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A IDEOLOGIA LIBERTÁRIA (texto retirado do livro “JUSTIÇA” de MICHAEL SANDEL)

O ESTADO MÍNIMO

Se a teoria libertária dos direitos estiver correta, muitas atividades do Estado moderno são ileg ítimas e
vi o l a m a liber dad e. Ap e n a s u m Es t ad o m í n i m o — aq u el e qu e fa ça cu m p r i r contratos, proteja a
propriedade privada contra roubos e manten ha a paz — é compat ível c o m a teo r i a liber t ária d o s dir ei tos .
Q u a l q u e r E s t a d o q u e v á a l é m di s s o é m o r a l m e n t e injustificável.
O libertário rejeita tr ês tip os d e diretrizes e leis q u e o Es t a d o m o d e r n o n o r m a l m e n t e promulga:
1. N e n h u m pa t e r n a l i s m o . O s liber t ário s s ã o co n t r a as leis q u e p r o t e g e m as p e s s o a s contra si
mesm as . As leis que tornam obrigatório o uso do cinto de segurança são um bo m exemplo, bem como as leis
relativas ao uso de capacetes para motociclistas. Embora o fato de dirigir uma moto sem capacete seja uma
imprudência, e mesmo considerando que as leis so bre o us o de cap acetes sal v em vidas e
ev item fer im en to s graves, os libertários argu men tam que elas violam o direito do indivíduo de
decidir os riscos que quer assumir. Desde que não haja riscos para terceiros e que os pilotos de motos sejam
responsáveis pelas pr ó pr ias des p e s a s m é di c as , o Es t a d o n ã o te m o direito d e ditar a qu e riscos eles p o d e m
submeter seu corpo e sua vida.
2. Nen h u m a legislação sobre a moral. Os libertários são contra o uso da for ça coerciva da lei para
promover noções de virtude ou para expressar as convicções morais da maioria. A prostituição po de ser
moralmente contestável para muitas pessoas, mas não justifica leis que pro íbam adultos conscientes d e
praticá-la. E m determinadas comu nid ades, a maioria pode desaprovar a homossexualidade, mas isso não
justifica leis que privem gays e lésbicas do direito de escolher livremente os parceiros sexuais.
3. Ne n h u m a redistribuiçã o de ren da ou riqu eza . A teoria libertária do s direitos exclui qu a lq u e r
lei q u e fo rce al g u m a s pe s so a s a aju dar outr as, in cl u in d o im p o s t o s pa r a redistribuição
de riqueza. Embora seja desejável que o mais abastado ajude o menos af o rtu n ad o —
sub sid ian do su a s desp esas de sa ú de, mo r ad i a e ed u ca çã o — , esse aux ílio de v e ser facultativo pa r a ca d a
ind iv íduo , e n ã o u m a ob r ig a çã o di tad a pe l o go v er n o . D e acordo co m o ponto de vista libertário,
taxas para redistribuição são uma forma de co er çã o e at é m e s m o d e ro u b o . O Es t a d o n ã o t e m
m a i s dir eito d e fo r çar o co ntr ib uin te ab a s t a d o a ap o i a r o s p r o g r a m a s sociais p a r a o p o b r e d o q u e u m
la d r ã o be n e v o l e n t e d e roubar o dinheiro do rico para distribuí-lo entre os desfavorecidos.

A FILOSOFIA DO LIVRE MERCADO

Em Anarchy, State, and Utopia (1974), Robert Nozick faz uma defesa filosófica dos
princípios libert ários e u m desafio ao conceito dif undido do qu e seja justiça distributiva. Ele parte da
afirmaçã o de que os indiv íduos têm direitos “tão inalien áveis e abrangentes” q u e “ l e v a n t a m a qu e s t ã o d o
qu e , se é q u e h á a l g u m a co is a, ca b e a o E s t a d o faz er ” . E l e conclui qu e “apen as u m Estado m ínim o,
limitado a fazer cump rir contratos e proteger as pes s o as co n tra a for ça, o ro u b o e a fr aude, é justificável.
Qu a l q u e r Es t a d o c o m po d er es mais abrangentes viola os direitos dos indivíduos de não serem for çados a
fazer o que não querem, portanto, n ão se justifica”.7
Entre as coisas que ninguém deve ser forçado a fazer, destaca-se a obrigação de ajudar o p r ó x i m o . C o b r a r
i m p o s t o s d o ri c o p a r a aj u d a r o p o b r e é co a g i r o ric o . I s s o vi o l a s e u direito de fazer o que quiser com
aquilo que possui.
De acord o co m Nozick, não h á nada de errado na desigualdade eco n ômica . O simples fato de saber qu e
os 40 0 da Forbes têm bilh ões enquanto outros nada têm não lhe permite tirar conclusões sobre a justiça ou
injustiça da situação. Nozick repudia a ideia de que uma distribuição justa consista em u m determinado
pad r ão — co m o rendimentos igualitários, ou utilidade igualitária, ou, ainda, atendimento igualitário das
necessidades básicas. O que importa é como a distribuição é feita.
Nozick rejeita as teorias preestabelecidas de justiça em favor daquelas que respeitam as es colh as
individuais n o s livres me r c a d o s . Ele ar g u m e n t a q u e a justi ça distributiva d e v e atender a duas condições —
justiça na aquisição das posses e justiça em sua transferência.8
A primeira condiçã o é que a riqueza tenha origem legítima. (Se você fez fortuna co m a venda de
produtos roubados, por exemplo, não teria direito a possuí-la.) A segunda pergunta se o
dinheiro foi obtido por meio de negociações legais no mercado ou de doações voluntárias recebidas de outras
pessoas. Se a resposta às duas questões for sim, voc ê está autorizado a possuir tais bens, e o Estado não pode
tirá-los de você sem seu consentimento. Contanto que ningu ém inicie sua fortuna co m ganhos
ilícitos, qualquer distribuição resultante do livre mercado é justa, a despeito de, no final, ela parecer igual
ou desigual.
Nozick ilustra a falta de sentido (em sua opinião) da redistribuição de riquezas citando u m ex e m p l o
hipo t ético en v o l v e n d o o gr an d e ído lo d o basq uete Wi l t Ch a m b e r l a i n , cu jo sal ário atingia, n o in ício da
d é ca d a de 19 7 0 , a en t ão incr ível qu antia d e 20 0 mi l d ólar es por temporada. J á que Michael Jordan
é o ícone do basquete atualmente, podem os atualizar o exemplo de Nozick com Jordan, que, no
último ano em que jogou pelo Chicago Bu l ls , re c e b e u 3 1 m i l h õ es d e d ó la r es — qu a n t i a m a i o r , p o r jo g o ,
d o q u e C h a m b e r l a i n recebia em uma temporada.
O DINHEIRO DE MICHAEL JORDAN

Para deixar de lado qualquer questão sobre capital inicial, imaginemos, sugere Nozick, que estamos
partindo de um a distribuição inicial equ ânim e de renda (qualquer qu e seja nosso conceito de equanimidade).
Partimos ent ão de um a distribuição perfeitamente equ ânim e, di g a m o s . T e m in ício, en t ão, a te m p o r a d a d e
basq u ete. Aq u e l e s q u e q u e r e m assistir ao s jogos co m Michael Jordan depositam cinco dólares em um a
caixa cada vez que co m pr am u m ingresso. O dinheiro da caixa é dado a Jordan. (Na vida real, evidentemente,
o salário de Jor d an é pag o pelos propriet ários do tim e c o m o ren dim en to auferido. O pressup osto
si m p li f ic ad o d e N o z i c k — d e q u e os to r ced o r e s p a g a m di r e t a m e n t e a Jo r d a n — é u m a maneira de
enfatizar a questão filosófica relativa à aquisição voluntária.)
Já que muitas pessoas tê m u m grande desejo de ver Jordan jogar, o comparecimento é considerável e
a caixa fica cheia. No final da temporada, Jordan tem 31 milhões de dólares, mu i to mais
do qu e qualquer outro. O resultado disso é qu e a distribuiçã o inicial — aq u e l a q u e v o c ê co n s i d e r a
ju s t a — n ã o ex i s t e m a i s . J o r d a n t e m m a i s ; e o s ou t r o s , men o s . Co n tu d o , a no v a distribui ção partiu d e
esco lhas inteiramente volunt árias. Q u e m tem motivos para reclamar? Cert am en te n ã o aqueles qu e pa g ar am
para ver Jo rdan jogar; ele s c o m p r a r a m in g r e s s o s p o r v o n t a d e pr ó pr i a . C e r t a m e n t e n ã o o s q u e n ã o
g o s t a m d e basquete e ficaram em casa, pois n ão gastaram seu dinheiro co m Jordan e não têm men os dinheiro
agor a do qu e tinham antes. C o m toda certeza, n ão Jordan, pois ele fez a escolha de jogar basquete em troca
de uma renda considerável.9
No z ic k af ir ma qu e es se cen ário ilustra do is pr o b l em a s ineren tes a teorias ger almen te aceitas de
justiça distributiva. Primeiramente, a liberdade é mais importante do que padr ões
preconcebidos de justiça distributiva. Qualquer um que acredite que a
desigualdade econ ômica seja injusta ter á de interferir no livre mer cado, repetida e
continuamente, para eliminar os efeitos das escolhas feitas pelos indiv íduos. E m segundo lugar, interferir
dessa forma — taxando Jordan para apoiar programas de ajuda aos necessitados — n ão
ap en as anula os resultados da s transa çõ es voluntárias, m a s ta m b é m viola os direitos de Jordan ao tomar-lhe
os ganhos. Ele estaria sendo forçado, na verdade, a fazer um a contribuição de caridade contra sua vontade.
Af i n al, o q u e ha v e r i a d e er r a d o e m tax a r os g a n h o s d e Jo r d a n ? S e g u n d o No z i c k , os fu n d a m e n t o s
m o r a i s v ã o al é m d o din heir o . O q u e es t á e m qu e s t ã o, acr edita ele, é n a d a menos do que a liberdade
humana. Ele explica sua tese da seguinte forma: “ A taxação dos rendimentos do trabalho é o mes m o que
trabalho for çado.”10 Quando o Estado se julga no direito de exigir um a parte dos meus rendimentos, ele
tamb ém se atribui o direito de exigir um a parte do m e u tempo. E m vez de tirar, digamos, 3 0 % da min h a renda,
o Estado pode, d a m e s m a f o r m a , m e ob r ig ar a pa s s a r 3 0 % d o m e u t e m p o tr a b a l h a n d o p a r a ele. E se o
Estado po de m e for çar a trabalhar para ele, está essencialmente declarando seu direito de propriedade sobre
mim.
Apoderar-se do produto do trabalho de alguém equivale a apoderar-se de horas do seu tempo, obrigando-o a
exercer várias atividades. Se o governo o força a executar u m determinado trabalho, ou um trabalho não
rem un er ad o , dur an te cer to per íodo d e tem po , ele está decidin d o o qu e vo c ê dev e fazer e quais s ão os
propósitos do seu trabalho, sem levar em conta suas decisões. Isso (...) dá a ele o direito
parcial de propriedade sobre você.11
Essa linha de raciocínio nos conduz ao cerne moral da reivindicação libertária — a ideia de que uma pessoa é a
única proprietária de si mesma. Se sou senhor de mim mesmo, devo ser senhor do meu trabalho. (Se outro
indivíduo pudesse me obrigar a trabalhar, esse indivíduo seria meu senhor e eu seria seu escravo.) Mas, se
sou dono do meu trabalho, devo ter o direito aos seus frutos. (Se outra pessoa tiver direito aos meus rendimentos,
essa pessoa será dona do meu trabalho e será, consequentemente, minha dona.) Esse é o motivo pelo qual, segundo
Nozick, a taxação de parte dos 31 milhões de dólares de Michael Jordan para ajudar os pobres viola seus
direitos. Na realidade, isso significa que o Estado é parcialmente proprietário dele.

SOMOS PROPRIETÁRIOS DE NÓS MESMOS?

Qu an d o Mich ael Jordan anunciou seu afastamento das quadras de basquete, e m 1993, os torcedores
do Chicago Bulls ficaram desolados. Mais tarde ele voltaria e levaria os Bulls a vencer mais três
campeonatos. Su ponhamos, no entanto, qu e em 1993 o Conselho do Chicago Bulls, ou mesmo
o Congresso, resolvesse agradar aos torcedores e obrigasse Jo rdan a jogar basq uete du ran te u m
ter ço da tem p o r ad a seguinte. A maioria da s pessoas co n s i d er a r i a e s s a lei in ju sta, p o i s el a es tar i a
v i o l a n d o a li b e r d a d e d e Jo r d a n . M a s se o Congresso não tem o direito de for çar Jordan a voltar às quadras
de basquete (m e sm o que p o r u m te r ç o d a te m p o r a d a ) , q u e di r ei to s ter i a d e fo r çá -l o a ab r ir m ã o d e u m
te r ç o d o dinheiro que ele recebe jogando basquete?

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