Você está na página 1de 101

Prefá cio

(Por José P. Castiano)

Die Eule der Minerva beginnt erst mit der einbrechenden Dämmerung ibren Flug 1.
Estas palavras de foram escritas por G.F.Hegel (1770-1831), o considerado pai da
filosofia clá ssica alemã , no penú ltimo pará grafo do prefá cio à sua obra Grundlinien der
Philosophie des Rechtes2 a 25 de Junho de 1820, data em que o assinava. Na mesma data,
em Moçambique, aproximadamente um século e meio depois, Samora Machel proclama
a Independência total e completa de Moçambique acto que formalizou a Liberdade
política. Se há alguma coisa que o filó sofo Ngoenha teria desejado fazer, seria convidar o
velho Hegel a assistir a um dos momentos mais importantes da caminhada do povo
moçambicano para a sua Liberdade. Mas ao invés disso, Ngoenha obsequeia-nos com a
visita da coruja da Minerva por via deste livro no vigésimo ano da Independência de
Moçambique, ano das terceiras eleiçõ es multipartidá rias para o Parlamento e
Presidência da Repú blica.
A coruja é a ave que a Minerva envia para anunciar as boas novas. Quando ela
levanta o seu voo e o povo a vê chegando, sabe que é prenú ncio da luz da esperança.
Algo vai mudar? No mesmo pará grafo, antes desta frase, Hegel escreve: “Enquanto
pensamento do mundo, [a filosofia] aparece no tempo só depois da realidade ter
consumado o seu processo de formaçã o e esteja realizada3”. A ideia é que a Filosofia,
como amor pela sabedoria, é um Gedanke (pensamento) sobre os fundamentos dos
fenó menos da natureza, da sociedade e do pensamento. Entre os quais estã o os
fenó menos políticos. A Filosofia para este pensador, é o resumo do tempo no
pensamento, por isso só pode chegar ao “entardecer” depois de tudo acontecer durante
uma jornada. Para Hegel, neste sentido, a Filosofia é contemplativa e é o ponto de
chegada reflectiva.
Ngoenha se propõ e com este livro fornecer os fundamentos para o pensar
filosó fico sobre a Democracia moçambicana. Chegou tarde demais como a coruja da
Minerva? Ou chegou ainda a tempo de, com o livro, espalhar uma luz do olhar filosó fico
sobre o processo político em Moçambique? Ele pró prio diz que as questõ es que trata
neste livro foram suscitadas há quase quatro anos atrá s. De lá para cá lhe perseguiram
nas suas reflexõ es e conversas. O convite da Academia Filosó fica na Matola em 1999 foi
o ponto de partida e pretexto para pensar e escrever sobre o papel da Filosofia,
particularmente da Filosofia Política, em Moçambique. O convite foi nas vésperas das
eleiçõ es legislativas e presidenciais de 1999. Ngoenha vem responder quase cinco anos
depois ... por sinal [?] nas vésperas de outras eleiçõ es gerais. Tarde como a coruja da
Minerva? Sim porque as eleiçõ es que eram a ocasiã o do questionamento já se
realizaram. Mas Ngoenha precisava de tempo para reflectir sobre os fundamentos. E
pensar sobre os fundamentos precisa de prudência porque pomos em evidência e
pensamos sobre os erros, conflitos, lutas e disputas do passado com os olhos postos no
futuro. Mas Ngoenha tem uma visã o interventiva e nã o contemplativa da Filosofia. Tal
como o jovem Marx, ele defende que a Filosofia nã o só deve interpretar o Mundo – o que
Hegel até aí fizera –mas ela deve sobretudo transformar o Mundo procurando oferecer
1
“A coruja da Minerva só levanta o seu voo quando chega o crepúsculo” (tradução minha). Há pelo
menos uma boa dezena de traduções diferentes desta frase de Hegel, alterando, naturalmente, ligeiramente o
seu sentido. Em algumas traduções portuguesas se emprega o termo mocho e não coruja e ainda o termo
entardecer ao invés de crepúsculo. Atenas ou Minerva era a deusa da cidade de Atenas, da coruja e da oliveira
e da civilização, era a encarnação da sabedoria, da razão e da pureza.
2
Fundamentos da Filosofia do Direito.
3
“Als der Gedanke der Welt erscheint sie [die Philosophie] erst in der Zeit, nachden die wirklichkeit
ihren Bildungsprozeβ vollendet und sich fertig gemacht hat”. (Hegel, F., Philosophie des Rechtes. Vorrede, Bd.
7,9p.)
aos homens melhores alternativas de interpretar e agir sobre a sua Histó ria. Por isso
acho que, para além de ter pensado na Filosofia em Geral, Ngoenha personalizou a
questã o. Entendeu e bem que a sociedade moçambicana através dos membros da
ACAFIL, lhe estivesse a questionar «qual é o teu papel como filó sofo em Moçambique? ».
Naturalmente que, assim colocada a questã o, os proponentes queriam manifestar,
através de Ngoenha, o desejo de ver nos intelectuais moçambicanos, um maior
engajamento teó rico-crítico e mais intervençã o nos processos políticos nacionais, se é
que estes têm a pretensã o de ser intelectuais moçambicanos. E Ngoenha responde a este
apelo com ousadia e arrojo que testemunham o seu ímpeto de querer ser mais
interventivo no processo moçambicano. Por exemplo, numa das passagens, escreve o
seguinte: “digo muitas vezes que lamento ter nascido tarde e nã o poder ter aderido
naquela luta [de libertaçã o] que continua a ser nos meus olhos justa”. Mas ao escrever a
presente obra Ngoenha socializa a questã o, isto é estende o convite de reflexã o para
outros intelectuais como ele, desafiando-os desta feita a trazerem as suas reflexõ es
sobre as seguintes questõ es fundamentais para Moçambique: qual é o sentido actual de
lutar pela Liberdade no nosso país democrá tico? Como devemos militar e lutar por este
sonho da Liberdade? Quais sã o as nossas armas e que sã o hoje os inimigos da Liberdade
dos moçambicanos? Numa linguagem menos militante podemos formular a questã o
desta forma: Quais sã o os constrangimentos de hoje à Liberdade dos moçambicanos e
qual é o papel da Filosofia na maximizaçã o das liberdades democrá ticas dos indivíduos e
povos assim como na sua participaçã o política?
Vista neste â ngulo, a coruja nã o chegou tarde porque nunca o sentimento de falta
de liberdades esteve tã o presente como hoje nos países africanos; e a filosofia africana
nunca como hoje se sentiu tã o chamada a mostrar luzes que iluminam o caminho dos
povos africanos para a sua liberdade. Aliá s, se há uma filosofia que desde o seu
surgimento tem como sua essência a busca da liberdade, esta filosofia é a africana; é
tanto assim que Ngoenha declara que ela sempre foi marcada pelo paradigma libertá rio:
“se existe um substracto filosó fico que está na origem axioló gica de Moçambique é sem
dú vida a busca da liberdade”, escreve Ngoenha em relaçã o ao processo moçambicano.
Esta liberdade que se busca tem duas facetas: a positiva, segundo o autor, quer dizer
liberdade (ou direito) de sermos nó s mesmos” e a negativa, enfatiza a necessidade de
vivermos sem constriçõ es de cará cter político e econó mico.
Este livro de Ngoenha é em si uma das luzes que a Minerva traz para iluminar a
caminhada dos moçambicanos para uma maior maximizaçã o das Liberdades individuais
e colectivas.
Caminhemos, pois, com o livro.
No capítulo I, cujo título é Filosofia e democracia em Moçambique- pela sua funçã o
na obra trata-se de um capitulo introdutó rio- o autor pregunta-se sobre “qual pode ser o
papel da Filosofia no processo democrá tico de Moçambique?”. Antes de responder a
questã o que coloca, Ngoenha deixa claro que, qualquer pessoa que lhe desejar
responder, tem o dever de ser “coerente”, isto “e, deve começar por clarificar sua posiçã o
pessoal e os valores pelos os quais milita. Para Ngoenha, que se crê ser militante da
tradiçã o filosó fica africana na sua vertente libertaria, o valor má ximo e ao mesmo tempo
o fim da sua filosofia é a Liberdade. Como ele mesmo escreve: “o valor do fundo do meu
engajamento é a militâ ncia a favor desde valor humano supremo para os moçambicanos
e para os africanos” que é Liberdade. Mas o que significa militar pela Liberdade no
contexto actual e em Moçambique? Entre outras coisas Ngoenha, para dar resposta a
esta questã o, exige que o filó sofo ou o intelectual que milita pela causa da Liberdade
deve preocupar-se constantemente em “relevar e fundamentar as razõ es que militam a
favor de uma democracia mais participativa, de uma democracia que subordina a
economia à s escolhas políticas e societais (...) e que baseia as suas instituiçõ es nos
Prefá cio
imaginá rios colectivos das populaçõ es ...”, neste caso, das populaçõ es moçambicanas.
Portanto, a filosofia deve continuar a procurar e oferecer luzes à velha questã o grega do
“melhor governo e das melhores formas institucionais” para alargar a participaçã o das
pessoas e grupos de homens e mulheres. Para além disso, o intelectual que milita pela
Liberdade deve, no seu entender, resistir à s tentaçõ es do(a) político(a). Deve resistir ao
cortejo pelo poder, seja ele por parte do Governo ou da oposiçã o (que no caso de
Moçambique, para Ngoenha, a oposiçã o nã o é a Renamo nem os outros partidos).
Neste ponto reconhecemos o regresso de Ngoenha à s suas reflexõ es sobre o papel
do intelectual. Segundo ele, o papel do intelectual seria o de contribuir com ideias e
reflexõ es para o melhoramento da sociedade. Colocando-se nesta perspectiva, este seu
livro pretende ser o seu modesto contributo para o crescimento político e social de
Moçambique.
Enfim, o intelectual deve resistir à s tentaçõ es da corrupçã o. Nã o terá sido esta a
atitude de Só crates ao recusar sair da prisã o esperando tranquilamente (e
ingenuamente) pela justiça? Nã o serã o modelos disso tanto Eduardo Mondlane como
Samora Machel, o primeiro pelo abandono do conforto das Naçõ es Unidas e pela carreira
universitá ria nos Estados Unidos e o segundo pela sua abnegaçã o (des)comedida em
defender a independência de Moçambique contra tudo e todos? Nã o serã o Julius Nyerere
e Thomas Sankara exemplos de governantes africanos que “tentaram ser justos” durante
o tempo que assumiram a responsabilidade de conduzir a construçã o da Liberdade nas
suas naçõ es? - pergunta-se Ngoenha. E acrescenta que Azikiwé, Nkrumah, Senghor, C. A.
Diop, A. Cabral, A. Neto sã o, entre outros, os modelos de intelectuais no poder político ou
detentor de poderes políticos mas que fizeram tudo ao alcance para serem militantes
pela Justiça e Liberdade. Ngoenha reflecte, neste ponto, a profunda angú stia que sente
quando, de cada vez que vem a Moçambique Filosofia na Universidade Pedagó gica (UP),
na Universidade Eduardo Mondlane (UEM) ou no Instituto Superior de Relaçõ es
Internacionais (ISRI), ou ainda para proferir palestra em que o seu tema predilecto
acaba sendo a missã o do intelectual moçambicano hoje, constata a ausência das elites
políticas, econó micas e intelectuais no debate político. Penso que no fundo, neste
capítulo ele exterioriza a angú stia pessoal de nã o poder estar presente neste debate de
forma presencial em Moçambique. Quem convive com Ngoenha sabe que o papel dos
intelectuais moçambicanos na maximizaçã o das liberdades é o seu tema predilecto...
Como pensar filosoficamente o facto político hoje em Moçambique? É a questã o
central do capítulo II A Filosofia em Moçambique. É aqui onde Ngoenha propõ e que a
filosofia deve ser capaz de elaborar um discurso para mobilizar o “espírito da tradiçã o” –
conceito que retoma do filó sofo Eboussi Boulaga para os desafios da Justiça Social no
quadro do Estado moderno em Moçambique. O espírito é a chamada solidariedade
africana que presumivelmente existe de forma espiritual raramente pouco praticada
pelos membros das comunidades e das sociedades na Á frica hodierna, pois, se fosse esse
espírito que respeitamos, teríamos a “coragem” de passar por uma criança faminta e
doente na rua nos nossos carros four by fours ou de assistir ao aumento do luxo ao lado
de tanta pobreza? Nã o, para um contrato de natureza social a dita solidariedade africana
deve ser tomada discursivamente no seu espirito tradicional mas materializada sob
forma (moderna) de redistribuiçã o equitativa da riqueza material ou dos impostos e sob
uma nova forma de conceber justiça como equidade (e eu acrescento, restaurativa). O
espírito da tradiçã o em Ngoenha deve ser aquele que mobiliza os aspectos do passado,
somente na medida em que os valores defendidos por este espírito têm capacidade de
oferecer respostas alternativas aos desafios colocados pelo desenvolvimento. Deve
despir-se o mito da chamada solidariedade africana ou melhor, se é que ela existe e
mesmo que essa existência seja apenas na forma espiritual, o desafio é torna-lo ú til para
o contrato social em debate. Pois é isso mesmo que Ngoenha reflecte quando nos propõ e
que o símbolo (ideal) da justiça no contexto africano nã o deve ser uma mulher com a
espada e balança mas sim uma mulher com uma agulha numa das mã os para cozer os
pedaços de um tecido na outra mã o; os pedaços do tecido na segunda representam,
nesta imagem de Ngoenha, os diferentes indivíduos e grupos sociais que compõ em
Moçambique que a Justiça deve unir e nã o separar. Mas como efectivar esta justiça social
num contexto em que, na “primeira Repú blica” o Estado esteve pan-presente decidindo
sobre a educaçã o, saú de, a moral, a política e mesmo sobre as biografias dos indíviduos,
e na “segunda Repú blica” o mesmo Estado “dolarcrá tico” peca primando pela “ausência”
deixando os “vencedores da guerra” governarem o país passando o pró prio para a
oposiçã o? É nesta aporia que se deve perguntar sobre a legitimidade do Estado no
contexto africano.
Como Ngoenha defende, seria preciso perguntar-se se a representatividade por
via dos partidos políticos, tal e qual é prescrita na democracia ocidental, é retomada pelo
texto constitucional de 1990 e pelos Acordos de Roma em 1992, constitui a forma mais
apropriada de mobilizaçã o e legitimaçã o dos imaginá rios políticos e sociais dos
moçambicanos. Este modelo europeu, falsamente apelidado universal, mostra-se (até
agora) inadequado para os países da Á frica. Para Ngoenha, nã o sã o as culturas
(africanas) que se devem adaptar à todo o custo aos modelos (europeus) mas o ideal é
que os modelos se forjem a partir dos imaginá rios culturais dos povos: isto significa que
nó s temos de (re)inventar um modelo de sociedade que nos seja pró prio, conclui
Ngoenha. É um modelo que terá forçosamente de tomar em conta a dimensã o só cio-
cultural e que exija, de partida, uma acçã o “concebida a partir das realidades autênticas
das nossas comunidades autó ctones, apreendidas a partir do interior”.
Mas, entretanto, o que impede o nascimento deste modelo do interior que talvez
fosse mais libertá rio? Ngoenha alerta sobre a existência de dois problemas que
constrangem o tal nascimento: um, é que nã o existem mecanismos jurídicos legais
previstos constitucionalmente que permitam ao eleitor, no período entre as eleiçõ es,
fazer-se ouvir ou participar no debate pú blico. O segundo problema, é que a naçã o teve
que nascer sob o comando das leis e da ló gica produtivista impondo-se em detrimento
de qualquer projecto político que tivesse havido ou estivesse prestes a emergir, sã o leis,
sob o ponto de vista interior antidemocráticas, porque impostas por instituiçõ es como
FMI e o Banco Mundial sem legitimidade popular para governar o nosso país mesmo que
seja em nome do desenvolvimento; sã o leis que nã o assentam nos imaginá rios culturais
dos moçambicanos e, o que é pior, ganham conivência de uma parte da elite
moçambicana.
Por isso, a este ponto, em relaçã o ao primeiro problema, se deve questionar a
aplicabilidade da Democracia Representativa em Moçambique; e, em relaçã o ao segundo
problema, temos que equacionar sob que pressupostos assenta a Soberania de
Moçambique. Ao dissertar sobre a democracia representativa, Ngoenha revisita o
princípio bá sico da Democracia, o da separaçã o de poderes. Na aplicaçã o deste princípio,
Ngoenha identifica conflitos entre poderes executivo e legislativo, por um lado, e entre
os poderes executivo e judiciá rio, por outro. Pois, o “paradigma Anibalzinho-Nyimpini” é
para Ngoenha o sintoma destes conflitos institucionais, ou seja, reflecte o problema de
como fazer que entre o poder executivo e judicial (ou entre o legislativo e executivo) nã o
haja interferência. Este é o problema de muitas democracias actuais no mundo (Chirac,
na França ou Berlusconi, na Itá lia, entre outras).
Ao dissertar, em seguida, sobre o problema da Soberania, Ngoenha começa por
lembrar-nos que esta está ligada à Responsabilidade. Aliá s, nã o é primeira vez que
Ngoenha debate a questã o da Liberdade, soberania e responsabilidade. Já em 1998 no
Prefá cio
seu artigo Identidade Moçambicana, já e ainda não é4 Ngoenha apresenta algumas linhas
deste seu pensamento ao perguntar-se com Booker Washington “O que é que a
Liberdade comporta em termos de responsabilidade?” Será necessá rio percorrer as
pá ginas deste capítulo para inteirar-se da forma filosó fica como o Ngoenha trata esta
aporia. Mas adianto que o objectivo do autor ao introduzir a problemá tica da soberania é
o de desvendar uma aporia na prá tica da Política Internacional actual que é a
predominâ ncia de Governos nacionais soberanos, portanto que se regem por princípios
democrá ticos vá lidos na sua acçã o interna, mas, em contrapartida, na sua acçã o externa
sã o totalmente antidemocrá ticos, o que, segundo Ngoenha, Luigi Ferrajoli chamou de
“comunidade selvagem de Estados soberanos”. Sã o pois duas histó rias paralelas do
percurso da Soberania que teremos que registar, sendo uma de um Estado de direito
interno e outra de Estado que se absolutiza permanentemente na sua acçã o no plano
internacional.
Moçambique seria vítima deste processo de absolutizaçã o externa da Soberania a
tal ponto que, no dizer de Ngoenha, “falar de soberania moçambicana [seria] hoje um
autêntico abuso de linguagem” porque, sendo a soberania o pressuposto filosó fico da
constituiçã o moçambicana, a prá tica política e jurídica porém tem demonstrado o
contrá rio. As instituiçõ es da Bretton Wodds encabeçam uma interferência “abusiva e
anti-soberana” da chamada comunidade internacional nos planos político, econó mico,
cultural, social e mesmo jurídico em Moçambique. Mas, se a soberania está sob o
comando da chamada comunidade internacional, assumirá esta comunidade da mesma
forma o que a Soberania comporta como responsabilidade? Eu perguntaria de uma outra
forma, haverá mecanismos legais nacionais e internacionais ao alcance do Governo
moçambicano para que possa exigir responsabilidades da comunidade internacional
pela sua acçã o no nosso territó rio? Que mecanismos legais se podem acionar quando,
por exemplo como recentemente sucedeu, uma organizaçã o estrangeira, teve que
reduzir drasticamente o seu apoio financeiro ao sector de educaçã o (porque o seu apoio
externo tinha assumido, entretanto, encargos maiores na reconstruçã o do Afeganistã o) e
já nã o pô de dar corpo aos vá rios projectos de apoio institucional que teria assumido
com os planos do Governo moçambicano? Quem assumiria a responsabilidade perante
as crianças que porventura deixarã o de poder entrar na escola ou nã o terã o uma
educaçã o de qualidade por encurtamento de meios ou por falta de apoio prometido
durante as negociaçõ es de parceria? No actual panorama institucional as possibilidades
sã o quase nulas, só restando apelar ao plano da moral e princípios nã o vinculativos na
prá tica da cooperaçã o em forma de “parcerias inteligentes”. Eu diria, intervir na
soberania sem assumir a responsabilidade dos actos que isso comporta, é batota que a
comunidade internacional faz connosco.
Em jeito de conclusã o, o fio condutor que o leva a temas apresentados no capítulo
II (o papel do Estado, a questã o da legitimidade, a democracia representativa e a questã o
da soberania) é o debate em torno do papel da(s) tradiçã o(õ es) no contexto da Á frica
moderna e a questã o dos constrangimentos à justiça entendida como equidade, nã o
somente confinada à garantia das Liberdades no quadro do liberalismo político, mas
sobretudo na sua vertente de distribuiçã o dos recursos materiais, sociais e culturais
moçambicanos (individualmente e por grupos).
Nã o é por acaso, pois, que o título do capítulo III de Ngoenha seja Aos vencidos
não se pede opinião. Pois engana-se, como eu me enganei ao ler este título pela primeira
vez quando o manuscrito me chegou à s mã os, o leitor que atribuir o estatuto de
“vencido” à Renamo e a outros partidos da oposiçã o e de “vencedor” à Frelimo que
forma o Governo sozinha. Para Ngoenha o que acabou foi a guerra mas nã o a violência.
4
Publicado pela Livraria Universitária na colectânea Identidade, Moçambicanidade,
Moçambicanização, sob a direcção de Carlos Serra (Maputo 1998).
Transferiu-se a luta pelas armas por uma violência pelo controle do poder. E violência
nã o é só a morte de Carlos Cardoso. O tipo de violência que preocupa mais a Ngoenha é o
que priva uma criança de ter comida ou de ir à escola. Estamos numa situaçã o de Paz
com Violência. Mas é uma violência que é ditada pelo poder econó mico. Por isso,
pergunta-se, se a guerra acabou, quem venceu e quem perdeu? Se a violência continua,
qual é a causa? À primeira pergunta apresenta três cená rios possíveis ([i] o país perdeu,
[ii] o país ganhou, [iii] há vencedores externos) e escolhe, naturalmente o ú ltimo por que
“nó s, e quando digo nó s, quero dizer, nó s moçambicanos perdemos a guerra. A Frelimo
nã o ganhou, mas também a Renamo nã o ganhou”. Quem ganhou foi o capitalismo
internacional representado pelas suas instituiçõ es da comunidade internacional, foi o
liberalismo na sua dimensã o econó mica (daí o facto de Ngoenha incluir a Á frica do Sul
entre os vencedores). Ao depor-se as armas que estavam nas mã os da Renamo e do
Governo acabando com a guerra, voltou a ressuscitar a velha luta entre inimigos já
denunciados por Marx: o capital e o trabalho, ou seja, entre os que têm poder econó mico
e os que para sobreviver precisam deixar-se explorar vendendo a sua força de trabalho.
Com o Governo aderindo abertamente ao neo-liberalismo, mostrando, em consequência,
fragilidade em salvaguardar a soberania e em regulamentar a vida social dos
moçambicanos, unida à dificuldade da Renamo em contrapor-se ao projecto político
neo-liberal, portanto com ambos à direita, quem está à esquerda? Nã o há , por isso,
debate político em Moçambique. O que há é uma violência pelo poder entremeada pela
capacidade da comunidade internacional, que por razõ es ó bvia “nã o pode governar
directamente”, em prolongar um projecto dolarcrático neocolonialista. Mais do que em
qualquer capítulo Ngoenha mostra neste a sua adesã o à s três dimensõ es do seu
pensamento, ou seja à s dimensõ es nacionalista, africanista e socialista procurando
sempre ser fiel ao paradigma libertá rio.
Ngoenha termina a sua obra apresentando-nos, no capítulo IV, uma apologética
para a renovaçã o da constitucionalidade actual. Por um Triplo Contrato Moçambicano é
um título deste capítulo onde o autor advoga a necessidade de um triplo contratualismo:
contrato cultural, contrato social e contrato político. Em relaçã o ao contrato cultural,
Ngoenha começa por ressaltar que a democracia comporta duas partes: uma axioló gica e
outra institucional. Ngoenha nã o negocia a dimensã o axioló gica. Segundo ele, o plano de
valores comporta princípios de igualdade e do respeito pelos direitos humanos. Estes
valores constituem uma forma abstracta para corrigir as desigualdades naturais entre os
homens, para garantir o respeito pela dignidade e pelos direitos inaliená veis do homem.
Portanto os valores da democracia, na ó ptica de Ngoenha, sã o de natureza universal e
por isso mesmo nã o negociá veis. Em contrapartida, os modelos institucionais que
comportam as democracias, na opiniã o de Ngoenha, devem ser “aculturados”, ou seja,
devem ser adequados de tal forma que a sua legitimidade deve derivar daquilo que o
autor chama por “imaginá rios colectivos” dos povos e culturas. O resultado ou o fim do
processo ou Moçambicanização de instituiçõ es chama ele de contrato cultural. No artigo
do mesmo autor que fiz referência acima, escrito em 1998, ele esboçava já os primeiros
contornos desse contrato cultural. Ele escrevia naquele artigo5 que “o pacto cultural
deveria reconciliar a política com as culturas nacionais ... [o] que permitiria libertar as
instituiçõ es estatais da política cultural sobre a qual vegetam e metê-las numa dinâ mica de
cultura política mais produtiva6. O que no fundo quer dizer que para escrever este contrato seria
necessá rio mobilizar uma capacidade integradora nacional que (re)conciliem o projecto político
com as características étnico-culturais das populaçõ es de Moçambique. Ele chama atençã o para
o facto de nã o se tratar de renovar ou reabilitar as instituiçõ es tradicionais ancestrais, mas sim

5
Refiro-me ao texto: Ngoenha, S., Identidade Moçambicana: já e ainda não. In: Serra, C. Identidade,
Moçambicanidade, Moçambicanização, Livraria Universitária, UEM, Maputo, 1998 (pp.17-34).
6
Ngoenha, S., Identidade Moçambicana... (p.30)
Prefá cio
conferir à democracia uma dimensã o moçambicana. Mas para isso temos que conhecer as nossas
tradiçõ es e culturas para a partir deste conhecimento pensar o direito e a democracia
moçambicanas, recuperando assim aquilo que Montesquieu chamava por “espírito da lei”, ou se
quisermos falar com Eboussi Boulaga, por “espírito da tradiçã o”. Para efectivar esta reflexã o e
recuperar a tradiçã o em funçã o do futuro, Ngoenha vê a universalidade como o local de reflexã o
e, consequentemente, ele vê as elites intelectuais como sendo a força social que deveria estar na
vanguarda deste empreendimento. É em volta deste pensamento que o autor desenvolve os
subtítulos de “cultura jurídica”, “pluralismo jurídico” e “transferência jurídica” a partir dos quais
conceptualiza, no final do livro, o seu projecto político democrá tico e multicultural. No projecto
político de Ngoenha há um contrato entre o Estado e os subgrupos em que cada uma das partes
tem obrigaçõ es morais perante as suas acçõ es. Por meio deste contrato é preciso assegurar que
os indivíduos admitam a existência duma naçã o unificada e independente, que contenha regras e
princípios a ser respeitados, mas ao mesmo tempo, em que a igualdade de cada pessoa nã o seja
minada pelas desigualdades dos domínio s da vida social. Neste ponto emerge Rawls no contrato
ngoenhiano.
Ngoenha desenha, pois, o seu contrato social inspirado de forma significativa pelo debate
iniciado pela obra de John Rawls Uma Teoria de Justiça. Nesta obra, Rawls defende no fundo dois
princípios de justiça como equidade. Sã o princípios que defendem a distribuiçã o dos bens
primá rios entre os membros de uma sociedade de forma equitativa; considera por “bens
primá rios” os bens bá sicos que todas as pessoas, independentemente dos seus projectos
pessoais de vida ou das suas concepçõ es do bem, devem usufruir. Sã o eles o auto-respeito, a
auto-estima, as liberdades políticas bá sicas, as rendas assim como direitos a recursos sociais
como a educaçã o e a saú de. A referência aos princípios de John Rawls 7 e ao debate em torno
deles, servem de chamada de atençã o para Ngoenha sobre dois aspectos: o primeiro, alerta-nos
para o facto de que a garantia das liberdades fundamentais (pela constituiçã o democrá tica
liberal) nã o é suficiente para o fortalecimento da democracia moçambicana, se nã o houver uma
preocupaçã o em diminuir o fosso entre ricos e pobres; o segundo aspecto que Ngoenha pretende
mostrar é o redimensionamento do paradigma libertá rio: é que uma filosofia que se pretende
moçambicana nã o só deve buscar fundamentar a Liberdade, mas também fundamentar a busca
da Justiça. Com isto Ngoenha redimensiona o que declarou ser um paradigma libertá rio da
filosofia africana para integrar um outro patamar paradigmá tico, ao que podemos chamar de
«Paradigma de Justiça Social». Considero que fundamentar as formas de implementar os
princípios de Justiça Social é um aspecto importante que merecerá um debate aceso para
amadurecer o sentido democrá tico da luta dos moçambicanos.
Mas este novo patamar nã o pode efectivar-se sem um contrato político que tenha como
interlocutores as diversas forças políticas que articulam aos seus interesses na sociedade
moçambicana. Para isso seria necessá rio reinventar, criar ou alargar o espaço público onde as
diferentes forças vivas da sociedade entrem em confrontaçã o somente pela via argumentativa (e
nã o pela via das armas ou da violência física ou moral).
Ngoenha propõ e-nos no seu contrato político, que as forças políticas moçambicanas
deveriam fazer um acordo sobre aquilo que é essencial, indiscutível, nã o negociá vel, ou seja
sobre o fundamento normativo do Estado. E este acordo é possível “se a naçã o estiver em
primeiro lugar”8. Ngoenha escreve sobre as zonas nã o negociá veis: “a nível de bens econó micos
que constituem o patrimó nio nacional (portos, caminhos de ferro, minas, terra, etc.), de
jurisdiçã o-política, espaços estritamente nacionais que nã o sã o acessíveis a estrangeiros
(ministérios, lugares de defesa, de segurança, de planificaçã o, etc.), prerrogativas
ciumentamente nacionais nã o cedíveis a ONG, cooperaçõ es, doadores, etc.”.
O engajamento intelectual que Ngoenha nos traz por meio deste livro tem paralelismos
com o engajamento intelectual de um dos grandes pensadores da Filosofia Política dos ú ltimos

7
Trata-se do princípio da equal liberty principle (igual liberdade) como o primeiro e, como segundo,
o principio das desigualdades sociais e económicas, este segundo princípio, por sua vez, subdividido em dois: o
primeiro, o princípio da igualdade equitativa das oportunidades e o segundo o polémico princípio da diferença
(Cfr. John Rawls, Uma Teoria da Justiça, Editorial Presença, Lisboa, 1993, p.67-107).
8
Parafraseo aqui, e citando de memória, o título de um artigo do economista Prakash Ratilal num
comentário analítico à Agenda 2025.
tempos e a que ele faz muita referência: John Rawls. Se para o filó sofo moçambicano o leitmotiv
do seu engajamento e da sua actividade intelectual é a militâ ncia a favor da Liberdade, os
esforços intelectuais de Rawls foram para fundamentar a Justiça como Equidade a partir do
senso de justiça e a faculdade de concepçã o do bem que, segundo o pró prio Rawls, sã o inerentes
à s pessoas morais, livres e iguais e que vivem numa sociedade democrá tica9. Na sua obra Justice
as Fairness: A Restatment Rawls afirma que o facto de a sociedade democrá tica ser
frequentemente vista como um sistema de cooperaçã o social “(...) é sugerido pelo facto de que,
de um ponto de vista político e no contexto da discussã o pú blica de questõ es fundamentais de
direito político, seus cidadã os nã o consideram a sua ordem social como uma ordem natural fixa
ou como uma estrutura institucional justificada por doutrinas religiosas ou princípios
hierá rquicos exprimindo valores aristocrá ticos”10. Lendo esta citaçã o conclui-se que há
concordâ ncia tá cita mas ao mesmo tempo um afastamento entre Ngoenha e Rawls. A
concordâ ncia nota-se em relaçã o ao facto de considerarem que a característica de uma
democracia moderna é –emprestando o termo a Beck, Giddens e outros –a reflexibilidade, ou
seja, por um lado a interconexã o entre a racionalidade científica e a racionalidade social no
debate pú blico sobre a(s) política(s) e, por outro, o debate sobre os pró prios fundamentos da
democracia liberal. Entre os fundamentos da democracia liberal que ambos propõ em colocar ao
debate é o que Rawls no trecho acima chama de “estrutura institucional” e Ngoenha denomina
por necessidade de “aculturar as instituiçõ es”. Mas o ponto em que discordam é nas implicaçõ es
dos seus discursos. Rawls escreve tendo em vista formular uma teoria universal da justiça e
Ngoenha nos chama atençã o para a necessidade da sua particularizaçã o.
O filó sofo queniano Odera Oruka escreve, a propó sito das ideias de John Rawls, que seria
difícil imaginar alguém que formule uma teoria universal de justiça social que nã o tome em
conta os factores de ordem econó mica, tradicional ou ideoló gica nas diferentes sociedades11.
Porque sã o exactamente estas características que poderiam, no dizer de Oruka, determinar o
que deveria fazer parte do cabaz das “necessidade bá sicas” ou ainda o que poderia ser
considerado como sendo os “direitos fundamentais” de uma determinada sociedade. Rawls
imagina que o bem-estar (wealth) e o rendimento (income) constituem as necessidades bá sicas.
Mas, segundo Oruka, o conteú do do bem-estar e das liberdades fundamentais, por depender das
contingências locais, é diferente. Ele dá o exemplo de sociedades onde os princípios de existência
colectiva ou sã o derivados de ideologias marxistas onde o indivíduo tende a relegar os seus
interesses para a ú ltima instâ ncia (sociedades socialistas) ou sã o derivadas da relaçã o religiosa
com entidades metafísicas onde a coerçã o social põ e a autonomia e valores dos indivíduos em
segundo lugar (sociedades tradicional-comunalistas). Nessas sociedades, prossegue Oruka, as
pessoas que tenham acumulado algum bem-estar ou com grandes rendimentos, nã o têm
individualmente o poder de usar os seus rendimentos a seu belo prazer e de forma legal.
O Estado, nas condiçõ es de sociedade exemplificadas por Oruka, deveria ser coercivo
para tirar as riquezas individuais das mã os das pessoas e ‘legitimar’ esta coerçã o a partir da
necessidade de redistribuir a riqueza favorecendo aos grupos até entã o historicamente
desfavorecidos. É o que no fundo foi feito depois da independência de Moçambique com as
nacionalizaçõ es cuja justificaçã o era a de ‘devolver ao povo o que lhe pertencia e acabar com a
exploraçã o do homem pelo homem’ e, de certo modo, a mesma justificaçã o que é dada hoje pelo
Governo do Zimbabwe para arrebatar as terras das mã os dos agricultores brancos em nome do
povo (negro) daquele país. O que quero (de)monstrar aqui é que há nos Estados africanos de
hoje uma aporia política cuja origem é a existência do Estado neo-liberal inspirado e edificado na
base do contratualismo clá ssico no qual os indivíduos têm direitos a ser defendidos pelo Estado,
mas simultaneamente notamos que há uma grande injustiça social no que diz respeito à
distribuiçã o do bem-estar e da renda. Assim, para uma melhor distribuiçã o, o Estado nã o pode
‘forçar’ os poucos ricos a darem mais que os outros sem correr o risco de invadir a esfera dos
direitos individuais, particularmente sem correr o risco de passar por cima do direito à

9
Rawls, J., Uma Teoria da Justiça. Editorial Presença, Lisboa, 1993, p.68.
10
Cfr. Oliveira, N., Rawls. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2003, p. 49.
11
Oruka, H. O., John Rawls´s Ideology. Justice as Egalitarian Fairness. In: Oruka, H. O., Practical
Philosophy. In Search of an Ethical Minimum East African Educational Publishers. Nairobi-Kampala, 1997 (115-
125).
Prefá cio
propriedade. Este é o dilema da Á frica do Sul hoje: como ‘obrigar’ a minoria branca que
acumulou riquezas por meio de vantagens histó ricas do apartheid a darem uma parte da sua
riqueza evitando violar os direitos individuais, sobretudo os de propriedade e mantendo o
Estado do Direito intacto? Aqui parece ser necessá rio haver uma espécie de contratualismo que
se baseie nã o só na defesa e garantia dos direitos dos indivíduos mas também que consiga
submeter os interesses econó micos de grupos aos interesses políticos e a defesa de
idiossincrasias particulares de grupos culturais.
Encaixa assim o facto de Ngoenha ter introduzido a ideia dos contratos sociais e culturais
junto ao contrato político. Se é que o contrato político, baseado na Constituiçã o, garante a
observaçã o em primeira linha dos direitos dos moçambicanos como individuais, os dois
contratos adicionais que Ngoenha propõ e (o social e o cultural) terã o que ter como assinantes
grupos de moçambicanos. Desta feita, o contrato social deverá comprometer os grupos com
interesses econó micos, ou mais precisamente, grupos com maior rendimento, com os desafios
políticos do desenvolvimento, e com redistribuiçã o equitativa do rendimento nacional; e o
contrato cultural deverá criar espaços abertos para a articulaçã o de diversos valores e prá ticas
culturais no contexto da política nacional. Estes dois contratos só serã o possíveis alargando a
teoria contratual da esfera individual para a colectiva de articulaçã o de interesses econó micos e
de defesa e promoçã o de valores culturais. Assim resolve Ngoenha o problema axioló gico ou da
falta de uma “cultura política”.
Cada geraçã o ou acusa ou aprecia o engajamento intelectual e físico da anterior. A
geraçã o moçambicana de hoje só pode agradecer à geraçã o que decidiu pegar em armas para
encetar uma luta justa e dura cujo fim era eliminar a dominaçã o colonial. Aquela luta foi uma
heroicidade de toda a geraçã o. Foi a geraçã o que maximizou o gozo das liberdades nacionais ao
proclamar a Independência Nacional. E, pelo que se vem publicando ultimamente sobre a
histó ria da luta de libertaçã o, pode notar-se que foi um processo cheio de contradiçõ es,
indecisõ es, determinaçõ es, cisõ es, mas sobretudo de unidade em torno do objectivo comum. O
que quero perguntar é: qual é o papel da nossa geraçã o agora? Nã o teremos a responsabilidade
de deixar um Moçambique com as liberdades mais alargadas do que as que gozamos? Podemos
dar-nos ao luxo de deixar explorar todas as riquezas do solo e subsolo sem a preocupaçã o de
sustentabilidade das vidas futuras? Nã o temos a responsabilidade de nã o só preparar as
geraçõ es futuras através da educaçã o, mas também criar todas as condiçõ es para que tenham
emprego e segurança? Que valores deixamos para que os nossos filhos e netos se orgulhem dos
anos 80 e 90?
Moçambique pertence tanto aos moçambicanos presentes, aos espíritos dos nossos
antepassados proclamados como heró is ou nã o, assim como aos futuros moçambicanos que aqui
irã o nascer, crescer, viver, amar e morrer nesta pá tria. Moçambicanos sã o também os nossos
heró is que morreram, somos nó s hoje, mas também o futuro. Daí que é preciso vivermos hoje
com a responsabilidade do amanhã . Hans Jonas, na sua obra O Princípio da Responsabilidade
(1979), reformulando o princípio da ética kantiana, projecta uma ética de responsabilidade
polarizada nas condiçõ es de vida das geraçõ es vindouras. Segundo esta ética, o homem nã o deve
esperar que venha a receber alguma coisa em troca da sua acçã o responsá vel. Aplicada a
Moçambique, esta seria uma ética que visa criar condiçõ es para que os moçambicanos do
amanhã tenham a possibilidade de serem sujeitos-agentes mais livres e responsá veis. Por isso,
penso que deveria haver também uma quarto contrato –o contrato de gerações. Neste, que nã o
teria necessariamente uma força constitucional, caberiam todos os temas “futuristas”, tais como,
tecnologia e inovaçã o, meio ambiente, geraçã o de empregos assim como compromissos sociais
na utilizaçã o das poupanças pú blicas. Portanto, o contrato de geraçõ es faria parte integrante da
planificaçã o estratégica para o desenvolvimento. Em nome deste contrato, as crianças e a
juventude hodierna moçambicana (que ainda nã o tem direitos políticos) deveria estar em
condiçõ es de exigir aos adultos o direito de viverem bem amanhã e de serem uma espécie de
supervisores da acçã o daqueles.
Derivado deste acréscimo ao contratualismo há ainda um outro ponto que Ngoenha, com
este livro, introduz no debate político em Moçambique. É o ponto da cultura ou da diversidade
cultural. Como é que a diversidade cultural pode ser gerida politicamente? O que significa erguer
uma Estado multicultural?
Já Frederic Jameson notava que, na impossibilidade de haver qualquer projecto colectivo
na condiçã o pó s-moderna, o capital multicultural elabora o jogo da heterogeneidade permitindo
assim que muito mais do que nas épocas anteriores a questã o cultural se transforme num
problema político. Segundo Jameson, o ambiente pó s-moderno, dado o seu conteú do de
expansã o multicultural do capital, encerra possibilidades de resistência cultural12. Pois a
possibilidade de ser “outro” nos é dada pela cultura e é por isso que a culturalidade se torna o
centro da política.
É isso que Ngoenha faz nesta obra: tematiza a diversidade cultural sob o prisma
da sua gestã o política pois, constata ele, nã o há ainda o diá logo necessá rio entre as
culturas e as instituiçõ es políticas. A constituiçã o política deve reflectir, respeitar mas
sobretudo ter os seus fundamentos na diversidade cultural do nosso país. E esta
diversidade cultural é incorporada nã o no abstracto mas em grupos etno-culturais
específicos. Neste aspecto é uma grande coragem de Ngoenha trazer este aspecto à lume
do debate, embora nã o seja a primeira vez. Já na obra Por uma Dimensão Ngoenha
termina fazendo uma apologia a uma constitucionalizaçã o da gestã o das culturas
particulares.
Ngoenha lança com este livro um outro desafio aos políticos que querem ou
quererã o governar o nosso país. Estes nã o se devem limitar a dizer-nos qual será a sua
política cultural mas, sobretudo, deverã o equacionar que tipo de cultura política irã o
desenvolver. Com esta ideia lança-se um desafio à eticidade. A eticidade é tomada por
mim como manifestaçõ es na “luta pelo reconhecimento” no sentido que o filó sofo
alemã o e sucessor de Habermas na direcçã o do Instituto de Pesquisa Social em
Frankfurt, Axel Honnet13, usa. Portanto, a eticidade nã o é aqui entendida no seu sentido
da moralidade kantiana, ou seja, de uma atitude universalista em que o respeito pelo
outro se torna um fim em si mesmo na acçã o de indivíduos autó nomos; este
entendimento de eticidade seria incapaz, segundo Honnet, “de identificar o fim da moral
em seu todo nos objectivos concretos dos sujeitos humanos”. A Eticidade é sim
entendida aqui por mim como o ethos “de um mundo de vida particular que se tornou
há bito, do qual só se podem fazer juízos normativos na medida em que ele é capaz de se
aproximar das exigências” dos princípios universais14. Desta forma, as eticidades
particulares (culturais) sã o vistas nã o só do ponto de vista do seu espírito (da tradiçã o),
mas também encerram elementos normativos e padrõ es de comportamentos concretos
de devem se ajustar a um certo nú mero de princípios normativos nacionais. A nossa
cultura política moçambicana seria orientada pela necessidade de estabelecer um
patamar de diá logo entre os diferentes grupos culturais que lutam pelo seu
reconhecimento. A Unidade por exemplo, é um princípio de ordem nacional do qual se
podem fazer juízos normativos sobre a eticidade dos grupos particulares. Aos grupos
que, na luta pelo seu reconhecimento, procurem ferir a constitucionalidade unida de
Moçambique, serã o sancionados.
Penso que Ngoenha, com este livro, abre e oferece horizontes filosó ficos para o
debate de duas questõ es bá sicas do futuro da política em Moçambique: a da Justiça
social redistributiva (questã o econó mica) e a da Unidade Nacional na Diversidade
12
Cfr. Peixoto, M.G., A Condição Política na Pós-Modernidade. A Questão da Democracia. EDUC, São
Paulo, 1998, pp. 56-58.
13
Axel Honnet foi assistente de Jürgen Habermas e segue a tradição da Teoria Crítica apresentado a
sua teoria que se basea na ideia da “luta pelo reconhecimento”. Honnet parte da doutrina de reconhecimento
em Hegel e recorre a G.H. Mead para estabelecer a ideia de uma crítica social na qual os processos de mudança
social devem ser explicados a partir de acções que têm como objectivo restabelecer o reconhecimento mútuo
ou desenvolvê-lo para um nível superior. As lutas pelo reconhecimento são, nesta perspectiva, uma força moral
que impulsiona o desenvolvimento. Aproveitando esta ideia, podemos inferir que os diferentes grupos
culturais lutam pelo seu reconhecimento num ambiente democrático. (Honnet, A., Luta pelo Reconhecimento.
A Gramática Moral dos Conflitos Sociais. Editora 34, São Paulo, 2003, 269 pp.)
14
Honnet, Idem, 270.
Prefá cio
Cultural (questã o da cultura política). Sã o estas questõ es que, a meu ver, irã o constituir
os eixos do debate para a afirmaçã o da moçambicanidade na busca pela Liberdade.
No fim da sua leitura o leitor dirá se esta coruja da Minerva (Ngoenha) chegou
“tarde” demais ou se o velho Hegel se terá esquecido de completar o seu aforismo: Que a
coruja da Minerva levanta o seu voo ao crepú sculo sim, mas se vai deitar cedo para o
amanhecer, quer dizer, só se vai deitar no início de outra jornada, depois de ter
espalhado a sua boa nova que serã o os eixos da caminhada para a Liberdade de um povo
inteiro. Este livro é uma referência obrigató ria no qual Ngoenha oferece aos
moçambicanos alternativas de pensar filosoficamente e de agir racionalmente neste
caminhada.

Maputo, Julho de 2004.


CAPITULO I

Filosofia e democracia em Moçambique


Este trabalho nasceu das questõ es que a Academia Filosó fica (ACAFIL) nos
submeteu, a mim e a outros oradores –Lourenço do Rosá rio (Reitor do ISPU), Carlos
Tembe (Presidente do Conselho Municipal da Matola) e Patrício José (vice-Reitor do
ISRI) – aquando do simpó sio consagrado à s eleiçõ es presidenciais em 9 de Outubro de
1999 subordinado ao tema “Moçambique, que eleiçã o?”.
Os coordenadores da ACAFIL puseram-nos, a mim e aos outros oradores, quatro
questõ es: 1. Qual é o tipo de governaçã o de que Moçambique precisa hoje para o seu
bom funcionamento? 2. O que eleger e para quê? 3. Qual é o papel da filosofia num país
democrá tico? 4. Que leitura podemos fazer com vista à s segundas Eleiçõ es Gerais,
Legislativas e Presidenciais?
Já entã o, o programa me pareceu excessivamente denso e os problemas que
invocava extremamente complexos. E, ainda hoje, volvidos quatro anos, continuo a
pensar que mais do que programa a ser respondido num simpó sio, como era o caso de
1999, ou mesmo num livro, como é hoje o caso, trata-se de uma série de questõ es de
índole filosó fico-político que vã o necessariamente ter que acompanhar continuamente a
histó ria da vida política moçambicana. Com efeito, em todas as épocas histó ricas e em
todos os climas culturais, nó s vamos estar sempre confrontados com a primeira – e
perpétua – questã o da filosofia política a que Platã o chamou a questã o do “melhor
regime”, ou seja, o regime que melhor pode garantir a justiça na cidade.
Ora, a avaliaçã o axioló gica do “melhor regime” nã o tem nada de metafísico. Nã o
se trata de um governo, ou um grupo de homens ou de normas que emanam da sua
governaçã o que têm, intrinsecamente e por essência, o melhor gene de poder. Trata-se,
de um lado, de avaliar os ideais, a moral-política e a competência dos homens; e, do
outro, a capacidade das instituiçõ es só cio-políticas em serem uma plataforma adequada
na busca de respostas aos problemas com os quais somos confrontados.
Eis porque nã o pude ontem e nem posso hoje responder à s quatro questõ es. Por
uma questã o de afinidade disciplinar – que afinal de contas constitui um esforço de
maior penetraçã o, mas ao mesmo tempo um limite – decidi concentrar a minha atençã o
sobre a questã o nú mero três –qual é o papel da filosofia num país democrático? É a ú nica
em que se apela directamente à filosofia e, também talvez por defeito profissional, me
parece ser a questã o mais abrangente e, ao mesmo tempo, a mais urgente.
Tomei, por conseguinte, a liberdade de me debruçar sobre a terceira questã o que
é relativa “ao papel da filosofia num país democrá tico”. E mesmo aqui, permiti-me
alterar ligeiramente a sua formulaçã o a fim de libertá -la da sua grande generalizaçã o e
dar-lhe um cunho teó rico mais aculturado a Moçambique. Com efeito, é inegá vel que a
filosofia esteve sempre presente nos debates políticos. Aliá s, em parte está na sua
origem. Sã o exemplo disso os Tratados de Platã o (República) e de Aristó teles (Politeia)
sobre a política, assim como o conceito de cidadania desenvolvido pelos sofistas
(Gó rgias, Protá goras, Hippias). A filosofia nã o é só pioneira no domínio da política, mas é
um ponto de passagem obrigató rio para o conjunto das disciplinas que se interessam
por questõ es afins: a ciência política, a sociologia política, o direito, a antropologia
política, etc.
Mas se a filosofia sempre desempenhou um papel importante na instauraçã o dos
regimes democrá ticos (Rousseau, Locke, Kant), na proposiçã o de instituiçõ es
susceptíveis de dar corpo à democracia (J. Locke, Montesquieu, J.-J. Rousseau), na luta
contra regimes totalitá rios (Voltaire, Hans Jonas), na denú ncia do totalitarismo (Adorno,
Marcuse, Hannah Arendt), ela nunca foi unívoca nas suas tomadas de posiçã o. Ela foi
sempre obra de indivíduos situados no espaço e no tempo e, por conseguinte,
pensadores que engajaram a filosofia em funçã o das suas sensibilidades pró prias, das
suas percepçõ es do mundo e dos problemas circunstantes.
Por isso, nem sequer se pode dizer que o denominador comum da filosofia seja a
luta pela democracia por muitos filó sofos, a começar por Platã o (defensor da
aristocracia), Maquiavel, Hobbes (entre os pais do Estado moderno) nã o eram
favorá veis à democracia. Eis porque a nossa questã o nã o pode ser qual é o papel da
filosofia num estado democrá tico: a filosofia depende da existência de filó sofos que
elaboram os pró prios pensamentos, e estes pensamentos estã o inelutavelmente ligados
e sã o alimentados pelas circunstâ ncias histó rico-culturais (Ortega e Gasset), mas
também pela sensibilidade dos filó sofos. Por conseguinte, é necessá rio aculturar,
particularizar, circunscrever a filosofia como método sobretudo como espírito (crítico) e
atitude (distanciamento rigoroso e sistemá tico de qualquer tipo de compromisso que
possa condicionar a nossa liberdade de aná lise e juízo) ao processo histó rico-político da
naçã o moçambicana. Entã o a questã o transforma-se em “qual pode ser o papel da
filosofia no processo democrá tico de Moçambique?”. A questã o assim posta sugere
imediatamente três reflexõ es:
1. O filó sofo sempre hauriu as suas preocupaçõ es e os seus problemas nas
vicissitudes histó ricas do seu tempo, do seu espaço e tomou posiçã o (o que constitui o
seu pensamento filosó fico) em funçã o dos seus valores. Em resumo, cada filó sofo foi
sempre militante de uma causa –e muitas vezes nã o como resultante de um aná lise
crítica imparcial que deveria caracterizar todo o juízo filosó fico, mas por razõ es que
Francis Bacon nã o teria hesitado em chamar de ídolas e a hermenêutica moderna de pré-
compreensõ es. Por conseguinte, toda e qualquer aplicaçã o de uma filosofia política ao
objecto Moçambique deveria ser precedida da clarificaçã o da causa que se pretende
defender, da razã o que justifica o engajamento intelectual daquele que apela ao método
filosó fico.
Talvez seja ú til recordar que, apesar da sua longa histó ria destituída de
uniformidades, a filosofia, no seu procedimento metodoló gico, continua a fazer apelo
à quilo a que o velho Aristó teles chamou de “causas ú ltimas”. Por isso, quando digo que
quem faz apelo à filosofia deveria, de modo prévio, clarificar a causa ou as causas que
quer defender, trata-se de saber quais sã o as razõ es ú ltimas do seu engajamento
intelectual: ambiçõ es individuais ou sociais? Servir ou servir-se da comunidade?
Para ser coerente, devo começar por clarificar a minha posiçã o, os valores que
sã o os meus. Como direi mais tarde e com mais detalhes, a histó ria do espaço geográ fico
chamado Moçambique e do conjunto dos homens que se denominam moçambicanos
encontra a sua homogeneizaçã o naquilo que de mais negativo pode existir na histó ria de
um homem ou de uma comunidade: foi uma histó ria comum de sofrimento, e de um
sofrimento muito particular (já tinham essas mesmas populaçõ es conhecido a
CAPITULO I

escravatura). Foi o colonialismo europeu do fim do século XIX que determinou, com a
sua divisã o arbitrá ria dos espaços geográ ficos (e culturais) africanos e a opressã o
comum dos homens que habitavam esse espaço, a criaçã o de Moçambique. A histó ria da
uniã o dos três grupos que deram origem à Frelimo (Udenamo, Unamo e Manu) é
exemplar de como os homens dessas terras e culturas diferentes a certa altura criaram
Moçambique, unindo-se numa luta comum em prol da liberdade.
Se existe um substracto filosó fico que está na origem axioló gica de Moçambique
é, sem dú vida, a busca da liberdade. Aliá s, a busca da liberdade caracteriza a histó ria de
Á frica no ú ltimo século. Se quisermos ser mais exaustivos, diremos que desde a sua
criaçã o-invençã o (para parafrasear Mudimbé), através de um processo de apropriaçã o
identitá ria geneticamente exó gena, a Á frica, nascida nas diá sporas, caracteriza a sua
existência como busca da liberdade.
Assim, para mim, o valor de fundo do meu engajamento intelectual é a militâ ncia
a favor deste valor humano supremo, para os moçambicanos e para os africanos.
Liberdade – para utilizar a linguagem de I. Berlin – positiva, quer dizer liberdade de
sermos nó s mesmos, e negativa, de viver sem contriçã o nem de cará cter político, nem de
cará cter econó mico.
A histó ria da luta pela liberdade negro-africana conheceu muitas etapas. A
primeira foi no chamado novo mundo onde a escravatura concentrou muitos homens e
mulheres de origem africana privados da sua liberdade. A primeira luta começou aqui, e
a liberdade para esses homens, como para Kunta Kinte de Alex Haley15, num primeiro
momento era voltar ao que Delany chamou de “alma mater”. Mas, para a geraçã o
seguinte, a liberdade passou a significar a emancipaçã o da escravatura, nã o tanto para
reganhar a “terra mater”, mas para viver como homens livres nos países e nas terras que
lhes viram nascer.
Depois deste período nos EUA, que é onde a histó ria negra está melhor
documentada, os antigos escravos, quer se chamem B. Washington, Du Bois, Marcus
Garvey, C. Cullan, Langston Hughes ou C. Mckay, de maneiras diferentes lutam pelo
mesmo objectivo: integrar a sociedade como seres humanos iguais, como reza a
constituiçã o americana. Porém, pouco tempo depois do fim da escravatura, exactamente
vinte anos depois (a escravatura terminou em 1865 e a Conferência de Berlim foi em
1885), os africanos tiveram que fazer frente a uma nova ameaça: o colonialismo. Foi
para fazer frente a este novo perigo que nasceu o lema entre os antigos escravos “unir-se
para resistir”, que, aliá s, está na origem do pan-africanismo16.
Desta vez a luta será pela independência política. Este longo processo e destituído
de uniformidades ganha consistência a partir do fim da Segunda Guerra Mundial.
Contudo, as independências africanas, primeiro invocadas nas diá sporas por Du Bois
(Segundo Congresso Pan-africano de 1919, em Paris) e Marcus Garvey (Convention da
UNIA em 1920), só começam a materializar-se em 1957 no Gana, e atingem o seu apogeu
na década de sessenta.

15
Raízes. São Paulo: Cruzeiro, 1997.
16
Oruno D. Lara. La naissance du panafricanisme. Les racines caraibes, américaines ef africaines du
mouvement au XIXe sièle. Paris: Maisonneuve et Larose, 2000.
Este processo teve, imediatamente, que fazer contas com o desenvolvimento
social para garantir essas liberdades. Nó s vivemos ainda nessa busca da liberdade como
desenvolvimento social. Já nã o se trata da emancipaçã o da escravatura, da integraçã o
nos países do chamado Novo Mundo, da autodeterminaçã o política, mas do
desenvolvimento econó mico, político e social, num clima de relaçõ es de força com o
Ocidente (esclavagista e colonialista) que ainda nã o se libertou do seu elá n colonial, que
hoje se apresenta sob a veste de credor.
A questã o, apesar de ter uma componente econó mica importante, é, sobretudo,
política. Sempre que se invoca a questã o do desenvolvimento, coloca-se em primeiro
lugar os factores econó micos. Mas a economia (as chamadas leis do mercado) deve, pelo
menos no nosso caso, ser subordinadas à s escolhas societá rias. Caso contrá rio,
condenam-se os mais fracos ao ponto de partida, quer dizer ao trabalho forçado, ao
colonialismo e mesmo à escravatura.
2. A segunda reflexã o é de cará cter filosó fico-histó rico. Nos ú ltimos anos falou-se
muito do fim da filosofia da histó ria. Quer dizer que a ideia da histó ria dos homens como
esforço para reproduzir o paraíso edénico (de Adã o) perdeu todo o sentido. A
modernidade17 foi concebida por Hegel, Kant e retomada por Habermas –e nisto existe
um consenso entre os assertores da modernidade (Habermas) e os pó s-modernistas (R.
Rorty, G. Vattimo) – como emancipaçã o do homem de todo o tipo de garantias meta-
sociais. O homem moderno nã o quer ter nenhuma figura-guia, nã o quer subordinar os
seus valores e as suas escolhas a nenhuma transcendência ou revelaçã o.
Mas, paradoxalmente, ao mesmo momento em que o Ocidente mata Deus, para
parafrasear Nietzsche, ou como diz Dostoievsky declara que Deus já nã o tem mais nada a
dizer no que Vico teria chamado do mundo civil, o Ocidente se auto-proclama “Theos”
para a Á frica e para os países que hoje se chamam de “Sul do mundo”. A histó ria
secularizada pela filosofia da histó ria, primeiro de Voltaire e depois de Hegel, nã o se
limita a substituir os paradigmas que de Agostinho até Vico tinham impregnado a
compreensã o da histó rica – “criaçã o, pecado, encarnaçã o revelaçã o e aparusia” – pelo
conceito de cultura que fará a felicidade da antropologia desde o século XIX. No mesmo
século da antropologia (que, nã o por acaso, coincide com o colonialismo) inventa-se o
evolucionismo18 (Herbert Spencer, J.S. Mill, Darwin) no o Ocidente se coloca como o
modelo, a norma, o novo É den, com o seu conceito político de Estado, com o seu
monoteísmo e com a sua escrita. A partir de entã o o Ocidente apresenta-se a si mesmo
como sendo o novo jardim de É den (super-homem) a imitar, nã o obstante as suas
contradiçõ es, as suas histó rias de opressã o, que permitiram a acumulaçã o do capital
que, para alguns historiadores (Etemad Bouda, Thomas David), está na origem do seu
arranque econó mico e que, para nó s, significou escravatura, opressã o, perda de
liberdade e retrocesso.
O Ocidente ocupa hoje, em relaçã o a nó s, o lugar que outrora era de Deus em
relaçã o à humanidade. Por isso, se a filosofia da histó ria (como demonstrou Karl Lõ with)
é filha de uma teologia da histó ria o “Theos” para o Ocidente já nã o tem nada a dizer.

17
Ngoenha, 2000: 31
18
Ngoenha, 1993: 15 e ss.
CAPITULO I

Mas, nesse mesmo momento e de uma maneira idolá trica, o Ocidente se arroga a
prerrogativa de divindade em relaçã o a nó s.
Que haja uma crise geral da democracia no mundo (a eleiçã o de Berlusconi na
Itá lia, Holder na Á ustria, Blocher na Suíça, Busch nos EUS), que os dossiers econó micos
mais complexos impeçam os cidadã os nas democracias directas de exercerem os seus
direitos e deveres cívicos; que, nas democracias representativas, as populaçõ es se vejam
forçadas a votar com um lenço a cobrir as narinas para nã o sentirem o cheiro podre da
desonestidade e da corrupçã o que caracteriza cada vez mais a classe política; que os
eleitores devam votar por uma elite política que nã o merece confiança nos países da
velha democracia, o que implica uma crise de legitimaçã o política, nã o importa! Aliá s,
isso nã o impede o Ocidente de continuar a dar licçõ es do que é uma boa democracia,
omitindo a sua pró pria histó ria e as contradiçõ es que o fazem sistematicamente
balançar entre os valores humanistas e o economicismo.
Existe uma crise econó mica? Que isso dependa da desonestidade dos actores
econó micos (Parmalat), ou porque os economistas cometem erros grosseiros de
avaliaçã o (Swissair), ou porque as recitas do FMI e do BM demonstraram-se falaciosas e
com consequências nefastas para as populaçõ es (Argentina). Nã o importa: aquilo que o
nosso “Theos” ignora para si mesmo nos seus pró prios países parece saber para os
países dos outros.
No fundo, a questã o principal para nó s é de nos laicizarmos do Ocidente. Nã o
podemos continuar a tomar o Ocidente como modelo; nã o podemos reproduzir o seu
nível econó mico! Podemos simplesmente importar as suas taras, dado que é isso que ele
globaliza (Ulrich Beck19). Por outro lado, nã o temos populaçõ es a escravizar e a colonizar
para podermos acumular o capital que nos permita o arranque econó mico. E se
tivéssemos uma tal populaçã o subalterna correríamos o risco de ser semelhantes do
ponto de vista moral ao Ocidente que, como diz Césaire, faz batota com os seus pró prios
princípios.
3. Um eventual papel da filosofia no debate político moçambicano depende
necessariamente da existência de uma filosofia moçambicana. Mas como demonstrou a
corrente crítica da filosofia africana20 (P. Hountondji, Eboussi Boulaga, M. Towa) no
â mbito do seu distanciamento da negritude (Senghor, Damas e Césaire) e sobretudo da
etnofilosofia (Placide Tempels, Kagame), a existência de uma suposta filosofia, neste
caso, moçambicana, depende da existência de filó sofos moçambicanos legitimados nã o
só pelos diplomas universitá rios, mas pelo facto de escreverem o que Hountondji
chamou de arquivo e, através dele, instaurarem no país uma tradiçã o crítica.
A este nível, o país está paulatinamente a crescer. Nos ú ltimos anos através da
Universidade Pedagó gica, mas também através de outras instituiçõ es estrangeiras, o
nú mero de moçambicanos com graus académicos em Filosofia aumentou. Trata-se de
uma condiçã o necessá ria, mas nã o suficiente para o surgimento de uma tradiçã o
filosó fica moçambicana. Esta premissa fundamental tem de ser seguida pela coragem e
ousadia para instaurar um debate de ideias que, inspirando-se na secular tradiçã o
filosó fica, incida os seus interesses de uma maneira participativa e construtiva sobre a

19
La société du risque. Paris: L’Harmattan, 2001.
20
Ngoenha, 1993: 89.
realidade política moçambicana. Isto é, na reflexã o (até mesmo invençã o) de um regime
político que permita a participaçã o de todos no debate democrá tico, na reflexã o sobre a
á rdua questã o da representatividade, numa constituiçã o adequada à realidade cultural e
social moçambicana, num processo de redistribuiçã o, etc.
Isto quer dizer que, contra a veleidade de uma aparusia histó rica já realizada,
como defende Fukuyama, ou contra um modelo realizado na Europa e que nó s teríamos
simplesmente que imitar, como defendem os novos missioná rios oriundos das ciências
políticas –que de uma maneira acrítica e aparentemente sem dú vidas quanto ao que se
deve fazer em Moçambique, sobre o melhor regime político, o tipo de democracia, de
representaçã o social –continuam a dar receitas de política, de democracia, de
desenvolvimento sustentá vel. A filosofia nã o se contenta com o que é, com o que
aparece, nem pode admitir a ideia de uma histó ria acabada ou determinada de uma vez
por todas.
Sob o ponto de vista filosó fico, a histó ria é o terreno de uma constante invençã o
de sentido da parte do homem; é o terreno onde o homem exerce a sua liberdade de
poeta, no sentido da poesis grega, é o lugar da criaçã o do sentido no tempo.
Que as decisõ es políticas produzam efeitos que tocam o nosso nível de vida e os
nossos direitos; que o assento das instituiçõ es fundamentais da sociedade determina e
modela as nossas oportunidades; que as escolhas se coadunem mais ou menos com os
nossos gostos, com os nossos valores individuais e colectivos; que a distribuiçã o dos
custos e benefícios da cooperaçã o social seja coerente com um critério ou com um
conjunto de critérios; que as instituiçõ es consintam ou nã o, para cada um de nó s, a
definiçã o no tempo de um plano de vida e de um projecto de autodesenvolvimento; que
cada um de nó s conte pelo menos como qualquer outra pessoa, eis algumas questõ es
sumá rias que definem o que deveria ser o ponto do ataque da filosofia quando esta se
interessa por questõ es políticas.
Trata-se de questõ es normativas. O que quer dizer que a sua soluçã o implica a
referência a um princípio ou a um certo nú mero de princípios capazes de nos guiar nas
avaliaçõ es que fizermos sobre as decisõ es políticas, sobre o assento das instituiçõ es
fundamentais, sobre as escolhas colectivas, sobre a distribuiçã o dos recursos, etc. em
suma, a filosofia política é chamada a reflectir sobre como devemos viver no â mbito de
uma perspectiva interpessoal que podemos adoptar para as nossas vidas.
O cará cter normativo da filosofia política distancia-a relativamente da ciência
política, sobretudo no â mbito dos objectivos anunciados por cada um dos domínios,
mesmo se uma tal distinçã o na prá tica resulte pouco evidente. Comummente se diz que
a ciência política é uma ciência social entre outras, cujo objectivo seria estudar com
imparcialidade os movimentos sociais e as ideologias que os acompanham, enquanto a
funçã o da filosofia política seria reflectir nã o somente sobre o que é, mas também sobre
o que deveria ser.
Na prá tica, estas fronteiras –metodologicamente ú teis mas difíceis de balizar –sã o
constantemente transgredidas. Com efeito, nenhum especialista sério da ciência política
pode limitar-se a uma simples descriçã o, mas recorre constantemente a noçõ es
filosó ficas mais ou menos bem domesticadas. O contrá rio é também verdadeiro: a
CAPITULO I

filosofia política empresta também muitas vezes, sem o saber ou sem o admitir,
conceitos da ciência política e mesmo das ideologias.
Outra dificuldade é a seguinte: podemos distinguir uma filosofia política de uma
filosofia que nã o seria política? Podemos distinguir a filosofia política da filosofia moral?
Trata-se de duas questõ es difíceis. Se, desde Platã o até S. Tomá s de Aquino, existiu um
consenso que fez da filosofia política uma simples aplicaçã o da filosofia moral aos
problemas da cidade, esta ideia foi definitivamente rompida com Maquiavel e cedeu
lugar à ideia inversa, segundo a qual uma diferença importante separa estes dois
domínios do saber.
Para alguns, por exemplo, a filosofia trata de acçõ es individuais ou privadas; a
política de acçõ es pú blicas ou colectivas. Para outros, o juízo moral é a priori e tem um
valor absoluto, enquanto os juízos políticos sã o de ordem puramente empírica e, por
conseguinte, têm um valor relativo.
Mais recentemente, com a reabilitaçã o que Habermas operou ao pensamento de
Kant, emergiu uma nova tendência que relativiza a oposiçã o entre moral e política, que
se funda sobre o facto de que bom nú mero dos nossos juízos políticos resultam de uma
deliberaçã o ao mesmo tempo racional e moral.
Uma ú nica certeza emerge destas controvérsias: se a política é uma coisa
diferente da moral, e mesmo se tende a liberta-se da tutela desta ú ltima, nã o lhe pode
fugir completamente e para sempre. Podemos dizer a mesma coisa em termo cínicos,
sem recorrer ao transcendental kantiano. Nenhum príncipe, nenhum Estado se pode
subtrair de uma maneira definitiva à reprovaçã o suscitada pelos seus crimes; é no
interesse do príncipe ou do Estado nã o se comportar sistematicamente de uma maneira
imoral.
Para além desta constataçã o que mesmo Maquiavel fez sua, cada filó sofo tem
tendência a conceber as relaçõ es entre moral e política de uma maneira que lhe é
pró pria.
Poder-se-ia, enfim, definir a filosofia política em funçã o do seu “corpus” temá tico,
da particularidade dos problemas que trata ou da sua especificidade metodoló gica.
Infelizmente também aí nã o podemos ser afirmativos. Temas e problemas variam
segundo as idades. No século XVIII, a noçã o da liberdade foi a que suscitou os principais
debates; no século XIX, foi a noçã o de igualdade; no início do século XX, o conceito de
revoluçã o; na segunda metade do século XX, a noçã o da justiça retomou o passo. Amanhã
é prová vel que a noçã o de supra-nacionalidade (ONU, Uniã o Africana, SADC) seja a mais
importante.
Uma vez mais, a sucessã o destes debates, que marcaram a filosofia política, nã o
tem nada de providencial. Ela reflecte simplesmente as metamorfoses histó ricas, as
mudanças nas preocupaçõ es e nas prioridades. Mutaçõ es que, a menos que sejamos
completamente hegelianos, nã o podemos considerar que exprimam outra coisa senã o a
contingência mesma da histó ria que as produziu.
Quanto a saber se a filosofia política dispõ e de um método privilegiado para
produzir enunciados verdadeiros, a resposta é categoricamente nã o!
Significa isto que a filosofia política nã o é definível? Que nã o tem um terreno
pró prio? Que o seu discurso é sem aposta e as suas conclusõ es sem interesse? A resposta
é categoricamente nã o!
Por uma questã o de contraposiçã o, o domínio científico que melhor participa na
caracterizaçã o da validade da filosofia política é a economia. Sempre que se fala de
mudar a sociedade embate-se imediatamente na economia, que aparece nos discursos
dos seus militantes como a ú nica realidade, como o real que resiste à s utopias dos
filó sofos. Nã o é só o BM e o FMI, mas a maioria dos actores políticos quem coloca sempre
na dianteira as cifras do crescimento econó mico, do PNB. Aliá s, esta tendência
economicista salta também à vista numa leitura atenta do recente documento chamado
“Agenda 20/25”.
Este discurso é de tal maneira extraordiná rio que ele é pronunciado pelos neo-
liberais, pelo antigos marxistas ortodoxos ou por aqueles que querem a todo o custo
conservar ou conquistar o poder. Para estes apó stolos da dolarcracia, o capitalismo
aparece como o ú nico sistema concebível e a sua vitó ria sobre a economia planificada
ganha um estatuto soterioló gico. Que o capitalismo nã o assegure a felicidade universal,
que ele aumente a pauperizaçã o das nossas populaçõ es mais fracas, que deixe muita
gente no desemprego, que o seu ritmo de crescimento diminua constantemente, nã o
importa. Para os economistas neo-liberais e economia tornou-se um fim em si mesmo.
Tornando-se mundial, a seguir ao desaparecimento do bloco socialista, imposta
na Europa pelas instituiçõ es comunitá rias, no resto do mundo pelos acordos do GATT
(hoje OMC), em Á frica e em Moçambique pelos projectos do BM e do FMI, o chamado
mercado livre constitui, doravante, o ponto de referência de todas a acçã o. À esquerda
como à direita, todos se sentem na obrigaçã o de recitar o mesmo credo segundo o qual
os governos deveriam deixar de interferir nos fluxos econó micos. Quando penso que
cresci num país que repetia constantemente: “a política no posto de comando” …
É necessá rio insurgir-se contra este economicismo que condena Moçambique a
uma maior dependência e mesmo ao neocolonialismo, e deita por terra todos os esforços
realizados em termos de luta pela independência e pela liberdade. Contrariamente à
ideologia dominante, nã o é nas pretensas leis da histó ria, da economia ou do mercado
que podemos esperar a nossa salvaçã o. A histó ria nã o tem leis, o mercado também nã o.
O capitalismo é actualmente a doutrina e mesmo a ideologia dominante, mas nada prova
que esta situaçã o deva durar eternamente; mesmo se, é preciso reconhecer, que na hora
actual nada prova que o capitalismo deva desaparecer, nem que possa ser substituída
por uma organizaçã o de produçã o que elimine a exploraçã o, a dominaçã o e a criaçã o de
pobres de ricos.
Em suma, um futuro diferente nã o cairá do céu. Ele será o que nó s fizermos,
colectivamente; ele será resultado de actos políticos. Neste ponto de reflexã o, qualquer
homem sensato diria, de uma maneira politicamente correcta, que o futuro depende dos
cidadã os. Eu penso ter que dizer que o nosso futuro depende da nossa capacidade de
instaurar leis e espaços participativos que permitam que a maioria dos moçambicanos
se tornem, de facto, cidadã os.
Um amigo italiano, por sinal casado com uma moçambicana, dizia-me ter ficado
escandalizado quanto constatou que a sua mulher considerava analfabeta a pró pria mã e,
e este juízo estava ligado unicamente ao facto de que a senhora nã o falava português.
Toda a gama de conhecimentos que ela tinha sobre os mais variados sujeitos era
anulado diante do factor “língua portuguesa”. Este amigo italiano, que nunca aceitou
considerar o changana um dialecto, dizia que, no fundo, os moçambicanos tinham de tal
maneira interiorizado a luso-dependência que tudo o que nã o se fazia em português era
ignorâ ncia.
O problema poderia situar-se na natureza assimilacionista do colonialismo
português –reabilitada pela lusofonia, pelos PALOPs, ou pela pretensa cidadania
lusó fona –e lá estaríamos em conjecturas de tipo histó rico. Poderia situar-se na escolha
do português como língua nacional feita pela primeira Repú blica –no quadro da luta
CAPITULO I

contra o tribalismo –e lá estaríamos num quadro de uma decisã o de política cultural


justificada. Mas no quadro democrá tico, se o substracto das nossas leis e as modalidades
de participaçã o dependem de uma cultura de Estado que vive em português, nã o só
como língua, mas também e sobretudo como Direito, entã o excluímos pura e
simplesmente a maioria dos moçambicanos da cidadania e, por consequência,
falsificamos a democracia.
Nã o sã o as pessoas que devem-se adaptar a organigramas jurídicos e
constitucionais de origem exclusivamente exó gena, nos seus fundamentos filó sofico-
histó ricos e nas suas modalidades de aplicaçã o jurídico-administrativas. É o Direito que
deve ser construído e alimentado a partir dos inconscientes colectivos das populaçõ es.

As aporias filosóficas
Como se vê, nã o estou a trazer respostas à s questõ es que a ACAFIL me pô s, mas a
levantar problemas. Com efeito, a filosofia nã o está à altura de oferecer soluçõ es aos
problemas relativamente aporéticos em volta dos quais se ufana. Um dos seus
contributos é tentar elucidar, esclarecer a natureza de tais problemas e pô r em evidência
a variedade de razoes que militam em favor de escolhas e alternativas. Isto pode
também sugerir soluçõ es, linhas e cursos de acçã o, escolhas e decisõ es. Mas a
responsabilidade, creio, toca a cada um de nó s. Se a filosofia terá sido capaz de dar uma
plataforma melhor e mais rica para sustentar o princípio de cooperaçã o e favorecer uma
comunicaçã o sincera ou um diá logo entre os seres humanos finitos e limitados –como
nó s somos -; os filó sofos deveriam considerar-se satisfeitos num nível muito elevado.
O desafio da filosofia política em Moçambique é relevar e fundamentar as razõ es
que militam a favor de uma democracia mais participativa, de uma democracia que
subordina a economia à s escolhas políticas e societá rias (a política no posto do
comando), de numa democracia que baseia as suas instituiçõ es nos imaginá rios
colectivos das populaçõ es, sem abdicar dos contributos das histó rias políticas e
institucionais dos outros países e povos (contrato cultural), ou numa atitude ético-
política que levaria as forças políticas a resolverem entre moçambicanos (contrato
político) ou ainda numa organizaçã o só cio-econó mica distributiva e solidá ria (contrato
social).
O facto de nã o poder contar para esta reflexã o com uma tradiçã o filosó fica
moçambicana estabelecida, aumenta as minhas dificuldades e constrange-me a limitar
os meus propó sitos a ideias e posiçõ es muito pessoais que de maneira nenhuma podem
ter a pretensã o de ser exaustivas. Pelo contrá rio, serã o certamente fragmentá rias e
parciais. Todavia, fazendo isso, participando na construçã o de um arquivo da filosofia
em Moçambique, apesar de nã o ser essa a minha intençã o de partida, contribuo
inelutavelmente para inscrever a filosofia no â mbito dos problemas que emprenham a
política moçambicana e, mutatis mutandis, para inscrever os debates que alimentam a
vida da nossa jovem democracia no â mbito da filosofia.
Percebe-se, assim, que à questã o que escolhi para este trabalho –papel da
filosofia na democracia moçambicana –mesmo se tirada de um bloco de quatro questõ es
da ACAFIL e, ainda por cima, reajustada como uma camisa por um alfaiate para que me
possa servir, dei há quatro anos e dou ainda hoje respostas fragmentá rias e parciais. Isto
está ligado aos meus limites pró prios, aos limites da disciplina que tento praticar e à
dificuldade geral de dar respostas exaustivas a questõ es assim imbricadas como as da
democracia. Mas o limite maior das minhas respostas está ligado à temporalidade da
filosofia que nã o é profecia, nã o é futurologia, nã o tem a tempestividade e a prontidã o de
reacçã o de outros domínios de saber. A filosofia é lenta nas suas reflexõ es, o seu saber
nã o é cumulativo e, como se isso nã o chegasse, as suas respostas sã o muitas vezes novas
questõ es!
Hegel comparava a filosofia à coruja de Minerva que chega sempre tarde!
Contudo, apesar da sua lentidã o e atraso, como diria Voltaire, ela contribui– ou pelo
menos deveria contribuir –para levar os homens, mesmo se lentamente, em direcçã o à
sabedoria!
Nã o satisfeito com as respostas que dei há quatro anos a uma questã o assim
importante, pus-me a reflectir sobre o tipo de contribuiçã o que a filosofia podia dar à
democracia, que afinal de contas nã o é nada mais e nada menos que a contribuiçã o que
nó s, filó sofos moçambicanos, podemos dar ao debate político da nossa terra. Todavia,
apesar do tempo, ou melhor, da duraçã o do tempo da reflexã o, nã o venho hoje, volvidos
cinco anos (que é o tempo da duraçã o de uma legislatura), com respostas, mas com
novas questõ es e novas interrogaçõ es.
Com efeito, os tempos de resposta da política nã o sã o os mesmos que os tempos
de resposta da filosofia. A política e mesmo a economia têm de responder
imediatamente aos problemas com as quais sã o confrontadas. Esta é uma das
especificidades da política, mas também uma das suas dificuldades.
A filosofia necessita de mais tempo. Com isso nã o quero dizer que ela seja uma
arte mais fá cil. Os candidatos (Chissano e Dlakama) nã o se podiam permitir um tempo
de cinco anos de reflexã o, nem os economistas, ou empresá rios se podem permitir um
tal luxo. As respostas que eles têm que dar sã o hic et nunc, aqui e agora. É por isso que os
objetivos dos filó sofos e dos políticos divergem. O político pensa nos mecanismos para
aceder ao poder, ele mesmo, o seu partido, a sua família política. O filó sofo pensa nos
mecanismos susceptíveis de permitir um melhor acesso de um nú mero sempre maior de
indivíduos à vida pú blica. A isto vã o estar ligados os seus respectivos modos de acçã o e
intervençã o. A política utiliza a «propaganda», os slogans, as intervençõ es
espectaculares; a filosofia é mais discreta, mais reservada.
Mais substancialmente, a política ocupa-se do possível, a filosofia do desejá vel.
Ora, nem tudo o que é possível é desejá vel. O contrá rio é também verdadeiro: nem tudo
o que é desejá vel é possível. Todavia, entre os possíveis existem os que sã o mais
desejá veis do que os outros. O diá logo entre a filosofia e a política deveria permitir uma
influência reciproca: a filosofia deveria levar a política a nã o cair na facilidade da
realizaçã o de um possível acessível mas simples, em detrimento de um possível
desejá vel, mesmo se exige mais esforço e mesmo mais tempo; por sua vez, a política
pode ensinar à filosofia a ser mais comprometida com a realidade, sem que isso
signifique que ela abdique de uma dose de idealismo e de utopia, no sentido de verdade
do amanhã (Victor Hugo).
A Filosofia e a política sã o, por conseguinte, duas artes diferentes, que devem
permanecer como tais, nã o para se contraporem, mas para se completarem. Todavia, as
suas diferenças e especificidades respectivas permanecem fundamentais.
O político que se tenta substituir ao filó sofo nã o estará no seu lugar. Aliá s, nã o sei
se ele teria a competência epistémica necessá ria para exercer o á rduo trabalho de
reflexã o com todos os condicionalismos teó rico-metodoló gicos e apriorismos que a
filosofia exige. O contrá rio é também verdadeiro: o conhecimento teó rico que o filó sofo
pode adquirir do seu estudo, investigaçã o e reflexã o, nã o o habilita necessariamente a
exercer, de maneira idô nea, um cargo político.
Existe uma grande tentaçã o de justapor o conhecimento teó rico à política e ao
exercício efectivo de cargos políticos. Quando o politó logo, o soció logo, o jornalista, o
jurista ou o filó sofo confundem as suas respectivas competências críticas no sentido
epistêmico –o que quer dizer antes de mais perspectivas de abordagem específicas em
termos de rigor metodoló gico e uma deontologia de intervençã o subordinada a uma
hierarquia axioló gica bem definida –com uma eventual competência de exercício da
funçã o política, cometem um erro. Nã o digo que um bom filó sofo, digamos para ser mais
CAPITULO I

abrangente, um bom intelectual, nã o possa ser também um bom político, ou que um bom
político nã o possa ou nã o deva ser um grande intelectual ou mesmo filó sofo. Aliá s,
questiono mesmo se o ideal nã o seria termos políticos com grande veia de conhecimento
teó rico, o que, aliá s, era já o sonho de Platã o.
Nã o se tratava tanto de trazer filó sofos ao governo, quanto de soprar nos políticos
o espírito de desinteresse que deveria caracterizar aquela casta de pensadores
privilegiados que se dedica à contemplaçã o do bem, do belo e do justo. Platã o queria
dizer que os políticos deveriam ser sá bios, mas de um saber desinteressado, o ú nico que
pode leva-los verdadeiramente à prá tica da justiça, sem a qual a violência da política
corre o risco de se fazer substituir por outras formas mais cruéis de confrontaçã o.

A tentação do(a) político(a)


Parece que a tentaçã o do poder é pró pria do homem. Os filó sofos e os intelectuais
nã o fogem a esta regra geral. Muitos de entre nó s sã o tentados pela política, pelo poder
e, sobretudo, pelo que a política e o poder permitem: um certo bem-estar e uma relativa
reputaçã o. É muito humano deixar-se seduzir pelo poder. Nã o há ninguém que, num
momento ou noutro da sua vida, nã o se tenha deixado seduzir pelo poder e, como
consequência, pela política activa.
Na nossa sociedade, onde a pobreza, aliá s a miséria, é a tó nica dominante, mas ao
mesmo tempo, onde uma ínfima parte da sociedade tem meios exorbitantes, boa parte
da qual é uma burguesia de origem política, a tentaçã o do político é ainda maior. Lá
também estamos diante de um fenó meno profundamente humano. Quem de entre nó s
nã o quer melhorar a sua condiçã o de vida e da sua família? Como certos fins justificam
certos mais, resulta quase ó bvio que um certo nú mero de entre nó s decida engajar-se na
política nã o como meio para servir ou para defender uma causa, mas para se servir.
Todavia, subordinar o engajamento político à soluçã o de questõ es simplesmente
individuais empobrece a política na sua dimensã o axioló gica –o famoso desinteresse
plató nico –e a componente crítica do debate pú blico. Mas, por outro lado, esvazia-se a
funçã o política do seu significado profundo e primeiro (a questã o do melhor regime que
significa busca da justiça), e redu-la a meio instrumental para obter meios econó micos.
A outra vertente deste problema é a tentaçã o do poder político em
instrumentalizar os intelectuais. Um intelectual performante e conhecido é
imediatamente cortejado pelo poder ou pela oposiçã o ao poder –que nesta dimensã o
nã o é a RENAMO, mas a comunidade Internacional que, através de uma espécie de
ingerência escandalosa, hipoteca nã o só a soberania, mas a pró pria democracia. Parece
haver o receio de ver intelectuais como membros de formaçõ es políticas adversá rias até
mesmo de vê-los simplesmente como membros activos da sociedade civil, sem nenhuma
ligaçã o com este ou aquele partido.
É ó bvio que os partidos políticos têm necessidade do que Gramsci chamava de
intelectuais orgâ nicos. Quanto mais bons filó sofos, soció logos, juristas um partido tem –
em matéria de competência teó rica e de busca constante da justiça social –melhor pode
conceber o político, em termos de mecanismos de crítica interna. Aliá s, se os partidos
políticos pudessem contar nas suas fileiras com intelectuais de craveira, se as nossas
elites políticas associassem, nas suas pessoas, a dimensã o da militâ ncia com a dimensã o
de competência e de posicionamento ético, o nível da política nacional seria de toda uma
outra índole.
Se os intelectuais orgâ nicos, engajados como uma família política, têm o dever de
trabalhar para a vitó ria política da família a que pertencem, e isso é completamente
legítimo, uma sociedade tem também necessidade de intelectuais que, mesmo que
tenham as suas preferências políticas, caracterizem a sua acçã o pú blica como
pensadores vocacionados para a busca das condiçõ es de uma sempre melhor
democracia como participaçã o de todos, para a invençã o de mecanismos de sempre
maior legitimaçã o de poder, de maior participaçã o, mais transparência, mais serviços,
eventualmente com alternâ ncia na governaçã o do país, sobretudo de mais consolidaçã o
da liberdade e incremento da justiça social.
O politó logo americano Francis Fukuyama, numa clara demonstraçã o de mau uso
dos conceitos de filosofia da histó ria21, confunde o fim da guerra fria com a obtençã o,
enfim, do melhor regime possível. Apoiando-se nas interpretaçõ es de Alexandre Kojève22
nos seminá rios que orientou em Paris nos anos trinta sobre a fenomenologia do espírito
de Hegel (1807), Fukuyama vê na vitó ria do liberalismo a prova da entrada da
humanidade na sua ú ltima etapa de evoluçã o. Ele defende que a partir do momento em
que a superioridade da democracia esteja em vias de ser reconhecida pela humanidade
inteira, pode-se considera a histó ria do Homem como pró xima do seu objetivo final. Em
outras palavras, como virtualmente terminada.
Esta posiçã o foi contestada nã o só por filó sofos, mas também por politó logo. Jean-
Marie Guéhenno23, revelou a fragilizaçã o dos laços que ligam o cidadã o à sua
comunidade nas democracias ditas tradicionais. As decisõ es políticas estã o sempre mais
nas mã os de lobbies que agem na sombra. Para Samuel Huntington (1997), a
proliferaçã o de zonas de instabilidade no mundo põ e em perigo a estabilidade
democrá tica.
Este é um argumento com o qual nã o posso estar de acordo, porque sugere que
muitas reivindicaçõ es de justiça de povos oprimidos e explorados contra os países que
se reclamam padrõ es dos direitos do homem e a democracia sã o focos de instabilidade.
Na esteira do direito moderno, da escola de Salamanca (Francisco de Vitó ria, F. Soares,
Alberigo Gentile) até Kelsen, a estabilidade mundial é vista como algo que pode fazer
conviver no mesmo espaço-mundo e na mesma temporalidade histó rica (os trabalhos da
antropologia demonstraram que, doravante, os homens vivem na mesma temporalidade,
o que levou Lévy-Strauss a falar da crise da antropologia) o genocídio, a escravatura, o
colonialismo com uma filosofia humanista, liberal, os direitos do homem e a democracia.
Como demonstra Luigi Ferrajoli24, o Estado moderno, desde a sua génese, lança as
premissas para uma democracia no interior do Ocidente, mas é selvagem no exterior.
Isto supõ e que a «aldeia planetá ria» pode ser está vel com um pequeno grupo de ricos
que nã o medem esforços para aumentar a sua riqueza à custa mesmo de genocídio,
massacres, assassínios, exploraçã o. Supõ e que a maioria massacrada, assassinada e
explorada aceite a sua condiçã o de Condenados da Terra (Frantz Fanon) ou entã o que os
eleitos tenham meios para matar todas as reivindicaçõ es, mesmo as mais legítimas dos
que estã o à esquerda de Deus.
O progresso humano pode, nesta perspectiva, prescindir da maior parte da
humanidade, ou mesmo realizar-se contra ela. Quando os povos periféricos, como o
nosso, começam a reivindicar direito à vida, isso é visto como ameaça de desordem à
ordem leviatâ nica que se instaurou como regra. Aliá s, o pró prio discurso sobre os
direitos humanos (que, no entanto, constitui uma das maiores contribuiçõ es ao avanço
ético da humanidade) é muitas vezes usado como arma de pressã o contra aqueles que
têm reivindicaçõ es a favor dos pró prios povos.
Apesar das veleidades fukuyamianas do fim da histó ria, nada prova que o triunfo
à escala mundial do «melhor regime possível», supondo que um tal triunfo se produza
realmente, constitua o ú ltimo evento importante da humanidade. De facto, volvidos dez
21
La fin de l’histoire et le dernier home. Paris: Flammarion, 1992.
22
Introduction à la lecture de Hegel. Leçons de 1933 à l’E.P.H.E., réunies et publiées par Raymond Queneau,
Paris: Gallimard, 1947.
23
La fin de la démocratie. Paris: Flammarion, 1993.
24
La sovranità nel mondo modern. Roama-Bari: Laterza, 1997.
CAPITULO I

anos do trabalho de Fukuyama, nada confirma as suas prediçõ es. A democracia como se
apresenta, sem respeito pelas histó rias e pelas culturas particulares dos povos, tem
ainda dificuldades de vingar em certos países: é imposta a uns,
manipulada/instrumentalizada pelas chamadas velhas democracias em certos países do
sul, sofre ingerências inaceitá veis e anti-demcrá ticas por parte das democracias
(coloniais) consolidadas contra as democracias emergentes, subordina-se a interesses
econó micos, etc. Existem razõ es sérias para pensar que a extensã o colonial da
democracia (pela sua imposiçã o histó rica e institucional) à quase totalidade dos países
do planeta equivale a uma sempre maior diminuiçã o da democracia enquanto regime de
participaçã o popular.
Aliá s, podemos mesmo interrogar-nos sobre a existência de um regime que seria,
em absoluto, melhor que todos os outros. É mais razoá vel consentir que a democracia
representativa é o menos mau dos sistemas ou, se quisermos dizer positivamente, é o
melhor sistema até aqui criado.
Por conseguinte, a filosofia(moçambicana) tem o dever de continuar a interrogar-
se quanto ao melhor regime e à s formas institucionais que deve tomar para adequar-se à
nossa situaçã o histó rica específica.
Eis porque, no contexto moçambicano, a existência de uma elite pensante, nã o
partidocraticamente orgâ nica, nã o se pode constituir em oposiçã o aos actores políticos,
ainda menos em oposiçã o aos eleitos, os ú nicos cuja legitimidade política se entra (ou
pelo menos deveria encontrar-se) na vontade do povo. Ao mesmo tempo, as elites
políticas nã o podem (nã o devem) ver, na vontade de uma certa independência de
pensamento e de juízo por parte da elite intelectual, uma ameaça, mas uma contribuiçã o
necessá ria (ela deve ser isso) à evoluçã o positiva da nossa democracia e ao progresso
social do nosso povo.
A funçã o/missã o dos intelectuais é contribuir com as suas ideias, sugestõ es,
reflexõ es, perplexidades, cepticismo, críticas e reticências para o melhoramento da
sociedade. Isto estende-se mesmo à queles que, por fidelidade à disciplina científica a
que se referem, limitam a pró pria intervençã o a um nível epistémico e nã o axioló gico
(Max Weber). Se os intelectuais, independentemente das disciplinas de referência, nã o
contribuírem para melhorar a sociedade, podemos estender a questã o, que Durkheim
punha aos cientistas sociais, a todos os intelectuais e perguntar: para que é que servem?
A particularidade da filosofia em relaçã o à s outras ciências humanas e sociais
reside no facto de ela nã o limitar a sua acçã o a uma radiografia social (por mais
importante que essa radiografia possa ser), mas aspirar normativamente a dizer o que
deveria ser a boa sociedade.
Eis porque, no que me diz respeito, ouso, muito modestamente, sugerir para o
crescimento político e social de Moçambique, a necessidade de incrementar o contrato
social, de estabelecer um contrato político entre os partidos principais fautores da
política nacional, e de desenhar o quadro institucional, inspirando-se, em primeiro lugar,
nos imaginá rios sociais dos diferentes grupos nacionais, nos espíritos das tradiçõ es dos
diferentes grupos, sem, no entanto, deixar de ter em conta a contribuiçã o dos outros
países e povos na evoluçã o da democracia.
Contudo, a relaçã o ambígua entre o saber e o poder é tã o velha quanto a filosofia
ela mesma. Apesar de se ter Só crates como fundador mítico da filosofia, a fama deste se
deve essencialmente, aos escritos sobre ele que nos foram legados por Platã o. Assim, a
figura de Só crates e a fundaçã o desta forma específica de conhecimento que a partir de
entã o se chamou filosofia, está geneticamente ligada à figura e mesmo, ao pensamento
de Platã o.
Se, em Só crates, o conflito entre a filosofia e a política eram patentes (foi o poder
que o condenou ao suicídio –o que historicamente tem servido para demonstrar a
dimensã o moral da filosofia), o primeiro a sentir a necessidade de teorizar as relaçõ es
que deveriam transcorrer entre este novo saber e o poder foi Platã o. Assim o primeiro
escriba «philosophicus» pergunta-se qual seria o melhor regime político possível. Ou, se
quisermos ser mais kantianos, ele pergunta-se quais as condiçõ es de possibilidade para
um homem exercer de uma maneira justa o poder que ele, eventualmente, tenha sobre
os outros homens. Em outras palavras, quais sã o as condiçõ es de possibilidade de
exercício por parte do homem de uma governaçã o justa. A resposta que Platã o dá a esta
questã o é sobejamente conhecida: que os reis se tornem filó sofos ou que os filó sofos se
tornem reis.
O que quer dizer Platã o com isso? A preocupaçã o principal de Platã o é uma
governaçã o justa. Ora, o homem, de uma maneira geral, aparece a Platã o como tendente
à injustiça, à concupiscência, a privilegiar a sua pessoa, o seu grupo, os seus interesses,
em detrimento dos interesses dos demais.
Numa «polis» ateniense dividida entre escravos (a maioria da populaçã o que
trabalhava), militares –o grupo daqueles que deveriam defender a cidade –, e os filó sofos
que se consagravam à contemplaçã o do mundo ideal, a Platã o resultava ó bvio que os
ú ltimos, pela sua vocaçã o existencial de busca da verdade, fossem os mais aptos a aplicar
no mundo da governaçã o política um dos correlativos essenciais da verdade, que é a
justiça.
Dizer que os governantes têm que ser filó sofos ou os filó sofos governantes, é uma
maneira de denunciar a dificuldade de uma governaçã o justa, mas, ao mesmo tempo,
significa dizer de uma maneira prospectiva que a justiça tem que ser o objetivo primeiro
de todo o homem do governo.
Mas se para o homem do governo a justiça é uma miragem, associada à verdade, a
justiça constitui o ideal de base da investigaçã o filosó fica. É por isso que o homem de
poder deveria ser filó sofo ou participar das preocupaçõ es dos filó sofos.
Contemplar a verdade significa para Platã o pô -la em prá tica, ser justo. Eis porque
Só crates, apesar de ter tido a possibilidade de fugir, decidiu ficar e morrer em nome da
justiça e do respeito pelas leis do Estado.
Mas num filó sofo que se torne rei, ou num rei que se converta à filosofia, qual das
duas dimensõ es vai prevalecer: a contemplaçã o do mundo das ideias ou o pragmatismo
político (as diferentes razõ es de Estado)?
Alexandre Magno, discípulo de Aristó teles, apesar dos seus ideias ecuménicos –
unir o Oriente e o Ocidente –para atingir os objetivos que se propunha, teve como meios
a guerra e a constriçã o dos seus generais a contraírem matrimó nio com mulheres
orientais. Estes procedimentos eram conformes a justiça da Ética a Nicômaco predicada
por Aristó teles? Nã o estamos perto do pragmatismo maquiavélico para quem os fins
justificam os meios?
Num registo inverso, o «Faraó» da quinta dinastia egípcia estava de tal maneira
ligado à contemplaçã o da verdade do Deus Amoon que negligenciava o pragmatismo que
a sua funçã o política exigia. O perigo de um tal governante era o enfraquecimento da
autoridade pú blica, o que poderia pô r o país em perigo, face aos seus inimigos, e mesmo
a ordem interna de que um país necessita para que a convivência civil seja possível. De
facto, contra a lassitude do Faraó , o aparelho do Estado acabou decretando, em nome do
que se pode chamar hoje de Razã o de Estado, a supressã o do dito Faraó . Pode a filosofia
(apesar de compreender) caucionar este tipo de procedimentos?
Qual é e deve ser o modelo de filó sofo? Só crates, o campeã o da introspecçã o, o
homem que em nome da justiça justa ousa pô r em causa as leis do Estado, da tradiçã o e
da religiã o para apelar-se a uma verdade superior? Ou o realista Aristó teles que nã o se
limita a afastar-se das concepçõ es idealistas do seu mestre Platã o, mas tenta influenciar
o curso da histó ria através do seu educando, Alexandre, O Grande? O filó sofo como um
CAPITULO I

Baptista, deve preparar o caminho da chegada do Leviatã de Hobbes, ou estar ao serviço


do Príncipe como Maquiavel? E que fazer quando o príncipe se chama Nerã o para fugir
ao destino trá gico do pobre Séneca?
Ser um apologeta da modernidade e da mudança a todo o custo como Voltaire
(Towa, Elungu) ou defensor das tradiçõ es como Rousseau? Ser filó sofo deve significar o
metodismo excessivo de Kant, a autarquia de vida de Espinosa, a amargura de Nietzsche
ou o mundanismo anti-mundano de Sartre?
Para a histó ria de Moçambique todos conhecemos a importâ ncia que teve o
fundador mítico da FRELIMO, Eduardo Mondlane. O debate recente tentou relativizar o
seu papel na fundaçã o da FRELIMO, mas sobretudo pretendeu que teria havido
cumplicidade da direcçã o da FRELIMO no seu assassinato. A mesma coisa tem sido dita
acerca da morte trá gica de Samora Machel.
Ora um dos argumentos trazidos para explicar a morte de Mondlane era que ela
era a condiçã o necessá ria para o prosseguimento da luta de libertaçã o nacional. Quando
se conhece a importâ ncia da independência nacional para todo um povo, e quando se
conhece o anacronismo histó rico do colonialismo português que fazia com que o ú nico
meio para obter a independência fosse a luta armada, uma hipotética cumplicidade no
assassinato de Mondlane, de um ponto de vista pragmá tico-político poderia resultar
ló gica.
A mesma coisa se pode pensar da morte de Samora Machel. Depois de muita
morte e muito sofrimento, a ú nica via de saída para o conflito armado era a abertura do
diá logo com a RENAMO. Ora, Machel teria resultado no maior impedimento para que
esse diá logo se realizasse, o empecilho maior para a paz de todo um povo. Aqui também
a conclusã o parece ó bvia.
Nestes dois casos, existe um conflito claro entre os princípios filosó ficos e as
acçõ es da prá xis política. No primeiro caso, teríamos um homem cioso em utilizar meios
pacíficos para atingir o grande valor para todo um povo que é a liberdade. Mas estes
meios eram obstruídos pelo anacronismo histó rico do colonialismo português que, face
ao declínio dos impérios coloniais europeus em Á frica, continuava a impor como ú nico
recurso a guerra. No segundo caso, teríamos um Machel que nã o aceitaria dialogar com a
Renamo porque julgava que se tratasse de um instrumento neocolonial de poderes
capitalistas ocidentais, o que aliá s era partilhado pela direcçã o da FRELIMO.
Qual deve ser a posiçã o do filó sofo? Eu poderia responder a isto com Kant que,
contra a posiçã o de Platã o, pensa que nã o se deve esperar que os reis filosofem ou se
tornem filó sofos, nem mesmo desejar isso. Até aqui estou de acordo com o pensamento
de Kant, mas com todo o respeito por este grande filó sofo, devo emitir reservas quanto
à s razõ es. Kant pensa que nã o se deve sonhar com a transformaçã o de reis em filó sofos
ou que os reis filosofem porque a partir do momento que os reis detêm o poder-força,
estã o inexoravelmente condenados à corrupçã o do livre juízo da razã o.
Eu nã o me interesso neste trabalho pelas ilaçõ es teó ricas do que Kant chama a
corrupçã o do livre juízo da razã o, mas pelas interpretaçõ es histó ricas que este axioma
acabou tendo nos debates políticos, cujo á pice foi atingido na famosa má xima de
Churchil: «o poder corrompe, o poder absoluto corrompe absolutamente».
Apesar dos excessivos exemplos de uma relaçã o quase intrínseca entre poder e
corrupçã o, temos também casos suficientes de governos e governantes que tentaram ser
justos sem, no entanto, terem abdicado do pragmatismo que deve necessariamente
acompanhar a arte da governaçã o, para refutar a relaçã o que Kant estabelece entre
poder e corrupçã o. Poderíamos citar uma série de exemplos histó ricos que vao de Marco
Aurélio até Julius Nyerere passando por Sankara. Mas talvez seja oportuno voltar ao
contexto moçambicano.
Tenho expresso muitas vezes a minha admiraçã o pelos jovens que abandonaram
tudo: casa, pais e carreiras para se lançarem numa aventura de luta de libertaçã o que
sabiam muito perigosa. Digo muitas vezes que eu lamento ter nascido tarde e nã o poder
ter aderido à quela luta que continua, a meus olhos, sendo justa.
Tenho também muito respeito pelos governantes da primeira Repú blica (apesar
dos erros cometidos) por nã o terem, contrariamente a muitos governos africanos de
entã o, feito da política a arte de encher a bolsa com aquilo que Jorge Rebelo, nas suas
vestes de poeta, chamou «coisas sujas e inconfessá veis».
Tenho respeito por Machel pela tenacidade com que separava os bens pú blicos
dos privados.
Se eu continuasse a referir-me a Kant, para ser justo, deveria dizer que por
corrupçã o Kant nã o entendia só a corrupçã o material, mas também a justiça em termos
de debate de ideias. A este propó sito, devo render homenagem ao governo da segunda
Repú blica por ter aberto espaço a um debate de ideias.
A tentaçã o da corrupçã o é grande, mas o ideal plató nico permanece vá lido. A
sociedade moçambicana tem necessidade de uma elite política preocupada em exercer
com rigor e competência as suas funçõ es pragmá ticas políticas, mas que tenha em conta,
ao mesmo tempo, a necessidade da busca da justiça, sabendo que esta nã o se define
(nem se atinge) uma vez por todas, mas transforma-se com o desenvolvimento da
sociedade e com a mudança das necessidades dos indivíduos e dos grupos. É por isso
que a sua acçã o deve ser comprometida por um corpo de filó sofos que tenham na
verdade a razã o ú ltima da sua actividade. Mas os filó sofos, por sua vez, têm que ter
presente que essa verdade nã o se pode encontrar fora das conjunturas histó rico-sociais
condicionadas pelos seus imperativos políticos, econó micos e sociais.
No fundo, a realizaçã o da justiça ou a busca de uma justiça sempre mais justa
para um nú mero sempre maior de indivíduos passa necessariamente pela colaboraçã o
nã o só dos políticos e filó sofos, mas de todos. Colaboraçã o quer dizer influencia
recíproca, mas também respeito (nã o filiaçã o, nã o subordinaçã o, nã o
instrumentalizaçã o) das prerrogativas e das liberdades epistêmicas de cada corpo.
A histó ria das relaçõ es entre os filó sofos (já dissemos que a filosofia só pode
existir se existirem filó sofos) e o poder nã o obedece a nenhum critério unívoco. Tanto
mais que como a filosofia, o poder também nã o obedece a nenhuma constante histó rica,
dado que está intrinsecamente ligado aos regimes políticos: democracia, oligarquia,
aristocracia, ditadura (e aqui depende do ditador que pode ser tanto um tirano sem
escrú pulos como um ditador iluminado).
O poder depende também das épocas histó ricas, das vicissitudes dos tempos e do
lugar. Assim, na Antiguidade, Só crates, por causa das suas posiçõ es filosó ficas, é
condenado à morte pelo poder; mas, Aristó teles, algumas décadas mais tarde, é
«pedagogos» do «ecumênico» Alexandre. Maquiavel põ e-se ao serviço do príncipe,
Hobbes teoriza a necessidade de um Leviatã , enquanto Thomas More e Campanella
sonham uma «Utopos» e uma cidade do sol, respectivamente. Sepú lveda defende os
interesses espanhó is, enquanto a banda dos iluministas franceses, Voltaire, Rousseau,
Montesquieu sonha com um humanismo e uma democracia que a afasta
sistematicamente das graças do poder político. Mais perto de nó s, o grande Heidegger
tem uma relaçã o ambígua com o nazismo, Gentile e Croce com o fascismo na Itá lia; os
judeus Jonas e Arendt têm que fugir da Alemanha nazi, Marcuse, Adorno, opõ em-se ao
nazismo, Sartre e Camus apoiam o nascente movimento da negritude que luta pelo
reconhecimento do homem negro.
A filosofia nã o é unívoca, exatamente como o poder. A Á frica independente nã o
escapou a esta relaçã o ambígua entre os intelectuais e o poder. E, portanto, os primeiros
intelectuais africanos (de origem africana) nã o se tinham limitado a inventar
CAPITULO I

conceptualmente a Á frica. Essa invençã o coincidia, na maior parte dos casos, com uma
militâ ncia política que significava oposiçã o aos regimes (esclavagistas ou colonialistas)
que mantinham a Á frica e o homem negro sob dominaçã o. Entã o, geneticamente, o
nascimento dos primeiros intelectuais –muitos dos quais sã o pastores das igrejas
protestantes do Novo Mundo – têm uma relaçã o de oposiçã o com o poder instituído.
As primeiras ambiguidades com o poder manifestaram-se na época pó s-
esclavagista. Dubois inicia uma forma mais intelectual de militâ ncia política. A sua luta
na América é permitir que os negros, até entã o escravos, pudessem beneficiar de todas
as prerrogativas previstas pela constituiçã o para todos os cidadã os. Para ele a questã o
negra nã o era social, mas política. Eles eram a ú nica parte da populaçã o americana que
tinha ido para os EUA contra vontade, que, em razã o da sua histó ria, nã o podia
considerar os EUA como terra de liberdade. Por consequência, a soluçã o da questã o
negra (contra o gradualismo de B. Washington e o Back to Africa de Marcus Garvey) era
necessariamente política. É o início da famosa doutrina da discriminaçã o positiva.
Dubois tenta estender a sua doutrina de intelectual engajado pela causa do seu
povo ao conjunto dos intelectuais da sua geraçã o através da doutrina «talented tenth» e
ao seu Niagara; através do jornal Crisis porta-voz do NAACP, do seu empenho junto dos
jovens intelectuais da Black Renaissance (Weldon Jonhson, Langston Hughes, Alain
Locke, Claude Mckay) e organizando os congressos pan-africanos, o ú ltimo dos quais co-
presidido com N. Nkrumah que, aliá s, vã o reivindicar as independências políticas do
continente.
Mas a histó ria da relaçõ es de Dubois com o poder nã o é linear. Em 1920, ele
aceita representar o governo americano na investidura do presidente Roberts, da
Libéria. Se ele aceita esta missã o é para convencer o futuro presidente. Se ele aceita esta
missã o é para convencer o futuro presidente liberiano a sua posiçã o de aceitar receber
os negros que, no seguimento de M. Garvey, querem voltar a Á frica. Dubois associa-se ao
poder político americano para opor-se a um adversá rio político. Enfim, Dubois, depois
da independência do Gana, é eleito vice-presidente, acabando os seus dias a trabalhar
como intelectual orgâ nico pela causa das independências e dos Estados Unidos da Á frica.
Weldon Jonhson vai mais longe e aceita fazer campanha para a presidência
democrá tica que, depois das eleiçõ es, gratifica-o com a nomeaçã o para Cô nsul dos EUA
em Haiti. Como representante do governo americano, Jonhson aplica-se, contudo, a
denunciar todas as barbaridades cometidas pelos militares americanos durante a
ocupaçã o de 1915. Ele utiliza a sua posiçã o para defender a causa negra.
O haitiano Anténor Firmin25 começa por contra-atacar o racismo científico
emergente, escrevendo, contra Gobineau a Igualdade das raças humanas, depois
convocando com Robert Wiliams o primeiro congresso pan-africano. Com efeito, depois
do fim recente da escravatura, uma nova ameaça pesa sobre o homem negro
representada pelo colonialismo, caucionado, por sua vez, pela antropologia nascente e
pela ideologia racista emergente. O lema dos intelectuais reunidos em Londres em 1900
é unir-se para resistir.
Edward Blyden nã o participa nesse encontro porque nã o pode aceitar a presença
do que ele chama de «negros nã o puros». Blyden é um intelectual problemá tico. De um
lado, ele trabalha como intelectual orgâ nico pela causa da emigraçã o dos negros para a
Libéria, participando em encontros de sensibilizaçã o nos EUA, defendendo a causa da
Libéria como embaixador junto das chancelarias ocidentais. Mas, do outro lado, ele
manifesta um racismo anti-mulato preocupante e, sobretudo, participa na submissã o e
colonizaçã o dos indígenas da Libéria por parte dos yankees negros (blacks, mas anglo-
saxõ es e protestantes).

25
In Oruno Lara, 2000:164-183.
A nível de Á frica, nã o se foge muito a esta regra. Os primeiros intelectuais
africanos sã o militantes pela causa da liberdade dos pró prios povos e, por conseguinte,
contrá rios aos poderes estabelecidos (Azikiwé, Nkrumah, Mondlane, Senghor, C.A. Diop,
Cabral, Neto, Nyerere).
Os da tradiçã o pan-africana, nã o assimilados pelo colonialismo, reivindicam
imediatamente liberdades políticas; os da tradiçã o francesa têm muito mais dificuldades
em se distanciarem do colonialismo. Com efeito, apesar das influências que o pró prio
Senghor reconhece da parte do escritor do Harlem Renaisssance, ou das claras posiçõ es
tomadas por Etienne Lero e pelo seu movimento Légitime Défense de 1932, a negritude,
desde o seu primeiro aparecimento sob forma de Etudients Noire em 1934, dá primazia
absoluta ao cultural em detrimento do político. Contudo, o esforço de reabilitaçã o
cultural que está no centro da actividade de Senghor, Damas e Césaire, vai
necessariamente desembocar na reivindicaçã o das independências políticas e, por
consequência, na oposiçã o ao colonialismo.
Até à década de sessenta, existe uma ligaçã o entre ser intelectual e uma militâ ncia
pela causa das liberdades e independências e, em consequência, a oposiçã o ao poder
colonial. Aliá s, uma das particularidades desse período era a conjugaçã o numa ú nica
pessoa das dimensõ es intelectual e política. O exemplo mais representativo é Senghor:
escritor e poeta, e mesmo com uma certa aversã o pela política, por razoes histó ricas
independentes da sua vontade, veio a ser um dos pais das independências africanas.
Mas Senghor é também o melhor exemplo para demonstrar que um bom
intelectual nã o é, necessariamente, um bom político. De facto, enquanto Presidente do
Senegal, ele continuou a ser sobretudo poeta, a escrever e mesmo a utilizar o pouco
dinheiro pú blico disponível para organizar encontros para a gló ria do movimento da
negritude, deixando que a economia do país continuasse a depender e a ser pensada a
partir de Paris.
Todavia, apesar da fusã o da dimensã o intelectual e política nas mesmas pessoas,
as relaçõ es entre os intelectuais e o poder complicaram-se no período pó s-colonial,
devido, fundamentalmente, à combinaçã o de três factores:
1. O clima da política internacional no qual as independências africanas foram
proclamadas, dominado essencialmente pela guerra fria. Na Á frica disputada entre dois
blocos –o nã o alinhamento nã o funcionou –uma das aramas usadas para desestabilizar
os governos africanos foi a utilizaçã o de intelectuais como ameaça contra o poder dos
respectivos países, o que nã o era de natureza a facilitar uma colaboraçã o entre os
intelectuais e o poder. Aliá s, isso acabou metendo os governos africanos na defensiva e a
considerar certos esforços legítimos de participaçã o na vida pú blica como sendo
tentativas de subversã o.
2. No momento da proclamaçã o das independências, o nú mero de africanos
formados é quase nulo. Nkrumah, como primeiro-ministro, viu-se a governar o Gana
com uma administraçã o britâ nica que nã o executava as suas ordens. Esta falta de
pessoas formadas levou a que todos os primeiros intelectuais fossem solicitados a
ocupar lugares de poder ou de primeiro plano a nível administrativo. Isto acabou
levando uma geraçã o de formados a considerarem-se intelectuais e a confundir o ser
intelectual com o exercício de cargos políticos ou administrativos. Quem nã o era
contemplado na distribuiçã o de lugares de poder sentia-se discriminado e, em
consequência, autorizado a constituir-se em oposiçã o ao poder.
3. De uma maneira geral, os colonizadores nã o estavam prontos a aceitar a
autodeterminaçã o dos povos africanos –ainda hoje dã o suficientes provas de nã o
estarem libertos dos seus preconceitos de hegemonia colonial. Assim ao invés de
favorecerem um debate democrá tico lá onde as condiçõ es o permitiam, preferiram
confiar as independências a indivíduos que pareciam estar mais ao serviço das
CAPITULO I

metró poles que das populaçõ es africanas (Senghor e Boigny), ajudando-os a reprimir,
através das bases militares que inundam a Á frica e dos serviços secretos, toda a
reivindicaçã o de debate democrá tico. Lá onde os dirigentes negavam essa fantochada (o
caso da Guiné) fabrica-se uma oposiçã o intelectual, partidá ria ou mesmo militar, como
foi o caso de Moçambique.
Entã o, quando se julgam os regimes das primeiras repú blicas africanas, tem que
se pensar nas ingerências externas que, em vez de favorecerem um debate e uma
abertura interna, levaram a que os regimes políticos, para se defenderem, perseguissem
os que pareciam defender ideias neocoloniais ou os que pareciam ser instrumentos de
poderes externos.
O corolá rio disto é que os regimes de partido ú nico, de esquerda ou de direita,
acabaram criando uma tradiçã o de conflito entre poder e intelectuais nã o orgâ nicos.
Esta situaçã o fez com que as elites de um mesmo país nã o se mobilizassem em direcçã o
a um objectivo comum, mas se fragmentassem numa espécie de oposiçã o entre poder e
saber.
No Moçambique de hoje, este síndroma instrumentalista volta à tona. Nó s nã o
trabalhamos todos para objectivos comuns bem definidos. Pelo contrá rio, dividimo-nos
em intelectuais Frelimo-governo e oposiçã o-comunidade internacional. Se ainda a
divisã o fosse Frelimo-Renamo, e outras forças nacionais, seria aceitá vel. Mas como a
divisã o é entre os que podem pagar, a Frelimo tem os seus meios e, por isso, o seu
pessoal e a comunidade internacional, através de uma ingerência ilegítima e
escandalosa, nem sequer dá meios a Renamo e aos partidos mais pequenos para
crescerem e fortificarem a democracia nacional. A comunidade internacional substitui-
se a eles e constitui-se numa verdadeira oposiçã o, rivalizando com a Frelimo na posse
das capacidades locais.
Parece-me que, apesar de tudo, é tempo de reconciliar os intelectuais e o poder. É
tempo de este dar mais espaço a aqueles e de aqueles se engajarem numa participaçã o
construtiva. Ouso mesmo pensar que, para melhorar a democracia moçambicana, o elo
fraco nã o é o povo, nem a classe política, mas uma elite intelectual que nã o está à altura
dos desafios a que Moçambique tem que fazer face. Nã o em termos de críticas do que
nã o vai bem, mas em termos do que é necessá rio fazer para melhorar as condiçõ es de
vida das populaçõ es. Uma elite que nã o se confunde com os detentores de diplomas
(Deus sabe como sã o procurados!), mas com a produçã o de ideias e com a ousadia de
participar, sabendo antecipadamente que ser intelectual foi e sempre será um risco.
Os intelectuais podem ser coisas diferentes. Jean-François Lyotard26, o pai do
chamado pó s-modernismo, diz que o saber é uma mercadoria que se compra e se vende.
O intelectual, o detentor do saber pode transformar-se num mercante e, no nosso caso,
mesmo num mercená rio que, em nome do dinheiro, vende ou vende-se sem ter uma
visã o clara das suas atitudes e do seu posicionamento. O intelectual pode também ser
um homem engajado, nã o necessariamente com um partido, mas com a causa de
Moçambique e do seu povo. Césaire27 fala pretensiosamente em carregar sobre os
ombros os problemas do povo. Mais modestamente, Senghor fala da necessidade de nã o
sermos exploradores do nosso povo.
A ideia de nã o sermos exploradores do nosso povo é importante porque parece-
me que, cada vez mais, ser intelectual significa fazer parte da elite moçambicana. Os
acordos que alguns de nó s assinam, as coisas que admitimos ou caucionamos com
artigos que nos sã o ditados, fazem com que a maioria do nosso povo volte a situaçõ es
quase coloniais. Se nã o somos exploradores do nosso povo, somo muitas vezes, ou pelo

26
A Condição pós-moderna. Lisboa: Gradiva, 1989.
27
Cahier d´un retour au pays natal. Paris: Présence Africaine,1952.
menos o perigo existe de sermos, veículos, instrumentos para o restabelecimento dessa
exploraçã o.
Num pequeno romance extraordiná rio intitulado Aventura Ambígua28, C. H. Kane
propõ e uma figura de intelectual que seria uma espécie de enviado do povo à escola a
fim de aprender o que ele chama «a arte de ganhar sem ter razã o». Nesse sentido, os
intelectuais sã o vistos como enviados pelos grupos, pelas comunidades a fim de
contribuírem para melhorar a situaçã o de todos. Esta maneira de pensar o intelectual
parece-me judiciosa e equilibrada na medida em que, sem tirar nada ao indivíduo e à s
suas capacidades, confia-lhe uma responsabilidade social.

Qual pode ser a contribuiçã o específica da filosofia (moçambicana)


no crescimento democrá tico de Moçambique?
Como a coruja de Minerva, a filosofia chega sempre tarde ...
A filosofia parece destinada a seguir a corrida dos tempos sem poder influenciá -
los. A filosofia parece destinada a um trabalho de interpretaçã o do passado, a um
trabalho de histó ria ou, como diria Nietzsche, de filologia. Aliá s, boa parte da filosofia
contemporâ nea limita-se, de facto, a um trabalho de interpretaçã o, a uma re-leitura
crítica do passado, a duma hermenêutica. A filosofia africana, depois de uma partida
promissora, estagnou-se e limita-se hoje a debates em volta da pró pria existência sem se
ocupar de acompanhar o desenvolvimento só cio-político do continente.
Se esta posiçã o de Hegel fosse justa, entã o a filosofia seria uma espécie de
moralismo destituído de toda a capacidade de influenciar os tempos histó ricos. No
entanto, pode-se interpretar o pensamento de Hegel de um outra maneira. Pode-se
pensar que, no fundo, relevar os aspectos positivos do nosso passado histó rico, assim
como pô r em evidência os erros, as incongruências, os conflitos, as lutas e as disputas
serve para fazer dos homens seres muito mais prudentes, muito mais precavidos. Neste
sentido, a filosofia serviria também a moral, mas nã o num sentido retó rico, mas num
sentido de antecipaçã o, de prevençã o e, em consequência, a filosofia serviria para fazer
dos homens seres mais prudentes e mesmo melhores.
É neste sentido que é preciso ler os trabalhos de Manguelle29, A. Kabou30, M.
Towa31, P.E. Ilungu32, que tentam desvendar a razã o da fraqueza histó rica do continente
africano em relaçã o aos outros povos, que tentam elucidar a razã o pela qual a Á frica nã o
foi capaz de um relacionamento igual, de uma confrontaçã o mais equilibrada com as
outras partes do mundo. Esta é razã o pela qual estes autores interrogam as culturas
africanas, para ver até que ponto sã o responsá veis ou nã o pela situaçã o de fraqueza, de
pobreza a que o continente está sujeito em relaçã o a outros povos.
Este trabalho de aná lise histó rica tem também que ser feito a nível de
Moçambique, a fim de clarificarmos o que tornou possível ou, pelo menos, facilitou as
prá ticas da escravatura, do colonialismo, da guerra dita civil, da intolerâ ncia política,
exactamente para que essas prá ticas nã o voltem a repetir-se entre nó s. Podemos mesmo
pensar que o facto de este trabalho crítico nã o ter sido feito ou que nã o se faça, contribui
para o retorno hodierno da situaçã o de opressã o, aná loga à dos tempos passados.
Mas de maneira positiva, olhar para o passado significa destacar entre os
mú ltiplos factos histó ricos, aqueles que sã o convocá veis para um debate futuro.

28
Paris: Présence Africaine, 1963.
29
L’Afrique a-t-elle besoin d´un programme d´ajustament culturel? Paris: Ed. Nouvelles du Sud, 1990.
30
Et si l´Afrique réfusait le development? Paris: L´Harmattan, 1991.
31
Négritude ou servitude? Yaoundé: Presse Universitaire du Cameroun, 1979.
32
Tradition africaine et rationnalité moderne. Paris: L’Harmattan, 1998.
CAPITULO I

A segunda maneira de pensar a filosofia, também teorizada por Hegel, é concebê-


la como um esforço de apreender o pró prio tempo através de conceitos. Ao que convém
juntar a sentença de Ortega e Gasset: «Eu sou eu e as minhas circunstâ ncias». Neste
sentido, fazer filosofia seria interrogar-se sobre a pró pria temporalidade histó rica, mas
sempre em funçã o de uma particularidade que nos é pró pria. Isto justifica a existência
de uma filosofia que olha e se interroga sobre a condiçã o humana e sobre a
particularidade do nosso tempo histó rico a partir de Moçambique. Por conseguinte, nã o
existe nenhuma contradiçã o entre a filosofia, que se quer universal, e o facto de
querermos, parafraseando Voltaire, cultivar o nosso jardim!
Na esteira de Hegel e contra Hegel, que na sua filosofia da histó ria colocava a
Á frica fora de toda a dimensã o histó rica, temos que ousar conceber a nossa vida política,
a nossa democracia e as nossas instituiçõ es nã o como simples «imitatio» do Ocidente.
Temos que ousar inventar uma democracia que seja um governo do povo no respeito
pelo povo, das suas representaçõ es culturais e dos seus imaginá rios colectivos. Cultivar
o nosso jardim é tomar a sério a democracia, mas também e sobretudo os sujeitos (na
sua complexidade e heterogeneidade) de tal regime para que ele possa justificar o seu
nome.
Cultivamos o nosso jardim quando tomamos a sério e reflectimos em termos
filosó ficos sobre as preocupaçõ es que nos habituam –a pobreza, a fome, a busca de uma
democracia – procurando dar-lhes respostas científicas. Mesmo num mundo que se quer
global/mundial a partir e em funçã o das nossas particularidades que, em definitivo, sã o
o nosso ponto de observaçã o.
O ponto de partida de qualquer filosofia é o contexto, o que faz a sua
universalidade sã o as suas respostas que podem atingir dimensõ es que ultrapassam o
â mbito de um contexto particular. A universalidade da filosofia nã o pode ser a
postulaçã o pura e simples de axiomas gerais, mas deve ser o reconhecimento post-
moderno da existência de situaçõ es diferentes (as micro-narrativas), a sua interpretaçã o
e, em seguida, um diá logo entre as diferentes maneiras através das quais a humanidade
dá razã o à vida.
O pró prio pó s-modernismo teorizado como foi por Jean-François Lyotard nã o se
limita a pô r fim à s metanarrativas, aos discursos universalistas, ao que Gianni Vattimo
chama de «pensamento forte». Abre espaço à emergência dos contextos. A histó ria da
filosofia se desenvolveu e se desenvolve como uma série de saberes contextuais que
escrevem muitas histó rias e, em cada uma delas, com um rosto diferente. O racionalismo
francês é diferente do idealismo alemã o, e este é diferente do empirismo inglês, do
pragmatismo americano ou da filosofia da libertaçã o latino-americana.
A filosofia – é o pró prio Hegel 33 a fazê-lo notar –nã o deve tentar construir-se um
mundo à parte, um mundo de livros e de conceitos, existente só no â mbito ideal
abstracto. Ao contrá rio, a sua tarefa é pensar o mundo histó rico real, o mundo em curso
na histó ria que os seres humanos padecem e fazem, para tentar ser pensamento desse
mundo, isto é, esforço para apreender o seu tempo reflexivamente. Se a filosofia se
caracteriza por esse esforço, se esse esforço é constitutivo de qualquer filó sofo, deve-se
entã o admitir que a histó ria da filosó fica nã o se limita à maneira coma ela tem sido feita
nas outras histó rias que, aliá s, correspondem à s formas filosó fico-histó ricas que a
disciplina tem tomado. A pluralidade de formas é a expressã o multifacetada que
concretiza e manifesta a filosofia enquanto saber cuja histó ria de constituiçã o e de
articulaçã o tem lugar em conexã o essencial com os processos histó ricos-contextuais da
vida da humanidade.
Daqui resulta evidente que o tempo e o contexto nã o sã o ingredientes que
dependem da conveniência ou do arbítrio de cada filó sofo, mas conditio sine qua non de
33
G.W.F. Hegel. Filosofia do Direito. Lisboa: Ed. Presença, 1977:16 e ss.
todo o filosofar que determinam o gosto e o sabor de todo o saber filosó fico. Tempo e
contexto decidem, portanto, do vulto da filosofia. E fazem-no imprimindo-lhe o selo da
pluralidade, porque pensar o espírito dominante da sua época, mas também significa o
compromisso de pensar os mitos tempos e historicidades que a humanidade nas suas
mú ltiplas formas quotidianamente gera e vive. Isto implica, obviamente, a necessidade
de pensar nã o só o contexto global como também a diversidade contextual em que se
geram os tempos.
Daqui se depreende que a pró pria filosofia é também um saber contextual, isto é,
a filosofia reflecte sempre uma determinada contextualidade. A contextualidade é fonte
de pluralidade. Ainda mais importante é relevar que essa pluralidade nã o depende de
simples razõ es geográ ficas nem do exotismo, mas de razõ es hermenêuticas,
antropoló gicas e éticas.
O que está em jogo é a riqueza das razõ es com que a humanidade dá razã o à vida.
Como expressã o concreta dessa riqueza, cada filosofia contextual tem, em si mesma, a
razã o da usa pró pria necessidade, pois cada filosofia contextual, justamente porque
nasce com as experiências e as esperanças concretas de uma comunidade humana
específica, tem que dizer coisas que nenhuma outra filosofia pode dizer no seu lugar. Se
quisermos, é a questã o da localizaçã o do logos, ou da necessidade de nã o delegar
palavra. É por isso que a filosofia contextual, em cada uma das suas formas culturais, é
necessá ria para poder partilhar a irredutível polifonia das culturas da humanidade e,
por conseguinte, para poder organizar, a partir da pluralidade, a viagem ideal de uma
verdadeira «ecumene» entre os povos.
Esta série de razoes teó ricas é suficiente para justificar um esforço de pensar
filosoficamente a realidade moçambicana no seu processo histó rico singular: centro da
violência da escravatura, do colonialismo, de um marxismo extremo, de guerras de
interesses neocoloniais mascarados de guerra civil, lugar de experimentaçã o de
ideologias de esquerda e de direita, mas também de acordos de paz que parecem durar
no tempo; de uma democracia que vai fazendo, apesar das dificuldades, o seu caminho;
de um povo que aprende a reconciliar-se, mas que deve aprender a dura lei da
resistência dos inimigos da independência de origem interna (o domínio do eu) e
externa (da invasã o dos interesses coloniais).
Todavia, a filosofia moçambicana inscreve-se necessariamente num quadro geral
da filosofia africana, sobretudo pela natureza comum dos problemas que nos ocupam.
Nã o quero dizer que as problemá ticas da etnofilosofia, da filosofia crítica ou da
hermenêutica, tenham alguma coisa a ver com as preocupaçõ es que impregnam a
filosofia moçambicana. Aliá s, penso mesmo que o debate actual da filosofia africana
representa um momento de involuçã o na histó ria do pensamento africano. Penso
mesmo que a filosofia africana nã o está à altura do debate do pensamento africano que é
muito mais antigo e muito mais profundo. O facto de nã o nos identificarmos com a
esclerose do debate que gravita à volta da sua pró pria existência nã o implica nã o
identificarmos a nossa busca, a nossa contextualidade com a problemá tica geral que está
na génese do pensamento africano, do qual finalmente, a filosofia africana é um
derivado.
O substracto filosó fico do pensamento africano é, sem dú vida, a busca da
liberdade, devido à situaçã o categorial oprimido/escravo/colonizado/subdesenvolvido
na qual os povos africanos se encontraram a seguir ao encontro/choque com o ocidente.
Estas buscas tomam formas diferentes segundo as épocas, os períodos histó ricos e os
lugares geográ ficos.
A primeira manifestaçã o da busca da liberdade tomou a forma de luta pela
emancipaçã o da escravatura. Basta pensar nas lutas dos escravos nos Estados Unidos, na
Jamaica, no Brasil e no Haiti. A segunda forma da busca da liberdade foi a luta pela
CAPITULO I

integraçã o social nos países onde os antigos escravos passaram a ser cidadã os (B.
Washington, Dubois) de segunda linha. O terceiro movimento identifica a liberdade com
a autodeterminaçã o política. A figura mais preponderante é Kwame Nkrumah que,
ultrapassando a Renascent Á frica de Azikiwé, reivindica, primeiro no V Congresso Pan-
africano de Manchester de 1945 e depois no livro África Must Unit, a liberdade-
independência de todo o continente, e se faz o paladino de uma unidade continental em
termos políticos e econó micos. O quarto nível de liberdade é o desenvolvimento
econó mico e social. Este nível, iniciado logo depois das independências, ocupa ainda hoje
o essencial das elucubraçõ es dos africanos, e é aqui que se situa também o nascimento
de uma filosofia africana crítica (Towa, Eboussi, Hountondji).
As diatribes da histó ria africana, as vicissitudes existenciais primeiro e do
pensamento em seguida, deram à política africana, mas também à sua filosofia um cunho
muito particular a que eu chamo de libertá rio. A natureza dos estados africanos (se
quisermos ir mais longe diremos negros) quer sejam os da Serra Leoa e da Libéria,
primeiro e, depois, os do Gana e Congo sã o, na essência, libertá rios: contra a escravatura
primeiro e o colonialismo em seguida, aos quais durante séculos os negros estiveram
submetidos. A filosofia africana emerge também deste fundo comum de busca de
liberdade.
Se existe um paradigma –no sentido de Kuhn –do pensamento e da filosofia
africanos como eles se desdobraram historicamente, esse paradigma chama-se a busca
da liberdade. Nã o de uma liberdade metafísica ou moral, mas de uma liberdade política.
Nã o podemos pensar a Á frica nem sob ponto de vista político, nem filosó fico
perdendo de vista o paradigma libertá rio que deve ser a referência e o critério de
julgamento das nossas lucubraçõ es intelectuais e das nossas opçõ es políticas.
As nossas reflexõ es e opçõ es em torno do liberalismo e da democracia devem ser
subordinadas a esta busca secular da liberdade. Devem ser analisadas nã o em funçã o da
dinâ mica mundial (mesmo se nã o a podemos ignorar), mas subordinadas à nossa busca
secular e histó rica. Só na medida em que um regime político, um sistema econó mico
colaboram para incrementar a esfera paradigmá tica da nossa busca histó rica é que eles
podem ser avaliados positivamente.
A Filosofia em Moçambique
Um esforço filosó fico a partir de Moçambique nã o pode deixar de se inscrever no
quadro de um esforço africano mais global ligado ao nascimento da filosofia africana
que, por seu turno, está intrinsecamente ligado à busca da liberdade que caracteriza a
visã o continental da Á frica. Contudo, se as nossas inquietaçõ es nã o sã o geneticamente
diferentes das preocupaçõ es dos outros países africanos, também nã o sã o completamente
idênticas. Estamos a nível daquilo que os ló gicos chamam analogia.
Os problemas e as preocupaçõ es que norteiam a filosofia africana soa também nossos.
Mas com algumas diferentes significativas de â ngulos de ataque e mesmo reservas sobretudo
relativas ao solipsismo que tem caracterizado alguns filó sofos que centra as suas reflexõ es em
torno da existência da filosofia africana, esquecendo-se de acompanhar criticamente a evoluçã o
(ou talvez a involuçã o) dos diferentes países do continente. Isto fá -los cair no mesmo erro da
negritude e da etnofilosofia que era, como dizia Fanon, de continuar a remoer em sarcó fagos e
nã o mobilizar as inteligências para a dinâmica histó rica da Á frica.
Nos meus primeiros trabalhos (Por uma Dimensão Moçambicana da consciência histórica;
Das independências às Liberdades; O Retorno do Bom Selvagem; Mukadjanadas) tentei pensar em
Moçambique, haurindo a base do meu pensamento na histó ria da filosofia e na maneira como ela
tem sido pensada e discutida no continente africano. Tentei contribuir para uma reflexã o em
volta das metamorfoses histó ricas pró prias de Moçambique: por um lado, solicitando a filosofia
com a sua histó ria e método a seguir dialogicamente o percurso histó rico de Moçambique; por
outro, solicitando Moçambique e a sua histó ria a se deixarem interpretar pelo saber filosó fico.
Este esforço de trazer a filosofia ao debate moçambicano atingiu inesperadamente
proporçõ es inauditas quando em 1995 me foi dada uma daquelas ocasiõ es ú nicas na vida de um
filó sofo, isto é, conceber um curriculum de Filosofia para a Universidade Pedagó gica e
acompanhar a formaçã o de professores que se encarregariam, num segundo momento, de
introduzir a filosofia em todas as escolas secundá rias do país.
A primeira preocupaçã o que tive foi tentar saber a razã o pela qual o Ministério da
Educaçã o tinha decidido introduzir a filosofia no ensino secundá rio. Isto é, a filosofia devia
contribuir a trazer soluçõ es para que problemas? Tratava-se, para mim, de criar um curriculum
que, mesmo respeitando a secular histó ria da filosofia nas suas disciplinas nucleares (histó ria da
filosofia, teoria de conhecimento, antropologia filosó fica, ética e metafísica), fosse construído em
funçã o das necessidades do país. Tratava-se de aculturar a filosofia ao contexto moçambicano
sem a desapropriar da sua dimensã o de busca do universal centrado sobre a realidade da
condiçã o humana.
A vontade política de introduzir a filosofia no ensino era, em si mesma, o reconhecimento
da capacidade desta disciplina a contribuir na fase crucial e na encruzilhada histó rica a que
Moçambique se encontrava a nível político-social, mas também a nível moral. Assim decidi
propor um curso de filosofia aculturado à s preocupaçõ es reais de Moçambique, para levar a
filosofia a ser um parceiro sério na elucidaçã o dos problemas e das suas causas, mas na busca de
soluçõ es. Apó s um período de investigaçã o e de reflexã o identifiquei três campos fundamentais
de possível contribuiçã o da filosofia em Moçambique: epistemologia, política e ética.
i. Epistemologia
A escolha da epistemologia como campo de investigaçã o da filosofia em Moçambique
resultou, em primeiro lugar, das dificuldades que os estudantes têm face a questõ es abstractas.
Este défice epistemoló gico está ligado nã o só à falta de filosofia (ló gica), mas também à fraca
preparaçã o no conjunto das disciplinas humanísticas como a histó ria, a literatura, as línguas
clá ssicas, a gramá tica, etc.
Para além de contribuir, dando aos estudantes utensílios de aná lise mais refinados, a
epistemologia pode trazer uma outra contribuiçã o, menos evidente, mas nã o menos importante.
Historicamente, ela teve outras denominaçõ es que nos podem ajudar a compreender os seus
desafios e, em consequência, a alargar o seu campo de aplicaçã o na educaçã o dos jovens. Ela é
também conhecidos por Gnoseologia, Teoria do Conhecimento e Crítica.
Dizer «crítica» significa referir-se a uma atitude do espírito que consiste em analisar
rigorosamente e sem condescendência os nossos mecanismos de conhecimento, o conteú do
mesmo do que nó s dizemos saber, assim como o valor intrínseco dos nossos conhecimentos.
CAPITULO II

Nos ú ltimos anos, uma parte da filosofia africana (P.E. Elungu, M. Towa, Ka Mana, ali a.
Mazrui, Georges B. N. Ayittye, J. A. sofola, Kwasi Wiredu, E. Njoh Mouelle) tem centrado os seus
debates à volta do valor dos nossos conhecimentos ditos tradicionais e da sua relaçã o com a
racionalidade moderna. A premissas deste debate é paradigmá tica busca da liberdade africana,
centrada hoje sobre o desenvolvimento econó mico e social. Até à década de setenta, o discurso
africano acusava de uma maneira unilateral a escravatura e o colonialismo de serem os ú nicos
responsá veis pelo estado actual do continente. Esta atitude impedia um trabalho de
introspecçã o crítica sobre as nossas responsabilidades, sobre as responsabilidades das nossas
instituiçõ es ancestrais na instauraçã o desses sistemas odiosos.
Por outro lado, a grande exaltaçã o das tradiçõ es africanas, por obra sobretudo dos
adeptos da negritude, encobriu uma aná lise fundamental quanto ao valor intrínseco dos
conhecimentos tradicionais, do seu eventual enquadramento na modernidade, que constitui o
substracto mental e filosó fico do desenvolvimento a que aspiramos.
Marcien Towa (1971), membro, como Houtondji e Boulaga, daquilo que Elungu chamou
de escola crítica34, nã o só se distancia do caminho traçado pela etnofilosofia aberta por Tempels
e Kagame35, como nem sequer se limita a atacar a «negritude-servitude» de Senghor que ele
associa a etnofilosofia. Ele vai mais longe agora e afirma que o tempo das reivindicaçõ es acabou:
trata-se agora de nos concentrarmos sobre a questã o do desenvolvimento e do progresso. Para
Towa a questã o é tentar saber o que permite ao Ocidente o seu desenvolvimento, a sua
superioridade e o seu poder sobre nó s. Trata-se de descobrir e de se apoderar do segredo do
Ocidente.
Para o filó sofo camaronês, o segredo e a superioridade do ocidente reside nos seus
conhecimentos técnico-científicos. Eis porque a Á frica deveria, segundo Towa, concentrar todas
as suas energias a desenvolver a ciência e a técnica. P. E. A. Elungu (1987) prolonga esta tese
ajuntando que o segredo ocidental nã o é meramente técnico, mas se trata da racionalidade
técnico-científica. A superioridade do Ocidente é, assim, remetida para uma dimensã o filosó fica.
A Á frica tem os seus conhecimentos, ditos tradicionais, os seus saberes que no passado
certamente ajudaram os africanos a fazerem frente aos problemas com que eram confrontados –
alguns pensadores defendem que esses conhecimentos eram fracos e foi essa fraqueza que fez
dos africanos vítimas predilectas de todo o tipo de esclavagistas e colonizadores. Mas admitindo
que esses conhecimentos tenham ajudado os africanos do passado, que relaçã o existe entre
esses conhecimentos e o mundo moderno?
Essa questã o divide hoje os filó sofos africanos em duas posiçõ es contrastantes: os que –
como Towa, Elungu, E. Njoh Mouelle – defendem a ideia de uma irredutibilidade fundamental
entre as tradiçõ es africanas e a racionalidade moderna, e, em consequência, a necessidade de a
Á frica ter a coragem de sacrificar a sua histó ria e as suas tradiçõ es sobre o altar do
desenvolvimento.
Esta posiçã o põ e enormes problemas de carácter antropoló gico, dado que a cultura
aparece como uma espécie de acessó rio vestimental que podemos levianamente despir e nã o
uma estrutura constituinte da existência humana.
É verdade que a cultura nã o tem nada de genético, que é intrinsecamente ligada a uma
determinada sociedade (Edward Tylor36). Mas a antropologia (Remotti37) demonstrou
suficientemente que mesmo se a cultura é uma estrutura precá ria e exactamente por causa da
sua fragilidade e precariedade –ligada ao facto que ela só ganha vida através de indivíduos que
sã o diferentes uns dos outros, e ao facto que a simbologia da cultura exige a priori um consenso
social, que nunca se obtém completamente –as sociedades reificam as culturas a fim de se
protegerem. Por isso, a ideia de um abandono puro e simples da cultura levanta problemas
epistémicos enormes.

34
Ngoenha, 1993: 91.
35
Ngoenha, 1993: 55.
36
Culture Primitive. Paris: Seuil, 1974:79
37
Noi, Primitive. Lo specchio dell’antropologia. Torino: Bollati Boringhieri, 1995.
Esta posiçã o põ e também problemas de cará cter filosó fico se, como Herder 38,
concebermos a cultura como sendo a segunda natureza do homem, sem a qual a vida humana
nã o é simplesmente possível.
Outros pensadores africanos (W. E. Abraham, M. V. Tsangu Makumba, O. A. Onwubiko, P.
Apostle, J. B. N’tandou, Y. Assogba, E. R. Mbaya, Tshipanga Matala, A. M. M’Bow, C. P. M. Kamala)
defendem a compatibilidade entre as tradiçõ es africanas e o desenvolvimento moderno. Eles
sustentam que o que permitiu a Á frica sobreviver, nã o obstante a escravatura e o colonialismo a
que foi sujeita, foi exactamente a vitalidade das culturas africanas. Se essa vitalidade nã o se
manifestou no período pó s-colonial e, por conseguinte, nã o contribuiu para desenvolver o
continente, foi devido essencialmente à s elites políticas, que manipularam as tradiçõ es e as
culturas para solidificaram as suas posiçõ es de poder.
O interesse deste debate reside na sua dimensã o crítica, na sua introspecçã o cultural e
esta nã o é completamente desprovida de interesse para nó s. A primeira Repú blica, em nome da
luta contra o tribalismo, tinha pura e simplesmente banido as tradiçõ es e as culturas do campo
do político. A segunda Repú blica, sobretudo por obra dos doadores, parece reabilitar as
chamadas autoridades tradicionais, sem um debate prévio quanto à capacidade de contribuir
positiva ou negativamente para o actual curso histó rico.
De uma maneira mais incisiva e concreta, o debate africano interroga-se quanto à
capacidade democrá tica das tradiçõ es africanas onde o peso do chefe ou do anciã o impediriam
toda a dimensã o do debate de ideias e, em consequência, do desenvolvimento democrá tico.
A filosofia africana interroga-se quanto ao valor estatutá rio dos mecanismos tradicionais
da transmissã o do saber que, contrariamente ao modelo democrá tico do sistema de educaçã o
moderno, reserva os seus conhecimentos a uma casta de eleitos, cujo desaparecimento equivale
muitas vezes à perda definitiva do saber acumulado.
Interroga-se sobre a compatibilidade do sistema familiar africano com as necessidades
econó micas modernas, dado que sob a aparência de solidariedade, se esconderia, de um lado,
um sistema de esbanjamento que impede a acumulaçã o e os investimentos; e do outro,
alimentar-se-ia um sistema de parasitismo no qual boa parte dos membros da família vive sobre
os ombros dos poucos que trabalham.
Todavia, na esteira de Eboussi Boulaga 39, podemos pensar a tradiçã o como uma utopia
crítica. Isto é, os aspectos acima mencionados relativos à s fraquezas da tradiçã o têm que ser
tomados a sério. Mas, por outro lado, temos que pensar que alguns aspectos aporéticos da vida
política e social moçambicana de hoje deixam-se interpelar por aquilo que para o sentido
comum (que recordo deve constituir o ponto de partida de toda e qualquer reflexã o científica)
constituem o espírito da tradiçã o.
O primeiro elemento é a chamada solidariedade africana. Os factos de hoje desmentem a
famosa solidariedade africana e fazem dela um mito. O nosso país tem uma elite econó mica cada
vez mais importante, no momento mesmo onde o nú mero de miserá veis progride. Mesmo nos
momentos dramá ticos, como foi o caso das cheias, nã o vimos da parte dos que têm mais meios
nenhum sinal de solidariedade. Os nossos ricos nã o só nã o sã o solidá rios, mas nó s nã o vimos
emergir nem mecenas nem evergetas dedicados a participar na ajuda do bem estar da maioria.
Apesar destes factos, nó s continuamos a pensar que o homem africano é solidá rio.
Se pensarmos no espírito da tradiçã o tentando mobilizar os aspectos do passado que nos
podem ajudar na nossa aventura em direcçã o ao futuro (Paul Ricoeur), podemos inferir que a
solidariedade deve ser pensada como um dever ser. Insisto: trata-se de mobilizar o espírito da
tradiçã o, o que aplicado a este caso, quer dizer as formas que essa solidariedade deve tomar no
quadro da vida moderna. Por conseguinte, uma defesa de um contrato social renovado que se
materializa sob a forma de impostos, por exemplo, pode apelar à s teorias clá ssicas do contrato,
desde os sofistas até John Ralws, passando por Hobbes, Rousseau e Locke. Mas pode ser
postulado a partir do espírito das tradiçõ es africanas.
Um outro elemento que me parece fundamental é o domínio da justiça. A iconografia
envolta da justiça apresenta-nos muitas vezes a justiça configurada numa mulher com uma

38
Ainda por uma Filosofia da História para a educação da Humanidade. São Paulo: Ed. Universitárias, 1974:
111.
39
La Crise du muntu. Paris: Présence Africaine, 1977: 45 e 123.
CAPITULO II

espada na mã o. Mas a verdadeira essência da justiça, que significa tornar possível a relaçã o
social e a vida dos indivíduos em sociedade, estaria melhor refigurada na imagem de uma
costureira que pega em linhas dispersas e diferentes e cose-as a fim de fazer um todo. Quando
pensamos numa sociedade como a nossa, depois dos conflitos que conheceu, quando prestamos
atençã o ao racismo, ao tribalismo, à s organizaçõ es dos amigos do Maputo, de Zambézia, Sofala
etc.; quando pensamos ao conflito dentro mesmo da Igreja Cató lica entre Ndaus e Senas, no
tribalismo e no racismos crescentes, o que precisamos é do trabalho paciente e atento de uma
costureira que tece, mas fortificando as partes que cose de maneira que o pequeno incidente nã o
rasgue o tecido. Isto significa que é necessá rio todo o trabalho de carácter ético, mas que nã o
pode prescindir de uma redistribuiçã o de bens materiais.
Ora, a justiça moderna decide cortando, separando, dividindo como um leviatã, de
espada na mã o. Axiologicamente, o espírito da justiça tradicional é muito mais pró ximo da
costureira. Os estudos da antropologia confirmam (Norbert Roland40) que muitos conflitos
acabavam (mesmo depois de guerras sangrentas) em casamentos entre vencedores e vencidos
ou na incorporaçã o dos vencidos nos vencedores (Império de Gaza).
O ú ltimo aspecto a relevar para pensar e propor um modelo político é uma certa aversã o
de certas culturas africanas aos sistemas centrais de poder (Pierre Clastres, 1974). O exemplo
disto entre nó s podia ser a histó ria particular dos chopes.
A filosofia pode ajudar a tomar consciência da necessidade de uma introspecçã o crítica
sobre o nosso «eu-histó rico», como ponto de partida para um debate de ideias. No que diz
respeito à histó ria recente, em vinte e cinco anos passá mos do colonialismo ao marxismo e deste
para a «democracia liberal». A filosofia, antes de lançar-se num discurso sobre o futuro, deveria
interrogar-se sobre a natureza do colonialismo, das condiçõ es histó ricas, políticas e sociais que
permitiram a sua emergência. Da mesma maneira, temos que nos interrogar quanto à s razõ es da
escolha do marxismo, sobretudo quando sinais da sua decadência eram visíveis; quanto à s
razõ es do fracasso do nã o alinhamento, dos sistemas alternativos como o socialismo Ujaama;
quanto à s razõ es endó genas da inviabilizaçã o dos Estados Unidos de Á frica prospectada por
Nkrumah; quanto à inviabilidade de uma revisã o das fronteiras coloniais para criar espaços
culturalmente homogéneos (C.A.Diop41) ou economicamente complementares (Mamadou
Touré 42).
A filosofia deve também interrogar-se sobre a natureza filosó fica do liberalismo como foi
pensado por Jeremy Bentham (1748-1832), John Stuart Mill (1806-1873), John Locke (1632-
1704); as metamorfoses histó ricas que esta doutrina político-social sofreu no curso da histó ria,
as diferentes faces que ele tem no mundo de hoje, a maneira como tenta reconciliar o imperativo
incondicional da liberdade com a necessidade de um pacto social para que a vida em sociedade
seja possível. Temos que nos interrogar quanto à relaçã o entre o liberalismo e a existência do
Estado (o nosso é obrigado a esvaziar-se das suas funçõ es essenciais), recordando que os pais da
economia política como Adam Smith como os teó ricos que fazem mais referência à filosofia
(John Locke), consideram o Estado uma instituiçã o indispensá vel para a garantia das liberdades
dos indivíduos. Isto tem que nos levar a uma interrogaçã o quanto à relaçã o entre o liberalismo
clá ssico e o neo-liberalismo.
Por outro lado, é necessá rio interrogar a democracia na relaçã o do seu espírito e das
instituiçõ es que dã o ou podem dar corpo aos seus ideais. A filosofia deve poder demonstrar que
se o espírito é uno, as formas que a democracia toma nos diferentes países do mundo sã o
mú ltiplos e dependem de uma aculturaçã o das ideias democrá ticas à s diferentes maneiras com
as quais os povos entendem e interpretam a sua vida social. Por consequência, no respeito
mesmo da democracia, nó s temos o dever de tomar a sério a especificidade cultural que nó s
somos e representamos e inventar um modelo institucional que se inspire nos substractos
culturais das populaçõ es.

40
Antropologie juridique. Paris: Seuil, 1975.
41
Nation negre et culture. Paris: Présence Africaine, 1979.
42
«Les étudiants africains parlent». Revue Présence Africaine. Paris, 1953.
ii. Política e ética

A segunda questã o do nosso programa é de natureza política: com que pertinência a


filosofia se pode ocupar do político? Terá uma contribuiçã o específica, diferente daquela que
podem trazer a sociologia política, a ciência política e o direito? Esta questã o tem hoje, no
contexto cultural moçambicano, toda uma pertinência particular. Nos ú ltimos anos, a Faculdade
de Direito retomou as suas actividades e recomeçou a formar juristas e, sobretudo, encaminha,
estou certo, uma reflexã o do direito a partir da experiência moçambicana e em conformidade
com a nossa especificidade histó rica e cultural. Por outro lado, uma séria reflexã o política e
social tem vindo a ser feita pela jovem unidade de Ciências Sociais da Universidade Eduardo
Mondlane.
Nã o se trata para nó s de reflectir sobre a política e sobre o político, mas de pensar
filosoficamente o político e a democracia em Moçambique. Duas razõ es podem justificar esta
escolha. A primeira tem a ver com o facto de que desde Platã o e Aristó teles se quis circunscrever
a reflexã o filosó fica sobre a política à s suas características fundamentais, distinguindo o aspecto
normativo do aspecto positivo43.
A reflexã o plató nica, na República, sobre a cidade ideal incorruptível conduziu muitos
pensadores a fazerem da filosofia política uma ciência arquitectó nica: para que uma sociedade
seja justa, é necessá rio que ela seja governada por filó sofos ou por um rei que seria iniciado em
filosofia.
Contra esta concepçã o do filó sofo-rei instalado na sua sabedoria teorética e versado na
contemplaçã o das essências eternas do mundo inteligível, Aristó teles adoptou uma via
intermediá ria. À sabedoria teó rica reservada a uma quantidade ínfima de pessoas consideradas
como sá bias e que vivem retiradas do mundo da acçã o, ele opõ e uma sabedoria prá tica,
característica de indivíduos que vivem e agem com prudência na cidade. Com efeito, para
Aristó teles o homem é um animal político, feito para viver em sociedade. É nisto que a política
como género de saber racional se encontra ligada à s contingências histó ricas pró prias de cada
sociedade.
Vista desta maneira, a filosofia política deve ter em conta os objectivos prá ticos do
político para pensa-lo na sua complexidade, de um lado como espaço de possíveis e do outro
como espaço de experimentaçã o das condutas humanas sobre os aspectos individuais e
colectivos. Contudo, a filosofia consiste na aprendizagem do exercício do pensamento, o que
requer do sujeito uma libertaçã o de preconceitos –a que Francis Bacon chamava de «idolas» e a
hermenêutica moderna de pré-compreensõ es –e das ideias falsas. Esta prá tica reflexiva deveria
conduzir à sabedoria, objectivo etimoló gico da filosofia. Esta sabedoria e esta catarsis à s quais a
filosofia é suposto dar acesso, soa o resultado de um processo de compreensã o do mundo. Isto
explica –como bem ilustram as três questõ es de Kant: o que posso saber? O que me é permitido
esperar? O que devo fazer? –que a filosofia tenha sido primeiro uma gnoseologia, depois
metafísica e, por fim, ética/política.
É fá cil compreender que a filosofia política foi durante muito tempo resultado de uma
filosofia de conhecimento e colocava-se sob a dependência da filosofia moral. A questã o clá ssica
sobre a melhor ordem política possível compreende-se em referência a uma filosofia de
conhecimento. Este conhecimento do justo, do bem e do verdadeiro comportava uma obrigaçã o
moral irrecusá vel. A filosofia política era, assim, determinada por uma reflexã o exterior. A
questã o actual é: como pensar filosoficamente o facto político, quando ele já nã o se confunde
com nenhuma teoria de conhecimento, nenhuma moral e, sobretudo, quando deve ter em conta
a pluralidade de opiniõ es como um facto humano fundamental?
Podemos perguntar se a actividade reflexiva aplicada ao domínio da política se reveste
de algum sentido e, sobretudo, se tem alguma eficácia. A filosofia política pode parecer aos
políticos de profissã o demasiado idealista e sem nenhuma incidência sobre a realidade, ou entã o
a sua eficácia se limitaria aos casos em que ela empresta o nome a certas ideologias. Entre a
impotência e o integralismo –tudo o que é contrá rio ao espírito filosó fico –nã o existiria uma via
intermediá ria para a filosofia política. Para além das acusaçõ es que se lhe sã o movidas pelo seu
cará cter pretensamente nã o científico, a filosofia política estaria suspensa no vazio. Seria ú til

43
J.Freund, Essence du politique. Paris: Sirewy, 1965.
CAPITULO II

para reflectir sobre o devir ideal da humanidade (no nosso caso de Moçambique). Contudo, ela
nã o seria viá vel. Seria necessá rio primeiro trabalhar para conhecer o mundo de uma maneira
positiva, e só depois, se restasse tempo, recorrer à filosofia. É ó bvio que nã o restaria nenhum
tempo.
Isto explica o nascimento de dois discípulos que têm um carácter heurístico: a ciência
política e a sociologia política. Mais do que concorrentes, estas duas disciplinas sã o, de facto,
uma complemento necessá rio à filosofia. A ciência e a sociologia políticas tiveram
historicamente a ambiçã o de analisar os fenó menos políticos nos caracteres específicos com que
se revestiam numa dada época e, a partir daí, identificar as constantes, até mesmo as leis. Assim,
elas observaram os fenó menos como a formaçã o e o funcionamento dos partidos políticos, o
recrutamento da classe política, as determinantes das preferências eleitorais, as relaçõ es entre
as formas de poder e o desenvolvimento econó mico, consideraçõ es longínquas da tomada de
posiçõ es gerais sobre os direitos do homem, a liberdade de pensamento ou a natureza da
democracia.
Os efeitos secundá rios puseram sérios problemas à filosofia política. Da mesma maneira
que a etnologia, observando os costumes de povos diferentes, anunciou o relativismo cultural, a
ciência e a sociologia políticas invalidaram implicitamente a filosofia política, na sua vontade de
descobrir, como fazia Aristó teles, as condiçõ es através das quais um governo poderia tornar-se
um bom governo.
Enquanto, tradicionalmente, a filosofia tinha como missã o corrigir ou, pelo menos,
controlar as paixõ es humanas, os estudos empíricos nã o cessam de denunciar uma tal ilusã o. A
experiência é erigida à dimensã o de prova e a histó ria conquista a dimensã o de uma religiã o
revelada. Ao mesmo tempo, essas ciências tornam-se cegas ao passado e o futuro resume-se a
uma simples extrapolaçã o das tendências constantes.
Todavia, nã o se pode analisar o funcionamento das sociedades unicamente à luz das
ciências políticas e da sociologia das organizaçõ es, a nã o ser que se esteja disposto a ignorar o
reconhecimento do bem e do mal que foi sempre possível subverter, mas nã o esquecer. Por
outro lado, a sociedade e o espaço político nã o sã o sempre idênticos e demonstrar isso era uma
das incumbências da filosofia.
A maior dificuldade da filosofia política reside no facto de ela exprimir nã o só uma acçã o
de conhecimento puro, mas também uma vontade de tornar inteligível o real ao serviço do seu
objectivo pró prio, que é o desenvolvimento do pensamento. A prá tica filosó fica nã o é neutra,
mas tende para uma certa sabedoria. Certo que o soció logo ou o politó logo têm as suas ideias
sobre o estado do mundo, nã o podemos negar que os livros de Carlos Serra ou os artigos de
Elísio Macamo tenham uma visã o de Moçambique sobre o que é aceitá vel e sobre o que nã o é,
mas as suas aná lises, descritivas ou explicativas, se querem neutras. Uma tal neutralidade é
impensá vel nos outros discursos. O critério de juízo, no nosso caso, é o caminho em direcçã o à
liberdade da qual emerge, em primeiro lugar, a africanidade «moderna» e, em segundo lugar, o
pensamento político africano e depois a filosofia africana.
Um lugar comum reza que o lugar da política é a polis, a cidade. Mas quando se diz cidade
nã o se deve entender a dimensã o geográ fica, os prédios, os escritó rios, as embaixadas, pois
eliminar-se-iam imediatamente muitas partes e muitas pessoas cuja vida nã o se desenrola
naquilo que tradicionalmente se chama cidade. Os habitantes das zonas suburbanas e do campo
nã o seriam contemplados numa tal definiçã o. A política tem a ver com o espaço onde as pessoas
vivem, com o domínio pú blico, o lugar onde os cidadã os se encontram para deliberar. Isto pode
ser nos prédios do Maputo, na chique avenida Keneth Kaunda, no parlamento exposto ao
barulho da parte baixa da avenida 24 de Julho, mas também pode ser numa palhota, debaixo de
uma á rvore, etc. O essencial nã o é o lugar geográ fico, mas o espaço simbó lico e de significaçã o.
Isto quer dizer que o conteú do da deliberaçã o é de longe mais importante que o lugar onde essa
deliberaçã o se realiza. Mas se essencial é o conteú do, sobre o que é que os cidadã os deliberarã o?
O debate pú blico é caracterizado por duas coisas essenciais: primeiro, a organizaçã o
desse debate e a maneira de conclui-lo com um acto de poder, segundo, a gestã o da cidade e os
objectivos que lhe foram confiados. A organizaçã o e a maneira como os cidadã os podem
participar no debate pú blico é já, em si, um acto político. Por isso, a capacidade das normas de
traduzirem a compreensã o das pessoas, de problemas, a criaçã o de mecanismos jurídicos
susceptíveis de traduzirem a sensibilidade das pessoas e a sua futura participaçã o nos debates
políticos constitui o primeiro acto político do qual vã o depender os restantes.
Por outro lado, uma «cidade» fixa objectivos, que correspondem à sua maneira específica
de se perceber como comunidade, o que corresponde (ou deveria corresponder) aos valores que
se fixam previamente e aos objectivos que pretendem atingir, que nã o sã o iguais em todas as
comunidades. Na estrutura mesma do político, têm uma importâ ncia primordial a organizaçã o
do debate, os valores e os ideais sociais de uma determinada comunidade política.
À s questõ es tradicionais da democracia –como fazer para que o poder da maioria seja
acompanhado pelo respeito pelas minorias, como fazer com que a igualdade geral de opiniõ es no
debate pú blico nã o se transforme em desprezo pelo conhecimento –tem que se acrescentar uma
outra: como fazer com que as sociedades modernas nã o se transformem numa espécie de
«Jerusalém celeste» sobre as quais as sociedades «pré-modernas» têm que se moldar?
A modernidade introduziu a autonomia do campo político, o que quer dizer que ele nã o
pode ser governado do exterior. É necessá rio evitar que essa conquista se torne monopó lio de
certos estratos da humanidade em detrimento da outra parte que nã o teria possibilidades de
propor objectivos e modelos de sociedade que lhes sã o pró prios.
A filosofia política tem a funçã o de explicitar as regras da democracia e a definiçã o da
organizaçã o do político, quando o regime é ameaçado do interior ou do exterior, e de salvá -la
contra quem a coloca em perigo.
A explicitaçã o da democracia nã o se faz a partir da fabricaçã o de conceitos abstractos, da
deduçã o ló gica e racional de ideias. Ela tem que ver com a constituiçã o de um espaço político,
que só pode ser feito a partir das diferentes compreensõ es culturais dos grupos e dos povos. As
sociedades com mais experiência democrá tica podem partilhar connosco as suas experiências,
mas nã o podem servir de modelo porque as modalidades da racionalidade ocidental sã o
historicamente situadas e nã o susceptíveis de ser levianamente transferidos para outras
latitudes. Aliá s, isso levaria a um genocídio cultural de toda a dimensã o política de que todas as
culturas sã o portadoras. Ocorre criar as modalidades de participaçã o política a partir do
substracto político e cultural dos povos e dos grupos.
Depois da escravatura em que todos os princípios humanistas e de bom senso foram
violados, passou-se ao colonialismo e, logo a seguir, à s guerras ditas civis, mas de facto pilotadas
do exterior. Hoje estamos num quadro có mico: cooperaçõ es, embaixadas, organizaçõ es
econó micas internacionais sem nenhuma legitimidade política apresentam-se, em nome da
democracia, como defensores e garantes dessa democracia. Assim, a legitimidade política dos
actores políticos nã o tem nada a ver com os povos, nem com os seus valores, mas com o
beneplácito da comunidade internacional. A filosofia deve relevar a ameaça à nossa soberania
que provém dessas instituiçõ es.
A filosofia deve opor-se à s ameaças internas representadas pela tentaçã o de certas
pessoas e grupos em reduzir a política a um campo de defesa de interesses individuais e
partidá rios, em detrimento do interesse geral. Por fim, contra o economicismo dominante, a
filosofia política deve reafirmar o primado do político sobre o econó mico, da deliberaçã o
popular sobre os índices das bolsas de valor.
O simpó sio da ACAFIL de 1999 pretendia antecipar a natureza dos problemas que iriam
supostamente nortear as eleiçõ es que se estavam para realizar, e subordinava a sua previsã o aos
principais resultados e ao desempenho dos eleitos na legislatura que estava para terminar.
Julgar-se-iam os candidatos, o governo que chagava ao termo do seu mandato e as suas
promessas eleitorais em função do seu desempenho na primeira legislatura da segunda
Repú blica. Em consequência, ocorreria analisar o que tinha sido essa legislatura em funçã o das
promessas precedentes, das expectativas dos eleitores no momento das eleiçõ es, do grau da sua
realizaçã o pelo poder, mas ainda mais importante, da capacidade dos eleitos de acompanhar as
metamorfoses sociais, de interpretar e defender adequadamente os interesses dos eleitores.
O que é que as populaçõ es esperavam do governo durante o período de 1995 a 1999?
Foram essas expectativas satisfeitas? Uma análise filosó fica sobre o «objecto» Moçambique tem,
necessariamente, que partir das aná lises situacionais e locais e estas sã o feitas pelos cientistas
da política. O olhar filosó fico nã o se pode limitar a elas, pois, como vimos antes, a filosofia nã o se
pode contentar em dizer as coisas como estã o, mas tem a pretensã o de dizer como é que as
coisas deveriam ser ou estar.
CAPITULO II

As aná lises dos soció logos moçambicanos e estrangeiros sobre as votaçõ es


moçambicanas de 1995 foram unâ nimes em afirmar que nó s fomos votar pelo fim da guerra. A
adesã o massiva das populaçõ es à s eleiçõ es da primeira legislatura da segunda Repú blica foram
interpretadas em uníssono como sendo uma acçã o popular orientada para sancionar e legitimar
o fim do conflito bélico. Se aceitarmos este facto como postulado de base da nossa aná lise, temos
que admitir, a priori, que a primeira legislatura cumpriu com o mandato que lhe foi confiado.
Durante os cinco anos que se seguiram à s eleiçõ es, os deputados da Frelimo e da Renamo
respeitaram o mandato que lhes tinha sido confiado pelos eleitores. O governo governou e a
oposiçã o tentou fazer oposiçã o no respeito pelos papéis democrá ticos que lhes tinham sido
confiados, sem nunca exceder nas suas prerrogativas, mas, sobretudo, respeitando a necessidade
de prosseguir o conflito que os opunha em termos políticos e no respeito de um certo nú mero de
regras ditadas pelos acordos de paz e pela nova constituiçã o.
Este facto é tanto mais importante quanto à nossa volta os outros países africanos
soçobravam em velhos e novos conflitos. No Ruanda ou no Burundi, no Zimbabwe ou na Guiné-
Bissau, na Costa do Marfim ou em Angola, existe a dificuldade em enterrar o que Hobbes
chamava de «estado de guerra» e passar para uma situaçã o, que eu nã o chamarei de guerra por
outros meios como pretende Maquiavel, mas o esforço de re-tecer do tecido da irmandade social
–para utilizar a linguagem que prodeligam nas suas relaçõ es recíprocas os presidentes Chissano
e o chefe da Renamo A. Dlhakama. Esta homenagem é extensiva aos antigos militares, à s
comunidades que se flagelam durante os anos de conflitos militares.
Nesse mesmo período, o processo democrá tico e de reconciliaçã o foi acrescido e
alimentado pelas primeiras tentativas de criaçã o do que commumente se tem chamado de
sociedade civil: nasceram novas formaçõ es políticas, mas sobretudo organizaçõ es cívicas e
sociais; as igrejas começaram a participar em actividades de carácter cívico, educativo; sanitá rio;
nasceram organizaçõ es de jovens e de mulheres; surgiram universidades privadas, imprensa
independente e liberdade de opiniã o.
A isto se deve juntar o crescimento econó mico (PNB), o restabelecimento da rede
econó mica e comercial, lançou-se o processo de desminagem, a reconstruçã o da rede de
comunicaçõ es, a luta contra o que se chamou a pobreza absoluta.
De uma maneira geral, no Moçambique de 1999 respirava-se paz, uma certa
tranquilidade, uma vontade de participar, um certo crescimento econó mico, uma melhoria nas
condiçõ es de vida das populaçõ es, etc.
Uma vez mais, se fizermos fé naquilo que segundo os analistas políticos era o mando do
povo, a primeira legislatura da segunda Repú blica cumpriu quase integralmente com o mandato
que lhe foi confiado. Contudo, dois problemas cruciais surgiram durante a legislatura e merecem
uma atençã o especial da nossa parte: um econó mico e outro político (a organizaçã o dos poderes
pú blicos).
No decorrer da legislatura nasceram nas diferentes comunidades moçambicanas novas
exigências e problemas, ligados ao processo da transformaçã o em curso. Isto nã o anula em nada
o a priori positivo da primeira legislatura, mas os actores políticos e a qualidade de uma
legislatura nã o se podem limitar ao cumprimento linear e lato do mandato popular, por mais
importante e substancial que a paz possa ser. A legislatura e os actores políticos devem também
ser julgados pela sua capacidade de interpretarem as necessidades «movediças» das populaçõ es
que, por sua vez, dependem de mutaçõ es só cio-econó micas e mesmo epocais e histó ricas que
bruscamente invadiram a vida das populaçõ es.
As épocas histó ricas deixaram de se poder contar em décadas: o que levava anos a ser
feito no passado, hoje faz-se num curto espaço de tempo. As mudanças rá pidas a que somos
submetidos pelo avanço tecnoló gico (internet, televisã o) que nó s nã o dominamos, a aceleraçã o
do processo global que nos é imposto pela economia-mundo (privatizaçõ es, programas de FMI e
do BM), as transformaçõ es políticas regionais e internacionais (SADC, CPLP) que respondem a
imperativos financeiros, fazem com que as situaçõ es reais das populaçõ es sofram metamorfoses
demasiado rá pidas.
Neste contexto de aceleraçã o histó rico-temporal, aquilo que no meio dos anos noventa
era o ú nico objectivo das populaçõ es –a paz ou pelo menos em nome da qual se mobilizaram
para votar –sofreu uma metamorfose enorme, ligada à dramá tica mudança da estrutura
econó mica do país. Os actores políticos devem ser julgados pelo cumprimento do pró prio
mandato, mas também pela capacidade de defenderem os interesses dos seus eleitores. Tanto
mais que a constituiçã o moçambicana nã o prevê quase nenhum espaço de intervençã o das
populaçõ es (como, por exemplo, referendos) mesmo nos grandes dossiers nacionais ligados, por
exemplo, à s privatizaçõ es de bens pú blicos de importâ ncia estratégica, naquilo que tem se
chamado a venda do país ou a mudança radical da estrutura econó mica do país.
A conjuntura mundial, dominada por imperativos econó micos, exige das elites políticas e
econó micas nacionais uma dinamicidade de espírito e uma clarividência capazes de lhes
capacitar para agirem em funçã o dos interesses das populaçõ es, dos eleitores.
No decorrer da primeira legislatura, o elemento paz, sem nunca perder a sua
importâ ncia e primordialidade, foi rapidamente igualado e mesmo ultrapassado pelos
imperativos econó micos ligados à s mudanças radicais que se operaram na gestã o do país e na
sua organizaçã o social. O período da primeira legislatura foi marcado pela inversã o da tendência
econó mica de natureza distributiva e planificada e de toda a dimensã o social que a
acompanhava, para uma orientaçã o individualista, concorrencial e toda a dimensã o de violência
social e de competividade que a caracteriza. Isso trouxe consigo uma mudança radical, nã o só na
organizaçã o econó mica, mas também na estrutura social e relacional entre os cidadã os.
O período da primeira legislatura coincide com o incremento dos investimentos
estrangeiros, sob a forma de empréstimos com as consequentes imposiçõ es de políticas por
parte dos organismos internacionais e países estrangeiros. O país acumulou dívidas colossais e
foi obrigado a proceder à privatizaçã o de infra-estruturas que, até entã o, tinham simbolizado
parte da identidade nacional (basta pensar na indú stria do caju). Nã o faço um juízo de valor.
Constato simplesmente que o povo nã o só nã o era consultado na transformaçã o radical da
sociedade e na privatizaçã o dos espaços de importâ ncia vital e simbó lica. O que sob o ponto de
vista político me parece problemá tico é que o povo nã o tinha nenhum mecanismo de
participaçã o, nem sob a forma de referendo, nem pressionando os seus eleitos a defenderem os
seus interesses e a sua visã o de sociedade.
A este défice jurídico e constitucional deve-se acrescentar as dificuldades nacionais em
termos de comunicaçã o (televisã o, rá dio, jornais), o nível de analfabetismo elevado e, ainda mais
importante, a discrepâ ncia entre as concepçõ es político-culturais das populaçõ es e o tipo de
democracia estabelecido.
A questã o filosó fica que se põ e é a seguinte: como fazer com que a democracia nã o se
transforme num jogo de elites, que a maioria da populaçã o possa, de facto, participar com
conhecimentos de causa, nã o só através de um boletim de voto de cinco em cinco anos, como
uma assinatura de cheque em branco para as elites políticas que se sentem legitimadas a fazer
privatizaçõ es que vã o em detrimento do povo que nelas depositou confiança?
Se quisermos ser mais explicativos podemos dizer que três níveis de problemas
manifestaram-se no desenrolar-se mesmo da primeira legislatura: o papel do novo estado
moçambicano na nova sociedade moçambicana, a questã o da representatividade e a soberania
nacional face à comunidade internacional.

O papel do novo Estado moçambicano na nova sociedade moçambicana


É de uma evidência «a la palisse» que a natureza do Estado moçambicano da segunda
Repú blica é radicalmente diferente da natureza do Estado da primeira Repú blica. Na primeira
Repú blica, os fautores e os executores da política estatal conheciam exactamente o lugar de cada
um e o que tinham que fazer. Podemos dizer que o Estado moçambicano, pela sua natureza
libertá ria e socialista era, nã o direi providencialista, mas distributiva. O papel de cada
funcioná rio do aparelho do Estado, desde o ministério até ao servente de uma escola primá ria,
era estar ao serviço do que se acreditava ser o interesse dos moçambicanos. O Estado
moçambicano era implacá vel contra tudo que, de longe ou de perto, se parecia com a corrupçã o,
desvio de bens pú blicos, tentativas de enriquecimento pessoal, acumulaçã o individual, etc.
Os valores moçambicanos eram contar com as pró prias forças, o amor pelo trabalho, o
direito à escola, à educaçã o, à saú de; era o facto de que éramos socialmente responsá veis uns
pelos outros; era a luta contra todas as formas de discriminaçã o, quer ela fosse de raça, de etnia,
CAPITULO II

de tribo, de regiã o, etc. Estar ao serviço do nosso povo era um valor, participar na construçã o de
Moçambique através do trabalho e dedicaçã o era um valor. Estes valores constituíam o essencial
daquilo que era ou devia ser o Estado. Esta era a maneira através da qual o Estado estava (ou
pretendia estar) ao serviço das populaçõ es.
Mas apesar das intençõ es excelentes, esse Estado era habitado por contradiçõ es
intrínsecas que acabaram anulando a grandeza dos objectivos precedentemente anunciados. A
dinâ mica participativa estava subordinada a uma ideologia unilateral de uma ú nica família
política, que se arrogava deter a ú nica visã o justa para a construçã o do país. Essa ideologia
política é compreensível no quadro da divisã o do mundo que entã o se vivia, apesar de a Frelimo
se ter visto forçada a aderir a um dos lados sem estar necessariamente convencida do bem
fundado da sua «opçã o» ideoló gica. Aliá s, esta tese encontra uma confirmaçã o na adesã o sem
reservas da maioria da classe política de esquerda à s teses e à s posiçõ es ultra-liberais que
repentinamente irromperam na vida social moçambicana durante o início da segunda Repú blica.
De um dia para o outro as coisas mudaram. Era como se, de repente e sem aviso prévio,
nos encontrá ssemos diante de uma passagem de nível sem guarda. Nesta mudança que
corresponde à mudança das relaçõ es de força na política mundial, a sociedade moçambicana viu-
se, de um dia para o outro, radicalmente mudada: de uma economia planificada para uma
economia selvagem. Nã o digo liberal, digo selvagem, porque o liberalismo tem regras. Por
exemplo, se o pressuposto é a livre iniciativa dos indivíduos e a possibilidade de concorrerem
uns com os outros (Bentham), a situaçã o moçambicana nã o se prestava a isso, quer porque as
populaçõ es nã o tinham formaçã o e informaçã o, quer porque nã o tinham os meios financeiros
necessá rios para entrarem neste tipo de economia. Abandonar as populaçõ es de um momento
para o outro ao volante de um Porsche que vai a duzentos quilô metros à hora sem lhes terem
previamente ensinado a conduzir, significa condená -los inevitavelmente ao desastre.
Todavia, esta nova política, como aliá s a precedente, tem que ser julgada sem
apriorismos nem romantismos de todo e qualquer tipo, mas à luz do paradigma libertá rio. Se ela
é capaz de incrementar o espaço de bem-estar para a maioria dos moçambicanos –os objectivos
morais do liberalismo como foi pensado pelos seus pais era trazer a maior felicidade para o
maior nú mero de indivíduos, o que corresponde ao conceito grego de eudemonia –entã o temos
razã o de defendê-la. Se nã o, ela tem que ser severamente criticada e combatida.
Ora, a mudança política e econó mica comportou uma mudança nos métodos de
governaçã o e nas prestaçõ es dos poderes pú blicos. O Estado da primeira Repú blica pecava pela
sua pan-presença. Ele decidia pela educaçã o, pela saú de, pela moral pú blica e individual, pela
justiça, pelos valores individuais e colectivos. E para isso combatia os alicerces individuais e
culturais dos indivíduos e dos grupos.
A segunda Repú blica tomou uma postura inversa. Ela peca pela sua ausência. As
populaçõ es nã o sentem no Estado –desde as instancias mais elevadas até ao servente de uma
escola ou dum hospital –«uma pessoa jurídica» que está presente e ao seu serviço. O Estado ficou
«dó lar-crá tico». Tudo se faz em funçã o do rendimento, do ganho, das mordomias. O funcioná rio
do Estado transformou-se de servidor pú blico em servidor de si pró prio, instrumentalizando o
privilégio que o seu lugar lhe concede. O funcioná rio nã o serve: serve-se. Esta situaçã o está em
discrepâ ncia com a ideia que as populaçõ es fazem de um funcioná rio. A ideia que as pessoas têm
de um professor é de um homem que é uma referência para as populaçõ es, nã o só pelo seu
saber, mas também pela sua conduta moral. Ver um professor a vender notas e provas de exame
é simplesmente escandaloso. Ver o hospital transformado num comércio ia contra a ideia que as
populaçõ es tinham da deontologia médica, mesmo sem conhecerem o juramento de Hipó crates.
Apesar do famoso crescimento econó mico e dos índices do PNB, a situaçã o das
populaçõ es piora, a qualidade do ensino piora. Aos jovens dá-se a consumir uma cultura feita de
telenovelas e de slogans tipo «2M nossa tradiçã o, nossa cultura», ou entã o «a nossa cerveja, a
nossa maneira de ser e de estar». O tratamento nos hospitais depende de dó lares, a boa escola
custa caro, todas as coisas a que as populaçõ es de baixo nã o se podem permitir. Isto põ e um
problema enorme de justiça, a nível distributivo e a nível de sansã o jurídica.
Um dos primeiros sinais da ausência do Estado foi dado quando as populaçõ es
começaram a fazer justiça com as pró prias mã os. Muitas vezes queimava-se um miú do que
roubara para comer, quando funcioná rios do Estado e outros desviavam coisas muito mais
consistentes –esvaziaram literalmente os cofres do Banco Austral, venderam bens essenciais do
Estado a estrangeiros ou que têm 500 mil dó lares para comprar apartamentos – e eram
indemnes a qualquer sançã o. Esta violência social, porque é disso que se trata, tem que ser
analisada em todos os seus parâ metros. As populaçõ es começaram a ser violentas. Podemos
dizer que os miú dos da rua sã o violentos, há assassinatos na cidade, assaltos à mã o armada que
culminaram em violência-espectá culo, com a morte de Carlos Cardoso e de Siba-Siba Macuácua.
Todavia, toda esta violência pode ser conduzida à «dó lar-cracia»: a instauraçã o do dó lar em
valor supremo da nossa sociedade. O fim, «dó lar», justifica os meios.
Entã o, ao mesmo tempo que o nú mero e a qualidade de carros e casas de luxo aumenta
na cidade, as viagens para compras na RSA, na Suazilâ ndia e mesmo Portugal aumentam, que se
multiplicam as viagens para Dubai, para bronzear-se nos Estoril ou para o Carnaval no Rio, o
nú mero de pobres, de miserá veis nã o cessa de aumentar. O nú mero de doentes que morrem de
malá ria devido à falta de saneamento de meio aumenta.
Assim, a segunda Repú blica muito depressa oscilou da democracia à «dó lar-cracia». Com
a passagem da primeira à segunda Repú blica, deitou-se fora a á gua e o bebé. Valores verdadeiros
para qualquer sociedade foram negligenciados, deliberadamente omitidos ou mesmo invertidos.
Durante o período da primeira Repú blica nó s cantá mos que a linha de ordem do nosso
povo era a unidade, trabalho e a vigilâ ncia. Podemos perguntar se estes valores nã o têm todo o
seu lugar no Moçambique de hoje. Em que é que a unidade pode ser identificada com um regime
político? a unidade do nosso povo, contra o tribalismo que está em voga, o regionalismo e o
racismo nã o constitui um valor essencial para o Moçambique de hoje? O trabalho, o facto de
contar com as pró prias forças, num mundo de assistidos e objeto das ajudas e caridade
internacional nã o é um valor a cultivar? A vigilâ ncia contra as divisõ es, com o perigo de recair no
colonialismo, na dominaçã o nã o é um valor a cultivar e a defender?
De facto, a falta desta vigilâ ncia condena a maior parte da populaçã o, os mais fracos, a
processos que recordam muito o que era a época colonial, mas sobretudo distancia o Estado da
sociedade. Vale a pena recordar o debate português em volta da Sociedade de Geografia 44 no fim
do século XIX, depois do ultimato que a Inglaterra impô s a Portugal. Homens como Eça de
Queiró s pensavam que Portugal deveria desinteressar-se dos «selvagens» que viviam nas
coló nias. Aliá s, Portugal tinha-se mostrado mau colonizador e isso só lhe tinha valido frustraçõ es
e humilhaçõ es, desde a perda do Congo a favor dos belgas até ao ultimato britâ nico.
Contra estas teses, jovens como Antó nio Ennes defendiam que era necessá rio ter
coló nias rentá veis como moeda de troca para melhor integrar a Europa. Para isso, Portugal teria
primeiro que pacificar as suas terras, controla-las com militares e com a administraçã o, e assim
poderia dizer aos parceiros: tenho terra para cultivar, militares para defende-la e, sobretudo,
pretos para trabalhá -la. Era o início do trabalho forçado que acabou substituindo a recém extinta
escravatura pelo chibalo que faz da colonizaçã o portuguesa uma das mais cruéis e os povos de
Moçambique dos mais sofredores.
Quando vejo certas prá ticas a que se prestam certas elites moçambicanas, como acordos
de parceria com empresas ou indivíduos sem escrú pulos, acordos que nã o têm em conta os
interesses das populaçõ es, pergunto-me se o discurso é diferente do discurso de Antó nio Ennes.
Mas, sobretudo, o risco maior é condenar as populaçõ es mais fracas do nosso povo ao novo
chibalo, evidentemente com a nossa cumplicidade.
Aliá s, nã o é a primeira vez: todo o sistema de dominaçã o do nosso povo contou sempre
com a cumplicidade de grupos entre nó s. A escravatura foi facilitada por certas prá ticas internas
pela cobiça e sobretudo pela falta do sentido histó rico, pois quando o momento chegou
vendedores e vendidos tornaram-se todos escravos e colonizados.
A falta de sentido histó rico seria pensar que nó s, pequenos grupos, constituiríamos as
excepçõ es de um processo neocolonial no qual somos ou podemos ser cú mplices. Se a questã o é
dinheiro, entã o somos mais baratos que os nossos predecessores. Temos que lembrar que uma
espingarda no século passado era mais difícil de construir que um Mercedes hoje. Se temos que
nos vender para obter um carro, temos que pensar nã o só na traiçã o histó rica para com os
nossos e a causa negra de uma maneira geral, mas também no preço dessa mesma traiçã o.

44
Andrea Bignasca, La singolarità terrible del colonialismo portoghese: il dibattito dell Società di Geografia.
Roma: Armando, 1971: 71-82.
CAPITULO II

Podemos considerar que a Frelimo traiu a sua causa? Aquela mesma Frelimo que era
constituída por rapazes e raparigas que estavam dispostos a morrer todos os dias durante dez
anos em nome da liberdade do nosso povo? O que é que aconteceu?
Aos vencidos nã o se pede opiniã o. Nã o foi, em primeiro lugar, a Frelimo que mudou. Há
um facto que ninguém quer reconhecer, mas que é fundamental para entender o Moçambique de
hoje e as circunstâ ncias das nossas vidas e acçõ es. Se raciocinarmos em termos libertá rios
podemos afirmar de uma maneira apodíctica que face à intransigência e ao anacronismo
histó rico do fascismo português, nó s, colonizados e em busca da liberdade-independência,
fizemos uma guerra justa e ganhá mos. A guerra nã o foi ganha militarmente, mas o terreno de
batalha nã o era esse. O terreno de batalha era político e foi um acidente histó rico de
responsabilidade portuguesa que obrigou Moçambique e as outras coló nias portuguesas –
fossem a excepçã o no contexto africano – a pegar em armas. Mas com o 25 de Abril essa
anomalia histó rica foi corrigida e abriram-se as portas para as independências políticas das
entã o coló nias portuguesas.
Na Dimensão Moçambicana da consciência histórica defendi que a Frelimo nã o escolheu o
comunismo: foi-lhe imposto por um processo histó rico-político. Agora, tristemente, tenho que
defender que o liberalismo selvagem em curso nã o é também resultado de uma escolha, mas da
derrota na segunda guerra. De facto, os objectivos libertá rios da primeira guerra foram
derrotados na segunda guerra.
O período que vai de 1945 até 1989, como já se escreveu enormemente, foi dominado
pelo conflito ideoló gico que opô s o bloco chamado de esquerda ao bloco de direita. Nó s
entramos nesse conflito pela janela da nossa vontade de nos libertarmos do colonialismo. A
prova da nossa participaçã o periférica está no facto de termos parado com a guerra no momento
mesmo em que os generais R. Reagan e M. Gorbatchov assinaram o armistício do fim das
hostilidades. A guerra terminou com a vitó ria do bloco da direita. Dado que nó s está vamos no
bloco da esquerda, perdemos. Temos que ter a coragem de dizer que se ganhamos a guerra de
libertaçã o (nessa luta nó s está vamos no sentido da histó ria, contra o anacronismo histó rico do
colonialismo português), perdemos a segunda guerra.
O fim de todas as guerras é concluído com «actos cívicos» nos quais as partes se
encontram, com aparente cortesia e mesmo cordialidade, bem vestidas e engravatadas para o
processo de diá logo. Na realidade, trata-se de um encontro humanamente duro e humilhante
para os vencidos, durante o qual os vencedores ditam as suas condiçõ es.
No panorama geral do conflito da guerra fria, a principal discussã o do armistício fez-se
em Helsínquia e teve como protagonistas principais Reagan e Gorbatchov. Assinado o
documento principal, deixou-se que a resoluçã o de detalhes ficasse a carto dos burocratas ou
dos oficiais subalternos, mas sempre no espírito de carta fundamental. Isto explica que os
acordos de paz moçambicanos tenham sido assinados numa insignificante comunidade de Roma
sem tradiçã o nem prévia experiência política.
Se a Renamo tinha sido um bom pequeno batalhã o no interior da guerra fria, nó s
sabemos pela histó ria que muitos generais e exércitos, indispensá veis durante os conflitos,
tornam-se problemá ticos no fim destes mesmo conflitos. Basta pensar na sorte ambivalente que
conheceram os soldados da armada invencível de Carlos V e de Isabel, a Cató lica: heró is durante
a guerra contra os «mouros» e peso e perigo para a monarquia logo depois da guerra. Aliá s,
alguns historiadores45 sugerem mesmo que Isabel, a Cató lica, teria dado uma frota Marítima a
Cristó vã o Colombo, nã o obstante a opiniã o contrá ria dos sá bios de Salamanca, como forma de se
libertar de militares incó modos cuja chegada a Índia ou regresso a Espanha estavam fora de
quaisquer previsõ es científicas sérias.
Os vencedores da guerra decidiram que em Moçambique, a Frelimo renovada –nome qua
nunca tomou, mas devia ter emprestado da Unita renovada –fosse a melhor força política para
governar Moçambique. Com efeito, a natureza do capitalismo é nã o ter tempo. Dado que a
estrutura administrativa de Moçambique tinha sido escangalhada e recomposta por esta força
política, para o funcionamento eficaz e imediato de um liberalismo que em termos de eficiência e
comprimento de prazos e datas é mais rigoroso que os sistemas de esquerda, o melhor governo
45
Pirlo Damasco e Stefania Graziosi, Carlo V e Isabella, controversia con I saggi di Salamanca. Torino: Einaudi,
1975.
seria o da Frelimo. Dava-se a Frelimo o mandato de governar com ordens precisas: utilizar as
pró prias estruturas para escangalhar o múnus socialista e colectivista que ela mesmo tinha
criado, introduzir o capitalismo contra o qual tinha lutado –sistema que tinha sido
historicamente responsá vel pela submissã o dos moçambicanos.
Aceitaria a Frelimo destruir o que ela mesma tinha construído? Aceitaria dizer à s
pessoas que tinha educado que o homem novo agora era o capitalista, que a palavra de ordem
era acumulaçã o individual, era a exploraçã o do mais fraco? Aceitaria a Frelimo dizer que, afinal
de contas, o roubo e a desonestidade eram valores? Aceitaria a Frelimo transformar as funçõ es
estatais de serviços para o maior nú mero em lugares de apropriaçã o e de acumulaçã o? Aceitaria
a Frelimo destruir a sua lealdade com os camponeses, com os combatentes da independência?
A bola parecia estar no campo da Frelimo: ou ela queria permanecer coerente consigo
pró pria e, entã o, reconhecia a sua derrota e retirava-se, ou entã o ela se metamorfoseava e
tornava-se uma «Frelimo renovada», atacando o poder a todo o custo. Existe, teoricamente, a
possibilidade de a Frelimo ter aceita a sua nova condiçã o como forma de resistir, na medida do
possível, aos ditames dos vencedores a fim de continuar a defender os seus valores originais.
Entã o a Renamo estava condenada a ser oposiçã o? A nova missã o do pequeno batalhã o
era ser uma pistola apontada à têmpera da nova Frelimo, governante. Se a Frelimo se
comportasse bem, a Renamo continuaria na oposiçã o quer ela quisesse ou nã o. Se a Frelimo se
comportasse mal, a oposiçã o premiria o gatilho e a Frelimo saltaria. Só que a Frelimo mostrou-se
mais liberal do que era previsível. Isto leva-me a pensar que muitos socialistas da primeira
Repú blica nã o o eram por convicçã o, mas por imposiçã o ou por oportunismo político.
A partir do momento em que a Frelimo jogava bem o jogo liberal, a Renamo
transformava-se num espantalho que só serve para afugentar os pá ssaros. Mas as duas questõ es
de fundo sã o: primeiro, a Frelimo ultraliberalizou-se estrategicamente como forma de manter o
poder (e servir os interesses moçambicanos) ou como estratégia de enriquecimento de um certo
nú mero de indivíduos? Se foi uma estratégia para conservar o poder, que fim tem o novo poder e
governo da Frelimo? Segundo: a comunidade internacional, virando as costas à Renamo e
seguindo a estratégia da Frelimo, levanta o problema do futuro da democracia e da sua
legitimaçã o em Moçambique.

A questã o da legitimaçã o
A participaçã o nas eleiçõ es de 1994, mais do que legitimar as novas forças
políticas em presença e a nova governaçã o nacional, era um assentimento que ia mais
em direcçã o da necessidade de terminar com a guerra e todas as consequências que ela
comportou em termos de acentuaçã o da pobreza, da fome, da imigraçã o das populaçõ es
do campo para a cidade, etc. mas, de nenhuma maneira, uma legitimaçã o política. Com
efeito, ninguém pode legitimar o que nã o conhece, e nenhuma legitimidade é possível
(legítima) se ela nã o parte e nã o se alimenta do substracto mental, cultural e filosó fico
do povo que deve supostamente governar e representar.
Ora, as estatísticas mostram que mais de noventa por cento dos cidadã os
moçambicanos nã o possuem os apetrechos intelectuais necessá rios para participarem, e
por conseguinte, legitimarem uma democracia, cujos paradigmas respondem a
pressupostos culturais e histó ricos ocidentais.
Por outro lado, todos os trabalhos de histó ria e de antropologia levados a cabo
sobre as diferentes culturas moçambicanas (cfr. Documentos de antropologia
moçambicana, Lisboa, 1996) mostram que a participaçã o popular na coisa pú bica e os
diferentes sistemas de governaçã o das culturas nacionais, diferem em toda a medida do
sistema constitutivo e da organizaçã o dos poderes pú blicos actuais.
Todavia, e nã o obstante as afirmaçõ es precedentes, as eleiçõ es políticas de 1994
marcaram o início de uma nova legitimidade política, nã o fundada sobre a tradiçã o ou
sobre a força das armas, mas pelo princípio da soberania popular. A nossa questã o será
justamente de nos interrogarmos quanto ao estatuto desta nova legitimaçã o.
CAPITULO II

Em Moçambique, o nascimento do projecto nacional está indissociavelmente


ligado aos nomes de Eduardo Mondlane46 e da Frelimo. As lutas dos povos africanos
pelas pró prias liberdades, na qual se situa o projecto de Eduardo Mondlane e da Frelimo,
inscreveram-se em dois movimentos histó ricos opostos. O primeiro inscrevia-se e
fundamentava-se no substracto cultural dos diferentes povos autó ctones, bastando
pensar nas lutas dos Macondes, dos Chopes ou dos Senas. Muitas vezes povos diferentes,
mas culturalmente afins e geograficamente contíguos juntaram as forças para
combaterem juntos o colonialismo, visto como um inimigo comum. Todavia, por falta de
uma estrutura orgâ nica militar e tecnicamente capaz de fazer frente aos poderes
europeus, este movimento nã o deu grandes resultados em termos de liberdade,
configurada como independência.
O segundo tem o seu fundamento na histó ria do movimento Pan-africano que
nasceu com os negros da diá spora: Repú blica das Palmeiras no século XVII no Brasil,
Haiti de Toussant Louverture no século XVIII, os marrõ es da Jamaica no século XIX, mas,
sobretudo, as metamorfoses histó ricas e culturais dos negros nos EUA:

«Sã o as dinâ micas pan-africanas e pan-negrista em torno de Dubois e de Marcus


Garvey que constituem a ligaçã o ideoló gica de integraçã o do movimento “afro-
português”. A participaçã o nessas correntes libertadoras (operadas, aliá s,
separadamente, pelas duas organizaçõ es) acompanha-se do fascínio exercido
pelo universo dos negros americanos – as etapas de uma histó ria, desde os
horrores da escravatura à linha de cumes alcançada nos domínios do saber,
ciência e tecnologia, letras e artes, desportos. Um referente privilegiado do
renascimento africano»47.

Os primeiros movimentos eram culturalmente homogéneos, tinham as suas delimitaçõ es


geográ ficas e políticas bem definidas. As fronteiras traçadas ou reconhecidas por Berlim eram
para os diferentes povos, entidades geo-políticas demasiado extensivas, mas sobretudo nã o
correspondiam à s dinâmicas políticas forjadas pelos povos africanos (Estados, Impérios) nã o
paravam sempre nas fronteiras étnico-tribais, bastando pensar no império de Gaza ou no
Império do Monomotapa. Contudo, a extensã o de uma identidade política a grupos
culturalmente heterogéneos era acompanhada por uma série de medidas de inserçã o jurídica,
econó mica, política e cultural que se inscreviam nas dinâmicas culturais autó ctones48. Todavia,
nenhuma destas dinâ micas correspondia nem geográ fica, nem politicamente à quilo que os
portugueses chamaram Moçambique.
Se a entidade “Moçambique” era (como, aliá s, todas as coló nias africanas pó s-Berlim)
demasiado grande sob o ponto de vista geográ fico e culturalmente heterogéneos em relaçã o à s
dinâ micas políticas autó ctones a Moçambique e a Á frica, ela era, ao contrá rio, demasiado
reduzida em relaçã o aos objectivos primeiros do pan-africanismo que prospectava uma unidade
política de todos os negros do mundo no solo africano (Delany, Marcus Garvey). Os objectivos do
movimento Pan-africano foram-se reformulando sem nunca, contudo, renunciarem ao objectivo
de unir politicamente a Á frica, como testemunha a obra política e literá ria de K. Nkrumah Africa
Must Unit, ou mesmo os esforços da criaçã o de uma Á frica federal de Dubois ou, ainda, de Patrice
Lumumba.
Eduardo Mondlane, como K. Nkrumah ou Azikiwé, pertence por formaçã o e convicçã o ao
movimento Pan-africano cujas ideias tiveram um impacto considerá vel nos anos em que ele
viver e estudou nos EUA. A propó sito das origens da noçã o de unidade africana, Mondlane põ e
em evidência o papel precursor da liga africana, criada em Lisboa em 1920, num Portugal ainda
Republicano e democrá tico e que acolheu, em 1923, a segunda sessã o do III Congresso Pan-
africano. Segundo Mondlane, a liga tomava posiçã o nã o só pela unidade nacional, mas também
46
Citado por Ngoenha, Para uma reconciliação entre a Política e as Culturas, Programa de reforma dos órgãos
locais (PROL), Texto de Discussão Nº 3, Ministério da Administração estatal (MAE), Editado por J. E. M.
Guambe e B. Weimer, Maputo, Agosto de 1997: 14.
47
Idem: 15.
48
Idem: 16.
pela unidade entre as coló nias em luta contra a mesma potência colonial, pela unidade africana
contra todas as potências colonizadoras e, finalmente, pela unidade de todos os povos negros
oprimidos do mundo49.
Contudo, a acçã o política de Eduardo Mondlane e da Frelimo foi precedida e
condicionada por dois factos políticos e histó ricos importantes: a partir do congresso Pan-
africano de Manchester de 1945 fala-se abertamente e, pela primeira vez, da questã o de
autodeterminaçã o dos povos africanos. Mas ao mesmo tempo, o congresso observou que «as
divisõ es arbitrá rias e as fronteiras territoriais delimitadas pelas potências coloniais constituem
outras tantas medidas deliberadamente tomadas para impedir a unidade política da Á frica».
Se a questã o da independência estava posta sem equívocos, restava delimitar o quadro
geopolítico no qual estas independências se deviam inscrever: etnias, antigos Estados africanos,
zonas economicamente viá veis, ou espaços coloniais delimitados em Berlim?
O co-presidente do congresso de 1945, Dubois (com Carter G. Woodson, fundador da
Association for the Study of Negro Life na History em 1915) foi também um dos promotores da
redescoberta da histó ria, das tradiçõ es e da cultura da Á frica pré-colonial. Contudo, ele pensava
–como, aliá s, todos os líderes políticos da época –que a Á frica fragmentada nã o podia, por si só ,
na sua pró pria terra, tomar claramente consciência da sua unidade a nã o ser sob a forma de uma
muito vaga comunidade de origens e de tradiçõ es, consideradas num sentido muito geral. De
facto, a noçã o de Pan-africanismo era afectada por um alto grau de abstracçã o em relaçã o à
realidade. Tratava-se mais de uma doutrina cultural (ou do reconhecimento de uma unidade
espiritual entre negros, como disser Langston Hughes) do que de uma verdadeira ideologia
política. Foi o que fez Azikiwé com o seu Renascent Africa de 1937, Césaire no Cahier d’um retour
au pays natal, a revista Presence Africaine, ou ainda Cheik Anta Diop com as Nações negras e
cultura.
Por falta de uma ideia clara de unidade e mesmo de condiçõ es prá ticas para que essa
unidade fosse possível, começou-se a falar de unidades regionais. Mas uma vez mais tinha que se
definir os contornos políticos e jurídicos de tal unidade. E, sobretudo, definir-se se tal unidade
devia preceder ou vir depois das independências das delimitaçõ es individuais daquilo que eram
os Estados coloniais. Este assunto esteve no centro do debate político entre os anos 1957 e 1959.
Em 1961, um ano antes da fundaçã o da Frelimo, a Á frica independente divide-se
claramente em dois grupos: o grupo de Monró via e o grupo de Casa Blanca. Contudo, a ideia que
prevalece é que a unidade que é preciso realizar neste momento nã o é a integraçã o política dos
Estados Africanos soberanos, mas a unidade das aspiraçõ es e da acçã o, do ponto de vista da
solidariedade social africana e da identidade política.
O pan-africanista e funcioná rio das Naçõ es Unidas, Eduardo Mondlane, ao fundar a
Frelimo, sabe que o quadro geopolítico das liberdades (independências) africanas por vontade
da ONU, guiada pelas mesmas potências que em Berlim tinham, cinquenta anos antes, dividido o
continente sem se preocuparem nem com as culturas nem com os homens negros que nó s
somos, com a conivência dos novos dirigentes africanos, deve ser o espaço da colonizaçã o
europeia, portanto portuguesa, para Moçambique. Isto quer dizer: do Rovuma ao Maputo.
Ora, neste espaço geopolítico tinham precedentemente surgido formas de nacionalismo
que, sem serem o resultado de uma revoluçã o política interna à s culturas locais, inscrevia a sua
dinâ mica nos substractos culturais locais. Nã o há dú vida que sob ponto de vista da evoluçã o da
política mundial, Mondlane teve razã o em criar a Frelimo, como meio de dar força e legitimidade
internacionais –no sentido da ONU e, a partir de 1963, da OUA –à s reivindicaçõ es dos povos que
viviam no espaço geográ fico que se estendia do Rovuma ao Maputo. Contudo, havia aqui uma
transferência de legitimidade. A UDENAMO, UNAMO e Manu, reivindicavam a sua legitimidade
nos povos respectivos. A Frelimo que, justamente, nã o queria nem podia ser um simples
somató rio dos três movimentos nacionalistas que o precederam, nem sequer era o somató rio
dos grupos étno-tribais de Moçambique, nã o podia imediatamente receber a sua legitimaçã o do
interior e, portanto, das dinâ micas político-culturais interiores aos povos de Moçambique.
Quanto ao exterior, a Frelimo podia receber uma cauçã o, mas nã o legitimaçã o do Pan-
africanismo que, entretanto, tinha sido redimensionado e mesmo isolado com a elevaçã o do
espaço colonial a quadro geopolítico para a proclamaçã o das independências. A divisã o de 1961

49
Citado por Ngoenha, idem: 17.
CAPITULO II

e a criaçã o da OUA eram, de facto, uma vitó ria das antigas potências coloniais. E,
paradoxalmente, eram a ONU e a OUA a legitimarem a Frelimo como movimento de libertaçã o de
Moçambique, e mais tarde, como representante do povo moçambicano.
Se as independências se devem inscrever no quadro geopolítico colonial, elas nã o se
podem inspirar culturalmente nem nas lutas autó ctones dos diferentes povos de Moçambique e
das suas evoluçõ es e debates políticos, nem sequer se podem inspirar na dinâmica histó rica do
Pan-africanismo. A acçã o de Eduardo Mondlane e da Frelimo deve geopolítica e juridicamente ao
trabalho de centralizaçã o levado a cabo pelas autoridades coloniais portuguesas e, por outro
lado, a partir do Partido transformado em Estado depois da independência, criar uma Naçã o à
imagem e semelhança da Europa. Aqui surgem duas dificuldades:
a) Os portugueses para centralizarem a governaçã o dos povos de Moçambique, nã o só
nã o legitimavam o seu poder a partir dos povos de Moçambique, mas violavam
sistematicamente os seus direitos mais elementares. Se a Frelimo-Estado de Moçambique seguia
esta governabilidade tinha ou que dialogar e fazer dialogar os diferentes povos e culturas
nacionais, o que era tecnicamente impossível, tendo em conta sobretudo o fator tempo e os
imperativos regionais; ou entã o, com uma legitimaçã o proveniente do exterior, impor aos povos
de Moçambique culturas políticas estrangeiras. Mas, se assim fosse, em que medida a imposiçã o
da Frelimo seria na prá tica diferente da imposiçã o dos portugueses? Em que medida a
governaçã o da Frelimo seria menos colonialista em relaçã o à s prá ticas culturais dos diferentes
povos e culturas locais?
b) A histó ria social e política da Europa, que doravante servia de modelo, tinha visto
nascer o Estado a partir das Naçõ es. Ora, em que medida o Estado de Moçambique estaria à
altura de criar a Naçã o, tarefa primordial que lhe foi confiada pelo Partido?
A missã o histó rica que foi da Frelimo –criar uma naçã o moçambicana –partiu de
movimentos políticos, culturalmente circunscritos (Udenamo, Unamo e Manu), mas teve que se
forjar logo depois uma ideologia unitarista. Depois da independência, o postulado de unidade
nacional, que em si mesmo nã o é nem pode ser discutível, implicou também uma governaçã o a
partir de cima. O primeiro paradoxo era que o governo legitimava o seu poder no povo, mas
governava contra os pressupostos jurídicos das culturas nacionais. O segundo paradoxo era que
a legitimaçã o teó rica e histó rica dos pressupostos políticos de governaçã o respondia a
pressupostos europeus: recordemo-nos que o marxismo é filho de um debate histó rico pró prio
da cultura ocidental.
Estes paradoxos e mesmo a desconsideraçã o das culturas nacionais no processo político
e de governaçã o foram, historicamente, o preço que tiveram de pagar as culturas nacionais pela
edificaçã o do Proto-Estado moçambicano.
A Naçã o democrá tica que se auto-proclamou em 1994 novo actor histó rico da vida
política e social moçambicana quer, como afirma a constituiçã o de 1990 e os acordos de 1992,
que: todos se reconhecem actores e sujeitos da história, ou seja, um partido único não poder ser o
dirigente da sociedade e do Estado50.
Por democracia se entende, portanto, um sistema de partidos. Ora, este sistema
tipicamente ocidental desde há dois séculos tem vindo a provar a sua funcionalidade. Contudo,
no contexto histó rico actual, caracterizado pelo fim do bipolarismo, muitos soció logos e
politó logo se interrogam quanto à pertinência da divisã o clá ssica da política em partidos e a
capacidade deste sistema de representar verdadeiras alternativas políticas e, sobretudo, de
representar os diferentes estratos da sociedade.
Mas a questã o mais interessante para nó s é que em nenhum país africano o sistema de
partidos como o proposto pela constituiçã o e pelos acordos de Roma parece estar à altura de
mobilizar o imaginá rio colectivo das populaçõ es. Das duas uma: ou o africano (e, portanto,
também o moçambicano) é geneticamente anti-democrá tico como sustentam alguns eugenistas
(Medeved Arison), ou entã o o sistema de partidos é, talvez neste momento, um mal necessá rio,
mas nã o corresponde ao substracto cultural dos nossos povos.
Nã o se trata de uma inadequaçã o dos africanos à democracia, mas do modelo Europeu
falsamente universal, que nã o se coaduna com as nossas culturas. Nã o sã o as culturas que se têm
de adaptar a todo o custo a modelos, que responderam ao génio pró prio de certos povos num
50
Citado por Ngoenha, idem: 21.
determinado momento da sua histó ria, mas os modelos que se têm de forjar a partir das
culturas. Isto significa que nó s temos de inventar um modelo de sociedade que nos seja pró prio,
um modelo que corresponde à s nossas culturas, à s nossas sensibilidades, um modelo capaz de
mobilizar o conjunto de moçambicanos a participarem nã o só nas eleiçõ es, mas na vida integral
da sociedade moçambicana.
Depois de uma entrevista que dei ao jornal Savana em Setembro de 1996, um deputado
disse que ele tentava levar os seus eleitores a interessarem-se e mesmo a controlarem a sua
actividade de deputado, mas em vã o: os «eleitores nã o conhecem as suas prerrogativas jurídicas
e políticas como eleitores».
Os deputados sã o, teoricamente, representantes dos interesses dos eleitores. Que tipo de
mandato, eleitores que ignoram as suas prerrogativas políticas e jurídicas, podem confiar a um
deputado? E se os deputados nã o têm um mandato claro dos seus eleitores o que é que eles
representam? O que é que os autoriza a falarem em nome dos seus eleitores?
Mas suponho que os eleitores decidem controlar, acompanhar, influenciar a execuçã o do
mandato de um deputado ou, mais profundamente, que eles queiram fazer presente a um
deputado que representa no parlamento as suas preocupaçõ es, que nã o sã o sempre iguais, mas
variam com o tempo e com as circunstâ ncias: de que mecanismos jurídicos e constitucionais
dispõ em? Que mecanismos estã o previstos pela lei que permitam que os eleitores interpelem os
seus representantes?
Se os parlamentares representam simplesmente as posiçõ es dos pró prios partidos, em
discrepâ ncia total com os interesses e a compreensã o das pessoas, estamos num sistema de
partidocracia.
Será que o sistema de representaçã o parlamentar é conforme o génio político e cultural
moçambicano? Será que os mecanismos de representaçã o tipicamente moçambicano sã o os
partidos? Os indivíduos, os grupos, as culturas e a sociedade exprimem as pró prias opiniõ es,
preocupaçõ es, posiçõ es através dos partidos, ou existem outros mecanismos, outras vias, outros
veículos de opiniã o e de tomada de posiçã o que sã o mais congénitos aos povos de Moçambique?
A democracia moçambicana e o seu sistema de representaçã o vã o ter que colocar o
problema dos pressupostos. Temos que centrar os nossos esforços sobre a condiçã o mesma da
democracia: a dimensã o só cio-cultural. A democracia vai exigir, como condiçã o preliminar, uma
acçã o concebida a partir das realidades autênticas das nossas comunidades autó ctones,
apreendidas a partir do interior.
Contudo, as eleiçõ es políticas de 1994 e a nova constituiçã o, fundando doravante a
legitimidade política sobre a soberania e a vontade dos moçambicanos, consagra
simbolicamente uma ruptura fundamental.
Para além do princípio de legitimidade política, é o fundamento mesmo da relaçã o social
que é posto em causa. Na era da naçã o democrá tica, a política substitui o princípio religioso ou
dinâ mico para unir os homens: ela reivindica o direito de instaurar o social. Doravante, todos os
homens no interior do espaço nacional sã o iguais em dignidade. Esta cidadania nã o é
simplesmente um atributo jurídico e político, no sentido estrito do termo. É também um meio
para adquirir um estatuto social: a condiçã o necessá ria – mesmo se concretamente nã o
suficiente –para que um indivíduo possa ser plenamente reconhecido como actor de vida
colectiva. Existem, no entanto, dois problemas fundamentais. Primeiro – o nascimento da naçã o
democrá tica foi precedida, e talvez mesmo condicionada, por uma outra naçã o que vive no seu
seio: a naçã o produtivista. Nã o é por acaso que a democracia foi precedida por uma adesã o à s
instituiçõ es econó micas internacionais como o FMI e BM, composta por indivíduos mais
preocupados em satisfazer os pró prios interesses que a satisfaçã o dos seus deveres cívicos –que
segundo Rousseau constitui o principal problema moral para aquilo a que ele chama o homem
social. A ló gica produtivista intimamente ligada à eficá cia da produçã o, tende a preceder os
valores propriamente políticos. A participaçã o na vida econó mica é a fonte essencial do estatuto
social. Assim, a dimensã o econó mica e social da vida colectiva impõ e-se em detrimento do
projecto político. Este facto enfraquece ulteriormente o nosso «proto-Estado Democrá tico» que
se vê obrigado a renunciar à s suas prerrogativas estatais (que lhe foram confiadas pelos
CAPITULO II

eleitores) para satisfazer as imposiçõ es anti-democrá ticas do FMI e do Banco Mundial51 que se
arrogam a prerrogativa de legitima o poder.
Como se isto nã o bastasse, os eleitores nã o têm mecanismos jurídicos legais previstos
pela constituiçã o que lhes permitam fazer-se ouvir ou simplesmente participar no debate
pú blico. Existe, por conseguinte, um outro problema jurídico, desta feita ligado à democracia
representativa.

A democracia representativa
A democracia representativa, em princípio, é uma democracia parlamentar –
sendo os parlamentares, como os senadores romanos, donde ele deriva, uma assembleia
de homens escolhidos pela sua sabedoria (sagacidade), cujas deliberaçõ es devem
supostamente desembuchar na melhor decisã o possível para a comunidade no seu
conjunto. Mas para que o parlamento seja democrá tico –existem parlamentos nã o
democrá ticos –deve respeitar três princípios fundamentais, que aliá s nã o encontraram a
sua teorizaçã o na antiguidade grega, mas nos filó sofos pertencentes à primeira idade do
individualismo liberal, isto é, John Locke para o primeiro princípio, Locke e Montesquieu
para o segundo, e Jean-Jacques Rousseau para o terceiro.
O primeiro destes princípios é o princípio da tolerâ ncia. Ela obriga o Estado a
assegurar sobre o seu solo a expressã o livre de crenças políticas, filosó ficas, religiosas,
na condiçã o de que estas nã o atentem contra a ordem pú blica.
O segundo é o princípio da separaçã o dos poderes. Ela estipula que o poder de
fazer leis (poder legislativo), o poder de fazê-las aplicar (poder executivo) e o poder de
punir as infracçõ es cometidas contra as leis (poder judiciá rio) nã o possam ser exercidas
pelos mesmos membros (ou pelos mesmos ó rgã os) da comunidade. Este princípio tem
por objectivo instaurar o Estado do direito, isto é proteger o cidadã o contra os abusos. E,
em particular, contra o uso arbitrá rio que os detentores da autoridade pú blica poderiam
ser tentados a fazer dela.
O terceiro é o princípio da justiça. Isto significa dizer que uma democracia digna
desse nome nã o se pode contentar em ser uma democracia formal, cega à s
desigualdades materiais entre os membros da sociedade, mas ela deve visar a sum
objectivo concreto: a justiça social. Podemo-nos perguntar: em que condiçõ es reina a
justiça social? Isto é uma questã o difícil. Em contrapartida, o que é claro é que a sua
realizaçã o supõ e, pelo menos, a criaçã o de mecanismos susceptíveis de impedir o
desenvolvimento de desigualdades demasiado grandes no seio da comunidade.
Estes três princípios têm, na histó ria, suscitado mitos debates. Poder-nos-iamos
limitar aos debates dos ú ltimos anos, relativos ao fim da guerra fria e à extensã o do
modelo democrá tico ao conjunto do planeta, com a consequente necessidade de
aculturar os aparatos administrativos e institucionais à s diferentes realidades culturais,
sem adulterar a dimensã o axioló gica da democracia.
O primeiro princípio invoca claramente a dimensã o da tolerâ ncia. Nos ú ltimos
anos tem-se discutido se este princípio se deve também aplicar aos intolerantes, a
aqueles que querem chegar ao poder para mudar as regras democrá ticas que
permitiram a sua ascensã o ao poder. Para ilustrar isto invoca-se muitas vezes o FIS da
Argélia. As duas ameaças a este princípio sã o representados pelo fundamentalismo
religioso que se faz político e pelo nacionalismo étnico.
Em Moçambique, estas espécies de fundamentalismo felizmente nã o existem.
Todavia, eu disse no início deste livro, a filosofia deveria ensinar os homens a serem
amis prudentes, mais precavidos, a anteciparem eventuais perigos e ameaças. O INDE
tinha preparado a introduçã o experimental do sistema bilíngue no ensino primá rio
utilizando um campeã o de três zonas correspondentes a línguas diferentes. Uma língua
51
Citado por Ngoenha, idem: 33.
do sul, uma do centro e um do norte. Porque é que, no ú ltimo momento, o INDE teve que
mudar? Porque na segunda cidade do país surgiram conflitos dentro da Igreja Cató lica
entre os falantes de Sena e de Ndau.
Juntamente a este perigo latente, existem as associaçõ es dos amigos de Maputo,
Gaza, Manica, Sofala, Niassa, Zambézia, etc. que representavam um tribalismo apenas
velado e o perigo da politizaçã o das etnias ou se quisermos da etnicizaçã o da política. O
que, aliá s, começa a ganhar forma na nossa democracia onde, desde o início da segunda
Repú blica, a Frelimo parece ter assegurada a maioria no sul e a Renamo no centro.
A nossa constituiçã o, inspirando-se na histó ria das democracias representativas,
separa claramente os poderes executivo do legislativo e este do judicial. Que
mecanismos temos para garantir a separaçã o de poderes e gerir eventuais conflitos
entre eles?
Dois tipos de conflitos têm perturbado de maneira recorrente a vida das
democracias contemporâ neas: primeiro, o conflito entre o executivo e o legislativo, quer
quando a constituiçã o dá mais importâ ncia a um ou ao outro, quer quando os
representantes do executivo usam todos os subterfú gios para fugirem ao controlo dos
representantes do povo. O membro da Renamo ou do Pimo quando se pronunciam no
parlamento, fazem-no como representantes do povo. O executivo nã o deve ridicularizá -
los ou fugir à s questõ es, muitas vezes judiciosas e pertinentes que levantam.
Segundo, o conflito entre o executivo e o judiciá rio. Nomeados pelos primeiros, os
agentes do segundo, isto é, os magistrados, têm muita dificuldade em fazer compreender
aos responsá veis do executivo, que ninguém pode estar acima da lei. Este é um problema
que os pais da democracia representativa nã o resolveram. Trata-se de uma questã o que
tem minado a vida política, mesmo nas democracias mais experimentadas. É o caso de
Chirac na França e, ainda mais grave, de Berlusconi na Itá lia. Em Moçambique podemos
falar do paradigma Anibalizinho-Nyimpini.
Que o presidente Chissano tenha feito pressã o ao pé das autoridades judiciá rias
ou nã o tenha feito, os juízes nã o podem ser completamente livres de uma certa pressã o
psicoló gica no acto mesmo de instaurar um processo e de judiciar Nyimpini.
Mas a verdadeira questã o nã o é nem a atitude do presidente, nem Anibalizinho,
nem Nyimpini. A questã o é como fazer com que entre o poder executivo e o judicial nã o
haja interferência, numa democracia que quer estes poderes iguais, mas subordina a
nomeaçã o do judicial à decisã o do executivo? Que o presidente faça pressã o ou nã o, que
diga algo ou nã o, que o seu pessoal governativo intervenha ou nã o, o seu estatuto vai
necessariamente condicionar o desenrolar do processo. Este nã o é um problema só
moçambicano e, talvez ainda mais por isso, deve mobilizar as nossas inteligências com
vista a encontrarmos uma saída ...
A estes pontos tem que se acrescentar um que é a maneira particular como um
certo Ocidente se arroga sempre mais, e de maneira antidemocrá tica, prerrogativas de
legitimaçã o anti-coloniais emergentes democracias africanas, e mete sob tutela as
nossas economias e, em consequência, a nossa soberania.

A questã o da soberania
A constituiçã o de 1975 prescreve em vinte e cinco artigos os princípios gerais ou,
se quisermos, as proposiçõ es de base que orientam o conjunto de normas jurídicas e a
promulgaçã o das leis. Trata-se de ideias ou de proposiçõ es que inspiram e orientam
todos os enunciados e todos os actos do direito.
O Moçambique de 1975 aparece, assim, no artigo I como «um Estado soberano,
independente e democrá tico sob a direcçã o da Frelimo». O artigo II define a ideologia
moçambicana como Democracia Popular. O artigo III indica a Frelimo como a entidade
CAPITULO II

que «supervisa a acçã o dos ó rgã os estatais a fim de assegurar a conformidade da política
do Estado com os interesses do povo». O partido e o Estado identificam-se. O artigo IV
indica os objectivos fundamentais da Repú blica: «a eliminaçã o das estruturas de
opressã o e exploraçã o coloniais e tradicionais e da mentalidade que lhes está subjacente
a extensã o e reforço do poder popular democrá tico; a edificaçã o de uma economia
independente e a promoçã o do progresso cultural e social; a defesa e a consolidaçã o da
independência e da unidade nacional; o estabelecimento e desenvolvimento de relaçõ es
de amizades e cooperaçã o com outros povos e Estados; o prosseguimento da luta contra
o colonialismo e o imperialismo.»
Estes artigos mostram a vocaçã o libertá ria da constituiçã o e a filosofia prá tica
subjacente ao direito moçambicano na sua primeira constituiçã o.
A constituiçã o da II Repú blica nã o renuncia ao substracto filosó fico de base e aos
seus corolá rios de ló gica jurídica. Só que o exercício deste projecto libertá rio nã o se
exercerá , doravante, através de um sistema de competiçã o entre partidos autó nomos,
com obrigaçã o de respeitarem e defenderem a soberania nacional, entendida como
espaço geopolítico (do Rovuma ao Maputo), e a unidade nacional através da luta contra
o tribalismo.
Os pressupostos filosó ficos estipulados na Primeiras Repú blica e confirmados
pela segunda aparecem em contradiçã o com os seus corolá rios políticos. Para
compreender o que está por detrá s deste fenó meno, tem que se recorrer à histó ria das
lutas ideoló gicas que a subentendem.
Lutar contra o colonialismo, libertar Moçambique e ser soberano sã o conceitos
fundamentais e constituintes da naçã o moçambicana. A comunidade internacional só
pode ser positiva e a favor de Moçambique na medida em que respeite este substracto
filosó fico de base. Isto é, respeito pela soberania, configurada numa espaço geopolítico
bem determinado e pela unidade nacional.
Ora, o centro nevrá lgico da constituiçã o de 1975 era a liberdade/independência.
O centro da constituiçã o de 1900/1992/1994 é liberdade/democracia. Em 1975, a
liberdade era entendida como contraposiçã o ao colonialismo. Em 1992, à liberdade
como anti-colonialismo se junta a democracia. Teoricamente, trata-se de um avanço
considerá vel. Todavia, a opiniã o pú blica moçambicana parece acreditar que a nível da
opiniã o pú blica moçambicana parece acreditar que a nível da liberdade fundamental
(independência e soberania), Moçambique tenha pura e simplesmente regredido
(regresso de portugueses, economia sob tutela, ONG, cooperaçã o, doadores, etc.). Pode-
se progredir em democracia, recuando em soberania?
A II Repú blica nasceu dos escombros da antiga Uniã o Soviética e do fim da guerra
fria. Os valores que a ideologia vencedora apregoa sã o contrá rios ao espírito da Primeira
Repú blica defendidos pela Frelimo. Mas serã o compatíveis com o espírito que é, ou que
devia ser, da Renamo enquanto partido nacional: a defesa e a promoçã o da unidade e
integridade nacionais?
No debate que estrutura a filosofia política actual aparece claramente que a
política ultrapassa enormemente as suas ligaçõ es com a concepçã o global da histó ria, ao
mesmo tempo que se mostra incapaz de pensar a histó ria de uma maneira diferente. A
questã o de fundo é entã o saber se é admissível que o campo do possível aberto pela
política seja reduzido teoricamente ao modelo ocidental e praticamente à simples
modificaçã o e satisfaçã o da existência individual?
Se nada de novo e de ocidentalmente diferente pode ser inventado, e se a histó ria
e a ambiçã o negra e moçambicana da emancipaçã o, nos escapam, qual é a efectividade
da nossa política?
Muitos consideram que, em matéria de acçã o histó rica e política, tudo foi já feito.
A democracia como ela se apresenta hoje parece-lhe o ú ltimo regime possível, restando
só perpetuar, na melhor das maneiras, os interesses de cada homem e o
desenvolvimento de novos terrenos de materializaçã o, ou a observar a sua globalizaçã o
pó s-moderna.
No que diz respeito ao primeiro aspecto da questã o, convém fazer referência à
tese de filosofia política argumentada por Francis Fukuyama cuja carreira pú blica se
abre com um artigo publicado na revista National Interest intitulado «Fim da histó ria?»
(1989), seguido pouco tempo depois de um livro O fim da história e o último homem
(1991). Com a expressã o «fim da histó ria», tomada da filosofia de Hegel, entendia que o
prego final (fim aqui nã o é nem finalidade (zwek), nem objectivo (ziel), mas exactamente
o termo Ende) foi plantado no caixã o do marxismo-leninismo. Na medida em que nem as
religiõ es (islã o, em particular) nem os nacionalismos parecem em altura de constituir
desafios sérios, a vitó ria da modernidade liberal e democrá tica parece certa ad vitam
aeternam. A situaçã o actual de Moçambique, democratismo (que é diferente da
democracia), super liberalismo que se traduz em privatizaçõ es sumá rias, tutela
governativa, sã o a prova da nossa entrada no fim da histó ria, no ponto final da evoluçã o
ideoló gica da humanidade.
É neste contexto que tem que ser vista a segunda Repú blica moçambicana. Mas
resta uma questã o de fundo: qual é a relaçã o que existe entre o objectivo de fundo que
persegue o negro, o moçambicano, isto é, a liberdade de dispor de si mesmo e esta forma
de hegelenismo político-social? Qual é a relaçã o que existe entre este sistema mundial
dominante e a possibilidade real de ser soberanos, sem termos que obrigar os
moçambicanos a terem que pegar em armas para uma segunda colonizaçã o, como
escreve Heliodoro Baptista no artigo do Savana (nº 167, Março 1997)?
Duas aporias parecem remar contra a nossa liberdade e libertaçã o: uma está
intrinsecamente ligada à mesma ideia de soberania e outra à nossa incapacidade como
povo de assumi-la com tudo o que ela comporta em termos de responsabilidade.
A soberania é um conceito jurídico e político em volta do qual gravitam todos os
problemas e as aporias da teoria jus-positivista do direito e do Estado. Falar da
sabedoria e das suas vicissitudes histó ricas e teó ricas significa falar da particular
formaçã o político-jurídica que é o Estado nacional moderno, nascido na Europa há um
pouco mais de quatro séculos e hoje em crise. As aporias da soberania estã o ligadas a
diferentes perspectivas entre elas (jus-naturalistas, jus-positivistas, contratualistas e
idealistas) que as alimentaram durante quatro séculos.
A primeira aporia baseia-se no significado filosó fico da ideia de soberania. Como
categoria filosó fico-jurídica, a soberania é uma construçã o de matriz jus-naturalista que
serviu de base para a concepçã o jus-positivista do Estado e o paradigma do direito
internacional moderno. Ao mesmo tempo, ela foi sempre uma metá fora antropomó rfica
de cará cter absolutista, mesmo na mudança da imagem do Estado à qual foi
alternativamente associada.
A segunda aporia baseia-se na histó ria, teó rica e sobretudo prá tica, da ideia de
soberania como potestade absoluta. Esta histó ria corresponde a dois eventos paralelos e
divergentes: a soberania interna, que é a histó ria da sua progressiva limitaçã o e
dissoluçã o, paralelamente à formaçã o dos estados constitucionais e democrá ticos de
direito; e a soberania externa, que é a histó ria da sua progressiva absolutizaçã o.
A terceira aporia, enfim, baseia-se na consistência que é a legitimidade
conceptual da ideia de soberania sob o ponto de vista da teoria do direito. Existe uma
antinomia irredutível entre soberania e direito: uma antinomia nã o só no plano interno
dos ordenamentos avançados, onde a soberania está em contraste com o Estado de
direito e da sujeiçã o à lei de qualquer poder, onde ela é considerada nas cartas
constitucionais internacionais e, de maneira particular, na Carta da ONU de 1945 e na
Declaraçã o do Direitos do Homem de 1948.
CAPITULO II

Os historiadores do direito internacional remetem a sua primeira formulaçã o aos


teó logos espanhó is do século XVI e, antes de mais, em Francisco de Vitoria (1964).
Tratava-se de dar um fundamento jurídico à conquista espanhola da assim chamada
descoberta. Francisco de Vitoria contesta todos os títulos de legitimaçã o avançados
pelos espanhó is para sustentarem a conquista (o facto de os índios terem sido
descobertos, a soberania universal do Império e da Igreja, o facto de os índios serem
infiéis e pecadores, a sua submissã o voluntá ria, etc.), e reelabora uma nova doutrina, que
será o fundamento do direito internacional moderno e da concepçã o moderna do Estado
como sujeito soberano. As ideias de base dessa construçã o essencialmente duas:
a) A configuraçã o da ordem mundial como sociedade natural do Estado soberano.
Estados soberanos, com igual liberdade e independência, sujeitos externamente aos
mesmos direitos das gentes e internamente à s leis constitucionais de que eles mesmos
se dotaram. Trata-se de uma ideia revolucioná ria que será retomada por Francisco
Suarez e, mais tarde, por Alberico Gentile e Ugo Grotius que teorizaram a submissã o do
inteiro género humano a ius gentium. Em Vitó ria, esta ideia é acompanhada por uma
concepçã o jurídica de poderes pú blicos que antecipa a futura doutrina do Estado, do
direito internacional, e enuncia o fundamento democrá tico da autoridade do soberano,
antecipando, assim, o princípio moderno da soberania popular.
b) Em segundo lugar, o direito das gentes entrelaça os Estados nas suas relaçõ es
externas, nã o só com a força dos pró prios pactos, mas também com a força da lei. E,
enfim, Vitó ria acaba concebendo a humanidade como sujeito de direito, o que constitui a
maior concepçã o deste pensador espanhol.
Mas é justamente sobre esta communitas orbis como sociedade natural de
estados livres e independentes que Vitó ria funda a segunda ideia base da sua
construçã o, antinó mica à primeira: a ideia de uma soberania estatal externa, identificada
com um conjunto de direitos naturais dos povos, que servem para dar uma nova
legitimaçã o à conquista e, por outro lado, para oferecer um substracto eurocêntrico ao
direito internacional, a sua valência colonialista e até a sua vocaçã o belicista. Existiria,
segundo Vitó ria, uma comunhã o natural entre os povos, que daria a cada um o direito de
entrar em relaçã o com os outros. A partir daqui faz derivar uma série de outros direitos
cuja aparente universalidade é desmentida pelo seu cará cter assimétrico: o direito de
trâ nsito, a liberdade dos mares, o direito do comércio, o direito de ocupaçã o sobre as
terras e coisas que os índios nã o recolhem, a começar pelo ouro e pelo argento, o direito
a emigrar e a estabelecer-se no novo mundo e adquirir a cidadania (é ó bvio que, nesta
falsa configuraçã o universal do direito, só os espanhó is sã o parte activa, enquanto os
índios sã o vítimas). A isto se juntam quatro prerrogativas que relevam do direito divino:
1) Direito à pregaçã o do Evangelho;
2) Direito-dever de correcçao fraterna;
3) Direito-dever de proteger os convertidos;
4) Direito dos espanhó is, caso os índios nã o se persuadissem destas boas
razõ es, a defender os seus direitos e a sua segurança mesmo com a guerra.
Vitó ria acaba quase, como corolá rio, legitimando a guerra justa (e através dela a
conquista) redefinida como reparaçã o das injú rias e, portanto, como instrumento de
actuaçã o do direito. O resultado é uma configuraçã o jurídica da guerra como sançã o para
assegurar a efectividade do direito nacional, que durará até ao nosso século (até Kelsen).
A ideia de soberania vai ser aperfeiçoada com as doutrinas de Grotius, Hobbes e
Locke, que defendem a ideia de uma sociedade de estados igualmente soberanos, mas
sujeitos ao «Direito». A teoria internacionalista moderna baseia-se, exactamente, na
afirmaçã o de uma série de direitos naturais que seriam prerrogativas intrínsecas dos
Estados soberanos e da teoria da guerra justa como puniçã o. A ideia abstracta de
igualdade entre os Estados como sujeitos soberanos é concretamente desmentida pela
desigualdade entre os Estados e pelo papel dominante das grandes potências. Assim, o
direito natural dos Estados, mesmo se teoricamente iguais, revelam-se, no fim de contas,
concretamente assimétricos e desiguais, ao ponto de converter-se em colonizaçã o,
conquista, neocolonizaçã o ou governo sob tutela.
Estas aporias e ambivalências estã o na base da falência histó rica das ideias de
Vitó ria, mas, ao mesmo tempo, elas explicam a sua persistência no tempo, pelo menos
até ao nascimento da ONU, como centro da cultura jurídica mundial e dos assentos da
comunidade internacional. O desígnio de Vitó ria de uma sociedade de Estados sujeitos
ao direito das gentes entra em crise por causa da antinomia, que se revelou insolú vel,
entre as formas absolutas assumidas historicamente pelas soberanias e a ideia da sua
subordinaçã o ao direito. Todavia, o paradigma vitoriano, exactamente pela força da sua
ambivalência, continuou a informar até aos nossos dias a ciência internacionalista e a
alimentar as imagens opostas mas conviventes. De um lado com a utopia jurídica e a
doutrina normativa de convivência mundial gaseada no direito; por outro, com a
doutrina, primeiro cristocêntrica e depois laicamente eurocêntrica, a legitimar a
colonizaçã o e a exploraçã o do resto do mundo por parte dos países europeus, em nome
de valores, sempre diferentes, mas sempre proclamados universais: missã o de
evangelizaçã o, de colonizaçã o e a hodierna mundializaçã o dos valores ocidentais.
A oposiçã o entre o estado civil e o estado de natureza dá lugar, a partir da
revoluçã o francesa, a duas histó rias paralelas e opostas de soberania: progressiva
limitaçã o interna e progressiva absolutizaçã o externa, a que Luigi Ferrajoli (1997)
chamou a comunidade selvagem dos estados soberanos. A soberania interna e a
soberania externa seguem dois percursos inversos: um limita-se tanto quanto o outro se
alarga, em correspondência a duas faces do estado, fautor de paz no interior e de guerra
no exterior. A partir da metade do século XIX, em plena expansã o democrá tica a nível
interno, a soberania externa atinge as formas desenfreadas e ilimitadas de conquistas
coloniais. Porquanto possa parecer paradoxal, estes dois processos sã o simultâ neos e
conexos um com o outro. Estado de direito no interno e estado absoluto, selvagem,
depredador no externo, crescem juntos como duas caras de uma mesma medalha.
Quanto mais se limita a soberania interna e através mesmo desses limites, mais se
absolutiza e se legitima a soberania externa, o que torna inconcebível o direito
internacional como direito ao de lá dos Estados.
O que é extraordiná rio é que depois de se ter secularizado no século XVIII, com
a filosofia contratualista e iluminista, o paradigma da legitimaçã o volta a sacralizar-se no
século XIX, mesmo se de uma maneira laica, com a filosofia idealista alemã : o Estado que
Hobbes tinha chamado metaforicamente «o Deus mortal» torna-se em Hegel «o Deus
real». Os corolá rios disto sã o a negaçã o do direito internacional, identificado por Hegel
como «o direito estadual externo», isto é, o conjunto de normas que regram as relaçõ es
entre os Estados. A segunda consequência é o espírito de potência e a vocaçã o
expansionista e destrutiva que anima um tal paradigma de soberania Estatal. Os
corolá rios terríveis sã o: desprezo pelos países naturais ou bá rbaros –como somos nó s –
que ainda nã o chegaram à maturidade do Estado e destinados a desaparecer no contato
com os povos europeus.
Primeiro com a colonizaçã o, depois com a exportaçã o do modelo através da
criaçã o de Estados e naçõ es independentes, o princípio da soberania estatal ilimitada
expande-se ao nível mundial, submetendo e homologando povos e culturas.
A Carta da ONU, aprovada em Sã o Francisco em 1945, e a Declaraçã o dos
Direitos do Homem, aprovada pela Assembleia da ONU em 1948, transformam, pelo
menos sob o ponto de vista normativo, a ordem jurídica do mundo. A soberania externa
do Estado cessa de ser absoluta e selvagem e subordina-se juridicamente a duas normas
fundamentais: o imperativo da paz e a tutela dos direitos do homem. Todavia, a pará bola
CAPITULO II

da soberania nã o está ainda no seu descambar. A pró pria ONU, apesar da sua inspiraçã o
universalista, continua, nã o só sob o plano factual, mas também sob o plano jurídico, a
ser condicionada pelo princípio da soberania dos Estados. Propõ em-se de novo, assim,
as contradiçõ es originá rias já presentes na doutrina de Vitó ria entre comunitas orbis e a
soberania igual dos Estados.
O domínio da paz fica ainda confinado ao domínio soberano das grandes
potências (acordos de paz em Moçambique) e, depois da queda do muro de Berlim, aos
vencedores filosoficamente profetizados por Hegel e celebrados por Fukuyama. Com
efeito, apesar dos proclames igualitá rios da ONU, nó s vivemos vitoriamente numa
desigualdade de facto, fruto inevitá vel da prevalência da lei do mais forte e, portanto, da
existência de uma soberania ilimitada, desmembrada, dependente, assistida e tutelada.
Eis porque é ridículo e contraditó rio ter uma constituiçã o cujo pressuposto
filosó fico –soberania –tem que ser garantido por uma comunidade internacional,
democrata certo no interior dos países de origem, mas selvagem nos seus princípios
políticos, jurídicos e nas suas prá ticas econó micas.
Falar de soberania moçambicana é hoje um autêntico abuso de linguagem. De
facto, toda a estrutura constitucional moçambicana, desde os seus fundamentos
filosó ficos, jurídicos para terminar na prá tica política, encontram-se esvaziados de
conteú do. Eis porque a política moçambicana, apesar da aparente democracia, tornou-se
numa coisa ligeira, leviana onde cada um procura os seus fins individuais: o
«cabritismo» que é, de facto, o «laissez-faire, laissez-passer» moçambicano.
Todavia, esta situaçã o é possível ou pelo menos é facilitada por um outro facto:
«a nossa incapacidade de assumir o que a liberdade comporta como responsabilidade».
O camaronês Mveng fala da pauperizaçã o antropoló gica do negro.
Eis porque o maior comunista de ontem pode tornar-se no maior apó stolo do
liberalismo selvagem; o revolucioná rio de ontem no reaccioná rio de hoje, os
libertadores de ontem no instrumento de colonizaçã o de hoje.
A Frelimo viu-se obrigada, por razõ es militares e pela pressã o exterior, a
instaurar um sistema democrá tico, sem estar realmente convencida de dever
compartilhar o poder, cuja legitimidade hauria da luta armada contra a colonizaçã o
portuguesa. Hoje a Frelimo vê-se obrigada a harmonizar as exigências de duas
autoridades: a Renamo e a Comunidade Internacional. Ora, se a força da Renamo no
contexto nacional é muito fraca, o mesmo nã o se pode dizer da Comunidade
Internacional, que impõ e literalmente de uma maneira abusiva e anti-soberana a
política, a economia e o tipo de governaçã o.
No contexto econó mico dominante, o governo precisa do dinheiro dos doadores
e da comunidade internacional para melhorar a vida dos moçambicanos, o que, aliá s, é a
sua funçã o política como partido no poder, mas está consciente de divergência de
interesses entre os moçambicanos e de certa Comunidade Internacional (cf. entrevista
com Mariano Matsinha, Savana 25-04-1997).
A Renamo é vista como instrumento da Comunidade Internacional, cujos
objectivos sã o o enfraquecimento do Estado, a divisã o do país. Contudo, a Comunidade
Internacional, apesar da sua força, só pode governar de maneira indirecta, pois
dificilmente pode pegar em armas e ocupar militarmente Moçambique, ou mesmo
nomear governadores e administradores em Moçambique. A Frelimo submete-se aos
dictats da Comunidade Internacional fazendo tudo o que esta exige, a fim de obter
dinheiro e financiamentos, ao mesmo tempo que a nível político, tenta isolar a Renamo
(«a Carta aberta aos moçambicanos» de Afonso M. M. Dhlakama, Savana, 04-04-1997) e
outros partidos da oposiçã o. Todavia, apesar das aparências, o verdadeiro adversá rio da
Frelimo, nã o é a Renamo, como ontem nã o era a Renamo –Samora Machel quis discutir
directamente com os sul-africanos e nã o com a Renamo. Hoje a tá ctica é a seguinte: fazer
a vontade dos doadores a fim de ter investimentos, mas isolar politicamente a Renamo e
os outros partidos da oposiçã o.
À s estratégias de apropriaçã o do poder e do seu abuso por parte de uma certa
Comunidade Internacional, a Frelimo responde com uma dupla tá ctica: docilidade e
submissã o aparente face à comunidade internacional, e isolamento das oposiçõ es
políticas nacionais.
Como se trata de uma estratégia de luta contra o (neo)colonialismo, nã o é
surpreendente ver reemergir dirigentes histó ricos da Frelimo que se tinham
evidenciado, sobretudo, pelo seu nacionalismo e na luta contra o colonialismo. Este
processo faz-se em detrimento de uma democracia real que, portanto, se tinha
começado a engodar. Isto faz-se, por outro lado, em detrimento de um debate
democrá tico cultural, que tenderia a deslocar realmente o centro de gravitaçã o do poder
em direcçã o à s pessoas reais, aos grupos e à s culturas. As consequências sã o:
- o isolamento dos partidos da oposiçã o, a diminuiçã o da possibilidade da
democracia;
- o centralismo político, que impede a possibilidade de uma cultura política
moçambicana. Isto é, a criaçã o de um substracto político nacional a partir dos valores do
homem de Moçambique;
- o reforço das tendências autoritá rias e centralizadoras do partido no poder,
que se vê obrigado a recorrer a armas nacionalistas para defender o país.
A responsabilidade da Comunidade Internacional no que se passa em
Moçambique é enorme. Existem diferentes comunidades internacionais, aquelas
pretensamente neocoloniais e tuteladoras, e outras cujos objectivos sã o de ajudar a
construir uma comunidade política soberana, democrá tica, solidaria e fundada sobre
valores moçambicanos. Penso que seria tempo de uma aná lise crítica das atitudes da
Comunidade Internacional e da sua responsabilidade no clima que existe no
Moçambique de hoje. Existe hoje um risco de confusã o entre democracia e o
neocolonialismo; risco de ver na democracia e no liberalismo, simples avatares do
neocolonialismo.
O maior erro, que poderiam cometer as «velhas democracias», seria
apresentarem-se como modelos, como os que sabem como as coisas devem ser feitas,
como os problemas devem ser resolvidos, o que elas nã o sã o e nem podem ser; e impor,
mesmo em termos econó micos, o modelo e o estilo de sociedade que elas consideram
boa para Moçambique. Neste sentido, é extremamente lamentá vel a atitude de certas
organizaçõ es. Exigir que o Estado, o Governo, adopte e implemente prá ticas políticas e
econó micas decidas por investigadores e por centros de poder ocidentais, como
condiçã o da ajuda econó mica, é uma política que se baseia no desprezo pelos
governantes nacionais. O perigo evidente, neste caso, é desacreditar gravemente o
Governo aos olhos do povo, mas sobretudo desacreditar a pró pria democracia aos olhos
do povo e dos seus líderes.
A Comunidade Internacional, pelo menos a nã o colonialista, deve rever a sua
posiçã o, deve compreender que ela nã o pode ser colonizadora, neocolonializadora,
tuteladoras, sem ser contra Moçambique e contra os moçambicanos.
CAPITULO III

Aos vencidos não se pede opinião

Historicamente, a direita identificou-se com a crença da primazia absoluta das


liberdades individuais. Primazia essa que permite a certos indivíduos possuírem aquilo
que Marx chamou de meios de produçã o. A esquerda identificou-se com a redistribuiçã o
o mais equitativa possível dos dividendos econó micos. Entre 1945 até 1989, esta divisã o
materializou-se na contraposiçã o entre os blocos do Ocidente e do Este. O primeiro
compreendia países que era, ao mesmo tempo, capitalistas e colonialistas. Os segundos
eram marxistas, mas também teoricamente anti-colonialistas; em consequência,
apoiantes dos movimentos mundiais da luta pela autodeterminaçã o.
Nesta ó ptica, o alinhamento da Frelimo no bloco da esquerda era ló gico. Assim,
a Frelimo da luta armada e a Frelimo da primeira Repú blica foram um movimento e,
depois, um partido obviamente da esquerda. Mas a Frelimo da segunda Repú blica, que
adere ao FMI e ao BM, a Frelimo acumuladora, a Frelimo dos proprietá rios ou co-
proprietá rios das casas, fá bricas, terras, chapas, bancos, restaurantes deixou de ser um
partido da esquerda e passou a ser claramente um partido da direita.
A Renamo criou o essencial da sua histó ria como movimento e depois como
partido político anti-marxista.
Com a Frelimo e a Renamo à direita, de que é feito o debate político
moçambicano? Em termos de filosofia política, o que é que diferencia a Frelimo da
Renamo? Quem é o defensor da igualdade social? O debate político é vazio de todo e
qualquer conteú do em termos de ideias e transformou-se numa corrida desenfreada em
direcçã o à ocupaçã o de lugares de poder, dado que o poder dá acesso a bens materiais.
O liberalismo clá ssico nasce mesmo de posiçõ es éticas. É preciso recordar que
Adam Smith pertencia à escola moralista escocesa, cuja preocupaçã o era a procura da
maior felicidade para o maior nú mero de indivíduos. As respostas que o moralista
escocês nã o encontra nas posiçõ es tradicionais da filosofia e da teologia, que tentavam
combater ou pelo menos atenuar o egoísmo do homem. Adam Smith parece encontrar
na emergente economia política.
Através desta nova ciência, Adam Smith prospectava um saber moral que se
baseia nã o no atrofiamento do egoísmo –a longa histó ria da filosofia e da teologia
provam a sua impraticabilidade –mas na sua utilizaçã o para fins morais. «A maior
felicidade do maior nú mero de indivíduos», a que os gregos chamavam eudemonia.
Se o liberalismo, quer na sua dimensã o econó mica –Adam Smith ao qual se
pode ajuntar os nomes dos anti-utilitaristas G. de Staël (1766-1817), B. Constant (1767-
1830) e Alexis de Tocqueville (1805-1859) –, quer na sua dimensã o filosó fica (J.Locke)
tem uma grande dimensã o moral, como se explica a situaçã o do economicismo selvagem
que pulula entre nó s, em nome do liberalismo?
O que se passa tem que ser visto no prisma do que Fukuyama chamou o «fim da
histó ria», que é o fim das alternativas ao capitalismo. Este sistema significou, no mundo
inteiro, a destruiçã o dos sistemas socialistas, mas também o recuo nos pró prios
ocidentais de toda a dimensã o de conquistas sociais dos trabalhadores. Mas ainda mais
fundamentalmente, a elevaçã o do mercado no mundo inteiro à dimensã o de regulador
das relaçõ es sociais.
O resultado principal da chamada guerra civil de Moçambique foi o fim de um
ideal distributivo que estava intrinsecamente ligado a um projecto de emancipaçã o do
homem moçambicano, a favor da dó lar-cratizaçã o das relaçõ es humanas e sociais.
Com o fim da guerra nã o acabou a violência. Transferiu-se a violência das armas
para uma violência caracterizada pela luta para a obtençã o de riquezas. Isto engendrou
CAPITULO III

uma nova forma de violência mais velada, mas nã o menos feroz. As antigas alianças e
relaçõ es sociais baseadas nos valores socialistas foram muito rapidamente postas em
causa e, no seu lugar, nasceram novas alianças baseadas no interesse. Valores como a
luta contra o racismo, o tribalismo, o regionalismo desapareceram e cederam espaço a
novas alianças baseadas nos interesses que, sem escrú pulos, nã o hesitam em
instrumentalizar as pertenças étnicas, regionais e raciais.
Violência nã o é só a morte de Cardoso ou o massacre de Montepuez; é também
a mã e que vê o seu filho morrer por falta de pã o; é o homem de Gaza ou Inhambane,
Zambézia ou Nampula que passa dias sem comer e na televisã o vê festins, recepçõ es de
empresá rios ou workshops de universitá rios ou políticos. Violência é quando se vêem
pessoas a sofrerem no hospital e a nã o serem atendidas porque nã o têm dinheiro para
entrar na clínica especial. Violência é quando os camponeses produzem muito e os
produtos apodrecem porque nã o há escoamento de produtos agrícolas. Violência é
quando as terras dos camponeses sã o anexadas por estrangeiros para turismo em
detrimento dos valores e lugares simbó licos dos grupos e das populaçõ es. Violência é
quando os pais vêem as filhas utilizadas por indivíduos que transformam as moças em
mercadoria que se vende e se compra. Violência é quando os pais nã o têm meios para
mandarem os seus filhos à escola; é quando os moços, depois da formaçã o, nã o têm
acesso ao mercado de trabalho; é quando toda uma sociedade perde sentido de
dignidade e torna-se lugar de realizaçã o de misericó rdia e caridade de todos os países e
ONG’s do mundo.
Esta situaçã o de violência é até contrá ria aos valores teó ricos do pró prio
liberalismo. Entã o, a situaçã o que vivemos nã o é explicá vel a partir da doutrina liberal,
mas a partir do lugar que (ele) ocupa na combinaçã o entre o fukuyamiano «fim da
histó ria» e o nosso lugar extremamente periférico no sistema internacional de
globalizaçã o.
Apesar das tentativas de alargar a globalizaçã o a uma dimensã o cultural por
parte de filó sofos como o francês Gerard Leclerc52, os canadianos Paul Dumouchel53 e
Pierre Levy54 ou o italiano Maramao55, a globalizaçã o é, antes de mais, um fenó meno de
ocidentalizaçã o do mundo, como defende Serge Latouche56. Mas esta ocidentalizaçã o do
mundo visa essencialmente as economias, guiadas pelo mercado que, por sua vez,
subordinam as tecnologias, sobretudo as tecnologias de informaçã o.
Por isso, nã o é surpreendente que, apesar de sermos um país periférico,
tenhamos em muito pouco tempo entrado no sistema informá tico: e-mails ciber-cafés,
celulares. Nã o é surpreendente que na Mafalala nã o se bombeiem as á guas estagnadas
que contaminam as pessoas com malá ria e có lera, nã o se limpem as ruas, mas se criem
síticos com internet; que a preocupaçã o das universidades seja estabelecer um ensino à
distâ ncia, nã o obstante os custos, a falta de electricidade e a fala de uma tradiçã o de
leitura. Nã o é surpreendente que sejamos literalmente invadidos por canais de rá dio e
televisã o, RTP Á frica, canais brasileiros, CNN, a Rá dio França Internacional, a BBC, a Voz
da Alemanha, etc.
De facto, nunca o mundo produziu tanta riqueza, mas ao mesmo tempo,
segundo o soció logo alemã o Ulrich Beck, nunca se produziu tanto risco, que chega até
aquilo que no Retorno do Bom Selvagem eu chamei de natureza morta57. Ora, o que se

52
Leclerc, 2000.
53
Mondialisation: perspectives philosophiques. Sous la dir. De Pierre-Yves Bonin. Québec: La Presse de L
´Université laval&Paris: L’Hartmattan, 2001. (não informatizada na bibliografia automática )
54
Levy, 2000.
55
Passaggio a Occidente. Filosofia e globalizzacione, 2003.
56
Latouche, 1989.
57
O Retorno do Bom Selvagem, 1994.
CAPITULO III

globaliza nã o sã o as riquezas, mas os riscos. Sã o a Mozal, indú stria extremamente


poluente que funciona a trinta quiló metros de Maputo, é a vinda de pessoas que nã o têm
lugar nas pró prias sociedades. O que se globaliza nã o sã o as benesses, mas os riscos.
Desde o início da transiçã o das liberdades como independências à s liberdades
como desenvolvimento econó mico e social, começado em 1957 com a independência do
Gana e acelerado durante a década de sessenta, que nos encontramos (nó s africanos)
diante da nossa maior aporia histó rica –desde o fim da escravatura em 1865. Essa aporia
identificada em primeiro lugar por J. Nyerere58 na conferência de Arusha de 1965 e
generalizada depois da queda do muro de Berlim e da aceleraçã o dos intervencionismos
econó micos e políticos do Banco Mundial nos nossos países. Nyerere dizia claramente
que o grande problema com que está vamos entã o confrontados nã o era a escolha de
uma á rea ideoló gica entre esquerda e direita. Quer alinhá ssemos pela direita, quer
alinhá ssemos pela esquerda está vamos condenados a cair na dependência e a ser
neocolonizados pelos países capitalistas ou socialistas.
Nyerere antecipa-se em vinte anos aos soció logos do pó s-guerra fria,
diagnosticando que o â mago do problema para a Á frica nã o residia na adesã o a um dos
blocos que se opuseram desde o início da política bipolar em 1917 até o «fim da
histó ria», mas nas relaçõ es aporéticas entre ricos e pobres, o Sul e o Norte. O Sul precisa
dos investimentos do Norte para se desenvolver, mas na realidade a ajuda do Norte
independentemente das suas modalidades, longo de ajudar o desenvolvimento do sul,
remete-nos para uma dependência neocolonial, muitas vezes mais perversa que o
pró prio colonialismo.
Há nisto tudo algo de filosoficamente estranho. O Ocidente moderno deve a sua
modernidade ao facto de se ter emancipado de Deus e de todas as garantias meta-sociais
que se realizaram no domínio da ciência desde Francis Bacon; no domínio da política,
com a proclamaçã o do Estado moderno e do Estado laico, depois da revoluçã o francesa.
Esta emancipaçã o trouxe como consequência o fim da filosofia da histó ria. Doravante, o
homem nã o tem nenhum modelo, nã o visa nenhum milenarismo. Mas, ao mesmo tempo,
o homem ocidental se autoproclama, paradoxalmente, modelo para o resto do mundo.
Assim, o Sul e a Á frica têm um modelo, uma filosofia teoló gica da histó ria, uma garantia
meta-social e mesmo meta-histó rica. Em suma, a histó ria ocidental proclama-se quase
essencialmente diferente das histó rias-antropoló gicas dos povos caracterizados pela
permanência, pela imutabilidade.
Contudo, depois do seu brilhante diagnó stico, a terapia social que Nyerere
prospecta é o socialismo Ujaama. Socialismo africano pré-marxista, intrinsecamente
ligado à terra, ao campo, à agricultura capaz de nos levar nã o ao desenvolvimento ligado
ao modelo ocidental, mas uma sobrevivência colectiva. Mas as biotecnologias, os OGM, a
manipulaçã o genética dos animais e das plantas, a emergente indú stria alimentar fazem
com que a pró pria sobrevivência dependa hoje do factor tecnoló gico ...
Para fugir a este neocolonialismo, o economicista Samir Amim propô s o que ele
chamou de «desconexã o». Nã o significava um muro napoleó nico com pirâ mides egípcias
entre a Á frica e o resto do mundo, mas uma economia autocentrada, tendente a sair de
um sistema econó mico colonial ao qual toda a Á frica foi submetida desde o início da
colonizaçã o e que as independências políticas nã o nos permitiram sair. Tratava-se de
pensar a nossa produçã o econó mica nã o prioritariamente em termos de exploraçã o,
extroversã o ligada à s necessidades de consumo dos países do Norte, mas de trocas entre
nó s, antes de pensarmos no texto do mundo, o que, aliá s, ia no sentido da teoria da
unidade e federalismo N. Nkrumah59.

58
Nyerere, 1977.
59
Nkrumah, 1979.
CAPITULO III

Hoje nã o é possível, nem nos fecharmos em nó s como rezava a teoria de


Nyerere, sem nos desconectarmos da chamada sociedade global. Mas ao mesmo tempo,
nã o podemos ignorar os factores culturais, nã o omití-los nos nossos diferentes projectos
de desenvolvimento.
A questã o que se nos apresenta é tentarmos ver como podemos inverter a
nossa situaçã o de importadores de riscos em importadores de benesses? Mas, por detrá s
desta questã o imediata, a verdadeira questã o filosó fica nã o é saber como podemos
modificar a nossa situaçã o no xadrez econó mico mundial, mas como mudar as regras do
jogo, para enveredar por uma economia que nã o comporte intrinsecamente a produçã o
de minorias ricas em detrimento de uma maioria pobre.
O Ocidente nã o produz só riquezas e benesses, mas também produz a
argumentaçã o científica sobre o risco. Assim, a importâ ncia do saber, dos saberes, da
argumentaçã o científica, nesta luta de David contra Golias é fundamental. O papel do
ensino, das universidades é fundamental. Nã o se trata de um saber que é có pia,
repetiçã o, com pressupostos externos e extrínsecos à s necessidades das pessoas. Trata-
se de uma universidade que esteja engajada com o pró prio povo.
No Ocidente existe um controlo social das universidades por parte da
sociedade. No nosso seio tem que haver um contrato social claro entre os intelectuais,
cuja vocaçã o é estar ao serviço do maior nú mero, com as preocupaçõ es reais das
pessoas. O intelectual tem que ser um hermeneuta que interpreta nã o a Á frica para o
Ocidente mas o Ocidente para a Á frica; que nã o dê espaços de intervençã o para que o
Ocidente nos possa inundar com os seus riscos, mas para que nó s possamos importar
benesses de que necessitamos. Mas isto depende de um projecto de sociedade, de um
projecto político, e este tem a ver com o Estado.
Ora, o Estado moçambicano é um artefacto em crise. Mas a crise do Estado é
geral a todos os Estados do mundo. O Estado já nã o é o símbolo do avanço do espírito em
direcçã o à liberdade, como tinha teorizado Hegel. Hoje vivemos o fim da histó ria, que
nã o é simplesmente o fim de uma alternativa ao liberalismo triunfante, mas é também a
crise do contrato social nas sociedades e nos países onde o Estado era pré-nacional e
emancipador. Vivemos a crise das liberdades e o perigo de um colonialismo de retorno.
A crise ou o fim do Estado nã o pode ser confundido com o fim da histó ria em
termos soterioló gicos, dado que toda a organizaçã o social é histó rico-temporal: como
nasceu, um dia vai chegar ao seu fim. O fim de uma instituiçã o como o Estado significa a
sua substituiçã o por outras formas de organizaçã o social mais aptas a responder os
desafios do tempo presente. Neste sentido, se a instituiçã o Estado nã o é a mais apta para
regulamentar a vida social, é mesmo necessá rio que ele seja substituído por outras
instituiçõ es, mais aptas a responder aos desafios temporais. Todavia, a regulamentaçã o
da vida social é uma prioridade absoluta para qualquer sociedade. A regulamentaçã o
tem a ver com o direito enquanto pressupõ e a existência de leis susceptíveis de
mobilizar homens e mulheres de raças, culturas, regiõ es, etnias diferentes numa
dinâ mica comum, que nã o dependa de nenhum elemento de separaçã o, mas da força
unificadora da lei.
Ela tem a ver com o econó mico na medida em que os indivíduos, sob a mesma
tutela da lei (o que quer dizer que decidiram viver juntos, que têm valores comuns),
devem-se sentir co-responsá veis uns pelos outros, devem ser solidá rios. Assim, mesmo
se existem e se reconhecem diferenças de capacidade, de inteligência, de possibilidades,
os co-cidadã os devem, nã o obstante tudo, sentir-se ligados por um elo que os leve a ser
solidá rios. Neste sentido, a justiça nã o pode significar simplesmente dar a cada um o que
lhe é supostamente devido ou mesmo as mesmas possibilidades de participaçã o. A
justiça significa co-responsabilizaçã o colectiva.
CAPITULO III

O que permite a um empresá rio avançar nos negó cios é a sua pertença a
Moçambique. Por isso, ele pode e deve exigir mais possibilidades, maiores e melhores
oportunidades que qualquer estrangeiro, ele pode e deve exigir que a lei o tutele na
concorrência com os estrangeiros, ele deve exigir que o Estado facilite a expansã o e o
aumento das suas actividades industriais. Todavia, se o Estado o fizer, como deve fazê-lo,
fá -lo em nome de um pacto da moçambicanidade que faz com que homens e mulheres de
raças, línguas, religiõ es, regiõ es diferentes estejam ligados num pacto de recíproca co-
responsabilizaçã o. Assim, ele tem deveres para com os seus concidadã os, através do
Estado, enquanto instrumento de regulamentaçã o da vida social.
Neste sentido, pagar impostos, seguir a legalidade, respeitar os trabalhadores
nos seus direitos –tempo de trabalho, salá rio que permita viver dignamente, respeito
pela pessoa que está ao nosso serviço –é um acto de cidadania.
Nas cidades, muitos moçambicanos têm empregados domésticos, instituiçã o
colonial, que muitas lá zaros subidos à cadeira do senhor herdaram sem
condescendência e muitas vezes com tirania. Isto significa que muitos de nó s somos
patrõ es ou temos pessoas ao nosso serviço. A mesma questã o que se põ e aos
proprietá rios de empresas, põ e-se aos que têm domésticos ao seu serviço: onde e como
vivem? Quanto ganham? Qual é a situaçã o da educaçã o deles e dos filhos? Qual é a
situaçã o da saú de? Quantos empregados domésticos ganham por mês o que nó s
gastamos num jantar no restaurante? Aquela justiça que reclamamos dos nossos patrõ es
nas empresas, ou como país dos países do Norte, nó s a aplicamos quando somos
revestidos de poder?
O tema de justiça é tã o velho quanto a filosofia ela mesma. Se o direito e a moral
se aplicam desde sempre para desvendar o seu mistério, é porque a justiça, como bem
viu Kant, está intrinsecamente ligada à questã o de paz, questã o central da segunda
Repú blica moçambicana.
Começamos este trabalho dizendo que, para os cientistas sociais, o povo
moçambicano foi votar nas primeiras eleiçõ es para sancionar o fim da guerra, isto é,
para a instauraçã o da paz. Entã o dizer que os actores políticos devem ser julgados pelo
mandato claro que tiveram dos eleitores, significa que eles devem ser julgados pela sua
capacidade de buscar a justiça. Assim postas as coisas, é difícil pensar que os eleitos
cumpriram com o mandato que lhes foi confiado pelos eleitores, pelo menos aos olhos
dos eleitores eles mesmos.
Com efeito, o sentimento popular em relaçã o ao Estado da primeira legislatura
da segunda Repú blica era que, contrariamente à situaçã o da primeira Repú blica em que
o Estado estava demasiado presente, de nova e cinco a dois mil o Estado estava
demasiado ausente, ou entã o que os actores do Estado estavam interessados nas
pró prias coisas, privadas e muito pouco interessados nas coisas de todos. Os dirigentes
políticos sã o vistos pelas populaçõ es como predadores de bens pú blicos para interesses
privados.
Em consequência, nó s fomos votar a segunda vez com ideia clara de que a
arbitrariedade era mais importante do que a lei; que a injustiça, o roubo, as assimetrias,
eram as coisas mais importantes. Fomos votar com uma dó lar-cracia, com o dinheiro
sendo o ú nico valor e nã o um meio para atingir fins sociais pré-estabelecidos. Resultado,
aceder ao poder significava aceder ao dinheiro.
Quer dizer que o substracto da vida política nã o obedece a nenhum princípio
ético; as leis nã o secundam a procura da justiça. O resultado disto é um sentimento de
injustiça generalizado e uma constante ameaça à paz.
A guerra do Zaire foi seguida por uma afirmaçã o da entã o Secretá ria do Estado
norte-americano, Margaret Allbright segundo a qual a Á frica estava conhecendo a
primeira guerra mundial. O que ela queria dizer era que a Á frica tinha fronteiras nã o
CAPITULO III

realistas nem viá veis e que era tempo de repensar as novas fronteiras. De um lado, os
principais actores da política internacional pensam em refazer as fronteiras coloniais; do
outro, os actores africanos, apesar de reconhecerem a ineficá cia só cio-econó mica da
geopolítica herdada do colonialismo, continuam a defendê-la como o principal actor
político continental, pela ú nica coisa que ela sempre defendeu: o respeito das fronteiras
coloniais.
O debate em volta das fronteiras começa com o fim da segunda Guerra Mundial.
A questã o era saber em que espaço geopolítico deveríamos proclamar as
independências para que elas nã o fossem simplesmente cosméticas. As ideias de
Nkrumah nã o encontraram um terreno fértil entre as ambiçõ es pessoais dos líderes
emergentes da época e a clara vontade neocolonial e de controle das antigas potências
coloniais. A conjugaçã o destes dois factores acabou favorecendo um grande
conservatismo e uma grande falta de ousadia para questionar os substractos e as
principais instituiçõ es coloniais.
À s teorias dos Estados Unidos de Á frica e da manutençã o das fronteiras
coloniais vieram ajuntar-se as ideias de espaços de complementaridade econó mica de
Mamoudou Touré e de Mamadou Dia, e as ideias de homogeneidade cultural de C. Anta
Diop. No fundo, a questã o nã o era só traçar fronteiras ou respeitá -las; era a preocupaçã o
de ter independências que nã o fossem cosméticas, mas susceptíveis de trazer
verdadeiros resultados também em termos só cio-econó micos.
No debate do fim da década de cinquenta, Nkrumah tinha chamado a atençã o
para o perigo de pormos a Á frica na situaçã o de ser econó mica e socialmente re-
colonizada –o que se está a verificar hoje –, do perigo de vermos os antigos impérios
voltarem incentivando o tribalismo. Vimos isso no Zaire de Patrice Lumumba onde a
Á frica se mostrou incapaz de unidade, de solidariedade, de determinaçã o para se bater
pela sua liberdade.
No fundo, em 1960, três anos depois da primeira independência, a Á frica tinha
demonstrado nã o estar em altura de assumir «o que a responsabilidade comporta como
responsabilidade». Depois desta data, o que aconteceu, incluindo a histó ria política
moçambicana, é mais folclore, cosmético que algo de substancial e de real. No Zaire, o
neocolonialismo tinha se implantado criando as premissas da tribalizaçã o política (a que
Nkrumah tinha chamado de balcanizaçã o) que infestou a histó ria política do continente;
criando as premissas de uma alternâ ncia de poder feita de golpes de estado, de uma
prá tica política feita de violência e de assassinatos. Mas, sobretudo, usurpou e privou os
povos africanos de democracia, fazendo assassinar o eleito do povo, Patrice Lumumba,
para o substituir por um Mobutu. Infelizmente, as prá ticas políticas do continente nã o
cessaram de se inscrever nos paradigmas neocoloniais claramente estabelecidos desde
os eventos do Zaire de 1960. Eis porque se deve saudar a determinaçã o com a qual a
uniã o africana interveio e pô s cobro ao golpe de estado em S. Tomé e Príncipe,
esperando que seja o início duma nova era.
O conflito do Zaire pó s-Mobutu nã o se limitava a evidenciar os limites
objectivos da geopolítica herdada da colonizaçã o. Chamava a atençã o do continente
sobre a necessidade impelente de retomar o caminho da reflexã o de uma geopolítica
susceptível de trazer respostas aos problemas com os quais as populaçõ es estavam
confrontados. Torna, assim, actual a necessidade de uma unidade, a necessidade de
pensar nos imperativos econó micos e nas complementaridades econó micas (Mamadou
Touré e Mamadou Dia), na necessidade de pensar na dimensã o cultural (Cesaire,
Azikiwé e C.A. Diop), de um desenvolvimento auto-centrado (Samir Amim e Nyerere). A
CAPITULO III

estas «utopias anteriores» vieram ajuntar-se novas tentativas: O «Renascent Africa» de


Tabo Mbeki60 e o NEPAD61.
Se de um lado isto é positivo porque representa a retomada de um debate de
ideias no continente, podemos lamentar que este ressurgimento de debate de ideias se
subordine a imperativos econó micos (NEPAD) e uma visã o neo-liberal (Renascent
Africa).
Pode o Renascimento africano liberal, sob a égide da RSA, ser um motor
libertá rio para a Á frica, ou o governo negro da RSA vai simplesmente caucionar e
legitimar as veleidades hegemó nicas de certos interesses sul-africanos?
O período da transiçã o do Apartheid ao governo da ANC encontrou
Moçambique também num período de transiçã o política e de incerteza muito
importante, e isso foi-nos fatal. A SADCC para a qual nó s tínhamos contribuído
substancialmente para criar e pela qual pagamos um preço elevado, nasceu contra a
teoria da constelaçã o de Voster e como instrumento político de resistência regional
contra o imperialismo e a dominaçã o racista da RSA. Mas, no momento da transiçã o
democrá tica para a qual tínhamos contribuído, nó s gritamos pela nossa ausência.
A entã o SADCC permitiu que a RSA mudasse e reencontrasse o seu novo
equilíbrio sem nó s. Em vez de termos nova RSA como membro da dinâ mica política
regional, transformá mo-nos em satélites da nova Á frica do Sul. É como se a passagem de
SADCC a SADC fosse, na realidade, a vitó ria da teoria da constelaçã o.
A equilibrada geopolítica de Moçambique, com a sua capital na ponta sul, foi o
resultado da necessidade de proteges o porto contra as investidas ocupacionais e
anexionistas da Á frica do Sul. A RSA sempre quis anexar Maputo, por razõ es militares
(conflito Anglo-Boer) e econó micas. O colonialismo português sempre se opô s quer a
ceder o porto de Maputo, quer à divisã o do país pelo Zambeze. A primeira Repú blica
também se opô s veemente à s veleidades anexionistas sul-africanas.
Ora, a primeira Repú blica termina com os acordos de paz e com as eleiçõ es
apó s um longo período de guerra. Esta guerra nã o foi civil, nem sequer foi unicamente
fratricida. Há uma série de questõ es que merecem ser postas. Quais sã o as verdadeiras
razõ es da guerra? A quem é que a guerra serviu? O que é que o país ganhou? O que é que
o país perdeu? Há outros vencedores?

Existem três cená rios possíveis.

1º Cená rio: O país perdeu.


A guerra civil significou para o país um retrocesso do ponto de vista humano,
do ponto de vista econó mico e do ponto de vista social.
Do ponto de vista humano, foram destruídos todos os tecidos sociais que na
primeira Repú blica, e mesmo antes, se tinham dificilmente cozido. Hoje nó s somos
tribalistas, racistas, mas sobretudo adoptamos esta nova doença Ocidental que se chama
individualismo.
Do ponto de vista econó mico, as poucas infraestruturas que tínhamos foram
meticulosamente destruídas e a nossa dívida externa tornou-se uma das mais elevadas
do mundo.
Do ponto de vista social, todas as redes de solidariedade foram destruídas e, no
seu lugar, nasceram a desconfiança entre vizinhos, famílias e mesmo no interior de uma
mesma família.
2º Cená rio: O país ganhou.
60
Mbeki, 1998
61
Craxi, 2004.
CAPITULO III

Pode-se avançar o argumento da paz: o país conquistou a paz!


Mas o que é a paz? É simplesmente a ausência da guerra? Qual é a relaçã o entre
a paz e a justiça? Um sistema injusto ou percebido como tal pelas populaçõ es é
necessariamente fonte de conflito. Com efeito, existe uma relaçã o intrínseca entre
injustiça –ou a percepçã o de uma realidade como injusta –e a violência. A segunda
Repú blica é percebida pela populaçã o como individualista e injusta.
No mesmo momento em que aumentam no país o nú mero de Bancos, de vilas
luxuosas, de viagens para shopping em Nelspruit, Lisboa, Dubai ou para o Carnaval do
Rio de Janeiro, Moçambique foi aceite no programa IPIC do Banco Mundial destinado aos
mais pobres do mundo.
O segundo argumento que se pode avançar para defender a vitó ria do povo é a
instauraçã o da democracia. A favor desta tese podem-se mostrar muitos indicadores a
começar pela actual constituiçã o, a existência legal de partidos políticos, a existência de
meios de comunicaçã o de massas privadas; rá dios, televisõ es, jornais; a existência do
ensino secundá rio e superior privados, a existência de associaçõ es, etc.
Apesar dos elementos positivos apenas mencionados podemo-nos questionar
quanto à natureza da democracia moçambicana e quanto à capacidade de os partidos
políticos serem representativos na sua forma actual. Podemo-nos interrogar quanto à
capacidade de as populaçõ es moçambicanas compreenderem e, por conseguinte,
participarem de uma maneira consciente numa democracia que nã o fala a língua e a
linguagem das pessoas, que nã o haure a sua legitimidade institucional nos imaginá rios
colectivos das populaçõ es. Ou seja, de uma democracia que se apresenta mais como uma
có pia das instituiçõ es políticas, jurídicas e constitucionais do Ocidente, que, em
definitivo, sã o respostas políticas e jurídicas aos problemas com os quais os europeus
estiveram confrontados num determinado momento da sua histó ria.
Se a nossa democracia nã o encontra a sua legitimidade no interior do país e do
povo, onde é que vai buscar a sua legitimidade? Na comunidade internacional? Nas
Organizaçõ es Internacionais? Nas embaixadas? Na Fundaçã o Ford? Onde é que estas
instituiçõ es foram buscar a sua legitimidade política e moral para poderem legitimar e
servir de garantes à democracia Moçambicana?
O terceiro argumento que se pode avançar é o mercado livre. Teoricamente,
todo moçambicano pode ser empresá rio. Mas onde é que os moçambicanos vã o buscar o
dinheiro para investir? Onde é que o povo que nunca foi proprietá rio de nada, nem
sequer de si mesmo, vai aprender a arte do empresá rio? Este dogma liberal –que evacua
até o postulado smithiano da necessidade de respeitar as regras estatais e mesmo
divinas –nã o contém nele mesmo os germes da corrupçã o e, por consequência, da
violência que se assiste em Moçambique? Ele nã o acarretou consigo a confusã o entre o
pú blico e o privado? Entre o homem político e o empresá rio? Ou ainda pior, nã o
transformou a política num meio para atingir objectivos individuais de cará cter
econó mico? Desta forma, nã o falsifica a democracia e o debate político?
Como têm defendido alguns especialistas (Sabelli, Suzan Jorge), existe o risco de
se hipotecarem as liberdades das populaçõ es à s alianças entre as elites (político-
econó micas, sem excluir uma participaçã o das elites intelectuais) e os interesses de
certas facçõ es ultra-liberais do Norte do mundo.

3º Cená rio: Existem outros vencedores


Talvez existam vencedores da segunda guerra de Moçambique. Mas será que se
tenham que procurar em Moçambique e entre os moçambicanos? Nã o será que se tenha
que procurar os vencedores entre os que até há poucos anos controlavam as alfâ ndegas
nacionais? entre os que controlam as nossas fronteiras marítimas? Ou os que controlam
o trá fico financeiro e monetá rio? Entre os que querem construir bases militares no país?
CAPITULO III

Ou tem que se procurar os vencedores entre os que inundam literalmente Moçambique


com os seus produtos, ao mesmo tempo que maltratam e humilham os moçambicanos,
nã o obstante os sacrifícios feitos pelos moçambicanos pela sua libertaçã o?
Em definitivo, parece-se poder dizer que nó s, e quando digo nó s, quero dizer,
nó s moçambicanos perdemos a guerra. A Frelimo nã o ganhou, mas também a Renamo
nã o ganhou. O país teve um nú mero inconfessá vel de mortos, aleijados, as infra-
estruturas econó micas, escolares e educativas destruídas.
O país teve os seus diferentes tecidos sociais gravemente afectados. Mas a
Frelimo nã o ganhou, a Renamo nã o ganhou e o povo também nã o ganhou, que foi o
vencedor da guerra?
Aquilo que a RSA nunca conseguiu nem no período colonial, nem na primeira
Repú blica fê-lo depois da guerra. Se o porto de Maputo nã o foi anexado nem
Moçambique foi separado do Zambeze, é evidente que sob o ponto de vista puramente
econó mico o sul do país ficou mais vulnerá vel aos interesses econó micos da RSA através
da auto-estrada. Mas mais profundamente, nunca como hoje a economia do sul de
Moçambique esteve tã o dependente da economia sul-africana. Ou talvez seja melhor
dizer que nunca houve tanto conformismo à hegemonia econó mica da Á frica do Sul
como hoje.
Internamente, dada a vizinhança entre as províncias do sul de Moçambique
com a maior potência econó mica continental, o sul, como Lá zaro, recolhe das migalhas
que caem da mesa do Senhor. Aliá s, a Á frica do Sul, investindo quase unicamente no sul,
contribui para aumentar as assimetrias no país o que aumenta os problemas no tecido
político nacional.
A nível regional, a SADCC tinha nascido como uma instituiçã o econó mica
vocacionada para combater a hegemonia regional do sistema de Apartheid. Tratava-se
de uma cooperaçã o econó mica pela negativa, mas historicamente necessá ria. Todavia,
esta instituiçã o cometeu dois erros histó ricos fundamentais. O primeiro: nã o ter sido
capaz de se transformar num organismo prioritariamente político. O segundo: ter aceite
ser fagocitado nas ló gicas da expansã o economicista da RSA.
Quando se estava em conversaçõ es entre De Clerk e Mandela para a libertaçã o
deste ú ltimo, era claro que se estava num processo inelutá vel de mudança. Era ó bvio que
o mesmo factor –fim da guerra fria – que tinha levado ao fim do monopartidarismo em
Moçambique, iria também conduzir ao fim da democracia mono-racial da RSA, levando
os dois países a alinharem na ú nica política e organizaçã o social possível.
Isso levaria a uma mudança política na RSA, mas também à mudança das
relaçõ es sociais e ao processo distributivo dos recursos econó micos. O primeiro
processo –o político –caminhava sem problemas, mas era previsível que o segundo fosse
muito mais complicado. A RSA teria homens de cores e raças diferentes a trabalharem
para criar uma dinâ mica unívoca e comum, a que mais tarde se chamou a visã o de New
South Africa.
Ora, enquanto as conversaçõ es entre Mandela e De Clerk decorriam com altos e
baixos, nó s ficá mos a assistir. Permitimos até que países e comunidades mais
longínquas, que muitas vezes tinham sido cú mplices do regime do Apartheid, tomassem
parte do processo de reconciliaçã o. Deixá mos que os compromissos entre antigos
inimigos internos se resolvessem e acabamos sendo nó s a integrarmos a RSA no que
passou a ser a SADC. Ora, o peso econó mico que a SADCC queria combater passava a
ditar as suas pró prias leis e objectivos ao organismo que nasceu para combatê-las.
Se tivéssemos que comparar com o processo europeu, diríamos que a RSA é a
Alemanha regional, quer pela natureza da sua política que levou à Segunda Guerra
Mundial, quer pela importâ ncia econó mica que tem no centro mesmo da Europa. A
França teve a inteligência política de começar a integraçã o europeia com uma Alemanha
CAPITULO III

ainda fragilizada economicamente, mas sobretudo, moralmente, numa dinâ mica, que
começou com econó mico, mas sedimentou-se no político. É exactamente a valência
política da Europa que faz com que possa existir uma certa igualdade entre a Alemanha e
Portugal, entre a França e a Bélgica, entre a Itá lia e o Luxemburgo, etc. O que a relaçã o de
trocas nã o pode fazer, fá -lo uma dinâ mica política lú cida.
Quando a Á frica do Sul estava num processo de transiçã o, nó s poderíamos ter
transformado a SADCC num estrutura política, com uma espécie de organismo
parlamentar consultivo, uma espécie de instituiçã o penal para arbitrar conflitos. A
posiçã o moral da Á frica do Sul pó s-Apartheid nã o teria permitido que nã o integrasse
estes organismos nas suas dinâ micas políticas.
A maneira como o processo regional foi conduzido permitiu que os interesses
econó micos e hegemó nicos da Á frica do Sul, desta vez mediatizados pelos novos actores
políticos, se tornassem, de facto, o grande vencedor da guerra –nã o só em Moçambique –
e expandissem a sua hegemonia econó mica pelos países da regiã o e mesmo mais longe
no continente. Se a aproximaçã o regional (SADC) foi guiada (como parece ser) por esta
ló gica economicista e de Renascimento Liberal, como foi teorizada por Thabo Mbeki,
entã o as teorias constelacionistas de Voster teriam ganho.
Nelson Mandela teve a intuiçã o de conceber o direito nã o como nos é
apresentado normalmente pela iconografia, uma mulher com uma espada na mã o
pronta a cortar, mas como uma costureira que, com muita paciência e tenacidade, coze
as diferentes partes, liga linhas diferentes a fim de criar um tecido ú nico. A intuiçã o de
Mandela foi boa. O que a Á frica do Sul tinha necessidade nã o era de uma mulher com
espada pronta a cortar, mas do trabalho paciente e meticuloso de uma costureira capaz
de recozer as relaçõ es sociais. Podem-se discutir métodos e os resultados da comissã o
de reconciliaçã o chefiada por Desmond Tutu, mas nã o a filosofia que a subentende. Aliá s,
este é o coraçã o mesmo da filosofia Ubuntu 62.
Nã o se pode separar a filosofia Ubuntu da política de Renascent Africa. Ora, ela
apresenta duas aporias fundamentais. Primeira: o Renascent Africa tem uma vocaçã o
continental. Mas esta vocaçã o nã o tem em conta, para fora da RSA, a necessidade de se
fazer preceder ou, pelo menos, acompanhar por um processo de reconciliaçã o da RSA
com o continente ou pelo menos com a regiã o. A reconciliaçã o limita-se ao interior do
país e nã o tem em conta a destruiçã o econó mica e dos tecidos sociais dos países vizinhos
e, nomeadamente de Moçambique.
A New South Africa supõ e um sistema de discriminaçã o positiva orientada para
diminuir as divergências entre classes e raças no interior do país. Quando olhamos para
as relaçõ es entre a RSA e ou seus vizinhos, apercebemo-nos que, para além da dimensã o
do discurso, só a dimensã o econó mica conta. Em termos de balanço de trocas
econó micas, as relaçõ es entre Moçambique e RSA sã o piores que as relaçõ es entre
Moçambique colonial e a Á frica do Sul do tempo do Apartheid.
Segunda: se a dimensã o do Ubuntu se faz simplesmente em termos de discursos
a nível interno e a nível regional, mas nã o se consegue inverter a pirâ mide e entrar num
sistema de distribuiçã o e de solidariedade –como a Uniã o Europeia, apesar do seu
liberalismo, faz para os países mais fracos economicamente, e lá se está a nível do
político –entã o a costureira Ubuntu vai fazer trapos ligeiros e pouco só lidos, susceptíveis
de ser rasgados ao pequeno movimento.
Contudo, apesar da necessidade de termos presente estes elementos de
«fronteira», talvez sobretudo por estarmos justamente conscientes desses problemas
que nos vêm do exterior, temos que nos defender reforçando o tecido social interno, a
umidade nacional, a moçambicanidade, cujos inimigos principais sã o hoje, do exterior,
novos sistemas de dominaçã o representados pela globalizaçã o das economias, dos
62
Mbana, 2003.
CAPITULO III

programas de ajustamento estrutural do BM, o sistema de dívidas, os sistemas de ajuda.


De forma resumida: os mecanismos do ultra-liberalismo. Os inimigos do interior sã o a
falta do sentido histó rico das elites combinada com a seduçã o acrítica e doentia da
pecú nia.
CAPITULO IV

Por um triplo contrato moçambicano

1. Contrato Cultural

A democracia conheceu duas fases historicamente importantes: a democracia


grega e a democracia liberal herdada da Revoluçã o Francesa. Na Grécia Antiga, os
cidadã os eram chamados a participar directamente na vida da cidade. Foi este estado de
coisas que permitiu a definiçã o da democracia como o governo do povo pelo povo e para
o povo.
Mas, muito rapidamente, o facto de conceder o direito de voto só a algumas
categorias de pessoas e de recusar a outras categorias cuja culpa era simplesmente ter
nascido e pertencer a uma determinada categoria social (escravos ou militares), criou
uma certa insatisfaçã o. A falência da democracia grega reside no seu exclusivismo, na
sua incapacidade de pô r todos os «cidadã os» em pé de igualdade. Foi para responder a
esta insatisfaçã o do modelo grego que os pais da Revoluçã o Francesa de 1789 puseram
em causa os princípios fundamentais do governo das sociedades encarnadas pelas
monarquias e as sociedades feudais estabelecidas há mais de dez séculos na França e na
Europa. Para os revolucioná rios, estas formas de governo eram profundamente
inigualitá rias, injustas e liberticidas. Eis a razã o pela qual eles propuseram uma nova
ordem fundada nos ideais da liberdade, igualdade e de fraternidade a que eles
chamaram de ordem democrá tica.
Assim vistas as coisas, a democracia comporta duas partes: uma axioló gica e
outra institucional. Sobre o plano institucional, ponde em causa as monarquias que
extraiam a pró pria legitimidade da transcendência, da histó ria e da tradiçã o, a revoluçã o
democrá tica cortou o cordã o umbilical entre a sociedade e a transcendência,
inscrevendo na imanência a fonte de toda a legitimidade. Desse modo, a sociedade
adquire uma real autonomia colectiva.
Sobre o plano dos valores, o conceito de igualdade é expresso nos conceitos
liberais do século XIX e concretizado princípio da Declaraçã o dos Direitos do Homem e
do cidadã o. A dimensã o axioló gica repousa essencialmente no princípio da igualdade em
direito concebido como uma abstracçã o para corrigir as desigualdades naturais.
A dimensã o axioló gica da democracia impõ e, de uma maneira apodíctica e nã o
negociá vel, o respeito pelos direitos do homem, a igualdade entre os cidadã os e o
respeito pela dignidade das pessoas. Apesar de terem visto dia no Ocidente, estes
valores conquistam gradualmente o mundo inteiro e tornam-se parte do patrimô nio da
humanidade. Elas sã o uma das maiores contribuiçõ es do Ocidente para a histó ria
humana.
Se os valores nã o sã o negociá veis, as instituiçõ es, ao invés, nunca conheceram,
na histó ria das democracias, uma forma ú nica. Se os valores têm uma vocaçã o universal,
a dimensã o institucional da democracia releva da histó ria, das sociedades e das culturas.
Isso explica a diferença enorme de modelos democrá ticos entre sociedades com uma
tradiçã o democrá tica provada, como podem ser os EUA, a França, a Inglaterra, a Suiça,
etc.
As instituiçõ es, melhor, os modelos institucionais de democracia podem e
devem mudar, podem e devem ser aculturadas, haurir a sua legitimidade dos
imaginá rios colectivos, das linguagens das pessoas, da maneira como eles concebem a
sua vida social e colectiva. Eis o que eu chamo contrato cultural.
Um dos paradoxos da democracia moçambicana é que ela põ e justamente em
causa uma série de instituiçõ es como o até entã o mono-partidarismo da Frelimo, o
CAPITULO III

estatuo político da Renamo, etc. Mas, ao mesmo tempo, reabilita instituiçõ es nã o


democrá ticas, como sã o os «hossanados» poderes tradicionais. Ainda mais preocupante,
é que essa reabilitaçã o faz-se sob o impulso de uma série de organizaçõ es internacionais,
contra a vontade e a compreensã o dos actores políticos nacionais. Sob a égide de uma
sociologia política bastante em voga que pretende que a diferença de representatividade
está no biná rio cidade (Frelimo)-Campo (Renamo), identifica o campo com os chefes
tradicionais que teriam sido os principais suportes da guerra da Renamo. Mas, de uma
maneira mais profunda, existe uma espécie de antropologizaçã o das culturas africanas e
sua consequente condenaçã o hegeliana a um perpétuo tradicionalismo a-histó rico.
Parece-me ó bvio que nã o se trata de ressuscitar as tradiçõ es ditas africanas. Aliá s,
tradiçã o que dizer tradere: o que se transmite de um grupo e de uma geraçã o a outra. Todavia,
nenhuma geraçã o aceita o passado que lhe é transmitido de uma maneira acrítica. Cada geraçã o
olha para trá s para apreender o que o passado tem de bom e recusar o que nã o lhe convém. Ora,
esta escolha faz-se em funçã o da vida presente, da realidade social presente. A nossa realidade é
democrá tica, de participaçã o colectiva. Se há no passado, nas instituiçõ es algo que nos possa
ajudar neste elã de democratizaçã o, que possa servir para aquilo a que Eboussi chamou utopia
crítica, isso é bem-vindo. Mas aquilo que nã o serve e é mesmo contrá rio ao espírito do tempo
que vivemos, nã o tem sentido que seja reabilitado.
Aliá s, nos debates que emprenham fortemente a filosofia africana, muitos pensadores
têm acusado a tradiçã o africana de ser responsá vel pela situaçã o de pobreza e de
subdesenvolvimento. Acusa-se a tradiçã o africana de nã o ter dado ao continente forçada sua nã o
democratizaçã o. O chefe, o anciã o teia nestas tradiçõ es sempre razã o. Em consequência, o debate
político e social nã o seria possível. Acusa-se a tradiçã o de nã o ter democratizado o ensino e a
transmissã o do saber.
As nossas tã o «hossanadas» autoridades tradicionais e mesmo os régulos nã o
escapam a esta tradiçã o nã o democrá tica da qual a filosofia africana quer distanciar-se,
mas parece que há tentativas dos novos Heges de nos atracar a elas ad vitam eternam.
O contrato cultural nã o é para mim a reabilitaçã o das instituiçõ es ancestrais. Já
disse que os valores da democracia liberal nã o sã o negociá veis. Entã o de que é que se
trata? Primeiro: é preciso ver que se a dimensã o axioló gica da democracia se manteve a
mesma em todos os países ditos ocidentais, a forma institucional variou de lugar para
lugar, de Naçã o para Naçã o. Cada país pensou na democracia axioló gica inventando, digo
bem criando, parturindo instituiçõ es sociais adequadas a esta nova maneira
socializaçã o, a partir da compreensã o dos imaginá rios colectivos das suas populaçõ es, a
partir da pró pria histó ria.
É preciso entender que as diferentes formas institucionais que a democracia
liberal teve sã o a histó ria das respostas (histó ricas e sociais) que os diferentes países
(culturas) deram ao problema da democracia quando confrontados com ele num mento
da sua histó ria. Eles tomaram a sério duas coisas: primeiro, a democracia como valor;
segundo, a pró pria cultura e a pró pria histó ria. Nã o para aculturá -la de uma maneira
acrítica na democracia (o que nos levaria aos paradoxos da democracia de Atenas), mas
para pensar as condiçõ es de possibilidade da realizaçã o da democracia a partir das
pró prias particularidades histó ricas. É necessá rio ousar enfrentar a pró pria cultura e a
pró pria histó ria. É preciso ousar estudá -la a sério, frequentá -la do interior, para poder
interroga-la na sua forma e nos seus substractos.
A componente que falta à s nossas leis, ao nosso avanço democrá tico, ao nosso
debate institucional e mesmo político é a dimensã o moçambicana da política e da
democracia. É necessá rio conhecer a fundo duas tradiçõ es: a tradiçã o formal das
democracias ocidentais e, sobretudo, o que ela subentende sob o ponto de vista da
diferença formal em termos de histó ria cultural dos diferentes povos. Mas mais
importante ainda, temos que conhecer as nossas tradiçõ es e culturas para, a partir delas,
CAPITULO IV

pensar o direito e a democracia, para que as nossas instituiçõ es possam haurir a sua
legitimidade dos imaginá rios colectivos das nossas populaçõ es.
Insisto: nã o se trata de conhecer a tradiçã o para segui-la ad literam, mas para
se inspirar nela e para sublimá -la e, através deste processo de metá stase, criar um
direito que seja a imagem e semelhança da maneira como as diferentes populaçõ es
entendem a vida política e social. Nã o teríamos, assim, uma democracia incompreensível
para as populaçõ es ou, entã o, que se cala paradoxalmente nas autoridades tradicionais,
ao mesmo tempo que imita de uma maneira ridícula e a-histó rica as tradiçõ es
ocidentais.
Mas como a democracia é um conteú do axioló gico e uma forma, a tradiçã o é
também, em si mesma, um conteú do e uma forma. Boa parte da crítica da filosofia
africana à tradiçã o concerne a sua forma, mas também ao seu conteú do. É verdade que o
conceito de crítica compreende a avaliaçã o de todas as componentes: as negativas, mas
sobretudo as positivas. Para ser intelectualmente honesta e exaustiva, a crítica deve
tentar identificar os aspectos positivos presentes nas tradiçõ es: nas suas formas e no seu
conteú do. Montesquieu falava do espírito da lei. Penso que é importante da mesma
maneira, pensar no espirito que se esconde por detrá s da tradiçã o.
Fazer passar o nosso ajustamento cultural pelo egoísmo é inspirar-se nos elementos
mais problemá ticos do Ocidente. Todavia, nã o podemos tomar de ligeiro esta crítica. De facto,
nó s temos que analisar de forma crítica o problema que as nossas estruturas sociais comportam
em termos de incremento da pobreza, de incapacidade de investimento econó mico. Mas,
sobretudo, na manutençã o de um sistema que favorece o parasitismo e o espírito de
dependência que certamente sã o componentes importantes na configuraçã o cultural geral da
economia e do espírito miserabilista que nos tem caracterizado.
Ao mesmo tempo, quando olhamos para o Ocidente temos que nos recordar
que nem tudo o que luz é ouro, que o egoísmo é a maior síndrome e a maior fonte de
desumanizaçã o do homem e dos conflitos entre sociedades que a histó ria da
humanidade conheceu; que o ultra-liberalismo é um sistema econó mico que nã o pode
deixar de produzir poucos ricos e muitos pobres. Quando o dinheiro e o egoísmo sã o as
mas distintivas de uma civilizaçã o, nã o se pode criticar nem a escravatura, nem o
colonialismo, nem o trabalho forçado, nem as guerras de petró leo ou outras, nem mesmo
a proliferaçã o da droga, do comércio de ó rgã os humanos, etc.
Por outro lado, apesar dos seus limites, as nossas tradiçõ es e a nossa histó ria
nã o sã o de deitar fora como defendem Towa e Elungu. Eboussi Boulaga dizia que a
tradiçã o representa o tempo em que éramos livres e fautores da nossa histó ria. Mas eu
quero acrescentar que, apesar dos seus limites (perigo de parasitismo, de conformismo),
a tradiçã o representa, no seu espírito, a dimensã o da solidariedade. Contra o reino do
dinheiro, as tradiçõ es africanas propõ em uma sociedade de partilha. No fundo, o
contrato cultural significa apreender o essencial do espírito da tradiçã o e, ao mesmo
tempo, acolher a modernidade de uma maneira também crítica e selectiva (Ka Mana).

Democracia e cultura (s) moçambicana(s)


Segundo o Acordo de Paz de 1992, A democracia acordada em Moçambique
exige respeito à diferença de ideias, de opiniões, e de culturas, à consequente igualdade na
diferença e respeito pelas instituições, num poder legitimado 63.
Para todas as consciências minimamente lú cidas, hoje se impõ e uma
participaçã o maior das culturas no debate democrá tico. Por outras palavras: uma
legitimaçã o do poder e mesmo da política nacional a partir das culturas. A questã o é
63
Citado por Ngoenha, Para uma reconciliação entre a Política e as Culturas. Programa de reforma
dos órgãos locais (PROL), Texto de Discussão N.º , Ministério da Administração Estatal (MAE), Editado por J. E.
M. Guambe e B. Weimer, Maputo, Agosto de 1997:22
CAPITULO III

saber qual deve ser o nível de participaçã o a ser deixado à s culturas, a fim de que se
possa forjar um direito e uma política que tenham numa moçambicanidade cultural os
seus fundamentos teó ricos e prá ticos.
No discurso de abertura da 1ª Conferência Nacional sobre a Cultura, o
presidente Joaquim Chissano afirmou: «a cultura é a plataforma a partir da qual se
materializam os planos, programas e actividades tanto de ordem material como de
ordem espiritual da humanidade, das naçõ es, das organizaçõ es e indivíduos». A
importâ ncia da cultura foi reafirmada pelo Primeiro Ministro no seu discurso de
apresentaçã o do programa do governo para 1995/1999 à Assembleia da Repú blica64.
Segundo Pascoal Mocumbi, «o Governo inspirar-se-á no princípio segundo o qual o
desenvolvimento deve ter a cultura como ponto de partida e de referência obrigató ria e
permanente».
Os homens do Estado (a estes dois discursos podia se juntar o do Ministro da
Cultura na Conferência sobre a Cultura, que vai no mesmo sentido dos precedentes) e
muitos intelectuais moçambicanos65 retêm à cultura como um ingrediente indispensá vel
para o incremento da democracia e mesmo no processo de governaçã o.
De uma maneira mais sistemá tica, a 1ª Conferência sobre a Cultura propunha-
se adoptar um projecto de política cultural que deveria, face à s mudanças introduzidas
pela Constituiçã o da Repú blica de 1990, indicar o papel do Estado, da sociedade e do
indivíduo na preservaçã o, fomento e promoçã o da cultura moçambicana66.
A ideia geral da Conferência foi, portanto, propor uma política cultural, isto é,
uma governaçã o que tenha em conta as especificidades culturais moçambicanas. Em
relaçã o à s governaçõ es precedentes –dos portugueses e da «primeira Repú blica» -há
aqui uma evoluçã o considerá vel. Contudo, uma coisa é a política cultural de um governo,
outra é uma cultura política de um povo. Nesta, a política e a governaçã o inspiram-se nas
especificidades culturais do povo. Os dirigentes políticos, os programas econó micos e
socais partem nã o só das necessidades das pessoas, mas dos seus pressupostos
culturais, da sua maneira de conceber, das suas possibilidades de entender, da sua
maneira de agir e da sua vontade de participar. É neste sentido que se fala de cultura
política francesa, que é muito diferente da cultura política americana ou inglesa. Mas se
o governo deve fazer uma política cultural, temos ainda de saber onde vai buscar os
pressupostos para tal política que, por sua vez, tem de velar pela cultura. Quem vai
legitimar a política que se arroga o direito de legitimar as culturas?
Uma cultura nã o é um todo monolítico, compacto ou bloqueado, mas um
conjunto aberto de valores em criaçã o contínua, em dialéctica constante de afirmaçã o de
si e de negaçã o, de convergência e de divergência. A criaçã o e a conservaçã o de uma
cultura nã o é simplesmente a interacçã o de indivíduos criadores e de políticas culturais,
mas de interferências que se exercem entre diferentes ordens de valores –religiosos,
morais, politicas, jurídicas, sociais, econó micos. Estas interferências sã o essenciais e
revelam as relaçõ es específicas que associam estas diferentes ordens de valores, mas sã o
modificaçõ es ao sabor das contingências da histó ria.
Cada caso de interferência é um caso histó rico particular. Contudo, por causa
da sua natureza pró pria, os valores políticos e os processos que eles sã o susceptíveis de
engendrar vã o jogar um papel à parte. De facto, a vida política manifesta-se nas relaçõ es
de força que opõ em aderentes e adversá rios, determina as relaçõ es entre privado e
pú blico, e chega ao estabelecimento do poder que cria relaçõ es de comando e de
obediência. Estas relaçõ es podem fazer-se sentir na vida das instituiçõ es, dos grupos e
das culturas. Pela sua pró pria natureza, a política pratica uma ingerência efectiva na vida
64
Citado por Ngoenha, Para uma reconciliação entre a Política e as Culturas, 1997 (ibdi): 23.
65
Idem.
66
Idem.
CAPITULO IV

dos indivíduos porque ela exerce uma força latente reputada legítima e necessá ria para
manter a vida pú blica. Ora, a fronteira entre pú blico e privado é fluída e movente: ela
constitui uma zona onde o respeito pelas liberdades individuais, dos grupos e das
culturas em todos os regimes políticos põ e constantemente problemas à força pú blica. A
prá tica de uma ordem pú blica constitui um equilíbrio incerto e instá vel entre a força
pú blica e as forças privadas.
Enquanto tal, a vida política, ordenada em volta de valores morais e políticos
indissociá veis, é parte integrante da cultura. Sob a sua forma mais rudimentar, ela surge
concomitante com o aparecimento de uma coexistência social, de uma comunidade
cultural ou de um trabalho em comum. A vida política organiza-se quando uma
comunidade cultural adquire uma certa consistência num determinado territó rio;
quando começa a tomar consciência dela mesma e se considera um bem comum digno
de ser afirmado e defendido, tanto contra os seus inimigos interiores como exteriores.
Entã o, as relaçõ es entre indivíduo e indivíduo podem também transformar-se em
relaçõ es entre cidadã o e cidadã o.
Assim, é quase natural que os homens do poder tenham a convicçã o de que o
seu poder se deve estender a todos os domínios culturais. De facto, os valores culturais
emanam do conjunto da cultura ambiente e autoridade do poder político depende, em
grande parte, da sua adequaçã o a esses valores. Mas o exercício do poder tende a
invertes as relaçõ es e os governantes, muitas vezes, consideram que o domínio da
cultura depende do seu poder. Na realidade, o poder político e o governo devem estar ao
serviço da cultura que os suscita e os investe.
O poder político e os governantes devem fornecer as culturas meios
necessá rios para o seu desenvolvimento. Se o governo tem de criar condiçõ es de
desenvolvimento, ele tem de criar projectos de sociedade que partam das culturas ou
entã o dos indivíduos mais dotados dessas mesmas culturas, e nã o das ONG’s, das
cooperaçõ es, dos doadores, do FMI ou do Banco Mundial. Os projectos de sociedade têm
de se inspirar nos valores, nos sonhos das pessoas, e têm de subscrever as suas
capacidades para realizar esses mesmos projectos. Isso implica que os governantes
tenham de se basear nas inteligências moçambicanas.
O ú nico elemento certo, constante, que nã o passará com as mudanças
ideoló gicas como foram primeiro os portugueses e depois os russos, os bú lgaros,
romenos, alemã es do este, etc; sã o os moçambicanos. É sobre eles que deve ser
construído todo o projecto sério e duradoiro da sociedade moçambicana. Isto implica
que o Estado se deve reconciliar com os intelectuais moçambicanos, e que estes devem
também reconciliar-se com a política.
Vamos ter de reconciliar os jovens portadores de um saber moderno e os
nossos velhos portadores do saber tradicional. Vamos ter de reconciliar a cidade e o
campo. Sobretudo, vamos ter de retornar o contacto de trabalho com o campo, vamos ter
de começar a pensar que o futuro de Moçambique está no campo.
O anacronismo histó rico que nos habita quer que tenhamos consciência de que
o nosso futuro, como país agrícola, está no campo, mas que deixemos o campo para os
estrangeiros. E isto quer dizer que deixemos o futuro de Moçambique e dos nossos filhos
em mã os alheias.
Pousar todos os nossos projectos políticos (construçã o da democracia e
instauraçã o duradoira da paz) e econó micos sobre as nossas culturas, sobre a nossa
terra e sobre os moçambicanos nã o quer dizer renunciar a entrar no que se chama do
mundo moderno, mas tomar consciência de que nó s somos moçambicanos, nã o
japoneses, franceses ou suecos. Nó s nunca poderemos reproduzir as suas instituiçõ es
políticas nem ter o mesmo percurso econó mico, uma vez que as nossas bases culturais
sã o diferentes. Isto nã o quer dizer que nã o possamos viver democraticamente e
CAPITULO III

desenvolver-nos econó mica e tecnicamente. Se um desenvolvimento vai ser possível, ele


tem de assentar naquilo que os filó sofos idealistas chamavam «o génio de um povo».
O Estado moçambicano, como todos os países do mundo, é, felizmente
composto por uma certa elite. Quem diz Estado, diz administradores, funcioná rios,
professores, etc. O génio das elites consiste exactamente na sua capacidade, por um lado,
de se apoiar na cultura e, por outro lado, de suscitar o interesse das culturas pelas
actividades que, à primeira vista, nã o têm nada a ver nem com o espírito, nem com o
interesse dos grupos. Caso contrá rio, as pessoas desinteressar-se-ã o das actividades
pú blicas (como é o caso dos eleitores do deputado acima citado), o que é perigo para a
democracia e para o desenvolvimento econó mico.
Em termos filosó ficos, os gregos chamaram cépticos aos que constatavam, mas
nã o afirmavam nada. Os primeiros entre eles resolveu o problema suspendendo o seu
juízo e as suas acçõ es, e refugiando na ataraxia, uma espécie de noite de sentimentos.
Quem conhece a histó ria social moçambicana sabe que os chopes nos anos vinte
suspenderam nã o o juízo, mas a acçã o, e decidiram parar de trabalhar como forma de
luta contra a acçã o colonial portuguesa. Pode-se mesmo pensar que muitos projectos da
Frelimo, mesmo os mais justos e ousados faliram por causa de uma espécie de
sabotagem passiva por parte e das culturas moçambicanas.
Ora, a democracia e a paz a construir nã o devem significar simplesmente uma
ausência de guerra nem a simples trégua, mas a relaçã o do poder que transforma as
relaçõ es de força entre as comunidades, grupos, culturas em relaçã o de direito.

Cultura Jurídica
Desde há quase um século, existe em Moçambique uma governaçã o a partir de
cima. Alguns vêem-na começar a partir da centralizaçã o dos poderes em Moçambique,
consequência da criaçã o do Estado Novo em Portugal; outros com a redaçã o da Carta
Orgâ nica do Império colonial67.
A codificaçã o do direito colonial, que em certas matérias respeitava ou deixava
mesmo que fossem os direitos autó ctones a solucionarem certos problemas, nã o
significava um respeito maior pelas culturas moçambicanas (culturalmente influentes
para o discurso de legitimaçã o). Era, pelo contrá rio, uma espécie de colonizaçã o doce,
que tinha a vantagem de evitar revoltas por parte das culturas nacionais. Por este feito,
as diferentes culturas moçambicanas vivem, desde há quase um século, o fenó meno de
duplicidade jurídica. Nã o obstante o seu estatuto subalterno, os direitos autó ctones
foram sempre capazes de metamorfosear-se e adaptar à s novas situaçõ es, aos novos
desafios. Esta é talvez a maior prova da sua dinamicidade, adaptaçã o e mesmo evoluçã o.
Existe, portanto, em todas as culturas moçambicanas, uma tradicional «duplicidade
jurídica», velha de sessenta de anos.
Mas esses mesmos sessenta anos viram o nascimento e o incremento de uma
estrutura jurídica em Moçambique habituada, nã o obstante as suas referências
europeias –a Frelimo nã o mudou fundamentalmente este paradigma –, a ter que fazer
contas com a «teimosia» e mesmo a «renitência» da estrutura jurídica e política local.
Isto quer dizer que, desde há mais de cinquenta anos se criou uma bivalência entre
estruturas diferentes, que tiveram que aprender, muitas vezes contra a pró pria vontade,
a coexistir e transformarem-se no encontro de uma com a outra.
Se olharmos para o direito colonial português formulado pelos jurisconsultos
de Lisboa para Moçambique e as vicissitudes da interpretaçã o e aplicaçã o pelos actores

67
Citado por Ngoenha, Para uma reconciliação entre a Política e as Culturas (Op. Cit): 27.
CAPITULO IV

políticos e jurídicos68, damo-nos conta da distâ ncia que separa as intençõ es legislativas e
as possibilidades prá ticas da sua aplicaçã o.
Se um diá logo tendente a incrementar a presença das culturas na legitimaçã o
política se deve realizar, este deve partir desta tradiçã o moçambicana já existe. Nã o se
trata, portanto, nem sequer para o direito e para a política estatal, de deixar fora a á gua
suja com o bebé, mas, pelo contrá rio, de transformar este diá logo de força e de
submissã o dos direitos moçambicanos num diá logo de reconciliaçã o.
A priori, a tacha mais importante incumbe à política nacional e ao seu
organigrama de organizaçã o dos poderes pú blicos. Mais do que nunca, convém –para
evitar equívocos –reafirmar, de chofre, a necessidade de manter a configuraçã o das
fronteiras nacionais. Mas a existência de uma Naçã o e de um Estado responde a dados,
pelo menos na sua compreensibilidade e configuraçã o actual, desconhecidos pelos
diferentes direitos autó ctones, portanto, nã o susceptível de ser legitimado por eles.
Este é um a priori que os diferentes direitos têm que integrar nos seus
percursos e o governo do Estado se deve constituir garante. A conservaçã o das
fronteiras implica necessariamente o reconhecimento de direitos iguais a todos os que
vivem dentro dessas fronteiras (essa igualdade passa inevitavelmente pelo
reconhecimento e pelo respeito dos diferentes pontos de referência cultural de todos os
indivíduos) e também as garantias do crescimento dos indivíduos e das culturas no
interior das fronteiras nacionais.
Se a ideia de igualdade de direito, como anunciaçã o de princípio, é quase
evidente, é menos ó bvia a concepçã o de igualdade que podem ter as diferentes culturas
moçambicanas. Isto quer dizer que para que a política e o Estado, cujas referências
teó ricas e histó ricas se encontram em outras culturas histó ricas e sociedades, possam,
nã o obstante, encontrar uma legitimaçã o cultural moçambicana, os nossos legisladores
tem que ir haurir os seus paradigmas constitucionais da dú plice histó ria jurídica
moçambicana e temperá -los a partir da realidade histó rica actual.

Pluralismo Jurídico
A sociedade moçambicana é de facto plural: os macuas nã o sã o os macondes,
os changanas sã o diferentes dos chopes, etc. Se um certo poder organizador do Estado é
indispensá vel para que uma certa moçambicanidade jurídica seja possível, a unificaçã o
do direito como condiçã o da existência do Estado ou mesmo um excessivo centralismo
do Estado poderia pô r em causa pluralidade socioló gica da sociedade69.
Hoje é importante reconhecer as diferentes visõ es jurídicas nacionais e fazê-
las dialogar com o direito do Estado, cuja ló gica e natureza é tentar apropriar-se do
monopó lio do direito. Do discurso do Primeiro ministro à Assembleia, acima citado,
depreende uma vontade governista de reconhecer as prerrogativas jurídicas pró prias
das diferentes culturas moçambicanas e de integrá -las num processo de legalizaçã o e de
governaçã o. Este tipo de vontade é de determinaçã o do Estado tem comummente o
nome de pluralismo jurídico. Existem, porém, diferentes teorias do pluralismo.
Se as principais teorias do pluralismo jurídico foram elaboradas no decurso do
nosso século, algumas vêm de tempos mais longínquos.
O ensinamento tradicional do direito consiste em apresenta-lo como um
atributo de uma sociedade tomada na sua totalidade. É neste sentido que se fala do
direito moçambicano. Esta apresentaçã o repousa no postulado segundo o qual a
sociedade moçambicana possui um ú nico sistema jurídico, que rege o comportamento
de todos os dezasseis milhõ es de moçambicanos, e um corolá rio: os subgrupos da

68
Citado por Ngoenha, ibd: 28
69
Ibd:33
CAPITULO III

sociedade (etnia, tribos, comunidades rurais, etc.) nã o dispõ em de uma autonomia


jurídica. Contudo, nó s sabemos que isto nã o corresponde à verdade: se é verdade que
todos os diferentes grupos étnicos nacionais obedecem a determinadas leis do
comportamento, nã o é menos verdade que as leis de comportamento que se podem
observar nos moçambicanos do norte sã o deveras diferentes daquelas que se percebem,
olhando mesmo empiricamente para os moçambicanos do centro ou do sul. Isto quer
dizer que, nã o obstante a presença das leis do Estado, o direito nã o emana simplesmente
do nível político superior. Estas constataçõ es, na medida em que põ em em evidência
fenó menos de heterogeneidade, deveriam abrir estrada ao pluralismo soció logo e
jurídico.
Podemos pensar que, no sistema moçambicano, existem diferentes sistemas
em interacçã o. O direito oficial global pode simplesmente solucionar problemas e
situaçã o de conflito existente entre grupos distintos, enquanto os direitos internos aos
subgrupos da sociedade têm a funçã o de assegurar a coerência e a reproduçã o desses
subgrupos.
Isto quer dizer que o poder de legifero do Estado deveria parar nas fronteiras
dos ditos subgrupos, afim de permitir que as diferentes jurisdiçõ es locais continuem a
exercer o poder que lhes é pró prio. O resultado seria a existência de um poder jurídico
nacional que se consagraria a regulamentar as relaçõ es globais entre os diferentes
grupos moçambicanos, mas que deixaria livre autonomia de gestã o da vida social e
política aos diferentes grupos moçambicanos.
O Estado moçambicano é portador de uma certa modernidade que é
necessá ria à vida de hoje, pois é ela que detém a educaçã o, a técnica, os meios da saú de,
da economia e das finanças. Assim, se o Estado abandonasse a gestã o da coisa pú blica
aos grupos, sem ter reforçado as suas capacidades de responder à s expectativas
econó micas e sociais dos seus membros, condená -los-ia a uma ulterior incapacidade de
seguir a corrida dos tempos. Mas uma interferência directa e sistemá tica do Estado
impediria uma certa autonomia, portanto, necessá ria aos diferentes grupos.
O direito, cujas fontes se encontram nas organizaçõ es sociais, nã o se deve
confundir com o Estado. Todas as sociedades sã o formadas por subgrupos e cada
subgrupo dispõ es de um sistema jurídico pró prio mais ou menos autó nomos, em relaçã o
ao direito do Estado. O direito do Estado joga mais ou menos o papel de chefe de
orquestra nesta sinfonia de sistemas jurídicos pelo facto de que ele rega as relaçõ es
entre as diferentes ordens jurídicas. Ora, o direito estatal tende a monopolizar o direito,
e nesse seu esforço de monopolizaçã o encontra no individualismo um grande aliado.
Existe uma correlaçã o necessá ria entre o pluralismo socioló gico e o pluralismo
jurídico. O pluralismo jurídico é o Estado normal, quase universal de todas as
sociedades. O pluralismo do direito é uma consequência do pluralismo socioló gico, e
nenhuma sociedade é absolutamente homogênea. Em cada campo social operam
simultaneamente diferentes direitos: o direito do campo social considerado, o direito de
outro ou outros campos sociais e o direito do Estado. Se pensarmos que a sociedade é
formada por diferentes campos sociais, estaremos em presença de uma autêntica galá xia
jurídica onde o direito estatal nã o joga necessariamente um papel dominante (J.
Griffths).
Em Moçambique o pluralismo socioló gico e, portanto, jurídico sempre existe.
As vicissitudes histó ricas por que passá mos nã o coincide com o aparecimento daquilo
que hoje se chama espaço nacional, nã o uniformizaram a sociedade e, portanto, o direito.
Durante todo o período colonial, os portugueses tiveram que negociar com os diferentes
reinos e grupos sociais, sem poderem interferir sempre nas dinâ micas internas dos
grupos. Mesmo as relaçõ es dos grupos internos entre eles passaram pelo mesmo
processo. Ngungunhane teve que negociar com os que tinham caído na sua vassalagem
CAPITULO IV

deixando-lhes, assim, continuar a viver segundo as prerrogativas axioló gicas e jurídicas


que lhes eram pró prias.
Antó nio Enes é o primeiro a querer impor um direito uniforme com resultados
nefastos. Depois da Independência, a Frelimo tentou impor um direito a todos. Mas o
fracasso das aldeias comunais que favoreceram em grande parte a implantaçã o da
Renamo no campo, sã o elucidativas quanto à incapacidade de uniformizar o direito.
Segundo J. Griffths, existem dois tipos de pluralismo: um autorizado pelo
Estado e outro que escapa ao seu controle. Só o segundo é autêntico. Os portugueses e
mais tarde a Frelimo reconheceram certas manifestaçõ es e concederam mesmo certos
estatutos específicos a grupos como as igrejas, as minorias étnicas etc. Contudo, a
política por eles conduzida era unitá ria e centralizadora. De um lado, o Estado
permaneceu sempre o mestre do jogo: era ele que fixava a divisã o das competências
entre ele e as entidades a que ele reconhecia as autonomias e segundo critérios que lhes
eram pró prios. Por outro lado, esta divisã o de competências era feita de tal maneira que
os direitos nã o estatais eram simplesmente subordinados ou residuais. Tratava-se, de
facto, de um pluralismo jurídico fingido. Mais do que o pluralismo jurídico deve-se falar
de diversidade jurídica, uma vez que a existência de regras diferentes, aplicá veis
segundo os grupos sociais ou territoriais, dependia da tolerâ ncia ou da vontade de uma
ú nica ordem jurídica, a do Estado.
Neste sentido, o direito do Estado deveria ser o ponto de chegada de todo um
processo de vida jurídica engendrado pelos diferentes subgrupos nacionais. Mesmo se
se acaba por reconhecer o papel orquestral do Estado nas configuraçõ es jurídicas
nacionais, ele nã o é o ponto de partida para legiferar nacional, mas o ponto de chegada.
O nosso país, mesmo depois da colonizaçã o, continua a veicular modelos
culturais e jurídicos ocidentais. Todavia, os diferentes direitos tradicionais resistiram
bem à alienaçã o. Somente que se esta situaçã o se prolongasse e o Estado continuasse a
ter um direito que nã o se inspirasse nos costumes e nos direitos tradicionais e
continuasse em certos casos a legiferar contra o direito tradicional, ter-se-ia, de um lado,
um Estado com leis incapazes de mobilizar o imaginá rio colectivo das populaçõ es e, de
outro lado, grupos étnicos que vêem nele um adversá rio. Como a unidade de
Moçambique é veiculada pelo Estado e pelas suas leis, a pró pria unidade, razã o
fundamental do centralismo do estado nacional, seria posta em causa.
A transferência de um direito português, que paradoxalmente é o que se
continua a estudar nas universidades moçambicanas, e mais tarde a criaçã o de um
direito colonial, que obedecia a critérios de supremacia política e econó mica dos
portugueses sobre as culturas nacionais, nunca conseguiram abolir os diferentes
sistemas nacionais e os colonizadores acabaram mesmo tendo que aceitar uma espécie
de coexistência jurídica e as diferentes formulaçõ es nacionais.

Transferência Jurídica
A prá tica jurídica colonial e a prá tica jurídica da primeira Repú blica obedeciam
à técnica da transferência jurídica. O resultado desse processo foi a coexistência de dois
sistemas. Muitas vezes, as comunidades continuaram a viver segundo o seu direito; o
direito recebido era só aplicado pelas instituiçõ es estatais. Poucos, sã o os casos nos
quais se pode falar de aculturaçã o jurídica porque, mesmo nas cidades, a maioria da
populaçã o continuou a viver segundo as normas de comportamento que relevavam da
prá tica jurídica e moral autó ctones. Podemo-nos perguntar se a prá tica da segunda
Repú blica, apesar de algumas concessõ es, nã o obedece ela também a um processo de
transferência jurídica.
CAPITULO III

Se olharmos para o direito moçambicano e para a estrutura social


moçambicana, fundamentalmente rural, com as suas diferentes concepçõ es de lei, damo-
nos conta de que o chamado direito moçambicano é um simples resultado de uma
transferência jurídica ocidental. Devemos somente recordar que os portugueses
falharam neste intento, como falhou também a Frelimo que nunca conseguiu impor um
direito marxista uniforme em todo o Moçambique. O que aconteceu foi o
estabelecimento, de facto, de um dualismo entre o direito tradicional que se continuava
a impor em matérias familiares e latifundiá rias, sobretudo nas zonas rurais (basta
pensar na poligamia ou no lobolo) e o direito estatal que regulava as instituiçõ es estatais,
administrativas ou ainda a vida econó mica. Mas, na prá tica, os direitos locais
continuaram sempre a resistir ao direito estatal.
Uma das formas de resistência à transferência foi a desnaturaçã o do direito
transferido. Utilizavam-se técnicas jurídicas europeias para proteger uma instituiçã o
fundamentalmente comunitá ria.
Existe também um fenó meno de incorporaçã o, que é uma das formas de
sujeiçã o do direito autó ctone ao direito estatal. O direito autó ctone é incorporado no
direito estatal em todos os domínios onde nã o há contradiçã o flagrante. Este processo
pode chegar a uma desnaturaçã o do direito autó ctone na medida em que, em certos
casos, as autoridades estatais fazem aplicar o direito autó ctone pelas jurisdiçõ es que
eles mesmo estabeleceram. O exemplo do régulo é emblemá tico, como é emblemá tica a
reacçã o dos chopes à escolha certos régulos que nã o correspondiam à hierarquia
tradicional.
Os portugueses garantiram o respeito dos usos e costumes das diferentes
comunidades moçambicanas, ao mesmo tempo que impunham os direitos europeus
num certo nú mero de casos. Esta atitude procedia da técnica de cooperaçã o. Mas, na
prá tica, esta cooperaçã o exercia-se em detrimento dos direitos autó ctones, uma vez que
foram utilizados diferentes procedimentos com a finalidade de transferir a fronteira
entre direitos autó ctones e direitos modernos em benefício destes ú ltimos. Os direitos
autó ctones sã o considerados contrá rios à civilizaçã o ou como obstá culos à dominaçã o
colonial.

Por um Projecto Político democrático e multicultural


O princípio unitá rio do direito nã o está inscrito na natureza do direito. O
direito começa onde se inaugura a vida em sociedade. Moçambique no seu sistema
cultural pluralista possui nã o um sistema jurídico uniforme e ú nico, mas muitos, tantos
quantos sã o os seus grupos culturais. Isto quer dizer que o direito nã o está ligado, por
natureza, à existência do Estado nem à definiçã o de regras explícitas, nem mesmo ao
reconhecimento da sua racionalidade.
Neste momento fala-se e discute-se muito sobre reformas jurídicas e
constitucionais. O grande ausente neste debate de reforma é a tradiçã o. Eu refiro-me à s
culturas moçambicanas nas quais se deve inspirar toda a constituiçã o que queira ter na
moçambicanidade cultural os seus pontos de apoio. Refiro-me à cultura política e
jurídica moçambicana e nã o à política cultural e jurídica de um Estado com paradigmas
de base e referencias extra-moçambicanas.
É um facto que os nossos costumes sã o menos espectaculares que as reformas
legislativas; porém nã o sã o menos profundas. Nã o é falso que sobre certos pontos o
direito tradicional pode ser inapto à vida e à s exigências da modernidade, como a
constituiçã o de um sistema econó mico liberal, baseado no individualismo e na
concorrência, ou no afastamento puro e simples de sistemas jurídico-culturais
autó ctones, em favor de uma assimilaçã o incondicional e cega de um sistema jurídico
CAPITULO IV

moderno baseado mais sobre consideraçõ es de ordem econó mica que nas observaçõ es
dos dados socioló gicos. Mas é errado pensar que este seja incapaz de produzir novas
formas jurídicas. Este é um erro que consiste em confundir o conteú do do direito
tradicional e a sua ló gica.
Os textos constitucionais, adaptados na nova reforma para a organizaçã o dos
poderes pú blicos, foram decalcados dos modelos europeus que repousam sobre a
referência de uma entidade abstracta, o Estado, e de um regime de exportaçã o ocidental
sobre a separaçã o dos poderes. Estes princípios nã o correspondem nem à s nossas
culturas jurídicas, nem à organizaçã o da nossa sociedade. O que está em causa nã o sã o
os modelos em si, mas a sua aplicabilidade na nossa sociedade organizada de modo
diferente.
Se o idealizador da separaçã o de poderes, Montesquieu, tem razã o, nenhum
sistema jurídico é transferível ou importá vel. Isso nã o significa que nã o devamos
conhecer e aproveitar as experiências que nos sã o alheias, isto é, os mecanismos
técnicos, políticos, socais e jurídicos com os quais os outros povos deram respostas aos
problemas com que se tiveram que confrontar. Mais importante ainda é que temos que
nos conhecer profundamente a nó s mesmos: a nossa sociedade culturalmente
heterogénea, a nossa geografia vasta e conflitual, os nossos recursos (humanos)
insuficientes demográ fica e intelectualmente, a nossa posiçã o econó mica catastró fica, o
nosso lugar no mundo (entre os países mais pobres) e mesmo na Á frica Austral. E isso só
se consegue a partir de uma reflexã o muito séria e colectiva sobre o que, de facto, somos
e do que é Moçambique, a sua sociedade, as suas culturas e, sobretudo, os seus desejos e
aspiraçõ es.
Eu nã o falo do desejo e aspiraçõ es de um pequeno nú mero de indivíduos, por
melhor cultura e formaçã o que tenham, nem sequer falo do que um partido pensa que o
povo quer. Eu digo que é preciso que se faça um inquérito sério sobre o que sã o as
estruturas das nossas culturas e, sobretudo, sobre o que nó s queremos das nossas
culturas: os objectivos que nó s traçamos, os nossos sonhos, as nossas utopias, os nossos
ideais para, a partir daí, pensar o direito. A nossa democracia ou será moçambicana ou
nã o será .
No momento da independência o governo deu prioridade a dois problemas: o
desenvolvimento econó mico e a unidade nacional. Muitas vezes recorreu-se à
codificaçã o na esperança de resolver estes problemas. Para os adeptos do direito de
desenvolvimento, o direito tradicional parecia mal apetrechado e mal adaptado para
assegurar um desenvolvimento de tipo ocidental (Peter Abrams, Uma Côroa para
Udomo); acusava-se-lhe de estar imbuído de magia e de religiã o, de ignorar os conceitos
fundamentais, necessá rios para a economia do mercado, dado que ele ignora as formas
contratuais necessá rias à economia do mercado. Nas relaçõ es familiares, a família
alargada, o lobolo, a poligamia sã o concebidos como instituiçõ es que entravam a
acumulaçã o econó mica e a mobilidade social (K. Nkrumah). O direito latifundiá rio é
particularmente visado por estas críticas, que o acusam de conduzir à sub-exploraçã o do
solo. Os nossos legisladores fizeram reformas agro-latifundiá rias a fim de transferirem
as maiores superfícies possíveis de terra para o controlo do Estado. Muitas vezes, estas
reformas chocam com a hostilidade dos camponeses, muito agarrados aos seus sistemas
tradicionais.
Como afirma E. Le Roy, este procedimento revelou-se um instrumento de
subdesenvolvimento jurídico porque reforçou, por um lado, as desigualdades
econó micas e, por outro, excluiu, de facto, da vida jurídica indivíduos nã o lusó fonos, nem
escolarizados (que constituem mais de oitenta por cento da populaçã o moçambicana)
metendo, assim, em causa os objectivos de desenvolvimento e de integraçã o nacional.
CAPITULO III

Eis porque é estritamente necessá rio ter em conta as opiniõ es das populaçõ es,
nomeadamente no que concerne à sua relaçã o com o direito tradicional.
Insisto que nã o se deve confundir o conteú do do direito tradicional e a sua
ló gica. Se muitas reformas, justas e oportunas, nã o produziram os resultados desejados,
é porque foram sentidas pelas populaçõ es como imposiçõ es de exterior. Uma
transformaçã o gradual a partir de um processo de diá logo teria dado melhores
resultados. Se nã o se fez desta maneira, é só porque as codificaçõ es nã o eram simples
reformas jurídicas, mas serviam também certos interesses só cio-econó micos. As
mudanças correspondiam, em geral, a um aumento do poder do Estado e a certas
mudanças sociais. Ora, com as independências, o direito estatal, na sua concepçã o e na
sua aplicaçã o, passou a ser controlado pelos grupos de interesse que jogavam um papel
activo no desenvolvimento dos sectores «modernos» nacionais. A maioria da populaçã o,
sobretudo constituída por camponeses, ignorava este modo de pensar e o conteú do do
direito estatal, muito influenciado por modelos europeus. Era, portanto, normal que ela
o evitasse e continuasse a referir-se ao direito constitucional.
Isto explica que as legislaçõ es nã o tenham servido em nada os interesses da
unidade nacional, na medida em que elas nã o desembocaram numa unificaçã o do
direito. Como observou o jurista da Costa do Marfim, R. Degni-Ségui, as constituiçõ es e
os textos de organizaçã o judiciá ria da maior parte dos novos estados africanos referem-
se simultaneamente à codificaçã o e à uniformizaçã o do direito nacional. Mas ou fazem
codificaçõ es pelo direito estrangeiro, e acentuam assim a ruptura entre o direito
tradicional e o direito moderno, ou acabaram por consagrá -lo oficialmente voltando à
opçã o da legislaçã o e aos modos coloniais da soluçã o de conflitos de leis internas.
Contudo, muitas vezes o direito tradicional tinha antes passado por uma série de
medidas de desconfiança.
Moçambique, apesar das proclamaçõ es políticas, aplicou desde a
independência o princípio de sucessã o ao direito colonial português, por medo de se
encontrar diante de um vacatio jurídico, resultante do nã o conhecimento ou da
inadaptaçã o do direito tradicional. Trata-se de medidas conservadoras. No futura, nó s
teremos que integrar o direito tradicional e associá -lo ao direito moderno. Primeiro, o
direito tradicional foi excluído porque se pensava que ele correspondia a um estado
arcaico de desigualdades sociais. Hoje pensa-se que é inadequado à economia do
mercado.
As legislaçõ es estatais foram muitas vezes utilizadas contra o direito
tradicional. Mas muitas matérias ficaram sem codificaçã o, deixando campo aberto a que
o direito tradicional continuasse a exercer a sua influência. Mesmo nos momentos de
grande ortodoxia marxista, em certas matérias, nã o obstante os grupos dinamizadores e
as células do partido, o direito tradicional continuou a imperar, sobretudo no domínio
familiar e na resoluçã o de conflitos.
Os textos constitucionais moçambicanos foram decalcados de modelos
europeus, que repousam sobre a referência ao Estado, ao regime de separaçã o dos
poderes e a regra da maioria. Ora, estes princípios nã o correspondem à s experiências
das sociedades moçambicanas, onde o poder está ligado à autoridade pessoal da pessoa
que o exerce, e onde o consenso aparece mais como expressã o de unanimidade das
vontades do que simples lei da maioria. O pluralismo ocidental herdado da democracia
de Atenas permite a cada opiniã o exprimir-se e contabiliza através de uma adiçã o de
sufrá gios, o que comporta o sério risco de exasperar os antagonismos, tornando-os
ainda mais manifestos. A unanimidade pode, no ocidente como em outros lugares do
mundo, servir muitas manipulaçõ es e cobrir muitas injustiças, que é, aliá s, a outra parte
da moeda. Mas a vontade de coesã o que ele exprime encontra nas tradiçõ es africanas um
substracto muito só lido.
CAPITULO IV

Um novo direito mais democrá tico e mais integrador sob o ponto de vista do
desenvolvimento é possível. Porém, ele tem de ter muito mais em conta as diferentes
mentalidades moçambicanas e será nestas condiçõ es mais eficaz que os planos de
desenvolvimento até aqui muito decalcados dos modelos ocidentais. Nã o se trata de
recuar ao passado pré-colonial, mas de adaptar as antigas soluçõ es à s novas exigências.
Qual é a missã o que a democracia moçambicana quer hoje confiar ao Estado?
Quais sã o os aspectos de legalidade de que as sociedades moçambicanas querem abdicar
a favor da existência legítima do estado moçambicano? É necessá rio uma espécie de
contrato entre os subgrupos e o Estado, de maneira que cada um tenha a obrigaçã o
moral e legal sobre as suas acçõ es. O Estado deve ter que responder pelas suas
actividades, mas também os diferentes grupos devem ter que responder pelas suas
acçõ es. O banco de prova de uma democracia, que funciona no respeito pelas diferenças
culturais nacionais, deve passar pela capacidade de cada entidade ocupar
profundamente o seu lugar, no respeito pelas prerrogativas e pelo campo de outras
forças e instituiçõ es políticas e sociais.
Uma certa moçambicanidade já existe, e para criá -la a Frelimo jogou um papel
de primeiro plano. A questã o é saber se a sua consolidaçã o passa pelo reforço de
estruturas centralizadas (a descentralizaçã o quer dizer que existe um centro à volta do
qual gravitam todas as outras dimensõ es políticas e sociais) ou por valorizaçã o das
culturas nacionais no â mbito do Estado moçambicano. Valorizá -las significa nã o reduzi-
las a folclore nacional, nem sequer reabilitá -las maquiavelicamente para depois
subordiná -las à s estruturas centrais do Estado paradigmaticamente ocidental, mas
retomá -las como entidades em movimento e, portanto, como parceiros sérios para um
diá logo social, jurídico e econó mico.
Alguns pensadores insistem na dimensã o subjectiva ou espiritual da naçã o;
outros nas características objectivas e nas condiçõ es econó micas ou técnicas que estã o
na origem dos nacionalismos. Ora, é necessá rio ultrapassar estas oposiçõ es simplistas e
dar espaço à s ideias, aos valores e, ao mesmo tempo, à s condiçõ es concretas da
existência da naçã o.
Renan demonstrou a insuficiência da raça, da língua, da religiã o, dos interesses
e dos dados objectivos da geografia para definir a naçã o. M. Weber e Marcel Mauss
foram ainda mais longe na crítica à definiçã o objectiva da naçã o.
A subordinaçã o das identidades culturais ao elemento político supõ e que os
indivíduos tenham o sentimento de que a sua dignidade colectiva –portanto também
individual –é reconhecida e respeitada. Moçambique só pode atingir uma estabilidade
política se forjar um projecto político capaz de unir as etnias que o compõ em,
reconhecendo-lhes uma dignidade igual.
Hoje Moçambique pertence à ordem política nacional. Na medida em que a sua
existência é legitimada pela vontade dos cidadã os, depende do facto de que estes
interiorizem valores comuns. A moçambicanidade se funda, portanto, mais na moral que
na obrigaçã o, para utilizar a linguagem de Durkheim. Ela se constitui ultrapassando os
radicalismos particulares, imediatamente dados pela etnia através da socializaçã o
familiar, mas que devem ser construídos pela naçã o, para criar um sentimento de
pertença e de participaçã o graças ao qual o colectivo se pode perpetuar. O trabalho
realizado pelo Estado para dar uma certa homogeneidade à cultura das populaçõ es é
justificado, nã o pela preocupaçã o de fazer participar todos os indivíduos na vida pú blica,
mas para dar corpo à comunidade abstracta que é a naçã o e certificar-se da mobilizaçã o
colectiva.
A diversidade cultural enquanto tal nã o impede a criaçã o da naçã o. Ultrapassar
as particularidades através de uma sociedade política nã o implica a supressã o desses
radicalismos. Aliá s, nã o é nem possível nem desejá vel. A cidadania, contrariamente à
CAPITULO III

etnicidade, por exemplo, nã o é fundada sobre a identidade cultural. Nã o há nenhuma


contradiçã o em ser Macua, Chope ou Ndau e ser cidadã o moçambicano. A diversidade
objectiva, a das línguas, das religiõ es e das culturas, nã o é no seu princípio incompatível
com a criaçã o de um espaço político comum. A existência de uma naçã o depende da
capacidade de o projecto político resolver as rivalidades e os conflitos entre os grupos
sociais, religiosos, regionais ou étnicos segundo regras reconhecidas por todos como
legítimas.
Para assegurar a existência de uma naçã o de cidadã os, é necessá rio satisfazer
duas exigências: que os indivíduos admitam a existência de um domínio pú blico
unificado e independente –pelo menos nos seus princípios –, e que eles respeitem as
regras do seu funcionamento; que a igualdade de cada pessoa, que funda a ló gica da
naçã o democrá tica, nã o seja contradita por desigualdades de estatuto em outros
domínios da vida social, de modo particular nos direitos pessoais.
A primeira condiçã o da democracia nã o é poder votar por um partido ou por
outro, nem sequer poder escolher o presidente que queremos que nos governe. A
democracia consiste na inserçã o de cada indivíduo no seio da comunidade e na
participaçã o integral na vida daquela. Por isso, temos que encontrar um espaço
institucional adequando para a implementaçã o democrá tica e para um diá logo de
reconciliaçã o.
Em termos socioló gicos, o espaço de reconciliaçã o democrá tica deve ser uma
unidade que tenha em conta o pequeno nú mero dos membros e uma dimensã o do
territó rio reduzido, dos quais vã o necessariamente depender a participaçã o política dos
cidadã os.
Em termos políticos, o espaço democrá tico deve permitir um diá logo contínuo
e sistemá tico entre o Estado e as culturas.

2. Contrato Social

A segunda Republica é percebida pelos moçambicanos como profundamente


injusta. Ora, da mesma maneira que a questã o do melhor regime, é a mais velha questã o
da filosofia política, a justiça é, provavelmente, o seu conceito mais antigo. Aliá s, eles
estã o intrinsecamente ligados. Para Platã o, por exemplo, o melhor regime é aquele que
está em altura de fazer reinar a justiça na cidade, assim como o objectivo da sabedoria é
fazer reinar a justiça na alma.
O conceito de justiça nã o é e nunca foi exclusivamente político. Ainda menos
jurídico. Ele pode ser apreendido em diferentes sentidos: ético, metafísico-histó rico
(justiça imanente), religioso (transcendental), até mesmo estético. Entre estas mú ltiplas
acepçõ es, nã o separá veis por nenhuma fronteira bem definida, toda uma série de
ligaçõ es mais ou menos subterrâ neas se teceram durante séculos. Esta é a razã o pela
qual a dimensã o política e a dimensã o ética estã o ligadas, como bem prova John Rawls
(1987) na sua Teoria da Justiça que, há trinta anos, teve o grande mérito de dar um novo
alento à questã o da filosofia política, que tinha sido transcurado depois de Rousseau e de
Kant.
Desde o aparecimento daquele livro, a justiça voltou a ocupar um espaço
importante no debate filosó fico actual. Pensar a justiça supõ e pensar simultaneamente o
conceito de igualdade e do contrato. Com efeito, uma comunidade que aspira a fazer
reinar no seu seio igualdade e justiça deveria ser fundada sobre um contrato. Esta ideia
nã o é evidente, dado que ela pressupõ e uma hipó tese preliminar: o cará cter artificial da
sociedade política. Hipó tese que, desde os gregos até hoje, nã o cessou de ser combatida a
partir dos pontos de vista mais diferentes. Mas o que é que o nosso Moçambique tem de
natural?
CAPITULO IV

Para os sofistas (Protá goras, Híppias, Antiphon), a sociedade política nã o é


uma realidade natural, mas um simples artefacto; toda a lei é uma convençã o. Neste
sentido, os sofistas sã o os percursores das teses contratualistas. Ao invés, Platã o,
Aristó teles, como o mestre Só crates, pensam que um indivíduo separado da sua cidade
deixa de ser homem, crença que faz do cidadã o resultado da existência da cidade e nã o
de um acordo entre cidadã os.
Em toda a sua obra política, a começar da Política, Platã o identifica a arte real,
a do legislador ou do homem do Estado com a arte do pastor. Mesmo se nas obras
seguintes tenta esquivar-se desta dificuldade, a verdade é que Platã o nã o diferencia –
como bem observou Aristó teles –o poder do pastor sobre as suas ovelhas ou o poder do
pai sobre a sua família do poder político propriamente dito.
Na Política, logo no início do livro, Aristó teles recorda que a cidade –resultante
da uniã o de muitas povoaçõ es, elas mesmas resultantes da uniã o de muitas famílias –é a
realidade natural por excelência, resultado do instinto que leva os seres humanos a
reagruparem-se para assegurar a pró pria reproduçã o70. Num segundo momento, ela
permite ao homem chegar através do logos, através do debate filosó fico e político, à
consciência plena do justo e do injusto71. Para, além desta forma suprema de
comunidade (Koinô nia) que constitui a cidade e se confunde com o Estado, nã o há nada.
A dominaçã o do platonismo e do aristotelismo sobre o conjunto da cultura
medieval impediu os filó sofos e teó logos medievais de conceberem a civitas, isto é, a
Naçã o ou o Estado como criaçã o artificial, como resultado da vontade de viver juntos
que se teria manifestado uma comunidade humana.
Só no século XVI é que a concepçã o naturalista da cidade foi globalmente posta
em causa. Esta mutaçã o foi devida a dois factores independentes, mas ligados. De uma
parte, o desenvolvimento das ciências experimentais, da tecnologia, do racionalismo e
do humanismo contribuem para fazer recuar a concepçã o religiosa do mundo e,
portanto, da política. Testemunham este facto a inclusã o, há algumas décadas de
distâ ncia, de doutrinas tã o subversivas como as de Maquiavel e Jean Bodin (teó ricos da
soberania do Estado face à Igreja), de La Boétie (Crítica da Servitude Voluntá ria), os
trabalhos de Johannes Althusius e Francisco Suarez que introduziram progressivamente
a noçã o de soberania popular, para nã o falar das utopias de Thomas More e de Tommaso
Campanella (Cidade do Sol).
Doutrinas diferentes, mas com um ponto comum, elas dã o à cidade terrestre o
seu estatuto de cidade de parte inteira, o que permite ver a cidade como um artefacto.
Por outro lado, o surgimento de uma burguesia comercial conduz os filó sofos a
pressentirem a necessidade de fundar a lei distinguindo a esfera pú blica –lugar de luta
pelo poder –da esfera privada –destinada ao enriquecimento pessoal de cará cter
material ou espiritual. Ao mesmo tempo, de conceber progressivamente a relaçã o social,
constitutiva da esfera pú blica. Em outras palavras: o contrato, o pacto ou a convençã o.
Nos dois séculos que vã o seguir, este modelo vai tornar-se dominante. Ele
inscreve-se numa problemá tica geral que é comumente identificada como a questã o do
direito natural. As grandes linhas deste modelo encontram-se nas obras dos dois
principais jusnaturalistas do século XVII, Hugo Grotius (Do direito da guerra e da paz,
1625) e Samuel Pufendorf (Do direito da natureza e das gentes, 1972). Depois, o tema do
contrato é retomado e desenvolvido por Hobbes no seu Leviathã (1651), Locke nos dois
tratados sobre o Governo Civil (1690) e, algumas décadas mais tarde, por Rousseau no
seu Contrato Social.
Durante dois séculos, o tema do contrato sofre um eclipse quase total. Mas,
inesperadamente, reaparece da obra de John Rawls (Teoria da Justiça, 1971), ponto de
70
Aristóteles, Les Politiques.Livro I, 125a-1252b, 1993.
71
Aristóteles, Les Politiques. Livro I, 1252b-1253a, 1993.
CAPITULO III

partida de um extraordiná rio renascimento da filosofia política, sobretudo nos países de


expressã o inglesa.
Em pleno período de guerra da religiã o, que será seguida pela guerra de trinta
anos, o holandês Grotius escreve que o Estado é «corpo perfeito de pessoas livres, que se
juntaram para gozar tranquilamente dos seus direitos e para a sua utilidade comum».
O que se esconde por detrá s desta definiçã o de Estado é a sua «investidura», a
missã o de fazer reinar a paz, sem a qual as transaçõ es comerciais nã o poderiam
prosperar. Outra ideia de Grotius é que a sociedade política repousa sobre o
consentimento de cada um ao sacrífico voluntá rio da sua pró pria independência,
sacrifício graças ao qual cada um recolherá o benefício de uma segurança garantida
pelas leis, assim como pelas instituiçõ es encarregadas de fazê-las respeitar.
Esta operaçã o desenrola-se em dois tempos. Primeiro, um pacto de associaçã o
(pactum societatis), através do qual os homens se reú nem para constituírem uma
sociedade civil. Segundo, um pacto de submissã o (pactum subjectionis), através do qual
os membros desta nova comunidade designam os titulares do poder que terã o a tarefa
de protegê-los, de, por outras palavras, fazer reinar a paz.
Contudo, mais do que Grotius, foi a doutrina de Hobbes que a histó ria reteve
como a primeira grande expressã o filosó fica da teoria do contrato social. De facto, para
além de ser um grande teó rico, Hobbes é o primeiro pensador (juntamente com
Maquiavel e antes de Locke e de Espinosa) a avançar ideias políticas indissociá veis de
uma concepçã o filosó fica do mundo. Hobbes nã o acredita em Deus nem em espíritos que
existiram independentemente do corpo. A ú nica coisa que existe para ele sã o corpos
movidos por uma força interna a que ele chama desejo. O desejo é a ú nica coisa que
explica os movimentos humanos. Mas os desejos sã o insaciá veis. Quando deixo de
desejar uma coisa começo imediatamente a desejar outra, ao mesmo tempo que começo
a pensar nos meios para satisfazer os meus desejos. Esta é a natureza do homem, é o
estado natural do homem, estado de guerra permanente, de todos contra todos. A
fó rmula clá ssica é homo homini lupus.
Para evitar este estado de guerra, de medo de matar ou ser morto, para
escapar ao inferno terrestre, os homens até aqui isolados, prisioneiros dos seus desejos
solitá rios decidem abdicar da sua liberdade para remetê-la a uma autoridade superior,
que se encarregará de fazer reinar a paz e a segurança.
O soberano escapa a toda e qualquer regra. Se formos ao essencial, Hobbes,
indiferente à questã o clá ssica do melhor regime político, tenta legitimar um despotismo
de tipo novo: nã o de um homem ou de muitos homens, mas da lei, a ú nica que pode
garantir a paz civil.
Locke insiste na necessidade de nã o confundir o estado natural com o estado
de guerra. O estado natural é um estado de paz, de assistência e de conservaçã o mú tua,
do qual nada nos obriga a sair. Por outro lado, o contrato de Locke nã o produz um
soberano exterior aos mandantes, livre de toda a obrigaçã o. Ao contrá rio, o governo
permanece sob controle, sob dependência dos que lhe confiaram a missã o de governar.
De resto, este governo nã o deve nunca agir segundo uma outra regra fora da vontade do
grande nú mero.
Locke aparece como o primeiro teó rico de um governo parlamentar. As suas
ideias inspiraram na Inglaterra a redacçã o da Declaraçã o dos Direitos (Bill of Rights) de
1689, da Constituiçã o Americana (1787) como a Declaraçã o francesa dos Direitos do
Homem (1789).
Eis porque Locke é o pai incontestá vel do liberalismo clá ssico. Mas ele nã o é o
pai da tradiçã o democrá tica no sentido estrito. Este título, se se tivesse que atribuir a
alguém, seria a Rousseau do Contrato Social. Para o pensador da Genebra, no estado de
natureza, os homens vivem isolados, separados uns dos outros. Eles decidem reagrupar-
CAPITULO IV

se para viver melhor –decisã o racional, pois a natureza do homem só se realiza


plenamente no estado social –, mas nã o pretendem renunciar a nenhuma parcela da sua
liberdade original. Deve-se, portanto, encontrar uma forma de associaçã o que defenda e
proteja com toda a força a pessoa e os bens de cada associado, através da qual cada um
une-se a todos, obedecendo, entretanto, só a si mesmo, permanecendo, assim, livre como
antes72.
A soluçã o deste problema reside num pacto social. As consequências sã o: de
um lado, as leis que regem um tal estado só podem ser a expressã o da vontade geral –
que nã o é a mesma coisa que a vontade de todos; por outro, a forma legítima de um tal
governo só pode ser a democracia directa, dado que Rousseau refuta a ideia de que os
cidadã os possam delegar as suas liberdades a representantes.
A Revoluçã o Francesa deve tanto a Rousseau como a Revoluçã o Americana a
Locke. Mas o radicalismo do primeiro resistirá menos bem à s provas dos factos que o
pragmatismo do segundo. A Constituiçã o Americana nã o mudou em dois séculos, a
Revoluçã o francesa acabou no banho de sangue que todos conhecemos e a sua herança
nã o cessou de ser questionada.
Talvez haja algo de utó pico na ideia da democracia directa defendida pelo
genebrino. O que é certo é que a questã o do contrato continua a inspirar pensadores
como Fichte (Fundamento do direito nacional segundo os princípios da doutrina da
ciência, 1796 e 1797), Kant (Doutrina do direito, primeiro volume da metafísica dos
costumes, 1796).
Todavia, a teoria do contrato nunca colheu unanimidade. Espinosa nã o a pô s
no centro do seu Tratado Político (1677); Montesquieu ignorou-a; David Hume criticou-
a vivamente no seu ensaio de 1748.
Nem Hegel nem Marx tomam a sério a questã o do contrato. Temos que esperar
até Rawls. Só que este encontra-se colocado ao serviço de uma concepçã o igualitá ria da
justiça. Trata-se de lutar contra as injustiças sem sacrificar as liberdades.

A Justiça como equidade


A questã o que está no centro das preocupaçõ es de John Rawls parece-me
importante quer para o contexto actual da comunidade internacional, quer para o
contexto moçambicano: «em que condiçõ es poderia se instaurar, nas sociedades
modernas, uma justiça distributiva?» Vou tentar expor, traduzindo para a situaçã o de
Moçambique, as preocupaçõ es de Rawls.
Se os cidadã os moçambicanos, os do sul como os do Norte, os das cidades
como os do campo, os filhos das elites como das camadas mais simples, partissem na
vida com chances iguais, a justiça consistiria em tratar todas as pessoas da mesma
maneira, isto é, a cada um a mesma quantidade de direito ou de bens sociais.
Mas as coisas nã o se passam assim. Podemos dar tantos exemplos, que se
tornam inú til, para provar que partimos para a vida com possibilidades desiguais.
Dado que as oportunidades sã o, à partida, divididas de uma maneira desigual,
a justiça deve consistir em dar mais a aqueles que têm menos a fim de restaurar, à
chegada, a igualdade.
Se se concebe a justiça nã o em termos matemá ticos mas em termos de
equidade, pode-se pensar que uma dose de desigualdade é indispensá vel à justiça. Como
determinar esta dose e quais sã o as modalidades da sua aplicaçã o?
A resposta de Rawls consiste em reabilitar, três séculos depois de Grotius, o
conceito de contrato social. O meu objectivo, diz Rawls, «é apresentar uma concepçã o da

72
Rousseau, 1995.
CAPITULO III

justiça que generaliza e leva ao mais alto nível de abstracçã o a teoria bem conhecida do
contrato social, como ela se apresenta, entre outros, em Locke, Rousseau e Kant.»
Algo em termos filosó ficos me parece importante nesta obra. Rawls inscreve a
sua obra numa perspectiva reformista apresentada como a ú nica via possível contra as
derrotas previsíveis da via revolucioná ria como aquela que conhecemos em
Moçambique.
Apesar de nos encaminharmos em direcçã o a um sistema liberal, a situaçã o de
injustiça que se vive hoje no mundo e em Moçambique nã o é aceitá vel. Ouvi um
deputado a dizer na TVM, «o liberalismo (referindo-se à s privatizaçõ es e ao sistema de
mercado selvagens) é o que está a dar».
Uma figura histó rica da política moçambicana disse-me ter constatado numa
reuniã o do partido a que pertence –a partir dos bens e do discurso –a impossibilidade do
regresso a uma prá tica socialista. E acrescentou que a Frelimo foi o que foi dividido ao
contexto internacional. Hoje, isso nã o é possível e tentar fazer o discurso de 1977 seria
suicídio histó rico.
Todavia, a injustiça, a exploraçã o e a miséria da maioria da populaçã o
tornaram-se moralmente e politicamente aceitá veis? Os políticos nã o podem ser
fatalistas, as posiçõ es políticas nã o podem depender do que está a dar, mas devem
revelar de convicçõ es fortes. É verdade que a via da revoluçã o nã o é praticá vel e nã o só
por razõ es de conjuntura histó rica. Mas isso nã o pode significar nem conformismo nem
que aceitamos pautar com a injustiça. Existe uma busca intelectual e um debate no
interior do mesmo mundo liberal em favor do «reformismo».
É neste sentido que defendo o pensamento de Rawls. Pode ser uma
contribuiçã o pertinente para pensar Moçambique.
Com efeito, apesar de ressuscitar o contrato social, Rawls nã o faz um simples
retorno à s teorias clá ssicas do direito natural. Ele parte de uma hipó tese do interesse, na
medida em que esta lhe permite e lhe pode permitir uma imagem rigorosa do que
deveria ser uma sociedade justa, uma sociedade bem ordenada. Mas é necessá rio
restituir o verdadeiro sentido à posiçã o original, isto é, à situaçã o de incerteza que
logicamente precede o momento da assinatura do pacto.
Para Rawls, os futuros contratantes nã o deveriam saber do que seria a sua
sorte pessoal depois da assinatura. Mantidos num estado de ignorâ ncia, sem nenhum a
priori filosó fico ou religioso, eles acabariam por aderir ao sistema que melhor
combinaria estas duas exigências: a exigência da maior liberdade individual (no caso em
que se nasce rico) e, por outro lado, (quando se nasce pobre) a da maior igualdade
possível de chances. Esta situaçã o desembucha sobre a formulaçã o de dois princípios
susceptíveis, a eles só , de definir o que se deve esperar de uma sociedade justa.
Contra os marxistas, ele afirma que o primeiro princípio é o da liberdade, que
nã o pode ser limitado por nenhum outro que nã o seja a liberdade ela mesma. Contra os
utilitaristas, ele anuncia o princípio da diferença segundo o qual a preocupaçã o pela
justiça em geral deve, em todas as circunstâ ncias, ser colocado antes da preocupaçã o
pela eficiência e pelo bem-estar.
A priori resulta claro que os princípios acima enunciados parecem jogar uns
contra os outros. O direito à educaçã o, à assistência médica a serem oferecidos aos mais
desfavorecidos só pode ser financiado por um mecanismo de redistribuiçã o de riquezas
com o imposto progressivo sobre o salá rio, mecanismo que implica para os mais ricos,
uma limitaçã o da sua liberdade de se enriquecer. Rawls pensa que é possível conciliar
estes dois princípios só se o pacto social for capaz de instaurar instituiçõ es a que ele
chama de democrá tico-progressistas.
Há , contudo, aspectos do pensamento de Rawls que deixam um pouco a
desejar. Primeiro, em nenhum momento ele prospecta uma sociedade fundada sobre
CAPITULO IV

outra coisa que nã o seja o mercado livre de tipo capitalista. Apesar de uma tentativa de
afirmar que a sua concepçã o do mercado livre nã o implica necessariamente a
propriedade privada dos meios de produçã o, fundamentalmente toda a sua doutrina
repousa sobre o postulado frá gil, segundo o qual a construçã o de um Estado justo só se
pode efectuar lá onde existe previamente uma economia do mercado, isto é, um
capitalismo liberal. Aplicado a Moçambique, nó s estaríamos condenados à injustiça até
ao estabelecimento definitivo de uma economia do mercado. A justiça depende, assim,
do mercado, e onde nã o há ou ainda nã o há um mercado bem estabelecido se deveria
renunciar à procura da justiça.
Para além de ser perfeitamente indemonstrá vel, um tal postulado apresenta
um outro inconveniente: ele conduz-nos, sem nenhuma forma de processo, ao universo
de A. Smith, Bentham, J. S. Mill, e isto em detrimento da intençã o de partida da teoria da
justiça que era de se contrapor à definiçã o utilitarista da justiça (assimilada por J.S. Mill
com a eficiência econó mica) com uma definiçã o de inspiraçã o kantiana da justiça como
equidade.
Pior ainda, a partir dos anos 80, com as suas intervençõ es Rawls abandona a
posiçã o universalista do seu primeiro livro, onde ele reivindicava a validade da sua
teoria de justiça para todas as sociedades, e confina a validade do seu pensamento à s
sociedades já democrá ticas e liberais.
Por outras palavras, as sociedades africanas –para citar o nosso caso –desde
que respeitem um mínimo de direito do Homem e sejam minimamente ordenadas,
podem continuar a ignorar a liberdade e a justiça. É como dizer que a liberdade e a
justiça sã o prerrogativas exclusivas de alguns povos. Rawls postula este perigoso
relativismo cultural e racismo axioló gico em nome do respeito pelas culturas...
Isto significa carta branca a certos governos totalitá rios do continente em
nome do relativismo cultural, mas isso significa também carta branca a certas empresas
do norte nos países do sul e, sobretudo, consolida certas posiçõ es da sociobiologia. Sob o
ponto de vista filosó fico e ético, o relativismo cultural é inaceitá vel.
Contudo, as teses de Rawls suscitaram um enorme debate e alimentaram o
essencial do debate filosó fico político dos ú ltimos anos.
Em relaçã o aos pressupostos metodoló gicos, Jurgen Habermas contesta que
estes sejam «metafisicamente neutros», ao mesmo tempo que acusa os dois princípios
de Rawls de desenharem uma sociedade estagnada. Uma sociedade no seio da qual o
papel do que se chama «auto-legislaçã o democrá tica» (ela mesma fundada sobre uma
utilizaçã o pú blica –polémica, portanto, comunicacional –da razã o) nã o seria
suficientemente valorizada.
Todavia, as teses destes dois filó sofos sã o de tal maneira pró ximas que os seus
desacordos nã o têm que ser exagerados. Como diz o pró prio Habermas trata-se de uma
«querela» de família73. Aliá s, o pró prio Rawls, minimizando as polémicas, mostra estar
de acordo com a posiçã o de Habermas.
Richard Rorty é resolutamente oposto. Depois de ter rompido com os
«dogmas» da filosofia analítica para voltar-se para o pragmatismo de William James e
John Dewey, nã o cessa de repetir que a ilusã o fundadora é a ilusã o filosó fica por
excelência. A construçã o através da qual Rawls defende a sua concepçã o de justiça
parece-lhe uma ilustraçã o do erro que consiste em crer que a democracia teria
necessidade, por se sentir «em boa saú de», de uma qualquer «justificaçã o» filosó fica.
Para Rorty, o melhor argumento em favor da democracia é a democracia mesma.
A questã o que a posiçã o de Rorty levantava é saber até que ponto as
convicçõ es democrá ticas se coadunam com um relativismo metodoló gico, isto é, uma
radical ausência de fundaçã o.
73
J. Habermas, 1977.
CAPITULO III

Temo dever dar razã o a Rorty, dado que se deve admitir que a passagem de
um «ponto de vista transcendental» a um ponto de vista «neo-pragmá tico» nã o nos
deveria conduzir a renunciar à convicçã o segundo a qual a democracia constitui um bem
para todas as sociedades actuais, independentemente das diferentes especificidades
culturais.
Que nã o haja verdade metafísica nã o impede que certas coisas sejam
verdadeiras. Que toda a verdade nã o seja demonstrá vel nã o implica, ipso facto, que tudo
valha, nem que todo o esforço de pensamento seja antecipadamente inú til.
Uma segunda controvérsia (que nos interessa de perto em Moçambique) é
saber qual deveria ser o peso relativo do Estado numa sociedade democrá tica. Robert
Nozick (Anarquia, Estado e Utopia, 1974) autêntico porta-voz dos libertinos e
anarquistas –como Noam Chomsky –defende o cidadã o contra os direitos pú blicos. Pode
existir um poder superior ao excelso poder dos indivíduos? Eis o postulado de partida
do trabalho de R. Nozick (1974:9).
Nozick nã o adere à teoria anarquista no sentido estrito do termo, apesar de ter
escrito a sua obra nos ambientes aná rquicos californianos pó s-68. Ele pensa que um
estado minimal é preferível ao estado de natureza, como, por exemplo, foi descrito por
Locke. O estado de natureza expõ e os indivíduos a toda a espécie de violências. Contra
uma tal violência, existe só um remédio que é a instauraçã o de um sistema de proteçã o
pú blica, dotada oficialmente de um monopó lio do uso da força, isto é, o Estado.
Todavia, este Estado deve permanecer num estado minimal e o seu papel deve
limitar-se, segundo Nozick (1988:45), à s simples questõ es de protecçã o contra a força, o
roubo, a fraude, assim como a garantir a aplicaçã o dos contratos.
Como Chomsky, Nozick recusa admitir que a tolerâ ncia possa ter limites, ou
que o Estado tenha o direito de proibir seja o que for que crie problemas à sociedade,
quer seja de ordem física, psíquica ou mental.
Ele aceita o imposto, porque para que o Estado possa exercer o seu direito de
violência legítima, segundo a famosa fó rmula de Max Weber, ele tem necessidade de
prelevar os impostos. O imposto, em si mesmo, nã o é amoral, na condiçã o de que sirva
para financiar serviços protectores. Armado destas bases libertinas, Nozick (sobretudo
na segunda parte do seu livro) ataca Rawls em quatro pontos fundamentais.
Inspirando-se de Tocqueville e de Mill (On Liberty, 1859) Nozick recusa o
direito de o Estado impor à sociedade uma qualquer definiçã o de bem, de moral ou de
justiça. Ainda mais, nã o existe nenhum meio de determinar rigorosamente o que cada
membro de uma sociedade mereceria a título de justiça distributiva.
1) A distribuiçã o de riquezas defendida pela teoria da justiça beneficia, só na
aparência, a colectividade no seu conjunto. Na realidade, ela beneficia os mais dotados.
2) A desigualdade de chances, no começo da vida, é na verdade um problema
social, mas nã o deve ser encarado com um espírito autoritá rio e centralizador, pela
simples razã o que a vida nã o é uma corrida, na qual estaríamos todos em competiçã o
com vista a ganhar um prémio pré-estabelecido por alguém.
Enfim, se passarmos da teoria à prá tica constatamos que os verdadeiros
beneficiá rios das intervençõ es do Estado na economia nã o sã o verdadeiros pobres, mas
as classes médias.
O que fazer se a justiça distributiva e a igualdade social nã o sã o a soluçã o? Para
Nozick deve-se, de um lado, recorrer à generosidade voluntá ria e, do outro, apela para
novas soluçõ es num espírito declaradamente utó pico.
Os chamados filó sofos comunotaristas (MacIntyre, Charles Tylor, Michael
Sandel) criticam a posiçã o de Rawls quanto à sua visã o do ser humano, concebido como
um indivíduo abstracto e isolado, detentor de direitos intemporais. Eles começam por
constatar que a doutrina de Rawls, que eles etiquetam de liberal, constitui um progresso
CAPITULO IV

em relaçã o à s especulaçõ es utilitaristas até entã o dominantes. Mas acrescentam


imediatamente que esse liberalismo, que se tornou a nova ortodoxia, nã o traz uma
resposta definitiva à s questõ es em discussã o. Ele é mutilado por três fraquezas
congénitas.
Primeiro, a doutrina se baseia sobre a ideia de Locke e dos teó ricos do direito
natural, segundo os quais os seres humanos sã o simples mó nadas ou á tomos, isto é,
indivíduos racionais, virtualmente idênticos e trocá veis, e que o que os define é feito de
possuir, a priori certos direitos.
Em seguida, ao Estado fundado sobre a ideia do contrato social, ele confia uma
missã o limitada: a de aproximar os indivíduos uns dos outros, ao mesmo tempo que lhes
oferece um quadro propício para o exercício dos seus direitos e, em particular, ao seu
direito de escolher, com toda a liberdade, o tipo de vida que melhor lhes convém. Enfim,
ele nã o concebe que a política possa ter outra finalidade que assegurar o funcionamento,
o mais rentá vel possível do sistema acima descrito. Por outras palavras, a boa gestã o dos
indivíduos na sua relaçã o com os outros indivíduos, assim como com o Estado.
Para os comunotaristas, o ser humano é um pessoa que, pelo nascimento,
pertence a diferentes comunidades (familiares, linguísticas, culturais) e cuja histó ria
concreta se enraíza na histó ria das comunidades. O Estado nã o seria uma espécie de
má quina jurídica destinada a proteger direitos que lhe preexistem, mas uma das
instituiçõ es susceptíveis de nutrir o tecido social. A política deveria servir para fazer
triunfar, num dado quadro, uma concepçã o de bem partilhado pelo conjunto dos actores
sociais.
No livro Depois da virtude: Estudo da teoria Moral (1981) Alasdair MacIntyre
defende que se tenha que voltar a Aristó teles. Para ele, os ocidentais ter-se-iam tornado
individualistas no Século das Luzes e, por consequência, todo o sentido de valores
morais, toda a ideia do que é a virtude, os seus juízes inspirados pelas emoçõ es ter-se-
iam tornado existencialistas. E isto quando nã o sucumbem simplesmente ao cepticismo.
Para se reencontrar o sentido global do bem tem que se voltar à ética de Aristó teles,
relida numa perspectiva cristã . Isto é, a ideia segundo a qual a vida humana só se pode
tornar uma vida boa se ela se assume plenamente, no quadro da polis, como vida
comunitá ria.
Passando da moral à política, ele constata que o quotidiano de uma democracia
liberal parece-se sempre mais com uma guerra civil combatida com outros meios (meios
judiciá rios que servem para defender os direitos de cada um). MacIntyre (1981:245)
denuncia a incapacidade do liberalismo de organizar uma autêntica comunidade
política, cimentada pela sua aspiraçã o ao bem colectivo. A justiça já nã o é uma virtude:
ela consiste, simplesmente, no respeito mecâ nico pelos indivíduos e pelo estado de
certas regras formais. É uma justiça desencarnada pela qual é impossível entusiasmar-
se, como nota MacIntyre no sétimo capítulo do seu livro, consagrado simultaneamente à
crítica de Rawls e de Nozick.
Também cristã o e também preocupado com o declínio dos valores morais, o
canadiano Charles Taylor explora uma outra maneira de escapar à Kant (ou ao suposto
kantismo de Rawls) retornando a Hegel. Contudo, a sua visã o é menos conservadora que
a posiçã o de MacIntyre, a quem ele acusa de nã o tomar suficientemente a sério o
projecto do Iluminismo. Defensor de uma modernidade que ele reconstitui longamente
no seu livro principal (As fontes do eu, 1989), Taylor (Hegel, 1975, Hegel e a Sociedade
moderna, 1979) insiste sobre a necessidade de nã o se separar o Homem como agente
moral do Homem como animal social. O ser humano é incapaz de seguir o bem ou a
felicidade fora de uma comunidade determinada pela linguagem, cultura e valores. É
esta ú ltima preocupaçã o que leva Taylor a procurar, na reactualizaçã o do pensamento
político hegeliano, uma soluçã o original aos problemas do nosso tempo.
CAPITULO III

Com efeito, nos Princípios da filosofia do direito (1820), para justificar a sua
crítica ao individualismo liberal kantiano, Hegel apoia-se sobre a necessidade de
distinguir dois conceitos falsamente pró ximos um do outro. La Sittlichkeit (ou a
moralidade objectiva) que se refere à s normas condivididas por uma comunidade. Ela
fundamenta-se na obrigaçã o na qual me encontro, enquanto membro de uma
comunidade, de realizar as potencialidades morais que já estã o lá , implícitas na maneira
de viver desta ú ltima. A Moralität (ou a moral subjectiva, única figura de moral que Kant
conhece) remete, ao contrário, para princípios abstractos, não realizados como tais na
comunidade na qual me reclamo.
A partir de lá, Hegel mostra como o individualismo liberal deve ser dialecticamente
ultrapassado (aufgehoben), dado que a Sittlichkeit –e não a Moralität –está à altura de
colmatar as nossas aspirações mais elevadas. A liberdade humana só se pode realizar no
quadro de Sittlichkeit, isto é, no quadro de uma comunidade ética e política que exprime
completamente a identidade dos seus membros. Uma comunidade cujo estado moderno, ele
mesmo resultante do surpasso (aufhebung) da família e da sociedade civil burguesa,
representa, segundo Hegel, a forma mais completa, aquela com a qual se pode realizar, o fim
da história.
Um pouco distante desta vasta interpretação filosófica, Michael Sandel, no livro
Liberalismo e os limites da justiça (1982) prestou-se a identificar, de maneira mais precisa, as
fraquezas da definição liberal do eu como «eu sem qualidades» e as correlativas concepções
do Estado sem um verdadeiro projecto ético.
Se o indivíduo fosse simplesmente um ser detentor de direitos, e não um agente
moral e social, ele teria incapaz de se exprimir pelo seu próprio carácter, de descobrir-se
através da experiência do conhecimento de si e, finalmente, sentir a amizade pelos seus
semelhantes. Em suma, não teria nada a ver com o que sabemos dos seres humanos reais.
Quanto à justiça distributiva, se, como pretende Rawls, ela pode ser definida de
uma maneira metafísica «neutra», sem referência a nenhuma ideia de bem, se ela pode ser
reduzida a uma série de procedimentos ou de cálculos, então ela cessa, ao mesmo tempo, de
constituir o único objectivo válido para uma comunidade política. Não só porque ela nunca
será realizada de facto, mas, sobretudo, porque um tal objectivo é, por ele mesmo, demasiado
limitada para oferecer à vida comunitária um objectivo exaltante.
Nem Sandel, nem Taylor criticam Rawls do ponto de vista conservador. Ao mesmo
tempo, nenhum dos dois primeiros ataca o estado de providência. A questão deles seria uma
providência, sim, mas para fazer o quê? Se nós não somos capazes de dar à nossa existência
social uma outra finalidade que não seja a defesa dos nossos pretensos direitos?
Para os comunotaristas, sobretudo os que se dizem da esquerda, como Sandel e
Taylor, deve-se denunciar a abstracção que é a justiça distributiva, mas, sobretudo, deve-se
voltar ao conceito «cívico» e «republicanao» (para não dizer romano) até mesmo
«aristotélico» do bem público.
À margem deste debate, uma outra discussão opõe, desde alguns anos, dois
americanos que se dizem ambos discípulos de Rawls: o jurista Ronald Dworkin e o
historiadro e antropólogo Michael Walzer.
No seu principal livro, Tomar os Direitos a Sério (1977), que, na realidade, é uma
compilação de artigos publicados durante os dez anos precedentes, Dworkin ataca dois
adversários: de um lado, o utilitarismo e, do outro, o positivismo jurídico. O jurista começa
por recordar que o direito não se reduz a um conjunto de regras jurídicas inscritas nos códigos
existentes. Confrontado com situações para as quais o código não traz nenhuma solução, o
juiz é frequentemente obrigado a interpretar a lei. Neste caso, a única base sobre a qual ele
pode se apoiar é a moral. Não a sua moral pessoal, dependente das suas convicções filosóficas
ou religiosas, mas a moral que se depreende dos princípios fundamentais da constituição do
seu país, da qual ele é, de certa maneira, garante.
CAPITULO IV

Ora, as constituições da maior parte dos estados democráticos derivam de um


princípio de base, segundo o qual o indivíduo deve ser protegido contra toda a violência
arbitrária, quer ela proceda de outros indivíduos, quer ela provenha do próprio Estado. Trata-
se de um princípio segundo o qual (como já diziam Rawls e Nozick) o indivíduo tem direitos
morais a fazer contra o Estado, direitos anteriores a todos os códigos escritos, e que estes
últimos não poderiam abolir.
O direito não é, por conseguinte, separável da moral, como não é separável da
economia ou da sociologia. E se o estado democrático quer ser, de facto, um Estado de
Direito, deve tomar o direito a sério. Por outras palavras, tomar a sério o direito que os
indivíduos têm de se revoltarem contra tal ou tal lei existente, quando esta lhes parece injusta,
e mesmo se a lei em questão tiver sido votada democraticamente e, portanto, reflectir a
opinião da maioria dos cidadãos.
Trata-se de uma tese politicamente audaciosa e filosoficamente discutível.
Politicamente audaciosa porque ela acaba restituindo (contra Hobbes, Kant, o positivismo de
um jurista kantiano como Hans Kelsen) um forte sentido do direito à desobediência. É uma
tese discutível dado que ela reanima o espectro dos famosos direitos naturais do homem –
noção de origem estóica, cara aos teóricos do contrato social, mas que Bentham qualificou de
pomposa absurdidade, que os positivistas desconstruíram e que Rawls não ousou reivindicar
abertamente.
Dworkin tinha previsto essas objecções. Para os que o criticam do ponto de vista
político, ele faz valer que um dos pontos fortes da constituição americana é exactamente que,
em certos casos, o cidadão poderia ter razão contra a decisão do Estado. Nestes casos, a
Constituição exige que o direito dos cidadãos seja respeitado, mesmo se em detrimento do
interesse geral, ou ao que, nesse momento, é considerado como tal pela maioria dominante.
Os que põem em dúvida a solidez da sua construção filosófica, Dworkin responde
que não há necessidade de recorrer à ficção metafísica dos direitos «naturais», dado que a
realidade dos direitos morais dos cidadãos é literalmente inscrita nos princípios fundadores da
Constituição americana. Uma vez mais, é suficiente que se tome a sério a constituição, para
tirar logicamente estas ilações.
Preocupado em não ser acusado de formalismo, Dworkin relê a dita Constituição
para tentar encontrar, concretamente, os valores morais em nome dos quais, segundo os seus
detractores, o indivíduo teria o direito imprescindível de se revoltar.
É exactamente na Constituição que efectua a sua descoberta mais importante.
Contrariamente ao que afirmam os defensores do liberalismo, o valor fundador desta não é a
liberdade, mas a igualdade. Mais, precisamente, a igualdade de respeito e de atenção que cada
cidadão tem direito a receber da parte do Estado.
Com efeito, não existe o direito à liberdade em geral. De facto, os homens têm
caracteres, gostos e preferências diferentes, e são levados a escolher o tipo de vida que melhor
lhes convém. Tudo isto é normal, mas não cria um direito.
Em contrapartida, existe o direito fundamental de cada americano beneficiar de
uma protecção igual da parte da lei, ou do que Dworkin chama, para ser preciso, uma
igualdade de respeito e de atenção. Cada cidadão tem o direito de não ser mais mal tratado
que os outros –sobretudo se ele é, por nascimento ou por condição, mais fraco ou menos
favorecido que os outros. E é com base neste direito que ele pode exigir do Estado que a sua
liberdade seja protegida.
Se a liberdade é segunda em relação à igualdade, se ela é uma simples
consequência, não se pode voltar a falar de conflito entre os dois. Dizer que a vontade de
reduzir (através do imposto) as desigualdades sócio-económicas no seio do Estado significaria
atacar o direito superior dos cidadãos é uma coisa absurda.
Walzer levanta-se não só contra o utilitarismo e o positivismo, mas também contra
o que ele chama igualitarismo simples, uma doutrina implícita, segundo ele em Rawls e
Dworkin. No seu livro mais controverso Esferas da justiça (1983), Walzer parte de uma
CAPITULO III

constatação empírica: uma certa dose de pluralismo social e cultural é indispensável a toda a
comunidade humana. Todo o cidadão aspira possuir diferentes espécies de bens, e todos os
cidadãos não procuram, necessariamente, nem o mesmo grau, nem os mesmos bens. Uma
dada sociedade divide-se, portanto, em diferentes esferas. Seja, por exemplo, o mercado
económico, o mundo da administração, da educação, da saúde, da vida familiar, da vida
religiosa, das honras públicas. Em cada uma destas esferas uma espécie de bem determinado
(dinheiro, poder, tempo livre, conhecimento, longevidade, o amor, graça divina, ou as
recompensas oficiais) é procurada por ela mesma. E, em cada esfera, este bem é manipulado
por um pequeno grupo. Esta seria a fonte das desigualdade.
A partir desta análise (que Walzer fez habitualmente derivar de Pascal e do jovem
Marx) existem dois remédios possíveis: ou, como recomenda Marx, se tenta destruir os
monopólios, ou então se toma o seu partido, e apoia-se a um perigo talvez maior, que é o facto
de algumas esferas tenderem a predominar sobre outras.
Walzer opta pela segunda pista. O objectivo não é transformar a sociedade por via
revolucionária, mas estabelecer protecções destinadas a impedir que pequenos grupos no
interior de cada esfera monopolizem um determinado bem, utilizem a sua posição para se
apoderarem, pela violência, dos bens procurados em outras esferas. Em suma, trata-se de fazer
de maneira que os chefes do mercado não se tornem chefes da administração, nem que os
detentores da graça divina, os controladores do saber. A condição é que as esferas coexistam
sem se justaporem, que não haja transgressões de fronteiras e que os indivíduos sejam livres
de escolherem e pertencerem a diferentes esferas. As desigualdades mais graves poderiam,
assim, ser reduzidas.
Walzer qualifica um tal sistema de justo. Quer dizer que a sua concepção do
indivíduo é menos desencarnada que a de Rawls e mais preocupada pelo contrato concreto
(necessariamente histórico) dos membros de uma comunidade determinada e das suas
aspirações. Enquanto Dworking faz da igualdade entre os cidadãos o valor fundador de toda a
democracia, Walzer opõe-se a este igualitarismo simples, em nome do facto de que os homens
não querem ser simplesmente idênticos uns aos outros. Eles fazem todos muitas diferentes
actividades nas esferas mais diversas. Contra a visão legalista da igualdade, segundo ele
demasiado matemática, Walzer propõe o que ele chama um igualitarismo complexo, no qual
os que perderiam aqui ganhariam lá. Não haveria nem absolutamente vencedores, nem
absolutamente vencidos.
A condição, evidentemente, é que o Estado jogue o seu papel e faça respeitar as
diferentes esferas. Por outras palavras, limitando as tendências expansionistas do mercado
através de medidas apropriadas, como as que preconizam os sócio-democratas.
Dworking responde acusando Walzer de relativismo antropológico. Qualquer
sistema que respeitasse o axioma da separação das esferas seria justo. Neste sentido, o sistema
hindu de castas fundado sobre uma grande desigualdade deveria ser considerado justo.
Quais as razões desta longa exposição do debate filosófico-político especificamente
americano?
1. Porque ele gravita em volta de John Rawls que teve o grande mérito de
ressuscitar a filosofia política.
2. Porque esta ressurgência da filosofia política mostra a possibilidade de
coexistência de dois saberes complementares: o saber filosófico com as suas
ambições normativas ao lado do saber das ciências sociais com as suas
pretensões descritivas.
3. Porque este debate mostra que não só a filosofia não perdeu o seu território e
lugar a favor das ciências sociais, mas mostra também que o fim de uma
contraposição ideológica não significa o fim da história, pelo menos entendida
como fim de um debate político ou de uma procura da parte da filosofia do
famoso melhor regime platónico.
CAPITULO IV

4. Este debate mostra que o debate «intra» liberal, antes mesmo de ser de carácter
político é radicalmente filosófico: é um debate de ideias que resulta da
preocupação intelectual de levantar questões que minam ou podem minar o
sucesso mesmo da democracia liberal.
5. Rawls e o debate mostram que a liberdade não é suficiente para garantir a
democracia liberal, mas que tem que ser incondicionalmente acrescentada pela
preocupação de Rousseau: fazer com que a discrepância entre os ricos e os
pobres não aumente exponencialmente, mas diminua.
6. Este debate mostra que o liberalismo tem de integrar as preocupações
igualitárias e distributivas das quais até agora a esquerda se tem feito intérprete.
Da mesma maneira, os antigos sistemas de esquerda que pecavam por um
défice de liberdade, tem que integrá-la, sem necessariamente abdicar dos
valores igualitários e distributivos de que eram portadores.
7. Se eu me reclamo e me reclamei do contrato –que para mim não pode ser
simplesmente social, mas tem que integrar as dimensões do cultural e do
político –é porque na esteira de Rawls convoco o conceito de contrato para
metê-lo ao serviço da justiça, sem a qual a liberdade perde todo o seu sentido.
Em conclusão, o Estado e as suas diferentes formas não são e nem podem ser
considerados dados de facto. O espaço político é e deve permanecer um campo aberto. A
realidade primeira da socialização é a diversidade espácio-temporal dos indivíduos. Os
homens são movidos por uma multiplicidade de interesses e de opiniões. Não nos devemos
nem angustiar com esta diversidade ao ponto de lhe impor uma norma do exterior ou uma
pretensa unidade preliminar, nem celebrá-la ao ponto de favorecer rupturas. A aposta em jogo
é a conciliação do «um» com o múltiplo: um «um» que corresponde ao movimento infinito de
uma multiplicidade confrontada com uma pluralidade activa da sua própria mediação.
Incumbe à reflexão filosófica incrementar espaços de liberdade, transformar as
situações de injustiça, elaborar propostas, esclarecer os fins políticos e transformá-los. Não se
trata de estabelecer uma enciclopédia, um programa político ou um sistema de filosofia
política, mas de se apropriar das questões políticas nacionais através de uma análise
conceptual susceptível de explicitar as apostas em jogo e servir de substracto mental cultural e
filosófico para um debate de sociedade e para uma transformação política nacional em função
do futuro. Tudo isto sem, contudo, ignorar as contribuições de pensadores de outras
sociedades e culturas que deram respostas aos problemas com que as suas sociedades
estiveram confrontadas num determinado tempo e etapa das suas histórias. Mas sem também
fazer delas verdades transcendentais, prometeicas, pontos de passagem obrigatória, cidades
platónicas, Jerusalém celeste pelas quais devemos passar para atingir uma eventual
soteriologia terrestre, que acabaria por produzir efeitos contrários.
O ponto nevrálgico da reflexão filosófica africana em geral, e moçambicana em
particular, é a busca da liberdade e hoje ouso acrescentar a busca da justiça.

3. Contrato Político

Sabemos da histó ria que o processo da escravatura foi facilitado pelas nossas
divisõ es internas; sabemos que o colonialismo foi também facilitado pelas nossas
divisõ es; sabemos que, para neo-colonizar a Á frica, o Ocidente, desde o Congo até
Moçambique, passando pela Nigéria, utilizou ou suscitou divisõ es.
Mas a histó ria nos ensina que quando fomos capazes de unidade, fomos fortes
e conseguimos, se nã o ganhar, pelo menos resistir! Eis porque o «contrato político» que
permitiu a unificaçã o da Udenamo, Mani e Unamo e a fundaçã o da Frelimo tem um
grande valor pragmá tico, político, mas sobretudo moral.
CAPITULO III

É necessá rio que as diferentes forças políticas e sociais do país sejam os


principais interlocutores uns dos outros, que tenham o sentido da significaçã o profunda
da «palavra» em termos de escuta, diá logo, espaço de reconciliaçã o. Mas como família
moçambicana, que tenhamos o sentido de segredo (prudência, cautela) familiar, isto é,
do que nã o pode a nenhum preço ser dito aos estrangeiros, seja eles quem forem. Isso
permitiria evitar a ingerência dos que se sentem autorizados a meter o nariz nas nossas
coisas privadas (ministérios) com a pretensã o de querer resolver problemas em nosso
lugar.
A filosofia moçambicana é pela liberdade do homem de Moçambique. Ela
aplaudiu a independência, aplaudiu o diá logo e a reconciliaçã o entre a Frelimo e a
Renamo. Aplaudiu a democracia em Moçambique, como aplaude as eleiçõ es autá rquicas
enquanto caminho em direcçã o à liberdade do homem de Moçambique, e nã o como
técnicas e estratégias políticas que acabam diminuindo o nosso espaço de liberdade.
A ú nica coisa positiva que saiu do trá gico período da guerra fratricida foi a
abertura do espaço de governaçã o a todas as forças políticas nacionais e a chamada dos
povos para a contribuiçã o na tomada de decisõ es dos problemas que lhes dizem
respeito. Neste sentido, as eleiçõ es de 1992 foram um passo em frente no caminho das
liberdades concretas dos nossos povos, mesmo que restem ainda por descobrir ou
mesmo inventar novos mecanismos de participaçã o popular, portanto de democracia,
que sejam mais congénitos aos povos de Moçambique. A democracia, como a
independência, sã o valores «moçambicanos» a preservar e a incrementar através da
descoberta de novas formas de participaçã o e de restituiçã o do poder ao povo.
Por conseguinte, os partidos políticos devem considerar-se adversá rios e nã o
inimigos. Devem rivalizar uns com os outros nã o a partir de pertenças étnicas ou
regionais, de amizades e apoios internacionais, mas de programas políticos com vista a
incrementar as liberdades nacionais, os espaços democrá ticos, a participaçã o das
culturas no debate civil, do nível de vida moçambicano, etc. É indispensá vel criar um
espaço político e uma espécie de contratualismo moçambicano. Para isso, deve-se
concretizar um mú nus de princípios, um contrato político que os governantes,
independentemente da família política a que pertençam, deverã o imperativamente
respeitar e defender a todo o custo, um nú mero de valores mesmo materiais, que nã o
podem ser alienados sem o consentimento explícito dos moçambicanos, através de um
referendo, por exemplo.
Independentemente da configuraçã o política e mesmo do intervencionismo
internacional, nada pode justificar o isolamento de certas forças políticas nacionais.
Dú vidas morais e histó ricas podem ainda existir, rivalidades podem ser humanamente
compreensíveis mas nenhuma incoerência e anacronismo histó ricos podem ser
moralmente justificados. Sobretudo tendo em conta o que nos custou a guerra fratricida
passada e o perigo que pode representar uma nova guerra em termos de perdas de
vidas, de destruiçã o material, e ouso dizer, do risco da divisã o do país.
Ocorre aceitar o jogo da democracia e nã o transformar a força parlamentar em
instrumento para destruir a oposiçã o. A oposiçã o é necessá ria, ela tem que ser vista, nã o
em termos de «inimigo», mas de adversá rio político e partner para a construçã o de um
Estado democrá tico. Quanto mais a oposiçã o for marginalizada no debate político
nacional, mais ela será tentada a aglutinar os conflitos etno-culturais. O pluralismo
político, se for mal interpretado, pode abrir espaço para conflitos tribais e fenó menos do
retorno da «retribalizaçã o», perigo que hoje é duplicado por outros tipos de conflito,
nomeadamente os conflitos de classes e de interesses que tendem a cristalizar-se à
medida que o factor econó mico gera ou amplia os desequilíbrios no seio da sociedade.
A Repú blica tem as suas exigências, o respeito das coisas pú blicas, e uma forma
de governaçã o democrá tica. O que sã o as coisas pú blicas? Este problema releva de uma
CAPITULO IV

espécie de contrato social, que temos necessariamente que fazer como país e como
sociedade. Deve existir um certo nú mero de coisas intocá veis, que nenhum governo
pode tocar sem violar os direitos soberanos do povo e abusar do poder. Mas o que
simboliza a liberdade e a soberania deve ser um certo nú mero de coisas tangíveis,
materiais, concretas. Como também devem ser um certo nú mero de prá ticas e de
símbolos.
As forças políticas e sociais moçambicanas devem ser os principais
interlocutores umas das outras na vida política moçambicana. As forças políticas
moçambicanas deveriam fazer um deal sobre o essencial, o indiscutível, deveriam fazer
com os povos de Moçambique uma espécie de contrato social sobre a essência mesma da
liberdade moçambicana, sobre o que nã o é negociá vel, o que deveria constituir o
fundamento normativo do Estado. A nível de bens econó micos que constituem o
patrimô nio nacional (portos, caminhos de ferro, minas, terras, etc.), de jurisdiçã o-
política, espaços estritamente nacionais que nã o sã o acessíveis a estrangeiros
(ministérios, lugares de defesa, de segurança, de planificaçã o, etc.), prerrogativas
ciumentamente nacionais nã o cedíveis a ONG, cooperaçõ es, doadores, etc.
No seu funcionamento, o Estado implica uma certa responsabilidade política
dos governantes. Trata-se de uma responsabilidade ligada ao exercício do poder,
autó noma e específica enquanto ela nã o releva nem dos méritos histó ricos –a luta
armada contra o colonialismo português, ou contra a existência de um partido ú nico em
Moçambique –nem implica a vontade de conservar o poder a todo o custo. O seu objecto
deveria ser consagrar, através do funcionamento dos poderes pú blicos, a ideia de que os
governantes estã o, de facto, ao serviço dos governados e que lhes devem contas. No
domínio constitucional, a responsabilidade política implica que toda a pessoa investida
de um mandato de representaçã o, instituída em instrumento de actuaçã o do Estado,
deve prestar contas à Naçã o das suas acçõ es e assumir as consequências das suas acçõ es.
Inversamente, esta responsabilidade política dos governantes impõ e aos cidadã os a
obrigaçã o moral de tomar em consideraçã o a necessidade de assegurar a preservaçã o da
comunidade. Isto implica que eles têm a possibilidade real de exercer o seu papel de
censores do poder.
As forças políticas devem exigir negociaçõ es com as instituiçõ es internacionais
que sejam conformes à s prerrogativas de soberania e do respeito pela unidade e
integridade nacional. Isto deve ser, contudo, precedido por um consenso entre as forças
políticas nacionais e mesmo tradicionais para poderem, sem ambiguidades, falar em
uma só voz. Estas prerrogativas sã o capitais para o futuro, e nem sequer direi da
democracia, enquanto inerentes à democracia representativa, mas para a convivência
civil em Moçambique, e para prevenir dramas com proporçõ es imprevisíveis. Trata-se
de moralizar a vida política que apela para os governantes e os partidos políticos
despirem, efetivamente, e de uma vez por todas, o passado histó rico, mesmo se grande e
insubstituível, de libertadores da pá tria moçambicana, e para os governados exercerem,
efectivamente, ao seus direitos soberanos no respeito pelos interesses presentes e
futuros da comunidade nacional. Trata-se da necessidade de um renovar da vida política
moçambicana, cultural (mais de participaçã o dos diferentes componentes culturais na
vida política) e deontologicamente –no relacionamento dos partidos políticos entre eles,
mais de respeito das elites governativas pelos interesses do presente e do futuro de
Moçambique, mais diá logo e mais escuta da vontade e dos interesses do povo.
O específico das ciências filosó ficas no contexto actual deveria ser a invençã o
de espaços e de mecanismos de incremento da soberania, quer contra o
intervencionismo anti-democrá tico dos democratas ocidentais, quer, e sobretudo, no
trabalho sobre as condiçõ es susceptíveis de libertar a imaginaçã o e a criatividade nos
moçambicanos, a fim de podermos assumir responsavelmente a nossa liberdade.
CAPITULO III

A «tarefa» da filosofia é nã o esquecer que a nível interno ainda nã o somos


capazes de ser cabalmente responsá veis pela nossa liberdade. Incumbe-nos, portanto,
descobrir e inventar espaços de liberdades concretos, dar material e instrumentos
teó ricos aos políticos nacionais.
A reflexã o filosó fica moçambicana tem que se situar na intersecçã o do conflito
de soberania entre a soberania externa dos estados europeus e Moçambique; entre a
nossa vontade de soberania e a incapacidade dos ocidentais de se libertarem dos seus
élans coloniais. Em segundo lugar, ela deve investigar as razõ es histó ricas, culturais e
sociais que estã o na base da nossa fraqueza existencial e as maneiras concretas de
combatê-la. A ideia da soberania (liberdade) tem uma valência interna condicionada
pelo movimento de participaçã o cultural, que comumente se chama democracia. Esta
deve ser internamente garantida por uma cultura política moçambicana que se forja a
partir das culturas políticas nacionais, e que tenha em conta a preservaçã o e o
incremento da soberania moçambicana.
A filosofia africana na sua valência política deve contribuir para a realizaçã o
das exigências de justiça. Por conseguinte, filosofar sobre a acçã o significa interrogar as
legitimidades edificadas pelos homens (nacionais e internacionais), e tentar dar palavra
à s pessoas, grupos e culturas que foram privadas dela até aqui. A filosofia nã o se pode
contentar em justificar o statu quo, mas, ao contrá rio, deve dessacralizar os equilíbrios
políticos que parecem ú nicos.
Nã o vamos esquecer o tempo que passou (Samora Machel). Segundo a imagem
de Moçambique «cada cidadã o é como um escravo que fugiu da casa do seu senhor». O
senhor nã o repousará antes de retransformar o jovem cidadã o de novo em escravo!
Atençã o: o que aconteceu ontem pode acontecer de novo amanhã ...
BIBLIOGRAFIA

Bibliografia

Aristó teles. (1993). Les Politiques. Livro I, 1252b-1253a. Paris: Flammarion.


_______. (1993). Les Politiques.Livro I, 125a-1252b. Paris: Flammarion.
Beck, U. (2001). La Société du Risque. Paris: L´Harmattan.
Bignasca, A. (1971). La singolarità terrible del colonialismo portoghese: il dibattito della
Società di Geografia. Roma: Armando.
Bodin, J. (1986). Les Six Livres de la République. In Coll., Corpus des oervres de philosohie
en langue française. Paris: Fayard .
Boulaga, F. E. (1977). La Crise du muntu. Paris: Présence Africaine.
Caillé Alain, Lazzeri Christian, Senellart Michel (sous la direction de). (2001). Histoire
raisonnée de la Philosophie morale et politique. Le bonheur et l'utile. Paris: La
Découverte.
Castoriadis, C. (1975). L'institucion imaginaire de la société. Paris: Seuil.
Césaire, A. (1952). Cahier d´un retour au pays natal. Paris: Présence Africaine.
Craxi, L. (2004). Nepad o il nouvo futuro anteriore africano. Torino: Einaudi.
Delacampagne, C. (2000). La philosophie politique aujourd'hui. Idées, débats, enjeux.
Paris: Seuil.
Derrida, J. (1993). Spectres de Marx. Paris: Galilée.
Dewey, J. (1898). The essential Dewey: Pragmatism, Education, Democracy. Volume édité
par Thomas M. Alexander, Bloomingron. Indiana University Press.
Diop, C. A. (1979). Nation negre et culture. Paris: Présence Africaine.
Dworkin, R. (1995). Prendre les droits au sérieux. Paris: PUF.
_______. (1996). Une question de principe. Paris: PUF.
Freund, J. (1965). Essence du politique. Paris: Sirewy.
Fukuyama, F. (1992). La fin de l´histoire et le dernier homme. Paris: Flammarion.
Graziosi, P. D. (1975). Carlo V e Isabella, controversia con i saggi di Salamanca. Torino:
Einaudi.
Guéhenno, J.-M. (1993). La Fin de la démocratie. Paris: Flammarion.
Habermas, J. (1990). Écrits politique. Paris: Cerf.
_______. (1997). Droit et démocratie. Entre faits et normes. Paris: Gallimard.
Haley, A. (1997). Raízes. Sao Paulo: Cruzeiro.
Hegel, G. W. (1999). Principes de la philosophie du droit. Paris: Flammarion. Coll. "GF".
Herder. (1974). Ainda por uma filosofia da História para a educação da Humanidade. Sã o
Paulo: Ed. Universitá rias.
Huntington, S. (1992). Le Choc des civilisations. Paris: Odile Jacob.
Ilungu, P. E. (1998). Tradition africaine et rationalité moderne. Paris: L'Harmattan.
J. Habermas, J. R. (1977). Debat sur la Justice politique. Paris: Cerf.
Jacques Derrida, M. G.-P. (1997). Marx en jeu. Paris: Descartes Cie.
Kabou, A. (1991). Et si l'Afrique refusait le développement. Paris: L'Harmattan.
Kane, C. H. (1963). L´aventure ambigue. Paris: Présence Africaine.
Kelsen, H. (1996). Théorie générale des normes. Paris: Fayard.
Kymilcha, W. (1999). Les théorie générale de la justice: une introduction. Paris: La
Découverte.
Lara, O. D. (2000). La naissance du panafricanisme. Les racine caraibes, américaines et
africaines du mouvement au XIXe siecle. . Paris: Maisonneuve et Larose.
Latouche, S. (1989). L'occidentalisation du monde. Essai sur la signification, la portée et
les limites de l'uniformisation planétaire. Paris: La Découverte.
Leclerc, G. (2000). La mondialisation culturelle. Les civilisations à l'épreuve. Paris: PUF.
Lefort, C. (1981). L'invention démocratique. Paris: Fayard.
_______. (1986). Essais sur le politique. Paris: Seuil.
Levy, P. (2000). World Philosophie. Paris: Odile Jacob.
Lyotard, J. F. (1989). A Condição Pós-Moderna. Lisboa: Gradiva.
MacIntyre, A. (1997). Apres la vertu. Paris: PUF.
Manguelle, D. (1990). L'Afrique a-t-elle besoin d'un programme d'ajustement culturel?
Paris: Ed. Nouvelles du Sud.
Mbana, J. (2003). Le nouvelle courante de philosohie africaine. Torino: L´Harmattan.
Mbeki, T. (1998). Africa: the Time Has Come. Cape Town: Tafelberg &Johannesburg
Magube.
Ngoenha, S. E. (1992). Por uma dimensao moçambicana da consciência histórica. Porto:
Ediçõ es Salesianas.
_______. (1993). Das Independências às Liberdades. Filosofia Africana. Maputo: Ediçõ es
Paulinas.
_______. (1994). O Retorno do Bom Selvagem. Porto: Ed. Salesianas.
_______. (1997, Agosto). Por uma reconciliaçã o entre a Política e as Culturas. (J. E. Weimar,
Ed.) Programa de reforma dos órgãos locais, p. 15.
_______. (1998). Identidade moçambicana: já e ainda nã o. (C. Serra, Ed.) Identidade,
moçambicana, moçambicanização.
_______. (2000). Estatuto e axiologia da educação em Moçambique: o paradigmático
questionamento da missão suiça. Maputo: Livraria Universitá ria, Universidade
Eduardo Mondlane.
Nkrumah, N. (1979). A África deve unir-se. Lisboa: Ed. 70.
Nozick, R. (1988). Anarchie, État et Utopie. Paris: PUF.
Nyerere, J. (1977). Socialismo Ujaama. Lisboa: Ed. 70.
_______. (2000, mars). Philosophie et politique em Afrique. Trimestriel.
Passaggio a Occidente. Filosofia e globalizzacione. (2003). Torino: Bollati Boringhieri.
Rawls, J. (1987). Théorie de la justice. Paris: Seuil.
BIBLIOGRAFIA

_______. (1993). Justice et démocratie. Paris: Seuil.


_______. (1999). Collected Papers. Cambridge: Harvard University.
Remotti. (1995). Noi, Primitivi. Lo specchio dell'antropologia. Torino: Bollati Boringhieri.
Roland, N. (1975). Antropologie Juridique. Paris: Seuil.
Rorty, R. (1998). Archieving Our Country: Lefist Thought in Twentieth-Century America.
Cambridge: Harvard University Press.
Rousseau, J.-J. (1995). Le Contrat Social, Livro I, Cap. 6. Paris: Gallimard.
Sandel, M. (1982). Liberalism and the Limits of Justice. Oxford & New York: Oxford
University Press.
________. (1996). Democracy's Discontent. Cambridge: Harvard University Press.
Strauss, L. (1992). Qu'est-ce que la philosophie politique? Paris: PUF.
Taylor, C. (1994). Le malaise de la modernité. Paris: Cerf.
_______. (1998). Les sources du moi. Paris: Seuil.
Touré, M. (1953). Les étudiants africains parlent. Revue Présence Africaine.
Towa, M. (1971). Essais sur la problématique philosophique dans l'Afrique actuelle.
Yaounde: Clé.
_______. (1979a). L'idée d'une philosophie négro-africaine. Youndé: Clé.
_______. (1979b). Négritude ou servitude? Yaoundé: Press Universitaire du Cameroun.
Tylor, E. (1974). Culture Primitive. Paris: Seuil.
Veca, S. (1989). Etica e politica. I dilemmi del pluralismo: democrazzia reale e democrazia
possible. Milano: Garzanti.
_______. (1998). La filosofia política. Roma-Bari: Laterza.
Walzer, M. (1991 (1988)). L'intellettuale militante. Critica sociale e impegno politico nel
Novecento. Bolonha: II Mulimo.
_______. (1997a). Spheres de justice. Paris: Seuil.
_______. (1997b). Pluralisme et Démocratie. Paris: Esprit.

Você também pode gostar