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A Escola de Chicago (Friedman)

Por Luís Cipriano Manuel

Introdução

O presente trabalho versa sobre o tema: A Escola de Chicago (Friedman). Trata-se de uma
doutrina neoliberal do Professor Milton Friedman (1912-2006) que ficou conhecida como
a Escola de Chicago. A obra principal da sua doutrina tem o título de Capitalismo e
Liberdade, publicada originalmente em 1962 e constitui o objecto no nosso estudo.

Com o seu livro Capitalism and Freedom, Friedman pretende examinar como tema
principal o papel do capitalismo competitivo como um sistema de liberdade económica e
condição necessária à liberdade política. Seu tema secundário é o papel que o governo deve
desempenhar numa sociedade dedicada à liberdade e contando principalmente com o
mercado para organizar sua actividade económica.

Milton Friedman, Prémio Nobel de 1976, formou gerações de economistas de muitos


países e, com a sua máxima de laissezfaire (deixai fazer, deixai ir, deixai passar) e do
mercado livre, influenciou as formulações de políticas económicas de vários governos a
começar com os governos de Margareth Thatcher (1979-1990), no Reino Unido, e de
Ronald Reagan (1981-1989), nos EUA.

Como qualquer doutrina, o neoliberalismo surge como resultado de uma oposição. Neste
caso, Friedman, nos Estados Unidos da América, combatia a chamada política de New
Deal(novo acordo) do Presidente F.D.Roosevelt. Essa política de New Deal visava o
controlo sobre bancos e instituições financeiras e económicas;construção de obras de infra-
estrutura para a geração de empregos e aumento do mercado consumidor;concessão de
subsídios e crédito agrícola a pequenos produtores familiares;criação de Previdência
Social, que estipulou um salário mínimo, além de garantias a idosos, desempregados e
inválidos;incentivo à criação de sindicatos para aumentar o poder de negociação dos
trabalhadores e facilitar a defesa dos novos direitos instituídos.No sector industrial, a
principal medida foi a redução da jornada do trabalho.

Em oposição a essa política de New Deal,Friedmanera contra qualquer regulamentação que


inibisse as empresas, condenava o salário-mínimoporque alterava artificialmente o valor da
mão-de-obra pouco qualificada e opunha-se a qualquer fixaçãosalarial pelas categorias
sindicais pois, segundo ele, terminavam por adulterar os custos produtivos, gerando subida
de preços e inflação.

Em termos metodológicos, será privilegiadoo estudo bibliográfico e hermenêutico da obra


clássica acima referida, de Friedman- Capitalism and Freedom.

Quanto à estrutura, o trabalho está disposto da seguinte maneira: o primeiro ponto trata do
postulado do homem livre num país, o segundo debruça-se sobre as metamorfoses
conceptuais do liberalismo nos Estados Unidos, o terceiro fala das relação entre liberdade
económica e liberdade política, o quarto discute as críticas de Friedman a certas políticas
de intervenção governamental, o quinto debate sobre as limitações do governo numa
sociedade livre à moda Friedmaniana, o sexto desenvolve sobre opapel do governo numa
sociedade livre, seguindo-se a conclusão e a bibliografia.
1. O Postulado do Homem Livre num País

Logo na introdução da sua obra Capitalism and Freedom, Friedman analisa o postulado do
homem livre dentro de um país. Para tal, há duas perguntas fundamentais que um homem
livre pode fazer dentro da sua pátria e que Friedman rejeita a priori.

Por um lado, Friedman diz que o homem livre não perguntará o que sua pátria pode fazer
por ele,pois se trata de umafrase paternalista, a qual implica que o governo seja o protector
e, o cidadão, o tutelado. Ele refuta esta visão que contraria a crença do homem livre em sua
própria responsabilidade com relação a seu próprio destino.

Por outro lado, este homem livre não perguntará o que pode fazer por sua pátria, pois se
trata de uma frase organicista, a qual implica que o governo seja o senhor ou a deidade, e o
cidadão, o servo ou o adorador. Isso não é aceitável em Friedman porque, para o homem
livre, a pátria é o conjunto de indivíduos que a compõem, e não algo acima e além deles.

A pergunta preferencial de Friedman é: o que eu e meus compatriotas podemos fazer por


meio do governo para ajudar cada um de nós a tomar suas responsabilidades, a alcançar
nossos propósitos e objectivos diversos e, acima de tudo, a proteger nossa liberdade? A
esta pergunta Friedman propõe acrescentar uma outra: o que devemos fazer para impedir
que o governo, que criamos, se torne um Frankenstein (um romance de terror gótico com
inspirações românticas, cuja autora foi Mary Shelley em 1816/17) e venha a destruir
justamente a liberdade para cuja protecção nós o estabelecemos?

Friedman analisa a questão da liberdade de forma mais profunda porque ela é para ele
como uma planta rara e delicada porque está sempre ameaçada. Friedman observa que a
história confirmaque a grande ameaça à liberdade está constituída pela concentração do
poder.

Friedman reconhece que “o governo é necessário para preservar nossa liberdade, é um


instrumento por meio do qual podemos exercer nossa liberdade; entretanto, pelo fato de
concentrar poder em mãos políticas, ele é também uma ameaça à liberdade.”
(FRIEDMAN, 1962:1).

Assim sendo, reconhecendo que o governo é também uma ameaça à liberdade, Friedman
levanta a seguinte questão: Como é que o homem se pode beneficiar das vantagens de ter
um governo e, ao mesmo tempo, evitar a ameaça à liberdade? Para responder a esta
questão, Friedman responde através de dois princípios da constituição norte-americana: o
primeiroprincípio diz queo objectivo do governo deve ser limitado. Aqui,a principal função
do governo deve ser a de proteger a liberdade contra os inimigos externos e contra seus
próprios compatriotas; preservar a lei e a ordem; reforçar os contractos privados epromover
mercados competitivos.

O segundo princípio afirma que o poder do governo deve ser distribuído. Friedman
comenta dizendo que, seo governo deve exercer poder, é melhor que seja a nível de um
território de conde do que no Estado e, acrescenta declarando que é melhor no Estado do
que em Washington. Em justificação a esta posição, Friedman defende que se ele não
gostar do que a sua comunidade faz em termos de organização escolar ou habitacional,
pode se mudar para outra dentro do mesmo Estado.Mais ainda, se não gostar do que faz o
seu Estado, pode-se mudarpara outro. Porém, o mesmo não ocorreria se não gostasse do
que Washington impõe, pois teria poucas alternativas em encontrar uma semelhante
organização em outra nação.

Assim sendo, para garantir uma liberdade nos moldes friedmanianos é necessário evitar o
fortalecimento do Governo Federal, embora Friedman reconheça que a real dificuldade de
se efectivar esse desejo está na centralização dos proponentes da legislação. Contudo, de
uma coisa Friedman está convicto: “O poder para fazer coisas certas é também poder para
fazer coisas erradas; os que controlam o poder hoje podem nãoser os mesmos de amanhã;
e, ainda mais importante, o que um indivíduo considera bom pode ser considerado mau por
outro” (Ibd., p. 2)

Desta forma, para preservar a liberdade, Friedman defende a limitação e descentralização


do poder do governo e uma crescente construção, poisos grandes avanços da
civilizaçãonunca vieram de governos centralizados. Por exemplo, os feitos de
individualidades como Colombo, Newton e Leibniz; Einstein e Bohr; Shakespeare, Milton
e Pasternak; Whitney, McCornick, Edison e Ford; Jane Adams, Florence Nightingale e
AlbertSchweitzer, são produtos de seu génio individual, de um ponto de vista minoritário
corajosamente mantido e de um clima social que permitia a variedade e a diversidade.

Além disso, Friedman acredita que, sem a defesa da liberdade, o governo substituirá
progresso por estagnação e colocará a mediocridade uniforme em lugar da variedade
essencial para a experimentação que pode trazer os atrasados do amanhã por cima da
média de hoje.
2. Metamorfoses Conceptuais do Liberalismo nos Estados Unidos

Ainda na introdução, Friedmanfaz a descrição do movimento liberal que sofreu mudanças


conceptuais desde finais do século XVIII e princípios do século XIX até ao século XX.
Assim sendo, Friedman constata que o significado do liberalismo que os Estados Unidos
tinham no século XIX não é o mesmo do século XX e mesmo na maior parte do continente
europeu.

O movimento intelectual do século XVIII e princípios do século XIX, que tomou o nome
de liberalismo enfatizava a liberdade como o objectivo último e o indivíduo como a
entidade principal da sociedade.

Nessaaltura, o liberalismo apoiava o laissez-faire  como uma forma de reduzir o papel do


Estado nos assuntos económicos ampliando assim o papel do indivíduo. Apoiava também
o mercado livre no exterior como um modo de unir as nações do mundo pacífico e
democraticamente. Em termos políticos, o liberalismo dessa época apoiou o
desenvolvimento do governo representativo e das instituições parlamentares, reduzindo o
poder arbitrário do Estado e protegendo as liberdades civis dos indivíduos.

Contrário a isso, depois de 1930, o termo liberalismo passou a ser associado à


predisposição de contar com o Estado para alcançar objectivos considerados desejáveis em
termos de política económicanos Estados Unidos. Assim sendo, a palavra de ordem deixou
de ser liberdade, em favor de bem-estar e igualdade.

Com efeito, a diferença existente entre o liberalismo do século XIX e o liberalismo do


século XX é que o primeiro considerava a extensão da liberdade como o meio mais
efectivo de promover o bem-estar e a igualdade; enquanto o segundo (o liberalismo do
século XX) considera o bem-estar e a igualdade ou como pré-requisitos ou como
alternativas para a liberdade.

Em consequência dessa mudança conceptual Friedman conclui que, o liberal do século XX


favoreceu o renascimento das mesmas políticas de intervenção estatal e paternalismo
contra as quais tinha lutado o liberalismo clássico.

O liberal do século XIX era favorável à descentralização política, à cidade, ao Governo


Estadual e a um governo nacional; por quanto o liberal do século XX é favorável a
governos centralizados, aoEstado, ao Governo Federal e uma organização mundial. Neste
sentido, a defesa em favor do liberalismo do século XIX, pela corrupção do termo
liberalismo é considerada conservadorismo.Por esta razão, Friedman tenta solucionar essas
dificuldades usando o termo liberalismo em seu sentido original.

3. Relação Entre Liberdade Económica e Liberdade Política

No primeiro capítulo da sua obra Capitalismo e Liberdade, Friedman defende a tese de que
é ilusório pensar que política e economia constituem territórios separados, apresentando
pouquíssimas inter-relações; que a liberdade individual é um problema político e o bem-
estar material, um problema económico; e que qualquer tipo de organização política pode
ser combinado com qualquer tipo de organização económica.

Ao invés disso, Friedman advoga que existe uma relação íntima entre economia e política;
que somente determinadas combinações de organizações económicas e políticas são
possíveis; e que, em particular, uma sociedade socialista não pode também ser
democrática, no sentido de garantir a liberdade individual.

Segundo Friedman, a liberdade económica é parte da liberdade entendida em sentido mais


amplo e constitui um fim em si própria. Além disso, a liberdade económica é também um
instrumento indispensável para a obtenção da liberdade política.Friedman dá certa ênfase à
liberdade económica porque ele constatou que há uma tendência de mostrar desprezo por
tudo o que diz respeito ao aspecto material da vida e a considerar a busca de supostos
valores mais altos como algo que merece atenção especial.

Neste sentido,Friedman constata que, uma organização económica que


promove directamente a liberdade económica, como é o caso do capitalismo competitivo,
também promove a liberdade política porque separa o poder económico do poder
político,permitindo, assim, que um controle o outro. Isso mostra a relação existente entre
liberdade política e mercado livre.

Se o capitalismo é uma condição necessária para a liberdade política, Friedman reconhece


que, pelo menos não é uma condição suficiente, porque é possível haver uma organização
económica fundamentalmente capitalista e uma organização política que não seja livre.O
exemplo disso foi o recrudescimento do fascismo na Itália, na Espanha, o nazismo na
Alemanha, o czarismo na Rússia onde, apesar da empresa privada ser a forma dominante
da organização económica, o totalitarismo económico aparece combinado com o
totalitarismo político.
Com o triunfo do liberalismo de Bentham no século XIX na Inglaterra, o bem-estar tornou-
se a nota dominante nos países democráticos em vez da liberdade. Porém, alguns teóricos e
filósofos colocaram a liberdade económica como instrumento de obtenção da liberdade
política.

Entretanto, para se definir com clareza as conexões lógicas entre liberdade económica e
liberdade política, Friedmanelege o mercado como sendo um componente directo da
liberdade e relaciona de forma indirecta entre organização do mercado e liberdade política.
A consequência desta relação coloca o esquema da organização económicacomo sendo o
ideal para uma sociedade livre.

Assim, Friedman conclui que, o objectivo mais importante dos liberais é deixar os
problemas éticos a cargo do próprio indivíduo. Ou seja, há, por um lado, valores relevantes
para o indivíduo no exercício de sua liberdade, que constituem o território da filosofia e da
ética individual, sem cair no absolutismo de Thomas Hobbes, segundo o qual “um homem
livre é aqueleque, naquelas coisas que graças a sua força e engenho é capaz de fazer, não é
impedido de fazer o que temvontade de fazer” (HOBBES, 2008: 73). Por outro lado, há
valores que são relevantes para as relações interpessoais, que constituem o contexto em
que estabelece prioridade à liberdade.

Thomas Hobbes não tem dúvida de que a liberdade deve supor-se na democracia porque,
segundo ele, é geralmente reconhecido que ninguém é livre em qualquer outra forma de
governo (HOBBES, 2008: 75). Hobbes afirma que quando alguém transfere seu direito, ou
a ele renuncia, fá-lo em consideração a outro direito que reciprocamente lhe foi transferido,
ou a qualquer outro bem que daí espera.

Ora, ao referir-se que os limites do poder que é concedido ao representante de um corpo


político dependem dos escritos ou cartas que recebe do soberano e das leis do Estado (Cf.
Hobbes, 2008:78), Hobbes coloca o poder nas mãos do soberano pois, para ele “a
soberania representa duas pessoas, ou então, como é mais comum dizer-se, tem duas
capacidades, uma natural e outra política” (HOBBES, 2008:82).

Em outras palavras, em Hobbes, o poder do soberano é ilimitado porque é resultado da


transferência dos direitos dos súbditos. Porém, era justamente este poder ilimitado do
soberano que Benjamin Constant (1767-1830) e Anne-LouiseGermaineNecker (1766-
1817), mais conhecida como Madame de Staelcontestavam.
Com o intuito de limitar o poder do governo, Constant afirmou que “o que nos importa não
é que nossos direitos não deveriam ser violados por um poder sem a aprovação de outro,
mas pelo contrário, que qualquer violação deveria ser igualmente proibida, da mesma
maneira, por todos os poderes.” (CONSTANTapudPowell, 2013)

Friedman acrescenta dizendo que,enquanto, por um lado o governo é essencial para a


determinação das "regras do jogo" como árbitro para interpretar e pôr em vigor as regras
estabelecidas, por outro lado, o mercado reduz o número de questões que devem ser
decididas por meios políticos minimizando a extensão em que o governo teria que
participar directamente do jogo e estabelecendo um sistema de representação proporcional.

Assim, Friedman acredita que, removendo a organização da actividadeeconómica do


controle da autoridade política, o mercado elimina a fonte de poder coercitivo. Desta
forma, a força económica se constitui num meio de controlo do poder político.

4. O Papel do Governo numa Sociedade Livre

Aqui, Friedmanaponta especificamente as áreas que não podem ser tratadas em termos de
mercado ou que só podem sê-lo a um tão alto custo que o uso dos canais políticos se torna
mais conveniente.

Para Friedman, o primeiro papel do governo é ser legislador e árbitro, pois uma boa
sociedade exige que seus membros concordem com as condições gerais que presidam as
relações entre eles. Para tal, é necessário dispor de condições para que se possa garantir o
cumprimento das regras comumente aceites. Tal como num bom jogo se exige que os
jogadores aceitem tanto as regras quanto o árbitro encarregado de interpretá-lase de aplicá-
las.

Porém, reconhecendo que a liberdade absoluta é impossível, Friedman apresenta os


seguintes papéis básicos do governo numa sociedade livre:“prover os meios para modificar
as regras, regular as diferenças sobre seu significado, e garantir o cumprimento das regras
por aqueles que, de outra forma, não se submeteriam a elas.” (FRIEDMAN, 1962:13).

E, quando as liberdades dos homens entram em conflito, deve-se limitar a liberdade de uns
para preservar a liberdade de outros. É aqui onde o governodeve entrar como árbitro para
encontrar a forma de resolver os conflitos entre as liberdades dos diversos indivíduos, bem
ainda, manter a lei e a ordem de modo a evitar a coerção de um indivíduo por outro;
arbitrar a execução de contractos voluntariamente estabelecidos; definir o significado de
direitos de propriedade, bem como a sua interpretação e a sua execução e, por último,
fornecer a estrutura monetária

Outro papel que Friedman atribui ao governo tem a ver com o seu envolvimento em
actividades para evitar monopólio que implica a ausência de alternativas e que inibe a
liberdade efectiva da troca. No que diz respeito ao monopólio Friedman adverte que, o
mesmo se origina através de apoio do governo ou de acordos conspiratórios, embora possa
também surgir por ser tecnicamente eficiente e haver um só produtor ou uma só empresa.
Como solução, Friedman diz que é preciso evitar o favorecimento de monopólios pelo
governo ou estimular a aplicação de regras como as que, nos Estados Unidos fazem parte
de leis antitruste (incluem leis que limitam a concorrência e o Código do Consumidor).

Para além de monopólios, o governo deve evitar os efeitos laterais. O exemplo óbvio que
Friedman aponta é a poluição de um rio. Segundo ele, o homem que polui um rio está
forçando os outros a trocarem água boa por água má. Porém, os outros indivíduos não
podem fazer a troca por um preço, porque a água já está poluída. Neste caso o governo
deve intervir porque ninguém pode conseguir agir individualmente.

No que se refere ao paternalismo, Friedman é totalmente contra, razão pela qual afirma que
a liberdade é um objectivo válido apenas para os indivíduos responsáveis. Friedman exclui
a liberdade em crianças e insanos (insensatos ou dementes). Apesar disso, Friedman
reconhece que o paternalismo é inevitável para os irresponsáveis: por um lado, embora se
pretenda evitar que os insanos desfrutem de liberdade, por outro lado, não se pode permitir
que sejam eliminados. Por esta razão, Friedman não encontra outra alternativa, senão que
sejam cuidados pelo governo.

Quanto às crianças Friedman acha que esse é o caso mais difícil porque, apesar de serem
irresponsáveis, elas são indivíduos responsáveis em potência, e quem acredita em liberdade
acreditaria em proteger seus direitos últimos.

A consideração Friedmaniana da criança assemelha-se à ideia de Thomas Hobbes, segundo


a qual, as crianças “não são dotadas de nenhuma razão até que atinjam o uso da linguagem,
mas sãodenominadas seres racionais devido à aparente possibilidade de terem o uso da
razão na sua devida altura.” (HOBBES, 2008:22)
Assim, as crianças têm um valor em si mesmas e por si próprias e,a sua liberdade não
consiste, apenas, na extensão da liberdade dos seus pais, mas também esta liberdade lhes
pertence.

O que mais preocupa Friedman no paternalismo é a ideia de que alguns podem decidir por
outros, embora ele reconheça que não seja possível evitar o uso de algumas medidas
paternalistas para os casos de insanos e crianças acima mencionados.

5. As Limitações do Governo numa Sociedade Livre à Moda Friedmaniana

Friedman propõe um governo com uma série de limitações nas suas funções à luz de um
conjunto de actividades, que eram desenvolvidas pelos Governos Federal e Estadual nos
Estados Unidos e pelos órgãos equivalentes em outros países do hemisfério ocidental.

A partir do capítulo III até ao capítulo XII, Friedman faz uma análise detalhada de algumas
dasactividades referidas no quarto ponto deste trabalho. Nesses capítulos, Friedman
pretende demonstrar o papel que o liberal atribui ao governo. Contudo, ele reprova
algumas das actividades desempenhadas pelo Governo dos Estados Unidos e que não
podem ser validamente justificadas em termos dos princípios acima apresentados. Essas
actividades reprovadas pelo liberal à moda friedmanianasão:

1.Programa de apoio à equivalência de preços para a agricultura.

2.Tarifas sobre as importações e restrições às exportações, como as atuaiscotas de


importação de petróleo, cotas de açúcar etc.

3.Controle governamental da produção, quer sob a forma de programas fazendas, quer


através da divisão proporcional do petróleo conforme feito pela Texas
RailroadCommission.

4.Controle de alugueres, como ainda praticado em Nova Iorque, ou con-roles mais gerais


de preços e salários como os impostos durante e após a segunda Guerra Mundial.

5.Salários mínimos legais ou preços máximos legais, como o máximo legal de zero na taxa
de juros que pode ser paga para depósitos por bancos comerciais ou as taxas máximas
legalmente estabelecidas que podem ser nagas nos depósitos de poupança e depósitos a
prazo.
6.Regulação detalhada de indústrias, como a regulação de transporte Dela Interstate
Commerce Commission. O fato tinha alguma justificação em termos de monopólio técnico
quando inicialmente introduzido para estradas de ferro; não tem nenhuma agora para
qualquer tipo de transporte. Outro exemplo é aregulamentação-detalhe da actividade
bancária.

7.Um exemplo semelhante, mas que merece menção especial devido ã sua censura
implícita e violação de palavra, é o controlo do rádio e televisão pela Federal
CommunicationsCommission.

8.Os actuais programas sociais de seguros, especialmente os que envolvem a velhice e a


aposentadoria, obrigando as pessoas a: a) gastar uma fracção estabelecida de sua renda na
compra de uma anuidade de aposentadoria; b) comprar a anuidade de uma empresa pública.

9.A exigência de licenciamento em diversas cidades e Estados que restringem


determinados empreendimentos ou ocupações ou profissões a pessoas que possuem uma
licença, quando a licença constitui mais do que o recibo de uma taxa que qualquer um que
o deseje possa pagar.

10.Os programas de habitação e tantos programas destinados directamente a patrocinar a


construção residencial, tais como as garantias para hipotecas FHA ( autoridade Federal
Housing) e VA (VeteransAdministration).

11.A convocação de homens para serviço militar em tempo de paz. A prática apropriada ao
mercado livre seria a organização de uma força militar voluntária, ou seja, empregar
homens para servir. Não há justificação para que não se pague o preço necessário à
obtenção do número conveniente de homens. A organização actual é injusta e arbitrária,
interfere seriamente com a liberdade dos jovens para planejar suas vidas e é,
provavelmente, mais cara do que a alternativa do mercado. (O treinamento militar
universal, a fim de criar uma reserva para o tempo de guerra, é um problema diferente e
pode ser justificado em termos liberais.)

12.O controlo dos Parques nacionais.

13.A proibição legal do transporte de correspondência, com fins lucrativos.

14.A cobrança pública do pedágio nas estradas, comentada acima. Essa lista está longe de
ser completa. (FRIEDMAN, 1962:18s).
Todos esses itens devem merecer abstenção por parte do Governo Federal, na forma do
liberalismo que Friedman pretende advogar. Contudo, Friedman adverte que não há
nenhuma fórmula que nos ensine onde parar de modo a se alcançar a liberdade que se
pretende. Por isso, ele aconselha que é necessário ter em conta o julgamento falível dos
homens, colocar a fé de que os consensos se alcançam por homens imperfeitos e
preconceituososatravés de discussão e do ensaio e erro.

6. Críticas de Friedman a certas Políticas de Intervenção Governamental

A partir do Capítulo III Friedman apresenta a problemática de certas políticas de


intervenção do governo, que são: a) controle do dinheiro, b) finanças internacionais e
problemas de mercado, c) política fiscal, d) papel do governo na educação, e) capitalismo e
discriminação, f) monopólio e a responsabilidade social do capital e do trabalho, g)
licenciamento ocupacional, h) distribuição da renda, i) medidas para o bem-estar social e j)
problema da pobreza. Pela importância que estas políticas representam a Friedman, far-se-
á uma abordagem resumida dos problemas a) até d) para ter-se ideia da sua posição
epistémica.

6.1 Controlo do Dinheiro

Friedman constata que, a política do emprego para todos e do crescimento


económicojustificaram a intervenção do governo em assuntos económicos, após 1930.Por
isso que, se afirmava que, o governo devia garantir a expansão da economia a fim de obter
recursos para a guerra-fria e demonstrar às nações não-alinhadas do mundo que, uma
democracia pode crescer mais rapidamente do que um Estado comunista. Como
consequência, o crescimento económico tornou-se o slogan mais citado em reuniões
políticas.

Em contrapartida, Friedman, olha esses argumentos como sendo erróneos pois, o


desemprego em períodos posteriores foi causado pela incompetência do governo, e não
pela instabilidade inerente à economia privada. Ou seja, as comissões reguladoras, fixação
governamental de salários e preços incluindo outras medidas de intervenção do governo
fornecem aos indivíduos um incentivo para o uso inconveniente e inadequado dos recursos
e ainda distorcem o investimento para novas poupanças.
O primeiro problema que Friedman levanta sobre o controlo do dinheiro é o problema do
padrão, que antes era de mercadoria ou produto, isto é, usava-se ouro, prata, bronze ou
estanho como artigos de troca. Mais tarde passou-se a usar um “sistema misto, contendo
elementos fiduciários como notas e depósitos bancários ou notas do governo acrescentadas
ao produto monetário” (Ibd., p.21). Entretanto, este padrão traz a tentação de emitir
contractos fraudulentos. Além disso, um padrão automático de mercadoria não é uma
solução porque envolve alto custo em termos de recursos usados para a produção do
produto monetário.

Daí, Friedman apresenta o segundo problema do controlo do dinheiro estabelecendo uma


autoridade monetária discricionária, nos Estados Unidos. Essa tarefa foi confiada ao
Federal Reserve System com o objectivo de alcançar a estabilidade monetária ou, pelo
menos, evitar instabilidade muito intensa. Mesmo assim, a economia passou a sofrer crises
de liquidez. Ou seja, o “ Reserve System” falhou tristemente. Fez muito pouco ou nada
para fornecer liquidez aos bancos, considerando aparentemente o fechamento de bancos
como pouco importante” (Ibd., p.25).

Entretanto, embora Friedman reconheça que o Federal Reserve Banks demonstrou ter a
capacidade de atender enormes demandas de dinheiro durante uma crise do sistema
monetário, ele parafraseia Clemenceau dizendo que dinheiro é coisa importante demais
para ser deixado aos banqueiros centrais.

O terceiro problema que Friedman levanta é o estabelecimento de normas em vez de


autoridades. Neste sentido, Friedman afirma o seguinte:

O único meio já sugerido e que parece promissor é tentar estabelecer um governo de lei,
em vez de um governo de homens, por meio da legislação de normas para a direcção da
política monetária, a qual teria o efeito de permitir ao público exercer o controlo da política
monetária por meio das autoridades políticas e, ao mesmo tempo, evitaria que a política
monetária fosse vítima dos caprichos das autoridades políticas (Ibd., p. 27).

Em outras palavras, Friedman é a favor não só de reformas bancárias e fiscais adicionais,


eliminando a intervenção governamental nos empréstimos e nos investimentos Mas,
sobretudo que se adopte normas que limitam a liberdade das autoridades monetárias no que
concerne ao estoque de dinheiro. Em suma, Friedman quer que se reduzao papel do
governo no controlo do dinheiro. Assim, o governo deve apenas permitir que os indivíduos
façam crescer a economia, fornecendo uma estrutura monetária estável à economia livre.
6.2 Finanças Internacionais e Problemas de Mercado

Na perspectiva de Friedman, “ao discutir as relações monetárias internacionais num nível


mais geral, é necessário distinguir dois problemas diferentes: o balanço de pagamentos e o
perigo de uma corrida ao ouro” (Ibd., p. 31).

Neste sentido, está em causa a relação entre as diversas moedas nacionais tendo em vista
os termos e condições sob os quais os indivíduos podem converter as suas moedas com as
estrangeiras.Em resumo, para se resolver o problema, Friedman propõe umsistema de taxas
de câmbio livremente flutuantes, determinadas no mercado por transacções privadas sem a
intervenção governamental, onde o preço do ouro deixe de ser fixado pelos Estados
Unidos, evitar a especulação cambial e liquidar estoques de ouro do governo de modo
progressivo.

6.3 Política Fiscal

Tal como foi referenciado na introdução do presente trabalho, o objectivo da política de


New Deal foi injectar investimentos governamentais para eliminar o desemprego. Porém,
com aretracçãoeconómica aguda em 1937/38, manteve-se um nível permanentemente alto
de investimentos governamentais.

Mais tarde, depois de amadurecimento da economia, os indivíduos ainda desejavam


economizar. Isso justificou que o governo investisse e mantivesse umdeficit perpétuo onde
os títulos emitidos para financiar o deficit forneceriam aos indivíduos uma forma de
acumular suas economias enquanto os investimentos do governo forneceriam empregos.

Depois, surgiu a política de que, “quando os investimentos privados declinam por qualquer
razão, os investimentos do governo devem aumentar para manter estáveis os investimentos
totais; por outro lado, quando os investimentos privados aumentam, os do governo devem
baixar.”(Ibd., p. 39).

Friedman rebata dizendo que, o grande prejuízo dessa política de equilíbrio não consistiu
apenas em ser incapaz de combater a retracção, nem de ter introduzido uma inclinação
inflacionária, mas sobretudo em ter estimulado a expansão contínua das actividades
governamentais em nível federal e impedindo uma redução da carga de taxas federais.
A proposta de solução de Friedman sobre o problema da política fiscal consiste no
seguinte:

Planear o programa de investimentos inteiramente em termos do que a comunidade quer


fazer por meio do governo em vez de fazê-lo privadamente e sem nenhuma preocupação
com os problemas da estabilidade económica de ano para ano; planejar as taxas e impostos
de modo a garantir renda suficiente para cobrir as despesas programadas com base na
média de um ano para outro, ainda aqui sem preocupação com as mudanças anuais na
estabilidade económica, e evitar mudanças erráticas nas despesas ou taxas governamentais.
(Ibd., p. 41).
Esta assertiva de Friedman faz recordar aquele seu postulado que se fez referência no
primeiro ponto do presente trabalho segundo o qual, deve-se colocar a questão: o que eu e
meus compatriotas podemos fazer por meio do governo para ajudar cada um de nós a
tomar suas responsabilidades, a alcançar nossos propósitos e objectivos diversos e, acima
de tudo, a proteger nossa liberdade.

6.4 O Papel do Governo na Educação

Segundo Friedman, a extensão indiscriminada da responsabilidade do governo fez com que


hoje em dia, a educação formal fosse financiada e quase inteiramente administrada por
entidades governamentais ou instituições sem fins lucrativos.

Friedman diz que essa intervenção governamental no campo da educação tem efeitos
laterais (imposição de custos a outros indivíduos sem compensação) e paternalismo. Por
isso que, as actividades do governo estão em grande parte limitadas à instrução em
detrimento da educação que é o papel de interesse do governo.

O principal problema que Friedman levanta é o seguinte: “como impedir que o plano se
torne um futebol político e acabe por passar de um projecto autofinanciador para um
instrumento, de subvenção da educação profissional” (Ibd., p. 56).

Ele levanta esse problema porque, embora as escolas públicas sejam necessárias à educação
como uma força unificadora, o que se verifica é que, as escolas privadas tendem a
exacerbar as diferenças de classe pois, com a liberdade de escolha de escolas, os pais de
uma certa classe podem reunir-se e impedira integração de crianças de outras classes
sociais limitando, assim, o convívio dessas crianças emdiferentes ambientes.

Embora o governo tenha nacionalizado as escolas para impor padrões mínimos às escolas
particulares de modo a garantir a estabilidade social, com o crescimento das áreas urbana e
suburbana, a situação mudou drasticamente e sistema actual de educação, já não iguala as
oportunidades e, até pode estar fazendo o contrário. Por esta razão, Friedman propõe como
solução a desnacionalização da educação pois, as melhores escolas públicas estão situadas
nos bairros ou quarteirões de renda alta o que dificulta o acesso dos alunos que moram em
outros bairros distantes.

Além desses pontos acima descriminados sobre os quais Friedmancritica certas políticas de
intervenção governamental, nos capítulos subsequentes, ele trata do capitalismo e
discriminação, do monopólio e a responsabilidade social do capital e do trabalho, do
licenciamento ocupacional, da distribuição da renda, das medidas para o bem-estar social e
do problema da pobreza. Embora também relevantes, não serão analisados neste trabalho
por questões metodológicas.

Conclusão

Friedman posiciona-se como um liberal revolucionário que quer ver o governo a abdicar de
alguns poderes em favor das liberdades individuais. Isto é, o governo deve ser o
instrumento por meio do qual os indivíduos possam exercer a sua liberdade.

Para o efeito, e em defesa da liberdade, Friedman defende, por um lado, que o objectivo do
governo deve ser limitado, protegendo a liberdade contra os inimigos tanto internos como
externos, preservar a lei e a ordem; reforçar os contractos privados e promover mercados
competitivos. Por outro lado, o poder do governo deve ser distribuído. Ou seja, promover a
descentralização do poder.

Um outro aspecto que Friedman analisa, é a relação existente entre a economia e a política.
Para ele, essas duas áreas têm uma relação estreita diferentemente daqueles que as
considera totalmente distintas. Friedman acrescenta afirmando que liberdade económica
não só constitui um fim em si própria, como também constitui um instrumento
indispensável para a obtenção da liberdade política.

Assim, tal como ficou patente acima, o governo deve intervir apenas para legislar e
determinar as regras do jogo como árbitro de um jogo cuja função é interpretar e pôr em
vigor as regras estabelecidas. Enquanto isso, Friedman encarrega os problemas éticos ao
próprio indivíduo, concretamente, os valores relevantes para o exercício de sua liberdade
(que constituem o assunto da filosofia e da ética individual) e osvalores que são relevantes
para as relações interpessoais (que constituem o contexto sociocultural).
Foi também referenciado que, compete também ao governo encontrar formas de resolver
os conflitos entre as liberdades dos diversos indivíduos, bem ainda, manter a lei e a ordem
de modo a evitar a coerção de um indivíduo por outro.

Entretanto, partindo da experiência dos Estados Unidos, há uma série de actividades que o
governo realiza e que Friedman, é totalmente contra, nomeadamente o favorecimento de
monopólios e o paternalismo. Neste último aspecto, Friedman tolera apenas em relação às
crianças e aos insanos (insensatos ou dementes). Só a estes, Friedman reconhece-lhes o
paternalismo porque os considera irresponsáveis.

A tónica dominante de Friedman ao apresentar as limitações no conjunto de actividades


desenvolvidas pelos Governos Federal e Estadual nos Estados Unidos e pelos órgãos
equivalentes em outros países do hemisfério ocidental, bem como na crítica às políticas de
intervenção governamental tem sido a limitação e descentralização do poder do governo e
uma crescente construção civilizacional.

Em suma, o liberal à moda friedmaniana não é aquele que espera que a sua pátria, através
do governo faça algo por ele, e nem que ele sozinho faça algo por sua pátria. Friedman
quer que os anseios de cada indivíduo sejam congregados por meio do governo para
alcançarem em conjunto os seus propósitos e objectivos. Ou seja, nem o privado deve agir
de forma isolada, sob pena de não respeitar as liberdades dos outros, e nem o governo deve
tomar o papel do privado ou do indivíduo sob pena de cair no paternalismo.
Bibliografia

FRIEDMAN, Milton. Capitalism and Freedom. University of Chicago Press, Chicago,


1962.

HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil.


Ícone Editora, 3ª Edição, São Paulo, 2008.

POWELL,Jim. Biografias: Benjamin Constant. Artigo Publicado em 22 de Outubro de


2013. Disponível em http://www.libertarianismo.org/index.php/artigos/biografias-benjamin-
constant/, baixado em 07-02-2014.
O Banco Mundial e o FMI

Por Luís Cipriano Manuel

Para o triunfo do mal, basta que os bons não façam


nada. (Por Edmund Burke, In o Filme Lágrimas do
sol)

INTRODUÇÃO

O presente trabalho subordina-seao tema: O Banco Mundial e o FMI. Trata-se de


instituições financeiras internacionais conhecidas como sendo agências especializadas
da ONU, cuja origem e estrutura de governação são semelhantes. O Banco Mundial e o
Fundo Monetário Internacional (FMI) foram criados em conjunto em 1 de Julho de 1944,
em Bretton Woods nos Estados Unidos da América, através de uma convenção de 44
países.

Oprincipal objectivo da criação do Banco Mundial e do FMI foi ode sustentar a ordem
económica e financeira mundial depois da II Guerra Mundial. Os países
consignatáriosacreditavam que tal estrutura era necessária para evitar uma repetição das
políticas económicas desastrosas que contribuíram para a Grande Depressão da década de
1930, onde os países, tentaram assegurar as suas economias em crise, aumentando as
barreiras ao comércio exterior, desvalorizando suas moedas para competir uns contra os
outros no mercado de exportação, e restringir a liberdade dos seus cidadãos para segurar a
taxa do câmbio.

Porém, essas políticas revelaram seremautodestrutivos. Como resultado, o comércio


mundial caiu drasticamente, juntamente com emprego e o nível de vida de muitos
países.Neste sentido, cada país consignatário tinha que adoptar uma política monetária que
mantivesse a taxa de câmbio das suas moedas fixadas em relação ao Dólar Norte-
americano e ao ouro equivalente a uma base fixa de 35 Dólares Norte-americanos.

Por isso, surgem oBanco Mundial e o FMI que, apesar de serem organismos que trabalham
de modo complementar e terem sido criados juntos, há alguns traços significativos que os
diferenciam, tanto a nível de estatutos, como de programas. Nos estatutos, por exemplo,
tem sido costume que a presidência do Banco Mundial e do FMI seja dividida entre os
Estados Unidos da América e a Europa respectivamente.

A nível dos programas o Banco Mundial tem por objectivo dar alta prioridade ao
desenvolvimento social e humano sustentável, fortalecer a gestão económica, colocar uma
ênfase na inclusão governativa e fortalecer as instituições. Além disso, o Banco Mundial
ajuda a construir consensosno seio da comunidade internacionalem torno da ideia de que
os países em desenvolvimento devem assumir a liderança na criação de suas estratégias
próprias para a redução da pobreza. Compete também ao Banco Mundial ajudar os países a
implementar os Objectivos do Milénio (ODM) que as Nações Unidas (ONU) e a
comunidade internacional procuram alcançar até 2015.

Ainda mais, o Banco Mundial em colaboração com o International Finance Corporation 


(IFC) estão ajudando os países a fortalecer e manter as condições fundamentais que
precisam para atrair e reter os investimentos privados. E, por último, o Banco Mundial
apoia tanto em empréstimos como em conselhos aos governos para reformarem as suas
economias e fortalecerem os seus sistemas financeiros. Incentivam também para drenarem
investimentosem recursos humanos, infra-estrutura e protecção ambiental. (Cf.
WORLDBANK, 2007:12)

Já o FMI, ao contrário do Banco Mundial que tem objectivos macroeconómicos a longo


prazo, foca as questões macroeconómicas de curto prazo resultantes das políticas fiscais,
monetária e cambial. Ou seja, o FMI é uma instituição encarregada de supervisionar o
sistema monetário internacional, o sistema de taxas de câmbio e pagamentos internacionais
que permitem que os países e seus cidadãos comprem bens e serviços uns dos outros. 

Em última análise, o FMI tem como objectivos garantir a estabilidade da taxa de câmbio e
um sistema aberto de pagamentos internacionais; facilitar o crescimento do comércio
internacional, promovendo, assim, a criação de empregos, o crescimento económico e a
redução da pobreza; e emprestar fundos aos países, quando necessário, de forma
temporária e sob salvaguardas adequadas, para ajudá-los a lidar com problemas de balança
de pagamentos. (cf. INTERNATION MONETARY FUND, 2014)

Em termos metodológicos e estruturais do presente trabalho, primeiro será analisado o


âmbito do Banco Mundial e depois será a vez do Fundo Monetário Internacional. A
separação em abordagem sobre esses dois organismos financeiros internacionais justifica-
se pelas diferenças significativas que foram destacadas nos parágrafos anteriores. A seguira
esses dois estudos serão apresentadas as vozes críticas em volta do Banco Mundial e do
FMI, seguindo-se a conclusão e a bibliografia.

CAPÍTULO I – O BANCO MUNDIAL

Neste capítulo será feito o estudo sobre o Banco Mundial em termos da sua composição
interna. A sua dimensão mundial exige desta instituição financeira uma maior intervenção
para resolver, de forma definitiva, os problemas que grassam muitos povos. Por isso, é
importante conhecer a sua estrutura funcional e as suas estratégias face aos seus clientes.

1.1 A Composição do Banco Mundial

O Banco Mundial propriamente dito divide o seu trabalho entre o Banco Internacional para
Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD), que auxilia na renda média a países pobres
dignos de crédito, e a Associação Internacional de Desenvolvimento (IDA), que se
concentra exclusivamente nos países mais pobres do mundo. As duas instituições
pertencem ao Banco Mundial e nelas ele se divide.

Trabalhando, tanto através do BIRD, assim como da AID, o Banco usa os seus recursos
financeiros, pessoalhábil, e uma extensa base de conhecimento para ajudar cada país rumo
ao desenvolvimento e alcançar um crescimento económico estável, sustentável e
equitativo. O BIRD ea AID compartilham a mesma equipe e a mesma sede. Além disso,
apresentam relatóriosà mesma administração, e usam as mesmas normas quanto à
avaliação de projectos.(Cf. WORLDBANK, 2007:11).

Na sua obra Guide to the World Bank, o Banco Mundial ressalva que, em contacto com
todos os seus clientes, enfatiza a necessidade deinvestir nas pessoas, nomeadamente
através de saúde e educação básicas; ter o foco no desenvolvimento social,
governaçãoinclusiva, e construção deinstituições como elementos-chave da redução da
pobreza; ter a capacidade de fortalecimento dos governos para prestar serviços de
qualidade de forma eficientee transparente; proteger o meio ambiente; apoiar e incentivar o
desenvolvimento de empresas privadas, promover reformas para criar um ambiente
macroeconómico estável que é propício ao investimento e planearactividades de longo
prazo.

Além do Banco Mundial, existe o chamado Grupo Banco Mundial. Este último organismo
é composto por cinco instituições integrando o BIRD e a AID (constituintes do Banco
Mundial acima mencionados). A lista fica completa com instituições como a Corporação
Financeira internacional (IFC), a Agência Multilateral de Garantia de Investimentos
(AMGI) e o Centro Internacional para Arbitragem de Disputas sobre Investimentos
(CIADI).

As instituições do Banco Mundial, em particular e do Grupo Banco Mundial, em geral


trabalham sob a mesma presidência, cuja sede se localiza em Washington, nos Estados
Unidos da América. O actual presidente do Banco Mundial é Jim Yong Kim,um americano
de origem Sul-coreana.O Banco Mundial possui 186 países como membros em todo o
mundo.

Tal como foi dito acima, o Banco Mundial propriamente dito, trabalha com o BIRD e a
IDA, razão pela qual, estas duas instituições merecerão uma análise especial.

1.1.1 O Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento

Na sua obra Guide to the World Bank, o Banco Mundial anota que O Banco Internacional
de Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD) é a instituição original do Banco Mundial,
fundada em 1944 e constitui a fonte dos empréstimos para os quais o Grupo do Banco é
mais conhecido.

Nessa mesma obra, revela-se que, quando as pessoas falam de Banco Mundial querem
referir-se principalmente ao BIRD. Este tem a maior associação de países, a missão mais
ampla, eo maiornúmero de funcionários no Grupo do Banco, tanto na sede como nos
escritórios em todo o mundo.

Assim, na génese da sua criação, a primeira tarefa do BIRD era (de) ajudar a Europa a
recuperar dos efeitos da II Guerra Mundial. Hoje BIRD desempenha um papel importante
na redução da pobreza, fornecendo empréstimos, garantias e serviços analíticos e
consultivosaos países com renda média e países mais pobrescom renda baixa. Além disso,
o BIRD fornece a esses países clientes com acesso ao capital em termos de volumes
maiores, com prazos mais longos, e de uma forma mais sustentável.

Especificamente, o BIRDsuporta as necessidades humanas de longo prazo e


desenvolvimento social que os credores privados não financiam;preserva a força financeira
dos mutuários (aquele que recebe por empréstimo qualquer coisa que se gasta), fornece
apoio durante períodos decrise, em que as pessoas pobres são mais prejudicadas eusa a
alavanca do financiamento para promover a política-chave de reformas institucionais
(como a rede de segurança ou reformas anticorrupção).

Além disso, o BIRD cria um clima de investimento favorável para catalisar o fornecimento
de capital privado e fornece apoio financeiro (sob a forma de subsídios disponibilizados a
partir de receita líquida do BIRD) em áreas que são fundamentais para o bem-estar das
pessoas pobres em todos os países.(Cf. WORLDBANK, 2007:12/3)

Em termos de confiança, o BIRD é uma instituição financeira com o nível de rating de


AAA. Contudo, o BIRD tem algumas características incomuns que são: os seus accionistas
são governos soberanos e seus devedores são membros que têm uma voz na definição de
suas políticas.

Como foi referenciado acima, o BIRD proporciona empréstimos, garantias, gestão de


riscos, produtos e serviços analíticos e de assessoria.Além disso, ao contrário dos bancos
comerciais, o BIRD é impulsionado pelo impacto do desenvolvimento ao invés de
maximização do lucro. Uma vez que os credores são países de renda média que têm algum
tipo de acesso aos mercados de capitais privados e há garantias de credibilidade em termos
de reembolso.(Cf. WORLDBANK, 2007:13).

O relatório do Banco Mundial divulgado em 1 de Julho de 2006 mostra que o BIRD é a


instituição responsável em dar empréstimos aos países com uma RendaPer Capitasituada
entre 15,810 e 1,250 Dólares Norte-americanos. Nesserelatório, a República da Korea
aparece no topo dos países elegíveis apenas pelos fundos do BIRD, com a Renda Per
Capita de 15,810 Dólares Norte-americanos. No fundo da tabela situava-se o
Turkmenistan com a Renda Per Capita de cerca de 1,250 Dólares Norte-americanos. Ao
todo, o BIRD havia financiado sozinho um número de 64 países. (ver WORLD BANK,
2007:14 - Table 1.1 Country Eligibility for Borrowing from the World Bankas of July 1,
2006).

2005
1.1.2 A Associação Internacional de Desenvolvimento

Depois da reconstrução da Europa após a Segunda Guerra Mundial, o Banco Mundial


virou a sua atenção aos países em vias de desenvolvimento recentemente independentes.
Pelo facto desses países não estarem em condições de se endividarem, pelos termos e
condições oferecidos pelo Banco Mundial, um grupo de membros do Banco decidiu fundar
a IDA como uma instituição que poderia emprestar fundos àsnações muito pobres e em
vias de desenvolvimento por termos mais fáceis em relação aos oferecidos pelo Banco
Mundial.

Porém, para incutir à IDA a disciplina de um banco, estes países concordaram que a IDA
devia ser parte do Banco Mundial, tendo começado a operar em 1960.Desde então, a “IDA
ajuda os países mais pobres do mundo a reduzir a pobreza, fornecendo créditos e
subvenções. “Os créditos são empréstimos a juro zero com um período de carência de 10
anos antes do reembolso do capital; começa com os vencimentos de 20, 35, ou 40 anos.”
(WORLDBANK, 2007:17).

Essa forma de dar créditos é conhecida como empréstimos concessionários (sob condições
favoráveis). Os créditos da AID têm a finalidade de construir o capital humano, as políticas
de governação, instituições e infra-estrutura física que esses países precisam,de forma
urgente,para atingir crescimentosustentável.

A IDA também tem a finalidade demelhorar o acesso à educação primária, saúde básica,
água potável e seu abastecimento e saneamento,elevando o nível económico e a
produtividade das pessoas.

Quanto ao financiamento, os fundos daIDA vêm das contribuições dos governos de Alta
Renda dos países membros, os quais se reúnem a cada três anos para reconstituir os fundos
da IDA. Outros fundos adicionais vêm de reembolsos de empréstimos anteriores da AID e
da renda líquida do BIRD.

Entre os maiores contribuintes da IDA figuram os Estados Unidos da América, o Reino


Unido, Japão, Alemanha, França, Itália, e Canadá. Contudo, algumas nações menos ricas
também contribuem para a AID, por exemplo, a Turquia que passou de mutuário (credor)
da IDA e passou ao estatuto de um doador. Outros países que, actualmente são elegíveis
para empréstimos do BIRD, mas não do IDA, também são doadores. Nessa situação
figuram países como: Brasil, República Checa, Hungria, México, Polónia, Federação da
Rússia, a República Eslovaca, e África do Sul. Outros colaboradores incluem Austrália,
Áustria, Barbados, Bélgica, Dinamarca, Finlândia, Grécia, Islândia, Irlanda, Israel, Kuwait,
Luxemburgo, Países Baixos, Nova Zelândia, Noruega, Portugal, Arábia Saudita,
Singapura, Eslovénia, Espanha, Suécia, Suíça e República Bolivariana de Venezuela. (Cf.
WORLDBANK, 2007:19).

Assim, desde 1960 atém 2006, a AID emprestou 170.000 milhões dólares para 108 países,
com uma média de crescimento anual de cerca de 9,1 biliões de dólares Norte-americanos.

Segundo o relatório do Banco Mundial divulgado em 1 de Julho de 2006, a IDA deu


empréstimos a 66 países com uma RendaPer Capita situada abaixo dos 3,465 Dólares
Norte-americanos. É nessa tabela onde figura a República de Moçambique com uma
Renda Per Capitade apenas 310 Dólares Norte-americanos. (ver WORLD BANK,
2007:15/6 - Table 1.1 Country Eligibility for Borrowing from the World Bankas of July 1,
2006).

1.2 Quadro Estratégico do Banco Mundial

De um modo geral, o quadro estratégico do Grupo Banco Mundial concentra-se em dois


pilares: (1) a construção de um clima apropriado para o investimento, emprego e
crescimento sustentável, de modo que as economias vão crescendo e de (2) investir em
capacitação às pessoas pobres a participar do desenvolvimento. (Cf. WORLDBANK,
2007:49).

Porém, Cristiano Amaral GarbogginiGiorgi assegura que o Banco Mundial tem exigido
reformaseconómicas profundas, que implicam redução das funções do Estado, um novo
modelo de acumulação, abertura de mercado, privatização e inserção aberta e competitiva
no mercadomundial.

Em termos mais concretos, “exige-se:a) equilíbrio orçamental, b) abertura comercial, c)


liberalização financeira, d) desregulamentação do mercado doméstico, e) privatização das
empresas e serviços públicos, f) reforma tributária; g) reforma previdenciária, com
incentivo a formas de previdência privada, eh) flexibilização da legislaçãotrabalhista.”
(GIORGI, 1966:1)

O mesmo autor acrescenta que, étambém facto que essesorganismos têm insistido que um
dos pontos-chavepara esta inserção aberta e competitiva é areforma dos sistemas
educacionais da região.
Na sua obra Guide to theWorldBank, o Banco Mundial reconhece que, “nos últimos anos,
o executivo de directores ressaltou a pertinência destas prioridades, tendoreafirmado a
necessidade de selectividade no trabalho do Grupo Banco Mundial, e chamadopara uma
maior colaboração com os parceiros de desenvolvimento.” (WORLDBANK, 2007:49)

Porém, as estratégias do Banco Mundial revelam-se sempre opacas. Segundo Silva etall, a
partir dos meados da década de 1950 até o início dos anos 1970, o perfil de 70%
dosprogramas de empréstimo do Banco Mundial era voltado às políticas de
industrialização dospaíses do Terceiro Mundo, visando sua inserção, ainda que
subordinada, no sistemacomercial internacional. “A tese central que regia essa orientação
era a de que a pobrezadesapareceria como consequência do crescimento económico desses
países.” (SILVA etall, 2004:8). Porém, esse facto não aconteceu.

Além disso, o Banco Mundial recorre a técnicas demensuração da pobreza que visam
definir as carências através dos indicadores que incluem a alimentação, saúde, educação e
habitação. Assim, na óptica de Elsa Sousa Kraychete, esse nível de carências define as
políticas orientadas para cada grupo específico, cujo objectivo é diferenciar o modo de
aplicação da modalidade de financiamento entre os países.

Assim, os mais pobres são atendidos por políticas de carácter compensatório e os demais
por políticas orientadas pelo mercado. “Enquanto as políticascompensatórias devem agir
em favor do fortalecimento das capacidades individuais, com opropósito de fortalecer os
indivíduos, (…) as políticas orientadas para o grupo dos pobres, sustentam-senos valores
expressos no empreendedorismo competitivo” (KRAYCHETE, 2005:22).
CAPÍTULO II – O FUNDO MONETÁRIO INTERNACIONAL
Neste capítulo, será feito o estudo da constituição do Fundo Monetário Internacional.
Tratando-se de uma instituição financeira cuja intervenção possui metas a curto prazo,
precisa dotar-se de políticas que encorajem os diferentes países pobres e suas instituições a
encontrarem solução para a sua crise orçamental e financeira. Por isso, interessam aspectos
tais como a constituição interna do FMI, o modo como lida com as Crises e empréstimos, e
a sua política cambial.

2.1 A Composição do FMI

O FMI é uma organização central do mundo para a cooperação monetária internacional.


Ele é constituído por 188 países membrosem todo o mundo, os quaistrabalham juntos para
promover o bem comum. “O principal objectivo do FMI é garantir a estabilidade do
sistema monetário internacional, o sistema de taxas de câmbio e pagamentos
internacionais, que permitem aos países (e os seus cidadãos) comprarem bens e serviços de
um outro. Isto é essencial para alcançar um crescimento económico sustentável e elevar os
padrões de vida.” (INTERNATIONAL MONETARY FUND, 2013:2)

De acordo com o seu relatório anual de 2013, o FMI afirma que todos os países membros
do FMI são representados em seu Conselho Executivo, que discutem as consequências
nacionais, regionais e globais de políticas económicas de cada membro. Este relatório
anual abrange as actividades da Direcção Executiva,da gestão do FMI e do pessoal durante
o exercício de 01 de Maio de 2012, até 30 de Abril de 2013.

Compete também ao FMI prestar aconselhamento aos membros sobre a adopção de


políticas que podem ajudá-los a prevenir ou resolver uma crise financeira, alcançar a
estabilidade macroeconómica, acelerar o crescimento económico e reduzir a pobreza;

Além disso, o FMI coloca à disposição um financiamento temporárioaos países membros


para ajudá-los a lidar com problemas de balança de pagamentos. A ajuda inclui também a
oferta da assistência técnica e treinamento aos países, a seu pedido, para ajudá-los a
construir o conhecimento e instituições que necessitam para implementar políticas
económicas sólidas.

A sede do FMI está em Washington e tem também escritórios em todo o mundo. Os corpos
técnicos do FMI e do Banco Mundial trabalham em estreita colaboraçãosobre questões de
assistência e políticas do país que são relevantes para ambos. Actualmente, o FMI é
dirigido pela francesa Christine Lagarde como Directora-gerente. Ela é a Ex Ministra de
Finanças da Françaquesubstituiu o também francês Dominique Strauss-Kahn, afastado do
cargo por causa de escândalo sexual.

O FMI faz a avaliação sobre a situação política eeconómica geral de um país e fornece
dados ao Banco Mundial para avaliação deprojectos de desenvolvimento ou reformas. Da
mesma forma, “osconselhos doBanco Mundial sobre reformas estruturais e sectoriais são
levados em conta pelo FMI em sua assessoria política.”(INTERNATIONAL MONETARY
FUND, 2013:42).

Em termos de constituição, actualmente, o FMItem dois organismos de linhas de crédito, o


General Arrangements to Borrow (Acordo General para o Empréstimo) – GAB criado em
1962 e o New Arrangements to Borrow (Novo Acordopara o Empréstimo) – NAB criado
em 1998. Em seguida, serão analisados, de forma sucinta, cada um destes organismos do
FMI.

2.1.1 Acordo General para o Empréstimo

O General Arrangements to Borrow (Acordo General para o Empréstimo) – GABé uma


instituição financeira que permite ao FMI para emprestar quantidades especificadas
demoedas de 11 economias avançadas ou seus bancos centrais. A lista, inclui países como
Estados Unidos da América, China, Japão, Alemanha, Índia, Rússia, Reino Unido, Brasil,
França, e Itália.

Um exemplo actual do financiamento a partir do GAB é um acordo de crédito feito com a


Arábia Sauditae que foi renovado, sem modificações, por um período de cincoanos a partir
de 26 Dezembro de 2013. O montante potencial de créditoà disposição do FMI sob o GAB
tem os totais de 17 bilhões SDR(EUA $ 26 bilhões de dólares), com um adicional de 1,5
mil milhões de SDR (EUA $2,3 bilhões de dólares)disponíveis sob o regime associado
com a Arábia Saudita.

Desde a sua criação, o GAB foi activado 10 vezes. A proposta de solicitaçãodo GAB pode
ser feita, sóquando uma proposta para o estabelecimento de um período de activação sob o
NAB não é aceito pelos participantes do NAB. Isto é, o GAB funciona apenas para
créditos já concedidos. Para quem entra no sistema pela primeira vez, deve ser por meio do
NAB.
2.1.2 Novo Acordo para o Empréstimo

O New Arrangements to Borrow(Novo Acordopara o Empréstimo)– NAB é um conjunto


de acordos de crédito entre o FMI e 38 países membros e 84 instituições, incluindo um
número de economias de mercados emergentes. O mesmo foi ampliado com novos
participantes em Março de 2011 para aumentar os recursos disponíveis para a prestação de
financiamento. Depois, a prática deactivação do empréstimo por um outro empréstimosob
o NAB original foi substituída e estabelecido umperíodo de activação geral de até seis
meses.

Uma vez activado,o NAB pode fornecer até 366.500.000.000 SDR(EUA $553.000
milhões dólares)em recursos suplementares.O NABrevisto entrou em vigor em Março de
2011, e foiactivado pela primeira vez em Abrildo mesmo ano. Desde de então, oNAB foi
activado duas vezes.

2.1.3 Mecanismos de Auditoria

Os mecanismos de auditoria do FMI compreendem três empresas: uma empresa de


auditoria externa – ExternalAuditCommttee (EAC),um gabinete de auditoria interna –
Office ofInternalAuditandInspection (OIA) e uma auditoria externa independenteque
trabalhamde acordo com o Estatuto Social, dos exercícios de fiscalização geral do FMI
sobre a auditoria anual.

Auditoria externa é feita por três membros seleccionados pelo Conselho Executivo e
nomeados pelo Director-Geral. Os Membros trabalham durante três anos com base em
termos independentes do FMI. “Eles são escolhidos entre diferentes países membros e
devem possuir aexperiência e qualificações necessárias para realizar a supervisão da
auditoria anual. Normalmente, os membros da EAC tem uma experiência significativa em
empresas internacionais de contabilidade pública, o sector público, ou academia.”
(INTERNATIONALMONETARYFUND, 2013:59).

A função de auditoria interna do FMI é exercida pelo Gabinete de Auditoria Interna e


Inspecção (OIA), que, de forma independente, examina a eficácia da gestão de risco do
FMI e controlaos processos de governação. O exercício da auditoria doOIAenvolve o
Pessoal do FMI, o Conselho Executivo, os escritórios dos Directores Executivos e o
Gabinete de Avaliação Independente, incluindo todo o seu pessoal.
A auditoria deve sempre acontecer para garantir o controlo e verificar os procedimentos
para salvaguardar e gerir o património e as contas financeiras do FMI.

2.2. Crises e Empréstimos do FMI

O folheto do FMI sobre as condições de empréstimo em caso de passar uma crise começa
por dizer o seguinte: “As crises económicas e financeiras podem assumir muitas formas. O
FMI ajuda os países atingidos por crises, proporcionando-lhes apoio financeiro para criar
espaço para respirar, pois implementa políticas correctivas para restaurar a estabilidade
económica e crescimento, e também por fornecer financiamento de precaução para evitar
crises.” (INTERNATIONMONETARYFUND, 2013:1)

Assim, o empréstimo pode ser solicitado quando um país membro enfrenta uma situação
excepcional que ameaça a sua estabilidade financeira. Quando isso ocorre,torna-se
necessário dar uma resposta rápida não só para conter os danos ao país, mas também ao
sistema monetário internacional em geral.

Para a concessão do empréstimo, são observados três passos simplificados:  

 O Conselho Executivo é informado sobre o pedido de um membro para a


assistência,
 Uma equipe de funcionários é rapidamente implantado no país, e
 Assim que a equipe chega a um entendimento com o governo, o Conselho
considera o pedido para apoiar um programa dentro de 48-72 horas.

Os empréstimos do FMI têm por objectivo dar aos países espaço para respirar de modo a
implementar políticas de ajuste e reformas que permitirão restaurar as condições para um
crescimento forte e sustentável. O dinheiro emprestado do FMI deve também ser aplicado
para criar emprego e investir em áreas sociais. 

As políticas do FMI variam dependendo das circunstâncias de cada país. Se, por exemplo,
um país enfrenta uma queda brusca no preço das exportações, pode simplesmente precisar
de ajuda financeira para aliviar a dor de ajuste pararecuperaros preços. Porém, um outro
país pode sofrer uma crise que o leva à perda de confiança dos investidores. Assim, para
resolver os problemas, poderá talvez precisar de taxas de juros muito baixos. Neste último
exemplo,ocorre porque o défice orçamental e a dívida crescem muito rápido, ou
entãoporque o sistema bancário é ineficiente ou mal regulado.
Para responder à crescente onda de crises, o FMI reforçou a sua capacidade de prevenir
crises introduzindo as chamadas Linha Flexível de Créditos  (FCL) e a Linha de Precaução
e de Liquidez  (PLL).

Para atender os países membros das necessidades de pagamento para um equilíbrio


urgente, o FMI introduziu o Instrumento de Financiamento Rápido  (RFI). Além disso,
para os países de baixa renda, o FMI introduziu a Linha de Crédito Rápido (RCF). Este
último instrumento foi criado para responder ao programade Redução da Pobreza e
Crescimento (PRGT).

Essas medidas vêm incrementar as políticas dos dois sectores constituintes do FMI, o
Acordo General para o Empréstimo – GAB e o Novo Acordopara o Empréstimo – NAB,
onde a elegibilidade segue critérios muitos mais rígidos e, consequentemente, morosos. É
preciso, porém reconhecer que, o acto de emprestar dinheiro requer acordos e
compromissos.

Por isso, apesar de que na concepção do empréstimo a um país, o FMIe as autoridades


desse paístenham que concordar com um programa de políticas económicas que é uma
condicionalidade política para obter o empréstimo, a ausência de financiamento do FMI,
tornaria mais difícil o processo de ajuste para o país em crise. 

2.3 Política Cambial

O objectivodo FMI na política cambial é manter uma taxa de câmbio competitiva. Essa
premissa não implica necessariamente que a sobrevalorização deva ser corrigida pela
depreciação da moeda. Há duas possibilidades para corrigir sobrevalorização da taxa de
câmbios. Por um lado, ela pode ser reduzida pela depreciação da moeda e por outro lado,
pela redução de preços. (Cf. INTERNATIONAL MONETARY FUND, 2001:572).

Por vezes, o FMI recomenda taxas de câmbio flutuantes, no contexto de suas actividades
de vigilância. Contudo, alguns países que pedem empréstimo ao FMInão conseguem
atingir a estabilidade da taxa de câmbio em um regime de taxa flutuante porque, muitas
vezes, falta-lhes a solidez institucional e política macroeconómica que é uma força
necessária para a estabilidade da moeda.
CAPÍTULO III – CRÍTICAAO BANCO MUNDIAL E AO FMI

As críticas aqui apresentadas são resultantes das vozes externas que querem ver o FMI
agindo dentro de uma política que salvaguarde os interesses socioculturais dos povos e não
aqueles meramente políticos que podem atropelar os valores morais das sociedades.

A primeira crítica é que, a composição de duas instituições no Banco Mundial beneficia


alguns países em detrimento de outros. Por exemplo, o BIRD financia apenas países com
uma renda média, muitos deles europeus. Ao contrário, aIDA ocupa-se dospaíses mais
pobres do mundocuja maioria se encontra em África, com Renda Per Capita baixa. Como
consequência, o verdadeiro desenvolvimento ocorre apenas naqueles países elegíveis pelo
BIRD.

A crítica mais dura vem de Éric Toussaint, Presidente do Comité para a Anulação da
Dívida do Terceiro Mundo (CADTM). Ele é conhecido como um crítico do Banco
Mundial e do FMI. Toussaint escreveu um artigo intitulado FMI e Banco Mundial: a hora
do balanço(2013). Nele, coloca 30 críticas a estes dois organismos, das quais serão
destacadas as mais sugestivas.

Toussaint afirma que, o Banco Mundial e o FMIesmagaram a soberania dos Estados,


violando flagrantemente o direito dos povos à autodeterminação, devido às condições que
impuseram. Essas condições empobreceram a população, aumentaram as desigualdades,
deixaram os países nas mãos das multinacionais e alteraram as legislações dos Estados
(reformas profundas do Código do Trabalho, dos códigos mineiros, florestais, revogação
dos acordos colectivos, etc.), favorecendo os credores e «investidores» estrangeiros. (Cf.
TOUSSAINT, 2013).

Outra crítica pesada de Toussaint dirigida ao Banco Mundial e do FMIfaz notar que, apesar
de terem detectado desvios em grande escala, o BM e o FMI mantiveram ou mesmo
aumentaram a concessão de empréstimos a regimes corruptos e ditatoriais, aliados das
potências ocidentais (ver o caso emblemático do Congo-Zaire de Mobutu após o relatório
Blumenthal em 1982).

Além disso, Toussaint denuncia que o Banco Mundial e o FMI sabotaram as experiências
democráticas e progressistas de Jacobo Arbenz na Guatemala e de Mohammad
Mossadeghno Irão entre 1953 e 1954. Esta acção ocorreu também para João Goulart no
Brasil, no início dos anos sessenta, para os sandinistas (partidários da Frente Sandinista de
Libertação Nacional) na Nicarágua na década de oitenta, e para Salvador Allende no Chile,
entre 1970 e 1973, entre outras sabotagens.

A outra crítica de Toussaint ainda mais pertinente e penosa faz saber que o Banco Mundial
e o FMI exigiram aos países que alcançaram a independência, em finais dos anos
cinquenta, inícios dos anos sessenta, que pagassem as dívidas odiosas contraídas pelas
antigas potências coloniais para os colonizarem. O exemplo que Toussaint traz foi o caso
da dívida colonial contraída pela Bélgica junto do Banco Mundial com o objectivo de
completar a colonização do Congo na década de cinquenta. Toussaint recorda que esse tipo
de transferências, de dívidas coloniais, é proibido pelo direito internacional.
A denúncia ainda mais flagrante apresentada por Toussaint é a de que, nos anos sessenta, o
Banco Mundial e o FMI apoiaram financeiramente países como a África do Sul e o
apartheid, e Portugal que mantinha sob o seu jugo as colónias em África e no Pacífico,
numa altura em que ambos os países eram objecto de um boicote financeiro internacional
imposto pela ONU.

Ainda na crítica ao Banco Mundial e o FMI, Toussaint acusa-os deterem favorecido o


surgimento de factores que proporcionaram a crise da dívida, que eclodiu em 1982. Em
resumo, Toussaint diz que o Banco Mundial e o FMI fizeram com que vários países se
endividassem em condições que provocariam o sobreendividamento; forçaram vários
países a abandonar o controlo sobre os movimentos de capitais e sobre o câmbio,
acentuando a volatilidade do capital e facilitando bastante a sua fuga; vários países foram
forçados a abandonar a industrialização e o modelo de substituição de importações,
favorecendo o modelo baseado na promoção de exportações.

De uma forma geral, Toussaint constata que, o Banco Mundial e o FMI promoveram a
liberalização das trocas comerciais que reforçou os poderosos e marginalizou os mais
frágeis. A maioria dos pequenos e médios produtores dos países em desenvolvimento não
tinha uma estrutura capaz de resistir à concorrência das grandes empresas, quer do Norte
quer do Sul.

Toussaint critica também o uso uniforme de modelos quando a crise atingiu a União
Europeia, onde o FMI surgiu, na primeira linha, a impor aos povos grego, português,
irlandês, cipriota, entre outros, políticas que já tinham sido impostas aos povos dos países
em desenvolvimento da Europa Central e da Europa de Leste, nos anos noventa.

Resumindo, Toussaint diz que o Banco Mundial e o FMI constituem instrumentos


despóticos nas mãos de uma oligarquia internacional constituída por um punhado de
grandes potências e multinacionais e que reforça o sistema capitalista internacional e
destrói a humanidade e o meio ambiente.

Outras críticas vêm de muitos quadrantes do mundo entre politólogos, economistas,


geógrafos, filósofos e cientistas sociais.

A crítica da filósofa Marilena Chauí deixa ainda qualquer um de boca aberta. Segundo ela
os países mais fortes do bloco capitalista criaram outras medidas para controlar suas
"colónias", como o Banco Mundial para o Desenvolvimento (BID) e o Fundo Monetário
Internacional (FMI), os quais fizeram enormes empréstimos financeiros para investir em
serviços sociais de seus interesses e em empresas estatais. (cf. CHAUÍ apud FERRAZ,
2004).

Ainda Chauí prossegue afirmando que, com requintados serviços de espionagem e uma
fortíssima força bélica, esses países ofereciam apoio e inteligência militar para reprimir
revoltas populares e revoluções, o que estimulou a proliferação de ditaduras e regimes
autoritários.

CONCLUSÃO
Durante o trabalho ficou patente que tanto o Banco Mundial assim como o FMI são duas
instituições financeiras voltadas para sustentar a ordem económica e financeira mundial
depois da II Guerra Mundial. Contudo, apesar de terem sido criados juntos e em mesmas
circunstâncias, o Banco Mundial e o FMI têm diferenças evidentes quanto à aplicação das
suas políticas.

Entre várias diferenças, pode-se destacar a tradição de nomeação de seus presidentes, o


alcance dos seus objectivos macroeconómicos e a sua estrutura interna. Tal como se referiu
acima, tem sido costume que opresidentedo Banco Mundial tenha nacionalidade norte
americana e o do FMI sejada Europa.

Além disso, o Banco Mundial tem objectivos macroeconómicos a longo prazo enquanto o
FMI persegue objectivos macroeconómicos de curto prazo resultantes das políticas fiscais,
monetária e cambial.

Quanto à sua composição interna, também percebeu-se que, as duas instituições têm
estruturas internas específicas. O Banco Mundial, por um lado, é composto por duas
instituições dentro dela que são o Banco Internacional para Reconstrução e
Desenvolvimento (BIRD) que auxilia na renda média a países pobres dignos de crédito, e a
Associação Internacional de Desenvolvimento (IDA), que se concentra exclusivamente em
países mais pobres do mundo.

Tanto o BIRD assim como a AID têm pessoalhábil, recursos financeirose uma base de
conhecimento para ajudar cada país a alcançar o desenvolvimento e o crescimento
económico estável, sustentável e equitativo.Estas duas instituições compartilham a mesma
equipe e têm a mesma sede em Washington, nos Estados Unidos da América. Os seus
relatórios são apresentados tambémà mesma administração, e usam as mesmas normas
quanto à avaliação de projectos.

Em suma, o Banco Mundial trabalha com os seus parceiros para alcançarem oequilíbrio
orçamental, a abertura comercial, a liberalização financeira, a desregulamentação do
mercado doméstico, a privatização das empresas e serviços públicos, a reforma tributária, a
reforma previdenciária, com incentivo a formas de previdência privada e a flexibilização
da legislaçãotrabalhista.

Por outro lado, o FMI é também constituído pordois organismos de linhas de crédito, o
General Arrangements to Borrow (Acordo General para o Empréstimo) – GAB criado em
1962 e o New Arrangements to Borrow (Novo Acordopara o Empréstimo) – NAB criado
em 1998. Enquanto o GAB permite ao FMI emprestar quantidades especificadas demoedas
de 11 economias avançadas ou seus bancos centrais, o NAB é um conjunto de acordos de
crédito entre o FMI e 38 países membros e 84 instituições, incluindo um número de
economias de mercados emergentes.

Em suma, o GAB funciona apenas para créditos já concedidos e o NAB é usado para quem
entra no sistema pela primeira vez. Além disso, o FMI tem a missão de ajudar os países
atingidos através de apoio financeiro para implementar políticas correctivas de modo a
restaurar a estabilidade e o crescimentoeconómica. O FMI também fornece financiamento
de precaução para evitar crises.

Para além do Acordo General para o Empréstimo (GAB) eo Novo Acordopara o


Empréstimo (NAB) o FMI introduziu o Instrumento de Financiamento Rápido  (RFI) para
atender as necessidades de pagamento urgente aos países membros e a Linha de Crédito
Rápido (RCF) para atender as necessidades de pagamento urgente dos países de baixa
renda.
Apesar destas duas instituições (Banco Mundial e FMI)pretenderem ajudar a vários países
a encontrarem a via para o seu desenvolvimento ao longo prazo e também ao curto prazo,
eles são alvo de muitas críticas vindas por todos os quadrantes do mundo e por cientistas
de muitas áreas do saber.

Pode-se recordar uma das críticas de Toussaint que afirma que, o Banco Mundial e o FMI
esmagaram a soberania dos Estados, violando flagrantemente o direito dos povos à
autodeterminação, devido às condições que impuseram.

Isso significa que o Banco Mundial e o FMI podem estar a remar em direcção oposta aos
seus objectivos: empobrecendo cada vez mais as populações ao invés do prometido
desenvolvimento, aumentando as desigualdades no lugar da promessa de desenvolvimento
equitativo e favorecendo os credores e investidores estrangeiros, ao invés de beneficiar os
cidadãos nacionais.

Em outras palavras, o ponto de partida para as políticas do Banco Mundial e do FMI


centram-se mais em calendários de libertação dos fundos e do seu reembolso,
salvaguardando os seus interesses e dos seus aliados, ao invés de priorizar a monitorização
do programa de financiamento para garantir o alcance dos objectivos originais.
BIBLIOGRAFIA

CHAUÍ, MarilenaApudFERRAZ, Henrique. A Democracia para MarilenaChauí. In


Revista Electrónica de Ciências. Nº 24, Fevereiro / Março de 2004. Disponível em
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GIORGI, Cristiano Amaral Garboggini Dl. “Concepções do Banco Mundial e outros


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KRAYCHETE, Elsa Sousa.O Banco Mundial e o desenvolvimento das microfinanças em


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TOUSSAINT, Éric.FMI e Banco Mundial: a hora do balanço.In Revista CADTM, 2013.


Disponível em http://cadtm.org/FMI-e-Banco-Mundial-a-hora-do. Baixado em 8 de Fevereiro
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WORLD BANK.Guide to the World Bank.2nd ed. The International Bank for
Reconstruction and Development / The World Bank, Washington, 2007.
O Liberalismo na Perspectiva Amartya Sen

Por Rosa Alfredo Mechiço

Introdução

O presente ensaio enquadra-se no móduloFilosofia Política e, pretende trazer uma


abordagem sobre o liberalismo em Amartya Kumar Sen no espaço e no tempo, perceber
até que ponto os acontecimentos do seu tempo (intolerância, guerras, fome, miséria,
pobreza extrema, etc.,e todas as implicações históricas, políticas, económicas, sociais e
culturais que daí advieram)marcaram e, consequentemente influenciaram a suavida, seu
pensamento e escrita, seja como economista seja como filósofo e, assim, analisar a
relevância do seu liberalismo humanista, guiado por valores éticos, pelo valor do ser
humano enquanto indivíduo, igual a outros seres humanos, com direitos e liberdade que
devem conduzi-lo à responsabilidade e, por isso, digno e merecedor de respeito.

Após a introdução, segue-se uma breve recensão biobibliográfica, como o intuito de


revelar que o mundo em que Sen viveu “enformou” as suas ideias, sua visão sobre o
mundo e sobre o homem o que impede de separar o autor em causa da sua vida, pois
rapidamente se percebe em suas obras, que há sobre ele um grande “refluxo” do mundo.
Depois caracterizo e analiso o liberalismo numa perspectiva histórica, mostrandoas
circunstâncias políticas, sociais e intelectuais que o moldaram e sustentaram. A seguir
reflicto sobre a concepção do liberalismo em Sen, trazendo todos aqueles aspectos, que, a
meu ver, explicam e sustentam o seu liberalismo, assente na crença e defesa da liberdade,
da igualdade, da tolerância, dos direitos básicos (educação, saúde e habitação), como
elementos cruciais para a existência e validação de uma comunidade e nação convenientes.

No que concerne à metodologia, usarei a desconstrução e construção, acompanhada pela


interpretação reflexiva.

Em jeito de conclusão apresentarei uma síntese em volta dos assuntos por mim reflectidos
e tidos como os mais importantes dentro desta abordagem e, por isso, merecedores de uma
especial atenção.

1.Breve Recensão Biográfica sobreAmartya Kumar Sen


Sem, é indiano, economista, filósofo e professor na universidade de Havard. Nasceu a 3 de
Novembro de 1933 em Santiniket cidade universitária, actual Bangladesh.Filho de um
professor universitário, cresceu num período em que a Índia se encontrava mergulhada
numa situação económica e social desastrosa, período de miséria e de guerra
sangrenta,guerra separatista do Paquistão, travada em 1971, em que a Índia derrotou seu
vizinho e propiciou a independência do então Paquistão Oriental, hoje Bangladesh e viu a
fome matar mais de três milhões de humanos em Bengala. Desde 1998 é Reitor do
TrinityCollege (Cambridge University), onde, em 1959, recebeu seu Ph.D. Foi presidente
da International Economic Association (1986 – 1989), da Development Studies Association
(1980 –1982) e é vice-presidente honorário da Royal Economic Society desde 1988. As
abordagens profundas em relação à economia do bem-estar, seu interesse pelo
desenvolvimento humano enquanto processo de extensão das liberdades para usufruir das
próprias capacidades, trabalhar, consumir, escolher o tipo de vida que se julga melhor,
dispor de saúde e educação de qualidade, expressar livremente os pensamentos, a luta
contra a pobreza e a fome, valeram-lhe o prémio Nobel de economia em 1998. Parte do
valor que recebeu, ao ser galardoado Nobel, usou-o para formar um fundo para Índia e
Bangladesh visando combater o analfabetismo, a desigualdade entre sexos e a falta de
atendimento médico básico. Já recebeu mais de 90 diplomas honorários de reconhecidas
universidades, incluindo Harvard, Yale, Colúmbia, Oxford e Sorbonne. A seriedade e a
responsabilidade com que ele discute, publica e debate assuntos como a globalização, o
liberalismo económico e político, o terrorismo, a desigualdade entre os géneros, fazem dele
expoente e referência na economia moderna. Os seus estudos demonstraram, de forma
ímpar e brilhante, que o desenvolvimento e o progresso de qualquer nação, estão
intrinsecamente aliados ao tipo de oportunidades que se colocam ao dispor da sua
população para fazer escolhas livres, conscientes, responsáveis e exercer dignamente a sua
cidadania. Senfoi um dos colaboradores na criação do Índice de Desenvolvimento Humano
(IDH) e, graças à sua contribuição, o avanço e o desenvolvimento dos países já não são
medidos apenas pelo crescimento da economia.

Sem escreveu mais de 30 obras, traduzidas em mais de 10 línguas nos últimos 40 anos e,
entre elas, destacam-se as seguintes:Sobre a Desigualdade económica (1979),Pobres e
Fome: Um ensaio sobre direito e privação (1981),Bem-estar, Justiça e Mercado (1997)
Sobre a Ética e a Economia (1999), Desenvolvimento como Liberdade (2000),O Nível de
Vida (2001), O Valor da Democracia (2006), As Pessoas em Primeiro Lugar (2010) e A
ideia da Justiça (2011).

2.O Conceito geral de Liberalismo


Ao desenvolver-se, em fins do século XVIII e princípios do século XIX, o movimento
intelectual que tomou o nome de liberalismo enfatizava a liberdade como objectivo último
e o indivíduo como a entidade principal da sociedade. O movimento apoiou o laissez-faire
internamente como uma forma de reduzir o papel do Estado nos assuntos económicos,
ampliando assim o papel do indivíduo; e apoiou o mercado livre no exterior como um
modo de unir as nações do mundo pacífico e democraticamente. No terreno político,
apoiou odesenvolvimento do governo representativo e das instituições parlamentares, a
redução do poder arbitrário do Estado e a protecção dasliberdades civis dos indivíduos
(FRIEDMAN, 1977 [1962]: 14).

Duma forma geral podemos definir o Liberalismo como sendo

Uma doutrina política, que, utilizando ensinamentos da ciência económica, procura


enunciar quais os meios a serem adoptados para que a humanidade, de uma maneira
geral, possa elevar o seu padrão de vida. (…). O liberalismo não é uma doutrina completa
e nem um dogma imutável. Pelo contrário, é a aplicação dos ensinamentos da ciência à
vida social do homem (STEWART, 1995: 13),

é “a liberdade política e a liberdade económica; é ausência de privilégios; é a igualdade


perante a lei; é a responsabilidade individual; é a cooperação entre estranhos; é competição
empresarial; é mudança permanente” (Ibid.: 16).

O liberalismo surge no período iluminista em oposição ao absolutismo, com a pretensão de


ser uma nova opção na área política e económica:

(a) Teve como iniciadores, a nível político, o filósofo inglês John Locke.O liberalismo
político deu seu primeiro passo com a revolução francesa e americana e,teve na aceitação
dos direitos humanos, o seu primeiro acto de fé na política. Durante o séc. XIX até à I
Guerra Mundial, o liberalismo transformou-se numa ideologia da burguesia e só depois da
guerra ressurgiu como uma forma política dominante, com os seguintes princípios:
liberdade individual, valorização do progresso, antropocentrismo universalista,
multiculturalismo, constitucionalismo/legalismo, pluri-partidarismo. A ideia do
consentimento (surgida com as teorias contratualistas) constitui um axioma político
fundamental no liberalismo político e, o contrato representa a forma paradigmática por
meio da qual os indivíduos racionais e livres devem relacionar-se e lidar uns com os
outros.

(b) Na arena económica, o liberalismosurgiu no contexto do fim do mercantilismo, devido


a necessidade de se estabelecerem novos paradigmas com a ascensão e a auto-afirmação,
cada vez mais acelerada, do capitalismo. O liberalismo económico desenvolveu-se numa
situação de grandes desigualdades sociais, movidas pelas guerras e franco crescimento
demográfico. Teve seu impulso graças aos fisiocratas (economistas que consideram a terra
como a única fonte de riqueza), ao escocês Adam Smith e à sua teoria do livre comércio. O
liberalismo económico foi o motor do desenvolvimento económico industrial do séc. XIX
e responsável pela sua expansão. Seus princípios básicos são: a defesa da propriedade
privada, não intervenção do Estado, defesa da livre iniciativa, empresa e concorrência,
crença no mercado espontâneo, lucro como motor da economia.

3.Quadro sobre as Fases do Liberalismo, Representantes e Teses

Fases do Liberalismo Representantes Principais Teses


I. T. Hobbes, J. Locke, B. Spinoza, Liberdade individual
Proto-Liberalismo (1690-1780) J. J. Rousseau (individualismo); Igualitarismo (de
direitos); Contratualismo.
Utilitarismo, não intervenção do
II. I. Kant, A. Humboldt, C. estado; Limitação do poder
Liberalismo Clássico (Ético) Montesquieu, B. Constant, A. (legalismo/constitucionalismo);
(1780-1860) Tocqueville, Condorcet. D. livre mercado (ordem espontânea);
Hume, A. Smith, S. Mill, J. Contratos livremente elaborados,
Bentham Pluralismo, Neutralidade do
estrado, Representação política

Sociedade cooperativa (dá lugar a


III. E. Burke, T. Green, H. Spencer, grupos com interesses
Liberalismo Conservador L.Hobhouse, E. Durkheim, M. conflituantes); Busca ilimitada do
(Social) (1860-1945) Weber, J. M. Keynes, J. Dewey, lucro (permite a existência de
H. Kelsen monopólios que destroem a
competitividade e a liberdade de
mercado); Necessidade de um
estado ético; Pluralismo.

Defesa da actividade económica


IV. F. Hayek, Von Mises, K. Popper, sob a égide da liberdade
Neo-Liberalismo (1945…) M. Friedmann, I. Berlin, R. Aron, económica e da eficácia das
J. Ralws, N. Bobbio, R. Nozick soluções; Políticas utilitaristas e
pragmatistas, actividades
económicas são instrumento de
realização e consolidações dos
ideais políticos de uma sociedade
liberal regulada pela liberdade do
mercado.

*Fonte: Tabela adaptada a partir doWww.Redalyc.org/Pdf/752/75250902.Pdf

Dentre os vários aspectos que concorreram para a institucionalização, fortalecimento e


consolidação do liberalismo distinguem-se os seguintes: o reconhecimento do indivíduo,
da sua consciência e a necessidade da preservação do próprio indivíduo, a busca da
felicidade, a igualdade de oportunidade, a liberdade de escolha, a distinção entre a vida
pública e privada e sobretudo, a ousadia em representar uma das respostas aos problemas
colocados pela diversidade humana.
Apesar de o liberalismo, enquanto pensamento liberal, se apresentar complexo e, por isso,
não raras vezes, os seus estudiosos divergirem em alguns aspectos, existe uma
convergência entre eles quanto à defesa de princípios básicos subjacentes ao
liberalismo: 1) a defesa da propriedade privada, 2) liberdade económica (livre mercado),
3) o papel do estado (mínima participação do Estado nos assuntos económicos da nação,
isto é, governo limitado), 4) liberdade e igualdade perante a lei (estado de direito- respeito,
submissão à lei e defesa contra qualquer tipo de arbitrariedade), 5) individualismo (fruto
imediato do valor moral dos indivíduos e do respeito pela dignidade e pela integridadeda
pessoa humana).

Actualmente, o liberalismo apresenta-se como uma doutrina filosófica político-económica,


que defende a descentralização política e económica, prega a ideia da igualdade entre
todos, a atitude de abertura, confiança na força da razão, tolerância em todos os níveis, o
livre uso da propriedade privada, isto é, o acesso à propriedade privada por parte do
homem, como direito natural e, a liberdade de poder produzir e comercializar sem a
interferência do Estado, cabendo a este apenas a tarefa de garantir a ordem e a justiça. É
importante sublinhar que o liberalismo, ao exaltar a igualdade e as liberdades individuais,
não menospreza o Estado, ele reconhece e respeita o Estado como o legítimo representante
e defensor do bem comum.

4.O Liberalismo em Sen: O Liberalismo Humanista


O pensamento liberal de Sen tem suas bases em Adam Smith (considerado o pai da
economia moderna). Deste, Sen herdou e retomou a questão da discussão sobre as
desigualdades e o foço entre ricos e pobres, resgatou os conceitos da moral social (o
indivíduo enquanto livre deve definir e controlar os mecanismos do funcionamento do
mercado e converter seus interesses pessoais egoístas em benefícios sociais), recuperou a
lógica liberal de desenvolvimento (desenvolvimento só é possível a partir da actuação de
indivíduos livres, com capacidades e oportunidades, pois só assim serão capazes de
escolher a vida que lhes convém). Tem suas bases também em Aristóteles, deste Sen
retoma a discussão sobre as questões éticas, onde a economia de mercado não deve ser um
fim em si mesmo, somente para mais aquisição, mais lucro, mais acumulação, mais riqueza
e, mais posses à custa de outros, o que é injusto, mas um processo razoável e um meio para
a vida digna e boa, para o bem viver e bem-estar social e, consequentemente da felicidade,
retoma também as abordagens sobre o dever do estado para com os seus cidadãos.
Nas abordagens sobre o liberalismo, Sem, para evitar ambiguidades, em contraposição ao
termo freedoms[(traduzido como liberdades substantivas = ser sadio, saber ler, escrever,
contar, ter participação política, liberdade de expressão, etc.), as liberdades substantivas
dizem respeito à “capacidade de as pessoas fazerem coisas que elas têm razão para prezar
e, na sua liberdade, para levar um tipo de vida que elas com razão valorizam” (SEN, 2010:
118)] usa a expressão liberties (traduzido para liberdades formais = direitos políticos e
civis básicos definidos constitucional e legalmente),

“para indicar os chamados direitos individuais, ou seja, a liberdade que cada um tem de
não ser tolhido no exercício de suas faculdades ou de seus direitos, excepto nos casos em
que a lei o determina; são as liberdades sociais básicas cujo gozo o cidadão tem o
“direito” de ver assegurado por tribunais ou órgãos administrativas; Sen, às vezes as
denomina “liberdades processuais” (proceduralliberties), para lembrar o quanto essa
abordagem enfatiza os procedimentos que possibilitam a liberdade. Esse é o tipo de
liberdade que o liberalismo preconiza como um fim em si, independentemente das
consequências que ela possa acarretar” (Ibid.: 82).

O liberalismo em Sen questiona e redimensiona filosófica e eticamente alguns preceitos


básicos do liberalismo, à medida que traz uma mudança paradigmática e significativa no
próprio conceito do liberalismo, ao assentá-lo no realismo da vida humana, daí que se quer
mais interventivo. É um liberalismo que se estende às políticas democráticas, economias
do mercado, igualdades de oportunidades sociais, económicas e culturais, liberdades
individuais e cívicas e aos direitos da propriedade privada. No liberalismo humanista de
Sen os princípios liberais sãoadoptados como estratégias paraa máxima promoção do bem-
estar humano, da felicidade e consequentemente do desenvolvimento e progresso humano.

5.A Liberdade em Amartya Sen

“Desde há séculos que a questão da valorização da liberdade tem sido motivo de um


campo de batalha – muito mais aliás, desde há milénios -, e, a propósito disso, sempre
houve apoiantes ou entusiastas, de um lado, e críticos ou detractores, do outro. (…),em
diferentes épocas, a ideia de liberdade é invocada nas diferentes regiões do mundo, (…)
mas o facto é que não é muito provável que uma alargada dicotomia geográfica consiga
retratar a distinção ideológica que medeia entre ser-se “pro” e “anti” liberdade” (SEN,
2012: 314-5)

Sen dá prioridade efectiva, lugar central e proeminente e ainda um estatuto especial à


liberdade. Concebe-a como algo importante, vantajoso, precioso e útil, daí o facto de
considerá-la um bem primário por excelência, à medida que “ela toca aspectos muito
fundamentais das nossas vidas, exigindo que os outros respeitem esta dimensão
profundamente pessoal à qual todos tendem a dar uma particular importância” (Ibid.: 401).
Ele associa a liberdade a dois grandes conceitos, a saber, oportunidades (conceito ligado as
capacidades que o indivíduo tem para alcançar e ou realizar seus objectivos), e processo
(meios disponíveis e passos desenvolvidos para alcançar e ou realizar os objectivos).

Considerando a importância da liberdade e dependendo das circunstâncias e domínios, ela


pode, sob diversas formas, assumir variados conteúdos, sentidos, interpretações e
significações; daí, ser importante sublinhar que, “a pluralidade de aspectos da liberdade
pode ainda ser alvo de outros tipos de abordagens e de caracterização ou identificação, para
além da já acenada distinção entre os aspectos da oportunidade e do processo” (Ibid.: 404).

Sen faz uma abordagem significativa ao introduzir o conceito de desenvolvimento como


liberdade, compreendendo-o “como um processo de expansão das liberdades reaisque as
pessoas desfrutam” (SEN, 2010: 55) e, ao apontar a liberdade como o elemento norteador
do processo do desenvolvimento. Por um lado, o desenvolvimento promove a liberdade e a
sua expansão e, por outro lado,a liberdade e a sua expansão aparecem como o principal fim
e o principal meio do desenvolvimento(Cf. Id.).

Concebe ainda a liberdade como uma condição para o bem-estar individual e social, que
inclui a capacidade de saber ler, fazer cálculos aritméticos básicos, participação política,
liberdade de expressão, evitar privações como a fome, a subnutrição, a morbidez evitável,
a morte prematura, etc. e, por isso, afirma que,

“a liberdade é central para o processo de desenvolvimento por duas razões: 1) a razão


avaliatória: a avaliação do progresso tem de ser feita verificando-se primordialmente se
houve aumento das liberdades das pessoas, 2) a razão da eficácia: a realização do
desenvolvimento depende inteiramente da livre condição de agente das pessoas”(SEN,
2010: 10).

Sendo que em Sen, a liberdade se baseia no princípio da autonomia, é notório o zelo e o


engajamento por demonstrar a essência e a centralidade da noção de liberdade e lhe
conceder um estatuto teórico e ao mesmo temponormativo.Para além de constituir o
critério de avaliação do êxito ou fracasso social, a liberdade é “um determinante principal
da iniciativa individual e da eficácia social. Ter mais liberdade melhora o potencial das
pessoas para cuidar de si mesmas e para influenciar o mundo, questões centrais para o
processo de desenvolvimento” (Ibid.: 33).
No seu paradigma desenvolvimentista, Sen destaca três liberdades fundamentais, a saber:
(a) liberdade económica, na forma de oportunidades de participação no comércio e na
produção, que preconiza a garantia de acesso ao mercado; (b) liberdade política, na forma
de liberdade de expressão e eleições livres, que visa às garantias democráticas e
participativas; (c) liberdade social, na forma de serviços de educação e de saúde e
tolerância à diferença das minorias (Cf. Ibid.:25-26).Estas liberdades “são importantes por
si mesmas, de um modo directo; não é necessário justificá-las indirectamente
(…)”(Ibid.:31) e, todo o processo de desenvolvimento passa necessariamente pela
integração das suas considerações (da consideração das liberdades económicas, sociais e
políticas).

Quanto à questão da liberdade económica e liberdade política, Sen é de opinião de que “há
fortes indícios de que as liberdades económicas e políticas se reforçam mutuamente, em
vez de serem contrárias umas às outras (como às vezes se pensa)” (Ibid.: 10). Sublinha que,
as “capacidades individuais dependem crucialmente, entre outras coisas, de disposições
económicas, sociais e políticas” (Ibid.: 77) e,são as liberdades económica e políticaque
tornam as disposições e as oportunidades sociais mais apropriadas e eficazesna
contribuição “para uma participação mais efectiva em actividades económicas e políticas”
(Ibid.: 59) e,ainda, “o que as pessoas conseguem positivamente realizar é influenciado por
oportunidades económicas, liberdades políticas, poderes sociais e por condições
habilitadoras como boa saúde, educação básica e incentivo e aperfeiçoamento de
iniciativas” (SEN, 2010:18).

Estas liberdades fundamentais são distintas entre si, porém, inter-relacionadas e ligadas
umas às outras, pois, entre elas, existe uma união forte e uma relação estreita, quepermite
com que actuem complementando-se mutuamente, de modo que “a privação de liberdade
económica pode gerar a privação de liberdade social, assim como a privação de liberdade
social ou política pode, da mesma forma, gerar a privação de liberdade económica” (Ibid.:
10), daí a sua importância conjunta.

Na perspectiva de Sen, “as principais fontes de privação da liberdade: pobreza e tirania,


carência de oportunidades económicas e destituição social sistemática, negligência dos
serviços públicos e intolerância ou interferência excessiva de estados repressivos (Ibid.:
16-17)”, devem ser urgentemente combatidas e removidas para que o desenvolvimento real
se concretize, pois, a eliminação de privações das liberdades substanciais é constitutiva do
desenvolvimento (Cf. Ibid.:10).

6.O Liberalismo Económico em Sen

O liberalismo económico é a liberdade de participar, de forma responsável, do intercâmbio


económico, através da abertura à economia, em favor da liberdade de transacções de
mercado e do livre comércio, com vista a uma economia de bem-estar. Para Sen, “temos
boas razões para comprar e vender, para trocar e para buscar um tipo de vida que possa
prosperar com base nas transacções” (Ibid.: 151).

O intercâmbio e ou as transacções económicas, seja entre indivíduos do mesmo ou de


diferentes estado, seja até entre estados, tem um papel básico na vida social, e “negar essa
liberdade seria, em si, uma grande falha da sociedade” (Id.), daí que Sen argumente que
“há uma perda social quando se nega às pessoas o direito de interagir economicamente
umas com as outras” (Ibid.: 43). É urgente a valorização “da liberdade de troca e
transacção sem impedimentos” (Ibid.: 42), isto é, é indispensável o reconhecimento do
direito de participação económica, o respeito do mecanismo de mercado, das
oportunidades da oferta, do poder de compra e observação das regras do negócio, de modo
a favorecer a obtenção de eficiência, da satisfação económica e consequentemente do
progresso financeiro e económico.

A economia básica deve optar sempre por operar em prol do desenvolvimento de mercado
livre em geral e da livre procura em particular e, privilegiar a livre iniciativa e a livre
concorrência, com o intuito de superar o foço da relativa dicotomia liberal entre a esfera
pública e a esfera privada, enquanto realidade social que afasta os indivíduos da liberdade e
dos demais direitos fundamentais,visto que “o sistema de mercado pode impulsionar o
crescimento económico rápido e a expansão dos padrões de vida”(SEN, 2010: 42).
Contudo, sobre este aspecto, Sen adverte que, pelo facto deàs vezes, os mercados poderem
ser contraproducentes, as oportunidades de transacção não devem ocorrerde forma
arbitrária, mas com a presença de controlo do mercado financeiro, por meio de
mecanismos sérios. Alerta também que,

“o papel desempenhado pelos mercados tem de depender não só do que eles podem fazer,
mas também do que lhes é permitido fazer. Existem muitas pessoas cujos interesses são
bem atendidos por um funcionamento desimpedido do mercado, porém também há grupos
cujos interesses estabelecidos podem ser prejudicados por esse funcionamento. Se estes
últimos forem politicamente mais poderosos e influentes, podem então tentar fazer com que
os mercados não recebam um espaço adequado na economia. (…) podem impor um
sacrifício significativo à população, mas um grupo de “industriais” organizado e
politicamente influente pode assegurar-se de que seus lucros estejam bem protegidos”
(Ibid.: 161-2).

É responsabilidade do liberalismo económico esforçar-se, quanto possível, e de diversas


formas, pelo seu fortalecimento e afirmação, por forma a disponibilizar à colectividade, os
vários recursos económicos, visando a eliminação de todo o tipo de obstáculos que a priva
do desfrute da liberdade, rumo à construção e consolidação de uma sociedade
desenvolvida, socialmente justa e livre de todos os efeitos capazes de desequilibrar o bem-
estar social. O processo económico liberal deve primar por mecanismos dinâmicos e
flexíveis, que permitam a expansão da liberdade, de modo que haja condições para que os
indivíduos se libertem do reino das necessidades, sobretudo materiais, propiciem a
efectivação dos direitos básicos, em todas as suas dimensões e assegurem a todos os
homens uma existência digna e feliz.

7.O Liberalismo Político em Sen

A liberdade política amplamente concebida diz respeito aos direitos civis básicos, que

“ se referem às oportunidades que as pessoas têm para determinar quem deve governar e
com base em que princípios, além de incluir a possibilidade de fiscalizar e criticar as
autoridades, de ter liberdade de expressão política e uma imprensa sem censura, de ter a
liberdade de escolher entre diferentes partidos políticos etc. Incluem os direitos políticos
associados às democracias no sentido mais abrangente (abarcando oportunidades de
diálogo político, discussão e crítica, bem como direito de voto e selecção participativa de
legisladores e executivos)” (SEN, 2010: 58-59)

e“com efeito um dos argumentos mais poderosos em favor da liberdade política reside
precisamente na oportunidade que ela dá aos cidadãos de debater sobre valores na escolha
das prioridades e de participar da selecção desses valores”(Ibid.: 48).

No liberalismo político, a liberdade política a partir do exercício da democracia, que passa


pela liberdade de expressão,debate,diálogo, discussão pública, dissensão abertae crítica, é
central para a indução de soluções sociais às necessidades económicas e conduzir ao êxito
económico, por isso “pode ser vista como auxiliar da realização de outras liberdades
(particularmente a da abertura da economia) ” (Ibid.:165).
Para Sen, “a liberdade política na forma de disposições democráticas ajuda a salvaguardar
a liberdade económica (especialmente a liberdade de não passar fome extrema) e a
liberdade de sobreviver (à morte pela fome)” (Ibid.: 76), por isso, em abordagens políticas
orientadas para a liberdade, “o uso de prerrogativas democráticas – tanto as liberdades
políticas como os direitos civis – é parte crucial do exercício da própria elaboração de
políticas económicas, em acréscimo a outros papéis que essas prerrogativas possam ter
(Ibid.: 149).

O liberalismo político em Sen, parte do pressuposto de que a liberdade é simultaneamente


um bem e um valor fundamental e com importância transcendente, por isso, respeita-a e
prioriza-a e, tem como seu maior interesse e empenho a busca incessante por um sistema
político que por um lado, concorde com o acréscimo cada vez maior das possibilidades de
existência e concretização da liberdade individual = autodeterminação individual
(perspectiva liberal) e da liberdade colectiva = autodeterminação colectiva (perspectiva
democrática) e, por outro lado, promova de igual modo, para cada indivíduo
(independentemente da sua crença, cultura, cor, género ou orientação político-ideológica) a
realização plena da liberdade, sobretudo como garantia de direitos, conforme cada uma das
acepções; seja em função do indivíduo isolado (teoria liberal), seja em função do indivíduo
enquanto membro de uma colectividade/sociedade, isto é, do indivíduo enquanto parte de
um todo (teoria democrática).

8.A Pertinência da Ética no Liberalismo de Sen

Sob o ponto de vista de Sen, a ética tem a tarefa de direccionar a economia para fins sócio
humanizadores. Sen constatou que “a importância da abordagem ética diminui
substancialmente com a evolução da economia moderna”, a chamada “economia positiva”
(SEN, 1999: 23) o que provocou um substancial empobrecimento na economia moderna.
Para Sen o facto “de a economia ter-se distanciado da ética empobreceu a economia do
bem-estar e também enfraqueceu a base de boa parte da economia descritiva e preditiva”
(Ibid.: 94). A economia moderna e contemporânea, ao dissociar a ética da economia
arruinou e enfraqueceu as análises económicas, ao ignorar que o estudo da economia desde
Aristóteles, até estudos realizados por John Stuart Mill e Adam Smith, não se interessaram
apenas com a busca da riqueza, mas tiveram em conta fortes considerações com questões
éticas, relacionados com a pergunta “como devemos viver?”, os fins humanos, a vida
colectiva, os direitos fundamentais, a economia de “bem-estar” e os objectivos mais
básicos capazes de garantir a vida boa que com razão as pessoas valorizam.

Foi este distanciamento gradativo entre a economia e a ética, o que levou à alteração do
comportamento real das sociedades e consequentemente da conduta do ser humano, das
concepções de bem-estar social e de felicidade, por isso, o objectivo primordial de Sen é
resgatar a relação perdida entre Ética e Economia e,eliminar a cisão existente entre ambas,
porque embora a economia tenha como preocupação básica a busca de riqueza, ela deve
relacionar-se e deixar-se orientar pela ética, pois,

o desenvolvimento pressupõe, além de uma trajectória de proximidade entre economia e


ética, no qual imperativos de justiça, respeito e liberdade sejam interdependentes, na
confluência de princípios de “engenharia” económica e conduta moral, a sobreposição
das principais fontes de privação de liberdade: pobreza e tirania, carência de
oportunidades económicas e destituição social sistemática, negligência dos serviços
públicos e intolerância ou interferência excessiva de Estados repressivos (SEN, 1999: 18).

Em Sen, a dimensão ética é imprescindível para a elaboração de todo o tipo de políticas


económicas que tendem para o desenvolvimento humano e social, numa perspectiva
deliberdade e sua expansão, de respeito pelas capacidades dos indivíduos, valorização de
suas particularidades e potencialidades, rumo à formação de uma sociedade mais
equânime.

Foram o interesse e a relevância verificados em Sen em resgatar a visão humanística da


economia e, suas discussões sobre a necessidade de convergência e interdependência de
questões de política económica e argumentos éticos o que levou Eduardo Giannetti da
Fonseca a tomar a seguinte nota na contracapa da obra Sobre ética e economiade Sen:

“As questões económicas não são apenas questões de praticidade e eficiência, mas
também de moralidade e justiça. As questões éticas não são apenas de valor e intenções
generosas, mas também de lógica fria e exequibilidade. Se a economia desligada da ética é
cega, a ética desligada da economia é vazia. O surpreendente não é que a teoria
económica e a reflexão ética voltem a caminhar juntas, mas que tenham permanecido
divorciadas e incomunicáveis entre si por tanto tempo”.

A ética combinada com a economia pode gerar benefícios mútuos, seja para o
funcionamento eficiente da própria economia, seus instrumentos, mecanismos, estratégias
e utilidades, assim como para a mobilização e enfâse de todos os aspectos relevantes que
dizem respeito a outros tipos de bens sociais essenciais à vida humana.

9.O Estado e suas tarefas no Liberalismo de Sen


Antes de mais, é importante sublinhar que o cunho clássico do liberalismo firma-se na
limitação da autoridade e no combate à interferência do estado nas actividades individuais,
o que delimita a área na qual o estado pode actuar, contudo, o liberalismo nunca, pelo
menos de forma clara, advogoualguma forma de governo, mas implicitamente, quase
sempre foi a favor da associação do liberalismo com a democracia, visto que a democracia
ainda se apresenta como a melhor garantia para o liberalismo.

Sen retoma Aristóteles, na Política, para quem o estado tem como finalidade última, “a
promoção comum de uma boa qualidade de vida” (SEN, 1999: 19) para todos os cidadãos
e, vale-se desta para afirmar que “o Estado e a sociedade têm papéis amplos no
fortalecimento e na protecção das capacidades humanas” (SEN, 2010: 77). O Estado está
na qualidade de motor do bem-estar social, a partir do desenvolvimento e garantia da
estabilidade económica, portanto, é necessário que exista uma dose de responsabilidade do
Estado para com os seus cidadãos, daí que, o governo deve tomar como base de suas
acções o consentimento das pessoas que o legitimam.

Sendo o Estado sendo o garante e o responsável pela manutenção de ordem social e de


condições económicas propícias para que todo o indivíduo possa usufruir de um valor
liberal essencial, a liberdade e a igualdade de oportunidades deve ajudar “a determinar a
natureza e o alcance das liberdades individuais” (SEN,2010: 62), engajando-se no combate
do liberalismo económico selvagem, evitando as flutuações ea exaltação de altas taxas de
crescimento do produto e dos preços dos bens, visto que estes podem contribuir para a
queda de rendimentos económicos. Devecriar e fomentar uma relação de coordenação com
o mercado, garantir a provisão pública, permitir a acessibilidade dos indivíduos, de modo
particular, os mais carenciados, ao mercado, possibilitando-lhes certo rendimento e, para
tal, é chamado a ser menos burocrático.

É dever do Estado apostar nos sectores sociais do desenvolvimento, sobretudo na educação


e na saúde, garantir os direitos sociais básicos como o saneamento, a segurança, liberdade,
habitação e cultura,fornecer bens públicos, providenciar um sistema de segurança e de
benefícios sociais (Estado-Providência) e auxiliar os desempregados e indigentes (Cf.
Ibid.: 62). Deve oferecer aos seus cidadãos a possibilidade de crescimento sustentável,
viabilizando a distribuição de renda de modo mais igualitário, no qual todos tenham o mais
breve possível as mesmas oportunidades e acessos a benefícios sociais que os dignifiquem
como cidadãos.
É importante evidenciar que as tarefas do Estado, segundo Sen, acima arroladas, entram
em contradição com os defensores do liberalismo económico, para os quais o estado deve
ter uma intervenção mínima, deixando o mercado funcionar conforme suas leis.

Considerações Finais
O liberalismo surge como um movimento e uma força transformadora que aposta na
concretização do desenvolvimento humano e social a partir de uma política e uma
economia orientadas pela liberdade, enquanto meio adequado para a promoção da
efectividade dos direitos básicos de todos os homens, construção de um regime de bem-
estar e, de uma sociedade livre, tolerante, justa e solidária. Ao priorizar o intercâmbio, a
integração e a consolidação de mercados, por meio do livre comércio, circulação de bens e
produtos, transacções e concorrência, assume uma liderança progressista a nível social, à
medida que rompe as barreiras entre economias, de modo que não haja mais espaço para
mercados fechados, mas que a maior parte da população participe directamente do
processo de expansão económica e política rumo ao bem-estar individual e colectivo.

No liberalismo, as liberdades políticas na sua inter-relação com as liberdades económicas


(compreensão e satisfação de necessidades económicas) têm o “papel fundamental de
fornecer incentivos e informações na solução de necessidades económicas
acentuadas”(SEN, 2010: 195), por isso a relação entre ambas deve passar do âmbito
instrumental para o construtivo. As oportunidades sociais, o valor liberdade, o princípio
igualdade, ligados à componente senso ético, ocupam um papel importante no âmbito das
relações políticas e económicas na construção da autodeterminação individual e colectiva,
no aperfeiçoamento harmónico e na manutenção dos diversos modos de organização e
convivência sociais e, de mãos dadas, todos concorrem para o avanço do progresso da
humanidade.

Em torno do liberalismo há um conflito que não deve ser ignorado: ele reside entre a
subtileza da liberdade política e a esmagadora brutalidade das necessidades económicas,
isto é, entre as liberdades políticas e o desempenho económico, por isso, em todos os
processos de desenvolvimento humano, há que ter em conta o impacto da democracia e das
liberdades políticas sobre a vida, as capacidades dos cidadãos e o crescimento económico.
Bibliografia

FRIEDMAN, M. Capitalismo e liberdade, São Paulo: Arte Nova, 1977 (1962).


SEN, AmartyaKumar, Sobre ética e economia,São Paulo: Companhia das Letras, 1999
__________________ Desenvolvimento como Liberdade, São Paulo: Companhia das
Letras, 2010
__________________ A ideia da Justiça, Coimbra, Ed. Almedina.SA, 2012
STEWART, Jr. Donald, O que é o Liberalismo, 5ͣed., Ed. Instituto Liberal, Rio de Janeiro,
1995
Roberto Nozick e o Estado Mínimo como garantia moral da Inviolabilidade dos
Direitos Individuais

Por David Mudzenguerere

0. Introdução

Robert Nozick, o defensor do chamado Estado Mínimo e do Libertarismo, nasceu em


Brooklyn, Nova Iorque, em 1938, numa família judaica de origem russa. Interessado pela
filosofia desde adolescente, tornou-se famoso nos meandros da filosofia política pela
crítica, na sua obra Anarquia, Estado e Utopia, à teoria utilitarista e, sobretudo, à teoria da
justiça de John Rawls, estabelecendo uma utopia capitalista cuja justificação fundamental
seria nunca utilizar os indivíduos como simples meios.

Segundo ROSAS (2009), Nozick postula uma alternativa assente em direitos individuais de
propriedade que funcionam como um entrave moral a todas as formas de distributivismo.
O pensamento de Nozick consiste numa defesa explícita de um Estado mínimo que não
procura corrigir as desigualdades sociais.

O propósito deste artigo é apresentar os argumentos nozickianos sobre a inviolabilidade


dos direitos individuais cujo palco é o que Nozick chama de Estado mínimo. Mas importa-
nos primeiro trazer à tona os aspectos gerais da Teoria Libertária de que Nozick é
defensor, para depois abordarmos o pensamento nozickiano propriamente dito, extraído
não só da sua obra supracitada. Para caracterizar a Teoria Libertária recorremos
fundamentalmente ao Artigo de Raphael Brasileiro BRAGA.

1. Dos Aspectos gerais do Libertarismo

Segundo BRAGA (Cf. 2009: 3), o substrato do pensamento libertário está centrado na
dignidade de cada ser humano, que não pode ser restringida em nome de nenhuma
necessidade colectiva. Essa dignidade, segundo ARNSPERGER e VAN PARIJS apud
BRAGA (Cf. Ibid: 2), reside no exercício soberano da liberdade de escolha no âmbito de
um sistema coerente de direitos. O libertarismo pretende, assim, articular de maneira
consequente uma ideia cujo atractivo, hoje, não se submete em nada ao ideal utilitarista de
uma sociedade feliz: uma sociedade justa é uma sociedade livre.

Na interpretação de BRAGA, para os libertários não é possível compreender o que é uma


sociedade livre sem antes formular um sistema coerente de direitos de propriedade. A
liberdade consiste em poder fazer o que se deseja e, para tanto, tornam-se indispensáveis os
direitos de propriedade, pois somente assim é possível fazer o que se quer com o que se
quer e onde se quer. Diante disso, o libertarismo afirma que o indivíduo possui também
pleno direito de si, tendo total propriedade do seu corpo e obtendo o poder de barrar tudo o
que poderia ser feito dele. Por ter direito sobre o próprio corpo, o indivíduo,
consequentemente, é senhor dos seus talentos. Caso queira, pode vender seus órgãos,
estragar sua saúde ou pôr fim à sua própria existência.

Para um libertário, portanto, não se cogita de aceitar a obrigação


legal de fazer serviço militar, frequentar a escola, apertar o cinto de
segurança, fazer parte de um júri e prestar socorro a uma pessoa
em perigo. Também não se cogita de proibir a eutanásia, a
prostituição, a blasfêmia, o negativismo, as perversões sexuais e o
comércio de órgãos, sob a condição – é claro – de que nenhuma
coerção seja exercida para obter a participação de alguém,
afirmam ARNSPERGER e VAN PARIJS apud (Ibid.).

Não obstante, e segundo VAN PARIJS apud BRAGA (Ibid.: 3), há três restrições, apenas,
sobre esse direito de propriedade de si: 1) Apesar de cada um ter o direito de se destruir,
não tem o direito de se vender como escravo. Para os libertários, o ideal de uma sociedade
livre é incompatível com a presença de pessoas dominadas por outras de forma
irreversível. 2) O paternalismo não é tido como inconveniente quando se trata de crianças.
Pais, ou não, têm o direito de restringir a liberdade de crianças somente na medida em que
eles contribuem para colocá-las em situação de exercer elas próprias sua liberdade. 3) Uma
sociedade livre não pode ser uma sociedade em que assassinos, violadores e pedófilos
circulam pelas cidades, maltratando as pessoas com toda impunidade.
Outro aspecto que se torna claro na teoria libertária é que devemos ter plena propriedade
de nós mesmos, e que nosso corpo é constituído de moléculas alheias a ele. Já que não
podemos sobreviver sem uma superfície sobre a qual nos apoiar, e nem podemos
sobreviver sem respirar um ar do qual não somos proprietários. Por isso, pode-se concluir
que a teoria libertária não pode ter a pretensão de oferecer uma caracterização de uma
sociedade justa sem acrescentar ao princípio de propriedade de si princípios que rejam a
propriedade dos objectos exteriores.

Então, se os princípios de propriedade de si determinam os direitos de propriedade sobre


seres humanos, o princípio de justa circulação rege os direitos de propriedades sobre os
objectos. A fim de reger essas regras de propriedade, a teoria libertária elenca três
princípios básicos, segundo ARNSPERGER e VAN PARIJS apud (Ibid.):

-Princípio da Propriedade de Si: todo indivíduo mentalmente capaz tem direito absoluto a
dispor de sua pessoa, inclusive dos talentos que recebeu e cultivou, contanto que não
utilize esse direito para renunciar à própria liberdade.

-Princípio da Justa Circulação: a justiça de um direito de propriedade é estabelecida


quando este foi obtido por transferência voluntária, tácita ou explícita, com ou sem
compensação material ou monetária, da pessoa que era anteriormente seu proprietário
legítimo.

-Princípio da Apropriação Original: o titular inicial de um direito de propriedade sobre um


objecto é o primeiro a ter reivindicado a sua propriedade, eventualmente sob a condição de
ter pago uma taxa cujo montante é fixado, seja pela cláusula lockiana (direito de todos a
um destino pelo menos equivalente ao que teria sido no estado natural), seja pelo critério
painiano de justiça (direito igual de todos ao valor dos produtos da terra).

Fica, então, suficientemente claro que a Teoria Libertária não se compadece com os
utilitaristas - pensemos, justamente, em BENTHAM ou em MILL – que perseguiram o
ideal do maior bem-estar para o maior número de pessoas; concepção tal que no fim, de
facto, comportava a submissão do indivíduo à sociedade. Nem com o neocontratualismo de
John RAWLS que defende as desigualdades económicas e sociais como justas enquanto só
e apenas só sejam vantajosas para todos e, sobremaneira, para os mais desfavorecidos, pois
isso significa instrumentalizar umas pessoas (as favorecidas) em benefício de outras (as
desfavorecidas) (Cf. REALE e ANTISERI, 2006: 237-238).
Nozick sempre fora seduzido pela tradição libertarista americana, especialmente através da
obra e do pensamento de Ayn RAND. Esta autora fazia assentar a defesa do libertarismo
num egoísmo ético de base biológica. Segundo RAND, é o próprio “direito à vida” dos
organismos racionais que leva a uma ideia de liberdade como não interferência de carácter
absoluto e, daí, ao Estado mínimo como aquele tipo de Estado que melhor assegura essa
liberdade de carácter negativo. Mantendo embora o ideário libertarista de Rand, NOZICK
considera que o seu biologismo não fornece uma base sólida para a defesa do Estado
Mínimo e que este necessita de uma justificação diferenciada (Cf. ROSAS, 2009).

2. Do Estado Mínimo e a inviolabilidade dos Direitos dos Indivíduos

Para NOZICK (1991: 18), “A questão fundamental da filosofia política, que precede
qualquer outra sobre como o Estado deve ser organizado, é se ele deve ou não realmente
existir. Por que não termos a anarquia?”. E como libertarista, NOZICK enfrenta esse
problema logo na primeira parte de Anarquia, Estado e Utopia, argumentando preferir um
Estado mínimo à anarquia, a partir do estado de natureza de John Locke para salvaguardar
os direitos dos indivíduos.

No estado de natureza de Locke, os indivíduos encontram-se em um “estado de liberdade


perfeita para organizar seus actos e dispor de seus bens e pessoas como julgam
conveniente, dentro dos limites da lei da natureza, sem pedir licença ou depender da
vontade de qualquer outro homem”. NOZICK, concordando com Locke, afirma que Os
indivíduos têm direitos. E há coisas que nenhuma pessoa ou grupo podem fazer com os
indivíduos sem violar os seus direitos. Tão fortes e de tão alto alcance são esses direitos
que colocam a questão do que o Estado e os seus servidores podem, se é que podem, fazer
alguma coisa (NOZICK, Ibid: 25; 9).

Essa afirmação de Nozick revela que, para ele, os indivíduos são tão valiosos que devem
ser respeitados e nenhum argumento pode refutar isso. Essa dignidade do homem é tal que
ele não pode aceitar que nenhum de seus direitos seja violado. Temos aqui o homem como
fim em si mesmo à maneira kantiana.

Mas, a ser assim, a questão a colocar a Nozick é se, de facto, o Estado tem alguma
pertinência na organização social ou, neste contexto, o ideal é a anarquia.
NOZICK (Cf. 1991: 20) é contrário aos anarquistas por estes entenderem que ficaríamos
muito melhor vivendo sem a presença de um Estado; o Estado é sempre inferior à anarquia,
pois ele viola os direitos morais dos cidadãos. Nozick pergunta: se o Estado não existisse,
seria necessário inventá-lo? Por que então temos o Estado e não a anarquia?

E recorrendo de novo ao estado de natureza de Locke, Nozick vai dizer que, sem Estado
algum, não existiria nenhuma segurança num ambiente em que cada indivíduo é dono de si
próprio (e não propriedade de outrem), com o direito à vida, à liberdade de fazer o que
quiser consigo mesmo, com o seu corpo e com os seus talentos pessoais, com o direito aos
haveres ou à propriedade no sentido mais estrito, na medida em que ela (propriedade)
esteja de acordo com a justiça. Pois, apesar de que

Os limites da lei da natureza estabelecem que ninguém deve prejudicar a


outrem em sua vida, saúde, liberdade ou propriedade. Algumas pessoas
transgridem esses limites, usurpando direitos de outrem… e prejudicando-
se mutuamente e, como reacção, pessoas podem defender-se ou defender
outras pessoas contra os usurpadores desses direitos (NOZICK, Ibid: 25).

Assim acontece, porque, no entender de Nozick, os indivíduos dotados de direitos morais


não têm qualquer entidade à qual recorrer caso esses direitos sejam violados. Por isso,
parafraseando ROSAS, só podem fazer justiça pelas próprias mãos ou, na linguagem
lockiana, são os próprios a ter o direito de executar a lei da natureza que protege a
propriedade individual.

Para ultrapassar essa insegurança, a solução encontrada por Locke era a celebração de um
contrato social que permitia legitimar as instituições do Estado civil. Mas contrariamente
ao contrato social lockiano, Nozick pensa que, partindo do estado de natureza formado por
indivíduos proprietários de si mesmos, haveria um deslizamento natural para algo diferente
e que, através de um mecanismo de “mão invisível”, daria lugar ao Estado civil. Mas
como?

A resposta é que NOZICK (Cf. Idem: 27-39) supõe um Estado de Natureza (à maneira
lockiana) no qual as pessoas formam agências para protegerem a si próprias. Nesse Estado,
diz Nozick, um indivíduo pode pessoalmente exigir respeito aos seus direitos e outros
indivíduos podem juntar-se a ele em busca desse ideal. Um grupo de pessoas pode aliar-se
a um indivíduo com o objectivo de impedir um ataque ou perseguir um agressor, por
exemplo. Grupos de indivíduos podem, assim, formar associações de protecção mútua.
Dessa forma, quando há várias agências em um mesmo espaço geográfico, é possível que
ocorra luta entre elas pela hegemonia do poder. A solução natural vista por Nozick é que
uma delas se torne a dominante e se imponha ante as demais. Assim, nasce o Estado como
um monopólio do poder.

Alguns inconvenientes, porém, surgem nesse Estado de Natureza, como, por exemplo, os
homens não poderem julgar em causa própria. Diante disso, vão exigir uma punição
superior aos danos sofridos. Haverá, então, retaliações sem fim e não haverá como pôr fim
a tais conflitos. Portanto, o Estado surge como um resultado não desejado, mas inevitável,
de processos de tipo “mão invisível”. Vale dizer que das associações ou agências de
protecção dos direitos morais que os próprios indivíduos promovem passa-se, seguindo
uma motivação egoísta e racional, às “agências de protecção dominante” e ao Estado
mínimo.

Assim, diz NOZICK (Ibid: 29), “só o Estado tem poderes para impor uma decisão contra a
vontade de uma das partes. O Estado não permite que alguém mais faça cumprir as
decisões de outro sistema”. Quando ocorre conflito entre os indivíduos e estes não
encontram solução para o problema, os envolvidos desejando que suas alegações sejam
resolvidas recorrerão ao sistema judiciário do Estado como único meio imparcial capaz de
resolver contendas.

2.1 O Estado mínimo e o Estado ultramínimo


Mas o que é exactamente o Estado mínimo nozickiano e em que difere do ultramínimo? A
começar por este último, é o Estado em que, por exemplo, a minha agência, que é
dominante, protege a mim e àqueles que são sócios, ficando de fora os assim chamados
não-sócios. É comparável a um Estado que protege (da não violação dos direitos e não na
segurança) apenas aqueles que com ele contribuem, ficando à sua sorte aqueles que não-
contribuem. Esse Estado não passa de um redistribuidor ao ritmo de Rawls. Nozick rejeita
esse tipo de Estado afirmando que os não-contribuintes também devem ser protegidos.

“O Estado que protege os contribuintes e estende sua protecção aos não-contribuintes já


não é ultramínimo, mas mínimo, porque abrange a todos”, diz GRONDONA (2000: 167).
Portanto, para Nozick, a noção de Estado permite superar o problema da redistribuição: a
agência dominante iria prestar seus serviços mesmo para aqueles que não pagassem por
eles, ou mesmo para os que pagassem menos, para proteger melhor seus associados. De
modo que, sem pretendê-lo, por um tipo de “mão invisível”, como dissemos acima, chega-
se obrigatoriamente ao Estado Mínimo. Este que “…é o mais extenso que se pode
justificar. Qualquer outro mais amplo viola os direitos da pessoa” (NOZICK, Ibid: 170).

Pelo que, na interpretação de BRAGA (2009: 8), o Estado deve garantir que ninguém
interfira nos direitos básicos de cada cidadão, tais como a vida e a propriedade. E ainda ele
não tem a obrigação de fornecer nada aos indivíduos para que possam levar adiante seus
planos de vida. Para Nozick, se você for forçado, seja pelo Estado, seja por alguém, a
contribuir para o bem-estar de terceiros, seus direitos estarão sendo violados.

2.2. Crítica a Rawls

É entendendo que a exigência de tributação redistributiva dos talentosos para os


desfavorecidos viola a posse de si mesmo que Nozick critica a Rawls. O liberalismo
rawlsiano considera que ninguém merece as capacidades e talentos que possui e, então, os
talentos naturais de cada indivíduo fazem parte de um acervo comum. Assim, Rawls
defende, por exemplo, que os mais talentosos ponham seus talentos a serviço dos menos
talentosos. Isso é explanado exaustivamente por Rawls quando este trata do princípio da
diferença, o qual defende que as desigualdades existentes na estrutura básica somente são
permitidas se houver um maior favorecimento para os menos afortunados (Cf. REALE e
ANTISERI, 2006: 240-241).

Rawls considera injusto que os naturalmente desfavorecidos morram de fome somente


porque não têm nada a oferecer aos outros, ou que crianças não tenham direito à escola e à
assistência médica públicas simplesmente porque são oriundas de famílias pobres.
Portanto, o objectivo da teoria da justiça como equidade é dar condições justas para que os
cidadãos tenham uma vida digna e se vejam como iguais dentro de uma sociedade.

Contrariamente, para Nozick, o segundo princípio da justiça como equidade de Rawls


defende uma grande injustiça, pois ao usar uma pessoa dessa forma não se leva a sério o
facto de ela ser única. Para Nozick, ninguém tem o direito de forçá-la a isso. Nas próprias
palavras:
Usar uma dessas pessoas em benefício das outras implica usá-la e
beneficiar os demais. Nada mais. O que acontece é que alguma coisa é
feita com ela em benefício dos outros. Conversas sobre bem social geral
disfarçam essa situação. (Intencionalmente?) Usar uma pessoa dessa
maneira, além de indicar desrespeito, não leva em conta o fato de que ela
é uma pessoa separada, que é sua a vida de que dispõe. Ela não obtém
algum bem que contrabalance seu sacrifício, e ninguém tem o direito de
obrigá-la a isso – e ainda menos o Estado ou o Governo, que alegam que
lhe exige a lealdade (o que outros indivíduos não fazem) e que, por
conseguinte, deve ser escrupulosamente neutro entre seus cidadãos
(NOZICK, 1991: 48).

Se a teoria de Rawls, segundo Nozick, for levada às últimas consequências, o Estado teria
a obrigação de exigir dos cidadãos que transplantassem órgãos do corpo para aqueles que
estão em situação desfavorável. Por exemplo, o indivíduo que possui dois olhos bons deve
transferir um deles para que um cego possa ver. Aquele que não tem problemas renais deve
abrir mão de um rim para que o outro tenha uma vida melhor. Dar uma perna a quem não
tem nenhuma corroboraria com a auto-estima do beneficiado, e assim por diante.

Assim, considera VITA (2007: 35), para Nozick, nem “a teoria de Rawls – e o liberalismo
igualitário de modo geral – faz justiça à distinção entre as pessoas. O liberalismo
igualitário, como o utilitarismo, não levam os direitos individuais a sério”.
Conclusão

Podemos concluir que a concepção do Estado mínimo defendida em Anarquia, Estado e


Utopia não é uma visão de tipo perfeccionista que indique de que forma os indivíduos
devem viver. Pelo contrário, trata-se de um enquadramento geral que permite aos
indivíduos viverem vidas muito diferentes. Assim, por exemplo, se alguém pretende viver
uma vida sob o signo do comunismo, ou da comunidade de bens, pode perfeitamente
organizar-se para o fazer fundando uma “comuna” com aqueles com quem partilha essas
ideias. Mas com a enorme vantagem de, ao contrário do que aconteceu nos países do
“socialismo real”, não instrumentalizar a liberdade dos outros para esse mesmo fim.
Referências Bibliográficas

BRAGA, Raphael Brasileiro. “Robert nozick e sua teoria política: uma alternativa viável à
proposta de john rawls?”. PUCRS, 2009. Baixado no dia 8 de Junho de
2014, Disponível online em: revistaselectronicas.pucrs.br.

GRONDONA, M. Os Pensadores da Liberdade: de John Locke a Robert Nozick. São


Paulo, Mandarim, 2000.

NOZICK, R. Anarquia, Estado e Utopia. Tradução de Ruy Jungmann. Rio de Janeiro,


Jorge Zahar Editor, 1991.

REALE, G. e ANTISERI, D.. História da Filosofia: de Freud à actualidade. São Paulo,


Paulus, 2006.

ROSAS, João Cardoso. “A concepção de estado de Nozick”. Universidade do Minho,


2009. Baixado no dia 8 de Junho de 2014, Disponível online em:
criticanarede.com/nozick.html
VITA, A de. A Justiça Igualitária e seus Críticos. São Paulo, Martins Fontes, 2007.
Libertarismo fundamental e instrumental de Nozik e Friedman

Por Alfredo Chafunha Ramijo

Introdução

Neste ensaio, cujo tema é Libertarismo fundamental e instrumental de Nozik e


Friedman, com um triplo propósito: 1- analisar o liberalismo político e económico de que
o libertarismo surgiu; 2- reflectir a natureza do libertarismo, com enfoque nos aspectos
comuns e divergentes do libertarismo fundamental e instrumental e; 3- mostrar os desafios
e as perspectivas do povo moçambicano diante do libertarismo.

Para analisar o libertarismo nas visões de Nozik e de Friedman, vou usar o método
hermenêutico, isto é, a partir da leitura dos livros: Anarquia, Estado e Utopia (2009) de
Robert Nozik e Liberdade de escolher (2012) do casal Friedman, tento interpretar como
surge o libertarismo (neo-liberalismo), para além de conpreender os desafios e as
perspectivas que o povo moçambicano pode ter diante do libertarismo tanto fundamental,
assim como instrumental.

Para alcançar o meu objectivo, divido o trabalho em três partes: i) O libralismo, onde
primeiro explico o significado do conceito “liberalismo”; depois mostro a sua origem em
termos históricos e, por fim, analiso o desenvolvimento do liberalismo, tanto no campo
económico, como na área política; ii) o libertarismo, que nesta parte,começo igualmente
por apresentar o significado do termo “libertarismo”, em segundo plano, mostro as
contribuições de Nozik (libertarismo fundamental) e de Friedman (libertarismo
instrumental) e; iii) indico os desafios e as perspectivas do povo moçambicano diante do
libertarismo com a pretensão de perceber como pode-se garantir a prosperidade e a vida
digna por um lado e, por outro lado, como promover o desenvolvimento social, económico
e político para se ter uma vida aceitavel e justa entre os moçambicanos.

Em última análise, trata-se de superar (gerir) o paradoxo em termos práticos do


libertarismo, entre a prosperidade ou desenvolvimento económico que exigem o trabalho
individual e colectivo, a livre iniciativa, baseados na liberdade individual, tudo isto exige a
exlusão ou diminuiçao do papel do Estado na vida social, por um lado, e garantir a
harmonia social que se fundamenta na segurança e no respeito mútuo que requerem a
presença ou o aumento do papel do Estado na vida social atarvês da polícia e das
instituições de justiça que garantam o respeito pela dignidade humana, por outro lado.
Portanto, o desenvolvimento económico e a harmonia social constituem ao mesmo tempo,
desafios e perspectivas do povo moçambicano diante do cenário neo-liberal.

I. O LIBERALISMO

Nesta secção primeiro vou explicar o que deve-se entender por liberalismo, depois analiso
a sua origem histórica e, por fim, apresento como que o liberalismo se desenvolveu, quer
em termos económicos, assim como em termos políticos.

1. Conceito do liberalismo
O que é liberalismo?
O liberalismo não tem uma significação específica, pois a sua concepção varia da área da
sua aplicação, ou seja, varia conforme se aplique na esfera política, ou ao domínio
económico (Durozoi e Roussel, 2003, p. 236). Ora vejamos:
- No campo político, o liberalismo constitui uma doutrina que, na perspectiva de Locke,
Montesqueiu e Rousseau, elogia a tolerância, preconiza o respeito pela liberdade individual
– especialmente a liberdade de pensamento – e pretende protegê-la limitando os poderes do
Estado (graças a separação dos poderes e a promoção da vontade individual e colectiva na
formação do Estado) e;
- No domínio económico, o liberalismo tal como foi defendido por Adam Smith, Robert
Malthus, John S. Mill, David Ricardo, etc., é uma concepção que recusa a intervenção do
Estado na actividade económica (o Estado só defende a iniciativa privada) e afirma a
existência de leis naturais capazes de assegurarem o equilíbrio entre a oferta e a procura,
com a condição de serem respeitadas a concorrência e a propriedade privada dos meios de
produção.

Na visão de Foucault, o liberalismo é um dos desafios para a racionalidade política, porque


exige o respeito pelos sujeitos de direitos e a liberdade de iniciativa dos indivíduos num
sistema governativo. Assim, o liberalismo não é uma teoria, nem é uma ideologia, e muito
menos uma maneira de a sociedade se representar, mas trata-se duma prática, ou seja, uma
“maneira de fazer” orientada para objectivos e regulada numa reflexão contínua. O
liberalimo deve ser analisado como princípio e método de racionalização do exercício do
governo – racionalização que obedece à regra interna de maximizar a economia. Neste
sentido, o liberalismo rompe com a ideia da “razão do Estado” que desde os finais do
século XVI, procurara na existência e no reforço do Estado para justificar a
governabilidade crescente e de reger o seu desenvolvimento, como defendeu Thomas
Hobbes (Foucault, 2010, pp. 393-394).

2. A origem do liberalismo

Para o casal Friedman (Milton e Rose) o liberalismo surge a partir da fuga que os europeus
fizeram da tirania (Europa) para a liberdade (América do Norte). Isto quer dizer que há
uma certa altura em que existia uma tirania na Europa como consequência da combinação
do poder económico e o poder político nas mesmas pessoas (a nobreza). Para os homens
simples, restava-lhes a possibilidade de procurar a liberdade política e a prosperidade
noutros lugares como foi o caso da América do Norte. Quando lá chegaram, não
encontraram as “ruas pavimentadas de ouro”, mas só a liberdade política e que com o
trabalho, conseguiram prosperar economicamente. (Friedman, 2012, p. 21)

Para Lukamba e Barracho, John Locke constitui o ideólogo do liberalismo, por ter sido o
primeiro a reconhecer a libertade como um dos direitos naturais de qualquer ser humano
(Lukamba e Barracho, 2012, p. 163)

Como pode-se notar, tanto no primeiro caso, como no segundo, a base do liberalismo é a
ideia da liberdade que foi pensada de forma diferente ao longo do tempo, isto é, desde os
gregos até aos nossos dias (Mora, 1991, pp. 235-240), como pode-se ver:

a) Liberdade natural: é a possibilidade de se subtrair pelo menos parcialmente do


homem à ordem cósmica predeterminada. Esta ordem cósmica é vista de duas
maneiras: dum lado, como modo de operar do Destino e, doutro lado, como a
ordem da Natureza enquanto nesta todos os acontecimentos estão estritamente
imbricados. Na primeira maneira, ser livre (liberdade perante o Destino) significa,
ser excluído pelo Destino. Assim, os homens que são escolhidos pelo Destino para
o realizarem não são livres no sentido de poderem fazer o que quiserem, mas são
livres no sentido superior, isto é, realizar a necessidade superior (cósmica). Na
segunda maneira, ser livre significa perceber até que ponto e em que medida um
indivíduo pode subtrair-se à estrita imbricação dos acontecimentos naturais;
b) Liberdade social ou política: constitui a autonomia ou independência que numa
determinada comunidade humana, que se concretiza na possibilidade de reger os
próprios destinos sem a interferência de outras comunidades. Ao nível individual,
essa autonomia consiste não em fugir às leis, mas em agir de acordo com as
próprias leis, como defenderam os pensadores contratualistas: Hobbes, Locke,
Rousseau, Kant e Rawls e;
c) Liberdade pessoal: é a autonomia da pessoa perante as pressões ou coações da
comunidade enquanto sociedade ou Estado.

As duas últimas concepções da liberdade (política e pessoal) são desenvolvidas nesta


reflexão por constituírem as bases tanto do liberalismo (liberdade política ou social), como
do libertarismo – neo liberalismo (liberdade pessoal).

Apesar de em termos sistemáticos, John Locke ter sido o ideólogo do liberalismo no século
XVII, é preciso considerar a contribuição dos humanistas, sobretudo Pico de Mirandola,
que no seu Discurso sobre a Dignidade do Homem começa a mostrar que o homem é um
ser digno de qualidades admiráveis e pode realizar-se e construir a sua perfeição aqui na
terra, em vez de ser visto simplesmente como peregrino, à espera da felicidade ou auto-
realização no Céu. (Mirandola, 2011, p. 57). É preciso perceber que o pensamento de Pico
de Mirandola foi desenvolvido em plena Época Medieval que se considerava o homem
como um ser pecador e passageiro para o Paraíso ou Inferno. A sua vida consistia em
cumprir os planos divinos. Este pensamento de Mirandola foi retomado e desenvolvido por
Descartes, Locke e até Kant quando compreenderam que o homem tem a sua dignidade
(livre e igual ao nascer) e é um fim e não um meio a ser usado para fins alheios à sua vida.

O que autoriza Lukamba e Barracho a considerarem John Locke como ideólogo do


liberalismo?

John Locke (1632-1704), pensador inglês constitui uma referência para o liberalismo por
duas razões: a primeira, diz respeito à noção de liberdade que ele discute nas suas obras
políticas: Dois Tratados Sobre o Governo (1689) e Carta Sobre a Tolerância (1690) e a
segunda, que tem relação com a primeira é de que a liberdade política que ele desenvolveu
ter influenciado as três grandes revoluções liberais modernas, a saber: a Revolução Inglesa
(1688-1689), a Revolução Americana (1775-1783) e a Revolução Francesa (1789).

Na obra Dois Tratados sobre o Governo composta por duas partes, onde na primeira,
Locke critica o direito divino dos reis, pois acumulavam nas suas mãos os dois poderes
(político e económico), tornando-se deste modo, tiranos em relação aos seus súbtitos (o
povo) e, na segunda, defende a sua teoria do Estado liberal e da propriedade privada
(Lukamba e Barracho, 2012, p. 163).

Ora, a obra Dois Tratados Sobre o Governo onde Locke defende a ideia segundo a qual os
homens nascem livres e iguais, constitui uma resposta clara ao pensamento de Robert
Filmer em torno do poder divino dos reis, ou seja, todo o poder absoluto existia quer pela
tradição, quer pelo direito divino dos reis. Portanto, segundo esta concepção de Filmer,
nenhum homem nasce livre e todos os homens são desiguais. Locke fundamenta jurídico-
politicamente a sua reflexão, procurando responder á pergunta: quais são a origem e os
limites da autoridade política legítima? Ou por outras palavras, porque as pessoas devem
obedecer aos governantes e que circunstâncias justificam às pessoas a se oporem aos
governantes? Para Locke o poder político deve ser limitado nos seus poderes e só existe
por consentimento (acordo) dos governados, na medida em que todos os homens nascem
livres e iguais (idem, p. 164).

O tipo de Estado defendido por Locke é um Estado liberal (diferente do Estado absolutista
de Hobbes). Um Estado que está ao serviço do cidadão, uma vez que este Estado surge a
partir da vontade do cidadão.

Para operacionalizar a liberdade humana, Locke na Carta Sobre a Tolerância afirma a


distinção (separação) entre o poder civil e o poder religioso, isto é, uma separação da Igreja
ao Estado. Também defende a liberdade religiosa, no sentido que cada homem é livre de
professar o seu credo – é a instauração do Estado laico.

A ideia da limitação de poderes por parte do governo defendida por John Locke, foi
desenvolvida por seu discípulo Montesquieu, fazendo alguns ajustes à realidade francesa.

Charles-Louis de Seccondat, barão de Montesquieu (1689-1755), filósofo francês,


começou por ser discípulo de Locke e do constitucionalismo inglês e mais tarde foi
opositor feroz do absolutismo ao defender a separação dos três poderes políticos:
legislativo (que faz as leis), executivo (que governa e administra) e judicial (que aplica as
leis aos casos concretos).

Para além de ter defendido a divisão e separação dos poderes políticos para regular a
relação entre estes poderes, Montesquieu também, propõe outras classificações dos
governos: despótico, monárquico e republicano, este sem o soberano em sua frente, o que
influenciou a Cosntituição Americana, onde o povo passou a ser uma nação.
Em termos constitucionais, Montesquieu defende que o legislador deve ter em conta as
especificidades de cada sociedade (religião, cultura, clima, etc) por forma a criar leis
exequíveis à boa convivência social.

Na senda da liberdade política, como fundamento do liberalismo, Jean-Jacques Rousseau


(1712-1778) deu a sua contribuição nos dois livros seus: Discurso sobre a Origem e
Fundamento das Desigualdades entre os Homens (1755) e O Contrato Social (1762).

Como pensador, Rousseau foi contra a monarquia absoluta (que não dá espaço para as
liberdades individuais), contra a Igreja Católica (que defende os dogmas) e contra a
aristocracia feudal (que defende o poder hereditário dos reis ou governantes) ao defender a
liberdade que se concilia com a obediência às leis e o bom governo.

Ora, a liberdade que Rousseau propõe, constitui o cerne da democracia, porque todos os
membros da sociedade participam voluntariamente na adopção de leis benéficas para
todos, estas leis uma vez adoptadas devem ser aceites e respeitadas por todos, do contrário,
estes membros estariam a trair a sua própria liberdade (Rousseau, 2000, p. 18). Assim, o
contrato social é, pois um acto voluntário, só que a partir do momento que é celebrado, não
pode ser violado. É por essa razão que Rousseau diz: “o homem é livre e senhor da sua
própria vontade e não pode ser governado por quem quer que seja, sem o seu próprio
consentimento” (ibdem).

No Contrato Social, Rousseau procura investigar sobre as origens da organização social.


Nela, considera que, embora o Estado exista e não possa ser destruído (uma vez que já não
é possível regressar ao estado natural – primitivo), é preciso procurar as condições que
proporcionem uma vida em sociedade aceitável e justa, ou seja, o Estado deve estar
organizado de forma a proteger o interesse da maioria e, o único governo legítimo, é o da
democracia directa, o qual o poder legislativo cabe a todos. Neste ponto de vista, a vontade
do Estado é a da maioria dos cidadãos e, à minoria só lhe resta obedecer – ditadura da
maioria.

É preciso perceber que Rousseau é puro fruto do espírito iluminista (uso da razão) que
procura resolver o problema da legitimidade do poder do Estado fundado no contrato
social. Ora, começando por esclarecer o conceito de soberania, Rousseau considera o povo
como titular inalienável da soberania. Assim, o Estado torna-se legítimo perante o acordo
de todo o povo – a vontade geral.
Para salvaguardar a conviência justa, Rousseau defende a teoria dos direitos individuais
naturais e originários, com a concepção de que não é o rei que está acima da lei, mas sim a
lei que está acima de todos (o rei e os súbditos). Nesta ordem de ideias, o bom governo é
aquele onde o Estado é regido pela vontade geral e a lei, constitui a coisa de todos
(república).

A sua preocupação em matéria de direito e do Estado, Rousseau defendeu um Estado forte,


mas que não fosse tirânico como de Hobbes (porque conduzia à maquinização, coisificação
do homem como indivíduo, absorvendo o homem e a sua essência no Estado) e nem liberal
domo de Locke (na medida em que põe em perigo de uma total dissolução da comunidade
política). O Estado forte resulta do contrato social, opera-se da alienação total de cada
cidadão, com todos os seus direitos, sem reserva, em favor da sociedade, mantendo-se a
igualdade de todos na mesma condição (Rousseau, 2000, pp 61-103).

Rousseau morre nas vésperas da Revolução Francesa (11 anos antes). A partir da
Revolução Francesa (1789) e, sobretudo durante o século XIX, os pensadores políticos
ficaram divididos em quatro tendências na visão de Gaetano Mosca (1855-1941), citado
por Lukamba e Barracho, p. 181. As quatro tendências são:

1. Os da tendência liberal, que procuraram combater o absolutismo atravês da


separação de poderes, como defendeu Montesquieu;

2. Os de tendência democrática, que se preocuparam essencialmente pela igualdade


política no sufrágio universal, na linha de Rousseau;

3. Os de tendência socialista que combinaram a igualdade política e a igualdade


económica, como defendeu Karl Marx e;

4. Os de tendência da unidade patriótica, isto é, procuraram concretizar a unidade da


pátria e a sua independência em relação ao estrangeiro, como foram os casos do
nazismo na Alemanha e na Polónia.

A base das quatro dendências são os três princípios fundamentais da Revolução Francesa:
igualdade, liberdade e fraternidade (solidariedade), pois a igualdade não era ainda já um
dado adquirido, na medida em que a riqueza até então estava nas mãos da nobreza,
transferiu-se mais tarde para a burguesia (a nova classe). Por isso, muitos pensadores que
reflectiram sobre a problemática da organização da sociedade política, centraram-se na
questão da igualdade.
Em última análise, o liberalismo como doutrina que defende a liberdade teve o seu início
no século XVII com a Revolução Inglesa que marcou de forma considerável a Ciência
Política. Assim, o liberalismo foi uma luta contra as tendências despóticas de Jaime I e de
Carlos I; exprimiu-se primeiramente atravês da Petição do Direito de 1628, do jurista Sir
Edward Coke. A obra de John Locke – Dois Tratados do Governo - foi ao encontro
daquela petição. As três grandes revoluções dos séculos XVII e XVIII (inglesa, americana
e francesa) estavam baseadas no direito natural (vida, liberdade e igualdade). Com
Montesquieu, dá-se o primado do liberalismo aristocrático – o poder fica limitado por leis
fundamentais do bem público e da liberdade privada, com a garantia da liberdade
(Lukamba e Barracho, 2012, p. 191).

Ora, no seu desenvolvimento, o liberalismo dividiu-se em dois grupos: económico e


político, como procuro mostrar a seguir.

3. O desenvolvimento do liberalismo

Depois do seu surgimento no século XVII, com a Revolução Inglesa, o liberalismo


desenvolveu-se depois de duas formas: económica e política. Nesta parte, vou tentar
explicar as duas formas do liberalismo, começando pela económica e acabo com forma
política.

a) Liberalismo económico

Esta corrente foi desenvolvida por Adam Smith (1723-1790) no seu livro A Riqueza das
Nações (1776) ao defender as ideias relativas à distribuição, ao rendimento e ao comércio
(Lukamba e Barracho, 2012, pp. 182-187).

Na visão de Smith (economista escossês) o comportamento humano é condicionado por


seis determinantes: amor próprio, simpatia, ânsia de liberdade, instinto de propriedade,
hábito de trabalho e propensão a troca. Estes determinantes levam o homem a ser o melhor
juíz dos seus interesses e a ter a liberdade de os realizar de acordo com a sua livre vontade.
Segundo ele, a sociedade e as instituições impedem a realização dos talentos naturais dos
homens e prejudicam, desta maneira, o seu equilíbrio natural e espontâneo. Por essa razão,
Smith defende uma política de plena liberdade económica.
O pensamento de Adam Smith tem um fundamento psicológico, que é o interesse
individual. É a partir deste interesse individual que Smith explica como que as
necessidades humanas podem ser satisfeitas pela divisão do trabalho, que aumenta
consideravelmente a produção individual e, pelo mecanismo dos preços, que adapta
automaticamente a oferta à procura; traduzindo-se em liberdade de acção. Com base nestas
concepções, o liberalismo para Smith constitui a melhor maneira de promover o
desenvolvimento económico e o bem-estar geral, acabando com todas as restrições à
eonomia de mercado, deixando as pessoas a agirem com inteira liberdade.

Também, Smith defende uma activa função económica e social por parte do Estado. Para
ele, o papel do Estado é insubstituível na defesa, na justiça, na educação e na saúde.

A riqueza duma nação resulta do trabalho de todas as classes da nação (social, económica,
política, etc.), ou seja, a riqueza anual da nação é o produto de um trabalho comum onde
todos cooperam.

A divisão do trabalho foi de facto fundamental na economia da sociedade industrial (onde


Smith viveu) para reduzir os conflitos laborais, por um lado e, por outro, gerava a
solidariedade, isto é, ligava os indivíduos uns aos outros, atravês da coordenação de
funções.

Ora, a aplicação dos princípios orientadores do liberalismo provocou inúmeras crises


económicas e as desigualdades sociais ficaram cada vez mais acentuadas (passou a reinar
a lei do mais forte). Estes acontecimentos provocaram múltiplas reações, entre as quais, a
Igreja Católica atravês das encíclicas “Rerum Novarum” e “Quaragesimo Ano”, apelando
o crescimento do papel regulador do Estado. É neste contexto que surge a ideia paternalita
ou abrangente do Estado que John Rawls, Amartya Sen, Peter Singer, etc., que defendem
uma distribuição abrangente dos recursos por parte do Estado de modo que cada pessoa
tenha condições de vida aceitável. Também, foi nesta linha de ideias que Karl Marx,
Lenine, Mao Tsetung desenvolveram o socialismo.

Depois de ter mostrado as contibuições do liberalismo económico, que dum lado promoveu
a prosperidade e, doutro, aumentou os conflitos sociais, resta-me a possibilitade de discutir
a outra forma do liberalismo – o liberalismo político.

b) O liberalismo político
Com o enfraquecimento da filosofia moralista de Kant, começa a impor-se uma ideologia
sensualista, que abriu uma era de transição entre os diferentes tipos de liberalismo, época
da qual, por exemplo, o fisiólogo e filósofo francês Pierre Jean Cabanis (1757-1808) e a
romancista francesa Anne Louisa Germaine, mais conhecida por Madame de Stael (1766-
1817), foram os representantes.

Foi com o pensador e político francês e amigo da Madame de Stael, Henri- Benjamim
Constant (1767-1830) que nasce o liberalismo político puro. Constant foi activista e
deputado que escreveu uma obra Sobre a Liberdade dos Antigos Comparada com a dos
Modernos (1819).

No liberalismo político também se regista a contribuição de Peirre Royer – Collard (1763-


1845) que pretendeu fazer uma abertura progressiva do liberalismo à democracia. Esta
abertura começou a ser feita depois com os chamados legitimistas, como foram os casos de
François René Chateaubriand (1768-1848), Alphonse Lamartine (1790-1869) e Alexis de
Tocqueville (1805-1859). Embora cada um tenha seguido o seu rumo, Chateaubriand fez
renascer a democracia, Lamartine desenvolveu o poder católico e Tocqueville mostrou os
prós e os contras da democracia norte americana.

No âmbito político do liberalismo, uma contribuição notória foi dada por John Rawls.

John Rawls (1921-2002), filósofo norte americano e escreveu as seguintes obras de cariz
político: Uma Teoria de Justiça (1971), A Justiça Como Equidade (2001) como correção
da primeira obra, O Liberalismo Político (1993) e O Direito dos Povos (1999).

Em oposição ao utilitarismo (maximização do bem-estar das pessoas numa sociedade,


como consequência de toda a liberdade), Rawls defende um liberalismo igualitário de
carácter deontológico, isto é, afirma a primazia da virtude social da justiça e do respeito
dos direitos individuais (Rosas, 2008, pp. 35-65).

Rawls começa a abordar sistematicamente no seu livro Uma Teoria de Justiça, corrigida na
obra Justiça como Equidade. Nestes livros ele analisa a justiça e os direitos individuais a
ela associados (civis, políticos, sociais e económicos) que funcionam como uma espécie de
trunfo, não são negociáveis em função de quaisquer consequências. Em outras palavras,
com o liberalismo igualitário Rawls procura conjugar a prioridade das liberdades básicas,
civis e políticas, com a relevância da igualdade de oportunidades e da função distribuitiva
do Estado.
O liberalismo igualitário de Rawls tem como base a justiça numa sociedade onde todos os
cidadãos cooperam para o bem-estar de todos. Para tal, a cooperação social os cidadãos são
dotados de racionalidade e de razoabilidade. A racionalidade permite aos cidadãos fazerem
a selecção de concepções do bem e dos meios adequados para realizar na sua vida.
Portanto, a racionalidade é a base do exercício de liberdade de cada um. Por sua vez, a sua
razoabilidade permite que cada cidadão esteja disposto a chegar a termos de entendimento
com os outros, tornando possível a vida social. Neste sentido, a razoabilidade permite a
emergência de um sentido de justiça em cada um. Em última análise, os cidadãos dotados
de racionalidade e razoabilidade, têm as condições para exercer a sua liberdade numa
sociedade justa, ou bem ordenada (Rawls, 2001, p. 122).

Para evitar conflitos entre os cidadãos divido à distribuição dos benefícios e encargos que
decorrem da convivência (associação), Rawls propõe uma justiça que funciona com dois
princípios: de igualdades e como uma sociedade de cooperantes iguais, os bens primários
devem ser distribuídos por igual, formulando em termos genéricos a justiça seria: “Todos
os valores sociais – liberdade e oportunidades, rendimentos e riqueza, e as bases sociais do
respeito próprio – devem ser distribuídos igualmente, salvo se uma distribuição desigual de
alguns desses bens, ou de todos eles redunde em benefífio de todos” (Rawls, 2001, p. 69).

Estes dois princípios tornam-se exequíveis atravês dum contrato social que se baseia no
vêu de ignorância, isto é, ninguém sabe o seu lugar e a condição social na sociedade onde
vive. A escolha de justiça será imparcial, ou benéfícas à todos.

Como se pode depreender, o liberalismo é uma doutrina que defende a liberdade quer em
termos sociais e políticos, quer em termos económicos. Mas depois surge a nova forma o
liberalismo – neoliberalismo – o libertarismo que discuto no passo seguinte.

II. O LIBERTARISMO

O libertarismo é uma ramificação do liberalismo que se caracteriza pela exaltação da


liberdade pessoal, com a diminuição do espaço ou papel do Estado, ou seja, mais liberdade
individual num Estado mínimo. Esta exaltação da liberdade individual que exige a
diminuição do papel do Estado na vida das pessoas manifesta-se de duas formas:
fundamental, no sentido de que a liberdade constitui um fim em si mesmo, tendo como
ponto de partida que o indivíduo é proprietário de si (vida, corpo, sentimentos, talentos) e
que ninguém o impede de realizar o que bem entender (Nozick, 2008) e, a instrumental,
entendida como meio ou condição necessária para a eficiência económica (prosperidade).
Assim, nos pontos a baixo vou procurar debater estas duas formas de libetarismos.

1. Libertarismo fundamental

O respeito pela liberdade individual constitui um imperativo moral de natureza


deontológica, como se nota no pensamento de seguintes autores: Robert Nozick, Murray
Rothbard, Eric Mark, Jan Naverson ou Tibor Machan (Rosas, 2008, p. 75). Porém, eu vou
desenvolver o pensamento de Robert Nozick por razões bibliográficas, isto é, por dispor só
do livro dele e não dos outros que obrigariam-me vagevar no escuro.

Robert Nozick (1938-2002), filósofo norte americano que desenvolveu o libertarismo no


seu livro Anarquia, Estado e Utopia (1977).

O pensamento de Nozick é uma crítica à ideia de justiça como igualdade, defendida por
John Rawls. Para fundamentar como que a justiça igualitária contribui negativamente para
a liberdade individual, Nozick apresenta o argumento de Wilt Chamberlain (jogador
talentoso e popular de NBA do final dos anos 70). Portanto, enquanto Rawls defende uma
justiça igualitária, Nozick é da proposta duma justiça por titularidade (Nozick, 2009, pp.
204-209).

Para debater a teoria de justiça distribuitiva equitativa (de Rawls) e a sua justiça por
titularidade, Nozick supõe que Chamberlain assine um contrato anual onde em cada jogo
realizado em “casa” cada espectador ao comprar o bilhete de entrada ao campo, deposite
25 céntimos de dolar numa caixa preparada para Chamberlain. Assim, cada espetador fica
empolgado por ver Chamberlain a jogar. Imaginando que em toda a época (ano) um milhão
de espetadores assistiriam os jogos de Chamberlain em “casa” e, assim, ele arrecadaria
mais 250 mil dólares que qualquer outro jogador da equipa. Ja que tanto o depósito de 25
céntimos para cada bilhete, como o assitir os jogos foram actos totalmente voluntários,
quem poderá reclamar de injustiça de extorção pelo facto de Chamberlair ter mais dinheiro
que os outros? Será que Chamberlain tem o dever de repartir com os outros que têm pouco,
como sugere Rawls com o seu princípio de diferença? Em princípio não houve injustiça,
pois a origem de dinheiro de Chamberlain é totalmente justa por obedecer os princípios de
titularidade. Portanto, com este exemplo de Chamberlain, Nozick quis demonstrar que
nenhum princípio de justiça deve padronizar a distribuição dos bens (rendimento), pois
perturba a própria liberdade.

Como pode-se ver, para Nozick a justiça por título justo não exige critérios igualitários,
nos quais uma dada distibuição tem de se acomodar para ser tida como justa, mas somente
algumas regras procesuais (acordos) referentes ao modo como a propriedade se pode
constituir ou transferir, regras essas que quando são respeitadas, tornam justo o resultado
final (a posse).

Para ser mais claro, enquanto para Rawls a distribuição dos bens primários (direitos,
liberdades, renda e posse) deve ser equitativa e no caso de existirem diferenças económicas
entre os cidadãos, os menos favorecidos (os pobres) devem receber mais de modo que
todos tenham condições de uma vida digna (Rawls, 2001, pp. 149-157), para Nozick, as
regras processuais da teoria do justo título são três: i- princípio de apropriação original, que
especifica como é que um indivíduo torna-se proprietário de um bem (uma pessoa
apropria-se de um recurso desde que não deteriore a vida dos outros); ii- um princípio de
transferência, que estabelece a forma de uma pessoa tornar-se proprietária de um recurso
mediante um acordo com o seu antigo proprietário e; iii- um princípio de rectificação que
regula as violações dos dois princípios anteriores (Nozick, 2009, pp. 192-193).

Ora, com a teoria de titularidade na distribuição dos bens, Nozick pretende criticar as
teorias teleológicas (utilitarista e igualirarista) que estabelecem princípios em função dos
fins a serem alcançados na distribuição dos bens. Teorias essas que são adoptadas pelo
Estado ou por instituições filantrópicas, sem ter em conta a história de como os bens foram
conseguidos pelas pessoas. Como consequência destas teorias finalistas (teleológicas), o
Estado ou as instituições obrigam aos mais favorecidos (ricos) a partilharem com os menos
favorecidos (pobres) na sociedade, o que é injusto na visão de Nozick.

Sob o ponto de vista libertarista, Nozick defronta-se com a questão de saber se o Estado é
ou não justificável na vida dos cidadãos. Se respondesse afirmativamente, Nozick estaria
do lado do Estado providencialista ou abrangente e se for negativa, ele estaria do lado de
anarqistas. Mas, Nozick inspirando-se do estado de natureza de John Locke com todas as
suas consequeências positivas e negativas (Nozick, 2009, pp. 31-45), propõe o Estado
ultramínimo, um acordo entre o Estado e o cidadão, para a proteção deste:
“O Estado ultramínimo mantém o monopólio do uso da força, excepto a necessária à
autodefesa imediata, e exsclui assim, a retaliação da transgressão e a exigência de
compensação privadas (ou agenciais), mas fornece protecção e serviços de execução
apenas àqueles que compram a sua proteção. As pessoas que não compram um contrato de
proteção ao monopólio não são protegidas” (Nozick, 2009, p. 57).

Assim, Nozick reconhece que a pessoa é proprietária de si mesma, pode fazer o que bem
entender com o seu corpo, a sua vida, os seus talentos, os seus sentimento e os seus
haveres. Mas, a pessoa precisa do Estado para garantir o direito à vida, a liberdade de fazer
o que bem quiser com sigo mesmo, com o seu corpo e os seus talentos e de proteger os
seus haveres. É nesta ordem de ideias, que na última parte do livro, no capítulo de Utopia,
Nozick procura influenciar todos os que desejam viver numa sociedade livre, onde o
Estado tem pouca interveção na vida dos cidadãos (Idem, pp. 353-393).

2. Libertarismo instrumental

O libertarismo instrumental atribui um valor instrumental à liberdade individual, na medida


em que o respeito pela liberdade individual constitui um bem porque contribui para o
alcance dum bem maior – a eficiência económica. Assim, a liberdade constitui a condição
para a prosperidade económica, ao proporcionar vantagens do mercado livre. Esta ideia do
mercado livre atravês do respeito pela liberdade individual foi defendida tanto pelo casal
Friedman, como pelo Friedrich von Hayek, que asseguir apresento as suas contribuições no
âmbito do libertarismo instrumental.

Milton Friedman (1912-2006), economista da Escola de economia de Chicago por mais de


30 anos, prémio Nobel de economia em 1976 e conselheiro do presidente Ronald Reagan
na década de 80.

No seu livro conjunto com a sua esposa Rose Friedman, Liberdade para escolher (1990), o
casal defende a maior liberdade para os mercados e uma interveção mínima do Estado
(Estado mínimo).

O pensamento do casal Friedman é uma reação crítica à economia mista (dirigismo estatal
e a liberalização do mercado) defendida pelo John Maynard Keynes, após a II Guerra
Mundial. O ponto de oposição entre o pensamento de Friedman e o de Keynes é a
promoção da eficiência económica, que em termos macroeconómica são quatro indicadores
fundamentais: emprego, inflacção, crescimento económico e a balança de pagamentos (
Friedman, 2012, p. 51). Ora, a eficiência económica avalia-se pelo desempenho positivo
dos indicadores de crescimento económico; pela baixa de desemprego (ou alto índice de
emprego); pela estabilidade dos preços e pelo equilíbrio na balança de pagamentos
(exportação e importação).

O objectivo da eficiência económica é aumentar a riqueza desponível e com esta, aumentar


também a probalidade de satisfação das preferências individuais. Portanto, enquanto para
Keynes a economia mista garante um elevado grau de eficiência económica, para Friedman
a não intervenção do Estado na economia, o livre jogo de actores e das forças do mercado,
conduz à maior prosperidade do maior número de pessoas.

A tese fundamental de Friedman é a combinação da liberdade política à liberdade


económica para a prosperidade duma nação. Esta tese de Friedman surge sob a influência
do pensamento de Adam Smith que defendeu a limitação do poder por parte do Estado na
vida social. Na visão de Smith o Estado deve ter três papeis, a saber: i- proteger os
indivíduos de qualquer violência, quer interna, como externa; ii- proteger a sociedade da
injustiça ou opressão, atravês da administração da justiça e; iii- criar e manter obras e
instituições públicas para a educação, saúde e estradas, que não são do interesse individual
ou de grupos de indivíduos (Idem, p. 52). Mas, Friedman acrescenta um quarto poder do
Estado que é de proteger os membros da comunidade que não possam ser considerados
indivíduos “responsáveis” (dementes, psicodependentes, crianças, etc.), pois a liberdade é
entendida como objectivo viável para os indivíduos responáveis (Idem, p. 56).

Como pode-se ver, o Estado desempenha um papel importante, limitado e


fundamentalmente aos quatro deveres: assegurar a lei e a ordem; providenciar os meios de
formação de regras de conduta, regular as disputas; assegurar transporte e comunicações e;
supervisionar a emissão da moeda.

Para demonstrar a ideia da pouca intervenção do Estado na vida das pessoas (Estado
mínimo), Friedman dá o exemplo de Hong Kong, colónia britânica onde o mercado era
livre e o Estado limitado, que permitiu grande prosperidade (Idem, p. 58). Com este
exemplo, a intencão de Friedman é de argumentar a combinação entre a liberdade política e
a liberdade económica como condição necessária para a prosperidade de qualquer nação.

Ora, a liberdade política que se vive nos Estados Unidos de América resultou da
Revolução Americana (1775-1778) que conduziu a sua independência em 1776. O facto
marcante para a liberdade política norte americana foi a elaboração da Constituição por
Jefferson que resultou de dois documentos: Declaração de Direito da Virgínia em 1776 e a
Declaração dos Direitos dos Estados Unidos em 1791 (Idem, p. 25).

Para atacar o dirigismo (intervencionismo) estatal que impede as iniciativas individuais,


Friedman recorre a história do “Eu , o Lápis: a Minha Árvore Genealógica contada a
Leonard, read”, onde ele mostra a intervenção (cooperação) voluntária de indivíduos que
nem se conhecem e com diferenças linguísticas, culturais, políticas, sociais, etc, mas, que
não impediram para a cooperação na produção do lápis, usado por qualquer pessoa que
aprende a ler e a escrever (Idem, p. 32).

Um aspecto importante no pensamento de Friedman é que diz respeiro que a sociedade


nunca deve priorizar a igualdade em relação à liberdade, pois acaba por não ter nem a
igualdade e nem a liberdade, na medida em que a utilização da força para atingir a
igualdade destroi a liberdade e a força intoduzida com bons propósitos acaba nas mãos de
pessoas que a usam para promover os seus interesses. Assim, Friedman aconselha à
sociedade a priorizar a liberdade em relação à igualdade, porque a sociedade desfruta
simultaneamente a maior liberdade e maior igualdade (Idem, p. 190).

Outro pensador influente no libertarismo instrumental é Friederich von Hayek (1899-


1992), economista da Escola de Economia de Friburgo (Austria).

Equanto Friedman defende a teoria do Estado mínimo ou “guarda nocturno” (limitado às


funções de proteger todos os seus cidadãos contra a violência, o roubo e a fraude, de
garantir a execução dos contratos), Hayek defende a presença do Estado com a obrigação
de utilizar os seus poderes de arranjar fundos atravês de impostos para fornecer um número
de serviços que por várias razões não podem ser fornecidos, ou não podem ser fornecidos
adequadamente pelo mercado (Rosas, 2008, p. 70).

Ora, a contribuição mais importante de Hayek no libertarismo instrumental é a sua defesa


ao mercado livre e a gestão de conhecimentos. Esta defesa do mercado livre baseia-se na
concepção de que a soceidade é um sistema de cooperação com uma importante vantagem
que lhe permite ser mais eficiente que toda a economia centralmete planificada. No
mercado livre, a cooperação social não é coordenada e as pessoas não precisam de acordo
algum sobre os fins que prosseguem na sua actividade, são livres de procurar realizar os
seus próprios fins e de utilizarem os seus próprios conhecimentos. Para ele, a cooperação
não coordenada que caracteriza o mercado livre, gera maior eficiência económica porque
não existe barreiras burocráticas à descoberta e à inovação, mas sobretudo porque só a
acção descentralizada dos indivíduos permite tratar a quantidade total de informação que
circula no interior de uma sociedade complexa. Neste ponto de vista, em vez de centralizar
a informação referente à situação concreta dos agentes económicos, o mercado livre trata
esta informação a um nível local. Em cada momento, cada indivíduo utiliza os seus
melhores conhecimentos para atingir os próprios fins, contribuindo para o aumento da
riqueza produzida.

Este argumento de Hayek é compreensível com referência aos indicadores de mercado (os
preços e os salários) que os indivíduos têm à sua disposição para tomarem as suas decisões
económicas. Estes indicadores funcionam como sinais que permitem aos agentes
económicos ajustar o seu comportamento de acorde com o maior ou menor sucesso dos
seus esforços. Como indicadores, a sua função específica não é recompensar o mérito dos
esforços individuais, mas pôr em evidência a sua utilidade.

Duma forma geral, o libertarismo evidencia a liberdade individual ou pessoal e a limitação


do Estado, quer para a promoção da propriedade do indiíduo nos dois sentidos: amplo (a
vida, o corpo, os talentos, os sentimentos e os haveres) e restrito (a riqueza).

Em termos morais ou éticos, o libertarismo autoriza a cada pessoa a fazer o que bem
entender com o seu corpo, seus talentos e sentimentos, desde que essa acção não ponha em
casa à outra pessoa. Como consequência disto, a moral antiga, baseada em consensos ou
em referências socialmente aceites, fica fora do modus vivendi de qualquer pessoa. Isto
obriga às sociedades actuais a inventarem novos códigos de conduta para uma conviênca
harmoniosa.

Em termos económicos, o libertarismo permite a livre iniciativa para responder às


concorrências nos agentes económicos. Esta liberdade de iniciativa estimula o
desenvolvimento e consequentemente a prosperidade que todo o homem precisa. Só que há
maior probabilidade de uns prosperarem a custa da desgraça dos outros, ou ainda haver
uma crise financeira ao nível global, como já se nota com a exclusão do papel do Estado
que poderia fiscalizar o funcionamento dos mercados. Assim, vivemos numa situação de
“salve-se, quem puder”.

Estas críticas ao libertarismo permitem perceber os desafios e as perspectivas do povo


moçambicano sobre o desenvolvimento que almeja. Este assunto é que vou discutir no
capítulo seguinte.
III. DESAFIOS E PERSPECTIVAS DO POVO MOÇAMBICANO DIANTE DO
LIBERTARISMO

Como garantir a prosperidade e a vida digna em sociedade para os moçambicanos?

Esta dupla questão remete aos desafios e às perspectivas do povo moçambicano diante do
libertarismo que procuro desenvolver neste capítulo de forma separada, primeiro abordo os
desafios e, por fim apresento as perspectivas.

1. Desafios do povo moçambicano

Desde que Moçambique alcançou a independência política em 1975, surge outra batalha a
travar para o desenvolvimento económico, ou por outras palavras, garantir a prosperidade
que todo o povo precisa.
Outro desafio consiste em garantir a a coexistência pacífica entre os moçambicanos diante
da igualdade em direitos e em deveres como a Constituição preconiza:

“Todos os cidadãos são iguais perante a lei, gozam dos mesmos direitos e estão sujeitos aos
mesmos deveres, independentemente da cor, raça, sexo, origem étnica, lugar de
nascimento, religião, grau de instrução, posição social, estado civil dos pais ou opção
política” (Artigo 35 da Cosntituição da República de Moçambique).

O desafio da coexistência (convivência) pacífica entre os moçambicanos prende-se com a


questão de saber como fazer com não sejam só destinatários do direito, mas também, sejam
sujeitos do direito, ou por outras palavras, como fazer com que os moçambicanos sintam–
se comprometidos cultural e socialmente no respeito ao indivíduo como proprietários de si
(Neves, 2011, pp. 49-51 ).

Para o primeiro desafio, quero evidenciar a ideia de que a independência que o país
conquistou com a luta armada durante os dez anos (1964-1974), não seja a condição
suficiente para o bem-estar de todos nós os moçambicanos. A independência política que
temos, deve ser acompanhada pelo desenvolvimento económico, para que sejamos
verdadeiramente sujeitos da nossa vida social e política. Se não lutarmos para o nosso
próprio desenvolvimento económico, os conflitos sociais serão sempre frequentes, pois
continuaremos a ver as desigualdades (uns não sabem quanto dinheiro têm nas suas contas
e outros não sabem o que comer quando acordam), situação esta que vai se reflectir na
exclusão social de uns e a promoção da dignidade de outros; continuaremos a cumprir as
agendas de outros países ou instituições financeiras (Banco Mundial, Fundo Monetário
Internacional, Banco para o Desenvolvimento Africano, etc.).

Como pode-se concluir, a pobreza acaba a comprometer o nosso bem-estar, tanto


actualmente, como para as nossas futuras gerações.

Em relação ao segunto desafio, não basta a letra da Constituição da República em defender


a igualdade em direitos e em deveres entre nós moçambicanos, precisamos de dar dois
passos para frente: dum lado, precisamos que cada cidadão tenha a cultura de respeitar o
indivíduo, considerado como proprietário de si mesmo e dos seus haveres. O que acontece
é que muitas vezes exigimos aos outros os direitos de sermos bem tratados, sem querer
cumprir os nossos deveres para com os outros (respeitá-los como pessoas iguais a nós).
Doutro lado, o Estado deve desenvolver a administração da justiça, para que ninguém
esteja acima da lei (tenhamos o Estado de direito de facto) e, também, não haja uma
percepção da ausência do Estado, levando a cada pessoa a fazer justiça pelas suas próprias
mãos, como tem acontecido com os vários linchamentos.

Diante deste duplo desafio – pobreza e desarmonia social –, que perspectivas podemos ter
em vista ao nosso desenvolvimento como um povo? Esta é a questão que procuro
responder no próximo ponto.

2. Perspectivas de desenvolvimento

Em quê é que as contribuições libertaristas de Nozick e de Friedman podem nos ajudar


para alcançar o nosso desenvolvimento, podem contribuir para uma vida aceitável e justa?

Em termos económicos, o país está a crescer, pois o índice de dependência externa está a
baixar (hoje estamos abaixo de 30% e há 10 anos estavamos acima dos 50%). O
crecimento económico que precisamos que conduz a nossa autonomia financeira
(económica) e consequentemente política depende da cooperação (contribuição voluntária
de todos nós moçambicanos), isto é, cada um fazer bem o seu trabalho. Isto implica uma
série de ideias: um crescimento da cultura de trabalho e de honestidade, de poupança nas
despesas públicas, constução de infraestruturas, investimento no capital humano atravês da
educação, melhoria dos cuidados sanitários, investimento nas áreas de produção para
diminuir a taxa de desemprego.

Como a liberdade económica (autofinanciamento) é a condição necessária para a liberdade


política (autonomia nas decisões), como Friedman defendeu, o país está a registar um forte
crescimento (7% de PIB nos dois últimos anos, 2012 e 2013) atravês da exploração dos
recuros minerais, florestais, marinhos, agrícolas, construção civil, impostos, etc.
Seguramente, vamos crescer tambám em termos políticos, isto é, as agendas socias,
políticas e económicas, tanto para nós hoje, como para as futuras gerações reflictam a
vontade dos moçmbicanos.

Em última análise, esta dupla perspectiva de desenvolvimento: ao nível económico


(prosperidade) e no campo político (harmonia social) envolve duas coisas: dum lado, o
papel do Estado para assegurar a lei e a ordem, proporcionar a educação e a saúde, a
justiça, água, construir estradas, pontes, elaborar políticas para atrair investimentos que
beneficiem os moçambicanos, enfim,) e, doutro lado, um trabalho cooperativo de todos os
cidadãos, com os seus conhecimentos e suas iniciativas. Neste sentido, o libertarismo é o
neoliberalismo como uma teoria defendida hoje em dia perante o fracasso do liberalismo
clássico (negação do Estado), admite uma certa intervenção do Estado na economia, sem
com isso pôr em causa o princípio da concorrência e da livre iniciativa.

BIBLIOGRAFIA

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Maria de Fátima de Sá Correia, Porto Editora, Porto, 2003.

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ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social, trad. de Leonardo Manuel Pereira Brum, 3ª


ed., Publicações Europa-América, Portugal, 2000.
O Liberalismo Político em Jeremy Bentham e John Stuart Mill
Por Mário Alberto Viegas
Introdução

O presente trabalho surge no quadro do doutoramento em filosofia a decorrer na Faculdade


de Ciências Sociais da Universidade Pedagógica (UP) e inserido no tema sobre O Segundo
Liberalismo. De uma maneira geral, o “ʻliberalismoʼ é um termo genérico que designa
uma diversidade de correntes e de doutrinas forjadas no Ocidente (...) a partir da palavra-
chave ʻliberdadeʼ” (DORTIER, 2006: 339).Com efeito, o liberalismo aparece fundado
sobre as ideias de liberdade e igualdade. Como doutrina filosófica, nasceu no século XVIII
na sequência das lutas pelas “liberdades políticas, económicas e intelectuais contra a
arbitrariedade do Estado absoluto, contra os entraves económicos (ordens, corporações)
ou intelectuais (Igreja)” (idem). Ele surge, pois, como substrato teórico de uma ordem
social que visa garantir direitos de consciência, de expressão política e de propriedade dos
indivíduos. Como se pode depreender, o liberalismo aparece ligado à política e à
economia.Associado à política, tem o nome de liberalismo político; associado à economia
leva o nome de liberalismo económico. Entretanto, o liberalismo desenvolveu-se como um
grande movimento de pensamento que se multiplicou em diversas variantes.

O liberalismo político aparece em concomitância com a concepção do “Estado Liberal” e


em oposição a um modelo absolutista de poder que se consubstanciava no poder real.
Assim sendo, o liberalismo político é a base teórica ou filosófica de poder que parte do
entendimento de que os seres humanos são, por natureza e em situação de igualdade,
portadores de direitos fundamentais, tais como o direito à vida, à liberdade, à propriedade e
à felicidade, cabendo ao Estado respeitar e proteger esses direitos, isto é, não os violando.
A finalidade desta concepção é limitar tanto quanto possível os poderes e as funções do
Estado. “Os pensadores clássicos do liberalismo político são John Locke, Charles de
Montesquieu, Benjamim Constant, François Guizot, Alexis de Tocqueville” (idem).

O liberalismo económico defende um mercado livre, isto é, a não interferência de


quaisquer forças externas a ele, como é o caso do Estado. O seu credo central é o Laissez-
faire [deixai fazer], pretendendo isto significar que o mercado deve funcionar livremente,
bastando para isso que se oriente por regulamentos que garantam a protecção dos direitos
de propriedade. Para o liberalismo económico, só a empresa livre pode estimular melhor a
produção, por um lado, e, por outro lado, só o livre-câmbio pode permitir melhor
repartição da riqueza. “Os economistas ʻclássicosʼ que deram forma ao credo liberal são:
Adam Smith (1723-1790), David Ricardo (1772-1823), Jean-BaptisteSay (1767-1832),
John Stuart Mill (1806-1873)” (ibidem: 340).

Entretanto, será necessário distinguir entre o Liberalismo Clássico (ou, segundo Ngoenha,
primeiro liberalismo) e o Neoliberalismo (ou, também de acordo com o mesmo autor,
segundo liberalismo). O liberalismo clássico, também chamado por liberalismo tradicional
ou ainda por liberalismo do mercado (liberalismo do laissez-faire), para além de defender
os direitos naturais, entre os quais as liberdades individuais e a sua protecção pelo Estado,
a igualdade perante a lei, o direito de propriedade, defende sobremaneira a limitação
constitucional da interferência do Estado no mercado e as restrições fiscais ao governo.

O Neoliberalismo, ou segundo liberalismo, é produto do Liberalismo Economico


Neoclássico. Esta corrente de pensamento económico agrupou os que reformularam a
teoria clássica dos anos de 1870 (modelo microeconómico do mercado auto-equilibrado,
que incluía Léon Warlas, Vilfredo Pareto, Alfred Marshall, William S. Jevons, Carl
Menger, entre outros), e os teóricos da microeconomia, que integrava Kenneth J. Arrow,
um dos criadores do “modelo Standard” (também chamado por “modelo Arrow –
Debreu”) e Prémio Nobel de Economia em 1972. O termo refere-se a uma tentativa de
redefinir, desenvolver e aprofundar o liberalismo clássico, mas a partir da absorção das
teses dos autores clássicos Adam Smith, David Ricardo, Jean-Baptiste Say, Thomas R.
Malthus, apoiando, porém, uma economia proteccionista junto de um Estado
intervencionista e controlador.

Os chamados por “Neoclássicos” separam-se dos “Clássicos” em três pontos essenciais:


(1) partem do indivíduo e das suas escolhas preferenciais; (2) procedem abstracta e
formalmente, utilizando, portanto, o modelo matemático para raciocinar; (3) defendem que
o valor de um bem está dependente da sua utilidade e não dos custos da produção. É neste
contexto que se enquadram e se seguem os pensamentos filosófico-políticos e éticos de
Jeremy Bentham e John Stuart Mill, os fundadores da Ética Utilitarista.
1. O princípio da utilidade

“... o princípio da utilidade, ou, como Bentham lhe


chamou mais tarde, o Princípio da Maior Felicidade,
teve um grande peso na formação das doutrinas
morais mesmo daqueles que mais desdenhosamente
rejeitam a sua autoridade” (John Stuart Mill, 2005:
43).

O utilitarismo foi fundado pelo filósofo inglês Jeremy Bentham (1748-1832), mas
desenvolvido e aprofundado nas suas formulações clássicas por um outro filósofo inglês de
nome John Stuart Mill (1806-1873). Entretanto, as suas teses remontam aos filósofos
irlandês Francis Hutcheson (1694-1746) e inglês David Hume (1711-1776).

Com efeito, Kesselring (2009: 92) admite que em sua origem, o utilitarismo retrocede até
ao filósofo Francis Hutcheson. Tugendhat (2009: 322) vai mais longe ao afirmar que o
princípio do utilitarismo surgiu pela primeira vez em F. Hutcheson, num ensaio publicado
em 1725 com o título Na inquiry concerning the original of our ideas of virtue or moral
good. Hutchesonentendia que a melhor conduta seria aquela que proporcionasse a maior
felicidade para o maior número. Hume perseguiria este raciocínio em dois ensaios morais
surgidos nos anos de 1738 e 1751, com os títulos A treatise of human nature e Enquiry
concerning the principles of morals, respectivamente. A tese de Hume é a de que o valor
moral das virtudes gerais está no facto de serem úteis tanto para nós mesmos como para os
outros, e as virtudes que são úteis para os outros têm por base a participação do bem-estar
dos outros.

Bentham elaborou de maneira mais refinada estes conceitos de utilidade e de felicidade


para o maior número, partindo de uma base pragmática: “Nature has placed mankind
under the governance of two sovereign masters, pain and pleasure” (Bentham, 2000: 14)
[A natureza colocou a humanidade sob a governação de dois senhores soberanos, a dor e o
prazer]. É com esta frase programática que Bentham inicia o Capítulo I
(OfthePrincipleofUtility [Do Princípio da Utilidade]) da sua obra An Introduction to the
Principles of Morals and Legislation [Uma Introdução aos Princípios da Moral e da
Legislação].

De acordo com Bentham, governando em nós em tudo o que fazemos e em tudo o que
pensamos, é somente a estes dois senhores que compete indicar o que se deve fazer e
determinar o que realmente se fará, pois ao trono deles está ligada, por um lado, a norma
que distingue o recto do errado, e, por outro, a cadeia das causas e dos efeitos. Bentham
explica que o princípio da utilidade reconhece tal sujeição a ponto de a considerar
fundamento do sistema que tem por objecto construir, através da razão e da lei, o edifício
da felicidade.

Bentham defende que o princípio da utilidade é um princípio moral fundamental, de acordo


com o qual a pessoa singular ou o governo deve escolher, entre acções ou políticas
alternativas, aquela que tende a aumentar a felicidade do indivíduo ou do corpo social,
respectivamente. Como ele próprio colocou em seu livro1,

“By the principle of utility is meant that principle which approves or


disapproves of every action whatsoever, according to the tendency it
appears to have to augment or diminish the happiness of the party whose
interest is in question: or, what is the same thing in other words to promote
or to oppose that happiness. I say of every action whatsoever, and therefore
not only of every action of aprivate individual, but of every measure of
government” (idem).

Do exposto acima, pode depreender-se que a regra moral benthamiana consiste em se agir
de modos a produzir maior benefício, vantagem, prazer, bem ou felicidade (para ele todos
estes termos se reduzem à mesma coisa) e, consequentemente, a evitar o dano, a
desvantagem, a dor, o mal ou a infelicidade da parte cujo interesse esteja em causa. Ora,
esta parte pode ser tanto o indivíduo como a comunidade. Mas como a expressão “interesse
da comunidade” é a mais comum por ocorrer na terminologia e fraseologia moral,
Bentham prefere conferir-lhe significado exacto. Como ele mesmo o afirma2,

1
Por princípio de utilidade entende-se aquele princípio que aprova ou desaprova qualquer acção, Segundo a
tendência que tem a aumentar ou a diminuir a felicidade da pessoa cujo interesse está em jogo: ou, o que é a
mesma coisa em outros termos, segundo a tendência a promover ou a comprometer a referida felicidade.
Digo qualquer acção, com o que tenciono dizer que isto vale não somente para qualquer acção de um
indivíduo particular, mas também de qualquer acto ou medida de governo (tradução nossa).
2
A comunidade constitui um corpo fictício, composto de pessoas individuais que se consideram como
constituindo os seus membros. Qual é, neste caso, o interesse da comunidade? – a soma dos interesses dos
diversos membros que integram a referida comunidade. É inútil falar do interesse da comunidade, se não se
compreender qual é o interesse do indivíduo (também tradução nossa).
“The community is a fictitious body, composed of the individual persons
who are considered as constituting as it were its members. The interest of
the community then is, what is it? – the sum of the interest of the several
members who compose it. It is in vain to talk of the interest of the
community, without understanding what is the interest of the individual”
(ibidem, 15).

Com a citação acima, nota-se a grande importância que Bentham atribui ao indivíduo
particular, pois a sociedade (comunidade) só é compreensível em função das pessoas
concretas que a compõem e de cuja felicidade dá sentido à felicidade da sociedade.
Portanto, se autores como Hegel e Bentham não podem ser classificados de liberais “sem
nenhuma outra precisão”, como afirma Ngoenha em Intercultura, alternativa à
governação biopolítica? (2014: 53-54), então, a classificação de Bentham como liberal
pode ser indicada com alguma exactidão através da importância que ele deposita no
indivíduo particular, como se verá mais adiante. Para Bentham, uma coisa promove ou
favorece o interesse de um indivíduo se ela tende a aumentar a soma total dos seus
prazeres, ou seja, a diminuir a soma total das suas dores. De igual modo, uma acção
governamental estará em conformidade com o princípio da utilidade se a sua tendência de
aumentar a felicidade da comunidade for maior que a tendência de diminuí-la.

Tendo estudado direito, Bentham pensava que o princípio da utilidade era um guia não só
para as pessoas comuns tomarem as suas decisões, mas também para os legisladores
basearem as suas medidas políticas. Para ele, a finalidade das leis é o mesma da moral (daí,
o título da sua obra): promover o bem-estar de todos os cidadãos. Acreditava ele que se a
lei servia a esse intento, então ela não deveria limitar a liberdade dos cidadãos para além do
necessário. Estas preocupações de Bentham podem ser encontradas particularmente no
capítulo XXVII, por sinal o ultimo – Of the limits of penal branch of jurisprudence [Dos
limites do ramo penal da jurisprudência] (2000: 224-238) – da sua obra ora em referência.

Na sua obra Utilitarismo, John Stuart Mill tomou o princípio da utilidade de Bentham,
ampliando-o sob diversos aspectos. O princípio fundamental da moral e fonte de todos os
deveres morais é, paraele, o princípio de utilidade, que ele equipara ao princípio da maior
felicidade, como já o fizera Bentham. Para Mill,

“O credo que aceita a utilidade, ou o Princípio da Maior Felicidade, como


fundamento da moralidade, defende que as acções estão certas na medida
em que tendem a promover a felicidade, erradas na medida em que tendem
a produzir o reverso da felicidade. Por felicidade, entende-se o prazer e a
ausência de dor, por infelicidade, a dor e a privação de prazer” (Mill,
2005: 48).

A finalidade de Mill é a justificação da teoria utilitarista da felicidade, mesmo sem


justificar o próprio fim último da acção humana (aquilo que de per si mesmo é bom). Quer
dizer: o que Mill pretende é apresentar uma contribuição e apreciação da teoria utilitarista
ou da felicidade bem como uma prova dela, no sentido em que ela é susceptível de prova.
Mill encontra na efectiva aspiração à felicidade a prova de que o prazer e o livramento da
falta de prazer sejam as únicas coisas que são desejáveis e, por aí, úteis como fins últimos.

Em Sobre o Liberalismo, Mill opõe-se, tal como Bentham, a leis que regularizam condutas
que que não prejudicam os outros, uma vez que estas diminuem, no lugar de aumentarem,
a felicidade. Nas próprias palavras de Mill, pode-se ler que

“a única finalidade que justifica que a humanidade interfira, individual


como colectivamente, na liberdade de acção de qualquer dos seus membros
á a sua própria protecção. Que o único objective da utilização legítima do
poder sobre qualquer membro da comunidade civilizada, contra a sua
vontade, é para evitar que outros sejam prejudicados. O seu próprio bem,
físico ou moral, não é justificação suficiente. Ele não pode ser obrigado a
agir ou obedecer porque é melhor para ele, porque será mais feliz se o fizer,
porque, na opinião dos outros, isso seria sensato ou, até mesmo, acertado.
(…) A única parte da conduta por que ele é responsável perante a
sociedade é a que diz respeito aos outros. Na parte que diz respeito apenas
a si próprio, a sua independência é, por direito, absoluta. O indivíduo é
soberano sobre si próprio, sobre o seu próprio corpo e espírito” (1997: 17).

Pode-se entender, do excerto acima, que a preocupação fundamental de Mill é a de


conciliar a justiça social com a liberdade individual, colocando o limite da liberdade
individual na liberdade do outro. Para Mill, a liberdade deve ser protegida contra o
despotismo do governo, mas não só; também contra a tirania da opinião e do sentimento
predominantes; contra a tendência de a sociedade impor, por meios que não sejam as
penalidades civis as suas próprias ideias e hábitos como se elas fossem regras obrigatórias
de conduta também para aqueles que estão em desacordo com elas. Existem, portanto,
limites à interferência legítima da opinião colectiva na independência individual. Por
conseguinte, no Capítulo IV da sua obra, Mill apresenta os limites da autoridade da
sociedade sobre o indivíduo. Ele afirma, a dado passo, a necessidade de regras gerais que
sejam observadas na conduta dos seres humanos nas relações recíprocas, mas admite, ao
mesmo tempo, que no que tange ao interesse apenas do próprio indivíduo, a sua liberdade
individual tem o direito de ser exercida. Efectivamente, [p]oderão ser-lhe sugeridas, ou até
mesmo impostas, considerações para o ajudarem a julgar, exortações para fortalecerem a
sua vontade, mas o juiz final é ele próprio” (Mill, 1997: 79).

Para Mill, a liberdade civil implica, no domínio íntimo da consciência, a liberdade de


pensamento; liberdade absoluta de opinião e sentimentos a respeito dos assuntos práticos
ou especulativos, científicos, morais ou teológicos; liberdade de expressão. Em seguida,
liberdade de gostos e interesses; adequação do plano da vida pessoal à personalidade
própria; que se possa fazer o que se quiser, sem que se esteja sujeito às consequências dos
próprios actos, sem impedimentos por parte dos outros seres humanos, desde que o que se
fizer não os prejudique, embora eles possam considerar a conduta de tola, perversa, ou
errada. Finalmente, a liberdade de associação.Toda a sociedade que não respeite estas
liberdades não pode ser considerada livre, qualquer que seja a sua forma de
governo.“Cada um de nós é o melhor guardião da sua própria saúde, seja ela corporal,
mental ou spiritual”, assim Mill (ibidem: 20).

Com o que foi até aqui exposto, Jeremy Bentham e John Stuart Mill se inscreveram nos
anais do pensamento do liberalismo político clássico. Entretanto, como muitos outros
teóricos da época, empenhados em promover reformas político-sociais, não foram
consequentes com os seus próprios ideais em relação aos povos não europeus. Não apenas
sustentaram teorias que negavam a esses povos as mesmas liberdades que defendiam em
suas obras, como também, na prática, apoiaram e exerceram políticas atrozes que
legitimavam a compra e venda ou a perseguição e aniquilamento do “outro”, o não
europeu. John StuarMill, na mesma obra em que enaltece, defende e fundamenta as
liberdades individuais como absolutas e ilimitadas, afirma a dado momento:

“Talvez não seja necessário dizer que esta doutrina se aplica apenas a
seres humanos cujas faculdades já atingiram a maturidade. (…) O
despotismo é um modo legítimo de governo para lidar com bárbaros, desde
que tenha por objectivo o seu aperfeiçoamento, sendo osmeios justificados
pelo facto de esse objectivo ter sido atingido. A liberdade, como princípio,
não tem qualquer aplicação aos estados de coisas anteriores à altura em
que a humanidade se tornou susceptível de aperfeiçoamento através da
expressão livre e igualitária. Até essa altura, os homens estavam limitados
à obediência implícita a um Akbar ou Carlos Magno, se tivessem a sorte de
o encontrar” (ibidem: 17).

Só o ocidente e o homem ocidental iluminado, se não fosse por Deus, fosse pela razão,
estava em condições do usufruto das liberdades. Todos os outros mereciam ser sujeitos a
actos contrários à liberdade, ou seja, ao despotismo, à escravatura ou ao extermínio.

2. O cálculo hedonista

A determinação hedonista do princípio da utilidade foi fundamentada por Bentham na base


de causas e motivos prazerosos, pois, para ele, o que era imperioso era o que promovesse o
maior prazer possível e, consequentemente, o menor sofrimento possível. Em função disto,
para Bentham não se tratava apenas da formulação de um critério último da acção humana,
mas também de um método preciso com o qual se procurasse maximizar o prazer e
minimizar a dor, com a ajuda de um cálculo racional.

O cálculo hedonista é um procedimento para a medição do valor hedonista das sensações,


isto é, um fundamento para a avaliação da grandeza do prazer e da falta de prazer, pela
qual a felicidade é definida de forma aditiva, como uma soma positiva, a partir das
unidades de prazer e da falta de prazer provocados por uma determinada acção. A partir da
exigência de calcular a máxima felicidade de todos os abrangidos, o cálculo hedonista
procura, com a ajuda da instrumentária matemática da adição e subtracção, determinar o
saldo da gratificação ou satisfação.

“Pleasures and pains are the instruments he has to work with: it behaves
him therefore to understand their force, which is again, in other words, their
value.

To a person considered by himself, the value of a pleasure or pain


considered by itself, will be greater or less, according to the four following
circumstances:
1. Its intensity.
2. Its duration.
3. Its certainty or uncertainty.
4. Its propinquity or remoteness.
These are the circumstances which are to be considered in estimating a
pleasure or a pain considered each of them by itself. But when the value of
any pleasure or pain is considered for the purpose of estimating the
tendency of any act by which it is produced, there are two other
circumstances to be teken into the account; these are,

5. Its fecundity, or the chance it has of being followed by sensations of the


same kind: that is, pleasures, if it be a pleasure: pains, if it be a pain.
6. Its purity, or the chance it has of not being followed by sensations of the
opposite kind: that is, pains, if it be a pleasure: pleasures, if it be a
pain” (Bentham, 2000: 32)3.
Com isto, são determinadas primeiramente as gratificações (satisfações) e frustrações
individuais e, através de subtracções das quantidades de frustração das quantidades de
gratificação (dor – da quantidade de satisfação), é calculado o saldo individual (positivo e
negativo) de gratificação (saldo de felicidade). Para calcular o saldo total de gratificação da
felicidade humana, o valor colectivo da satisfação, Bentham acrescenta ainda o factor de
grandeza com o qual calcula o raio do seu efeito, de acordo com o número de abrangidos.
O valor social de uma acção mede-se, portanto, segundo o líquido matemático calculável.

Se, à primeira vista, a tese de John Stuart Mill pode parecer a mesma de Bentham,
portanto, “[o] credo que aceita a utilidade, ou o princípio da maior felicidade como
fundamento da moralidade”, na verdade, vem em seguida uma tese que modifica
profundamente a de Bentham, trata-se da tese da diferença qualitativa, para além da
quantitativa, entre os prazeres. Com efeito, de acordo com o hedonismo de Bentham, o

3
Os prazeres e as dores constituem os instrumentos com os quais se deve trabalhar: por este motivo convém
que compreenda a força dos mesmos, ou seja, por outras palavras, o seu valor. Para uma pessoa considerada
em si mesma, o valor de um prazer ou de uma dor, considerado em si mesmo, será maior ou menor, segundo
as quarto circunstâncias que se seguem: (1) A sua intensidade. (2) A sua duração. (3) A sua certeza ou
incerteza. (4) A sua proximidade no tempo ou a sua longinquidade. Essas são as características que devem
ser consideradas na avaliação de um prazer ou de uma dor, cada qual considerado em si mesmo. Entretanto,
quando o valor de um prazer ou de uma dor for considerado com o propósito de avaliar a tendência de
qualquer acto pelo qual o prazer ou a dor são produzidos, é necessário tomar em consideração outras duas
circunstâncias que são: (5) A sua fecundidade, vale dizer, a probabildade que o prazer ou a dor têm de serem
seguidos por sensações da mesma espécie, isto é, de prazer, quando se tratar de um prazer, e de dor, tratando-
se de uma dor. (6) A sua pureza, ou seja, a probabilidade que o prazer e a dor têm de não serem seguidos por
sensações do tipo contrário, isto é, de dores no caso de um prazer, e de prazeres, tratando-se de de uma dor.
valor dos prazeres depende, fundamentalmente, de dois factores: a sua intensidade e a sua
duração. Os melhores prazeres e as piores dores são os mais intensos e prolongados. Deste
modo, Bentham tem uma visão puramente quantitativa do bem-estar. Mill, contrariamente
a Bentham, defende que para além da intensidade e da duração tem de se atender à
qualidade dos prazeres. Admite

“que alguns tipos de prazer são mais desejáveis e valorosos do que outros.
Seria absurdo supor que, enquanto que na avaliação de todas as outras
coisas se considera tanto a qualidade como a quantidade, a avaliação dos
prazeres dependesse apenas da quantidade” (Mill, 2005: 49).

Para se maximizar o próprio bem-estar, deve-se dar uma forte preferência aos prazeres
superiores, recusando-se a trocá-los por uma quantidade idêntica ou mesmo maior de
prazeres inferiores, assim Mill.Em termos gerais, Mill identifica os prazeres inferiores com
os prazeres corporais e considera superiores aqueles prazeres que resultam do exercício das
faculdades humanas intelectuais. Mill chega mesmo a afirmar:

“É melhor ser um ser humano insatisfeito do que um porco satisfeito; é


melhor ser Sócrates insatisfeito do que um tolo satisfeito. E se o tolo ou o
porco têm uma opinião diferente é porque só conhecem seu próprio lado da
questão.A outra parte da comparação conhece ambos os lados” (ibidem:
51).

Mas este critério de Mill é, de certo modo, duvidoso, porque se se admite que existem
homens bárbaros sobre os quais o despotismo é legítimo pelo facto das suas faculdades não
terem ainda atingido maturidade, então, restringe-se arbitrariamente a um pequeno grupo o
número de pessoas dignas dos prazeres superiores, ou seja, intelectuais.

Entretanto, ao definirem a felicidade como um dado quantificável, Bentham e Mill fizeram


entrar a noção de utilitarismo no campo da economia política e, consequentemente, a sua
inclusão no liberalismo económico. Ele torna-se na“ideologia do capitalismo”, uma vez
que “permite ocrescimento da economia como tal, sem dar moralmente conta daquilo que
diz respeito a questões de partilha” (Tugendhat, 2009: 327).
Bibliografia

Obras básicas:

BENTHAM, Jeremy. An Introduction to the Principles of Morals and Legislation.Batoche


Books Kitchener, 2000.

MILL, John Stuart. Utilitarismo.Porto, Porto editor, 2005.

_______________. Sobre a Liberdade.Ed. nº 155600/6863.Mira-Sintra, 1997.

Obras secundárias:

DORTIER, Jean-François (coord.).Dicionário de Ciências Humanas. Lisboa,


ClimepsisEditores, 2006.

KESSELRING, Thomas. HandbuchEthikfürPädagogen – Grundlagen und Praxis.


Darmstadt, WBG (WissenschaftlicheBuchgesellschaft), 2009.

NGOENHA, Severino Elias. Intercultura, Alternativa à Governação Biopolítica?Maputo,


ISOED (Instituto Social de Educação e Desenvolvimento), 20013.

TUGENDHAT, Ernst. Lições sobre Ética. 7ª ed..Petrópolis, Edito


APRESENTAÇÃO DO LIVRO:

INTERCULTURA, ALTERNATIVA À GOVERNAÇÃO BIOPOLÍTICA?,

DE SEVERINO ELIAS GGOENHA

(Por Mário Alberto Viegas)

Depois da publicação da sua obra Duas Interpretações Filosóficas da História do Século


XVII – Vico e Voltaire, Severino Ngoenha nos habituou a uma presença contínua entre nós,
através de obras com as quais pensa filosoficamente o seu País, Moçambique, e o seu
continente, a África. Desta vez, sem abandonar a sua habitual contundência, aparece-nos
com uma obra na qual apresenta dois percursos: um, o percurso que nos leva do
Liberalismo ao Neoliberalismo ou ao Segundo Liberalismo (como quiseros); outro, que
nos leva aos questionamentos e construções filosóficos moçambicanos sobre o significado
da inserção de Moçambique na rota do Liberalismo, ou melhor, do Neoliberalismo, com o
descalabro do sistema centralizado da política e da economia, que e abria mão ao que, na
palavras de Ngoenha, Foucault chamou de biopolítica.

Ao palmilhar a rota do liberalismo que nos leva ao segundo liberalismo, Ngoenha não usa
meramente os meios históricos com os quais ele procuraria encontar fronteiras epocais que
demarcariam de forma ideal ou realmente histórica cada um desses momentos (também
seria muito difícil encontrar essas fronteiras), mas opta fundamentalmente por meios
tipológicos com os quais procura contradições internas nos próprios sistemas de
pensamento e prática liberal e neoliberal – é aqui onde se encontra o grande interesse, mas,
sobretudo, a grande particularidade desta abordagemngoenhiana.

Na verdade, parece que os mentores do liberalismo se esqueceram (ou talvez isso não lhes
conviesse) de levar as suas teorias liberais às consequências práticas nas esferas
geográficas extra-europeias, nas quais eles legitimavam paradoxalmente, portanto com as
mesmas teorias, a legalidade do ilegal, na violação dos direitos individuais que eles
mesmos advogavam e fundamentavam com argumentos político-filosóficos e jurídicos e
com o recurso à ideologia prevalecente. Isto é o que dá título à segundaparte da obra que
apresento: Os paradoxos do liberalismo.
Com efeito, ao admitirem que existiam homens bárbaros sobre os quais o despotismo era
legítimo pelo facto das suas faculdades não terem ainda atingido maturidade, então,
restringia-se arbitrariamente a um pequeno grupo o número de pessoas dignas aos direitos
políticos e cívicos, por um lado, e ao bem-estar económico, por outro. Empenhados em
conceber princípios que promovessem reformas político-sociais e económicas, ao mesmo
tempo, não apenas sustentaram teorias que não só negavam a esses povos as mesmas
liberdades que defendiam em suas obras, como também, na prática, apoiavam e exerciam
políticas atrozes de compra e venda ou de perseguição e aniquilamento do “outro”, o não
europeu. Só o ocidente e o homem ocidental iluminado, se não fosse por Deus, fosse pela
razão, estava em condições do usufruto das liberdades. Todos os outros mereciam ser
sujeitos a actos contrários à liberdade, ou seja, àarbitrariedade, à escravatura e/ou ao
extermínio.

A pedra angular liberal da separação entre o politico e o económico não conseguiu resolver
o problema das crises económicas e políticas, da violência e das diferenças sociais e
económicas. Os teóricos do segundo liberalismo ou neoliberalismo procuram fundir, na
acepção de Ngoenha, o económico e o político. Ao fazê-lo, fazem-no colocando em
paralelo a globalização e a governação biopolítica. Aentrada de Moçambique na nova fase
da globalização não pode ser entendida sem as metamorfoses da actual “economia-
mundo”, é assim que diz Ngoenha. Nela o indivíduo é interpretado como capital-humano e
empreendedor, já que a força motora “da globalização real” é a economia, o que torna
difícil imaginar uma alternativa, daí que para Ngoenha a ideia de desenvolvimento
sustentável seja insustentável, pois ”as perspectivas de uma economia solidária são
ilusórias”, por serem “simples avatares da mundialização capitalista” (p. 95).

Por sua vez, a biopolítica, que por sinal éo título da terceira parte do livro ora em
apresentação, consiste, nos próprios termos ngoenhianos, “no controlo das vidas dos
indivíduos, em detrimento das mediações políticas” (idem). A biopolítica, revestida pela
terminologia da dita boa governação, é concebida de acordo com o modelo da
administração de uma empresa, o que levanta um novo paradoxo: é que a empresa orienta-
se pela rentabilidade; o Estado, pelo bem-estar dos seus cidadãos, o que pode levar a
gestão política a adoptar medidas que para a gestão empresarial podem ser um desperdício
– aqui Ngoenha lança um olhar pelos nossos feriados e tolerâncias de ponto como exemplo
deste contraste. A pretensão do político completamente fagocitadopelo económico, ou seja,
subordinado à economia, é ocupar o espaço no sentido comum e transformar-se num
discurso hegemónico.

Que alternativas para o neoliberalismo que alarga ainda mais o fosso entre pobres e ricos e
multiplica crises e conflitos? Com esta colocação Ngoenhanos conduz à quarta parte da sua
obra: Interculturalidade, alternativa credível ao pós-liberalismo? Para Ngoenha, uma das
respostas mais significativas ao problema do neoliberalismo é a necessidade de um diálogo
entre o Norte e o Sul. Esta resposta vem na esteira de um novo espaço epistémico que se
chama Intercultura e que se estende à Europa, à América do Norte, à América Latina, à
Ásia e à África. É neste debate que Moçambique participa com a sua entrada no mundo
neoliberal e biopolítico, questionando-se, com a (re)introdução da Filosofia em
Moçambique e com aquela provocação do ACAFIL (Academia Filosófica do Seminário
Interdiocesano Santo Agostinho) sobre o real sentido dos meandros em que se adentrava e
sobre o papel que se reservava à Filosofia em Moçambique face aos novos desafios. Esta
obra que agora apresento responde a questão que Ngoenha considera mais actual, urgente e
pertinente, a questão que dá título à primeira parte do livro, a saber: Qual Tipo de
Governação para Moçambique?

Mais uma vez, Ngoenha não se preocupa com uma cronologia histórica do debate
filosófico em África que ajude a responder ao problema, mas com uma leitura do debate
filosófico interno da própria filosofia africana, trazendo à luz as ideias, as contradições
conceptuais que só enriquece a própria filosofia e a contribuição da filosofia em
Moçambique neste debate. Na óptica de Ngoenha, Moçambique,com as suas recentes
produções filosóficas, ao mesmo tempo que tem o mérito de alargar o espaço linguístico-
epistemológico do debate africano, afasta-se, da clivagem linguístico-epistemológica que
caracterizou o debate filosófico africano entre as áreas francófonas e anglófonas, que afinal
é a oposição entre a tradição racionalista francesa e a tradição empirista inglesa que a
filosofia africana herdou.Nos seus programas de ensino e cursos, nas suas reflexões e
debates, trabalhos de licenciatura, dissertações de mestrado e teses de doutoramento,
Moçambique enveredou por uma retirada das fronteirasmetodológicas, temáticas,
linguísticas, permitindo assim que o debate sejamais abrangente. Ademais, alargou o
espaço da investigação historiográfica, quer para as filosofias de libertação e intercultural
sul-americanas, quer para o pensamento literário, sociológico, estético, historiográfico e
politico. Afinal, o que elimina as distâncias relativas no tempo e no espaço, nas línguas,
nas linguagens e no gosto filosófico entre os autores africanos é a proximidade dos temas
discutidos e cujo foco se condensa na liberdade, tema aliás privilegiado por
Ngoenhadevidoaos circunstancialismos históricos. Este facto chama a atenção dos
filósofos ou dos pensadores sociais para a relação entre o saber e a sociedade. Mas a escola
moçambicana de filosofia, esta que emerge, deve saber não se confundir com o politico,
não se ocupando, portanto, das tarefas deste, mas mantendo, sim, a tarefa continua da
crítica e da clarificação ideológica.

Respondendo, já na quinta e última parte do seu livro, à questão sobre o tipo de governação
para Moçambique, Ngoenha não o faz com um catálogo do tipo de um tratado sobre o que
deveria ser tal governação, mas na forma de um questionamento sobre o que os
moçambicanos precisam. As suas respostas nos remetem à estabilidade, ao
desenvolvimento e à comunhão.
Intercultura, Alternativa a Governação Biopolítica?. Severino E. Ngoenha. Maputo: Publifix:
2014. 230 pp.

Intercultura, Alternativa a Governação Biopolítica?É uma obra que propõe uma mudança de
paradigma na prática democrática contemporânea em Moçambique, do clássico dogma liberal para
uma abordagem flexível e inclusiva chamada intercultura.A obra retorna a uma questão que foi
colocada ao autor nos finais da década de 90 por estudantes seminaristas Católicos. Nessa altura
questionava-se os tipo de governação e o papel da filosofia que Moçambique precisava para o seu
bom funcionamento num regime democrático.Insatisfeito com a resposta verbal que dera aos
seminaristas nesse encontro, Ngoenha escreve Tempos da Filosofia (2004). Mas, igualmente ele
nota que a questão colocada ganha cada vez mais importância com o tempo e o evoluir
sociopolítico e económico do pais. A presente obra (embora exotérica no sentido em que qualquer
cidadão preocupado com assuntos sociais se identifica os temas tratados) encontra uma audiência
específica nos estudantes de Filosofia em particular e nos académicos no geral.

Ngoenha, no que concerne ao papel do filósofo moçambicano, argumenta que este não pode
consistir numa simples exegese de um passado que exalte um retorno impossívelalguma
essência.Da mesma forma,não se pode contentar (o filósofo)com o as articulações transcendentes
do pensamento ocidental mas, inspirá-o a envolver-se num questionamentoda sua posição num
paisonde, todas a catástrofes humanitárias, todos os fracassos do desenvolvimento de todas as
pilhagens coloniais e neocoloniais, de miséria, de doenças, de guerras endémicas, de urbanização
selvagem, pilhagem de recursos, corrupções galopantes, de governações inaptas, de estados
fracassados..., em resumo: de um lugar onde todos os obscurantismos, o inverso da medalha do
desenvolvimento que o ocidente se da. Há uma exortação clara para o filósofoconcentrar-se naquilo
que melhor sabe fazer: explorar e consolidar a tradição filosófica existente para desvendar e
desmistificar com rigor as questões sociais ocultas por pseudo problemas de origem ideológica.

Ngoenha considera que o filósofonão deve comprometer a sua autonomia analítica por causa da
condição da falta. Ele tem a tarefa difícil de manter-se num autónomo pensador que não se deve
deixar simular pela ilusão de poder político.Preservar a autonomia psicológica faz com que o
Filosofia Africana, desde a sua génese (como uma (id)entidade mestiça situada entre os escombros
da modernidade e pós-modernidade embora ela não seja nenhum dos dois), viva sob uma constante
incerteza onde a sua própria existência aparece como um problema. Trata-se de uma Filosofia em
constante perigo de morte, portanto uma Filosofia que deve viver perigosamente.

Usando o arsenal da histórica das ideias, dos conceitos políticos paradigmáticosapartados dos
últimos dois mil anos e numa viagem espácio-temporal vertiginosa, o autorlocaliza Moçambique e
inequivocamente avança a sua proposta, que será uma alternativa aoatual paradigma liberal
dominante.Trata-se de uma sugestão quenãoé apenas para a política moçambicana mas também
Africana. Face a queda do murro de Berlim que culminou com o colapso do comunismo soviético,
parecenãohaver outra forma de governação senão democracia liberalonde o político esta
subordinado ao económico de tal modo que os indivíduos eleitos a para ocupar cargos políticos
procuram oportunidades para fazerem negócios em beneficio próprio. Esta democracia liberalizada
é caracterizada por uma tendência à objectificaçåo dos indivíduos, ou seja naquilo que Foucault
denomina debiopolítica.

Este livro indica a chegadado momento para os moçambicanos tomem em consideração a


existência de uma abordagem política intercultural como uma alternativa ao paradigma liberal. A
abordagem intercultural implica o reconhecimento do outro. Um gesto que, per si, significa a
possibilidade de se criar uma comunidade de iguais no sentido que ninguém oprime o outro mas ao
mesmo tempo de diferentes, no sentido em que cada um pode manifestar a sua personalidade sem
ofender a personalidade de outrem. Esta nova posição é influenciado pelo pensamento Ubuntu, que
advoga o comunalismo africano no qual o “eu sou porque tu és”. Esta formula enfatiza a relação
entre os sujeitos no que concerne ao reconhecimento, equivalência, reciprocidade e na primazia da
comunidade como lugar Epifânio da revelação do individuo que ao mesmo tempo se constitui no
único espaço através do qual o sujeito pode dar razão a própria existência. Com esta nova fórmula
Ngoenha estabelece uma plataforma de onde se pode (1) projetar uma estabilidade do ser num
Moçambique dominado por conflitos sócio políticos, (2) idealizar um desenvolvimento holístico
num Moçambique que segue um conceito de crescimento neoliberal, e por último, permite (3)
pensar numa comunhão (cum munia) material e espiritual num Moçambique dominado pela
atomização dos indivíduos.

Para quem acompanha atentamente o naturezadas análises do Ngoenha (Por Uma


DimensãoMoçambicana da ConsciênciaHistórica (1992b), Filosofia Africana: Das
Independências as Liberdades (1993),Tempos de Filosofia (2004)), Intercultura, Alternativa a
Governação Biopolítica (2014) é o cristalizar de um conjunto deconceitos e ideiasfilosóficas
genuínas, ensaiados há mais de vinte anos. Interculturalidade como alternativa ao liberalismo
democrático é uma posição que resulta de um grande esforço que consiste na meditação existencial
direcionada a uma identidade que se pode chamar de moçambicanidade. Pois, tal como a Filosofia
Africana que vive em constante contingência, num estado permanente de perigo de morte, a
moçambicanidade que do meu ponto de vista se traduz numa identidade duma colectividade
subalterna à modernidade, está em constante perigo de aniquilação. Esta proposta política para a
situação em que Moçambique se encontra é oportuna e incontornável para os que estão a procura
de criar um mundo mais justo.

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