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A CONSTITUCIONALIZAÇÃO SIMBÓLICA1

MARCELO NEVES

Capítulo 3
CONSTITUCIONALIZAÇÃO SIMBÓLICA COMO ALOPOIÉSE DO
SISTEMA JURÍDICO

1. Da autopoiese à alopoiese do Direito

1.1 Da autopoiese biológica à social

Origem biológica em HUMBERTO MATURANA e FRANCISCO VARELA.


Etimologia – autós (por si próprio) + poiesis (criação, produção) –
sistema homeostático construído pelos próprios componentes que
constrói (constituindo a rede de processo no próprio espaço e
especificando-lhe domínio topológico caracterizado pelo fechamento na
produção e reprodução dos elementos).

A recepção do conceito nas ciências sociais foi proposta por LUHMANN


(com pequena adaptação, já que na biologia há a concepção radical de
1
A interpretação das normas constitucionais implica a utilização de métodos que se diferenciam do método de
interpretação das demais normas de direito público e privado. Existe uma concordância entre os juristas de
que a constituição, por sua própria natureza, especialmente quando trata da declaração dos direitos
fundamentais, supõe uma leitura que a distingue daquela realizada no quadro da dogmática tradicional. A
interpretação da norma constitucional torna-se ainda mais específica, quando ocorre no quadro do estado
democrático de direito, pois pressupõe o emprego de conceitos e valores caracterizadores dessa forma de
regime político-constitucional. A análise jurídica deixou, assim, de ficar restrita e prisioneira do dogmatismo e
retomou uma tradição do pensamento social do Ocidente, que por quase dois séculos ficara sufocada por
diferentes formas e níveis de positivismo: o debate sobre as finalidades e a busca de uma sociedade justa.
Nesse quadro é que se explicitaram as possibilidades da teoria luhmaniana, ao conceituar o direito como "a
estrutura de um sistema social que se baseia na generalização congruente de expectativas comportamentais
normativas" (Luhmann, 1972). Para Luhmann, o sistema político é o codificador e generalizador simbólico do
poder. O poder, entretanto, nas sociedades complexas e plurais da contemporaneidade, perdeu
progressivamente a sua identificação com a coerção, a violência e a repressão; surgiu nesse processo
histórico uma nova forma de organização política, onde a força do poder público passou a depender,
principalmente, da possibilidade do indivíduo ou vários escolherem soluções para os problemas da
comunidade. A liberalização e a participação de um número crescente de cidadãos na tomada das decisões
públicas faz com que a legitimação do processo político implique, como escreve Luhmann, numa dupla
aceitação: a aceitação pelo cidadão das decisões da administração pública e a aceitação pela administração
pública da participação dos cidadãos nos procedimentos institucionalizados. Essa sociedade política, no
entendimento de Luhmann, não se caracteriza mais pela coerção, mas a sua força irá nascer da livre e
autônoma adesão dos cidadãos às normas coletivas. A teoria da constitucionalização simbólica (Neves: 1994)
possibilitou uma maior abrangência das idéias de Luhmann, fazendo com que se introduzisse na teoria da
sociologia do direito do autor alemão indagações conduzentes à análise do papel dos valores sociais na
construção e implementação do direito. Partindo da teoria de Thurman Arnold, sobre o papel simbólico do
direito e especificamente da constituição, Neves acrescentou à temática luhmaniana alguns desdobramentos,
que a complementaram e enriqueceram. O direito para Arnold, citado por Neves (1994: 28), deve ser
concebido dentro de um quadro mais complexo do que aquele desenhado pela dogmática jurídica. Isto porque,
escreve Arnold, "é parte da função do "direito" reconhecer ideais que representam o oposto exato da conduta
estabelecida". Logo, o direito tem duas funções - a simbólica e a instrumental -, a primeira referida ao mundo
do dever-ser e a segunda relacionada com a realidade social objetiva. O emprego dessas duas dimensões de
forma integrada entre si contribui para um entendimento mais sofisticado do fenômeno jurídico, onde o direito
incorpora na sua dimensão simbólica um telos político, e, portanto, moral. Neves não argumenta no terreno da
ética, mas fornece as bases teórico-sociológicas, que irão fundamentar uma teoria ética da constituição.
O estudo da teoria ética da constituição necessita, no entanto, ser antecedida por um entendimento da forma
pela qual a teoria da constitucionalização simbólica possibilita a análise da dimensão ética, dentro de um
quadro conceitual jurídico. A constitucionalização simbólica abre perspectivas para a incorporação dos valores
morais na análise da ordem juridico-constitucional, pois admite a mútua influência entre o direito positivo e o
mundo dos ideais sociais e políticos a serem realizados pelo direito. A constituição servirá para explicitar a
tensão entre o mundo dos valores e o mundo da regulação social, fazendo com que a sociedade integre no seu
cotidiano normas, que não se resumem à solução de conflitos inter-individuais ou grupais, mas que forneçam
os parâmetros de uma sociedade, garantidora do bem comum, da segurança jurídica e da justiça (Radbruch,
1974:417). Nesse contexto é que o estabelecimento pela Constituição de 1988 (art.1º, caput) do estado
democrático de direito obriga a sua leitura levando em consideração, as dimensões acima referidas do direito.
fechamento, visto que o observador encontra-se fora do sistema 2). Na
área social, o fechamento não é interferido pela interação com o meio
ambiente (constituindo apenas o fundamento do sistema).

Três momentos da autopoiese (que LUHMANN vê como


interdependentes e TEUBNER define como enlaçados hiperciclicamente):

1) auto-referência dos elementos sistêmicos (elementar ou de base) -


um sistema que pode ser designado se constituído, como unidades
funcionais, os elementos com os quais é composto.

2) reflexividade (ou auto-referência processual) – mecanismo reflexivo –


processo em si mesmo, ou melhor, processos sistêmicos da mesma
espécie – o reingresso no processo articulado com os próprios meios do
processo (excluindo-se aqui a normatização da normatização).

3) reflexão – mecanismo reflexivo – é o próprio sistema como um todo


que se apresenta como auto-referencial (e não apenas processos
sistêmicos), sendo necessária a elaboração conceitual da identidade do
sistema em oposição ao seu meio ambiente (possibilitando a
problematização da própria identidade do sistema).

Os sistemas sociais são unidades autopoiéticas de comunicação, através


da informação, mensagem e compreensão (presente no sistema e não no
meio ambiente, embora comuniquem com o meio ambiente psíquico,
orgânico e químico-físico). Não se constituem pela acumulação de
elementos infra-estruturais (tais como a consciência ou o indivíduo).

1.2. Direito como sistema autopoiético3

O Direito, no modelo luhmanniano, pode ser interpretado como código-


diferença (binário) do que é lícito/ilícito (com fechamento operativo
baseado na sua própria positividade), superando-se o princípio da
estratificação (onde apenas o sistema supremo, aquele que se encontra
acima dos demais, constituir-se-ia em um sistema auto-referencial).

O direito rodeia os outros sistemas e também é rodeado por eles.


Qualquer perturbação só causa alguma influência no momento em que se
traduz em resposta ou reação autopoiética.
Segundo TEUBNER, não existe Direito fora do Direito (não gera inputs
nem outputs).

A auto-determinação fundamenta-se na distinção entre as expectativas


normativas e cognitivas que só se torna clara a partir da codificação
binária exclusiva do sistema jurídico.
O sistema é normativamente fechado, mas cognitivamente aberto. A
heteroreferência informativa é pressuposto para auto-referência
operacional.
2
Afastando-se da distinção trazida por BERTALANFFY que distingue sistemas abertos de sistemas fechados.
3
Sistema em perspectiva empírica sujeita a restrições.
O sistema autopoiético pode assimilar fatores do meio ambiente, não
sendo, entretanto, diretamente afetados por eles.
A dimensão cognitiva aberta permite que o direito positivo possa se
adaptar – o fechamento auto-referencial não constitui finalidade em si do
sistema, mas é condição para a abertura cognitiva (o fechamento
cognitivo proporcionaria uma paradoxia insuperável da autopoiése).

Teorias de justiça - divergência entre a teoria de sistemas de


LUHMANN e as teorias axiológicas de DREIER, ALEXY e GÜNTHER –
para LUHMANN, qualquer avaliação de valor é irrelevantes para o valor
próprio do Direito (já que a justiça só poderá ser considerada no interior
do sistema jurídico). A positividade não se limita ao deslocamento de
problemas, mas a eliminação da problemática da fundamentação. O
problema da justiça é reorientado para a complexidade adequada do
sistema jurídico e consistência de suas decisões.

1.3. A alopoiese do Direito4

A discussão entre a corrente autopoiética e a alopoiética não está na


superação lógica da paradoxia da auto-referência (a qual é possível,
segundo HART, e vista como pertencente à realidade do Direito e não
como problema lógico).

O sistema alopoiético significa a (re)produção de um sistema por critérios


programas e códigos de seu meio ambiente.

LADEUR critica o conceito de Direito de LUHMANN como generalização


congruente de expectativas normativas (pois não tomaria em
consideração a descontinuidade histórica do sistema de signos).

TEUBNER e WILLKE tentam compatibilizar a teoria dos sistemas de


LUHMANN com a teoria do discurso de HABERMANS apresentando a
noção de “Direito Reflexivo” onde os subsistemas não se encontram
apenas em observação recíproca, mas admitindo interferências
intersistêmicas.

Teubner distingue o Direito autopoiético, do Direito parcialmente


autônomo e Direito socialmente difuso, através do entrelaçamento
hipercíclico, na forma abaixo:

4
Corrente majoritária.
TEUBNER é levado, portanto, ao questionamento acerca do eventual
conflito entre esses três tipos sistêmicos (não definindo, entretanto, se o
o Direito intersistêmico de colisão seria autopoiético, parcialmente
autônomo ou socialmente difuso).

A alopoiese interfere a auto-referência elementar, a refelxividade e a


reflexão como momentos constitutivos da reprodução operacionalmente
fechada do sistema jurídico, bem como sua heterorreferência,
bloqueando-se o entrelaçamento hipercíclico dos componentes
sistêmicos (podendo significar até a não constituição auto-referencial de
componentes sistêmicos).

2. Constitucionalização simbólica como sobreposição do sistema político


ao Direito

Constituição como vínculo estrutural entre Direito e política (com


autonomia operacional de ambos sistemas), sendo, portanto, mecanismo
de interpenetração e interferência entre dois sistemas sociais
autopoiéticos.
Em se tratando de Constituição instrumentalista e simbólica, há a
subordinação hetereonomizante ao código primário do poder (que acaba
por eliminar autonomia à esfera jurídica – não significando, entretanto, a
conclusão de autonomia do sistema político, já que esta é pulverizada).
No caso da constitucionalização simbólica a politização não resulta do
conteúdo dos dispositivos constitucionais, mas resulta o bloqueio político
de reprodução operacionalizante autônomo.
KINDERMANN acentua que se trata de um mecanismo de negação da
diferença entre sistemas político e jurídico, em detrimento da autonomia
deste.

3. Constitucionalização simbólica versus auto-referência consistente e


hetero-referência adequada do sistema jurídico

A concepção de Direito como sistema autopoiético pressupõe assimetria


entre a complexidade estruturada e determinada do mundo jurídico com a
supercomplexidade não estruturada e indeterminada do meio ambiente.

À auto-referência de base, a reflexividade e a reflexão (três momentos


da auto-referência), relaciona-se respectivamente aos conceitos de
legalidade (capacidade de conexão das unidades elementares do sistema
jurídico com base no mesmo código includente de diferença de
lícito/ilícito), constitucionalidade (concebida como normatização mais
compreensiva de processos de normatização do Direito positivo) e
legitimação (no sentido sistêmico – capacidade do sistema de orientar e
reorientar as expectativas normativas com base nas próprias diferenças
e critérios).

Na constitucionalização simbólica há falta de força normativa do texto


constitucional, conduzindo à desconexão entre a prática constitucional e
as construções da dogmática jurídica (a noção de constitucionalidade
como reflexividade mais abrangente é afetada) na medida que o texto
constitucional não é concretizado normativamente de forma generalizada.

A referência dos sistemas sociais ao seu meio ambiente se dá através da


função (expectativas normativas) e prestação (a forma de solução de
conflitos diversa dos demais sistemas).

A forma de diferenciação funcional respondida pela função congruente


das expectativas normativas encontra-se na institucionalização dos
Direitos Fundamentais.

LUHMANN distingue direitos humanos de direitos fundamentais, já que


aqueles seriam ofensas flagrantemente à dignidade humana, enquanto
estes seriam aqueles amparados constitucionalmente.

A constitucionalização simbólica, sendo ausente a constituição normativa,


perde a validade empírica como sistema autopoiético visto que a
insuficiência e incapacidade de heterorreferência na concretização
normativa do texto constitucional operacionalmente autônomo em
resposta às exigências do meio ambiente.

4. Implicações semióticas
Conseqüências na leitura semiótica do sistema jurídico pela
constitucionalização simbólica, através das seguintes dimensões do
fenômeno intermediado lingüisticamente:

> sintática – a constitucionalização simbólica representa um plexo de


signos, cuja estrutura relacional deôntica é dividida em três
submodalidades de interferência intersubjetiva: o obrigatório; o proibido;
e, o permitido.
> semântico – o modo de referência da linguagem constitucional à
realidade não é especificamente normativo-jurídico.
> pragmático – o texto constitucional passa a ser um mecanismo de
persuasão política perdendo força comissivo-diretiva.

Diferenciação entre códigos fortes e códigos fracos – os códigos fortes


impedem a comunicação consistente nos termos da diferença lícito/ilícito
nos códigos fracos.

5. Constitucionalização simbólica versus juridificação. Realidade


constitucional dejuridificante

Juridificação (que pode ser vista negativamente, pois burocratiza, ou


positivamente, visto que assegura) se dá em três tipos: legalização;
burocratização; justicialização.

O processo de juridificação se deu em quatro fases: 1) direitos subjetivos


privados; 2) direitos subjetivos públicos de caráter liberal; 3) direitos
subjetivos públicos democráticos; e, direitos sociais.

O problema da juridificação é vista com base na dicotomia sistema e meio


ambiente. No caso da constitucionalização simbólica há o processo
inverso, de dejuridificação.

BLANKENBURG – distinção entre a juridificação no plano das


expectativas (mais regras) e juridificação no plano das ações (mais
eficácia nas regras).

6. Constitucionalização simbólica como problema da modernidade


periférica

A constitucionalização simbólica como alopoiese do sistema jurídico é


traço característico dos Estados periféricos.
Os sistemas não se desenvolvem com autonomia funcional – problema da
marginalidade e exclusão.
O Estado periférico pendula entre o instrumentalismo constitucional (e
aqui não nos interessa as Constituições instrumentais visto que, apesar
de ter funções simbólicas, apenas atuam como armas jurídicas de quem
detém o poder) e o nominalismo constitucional (que não possuem
concretização normativo-jurídica).
7. Constitucionalização simbólica na experiência brasileira. Uma
experiência exemplificativa

Função hipertroficamente simbólica das constituições brasileiras, visto


que feitas sob a égide do dono do poder (com identificação retórica), com
marcante falta de concretização normativa (traduzindo-se em regras de
silêncio).

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