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Contemporâneos
Autora: Profa. Carmem Lia Nobre Lemos
Colaboradoras: Profa. Josefa Alexandrina da Silva
Profa. Angélica Carlini
Professora conteudista: Carmem Lia Nobre Lemos
Graduada em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), em 2002, e mestre em
Antropologia em 2005, pela mesma instituição.
É professora da Universidade Paulista (UNIP) desde 2008, onde atua com as disciplinas de Homem e Sociedade,
Ciências Sociais, Antropologia e Cultura Brasileira, nos cursos de Psicologia, Pedagogia, Administração e Nutrição,
além de ser professora e líder das disciplinas Relações Étnico-Raciais no Brasil, do Instituto de Ciências Humanas, e
Antropologia da Alimentação, do Instituto de Ciências da Saúde, no curso de Nutrição.
Sua área de pesquisa é a de Antropologia Urbana, com estudos em cultura popular nas artes, atividades esportivas,
lazer na sociedade contemporânea, tendo artigos publicados sobre o tema.
104 p. il.
© Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou
quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem
permissão escrita da Universidade Paulista.
Prof. Dr. João Carlos Di Genio
Reitor
Comissão editorial:
Dra. Angélica L. Carlini (UNIP)
Dra. Divane Alves da Silva (UNIP)
Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR)
Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT)
Dra. Valéria de Carvalho (UNIP)
Apoio:
Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD
Profa. Betisa Malaman – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos
Projeto gráfico:
Prof. Alexandre Ponzetto
Revisão:
Gustavo Guiral
Vitor Andrade
Sumário
Antropologia: Desafios Contemporâneos
APRESENTAÇÃO.......................................................................................................................................................7
INTRODUÇÃO............................................................................................................................................................8
Unidade I
1 ESTRUTURALISMO E CRÍTICAS AO ESTRUTURALISMO.........................................................................9
1.1 Estruturalismo de Lévi-Strauss...........................................................................................................9
1.1.1 O papel dos mitos.................................................................................................................................... 13
1.2 Críticas de Antony Giddens e Pierre Bourdieu.......................................................................... 15
2 ANTROPOLOGIA E INTERPRETAÇÃO.......................................................................................................... 20
2.1 Antropologia interpretativa de Clifford Geertz........................................................................ 21
2.2 Visões complementares à interpretação de Geertz................................................................. 25
3 INTERCONEXÕES ENTRE CULTURA E HISTÓRIA................................................................................... 30
3.1 História, etnografia e etnologia...................................................................................................... 30
3.1.1 Culturas arcaicas, primitivas e contemporâneas........................................................................ 33
3.2 Temporalidade e história.................................................................................................................... 36
4 DEBATES ATUAIS SOBRE MÉTODO............................................................................................................ 39
4.1 Ética, escrita etnográfica e a questão da autoria.................................................................... 39
4.1.1 Códigos de ética: questões técnicas................................................................................................ 39
4.1.2 Antropólogo como mediador............................................................................................................. 43
4.1.3 Questão da autoria................................................................................................................................. 44
4.2 A pesquisa em áreas urbanas e a produção do distanciamento........................................ 46
Unidade II
5 ARTE, CULTURA E PATRIMÔNIO.................................................................................................................. 54
5.1 Ampliando o conceito de patrimônio........................................................................................... 54
5.2 Estudos de casos diversos.................................................................................................................. 59
6 ANTROPOLOGIA E CONSUMO..................................................................................................................... 65
6.1 Quebrando a resistência para um estudo do consumo......................................................... 65
6.2 Antropologia do consumo................................................................................................................. 69
7 ANTROPOLOGIA, POLÍTICA E MOVIMENTOS SOCIAIS........................................................................ 74
7.1 Antropologia da política..................................................................................................................... 75
7.2 Novos movimentos culturais............................................................................................................ 80
8 INTERSECCIONALIDADES E MARCADORES SOCIAIS DA DIFERENÇA.......................................... 85
8.1 Interseccionalidade estrutural e sistemas de opressão......................................................... 85
8.2 Interseccionalidade construcionista e os marcadores sociais da diferença.................. 90
APRESENTAÇÃO
Esta disciplina trata do debate acerca das transformações e reconfigurações da antropologia como
disciplina acadêmica. A antropologia sempre trabalhou com a lógica do distanciamento: entre pesquisador
e pesquisado, entre civilizações e culturas, no tempo e no espaço, entre europeu e não europeu. Essas
distâncias foram se tornando mais próximas ao longo da História e da crescente internacionalização do
capitalismo. Interessa aqui o debate das relações entre as reconfigurações do campo da disciplina e as
políticas científicas em voga, a relação da pesquisa antropológica com a ação política e a formação de
antropólogos e as demandas do mundo do trabalho.
O objetivo da disciplina é habilitar profissionais para o exercício da docência que sejam capazes
de analisar e apreender a realidade social em seus múltiplos aspectos. Preparar profissionais éticos e
competentes, com sólida formação teórica e metodológica nas áreas que compõem o campo científico
das Ciências Sociais: Antropologia, Sociologia e Ciência Política. No mais, pretende contribuir com as
seguintes competências:
• refletir sobre a antropologia nos últimos 40 anos, privilegiando diferentes rumos das indagações
e recortes que constituem a disciplina;
• incitar reflexões críticas sobre a dimensão política da antropologia e seus desdobramentos na vida
social, como a formulação de políticas públicas e propostas para a sociedade;
• promover o conhecimento, o estudo e a capacidade crítica dos alunos a respeito dos temas e das
teorias antropológicas contemporâneas.
A antropologia contemporânea nos permite refletir sobre a nossa própria cultura e as diversidades
internas que nos circundam enquanto cidadão, profissionais e estudiosos. Compreender a nós mesmos
é saber ouvir e dar voz aos nossos semelhantes e assimilar as diversas lógicas, práticas e sentimentos
que coexistem, bem como das relações de poder entre os grupos que as vivenciam. Nesse sentido,
buscamos analisar e interpretar as falas e experiências de diferentes grupos culturais considerados
minorias que historicamente tiveram poucas chances de demonstrar os seus pontos de vistas e suas
formas de vida, sendo invisibilizado por uma suposta sociedade hegemônica e universal nas construções
de suas identidades.
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Esta disciplina dialoga com outras disciplinas de Antropologia já estudadas no decorrer do curso de
licenciatura em Sociologia, e busca relembrar e relacionar os estudos anteriores dando uma continuidade
à compreensão do que é Antropologia e seus métodos de estudos.
INTRODUÇÃO
Durante o texto, você entrará em contato com estudos de diversos antropólogos tanto brasileiros
como as principais referências internacionais sobre os temas trabalhados. No mais, o texto traz indicação
de onde encontrar material adicional para que você possa se aprofundar ainda mais nas temáticas.
O material de base para as reflexões foram selecionados para que você entre em contato com
reflexões e autores recentes que trouxeram e ainda trazem grandes contribuições para a ciência. Nesta
disciplina, analisaremos tanto a estrutura social como suas regras, normas e sistema de dominação
como interpretar os atos dos sujeitos em busca da construção de suas identidades e seus modos de
sobreviver dentro dessa estrutura social.
Adiante, abordaremos os diversos desafios que a disciplina vem enfrentando ao tentar compreender
a própria cultura, as formas de construção da nossa identidade, bem como as marcas das nossas
diversidades. Para tanto, investigaremos temáticas, como a de patrimônio cultural, consumo, movimentos
sociais e interseccionalidade, como características da nossa cultura contemporânea e como marcas de
nossa identidade.
Durante todo o livro, a presença de visões críticas e complementares servem para enriquecer a
multiplicidade de leituras e métodos que podemos utilizar para melhor concebermos nosso objeto de
estudo. Assim, você vai poder observar como os antropólogos estão atuando não só em pesquisas, mas
também, e ativamente, na construção e na transformação de nossa realidade.
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ANTROPOLOGIA: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
Unidade I
1 ESTRUTURALISMO E CRÍTICAS AO ESTRUTURALISMO
A antropologia estruturalista ganha força a partir dos anos 1970, quando a França já não tinha
mais suas colônias, no entanto, as sociedades primitivas demonstravam uma recusa pelo surgimento do
Estado. Ou seja, as sociedades sem Estado que receberam o contato com as sociedades colonizadoras
mantinham suas estruturas sociais sem a presença política de um Estado vinculado ao sistema capitalista.
São essas estruturas sociais os objetos de estudos dos estruturalistas.
Ao falar em estruturalismo não podemos deixar de citar Claude Lévi-Strauss, fundador do Laboratório
de Antropologia Social na Escola francesa. Herdeiro de Durkheim e Mauss, suas principais obras são As
estruturas elementares do parentesco, de 1949, Mythologiques (série de quatro volumes entre 1964-
1971) e Tristes Trópicos, de 1957, no mais, temos a compilação de diversos artigos em Antropologia
Estrutural, de 1958, e Antropologia Estrutural 2, de 1973.
Lévi-Strauss trabalha com a ideia estrutural de pares binários ou opostos para a compreensão das
relações sociais e culturais, organizações sociais e categorias do pensamento, como no primeiro volume
de Mythologiques, o livro O cru e o cozido (1964), no qual o cru representa as sociedades primitivas e o
cozido, as civilizadas. Fez ensaios também sobre a cidade e o campo, o homem e a mulher. As relações
sociais estudadas servirão de modelos para explicar a estrutura social. Ao estudar diversos mitos, o
antropólogo percebeu a existência dessa estrutura nas ideias e conceitos de uma cultura.
Como elemento fundamental das relações, temos a divisão homem/mulher, que são referências
tanto para a construção das referências de parentesco, bem como para a organização social do trabalho.
Cada cultura elabora suas regras para a identidade do masculino e do feminino, comportamentos e
atividades destinadas a cada gênero.
Isso significa que, para existir uma família, é necessário que um membro da família da mulher
conceda-a direta ou indiretamente ao seu futuro esposo. Normalmente, o pai ou o tio materno
representam essa função. Dessa forma, percebe-se que há vários laços sociais:
Muitos outros pesquisadores buscaram definições para as relações de parentesco, e essas definições
e relações são mais amplas e complexas do que se apresentam à primeira vista. Para Lévi-Strauss (2003),
a família se constitui a partir de três colunas: divisão sexual do trabalho, exogamia e forma legítima de
união entre homem e mulher. É a partir da definição de família de cada povo que podemos compreender
a proibição do incesto.
Observação
Incesto é a proibição de relação sexual entre determinadas categorias
de parentesco, como pais/filhos, tios/sobrinhos, avós/netos.
Essa relação binária dos sexos mostra também a oposição entre alteridade/identidade, entre o “nós”
e o “outro”. Aqueles que possuem referências em comum a nós e àqueles que são diferentes. A proibição
do incesto tem a ver com a restrição das relações entre os que têm identidades iguais, sejam elas
consanguíneas, sejam espirituais.
Por essa pequena citação, já podemos perceber a existência das estruturas sociais das quais se refere
à teoria estruturalista e parte da complexidade de compreender as relações de parentesco e casamento.
Vale lembrar que nas sociedades patrilineares os filhos pertencem à metade da aldeia, que é de seu
pai, e, por exogamia, entende-se o casamento com alguém de fora dessa metade. Lévi-Strauss traz três
formas de casamento para as sociedades indígenas:
No casamento patrilateral, o filho macho pode se casar com a prima patrilateral, filha da sua tia
paterna; mas não com a filha de seu tio paterno. Outra curiosidade seria o papel dos tios: o tio materno
da noiva tem uma função de “pai”, protegendo ela em caso de violência ou divórcio; já o tio paterno é o
responsável pela iniciação dos sobrinhos homens. Outro exemplo do papel de tio pode ser colhido entre
os Lambumbu (uma população da Oceania): por exemplo, a relação do sobrinho com seu tio materno
é de liberdade e obediência, mas o filho não deve obediência ao pai, além do quê, o tio ainda pode
contradizer as ordens paternas.
Dessas relações de parentesco, há exemplos dos mais diversos, porém podemos nomeá-los em
relações matrilineares ou patrilineares, nas quais os filhos pertencem à família da mãe ou do pai,
respectivamente. Pode haver num mesmo povo as duas formas, sendo patrilinear para as meninas e
matrilinear para os meninos, por exemplo. A relação entre irmãos também pode ser de proximidade ou
rivalidade, ou de proximidade entre irmãos de mesmo gênero e de rivalidade entre irmão de gêneros
diferentes. O mesmo pode-se observar na relação entre tios e sobrinhos, nas suas várias combinações:
tio materno com a sobrinha ou com o sobrinho, e tio paterno com a sobrinha ou sobrinho. Em alguns
povos, a relação com cunhados também pode ser observada.
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Unidade I
Para designar irmão do pai, insere-se FaBr; para indicar filho do irmão, BrSo e assim por diante.
A simbologia utilizada por Marconi e Pressotto (2001) ilustra o sexo masculino por um triângulo e o
feminino por um círculo; uma linha indica consanguinidade e duas linhas paralelas indica afinidade.
= = = =
FaSi FaBr
Fa Mo
= = = = =
FaBrSo FaBrDa Br Ego Si
No diagrama, podemos observar que os símbolos cujos pontos ocupados sejam o centro são os
pertencentes à família do indivíduo-referência, chamado Ego. Sendo assim, os parentes da família
materna (à direita no diagrama) não pertencem à sua família, assim como alguns parentes da linhagem
paterna que são filhos/filhas de tias e primas paternas. Apenas tios homens, primos homens paternos e
seus filhos são considerados da mesma família.
Tentar compreender essas estruturas como um antropólogo não é tarefa fácil, mas precisamos
ter em mente neste momento a diversidade cultural e uma visão relativista. A compreensão dessas
estruturas diversas é o que impulsiona a paixão antropológica. Muitas outras estruturas de parentesco,
de casamento e de incesto são possíveis e existentes. Magaret Mead e Mary Douglas também fizeram
suas análises de parentescos que muito contribuíram para o estruturalismo. O que é possível concluir
desse enorme acervo de análises que a ideia de dualismo ou opostos é muito mais complexa do que
simples. Seus múltiplos desdobramentos permitem diversas relações entre cada elemento apresentado.
Saiba mais
Para ser considerado uma estrutura, o modelo deve satisfazer a quatro condições, segundo Lévi-
Strauss (2003, p. 316):
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ANTROPOLOGIA: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
• O funcionamento do modelo construído deve explicar todos os fatos observados. Assim, é possível
explicar como pensam e agem as pessoas da cultura estudada.
A utilidade de toda essa estruturação da organização social de um povo não é apenas uma curiosidade
antropológica e um exercício de dedução e compreensão das relações humanas, mas é a partir da análise
dessa estrutura que se entende a diversidade cultural, as regras sociais, as atuações políticas e religiosas,
as funções trabalhistas etc.
Para compreender as culturas de povos indígenas brasileiros, Lévi-Strauss estudou não apenas
as estruturas de parentesco, mas também os mitos e a linguagem. A nomenclatura que designa
os parentes permite o reconhecimento de quais são os casamentos permitidos e os proibidos. Essa
nomenclatura aparece tanto no relato de informantes como em mitos. Ao estudar os mitos, temos
que nos ater à significação do mito, é ali que se encontrará a organização lógica e o sentido dos
elementos fundantes da estrutura social. Qualquer modificação nos elementos de um mito vai
interferir no sistema como um todo. Ou seja, para assimilarmos o sistema cultural, teremos de
perceber as partes integrantes desse sistema e como elas se relacionam entre si.
Nas palavras de Lévi-Strauss: “o mito faz parte integrante da língua; é pela palavra que ele
se nos dá a conhecer, ele provém do discurso” (LÉVI-STRAUSS, 2003, p. 240). O mito está na
linguagem e além dela, possui uma língua e palavras que pertencem a um tempo passado, ou
seja, possui um sistema temporal e, ao mesmo tempo forma uma estrutura permanente que
se relaciona ao passado, ao presente e ao futuro que pode ser estudado e depreendido. Assim,
os elementos que provêm de um mito são grandes unidades constitutivas, portanto estruturas
possíveis de serem avaliadas e absorvidas.
Nos casos de mesma palavra para designar os astros, cada um deles pode ser classificado de
acordo com uma qualidade de iluminação ou calor que os distinguirá, ou então o mito acaba
mostrando a qual gênero pertence cada um, pois o Sol nasce do homem e a Lua nasce da mulher,
ou, ainda, a Lua tem qualidades masculinas e o Sol, femininas. É isso mesmo: não há consenso
quanto ao gênero de Lua e Sol.
Em outros mitos, eles podem ser parentes (irmãos, por exemplo). Isso ajuda a transmitir o que é
incestuoso em cada cultura, podendo ainda tratar-se de incesto homossexual ou heterossexual. Em
algumas tribos, ao invés dos astros terem gêneros diferentes, é a divergência de idade que se torna
importante, sendo o Sol mais velho que a Lua. Ou, ainda, trabalha-se a dualidade sagrado/profano.
Sendo assim, existe a oposição física de gêneros ou a oposição moral, mas sempre há fatos e casos
discordantes. Chega-se, portanto, à seguinte conclusão:
Tanto mais se estuda, mais variantes surgem, mas pode-se concluir “que os mitos não tratam o sexo
dos astros como um problema isolado” (LÉVI-STRAUSS, 1993, p. 228). O pensamento mítico mantém em
si estruturas do pensamento, da linguagem e da organização social de seu povo.
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ANTROPOLOGIA: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
Portanto, é nas relações entre termos, conceitos e definições que conseguiremos absorver, entender
e compreender a essência do nosso objeto de estudo.
A sociologia de Giddens e Bourdieu tenta superar o estruturalismo dual e trazer uma nova
metodologia de investigação baseada principalmente na divisão entre agência e estrutura. O
conceito de “estrutura”, tomado de Lévi-Strauss, é um modelo abstrato de dualidade nas relações
humanas, mas não no tempo e espaço; dessa forma, as estruturas são “virtuais”, pois existem fora
do tempo e espaço, são “sem sujeito” e reproduzidas involuntariamente em práticas cotidianas.
Giddens incorpora à discussão o fato de a estrutura não ser limitadora, mas um ato de ação e
reprodução social. Há, nas estruturas, as regras, mas também a possibilidade de ação, ou seja, as
estruturas são regras implícitas ou explícitas em formas de leis ou práticas socialmente conhecidas
que nos capacitam e nos dão competência para nos comportarmos diante das situações sociais
encontradas. Junto ao conceito de estrutura, temos de pensar o conceito de agente, que seria a
consciência do ator social. Aqui, a contribuição de Giddens:
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Unidade I
Portanto, as regras e as estruturas sociais existem, mas existe também o sujeito consciente que
escolhe ou não seguir determinadas regras. São as escolhas desses agentes, sejam elas conscientes,
sejam inconscientes, que trarão à realidade presente novidades e mudanças na sociedade e na sua
organização social. As ações sociais estão imersas nas estruturas coletivas, as quais pertencem, no
entanto, ao indivíduo dotado de capacidade e motivações para seguir as regras ou reconstruí-las.
Neste ponto, nota-se a grande influência weberiana na leitura de Giddens, contraposta à herança
durkheimiana de Lévi-Strauss, para que se compreendam as diferentes leituras aqui apresentadas.
Observação
Giddens traz à tona a discussão sobre a participação dos indivíduos na construção da sociedade: os
indivíduos, grupos e instituições fazem parte dessa estrutura, portanto não apenas a legitimam, como
a constroem e a modificam. Ou seja, a dicotomia pode ser vista pelos conceitos agência/estrutura ou
indivíduo/sociedade.
Gabriel Moura Peters, em sua dissertação de mestrado (2006) intitulada Percursos na teoria das
práticas sociais: Anthony Giddens e Pierre Bourdieu, elucida bem essa conduta individual:
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ANTROPOLOGIA: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
Saiba mais
Para conhecer melhor as teorias de Giddens, leia seu livro a seguir:
GIDDENS, A. Estrutura de classes das sociedades avançadas. Rio de
Janeiro: Zahar, 1975.
O estudo das estruturas sociais mostra quais são as regras, como funcionam, qual a ordem social
existente a qual os indivíduos estão submetidos, o universo de comportamento mais provável, mas não
significa que não haja comportamentos desviantes, como o próprio Lévi-Strauss elucida durante seus
estudos. Aqui, vale a máxima: “para todas as regras, existe uma exceção”. Então, não devemos tomar a
ideia de estrutura social como algo certo, fixo, imutável e absoluto.
Por isso, é importante incluir a participação do agente, o indivíduo que atua nessa sociedade. Ele
é dotado de motivações, vontades, interesses diversos, que podem levá-lo a romper com a ordem
social vigente. A noção de estrutura sem os agentes passa a sensação de que tais sociedades são
harmoniosas, sem conflitos, cooperativas e sem disputa de poder. Contudo os indivíduos, consciente
ou inconscientemente, acabam por tomar decisões que não necessariamente respeitam a ordem
social, basta lembrar das motivações weberianas (racional, tradicional, emocional) ou ainda a noção
de habitus de Bourdieu, aquele “impulso inconsciente internalizado através da experiência” (PETERS,
2006, p. 38-9).
Os indivíduos, então, têm participação ativa na construção da sociedade, eles assumem papéis
sociais, possuem uma identidade e uma posição social que lhes dá permissão para atuar na estrutura. É
esse papel social que insere o indivíduo na estrutura.
Por exemplo, o tio paterno em algumas sociedades patrilineares. Ele tem a função de protetor
da noiva, isso lhe permite intervir e orientar a vida da sobrinha. A forma como ele vai ou não
realizar essa atribuição mostrará a diversidade dentro da estrutura social. Um tio que não assume
seu papel, deixa a sobrinha à mercê da sociedade. Ou então, entre as mulheres de algumas etnias
indígenas, cabe-lhes, ao darem à luz, observar a criança para saber se deve ou não amamentá‑la;
caso essa mulher escolha alimentar uma criança com desenvolvimento incompleto, o que
acarretará deficiência e dificuldade de adaptação à vida social, essa mãe rompe com a regra
social e poderá ser excluída ou marginalizada em sua sociedade. Esses são exemplos de como os
indivíduos são também agentes dentro das estruturas sociais, e como as suas escolhas podem
interferir na estrutura preestabelecida.
17
Unidade I
Dessa forma, cada indivíduo tem referências externas e internas para desempenhar seu papel
social, e estas norteiam as várias possibilidades de ação dentro de cada sociedade. As referências
internas foram transmitidas e aprendidas em um universo simbólico de regras da estrutura social
no qual o indivíduo está inserido. As externas são as coerções das regras sociais explícita ou
implicitamente conhecidas. Isso não significa que o indivíduo, ao agir motivado por parâmetros
internos ou externos, tenha consciência das consequências de sua ação, mas que um conjunto
de ações desviantes da regra tradicional pode ocasionar uma transformação da estrutura social
como um todo (PETERS, 2006).
As críticas, todavia, evidenciam a ausência de uma visão sócio-histórica das estruturas sociais e o
papel dos agentes na construção e transformação de tais estruturas. Mais adiante, refletiremos melhor
sobre esse referencial histórico nas análises antropológicas.
Pierre Bourdieu, ao fazer suas críticas ao estruturalismo straussiano, argumenta que, conforme o
estruturalista, os indivíduos seriam vistos como “marionetes” dentro da estrutura social, ou seja, seriam
atores totalmente controlados externamente. Bourdieu analisa, ao contrário, como se fosse um jogo,
no qual existem regras, mas cada jogador tem variáveis para fazer suas ações e escolhas. Em entrevista,
Bourdieu comenta como ele chegou à noção de “agentes sociais”:
Saiba mais
18
ANTROPOLOGIA: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
Se as sociedades fossem tão estruturadas e sem a ação de seus atores, nós apenas representaríamos
constantemente o papel que nos teria sido destinado, sem jamais questionar ou alterar nossos gestos.
Por isso, importa a reflexão sobre a ação e os agentes.
Com isso, importa compreendermos quais são esses “mecanismos”’ de reprodução ou transformação
das estruturas sociais. Ao estudar a sociedade argelina, na região de Cabila, Bourdieu pôde desenvolver
parte de sua teoria e compreender a existência de agentes sociais que são distribuídos de forma
desigual, com diferentes capitais simbólicos e que atuam em diversos campos de atividades. Esses
agentes internalizaram, ao longo da vida, diversos esquemas simbólicos, por meio da socialização, que
orientarão o modo de pensar, agir, sentir, interpretar etc. (PETERS, 2006).
Bourdieu quer trazer à baila a discussão sobre a relação entre objetivismo e subjetivismo.
O estruturalismo não leva em consideração os aspectos subjetivos dos agentes. Os indivíduos
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Unidade I
possuem competências práticas que são utilizadas cotidianamente de modo subjetivo nas suas
relações sociais. Para o autor, existe uma correspondência entre as estruturas mentais de percepção
do mundo e a estrutura objetiva da organização social. Por exemplo, na organização social de
Cabila, existe uma relação objetiva entre os agentes homem/mulher, são agentes diferentes, com
funções e papéis distintos, e essa divisão é legitimada subjetivamente pelo habitus masculino/
feminino. Isso pôde ser observado nos rituais, nas relações domésticas, nas atividades cotidianas
da sociedade.
Assim, o que podemos perceber com as críticas e conceitos bourdieunianos é a existência de agentes
que participam da construção e transformação da sociedade, e essa participação pode ser observada
nas práticas e nos habitus que mostram um conhecimento sem consciência das regras do jogo e sua
participação ativa na sociedade.
2 ANTROPOLOGIA E INTERPRETAÇÃO
A cultura é compreendida como uma linguagem que, a partir da noção de Kenneth Burke, é uma
ação, não apenas uma descrição. Assim, Geertz entende que a cultura é também uma ação, a interação
humana é feita por meio de linguagens, em um “drama social”. Assim, a antropologia deve “descrever
o que acontece no interior de cada interação ‘dramática’ em termos daquilo que ela significa para os
participantes naquele tempo e lugar particulares” (TERRI apud SCOTT, 2015). Para tanto, o antropólogo
deve viver um tempo na sociedade que pretende estudar para poder observar, registrar, descrever e
interpretar. As interpretações são provisórias e relativas, não absolutas.
20
ANTROPOLOGIA: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
Veremos também algumas leituras complementares à de Geertz com a contribuição dos antropólogos
brasileiros Roberto Cardoso de Oliveira e seu orientando Celso Azzan Junior. Ambos refletirão sobre a
diferença entre as antropologias straussiana e geertziana.
Uma das tarefas centrais da antropologia é a interpretação das culturas estudadas, e por interpretação
podemos entender que é necessário o binômio explicar e compreender, é isso que se entende por
antropologia pós-moderna ou antropologia interpretativa ou ainda antropologia hermenêutica.
O antropólogo, na maioria das vezes, vale-se da etnografia como método de pesquisa, a coleta de
dados por meio de relações, informantes, genealogia, diários de observações etc. Com essas informações,
ele faz uma descrição densa dos fatos e fenômenos observados. A ideia de descrição densa, ele toma
emprestado de Gilbert Ryle e explica:
Vamos considerar, diz ele, dois garotos piscando rapidamente o olho direito.
Num deles, esse é um tique involuntário; no outro, é uma piscadela conspiratória
a um amigo. Como movimentos, os dois são idênticos; observando os dois
sozinhos, como se fosse uma câmara, numa observação “fenomenalista”,
ninguém poderia dizer qual delas seria um tique nervoso ou uma piscadela ou,
na verdade, se ambas eram piscadelas ou tiques nervosos. No entanto, embora
não retratável, a diferença entre um tique nervoso e uma piscadela é grande,
como bem sabe aquele que teve a infelicidade de ver o primeiro tomado pela
segunda. O piscador está se comunicando e, de fato, comunicando de uma
forma precisa e especial: (1) deliberadamente, (2) a alguém em particular,
(3) transmitindo uma mensagem particular, (4) de acordo com um código
socialmente estabelecido e (5) sem o conhecimento dos demais companheiros.
Conforme salienta Ryle, o piscador executou duas ações — contrair a pálpebra
e piscar — enquanto o que tem um tique nervoso apenas executou uma —
contraiu a pálpebra. Contrair as pálpebras de propósito, quando existe um
código público no qual agir assim significa um sinal conspiratório, é piscar. É
tudo que há a respeito: uma partícula de comportamento, um sinal de cultura
e – voilá! – um gesto (GEERTZ, 2008, p. 11).
No exemplo anterior, podemos notar o que são a descrição densa e a análise de seus significados;
assim, o ato de piscar pode ser interpretado também em outras situações, desde que se explique e
compreenda o significado de cada piscadela. A observação e a transcrição dos fatos examinados já
contêm em si uma parte da explicação. Para narrar nossa verificação, temos de explicar os códigos
já conhecidos ou dar sentido àqueles que não são de conhecimento do nosso público leitor.
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Unidade I
Geertz (2008) entende a cultura como um documento público de atuação, não importa se é objetiva
ou subjetiva, entende que é ela um produto que transmite, comunica algo dotado de sentido. Produto
esse que pode ser um pensamento, um sentimento ou uma ação, um comportamento realizado por um
agente. Mas isso não significa que a cultura é apenas algo que está na mente e no coração das pessoas,
como diria Goodenough, nem que é a soma das ações observáveis é a cultura, ou ainda que cultura é
uma realidade “superorgânica autocontida”.
Explicar e compreender uma cultura não torna ninguém um nativo, saber o que é uma piscada e
saber fazê-la não é pertencer a uma cultura. A descrição densa do etnólogo não o torna uma pessoa
da cultura estudada, pois não basta apenas saber e conhecer as regras, comportamentos, significados.
Mesmo sabendo falar a língua e conhecendo regras de outra cultura nós não os assimilamos, não nos
situamos entre eles (GEERTZ, 2008).
Em italiano, existe uma expressão que explica bem essa situação, a pessoa de fora está ou se sente
spaesata, algo como: deslocada, fora de seu país ou território de origem, perdida, desorientada, sem
pontos de referência.
A pesquisa etnográfica tenta dar esses pontos de referência, apreender para poder se situar,
conversar com o outro, ampliando, portanto, o discurso humano. Os signos culturais, assim como
as palavras de um texto, são interpretáveis; a cultura é o contexto, é dentro dela que os signos
têm sentido e podem ser descritos (na analogia com o texto: a sociedade, o período histórico, as
relações sociais na qual vive o autor/locutor/emitente são o contexto de produção). Fora de seu
contexto, os signos nada significam, não sendo possível interpretar, encontrar sentido (ou seja,
um texto, sem seu contexto de produção, possui palavras que perdem a relação com o mundo, e
se torna incompreensível).
Para avaliarmos melhor a outra cultura, temos de olhar pelo ponto de vista do outro. A
antropologia é uma interpretação, não a compreensão exata do sistema simbólico de outros povos.
Como qualquer interpretação, ela está limitada a um texto e um contexto específico, às falas e
aos agentes envolvidos na observação. As descrições antropológicas são análises científicas dos
dados, das falas, das estruturas observadas, mas não são a cultura em si – uma coisa é o objeto de
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ANTROPOLOGIA: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
estudo, outra é o estudo. O que se lê é o resultado do estudo, é a interpretação feita dos dados, é
uma interpretação de segunda ou terceira mão, uma vez que a apreciação de primeira mão apenas
os agentes nativos podem fazer.
Portanto, o que se faz é uma “compreensão da compreensão”, como diria o próprio Geertz (1998)
anos mais tarde, em seu livro O saber local: ensaios em antropologia interpretativa. A nossa percepção
de nós mesmos e dos outros é influenciada pelo intercâmbio cultural entre o nosso modo de pensar e o
modo dos outros de interpretar (FREHSE, 1998).
É como se o antropólogo escrevesse uma ficção, um livro ou uma peça sobre o outro não no sentido
de falso ou imaginário, mas de algo construído, modelado. A antropologia existe nos livros, artigos,
conferências. A cultura existe na realidade vivida. Dessa forma, diria Geertz (2008), para ter acesso
ao sistema simbólico, é preciso inspecionar os acontecimentos, e não arrumar entidades abstratas em
padrões unificados; por isso, a necessidade da descrição densa. Esses sistemas têm coerência, porém
isso não significa que existam repetição e frequência dos mesmos fenômenos ou ações em situações
similares, ou seja, não necessariamente ocorrerá o mesmo fenômeno novamente no mesmo lugar,
mesmo que se for com as mesmas pessoas.
A descrição é interpretativa, pois interpreta o fluxo do discurso social, tentando salvar o que foi dito
em um discurso que seja possível pesquisar. Essa visão é microscópica.
Como na descrição da piscada conspiratória, ela explica o que é a piscada, busca assimilar o seu
significado social, avalia a comunicação entre os dois agentes envolvidos, cria um discurso que poderá
ser pesquisado e consultado novamente, mas é a observação daquele momento entre aqueles agentes
específicos. Dessa análise microscópica, é possível tirar conclusões gerais como fazem outros nas ciências
humanas (GEERTZ, 2008).
A observação participante do etnógrafo permitirá que ele tenha várias passagens, vários relatos,
diversas observações, que lhe permitirão compreender uma ampla paisagem cultural.
O autor alerta para que os exames não sejam considerados mais do que eles realmente nos podem
mostrar. Não é possível de um caso apreciado presumir que todos os outros membros da sociedade
agiriam de maneira semelhante, ou que em outros períodos as ações seriam as mesmas, ou mesmo que
todas as sociedades possuem comportamentos iguais. E lembra do caso do complexo de Édipo, que foi
tido como regra geral, mas que, conhecendo melhor outras culturas, como na ilha de Trobiand, pode
se dar o contrário, como o papel dos sexos estar invertido, em Tchambuli, ou nem haver agressividade
entre os índios Pueblo. O mesmo se pensarmos no kula, hoje ele já não existe mais na realidade, porém
pode ser lido e compreendido por meio dos livros. As avaliações antropológicas têm sua profundidade
e seus limites.
23
Unidade I
Nessa descrição densa, deve-se manter a subjetividade do pesquisador de lado, para se buscar
uma explanação sem julgamentos ou para não cair em uma visão etnocêntrica sobre a sociedade
estudada. Por exemplo, quando Geertz estudou a briga de galos em uma comunidade da Indonésia,
fez a descrição da importância e das relações sociais existentes sem se apegar à crueldade ou à
violência que existe na rinha, pois esses conceitos são da sociedade de fora. A briga de galos não
é vista como violenta ou cruel entre seus praticantes, porém como parte da vida masculina, do
comércio, da economia, das relações locais.
A teoria de Geertz tem uma abordagem semiótica da cultura, apreendem-se e analisam-se pequenos
casos ou situações para compreender a lógica dos pensamentos e comportamentos envolvidos:
Para Geertz é difícil uma teoria da interpretação cultural, pois as interpretações são sempre
microscópicas, e a teoria deveria ficar sempre próxima a cada terreno da avaliação. Diferente das ciências
biológicas ou exatas, na antropologia, é difícil construir teorias verificáveis, que se possa testar em
laboratórios, manipular objetos etc. As descobertas antropológicas não seguem uma curva ascendente
ou um conhecimento cumulativo, são sequências desconexas, estudos seguem outros estudos. Cada
novo estudo, munido de informações, conceitos, fatos e hipóteses anteriores buscam se aprofundar mais
na mesma coisa, não para quebrar ou construir teorias, mas para avançar nos estudos. As formulações
teóricas das análises se esgotam em si mesmas, pouco funcionam fora delas. A interpretação cultural
não busca “codificar regularidades abstratas, mas tornar possíveis descrições minuciosas; não generalizar
através dos casos, mas generalizar dentro deles” (GEERTZ, 2008, p. 18).
Outra característica da teoria cultural é que ela não é profética, não busca antecipar o que vai ou pode
acontecer, mas também não é apenas post facto. As teorias culturais devem sobreviver intelectualmente
às realidades que estão por vir, e as formulações feitas sobre piscadelas ou brigas de galos devem
continuar servindo para outras interpretação para que sejam refinadas, afinal, as ideias teóricas são
retomadas de um estudo anterior para novas problemáticas interpretativas.
• a descrição densa, que é a anotação dos significados que as ações sociais têm para seus atores, ou
seja, a descoberta das estruturas que informam os atos dos sujeitos e;
função, sagrado e cultura. Fatos pequenos do nosso cotidiano mostram como esses conceitos se
entrelaçam na descrição, e é a partir deles que se tiram grandes conclusões para assimilar o papel
da cultura nas nossas vidas.
Por fim, a antropologia interpretativa é incompleta por natureza, é sempre possível ir mais a fundo,
refinar mais, buscar novos relatos e significados. Geertz critica quem transforma a cultura em folclore,
quem coleciona relatos, quem transforma as análises em instituições ou classificações. A visão semiótica
e subjetiva é essencialmente contestável e assim deve permanecer.
Segundo Azzan Jr. (1991), Geertz generaliza um conjunto de diferenças que acaba evidenciando as
particularidades da cultura. Os dados singulares que se têm de determinada cultura induz a percepção
de verdades sobre ela. Já Lévi-Strauss, ao codificar as regularidades, deduz qual é a estrutura social. Mas,
no fim, por um método ou outro, a antropologia é capaz de transformar a realidade em conhecimento.
Assim, tanto a parte é capaz dar sentido ao todo, como o todo é capaz de conferir absorção das partes.
Ambas as metodologias chegam ao mesmo objetivo, no entanto, uma explica e a outra compreende,
e o processo dialético entre explicar e compreender gera um conhecimento antropológico de dupla
interpretação.
Roberto Cardoso de Oliveira (2006) traz à discussão a questão da dupla interpretação a qual todo
antropólogo está destinado: a primeira é o resultado da descrição, a segunda é a avaliação dessa
descrição. Qualquer descrição passa pela análise, uma vez que deve informar e apreender.
O que Cardoso de Oliveira (2006) quer mostrar é que existe uma interpretação explicativa e uma
interpretação compreensiva. A relação entre essas duas modalidades subjetivas permitirá uma visão sábia
e profunda, enquanto uma leitura tendendo para uma ou outra modalidade ocasiona uma interpretação
superficial. A interpretação explicativa são análises formais, que buscam uma síntese, um código, a
identificação das regras e padrões; a interpretação compreensiva busca o significado desses códigos,
regras e padrões, é também o resultado da observação participante.
25
Unidade I
Por postura nomológica, o autor quer trazer a importância da análise etnocientífica dos anos 1960,
que devem posteriormente ser refinadas na busca de uma compreensão sábia, ou seja, seria essa postura
uma parte da análise hermenêutica. A análise metódica formal ou formalizante do estruturalismo e da
observação participante deve depois buscar uma apreensão dos sentidos, ir além do objetivismo para
chegar à dialética. Portanto, deve-se passar pelas duas interpretações para uma visão mais sábia.
Tanto Geertz como Lévi-Strauss possuem essa leitura dialética para explicar a cultura observada,
no entanto, um dá mais ênfase ao explicar e o outro ao compreender. Lembremos que Lévi-Strauss
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ANTROPOLOGIA: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
começa suas pesquisas nos anos 1930 e publica diversos livros importantes até os anos 1970; já
as pesquisas de Geertz, iniciadas nos anos 1950, começam a ganhar notoriedade em seu percurso
acadêmico nos anos 1970. Segundo esse ponto de vista, podemos perceber que um se torna a
continuidade do outro: primeiro explicar para então compreender.
Segundo Azzan Jr. (1991), a preocupação na antropologia interpretativa está no caso particular e
sua interpretação, não se busca a lei ou a instância mais geral ou classificações. Para tal interpretação,
deve‑se passar por uma densa descrição. Isso para poder penetrar no modo de pensamento de outros
povos. Parte-se do senso comum de casos particulares para uma interpretação profunda, filosófica,
psicológica, histórica, literária. Nesse momento, transforma-se o caso em uma análise científica.
Assim, o caminho para atingir uma análise antropológica passa primeiramente pela descrição das
formas simbólicas particulares, e em seguida para sua contextualização dentro da estrutura total de
significados. Para chegar a essa abordagem, é fundamental pressupor que a cultura são “símbolos
interpretáveis”, ou seja, a própria cultura é interpretável, ao invés de codificável; esse é o conceito de
cultura semiótica. A possibilidade de interpretar, é mais do que codificar, classificar, encontrar leis e
regras gerais, e isso que torna a cultura produtora e construtora de sentido, e não apenas de signos.
As ações que cada sujeito toma é dotada de significado, e quando agimos a ação é viva apenas
naquele momento; quando o antropólogo registra a ação do sujeito, o significado dessa ação
persistirá para a interpretação, para a análise e compreensão. Então, o registro das ações se torna
um documento sobre o qual o antropólogo pode trabalhar como as pinturas rupestres, inscrições em
pedras, pergaminhos etc. É assim que a cultura passa a ser um texto interpretável, ou melhor, um
conjunto de textos interpretáveis que formam uma teia.
Segundo Azzan Jr. (1991), o que Geertz pretende fazer é uma etnografia do pensamento, pois existe
uma variedade radical do modo como se pensa, isso que significa um estudo da intersubjetividade:
as estruturas do pensamento mudam, as províncias de pensamento são demarcadas, normas de
pensamento são mantidas, modelos de pensamento são adquiridos. Compreender isso nos permite
aprofundar no sentido da cultura. Com isso, a etnografia geertziana se demonstra muito mais descritiva
que interpretativa, mas a abundância de descrição é que permite a assimilação.
Na visão de Geertz, a abordagem interpretativa era superior às outras abordagens, sejam elas
românticas, positivistas ou tradicionais. De certo, a abordagem interpretativa se afasta do reducionismo
positivista e do idealismo alemão, no entanto, é possível concluir que ela se tornou mais humanista,
porém não superior. Geertz traz de novidade o fato de a sociedade não ser mecânica (como analogia das
ciências exatas), nem um organismo (como analogia das ciências biológicas), mas que existe um jogo,
um drama, um texto. Nesta analogia, podemos compreender melhor o conceito semiótico de cultura
que Geertz coloca nas ciências sociais (AZZAN JR., 1991).
Por exemplo, ao tratar da briga de galo balinesa como um texto, permite um afastamento emocional
para uma análise e uma compreensão do jogo, do drama que existe entre os diversos personagens
envolvidos. A briga de galo é apenas um de tantos textos da vida balinesa. Junto com esses outros
textos, o antropólogo pode aprofundar a concepção e o diálogo com a cultura balinesa.
27
Unidade I
Uma crítica que se faz dessa leitura da cultura é que não se conhece o autor, o destinatário ou o
contexto desse texto antropológico. As narrativas e descrições estão descontextualizadas socialmente.
Nesse momento, Azzan Jr. (1991) faz uma crítica à noção de texto de Geertz. A elaboração de textos sobre
culturas exótica permite a construção de um documento inscrito que poderá servir para compreender a
historicidade de tal cultura. Mas, uma vez que o próprio texto está descontextualizado, ele se torna um
objeto de frágil potencial histórico. Para a história, é importante saber quem é o falante, o ouvinte e o
dito dentro de seu contexto. Uma vez feita a descrição do que foi visto e dito, perdem-se a caracterização
e a dimensão dos personagens envolvidos.
É como se nós estivéssemos lendo um livro ou vendo um filme no qual existem muitos personagens
e figurantes, mas não protagonistas. A história é sempre contada por um narrador externo a ela. Ao
fazer uma leitura da interpretação da briga de galos de Geertz, Azzan Jr. comenta:
Segundo a crítica falta dizer o que os balineses compreendem de sua própria realidade. A
hermenêutica pretendida ou projetada por Geertz não é atingida, pois o texto, sendo uma parte de
um todo, exige que se recupere essa conexão. Apenas apresentar vários textos densamente descritivos
e sem autoria (ou protagonistas) não permite chegar na hermenêutica, ou na interpretação e
compreensão do todo. Seria necessário um julgamento reflexivo relacionando os diversos textos, os
mais centrais e os mais periféricos para poder reconstruir o todo. Na ausência dessa reconstrução, pode-
se cair no engano de concluir que a sociedade balinesa funciona em torno da briga de galos, sendo que
esse evento não é tão central assim, do mesmo modo que as touradas na Espanha não o são.
Não há como interpretar os atores sociais que são descritos nas etnografias geertziana, pois não
conhecemos suas intenções. A ausência das falas e das intenções dos sujeitos faz com que os textos não
possuam autores. Por autores, nesse caso, estamos querendo dizer os autores no texto, e não o autor do
texto. Azzan Jr. (1991) esclarece: os autores do texto são a sociedade, uma vez que a cultura é pública;
os autores no texto e seriam os sujeitos, e esses sujeitos fazem parte da descrição e desempenham seus
papéis e têm consciência desses papéis, no entanto, eles não constroem o texto que querem. Existe
ainda uma terceira autoria, a do antropólogo. Afinal, é o antropólogo que transforma a experiência
observada e vivida em textos, para serem analisados cientificamente. Esse texto é que Geertz aproxima
de uma ficção, pois a realidade já está em um tempo e espaço distantes. Neste sentido, Geertz afasta
a etnografia da ciência e a aproxima da literatura – por isso, a ideia de ficção. No mais, o etnógrafo
não deve ser uma autoridade no discurso, mas permitir que o nativo fale de modo direto, igual, ao
lado do antropólogo. A experiência do antropólogo não pode valer mais do que a realidade. O texto
antropológico é a versão escrita do que foi dito pelos personagens. O que Geertz propõe é uma “autoria
dispersa”, ou seja, uma autoria pública.
Com essa visão, Geertz distancia o trabalho etnográfico de interpretações feitas por colonizadores
nas décadas e séculos anteriores, as quais a subjetividade do colonizador ditava a interpretação do
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ANTROPOLOGIA: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
colonizado. O que se fazia no período colonial era a construção de uma representação do outro
segundo a lógica do colonizador, com uma metodologia das ciências exatas e biológicas para se atingir
um suposto objetivismo. Diferente da proposta geertziana, que busca a intersubjetividade, ou seja, a
descrição do ponto de vista de quem está sendo descrito, afastando-se dos preconceitos do subjetivismo
do colonizador (AZZAN JR., 1991).
É devido à impossibilidade de uma objetividade por parte do etnógrafo que Geertz insere a
antropologia nas humanidades e na literatura, ao invés das ciências. No entanto, esclarece:
Para compreender melhor essa passagem, é importante lembrar que o texto tem quatro características:
Desse modo, vimos que a objetividade está cristalizada no texto, apesar de tanto o autor como o
leitor possuírem e utilizarem suas subjetividades para interpretar o texto, é isso que Geertz entende por
intersubjetividade e de que falávamos anteriormente sobre dupla interpretação.
Azzan Jr. (1991) refletiu mais profunda e minuciosamente sobre a teoria de Geertz. A abordagem
interpretativa trouxe um novo olhar para a antropologia e uma nova metodologia. Estruturalismo e
interpretativismo não se excluem, são um a continuidade do outro e a busca por uma antropologia
dialética. Ambas buscam se afastar dos preconceitos e etnocentrismos gerados por abordagens ou más
leituras anteriores e trazer um relativismo para a antropologia contemporânea, maior compreensão
sobre as diversidades culturais, estruturais e de pensamento.
Saiba mais
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Unidade I
“Os homens fazem sua própria história, mas não sabem que a fazem”.
(Karl Marx)
Houve um momento das ciências humanas em que foi necessária a divisão metodológica entre
a história e as ciências sociais. Essa divisão se deu muito mais nas questões de método do que de
conteúdo. Com o passar do tempo, a história desenvolveu e definiu seus próprios métodos, já as ciências
sociais, segundo Lévi-Strauss (2003, p. 13), desenvolveram-se às custas de muitos “conflitos, discórdias
e confusões”.
Não se trata de esboçar uma história da antropologia (tema trabalhado em outra disciplina), mas
de compreender como essas duas áreas do conhecimento estão próximas e em que aspectos elas se
distanciam. DaMatta diria que há duas perspectivas:
Para entrarmos nessa discussão, precisamos lembrar dos métodos de pesquisa da antropologia: os
estudos etnográficos mostram uma viagem de ida para a descoberta do desconhecido do exótico, o
etnógrafo observa uma outra cultura; e os estudos etnológicos é a viagem de volta, de análise dos dados
coletados do que parecia exótico e que acaba revelando traços implícitos com a sociedade do próprio
antropólogo (DAMATTA, 1987).
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ANTROPOLOGIA: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
Ao estudar os grupos humanos e suas instituições, sistemas, estruturas, não é possível construir
um passado ou querer explicar o presente por um passado que é desconhecido dos pesquisadores. Por
exemplo, não é possível explicar ideias religiosas relacionadas a práticas que envolvem espécie animais
(na alimentação ou sacrifício) com vestígios de um sistema totêmico existente no passado desse povo
ou que, eventualmente, entrou em contato com tal população. Isso não é plausível de verificação, uma
vez que a etnografia estuda as particularidades de um grupo no presente.
A etnologia reconstrói a história de povos antigos, mas sem dispor de fatos sobre o desenvolvimento
desses povos. Respeitando os limites de tempo e espaço, certas hipóteses podem ser feitas, mas seria
errado deduzir que determinadas regras e estruturas sociais coexistentes derivem uma da outra,
correndo assim o risco de criar um evolucionismo entre as tribos. Por exemplo, nos estudos de Boas, seria
errado dizer que as estruturas matrilineares tenham transformado-se em estruturas patrilineares ou
bilaterais, pois isso colocaria as sociedades matrilineares como primitivas, mesmo as que existem ainda
hoje. Leituras como essa levaram muitos pesquisadores e estudiosos a reforçarem o eurocentrismo. Nas
palavras de Boas, “Para compreender a história, não basta saber como são as coisas, mas como chegaram
a ser o que são” (BOAS apud LÉVI-STRAUSS, 2003, p. 21). Boas se concentrou em fazer uma análise
sincrônica dos estudos da cultura.
Se lembrarmos de Malinowski, ao analisar a função do kula, ele compara com aspectos de sua
própria cultura das joias da coroa. Isso não significa que a coroa britânica em algum momento do
passado tenha entrado em contato com os trobriandeses, nem o inverso, mas que, para a compreensão,
é necessária uma “comparação por contraste” ou “comparação relativizadora”; para dar sentido a uma
31
Unidade I
diversidade cultural, foi importante encontrar uma referência na própria cultura. A diferença é que as
joias da coroa foram tiradas de seu tempo e colocadas em um museu, enquanto os objetos do circuito
kula marcam uma linha do tempo, criando as relações pessoais vivas no tempo.
A principal diferença entre história e etnografia é que a história estuda e critica documentos de
diversos observadores, enquanto a etnografia é a leitura de um único observador (o etnógrafo). Muitas
vezes, esse etnógrafo pode ser um dos observadores estudados pelos historiadores, ou servir também
de referência para outro etnógrafo (desde que esse último se aproprie de métodos históricos para a
análise). Nesse momento, Lévi-Strauss conclui então que tanto o objeto como o objetivo e o método
utilizados entre etnógrafos e historiadores são os mesmos, porém existe uma diferença de perspectiva,
uma vez que o historiador estuda as expressões conscientes e o etnógrafo as condições inconscientes
da vida social de determinada população em determinado período.
32
ANTROPOLOGIA: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
Mais uma característica é levantada por Lévi-Strauss: a etnografia se interessa por aquilo que não
está escrito e eternizado em documentos, busca na tradição oral e na memória social o seu objeto de
estudo. A metodologia e a riqueza da tradição oral superam seus próprios limites.
Essas diferenças entre história e etnografia não significam que seus estudiosos ignorem ou se
afastem da perspectiva do outro, nem mesmo que andem em caminhos opostos. Porém buscam uma
orientação diferente, o etnólogo olhando do consciente para o inconsciente, e o historiador parte de
atividades concretas e particulares e se afasta para uma perspectiva mais ampla. Sendo assim, uma das
leituras será sempre completar à outra, concluiria Lévi-Strauss (2003).
Enquanto a história encaminha seus estudos em uma linha contínua no tempo, a antropologia
estuda as diferenças culturais, dispensando o tempo, privilegiando o espaço como categoria comparativa
entre as diversidades culturais. Desse modo, o antropólogo relativiza a própria cultura para compreender
a outra. A dialética antropológica, segundo DaMatta (1987, p. 112), dá-se entre o “eu” e o “outro”, o
familiar e o exótico, o próximo e o distante, o explícito e o implícito, o racional e o irracional, o universal
e o particular, o vivido e o concebido.
Como então estudar e explicar povos humanos do passado? Sociedades e culturas já distantes da
sociedade contemporânea? É possível categorizar em culturas arcaicas, primitivas e contemporâneas? A
primeira categoria se refere às culturas que viveram num tempo e espaço anterior ao nosso; a segunda
àquelas que nos antecedem no tempo, mas se manifestam nos mesmos espaços; e a terceira àquelas que
vivem no mesmo tempo, mas em outra parte do planeta (LÉVI-STRAUSS, 1993).
Das sociedades arcaicas, conhecemos muito pouco, o que se tem são hipóteses ou analogias
feitas a partir de objetos, vestígios e restos que sobreviveram à destruição do tempo. Apesar de haver
semelhanças das sociedades primitivas com as arcaicas, não é possível afirmar e compreender como
viviam os povos arcaicos. As interpretações são baseadas em raciocínio lógico na busca de sentido e de
semelhança com fenômenos conhecidos na atualidade. É assim que se interpretam pinturas rupestres,
pedras lascadas, jazidas e outros objetos.
Pode nos parecer que as culturas arcaicas e primitivas sejam de povos sem história, porém todos os
povos têm história, mesmo aqueles que parecem mudar pouco ou muito vagarosamente; mesmo estes
são compostos de homens e mulheres que cresceram, criaram, combateram, inventaram etc. O fato de
não terem uma história escrita ou documentada significa apenas que essa história nos é desconhecida.
Lévi-Strauss diria que essas sociedades possuem uma história ativa, mas não progressiva, como aquelas
que acumulam achados e invenções para construir grandes civilizações. A diferença é o uso que se faz
do tempo em cada uma delas.
A divisão temporal que existe na paleontologia das eras das sociedades arcaicas é bastante cômoda
do ponto de vista didático, mas do ponto de vista antropológico o progresso entre elas não é verdadeiro,
pois elas coexistiram no mesmo tempo e em espaços compartilhados ou distintos, o que significa que
não é possível afirmar que houve um progresso contínuo entre idade da pedra lascada, idade da pedra
33
Unidade I
polida, idade do cobre, do bronze e do ferro. Eram sociedades contemporâneas entre si, e encontraram
técnicas diferentes de construção de instrumentos e ferramentas no mesmo período histórico, a tentativa
de copiar objetos de outras culturas possibilitava a invenção de novas técnicas.
Assim, a ideia de “progresso” não é necessária, nem contínua, não é uma escada que se sobe apenas
um degrau por vez, sem jamais retroceder. Basta lembrarmos da redescoberta do continente americano.
Aqui, ele já era conhecido, coexistiam diversas culturas com tecnologias, agricultura, domesticação de
animais, conhecimentos astrológico, farmacêutico, calendários complexos, relógios de sol, culinárias e
técnicas de conservação das mais diversas. Todo esse saber foi compartilhado com os povos europeus
que aqui desembarcaram e passaram a conhecer e explorar elementos dessas culturas ao ponto de
se tornarem referências para a economia, mercado e culinária global. Ou seja, não é possível afirmar
que os europeus trouxeram o progresso e a civilização, uma vez que eles também aprenderam e se
apropriaram da cultura aqui existente. E mais, todos os povos e formas de vida coexistentes estavam
vivos e construindo suas próprias histórias. São, portanto, culturas contemporâneas com as quais as
histórias se cruzaram.
O que se pode afirmar então é que o progresso cultural é uma coligação entre as culturas, é no contato
entre os diferentes que ocorre a troca de conhecimento, de materiais, de técnicas e de tecnologias. O
contato com a diversidade nos possibilita a criação do novo, a curiosidade e a reflexão, desde que
estejamos abertos para tal percepção, como todo antropólogo deve estar.
Por exemplo, no pensamento evolucionista seriam classificados os sistemas políticos em “pré” e “pós”
(pré-político e pós-político), já o antropólogo estruturalista analisaria o sistema político da sociedade
avaliada tendo como referência a noção de política da sociedade estudada, e não da sociedade materna
do pesquisador. A comparação se dá a posteriori, ao observar o inconsciente presente na cultura estudada
e trazê-lo para o consciente antropológico, um lugar onde se pode tomar consciência das diferenças
culturais. Nesse caso, DaMatta entende por inconsciente “um lugar de onde se pode tomar consciência
das diferenças e, por meio delas, alcançar as semelhanças entre as relações e as instituições humanas”
(DAMATTA, 1987, p. 114).
Então, ao observamos a política como uma instituição, apesar de existirem diversos tipos de governos
(absolutista, ditatorial, democrático etc.), é possível perceber que em todos existe um representante
com poderes de organizar e modificar regras sociais. Agora, a forma como esse representante chega ao
poder é que são variáveis e quanto poder eles têm também. Mas não podemos colocar uma sequência
histórica linear universal, ou seja, não podemos dizer que um governo absolutista é mais antigo que um
sistema democrático. É possível analisar dentro de uma mesma sociedade suas mudanças políticas, e o
Brasil é um exemplo da não existência dessa linearidade, pois antes do nosso período ditatorial tivemos
um período democrático que se restituiu depois de décadas.
Outro exemplo, lembrando um pouco dos estudos de Geertz sobre Bali, ao observamos como é
organizado o tempo entre os balineses, veremos que os eventos religiosos são as referências temporais
dos dias cheios (aqueles com compromisso social, controle do comportamento em espaço público), já
os dias vazios são aqueles sem ritos sagrados. No entanto, na nossa cultura os eventos religiosos se dão
no que para nós são dias vazios, os feriados, nos quais estamos livres das obrigações de trabalho e do
controle social do relógio, enquanto os dias cheios se referem à nossa rotina de trabalho, aos dias úteis;
são esses dias que nos dão a noção de dia, semana, mês, férias etc.
Saiba mais
35
Unidade I
Esses dois exemplos servem para compreendermos melhor como que a antropologia trabalha e
como é que se relativiza ao estudarmos culturas diferentes sem cairmos em uma leitura etnocêntrica.
As culturas são dissemelhantes, mas isso não as coloca como atrasadas e avançadas, ou incompletas e
completas, ou ainda melhores e piores.
O exercício antropológico permite trazer à consciência o que está implícito inclusive na nossa
sociedade ao percebermos como a nossa vida é organizada a partir do trabalho, é ele quem diz a hora
de acordar e de voltar pra casa, os dias de folga, as férias e feriados; ele serve de referência para
comportamentos sociais como o happy hour (normalmente às sextas-feiras, após o expediente, aquele
momento de relaxar com amigos); é por ele que as segundas-feiras são tristes e as sextas-feiras, felizes,
e assim por diante.
Dessa reflexão, deduz-se que os homens, sendo iguais, encontram modos distintos de construírem
suas identidades, o que forma sociedades e culturas diversas entre si.
Então, se o tempo é percebido de modo diferente entre as culturas, é possível afirmar a existência
ou não de história em sociedades arcaicas e primitivas? A resposta está muito mais na definição do que
na filosofia. Se pensarmos na temporalidade, as sociedades humanas têm uma noção de temporalidade,
percebem a passagem do tempo, mas não necessariamente todas elas são capazes de perceber a
ideologia dos blocos históricos construídos pela mentalidade da sociedade ocidental. Ou seja, essa
forma de entender a passagem do tempo por blocos históricos pertence à nossa ideologia ocidental com
grande influência da visão europeia. São esses blocos ideológicos que Lévi-Strauss e DaMatta entendem
por História.
O que a sociedade ocidental entende por história é a visão de um ou mais historiadores sobre dada
sociedade, ou seja, é uma história construída e interpretada por homens, historiadores e filósofos. É
uma perspectiva, um ponto de vista entre tantos possíveis. Um historiador acaba se destacando para
transmitir às próximas gerações a “história” de um povo, uma história que seleciona pontos de vista,
informações, documentos etc. A história do Brasil, por exemplo, é baseada na visão dos portugueses que
aqui chegara e desbravaram, conquistaram, colonizaram e civilizaram o território. Essa é a nossa história
oficial aprendida nos livros, filmes e documentos.
O que os antropólogos questionam é: e a visão dos nativos? Como seria a história do Brasil narrada
pelas culturas indígenas e pelas populações africanas que foram escravizadas nesse território? A noção
de tempo dessa população também existe, mesmo que não seja a mesma perspectiva histórica já
conhecida pelos portugueses. Após a chegada e o contato com os homens brancos, surgiram mitos
indígenas com a presença de “homens brancos”, esse foi o modo como os indígenas encontraram para
contar essa parte de suas histórias.
As etnias indígenas aqui existentes antes da colonização possuíam uma noção de temporalidade,
pois seus mitos mostram o que veio antes do presente, como era o mundo antes de suas existências,
como o Sol e a Lua deram forma ao mundo e ao caráter dos heróis, por exemplo. Porém não é possível
36
ANTROPOLOGIA: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
separar, no pensamento mítico, o tempo do processo histórico, porque ambos estão entrelaçados. Os
mitos que incluem o homem branco mostram as transformações que passaram a ocorrer nas sociedades
indígenas.
DaMatta (1987), ao ilustrar a noção de temporalidade dos Apinayés, trabalha com a ideia de “presente
anterior” e “presente atual”. No mito do Sol e da Lua, percebe-se o “presente anterior”, no qual existe
o céu e a terra (o alto e o baixo), no céu estão os heróis Sol e Lua, e a terra é caótica e sem forma. Já o
“presente atual” é o tempo de hoje, que está se vivendo, mas esse tempo é o reflexo daquele tempo em
que tudo estava se formando, ou seja, o presente reflete o passado, e vice-versa. Não é possível fazer
uma cisão do tempo. Não existem historiadores na sociedade Apinayé, não existe o mito da revolução,
os heróis da história, um mundo antigo melhor ou pior do que o atual. Da mesma forma, não existe
uma nostalgia de um passado ou a projeção de um futuro ideal. Existe a noção do tempo da formação
da terra e do tempo que não existia o homem branco cercando e devastando suas terras e liberdades.
O que se pode perceber é que o tempo para os Apinayés não é linear, é um ciclo oscilante
entre “presente anterior” e “presente atual”, as transformações não são internas, mas externas, não
são produzidas pela própria sociedade. No mais, não é possível acelerar o tempo, como na nossa
ideologia de temporalidade é possível, para os Apinayés, o ritmo do tempo é igual para todos. Na
nossa cultura, como diria DaMatta (1987), há “aceleradores do tempo”, nossas ideias revolucionárias,
nossa noção de dialética marxista nos permite construir uma leitura de “vanguarda”, “modernista”,
“futurista”, são visões daqueles que estão “à frente de seu tempo”, por exemplo, slogans como
“50 anos em 5” para a construção de uma capital; todas essas leituras mostram a possibilidade de
acelerarmos a noção de tempo na nossa sociedade.
Lembrete
Para a nossa cultura, o tempo como linha histórica é fundamental, essa é a nossa forma de organização
dos fatos, das transformações, das mudanças e do desenvolvimento. Mas, como antropólogos, temos
de ser capazes de relativizar e entender o tempo sob o ponto de vista dos outros também, pois há
vários modos de conceber e vivenciar o tempo, segundo DaMatta (1987). Tanto o antropólogo como o
historiador escolhem alguns dados, em detrimento de outros, não é possível lembrar e analisar tudo o
37
Unidade I
que foi visto e vivenciado. Nos estudos, acabamos por selecionar aquilo que nos parece mais relevante,
mais significativo, digno de ser lembrado e eternizado.
Para melhor compreendermos a relatividade do tempo, podemos lembrar de Thomas Mann, que
falava de um tempo interno e outro externo. Por exemplo: quando lemos uma narrativa, existe um
tempo interno, a história pode ser de um dia ou de 80 anos da vida de uma personagem, mas existe
também o tempo externo, que seria o tempo que levamos para ler aquelas páginas. Ou seja, o tempo
interno de um espetáculo, de uma história, de uma música é diferente do tempo externo de quem os
aprecia. O tempo externo é calculável, cronometrável, já o interno é variável.
Evans-Pritchard, ao estudar os Nuer, percebeu que o tempo é vivenciado pelas linhagens e clãs
patrilineares, a ancestralidade comum cria a noção de tempo e espaço; quando mais longe o ancestral
em comum, mais antigo, mais distante o tempo. Se lembrarmos também dos balineses de Geertz, os
ciclos temporal e familiar se fecham a cada três gerações, quando a nomenclatura dada ao bisavô e ao
bisneto é a mesma, mostrando o marco inicial e final de companheiros contemporâneos, que separam
os antecessores dos predecessores.
Podemos notar também nessas leituras antropológicas que temporalidade está ligada à
distância e proximidade, ou seja, ao espaço. Quando um historiador ou antropólogo narra a
vida de personagens, culturas, sociedades, acaba criando uma narrativa na qual a temporalidade
interna é desconexa da externa; por isso, é importante relativizar a visão do tempo. Outro fator
essencial é perceber ser muito mais fácil estudar algo distante no tempo, que já está concluído,
do que uma história em aberto, no presente, que está ainda por se fazer. A história já finalizada
tem uma legitimação do social, é plausível de interpretação e de estabelecer uma relação com o
contexto atual.
Os eventos presentes, ainda estão quentes, estão se desenrolando, somos testemunhas, mas
somos também atores, as opiniões políticas interferem na leitura e na interpretação. Por isso a
dificuldade da perspectiva histórica em estudar o tempo presente de sua própria sociedade. A
nossa história traz mudanças políticas, revoluções, heróis de guerras, mas e a história das etnias
indígenas? Quais seriam os fatos e eventos importantes em uma sociedade sem Estado, sem
heróis de guerras, sem revoluções populares? E como faz então o antropólogo que estuda o tempo
presente de uma cultura diversa?
O que se faz é estudar as sociedades desconhecidas reproduzindo nelas algo conhecido por nós,
categorias, instituições, sistemas. Busca-se compreender como é a religiosidade, a família, a política, a
economia, a tecnologia etc. Esses são conceitos valorizados pela nossa sociedade e buscamos nas outras
as suas diversidades e similaridades. Devemos atentar, porém, para não classificar como atrasados os
itens que não se assemelham à nossa cultura.
Assim, afastamo-nos da noção de tempo histórico e observamos o tempo interno daquela cultura,
como se estivéssemos vendo um filme ou lendo um livro. Importam aqui os fatos internos, e não
as consequências e passados que os trouxeram até o modo como vivem hoje. Ao observamos essas
culturas, devemos lembrar da lógica do totemismo, que traz uma noção de continuidade social entre
38
ANTROPOLOGIA: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
o homem e a natureza, para os clãs totêmicos, existe uma aliança entre o homem e a natureza. Um
clã “A” associado a um animal possui características parecidas com esse animal, já o outro clã “B”
associado a outro animal possui características do outro animal e portanto diversas do clã “A”.
Aqui, a lógica temporal entre homem e natureza é de continuidade, na nossa leitura historicista existe
uma lógica de causa-consequência, uma forma nasce da outra, existe uma sociedade anterior e uma
sociedade posterior. Mas não é possível que um clã associado à águia tenha nascido da tal animal, ou
seja, a consequência do cruzamento desse animal com um homem. A lógica é outra. Segundo DaMatta
(1987), as sociedades – tanto as chamadas civilizadas, como as denominada primitivas, possuem as duas
lógicas, a totêmica e a historicista, a diferença é que cada uma prioriza uma das lógicas e deixa a outra
implícita, ou inconsciente.
Nota-se a lógica historicista dos indígenas nos mitos que aparecem um personagem de fora, que
pode ser o homem branco, e, a partir do encontro com esse personagem, surgem as transformações
internas na sociedade indígena, agora dominada pela cultura dita civilizada. Esses são conhecidos como
mitos de contato.
De mesmo modo, nossa sociedade apresenta a lógica totêmica quando observamos torcidas de
futebol do time A e do time B, o confronto entre os times permite o rito social da vivência coletiva. O
nosso vínculo a um time, e não ao outro, bem como as diversidades entre os times mostram a lógica
totêmica. Os times também têm seus mascotes, que são animais que os simbolizam. Mesmo exemplo
ocorre quando utilizamos algumas metáforas, como bem lembra DaMatta (1987), “casal que parece gato
e rato”, para dizer que são diferentes e vivem brigando, mas existe uma continuidade, pois ambos são
animais. Muitos outros exemplos poderiam ser citados, mas não é o caso.
Enfim, tempo, história, historicidade, antropologia, todos tem suas convergências e divergências.
Os papéis do historiador e do antropólogo são diversos, mas complementares, estão ao mesmo tempo
próximos, mas sob perspectivas dissemelhantes.
Agora, vamos nos aproximar dos debates mais atuais da antropologia e seus desafios contemporâneos.
Para isso, percorreremos um debate emergente sobre a ética profissional, reflexões sobre o material
produzido e sua autoria, o rumo da antropologia em áreas urbanas e a importância do distanciamento.
Bela Feldman-Bianco. Nele, encontramos três seções: os direitos dos pesquisadores, os direitos dos
pesquisados e as responsabilidades dos primeiros.
Saiba mais
Para melhor compreensão, vejamos alguns pontos, sobre os direitos dos antropólogos:
A análise antropológica não tem o intuito de intervir na dinâmica cultural da sociedade estudada, o
foco é aprender com e sobre ela. No mais, deve respeitar a cultura e dar acesso ao material produzido
durante e após a pesquisa. Por fim, as responsabilidades dos antropólogos são:
O pesquisador deve apresentar-se como tal e respeitar as práticas científicas. Hoje, muito se
ouve sobre a ética nas avaliações das ciências biológicas, porém falar de ética em antropologia
não se refere a uma discussão filosófica do que é ética, ou de um distanciamento, de uma
neutralidade objetiva; ética, para os etnógrafos, refere-re à relação direta entre pesquisador e
pesquisado, do “deixar-se afetar”, da participação do avaliador, da proximidade. Essa relação
entre o antropólogo pesquisador e os sujeitos objetos de sua análise questionam a noção de
ética de outras ciências. Por isso, é tão importante deixar claros os direitos e responsabilidades
do investigador.
O etnógrafo, quando em campo, possui uma “posição desigual em relação aos seus interlocutores”
(SARTI; DUARTE, 2013, p. 11); temos de pensar na relação observador-observado, o olhar do observador
deve ser distanciado, mas há a necessidade de uma proximidade para a interlocução; da mesma forma,
o cientista não faz parte das relações sociais e de poder existentes em cada grupo. Aqui, começam os
desafios desse profissional.
41
Unidade I
A principal diferença é que a biociência faz pesquisa em seres humanos, enquanto a antropologia
faz estudos com seres humanos, como bem lembra Luís Roberto Cardoso de Oliveira (apud VÍCTORA et
al., 2004). A análise na área de saúde trata os seres humanos como cobaias (objeto de intervenção para
testar medicamentos, por exemplo; nas ciências humanas, os humanos são atores, com os quais existe
uma interlocução. Por isso, Oliveira considera o termo de consentimento, exigido pelo Comitê de Ética
em Pesquisa (CEP), como pouco produtivo, uma vez que o pesquisador de certa forma deve se inserir e
negociar sempre o consentimento (implícito) com os nativos para poder manter o diálogo. O avaliador
é também um ator, e muitas vezes participa e compartilha experiências com seus interlocutores. O
consentimento informado antecipadamente quebraria a possibilidade da experiência e da participação
do antropólogo.
Outro problema levantado por Oliveira é a questão de uma definição prévia e clara dos objetivos,
problemas e resultados esperados. Em antropologia, muitas vezes os objetivos são reformulados
posteriormente ao trabalho de campo, pois não é possível prever o que será vivenciado e observado
pelo investigador, nem o que exatamente será publicado cientificamente. O consentimento informado
exigido pela Resolução nº 196 parte de uma visão da pesquisa em seres humanos, e não considera a
análise com seres humanos, e nesse aspecto torna impossível a realização da pesquisa antropológica
com o consentimento do CEP. No mais, ocorre de as sociedades estudadas serem anágrafas, o que
dificulta ainda mais a possibilidade de um consentimento informado.
Alcida Rita Ramos, citada por VÍCTORA et al. (2004), também lembra casos antiético em pesquisa
tanto biomédica como etnográfica. O caso mais conhecido que gerou grande movimento para a busca
da ética na avaliação geneticista e antropológica foram os estudos dos Yanomamis, de James Neel
e de Napoleon Chagnon. James Neel, geneticista, fez experiências com vacinas contra sarampo nos
anos 1960, causando a morte de milhares de índios. O caso gerou muita discussão entre as ciências,
mas acabou sentenciado apenas como falta de ética, ainda que tenham sido revelados subornos e
declarações falsas que convenceram os índios a doar sangue para a pesquisa. Ainda hoje, substâncias
corporais dos Yanomamis são manipuladas por estranhos, o que causa grande desconforto à cultura,
pois muito desse material pertence a parentes já falecidos, e a existência desse material não permitiria
que eles descansassem em paz.
Já a etnografia de Napoleon Chagnon concluiu que os Yanomamis eram ferozes, e isso repercutiu na
academia estadunidense com ideias falsas e preconceituosas, que os reputavam como a população mais
primitiva e violenta da terra, comparados a babuínos.
A questão da ética na pesquisa deve ser vista de forma diferente em relação às pesquisas com e
em seres humanos, ou dos estudos das ciências sociais e das análises das ciências biológicas ou de
42
ANTROPOLOGIA: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
saúde. Qualquer cientista deve respeitar os limites da ética e da moral, mas as questões metodológicas
de cada ciência deve também ser respeitada e levada em consideração suas diversidades.
O que a Associação Brasileira de Antropologia (ABA) propõe é uma outra regulamentação para as
ciências humanas, sem desrespeitar ou descartar a Resolução nº 196, mas restringindo esta última
ao campo da biomedicina, subordinado ao Ministério da Saúde. A nova regulamentação de ética em
pesquisas seria subordinada ao Ministério da Ciência e Tecnologia. Em 2012, a ABA conseguiu uma
resolução complementar à 196 específica para as pesquisas em Ciências Sociais, mas continua vinculado
ao Ministério da Saúde. A Associação mantém aberto um canal de comunicação para que pesquisadores
antropólogos relatem suas experiências quanto à regularização da análise junto aos Comitês de Ética
em Pesquisa locais (CEPs) (SARTI; DUARTE, 2013).
Saiba mais
<http://www.portal.abant.org.br/>.
Além da luta pela regulamentação da metodologia antropológica dentro de uma resolução ética
reconhecida pelos órgãos políticos, há outros debates éticos discutidos nos encontros, reuniões, debates
e simpósios de todo o Brasil: a questão da ação política do antropólogo. Em determinada situações de
conflitos étnicos, antropólogos são peça fundamental para estabelecer um diálogo entre a sociedade
nacional e as comunidades étnicas (sejam elas indígenas, quilombolas, ribeirinhas, rurais etc.). Essa
atuação do antropólogo exige também uma reflexão ética para defender direitos e garantir os deveres
entre os grupos em conflito, respeitando as diversidades e sem tendenciar para as populações tidas
como mais fracas e desconhecedoras das leis da sociedade nacional.
Esse é também um ponto levantado por Oliveira (2006): a questão da imparcialidade das
interpretações antropológicas. Para ele, não é possível manter a neutralidade, mas uma imparcialidade,
pois o pesquisador pode interpretar as diversas versões dos fatos sem tendenciar para uma ou outra.
Por exemplo, um antropólogo que elabora laudos técnico-científicos para demarcação de terras,
ele pode e deve ser imparcial, não se inclinando para nenhum dos lados interessados, seja de povos
indígenas, quilombolas ou fazendeiros. Os critérios não devem ser arbitrários e ou beneficiar um grupo
em detrimento do outro, por simpatia ou antipatia a esses grupos.
Nesse sentido, podemos acompanhar a experiência de Roberto Cardoso de Oliveira (apud VÍCTORA
et al., 2004), que, ao ressuscitar a ideia de etnólogo “orgânico” de Gramsci, relembra a relação umbilical
que o pesquisador tem com a entidade que ele representa, seja ela uma ONG, um setor político ou
governamental ou um segmento missionário. Ou seja, o antropólogo fala de um lugar, ele mantém de
43
Unidade I
alguma forma uma relação com ideologias sociais. A questão ética se coloca quando o antropólogo
deve fazer a mediação entre as culturas, como mediador deve fazer a tradução dos sistemas culturais,
pensando nas particularidades tribais e nos valores tidos como universais.
Roberto Oliveira relata o caso do infanticídio entre os índios Tapirapé, que é costume entre os
Tapirapés o sacrifício da terceira filha com o objetivo de controlar o “índice demográfico compatível
com seu ecossistema”, argumento reforçado pela ideia de que “a vida de todo um povo vale mais do
que a de um indivíduo” (OLIVEIRA apud VÍCTORA et al., 2004, p. 26). Esses valores particulares vão ao
encontro da ideia universal (ou ocidental) de que qualquer vida tem seu valor absoluto, ou ainda a
ideia constitucional do direito à vida, no qual o sacrifício de qualquer indivíduo, principalmente de uma
criança recém-nascida, seria considerado um crime.
Casos como esse colocam em questão o papel do antropólogo ético de ser um mediador dos valores
das duas sociedades, não podendo ele ser um juiz, ou advogado de nenhuma das partes. E, assim,
releva a noção de imparcialidade do etnógrafo em suas funções de conhecer e intermediar, buscando
o consenso, embora sempre afastado, definitivamente, da pretensão de neutralidade. Roberto Oliveira
esclarece que o pesquisador intermediador fica na mesosfera entre a sociedade nacional que está na
macroesfera – presa à universalidade, aos princípios universais (defendido pela ONU), e instrumentos
jurídicos – e as sociedades indígenas na microesfera – presas às particularidades, hábitos tradicionais.
Esse vínculo com a sociedade nacional é o cordão umbilical ao qual o pesquisador está preso, e o
conhecimento (adquirido por meio de um método científico) que tem das sociedades indígenas permite
que ele assuma o papel de mediador.
Debret, tendo em vista que o antropólogo é um mediador, levanta a questão de que, na sociedade
nacional, ele detêm status, prestígio e poder, enquanto a pesquisada é tida por desprivilegiada, com
vítimas e minorias vulneráveis. Com isso em mente, “os interesses dos grupos pesquisados devem
preceder os interesses da pesquisa” (DEBRET apud VÍCTORA et al., 2004, p. 45). Além do consentimento
informado, ele traz à tona:
44
ANTROPOLOGIA: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
Questões como da autoria e da coautoria também fazem parte dos questionamentos da ética na
antropologia, uma vez que a produção do etnógrafo é feita em conjunto com os sujeitos pesquisados.
Além de mediadores, a antropologia pode também contribuir em dar voz e autonomia ao povo
estudado, que é muitas vezes visto como leigo, excluído e não conhecedor das regras, leis e direitos da
sociedade nacional. No entanto, a inserção da população indígena ao nosso sistema de estudo (graças
às políticas de ação afirmativas) vem colocando-os também em contato com estudos universitários
nas áreas de direitos, saúde, pedagogia, entre outros.
Lembrete
Nesse sentido, vale lembrar o estudo da antropóloga Jane Felipe Beltrão, que investiga a
interculturalidade:
Beltrão propõe uma nova escrita, em conjunto, na qual os sujeitos da pesquisa sejam também
intérpretes e autores. Hoje, alguns povos indígenas vivenciam os dois mundos: sua cultura materna
e o mundo não indígena; portanto, possuem formas diferentes de interpretar a realidade e podem
contribuir na análise tanto da própria cultura como na “tradução” para a cultura não indígena. A
ideia principal é tratar de forma simétrica os saberes e romper com a visão colonialista de que o
registro escrito por autoridades (religiosas ou científicas) sejam mais fidedignos que os saberes e
a tradição oral.
Mais do que dar respostas prontas, pretendemos com essa reflexão possibilitar o questionamento,
abrir espaço para novas formas de ver e dar voz aos sujeitos que sempre foram vistos como objetos de
estudos, mas que podem, hoje, construir uma nova forma de compreender a disciplina e criar um novo
método de avaliação.
45
Unidade I
Quando se fala em antropologia urbana, a referência brasileira é Gilberto Velho, antropólogo que
pesquisou (entre muitos outros temas) as moradias populares no Rio de Janeiro. Velho foi aluno de
Anthony Leeds, que passou anos no Brasil estudando as favelas, foi ele quem introduziu a antropologia
urbana no Brasil. Foi a busca por conhecer as diferenças entre as classes sociais que despertou os
interesses de pesquisa. Depois de décadas de dedicação da antropologia a culturas tradicionais distantes
e diferentes, nos anos 1960, inicia-se uma busca por conhecer as diferentes expressões e práticas
culturais dentro das sociedades urbanizadas.
As favelas abriram as portas para uma diversidade cultural desconhecida dos cientistas e os estudos
se tornaram referências para a compreensão da nossa própria sociedade e para a elaboração de políticas
públicas. Desde então, vem crescendo o interesse em fazer antropologia urbana sobre os mais diversos
temas. As classes médias e baixas tornaram-se alvo de diversas pesquisas, e é dessas análises que nasce
a avaliação referente a áreas urbanas e a busca por um distanciamento, uma vez que muitos peritos
estudavam a própria sociedade.
Diversas pesquisas começam a trazer à tona as relações de dominação, os valores morais e regras
sociais que marcavam (e marcam até hoje) a discriminação e padrões dominantes que existem entre as
classes sociais. Velho revela que:
Tanto Gilberto Velho como Roberto DaMatta vão se empenhar em construir um método de
aproximação e distanciamento para compreender a sociedade que estamos envolvidos. Diferente de
estudar sociedades distantes, a pesquisa urbana exige do investigador um exercício de distanciamento
complexo da nossa sociedade; para tal, foi necessário um diálogo com outras disciplinas como psicanálise,
história da cultura e filosofia (VELHO, 2011).
DaMatta, por exemplo, estudou o carnaval, o conceito de malandro e a ideia de heróis, questões
raciais, a relação entre comida e sexo da sociedade brasileira contemporânea.
46
ANTROPOLOGIA: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
Saiba mais
Para saber mais sobre pesquisas de DaMatta, leia seu livro na íntegra:
Velho lembra: “[...] na cidade, em seus trânsitos, trilhas e anonimatos relativos, defrontamo-nos
ainda de modo mais agudo com essa experiência de multipertencimentos e fragmentação” (VELHO,
2011, p. 173), enbfatizando a complexidade dos indivíduos e das relações sociais, que, além do racional,
somos guiados pelas emoções, desejos e afetos, e isso interfere nas relações e na identidade de cada
indivíduo. Daí a importância de se estudar a vida simbólica, as crenças, os mitos, tradições e costumes,
eles vão para além do racional, envolve um sistema de crenças e costumes que precisam ser desvelados
para nós mesmos.
Nesse sentido, podemos lembrar das práticas de Bourdieu, citadas anteriormente, e da parcialidade
necessária ao cientista, pois as pesquisas em áreas urbanas também exigem essa postura. Por exemplo,
ao estudar a acusação de um drogado, Velho revela uma conjuntura histórico-cultural que vai desde
a família até o Estado, passando por políticas e poderes. Há diferenças nas visões internas da nossa
sociedade, o desvio de comportamento ou a acusação exigem uma visão relativista, pois acusado,
família e Estado possuem sistemas simbólicos diferentes que devem ser desvendados para uma
compreensão mais ampla. O que nos remete a uma leitura mais interpretativa de Geertz. Ou seja, Velho,
em sua antropologia urbana, utiliza-se de diversas abordagens antropológicas para avaliar as diversas
identidades da cidade, cada bairro com a sua moral.
Ao estudar esses ambientes, ficou evidente também a “cultura da violência”, que passou a ser objeto
de estudos, como criminalidade, tráfico de drogas e armas, cartéis, quadrilhas, gangues, corrupção,
abuso de poder etc. Esses temas trazem à tona a “crise de valores”, e antes de julgarmos precisamos
compreender o jogo de poderes existente por traz de tanta violência. Assim, a violência passa a ser
também um objeto de estudo da antropologia, vinculado às políticas públicas, e como pesquisadores,
não podemos assumir a visão de mundo das elites, classes médias, agressores ou autoridades. “O estudo
das gerações, seus valores, atitudes e projetos sugerem trilhas e possibilidades de conhecimento em que
a interdisciplinaridade torna-se cada vez mais prioritária” (VELHO, 2011, p. 178).
A partir das diversas pesquisas urbanas, acaba-se se revelando um mapa social, que vai além dos
índices tradicionais, pois existem espaços de prestígio, status, e espaços de violência, miséria, que
constroem fronteiras simbólicas e hierarquização dos bairros. Raquel Carriconde e Gilberto Velho
(2013) esclarecem como as políticas públicas e os poderes utilizam-se dessa fragmentação da cidade
e seus espaços de prestígio:
Outro exemplo levantado pela autora, ao refletir sobre as pesquisas de Velho, é o bairro da Lapa
no Rio de Janeiro: ele antigamente era reduto de malandros, travestis e prostitutas, e após um
amplo investimento de revitalização de iniciativa público-privada tornou-se um destino turístico
de diversão noturna, aparecendo inclusive em filmes de circulação global. Moradores antigos do
bairro que era estigmatizado tiveram de deslocar-se para bairros distantes e desprivilegiados,
devido à especulação imobiliária, que transformou a identidade da área em um bairro de prestígio
(CARRICONDE; VELHO, 2013).
Pensando-se em como elaborar o distanciamento, uma vez que se está estudando a sociedade em
que vivemos e que a parcialidade se torna mais complexa, pois nossos interesses e valores pessoais
estão intimamente envolvidos com ela. Como é possível o antropólogo, que faz pesquisas muito
mais qualitativas que quantitativas, criar esse distanciamento e se manter imparcial em suas análises
e interpretações? “O processo de estranhar o familiar torna-se possível quando somos capazes de
confrontar intelectualmente, e mesmo emocionalmente, diferentes versões e interpretações existentes
a respeito de fatos, situações” (VELHO, 1981, p. 131).
Para isso, é novamente Velho quem nos orienta. Há o distanciamento social e o psicológico.
O fato de estarmos na mesma sociedade não significa que estejamos mais próximos uns dos
outros do que quando se visita uma outra sociedade. Existe a questão da empatia, é possível
nos sentirmos próximos e termos uma vivência rica de trocas e comunicação com pessoas de
sociedades distintas, desde que se tenha um interesse em comum, e termos grande dificuldade
de convivência e comunicação com o nosso próprio vizinho, por não termos identificação um
com o outro. Desse modo, a distância ou proximidade passa pela possibilidade de comunicação,
interação, interesse, vivência etc. Falar a mesma língua não é o suficiente para isso, pois existem
usos de vocabulário e expressões com valores diferentes entre as classes sociais. A noção
de nacionalidade é uma construção do Estado-nação com ideologias da classe dominante,
portanto, as referências simbólicas que unem a todos na mesma sociedade são vivenciadas de
formas divergentes dentro de cada classe e grupo social. Velho recorda DaMatta, pois existe
uma diferença entre o que é familiar, mas não conhecido, e o que é exótico, mas conhecido.
Muitas vezes observamos algo que parece familiar, no entanto, ignoramos seus significados,
e o mesmo acontece ao notarmos algo tido como exótico, porém temos noções sobre suas
diversidades.
Velho traz exemplo: parece familiar observamos os grupos que transitam na nossa cidade (jovens
estudantes, trabalhadores esperando o ônibus, vizinhos trocando informações etc.), no entanto, não
sabemos os valores, as crenças e os hábitos de cada uma dessas categorias. Existe aqui a familiaridade com
o ignorado. Os estereótipos que temos dos grupos com que convivemos na cidade parecem suficientes
para nos trazer a familiaridade, no entanto, são dotados de preconceitos e visões generalizadas desses
48
ANTROPOLOGIA: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
modelos. Por outro lado, esses estereótipos mapeiam e hierarquizam a cidade, impondo referências de
como nos portar em cada ambiente social.
O antropólogo urbano terá de “se colocar no lugar do outro” e romper essas fronteiras simbólicas
para poder participar desse “outro” ambiente social. Assim, vamos “identificar mecanismos conscientes e
inconscientes que sustentam – e dão continuidade a – determinadas relações e situações” (VELHO, 1981,
p. 128). Busca-se conhecer e compreender as lógicas das relações, mesmo as que parecem familiares,
desvendar os estereótipos e classificações generalizadas.
O diferencial principal dos estudos urbanos é a possibilidade constante de testar, revisar e confrontar
um estudo com outro, pois há diversos pesquisadores e diversas interpretações; diferente dos estudos
em sociedades exóticas, no qual normalmente temos um ou dois antropólogos e não há a possibilidade
de confronto de interpretações. No mais, o próprio estereótipo já é uma fonte de informação para
análises e interpretações na busca de confirmá-los, desconstruí-los, buscar suas origens históricas. Além
disso, a visão antropológica pode ser confrontada ou validada por outras produções que observam a
cidade como filmes, literatura, jornalismo, política etc.
Resumo
53
Unidade II
Unidade II
5 ARTE, CULTURA E PATRIMÔNIO
Dialogamos com a noção de historicidade já trabalhada, uma vez que o patrimônio tenta reconstruir
a história de um povo. No entanto, devemos lembrar que a noção de história faz parte da sociedade
ocidental moderna, e a noção de tempo é mais universal às diversas culturas.
Também dialogamos com a ética do antropólogo debatida, pois, ao trabalhar junto de políticas
públicas de ações afirmativas, cabe o desafio de se manter fiel aos princípios metodológicos ou se curvar
aos interesses de mercado.
[...] formas de expressão, modos de criar, fazer e viver. Também são assim
reconhecidas as criações científicas, artísticas e tecnológicas; as obras, objetos,
documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações
artístico-culturais; e, ainda, os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico,
paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico
(IPHAN, [s.d.]).
De acordo com Lima Filho et al. (2007, p. 30-1), houve dois projetos para o Iphan, um de Mário
de Andrade, que seria “mais culturalista e antropológico, privilegiando uma noção de patrimônio que
enfatiza os aspectos mais intangíveis da cultura, como manifestações diversas da cultura popular”, e o
outro projeto, o vencedor, de Rodrigo de Melo Franco de Andrade, que privilegiava os aspectos materiais
do patrimônio, pautado em critérios históricos e artísticos que legitimavam a visão de um grupo de
gestores. Assim, em seu início, houve uma forte visão hegemônica do patrimônio nacional.
Segundo Pedro Funari (2001), mestre em antropologia social, patrimônio se refere a uma
propriedade, uma herança, um monumento, uma lembrança vinda do pai ou dos antepassados que
54
ANTROPOLOGIA: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
nos faz pensar, que nos ligam de modo subjetivo e/ou afetivo aos nossos antecessores. Já a ideia
de propriedade cultural é menos pessoal, ligando um monumento à sociedade em termos políticos.
As obras de arte na modernidade representam os bens culturais que fazem parte do patrimônio
nacional. Quando se fala em etnicidade ou nacionalidade, muitas vezes, os patrimônios culturais
são utilizados para a criação de tais ideias e para a construção da identidade étnica ou nacional.
A nação e a etnicidade são entendidas como “uma unidade objetiva, autônoma e dotada de
nítidas fronteiras territoriais e culturais e de continuidade no tempo” (GONÇALVES, 2007, p.
121). Esse grupo social é formado por um conjunto de indivíduos autônomos dissociados de sua
ordem cósmica. O que significa que cada indivíduo – de modo livre – possui sua autenticidade,
sua identidade, e que a nação ou etnia é formada por um conjunto de indivíduos que juntos
constituem uma unidade objetiva.
Os bens que são classificados como patrimônio nacional têm uma função de fazer uma ligação
temporal com o passado, garantindo uma continuidade temporal de cada povo. Os objetos possuem a
capacidade de evocar o passado devido à memória, um recurso mnemônico de associar ideias e valores
a objetos ou espaços. Para Gonçalves (2007), a ideia de que o passado e a memória são construtores
de identidade é um conceito moderno de construir uma narrativa dos indivíduos (biografias) e das
sociedades, uma ideia similar a de Hobsbawm sobre “tradições inventadas”.
55
Unidade II
Observação
A seleção, construção e classificação de objetos e espaços simbólicos serve para reforçar a identidade,
a ideia de nacionalidade ou etnicidade coletiva do presente. Se pensarmos nos nossos patrimônios
tombados, nossa memória reflete a continuidade de um passado colonial barroco ao observarmos
igrejas barrocas em Ouro Preto (Minas Gerais), ou nossa identidade negra, se pensarmos no terreiro Casa
Branca de Salvador (Bahia). Ao olharmos esses objetos, podemos dizer que existe uma continuidade,
uma memória com a qual nos identificamos como barrocos, religiosos, católicos mineiros ou negros, afro,
nagô e baianos, e isso nos torna autênticos, portadores da mesma identidade de nossos antepassados.
A autenticidade é também um conceito moderno e histórico, refere-se a uma aura, a uma unicidade,
a uma singularidade de um objeto em relação ao seu passado, algo significativo para seus possuidores
e irreprodutível. Essa autenticidade só é possível quando se entende a etnia ou a nação como unidade
real e autônoma, e quem faz a seleção da autenticidade do patrimônio é uma parcela da sociedade que,
segundo Gonçalves (1988), podem ser “autoritários” ou “democráticos” na construção dessa identidade
autêntica. Por isso, fala-se muito em patrimônio nacional, ao invés de patrimônio cultural.
Não podemos dizer que não exista uma política de preservação do patrimônio, pois há, mas ela
se atentava principalmente a preservar as casas-grandes ou sobrados, os fortes militares, as igrejas
barrocas, câmaras e cadeias, que são as nossas referências para a construção da identidade histórica
oficial; esquecendo-se das senzalas, favelas, casebres, mocambos e bairros operários. A cultura do povo
não era digna de atenção, nem considerada relevante. O que se conceituava patrimônio, no Brasil,
referia-se às elites e classes dominantes, tanto na arquitetura como na música ou nas artes.
Saiba mais
Esse descaso com as classes populares é parte da construção histórica do Brasil e é reforçado em
diversos campos das relações sociais, o patrimônio é apenas um desses campos. Na educação formal,
continuando com Funari (2001), existe esse distanciamento entre a história e a memória do povo,
pois se valoriza a história das classes dominantes, a visão dos “conquistadores”, enquanto as visão
56
ANTROPOLOGIA: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
dos indígenas, africanos e pobres é quase invisível, e quando aparece vem estereotipada, cheia de
preconceitos e referências negativas.
Para Funari (2001), um dos principais problemas do distanciamento do povo com o patrimônio é a
pouca comunicação e o pouco diálogo entre arqueólogos e o povo. Para ele, os arqueólogos deveriam
trazer uma compreensão do passado buscando a integração do processo de resgate e do produto em
diferentes mídias.
Vejamos o caso de Ouro Preto, em Minas Gerais. A cidade se erigiu por conta da mineração. Depois da
queda econômica mineradora, a cidade parecia fantasma até os anos 1930, quando foi redescoberta por
intelectuais modernistas e se tornou então “patrimônio nacional”; nos anos 1960, foi avaliada pela Unesco
como “Cidade Patrimônio Mundial” e passou a ser considerada “patrimônio cultural da humanidade”.
Nessas três primeiras décadas da redescoberta da cidade histórica, o Iphan tombou diversos monumentos
57
Unidade II
e igrejas nas cidades mineiras que fizeram parte da fase da mineração, principalmente em Ouro Preto.
Cria‑se um culto a Ouro Preto, às igrejas barrocas e às obras e a Aleijadinho, tornando a cidade em um
símbolo da identidade brasileira e um ponto turístico. A autenticidade dos sobrados e das igrejas, mantém
a aura da cidade como algo único e singular, e isso é vendido como a identidade nacional.
O que se criou, segundo Gonçalves (2007), foi uma ficção, as autoridades definiram o que é
patrimônio, o que é memorável ou não. O que não for definido como autêntico e nacional passa a ser
não nacional e, portanto, esquecido, invisível, alienado. Diante desse quadro de alienação com o nosso
patrimônio cultural, Funari (2001) sugere que busquemos um conhecimento crítico sobre o patrimônio
cultural para poder democratizar a informação e a educação, bem como dialogar com o povo sobre
nossas história e memória.
Diante desse cenário é que a antropologia começou a se dedicar também aos estudos do patrimônio
e a buscar atuar de forma mais ativa em museus. A relação dos antropólogos com museus já é antiga,
desde Franz Boas no Museu de Artes e Tradições Populares de Paris, passando por Lévi-Strauss no Museu
do Homem e do projeto de fundação da Unesco, e mais recentemente no Brasil temos Darcy Ribeiro
fundando o Museu do Índio e Édison Carneiro e Luiz de Castro Faria no Museu Nacional. A presença de
antropólogos no Iphan também é recente com a atuação de Gilberto Velho e Roque de Barros Laraia
(LIMA FILHO et al., 2007).
Foi justamente a intervenção da Unesco que começou a mudar a noção de patrimônio. Criada em 1945,
chega ao Brasil nos anos 1960 e começa a atuar nos anos 1970. Nesse período, a noção de bens e patrimônio
foi se adaptando às realidades da contemporaneidade e se tornando cada vez mais antropológica. No fim dos
anos 1980, começa a se abrir para as particularidades e diversidades culturais. A valorização de conhecimentos,
artes e culturas tradicionais e populares passa então a servir de referência para uma visão mais democrática na
seleção do patrimônio nacional. A intenção da Unesco era proteger as culturas tradicionais, pois a globalização
e o capitalismo poderiam e estariam dissolvendo tais expressões da cultura. No novo milênio, a organização
abre espaço para o Patrimônio Cultural Imaterial (PCI), que se refere às manifestações das culturas tradicionais
e populares (LIMA FILHO et al., 2007).
Uma das instituições que mais reunia antropólogos no Brasil e que passou a ter mais visibilidade foi a
Coordenação do Folclore e da Cultura Popular (CNFCP), ligada à Funarte do Ministério da Cultura. Foi então que
surgiu a oportunidade de criar o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial e o Programa Nacional do
Patrimônio Imaterial, sob o Decreto nº 3.551/2000 (BRASIL, 2000), supervisionado pelo Iphan.
Na ocasião, o antropólogo Antônio Augusto Arantes contribuiu com uma metodologia de inventário
das manifestações culturais como uma forma registro, de criação de documentos. Aqui, a questão da
autenticidade e da permanência não valem, uma vez que esses bens materiais são dinâmicos. Outra
contribuição antropológica foi de Ana Gita de Oliveira e Letícia Viana, e em parte a inspiração veio de
registros feitos pela Fundação Pró-Memória e técnicos do CNFCP, abrindo inclusive área de atuação para
antropólogos, para a preparação do inventário e de dossiês para registros no PNPI.
O primeiro bem cultural indígena registrado no Livro dos saberes foi a arte kusiwa: trata-se da
pintura corporal e arte gráfica de índios do Amapá estudados por mais de 15 anos pela antropóloga,
58
ANTROPOLOGIA: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
Dominique Gallois, com apoio do Museu do Índio. O selo oficial dessa manifestação levantou outra
discussão: o país é feito de muitas manifestações culturais, todas igualmente significativas, qual então
a importância de ter ou não o selo oficial? Como se dá a escolha das manifestações culturais a serem
inventariadas? E qual a relevância ou interferência das universidades, instituições museais e agências
estatais que apoiam a pesquisa? Volta-se a reflexão sobre a ética. E como dizem Lima Filho e Abreu:
“Cabe ao antropólogo este papel de certificador das culturas?” (LIMA FILHO et al., 2007, p. 40).
Vamos observar, então, alguns casos estudados que tiveram ideólogos diversos e interesses
conflitantes no processo de seleção e de reconhecimento da cultura como patrimônio. Segundo Mário
Chagas, havia no Brasil três vertentes políticas diferentes para o controle e construção do conceito de
patrimônio, mas elas não eram divergentes entre si: havia uma linha modernista liderada por Rodrigo
Melo Franco de Andrade no SPHAN; forças conservadoras no Museu Histórico Nacional controlado por
Gustavo Barroso; e uma vertente militar humanista de Cândido Mariano Rondon com o Serviço de
Proteção aos Índios (SPI) (ABREU; CHAGAS, 2003).
Na América Latina, a preservação dos patrimônios passou por um período colonial, dominado
pela Igreja Católica de preservação das igrejas mesmo sobre monumentos indígenas ou dominando a
paisagem no topo das colinas (caso do Brasil); por um período militar, de conservadorismo e patriotismo
buscando monumentos e festividades cívicas; e um período progressista da dominação da ideia de
modernidade e progresso que abandona patrimônios do passado para a construção de um país moderno.
Por fim, o patrimônio, além de construir e reforçar uma identidade nacional, tem também servido para a
identidade local do diferente, são os casos mais recentes de reconhecimento das diversidades culturais
locais, e do patrimônio gastronômico.
Mary Rodrigues (apud Funari, 2003), que estudou o Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico
Arqueológico, Artístico e Turístico (CONDEPHAAT), do Estado de São Paulo, fundado em 1968, revela que,
em seu período inicial, havia uma forte tendência ao conservadorismo do regime militar, pois buscavam
exaltar a imagem dos bandeirantes, grandes cafeicultores e datas comemorativas e cívicas ligada às
elites, deixando à vida rural como algo nostálgico. Nesse momento histórico, buscava-se a ausência de
contradições e constrói-se uma imagem de que São Paulo era formada apenas por bandeirantes.
Observação
A maior parte dos bens tombados pelo CONDEPHAAT valorizava essa história da ausência de
contraditório, excluindo a memória dos negros, dos imigrantes e dos trabalhadores, impedindo uma
reflexão sobre as relações existentes hoje dos conflitos de classes, dos preconceitos e do racismo. Marly
Rodrigues enfatiza que a intenção era construir um passado homogêneo, uma identidade partilhada de
características iguais, assim, a luta pelos direitos sociais se tornou invisível.
Outro exemplo lembrado por Funari (2001) seria a cidade de São Paulo:
Talvez o exemplo mais claro dessa luta contra a lembrança materializada seja
São Paulo, essa megalópolis, cujo crescimento não encontra paralelos. Ainda
que fundada em 1554, continuou a ser uma cidadezinha até fins dos século
XIX, até tornar-se, nestes últimos cem anos, a maior cidade do hemisfério
sul. Nesse processo, restos antigos sofreram constantes degradações
ideológicas e físicas, sendo construídos novos edifícios para criar uma
cidade completamente nova. Os edifícios históricos, se assim se pode falar,
são a Catedral e o Parque Modernista do Ibirapuera, planejado por Niemeyer,
ambos inaugurados em 1954 para comemorar os quatrocentos anos da
cidade. Os principais prédios públicos, como o Palácio dos Bandeirantes,
sede do governo do Estado de São Paulo ou o Palácio Nove de Julho, que
abriga a Assembléia Legislativa do Estado, são, também, muito recentes e a
mais importante avenida, a Paulista, fundada em fins do século XIX como
um bastião de mansões aristocráticas, foi totalmente remodelada na década
de 1970 (FUNARI, 2001, p. 2-3).
Mesmo em cidades coloniais, comenta Funari (2001), nem as autoridades municipais nem a sociedade,
que vivem em parte do turismo, se preocupam com a conservação e preservação do patrimônio cultural.
O interesse em ter acesso à modernidade faz com que as infraestruturas sejam totalmente refeitas,
diferente de sociedades medievais na Europa, por exemplo, que buscam a manutenção dos edifícios,
e fazem a modernização sem grandes danos à estrutura arquitetônica. Essa crítica não busca uma
comparação de superioridade, mas sim revelar o quão alienada é a população e as autoridades em
relação à memória da sociedade.
60
ANTROPOLOGIA: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
No caso do Quilombo dos Palmares do século XVII, o mais importante quilombo e símbolo da
resistência negra, ele foi descoberto por ativistas negros. Localizado na Serra da Barriga, no estado
de Alagoas, foi declarado patrimônio nacional em 1985, após uma grande campanha liderada pelo
movimento negro, no entanto, ficou sob o controle das forças militares ligadas ao regime militar,
que acabou nivelando parte do terreno para promoção de festas, a fim de ganhar apoio eleitoral.
Nos anos 1990, pesquisas científicas junto com os ativistas negros conseguiram resgatar parte
da história e da arqueologia e produzir diversos materiais científicos divulgados no Brasil e no
exterior. Um dos trabalhos revela que Palmares era uma sociedade não autoritária, pluralista,
abrigava não apenas negros, mas também índios, judeus e todos os discriminados pela ordem
colonial (FUNARI, 2001).
Saiba mais
Para saber mais sobre o Quilombo dos Palmares, leia as seguintes três
obras do pesquisador:
Outro exemplo gritante do descaso com a cultura e patrimônio local é, segundo Lúcio Ferrera
(apud FUNARI, 2003), o caso do projeto da transposição do Rio São Francisco de canalização das
águas para levar recursos hídricos ao sertão nordestino, bem como a construção de hidrelétricas
para geração de energia. Inegáveis a importância e a urgência de abastecer as populações mais
sofridas com água e energia, não é essa a discussão. A questão são os trabalhos de escavação
arqueológicas e a comunicação com a população indígena e ribeirinha local. Em nome do
progresso, o patrimônio cultural e histórico está sendo mal coletado, mal manipulado e há uma
ausência de pesquisas e estudos sobre as descobertas arqueológicas de toda a região do Baixo São
Francisco. Segundo o pesquisador, existiria um grande potencial para turismo cultural e ambiental
na região caso os estudos respeitassem as metodologias científicas e a comunicação com as
populações ao redor da obra. Seria possível promover juntamente com as obras de infraestrutura
uma emancipação da população local, com a construção de um Ecomuseu, e a recuperação da
identidade e da história na região, para uma integração não somente hídrica e energética, mas
também uma integração social e de respeito com as comunidades.
A relação com o patrimônio começa a mudar nos anos 1980 e 1990 com a redemocratização do
País. Gilberto Velho foi protagonista no primeiro reconhecimento oficial de um patrimônio imaterial de
61
Unidade II
tradição afro-brasileira: o terreiro de candomblé Casa Branca, em Salvador, Bahia. Era ainda meados dos
anos 1980, e, por isso, o reconhecimento oficial foi bastante polêmico.
Para conseguir o tombamento, foi necessário um grande movimento social com artistas,
intelectuais, políticos e lideranças religiosas, sociedade civil e conselheiros do secretário da cultura
do MEC, pois havia resistência dentro do próprio Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (SPHAN) e de parte da sociedade e da imprensa. As divergências de opinião e o drama
social estiveram presentes durante o processo de tombamento no reconhecimento da simbologia
para a identidade nacional, como se a discussão fosse sobre a própria identidade brasileira, segundo
Velho (apud LIMA FILHO et al., 2007). A valorização de cultos afro-brasileiros entrava em choque
com a ideia de religiosidade brasileira construída até então, pois se abriria para uma sociedade
brasileira multiétnica e plural, em contraste com a ideia de hegemonia que se vinha construindo
há décadas. Os resultados dessa conquista foram a abertura de discussão sobre a necessidade da
reparação às perseguições e intolerâncias religiosas existentes desde os primórdios da sociedade
brasileira. A partir desse episódio, outros terreiros e patrimônios da cultura não luso-brasileira
começaram a ser tombados.
Isso aconteceu com a primeira sede do Museu do Índio no Rio de Janeiro. O projeto demarcava o
metrô perto do museu, e a falta de interesse e investimento em defesa do museu enquanto patrimônio
e um incêndio forçaram o museu a ser transferido na década de 1970 de uma rua no Maracanã para
um sobrado em Botafogo. A história do museu muito se assemelha com a história de resistência e luta
pela sobrevivência dos povos indígenas. O museu foi inaugurado em 1953, tendo Darcy Ribeiro como
fundador; em seu início, despertou grande interesse e entusiasmo, conseguindo construir um acervo
significativo tanto de objetos como de produção audiovisual, pesquisas e intercâmbio com outros
museus. Toda essa produção com foco na defesa humanitária dos índios, contra o preconceito (CHAGAS;
ABREU, 2007).
62
ANTROPOLOGIA: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
A intenção de Darcy Ribeiro era romper com o estereótipo negativo que a população foi construindo
devido às narrativas de museus tradicionais e da imagem dos “peles vermelhas” construída por filmes
estadunidenses. No mais, o Museu colocou a figura de um mediador treinado para explicar a exposição
e ao mesmo tempo combater o preconceito.
De acordo com Mário Chagas (doutor em ciências sociais e coordenador técnico do Iphan), o museu
foi inovador ao mostrar as semelhanças entre o “outro” e “nós”, no entanto, criou uma visão romântica
do índio, pois possuía uma política indigenista e protecionista. Segundo Chagas, após várias crises e
mudanças no rumo político, o museu hoje vai além de um espaço que apresenta objetos selecionados
que representam as culturas indígenas, é também um ambiente de negociação e mediação entre os
índios e a sociedade nacional, “um lugar de apropriação cultural e de construção de identidades e
subjetividades” (CHAGAS; ABREU, 2003 apud LIMA FILHO et al., 2007, p. 176). A diferença do Museu do
Índio para outros museus etnográficos é que ele traz a visão do nativo em primeira pessoa falando sobre
sua própria cultura, ao invés de um narrador falando em terceira pessoa sobre o “outro”.
Outros exemplos desse novo modelo de museu seriam: Museu da Maré, Sala do Artista Popular
e Museu do Folclore. O museu não é apenas para os visitantes, e sabe-se que esses espaços não são
de visitação em massa, mas principalmente de escolas e de pesquisadores. No entanto, o museu tem
assumido um papel de integração entre indígenas e a sociedade nacional, uma vez que os índios
participam do processo educativo, da montagem e da construção da narrativa do museu. Diversas
culturas indígenas já passaram pelas exposições do museu e tem como foco o combate ao preconceito
e ao racismo, visando romper com estereótipos.
Na mesma linha, temos o Museu Magüta. A antropóloga Priscila Faulhaber (apud LIMA FILHO et al.,
2007), ao falar do Museu Magüta (em Banjamim Constant, Amazonas), conta como foi a tradução do
conteúdo significativo da cultura Magüta para outras linguagem. Atualmente, além do espaço físico do
museu, existe o site e um CD-Rom. Os bens culturais hoje no local são manejados de formas diferentes
do seu contexto, o que significa que há uma perda do significado e uma atualização de significados
na relação intercultural. A experiência de colocar no meio virtual a cultura dos índios Ticuna teve
participação direta e constante dos próprios indígenas, isso fez com que eles refletissem sobre esse meio
mágico de disseminar e incluir sua identidade e patrimônio cultural local na sociedade global, moderna
e do conhecimento.
Quando os Ticuna observam os objetos e fotos no museu, eles lembram dos conflitos territoriais
entre os Ticunas e inimigos, associam os bens culturais a seres que não podem ser vistos e que fazem a
mediação entre os homens e o meio ambiente. A interpretação dos Ticuna possui uma dinâmica identitária
não como um resgate da originalidade ou da propriedade perdida, mas sim como uma tradução cultural
de atualização do conhecimento acumulado entre os Ticunas e a sociedade (FAULHABER, 2002 apud
LIMA FILHO et al., 2007).
Os vídeos realizados por pesquisadores e com participação de representantes Ticuna fazem sentido
para o povo Magüta na lógica do pensamento mágico, são instrumentos de mediação entre os povos,
seria a transposição de sua cultura para uma rede de comunicação que está dissociada do contexto
comunitário. Mesmo as músicas introduzidas no CD-Rom têm significados simbólicos associados aos
mitos concernentes à lógica do pensamento Magüta na tentativa de harmonizara tradução. A descrição
dos objetos tem contribuição de saberes multidisciplinares, incluindo a descrição do nativo, levando em
consideração o nativo e o científico.
64
ANTROPOLOGIA: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
A figura é “um tecido de entrecasca de árvore decorado como uma roda cosmogônica que protege
a moça e seu grupo de referência contra ameaças” (FAULHABER, 2002 apud LIMA FILHO et al., 2007, p.
150). Quando os anciões observam a foto desse “artefato ritual” no museu, eles o entendem como “um
instrumento ou algo que é utilizado em treinamentos de guerra, para o conhecimento para o saber, para
a ciência” (FAULHABER, 2002 apud LIMA FILHO et al., 2007, p. 150). Nas palavras de Priscila Faulhaber:
O exemplo do trabalho da antropóloga mostra como o patrimônio cultural pode ser utilizado de
modo democrático incluindo e respeitando características interétnicas. A noção de patrimônio foi se
transformando ao longo do tempo, ao mesmo tempo, os museus e a arte foram também se atualizando
e passaram a respeitar e incluir a diversidade cultural de modo mais democrático. Ainda há desafios a
enfrentar, como as questões de autoria, ética e papel seletor do antropólogo.
6 ANTROPOLOGIA E CONSUMO
Lembrete
A oposição entre os dois tipos de sociedade se aprofundou nos anos 1950 e 1960, o que não
possibilitou a compreensão do consumo como um sistema de valores culturais. A troca de presente nas
sociedades primitivas mantinha a solidariedade social, já a compra de mercadorias não era vista como
uma criadora das relações sociais nas sociedades ocidentais (DUARTE, 2010).
O imaginário contemporâneo é rico de motivações para o consumo dos mais variados produtos,
serviços e ideias. No entanto, existia um tabu ou um silêncio nas ciências sociais ao falar de consumo,
e teorias sobre consumo são deixadas para outras áreas do saberes. Para desconstruir esse tabu, vamos
tentar conhecer melhor a questão e como ela vem sendo pesquisada nessas últimas décadas.
Everardo Rocha mostra que alguns estudos classificam o consumo em quatro possibilidades:
hedonista, moralista, naturalista e utilitarista, que podem estar isoladas, articuladas ou em conjunto. No
entanto, o antropólogo defende que essa leitura dificulta a compreensão e interpretação do fato social.
Para ele, o consumo é um fenômeno da ordem cultural, um construtor de identidades, uma bússola das
relações sociais e um sistema de classificação de semelhanças e diferenças (ROCHA, 2005).
Vamos então conhecer melhor essas visões e algumas críticas a elas. Hedonista é a ideologia
mais famosa aplicada ao consumo, ela é utilizada no sistema publicitário, ou seja, consumir é ser
feliz. Tão fácil de ser percebida nas publicidades também se demostra frágil às críticas (ROCHA,
2005). O consumidor é um agente passivo, é o comércio quem cria os mapas sociais e suas
distinções, e cabe ao consumidor apenas se encaixarem no “estilo de vida” ditado pelo capitalismo
(MILLER, 2007).
A visão moralista traz carga apocalíptica, pois o consumo é visto como o problema da
sociedade, é por causa dele que decorreriam violência, ganância, individualismo, desequilíbrios
mentais e ambientais. O consumo possuiria uma carga negativa, o sujeito seria consumista, o
discurso contra o consumo tem uma carga positiva e moralista. O consumidor se torna a cigarra
na fábula da cigarra e a formiga. Nesse caso, trabalhar, produzir, economizar seria bom, nobre,
de prestígio social; gastar, consumir, divertir-se seria ruim, vicioso, pecaminoso, supérfluo, fútil,
alienador. Essa visão moralista é um dos motivos do silêncio que existe na ciências sociais nos
estudos sobre o consumo como prática cultural.
A evidente influência do marxismo nas ciências sociais deixa clara essa rejeição. Em Marx, é a
produção a categoria fundamental, a construtora de identidade, motivo das lutas de classe, é nela que
se desenvolve a alienação. O produto a ser consumido não visa satisfazer as necessidades, mas garantir
o lucro e a mais-valia para o capitalista, é apenas uma mercadoria a ser comprada e vendida. Com isso,
as relações pessoais se transformam em relação entre coisas (DUARTE, 2010).
O trabalho foi supervalorizado nas sociedades ocidentais capitalistas, no entanto, ele não deve ser
visto como o único fenômeno-chave para a compreensão da vida contemporânea, há outros fenômenos,
uns mais centrais e outros mais periféricos, a serem estudados (DUARTE, 2010).
Daniel Miller (2007) observou que essas abordagens demonstravam um “preconceito antimaterial”, ao
verem o materialismo do consumo de massa como um perigo para a sociedade e para o meio ambiente.
Para o antropólogo inglês, o reconhecimento da expansão do consumo pode ser visto como abolição da
pobreza ou como desejo de desenvolvimento.
Essa visão de consumir como algo doentio se opõe à produção. Na mesma linha de pensamento,
existe a tradição religiosa do sacrifício, que vem antes do consumo daquilo que as pessoas produziram,
uma parte do que foi gerado deve ser restituído aos deuses para amenizar a destruição. Há também a
associação do consumo com a luxúria, o pecado, o que reforça a visão moralista (MILLER, 2007).
Essas duas primeiras visões (hedonista e moralista) mostram uma sociedade superficial e sem
autenticidade, na qual os indivíduos seriam passivos e influenciáveis. A identificação por meio do
consumo destaca uma mudança de identidade, na qual o salário e o trabalho não são mais as referências
para a construção das relações sociais, já o consumo passa a ser um processo no qual o indivíduo tem
mais controle de sua própria vida. O capitalismo, segundo Miller (2007), define as pessoas por seu
trabalho, e não por seu consumo, a identificação do trabalho é vista como mais autêntica, glorificadora.
A visão naturalista ou determinista, segundo Rocha (2005), é aquela segundo a qual consumir
tem outros significados, de natureza, biologia ou espírito humano. São usos diversos para o verbo
como “o fogo consumiu a floresta”, “preciso consumir oxigênio”, “o trabalho consumiu suas
energias” etc. Esse consumo, como algo natural, necessário, é diferente do consumo cultural e
simbólico do qual estamos falando. Consumir um alimento é diferente de consumir um churrasco,
um refrigerante ou um doce, pois, no segundo caso, há uma escolha cultural; no primeiro, uma
necessidade biológica.
Miller (2007) diz que essa visão cresceu com as ciências econômicas, que precisavam estimular a
economia por meio do consumo, para fazer circular o dinheiro e diminuir a pobreza, assim, consumir
67
Unidade II
passou a ser algo natural do capitalismo. Nesse sentido, é muito importante um estudo antropológico do
consumo para que se faça a dissociação da necessidade e do desejo de consumir. A sociedade moderna
criou uma associação entre consumo como algo imperioso. O desejo por determinado produto ou marca
não é uma exigência, mas um sistema cultural com sentido coletivo e simbólico.
Já a visão utilitária é a que predomina nos estudos de marketing para a produção de resultados de
venda, a pesquisa de mercado visa compreender como se vende mais, como aumentar a rentabilidade e
o lucro. Assim, conhecer o comportamento do consumidor por meio de pesquisas de mercado e estudos
psicológicos é um caminho para desenvolver uma teoria cultural do consumo, segundo Rocha (2005).
Há muitos estudos de administração para estimar as escolhas específicas do consumidor, como o “efeito
Diderot” de McCracken (2003), no qual há uma manipulação deliberada para se consumir cada vez mais,
por exemplo: os produtos da Apple criam vínculos entre um e outro, fazendo com que o consumidor
queira comprar sempre produtos da mesma empresa, ou ainda discursos da mídia convencem que uma
camisa nova não é coerente com uma calça velha, assim, ao ganhar uma camisa nova, o indivíduo
procura uma calça que não destoe.
A superação da visão da sociedade dual, de que falava Duarte (2010), será essencial para a construção
do consumo como objeto de estudo. O consumo é um fenômeno-chave para compreendermos a
sociedade contemporânea. Assim como Geertz estudava briga de galos, na sociedade urbana o consumo
trará um sistema de significação, uma necessidade – não fisiológica ou básica, mas simbólica. Ou, se
lembrarmos de Lévi-Strauss, que estudou os mitos, o parentesco etc., o consumo é também um código
que transmite uma mensagem, o cidadão é dotado de valores que os aproxima de um grupo e o distancia
de outros. Isso nos leva a uma terceira ideia do estudo antropológico do consumo, pois ele é construtor
de identidade. Por fim, o consumo faz parte da cultura de massa (mídia, publicidade e marketing), que
é uma instância importante na sociedade moderna urbana e capitalista, promotora da vida social, da
socialização, da integração simbólica.
Novidade na antropologia do consumo surge no fim dos anos 1970 com Marshall Sahlins, em
Cultura e razão prática (1976), Mary Douglas e Baron Isherwood com O mundo dos bens (1978), e Pierre
Bourdieu, em A distinção (1979). É Sahlins quem desconstrói a oposição entre dádiva e mercadoria
ao falar da troca como um fim em si e que o fluxo de bens instaura relações sociais. O antropólogo
estadunidense estudou bens alimentares e vestuário, concluindo que a aquisição de objetos produz
distinção cultural. Sua leitura se opõe ao naturalismo e utilitarismo dos bens de consumo, para mostrar
a ordem simbólica ou significativa. Douglas e Isherwood também trazem a ideia dos bens como sistema
de categorias com função expressiva e simbólica, ponderando que sua aquisição e posse confere status,
e os objetos são partes visíveis da cultura que transportam e comunicam significados.
Nos anos 1980, segundo Duarte (2010), muitas áreas do saber, inclusive a antropologia, começam a
se dedicar ao estudo do consumo, no entanto, um viés moralista continuou a orientar alguns estudos.
“Sociedade do consumo” e “cultura de massa” passam a ser referências para os estudos, no entanto,
persiste a associação do ato de consumir como algo alienante e ambicioso. Outra ideia difundida foi
a “homogeneização descaracterizadora”: as sociedades modernas, ao consumirem produtos e serviços
globais, estariam se afastando de suas especificidades para assumirem comportamentos “materialistas”
e “fetichistas” em relação aos objetos, deixando de se relacionarem com as pessoas.
Saiba mais
Para uma visão sobre esse materialismo, vale a pena assistir ao filme
referenciado a seguir. Nele, pode-se observar o quanto o uso da internet
pode interferir nas relações interpessoais.
Outra visão que surgiu nos anos 1980 foi de Michel de Certeau, em A invenção do cotidiano, no
qual ele explora a apropriação que os indivíduos fazem dos produtos de massa por meio da leitura.
Cada sujeito ao ler um livro ou um folheto se apropria do artigo de forma diferente. Ou ainda, um
consumo de resistência, no qual o sujeito é ativo consome produtos que vão contra a hegemonização
da mercadorização, como o “consumo verde”.
Esses primeiros passos possibilitaram a antropologia se abrir para um estudo do consumo. Já sem a
oposição às dádivas das sociedades primitivas e sem as resistências de visões marxistas, moralistas ou
utilitaristas, a antropologia do consumo começa a se desdobrar para várias leituras. Dos anos 1990 em
diante, muitos nomes se destacam nas pesquisas sobre práticas de consumo nas sociedades ocidentais
capitalistas contemporâneas.
A antropologia do consumo fica mais consolidada com Daniel Miller, em Material culture and mass
consumption. Miller, em um artigo publicado na Revista Horizontes Antropológicos, explica o consumo
como cultura material contemporânea e que, ao invés de ser visto como materialismo, ele deve ser
usado como uma forma de compreender a humanidade, para isso ele estuda entre outros temas a
casa, o vestuário, a mídia, o carro, as commodities e outras relações entre pessoas e coisas. Essa visão
materialista coloca a relação, o apego ou a devoção ao objeto como impura se comparada com a
relação, devoção e apego a pessoas.
69
Unidade II
Miller (2007) faz uma crítica à moralidade e também às maneiras como as companhias tentam
vender seus bens e serviços, ou ainda à exploração dos trabalhadores para aumentar as vendas. No
entanto, isso não pode ser confundido com a maneira como os indivíduos consomem e a autenticidade
de alguns desejos. A antropologia do consumo deve se concentrar em explicar e compreender a prática
do consumo, as relações estabelecidas, e não uma continuidade da moralidade que condena a
modernidade e o materialismo.
No entanto, para essa reapropriação ser realizada, é preciso a comunicação em massa, propagandas,
marketing, mídia como forma de explicar e divulgar a necessidade e o desejo pelos bens e serviços. A
cultura de massa cria mitos, as regras do jogo, a identidade dos jogadores, os espaços para os rituais
contemporâneos, assemelhando-se a um sistema totêmico. Rocha (2000) nos ajuda a compreender,
partindo de um ponto de vista bourdiesiano, que o consumo é uma prática com códigos culturais dentro
da esfera de produção. Esses códigos são elaborados pelos meios de comunicação em massa, que criam
um processo de socialização. Nesse processo, há motivações psicológicas (desejo), biológicas (instinto) e
econômicas (necessidade), entre outras em cada sujeito.
Todavia, para a antropologia, o importante são os códigos culturais, os motivos que nos levam a
determinadas lojas e a consumir determinadas marcas, são aspectos da nossa identidade pessoal e de
grupo, e isso cria um sistema simbólico que permite a visibilidade de estilo de vida, ideias, categorias,
identidades sociais e projetos coletivos (ROCHA, 2000).
Nesse supermercado imaginário de Rocha (2000), não há sistema simbólico, nem comunicação
ou código. Como saber se estamos comprando xampu ou detergente, leite em pó ou farinha, água
70
ANTROPOLOGIA: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
ou álcool? São a comunicação em massa, as marcas, os rótulos, as etiquetas que nos orientam,
dando significado aos produtos. Ou seja, o consumo é cultural, dotado de sentido que passa por
um sistema de significação; o marketing e a mídia são os tradutores do produto. É a mensagem da
propaganda que cria o sistema simbólico e organiza o comportamento do consumidor.
A sociedade então cria o sistema simbólico e o divulga por meio da mídia, o consumo acontece
quando os sujeitos compreendem esse sistema simbólico, independentemente da necessidade, do
desejo, do instinto ou da utilidade do produto. A mídia se utiliza do sistema simbólico para repassar
os significados que fazem do produto algo consumível, ou seja, a embalagem, cores, rótulos, músicas,
slogans, mercados etc. transformam o material inerte em cultura. Esses meios de comunicação servem,
segundo Rocha, de “instrumento pedagógico, explicando a produção e transformando produtos e
serviços em necessidades, desejos, utilidades” (ROCHA, 2000, p. 26).
Saiba mais
McCracken (2003) percebe que o significado da cultura material é fluido, móvel, dinâmico e existe
uma intervenção ativa de diversos agentes sociais como produtores, publicitários e consumidores. Os
objetos sofrem duas transferências de significado, a da publicidade e a do consumidor:
Na mesma linha de pensamento, lembra Miller (2007), os bens são realmente mercadorias, porém,
após a compra, o produto passa a ter sua especificidade e uso particular. Durante o processo de produção,
71
Unidade II
divulgação e venda, os produtos são bens materiais substituíveis e impessoais; com a aquisição do
objeto ou serviço o consumidor, assume um papel mais participativo, recontextualizando a mercadoria,
tornando-a em um objeto de uso pessoal e particular a tal modo, que ela se distancia da produção
industrial e não pode mais ser vendida ou dada.
Por exemplo, nossos aparelhos celulares. Até o momento em que estão nas lojas, são todos iguais,
impessoais, apenas objetos. Após a compra os tornamos personalizado, com fotos, músicas, aplicativos,
jogos, acessos a e-mail e redes sociais pessoais etc. Nesse processo de recontextualização, o produto
alienável é agora “um trabalho de construção cultural”. Ou seja, os bens de massa são a nossa cultura.
Há então uma participação ativa na objetificação dos bens industriais (DUARTE, 2010).
Nesse processo de objetificação, McCracken (2003) acrescentaria que existem quatro tipos de rituais:
• de troca – no qual o consumidor escolhe, compra e oferece bens de consumo para outras pessoas;
• de posse – no qual ocorre uma “personalização do objeto”;
• de apresentação – quando o consumidor utiliza de artigos para se apresentar conforme as
circunstâncias, refazendo periodicamente sua imagem;
• de despojamento – quando o dono de um bem retira as propriedades simbólicas associadas a ele
para poder passar o objeto a um novo dono.
Saiba mais
Todos esses estudos acabam colocando o consumo como uma atividade prática e contextual
que expressa valores e faz parte da construção da vida social. A antropologia do consumo vai
desenvolver alguns conceitos das linhas antigas e fazer uma revisão de outras linhas, e um ponto
importante foi a demonstração das diferenças regionais do consumo, que percebe a existência de
vários regimes de consumo.
72
ANTROPOLOGIA: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
Com isso, começa a haver uma análise sobre a globalização e a relação entre local e global, chegando
assim a uma relativização das práticas de consumo. O consumo é parte da globalização, da circulação
de ideias e produtos, e o seu potencial homogeneizador evidencia também uma heterogeneização das
estratégias de comunicação e de manutenção das identidades étnicas, sociais e individuais.
Duarte (2010) reforça que essa leitura antropológica não busca a relação entre bens e sujeitos que
tende a classificar e mapear classes sociais de status; busca sim a relação entre consumo e a construção
de subjetividades. Ou seja, é fundamental reconhecer os modelos mais locais e particulares do uso
das mercadorias, a cultura não pode ser vista como um conjunto de mercadorias nem ser vista como
ameaçada pela chegada dos bens de massa, por isso a antropologia do consumo deve demonstrar as
diversas possibilidades de consumo.
No momento em que as mercadorias se tornam presentes, elas perdem seu anonimato e ganham
sentimentos, valores. Ou seja, o ritual de troca de lembranças, muito comum em sociedades cristãs
na época do natal, por exemplo, transforma a mercadoria de massa em algo personificado, é o
veículo da relação entre o presenteador e o presenteado, a escolha do artigo para cada parente ou
amigo leva, no momento da troca, os valores e sentimentos que os sujeitos envolvidos possuem
entre si. A troca de regalos não acontece apenas nas sociedades cristãs, na verdade ela é muito
anterior ao período cristão, sociedades tribais já possuíam rituais de trocas de presentes como
parte do comércio.
O ritual de posse passa a ter outro significado que não apenas ganância, luxuria, consumismo.
Possuir um bem é também ressignificá-lo, a apropriação de mercadorias tem suas particularizações,
e cada sujeito fará um uso particular do objeto comprado. Produtos iguais possuem valores e usos
diferentes: uma camisa social pode ser usada como uniforme de trabalho por um executivo, ou como
roupa de festa por um funcionário, por exemplo. Na mesma linha, podemos pensar o ato de “ir às
compras”, ali os consumidores são evidentemente agente sociais, e é importante compreender o que
fazem e porque o fazem. Duarte (2010) acrescentaria a relevância de saber como o fazem, buscando
assim pesquisas qualitativas para concretizar um estudo fenomenológico do consumo.
Os espaços sociais mostram a distinção de tais estudos, uma vez que os centros comerciais, feiras,
shoppings e mercados são espaços de relações sociais, são áreas privadas transformadas em espaços
públicos para as interações e encontros sociais. Outro tema relevante seriam as compras para estudo dos
gêneros e sexualidades, ou ainda, construção de várias identidades. Todos esses estudos que já foram
iniciados indicam que consumir não é comprar uma identidade pronta, o processo inclui a imaginação,
a experiência e a reflexão de cada agente, e envolve ainda a percepção sensorial. É comum buscarmos
um produto em uma loja, mas a interação social, a falta de interesse do vendedor nos fazer desistir
e acabarmos comprando em outra loja, na qual tivemos um tratamento melhor, por exemplo; ou
experimentarmos uma calça que parecia linda na vitrina, mas que não combina com a nossa identidade.
Uma bibliografia interessante sobre “ir às compras” é novamente de Daniel Miller em A teoria
das compras (1998), no qual o autor demostra que o ato de ir às compras é primeiro a reafirmação
dos relacionamentos afetivos, pois nem sempre o comprador faz escolhas individuais, às vezes vai às
compras em nome da família, e por isso, ao comprar alimentos, o consumidor busca agradar o gosto de
73
Unidade II
cada um dos que o aguardam em casa. Embora exista a restrição econômica, a restrição afetiva é muito
expressiva, o que leva a outras duas categorias: o comprador também se permite escolher presentes
ou lembranças para si ou para alguém especial; e uma terceira categoria de compra seria a economia,
a importância de não gastar muito ou do quanto se pode gastar. A quarta categoria é o discurso da
compra, o que as pessoas falam sobre esse ato. Outro tema interessante do livro é a relação que o autor
faz com o rito de devoção e sacrifício, fazendo um paralelo entre a religiosidade cristã e o consumo.
Para Miller (2007), então, o consumo não deve ser visto como o ponto final que concretiza o
capitalismo, os estudos etnográficos devem percorrer a publicidade, o ato de comprar, o uso e o discurso
que será feito da mercadoria. Ou seja, a visão da antropologia se afasta e até contradiz uma visão
marxista com foco na produção e na mercadoria alienável para uma visão da construção da identidade
e das relações sociais. Porém, o próprio autor ressalva que nem todo consumo atinge seu potencial de
construção cultural. Mas o principal é que a antropologia da cultura material percorreu esse caminho
para poder criar uma teoria do consumo.
O estudo da cultura material abriu espaço para a percepção do uso das mídias, desde rádios, fitas
cassetes e televisores, até computadores, celulares e tablets. O crescimento dos estudos da cultura
material permitiu também a relativização, a observação dos diversos usos de uma mesma mercadoria
em culturas diferentes. O interessante a se desenvolver hoje em pesquisas é tanto o estudo da produção
como o do consumo em conjunto, compreendendo que existe uma relação pouco explorada entre as
pessoas e elementos da cadeira de produção com o uso do consumidor.
Com isso, podemos observar como foi o amadurecimento da antropologia do consumo e sua
importância para concebermos a sociedade contemporânea e sua diversidade na cultura material.
Muitas pesquisas já foram feitas, e ainda há muito espaço para novos estudos, uma vez que o ato de
consumir é dinâmico.
Pode parecer novidade fazer a relação entre antropologia e política, mas essa é apenas mais uma
das áreas de estudos da antropologia contemporânea, uma vez que a antropologia começou a observar
o papel dos agentes sociais, desde as críticas a Lévi-Strauss, como vimos no início da nossa disciplina.
Vimos também os estudos da antropologia urbana, o que recoloca a temática de observarmos nossa
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ANTROPOLOGIA: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
própria cultura, e pensando nisso fica mais fácil assimilar a necessidade de se avaliar os movimentos
sociais e a antropologia da política.
Entretanto, a antropologia já tratava não com uma área de estudo, desde seus primórdios, da temática
das relações de poder, porém com uma visão ainda evolucionista de comparação entre o sistema político
“primitivo” e o da sociedade moderna que seriam mais “evoluídas”. Posteriormente, ao avaliarmos as
estruturas de parentesco como uma forma de coesão e organização social, a disciplina se aproxima
de pesquisas mais específicas de antropologia política, como o estudo dos Nuer de Evans‑Pritchard.
Apesar de a política estar muito abrangente nesse caso, foi então que se consolidou o início das análises
políticas em antropologia. Uma nova fase vem no período pós-guerras devido à divisão mundial de
sociedades capitalistas, socialista e comunistas, além da existência do colonialismo e dos movimentos
sociais feministas e anticolonialistas (KUSCHNIR, 2007).
No Brasil, a antropologia da política se desenvolve nos anos 1990, ao observarmos que nossa
sociedade é repleta de agentes sociais lutando pelos seus direitos e buscando formas de fazer política
enquanto agentes da sociedade civil. Então, para falarmos de movimentos sociais e política, precisamos
pensar em um Estado nacional e em cidadãos. No Brasil, uma referência significativa para esses estudos
está no Núcleo de Antropologia da Política (Nuap), vinculado ao Programa de Pós Graduação em
Antropologia Social e Museu Nacional, que reúne pesquisadores e trabalhos etnográficos de diferentes
universidades brasileiras em três dimensões: o estudo dos rituais da política, de representações da
política e da violência na política.
Saiba mais
Para explorar mais os temas de antropologia da política, visite o site do
Núcleo de Antropologia da Política (Nuap):
<http://nuap.etc.br/>.
Nos anos 1980, uma das referências em antropologia da política, a antropóloga Mariza Peirano, destaca:
“Qual a concepção que diversos grupos têm de cidadania? O que é um “cidadão”? Através de que símbolos é
possível detectar concepções de cidadania?” (PEIRANO, 1986, p. 50). Nessa discussão ela nos faz refletir que a
noção de cidadania é um conceito histórico moderno, pois está vinculado à construção das nações-estados;
essas organizações sociais, também chamadas de sociedades complexas, elas constroem uma autoimagem
de nação, como uma organização social integrada, imutável e eterna. Os membros da cada nação são os seus
cidadãos e a cidadania são seus direitos e deveres como participantes dessa comunidade.
Na sociedade moderna, o indivíduo, para fazer parte dela, precisa adquirir símbolos de identidade,
pois sem tais símbolos ele vive às margem, é estranho, está fora da ideia de cidadania. É o caso, por
exemplo, de acordo com Peirano (1986), dos documentos cívicos como a carteira profissional e o título
de eleitor, que garantem ao seu portador direitos sociais e políticos. Nesse sentido, a cidadania é regulada
pelo Estado quando este reconhece legalmente as profissões e a filiação política. Não nos tornamos
cidadãos por querermos pertencer ou por nos sentirmos pertencentes a uma comunidade ou sociedade,
mas porque possuímos uma profissão (nas áreas urbanas), ou um título de eleitor (nas áreas rurais): esse
foi o resultado de pesquisas etnográficas realizada no Brasil nos anos 1980.
Observação
O título de eleitor, mais especificamente, é o documento mais requisitado em áreas rurais e não
urbanas, como pequenas cidades e municípios, é esse registro que mostra a qual município o cidadão
está vinculado politicamente. A filiação política em pequenas cidades é a referência para as relações
de emprego como contratação, demissão e outras questões e conflitos sociais. O vínculo com partidos
e com políticos pode facilitar ou dificultar as relações sociais, criando as hierarquias e status sociais.
Nesses casos, os indivíduos vinculam sua identidade com as fronteiras territoriais e políticas e se
sentem pertencentes à identidade municipal, diferente do que dizia Dumont. Dentro dos municípios
os indivíduos pertencem aos partidos, fora do município eles se identificam como “filhos do município”
e no âmbito nacional assumem uma identidade estadual como “goiano”, “baiano” etc. Os indivíduos,
então, são ideologicamente hierarquizados em nível local, estadual e nacional (PEIRANO, 1986).
O programa durante seus anos de atuação mostrou que no meio rural ele não tinha eficácia, uma
vez que todos se conheciam e as relações eram políticas, mas no meio urbano ele trouxe mudanças
importantes na redução do tempo e da necessidade de registros excessivos de reconhecimento em
cartório. Mas o que chamou a atenção da pesquisadora foi que o processo de desburocratização não
veio de movimentos populares, mas sim de uma iniciativa do governo. Novamente se vê uma força
ideológica de integração nacional atuando de “cima pra baixo”.
Outro resultado significativo da pesquisa de Peirano (1986) foi a noção de cidadão e cidadania entre
a população rural e urbana. Na sociedade urbanizada o status de cidadão e de detentor de cidadania é
um status positivo e desejado, em contrapartida, cidades pequenas onde todos se conhecem pelo nome
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ANTROPOLOGIA: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
e sabem sua filiação política a ideia de cidadão é de um estranho, alguém de fora, é impessoal e possui
um status negativo. São as sociedades locais que criam a noção de cidadania, o que significa que não
existe um princípio universal dos direitos e das obrigações da cidadania, ou seja, a ideia de cidadania
plena é uma visão etnocêntrica, e a concepção que o Estado tem de cidadania não é a mesma que os
cidadãos têm desse conceito.
Karina Kuschnir, em um dossiê sobre a abordagem da antropologia política, também conclui que a
sociedade é heterogênea e que existem várias possibilidades de interpretação da política, isso porque o
objetivo das pesquisas é “explicar como os atores sociais compreendem e experimentam a política, isto é,
como significam os objetos e as práticas relacionadas ao mundo da política” (KUSCHNIR, 2007, p. 163).
Ao comentar sobre o clientelismo existente em pequenas cidades brasileiras, a antropóloga mostra que
o político, por um lado, é entendido como um mediador entre a comunidade local e os diversos níveis
de poder, como já falava Marcel Mauss na “lógica da dádiva” sobre o fluxo de troca de dar, receber e
retribuir; por outro lado, o clientelismo existente em comunidades pequenas privatiza o bem público
que deveria ser de todos e não deveria estar monopolizado nas mãos das elites, abrindo espaço para
laços entre políticos e a classe economicamente favorecida e para a corrupção.
O clientelismo, segundo Kuschnir (2007), ele tem outros rótulos em outros países democráticos, e
não devemos vê-lo como um sintoma, ou como uma evidência de uma política atrasada, imperfeita
e incompleta; devemos vê-lo como uma expressão de valores culturais que mostram que a relação
entre pessoas possui privilégios, enquanto a relação entre indivíduos é impessoal. A relação entre
pessoas, mostra a noção de gratidão, honra e dívida; é isso que antropologia busca compreender.
Isso nos faz refletir que a democracia, assim como o universalismo, são paradigmas da modernidade,
mas que as relações pessoais, os atores sociais são motivados por outras subjetividades no “ponto
de vista do nativo”.
Para avaliar melhor as representações políticas, muitos estudos se voltam para a temática das
eleições, o período eleitoral é visto como o “tempo da política”, um recorte temporal no qual a percepção
77
Unidade II
da política é mais evidente para os agentes sociais. É um momento de reordenamento da vida social e
as divisões e conflitos políticos se tornam mais explícitas. Segundo Comerford e Bezzera (2013), o voto
não se trata de uma escolha individual, mas de uma adesão a uma facção política, existe uma lealdade
que pode anteceder e também ir além do período eleitoral. O processo eleitoral mostra uma pluralidade
de motivações na defesa dos votos, e essa passa pela inadequação de argumentos, irracionalidade do
eleitor, manipulação de informações, entre outros.
Uma pesquisa de Kuschnir defende que o voto no Rio de Janeiro “é tido como uma rede de
significados que dá sentido à existência de grupos sociais” (COMERFORD; BEZERRA, 2013, p. 472).
Para ela, há três tipos de voto: o bairrista, o espalhado baseado em categorias profissional, étnica ou
religiosa, e o ideológico, representante de valores morais. Para todos os votos, é importante a figura do
marqueteiro, principalmente nas grandes cidades, que constroem a imagem do político como numa
relação de mercado.
No fim dos anos 1990, Goldman (2005) fez um estudo sobre a política em Ilhéus do ponto de vista
do movimento afro-cultural do Grupo Cultural Dilazenze, grupo que tem por objetivo “a preservação
e divulgação da cultura afro-brasileira na região sul da Bahia”. Nessa pesquisa, o antropólogo buscava
compreender o que o movimento entende por “cultura” e por “política”, e acaba por revelar em seus
estudos etnográficos que a noção de “democracia” é relativa, e não absoluta, pois revelou que existe no
País a “produção do eleitor”, que este é “disciplinarizado”.
Ele percebeu que as práticas políticas ocorrem sobre um pano de fundo de um ideal de democracia,
e que o País vive um período de redemocratização, por isso, a democracia está como um ideal, ela não
é igual e plena para todos os seus participantes. Observa-se que os comportamentos da população nem
sempre respeitam as regras da democracia, e por isso que se aciona o sistema repressivo, justificado pela
ideia de uma falta de educação política do povo, pois não se considera as subjetividades que levam o
povo a não respeitar as supostas normas democráticas. São essas subjetividades os estudos etnográficos
de Goldman (2005).
tentativa de influência ou ganho de vantagens materiais, quando se diz “estão fazendo política”.
Para Ilhéus, em anos de eleição é importante os partidos conseguirem o apoio dos movimentos
negros, uma vez que 85% da população se declara parda ou preta, assim, a compra do voto, a
troca de apoio e compromisso é uma prática política observável. Por anos, o movimento negro vem
tentando eleger um vereador que o represente, mas encontram muitas promessas de apoio e logo
após as eleições sofrem as decepções de serem esquecidos. Com isso, é possível observar várias
lógicas que vão justificar “fazer política” e votar ou não em determinados candidatos. Aceitar
um pagamento para o grupo comparecer em comícios, não significa necessariamente o voto de
seus integrantes por confiarem no candidato, mas pode ser uma forma de conseguir fundos para
ampliar ou melhorar a sede do movimento, algumas aparições em comícios são vistas apenas como
trabalho, uma forma de ganhar dinheiro e de “fazer política”, por exemplo. Esse comportamento é
considerado não democrático, mas as falsas “promessas eleitorais” também o são.
De acordo com Goldman (2005), existem três princípios fundamentais para compreender a
política brasileira:
O apoio de um candidato a um movimento negro não significa que ele terá seu voto, como vimos
anteriormente. Outra prática é a que os blocos afros, chefes de famílias e as mães-de-santo promovam
uma “divisão de votos” determinando em quais candidatos cada membro da família, terreiro ou grupo
deve votar, o que dificulta uma garantia de ser eleito, pois o candidato terá que articular com diversos
blocos afro, terreiros e famílias para garantir um número mínimo de votos para a eleição. Os grupos
reconhecem também que os compromissos acabam virando promessas não cumpridas, uma vez que o
discurso se repete a várias eleições. As promessas, diria Goldman:
79
Unidade II
Muitas outras pesquisas refletem sobre o comportamento dos eleitores e dos políticos nos períodos
eleitorais mostrando que existe um jogo entre os vários agentes sociais envolvidos e uma construção das
relações sociais e reforço das identidades individuais. Assim, a antropologia da política visa compreender
ritos, rituais, agentes sociais e visões que os nativos têm da relação entre indivíduo e política, do conceito
de cidadania, papel do Estado e dos políticos. As diversas pesquisas etnográficas sobre a cultura política
nacional revela o quão plural é a nossa sociedade nas formas de fazer política por meio de identidades
e movimentos sociais.
Um dos movimentos sociais em busca de direitos de cidadania mais evidentes na sociedade brasileira
é o Movimento dos Sem-Terra – MST –, grupo que atua por uma reforma agrária, direito ao emprego,
combate à violência contra trabalhadores rurais na disputa de terras e o direito à terra; isso marca a
identidade dos “sem-terra” na busca de ideais políticos democráticos. A corporação vai além da luta por
terras e reforma agrária, ele se demonstra o formador de opiniões, segundo Christine Chaves (2000), é
uma marca na luta política com diferentes atores sociais.
Assim, outro campo da política que é foco de estudos são os movimentos sociais em busca da
defesa de direitos humanos, outro valor ocidental moderno que se pretende universalista. Vale lembrar
que a defesa dos direitos humanos é algo recente na história da humanidade e é mais evidente após a
Declaração Universal dos Direitos Humanos ter sido elaborada em 1948 pela Organização das Nações
Unidas (ONU). Isso significa que um conjunto específico de nações se juntaram para formular valores
considerados universais, ou seja, possui a ideologia da hegemonia ocidental. De acordo com Rosinaldo
Silva de Souza (2001), apesar da ideologia universalista, esses mesmos direitos têm servido de instrumento
para as minorias buscarem a defesa do respeito à diversidade e da democracia.
A noção de indivíduo dotado de direitos parte da ideia cristã de indivíduo em oposição a Deus, a
noção de que os homens são iguais perante Deus. A noção de igualdade de cada indivíduo no mundo
concreto (em oposição ao mundo espiritual) constrói a concepção de individualismo. Antes, existia
uma devoção ao espiritual e à comunidade, e com as mudanças na visão de mundo cristã cada vez
mais mundana, os indivíduos passam a se comprometer mais com a vida aqui e agora. Essa concepção
é reforçada e renovada com a Reforma Protestante, com a crença do trabalho como o instrumento de
dignificar o homem moderno (SOUZA, 2001).
80
ANTROPOLOGIA: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
A noção de indivíduo será debatida na Idade Média tanto no campo jurídico como no filosófico. Tanto
o Jusnaturalismo como o Positivismo Jurídico, segundo Souza (2001), são responsáveis por construir a
noção de sujeito de direito.
Lembrete
Desse modo, a modernidade cria a noção de indivíduo de direitos no âmbito político, econômico
e jurídico-filosófico: a Igreja se torna mais mundana, o sucesso econômico se torna meio para a
salvação e o homem para poder exigir seus direitos garantidos por um Estado-nação. A igualdade
entre os seres é vista como um princípio de justiça na construção da sociedade moderna, mas
não podemos entender igualdade como identidade nacional, a igualdade é de direitos ou de
acesso a direitos; para a antropologia o direito à diferença é parte da justiça social. Preservar
as diversas identidades dos povos é também garantir igualdade, são os direitos culturais de
autodeterminação. Por exemplo, o indígena não precisa possuir a identidade nacional para ter
acesso aos direitos nacionais, ele pode manter sua identidade cultural e também lutar por seus
direitos nacionais de defesa do território, de acesso à informação, direito à diferença etc. A
construção da igualdade e da identidade tem um viés homogeneizador que acaba ferindo a
diversidade cultural (SOUZA, 2001).
Para Souza (2001), a grande contribuição dos estudos de antropologia sobre os direitos humanos
é a quebra da noção de universalidade dos direitos para a defesa do direito da diversidade. O
que o autor mostra é que a noção de sujeito foi construída na sociedade moderna e é reforçada
pelas teorias de Marx, Freud, Saussure e Foucault. Foram os movimentos sociais feministas e
multiculturalistas que trouxeram a visão antropológica da reivindicação de direitos por parte das
minorias. Esses grupos mostraram que as minorias não possuíam a mesma cidadania dos demais
sujeitos historicamente dominantes na sociedade. A visão masculina das elites colonizadoras
determinaram a identidade e os valores legítimos impondo sua visão de mundo hegemônica. Por
exemplo, a representação política era exclusividade de homens brancos, a entrada de mulheres e
negros só acontece devido às ações sociais na busca da cidadania. Ainda hoje observamos uma
predominância de homens e brancos entre os políticos que governam e elaboram as normas e
leis sociais.
81
Unidade II
Para se conquistar justiça e leis mais igualitárias, é necessário uma visão plural, e não uma
visão universal dos indivíduos, essa é a busca da antropologia por uma alteridade, por autonomia
dos povos, o direito à cultura e à autodeterminação. Os movimentos sociais se utilizam desse
discurso dos direitos humanos para defenderem e buscarem o seu direito à vida, à liberdade, à
igualdade sendo diferentes.
Diferente dos grupos sociais tradicionais dos operários, sindicatos e associações que lutavam pelos
interesses de classes, as novas correntes sociais, segundo Goldman (2007), são as ações de mulheres,
negros, índios, homossexuais, deficientes na reivindicação de direitos específicos e não universais, o
direito à diferença.
Para Souza (2001), a luta das minorias é uma luta coletiva, existe não a busca por direitos individuais,
mas por direitos coletivos: as minorias culturais, étnicas, raciais e sociais almejam direitos para o seu
grupo, e não para cada indivíduo do movimento, eles representam um grupo que é discriminado e
que tem sua identidade desrespeitada. A luta é pela busca de uma identidade positiva com critérios
valorativos próprios, e não estereótipos impostos pelas classes dominantes. Para o sistema jurídico, esses
movimentos trouxeram mudanças, uma vez que tiveram que lidar com sujeitos de direitos coletivos, e
não mais de direitos individuais.
A cidadania, na sua ideia original, é dada aos indivíduos que nascem em determinado território, são
direitos positivistas assegurados por um Estado-nação. Contudo, como garantir a cidadania às minorias
étnicas que vivem no mesmo território, mas possuem uma identidade cultural diversa da cultura
nacional controlada pelo Estado? Como incluir grupos de culturas tradicionais ao sistema de cidadania
sem considerar as especificidades de tais grupos? A cidadania deveria ser igual para todos, mas como
levar educação e saúde à populações indígenas que não falam português ou não conhecem a vacina?
O Estado deveria obrigá-los a falar português e a vacinar as crianças? Se for assim, estaremos abrindo
as portas para um etnocídio. Essas perguntas retóricas servem de reflexão para compreendermos que
a cidadania e os direitos não podem ser iguais para todos no território nacional como um conceito
universal, ela deve respeitar as particularidades.
Contudo, também não podemos negar a cidadania, deixando os grupos excluídos do acesso
aos direitos, pois grupos sem cidadania na sociedade moderna são perseguidos e sofrem abusos,
violência e privações. Nesse caso, como lembra Souza (2001), é papel do Estado e suas instituições
políticas encontrar meios de assegurar os direitos coletivos e grupais para as minorias na busca
de uma plena cidadania considerando suas diferenças. Então, o Estado e as minorias devem
administrar a igualdade de direitos e o direito à diferença evitando assim o etnocídio. Diversos
casos históricos já mostraram que a ausência de direitos coletivos causaram o etnocídio, como a
relação entre a Espanha e os catalães, a Inglaterra e os escoceses, a França e Córsega, e casos mais
dramáticos como o do nazismo contra os judeus.
Goldman (2007) lembra que os movimentos culturais estão na interface entre a cultura e
a política. Para Souza (2001), a relação entre Estado e minorias é uma relação de dominação
e também de legitimação de direitos culturais, e aqui falamos de direitos culturais, pois são
os direitos coletivos de um grupo, e não mais direitos individuais. São as necessidades de um
82
ANTROPOLOGIA: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
grupo que vão nortear os direitos específicos destinados a eles nas políticas culturais. A noção de
direitos culturais surge enquanto categoria nos anos 1960, quando a Unesco começa a repensar
o conceito de cultura saindo de uma visão estática e elitista para uma visão mais humanista, mas
ainda não tão antropológica quanto gostariam os antropólogos.
De acordo com o antropólogo, os direitos culturais ficaram negligenciados até meados dos
anos 1980, pois os Estados temiam que o reconhecimento e a garantia de direitos às diferentes
culturas poderiam colocar “em perigo a unidade nacional” (SOUZA, 2001, p. 66). Atualmente, são
os movimentos sociais na busca da garantia dos direitos culturais que estão ampliando a noção e
a prática da democracia. Isso significa que as sociedades que têm ampliado os direitos culturais
estão se tornando mais democráticas. Nessa luta, surgem então outros conceitos como cultura
política e política cultural:
[cultura política] pode ser definida como a maneira particular que cada
sociedade tem de definir o que faz parte da esfera do político. A política
cultural, por sua vez, pode ser tomada como uma ação implementada por
movimentos sociais com a finalidade de redefinir as interpretações culturais
dominantes acerca do que é o político, e mudar as práticas políticas
prevalecentes em uma cultura política.
Podemos perceber que as minorias se apropriaram de conceitos ocidentais modernos para poder
lutar contra a opressão histórica da mesma sociedade. Nas sociedades contemporâneas, os sujeitos
possuem a necessidade de reconhecimento do outro para a formação de sua identidade, por isso se
torna emergencial o Estado legitimar a existência das diferenças, e a legitimação falsa ou a negação
de reconhecimento causa uma deformação na identidade, que é considerado uma forma de opressão
e violência contra a dignidade humana. Hoje, a diferença não pode ser ignorada, nem invisível, a
discriminação positiva das políticas de reconhecimento se tornou central na construção da sociedade
democrática (SOUZA, 2001).
Goldman (2007) segue pelo mesmo caminho, entende os movimentos culturais como uma
nova concepção de cidadania e de luta pela democracia, no mais, acrescenta que essas correntes
são também uma forma de sociabilidade e meios de mobilizar participantes na defesa de políticas
de identidade. O antropólogo afirma ainda que essa luta é de cidadãos emergentes em busca de
83
Unidade II
formas alternativas de vida, de uma democracia ampliada, uma recusa de permanecer no lugar
definido socialmente aos grupos minoritários.
Nesse sentido, a política vai além do Estado, ela se estende aos movimentos sociais. Nos anos 1990,
de acordo com Goldman (2007), o processo de redemocratização conduziu essas correntes para dois
lados: uma parte para as políticas partidárias, reforçando a ideia de que os partidos são o canal legítimo
de participação política; outra parte para as ONGs (Organizações Não Governamentais), na tentativa de
superar as deficiências de falta de articulação e da descentralização dessas ações sociais. É nesse contexto
que a noção de “cultura” passa a ser parte do debate de novos movimentos sociais que inauguram o
surgimento do conceito de “movimentos culturais”.
Os estudos antropológicos sobre esses novos movimentos culturais fica num dilema quanto ao
conceito “cultura” usado pelos movimentos e ONGs. Os movimentos trazem uma novidade para o campo
político que seria o respeito à diversidade cultural, tema que é interessante para os antropólogos, no
entanto, as noções de identidade e cultura envolvidas nos grupos são ingênuas ou vão na contramão
das teorias antropológicas, segundo Goldman (2007). A visão dos “nativos” dos movimentos passam por
subjetividades que colocam os antropólogos em um posição desconfortável ao analisarem-nos, o que
indica que ainda estamos em fase de elaboração de novas categorias analíticas para compreendermos
os novos movimentos culturais.
• o enquadramento etnográfico na busca de uma vivência pelo trabalho de campo como forma de
apreender;
• as etnografias “ativista” – étnico, de gênero, soropositivo, estético, político, cultural – não conduz
ao isolamento das dimensões “identitárias” ou “militantes”;
• os grupos que fazem resistência à dominação do Estado acabam assumindo as mesmas formas e
operacionalidade, as identidades étnicas e nacionais estão cristalizando as múltiplas possibilidades
de ser e se identificar.
E é aqui que o antropólogo tem de estar atento para não denunciar que os movimentos estão
literalizando ou cristalizando as identidades, cabe ao antropólogo traduzir os movimentos sociais e os
usos que estão fazendo das categoriais como “cultura”, “identidade”, “política” do ponto de vista do
nativo, mesmo que esse vá de encontro à visão antropológica. Temos de traduzi-las em seu contexto de
uso, nas práticas dos agentes sociais, no modo como estão sendo utilizadas.
84
ANTROPOLOGIA: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
Agora, abordaremos mais uma temática contemporânea sobre a construção da identidade nas
sociedades urbanas vinculada aos movimentos culturais, e destacaremos novamente a visão estrutural
e de agência já trabalhadas na unidade I dessa mesma disciplina que vêm dialogado com os temas ao
longo de todo nosso estudo. No mais, é importante compreendermos o ponto de vista dos nativos dos
movimentos buscando a diversidade cultural existente sobre a temática. Muitos dos autores que tratam
de interseccionalidade são mulheres e mulheres negras, faço tal referência a fim de prestigiar e valorizar
suas contribuições para a antropologia e para a ciência.
Os movimentos culturais feministas e racistas na sua busca por direitos humanos aos seus grupos
trouxeram à discussão a intersecção entre as categorias gênero e raça, pois ambos acabavam lutando
pelos mesmos direitos à diferença, mas em paralelo, até que surgiu nos anos 1970 o Black Feminis,
nos EUA, questionando que o movimento feminista tratava-se apenas de um panorama parcial das
desigualdades de gênero. Quando se fala em interseccionalidade, a discussão se dá na existência de
uma conjunção entre sexo e raça, em primeiro instante, no que diz respeito às relações de poder.
O grupo feminista negro trouxe à tona que a suposta neutralidade objetividade, racionalidade,
universalidade da ciência incorpora a imagem daqueles que a fazem, ou seja, homens brancos de
classes dominantes.
Para compreendermos melhor o surgimento desses estudos, vamos voltar à luta das comunidades
feministas de modo geral. Nos anos 1970 criticavam as forças sociais que oprimiam as pessoas de
gênero feminino. Nesse momento se falava de gênero masculino e feminino diretamente relacionado ao
sexo biológico que definem homem e mulher. Essa categoria se demonstrava imutável, a humanidade
era dividida em dois sexos e, portanto, em dois gêneros. No mais, se entendia que as distinções eram
universais, que em todas as culturas haveria tal distinção correspondente a gênero e sexo. Os estudos
feministas entendiam o patriarcado como um sistema de opressão tanto ao gênero como ao sexo
feminino; uma corrente mais radical dizia que era universal e outra, socialista, que essa opressão era
histórica diretamente ligada ao modo de produção e reprodução (PISCITELLI, 2008).
invisibilidade e opressões internas a cada grupo. As mulheres negras não encontravam apoio nos
movimentos feministas e nem no movimento negro, por isso foi preciso “enegrecer” a agenda
das atividades feministas e “sexualizar” a agenda dos grupos negros, exigindo reconhecimento da
diferença e da desigualdade e afirmando um novo sujeito político: a mulher negra. No Brasil, nos
anos 1970, cresce a corrente feminista e nos anos 1980 surge o Movimento Negro Unificado (MNU).
Dessas leituras críticas que surgiram os movimentos feminista-negro e lésbico. Nos primeiros
estudos, evitava-se fazer subcategorias dentro do gênero feminino, mas reconhecem que existe
também as diferenças de raça, classe e sexualidade. Posteriormente, começam a fazer as relações
entre gênero e raça ou entre gênero e sexualidade. Nesse sentido, Judith Butler busca romper
com o binômio de gênero masculino e feminino, visto a existência de transgêneros, e a noção
de gênero pressupor a relação entre um homem e uma mulher, e nas práticas haver uma relação
entre sexo, gênero e desejo. Os movimentos feministas e negros vão privilegiar a relação entre
gênero e raça. E a partir de então vão surgindo outras interseccionalidades de gênero com classe,
religião e nacionalidade (PISCITELLI, 2008).
Saiba mais
O termo interseccionalidade foi usado primeiro pela jurista afro-americana Kimberlé W. Crenshaw,
em 1989, mas ganha visibilidade nos anos 2000. Os primeiros estudos fazem a conjunção entre
raça e gênero e perifericamente incluem classe ou sexualidade. Crenshaw buscava em primeiro
lugar a “interseccionalidade estrutural”, ou seja, compreender a identidade da mulher negra e
a consequências das violências que sofriam. Em segundo lugar, estudava a “interseccionalidade
política” que se refere à marginalização da violência à mulher negra nos movimentos políticos
feministas e antirracistas (HIRATA, 2014).
86
ANTROPOLOGIA: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
Em outras palavras, a combinação de diversos referencias da identidade faz com que determinados
grupos sofram mais discriminação e violência que outros membros da sociedade. O que as pesquisas
estão revelando é uma maior exclusão das mulheres negras no mercado de trabalho e na remuneração.
entre os desempregados são maioria, seus salários são os mais baixos, são maioria no mercado informal
e têm mais instabilidade no emprego formal, isso quando não é o caso da exclusão total como revelado
numa pesquisa de Crenshaw sobre a fábrica da GM nos EUA (HIRATA, 2014).
Nos estudos de Lélia Gonzales (1988), a noção de mulata, doméstica e mãe preta chama a
atenção pela intersecção entre sexismo e racismo. Ela mostra que o racismo e o sexismo tem sido
estudado por quem é de fora e falado por quem não o sofre, falta a voz do nativo, e isso torna as
negras e negros infantilizados e dominados, pois o outro é que assume a fala por eles, tornando
a leitura imparcial. Gonzales retoma a dialética entre consciência e memória: a consciência se
expressa como um discurso dominante que oculta a memória e se diz verdadeiro; já a memória
revela a verdade que não foi escrita na história, que foi ocultada pela consciência. Do ponto de
vista do negro, a consciência (discurso dominante) tenta apagar a memória, a história dos negros.
87
Unidade II
A mulher negra só ganha destaque no rito carnavalesco, momento único que é vista como
rainha, cheia de luxo, são exaltadas, desejadas, fotografadas e noticiadas. Segundo Gonzales
(1984), esse é o conto de fadas das negras: poderem ser as rainhas do carnaval. Na consciência do
brasileiro, esse é o lugar da mulata, pois nas avenidas das escolas de samba ela mostra todo seu
esplendor e beleza. No entanto, esse endeusamento acaba no momento que acaba o carnaval, pois
no dia seguinte elas são as domésticas.
As mulheres negras no início das relações étnicas-raciais no Brasil possuíam papéis específicos, eram
tidas como mucamas (trabalhavam dentro da casa grande, mas eram tratadas como escravas) e serviam
de amantes ou concubinas para os homens brancos, mas não serviam para serem esposas. Esse se
tornou o discurso oficial, a consciência brasileira. Para as mulheres negras, sobra serem disputadas entre
homens brancos e negros e disputarem com as mulheres negras a atenção dos homens brancos, segundo
Gonzales (1984). E aqui podemos compreender a resistência, mesmo entre feministas, de reconhecerem
o racismo articulado ao feminismo. A exaltação da mulher negra é permitida no carnaval, assim como
era permitido a concubinagem e a amante negra, mas nos outros dias ela volta a ser a mucama. É no
cotidiano de “domésticas” que ocorre a discriminação, mesmo entre aquelas não exercem o trabalho de
domésticas e são de classe média.
Crenshaw (2002) fala que devemos observar “a diferença que faz diferença” nas relações sociais e
criam grupos vulneráveis à discriminação e à negação de acesso a direitos humanos, e que os problemas
sociais afetam desproporcionalmente alguns subgrupos de mulheres, como negras e/ou imigrantes, por
exemplo. Algumas questões de discriminação tendem a serem vistas como problema de gênero sem
distinguir a presença ou não do racismo, tornando assim invisível a diferença racial entre mulheres
brancas e negras; nesse caso Crenshaw fala de “superinclusão”, pois a diferença de raça fica invisível nas
análises e o assunto é tratado apenas como de gênero.
grupos dominantes”, parecendo que é algo exclusivo no interior do grupo étnico ou racial, como
ocorreu, por exemplo, com a esterilização de mulheres marginalizadas nos EUA dos anos 1950.
Então, na subinclusão, a diferença torna invisível um conjunto de problemas, e na superinclusão
a diferença que é invisível.
A intersecção pode acontecer em diversos aspectos da sociedade como: violência sexual e/ou racial;
ausência de proteção das autoridades (quando a violência contra a mulher racializada não é considerada
digna de investigação e punição); políticas reprodutivas como esterilização, controle da natalidade
e punição econômica por número de filhos; exclusão escolar ou de emprego por gênero e/ou raça;
discriminação em setores empregatício como o trabalho direto com o público; tem também o caso das
cuidadoras, mulheres economicamente desfavorecidas tendo que cuidar das famílias de mulheres que
podem pagar por esse serviço, que por tradição é executado por mulheres; ou ainda a hostilização e
crítica dentro do próprio subgrupo por quebrar o silêncio expondo publicamente um problema social.
Podemos lembrar também que existem outras intersecções relacionadas à sexualidade, questões de
saúde como AIDS, acesso à terra e recursos naturais, casamento e família, velhice, cultura popular, entre
outros (CRENSHAW, 2002).
Muitos estudos surgiram baseados nessa metodologia da análise de baixo para cima, do modo de vida
das mulheres marginalizadas e das práticas e das políticas que as envolve. Essas análises tornaram visível
a vulnerabilidade múltipla e trouxeram a conscientização da dimensão interseccional. A pesquisadora
propõe um protocolo: que se faça questionamentos sobre a existência de racismo, sexismo, condição
de classe, regionalismo quando se observa a contratação de trabalho ou na formulação de políticas, ou
ainda nos julgamentos de violência.
No entanto, como lembra Piscitelli (2008), a abordagem sistêmica de Crenshaw entende o poder
como uma propriedade que alguns membros da sociedade têm e outros não, ao invés de compreendê-
lo como uma ralação, isso faz com que as categorias gênero, raça e classe sejam repressivas e que os
sujeitos sejam subordinados passivamente a tais repressões, esquecendo-se que os agentes são também
atores sociais que na relação de poder fazem resistências e constroem suas identidades.
89
Unidade II
Já a abordagem construcionista entende que diferença e desigualdade são condições que não
estão fundidas em todo e qualquer contexto cultural, social e histórico. Deve-se questionar sempre
se a diferença está remetendo à desigualdade, opressão ou exploração, ou se ela está remetendo à
igualitarismo, diversidade e formas democráticas de agência política. As categorias raça, gênero e classe
estão a priori articulados de forma íntima, recíproca e contraditória, possibilitando pontos de fuga e
resistência. Essas categorias entrelaçadas podem gerar a desigualdade social, mas também podem gerar
oportunidades.
Por exemplo, o termo “raça” se refere à diferença e a expressão “racismo” à desigualdade. Do ponto
de vista construcionista, os marcadores sociais de diferença oferecem recursos que possibilitam a ação,
por exemplo, pertencer à “raça” negra pode ser uma oportunidade de reforçar uma identidade social.
Para as autoras construcionistas McKlintock e Brah, as categorias gênero, raça, sexualidade, classe
etc. estão articuladas entre si, por isso, tratam de categorias articuladas, ao invés de interseccionalidade.
Elas estabelecem uma relação íntima, recíproca e contraditória, e as políticas envolvem coerção,
negociação, cumplicidade, recusa, mimesis, compromissos e revoltas. Uma das propostas é considerar
simultaneamente subjetividade e identidade para compreender as dinâmicas de poder na diferenciação
social. É preciso levar em conta diversos tipos de racismo, em relações racializadas é preciso considerar
ambivalência, admiração, inveja e desejo que marcam as diferenças e as experiências. É na experiência
vivida que devemos observar e questionar se a divergência remete à desigualdade, à opressão ou se essa
experiência remete à igualitarismo e diversidade (PISCITELLI, 2008).
Adriana Piscitelli (2008) estudou o caso de brasileiras migrantes e, pensando nelas como sujeitos
constituídos mediante a experiência, é possível verificar que essas migrantes vivenciam de modo
racializado e sexualidado a feminilidade e a nacionalidade. No fluxo migratório para países da Europa,
entram na indústria do sexo como mulheres brasileiras mestiças, as viagens nem sempre são com intuito
de fazerem parte da indústria do sexo e muitas vezes elas nem tinham vínculo com tais atividades, mas
são visadas pelo tráfico internacional de pessoas por estarem associadas à noção de que as mestiças
brasileiras estão propensas à prostituição ou a ideia de uma disposição natural para o sexo, combinados
com ideias sobre a submissão feminina. No mais, existe o contexto histórico da relação entre países em
desenvolvimento como o Brasil e países ricos como os da Europa e os EUA, que nas relações transnacionais
facilitam o tráfico. Nos anos 1980, o fluxo do Brasil para a Europa aumentou devido a crises econômicas
e à falta de oportunidade de emprego no país.
Isso não significa que a migração seja predominantemente para a indústria do sexo, os dados
revelam que as brasileiras no exterior trabalham em diversos setores e são de classes sociais,
90
ANTROPOLOGIA: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
Sendo assim, a identidade racial e de gênero podem ser experimentada de diversas formas tanto para
conseguir trabalho (na indústria do sexo ou não) como para conseguir matrimônio, que são ambos um
acesso à cidadania e direito de permanência no país que as recebe. Segundo Piscitelli (2008), articular
as categorias de gênero, raça, etnicidade e nacionalidade torna possível a compreensão da experiência
das brasileiras migrantes e como elas se utilizam de suas identidades para encontrar oportunidades de
se tornarem agentes da própria vida.
Outro estudo sobre a mulher brasileira, de Renata Macedo (2015), sobre a empregada doméstica,
articula gênero, raça e classe social como categorias da diferença em um jogo de negociação de
poder em circunstâncias limitadas e atuação social. A ascensão social das ditas “novas classes
médias”, ou a “classe C” emergente, mostra o poder de crédito e consumo e de oportunidade de
qualificação profissional como possibilidade de agência e atores sociais em uma dialética com a
estrutura social.
De acordo com Macedo (2015), historicamente, o trabalho doméstico é destinado a mulheres das
classes mais baixas que circulam pelas áreas de serviços, que, portanto, na maior parte do tempo, são
“invisíveis” dentro da casa. Como já vimos anteriormente, o trabalho doméstico é uma herança do
período escravocrata, vem das mucamas, que após a escravidão encontram espaço na nova sociedade
prestando “ajuda nos serviços do lar” em troca de comida e casa, e posteriormente o trabalho passa a ser
remunerado, mas ainda assim eram vistas como serviçais. A profissão só foi regulamentada e reconhecida
como tal nos anos de 1970. Com a constituição de 1988, o trabalho doméstico ganha direitos como
13º salário, férias, salário mínimo, licença-maternidade, mas fica excluído de outros direitos trabalhistas
91
Unidade II
como Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), seguro-desemprego, regulamentação da jornada
de trabalho, adicional noturno, hora extra etc., conquistados recentemente com a PEC das Domésticas,
em 2013.
É o caso de Ana, sujeito de estudo de Renata Macedo (2015), suas marcas de interseccionalidade são
usadas como atos de agência, pois reconhece a desigualdade por ser mulher negra pobre e migrante
(saiu do interior de Minas Gerais para a cidade de São Paulo), mas as utiliza para justificar suas escolhas
em busca de um propósito, que era estudar, e foi em São Paulo que teve a oportunidade de seguir os
estudos. Ana trabalhava como empregada doméstica na zona sul de São Paulo, como mensalista em um
apartamento e como diarista em outro no mesmo edifício, gostava dos patrões por serem generosos
e educados, mas queria superar a profissão por ser estigmatizada e desvalorizada. Por isso, começou a
estudar para técnica de enfermagem, curso pago parcialmente por uma de suas patroas.
Uma característica importante que Macedo (2015) revela em seus estudos é a questão do consumo,
que se torna um eixo importante de atuação: atos de consumo aparecem em diversos contextos, seja na
adesão ao consumo de bens mais caros vindo pelo eixo patrão-empregado, seja pelo controle financeiro
em relação à vida familiar das próprias domésticas. A convivência com patrões de classe média e média
alta possibilita a transferência de bens novos e usados dos patrões para as empregadas, e essa mesma
relação faz com que as empregadas adquiram em partes o estilo de vida de seus patrões quanto aos
produtos a serem consumidos. Por outro lado, existe também a troca de hábitos alimentares, cuidados
com a casa e produtos de limpeza entre empregadas e patroas, em uma relação bilateral.
Seguindo a pesquisa de Macedo (2015), o consumo é uma marcador da desigualdade entre patrões e
empregados, mas serve também de diferenciação entre grupos da mesma classe social, pois é ressaltado
como uma qualidade quando se tem acesso ao consumo como internet, carro, eletroeletrônicos, entre
outros que mostram que não são apenas consumidores por “necessidade, utilidade e sobrevivência”, ou
seja, poder consumir é um lugar de atuação e marca de empoderamento e de cidadania.
Uma das conclusões do trabalho de Macedo (2015) é que a expansão do consumo entre as
trabalhadoras domésticas contribui para a inclusão, no mais a possibilidade de estudos é uma busca por
agência em uma trajetória de saírem do estigma da desigualdade e possuírem a percepção de conquista
e crescimento. Sair da condição de doméstica para técnica em enfermagem é percebido por Ana como
uma conquista na sua trajetória, mesmo que ainda sofra com distinções de gênero, raça e classe, mas
ela encontrou uma atuação possível dentro das situações de desigualdade.
O que podemos perceber nos exemplos e estudos citados até agora é que a abordagem construcionista
abandona a ideia de estrutura opressora para estudar as percepções, subjetividades e agências entre os
sujeitos de grupos discriminados por duas ou mais marcas da diferença. O foco é na diferença e em
92
ANTROPOLOGIA: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
como ela pode ser um instrumento de atuação na construção da identidade e da luta pela cidadania.
Outros movimentos sociais importantes vão levantar a bandeira da sexualidade como marcador social
da diferença e, nesse caminho, muitas outras pesquisas surgem para compreender a articulação entre
sexualidade, gênero, raça e religião.
O movimento homossexual surge no Brasil, no fim dos anos 1970, com o Movimento Somos, segundo
Rosa Maria Rodrigues de Oliveira (2006), e posteriormente o movimento de Aids vai incrementar a luta
do grupo homossexual, uma vez que a epidemia fez muitas vítimas entre as lideranças homossexuais nos
anos 1990. A produção da sexualidade possui um marco histórico de dispositivos de saber e poder sobre
o sexo, as categorias de distinção da sexualidade são culturalmente construídas e variáveis. O termo
“homossexual”, que era um termo médico, não era um consenso de identificação entre os membros
participantes das correntes, assim como “bicha” e “gay” também não. O movimento buscava fugir de
conotações pejorativas. A autorreferência de “gay”, “lésbica”, “bissexual”, “travestis”, “transgêneros”
(GLBTT) criaram diversas siglas para os grupos em torno da homossexualidade, mas o que se tem é que
desde seu início é uma ação plural, assim, a referência a movimento homossexual se dá ao conjunto dos
movimentos. Outra referência que vem sendo utilizada é homoerotismo na tentativa de superar uma
linguagem pejorativa e fazer referências às práticas sexuais tanto homo como bissexuais.
É nesse campo que a advogada e socióloga Rosa Maria Rodrigues de Oliveira (2006), apoiando-se em
Gilberto Velho, vai percorrer seus estudos sobre conjugalidade homossexual. Assim como Velho, Oliveira
entende que a sociedade possui uma heterogeneidade cultural e que, portanto, coexistem na sociedade
uma pluralidade de práticas e grupos, e que o recorte feito para a pesquisa não está isolado de outras
manifestações socioculturais. É também uma lógica normativa de uma ciência que se diz neutra, que
orienta o olhar para o conceito de família e que tem no poder judiciário e político uma distribuição
desigual de poder em relação às vidas individuais e práticas cotidianas das parcerias civis entre pessoas
do mesmo sexo.
A importância de trazermos o discurso jurídico para nossa reflexão se dá, pois o sujeito na sociedade
contemporânea é um sujeito de direitos, e esses novos movimentos culturais buscam o direito à
diferença, portanto, buscam nas estruturas jurídicas a construção política de um sujeito que está
marginalizado, almejam categorias distintas para conseguir a igualdade e proteção do Estado. O não
reconhecimento social e jurídico das relações homoafetivas era (e ainda é) a principal interdição aos
homossexuais, principalmente na questão da parentalidade que lhes era negada por não respeitarem as
normas heterocêntricas, segundo Oliveira (2006).
Nessa linha, temos os estudos de Carlos Eduardo Henning (2015), que estuda os marcadores sociais de
diferença na sociabilidade homoerótica. Homens com práticas sexuais homoeróticas tendem a construir
93
Unidade II
um estilo de vida e identidade que visam minimizar os impactos negativos associados à sua sexualidade.
Do ponto de vista estrutural, tais sujeitos são vistos como desempoderados, subalternos, invisíveis,
no entanto, alguns buscam desconstruir, desfazer, desmontar essa visão engessada da desigualdade
e construir uma identidade igualitarista. Henning (2015) levanta também a discussão sobre o pouco
estudo sobre a interseccionalidade masculina e da mulher branca, inclusive para compreender os
processos sociais que fazem mulheres e homens privilegiados serem criados como agentes reprodutores
do racismo.
Lembrete
A política queer se refere a bissexuais e transsexuais como um movimento social que foi rejeitado
dentro das correntes gays e lésbicas, de acordo com Bento (2006). A política queer pensa a identidade
sexuais e de gênero em seu caráter performativo e contingente, tendo no corpo um constante processo
de construção e com significados múltiplos, fugindo da ideia do “sexo verdadeiro”. Para compreender
essa construção, é necessário articular os marcadores sociais de sexualidade, gênero e corpo. Bento e
Butler entendem que:
O gênero adquire vida através das roupas que compõem o corpo, dos gestos,
dos olhares, ou seja, de uma estilística definida como apropriada. São estes
sinais exteriores, postos em ação, que estabilizam e dão visibilidade ao corpo,
que é basicamente instável, flexível e plástico. Essas infindáveis repetições
funcionam como citações, e cada ato é uma citação daquelas verdades
estabelecidas para os gêneros, tendo como fundamento para sua existência
a crença de que são determinados pela natureza (BENTO, 2006, p. 132).
homens e mulheres que não agem como tal desestabilizam a noção de gênero, abrindo espaço para
a violência e a discriminação. O corpo-sexuado (corpo-homem e corpo-mulher) é que dá sentido aos
gêneros e à experiência transexual (BENTO, 2006).
É a lógica heteronormativa que orienta o olhar, por isso se torna inconcebível um corpo-sexuado
homem que se reconstrua como corpo-sexuado mulher, que esse corpo tenha como objeto de desejo
uma mulher. Isso faz com que a homossexualidade entre transexuais seja discriminada entre a
transexualidade “oficial” e também entre os heterossexuais. A aceitação da transsexualidade se dá pela
lógica de que a pessoa que odeia o seu órgão sexual de nascença queira uma relação sexual “normal”,
ou seja, possa exercer a heterossexualidade (BENTO, 2006).
Resumo
contemporânea que merecia ser estudada e por que de ter sido negligenciada
pelas ciências sociais por tanto tempo. Superado esse obstáculo pudemos
ver diversas abordagens sobre o consumo e como essa prática tem sido
estudada e utilizada por diversos tipos de ciências na sociedade. Consolidada
a antropologia do consumo, conseguimos assimilar como a diversidade
de sistemas simbólico leva à prática do consumo e à construção de
uma identidade por meio dele. É também no consumo que podemos
perceber uma estrutura de poder e de distinção.
96
REFERÊNCIAS
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Figura 3
Audiovisuais
DENISE está chamando. Dir. Hal Salwen. Estados Unidos da América: Skyline Entertainment Partners,
1995. 80 min.
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Textuais
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