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Política Social no Brasil

Autora: Profa. Daniela Emilena Santiago


Colaboradoras: Profa. Amarilis Tudella
Profa. Ronilda Ribeiro
Professora conteudista: Daniela Emilena Santiago

Assistente social graduada pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), especialista em Violência Doméstica
contra crianças e adolescentes pela Universidade de São Paulo (USP), mestra em Psicologia pela Universidade Estadual
Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp) e mestra em História pela mesma Universidade. Atualmente é funcionária
pública do município de Quatá/SP, atuando como assistente social na Secretaria Municipal de Promoção Social,
e é doutoranda em História na Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp). Exerce também a
função de docente e líder no curso de Serviço Social da Universidade Paulista (UNIP), na modalidade EaD.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

S235p Santiago, Daniela Emilena

Política Social no Brasil / Daniela Emilena Santiago. – São Paulo:


Editora Sol, 2019.

200 p., il.

Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e


Pesquisas da UNIP, Série Didática, ano XXV, n. 2-181/19, ISSN 1517-9230.

1. Política social de educação. 2. Política social de saúde.


3. Política social de assistência social. I. Título.

CDU 304

U501.85 – 19

© Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou
quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem
permissão escrita da Universidade Paulista.
Prof. Dr. João Carlos Di Genio
Reitor

Prof. Fábio Romeu de Carvalho


Vice-Reitor de Planejamento, Administração e Finanças

Profa. Melânia Dalla Torre


Vice-Reitora de Unidades Universitárias

Prof. Dr. Yugo Okida


Vice-Reitor de Pós-Graduação e Pesquisa

Profa. Dra. Marília Ancona-Lopez


Vice-Reitora de Graduação

Unip Interativa – EaD

Profa. Elisabete Brihy


Prof. Marcelo Souza
Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar
Prof. Ivan Daliberto Frugoli

Material Didático – EaD

Comissão editorial:
Dra. Angélica L. Carlini (UNIP)
Dra. Divane Alves da Silva (UNIP)
Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR)
Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT)
Dra. Valéria de Carvalho (UNIP)

Apoio:
Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD
Profa. Betisa Malaman – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos

Projeto gráfico:
Prof. Alexandre Ponzetto

Revisão:
Kleber Souza
Aline Ricciardi
Sumário
Política Social no Brasil

APRESENTAÇÃO.......................................................................................................................................................7
INTRODUÇÃO............................................................................................................................................................8

Unidade I
1 AS POLÍTICAS SOCIAIS CONSTITUÍDAS NO CENÁRIO INTERNACIONAL: DA LEI DOS
POBRES AOS SERVIÇOS CONSOLIDADOS ATÉ A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL...........................9
2 O PÓS‑GUERRA E A CONSOLIDAÇÃO DO WELFARE STATE............................................................. 26
3 E NO BRASIL? DA ERA COLONIAL AO PRIMEIRO MANDATO DE VARGAS................................. 33
4 E NO BRASIL: O ESTADO DE MAL‑ESTAR SOCIAL ATÉ FINS DO
GOVERNO DITATORIAL....................................................................................................................................... 43

Unidade II
5 O CONTEXTO DA CRISE CAPITALISTA DOS ANOS 1970 E A PERDA DOS DIREITOS
SOCIAIS: O DESMONTE DAS POLÍTICAS SOCIAIS NA EUROPA, NOS ESTADOS UNIDOS
E NA AMÉRICA LATINA...................................................................................................................................... 51
5.1 Os anos 1980 e o Sistema de Seguridade Social no Brasil................................................... 62
5.2 A política social de saúde................................................................................................................... 64
5.3 A política social de assistência social............................................................................................ 70
5.4 A previdência social.............................................................................................................................. 75
6 O AVANÇO DO NEOLIBERALISMO NO BRASIL...................................................................................... 78
6.1 O Brasil e as políticas sociais nos governos Lula, Dilma e Temer....................................... 97

Unidade III
7 AS POLÍTICAS SOCIAIS SETORIAIS: SAÚDE MENTAL.........................................................................118
7.1 História das práticas em saúde mental: realidade internacional e no Brasil..............118
7.2 As ações em saúde mental desenvolvidas no Brasil.............................................................128
7.3 O assistente social e a atuação em saúde mental.................................................................133
8 AS POLÍTICAS SOCIAIS SETORIAIS: EDUCAÇÃO E HABITAÇÃO.....................................................136
8.1 A política social de educação e a atuação do assistente social.......................................136
8.1.1 A política social de habitação e a atuação do assistente social.........................................141
8.2 As políticas sociais setoriais: justiça, segurança e intervenção com família..............153
8.2.1 A atuação do assistente social perante a justiça e a segurança....................................... 153
8.3 O assistente social e a ação na família.......................................................................................163
8.4 As perspectivas analíticas e teórico metodológicas da política social..........................167
8.4.1 Funcionalismo, idealismo e marxismo: diversidade na forma de compreensão
sobre a política social..................................................................................................................................... 167
APRESENTAÇÃO

Olá, aluno, começamos esta disciplina convidando‑o a refletir sobre a matéria a seguir. Vejamos:

Sessão pelos 30 anos da Constituição terá segurança reforçada amanhã

A sessão solene que nesta terça‑feira (6) vai comemorar os 30 anos da Constituição
Federal promete movimentar a Câmara e o Senado. Um forte esquema de segurança está
sendo montado no Congresso para o evento. O presidente e o vice‑presidente eleitos, Jair
Bolsonaro e Hamilton Mourão, são aguardados para a cerimônia. Será a primeira vez que
Bolsonaro volta à Casa desde que venceu a corrida presidencial. Ao todo, 1,5 mil convites
foram distribuídos pelo cerimonial do Congresso e a solenidade está sendo vista como uma
espécie de ensaio para a posse de Bolsonaro, em 1 de janeiro de 2019. O acesso ao plenário
da Câmara e suas galerias ficará restrito a convidados e a visitação do público à Câmara e
ao Senado será suspensa.

Segundo a Agência Brasil apurou, não somente pela presença do presidente eleito,
que oficialmente foi convidado como parlamentar, mas também pelo grande número de
autoridades que devem prestigiar a sessão, o esquema de segurança será reforçado. Para
esse tipo de solenidade, fora o tapete vermelho, não haverá pompa. As autoridades chegarão
ao Congresso pela chapelaria, como é de praxe nessas ocasiões. Além dos chefes dos três
Poderes da República, Michel Temer (Executivo), Eunício Oliveira (Legislativo) e Dias Toffolli
(Judiciário), devem participar da cerimônia parlamentares constituintes, a procuradora‑geral
da República, Raquel Dodge, ministros de Estado, embaixadores, deputados e senadores em
exercício e os que tomarão posse em 2019. A depender dos discursos, a solenidade marcada
para as 10 h pode terminar por volta das 14 h.

Fonte: Melo (2018).

Nela vemos um evento que aconteceria no dia 6 de novembro e que tinha como objetivo comemorar
os trinta anos da Constituição Federal do Brasil. Essa Constituição, conhecida como Constituição Cidadã,
pode ser considerada como um marco na definição dos direitos sociais dos brasileiros, uma vez que, por
meio desse documento, o Estado brasileiro passou a ter a responsabilidade por tais direitos.

Nesse sentido, é mister repensar a consolidação dos direitos sociais, não apenas considerando
a realidade brasileira, mas como esse processo se desenhou pelo mundo. Tal entendimento deve vir
alicerçado na compreensão de como são entendidos os direitos sociais atualmente e em que medida eles
têm sido implementados por meio de políticas e serviços sociais.

A nós, assistentes sociais, é basal o entendimento dos direitos sociais constituídos e das políticas
sociais a eles vinculados, uma vez que é nesse universo que nos movimentamos e atuamos. Nossa
intervenção é múltipla, já que tanto trabalhamos no planejamento, avaliação e execução dos serviços
sociais vinculados às políticas sociais. Por oportuno, nos é basal esse entendimento, ou melhor, é
fundamental em nossa formação o conhecimento amplo desses serviços e das políticas sociais. Por
7
isso, convidamos você para adentrar nesse estudo, nessa compreensão e assim ampliar ainda mais seu
entendimento acerca do quão relevantes são tais direitos para os segmentos mais vulnerabilizados de
nosso País.

INTRODUÇÃO

Analisaremos no presente livro‑texto as questões análogas à política social. Para isso, iniciaremos com
a discussão que nos permitirá conhecer o desenvolvimento histórico das políticas sociais, considerando
o cenário internacional e também a realidade brasileira. Nesse aspecto, cabe destacar que tanto o
contexto das leis dos pobres, quanto a constituição das políticas sociais sob a esfera da acumulação
capitalista até meados dos anos 1970 serão ora retratadas. Tais considerações serão apresentadas na
parte inicial do presente material.

Após tais colocações arroladas, daremos seguimento aos nossos estudos, abordaremos então outras
informações sobre as configurações das políticas sociais, partindo dos anos 1970 até a contemporaneidade.
Também, nesse caso, vamos nos respaldar na disposição das políticas sociais no cenário internacional,
assim como a realidade dos serviços no Brasil. Obviamente que esse entendimento vem perpassado por
muitos dados, fatos, eventos que marcaram substancialmente as políticas sociais. Tais fatos são basais
para o entendimento dos serviços e políticas sociais que se constituíram no país ao longo dos anos.
E são fundamentais ainda para que possamos compreender as reformas gerenciais estatais e que
incidiram sobremaneira nas políticas sociais.

E, por fim, todo esse embasamento nos levará ao momento de apresentarmos o tripé que conforma
a seguridade social brasileira, além de realizarmos indicações a respeito das chamadas políticas sociais
setoriais, nas quais abordaremos a questão da educação, habitação, justiça e segurança e a familiar.
No sentido referenciado, é necessário ressaltar que a educação e a habitação já são consideradas políticas
sociais consolidadas. A justiça e a segurança também são serviços básicos, atualmente, no Brasil, não
temos uma política social de família, mas sim intervenções com centralidade nela. Ao final, concluiremos
nossas colações, abordaremos as diversas perspectivas de políticas sociais, a saber: a funcionalista, a
idealista e a crítico‑dialética.

Dessa maneira, por meio da forma com que o estudo foi estruturado, será possível conhecermos
tanto o desenvolvimento histórico das políticas sociais quanto a sua configuração, adotada nos mais
variados contextos. Portanto, esse saber estruturado, por meio desse material, representa o saber
produzido por vários autores, muitos dos quais são assistentes sociais, e que nos trazem perspectivas
críticas e alicerçadas em uma sólida análise da realidade em que vivemos e suas influências para os
direitos sociais e para as políticas sociais. Enfim, agora que já apresentamos e introduzimos o assunto
em questão, nos resta convidá‑lo uma vez mais para dar início a essa leitura e a percorrer os caminhos
que nos levam ao maior entendimento das políticas sociais.

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POLÍTICA SOCIAL NO BRASIL

Unidade I
1 AS POLÍTICAS SOCIAIS CONSTITUÍDAS NO CENÁRIO INTERNACIONAL:
DA LEI DOS POBRES AOS SERVIÇOS CONSOLIDADOS ATÉ A SEGUNDA
GUERRA MUNDIAL

Como protoformas iniciais das intervenções em política social, nos referimos às ações
empreendidas no estágio pré‑capitalista. Começaremos nossas colocações considerando a
realidade europeia, bem como a de outros países, desde os povos mais antigos, pois tais ações são
conhecidas como as bases iniciais das intervenções em política social. Obviamente que nem todas
essas intervenções não eram sistematizadas e desenvolvidas pelo Estado, tal como evoca a noção
de política social, mas demonstram a preocupação de alguns segmentos em atuar em prol daqueles
que estão em maior situação de vulnerabilidade.

Realizando uma retrospectiva histórica, podemos concluir que a ajuda ao próximo é algo tão antigo
quanto o desenvolvimento do gênero humano. Apesar de o auxílio não ser uma política social, a sua
institucionalização em espaços públicos guarda relação com as formas iniciais de caridade.

Nesse sentido, Martinelli (2009) nos coloca que as ações de ajuda ao próximo foram iniciadas
provavelmente a 3000 a.C., sobretudo no Antigo Egito, Grécia, Itália e Índia. Essas ações não eram
empreendidas pelo Estado ou por qualquer órgão que pudesse ser tido como regulador das relações
entre os homens, mas eram empreendidas pela caridade privada. As confrarias surgem na Antiguidade,
todavia, estão presentes até a Idade Média.

Nos termos postos, Martinelli (2009, p. 96) destaca que essas intervenções iniciais de auxílio aos
segmentos em situação de vulnerabilidade social ficaram conhecidas “confrarias do deserto”. Elas eram
organizadas pela caridade de grupos específicos e inicialmente foram sendo constituídas para facilitar a
caminhada de alguns grupos pelo deserto, oferecendo alimentos e outros itens que se faziam necessários
para a sobrevivência durante o trânsito. Com o tempo, porém, essas confrarias passaram a ser localizadas
nas “cidades”, ainda rudimentares que já vinham se constituindo, sendo comuns durante a Idade Média.

Quando as confrarias foram constituídas nas cidades, passaram a oferecer os serviços de esmola
esporádica, visita domiciliar, concessão de gêneros alimentícios, de roupas e também de calçados. A
autora também nos diz que essas concessões não eram orientadas apenas às pessoas que iriam viajar
pelo deserto, mas aos cidadãos mais empobrecidos das sociedades em questão.

Martinelli (2009) ainda nos coloca que para a concessão dos “benefícios” em questão, era comum que
os responsáveis pelos serviços realizassem visitas, entrevistas, sendo que, segundo a autora, os judeus
priorizavam a realização das abordagens via visita domiciliar para viúvas, órfãos, idosos e enfermos.
Somente mediante tais interpelações, o benefício era concedido.
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Unidade I

Essas intervenções foram intensificadas a partir do surgimento do cristianismo, que começou a pregar
a necessidade do auxílio ao próximo. Nos termos postos, a filosofia de ajuda ganhou grande ênfase dentro
da Igreja Católica a partir do século XIII, sobretudo quando passou a ser proposta por Tomás de Aquino,
sendo que esse filósofo também foi tido como santo pela instituição religiosa em questão.

Todavia, além da simples concessão de benefícios, provavelmente inspirada pela caridade, a ajuda
possuía um caráter ideológico a ser alcançado. De acordo com Martinelli (2009), a caridade era também
usada como uma forma de controle, de transmissão da ideologia, sobretudo da Igreja Católica, que
desenvolvia grande parte das ações. No caso, a autora nos coloca que a ajuda a outros era “[...] uma
forma de controlar a pobreza e de ratificar a sujeição daqueles que não detinham posses ou bens
materiais” (MARTINELLI, 2009, p. 97).

Conforme Faleiros (2000), a caridade da Igreja e de alguns poucos grupos privados ainda prevaleceu
durante muito tempo. No entanto, a satisfação das necessidades dos servos, na Idade Média, ainda
dependia do desejo do senhor feudal. No caso, como sabemos, o regime feudal se caracterizava por
possuir a sociedade constituída por senhores feudais, servos e a Igreja e, em tal sistema, o senhor feudal
era o proprietário da terra, ao passo que o servo era o trabalhador.

O autor nos coloca que tanto as ações desenvolvidas pelos senhores feudais quanto as empreendidas
pela Igreja possuíam uma conotação que buscava alcançar a servidão das pessoas. Além das esmolas,
essas iniciativas prestavam ainda o acesso a cuidados básicos de saúde e a asilos em determinadas
situações. Essa perspectiva é corroborada por Behring e Boschetti (2010, p. 47), que ainda nos indicam
que essas intervenções tinham como enfoque realizar um controle dos pobres, evitando assim o que era
tido como “vagabundagem”, sendo utilizadas como uma forma de manter a ordem social no período.

Além disso, tais ações não eram contínuas, e sim pontuais, serviam apenas para atender a situações
emergenciais que se apresentavam em determinadas circunstâncias. Também foi nesse período que
o Estado passou a desenvolver algumas ações, pontuais, nos problemas sociais. “Ao lado da caridade
privada e de ações filantrópicas, algumas iniciativas pontuais com características assistenciais são
identificadas como protoformas de políticas sociais” (BEHRING; BOSCHETTI, 2010, p. 48).

No caso, a intervenção estatal era mínima, sendo que as ações empreendidas pelo Estado acabavam
figurando apenas no aspecto legislativo, ou seja, delimitando aspectos legais de proteção aos trabalhadores,
ou impondo sanções de trânsito das pessoas pelas cidades, como veremos. O Estado só começou a intervir
efetivamente, para além da definição das leis, quando constatou que a filantropia se mostrava insuficiente e,
mesmo assim, tal intervenção não era empreendida sob a ótica do direito, como veremos. Pereira (2011) chega
a descrever que as ações de caridade eram desenvolvidas nas paróquias. “[...] a partir da constatação de que a
caridade cristã não dava conta de conter possíveis desordens que poderiam advir da lenta substituição da
ordem feudal pela capitalista, seguida de generalizada miséria, desabrigos e epidemias” (PEREIRA, 2011, p. 62).

Pereira (2011) destaca que em 1351, na Grã‑Bretanha, durante o reinado do Rei Eduardo III, ainda na Idade
Média, teria sido constituída a Lei dos Trabalhadores. A autora nos coloca que, nesse período, grande parcela
da população local fora morta pela Peste Negra e isso resultou na escassez de mão de obra. Dessa forma, para
atender a situação posta, Eduardo III definiu pela constituição da Lei dos Trabalhadores. Essa legislação fora
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POLÍTICA SOCIAL NO BRASIL

feita com o objetivo de controlar as relações de trabalho por meio da fixação do valor dos salários dos
trabalhadores e, também, para controlar sua mobilidade. Nesse documento, Eduardo III obrigou todos
que estivessem em condições físicas ao trabalho. No caso, essa legislação é representativa das legislações
inglesas constituídas no período e segundo as quais havia o controle da mão de obra.

A autora ainda assevera que no ano de 1530, estimado por Pereira (2011) como um período transitório,
com o fim da Idade Média e início da Idade Moderna, temos a legislação do rei Henrique III, na França,
que definiu que as próprias paróquias poderiam arrecadar recursos na comunidade local para a caridade.
Além dessa autorização, durante esse reinado, crianças e adolescentes que não trabalhavam eram
colocados nos asilos, e os adultos que não trabalhavam eram tidos como vagabundos. Os vagabundos
podiam ser punidos caso não trabalhassem. Pereira (2011) destaca que as pessoas que não trabalhavam
foram reconhecidas pelo parlamento inglês em 1547 como passíveis até de serem escravizadas.

Os socorros oferecidos pelas paróquias nesse contexto eram prestados por meio das caixas de
socorro. Essas caixas ainda seguiam o princípio das confrarias do deserto, ou seja, concediam benefícios
eventuais como alimentação, remédios, vestuários. Esses bens eram obtidos por meio da arrecadação
na paróquia, mas só eram concedidos para serem usados como um remédio paliativo contra o vício, a
vagabundagem e a imoralidade, sendo que nesse período a pobreza era compreendida de tal forma, ou
seja, como vício, vagabundagem e imoralidade (FALEIROS, 2000).

Derivando dessa concepção, em 1576, na França, foi realizada uma diferenciação entre os pobres
válidos e os pobres desvalidos. Os pobres válidos seriam aqueles que podiam trabalhar e os inválidos,
consequentemente, eram aqueles que não podiam exercer atividade laboral. Ambos eram encaminhados
para as poor houses, ou casas dos pobres, onde eram alojados. Esses serviços também receberam a
nomenclatura workhouses e hospitais de pobres. Porém, é preciso notar que essas instituições permutavam
a concessão de benefícios pelo trabalho e eram organizadas em antigos palácios abandonados.

A figura a seguir é de uma instituição dessa natureza. Nela vemos que a legenda indica tratar‑se de uma
foto de meados de 1900. Optamos por inserir essas representações por não possuirmos imagens específicas
do surgimento das casas de trabalho. Portanto, as figuras na sequência tornam‑se bastante representativas.

Figura 1 – Hospital da Ilha de Blackwell em meados de 1900

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Unidade I

Figura 2 – Cela na workhouse de Washington

Figura 3 – Senhora Lucy na workhouse de Washington

Nelas vemos representações de quartos dessas instituições que recebia um dado grupo de pessoas
não aceitas na sociedade, além de observamos que havia instituições em que os atendidos permaneciam
em celas, como retratado. Na sequência observamos uma paciente, apresentada pelo nome de Lucy, que
era atendida em uma casa de trabalho de Washington, possivelmente no início dos anos 1900.

As workhouses eram as casas de trabalho para onde deveriam ir, com o objetivo de fazer as pessoas
que foram ou que eram atendidas pela caridade trabalharem. As primeiras delas teriam sido criadas, de
acordo com Faleiros (2000), na Inglaterra, em 1730. Alguns desses pobres permaneciam reclusos nesses
locais desempenhando as funções que eram a eles atribuídas, o que Faleiros (2000) chegou a descrever
como sendo um regime de prisão. Nelas eram concedidos auxílios mínimos e havia grande seleção para
os atendimentos.

Considerava‑se que havia pobres merecedores de ajuda, e pobres que não eram merecedores de
ajuda. “Aos primeiros, merecedores de auxílio, era assegurado algum tipo de assistência, minimalista
e restritiva, sustentada em um pretenso dever moral e cristão de ajuda, ou seja, não se sustentavam
na perspectiva do direito” (BEHRING; BOSCHETTI, 2010, p. 49). Essas workhouses também ficaram
conhecidas com o termo hospital de pobres ou dispensários.
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POLÍTICA SOCIAL NO BRASIL

Behring e Boschetti (2010), por outro lado, reconhecem nas protoformas das políticas sociais o
arcabouço legal instituído durante a Idade Média e a Modernidade, pelo Estado, citando, nesse sentido,
a seguinte legislação como referência:

Estatuto dos Trabalhadores, de 1349; Estatuto dos Artesãos (Artífices), de


1563; Leis dos pobres elisabetanas, que se sucederam entre 1531 e 1601;
Lei de Domicílio (Settlement Act), de 1662; Speenhamland Act, de 1662, Lei
Revisora das Leis dos Pobres, ou Nova Lei dos Pobres (Poor Law Amendment
Act), de 1834 (BEHRING; BOSCHETTI, 2010, p. 48).

Vejamos quais as características e peculiaridades de cada uma dessas legislações.

O Estatuto dos Trabalhadores determinava que todas as pessoas com menos de 60 anos de idade
precisavam trabalhar, sendo “garantido” aos trabalhadores um teto mínimo de salário. O Estatuto
dos Artesãos, por sua vez, regulamentava o exercício desse segmento e definia ser necessário ao menos
7 anos para ser considerado artesão profissional (BEHRING; BOSCHETTI, 2010).

Saiba mais

Para informações adicionais sobre os temas tratados aqui, recorra ao


livro a seguir:

MACHADO, E. M. Política social: a moderna Lei dos Pobres. [s . l.], 2019.


Disponível em: <http://www.ts.ucr.ac.cr/binarios/pela/pl‑000259.pdf>. Acesso
em: 13 fev. 2019.

A Lei dos Pobres, por sua vez, orientava sobre o desenvolvimento da caridade. Segundo essa
legislação os pobres deveriam trabalhar para serem atendidos, mesmo por meio da caridade privada.
Melhor dizendo, toda a caridade recebida por uma pessoa seria paga no futuro através do trabalho
do atendido. Pereira (2011) nos diz que a lei publicada em 1601, apesar de repressora, buscou focar a
necessidade de atender segmentos específicos, além do mais, delimitou que tais intervenções deveriam
ser de responsabilidade das paróquias. Tal legislação ainda destacou que para receber atendimento, a
pessoa deveria residir há pelo menos três anos no local da paróquia.

A Lei do Domicílio, por sua vez, conforme Behring e Boschetti (2010), impedia que os trabalhadores
se mudassem dos municípios onde trabalhavam sem uma comunicação prévia às autoridades. Essa
legislação também ficou conhecida como termo Lei de Residência, sendo que, além da exigência
de fixação, autorizava os delegados e fiscais locais a rejeitarem pessoas que se mudassem sem
autorização. Tal legislação recomendava que as pessoas que fossem para os locais sem autorização
poderiam ser direcionadas aos locais que residiam antes ou então para as workhouses (PEREIRA,
2011). Essa legislação ainda era utilizada como sendo uma forma de repressão, posto que impedia
mesmo o trânsito dos indivíduos.

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Unidade I

A Speenhamland Act dispunha que todos os homens sem trabalho recebessem uma ajuda do
Estado, considerando o preço do pão e a Lei Revisora da Lei dos Pobres, que tornou a intervenção
da pobreza ainda mais seletiva e residual. A Nova Lei dos Pobres torna o trabalho obrigatório e
condiciona a ajuda recebida ao pagamento posterior, via trabalho. Para ser auxiliada, a pessoa
precisava comprovar que estava em situação de pobreza, e eram separados os pobres em dignos e
indignos (BEHRING; BOSCHETTI, 2010).

De acordo com Behring e Boschetti (2010), as legislações postas estabeleciam uma permuta entre a
caridade e o trabalho, ou seja, quem tinha “ajuda” precisava retribuir com o trabalho tal como posto nas
diversas versões das Leis dos Pobres. Pereira (2011) nos coloca que isso inaugurou uma concepção de que
a política social deveria ser permutada pelo trabalho, algo como uma contrapartida necessária para quem
era beneficiado. Ou, então, quem trabalhava possuía alguns poucos direitos, como o de ter um salário.
De tal forma, o que tais legislações buscavam era garantir que todas as pessoas que possuíssem capacidade
pudessem trabalhar, sendo assim era uma forma de “forçar” o trabalho, ou como nos dizem as autoras
elencadas, tratava‑se de um “[...] código coercitivo do trabalho” (PEREIRA, 2011, p. 49).

O trabalho poderia ser desenvolvido em obras da Igreja ou em obras públicas. Havia uso corrente da
repressão para que o trabalho fosse desenvolvido, sobretudo nos segmentos que eram “beneficiados”
com a caridade, ou seja, os pobres. O pobre, sobretudo, era o mais agredido, digamos assim, posto que
era obrigado a aceitar qualquer tipo de trabalho que aparecesse. Ou seja, o objetivo seria o de:

[...] estabelecer o imperativo do trabalho a todos que dependiam de sua força


de trabalho para sobreviver; obrigar o pobre a aceitar qualquer trabalho
que lhe fosse oferecido; regular a remuneração do trabalho de modo que o
trabalhador pobre não poderia negociar formas de remuneração; proibir a
mendicância dos pobres válidos, obrigando‑os a se submeter aos trabalhos
forçados (BEHRING; BOSCHETTI, 2010, p. 48).

Visto que, como o teto do salário já era regulado, o trabalhador não poderia se opor ao que fora
delimitado, reivindicando, assim, aumentos salariais. No caso, figura como relevante ainda destacar que
as legislações buscavam evitar a mendicância, sendo que isso era tido como uma forma de ajuste das
pessoas à ordem social estabelecida. Behring e Boschetti (2010) nos colocam que essas ações buscavam
ainda evitar a circulação das forças de trabalho, além de oferecer à sociedade do mercado a mão de
obra, que era extremamente necessária para aquele estágio de desenvolvimento capitalista.

A observância da lei era garantida por meio do desenvolvimento de ações punitivas e coercitivas, que
eram empregadas à grande parcela da população, tais como “[...] surras, mutilações e queimaduras com
ferro em brasa nos andarilhos, embora estes àquela época, não fossem tão numerosos como se fazia
crer” (PEREIRA, 2011, p. 62). Essas práticas eram compreendidas como corretas e até aceitas socialmente.

Faleiros (2000) coloca que o objetivo dessas ações era também acabar com os tidos como “vagabundos”,
que não poderiam mais pedir esmolas. Se uma pessoa fosse pega mendigando, era encaminhada para
as casas de trabalho e, se fosse pega novamente mendigando, poderia ser severamente punida. “Assim,
os considerados vagabundos e mendigos eram açoitados ou, em caso de reincidência se lhes marcara
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POLÍTICA SOCIAL NO BRASIL

com ferro e os condenava à morte (coação direta e indireta ao trabalho). Foram proibidas as esmolas aos
mendigos não identificados como tais” (FALEIROS, 2000, p. 12).

Ainda segundo o autor, os atendidos não permaneciam em regime de internato, que eram poucos,
eram obrigados a residir onde estavam localizadas as workhouses, ou seja, “[...] os pobres eram obrigados a
residir no lugar de ajuda para que a mão de obra não fugisse dos senhores locais” (FALEIROS, 2000, p. 13).

Similares a essas instituições, temos a criação das rodas e das casas dos expostos. As rodas recebiam,
via de regra, crianças pequenas, e quando elas atingiam 7 anos, iam para as casas dos expostos, onde
aprenderiam um ofício. Essas instituições recebiam ajuda das câmaras municipais, mas eram geridas
pela Igreja e por pessoas ocupadas com a caridade privada. São modelos importantes de atendimento,
porque foram também organizadas no Brasil (BADINTER, 1985).

A imagem a seguir retrata um grupo de crianças que foram abandonadas por seus pais, no distrito
de Volga, na Rússia.

Figura 4 – Crianças russas em situação de abandono

Saiba mais

Caso se interesse em saber mais sobre o tema, recorra ao site:

BATISTA JUNIOR, J. A história de paulistanos deixados na roda dos


expostos da Santa Casa. Veja São Paulo, jun. 2016. Disponível em: <http://
vejasp.abril.com.br/cidades/roda‑dos‑expostos‑santa‑casa/>. Acesso em:
19 fev. 2019.

Apresenta uma matéria com informações sobre as rodas e até histórias


de pessoas que foram abandonadas nessas instituições no Brasil. É um
texto forte, com relatos comoventes sobre a realidade de quem viveu em
tais locais.

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Unidade I

E também aos seguintes textos:

TRINDADE, J. M. B. O abandono de crianças ou a negação do


óbvio. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 19, n. 37, set. 1999.
Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid
=S0102‑01881999000100003>. Acesso em: 19 fev. 2019.

WEBER, L. N. D. Os filhos de ninguém: abandono e institucionalização


de crianças no Brasil. Conjuntura Social, Rio de Janeiro, n. 4, p. 30‑36, jul.
2000. Disponível em: <http://lidiaweber.com.br/Artigos/2000/2000Osfilhos
deninguem.pdf>. Acesso em: 19 fev. 2019.

Também compreendendo as legislações, destacamos a Lei de Speenhamland, que, de acordo com


Behring e Boschetti (2010), fora a menos repressora de todas. Nesse caso, era delimitado que fosse
realizado o pagamento de um valor financeiro específico em complementação aos salários recebidos
pelos trabalhadores, tomando ainda como base o preço do pão ou do trigo usado para produzi‑lo.
Essa assistência porém não era restritiva aos trabalhadores, mas contemplava alguns segmentos que
estivessem momentaneamente desempregados ou que recebessem salários muitos baixos. Todavia, tais
concessões exigiam a fixação dos trabalhadores na área em que o trabalho era exercido. Essa legislação
fora definida, de acordo com Faleiros (2000), em Speenhamland por um grupo de juízes.

Contudo, essa compreensão entrou em declínio a partir da Poor Law Amendment Act 1834, que
recuperou os trabalhos forçados em prol da concessão de benefícios pontuais e emergenciais. No caso,
as pessoas que não podiam trabalhar estavam entregues à própria sorte, posto que a concessão da ajuda
era condicionada ao trabalho. Além dessas intervenções, havia ações pontuais e de abrigamento para
idosos pobres e inválidos, mas tais ações eram precárias, pontuais e não tinham qualidade.

No entanto, a partir de tais legislações, algumas intervenções passaram a ser mediadas pelo Estado.
Entretanto, o principal foco dessas ações, que era impedir a “vagabundagem” e diminuir ou minimizar
as expressões da pobreza, não fora alcançado. No caso, Pereira (2011) nos diz que a pobreza somente
se ampliou até o século XVIII, já na Idade Moderna, e observamos uma crescente precarização da
vida como um todo, sendo que tais condições afetavam não apenas os desempregados, mas a classe
trabalhadora: “agora, não só os impotentes e desempregados, mas também os empregados, tinham
de ser sustentados, em vista da presença ameaçadora da fome e do aumento dos preços dos produtos de
extrema necessidade” (PEREIRA, 2011, p. 67).

Apesar de tais condições de precarização da vida em geral, as intervenções desenvolvidas pelo


Estado nas expressões da questão social ainda continuaram pontuais, focais e, em grande medida,
dependendo da iniciativa privada e da caridade. Essa forma de agir do Estado, digamos assim, foi
intensificada durante o século XIX e só entrou em declínio a partir do início do século XX.

Behring e Boschetti (2010) nos colocam que grande parte do perfil assumido pelo Estado nesse
período deriva de uma concepção denominada como “liberal” ou “liberalismo”. De acordo com essa
concepção, o Estado não deveria realizar intervenções na economia e nem na vida das pessoas, cabendo
16
POLÍTICA SOCIAL NO BRASIL

ao mercado a regulação da vida por meio da “mão invisível” (BEHRING; BOSCHETTI, 2010, p. 56).
Conforme tal pensamento, o Estado era um mal necessário, que deveria apenas fornecer a base legal
para o desenvolvimento do mercado e, dessa forma, seria possível ampliar os benefícios para os homens.
Esses pontos de vista foram originados em meados dos séculos XVI e XVII e possuíram como principais
expoentes Maquiavel, Hobbes e Rousseau, mas tiveram grande divulgação a partir do século XIX.

Em conformidade com essas compreensões, cabia ao Estado “[...] a defesa contra os inimigos
externos, a proteção de todo indivíduo de ofensas dirigidas por outros indivíduos; e o provimento de
obras públicas, que não possam ser executadas pela iniciativa privada” (BEHRING; BOSCHETTI, 2010, p. 60),
sendo que, de acordo com essa teoria, o Estado deveria apenas garantir o direito à vida, à liberdade,
à individualidade e à propriedade privada. Nos termos postos, mesmo evocando o direito à vida, o
liberalismo não demandava que o Estado realizasse intervenção nas expressões da questão social.

Apesar disso, esse padrão de concepção do papel do Estado entrou em declínio a partir de finais
do século XIX e início do século XX. Para Behring e Boschetti (2010), nesse período, vivenciamos uma
ampliação da pobreza, das condições precárias de vida, e isso orientou o abandono do liberalismo como
tendência teórica adotada pelo Estado. Essa alteração foi fortemente influenciada pela crise econômica
que se evidenciou em todo o mundo a partir do início das primeiras décadas do século XX, tendo como
sua maior expressão a Crise de 1929.

Sobre esse período, temos o grande privilégio de possuir algumas imagens livres de direitos autorais.
A seguir indicamos duas representações desse momento em fotografias de Migrant Mother, que, por sua
vez, fora uma das fotógrafas mais famosas nos Estados Unidos e na Europa na década de 1930.

Na figura a seguir, temos a representação fotográfica de Florence Owens Thompson, que procurava
uma alternativa para ter suas necessidades atendidas e a de seus sete filhos, pós‑crise, no ano de 1936,
após o falecimento de seu esposo.

Figura 5 – Margareth Mead no contexto da crise

Na imagem, temos uma representação relevante da realidade concreta que afetou grande parcela
da população no momento.
17
Unidade I

É necessário que se atente para o fato de que a crise econômica vivenciada motivou as organizações
civis e políticas a se manifestarem contrárias às situações de desigualdade social que afetavam grande
parcela da população. No caso, as mobilizações do movimento operário também influenciaram na
mudança do papel até então assumido pelo Estado, ou seja, para conter manifestações, muitas vezes
cercadas de muita violência, o Estado começou a intervir nas expressões da questão social, como uma
alternativa para minimizá‑las e restringir as manifestações do movimento operário.

No entanto, no momento que estudamos, as ações eram pontuais e emergenciais e características


do Estado nomeado como liberal. É importante que compreendamos bem o liberalismo, posto que essa
forma de entender o papel do Estado será recuperada, tempos depois, com o nome “neoliberalismo”.
O liberalismo disciplina a forma com que o poder público entende a realidade e como o Estado irá
administrar as políticas sociais. Partiremos dos primeiros pensadores, dentre os quais Maquiavel. Com
certeza, você já ouviu falar dele e de outros, como Hobbes, Locke e Rousseau. Agora, conheceremos as
colocações desses pensadores para a sustentação do liberalismo.

Assim sendo, para uma compreensão do liberalismo, iniciaremos com uma breve discussão do que
Behring e Boschetti (2010, p. 57) denominam como “pré‑liberalismo”. A compreensão do pré‑liberalismo
nos remete a pensadores como Maquiavel, Hobbes, John Locke e Jean‑Jacques Rousseau. Por meio das
argumentações desses teóricos, teremos uma noção do que as autoras consideram como pré‑liberalismo.

Essas compreensões foram idealizadas durante meados do século XVI e início do século XVIII, sendo
que, nesse momento, também experienciamos no mundo uma série de alterações em relação aos
pensamentos antes hegemônicos sobre a vida em sociedade. No sentido posto, é nesse período que o
mundo assiste o declínio da doutrina de lei divina; esta, uma forma de compreender o mundo, a vida
social, como vontade de Deus e difundida por muitas religiões, sobretudo a Católica. Com essa mudança,
abre‑se a possibilidade para que o ser humano busque outras explicações sobre o mundo que o circunda,
sobre os fenômenos cotidianos de sua vida (BEHRING; BOSCHETTI, 2010).

Observação

O regime feudal é assentado na produção nos feudos e refere‑se à


sociedade estratificada em senhores feudais, servos e representantes da
Igreja. Já o regime capitalista é fundamentado no comércio de produtos e
na sociedade dividida entre burgueses e trabalhadores.

Também nesse período, em que há o declínio da ordem feudal, antes hegemônica como modo de
produção da vida. Agora, temos o surgimento e a consolidação do sistema capitalista de produção,
ainda em sua forma mais rudimentar, o capitalismo mercantilista, ou conforme nos dizem as autoras no
estágio de “acumulação primitiva do capital” (BEHRING; BOSCHETTI, 2010, p. 57).

Consequentemente, é um período de muitas mudanças, inclusive no pensamento de determinados


teóricos. Comecemos por Maquiavel, famoso por ter escrito O Príncipe, em 1513, um verdadeiro tratado
sobre o papel do Estado.
18
POLÍTICA SOCIAL NO BRASIL

Em seus escritos, Maquiavel propunha que o Estado apenas fosse tido como sendo um mediador, um
ente necessário somente para garantir a civilização dos homens, a repressão dos indivíduos, seu controle,
o controle de suas paixões que poderiam conduzi‑lo a atitudes negativas e que trariam prejuízo para o
ser humano e para toda a sociedade. Assim sendo, segundo Maquiavel, ao Estado “[...] caberia o controle
das paixões, ou seja, do desejo insaciável de vantagens materiais, próprias dos homens em estado de
natureza” (BEHRING; BOSCHETTI, 2010, p. 57).

Para Maquiavel, o Estado deveria centralizar o poder político, sendo permitido a ele tomar todas as
decisões, sem consultar o povo se elas fossem tidas como ações em prol do bem‑estar da sociedade. Apesar
disso, o pensador defendia a república, mas isso não era necessário se o Estado não julgasse como tal.

Partilhando dos ideais de Maquiavel, sobretudo no que concerne à necessidade de controle das vontades
individuais, temos também o trabalho de Hobbes. Grande parte dos postulados de Hobbes está contido em
seu famoso livro Leviathan, publicado nos idos do ano de 1651 (BEHRING; BOSCHETTI, 2010).

Portanto, Hobbes defendia que o Estado deveria ser constituído para que fosse possível regular os
homens. Segundo sua compreensão, todos os seres humanos eram dotados de “apetites e aversões”
(BEHRING; BOSCHETTI, 2010, p. 57), e estes deveriam ser controlados porque o homem não poderia ser
controlado apenas por seus apetites, suas vontades.

No caso, para Hobbes, em prol do bem comum, o indivíduo deveria abrir mão de sua individualidade
e submetê‑la ao controle irrestrito do Estado, descrito pelo autor como sendo o “soberano” (BEHRING;
BOSCHETTI, 2010, p. 57). Assim, “[...] a sujeição seria uma opção racional para que os homens refreassem
suas paixões, num contexto em que o homem é o lobo do homem” (BEHRING; BOSCHETTI, 2010, p. 57).

Saiba mais

Recomendamos o acesso aos sites a seguir para aumentar a compreensão


sobre os teóricos aqui estudados:

HENRIQUES, M. C.; COSTA, M. A. John Locke – O segundo tratado sobre


o governo civil. O portal da História, 2010. Disponível em: <http://www.
arqnet.pt/portal/teoria/mch_locke.html>. Aceso em: 11 mar. 2019.

PHYLOSOPHY PAGES. Jean‑Jacques Rousseau. [s. d.]. Disponível em: <http://


www.philosophypages.com/ph/rous.htm>. Acesso em: 11 mar. 2019.

RIBEIRO, P. S. Maquiavel e a autonomia da política. Brasil Escola, [s. d.].


Disponível em <https://brasilescola.uol.com.br/sociologia/ciencia‑politica
‑maquiavel.htm>. Acesso em: 11 mar. 2019>.

19
Unidade I

Já para John Locke, a sociedade era composta de homens que se agrupavam para se defender,
sobretudo contra a guerra. Locke se contrapunha à monarquia absoluta e propunha que o poder político
estivesse diluído na sociedade. Assim, o poder político deveria estar nas mãos dos homens, sujeitos
coletivos de uma determinada sociedade e não apenas do Estado.

No entanto, para que os sujeitos pudessem ter o poder político, era necessário deter também a
propriedade privada, ou seja, havia uma perspectiva relacional entre o poder político e a propriedade
privada. Portanto, quem não detinha a propriedade privada não tinha acesso também ao poder político.
Aliás, a propriedade privada era compreendida por Locke como algo necessário para oferecer uma base
sólida à sociedade (BEHRING; BOSCHETTI, 2010).

Para o autor, era necessário que os homens estabelecessem um pacto para que o bem comum fosse
alcançado. E esse bem comum só seria alcançado se todos os seres humanos o buscassem de forma igualitária.
Cabia, portanto, ao indivíduo se esforçar para alcançar esse bem comum posto. Deu para perceber que há
similaridade entre Locke e Hobbes? Isso porque ambos destacam que é importante o esforço do ser humano
para a construção de uma sociedade mais justa. Por outro lado, é válida também a premissa: se uma sociedade
não se desenvolve, seria por que os indivíduos não se esforçam o suficiente? Sim, para Locke e para Hobbes, o
ser humano deveria sempre buscar o seu desenvolvimento, e, assim, toda a sociedade sairia lucrando.

E, por fim, chegamos a compreensão de Jean‑Jacques Rousseau, que deriva das demais anteriormente
elencadas, com algumas particularidades das quais trataremos no decurso desses escritos. Rousseau se
tornou especialmente popular ao buscar discorrer sobre o papel do Estado em seu célebre livro Contrato
Social, publicado em 1762.

Behring e Boschetti (2010, p. 58) nos colocam que, para Rousseau, o homem era tabula rasa, ou seja,
era despido de maldades. Para ele, o homem era essencialmente bom, ou como o autor nos dizia, era
o “bom selvagem”. Porém, para ser assim tão selvagem, necessitava do auxílio do Estado apenas para
controlar esse homem para que ele não desenvolvesse um lado negativo.

Para Rousseau, a sociedade fora corrompida pela propriedade privada em decorrência de uma
supervalorização. O Estado, de acordo com essa perspectiva, fora criado apenas para garantir a propriedade
privada e de tal forma era um ente que buscava proteger os ricos e a propriedade privada. Rousseau propõe
uma inversão desses valores, uma mudança dos princípios sob os quais a sociedade estava assentada.

Em Rousseau, temos a indicação para o Estado de que o poder teria de ser partilhado com o povo, e,
nesse formato, o Estado deveria representar a vontade de todos, a vontade geral, sendo que isso seria o
“contrato social”, ou seja, “[...] um Estado cujo poder reside no povo, na cidadania, por meio da vontade
geral. Este é o contrato social” (BEHRING; BOSCHETTI, 2010, p. 58).

Consequentemente, para que fosse possível que a população escolhesse, deliberasse em conjunto, era
necessário que o Estado investisse na educação pública, na educação voltada para todas as populações.

Nos termos postos, em Rousseau, o Estado era um “mal necessário” (BEHRING; BOSCHETTI, 2010,
p. 59), apenas para regular a vida em sociedade, já que segundo sua perspectiva todo poder deveria
emanar do povo.
20
POLÍTICA SOCIAL NO BRASIL

De forma que esses teóricos seriam os principais idealizadores do pré‑liberalismo, ou seja, dos ideais
do liberalismo que começou a se desenvolver apenas nos séculos XIX e XX. Antes de adentrarmos com os
conceitos do liberalismo, vejamos a representação fotográfica de alguns dos teóricos por nós estudados.

Figura 6 – Hobbes

Figura 7 – Locke

Figura 8 – Rousseau

21
Unidade I

De certa maneira, podemos observar que os autores possuem especificidades. Portanto, cada qual
tem uma perspectiva de Estado, compreendendo-o como um ente com finalidades específicas. No
entanto, o ponto pacífico dentre ambos é que o Estado não deve se ocupar dos problemas sociais. Para
colaborar em sua compreensão sobre os assuntos que discorremos até o momento, elaboramos uma
síntese, exposta a seguir, sobre os principais conceitos tratados por esses teóricos. Vejamos:

Hobbes Locke Rousseau

Poder político
Estado como controlador Contrato Social pautado
era relacionado à
das vontades individuais na vontade geral
propriedade privada

Ser humano deveria Os homens deveriam


abdicar de sua Estado como um mal
se agrupar pelo bem
individualidade em necessário
comum
prol do Estado

Figura 9 – Síntese dos conceitos relacionados ao pré‑liberalismo

E, de tal forma, tendo tais colocações arroladas, passaremos agora a discorrer sobre o liberalismo.
Vimos que ele foi uma doutrina econômica que teve seu desenvolvimento a partir de meados do século
XIX e ganhou grande aceitação a partir dos primeiros anos do século XX. Nesse período, assistimos
ao declínio dos governos autocráticos, do poder do clero e também do Estado absolutista.

Segundo essa doutrina econômica, o mercado deve ser capaz de atender a todas as necessidades
dos seres humanos. Essas necessidades podem ser contempladas pelo trabalho, sendo assim, o trabalho
passa a ser compreendido como mercadoria, e sua regulamentação deve ser regulada pelo livre mercado
(BEHRING; BOSCHETTI, 2010).

Grandes teóricos que representaram o ideal liberal são David Ricardo e Adam Smith, sendo que
grande parte das contribuições dos autores mencionados deriva dos estudiosos que estudamos nos
conteúdos afeitos ao pré‑liberalismo. Bem, vejamos as colocações de Adam Smith.

Para Adam Smith, cada indivíduo precisa agir em prol de seu próprio interesse e assim
buscar alcançar o seu bem‑estar. Somente quando cada indivíduo procurar seu bem‑estar será
possível alcançar o de toda a sociedade. Esse bem‑estar individual seria alcançado apenas no
mercado, por meio do trabalho.

O Estado, por sua vez, de acordo com Smith, deveria fazer com que o funcionamento livre e
ilimitado do mercado fosse garantido. Seria uma intervenção pontual, ou conforme destaca o autor,
uma intervenção por meio da “mão invisível do Estado” (BEHRING; BOSCHETTI, 2010, p. 56), que deveria

22
POLÍTICA SOCIAL NO BRASIL

apenas fornecer a base legal para o mercado se desenvolver e se expandir cada vez mais. Quando o
Estado desempenhar essas intervenções, será possível ampliar os benefícios aos homens.

Smith propunha que o Estado não realizasse uma intervenção na vida dos indivíduos, mas somente
no mercado. Assim, o autor não propunha a extinção do Estado, “ao contrário, reafirmava a necessidade
da existência de um corpo de leis e a ação do Estado que garantisse maior liberdade ao mercado livre”
(BEHRING; BOSCHETTI, 2010, p. 57).

Ainda, ele recomenda um “estado mínimo” na interferência na vida dos seres humanos, sendo que o
Estado deveria ser controlado pelos indivíduos e pela sociedade como um todo. “Trata‑se, portanto, de
um Estado mínimo, sob forte controle dos indivíduos que compõe a sociedade civil, na qual se localiza
a virtude” (BEHRING; BOSCHETTI, 2010, p. 59).

Segundo a perspectiva de Smith, o Estado mínimo possuía apenas três funções a desempenhar,
sendo essas: “[...] a defesa contra os inimigos externos; a proteção de todo o indivíduo de
ofensas dirigidas por outros indivíduos; e o provimento de obras públicas, que não possam
ser executadas pela iniciativa privada” (BEHRING; BOSCHETTI, 2010, p. 60). Ou seja, não se
recomenda a intervenção do Estado nos problemas sociais, mas apenas nas funções básicas que
instrumentalizem o mercado a produzir.

Competia, assim, ao indivíduo, a cada ser humano, buscar se desenvolver e ter suas necessidades
atendidas, e não ao Estado. Nos termos postos, para esse autor, quando o indivíduo busca atender suas
necessidades o faz movido por sentimentos éticos e morais, que seriam também uma forma de controle
dos seres humanos. Assim, os sentimentos morais e éticos orientariam o indivíduo a ter suas carências
atendidas por meio do mercado.

Portanto, Adam Smith percebe como um grande mérito o fato de os indivíduos, movidos por
sentimentos morais e éticos, buscarem atender suas necessidades através do mercado. Para ele, é inerente
ao ser humano a possibilidade de cada um deles usar, em seu próprio benefício, suas capacidades
individuais, suas potencialidades. Para Smith, competia ao mercado também regular as relações sociais,
estabelecidas entre os homens.

Behring e Boschetti (2010) nos dizem ainda que, para Smith, há uma seleção natural do mercado
no sentido de escolher aqueles que serão a ele incorporados e daqueles que não conseguirão ter suas
necessidades contempladas.

Assim sendo, segundo Behring e Boschetti (2010, p. 61) o liberalismo, proposto por Adam
Smith, se peculiariza por um intenso “darwinismo social”, no qual cada ser humano precisa se
mostrar capaz de atender suas necessidades sociais. Como se isso fosse natural à sociedade,
algo inerente a ela e que não pudesse ser mudado. No caso, os que não conseguem ter suas
necessidades atendidas estão condicionados pela seleção natural, em que apenas os mais fortes
possuem condição de sobreviver.

23
Unidade I

Saiba mais

Para dados adicionais extras sobre a vida e a obra desse importante


nome do liberalismo, recomendamos o acesso ao site:

DANTAS, T. Liberalismo econômico. Brasil Escola, 2019. Disponível em:


<https://brasilescola.uol.com.br/economia/liberalismo‑economico.htm>.
Acesso em: 11 mar. 2019.

Esse darwinismo social deriva também das compreensões de Malthus. Para ele, havia mais pobres do que
o normal, existia até a proposição do extermínio desse segmento, além da sugestão de que os pobres fossem
vigiados, controlados e punidos, sendo que isso deveria ser algo comum nas sociedades, segundo o referido autor.

Ainda, para Malthus, o fato de haver uma quantidade elevada de pobres não deveria demandar uma ação
do Estado. O Estado, segundo tal teórico, também não teria de interferir na regulação do trabalho, ou seja,
expressa, em grande medida, o ideal liberal. Assim sendo, “Trata‑se da negação da política e, em consequência,
da política social que se realiza invadindo as relações de mercado [...]” (BEHRING; BOSCHETTI, 2010, p. 61).

De forma que, apontando as principais características do liberalismo, Behring e Boschetti (2010,


p. 61‑62), indicam as seguintes:

[...] predomínio do individualismo, o bem‑estar individual maximiza


o bem‑estar coletivo, predomínio da liberdade e da competitividade,
naturalização da miséria, predomínio da lei da necessidade, manutenção de
um Estado mínimo, as políticas sociais estimulam o ócio e o desperdício e a
política social deve ser um paliativo.

Todavia, vejamos como podemos compreender cada um dos aspectos elencados na citação anterior.

O predomínio do individualismo faz referência à crença de que o indivíduo, sendo esse um sujeito
que alcançou os direitos civis, tem liberdade de ir e vir, de adquirir e comercializar produtos, sendo
que sua liberdade individual era um componente essencial para o seu desenvolvimento na sociedade
capitalista. Como tal, o indivíduo tem a possibilidade de buscar alcançar o seu bem‑estar individual,
este, um requisito para que seja alcançado também o bem‑estar coletivo. No caso, depende de cada
indivíduo alcançar seu bem‑estar e colaborar, assim, para o bem‑estar da coletividade.

Os liberais ainda defendem que há um predomínio da liberdade e da competitividade, compreendidas


como forma de autonomia do indivíduo e de possibilidade de escolha frente às possibilidades que lhes
são postas. A competitividade é percebida como algo necessário para estimular o comércio.

Figura ainda como compreensão liberal, a naturalização da miséria, ou seja, a miséria e a pobreza são tidas
pelos liberais como algo natural, inerente a nossa sociedade. A miséria é entendida também como resultado
24
POLÍTICA SOCIAL NO BRASIL

da amoralidade que perpassa a raça humana e não como uma desigualdade gerada na sociedade capitalista
consolidada. Atrelada a essa concepção, temos o predomínio da lei de necessidade, que corresponde à crença
de que as necessidades humanas básicas não devem ser totalmente contempladas, visto que, dessa forma, será
possível controlar o crescimento populacional e, por conseguinte, colaborará com o controle da miséria.

A manutenção do Estado Mínimo, tal como já apontamos, corresponde à compreensão de que o


Estado deve ser neutro e desenvolver apenas ações que não possam ser empreendidas pelo mercado ou
pela iniciativa privada. Por sua vez, as políticas sociais não devem ser empreendidas pelo Estado, visto
que tais ações estimulam o ócio e o desperdício, pois, para os liberais, as políticas sociais desestimulam o
indivíduo a trabalhar e, por isso, são um risco à sociedade do mercado. Assim, as políticas sociais deveriam
ser ações paliativas destinadas apenas aos seres humanos que não tinham condição de ingressar no
mercado de trabalho como, por exemplo, crianças, idosos e pessoas com deficiência. A pobreza, por sua
vez, deveria ser administrada pela caridade privada e não pelo Estado.

Assim sendo, caberia a cada ser humano ter suas necessidades atendidas, e não ao Estado. Os casos
mais graves, no entanto, ficariam resignados a intervenção da caridade privada.

Com tais colocações, chegamos ao fim de nossos estudos sobre o liberalismo, sendo que agora
passaremos a discutir o keynesianismo, que será uma forma diferenciada de compreender a política
social. Antes disso, observemos o texto a seguir com destaque e as questões a ele atribuídas.

As políticas sociais do liberalismo

Anda por aí em voga a ideia de que é preciso mais Estado para proteger os cidadãos
da crise. Mais regulamentação da actividade laboral, mais protecção do trabalhador, maior
controle das decisões tomadas pelos empresários, da forma como estes devem gerir a sua
empresa, como os bancos devem conceder créditos. São inúmeros os exemplos, significativos
dos ventos que correm e que tanta coragem têm dado à esquerda para que volte a desejar,
sem receio de parecer ridícula, o fim do capitalismo.

Junte‑se, a esta euforia, a ideia alicerçada até ao fundo da nossa consciência cívica de
que os liberais não cuidam dos mais desfavorecidos. Não se preocupam com as situações
mais gritantes da miséria humana, acreditando que toda a vida do homem é um percurso
natural na evolução da condição humana. Que basta o trabalho, o esforço e a fé no mercado
para que tudo corra pelo melhor.

Não há, no entanto, nada mais errado. Ao contrário do que tem sido ponto assente,
quanto maiores as dificuldades para o despedimento, e que as forças de esquerda tanto
preconizam, maior a dificuldade na obtenção de emprego. Se tais medidas protegem quem
tem trabalho, já prejudica quem não trabalha. Qualquer homem e qualquer mulher que
fique em casa sem nada fazer e desconhece como vai pagar as contas no final desse mês.
Da mesma forma, as licenças de maternidade/paternidade podem ter um efeito contrário
ao pretendido. Se protegem a mãe com emprego e que tem um filho, prejudica aquela que,
estando desempregada, engravida e dificilmente encontrará alguém disposta a contratá‑la.
25
Unidade I

É, pois, uma medida que também pode desincentivar à constituição de família e contribui,
à sua maneira, para a redução da natalidade. A desregulamentação é, pois e muitas vezes, a
melhor forma de não discriminar e, não discriminando, não prejudicar os cidadãos [...]

Fonte: Amaral (2009).

Exemplo de aplicação

Após a leitura do texto, construa um texto argumentando em que medida o ideal liberal propõe
ou não uma redução nas intervenções relacionadas à pobreza e destacando ainda em que medida o
indivíduo, segundo essa perspectiva, é responsabilizado pela sua condição de pobreza.

Assim, após tais colocações, passaremos a tratar do keynesianismo. Preste bastante atenção, pois
adentraremos em uma perspectiva de entendimento da realidade social e do Estado totalmente distinta da que
estudamos até agora. Essa percepção é basal a nós, uma vez que incide diretamente sobre a consolidação das
políticas sociais. Conhecer essa doutrina e os serviços que foram a ela vinculados é extremamente relevante,
pois, nós, assistentes sociais, atuaremos de modo direto com esses serviços. Dessa maneira, podemos observar
como a doutrina teórica e econômica é essencial ao Estado na delimitação de serviços públicos.

2 O PÓS‑GUERRA E A CONSOLIDAÇÃO DO WELFARE STATE

Faremos uma reflexão sobre o keynesianismo. Para compreender o que é posto segundo essa doutrina
econômica, será fundamental realizar também uma incursão sobre o desenvolvimento econômico de um
determinado momento histórico. Assim sendo, todas as informações aqui tratadas serão de suma importância
para a compreensão dessa maneira distinta de compreender a política social, o keynesianismo. Porém, é
necessário destacar que tal sistema não se restringe à forma de organização das políticas sociais, mas a um
novo formato do que é idealizado como papel a ser assumido pelo Estado nas áreas econômica e social.
Todavia, sem mais delongas, vamos nos aproximar desse conceito basal para nós, assistentes sociais.

Antes de prosseguirmos, entretanto, uma pequena pausa, para que, como curiosidade, observar a
seguir a representação de Keynes na fotografia:

Figura 10 – Keynes

26
POLÍTICA SOCIAL NO BRASIL

Keynes, como a analogia entre seu nome e a corrente teórica nos indica, foi o idealizador dessa
perspectiva teórica. Agora que já sabemos, melhor, que podemos enfim visualizar a imagem daquele
que idealizou o keynesianismo, passamos então aos conteúdos mais específicos dessa corrente de
pensamento. A grande expressão do seu pensamento encontra‑se no livro Teoria Geral do Emprego,
do Juro e da Moeda, que fora publicado no ano de 1936. Antes de prosseguirmos na descrição das
concepções de Keynes, precisamos retomar alguns acontecimentos desse período e que condicionaram
tais postulados e recomendações.

No caso, precisamos retomar alguns fenômenos econômicos que se desenharam em todo


mundo antes de 1936, ou seja, antes da publicação da Teoria Geral do Emprego, do Juro e da
Moeda. Nesse momento, vivenciamos dois grandes fenômenos que irão influenciar sobremaneira
o pensamento de Keynes, um fenômeno de natureza política e outro de natureza econômica.

Acontece que, segundo Couto (2010), no período em questão, temos a ampliação significativa de
muitos movimentos revolucionários europeus, em decorrência das precárias condições de vida que
afetam grande parcela da população, desde a classe trabalhadora até a população em geral. Esses
movimentos foram organizados na verdade no fim de 1848, sendo que o mais expressivo deles seria a
Comuna Francesa, por sua vez, com grande expressão a partir de 1871. Tais fenômenos de reivindicação
tornam‑se ainda mais latentes no começo de 1900, e a pressão posta por movimentos dessa natureza
promoveu uma reflexão sobre a importância do Estado, que será, como veremos, a pedra de toque do
pensamento de Keynes.

No caso, vivenciamos também, nesse momento, um contexto de crise econômica que se inicia em meados
da década de 1920 e que vai ter seu grande apogeu no final da década de 1930. Uma grande expressão dessa
crise econômica foi a quebra da Bolsa de Nova York, no ano de 1929 (BEHRING; BOSCHETTI, 2010).

No contexto da crise econômica de 1929 e do crescimento das desigualdades


e das tensões sociais inerentes ao capitalismo na sua fase monopolista,
surgiu no âmbito mundial a proposta do Estado social, que alcança sua
consolidação e desenvolvimento no pós‑guerra, notadamente nas décadas
de 1950 e 1960 (COUTO, 2010, p. 64).

A crise, segundo Behring e Boschetti (2010), é uma realidade que integra o sistema capitalista, ou seja,
as autoras nos dizem que faz parte desse método a sua ocorrência. A crise é expressa por meio da queda
da taxa de extração do lucro, pela escassez de consumo e por uma série de fenômenos. Ela acontece no
entanto em momentos alternados, ou seja, o sistema capitalista não se mantém somente com crises,
mas com períodos alternados, de expansão e desenvolvimento e estagnação. Assim, durante a expansão,
temos altas taxas de lucro e elevados ganhos de produtividade, porém, nos momentos de crise, o quadro
de expansão não se mantém. Lembra‑se das imagens que inserimos no item anterior retratando o
contexto da crise e do conteúdo análogo a ela? Estamos falando sobre esse mesmo período.

As autoras nos dizem que as crises se tornam mais constantes no capitalismo em sua fase madura e
consolidada. É, nessa fase, que ele é descrito como aquele em que observamos um intenso processo de
monopolização, subsidiado por intervenções do Estado para fazer com que o capitalismo consiga produzir
27
Unidade I

e alcançar as taxas de lucro. Essa fase de desenvolvimento do capitalismo se consolida, sobretudo, após
a Segunda Grande Guerra Mundial (BEHRING; BOSCHETTI, 2010).

Lembrete

A crise capitalista de 1929 é reconhecidamente uma das mais agressivas


do capitalismo nesse período.

Contudo, enfim, foi a crise que motivou Keynes a tecer suas considerações. Para ele, em decorrência da
crise, seria necessária a intervenção do Estado para que fosse possível reativar a produção econômica. Essa
intervenção, conforme nos mostra Couto (2010, p. 65), deveria acontecer de uma forma planejada previamente
e, desse modo, apenas a produção econômica seria reativada e assim “condições de acumulação capitalista se
reestabeleceriam”. Apesar de defender a liberdade individual e a independência da produção do mercado, Keynes
delega uma grande responsabilidade ao Estado no sentido de recuperar o desenvolvimento econômico.

Segundo Keynes, vivenciamos uma ineficiência por parte do mercado em escoar a produção. Assim,
não há pagamentos em circulação, e isso amplia a crise. “Nesse sentido, o Estado deve intervir, evitando
tal insuficiência’ (BEHRING; BOSCHETTI, 2010, p. 85).

Para que essa intervenção do Estado acontecesse, era recomendado que o referido ente federado
empreendesse uma regulação da política fiscal, creditícia e de gastos por meio de investimentos que
possam atuar nos períodos de crise e também em períodos de desenvolvimento capitalista, buscando
assim conter o declínio da taxa de lucros.

Segundo as autoras, o keynesianismo se assentava no princípio de que o Estado deveria gerar


empregos e proporcionar também serviços sociais públicos por meio das políticas sociais. No caso,
figura como recomendação keynesiana a possibilidade de gerar o pleno emprego, ou emprego para
todos aqueles que tivessem em condição de trabalhar. Dessa forma, com grande parte da população
trabalhando, o consumo seria reativado.

No entanto, para os segmentos como idosos, deficientes e crianças, tidos por Keynes como “incapazes
para o trabalho” (BEHRING; BOSCHETTI, 2010, p. 86), deveria ser constituída a política social, sobretudo
por meio de uma política de Assistência Social que atendesse as necessidades desses grupos. Dessa
forma, mesmo aqueles que não pudessem trabalhar, ou seja, que não pudessem ter suas necessidades
atendidas por meio do trabalho, poderiam tê‑las contempladas por meio das políticas sociais. No sentido
em questão, isso também tenderia a ativar o consumo.

No caso, Keynes defendia que o ser humano deveria buscar atender suas necessidades através do
mercado, do trabalho, porém, quando isso não pudesse ser alcançado, e priorizando‑se sempre os segmentos
mais vulneráveis, é que o Estado deveria intervir por meio das políticas sociais. É relevante pontuar que essa
intervenção proposta por Keynes não tinha como foco atender esses segmentos em decorrência da situação
de vulnerabilidade social vivenciada, e sim constituir uma série de mecanismos para que o sistema capitalista
recuperasse a extração do lucro e, portanto, a superação da crise que abalava substancialmente tal modelo.
28
POLÍTICA SOCIAL NO BRASIL

Nos termos postos, o objetivo era apenas modificar, reorientar o mercado para que ele mesmo se
recuperasse e voltasse a oferecer lucratividade. Couto (2010, p. 66) nos mostra que, para isso, o Estado
deveria intervir:

[...]

• garantindo aos indivíduos e às famílias uma renda mínima,


independente dos valores do trabalho ou de sua propriedade;

• restringindo o arco de insegurança, colocando os indivíduos e as


famílias em condições de fazer frente a certas contingências (por
exemplo, a doença, a velhice e a desocupação), que, de outra forma,
produziram as crises individuais e familiares; e

• assegurando que [a] todos os cidadãos, sem distinção de status ou


classe, seja oferecida uma gama de serviços sociais.

Consequentemente, seria possível que o sistema capitalista saísse da crise agora vivenciada. Para
Keynes, todas as ações deveriam considerar o limite da capacidade do Estado, ou seja, extrair ao máximo
a capacidade estatal para alcançar o que era esperado.

Behring e Boschetti (2010) ainda nos dizem que os postulados de Keynes sustavam o modo de
produção capitalista, que na época estava assentado no formato de produção fordista. O fordismo, de
acordo com Behring; Boschetti (2010), se caracteriza por um formato de produção que acontece em
massa para um consumo também em massa. Também se assenta na afirmação de acordos coletivos com
os trabalhadores que possuem como enfoque a ampliação da produtividade.

As autoras ainda nos dizem que o modo de produção fordista também se peculiariza pela
introdução da linha de montagem e da eletricidade, o que tendeu a influenciar no sentido de ampliar
significativamente a produção. Ademais, elas apontam que a partir do fordismo, também com o objetivo
de ampliar a produção, as empresas começam a exercer um controle sobre o modo de vida e consumo
dos trabalhadores, além do momento de trabalho (BEHRING; BOSCHETTI, 2010).

O fordismo foi idealizado por Henry Ford e, apesar de ter sido pensado nas primeiras décadas do
século XX, somente a partir do segundo pós‑guerra, é que essa forma de produção foi intensificada em
todas as partes do globo. Conjuntamente, no mesmo período, os ideais de Keynes ganharam grande
aceitação no mundo, ou seja, a partir do segundo pós‑guerra.

Lembrete

Keynesianismo é a doutrina econômica e social idealizada por Keynes, já


o fordismo trata‑se do formato de produção desenvolvido por Henry Ford.

29
Unidade I

O keynesianismo associado ao fordismo resultou, durante grande tempo, em um crescimento


econômico considerável, porém esse crescimento não se sustentou, e tal formato de produção
foi sendo substituído, assim como a perspectiva sobre as políticas sociais também o foi por outra
perspectiva. Todavia, isso será objeto de discussão em um próximo tópico, visto que ainda temos
considerações a traçar sobre o keynesianismo.

No caso, cabe destacar que por meio dos serviços em que são constituídas as políticas sociais, com
o objetivo de reativar o comércio, também se consegue manter, segundo Behring e Boschetti (2010),
o pacto social entre a classe burguesa e o Estado. Segundo esse pacto social, digamos assim, a classe
trabalhadora e a classe empobrecida precisam ter acesso a determinados serviços, proporcionados pelo
Estado, para que não se coloquem contrários à dominação capitalista e ao poder do Estado. Isso posto, a
política social é uma maneira de coação e garante o pacto social. Dessa forma, torna‑se possível manter
a acumulação capitalista.

Behring e Boschetti (2010) ainda nos dizem que o keynesianismo só se mostra exequível em
decorrência de alguns fatores, dentre os quais, apontam o estabelecimento de políticas para gerar o
pleno emprego e o crescimento econômico em um mercado liberal; a constituição de serviços sociais
para assim criar a demanda e ampliar o mercado de consumo e o estabelecimento do chamado pacto
social, ou seja, um acordo estabelecido entre as classes sociais e o Estado.

Apesar de não ter havido um formato idêntico de aplicação dos postulados de Keynes pelo mundo,
convencionou‑se que esse formato de regulação estatal seria denominado pela terminologia de Welfare
State, ou Estado de Bem‑Estar Social. Em geral, ele foi adotado em vários países, mas, em que pese as
diferenciações adotadas em cada formato de Welfare State, há algumas características que são comuns
nesse modo de gestão estatal.

Como não é objetivo de nosso estudo discutir exaustivamente os modelos adotados, descreveremos
apenas alguns, os mais comuns, para que você possa compreender melhor de que tipo de Estado
estamos falando. É importante antes atentarmos ao fato de que esse padrão de Estado se implantou
inicialmente na Europa e, depois, nas outras partes do mundo.

Couto (2010) nos diz que foram os modelos adotados na Europa os mais próximos das recomendações
de Keynes, mas, vejamos algumas experiências.

A autora nos diz que nos Estados Unidos, Canadá e Austrália, o mais comum foi a adoção da
assistência, conferida pelo Estado, apenas a pessoas que fossem comprovadamente pobres. Grande
parte das intervenções, no entanto, ainda eram mantidas por meio de ações empreendidas pela
iniciativa privada.

Já na Austrália, França, Alemanha e Itália, o que teria predominado é um Estado de Bem‑Estar Social
Corporativista. O padrão corporativista figura como aquele em que os direitos sociais só são concedidos
para as famílias que não conseguem, por si mesmas, atender as necessidades básicas de seus membros,
ou seja, em casos de extrema necessidade.

30
POLÍTICA SOCIAL NO BRASIL

E tivemos ainda o formato social‑democrata, adotado em muitos países escandinavos, tais como
Noruega, Suécia e Dinamarca, sendo que, nesse formato, as intervenções eram organizadas por meio de
serviços sociais universais, pautados na igualdade, na desmercadorização dos direitos sociais e na busca
por se alcançar o pleno emprego, conforme o que era recomendado por Keynes em suas argumentações
(COUTO, 2010).

Em que pese todos os modelos diferenciados organizados, podemos dizer que o Welfare State
se manifesta por meio de uma ampliação do orçamento social, pela ampliação da população idosa
economicamente ativa, o que resulta ainda na elevação de gastos com aposentadorias, e também
com pensões. Observamos que os Estados de tal natureza se peculiarizam por um crescimento
substancial dos programas sociais (BEHRING; BOSCHETTI, 2010). Porém, o Welfare State não se
esgota nessas manifestações.

A grande expressão do Welfare State está expressa no Plano Beveridge, que fora um documento
publicado na Inglaterra em 1942. Esse documento, que propôs realizar uma crítica ao padrão adotado
pelo Estado inglês no que concerne aos seguros sociais, teceu ainda uma série de orientações sobre a
seguridade social.

O Plano Beveridge destacava assim que caberia ao Estado a responsabilidade por manter as condições
de vida dignas por meio da regulação econômica e da viabilização do acesso ao pleno emprego por uma
grande parcela da população brasileira.

De acordo com o Plano Beveridge, caberia também ao Estado a prestação de serviços sociais básicos
e universais, ou seja, extensivos a toda a população, e caberia ainda a esse ente a implantação de uma
rede de segurança, de proteção social, na qual a política de assistência social adquiriu especial destaque
e relevância (BEHRING; BOSCHETTI, 2010).

Sintetizando nossas argumentações, observe a figura a seguir sobre os conteúdos tratados


relacionados ao keynesianismo:

Intervenção do
Estado na economia
Idealizado
por Keynes
Intervenção por meio
de políticas sociais
Keynesianismo

Difundido sobretudo
no segundo período Subsidia o fordismo
pós-guerra

Figura 11 – Síntese dos conhecimentos sobre o keynesianismo

31
Unidade I

De forma que, conforme podemos concluir, o keynesianismo é uma doutrina econômica que defende
a intervenção estatal na regulação da economia e também na regulação da vida dos seres humanos,
sendo que o principal mecanismo que operacionaliza essa regulação ocorre por meio dos serviços sociais,
das políticas sociais. Essa argumentação mostra‑se, no entanto, diferenciada em relação à concepção
liberal por nós já estudada.

Consta, na sequência, um texto no qual a discussão sobre o keynesianismo é trazida à baila na atualidade.

Keynes não defendia Estado forte, destaca pesquisador

Essa é a ideia apresentada pelo economista José Roberto Afonso em livro lançado neste
mês. Pensamento keynesiano foi mal interpretado, diz autor

A crise financeira que estourou nos Estados Unidos em setembro de 2008 e as atuais
turbulências por que passa a Europa – que implicaram trilhões de dólares despejados
pelo poder público no salvamento de bancos, seguradoras e, no caso europeu, países –
reacenderam as discussões sobre o papel do estado na economia. O debate está mais vivo
que nunca. Na semana passada, milhares de pessoas foram às ruas de cidades espanholas e
gregas para pedir por “mais governo”. Dizeres em cartazes e hinos cantados pela multidão
criticaram cortes no orçamento e a redução de subvenções estatais. Como pano de fundo,
acadêmicos e alguns líderes políticos têm feito coro à população e clamam por mais John
Maynard Keynes [...] na condução da economia – em referência ao brilhante pensador que
um dia ousou atribuir ao estado um papel fundamental em momentos de crise. A lembrança
é pertinente – mas infelizmente a maneira como Keynes é invocado distorce muitas de suas
principais ideias.

Em 1936, Keynes escreveu uma de suas obras mais conhecidas, a Teoria Geral do
Emprego, do Juro e da Moeda. Em vez de repetir o mantra de que o Estado não deveria
interferir na atividade em hipótese alguma, o economista britânico afirmou que naqueles
momentos em que a economia está à beira de um colapso deveriam contribuir como
indutores do investimento.

Fonte: Fernandes (2012).

Exemplo de aplicação

Refletindo sobre o texto, à luz dos conteúdos tratados até o presente momento, construa uma
argumentação sobre a relevância da intervenção estatal na economia e também nas expressões da
questão social.

No entanto, as concepções de Keynes entraram em declínio a partir de meados da década de 1970,


quando assistimos também a muitas mudanças na organização da produção capitalista. Behring e
Boschetti (2010) nos dizem que na verdade o que vivenciamos é o fim da possibilidade de combinar

32
POLÍTICA SOCIAL NO BRASIL

acumulação capitalista, equidade e democracia. Isso nos conduz ao tema que debateremos no próximo
tópico de nosso material e demonstra a outra concepção sobre as políticas sociais.

Saiba mais

Para obter informações sobre o declínio do Welfare State, recomendamos:

BEVERIDGE, W. O Plano Beveridge: relatório sobre o seguro social e


serviços afins. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1943.

Ele é bastante expressivo e importante para ampliar nosso entendimento


acerca desse período.

Porém, vamos contextualizar o desenvolvimento do neoliberalismo e as implicações que esse


formato de doutrina traz às políticas sociais mediante à adesão de tais valores pelo Estado. Agora, como
já realizamos incursões que nos permitiram conhecer as ações desenvolvidas, como caridade, passando
pelas intervenções assentadas no Welfare State na Europa, convidamos você para compreender como
aconteceram esses fenômenos no Brasil. No tópico subsequente, voltamos o olhar para a nossa
história, para a história das políticas sociais desenvolvidas em nosso país, considerando as ações
sociais desenvolvidas no período da colônia até o primeiro mandato do governo Vargas. É um período
longo e muito profícuo e com muitas intervenções e questões relacionadas às políticas sociais.
Vamos conhecê‑lo melhor.

3 E NO BRASIL? DA ERA COLONIAL AO PRIMEIRO MANDATO DE VARGAS

Nosso país também vivenciou e vivencia alterações e flutuações na forma de dispor e organizar
as políticas sociais. Essas mudanças estão relacionadas à doutrina adotada pelo Estado nos mais
variados contextos e, por sua vez, está inteiramente vinculada à questão econômica, ao momento
econômico. Entender esse contexto, em dados momentos históricos, se faz fundamental a nós
assistentes sociais. Por isso, começamos a nossa reflexão retomando os períodos mais longínquos
de nossa história, voltado à colônia. Vamos conhecer melhor esse momento e o que existia em prol
dos segmentos mais empobrecidos.

Uma primeira ponderação, no entanto, é vital e corresponde a entender o que é política social. É
extremamente dificultoso precisarmos quando teriam surgido as primeiras ações em política social em
nosso país. O que temos é uma série de eventos e ações organizados pela caridade privada e pela Igreja
Católica para socorrer os segmentos desvalidos e desprotegidos que não estavam inseridos no mercado
de trabalho. Essas ações não podem ser consideradas políticas sociais, uma vez que não possuem o
caráter contínuo basal a esse tipo de intervenção e tampouco são ações desenvolvidas pelo Estado. São
apenas intervenções desenvolvidas por grupos específicos e em dados momentos e que estarão mais
presentes durante a colônia e o império.

33
Unidade I

Consideramos extremamente importante e relevante que se conheça não apenas as intervenções


organizadas em prol dos segmentos empobrecidos, mas a relação com a organização política, econômica
e a situação social de cada um dos períodos.

Observação

Colônia: período histórico estimado entre 1500 e 1822.

Império: período histórico estimado entre 1822 e 1889.

Couto (2010) nos diz que a organização política estava estritamente atrelada à organização
econômica no Brasil colônia. O poder político pertencia aos grandes proprietários de terra. Apesar de
o comando da colônia estar nas mãos da metrópole, no Brasil, com o tempo, foram sendo organizadas
as Câmaras Municipais para a gestão das pequenas cidades e também da zona rural. E, nesses espaços,
quem detinha o poder político eram os grandes fazendeiros.

A sociedade era extremamente patriarcal e fundada em valores que reforçavam uma suposta
supremacia masculina. O homem deveria fazer a gestão da casa, da família, chegando até a definir
onde a mulher deveria deixar os móveis e com quem os filhos deveriam se casar. Destaca‑se,
segundo Couto (2010), o fato de que parte desse ideal era aceito socialmente porque as instituições,
como a Igreja e o Estado, fortaleciam essa crença na supremacia masculina. Portanto, cabia apenas
ao homem o governo do país.

Todavia observe que não era qualquer homem que poderia deter o poder político. Isso era direcionado
especialmente aos grandes proprietários de terra, ou seja, eram apenas os fazendeiros e os que possuíssem
uma determinada condição econômica que poderiam ter acesso a instâncias de poder.

No que diz respeito à organização econômica, Couto (2010) nos diz que, na colônia, havia grandes
latifúndios e, por isso mesmo, o modo de produção dominante estava relacionado à produção de
gêneros agropecuários. Destaca a autora que eram predominantes na produção econômica colonial
os gêneros cana‑de‑açúcar, borracha e a grande estrela, digamos assim, de nosso país, o café. Também
eram expressivas a mineração e a extração do pau‑brasil.

No entanto, a riqueza era destinada a uma minoria, assim como é até hoje, aliás. Na colônia, a
população cresceu rapidamente, e grande parcela do povo vivenciava situações de extrema pobreza,
ao passo que outros segmentos, pouquíssimos, conseguiam ter uma vida cheia de privilégios.
Siqueira (2009) nos informa que o período colonial foi marcado por profunda estratificação social
e intensa pobreza.

Surge, então, a questão: como eram atendidos, ou, melhor dizendo, o que era feito pelas pessoas
que eram pobres? O fato é que havia apenas a intervenção da caridade privada, da caridade da Igreja
Católica e de alguns proprietários de terra.

34
POLÍTICA SOCIAL NO BRASIL

Jesus et al. (2004) destacam como ações da caridade privada e da caridade da Igreja Católica a
organização de bodos, mercearias e esmoleres. Os bodos eram equipamentos destinados a operacionalizar
a distribuição de alimentos para os segmentos empobrecidos. Os alimentos eram arrecadados por
pessoas vinculadas à Igreja Católica perante os fiéis mais abastados e eram redistribuídos para os
cidadãos mais pobres. No entanto, ações como essa não eram contínuas, desenvolvidas com um padrão
regular, e dependiam em grande medida das doações oferecidas, que eram eventuais e incertas, visto
que eram ações espontâneas, ou seja, realizadas por indivíduos que o faziam porque queriam e não
porque tivessem qualquer obrigação de fazê‑lo.

Já as mercearias, de acordo com Jesus et al. (2004), eram asilos destinados a acolher doentes e
pessoas enjeitadas pela sociedade. No sentido em questão, podemos observar serviços como as Santas
Casas e as rodas dos expostos.

As Santas Casas eram instituições mantidas pela Igreja com recursos arrecadados entre os fiéis e
ainda com parcas doações das Câmaras Municipais. As Santas Casas atendiam pobres, doentes, presos,
alienados, órfãos, desamparados, inválidos, viúvas pobres e até mesmo mortos sem caixão, providenciando
para eles um enterro. Os escravos não tinham direito a esse atendimento.

Essas instituições surgiram por meio de uma ação de caridade da Irmandade Misericórdia Imaculada
da Igreja Católica. Pressupunha‑se que os católicos deveriam ser caridosos e ajudar os outros. Isso está
relacionado ao movimento de contrarreforma da Igreja Católica, que buscava reconquistar os fiéis que
vinham cada vez mais se afastando da fé católica e procurando outros espaços de expressão religiosa.
Por meio dessas ações, buscava‑se construir uma nova imagem da Igreja e de seus fiéis (SIQUEIRA, 2009).

Lembrete

Os espaços destinados ao acolhimento de crianças abandonadas por


seus familiares são chamados de rodas dos expostos.

As rodas dos expostos, por sua vez, eram equipamentos que acolhiam crianças enjeitadas. Via de
regra, as crianças eram abandonadas por pais que não possuíam condições financeiras de cuidar de seus
filhos, ou por serem frutos de relações de adultério. Além disso, muitos pais dessa época acreditavam que
os filhos poderiam ser melhores cuidados e teriam mais chances de sobrevivência se fossem atendidos
pela roda. Por isso, e por outros motivos afins, muitas eram as crianças que eram entregues pelas
famílias nessas instituições. A título de exemplo, veja as figuras a seguir. Elas são do Heliotherapium,
uma instituição criada no Rio de Janeiro que possuía as mesmas características das rodas dos expostos.

Não podemos entender que essas instituições ofereciam um serviço qualificado para as populações
com as quais atuavam, muito pelo contrário. Rizzini e Rizzini (2004) nos dizem que grande parte dos
atendidos morriam. Na época não havia uma medicina que lhes permitisse sobreviver às doenças e
tampouco o cuidado necessário para as crianças atendidas. Outro complicador nesse processo era o
fato de que os atendidos eram “misturados” a outras pessoas, ou seja, eram acolhidos vários segmentos
sociais, sem discriminação por necessidades ou diferenças.
35
Unidade I

Já os esmoleres existiam para que fossem arrecadadas e repassadas esmolas. A arrecadação


acontecia nos segmentos mais abastados, o que era conseguido era repassado aos cofres públicos. Por sua
vez, os valores arrecadados eram destinados pelos cofres públicos para atender expostos, atendidos
sobretudo nas rodas.

Porém, até o momento, falamos de ações que eram desenvolvidas com a população em geral. No
entanto, temos, no Brasil, nesse período, um segmento que estava excluído, em grande medida, dessas
ações: os escravos. Os escravos eram responsabilidade dos proprietários de terra aos quais pertenciam.
Couto (2010) nos informa que os escravos eram tidos como propriedade dos fazendeiros, logo cabia
a esses fazendeiros definir o que lhes seria concedidos. A análise de Couto (2010) compreende que
isso inaugura a assistência social como uma política de benesse, de favor, já que o escravo poderia ser
agraciado com algum favor se o senhor assim desejasse.

A esse respeito, Mattoso (1995) informa que o proprietário da terra (e, consequentemente, do
escravo) podia dispor da vida dele, assim como da dos filhos nascidos de relações entre os escravos.
Assim, o bebê nascido de escravos era propriedade do senhor, podendo, inclusive, ser vendido se
esse assim o desejasse. Competia, portanto, ao proprietário da terra a atenção às necessidades das
crianças escravas.

O tratamento dos senhores da terra conferido aos escravos era representativo da forma como os
escravos eram vistos por seus senhores, via de regra, como mercadorias. Observe a representação da
tela de Debret, que expressa a forma de tratamento conferida a esse segmento da população durante
o regime colonial.

Figura 12 – Palmatória, de Debret

E quanto ao Estado, como era seu posicionamento no período em relação aos problemas sociais?
É importante pontuar que não temos um Estado forte nesse momento em nosso país. Conforme já
dissemos, o governo estava expresso nas Câmaras Municipais, que eram geridas pelos proprietários de
terra, os que detinham na época o poder econômico.

Couto (2010) nos diz que o poder político da época não se colocava em prol da defesa dos segmentos
empobrecidos residentes na colônia. Observamos assim que, em seu início, o Brasil foi influenciado pelos
ideais liberais. Nesse sentido, temos um Estado que não intervém nos problemas sociais e somente
36
POLÍTICA SOCIAL NO BRASIL

realiza intervenções pontuais para regulação da economia. As ações empreendidas por ele buscavam
principalmente defender os interesses individuais das classes mais ricas.

Veja a figura que sistematiza as informações tratadas até o presente momento.

Organização econômica Grandes latifúndios e trabalho escravo

Poder político destinado aos proprietários de terra


Organização política
Influência do liberalismo

Ações junto Bodos, mercearias e esmoleres


aos segmentos
empobrecidos Ações dos proprietários de terra

Figura 13 – Sistematização das informações sobre o período colonial

O período colonial chegou ao fim em 1822, quando inauguramos um novo momento na história de
nosso país. Inicia‑se, então, o Império, que perdurou até 1889.

No que diz respeito à organização econômica, ainda perdura a predominância das atividades
relacionadas à agricultura e à pecuária. Todavia, segundo Couto (2010), é no período imperial que temos
a consolidação das bases do sistema capitalista no país, pois é nesse momento que temos o estímulo às
iniciativas de livre comércio. Entre outras coisas, é em decorrência do surgimento do capitalismo que
ocorre o declínio e a extinção do trabalho escravo.

Com as bases do sistema capitalista sendo constituídas, temos o declínio da imagem do


fazendeiro proprietário de terra da aristocracia cafeeira. Observamos então o surgimento, ainda
tímido, de uma nova figura economicamente dominante: o novo burguês. Contudo, ainda eram
os latifundiários os detentores do poder político. Data desse período, a criação da Assembleia
Nacional Constituinte, composta apenas por representantes dos segmentos mais ricos da sociedade
brasileira (BEHRING; BOSCHETTI, 2010).

A partir do desenvolvimento das protoformas iniciais do sistema capitalista, temos também um


processo lento de urbanização de nosso país. A urbanização está relacionada à constituição das pequenas
indústrias, ainda que muito rudimentares. Aos poucos, a população vai migrando das regiões rurais para
as regiões urbanas.

Entretanto, o que demarcou esse período como divisor de águas na história brasileira foi a vinda
da corte portuguesa para o Brasil. Couto (2010) informa que essa vinda está relacionada às guerras

37
Unidade I

napoleônicas, que afetaram o poder de Portugal. Inicialmente, o poder no Brasil foi assumido por
Dom João VI, sucedido por seu filho, Dom Pedro I.

Porém, a vinda da corte portuguesa para o país não provocou alterações significativas no sentido da
intervenção da pobreza. Foram mantidas as intervenções por meio das Santas Casas, das mercearias e dos
esmoleres. Nesse sistema, permaneciam excluídos os escravos, escravos libertos e também trabalhadores,
que deveriam ser socorridos pelos empregadores.

A única inovação do período se deu no âmbito da legislação. A Constituição de 1824, em seu artigo
179, estabelecia que as câmaras deveriam conferir socorro às Santas Casas e às rodas dos expostos.
Ainda no artigo em questão, recomendava‑se o cuidado com os órfãos, com os doentes e propunha‑se
a vacinação da população (JESUS et al., 2004).

Na Constituição ainda se dizia que deveria haver eleição direta, mas nela só poderiam votar homens
com 25 anos ou mais e que possuíssem renda média de 100 mil réis. Para Jesus et al. (2004), esse era um
mecanismo para fortalecer a desigualdade social e a estratificação da sociedade.

A seguir trazemos figura representativa das informações relacionadas ao período imperial.

Produção em grandes latifúndios


Organização econômica
Protoformas do sistema capitalista

Vinda da corte portuguesa


Organização política
Poder político conferido a classes mais ricas

Ações junto Bodos, mercearias e esmoleres


aos segmentos
empobrecidos Não intervenção estatal

Figura 14 – Síntese das informações sobre o período imperial

Observação

A República Velha tem seu início em 1889.

O Império não combinava com a acumulação capitalista e, por isso, declinou em 1889, quando
teve início a República Velha. A partir de então, se instala, no Brasil, o governo oligárquico, no qual o
poder político é partilhado entre as oligarquias econômicas do país. Nesse contexto, para alcançar o poder
político era necessário deter o poder econômico (COUTO, 2010).

38
POLÍTICA SOCIAL NO BRASIL

Os grupos mais importantes e que detiveram o poder na época foram representados por São Paulo e
Minas Gerais. Estes eram os estados mais fortes economicamente, sendo que São Paulo era responsável
pela produção de café, e Minas Gerais, pela do leite. Esses estados se alternavam na indicação de quem
governaria o país, ou seja, de quem seria o presidente.

Couto (2010) indica que, nesse momento, o sistema capitalista já estava mais desenvolvido, havia
industrialização, ainda que muito rudimentar. No que diz respeito aos segmentos mais empobrecidos de
nossa sociedade, também não tivemos ações organizadas pelo Estado, sendo, mais uma vez, preponderante
o desenvolvimento de ações por parte da caridade privada e da caridade da Igreja Católica.

Contudo, foi nesse período que tivemos algumas intervenções no sentido da legislação em relação
à infância e ao trabalho.

No que tange à infância, Behring e Boschetti (2010) indicam que, em 1891, foi criada uma lei para
regulamentar o trabalho infantil, já que, nessa época, crianças podiam trabalhar. Essa lei, no entanto,
não foi colocada em prática. No ano de 1927, foi publicado o Código de Menores, uma legislação que
buscava regulamentar a punição de crianças e adolescentes (na época, designados pelo termo “menor”)
que cometessem algum ato infracional.

Observação

O termo “menor” era usado no sentido pejorativo, buscando assim designar


crianças pobres. A criança pobre era tida como uma pessoa que, pela pobreza,
possuía maiores possibilidades de cometer alguma conduta incorreta.

Já com relação à questão da legislação trabalhista, observamos o surgimento de uma série de dispositivos
legais, dentre os quais, podemos destacar a autorização para a organização dos trabalhadores por meio dos
sindicatos, sendo essa autorização conferida pelo Estado (1903); uma nova legislação trabalhista fixando a
carga horária máxima de 10 horas diárias (1911); uma lei estabelecendo que os acidentes ocorridos no
espaço de trabalho seriam responsabilidade do empregador e não mais do empregado (1919).

Foi durante a República Velha que vários acontecimentos culturais e políticos que provocaram uma
série de mudanças em nosso país foram sendo gestados. O ano de 1922 foi um dos períodos de maior
importância, posto que foi nesse ano que tivemos a criação do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Também
foi nessa época que tivemos a Semana de Arte Moderna. Nela, importantes teóricos e artistas se mobilizaram
para discutir arte, política e condição social do povo brasileiro. Como exemplo de referências da Semana
de Arte Moderna, temos figuras ilustres como Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral.

Essas discussões foram potencializadas pela crise capitalista que se evidenciou a partir de 1929. Tal
crise teve como grande expressão a quebra da Bolsa de Nova York, em 1929. É emblemática também
a passagem, com a crise, de grandes produtores do café atirando sacos ao mar no Porto de Santos,
dada a impossibilidade de vender o produto. Na época, o declínio dos preços do café provou resultados
extremamente negativos para a economia brasileira, visto que até então sua produção representava
cerca de 70% do produto interno bruto (PIB) (BEHRING; BOSCHETTI, 2010).

39
Unidade I

Já estudamos a crise capitalista de 1929 considerando as formulações de Keynes? Aqui estamos


retratando esse mesmo período histórico, porém, observando como ele aconteceu no Brasil.

Essa crise econômica resultou na estagnação da economia, no aumento do desemprego e do


subemprego. Couto (2010) nos diz que, nesse ano, havia dois milhões de desempregados no Brasil. Em
São Paulo, por sua vez, havia 100 mil desempregados.

Observação

O governo oligárquico foi sucedido pelo governo militar.

Nos idos de 1929, foram sendo gestadas as mudanças políticas que culminariam na Revolução de
1930. A partir de 1930, o governo oligárquico foi deposto e assumiu o poder o governo militar, que
tinha em Getúlio Vargas seu grande representante. E foi a partir de então que as ações em política social
começaram a ser desenvolvidas, ainda que de maneira incipiente.

A organização política, conforme dissemos, foi assentada no regime militar. Como sabemos, esse
regime era pautado na forte repressão e centralização política. Além disso, temos um padrão que será
seguido quase que ininterruptamente em nosso país até a década de 1980: o do uso da força física e da
coerção por parte do Estado, como atos legítimos para a manutenção da ordem.

Também é no início dos anos 1930 que assistimos à intensificação do processo de industrialização do
Brasil. Behring e Boschetti (2010) indicam que, a partir daí, buscou‑se a superação da crise que assolara o
capitalismo e a consolidação de um parque industrial que desse conta de ampliar os lucros da burguesia.

Para oferecer subsídios necessários à consolidação desse sistema, o governo varguista não mediu
esforços, atuando de forma preponderante na formação da classe trabalhadora, auxiliando na
regulamentação dos direitos trabalhistas e buscando, a todo custo, regular a relação estabelecida entre
patrões e empregados, tornando‑as pacíficas.

Uma das primeiras ações do governo varguista foi a criação, em 1930, do Ministério do Trabalho, órgão
que deveria se ocupar da atenção aos direitos dos trabalhadores. Além da criação do Ministério do Trabalho,
no ano de 1937, surgiu uma nova Constituição. Nela, o Estado passou a ser responsabilizado por prestar uma
série de serviços sociais à população, tais como: ensino pré‑vocacional e primário para as classes pobres,
amparo à infância e à juventude, auxílio aos pais miseráveis. Couto (2010), contudo, nos diz que, apesar da
garantia legal, o poder público não despendeu recursos e, devido a isso, as ações não foram empreendidas.

No que diz respeito à formação do trabalhador, segundo Behring e Boschetti (2010), tivemos em
1942 a criação do Serviço Nacional da Indústria (Senai). Sobre o Senai, Iamamoto e Carvalho (2001)
comentam que essa instituição foi criada para fornecer formação a industriários e era um serviço
gerido pela Confederação Nacional da Indústria. O Senai não trabalhava apenas com a formação, mas
buscava moldar o trabalhador, fazendo com que ele adotasse um comportamento produtivo e, portanto,
adequado ao sistema capitalista que se evidenciava.
40
POLÍTICA SOCIAL NO BRASIL

O Senai ainda existe em nosso país e hoje é extremamente respeitado e tem sua imagem vinculada
a centros que oferecem formação sólida no sentido de preparar a mão de obra para o trabalho.

Durante o governo varguista, temos a consolidação do Serviço de Assistência ao Menor (SAM) em


1941 e da Legião Brasileira da Assistência (LBA) em 1942.

O SAM foi criado para atender adolescentes transviados e crianças desvalidas. Considerava‑se que
crianças e adolescentes que pertencessem a famílias pobres eram uma população propensa a cometer
delitos e, por isso, eram atendidos pelo SAM. Também eram atendidos pelo serviço crianças e adolescentes
que já tinham cometido algum delito. Por isso, no SAM, tanto tínhamos crianças e adolescentes que
cometiam atos infratores quanto as pertencentes a famílias pobres. Os atendidos pelo sistema eram
penalizados com uma política baseada na agressão e em práticas severas, fazendo do SAM um local para
fortalecer no crime os que já infringiam a lei e a fim de introduzir ao crime aqueles que não tinham
qualquer contato com ele. Para atender seu público‑alvo, o SAM criou os educandários, acolhimentos
em que os atendidos permaneciam internados por longos períodos (RIZZINI; RIZZINI, 2004).

Já a LBA foi criada em 1942, sendo presidida pela então primeira-dama da nação, Darcy Vargas.
Inicialmente, esse serviço foi criado para atender famílias que apresentassem qualquer tipo de problema
em decorrência da participação de nosso país na Segunda Guerra Mundial. Assim, destinava‑se a
atender, inicialmente, as famílias dos pracinhas e os próprios soldados que haviam participado da guerra.
Com o tempo, embora suas ações continuassem sendo desenvolvidas nessas famílias, o atendimento
oferecido foi estendido também às mazelas provenientes de outras situações afins. Em outras palavras,
a LBA passou a atender a pobreza em geral. Iamamoto e Carvalho (2001) nos informam que a LBA foi
criada também para atender a um dispositivo contido na Constituição de 1934, que pressupunha que
o Conselho Nacional de Serviço Social atendesse aos desvalidos da população. Assim, a LBA pode ser
tratada como um meio de ação do Conselho Nacional de Serviço Social. Durante muitos anos, foi a LBA
que comandou e sustentou as ações do que se entendia ser a assistência social em nosso país.

No ano de 1946, foram criados o Serviço Social da Indústria (Sesi), o Serviço Nacional de Aprendizagem
Comercial (Senac) e a Fundação Leão XIII. O presidente do país era Eurico Gaspar Dutra, também militar.
Vargas havia deixado o poder no ano de 1945.

O Sesi foi criado para proporcionar o bem‑estar ao trabalhador vinculado à indústria. Também
viabilizava informações sobre questões previdenciárias e serviços assistenciais, além de fornecer
educação popular e programas de relacionamento entre industriários e trabalhadores. O Sesi, ainda, por
desenvolver uma série de ações voltadas ao lazer, acabou inserindo‑se em espaços além da formação
educacional. Ao prestar serviços dessa natureza, conseguiu desenvolver ações com os trabalhadores,
além do espaço laboral (IAMAMOTO; CARVALHO, 2001).

O Senac, por sua vez, disponibilizava educação aos trabalhadores que atuavam no comércio,
oferecia‑se formação aos operários e trabalhadores em geral, prestavam‑se assessorias diversas e
davam‑se informações a empregadores em geral.

As instituições em questão ainda estão em funcionamento no nosso país e assim como o Senai são
consideradas referências no aspecto da formação e do lazer oferecidos à classe trabalhadora.
41
Unidade I

Por isso deveu‑se à ditadura a consolidação do chamado sistema “S”, ao menos no que diz respeito
às bases da organização desse modelo. No entanto, é importante que entendamos que essas ações só
aconteceram porque o Estado tinha interesses em formar uma mão de obra capacitada e com condições
para auxiliar o processo produtivo capitalista.

Apesar de práticas rudimentares e vinculadas sobretudo a oferecer benefícios e serviços, é nesse


período que temos a expansão dos serviços e políticas sociais no Brasil. No que diz respeito à assistência
social, no entanto, temos apenas a LBA organizada com a finalidade de prestar atendimento
assistencial e socorrer as mazelas geradas pela sociedade capitalista.

Saiba mais

Para mais informações sobre os serviços do grupo S, recomendamos a


visita aos sites:

<http://www.sesisp.org.br/>.

<http://www.sp.senac.br/jsp/default.jsp?newsID=0>.

<http://www.sp.senai.br/senaisp/>.

Tais páginas demonstram como esses serviços estão constituídos


atualmente. São instituições extremamente relevantes e importantes para
a qualificação da mão de obra para o mercado de trabalho.

Para concluir nossas considerações e facilitar também seus estudos, observe a imagem a seguir, que
faz menção à grande parte dos conteúdos estudados até agora.

Desenvolvimento capitalista, regime oligárquico, ações ainda organizadas


pela caridade
República Velha Legislação trabalhista (definição da jornada de trabalho e dos acidentes
de trabalho)
Código de menores e regulamentação do trabalho de crianças

Industrialização em favor do desenvolvimento capitalista


Governo militar iniciado com Vargas;
Governo militar Ações do Estado em prol da classe trabalhadora, como a lesgislação
trabalhista e a consolidação do Sesi, Senac, Senai
Criação da LBA e da Fundação Leão XIII.

Figura 15 – Sistematização das informações sobre as ações entre a República Velha e governo militar

42
POLÍTICA SOCIAL NO BRASIL

Neste momento, você deve estar pensando se tratar de muita informação, não é? De fato, são
muitos dados, sobre a organização econômica, política, e os serviços que foram sendo constituídos
a partir de Vargas. Para não se perder em meio a tanto dados e informações, propomos que observe
as principais características de cada período no que diz respeito à forma com que as necessidades da
população vulnerável foram sendo contempladas. Isso já dará argumentos suficientes para compreender
as principais indicações dessa parte inicial do material. De agora em diante, será possível entender a
ação do Estado em prol dos problemas sociais, considerando, no entanto, as intervenções desenvolvidas
durante o governo ditatorial até meados dos anos 1980.

4 E NO BRASIL: O ESTADO DE MAL‑ESTAR SOCIAL ATÉ FINS DO


GOVERNO DITATORIAL

Toda representação artística possui no seu bojo elementos ficcionais e não ficcionais.

Saiba mais

Uma boa alternativa para compreender um pouco mais desse período é


por meio dos filmes, nacionais e internacionais, conforme exemplos a seguir.

CARA ou Coroa. Dir. Ugo Giorgetti, 2011. 110 minutos.

ELES não usam black‑tie. Dir. Costa Gavras, 1981. 119 minutos.

GETÚLIO Vargas. Dir. Nei Sroulevich. 1974. 76 minutos.

JANGO. Dir. Silvio Tendler, 1984. 117 minutos.

O APITO da panela de pressão. Dir. Sergio Tufik, 1977. 25 minutos.

OLGA. Dir. Jayme Monjardim, 2004. 141 minutos.

Anteriormente apresentamos as ações realizadas na República Velha e no militarismo, no primeiro


mandato de Vargas. Agora, continuamos conhecendo as ações desenvolvidas em política social, mas
considerando o período posterior a 1960.

A partir da década de 1960, começamos um novo período da história política e econômica do nosso país.
Compreender as ações em assistência social demanda, portanto, entender o contexto histórico nacional.

No que concerne à questão da política, os anos 1960 são notoriamente conhecidos como os
mais ferrenhos da ditadura em nosso país. Couto (2010) nos diz que a partir da referida década foi
promulgada uma série de Atos Institucionais, documentos que reforçavam o poder do Estado, rechaçando
possibilidades de manifestação popular que se dispusessem a contrariar os dispositivos estatais. O Ato

43
Unidade I

Institucional mais agressivo foi o AI‑5, que estava respaldado em um dos slogans mais icônicos da
ditadura: “Brasil: ame‑o ou deixe‑o” (BEHRING; BOSCHETTI, 2010).

Esse período foi iniciado a partir de um golpe militar. Os militares propunham o fim do governo
populista de João Goulart e uma perseguição ao que consideravam os ideais subversivos, notadamente o
comunismo. Aliás, nesse período, os comunistas eram extremamente perseguidos e rechaçados, tratados
como subversivos e severamente punidos com agressões, exílio e até a morte. Recentemente temos visto
em nosso país um esforço por reabrir os arquivos da ditadura para esclarecer uma série de fatos e punir
os criminosos da ditadura.

O governo militar se caracterizou por defender com veemência o desenvolvimento econômico do


Brasil. Os militares desejavam tornar o país uma potência econômica e, para isso, recorriam a ações
carregadas de burocracia, de tecnocracia e sobretudo de repressão. Aliás, as pessoas que discordassem
dos postulados do Estado eram consideradas inimigas do desenvolvimento econômico. Essa forma de
governar foi adotada por vinte e um presidentes que se afinavam com o militarismo e só declinou a
partir da década de 1980.

No entanto, como sabemos, não é apenas por meio da repressão que os governos ditatoriais conseguem
alcançar suas intenções. Isso também ocorre através da adulação: os militares promoveram ampliação
de determinados serviços destinados à população brasileira, sobretudo à população trabalhadora. É
importante ainda destacar que por meio da consolidação dos serviços sociais buscava‑se a adesão de
grande parcela da população brasileira, além da classe trabalhadora. Para Couto (2010), foi nesse período
que se deu a criação das condições mínimas necessárias à consolidação das políticas sociais no Brasil.

Há uma série de exemplos que podem ser citados, desde a legislação até intervenções e constituição
de diversos serviços e programas.

A legislação a que nos referimos é a Constituição de 1969. Behring e Boschetti (2010) comentam
que nessa Constituição há um especial destaque para o direito ao trabalho. Além disso, nessa carta
constitucional, é autorizada a aposentadoria para mulheres com 30 anos de trabalho. No âmbito da
assistência social, temos a determinação de que o Estado preste assistência à maternidade, à infância,
à adolescência e à pessoa com deficiência. Contudo, apesar de a norma legal disciplinar a intervenção
por parte do Estado, na prática, essas ações não aconteciam. O único serviço assistencial que existia era
o oferecido pela LBA.

Figura também como exemplo dessa postura do Estado a criação na década de 1960 do Banco
Nacional da Habitação (BNH), que viabilizou o acesso à moradia para muitos brasileiros, especialmente
para os trabalhadores com registro em carteira. O BNH facilitou a aquisição de moradias por meio
de mecanismos de poupança forçada como, por exemplo, através do Fundo de Garantia por Tempo de
Serviço (FGTS). Entretanto, grande parcela da população não tinha acesso à moradia, já que nem toda a
população brasileira estava laboralmente ocupada (COUTO, 2010).

Seguindo a lógica de manutenção da ordem social estabelecida, no ano de 1964, foi criada a Fundação
Nacional do Bem‑Estar do Menor (Funabem). Rizzini e Rizzini (2004) entendem que a Funabem nada
44
POLÍTICA SOCIAL NO BRASIL

mais foi do que uma reformulação do SAM, extinto tempos antes. Apesar da extinção do SAM, suas
práticas agressivas e punitivas foram herdadas e encontraram assento na Funabem. Aliás, ela não herdou
“apenas” essas práticas. No artigo 4º da Lei de Criação da Funabem, lemos:

Art 4º O Patrimônio da Fundação Nacional do Bem‑Estar do Menor será


constituído:

a) pelo acervo do Serviço de Assistência a Menor (SAM), bens móveis e


imóveis pertencentes à União, atualmente ocupados, administrados ou
utilizados por esse Serviço e para cuja doação fica desde logo autorizado o
Poder Executivo;

b) dotações orçamentárias e subvenções da União dos Estados e dos


Municípios;

c) dotações de autarquias de sociedade de economia mista, de pessoas


físicas ou jurídicas nacionais, ou estrangeiras;

d) rendas eventuais, inclusive as resultantes da prestação de serviços;

Parágrafo único. Os bens, rendas e serviços da Fundação Nacional do


Bem‑Estar do Menor são isentos de qualquer imposto federal, estadual ou
municipal, nos termos do art. 31, V da Constituição Federal (BRASIL, 1964).

Ou seja, além das práticas questionáveis, compunha também a herança do SAM para a Funabem o
“acervo” que, a nosso ver, incorpora documentos, atendidos, móveis e imóveis que antes eram usados
pelo SAM. No artigo em questão, está sendo feita menção ao que seria o patrimônio da Funabem e às
fontes de recursos que seriam utilizadas para a manutenção das atividades.

Assim, a Funabem recebia crianças e adolescentes. Seu trabalho era orientado a atender àqueles
que cometessem algum ato infracional ou então segmentos vulneráveis. Os segmentos vulneráveis da
época eram os moradores de rua, que eram tidos como pessoas com risco potencial para cometer atos
infratores. No entanto, no período em questão, apenas 5% dos atendidos pela Funabem tinham cometido
atos infratores. O grande contingente de atendidos estava relacionado a crianças e adolescentes vítimas
de abandono, que representavam 10% da demanda da instituição.

O discurso, no entanto, não era esse, ou seja, a Funabem se propunha a atender todas as crianças
e adolescentes que necessitassem, independentemente de terem ou não cometido ato infracional.
Aliás, é importante que se atente ao fato de que, segundo Rizzini e Rizzini (2004), a Funabem não
desenvolveu práticas diferenciadas nesses segmentos, ou seja, não havia uma prática destinada aos
infratores e outra aos não infratores. A prática agressiva e punitiva era usada para dar conta de todas
essas expressões, sem distinção.

45
Unidade I

Note‑se ainda que esse era o padrão das ações em prol da infância, já que a Funabem era a única
instituição com aval do Estado para atuar nesse segmento. Veja o artigo 7º, também extraído da lei de
criação da Funabem:

Art 7º Competirá à Fundação Nacional do Bem‑Estar do Menor:

I – Realizar estudos, inquéritos e pesquisas para desempenho da missão que


lhe cabe, promovendo cursos, seminários e congressos, e procedendo ao
levantamento nacional do problema do menor.

II – Promover a articulação das atividades de entidades públicas e privadas;

III – Propiciar a formação, o treinamento e o aperfeiçoamento de pessoal


técnico e auxiliar necessário a seus objetivos;

IV – Opinar, quando solicitado pelo Presidente da República, pelos Ministros


de Estado ou pelo Poder Legislativo, nos processos pertinentes à concessão
de auxílios ou de subvenções, pelo Governo Federal, a entidades públicas ou
particulares que se dediquem ao problema do menor;

V – Fiscalizar o cumprimento de convênios e contratos com ele celebrados;

VI – Fiscalizar o cumprimento da política de assistência ao menor, fixada por


seu Conselho Nacional;

VII – Mobilizar a opinião pública no sentido da indispensável participação de


toda a comunidade na solução do problema do menor;

VIII – Propiciar assistência técnica aos Estados, Municípios e entidades


públicas ou privadas, que a solicitarem (BRASIL, 1964).

Ou seja, conforme vemos no inciso VI (BRASIL, 1964), a Funabem deveria idealizar toda a política
social voltada à atenção dos “menores”. Porém, Rizzini e Rizzini (2004) nos dizem que isso não aconteceu,
e a instituição acabou sendo conhecida por suas práticas de internação pautadas em uma reeducação
extremamente agressiva e punitiva, o que resumia toda a ação em prol da infância e da adolescência.

Becher (2011) nos fala que essa instituição foi organizada pelo próprio Estado e na verdade servia
aos interesses do regime militar. Estima‑se que por meio do recolhimento de crianças e adolescentes
infratores e dos propensos a isso, como crianças e adolescentes pobres e ainda aqueles que residiam
na rua, a instituição estaria colaborando com a manutenção da paz no país, com os postulados da
segurança nacional. Aliás, para o regime ditatorial, a manutenção da ordem significava nada mais do
que apartar e condicionar tudo que se contrapunha à ordem social estabelecida.

46
POLÍTICA SOCIAL NO BRASIL

Além da criação da Funabem, temos outras intervenções no período a partir da década de 1970.
Em 1974, tivemos a criação do Ministério do Trabalho e Previdência e Assistência Social. No período
posto, cabia à LBA o oferecimento de serviços destinados à assistência social. Partindo do Ministério
do Trabalho e Previdência e Assistência Social, temos a consolidação da Renda Mensal Vitalícia. Era um
benefício concedido a idosos com 70 anos ou mais, desde que não pudessem mais trabalhar. Para ter
acesso ao benefício, era também necessário comprovar contribuição com o Regime Previdenciário por
pelo menos 12 anos. Os aprovados nos critérios citados seriam contemplados com meio salário mínimo
(BEHRING; BOSCHETTI, 2010).

No ano de 1979, foi criado o Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social (Sinpas). O Sinpas
congregou os serviços Instituto Nacional do Ministério da Previdência Social (Inamps), a Funabem e a
LBA, além da Empresa de Processamento de Dados da Previdência Social (DataPrev).

Na década de 1970, o país vivenciou um crescimento econômico. Na época o ministro da economia


era Delfim Netto, que, por meio de um programa de regulação econômica, conseguiu alcançar um
crescimento econômico estimado em uma média de 11% a 14%. Todavia, esse crescimento econômico
não provocou melhora nas condições de vida de grande parcela da população, já que apenas quem
pertencia à classe mais abastada é que lucrava com o desenvolvimento econômico do país.

Antes de adentrarmos a compreensão sobre o final da década de 1970 e início dos anos 1980, veja a
figura a seguir, que resume as principais informações sobre o período que acabamos de estudar.

Desenvolvimento capitalista
Organização Desenvolvimento econômico na década de 1970, mas sem manutenção
econômica das taxas de crescimento
Desemprego e subemprego

Período de distensão da ditadura


Organização política
Início do processo de democratização

Ações pontuais e fragmentadas


Ações junto
aos segmentos Instituições como a Funabem e LBA conferiram a tônica ao serviço da
empobrecidos assistência social
Criação do Ministério do Trabalho e Previdência e Assistência Social

Figura 16 – Sistematização das informações sobre a década de 1970

Com a diferenciação entre as classes sociais tornando‑se cada vez mais claras, no final da
década de 1970, vivenciamos uma grande insatisfação de grandes parcelas da população brasileira.

47
Unidade I

Os descontentamentos motivaram a organização da população. Colaboraram nesse processo o


movimento operário e os estudantes vinculados à União Nacional dos Estudantes (UNE). Com o tempo,
a insatisfação era tanta que afetou praticamente toda a população brasileira (COUTO, 2010).

A insatisfação era tanta, que o regime militar já não conseguia se manter no poder por meio da
repressão e tampouco da coerção. As organizações da população ganharam as ruas e se representaram
por meio do movimento Diretas Já, que defendia as eleições diretas e o processo de abertura política.
Além disso, os movimentos reivindicavam a melhoria das condições de vida.

O resultado de tantas pressões foi a queda do regime ditatorial. Os anos 1980 são marcados pelo
início do processo de democratização de nosso país. Apesar de não terem sido alcançadas imediatamente
as eleições diretas, ao menos, o regime ditatorial foi encerrado. Nessa eleição indireta, foram eleitos
Tancredo Neves como presidente e José Sarney como vice. Tancredo, como sabemos, veio a falecer logo
após sua nomeação e quem assumiu o governou do país foi Sarney. O próximo tópico oferecerá um rol
amplo de distintas informações sobre as políticas sociais e demais aspectos a ela correlatos.

Resumo

Iniciamos esse estudo apresentando informações a respeito das primeiras


intervenções desenvolvidas no cenário internacional em prol dos segmentos
mais vulneráveis de dadas sociedades. Assim sendo, partimos das ações
desenvolvidas pela caridade e que não eram ainda desenvolvidas pelo Estado,
portanto, não eram políticas sociais. No entanto, como eram ações elaboradas
por particulares, destinadas a determinados segmentos da população,
também as apresentamos aqui. Nesse sentido, conhecemos as workhouses,
e outras ações análogas, além da legislação instituída como a Lei dos Pobres,
por exemplo.

Ainda considerando o cenário internacional, nos aproximamos das


doutrinas liberais e keynesianas de entendimento e condicionamento do
papel do Estado. Com isso, vimos que no liberalismo o Estado mostra‑se
ausente nas intervenções sociais em política social, agindo apenas em
situações pontuais e episódicas. Já o keynesianismo postula quanto à
necessidade de intervenção estatal para regulação econômica, e, dentre os
aspectos que figuram esse tipo de intervenção, vemos que há necessidade
de ação do Estado em relação aos aspectos sociais.

Também nos aproximamos das ações desenvolvidas no Brasil. Observamos


que durante a colônia e o império, as intervenções desenvolvidas nos
segmentos mais pobres eram empreendidas por meio da caridade de
determinados grupos ou facções. Vimos que as primeiras ações desenvolvidas
pelo Estado ocorrem no governo de Vargas, em seu primeiro mandato,
destacando‑se a criação da Legião Brasileira de Assistência (LBA) e outras
48
POLÍTICA SOCIAL NO BRASIL

instituições assistenciais ou destinadas ao trabalhador. Examinamos ainda


outras intervenções e serviços criados no período ditatorial, mas que
buscavam oferecer poucos serviços públicos para uma população muito
peculiar e específica. Assim sendo, caminhamos até o início do processo de
consolidação da Constituição de 1988, um marco dos direitos sociais.

Exercícios
Questão 1. Lembrando que o liberalismo e o keynesianismo são doutrinas que contribuem para o
entendimento do papel do Estado, considere as afirmativas a seguir:

I – No liberalismo, o Estado mostra-se ausente nas intervenções sociais em política social, agindo
apenas em situações pontuais e episódicas.

II – O keynesianismo considera haver necessidade de intervenção estatal para regulação econômica.

III – O liberalismo se assenta no princípio de que o Estado deve gerar empregos e proporcionar
serviços sociais públicos por meio de políticas sociais.

IV – O keynesianismo se assenta no princípio de que o Estado deve gerar empregos e proporcionar


serviços sociais públicos por meio de políticas sociais.

V – No keynesianismo, o Estado mostra-se ausente nas intervenções sociais em política social, agindo
apenas em situações pontuais e episódicas.

Está correto o afirmado em:

A) I somente.
B) II somente.
C) III somente.
D) I, II e IV.
E) III e V.

Resposta correta: alternativa D.

Análise das afirmativas

I – Afirmativa correta.

Justificativa: no liberalismo, o Estado mostra-se ausente nas intervenções sociais em política social,
agindo apenas em situações pontuais e episódicas.
49
Unidade I

II – Afirmativa correta.

Justificativa: o keynesianismo postula ser necessária a intervenção estatal para regulação econômica.

III – Afirmativa incorreta.

Justificativa: não é o liberalismo, mas sim o keynesianismo, que se assenta no princípio de que o
Estado deva gerar empregos e proporcionar serviços sociais públicos por meio de políticas sociais.

IV – Afirmativa correta.

Justificativa: para o keynesianismo, o Estado deve gerar empregos e proporcionar serviços sociais
públicos por meio de políticas sociais.

V – Afirmativa incorreta.

Justificativa: não é no keynesianismo, mas sim no liberalismo, que o Estado se mostra ausente nas
intervenções sociais em política social, agindo apenas em situações pontuais e episódicas.

Questão 2. Desde a Colônia e o Império até nossos dias, vêm sendo realizadas intervenções em
benefício de segmentos populacionais vulneráveis.

I – Nos períodos do Brasil Colônia e do Império, as intervenções desenvolvidas em benefício dos


pobres estiveram sob responsabilidade de grupos que agiam movidos pelo impulso de praticar a caridade.

Porque

II – Somente a partir do Governo Vargas foram realizadas as primeiras ações do Estado, que
criaram instituições assistenciais ou destinadas ao trabalhador, embora as intervenções estatais do
período ditatorial tenham oferecido serviços públicos insuficientes para a população à qual tais
serviços eram destinados.

Considere as afirmativas anteriores e a relação proposta entre elas para assinalar, em seguida, a
alternativa correta.

A) I está correta e II incorreta.


B) I está incorreta e II correta.
C) I e II estão incorretas.
D) I e II estão corretas, mas II não justifica I.
E) I e II estão corretas, e II justifica I.

Resolução desta questão na plataforma.


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