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História do

Pensamento Filosófico
Autora: Profa. Maria Alice Carnevalli
Colaboradores: Profa. Silmara Maria Machado
Prof. Nonato Assis de Miranda
Profa. Renata Viana de Barros Thomé
Professora conteudista: Maria Alice Carnevalli

Maria Alice Carnevalli é paulistana. Doutora e Mestre em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações
e Artes da Universidade de São Paulo, na área de concentração em Jornalismo, além de bacharel em Comunicação
Social com habilitação em Jornalismo e Rádio/TV pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo,
bacharel em Letras (inglês/português) pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo e também licenciada em Letras pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.

Atualmente, é professora titular da UNIP, já tendo completado dez anos de docência em nível de graduação e de
pós-graduação em instituições de ensino como Universidade Lusófona, Uninove, Faculdades Integradas Rio Branco,
ministrando várias disciplinas nas áreas de comunicação, ciências sociais e filosofia. Além de professora universitária,
também é jornalista da Hífen Comunicação Empresarial, onde assumiu em 1998 o cargo de redatora-chefe da coluna
semanal, da revista e do site Sala do empresário. Também foi sócia-diretora da produtora de vídeo TTI-Tecnologia Texto
Imagem e roteirista da TV Cultura, da Fundação Padre Anchieta.

Tem publicado vários artigos em diversas áreas das ciências humanas:

LOPES, D. F.; SOBRINHO, J. C.; PROENÇA, J. L. (orgs.) Notícias Populares. In: Edição em jornalismo impresso. São Paulo:
Edicon, 1998.

LIBERAL, M. M. C. (coord. e org.) Telejornalismo: a construção da ética imaginária. In: A ética a serviço da comunicação.
São Paulo: Altamira Editorial, 2009.

MARQUES, S. Prefácio. In: Hispaninismo e erotismo no cinema de Luis Buñuel. São Paulo: Annablume/Fapesp, 2010.

Por toda essa vivência profissional e acadêmica e também pela ampla visão da sociedade atual, foi selecionada
para redigir este livro-texto sobre a história da filosofia, tendo em vista que suas aulas, gravadas nos estúdios da UNIP
Interativa, estão relacionadas a esse campo de estudo.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

C289h Carnevalli, Maria Alice

História do pensamento filosófico / Maria Alice Carnevalli. - São


Paulo: Editora Sol, 2011.
112 p., il.

Notas: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e


Pesquisas da UNIP, Série Didática, ano XVII, n. 2-047/11, ISSN 1517-9230.

1. Filosofia 2. História 3. Cultura grega I. Título

CDU 1 (091)

© Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou
quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem
permissão escrita da Universidade Paulista.
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Vice-Reitora de Graduação

Unip Interativa – EaD

Profa. Elisabete Brihy


Prof. Marcelo Souza
Profa. Melissa Larrabure

Material Didático – EaD

Comissão editorial:
Dra. Angélica L. Carlini (UNIP)
Dr. Cid Santos Gesteira (UFBA)
Dra. Divane Alves da Silva (UNIP)
Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR)
Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT)
Dra. Valéria de Carvalho (UNIP)

Apoio:
Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD
Profa. Betisa Malaman – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos

Projeto gráfico:
Prof. Alexandre Ponzetto

Revisão:
Andréia Andrade
Sumário
História do Pensamento Filosófico
APRESENTAÇÃO ......................................................................................................................................................7
INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................................................7

Unidade I
1 TEOGONIA VERSUS LOGOS.............................................................................................................................9
1.1 O conhecimento mítico ..................................................................................................................... 10
1.1.1 A história nos mostra que a filosofia é um produto da cultura grega ..............................11
2 A DIFUSÃO DA CULTURA GREGA .............................................................................................................. 12
2.1 O surgimento da filosofia ................................................................................................................. 15
2.2 Heráclito de Éfeso (mobilismo) e Parmênides (imobilismo) ................................................ 16
3 A TRÍADE GREGA ............................................................................................................................................. 17
3.1 Sócrates .................................................................................................................................................... 17
3.2 Platão ........................................................................................................................................................ 22
3.3 Aristóteles................................................................................................................................................ 25
4 A FILOSOFIA NA IDADE MÉDIA .................................................................................................................. 28
4.1 A Patrística .............................................................................................................................................. 30
4.1.1 A filosofia de Agostinho....................................................................................................................... 31
4.2 A Escolástica ........................................................................................................................................... 34
4.2.1 O pensamento de Tomás de Aquino ............................................................................................... 36
Unidade II
5 A FILOSOFIA MODERNA ................................................................................................................................ 51
6 RENÉ DESCARTES: O RACIONALISMO..................................................................................................... 52
6.1 David Hume: o empirismo ................................................................................................................ 56
6.2 Immanuel Kant: o apriorismo e o conhecimento ................................................................... 60
6.3 Hegel: o idealismo alemão ............................................................................................................... 64
6.4 Marx: o materialismo histórico ...................................................................................................... 66
6.5 Augusto Comte: o positivismo ........................................................................................................71
7 A FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA ................................................................................................................ 74
7.1 Conhecimento e ciência .................................................................................................................... 76
7.2 Nietzsche: revolução e conhecimento......................................................................................... 77
7.3 Freud: os enigmas do inconsciente............................................................................................... 80
7.4 Sartre: o existencialista ...................................................................................................................... 84
7.5 Michel Foucault: conhecimento e biopolítica .......................................................................... 87
8 QUESTÕES ATUAIS EM FILOSOFIA ............................................................................................................. 89
APRESENTAÇÃO

Esta disciplina tem como objetivo geral contribuir para a compreensão dos princípios da
Sociologia como forma de conhecimento que se transformou em campo científico. Trata-se
de apresentar sua origem, seu desenvolvimento e sua especificidade, visando possibilitar o
desenvolvimento de habilidades que permitam compreender a vida cotidiana e os conceitos
específicos dessa ciência.

Objetivos

– Levar os alunos a compreender a vida em sociedade como fonte inesgotável de mudanças que
podem ser orientadas de acordo com objetivos pessoais e de grupos.
– Entender o conhecimento filosófico compreendendo seus principais conceitos e possibilidades de
aplicação à realidade.
– Tomar consciência dos aspectos importantes da vida humana e da realidade a qual se manifesta.
– Desenvolver uma visão filosófica do mundo.
– Assumir um comprometimento para com a realidade em que vive.

INTRODUÇÃO

Este livro-texto tem por finalidade servir como suporte didático para que as aulas sejam amparadas
por um conteúdo teórico-didádico e de fácil compreensão e acesso para os alunos. Foi dividido em
duas unidades básicas, para melhor expor o longo percurso do pensamento filosófico ocidental,
desde os primeiros pensadores da Grécia Antiga até os estudiosos da pós-modernidade. A Unidade
I, dividida em quatro capítulos, mostra não só como surgiu, mas também a evolução da filosofia até
a Era Moderna, marcada por acontecimentos históricos como a Revolução Francesa e a Revolução
Industrial na Inglaterra, que trouxeram novas contribuições para a formação do homem como sujeito
individual e coletivo.

Já a Unidade II tem por objetivo mostrar a essência de filósofos que procuraram e ainda
procuram compreender como a humanidade vem se transformando e se comportando no que
diz respeito à origem da sua existência, uma vez que a relação entre passado, presente e futuro
vem se configurando de forma inédita, cabendo aos filósofos contemporâneos dar conta dessa
nova dinâmica entre espaço e tempo provocada pelos avanços tecnológicos, assim como a
noção de identidade e de progresso, que se encontram em total indefinição de sentidos, pois
não existem mais grandes projetos para o planeta como havia nos séculos anteriores, quando
se atribuía ao conhecimento científico e ao racionalismo a solução para todos os problemas e
conflitos.

Dessa forma, esse apanhado geral do pensamento filosófico é capaz de introduzir o aluno no
universo de indagações que sempre nortearam o rumo do pensamento humano sobre sua própria
condição, fornecendo subsídios para uma compreensão linear dessa trajetória, bem como dos nomes
7
mais representativos de cada época. Nesse sentido, é preciso ressaltar que estudar filosofia não se trata
simplesmente de entender os princípios básicos de mais uma disciplina; mas sim, por intermédio dessas
diversas interpretações do homem em sua perspectiva, tomar consciência das infinitas possibilidades
de reconhecer a si mesmo e os demais a partir de um mergulho no contexto pleno de um pensamento
profundo sobre a complexidade da condição humana.

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HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO

Unidade I
1 TEOGONIA VERSUS LOGOS

Qual o sentido da existência? De onde viemos e para onde vamos? Certamente, você já
deve ter se debatido com essas questões existenciais em algum momento da vida. O mais
interessante, porém, é saber que, desde que o ser humano tornou-se pensante e consciente da
sua própria condição no mundo, muitos foram os estudiosos que buscaram não uma resposta
derradeira para essas perguntas, mas sim explicar as perspectivas e os princípios éticos, morais
e religiosos que regem a trajetória do homem na face da Terra.

Para tentar entender seu papel, primeiramente surgiu a Teogonia, que vem do grego theos, deus, +
genea, origem, considerada como um grupo de deuses que constituíram a mitologia desses povos. Nesse
sentido, os primeiros pensadores foram os pré-socráticos da Escola Jônica, dividida em Escola Jônica
Antiga (Tales, Anaximandro e Anaxímenes) e Escola Jônica Nova (Heráclito, Empédocles, Anaxágoras).

No entanto, eles se preocupavam apenas com o elemento principal da constituição de


tudo aquilo que havia sem dar muita importância às causas das transformações. Para Tales,
por exemplo, o elemento primitivo era a água, que ele dizia ser divina; para Anaximandro era
o indefinido, e para Anaxímenes, o ar.

Já os pensadores da Escola Jônica Nova levantaram o problema das causas que surgem das
transformações no elemento primitivo, cuja origem não seria teológica, ou seja, explicada pelos mitos.
Nesse sentido, Heráclito firmou dois princípios contrários em ação, que ele chamava de guerra e paz. Ao
supor que o elemento primordial fosse o fogo, essas duas forças antagônicas o transformavam tanto na
direção da solidificação quanto na condição de retorno ao estado móvel do fogo.

De forma diferente, Empédocles denominou quatro elementos (fogo, ar, água e terra), e as duas forças
contrárias eram o amor e o ódio.

Figura 1

9
Unidade I

Anaxágoras de Colófon foi o último dos grandes jônios e partiu para Atenas, onde foi o filósofo do século
de Péricles. Ele não admitiu o dualismo dos contrários, estabelecendo uma multiplicidade de partículas
semelhantes que seriam movimentadas e ordenadas por uma delas, considerada inteligente, e por isso
chamada de Nous ou Logos. A partir dessa premissa, ele desenvolveu a ideia de um Deus exterior ao mundo
humano. O Logos, portanto, é algo entre as outras coisas e não exatamente um Deus. Trata-se, ainda assim,
de uma preocupação inteligente e atuante com a causa. A partir desse momento, encaminhava-se o
assunto para a discussão da existência de um Deus concebido pela filosofia. Apesar de renegar a mitologia,
Anaxágoras deu início à discussão metafísica sobre a divindade, inserida no contexto de causa.

1.1 O conhecimento mítico

Nas eras primordiais da civilização humana, o homem era nômade, ou seja, deslocava-se de forma
permanente, sempre acompanhando rios e águas e colhendo alimentos onde estes estavam disponíveis. Há
cerca de dez mil anos, ele passou a fixar-se em determinados locais e aprendeu a desenvolver meios para a
subsistência, como a agricultura, a pecuária e a cerâmica. Com isso, passou a se preocupar mais com questões
que, antes, por causa da sua condição rudimentar, não o incomodavam muito. Esse período foi chamado de
Revolução Verde, pois os primeiros questionamentos surgiram como resultado da vontade de conhecer os
mistérios da condição humana, bem como encontrar um meio de explicar os fenômenos naturais.

Mesmo sendo impossível responder às perguntas sobre o conhecimento de seus antepassados, o homem
criou a mitologia para tentar compreender sua existência de forma racional, embora dentro da limitação,
das questões primordiais. Nesse sentido, o mito apresenta características inerentes, como a religiosidade e
a fantasia, sem jamais deixar de ser racional, pois se trata de uma grande atividade intelectual humana.

Prometeu, por exemplo, é o caso de um semideus que levou o fogo do Olimpo para o domínio do homem, sendo
condenado pelos deuses gregos a ter o fígado devorado diariamente por uma ave de rapina, preso a um penhasco.
Para agravar seu sofrimento, o órgão se regenerava imediatamente, para que fosse devorado de forma perpétua.

Assim, o homem justificava como havia conseguido descobrir o fogo e a utilizá-lo para evoluir,
espantando o frio, os medos e as feras à noite, além de cozinhar alimentos e criar peças de cerâmica.
Ainda nos dias atuais, vários mitos persistem na vida dos habitantes das regiões rurais, com o intuito de
explicar os fenômenos da natureza.

A importância do pensamento mítico e da mitologia na perspectiva histórica da filosofia passa então a ser o
início de um pensamento mais exigente por respostas que viriam a ser reconhecidas como filosofia na fase seguinte
da evolução do pensamento humano, a Fase Cosmológica, protagonizada pelos filósofos pré-socráticos.

Se compreendermos o pensamento filosófico como forma de conceber a existência humana, seria


possível atestar que ela sempre se fez presente, uma vez que busca satisfazer a curiosidade do homem,
que procura sem cessar um motivo para explicar os mistérios da vida. Nesse sentido, todos os povos,
incluindo os mais primitivos, tinham, e ainda têm, uma maneira diferenciada de encarar o mundo. No
entanto, se a questão consiste em conferir à filosofia um significado próprio, atribuído a uma atividade
humana que se depara com o real, é preciso admitir que ela não teve seu espaço garantido em todas as
culturas antigas.
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HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO

1.1.1 A história nos mostra que a filosofia é um produto da cultura grega

Apesar de a filosofia grega ter começado nas colônias, onde havia um intenso contato com outros povos,
existe um questionamento se ela não seria produto de filosofias orientais, de outras civilizações. Por essa
razão, existem duas correntes que se preocupam em demarcar essas influências. A primeira delas considera
a filosofia oriunda da Grécia como o resultado da influência cultural dessas outras civilizações. Já a segunda,
concebe a filosofia grega como um pensamento original e independente de qualquer cultura estrangeira.

Atualmente, a resposta mais adequada seria a combinação de ambas as correntes, uma vez que a filosofia
grega não pode ser compreendida apenas como o resultado das interferências de outros povos; mas também
não ficou alheia ao contato com elas. Por isso mesmo, é possível afirmar que se instaurou na Grécia uma
conduta humana de caráter mais racional, responsável pelo surgimento da filosofia típica do povo daquele
país. Portanto, ao contrário de outras culturas, os gregos não restringiram sua visão de mundo a uma atividade
prática ou mesmo a uma crença, pois conseguiram de fato estabelecer um rigor filosófico.

Além disso, existe a questão da influência religiosa no desenvolvimento da filosofia grega, que teve
sua origem nas colônias, onde não havia tanta presença da religiosidade como na Grécia Peninsular.
Porém, não é apenas esse fator que justifica o surgimento da filosofia nessas regiões, uma vez que os
habitantes tinham que viver mais por conta própria, o que acabou incentivando a coragem intelectual.

Foi assim que se deu a passagem da racionalidade mítica para um modo de pensar o mundo mais
racional, pois o desprendimento intelectual fez com que o homem desses locais meditasse sobre a razão
que está contida no mito, criando assim a filosofia baseada nessas reflexões existenciais.

De forma crescente, os pré-socráticos adquirem maior importância para os filósofos da atualidade,


assim por meio das várias vertentes dos seus pensamentos, que tantos séculos depois ainda trazem
novas luzes para a filosofia.

Estes são os principais aspectos dos primeiros filósofos, denominados de físicos ou pré-socráticos:

• resposta à pergunta: o que existe? Para a qual a resposta é: as coisas existem.


• de que são feitas as coisas? Cada filósofo pré-socrático encontrou uma resposta diferente, na
busca do elemento fundamental constitutivo de todas as coisas.

Nesse cenário histórico e cultural, nasceu Tales, na cidade de Mileto. Ele ficou conhecido como o
primeiro filósofo grego, pois deixou o legado do seu pensamento, que deu início à filosofia ocidental.
Entretanto, muito pouco é conhecido sobre suas ideias, sendo provável que nunca as tenha registrado em
livro. Aristóteles deu a Tales o mérito de ter sido o fundador da filosofia e lembrou sua doutrina de que “a
água é o elemento primordial de todas as coisas e que a terra flutua sobre a água”. O que diferencia Tales
dos demais pensadores da época é que ele soube transformar conhecimentos práticos em teóricos.

Nesse sentido, é essa diferença entre conhecer o que é observado e procurar entender aquilo que se
conhece que distingue o filósofo dos demais seres humanos, e foi por esse motivo que foi conferido a
Tales o status de filósofo. Seu discípulo e sucessor, Anaximandro de Muleto, desenvolveu as doutrinas
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Unidade I

de seu mestre. Para ele, o princípio de tudo é o ilimitado (apeiron), o que dá origem a uma unidade
primordial, da qual nascem todas as coisas do universo e a qual elas retornam. Portanto, deve haver
um princípio anterior que possibilita compreender tudo que é limitado por meio do ilimitado, de onde
surgem vários mundos, o que estabelece a multiplicidade.

Já Pitágoras nasceu no ano 570 a.C., na Ilha de Samos, próximo da cidade de Mileto. Por ser curioso
e habilidoso, foi o primeiro filósofo grego a sugerir que a origem de todas as coisas, quer dizer, o ser em
si, não é coisa alguma. Portanto, trata-se de algo inacessível aos sentidos humanos: os números.

Para esse filósofo, a essência, em última instância, de tudo aquilo que percebemos pelos sentidos
está no número, pois as coisas são números e escondem números em si, além de se distinguirem umas
das outras por diferenças quantitativas e numéricas. Também foi ele quem descobriu a oitava, a quinta e
a sétima notas musicais, por meio da observação numérica. Há, ainda, o famoso Teorema de Pitágoras:
a soma dos quadrados dos catetos é igual ao quadrado da hipotenusa.

Figura 2 – Pitágoras

2 A DIFUSÃO DA CULTURA GREGA

O termo Grécia Antiga é largamente usado para descrever, em seu período clássico antigo, o mundo
grego e áreas próximas, como a Ilha de Chipre, a Anatólia, o sul da Itália, da França e a costa do Mar
Egeu, além de assentamentos gregos no litoral de outros países, como o Egito.

Não há uma data específica ou até mesmo um acordo com relação ao período em que teve início
e terminou a Grécia Antiga. Costuma-se situá-la antes do Império Romano, mas os historiadores
empregam o termo Grécia Antiga de modo mais preciso, abrangendo desde os primeiros Jogos Olímpicos,
realizados em 776 a.C., até a morte de Alexandre, o Grande, em 323 a.C. O período seguinte é chamado
de helenismo, com a difusão da cultura grega. Todas essas datas são convenções dos historiadores; no
entanto, vários estudiosos consideram a Grécia Antiga como um período presente até o advento do
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HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO

cristianismo, no terceiro século da era cristã. Do ponto de vista geográfico, o território ocupado pela
antiga civilização grega não se identifica plenamente com a região da Grécia contemporânea, e também
não existiu um estado politicamente unificado entre os gregos antigos.

Localizado no sul da Península Balcânica, o território da Grécia Continental destaca-se pelo relevo
montanhoso. A cordilheira dominante é a dos Montes Pindo, que separa a costa oriental, banhada pelo
Mar Egeu, da costa ocidental, banhada pelo Mar Adriático. Na Grécia Central, entre o Golfo de Corinto
e o Mar da Eubeia, situa-se a Beócia, cuja principal cidade na antiguidade era Tebas. Os Montes Citéron
separavam a Beócia da Península da Ática, onde se encontram as cadeias do Himeto, do Pentélico e
do Parnes. No Peloponeso, distinguiam-se também várias regiões. Ao centro, situa-se a Arcádia, uma
planície rodeada por montanhas. A Lacônia situa-se na Região Sudeste, compreendendo o Vale do
Rio Eurotas, delimitado a oeste pelo Monte Taígeto e a oriente pelo Monte Párnon. No sudoeste do
Peloponeso, encontra-se a Messénia.

História

O povo grego originou-se de outros povos que migraram para a Península Balcânica em várias fases,
começando no terceiro milênio a.C. Entre eles, merecem destaque os aqueus, os jônicos, os dóricos e
os eólios, todos indo-arianos provenientes da Europa Oriental. As populações invasoras são, em geral,
conhecidas como “helênicas”, pois sua organização de clãs fundamentava-se, no que concerne à mítica,
na crença de que descendiam do herói Heleno, filho de Deucalião e de Pirra. A última das invasões foi a
dos dóricos, no final do segundo milênio a.C.

Divisão dos períodos

• Pré-Homérico (1900-1100 a.C.) – anterior à formação do homem grego e da chegada cretense


e fenícia. Nesse período, estavam se desenvolvendo as civilizações cretense ou minoica (Ilha de
Creta) e micênica (continental).
• Homérico (1100-700 a.C.) – tem início com a chegada de Homero, considerado um marco na
história por suas obras, Odisseia e Ilíada. Essa fase deu início à ruralização e à formação de
comunidades gentílicas (nas quais um ajuda o outro na produção e na colheita). Só plantavam o
que seria consumido e, quando a terra não estava mais fértil, saíam em busca de novos locais.
• Obscuro (1150-800 a.C.) – começa com chegada dos aqueus, dos dóricos, dos eólios e dos jônicos.
Caracteriza-se pela formação dos génos e pela ausência da escrita.
• Arcaico (800-500 a.C.) – destaque para a formação da pólis, para a colonização grega, para o
aparecimento do alfabeto fonético, da arte e da literatura, incluindo o progresso econômico
com a expansão da divisão do trabalho, do comércio, da indústria e do processo de urbanização,
definindo a estrutura interna de cada cidade-estado.
• Clássico (500-338 a.C.) – foi o período de maior esplendor da civilização grega. As duas cidades
consideradas mais importantes foram Esparta e Atenas, além de Tebas, Corinto e Siracusa. Nessa
fase, a história da Grécia é marcada por uma série de conflitos externos (Guerras Médicas) e
interno (Guerra do Peloponeso).
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Unidade I

• Helenístico (338-146 a.C.) – período de crise da pólis grega. Com a invasão macedônica, a
expansão militar e cultural helenística, a civilização grega se difunde pelo Mediterrâneo e se
mescla com outras culturas.

O helenismo é um termo usado para demarcar o período histórico e cultural durante o qual a
civilização grega se difundiu no mundo mediterrânico, no euro-asiático e no Oriente, misturando-se
com a cultura local. Da união da cultura grega com as culturas da Ásia Menor, da Eurásia, da Ásia
Central, da Síria, da África do Norte, da Fenícia, da Mesopotâmia, da Índia e do Irã, surgiu a civilização
helenística, que obteve grande destaque do ponto de vista artístico, filosófico, religioso, econômico e
científico. O helenismo se difundiu do Atlântico até o Rio Indo. Cronologicamente, desenvolveu-se da
morte de Alexandre, o Grande, da Macedônia (323 a.C.) até 147 a.C., com a anexação da península grega
e de ilhas por Roma.

É interessante observar que boa parte do que os gregos criaram não era original, uma vez que
herdaram muitos elementos das culturas dos cretenses e do Oriente Médio. Mesmo assim, conseguiram
expressar na arte uma preocupação ímpar com a condição humana acima de todas as outras criações
da natureza. Em comparação com as criações das civilizações do Oriente Médio, a arte grega era
considerada relativamente simples, e foi essa característica a base da arte clássica. Devemos aos gregos
a criação de quase todos os gêneros literários, de diferentes formas de expressão por meio da escrita.
Além dos poemas homéricos, houve também o surgimento da poesia lírica. Já o teatro surgiu nas festas
que se realizavam anualmente para homenagear Dionísio, o deus do vinho. Nessas festas, os gregos
organizavam cortejos com pessoas fantasiadas com peles de cabra, chamadas de tragedis. Elas davam
voltas ao redor do templo e dialogavam com o público. Assim nasceu a tragédia grega.

No que se refere à comédia, podemos afirmar que ela colaborou para a educação popular, porque
satirizava os defeitos dos representantes do poder público. Os gregos foram também os primeiros a se
preocupar com a história, e Heródoto, o primeiro historiador, foi chamado de “pai da história”. Graças a ele,
temos relatos de como era a vida grega durante o século V a.C. Os gregos se dedicaram ainda ao estudo
das causas da saúde e das doenças, impulsionando o estudo da medicina. Hipócrates foi considerado
o “pai da medicina”. Mas o grande legado dessa civilização foi ter dado origem à filosofia. Foi lá que
surgiram os pensadores que se preocupavam em saber a origem e o destino da existência humana, como
Sócrates, um ateniense que afirmava que a fonte da sabedoria está no próprio homem, Platão, discípulo
de Sócrates, e Aristóteles, criador da lógica, um macedônio que foi professor de Alexandre Magno.

Alexandre Magno foi um personagem histórico que deu origem a muitas lendas e mitos. Ele foi
chamado de “o grande” pelas incríveis façanhas que realizou como rei e guerreiro e pela cultura que
adquiriu ao longo de sua vida. Além de ser um excelente orador, tinha paixão pelos esportes. Depois de
conquistar a Grécia e o Egito, Alexandre fundou a cidade de Alexandria, na desembocadura do Rio Nilo,
em homenagem às suas vitórias. Em 331 a.C., toda a Mesopotâmia se rendeu ao seu exército.

Depois da morte precoce de Alexandre, aos 33 anos, os generais que o haviam acompanhado em suas
conquistas iniciaram uma batalha para repartir o império, que acabou sendo dividido em três grandes
partes: Egito, Síria e Macedônia. Por sua vez, as cidades gregas atravessavam um período de lutas e de
rivalidades, até serem tomadas pelos romanos. O grande feito de Alexandre Magno foi levar o helenismo
14
HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO

a todas as regiões por onde passou. Junto com suas tropas de soldados, chegavam também os sábios, os
artistas e os pesquisadores gregos. Portanto, a civilização helenística foi a difusão da cultura grega no
Oriente em conjunto com a assimilação de costumes orientais no Mediterrâneo. Ao se misturar com as
culturas do Oriente, a arte grega passou a ser universal e se transformou no berço do Ocidente.

2.1 O surgimento da filosofia

O nascimento do pensamento filosófico se deu na cidade de Mileto, com o primeiro filósofo, Tales de
Mileto, concebido como uma cosmologia, ou seja, buscava o conhecimento racional da ordem do mundo
entendido como natureza. É muito importante ressaltar que, em um período da história humana em que
o saber filosófico e o saber científico eram quase a mesma coisa, é fundamental o conceito formulado
pelos filósofos naturalistas como um marco central de evolução em relação ao conhecimento mítico.

Para começar, o esforço de buscar elementos naturais para então formular teorias a respeito do universo
está contido na base da formulação sobre os conceitos iniciais da sofisticada descoberta do átomo. Por isso,
as abstrações de Anaximandro geram surpresa pela genialidade de lidar com um princípio natural como
fonte de todos os demais processos naturais, revelando um nível de maturidade bastante desenvolvido.

Até mesmo sua teoria sobre a ordem do mundo, coordenada por opostos, encontra parâmetros
com os princípios atuais da dialética. Também o equilíbrio pela relação entre os opostos possui uma
equivalente no pensamento oriental nos princípios do Tao, que ainda hoje fundamenta a medicina
tradicional oriental. Entre as principais características da cosmologia, está uma explicação racional e
sistemática sobre a origem, a ordem e a transformação da natureza, da qual o homem faz parte, pois
humanos e natureza, pela sua identidade, são explicados filosoficamente. Essa natureza é eterna e tudo
se transforma em outra coisa sem jamais desaparecer. No entanto, não é possível afirmar que o mundo
tenha vindo de algo, uma vez que se apresenta eternamente. Esse fundo de eternidade passa então a ser
o elemento primordial da natureza e chama-se physis, sendo visível apenas ao pensamento e não aos
nossos sentidos. Mesmo que physis seja imortal, é dele que vêm todos os seres mais variados e diferentes
do mundo, que, ao contrário do seu princípio gerador, são mortais.

Outro princípio comum aos filósofos desse período é que todos os seres vivos, além de serem
gerados e mortais, encontram-se em transformação constante, mudando em todos os sentidos; mas
sem por isso perder sua forma e sua estabilidade. Esse processo todo é percebido como movimento,
sendo denominado de devir, ou seja, a passagem contínua de uma coisa ao seu estado contrário não
é caótica; mas obedece a leis determinadas pela physis ou pelo princípio fundamental do mundo. Os
filósofos escolheram diferentes physis em seus modelos, isto é, cada um encontrou justificativas para
alegar qual era o princípio eterno e imutável que está na origem da natureza e de suas transformações.
Tales, por exemplo, dizia que o princípio era a água ou o úmido; já Anaximandro tomava o ilimitado
sem qualidades definidas. Para Anaxímenes, era o ar ou o frio e Heráclito considerou o fogo. Já Leucipo
e Demócrito acreditaram que eram os átomos.

Fazem parte da escola pitagórica muitos filósofos famosos, com destaque para Filolao, que dizem
ser o primeiro a indicar o movimento da Terra ao redor do Sol, e Hicetas, que indicou o movimento da
Terra em redor de seu eixo. Essa doutrina, reproduzida por Aristarco de Samios, no século III a.C., foi
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Unidade I

desacreditada depois pela autoridade de Aristóteles, e retomada e desenvolvida cientificamente por


Copérnico, que confirmou ter sido inspirado por Hicetas, que conheceu nos escritos de Cícero.

Os primeiros filósofos gregos preocupavam-se apenas com o mundo exterior, em detrimento dos
aspectos psicológicos e éticos dos problemas humanos. Até o surgimento de Sócrates, a filosofia grega não
possuía um centro comum, sendo desenvolvida em diversas regiões, que dão origem ao termo “as quatro
escolas”: Jônica em Mileto, Pitagórica ou Itálica, Eleática na Elea e Abderítica ou Atomística na Abdera.

Ainda nesse contexto, vale destacar que o tema central dos pré-socráticos, herança dos antigos mitos
cosmológicos, foi o problema do mundo que os assombrava, em especial o movimento, compreendido a
partir de um sentido amplo equivalente à mudança ou à variação. Com relação a esse questionamento,
podemos separar a filosofia pré-socrática em três estudos: o primeiro como sendo o cosmológico dos
jônicos e pitagóricos, o segundo como a antinomia do ser e devir de Heráclito e dos eleatas e, em
terceiro, vêm as novas cosmologias mecanicistas dos atomistas.

Divisão da filosofia antiga

• Primeiro período: estende-se desde o século VII até o ano de 450 a.C., de Tales até Sócrates.
Período de formação ou juventude, já que é nele que se estuda principalmente a natureza, e passa
a se chamar Cosmológico.
• Segundo período: estende-se desde 450 a.C. até o século III d.C., desde Sócrates até o ecletismo.
Destaca-se pela perfeição ou pela virilidade da antiga filosofia. Como seu objetivo predominante
é o homem, esse período recebe o nome de Antropológico.
• Terceiro período: estende-se desde o século I até o século VI d.C. e, durante três séculos, coincide
com o período antropológico. Traz a decadência da filosofia grega, e seu objetivo principal é Deus
ou a união teosófica com Deus. Por isso, denomina-se período Teosófico.

2.2 Heráclito de Éfeso (mobilismo) e Parmênides (imobilismo)

Não há registros sobre as datas do nascimento e da morte de Heráclito, mas existem informações de
que ele atingiu o auge de sua existência durante a 69ª Olimpíada, que ocorreu entre 504 e 500 a.C. Essa
informação é suficiente para contextualizá-lo em uma geração após Xenófanes, ao qual fez oposição, e
uma anterior à de Parmênides, seu maior opositor. Pouco se sabe sobre a sua vida, além de ter nascido de
uma família aristocrática de Éfeso, que fundou a cidade. Tudo leva a crer que Heráclito não quis exercer
os direitos de participar do governo da sua terra natal. Ele expôs sua filosofia na obra Da Natureza, da
qual restam apenas fragmentos que suscitaram muitos temas da filosofia contemporânea.

Para Heráclito, tudo aquilo que vemos nunca mais será igual ao que era no momento anterior e
que, no instante seguinte, já não será mais o que foi antes. Com isso, ele afirmou que as coisas se
transformam permanentemente e que, quando se quer fixar algo e revelar sua essência, já não se
trata mais da mesma coisa, pois tudo parte da realidade que flui. É de autoria dele a frase: “Nunca nos
banhamos duas vezes no mesmo rio”.

16
HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO

Assim, não existe um ser estático, mas sim dinâmico, que pode ser capturado num determinado
momento para que se diga como era naquele instante. Sendo assim, a essência dessa reflexão filosófica
consiste em determinar que nada existe, já que tudo existe num instante e no momento seguinte deixa
de existir, porque já sofreu um processo de transformação. Dessa maneira, a existência define-se como
uma eterna mutação e como um estado de mudança perene em que estão incluídas todas as coisas de
forma infinita.

O pensamento de Parmênides pode ser melhor compreendido por meio da sua inquietação diante
da solução proposta por Heráclito de que todas as coisas são e não são ao mesmo tempo, uma vez que
permanecem em constante mutação. Ele acreditava ser isso impossível, porque uma coisa é ou não é.
Por isso, raciocinava no sentido de afirmar que as coisas possuem um ser e este ser é. Com essa postura
reflexiva, Parmênides chegou ao princípio lógico que os filósofos atuais denominam de “princípio da
identidade”. Por meio dele, é possível afirmar que o ser é único, pois não pode haver mais de um para
cada coisa. Pode-se afirmar ainda que o ser é eterno, pois se ele tivesse um princípio, antes dele, haveria
o não ser, o que não é possível, porque o não ser inexiste. Caso existisse, ele também seria um ser, o que,
por si só, seria um erro, já que apenas o ser pode existir.

O filósofo observou também que o ser é imutável, uma vez que a mutabilidade resulta no não ser,
o que é inadmissível para Parmênides. Assim sendo, o ser é infinito, porque a finitude pressupõe o não
ser. Por último, ele declarou a imobilidade do ser, pois a mobilidade significaria a aceitação do não ser
heraclitiano, o que é insustentável para Parmênides.

3 A TRÍADE GREGA

3.1 Sócrates

Um divisor de águas na história da filosofia terrena

Figura 3 – A morte de Sócrates

17
Unidade I

O fundador do pensamento filosófico

A história da filosofia na Grécia Antiga divide-se entre os filósofos pré-socráticos e pós-socráticos,


tamanha foi a importância de Sócrates para a instauração do pensamento filosófico ocidental.

Considerado pelos homens do tempo como o mais sábio e inteligente, Sócrates demonstrava em
sua forma de pensar a necessidade de levar o conhecimento para os cidadãos gregos da época pelo
diálogo como forma de transmissão de sabedoria. Nascido em 470 ou 469 a.C., em Atenas, era filho
de um escultor e de uma parteira. Aprendeu a arte paterna; mas dedicou-se inteiramente à meditação
e ao ensino filosófico, apesar da pobreza. Ao desempenhar cargos políticos, sempre foi um modelo
irrepreensível de bom cidadão. Adquiriu sabedoria principalmente por intermédio da reflexão pessoal,
na moldura da alta cultura ateniense da época, em contato com o que havia de mais ilustre na época.

Por meio da palavra, ele se ocupava da missão de fazer conhecer as coisas do mundo e do ser humano.
Seus pensamentos e suas ideias atravessaram os séculos pelas obras de seus discípulos mais importantes:
Platão, Xenofontes e Aristóteles, porque ele mesmo nada deixou por escrito. Por defender ideias contrárias à
sociedade instaurada na Grécia, Sócrates não foi bem aceito por grande parte da aristocracia grega, uma vez
que a tônica do seu discurso criticava diversos aspectos da cultura grega, ressaltando que muitas tradições,
crenças religiosas e costumes não colaboravam para o desenvolvimento intelectual dos cidadãos.

A inovação presente nas suas ideias para a sociedade logo começou a chamar a atenção de jovens
atenienses, impressionados pelo seu dom de orador e pela sua inteligência, o que o tornou popular em
pouco tempo. No entanto, por temer mudanças na sociedade, a elite conservadora de Atenas viu em
Sócrates um inimigo público, além de um agitador da ordem pública. Por isso, ele foi preso, acusado de
subversão, de corromper a juventude e também de provocar mudanças na religião grega. Sua condenação
foi o suicídio por envenenamento, dentro da cela, em 399 a.C. Esse fim trágico, porém, não impediu
que esse filósofo ateniense, e um dos fundadores da atual filosofia ocidental, entrasse para a história de
forma definitiva; embora existam historiadores que afirmam que só é possível falar de Sócrates como
um personagem de Platão. Nos diálogos escritos por Platão, Sócrates aparece como mestre que se
recusava a ter discípulos, além de ser um homem piedoso que não valorizava os prazeres dos sentidos,
mas colocava o belo entre as maiores virtudes, juntamente com a bondade e a justiça.

Tanto o julgamento como a execução de Sócrates são episódios centrais da obra de Platão (Apologia
e Críton). Sócrates admitiu que poderia ter evitado sua condenação se tivesse desistido da vida justa
que levava e, mesmo depois de condenado, ele poderia ter evitado a morte por ingestão de cicuta, se
tivesse escapado com a ajuda de amigos. Nesse sentido, a vontade de colaborar com a justiça da pólis
e com seus próprios valores revela a grandiosidade do seu pensamento. Todos os detalhes a respeito da
vida e da morte de Sócrates que são historicamente conhecidos vêm dos diálogos de Platão, das peças
de Aristófanes e dos diálogos de Xenofonte. Não se sabe direito qual era a função de Sócrates, se ele se
ocupava de algo além da filosofia.

De acordo com os registros, aprendeu a profissão de oleiro com o pai e aparece na obra de Xenofonte
declarando que se dedicava àquilo que ele considerava a arte ou a ocupação mais importante de todas:
maiêutica, ou seja, o nascimento das ideias.
18
HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO

Platão atesta que Sócrates não recebia pagamento algum por suas aulas, e sua pobreza consistia na
prova maior de que não era um sofista. Diversas fontes citam que ele tinha servido ao exército em várias
batalhas. Na Apologia, Sócrates compara seu período no serviço militar a seus problemas no tribunal, e
alega que qualquer jurado que achasse que ele deveria se retirar da filosofia, deveria também acreditar
que os soldados devessem se retirar do campo de batalha, quando era provável que pudessem morrer
lutando.

As crenças de Sócrates, em comparação às de Platão, são difíceis de diferenciar, uma vez que há
poucas diferenças entre os dois tipos de pensamento filosófico. Por essa razão, diferenciar as crenças
filosóficas de Sócrates, de Platão e de Xenofonte consiste em uma missão bastante difícil, devendo
sempre ter em mente que aquilo que é atribuído a Sócrates pode muito bem refletir o pensamento dos
outros autores.

Certamente, se existe algo que pode ser atestado sobre as ideias de Sócrates, é que ele se destacou
por ser moralmente, intelectualmente e filosoficamente diferente de seus contemporâneos. Quando
estava sendo julgado por heresia e por corromper a juventude, usou seu método de elenchos para
demonstrar as crenças errôneas de seus julgadores. Sócrates acreditava na imortalidade da alma e que
teria recebido, em um dado momento da sua vida, uma missão especial do deus Apolo, que pode ser
traduzida na defesa do logos apolíneo “conhece-te a ti mesmo”. Ele também tinha dúvidas sobre a
possibilidade de a arete (virtude) ser ensinada, considerando que a moral é uma questão de inspiração
e não de parentesco, uma vez que pais moralmente perfeitos não tinham filhos semelhantes a eles.
Sócrates alegou com frequência que suas ideias não eram próprias, mas sim de seus mestres, entre eles
Pródico e Anaxágoras de Clazômenas. Ele sempre dizia que sua sabedoria era limitada, assim como a sua
própria ignorância, atribuindo os atos errados como consequência da ignorância, embora nunca tenha
assumido ser um sábio.

O fundador do pensamento ocidental também acreditava que a maneira mais apropriada para as
pessoas viverem era se concentrando no próprio desenvolvimento intelectual, ao invés de buscar a
riqueza material. Ele costumava convidar outras pessoas a se concentrar na amizade e em um sentido
de comunidade, uma vez que acreditava ser esse o melhor modo de um povo evoluir. Suas ações são a
maior prova dessa crença, pois aceitou sua sentença de morte quando todos acreditavam que fugiria
de Atenas.

Para Sócrates, os seres humanos possuíam virtudes tanto no campo filosófico quanto no intelectual,
conferindo à virtude o papel mais importante para o desenvolvimento do ser humano. Segundo seus
discípulos, ele acreditava que as ideias faziam parte de um mundo que somente os sábios conseguiam
entender, fazendo com que o filósofo se tornasse o governante ideal para um Estado. Ao se opor
declaradamente à democracia aristocrática praticada em Atenas durante a sua época, ele afirmava que
a república perfeita deveria ser governada apenas por filósofos.

Os ideais libertários contidos nos discursos proferidos por Sócrates, assim como o rigor do seu caráter
e da sua postura crítica, acabaram gerando um mal-estar geral, além da rejeição popular, fazendo com
que ele contraísse inimigos pessoais. Diante do povo e de lideranças reacionárias, era considerado como
parte atuante da casta intelectual da época. Essa hostilidade toda manisfestou-se por meio jurídico
19
Unidade I

na acusação movida contra ele por Mileto, Anito e Licon, no sentido de subverter os jovens a renegar
os deuses da própria pátria, introduzindo novas crenças. Para não entrar em confronto com a justiça
humana, Sócrates humilhou-se e pediu perdão, pois tinha dentro da alma algo que ia muito mais longe
do que uma simples explicação para a vida na Terra, que era o juízo da razão destinado à eternidade. Por
esse motivo, ele preferiu abrir mão da própria vida a enfrentar o poder judiciário. Quando foi declarado
culpado, ficou em silêncio perante o tribunal, que o condenou à pena de morte pela maioria dos votos.

Tendo que esperar mais de um mês para ser executado na prisão, Sócrates aproveitou o tempo para
ministrar palestras espirituais aos amigos. Vem dessa fase o famoso diálogo a respeito da imortalidade da
alma, que ele teria proferido pouco antes de morrer e que foi relatado por Platão no Fédon. De acordo
com ele, as palavras derradeiras dirigidas pelo seu mestre aos discípulos, após ter ingerido o veneno,
foram: “Devemos um galo a Esculápio”, referindo-se ao Deus da medicina, que o tinha liberado do mal da
existência com o poder da morte. Apesar de gerar polêmica, Sócrates restabeleceu a possibilidade do saber
ao determinar o objeto real da ciência, que não é o sensível e o particular, como pensavam os sofistas.

De maneira contrária, ele acreditava no inteligível, um conceito que se expressa pela própria definição,
sendo obtido por intermédio de um processo dialético chamado de indução, que pode ser descrito pela
comparação de vários seres da mesma espécie, visando eliminar as diferenças individuais, bem como
as qualidades mutáveis, para atingir aquilo que existe de comum, estável e permanente na natureza e
na essência da coisa em si. Trata-se, portanto, de uma forma de generalização que parte do indivíduo à
concepção universal da natureza humana.

Durante a exposição didática dessas ideias, Sócrates sempre utilizava o diálogo, com a dupla função
de confrontar um oponente às suas ideias ou de instruir um discípulo. No primeiro caso, assumia de
forma humilde a postura de quem aprende e, com isso, conseguia aumentar o número de perguntas
até conseguir apanhar o adversário em uma contradição evidente para constrangê-lo à declaração
humilhante da ignorância. Essa estratégia era a ironia socrática. Já no segundo caso, por ser um discípulo,
ele mesmo multiplicava as perguntas, com a habilidade e o objetivo de obter, pelo processo indutivo, um
conceito e uma definição geral de um objeto. Esta era sua proposta pedagógica.

A introspecção sempre foi uma característica marcante da filosofia de Sócrates, que se revela no
famoso lema “conhece-te a ti mesmo”, ou seja, que nos leva a entrar em contato com a nossa prória
ignorância. Alcançava em Sócrates uma importância tão grande que se personificava na voz interior
divina, que poderia ser de um gênio ou de um demônio. Como ele não deixou nada registrado, as
informações que temos de sua vida e de seu pensamento nos foram legadas pelos seus dois discípulos,
Xenofonte e Platão, de formação intelectual muito diferente. Xenofonte, ao escrever Anábase, em seus
Ditos Memoráveis, nos revelou mais os aspectos pragmáticos e morais do pensamento socrático. No
entanto, seu estilo simples e sem profundidade, apesar da sua devoção para com o mestre, deixam
claro que ele não compreendeu a complexidade do pensamento filosófico de Sócrates, por ser mais um
homem de ação do que um pensador legítimo da sua época.

É possível afirmar que Sócrates atua como protagonista de todas as obras platônicas, mesmo tendo
este conhecido seu mestre já idoso e na última década de vida. O conhecimento perfeito do ser humano
coloca-se como objetivo maior de todas as suas reflexões, assim como a moral está posicionada no centro
20
HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO

de tudo, para o qual convergem todas as vertentes filosóficas. No campo da psicologia, Sócrates deixou
sua contribuição ao pensar sobre a espiritualidade e a imortalidade da alma, destacando a diferença
entre as duas ordens de conhecimento, o sensitivo e o intelectual, sem definir a capacidade de escolha,
mas relacionando a vontade com a inteligência. Na teodiceia, ele admitiu a existência de Deus com o
seguinte argumento teológico: tudo aquilo que possui uma finalidade resulta de uma inteligência e, se
o homem é inteligente, também deve ser inteligente a causa eficiente que o concebeu.

Pela moral socrática, a lei natural pressupõe um ser superior ao homem, um legislador, que
a sancionou. Portanto, Deus não só existe, como também é Providência, uma vez que governa o
mundo com sabedoria, e o homem pode atingi-lo por meio de sacrifícios e com orações. Apesar da
elevação dessas doutrinas, Sócrates aceita os preconceitos contra a mitologia da sua época, que
ele pretendia reformular. Nesse aspecto, a moral constitui a parte crucial da filosofia socrática,
pois ensina a pensar para viver bem, mostrando que a única forma de alcançar a felicidade ou a
semelhança com Deus está na prática da virtude, que pode ser adquirida com a sabedoria ou com
a identificação com ela. Essa doutrina consiste em um desdobramento natural da falha psicológica
de não conceituar a vontade e a inteligência de maneira diferenciada. Sócrates reconhece ainda,
acima de todas as leis criadas, a existência de uma lei natural que não depende do conhecimento
humano, uma vez que é universal e se estabelece como fonte primordial de todo direito como
expressão da vontade divina ditada pela voz interior da consciência. Mesmo sublime na forma de
descrever os princípios gerais de sua ética, Sócrates, de fato, sempre atribui à utilidade a razão e o
estímulo de toda e qualquer virtude.

A filosofia socrática, portanto, está restrita à gnosiologia e à ética. A gnosiologia de Sócrates, que se
concretizava na sua doutrina dialógica, resume-se em seis aspectos fundamentais: a ironia, a maiêutica,
a introspecção, a ignorância, a indução e a definição. Porém, é necessário separar o espírito dos falsos
conhecimentos, dos preconceitos e das opiniões. Sócrates, juntamente com os sofistas, mesmo com
finalidade diversa, reclama pela libertação da autoridade e da tradição, tendo em vista a reflexão livre
e a crença na razão para tornar possível conceber o verdadeiro conhecimento e a ciência. Isso significa
que a instrução não deve consistir apenas na exposição de um assunto ao aluno, já que o mestre deve
retirá-lo da própria mente do discípulo, pela constituição inerente do espírito humano como um dado
estrutural e universal da sua existência.

Para Sócrates, a forma lógica para chegar ao conhecimento científico de fato consiste na indução,
quer dizer, no percurso do que é particular até o universal, do foco opinativo à ciência, do experimento
ao conceito, leva à definição, para demonstrar o ideal e a reflexão final do processo gnosiológico
socrático sobre a essência da realidade. Ele também é considerado o fundador da ciência, em especial da
ciência moral, defendendo a doutrina de que ética é sinônimo de racionalidade. Além disso, a virtude é
considerada como inteligência, razão e ciência, e não um sentimento, uma tradição, uma lei e o senso
comum. Isso tudo precisa ser superado, fazendo com que a razão prevaleça.

Diante do seu legado para a humanidade, torna-se visível que Sócrates não deixou um pensamento
filosófico fechado. Porém, cabe a ele o mérito de ter descoberto o método e de ter fundado uma
grande escola no campo da filosofia. Por esse motivo, dele depende, de forma direta ou indireta, a
evolução do pensamento na Grécia Antiga, que se desenvolveu a partir da linha socrática, valorizando
21
Unidade I

a herança dos pré-socráticos e organizando-se em sistemas originais e múltiplos. Mesmo diferentes


entre si, todas essas correntes possuem em comum a crença de que o bem maior do ser humano está
na sabedoria. A escola socrática mais expressiva é a platônica e seguiu a evolução lógica do objeto
central do pensamento socrático, que é o conceito, assim como com o aspecto fundamental do
pensamento antecessor, tendo seu auge em Aristóteles, discípulo de Platão, como o grande desfecho
da metafísica grega.

Observação

“Outros povos nos deram santos, os gregos nos deram sábios” (Nietzsche).
3.2 Platão

Figura 4 – Platão (detalhe de A Escola de Atenas)

O pensador das ideias

Platão nasceu em Atenas em 427 a.C., durante da Guerra do Peloponeso, no tempo da revolução
oligárquica e aristocrática que tirou os democratas do poder em Atenas, impondo o Conselho dos 400.
Nesse período, a Liga do Peloponeso, liderada por Esparta, derrotou a Liga da Hélade, liderada por
Atenas, dando início ao governo dos Trinta Tiranos. No entanto, sua vida transcorreu entre a fase áurea
da democracia ateniense e o final do período helênico, o que confere ao seu legado filosófico a tônica
da liberdade e da expressão política. Ele fundou a Academia e foi mestre de Aristóteles. Aos 20 anos de
idade, conheceu Sócrates, de quem foi discípulo.

22
HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO

O interesse de Platão pelos assuntos políticos decorreu das condições em que vivia na Grécia Antiga,
onde a vida cultural foi se desenvolvendo muito vinculada aos acontecimentos da cidade-estado, a
pólis, e em torno da organização política, constituída por várias cidades-estados que mantinham suas
tradições e sua religiosidade. A própria dimensão dessas comunidades exigia o fortalecimento dos
vínculos solidários entre seus habitantes, ao mesmo tempo em que permitia a cada uma a construção
da sua fisionomia social particular como um patrimônio comum a todos os cidadãos. Os fenômenos
geográfico e político estavam tão associados que a palavra pólis servia para indicar tanto o lugar da
cidade quanto a natureza da soberania. Sendo assim, qualquer indivíduo nesse contexto pensava em si
mesmo como um ser político.

Perto de completar 40 anos, Platão partiu para a Magna Grécia com o intuito de entrar em contato
com as comunidades pitagóricas. Nessa jornada, foi convidado por Dionísio I para ir à Siracusa, na
Sicília. Ele partiu para essa região com a esperança de implementar seus ideais políticos; mas acabou
se desentendendo com o tirano local e retornou para Atenas, onde fundou a Academia de Física. A
instituição ganhou prestígio em pouco tempo, sendo procurada por um grande número de jovens que
buscavam instrução e até mesmo por homens já ilustres, com a finalidade de debater ideias. Ao regressar
para Atenas, em 360 a.C., Platão comandou a Academia até em 347 a.C., quando faleceu.

Grosso modo, Platão criou a noção de que o homem está em contato permanente com duas
realidades: a inteligível e a sensível, sendo a primeira concreta e imutável. Já a segunda, refere-se a
todas as coisas que afetam os sentidos do homem. São, portanto, realidades dependentes, mutáveis
e imagens das realidades inteligíveis. Essa concepção platônica de mundo também é conhecida
por Teoria das Ideias ou Teoria das Formas, tendo sido elaborada como hipótese no diálogo Fédon,
constituindo assim uma forma de assegurar a possibilidade do conhecimento, além de oferecer uma
inteligibilidade relativa aos fenômenos. Na visão platônica de mundo, aquilo que é captado pelos
sentidos humanos significa apenas uma cópia simplificada do mundo das ideias. Assim, tudo o que
existe de forma concreta faz parte, junto com todos os outros objetos semelhantes, de uma ideia
perfeita. Por exemplo, uma faca terá características próprias, como cor, forma, tamanho, entre outras.
Já outra terá outros atributos, sem deixar de ser faca, tanto quanto a outra. O que faz com que
ambas sejam facas consiste na ideia perfeita que se tem desse objeto, sendo capaz de conter todas as
possibilidades de ser aquilo que é.

De acordo com Platão, algo é na medida em que participa da ideia desse objeto, e seu foco se detém
em coisas como o ser humano, o bem ou a justiça. A teoria platônica explica a forma de conhecimento
das coisas, alegando que, ao ver um objeto muitas vezes, nos lembramos da ideia dele, que já vimos
no mundo das ideias. Para isso, Platão cria o mito de que, antes mesmo de nascer, a alma de cada um
habitava em uma estrela, onde estão as ideias. Ao nascer, seríamos arremessados em direção à Terra.
Com o impacto produzido, acabamos por esquecer o que vimos onde estávamos anteriormente. Porém, à
medida que vemos um objeto aparecer de várias maneiras, a alma recorda-se da ideia primordial daquele
objeto que foi visto na estrela de onde partiu. A essa recordação Platão dá o nome de anamnesis.

Assim sendo, uma das bases para a investigação sobre as ideias consiste em saber que não estamos
completamente ignorantes sobre elas. Isso se torna necessário para que tenhamos em nossa alma
um tipo de conhecimento ou de recordação do contato original com o mundo ideal antes do nosso
23
Unidade I

nascimento, para que possamos nos lembrar delas sendo reproduzidas no mundo concreto. Isso faz com
que toda a ciência platônica seja uma forma de reminiscência, pois a investigação das ideias supõe que
as almas preexistiram em uma região divina onde as contemplavam.

Platão acreditava que o filósofo deveria buscar a verdade plena, que poderia ser encontrada apenas
em uma instância superior, uma vez que a verdade é invariável, e, se existe uma verdade essencial para
a humanidade, ela deve valer para todos. Dessa maneira, a existência das coisas físicas deve ter outro
pressuposto, que transcende a forma de buscar essas realidades e que está no conhecimento daquilo
que está além das coisas. Em Platão, essa busca racional possui caráter contemplativo, o que significa
buscar a verdade no interior do próprio homem como um participante das verdades essenciais do ser.

Assim como seu mestre Sócrates, Platão dedicou-se à descoberta das verdades essenciais das coisas
pelo conhecimento, sempre destacando o homem não na condição de corpo, mas sim enquanto alma.
Na visão dele, a alma humana, por ser perfeita, faz parte do mundo perfeito das ideias, embora isso só
possa ser concretizado por intermédio dos sentidos. Nesse aspecto, também o conhecimento tinha fins
morais, com o intuito de levar o homem à bondade e à felicidade, o que faz do conhecimento uma forma
de reconhecimento capaz de fazer com que haja um reencontro com as verdades que sempre soubemos
existir, permitindo com isso diferenciar as aparências de verdades e as verdades. Sendo assim, a obtenção
do autoconhecimento apresentava-se como um caminho árduo a ser seguido de maneira meticulosa.

É interessante observar que Platão não defendia que todas as pessoas tivessem igualdade de acesso à
razão, pois ele reconhecia que, apesar de todos terem a alma perfeita, nem todos conseguiriam chegar à
contemplação absoluta do mundo das ideias, lembrando que o conhecimento para Platão tem fins morais.
De acordo com ele, existiam três tipos de virtude na alma humana – a sabedoria, que deveria ser o governo, a
coragem, que deveria equivaler à força dos soldados, e a temperança, que estaria relacionada ao baixo-ventre
do Estado, ou seja, aos trabalhadores, uma vez que a alma desses indivíduos é guiada pelos sentidos.

Na visão platônica, o homem divide-se entre corpo, matéria e alma – o imaterial e o divino. O
corpo vive em processo contínuo de mudança de aparência, mas a alma não muda nunca. A partir
do momento em que nascemos, apesar da alma perfeita, estamos aprisionados ao corpo e nos
esquecemos das verdades essenciais escritas eternamente na alma. Para Platão, a alma está dividida
em três partes: Racional: cabeça – tem que controlar as outras duas partes, e sua virtude está na
sabedoria ou na prudência (phrónesis); Irrascível: tórax – parte da impetuosidade, dos sentimentos.
A virtude está na coragem (andreía); e Concupiscente: relativa ao baixo-ventre, incluindo o apetite
e o desejo carnal ligado à libido.

Vale destacar que, para Platão, depois da morte, a alma reencarnava em outro corpo; mas se ocupava
com a filosofia, graças ao desapego material, estando a ela concedido o prazer de passar a eternidade ao
lado dos deuses. Assim, somente por meio da relação de sua alma com a Alma do Mundo o ser humano
pode acessar o mundo das ideias. A ação do homem pode atingir somente o mundo material, pois, no
mundo das ideias, ele não pode transformar nada, uma vez que já existe a perfeição.

A ascensão ao conhecimento está representada por Platão na Alegoria da Caverna, que


descreve um prisioneiro que contempla, no fundo de uma caverna, os reflexos de simulacros
24
HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO

que, sem que perceba, são transportados à frente de uma fogueira, no sentido figurado. Como
sempre, as projeções do que existe acredita serem elas a realidade e permanece na ilusão. No
entanto, essa situação muda com a libertação desse homem, que reconhece seu engano ao
descobrir a encenação que o iludia. Depois de subir a rampa que leva à saída da caverna, ele
pode contemplar do lado de fora a verdadeira realidade. Acostumado às sombras, primeiro ele
enxerga através dos reflexos, até ter condições de olhar diretamente para a luz solar como fonte
de toda a realidade. Essa alegoria de dimensão emocional, filosófica, religiosa e científica guarda
também uma conotação política, ou seja, aquele que se liberta das ilusões e se eleva à visão da
realidade é quem pode e deve governar para libertar os demais prisioneiros das sombras.

Trata-se do filósofo político, capaz de fazer da sua sabedoria um instrumento de libertação


de consciências e de justiça social. Sendo assim, o conhecimento no platonismo se constrói
como uma articulação entre o intelecto e a emoção, entre razão e vontade, como resultado da
inteligência e do sentimento de amor.

Lembrete

Desde que o ser humano tomou consciência da sua condição, muitos


estudiosos buscaram não uma resposta derradeira para o sentido da
existência, mas sim explicar os princípios éticos, morais e religiosos que
regem a trajetória do homem na Terra.

3.3 Aristóteles

Figura 5 – Aristóteles (detalhe de A Escola de Atenas)

25
Unidade I

O organizador do mundo

O filósofo grego Aristóteles colaborou em larga escala para o desenvolvimento de muitas ciências;
mas uma retrospectiva do legado do seu pensamento para a humanidade permite perceber que o valor
dessa contribuição foi bastante desigual. A sua química e a sua física são bem menos significativas
do que as investigações no domínio das ciências da vida. Isso ocorreu porque ele não possuía relógios
precisos nem qualquer tipo de instrumento de medição.

Aristóteles também não tinha consciência da importância da velocidade e da temperatura. Na


mesma medida em que seus escritos zoológicos continuavam a ser considerados impressionantes pelo
próprio Darwin, a sua física estava já ultrapassada no século VI d.C. Ao contrário do seu trabalho nas
ciências empíricas, há aspectos da filosofia teórica de Aristóteles que ainda têm muito a nos ensinar, com
destaque para suas afirmações sobre a natureza da linguagem, da realidade e da relação entre as duas.
Nas duas categorias, Aristóteles apresenta uma lista dos diferentes tipos de coisas que podem afirmar-se
a propósito de um indivíduo. Essa lista contém dez artigos: substância, quantidade, qualidade, relação,
espaço, tempo, postura, vestuário, atividade e passividade.

Considerado o pensador mais influente da filosofia ocidental, Aristóteles nasceu em Estagira, na


Calcídica, em 384 a.C. Por ser filho de Nicômaco, amigo e médico pessoal do rei macedônio Amintas
II, pai de Filipe II da Macedônia, é possível compreender seu interesse pela biologia e pela fisiologia, em
decorrência da atuação profissional exercida pelo pai e pelo tio. Ainda na adolescência, Aristóteles foi
morar em Atenas, maior reduto de intelectuais e artistas da Grécia, para dar prosseguimento aos estudos.
Das duas grandes instituições da preferência dos jovens da época, a escola de Isócrates e a Academia de
Platão, optou pela segunda e nela permaneceu por vinte anos, até 347 a.C., ano da morte do seu mestre.

Com a escolha do sobrinho de Platão, Espeusipo, para assumir a Academia, Aristóteles partiu para
Assos com alguns ex-alunos, talvez por que as ideias do novo diretor não lhe agradassem ou por ter se
sentido rejeitado, uma vez que se julgava o mais preparado para assumir a direção da Academia. Lá, ele
criou um círculo filosófico com a ajuda de Hérmias, tirano local. Depois da morte de Hérmias, Aristóteles
foi para Mitilene, na Ilha de Lesbos, onde realizou grande parte das suas investigações no campo da
biologia. Em 336 a.C., retornou a Atenas e fundou a Lykeion, que deu origem à palavra Liceu, uma escola
onde os alunos ficaram conhecidos como peripatéticos, ou seja, aqueles que passeiam, por causa do
hábito de Aristóteles de ensinar ao ar livre.

Diferentemente da Academia de Platão, o Liceu dava preferência às ciências naturais, que estudavam
exemplares da fauna e da flora das regiões conquistadas. Os estudos abrangiam as áreas do conhecimento
clássico da época, como a filosofia, procurando estabelecer as bases dessas disciplinas e também a
metodologia científica do estudo. Aristóteles foi diretor da escola até 324 a.C., depois da morte de
Alexandre. Com temor da postura antimacedônia dos atenienses, que o ameaçaram, ele deixou a cidade,
afirmando que os gregos estavam cometendo outro crime contra a filosofia, depois do julgamento e da
morte de Sócrates.

Como aluno de Platão, Aristóteles discordava de uma parte fundamental da filosofia do seu mestre.
Enquanto Platão concebia dois mundos existentes, um apreendido pelos sentidos humanos, em constante
26
HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO

mutação, e o outro concebido como sendo das ideias, acessível somente pelo pensamento intelectual,
imutável e atemporal, Aristóteles contemplava apenas a existência do mundo em que vivemos, alegando
que aquilo que estava além da experiência humana não poderia significar nada para o homem. Na visão
aristotélica, a lógica funciona como um elemento introdutório para o conhecimento, tendo como base
uma estrutura de raciocínio formal que compreende pressupostos criados previamente, para que se
possa chegar a uma conclusão. Como a dedução parte do universal para o particular e a indução, pelo
contrário, do particular para o universal, se forem verdadeiras as premissas, a conclusão, logicamente,
também deverá ser.

No campo da psicologia, Aristóteles toma como base os conceitos de alma e de intelecto, sendo a
primeira a essência de um corpo que possui vida em potencial. Já o intelecto, na visão dele, não fica
restrito somente a uma relação exclusiva com o corpo, uma vez que a sua ação vai mais longe. Nesse
contexto, o organismo desenvolvido assume a forma que vai lhe permitir a perfeição por intermédio da
ação. Essa seria a alma, que faz com que a flora cresça e a fauna se reproduza. Para o homem, além de a
alma apresentar atributos vegetativos e sensitivos, ela tem também a inteligência, que reúne condições
de captar a essência de tudo, independentemente da condição orgânica. O filósofo também acreditava
que a mulher era um ser incompleto e passivo, enquanto o homem seria o ser em ação.

Aristóteles foi o verdadeiro fundador da zoologia, dentro do campo de estudo da biologia, ao


estabelecer a primeira divisão do reino animal. Ele também é considerado o fundador da teoria da
abiogênese, que persistiu durante muitos séculos, atestando que um ser nascia a partir de um germe da
vida, sem que outro precisasse gerá-lo, exceção feita aos seres humanos. O que atualmente denominamos
de metafísica Aristóteles chamava de filosofia primeira, aquela que estuda fenômenos que acontecem
além do mundo físico, que podem ser compreendidos pelos sentidos. Nesse sentido, o conceito de
metafísica em Aristóteles apresenta-se de forma extremamente complexa, com quatro definições
possíveis, ou seja, a ciência que busca por causas e princípios, que busca o ser enquanto ser, a que apura
a substância e aquilo que está além dos sentidos. É importante destacar que a teoria aristotélica sobre
as causas abrange toda a natureza. Além disso, o filósofo distingue a essência do acidente em alguma
coisa. A definição de essência seria algo responsável pela identificação de um ser, sem a qual se torna
impossível reconhecê-lo como ele mesmo. Já o acidente é algo que pode ser parte estrutural ou não do
ser, mas que não o descaracteriza por sua falta.

Para Aristóteles, a ética pode ser considerada como a ciência das condutas, que estuda assuntos
que podem sofrer alteração. Sendo assim, ela se debate com aquilo que é essencial e imutável no
ser humano, com o que pode ser adquirido por atitudes repetidas ou por costumes que legitimam
as virtudes e os vícios. O seu objetivo último, portanto, consiste na garantia ou na possibilidade de
conquista da felicidade. Tomando como princípio as disposições naturais do homem, a função da moral
consiste em demonstrar como elas necessitam ser mudadas para se adaptar à razão. Ainda na visão
dele, as virtudes se realizam sempre na esfera do homem e perdem sentido quando as relações humanas
deixam de existir.

Já a virtude, seja ela especulativa ou intelectual, diferencia-se porque faz parte de um universo
filosófico limitado que, excluindo a vida moral, busca o conhecimento pelo conhecimento. Dessa
maneira, na filosofia aristotélica, a prática da contemplação volta o homem para Deus, sendo a política
27
Unidade I

uma consequência natural da ética. Para ele, ambas compõem a unidade denominada filosofia prática.
Nesse sentido, se a ética está preocupada com a felicidade individual do homem, a política se ocupa
em investigar as formas de governo e as instituições capazes de assegurar a felicidade coletiva na
constituição do estado.

De acordo com Aristóteles (1973):

um problema de dialética é um tema de investigação que contribui para


a escolha ou a rejeição de alguma coisa, ou ainda para a verdade e o
conhecimento, e isso quer por si mesmo, quer como ajuda para a solução de
algum outro problema do mesmo tipo.

Ele também considerava como primordial o conhecimento da retórica, que consiste em uma técnica
relacionada à vida pública. Para ele, o discurso retórico opera no campo deliberativo, no campo judicial
e no campo epidítico (demonstrativo).

Saiba mais

Não deixe de ler o livro O Mundo de Sofia, de Josten Gaarder, que conta
de forma divertida e didática a história desses grandes filósofos gregos,
além de outros também.

GAARDER. J. O mundo de Sofia. São Paulo: Cia. das Letras, 1995.

4 A FILOSOFIA NA IDADE MÉDIA

Figura 6 – Capa da Bíblia Moralisée, 1275 (Deus criando o universo através de princípios geométricos)

28
HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO

A filosofia da Idade Média pode ser considerada como o pensamento filosófico ocidental que preencheu
o espaço entre o fim do mundo antigo, determinado pela queda do Império Romano do Ocidente (476),
e pelo começo dos tempos modernos, que têm seu início a partir da conquista de Constantinopla (1453)
ou do princípio da Reforma Religiosa em 1517. A essa filosofia medieval costuma-se dar o nome de
filosofia escolástica, que começou mesmo no século IX. Por isso, vamos dividir a filosofia da Idade Média
em dois grandes períodos – a filosofia patrística e a filosofia escolástica.

Se formos traçar um perfil da filosofia medieval pelo seu conteúdo, naquilo que corresponde
à sua essência espiritual, podemos conceituá-la como o pensamento filosófico ocidental que vem
desde Santo Agostinho e de Anselmo de Cantuária, obedecendo ao mote: “saber para crer, crer para
poder saber”. Durante esse período, a filosofia, que tem por objetivo tratar dos grandes problemas
do mundo, do homem e de Deus só com as forças da razão, alia-se com a fé religiosa no pressuposto
de uma unidade ideológica. Nela, está representado o espírito de toda essa fase da história humana
e nada é mais significativo do que essa unidade espiritual. Como nunca, todos vivem na certeza
da existência de Deus, da sua sabedoria, do seu poder e da sua bondade. Nesse sentido, o homem
podia dizer com segurança que sabia da origem do mundo e da sua própria natureza, cheia de
sentido, bem como sua essência homem e sua posição no universo, tendo em vista a significação
da sua vida e a imortalidade. Enquanto na era moderna indaga-se a respeito da possibilidade da
ordem e da lei, na época medieval a ordem estabelece-se como algo evidente, sendo nossa a tarefa
de reconhecê-la. No início da patrística, a Idade Média encontrou seu direcionamento, que foi
preservado até o final.

Surge, porém, a indagação se ainda se trata de pura filosofia, quando o conhecimento não é
dominante, sendo guiado pela religião. Claro, pois como tudo já estava pronto e se repetia com frequência,
a filosofia não teria que solucionar qualquer tipo de problema, pois eles já estariam resolvidos no campo
da fé. Nesse sentido, é com base na fé que o filósofo deve pensar, e o pensamento filosófico deve servir
ao patrimônio da crença, aplicando-lhe a análise e a síntese pela ciência. Em resumo, trata-se de uma
filosofia comprometida com juízos de valor preconcebidos, o que deixa um rastro de dúvida quanto à
existência de uma filosofia de fato na Idade Média.

Atualmente, depois das investigações de DeniEle, Ehrle, Bauemker, M. De WUlf. Grabmann, MaNdoNNet,
Gilson e outros, sabemos que as realizações filosóficas pertinentes à Idade Média eram bem mais
abrangentes, interessantes e também individuais do que poderíamos imaginar. Além disso, também para o
homem medieval era livre o pensamento e a investigação. Mesmo sem fazer grande uso da sua liberdade,
o homem da Idade Média seguiu as pressuposições e também a opinião pública. Condenar a Idade Média,
alegando o fato de ela não ser “isenta de preconceitos”, é um paradoxo. Na realidade, em época alguma
houve ausência de preconceitos. Porém, existe o ideal ao qual devemos perseguir por amor à verdade, o
que também ocorreu na filosofia medieval, que buscou alcançar a verdade objetiva. Por isso, não devemos
subestimar a Idade Média; pois, quanto mais conhecemos melhor o homem moderno na sua forma de
pensar e de sentir, ele parece muitas vezes mais medieval que a própria Idade Média.

Possui ainda a Idade Média algum significado do ponto de vista filosófico? Com certeza, pois ela
conservou os antigos pressupostos teóricos, incluindo não apenas a ciência e a arte da antiguidade,
mas também garantiu nas suas escolas a continuidade do saber filosófico. Nesse aspecto, temas tão
29
Unidade I

fundamentais relativos à causalidade, à realidade, à finalidade, à universalidade, à individualidade, à


sensibilidade e ao mundo fenomenal, à compreensão e à razão, à alma e ao espírito, ao mundo e a Deus
foram transmitidos aos filósofos modernos pela Idade Média.

4.1 A Patrística

7 – Santo Agostinho

A filosofia cristã dos primeiros sete séculos foi denominada de patrística, por ter sido elaborada pelos
padres da Igreja, considerados como os primeiros teóricos. Ela consiste no conjunto de doutrina das verdades
da fé cristã e na sua defesa contra os “pagãos” e os hereges. Esse conjunto foi responsável pela defesa da fé e da
criação dos costumes que decidiram os rumos da Igreja no decorrer dos sete primeiros séculos do cristianismo.
A patrística também se ocupou da elucidação progressiva dos dogmas cristãos e daquilo que chamamos de
Tradição Católica. Quando o ocidentalismo, para defender-se de ataques de outros povos, religiões e culturas,
precisou esclarecer seus próprios dogmatismos, a pratística mostrou-se como a expressão acabada da verdade
que a filosofia grega havia buscado, enquanto o próprio Deus não havia ainda encarnado.

Se, por um lado, se procura interpretar o cristianismo por intermédio de conceitos tomados da
filosofia grega; do outro, encontra-se o significado que esta última dá ao cristianismo. Os primeiros
pensadores cristãos também se debateram com os filósofos, Platão, Aristóteles, sobretudo com os
estoicos e os epicureus. Sem perder de vista os ideais da doutrina cristã, eles buscaram encontrar, frente
à filosofia e aos filósofos, o local adequado da reflexão filosófica e do pensamento cristão.

Vale lembrar que o cristianismo primitivo recebeu influências de vários segmentos da filosofia grega,
já citados anteriormente, sem que se pudesse determinar com clareza a extensão provocada por esse

30
HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO

contato. Costuma-se dizer que os filósofos convertidos ao cristianismo buscaram conferir à doutrina
cristã um status filosófico, mas sem o cuidado de salientar as fontes filosóficas. Entre os autores que
se ocuparam dessa tarefa, estão Justino, Tertuliano, Clemente de Alexandria, Orígenes, Gregório de
Nazianzo, Basílio de Cesareia e Gregório de Nissa.

Como observa Johannes Hirschberger (1966):

Tratando-se de filosofia patrística, não devemos, como outrora, pensar


somente nas obras de filósofos que só foram filósofos. A filosofia da patrística
está antes contida nos tratados dos pastores de alma, pregadores, exegetas,
teólogos, apologetas que buscam antes de tudo a exposição da sua doutrina
religiosa. Mas, ao mesmo tempo, levados pela natureza das cousas e dada a
ocasião, se põem a resolver problemas propriamente pertencentes à filosofia;
e então, pela força do assunto, versam a metodologia filosófica.

Divisão didática

Podemos dividir a Patrística em três fases:

• até o ano 200, ocupou-se em defender o cristianismo contra seus adversários (padres apologistas,
como São Justino Mártir).
• até o ano 450, consolida-se o período em que surgem as primeiras grandes teorias da filosofia
cristã, como a de Santo Agostinho e a de Clemente Alexandrino, entre outros.
• até o século VIII, são refeitas as doutrinas já formuladas e de cunho original.

Também é possível dividir a literatura patrística em três períodos, da seguinte forma:

• Período ante-niceno – corresponde ao período anterior ao Concílio Ecumênico de Niceia. Inclui


todos os escritos surgidos entre o século I e o início do século IV.
• Período niceno – faz menção ao período entre os anos anteriores até aqueles posteriores ao Concílio
Ecumênico de Niceia. Abrange os escritos que surgiram entre o início e o fim do século IV.
• Período pós-niceno – trata-se do período compreendido entre os séculos V e VIII.

4.1.1 A filosofia de Agostinho

Aurélio Agostinho foi um padre que merece destaque entre os representantes do clero, da mesma
forma que Tomás de Aquino se diferenciou entre os escolásticos. Enquanto Agostinho buscou inspiração
na filosofia platônica, Tomás de Aquino preferiu os pensamentos de Aristóteles para elaborar a filosofia
metafísica cristã. Por ser muito sensível e compreensivo, Agostinho revelou ter em si a mesma essência
da patrística grega, com o caráter pragmático da patrística latina, mesmo que os problemas que o
preocupassem fossem sempre de natureza prática e moral, como o mal, a liberdade e o destino.

31
Unidade I

Nascido em Tagasta, na Numídia, em 354, Agostinho pertencia a uma família burguesa comandada
pelo pai, que era pagão, tendo sido batizado somente antes de morrer. No entanto, a mãe era uma cristã
fervorosa que influenciou muito o filho nesse aspecto. Ele foi para Cartago para aperfeiçoar seus estudos
e, ao terminá-los, abriu uma escola lá mesmo. Em seguida, partiu para Roma e depois para Milão. Ele
deixou de ensinar aos 32 anos, por motivo de saúde e de natureza espiritual. Após uma reflexão crítica
e madura das suas ideias, acabou abandonando o maniqueísmo para adotar a filosofia neoplatônica,
que lhe ensinou a espiritualidade divina, bem como a negatividade do mal. Agostinho retirou-se do
mundo durante meses, visando ao isolamento, na companhia da mãe, do filho e de alguns discípulos,
nos arredores de Milão. Foi durante essa fase da sua vida que redigiu seus diálogos filosóficos.

Logo após a conversão aos 33 anos, Agostinho deixou Milão, doou tudo o que tinha para os pobres e
fundou um mosteiro em uma de suas propriedades. Foi ordenado padre em 391 e consagrado bispo em
395, tendo governado a igreja de Hipona até a morte, aos 75 anos, durante o assédio da cidade pelos
vândalos em 430. Ele também de dedicou, em tempo integral, a estudar a Bíblia e a redigir suas obras,
especialmente as de caráter filosófico. Entre elas, estão Contra os acadêmicos, Os solilóquios, Sobre a
imortalidade da alma, Sobre a quantidade da alma, Sobre o mestre, Sobre os costumes, Do livre arbítrio,
Sobre as duas almas, Da natureza do bem.

De acordo com Agostinho, a filosofia poderia resolver o problema da vida, a qual apenas o cristianismo
poderia dar uma solução real. Nesse sentido, seu grande interesse estava relacionado aos problemas de Deus
e da alma, por serem os mais importantes. No início, ele garantiu a certeza da própria existência espiritual,
de onde tirou uma verdade superior e imutável como condição e origem de toda verdade individual.

Mesmo ao desvalorizar o conhecimento sensível em relação ao conhecimento intelectual, alegava


que os sentidos e o intelecto consistem nas fontes de conhecimento. Como para ver algo com os olhos
humanos, é necessária a luz física, da mesma forma, para o conhecimento intelectual, seria preciso uma
luz espiritual que vem de Deus, sendo esta a Verdade e o Verbo divino, para onde são levadas as ideias
do pensamento platônico.

Com relação à natureza de Deus, Agostinho demonstrou uma noção exata, ortodoxa e cristã, definindo-
o como um poder racional infinito, eterno, imutável, simples, espírito, pessoa, consciência. Para ele, Deus é
ainda ser, saber e amor, e, no tocante às relações mundanas, Deus é concebido como criador.

Vale lembrar que o pensamento clássico grego concebia uma dualidade metafísica. Já no pensamento
cristão agostiniano, esse dualismo persiste, mas agora incorporando a moral e os pecados dos espíritos
que se erguem contra Deus, preferindo o mundo a Ele. Portanto, no cristianismo, o mal estaria, do ponto
de vista metafísico, na negação e na privação. Basicamente, Agostinho tratou do problema das relações
entre Deus e o tempo, uma vez que este último é considerado uma criatura de Deus, porque passa a
existir a partir da criação das coisas.

Ainda é possível afirmar que a psicologia de Agostinho encontrou ressonância no seu platonismo
cristão. Nesse sentido, o corpo não é mau por natureza, uma vez que a matéria não pode ser essencialmente
má, por ter sido criada por Deus. No entanto, a união do corpo com a alma é acidental, pois alma e corpo
não formam a unidade metafísica, substancial, da doutrina da forma e da matéria.
32
HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO

Entretanto, demonstrou indecisão entre o criacionismo e o traducionismo, ou seja, se a alma é


criada diretamente por Deus ou provém da alma dos pais. A única certeza é que ela é imortal pela
sua simplicidade. Agostinho a classificou platonicamente em vegetativa, sensitiva e intelectiva; mas
destacou que estão todas forjadas na substância humana. Dessa forma, a inteligência é divina em
intelecto intuitivo, a razão consiste em fruto da vontade. Enquanto no homem a vontade é amor, no
animal funciona como instinto, e nos seres inferiores está representada pelo apetite.

Sem sombra de dúvida, a moral agostiniana é cristã e transcendente. A característica mais


importante da sua moral está no voluntarismo, na ação própria do pensamento latino, de forma oposta
ao pensamento grego. Dessa forma, a vontade não é determinada pelo intelecto, pois vem antes dele.
Para a filosofia agostiniana, como a vontade é livre, pode querer o mal; pois se trata de um ser limitado,
capaz de ir ao encontro da vontade de Deus. O pecado, portanto, possui em si mesmo o dado estrutural
da pena da sua desordem e, como o homem não pode prejudicar Deus, acaba prejudicando a si mesmo,
dilacerado pela sua natureza. A teoria agostiniana sobre a liberdade em Adão, antes do pecado original,
consiste justamente em poder não pecar. Depois do pecado original cometido, está em não poder não
pecar e nos bem-aventurados será não poder pecar.

Exposta dessa maneira, a vontade humana parece impotente e sem graça. Já a questão da graça, que
perturbava Agostinho, apresenta um interesse filosófico, uma vez que trata de conciliar a causalidade
absoluta de Deus com o livre arbítrio do homem.

Com relação à família, Agostinho, assim como o apóstolo Paulo, considerou o celibato superior ao
matrimônio. Se o mundo terminasse por causa do celibato, ele demonstraria alegria pela passagem
do tempo para a eternidade. Quanto à política, ele possui uma concepção negativa da função estatal,
pois se não houvesse pecado e os homens fossem todos corretos, o Estado de nada serviria. Na visão
de Agostinho, a propriedade seria de direito positivo, e não natural. Também a escravidão não seria de
direito natural, e sim uma consequência do pecado original, que sempre incomodou toda a humanidade.
Por não poder ser vencida de forma racional, sua essência já é corrompida, podendo ser superada apenas
por meio do conformismo cristão, de quem é escravo, e da caridade, de quem é senhor.

Agostinho foi profundamente perturbado pelo problema do mal, do qual fornece uma rica
fenomenologia, e também por muito tempo desviado dessa questão pela solução maniqueísta, que
impediu seu acesso ao justo conceito de Deus e à possibilidade da vida moral. Ele descobriu a solução
para esse problema na libertação e na sua concepção filosófico-teológica, considerada como um marco
fundamental entre o pensamento grego e cristão. Inicialmente, ele refutou a realidade metafísica do
mal, alegando ser ela a privação do ser, da mesma forma que a escuridão consiste na ausência de
luz. Essa privação é necessária em qualquer criatura que não seja Deus. Já ao mal físico, que atinge a
perfeição natural dos seres, buscou explicá-lo argumentando que o contraste dos seres contribuiria para
a composição harmônica do todo.

No que se refere ao “mal moral”, existe de fato a má vontade que provoca livremente o mal; porém, ela
não é causa eficiente, mas deficiente, sendo o mal não ser, que pode vir do homem livre e limitado e não de
Deus, que é puro ser e cria apenas o ser. Como o mal moral chegou ao mundo humano pelo pecado original
e atual, a humanidade foi castigada com todo tipo de sofrimento, incluindo a perda dos dons divinos.
33
Unidade I

Dessa forma, o mal físico tem outra explicação mais profunda, uma vez que o mal moral foi remediado
pela redenção de Cristo, Homem-Deus, que devolveu à humanidade os dons divinos, bem como a
possibilidade do bem moral, mas deixou permanecer o sofrimento como consequência do pecado, como
meio de purificação e expiação.

Para explicar o mal moral e seus desdobramentos, Agostinho atestou o fato de ser muito mais glorioso
para Deus retirar o bem do mal, em vez de simplesmente impedir o mal. De maneira resumida, a doutrina
agostiniana sobre o mal consiste basicamente na privação do bem ou devido a uma natureza específica.

Agostinho divide em três partes a história que antecedeu a de Cristo. A primeira encontra-se
relacionada à história da Cidade de Deus e da Cidade Satânica após o pecado original, até se unirem em
um único mundo caótico humano, indo até a chegada de Abraão, com o começo da separação.

Já na segunda parte, ele se restringre à Cidade de Deus, instalada em Israel, de Abraão até Cristo.
Na terceira fase, o filósofo volta ao ponto em que tem início a história da Cidade de Deus desde seus
primórdios, para tratar da mesma forma a cidade do mundo que nos leva ao Império Romano. Apesar
de fragmentada, essa narrativa, na qual Satanás parece ter seu reino, representa, ao mesmo tempo, uma
unidade e uma perspectiva de progresso para Cristo, sempre mais aguardado e profetizado em Israel e
pelos povos pagãos, que também, de alguma forma, já preparavam a sua vinda.

Após a vinda de Cristo, acabou a divisão política entre as duas cidades, e elas acabam se entrelaçando
como nos primórdios da humanidade, sem ser mais uma união caótica, mas sim reformulada pela Igreja,
que está acima de todas as convenções humanas na unidade dos homens com Deus. Nesse sentido,
a Igreja passa a ser acessível às almas de boa vontade que dela não podem participar, indo além do
mundo terreno. Como todos os predestinados se encontram na prática unidos na Igreja, a divisão final
vai acontecer somente no fim dos tempos, depois da morte e do julgamento universal. Por ser uma visão
unitária e teológica da história, pertence ao terreno da teologia e não da filosofia.

4.2 A Escolástica

Figura 8 – Santo Agostinho

34
HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO

A escolástica possui um significado mais limitado quando comparada às disciplinas ministradas nas
escolas medievais, entre elas a gramática, a retórica e a dialética; a aritmética, a geometria, a astronomia
e a música, embora contemple uma conotação mais ampla ao se reportar à linha filosófica adotada pela
Igreja na Idade Média. Esse modo de pensar essencialmente cristão buscava respostas que justificassem
a fé na doutrina ensinada pelo clero, considerado como o guardião das verdades espirituais. Essa escola
filosófica prevaleceu do princípio do século IX até o final do século XVI, época que representou o declínio
da era medieval, sendo a escolástica o resultado de estudos mais profundos da arte dialética, assim
como a radicalização dessa prática. No início, ela foi disseminada nas catedrais e nos monastérios para
depois chegar às universidades.

Com isso, a filosofia da antiguidade clássica adquiriu características judaico-cristãs, já esboçadas a partir
do século V, com a necessidade urgente de fazer um mergulho profundo em uma cultura espiritual que
estava se desenvolvendo rapidamente, para assimilar a esses princípios religiosos uma essência filosófica
capaz de introduzir o cristianismo no campo da filosofia. A partir dessas tentativas de racionalização do
pensamento cristão, surgiram os dogmas católicos, que se infiltraram na mentalidade clássica dos conceitos
gregos, como ‘providência’, ‘revelação divina’, ‘criação proveniente do nada’, entre tantos outros.

A tarefa dos escolásticos consistia, portanto, em harmonizar ideais platônicos com fatores de natureza
espiritual, inseridos do cristianismo vigente ocidental. Mesmo quando Aristóteles é contemplado no
pensamento cristão por Tomás de Aquino, o neoplatonismo adotado pela Igreja ainda é preservado, fazendo
com que a escolástica seja permanentemente atravessada por dois universos distintos, o da fé herdada da
mentalidade platônica e a razão aristotélica. No caso de Agostinho, havia o clamor pelo predomínio da fé em
detrimento da razão, ao passo que, em Tomás de Aquino, se acreditava na independência da esfera racional
na busca de respostas mais apropriadas, embora não houvesse rejeição à primazia da fé sobre a razão.

O método adotado pela Escolástica se deu por meio do ensino, fundamentado no mestre com o
domínio da palavra e também no debate livre entre o professor e seu discípulo. Além disso, também
houve as formas literárias e, entre elas, predominam os comentários, nascidos das discussões, dos quais
se originam as summas, que permitem ao autor se ver um pouco mais livre dos textos. Uma das summas
mais renomadas é a Summa Theologica de São Tomás. A Opuscula é igualmente usada pelos escolásticos,
representando um caminho mais autônomo para se abordar uma questão.

Vale ressaltar que a escolástica foi nitidamente influenciada pela Bíblia Sagrada, pelos filósofos da
antiguidade e também pelos padres da Igreja, escritores do primeiro período do cristianismo oficial, que
dominavam a fé e a santidade. Ela ainda pode ser considerada como o último período do pensamento
cristão, que se estende desde o começo do século IX até o final do século XVI, abrangendo da constituição
do Império Romano até o final da Idade Média. Portanto, a escolástica era a filosofia ensinada nas
escolas dessa época pelos professores chamados de escolásticos. As disciplinas ensinadas nas escolas
medievais dividiam-se entre gramática, retórica, dialética, aritmética, geometria, astronomia e música.
A escolástica veio a partir do desenvolvimento da dialética.

Junto com essa instrução, ainda existe, na Idade Média, uma educação militar, ministrada por
militares para militares. Também a Igreja preocupa-se no sentido de conferir ao seu sistema educacional
um sentido ético, religioso e católico. Pode-se afirmar que a história da filosofia escolástica começou
35
Unidade I

com o nome de João Scoto Erígena, que nasceu na Irlanda, em 874. Ele foi chamado à corte culta
de Carlos, o Calvo, para presidir e ministrar aulas na escola palatina. Sua obra principal consiste Da
Divisão da Natureza, dividida em cinco livros. Por apresentar características neoplatônicas, o esquema
especulativo da obra traz a descida da unidade à multiplicidade, bem como o retorno da multiplicidade
à unidade. A valorização conceitual das ideias, problema que tanto despertou o interesse da escolástica,
foi solucionado de maneira radical no pensamento escotista.

As soluções oferecidas pela escolástica podem ser basicamente divididas em três: a solução chamada
de realismo transcendente, a solução do realismo moderado e a solução nominalista. Segundo a solução
proposta pelo realismo transcendente, a ideia de uma realidade existe além da esfera mental e do objeto,
consistindo na solução platônica adotada pela escolástica iniciante. Já a solução do realismo moderado
traz em si uma realidade objetiva e fora do campo mental. Nesse sentido, a solução conceptualista-
nominalista destaca que o universal não possui existência objetiva, mas somente mental ou nominal.
Após a decadência cultural que se seguiu à renascença, começou a se manifestar nos séculos XI e XII um
renascimento especulativo, incluindo a luta dos teólogos e dos místicos, contra a ciência filosófica por
eles considerada um resíduo pagão e uma distração mundana contra os filósofos e os dialéticos que a
cultivavam. Também é importante destacar sua posição crítica com relação à pesquisa filosófica, pois a
dúvida nos leva à investigação, e a investigação nos leva à ciência.

Observação

“Há mais mistérios entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã


filosofia” (Shakespeare).

4.2.1 O pensamento de Tomás de Aquino

Figura 9 – São Tomás de Aquino

36
HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO

Podemos afirmar que o tomismo ou a doutrina escolástica de Tomás de Aquino, adotada


oficialmente pela Igreja Católica, caracteriza-se, principalmente, pela tentativa de conciliar a filosofia
de Aristóteles com o cristianismo, desfazendo-se das doutrinas que não estavam enquadradas de
acordo com os princípios aristotélicos.

A obra de Tomás de Aquino pode ser dividida em partes, tratados, questões e artigos, objeções
e respostas, em rigorosa ordem numérica, abordando em sua estrutura a composição do mundo
feudal, separado em classes e em estamentos sociais. Como a expressão máxima do apogeu do mundo
medieval, contemporânea dos castelos e das catedrais, o tomismo consiste em um manancial de ideias,
em que a teologia do século XIII encontrou sua forma mais coerente e sólida de formulação. Contudo,
o tomismo não foi totalmente aceito pelos escolásticos medievais, e apenas na segunda metade do
século XVI foi adotado como arma de defesa e ataque da Contrarreforma da Igreja Católica.

Coube a Tomás de Aquino a tarefa de mostrar a solução definitiva para o conflito existente nas
relações entre a razão e a fé. Estamos falando de duas ciências, a filosofia e a teologia, sendo que a
primeira baseia-se no exercício da razão humana, enquanto a segunda, na revelação divina. Apesar de
serem independentes, apresentam, por vezes, os objetos de estudo comuns, como a existência de Deus,
a essência da alma, entre outros. Por esse motivo, a distinção entre essas ciências tem origem mais do
objeto formal, pois a teologia estuda o dogma pelo método da autoridade ou da revelação, e a filosofia
o analisa pela demonstração científica ou pela razão. Portanto, teologia e filosofia não são ciências
contraditórias, pois ambas procuram a verdade, e esta é uma só. Na hipótese de uma contradição entre
a razão e a revelação, o erro não será jamais da teologia, mas sim da filosofia, pois nossas limitações do
ponto de vista do conhecimento racional desviaram-se e não conseguiram atingir a verdade.

Para Tomás de Aquino, nada está na inteligência que não tenha estado antes nos sentidos, motivo pelo
qual não podemos ter de Deus, de pronto, uma noção imediata. Com o objetivo de provar sua existência,
Tomás procede a posteriori, ou seja, não da ideia de Deus, mas sim dos efeitos por Ele proporcionados.

Dessa forma, ele utiliza o mundo sensível, cuja existência é dada pelos sentidos como ponto de
partida, bem como a metafísica de Aristóteles, para demonstrar a existência de Deus de cinco modos,
mais conhecidos como as famosas cinco vias:

1) A do “Movimento” – trata-se do argumento aristotélico do primeiro motor, que afirma “não ser
possível admitir uma série infinita de seres que se movem, movendo por sua vez outros seres; logo, é
preciso chegar a um motor que mova sem ser movido”. Portanto, o movimento existe e é uma evidência
para nossos sentidos. Tudo aquilo que se move é movido por outro motor; e se esse motor, por sua
vez, é movido, vai necessitar de um motor que o mova, e assim por diante de forma infinita, o que é
impossível, se não houver um primeiro motor imóvel, que move sem ser movido, que é Deus.
2) A da “Concatenação das Causas” – tudo está sujeito à lei de causa e efeito. Portanto, existe
uma série de causas e efeitos ao mesmo tempo. Sendo assim, torna-se impossível remontar
indefinidamente na série das causas. Logo, há uma causa primeira, não causada, que é Deus.
3) A da “Contingência” – todos os seres conhecidos são finitos, pois não possuem em si próprios
a razão de sua existência. São e deixam de ser. Se são todos mortais, em um prazo de tempo
37
Unidade I

deixariam de ser e nada mais existiria, o que é absurdo. Portanto, os seres contingentes implicam
o ser necessário, ou seja, Deus.
4) A dos “Graus de Perfeição” – todas as perfeições possuem graus, que se aproximam mais ou
menos da perfeição absoluta. Deve, pois, haver um ser supremo perfeito, que é Deus.
5) A da “Ordem Universal” – todos os seres tendem para uma ordem, não de forma aleatória, mas
por uma inteligência que os guia. Isso significa que há um ser inteligente que ordena a natureza
e a impulsiona para seu fim. Esse ente é Deus.

A partir desses conceitos, Tomás de Aquino concluiu o quanto podemos conhecer sobre a natureza e
as virtudes de Deus. No entanto, observou que esse conhecimento é imperfeito, pois sabemos que “Deus
é”, mas não “O que é”. Mesmo assim, podemos compreender que Deus é eterno, infinito e onipotente em
suas relações com o mundo, além de ser Criador e Providência.

Nesse sentido, a doutrina tomista acredita que a alma, como princípio espiritual, une-se ao corpo,
como princípio material, para constituir uma substância. Dessa forma, possuem alma as plantas, sendo
a “alma vegetativa” a responsável pelas funções de alimentação e reprodução. No caso dos animais, é
a “alma sensitiva” que responde às funções anteriores, mais à sensação e à mobilidade. Para o homem,
juntam-se todas as funções anteriores, acrescentando-se a racional.

No que diz respeito às propriedades da alma humana, ele admite o livre-arbítrio, que é estudado
sob todos seus aspectos, e os problemas dele derivados são resolvidos com seriedade e rigidez. Tomás de
Aquino considera a inteligência como a faculdade mais perfeita da alma humana.

Por intermédio dos seus princípios éticos, ele também adapta a doutrina de Aristóteles aos
princípios cristãos. Dessa forma, a ética passa a ser o “movimento da criatura racional para Deus”, que
busca a bem-aventurança e consiste na contemplação imediata de Deus. Para Tomás de Aquino, o
conhecimento tem dois momentos: o sensitivo e o intelectual. O conhecimento sensitivo do objeto está
fora de nós e acontece mediante a sensação, que consiste na impressão do objeto material em nossa
consciência. Ela processa-se pela assimilação das sensações do sujeito com o objeto conhecido. Já o
conhecimento intelectual depende do conhecimento sensitivo; mas ultrapassa-o por meio da abstração
e da generalização na busca da formulação de conceitos.

Considerado o maior representante da escolástica, Tomás de Aquino elaborou um sistema filosófico


sintético, coerente e fundamentado em Aristóteles, reformulando, assim, todo o pensamento cristão
e adquirindo plena consciência dos poderes racionais, o que permite ao cristianismo ser visto como
uma filosofia. Assim, podemos atribuir a Tomás de Aquino o pensamento escolástico, bem como o
pensamento patrístico, que teve seu ápice em Agostinho, repleto de elementos helenistas e neoplatônicos,
incluindo a herança da revelação judaico-cristã. A ele, deve-se diretamente o pensamento helênico na
sistematização do pensamento de Aristóteles, que chega a Tomás de Aquino acrescido pelas influências
de outras culturas.

Diferentemente do agostinianismo, e em sintonia com o pensamento aristotélico, Tomás de


Aquino considerava a filosofia como uma disciplina para resolver o problema do mundo e totalmente
38
HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO

distinta da teologia, mas sem ser oposta a ela. Pelo contrário, diversamente de Agostinho, ela estaria
em harmonia com a aristotélica, por ser empírica e racional, sem intervenções divinas.

Nesse contexto, o conhecimento humano passa por dois momentos, o sensível e o intelectual, e
o segundo pressupõe o primeiro. O conhecimento sensível do objeto, que está fora de nós, acontece
por meio da impressão da imagem, ou seja, pela forma do objeto material na alma, o que representa
o objeto desprovido da matéria.

Já o conhecimento intelectual observa a natureza das coisas em nível mais profundido em


comparação aos sentidos humanos, sobre os quais exerce a sua função. Na forma sensível, que significa
o objeto material na sua individualidade, independentemente da matéria, o inteligível, o universal e
a essência estão retidos nele como potencial. Para que venha à tona, é preciso descontextualizá-lo
das condições materiais. Esse procedimento pode ser feito apenas por um agente intelectual capaz de
abstrair e desmaterializar o inteligível da representação sensível. Porém, esse conhecimento não possui
conteúdo ideal nem conceitos, como pretendia o inatismo agostiniano. Além disso, trata-se de uma
faculdade da alma individual, que não vem de fora.

É importante salientar que, na filosofia de Tomás de Aquino, a espécie inteligível é o meio pelo qual
a mente entende as coisas extramentais, e isso corresponde perfeitamente aos dados do conhecimento,
que nos assegura conhecermos coisas e não ideias. Contudo, as coisas podem ser conhecidas somente
por meio das espécies e das imagens; mas sem entrar fisicamente no cérebro. Nesse aspecto, o conceito
tomista de verdade encontra-se em harmonia com a concepção realista do mundo, justificando-se pela
experiência prática e pela razão. Portanto, a verdade lógica encontra-se na adaptação entre a coisa e o
intelecto.

O indicativo pelo qual a verdade se manifesta à nossa mente está na evidência e, como muitos
conhecimentos nossos não são evidentes, mas de natureza intuitiva, tornam-se verdadeiros quando
levados à evidência por intermédio da prática demonstrativa. Embora a demonstração seja um processo
dedutivo, os conceitos e as ideias não são inatos na mente humana, como defendia o agostinianismo, e
nem sequer nas suas relações lógicas. Elas consistem no resultado fundamental da experiência humana
mediante a indução, que chega à essência das coisas.

A metafísica geral tem por finalidade o ser em geral, as atribuições e as leis relativas, enquanto
a metafísica especial busca estudar o homem em suas grandes especificações, entre elas Deus, o
espírito e o mundo. Nesse sentido, a base do tomismo está na especificação do ser em potência e ato,
significando este a realidade e a perfeição, enquanto a potência representa o oposto. Nesse contexto, o
princípio de potência e ato vale para qualquer realidade material, sendo o princípio da matéria aquele
que interessa à cosmologia tomista.

Dessa maneira, a concretização da forma em vários indivíduos, que realmente existem, depende da
matéria, que representa o indivíduo no mundo concreto.

Além da matéria e da forma como causas constitutivas, os seres materiais possuem duas outras
causas – a eficiente e a final. A causa eficiente é responsável pelo surgimento de um ser na realidade,
39
Unidade I

sintetizando aquela matéria com a forma por ela determinada. Já a causa final determina a ordem
observada no universo. Em outras palavras, todo ser material existe por causa do cruzamento de quatro
causas – material, formal, eficiente e final, que constituem o ser na realidade e na ordem com os
demais seres vivos pertencentes ao universo.

Como o princípio da vida está dentro do ser, sendo denominado de alma, possuem uma alma
também as plantas e os animais. Porém, para a psicologia racional, que se ocupa com o homem,
interessa somente a alma racional. A alma racional desempenha as funções da alma vegetativa e
sensitiva, compreendendo e desejando; pois, na visão de Tomás de Aquino, existe uma forma só e,
consequentemente, apenas uma alma para cada indivíduo. No homem, existe uma alma espiritual,
unida com o corpo, que o transcende. Portanto, além das atividades já mencionadas, manifestam-se
ainda atividades espirituais, como o intelecto e a vontade. A atividade intelectual, por exemplo, está
direcionada para entidades imateriais, como os conceitos. No caso da vontade humana, ela é livre e
indeterminada, enquanto o mundo material segue regido por leis fundamentais. Assim sendo, a vontade
apresenta-se como um princípio imaterial e espiritual da alma racional, que é imortal, por ser imaterial
e espiritual.

Diferentemente do dualismo platônico-agostiniano, Tomás de Aquino afirma que a alma, mesmo


espiritual, está junto do corpo material, que é a sua forma. Desse modo, como o corpo não pode existir
sem a alma, também a alma, mesmo imortal, não pode viver em sua plenitude sem o corpo, que lhe
serve como uma ferramenta crucial. Ao contrário da doutrina agostiniana, que pretendia ser Deus
conhecido imediatamente por intuição, Tomás de Aquino ressalta que Deus pode ser conhecido apenas
pela demonstração sólida e racional, sem que seja necessário recorrer a argumentações a priori, mas
unicamente a posteriori, partindo da experiência que, sem Ele, seria contraditória.

Cinco são as provas tomistas a respeito da experiência de Deus, mas todas elas preservam
em comum a evidência tanto sensível quanto racional para proceder à demonstração da lógica.
A primeira é fundamental e serve de modelo para as demais, pois se fundamenta na doutrina da
potência e do ato. Cada uma tem como base dois elementos sólidos que são incontestáveis.

É preciso ententer que, se Deus for conhecido indiretamente só pelas provas, será muito mais
limitado o nosso conhecimento da essência divina como sendo aquela que vai além do intelecto
humano de forma divina.

Antes de mais nada, sabemos o que Deus não é, mas conhecemos sua natureza positiva em função
da doutrina da analogia, com base no fato de que o conhecimento certo de Deus deve ser realizado
a partir das suas criaturas, fazendo com que o efeito tenha semelhança com a causa. A doutrina da
analogia remete a Deus, às perfeições criadas positivamente, retirando as imperfeições ou toda forma
de limitação.

Para concluir, aquilo que conhecemos sobre Deus consiste em um conjunto complexo e incompleto
de negações e de analogias. No que diz respeito à questão das relações entre Deus e o universo, o ponto
de partida para solucioná-las está na ideia de criação, ou seja, na produção livre e total do mundo por
parte de Deus e a partir do nada.
40
HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO

Lembrete

No período medieval, enquanto Agostinho buscou sua inspiração na


filosofia platônica, Tomás de Aquino preferiu os pensamentos de Aristóteles
para elaborar a filosofia metafísica cristã.

Saiba mais

Leia o livro ou assista ao filme O nome da rosa, do escritor e pensador


italiano Umberto Eco.

ECO, U. O nome da rosa. Rio de Janeiro: Record, 2009.

Resumo

Quando se fixou na terra, o homem passou a viver de forma mais


segura e confortável, o que permitiu que ele passasse a refletir a respeito
de sua própria condição, indagando sobre suas origens e sobre os
fenômenos naturais. Na busca de compreender seu lugar no mundo, ele
concebeu primeiro a Teogonia, que vem do grego theos, deus, + genea,
origem, representada por um conjunto de deuses que constituíram o
saber mitológico desses povos. Os primeiros pensadores gregos foram os
pré-socráticos da Escola Jônica, dividida em Escola Jônica Antiga (Tales,
Anaximandro e Anaxímenes) e Escola Jônica Nova (Heráclito, Empédocles e
Anaxágoras). Porém, eles se concentravam somente no primeiro elemento
formador de tudo aquilo que observavam, sem se preocupar com as causas
das mudanças.

O pensamento filosófico teve início nas colônias gregas, nos séculos


VI e V a.C., da região periférica (pré-socráticos) para o centro, em Atenas
(sofistas e filósofos socráticos). Há também um questionamento se a filosofia
na Grécia não seria produto de filosofias orientais, pertencentes a outras
civilizações. Como resposta, há basicamente duas correntes que se ocupam
em delimitar essas influências. Uma delas acredita que a filosofia grega seria
mesmo resultado da contaminação cultural com pensamento de outros
povos. Já a segunda, destaca que a filosofia grega revela-se como produto
único dos gregos, livre de qualquer influência estrangeira. Atualmente, o
mais correto seria considerar a combinação das duas possibilidades.

41
Unidade I

A filosofia antiga pode ser dividida em três períodos:

• Primeiro período: do século VII até o ano de 450 a.C., de Tales até
Sócrates. Caracteriza-se pela formação ou juventude, uma vez que
é durante ele que se estuda a natureza, passando a ser conhecido e
chamado de Período Cosmológico.

• Segundo período: de 450 a.C. até o século III d.C., de Sócrates até
o ecletismo. Seu foco central está no ser humano; por isso, essa fase
recebeu o nome de Período Antropológico.

• Terceiro período: do século I até o século VI d.C. Por três séculos


coincide com o período antropológico; mas deixa evidente a
decadência da filosofia grega, e seu foco passa a ser Deus ou a união
teosófica com Ele. Por essa razão, denomina-se Período Teosófico.

Sócrates foi um divisor de águas na história da filosofia na Grécia Antiga,


que se divide entre os filósofos pré-socráticos e pós-socráticos, tal foi sua
relevância para o pensamento filosófico ocidental. Consagrado na sua época
como o mais sábio e inteligente dos homens, Sócrates revelava na sua postura
filosófica o quanto era importante levar o conhecimento para os gregos por
meio do diálogo como forma pedagógica de transmissão de saber. Ele também
acreditava que a alma humana era imortal e que teria recebido a missão do
deus Apolo de alertar o homem sobre a necessidade de conhecer a si mesmo.
Além disso, duvidava da possibilidade de a virtude ser ensinada, uma vez que
a moral pressupõe uma questão de inspiração e não de parentesco, já que pais
moralmente perfeitos podem não gerar filhos iguais a eles. Sócrates destacou
ainda que suas ideias não eram próprias, mas sim de seus mestres, entre eles
Pródico e Anaxágoras de Clazômenas. Chamou a atenção para a limitação
da sua sabedoria e da própria ignorância, atribuindo os erros cometidos à
ignorância, pois jamais assumiu ser um homem sábio.

No pensamento filosófico de Platão, essa busca racional possui uma


natureza mais contemplativa, o que implica a busca da verdade no interior do
próprio homem como um agente participante da essência do ser. Da mesma
forma que Sócrates, ocupou-se em desvendar as verdades essenciais das
coisas por meio do conhecimento, desconsiderando o homem na condição de
corpo, mas ressaltando a sua alma pela perfeição e com direito a um lugar no
mundo perfeito das ideias. No entanto, esse formalismo pode ser encontrado
na experiência sensitiva. Para ele, também o conhecimento deve ser concebido
para uma finalidade moral, com o objetivo de elevar o homem à instância da
bondade e da felicidade. Assim sendo, a maneira de conhecer era, de fato, uma
forma de reconhecimento, possibilitando o reencontro do ser humano com as
verdades já conhecidas e capacitando-o a discernir sobre o que existe entre as
aparências de verdades e as verdades propriamente ditas.
42
HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO

Conhecido como o pensador que mais influenciou a filosofia ocidental,


Aristóteles nasceu em Estagira, na Calcídica, em 384 a.C. Na condição de
discípulo de Platão, ele discordava de uma parte fundamental da filosofia
do seu mestre, que concebia dois mundos distintos, um dominado pelos
sentidos humanos, em processo de mutação perene, e o outro como sendo
das ideias, acessível apenas pelo pensamento intelectual, que é imutável
e atemporal. Aristóteles aceitava somente a existência do mundo em que
vivemos, alegando que aquilo que se encontra além da experiência humana
não poderia fazer sentido algum para o homem. Na filosofia aristotélica, a
lógica é considerada como uma introdução para o conhecimento, baseada
em uma estrutura de raciocínio que inclui pressupostos criados para que se
possa chegar à etapa conclusiva.

Se traçarmos um perfil da filosofia medieval pelo seu conteúdo,


naquilo que corresponde à sua essência espiritual, podemos conceituá-la
como o pensamento filosófico ocidental que vem desde Santo Agostinho
e de Anselmo de Cantuária, obedecendo ao mote: “saber para crer, crer
para poder saber”. Durante esse período, a filosofia, que tem por objetivo
tratar dos grandes problemas do mundo, do homem e de Deus só com as
forças da razão, alia-se com a fé religiosa no pressuposto de uma unidade
ideológica. Nela, está representado o espírito de toda essa fase da história
humana, e nada é mais significativo do que essa unidade espiritual. Como
nunca, todos vivem na certeza da existência de Deus, da sua sabedoria,
do seu poder e da sua bondade. Nesse sentido, o homem podia dizer, com
segurança, que sabia da origem do mundo e da sua própria natureza, cheia
de sentido, bem como a sua essência homem e a sua posição no universo,
tendo em vista a significação da sua vida e a imortalidade. Enquanto na
era moderna indaga-se a respeito da possibilidade da ordem e da lei, na
época medieval a ordem estabelece-se como algo evidente, sendo nossa
a tarefa de reconhecê-la. No início da patrística, a Idade Média encontrou
seu direcionamento, que foi preservado até o final.

O padre Agostinho destacou-se entre o clero, assim como Tomás de


Aquino entre os escolásticos. Pela sua imensa sensibilidade e pela sua
postura compreensiva, Agostinho juntou a patrística grega com o caráter
prático da patrística latina, mesmo que os problemas que o preocupassem
fossem de ordem prática e moral, como o mal, a liberdade e o destino.
Para ele, a filosofia era a solução para os problemas da vida, para os quais
apenas o cristianismo podia dar uma solução definitiva. Portanto, seu
maior interesse estava restrito aos problemas de Deus e da alma, por serem
os mais relevantes. Mesmo minimizando o conhecimento dos sentidos em
relação ao conhecimento intelectual, Agostinho afirmou que os sentidos,
assim como o intelecto, também consistem em fontes de conhecimento.

43
Unidade I

A escolástica possui um significado mais limitado quando comparada


às disciplinas ministradas nas escolas medievais, entre elas a gramática,
a retórica e dialética; a aritmética, a geometria, a astronomia e a música,
embora contemple uma conotação mais ampla ao se reportar à linha
filosófica adotada pela Igreja na Idade Média. Esse modo de pensar
essencialmente cristão buscava respostas que justificassem a fé na
doutrina ensinada pelo clero, considerado como o guardião das verdades
espirituais. Essa escola filosófica prevaleceu do princípio do século IX até
o final do século XVI, época que representou o declínio da Era Medieval,
sendo a escolástica o resultado de estudos mais profundos da arte dialética,
assim como a radicalização dessa prática. No início, ela foi disseminada nas
catedrais e nos monastérios, para depois chegar às universidades.

A tarefa dos escolásticos consistia, portanto, em harmonizar ideais


platônicos com fatores de natureza espiritual, inseridos no cristianismo
vigente ocidental. Mesmo quando Aristóteles é contemplado no pensamento
cristão por Tomás de Aquino, o neoplatonismo adotado pela Igreja ainda
é preservado, fazendo com que a escolástica seja permanentemente
atravessada por dois universos distintos – o da fé herdada da mentalidade
platônica e a razão aristotélica. No caso de Agostinho, havia o clamor pelo
predomínio da fé em detrimento da razão, ao passo que, em Tomás de
Aquino, se acreditava na independência da esfera racional na busca de
respostas mais apropriadas, embora não houvesse rejeição à primazia da
fé sobre a razão.

Podemos afirmar que o tomismo, ou a doutrina escolástica de Tomás


de Aquino, adotada oficialmente pela Igreja Católica, caracteriza-se,
principalmente, pela tentativa de conciliar a filosofia de Aristóteles com o
cristianismo, desfazendo-se das doutrinas que não estavam enquadradas
de acordo com os princípios aristotélicos. A obra de Tomás de Aquino pode
ser dividida em partes – tratados, questões, artigos, objeções e respostas –,
em rigorosa ordem numérica, abordando em sua estrutura a composição
do mundo feudal, separado em classes e em estamentos sociais. Como
expressão máxima do apogeu do mundo medieval, contemporânea dos
castelos e das catedrais, o tomismo consiste em um manancial de ideias,
em que a teologia do século XIII encontrou sua forma mais coerente e
sólida de formulação. Contudo, o tomismo não foi totalmente aceito pelos
escolásticos medievais, sendo adotado apenas na segunda metade do século
XVI como arma de defesa e ataque da Contrarreforma da Igreja Católica.

Coube a Tomás de Aquino a tarefa de mostrar a solução definitiva para


o conflito existente nas relações entre a razão e a fé. Estamos falando de
duas ciências – a filosofia e a teologia. A primeira baseia-se no exercício da
razão humana, enquanto a segunda, na revelação divina. Apesar de serem
44
HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO

independentes, apresentam, por vezes, objetos de estudo comuns, como


a existência de Deus, a essência da alma, entre outros. Por esse motivo, a
distinção entre essas ciências tem origem mais do objeto formal, pois a
teologia estuda o dogma pelo método da autoridade ou da revelação, e
a filosofia o analisa pela demonstração científica ou pela razão. Portanto,
teologia e filosofia não são ciências contraditórias, pois ambas procuram a
verdade, e esta é uma só. Na hipótese de uma contradição entre a razão e
a revelação, o erro não será jamais da teologia, mas sim da filosofia; pois
nossas limitações do ponto de vista do conhecimento racional desviaram-
se e não conseguiram atingir a verdade. Em resumo, todo ser material existe
por causa do cruzamento de quatro causas – material, formal, eficiente
e final, que constituem todo ser na realidade e na ordem com os demais
seres vivos do universo.

Exercícios

A história em quadrinhos a seguir é uma homenagem de Mauricio de Sousa ao célebre texto de


Platão, Alegoria da caverna, que funciona como interpretação e adaptação do texto clássico da filosofia
para os dias atuais. Leia com atenção para responder às questões 1 e 2:

45
Unidade I

46
HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO

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Unidade I

48
HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO

Disponível em: <www.monica.com.br/comics/piteco/welcome.htm>. Acesso em: 15 ago. 2011.

Questão 1. Em relação à Alegoria da caverna de Platão, leia as interpretações a seguir:

I – Os homens presos no interior da caverna são as pessoas presas às crenças e aos hábitos do senso comum.
II – A saída da caverna é um processo lento e gradativo que poderá ser atingido por aqueles que
passem a questionar e a refletir filosoficamente sobre as crenças e os hábitos.
III – Aquele que sai da caverna é o filósofo ou sábio. Ao contemplar a verdade fora dela, ele se
lembrará de seus antigos companheiros. Ele não deve voltar à caverna para tentar libertar seus
companheiros, pois corre o risco de ser incompreendido e morto.

Está(ão) correta(s):

a) I.
b) I e II.
c) II.
d) I e III.
e) I, II e III.

Resposta correta: alternativa B.

49
Unidade I

Análise das alternativas

a) A afirmativa I é verdadeira, porque, na alegoria, o mundo das sombras quer dizer justamente o
estado de engano daqueles que vivem acreditando em falsas verdades ou em ideologias.
b) A afirmativa II é verdadeira, porque na alegoria, quando o indivíduo sai do mundo do interior
da caverna e é ofuscado pela luz do mundo exterior, necessita de um tempo para se adaptar às
verdades que ele não conhecia. Por esse motivo, o processo “de saída do mundo das sombras”
deve ser lento e gradativo.
c) A afirmativa III é falsa, pois qualquer indivíduo pode passar pelo processo de reflexão e procurar
ajudar para que outros cheguem a ele, apesar da resistência inicial, que é natural, pois todos têm
a tendência de se agarrar às antigas crenças e valores.

Questão 2. Em relação ao pensamento filosófico na Idade Média:

I – Pode-se dizer que a filosofia não tinha relação com a religião cristã.
II – A filosofia tinha uma relação com a metafísica cristã.
III – Os conhecimentos produzidos pelas ciências particulares (ex.: biologia, física, química etc.)
tinham relação com a filosofia no que concernia a questões mais gerais.

Está(ao) correta(s) as afirmativas:

a) I.
b) I e II.
c) II.
d) I e III.
e) I, II e III.

Resolução desta questão na Plataforma.

50
HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO

Unidade II
5 A FILOSOFIA MODERNA

O Renascimento, ocorrido nos séculos XIV e XV, é nitidamente demarcado pela redescoberta da arte e da
literatura grega, abrangendo o humanismo, com ênfase na colocação do homem no centro da realidade, o
repensar da política, o estilo de governo influenciado pelas obras de Maquiavel, o estudo científico e a filosofia
moderna, com destaque para o poder racional do homem, sinalizando um retorno às raízes do pensamento
racional e à renúncia do controle do conhecimento pelo misticismo e pela Igreja Católica.

Nesse contexto, a sabedoria não é mais vista como algo sagrado e místico, uma vez que, por meio do pensamento
e do raciocínio, o homem tem poder para traçar seu próprio destino e caminhar rumo ao conhecimento.

Para começar, é importante lembrar que a filosofia da Idade Moderna nasceu por causa dos trabalhos
dos grandes mestres do renascimento cultural e científico dos séculos XIV e XV, entre eles Nicolau Copérnico
e Leonardo da Vinci, e dos esforços de cientistas e pensadores como Galileu Galilei, Francis Bacon, René
Descartes e Emanuel Kant nos séculos seguintes. A filosofia moderna teve início, de fato, com a Teoria do
Conhecimento de René Descartes.

Na Idade Média, tanto na sociedade quanto na política, a palavra de Deus era considerada como
fonte única do conhecimento absoluto, sendo interpretada pela Igreja, que dominava todos os aspectos
da vida humana. Por isso, o Renascimento trouxe uma renovação da ciência e a necessidade de uma
nova definição do ser humano e seu lugar no mundo. A chamada Idade da Razão surgiu para redefinir
os padrões científicos e filosóficos já existentes. Descartes, na declaração “penso, logo existo”, descobre o
homem como um ser racional por natureza, com a capacidade de alcançar o conhecimento e, mais que do
isso, sua existência é definida pelo ato de pensar. As obras de Descartes formaram a base sobre a qual os
racionalistas desenvolveram seus trabalhos e formularam suas hipóteses.

Figura 10 – Voltaire na corte de Frederick II da Prússia

51
Unidade II

Danilo Marcondes, em Iniciação à história da filosofia, sintetiza o Iluminismo, ou o Século das


Luzes, como sendo um movimento do pensamento europeu (mais fortemente na França) concentrado
principalmente nas últimas cinco décadas do século XVIII. Segundo ele:

o Iluminismo valorizou o conhecimento como instrumento de libertação e


progresso da humanidade, levando o homem à sua autonomia e a sociedade
à democracia, ou seja, ao fim da opressão (2007, p. 210).

Portanto, o Iluminismo como movimento dentro da modernidade e mantendo a ênfase na


racionalidade possui características próprias, como a liberdade e o fim da opressão. Esse esclarecimento
não requer nada mais que a liberdade, incluindo a mais inofensiva de todas as liberdades, ou seja, a de
fazer uso público de sua razão em todos os domínios. Esse aspecto é importante, pois só se via limitação
da liberdade, e o uso público da nossa razão deve ser livre, uma vez que somente ele pode difundir o
esclarecimento entre os homens.

O Iluminismo influenciou os responsáveis pelos movimentos de libertação no século XVIII, e seu efeito
foi sentido de forma muito especial na França, sendo um dos fatores que levaram à Revolução Francesa.
A burguesia, geradora de riqueza, estava presa sobre o jugo da aristocracia, da monarquia absolutista e
da Igreja, dominantes desde a Idade Média, sendo obrigada a pagar impostos para sustentar o luxo de
poucos, e ansiosa por uma sociedade livre.

Ao encontrar aliados prontos para lutar entre as massas de miseráveis parisienses, revoltou-se contra a
opressão pelo direito de ter liberdade de escolha sobre o curso da própria vida e contra uma voz no governo
do país que ajudou a enriquecer. De acordo com Danilo Marcondes, uma das características fundamentais da
filosofia do Iluminismo em relação ao homem é “o individualismo que se baseia na existência do indivíduo
livre e autônomo, consistente e capaz de se autodeterminar” (2007, p. 208). O homem que, de acordo com
Rousseau, nasce bom, passa a ser visto como livre, autônomo e senhor do seu próprio destino.

6 RENÉ DESCARTES: O RACIONALISMO

Figura 11 – René Descartes

52
HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO

O primeiro pensador moderno

As transformações que ocorreram no século XVI mudaram a concepção de mundo do homem


ocidental à medida que novas descobertas foram ampliando os horizontes espaciais e temporais da
experiência humana. Os pensadores dessa época encontravam antigas doutrinas de cunho filosófico
e científico formuladas pela civilização greco-romana, que renasceu a todo vapor, tornando possível a
construção de novo saber racional em oposição aos valores e aos princípios que prevaleceram na Idade
Média, com base em uma nova configuração geográfica do planeta. Nesse contexto, praticamente tudo
foi contestado, desde a unidade política e religiosa da Europa, passando pela autoridade da Bíblia e
chegando a abalar o prestígio do Estado e da Igreja. Afinal, com os navegadores cruzando os mares
e descobrindo novos povos e culturas, era natural que o questionamento das verdades até então
estabelecidas fosse abalado.

Foi nessa fase de efervescência e de arrebatamento pela compreensão de um mundo ainda


inédito que nasceu e viveu René Descartes. Ele acreditava ser um iluminado cuja missão consistia
em unificar todos os conhecimentos humanos a partir de bases sólidas atestadas pela ciência
para edificar um modo de pensar centrado na verdade e, por isso mesmo, permeado apenas pelas
certezas racionais. Como matemático e filósofo francês, ele refutou todos os pressupostos e ideias
que vinham da natureza subjetiva dos sentidos, o que o levou a escrever a máxima “penso, logo
existo”. Para ele, todo o universo material poderia ser explicado em termos físicos e matemáticos, o
que o levou a criar a geometria analítica como forma de definir e manipular as formas geométricas
por meio de expressões algébricas. Deu origem ainda às coordenadas cartesianas, a forma por
intermédio da qual os pontos são representados nesse sistema, que marcaram para sempre seu
nome na história da humanidade.

Além de desenvolver a ciência da ótica, Descartes ajudou a conceber e modelar as teorias


contemporâneas de ciências, como a astronomia, e o estudo do comportamento animal. Como filósofo,
identificou a coisa pensante ou mente como sendo a alma ou a consciência humana. Já o corpo, apesar
de interagir de alguma forma com a alma, era uma máquina física, secundária, podendo ser separado
da alma. Ele defendia que tudo tinha uma causa, destacando que, apesar de toda a matéria estar em
movimento, ela não se move por si, pois o impulso inicial vem de Deus. O dualismo cartesiano explicava
que existiam duas substâncias totalmente diferentes em sua composição, a substância espacial, ou seja,
a matéria, e a substância pensante, da qual a mente faz parte.

René Descartes nasceu em 1596 em La Haye, rebatizada com o nome de Descartes em sua homenagem,
no sul de Tours, na França. Integrou o exército do príncipe Maurício de Orange e, em 1619, durante uma
viagem pela Europa, decidiu aplicar os métodos da matemática à metafísica e à ciência. Para isso, foi
morar nos Países Baixos em 1628, onde tinha mais possibilidades de se libertar das influências e das
perseguições da Igreja Católica. Em 1649, visitou a corte da rainha Cristina, na Suécia. O trabalho de
maior destaque de Descartes no campo da matemática foi La Géométrie (A Geometria), publicado em
1637. Mesmo sem ter sido o primeiro a usar a álgebra na geometria, foi o primeiro a usar a geometria
na álgebra. Ele foi também pioneiro na classificação das curvas sistematicamente, separando as curvas
geométricas, que podem ser expressas com exatidão por meio de uma equação, das curvas mecânicas,
que não admitem esse enquadramento. Entre seus trabalhos mais conhecidos, estão O discurso do
53
Unidade II

método (1637), Meditações sobre a primeira filosofia (1641) e Princípios da filosofia (1644), além de
várias publicações sobre fisiologia, ótica e geometria.

Também conhecido como Renatus Cartesius (forma latinizada), Descartes ganhou fama por seu
trabalho revolucionário na filosofia e na ciência; mas também obteve reconhecimento matemático
por sugerir a fusão da álgebra com a geometria, o que deu origem à geometria analítica e ao sistema
de coordenadas cartesianas. Além disso, foi um dos pensadores mais importantes na Revolução
Científica. Muitas vezes chamado de “fundador da filosofia moderna” e “pai da matemática moderna”,
ele passou para a história como um dos pensadores mais influentes do pensamento ocidental, que
serviu de modelo e inspiração para várias gerações de filósofos que viriam depois. Boa parte da filosofia
escrita a partir da época em que viveu foi uma reação às suas obras ou a autores supostamente
influenciados por ele.

Muitos especialistas afirmam que Descartes inaugurou o racionalismo da Idade Moderna, enquanto
décadas mais tarde, na Grã-Bretanha, John Locke e David Hume deram início a um movimento filósofico
que pode ser considerado oposto ao seu pensamento, que se convencionou chamar de empirismo. No
Discurso do método, Descartes declarou sua decepção não com o ensino da escola em si, mas com a
forma de pensamento baseada na cultura e na tradição que era fundamentalmente escolástica, cujo
conhecimento científico achava-se confuso, obscuro e nem um pouco prático. Ele criticou ainda as
escolas da Companhia de Jesus, fazendo com que os mestres jesuítas o considerassem um filósofo
deficiente. Nessa mesma época, escreveu também Larvatus prodeo (Eu caminho mascarado).

No ano de 1637, ficou mais conhecido com a publicação de três pequenos tratados científicos:
A Dióptrica, Os Meteoros e A Geometria. No entanto, foi o prefácio dessas obras que o tornaram um
pensador célebre, levando-o ao reconhecimento posterior, intitulado Discurso sobre o método. Em
1641, lançou sua obra filosófica e metafísica mais importante: Meditações sobre a filosofia primeira,
juntamente com os primeiros seis conjuntos de Objeções e Respostas. Em 1643, o cartesianismo foi
condenado pela Universidade de Utrecht, enquanto Descartes publicava Os princípios da filosofia, obra
que faz uma síntese dos seus princípios filosóficos para a formação da ciência.

Em 1649, a convite da Rainha Cristina da Suécia, escreveu e publicou o Tratado das paixões, dedicado
à princesa Elizabete da Boêmia, com quem mantinha uma amizade afetuosa. Morreu de pneumonia em
1650 em Estocolmo, onde estava trabalhando como professor. Por ser católico em um país protestante, foi
enterrado em um cemitério de crianças não batizadas, em Adolf Fredrikskyrkan. Durante a Revolução Francesa,
seus restos foram desenterrados para serem deslocados para o Panthéon, ao lado de outras grandes figuras
ilustres da França. Em 1667, a Igreja Católica Romana colocou suas obras no Índice dos Livros Proibidos.

O pensamento de Descartes pode ser considerado revolucionário para uma sociedade feudalista,
na qual a influência da Igreja ainda era muito forte e quando ainda não existia uma tradição da
produção de conhecimento científico. Ele viajou muito e viu que sociedades diferentes possuíam
crenças diferentes e até mesmo contraditórias. Aquilo que numa região era tido como verdadeiro,
era considerado ridículo e desprovido de bom senso em outros lugares. Descartes constatou que os
costumes, a história de um povo, bem como sua tradição cultural, determinavam a forma como as
pessoas pensam naquilo em que acreditam, o que o levou a entender a cultura como inimiga da razão.
54
HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO

Por isso, o método cartesiano consiste basicamente no ceticismo metodológico, que duvida de tudo
que pode ser duvidado. Esse pensamento vai de encontro ao dos gregos antigos e dos escolásticos,
que acreditavam que as coisas existem simplesmente porque precisam existir, ou porque assim deve
ser.

Ainda nesse contexto, ele também concebeu o método na realização de quatro tarefas básicas:
verificar se existem evidências reais e indubitáveis acerca do fenômeno ou da coisa estudada; analisar,
ou seja, dividir ao máximo as coisas em suas unidades de composição, fundamentais, e estudar essas
coisas mais simples que aparecem; sintetizar, agrupar novamente as unidades estudadas em um
todo verdadeiro; e enumerar todas as conclusões e princípios utilizados para manter a ordem do
pensamento.

Quanto à ciência, desenvolveu uma filosofia que influenciou muitos cientistas até ser passada
pela metodologia de Isaac Newton. Ele acreditava que a matéria não possuía qualidades inerentes,
sendo apenas o material bruto que ocupava o espaço, dividindo a realidade em res cogitans
(consciência, mente) e res extensa (matéria). Para Descartes, Deus criou o universo como um
perfeito mecanismo de moção vertical, que funcionava de forma determinista e sem a intervenção
divina. Ele instituiu a dúvida, alegando que seria possível dizer que existe apenas aquilo que pode
ser provado.

Não temerei dizer que penso ter tido muita felicidade de me haver
encontrado, desde a juventude, em certos caminhos, que me conduziram a
considerações e máximas, de que formei um método, pelo qual me parece
que eu tenha meio de aumentar gradualmente meu conhecimento, e de
alçá-lo, pouco a pouco, ao mais alto ponto, a que a mediocridade de meu
espírito e a curta duração de minha vida lhe permitam atingir (DESCARTES,
1973 p. 42).

A curiosidade de Descartes pela Matemática começou logo cedo, no College de La Flèche, escola
dirigida pelo clero, por um motivo que já deixava entrever sua visão filosófica, ou seja, a garantia
que as demonstrações ou as justificativas matemáticas proporcionam às descobertas humanas. Os
matemáticos reconhecem a importância de Descartes pelo seu estudo pioneiro sobre a geometria
analítica. Antes dele, a geometria e a álgebra apareciam ainda como segmentos distintos da Matemática
e foi o filósofo quem mostrou uma forma de traduzir problemas de geometria para o campo da
álgebra, abordando-os por meio da criação de um sistema de coordenadas. Essa teoria serviu de
suporte para o cálculo de Newton e de Leibniz, colaborando em grande escala para a concepção da
matemática estudada atualmente.

Lembrete

Na declaração “penso, logo existo”, Descartes descobre o homem como


um ser racional por natureza, com a capacidade de alcançar o conhecimento
e, mais que do isso, sua existência é definida pelo ato de pensar.
55
Unidade II

6.1 David Hume: o empirismo

Figura 12 – David Hume

Considerado um dos mais importantes filósofos da Grã-Bretanha do século XVIII, David Hume
nasceu em Edimburgo, na Escócia, em maio de 1711. Voltou para a propriedade rural de sua
família em 1737, depois de estudar na França, e lá permaneceu até a morte, em 1776. Assim
que regressou, providenciou a publicação de sua obra mais famosa, o Tratado, composta por três
livros, publicados no anonimato em duas etapas, antes de completar 30 anos.

O Livro I tem como objetivo fornecer uma explicação do processo de aquisição de conhecimento
pelo ser humano, desde o surgimento das ideias, passando pelas noções espaciais e temporais, até a
causalidade e o ceticismo atribuído aos sentidos. Já o Livro II, sobre as “paixões” do homem, apresenta
um elaborado mecanismo para explicar a ordem afetiva ou emocional no homem, e reserva um papel
subordinado para a razão. Essas duas partes foram publicadas em 1739, anonimamente. O Livro III
descreve o bem moral em termos de “sentimentos” de aprovação ou desaprovação que o homem
sente quando considera o comportamento humano sob a luz do que é de consequência agradável ou
desagradável para ele ou para os outros. Essa terceira parte foi publicada em 1740.

Ele frequentou a universidade local. Inicialmente, pensou em seguir a carreira jurídica; mas, em suas
palavras, chegou a uma “aversão intransponível a tudo, exceto ao caminho da filosofia e à aprendizagem
em geral”. Apesar de muitos acadêmicos considerarem hoje o Tratado sua maior obra e um dos livros
mais importantes da história da filosofia, o público inglês não se entusiasmou imediatamente. Em 1744,
foram recusadas a Hume as cadeiras nas Universidades de Edimburgo e Glasgow, provavelmente devido a
56
HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO

acusações de ateísmo e à oposição de um dos seus principais críticos, Thomas Reid. Após esses insucessos,
trabalhou como curador de um doente psiquiátrico e posteriormente como secretário de um general.
No entanto, para além dos seus trabalhos no âmbito da filosofia, Hume ascendeu à fama literária como
ensaísta e historiador com seu célebre História da Inglaterra. Viveu a última década da vida em Edimburgo,
no novo aldeamento de New Town. O pensamento de Hume possui grande influência na filosofia atual.

Para ele, percepção em estado puro dá origem às impressões que, posteriormente, conferem ao sujeito
a possibilidade de compor a ideia como uma cópia deturpada da percepção bruta. Essa teoria de Hume
ficou conhecida como empirismo psicológico, que deu origem ao empirismo lógico. De acordo com essa
concepção, as palavras só encontram significação se possuírem um ser ou um objeto correspondente no
mundo, ou seja, uma base empírica.

Nesse sentido, Hume foi de encontro aos postulados filosóficos complexos e de conclusões metafísicas que
não têm como fundamento a base no real, pois, para ele, a abstração não existe. Nesse caso, toda forma de
conhecimento estaria associada às impressões e às relações entre as ideias inatas e originais, como as verdades
dos princípios matemáticos, que são irrefutáveis, uma vez que as deduções lógicas podem ser demonstradas.

Dessa forma, os objetos da razão podem ser divididos em relações de ideias e questões de fatos. Fazem
parte do primeiro grupo as verdades matemáticas, quer dizer, a relação de ideias remonta à razão humana,
que estabelece as relações entre elas. Essas assertivas possuem validade universal, uma vez que comparam
ideias que não são efetivas, pois somente os objetos pensados admitem efetividade. Hume também critica
o conceito de substâcia, seja ela de ordem material, seja de natureza espiritual, descartando o conceito de
alma concebido por Descartes. Para ele, o ser humano consiste em um feixe de sensações da consciência que
permanecem em um fluxo constante, sucedendo-se. Portanto, a consciência opera com essa somatória de
momentos, e o eu passa a existir quando ocorre uma ação de presença; quando se morre, o eu se anula.

Com o objetivo de garantir sua sobrevivência, o homem buscou colocar ordem à sua volta, dando
prioridade àquilo que é útil. Como o fundamento das ciências naturais para Hume não é racional, a
natureza sobrepõe-se à razão. Nesse sentido, filosofar seria uma forma de refutar o racionalismo.

Como o princípio causal tem origem na experiência, nossa mente é formatada pelo costume e pela
experiência. Aceitamos algo como natural; mas, se fosse de outra maneira, aceitaríamos da mesma forma.
Hume admite a existência objetiva dos efeitos da natureza, uma vez que até mesmo um cético tem de
aceitar a existência de um objeto concreto. No entanto, as leis da natureza são apenas as mais prováveis
de acontecer e, como a causalidade não é objetiva, uma vez verificadas que nem sempre as mesmas
causas surtem os mesmos efeitos, a certeza precisa ser trocada pela probabilidade dos acontecimentos,
incluindo a expectativa que um evento ocorra, por ser inerente apenas ao homem.

Na visão de Hume, a origem da religião encontra-se no sentimento, assim como a origem da moral.
O filósofo ainda aborda a questão do que é o bem para o homem em sua teoria moral, que tem um
tom altruísta que afirma a existência de um Ser supremo e senhor da natureza. Na sua obra Ensaios
morais, políticos e literários, Hume explica que o ser humano busca a perfeição da natureza por meio da
inspiração artística, criticando a felicidade artificial, em contraposição aos sentidos. Ele também refuta
os sábios, pois acredita que o caminho deve vir de dentro e não de teorias, e é nessa caminhada que
57
Unidade II

atingimos o prazer e a virtude. Portanto, sua linguagem é jovial, enaltecendo sempre o arrebatamento
epicurista pelas paixões como se fosse a doutrina de prazer.

Já no ensaio seguinte, O estoico, Hume continua louvando a natureza, contrapondo a barbárie e


afirmando que devemos apurar nosso gosto pelas artes. De acordo com ele, a natureza foi generosa com
o homem, tornando-o superior aos outros animais; mas ele necessita ser civilizado por meio da educação.
Devemos, então, aperfeiçoar o espírito e refletir. Ao encontrarmos as regras para nossa conduta, seremos
filósofos; mas, somente quando as aplicarmos do ponto de vista pragmático, seremos sábios. No ensaio
O platônico, Hume aborda ainda a diversidade dos gostos humanos, além da contemplação filosófica,
que devem estar relacionados à perfeição e à beleza universal.

Já no ensaio O cético, Hume observa que não é possível recorrer às teorias filosóficas tendo em vista
o prazer, pois é infinita a gama de variações das possibilidades humanas. Para ele, o único princípio
filosófico verdadeiro é que as coisas em si não possuem as qualidades que o homem lhe atribui. Hume
insiste em afirmar que é a paixão a responsável pela proposição dos valores de tudo o que existe. Ao
vivenciar uma sensação de prazer, quando observa os objetos que trazem um sentimento, o ser humano
tende a classificá-los pela beleza, seja ela desejável ou abominável. Ao igualar os homens, presume
que aquilo que os diferencia está na paixão ou na fruição. Ele critica a aspereza de espírito de muitos e
acredita que a filosofia pode corrigir esse defeito, ainda que seja para poucos, pois ela induz ao prazer.
Como todos os males vêm do universo que os engloba, para escapar deles e dos seus infortúnios, é
preciso prevenir-se e conhecê-los.

No ensaio Da origem do governo, Hume afirma que, na sociedade tradicional, uma pessoa
nascida em família precisa conservar esse laço social, tendo em vista o cumprimento da justiça
como o principal motivo da existência do poder governamental. Como a natureza humana possui
sua face maligna, tornam-se necessárias a paz e a ordem para conservar a organização social.
Por esse motivo, é preciso criar mecanismos para assegurar a obediência por meio dos hábitos,
para que os homens aprendam a aceitar as regras sem questioná-las. A origem divina do governo
como vontade de Deus é defendida por Hume no ensaio Do contrato original, justificando ser isso
necessário para a humanidade como um todo. O filósofo também alega que o vigor dos membros e
a coragem constituem a força natural de um homem e, depois de consolidada, a obediência passa
por várias gerações até ser reconhecida como natural. Ele ainda afirma que foi em Atenas que
ocorreu a maior prática da democracia, apesar de o voto ser limitado aos cidadãos de posse, o que
o leva a pensar que o governo não surge a partir do consenso popular, pois esse consenso surge da
força. Da mesma forma, a utopia da justiça é impossível pela natureza humana, já que o fluxo da
vida implica uma transmissão de valores hereditários.

Para Hume, existem duas espécies de deveres morais, sendo do primeiro grupo aqueles relacionados
ao instinto natural. Já a segunda espécie decorre da obrigação, uma vez que se tornam necessárias
leis para viver em sociedade, fazendo surgir o sentido da justiça e a lealdade. Após negar as origens
filosóficas e religiosas do governo como consenso popular, parte para buscar o motivo da submissão
no ensaio Da obediência passiva. Para ele, a justiça precisa ter utilidade pública, enquanto a lei deve
garantir a segurança da coletividade. Mesmo considerando a monarquia arrogante, o filósofo também
defende o direito de resistência à tirania.
58
HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO

Com o ensaio Dos primeiros princípios do governo, Hume demonstra sua admiração pelo fato de muitos
renunciarem aos seus sentimentos em benefício de uma minoria. A opinião pode ser de interesse ou de
direito; a primeira origina-se do benefício do governo, enquanto o direito está relacionado ao poder, que
predomina, e à propriedade. Essas opiniões são fundamentais para o governo, mas os interesses pessoais
e as características inerentes ao ser humano podem restringi-las. No ensaio Da sucessão protestante,
o filósofo elabora um estudo da sucessão hereditária, utilizando políticos ingleses da sua época como
exemplos. Em ensaios anteriores, sua opinião sobre a monarquia não era tão benevolente.

Para Hume, o governo hereditário dos príncipes, uma nobreza sem vassalos e um povo escolhendo
seus próprios representantes, pode ser considerado o que existe de melhor na monarquia, na aristocracia
e na democracia, respectivamente. No entanto, ele coloca em dúvida se as formulações gerais da política
devem ser efetivas. No ensaio Que a política pode ser transformada em ciência, critica o pensamento de
Maquiavel, alegando que parte de sua teoria baseia-se em falsos princípios. Uma constituição pode ser
boa se consegue combater a má administração. Já no ensaio Da liberdade civil, ele elogia as pessoas livres
de preconceitos, que se dedicam a causas partidárias e políticas, contribuindo assim para a sociedade.
Mas, como todos são ainda muito jovens, não existe uma fórmula aceitável.

Hume também verifica a mudança que se dá no Estado em razão do poder da instituição, ou seja,
quando se passa de um governo de homens para um governo de leis. Ele apreciava o filósofo pré-
socrático Xenofonte, e nele buscou várias informações históricas. No ensaio Ideia de uma república
perfeita, expõe o quanto é difícil modificar uma forma de governo, mesmo que seja para melhor. Ao
abordar os teóricos que traçaram planos imaginários de governo, como Thomas More e Platão, estrutura
um sistema governamental que inclui o senado, o condado e representantes, ressaltando os poderes
executivo e legislativo como necessários para o alcance do equilíbrio social.

No ensaio Da superstição e do entusiasmo, coloca a superstição e o entusiasmo como exemplos


falsos de religião, uma vez que a alma humana pode alcançar um estado de espírito negativo e imaginar
objetos, atribuindo poderes a algo inexistente. Outro tipo de estado de espírito conduz ao entusiasmo e,
nele, a imaginação flui, enquanto o mundo material perde a sua grandeza. Hume também acredita que
sentimentos como a esperança e o orgulho, além da imaginação, são fontes do entusiasmo e parte para
criticar os membros do clero, chamando-os de tiranos.

No ensaio Da origem e progresso das artes e ciências, alerta para a distinção entre o que é do acaso
e aquilo que provém da causa. O que depende de poucos vem do acaso e, o oposto, vem das causas.
Na história da arte e da ciência, deve-se tomar cuidado para não confundir as causas ou achar causas
inexistentes. Hume ainda acredita que o homem é superior à mulher, embora a natureza tenha se
encarregado de prover todas as espécies de amor entre os sexos, mesmo que seja por tempo limitado. No
ensaio Da eloquência, destaca que sentimentos nascidos da vaidade dão origem às disputas. Em todos
os seus ensaios, Hume defende que a natureza humana possui um lado maligno e que o preconceito
acaba com a capacidade de raciocinar, fazendo da arrogância um defeito comum entre os homens.
Como Deus é o ser supremo, deseja o bem, que deve ser experimentado por meio das sensações puras,
que se encontram pervertidas no processo civilizatório pelos defeitos comuns que afastam de Deus,
muito embora haja homens com gosto superior.

59
Unidade II

De forma resumida, o ceticismo de Hume está na negação não da crença, mas da evidência. É
a conclusão filosófica de que o homem é mais uma criatura de percepção sensível e prática que
de razão. O que ele diz é que somente existe nossa experiência de que uma coisa se segue à outra,
que os padrões de uma experiência passada se repetem e passam a ilusão de causa e efeito. Ele não
observa nenhuma relação causal entre os dados dos sentidos “externos” porque, quando o homem
considera quaisquer eventos como causalmente relacionados, tudo que faz e pode observar é que
eles frequentemente caminham juntos. Nesse tipo de associação, é um fato que a impressão ou
ideia de um evento traz com ele a ideia do outro. O trabalho da associação do hábito fixa-se na
mente e passa a ser sentido como compulsão. Com esse sentimento, Hume conclui ser a única
fonte da ideia de causalidade.

6.2 Immanuel Kant: o apriorismo e o conhecimento

Figura 13 – Immanuel Kant (1724-1804)

O crítico da razão e da moral

Nascido em 1724 no seio de uma família protestante em Königsberg, atual Kaliningrado,


Emmanuel Kant teve educação rígida em uma escola de princípios pietistas, ou seja, reacionária
contra o protestantismo dogmático. Na primeira fase da vida adulta, era apenas um metafísico
menor numa universidade prussiana; mas foi então que uma crise existencial o atormentou, sendo
possível afirmar que isso teve forte influência na suas convicções posteriores como filósofo e
pensador.

Em 1740, Kant tinha 16 anos e Frederico II tornou-se o rei da Prússia, trazendo sinais de
tolerância para uma nação célebre pela disciplina militar. Trouxe também iluministas para sua corte
e continuou a política de encorajamento à imigração que o pai tinha seguido. Com o falecimento
do pai em 1746, foi obrigado a trabalhar como professor particular. Ao se tornar professor de
60
HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO

lógica e metafísica na universidade, após quatorze anos como docente, entrou em contato com a
obra de David Hume, que o despertou do seu sono dogmático, uma vez que se perguntou como
são possíveis juízos sintéticos a priori; para responder a essa pergunta, escreveu um livro com mais
de 800 páginas. Em 1773, Frederico II, um protestante, concedeu refúgio à Ordem dos Jesuítas,
banidos pelo Papa, enquanto Kant, aos 50 anos, vivia o auge do movimento romântico, chamado
Sturm und Drang.

Sete anos mais tarde, publicou a Crítica da razão pura. A reação aos seus escritos foi pouco
encorajadora, pois Moses Mendelssohn e Johann Georg Hamann pronunciaram-se de forma
reticente, o que levou Kant a escrever um artigo intitulado O que é o Iluminismo? Aos 71 anos,
publicou o tratado Para a paz eterna, no qual surgia a perspectiva de um cidadão do mundo
esclarecido. Morreu com 80 anos, após uma prolongada doença que apresentava sintomas
semelhantes à doença de Alzheimer, uma vez que já não reconhecia sequer seus amigos mais
íntimos. Foi considerado como o último grande filósofo da era moderna, e também um de seus
pensadores mais marcantes. Há estudiosos que avaliam sua concepção filosófica de mundo como
uma espécie de síntese entre o racionalismo de René Descartes e Gottfried Leibniz, no qual
predomina o raciocínio dedutivo, e a tradição empírica inglesa, de David Hume e John Locke, que
prioriza o raciocínio indutivo.

Kant ainda recebeu reconhecimento pela sua teoria conhecida como Transcendentalismo, segundo
a qual todos trazem conceitos a priori, ou seja, aqueles que não vêm da experiência para a vivência
concreta do mundo. Seguindo essa linha de pensamento, a filosofia da natureza e da natureza humana
concebida por Kant é, do ponto de vista histórico, uma das mais influentes do relativismo conceptual
que tomou conta da postura intelectual do século XX. Porém, é possível que o próprio filósofo refutasse
o relativismo nas suas formas atuais, como o pós-modernismo. Ele também ficou conhecido pela sua
filosofia sobre a moral e pela proposta moderna de uma teoria a respeito da formação do sistema solar,
denominada de hipótese Kant-Laplace.

Aos 46 anos, entrou em contato com a obra de David Hume, considerado um empirista ou um
cético que, para uns, desprezava qualquer tipo de explicação metafísica, para outros era tido como um
naturalista. Em seu trabalho mais conhecido, alega que nada na experiência humana pode justificar a
existência de poderes causais inerentes às coisas, o que deixou Kant bastante perturbado, por achar o
argumento de Hume irrefutável, apesar de as conclusões serem inaceitáveis. Depois de dez anos, em
1781, publicou o célebre Crítica da razão pura, uma das obras mais significativas da filosofia moderna.
Nesse livro, ele elabora sua ideia de uma teoria transcendental para demonstrar que, mesmo sem saber
as verdades acerca do universo, somos obrigados a refletir sobre ele, já que podemos ter a certeza de
um grande número de coisas sobre o mundo enquanto sua aparência, regido por leis da física e da
matemática, por exemplo.

Nos vinte anos que se seguiram, Kant produziu de forma incessante, completando sua contribuição
à filosofia moderna com a Crítica da razão prática, que tratava da moralidade de maneira semelhante ao
modo como a crítica inicial abordava o conhecimento. Em Crítica do julgamento, ele destaca os diversos
usos dos poderes mentais, que não requerem conhecimento factual nem nos fazem, necessariamente,

61
Unidade II

partir para a ação. Da maneira como Kant os concebeu, os juízos de valor relacionados à estética e à
teleologia estabelecem uma conexão entre os nossos julgamentos morais e empíricos, unindo todo o
sistema.

A fundamentação da metafísica dos costumes é considerada por muitos filósofos a mais importante
obra já escrita sobre a moral. Nela, Kant definiu as funções da ação fundamentada pela moral, introduzindo
conceitos como o “imperativo categórico” e a “boa vontade”. Ele ainda produziu ensaios mais populares
sobre história, política e aplicação da filosofia à vida. Quando veio a falecer, estava escrevendo a Quarta
crítica, por ter concluído que seu pensamento estava incompleto. Esse manuscrito foi publicado como
obra póstuma.

De acordo com Kant, para fazer uma crítica sobre aquilo que é belo, precisamos nos orientar pelo
poder do julgamento, e a indagação fundamental que move essa investigação crítica consiste em saber
se existe um valor universal capaz de conceituar o belo e reivindicar que outros indivíduos, a partir da
apreciação de uma forma bela da natureza ou da arte, confirmem esse juízo. Se não for dessa forma,
temos que aceitar o fato de que todo objeto que julgamos ser belo seria, portanto, um valor subjetivo.
Logo, a capacidade de julgar, que pertence a todos, é universal, entrelaçando o julgamento estético e
prático. Assim, a investigação crítica que Kant propõe refere-se ao universo especulativo das faculdades
subjetivas do homem que atuam conforme princípios que fazem farte da essência do pensamento
humano.

Segundo estudiosos da obra filosófica de Kant, ele reconhece três faculdades do ânimo: a de conhecer,
a de apetição e o sentimento de prazer e desprazer.

A faculdade de conhecer refere-se ao objeto e à unidade de percepção, já a faculdade de apetição


consiste nas representações consideradas como causa de efetividade desse objeto, enquanto o sentimento
de prazer e de desprazer são as representações que se referem ao sujeito e que conservam sua existência
nele. Ele acredita que o sentimento está localizado em um patamar entre o desejo e o conhecimento,
conceituando prazer como um sentimento relacionado ao gosto, compreendido como a capacidade de
apreciação do prazer.

Na Crítica da razão prática, o filósofo discorre sobre o respeito, considerando-o diferente dos demais
sentimentos por pertencer à razão pura e, por isso, não poder ser atribuído nem ao gozo nem ao
sofrimento. Para ele, o respeito encontra-se vinculado à representação da lei moral em todo ser racional,
sem que haja o condicionamento ao prazer ou ao desprazer. Dessa forma, a razão sugere um sentimento
de satisfação no que diz respeito ao dever cumprido. Essa conclusão vai originar a crítica do gosto, uma
vez que associa o ânimo com o sentimento moral. O juízo de gosto, então, seria a faculdade de julgar,
que produz satisfação e descontentamento. Nas palavras do próprio Kant (1987), “gosto é a faculdade de
julgar um objeto ou uma representação mediante uma satisfação ou descontentamento, sem interesse
algum. O objeto de semelhante satisfação chama-se belo”. Portanto, é possível compreender o juízo
de gosto como o “interesse desinteressado”, que vem da contemplação da beleza. Por isso, todo juízo
referente às artes faz parte da satisfação estética, que é desprovida de interesse e encontra-se no prazer
diante da contemplação do objeto.

62
HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO

Para Kant (1987):

só a crítica pode cortar pela raiz o materialismo, o fatalismo, o ateísmo, a


incredulidade dos espíritos fortes, o fanatismo e a superstição, que podem
se tornar nocivos a todos e, por último, também o idealismo e o cepticismo,
que são, sobretudo, perigosos para as escolas e dificilmente se propagam no
público.

Mesmo tendo adaptado a ideia de uma filosofia crítica, cujo objetivo inicial era revelar os limites
das capacidades intelectuais humanas, ele foi um dos grandes edificadores de sistemas, criticando a
metafísica, a ética e a estética. Sua famosa citação – “o céu estrelado por sobre mim e a lei moral dentro
de mim” – consiste em uma síntese dos seus estudos. Com isso, o filósofo busca explicar, por intermédio
de uma teoria sistemática, que tempo e espaço são formas elementais de a mente humana perceber
o mundo; mas só podem ser empregadas na prática, uma vez que a mente não pode produzir essa
ideia. Além disso, nada pode ser percebido, exceto por meio dessas formas, sendo os limites da física as
fronteitas finais da estrutura mental.

Na visão kantiana, o conhecimento, a priori, possui a capacidade de compreender as


experiências naturais, que são apresentadas à consciência humana. Em seguida, ela retira
o mundo real (que ele chamou de numenal) da cena da percepção. Kant denominou seu
pensamento filosófico crítico de idealismo transcendental, ou seja, descreveu a forma de
procurar as condições da possibilidade do conhecimento do mundo pelo homem. Porém, esse
idealismo difere de outros sistemas idealistas. Para ele, os fenômenos dependem das condições
da sensibilidade, do espaço e do tempo, ao contrário da tese da dependência mental no sentido
do idealismo de Berkeley.

Em 1784, no ensaio Uma resposta à questão: o que é o Iluminismo?, Kant buscava atingir os grupos que
tinham levado o racionalismo além dos limites, incluindo os metafísicos, que pretendiam compreender
tudo sobre Deus e a imortalidade, os cientistas, que presumiam por meio de seus experimentos a descrição
mais exata da natureza, e também os céticos, que alegavam que a crença em Deus, na liberdade e
na imortalidade não tinha fundamentos racionais. Apesar de tantas divergências, Kant mantinha-se
otimista por atribuir à Revolução Francesa uma forma de instaurar o domínio simultâneo da razão e da
liberdade.

As investigações filosóficas de Kant ocuparam-se de quatro questões principais: a mecânica


do saber, a ética, a religião e a natureza do sentimento estético, bem como a direção da evolução
biológica. A respeito de cada uma delas expressou ideias que marcaram de forma decisiva a história
do pensamento humano. No que se refere à natureza do saber, a importância de Kant reside menos
no resultado dos seus estudos do que no fato de haver proposto o assunto. Em outras palavras, ele
foi o primeiro a pensar em estudar a natureza da compreensão humana antes de levar em conta
seus resultados, concebendo a ideia de razão independente da experiência, e, com isso, provocou
uma espécie de revolução comparada às transformações que mudaram os conceitos científicos e
filosóficos do século XIX.

63
Unidade II

6.3 Hegel: o idealismo alemão

Figura 14 – Drawing Hands, de Maurits Cornelis Escher

O pensador das contradições

George Wilhelm Friedrich Hegel, filósofo nascido em 1770, é considerado o expoente máximo do
idealismo alemão do século XIX, que acabou provocando um impacto profundo no materialismo histórico
de Karl Marx. Aos 18 anos, ingressou no seminário protestante de Tubingen, para estudar teologia, onde
conheceu Schelling e Holderlin. O pietismo, uma das correntes gnósticas do protestantismo, influenciou
profundamente seu pensamento. Hegel foi um ilustre professor universitário de filosofia que iniciou
suas atividades em Berna, na Suíça, entre 1793 e 1796; depois lecionou em Frankfurt, de 1797 a 1800.
Foi também mestre de conferências na Universidade de Iena, professor e reitor em um colégio de
Nuremberg, professor em Heidelberg e, finalmente, em Berlim, onde permaneceu até a morte.

Hegel formulou o modelo analítico da realidade que maior influência teve ao longo dos séculos XIX
e XX, para pensadores como Schopenhauer, Nietzsche, Marx, Kierkegaard e Jean-Paul Sartre, em razão
de uma proposta que recusa a concepção filosófica de Kant. Buscou se defrontar com temas diversos,
como a lógica, o direito, a religião, a arte, a moral, a ciência e a história da filosofia. Em todos esses
domínios, ele viu a manifestação do espírito absoluto, que se materializa e revela por intermédio da
história da humanidade. A filosofia hegeliana parte do princípio de que a negatividade é inerente ao real
e que o positivo realiza apenas por meio do negativo. A dialética, portanto, seria o método que permite
compreender e esclarecer a racionalidade do real.

A obra inicial e a mais significativa dos estudos de Hegel foi a Fenomenologia do espírito ou
Fenomenologia da mente. Ele também publicou a Enciclopédia das ciências filosóficas, a Ciência da
lógica e a Filosofia do Direito. Várias outras obras sobre filosofia, religião e história da filosofia foram
concebidas com base nas anotações dos seus estudantes, tendo sido publicadas somente após sua
morte. No entanto, as obras de Hegel ganharam fama de serem de difícil compreensão, tendo em vista
os temas que pretendem abranger. Ele ainda critica a concepção do conceito como representação no
sentido de preencher uma ausência. Ele introduziu também um sistema para compreender a história
64
HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO

da filosofia e do mundo da dialética, que pode ser explicado como uma espécie de progressão na qual
cada sucessão de movimento surge como solução para contradições inerentes do movimento anterior.
De maneira geral, a dialética pode ser considerada como uma das diversas partes do sistema hegeliano,
que nunca foi bem compreendido de fato. Um dos possíveis motivos para isso se deve ao abandono, por
parte dele, da ideia de que a contradição gera um objeto desprovido de conteúdo.

Hegel confere dignidade à contradição, bem como ao negativo; mas, por outro lado, ele não queria
dizer que absurdos fossem possíveis. No estudo atual do hegelianismo para estudantes de nível superior,
a dialética costuma ser explicada em três momentos distintos: tese, antítese e síntese. No entanto,
Hegel não empregou pessoalmente essa classificação. Ele usou esse sistema para explicar a história
da filosofia, da ciência, da arte, da política e da religião, mas muitos críticos modernos alegam que
ele tende a analisar as realidades da história de forma superficial para poder enquadrá-las em seu
paradigma dialético.

O método hegeliano inspirou em grande escala as análises de filósofos contemporâneos sobre as


relações do eu com o outro. Na luta de duas consciências, Hegel examinou simultaneamente a relação
de dois “eu” e a relação de cada “eu” com sua própria vida. O “senhor”, aquele que é vitorioso no
combate, aceitou arriscar a vida. Sendo assim, ele é mais do que ela e, por sua coragem, colocou-se
acima dos objetos comuns da necessidade e da existência empírica. O vencido, aquele que se rendeu,
tem medo de perder a vida. Como consequência, ele é escravo da vida e de seus objetos empíricos.
Hegel quer dizer com isso que o senhor não é senhor “em-si”, mas por meio de uma mediação, isto é,
de uma relação. O senhor se define por sua relação com o escravo e por sua relação com os objetos, que
depende, ela própria, da relação com o escravo. No ponto de partida, o senhor domina os objetos da
necessidade, já que no campo de batalha ele se mostrou corajoso e superior à sua vida e aos objetos das
necessidades. Secundariamente, o senhor domina os objetos por mediação do escravo que trabalha, isto
é, que transforma os objetos materiais em objetos de consumo e de fruição para o senhor.

Em suas lições sobre a história da filosofia, Hegel assinala que essa noção envolvia uma contradição
interna. De fato, a filosofia quer conhecer o imperecível, o eterno, sendo seu fim a verdade. No entanto,
a história conta o que foi numa época e que desapareceu em outra, substituído por outra coisa. Se a
verdade é eterna, “ela não penetra na esfera do que passa e não tem história”. Entretanto, a filosofia
encontra-se toda nos sistemas dos filósofos. A ideia geral de filosofia permanece abstrata se não se
confunde com os diversos sistemas dos filósofos no decurso da história, assim como a noção geral de
fruto. Na realidade, Hegel defendia que cada filosofia correspondia a um momento da história e a uma
etapa na evolução do espírito absoluto. Portanto, cada filosofia é “o espírito da época existente como
espírito que se pensa”. Ela surge “no devido momento, nenhuma ultrapassou seu tempo”. Por isso, as
filosofias sucessivas não se anulam, mas as novas filosofias mostram as anteriores como verdades parciais
e passíveis de serem integradas numa síntese mais ampla que se elabora com o tempo. Dessa forma, a
história da filosofia oferece momentos privilegiados ou, como diz Hegel, vem reconciliar dialeticamente
os contraditórios.

Nesse sentido, a razão passa a ser única como a racionalidade, formando um sistema. Por essa razão,
a evolução das determinações do pensamento é igualmente racional e os princípios gerais surgem
segundo a necessidade da noção fundamental. Portanto, o princípio de uma filosofia passa, na seguinte,
65
Unidade II

para a categoria de um momento. Não se refuta uma filosofia, apenas sua posição, pois as filosofias
são as formas do Uno. Um estudo mais avançado nesse campo pode mostrar como progridem seus
princípios, de maneira que o seguinte é uma nova determinação do precedente.

Essa evolução permanente e contraditória ao mesmo tempo permite vislumbrar a importância


de conhecer os princípios dos sistemas filosóficos para, na sequência, reconhecer cada um deles
como necessário em sua época superior. Mais adiante, a determinação precedente torna-se apenas
um ingrediente da nova, que é assumida sem ser rejeitada. Desse modo, todos os princípios são
conservados.

Assim, a unidade consiste no fundamento de tudo. Aquilo que se desenvolve na razão progride na
unidade dessa razão e conhecer verdadeiramente um sistema significa tê-lo justificado em si. Limitar-se
apenas a refutar uma filosofia é não compreendê-la, sendo necessário ver a verdade que ela contém.
Não existe nada mais fácil do que criticar do ponto de vista negativo. No entanto, quem só vê a negação
ignora o conteúdo, ele sim afirmativo, e o supera sem se encontrar no interior dele. A dificuldade então
consiste em ver o que os sistemas filosóficos contêm de verdadeiro. Somente quando são justificados
em si próprios é possível falar das suas limitações e de suas deficiências. O radicalismo dessas oposições
levou ao individualismo egoísta de Stirner e à versão marxista do comunismo, da mesma forma que os
teóricos pragmatistas se apropriaram dos aspectos comunitaristas da filosofia hegeliana.

A filosofia de Hegel foi redescoberta no século XX, graças à volta da perspectiva histórica que ele
projetou em tudo, e também ao reconhecimento cada vez maior do valor da sua metodologia dialética.
Nesse sentido, o renascimento de Hegel também colocou em evidência a importância fundamental
das suas obras iniciais, publicadas antes da Fenomenologia do espírito. Porém, não foram apenas os
teóricos da escola de Frankfurt que viram reviver o vigor e a profundidade da filosofia hegeliana na
contemporaneidade.

6.4 Marx: o materialismo histórico

Figura 15 – Karl Marx, em 1882

66
HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO

O pai do materialismo dialético

Karl Heinrich Marx nasceu no seio de uma família judia de classe média em Tréveris, na Alemanha.
Era filho de mãe judia holandesa e de um pai advogado que teve de se converter ao cristianismo,
quando Marx tinha 6 anos de idade, em virtude das restrições impostas à presença de membros judeus
nas atividades públicas. Aos 17 anos, ingressou na Universidade de Bonn para estudar Direito; mas,
logo depois, transferiu-se para a Universidade de Berlim, onde a influência de Hegel ainda era bastante
sentida no início da sua obra. Com os interesses voltados para a filosofia, ele participou ativamente do
movimento dos jovens hegelianos. Doutorou-se em Jena, em 1841, com a tese sobre as Diferenças da
filosofia da natureza em Demócrito e Epicuro. Nesse mesmo ano, concebeu a ideia de um sistema que
combinasse o materialismo de Ludwig Feuerbach com a dialética idealista de Hegel.

Impedido de seguir uma carreira acadêmica, tornou-se, em 1842, redator-chefe da Gazeta Renana,
mas por causa do fechamento do jornal pelos censores do governo prussiano, em 1843, Marx foi
para a França. Com a Revolução de 1848 e o exílio que se seguiu a ela, foi obrigado a abandonar
o jornalismo na Alemanha e tentar ganhar a vida na Inglaterra. Durante a maior parte da vida,
conseguiu seu sustento escrevendo artigos, que publicava de forma esporádica em jornais alemães
e norte-americanos, além do auxílio financeiro que recebia do amigo e principal colaborador de seu
pensamento, Friedrich Engels, economista alemão. Juntos, eles sintetizaram a experiência de muitos
séculos de lutas de classes oprimidas contra seus opressores, criando a doutrina do socialismo científico
como uma transformação revolucionária que inaugurou uma nova época no desenvolvimento do
pensamento social.

Por essa razão, analisar a trajetória da sociedade humana sem se referir a Marx é uma tarefa
praticamente impossível, dada sua importância à constituição histórica do século XX, que se deve,
em maior ou menor escala, às influências da sua produção intelectual, apesar da grande polêmica
gerada até hoje pelos seus pressupostos teóricos. Foi diretamente influenciado por Ludwig Feuerbach,
que antevia uma visão invertida do materialismo de Hegel. Marx evoluiu dessa ramificação, que já
superava o idealismo revolucionário dos jovens hegelianos de cujo movimento ele mesmo fez parte.
Seu pensamento, nitidamente engajado com as lutas proletárias, teve como base uma síntese de três
correntes distintas: a economia política inglesa, o socialismo francês e a filosofia alemã. Da união
dessas ideias, ele construiu um raciocínio inédito que ficou conhecido como “materialismo dialético
histórico”.

Essa teoria consiste no desenvolvimento mais elevado sobre a interpretação materialista e dialética
da evolução histórica do homem. Para Marx, a realidade material será sempre a grande responsável por
todas as condições de vida capazes de expor ao ser humano sua condição existencial, sendo que dela
devem partir todas suas formas de ideologia, ou seja, as visões de mundo.

Diante dessa formulação, pode-se deduzir que não é a ideia que produz a realidade, mas sim a
realidade que produz as ideias, que acabam se correlacionando de forma dialética para modelar as
constituições sociais. Inserido no contexto do pensamento alemão que deu origem ao racionalismo
(idealismo lógico) e ao romantismo (idealismo sensível), resultando no “materialismo contemplativo”,
Marx defendia a prática de um materialismo ativo.
67
Unidade II

No entanto, seu materialismo não pode ser encarado de forma empírica, porque Marx acreditava
que o racionalismo era ainda muito abstrato quando comparado ao materialismo dialético, uma vez que
matéria e ideia são categorias opostas que se interrelacionam, mantendo uma espécie de unidade.

Seu pensamento político criticou todas as correntes socialistas por não ter um caráter decididamente
transformador, somente reformador. Ainda que para Marx a evolução e a revolução são dialéticas e
cada partido operário, ao realizar suas metas curtas, se torna inútil. Enquanto posição, ele defendia o
socialismo científico em oposição a um socialismo romântico, ou o comunismo (revolucionário, para
se opor ao mero reformismo). Ele defendia também não apenas a melhoria das condições de vida do
proletariado, mas, acima de tudo, a própria emancipação deste, com o fim da condição proletária.
Não se tratava de amenizar a exploração, mas sim de exterminá-la. No entanto, as condições dessa
emancipação, que só a prática poderia realizar, estava nas condições reais em que estava inserida. Por
isso, em Marx, é o desenvolvimento do capitalismo que criou a proletarização, é o exército que vai
destronar a burguesia, pois a própria hostilidade que o capitalismo produz sobre a condição proletária
gera as condições subjetivas para a explosão revolucionária.

Na lógica do materialismo dialético histórico, trata-se sempre de um “drama histórico”, termo que
Marx utiliza em O 18 Brumário de Luís Bonaparte, e não de um “determinismo histórico”, que resultaria
em um materialismo mecânico e positivista, oposto ao materialismo dialético. Dessa maneira, Marx
finalizou as teses de Feuerbach. Não se trata de interpretar o mundo de forma diferente, mas sim de
transformá-lo, pois somente a ação revolucionária produz a transcendência da ordem em vigor.

Na obra Ideologia alemã, Marx introduz os pressupostos de seu novo pensamento, enquanto no
Manifesto comunista elabora sua tese política mais importante. Na Questão judaica, ele critica a
religiosidade, alegando que não se pode tratar dos questionamentos humanos do ponto de vista teológico,
mas sim considerar a teologia como uma questão humana. Para ele, o foco deve estar em encarar as
religiões como projeções fantasiosas do homem, embora reproduzam a condição humana real a que
estamos presos. Na Crítica do Programa de Gotha, Marx produz o mais longo e esquematizado esboço
daquilo que seria uma sociedade socialista, apesar tentar evitar qualquer esforço de “futurologia”, para
permanecer restrito ao campo da ciência. Já em Guerra civil na França, ele assume de forma definitiva
que, apenas com a extinção do Estado, o proletariado pode oferecer a si mesmo as condições necessárias
para manter o poder recém-conquistado, defendendo que o fim do Estado significa o fim do monopólio
da violência que o Estado representa.

A colaboração de Engels em todos os textos de Marx foi de suma importância, ainda que este sempre
frisasse a superioridade de Marx. Uma das obras mais importantes de Engels para o comunismo é Do
socialismo utópico ao socialismo científico, na qual apresenta de forma mais clara as diferenciações do
socialismo de Estado com as do socialismo científico, e o Estado como sendo um “capitalista coletivo”.
Marx considerava a sociedade extremamente capitalista e acreditava que o capitalismo traria divisões
sociais.

O conceito de mais-valia foi empregado por Marx para explicar a obtenção de lucros contínuos a
partir da exploração da mão de obra. Os donos dos meios de produção obtêm parte de seus lucros pela
exploração do trabalhador.
68
HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO

Em 1864, Marx foi um dos fundadores da Associação Internacional dos Operários, depois chamada
I Internacional, na qual encontrou a oposição dos anarquistas, liderados por Bakunin. Em 1872, no
Congresso de Haia, a associação foi praticamente dissolvida. No entanto, Marx foi responsável pela
fundação do Partido Social-Democrático alemão em 1875, que foi proibido pouco tempo depois. Entre
seus trabalhos iniciais, o mais importante foi o artigo Sobre a crítica da filosofia do direito de Hegel, de
1844, primeira tentativa de interpretação materialista da dialética de Hegel.

Apenas em 1932, foram descobertos e editados em Moscou os Manuscritos econômico-filosóficos,


datados de 1844. Trata-se do esboço de um socialismo humanista, que se preocupa especialmente
com a alienação do homem e com a compatibilidade desse humanismo com o marxismo que viria
posteriormente. Em 1888, Engels publicou as Teses sobre Feuerbach, escritas por Marx em 1845,
que refutam o materialismo teórico na busca de uma filosofia, além de interpretar o mundo. Esse
documento já contém o germe do marxismo, que proclama a relação indissolúvel entre filosofia e
atividade social.

Foi em 1867 que Marx iniciou a publicação de O Capital, sua obra mais importante e direcionada
especialmente para o estudo da economia, como resultado das pesquisas no British Museum, que abordam
a teoria do valor, da mais-valia, além da acumulação do capital. Nele, Marx reuniu uma documentação
imensa para dar continuidade a essa obra. Os volumes II e III de O Capital foram editados por Engels
em 1885 e 1894. Outros textos foram publicados por Karl Kautsky, como o volume IV (1904-10). Em O
Capital, Marx elabora uma análise das leis econômicas que regem a sociedade capitalista, estudando
essa sociedade na sua origem, no seu desenvolvimento e na sua decadência.

Essa coletânea também inclui duas obras destinadas por Marx às grandes massas operárias, Trabalho
assalariado e Capital, e serviram de base para as conferências pronunciadas por ele em 1847, na
Associação Operária Alemã de Bruxelas. Salário, preço e lucro foi a conferência realizada em 1865, em
duas sessões do Conselho Geral da Associação Internacional dos Trabalhadores. Nesses trabalhos, Marx
forneceu uma análise teórica profunda, exposta de forma popular, sobre as relações econômicas em
que está baseada a dominação de classe da burguesia, explicando a origem e a essência da mais-valia
e levando o leitor à conclusão revolucionária da necessidade de o operariado lutar pela supressão total
da escravidão assalariada.

De acordo com a dialética marxista, as leis do pensamento correspondem às leis da realidade.


Portanto, a dialética consiste em pensamento e realidade ao mesmo tempo. A contradição dialética não
é somente uma contradição externa, mas sim unidade das contradições e também identidade, como
esclarece o próprio Lefebvre (1979 p. 192):

A dialética é ciência que mostra como as contradições podem ser


concretamente idênticas, como passam uma na outra, mostrando também
por que a razão não deve tomar essas contradições como coisas mortas,
petrificadas, mas sim como algo vivo e mutável, lutando uma contra a outra.
Os momentos contraditórios são situados na história com sua parcela de
verdade, mas também de erro; não se misturam, mas o conteúdo, considerado
como unilateral, é recapturado e elevado a uma instância mais elevada.
69
Unidade II

Marx acusou Feuerbach, afirmando que seu humanismo e sua dialética eram estáticos, já que
o homem não possui dimensões fora da sociedade e da história, sendo pura abstração. Para Marx,
é fundamental compreender a realidade histórica em suas contradições na tentativa de superá-
las. Os princípios da sua dialética podem ser resumidos em tudo aquilo que se relaciona e se
transforma, incluindo as mudanças qualitativas como consequências de revoluções quantitativas.
Embora a contradição seja interna, os contrários passam a ser unidos em um momento seguinte.
Assim sendo, a luta dos opostos impulsiona o pensamento e a realidade. Na teoria marxista, o
materialismo histórico pretende explicar a história das sociedades humanas de todas as épocas por
meio dos fatos materiais essencialmente econômicos e técnicos. Nesse sentido, a sociedade pode
ser comparada a um edifício no qual as fundações, ou seja, a infraestrutura, seriam representadas
pelas forças econômicas, enquanto o edifício em si, a superestrutura, representaria as ideias, os
costumes e as instituições. A propósito, Marx, na obra A Miséria da filosofia (1847), atestou que as
relações sociais permanecem interligadas às forças produtivas. Ao produzir de maneira diferente,
os homens podem modificar o modo de produção, a maneira de sobreviver e, com isso, mudar as
relações sociais.

O aspecto central da crítica marxista está na questão de como compreender o que é o homem,
lembrando que ele defende que não se trata de ter consciência e, muito menos, de ser um animal
político que dá ao homem o sentido da sua existência, mas sim o fato de ele ser capaz de produzir suas
condições de existência, tanto do ponto de vista material quanto ideal, ou seja, aquilo que o diferencia.
Se o homem é historicamente determinado pelas suas condições, é responsável por todos seus atos.
Nesse caso, todas as teorias de Marx estão baseadas na existência humana. Com o objetivo de também
mostrar uma visão econômica da história, além de propor uma visão histórica da economia, a teoria
marxista busca explicar a evolução das relações econômicas nas sociedades humanas no decorrer do
processo histórico. De acordo com a concepção marxista, haveria uma dialética contínua das forças
entre fortes e fracos, repressores e oprimidos.

Nesse sentido, a história humana teria avançado por uma luta permanente de classes, como
enfatiza claramente o início do primeiro capítulo de O Manifesto comunista, de Marx e Engels:
“A história de toda sociedade passado é a história da luta de classes”. Classes essas que, para
Engels, são “os produtos das relações econômicas de sua época”. Mesmo com todas as diversidades
aparentes, a escravidão e o capitalismo seriam etapas sucessivas de um só processo. Com isso, a
base da sociedade estaria na produção econômica e sobre ela se ergue uma superestrutura, um
estado e as ideias de toda natureza. Marx almejava a inversão da pirâmide social, com o poder
sendo colocado a favor do proletariado, como a força capaz de deter o capitalismo e de construir
uma sociedade socialista.

Para Marx, a vitória do comunismo era inevitável. Ele afirmava que a história segue certas leis
imutáveis conforme avança de um estágio a outro. O comunismo, na visão dele, seria o último e mais
alto grau de desenvolvimento, e a grande solução para a compreensão dos estágios do desenvolvimento
estaria na relação entre as diferentes classes de indivíduos na atividade produtiva. Para o marxismo, a
luta de classes é o meio pelo qual a história humana avança historicamente. Por acreditar que a classe
dominante nunca deixaria o poder por livre e espontânea vontade, a luta e a violência eram necessárias
e inevitáveis.
70
HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO

O Manifesto comunista fez o homem caminhar, de fato, na busca da solução de problemas como a
pobreza e a exploração do trabalho. Por isso, trata-se de um documento histórico. A Liga dos Comunistas
pediu a Marx e a Engels a redação de um texto que tornasse precisos os objetivos dela e sua forma de ver
o mundo. Nesse sentido, o Manifesto comunista pode ser considerado como um conjunto de ideais em
que os revolucionários da época acreditavam, por conter os elementos necessários à compreensão das
transformações sociais do ponto de vista econômico. No que diz respeito à estrutura, traz uma pequena
introdução, três capítulos e uma conclusão sucinta. A introdução destaca a força do comunismo ao
expor o modo comunista de ver o mundo e também suas finalidades. A parte I, denominada Burgueses
e Proletários, resume a história da humanidade, quando duas classes sociais antagônicas dominam o
cenário. A maior contribuição desse capítulo está na descrição das grandes transformações que a burguesia
industrial provocava no mundo, representando um papel histórico essencialmente revolucionário. Marx e
Engels relatam o fenômeno da globalização que a burguesia implementava no comércio pela navegação
e pelos meios de comunicação da época. O Manifesto fala de ontem, mas ainda parece atual.

Já a parte denominada Literatura socialista e comunista, critica as diversas correntes socialistas


da época, classificando três tipos de socialismo: reacionário, conservador e burguês e socialismo e
comunismo crítico-utópico. Nesse capítulo, a obra mostra seu caráter temporal, quase local, revelando
a sua profunda imersão na efervescência das ideias e dos conflitos da época, quando a aristocracia,
para condenar a burguesia, faz uma espécie de elogio ao socialismo. Marx pode ser considerado como o
herdeiro da filosofia alemã, ao lado de Kant e Hegel.

Na condição de um dos maiores pensadores de todos os tempos, possui uma produção teórica com
a extensão e a densidade de um pensador como Aristóteles, de quem era admirador.

6.5 Augusto Comte: o positivismo

Figura 16 – Auguste Comte

Auguste Comte nasceu em Montpellier, na França, a 19 de janeiro de 1798, filho de um fiscal de


impostos. Suas relações familiares foram sempre conflituosas e, por isso, explicam o desenvolvimento
71
Unidade II

de sua vida e até mesmo do conteúdo de suas obras. Com frequência, culpava os pais por sua situação
econômica instável. Tão complexos eram os laços familiares, rompidos por Comte, que lhe deixaram
marcas profundas.

Aos 16 anos, ingressou na Escola Politécnica de Paris, o que teria significativa influência na orientação
posterior do seu pensamento filosófico. Embora tenha permanecido apenas dois anos nessa escola,
Comte recebeu a influência do trabalho intelectual de cientistas como o físico Sadi Carnot, o matemático
Lagrange e o astrônomo Pierre Simon de Laplace. Na mecânica analítica de Lagrange, Comte teria
encontrado inspiração para abordar os princípios de cada ciência segundo uma perspectiva histórica.

Em 1816, Comte deixou a Politécnica e, apesar da insistência da família, resolveu continuar na


França. Nesse período, sofreu influências dos chamados “ideólogos”, como Destutt de Tracy, Cabanis e
Volney. Também leu os teóricos da economia política, como Adam Smith e Jean-Baptiste Say, filósofos e
historiadores como David Hume e William Robertson. No entanto, o fator mais decisivo para a formação
de seu pensamento filosófico foi o estudo do esboço do Quadro histórico dos progressos do espírito
humano, de Condorcet, ao qual se referiria, mais tarde, como “meu imediato predecessor”. A obra de
Condorcet traça um retrato do desenvolvimento humano, no qual os descobrimentos e as invenções
científicas e tecnológicas desempenham um papel preponderante, fazendo o homem caminhar rumo a
uma era em que a organização social e política seria o produto final das luzes da razão, ideia que iria se
transformar em um dos pontos cruciais da filosofia comtiana.

Logo após o idealismo que predominou na primeira metade do século XIX, surge o positivismo,
que ocupa a segunda metade do mesmo século, espalhado em todo o mundo civilizado. Trata-se de
um pensamento que representa uma reação contrária ao apriorismo, ao formalismo, ao idealismo,
priorizando o estudo da experiência prática e dos dados positivos. Podemos considerar como a diferença
fundamental entre idealismo e positivismo o fato de que o primeiro procura uma interpretação, uma
unificação da experiência mediante a razão, enquanto o segundo, pelo contrário, quer limitar-se à
experiência imediata, pura, sensível, como já havia ocorrido com o empirismo. Vem desse aspecto sua
superficialidade filosófica, mas também seu valor como descrição e análise da experiência por meio da
história e da ciência, considerando o idealismo, que altera a experiência, a ciência e a história.

O positivismo também ganha impulso graças ao grande progresso das ciências naturais, em especial
das biológicas e fisiológicas do século XIX. Tenta-se aplicar os princípios e os métodos daquelas ciências
à filosofia, como forma de solucionar os problemas do mundo e da vida, com o intuito de conseguir bons
resultados. O positivismo ainda ganhou força devido ao desenvolvimento dos problemas econômico-
sociais que predominaram no século XIX. Por ser altamente valorizada a atividade econômica, que
produz bens materiais, é compreensível que se busque uma perspectiva filosófica positiva, naturalista e
materialista para as ideologias no campo das atividades econômico-sociais.

Grosso modo, o positivismo admite, como fonte única de conhecimento e de critério de verdade,
a experiência, os fatos positivos, além dos dados sensíveis. Nenhuma metafísica, portanto, como
interpretação, justificação transcendente ou imanente da experiência, possui espaço nesse campo de
reflexão. Nesse sentido, a filosofia é reduzida à metodologia e à sistematização das ciências, e a lei, única
e suprema, domina o mundo concebido positivisticamente, promovendo a evolução necessária à energia
72
HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO

naturalista. O nome de Auguste Comte está indissociavelmente ligado ao positivismo, corrente filosófica
fundada por ele com a intenção de reorganizar o conhecimento humano, que teve grande influência
no Brasil.

Figura 17 – Detalhe da bandeira do Brasil

Figura 18

Comte também é considerado o grande sistematizador da sociologia. Vale destacar que ele viveu
em um período da história francesa em que se alternavam o despotismo e as revoluções, o que levou
a sociedade a uma turbulência e a um desencanto geral com a política e a uma crise dos valores
tradicionais.

Ele buscou dar uma resposta a esse estado de ânimo pela união de elementos da obra de pensadores
anteriores a ele e também de alguns contemporâneos, o que resultou em uma teoria denominada por
73
Unidade II

ele de positivismo. “Ele reviu as ciências para definir o que, nelas, decorria da realidade dos fatos e
permitia a formulação de leis naturais, que orientariam os homens a agir para modificar a natureza”, diz
Arthur Virmond de Lacerda, professor da Faculdade Internacional de Curitiba.

Um dos fundamentos do positivismo está na ideia de que tudo o que diz respeito ao homem pode
ser sistematizado de acordo com a adoção de princípios como o critério de verdade para as ciências
exatas e biológicas. Isso deveria ser aplicado também aos fenômenos sociais, que seriam reduzidos a leis
gerais como as da física ou da matemática.

Para Comte, a análise científica aplicada à organização social é o centro da questão sociológica, cujo
objetivo seria o planejamento da organização social e política. De acordo com os positivistas, só é possível
afirmar que uma teoria é correta se ela puder ser comprovada por intermédio de métodos científicos
válidos, em detrimento dos conhecimentos relacionados às crenças, à superstição ou a qualquer outro
que não reúna condições de ser comprovado cientificamente. Para eles, o progresso da humanidade
depende unicamente dos avanços da ciência.

Observação

“O grande instrumento do Iluminismo é a consciência individual,


autônoma em sua capacidade de conhecer o real” (Danilo Marcondes).

Saiba mais

Assista Danton, filme que narra a história da Revolução Francesa, que


marca o início do pensamento filosófico moderno.

Danton. Dir. Andrzej Wajda, França/Polônia 131 minutos, 1982.

7 A FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA

Pode ser considerada como contemporânea a filosofia que compreende a segunda metade do século
XIX até o início do século XXI, e o positivismo permanece como presença constante na história do
pensamento dessa fase. Apesar das suas notáveis diferenças na maneira de lidar com os problemas, é
possível reconhecer essa conduta empirista do século XVIII no positivismo do século XIX e no positivismo
lógico ou empirismo lógico do século XX.

O empirismo lógico ou positivismo lógico do século XX consiste num dos movimentos integrantes
da corrente analítica dos nossos dias, cuja originalidade está em ter conseguido transformar o próprio
conceito de filosofia. Para a corrente analítica, a filosofia não tem por objeto a realidade, mas sim a
análise da linguagem que envolve a realidade, seja a linguagem ordinária, comum ou científica.

74
HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO

Outras correntes da filosofia contemporânea tomaram como objeto principal de consideração o


fenômeno da história, da vida e da irredutibilidade da existência pessoal: as filosofias historicistas,
existencialistas e personalistas.

O existencialismo constitui, originalmente, uma reação a favor da individualidade, colocando em


primeiro plano a categoria de singularidade, preferida pelo sistema dialético de Hegel. Quanto ao
vitalismo de Nietzsche, representa uma reação não apenas contra Hegel, mas contra toda a tradição
intelectualista-religiosa que se opôs à vida e aos valores vitais, desde que se verificou a aliança do
platonismo com o cristianismo.

Podemos afirmar que a característica externa mais notável da filosofia contemporânea consiste na
diversidade dos enfoques, dos sistemas e das escolas frente ao desenvolvimento. Os responsáveis por
essa disseminação de opiniões e de escolas divergentes foram os fatores socioculturais, como a crise
dos sistemas políticos e o avanço das ciências naturais e lógico-formais, além do desenvolvimento
das ciências humanas. O mundo atual, rodeado pelas telecomunicações, dominado pela internet e
formulador dos programas espaciais, da física quântica e da medicina biomolecular, parece não ter mais
espaço para o pensamento filosófico. Qual seria então, hoje, a função da filosofia? O filósofo inglês
Bertrand Russel, em Os problemas da filosofia, refletiu sobre essa questão:

A filosofia, como todos os outros estudos, visa em primeiro lugar ao


conhecimento. O conhecimento a que ela aspira é o tipo de conhecimento
que dá unidade e sistematiza o corpo das ciências, e que resulta de um
exame crítico dos fundamentos de nossas convicções, preconceitos e crenças
(RUSSEL, 2008).

Com certeza, essa é uma das definições de filosofia. Trata-se de uma disciplina que estuda os
fundamentos das convicções humanas. Porém, enquanto as ciências estabelecem um corpo sólido de
conhecimentos e verdades a partir do qual passam a se desenvolver, a filosofia não alcança os mesmos
resultados, pois não dá respostas definitivas a nenhuma questão. O próprio Bertrand Russell, também
em Os problemas da filosofia, explicou por que ocorre esse descompasso:

Isto se deve em parte ao fato de que, assim que o conhecimento definitivo


a respeito de qualquer assunto torna-se possível, esse assunto deixa de ser
chamado de filosofia, e torna-se uma ciência independente. O estudo total
dos céus, que agora pertence à astronomia, foi um dia incluído na filosofia;
a grande obra de Newton chamava-se Princípios matemáticos de filosofia
natural. Do mesmo modo, o estudo da mente humana, que fazia parte da
filosofia, agora foi separado da filosofia e tornou-se a ciência da psicologia.
Assim, em grande medida, a incerteza da filosofia é mais aparente que real:
as questões que são capazes de ter respostas definitivas são abrigadas nas
ciências, enquanto aquelas para as quais, até o presente, não podem ser
dadas respostas definitivas, continuam a formar o resíduo que é chamado
de filosofia (RUSSEL, 2008).

75
Unidade II

7.1 Conhecimento e ciência

Vivemos em um mundo que não para de introduzir novas questões no campo da filosofia e, por essa
razão, torna-se difícil reconhecer o que é a filosofia contemporânea. Certamente, é possível compreender
a filosofia da antiguidade de forma mais clara e coerente do que a filosofia contemporânea, que tem
como base uma série de pressupostos que foram elaborados no final do século XIX.

Um deles seria em relação à história, atribuído a Hegel, que se identifica com os ideais de totalidade
e de processo. Nesse sentido, passamos a compreender o homem como um ser histórico, semelhante à
sociedade da qual faz parte. Um dos conceitos mais conhecidos dessa maneira de conceber o mundo foi
a ideia de progresso, que teve no filósofo Auguste Comte seu grande teórico. Na visão dele, tanto a razão
quanto a ciência caminham sempre juntas rumo ao desenvolvimento do futuro do homem. Isso faz com
que as utopias do século XIX, como o anarquismo, o socialismo e o comunismo, também contenham essa
noção de progresso como prerrogativa básica na condução de uma sociedade justa e harmoniosa.

Apesar da repercussão desse conceito, a ideia de que a história fosse uma trajetória progressiva em
termos de avanço para a humanidade recebeu severas restrições no decorrer do século XX. Com isso,
surgiu a noção de que o progresso é algo descontínuo, ou seja, não se dá por meio de etapas que vão
se sucedendo. Assim, a história da humanidade não pode ser considerada como um conjunto de várias
civilizações em etapas diferentes de desenvolvimento, pois cada sociedade possui sua própria história,
sua cultura e valores próprios.

Foi essa visão de mundo que viabilizou o desenvolvimento de ciências como a etnologia, a antropologia
e as ciências sociais, uma vez que a confiança no saber científico foi uma das posturas filosóficas que
se desenvolveram no século XIX, acreditando ser possível que a natureza pudesse ser controlada pela
ciência e pela técnica. Além disso, com o desenvolvimento da ciência e da técnica, o progresso foi levado
a vários setores da vida humana.

Com o objetivo de estudar essa nova realidade, um grupo de intelectuais alemães elaborou a teoria
crítica, segundo a qual as transformações sociais, políticas e culturais poderiam acontecer apenas se
tivessem como finalidade maior a libertação total do homem em detrimento do tecnicismo e do domínio
da ciência sobre a vida humana.

Trata-se, portanto, de um pensamento que diferencia a razão instrumental da razão crítica, sendo
a razão instrumental aquela que transforma as ciências e as técnicas num meio de intimidação do
homem, e não de libertação, enquanto a razão crítica estuda as fronteiras e os riscos da aplicação da
razão instrumental. Jean-Paul Sartre também elaborou as questões humanas em relação à liberdade e ao
seu compromisso com a história. Associando as contribuições do marxismo e da psicanálise, ele criou um
pensamento sistemático que prioriza o conceito de existência no lugar da essência:

Assim que começamos a filosofar, achamos que mesmo as coisas mais


cotidianas levam a problemas para os quais só podem ser dadas respostas
muito incompletas. A filosofia, embora incapaz de nos dizer com certeza
quais são as respostas verdadeiras às dúvidas que ela suscita, está apta
76
HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO

a sugerir muitas possibilidades que ampliam nossos pensamentos e os


libertam da tirania do hábito. Assim, embora diminuindo nosso sentimento
de certeza a respeito do que as coisas são, ela aumenta enormemente nosso
conhecimento em direção ao que as coisas podem ser (RUSSEL, 2008).

7.2 Nietzsche: revolução e conhecimento

O pensador entre os séculos

Figura 19 – Friedrich Wilhelm Nietzsche

Nascido em uma época de paz na Alemanha de 1844, Friedrich Nietzsche profetizou as grandes
guerras que iriam acontecer no século XX, afirmando que chegaria o dia em que os homens lutariam
no confronto pelo poder. No entanto, ele conhecia os campos de batalha do espírito e, no fundo, queria
conhecer apenas esses. Porém, sua obra contém o caos, assim como o impulso que deveria desencadeá-
lo no decorrer da história da humanidade, podendo ser considerado como o primeiro precursor do
conceito de pós-modernidade amplamente utilizado hoje.

Na vanguarda da sociedade que preconizava, ele colocava o espírito de altivez, afirmando que a
consciência de si próprio precede qualquer criação. Por ser de família luterana, já tinha seu destino
traçado como pastor, assim como o pai e o avô. Nietzsche, que perdeu a fé durante a adolescência,
queria ser aquele que deveria superar seu tempo e, em razão da sua consciência, assumiu o papel de
“pensador entre os séculos”. Pode-se afirmar que teve a audácia que não se repete de rever tudo aquilo
que a cultura ocidental conservava moralmente e mantinha-se unido desde o desaparecimento do
mundo pagão.

Além da subversão, a que atribuía uma importância tão grande, sua maior contribuição filosófica
está no fundamento da ética que dominou. Ele sabia perfeitamente que não bastava quebrar as tábuas
da lei. Estas deveriam ser desmanteladas com frequência e durante muito tempo, até serem substituídas
por outras. Nietzsche tomou para si essa tarefa, sem indagar sobre essa necessidade. Para ele, não era
77
Unidade II

a necessidade dos homens que decidia, mas sim a ordem do legislador que deveria dominar. Como
consequência, o filósofo deveria considerar-se esse legislador. Em 1879, problemas de saúde o afastaram
da docência e dos alunos. Parte então para uma vida dedicada ao pensamento errante em locais de
clima mais ameno. Começou Assim falou Zaratustra quando estava em Nice, na França, e não parou
de produzir sua obra intelectual. Essa fase, porém, termina de forma abrupta em 3 de janeiro de 1889,
quando entra em estado de loucura, levando-o à morte.

Assim falou Zaratustra

Ao lado de Marx e de Freud, Nietzsche pode ser considerado um dos autores mais controversos
da história da filosofia moderna. Foi o único que exigiu uma imortalidade exclusivamente terrena. “O
pensador entre os séculos” tinha a convicção de não preparar uma época destinada a desaparecer, mas
sim de dispor de todo o futuro reservado ao planeta. Esse foi o motivo pelo qual se chama de “o último
homem”. No entanto, o “super-homem” que pregou só o frequentou sob o aspecto de sombra, por
carregar o peso do destino humano em sua essência filosófica. Nietzsche achou possível que um dia a
ciência reinasse no mundo, o que o coloca ao lado, na posição de herói, de Deus e distante dos homens.
Seria de fato divino fazer da ciência, concebida como objeto de paixão, a soberana do mundo. Porém, o
mundo nunca esteve tão afastado dessa soberania como hoje.

No que diz respeito à religião, Nietzsche concebia o cristianismo e o budismo da mesma forma,
como “as duas religiões da decadência”, apesar de enfatizar que havia uma grande diferença entre essas
duas crenças, pois, na visão dele, o budismo era mais realista. Por essa razão, dizia ser ateu por instinto.
A crítica de Nietzsche contra o idealismo metafísico focava-se nas categorias e nos valores morais que
o constituem, e sugeria outra abordagem, que seria a genealogia dos valores. Na verdade, ele sempre
quis ser o maior destruidor de toda forma de preconceito e ilusão da humanidade, ou seja, aquele que
se atreveu a olhar, sem temor, aquilo que está oculto nos valores aceitos por todos, incluindo todas as
verdades, assim como os ideais que fundamentaram a civilização e que direcionaram o rumo da história
do homem. Nesse sentido, ele acreditava que a moral tradicional, as religiões e os sistemas políticos
eram apenas disfarces de uma realidade mutante e cruel, cuja simples visão seria insuportável para
qualquer indivíduo.

Nietzsche questionou de maneira radical a moral que impede a revolta dos indivíduos
considerados inferiores e das classes subalternas contra a aristocracia. Ele considerava essa moral
como algo que limita à ilusão a realidade humana e ainda pretende impor uma racionalidade
pura que não passa de uma ficção. Nesse processo, Nietzsche buscou tirar todas as máscaras que
o fluir da própria existência humana se encarrega de colocar. Nesse sentido, ele concebia que a
vida poderia ser mantida apenas por meio de eternos embates entre os seres vivos, pela luta entre
vencidos que almejam ser vencedores e vencedores que podem, de um momento para o outro, ser
vencidos. Portanto, a vida humana para Nietzsche consiste na vontade de poder ou de domínio,
mas os disfarces possuem a capacidade de torná-la mais suportável, mesmo a deformando e
ameaçando-a de ser destruída.

Não existe nuance, segundo Nietzsche, entre a aceitação da vida e a sua renúncia. Para salvá-
la, torna-se necessário arrancar-lhe as máscaras e reconhecê-la tal como é, não para aceitá-la com
78
HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO

resignação, mas para restituir-lhe a exaltação e sua alegria. Por ser filho do “húmus”, o ser humano
possui a capacidade inerente de sobreviver e de vencer. Nietzsche mostrou-se contrário a qualquer tipo
de igualitarismo que atente o bom senso por meio de uma lei rígida e universal, ou seja, o imperativo
categórico. Para ele, o homem é uma individualidade irredutível, a qual os limites e as imposições de
uma razão que tolhem a vida permanecem alheios a ela, parecida com as máscaras das quais ele precisa
se libertar. Ao contrário de Kant, para o qual o mundo não é desordenado em termos de estrutura
e de inteligência. Nele, todas as coisas “dançam nos pés do acaso”, e apenas a arte tem o poder de
transformar esse caos em beleza e tornar suportável o que há de mais tenebroso na condição humana.
Apesar de todas as oposições, é preciso reconhecer que existe uma matriz comum e ativa entre Kant e
Nietzsche.

Essa matriz comum seria o espírito do romantismo do século XIX, com sua ansiedade de infinito
e com sua revolta contra os limites e os condicionamentos impostos pela sociedade. Da mesma
forma que Platão, Nietzsche defendia que a humanidade fosse governada por filósofos. Na obra
nietzscheana, a ideia de uma nova moral contrapõe-se de forma radical à utopia de uma nova
humanidade. Para Nietzsche, a liberdade reside na aceitação consciente de um destino que se faz
necessário, uma vez que o homem libertado e senhor de si mesmo será capaz de refutar qualquer
verdade estabelecida, estando preparado para expressar a vida em todas as suas ações. Este era
o cenário ideal vislumbrado por Nietzsche, como também a realidade que ele próprio buscava
personificar. É interessante perceber que, sem se dar conta, ele contrói seu próprio imperativo
categórico, fundamentado na liberdade total do ser humano e na ausência completa de leis, pois
se trata de uma libertação subjugada pela razão, que também impõe limitações à vida do homem
à sua maneira.

Além disso, Nietzsche também criticava a vida e a cultura moderna, assim como o neonacionalismo
alemão. Na visão dele, os ideais da modernidade não passavam de sintomas e exemplos da decadência
do homem. Sua figura foi promovida e valorizada pela Alemanha nazista, e sua irmã era simpatizante
do regime totalitário de Hitler, incrementado por essa associação. Em A minha luta, o líder nazista
descreve-se como a encarnação do super-homem. Segundo relato dos estudiosos, o livro Assim falou
Zaratustra era fornecido como leitura para os soldados no campo de batalha com o intuito de incentivar
o exército.

Apesar disso, Nietzsche era declaradamente contra o movimento antissemita promovido por Adolf
Hitler e seus partidários. Sua obra foi muito mais longe e sobreviveu além da apropriação feita pelo
regime nazista. Ainda hoje, ele é considerado um dos filósofos mais estudados da história. Muitas de suas
frases ganharam fama e repercutiram nos mais diversos campos de estudo, criando várias distorções em
termos de entendimento. Ele é considerado pelos seus seguidores um grande estilista da língua alemã,
e muitos aspectos relacionados a ela puderam ser compreendidos por meio da obra de Nietzsche como
forma de pesquisa filológica, uma vez que em seus textos existem associações de palavras que não
poderiam estar próximas por causa da sua essência contraditória.

Todo o legado da obra de Nietzsche foi e permanece, ainda hoje, de difícil e contraditória
compreensão. Existem aqueles que associam suas ideias ao niilismo, defendendo que, para ele, a
moral não tem importância e os valores morais não possuem qualquer validade, que Deus está morto
79
Unidade II

e que a história não é finalista, pois não há progresso nem objetivo. Outros, porém, não pensam
nele como o autor do niilismo; ao contrário, um crítico do niilismo, uma vez que o homem pode ser,
além de destruidor, um criador de valores a serem destruídos. Essa constatação baseia-se na obra
Assim falou Zaratustra, na qual ele destaca a necessidade da vinda do super-homem para ser e criar.
Em que pese todo tipo de dicotomia, pode-se dizer que Nietzsche buscou desvendar as formas de
renúncia da existência e da vontade. Nesse contexto, o próprio mito do eterno retorno representa o
trágico-dionisíaco dizendo sim à vida, no auge da sua plenitude, como uma afirmação incondicional
da existência humana.

Pode-se atribuir a falta de consenso na apreciação da obra de Nietzsche aos paradoxos contidos
na essência do seu próprio pensamento. Essa constatação está disponível em Fragmentos finais, obra
baseada na reestruturação desses manuscritos. O mais importante é que Nietzsche nem sempre tinha
o sentimento de ser o verdadeiro herói da eternidade, considerando-se, por vezes, apenas aquele que
representava a figura histórica do herói. Nesse sentido, acabou falando do “clown das eternidades”,
que visava ao Nietzsche trágico. Não estava louco ao confessar o papel que representava quando se
aproximou do fim e quando chegou o momento de arrancar os disfarces e voltar para dentro de si.
Isso não só nos impede de levantar suspeitas sobre ele, como demonstra a sua completa honestidade,
mais elevada e profunda do que qualquer verdade pensada com sua contradição em busca de um
destino.

7.3 Freud: os enigmas do inconsciente

Figura 20 – Sigmund Freud (1856-1939)

Médico especializado em doenças mentais, Sigmund Freud desenvolveu a psicanálise, uma teoria
do funcionamento da mente humana e um método exploratório de sua estrutura, destinado a tratar os
comportamentos compulsivos e muitas doenças de natureza psicológica supostamente sem motivação
orgânica. Ele recolheu de várias fontes os elementos por meio dos quais compôs a sua teoria, a partir

80
HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO

das descobertas do médico austríaco Josef Breuer, da doutrina platônica e do pensamento filosófico
de Schopenhauer, consolidando, pela longa prática clínica, os postulados da teoria que denominou
Psicanálise.

Sigmund Freud nasceu em 6 de maio de 1856 em Freiberg, Morávia, no império austro-húngaro


(hoje Pribor, Checoslováquia). Filho de Jacob Freud, um comerciante judeu, e de sua jovem segunda
esposa, Amalia Nathanson. Para se decidir sobre a futura carreira, estudou primeiro filosofia; mas
acabou optando depois pela medicina, especializando-se em fisiologia nervosa, uma área em
que a prática diária permitiria-lhe dar vazão à sua curiosidade em conhecer a natureza humana.
Impressionado com a propriedade terapêutica da conversa no estado de hipnose, em 1885 Freud
utilizou uma bolsa de estudos obtida do governo para passar um tempo na Salpetriere, em Paris,
onde aprendeu técnicas com o psiquiatra Jean-Martin Charcot, que fazia experiências com doentes
mentais por meio de sessões hipnóticas. Ele chegou até a relatar ao médico francês o sucesso obtido
na conversa com o paciente, como substituição à hipnose, mas Charcot não demonstrou interesse.
Ainda em 1885, Freud escreveu o Projeto para uma psicologia científica e, no ano seguinte, iniciou a
especialidade em “doenças nervosas”.

No começo dos anos 1890, ele passou a anotar seus próprios sonhos, convencido de que isso poderia
fornecer pistas para a atuação do inconsciente, uma ideia que já existia no romantismo da literatura
e em parte do conhecimento psicológico do século XIX, como no livro A filosofia do inconsciente, de
Karl von Hartmann, publicado em 1893. Sua intenção com a autoanálise era utilizar tanto o material
colhido em suas análises clínicas quanto o que obtinha por sua própria introspecção. Joseph Breuer
compartilhou com Freud seu método terapêutico, que designou catarsis. Consistia basicamente em
fazer o paciente recordar, pela hipnose ou por diálogo, o trauma psicológico sofrido, até provocar uma
descarga emocional que conduzia à cura.

Entre os anos de 1892 e 1895, desistiu aos poucos da hipnose, que acabou sendo substituída pelo
divã, para que o paciente, colocado numa posição confortável, fizesse esforço para lembrar os traumas
que originaram seus conflitos internos. Com esse relaxamento, Freud conduzia uma livre associação de
ideias, por meio da qual acabava encontrando lembranças “escondidas” pelo paciente e causadoras dos
distúrbios. Ele então formulou o princípio de que os sintomas histéricos possuem origem no fluxo dos
processos mentais, que, impedidos de chegar à consciência, são direcionados para o corpo e transformados
em sintomas. Em função da natureza das experiências traumáticas recordadas pelos pacientes, Freud
convenceu-se de que o sexo era parte essencial da origem das neuroses. Portanto, passou a considerar o
desejo sexual, direta ou indiretamente, como motivação única do comportamento humano.

Entre os anos de 1895 e 1899, Freud esteve envolvido na preparação do seu estudo Die Traumdeutung
(A interpretação dos sonhos), publicado em 1900 e considerado como sua obra principal, por causa
das análises dos sonhos, da autobiografia, da teoria da mente e de outras visões da vida vienense
contemporânea. Ele também descreve o processo de “condensação”, de “deslocamento” e de “elaboração
secundária”, debatendo ainda o conteúdo estrutural dos sonhos, além de explicar como estes representam
a concretização do imaginário dos desejos humanos. Ao explicar o Complexo de Édipo, Freud destacou a
importância da infância para o engajamento na vida adulta. O sétimo capítulo tem a exposição da teoria
da mente. O princípio ativo de seu modelo da mente é a “inércia neurônica” ou princípio de constância,
81
Unidade II

de acordo com o qual a mente trabalha no sentido da redução de qualquer tensão proveniente do
acúmulo de “energia”, que podia ser de natureza sexual ou psíquica.

Em 1902, Freud passou a se reunir em casa com médicos neurologistas e psiquiatras para discutir
e opinar a respeito da sua teoria psicanalítica. Entre eles, estavam Alfred Adler e Carl Gustav Jung.
O grupo evoluiu para a constituição, em 1908, da Sociedade Psicanalítica de Viena, que, em 1910,
se tornaria a Associação Internacional de Psicanálise. Em 1904, publicou Zur Psychopathologie des
Alltagslebens (Psicopatologia da vida cotidiana), em que demonstra evidências simples da atividade
do inconsciente e do subconsciente nas pessoas saudáveis. Seriam os chamados “atos sintomáticos”,
como, por exemplo, o inexplicável esquecimento súbito de um nome conhecido ou a troca
involuntária de palavras no meio de uma frase. Esses acontecimentos revelam a luta do consciente
com o subconsciente e com o inconsciente. Por meio deles, ele conseguiu a revelação da “repressão”
inconsciente pelo método da livre associação, inspirado nos atos falhados ou sintomáticos, bem como
a identificação de símbolos e a interpretação dos sonhos como forma de substituir as técnicas de
hipnotismo.

No ano de 1910, Freud publicou Über Psychoanalyse (Sobre a psicanálise). Porém, suas ideias
escandalizavam cada vez mais o meio médico vienense, fazendo com que vários de seus colegas se
retirassem da Associação Internacional de Psicanálise. A principal razão do escândalo estava na forma
como ele divulgava seu conhecimento, ainda em estágio de acabamento, sobre a questão sexual das
crianças, que ele afirmava estarem sujeitas ao desejo sexual e que o objeto desse desejo estava associado
aos próprios pais. Além do Complexo de Édipo, em que o filho deseja sexualmente a mãe, Freud admitia
também o Complexo de Eletra, como a inveja que a menina tem do pênis do menino, e chamou a
criança de um “perverso polimorfo”. Ele ainda classificou a sexualidade humana em três fases: oral, anal
e genital, que costumam se suceder nessa ordem, mas com casos de regressão e fixação.

No término da Primeira Guerra Mundial, em 1918, Freud perdeu todas suas economias, que havia
aplicado em bônus do governo austríaco. Retirando sua ênfase do instinto sexual como força propulsora
do comportamento, ele se dedicou à formulação do conceito de “Princípio do prazer e desprazer”,
estudando o equilíbrio entre o impulso pelo prazer e a dura realidade do mundo externo. Pouco depois,
elaborou outras ideias metafísicas que aparecem em Jenseits des Lustprinzips (Além do princípio do
prazer), de 1920.

Em 1922, trabalhou na redação de Uma neurose demoníaca do século XVIII e, em 1923, publicou Das Ich
and das Es (O Ego e o Id), no qual expõe sua teoria tripartite da mente, constituída por Id, Ego e Superego.
O conceito do Id, o reservatório dos impulsos instintivos, é uma cópia da parte da alma na doutrina de
Platão. Já o Ego trata da realidade do mundo exterior, enquanto o Superego funciona como o inibidor dos
instintos, sendo a parte sábia e a parte vigilante da alma da mesma doutrina platônica. Porém, como ateu
e materialista convicto, Freud acreditava que o homem era apenas um produto da evolução natural, sujeito
às leis da física e da química. Portanto, nada do que uma pessoa diz ou faz é casual ou acidental, pois o
homem não é livre nem racional, uma vez que obedece a causas do inconsciente.

Para ele, a força que orienta o comportamento inconsciente era o instinto sexual, que não se
apresentava de forma consciente por causa da “repressão” social tornada também inconsciente. Freud
82
HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO

argumentou de maneira enfática que o comportamento humano é comandado pelo instinto sexual e
pelo instinto de sobrevivência e que os motivos sexuais, se não são evidenciados, estão sublimados em
um motivo aparente. Como criador da Psicanálise, por meio da qual é possível o estudo do consciente
e do inconsciente humano, Freud é considerado um dos pensadores mais revolucionários de sua época,
cujos reflexos repercutem até os dias atuais.

Sua visão de que repressões de ordem sexual estão na origem de todos os conflitos humanos foi
denominada de pansexismo, sendo a causa do rompimento com alguns de seus adeptos, entre eles
Carl Jung, que utilizou a ideia freudiana do inconsciente; mas lhe acrescentou a condição de “coletivo”
para explicar a origem dos distúrbios psíquicos. Jung substituiu o sexo como motor pelos arquétipos
universais, que são situações comuns a todos os homens, independente de suas etnias, geografias e
épocas. São mitos, lendas, tradições que compõem a estrutura mental básica de todos os indivíduos,
restando a cada qual o espaço onde acrescentam suas biografias pessoais, que, no final, são delimitadas
pelas grandes linhas do inconsciente coletivo.

Voltando a Freud e à sua principal teoria, observa-se o quanto seu pensamento provocou impacto
na filosofia vigente da época. Além da questão relacionada à moralidade, sua tese sobre a existência
do inconsciente como um “depósito” de desejos e recalques sexuais, bem como a origem dos sonhos
e a fonte do imaginário, causou um verdadeiro abalo nas convicções racionalistas que dominavam o
panorama filosófico. A certeza de que o homem se diferenciava dos demais animais pela capacidade
de raciocinar caiu por terra quando argumenta que o raciocínio não poderia ser considerado absoluto,
pois estava a serviço das intenções nascidas no inconsciente do sujeito. Freud desenvolveu estudo
detalhado sobre um aspecto da personalidade humana, que, de modo quase geral, não recebeu a devida
atenção por parte da filosofia. Graças a ele, o estudo do homem adquiriu complexidade, forçando uma
grande revisão nos conceitos filosóficos, tanto em termos da consciência, da vontade, quanto do próprio
pensamento humano.

Convém lembrar, no entanto, que nessa tese é possível encontrar semelhanças com outras escolas
filosóficas, como, por exemplo, o Determinismo. Nesse, o tirano inexorável é o destino, enquanto no
pensamento de Freud é o inconsciente. O freudomarxismo é a corrente filosófica que teve origem
na aproximação feita por alguns filósofos contemporâneos, como Herbert Marcuse e Wilhelm Reich,
entre as teses de Marx e Freud sobre cultura e civilização. Eles estudaram especialmente a análise
marxista da ideologia e usaram as teses de Freud para invalidar e desmistificar o pensamento
burguês.

No aspecto freudiano, o inconsciente consiste em uma das qualidades psíquicas que, juntamente
com o pré-consciente e o consciente, formam a configuração espacial do aparelho psíquico. Sendo
assim, a “região” do cérebro que armazena memórias, sentimentos, emoções e outros resquícios
intelectuais buscados para o emprego no cotidiano quando o indivíduo está em estado de alerta
ou acordado. Pode também se manifestar sem a permissão consciente e racional do indivíduo,
causando-lhe aborrecimentos e doenças mentais. Em geral, poderia ser comparado a uma espécie
de arquivo cujo acesso é limitado, servindo para preservar os elementos mais íntimos dos indivíduos,
em especial aqueles que lhe causariam maiores constrangimentos no meio social em que vivem.
Trata-se, portanto, da essência intelectual, emocional e espiritual do homem, que comanda, mesmo
83
Unidade II

que indiretamente, as ações exteriores praticadas pelos indivíduos, repassando “suas ordens” para
o consciente, que, por sua vez, desencadeia o processo fundamental para o cumprimento daquilo
que foi desencadeado.

7.4 Sartre: o existencialista

Figura 21– Jean Paul Sartre

O filósofo e escritor Jean-Paul Sartre nasceu em Paris, em 1905, dois anos antes do falecimento
do pai. Ao ficar viúva, a mãe, Anne-Marie Schweitzer, mudou-se para a casa de seus pais em Meudon,
nos arredores da capital francesa. Outro elemento marcante na formação intelectual de Sartre foi a
imaginação criativa, estimulada pela leitura precoce e intensiva de grandes obras literárias. Em 1924,
aos 19 anos, ele ingressou no curso de filosofia da Escola Normal Superior, onde se mostrou um aluno
muito interessado, principalmente pelas aulas de Alain (1868/1951), que dedicava atenção especial à
questão da liberdade. No ambiente acadêmico, Sartre conheceu Simone de Beauvoir (1908/1986), que
lhe disse: “A partir de agora, eu tomo conta de você”. Desde então, nunca mais se separaram.

Foi na Alemanha que Sartre começou a redigir Melancolia, romance que posteriormente foi concluído
e recebeu o título de A náusea. Ao voltar para a França, ele publicou, em 1936, A imaginação e A
transcendência do ego, trabalhos fortemente influenciados pela fenomenologia. Em 1938, foi editada A
náusea e, um ano depois, uma coletânea de contos, O Muro, e o ensaio Esboço de uma teoria das emoções;
em 1940, mais um ensaio, O imaginário, que, como o anterior, utilizava o método fenomenológico. Com
o advento da Segunda Guerra Mundial, Sartre foi chamado para servir como meteorologista em Lorena.
No entanto, em junho de 1940, foi preso no campo de concentração de Trier, na Alemanha. Um ano mais
tarde, conseguiu escapar do cativeiro e se encontrou em Paris com Simone de Beauvoir. Também na
capital francesa foi responsável pela fundação do grupo Socialismo e Liberdade, com o intuito de auxiliar
a Resistência, produzindo panfletos clandestinos contra a ocupação alemã e contra os colaboracionistas
franceses. Em março de 1943, encenou sua primeira peça teatral, As moscas, na qual todos os elementos
funcionavam de forma simbólica.

No término da Segunda Guerra, Sartre desarticulou o movimento Socialismo e Liberdade e lançou a


publicação Os tempos modernos, juntamente com Merleau-Ponty, Raymond Aron e outros intelectuais.
84
HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO

Um ano depois, como resposta às críticas à sua filosofia existencialista, expostas em O ser e o nada,
publicou O existencialismo é um humanismo, no qual procura explicar o significado do existencialismo do
ponto de vista ético. No mesmo ano, publicou duas peças, Mortos sem sepultura e A prostituta respeitosa,
além do ensaio Reflexões sobre a questão judaica, em que defende a tese de que a emancipação judaica
seria viável apenas em uma sociedade sem classes. Em 1948, encenou As mãos sujas e, três anos depois,
O Diabo e o bom Deus. No campo da política, essa fase também foi marcante pelo envolvimento de
Sartre com o Partido Comunista, ao qual se filiou em 1952.

Nos anos que se seguiram, continuou sendo, simultaneamente, um intelectual ativista. Em 1960,
publicou a Crítica da razão dialética, precedido pelo ensaio Questão de método. Ambas as obras trazem
reflexões no sentido de associar o existencialismo ao marxismo. A verve literária também não parou
e, no mesmo ano, estreiou a peça Sequestrados de Altona, cujo tema central consiste nos problemas
causados pelo colonialismo francês na Argélia, mesmo com a ação se passando na Alemanha de Hitler. Em
1964, surpreendeu as rodas de intelectuais com a publicação de As palavras, uma análise do significado
psicológico e existencial de sua própria infância. Nesse ano, ganhou o Prêmio Nobel de Literatura, mas
o recusou, pois aceitá-lo implicaria o reconhecimento da autoridade de um comitê julgador, o que
considerava inadmissível. No entanto, em 1971, lançou a primeira parte de um longo estudo sobre
Flaubert, intitulado L’Idiot de Famille. Em termos filosóficos, a trajetória do pensamento de Sartre teve
início com A transcendência do ego, A imaginação, Esboço de uma teoria das emoções e O Imaginário,
todos publicados entre 1936 e 1940.

De acordo com o pensamento de Sartre, o tempo pode ser considerado como a expressão da síntese
entre o em-si e o para-si e esta constitui a existência humana. A partir dessa perspectiva, o passado
deixa de existir, a não ser que esteja associado ao presente de alguma forma. Enquanto o homem tem
consciência de si mesmo, no presente, ele vive segundo o modo do para-si. No entanto, o seu passado
possui todas as peculiaridades do em-si. Nesse sentido, a existência humana é formada, principalmente,
pela espontaneidade da consciência, mas encontra atrás de si um ser que possui toda a característica de
fiação de qualquer outro elemento do mundo.

Ele ainda observou ser impossível ver na consciência algo distinto do corpo, uma vez que este não se
liga exteriormente a ela. Pelo contrário, faz parte inerente da constituição da própria consciência, que é
estruturada de maneira intencional; por isso, o corpo expressa a imersão no mundo como a característica
da existência do homem. O corpo seria, então, um centro em relação ao qual são organizadas todas as
coisas e, por isso, consiste em uma estrutura perene que viabiliza a consciência. Sartre estendeu sua
interpretação afirmando que o corpo é a própria condição da liberdade humana. Como não existe
liberdade sem escolha e o corpo é a necessidade de que ocorra a escolha de que o homem não seja a
total idade do ser no ato. Por consequência, temos a condição da consciência humana como consciência
do mundo e fundamento enquanto liberdade.

Nesse sentido, o homem como ser-em-situação, assim como a necessidade de engajamento, a


responsabilidade pessoal pelas ações e pelos projetos de vida e, em especial, a liberdade como fundamento
individual, desenha as linhas gerais do pensamento existencialista de Sartre. As obras puramente teóricas
expõem seus fundamentos filosóficos, e o teatro, o romance e o conto revelam de forma concreta essas
ideias. As posições filosóficas iniciais de Sartre sofreram transformações, na medida em que o filósofo
85
Unidade II

buscou inserir o existencialismo numa concepção mais abrangente de mundo. Essas transformações
derivaram, por um lado, do próprio existencialismo sartreano, que constitui uma filosofia “aberta”, e, por
outro, do engajamento social e político do filósofo. Do ponto de vista da fundamentação teórica, essa
nova concepção de Sartre encontra-se em Questão de método e em Crítica da razão dialética, ambas
publicadas em 1960.

Nessas obras, a questão crucial levantada pelo autor está em saber se é possível constituir
uma antropologia ao mesmo tempo estrutural e histórica. Ou seja, o objetivo visado por Sartre
é saber se há possibilidade de reencontrar uma compreensão unitária do homem para além das
várias teorias, das várias técnicas, das várias ciências que o investigam. Sartre, contudo, não
pretende inventar esse novo saber do homem. Não se trata de opor à tradição uma nova filosofia,
capaz de fornecer soluções para os problemas que as antigas doutrinas sobre o homem não
conseguiram resolver.

Esse novo saber já existe segundo Sartre e circula anonimamente entre os homens: o marxismo.
O marxismo, para ele, é a filosofia insuperável do século XX, “é o clima de nossas ideias, o meio
no qual estas se nutrem... a totalização do saber contemporâneo”, porque reflete a práxis que a
engendrou. Na mesma linha de ideias, Sartre afirma que, depois da morte do pensamento burguês,
o marxismo é, por si só, “a cultura, pois é o único que permite compreender as obras, os homens e
os acontecimentos”.

Sartre, porém, fez referência ao marxismo oficial, e nem sequer pretendia transcender a obra de
Marx, pois, para ele, o marxismo era capaz de superar a si mesmo, por ser uma filosofia que acaba se
adequando às transformações econômicas e sociais. Tomando como base a concepção sartreana de
que o marxismo consiste na “filosofia de nosso tempo”, é possível afirmar que o existencialismo foi
pensado como “um território encravado no próprio marxismo”, que, ao mesmo tempo, o abrange e o
exclui.

Outro aspecto da doutrina de Sartre está na maneira pela qual ele tentava solucionar a questão das
relações materiais de produção pelo projeto existencial. Ao afirmar que o marxismo era insuperável,
ele não quis dizer que se tratava de uma filosofia eterna, mas sim que deveria ser suplantada quando
houvesse para todos a garantia da liberdade e das condições de produção da vida.

Diante dessa perspectiva, pode-se imaginar um mundo de fartura guiado por uma corrente
filosófica que prioriza a liberdade. Infelizmente, a experiência atual não permite nem ao menos que
esse cenário seja idealizado.

Lembrete

Hoje, com a inexistência de grandes projetos para a humanidade, torna-


se necessário descobrir caminhos de ação que tragam um sentido legítimo
à essência do processo civilizatório na construção do social.

86
HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO

7.5 Michel Foucault: conhecimento e biopolítica

Figura 22 – Michel Foucault (1926-1984)

Considerado como um dos filósofos e professores mais importantes da cátedra de História dos
sistemas de pensamento no Collège de France, de 1970 a 1984, Michel Foucault Poitiers nasceu em
15 de outubro de 1926 em Paris. Seu trabalho foi desenvolvido como uma espécie de arqueologia
do saber filosófico, partindo da experiência com a literatura e da análise do discurso com base nas
teorias da linguagem, focando-se na relação entre poder e governo, incluindo todas as formas de
subjetivação. Em 1954, ele publicou seu primeiro livro, Doença mental e personalidade. Em 1969,
lançou A arqueologia do saber, como uma resposta às críticas que recebera. Ficou bastante conhecido
pelas suas reflexões sobre as instituições sociais, especialmente no campo da psiquiatria, e também
por suas ideias a respeito da evolução da história da sexualidade, além das suas teorias gerais relativas
à energia e à complexa relação entre poder e conhecimento. Por isso, mais do que em análises da
“identidade”, definidas como estáticas e objetivadas, Foucault se preocupou em estudar a vida e os
variados processos de subjetivação.

Suas teorias sobre o saber, o poder e o sujeito abalaram profundamente o significado moderno
desses termos, razão pela qual é considerado um pós-moderno. Os primeiros trabalhos (História da
loucura, O nascimento da clínica, As palavras e as coisas e A arqueologia do saber) seguem uma linha
pós-estruturalista, mas não impedem que ele seja classificado como um estruturalista, em virtude de
obras posteriores, como Vigiar e punir e A história da sexualidade. Foucault ficou famoso também por
ressaltar a semelhança na maneira de tratar ou de cuidar dos grandes grupos de indivíduos que estão
situados nos limites do grupo social, como os loucos, os prisioneiros, certos grupos de estrangeiros,
soldados e crianças. Ele acreditava que esses agrupamentos específicos apresentavam em comum a
característica de serem excluídos pelo confinamento em instalações especializadas e organizadas em
modelos estruturados, como asilos, presídios, quartéis e escolas, todos inspirados no que ele denominou
de “instituição disciplinar”.

87
Unidade II

Ele procurou, ainda, refletir sobre problemas concretos como a insanidade em um contexto bastante
restrito do ponto de vista geográfico e histórico. No entanto, suas observações contribuíram para a
identificação dos conceitos superiores a esses limites temporais e espaciais, mantendo, dessa forma,
uma vasta abrangência em muitos campos do saber. No segundo semestre de 1970, ele demonstrou
interesse no que parecia uma nova forma de exercer o poder, denomidada de “biopoder”, mostrando
como a sexualidade afeta a saúde e o lazer como produtividade econômica, além dos mecanismos de
poder, transformando-se em uma questão crucial para a política.

Foucault pensou filosoficamente investigando a história, mas não escreveu uma “história da filosofia”.
Porém, não excluiu a abordagem dos filósofos, permeando os escritos sobre diferentes “objetos”,
inscrevendo-se, como que “em meio a eles”, a leitura das filosofias. Na verdade, aquilo que Foucault
problematiza nos seus escritos sobre biopolítico é justamente a funcionalização do desconhecido, que
torna própria a forma de ser do homem. Com essa funcionalização, o homem não está mais exposto ao
conhecimento de si, que permanece, ainda, inalcançável na sua completude, mas totalmente descrito
como dado estrutural de uma sociedade voltada para objetivos determinados. Mesmo que a vida humana
não seja integrada em técnicas que a dominem e a gerem, o biopoder surge como uma intervenção na
forma de viver dos sujeitos de direito. O biológico reflete-se diretamente no político, e o limiar de
modernidade biológica de uma sociedade surge no momento em que a própria espécie entra em jogo
nas estratégicas políticas.

Nesse aspecto, qualquer forma de política se torna uma luta pelo espaço que o sujeito tem no
controle da própria vida, ou seja, de um lado, o biopoder enquanto instância de controle do como viver
e da estrutura biológica do homem, e do outro, a exigência, por parte dos sujeitos, por um direito a
ter direito sobre o próprio corpo, e a forma de fruir deste; um direito de “encontrar o que se é e tudo
o que se pode ser”. Nesse sentido, o controle do sexo surge com uma função simbólica na formação
da identidade de uma população a partir do século XVIII, normativamente. Essa normalização do sexo,
como um controle de uma população, faz a sexualidade surgir como dispositivo do poder soberano.
O controle do sexo é, portanto, a forma mais eficaz de conter uma população, mantendo, com isso, o
caráter homogêneo de um país/nação.

Podemos identificar, então, três características fundamentais da biopolítica para


Foucault: em primeiro lugar, existe um controle sobre o corpo, uma espécie de domesticação
dos corpos por parte do controle médico-jurídico, que permite que o homem seja tomado
enquanto ente para um conhecimento científico – e nisto a estrutura duplo empírico-
transcendental fica mais clara: ao mesmo tempo, o homem é tomado enquanto objeto
empírico, que só é possível a partir de um conhecimento que é afirmado de um ponto de
partida transcendental, o qual o mesmo homem, enquanto sujeito, participa. Em segundo
lugar, a partir desta domesticação, os corpos dóceis dos homens são objetos de uma
regulamentação política, que vai implicar em um poder disciplinar do qual o homem é
objeto. Assim, temos como terceira característica da biopolítica uma relação permanente de
poder-saber que permeia todas as estruturas anteriores – o controle da estrutura biológica
do homem, feito a partir de um controle médico da população (primeira característica
aqui identificada) implica em uma delimitação do campo de saber empírico ao qual este
mesmo homem terá acesso; assim como a regulamentação e o controle disciplinar de uma
88
HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO

população a partir da estrutura jurídica vai implicar diretamente nos saberes possíveis-
disponíveis para uma determinada população. Fica, portanto, claro como a relação poder-
saber está implicada em toda biopolítica – a partir da neutralização do saber científico,
quem tem o controle de um determinado saber científico pode legitimar seu uso a partir
da suposta “neutralidade” de sua prática (FOUCAULT apud KELLY, 1994, p. 44-45). A ideia
de dispositivo, portanto, está ligada a esta relação entre saber-poder, onde o dispositivo de
poder controla uma articulação entre um saber e sua aplicação – e, na biopolítica, a aplicação
de um determinado saber no próprio corpo de uma população, ou na determinação de uma
população homogênea (PONTIN, 2007, p. 62).

8 QUESTÕES ATUAIS EM FILOSOFIA

No atual estágio em que se encontram as relações humanas, mediadas ou não pelas tecnologias
da informação, é preciso contextualizá-las e compreendê-las a partir do cenário pós-moderno, que
configura um novo estado de ser e de estar no mundo. Hoje, com a inexistência de grandes projetos
para a humanidade e dos ideais positivistas que faziam crer na ciência como a grande trajetória a ser
percorrida para alcançar o progresso como a solução de todos os conflitos gerados pela tensão provocada
pelo homem na sua luta de engajamento político, econômico e social, torna-se necessário descobrir
caminhos inusitados de ação que tragam um sentido legítimo à essência do processo civilizatório na
construção original de outra ordem social.

Com a derrocada do socialismo, da Guerra Fria e o esfacelamento da polarização dos ideais político-
partidários, a abstração entre esquerda e direita fez com que os indivíduos realmente dispostos a
contribuir com ações conjuntas para as mudanças de ordem social e econômica repensassem sobre
novas formas de representatividade e de indagações capazes de garantir tanto a permanência quanto
a eficácia de atuações cívicas pertinentes às esferas do poder. Nessa conjuntura de fatores nunca antes
vivenciados na trajetória humana, a concepção de espaço público, de pertencimento a uma realidade ao
mesmo tempo globalizada pela economia e fragmentada pelo multiculturalismo, que prescinde do ideal
de um futuro comum a todos, é necessário avaliar de que maneira os indivíduos estão se organizando
tanto em nível local quanto em mundial para a troca de informações e de reflexões críticas, tendo em
vista a concepção de movimentos estratégicos para o fortalecimento dos elos sociais, imprescindíveis a
qualquer noção de mudança efetiva na esfera pública.

A pluralidade de estudos que contemplam as influências das tecnologias de informação e de


comunicação, especialmente a internet, as comunidades virtuais e os blogs políticos com relação ao capital
social, entendido como a capacidade de os indivíduos assumirem uma posição cívica de mobilização em
torno dos problemas em termos de discussão e de ações direcionadas para solucioná-los, revela ainda
a existência de muitos aspectos a serem aprofundados que devem transcender os limites da avaliação
quantitativa, uma vez que esse tipo de abordagem pouco acrescenta sobre o potencial representativo
da rede em suas múltiplas possibilidades de interação.

Antes de tecer os comentários iniciais sobre as articulações filosóficas permeadas pelas novas
tecnologias de comunicação, faz-se necessário lembrar que esses meios ratificam ainda mais as
desigualdades sociais, permitindo que apenas uma minoria da população do planeta possa usufruir desses
89
Unidade II

benefícios, em detrimento de uma maioria que se encontrará por tempo ainda indefinido totalmente
alijada dessa forma de poder. Embora a repercussão dos efeitos das interações proporcionadas pela rede
possa até mesmo vir a beneficiar esse número imenso de indivíduos de alguma forma, esse modelo
continua refletindo a realidade já estabelecida off-line, na qual uma minoria articulada às atividades
sociais determina as condições de vida de uma imensa maioria, carente de necessidades básicas, que se
encontra totalmente à margem das decisões relativas à esfera pública.

Certamente, a rede tem proporcionado grandes possibilidades para aqueles que antes se achavam
isolados em nível local ou regional, permitindo maior abrangência em termos de fonte de pesquisa e
de interatividade pessoal e coletiva. No entanto, a relação dessas ferramentas com a ascensão ou com
o declínio do capital social como instrumento de transformação deve ser analisada com cautela, uma
vez que a tendência ao individualismo e a falta de comprometimento e de interesse pelas decisões da
esfera pública evidenciam fortemente a constituição do sujeito em pleno século XXI. No cenário atual,
nem mesmo a total liberdade de acesso e de divulgação de informações e opiniões por meio da rede via
comunidades virtuais como Orkut e YouTube podem fazer com que esses espaços sejam considerados
um avanço em termos de contribuição para o engajamento às causas públicas.

Para efeito qualitativo, no que se refere ao conteúdo online, esses novos canais de comunicação ainda
permanecem sob o domínio da estrutura fora da rede e, como novidade que são, ainda se encontram
presos intrinsecamente à inevitável tentação da exposição de formas de expressão reprimidas que ganham
vazão, como uma criança solta em um gigantesco parque de diversões. Portanto, qualquer tentativa
de colocar parâmetros para medir ou avaliar a relação dos agentes dessas mensagens com a atual
capacidade de mobilização social deve levar em consideração todos esses elementos comprometedores
das informações veiculadas no mundo virtual.

Apesar da crescente evolução das tecnologias de informação e de comunicação em todo o mundo,


que não podem ser ignoradas sob hipótese alguma, em função das inusitadas formas de interatividade
que irão fazer parte estrutural do universo coletivo das próximas gerações, é cedo para identificar a
dinâmica efetiva da influência da rede com relação ao capital social. Mesmo por que a maioria dos
internautas de hoje que demonstram preocupação de utilizar essa ferramenta como instrumento
efetivo de mobilização nasceu e cresceu em uma realidade desprovida desses aparatos. Portanto, o que
se pode concluir até o presente momento é que esses sujeitos mobilizadores encontram-se em fase
de adaptação e de experimentação no que se refere ao potencial dessa nova forma de construção da
sociedade pelo consumo midiático virtual.

A própria necessidade de acrescentar o prefixo pós ao termo modernidade pelos críticos e


teóricos contemporâneos já indica uma alteração de sentido que merece atenção enquanto objeto
de estudo. Aliás, o termo aldeia global, do canadense Marshall McLuhan, adquiriu um significado
peculiar agora que as distâncias se encurtam cada vez mais, provocando uma “onda” de unificação,
sobretudo no campo da economia e das comunicações. A informática, que revolucionou a
operacionalidade de numerosas atividades humanas, e, mais recentemente, a invasão das televisões
a cabo e das redes virtuais pela internet podem ser consideradas agentes potencializadores dessa
mudança estrutural.

90
HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO

Em meio a tantas novidades, do CD-ROM às teleconferências, virou uma espécie de modismo


estar conectado a tudo e a todos. A introdução do controle remoto, que transformou a televisão
numa “colagem de imagens” de autoria individual, bem como o advento do videocassete e do DVD,
foram responsáveis pela ruptura da noção de instantaneidade, possibilitando a concepção isolada
e fragmentada da realidade. Atualmente, já é possível conhecer os principais museus do planeta,
como o Louvre, em Paris, o Prado, em Madri, e o Museu Britânico, em Londres, sem sair de casa,
emitir e receber mensagens para todas as partes de forma imediata, criar e recriar um universo
virtual inteiro na tela de um computador, além de ter à disposição uma quantidade tão grande
de informações que seria necessário mais de um milênio para que alguém pudesse acessá-las e
assimilá-las.

Nesse vasto cenário, onde tudo, em tese, parece estar ao alcance do homem, a relação entre novo
e antigo, entre homogêneo e heterogêneo, tornou-se um desafio talvez mais intrincado e complexo do
que povoar a Lua. O avanço desigual da tecnologia tem levado o ser humano a experimentar a estranha
e angustiante sensação de estar vivendo uma realidade virtual, constituída por visões fragmentadas da
sua própria condição. Tamanha é a ausência de referências simbólicas diante de tanta inovação que se
torna cada vez mais complicada a tarefa de elaborar previsões de qualquer espécie, seja a curto ou longo
prazo.

Como observa o estudioso da pós-modernidade Stuart Hall (1997, p. 68) citando Harvey (1989):

À medida que o espaço se encolhe para se tornar uma aldeia global de


telecomunicações e uma espaçonave planetária de interdependências
econômicas e ecológicas – para usar apenas duas imagens familiares
e cotidianas e, à medida que os horizontes temporais se encurtam até o
ponto em que o presente é tudo que existe, temos que aprender a lidar com
um sentimento avassalador de compressão de nossos mundos espaciais e
temporais.

Essas alterações encontram-se intimamente vinculadas à noção de identidade no final do milênio,


partindo do princípio de que as identidades modernas estão sendo descentradas, quer dizer, deslocadas.
Stuart Hall (1997, p. 9) argumenta que:

Um tipo diferente de mudança estrutural está transformando as sociedades


modernas no final do século XX. Isso está fragmentando as paisagens
culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que, no
passado, nos tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais.
Estas transformações estão também mudando nossas identidades pessoais,
abalando a ideia que temos de nós próprios como sujeitos integrados. Esta
perda de um sentido de si estável é chamada, algumas vezes, de deslocamento
ou descentração do sujeito. Esse duplo deslocamento – descentração dos
indivíduos tanto de seu lugar no mundo social e cultural quanto de si
mesmos – constitui uma crise de identidade para o indivíduo.

91
Unidade II

Também para mascarar a complexa realidade da situação dos “pobres do mundo”, a mídia utiliza-
se de contextos inter-relacionados, pautando e editando as notícias, de modo a reduzir o problema da
miséria e da privação apenas à questão da fome. Com isso, a verdadeira escala da pobreza (800 milhões
de pessoas são permanentemente subnutridas, mas cerca de 4 bilhões – dois terços da população
mundial – vivem na pobreza) é omitida, e a tarefa a ser enfrentada restringe-se somente à obtenção de
comida para os famintos, como destaca o filósofo alemão Zigmunt Bauman (1998 p. 82):

Acrescentemos que toda associação das horrendas imagens da fome


apresentadas na mídia com a destruição do trabalho e dos postos de trabalho
(isto é, com as causas globais da pobreza local) é cuidadosamente evitada.
As pessoas são mostradas com sua fome, mas, por mais que os espectadores
agucem a visão, não verão um único instrumento de trabalho, uma única
faixa de terra arável ou uma só cabeça de gado nas imagens, nem ouvirão
qualquer referência a nada disso. Como se não houvesse ligação entre o
vazio das exortações rotineiras para que se ‘levantem e façam alguma coisa’,
dirigidas aos pobres num mundo que não precisa mais da força de trabalho,
pelo menos não nas terras onde as pessoas mostradas pela televisão
morrem de fome, e o sofrimento de pessoas oferecidas como escoadouro
carnavalesco, em ‘feira de caridade’, para um impulso moral contido.

De certa forma, o mundo nunca esteve tão acessível ao homem, proporcionando-lhe a ilusão sobre-
humana de estar em vários lugares ao mesmo tempo. Em grandes cidades como Nova Iorque, Tóquio,
Londres, Paris e São Paulo, cadeias imensas de restaurantes fast-food, sempre moldados de forma
padronizada, exibem ininterruptamente telões onde se alternam imagens de desenhos animados novos
e antigas competições esportivas, videoclips e comerciais ao som de músicas estridentes do universo
pop. O que importa aqui não é o conteúdo da mensagem, mas sim proporcionar ao cliente a sensação
de estar conectado de alguma maneira à sociedade global.

Como verdadeiros artefatos decorativos, esses programas são veiculados com o objetivo de criar um
ambiente familiar de reconhecimento e identificação para o sujeito descentrado da era pós-industrial.
Ao mesmo tempo em que a tecnologia coloca o planeta ao alcance do apertar de teclas, produz
também a angústia dilacerante da overdose de informações, que reflete a falta de significado de uma
realidade virtual nem um pouco tangível. Essa situação chega a provocar um efeito quase paralisante da
capacidade crítica e reflexiva do indivíduo, para o qual a novidade, quando existe, permanece desprovida
de referenciais em um contexto fictício e artificioso.

Observação

“O homem deve ser inventado a cada dia” (Sartre).

Por outro lado, um reconfortante ideal de união e igualdade, sempre presente no imaginário da
coletividade humana como o mito da civilização perfeita, ressoa como uma cantiga de ninar, embotando
a sensibilidade para a percepção nada agradável da existência conflitante e paralela dos graves problemas
92
HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO

sociais que assolam o mundo. Afinal, um cenário marcado pela miséria, pela fome, pela intolerância e
pela violência contrasta de maneira constrangedora com a sofisticada tecnologia das imagens plurais
responsáveis pela interconexão de todas as partes do globo terrestre. Para o homem, significa, em última
instância, a assinatura do atestado de fracasso e de incompetência em sua tentativa de melhorar o
mundo na entrada do terceiro milênio, época projetada ao logo de toda a história do pensamento
moderno como um tempo de realização pleno e satisfatório diante das adversidades naturais e daquelas
impostas por sistemas de governo inadequados ao bem-estar social supostamente atingível. Nesse jogo
sutil de identidades, não existem vítimas indefesas, e muito menos vilões maquiavélicos que programam
computadores para manter corações e mentes sob permanente controle. A ênfase na primazia do avanço
tecnológico da nossa era pode ser considerada mais como um instrumento de defesa individual contra o
sentimento de abandono e ausência de perspectivas favoráveis, despertado pela falência das ideologias
e pela ausência de grandes projetos para a humanidade.

Figura 23

Nesse acordo silencioso selado pelas estruturas de poder, torna-se necessário avaliar até que ponto a
mídia, enquanto forma e conteúdo, está comprometendo seu papel atuante na construção do intrincado
fenômeno da opinião pública, que se apresenta como coletivo, embora tenha como base a realidade
individual vivenciada em sociedade. Portanto, a complexidade reside no fato de o comportamento
dos indivíduos nos grupos ser diferente do seu comportamento pessoal e isolado, esclarecendo que a
opinião pública vem determinada por um mundo onde se multiplicam de forma incessante os agentes
determinantes da vida política, social e filosófica.

Não se pode negar que, seja nas sociedades centrais, seja nas periféricas, os descolamentos de
identificações estão provocando mudanças de costumes e de comportamentos. Entretanto, a contribuição
maior atualmente consiste em desvendar a origem dessas tendências, bem como das suas influências
de fato nas esferas sociais pertencentes aos mais diferentes níveis de evolução e de desenvolvimento
de uma nação.

O filósofo francês Pierre Bourdieu alerta para a existência de uma estrutura invisível que permeia
a interface entre a produção intelectual na área acadêmica, fornecendo outro recorte na esfera da
93
Unidade II

comunicação, tendo em vista as pressões de mercado nas empresas que trabalham com a difusão de
informações, seja em nível informativo, interpretativo e, principalmente, de caráter opinativo. Para ele,
nem mesmo os próprios pensadores da atualidade, com raras exceções, percebem que estão sujeitos
de forma permanente à ilusão de que estão divulgando e legitimando o conhecimento da forma mais
adequada, selecionando as melhores fontes dos mais variados campos do saber para a exposição e para a
formação da “opinião pública”. Ainda na visão dele, os jornais impressos, que dominaram a era da imprensa
escrita com propostas sérias de provocar reflexões críticas na sociedade por meio de depoimentos de
fontes consagradas por seus pares, perderam seu poder e tiveram que se adaptar aos noticiários falados,
que mantêm o foco no fait-divers1, nos esportes e na agenda oficial dos representantes do poder público,
para atingir um número cada vez maior de indivíduos, aumentando com isso seu capital simbólico com
aquilo de Bourdieu chama de assuntos-ônibus, que não levantam problemas.

Essa forma de expressão midiática, apesar do extraordinário alcance proporcionado por ela, faz com
que a configuração dos temas hoje debatidos pela sociedade ceda à tendência de homogeneização da
informação e do pensamento filosófico e à desarticulação das possibilidades de engajamento no campo
político. No entanto, ele enfatiza também que essa opção pela banalização não foi algo planejado
por alguém ou por um grupo reacionário comprometido com alguma forma de poder específica. Vale
lembrar que essa fórmula fácil de falar em nome da moral burguesa e da lógica da concorrência convém
a todos os espectros sociais, confirmando realidades reconhecidas sem ter que recorrer às mudanças de
mentalidade que poderiam subverter a ordem já estabelecida.

Saiba mais

Assista ao filme Ponto de mutação, para conhecer as visões de mundo


contemporâneas por meio do diálogo entre um político, uma cientista e
um poeta.

Ponto de mutação. Dir. Bernt Capra, EUA,112 minutos, 1990.

Resumo

É possível afirmar que a filosofia moderna liberta a razão das exigências


da fé na Idade Média e a coloca na dependência do homem, o que permite
1
O fait-divers é uma informação total, ou mais exatamente, imanente; ele contém em si todo o seu saber: não é
preciso conhecer nada do mundo para consumir um fait-divers; ele não remete formalmente a nada além dele próprio;
evidentemente, seu conteúdo não é estranho ao mundo: desastres, assassinatos, raptos, agressões, acidentes, roubos,
esquisitices, tudo isso remete ao homem, à sua história, à sua alienação, a seus fantasmas, a seus sonhos, a seus medos...
no nível da leitura, tudo é dado num fait-divers: suas circunstâncias, suas causas, seu passado, seu desenlace; sem duração
e sem contexto, ele constitui um ser imediato que não remete a nada de implícito (BARTHES. Crítica e Verdade. São Paulo:
Perspectiva, 1999, p. 59).

94
HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO

seu esclarecimento e coloca o conhecimento ao alcance de todos. Na Europa


Ocidental, ocorre uma retomada do pensamento da antiguidade, assim
como a libertação do conhecimento do controle da Igreja Medieval. Mesmo
sendo considerada um retorno do pensamento racional à supremacia e,
em especial, uma releitura do pensamento platônico, a filosofia moderna
mostra seu valor ao promover a acessibilidade do saber, sem distinção entre
o mundo sensível das coisas e o mundo intangível das ideias.

René Descartes acreditava ter sido escolhido para unificar todos os


conhecimentos humanos, partindo de bases sólidas certificadas pelo
conhecimento científico para construir um modo de pensar focado na
verdade e permeado somente pelas certezas racionais. Na condição de
matemático e filósofo francês, ele se mostrou contrário a qualquer ideia de
subjetividade, o que o levou a escrever a célebre frase: penso, logo existo.
Na visão cartesiana, o universo material poderia ser explicado pelas leis da
física e da matemática, que resultaram na concepção da geometria analítica
como forma de definir e de manipular as formas geométricas por meio
de expressões algébricas. Essa postura filosófica originou as coordenadas
cartesianas, por intermédio das quais os pontos são representados nesse
sistema, marcando para sempre o nome de Descartes na história da
humanidade.

George Wilhelm Friedrich Hegel concebeu o modelo de análise da


realidade que mais influenciou pensadores como Nietzsche, Marx e Jean-
Paul Sartre, por se tratar de um pensamento que refuta a filosofia de
Kant. Para tanto, Hegel procurou discutir vários, como a lógica, o direito,
a religião, a arte, a moral, a ciência e a própria história da filosofia.
Em todos esses campos do saber, ele vislumbrou a manifestação do
espírito absoluto, capaz de materializar e de se revelar por intermédio
da história. A filosofia hegeliana, portanto, parte do fundamento de
que a negatividade é um dado estrutural do real e que o positivo
realiza-se apenas por meio do negativo. Essa postura dialética, então,
seria o procedimento metodológico que torna possível compreender a
racionalidade do real.

No pensamento filosófico elaborado por Karl Marx, a realidade material


será sempre a maior responsável por todas as condições da vida humana,
expondo o homem à sua condição existencial. Também dela devem ser
pensadas todas formas de ideologia, ou seja, as visões de mundo. Diante
dessa formulação, é possível afirmar que não é a ideia que produz a realidade,
mas sim o contrário, o que estabelece um correlacionando dialético que
modela as sociedades. Como parte do contexto do pensamento alemão
que originou o racionalismo e o romantismo, resultando no “materialismo
contemplativo”, Marx era defensor da prática de um materialismo ativo.
95
Unidade II

Porém, seu materialismo não pôde ser colocado em prática, porque ele
acreditava que o racionalismo era muito abstrato em comparação ao
materialismo dialético, já que matéria e ideia constituem categorias opostas
que se inter-relacionam, mantendo uma unidade.

O pensamento positivista admite, como fonte única de saber e de critério


de verdade, a experiência e os fatos positivos, incluindo os dados sensíveis.
Sendo assim, nenhum conhecimento metafísico como a interpretação ou
a justificação transcendente da experiência possui validade nesse terreno
filosófico. Portanto, a filosofia passa a ser reduzida à metodologia, à
sistematização das ciências e à lei, única e suprema, que comanda o mundo
concebido pelo positivismo, fomentando a força necessária à energia
naturalista. Auguste Comte é o grande formulador do positivismo, corrente
filosófica fundada por ele com o intuito de reorganizar o conhecimento
humano e que teve forte influência no Brasil. Comte ainda é considerado
o grande sistematizador da sociologia. Com relação à sua concepção de
mundo, vale destacar que ele viveu em um período da história francesa em
que se alternavam o despotismo e as revoluções, o que levou a sociedade à
crise dos valores tradicionais.

Pode ser considerada como contemporânea a filosofia que compreende


a segunda metade do século XIX até o início do século XXI, e o positivismo
permanece como presença constante na história do pensamento dessa
fase. Apesar das suas notáveis diferenças na maneira de lidar com os
problemas, é possível reconhecer essa conduta empirista do século XVIII no
positivismo do século XIX e no positivismo lógico ou empirismo lógico do
século XX. O empirismo lógico ou positivismo lógico do século XX consiste
num dos movimentos integrantes da corrente analítica dos nossos dias,
cuja originalidade está em ter conseguido transformar o próprio conceito
de filosofia. Para a corrente analítica, a filosofia não tem por objeto a
realidade, mas sim a análise da linguagem que envolve a realidade, seja a
linguagem ordinária, comum ou científica.

Outras correntes da filosofia contemporânea tomaram como objeto


principal de consideração o fenômeno da história, da vida e da irredutibilidade
da existência pessoal – as filosofias historicistas, existencialistas e
personalistas. Podemos conceituar a filosofia como uma disciplina que
estuda os fundamentos das convicções e dos valores humanos. No entanto,
enquanto as ciências fixam um saber sólido a partir do qual passam a
desenvolver suas teorias, a filosofia não produz os mesmos resultados,
uma vez que não existem respostas definitivas às questões humanas. Freud
revolucionou a psicologia ao introduzir a noção de inconsciente como
sendo o poder que foge do controle da consciência. Para complementar,
a ideia de progresso como percurso racional foi abalada definitivamente
96
HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO

com a ascensão dos regimes totalitários, como o nazismo, o fascismo e o


stalinismo.
Friedrich Nietzsche profetizou as grandes guerras do século XX,
afirmando que chegaria o dia em que os homens lutariam no confronto
pelo poder. No entanto, ele conhecia os campos de batalha do espírito e,
no fundo, queria conhecer apenas esses. Porém, sua obra contém o caos,
assim como o impulso que deveria desencadeá-lo no decorrer da história
da humanidade, podendo ser considerado como o primeiro precursor do
conceito de pós-modernidade amplamente utilizado hoje. Na vanguarda
da sociedade que preconizava, ele colocava o espírito de altivez, afirmando
que a consciência de si próprio precede qualquer criação. Em Nietzsche,
o mundo é uma espécie de caos e apenas a manifestação artística pode
transformar a desordem em beleza e tornar aceitável aquilo que há de mais
aterrador na condição humana.

Médico especializado em doenças mentais, Sigmund Freud desenvolveu


a psicanálise, uma teoria do funcionamento da mente humana e um método
exploratório de sua estrutura, destinado a tratar os comportamentos
compulsivos e muitas doenças de natureza psicológica supostamente
sem motivação orgânica. Ele recolheu de várias fontes os elementos por
meio dos quais compôs a sua teoria, a partir das descobertas do médico
austríaco Josef Breuer, da doutrina platônica e do pensamento filosófico
de Schopenhauer, consolidando, pela longa prática clínica, os postulados
da teoria que denominou Psicanálise.

Freud acreditava que o homem era apenas um produto da evolução


natural, sujeito a leis da física e da química. Portanto, nada do que uma
pessoa diz ou faz é casual ou acidental, pois o homem não é livre nem
racional, uma vez que obedece a causas do inconsciente. Para ele, a força
que orienta o comportamento inconsciente era o instinto sexual, que não
se apresentava de forma consciente por causa da “repressão” social tornada
também inconsciente. Freud argumentou, de maneira enfática, que o
comportamento humano é comandado pelo instinto sexual e pelo instinto
de sobrevivência e que os motivos sexuais, se não são evidenciados, estão
sublimados em um motivo aparente. Como criador da psicanálise, por meio
da qual é possível o estudo do consciente e do inconsciente humano, Freud
é considerado um dos pensadores mais revolucionários de sua época, cujos
reflexos repercutem até os dias atuais.

Para Jean-Paul Sartre, a liberdade vem do nada, o que obriga o ser humano
a fazer-se em vez de apenas ser. De acordo com a doutrina de Sartre, o
homem é totalmente responsável por aquilo que é, uma vez que não é válido
para as pessoas atribuir seus erros a circunstâncias externas. Essa concepção
autônoma da liberdade, como determinação radical do ser, faz da doutrina
97
Unidade II

existencialista uma filosofia que refuta a ideia de Deus. Portanto, Sartre retira
desse ateísmo qualquer fundamento sobrenatural para a construção dos
valores universais, pois é o homem quem os cria. Sendo assim, a vida não
possui sentido, independentemente do fato de o homem existir, e seu valor
consiste no sentido que cada um estabelece para si próprio.

Foucault também ficou conhecido por ter evidenciado as formas de


algumas práticas das instituições em relação aos indivíduos, chamando
a atenção para a grande semelhança que existe na maneira de tratar
grandes grupos de indivíduos que estão nos limites do grupo social, mais
especificamente os loucos, os prisioneiros, alguns estrangeiros, os soldados
e as crianças. Ele acreditava que todos possuem em comum o fato de
serem vistos com desconfiança e, por isso, excluídos por confinamento em
instalações especializadas e organizadas em modelos parecidos, como asilos,
presídios, quartéis e escolas, que ele chamou de “instituição disciplinar”.
Foucault também buscou, por meio da sua obra, discutir temas concretos
como a loucura humana em um contexto muito específico do ponto de
vista geográfico e histórico.

No cenário atual, a rede tem proporcionado grandes possibilidades para


aqueles que antes se achavam isolados em nível local ou regional, permitindo
maior abrangência em termos de fonte de pesquisa e de interatividade pessoal
e coletiva. No entanto, a relação dessas ferramentas com a ascensão ou com
o declínio do capital social como instrumento de transformação deve ser
analisada com cautela, uma vez que a tendência ao individualismo e a falta de
comprometimento e de interesse pelas decisões da esfera pública evidenciam
fortemente a constituição do sujeito em pleno século XXI. No cenário atual,
nem mesmo a total liberdade de acesso e de divulgação de informações e
opiniões por meio da rede via comunidades virtuais como Orkut e YouTube
podem fazer com que esses espaços sejam considerados um avanço em
termos de contribuição para o engajamento nas causas públicas. Mas, apesar
do alcance extraordinário proporcionado pela expansão midiática, as novas
formas de tecnologia da comunicação fazem com que a configuração dos
temas hoje debatidos pela sociedade ceda à tendência da homogeneização
da informação, à fragmentação do pensamento filosófico e à desarticulação
das possibilidades de engajamento no campo político.

Exercícios

Questão 1 (prova de Pedagogia, Enade, 2008) A racionalidade científica, forma dominante de pensar
e de agir na Modernidade, transformou o homem e sua ação em objetos de investigação. Passaram a ser
tratados da mesma forma que as “coisas” e os fenômenos da natureza, como “objetos” fixos, imutáveis. O
historicismo veio a se opor a essa perspectiva positivista, chamando a atenção para a dimensão histórica
98
HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO

da existência, do mundo e da sociedade. As vertentes da pesquisa em educação que acompanharam essa


discussão incorporaram ideias do historicismo e trouxeram para a prática da investigação o pressuposto
de que:

A) a pesquisa educacional supõe a existência de métodos previamente definidos.


B) a objetividade e a universalidade do conhecimento são garantidas pelos métodos de pesquisa.
C) a metodologia da pesquisa determina a produção dos conhecimentos histórico-educacionais.
D) o conhecimento da realidade só é possível por meio do controle do fenômeno educacional.
E) o conhecimento educacional depende da compreensão dos processos sócio-históricos.

Resposta correta: alternativa E.

Análise das alternativas

A) Alternativa incorreta.

Justificativa. A alternativa não é correta, pois a atual concepção de pesquisa educacional se pauta
numa pluralidade de métodos, numa postura aberta, consciente da riqueza e da complexidade do seu
campo de pesquisa numa busca da variedade e da articulação de instrumentos mais adequados ao
trabalho de desvendamento das práticas educacionais.

B) Alternativa incorreta.

Justificativa. A alternativa não é correta, pois a concepção historicista na qual se baseia a pesquisa
em educação na atualidade não mais vê (como na concepção cientificista-positivista) a compreensão
da realidade como algo estanque e linear que possa ser aprendido com objetividade e universalidade
absolutas.

C) Alternativa incorreta.

Justificativa. A alternativa não é correta, pois na concepção historicista os contextos histórico-


educacionais é que determinam a metodologia da pesquisa. Vale lembrar que a determinação nessa
visão é múltipla, complexa, pois tenta apreender toda a riqueza e complexidade das ideias e das práticas
educacionais e sociais de um determinado período.

D) Alternativa incorreta.

Justificativa. A alternativa não é correta, pois a ideia de controle dos fenômenos faz parte do
universo do cientificismo, da razão cartesiana, que acreditava no poder da ciência de explicar para
prever e controlar. Mas a concepção historicista de pesquisa em educação dá conta de que o universo
das ações humanas é muito mais complexo e imponderável, pautado numa multideterminação de
fatores e agentes.
99
Unidade II

E) Alternativa correta.

Justificativa. A alternativa é correta porque ressalta a importância da tentativa de compreensão dos


processos sócio-históricos na busca do conhecimento educacional. A ideia de processo é fundamental na
concepção historicista, pois ela dá a dimensão da complexidade e da riqueza dos fenômenos humanos
e sociais (nos quais estão inseridas as práticas educacionais), que são resultado das contradições, dos
impasses, das rupturas e das intersecções entre diferentes tempos e espaços.

Questão 2 (adaptada de prova de Pedagogia, Enade, 2005):

Mas a “verdade”, da qual nossos professores tanto falam, parece ser


seguramente uma coisa bem mais modesta, da qual não se pode recear
nada de desordenado ou excêntrico: ela é uma criatura de humor fácil e
benevolente, que não se cansa de assegurar a todos os poderes estabelecidos
que ela não quer criar aborrecimentos a ninguém; pois, afinal de contas, não
se trata aqui apenas de “ciência pura”?.

(NIETZSCHE, F. Escritos sobre educação. Rio de Janeiro: PUC-Rio; São Paulo:


Loyola, 2003, p.151).

Nietzsche, filósofo alemão do século XIX, faz uma crítica irônica a uma concepção naturalizada e
abstrata da ciência e da verdade. Pensando na relação de um professor com o conhecimento, qual das
seguintes afirmações acerca da atuação do professor dá sentido à crítica do autor?

A) Convencer os seus alunos a consolidar o saber científico.


B) Preservar os fundamentos das pesquisas já feitas na escola.
C) Ser um bom transmissor dos saberes instituídos cientificamente.
D) Colocar em questão os saberes instituídos cientificamente.
E) Transmitir verdades que ampliem os conhecimentos estabelecidos.

Resolução desta questão na Plataforma.

100
HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO

FIGURAS E ILUSTRAÇÕES
Figura 1

Os quatro elementos. Arquivo UNIP Interativa.

Figura 2

MUSEI CAPITOLINI. Herm depicting “Pythagoras”. Multimedia: hall of the philosophers. 1 fotografia.
Disponível em: <http://tourvirtuale.museicapitolini.org/#en>. Acesso em: 5 set. 2011.

Figura 3

DAVID, J. La mort de Socrate. 1787. 1 original de arte, óleo sobre tela. The Metropolitan Museum of
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Figura 4

SANZIO, R. La scuola di Atene. Detalhe do afresco. Disponível em: <http://mv.vatican.va/3_EN/pages/x-


Schede/SDRs/SDRs_03_02_020_big.html>. Acesso em: 3 set. 2011.

Figura 5

SANZIO, R. La scuola di Atene. Detalhe do afresco. Disponível em: <http://mv.vatican.va/3_EN/pages/x-


Schede/SDRs/SDRs_03_02_020_big.html>. Acesso em: 3 set. 2011.

Figura 6

KENNETH, C. The romantic rebellion. Nova Iorque: Harper, 1972, p. 52. Disponível em: <http://www.
mlahanas.de/Greeks/images/JesusGeometer.jpg>. Acesso em: 3 set. 2011.

Figura 7

BIBLIOTHÈQUE PUBLIQUE ET UNIVERSITAIRE, NEUCHATEL, SUISSE. Saint-Augustin. 1 gravura. s/d.


Disponível em: <http://bpun.unine.ch/icono/JPG02/POET5.133.jpg>. Acesso em: 3 set. 2011.

Figura 8

BOTTICELLI, S. Sant’Agostino nello studio. 1480. Afresco. Disponível em: <http://www.


museumsinflorence.com/foto/cenacoloognissanti/image/Sant’Agostino-.jpg>. Acesso em: 3. set. 2011.

Figura 9

BROOKLYN MUSEUM. San Thomas Aquino. Século XVIII. 1 original de arte, óleo sobre tela. Disponível em: <http://
cdn.brooklynmuseum.org/opencollection/images/objects/size3/41.1275.188.jpg>. Acesso em: 3 set. 2011.
101
Figura 10

MENZEL, A. Voltaire in the court of Frederick II of Prussia. 1750. 1 original de arte. Disponível em:
<http://static.newworldencyclopedia.org/e/e6/Adolph-von-Menzel-Tafelrunde.jpg>. Acesso em: 15 set.
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Figura 11

EDELINCK, G. René Descartes chevalier seigneur du Perron. 1691. 1 gravura. Disponível em: <http://
www.britishmuseum.org/collectionimages/AN00496/AN00496978_001_l.jpg>. Acesso em: 28 ago.
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Figura 12

CARROGIS, L. David Hume (1711 – 1776), historian and philosopher. 1 original de arte: lápis,
giz vermelho e aquarela sobre papel. Disponível em: <http://www.nationalgalleries.org/media_
collection/18/PG%202238.jpg>. Acesso em: 12 set. 2011.

Figura 13

IMMANUAL_KAN_22044LG.GIF. 1 ilustração. In: HOLST, B. P. The teachers’ and pupils’ cyclopaedia.


Kansas: The Bufton Book Company, 1909. vol. III. p. 945 Disponível em: <http://etc.usf.edu/
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Figura 14

ESCHER, M. C. Drawing hands. 1948. 1 litografia. Disponível em: <http://www.bocamuseum.org/


clientuploads/Podcasts1/29_Drawing%20Hands%20by%20Escher.jpg>. Acesso em: 13 set. 2011.

Figura 15

MARX, K. 1 fotografia p&b. Disponível em: <http://www.marxists.org/archive/marx/photo/marx/


images/82km1.jpg>. Acesso em: 3 mai. 2011.

Figura 16

ANOTHER_PICTURE_OF_AUGUSTE_COMTE.JPG. Disponível em: <http://www.bolender.com/


Sociological%20Theory/Comte,%20Auguste/Another%20Picture%20of%20Auguste%20Comte.jpg>.
Acesso em: 5 jul. 2011.

Figura 17

DETALHE DA BANDEIRA DO BRASIL. Disponível em: <http://infoseg.gov.br/infoseg/imagens/estadosII.


JPG/image_view_fullscreen>. Acesso em: 16 mai. 2011.
102
Figura 18

BRAZIL_EYE_FLAG176X220.jpg. Disponível em: <http://www.kespia.com/pictures/Brazil_Eye_Flag_


176x220.jpg>. Acesso em: 15 set. 2011.

Figura 19

PAN MAGAZINE. Alemanha, n. 4, ano 5 (1899/1900), p. 233.

Figura 20

3B19621R.JPG. Sigmund Freud (1938). 1 fotografia p&b. Disponível em: <http://lcweb2.loc.gov/pnp/


cph/3b10000/3b19000/3b19600/3b19621r.jpg>. Acesso em: 15 set. 2011.

Figura 21

SARTRE_1_SHOW.JPG. 1 fotografia p&b. Disponível em: <http://img.rtvslo.si/upload/Kultura/drugo/


sartre_1_show.jpg>. Acesso em: 15 set. 2011.

Figura 22

FOUCAULT.JPG. 1 fotografia p&b. Disponível em: <http://marxsite.com/images/foucault.jpg>. Acesso


em: 15 set. 2011.

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RUSSEL, B. Os problemas da filosofia. 1. ed. Lisboa: Edições 70, 2008.

SEVERINO, A. J. Filosofia. São Paulo: Cortez, 1994.

TARNAS, R. A epopeia do pensamento ocidental. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.

Audiovisual

PONTO de mutação. Direção: Bernt Capra. Estados Unidos: Paramount Pictures, 1990.

DANTON. Direção Andrzej Wajda. França, Polônia, Alemanha: Gaumount International, 1982.

Exercícios

Unidade II – Questão 1 (adaptada de): INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS


ANÍSIO TEIXEIRA (INEP). Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (ENADE) 2008: Pedagogia.
Questão 21. Disponível em: <http://download.inep.gov.br/download/enade/2008/Provas/PROVA_DE_
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Unidade II – Questão 2 (adaptada de): INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS


ANÍSIO TEIXEIRA (INEP). Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (ENADE) 2005: Pedagogia.
Questão 35. Disponível em: <http://download.inep.gov.br/download/enade/2008/Provas/PROVA_DE_
PEDAGOGIA.pdf>. Acesso em: 6 set. 2011.

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