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O Liberalismo e sua Decadência

©Marília Viveiros Pianheiri (2014)

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Introdução
Sobre o tema “O Liberalismo e sua decadência”, bem como sobre a Encíclica Rerum Novarum, analisaremos
o Estado liberal, seus erros e sua decadência, finalizando com a leitura da carta papal.

Será feito aqui um breve estudo para compreender a história, particularmente levando em conta a solução
apontada por Leão XII e como, em vista das medidas tomadas, o Estado liberal se salvou da destruição total.
O assunto é fundamental para que possamos ter um conhecimento aprofundado a fim de nos ajudar no
estudo do curso de Direito, na disciplina de Ciência Política.

Historicamente, o liberalismo aparece ligado à ascensão da burguesia, quando esta, tendo crescido
economicamente, quis também conquistar o poder político, o que efetivamente o conseguiu. O marco da
sua concretização histórica está ligada diretamente a Revolução Francesa, baseada nos preceitos
Iluministas, quais sejam: igualdade, liberdade e fraternidade.

Porém, em menos de meio século, tudo o que o liberalismo havia prometido ao povo redundou em
conquistas e privilégios apenas das classes economicamente dominantes. Com toda essa injustiça social, o
povo sem lar, sem comida e sem fé, começou a reagir violentamente, levando o Estado liberal ao dilema de
reformar-se ou perecer. Ocorreu então uma cadeia de fatos que influenciaram na decadência do liberalismo
primitivo, este é ligado à ausência do Estado atuando nas relações econômicas e de trabalho.

Liberalismo - Conceito
O liberalismo é uma corrente política que abrange diversas ideologias históricas e presentes, que proclama
como o único objetivo do governo a preservação da liberdade individual. Tipicamente, o liberalismo
favorece também o direito à discordância dos credos ortodoxos e das autoridades estabelecidas em termos
políticos ou religiosos. Neste aspecto é o oposto do conservadorismo, e vai contra o absolutismo.

É um modo de entender a natureza humana e uma proposta destinada a possibilitar que todos alcancem o
mais alto nível de prosperidade de acordo com seu potencial (em razão de seus valores, atividades e
conhecimentos), com o maior grau de liberdade possível, em uma sociedade que reduza ao mínimo os
inevitáveis conflitos sociais. Ao mesmo tempo, se apóia em dois aspectos vitais que dão forma a seu perfil: a
tolerância e a confiança na força da razão.

Este sistema parte do princípio de que o homem nasce livre, tem a propriedade dos bens que extrai da
natureza ou adquire por via de seu mérito ou diligência e, quando plenamente maduro e consciente, pode
fazer sua liberdade prevalecer sobre as reações primárias do próprio instinto e orientar sua vontade para a
virtude. Uma pessoa madura e livre está à altura de perseguir sua felicidade a seu modo, porém respeitada
uma escala de valores discutida e aprovada por todos, ou seja, ela deve reconhecer sua responsabilidade
em relação ao seu próprio destino e ao objetivo da felicidade coletiva em sua comunidade ou nação. Será
contraditório que alguém ou algum grupo tenha naturalmente poderes para cercear essa liberdade sem
que parta do próprio indivíduo uma concordância para tal.
Uma excelente definição é a de Fernando Pessoa, que definiu o liberalismo como: a doutrina que mantém
que o indivíduo tem o direito de pensar o que quiser, de exprimir o que pensa como quiser, e de pôr em
prática o que pensa como quiser, desde que essa expressão ou essa prática não infrinja diretamente a igual
liberdade de qualquer outro indivíduo.

Liberalismo e o Estado
Assim como os liberais têm suas próprias idéias sobre a economia, também possuem sua visão particular do
Estado: os liberais são, inequivocamente, democratas, acreditando no governo eleito pela maioria dentro
de parâmetros jurídicos que respeitem os direitos inalienáveis das minorias. Tal democracia, para que faça
jus ao nome, deve ser multipartidária e organizar-se de acordo com o princípio da divisão de poderes.

O Estado liberal espera que as coisas se modifiquem sem uma intervenção individual, ou de grupo, e ao
mesmo tempo se ajustem de tal forma que as coisas se relacionem de forma natural, sem que o Estado
tenha a sua intromissão direta no processo de produção, como também no consumo, visto que as
liberdades individuais devem ser respeitadas para que tudo se acomode de forma comum e simples.

Embora esta não seja uma condição indispensável, os liberais preferem o sistema parlamentar de governo
porque este reflete melhor a diversidade da sociedade e é mais flexível no que se refere à possibilidade de
mudanças de governo quando a opinião pública assim o exigir.

Neste sistema, a autoridade do Homem, isto é, o poder pessoal é substituído pela autoridade da Lei,
constituindo um dos aspectos essenciais do Estado Liberal: o princípio da legalidade.

Características do Liberalismo
O liberalismo tem três enfoques: político, ético e econômico. O político constitui-se contra o absolutismo e
busca nas teorias contratualistas, a legitimação do poder, que não deve ficar sob o direito dos reis, mas no
consentimento dos cidadãos. O ético, com a garantia dos direitos individuais: liberdade de pensamento e
expressão, religião e estado de direito e que rejeita todo tipo de arbitrariedades. O econômico se opõe a
intervenção do poder nos negócios, exercida com procedimentos típicos da economia mercantilista, como a
concessão de monopólios e privilégios. Essas idéias foram desenvolvidas, na defesa da propriedade privada
dos meios de produção baseada na livre iniciativa e competição. “Temos por testemunho as seguintes
verdades: todos os homens são iguais. Foram aquinhoados pelo Criador com direitos inalienáveis e entre
eles o da vida, da liberdade e da busca da felicidade.” Trecho da Declaração da Independência dos Estados
Unidos, de 1776, que foi baseada em fundamentos iluministas.

Porém, essa liberdade do homem, defendida pelos liberalistas, não pode ser ilimitada, pois isso significa a
anarquia. A lei é o meio de conciliar a autonomia individual com a disciplina exigida pela sociedade.
Portanto, o Estado Liberal é o Estado limitado pela lei. Daí a expressão pela qual também é conhecido:
Estado de Direito.

O liberalismo e, por conseguinte, o Estado Liberal, é o coroamento de toda luta do indivíduo contra a
tirania. Ele tem dois fundamentos básicos. O primeiro é a história política da Inglaterra, principalmente,
quando ocorre a eliminação do absolutismo através Revolução Gloriosa em 1668, onde Guilherme III é
proclamado rei, após aceitar a Declaração de Direitos que limitava sua autoridade dando mais poderes ao
parlamento e exigia do rei a convocação regular do parlamento, sem o qual ele não pode fazer leis ou
revogá-las, cobrar impostos ou manter o exército. Outro fundamento é o iluminismo francês do século XVIII,
que defendia os princípios “igualdade, liberdade e fraternidade”, servindo como filosofia para muitas
revoluções e movimentos por todo o mundo, como vimos, por exemplo, no parágrafo antecedente, a
Declaração de Independência dos Estados Unidos.
Conseqüências reais do Liberalismo
O liberalismo que se apresenta perfeito em suas idéias e em sua teoria se tornou irrealizável. Tendo em
vista a solução dos problemas reais e sociais da sociedade, é inadequado. O Estado liberal perdeu de vista a
realidade da sociedade.

A estratégia excessivamente liberal, delegava ao mercado a capacidade de se ‘auto gerir’ sem qualquer
intromissão por partes dos governantes, de acordo com as teses defendidas por Adam Smith e David
Ricardo, criadores dessa doutrina econômica. Um Estado limitado pela lei, no qual o governo não poderia
intervir nas negociações.

Dentro dos instrumentos desse Estado de Direito está a constituição e a divisão dos poderes. O homem é
livre, porém este é submetido à lei. A lei seria a expressão da vontade de cada cidadão. Mas não é o que
ocorria na prática, na sociedade liberal daquela época.

Os governantes de então ignoraram a revolução industrial, sendo esta considerada uma das mais
importantes revoluções da historia política. Foi na Revolução industrial que surgiram os operários de
fabricas, em sua maioria pessoas que vinham de uma vida camponesa para trabalhar na cidade. Com o
surgimento das fabricas, surgia então uma nova classe social: o proletariado.

Sem qualquer forma de proteção, essa classe viva à mercê dos grandes capitalistas. E não raras vezes viam
seus sonhos desabarem por falta de empregabilidade, principalmente com o surgimento das máquinas. A
cada máquina nova que uma fábrica adquiria, milhares de pessoas eram postas na rua, em nome da
produtividade e do lucro.

“Para produzir mais as fábricas necessitavam de contratar uma grande quantidade de mão de
obra e encontravam o contingente que precisavam nas cidades, que passaram a receber um
número cada vez maior de camponeses que vinham do campo para a cidade em busca de um
sustento para si e para seus familiares.

Para que houvesse aumento de lucros era necessário que a fábrica tivesse um padrão
organizacional, para que o trabalho dos operários rendesse o máximo possível. Funcionários
eram designados nas fábricas com o objetivo de vigiar o restante, infligindo penas e castigos
àqueles que se portassem de maneira considerada fora dos padrões de trabalho na fábrica. Até
os corpos dos funcionários eram vigiados, cada movimento era controlado.” (1)

O trabalho humano passou então a ser menosprezado e negociado, submetido assim à lei da oferta e da
procura. Trabalhadores operários sendo possuíam salários mínimos e altíssimas jornadas, mulheres eram
obrigadas a deixar seus lares para tentar suprir o que o salário do marido não cobria, crianças não
freqüentavam escolas e também eram atiradas ao trabalho indevido, muitas vezes prejudicial ao seu corpo
ainda não formado.

“As más condições de trabalho prejudicavam a saúde dos trabalhadores e somada ao cansaço
dos mesmos só poderia resultar em queda de rendimento. A solução encontrada pelos
capitalistas era de contratar ainda mais funcionários, tornando o ambiente de trabalho
insuportavelmente cheio e sufocante.

“Eu tive freqüentes oportunidades de ver pessoas saindo das fábricas e ocasionalmente às
atendi como pacientes. No último verão eu visitei três fábricas de algodão com o Dr. Clough, da
cidade de Preston, e com o sr. Barker, de Manchester e nós não pudemos ficar mais do que dez
minutos na fábrica sem arfar para respirar. Como é possível para aquelas pessoas que ficam lá
por doze ou quinze horas agüentar essa situação? Se levarmos em conta a alta temperatura e
também a contaminação do ar; é alguma coisa que me surpreende: como os trabalhadores
agüentam o confinamento por tanto tempo. (Depoimento de Dr. Ward, de Manchester,
entrevistado a respeito da saúde dos trabalhadores do setor têxtil em março de 1919).”

“No que diz respeito às crianças, sabemos que eram colocadas para trabalhar em minas
menores onde os adultos não conseguiam entrar. Nas fábricas ocupavam funções nas quais
delicadeza era necessária. Suas pequenas mãos eram usadas para alcançar recantos de
máquinas onde outros não conseguiriam atingir.” (2)

Com isso, o liberalismo trouxe consigo a desintegração familiar e também o descontentamento da


população prejudicada. Por outro lado a riqueza se concentrava nas mãos dos poucos dirigentes do poder
econômico. A vontade que ganhar cada vez mais criou o conflito entre as distintas classes sociais dos
patrões e dos assalariados, vindo a causar um total desequilíbrio social.

A Decadência do Liberalismo
O principal fator da queda do liberalismo se deu por causa das falhas que suas conseqüências geraram por
causa da baixa presença do Estado na economia. No liberalismo, o Estado não podia sequer interferir na
relação entre patrão e empregado, isso produziu um dos mais importantes fatores para sua queda: a
extrema desigualdade social e o abuso de poder.

O capital surgia como uma nova forma de propriedade, e o trabalho passou a ser considerado como mera
mercadoria, sujeito à lei da oferta e da procura, cujo preço era ajustado sem se levar em conta o mínimo
necessário para o sustento do trabalhador e de sua família. Caso fosse obtido um emprego, as regras seriam
a da efetividade e da produção, visando ao lucro, sem levar em conta a capacidade e os limites humanos da
mão de obra. E caso a pessoa não conseguisse ‘vender’ essa ‘mercadoria’, não teria nenhuma forma de
auxilio, tendo inclusive que enfrentar a ameaça da fome e da penúria.

A base da mentalidade dos burgueses de tal época era a exploração máxima da classe trabalhadora, o
proletariado, de maneira que pudessem garantir o lucro e manter a massa operária dependente. Os
trabalhadores, submetidos a esta nova ordem, muito sofreram em busca de melhorias de vida que nunca
chegavam, devido ao salário extremamente baixo. Acabavam, assim, realizando seus serviços pela própria
subsistência, sob péssimas condições de trabalho, em jornadas extremamente longas (chegando até 16
horas diárias) trabalhando até o limite das forças e, não raro, tidos por negligentes e insubordinados pelos
seus empregadores, ainda que tal se desse pela exaustão física. Ademais, tiveram que aprender a trabalhar
de maneira regular e ininterrupta, de forma que o trabalho rendesse.

Dessa forma, a miséria e a fome não tardaram a aparecer, assim como doenças como a cólera e o tifo nas
humildes regiões habitacionais, devido às péssimas condições de higiene, escassez do fornecimento de
água e pelo fato de não terem como se protegerem do frio. Tal quadro levou à morte inúmeros
trabalhadores pobres.

Apesar de todos esses fatores, a classe dominante mantinha-se insensível, ignorando fatos que pareciam
não atingi-los e tratando seus trabalhadores como se não fossem ser humanos.

“A natureza verdadeiramente catastrófica da Revolução Industrial, que se concretizava na


exploração econômica e na opressão política, tem grande peso no processo de formação da
classe operária. Essas formas de ataque ao trabalhador (exploração econômica e opressão
política) estavam intimamente ligadas. O caráter da exploração se dá a partir das novas formas
de relação de trabalho, que se tornam mais duras e impessoais. A opressão política por sua
vez, se dava no momento que o operário tentava de alguma forma resistir às formas de
exploração apresentadas anteriormente. Os principais agentes dessa eram os próprios patrões
e o Estado.” (3)
O fim de tanta desigualdade acabou em revolta e rebeliões. Fizeram-se greves, formaram-se sindicatos em
busca de melhores condições de emprego juntamente com a melhoria da vida. Quando tomam consciência
do seu papel na sociedade, reconhecessem-se como agentes sociais e transformadores, ou seja, não seria
mais ou “pobre” enfrentando o “rico”, e sim a classe operária explorada e consciente enfrentando o seu
explorador.

Com base nos resultados, sem dúvida, os conceitos liberais de igualdade eram anti-humanos. Em menos
tempo do que se esperava, tudo o que o liberalismo pregava e defendia, sucumbiu e apenas a classe
economicamente superior conquistou e obteve privilégios.

A sociedade ficou dividida em duas classes, separadas por um abismo. Isso ocasionou o surgimento de
ideologias radicais visando à solução, mas por meios conflituosos, o que por sinal era extremamente
perigoso justamente porque não existiam regras nem diretrizes que conduzissem a bom termo qualquer
querela.

E por mais que a crise ameaçasse a ordem por toda a parte, o Estado liberal assistia a tudo de braços
cruzados, inerte, apenas se limitando a solucionar tumultos por meio da policia, caracterizando assim o dito
“L’Etat Gendarme”, ou Estado-policia (1). Nos dizeres de Sahid Maluf “eram anti-humanos os conceitos
liberais de igualdade e liberdade. Era como se o Estado reunisse num vasto anfiteatro lobos e cordeiros,
declarando-os livres e iguais perante a lei, e propondo-se a dirigir a luta como árbitro, completamente
neutro”.

Era uma fase turbulenta, em que a sociedade encontrava-se diante de um ponto crucial dentro de um
processo iniciado há tempos:

“Fator determinante desse processo foi um conjunto de mudanças radicais verificadas no


campo político, econômico e social, no âmbito científico e técnico, além da influência
multiforme das ideologias predominantes. Resultado destas alterações foi, no campo político,
uma nova concepção da sociedade e do Estado e, consequentemente, da autoridade. Uma
sociedade tradicional se dissolvia, e começava-se a formar uma outra, cheia da esperança de
novas liberdades, mas também dos perigos de novas formas de injustiça e escravidão.” (4)

A encíclica Rerum Novarum


Foi então nesse momento, que a voz de uma liderança se fez ouvir em meio ao caos. O papa Leão XIII, em
15 de maio de 1891, promulgou a Encíclica “Rerum Novarum” (Coisas Novas), que é objeto do presente
estudo: “As «coisas novas» a que o Papa se referia, estavam longe de ser positivas. O primeiro parágrafo da
Encíclica descreve as «coisas novas», que lhe deram o nome, com traços fortes: «Dado que uma ânsia
ardente de coisas novas já há tempos agitava os Estados, seguir-se-lhe-ia como consequência que os
desejos de mudança acabariam por se transferir do campo político para o setor conexo da economia. De
fato, os progressos incessantes da indústria, os novos caminhos abertos ao emprego, as diversas relações
entre patrões e operários; o acumular da riqueza nas mãos de poucos, ao lado da miséria de muitos; a
maior consciência que os trabalhadores adquiriram de si mesmos e, por conseguinte, uma maior união
entre eles, e além disso a decadência dos costumes, todas estas coisas fizeram deflagrar um conflito». (5)

Praticamente todos os setores da sociedade civil encontravam-se ameaçados por conflitos, e dentre estes,
foi aquele ocasionado pelo capital e o trabalho – chamado na Encíclica de “questão operária” – que moveu
o papa a dizer sua palavra.

“Abordamos este argumento com confiança e no nosso pleno direito (...). Parecer-nos-ia faltar
à nossa missão, se calássemos”
“ (...) estamos persuadidos, e todos concordam nisto, de que é necessário, com medidas
prontas e eficazes, vir em auxílio dos homens das classes inferiores, atendendo a que eles
estão, pela maior parte, numa situação de infortúnio e de miséria imerecida. O século passado
destruiu, sem as substituir por coisa alguma, as corporações antigas, que eram para eles uma
proteção; os princípios e o sentimento religioso desapareceram das leis e das instituições
públicas, e assim, pouco a pouco, os trabalhadores, isolados e sem defesa, têm-se visto, com o
decorrer do tempo, entregues à mercê de senhores desumanos e à cobiça duma concorrência
desenfreada.” (6)

A seguir, Leão XIII previa a possibilidade de reorganização da sociedade tal qual propunha o socialismo, que
então estava ainda no estado de filosofia social e de movimento mais ou menos estruturado. Talvez fosse de
estranhar que ele começasse sua crítica pelo socialismo, principalmente em uma época em que ele ainda
não tinha a forma de um Estado poderoso, como aconteceu depois. Entretanto, o pontífice soube medir o
perigo que significava para as massas a apresentação sedutora de uma solução tão simples quanto radical
para a “questão operária”. Ainda mais se for levada em conta a situação de descarada injustiça em que se
encontrava o proletariado.

O texto da encíclica mostra como foi plenamente compreendida por ele, em toda a sua crueza, a verdadeira
condição dos proletários, homens, mulheres e crianças; e por outro lado também fica claro que o papa
intuiu todo o mal que havia numa solução que, pregando a inversão das posições entre pobres e ricos,
acabaria redundando em detrimento daqueles mesmos que se propunha ajudar. Revelando esse mal,
atingia o fundo da questão.

“Os Socialistas, para curar este mal (a injusta distribuição das riquezas e a miséria dos
proletários), instigam nos pobres o ódio invejoso contra os que possuem, e defendem que toda
a propriedade de bens particulares deve ser suprimida, que os bens dum indivíduo qualquer
devem ser comuns a todos, e que a sua administração deve voltar para - os Municípios ou para
o Estado. Mediante esta transladação das propriedades e esta igual repartição das riquezas e
das comodidades que elas proporcionam entre os cidadãos, lisonjeiam-se de aplicar um
remédio eficaz aos males presentes. (...) Mas esta teoria, além de não resolver a questão,
acaba por prejudicar os próprios operários, e é até injusta por muitos motivos, já que vai contra
os direitos dos legítimos proprietários, falseia as funções do Estado, e subverte toda a ordem
social” (...)

O ódio e a injustiça só se apoderam de inteiras Nações e as fazem entrar em ação, quando são legitimados e
organizados por ideologias que se fundamentam mais naqueles sentimentos do que na verdade do homem.
A Rerum Novarum combatia assim as ideologias do ódio e indicava os caminhos para destruir a violência e o
rancor, mediante a justiça.

Em seguida, apresenta os argumentos pelos quais deve a propriedade particular deve existir, para o próprio
bem do trabalhador. Ninguém trabalha por trabalhar, e sim para obter algo com o fruto financeiro daquele
trabalho. Ora, coletivizar todos os bens seria tornar impossível que o trabalhador desfrutasse daquilo que é
fruto do seu trabalho, aquilo ao qual tem direito.

“De fato, como é fácil compreender, a razão intrínseca do trabalho empreendido por quem
exerce uma arte lucrativa, o fim imediato visado pelo trabalhador, é conquistar um bem que
possuirá como próprio e como pertencendo-lhe; porque, se põe à disposição de outrem as suas
forças e a sua indústria, não é, evidentemente, por outro motivo senão para conseguir com que
possa prover à sua sustentação e às necessidades da vida, e espera do seu trabalho, não só o
direito ao salário, mas ainda um direito estrito e rigoroso para usar dele como entender.”
“Portanto, se, reduzindo as suas despesas, chegou a fazer algumas economias, e se, para
assegurar a sua conservação, as emprega, por exemplo, num campo, torna-se evidente que
esse campo não é outra coisa senão o salário transformado: o terreno assim adquirido será
propriedade do artista com o mesmo título que a remuneração do seu trabalho. Mas, quem
não vê que é precisamente nisso que consiste o direito da propriedade mobiliária e imobiliária?

“Assim, esta conversão da propriedade particular em propriedade coletiva, tão preconizada


pelo socialismo, não teria outro efeito senão tornar a situação dos operários mais precária,
retirando-lhes a livre disposição do seu salário e roubando-lhes, por isso mesmo, toda a
esperança e toda a possibilidade de engrandecerem o seu patrimônio e melhorarem a sua
situação.”

“Mas, e isto parece ainda mais grave, o remédio proposto está em oposição flagrante com a
justiça, porque a propriedade particular e pessoal é, para o homem, de direito natural.” (7)

Aqui o argumento contra o socialismo se encaminha então para outras áreas, principalmente a do direito e
da antropologia.

“De fato, ele (socialismo) considera cada homem simplesmente como um elemento e uma
molécula do organismo social, de tal modo que o bem do indivíduo aparece totalmente
subordinado ao funcionamento do mecanismo econômico-social, enquanto, por outro lado,
defende que esse mesmo bem se pode realizar prescindindo da livre opção, da sua única e
exclusiva decisão responsável em face do bem ou do mal.

“O homem é reduzido a uma série de relações sociais, e desaparece o conceito de pessoa


como sujeito autônomo de decisão moral, que constrói, através dessa decisão, o ordenamento
social. Desta errada concepção da pessoa, deriva a distorção do direito, que define o âmbito do
exercício da liberdade, bem como a oposição à propriedade privada.

“O homem, privado de algo que possa dizer “sua” e da possibilidade de ganhar com que viver
por sua iniciativa, acaba por depender da máquina social e daqueles que a controlam, o que
lhe torna muito mais difícil reconhecer a sua dignidade de pessoa e impede o caminho para a
constituição de uma autêntica comunidade humana.(8)

Portanto, segundo a Rerum Novarum, a sociabilidade no homem se realiza em vários agrupamentos, desde
a família até os grupos sociais, políticos, econômicos e culturais, e não é somente relacionada ao Estado,
descrita aqui como “máquina social”.

A existência social do homem subordina-se sempre ao bem comum, mas realizando-se em diversas
camadas, naturalmente dispostas.

Essa concepção mecanicista da realidade humana certamente foi conseqüência do racionalismo


iluminístico, que, por não ser derivada de um ponto de vista transcendental, via o homem como apenas
mais um integrante do mundo das coisas.

Após citar o erro no campo doutrinário, a Rerum Novarum passa a condenar os seus meios de ação, que no
caso incluíam a luta de classes. O que não significa que ele estivesse condenando toda e qualquer forma de
luta social.

“O que se condena na luta de classes é principalmente a idéia de um conflito que não é


limitado por considerações de caráter ético ou jurídico, que se recusa a respeitar a dignidade
da pessoa no outro (e, por consequência, em si próprio), que exclui por isso um entendimento
razoável, e visa não já a formulação do bem geral da sociedade inteira, mas sim o interesse de
uma parte que se substitui ao bem comum e quer destruir o que se lhe opõe.
“Trata-se, numa palavra, da representação - no terreno do confronto interno entre os grupos
sociais - da doutrina da «guerra total», que o militarismo e o imperialismo daquela época
impunham no âmbito das relações internacionais.

“Tal doutrina substituía a procura do justo equilíbrio entre os interesses das diversas Nações,
pela prevalência absoluta da posição da própria parte, mediante a destruição da resistência da
parte contrária, destruição realizada com todos os meios, sem excluir o uso da mentira, o terror
contra os civis, as armas de extermínio, que naqueles anos começavam a ser projetadas.” (9)

Em seguida, é exposta de forma clara a justificativa de porque deve haver harmonia social, e para isso se
baseia na noção de algo imposto pela própria natureza humana:

“O primeiro princípio a pôr em evidência é que o homem deve aceitar com paciência a sua
condição: é impossível que na sociedade civil todos sejam elevados ao mesmo nível.

“É, sem dúvida, isto o que desejam os Socialistas; mas contra a natureza todos os esforços são
vãos. Foi ela, realmente, que estabeleceu entre os homens diferenças tão multíplices como
profundas; diferenças de inteligência, de talento, de habilidade, de saúde, de força; diferenças
necessárias, de onde nasce espontaneamente a desigualdade das condições.

“Esta desigualdade, por outro lado, reverte em proveito de todos, tanto da sociedade como dos
indivíduos; porque a vida social requer um organismo muito variado e funções muito diversas,
e o que leva precisamente os homens a partilharem estas funções é, principalmente, a
diferença das suas respectivas condições. (...)

”O erro capital na questão presente é crer que as duas classes são inimigas natas uma da
outra, como se a natureza tivesse armado os ricos e os pobres para se combaterem
mutuamente num duelo obstinado. (10)

Como exemplo prático dessa situação natural, ele cita os membros do corpo humano:

“Isto é uma aberração tal, que é necessário colocar a verdade numa doutrina contrariamente
oposta, porque, assim como no corpo humano os membros, apesar da sua diversidade, se
adaptam maravilhosamente uns aos outros, de modo que formam um todo exatamente
proporcionado e que se poderá chamar simétrico, assim também, na sociedade, as duas
classes estão destinadas pela natureza a unirem-se harmoniosamente e a conservarem-se
mutuamente em perfeito equilíbrio.

“Elas têm imperiosa necessidade uma da outra: não pode haver capital sem trabalho, nem
trabalho sem capital. (11)

Mais do que uma questão de justiça, evitar uma luta de classes só poderia favorecer a ordem das coisas,
que, por sua vez, traz a paz:

“A concórdia traz consigo a ordem e a beleza; ao contrário, dum conflito perpétuo só podem
resultar confusão e lutas selvagens. Ora, para dirimir este conflito e cortar o mal na sua raiz, as
Instituições possuem uma virtude admirável e múltipla.

Com relação direta à mentalidade liberal, a Rerum Novarum critica uma concepção do Estado que deixe a
esfera da economia totalmente fora do seu campo de interesse e ação. Claro que se considera legítima uma
certa autonomia das negociações econômicas, onde o Estado não deve se intrometer. Mas este deve ter a
devida competência de determinar um enquadramento jurídico dentro do qual se desenrolem esses
relacionamentos econômicos, protegendo assim a real igualdade entre as partes, de modo que uma não
saia mais poderosa que a outra a ponto de a reduzir à uma escravidão.

A encíclica não se mostra contrária às reformas. Mas aponta o caminho para reformas justas, que
restituíssem ao trabalho a sua dignidade de livre atividade do homem, sem que para isso fossem
necessárias revoluções e conflitos. Para que isso fosse possível, seria necessária uma tomada de atitude por
parte da sociedade e do Estado, com particular atenção no ponto de defender o trabalhador contra o
pesadelo do desemprego e da miséria.

Portanto, fica claro que ela não depositava a responsabilidade sobre os capitalistas, nem sobre os
proletários, e sim sobre o Estado. Para a realização desses objetivos, é o Estado quem deveria concorrer
tanto direta como indiretamente. Indiretamente e segundo o princípio de subsidiariedade, criando as
condições favoráveis ao livre exercício da atividade econômica, que leve a uma oferta abundante de postos
de trabalho e de fontes de riqueza. Diretamente e segundo o princípio de solidariedade, pondo, em defesa
do mais débil, algumas limitações à autonomia das partes, que decidem as condições de trabalho, e
assegurando em todo o caso um mínimo de condições de vida ao trabalhador.

Sobre o aspecto da dignidade do homem, o papa entendia que esta se define não pelas posses que a
pessoa tenha, e sim por sua virtude:

“(...) Quem tiver na sua frente o modelo divino, compreenderá mais facilmente o que Nós
vamos dizer: que a verdadeira dignidade do homem e a sua excelência reside nos seus
costumes, isto é, na sua virtude; que a virtude é o patrimônio comum dos mortais, ao alcance
de todos, dos pequenos e dos grandes, dos pobres e dos ricos; só a virtude e os méritos, seja
qual for a pessoa em quem se encontrem, obterão a recompensa da eterna felicidade.

“Mais ainda: é para as classes desafortunadas que o coração de Deus parece inclinar-se mais.
Jesus Cristo chama aos pobres bem-aventurados: convida com amor a virem a Ele, a fim de
consolar a todos os que sofrem e que choram; abraça com caridade mais terna os pequenos e
os oprimidos. Estas doutrinas foram, sem dúvida alguma, feitas para humilhar a alma altiva do
rico e torná-lo mais condescendente, para reanimar a coragem daqueles que sofrem e inspirar-
lhes resignação. Com elas se acharia diminuído um abismo causado pelo orgulho, e se obteria
sem dificuldade que as duas classes se dessem as mãos e as vontades se unissem na mesma
amizade. (12)

Como aplicação prática de diminuição desse abismo, seguem-se algumas diretrizes acerca das negociações
entre empregador e empregado:

“Façam, pois, o patrão e o operário todas as convenções que lhes aprouver, cheguem,
inclusivamente, a acordar na cifra do salário: acima da sua livre vontade está uma lei de justiça
natural, mais elevada e mais antiga, a saber, que o salário não deve ser insuficiente para
assegurar a subsistência do operário sóbrio e honrado. Mas se, constrangido pela necessidade
ou forçado pelo receio dum mal maior, aceita condições duras que por outro lado lhe não seria
permitido recusar, porque lhe são impostas pelo patrão ou por quem faz oferta do trabalho,
então é isto sofrer uma violência contra a qual a justiça protesta.”(13)

Hoje em dia tem-se como certo que é tarefa do Estado assegurar a defesa e tutela de certos bens coletivos,
como o ambiente natural e o ambiente humano, cuja proteção não pode ser garantida pelos mecanismos
de mercado. E é especificamente sobre o Estado que, segundo a rerum Novarum, deveria cair a
responsabilidade das mudanças:

“Não há dúvida de que, para obter o resultado desejado, não é de mais recorrer aos meios
humanos. Assim, todos aqueles a quem a questão diz respeito, devem visar ao mesmo fim e
trabalhar de harmonia cada um na sua esfera. Nisto há como que uma imagem da Providência
governando o mundo: porque nós vemos de ordinário que os fatos e os acontecimentos que
dependem de causas diversas são a resultante da sua ação comum.

“Ora, que parte de ação e de remédio temos nós o direito de esperar do Estado?

“Diremos, primeiro, que por Estado entendemos aqui, não tal governo estabelecido entre tal
povo em particular, mas todo o governo que corresponde aos preceitos da razão natural e dos
ensinamentos divinos, ensinamentos que Nós todos expusemos, especialmente na Nossa Carta
Encíclica sobre a constituição cristã das sociedades. “(14)

Diante de todas as obrigações do Estado, a eqüidade se manifesta de maneira acentuada, cuja atenção deve
ser rigorosa, ou seja, caberá a ele zelar pelos direitos da classe operária, uma vez que todo indivíduo, rico ou
pobre é cidadão, segundo o próprio Direito Natural. Negligenciar uma classe seria inaceitável. Caso
contrário, não haverá o cumprimento para com as leis da justiça, chamada distributiva.

E assim, a carta se dirigia aos líderes:

“O que se pede aos governantes é um curso de ordem geral, que consiste em toda a economia
das leis e das instituições; queremos dizer que devem fazer de modo que da mesma
organização e do governo da sociedade brote espontaneamente e sem esforço a prosperidade,
tanto pública como particular.

‘Tal é, com efeito, o ofício da prudência civil e o dever próprio de todos aqueles que governam.
Ora o que torna uma nação próspera, são os costumes puros, as famílias fundadas sobre bases
de ordem e de moralidade, a prática e o respeito da justiça, uma imposição moderada e uma
repartição equitativa dos encargos públicos, o progresso da indústria e, do comércio, uma
agricultura florescente e outros elementos, se os há, do mesmo género: todas as coisas que se
não podem aperfeiçoar, sem fazer subir outro tanto a vida e a felicidade dos cidadãos.

“Assim como, pois, por todos estes meios, o Estado pode tornar-se útil às outras classes, assim
também pode melhorar muitíssimo a sorte da classe operária, e isto em todo o rigor do seu
direito, e sem ter a temer a censura de ingerência; porque, em virtude mesmo do seu oficio, o
Estado deve servir o interesse comum. (...)

“E preciso que o Estado ponha cobro a esta desordem grave e frequente, porque estas greves
causam dano não só aos patrões e aos mesmos operários, mas também ao comércio e aos
interesses comuns; e em razão das violências e tumultos, a que de ordinário dão ocasião, põem
muitas vezes em risco a tranquilidade pública.

“O remédio, portanto, nesta parte, mais eficaz e salutar é prevenir o mal com a autoridade das
leis, e impedir a explosão, removendo a tempo as causas de que se prevê que hão de nascer os
conflitos entre os operários e os patrões.” (15)

A constituição da sociedade e a igualdade de todos é uma questão de direito natural:

Mas há outra consideração que atinge mais profundamente ainda o nosso assunto. A razão
formal de toda a sociedade é só uma e é comum a todos os seus membros, grandes e
pequenos. Os pobres, com o mesmo título que os ricos, são, por direito natural, cidadãos; isto
é, pertencem ao número das partes vivas de que se compõe, por intermédio das famílias, o
corpo inteiro da Nação, para não dizer que em todas as cidades são o grande número. (16)

O Governo é para os governados e não vice-versa: um argumento contra aquilo que viria a ser, no futuro, o
Estado totalitário.
“Dissemos que não é justo que o indivíduo ou a família sejam absorvidos pelo Estado, mas é
justo, pelo contrário, que aquele e esta tenham a faculdade de proceder com liberdade,
contando que não atentem contra o bem geral, e não prejudiquem ninguém.

“Entretanto, aos governantes pertence proteger a comunidade e as suas partes: a comunidade,


porque a natureza confiou a sua conservação ao poder soberano, de modo que a salvação
pública não é somente aqui a lei suprema, mas é a própria a causa e a razão de ser do
principado; as partes, porque, de direito natural, o governo não deve visar só os interesses
daqueles que têm o poder nas mãos, mas ainda o bem dos que lhe estão submetidos.

“Os direitos, em que eles se encontram, devem ser religiosamente respeitados e o Estado deve
assegurá-los a todos os cidadãos, prevenindo ou vingando a sua violação. Todavia, na
protecção dos direitos particulares, deve preocupar-se, de maneira especial, dos fracos e dos
indigentes. A classe rica faz das suas riquezas uma espécie de baluarte e tem menos
necessidade da tutela pública.

“A classe indigente, ao contrário, sem riquezas que a ponham a coberto das injustiças, conta
principalmente com a proteção do Estado. Que o Estado se faça, pois, sob um particularíssimo
título, a providência dos trabalhadores, que em geral pertencem à classe pobre.”. (17)

Como conclusão dessa leitura, pode-se dizer que sem dúvida foi aqui que nasceu o conceito de
subsidiariedade do Estado.

Leão XIII não ignorava que uma correta e sadia teoria do Estado é necessária para assegurar o
desenvolvimento normal das atividades humanas: tanto as espirituais, como as materiais, sendo ambas
indispensáveis.

Por isso, numa passagem da Rerum Novarum, ele apresenta a organização da sociedade segundo três
poderes - legislativo, executivo e judicial - o que constituía, naquele tempo, uma novidade no ensinamento
da Igreja. Tal ordenamento reflete uma visão realista da natureza social do homem a qual exige uma
legislação adequada para proteger a liberdade de todos. Para tal fim é preferível que cada poder seja
equilibrado por outros poderes e outras esferas de competência que o mantenham no seu justo limite.

Este é o princípio do «Estado de direito», no qual a lei é que é soberana, e não a vontade arbitrária dos
homens.

A esta mentalidade se opôs, alguns anos depois, o totalitarismo. Este, na forma marxista, ou mesmo nazista,
defendia que alguns homens, em virtude de um conhecimento mais profundo das leis do desenvolvimento
da sociedade, ou de uma particular consciência de classe ou por um contato com as fontes mais profundas
da consciência coletiva, estão isentos de erro e poderiam, por causa disso, exercer sobre os outros um
poder praticamente absoluto.

O totalitarismo nasce da negação da verdade em sentido direto: se não existe uma verdade transcendente,
na obediência à qual o homem adquire a sua plena identidade, então não há qualquer princípio seguro que
garanta relações justas entre os homens. Com efeito, o seu interesse de classe, de grupo, de Nação,
contrapõe-nos inevitavelmente uns aos outros. É quase que o liberalismo colocado às avessas.

Leão XIII, depois de ter formulado os princípios e as orientações para a solução da questão operária,
escreveu esta palavra decisiva: “Cada um realize a parte que lhe compete e não demore porque o atraso
poderia ainda tornar mais difícil a cura de um mal já tão grave”

Ao anunciar os princípios para a solução da questão operária, Leão XIII escrevia: «A solução de um
problema tão árduo requer o concurso e a cooperação eficaz de outros também» Ele estava convencido que
os graves problemas, causados pela sociedade industrial, só podiam ser resolvidos pela colaboração entre
todas as forças intervenientes.

Todavia Leão XIII constatava com tristeza que as ideologias do tempo, especialmente o liberalismo e o
marxismo, recusavam essa colaboração.

Conclusão
Não se pode negar e ignorar a importância da teoria Liberal no estudo da Teoria Geral do Estado. Ela foi
revolucionária, pois era a realização plena do direito natural, do humanismo e do igualitarismo político e
jurídico, fatos antes praticamente inexercidos nas diversas nações.

No entanto, tal teoria não atendia devidamente a realidade. Era como se o Estado Liberal fosse realizável
em uma coletividade de deuses, nunca numa coletividade de homens. Isso porque a principal idéia pregada
pelo liberalismo era a da igualdade entre os homens.

Mas, por natureza, os indivíduos são desiguais. Como no caso de animais em uma floresta. Nele é natural a
existência de seres mais fortes que dominam os mais fracos, ficando os primeiros no topo da cadeia
alimentar. No caso humano, a força é medida pela riqueza e status social. Há aqueles mais poderosos que
detêm a economia de seus países, e também aqueles que dominam politicamente, ficando no topo da
pirâmide social.

É em função disso que os Estados devem tratar seus súditos com desigualdade, em função do justo objetivo
de igualá-los no plano jurídico. Além disso, não basta ele somente proclamar o direito de liberdade, como
também deve proporcionar aos cidadãos a possibilidade de serem livres.

A Constituição Federal de 1988 preceitua várias normas em favor da igualdade jurídica e da solidariedade.
Dentre os princípios fundamentais, estabelece a cidadania e a dignidade da pessoa humana. Dentre os
objetivos fundamentais, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, bem como a promoção do
bem de todos, sem distinção. E no caput do artigo 5º, estabelece que todos são iguais perante a lei, sem
distinção de qualquer natureza. Sem dúvida, nossa Lei Maior é um fruto indireto das questões morais que
convulsionaram o século XIX.

Assim, nosso estudo se finaliza em duas grandes conclusões, quais sejam: da gratidão que se deve dar à
memória de Leão XIII devido à sua atitude com a “Rerum Novarum”, e da necessidade de um estado que
interfere, em favor da justiça, nas relações social-econômicas de sua população.

A primeira conclusão se fundamenta no fato de tal Encíclica ter apontado, “com segurança e descortínio, os
rumos pelos quais se salvaria a nau do Estado democrático prestes a naufragar em mar tempestuoso”. Foi
sem dúvida utilizada como fundamento na elaboração de constituições e legislações, e hoje ainda possui
uma forte importância, em decorrência de ter feito surgir a forma social-democrática de governo. Nos
lugares onde os preceitos dessa carta foram menosprezados, viu-se surgir mais tarde aquilo que
conhecemos como “Estados totalitários”, que foram frutos de uma reação anti-liberal, porém com traços
desumanos e radicais. Nesses casos, o remédio foi pior do que a doença. Os principais exemplos dentre
estes são a Alemanha nazista e a Rússia comunista.

A segunda conclusão, por sua vez, se fundamenta no fracasso da teoria do liberalismo quando posta em
prática. Isso porque um Estado que vise realmente ao Bem comum, não pode somente policiar a ordem
pública, assistido a tudo com braços cruzados. Deve-se ter em mente que esse tipo de Estado procura
harmonizar as verdades parciais e inegáveis que existem tanto o individualismo como no socialismo.
A dignidade do ser humano concretiza-se na promoção da justiça, e esta nunca poderá se realizar se aquele
necessitado for visto como um peso a ser carregado.

“Só esta consciência dará a coragem para enfrentar o risco e a mudança implícita em toda a tentativa de ir
em socorro do outro homem. De fato, não se trata apenas de «dar o supérfluo», mas de ajudar povos
inteiros, que dele estão excluídos ou marginalizados, a entrarem no círculo do desenvolvimento econômico
e humano. Isto será possível não só fazendo uso do supérfluo, que o nosso mundo produz em abundância,
mas sobretudo alterando os estilos de vida, os modelos de produção e de consumo, as estruturas
consolidadas de poder, que hoje regem as sociedades.

“Não se trata de destruir instrumentos de organização social que deram boa prova de si, mas
principalmente de orientá-los segundo uma concepção adequada do bem comum dirigido a toda a família
humana. Hoje está-se a verificar a denominada “mundialização da economia”, fenômeno este que não deve
ser desprezado, porque pode criar ocasiões extraordinárias de maior bem-estar.

“Mas é sentida uma necessidade cada vez maior de que a esta crescente internacionalização da economia
correspondam válidos organismos internacionais de controle e orientação que encaminhem a economia
para o bem comum, já que nenhum Estado por si só, ainda que fosse o mais poderoso da terra, seria capaz
de o fazer.

“Para poder conseguir tal resultado é necessário que cresça o entendimento entre os grandes
Países, e que nos organismos internacionais sejam equitativamente representados os
interesses da grande família humana. Mas impõe-se também que, ao avaliarem as
consequências das suas decisões, tenham em devida conta aqueles povos e Países que têm
escasso peso no mercado internacional, mas em si concentram as necessidades mais graves e
dolorosas, e necessitam de maior apoio para o seu desenvolvimento.

Sem dúvida, há ainda muito a fazer neste campo.” (18)

Bibliografia:

OS MISERÁVEIS DO SÉCULO XIX: COTIDIANO E CONDIÇÕES DE TRABALHO DA CLASSE OPERÁRIA NA


REVOLUÇÃO INDUSTRIAL, Angelina Pina, Bernardo Soares e Mayco Rodrigues, Universidade Federal
Fluminense

RERUM NOVARUM, Encíclica de Leão XIII, 1891

TEORIA GERAL DO ESTADO, Sahid Maluf, Ed. Saraiva, 26ª edição

LIÇÕES DE CIÊNCIA POLÍTICA E TEORIA DO ESTADO, Espedito Pinheiro de Souza, terceira edição, 2007

CENTESIMUS ANNUS, encíclica do centenário da Rerum Novarum, João Paulo II, 1991, www. Vatican. Org

Notas:

(1) cf. OS MISERÁVEIS DO SÉCULO XIX: COTIDIANO E CONDIÇÕES DE TRABALHO DA CLASSE OPERÁRIA NA
REVOLUÇÃO INDUSTRIAL, Angelina Pina, Bernardo Soares e Mayco Rodrigues, Universidade Federal
Fluminense

(2) cf. Idem

(3) cf. Ibidem

(4) CENTESIMUS ANNUS, centenário da Rerum Novarum, João Paulo II


(5) cf. Idem

(6) cf. Ibidem

(7 até 17) RERUM NOVARUM, Encíclica de Leão XIII

(18) CENTESIMUS ANNUS, centenário da Rerum Novarum, João Paulo II

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