Affectio societatis: Um conceito jurídico superado no moderno direito societário pelo conceito de fim social - Erasmo Valladão e Marcelo Adamek
Muitas vezes os sistemas jurídicos de mesmas origens se distanciam, seja por
necessidades peculiares de cada sociedade, seja pela evolução da jurisprudência em certo sentido, ou até mesmo porque o legislador optou por caminhos diferentes na evolução do direito. A affectio societatis é um elemento que remonta ao direito romano e foi abandonada pela maioria das doutrinas jurídicas de família romano-germânica. No Brasil, entretanto, ela permanece, não pela utilidade prática do conceito em nosso ordenamento, mas porque se repete continuamente que ela é elemento essencial de uma sociedade e não se analisa criticamente o porquê. No direito romano o conceito de affectio foi desenvolvido primeiramente por Ulpiano, na tentativa de diferenciar a sociedade da co-propriedade e da comunhão de bens. Ela seria um consensus, mas não em sua modalidade instantânea, mas prolongada: um estado de ânimo continuativo, a perseverança no mesmo acordo de vontades. É importante destacar, então, que desde o início a affectio não foi vista como elemento essencial da sociedade, mas um traço desta, o que também não significa que ela não possa existir em outras relações jurídicas: no matrimônio os romanos enxergavam a affectio maritalis, na posse, a affectio tenendi, o ânimo de se deter a coisa. Nas doutrinas italianas, espanholas, portuguesas, suíças e alemãs a affectio não possui utilidade alguma para se compreender o direito societário, e isso não significa que sociedades não existam nesses ordenamentos. Issosó indica que a affectio societatis não é, e não pode ser, elemento constitutivo ou característico do contrato de sociedade. Observa-se que nesses mesmos países tal conceito foi substituído pela ideia de “fim comum”. Somente na França a affectio permanece, mas não como elemento caracterizador da sociedade, mas como um traço que a diferencia de outros fenômenos associativos. Mesmo nessa circunstância, a doutrina francesa reconhece a ambiguidade do termo. No Brasil a doutrina dá 3 papéis à affectio, diferenciando-se de autor a autor: a) reconhecendo-a como elemento constitutivo do contrato de sociedade, distinto do conhecimento exigido para a celebração de qualquer contrato; b) utilizando-a para diferenciar a sociedade de outros institutos jurídicos; c) também como elemento definidor da extensão dos deveres dos sócios e dado legitimador da transposição de soluções das sociedades de pessoas para as sociedades ditas de capitais. Na jurisprudência sua aplicação é ainda mais díspar, faltando sistematicidade e objetividade, sendo muitas vezes utilizada como fundamento para a fundamentação de dissoluções societárias (retirada, exclusão e dissolução parcial em sentido estrito), esquecendo-se completamente a desproporcionalidade da medida, os interesses de terceiros e os direitos e obrigações dos sócios a que ela está associada. A questão posta por Valladão e Adamek é que o conceito de affectio societatis é equivocado. Quando o termo é traduzido literalmente do latim, temos como produto uma expressão oca, que não nos dá nenhuma visão diferente do que acontece em outros contratos: o elemento voluntário existe em todos eles, e dizer que a affectio é elemento essencial é o mesmo que dizer que para se constituir uma sociedade é necessária vontade, intenção, ânimo das partes. Diante dessa constatação se constata a circularidade do argumento, pois “o contrato de sociedade não pode ter como critério uma affectio societatis que seja a vontade de constituir uma sociedade”, ou seja, uma vontade diferente daquela já manifestada na declaração jurídico-negocial. Na França se chegou à conclusão de que a affectio societatis seria “o desejo, a vontade, a intenção de colaboração voluntária e ativa, interessada e igualitária”. Dessa forma se diferenciaria a sociedade da (a) indivisão, situação involuntária e de sujeição e (b) de contratos com cláusula de participação nos lucros. O caráter igualitário afastaria a situação de sujeição, característica de relações de emprego. Mas mesmo essa forma de caracterização é insatisfatória: (a) é muito arbitrário dizer que a colaboração do sócio é sempre ativa, porque em muitas sociedades os sócios sequer participam das assembleias; (b) o critério de igualdade, na prática, não se verifica, porque cada sócio assume para si a obrigação de contribuir com a coletividade de sua maneira, seja com seu próprio trabalho, seja com capital, e estes em formas distintas. É mais completo, segundo um autor francês, que vejamos a affectio de outra forma: Ela é justaposição da vontade de união e da vontade de aceitar deliberadamente certos riscos (áleas). Este caracterizado pela organização coletiva e pelo paralelismo de interesses, não uma colaboração voluntária e ativa, o que por si só já exclui a ideia de subordinação. A possibilidade de prejuízo simultaneamente à de lucro, o risco, por sua vez, não se dá pelas relações entre os sócios, mas pela própria natureza da sociedade. Para Valladão mesmo essa caracterização não é suficiente: ela nem acrescenta nada à teoria ffectio societatis. do contrato plurilateral, como muito menos nos diz o que é a a Diante dos fracassos franceses em tentar construir uma definição da affectio societatis, continuamos então com a definição romana clássica, cuja crítica é feita em alguns tópicos: 1. Primeira crítica: a obscuridade da definição latina e o robustecimento de sua significação não ajudam a interpretar o fenômeno das sociedades. Queria-se somente diferenciar a sociedade de outros institutos, e não excluir a presença desse consenso em outros tipos de contrato. 2. Segunda crítica: a affectio não é uma modalidade especial de consentimento, distinta da declaração jurídico-negocial de qualquer outro contrato. Confundir o consentimento, de um lado, com o objeto ou causa do contrato de sociedade, com outro, ao qual se dirige a declaração jurídico-negocial geneticamente presente nos contratos, não faz sentido! Se as coisas caminhassem nesse sentido todo negócio jurídico pressuporia uma declaração jurídico-negocial que lhe é característica. 3. Terceira crítica: a affectio não é elemento constitutivo do contrato de sociedade. O que se destaca no contrato de sociedade não é o consentimento que lhe dá existência, mas sua causa, que vem a ser a consecução de um fim comum. 4. Quarta crítica: a affectio societatis não é um elemento que, desaparecendo ao longo da execução do contrato de sociedade, possa determinar sua automática extinção. Ela não é elemento essencial do contrato de sociedade. Quando se acorda em participar de um contrato de duração continuada a vontade de permanecer no futuro com esse vínculo no futuro é pressuposta. Não é necessária, portanto, a renovação constante de que se quer ser permanecer vinculado ao contrato. O desaparecimento da intenção de contratar por parte de um dos contratantes, de regra, não interfere na sociedade (até porque a intersubjetividade é irrelevante ao mundo jurídico). O que pode determinar a extinção do contrato de sociedade é a impossibilidade de consecução do fim social, ou seu atingimento. Se o desaparecimento da affectio societatis fosse realmente fonte de auto- ou hetero-desvinculação do sócio, ter-se-ia que admitir automaticamente que: a. A exclusão de um dos sócios não depende de falta grave, mas pela simples vontade da maioria dos sócios; b. O direito de retirada não precisaria de condicionantes. 5. Quinta crítica: a affectio societatis não é elemento determinante da extensão dos direitos e deveres dos sócios. Quem o faz é o fim comum da sociedade, e de maneira mais específica, o tipo societário com o qual o fenômeno associativo se veste. É imperativo, depois de tantos argumentos, que aceitemos que a affectio societatis merece ser descartada na análise do moderno direito societário. Mesmo a teoria do contrato plurilateral já se refere à ideia de que um dos elementos que diferencia a sociedade dos contratos de escambo é a existência da convergência dos interesses das partes, enquanto que neste os interesses são opostos (formam-se pólos de interesses). Como bem colocado por Wiedemann, o moderno direito societário tem como “estrela polar” o fim social. O Moderno direito societário não adota como base somente a análise da sociedade, mas das associações em sentido amplo. As organizações associativas são, antes de tudo, organizações finalísticas, caracterizadas pelo fenômeno de cooperação entre dois ou mais sujeitos para a consecução de certos fins comuns. O fim comum abrange o escopo-meio (atividade a qual a organização societária se dedica), servindo para distinguir as sociedades empresárias das não-empresárias. Também abrange o escopo-fim, ou finalidade, que serve para diferenciarmos as sociedades das associações em sentido estrito. Aponta-se que o fim comum possui duas grandes eficácias: a) eficácia constitutiva: não há sociedade ou associação sem fim comum próprio, que não se confunde com o fim individual porventura perseguido pelos seus integrantes. O fim social é o motor da união entre duas pessoas, porque duas pessoas fazem melhor do que uma. Assim como é elemento determinante para a constituição da organização, também é o fim social que serve de parâmetro dissolutório da sociedade ou dos vínculos individuais que unem os seus membros aos demais e à organização societária. b) eficácia funcional: é o fim social que fixa as diretrizes da política social, tanto para os administradores, que devem necessariamente agir conforme a consecução do fim social, quanto dos órgãos deliberativos, que, a priori, estão limitados pela finalidade social, mas que podem alterá-la ao decorrer da execução do contrato; é ele que determina os direitos e deveres dos sócios (em especial a sua intensidade); dirige os estágios da vida social, a fase de constituição da sociedade, do seu funcionamento e da sua liquidação. Vimos a ineficiência da affectio societatis para o entendimento do funcionamento dos fenômenos associativos. Tal conceito normalmente é utilizado genericamente para fundamentar decisões envolvendo a exclusão ou a retirada de sócios, a aplicação de institutos típicos de sociedades de pessoas para certos tipos de sociedades anônimas fechadas, e para distinguir relações jurídicas societárias de outras diversas. a) affectio societatis e a exclusão do sócio: normalmente é dito na doutrina brasileira que a quebra da affectio societatis é causa de resolução do contrato de sociedade por fato imputável ao sócio, uma justificativa fácil, genericamente invocável. Entretanto esta é uma medida de direito estrito e de caráter excepcional, exercido segundo os parâmetros de proporcionalidade e da razoabilidade como última ratio. Com a promulgação do novo código civil, a possibilidade de exclusão de sócios se tornou mais enrijecida, o que fez com que o posicionamento da doutrina se alterasse um pouco. A mera quebra de affectio societatis, entretanto, não pode, por si só, autorizar a exclusão do sócio. Caso contrário, aceitar-se-ia que a exclusão do sócio é possível pela vontade da maioria, ou capricho dos demais sócios, o que é rechaçado por todos os doutrinadores. Também se aceitaria a situação de subordinação dos sócios minoritários aos desígnios da maioria. Ambas as situações são contrárias ao próprio funcionamento da estrutura societária. O que pode eventualmente justificar a exclusão de sócios é a violação de deveres de lealdade e de colaboração, deveres esses, que a depender do tipo societário, são mais ou menos alargados. b) affectio societatis e a retirada do sócio: é o poder de auto-desvinculação que assiste ao sócio nos casos previstos em lei, abrangendo também as hipóteses de dissolução parcial da sociedade. A única coisa que pode legitimá-la, como justa causa, é a inviabilidade de o sócio continuar fazendo parte da sociedade, o descumprimento dos deveres de lealdade, cooperação ou de boa-fé entre os sócios. Caso contrário teríamos que reconhecer o direito de retirada do sócio em toda a execução do contrário, o que não é verdade. c) affectio societatis e a sociedade anônima "de pessoas": a affectio também é utilizada ao diferenciar a sociedade de pessoas, ao se dizer que nesse tipo societário prevaleceria a celebração do contrato pelo intuitu personae, o que caracteriza um vínculo da affectio mais forte, enquanto que na sociedade de capitais o contrato se refere a um intuitu pecuniae, de modo que as características pessoais dos sócios são pouco relevantes nesse caso, e o vínculo pessoal entre os sócios menos relevante. Mesmo nessa situação a affectio é equivocada. Ela é utilizada apenas como substituição de intuitu personae. A diferença que promove entre as duas sociedade é mais descritiva do que funcional.
SZTAJN, Rachel. Sobre A Natureza Jurídica Das Opções Negociadas em Bolsa. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, N° 105, Ano XXXVI, JaneiroMarço de 1997. PP