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Possui doutorado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2012) e licenciatura plena
em Filosofia pela Universidade Estadual de Maringá (2005). Concluiu também bacharelado e licenciatura plena em
Geografia pela Universidade de São Paulo (1993) e mestrado pela mesma instituição (2000). Realizou estágio na
École Normale Supérieure de Paris como bolsista da Capes-PDEE, e trabalhou com materiais do acervo do Institut
Mémoires de L’Édition Contemporaine, onde pesquisou nos arquivos de Michel Foucault e Jacques Derrida. Atualmente
é professora da Universidade Paulista, na qual vem produzindo textos didáticos desde 2014. Seus temas de interesse
são: filosofia moderna e contemporânea, ensino de filosofia e de geografia, filosofia contemporânea francesa e teorias
das ciências humanas, principalmente as teorias da história e da geografia.
CDU 165.4
U505.88 – 20
© Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou
quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem
permissão escrita da Universidade Paulista.
Prof. Dr. João Carlos Di Genio
Reitor
Comissão editorial:
Dra. Angélica L. Carlini (UNIP)
Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR)
Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT)
Apoio:
Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD
Profa. Betisa Malaman – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos
Projeto gráfico:
Prof. Alexandre Ponzetto
Revisão:
Ricardo Duarte
Kleber Souza
Sumário
Empirismo Moderno
APRESENTAÇÃO.......................................................................................................................................................7
INTRODUÇÃO............................................................................................................................................................8
Unidade I
1 EMPIRISMO VERSUS RACIONALISMO..................................................................................................... 11
1.1 Revolução Científica: mudança de paradigma epistemológico......................................... 11
1.2 Debate sobre a origem das ideias................................................................................................... 13
1.3 Empiristas versus intelectualistas................................................................................................... 14
2 ORIGENS DO EMPIRISMO MODERNO...................................................................................................... 15
2.1 Empirismo na Antiguidade Clássica.............................................................................................. 15
2.1.1 Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.)............................................................................................................ 15
2.1.2 Empirismo na construção dos saberes............................................................................................ 18
2.2 Empirismo na Idade Média................................................................................................................ 20
2.2.1 Roger Bacon (1214-1294).................................................................................................................... 20
2.2.2 Guilherme de Ockham (1285-1347)................................................................................................ 22
3 MÉTODO EMPÍRICO: PRECURSOR DO MÉTODO CIENTÍFICO........................................................... 23
3.1 Francis Bacon (1515-1626)............................................................................................................... 23
3.2 Novo método científico: inovações da indução gradual...................................................... 24
3.3 Teoria dos ídolos.................................................................................................................................... 27
3.3.1 Ídolos da tribo ou ídolos da raça (idola tribus)............................................................................ 28
3.3.2 Ídolos da caverna (idola specus)........................................................................................................ 29
3.3.3 Ídolos do fórum (idola fori)................................................................................................................. 30
3.3.4 Ídolos do teatro (idola theatri)........................................................................................................... 31
4 RACIONALISMO NO ADVENTO DA MECÂNICA E MÉTODO CARTESIANO.................................. 31
4.1 Um novo mundo.................................................................................................................................... 31
4.2 Mecânica moderna............................................................................................................................... 35
4.2.1 Galileu Galilei (1564-1642)................................................................................................................. 35
4.2.2 Isaac Newton (1643-1727).................................................................................................................. 37
4.3 Método cartesiano: mathesis universalis.................................................................................... 39
4.3.1 René Descartes (1596-1650).............................................................................................................. 39
4.3.2 Dúvida metódica...................................................................................................................................... 40
4.3.3 Discurso do método................................................................................................................................ 42
Unidade II
5 ATOMISMO E CARTESIANISMO................................................................................................................... 53
5.1 Atomismo antigo................................................................................................................................... 53
5.2 Descartes e o atomismo..................................................................................................................... 54
5.3 Física cartesiana..................................................................................................................................... 55
5.4 Separação cartesiana entre mente e matéria............................................................................ 58
5.5 Nascimento do sujeito moderno.................................................................................................... 62
6 EMPIRISMO INGLÊS DO SÉCULO XVII...................................................................................................... 66
6.1 Thomas Hobbes (1588-1679)........................................................................................................... 66
6.1.1 Da condição natural da humanidade.............................................................................................. 68
6.1.2 Filosofia civil.............................................................................................................................................. 72
6.1.3 Linguagem e conhecimento científico........................................................................................... 73
6.2 John Locke (1632-1704)..................................................................................................................... 76
6.2.1 Ensaio sobre o entendimento humano........................................................................................... 77
6.2.2 Dois tratados sobre o governo........................................................................................................... 81
Unidade III
7 EMPIRISMO IDEALISTA: NEGAÇÃO DO MUNDO REAL...................................................................... 86
7.1 George Berkeley (1685-1753).......................................................................................................... 86
7.2 Da crítica das ideias abstratas à (in)existência das coisas.................................................... 88
7.3 Da redução do ser (ao ser-percebido) à inexistência da matéria...................................... 88
7.4 Excertos da obra de Berkeley............................................................................................................ 90
8 EMPIRISMO CÉTICO: CRÍTICA À LÓGICA INDUTIVA............................................................................ 92
8.1 David Hume (1711-1776)................................................................................................................... 92
8.2 Proposta do Tratado sobre a natureza humana....................................................................... 93
8.3 Princípio da conjunção constante.................................................................................................. 95
8.4 Princípio da liberdade da imaginação.......................................................................................... 96
8.5 Fronteira entre o pensar e o sentir................................................................................................. 98
8.6 Hume e o ceticismo............................................................................................................................101
8.6.1 Crítica ao princípio de causalidade................................................................................................101
8.6.2 Sentido de ceticismo em Hume: limite do conhecimento...................................................102
8.6.3 Outros tipos de ceticismo...................................................................................................................103
APRESENTAÇÃO
Nos nossos dias, falar de método científico validado por evidências empíricas nos soa muito familiar,
pois a ciência contemporânea, na grande maioria das vezes, baseia-se nelas. Etimologicamente, o termo
empirismo advém do grego empeirikos (em latim, empiricus), cujo significado remete à experimentação.
Portanto, o sentido de empirismo está ligado ao de experiência.
A filosofia encontra-se escrita neste grande livro que continuamente se abre perante nossos olhos
(isto é, o universo), que não se pode compreender antes de entender a língua e conhecer os caracteres com
os quais está escrito. Ele está escrito em língua matemática, os caracteres são triângulos, circunferências
e outras figuras geométricas, sem cujos meios é impossível entender humanamente as palavras; sem
eles nós vagamos perdidos dentro de um obscuro labirinto (1983, p. 119).
Descartes, leitor de Galileu, ficará impressionado com fatos como a luz andar em linha reta ou
os planetas orbitarem em curvas elípticas. Para o filósofo francês, o modelo seguro é o geométrico,
consolidado por Euclides, matemático grego. Seu método científico se baseia na dedução, a qual
admite uma primeira verdade (axioma), que não depende da experiência – uma verdade da razão, não
subordinada à existência do objeto; uma verdade autoevidente. Todo o trabalho, então, consiste em
encontrar essas primeiras verdades e deduzir delas o restante do sistema.
Dutra (2010) afirma que hoje esse procedimento é visto como uma espécie de “sonho impossível”.
Para o método axiomático e o racionalismo, a razão não é apenas “fonte” de verdade fundamentais,
mas também algo dotado de capacidades ou faculdades. A noção geral de que possuímos faculdades
cognitivas (como a sensibilidade, a imaginação e o entendimento) é um pressuposto tipicamente
racionalista. Está associada a essa perspectiva a ideia de que o intelecto humano tem certa estrutura,
e que ela, enquanto nos capacita a conhecer (determinadas coisas), impõe-nos restrições e condições
especiais (segundo as quais podem ser conhecidas essas coisas).
Por outro lado, para os empiristas, a experiência é o fator que estabelece tanto o valor quanto a
origem do conhecimento. Eles consideram as experiências como fonte de nossas ideias. Os empiristas
modernos mais expressivos são aqueles oriundos principalmente da escola inglesa, a saber, Francis
Bacon, Thomas Hobbes, John Locke, George Berkeley e David Hume. As críticas feitas por esses autores
permitiram ampliar grandemente as concepções racionalistas e o próprio projeto kantiano, a ponto de
Kant ter afirmado que Hume o despertara de seu sono dogmático. Por isso é tão importante conhecer
essa escola de pensamento filosófico.
INTRODUÇÃO
Francis Bacon
Neste livro-texto, veremos primeiro o contexto histórico e cultural que antecede o período moderno,
bem como uma síntese da discussão entre racionalistas e empiristas no que toca à questão da origem
de nossas ideias. Depois, abordaremos o pensamento dos filósofos empiristas da Antiguidade Clássica
(Aristóteles) e da Idade Média (Roger Bacon e Guilherme de Ockham), e o método empírico de Francis
Bacon, precursor do método científico moderno, ainda no século XVI.
8
ainda sobre as noções mecanicistas da física cartesiana expostas nos Princípios e nas Regras para a
direção do espírito.
Depois, abordaremos a separação entre mente e corpo na filosofia cartesiana, tese que será
amplamente criticada por toda a tradição filosófica por vir, inclusive pelos filósofos empiristas – daí
a necessidade de conhecê-la. A partir do principal texto da metafísica cartesiana, as Meditações,
exporemos o caminho que leva Descartes a postular a diferença entre substância corpórea e substância
pensante, assim como o lugar dessa dualidade dentro de seu método filosófico. Em seguida, refletiremos
sobre a enunciação do processo de subjetivação inaugurado pela filosofia cartesiana.
Por fim, apresentaremos os principais filósofos empiristas dos séculos XVII e XVIII. Trataremos de
Thomas Hobbes e de sua tese sobre a condição natural da humanidade, tese elaborada com base numa
perspectiva empirista. Também falaremos de John Locke, autor que desenvolveu uma vasta teoria da
formação das ideias no Ensaio sobre o entendimento humano, além de ter produzido uma teoria política
importante, que não será apresentada neste livro porque daremos prioridade à teoria epistemológica.
Veremos ainda a contribuição de George Berkeley, que dividiu sua vida entre a Irlanda e os Estados
Unidos. Ele defendeu a teoria inusitada da negação do mundo real. Para concluir, abordaremos aquele
que talvez seja, com Bacon e Locke, o nome mais expressivo e contundente do empirismo moderno, David
Hume, que elaborou um empirismo cético, de natureza diferente de outros ceticismos já desenvolvidos
na história da filosofia, como o de Pirro e o de Montaigne.
9
EMPIRISMO MODERNO
Unidade I
1 EMPIRISMO VERSUS RACIONALISMO
Entre o final do século XV e meados do século XVII, ocorre na Europa o que viemos a chamar
posteriormente de reforma do entendimento. O termo não poderia ser mais elucidativo. A transformação
do nosso entendimento do mundo físico decorrente da Revolução Científica do século XVII também
se deu na forma como compreendemos o indivíduo, a sociedade e o propósito da vida. A Revolução
Científica foi um marco decisivo na construção do mundo moderno ao superar a visão de mundo
medieval e descartar a ideia de propósitos divinos ou qualidades essenciais ou ocultas dos corpos.
O historiador das ciências Alexandre Koyré (1979) diz que esse período é marcado por um profundo
descentramento. Não somente o universo perde o seu centro como, no lugar do cosmo centrado na
Terra, surge o universo infinito, sem começo e sem fim, que levará o filósofo Pascal a dizer que agora o
universo é uma esfera cuja circunferência está em toda parte e o centro em nenhuma.
A ciência também perde seu centro. O saber antigo – marcado pela ideia de qualidades essenciais,
que conferiam valores e ordenavam a natureza segundo hierarquias de perfeição – dá lugar a uma
ciência quantitativa movida pela busca de leis universais válidas para todos os corpos. É preciso procurar
um novo ordenamento. Por isso, Koyré (1979) afirma que o debate filosófico do século XVII volta-se para
a questão do conhecimento, e que uma das polarizações possíveis de estabelecer é entre empiristas e
racionalistas. Está em curso uma revolução científica.
Como lembra Bazanini (2017), o termo revolução científica foi introduzido na história das ciências
por Thomas Kuhn, o qual o associa ao aparecimento de um novo paradigma, isto é, um momento de que
ressalta o caráter de ruptura com o passado ao designar mudanças descontínuas na história da ciência, por
ocasião de descobertas capitais. Se concebida sob o ângulo dos princípios da ciência, a revolução científica
corresponde a uma revisão dos princípios antigos para uma nova visão da realidade. A concepção de
razão proposta por pensadores do período moderno divergia da defendida pelos escolásticos do período
medieval, visto que, para estes, a razão era um instrumento para a contemplação da verdade divina.
Durante a Idade Média, o elemento fé, em conflito ou em harmonia com a razão, tornou-se o foco
da atenção dos estudiosos da filosofia, pois muitos acreditavam que a fé e a graça divina iluminavam
o intelecto e guiavam a vontade, permitindo à razão o conhecimento do que está ao seu alcance, ao
mesmo tempo que a alma recebia os mistérios da revelação. A escolástica, corrente filosófica surgida na
Europa no final da Idade Média, dominou o pensamento cristão entre os séculos XI e XIV e teve como
principal nome o teólogo italiano São Tomás de Aquino. Nos discursos tomistas, o recurso à autoridade
constituía o procedimento por excelência, e remetia diretamente ao pensamento do filósofo Aristóteles.
11
Unidade I
Os filósofos modernos reagiram contra essa concepção e, pela não aceitação das respostas dos
pensadores escolásticos, a questão do conhecimento tornou-se fundamental para eles. Propuseram-se
três tarefas: a primeira foi separar fé e razão; a segunda, esclarecer como o espírito pode conhecer o
corpo, dadas as suas diferenças; a terceira, explicar como a razão e o pensamento podem tornar-se mais
significativos do que a vontade e controlá-la para que ela evite o erro. Essas três tarefas permitiram
apresentar o conhecimento como elemento central da inteligência, pois a filosofia precisa começar pelo
exame da capacidade humana de conhecer, pelo entendimento ou sujeito do conhecimento.
No fim do século XVI, Francis Bacon defendeu a substituição da indução simples (aristotélica) pela
indução gradual e controlada, a qual permitiu a eliminação das hipóteses não verificadas, fazendo com
que a ciência avançasse a passos largos. Para além da enorme importância da mecânica clássica de
Galileu Galilei e de Isaac Newton, estamos no século das descobertas científicas mais importantes da
história da humanidade.
No século XVI floresce a pesquisa anatômica. Em 1543, mesmo ano em que Copérnico publica
De revolutionibus, Vesálio publica De corporis humani fabrica, o primeiro manual detalhado de anatomia
feito a partir das observações do autor. Em 1628, William Harvey publica sua grande descoberta sobre
a circulação do sangue, rompendo com o paradigma da medicina galênica e servindo de parâmetro
para Descartes e Hobbes, tornando-se assim uma das bases mais consistentes da teoria mecanicista
aplicada ao corpo humano. Décadas depois, em 1680, aparece a grande obra de Borelli, em que ele
estuda a estática e a dinâmica do corpo, calcula a força desenvolvida pelos músculos no caminhar, no
correr, no saltar, examina o voo dos pássaros, o movimento dos peixes etc. (REALE; ANTISERI, 2013a).
Outro momento importantíssimo foi a derrocada da famosa teoria da geração espontânea, em razão
das pesquisas de Francesco Redi.
Da outra parte, as descobertas de Galileu Galilei, com o auxílio da luneta, revolucionam a astronomia.
As quatro causas aristotélicas que fundamentavam o movimento dos corpos são substituídas por uma
mecânica quantitativa e mecanicista, que busca relações de causa e efeito segundo leis necessárias
e universais, válidas para todos os fenômenos, independentemente das suas qualidades essenciais.
A mecânica moderna concebe que os corpos são dotados de grandeza, figura e movimento determinados,
e que seu conhecimento é o estabelecimento das leis necessárias de movimento e repouso.
Descartes ficará muito impressionado com o método de Galileu, com os avanços da física
alcançados pelo italiano, e apostará tudo no projeto de relançar as bases do conhecimento a partir
do método dedutivo geométrico, em que as premissas seriam tiradas diretamente das ideias da razão.
Essa concepção da física naufragará, apesar de Descartes ter logrado alguns resultados na área da
medicina e da mecânica. Contudo, a maior crítica por parte dos empiristas será à postulação cartesiana
de que algumas ideias poderiam ser inatas, tese criticada especialmente por Locke e Hume.
Algumas questões que inquietavam os filósofos dessa época eram: as noções metafísicas e ideias
abstratas são inatas ou formadas? Como se formam? O conhecimento começa “fora” ou “dentro” de
nós? O conhecimento faz parte dos processos do mundo (naturalismo)? O conhecimento faz parte dos
processos do sujeito (racionalismo)? Como se formam nossas ideias simples?
Lembrete
Assim como Platão, Descartes sustenta que já nascemos com ideias e conteúdos em nós –
daí a necessidade de um método para que sejam devidamente desvelados. Platão apresenta a ideia do
inatismo nas obras A república e Mênon. Nessa última, Sócrates dialoga com um escravo analfabeto e
o conduz a deduzir um teorema matemático de que nunca ouvira falar. Segundo Platão, nascemos com
alguns princípios de racionalidade em nós, embora seja necessário todo um trabalho de reminiscência
para trazer à tona as ideias que aí estão.
Desse modo, o intelecto humano possuiria “conteúdos” inatos, que não têm origem na experiência.
Esses conteúdos, que constituiriam as verdades da razão e também os primeiros princípios da ciência,
requerem um método que os desvele. Uma vez feito isso, o caminho seguro para a verdade estaria
aberto. O caminho da experiência, sendo o menos seguro, poderia falhar, uma vez que nossos sentidos
são incapazes de nos informar a verdade – por exemplo, quando vemos o Sol “mover-se” durante o
dia. Sobre os sentidos, Bacon diz que eles enganam, sim, mas que também podem fornecer a prova de
seu erro; já os “erros” da razão não seriam tão facilmente perceptíveis, porque, sem se dar conta, ela é
influenciada por preconceitos, chamados por Bacon de ídolos.
Para um racionalista, a intuição intelectual difere da intuição sensível por sua universalidade e
necessidade. Quando digo “O todo é maior do que as partes”, tenho certeza de que essa afirmação
está correta (desde que eu conheça os conceitos de todo e parte). A intuição sensível é mais subjetiva.
Para os racionalistas, não podemos compartilhar sensações, mas pensamentos, sim. Qual seria o
13
Unidade I
problema da tese do inatismo? Se as ideias são verdadeiras, elas correspondem à realidade. Sabe-se que
as verdades mudam, e as ideias que antes eram verdadeiras perdem sua validade. Como explicar isso?
Vejam que Platão e Descartes não defendem a existência de uma estrutura racional, mas de conteúdos
verdadeiros.
Por sua vez, o empirismo lidava com a seguinte questão: se algo é verdadeiro, deve ser
universal, objetivo; não deve depender das variações da nossa experiência; deve corresponder à
realidade, independentemente dos nossos preconceitos e hábitos – portanto, não deve ser subjetivo.
Como o conhecimento poderia garantir a objetividade? Esse problema, denominado a impossibilidade
do conhecimento objetivo da realidade, foi apresentado pelo ceticismo humiano. A partir da leitura
de Leibniz, Hume diz que as verdades são de duas ordens: verdades de fato (empíricas, confirmadas pela
experiência) e verdades da razão (confirmadas pelos princípios da própria razão).
O fato é que a ciência moderna nasce no seio desses dois métodos. Os trabalhos de mecânica clássica
de Galileu Galilei e Isaac Newton ilustram isso. A ciência moderna é tanto galileana quanto baconiana,
tanto racionalista quanto empirista. Não se trata, pois, de exclusão, mas de articulação de métodos.
Nos dias de hoje, a polarização entre racionalistas e empiristas não se sustenta. Ela ficou radicada
no paradigma do século XVII, na época do nascimento da ciência moderna, quando o modelo da física
clássica de Galileu substituiu a velha ciência aristotélica. Hoje, para continuar no exemplo da física, estamos
no paradigma de Einstein. A dicotomia racionalismo versus empirismo foi superada porque a história
mostrou que o método científico é fruto da articulação entre as duas racionalidades.
Observação
Além disso, dificilmente conseguiríamos conversar com um filósofo do século XVII e aderir a seus
argumentos, empiristas ou racionalistas, porque o conceito de razão típico do século XVII não existe mais,
ainda que o termo continue o mesmo. O conceito de razão sofreu inúmeros deslocamentos e críticas
desde o século XVIII, começando por Leibniz e Hume, passando por Kant e Hegel, e chegando a Marx,
Nietzsche e Freud. Isso sem falar da guinada linguística na história da filosofia (Husserl, Frege, Peirce e
Wittgenstein), que levou a discussão sobre a origem das ideias a um patamar bem mais complexo.
conjunto de imagens corporais e mentais, formadas por associação e repetição, que se constituem em
imagens verbais; para os intelectualistas, a capacidade para a linguagem é um fato do pensamento, a
linguagem é apenas a tradução auditiva, oral, gráfica ou visível do nosso pensamento – o pensamento
puro seria silencioso (CHAUI, 2000).
O caso de Helen Keller representaria uma vitória para os intelectualistas. Nascida cega, surda e muda,
ela aprendeu a usar a linguagem sem nunca ter visto as coisas, sem nunca ter escutado ou emitido sons.
Se a linguagem dependesse exclusivamente de mecanismos corporais, ela jamais a teria aprendido, o
que corrobora a tese de a linguagem ser um fato puro da inteligência.
Bazanini (2017) traz a história das meninas Amala e Kamala, conhecidas como as meninas-lobo.
Para o autor, esse é um caso exemplar do papel atribuído à experiência sensorial no desenvolvimento
da inteligência. Os empiristas consideram a situação vivida por Amala e Kamala como emblemática da
veracidade de seu pensamento. Essas meninas, encontradas numa selva da Índia em 1920, foram criadas
sem a presença de humanos. Conta-se que elas não conseguiam realizar atos humanos simples, como
falar, sorrir ou andar, e adotavam comportamentos de lobo, ou seja, andavam de quadro e uivavam em
direção à lua.
Amala, que tinha 2 anos e meio ao ser encontrada, veio a falecer menos de um ano depois.
Kamala, que tinha 8 anos à época do resgate, viveu até os 17. Ela foi vista chorar pela primeira vez
quando Amala morreu. O processo de socialização de Kamala foi considerado bem lento. Ela mostrou
enormes dificuldades de adaptação à vida social. Também tinha problemas para manter-se na posição
ereta e para andar, uma vez que seus músculos haviam se adaptado para andar de quatro na floresta.
Além disso, possuía um vocabulário muito curto.
Sustenta Bazanini (2017) que as pessoas com uma visão mais empirista do mundo utilizam esse
acontecimento para mostrar que não trazemos conteúdos cognitivos dentro de nós; antes, todos os
nossos hábitos e capacidades dependem do que experimentamos, e talvez, como diria Locke, nasçamos
como uma tábula rasa, uma folha em branco.
Aristóteles nasceu em 384 a.C., em Estagira, cidade da Grécia. Seu pai era médico de Amintos, rei da
Macedônia. Como essa profissão, na época, era exercida por homens da corporação médica e passada
de pai para filho, tudo indica que Aristóteles tenha recebido do pai, e também do tutor, elementos de
uma formação em medicina, uma vez que estava destinado por convenção a seguir o ofício paterno.
“Muitos atribuem a esses primeiros anos de formação o interesse que Aristóteles manifestará, durante
toda a sua vida e em sua obra, pelas coisas da natureza, pela biologia, pelo estudo das plantas e dos
animais, dos astros e da alma” (CHAUI, 2002, p. 334).
15
Unidade I
Aos 18 anos, Aristóteles entra na Academia de Platão, em Atenas, ficando ali por vinte anos, até
a morte de Platão, de quem se torna o principal discípulo. Então, começa a trabalhar em sua própria
filosofia, bastante afastada do idealismo platônico e da identificação entre filosofia e matemática,
fundamento da Academia, reafirmado por Espeusito, continuador do trabalho do mestre.
Saiba mais
No centro do quadro Escola de Atenas, de Rafael Sanzio, vemos Platão (à esquerda) apontando para
o céu, e Aristóteles (à direita) apontando para a terra.
16
EMPIRISMO MODERNO
Diante do afastamento entre Atenas e Macedônia e de uma série de fatos que distanciaram Aristóteles
da Academia platônica, os atenienses o julgaram suspeito de traição e o acusaram de impiedade.
Ele abandonou Atenas em 321 a.C. e morreu meses depois em Cálcis, na Eubeia.
Assim como ocorreu com vários filósofos da Antiguidade, muitos escritos de Aristóteles se perderam
e outros tantos tiveram sua autoria questionada. As obras encontradas, segundo Chaui (2002), podem
ser divididas nos seguintes grupos:
• Sobre a filosofia, diálogo em que se enunciam as primeiras diferenças com Platão e no qual o
próprio Aristóteles consta como personagem.
• Escritos de lógica, conhecidos como Organon. Não foi o autor que deu esse título. O termo organon
significa “instrumento”, “ferramenta”, motivo pelo qual atribuíram esse nome à obra.
• Escritos de metafísica, contendo 14 livros. Escritos em épocas diferentes, muitos são anotações de aula
feitas por alunos do Liceu (escola que Aristóteles fundou depois que saiu da Academia de Platão).
17
Unidade I
• Escritos de ética e política, contendo 3 tratados: Ética a Eudemo, Grande Ética e Ética a Nicômaco.
Por que razão Aristóteles rompeu com o platonismo constituído? Por filosofia,
isto é, por amor ao saber. Ele pensava que o mestre, que ele respeitava
profundamente, não percebera o que tinha a possibilidade de tornar
a filosofia crível, aceitável por um número suficiente de pessoas.
Aristóteles considerava que o desenvolvimento do pensamento
platônico era de tal natureza que havia pouca possibilidade de que a
filosofia fosse efetivamente compreendida e que pudesse produzir o
efeito empírico que Platão esperava. Com efeito, deve-se constatar, como
Aristóteles, que a Academia não teve grandes resultados no plano político.
O mestre da Academia tinha o objetivo de formar chefes políticos. […]
E o programa de estudos que propunha era muito pouco atraente. Que
cidadão aceitar passar trinta anos de sua vida antes de poder começar
a conhecer? Que cidadãos aceitariam submeter seus filhos a provas
terríveis para lhes aumentar a firmeza e para lhes ensinar a morrer para o
sensível? Aristóteles quer salvar a filosofia porque julga que o programa
estabelecido por Sócrates, via Platão, é insubstituível e impraticável, que
a filosofia é efetivamente o caminho certo, mas que é preciso adaptá-la
às exigências desse mundo.
Para Platão existe um corte entre essência e aparência, um aquém-mundo e este mundo em que
vivemos. É essa cisão que torna necessária uma longa educação. Já para o empirismo aristotélico
o importante é tomar o mundo como ele é, como se apresenta. Seu interesse maior é regular o
discurso: o filósofo deve falar de modo unívoco, lógico. Aristóteles elabora uma longa teoria sobre os
silogismos no Organon.
Observação
18
EMPIRISMO MODERNO
Na perspectiva de Aristóteles, a essência seria encontrada nas próprias coisas, ou seja, a essência
passa a ser outra coisa, não está mais no mundo das ideias.
Em resumo, se as ideias (de Platão) são uma realidade à parte, elas não servem para o conhecimento
empírico do mundo; por outro lado, se servissem para esse conhecimento, não poderiam ser realidades
em si mesmas. A partir dessas contradições, Aristóteles conclui que Platão, em sua metafísica, faz uma
duplicação desnecessária da realidade. A grande diferença entre os dois filósofos, portanto, é que Platão
queria explicar por que o mundo sensível é como é, encontrando a resposta fora dele, enquanto Aristóteles
desejava explicar como o mundo é, por que funciona do jeito que funciona, mas a partir dele mesmo.
19
Unidade I
Em vez do dedutivismo platônico, Aristóteles privilegia a indução, o raciocínio que, após considerar um
número suficiente de casos particulares, conclui uma verdade geral. Do mesmo modo, a moral aristotélica
difere da platônica. Platão era adepto da teoria de que, antes de nascer, vislumbramos as ideias perfeitas
de bem e de justiça no mundo das ideias, e que, quando crescemos, podemos relembrá-las pelo método
da reminiscência e alcançar o saber moral. Aristóteles, por sua vez, tem uma filosofia da ética totalmente
baseada na empiria. Virtude para ele é simplesmente a medida entre os extremos contrários, o justo
meio, nem excesso nem falta. A ética, portanto, é uma ciência prática da moderação ou da prudência
(phrónesis); a virtude é um hábito adquirido ou uma disposição para agir racionalmente.
Por volta de 1240, Roger Bacon ingressou na ordem dos franciscanos, na qual, fortemente
influenciado por Robert Grosseteste, dedicou-se a estudos em que introduziu a observação da natureza
e a experimentação como fundamentos do conhecimento natural. O frade inglês, que estudou nas
universidades de Oxford e Paris, acreditava que o verdadeiro método científico ocorre da seguinte
forma: observação, hipótese, experimentação e verificação independente. Em 1252, após a morte de
seu protetor, foi obrigado a deixar sua cátedra na Universidade de Oxford. Seus estudos na área da
óptica possibilitaram a invenção dos óculos. Por tratar de assuntos como alquimia e astrologia, recebeu
algumas censuras do clero.
20
EMPIRISMO MODERNO
Bacon registrava em detalhes a forma como conduzia seus experimentos, a fim de que outros
pudessem reproduzi-los e testar os resultados, numa antecipação do método contemporâneo.
Desde seus primeiros estudos, assumiu um papel crítico em relação a algumas afirmações da filosofia de
Aristóteles, defendendo o papel prioritário da investigação científica. Aceitava com reservas o método
aristotélico indutivo-dedutivo e propunha que este dependia do conhecimento exato e extenso dos
fatos. Pensador versátil, escreveu uma gramática do grego e começou outra do hebraico. Provou ainda
que vários textos da Bíblia estavam adulterados, e muitas traduções de Aristóteles, erradas.
Acusado de bruxaria, foi posto sob vigilância pelo ministro geral dos franciscanos, São Boaventura, que
também proibiu a circulação de seus textos científicos. A ordem franciscana o condenou a permanecer
em cárcere, onde ficou por 14 anos. Morreu em Oxford. Seu trabalho se baseava na observação, e ele
acreditava que a ciência poderia resolver todos os problemas do homem. Suas principais obras são Opus
majus (1257), a única totalmente completa, Opus minus e Opus tertium, que juntas deveriam constituir
a verdadeira enciclopédia do saber.
Roger Bacon é considerado uma das figuras mais significativas da escolástica tardia e um precursor do
empirismo moderno, além da principal personalidade da alquimia no seu século. Entre suas realizações,
propôs a reforma do calendário, fez experiências de óptica e de propagação da força, e anteviu as
consequências práticas do uso da pólvora, os navios de propulsão mecânica e a possibilidade de voo de
engenhos mais pesados que o ar.
Observação
Saiba mais
21
Unidade I
Mais de meio século depois do nascimento do célebre Roger Bacon, viveu outro frade igualmente
notório, Guilherme de Ockham. Ele nasceu em 1285 na Inglaterra (Londres) e morreu em 1347 em
Munique, de peste negra. Pertencente à ordem dos franciscanos, notabilizou-se pelo seu nominalismo.
Trabalhou também com lógica e teologia escolástica.
Ainda jovem ingressou na Universidade de Oxford, e depois lecionou ali filosofia e matemática.
Teve um importante contato com o teólogo Duns Scot, do qual se tornou discípulo. Defendeu a tese de
que o papa João XXII estava cometendo uma heresia sobre a questão da pobreza evangélica. Redigiu
vários ensaios abordando a infalibilidade papal, sustentando que a autoridade do líder é limitada pelo
direito natural e pela liberdade dos liderados (esta afirmada nos Evangelhos), o que deixou sua situação
com a Igreja cada vez mais difícil ao longo dos anos.
Um de seus argumentos mais fortes foi a asserção categórica de que um cristão não contraria os
ensinamentos evangélicos ao se colocar contra a posição papal. Guilherme de Ockham preocupava-se com
a questão de o poder organizado (da Igreja) ser contrário à natureza e à liberdade a nós concedida por Deus.
Ele escreveu a obra Ordinatio, em que dizia que todo o conhecimento racional tem base na lógica,
de acordo com os dados proporcionados pelos sentidos. Visto que só conhecemos entidades palpáveis,
concretas, os nossos conceitos não passam de meios linguísticos para expressar uma ideia. Nascia, assim,
a primeira semente da escola nominalista. Outro princípio conhecido foi o de que não devemos duplicar
conceitos, ideias e explicações sem necessidade – ou, nas suas palavras, pluralidades não devem ser
postas sem necessidade (pluralitas non est ponenda sine neccesitate).
22
EMPIRISMO MODERNO
O cerne da questão seria o seguinte: quando existem várias teorias tentando explicar um mesmo
fenômeno, estará certa aquela que conduzir a explicação com maior simplicidade. É claro que esse
critério só é válido na ausência de evidência que nos faça inclinar naturalmente o espírito na direção
certa. A ideia contrariava os pensadores da escolástica, cuja retórica fazia as teorias multiplicar-se
inutilmente. Ockham, enquanto matemático, admirava a simplicidade e a concisão e acreditava que a
perfeição quase sempre é simples.
Lembrete
23
Unidade I
Francis Bacon nasceu em 1561 em Londres, na Casa de York. De constituição física frágil, mas de notável
capacidade intelectual, matriculou-se no início da adolescência (1574) na Universidade de Cambridge,
como era costume entre os nobres da época. Permaneceu ali por três anos.
Depois de passar algum tempo em Paris, voltou para a Inglaterra e dedicou-se ao estudo do direito.
Em 1590, com 29 anos, foi nomeado conselheiro extraordinário da rainha. Em 1591, entrou para o
Parlamento como membro representante de Middlesex. Apesar de envolvido com a política, em 1597
publicou inúmeros ensaios. Em 1603, com a subida ao trono de Jaime I, recebeu as honras de ser elevado
à ordem da cavalaria.
Em 1605, publicou O progresso da ciência. Em 1613, foi nomeado procurador-geral. Quatro anos
depois, em 1617, contando 56 anos de idade, passou a ocupar o cargo de guardador do grande selo da
Inglaterra, sendo alçado ao posto de barão de Verulam. É desse período um dos seus principais trabalhos,
Nova Atlântida, texto de caráter utópico elaborado entre 1614 e 1617. Em 1620, escreveu o Novum
organum, segunda parte da grande obra que projetava, Instauratio magna, composta de seis partes.
Em 1621, foi nomeado visconde de Santo Albano.
Condenado pelo crime de suborno e concussão e proibido de exercer cargos públicos, foi conduzido
à prisão na Torre de Londres, mas solto dois dias depois por ordem do rei. Essa condenação levou Francis
Bacon à pobreza. Tinha, então, 60 anos de idade. Viveu em situação de penúria por mais cinco anos,
vindo a falecer em 9 de abril de 1626, por uma crise de bronquite causada pela exposição prolongada
ao frio devido a um experimento sobre conservação da carne de galinha.
Francis Bacon acreditava que o conhecimento científico se ergue em si mesmo, pois avança de
maneira sólida e cumulativa, sendo capaz de reformular leis e criar invenções, além de permitir a
formulação de coisas até então inimagináveis e/ou impossíveis. Ele considerava o conhecimento um dos
alicerces do poder.
Francis Bacon tinha o ambicioso projeto de reformar o conhecimento. Esse plano, denominado por
ele Instauratio magna [Grande instauração], compreendia seis partes:
• novo método;
• história natural;
• escalas do intelecto;
A Instauratio magna não chegou a ser concluída. Entretanto, a segunda parte, cujo intuito era
enunciar princípios de um novo método capaz de encaminhar a busca da verdade, foi publicada na obra
Novum organum.
A base da filosofia de Francis Bacon era prática: propiciar à humanidade domínio sobre as forças
da natureza por meio de descobertas e invenções científicas, razão pela qual insiste na expressão
“Saber é poder”.
Uma rápida apresentação dos usos que Bacon faz do termo em latim
“instauratio” pode ajudar a compreender o sentido que tinha para ele
a Instauratio magna. Em seus textos em inglês (ou em suas próprias
traduções em inglês), Bacon substitui esse termo, segundo o contexto,
por “restabelecer” (restare), “reconstruir” (reconstruct), “estalecer”
(establish), “renovação” (renovation), “fundamento” (foundation),
“instauração” (instauration). Inclusive, traduz a expressão “instauratione
scientiarum” por “instauration of the science”. Essa família de termos
possibilita a interpretação-padrão do objetivo que Bacon atribuía à
sua obra principal: estabelecer fundamentos totalmente novos para
as ciências e as artes, prover a humanidade de um método que lhe
possibilite renovar o conhecimento e restaurar seu domínio sobre a
natureza (MENNA, 2014, p. 11).
O que estava em curso, segundo Bacon, era obter a vitória sobre a natureza, dominá-la – conhecer a
verdade de forma manifesta. A natureza atua como fundamento do conhecimento, e a filosofia não pode
se separar dela. É necessário abandonar todas as concepções da escolástica e descartar completamente
o princípio e o argumento da autoridade. O homem precisa usar seu intelecto para investigar a natureza
através de instrumentos e máquinas, a fim de aguçar os sentidos, alcançar o que eles não podem
alcançar sem esses recursos.
Em sua crítica ao Organon de Aristóteles, Bacon diz que o silogismo não serve para descobrir princípios,
mas apenas para ligar premissas e conclusões; que ele se envolve mais com nosso assentimento do
que com as coisas. Bacon afirma: “O intelecto deixado a si mesmo acompanha e se fia nas forças da
dialética” (Novum organum, Livro I, XX).
Ele intitula seu livro principal Novum organum em clara alusão a Aristóteles e seu Organon.
Como vimos, organon significa “instrumento”, “ferramenta”. Foi com o intuito de fornecer uma ferramenta
para que a ciência de sua época não incorresse em silogismos que Aristóteles escreveu o Organon.
Foi com o mesmo intuito que Bacon escreveu o Novum organum, ou seja, um novo instrumento, voltado
para a correção do método científico.
25
Unidade I
Percebe-se nessa passagem que, para Bacon, a causa final é ineficaz, infecunda. Por sua vez, as
investigações da causa eficiente e da matéria dizem respeito ao curso comum e ordinário da natureza,
não a leis fundamentais e eternas. No lugar da indução simples, defendida por Aristóteles, Bacon insiste
na necessidade de usar a indução gradual:
Segundo Bacon, os dedutivistas são aranhas que extraem suas teias de si mesmos, ou seja, a ciência
dedutiva não passaria do desenvolvimento lógico de premissas já colocadas, enquanto os indutivistas
têm suas teorias validadas pela própria natureza. Bacon inova o método da indução simples de
Aristóteles ao propor a indução gradual e progressiva. Nessa última, há eliminação das hipóteses que
foram negativadas, evitando-se generalizar as correlações que se aplicam apenas a alguns casos.
Silva (2008) chama a atenção quanto ao caráter eliminativo que a indução, com Bacon, passa a ter:
A indução assim concebida é duplamente útil, pois separa o fenômeno que se busca conhecer de
tudo o que não faz parte dele. A inovação de sua teoria é que qualquer generalização pode ser invalidada
se somente um resultado não corresponder à teoria, não importando quantos resultados tenham sido
validados. É a isso que Bacon se refere quando afirma que, “na constituição de todo axioma verdadeiro,
têm mais força as instâncias negativas” (Novum organum, Livro I, XLVI). Esse é o princípio de eliminação,
ligado a determinada doutrina “sobre o caráter das leis naturais segundo a qual há somente um número
limitado de geração de causas, que são coordenadas em vários graus possíveis” (BACHA, 2002, p. 43-44
apud SILVA, 2008).
A teoria mais famosa de Francis Bacon é a teoria dos ídolos. Ele entende por ídolo algo que impede
a neutralidade, as inclinações naturais da mente às ilusões. Isso é interessante porque poucos filósofos
se dedicaram a discorrer sobre as ilusões que nos impelem a aderir ou refutar ideias.
27
Unidade I
Os ídolos são tabus dos quais o pensamento precisa se libertar para alcançar a realidade. Há quatro
gêneros de tabu: ídolos da tribo, ídolos da caverna, ídolos do teatro e ídolos do foro. A sua particularidade
é a sutileza com que atuam. Eles não enganam de forma explícita, específica, imediata ou consciente;
antes, enredam o intelecto, antecipando-se à crítica.
Esse ídolo diz respeito às nossas limitações enquanto humanos, com sentidos humanos.
Tomamos por realidade tudo o que os nossos sentidos nos informam que é a realidade e esquecemos
que eles são limitados, que outros animais têm visão muito mais apurada e enxergam um mundo
completamente diferente do “nosso” – e o mesmo se pode dizer quanto aos demais sentidos. A questão
é que, com frequência, esquecemos que aquilo que tomamos por real é o que é real aos nossos olhos, ou
seja, à limitação da nossa visão; tomamos o real pelo que nos informam as ondas sonoras que captamos,
e assim por diante. É a isso que Bacon chama de incompetência dos nossos sentidos.
Qual não foi a surpresa de Galileu ao vislumbrar as estrelas com a luneta, e qual não foi o espanto
daquele que pela primeira vez observou uma gota de água no microscópio! O universo mudou? É claro
que não: é exatamente o mesmo universo que aí está. A diferença é que os sentidos se ampliaram com
os instrumentos, tornando possível ir além na observação da realidade. O fato triste é que raramente
lembramos isso e deixamos nos mover por juízos parciais, que dependem dos nossos limites, aos quais
na maioria do tempo permanecemos inconscientes.
Para além da precariedade dos nossos sentidos, outra limitação tipicamente humana é a tendência
a antropomorfizar os fenômenos (a vontade dos animais domésticos, o comportamento da natureza
28
EMPIRISMO MODERNO
etc.), ajustá-los às nossas disposições e causas existenciais. A própria razão humana nos predispõe a
antropomorfizar tudo, como se o universo fosse feito tal qual o nosso espírito. Desde Aristóteles, e
também no tempo de Francis Bacon, era comum a frase horror vacui, isto é, a natureza tem horror ao
vácuo. É um caso nítido de atribuir à natureza um comportamento tipicamente humano. A natureza
tem horror a alguma coisa? Para isso, precisaria ter uma unidade, ser um sujeito etc. Expressões como
essa ilustram a afirmação de Bacon que vimos antes: “O entendimento humano parece ser um espelho
falso, lançando os raios que recebeu dos objetos, misturando sua própria natureza à das coisas, e assim
estraga, torce, por assim dizer, e desfigura as imagens que reflete”. O homem pensa tudo em analogia a
si, em tudo vê uma ordem semelhante, que de fato não existe.
Os ídolos da tribo – leia-se, tribo da raça humana – são portanto todos aqueles decorrentes de tomar
o homem como medida de todas as coisas, mesmo sem o perceber, aliás principalmente sem o perceber,
pois nesse caso não há como fazer a crítica. Agarramo-nos a essas ideias porque elas nos agradam, e elas
nos agradam porque se assemelham a nós. “O entendimento, uma vez familiarizado com certas ideias
que lhe agradam, seja por serem comumente aceitas, seja por serem agradáveis em si mesmas, agarra-se
a elas obstinadamente”.
Mesmo quando advertido do erro, o espírito prefere não tomar conhecimento do fato real – ou, como
diz Francis Bacon, simplesmente desprezar o juízo correto com a ajuda de alguma interpretação frívola.
Eis o ídolo da tribo humana. Bacon afirma que ele tem origem na uniformidade da substância espiritual
do homem. E o que é presente e uniforme em todos os homens, não importa a origem, a cultura, a
raça, a condição social ou a crença filosófica? Segundo Michel de Montaigne, seus preconceitos, suas
limitações sensoriais, suas limitações intelectuais, seus sentimentos instáveis perante a vida.
Esses tabus têm sua origem na própria natureza, na alma e no corpo de cada
indivíduo. É preciso incluir nesse capítulo a educação, os hábitos, e uma
infinidade de outras causas e circunstâncias fortuitas. […] A diferença mais
característica e mais marcante que se observa entre os espíritos, diferença
realmente radical, é esta: uns tem mais força e aptidão para observar as
diferenças das coisas: os outros, para captar analogias. Essas duas espécies
de espírito caem igualmente no excesso quando querem: ou percebem uma
infinidade de minúcias, ou se entusiasmam com grandes aparências (Novum
organum, Livro I, LIII e LV).
Saindo da esfera da existência da raça humana para a vida em sociedade, temos um ídolo diretamente
associado ao mundo individual de cada ser social. Indivíduos divergem por valores culturais, crenças
religiosas, níveis de saber, conhecimento do mundo natural etc. Se elementos simples, como sotaques
diferentes ou metas de vida distintas, já causam estranhamento e desconforto em alguns, o que dizer
de aspectos mais profundos, como convicções ideológicas, religiosas e metafísicas?
29
Unidade I
Certas concepções são tão arraigadas que facilmente operam como bloqueadores da escuta num
diálogo, impedindo até que se reconheça a fala do outro se a construção não for feita segundo os
parâmetros de determinada gramática de vida. Poucos são aqueles que realmente conseguem se abrir
para o novo e, pelo menos, aceitar conviver com o diferente sem a condescendência de “tolerá-lo apesar
de ele ser o que é”. Para o indivíduo, em geral, é cansativo questionar valores arraigados, introjetados
desde a mais tenra idade, de modo que ele só se dá conta de que estão ali operando quando se defronta
com uma situação que o obriga a esse questionamento.
Como já mostrou a alegoria platônica, a vida na caverna pode ser muito limitada – tão limitada
quanto os valores que a guiam. Vive-se como se cada grupo estivesse aninhado numa caverna, sem
poder sair dela pelo risco de perder sua proteção.
A partir desse ponto, dos ídolos da caverna, passando pelos ídolos do foro e do teatro, é interessante
perceber certa crítica que Bacon tece aos gregos. Foi sua postura fechada ao debate (com a tradição cética,
por exemplo) que fez com que não continuassem avançando, porque se seduziram demais pelo próprio
discurso. Se discurso tem a ver com a linguagem da razão, sem dúvida próprio tem a ver com o grupo dos
filósofos gregos assim constituído. Nesse sentido, mostra-se de forma inequívoca a limitação dos ídolos
da caverna. Ironicamente, quem primeiro aludiu à imagem da caverna na história da filosofia foi Platão.
Os ídolos do foro estão entre os mais interessantes que Francis Bacon apresenta. Eles se dividem
em duas modalidades: o discurso sobre coisas que não existem e o discurso confuso, indeterminado.
Os ídolos do foro se referem aos erros gerados no interior do próprio discurso, não só o filosófico,
mas sobretudo o filosófico. É nesse sentido que afirmamos antes que a crítica de Bacon recai sobre os
gregos, na medida em que eles se fascinaram demais com os próprios discursos e não quiseram ceder ao
questionamento dos seus princípios, uma vez que os pressupostos metafísicos iniciais já haviam logrado
tantos belos discursos.
30
EMPIRISMO MODERNO
No entanto, à parte o inebriante mundo dos filósofos que se comprazem em se escutar e se refutar,
a comunicação dos homens em geral, insiste Bacon, também padece desse problema. Bacon diz que os
ídolos do foro estão entre os mais perturbadores, porque “se insinuam” no espírito graças ao pacto das
palavras e dos nomes, dando-lhe a doce ilusão de que governa as palavras, quando na verdade são elas,
as palavras, ou melhor, eles, os ídolos do foro, que o governam.
A razão padece da ilusão de que comanda seus pensamentos, mas de fato guia-se por narrativas
eivadas de sentidos e imagens estéticas, orais ou visuais, que a seduzem, convencendo-a de que o que a
fascina é a verdade. Com efeito, Bacon afirma que as palavras são o fio condutor que pode levar a esse
ídolo; elas são capazes de fugir da nossa interpretação e criar vida e sentido.
Esses ídolos estão francamente associados à crença ideológica a partir da qual se constrói um projeto
de vida. As crenças podem ter origem em sistemas filosóficos, textos religiosos e experiências artísticas.
Elas são introjetadas como valores ficcionais, narrativas de vida nas quais as pessoas se apoiam. De certa
forma, há uma adesão deliberada e consciente. No entanto, nem por isso deixa de exercer influência
sobre nossos juízos de valor e avaliações em geral.
A partir dos séculos XVI e XVII, consolidam-se duas tradições científicas diferentes: a experimental e
a matemática. O grupo das ciências experimentais remete à vertente baconiana, que desenvolvera um
método indutivo mais eficiente desde meados do século XVI. A tradição que fazia apelo à observação
e à experimentação fundadas em estruturas matemáticas – astronomia, óptica geométrica, estatística e
matemática propriamente dita, dividida em geometria e álgebra – foi representada por René Descartes,
Blaise Pascal, Baruch Spinoza e Gottfried Leibniz. A ciência moderna nasce no seio desses dois métodos.
Antes mesmo que Galileu formulasse sua primeira teoria cosmológica, no século XV a Europa já vivia
uma profunda mudança na sua racionalidade. O Renascimento, nos séculos XV e XVI, desencadeia uma
série de processos. Védrine (1974) descreve esse período como aquele no qual foi gestada uma nova
imagem do mundo, a partir do entrelaçamento de várias imagens:
31
Unidade I
• uma nova visão de Deus, fruto do processo de Reforma e Contrarreforma (Nicolau de Cusa,
Erasmo, Lutero, Calvino);
• uma nova concepção do céu (heliocentrismo, de Copérnico, e universo infinito, de Giordano Bruno);
• uma nova política e uma nova economia, com o início do Absolutismo e o surgimento da burguesia
como classe social;
• um novo planeta habitável, em decorrência das conquistas territoriais das Grandes Navegações;
• um novo estilo de vida, no qual a vida ativa na urbe é valorizada dada a valorização da cultura e
da arte;
• um novo tipo de ceticismo, com Erasmo e Montaigne, além de uma nova filosofia política, com Maquiavel.
Observação
É esse novo mundo que Galileu Galilei herdará no século XVII, cujo quadro ele contribuirá para
ampliar elaborando uma nova concepção de natureza. É no Renascimento que se dará a passagem da
cosmologia de um mundo antigo para a de um mundo moderno.
32
EMPIRISMO MODERNO
Essa figura mostra o esquema geocêntrico, em que a Terra ocupa o centro do universo. Em torno
dela, orbitam os demais planetas e até o Sol. A teoria geocêntrica, elaborada desde a Antiguidade, foi
estruturada por Ptolomeu no século II. Considerava-se que a forma da Terra era nobre e perfeita, e que
portanto nenhuma conclusão quanto à imperfeição dela poderia ser inferida da alegada imperfeição
de seus habitantes. Isso significava que a estrutura ontológica do mundo era a mesma em toda parte e
expressava a perfeição do criador. A Terra estaria no centro por esse motivo.
A teoria do heliocentrismo, representada na figura anterior, foi formalizada por Nicolau Copérnico
(1473-1543) ainda no século XVI. “A matemática é escrita para os matemáticos” é uma frase que se
encontra no livro dele De revolutionibus orbium coelestium (1543). O autor esperou trinta anos para
publicar essa obra, que saiu no ano de sua morte. Na época, embora o abandono do geocentrismo tenha
surpreendido, a novidade foi a rigorosa reconstrução matemática da teoria. Para explicar a ausência
de paralaxe das estrelas, que deveria aparecer com o movimento da Terra, Copérnico hipoteticamente
fez crescer bastante o universo, ainda que não o considerasse infinito. Muito discreto, Copérnico não
chamou a atenção da Inquisição. Para isso contribuiu o hermetismo de sua argumentação, que requeria
um leitor astuto e pronto a enfrentar o ônus da publicização da teoria. Quase cinquenta anos depois, e
auxiliado por sua luneta, Galileu procederia à demonstração física da teoria.
Além do Sol no centro do universo, o heliocentrismo mostrou que a Terra fazia três movimentos:
rotação em torno do eixo, translação anual e inclinação de seu eixo. Com isso, tornou-se possível explicar
fenômenos nunca explicados satisfatoriamente, como as estações do ano. A perda da Terra de sua
posição central levava à perda do homem de sua posição singular e privilegiada no drama teocósmico.
No entanto, Koyré (1979, p. 8) afirma que essa mudança “espiritual” não ocorreu de maneira súbita:
“as esferas celestiais que continham o mundo e o mantinham íntegro não desapareceram de uma vez,
numa colossal explosão; a bolha terrestre cresceu e inchou antes de rebentar e fundir-se no espaço que
a circundava”. Esse foi um momento de profunda ruptura epistemológica.
33
Unidade I
Observação
Outra questão cosmológica que causou um deslocamento espiritual nos seres terrestres foi a queda
da concepção de universo fechado e finito. A noção de infinitude do universo origina-se na Antiguidade
grega com Lucrécio. Para Copérnico, o universo era vasto mas finito. O primeiro homem a levar a
cosmologia lucreciana a sério foi Giordano Bruno (1548-1600). Segundo ele, “a terra e o oceano são
fecundos porque do infinito é engendrada uma abundância sempre renovada da matéria” (BRUNO apud
KOYRÉ, 1979, p. 50). Diferentemente do matemático Copérnico, que levou uma vida discreta, Bruno, em
sua breve existência (morreu aos 52 anos), promoveu o remanejamento de todo um campo de reflexão.
Denunciado à Inquisição em 1592, permaneceu preso em Roma por oito anos, sob tortura, antes de ser
condenado à fogueira. Além do heliocentrismo, insistiu na tese do universo infinito e do “pluricentrismo
dos mundos inumeráveis” (BRUNO apud VÉDRINE, 1974, p. 57).
Koyré (1979) ressalta que duas ações relacionadas entre si foram decisivas, a destruição do cosmo e
a geometrização do espaço, isto é:
Esse é o mundo que herdarão Galileu, Descartes e Newton, um lugar que passou “do mundo fechado
ao universo infinito”, como diz Koyré (1979). De acordo com Védrine (1974, p. 60), o mundo renascentista,
mais do que qualquer outro, representou uma transição: “Do velho material conceitual herdado dos
34
EMPIRISMO MODERNO
gregos e da escolástica, só poderia sair um arranjo de possíveis. Se Galileu pôde refletir sobre outras
bases, foi porque o terreno havia sido desimpedido”.
Saiba mais
Galileu Galilei nasce em Pisa, em 1564, e ali estuda na tradicional Universidade de Pisa.
Entre 1613 e 1615, escreve as famosas quatro cartas copernicanas, sobre as relações entre a ciência
e a fé. Denunciado em 1616, é processado em Roma e proibido de ensinar ou professar a teoria copernicana.
35
Unidade I
Em 1623, escreve O ensaiador e, em 1632, Diálogo sobre os dois máximos sistemas de mundo. Em 1633,
é processado novamente e condenado à prisão perpétua, depois comutada em confinamento.
Recolhe‑se em Arcetri, nas colinas próximas à Florença, onde permanece até sua morte, em 1642.
Quatro anos antes, em 1638, publica Discursos e demonstrações matemáticas sobre duas novas
ciências, trabalho considerado uma de suas maiores contribuições. As duas novas ciências em questão
são a estática e a dinâmica, e ali se discute a resistência dos materiais, os sistemas de alavanca e as
experiências sobre planos inclinados.
Em 1609, Galileu soube que um holandês havia fabricado uma lente que aumentava o tamanho dos
objetos quanto mais distante dos olhos do observador ela fosse posicionada. Com base nas informações
do experimento do holandês, Galileu desenvolveu a luneta. Segundo ele,
Observação
Com a luneta, Galileu pôde ver não só as estrelas fixas, mas também outras antes vistas; o
universo tornou-se maior; até a lua foi redescoberta como não perfeitamente esférica, como se havia
acreditado. Nada podia ser mais desafiador àqueles que ainda aderiam à velha ideia do cosmo de
Aristóteles, hierarquizado e ordenado, criado para a existência humana, do que a concepção de que a
galáxia não passa de “um monte de inumeráveis estrelas, disseminadas em amontoados” (GALILEI apud
REALE; ANTISERI, 2013a, p. 190).
A ideia mais conhecida de Galileu, que inspirou tantos filósofos, é aquela que já vimos, presente em
O ensaiador:
Descartes insistirá em lembrar que a luz anda em linha reta, os planetas orbitam em curvas elípticas
e, quando caminhamos reto sobre a Terra, percorremos circunferências sobre os meridianos.
Outro tema importante refere-se ao movimento dos corpos pesados (graves) e leves (projéteis).
Será preciso mostrar que subir e descer não dependem de uma essência escondida, que destinaria uma
potência inerente a esse corpo. Se a Terra não é o centro real do universo, a distinção essencial para
Aristóteles entre os corpos pesados e os leves não é válida.
Além dessas descobertas, Galileu teoriza sobre as instâncias da fé religiosa e do saber científico,
defendendo a autonomia de uma em relação à outra. Ele destaca o princípio da diferenciação entre ambas
nas palavras que diz ter ouvido do cardeal Barônio: “A intenção do Espírito Santo seria ensinar-nos como
se vai ao céu, e não como vai o céu” (GALILEI apud REALE; ANTISERI, 2013a, p. 190).
Saiba mais
Isaac Newton foi um físico, filósofo e matemático inglês. Sua principal obra, publicada em 1687,
intitula-se Princípios matemáticos da filosofia natural. Segundo Reale e Antiseri (2013a), a filosofia
37
Unidade I
mecanicista de Newton foi de suma importância para o Iluminismo. Além da obra mencionada, escreveu
Nova teoria a respeito da luz e das cores (1672) e Óptica (1704).
Disputa com Leibniz a autoria do cálculo infinitesimal. Também aderiu ao atomismo, insistindo na ideia
de que os corpos são formados por partes menores, extensas, duras, impenetráveis (corpuscularismo),
móveis e dotadas de inércia.
Vale constar que Newton, na sua época, não fazia distinção entre filosofia e física, chamando de
filosofia natural (ou experimental) o que hoje denominamos física clássica. Nesse sentido, formula
nos Princípios as quatro regras do raciocínio filosófico:
Não devemos admitir mais causas para as coisas naturais do que aquelas
que forem verdadeiras e suficientes para explicar as suas aparências. É com
esse objetivo que os filósofos dizem que a natureza não faz nada em vão,
e quando o menos já basta, o mais é em vão; pois a natureza se agrada da
simplicidade, e não lhe cabe a pompa das causas supérfluas (NEWTON apud
REALE; ANTISERI, 2013a, p. 245).
As qualidades dos corpos que não admitirem nem aumento nem diminuição
de grau, e que se concluir pertencerem a todos os corpos ao alcance de
nossos experimentos, devem ser tomadas como as qualidades universais
de todos os corpos (NEWTON apud REALE; ANTISERI, 2013a, p. 245).
• 4ª Regra – Indução:
Vemos que a ciência de Newton apresenta uma inspiração claramente matemática, mas também
organiza um método experimental guiado pela indução. Seu modelo de natureza nada tem a ver com o
número infinito de causas da metafísica aristotélica, pois “a natureza se agrada da simplicidade, e não lhe
cabe a pompa das causas supérfluas”. Com efeito, a lei da gravidade newtoniana propõe um único princípio
para dar conta de um número ilimitado de fenômenos, desde a queda de uma pedra ou uma maçã até o
fenômeno das marés como resultado da atração do Sol ou da Lua sobre a massa da água dos mares.
René Descartes nasceu no dia 31 de março de 1596 na cidade francesa de La Haye, quarto filho de
uma família nobre. Estudou no importante colégio La Flêche, dirigido por jesuítas. Em 1616, quatro anos
depois de sua formatura em Direito, alistou-se na carreira militar no grupo de Maurício de Nassau.
Passou grande parte da vida na Holanda, onde era mais fácil levar uma existência austera, diferente
da que tinha em Paris. Em 1630, escreve Regras para a direção do espírito. Em 1633, termina seu Tratado
do mundo. Em 1637, publica Discurso do método. Esse texto servia de prólogo para os ensaios Dióptrica,
Meteoros e Geometria, três pesquisas nas quais Descartes pôde exercitar seu método dedutivo.
Observação
Em 1641, aos 45 anos de idade, publica as Meditações da primeira filosofia nas quais se demonstram
a existência de Deus e a imortalidade da alma humana, que desencadearam inúmeras polêmicas e
perseguição. Em 1644, publica uma obra na qual expõe suas teorias sobre física e cosmologia. Em 1649,
publica o Tratado das paixões. Nesse mesmo ano, vai para Estocolmo, na Suécia, a convite da rainha
Cristina, vindo a falecer em 11 de fevereiro de 1650, com 54 anos de idade.
Descartes questionou todo o arcabouço de ideias e conceitos que lhe foi transmitido pela tradição e
verificou uma variedade de opiniões muito grande acerca dos mesmos problemas. Na própria filosofia,
ele não observou uma só questão para a qual não existissem pelo menos duas opiniões diferentes.
A partir dessa constatação, supôs que as diversas gerações de pensadores não utilizaram o mesmo
método na construção de seus conhecimentos, uma vez que chegaram a conclusões distintas.
A busca pela verdade e a possibilidade de estabelecer uma ciência fundamentada estão entre os
principais temas da obra cartesiana. A intenção de seu projeto foi nada menos que lançar as bases para
a reconstrução do edifício do saber. Numa de suas primeiras obras, Regras para a direção do espírito,
Descartes enumera 12 regras a partir das quais o espírito poderia se orientar na procura pelo conhecimento.
Essa orientação tinha por finalidade fazer com que o espírito pudesse proferir juízos verdadeiros
sobre tudo o que a ele se apresentasse de maneira clara e indubitável (regra II). Para tanto, era necessário
considerar dois fatores: a simplicidade dos objetos e a clareza e precisão da razão (regra IV). As áreas do
conhecimento nas quais Descartes poderia treinar a capacidade de refletir com clareza e precisão eram
a geometria e a aritmética. Foi a partir delas que ele iniciou a aplicação de seu método.
Contudo, embora os objetos dessas disciplinas fossem simples, pelo modo como estavam
construídas, os raciocínios se dirigiam mais à imaginação do que à inteligência, fazendo perder o hábito
do uso da razão (regra IV). A partir de sua confiança no método matemático, Descartes desenvolve
um método científico que considera, em primeiro lugar, as noções de ordem e medida, a mathesis
universalis, pretendendo que esse procedimento deva perpassar todas as ciências, constituindo um
método único (regra IV).
Há, portanto, um abandono do procedimento aristotélico e escolástico como único modo de fazer
ciência. A dedução figurará como um dos atos do entendimento, ato não suscetível ao erro enquanto
operação pura da razão. Através de outro ato do entendimento, a intuição, Descartes pretende obter os
primeiros princípios. Trata-se, contudo, não de uma intuição sensorial, mas de uma intuição da razão,
por meio da qual o espírito “vê instantaneamente”, abstraindo os efeitos dos sentidos e da imaginação
(regra III). Tanto a intuição quanto a dedução podem ser treinadas. Com isso, seria possível evitar erros
que proviessem de experiências pouco compreendidas ou da emissão de juízos sem fundamento (regra II).
A aquisição de uma verdade evidente relaciona-se ao exercício da dúvida, pois, para Descartes,
o evidente é indubitável. A dúvida não é psicológica nem cética. A dúvida cartesiana é metódica,
epistemológica, científica. Por ter cultivado a dúvida, Descartes foi associado aos céticos helenistas.
Contudo, para estes, não haveria como discernir o verdadeiro do falso, e por conseguinte não haveria
40
EMPIRISMO MODERNO
sentido no apego a nenhum conhecimento. A dúvida cartesiana se distingue da cética porque tem um
caráter provisório.
Na segunda parte do Discurso do método, Descartes define como primeiro passo de seu método o
preceito de pôr em dúvida tudo que não parecesse claro e distinto. Posteriormente, num de seus últimos
textos, as Meditações, o filósofo retomará a questão da dúvida, tal é a importância dela no conjunto
de sua obra. A dúvida natural, aquela que visa questionar os nossos sentidos, já havia sido colocada
desde a filosofia grega. Na obra cartesiana, a dúvida natural consta tanto das Regras para a direção do
espírito quanto do Discurso do método e, nesses livros, ela representa a recusa do fundamento sensível
do conhecimento. No entanto, é nas Meditações que o argumento da dúvida se amplia até chegar à
dúvida metafísica, inovação cartesiana.
Não obstante, a verdade da consciência é a verdade do aqui e agora: só é possível dizer que se
pensa algo no exato momento em que se pensa isso. Como aponta Gouhier (1973, p. 108), o cogito não
garante as verdades do saber, mas afirma antes de tudo “a unidade do sujeito pensante”. O que Descartes
intenta, porém, é a unidade do método, a unidade da ciência verdadeira. Se o cogito está limitado ao
presente instantâneo, precisa-se de algo que garanta a constância das ideias evidentes e verdadeiras.
Esse suporte metafísico, Deus, apresentado num momento posterior das Meditações, representa
“o princípio supremo de unificação do todo” (GOUHIER, 1973, p. 108). A partir desse ponto, Deus – e
não o cogito – passa a ser a garantia da existência daquele que pensa e a razão de ser das verdades. De
acordo com Leopoldo e Silva (1993, p. 68-69),
41
Unidade I
A partir de Descartes, o sujeito vai refletir sobre si, sobre sua razão, seu método de conhecer.
Na ciência cartesiana, os objetos não são preexistentes, como se poderia dizer da ciência aristotélica. É a
razão que vai determinar o que é objeto, porque as experiências sensoriais poderiam levar, no máximo,
a opiniões verdadeiras.
Descartes inaugura, na filosofia, a ordem das razões, uma fundamentação do saber que não reflete
necessariamente a ordem das coisas do mundo. Daí a afirmação do autor de que devemos conduzir
nossos pensamentos “supondo mesmo uma ordem entre os que não se precedem naturalmente uns aos
outros” (Discurso do método, II, § 9). A noção de ordem depende de uma comparação porque não existe
uma ordem natural – a ordem é criada. Descartes não propõe ordenar as relações entre as coisas, como
fazia a ciência aristotélica, mas as relações entre as razões. Deve-se treinar, portanto, o olho do espírito,
e não o olho do corpo.
No final do parágrafo 4, Descartes diz achar-se compelido a tentar conduzir-se sozinho na busca
de uma verdade, através de sua razão. A partícula mas com que inicia o parágrafo 5 pretende chamar a
atenção ao modo como seria prudente conduzir-se – lentamente e usando de circunspecção –, evitando
com isso cair em erros. A imagem que ele evoca do homem que caminha só representa essa busca
solitária do espírito. Daí encontrar-se ainda nas trevas. A verdade que pretende alcançar se dará pelo
uso de sua própria razão, e sua busca terá de ser solitária porque pretende erguer seu próprio edifício do
saber, erigido por um único engenheiro, o que resultaria numa construção mais perfeita, ordenada por
uma única razão, a sua, conforme escreve no início da segunda parte do Discurso do método.
Descartes não pretende abandonar os conhecimentos herdados em sua formação sem submeter os
fundamentos deles à sua razão. Ele faria isso antes de se empenhar na busca de um novo método de
aquisição do saber verdadeiro. Não eram os conhecimentos em si que ele criticava em sua formação,
mas o fato de eles lhe terem sido apresentados como verdade, sem que fossem demonstrados como tal,
e ele não queria simplesmente aceitar uma verdade, mas desvendá-la.
42
EMPIRISMO MODERNO
Descartes acreditava que a lógica, a geometria e a álgebra ajudariam a dar suporte a seu método.
Mas por quê? Talvez porque esses ramos do saber primem por empregar em seus raciocínios o uso da
razão mais pura – a geometria e a álgebra, por usar raciocínios claros e trabalhar com evidências, aquilo
que seria, portanto, mais claro ao espírito. Nas Regras para direção do espírito (II), Descartes dirá que
a aritmética e a geometria são as únicas disciplinas a “incidir sobre um objeto tão puro e tão simples,
que qualquer suposição que façam não pode ser posta em dúvida pela experiência, e são, além disso,
inteiramente compostas por consequências a deduzir racionalmente”.
O filósofo também escolhe a lógica por esta criar uma série de regras que ajudam a ordenar os pensamentos,
evitando que se caia em erros. Ainda assim, esses saberes não estariam isentos de falhas, pelo menos do modo
como eram concebidos no tempo de Descartes. Daí ele não afirmar, num primeiro momento, que eles dariam
um suporte sólido ao seu método, mas que “pareciam querer contribuir com algo”.
O autor critica o uso da doutrina dos silogismos, uma vez que esta apresentaria algumas aplicações
nocivas, como explicar o que já se sabe ou argumentar sobre o que não se sabe. Assim, enquanto ele não
limpasse a lógica de seus elementos nocivos, ela seria inútil para conduzi-lo na busca de uma verdade.
43
Unidade I
Além disso, Descartes critica a geometria e a álgebra por sua inutilidade e por requererem abstração
demais para serem entendidas. A geometria, ao considerar somente figuras, causaria fadiga ao espírito.
Ademais, estando a geometria sujeita a tantas regras da álgebra, teria se tornado uma arte obscura, que
não ajudaria ao desenvolvimento da razão, e sim ao seu embaraço.
O novo método deveria se despir, portanto, dos defeitos da álgebra, da lógica e da geometria.
O primeiro [preceito] era o de jamais acolher alguma coisa como verdadeira que
eu não conhecesse evidentemente como tal; isto é, de evitar cuidadosamente
a precipitação e a prevenção, e de nada incluir em meus juízos que não se
apresentasse tão clara e tão distintamente a meu espírito, que não tivesse
nenhuma ocasião de pô-lo em dúvida (Discurso do método, II, § 7).
É interessante observar que a primeira regra do método diz respeito ao que não se deve fazer.
Ela dita, sinteticamente, o modo pelo qual o espírito deve se conduzir. Por um lado, evitar fazer juízos
antes de chegar a uma evidência, ou seja, evitar a precipitação; por outro lado, procurar despir-se de
preconceitos e juízos formados pela tradição, ou seja, evitar a prevenção.
O espírito deve trabalhar somente com o que seja claro e distinto, o que é, em outras palavras,
trabalhar com o que é evidente. Uma ideia clara e distinta seria uma ideia precisa, que não pode ser
confundida com outra, e na qual se possam perceber todos os seus elementos. Isto é, voltamos ao
campo da matemática, aquele que trabalha com evidências.
Vemos que a aquisição de uma verdade evidente se relaciona ao exercício da dúvida, pois o evidente é
indubitável. A dúvida constituirá uma parte importante do método cartesiano, na medida em que auxiliará
o espírito a livrar-se daquilo que o embaraça, descartando o que não se apresenta a ele com clareza.
O segundo preceito diz: “dividir cada uma das dificuldades que eu examinasse em tantas parcelas
quantas possíveis e quantas necessárias fossem para melhor resolvê-las” (Discurso do Método, II, § 8).
Segundo uma nota de Lebrun, a ideia de divisão remete à noção de decomposição matemática, como
aquela utilizada para a resolução de uma equação (DESCARTES, 1973, p. 54, nota 22). A decomposição
seria aquela que reduz o desconhecido ao conhecido e remonta ambos aos princípios dos quais
dependem. Por isso, essa regra é denominada análise por Leopoldo e Silva (1993).
Descartes enfatiza que devemos supô-la caso ela não seja claramente visível. Quanto a esse último
aspecto, estaria ele discorrendo sobre o que chamamos atualmente de hipótese?
“E o último [preceito], o de fazer em toda parte enumerações tão completas e revisões tão gerais,
que eu tivesse a certeza de nada omitir” (Discurso do método, II, § 10). Primeiro opta-se por trabalhar
com elementos claros e distintos; depois decompõe-se o problema em quantas partes forem necessárias
e possíveis; em seguida ordenam-se estas partes segundo uma hierarquia. O problema transforma-se
numa longa cadeia de elementos dispostos hierarquicamente, de modo que seja possível apreendê-los
passo a passo. Parece, portanto, que se chega finalmente a um quadro satisfatório. Há, no entanto, uma
quarta regra, solicitando que se façam enumerações.
Em relação ao quarto procedimento, em que consistiriam tais enumerações? Cabe destacar o caráter
de revisão que elas contém, e também o seu intuito: “que eu tivesse a certeza de nada omitir”, ou seja,
o que Descartes pretende, nesse ponto, é obter a visão geral de um conjunto, pois somente quando se
apreende um problema – em toda a sua extensão – é que se pode estar mais seguro de encontrar uma
solução correta para ele.
Os comentários de Lebrun (DESCARTES, 1973, p. 54, nota 24) a essa regra remetem ao processo do
conhecimento matemático, quando este elenca todas as possíveis soluções a uma equação com vistas à
escolha da mais geral, ou seja, que satisfaça mais amplamente o problema. Leopoldo e Silva (1993, p. 31)
esclarece essa questão quando afirma que a enumeração pode ser vista como uma síntese, uma vez que
pretende “uma recuperação da visão de totalidade de um conjunto”.
As longas cadeias de razões representariam o quadro a que se chegaria da aplicação das quatro
regras do método cartesiano, as quais, não por acaso, se assemelham às cadeias de razões de que a
geometria se utilizava. Lebrun (DESCARTES, 1973, p. 55, nota 25) lembra que se deve entender razões
como proporções, em seu sentido mais amplo, tal qual aquele utilizado pela matemática pura.
Vuillemin, citado por Lebrun, esclarece que os termos simples e fácil não são sinônimos. No caso em
questão, não se deve entender simples como simplório ou fácil, e sim como aquele que é mais elementar.
Nas suas palavras, “simples é o que é primeiro pela ordem das coisas” (DESCARTES, 1973, p. 55, nota 26).
Descartes acreditava que esse método poderia ser utilizado não só na matemática, mas também nas
mais diversas áreas do saber (“todas as coisas passíveis de cair sob o conhecimento dos homens”), desde
que se pudessem obter desses saberes as tais cadeias de razões.
E não me foi muito penoso procurar por quais devia começar, pois já sabia
que havia de ser pelas mais simples e pelas mais fáceis de conhecer; e,
considerando que, entre todos os que precedentemente buscaram a verdade
nas ciências, só os matemáticos puderam encontrar algumas demonstrações,
isto é, algumas razões certas e evidentes, não duvidei de modo algum que
não fosse pelas mesmas que eles examinaram; embora não esperasse disso
nenhuma outra utilidade, exceto a de que acostumariam o meu espírito a
se alimentar de verdades e a não se contentar com falsas razões (Discurso
do método, II, § 11).
Descartes decide começar a aplicar seu método pela própria matemática, uma vez que ela se
prestaria mais prontamente ao seu propósito pelo fato de trabalhar com as ideias mais evidentes e
utilizar raciocínios lógicos (dedutivos). Ainda que não esperasse disso nenhuma outra utilidade, serviria,
pelo menos, ao exercício de seu espírito.
Mas não foi meu intuito, para tanto, procurar aprender todas essas ciências particulares que se chamam
comumente matemáticas; e vendo que, embora seus objetos sejam diferentes, não deixam de concordar
todas, pelo fato de não conferirem nesses objetos senão as diversas relações ou proporções que neles se
encontram, pensei que valia mais examinar somente essas proposições em geral, e supondo-as apenas nos
suportes que servissem para me tornar o seu conhecimento mais fácil; mesmo assim, sem restringi-las de
forma nenhuma a tais suportes, a fim de poder aplicá-las tão melhor, em seguida, a todos os outros objetos
a que conviessem (Discurso do método, II, § 11).
Esse trecho se esclarece pela leitura da quarta regra em Regras para a direção do espírito. A matemática
no tempo de Descartes consistia na aritmética e na geometria (matemáticas puras) e em astronomia,
46
EMPIRISMO MODERNO
música, óptica e mecânica (matemáticas mistas). Contudo, Descartes não pretendia examiná-las uma a
uma; interessava-lhe sobretudo a sua explicação geral, ou seja, tudo o que nelas poderiam representar
as noções de ordem e medida, não interessando as suas aplicações específicas (em números, figuras ou
sons). Ele se referia a essa ciência, que explica tudo o que respeita à ordem e à medida, pelo “vocábulo
já antigo e aceite” (Regras para a direção do espírito, IV): matemática universal.
Descartes nota então que, para conhecer essas ciências particulares que se chamam matemáticas,
nas quais estão presentes as noções de ordem e medida, ele precisaria algumas vezes tomá-las
isoladamente e noutras em conjunto. Nesse último caso, o meio mais simples (novamente no sentido
de mais elementar, e não de mais fácil) e mais claro, ao espírito e aos sentidos, seria supô-las em linhas
e designá-las por símbolos simples. Huisman (DESCARTES, 1989, p. 46, notas 72, 73 e 74) esclarece que
a linha é considerada mais simples que os números e que os símbolos simples consistem nos símbolos
algébricos, que são curtos.
Em outro trecho da segunda parte do Discurso do método, Descartes diz que, quando se encontrava
na Alemanha, permanecia o dia inteiro fechado no quarto entretido em seus pensamentos:
Entre eles, um dos primeiros foi que me lembrei de considerar que, amiúde,
não há tanta perfeição nas obras compostas de várias peças, e feitas
pela mão de diversos mestres, como naquelas em que um só trabalhou.
Assim, vê-se que os edifícios empreendidos e concluídos por um só arquiteto
costumam ser mais belos e melhor ordenados que aqueles que muitos
procuraram reformar, fazendo uso de velhas paredes construídas para outros
fins (Discurso do método, II, § 1).
É impossível não traçar um paralelismo entre essa citação e a crítica que Descartes faz aos
fragmentados conhecimentos que compõem o edifício do saber em sua época. Também é compreensível
a crítica de Descartes a uma formação sujeita a várias opiniões e preconceitos herdados pela
tradição, a partir da qual o próprio entendimento do que fosse verdadeiro ou falso era orientado mais
pelos preconceitos do que por um método único.
De acordo com Leopoldo e Silva (1993), Descartes adota o pressuposto de que a unidade do método
é determinante na unidade da ciência, uma vez que a unidade do saber se faz a partir da unidade do
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Unidade I
intelecto, o que significa dizer que a ciência, para Descartes, é una, independentemente da diversidade
de seus objetos. O caráter de despojamento da dúvida cartesiana é ressaltado por Rovighi (1999, p. 80):
Desse modo, chegamos à ideia de que, para Descartes, reconstruir o saber em bases sólidas exige um
método uno, ou seja, a unidade da ciência está condicionada à indivisibilidade de seu ponto de partida,
a dúvida radical (GUENANCIA, 1986). A ciência cartesiana, sendo indivisível, pressupõe uma unidade do
intelecto, e por conseguinte, uma unidade do método.
Resumo
Bacon também concebe a teoria dos ídolos. Estes são tabus dos quais
o pensamento precisa se libertar para alcançar a realidade. Há quatro
tipos de tabu: ídolos da tribo, ídolos da caverna, ídolos do foro e ídolos do
teatro. A sua particularidade é a sutileza com que atuam: os ídolos não
nos enganam de maneira explícita, específica, imediata ou consciente;
eles enredam o intelecto, antecipando-se à nossa crítica.
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Unidade I
Exercícios
II – O humor dos quadrinhos é construído pelo fato de os personagens não perceberem a transformação
do objeto nem a causa da mudança.
III – Os quadrinhos ilustram a abordagem da perspectiva racionalista, pois é por meio do raciocínio
lógico que eles relacionam a influência do calor no aparecimento da torrada.
A) I e II.
B) II e III.
C) I e III.
D II.
E) III.
I – Afirmativa incorreta.
II – Afirmativa correta.
Justificativa: os personagens julgam que o pão sumiu e a torrada apareceu, sem estabelecer uma
relação entre os dois eventos, e isso constitui a graça do texto.
Justificativa: os personagens não compreendem o que acontece com o pão nem o porquê.
I – A formulação da lei da gravidade, na tirinha, tem sua origem motivada pela observação de um
fenômeno natural.
PORQUE
II – Na formulação de suas teorias, Isaac Newton valia-se apenas do método dedutivo de raciocínio.
51
Unidade I
I – Afirmativa verdadeira.
Justificativa: a tirinha refere-se à conhecida história de que a lei da gravidade foi motivada pela
queda de uma maçã na cabeça de Newton.
II – Afirmativa falsa.
Justificativa: Newton, como outros cientistas, normalmente partia de um caso particular para
formular uma lei geral, ou seja, valia-se do método indutivo.
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