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Política Setorial - Habitação

Autora: Profa. Flávia Hilário Cassiano


Colaboradoras: Profa. Amarilis Tudella
Profa. Christiane Mazur Doi
Professora conteudista: Flávia Hilário Cassiano

Mestra (2015) em Planejamento Urbano e Regional pela Universidade do Vale do Paraíba (Univap). Pós-graduada
(2004) em Gestão de Políticas Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). Graduada (1999)
em Serviço Social - Assistente Social pela Universidade de Taubaté (Unitau).

Atuou como professora e coordenadora (2015-2020) do curso de Serviço Social na Universidade Paulista (UNIP) e
como professora (2020) nos cursos de Administração e Ciências Contábeis (UNIP). Foi diretora do Abrigo Municipal
de Alta Complexidade de Santa Branca (2013-2014), coordenadora local (2008) da equipe de trabalho técnico social do
Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) de Governador Valadares (MG) e professora e coordenadora do curso
de Serviço Social da Unipac (2005-2008).

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

C345p Cassiano, Flávia Hilário.

Política Setorial – Habitação / Flávia Hilário Cassiano. – São


Paulo: Editora Sol, 2021.

152 p., il.

Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e


Pesquisas da UNIP, Série Didática, ISSN 1517-9230.

1. Habitação. 2. Diretrizes. 3. Saneamento. I. Título.

CDU 72

U511.32 – 21

© Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou
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Vice-Reitor de Planejamento, Administração e Finanças

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Vice-Reitora de Unidades Universitárias

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Vice-Reitora de Pós-Graduação e Pesquisa

Profa. Dra. Marília Ancona-Lopez


Vice-Reitora de Graduação

Unip Interativa – EaD

Profa. Elisabete Brihy


Prof. Marcello Vannini
Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar
Prof. Ivan Daliberto Frugoli

Material Didático – EaD

Comissão editorial:
Dra. Angélica L. Carlini (UNIP)
Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR)
Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT)

Apoio:
Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD
Profa. Deise Alcantara Carreiro – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos

Projeto gráfico:
Prof. Alexandre Ponzetto

Revisão:
Bruna Baldez
Lucas Ricardi
Sumário
Política Setorial - Habitação

APRESENTAÇÃO.......................................................................................................................................................7
INTRODUÇÃO............................................................................................................................................................7

Unidade I
1 ORIGENS DA HABITAÇÃO SOCIAL NO BRASIL.........................................................................................9
1.1 Política de habitação social e direito à moradia no Brasil.......................................................9
1.2 Banco Nacional de Habitação (BNH)............................................................................................ 17
2 VALOR DA TERRA E SEGREGAÇÃO SOCIOESPACIAL.......................................................................... 25
3 CONCEITOS DA POLÍTICA URBANA........................................................................................................... 33
4 ESTATUTO DA CIDADE..................................................................................................................................... 39

Unidade II
5 DIRETRIZES GERAIS DA POLÍTICA URBANA........................................................................................... 56
5.1 O que é o SNHIS?.................................................................................................................................. 56
5.2 O que é o FNHIS?................................................................................................................................... 56
5.3 Política de Habitação de Interesse Social e Programa Minha Casa,
Minha Vida (PMCMV).................................................................................................................................. 57
5.4 Atuação do assistente social na política urbana...................................................................... 65
6 MOBILIDADE URBANA................................................................................................................................... 79
6.1 Saneamento básico e saúde............................................................................................................. 83
7 POLÍTICA DE REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA NAS FAVELAS E NOS CORTIÇOS........................100
8 SEGREGAÇÃO SOCIOESPACIAL E PRINCÍPIO DE TERRITORIALIZAÇÃO DO SUAS.................108
APRESENTAÇÃO

Esta disciplina tem como objetivo apresentar conceitos relacionados à questão habitacional, dentro
de uma análise da problemática urbana, e debates sobre as políticas sociais no Brasil. O serviço social
tem atuação relevante na política habitacional e demanda a revisão de procedimentos para ocupar
espaços que são necessários para garantir o direito à cidade e à habitação.

A problemática da moradia é também uma das expressões da questão social que ampliam nossa
discussão sobre o tema. Por isso, é fundamental entendermos e identificarmos os diferentes atores
sociais, as demandas existentes e as possíveis respostas para essas questões enquanto profissionais.

Esta disciplina ainda proporciona o aprofundamento sobre a realidade brasileira e a política


habitacional, pois grande parte dos problemas relacionados à habitação é fruto da disputa de
espaços na cidade.

De maneira reflexiva e crítica, a disciplina busca abordar a atuação do serviço social na questão da
moradia como uma oportunidade de compreender as atribuições do assistente social e suas intervenções,
promovendo um debate mais claro sobre o papel desse profissional na política de habitação.

Conhecer diferentes legislações é de suma importância na atuação profissional do assistente social,


baseando-se numa perspectiva de autonomia e empoderamento. Isso significa que a apropriação legal
sobre determinado assunto/matéria deve ser priorizada desde o momento que o profissional ingressa
na universidade, pois, quando se inicia sua atuação prática, o conhecimento torna-se o embasamento
legal para uma discussão de assuntos pertinentes às políticas públicas e à promoção dos direitos sociais.

INTRODUÇÃO

Na primeira parte deste livro-texto, abordaremos as origens da habitação social no Brasil, como parte
de um movimento histórico que exerce grande influência nos espaços urbanos e demanda melhores
soluções para os problemas sociais nessa área. Trabalharemos a política de habitação social e o direito
à moradia no Brasil, a partir da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988), e nos aprofundaremos
na legislação que ampara o acesso à moradia através do Sistema Nacional de Habitação de Interesse
Social (SNHIS), apoiado na Lei n. 11.124 (BRASIL, 2005b), de 16 de junho de 2005 (Diretrizes Gerais da
Política Urbana).

Em seguida, estudaremos a atuação do assistente social na política urbana, tendo como base legal
a Lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001, do Estatuto da Cidade (BRASIL, 2001). O Estatuto da Cidade nos
dará amplo entendimento sobre a importância de compreender a cidade, seus espaços, sua dinâmica e
suas peculiaridades a partir do território.

Não podemos compreender a cidade e sua intensa dinâmica sem entender também o que é
mobilidade urbana – Lei n. 12.587 (BRASIL, 2012), que institui a Política Nacional de Mobilidade
Urbana (PNMU) – e o que representa essa política no espaço das cidades, também para a melhoria
da sociabilidade dos cidadãos.
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Por fim, trataremos de um tema muito comentado, muitas vezes polemizado, mas que requer
discussão e compreensão adequadas: saneamento básico e saúde – Lei n. 11.445, de 5 de janeiro de 2007
(BRASIL, 2007c). Muitos compreendem saneamento básico apenas como a chamada rede de esgoto;
aqui, buscaremos mais esclarecimentos sobre o assunto.

Portanto, neste livro-texto iremos trabalhar conceitos e legislações que amparam o assistente social
na atuação da política habitacional e nos desafios da questão urbana que regem o direito à cidade e à
habitação, assegurado pela Constituição Federal de 1988.

Bons estudos!

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POLÍTICA SETORIAL - HABITAÇÃO

Unidade I
1 ORIGENS DA HABITAÇÃO SOCIAL NO BRASIL

1.1 Política de habitação social e direito à moradia no Brasil

Para compreendermos as origens da habitação social no Brasil, precisamos conhecer o processo


histórico da dinâmica socioespacial, econômica e política que se apresentou no Brasil como cenário de
conquistas e constantes desafios.

Podemos conceituar habitação como um espaço fechado e com teto no qual os seres humanos
habitam. Termos como domicílio, residência, lar e casa podem ser utilizados como sinônimos de
habitação. O termo social, por sua vez, está relacionado com a sociedade, ou seja, uma comunidade que
tem em comum uma cultura, interesses e que interage entre ela. As habitações sociais, em resumo, são
as unidades habitacionais atreladas a uma política estatal que têm a finalidade de suprir o direito de
acesso à habitação para os que necessitam.

Não há como mencionar o direito à habitação social no Brasil sem apresentar elementos determinantes
e significativos como o valor da terra, o valor da propriedade e os acontecimentos sócio-históricos que
estruturaram os pilares da política de habitação no país.

Os problemas habitacionais existentes atualmente no Brasil são fruto de um processo de urbanização


desordenado ocorrido durante o final do século XIX e todo o século XX, como veremos a seguir.

Esses processos fortalecem as estruturas fundiárias, alimentam os conflitos e constituem elementos


explicativos da desigualdade físico-territorial ainda vigente no país e, principalmente, da desigualdade
social, na despossessão do trabalhador assalariado da terra para morar.

Rodrigues (2013) sinaliza que a Lei de Terras de 1850, que ordena a situação fundiária por meio da
compra e venda de terras, confirma o poder político dos proprietários, a relação com o fim da escravidão
em 1888 e com a emergência do trabalho livre, além de demarcar mudanças na sociedade brasileira para
o evento da urbanização.

São traços que remetem, segundo a autora, a uma colonização processada por meio das sesmarias
e das capitanias hereditárias, que definiram formas de apropriação da terra e influíram na consolidação
do capitalismo brasileiro, principalmente em termos de um patrimonialismo que privatiza a terra, seja
no campo, seja na cidade (CFESS, 2016).

Somava-se a esse processo o fluxo crescente e constante de trabalhadores imigrantes que aportam
no Brasil, em finais do século XIX e início do século XX (TOLEDO, 2003). No fim do século XIX, no Brasil,
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Unidade I

houve uma conjunção de acontecimentos que influenciaram decisivamente a ampliação e a formação


dos espaços urbanos. O fim da escravidão fez com que milhares de negros fossem expulsos do campo e
migrassem para a cidade. Concomitantemente, imigrantes europeus chegaram ao Brasil para trabalhar
no campo e também na nascente indústria brasileira. Esses fatores provocaram o aumento da população
nas cidades, especialmente em São Paulo e no Rio de Janeiro, fato que acarretou uma demanda por
moradia, transporte e demais serviços urbanos, até então inédita (MARICATO, 1997).

Figura 1 – Ruas do Rio de Janeiro no século XIX

Figura 2 – Ruas de São Paulo no século XIX

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POLÍTICA SETORIAL - HABITAÇÃO

Figura 3 – Rio de Janeiro no século XIX

Inicialmente, a primeira medida do governo brasileiro foi oferecer crédito às empresas privadas para
que elas produzissem habitações. Todavia, os empresários não obtiveram lucros com a construção de
habitações individuais, devido à grande diferença entre os preços delas e das moradias informais; alguns
passaram a investir em loteamentos para as classes altas, enquanto outros edificaram prédios para
habitações coletivas, que passaram a figurar como a principal alternativa para que a população urbana
pobre pudesse permanecer na cidade, especificamente no Centro, onde estaria próxima das indústrias e
de outras possibilidades de trabalho (PECHMAN; RIBEIRO, 1983).

Apesar de ter financiado a construção das habitações coletivas, o poder público considerava os cortiços
degradantes, imorais e uma ameaça à ordem pública. Assim, tendo como referência os ideais positivistas,
o novo poder republicano realizou, no início do século XX, uma reforma urbana no Rio de Janeiro para
melhorar a circulação de mercadorias, serviços e pessoas na cidade. Foram demolidos 590 prédios velhos
para a construção de 120 novos edifícios, o que significou a expulsão de diversas famílias pobres de suas
moradias, a ocupação dos subúrbios e a formação das primeiras favelas do Rio de Janeiro (MARICATO, 1997).

Figura 4 – Cortiço na área central do Rio de Janeiro, primeira década do século XX

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Unidade I

Também nesse período, outras cidades seguiram o modelo de planejamento de Paris, que combinava
saneamento, embelezamento, circulação e segregação territorial. Esse foi o caso de Belo Horizonte,
que, segundo Le Ven (1977), adotou um projeto segregacionista, buscando determinar quais espaços
poderiam ser ocupados por quais grupos sociais. Assim, antes mesmo da inauguração, a cidade já tinha
duas áreas ocupadas irregularmente – a do Córrego do Leitão e a do Alto da Estação –, que abrigavam
três mil pessoas ao todo (GUIMARAES, 1992).

Figura 5 – Foto da inauguração de Belo Horizonte, em 12 de dezembro de 1897; comissão construtora da


inauguração de Belo Horizonte O Arraial de Curral del Rei (1896), antigo nome de Belo Horizonte

Dessa forma, do início do século XX até a década de 1930, muitas cidades brasileiras tiveram o problema
da habitação agravado, com o poder público atuando de maneira pontual e ineficiente. Somente a partir
do fim da década de 1930, quando a industrialização e a urbanização do país ganharam novo impulso
com a Revolução de 30, começou a se esboçar uma política para a habitação. Foi nesse momento,
também, que a ciência e a técnica ganharam maior relevância que os conceitos de embelezamento, e os
problemas urbanos em geral foram colocados na chave do social (MOTTA, 2009).

Figura 6 – Quartel general e Morro da Providência em 1900 (primeira favela do Rio de Janeiro)

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POLÍTICA SETORIAL - HABITAÇÃO

A questão urbana, como particularidade da questão social, é a expressão da distribuição desigual das
atividades humanas na organização socioespacial do processo de produção e reprodução do capital e é
também uma forma de resistência e de luta entre as classes sociais que compõem a estrutura social no
contexto das cidades (CFESS, 2016 apud BURNETT, 2012; SILVA, 1989).

É interessante ressaltar uma reflexão de Lojkine (1981 apud SILVA, 1989), que, ao considerar o urbano
como elemento-chave das relações de produção e um dos lugares decisivos da luta de classes, dialoga
com Marx e Engels na crítica sobre a separação da cidade e do campo, que representa, nesse movimento,
a divisão entre trabalho material e trabalho intelectual. Trata-se de uma desocultação necessária do
discurso ideológico dominante (SANT’ANA, 2013), que se complementa na afirmação de Iamamoto
(2007), ao se referir à articulação existente entre relações de propriedade e relações de trabalho:

A propriedade fundiária é um pressuposto histórico e fundamento


permanente do regime capitalista de produção, comum a outros modos
históricos de produzir. Entretanto, o capital cria a forma histórica
específica de propriedade que lhe convém, valorizando este monopólio
na base da exploração capitalista, subordinando a agricultura ao capital
(IAMAMOTO, 2007, p. 89).

Para Bonduki (1998), são inúmeros os problemas ocasionados pela presença cada vez maior de
trabalhadores com suas moradias localizadas em áreas segregadas, com deficiência dos serviços de água
e esgoto, constituindo ameaças à saúde pública, e cujas respostas governamentais convergiram para a
criação de uma legislação de controle do uso do solo, com enfoque higienista (CFESS, 2016).

Cita Bonduki (1998, p. 43) que:

Num período em que a questão social era tratada como caso de polícia,
o problema da habitação foi enfrentado pelo autoritarismo sanitário
basicamente como uma questão de higiene, na perspectiva de difundir
padrões de comportamento, de asseio e de hábitos cotidianos.

Por outro lado, aos estratos sociais pertencentes à elite eram garantidas áreas de uso exclusivo, com
investimentos públicos e livres da degradação. Segundo o autor, até o final dos anos 1930, diante da
emergência de um processo de urbanização e crescimento das cidades, as respostas do Estado brasileiro
de concepção liberal foram limitadas. As diferentes modalidades de moradia para atender às demandas
dos trabalhadores de uma indústria nascente eram construídas pela iniciativa privada, tornando o
aluguel a forma dominante de morar, muitas vezes, em condições precárias, como nos cortiços das áreas
urbanas centrais. Essa produção rentista (porque o investimento visava a uma renda mensal) perdurou
até o início dos anos 1940, quando ocorreu um desestímulo do investimento na produção habitacional,
demandando a intervenção estatal, que, limitada, é complementada com o autoempreendimento da
moradia pelos trabalhadores (BONDUKI, 1998).

É importante observar que a experiência de prática social mais duradoura em relação à moradia das
famílias trabalhadoras pobres urbanas, desde a instituição do trabalho livre no Brasil até os dias de hoje,
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Unidade I

é a autoconstrução como componente e expressão material da expropriação dos meios de vida, como
a terra, da exploração da força de trabalho e da espoliação urbana (KOWARICK, 1993). Nos termos de
Kowarick (1993, p. 62):

O chamado problema habitacional deve ser equacionado tendo em vista


dois processos interligados. O primeiro refere-se às condições de exploração
do trabalho propriamente ditas, ou mais precisamente às condições
de pauperização absoluta ou relativa a que estão sujeitos os diversos
segmentos da classe trabalhadora. O segundo processo, que decorre do
anterior e que só pode ser plenamente entendido quando analisado em
razão dos movimentos contraditórios da acumulação do capital, pode ser
nomeado de espoliação urbana: é o somatório de extorsões que se operam
através da inexistência ou precariedade de serviços de consumo coletivo,
apresentados como socialmente necessários em relação aos níveis de
subsistência, e que agudizam ainda mais a dilapidação realizada no âmbito
das relações de trabalho.

Desde os anos 1930, a habitação constitui-se numa força ideológica para a formação do trabalhador,
fundamental na reprodução da força de trabalho, em um momento de profundas mudanças no Estado
e na sociedade (BONDUKI, 1998).

Figura 7 – Favela da Rocinha, Rio de Janeiro, 1958

Foi nessa perspectiva que se colocaram o incentivo do acesso à casa própria – ainda que fossem
moradias autoconstruídas em áreas periféricas ou rurais, porque os trabalhadores recebiam um salário
mínimo insuficiente para atender às suas necessidades sociais –, a ampliação dos serviços de transporte
e obras de saneamento, mecanismos importantes para a manutenção da ordem econômica, política e
social, e a valorização da família nuclear, monogâmica, dentro do espírito burguês (BONDUKI, 1998). E se
ampliou assim a aceitação, entre os diversos segmentos sociais e setores governamentais, da necessidade
de intervenção estatal na produção de moradias para os trabalhadores.
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POLÍTICA SETORIAL - HABITAÇÃO

Os anos 1940 trouxeram o início da atuação do Estado na produção direta de habitação para
trabalhadores, ainda que essa não fosse uma política urbana. Ao contrário, segundo Bonduki (1998), a
ação dos Institutos e das Caixas de Aposentadoria e Pensões (IAP e CAP) – organizados por categoria
laboral, primeiros a atuar no setor de habitação social – foi questionada, tendo em vista sua finalidade
social. É importante observar que, concomitante a esse processo, os trabalhadores continuavam a buscar
soluções habitacionais compatíveis com os baixos salários recebidos, na ocupação irregular de áreas
periféricas, em condições inadequadas de habitação.

Em 1946, foi criada a Fundação da Casa Popular (FCP), cujo objetivo era intervir no problema
habitacional, com oposições fortíssimas de vários segmentos, tanto aliados quanto críticos ao governo.
Foram criados outros órgãos municipais e estaduais no interior do país, tendo atribuições na área da
assistência social, para responder ao problema da carência e precarização de moradias. Em 1956, foi
promulgada a denominada Lei das Favelas (Lei n. 2.875) (BRASIL, 1956), visando a intervenções pontuais
na área urbana. Segundo Vieira (1983), a demanda habitacional durante o governo Vargas, em 1950,
estava em torno de 2,4 milhões de moradias, e as cidades configuravam aspectos da desigualdade social
na ausência de conforto e higiene para parte significativa da população brasileira, que habitava em
favelas ou loteamentos e conjuntos habitacionais, distantes dos centros urbanos (BONDUKI, 1998).

O programa FCP, que resistiu de 1946 a 1964, período marcado pela disputa de projetos e intensificação
da luta de classes (BEHRING; BOSCHETTI, 2006), foi substituído pelo Banco Nacional de Habitação (BNH).
É interessante observar que, apesar do projeto desenvolvimentista do governo Kubitschek no final dos
anos 1950 e da intenção de intervir no problema habitacional, presente no discurso dos governos Jânio
Quadros e João Goulart, havia uma distância entre as necessidades sociais e os recursos para sanar a
falta de habitações populares (VIEIRA, 1983). Assim, pouco foi realizado em termos de respostas às
necessidades por moradias no país e, em consequência, por cidades justas.

Em síntese, as ações no campo da produção de moradia popular, até meados dos anos 1960, quando
da criação do BNH, podem ser caracterizadas como dispersas nacionalmente e pouco significativas em
termos de escala e de formas públicas de financiamento. Concomitante a esse cenário, desde os anos
1930, o real perfil da intervenção do Estado no campo da moradia popular foi marcado por políticas
voltadas tanto para a erradicação quanto para a integração subordinada e excludente de favelas,
mocambos e cortiços às cidades.

Tais ações concentraram-se notadamente nas principais cidades – palco do desenvolvimento


urbano‑industrial desigual e combinado do país – que sofreram os impactos do processo de
expropriação da terra no campo e da mudança demográfica da população de rural para urbana, a
partir dos anos 1960, como observado nas capitais da região Sudeste. Se, por um lado, o conteúdo
das ações do Estado não foi contínuo e homogêneo ao longo do tempo e do espaço nacional,
é possível identificar, por outro, um núcleo fundamental formado por práticas de coerção,
controle social e moral, higienismo social, integração e adaptação dos moradores de favelas ao
desenvolvimento, e por ações de desenvolvimento de comunidade.

Em 1967, foi implementado um modelo de política habitacional nacional com o BNH, que, sob
um ideário desenvolvimentista, produziu moradias, “caracterizando- se pela gestão centralizada,
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Unidade I

ausência de participação comunitária, ênfase na produção de casas prontas por empreiteiras,


localização periférica e projetos medíocres” (BONDUKI, 1998, p. 319).

O BNH, como gestor de um sistema de financiamento – Sistema Financeiro de Habitação (SFH) –,


possibilitou verba para o setor, tanto de depósitos compulsórios do Fundo de Garantia por Tempo de
Serviço (FGTS) quanto de depósitos voluntários do Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo (SBPE),
para a operacionalização de um conjunto de programas federais, de uma agenda de distribuição de
recursos e uma rede de agências locais responsáveis pela operação direta das políticas e pela mudança
no perfil, com a verticalização das cidades (CARDOSO, 2003; MARICATO, 2002).

Segundo Medeiros (1997, p. 49):

O atendimento à população, em termos de financiamento habitacional, era


feito por faixas de mercado, segundo os diferentes estratos de renda. Deste
modo, a camada mais carente da população, “mercado popular”, recebendo
até 5 salários mínimos, deveria ser atendida pelas Companhias Estaduais
ou Municipais de Habitação - COHABs, na qualidade de Agente Promotor.
Os estratos médios, ou o chamado “mercado econômico”, de 5 a 10
salários mínimos, constituíam-se na clientela preferencial das Cooperativas
Habitacionais assessoradas em suas atividades de Agente Promotor pelos
Institutos de Orientação às Cooperativas - INOCOOPs. E as faixas de renda
mais alta, acima de 10 salários mínimos, formavam o mercado a ser atendido
pelo Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo - SBPE.

A criação do BNH marcou o início de uma política cuja característica foi o “alinhamento das ações
habitacionais executadas no plano local às políticas formuladas no plano federal” (ARRETCHE, 2000,
p. 82), o que garantia a integração do sistema e tinha também o objetivo de impulsionar a economia,
fortalecendo o setor da construção civil, produzindo quase 4,5 milhões de moradias em 22 anos, “num
contexto de nenhuma transparência e controle dos gastos públicos” (BEHRING; BOSCHETTI, 2006, p. 137).

Com a produção dos conjuntos habitacionais, houve a proposição de alguns programas habitacionais
destinados à população com renda mensal inferior a três salários mínimos, como os Programas de
Financiamento de Lotes Urbanizados (PROFILURB), de Erradicação da Sub-habitação (PROMORAR) e o
João de Barro, com resultados pouco significativos, ainda que, em princípio, o atendimento não tivesse
como objetivo a remoção das famílias, que era pauta da luta dos movimentos por moradia.

São programas que proporcionaram recursos para saneamento e obras viárias locais e regionais,
custeados pelos orçamentos municipais e estaduais (MARICATO, 2002) em duas décadas de uma ação
governamental que se mostrou incapaz de atender à população com baixos salários, por razões como
a inadimplência, a substituição dos moradores dos conjuntos por populações de renda mais alta, a
autoconstrução e o retorno de populações às favelas, além dos custos políticos e sociais provocados
pelos programas compulsórios de remoções de favelas (CARDOSO, 2003). Vieira observa que, no Brasil,
“o projeto habitacional veio a definir o projeto urbano, quando na verdade este precisava determinar
aquele” (1983, p. 224).
16
POLÍTICA SETORIAL - HABITAÇÃO

Observação
As políticas sociais de habitação buscam minimizar as questões de
habitação, ocupação do solo, delimitação de espaços. Assim, determinam
a função social dos governos, da iniciativa privada e dos próprios cidadãos
que vivem nos espaços urbanos das cidades.
O espaço urbano, enquanto território das relações de uso e ocupação
dos espaços, é promovido no âmbito da convivência social entre pessoas
que demarcam não só o território, mas as relações sociais de poder,
subalternidade, superioridade, cumplicidade etc. Portanto, ao pensarmos
em território, espaço, lugar, temos que pensar na dinâmica viva
dos que a compõem.

Lembrete

• SFH: Sistema Financeiro de Habitação.


• FGTS: Fundo de Garantia por Tempo de Serviço.
• SBPE: Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo.

Figura 8 – Conjunto habitacional General Dale Coutinho, situado no Jardim Castelo, Zona Noroeste de Santos-SP (1979)

1.2 Banco Nacional de Habitação (BNH)

Em 1964, após o Golpe Militar que derrubou o governo João Goulart, o modelo de política habitacional
implantou um conjunto de estratégias e “características que deixaram marcas importantes na estrutura
institucional e na concepção dominante de política habitacional nos anos que se seguiram” (BRASIL,
2004c, p. 9). Essas características podem ser identificadas a partir de alguns elementos fundamentais
17
Unidade I

– por exemplo, a criação do SFH, composto pela captação de recursos específicos: o FGTS, arrecadação
compulsória (portanto, recurso garantido para habitação), e o SBPE. Ambos chegaram a atingir um
montante significativo para o investimento habitacional.

Conjuntamente com o SFH, o BNH foi criado com a missão de “estimular a construção de habitações
de interesse social e o financiamento da aquisição da casa própria, especialmente pelas classes da
população de menor renda” (BOTEGA, 2007, p. 64). Essas ações demonstram que a habitação popular foi
eleita um dos problemas fundamentais para o poder público.

O BNH tornou‑se uma das principais instituições financeiras do país e a maior instituição mundial
voltada especificamente para o problema da habitação. Para termos uma noção, em 1969, o BNH era
o segundo maior banco em termos de recursos disponíveis, ficando atrás somente do Banco do Brasil.
Já em 1974, o Banco tinha o equivalente a 30 bilhões de cruzeiros, montante que poderia amenizar de
maneira significativa o déficit habitacional. Contudo, o relatório anual do BNH destacou em 1971 que:

[...] os recursos utilizados pelo Sistema Financeiro da Habitação só foram


suficientes para atender a 24 por cento da demanda populacional (urbana).
Isto significa que, seis anos após a criação do BNH, toda a sua contribuição
para atender ou diminuir o déficit que ele se propôs eliminar constituiu
em que esse mesmo déficit aumentasse em 76 por cento. De acordo com
as previsões do BNH, em 1971 o atendimento percentual teria sido de 25,3
por cento e, embora deva aumentar ligeiramente em cada ano até 1980,
o déficit deverá exceder 37,8 por cento do incremento da necessidade
(BOLAFFI, 1982, p. 53).

Embora os recursos financeiros do SFH/BHN demonstrassem um montante considerável para o


atendimento da população, sua gestão e sua lógica de organização não foram suficientes para superar
o déficit habitacional.

O BNH, desde a sua constituição, fez com que todas as suas operações tivessem a orientação de
transmitir as suas funções para a iniciativa privada. O Banco arrecadava os recursos financeiros e, em
seguida, transferia-os para os agentes privados intermediários. Algumas medidas inclusive demonstravam
que havia ao mesmo tempo uma preocupação com o planejamento das ações de urbanização aliada aos
interesses do capital imobiliário (BOTEGA, 2007, p. 67).

O BNH obrigou as prefeituras a elaborarem planos urbanísticos aos seus municípios, para que
obtivessem empréstimos junto ao Serviço Federal de Habitação e Urbanismo (SERFHAU). Entretanto,
esses planos deveriam ser elaborados pela iniciativa privada e coordenados.

As prestações e as cobranças estavam a cargo de empresas privadas. Com isso, essas empresas
retinham parte dos juros, e os valores recebidos ficavam sob o seu poder por até um ano antes de
devolvê‑los para o BNH, agregando juros desse valor em seu poder para as empresas. Desse modo,
o SFH/BNH impulsionava a economia nacional por meio do capital imobiliário nacional, deixando
assim seu objetivo principal, que era implantar e gestar políticas habitacionais para superar os déficits
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POLÍTICA SETORIAL - HABITAÇÃO

habitacionais existente no Brasil. Tal artifício político e econômico foi estratégico para conter as pressões
inflacionárias que afetavam o Brasil no final do governo João Goulart, incentivando a construção civil.

No final de 1967, a construção civil foi substituída pela produção de bens duráveis e pela indústria
automobilística. Esse fato afetou diretamente o BNH, levando a uma nova estratégia de investimentos
somente para as camadas sociais com maior poder aquisitivo e deixando de lado as construções de
habitações populares.

Maricato, baseado nos pronunciamentos da direção do próprio BNH, em janeiro de 1975, nos quais
foi anunciada a reformulação do financiamento, fixa em cinco salários mínimos a renda limite para se
tornar um beneficiário dos financiamentos do Banco, o que excluía, portanto, a maioria da população
assalariada, que era a principal afetada pelo déficit habitacional (BOTEGA, 2007).

Botega traz outros autores que relacionam o montante de recursos destinados com o seu destino,
afirmando que:

O BNH, entre 1964 e 1977, aplicou a não desprezível soma de 135 bilhões de
cruzeiros financiando 1.739.000 habitações, que foram destinadas, de modo
particular, à família com rendimentos superiores a 12 salários mínimos.
[...] O Banco Nacional de Habitação (BNH) não só se tornou um poderoso
instrumento da acumulação, pois drenou uma enorme parcela de recursos
para ativar o setor da construção civil – recursos por sinal advindos em
grande parte de um fundo retirado dos próprios assalariados (FGTS) –, como
também voltou‑se para a confecção de moradias destinadas às faixas de
renda mais elevadas (BOTEGA, 2007, p. 69).

Lembrete

O BNH foi considerado a maior instituição mundial voltada


especificamente para o problema da habitação.

Observação
Enquanto assistentes sociais, precisamos compreender a questão urbana
como questão social estabelecida num espaço de crise, de conflitos sociais
agudizados, que aprofunda imensas fraturas e promove a segregação
social e espacial.

Vamos entender melhor: os recursos do BNH/SFH eram oriundos do FGTS, ou seja, do trabalhador.
No entanto, esse recurso estava sendo destinado para a população de classe média e alta. O trabalhador
que contribuía e tinha esse dinheiro investido em habitação não podia usufruir dos financiamentos ou
aquisição da casa própria. Como podemos perceber, o objetivo do Banco e do Sistema de Financiamento
foi desvirtuado, elevando o déficit habitacional e a questão econômica.
19
Unidade I

[...] o desempenho do SFH dependeria fundamentalmente de dois fatores


básicos: a capacidade de arrecadação do FGTS e do SBPE e o grau de
inadimplência dos mutuários. Em outras palavras, essa dependência
significava que, apesar da sofisticação do seu desenho, o SFH, como de resto
qualquer sistema de financiamento de longo prazo, era essencialmente
vulnerável a flutuações econômicas que afetassem estas variáveis. [...] Talvez
a principal (dadas as suas implicações políticas) entre as vulnerabilidades
do SFH fosse o fato de que flutuações macroeconômicas que implicassem
quedas nos salários reais necessariamente diminuiriam a capacidade de
pagamento dos mutuários, aumentando a inadimplência e comprometendo
o equilíbrio atuarial do sistema (SANTOS, 1999, p. 99).

Em março de 1985, após o período ditatorial, observou-se um movimento do Governo Federal no


sentido de pensar a cidade, com a criação do Ministério do Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente,
abrangendo a política habitacional, de saneamento básico, de desenvolvimento urbano e do meio
ambiente. Todavia, Cardoso (2003) aponta a existência de um vácuo com relação a uma política urbana
efetiva após a extinção do BNH em meados dos anos 1980, o que ocorre sob o:

efeito combinado da política recessiva adotada pelo governo militar e


a inflação elevada no início da década, causando aprofundamento da
inadimplência dos financiamentos [...] e a redução na capacidade de
arrecadação tanto do FGTS quanto do SBPE (CARDOSO; ARAGÃO, 2013, p. 18).

As funções do BNH foram divididas entre a Caixa Econômica Federal (CAIXA), que ficou responsável
pelo controle e pela gestão dos recursos do FGTS, o Banco Central e o Conselho Monetário Nacional.
Com a responsabilidade de formulação da política habitacional, foi criada a Secretaria Especial
de Ação Comunitária (SEAC), a princípio no âmbito da Secretaria de Planejamento da Presidência da
República Social e, posteriormente, da Casa Civil da Presidência da República (MEDEIROS, 1997).

As respostas governamentais às necessidades habitacionais resultaram da iniciativa dos estados e


municípios, no atendimento a demandas locais, utilizando-se de sistemas alternativos, como mutirões,
urbanização de assentamentos, oferta de lotes urbanizados e regularização fundiária e urbanística
(CFESS, 2016).

Por outro lado, também foram tempos de emergência dos movimentos sociais urbanos e rurais,
que vinham reivindicando espaço político na cena brasileira desde a segunda metade dos anos 1970.
Com suas formas de resistência na defesa de mecanismos de participação, buscando democratizar e
garantir transparência para a relação entre Estado e sociedade civil, com vistas à distribuição da riqueza
socialmente produzida, procuraram inverter o processo histórico de apropriação privada da produção
nas lutas pelo acesso à terra e ao trabalho.

A promulgação da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988) resultou de um exercício político


coletivo, ainda que cheio de contradições, para a consolidação da esfera pública no Brasil, pela defesa
dos espaços democráticos para expressão das necessidades sociais e políticas do conjunto da sociedade,
20
POLÍTICA SETORIAL - HABITAÇÃO

numa perspectiva de redefinição da relação entre Estado e sociedade civil. É nesse contexto que a
Emenda Popular da Reforma Urbana, de iniciativa popular, tomou corpo a partir de mobilizações
populares e ganhou concretude no capítulo da Constituição dedicado à política urbana, incorporando
a função social da cidade, além da função social da propriedade e da gestão democrática das cidades.

É importante a referência ao Fórum Nacional de Reforma Urbana (FNRU), que, originário das
articulações políticas que constituíram o movimento nacional pela reforma urbana, existe desde 1987.
Trata-se de um conjunto de organizações brasileiras que elaboraram (e vêm defendendo) uma agenda
de reformas estruturais no campo do desenvolvimento urbano e continuam lutando por cidades justas
e democráticas para todos. Desde então, as organizações que fazem parte do FNRU têm contribuído
para fortalecer a participação popular nos conselhos, nas conferências e nos fóruns, com o objetivo
de interferir na formulação e implementação de políticas, na capacitação de lideranças sociais e na
elaboração dos planos diretores participativos para as cidades.

A atuação do FNRU tem abrangência nacional, no incentivo à mobilização de diferentes sujeitos


coletivos para discutir as estratégias a serem adotadas, com vistas à construção de um modelo de
cidade que promova a justiça social e a democracia, potencializando as relações sociais e promovendo
a articulação no âmbito das políticas urbana e social. O desdobramento da força política do FNRU
nos Fóruns Regionais (Sul, Nordeste, Amazônia Oriental, Amazônia Ocidental) é fundamental para a
disseminação da luta pela reforma urbana no país.

Nos anos 1990, a atuação governamental nos programas urbanos para a população de baixa renda
sofreu interferências diversas, seja nos critérios clientelistas ou de favorecimento de alianças, como no
Plano de Ação Imediata para a Habitação (PAIH), lançado em 1990, seja na restrição dos gastos – sob
prescrição do Fundo Monetário Internacional (FMI) – para a produção de moradias, como nos programas
Habitar e Morar Município, em 1994, em tempos de Plano Real e governo de Fernando Henrique Cardoso
(FHC). Outros programas foram criados no governo FHC, como o Pró-Moradia (urbanização de áreas
precárias) ou mesmo o Programa de Arrendamento Residencial (PAR), sem desempenho quantitativo,
principalmente em termos de atendimento aos segmentos da classe trabalhadora (PAZ; TABOADA, 2010).

Assumindo que o Governo Federal não teria capacidade de financiar a expansão dos serviços, é
incentivada a abertura do setor urbano aos investimentos privados, sob a orientação de um modelo
descentralizado de gestão. Assim, à União caberia a normatização; aos estados, a definição de parâmetros
dos padrões de oferta dos serviços e regulação e controle dos programas que seriam executados pelos
municípios (ARRETCHE, 2000).

Assim, no final dos anos 1990 e início dos anos 2000, como consequência dessa limitação
macroeconômica imposta e seus efeitos para a política urbana, houve a restrição do atendimento da
demanda das populações de baixa renda, destacando-se o financiamento internacional, firmado em
final de 1999 com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e com recursos do Orçamento
Geral da União (OGU), para o desenvolvimento do Programa Habitar Brasil/BID (HBB), gerenciado pelo
Governo Federal e com a verba redistribuída para os municípios (CARDOSO, 2003).

21
Unidade I

O programa objetivava a implantação de projetos integrados para elevar os padrões de habitação


e de qualidade de vida de grupos com renda mensal até três salários mínimos, que residiam em áreas
precárias de regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e capitais. Segundo dados oficiais, foram
privilegiados 119 municípios em ações de capacitação técnica e gestão e foram contratados 119 projetos de
urbanização de assentamento subnormal em 84 municípios, nos quais foi desenvolvida uma metodologia
de intervenção que se organizava em duas fases distintas: fase do diagnóstico integrado e fase do
projeto integrado (BRASIL, 2007b).

O Programa Habitar Brasil/BID não reverteu um processo que advinha de anos de “estagnação,
reação burguesa e neoliberalismo” (BEHRING; BOSCHETTI, 2006, p. 148), que fizeram aprofundar a
concentração da renda e da pobreza no contexto das cidades, cujo crescimento acelerado ocorreu de
forma desigual. Afirma Maricato que o Brasil, sob o impacto da reestruturação produtiva, apresenta
“consequências mais dramáticas do que nos países centrais”, porque esse impacto “se dá sobre uma base
estrutural e historicamente desigual” (MARICATO, 2002, p. 30).

No Brasil, os mecanismos de proteção social não se colocam como na Europa, com o Welfare State;
ao contrário:

a heteronomia e o conservantismo político se combinam para delinear um


projeto antinacional, antidemocrático e antipopular por parte das classes
dominantes, no qual a política social ocupa um lugar concretamente
secundário, à revelia dos discursos neossociais e dos solidarismos declarados
(BEHRING; BOSCHETTI, 2006, p. 159).

A desarticulação institucional da ação governamental, que se acentuou desde o final dos anos
1980, sofreu mudanças em 2003 com a criação do Ministério das Cidades (MCidades), responsável pela
política de desenvolvimento urbano, pela elaboração e implantação das políticas setoriais de habitação,
pelo saneamento ambiental, transporte e mobilidade urbana e pelos programas urbanos. Com o objetivo
de construir um modelo participativo e democrático, numa concepção de desenvolvimento urbano
integrado, no qual a moradia digna implica o direito à infraestrutura, ao saneamento ambiental, à
mobilidade, ao transporte coletivo, aos equipamentos sociais e serviços urbanos, na perspectiva do
direito à cidade para todos, o governo articulou a realização das conferências, nos âmbitos municipais,
estaduais e nacional, e da instituição do Conselho Nacional das Cidades (ConCidades) em 2004, além de
promover a campanha do Plano Diretor Participativo (PDP) em 2006, para “disseminar o debate sobre a
cidade que temos e a cidade que queremos” (MARICATO, 2011, p. 47).

Ainda em 2004, sob a tese da necessidade de uma política urbana orientadora das ações desenvolvidas
nos diferentes níveis de governo, contemplando também investimentos e ações do legislativo,
judiciário e da sociedade civil, na perspectiva da construção da Política Nacional de Desenvolvimento
Urbano, pautada na ação democrática, descentralizada e com participação popular, foram elaborados
documentos norteadores do trabalho em torno dos temas estruturantes do espaço urbano: política
nacional de habitação, política de saneamento ambiental, política de mobilidade urbana sustentável e
política nacional de trânsito (BRASIL, 2004b).

22
POLÍTICA SETORIAL - HABITAÇÃO

Nesse contexto de mudanças, com a perspectiva de romper com a centralização e tecnocracia de


momentos anteriores, em 2005 é criado o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social (SNHIS),
pela Lei n. 11.124 (BRASIL, 2005b), prevendo a elaboração do Plano Nacional de Habitação (PLANHAB),
finalizado em 2010, e reunindo os recursos para habitação de interesse social (HIS) no Fundo Nacional
de Habitação de Interesse Social (FNHIS). Foi prevista a utilização dos recursos de forma descentralizada,
e os estados, municípios e o Distrito Federal deveriam atender às exigências de constituírem fundos e
conselhos de controle social e apresentar Planos Locais de Habitação de Interesse Social (PLHIS), um
dos instrumentos de implantação do SNHIS, com o objetivo de definir as estratégias de intervenção, as
linhas programáticas e as prioridades de investimento, devendo ser desenvolvido de forma articulada ao
plano diretor (KRAUSE; BALBIM; LIMA NETO, 2013).

As mudanças operadas na política econômica, a partir de 2006, na progressiva liberalização dos gastos
públicos e ampliação da exportação de commodities, possibilitaram novos mecanismos institucionais
para a política urbana (CARDOSO; ARAGÃO, 2013).

Todavia, a partir de 2009, delinearam-se mudanças políticas na distribuição dos recursos pelo Conselho
Gestor do FNHIS, com a destinação de percentual significativo de verbas a projetos de urbanização
de assentamentos precários, para complementação de obras inseridas no denominado Programa de
Aceleração do Crescimento (PAC), cuja concepção se deu fora do marco do SNHIS, em 2007. Além disso,
em 2008, foi lançado o Programa Minha Casa, Minha Vida (PMCMV), regulamentado pela Lei n. 11.977
(BRASIL, 2009c), em um contexto de crise financeira internacional, para cumprir o objetivo de “manter
elevados os níveis de investimentos no setor da construção civil” (KRAUSE; BALBIM; LIMA NETO, 2013, p. 8).
Segundo os autores, o programa MCMV assumiu a maior parte da provisão habitacional de interesse
social no Brasil, promovendo mudanças no próprio marco do SNHIS.

Uma das mudanças mais importantes foi que o FNHIS, como principal instrumento de efetivação
do SNHIS, mantido com recursos do Orçamento Geral da União (OGU), praticamente deixou de apoiar a
provisão pública de habitação de interesse social (KRAUSE; BALBIM; LIMA NETO, 2013, p. 7).

Figura 9 – Casas do Programa Habitacional Minha Casa, Minha Vida (2013)

23
Unidade I

Em meio às contradições da política urbana, esvaziada de suas institucionalidades, que foram


substituídas por mecanismos de exceção e pactos de conveniência entre diferentes sujeitos políticos,
o Estatuto da Cidade (BRASIL, 2001) não surtiu resultados significativos, e as cidades brasileiras não
conseguiram efetivar um projeto estratégico que desenvolvesse, atendendo aos interesses contraditórios
de uma sociedade de classes, as diferentes dimensões do desenvolvimento urbano, isto é, o verdadeiro
direito à cidade.

Figura 10 – Prédios de luxo ao fundo e uma favela à frente (segregação socioespacial)

É importante ressaltar que o direito à cidade tem sua expressão nos estudos de Henri Lefebvre, que
o considerava um direito fundamental, afirmando a superioridade do valor de uso contra o valor de
troca mercantil, o qual, para ele, reduzia toda a sociabilidade urbana a uma relação de troca mercantil,
submetendo o espaço urbano exclusivamente aos imperativos da produção e do consumo. Assim, ao
tratarmos do direito à cidade, teremos que compreender a questão urbana como uma questão social
estabelecida num espaço de crise, conflitos sociais agudizados, aprofundando imensas fraturas e
promovendo a segregação social e espacial (IVO, 2010).

Conforme nos lembra Guimarães (2013, p. 181):

Sendo o espaço urbano moldado essencialmente para potencializar a


acumulação do capital, sua formatação articula as diferentes esferas do
modo capitalista de produzir. Exatamente por isso há, na produção do espaço
no capitalismo, a vitória do valor de troca sobre o valor de uso, haja vista
que o núcleo urbano torna-se objeto de um duplo papel: lugar de consumo
e consumo do lugar (LEFEBVRE, 2001), em um processo no qual o valor de
troca prevalece a tal ponto sobre o valor de uso que praticamente suprime
este último. Com isso, [...] o valor de troca e a generalização da mercadoria
pela industrialização tendem a destruir, a subordiná-las a si, a cidade e a
realidade urbana, refúgios do valor de uso [...] (LEFEBVRE, 2001, p. 14).

24
POLÍTICA SETORIAL - HABITAÇÃO

Mais adiante, trabalharemos os diferentes conceitos da política urbana, que abrangem denominações
e representações diferenciadas, perpassando pelos interesses de projetos sociais, econômicos e
políticos existentes no âmbito urbano. Assim, vamos compreender como o espaço urbano se reveste
de mercadoria no mundo capitalista reproduzindo desigualdades socioespaciais, as quais serão nosso
objeto de intervenção enquanto profissionais.

2 VALOR DA TERRA E SEGREGAÇÃO SOCIOESPACIAL

Desde que os seres humanos passaram a se agrupar para se proteger ou satisfazer suas necessidades,
o território passou a ser disputado, o que ocorria pela atribuição de valor monetário, de poder, sentimental
ou de sobrevivência.

As condições de um território que possua uma fonte de água, por exemplo, favorecem o plantio de
alimentos com menos recursos. Condições climáticas podem favorecer ou destruir o plantio, dependendo
da localização, e os melhores territórios são mais valorizados e cobiçados, tanto para obter poder quanto
para garantir a sobrevivência de um povo. Sendo assim, os conflitos ocorrem com a valorização de um
território em detrimento de outro.

Na sociedade contemporânea, a propriedade privada da terra passou a ser exercida como uma
forma de dominação (poder) de um indivíduo sobre o outro, havendo pessoas com terras e outras
sem propriedades. Assim, mediante a acumulação da propriedade territorial, desenvolve‑se a
autoridade dos proprietários diante dos não proprietários, que necessitam permanecer nas terras
das quais não são proprietários.

Como exemplo de dominação e poder por meio do território, podemos citar o período feudal, em
que poucos proprietários possuíam grandes porções de terras, enquanto a maioria das pessoas não as
possuía, sendo permitida aos não possuidores a permanência com submissão aos possuidores.

A questão do valor monetário atribuído à terra merece nossa atenção se pensarmos que a terra é
um bem durável, que não é criado pelo homem, que não é fruto de seu trabalho e que dificilmente se
desvaloriza; pelo contrário, possui a tendência de sempre se valorizar.

Precisamos compreender que a valorização da terra, seja ela rural, seja urbana, desenvolve
a segregação e a desigualdade social. A partir do momento que determinado território adquire
um valor monetário elevado, estando fora das possibilidades de aquisição de grande parte da
população, esta acaba sendo obrigada a buscar locais menos valorizados para habitar, gerando
assim a desigualdade social.

Naturalmente, as áreas que possuem maior valor são aquelas que possuem melhor infraestrutura,
acessibilidade e possibilidades de qualidade de vida; em contrapartida, os valores menores estão em áreas
de difícil acesso e sem a menor infraestrutura, gerando grandes aglomerados de moradias irregulares
e sem estrutura, como favelas. Essa análise é importante para compreender a função da habitação na
organização da sociedade.

25
Unidade I

Villaça (2011) parte da premissa de que nenhum aspecto da sociedade brasileira poderá ser
compreendido se não for considerada a enorme desigualdade econômica e de poder político que existe
em nossa sociedade. O maior problema do Brasil não é a pobreza, mas a desigualdade e a injustiça a
ela associada.

É pertinente dizer que as configurações das cidades, dos espaços e as transformações ocorridas no
nosso cotidiano estão diretamente relacionadas ao capital imobiliário.

O capital imobiliário mantém profissionais para o acompanhamento do


orçamento público e da legislação urbanística, já que eles incidem nos
preços das localizações e, portanto, na valorização ou desvalorização de
terrenos. Mas as empresas de construção pesada também exercem forte
influência nas decisões sobre as obras de infraestrutura urbana. A relação
entre empreiteiras de construção, a visibilidade de grandes obras viárias (cujo
prazo deve manter uma lógica em relação aos prazos eleitorais) e as doações
para o financiamento de campanhas eleitorais parecem ser uma chave que
explica muito do investimento público nas cidades (MARICATO, 2011, p. 81).

Para tratarmos de conceitos que sustentam a política habitacional, precisamos nos lembrar de fatores
históricos, dos atores sociais que contribuem para que essa política seja considerada um dos principais
problemas urbanos no Brasil nos dias atuais.

Guimarães (2013) reconhece que, para além do poder das empreiteiras como orientadoras e
definidoras dos investimentos públicos nas cidades, vale atentar para a tendência em curso no
âmbito do Estado brasileiro com relação à própria condição da política pública pensada para as
cidades. A lógica do empreendedorismo urbano tem predominado na atualidade e, mais do que em
qualquer tempo histórico, tem dado a linha na forma oficial de pensar e planejar a cidade como
um grande negócio capitalista.

Portanto, podemos entender o território como mercadoria, mas que, no caso das políticas urbanas,
é ilustrativo da lógica de privilegiamento do capital e do mercado o expressivo poder das empreiteiras
como orientadoras dos investimentos públicos urbanos. Além da visibilidade das obras ser um
critério forte para as decisões de investimentos (públicos ou privados), ainda mais quando se trata
das metrópoles, o que prevalece é a lógica do uso dos fundos públicos como subsídio para a
produção de novas localizações que possam contribuir e atender à finalidade de expansão do
mercado imobiliário (GUIMARÃES, 2013).

Destacamos que o direito à cidade no atual debate político da sociedade urbana brasileira, enquanto
necessidade humana elementar, apresenta-se hoje totalmente diluído nas lutas por direitos sociais
básicos para a classe trabalhadora e reflete os rumos da questão urbana no país; por isso mesmo,
abrange distintas bandeiras de lutas históricas e envolve diversos sujeitos coletivos (GUIMARÃES, 2013).

Longe de ser um espaço de consensos e hegemonias, a cidade é um espaço vivo, dinâmico, tenso,
um ambiente de diferentes disputas em diversas estruturas: pela vaga de emprego, pelo cadastro
26
POLÍTICA SETORIAL - HABITAÇÃO

no Programa de Habitação, pela vaga para estacionar, pela ocupação nas filas dos serviços públicos
oferecidos, pelo assento no metrô etc. As diferenças, disputas e desigualdades são intrínsecas ao chão
do homem comum do cotidiano. Ocorrem da mesma forma, por exemplo, a disputa da empreiteira pela
obra de bilhões, a compra do apartamento melhor situado e a troca do carro mecânico pelo automático.
Essa reflexão busca traduzir a dinâmica socioespacial em diferentes escalas, mas com uma dimensão
objetiva que faz a questão urbana ser complexa e que se expressa em diferentes campos influenciados
por ela e nos mais diferentes lugares.

Percebemos que, no cenário das necessidades de habitação digna, de melhores acessos, na busca
pela qualidade de vida, estão as famílias de baixa renda inseridas na questão urbana, sendo aqui
compreendida a questão social urbana, na qual os investimentos que poderiam reduzir tais desigualdades
são distribuídos e aplicados de forma dispersiva ou incoerente – não porque não há planejamento ou
gestão para tal, mas porque o capitalismo precisa da escassez para sobreviver.

Habitação, de acordo com o Dicionário Aurélio, significa: “lugar em que se habita. Morada, residência”.
A função da habitação, no seu sentido geral, é a do abrigo. Desde os primórdios da civilização, o homem
teve a necessidade de se abrigar para se proteger. Os povos primitivos utilizavam como abrigo espaços
naturais, tais como as cavernas e as árvores. A partir do desenvolvimento das habilidades humanas,
o homem começou a empregar diversos materiais para construir os seus abrigos: a pedra, as peles, a
madeira e a terra.

Com o passar do tempo, o homem juntou‑se com outros homens, de modo a agregar as habitações
primitivas e criar as aldeias, definidas como meros grupamentos de moradias, sendo compartilhadas com
os animais e servindo também para armazenar alimentos. As aldeias começaram a crescer, com áreas para
cultivo de alimentos, construções de defesa e atividades religiosas. Com isso, a produção aumentou mais
que a necessidade do consumo, constituindo um excedente que precisou ser comercializado, distribuído
e armazenado. Iniciaram‑se, assim, a caracterização e a formação das primeiras cidades (ABIKO, 1995).

De acordo com Larcher (2005, p. 6):

Como obra arquitetônica, segundo Rapoport (1984), a função de abrigar


não é sua única nem a principal função da habitação. O autor observa
que a variedade observada nas formas de construção, num mesmo local
ou sociedade, denota uma importante característica humana: transmitir
significados e traduzir as aspirações de diferenciação e territorialidade dos
habitantes em relação a vizinhos e pessoas de fora de seu grupo. Santos
(1999) afirma que a habitação é uma necessidade básica e uma aspiração
do ser humano. A casa própria, juntamente com a alimentação e o
vestuário, é o principal investimento para a constituição de um patrimônio,
além de ligar‑se, subjetivamente, ao sucesso econômico e a uma posição
social mais elevada.

O autor destaca que a habitação exerce três funções primordiais: social, ambiental e econômica.
Como função social, tem de abrigar a família e é um dos fatores do seu desenvolvimento.
27
Unidade I

Segundo Abiko (1995), a habitação passa a ser o espaço ocupado antes e após
as jornadas de trabalho, acomodando as tarefas primárias de alimentação,
descanso, atividades fisiológicas e convívio social. Assim, entende‑se que a
habitação deve atender aos princípios básicos de habitabilidade, segurança
e salubridade (LARCHER, 2005, p. 6).

A habitabilidade nos remete ao espaço ocupado de forma digna. Portanto, para Santos (1994), o
papel do território na sua função social reforça a ideia de pertencimento a um espaço que favorece
e potencializa as relações humanas. Isso nos faz refletir sobre a condição das moradias subnormais,
consideradas pelo IBGE (s.d.) como:

uma forma de ocupação irregular de terrenos de propriedade alheia –


públicos ou privados – para fins de habitação em áreas urbanas e, em geral,
caracterizados por um padrão urbanístico irregular, carência de serviços
públicos essenciais e localização em áreas com restrição à ocupação. No Brasil,
esses assentamentos irregulares são conhecidos por diversos nomes como
favelas, invasões, grotas, baixadas, comunidades, vilas, ressacas, loteamentos
irregulares, mocambos e palafitas, entre outros. Enquanto referência básica
para o conhecimento da condição de vida da população brasileira em todos os
municípios e nos recortes territoriais intramunicipais – distritos, subdistritos,
bairros e localidades –, o Censo Demográfico aprimora a identificação dos
aglomerados subnormais. Assim, permite mapear a sua distribuição no País e
nas cidades e identificar como se caracterizam os serviços de abastecimento
de água, coleta de esgoto, coleta de lixo e fornecimento de energia elétrica
nestas áreas, oferecendo à sociedade um quadro nacional atualizado sobre
esta parte das cidades que demandam políticas públicas especiais.

Dessa forma, é preciso reconhecer que o território não é apenas o resultado da superposição de um
conjunto de sistemas naturais e de coisas criadas pelo homem; o território é o chão e mais a população,
ou seja, uma identidade, o fato e o sentimento de pertencimento. O território é a base do trabalho, da
residência, das trocas materiais e espirituais e da vida sobre os quais ele influi (SANTOS, 1994).

A habitação tem um papel fundamental na organização social, seja na função micro (em que há
convivência entre várias pessoas no mesmo espaço, grupos entre si conhecidos, desconhecidos e/ou
família), seja na relação macro (em que vários grupos compartilham o mesmo espaço, formando
comunidades, bairros, cidades, estados e países). São as atividades exercidas nesse espaço, básicas ou
elaboradas, que impactam diretamente na relação habitação-qualidade de vida.

Na função ambiental, a inserção no ambiente urbano é fundamental para que estejam assegurados os
princípios básicos de infraestrutura, saúde, educação, transportes, trabalho, lazer etc., e para determinar
o impacto dessas estruturas sobre os recursos naturais disponíveis. Além de ser o cenário das tarefas
domésticas, a habitação é o espaço no qual muitas vezes ocorrem, em determinadas situações, atividades
de trabalho, como pequenos negócios (ABIKO, 1995). Nesse sentido, as condições de vida, de moradia e de
trabalho da população estão estreitamente vinculadas ao processo de desenvolvimento (LARCHER, 2005).
28
POLÍTICA SETORIAL - HABITAÇÃO

A função econômica da moradia é inquestionável: sua produção oferece novas oportunidades


de geração de emprego e renda, mobiliza vários setores da economia local e influencia os mercados
imobiliários e de bens e serviços (LARCHER, 2005), mas fomenta também a segregação socioespacial
quando não está atrelada a uma política habitacional planejada que considere que, para viver em
determinada localidade, é necessário que sejam ofertados outros serviços e equipamentos sociais para
que haja a mínima condição de habitabilidade.

Para definirmos segregação socioespacial, precisamos concordar com Villaça (2011) quando diz que
o maior avanço ocorrido no campo da ciência da geografia em todos os tempos é a consciência de
que o espaço social – no nosso caso, o espaço urbano – é socialmente produzido, ou seja, não é dado
pela natureza, mas é produto produzido pelo trabalho humano. O autor ainda afirma que a segregação
é a mais importante manifestação espacial urbana da desigualdade que impera em nossa sociedade.
Vale ressaltar que essa não é uma realidade apenas do Brasil, mas de vários países, como podemos ver
nas figuras a seguir.

Figura 11 – Buenos Aires (Argentina)

Figura 12 – Rio de Janeiro (Brasil)

29
Unidade I

Figura 13 – Paraisópolis (São Paulo)

Figura 14 – Caracas (Venezuela)

Figura 15 – Cidade do México (México)

30
POLÍTICA SETORIAL - HABITAÇÃO

Figura 16 – Bombaim (Índia)

Podemos concluir que a ocupação desigual do espaço gera a maioria das desigualdades sociais
que conhecemos, mas é importante não generalizar, pois quando falamos de desigualdade estamos
mencionando um termo advindo da sociologia e da economia para designar a diferença entre classes
sociais; não estamos pautando aqui a condição da capacidade humana e das potencialidades de
cada indivíduo.

Verificamos que a segregação é um processo da dinâmica social, na qual há disputas econômicas,


sociais, ideológicas e econômicas no território. Portanto, “falar de território é fazer uma referência
implícita à noção de limite”, que pode ser expressa pela “relação que um grupo mantém com uma
porção do espaço”, gerando uma delimitação, que, por sua vez, significa “manifestar um poder
numa área precisa” (RAFFESTIN, 1993, p. 153).

Também é necessário considerarmos que as respectivas mudanças do território são consequências


da atividade humana, as quais definem os seus valores, a sua dinâmica da vida cotidiana e as condições
de apropriação. Conforme Souza (1995, p. 81):

Territórios existem e são construídos (e desconstruídos) nas mais diversas


escalas, da mais acanhada (p. ex., uma rua) à internacional (p. ex., a área formada
pelo conjunto dos territórios dos países-membros da Organização do Tratado
do Atlântico Norte – OTAN); territórios são construídos (e desconstruídos)
dentro de escalas temporais as mais diferentes: séculos, décadas, anos,
meses ou dias; territórios podem ter um caráter permanente, mas também
podem ter uma existência periódica, cíclica.

Concluímos que a segregação urbana está atrelada ao poder, ao valor da terra como mercadoria,
à estratificação social a partir da estratificação territorial. Com isso, é possível considerar que a
segregação se apresenta como o progresso do capitalismo, ou seja, a acumulação de riquezas nas
mãos de poucos e, consequentemente, o aumento da pobreza do povo, que tem grande respaldo

31
Unidade I

jurídico à moradia na Constituição de 1988, mas apenas no papel. Ao mencionar um salário mínimo
em seu artigo 2°, diz a Constituição:

Remuneração mínima devida a todo trabalhador adulto, sem distinção


de sexo, por dia normal de serviço, e capaz de satisfazer, em determinada
época e região do país, as necessidades normais de alimentação, habitação,
vestuário e transporte (BRASIL, 1988).

No entanto, é fato que o salário mínimo nunca atendeu a essa definição. Podemos pontuar também
que a segregação urbana está diretamente relacionada à histórica condição econômica (renda), no que
tange à necessidade de condição de consumo e apropriação de bens necessários à condição de habitação
do povo. Uma das frases que aqui recordamos, da época do chamado milagre econômico (1968 a 1973),
período em que o Brasil teve um crescimento econômico expressivo, é do presidente Geisel, que teve a
sensibilidade política de captar a verdade e enunciar sua antológica frase: “A economia vai bem, mas o
povo vai mal”.

Portanto, há crescimento econômico, e não desenvolvimento social para que haja o mínimo de
dignidade para os trabalhadores, pois o que é entendido como ausência para os trabalhadores é necessário
para o capitalista, como a máxima de Francisco de Oliveira: “Privatizar os lucros e socializar as perdas”.

A segregação é um tema que exige compreensão política, histórica, social e econômica numa
articulação com o território e no território. Afinal, temos que exercer a pluralidade de conhecimentos para
alçar novos espaços profissionais e realizar a involução das questões sociais que nos são apresentadas.
Conforme nos lembra Iamamoto (2007), temos que dar respostas a essas diferentes demandas das
expressões sociais existentes.

Saiba mais
Para aprofundar seu conhecimento no assunto, indicamos a leitura
a seguir:
SANTOS, M. Território: globalização e fragmentação. São Paulo:
Hucitec, 1994.

Exemplo de aplicação

Pesquise e estude sobre o entorno da sua casa, levantando a infraestrutura faltante e a existente.
Em seguida, apresente suas considerações e seus questionamentos sobre: o que temos e o que está
faltando? Na legislação, quem é responsável por isso? Reflita.

No próximo tópico, estudaremos a política urbana e seus elementos, como território, lugar, cidade,
entre outros termos importantes da política habitacional.

32
POLÍTICA SETORIAL - HABITAÇÃO

3 CONCEITOS DA POLÍTICA URBANA

No início do século XX, devido à rápida industrialização, as cidades atraíram grande parte da
população, mas inexistiam políticas habitacionais que impedissem a formação de áreas urbanas
irregulares e ilegais. As áreas ocupadas ilegalmente são expressões diretas da ausência de políticas de
habitação social. A maioria das políticas habitacionais propostas foi ineficaz devido a diversos fatores
políticos, sociais, econômicos e culturais. O resultado desse processo é que, atualmente, mais de 82% da
população brasileira é urbana.

O surgimento de políticas habitacionais de fato preocupadas em solucionar o alarmante problema


é recente. Foram implantadas a partir da Constituição Federal de 1988 e regulamentadas pelo Estatuto
da Cidade (BRASIL, 2001), que regula o uso da propriedade urbana em prol do interesse coletivo e
do equilíbrio ambiental, sendo um instrumento inovador na política habitacional e uma importante
ferramenta de regularização fundiária. Propomos aqui discutir esse percurso histórico e as conquistas
ainda em curso no país (HOLZ; MONTEIRO, 2008).

A política urbana pode ser concebida como “produto de contradições urbanas, de relações entre
diversas forças sociais opostas quanto ao modo de ocupação ou de produção do espaço urbano”. Nessa
perspectiva, a política urbana representa uma ação estatal, com foco na organização e no ordenamento
territorial, para assegurar as condições necessárias à contínua “reprodução das forças produtivas e das
relações de trabalho” (LOJKINE, 1997, p. 202 apud LIMA, 2008, p. 55).

A política urbana advém de um processo em que o Estado brasileiro assumiu para si a tarefa material
de unificação socioterritorial, atuando nas áreas de comunicação, energia, saúde, educação, além dos
setores produtivos, como a indústria de base, e dos setores tradicionalmente regulados pelo Estado,
como o de planejamento territorial, o fisco e a regulamentação financeira (ANTAS JR., 2005). Assim,
podemos compreender que a política urbana é uma política pública que integra as demais políticas
públicas que são pensadas e implantadas no âmbito da cidade, como a saúde, a educação, o transporte,
o lazer, a cultura, a assistência social, o saneamento básico e outras ações governamentais. Assim,
produzindo-se o território, produziam-se também as regras de seu uso, além do pressuposto monopólio
do modo de produção jurídico.

Quando pensamos nos conceitos da política urbana, não há como não mencionar que a dinâmica
dessa política se dá no âmbito social, ou seja, nas relações sociais de homens, mulheres, trabalhadores,
aventureiros, todas essas pessoas num ambiente particular das cidades, convivendo com barulho de
motor, fumaça, ruído, vidros, tijolos, concretos, grades, madeiras, esgoto, lixo, ninhos humanos nas
praças e calçadas que expõem as condições de vida abaixo da dignidade humana. Dessa forma, devemos
compreender que, assim como os diferentes elementos de uma cidade, há diferenças entre os conceitos
de território, espaço e cidade.

Na visão de Milton Santos (1986), o território pode ser considerado como delimitado, construído e
desconstruído por relações de poder que envolvem uma gama muito grande de atores que territorializam
suas ações com o passar do tempo. No entanto, a delimitação pode não ocorrer de maneira precisa,
33
Unidade I

pode ser irregular e mudar historicamente, bem como acontecer uma diversificação das relações sociais
num jogo de poder cada vez mais complexo, em que o território é apenas como uma área delimitada e
constituída pelas relações de poder do Estado.

Ainda conforme Santos (1986), o território também se repete como conceito subjacente e aparece
como palco onde o capitalismo internacional prolifera enquanto o Estado empobrece, perdendo sua
capacidade para criar serviços sociais. Nesse mesmo palco, ocorre uma apropriação da mais-valia,
desvalorização dos recursos controlados pelo Estado e supervalorização dos recursos destinados às
grandes empresas, principalmente nos países periféricos. O território é o palco da proliferação do capital,
espaço apropriado pelos agentes do capital através da divisão social do trabalho.

Conforme considera Koga (2003), “o território é um fator dinâmico no processo de exclusão/inclusão


social, na medida em que expressa a distribuição de bens civilizatórios direcionados para a qualidade
de vida humana”. Assim, como objeto de regulação estatal através de políticas públicas, as condições de
vida territorialmente analisadas são, para Koga, “um dos instrumentos para concretizar a redistribuição
social no enfrentamento das desigualdades econômicas e sociais”.

Para Santos (2002), o espaço geográfico é organizado pelo homem vivendo em sociedade, e cada
sociedade, historicamente, produz seu espaço como lugar de sua própria reprodução. O espaço social
corresponde ao espaço humano, lugar de vida e trabalho: morada do homem, sem definições fixas.
Cada lugar é, à sua maneira, o mundo, ou seja, devido às redes de transporte e comunicações, cada
lugar passa a ser virtualmente mundial.

Por outro lado, essa nova realidade corresponde também a uma ampliação da sua individualidade e
diferença em relação aos outros lugares. Para Santos (2002), o cotidiano está enriquecido pelos papéis
que a informação e a comunicação assumiram em todos os aspectos da vida social. É no lugar e no
cotidiano compartilhados entre pessoas, negócios e instituições que se forma a base para a vida comum.

O lugar é o quadro de uma referência pragmática ao mundo, do qual lhe


vêm solicitações e ordens precisas de ações condicionadas, mas é também
o teatro insubstituível das paixões humanas, responsáveis, através da ação
comunicativa, pelas mais diversas manifestações da espontaneidade e da
criatividade (SANTOS, 2002, p. 322).

Esses conceitos nos ajudam a compreender a proposta da Política Nacional de Assistência Social
(PNAS), que nos traz o princípio de que a territorialização é um dos elementos essenciais e imprescindíveis
da organização de políticas sociais no âmbito urbano, contemplando as necessidades existentes em
determinado território, comunidade, vila, bairro e cidade a partir da identificação preliminar das
demandas para a amenização das desigualdades sociais.

34
POLÍTICA SETORIAL - HABITAÇÃO

Lembrete

O espaço é organizado socialmente, com formas e funções definidas


historicamente, pois se trata da morada do homem e do lugar de vida que
precisa ser constantemente reorganizado.

Conforme Monte-Mór (2006, p. 5):

A cidade expressa a divisão socioespacial do trabalho, e Henri Lefebvre


propõe pensar sua transformação a partir de um continuum que se estende
da cidade política ao urbano, onde se completa a dominação sobre o
campo. A efetiva passagem da cidade ao urbano foi marcada pela tomada
da cidade pela indústria, trazendo a produção – e o proletariado – para o
espaço do poder.

Percebe-se que a questão urbana se apresenta também a partir da divisão socioespacial do trabalho
e das relações de domínio da cidade sobre o campo, a partir das relações de produção e comercialização,
tornando o espaço urbano um espaço de poder e de produção das desigualdades. Por isso, ao tratarmos
de poder, mencionamos o dinheiro, que aparece em decorrência de uma vida econômica complexa.

Conforme nos explica Santos (1999, p. 9): “O dinheiro aparece como uma arena de movimentos cada
vez mais numerosos, fundados sob uma lei do valor que tanto deve ao caráter da produção escolhida
como às possibilidades da circulação”. Assim, o dinheiro surge como símbolo de poder e de negociações e
ganha sobre a produção o comando da explicação, porque ganha sobre a produção do comando da vida.
E essa lei se estende: quanto maior a complexidade das relações externas e internas, maior a necessidade
de regulação, e levanta-se a necessidade de Estado: o Estado e os limites, o Estado e a produção, o
Estado e a distribuição, o Estado e a garantia do trabalho, o Estado e a garantia da solidariedade e
o Estado e a busca da excelência na existência.

A vida da população se dá em situações concretas, singulares, nas quais o território e suas condições
são determinantes. Isso nos faz entender que as políticas públicas no âmbito urbano muitas vezes são
planejadas/implantadas numa tendência de normalidade ou a uma descrição de um tipo ideal que não
é fato real. Portanto, no que diz respeito à relação entre sujeitos e território, torna-se imprescindível
tratar a dimensão da cidadania, que se expressa pela dinâmica das populações em relação aos territórios
vividos. A referência de lugar e cidadão é uma relação intrínseca ao conceito de cidadania (KOGA, 2003).

Para Santos (1999, p. 7), “O território é o lugar em que desembocam todas as ações, todas as paixões,
todos os poderes, todas as forças, todas as fraquezas, isto é, onde a história do homem plenamente se
realiza a partir das manifestações da sua existência”.

35
Unidade I

Portanto, ao mencionar o território como local de todos os acontecimentos naturais e criados pelo
homem, o autor ainda nos remete à ideia de que:

O território não é apenas o conjunto dos sistemas naturais e de sistemas


de coisas superpostas. O território tem que ser entendido como o território
usado, não o território em si. O território é o chão mais a identidade. A identidade
é o sentimento de pertencer àquilo que nos pertence. O território é o
fundamento do trabalho, o lugar da residência, das trocas materiais e espirituais
e do exercício da vida. O território em si não é uma categoria de análise
em disciplinas históricas, como a geografia. É o território usado que é uma
categoria de análise. Aliás, a própria ideia de nação, e depois a ideia de Estado
Nacional, decorrem dessa relação tornada profunda, porque um faz o outro,
à maneira daquela célebre frase de Winston Churchill: “primeiro fazemos
nossas casas, depois nossas casas nos fazem”. Assim, é o território que ajuda
a fabricar a nação, para que a nação depois o afeiçoe (SANTOS, 1999, p. 8).

O que Santos (1999) nos esclarece é que a materialidade do existir em determinado lugar está
intrinsecamente relacionada à condição da vida cotidiana de ser, ou seja, das relações existentes, de
habitarmos um espaço e nos apropriarmos desse espaço como elos necessários à nossa sobrevivência
humana e também como processo de criação de uma identidade que nos traz a condição ontológica de
pertencimento ao local, lugar, espaço por nós vividos.

Com base na concepção de política urbana, temos que nos ater às condições de poder que são
socializadas a partir das questões de controle, isto é, como existem questões de controle por parte do
capital imobiliário nas cidades, e assim outro conceito que vem à tona é o ordenamento do espaço.
Dessa forma, a questão do controle, do ordenamento e da gestão do espaço tem sido sempre central nas
discussões sobre território. Como elas não se restringem, em hipótese alguma, à figura do Estado, e hoje,
mais do que nunca, precisam incluir o papel do gestor das grandes corporações industriais, comerciais,
de serviços e financeiras, é imprescindível trabalhar com o território numa interação entre múltiplas
dimensões sociais (SANTOS, 1999).

Diante das nossas discussões acerca de território, espaço, lugar e cidade, diante da política urbana,
é importante frisar que as condições territoriais, sociais e econômicas nas quais nos encontramos
atualmente estão associadas aos sintomas históricos, como nos lembra Brandão (2017, p. 52-53):

Cinquenta anos de industrialização acelerada (1930/1980), intensos fluxos


migratórios, urbanização complexa (simultaneamente, metropolizada,
interiorizada e com centros regionais medianos, isto é, uma rede urbana
paradoxalmente concentrada e dispersa ao mesmo tempo), potente
mercantilização, integração e “nacionalização” dos mercados (de bens, de
trabalho e de consumo), sofisticação das classes sociais, sobretudo da fração
média, dentre outros fatores estruturais, conduziram à configuração de uma
sociedade urbana complexa e no mínimo paradoxal e incompleta/travada,
sem urbanidade, sem a estruturação de um verdadeira Sociedade Salarial
36
POLÍTICA SETORIAL - HABITAÇÃO

e sem um Estado de Bem-Estar Social digno desse nome. Mesmo com a


insurgência de lutas políticas e a forte participação estatal na estruturação
de uma provisão massiva de bens, infraestruturas e serviços públicos (porém
insuficientes e sem qualidade adequada), dentre outros fatores, não se
logrou constituir o direito à cidade

Podemos partilhar dos processos vivenciados pelo país no período citado e ressaltar que um dos
maiores dilemas do pensamento brasileiro hoje é compreender o homem comum. Isso nos remete ao
cotidiano dos cidadãos, sejam viventes do espaço urbano ou rural. São elementos de interação com as
políticas sociais, urbanas e rurais da assistência social. Portanto, antes de qualquer fonte ideológica ou
política na compreensão do espaço e do ser humano, precisamos compreender que, dentro das questões
urbanas encontradas pelo assistente social, o principal elemento da sociedade é o cidadão.

Conforme afirma Koga (2011), é necessário substituir o olhar da carência pela compreensão da
potência. A autora nos chama para o compromisso ético e nos alerta para o quanto é discriminador o
uso de medidas de indigência ou de pobreza para análise da realidade social e proposição das políticas
públicas. Para ela, são constatações estigmatizadoras e bloqueadoras do horizonte da não pobreza. Koga
também alerta que os indicadores gerados pelas técnicas estatísticas e pelo conhecimento da população
auxiliam na busca pelo desenvolvimento humano, econômico e social do território e da cidade.

Podemos compreender que, por mais que haja uma grande necessidade de amenizar as desigualdades
sociais existentes nos territórios, em diferentes lugares, regiões, comunidades, é fundamental que,
enquanto profissionais, possamos usar os dados, as informações e as percepções dos moradores
que obtemos no dia a dia de trabalho para planejar novos caminhos para a população que demanda
serviços de assistência social no âmbito da política urbana.

As cidades, os subúrbios e os bairros estão impregnados de ideais e simbolismos no que tange à


necessidade de o ser humano conhecer o seu meio ambiente, pois, segundo Linch (1982), a imagem
de um bom ambiente dá, a quem o possui, um sentido importante de segurança emocional, podendo
estabelecer uma relação harmoniosa entre si e o mundo exterior.

Tuan (1980) afirma que a satisfação com o lugar em que se mora não significa necessariamente
afeição profunda. Muitas pessoas atribuem valor maior à qualidade do bairro do que às vantagens da
cidade, ou até da qualidade de sua residência. Portanto, a identidade e o pertencimento dos moradores
em locais muitas vezes estereotipados pelas políticas urbanas podem tornar esses espaços promissores
de cidadania e promoção social.

Quando nos referimos à identificação do sujeito com o seu local de moradia, precisamos nos ater ao
conceito de territorialidade, que:

reflete a multidimensionalidade do “vivido” territorial pelos membros de


uma coletividade nas sociedades em geral. Segundo ele os homens vivem ao
mesmo tempo o processo e o produto territoriais por meio de um sistema
de relações existenciais e/ou produtivistas. Todas elas são relações de poder
37
Unidade I

uma vez que existe interação entre os agentes que buscam modificar tanto
as relações com a natureza como as relações sociais. Sem se darem conta
disso, os atores também modificam a si próprios. É impossível manter
qualquer relação que não seja marcada pelo poder. Raffestin observa que
a noção de territorialidade é complexa e que a história deste conceito em
Geografia humana está por ser feita. Ela nos veio dos naturalistas, que
sempre abordaram a territorialidade animal e não a humana (KAROL, 2009
apud RAFFESTIN, 1993, p. 158).

Portanto, nas ciências humanas, a noção de territorialidade foi tratada pelos autores que abordaram
as relações humanas com o espaço ou com o território de forma a conduzir um meio de vivências
amplamente considerado por Santos (1986) como uma “contextura social”, denominada pelo autor
como sociologia cartográfica ou sociologia simbólica. Assim:

Todos os conceitos com que apresentamos a realidade e à volta dos quais


construímos as diferentes ciências sociais e suas especializações, a sociedade
e o Estado, o indivíduo e a comunidade, a cidade e o campo, as classes sociais e
as trajetórias pessoais, a produção e a cultura, o direito e a violência, o regime
político e os movimentos sociais, a identidade nacional e o sistema mundial,
todos esses conceitos têm na contextura espacial, física e simbólica, que nos
tem escapado pelo fato de nossos instrumentos analíticos estarem de costas
para ela, vemos agora, é a chave da compreensão das relações sociais e que
se tece cada um desses conceitos (SANTOS, 1986, p. 141).

Dessa forma, é possível concluir que, para que haja possivelmente políticas urbanas que correspondam
às demandas reais existentes nos diferentes territórios e processos, é preciso que nos aprofundemos nos
estudos da leitura subjetiva da realidade territorial, a qual nos traduz que o processo de identificação
do sujeito com seu meio e suas necessidades perpassa pela noção de territorialidade, que, conforme
Raffestin (1993) conceitua, trata-se de:

[...] um conjunto de relações que se originam num sistema tridimensional


sociedade-espaço-tempo em vias de atingir a maior autonomia possível,
compatível com os recursos do sistema. [...] Essa territorialidade é dinâmica,
pois os elementos que a constituem [...] são suscetíveis de variações no tempo.
É útil dizer, neste caso, que as variações que podem afetar cada um dos
elementos não obedecem às mesmas escalas de tempo. Essa territorialidade
resume, de algum modo, a maneira pela qual as sociedades satisfazem,
num determinado momento, para um local, uma carga demográfica num
conjunto de instrumentos também determinados, suas necessidades em
energia e em informação. As relações que a constituem podem ser simétricas
ou dessimétricas, ou seja, caracterizadas por ganhos e custos equivalentes
ou não. Opondo-se uma à outra, teremos uma territorialidade estável e uma
territorialidade instável. Na primeira, nenhum dos elementos sofre mudanças
sensíveis a longo prazo, enquanto na segunda todos os elementos sofrem
38
POLÍTICA SETORIAL - HABITAÇÃO

mudanças a longo prazo. Entre essas duas situações extremas, teremos os


outros casos, nos quais um ou dois dos elementos podem mudar, enquanto
o outro ou os outros permanecem estáveis (RAFFESTIN, 1993, p. 158).

Conforme aponta Raffestin (1993), a dinâmica da condição territorial e social está imbricada por
elementos próprios à dinâmica da vida cotidiana, das expressões particulares, objetivas e subjetivas,
ou seja, a territorialidade se constitui no espaço territorial de maneira individual e coletiva. Assim, é
possível compreender a complexidade de trabalharmos na seara da política urbana como profissionais
responsáveis por transformações necessárias na vida dos sujeitos espalhados pelos espaços dos
rincões do país.

A habilidade em compreender a política urbana como elemento de promoção social, advinda de


espaços de exclusão e desigualdade, nos faz refletir sobre a necessidade de descobrir o espaço real e
reconhecer que o território pode despertar, no âmbito da assistência social, aspectos fundamentais de
acesso às mais diferentes políticas públicas, perpassando assim pela capacidade profissional de aprimorar
nossos instrumentos nas intervenções a serem efetivadas.

Exemplo de aplicação

Pesquise sobre os programas habitacionais atualmente desenvolvidos na sua cidade/região e verifique


se houve mudanças desde a década de 1930.

4 ESTATUTO DA CIDADE

Com a Constituição de 1988 (BRASIL, 1988), foram estabelecidas as competências entre os níveis
de governo no que se refere à política urbana e à promoção de programas de construção de moradias,
além da melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico. A responsabilidade sobre essas
matérias, portanto, passou a ser compartilhada entre os entes federativos. Assim, os programas ligados à
área urbana, principalmente no que tange à habitação, foram fragmentados em secretarias de governos
subnacionais que se reestruturavam ou desapareciam de acordo com as mudanças partidárias na gestão
pública (AZEVEDO; ANDRADE, 2011).

Conforme dispõe a Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988):

TÍTULO VII - DA ORDEM ECONÔMICA E FINANCEIRA - CAPÍTULO II DA


POLÍTICA URBANA - Art. 182. A política de desenvolvimento urbano,
executada pelo poder público municipal, conforme diretrizes gerais
fixadas em lei tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das
funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes. § 1º
O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades
com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de
desenvolvimento e de expansão urbana. § 2º A propriedade urbana cumpre
sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação

39
Unidade I

da cidade expressas no plano diretor. § 3º As desapropriações de imóveis


urbanos serão feitas com prévia e justa indenização em dinheiro. § 4º
É facultado ao poder público municipal, mediante lei específica para área
incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do
solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado que promova seu
adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de: I - parcelamento
ou edificação compulsórios; II - imposto sobre a propriedade predial e territorial
urbana progressivo no tempo; III - desapropriação com pagamento mediante
títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado
Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais
e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais.
Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e
cinquenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem
oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á
o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou
rural. § 1º O título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao
homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil.
§ 2º Esse direito não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma
vez. § 3º Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião.

Após a regulamentação dos artigos 182 e 183 da Constituição Federal de 1988, por meio da Lei
n. 10.257 (BRASIL, 2001), foram estabelecidas diretrizes gerais da política urbana, e uma de suas
finalidades foi reverter a segregação espacial presente na maioria das cidades brasileiras. Avançando no
que o Estatuto da Cidade estabeleceu, em 2005 foi aprovada a Lei n. 11.124 (BRASIL, 2005b), que criou
o SNHIS, lei que tramitou durante 13 anos no Congresso Nacional até ser aprovada e que estabeleceu o
processo participativo de elaboração do PLANHAB e constituição de fundos articulados nos diferentes
níveis da federação, controlados por conselhos com participação popular e ações planejadas em PLHIS
(FERREIRA et al., 2019).

É necessário ressaltar que o Estatuto da Cidade (BRASIL, 2001) possibilitou a criação de novos
instrumentos urbanísticos para viabilizar a regularização fundiária e fazer cumprir a função social da
propriedade. Portanto, a política urbana tem por objetivo classificar estratégias e diretrizes para o pleno
desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana.

Art. 1º. Na execução da política urbana, de que tratam os arts. 182 e 183 da
Constituição Federal será aplicado o previsto nesta Lei.

Parágrafo único. Para todos os efeitos, esta Lei, denominada Estatuto da


Cidade, estabelece normas de ordem pública e interesse social que regulam
o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do
bem‑estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental (BRASIL, 2001).

40
POLÍTICA SETORIAL - HABITAÇÃO

Na apresentação do Estatuto da Cidade, há a seguinte menção aos municípios:

A cidade é fruto do trabalho coletivo de uma sociedade. Nela está


materializada a história de um povo, suas relações sociais, políticas,
econômicas e religiosas. Sua existência ao longo do tempo é determinada
pela necessidade humana de se agregar, de se interrelacionar, de se organizar
em torno do bem estar comum; de produzir e trocar bens e serviços; de criar
cultura e arte; de manifestar sentimentos e anseios que só se concretizam
na diversidade que a vida urbana proporciona. Todos buscamos uma cidade
mais justa e mais democrática, que possa de alguma forma responder à
realização dos nossos sonhos (INSTITUTO PÓLIS, 2002).

Também é importante ressaltar que:

A aprovação do Estatuto da Cidade é uma conquista dos movimentos


populares, que se mobilizaram por mais de uma década na luta por sua
aprovação. Esta luta foi conduzida a partir da ativa participação de entidades
civis e de movimentos sociais em defesa do direito à cidade e à habitação e
de lutas cotidianas por melhores serviços públicos e oportunidades de uma
vida digna (INSTITUTO PÓLIS, 2002).

Ainda conforme o Estatuto da Cidade (BRASIL, 2001):

O Município é, por excelência, o lócus de solução dos problemas urbanos.


Os legisladores federais devem apenas criar o suporte jurídico para a atuação
das municipalidades na questão urbana, jamais impor modelos fechados
que dificultem ou impeçam que a execução da política de desenvolvimento
urbano seja concretizada de diferentes formas, segundo as peculiaridades
de cada local. A opção que permeia todo o texto do Estatuto da Cidade
de traçar diretrizes, regras básicas, e delegar uma série de atribuições aos
Municípios é, inegavelmente, uma opção justa e tecnicamente correta. Por
imposição expressa da nova lei para aplicação dos instrumentos de política
urbana, os Municípios que ainda não aprovaram seu plano diretor deverão
fazê-lo. Deverão ter plano diretor não apenas as cidades com mais de 20 mil
habitantes, mas também as cidades integrantes de regiões metropolitanas e
aglomerações urbanas, as integrantes de áreas de especial interesse turístico
e as inseridas na área de influência de empreendimentos ou atividades com
significativo impacto ambiental de caráter regional ou nacional.

Entendemos que o Estatuto da Cidade não se limita a reconhecer o município como lócus de solução
de problemas, tampouco se resume à edição de novas leis municipais. Por meio de suas diretrizes gerais,
o Estatuto da Cidade impõe um novo e complexo sistema de atuação na questão urbana, marcado
sobretudo pelo princípio da gestão democrática. Para que haja gestão democrática, é necessário que
haja participação social, conhecimento sobre a realidade e clareza nas ações que podem minimizar
41
Unidade I

as desigualdades socioespaciais existentes. Como nos lembra Pedro Demo (2001), participação é conquista;
portanto, se a participação social auxiliou na promoção de um novo sistema de atuação na questão
urbana, é necessário que haja continuidade da participação popular como conquista da autopromoção.

Vejamos uma das diretrizes preconizadas no Estatuto da Cidade que trazem reza às garantias
estruturais e à participação:

Art. 2º. I – garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o


direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura
urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as
presentes e futuras gerações.

II – gestão democrática por meio da participação da população e de


associações representativas dos vários segmentos da comunidade na
formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos
de desenvolvimento urbano (BRASIL, 2001).

Conforme preconiza o trecho anterior, não basta criar estratégias de construção de casas; o seu
entorno e as condições estruturais físicas e ambientais também fazem parte dessa ação, visando ao
maior acesso a bens de serviços e, consequentemente, à qualidade de vida. Esse artigo do Estatuto da
Cidade nos faz revisitar a questão da habitabilidade, já apontada por outros estudos.

Quanto aos deveres do setor público na oferta de serviços, esses só terão melhores adequações
quando os cidadãos que utilizam esses serviços participarem na sua condição de apropriação das
políticas públicas, pois se a cidade, os serviços prestados e as obras realizadas não estão condizentes com
as necessidades da maioria da população, é através da participação popular nos canais de representação
social, disponíveis como reuniões de conselhos, audiências públicas e associações de moradores, que
poderemos vislumbrar uma melhor adequação das políticas urbanas.

Por isso, o Estatuto da Cidade traz como diretriz no seu inciso V a “oferta de equipamentos urbanos e
comunitários, transporte e serviços públicos adequados aos interesses e necessidades da população e às
características locais” (BRASIL, 2001). Portanto, além de construir casas e distribuí‑las para a população,
é necessário que essas possuam infraestrutura adequada, principalmente no que se refere à questão
do transporte público. Devemos considerar que a população que irá residir nos conjuntos habitacionais
trabalha em diversos locais, necessitando, assim, de meios de locomoção, deslocamento, mobilidade,
para manter sua renda.

Constatamos que a questão da ocupação é um dos maiores problemas na atualidade. Sua


regularização depende de vários órgãos públicos e privados, e esse impasse fere o direito do acesso da
população à infraestrutura, ao transporte e aos bens de consumo, isolando as pessoas e negligenciando
a questão da regularização da terra.

42
POLÍTICA SETORIAL - HABITAÇÃO

Assim, é apresentado no Estatuto da Cidade que:

XIV – regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas por


população de baixa renda mediante o estabelecimento de normas especiais
de urbanização, uso e ocupação do solo e edificação, consideradas a situação
socioeconômica da população e as normas ambientais (BRASIL, 2001).

Para que haja efetivação de uma política urbana que amenize as situações irregulares, as desigualdades
socioeconômicas, e com respeito ao meio ambiente, o Estatuto da Cidade exige alguns instrumentos
de planejamento, levantamento de dados, definições de prioridades, execução, avaliação etc.:

Art. 4º. Para os fins desta Lei, serão utilizados, entre outros instrumentos:

I - planos nacionais, regionais e estaduais de ordenação do território e de


desenvolvimento econômico e social;

II - planejamento das regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e


microrregiões [...].

A atenção maior está nos Municípios, que serão os responsáveis pela


elaboração e aprovação de planos diretores.

I – planejamento municipal, em especial:

a) plano diretor;

b) disciplina do parcelamento, do uso e da ocupação do solo;

c) zoneamento ambiental;

d) plano plurianual;

e) diretrizes orçamentárias e orçamento anual;

f) gestão orçamentária participativa;

g) planos, programas e projetos setoriais;

h) planos de desenvolvimento econômico e social (BRASIL, 2001).

Vamos entender o significado dos instrumentos propostos pelo Estatuto da Cidade de suma
importância para a gestão urbana: o plano diretor e o plano plurianual.

43
Unidade I

Em razão da concepção adotada no texto constitucional, o plano diretor é o principal instrumento


para os municípios promoverem políticas urbanas com pleno respeito aos princípios das funções sociais
da cidade, da propriedade urbana e da garantia de bem-estar de seus habitantes. O município deve
observar os princípios constitucionais da política urbana e as diretrizes gerais dessa política previstas
no artigo 2° do Estatuto, para o estabelecimento das normas e dos instrumentos do plano diretor,
considerando o disposto no artigo 39 do Estatuto:

Art. 39. A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende
às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano
diretor, assegurando o atendimento das necessidades dos cidadãos
quanto à qualidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das
atividades econômicas, respeitadas as diretrizes previstas no art. 2º desta
Lei (BRASIL, 2001).

Para elaboração das diretrizes do plano diretor, lembramos que a população e os profissionais da
habitação participam dessa construção, incluindo os assistentes sociais. O Estatuto da Cidade confere:

Art. 40. O plano diretor, aprovado por lei municipal, é o instrumento básico
da política de desenvolvimento e expansão urbana.

§ 1º O plano diretor é parte integrante do processo de planejamento


municipal, devendo o plano plurianual, as diretrizes orçamentárias e o
orçamento anual incorporar as diretrizes e as prioridades nele contidas.

§ 2º O plano diretor deverá englobar o território do Município como um todo.

§ 3º A lei que instituir o plano diretor deverá ser revista, pelo menos,
a cada dez anos.

§ 4º No processo de elaboração do plano diretor e na fiscalização de sua


implementação, os Poderes Legislativo e Executivo municipais garantirão:

I - a promoção de audiências públicas e debates com a participação da população


e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade;

II - a publicidade quanto aos documentos e informações produzidos;

III - o acesso de qualquer interessado aos documentos e informações


produzidos (BRASIL, 2001).

Portanto, a população passa a ser parte fundamental da construção, fiscalização e implementação


do plano diretor, de acordo com os artigos a seguir:

44
POLÍTICA SETORIAL - HABITAÇÃO

Art. 43. Para garantir a gestão democrática da cidade, deverão ser utilizados,
entre outros, os seguintes instrumentos:

I - órgãos colegiados de política urbana, nos níveis nacional, estadual


e municipal;

II - debates, audiências e consultas públicas;

III - conferências sobre assuntos de interesse urbano, nos níveis nacional,


estadual e municipal;

IV - iniciativa popular de projeto de lei e de planos, programas e projetos de


desenvolvimento urbano;

V - (VETADO).

Art. 44. No âmbito municipal, a gestão orçamentária participativa de que


trata a alínea f do inciso III do art. 4o desta Lei incluirá a realização de
debates, audiências e consultas públicas sobre as propostas do plano
plurianual, da lei de diretrizes orçamentárias e do orçamento anual, como
condição obrigatória para sua aprovação pela Câmara Municipal.

Art. 45. Os organismos gestores das regiões metropolitanas e aglomerações


urbanas incluirão obrigatória e significativa participação da população e
de associações representativas dos vários segmentos da comunidade, de
modo a garantir o controle direto de suas atividades e o pleno exercício da
cidadania (BRASIL, 2001).

As cidades devem elaborar seus planos diretores de acordo com o número de munícipes. Vejamos
as especificações:

Art. 41. O plano diretor é obrigatório para cidades:

I – com mais de vinte mil habitantes;

II – integrantes de regiões metropolitanas e aglomerações urbanas;

III - onde o Poder Público municipal pretenda utilizar os instrumentos


previstos no 4º do art. 182 da Constituição Federal;

IV - integrantes de áreas de especial interesse turístico;

V - inseridas na área de influência de empreendimentos ou atividades com


significativo impacto ambiental de âmbito regional ou nacional;

45
Unidade I

VI - incluídas no cadastro nacional de Municípios com áreas suscetíveis à


ocorrência de deslizamentos de grande impacto, inundações bruscas ou
processos geológicos ou hidrológicos correlatos (BRASIL, 2001).

Observação

Cidades com menos de 20 mil habitantes não necessitam da construção


de planos diretores, exceto cidades turísticas.

O Plano Diretor Estratégico (PDE):

direciona as ações dos produtores do espaço urbano, público ou privado,


para que o desenvolvimento da cidade seja feito de forma planejada e
atenda às necessidades coletivas de toda a população, visando garantir uma
cidade mais moderna, equilibrada, inclusiva, ambientalmente responsável,
produtiva e, sobretudo, com qualidade de vida (CIDADE DE SÃO PAULO, 2014).

Saiba mais

Leia sobre o plano diretor de São Paulo:

CIDADE DE SÃO PAULO. Secretaria Municipal de Urbanismo e


Licenciamento. Plano Diretor de São Paulo. São Paulo, 2014. Disponível em:
https://bit.ly/3t0yxjA. Acesso em: 10 mar. 2021.

Conheça também o plano plurianual de São Paulo:

GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO. Secretaria da Fazenda e


Planejamento. Projeto de Lei do Plano Plurianual 2020-2023. São Paulo,
2019. Disponível em: https://bit.ly/3taPQym. Acesso em: 10 mar. 2021.

46
POLÍTICA SETORIAL - HABITAÇÃO

Resumo

Como vimos, a Lei de Terras de 1850 ordena a estrutura fundiária por


meio da compra e venda e confirma o poder político dos proprietários de
terra, e sua relação com o fim da escravidão em 1888 e com a emergência
do trabalho livre demarca mudanças na sociedade brasileira para o
evento da urbanização. Trata-se de uma colonização processada por meio
das sesmarias e das capitanias hereditárias, que definiram formas de
apropriação da terra e influíram na consolidação do capitalismo brasileiro,
principalmente em termos de um patrimonialismo que privatiza a terra,
seja no campo, seja na cidade.

Vamos relembrar alguns conceitos importantes.

A estrutura fundiária originou-se do latim, fundus, que significa


“fazenda, bens de raiz” ou estrutura agrária (do latim, agrariu). É a forma
como o recurso terra se divide em propriedades, de acordo com o processo
histórico da área analisada e com as leis da propriedade ditadas pelo Estado.

Urbanização é o processo de afastamento das características rurais de


um lugar ou região para características urbanas. Geralmente, está associado
ao desenvolvimento da civilização e da tecnologia.

O termo “sesmarias” origina-se de sesma, do latim sexĭĭma, ou seja,


“sexta parte”. O sistema de sesmarias foi um instituto jurídico português que
normatizava a distribuição de terras destinadas à produção agrícola, e sua
principal função era estimular a produção – patente no seu estatuto jurídico.

As capitanias hereditárias eram um sistema de administração territorial


criado pelo rei de Portugal, D. João III, em 1534. Esse sistema consistia em
dividir o território brasileiro em grandes faixas e entregar a administração
para particulares (principalmente nobres que tivessem relações com a
Coroa Portuguesa).

A desigualdade social afeta principalmente os países não desenvolvidos


e subdesenvolvidos, onde não há um equilíbrio no padrão de vida dos
seus habitantes, seja no âmbito econômico, escolar, profissional, de
gênero, entre outros.

Questão social é a expressão da distribuição desigual das atividades


humanas na organização socioespacial do processo de produção e

47
Unidade I

reprodução do capital e é também forma de resistência e luta entre as


classes sociais que compõem a estrutura social no contexto das cidades.

Espaço urbano é o conjunto de diferentes usos da terra justapostos


entre si. Esse conjunto de usos da terra é a organização espacial da cidade
ou simplesmente o espaço urbano fragmentado.

A segregação urbana – também chamada de segregação socioespacial –


refere-se à periferização ou marginalização de determinadas pessoas ou
grupos sociais por fatores econômicos, culturais, históricos e até raciais no
espaço das cidades.

O Estatuto da Cidade – Lei n. 10.257 (BRASIL, 2001) – é uma lei que


abarca um conjunto de princípios no qual está expressa uma concepção de
cidade e de planejamento e gestão urbanos e uma série de instrumentos,
que, como a própria denominação diz, são meios para atingir as finalidades
desejadas; entretanto, delega para cada um dos municípios, a partir de um
processo público e democrático, a explicitação clara dessas finalidades. Nesse
sentido, o Estatuto funciona como uma espécie de caixa de ferramentas
para uma política urbana local. É a definição da “cidade que queremos”, nos
planos diretores de cada um dos municípios, que determinará a mobilização
(ou não) dos instrumentos e sua forma de aplicação.

O Plano Diretor Estratégico (PDE) é uma lei municipal que orienta o


crescimento e o desenvolvimento urbano de todo o município. Elaborado
com a participação da sociedade, é um pacto social que define os
instrumentos de planejamento urbano para reorganizar os espaços da
cidade, atendendo às necessidades coletivas da população.

O novo PDE tem como principal objetivo garantir a melhoria da


qualidade de vida em todos os bairros. Nas áreas consolidadas, ele diminui
o potencial construtivo e impõe um gabarito máximo, garantindo um
limite para a produção imobiliária e a preservação da qualidade de vida,
ao mesmo tempo que estabelece um aumento do potencial construtivo
junto aos corredores de transporte público coletivo, que chegam agora às
periferias com grande estímulo ao uso misto e à geração de empregos,
além de garantias de socialização do espaço público.

Por fim, o plano plurianual é um dos instrumentos de planejamento


da ação pública com a finalidade de estabelecer diretrizes, objetivos e
metas para os programas de duração continuada da administração pública,
devendo ser elaborado a cada quatro anos, no primeiro ano de uma
gestão de governo.

48
POLÍTICA SETORIAL - HABITAÇÃO

Exercícios

Questão 1. Segundo o art. 3° da Lei n. 8.662, de 7 de junho de 1993 (BRASIL, 1993), que conforma
o Código de Ética do Assistente Social, é dever do assistente social “participar de programas de socorro
à população em situação de calamidade pública, no atendimento e na defesa de seus interesses e
suas necessidades”. Nesse sentido, vamos analisar, a partir do recorte da política social da habitação,
a atuação do assistente social no contexto da pandemia da COVID-19, que ensejou a decretação do
referido estado de calamidade pelo Senado Federal em março de 2020.

É preciso ressaltar que, infelizmente, a coleta de dados intraurbanos pelo Instituto de Pesquisas
Econômicas (Ipea) só foi realizada até 6 de abril de 2020, de forma que o quadro já não é mais o
mesmo. No entanto, para os fins desta questão, atente apenas aos dados aqui apresentados e aos seus
conhecimentos teóricos a respeito da política setorial para a habitação no âmbito da assistência social.

Em primeiro lugar, comparemos, na tabela a seguir, a participação percentual da população dos


municípios destacados no total da população brasileira com a participação percentual da população
municipal infectada com a COVID-19 no total de infectados do Brasil.

Tabela 1 – Participação percentual da população municipal na população


brasileira e participação percentual da população municipal infectada
no total da população brasileira infectada, em 6 de abril de 2020

Participação percentual da Participação percentual


população municipal na da população municipal
população na população infectada no total da
brasileira população brasileira infectada

Subtotal dos municípios 17,2% 63,9%

São Paulo/SP 6% 31%

Rio de Janeiro/RJ 3% 9,2%

Fortaleza/CE 1% 6,4%

Manaus/AM 1% 4,1%

Brasília/DF 1% 4,0%

Belo Horizonte/MG 1% 2,3%

Porto Alegre/RS 1% 2,2%

Salvador/BA 1% 2,1%

Curitiba/PR 1% 1,5%

Recife/PE 1% 1,3%

49
Unidade I

Em segundo lugar, vamos analisar as condições intramunicipais de habitação para a cidade de São
Paulo. Para tanto, no trabalho de Costa et al. (2020), elaborou-se um índice que representa o grau
de vulnerabilidade socioespacial à contaminação pela COVID-19 em algumas regiões metropolitanas
brasileiras. Esse índice leva em conta aspectos socioeconômicos, demográficos e de infraestrutura
urbana, e sua distribuição está territorialmente ilustrada na figura a seguir.

Figura 17 – Grau de vulnerabilidade espacial à contaminação pela


COVID-19 nas Unidades de Desenvolvimento Humano (UDHs)

Disponível em: https://bit.ly/3lS0Eiw. Acesso em: 17 set. 2020.

Comparemos o mapa desenvolvido por Costa et al. (2020) com o mapa da figura a seguir, elaborado
pela Prefeitura de São Paulo, que indica territorialmente a quantidade de mortos por COVID-19 e a
concentração de conjuntos habitacionais, cortiços, favelas e núcleos habitacionais.

50
POLÍTICA SETORIAL - HABITAÇÃO

Figura 18 – Óbitos por COVID-19 segundo Distrito Administrativo de Residência no Município de São Paulo

Disponível em: https://glo.bo/3rpgmmG. Acesso em: 17 set. 2020.

Com base nas informações apresentadas e nos seus conhecimentos, analise as afirmativas a seguir a
respeito da dimensão territorial e habitacional da crise sanitária causada pela COVID-19 no Brasil.

I – A crise sanitária, por se concentrar nas principais áreas metropolitanas do Brasil, tem recorte
territorial claro. Dessa forma, é dever do assistente social elaborar uma estratégia específica de socorro
à população, de acordo com o seu município de residência.

51
Unidade I

II – No caso do município de São Paulo, pode-se afirmar que não há correlação entre o número de
óbitos por COVID-19, o grau de vulnerabilidade espacial e a concentração de conjuntos habitacionais,
cortiços, favelas e núcleos habitacionais.

III – Como é função do assistente social democratizar as informações e o acesso aos programas
disponíveis no espaço institucional, ele deve dar igual prioridade às várias regiões da cidade no que diz
respeito à conscientização sobre os protocolos definidos pelas políticas públicas sobre a COVID-19.

É correto o que se afirma em:

A) I, apenas.

B) III, apenas.

C) I e III, apenas.

D) I e II, apenas.

E) I, II e III.

Resposta correta: alternativa A.

Análise das afirmativas

I – Alternativa correta.

Justificativa: pela análise da tabela anterior, é possível inferir que há proporcionalmente mais casos
nas principais regiões metropolitanas brasileiras do que no restante do país. Como um dos princípios
da assistência social é levar em conta as especificidades regionais, sociais e econômicas relevantes ao
elaborar uma política pública, o assistente social deve elaborar uma estratégia de socorro especialmente
desenhada para a região que atende, ainda que seu objetivo seja sempre atender a toda a população.

II – Alternativa incorreta.

Justificativa: nota-se correlação, nos mapas apresentados em ambas as figuras, entre o índice de
grau de vulnerabilidade social e o número de óbitos em razão da COVID-19. Vale ressaltar que um dos
critérios para a elaboração do índice de grau de vulnerabilidade social apresentado na figura 17 é uma
informação contida na figura 18 no que se refere à concentração de moradias precárias.

III – Alternativa incorreta.

Justificativa: o assistente social deve ter em mente que, para de fato democratizar a informação
sobre as políticas públicas e promover um socorro mais efetivo da população diante da calamidade
pública causada pela COVID-19, deve atender prioritariamente às áreas mais vulneráveis.
52
POLÍTICA SETORIAL - HABITAÇÃO

Questão 2. Leia o excerto a seguir do professor Milton Santos:

As cidades, e sobretudo as grandes, ocupam, de modo geral, vastas superfícies, entremeadas de


vazios. Nessas cidades espraiadas, características de uma urbanização corporativa, há interdependência
do que podemos chamar de categorias espaciais relevantes desta época: tamanho urbano, modelo
rodoviário, carência de infraestrutura, especulação fundiária e imobiliária, problemas de transporte,
extroversão e periferização da população, gerando, graças às dimensões da pobreza e seu componente
geográfico, um modelo específico de centro-periferia. Cada qual dessas realidades sustenta e alimenta
as demais e o crescimento urbano, é, também, o crescimento sistêmico dessas características. As cidades
são grandes porque há especulação e vice-versa; há especulação porque há vazios e vice-versa; porque
há vazios as cidades são grandes.
SANTOS, M. A urbanização brasileira. 5. ed. São Paulo: Edusp, 2009. p. 106.

Com base na leitura e na legislação vigente, com destaque para a Lei n. 13.465, de 11 de julho de 2017,
também conhecida como Estatuto da Cidade, que dispõe sobre a regularização fundiária rural e urbana,
analise as afirmativas a seguir a respeito da atuação do assistente social no âmbito da regularização de
moradias precárias, em especial no que se refere às favelas.

I – Uma vez que o ato do poder público confere a legitimação de posse de determinado imóvel
urbano ao seu ocupante, o indivíduo não se torna imediatamente seu proprietário.
II – No que diz respeito à Regularização Fundiária Urbana (REURB), exige-se que sejam previamente
executadas obras de infraestrutura, com vistas a integrar, de modo adequado, a região ao resto da
cidade, a fim de que seja possível o registro do terreno no Registro de Imóveis.
III – Para que seja obtido registro da Certidão de Regularização Fundiária (CRF), correspondente a
determinado assentamento irregular em área urbana, é necessário que haja determinação judicial ou
do Ministério Público.
IV – Entre os benefícios da regularização fundiária, estão a segurança na posse, a melhoria do acesso
do beneficiado a financiamentos habitacionais e o reforço à arrecadação municipal, uma vez que o
imóvel em questão ficará sujeito à cobrança de tributos municipais.

É correto o que se afirma em:

A) I, apenas.
B) I e IV, apenas.
C) II, III e IV, apenas.
D) III e IV, apenas.
E) I, II, III e IV.

Resposta correta: alternativa B.

53
Unidade I

Análise das afirmativas

I – Alternativa correta.

Justificativa: em primeiro lugar, é preciso diferenciar os significados jurídicos de “posse” e de


“propriedade”. De acordo com o art. 1.196 do Código Civil de 2002, “considera-se possuidor todo aquela
que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade”. Ou seja, a
posse faz referência ao exercício do poder de fato, objetivo, sobre a coisa. Por sua vez, o art. 1.228° do
Código Civil de 2002 dispõe que “o proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o
direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha”. Em outras palavras,
o proprietário pode, além de usar da coisa, tal qual o possuidor, usufruir de seus frutos, transferir sua
propriedade e reivindicar caso a coisa lhe seja tomada indevidamente, nos termos da lei.

Vale notar que o possuidor não necessariamente ocupa ilegalmente a propriedade, podendo ser ele,
por exemplo, o locatário de um imóvel que é regularmente alugado pelo seu proprietário.

No que diz respeito ao tema em estudo, a concessão de posse não se confunde com o reconhecimento
de propriedade, que é feito pelo instituto da legitimação fundiária, tema da Lei n. 13.465, de 11 de julho
de 2017, que descreve a REURB. No entanto, essa mesma lei delimita as condições para que o título de
legitimação de posse seja automaticamente convertido em título de propriedade.

Por fim, o assistente social deve ter em mente que, para que o direito social à moradia seja atendido,
não necessariamente há de ser observado o direito de propriedade. Isso porque a proteção do direito
à moradia (composto por aspectos variados, como segurança na posse, no acesso a infraestrutura, na
disponibilidade de moradia a preços acessíveis, apenas para citar alguns) não depende do direito de
propriedade, conforme já definido. Portanto, ainda que limitado, o reconhecimento de posse é um
avanço no sentido da plena consecução dos objetivos sociais da Constituição Federal de 1988, que
norteiam a ação do assistente social.

II – Alternativa incorreta.

Justificativa: a REURB descreve o procedimento jurídico pelo qual se garante o direito social à
moradia daqueles que habitam assentamentos informais em áreas urbanas. A REURB está positivada
na Lei n. 13.465, de 11 de julho de 2017, cujo art. 36°, § 3°, prevê que “as obras de implantação de
infraestrutura essencial, de equipamentos comunitários e de melhoria habitacional, bem como sua
manutenção, podem ser realizadas antes, durante ou após a conclusão da REURB”. De fato, exige‑se
apenas a apresentação de projeto urbanístico, contendo somente um levantamento das obras necessárias
e um cronograma para sua execução.

III – Alternativa incorreta.

Justificativa: o procedimento da REURB é de natureza administrativa e prescinde de determinação


judicial ou do Ministério Público. De acordo com o artigo 42° da Lei n. 13.465, de 11 de julho de 2017,
“o registro da Certidão de Regularização Fundiária (CRF) e do projeto de regularização fundiária aprovado
54
POLÍTICA SETORIAL - HABITAÇÃO

será requerido diretamente ao oficial do cartório de registro de imóveis da situação do imóvel e será
efetivado independentemente de determinação judicial ou do Ministério Público”.

IV – Alternativa correta.

Justificativa: vamos analisar cada um dos aspectos indicados na questão: segurança na posse, acesso
a financiamentos habitacionais e reforço à arrecadação municipal.

Em primeiro lugar, se levado a cabo o instituto da legitimação fundiária, o morador tem sua condição
de proprietário do imóvel reconhecida pela lei. Com isso, fica protegido, por exemplo, de eventuais
ações de despejo arbitrárias promovidas por um locador ilegal.

Em segundo lugar, com a REURB, o beneficiado adquire os documentos necessários para que se
candidate a receber financiamentos habitacionais, de natureza pública ou privada.

Por fim, a regularização fundiária reforça a arrecadação tributária tanto diretamente, por meio da
possibilidade de cobrar-se como o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), quanto indiretamente,
uma vez que são gerados incentivos para investimentos no imóvel e na região que circunda imóveis
agora regularizados, o que movimenta a economia local.

Vale ressaltar que o artigo 13° da Lei n. 13.465, de 11 de julho de 2017, prevê que “os atos de que trata
este artigo (de regularização fundiária urbana) independem da comprovação do pagamento de tributos
ou penalidades tributárias, sendo vedado ao oficial de registro de imóveis exigir sua comprovação”.

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