Banco Mundial51 que se
arrogam a prerrogativa de legitima o poder.
Como se isto nã o bastasse, os eleitores nã o têm mecanismos jurídicos legais previstos
pela constituiçã o que lhes permitam fazer-se ouvir ou simplesmente participar no debate
pú blico. Existe, por conseguinte, um outro problema jurídico, desta feita ligado à democracia
representativa.
A democracia representativa
A democracia representativa, em princípio, é uma democracia parlamentar –
sendo os parlamentares, como os senadores romanos, donde ele deriva, uma assembleia
de homens escolhidos pela sua sabedoria (sagacidade), cujas deliberaçõ es devem
supostamente desembuchar na melhor decisã o possível para a comunidade no seu
conjunto. Mas para que o parlamento seja democrá tico –existem parlamentos nã o
democrá ticos –deve respeitar três princípios fundamentais, que aliá s nã o encontraram a
sua teorizaçã o na antiguidade grega, mas nos filó sofos pertencentes à primeira idade do
individualismo liberal, isto é, John Locke para o primeiro princípio, Locke e Montesquieu
para o segundo, e Jean-Jacques Rousseau para o terceiro.
O primeiro destes princípios é o princípio da tolerâ ncia. Ela obriga o Estado a
assegurar sobre o seu solo a expressã o livre de crenças políticas, filosó ficas, religiosas,
na condiçã o de que estas nã o atentem contra a ordem pú blica.
O segundo é o princípio da separaçã o dos poderes. Ela estipula que o poder de
fazer leis (poder legislativo), o poder de fazê-las aplicar (poder executivo) e o poder de
punir as infracçõ es cometidas contra as leis (poder judiciá rio) nã o possam ser exercidas
pelos mesmos membros (ou pelos mesmos ó rgã os) da comunidade. Este princípio tem
por objectivo instaurar o Estado do direito, isto é proteger o cidadã o contra os abusos. E,
em particular, contra o uso arbitrá rio que os detentores da autoridade pú blica poderiam
ser tentados a fazer dela.
O terceiro é o princípio da justiça. Isto significa dizer que uma democracia digna
desse nome nã o se pode contentar em ser uma democracia formal, cega à s
desigualdades materiais entre os membros da sociedade, mas ela deve visar a sum
objectivo concreto: a justiça social. Podemo-nos perguntar: em que condiçõ es reina a
justiça social? Isto é uma questã o difícil. Em contrapartida, o que é claro é que a sua
realizaçã o supõ e, pelo menos, a criaçã o de mecanismos susceptíveis de impedir o
desenvolvimento de desigualdades demasiado grandes no seio da comunidade.
Estes três princípios têm, na histó ria, suscitado mitos debates. Poder-nos-iamos
limitar aos debates dos ú ltimos anos, relativos ao fim da guerra fria e à extensã o do
modelo democrá tico ao conjunto do planeta, com a consequente necessidade de
aculturar os aparatos administrativos e institucionais à s diferentes realidades culturais,
sem adulterar a dimensã o axioló gica da democracia.
O primeiro princípio invoca claramente a dimensã o da tolerâ ncia. Nos ú ltimos
anos tem-se discutido se este princípio se deve também aplicar aos intolerantes, a
aqueles que querem chegar ao poder para mudar as regras democrá ticas que
permitiram a sua ascensã o ao poder. Para ilustrar isto invoca-se muitas vezes o FIS da
Argélia. As duas ameaças a este princípio sã o representados pelo fundamentalismo
religioso que se faz político e pelo nacionalismo étnico.
Em Moçambique, estas espécies de fundamentalismo felizmente nã o existem.
Todavia, eu disse no início deste livro, a filosofia deveria ensinar os homens a serem
amis prudentes, mais precavidos, a anteciparem eventuais perigos e ameaças. O INDE
tinha preparado a introduçã o experimental do sistema bilíngue no ensino primá rio
utilizando um campeã o de três zonas correspondentes a línguas diferentes. Uma língua
51
Citado por Ngoenha, idem: 33.
do sul, uma do centro e um do norte. Porque é que, no ú ltimo momento, o INDE teve que
mudar? Porque na segunda cidade do país surgiram conflitos dentro da Igreja Cató lica
entre os falantes de Sena e de Ndau.
Juntamente a este perigo latente, existem as associaçõ es dos amigos de Maputo,
Gaza, Manica, Sofala, Niassa, Zambézia, etc. que representavam um tribalismo apenas
velado e o perigo da politizaçã o das etnias ou se quisermos da etnicizaçã o da política. O
que, aliá s, começa a ganhar forma na nossa democracia onde, desde o início da segunda
Repú blica, a Frelimo parece ter assegurada a maioria no sul e a Renamo no centro.
A nossa constituiçã o, inspirando-se na histó ria das democracias representativas,
separa claramente os poderes executivo do legislativo e este do judicial. Que
mecanismos temos para garantir a separaçã o de poderes e gerir eventuais conflitos
entre eles?
Dois tipos de conflitos têm perturbado de maneira recorrente a vida das
democracias contemporâ neas: primeiro, o conflito entre o executivo e o legislativo, quer
quando a constituiçã o dá mais importâ ncia a um ou ao outro, quer quando os
representantes do executivo usam todos os subterfú gios para fugirem ao controlo dos
representantes do povo. O membro da Renamo ou do Pimo quando se pronunciam no
parlamento, fazem-no como representantes do povo. O executivo nã o deve ridicularizá -
los ou fugir à s questõ es, muitas vezes judiciosas e pertinentes que levantam.
Segundo, o conflito entre o executivo e o judiciá rio. Nomeados pelos primeiros, os
agentes do segundo, isto é, os magistrados, têm muita dificuldade em fazer compreender
aos responsá veis do executivo, que ninguém pode estar acima da lei. Este é um problema
que os pais da democracia representativa nã o resolveram. Trata-se de uma questã o que
tem minado a vida política, mesmo nas democracias mais experimentadas. É o caso de
Chirac na França e, ainda mais grave, de Berlusconi na Itá lia. Em Moçambique podemos
falar do paradigma Anibalizinho-Nyimpini.
Que o presidente Chissano tenha feito pressã o ao pé das autoridades judiciá rias
ou nã o tenha feito, os juízes nã o podem ser completamente livres de uma certa pressã o
psicoló gica no acto mesmo de instaurar um processo e de judiciar Nyimpini.
Mas a verdadeira questã o nã o é nem a atitude do presidente, nem Anibalizinho,
nem Nyimpini. A questã o é como fazer com que entre o poder executivo e o judicial nã o
haja interferência, numa democracia que quer estes poderes iguais, mas subordina a
nomeaçã o do judicial à decisã o do executivo? Que o presidente faça pressã o ou nã o, que
diga algo ou nã o, que o seu pessoal governativo intervenha ou nã o, o seu estatuto vai
necessariamente condicionar o desenrolar do processo. Este nã o é um problema só
moçambicano e, talvez ainda mais por isso, deve mobilizar as nossas inteligências com
vista a encontrarmos uma saída ...
A estes pontos tem que se acrescentar um que é a maneira particular como um
certo Ocidente se arroga sempre mais, e de maneira antidemocrá tica, prerrogativas de
legitimaçã o anti-coloniais emergentes democracias africanas, e mete sob tutela as
nossas economias e, em consequência, a nossa soberania.
A questã o da soberania
A constituiçã o de 1975 prescreve em vinte e cinco artigos os princípios gerais ou,
se quisermos, as proposiçõ es de base que orientam o conjunto de normas jurídicas e a
promulgaçã o das leis. Trata-se de ideias ou de proposiçõ es que inspiram e orientam
todos os enunciados e todos os actos do direito.
O Moçambique de 1975 aparece, assim, no artigo I como «um Estado soberano,
independente e democrá tico sob a direcçã o da Frelimo». O artigo II define a ideologia
moçambicana como Democracia Popular. O artigo III indica a Frelimo como a entidade
CAPITULO II
que «supervisa a acçã o dos ó rgã os estatais a fim de assegurar a conformidade da política
do Estado com os interesses do povo». O partido e o Estado identificam-se. O artigo IV
indica os objectivos fundamentais da Repú blica: «a eliminaçã o das estruturas de
opressã o e exploraçã o coloniais e tradicionais e da mentalidade que lhes está subjacente
a extensã o e reforço do poder popular democrá tico; a edificaçã o de uma economia
independente e a promoçã o do progresso cultural e social; a defesa e a consolidaçã o da
independência e da unidade nacional; o estabelecimento e desenvolvimento de relaçõ es
de amizades e cooperaçã o com outros povos e Estados; o prosseguimento da luta contra
o colonialismo e o imperialismo.»
Estes artigos mostram a vocaçã o libertá ria da constituiçã o e a filosofia prá tica
subjacente ao direito moçambicano na sua primeira constituiçã o.
A constituiçã o da II Repú blica nã o renuncia ao substracto filosó fico de base e aos
seus corolá rios de ló gica jurídica. Só que o exercício deste projecto libertá rio nã o se
exercerá , doravante, através de um sistema de competiçã o entre partidos autó nomos,
com obrigaçã o de respeitarem e defenderem a soberania nacional, entendida como
espaço geopolítico (do Rovuma ao Maputo), e a unidade nacional através da luta contra
o tribalismo.
Os pressupostos filosó ficos estipulados na Primeiras Repú blica e confirmados
pela segunda aparecem em contradiçã o com os seus corolá rios políticos. Para
compreender o que está por detrá s deste fenó meno, tem que se recorrer à histó ria das
lutas ideoló gicas que a subentendem.
Lutar contra o colonialismo, libertar Moçambique e ser soberano sã o conceitos
fundamentais e constituintes da naçã o moçambicana. A comunidade internacional só
pode ser positiva e a favor de Moçambique na medida em que respeite este substracto
filosó fico de base. Isto é, respeito pela soberania, configurada numa espaço geopolítico
bem determinado e pela unidade nacional.
Ora, o centro nevrá lgico da constituiçã o de 1975 era a liberdade/independência.
O centro da constituiçã o de 1900/1992/1994 é liberdade/democracia. Em 1975, a
liberdade era entendida como contraposiçã o ao colonialismo. Em 1992, à liberdade
como anti-colonialismo se junta a democracia. Teoricamente, trata-se de um avanço
considerá vel. Todavia, a opiniã o pú blica moçambicana parece acreditar que a nível da
opiniã o pú blica moçambicana parece acreditar que a nível da liberdade fundamental
(independência e soberania), Moçambique tenha pura e simplesmente regredido
(regresso de portugueses, economia sob tutela, ONG, cooperaçã o, doadores, etc.). Pode-
se progredir em democracia, recuando em soberania?
A II Repú blica nasceu dos escombros da antiga Uniã o Soviética e do fim da guerra
fria. Os valores que a ideologia vencedora apregoa sã o contrá rios ao espírito da Primeira
Repú blica defendidos pela Frelimo. Mas serã o compatíveis com o espírito que é, ou que
devia ser, da Renamo enquanto partido nacional: a defesa e a promoçã o da unidade e
integridade nacionais?
No debate que estrutura a filosofia política actual aparece claramente que a
política ultrapassa enormemente as suas ligaçõ es com a concepçã o global da histó ria, ao
mesmo tempo que se mostra incapaz de pensar a histó ria de uma maneira diferente. A
questã o de fundo é entã o saber se é admissível que o campo do possível aberto pela
política seja reduzido teoricamente ao modelo ocidental e praticamente à simples
modificaçã o e satisfaçã o da existência individual?
Se nada de novo e de ocidentalmente diferente pode ser inventado, e se a histó ria
e a ambiçã o negra e moçambicana da emancipaçã o, nos escapam, qual é a efectividade
da nossa política?
Muitos consideram que, em matéria de acçã o histó rica e política, tudo foi já feito.
A democracia como ela se apresenta hoje parece-lhe o ú ltimo regime possível, restando
só perpetuar, na melhor das maneiras, os interesses de cada homem e o
desenvolvimento de novos terrenos de materializaçã o, ou a observar a sua globalizaçã o
pó s-moderna.
No que diz respeito ao primeiro aspecto da questã o, convém fazer referência à
tese de filosofia política argumentada por Francis Fukuyama cuja carreira pú blica se
abre com um artigo publicado na revista National Interest intitulado «Fim da histó ria?»
(1989), seguido pouco tempo depois de um livro O fim da história e o último homem
(1991). Com a expressã o «fim da histó ria», tomada da filosofia de Hegel, entendia que o
prego final (fim aqui nã o é nem finalidade (zwek), nem objectivo (ziel), mas exactamente
o termo Ende) foi plantado no caixã o do marxismo-leninismo. Na medida em que nem as
religiõ es (islã o, em particular) nem os nacionalismos parecem em altura de constituir
desafios sérios, a vitó ria da modernidade liberal e democrá tica parece certa ad vitam
aeternam. A situaçã o actual de Moçambique, democratismo (que é diferente da
democracia), super liberalismo que se traduz em privatizaçõ es sumá rias, tutela
governativa, sã o a prova da nossa entrada no fim da histó ria, no ponto final da evoluçã o
ideoló gica da humanidade.
É neste contexto que tem que ser vista a segunda Repú blica moçambicana. Mas
resta uma questã o de fundo: qual é a relaçã o que existe entre o objectivo de fundo que
persegue o negro, o moçambicano, isto é, a liberdade de dispor de si mesmo e esta forma
de hegelenismo político-social? Qual é a relaçã o que existe entre este sistema mundial
dominante e a possibilidade real de ser soberanos, sem termos que obrigar os
moçambicanos a terem que pegar em armas para uma segunda colonizaçã o, como
escreve Heliodoro Baptista no artigo do Savana (nº 167, Março 1997)?
Duas aporias parecem remar contra a nossa liberdade e libertaçã o: uma está
intrinsecamente ligada à mesma ideia de soberania e outra à nossa incapacidade como
povo de assumi-la com tudo o que ela comporta em termos de responsabilidade.
A soberania é um conceito jurídico e político em volta do qual gravitam todos os
problemas e as aporias da teoria jus-positivista do direito e do Estado. Falar da
sabedoria e das suas vicissitudes histó ricas e teó ricas significa falar da particular
formaçã o político-jurídica que é o Estado nacional moderno, nascido na Europa há um
pouco mais de quatro séculos e hoje em crise. As aporias da soberania estã o ligadas a
diferentes perspectivas entre elas (jus-naturalistas, jus-positivistas, contratualistas e
idealistas) que as alimentaram durante quatro séculos.
A primeira aporia baseia-se no significado filosó fico da ideia de soberania. Como
categoria filosó fico-jurídica, a soberania é uma construçã o de matriz jus-naturalista que
serviu de base para a concepçã o jus-positivista do Estado e o paradigma do direito
internacional moderno. Ao mesmo tempo, ela foi sempre uma metá fora antropomó rfica
de cará cter absolutista, mesmo na mudança da imagem do Estado à qual foi
alternativamente associada.
A segunda aporia baseia-se na histó ria, teó rica e sobretudo prá tica, da ideia de
soberania como potestade absoluta. Esta histó ria corresponde a dois eventos paralelos e
divergentes: a soberania interna, que é a histó ria da sua progressiva limitaçã o e
dissoluçã o, paralelamente à formaçã o dos estados constitucionais e democrá ticos de
direito; e a soberania externa, que é a histó ria da sua progressiva absolutizaçã o.
A terceira aporia, enfim, baseia-se na consistência que é a legitimidade
conceptual da ideia de soberania sob o ponto de vista da teoria do direito. Existe uma
antinomia irredutível entre soberania e direito: uma antinomia nã o só no plano interno
dos ordenamentos avançados, onde a soberania está em contraste com o Estado de
direito e da sujeiçã o à lei de qualquer poder, onde ela é considerada nas cartas
constitucionais internacionais e, de maneira particular, na Carta da ONU de 1945 e na
Declaraçã o do Direitos do Homem de 1948.
CAPITULO II
da soberania nã o está ainda no seu descambar. A pró pria ONU, apesar da sua inspiraçã o
universalista, continua, nã o só sob o plano factual, mas também sob o plano jurídico, a
ser condicionada pelo princípio da soberania dos Estados. Propõ em-se de novo, assim,
as contradiçõ es originá rias já presentes na doutrina de Vitó ria entre comunitas orbis e a
soberania igual dos Estados.
O domínio da paz fica ainda confinado ao domínio soberano das grandes
potências (acordos de paz em Moçambique) e, depois da queda do muro de Berlim, aos
vencedores filosoficamente profetizados por Hegel e celebrados por Fukuyama. Com
efeito, apesar dos proclames igualitá rios da ONU, nó s vivemos vitoriamente numa
desigualdade de facto, fruto inevitá vel da prevalência da lei do mais forte e, portanto, da
existência de uma soberania ilimitada, desmembrada, dependente, assistida e tutelada.
Eis porque é ridículo e contraditó rio ter uma constituiçã o cujo pressuposto
filosó fico –soberania –tem que ser garantido por uma comunidade internacional,
democrata certo no interior dos países de origem, mas selvagem nos seus princípios
políticos, jurídicos e nas suas prá ticas econó micas.
Falar de soberania moçambicana é hoje um autêntico abuso de linguagem. De
facto, toda a estrutura constitucional moçambicana, desde os seus fundamentos
filosó ficos, jurídicos para terminar na prá tica política, encontram-se esvaziados de
conteú do. Eis porque a política moçambicana, apesar da aparente democracia, tornou-se
numa coisa ligeira, leviana onde cada um procura os seus fins individuais: o
«cabritismo» que é, de facto, o «laissez-faire, laissez-passer» moçambicano.
Todavia, esta situaçã o é possível ou pelo menos é facilitada por um outro facto:
«a nossa incapacidade de assumir o que a liberdade comporta como responsabilidade».
O camaronês Mveng fala da pauperizaçã o antropoló gica do negro.
Eis porque o maior comunista de ontem pode tornar-se no maior apó stolo do
liberalismo selvagem; o revolucioná rio de ontem no reaccioná rio de hoje, os
libertadores de ontem no instrumento de colonizaçã o de hoje.
A Frelimo viu-se obrigada, por razõ es militares e pela pressã o exterior, a
instaurar um sistema democrá tico, sem estar realmente convencida de dever
compartilhar o poder, cuja legitimidade hauria da luta armada contra a colonizaçã o
portuguesa. Hoje a Frelimo vê-se obrigada a harmonizar as exigências de duas
autoridades: a Renamo e a Comunidade Internacional. Ora, se a força da Renamo no
contexto nacional é muito fraca, o mesmo nã o se pode dizer da Comunidade
Internacional, que impõ e literalmente de uma maneira abusiva e anti-soberana a
política, a economia e o tipo de governaçã o.
No contexto econó mico dominante, o governo precisa do dinheiro dos doadores
e da comunidade internacional para melhorar a vida dos moçambicanos, o que, aliá s, é a
sua funçã o política como partido no poder, mas está consciente de divergência de
interesses entre os moçambicanos e de certa Comunidade Internacional (cf. entrevista
com Mariano Matsinha, Savana 25-04-1997).
A Renamo é vista como instrumento da Comunidade Internacional, cujos
objectivos sã o o enfraquecimento do Estado, a divisã o do país. Contudo, a Comunidade
Internacional, apesar da sua força, só pode governar de maneira indirecta, pois
dificilmente pode pegar em armas e ocupar militarmente Moçambique, ou mesmo
nomear governadores e administradores em Moçambique. A Frelimo submete-se aos
dictats da Comunidade Internacional fazendo tudo o que esta exige, a fim de obter
dinheiro e financiamentos, ao mesmo tempo que a nível político, tenta isolar a Renamo
(«a Carta aberta aos moçambicanos» de Afonso M. M. Dhlakama, Savana, 04-04-1997) e
outros partidos da oposiçã o. Todavia, apesar das aparências, o verdadeiro adversá rio da
Frelimo, nã o é a Renamo, como ontem nã o era a Renamo –Samora Machel quis discutir
directamente com os sul-africanos e nã o com a Renamo. Hoje a tá ctica é a seguinte: fazer
a vontade dos doadores a fim de ter investimentos, mas isolar politicamente a Renamo e
os outros partidos da oposiçã o.
À s estratégias de apropriaçã o do poder e do seu abuso por parte de uma certa
Comunidade Internacional, a Frelimo responde com uma dupla tá ctica: docilidade e
submissã o aparente face à comunidade internacional, e isolamento das oposiçõ es
políticas nacionais.
Como se trata de uma estratégia de luta contra o (neo)colonialismo, nã o é
surpreendente ver reemergir dirigentes histó ricos da Frelimo que se tinham
evidenciado, sobretudo, pelo seu nacionalismo e na luta contra o colonialismo. Este
processo faz-se em detrimento de uma democracia real que, portanto, se tinha
começado a engodar. Isto faz-se, por outro lado, em detrimento de um debate
democrá tico cultural, que tenderia a deslocar realmente o centro de gravitaçã o do poder
em direcçã o à s pessoas reais, aos grupos e à s culturas. As consequências sã o:
- o isolamento dos partidos da oposiçã o, a diminuiçã o da possibilidade da
democracia;
- o centralismo político, que impede a possibilidade de uma cultura política
moçambicana. Isto é, a criaçã o de um substracto político nacional a partir dos valores do
homem de Moçambique;
- o reforço das tendências autoritá rias e centralizadoras do partido no poder,
que se vê obrigado a recorrer a armas nacionalistas para defender o país.
A responsabilidade da Comunidade Internacional no que se passa em
Moçambique é enorme. Existem diferentes comunidades internacionais, aquelas
pretensamente neocoloniais e tuteladoras, e outras cujos objectivos sã o de ajudar a
construir uma comunidade política soberana, democrá tica, solidaria e fundada sobre
valores moçambicanos. Penso que seria tempo de uma aná lise crítica das atitudes da
Comunidade Internacional e da sua responsabilidade no clima que existe no
Moçambique de hoje. Existe hoje um risco de confusã o entre democracia e o
neocolonialismo; risco de ver na democracia e no liberalismo, simples avatares do
neocolonialismo.
O maior erro, que poderiam cometer as «velhas democracias», seria
apresentarem-se como modelos, como os que sabem como as coisas devem ser feitas,
como os problemas devem ser resolvidos, o que elas nã o sã o e nem podem ser; e impor,
mesmo em termos econó micos, o modelo e o estilo de sociedade que elas consideram
boa para Moçambique. Neste sentido, é extremamente lamentá vel a atitude de certas
organizaçõ es. Exigir que o Estado, o Governo, adopte e implemente prá ticas políticas e
econó micas decidas por investigadores e por centros de poder ocidentais, como
condiçã o da ajuda econó mica, é uma política que se baseia no desprezo pelos
governantes nacionais. O perigo evidente, neste caso, é desacreditar gravemente o
Governo aos olhos do povo, mas sobretudo desacreditar a pró pria democracia aos olhos
do povo e dos seus líderes.
A Comunidade Internacional, pelo menos a nã o colonialista, deve rever a sua
posiçã o, deve compreender que ela nã o pode ser colonizadora, neocolonializadora,
tuteladoras, sem ser contra Moçambique e contra os moçambicanos.
CAPITULO III
uma nova forma de violência mais velada, mas nã o menos feroz. As antigas alianças e
relaçõ es sociais baseadas nos valores socialistas foram muito rapidamente postas em
causa e, no seu lugar, nasceram novas alianças baseadas no interesse. Valores como a
luta contra o racismo, o tribalismo, o regionalismo desapareceram e cederam espaço a
novas alianças baseadas nos interesses que, sem escrú pulos, nã o hesitam em
instrumentalizar as pertenças étnicas, regionais e raciais.
Violência nã o é só a morte de Cardoso ou o massacre de Montepuez; é também
a mã e que vê o seu filho morrer por falta de pã o; é o homem de Gaza ou Inhambane,
Zambézia ou Nampula que passa dias sem comer e na televisã o vê festins, recepçõ es de
empresá rios ou workshops de universitá rios ou políticos. Violência é quando se vêem
pessoas a sofrerem no hospital e a nã o serem atendidas porque nã o têm dinheiro para
entrar na clínica especial. Violência é quando os camponeses produzem muito e os
produtos apodrecem porque nã o há escoamento de produtos agrícolas. Violência é
quando as terras dos camponeses sã o anexadas por estrangeiros para turismo em
detrimento dos valores e lugares simbó licos dos grupos e das populaçõ es. Violência é
quando os pais vêem as filhas utilizadas por indivíduos que transformam as moças em
mercadoria que se vende e se compra. Violência é quando os pais nã o têm meios para
mandarem os seus filhos à escola; é quando os moços, depois da formaçã o, nã o têm
acesso ao mercado de trabalho; é quando toda uma sociedade perde sentido de
dignidade e torna-se lugar de realizaçã o de misericó rdia e caridade de todos os países e
ONG’s do mundo.
Esta situaçã o de violência é até contrá ria aos valores teó ricos do pró prio
liberalismo. Entã o, a situaçã o que vivemos nã o é explicá vel a partir da doutrina liberal,
mas a partir do lugar que (ele) ocupa na combinaçã o entre o fukuyamiano «fim da
histó ria» e o nosso lugar extremamente periférico no sistema internacional de
globalizaçã o.
Apesar das tentativas de alargar a globalizaçã o a uma dimensã o cultural por
parte de filó sofos como o francês Gerard Leclerc52, os canadianos Paul Dumouchel53 e
Pierre Levy54 ou o italiano Maramao55, a globalizaçã o é, antes de mais, um fenó meno de
ocidentalizaçã o do mundo, como defende Serge Latouche56. Mas esta ocidentalizaçã o do
mundo visa essencialmente as economias, guiadas pelo mercado que, por sua vez,
subordinam as tecnologias, sobretudo as tecnologias de informaçã o.
Por isso, nã o é surpreendente que, apesar de sermos um país periférico,
tenhamos em muito pouco tempo entrado no sistema informá tico: e-mails ciber-cafés,
celulares. Nã o é surpreendente que na Mafalala nã o se bombeiem as á guas estagnadas
que contaminam as pessoas com malá ria e có lera, nã o se limpem as ruas, mas se criem
síticos com internet; que a preocupaçã o das universidades seja estabelecer um ensino à
distâ ncia, nã o obstante os custos, a falta de electricidade e a fala de uma tradiçã o de
leitura. Nã o é surpreendente que sejamos literalmente invadidos por canais de rá dio e
televisã o, RTP Á frica, canais brasileiros, CNN, a Rá dio França Internacional, a BBC, a Voz
da Alemanha, etc.
De facto, nunca o mundo produziu tanta riqueza, mas ao mesmo tempo,
segundo o soció logo alemã o Ulrich Beck, nunca se produziu tanto risco, que chega até
aquilo que no Retorno do Bom Selvagem eu chamei de natureza morta57. Ora, o que se
52
Leclerc, 2000.
53
Mondialisation: perspectives philosophiques. Sous la dir. De Pierre-Yves Bonin. Québec: La Presse de L
´Université laval&Paris: L’Hartmattan, 2001. (não informatizada na bibliografia automática )
54
Levy, 2000.
55
Passaggio a Occidente. Filosofia e globalizzacione, 2003.
56
Latouche, 1989.
57
O Retorno do Bom Selvagem, 1994.
CAPITULO III
58
Nyerere, 1977.
59
Nkrumah, 1979.
CAPITULO III
O que permite a um empresá rio avançar nos negó cios é a sua pertença a
Moçambique. Por isso, ele pode e deve exigir mais possibilidades, maiores e melhores
oportunidades que qualquer estrangeiro, ele pode e deve exigir que a lei o tutele na
concorrência com os estrangeiros, ele deve exigir que o Estado facilite a expansã o e o
aumento das suas actividades industriais. Todavia, se o Estado o fizer, como deve fazê-lo,
fá -lo em nome de um pacto da moçambicanidade que faz com que homens e mulheres de
raças, línguas, religiõ es, regiõ es diferentes estejam ligados num pacto de recíproca co-
responsabilizaçã o. Assim, ele tem deveres para com os seus concidadã os, através do
Estado, enquanto instrumento de regulamentaçã o da vida social.
Neste sentido, pagar impostos, seguir a legalidade, respeitar os trabalhadores
nos seus direitos –tempo de trabalho, salá rio que permita viver dignamente, respeito
pela pessoa que está ao nosso serviço –é um acto de cidadania.
Nas cidades, muitos moçambicanos têm empregados domésticos, instituiçã o
colonial, que muitas lá zaros subidos à cadeira do senhor herdaram sem
condescendência e muitas vezes com tirania. Isto significa que muitos de nó s somos
patrõ es ou temos pessoas ao nosso serviço. A mesma questã o que se põ e aos
proprietá rios de empresas, põ e-se aos que têm domésticos ao seu serviço: onde e como
vivem? Quanto ganham? Qual é a situaçã o da educaçã o deles e dos filhos? Qual é a
situaçã o da saú de? Quantos empregados domésticos ganham por mês o que nó s
gastamos num jantar no restaurante? Aquela justiça que reclamamos dos nossos patrõ es
nas empresas, ou como país dos países do Norte, nó s a aplicamos quando somos
revestidos de poder?
O tema de justiça é tã o velho quanto a filosofia ela mesma. Se o direito e a moral
se aplicam desde sempre para desvendar o seu mistério, é porque a justiça, como bem
viu Kant, está intrinsecamente ligada à questã o de paz, questã o central da segunda
Repú blica moçambicana.
Começamos este trabalho dizendo que, para os cientistas sociais, o povo
moçambicano foi votar nas primeiras eleiçõ es para sancionar o fim da guerra, isto é,
para a instauraçã o da paz. Entã o dizer que os actores políticos devem ser julgados pelo
mandato claro que tiveram dos eleitores, significa que eles devem ser julgados pela sua
capacidade de buscar a justiça. Assim postas as coisas, é difícil pensar que os eleitos
cumpriram com o mandato que lhes foi confiado pelos eleitores, pelo menos aos olhos
dos eleitores eles mesmos.
Com efeito, o sentimento popular em relaçã o ao Estado da primeira legislatura
da segunda Repú blica era que, contrariamente à situaçã o da primeira Repú blica em que
o Estado estava demasiado presente, de nova e cinco a dois mil o Estado estava
demasiado ausente, ou entã o que os actores do Estado estavam interessados nas
pró prias coisas, privadas e muito pouco interessados nas coisas de todos. Os dirigentes
políticos sã o vistos pelas populaçõ es como predadores de bens pú blicos para interesses
privados.
Em consequência, nó s fomos votar a segunda vez com ideia clara de que a
arbitrariedade era mais importante do que a lei; que a injustiça, o roubo, as assimetrias,
eram as coisas mais importantes. Fomos votar com uma dó lar-cracia, com o dinheiro
sendo o ú nico valor e nã o um meio para atingir fins sociais pré-estabelecidos. Resultado,
aceder ao poder significava aceder ao dinheiro.
Quer dizer que o substracto da vida política nã o obedece a nenhum princípio
ético; as leis nã o secundam a procura da justiça. O resultado disto é um sentimento de
injustiça generalizado e uma constante ameaça à paz.
A guerra do Zaire foi seguida por uma afirmaçã o da entã o Secretá ria do Estado
norte-americano, Margaret Allbright segundo a qual a Á frica estava conhecendo a
primeira guerra mundial. O que ela queria dizer era que a Á frica tinha fronteiras nã o
CAPITULO III
realistas nem viá veis e que era tempo de repensar as novas fronteiras. De um lado, os
principais actores da política internacional pensam em refazer as fronteiras coloniais; do
outro, os actores africanos, apesar de reconhecerem a ineficá cia só cio-econó mica da
geopolítica herdada do colonialismo, continuam a defendê-la como o principal actor
político continental, pela ú nica coisa que ela sempre defendeu: o respeito das fronteiras
coloniais.
O debate em volta das fronteiras começa com o fim da segunda Guerra Mundial.
A questã o era saber em que espaço geopolítico deveríamos proclamar as
independências para que elas nã o fossem simplesmente cosméticas. As ideias de
Nkrumah nã o encontraram um terreno fértil entre as ambiçõ es pessoais dos líderes
emergentes da época e a clara vontade neocolonial e de controle das antigas potências
coloniais. A conjugaçã o destes dois factores acabou favorecendo um grande
conservatismo e uma grande falta de ousadia para questionar os substractos e as
principais instituiçõ es coloniais.
À s teorias dos Estados Unidos de Á frica e da manutençã o das fronteiras
coloniais vieram ajuntar-se as ideias de espaços de complementaridade econó mica de
Mamoudou Touré e de Mamadou Dia, e as ideias de homogeneidade cultural de C. Anta
Diop. No fundo, a questã o nã o era só traçar fronteiras ou respeitá -las; era a preocupaçã o
de ter independências que nã o fossem cosméticas, mas susceptíveis de trazer
verdadeiros resultados também em termos só cio-econó micos.
No debate do fim da década de cinquenta, Nkrumah tinha chamado a atençã o
para o perigo de pormos a Á frica na situaçã o de ser econó mica e socialmente re-
colonizada –o que se está a verificar hoje –, do perigo de vermos os antigos impérios
voltarem incentivando o tribalismo. Vimos isso no Zaire de Patrice Lumumba onde a
Á frica se mostrou incapaz de unidade, de solidariedade, de determinaçã o para se bater
pela sua liberdade.
No fundo, em 1960, três anos depois da primeira independência, a Á frica tinha
demonstrado nã o estar em altura de assumir «o que a responsabilidade comporta como
responsabilidade». Depois desta data, o que aconteceu, incluindo a histó ria política
moçambicana, é mais folclore, cosmético que algo de substancial e de real. No Zaire, o
neocolonialismo tinha se implantado criando as premissas da tribalizaçã o política (a que
Nkrumah tinha chamado de balcanizaçã o) que infestou a histó ria política do continente;
criando as premissas de uma alternâ ncia de poder feita de golpes de estado, de uma
prá tica política feita de violência e de assassinatos. Mas, sobretudo, usurpou e privou os
povos africanos de democracia, fazendo assassinar o eleito do povo, Patrice Lumumba,
para o substituir por um Mobutu. Infelizmente, as prá ticas políticas do continente nã o
cessaram de se inscrever nos paradigmas neocoloniais claramente estabelecidos desde
os eventos do Zaire de 1960. Eis porque se deve saudar a determinaçã o com a qual a
uniã o africana interveio e pô s cobro ao golpe de estado em S. Tomé e Príncipe,
esperando que seja o início duma nova era.
O conflito do Zaire pó s-Mobutu nã o se limitava a evidenciar os limites
objectivos da geopolítica herdada da colonizaçã o. Chamava a atençã o do continente
sobre a necessidade impelente de retomar o caminho da reflexã o de uma geopolítica
susceptível de trazer respostas aos problemas com os quais as populaçõ es estavam
confrontados. Torna, assim, actual a necessidade de uma unidade, a necessidade de
pensar nos imperativos econó micos e nas complementaridades econó micas (Mamadou
Touré e Mamadou Dia), na necessidade de pensar na dimensã o cultural (Cesaire,
Azikiwé e C.A. Diop), de um desenvolvimento auto-centrado (Samir Amim e Nyerere). A
CAPITULO III
ainda fragilizada economicamente, mas sobretudo, moralmente, numa dinâ mica, que
começou com econó mico, mas sedimentou-se no político. É exactamente a valência
política da Europa que faz com que possa existir uma certa igualdade entre a Alemanha e
Portugal, entre a França e a Bélgica, entre a Itá lia e o Luxemburgo, etc. O que a relaçã o de
trocas nã o pode fazer, fá -lo uma dinâ mica política lú cida.
Quando a Á frica do Sul estava num processo de transiçã o, nó s poderíamos ter
transformado a SADCC num estrutura política, com uma espécie de organismo
parlamentar consultivo, uma espécie de instituiçã o penal para arbitrar conflitos. A
posiçã o moral da Á frica do Sul pó s-Apartheid nã o teria permitido que nã o integrasse
estes organismos nas suas dinâ micas políticas.
A maneira como o processo regional foi conduzido permitiu que os interesses
econó micos e hegemó nicos da Á frica do Sul, desta vez mediatizados pelos novos actores
políticos, se tornassem, de facto, o grande vencedor da guerra –nã o só em Moçambique –
e expandissem a sua hegemonia econó mica pelos países da regiã o e mesmo mais longe
no continente. Se a aproximaçã o regional (SADC) foi guiada (como parece ser) por esta
ló gica economicista e de Renascimento Liberal, como foi teorizada por Thabo Mbeki,
entã o as teorias constelacionistas de Voster teriam ganho.
Nelson Mandela teve a intuiçã o de conceber o direito nã o como nos é
apresentado normalmente pela iconografia, uma mulher com uma espada na mã o
pronta a cortar, mas como uma costureira que, com muita paciência e tenacidade, coze
as diferentes partes, liga linhas diferentes a fim de criar um tecido ú nico. A intuiçã o de
Mandela foi boa. O que a Á frica do Sul tinha necessidade nã o era de uma mulher com
espada pronta a cortar, mas do trabalho paciente e meticuloso de uma costureira capaz
de recozer as relaçõ es sociais. Podem-se discutir métodos e os resultados da comissã o
de reconciliaçã o chefiada por Desmond Tutu, mas nã o a filosofia que a subentende. Aliá s,
este é o coraçã o mesmo da filosofia Ubuntu 62.
Nã o se pode separar a filosofia Ubuntu da política de Renascent Africa. Ora, ela
apresenta duas aporias fundamentais. Primeira: o Renascent Africa tem uma vocaçã o
continental. Mas esta vocaçã o nã o tem em conta, para fora da RSA, a necessidade de se
fazer preceder ou, pelo menos, acompanhar por um processo de reconciliaçã o da RSA
com o continente ou pelo menos com a regiã o. A reconciliaçã o limita-se ao interior do
país e nã o tem em conta a destruiçã o econó mica e dos tecidos sociais dos países vizinhos
e, nomeadamente de Moçambique.
A New South Africa supõ e um sistema de discriminaçã o positiva orientada para
diminuir as divergências entre classes e raças no interior do país. Quando olhamos para
as relaçõ es entre a RSA e ou seus vizinhos, apercebemo-nos que, para além da dimensã o
do discurso, só a dimensã o econó mica conta. Em termos de balanço de trocas
econó micas, as relaçõ es entre Moçambique e RSA sã o piores que as relaçõ es entre
Moçambique colonial e a Á frica do Sul do tempo do Apartheid.
Segunda: se a dimensã o do Ubuntu se faz simplesmente em termos de discursos
a nível interno e a nível regional, mas nã o se consegue inverter a pirâ mide e entrar num
sistema de distribuiçã o e de solidariedade –como a Uniã o Europeia, apesar do seu
liberalismo, faz para os países mais fracos economicamente, e lá se está a nível do
político –entã o a costureira Ubuntu vai fazer trapos ligeiros e pouco só lidos, susceptíveis
de ser rasgados ao pequeno movimento.
Contudo, apesar da necessidade de termos presente estes elementos de
«fronteira», talvez sobretudo por estarmos justamente conscientes desses problemas
que nos vêm do exterior, temos que nos defender reforçando o tecido social interno, a
umidade nacional, a moçambicanidade, cujos inimigos principais sã o hoje, do exterior,
novos sistemas de dominaçã o representados pela globalizaçã o das economias, dos
62
Mbana, 2003.
CAPITULO III
1. Contrato Cultural
pensar o direito e a democracia, para que as nossas instituiçõ es possam haurir a sua
legitimidade dos imaginá rios colectivos das nossas populaçõ es.
Insisto: nã o se trata de conhecer a tradiçã o para segui-la ad literam, mas para
se inspirar nela e para sublimá -la e, através deste processo de metá stase, criar um
direito que seja a imagem e semelhança da maneira como as diferentes populaçõ es
entendem a vida política e social. Nã o teríamos, assim, uma democracia incompreensível
para as populaçõ es ou, entã o, que se cala paradoxalmente nas autoridades tradicionais,
ao mesmo tempo que imita de uma maneira ridícula e a-histó rica as tradiçõ es
ocidentais.
Mas como a democracia é um conteú do axioló gico e uma forma, a tradiçã o é
também, em si mesma, um conteú do e uma forma. Boa parte da crítica da filosofia
africana à tradiçã o concerne a sua forma, mas também ao seu conteú do. É verdade que o
conceito de crítica compreende a avaliaçã o de todas as componentes: as negativas, mas
sobretudo as positivas. Para ser intelectualmente honesta e exaustiva, a crítica deve
tentar identificar os aspectos positivos presentes nas tradiçõ es: nas suas formas e no seu
conteú do. Montesquieu falava do espírito da lei. Penso que é importante da mesma
maneira, pensar no espirito que se esconde por detrá s da tradiçã o.
Fazer passar o nosso ajustamento cultural pelo egoísmo é inspirar-se nos elementos
mais problemá ticos do Ocidente. Todavia, nã o podemos tomar de ligeiro esta crítica. De facto,
nó s temos que analisar de forma crítica o problema que as nossas estruturas sociais comportam
em termos de incremento da pobreza, de incapacidade de investimento econó mico. Mas,
sobretudo, na manutençã o de um sistema que favorece o parasitismo e o espírito de
dependência que certamente sã o componentes importantes na configuraçã o cultural geral da
economia e do espírito miserabilista que nos tem caracterizado.
Ao mesmo tempo, quando olhamos para o Ocidente temos que nos recordar
que nem tudo o que luz é ouro, que o egoísmo é a maior síndrome e a maior fonte de
desumanizaçã o do homem e dos conflitos entre sociedades que a histó ria da
humanidade conheceu; que o ultra-liberalismo é um sistema econó mico que nã o pode
deixar de produzir poucos ricos e muitos pobres. Quando o dinheiro e o egoísmo sã o as
mas distintivas de uma civilizaçã o, nã o se pode criticar nem a escravatura, nem o
colonialismo, nem o trabalho forçado, nem as guerras de petró leo ou outras, nem mesmo
a proliferaçã o da droga, do comércio de ó rgã os humanos, etc.
Por outro lado, apesar dos seus limites, as nossas tradiçõ es e a nossa histó ria
nã o sã o de deitar fora como defendem Towa e Elungu. Eboussi Boulaga dizia que a
tradiçã o representa o tempo em que éramos livres e fautores da nossa histó ria. Mas eu
quero acrescentar que, apesar dos seus limites (perigo de parasitismo, de conformismo),
a tradiçã o representa, no seu espírito, a dimensã o da solidariedade. Contra o reino do
dinheiro, as tradiçõ es africanas propõ em uma sociedade de partilha. No fundo, o
contrato cultural significa apreender o essencial do espírito da tradiçã o e, ao mesmo
tempo, acolher a modernidade de uma maneira também crítica e selectiva (Ka Mana).
saber qual deve ser o nível de participaçã o a ser deixado à s culturas, a fim de que se
possa forjar um direito e uma política que tenham numa moçambicanidade cultural os
seus fundamentos teó ricos e prá ticos.
No discurso de abertura da 1ª Conferência Nacional sobre a Cultura, o
presidente Joaquim Chissano afirmou: «a cultura é a plataforma a partir da qual se
materializam os planos, programas e actividades tanto de ordem material como de
ordem espiritual da humanidade, das naçõ es, das organizaçõ es e indivíduos». A
importâ ncia da cultura foi reafirmada pelo Primeiro Ministro no seu discurso de
apresentaçã o do programa do governo para 1995/1999 à Assembleia da Repú blica64.
Segundo Pascoal Mocumbi, «o Governo inspirar-se-á no princípio segundo o qual o
desenvolvimento deve ter a cultura como ponto de partida e de referência obrigató ria e
permanente».
Os homens do Estado (a estes dois discursos podia se juntar o do Ministro da
Cultura na Conferência sobre a Cultura, que vai no mesmo sentido dos precedentes) e
muitos intelectuais moçambicanos65 retêm à cultura como um ingrediente indispensá vel
para o incremento da democracia e mesmo no processo de governaçã o.
De uma maneira mais sistemá tica, a 1ª Conferência sobre a Cultura propunha-
se adoptar um projecto de política cultural que deveria, face à s mudanças introduzidas
pela Constituiçã o da Repú blica de 1990, indicar o papel do Estado, da sociedade e do
indivíduo na preservaçã o, fomento e promoçã o da cultura moçambicana66.
A ideia geral da Conferência foi, portanto, propor uma política cultural, isto é,
uma governaçã o que tenha em conta as especificidades culturais moçambicanas. Em
relaçã o à s governaçõ es precedentes –dos portugueses e da «primeira Repú blica» -há
aqui uma evoluçã o considerá vel. Contudo, uma coisa é a política cultural de um governo,
outra é uma cultura política de um povo. Nesta, a política e a governaçã o inspiram-se nas
especificidades culturais do povo. Os dirigentes políticos, os programas econó micos e
socais partem nã o só das necessidades das pessoas, mas dos seus pressupostos
culturais, da sua maneira de conceber, das suas possibilidades de entender, da sua
maneira de agir e da sua vontade de participar. É neste sentido que se fala de cultura
política francesa, que é muito diferente da cultura política americana ou inglesa. Mas se
o governo deve fazer uma política cultural, temos ainda de saber onde vai buscar os
pressupostos para tal política que, por sua vez, tem de velar pela cultura. Quem vai
legitimar a política que se arroga o direito de legitimar as culturas?
Uma cultura nã o é um todo monolítico, compacto ou bloqueado, mas um
conjunto aberto de valores em criaçã o contínua, em dialéctica constante de afirmaçã o de
si e de negaçã o, de convergência e de divergência. A criaçã o e a conservaçã o de uma
cultura nã o é simplesmente a interacçã o de indivíduos criadores e de políticas culturais,
mas de interferências que se exercem entre diferentes ordens de valores –religiosos,
morais, politicas, jurídicas, sociais, econó micos. Estas interferências sã o essenciais e
revelam as relaçõ es específicas que associam estas diferentes ordens de valores, mas sã o
modificaçõ es ao sabor das contingências da histó ria.
Cada caso de interferência é um caso histó rico particular. Contudo, por causa
da sua natureza pró pria, os valores políticos e os processos que eles sã o susceptíveis de
engendrar vã o jogar um papel à parte. De facto, a vida política manifesta-se nas relaçõ es
de força que opõ em aderentes e adversá rios, determina as relaçõ es entre privado e
pú blico, e chega ao estabelecimento do poder que cria relaçõ es de comando e de
obediência. Estas relaçõ es podem fazer-se sentir na vida das instituiçõ es, dos grupos e
das culturas. Pela sua pró pria natureza, a política pratica uma ingerência efectiva na vida
64
Citado por Ngoenha, Para uma reconciliação entre a Política e as Culturas, 1997 (ibdi): 23.
65
Idem.
66
Idem.
CAPITULO IV
dos indivíduos porque ela exerce uma força latente reputada legítima e necessá ria para
manter a vida pú blica. Ora, a fronteira entre pú blico e privado é fluída e movente: ela
constitui uma zona onde o respeito pelas liberdades individuais, dos grupos e das
culturas em todos os regimes políticos põ e constantemente problemas à força pú blica. A
prá tica de uma ordem pú blica constitui um equilíbrio incerto e instá vel entre a força
pú blica e as forças privadas.
Enquanto tal, a vida política, ordenada em volta de valores morais e políticos
indissociá veis, é parte integrante da cultura. Sob a sua forma mais rudimentar, ela surge
concomitante com o aparecimento de uma coexistência social, de uma comunidade
cultural ou de um trabalho em comum. A vida política organiza-se quando uma
comunidade cultural adquire uma certa consistência num determinado territó rio;
quando começa a tomar consciência dela mesma e se considera um bem comum digno
de ser afirmado e defendido, tanto contra os seus inimigos interiores como exteriores.
Entã o, as relaçõ es entre indivíduo e indivíduo podem também transformar-se em
relaçõ es entre cidadã o e cidadã o.
Assim, é quase natural que os homens do poder tenham a convicçã o de que o
seu poder se deve estender a todos os domínios culturais. De facto, os valores culturais
emanam do conjunto da cultura ambiente e autoridade do poder político depende, em
grande parte, da sua adequaçã o a esses valores. Mas o exercício do poder tende a
invertes as relaçõ es e os governantes, muitas vezes, consideram que o domínio da
cultura depende do seu poder. Na realidade, o poder político e o governo devem estar ao
serviço da cultura que os suscita e os investe.
O poder político e os governantes devem fornecer as culturas meios
necessá rios para o seu desenvolvimento. Se o governo tem de criar condiçõ es de
desenvolvimento, ele tem de criar projectos de sociedade que partam das culturas ou
entã o dos indivíduos mais dotados dessas mesmas culturas, e nã o das ONG’s, das
cooperaçõ es, dos doadores, do FMI ou do Banco Mundial. Os projectos de sociedade têm
de se inspirar nos valores, nos sonhos das pessoas, e têm de subscrever as suas
capacidades para realizar esses mesmos projectos. Isso implica que os governantes
tenham de se basear nas inteligências moçambicanas.
O ú nico elemento certo, constante, que nã o passará com as mudanças
ideoló gicas como foram primeiro os portugueses e depois os russos, os bú lgaros,
romenos, alemã es do este, etc; sã o os moçambicanos. É sobre eles que deve ser
construído todo o projecto sério e duradoiro da sociedade moçambicana. Isto implica
que o Estado se deve reconciliar com os intelectuais moçambicanos, e que estes devem
também reconciliar-se com a política.
Vamos ter de reconciliar os jovens portadores de um saber moderno e os
nossos velhos portadores do saber tradicional. Vamos ter de reconciliar a cidade e o
campo. Sobretudo, vamos ter de retornar o contacto de trabalho com o campo, vamos ter
de começar a pensar que o futuro de Moçambique está no campo.
O anacronismo histó rico que nos habita quer que tenhamos consciência de que
o nosso futuro, como país agrícola, está no campo, mas que deixemos o campo para os
estrangeiros. E isto quer dizer que deixemos o futuro de Moçambique e dos nossos filhos
em mã os alheias.
Pousar todos os nossos projectos políticos (construçã o da democracia e
instauraçã o duradoira da paz) e econó micos sobre as nossas culturas, sobre a nossa
terra e sobre os moçambicanos nã o quer dizer renunciar a entrar no que se chama do
mundo moderno, mas tomar consciência de que nó s somos moçambicanos, nã o
japoneses, franceses ou suecos. Nó s nunca poderemos reproduzir as suas instituiçõ es
políticas nem ter o mesmo percurso econó mico, uma vez que as nossas bases culturais
sã o diferentes. Isto nã o quer dizer que nã o possamos viver democraticamente e
CAPITULO III
Cultura Jurídica
Desde há quase um século, existe em Moçambique uma governaçã o a partir de
cima. Alguns vêem-na começar a partir da centralizaçã o dos poderes em Moçambique,
consequência da criaçã o do Estado Novo em Portugal; outros com a redaçã o da Carta
Orgâ nica do Império colonial67.
A codificaçã o do direito colonial, que em certas matérias respeitava ou deixava
mesmo que fossem os direitos autó ctones a solucionarem certos problemas, nã o
significava um respeito maior pelas culturas moçambicanas (culturalmente influentes
para o discurso de legitimaçã o). Era, pelo contrá rio, uma espécie de colonizaçã o doce,
que tinha a vantagem de evitar revoltas por parte das culturas nacionais. Por este feito,
as diferentes culturas moçambicanas vivem, desde há quase um século, o fenó meno de
duplicidade jurídica. Nã o obstante o seu estatuto subalterno, os direitos autó ctones
foram sempre capazes de metamorfosear-se e adaptar à s novas situaçõ es, aos novos
desafios. Esta é talvez a maior prova da sua dinamicidade, adaptaçã o e mesmo evoluçã o.
Existe, portanto, em todas as culturas moçambicanas, uma tradicional «duplicidade
jurídica», velha de sessenta de anos.
Mas esses mesmos sessenta anos viram o nascimento e o incremento de uma
estrutura jurídica em Moçambique habituada, nã o obstante as suas referências
europeias –a Frelimo nã o mudou fundamentalmente este paradigma –, a ter que fazer
contas com a «teimosia» e mesmo a «renitência» da estrutura jurídica e política local.
Isto quer dizer que, desde há mais de cinquenta anos se criou uma bivalência entre
estruturas diferentes, que tiveram que aprender, muitas vezes contra a pró pria vontade,
a coexistir e transformarem-se no encontro de uma com a outra.
Se olharmos para o direito colonial português formulado pelos jurisconsultos
de Lisboa para Moçambique e as vicissitudes da interpretaçã o e aplicaçã o pelos actores
67
Citado por Ngoenha, Para uma reconciliação entre a Política e as Culturas (Op. Cit): 27.
CAPITULO IV
políticos e jurídicos68, damo-nos conta da distâ ncia que separa as intençõ es legislativas e
as possibilidades prá ticas da sua aplicaçã o.
Se um diá logo tendente a incrementar a presença das culturas na legitimaçã o
política se deve realizar, este deve partir desta tradiçã o moçambicana já existe. Nã o se
trata, portanto, nem sequer para o direito e para a política estatal, de deixar fora a á gua
suja com o bebé, mas, pelo contrá rio, de transformar este diá logo de força e de
submissã o dos direitos moçambicanos num diá logo de reconciliaçã o.
A priori, a tacha mais importante incumbe à política nacional e ao seu
organigrama de organizaçã o dos poderes pú blicos. Mais do que nunca, convém –para
evitar equívocos –reafirmar, de chofre, a necessidade de manter a configuraçã o das
fronteiras nacionais. Mas a existência de uma Naçã o e de um Estado responde a dados,
pelo menos na sua compreensibilidade e configuraçã o actual, desconhecidos pelos
diferentes direitos autó ctones, portanto, nã o susceptível de ser legitimado por eles.
Este é um a priori que os diferentes direitos têm que integrar nos seus
percursos e o governo do Estado se deve constituir garante. A conservaçã o das
fronteiras implica necessariamente o reconhecimento de direitos iguais a todos os que
vivem dentro dessas fronteiras (essa igualdade passa inevitavelmente pelo
reconhecimento e pelo respeito dos diferentes pontos de referência cultural de todos os
indivíduos) e também as garantias do crescimento dos indivíduos e das culturas no
interior das fronteiras nacionais.
Se a ideia de igualdade de direito, como anunciaçã o de princípio, é quase
evidente, é menos ó bvia a concepçã o de igualdade que podem ter as diferentes culturas
moçambicanas. Isto quer dizer que para que a política e o Estado, cujas referências
teó ricas e histó ricas se encontram em outras culturas histó ricas e sociedades, possam,
nã o obstante, encontrar uma legitimaçã o cultural moçambicana, os nossos legisladores
tem que ir haurir os seus paradigmas constitucionais da dú plice histó ria jurídica
moçambicana e temperá -los a partir da realidade histó rica actual.
Pluralismo Jurídico
A sociedade moçambicana é de facto plural: os macuas nã o sã o os macondes,
os changanas sã o diferentes dos chopes, etc. Se um certo poder organizador do Estado é
indispensá vel para que uma certa moçambicanidade jurídica seja possível, a unificaçã o
do direito como condiçã o da existência do Estado ou mesmo um excessivo centralismo
do Estado poderia pô r em causa pluralidade socioló gica da sociedade69.
Hoje é importante reconhecer as diferentes visõ es jurídicas nacionais e fazê-
las dialogar com o direito do Estado, cuja ló gica e natureza é tentar apropriar-se do
monopó lio do direito. Do discurso do Primeiro ministro à Assembleia, acima citado,
depreende uma vontade governista de reconhecer as prerrogativas jurídicas pró prias
das diferentes culturas moçambicanas e de integrá -las num processo de legalizaçã o e de
governaçã o. Este tipo de vontade é de determinaçã o do Estado tem comummente o
nome de pluralismo jurídico. Existem, porém, diferentes teorias do pluralismo.
Se as principais teorias do pluralismo jurídico foram elaboradas no decurso do
nosso século, algumas vêm de tempos mais longínquos.
O ensinamento tradicional do direito consiste em apresenta-lo como um
atributo de uma sociedade tomada na sua totalidade. É neste sentido que se fala do
direito moçambicano. Esta apresentaçã o repousa no postulado segundo o qual a
sociedade moçambicana possui um ú nico sistema jurídico, que rege o comportamento
de todos os dezasseis milhõ es de moçambicanos, e um corolá rio: os subgrupos da
68
Citado por Ngoenha, ibd: 28
69
Ibd:33
CAPITULO III
Transferência Jurídica
A prá tica jurídica colonial e a prá tica jurídica da primeira Repú blica obedeciam
à técnica da transferência jurídica. O resultado desse processo foi a coexistência de dois
sistemas. Muitas vezes, as comunidades continuaram a viver segundo o seu direito; o
direito recebido era só aplicado pelas instituiçõ es estatais. Poucos, sã o os casos nos
quais se pode falar de aculturaçã o jurídica porque, mesmo nas cidades, a maioria da
populaçã o continuou a viver segundo as normas de comportamento que relevavam da
prá tica jurídica e moral autó ctones. Podemo-nos perguntar se a prá tica da segunda
Repú blica, apesar de algumas concessõ es, nã o obedece ela também a um processo de
transferência jurídica.
CAPITULO III
moderno baseado mais sobre consideraçõ es de ordem econó mica que nas observaçõ es
dos dados socioló gicos. Mas é errado pensar que este seja incapaz de produzir novas
formas jurídicas. Este é um erro que consiste em confundir o conteú do do direito
tradicional e a sua ló gica.
Os textos constitucionais, adaptados na nova reforma para a organizaçã o dos
poderes pú blicos, foram decalcados dos modelos europeus que repousam sobre a
referência de uma entidade abstracta, o Estado, e de um regime de exportaçã o ocidental
sobre a separaçã o dos poderes. Estes princípios nã o correspondem nem à s nossas
culturas jurídicas, nem à organizaçã o da nossa sociedade. O que está em causa nã o sã o
os modelos em si, mas a sua aplicabilidade na nossa sociedade organizada de modo
diferente.
Se o idealizador da separaçã o de poderes, Montesquieu, tem razã o, nenhum
sistema jurídico é transferível ou importá vel. Isso nã o significa que nã o devamos
conhecer e aproveitar as experiências que nos sã o alheias, isto é, os mecanismos
técnicos, políticos, socais e jurídicos com os quais os outros povos deram respostas aos
problemas com que se tiveram que confrontar. Mais importante ainda é que temos que
nos conhecer profundamente a nó s mesmos: a nossa sociedade culturalmente
heterogénea, a nossa geografia vasta e conflitual, os nossos recursos (humanos)
insuficientes demográ fica e intelectualmente, a nossa posiçã o econó mica catastró fica, o
nosso lugar no mundo (entre os países mais pobres) e mesmo na Á frica Austral. E isso só
se consegue a partir de uma reflexã o muito séria e colectiva sobre o que, de facto, somos
e do que é Moçambique, a sua sociedade, as suas culturas e, sobretudo, os seus desejos e
aspiraçõ es.
Eu nã o falo do desejo e aspiraçõ es de um pequeno nú mero de indivíduos, por
melhor cultura e formaçã o que tenham, nem sequer falo do que um partido pensa que o
povo quer. Eu digo que é preciso que se faça um inquérito sério sobre o que sã o as
estruturas das nossas culturas e, sobretudo, sobre o que nó s queremos das nossas
culturas: os objectivos que nó s traçamos, os nossos sonhos, as nossas utopias, os nossos
ideais para, a partir daí, pensar o direito. A nossa democracia ou será moçambicana ou
nã o será .
No momento da independência o governo deu prioridade a dois problemas: o
desenvolvimento econó mico e a unidade nacional. Muitas vezes recorreu-se à
codificaçã o na esperança de resolver estes problemas. Para os adeptos do direito de
desenvolvimento, o direito tradicional parecia mal apetrechado e mal adaptado para
assegurar um desenvolvimento de tipo ocidental (Peter Abrams, Uma Côroa para
Udomo); acusava-se-lhe de estar imbuído de magia e de religiã o, de ignorar os conceitos
fundamentais, necessá rios para a economia do mercado, dado que ele ignora as formas
contratuais necessá rias à economia do mercado. Nas relaçõ es familiares, a família
alargada, o lobolo, a poligamia sã o concebidos como instituiçõ es que entravam a
acumulaçã o econó mica e a mobilidade social (K. Nkrumah). O direito latifundiá rio é
particularmente visado por estas críticas, que o acusam de conduzir à sub-exploraçã o do
solo. Os nossos legisladores fizeram reformas agro-latifundiá rias a fim de transferirem
as maiores superfícies possíveis de terra para o controlo do Estado. Muitas vezes, estas
reformas chocam com a hostilidade dos camponeses, muito agarrados aos seus sistemas
tradicionais.
Como afirma E. Le Roy, este procedimento revelou-se um instrumento de
subdesenvolvimento jurídico porque reforçou, por um lado, as desigualdades
econó micas e, por outro, excluiu, de facto, da vida jurídica indivíduos nã o lusó fonos, nem
escolarizados (que constituem mais de oitenta por cento da populaçã o moçambicana)
metendo, assim, em causa os objectivos de desenvolvimento e de integraçã o nacional.
CAPITULO III
Eis porque é estritamente necessá rio ter em conta as opiniõ es das populaçõ es,
nomeadamente no que concerne à sua relaçã o com o direito tradicional.
Insisto que nã o se deve confundir o conteú do do direito tradicional e a sua
ló gica. Se muitas reformas, justas e oportunas, nã o produziram os resultados desejados,
é porque foram sentidas pelas populaçõ es como imposiçõ es de exterior. Uma
transformaçã o gradual a partir de um processo de diá logo teria dado melhores
resultados. Se nã o se fez desta maneira, é só porque as codificaçõ es nã o eram simples
reformas jurídicas, mas serviam também certos interesses só cio-econó micos. As
mudanças correspondiam, em geral, a um aumento do poder do Estado e a certas
mudanças sociais. Ora, com as independências, o direito estatal, na sua concepçã o e na
sua aplicaçã o, passou a ser controlado pelos grupos de interesse que jogavam um papel
activo no desenvolvimento dos sectores «modernos» nacionais. A maioria da populaçã o,
sobretudo constituída por camponeses, ignorava este modo de pensar e o conteú do do
direito estatal, muito influenciado por modelos europeus. Era, portanto, normal que ela
o evitasse e continuasse a referir-se ao direito constitucional.
Isto explica que as legislaçõ es nã o tenham servido em nada os interesses da
unidade nacional, na medida em que elas nã o desembocaram numa unificaçã o do
direito. Como observou o jurista da Costa do Marfim, R. Degni-Ségui, as constituiçõ es e
os textos de organizaçã o judiciá ria da maior parte dos novos estados africanos referem-
se simultaneamente à codificaçã o e à uniformizaçã o do direito nacional. Mas ou fazem
codificaçõ es pelo direito estrangeiro, e acentuam assim a ruptura entre o direito
tradicional e o direito moderno, ou acabaram por consagrá -lo oficialmente voltando à
opçã o da legislaçã o e aos modos coloniais da soluçã o de conflitos de leis internas.
Contudo, muitas vezes o direito tradicional tinha antes passado por uma série de
medidas de desconfiança.
Moçambique, apesar das proclamaçõ es políticas, aplicou desde a
independência o princípio de sucessã o ao direito colonial português, por medo de se
encontrar diante de um vacatio jurídico, resultante do nã o conhecimento ou da
inadaptaçã o do direito tradicional. Trata-se de medidas conservadoras. No futura, nó s
teremos que integrar o direito tradicional e associá -lo ao direito moderno. Primeiro, o
direito tradicional foi excluído porque se pensava que ele correspondia a um estado
arcaico de desigualdades sociais. Hoje pensa-se que é inadequado à economia do
mercado.
As legislaçõ es estatais foram muitas vezes utilizadas contra o direito
tradicional. Mas muitas matérias ficaram sem codificaçã o, deixando campo aberto a que
o direito tradicional continuasse a exercer a sua influência. Mesmo nos momentos de
grande ortodoxia marxista, em certas matérias, nã o obstante os grupos dinamizadores e
as células do partido, o direito tradicional continuou a imperar, sobretudo no domínio
familiar e na resoluçã o de conflitos.
Os textos constitucionais moçambicanos foram decalcados de modelos
europeus, que repousam sobre a referência ao Estado, ao regime de separaçã o dos
poderes e a regra da maioria. Ora, estes princípios nã o correspondem à s experiências
das sociedades moçambicanas, onde o poder está ligado à autoridade pessoal da pessoa
que o exerce, e onde o consenso aparece mais como expressã o de unanimidade das
vontades do que simples lei da maioria. O pluralismo ocidental herdado da democracia
de Atenas permite a cada opiniã o exprimir-se e contabiliza através de uma adiçã o de
sufrá gios, o que comporta o sério risco de exasperar os antagonismos, tornando-os
ainda mais manifestos. A unanimidade pode, no ocidente como em outros lugares do
mundo, servir muitas manipulaçõ es e cobrir muitas injustiças, que é, aliá s, a outra parte
da moeda. Mas a vontade de coesã o que ele exprime encontra nas tradiçõ es africanas um
substracto muito só lido.
CAPITULO IV
Um novo direito mais democrá tico e mais integrador sob o ponto de vista do
desenvolvimento é possível. Porém, ele tem de ter muito mais em conta as diferentes
mentalidades moçambicanas e será nestas condiçõ es mais eficaz que os planos de
desenvolvimento até aqui muito decalcados dos modelos ocidentais. Nã o se trata de
recuar ao passado pré-colonial, mas de adaptar as antigas soluçõ es à s novas exigências.
Qual é a missã o que a democracia moçambicana quer hoje confiar ao Estado?
Quais sã o os aspectos de legalidade de que as sociedades moçambicanas querem abdicar
a favor da existência legítima do estado moçambicano? É necessá rio uma espécie de
contrato entre os subgrupos e o Estado, de maneira que cada um tenha a obrigaçã o
moral e legal sobre as suas acçõ es. O Estado deve ter que responder pelas suas
actividades, mas também os diferentes grupos devem ter que responder pelas suas
acçõ es. O banco de prova de uma democracia, que funciona no respeito pelas diferenças
culturais nacionais, deve passar pela capacidade de cada entidade ocupar
profundamente o seu lugar, no respeito pelas prerrogativas e pelo campo de outras
forças e instituiçõ es políticas e sociais.
Uma certa moçambicanidade já existe, e para criá -la a Frelimo jogou um papel
de primeiro plano. A questã o é saber se a sua consolidaçã o passa pelo reforço de
estruturas centralizadas (a descentralizaçã o quer dizer que existe um centro à volta do
qual gravitam todas as outras dimensõ es políticas e sociais) ou por valorizaçã o das
culturas nacionais no â mbito do Estado moçambicano. Valorizá -las significa nã o reduzi-
las a folclore nacional, nem sequer reabilitá -las maquiavelicamente para depois
subordiná -las à s estruturas centrais do Estado paradigmaticamente ocidental, mas
retomá -las como entidades em movimento e, portanto, como parceiros sérios para um
diá logo social, jurídico e econó mico.
Alguns pensadores insistem na dimensã o subjectiva ou espiritual da naçã o;
outros nas características objectivas e nas condiçõ es econó micas ou técnicas que estã o
na origem dos nacionalismos. Ora, é necessá rio ultrapassar estas oposiçõ es simplistas e
dar espaço à s ideias, aos valores e, ao mesmo tempo, à s condiçõ es concretas da
existência da naçã o.
Renan demonstrou a insuficiência da raça, da língua, da religiã o, dos interesses
e dos dados objectivos da geografia para definir a naçã o. M. Weber e Marcel Mauss
foram ainda mais longe na crítica à definiçã o objectiva da naçã o.
A subordinaçã o das identidades culturais ao elemento político supõ e que os
indivíduos tenham o sentimento de que a sua dignidade colectiva –portanto também
individual –é reconhecida e respeitada. Moçambique só pode atingir uma estabilidade
política se forjar um projecto político capaz de unir as etnias que o compõ em,
reconhecendo-lhes uma dignidade igual.
Hoje Moçambique pertence à ordem política nacional. Na medida em que a sua
existência é legitimada pela vontade dos cidadã os, depende do facto de que estes
interiorizem valores comuns. A moçambicanidade se funda, portanto, mais na moral que
na obrigaçã o, para utilizar a linguagem de Durkheim. Ela se constitui ultrapassando os
radicalismos particulares, imediatamente dados pela etnia através da socializaçã o
familiar, mas que devem ser construídos pela naçã o, para criar um sentimento de
pertença e de participaçã o graças ao qual o colectivo se pode perpetuar. O trabalho
realizado pelo Estado para dar uma certa homogeneidade à cultura das populaçõ es é
justificado, nã o pela preocupaçã o de fazer participar todos os indivíduos na vida pú blica,
mas para dar corpo à comunidade abstracta que é a naçã o e certificar-se da mobilizaçã o
colectiva.
A diversidade cultural enquanto tal nã o impede a criaçã o da naçã o. Ultrapassar
as particularidades através de uma sociedade política nã o implica a supressã o desses
radicalismos. Aliá s, nã o é nem possível nem desejá vel. A cidadania, contrariamente à
CAPITULO III
2. Contrato Social
72
Rousseau, 1995.
CAPITULO III
justiça que generaliza e leva ao mais alto nível de abstracçã o a teoria bem conhecida do
contrato social, como ela se apresenta, entre outros, em Locke, Rousseau e Kant.»
Algo em termos filosó ficos me parece importante nesta obra. Rawls inscreve a
sua obra numa perspectiva reformista apresentada como a ú nica via possível contra as
derrotas previsíveis da via revolucioná ria como aquela que conhecemos em
Moçambique.
Apesar de nos encaminharmos em direcçã o a um sistema liberal, a situaçã o de
injustiça que se vive hoje no mundo e em Moçambique nã o é aceitá vel. Ouvi um
deputado a dizer na TVM, «o liberalismo (referindo-se à s privatizaçõ es e ao sistema de
mercado selvagens) é o que está a dar».
Uma figura histó rica da política moçambicana disse-me ter constatado numa
reuniã o do partido a que pertence –a partir dos bens e do discurso –a impossibilidade do
regresso a uma prá tica socialista. E acrescentou que a Frelimo foi o que foi dividido ao
contexto internacional. Hoje, isso nã o é possível e tentar fazer o discurso de 1977 seria
suicídio histó rico.
Todavia, a injustiça, a exploraçã o e a miséria da maioria da populaçã o
tornaram-se moralmente e politicamente aceitá veis? Os políticos nã o podem ser
fatalistas, as posiçõ es políticas nã o podem depender do que está a dar, mas devem
revelar de convicçõ es fortes. É verdade que a via da revoluçã o nã o é praticá vel e nã o só
por razõ es de conjuntura histó rica. Mas isso nã o pode significar nem conformismo nem
que aceitamos pautar com a injustiça. Existe uma busca intelectual e um debate no
interior do mesmo mundo liberal em favor do «reformismo».
É neste sentido que defendo o pensamento de Rawls. Pode ser uma
contribuiçã o pertinente para pensar Moçambique.
Com efeito, apesar de ressuscitar o contrato social, Rawls nã o faz um simples
retorno à s teorias clá ssicas do direito natural. Ele parte de uma hipó tese do interesse, na
medida em que esta lhe permite e lhe pode permitir uma imagem rigorosa do que
deveria ser uma sociedade justa, uma sociedade bem ordenada. Mas é necessá rio
restituir o verdadeiro sentido à posiçã o original, isto é, à situaçã o de incerteza que
logicamente precede o momento da assinatura do pacto.
Para Rawls, os futuros contratantes nã o deveriam saber do que seria a sua
sorte pessoal depois da assinatura. Mantidos num estado de ignorâ ncia, sem nenhum a
priori filosó fico ou religioso, eles acabariam por aderir ao sistema que melhor
combinaria estas duas exigências: a exigência da maior liberdade individual (no caso em
que se nasce rico) e, por outro lado, (quando se nasce pobre) a da maior igualdade
possível de chances. Esta situaçã o desembucha sobre a formulaçã o de dois princípios
susceptíveis, a eles só , de definir o que se deve esperar de uma sociedade justa.
Contra os marxistas, ele afirma que o primeiro princípio é o da liberdade, que
nã o pode ser limitado por nenhum outro que nã o seja a liberdade ela mesma. Contra os
utilitaristas, ele anuncia o princípio da diferença segundo o qual a preocupaçã o pela
justiça em geral deve, em todas as circunstâ ncias, ser colocado antes da preocupaçã o
pela eficiência e pelo bem-estar.
A priori resulta claro que os princípios acima enunciados parecem jogar uns
contra os outros. O direito à educaçã o, à assistência médica a serem oferecidos aos mais
desfavorecidos só pode ser financiado por um mecanismo de redistribuiçã o de riquezas
com o imposto progressivo sobre o salá rio, mecanismo que implica para os mais ricos,
uma limitaçã o da sua liberdade de se enriquecer. Rawls pensa que é possível conciliar
estes dois princípios só se o pacto social for capaz de instaurar instituiçõ es a que ele
chama de democrá tico-progressistas.
Há , contudo, aspectos do pensamento de Rawls que deixam um pouco a
desejar. Primeiro, em nenhum momento ele prospecta uma sociedade fundada sobre
CAPITULO IV
outra coisa que nã o seja o mercado livre de tipo capitalista. Apesar de uma tentativa de
afirmar que a sua concepçã o do mercado livre nã o implica necessariamente a
propriedade privada dos meios de produçã o, fundamentalmente toda a sua doutrina
repousa sobre o postulado frá gil, segundo o qual a construçã o de um Estado justo só se
pode efectuar lá onde existe previamente uma economia do mercado, isto é, um
capitalismo liberal. Aplicado a Moçambique, nó s estaríamos condenados à injustiça até
ao estabelecimento definitivo de uma economia do mercado. A justiça depende, assim,
do mercado, e onde nã o há ou ainda nã o há um mercado bem estabelecido se deveria
renunciar à procura da justiça.
Para além de ser perfeitamente indemonstrá vel, um tal postulado apresenta
um outro inconveniente: ele conduz-nos, sem nenhuma forma de processo, ao universo
de A. Smith, Bentham, J. S. Mill, e isto em detrimento da intençã o de partida da teoria da
justiça que era de se contrapor à definiçã o utilitarista da justiça (assimilada por J.S. Mill
com a eficiência econó mica) com uma definiçã o de inspiraçã o kantiana da justiça como
equidade.
Pior ainda, a partir dos anos 80, com as suas intervençõ es Rawls abandona a
posiçã o universalista do seu primeiro livro, onde ele reivindicava a validade da sua
teoria de justiça para todas as sociedades, e confina a validade do seu pensamento à s
sociedades já democrá ticas e liberais.
Por outras palavras, as sociedades africanas –para citar o nosso caso –desde
que respeitem um mínimo de direito do Homem e sejam minimamente ordenadas,
podem continuar a ignorar a liberdade e a justiça. É como dizer que a liberdade e a
justiça sã o prerrogativas exclusivas de alguns povos. Rawls postula este perigoso
relativismo cultural e racismo axioló gico em nome do respeito pelas culturas...
Isto significa carta branca a certos governos totalitá rios do continente em
nome do relativismo cultural, mas isso significa também carta branca a certas empresas
do norte nos países do sul e, sobretudo, consolida certas posiçõ es da sociobiologia. Sob o
ponto de vista filosó fico e ético, o relativismo cultural é inaceitá vel.
Contudo, as teses de Rawls suscitaram um enorme debate e alimentaram o
essencial do debate filosó fico político dos ú ltimos anos.
Em relaçã o aos pressupostos metodoló gicos, Jurgen Habermas contesta que
estes sejam «metafisicamente neutros», ao mesmo tempo que acusa os dois princípios
de Rawls de desenharem uma sociedade estagnada. Uma sociedade no seio da qual o
papel do que se chama «auto-legislaçã o democrá tica» (ela mesma fundada sobre uma
utilizaçã o pú blica –polémica, portanto, comunicacional –da razã o) nã o seria
suficientemente valorizada.
Todavia, as teses destes dois filó sofos sã o de tal maneira pró ximas que os seus
desacordos nã o têm que ser exagerados. Como diz o pró prio Habermas trata-se de uma
«querela» de família73. Aliá s, o pró prio Rawls, minimizando as polémicas, mostra estar
de acordo com a posiçã o de Habermas.
Richard Rorty é resolutamente oposto. Depois de ter rompido com os
«dogmas» da filosofia analítica para voltar-se para o pragmatismo de William James e
John Dewey, nã o cessa de repetir que a ilusã o fundadora é a ilusã o filosó fica por
excelência. A construçã o através da qual Rawls defende a sua concepçã o de justiça
parece-lhe uma ilustraçã o do erro que consiste em crer que a democracia teria
necessidade, por se sentir «em boa saú de», de uma qualquer «justificaçã o» filosó fica.
Para Rorty, o melhor argumento em favor da democracia é a democracia mesma.
A questã o que a posiçã o de Rorty levantava é saber até que ponto as
convicçõ es democrá ticas se coadunam com um relativismo metodoló gico, isto é, uma
radical ausência de fundaçã o.
73
J. Habermas, 1977.
CAPITULO III
Temo dever dar razã o a Rorty, dado que se deve admitir que a passagem de
um «ponto de vista transcendental» a um ponto de vista «neo-pragmá tico» nã o nos
deveria conduzir a renunciar à convicçã o segundo a qual a democracia constitui um bem
para todas as sociedades actuais, independentemente das diferentes especificidades
culturais.
Que nã o haja verdade metafísica nã o impede que certas coisas sejam
verdadeiras. Que toda a verdade nã o seja demonstrá vel nã o implica, ipso facto, que tudo
valha, nem que todo o esforço de pensamento seja antecipadamente inú til.
Uma segunda controvérsia (que nos interessa de perto em Moçambique) é
saber qual deveria ser o peso relativo do Estado numa sociedade democrá tica. Robert
Nozick (Anarquia, Estado e Utopia, 1974) autêntico porta-voz dos libertinos e
anarquistas –como Noam Chomsky –defende o cidadã o contra os direitos pú blicos. Pode
existir um poder superior ao excelso poder dos indivíduos? Eis o postulado de partida
do trabalho de R. Nozick (1974:9).
Nozick nã o adere à teoria anarquista no sentido estrito do termo, apesar de ter
escrito a sua obra nos ambientes aná rquicos californianos pó s-68. Ele pensa que um
estado minimal é preferível ao estado de natureza, como, por exemplo, foi descrito por
Locke. O estado de natureza expõ e os indivíduos a toda a espécie de violências. Contra
uma tal violência, existe só um remédio que é a instauraçã o de um sistema de proteçã o
pú blica, dotada oficialmente de um monopó lio do uso da força, isto é, o Estado.
Todavia, este Estado deve permanecer num estado minimal e o seu papel deve
limitar-se, segundo Nozick (1988:45), à s simples questõ es de protecçã o contra a força, o
roubo, a fraude, assim como a garantir a aplicaçã o dos contratos.
Como Chomsky, Nozick recusa admitir que a tolerâ ncia possa ter limites, ou
que o Estado tenha o direito de proibir seja o que for que crie problemas à sociedade,
quer seja de ordem física, psíquica ou mental.
Ele aceita o imposto, porque para que o Estado possa exercer o seu direito de
violência legítima, segundo a famosa fó rmula de Max Weber, ele tem necessidade de
prelevar os impostos. O imposto, em si mesmo, nã o é amoral, na condiçã o de que sirva
para financiar serviços protectores. Armado destas bases libertinas, Nozick (sobretudo
na segunda parte do seu livro) ataca Rawls em quatro pontos fundamentais.
Inspirando-se de Tocqueville e de Mill (On Liberty, 1859) Nozick recusa o
direito de o Estado impor à sociedade uma qualquer definiçã o de bem, de moral ou de
justiça. Ainda mais, nã o existe nenhum meio de determinar rigorosamente o que cada
membro de uma sociedade mereceria a título de justiça distributiva.
1) A distribuiçã o de riquezas defendida pela teoria da justiça beneficia, só na
aparência, a colectividade no seu conjunto. Na realidade, ela beneficia os mais dotados.
2) A desigualdade de chances, no começo da vida, é na verdade um problema
social, mas nã o deve ser encarado com um espírito autoritá rio e centralizador, pela
simples razã o que a vida nã o é uma corrida, na qual estaríamos todos em competiçã o
com vista a ganhar um prémio pré-estabelecido por alguém.
Enfim, se passarmos da teoria à prá tica constatamos que os verdadeiros
beneficiá rios das intervençõ es do Estado na economia nã o sã o verdadeiros pobres, mas
as classes médias.
O que fazer se a justiça distributiva e a igualdade social nã o sã o a soluçã o? Para
Nozick deve-se, de um lado, recorrer à generosidade voluntá ria e, do outro, apela para
novas soluçõ es num espírito declaradamente utó pico.
Os chamados filó sofos comunotaristas (MacIntyre, Charles Tylor, Michael
Sandel) criticam a posiçã o de Rawls quanto à sua visã o do ser humano, concebido como
um indivíduo abstracto e isolado, detentor de direitos intemporais. Eles começam por
constatar que a doutrina de Rawls, que eles etiquetam de liberal, constitui um progresso
CAPITULO IV
Com efeito, nos Princípios da filosofia do direito (1820), para justificar a sua
crítica ao individualismo liberal kantiano, Hegel apoia-se sobre a necessidade de
distinguir dois conceitos falsamente pró ximos um do outro. La Sittlichkeit (ou a
moralidade objectiva) que se refere à s normas condivididas por uma comunidade. Ela
fundamenta-se na obrigaçã o na qual me encontro, enquanto membro de uma
comunidade, de realizar as potencialidades morais que já estã o lá , implícitas na maneira
de viver desta ú ltima. A Moralität (ou a moral subjectiva, única figura de moral que Kant
conhece) remete, ao contrário, para princípios abstractos, não realizados como tais na
comunidade na qual me reclamo.
A partir de lá, Hegel mostra como o individualismo liberal deve ser dialecticamente
ultrapassado (aufgehoben), dado que a Sittlichkeit –e não a Moralität –está à altura de
colmatar as nossas aspirações mais elevadas. A liberdade humana só se pode realizar no
quadro de Sittlichkeit, isto é, no quadro de uma comunidade ética e política que exprime
completamente a identidade dos seus membros. Uma comunidade cujo estado moderno, ele
mesmo resultante do surpasso (aufhebung) da família e da sociedade civil burguesa,
representa, segundo Hegel, a forma mais completa, aquela com a qual se pode realizar, o fim
da história.
Um pouco distante desta vasta interpretação filosófica, Michael Sandel, no livro
Liberalismo e os limites da justiça (1982) prestou-se a identificar, de maneira mais precisa, as
fraquezas da definição liberal do eu como «eu sem qualidades» e as correlativas concepções
do Estado sem um verdadeiro projecto ético.
Se o indivíduo fosse simplesmente um ser detentor de direitos, e não um agente
moral e social, ele teria incapaz de se exprimir pelo seu próprio carácter, de descobrir-se
através da experiência do conhecimento de si e, finalmente, sentir a amizade pelos seus
semelhantes. Em suma, não teria nada a ver com o que sabemos dos seres humanos reais.
Quanto à justiça distributiva, se, como pretende Rawls, ela pode ser definida de
uma maneira metafísica «neutra», sem referência a nenhuma ideia de bem, se ela pode ser
reduzida a uma série de procedimentos ou de cálculos, então ela cessa, ao mesmo tempo, de
constituir o único objectivo válido para uma comunidade política. Não só porque ela nunca
será realizada de facto, mas, sobretudo, porque um tal objectivo é, por ele mesmo, demasiado
limitada para oferecer à vida comunitária um objectivo exaltante.
Nem Sandel, nem Taylor criticam Rawls do ponto de vista conservador. Ao mesmo
tempo, nenhum dos dois primeiros ataca o estado de providência. A questão deles seria uma
providência, sim, mas para fazer o quê? Se nós não somos capazes de dar à nossa existência
social uma outra finalidade que não seja a defesa dos nossos pretensos direitos?
Para os comunotaristas, sobretudo os que se dizem da esquerda, como Sandel e
Taylor, deve-se denunciar a abstracção que é a justiça distributiva, mas, sobretudo, deve-se
voltar ao conceito «cívico» e «republicanao» (para não dizer romano) até mesmo
«aristotélico» do bem público.
À margem deste debate, uma outra discussão opõe, desde alguns anos, dois
americanos que se dizem ambos discípulos de Rawls: o jurista Ronald Dworkin e o
historiadro e antropólogo Michael Walzer.
No seu principal livro, Tomar os Direitos a Sério (1977), que, na realidade, é uma
compilação de artigos publicados durante os dez anos precedentes, Dworkin ataca dois
adversários: de um lado, o utilitarismo e, do outro, o positivismo jurídico. O jurista começa
por recordar que o direito não se reduz a um conjunto de regras jurídicas inscritas nos códigos
existentes. Confrontado com situações para as quais o código não traz nenhuma solução, o
juiz é frequentemente obrigado a interpretar a lei. Neste caso, a única base sobre a qual ele
pode se apoiar é a moral. Não a sua moral pessoal, dependente das suas convicções filosóficas
ou religiosas, mas a moral que se depreende dos princípios fundamentais da constituição do
seu país, da qual ele é, de certa maneira, garante.
CAPITULO IV
constatação empírica: uma certa dose de pluralismo social e cultural é indispensável a toda a
comunidade humana. Todo o cidadão aspira possuir diferentes espécies de bens, e todos os
cidadãos não procuram, necessariamente, nem o mesmo grau, nem os mesmos bens. Uma
dada sociedade divide-se, portanto, em diferentes esferas. Seja, por exemplo, o mercado
económico, o mundo da administração, da educação, da saúde, da vida familiar, da vida
religiosa, das honras públicas. Em cada uma destas esferas uma espécie de bem determinado
(dinheiro, poder, tempo livre, conhecimento, longevidade, o amor, graça divina, ou as
recompensas oficiais) é procurada por ela mesma. E, em cada esfera, este bem é manipulado
por um pequeno grupo. Esta seria a fonte das desigualdade.
A partir desta análise (que Walzer fez habitualmente derivar de Pascal e do jovem
Marx) existem dois remédios possíveis: ou, como recomenda Marx, se tenta destruir os
monopólios, ou então se toma o seu partido, e apoia-se a um perigo talvez maior, que é o facto
de algumas esferas tenderem a predominar sobre outras.
Walzer opta pela segunda pista. O objectivo não é transformar a sociedade por via
revolucionária, mas estabelecer protecções destinadas a impedir que pequenos grupos no
interior de cada esfera monopolizem um determinado bem, utilizem a sua posição para se
apoderarem, pela violência, dos bens procurados em outras esferas. Em suma, trata-se de fazer
de maneira que os chefes do mercado não se tornem chefes da administração, nem que os
detentores da graça divina, os controladores do saber. A condição é que as esferas coexistam
sem se justaporem, que não haja transgressões de fronteiras e que os indivíduos sejam livres
de escolherem e pertencerem a diferentes esferas. As desigualdades mais graves poderiam,
assim, ser reduzidas.
Walzer qualifica um tal sistema de justo. Quer dizer que a sua concepção do
indivíduo é menos desencarnada que a de Rawls e mais preocupada pelo contrato concreto
(necessariamente histórico) dos membros de uma comunidade determinada e das suas
aspirações. Enquanto Dworking faz da igualdade entre os cidadãos o valor fundador de toda a
democracia, Walzer opõe-se a este igualitarismo simples, em nome do facto de que os homens
não querem ser simplesmente idênticos uns aos outros. Eles fazem todos muitas diferentes
actividades nas esferas mais diversas. Contra a visão legalista da igualdade, segundo ele
demasiado matemática, Walzer propõe o que ele chama um igualitarismo complexo, no qual
os que perderiam aqui ganhariam lá. Não haveria nem absolutamente vencedores, nem
absolutamente vencidos.
A condição, evidentemente, é que o Estado jogue o seu papel e faça respeitar as
diferentes esferas. Por outras palavras, limitando as tendências expansionistas do mercado
através de medidas apropriadas, como as que preconizam os sócio-democratas.
Dworking responde acusando Walzer de relativismo antropológico. Qualquer
sistema que respeitasse o axioma da separação das esferas seria justo. Neste sentido, o sistema
hindu de castas fundado sobre uma grande desigualdade deveria ser considerado justo.
Quais as razões desta longa exposição do debate filosófico-político especificamente
americano?
1. Porque ele gravita em volta de John Rawls que teve o grande mérito de
ressuscitar a filosofia política.
2. Porque esta ressurgência da filosofia política mostra a possibilidade de
coexistência de dois saberes complementares: o saber filosófico com as suas
ambições normativas ao lado do saber das ciências sociais com as suas
pretensões descritivas.
3. Porque este debate mostra que não só a filosofia não perdeu o seu território e
lugar a favor das ciências sociais, mas mostra também que o fim de uma
contraposição ideológica não significa o fim da história, pelo menos entendida
como fim de um debate político ou de uma procura da parte da filosofia do
famoso melhor regime platónico.
CAPITULO IV
4. Este debate mostra que o debate «intra» liberal, antes mesmo de ser de carácter
político é radicalmente filosófico: é um debate de ideias que resulta da
preocupação intelectual de levantar questões que minam ou podem minar o
sucesso mesmo da democracia liberal.
5. Rawls e o debate mostram que a liberdade não é suficiente para garantir a
democracia liberal, mas que tem que ser incondicionalmente acrescentada pela
preocupação de Rousseau: fazer com que a discrepância entre os ricos e os
pobres não aumente exponencialmente, mas diminua.
6. Este debate mostra que o liberalismo tem de integrar as preocupações
igualitárias e distributivas das quais até agora a esquerda se tem feito intérprete.
Da mesma maneira, os antigos sistemas de esquerda que pecavam por um
défice de liberdade, tem que integrá-la, sem necessariamente abdicar dos
valores igualitários e distributivos de que eram portadores.
7. Se eu me reclamo e me reclamei do contrato –que para mim não pode ser
simplesmente social, mas tem que integrar as dimensões do cultural e do
político –é porque na esteira de Rawls convoco o conceito de contrato para
metê-lo ao serviço da justiça, sem a qual a liberdade perde todo o seu sentido.
Em conclusão, o Estado e as suas diferentes formas não são e nem podem ser
considerados dados de facto. O espaço político é e deve permanecer um campo aberto. A
realidade primeira da socialização é a diversidade espácio-temporal dos indivíduos. Os
homens são movidos por uma multiplicidade de interesses e de opiniões. Não nos devemos
nem angustiar com esta diversidade ao ponto de lhe impor uma norma do exterior ou uma
pretensa unidade preliminar, nem celebrá-la ao ponto de favorecer rupturas. A aposta em jogo
é a conciliação do «um» com o múltiplo: um «um» que corresponde ao movimento infinito de
uma multiplicidade confrontada com uma pluralidade activa da sua própria mediação.
Incumbe à reflexão filosófica incrementar espaços de liberdade, transformar as
situações de injustiça, elaborar propostas, esclarecer os fins políticos e transformá-los. Não se
trata de estabelecer uma enciclopédia, um programa político ou um sistema de filosofia
política, mas de se apropriar das questões políticas nacionais através de uma análise
conceptual susceptível de explicitar as apostas em jogo e servir de substracto mental cultural e
filosófico para um debate de sociedade e para uma transformação política nacional em função
do futuro. Tudo isto sem, contudo, ignorar as contribuições de pensadores de outras
sociedades e culturas que deram respostas aos problemas com que as suas sociedades
estiveram confrontadas num determinado tempo e etapa das suas histórias. Mas sem também
fazer delas verdades transcendentais, prometeicas, pontos de passagem obrigatória, cidades
platónicas, Jerusalém celeste pelas quais devemos passar para atingir uma eventual
soteriologia terrestre, que acabaria por produzir efeitos contrários.
O ponto nevrálgico da reflexão filosófica africana em geral, e moçambicana em
particular, é a busca da liberdade e hoje ouso acrescentar a busca da justiça.
3. Contrato Político
Sabemos da histó ria que o processo da escravatura foi facilitado pelas nossas
divisõ es internas; sabemos que o colonialismo foi também facilitado pelas nossas
divisõ es; sabemos que, para neo-colonizar a Á frica, o Ocidente, desde o Congo até
Moçambique, passando pela Nigéria, utilizou ou suscitou divisõ es.
Mas a histó ria nos ensina que quando fomos capazes de unidade, fomos fortes
e conseguimos, se nã o ganhar, pelo menos resistir! Eis porque o «contrato político» que
permitiu a unificaçã o da Udenamo, Mani e Unamo e a fundaçã o da Frelimo tem um
grande valor pragmá tico, político, mas sobretudo moral.
CAPITULO III
espécie de contrato social, que temos necessariamente que fazer como país e como
sociedade. Deve existir um certo nú mero de coisas intocá veis, que nenhum governo
pode tocar sem violar os direitos soberanos do povo e abusar do poder. Mas o que
simboliza a liberdade e a soberania deve ser um certo nú mero de coisas tangíveis,
materiais, concretas. Como também devem ser um certo nú mero de prá ticas e de
símbolos.
As forças políticas e sociais moçambicanas devem ser os principais
interlocutores umas das outras na vida política moçambicana. As forças políticas
moçambicanas deveriam fazer um deal sobre o essencial, o indiscutível, deveriam fazer
com os povos de Moçambique uma espécie de contrato social sobre a essência mesma da
liberdade moçambicana, sobre o que nã o é negociá vel, o que deveria constituir o
fundamento normativo do Estado. A nível de bens econó micos que constituem o
patrimô nio nacional (portos, caminhos de ferro, minas, terras, etc.), de jurisdiçã o-
política, espaços estritamente nacionais que nã o sã o acessíveis a estrangeiros
(ministérios, lugares de defesa, de segurança, de planificaçã o, etc.), prerrogativas
ciumentamente nacionais nã o cedíveis a ONG, cooperaçõ es, doadores, etc.
No seu funcionamento, o Estado implica uma certa responsabilidade política
dos governantes. Trata-se de uma responsabilidade ligada ao exercício do poder,
autó noma e específica enquanto ela nã o releva nem dos méritos histó ricos –a luta
armada contra o colonialismo português, ou contra a existência de um partido ú nico em
Moçambique –nem implica a vontade de conservar o poder a todo o custo. O seu objecto
deveria ser consagrar, através do funcionamento dos poderes pú blicos, a ideia de que os
governantes estã o, de facto, ao serviço dos governados e que lhes devem contas. No
domínio constitucional, a responsabilidade política implica que toda a pessoa investida
de um mandato de representaçã o, instituída em instrumento de actuaçã o do Estado,
deve prestar contas à Naçã o das suas acçõ es e assumir as consequências das suas acçõ es.
Inversamente, esta responsabilidade política dos governantes impõ e aos cidadã os a
obrigaçã o moral de tomar em consideraçã o a necessidade de assegurar a preservaçã o da
comunidade. Isto implica que eles têm a possibilidade real de exercer o seu papel de
censores do poder.
As forças políticas devem exigir negociaçõ es com as instituiçõ es internacionais
que sejam conformes à s prerrogativas de soberania e do respeito pela unidade e
integridade nacional. Isto deve ser, contudo, precedido por um consenso entre as forças
políticas nacionais e mesmo tradicionais para poderem, sem ambiguidades, falar em
uma só voz. Estas prerrogativas sã o capitais para o futuro, e nem sequer direi da
democracia, enquanto inerentes à democracia representativa, mas para a convivência
civil em Moçambique, e para prevenir dramas com proporçõ es imprevisíveis. Trata-se
de moralizar a vida política que apela para os governantes e os partidos políticos
despirem, efetivamente, e de uma vez por todas, o passado histó rico, mesmo se grande e
insubstituível, de libertadores da pá tria moçambicana, e para os governados exercerem,
efectivamente, ao seus direitos soberanos no respeito pelos interesses presentes e
futuros da comunidade nacional. Trata-se da necessidade de um renovar da vida política
moçambicana, cultural (mais de participaçã o dos diferentes componentes culturais na
vida política) e deontologicamente –no relacionamento dos partidos políticos entre eles,
mais de respeito das elites governativas pelos interesses do presente e do futuro de
Moçambique, mais diá logo e mais escuta da vontade e dos interesses do povo.
O específico das ciências filosó ficas no contexto actual deveria ser a invençã o
de espaços e de mecanismos de incremento da soberania, quer contra o
intervencionismo anti-democrá tico dos democratas ocidentais, quer, e sobretudo, no
trabalho sobre as condiçõ es susceptíveis de libertar a imaginaçã o e a criatividade nos
moçambicanos, a fim de podermos assumir responsavelmente a nossa liberdade.
CAPITULO III
Bibliografia