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Formação

Sócio-histórica do Brasil
Autor: Prof. Renato Bulcão
Colaboradoras: Profa. Amarilis Tudela Nanias
Profa. Sonia de Deus Rodrigues Bercito
Professor conteudista: Renato Bulcão

Renato Bulcão é graduado em Filosofia e mestre em Comunicação pela Universidade de São Paulo – USP. É doutor
em Educação e História da Cultura pela Universidade Mackenzie. Coordena o curso de Licenciatura em Filosofia da
Universidade Paulista – UNIP e tem vários artigos publicados, além do livro Visão de Psicanálise.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

B933f Bulcão, Renato.

Formação Sócio-histórica do Brasil. / Renato Bulcão. – São


Paulo: Editora Sol, 2017.
152 p., il.

Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e


Pesquisas da UNIP, Série Didática, ano XXIII, n. 2-085/17, ISSN 1517-9230.

1. Formação sócio-histórica. 2. Ideologia do estamento. 3. Questão


social. I. Título.

CDU 301

U502.12 – 19

© Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou
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Prof. Ivan Daliberto Frugoli

Material Didático – EaD

Comissão editorial:
Dra. Angélica L. Carlini (UNIP)
Dra. Divane Alves da Silva (UNIP)
Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR)
Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT)
Dra. Valéria de Carvalho (UNIP)

Apoio:
Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD
Profa. Betisa Malaman – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos

Projeto gráfico:
Prof. Alexandre Ponzetto

Revisão:
Carla Moro
Marcilia Brito
Lucas Ricardi
Sumário
Formação Sócio-histórica do Brasil

APRESENTAÇÃO.......................................................................................................................................................7
INTRODUÇÃO............................................................................................................................................................7

Unidade I
1 CASA‑GRANDE & SENZALA, DE GILBERTO FREYRE........................................................................... 11
2 O POVO BRASILEIRO SEGUNDO DARCY RIBEIRO................................................................................ 21
2.1 As matrizes............................................................................................................................................... 22
2.2 A miscigenação...................................................................................................................................... 24
3 A EMPRESA BRASIL......................................................................................................................................... 26
4 OS BRASIS NA HISTÓRIA............................................................................................................................... 30
4.1 O Brasil crioulo....................................................................................................................................... 30
4.2 O Brasil caboclo...................................................................................................................................... 33
4.3 O Brasil sertanejo.................................................................................................................................. 38
4.4 O Brasil caipira........................................................................................................................................ 39
4.5 O Brasil gaúcho...................................................................................................................................... 41

Unidade II
5 RAYMUNDO FAORO E A IDEOLOGIA DO ESTAMENTO....................................................................... 48
5.1 A Formação Histórica e Social de Portugal................................................................................. 48
5.2 Como aconteceram as navegações................................................................................................ 62
5.3 Questões do direito.............................................................................................................................. 66
5.4 As regras do comércio e da vida do reino................................................................................... 67
5.5 Como a Revolução Industrial foi combatida em Portugal e como surgiu
o estamento de funcionários do Estado............................................................................................. 70
5.6 Como Portugal dominou o Brasil................................................................................................... 72
5.7 A política de sustentação do poder de Portugal...................................................................... 80
5.8 A burocracia, os militares e os padres moldaram o Brasil.................................................... 83
5.9 A descrição da Independência do Brasil...................................................................................... 90
5.10 As conclusões de Faoro sobre a formação do Brasil independente............................... 96
5.11 Como Faoro entendeu o Brasil...................................................................................................... 96
6 ENTENDENDO O PENSAMENTO DE CELSO FURTADO......................................................................106
Unidade III
7 A QUESTÃO SOCIAL EM OCTAVIO IANNI...............................................................................................122
7.1 As desigualdades sociais...................................................................................................................123
7.2 A criminalização da questão social..............................................................................................124
7.3 A pedagogia do trabalho..................................................................................................................125
7.4 Tendências do pensamento brasileiro.........................................................................................125
7.5 Novos paradigmas para as Ciências Sociais.............................................................................128
8 BRASIL: MITO FUNDADOR E SOCIEDADE AUTORITÁRIA.................................................................129
8.1 A nação como semióforo.................................................................................................................131
8.2 Verde-amarelismo...............................................................................................................................136
8.3 Do IV ao V Centenário.......................................................................................................................139
8.4 O mito fundador..................................................................................................................................139
8.5 Comemorar?..........................................................................................................................................142
APRESENTAÇÃO

Este livro‑texto apresenta um percurso sócio‑histórico da formação do Brasil, privilegiando a


perspectiva histórico‑crítica, desde Portugal até a constituição do Estado nacional. Propomos um
mapeamento das forças sociopolíticas que influenciaram a formação do Brasil. Assim, você, leitor,
poderá aprender a identificar as origens das desigualdades econômicas, sociais e étnicas no contexto
sócio‑histórico de nosso País.

Estudaremos a formação social, política e econômica do Brasil sob uma perspectiva histórica, com
destaque para a construção da cultura e identidade nacional. Nosso objetivo é analisar o processo
histórico de formação do Estado e da sociedade brasileira com elementos que nos permitam uma
reflexão crítica sobre a cultura e identidade nacional.

Para isso, vamos percorrer obras importantes de autores consagrados em busca da compreensão do
significado e das determinações históricas no processo de formação socioeconômica e política brasileira
como expressão das contradições sociais e do descompasso cultural de suas populações.

INTRODUÇÃO

Os textos que você vai ler são certamente muito importantes para a compreensão da formação
histórica e social do Brasil. Com exceção do livro de Gilberto Freyre, Casa‑grande & Senzala, todas as
outras escolhas podem ter tido um caráter extremamente pessoal. Geralmente, acadêmicos dentro da
universidade não exercem nenhuma atividade política. Mas, uma vez fora dela, a maioria dos pensadores
de Sociologia e História acaba se engajando em maior ou menor grau na política de suas cidades e,
eventualmente, na política brasileira.

Neste livro‑texto, trabalharemos com as ideias de Darcy Ribeiro, Raymundo Faoro, Celso Furtado e
Marilena Chaui, que aceitaram cargos públicos de importância nacional.

Felizmente, a formação sócio‑histórica brasileira tem Gilberto Freyre como seu primeiro grande
autor. Isso porque a visão antropológica que o levou a estudar, através de documentos históricos e
viagens, aquilo que de fato aconteceu nos engenhos de cana‑de‑açúcar permitiu que toda a discussão
sobre a nossa formação social pudesse incluir a herança portuguesa, a herança indígena e a herança
africana. Todos os demais autores se referem direta ou indiretamente à sua obra.

Em seguida, escolhemos Darcy Ribeiro, que desenvolveu grande parte de seu trabalho de pesquisa
junto aos índios. Darcy também foi político atuante e propôs várias iniciativas sociais em suas passagens
pelos diferentes governos dos quais participou. Sua visão da formação social do Brasil corrigiu em
vários pontos aquilo que Gilberto Freyre tinha apenas vislumbrado. Até porque Darcy Ribeiro pensa o
povo brasileiro e não exclusivamente uma realidade localizada na região Nordeste do Brasil. Há quem
pense que sua visão é excessivamente romântica. Outros imaginam que ela é pautada pela corrente de
pensamento que se costumou chamar de “socialismo moreno”.

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O certo é que muitas ideias de Darcy Ribeiro a respeito do povo brasileiro acabaram se tornando
dominantes na percepção do senso comum. Muitas das análises e mesmo as notícias que lemos nos
jornais e assistimos na televisão a respeito da realidade brasileira seguem a forma de Darcy Ribeiro
ver o Brasil.

Para criar um contraponto ao pensamento de Darcy Ribeiro, mas também ao pensamento de Octavio
Ianni e Marilena Chaui, apresentamos um resumo do famoso livro Os Donos do Poder, de Raymundo
Faoro. Faoro foi um procurador e se tornou um acadêmico que adotou a escrita na tradição jurídica
brasileira. Às vezes, pode ser uma leitura um pouco mais difícil. Esse livro conta toda a história da
formação do Brasil.

Começando pela formação da própria nação portuguesa, Faoro examinou a história a partir de
documentos jurídicos e de arquivos de tabelionatos e cartórios. Isso faz de sua obra uma fonte de
informação séria e consistente, que afastou definitivamente algumas invencionices que os historiadores
brasileiros, principalmente do início da República, insistiram em contar a respeito da história do Brasil.

Sabemos que, até hoje, tanto no Ensino Fundamental quanto no Ensino Médio, há muito mais
mitologia sendo ensinada a respeito da história do Brasil do que fatos verdadeiros. Faoro passou a limpo
os mais minuciosos detalhes da nossa história. Não foi possível no resumo ser tão detalhista quanto ele
foi no livro original, mas buscamos preservar o espírito geral da obra.

O resumo apresentado se encerra no momento da Independência do Brasil. Mesmo que o livro conte
nossa história até o período do Estado Novo, fizemos isso porque, ao descrever a independência brasileira,
Faoro já tinha reunido todos os elementos teóricos necessários, inspirados em Max Weber, para criar
suas categorias de análise. Ele mesmo deixa claro que seriam essas categorias as mais adequadas para
se pensar a formação sócio‑histórica brasileira do que a tradicional metodologia marxista. A grande
vantagem de ler Faoro é que ele não pretende de imediato convencer ninguém do seu ponto de vista.
Assim, o autor não insiste em nenhuma das visões tradicionais que muitas vezes fundamentam sua
escolha narrativa. É uma visão de direita, que na vida política seria chamada de centro‑direita.

Em seguida, trazemos o resumo do pensamento sobre a formação econômica do Brasil desenvolvido


por Celso Furtado. Percebemos que o pensamento acadêmico democrático, quando exercitado de forma
impecável, é, de acordo com as conveniências do momento, chamado de pensamento de esquerda ou
de pensamento de direita. Tecnicamente falando, o pensamento de Celso Furtado é de direita, mas ele
teve de fugir do Brasil durante a Ditadura Militar, porque os militares tinham certeza absoluta de que
Celso Furtado era um homem da esquerda.

Sem querer entrar nesse tipo de discussão, é preciso apenas deixar claro que quem pensou a história
econômica do Brasil a partir de um ponto de vista claramente de esquerda foi Caio Prado Júnior. Caio
Prado Júnior escreveu antes de Celso Furtado e foi uma das referências para Furtado discutir seu ponto
de vista a respeito das bases econômicas que permitiram organizar a formação social brasileira. Na
qualidade de ministro do Planejamento do governo de João Goulart, Furtado tentou pôr em prática
mecanismos que ele pensava que poderiam resolver problemas sociais brasileiros na prática.

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Octávio Ianni foi declaradamente um pensador de esquerda. Trouxemos aqui pequenos resumos,
não de um livro principal, mas de alguns livros que se tornaram importantes no estudo da sociologia
brasileira. É importante resgatar o pensamento de Ianni, porque de alguma forma ele abre caminho para
o pensamento de Marilena Chaui.

A percepção do mundo de Ianni é completamente marxista, e ele não esconde isso. É interessante
também o diálogo de sua obra tanto com a de Faoro, quanto com a de Celso Furtado. Ianni não tinha
dúvida de que existe um capitalismo internacional, representado no País por capitalistas locais. Segundo
ele, há uma grande interação entre esses dois grupos.

Principalmente depois da Segunda Guerra Mundial, de acordo com o pensamento de Ianni, esses
grupos ditaram a organização econômica brasileira. Temos certa resistência em concordar com esse
pensamento, pois ele abre espaço para não responsabilizar exclusivamente os brasileiros pela qualidade
de vida do País que é construído diariamente.

Claro que o capital e a ganância do capitalista têm muita força sobre a sociedade. Contudo, dentro
de sociedades democráticas, sempre existe a vontade do povo. Quando instruída e bem articulada,
essa vontade leva, muitas vezes, ao repúdio das investidas da ganância e da usura. Além disso, muitas
dificuldades que temos com a formação de um mercado interno e com as liberdades democráticas no
País não podem ser culpa de outro, mas apenas de nós mesmos.

Por fim, apresentamos o pensamento de Marilena Chaui. Sua capacidade de análise e observação
não pode ser desprezada. Ela participou do governo Lula da Silva e, mais recentemente, defendeu o
governo Dilma Rousseff. A autora apresenta grande rigor acadêmico para a análise dos fatos, com
conclusões racionais. Como acadêmica, Marilena Chaui não deixa de ser filósofa e trabalhar a partir de
categorias do pensamento filosófico para tentar entender a realidade ao seu redor.

Esperamos que você identifique em todos esses pensadores ideias que de alguma maneira venham
ajudá‑lo a decifrar a realidade brasileira encontrada após o término do curso.

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FORMAÇÃO SÓCIO-HISTÓRICA DO BRASIL

Unidade I
1 CASA‑GRANDE & SENZALA, DE GILBERTO FREYRE

Gilberto Freyre estudou nos Estados Unidos, de onde voltou com o título de mestre. O Brasil tinha
vivido uma descentralização do poder durante a República Velha; com a Revolução de 1930, Getúlio
Vargas forçou uma centralização administrativa que diminuiu a importância dos poderosos regionais.
Freyre demonstrou desprezo por essa situação. Assim, sua carreira política foi precocemente impedida,
já que o escritor tinha sido assistente do último governador de Pernambuco durante a República Velha.

Na Universidade de Columbia, frequentou as aulas de Antropologia com o renomado antropólogo


Franz Boas, de origem alemã. Asism, conseguiu preparar sua pesquisa de uma forma inédita no Brasil
dos anos 1930. Abordando elementos como raça e cultura de forma separada, adotou como conceito
antropológico de cultura e herança cultural o conjunto dos costumes, hábitos e crenças do povo brasileiro.

Seguindo a tradição mantida até hoje de falarmos sobre o Brasil desde o primeiro momento de sua
colonização, Freyre fez questão de deixar claro que o atual povo português é também fruto de mestiçagem.

Por sua posição geográfica, os portos de Portugal sempre foram rota de comércio e de migrações. Os
portugueses tiveram contato com muitos povos estrangeiros, que tornaram o comércio, juntamente com a
pesca, atividades mais importantes do que a agricultura. A agricultura foi a atividade que os demais países
europeus continentais utilizaram para criar sua riqueza, bem como suas formas de organização social.

O povo português era bem pouco “branco” para os padrões europeus e miscigenado graças às
relações com árabes e judeus ao longo de séculos; então, não trouxe para o Brasil maiores preconceitos.
Não foi a miscigenação brasileira que nos deixou de legado muito de nossos problemas atuais, e sim a
escravidão e sua mentalidade.

Com o domínio árabe por quase oitocentos anos da Península Ibérica, as culturas espanhola e
portuguesa foram o resultado da mistura entre a cultura árabe e a cultura romana. Também havia
grande quantidade de judeus, que eram tolerados e protegidos tanto pelos árabes, quanto pelos ibéricos.
Assim, logo a burguesia comercial adquiriu mais poder que a aristocracia territorial portuguesa, e foram
suas conexões com os italianos que facilitaram a busca dos portugueses pelas riquezas do Oriente e,
posteriormente, do Novo Mundo.

Como expõe Freyre:

Quando, em 1532, se organizou econômica e civilmente a sociedade


brasileira, já foi depois de um século inteiro de contato dos portugueses com
os trópicos; de demonstrada na Índia e na África sua aptidão para a vida
11
Unidade I

tropical. Formou‑se na América tropical uma sociedade agrária na estrutura,


escravocrata na técnica de exploração econômica, híbrida de índio, e mais
tarde de negro, na composição (FREYRE, 2003, p. 65).

Devido à pequena população de Portugal, não havia o intuito de emigração nas navegações. Assim,
desde as navegações para o Oriente – lembrando que os portugueses foram os primeiros europeus que
chegaram ao Japão pelo mar –, os homens tendiam a formar famílias com mulheres de outras etnias
nos entrepostos que montavam para facilitar o comércio. No Brasil, os homens vinham sozinhos e logo
começaram a se reproduzir, primeiro com as índias, e depois com as negras escravas.

Havia necessidade em povoar o território conquistado. Assim, como Portugal tinha apenas
três milhões de habitantes, era necessário criar a população a partir das condições locais, como
descreve Freyre:

Durante quase todo o século XVI, a colônia esteve escancarada a


estrangeiros, só importando às autoridades que fossem de fé católica [...]
Temia‑se no adventício acatólico o inimigo político capaz de quebrar aquela
solidariedade que em Portugal se desenvolvera junto com a religião católica.
Essa solidariedade manteve‑se entre nós esplendidamente através de toda a
nossa formação colonial (FREYRE, 2003, p. 91).

Quando Freyre publicou, em 1933, o livro Casa‑grande & Senzala, revolucionou o entendimento
do Brasil. O livro obedeceu às regras da Antropologia e todas as suas fontes tinham sido pesquisadas,
tornando‑se o primeiro livro sobre o Brasil no qual os fatos tinham origem comprovada. Sua pesquisa
sobre a vida dos senhores de engenho nas plantações de cana em Pernambuco deixou evidente que
havia relações sexuais, o que indicava o cruzamento das três raças que formaram o Brasil: os índios, os
africanos e os portugueses.

Casa‑grande & Senzala está dividido em cinco capítulos que descrevem a colonização portuguesa
no Brasil, com a construção de uma sociedade agrária e escravocrata, e as formas de interação entre
o índio, o negro e o português. A teoria de Freyre apresenta algumas falhas na explicação que propõe,
mas seu trabalho de pesquisa é tão rico, que é impossível não nos voltarmos sempre a essa obra quando
pretendemos entender a formação social do Brasil.

Saiba mais

Sugerimos a leitura da obra de Freyre, muito relevante para os seus


estudos:

FREYRE, G. Casa‑grande & senzala. 48. ed. Recife: Global, 2003.

12
FORMAÇÃO SÓCIO-HISTÓRICA DO BRASIL

A motivação original de Freyre teria sido a de descobrir suas próprias origens:

Casa‑grande & Senzala foi a resposta à seguinte indagação que eu fazia a


mim próprio: o que é ser brasileiro? E a minha principal fonte de informação
fui eu próprio, o que eu era como brasileiro, como eu respondia a certos
estímulos (FREYRE,1983).

Freyre visitou primeiro a Bahia, onde pesquisou as coleções do Museu Afro‑Brasileiro Nina
Rodrigues. Percebeu que a culinária baiana derivava da cozinha das casas‑grandes durante os séculos
de monocultura da cana‑de‑açúcar.

Depois da Bahia, viajou para a África e, em seguida, para Portugal. Em Lisboa, examinou os documentos
que serviram de base para Casa‑grande & Senzala. De Portugal partiu para os Estados Unidos como
professor visitante da Universidade de Stanford. Viajou pelo sul daquele país para comparar o que tinha
sido a experiência escravocrata americana com a brasileira. Percebeu que havia semelhanças:

Eu venho procurando redescobrir o Brasil. Eu sou rival de Pedro Álvares


Cabral. Pedro Álvares Cabral, a caminho das Índias, desviou‑se dessa rota,
parece já baseado em estudos portugueses, e identificou uma terra que
ficou sendo conhecida como Brasil. Mas essa terra não foi imediatamente
auto‑conhecida. Vinham sendo acumulados estudos sobre ela... mas faltava
um estudo convergente, que além de ser histórico, geográfico, geológico,
fosse... um estudo social, psicológico, uma interpretação. Creio que a
primeira grande tentativa nesse sentido representou um serviço de minha
parte ao Brasil (FREYRE, 2003).

É necessário deixar claro que Gilberto Freyre escreveu Casa‑grande & Senzala a partir de sua
perspectiva de homem branco e senhor. Mesmo tendo enaltecido a presença do negro, sua nostalgia
pela cultura patriarcal faz transparecer sua posição social.

Sua tese propõe que a casa‑grande foi o centro de coesão da sociedade: completada pela senzala, ela
representava o centro do sistema econômico, social, político, religioso e sexual do País. A miscigenação
que ocorria diminuiu a distância social entre negros e brancos no Brasil. Segundo Freyre (2003), o regime
de trabalho imposto após a abolição seria mais cruel com os proletários do que o regime escravocrata
para com os escravos. Hoje sabemos que isso não é verdade: os escravos, bons ou maus, eram chicoteados
regularmente apenas para não esquecerem que eram escravos.

Freyre constrói um argumento que utiliza a ideia econômica como base da estrutura social. Sua
tese sugere que a estrutura social que se concretizou foi decorrência do sistema de produção da época.
A monocultura da cana agregava o senhor a seus escravos, garantia a moradia e a alimentação de
brancos e negros e impunha a ordem hierárquica. Propõe Freyre que essa estrutura garantiu a unidade
da sociedade brasileira de forma natural. Caso Freyre tenha razão, não houve nada de natural nessa
estrutura, pois a unidade realmente teria sido alcançada através da violência e da força.

13
Unidade I

A tese central de Gilberto Freyre pode ser compreendida pelo que ele mesmo chamou de “equilíbrio
dos antagonismos”. A casa‑grande seria o símbolo da inexistência do conflito entre senhor e escravo.
Além de dividirem o mesmo espaço entre a casa‑grande e a senzala, senhor e seus escravos tinham suas
distâncias sociais reduzidas com as constantes relações sexuais que mantinham. A dinâmica das relações
da casa‑grande e da senzala servia para equilibrar os antagonismos da sociedade, e esse equilíbrio
mantinha a coesão da sociedade.

Para Freyre (2003, p. 178), “o que houve no Brasil foi a degradação das raças atrasadas pelo domínio
da adiantada”. Os índios tinham sido submetidos ao cativeiro e à prostituição. As mulheres negras
eram repetidamente violadas na sua condição de escravas. A formação coesa da sociedade se deu
fundamentalmente pela manutenção do patriarcado, que teria proporcionado uma interpenetração
das culturas. Seu livro parece às vezes tentar retornar às tradições como forma de reabilitar valores
perdidos no tempo.

Entretanto, suas descrições são precisas para que possamos entender o que foram os períodos
de colonização:

A casa‑grande do engenho que o colonizador começou, ainda no século XVI,


a levantar no Brasil – grossas paredes de taipa ou de pedra e cal, telhados
caídos num máximo de proteção contra o sol forte e as chuvas tropicais –
não foi nenhuma reprodução das casas portuguesas, mas expressão nova
do imperialismo português. A casa‑grande é brasileirinha da silva (FREYRE,
2003, p. 35).

Para o autor, o processo de equilíbrio de antagonismos misturava o branco e o negro no interior da


casa‑grande e alterava as relações sociais e culturais, o que acabou criando um novo modo de vida no
século XVI. As relações de poder, a vida doméstica e sexual, os negócios e a religiosidade desenvolveram
a base da sociedade brasileira.

A casa‑grande se organizava a partir da rotina produtiva comandada pelo senhor de engenho. Essa
força patriarcal estava fundada na riqueza trazida pelo açúcar e no trabalho escravo. A casa‑grande
parecia uma fortaleza, pois servia tanto de cofre como de cemitério. Lá viviam os filhos do senhor
de engenho, o padre e as mulheres brancas, que representavam a colonização portuguesa no Brasil
(FREYRE, 2003).

Esse sistema desenvolvido no nordeste do Brasil não era exclusivo dos engenhos de cana, e
casas‑grandes podiam ser encontradas no sul do País nas plantações de café, como uma característica
da cultura escravocrata e latifundiária brasileira.

A Igreja tinha planos de cristianização dos povos da América dominada por países de tradição católica.
Os jesuítas desempenhavam um papel importante na tentativa de formar uma sociedade estruturada na
fé católica. Para conseguir catequizar os índios, os jesuítas decidiram impor o uso das roupas e levá‑los
para longe de suas tribos. Enquanto isso, o senhor de engenho tentava escravizá‑los. Nos dois casos, o
resultado foi o extermínio e a fuga dos índios para o interior.
14
FORMAÇÃO SÓCIO-HISTÓRICA DO BRASIL

Segundo Freyre (2003), a Igreja incentivava o casamento dos portugueses brancos com as mulheres
indígenas, mas não com as negras.

O ambiente em que começou a vida brasileira foi de grande intoxicação


sexual. O europeu saltava em terra escorregando em índia nua. Os próprios
padres da Companhia precisavam descer com cuidado, se não atolavam o pé
em carne (FREYRE, 2003, p.161).

Os negros e mestiços não podiam estudar ou se tornarem padres. A tentativa dos jesuídas de
educarem os índios foi um fracasso. Segundo Freyre (2003), o erro foi não conceder autonomia aos
índios, ensinando a eles trabalhos manuais com que pudessem contribuir para a sociedade, por exemplo.
Se os missionários não fossem jesuítas, mas franciscanos, talvez isso tivesse acontecido. A única coisa
que os jesuítas faziam era tentar ensinar a ler, a escrever e a respeitar a monogamia.

A sociedade brasileira estava se formando com maior troca de valores culturais. Havia um
aproveitamento dos produtos e dos hábitos indígenas pelos portugueses. A reação dos índios ao domínio
português era quase contemplativa. Segundo Freyre (2003, p. 157):

Os portugueses, além de menos ardentes na ortodoxia que os espanhóis e


menos estritos que os ingleses nos preconceitos de cor e de moral cristã,
vieram defrontar‑se na América com uma das populações mais rasteiras
do continente [...] Uma cultura verde e incipiente, sem o desenvolvimento
nem a resistência das grandes semi‑civilizações americanas, como os
Incas e os Astecas.

Os portugueses não vinham para o Brasil por causa de divergências políticas nem religiosas. Também
não se preocupavam com a pureza da raça. O País se formava mantendo certa unidade nessa grande
extensão territorial com profundas diferenças regionais, o que acontecia devido à adoção da mesma
língua e religião e, muitas vezes, garantido pelo uso da força.

O português usava o homem indígena para o trabalho e a guerra, principalmente na conquista de


novos territórios. Já a mulher servia para a formação da família. Esse contato acabava por destruir a
cultura indígena, transformando‑a em outra cultura.

A grande presença índia no Brasil não foi a do macho, foi a da fêmea.


Esta foi uma presença decisiva, a mulher índia tomou‑se de amores pelo
português, talvez até por motivos fisiológicos, porque, segundo pude apurar
quando escrevi Casa Grande e Senzala, as sociedades ameríndias ou índias,
inclusive a brasileira, eram sociedades que precisavam de festivais como que
orgiásticos para provocar nos homens, nos machos, desejos sexuais. O que
há de acentuar é o grande papel da índia fêmea na formação brasileira,
essa índia fêmea não só através do relacionamento mencionado sexual, mas
através do papel social que ela começou a desempenhar magnificamente,
tornou‑se uma figura capital na formação brasileira (FREYRE, 1983).
15
Unidade I

Também escreveu Freyre que:

Da cunhã é que nos veio o melhor da cultura indígena. O asseio pessoal. A


higiene do corpo. O milho. O caju. O mingau. O brasileiro de hoje, amante do
banho e sempre de pente no bolso, o cabelo brilhante de loção ou de óleo de
coco, reflete a influência de tão remotas avós. Ela nos deu, ainda, a rede em
que se embalaria o sono ou a volúpia do brasileiro (FREYRE, 2003, p. 163).

A união do português com a índia havia gerado os mamelucos, que atuavam como bandeirantes e,
junto com os índios, formavam a população que empurrava para o interior a fronteira colonial. O mameluco
e o índio defendiam o patrimônio do senhor de engenho contra o ataque de piratas estrangeiros e nunca
se tornaram agricultores. A terra era usada para o cultivo da cana em detrimento da pecuária e da cultura
de alimentos. Isso criava uma situação de fome iminente e a incapacidade para o trabalho.

Observação

A sociedade brasileira, até meados do século XX, fazia distinção entre


mamelucos, cafuzos e mulatos. Os mamelucos eram os filhos de pais da etnia
branca e indígena; a palavra tem origem árabe. Os cafuzos, filhos de pais
de etnia negra e indígena; a palavra tem origem africana. Os mulatos são
descendentes da etnia negra e branca; essa palavra tem origem disputada
e optou‑se por sua substituição nos documentos oficiais brasileiros pela
denominação “pardos”.

A vida dos portugueses ia adquirindo novos costumes familiares, que incluíam a magia e a mítica. A
poligamia e a sexualidade indígenas aculturavam o português. Os viajantes que aqui estiveram relatavam
que a vida sexual dos indígenas era de uma liberdade desconhecida na Europa. As tribos mais primitivas
determinavam a época da união do macho com a fêmea. Outras tribos tinham o costume de oferecer
mulheres aos hóspedes como ritual de hospitalidade.

Os portugueses trouxeram ao novo mundo a produção de açúcar. Implantaram um sistema


econômico que aprenderam com os mouros durante a ocupação da Península Ibérica. Os mouros, que
tinham grande tradição agrícola, introduziram a laranjeira, o limoeiro e a tangerina e implantaram a
tecnologia de fabricação do açúcar em Portugal. O engenho mouro é avô do engenho pernambucano.
Nas palavras de Freyre, o português daquela época era uma:

Figura vaga, falta‑lhe o contorno ou a cor que a individualize entre os


imperialistas modernos. Assemelha‑se uns à do inglês; noutros, à do
espanhol. Um espanhol sem a flama guerreira nem a ortodoxia dramática do
conquistador do México e do Peru; um inglês sem as duras linhas puritanas.
O tipo do contemporizador. Nem idéias absolutas, nem preconceitos
inflexíveis. [...] Um rio que vai correndo muito calmo e de repente se precipita
em quedas de água [...] (FREYRE, 2003, p. 265).
16
FORMAÇÃO SÓCIO-HISTÓRICA DO BRASIL

Este seria um dos motivos pelo qual nem holandeses, nem franceses, conseguiram se manter
colonizando o País. Ao invés de um forte choque cultural, teria sido operado um movimento de mistura
cultural que acabou prevalecendo.

Na percepção da Companhia de Jesus, os índios aprendiam e desaprendiam seus ensinamentos


religiosos rapidamente. Como havia grande quantidade de aldeias espalhadas pela floresta que falavam
diferentes línguas, os padres jesuítas desenvolveram uma gramática para unificar as línguas indígenas e
inventaram a língua‑geral, o tupi‑guarani. Dessa forma, criaram uma língua que serviu para a catequese
do catolicismo entre os índios.

Contudo, nem a Igreja, nem o senhor de engenho, conseguiram enquadrar o índio no sistema de
colonização que estava criando as bases econômicas do Brasil. O índio não chegava a ser escravo,
morria antes de infecções, de fome e de tristeza. Finalmente, para suprir a deficiência da mão‑de‑obra
escrava, os senhores de engenho de Pernambuco e do Recôncavo baiano passaram a importar negros
escravizados da África (FREYRE, 2003).

Com isso, as escravas negras passaram a substituir as cunhãs índias tanto na cozinha, como na cama
do senhor. O trabalho escravo elevou a produção de açúcar. Duzentos anos depois de seu descobrimento,
o Brasil passou a ser importante para a economia de Portugal.

A compra de escravos misturava as tribos africanas. Entre os escravos, havia também negros
muçulmanos. Em 1835, aconteceu o movimento malê na Bahia. Os revoltosos sabiam ler e escrever em
árabe, o que facilitou a articulação dessa revolta. Para Freyre (2003, p. 370):

Pode‑se juntar à superioridade técnica e de cultura dos negros sua


predisposição como que biológica e psíquica para a vida nos trópicos. Sua
maior fertilidade nas regiões quentes. Seu gosto pelo sol. Sua energia sempre
fresca e nova quando em contato com a floresta tropical.

Assim, o Brasil acabou trazendo não apenas escravos para o trabalho árduo, mas também técnicos
para as minas, donas de casa para os colonos, criadores de gado e comerciantes de panos e sabão. Os
negros muçulmanos foram um ganho para a colonização do Brasil, apesar de serem mantidos em sua
condição de escravos. A escravidão permitiu não apenas o ciclo da cana‑de‑açúcar, mas a colonização
aristocrática e a estrutura básica do mundo dos coronéis, que se repetiu nos ciclos do ouro e do café, em
Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo.

Nessa sociedade escravocrata e latifundiária, os valores culturais e sociais se misturavam à revelia


de brancos e negros. A convivência cotidiana favorecia o intercâmbio de culturas, mas ao mesmo
tempo gerava situações e hábitos que influenciaram a formação do caráter do brasileiro. Para Freyre, a
escravidão degradava senhores e escravos:

E, na verdade, senhores, se a moralidade e a justiça de qualquer povo se


fundam, parte nas suas instituições religiosas e políticas, e parte na filosofia,
por assim dizer doméstica de cada família, que quadro pode apresentar o
17
Unidade I

Brasil quando o consideramos debaixo desses dois pontos de vista? (FREYRE,


2003, p. 434).

O senhor de engenho passava aparentemente a maior parte do tempo deitado na rede, cochilando ou
copulando. O sinhô não precisava se levantar da rede para dar ordens aos negros, bastava gritar. Os escravos
veteranos, os ladinos, ensinavam para os recém‑chegados a moral e os costumes dos brancos. Também
ensinavam a língua e introduziam a forma de disfarçar seus cultos através do sincretismo. Os escravos ladinos
também serviam para ensinar a técnica e a rotina na plantação da cana e na fabricação do açúcar.

A escravidão tirou o negro de seu meio social, desfazendo seus laços familiares. Além dos trabalhos
forçados, ele também era usado como reprodutor. Seus filhos aumentavam o rebanho humano do
senhor de engenho. Mesmo a Igreja concordava com o tratamento dado ao negro. A mulher escrava
transitava entre a senzala e o interior da casa‑grande, sempre na sua condição de reprodutora. As mais
bonitas eram escolhidas para serem concubinas e domésticas.

Por ser objeto de desejo dos homens brancos, a mulher negra sofria castigos por parte da mulher
branca. Se a beleza dos seus dentes incomodava a desdentada sinhá, esta mandava arrancá‑los. A escrava
adoçava a boca do senhor e recebia chicotadas à mando da senhora. Como as damas da sociedade se
casavam entre os doze e os quinze anos, geralmente com homens muito mais velhos, eram as mulheres
negras que cumpriam as tarefas que normalmente estariam destinadas à mãe de família (FREYRE, 2003).

Lembrete

A visão de Gilberto Freyre é eminentemente machista. Mesmo


que sua pesquisa histórica identifique corretamente determinados
comportamentos, uma obra original de 1933 revela a ideologia
predominante de quando foi escrito.

As esposas brancas aprendiam a vida de casada com suas escravas, e tudo que sabiam do mundo fora
do engenho elas ouviam pelas mucamas. As mulheres brancas se casavam e morriam cedo por causa
dos sucessivos partos, e aquelas que sobreviviam se tornavam matronas aos dezoito anos. Além disso,
mal sabiam ler e escrever. Assim, a presença da mulher negra na vida do menino vinha desde o berço,
quando ela o amamentava e o ninava. Ela também ensinava as primeiras palavras, o primeiro “pai nosso”
e o primeiro “oxente” (FREYRE, 2003).

Os meninos descontavam no moleque, o pequeno escravo, seu companheiro de brincadeiras


e aventuras, que servia também de saco de pancadas. Freyre (2003) sugere que as raízes da nossa
sociedade violenta vinham desse aprendizado cruel: quando o menino branco da casa‑grande aprendia
a maltratar os animais e os seres “inferiores”, os mulatos e os negros. Esse “moleque” negro ou mulato,
que acompanhava o menino branco em sua infância, servia para desenvolver a violência patriarcal que
seria exercida contra outras pessoas na vida adulta. Tornava‑se uma criança mimada e educada para ser
o herdeiro do senhor de engenho e, desde o início da adolescência, era entregue aos cuidados eróticos
da fulô. Como narra Freyre (2003, p. 110):
18
FORMAÇÃO SÓCIO-HISTÓRICA DO BRASIL

Costuma dizer‑se que a civilização e a sifilização andam juntas. O


Brasil, entretanto, parece ter‑se sifilizado antes de se haver civilizado. A
contaminação da sífilis em massa ocorreria nas senzalas, mas não que o
negro já viesse contaminado. Foram os senhores das casas‑grandes que
contaminaram as negras das senzalas. Por muito tempo dominou no
Brasil a crença de que para um sifilítico não há melhor depurativo que
uma negrinha virgem.

Como as mulheres brancas morriam muito cedo, os senhores de engenho casavam‑se muitas vezes.
Geralmente, preferiam suas jovens sobrinhas. Suas heranças eram disputadas por filhos legítimos e
parentes próximos. Os filhos bastardos, tanto os gerados na casa‑grande, quanto os paridos na senzala,
contavam com a tolerância do senhor, que ao morrer os libertava.

Assim, os filhos bastardos e os escravos mais próximos ao senhor conseguiam adotar o sobrenome
dos brancos. O mais interessante é que muitos nomes ilustres de senhores brancos vinham dos apelidos
indígenas e africanos das propriedades rurais. Portanto, a terra ajudou a abrasileirar os nomes dos
proprietários portugueses.

A língua portuguesa também sofria modificações. O novo português nascia como uma mistura
das falas da casa‑grande, que era habitada pelas mulheres negras em suas funções de mães negras e
mucamas, e foi adotado pelos filhos e pelas mulheres brancas do senhor de engenho. O modo nordestino
de dizer “me diga” ou “me espere”, por exemplo, vem das línguas africanas. Também as formas diminutivas
“benzinho”, “nézinho” ou “inhozinho” têm essa origem (FREYRE, 2003).

O clima tropical e as formas agressivas de vida vegetal e animal impossibilitavam a implantação de


uma cultura agrícola nos moldes do costume europeu. O português precisou, então, mudar seus hábitos
alimentares. A mandioca substituía o trigo; no lugar das verduras, o milho; e as frutas davam um colorido
novo à mesa do colonizador. Entretanto, sua dieta ficava empobrecida devido à ausência de leite, ovos
e carne, que só apareciam em datas especiais, festas e comemorações. Era um novo jeito de falar, um
novo jeito de andar, um novo jeito de comer. A culinária da senzala aproveitava as sobras de carnes da
casa‑grande, usava o aipim indígena e as verduras, misturava os temperos africanos, principalmente o
dendê e a pimenta‑malagueta. Surgiam a feijoada, a farofa, o quibebe, o vatapá.

Outro resquício importante da cultura negra na vida doméstica brasileira foi a culinária. Várias
comidas portuguesas e indígenas foram modificadas pelas técnicas culinárias africanas. A adoção do
azeite‑de‑dendê e da pimenta‑malagueta, tão comuns na cozinha baiana, e até mesmo o consumo do
quiabo, tem origem africana. A farinha indígena virou farofa, e o mingau de mandioca virou vatapá.

Nas ruas de Salvador – a mais afro‑brasileira das cidades – vendia‑se caruru, mocotó, vatapá,
pamonha, canjica, acaçá, abará, arroz‑de‑coco, angu e pão‑de‑ló de arroz e de milho. Os tabuleiros
forrados com toalhas brancas ficavam montados em armações de pau, no pátio de uma igreja ou
ao lado de um grande sobrado. Muitas receitas africanas foram descritas por Gilberto Freyre, pois
ele as percebia como documentos históricos. Os alimentos tinham de combinar com a dureza do
trabalho escravo.
19
Unidade I

As religiões do senhor e do escravo conviviam. Os padres sabiam que estavam concedendo aos
negros o direito de manter suas tradições nas festas do terreiro. O catolicismo praticado era uma religião
doméstica, de promessa aos santos, geralmente nas capelas dos engenhos. Dessa proximidade religiosa
nasceram as religiões afro‑brasileiras, quando São Jorge virou Ogum, e Nossa Senhora, a representação
de Iemanjá.

As crendices e magias dos portugueses foram transformadas em feitiçaria pelos africanos. Aos negros
feiticeiros recorriam os senhores brancos idosos quando procuravam afrodisíacos. As jovens sinhás que
não conseguiam engravidar também apelavam para as mães negras.

Contudo, a vida continuava dura para quem era escravo, como relata Freyre:

Não foi só de alegria a vida dos negros escravos dos ioiôs e das iaiás brancas.
Houve os que se suicidaram comendo terra, enforcando‑se, envenenando‑se
com ervas e potagens dos mandingueiros. O banzo deu cabo de muitos. O
banzo – a saudade da África. Houve os que de tão banzeiros ficaram lesos,
idiotas. Não morreram, mas ficaram penando (FREYRE, 2003, p. 551).

Por fim, criou‑se uma nova hierarquia entre os negros. Aqueles que trabalhavam nas casas‑grandes
e nas cidades nos serviços domésticos passaram a ter bom tratamento. Com o tempo, alguns engenhos
adotaram nomes de origem africana como Zumbi, Cafundó, Cabida ou Fubá (FREYRE, 2003).

Finalmente, os negros libertos pela alforria, pela revolta ou pelas fugas lutavam unidos nos quilombos
pelo fim da escravidão. Encontraram apoio nos ideais libertários dos filhos dos senhores de engenho, que
tinham se tornado abolicionistas por motivos econômicos ou humanitários. Assim, a música, o canto e
a dança dos escravos tornavam a casa‑grande alegre, e a risada do negro, que quebrava a melancolia e
o silêncio infinito do senhor de engenho, podia ser ouvida por toda parte.

Saiba mais

Assista a trechos da entrevista de Gilberto Freyre em:

FREYRE, G. Gilberto Freyre: entrevista [1983]. São Paulo: TV Cultura, 1983.


Entrevista concedida ao programa Entrelinhas da TV Cultura. Disponível em:
<http://tvcultura.com.br/videos/27681_entrelinhas‑gilberto‑freyre.html>.
Acesso em: 2 maio 2017.

Segundo Freyre:

Aos colonos, por exemplo, pouco incomodava a nudez dos escravos ou


“administrados” nas plantações. Nudez que até lhes convinha sob o ponto
de vista do interesse econômico. De um colono rico dos primeiros tempos

20
FORMAÇÃO SÓCIO-HISTÓRICA DO BRASIL

sabe‑se que ia ao extremo de fazer‑se servir à mesa por índias nuas; e não
parece que fosse caso isolado o seu. Enquanto os padres desde o princípio
insistiram cristã e pudicamente em vestir os índios, apenas tolerando a
nudez dos meninos; ou em meninos e gente grande quando absoluta a
falta de pano para roupa. Da imposição de vestuário europeu a populações
habituadas à pura nudez ou a cobrirem‑se apenas do bastante para lhes
decorar o corpo ou protegê‑lo do sol, do frio ou dos insetos conhecem‑se
hoje os imediatos e profundos efeitos disgênicos. Atribui‑se ao seu uso
forçado influência não pequena no desenvolvimento das doenças da pele e
dos pulmões que tanto concorrem para dizimar populações selvagens logo
depois de submetidas ao domínio dos civilizados; doenças que no Brasil dos
séculos XVI e XVII foram terríveis.

O vestuário imposto aos indígenas pelos missionários europeus vem afetar


neles noções tradicionais de moral e de higiene, difíceis de se substituírem
por novas. É assim que se observa a tendência, em muitos dos indivíduos
de tribos acostumadas à nudez, para só se desfazerem da roupa europeia
quando esta só falta largar de podre ou de suja. Entretanto são povos de um
asseio corporal e até de uma moral sexual às vezes superior à daqueles que
o pudor cristão faz cobrirem‑se de pesadas vestes.

Quanto ao asseio do corpo, os indígenas do Brasil eram decerto superiores


aos cristãos europeus aqui chegados em 1500. Não nos esqueçamos de
que entre estes exaltavam‑se por essa época santos como Santo Antão, o
fundador no monaquismo, por nem os pés dar‑se à vaidade de lavar; ou
como São Simeão, o Estilita, de quem de longe se sentia a inhaca do sujo.
E não seriam os portugueses os menos limpos entre os europeus do século
XVI, como a malícia antilusitana talvez esteja a imaginar; mas, ao contrário,
dos mais asseados, devido à influência dos mouros. Dos primeiros cronistas
são os franceses os que mais se espantam da frequência do banho entre os
caboclos: Ives d’Evreux e Jean de Léry (FREYRE, 2003, p. 180).

2 O POVO BRASILEIRO SEGUNDO DARCY RIBEIRO

Darcy Ribeiro escreveu O Povo Brasileiro apresentando para a intelectualidade os resultados de


sua investigação a partir da pergunta: “Por que o Brasil não deu certo?”. Para tal, o autor começou
desconstruindo mitos sobre a identidade brasileira e sobre a construção da História do Brasil, em especial,
sobre a miscigenação.

Darcy expõs no prefácio da obra a dificuldade de formular uma teoria sobre o Brasil, pois isso requeria
uma nova abordagem além do entendimento de um processo histórico ou um braço da história ocidental
europeia. Portanto, Ribeiro procurou se desvencilhar dos clássicos e da simples aplicação das matrizes
de pensamento europeu para entender a formação do povo brasileiro enquanto algo novo e singular.

21
Unidade I

O povo brasileiro passou a ser entendido como uma confluência da matriz portuguesa com a herança
miscigenada dos índios e negros, em que cada qual trouxe suas peculiaridades para contribuir com a
formação do brasileiro. A diferenciação do brasileiro para o português, ou dos povos das outras colônias,
é um resultado heterogêneo de três fatores: a ecologia, constituída por paisagens que condicionaram
o povo a adaptações específicas para habitar a geografia local; a economia, pois o Brasil se formou
enquanto uma colônia e, portanto, não havia lógica produtiva que visasse à construção do próprio país,
mas, sim, à alimentação de um mercado mundial; e a imigração, que trouxe principalmente europeus,
árabes e japoneses para essa estrutura que já era capaz de “abrasileirá‑los” (RIBEIRO, 1995).

Os modos de ser brasileiro foram identificados pelo autor em cinco tipos: o brasil crioulo, brasil
sertanejo, brasil caipira, brasil sulino e brasil caboclo. Contudo, a urbanização, a industrialização e os
meio de comunicação de massa contribuíram para a uniformização dos brasileiros que, diferentemente
de países como a Espanha, veem‑se como povo unificado e regido pelo mesmo Estado‑nação.

Ribeiro, entretanto, não deixou de apontar que por trás dessa unificação étnica, existiam
antagonismos, contradições e disparidades que ocorriam, e ocorrem, devido a esses mesmos processos
de formação. Mostrou que a colonização foi um processo violento de unificação política que suprimiu
toda tentativa de rompimento ou subversão da ordem vigente e que, independentemente dos valores
pregados pelos movimentos separatistas, movimentos republicanos ou antioligárquicos também foram
reprimidos da mesma maneira.

Dentro dessa sociedade brasileira, as barreiras sociais eram, de acordo com Ribeiro (1995), mais
intransponíveis que as raciais, criando uma sociedade marcada por um classismo que não funciona
como nas sociedades europeias, com o simples enfrentamento e conquista do trabalhador pela parcela
do que produz, mas, sim, com o constante genocídio que tem início com a escravidão. A mão de obra
escrava era violentamente recrutada para trabalhar em uma produção que era alheia a si e ao próprio
interesse nacional, dado seu papel na economia mundial.

As lutas antiescravagistas e o medo de que o povo se rebelasse continuou como fator presente no
cotidiano da sociedade, pois esta se desenvolveu de forma a sustentar a desigualdade e o classismo,
criando uma minoria apática e perversa com privilégios de todos os tipos, incluindo o de explorar
indefinidamente o povo. O medo de uma rebelião das classes mais baixas era constante, o que resultou
em um autoritarismo recorrente por parte da ordem vigente em garantir a sua manutenção, suprimindo
até mesmo os menores desvios com a violência (RIBEIRO, 1995).

2.1 As matrizes

O povo brasileiro nasce de um conjunto de matrizes que se encontram e,


da mesma maneira, se desfazem para originar um povo novo, brasileiro,
que também é velho. A matriz indígena, tupi, presente de forma plural,
mas antagônica de forma unitária ao europeu, sofreu o primeiro ataque
pelo contato biológico, o que resultou em um genocídio indireto – pragas e
doenças assolaram os povos indígenas.

22
FORMAÇÃO SÓCIO-HISTÓRICA DO BRASIL

O europeu impôs uma política extremamente agressiva e, desde o começo, deu continuidade aos
conflitos intraeuropeicos no cenário intraindígena, desarmando a possibilidade de uma resistência
unitária, cultural e bélica. Sem a organização de Estados e uma diplomacia formal, as estruturas tribais
dificultaram a dominação europeia, que buscou escravizar, dizimar ou, quando incapazes de realizar as
duas opções, forçar a fuga para territórios mais distantes e inacessíveis.

Os próprios conflitos indígenas e as estruturas de produção entre as tribos, que os portugueses e


espanhóis buscaram entender para dominá‑las, revela a ignorância que o índio tinha da humanidade
do europeu e vice‑versa. Dessa maneira, práticas como a submissão de certas tribos às outras, mais
belicosas e fortes, que sempre foi algo presente na política do continente europeu desde os primórdios
da Antiguidade, não aproximaram os europeus dos índios, pois a diferença cultural e produtiva era tal
que seus interesses e ações eram irreconciliáveis e uma convivência harmoniosa não foi construída.

O bloco lusitano, que compõe a segunda matriz, além de católico e parte do “velho mundo”, era
um jovem povo unificado por um processo de revolução mercantil sob a batuta de um Estado‑nação
monárquico. Seus impulsos, para além da expansão da economia mercantil, balizada na supremacia
náutica, visava expandir o projeto cultural católico de cristianização dos povos pelo homem branco.

O encontro do índio com a produção portuguesa, estranha e inútil, mas incorporada pelo imaginário
do índio, acabou por integrá‑lo ao funcionamento mercadológico europeu. Os portugueses subordinaram
os índios com a troca de produtos naturais e riquezas que eles forneciam, mas que eram medidas por
sentidos diferentes, com significados culturais diferentes. Aos poucos, o índio descobriu o que era o
lucro, a riqueza, o acúmulo e a idéia europeia de valor, ou seja, a motivação por trás desse invasor tão
agressivo e obcecado por materiais específicos.

Com a construção dos portos e a produção do açúcar, subsequentes à chacina primeira que
ocorreu com os índios da costa brasileira, a paisagem transformou‑se em colônia, deixando para
trás aquela imagem de paraíso perdido. A guerra contra os índios, que simultaneamente ocorria
com o processo de povoação europeia da terra, trouxe os negros africanos para servirem como
escravos da produção açucareira.

As aspirações espirituais jesuíticas, que buscavam, num segundo momento, trabalhar contra
as empreitadas mercadológicas dos Estados‑nação Portugal e Espanha, acabaram por permitir
a colonização em todas as dimensões, pois serviram, à contragosto, ao propósito do etnocídio
indígena. Os jesuítas e franciscanos perderam a disputa ideológica para os colonos, que trabalhavam
no sentido contrário, promovendo a escravidão e o genocídio, além das suas utopias em relação à
construção de um novo mundo.

Legitimados pelos servos de Cristo, os colonos e a Coroa colocaram em prática a colonização sem
precisar de motivos adicionais ou pretextos. Portugal estava livre para consolidar seu domínio sobre
todas as dimensões dos habitantes de sua colônia, fossem eles colonos, índios ou negros africanos
(RIBEIRO, 1995).

23
Unidade I

2.2 A miscigenação

Os brasilíndios foram chamados de mamelucos pelos jesuítas espanhóis


horrorizados com a bruteza e desumanidade dessa gente castigadora de seu
gentio materno. Nenhuma designação podia ser mais apropriada. O termo
originalmente se referia a uma casta de escravos que os árabes tomavam de
seus pais, para criar e adestrar em suas casas‑criatórios, onde desenvolviam
o talento que acaso tivessem (RIBEIRO, 1995, p. 107).

A miscigenação é o processo constante de unificação do país, pois dela advém uma unidade nacional
biológica por não ser considerada um pecado, como ocorreu em outros países, resultando em uma
pluralidade de relações que configurou os diferentes Brasis.

Um processo determinante na constituição da miscigenação entre índios e portugueses ocorreu


logo na chegada destes últimos, pois, recebidos por índios, receberam mulheres índias como forma de
estabelecer relação entre os europeus recém‑chegados e todos os índios. Essa tradição diplomática tem
o nome de cunhadismo e foi responsável pelos mestiços que ocuparam inúmeras regiões do País, em
especial São Paulo.

A lógica que reinava na estratificada e miserável sociedade colonial levou aqueles filhos de
portugueses com índias, os brasilíndios dos planaltos paulistas, a se aventurarem terra adentro em
busca de uma prosperidade nessa sociedade escravocrata. Caçavam escravos em regiões cada vez mais
distantes, à semelhança da corrida do ouro, para ascender socialmente na pobre economia paulista
(RIBEIRO, 1995).

A miscigenação é a característica mais marcante de nossa colonização, pois ela transcende a mistura
de indivíduos; é a confusão de referências culturais que se encontram no mesmo território, sob a mesma
nação, no processo subliminar de formar um povo. Ribeiro retrata a dificuldade da construção identitária
das etnias brasileiras pela hierarquia social, que enquadrava desejos de ascensão e pertencimento como
figuras distantes do solo brasileiro.

Temos aqui duas instâncias. A do ser formado dentro de uma etnia, sempre
irredutível por sua própria natureza, que amarga o destino do exilado,
do desterrado, forçado a sobreviver no que sabia ser uma comunidade
de estranhos, estrangeiro ele a ela, sozinho ele mesmo. A outra, do ser
igualmente desgarrado, como cria da terra, que não cabia, porém, nas
entidades étnicas aqui constituídas, repelido por elas como um estranho,
vivendo à procura de sua identidade. O que se abre para ele é o espaço
da ambiguidade. Sabendo‑se outro, tem dentro de sua consciência de se
fazer de novo, acercando‑se dos seus similares outros, compor com eles
um nós coletivo viável. Muito esforço custaria definir essa entidade nova
como humana, se possível melhor que todas as outras. Só por esse tortuoso
caminho deixariam de ser pessoas isoladas como ninguéns aos olhos de
todos (RIBEIRO, 1995, p. 132).
24
FORMAÇÃO SÓCIO-HISTÓRICA DO BRASIL

Nesse sentido, Ribeiro (1995) indica que a construção do brasileiro vem de um espaço ambíguo, uma
não identidade, deixada em aberto pela incapacidade das etnias irredutíveis em se misturar, justamente
pelos papeis sociais a serem desempenhados por cada uma. Contudo, os filhos dessa mistura não
tinham um papel para que pudessem ser naturalmente integrados nessas etnias e, de alguma forma,
marginalizados pelas etnias, formaram uma nova por exclusão.

O abandono dos brasilíndios, ou mamelucos, que rejeitavam a origem indígena ou negra e eram
rejeitados pelos pais europeus, restou um não ser, que constituía a “ninguendade” desse povo em formação.
O brasileiro começa a perceber a origem de uma identidade própria, não pelo autorreconhecimento, mas
pelo estranhamento do português, que o via como algo diverso. A identidade do povo brasileiro, enquanto
algo original e inexistente até então, é construída pela não identificação, uma união pela rejeição.

Para Darcy Ribeiro (1995), o processo de construção dos novos povos da América Latina é um
processo de desconstrução dos velhos; o índio se desindianiza, o negro se desafricaniza e o europeu
se deseuropeiza. Disso nascem os povos que habitam a América Latina, em especial o Brasil, o que
Ribeiro nomeia de Povos Novos. Os chilenos, peruanos, brasileiros e outros povos latino‑americanos
seriam justamente novos, pois tornariam‑se irredutíveis sob a égide de seus Estados étnicos, com certas
peculiaridades observadas nos distintos processos de colonização.

Os processos separatistas que tiveram lugar no Brasil, principalmente os do Brasil Colônia, buscavam
novas ordenações econômicas e uma fuga da tirania central e monopolizante que era o Estado brasileiro.
As revoltas da Inconfidência foram organizadas pelo inconformismo de uma elite local com os valores
empreendidos pela ordem econômica. Já a Conjuração Baiana foi uma revolta de escravos e miseráveis
que buscavam a independência, pois viam nessa imagem a possibilidade de liberdade da escravidão
e da completa miséria opressora que as elites locais sustentavam. Todas as revoltas separatistas
foram reprimidas militarmente, e a estabilidade política ao longo da história mitigou os movimentos
separatistas; mas o ponto que atravessa todos eles é a falta de um discurso identitário, pois não há o
entendimento de que um povo diferente vive dentro do território brasileiro (RIBEIRO, 1995).

Evidentemente que isso ocorreu porque escravos, portugueses e índios viveram aqui por séculos.
Contudo, o processo de união nacional, de unificação política em torno do Estado‑nação, garantiu
a unidade do País, salvo no caso do Uruguai, que ilustra justamente a distância cultural necessária
para que um movimento separatista tenha sucesso. O brasileiro, na sua ninguendade, na sua falta de
identidade própria, vê‑se coeso e uniforme; na sua pluralidade de Brasis, há um povo unido, que após
seus séculos coloniais, não vê sentido de deixar de sê‑lo, nem se enxerga como diferente o bastante para
se tratar de outro povo.

Observação

Dessa sugestão de Darcy Ribeiro, surge a ideia de que o Brasil seria


uma nova Roma. Isso porque, ao longo de sua história, escravos e povos
dominados pelos romanos incorporaram a língua e costumes romanos e,
finalmente, alcançaram o poder dentro do próprio Império.
25
Unidade I

Com a quebra da irredutibilidade de seus ancestrais, a convivência entre os miscigenados logo


resultou em um sentimento de coletividade, marcado primordialmente pela convivência de pessoas
variadas, filhas de misturas e que já não carregavam identidades homogêneas. O senso de coletividade
começa a se estruturar e a inicial falta de identificação dá lugar ao povo brasileiro, que surge antes de
sua independência, mas após o Estado que regia suas vidas cotidianas.

O abismo de classes é aspecto manifesto da miscigenação, tornando‑a um violento processo de


conquista de terras e poder por parte de uma elite que ainda se vê cercada de invasores, independentemente
dos que antes se intitulavam donos ou usufruíam da terra. Os conflitos tornam‑se verdadeiras guerras
étnicas, pois, diferentemente das disputas indígenas, que se balanceavam pelo equilíbrio populacional
e poder bélico, o europeu lançou um projeto macro‑étnico de dominação que não pode ser freado
pelos índios, causando um desequilíbrio que forçou integrá‑los ou exterminá‑los, contra sua vontade
ou capacidade de resistência. Não havia espaço para índio no projeto europeu, principalmente após
o fracasso de escravizá‑los; eles nem mesmo eram vistos como adversários, mas apenas “invasores”,
incômodos no processo de ocupação da terra (RIBEIRO, 1995).

O processo de formação do povo brasileiro, que se fez pelo entrechoque de


seus contingentes índios, negros e brancos, foi, por conseguinte, altamente
conflitivo. Pode‑se afirmar, mesmo, que vivemos praticamente em estado de
guerra latente, que, por vezes, e com frequência, se torna cruento, sangrento
(RIBEIRO, 1995, p. 168).

O choque de culturas não foi apaziguado com a formação do Estado brasileiro. Esse Estado foi
consolidado pela cultura europeia branca, que buscava utilizá‑lo como centro de opressão e manutenção
de poder, legitimando o projeto, assim como garantindo seu avanço por meio de todas as ferramentas
que a política permitia.

Com o viés classista não foi apenas o Estado que funcionou em favor das elites locais; o próprio
projeto de país como um mecanismo de manutenção das distâncias sociais impactou o funcionamento
da economia interna, moldando o que o autor chama de “Empresa Brasil” (RIBEIRO, 1995).

3 A EMPRESA BRASIL

Para Darcy Ribeiro (1995), o Brasil constituiu‑se, no âmbito produtivo, em quatro ordens diferentes.
A primeira foi o Brasil escravista, com mão de obra africana, suprindo a monocultura latifundiária do
açúcar, depois o ouro e o café. A segunda foi a jesuíta, com os índios. A terceira, que teve longo alcance
social, ainda que não representasse uma força econômica nacional, eram as atividades de subsistência,
como a criação de gado. A quarta predominava sobre todas: era a esfera dos banqueiros portuários, que
dominavam o tráfico negreiro e garantiam a exportação de ouro e açúcar e a importação de escravos.

A diretriz econômica do Brasil é urbana. Isso significa dizer que, desde o começo do Brasil, a elite
concentrou‑se nas cidades e delas desenhou seu enriquecimento, ainda que ligado ao campo. O Brasil,
portanto, nasceu como um país predominantemente urbano, mesmo que sua riqueza viesse inicialmente
das minas e da terra.
26
FORMAÇÃO SÓCIO-HISTÓRICA DO BRASIL

Os centros urbanos cresceram e os campos foram explorados e esvaziados durante todos os séculos.
A falta de oportunidade e de abastecimento e a expansão tecnológica levaram camponeses a fugirem
do campo buscando melhores condições de vida em cidades, que não comportaram essa numerosa
chegada. Isso levou milhões de pessoas a viverem em uma situação periférica, marginal, criando uma
desigualdade impactante no horizonte urbano.

O País, no sentido populacional, tornou‑se urbano somente em 1960, pois não apenas as elites
comandavam tudo das capitais, mas o povo finalmente tornou‑se maioria nas cidades. Ribeiro (1995)
aponta que esse processo foi complementado pela industrialização, que teve início nas zonas urbanas e
foi ampliado por Getúlio Vargas, que o consolidou com seu projeto de estatais.

As empresas criadas deram início ao capitalismo de Estado promovido por todos os governos desde
então; alguns marcados pelo viés nacional‑desenvolvimentista, outros privatistas, mas seguindo a lógica
do uso da máquina pública para sustentar o acúmulo de riqueza privada. A criação de empregos urbanos,
exército de reservas e exploração dos próprios recursos permitiu um primeiro avanço, mascarando a
aceleração da dinâmica do capital brasileiro, assim como a manutenção de sua posição na economia
global: um exportador de commodities.

Após Getúlio Vargas, medidas privatistas foram tomadas por Juscelino Kubitschek. O presidente trouxe
indústrias e concedeu subsídios às multinacionais, primordialmente norte‑americanas. Os mercados
internos foram dominados e estratificados por grandes empresas com seu lobby, que não permitia
nenhum desenvolvimento privado interno e boicotava qualquer avanço econômico que buscasse uma
autonomia nacional. A modernização de Juscelino veio, mas trouxe um preço que a sociedade não
tinha estrutura para pagar; isso acabou por absorver as mazelas do passado sob nova faceta, mais
eficiente. O Brasil continuou a trabalhar alienado de sua produção, mas agora numa paisagem urbana,
com uma crise de desemprego e violência. A crise teve contornos geográficos drásticos, já que acirrou
a desigualdade do Sudeste, mas não somente, pois elevou as cidades capitais, como São Paulo, a um
status nunca antes experimentado no País.

A megalópole começava a ganhar forma, enquanto o resto do país ficava pobre, abandonado e sem
capacidade de fazer frente às demandas políticas dos estados do Sudeste. A desigualdade dos estados,
que já existia desde o ciclo do café, e a realocação dos negros, já livres, misturados com a força de
trabalho dos imigrantes, inflou o Sudeste e arruinou economicamente o Nordeste.

Ribeiro (1995) elaborou dois conceitos perversos que travestiram esse processo de industrialização,
uma vez que desenvolveram o País para outros do chamado Primeiro Mundo. A modernização reflexa e a
atualização histórica opuseram‑se à aceleração evolutiva, impedindo a real industrialização e garantindo
nossa condição subalterna na economia mundial.

Os escravos deram lugar aos homens livres, marginalizados, negros e presos à suas carências. O
colonialismo deu lugar ao imperialismo, e fomos elevados de colônia ao status de Terceiro Mundo, como
um país em desenvolvimento. Os rótulos mudam e, ainda que setores do país melhorem, as melhoras
são paradoxais por continuarem aprofundando as contradições classistas e a miséria da grande massa.
O manejo da economia é limitado, já que as elites a utilizam para a manutenção do acúmulo. O resto do
27
Unidade I

mundo discursa como se o Brasil fosse de fato um país independente, quando, na verdade, continuamos
sendo peça fundamental para o desenvolvimento de outros povos, mas não do nosso próprio.

Darcy Ribeiro não deixou de descrever o tipo de violência que essa empresa empreendeu, seja
fisicamente, com os escravos e a população pobre, seja politicamente, sabotando o desenvolvimento
social do País. A respeito dos escravos, uma passagem é bem significativa para entender o manejo da
mão de obra de então:

Sem amor de ninguém, sem família, sem sexo que não fosse a masturbação,
sem nenhuma identificação possível com ninguém seu capataz podia ser um
negro, seus companheiros de infortúnio, inimigos, maltrapilho e sujo, feio e
fedido, perebento e enfermo, sem qualquer gozo ou orgulho do corpo, vivia
a sua rotina. Esta era sofrer todo o dia o castigo diário das chicotadas soltas,
para trabalhar atento e tenso. Semanalmente vinha um castigo preventivo,
pedagógico, para não pensar em fuga, e, quando chamava atenção, recaía
sobre ele um castigo exemplar, na forma de mutilações de dedos, do furo
de seios, de queimaduras com tição, de ter todos os dentes quebrados
criteriosamente, ou dos açoites no pelourinho, sob trezentas chicotadas de
uma vez, para matar, ou cinquenta chicotadas diárias, para sobreviver. Se
fugia e era apanhado, podia ser marcado com ferro em brasa, tendo um
tendão cortado, viver peado com uma bola de ferro, ser queimado vivo, em
dias de agonia, na boca da fornalha ou, de uma vez só, jogado nela para
arder como um graveto oleoso (RIBEIRO, 1995, p. 119).

Essa pesquisa antropológica dos hábitos e das técnicas desenvolvidos pelos senhores de terra para
manter os escravos sob controle e produtivos revela a violência que sustentava a relação econômica
mais importante do País até então. Dessas práticas, fundamentais para a escravidão, surge a discrepância
do povo sensível, sofrido, que também é cruel, permeado pela brutalidade cínica, pois é incapaz de
reconhecer sua própria violência.

As figuras mais tradicionais da escravidão, como o chicote e o pelourinho, não comportam outras
imagens mais chocantes, como a de negros queimados vivos ou mutilados. O racismo, lembrado pela
figura do branco torturador e do negro africano, preso e obediente, marcou de forma irreparável a
sociedade brasileira, e continua a ser revivido em figuras e momentos de extrema violência social.

O Brasil carrega na raiz de sua identidade uma dimensão violenta, indissociável da figura da
autoridade. Por tal motivo, o País construiu ao longo dos anos figuras autoritárias predispostas a torturar
e oprimir os pobres e políticas públicas que demonstram o poder daqueles que ocupam essas posições
de autoridade, o que acirrou o racismo e o classismo que marcam a sociedade brasileira.

A elite brasileira ocupava, no período colonial, tarefas distantes das produtivas, dividindo‑se em três
dimensões letradas: aqueles que ocupavam a burocracia e o Estado, nos moldes portugueses, outros
que ocupavam cargos religiosos, com a função de catequizar e expandir a ordem religiosa, e, por último,
os que lucravam com a exportação. A interação entre as três camadas sociais exerceu uma dominação
28
FORMAÇÃO SÓCIO-HISTÓRICA DO BRASIL

completa do homem branco sobre o negro, mas de modo algum existiu uma sincronia ou coordenação
(RIBEIRO, 1995).

Na prática, o sistema autoritário e opressivo da população beneficiava toda a camada alta da


sociedade, independentemente de sua função. Contudo, seus interesses, aspirações e ideologias variavam,
assim como suas atuações políticas. Portanto, eram comuns disputas políticas ou intercruzamentos de
ações dentro do mesmo espaço demográfico e geográfico. O sistema se articulava como um todo para
gerar uma unidade e um controle classista, levando em conta os movimentos políticos contrários que
habitavam dentro dele. A sociedade foi, portanto, o resultado da força, e não de uma grande articulação
das elites.

Lembrete

As classes dominantes do País não eram constituídas por um único


grupo, mas por muitos grupos que aspiravam ao poder sempre autoritário.

A dificuldade da implantação de um projeto único e oficial para o País está na raiz das funções de
cada elite, pois logo de cara a catequização avançou dialeticamente com a miscigenação proibida. Da
mesma forma, ocorreu um embate entre o racionalismo burocrático lusitano e o espontaneísmo com as
atividades desenvolvidas aqui, colocando o Estado sempre atrás da exploração econômica. Esse é o caso
que ficou evidente com a descoberta do ouro pelos bandeirantes; o Estado monopolizou a riqueza na
tentativa de controlar e oficializar a exploração, condenando de antemão todo o garimpo já existente.

Os movimentos que contrastam com o progresso representado pelo projeto oficial, que Darcy Ribeiro
(1995) chama de anarquia, resultam em ilhas arcaicas e regiões modernizadas. As primeiras se formam
pelo isolamento e pelas condições sociais, diferentemente da aparência conservadora que exprimem, e
isso pode ser evidenciado quando o isolamento é rompido e o arcaico encontra o moderno – que somente
é moderno porque sempre há quem defenda o atraso. A modernização é também aparente porque está
ligada exclusivamente à economia, não afetando os valores sociais do tradicionalismo (RIBEIRO, 1995).

Esse progresso que rompe as ilhas arcaicas está relacionado com a fácil aceitação que a população
empobrecida tem de novos modos de vida, uma vez que ela acredita que os sinais de mudança são
opções de libertação social. A consequência direta desse desapego do ancestral configura um novo
matiz cultural, que não presta contas com suas origens europeias, africanas ou indígenas.

O resultado pós‑colonial direto é a nacionalização da classe dominante, que se transforma sem


resistência, instaurando a mesma lógica colonizadora que continuaria a garantir o lucro. A independência
é concedida pela Inglaterra e imposta pelo monarca. Na prática, o sistema permaneceu o mesmo, pois
o povo ainda não trabalhava para si. O Estado brasileiro, portanto, apresentou uma continuidade, e não
uma ruptura, incumbido‑se da missão de sustentar seu aparelho repressivo para manter o regime antigo
sob as formas do novo.

29
Unidade I

4 OS BRASIS NA HISTÓRIA

Para Ribeiro (1995), os Brasis são quadros regionais que buscam decompor os distintos e apressados
processos de formação étnica que povoaram as diferentes regiões, de diferentes maneiras. A preferência
do autor é compor cenários brasileiros, ao invés da tradicional historiografia una do País.

Após a chegada dos portugueses, a documentação demonstra que neobrasileiros passam a existir,
tanto do lado europeu, quanto do indígena, pois já não se comportam como descendentes diretos,
herdeiros, de uma ou outra cultura, mas de uma nova, em processo de gestação.

Na costa nordestina, no século XVI, os índios desgarrados compunham comunidades com


portugueses e mestiços, criando as primeiras comunidades‑feitorias, que viriam a servir de suporte
aos navios portugueses, assim como manter as relações de escambo com as tribos indígenas. Ainda
que embebidos na cultura predominantemente indígena, sem falar o português, a estrutura dessas
feitorias era europeia.

Foi com esse modelo de feitoria que a colonização avançou, estabelecendo as diversas atividades
econômicas, como a pastoril e a mineração. Com ritmos diferentes e influenciando a indianidade
circundante, esse modelo espalhou‑se pelo território, como ilhas civilizatórias, para então estabelecer
uma comunicação entre si. Três dimensões permeavam similarmente essas comunidades: a identidade
protobrasileira, a estrutura socioeconômica colonial e sua economia mercantil (RIBEIRO, 1995).

Essa identidade, construída também sobre a cultura indígena, é que permitirá a adaptação do
brasileiro a qualquer lugar do território nacional. O processo misto de adaptação e diferenciação
resultaria em cinco grandes blocos culturais: caboclo, crioulo, sertanejo, caipira e gaúcho.

Esses núcleos distintos tinham sua relação direta com a metrópole e, diferentemente da América
hispânica, não se tornaram independentes. Pelo contrário, constituiram‑se como um povo‑nação, regido
por uma entidade cívica única.

4.1 O Brasil crioulo

O engenho foi a primeira agroindústria portuguesa e viabilizou toda a ocupação e colonização inicial,
pois não havia minérios a serem explorados e os índios não consistiam em mão de obra disciplinada.
A questão da mão de obra foi o grande impedimento de uma expansão mais acelerada dos engenhos.
Entretanto, os portugueses expandiram em poucas décadas os engenhos pela colônia, e a produção
aumentou de tal forma que o preço despencou.

O consumidor europeu, inicialmente da elite, capaz de consumir especiarias, tornou‑se um consumidor


diário de açúcar, expandindo o mercado e fornecendo lucros suficientes para sustentar a exploração no
Brasil. O lucro aumentou de tal maneira que, nos séculos seguintes, o açúcar era o principal produto
da economia mundial, aumentando a safra brasileira a valores que superavam qualquer exportação
europeia. Ribeiro coloca que:

30
FORMAÇÃO SÓCIO-HISTÓRICA DO BRASIL

Isso foi o que sucedeu, o açúcar deixou de ser uma especiaria para
converter‑se num produto comercial comum. Mesmo assim, seus preços de
custo e de venda eram suficientemente atrativos para permitir o custeio da
produção e o transporte transatlântico do próprio açúcar, e o do transporte
ultramarino, em sentido inverso, da escravaria africana que o produziria
(RIBEIRO, 1995, p. 273).

Somente no ciclo do ouro que o açúcar perde importância no Brasil. Dessa estrutura econômica
nasce o crioulo ou, ainda, a configuração sócio‑cultural crioula. Como o açúcar era o motor social
dos locais em que os engenhos estavam estabelecidos, o modo de ser crioulo existia para tornar essa
produção mais dinâmica e eficiente.

A estrutura familiar e a cultura, que se estendiam do Rio Grande do Norte à Bahia, foram criadas em
função da economia do engenho, que era pautada pela polaridade do senhor de engenho e do escravo. O
senhor branco, responsável pela atividade econômica, engendrava a figura do empresário e, assim, construía
seu patrimônio: a casa‑grande deveria ser capaz de durar tempo suficiente para que seus herdeiros a
usassem. Seus hábitos eram brasileiros e sua conduta destoava do português com renda similar.

O escravo, índio ou negro, sobrevivia do trabalho penoso no engenho, mas não deixava de
abrasileirar‑se na língua e na visão de mundo. Seu trabalho era supervisionado, pois a tensão dessa
polaridade mantinha o aparelho repressivo constantemente ativo. Não se organizaram com força
suficiente para derrubar o sistema imposto, e a formação de quilombos caracterizou a constante guerra
pela mão de obra, que não era apenas insumo, mas uma mercadoria em si.

Ainda que opostos socialmente, as duas figuras, senhor e escravo, complementavam‑se dentro das
possibilidades de desigualdade que a sociedade colonial apresentava. Eram expressões distintas de uma
cultura resultante dos cânones europeus. Essa unidade brasileira encontrou novas formas de sustentar
a dinâmica senhorial, mantendo o Brasil na posição de grande empresa rural.

A economia açucareira do Nordeste colonial, fundada no sistema de


fazendas, foi a mais bem sucedida das formas de colonização das Américas
nos primeiros dois séculos. Em meados do século XVII, a exportação de
açúcar gerava uma renda interna líquida anual superior a um milhão de
libras‑ouro, grande parte da qual ficava em mãos dos senhores de engenho
(RIBEIRO, 1995, p. 287).

Contudo, Ribeiro (1995, p. 287) contrapõe: “O senhor de engenho, ao contrário, já surge como o
proprietário de um negócio que incluía as terras, as instalações e as gentes de seu domínio, exercendo
seu comando para conduzi‑las a uma atividade econômica exógena”.

O negro que chegava capturado era introduzido ao trabalho e à terra pelos negros mais experientes.
Quanto a sua possibilidade de gerar famílias, cabia apenas ao senhor e seus filhos constituir famílias e
ter relações sexuais com quem desejassem. Contudo, é nesse modelo que a primeira sociedade mundial
nasce, pois, em solo americano, africanos trabalham dentro de uma empreitada europeia.
31
Unidade I

Para que tudo funcionasse, o autor insiste na capacidade exclusiva dos portugueses em gerir o
maquinário escravista, já que não somente foram pioneiros nas navegações além‑mar, mas também
“ensaiaram” o modelo nas ilhas atlânticas, refinando o açúcar em menor escala. A inovação do modelo
brasileiro está na constituição das fazendas como estrutura produtora principal, caracterizando a colônia
como um território útil para além do extrativismo de recursos valiosos.

Outro elemento importante que possibilitou a empreitada lusitana foi o convívio com a cultura
norte‑africana em Portugal. A figura do mouro, presente na Península Ibérica, acostumou o português
a lidar com a diferença étnica, estando mais aptos a dirigir essa massa cultural nova, tanto indígena,
quanto africana. Ribeiro elucida:

Efetivamente, forçados pela longa dominação árabe, os lusitanos se fizeram


herdeiros de sua cultura técnica, fundamentalmente para a navegação, para
a produção de açúcar e para a incorporação de negros escravos à força de
trabalho (RIBEIRO, 1995, p. 278).

O sistema rural instaurado opõe‑se aos das colônias espanholas, pautados em vilas camponesas
e granjas. A estrutura lusitana, centralizada no senhor de terras, submetia toda a população ao seu
poder absoluto e, com a finalidade mercantil, tudo o que está abaixo do senhor torna‑se insumo. Essa
subordinação econômica reverteu todas as origens ao impor um processo de decultaração nas fazendas,
diverso do processo pastoril ou granjeiro, nos quais a autonomia do trabalhador era maior e tinha o
status de pessoa; não era somente capital humano.

A legitimação do poder do senhor de engenho vinha de uma necessidade direta da Coroa, que precisava
proteger e garantir sua soberania sobre a nova colônia, com pouco ouro, mas produtiva. Portanto, o
poder do senhor penetrava em todas as dimensões sociais. A autoridade do senhor de engenho nas
terras brasileiras era superior à da nobreza em Portugal, pois mandava no reino, no clero e na população
que o servia. As oligarquias dos senhores de engenho só respeitavam, por uma necessidade mútua, os
importadores de escravos e os exportadores de produtos, pois a complementaridade do mercado era
fundamental, diminuindo os desentendimentos que ocorriam, já que nada era mais importante que
garantir o processo do açúcar funcionando.

Essa estrutura apenas estimulava a obediência, porque não havia espaço para a subversão ou
reivindicação; o senhor de engenho era o amo e o pai, do qual todos dependiam. Sua família, católica,
resguardava um status inatingível que, por ironia, só era mantido pela liberdade que gozava o senhor de
ter qualquer mulher que lhe servisse. A senzala não poderia deixar de reforçar esse processo, pois viviam
em condições sub-humanas. Ribeiro ressalta:

A senhorialidade do patronato açucareiro lembra, em muitos aspectos,


a da aristocracia feudal, pelos poderes equivalentes que alcança sobre a
população que vivia em seus domínios, pelo exercício da judicatura e pela
centralização pessoal do mando (RIBEIRO, 1995, p. 287).

32
FORMAÇÃO SÓCIO-HISTÓRICA DO BRASIL

O plantio da cana inaugurava o latifúndio e a prática da monocultura. O alto investimento e a


finalidade internacional colocaram no sistema colonial elementos arcaicos, como a escravidão e uma
imagem similar ao feudo, em conexão com os aspectos mais modernos da nascente economia global
de mercado. Dessa combinação, algumas características do moderno trabalho assalariado já estavam
presentes, pois o trabalhador não levava sua família ao campo, pelo contrário, participava de uma
comunidade impessoal produtiva, realizando tarefas parciais e incompletas, já antecipando a divisão do
trabalho regida pelo poder central da casa‑grande.

O Brasil nordestino e açucareiro se constitui como uma região de patronos e patrícios; os


primeiros são senhores de engenhos, ou seja, empresários da época, e seus parasitas, os exportadores
e importadores.

A grande resistência que o açúcar encontrou veio do negro escravizado, que diariamente se opunha
ao sistema encampado por toda a sociedade. O trabalho era conduzido de forma bruta e constantemente
violenta, gerando fugas dos negros que conheciam o território e buscavam quilombos. A cultura
brasileira se formava com a abundância de traços africanos, uma vez que a população crescente de
escravos também encontrava resistência na aceitação de ritos e cultos trazidos consigo e fundidos à
cultura brasileira nascente pelo espaço aberto resultante do processo de deculturação que a economia
açucareira mantinha (RIBEIRO, 1995).

O negro encontra mais espaço nos centros urbanos e na Igreja Católica, que promovia sua aceitação,
ainda que não deixasse de relembrá‑lo de sua posição social. Ao longo dos séculos, quando os negros
se desligaram da Igreja, promoveram sua cultura de origem africana, já reformada pelo tempo e espaço,
mas ainda autônomas e exercidas largamente até hoje.

Somente com a Revolução Industrial que o senhor de engenho perdeu força, pois a transformação
da produção limitou sua figura à de um fornecedor da Europa. A concentração de terra foi redistribuída
e, com a perda da importância da economia açucareira quando foi descoberto o ouro, o quadro político
se inverteu, forçando os senhores de engenho a pedir subsídios. A intervenção governamental para
financiar as oligarquias nordestinas apenas burocratizou o processo, reduzindo o dinamismo do mercado
à importância para a produção nacional (RIBEIRO, 1995).

4.2 O Brasil caboclo

A floresta Amazônica compõe praticamente a metade do território brasileiro. Há séculos sua extensão
era maior, pois o desmatamento não existia em larga escala como hoje. Apesar de sua extensão, a
floresta era habitada por menos de 10% da população. A recente integração dessa região aconteceu
a partir do século XX, com a migração de milhões de nordestinos e com a construção de rodovias que
atualmente penetram na floresta.

A maioria de sua população cabocla vive atualmente em grandes centros urbanos, como Belém e
Manaus. As empreitadas que ocupam a Amazônia enxergam a floresta como um empecilho, buscando
convertê‑la em pastos e latifúndios para a monocultura. O processo é impiedoso, e a ditadura militar
de 1964 apoiou esse avanço com incentivos, utilizando um conceito peculiar de progresso e integração
33
Unidade I

nacional como justificativa. Esse projeto fracassou em larga escala, mas o desmatamento continua
avançando. Ribeiro, a esse respeito, diz:

Esses programas levaram a um redondo fracasso. Não assim a invasão


sorrateira de toda a floresta por gente desalojada dos latifúndios e até
dos minifúndios de todo o Brasil, que ali está aprendendo a viver na mata,
criando um novo gênero de ocupação que ainda não se configurou (RIBEIRO,
1995, p. 306).

Os povoados de índios que ali viviam eram compostos dos mesmos Tupis que tinham se encontrado
com os descobridores no litoral. Caçadores e coletores, mas também com técnicas de lavoura, eram
capazes de manter populosas aldeias, chegando aos milhares de índios, já que o local era fértil e continha
recursos abundantes (RIBEIRO, 1995, p. 180).

Contudo, as aldeias, por maiores que fossem, eram sociedades tribais e se organizavam como tal.
Não havia cidades, nem classes sociais ou divisão de tarefas, e a preocupação em produzir alimentos
pertencia a todos. Produziam artesanatos e ocupavam grandes extensões de terra. Ao longo do tempo,
a mudança foi drástica:

Em nenhuma outra região brasileira a população enfrenta tão duras


condições de miserabilidade quanto os núcleos caboclos dispersos pela
floresta, devotados ao extrativismo vegetal e, agora, também ao extrativismo
mineral do ouro e do estanho (RIBEIRO, 1995, p. 307).

Ribeiro (1995) afirma que esse fracasso desenvolvimentista da região amazônica aconteceu pela
incapacidade do sistema e da sociedade moderna de consumo em viabilizarem um modelo econômico
para a floresta. O modelo empresarial não conseguiu se afirmar, pois não se adaptou às condições da
floresta, diferente do estilo primitivista daqueles que ali habitam até hoje.

Nessa região, a instituição equivalente à fazenda de gado ou ao engenho de açucar é o extrativismo,


melhor representado pelo seringal. A extração das seringueiras, ao contrário do açúcar, só conseguiu se
manter enquanto detinha o monopólio da produção mundial da borracha. Quando surgiram no Oriente
os seringais cultivados, e a borracha sintética foi desenvolvida, os preços despencaram e a empresa de
extrativismo florestal demonstrou sua inviabilidade comercial pela baixa competitividade no mercado
internacional.

O que manteve os seringais em operação foi o protecionismo estatal, protegendo o patronato


regional de forma semelhante aos decadentes engenhos de açúcar. Os incentivos visavam manter a
estrutura, mas não garantiam condições para aqueles que trabalhavam.

As políticas públicas para a região buscavam “vencer” ou penetrar a “barreira” geográfica que a
floresta impunha. Garantir o Estado e sua soberania naquele território requeria uma grande logística,
além de um investimento de alto custo para os cofres públicos. O resultado desse preço é o esquizofrênico
investimento feito pelo Estado, que construiu grandes empreitadas e permaneceu passivo por longos
34
FORMAÇÃO SÓCIO-HISTÓRICA DO BRASIL

períodos logo após realizá‑las, abandonando temporariamente sua finalidade juntamente com a
população local.

Ribeiro (1995) descreve que a ocupação lusitana do rio Amazonas tinha o objetivo de expulsar os franceses,
holandeses e ingleses que ali se instalavam. Essas missões belicosas requeriam a construção de fortificações
que, na prática, funcionavam como feitorias, comercializando com os índios as drogas disponíveis na floresta.
Aos poucos, os portugueses tomaram conhecimento do possível valor que determinadas especiarias teriam
na Europa e que surgiam como alternativas aos produtos trazidos da Índia.

Para transformar esse comércio em um empreendimento da Coroa Portuguesa, os colonizadores


aumentaram a escala do extrativismo e a quantidade de índios escravizados. Mas isso se demonstrou
complexo, pois coletar especiarias na mata requer uma liberdade que dificulta a escravidão. Os
portugueses acabaram por escravizar aldeias, chantageando os homens com as mulheres e as crianças.

Os índios passaram a fugir dos portugueses e da escravidão. Seu conhecimento do território


deixou em desvantagem os colonizadores que, por isso, organizavam custosas expedições de busca.
O resultado dessas jornadas eram guerras e a morte de muitos índios e portugueses, causando mais
prejuízo que lucro.

A segunda tentativa de solução veio da Igreja, com os missionários buscando catequizá‑los para evitar
as guerras. Os núcleos missionários eram, pois, melhores para os índios, que conservavam suas famílias
e alguma vida comunitária. Porém, a diminuição da população nos núcleos forçou os colonizadores
a buscarem aldeias mais distantes, misturando indivíduos de inúmeras tribos, o que resultou em um
processo cultural que Ribeiro assim descreve:

A disciplina imposta por esses trabalhos e as condições de convívio entre


índios de diferentes matrizes impuseram a homogeneização linguística e
o enquadramento cultural compulsório do indígena no corpo de crenças
e nos modos de vida dos seus cativadores. Sob essas compulsões é que se
tupinizaram as populações aborígenes da Amazônia (RIBEIRO, 1995, p. 311).

A expansão desse modelo percorreu o vale do rio Amazonas e dos demais rios, abrasileirando a
região a partir do recrutamento de indígenas. Dessa maneira, Portugal supria especiarias como o cacau,
baunilha, açafrão e pimenta para toda a Europa.

Dessa ocupação conturbada, que não apresentava perspectiva de crescimento para os portugueses
que ali residiam, nem uma solução para os índios que se misturavam e faleciam rapidamente, nasceu
uma nova população.

Ribeiro entende que se trata de uma população diversa daquela que a constituiu. Há a herança
da cultura tribal e as capacidades necessárias para viver na floresta, mas a língua era indígena, ainda
que difundida pelo território e falada por outras etnias. Consumia‑se mandioca e milho, praticava‑se
a caça e a pesca e, como os índios, essa nova população sabia navegar pelos rios em canoas. Contudo,
percebemos sua adaptação e diferença, porque entendiam o valor comercial das especiarias e promoviam
35
Unidade I

sua coleta, viabilizando a ocupação e a exploração da Coroa. Essa gama de habilidades originais desses
índios permitiu ao colonizador português sobreviver na Amazônia.

Essa população neobrasileira também era produto da mestiçagem. Brancos, índias e mestiças
mantinham relações sexuais e criavam uma etnia mais próxima do índio que do homem branco. A
diferença dessa mestiçagem para as outras era a possibilidade de o português casar com a índia, pois a
Coroa tinha tornado essa opção válida como estímulo à população local.

Os novos mestiços, filhos de matrimônios legítimos e herdeiros de terra em potencial, também viviam
em condições miseráveis e, em sua maioria, dedicavam‑se às atividades mercantis.

A grande mudança na demografia da região veio com a expulsão dos jesuítas, que se colocavam
como a última barreira de proteção entre a população local, livre de certa maneira, e a escravidão. A
distribuição das terras jesuíticas desequilibrou a região, criando oligarquias caboclas, proprietárias de
milhares de cabeças de gado.

Nessa época, Portugal vislumbrou a oportunidade de sedimentar a ocupação da região e investiu o


lucro com o ouro de Minas Gerais na construção de cidades urbanizadas, com serviços e até sua parcela
de luxo reservada às igrejas. Inicialmente, a proposta pareceu funcionar, mas a falta das ações jesuíticas
reduziu as integrações, e as tribos tornaram a se afastar (RIBEIRO, 1995).

Ao longo de quinhentos anos, a população aumentou, especialmente a destribalizada, sofrendo


um processo de deculturação e mestiçagem. Segundo Ribeiro (1995, p. 317):

A dupla função dessa massa cabocla foi a de mão de obra da exploração


extrativista de drogas da mata exportadas para a Europa, que viabilizavam a
pobre economia da região. Foi também instrumento de captura e de dizimação
das populações indígenas autônomas, contra as quais desenvolveram uma
agressividade igual ou pior que a dos europeus e dos mamelucos paulistas.

A história da Amazônia revela três classes sociais. A primeira consistia nos índios, que, isolados,
defendiam‑se de todas as tentativas de serem escravizados ou de atentados contra as mulheres
e as crianças das tribos. A segunda era a população urbanizada e diversa, que tinha como língua
principal o português e sustentava a colônia. A terceira classe social era composta de índios
oriundos das missões jesuítas, considerados por Ribeiro (1995) como um povo novo e original,
capaz de sustentar a economia da Amazônia.

Essa classe tentou por vezes tomar o poder, já que apresentava vantagens consideráveis sobre as
outras. Alcançaram o poder político, mas demostraram‑se incapazes de manejá‑lo e mantê‑lo. Após dois
períodos de grandes insurreições infrutíferas, a Amazônia entrou em um período de estabilidade política
e econômica.

Nas últimas décadas do século XIX, a prosperidade retornou por um breve tempo com a valorização
da borracha. A produção desse insumo industrial desenvolveu a região enquanto pode ser o monopólio
36
FORMAÇÃO SÓCIO-HISTÓRICA DO BRASIL

do suprimento da demanda global. Esse ciclo virtuoso ergueu as cidades, as ferrovias e uma estrutura
focada em abastecer o planeta com borracha.

A mão de obra necessária para essa empreitada foi suprida pelo exército de reserva do Nordeste
pastoril, que sofria naquele tempo uma seca tão forte que dizimava a população submetida ao sistema
latifundiário. A migração levou meio milhão de nordestinos à floresta. Munidos de roupas, armas e
utensílios necessários para lidar com o território, o trabalhador chegava à Amazônia já endividado,
mas era incapaz de saldar suas dívidas, manipuladas para sustentar um regime de servidão e mantê‑los
trabalhando naquele local e naquelas condições. O elemento decisivo para sustentar esse regime
trabalhista massacrante vinha da própria borracha. As seringueiras encontram‑se distribuídas de forma
desigual ao longo de vastas áreas da floresta, impedindo que esses trabalhadores se organizassem.

Para a economia da borracha, a terra e a mata não tinham valor. Esses dois elementos precisavam
ser transpostos para permitir a exploração. Portanto, a posse da terra tornou‑se economicamente
irrelevante, pois como diz Ribeiro: “O que importa na Amazônia é o domínio da via de acesso que leva
aos seringais e a conscrição da força de trabalho necessária para explorá‑la” (RIBEIRO, 1995, p. 22).

A propaganda levou os nordestinos a buscarem uma nova vida na Amazônia, mas eles encontraram
por lá um estado de miséria semelhante ao que viviam no Nordeste. O ciclo da borracha acabou junto
com a Primeira Grande Guerra, que destruiu o mercado internacional e a grande demanda por esse
produto. Após seu desmantelamento, o mundo retomou a produção de borracha plantada; depois da
invenção da borracha sintética, a exploração da mata pelos seringueiros foi inviabilizada.

A população amazonense viu‑se abandonada entre patrões falidos e um futuro pobre, e acabou
entregue à própria sorte e à floresta. As margens dos rios navegáveis tornaram‑se povoados e a economia
deles limitou‑se à subsistência (RIBEIRO, 1995).

Marginalizados em todas as acepções da palavra, esses nordestinos “caboclos” criaram um estilo


de vida regional, que resgatou o arco e a flecha para poupar munição, lavrou campos com estacas de
madeira e reintroduziu a pesca com o arpão. O resquício da cultura indígena, como uma variação pobre
da língua tupi e a cultura dos pajés, permeou a vida desses habitantes. Por outro lado, eles se mantiveram
presos aos hábitos e necessidades da civilização, sofrendo por viverem em uma miséria material.

O governo tentou subsidiar a borracha anos depois, mas suas tentativas construiram apenas
seringais mais precários que os anteriores. A Segunda Guerra incentivou um breve mercado, mas não
reestabeleceu nenhuma economia capaz de desenvolver a região. Para Ribeiro:

[...] a Amazônia é, de fato, o maior desafio que o Brasil já enfrentou. Sua


ocupação se vem fazendo com uma dinâmica de vigor incomparável. Estados
maiores que a França, como Rondônia, surgem abruptamente e se vão
povoando a ritmo acelerado. Projetos ambiciosos de estradas que atravessam
toda a floresta são postos em execução de forma tão inepta que depois de
investimentos astronômicos caem no abandono (RIBEIRO, 1995, p. 335).

37
Unidade I

4.3 O Brasil sertanejo

O Brasil sertanejo se espalha entre a caatinga e o cerrado, que apresentam uma vegetação pobre e
um clima hostil. A economia das fazendas de gado desenvolveu‑se associada ao ciclo do açúcar, mas
não gerou riqueza capaz de tirar a região da pobreza. A dependência do mercado interno nunca gerou
grande acumulação, mas garantiu certa segurança para o crescimento econômico ao longo dos séculos.

Uma grande parte do povo brasileiro compõe o Brasil sertanejo, que se estende por grandes porções
de terra, formando uma subcultura própria caracterizada pela especialização do pastoreio e por modos
de vida típico, com seus trajes e folclores, além de uma religiosidade pautada pelo messianismo.

A ocupação dessas terras ocorreu com o gado trazido de Portugal, que pode ser todo aproveitado,
gerando carne e couro. A Coroa facilitou esse processo com o modelo jurídico das sesmarias: à medida
que o gado buscava mais terras, elas já estavam legalizadas e concedidas aos merecedores. Com essa
atividade, formaram‑se os latifúndios nordestinos.

Os currais e os vaqueiros responsáveis pelos rebanhos ganharam o Nordeste através das margens dos
rios, onde a água e o pasto eram abundantes. A estrutura da fazenda de gado era formada pela família
do vaqueiro e seus ajudantes. A comida era farta e melhor que em todos os outros núcleos rurais do País.

As relações entre os patrões e vaqueiros era menos violenta e desigual que a do senhor de engenho,
mas a hierarquia era rígida e clara. Segundo Ribeiro: “O contraste dessa condição com a vida dos
engenhos açucareiros devia fazer a criação de gado mais atrativa para os brancos pobres e para os
mestiços dos núcleos litorâneos” (RIBEIRO, 1995, p. 342).

Essas características formaram o fenótipo do sertanejo, que não apenas se identifica, mas é
majoritariamente branco. Nessa região, a miscigenação foi menor porque os vaqueiros não tinham boas
relações com os índios, mas os traços indígenas dessa população são o resultado do rapto de mulheres
das tribos que constantemente entravam em conflito com os vaqueiros.

Após a ocupação de quase todo o sertão, três séculos depois da chegada dos portugueses, cidades
foram estabelecidas em encruzilhadas comerciais e feiras de gado. A relação do proprietário de terra
com o vaqueiro se modificou quando este passou a ser assalariado, mesmo que sua condição material
não tenha se alterado muito.

O resto da população praticava o extrativismo e a produção de artesanato. Com o aumento


populacional, as regiões usadas para o gado se transformaram em “criatórios” de gente, formando um
exército de mão de obra barata para as demais zonas do País, inclusive para a Amazônia.

O sertão tornou‑se um reservatório de trabalhadores organizados para a emigração para outras


regiões. A renda era enviada de volta pelos trabalhadores para sustentar a família que ficou para trás,
lutando para sobreviver às secas anuais.

38
FORMAÇÃO SÓCIO-HISTÓRICA DO BRASIL

O resultado dessa mistura entre pobreza e abundância populacional foi uma relação de grande
deferência com o patrão, regida pela lealdade pessoal e política. A disputa por manter boa reputação
junto ao patrão criou o comportamento dos sertanejos e de suas famílias, já que viviam ilhados nas
fazendas do patronato. Entendiam que sem a proteção de um patrão, seriam jogados ao arbítrio do
Estado, que era ausente; um medo semelhante ao medo do servo feudal durante a Idade Média.

O sertanejo foi obrigado a buscar novas fronteiras de ocupação, mas permaneceram errantes.
Na atualidade, o sertanejo percebeu um novo cenário político quando o governo federal ajudou a
desmontar as oligarquias, polarizando os partidos tradicionais e os reformistas. A consciência social
começou a emergir no sertanejo, que percebeu que pode se indignar. Outra figura social importante
nesse cenário são os sertanejos que retornaram das cidades e de outras regiões, trazendo uma nova
perspectiva juntamente com uma nova cultura (RIBEIRO, 1995).

4.4 O Brasil caipira

No Sul do Brasil, seguindo a costa nas regiões abaixo de São Vicente, a população estava abandonada
por Portugal. Sem conexão marítima ou uma economia importante, essa população vivia em sítios e
arraiais de casebres pobres. A miséria da população da região e sua proximidade com os índios misturavam
hábitos tribais com europeus, por exemplo, usar roupa, chinelas e uma culinária mais refinada. Contudo,
falavam a língua geral, a variação do tupi escrita pelos jesuítas.

A miséria na qual o paulista se encontrava tornava‑o um aventureiro em potencial. Ele também


sofreu um processo deculturativo, pois perdeu a vida comunitária, a disciplina patriarcal e até mesmo
o costume de comer derivados de trigo. Por outro lado, os costumes indígenas, como a autonomia
individual ou aldeia igualitária, também foram perdidos (RIBEIRO, 1995).

Assim, os núcleos paulistas se vincularam à economia mercantil externa visando enriquecer, já que
não se resignavam a viver como índios. Suas capacidades de organização militar fizeram com que a
população de mamelucos fossem melhores que os próprios índios, capazes de capturar e saquear as
aldeias. Os paulistas tornaram‑se a referência nacional na captura de índios, chegando a vender cerca
de 300 mil índios aos senhores de engenho do Nordeste. Por estarem à margem do processo econômico
da colônia, os paulistas foram homens de guerra, capazes de vencer a resistência indígena e reprimir as
rebeliões escravas.

Os paulistas formaram uma sociedade mais igualitária, nivelada por baixo. Sem a riqueza dos
senhores de engenho, os senhores paulistas e seus escravos eram muito parecidos. A relação entre eles
era diferente daquela que existia no Nordeste.

São Paulo obtinha êxito econômico com a venda de índios, que, embora fosse menor do que a dos
escravos africanos, era fonte importante de reposição de mão de obra escrava sempre quando o tráfico
africano estava em baixa.

O ouro paulista restringiu‑se ao encontrado no solo. Não havia minas como em Minas Gerais.
Entretanto, esse abundante ouro de aluvião atraiu multidões que formaram cidades nos terrenos que
39
Unidade I

antes estavam repletos de ouro. Os documentos da época relatam o surgimento de conflitos sociais
nessas regiões. As pessoas chegavam a morrer de fome, mesmo com ouro em mãos, tamanha era a
desorganização social (RIBEIRO, 1995).

A Coroa tentou diminuir os conflitos sociais promovendo a ocupação da terra com plantações e
gado. Tentou também oficializar o ouro, criando impostos e taxas para estruturar alguma forma de
controle. Mas o resultado foi que o contrabando continuou vitorioso, e a sonegação de impostos nunca
foi controlada.

Esse processo começou com a intervenção da Coroa nas terras paulistas e a distribuição de terras
para os portugueses e empresários paulistas. Os garimpeiros se fixavam na beira dos rios ou seguiam
buscando novas fontes de ouro. Compravam mantimentos e construíam armazéns com ouro em pó,
que era a moeda regional. Essas instalações logo alcançavam o tamanho de vilas, que também eram
povoadas pelos escravos das minas. Apesar de vigiados, eles viviam em condições melhores que os
escravos do engenho. Quando produziam mais que a média, podiam comprar sua alforria. A partir daí,
os negros libertos utilizavam suas variadas habilidades para se tornarem artífices (RIBEIRO, 1995).

O ouro transformou Minas Gerais. Em meio século, o estado tornou‑se a mais populosa, rica e
urbanizada região da colônia. O desenvolvimento criou uma estrutura religiosa e pública mantida por
uma classe de autoridades públicas e eclesiásticas, que estabeleceram uma vida social importante.

A riqueza e urbanidade constituiram também uma certa “classe média”, composta por mulatos,
negros e brancos. Apesar da segregação racial, a música e a culinária se desenvolveram como
cultura da região.

Com o esgotamento do ouro, também a região entrou em decadência. Mesmo sem a riqueza do
ouro, o que sobrou dessa pobreza repentina foi a urbanidade. As cidades formaram uma riqueza mais
sólida que o ouro, pois elas mantiveram a tradição, os costumes e a cultura desenvolvidos na região.

Na visão de Ribeiro (1995), a dissipação populacional e a fuga do ouro brasileiro transformaram a


paisagem rural, já que os empobrecidos buscaram satisfazer suas necessidades da maneira que podiam.
A sedentarização finalmente diminuiu o fluxo das pessoas, prendendo‑as à terra e criando hábitos.
Nascia o Brasil caipira e sua cultura.

Com a urbanização, os caipiras formam uma grande classe pobre; o mercado paulista era
essencialmente de gado, cuja necessidade de trabalhadores é muito pequena. Os que conseguiam
trabalho viravam vaqueiros. Para os outros, sobrava como escolha a proletarização nos centros urbanos
ou a vida dos invasores de terra. Essa condição precária do caipira extinguiu seus modos de vida e
poucas tradições seguiram vivas.

Foi com surgimento do café no século XIX que essa disparidade social se tornou parecida com a dos
senhores de engenho. Os paulistas adotaram a casa‑grande, as senzalas, com serviçais para as tarefas
domésticas e outros com a função de educar os filhos dos senhores.

40
FORMAÇÃO SÓCIO-HISTÓRICA DO BRASIL

A abolição da escravidão representou uma melhora do sistema econômico: o escravo passou a ser
dono de si mesmo e o barão de café não precisava mais investir nos escravos, apenas oferecer um
salário. A liberdade que o escravo adquiriu estava limitada pela sua condição social. As relações de
trabalho impediram a distribuição da renda e da terra (RIBEIRO, 1995).

A região viveu o paradoxo de sofrer os efeitos do capitalismo industrial e urbano, enquanto o poder
ainda era exercido de modo a suprir a riqueza decadente dos cafezais. Essas duas formas aparentemente
antagônicas sustentam a elite local e seu conservadorismo, que buscou a manutenção da desigualdade
de classes, tanto no meio urbano, com a maior parte da população marginalizada, como nas plantações.

4.5 O Brasil gaúcho

O Sul foi muito afetado pelo povoamento do Sudeste paulista, que engoliu o território que antes
era espanhol e o incorporou ao Brasil. A cultura espanhola não deixou de influenciar a região, e sua
composição étnica e econômica não permite simplificá‑la etnograficamente.

Naquela região viviam lavradores de origem açoriana, os chamados gaúchos, e os gringos brasileiros,
descendentes de imigrantes europeus. Ribeiro explica o resultado dessa pluralidade:

A coexistência e a interação desses três complexos opera ativamente no sentido


de homogeneizá‑los, difundindo traços e costumes de um ao outro. A distância
que medeia entre os respectivos patrimônios culturais e, sobretudo, entre seus
sistemas de produção agrícola ‑ a lavoura de modelo arcaico dos matutos,
o pastoreio gaúcho e a pequena propriedade explorada intensivamente dos
colonos gringos ‑ funciona, porém, como fixadora de suas diferenças. Mesmo
em face dos efeitos homogeneizadores da modernização decorrentes da
industrialização e da urbanização, cada um desses complexos tende a reagir
de modo próprio, integrando‑se com ritmos e modos diferenciados nas novas
formas de produção e de vida, dando lugar a estilos distintos de participação
na comunidade nacional (RIBEIRO, 1995, p. 408).

O Sul começou a ser construído pelos jesuítas espanhóis. As missões destribalizaram os índios, que
logo passaram a viver nelas. Isso garantiu a subsistência fundamental e as relações comerciais que
supriam tudo o que os índios e a região não produziam.

Desde o começo da colonização, os índios sofreram o processo de deculturação e uniformização


cultural. O trabalho indígena e suas aglomerações incomodavam os mamelucos paulistas, que viam
naqueles índios uma riqueza potencial. Muitas missões foram atacadas para a captura e venda de
escravos indígenas pelos paulistas.

Com a expulsão dos jesuítas das colônias, as missões e suas terras foram assumidas por fazendeiros
que se instalaram na região. O desenvolvimento do Sul continuou graças às intenções da Coroa em
dominar o território até o Rio da Prata. Mas esse projeto ficou complicado com a falta de perspectiva
econômica e pela influência espanhola na região.
41
Unidade I

Mesmo estando distante das principais produções de riquezas da colônia, o Sul dependia delas
para estabelecer seus vínculos comerciais, garantindo a exportação da produção e alguma renda. No
século XVII, o projeto português esteve seriamente ameaçado por falta de viabilidade econômica,
já que a exploração do gado selvagem para exportação de couro e de sebo, principalmente sob
controle dos colonos das áreas de dominação espanhola, atraía os núcleos sulinos para sua órbita
de influência. A ameaça foi, contudo, superada por uma nova viabilização econômica, que surgiu
no século XVIII com a constituição do novo e rico mercado da região mineira para gado em pé,
bois de carro, cavalos de montaria e muares de tração e carga. A integração do Sul ocorreu quando
finalmente suas relações econômicas com a colônia se tornaram superiores às relações com os
vizinhos hispânicos.

Entretanto, a Coroa precisou entrar em conflitos diversas vezes para garantir seu domínio. Foram
esses conflitos que estabeleceram o Sul como a referência militar do País.

O outro motivo apontado por Ribeiro para explicar o abrasileiramento dessa região é a imigração
europeia. A confluência desses fatores garantiu a brasilidade da região e sua anexação ao território. Nas
palavras do autor:

Somam‑se, assim, três fatores na formação da matriz gaúcha.


Primeiro, a existência do rebanho de ninguém sobre terra de ninguém;
segundo, a especialização mercantil na sua exploração; terceiro, o
grau de europeização de uma parcela mestiça desse contingente que
a fazia carente de artigos de importação e capaz de estabelecer um
sistema de intercâmbio para trocar couros por manufaturas (RIBEIRO,
1995, p. 414).

O gado foi a principal atividade econômica da região. Era exportado para Minas Gerais e para
o Nordeste, acompanhando o crescimento e a decadência econômica dessas regiões. No início, o
couro era mais rentável, mas a carne foi ganhando importância. A viabilização econômica do gado
e as sesmarias concedidas aos gaúchos pela Coroa estabilizaram o gado na região, garantindo o
domínio português.

Famílias portuguesas das Antilhas foram trazidas para povoar a costa. Os paulistas faziam o transporte
do gado até Minas Gerais. Também adentravam nas regiões espanholas em busca de participação nesse
mercado. No outro lado da fronteira, os espanhóis viram o gado como oportunidade de explorarem a
região, chegando a exportar a carne da mesma maneira que os portugueses.

Os conflitos fronteiriços eram intensos, pois a indefinição das fronteiras e a necessidade de


ampliar a atividade econômica colocavam em choque os brasileiros e os hispânicos. Essas disputas
locais econômicas foram pacificadas somente com a delimitação das fronteiras. Com isso, a atividade
agropastoril se valorizou e perdeu seu caráter aventureiro, tornando‑se uma indústria.

Essa nova forma de cuidar do gado e realizar o trabalho requeria habilidades e uma disciplina à qual
o gaúcho não estava habituado. Então, os negros foram trazidos como mão de obra escrava. O antigo
42
FORMAÇÃO SÓCIO-HISTÓRICA DO BRASIL

gaúcho, campeiro do gado, perdeu sua força em relação ao estancieiro, que se tornou senhor de sua
terra. Seus peões ganhavam mais que os campeiros, criando uma distância social.

As lutas pela unificação do Brasil apontam as diferenças étnicas entre os gaúchos que habitavam o
Sul e os que viviam na costa, que eram de origem portuguesa e mantinham‑se ao lado do Império. Os
gaúchos que habitavam as terras das campanhas continentais queriam uma República para garantir
seus interesses.

O resultado desses processos configurou uma nova paisagem no Sul. O que antes era terra sem
dono, agora só podia ser cavalgada pela margem das propriedades rurais, que dividiram o campo e
implantaram o modelo de patrão e peão.

A indústria pecuarista começou a implantar tecnologias para cuidar do gado e criar raças,
especializando a produção e enriquecendo no processo. Interessante é que mesmo com esse
desenvolvimento e a disparidade entre o patronato e os peões, as tradições sulistas permanecem vivas.
Em rodas de chimarrão frequentadas pelo patrão, a figura do antigo gaúcho era tratada cordialmente
pelo estancieiro. A cultura gaúcha ainda existe, apesar da miséria contida nela.

O Sul se urbanizou com um processo semelhante ao nordestino. As propriedades rurais ofereciam


condições de vida miseráveis, mas tornaram‑se extremamente populosas, uma vez que eram a única
alternativa de subsistência da maioria do povo. As gerações mais novas não se contentavam com isso
e partiam para as cidades em busca de oportunidades. As aglomerações urbanas se multiplicaram, e a
região se urbanizou em decorrência de sua miséria e desigualdade (RIBEIRO, 1995).

Resumo

Em 1933, Gilberto Freyre publicou Casa‑Grande & Senzala, o primeiro


livro a explicar, através de pesquisa, a formação sócio‑histórica do Brasil.
Sua premissa sugere que as plantações de cana em Pernambuco promoviam
o cruzamento cultural e social entre índios, africanos e portugueses.

Como Portugal recebeu povos de todos os lugares do mundo por sua


posição estratégica no comércio marítimo, na Península Ibérica, as raças já
se misturavam há séculos. No Brasil, os homens vinham sem família e, em
um primeiro momento, se reproduziram com as índias; depois, com as negras
escravas. O motivo era povoar o território. Em Pernambuco e no Recôncavo
baiano, a colonização se deu com plantações de cana‑de‑açúcar e suas
casas‑grandes. Em um processo desigual, brancos e negros se misturavam
no interior da casa‑grande e alteravam as relações sociais e culturais,
criando a base da sociedade brasileira.

O clima tropical impediu uma cultura agrícola nos moldes europeus.


O português mudou, então, seus hábitos alimentares. A terra foi usada
43
Unidade I

para o cultivo da cana em detrimento da pecuária e dos alimentos. Ao


mesmo tempo, a Igreja, através dos padres jesuítas, tentou implantar
uma sociedade católica. Para catequizar os índios, os jesuítas os levavam
para escolas‑fazendas, as chamadas missões. Enquanto isso, o senhor de
engenho tentava escravizá‑los. A união do português com a índia gerou
os mamelucos, que se tornaram bandeirantes e, junto com os índios,
expandiram a fronteira colonial. Como as mulheres brancas morriam
cedo, os senhores de engenho casavam‑se muitas vezes. As heranças eram
disputadas por filhos legítimos e parentes próximos. Os filhos bastardos,
tanto os gerados na casa‑grande, quanto os nascidos na senzala, contavam
com a tolerância do senhor. Os filhos com as escravas eram libertados
após sua morte. Assim, os filhos bastardos e também os escravos mais
próximos do senhor conseguiam adotar o sobrenome dos brancos. O mais
interessante é que muitos nomes ilustres de senhores brancos vinham dos
apelidos indígenas e africanos das propriedades rurais; assim, a terra ajudou
a abrasileirar os nomes dos proprietários portugueses.

A língua portuguesa também sofreu modificações decorrentes da


mistura das falas da casa‑grande habitada pelas mulheres negras em suas
funções de mães negras e mucamas. Esse nova língua foi adotada pelos
filhos e pelas mulheres brancas do senhor de engenho.

Darcy Ribeiro faz um retrato antropológico de seus Brasis e pergunta‑se


sobre o futuro. Sem oferecer uma resposta concreta, mas apontando
tendências manifestas nos relatos ao longo do livro, ele oferece uma
imagem para o Brasil: a nova Roma.

Na verdade das coisas, o que somos é a nova Roma.


Uma Roma tardia e tropical. O Brasil é já a maior das
nações neolatinas, pela magnitude populacional, e
começa a sê‑lo também por sua criatividade artística e
cultural (RIBEIRO, 1995, p. 454).

Para Ribeiro (1995), o destino será uma unificação do Brasil em um


grande bloco latino‑americano. Temos um inimigo em comum, os países do
Primeiro Mundo que ainda se comportam como metrópoles. Nossa tarefa,
enquanto brasileiros, é criar um gênero humano novo dentro dessa Roma.

Ele entende que precisamos dominar a tecnologia do futuro para sermos


a civilização do futuro, plural e orgulhosa de si. Alegre, pois sofrida. Melhor
que as outras, pois as incorpora, mostrando‑se gentil com todas, em suas
humanidades. Uma terra capaz de abrigar a todos, já que é o pedaço de
terra mais belo e rico de todos.

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FORMAÇÃO SÓCIO-HISTÓRICA DO BRASIL

Exercícios

Questão 1. A obra Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, abre no Brasil a discussão sobre a
importância da mistura étnica e cultural como fator positivo na formação da identidade nacional. Leia
o trecho abaixo que trata desse assunto:

O ensaio de Freyre foi aclamado como uma ruptura nos estudos históricos e sociais tanto pelo tema
– a formação de uma sociedade agrária, escravocrata e híbrida – quanto pelas ideias, como a valorização
do negro e da cultura afro‑brasileira, mas sobretudo pela linguagem, fortemente oral e coloquial, avessa
a qualquer ranço acadêmico ou jargão especializado.

Freyre foi endeusado nas décadas de 1930 e 1940 como o descobridor da identidade do país e criador
de uma nova autoimagem do brasileiro, que passava de negativa a positiva, de disfórica a eufórica. [...]

Antes tomado como inferno da depravação sexual e da degeneração étnica, o Brasil


se converteu pelas mãos de Gilberto Freyre em paraíso tropical e mestiço, em que se daria
a confraternização de raças e culturas oriundas da Europa, África e América. A ideia de uma
história em que os conflitos se harmonizam passou a fazer parte do senso comum do brasileiro e
da cultura política do país, tendo sido veiculada pelos sucessivos governos a partir dos anos 40.
Incorporado por grande parte da população o mito da “democracia racial” se tornou um obstáculo
para o enfrentamento das questões étnicas e sociais e uma barreira para as minorias, como
os negros, os índios, as mulheres e os homossexuais, cujos movimentos lutam por identidades
diferenciadas e reivindicações específicas.

Fonte: VENTURA, R. Casa‑Grande & Senzala. São Paulo: Publifolha, 2000. p. 10‑11.

Assinale a alternativa que corresponde às ideias nele contidas:

A) A visão da miscigenação como valor positivo na construção da nacionalidade brasileira proposta


por Freyre teve como decorrência o enaltecimento da mistura étnica e a ilusão de que viveríamos
em uma “democracia racial” em que predominaria a harmonia e não as relações de poder dos
brancos sobre indígenas e negros.

B) O sucesso de público conhecido por Casa grande & Senzala já nas décadas seguintes de sua
publicação e a celebração de Gilberto Freyre se deu apesar da linguagem hermética utilizada.

C) A confraternização entre as raças que marca a convivência racial no Brasil é questão celebrada por
Gilberto Freyre nessa sua obra e desde então não houve mais polêmicas sobre esse assunto.

D) O Brasil tropical e mestiço, com confraternização das raças e culturas, tal como apresentado por
Freyre, não se relaciona ao passado colonial surgindo apenas nas décadas de 1930 e 1940.

45
Unidade I

E) A ruptura nos estudos históricos e sociais produzida pelo lançamento de Casa Grande & Senzala
foi conduzida exclusivamente pela temática escolhida.

Resposta correta: alternativa A.

Análise das alternativas

A) Alternativa correta.

Justificativa: a obra de Gilberto Freyre conferiu valor positivo à miscigenação racial, o que
anteriormente era fortemente condenado pelo chamado “racismo científico”. A essa ideia foi adicionada
a concepção de que vivíamos em uma verdadeira democracia racial mascarando a desigualdade social,
as diferentes oportunidades oferecidas e os preconceitos a que ainda estão sujeitos negros e índios em
nossa sociedade.

B) Alternativa incorreta.

Justificativa: a linguagem coloquial e os temas abordados pouco usuais nos trabalhos acadêmicos
de então contribuíram para o sucesso imediato de público alcançado pelo livro.

C) Alternativa incorreta.

Justificativa: a questão da eliminação do preconceito racial e das desigualdades econômicas e sociais


entre brancos, negros e indígenas ainda ocupam os debates políticos e acadêmicos estando na pauta de
reivindicações dos movimentos sociais.

D) Alternativa incorreta.

Justificativa: a origem das misturas raciais e étnicas no período colonial e até mesmo nas características
do colonizador português é ressaltada por Freyre em sua obra.

E) Alternativa incorreta.

Justificativa: além da temática, a linguagem pouco acadêmica, o olhar antropológico sobre a


cultura popular e a utilização de fontes pouco usuais, tais como receitas, músicas e outros elementos do
cotidiano, inovaram os estudos históricos e sociais.

Questão 2. Leia os trechos a seguir:

Na colonização brasileira, as mulheres indígenas eram tidas como de sexo bom para fornicar, de
braço bom de trabalhar, de ventre fecundo para prenhar.

Fonte: RIBEIRO, D. O Povo Brasileiro: formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

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FORMAÇÃO SÓCIO-HISTÓRICA DO BRASIL

[...] a história social da casa‑grande é a história íntima de quase todo brasileiro: da sua vida doméstica,
conjugal, sob o patriarcalismo escravocrata e polígamo. [...] Nas casas‑grandes foi até hoje onde melhor
se exprimiu o caráter brasileiro: a nossa continuidade social.

Fonte: FREYRE, G. Casa‑grande & Senzala: formação da família brasileira


sob o regime da economia patriarcal. São Paulo: Global, 2006.

A figura abaixo ilustra a organização da família patriarcal brasileira:

Considerando os textos e a figura apresentados, avalie as afirmativas a seguir:

I – A violência contra a mulher ocorre nas diversas classes sociais, por isso, ela não é uma expressão
da questão social.

II – As raízes das relações sociais patriarcais e racistas são estruturantes históricas da violência
contra a mulher na formação social brasileira.

III – A violência contra a mulher ocorre comumente em âmbito doméstico, portanto, por ser uma
ocorrência de ordem privada, extrapola as competências de intervenção profissional do Serviço Social.

É correto o que se afirma em:

A) I, apenas.

B) II, apenas.

C) I e III, apenas.

D) II e III, apenas.

E) I, II e III.

Resolução desta questão na plataforma.


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