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Literatura Portuguesa:

Poesia
Autoras: Profa. Ana Lúcia Machado da Silva
Profa. Janaína Arruda da Silva
Colaboradores: Profa. Cielo Festino
Profa. Joana Ormundo
Prof. Adilson Silva Oliveira
Professora conteudista: Ana Lúcia Machado da Silva / Janaína Arruda da Silva

Ana Lúcia Machado da Silva é mestre em Língua Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC). Foi professora do ensino básico em rede pública e privada da disciplina Língua Portuguesa durante quase vinte
anos. Ministra aulas de Análise do Discurso, Semântica e Pragmática, Literatura em língua portuguesa, entre outras,
no curso de graduação em Letras pela Universidade Paulista UNIP). Ministra também aulas em módulos para cursos de
lato sensu pela UNIP e Faculdade Atibaia (Faat).

Janaína Arruda da Silva é bacharel em Letras pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da
Universidade de São Paulo, mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC) e licenciada
em Língua Portuguesa e Literaturas de Língua Portuguesa. É doutoranda em Literatura Brasileira na FFLCH. Leciona no
ensino superior desde o ano 2000 e é professora de Literatura na UNIP, no curso presencial, desde 2003.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

S586l Silva, Ana Lúcia Machado da

Literatura portuguesa: poesia / Ana Lúcia Machado da Silva;


Janaína Arruda da Silva - São Paulo: Editora Sol, 2012.
192 p., il

Notas: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e


Pesquisas da UNIP, Série Didática, ano XVII, n. 2-028/12 , ISSN 1517-9230.

1. Literatura portuguesa. 2. Poesia portuguesa. 3. Língua


Portuguesa I.Título.

CDU 869.0

© Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou
quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem
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Unip Interativa – EaD

Profa. Elisabete Brihy


Prof. Marcelo Souza
Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar
Prof. Ivan Daliberto Frugoli

Material Didático – EaD

Comissão editorial:
Dra. Angélica L. Carlini (UNIP)
Dra. Divane Alves da Silva (UNIP)
Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR)
Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT)
Dra. Valéria de Carvalho (UNIP)

Apoio:
Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD
Profa. Betisa Malaman – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos

Projeto gráfico:
Prof. Alexandre Ponzetto

Revisão:
Michel Kahan Apt
Amanda Casale
Sumário
Literatura Portuguesa: Poesia

Apresentação.......................................................................................................................................................7
Introdução............................................................................................................................................................8

Unidade I
1 TROVADORISMO: CONTEXTO SOCIAL E HISTÓRICO............................................................................11
1.1 Cantigas de amor.................................................................................................................................. 21
1.2 Cantigas de amigo................................................................................................................................ 25
1.3 Cantigas satíricas: cantigas de escárnio e maldizer................................................................ 28
2 HUMANISMO: CONTEXTO SOCIAL E HISTÓRICO.................................................................................. 45
2.1 Poesia palaciana..................................................................................................................................... 49
2.2 O teatro de Gil Vicente........................................................................................................................ 51
2.3 Comicidade.............................................................................................................................................. 54
2.4 Auto da barca: inferno e crítica social.......................................................................................... 55
3 CLASSICISMO: CONTEXTO SOCIAL E HISTÓRICO DO RENASCIMENTO....................................... 57
3.1 Produção literária e características................................................................................................ 61
3.2 Sá de Miranda......................................................................................................................................... 61
3.3 Luís Vaz de Camões épico.................................................................................................................. 66
3.4 Luís Vaz de Camões lírico....................................................................................................................71
4 BARROCO E ARCADISMO.............................................................................................................................. 84
4.1 Barroco: contexto social e histórico ............................................................................................. 84
4.2 Produção e características................................................................................................................. 86
4.3 Arcadismo: contexto social e histórico........................................................................................ 88
4.4 Produção e característica................................................................................................................... 88
4.5 Manuel Maria Barbosa de Bocage ................................................................................................ 89
Unidade II
5 ROMANTISMO................................................................................................................................................... 97
5.1. Produção e características................................................................................................................ 98
5.2 Almeida Garrett...................................................................................................................................... 99
5.3 João de Deus.........................................................................................................................................101
6 REALISMO e SIMBOLISMO..........................................................................................................................103
6.1 Realismo: produção e características..........................................................................................104
6.2 Autores: Antero de Quental, Cesário Verde, Guerra Junqueiro........................................107
6.3 Simbolismo: produção e características.................................................................................... 113
6.4 Autores: Eugênio de Castro e Almeida, Florbela Espanca, Camilo Pessanha.............. 114
Unidade III
7 MODERNISMO.................................................................................................................................................122
7.1 Vanguardas europeias.......................................................................................................................122
7.2 Fernando Pessoa: ortônimo e heterônimo .............................................................................128
7.3 Mário de Sá-Carneiro .......................................................................................................................157
7.4 Presencismo e neorrealismo...........................................................................................................157
8 TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS...........................................................................................................160
8.1 José Gomes Ferreira............................................................................................................................164
8.2 Sophia de Melo Breyner Andresen...............................................................................................168
8.3 Herberto Helder...................................................................................................................................169
Apresentação

Seja bem-vindo ao ambiente virtual da disciplina Literatura Portuguesa: Poesia. Dois são os motivos
para maior aprofundamento em nossos conhecimentos sobre a literatura portuguesa: um deles é
óbvio, pois se relaciona à língua portuguesa, compartilhada entre portugueses e brasileiros. A matéria-
prima da literatura – seja qual for sua nacionalidade – é a língua, assim, a literatura portuguesa é uma
manifestação artística em língua: as combinações possíveis e imagináveis fonéticas, figuras verbais e
concepções de ideias. Conhecer mais a literatura de nossos irmãos de língua é conhecer mais um lado
da nossa língua e, por meio desta, a cultura e o pensamento de um povo.

Outro motivo – mais sutil – refere-se ao processo diferenciador verificado a partir da metade do
século passado: o início da europeização e universalização da literatura portuguesa. Não podemos deixar
de considerar a situação de Portugal em relação ao mundo, porque, como bem resume o sociólogo e
português Boaventura dos Santos (2006, p. 53): “Apesar de ser um país europeu e de os portugueses
serem tidos por um povo afável, aberto e sociável, é Portugal considerado um país relativamente
desconhecido”. Tal desconhecimento abrange, também, a produção literária. Assim, a partir de 1950,
as linhas filosóficas, ensaísticas e estéticas adotadas informaram e influíram na literatura portuguesa,
marcando intensamente o processo de conquista de leitores além da língua portuguesa. Várias obras
passaram a ser traduzidas para o espanhol e francês, por exemplo, além do tratamento às ideias que
ultrapassam o homem português, atingindo questionamentos que são transcendentais e de todos os
homens.

Assim, a disciplina Literatura Portuguesa: Poesia  estuda – dentro  de uma abordagem diacrônica e
com base em leituras – autores e obras decisivas  para a formação da cultura literária em Portugal, desde
a Idade Média até a contemporaneidade, além de propor um panorama geral da cultura portuguesa.
No decorrer desse estudo, analisaremos e exercitaremos textos e práticas do ensino poético literário, a
fim de estabelecer correlações entre produções literárias de diferentes épocas e regiões, considerando o
contexto histórico e cultural, assim como as outras artes em geral.

Este livro-texto tem a finalidade de proporcionar-lhe o reconhecimento do desenvolvimento e das


características específicas da literatura portuguesa, por meio do estudo de autores e de algumas obras,
considerando o contexto histórico, cultural e social de cada período, e as características específicas dos
escritores pesquisados. Também possui a intenção de proporcionar ao aluno a capacidade de reconhecer
a estrutura e a operação estética realizada nos textos literários considerados canônicos para a formação
e constituição da literatura portuguesa, bem como nos textos contemporâneos e, a partir disso, criar
possibilidades para que se possa debater o ainda amorfo conceito de literatura pós-moderna no país,
além do modo de articulação desse juízo estético com a sociedade contemporânea.

Enfim, o que buscamos é mostrar a cultura portuguesa, suas obras e seus autores, como um
processo cultural contínuo e consolidado da consciência nacional e cultural do país — dentro e
fora das culturas de massa. Proporcionando uma boa reflexão sobre a relação entre a literatura e a
sociedade local e a situação destas no contexto em que se inserem os movimentos literários, podemos
fornecer-lhe, caro aluno, subsídios específicos para que, posteriormente, possa lecionar literatura no
ensino médio.
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Para formar um quadro sintético, este livro-texto se constitui de três unidades. Na unidade I é
apresentado o início da formação da literatura portuguesa desde o século XIII. Esse período ainda é
marcado pela fase da história chamada Idade Média, que influencia a arte. Assim, a literatura reflete,
por exemplo, a grande distinção entre as classes sociais e preceitos religiosos católicos. Enfim, nessa
unidade do livro-texto constam os dois primeiros movimentos literários portugueses: Trovadorismo e
Humanismo.

Há a apresentação de três estilos literários, sendo eles: Classicismo, marcado pelo mais escritor do
país, Luís Vaz de Camões; Barroco, movimento constituído do sofrimento humano, dividido entre a fé
e a razão, conhecimento; e, por fim, o Arcadismo, cuja característica maior é a valorização de uma vida
mais integrada à simplicidade.

Na unidade II, apresentam-se mais três estilos literários: Romantismo, Realismo e Simbolismo.
Sabemos muito sobre o Romantismo, cuja característica marcante é o subjetivismo, ou seja, a voz que
fala nos poemas centra-se no texto. Em contrapartida, o Realismo volta-se mais para a coletividade e
seus problemas sociais. O Simbolismo, em reação contrária à intenção mimética da arte, preocupa-se
com a arte em si e sua estética.

Finalmente, na unidade III há a apresentação da literatura portuguesa no século XX, marcada


pelo Modernismo e influenciada pelas estéticas mais radicais, tais como futurismo, cubismo,
entre outras da vanguarda europeia. O Pós-Modernismo segue variada tendência, não podendo
ainda ser nomeado um estilo único. Por isso, temos obras consideradas como tendências
contemporâneas.

Introdução

Se alguém lhe perguntar, caro aluno, o motivo da existência da literatura na história passada e
atual da humanidade, o que você responderia? Ficaria indignado com a cegueira alheia quanto à
importância da literatura e daria exaltadas explanações? Ficaria minutos, dias, meses pensando em uma
resposta realmente viável? Afinal, é um questionamento que você próprio faz? Recorreria a uma dessas
explicações que muitos escritores/poetas dão em entrevista?

Ou simplesmente lançaria outra pergunta: Você gosta de música?

Isso mesmo! Quem não entende a literatura, entende música. Raramente encontramos uma pessoa
indiferente ou que odeia música, mas encontramos inúmeras pessoas, incluindo jovens alunos na escola
básica, que declaram explicitamente seu desgosto em relação à literatura.

Logo, se a música é tão fundamental às nossas vidas, chegando a ser visceral, por que não comparar
literatura a ela? Retomando a pergunta: por que existe literatura? ou: para que aprender literatura?,
existe uma resposta possível: a literatura é como a música: essencial a nós; não vivemos sem.

Afinal, a literatura e a música têm muito em comum. Vejamos:

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• ambas têm história;
• são inúmeros autores/compositores;
• variam no decorrer do tempo e espaço, ou seja, elas têm estilo;
• há estilo que agrada uns e desagrada outros;
• causam preferências;
• emocionam, levando ao choro ou ao riso;
• levam a determinadas atitudes;
• são benfeitas, mas podem também ser malfeitas;
• são arte.

Não podemos nos esquecer da maior característica em comum entre elas: uma se relaciona com
a outra. No caso em especial da literatura portuguesa, as primeiras manifestações literárias foram em
forma de... música! No decorrer da história da literatura portuguesa, muitos autores relacionaram sua
obra à música. Por exemplo, Camões produziu, além de sonetos e redondilhas, as canções, as quais
são poemas destinados ao canto. Além disso, muitos poemas portugueses foram transformados em
música.

Temos o famoso poema camoniano Amor é fogo que arde sem se ver, transformado em música pelo
grupo brasileiro Legião Urbana (2010), na canção Monte Castelo. Mais recentemente, a cantora Maria
Bethania (2006) lançou o CD Mar de Sophia, baseado em poemas da portuguesa contemporânea Sophia
de Mello Breyner, em um trabalho musical esplêndido.

Com base nessa relação lítero-musical, lanço-lhe, caro aluno, uma situação-problema. A letra de
música a seguir foi lançada em 1981 no disco Traduzir-se, pelo cantor brasileiro Fagner (1999):

Fanatismo

Minh’ alma, de sonhar-te, anda perdida


Meus olhos andam cegos de te ver
Não és sequer a razão do meu viver
pois que tu és já toda minha vida
Não vejo nada assim enlouquecida...
Passo no mundo, meu amor, a ler
No misterioso livro do teu ser
A mesma história, tantas vezes lida!
“Tudo no mundo é frágil, tudo passa...”
Quando me dizem isto, toda a graça
Duma boca divina, fala em mim!
E, olhos postos em ti, digo de rastros:
“Ah! podem voar mundos, morrer astros,
Que tu és como um deus: princípio e fim!...
Eu já te falei de tudo, mas tudo isso é pouco,
diante do que sinto.
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Unidade I

Dada a relação literatura-música, a proposta é você descobrir, no decorrer da leitura deste


livro-texto, a fonte literária que foi transformada em música por Fagner. Aproveite para
aprofundar seus conhecimentos e discutir a importância dessa fonte para a história da literatura
portuguesa.

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Literatura Portuguesa: Poesia

Unidade I
1 TROVADORISMO: CONTEXTO SOCIAL E HISTÓRICO

Quando pensamos no início da literatura no Brasil, recorremos à história a partir de 1500 e às


manifestações literárias escritas em língua portuguesa. Quando pensamos no início da literatura em
Portugal, seu marco é no século XII, data da formação de Portugal como país.

A história de Portugal antes de sua unificação como nação remete-nos ao notório Era uma
vez em um reino muito distante..., entretanto as terras hoje chamadas de Portugal não possuíam
apenas um reino, mas contavam com a presença de quatro reinos. Na Idade Média, a Península
Ibérica, região onde atualmente localizam-se Portugal e Espanha, era formada por diferentes
reinos cristãos: Leão, Castela, Aragão e Navarra, que disputavam incessantemente a hegemonia
daquele território.

Ao final do século XI, o rei de Leão, Afonso VI, havia conseguido certa harmonia entre esses
reinos. Doou à sua filha Tareja (ou Teresa) o Condado Portucalense, uma pequena faixa de terra
entre o Rio Tejo e o Rio Minho, como presente de seu casamento com o príncipe D. Henrique
de Borgonha, em 1094. Após a morte de Afonso VI, diversas disputas voltaram a ocorrer e o
pequeno Condado Portucalense corria o risco de ser incorporado a outros reinos. Com a morte de
D. Henrique, Dona Tareja assume o poder e estabelece estreitas relações com os galegos.

O infante, Afonso Henriques, rebelou-se contra a mãe e iniciou uma revolução que eclodiu em 24
de junho de 1128, quando foi declarado pelo povo como seu soberano. Contudo, somente em 1143, na
Conferência de Samora, Afonso VII, novo rei de Leão e Castela, reconhece Afonso Henriques como o
primeiro rei de Portugal.

O país tornou-se autônomo, mas demorou ainda muitos anos até consolidar seu território. Somente
em 1249 o novo rei, Afonso III, conseguiu expulsar os últimos mouros e estabelecer as fronteiras atuais
do país.

O mapa a seguir configura sintética e progressivamente as conquistas de território – do norte para


o sul – para a formação de Portugal como nação autônoma.

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Unidade I

Figura 1 - Área primitiva do galego-português e da Reconquista.

O novo reino independente de Portugal, ao mesmo tempo em que se separava ao norte da Galícia,
estendia-se para o sul ao anexar as regiões reconquistadas aos mouros. Com a tomada de Faro, a nova
nação atingiu os limites que correspondem às fronteiras de hoje (TEYSSIER, 2004).

Saiba mais

O site Portal do Governo oferece várias páginas para você conhecer


mais a história e a cultura de Portugal. Há um antigo lema da escola de
Sagres: “navegar é preciso”. Então, boa viagem!

O site oficial de Portugal é <http://www.portugal.gov.pt>.

Nessa efervescência política, firmou-se a língua portuguesa, ou melhor, o galego-português, nos


séculos IX a XII. Segundo Teyssier (2004), ressaltam-se três inovações dessa língua em relação ao latim:

1. Grupos iniciais pl-, cl-, e fi- > ch ([tš]). Houve palatização do l, uma vez que a consoante inicial
seguida de l palatal originou a africada [tš], transcrita em português por ch. Em decorrência, como se
vê na tabela a seguir:

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Literatura Portuguesa: Poesia

Tabela 1 - Palatalização latim/galego-português.

Latim Galego-português
PL plenu ~
cheo
planu chão
plicare chegar
CL clamare chamar
FL flagrare cheirar

2. Queda de - l- intervocálico, contribuindo para criar em galego-português vários grupos hiatos.


Exemplo: salire > sair; calente > caente (hoje quente); dolore > door (hoje dor); colore > coor
(hoje cor) etc. A queda não apareceu nem ao leste da Península Ibérica, porque o leonês e o
castelhano ignoraram tal mudança, nem ao sul, nos falares moçárabes.

3. Queda de n intervocálico e consequente nasalização da vogal precedente. Assim, vinu > v~i o;
manu > mão; luna > l~u a; bonu > bõo etc.

O galego-português constituía-se, entre outras, das seguintes características:

a) Alfabeto:

• confusão entre i/u, j/v, nh/nn, uso arbitrário de y.


• origem do til: bõa, grãde.
• aglutinação de palavras: nona (non a), sabel (sabe ele).
• trocava-se: c/ç, q/qu, ch/x, s, ss, ç/z.

b) Fonética:

• hiato: maa, leer, door, bêe.


• pronúncia de –or fechado: piôr, melhôr, mêôr, maiôr.

c) Morfologia:

• a partir do século XIII, houve muito estrangeirismo (galicismo, provençalismo, grecismo).


• artigos: o, a, lo, la, ilo, ila(s), ûu, îra(s).
• substantivos femininos: fim, mar, planeta, cometa.
• substantivos uniformes: terminados em –dor, -tor, -or, -nt, -ês. Ex: pastor, senhor.
• pronomes: eu, mego ou migo; tego ou tigo; lhi(s), sego ou sigo, lo(a), o(a).
• numerais: ûu, dous, cinque; primeiro, segundo, tercer, quarteiro; dois tanto, três tanto, cem
dobro; meo, melãde.
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Unidade I

• conjunção: et, ed (e), vel (ou pelo menos), mas porém, porém.
• advérbios; davante, dante (lugar), toste (cedo), cras (amanhã)
• interjeição: bofé, par Deus, guai.

d) Sintaxe:

• home/homem para indeterminar o sujeito.

Quanto ao vocabulário, a língua era constituída de vários arcaísmos, tais como: mi (mim), imigo
(inimigo), soidão, arruído, nado (nascido), ofeso (ofendido), trigança (pressa), asinha (depressa), grão
(grande), mor, peitar (subornar), garção (rapaz), comborço(a) (amante), coita (mágoa), solaz (consolo),
domaar (semana), trebelho (jogo, diversão).

Assim, a língua portuguesa passou por épocas ou fases, as quais são:

1. época pré-histórica: origens até o século IX.


2. época proto-histórica: século IX até XII.
3. época histórica: século XII em diante.
3.1. arcaica: século XII até XVI.
3.2. moderna: século XVI.

O galego-português é, portanto, a fase arcaica da língua portuguesa, bem como a língua da primitiva
poesia lírica peninsular. Após tantas disputas e guerras, o novo clima de paz fez com que a literatura
portuguesa se firmasse, ou seja, com que a poesia medieval portuguesa encontrasse seu auge no século
XIII.

Em síntese, a estruturação da língua portuguesa, o nascimento do reino português e a formação


da literatura do país em questão estão extremamente interligados. Conhecer a literatura portuguesa é
conhecer, também, as raízes literárias, sociais e históricas.

Aqui é Portugal1

O Tejo que molha Toledo


Mas não fica ali à toa
Cedo foge para Lisboa

Em Algarve uma prece
No azul e branco  azulejo
São Lorenzo ora em solfejo

1  Poema disponível em: <http://www.recantodasletras.com.br/poesias/>. Acesso em: 24/01/2012.


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Literatura Portuguesa: Poesia

Nordeste, o interior pudico


De altas rochas em montanhas
Esconde o mar que a terra banha

Poetas escritos na Arcádia


Botaram em versos nuas lusas
Sumo Almanaque das Musas

Viajantes em noites sem insônia


De perto de onde deságua o Tejo
Saíram a cravar colônias

Portus Cale já viveu em Roma


Mas quem o fez e o toma
É lusitano, lídimo português

Exemplo de aplicação

1) Esse poema de Roberto Chaim é contemporâneo. Que elementos poéticos recuperam a história
inicial de Portugal como nação autônoma?
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2) Indique uma característica cultural e outra religiosa portuguesa com base no poema.
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Comentário: O poema é atual e brasileiro, mas uma homenagem a Portugal. Sobre esse país, o leitor
pode recuperar a história, como a Península Ibérica não ter a divisão atual Portugal/Espanha, devido
à presença do famoso rio Tejo, que começa em Toledo (Espanha) e passa pela capital portuguesa. A
expressão “Portus Cale” é referência a Portucalense. Sobre a cultura, há, por exemplo, a referência aos
famosos azulejos, nas cores azul e branca. O aspecto religioso conta com a presença de São Lorenzo.

II. Até que ponto você consegue entender o conteúdo do texto a seguir, escrito em galego-português
(a fase arcaica da língua portuguesa)? Pode-se fazer um resumo ou reescrever o texto segundo a língua
atual.

“Como el-rey manda aos seus almuxarifes que nom leuem nenhuma cousa d’aqueles a que acaeçe
prigoo no mar.

Stabeleçemos que nenhum nom leue aaqueles que acaeçer perigoo no mar, assy dos da terra come
dos das outras, se acaeçer por britamento de naue ou de nauio, alguma cousa que andasse na naue
ou no nauio que aportase na rribeyra ou en alguum porto, mais os ssenhores d’essas cousas ajam-nas
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Unidade I

todas em pax, assy que os nossos almuxarifes nom leuem d’eles cousa, nem aquelles que de nos as terras
teuerem, nem nenhuum outro. Ca ssem rrazom pareçe que aquel que he atromentaado dar-lhi homem
outro tormento. Se per uentura alguum contra esta nossa constetiçom quizer hir, reteendo-lhi o sseu
auer, leuando dos dauamdictos alguma cousa, fecta primeiramente entrega das cousas que lhi filharom
ou perderom, perça quanto ouver” (Lei dos almoxárifes de D. Afonso II, datada de 1211).
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Comentários: Hoje seríamos motivo de brincadeira se escrevêssemos uma palavra iniciada com rr
ou ss, tal como ocorre na grafia de determinadas palavras na lei citada. Outra situação é o uso da letra
u para representar o fonema /v/. Esse uso ocorria porque o latim, língua que deu origem ao português,
não tinha a letra v. Constam também arcaísmos no texto, tais como: acaeçer (acontecer); britamento
(naufrágio), filhar (tomar).

O início de Portugal como nação autônoma aconteceu no período histórico nomeado como
Idade Média, sendo o sistema socioeconômico o feudalismo. Predominavam grupos sociais fechados,
impossibilitando mobilidade entre as classes. Havia também profunda ligação de dependência entre os
senhores feudais e seus vassalos, à qual se denominava vassalagem.

Os senhores feudais eram nobres de alta linhagem, os fidalgos (cavaleiros e escudeiros) e o clero, mas
também havia na sociedade os servos e escravos. Os trabalhadores eram vassalos dos senhores (nobres
e eclesiásticos) e estes, por sua vez, eram vassalos do rei.

Para entender melhor a terminologia dos estratos sociais presente na poesia medieval portuguesa,
esboçamos a constituição social no noroeste da Península, no século XIII:

• Nobreza: incluía os infanções, que são os representantes de linhagens antigas e conhecidas, e


os fidalgos, descendentes de cavaleiros vilãos que haviam ascendido à nobreza por suas posses.
Essa diferença aos poucos desaparece e todos os nobres são fidalgos. Entre os fidalgos, destacam-
se os ricos-homens, distintos pelo patrimônio, linhagem e familiaridade com o rei. Seu poder é
simbolizado pelo pendão (poder de recrutar e comandar homens) e caldeira (possibilidade de
alimentá-los com os seus recursos). Aqueles fidalgos que não podiam cumprir suas obrigações de
cavaleiro, pois não possuíam cavalo, eram considerados escudeiros, estrato inferior da nobreza.
• Cavalaria vilã: era essencialmente urbana, pois os cavaleiros viviam na cidade, tinham propriedade
rural, mas não um solar, como os nobres.
• Vilãos: constituídos pelos comerciantes, mesteirais (artesãos), pequenos proprietários rurais, que
formavam estrato superior. Lavradores, sejam servos, colonos, herdadores e malados (homens de
criação, mancebos etc.), formavam, por sua vez, o estrato inferior.
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Literatura Portuguesa: Poesia

• Funcionários, homens de lei e de pena: boticários, físicos (médicos), escrivães, tabeliães, juízes,
corregedores, meirinhos etc.
• Clero: incluía todos os estratos sociais. Tinha importância socioeconômica e atuava na conservação
e difusão da cultura.

Na época, a organização social era pautada por uma visão teocêntrica de mundo, ou seja, Deus era
tido como o centro do universo, um ser absoluto. O homem nasceu para obedecer, ou mesmo para seguir
um caminho predeterminado, sem opções, sem livre-arbítrio. Todos os atos humanos eram explicados
por forças ocultas. Por conseguinte, a Igreja era uma rica senhora feudal, responsável por difundir e
manter os preceitos do catolicismo, assim como divulgar a educação.

Saiba mais

Para entender mais sobre a Idade Média e vislumbrar um pouco a forma


de vida das pessoas nessa época, veja alguns filmes que a retratam:

• As brumas de Avalon (The mists of Avalon, 2001, EUA) – sobre o rei


Artur e a formação do país inglês, bem como sobre a relação entre rei e
vassalos.
• Os contos de Canterbury (I racconti di Canterbury, 1972, Itália) – narra,
além de fatos curiosos e pitorescos, a vida e os costumes do século XIV
na Inglaterra.
• O nome da rosa (The name of the rose, 1986, EUA) – trata da vida do
monastério e das relações hierárquicas entre os membros.

Quanto à educação formal, ela era restrita a um grupo pequeno, em geral o clero e poucos filhos dos
feudos, que sabiam ler e escrever. Como consequência, primeiro, a sociedade era predominantemente
oral e, segundo, a literatura da época era produzida por esses escassos indivíduos letrados.

Na verdade, a literatura, que se restringia à poesia, era totalmente dependente da música e da


coreografia, pois era feita para ter o acompanhamento musical de algum instrumento, sendo assim, as
apresentações dos trovadores se pareciam mais com performances.

As pessoas comumente envolvidas nas apresentações musicais e poéticas eram:

• Trovador: geralmente da nobreza, compunha os poemas por prazer.


• Jogral: que canta e recita composições dos outros, fazendo disso sua profissão.
• Segrel: classe intermediária entre o trovador e o jogral, apenas no galego-português. Distingue-
se do trovador, pois recebe pagamento pelo ofício, e do jogral, porque é fidalgo.

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Unidade I

• Menestrel: designação que os músicos passam a assumir quando o termo jogral passa a ser
pejorativo e designar somente o vagabundo ou jogral que faz graça, conhecido hoje pela figura
do bobo da corte.

Era poesia feita para ser cantada nas cortes do rei e de magnatas portugueses, e a compunham
todos aqueles que se julgavam com talento para tal. Na verdade, essa poesia era produzida pelo
pequeno grupo que sabia ler e escrever: desde o rei e os príncipes, os bastardos dos reis, os ricos-
homens e cavaleiros, escudeiros, até a gente socialmente mais desqualificada, vilãos que viviam
de cantar e tocar nas casas ricas. O acesso ao conhecimento e às letras era privilégio das classes
dominantes: clero e nobreza, contudo, de um lado, a constituição social do clero, com a inclusão de
indivíduo de condições e origens diversas, contribuía para diluir os limites rígidos da distribuição de
cultura; de outro lado, o gosto pela vida social desenvolvida entre a nobreza atraía uma população
talentosa, mas de condição inferior, para as quais o modelo da corte era estímulo e fator de
ascensão social.

Por isso, não causa estranheza o fato de a literatura inicial de Portugal ser produzida, inclusive,
por rei. Em Portugal, Dom Dinis, rei de 1279 a 1325, foi autor de 72 cantigas de amor, 51 de amigo, 3
pastorelas e 11 cantigas de escárnio e maldizer. D. Afonso X, rei de Leão e Castela entre 1252 a 1284,
escreveu Cantigas de Santa Maria e 44 cantigas profanas, sendo estas 2 de amor, 2 de amigo, 34 de
escárnio e maldizer e 4 tenções com outros trovadores.

Quanto à posição social dos outros trovadores, exemplificam-se alguns casos, com base em Vieira
(1987):

• Paai (Paio) Soares de Taveirós: pertenceu à linhagem dos Velhos, família de antiga nobreza da
região do Lima.
• Martim Soares: sua família não era nobre, mas tinha posses. Era de Riba de Lima, atual Ponte de
Lima.
• Pedr’Amigo de Sevilha: foi clérigo, provavelmente da região de Betanzos, e frequentou a corte de
Afonso X.

Essa poesia, hoje conhecida como trovadoresca, surgiu em Provença, região sul da França conhecida
como Langue d´Oc ou Languedócio, no século XII (Baixa Idade Média), em torno de 1189/1198, e foi
finalizada em 1434.

A França desenvolveu primeiro uma literatura sentimental, cortês, elegante e refinada, que
transforma a mulher no santuário da inspiração lírica. A intensa influência romana, o clima mais ameno
e a prosperidade econômica deram azo a esse espírito mais lírico, já ao norte predominava o espírito
guerreiro, por isso cultivou mais o heroísmo das novelas de cavalaria.

A mensagem poética do trovador provençal é a de que o amor é fonte da poesia e é leal, inatingível
e sem recompensa – é o fin amors, ou o amor cortês, que traçou uma temática comum para as cantigas
de amor, a que conhecemos como convencionalismo amoroso, em que podemos ver:
18
Literatura Portuguesa: Poesia

• Submissão: vassalagem humilde e paciente.


• Mesura: discrição e moderação na linguagem para não comprometer a reputação da dama.
• Elogio impossível: impossibilidade de traduzir em palavras os atributos e a formosura da dama.
• Erotismo/drama passional: perturbação dos sentidos e a impossibilidade de se declarar diante de
mulher tão perturbadora.

O amor cortês está claramente ligado à vida palaciana e emula a estrutura de classes do mundo
medieval, que vemos reproduzida na poesia, como observaremos mais adiante.

Mais tarde, esse culto à mulher é substituído pelo culto à Virgem Maria, que a partir de 1209 foi
imposto como tema oficial, depois das sanguinárias cruzadas do Papa Inocêncio III. Por isso, a lírica
amorosa das cantigas de amor chega para nós evidenciando uma postura maior de idealização da
mulher amada, cujo erotismo é bastante sutil.

É do século XII o mais antigo documento literário escrito na língua galego-portuguesa: a cantiga
conhecida como A Ribeirinha (1198 ou 1189), escrita por Paio Soares de Taveirós para Maria Pais da
Ribeira, amante de D. Sancho I.

A literatura desse período a que nos referimos, o Trovadorismo, é predominantemente poética, feita
sob a forma de cantigas, canções ou cantares. A literatura em prosa é posterior e aparece definitivamente
no fim do século XIV.

Observação
A poesia medieval portuguesa chegou ao seu apogeu primeiramente na
corte de D. Afonso X, depois na de D. Afonso III, de Portugal, e na do neto
português do Rei Sábio, D. Dinis.

Em síntese, o primeiro momento literário de Portugal chama-se Trovadorismo, um termo que vem
do verbo trouver (achar). O termo “trovadorismo” é originário de “trova”, que também deu origem à
palavra trovador, que designa o criador dos textos literários. Trovador, troubadour em francês, é aquele
que “acha sua cantiga”.

Os poemas naquela época eram denominados de cantigas por serem acompanhados de música,
canto e instrumentos musicais. Tais cantigas eram escritas e cantadas em galego-português, idioma
formador de uma unidade linguística entre Portugal e a Galiza.

As cantigas trovadorescas dividiam-se em dois tipos principais: cantigas lírico-amorosas e cantigas


satíricas.

O Trovadorismo é anterior à invenção da prensa, as cantigas eram destinadas à transmissão


oral, por isso muitas se perderam e o que chegou até nós são aquelas que foram compiladas em
19
Unidade I

cancioneiros, cujos copistas registravam à mão as cantigas por ordem de reis, que faziam a vez de
um mecenas.

Os cancioneiros mais conhecidos das compilações peninsulares escritas em língua galego portuguesa são:

• Cancioneiro d´Ajuda: século XIII, portanto o único que remonta à época trovadoresca.
• Cancioneiro da Vaticana: na biblioteca do Vaticano.
• Cancioneiro da Biblioteca Nacional: inclui um tratado da poética trovadoresca.

Esses três cancioneiros contêm tudo que nos resta da lírica trovadoresca, desde os fins do século
XII até meados do XIV. A cópia do Cancioneiro d’Ajuda não foi completada em todos os seus detalhes e
não temos, por conseguinte, a pauta musical das cantigas. Foi achado pelo antiquário de Madri Pedro
Vindel apenas em 1914, de um cancioneirinho de Martim Codax, contendo sete cantigas de amigo, das
quais seis acompanhadas de notação musical. No ano seguinte, de acordo com Vieira (1987), Vindel
publicou pouquíssimos exemplares com reprodução fotográfica do manuscrito, propiciando edições
futuras, críticas e estudos das cantigas.

A leitura dos cancioneiros no seu estado original é difícil tanto para leigos quanto para especialistas,
devido aos estragos naturais causados pelo tempo e outros fatores, como uso indevido, causando páginas
arrancadas e margens cortadas. Além disso, dois dos cancioneiros foram copiados por amanuenses
italianos e ibéricos de origem e cultura diversas, em diferentes momentos da evolução da língua. Ainda
segundo Vieira:

O primeiro resultado verdadeiramente significativo, em termos de leitura


e quantidade de informação posta ao dispor dos leitores, como fruto de
pesquisas que lhe consumiram pelo menos 25 anos de vida, foi oferecido
por Carolina Michaëlis de Vasconcelos, ao publicar em 1904 a edição do
Cancioneiro da Ajuda, em dois volumes (VIEIRA, 1987, p. 13).

Figura 2 - Fotocópia de uma página do Cancioneiro d’Ajuda.

20
Literatura Portuguesa: Poesia

No que se refere aos gêneros, os poemas contidos nos cancioneiros são agrupados em:

1. Cantigas de amor
2. Cantigas de amigo
3. Cantigas de escárnio e maldizer.

O critério para distinguir as cantigas de amor das cantigas de amigo é o emissor em cada caso: se a
voz do texto é masculina, é de amor; se é feminina, então é de amigo. As cantigas de escárnio e maldizer
distinguem-se pela intenção ofensiva: se as palavras são encobertas, temos as cantigas de escárnio; se
ofendem abertamente, são cantigas de maldizer.

1.1 Cantigas de amor

Cara aluna, imagine receber uma mensagem escrita ou cantada com os seguintes versos:

Como morreu quem nunca bem


Houve da rem que mais amou,
E quem viu quanto receou
D’ela, e foi morto por en:
Ai, mia senhor, assi moir’eu!

Apesar de a língua ser arcaica, nós – leitoras – com certeza suspiraríamos ao ler ou ouvir de um
homem que declara “morrer de amor” por nós. Trata-se da primeira estrofe de uma cantiga de amor,
criada por Paai Soares de Taveirós (apud VIEIRA, 1987, p. 41), completa a seguir:

Como morreu quem nunca bem


Houve da rem que mais amou,
E quem viu quanto receou
D’ela, e foi morto por en:
Ai, mia senhor, assi moir’eu!

Como morreu quem foi amar


Quem lhe nunca quis bem fazer,
E de que lhe fez Deus veer
De que foi morto com pesar:
Ai, mia senhor, assi moir’eu!

Com’home que ensandeceu,


Senhor, com gram pesar que viu
E nom foi ledo nem dormiu
Depois, mia senhor, e morreu:
Ai, mia senhor, assi moir’eu!

21
Unidade I

Como morreu quem amou tal


Dona que lhe nunca fez bem,
E quen’a viu levar a quem
A nom valia, nen’a val:
Ai, mia senhor, assi moir’eu!

Segundo o crítico literário Moisés (2008), o mais provável é que essa cantiga tenha suas raízes na
Provença, uma região da França que possuía intensa atividade cultural. Muitos jograis franceses (uma
espécie de artista saltimbanco) passavam por Lisboa trazendo a nova moda poética.

As cantigas de amor se caracterizam por apresentarem uma voz lírica masculina que, como um
vassalo, portanto subserviente, confessa seu amor a uma mulher inacessível, geralmente pela sua classe
social, muito diferente daquele, ou insensível aos apelos amorosos.

O tom é sempre de lamúria e queixa, e se submete a formalidades e convenções, obedecendo


às regras de convivência na corte e do amor convencional da poesia provençal, como o referir-se
à senhora como mia senhor (minha senhora) ou mia dona (minha dona), expressões do galego-
português.

Reflete, portanto, uma forma platônica de amor, posto que a amada é idealizada, tida como
inatingível, forçando assim o impulso erótico a sublimar-se; é a chamada coita de amor, que reproduz
as relações da sociedade feudal de suserania e vassalagem.

Possui linguagem mais elaborada em relação às cantigas de amigo e faz menos uso do recurso
facilitador do refrão.

Didaticamente, utilizamos o ano de 1198 (ou 1189) para marcar o início da literatura portuguesa,
uma vez que é desta data o primeiro documento literário encontrado, A Ribeirinha ou Cantiga de
Garvaia, escrita por Paio Soares de Taveirós, endereçada a Maria Pais Ribeiro, a favorita de D. Sancho I,
filho de Afonso Henriques.

Vejamos a seguir a cantiga Ribeirinha ou Cantiga de Garvaia (Taveirós apud MOISÉS, 2006, pp. 16-
17).

Cantiga de Garvaia

No mundo non me sei parelha,


mentre me for como me vai,
ca já moiro por vós – e ai!
mia senhor branca e vermelha,
queredes que vos retraia
quando vos eu vi em saia!
Mau dia me levantei
que vos enton non vi fea!
22
Literatura Portuguesa: Poesia

E, mia senhor, dês aquel dia´, ai!


me foi a mi mui mal,
e vós, filha de don Paai
Moniz, e bem vos semelha
d´haver eu por vós guarvaia,
pois eu, mia senhor, d´alfaia
nunca de vós houve nen hei
valia d´ua correa.

Vocabulário:

non me sei parelha: não conheço quem se compare a mim


mentre: enquanto
branca e vermelha: alva e de faces rosadas
retraia: retrate, represente
en saia: sem manto
que: pois
ben vos semelha: bem vos parece
d´haver eu por vós guarvaia: que eu deva receber, por vosso intermédio, um luxuoso vestuário de
côrte
correa: qualquer coisa de ínfimo valor

Como podemos observar, há entre eles a “vassalagem amorosa”. Ele se coloca em uma posição
inferior, como um vassalo, e a mulher em uma posição superior, como sua senhora. O eu lírico
se mostra muito respeitoso, seu amor é cortês e convencional, ou seja, não há uma proximidade
física.

Lembrete

O trovador chamava sua amada de “mia senhor” ou “mia dona”. Não


havia o feminino “senhora”.

Vejamos outra cantiga de amor no exemplo a seguir (Dinis apud MOISÉS, 2006, p. 19):

Cantiga

Hun tal home sei eu, ai ben talhada,


que por vós tem a sa morte chegada;
vede quem é e seed’em nenbrada;
eu, mia dona.

Hun tal home sei eu que preto sente


de si morte chegada certamente;
23
Unidade I

vede quem é e venha-vos em mente;


eu, mia dona.

Hun tal home sei eu, aquest’oide:


que por vós morr’ e vo-lo em partide,
vede quem é e non xe vos obride;
eu, mia dona.

Vocabulário:

hun tal home, sei eu: eu conheço um tal homem


ben talhada: formosa
seed’em nembrada: lembrai-vos disso
preto: perto
venha-vos em mente: tende em mente
aquest’oide: ouvi isso
vo-lo em partide: afastai-o disso (em – da morte)
non xe vos obride: não vos olvideis (esqueçais)

Note como o eu lírico dessa cantiga, cujo autor é D. Dinis, sofre por sua amada, a ponto de declarar
que irá morrer de amor.

Agora, observe como a música Meu bem querer, de Djavan (1980), revela os mesmos moldes das
cantigas trovadorescas.

Meu bem-querer
É segredo, é sagrado
Está sacramentado
Em meu coração

Meu bem-querer
Tem um quê de pecado
Acariciado pela emoção

Meu bem-querer, meu encanto


Tô sofrendo tanto

Amor
E o que é o sofrer
Para mim que estou
Jurado pra morrer de amor?

De forma geral, com base em Spina (1956), as cantigas de amor seguem estes temas:

24
Literatura Portuguesa: Poesia

• submissão absoluta à sua dama;


• vassalagem humilde e paciente;
• promessa de honrá-la e servi-la com fidelidade;
• uso do senhal (imagem ou pseudônimo poético com que o trovador oculta o nome da mulher
amada);
• mesura, prudência, moderação, a fim de não abalar a reputação da dama, pois a inobservância
desse preceito acarreta a sanha da mulher;
• a mulher excede a todas no mundo em formosura (de que resulta o tema do elogio impossível);
• por ela, o trovador despreza todos os títulos, as riquezas e a posse de todos os impérios;
• desprezo dos intrigantes da vida amorosa;
• invocação de mensageiros da paixão do amante (pássaros);
• presença de confidentes da tragédia amorosa.

Entre os sintomas mais comuns do amor cortês estão:

• a perturbação dos sentidos (que atinge às vezes a loucura);


• a impossibilidade de declarar-se, quando em presença da mulher; então embarga-lhe a voz;
• a perda do apetite, a insônia, o tormento doloroso, a doença e a morte como solução do seu
drama passional;
• às vezes, certo masoquismo, certo prazer na humilhação e no sofrimento amoroso.

1.2 Cantigas de amigo

As cantigas de amigo são originárias da própria Península Ibérica, não existiram na lírica provençal
e têm, portanto, origem popular, o que explica o vocabulário escasso, os arcaísmos e as repetições tanto
no recurso do refrão como nos paralelismos.

Caracteriza-se pelo uso de eu lírico feminino, que dirige seu apelo amoroso à natureza e não raro é
ambientada no meio rural ou marítimo.

Assim, o eu lírico feminino, de camada social inferior, se apresenta como uma pastora ou camponesa,
portanto distante da idealização da figura feminina das cantigas de amor. Essa moça, concebida de
modo mais realista, está à espera de seu amigo, amado ou amante, e não raro queixa-se à mãe, às
amigas ou à natureza o descaso de seu amigo, ou o fato de ele não chegar ao que combinaram.

Apesar de serem escritas por homens, o trovador coloca-se no lugar de uma mulher simples, do povo,
uma camponesa abandonada por seu amado. O motivo do abandono pode ser a guerra, as aventuras no
mar ou outra mulher. Temos aqui um amor não convencional, que insinua um contato físico.
25
Unidade I

As cantigas de amigo são mais simples que as de amor. O paralelismo e os refrões são usados em
abundância. A mulher nunca se dirige diretamente a seu amado, posto que este nunca se encontra, o
que configura a coita amorosa.

As cantigas de amigo recebem nomes específicos, dependendo da maneira como são ambientadas:

• Cantiga de barcarola: no mar.


• Cantiga de serranilha ou pastorela: no campo.
• Cantiga de bailada: em ambientes de festa.
• Cantiga de romaria: em ambiente religioso.

Veja a seguir um exemplo de cantiga de serranilha (Dinis apud MOISÉS, 2006, p. 25):

Ai flores, ai, flores do verde pino,


se sabedes novas do meu amigo?
ai, Deus, e u é?

Ai flores, ai flores do verde ramo,


se sabedes novas do meu amado?
ai, Deus, e u é?

Se sabedes novas do meu amigo,


aquel que mentiu do que pôs comigo?
ai, Deus, e u é?

Se sabedes novas do meu amado,


aquel que mentiu do que mi á jurado?
ai, Deus, e u é?

Vós me preguntades polo voss’amigo?


E eu ben vos digo que é san’e vivo:
ai, Deus, e u é?

Vós me preguntades polo voss’amado?


E eu ben vos digo que é viv’e sano
ai, Deus, e u é?

E eu ben vos digo que é san’e vivo,


E seerá vosc’ant’o prazo saído:
ai, Deus, e u é?

E eu ben vos digo que é viv’esano.


E seerá vosc’ant’o prazo passado:
ai, Deus, e u é?

26
Literatura Portuguesa: Poesia

Vocabulário:

pino: pinheiro
u: onde
pôs: combinou
san’e vivo: são e vivo
e será vosc’ant’ o prazo saído/passado: e estará convosco quando for a hora certa

Note que, nas três primeiras estrofes, o eu lírico feminino se dirige à natureza, pedindo notícias de
seu namorado. Nas últimas, a natureza lhe responde, tranquilizando-a.

Como recurso estilístico, o trovador utiliza o paralelismo (repetição dos primeiros versos) e o
refrão (repetição dos últimos versos). Esses recursos davam maior musicalidade e enfatizavam sua
dor.

Agora, veja a seguir uma música de Chico Buarque (1967) que retoma as características de uma
cantiga de amigo:

Com açúcar, com afeto

Com açúcar, com afeto


Fiz seu doce predileto
Pra você parar em casa
Qual o quê
Com seu terno mais bonito
Você sai, não acredito
Quando diz que não se atrasa
Você diz que é um operário
Sai em busca de um salário
Pra poder me sustentar
Qual o quê
[...]
Diz pra eu não ficar sentida
Diz que vai mudar de vida
Pra agradar meu coração
E ao lhe ver assim cansado
Maltrapilho e maltratado
Como vou me aborrecer
Qual o quê
Logo vou esquentar seu prato
Dou um beijo em seu retrato
E abro meus braços pra você

27
Unidade I

1.3 Cantigas satíricas: cantigas de escárnio e maldizer

As cantigas satíricas possuem apelo popular por seu caráter cômico e transgressivo. Têm o intuito
de satirizar os aspectos da vida feudal, sem poupar nenhuma camada social, atingindo nobreza, clero e
povo. Muitas vezes podemos distinguir o alvo dos ataques dos trovadores, como outro poeta e algumas
mulheres de moral duvidosa.

Essas cantigas cultuam valores associados ao riso, como o carnavalesco, a sátira e o cômico, o
grotesco e o obsceno. Apresentam pouco valor estético, mas são bons documentos históricos, pois
registram costumes da época.

A frequência com que foram cultivadas mostra que a produção dessas cantigas era muito comum
e que elas não sofriam censuras. Hoje sabemos que, de 154 trovadores portugueses, 93 dedicaram-se à
sátira.

Nas cantigas de escárnio, há uma crítica indireta e nas de maldizer, direta, inclusive com a citação
de nomes. Contudo, muitas vezes é difícil diferenciá-las. As cantigas de escárnio constroem, por meio
do humor e da ironia, uma crítica indireta, valendo-se da ambiguidade e do sarcasmo. Comumente
encobrem o nome da pessoa satirizada, a fim de que ela não seja identificada em uma leitura superficial.
Veja o exemplo a seguir (Guilhade apud MOISÉS, 2006, pp. 29-30).

Cantiga

Ai dona fea! Foste-vos queixar


porque vos nunca louv´en meu trobar
mais ora quero fazer un cantar
em que vos loarei toda via;
e vedes como vos quero loar:
dona fea, velha e sandia!

Ai dona fea! Se Deus mi perdon!


e pois havedes tan gran coraçon
que vos eu loe en esta razon,
vos quero já loar toda via;
e vedes qual será a loaçon:
dona fea, velha e sandia!

Dona fea, nunca vos eu loei


en meu trobar, pero muito trobei;
mais ora já un bon cantar farei
em que vos loarei toda via;
e direi-vos como vos loarei:
dona fea, velha e sandia!

28
Literatura Portuguesa: Poesia

Vocabulário:

loar: louvar
ora: agora
toda via: sempre, completamente
sandia: louca
que vos eu loe en esta razon: mereceis a justiça de eu louvá-la
loaçon: louvor
pero: todavia

Essa cantiga mostra o trovador fazendo troça com uma dama que lhe cobrou uma trova,
então ele justifica sua falta dizendo que não fez nenhuma trova a ela, mas que fará agora
chamando-a de feia, velha e louca. Assim, ele justifica o motivo por que nunca havia feito
trova alguma para ela, dizendo que não é merecedora de seu cantar, já que sua beleza não
está à altura de uma cantiga.

Consideradas mais ofensivas que as de escárnio, as cantigas de maldizer satirizam de maneira direta,
citando, muitas vezes, o nome do destinatário da cantiga.

Aqui costumam-se empregar expressões grosseiras e palavras de baixo calão, veiculando, não
raro, conteúdo obsceno. Veja a trova a seguir, dirigida a Maria Dominga (Ponte apud MOISÉS,
2006, p. 52):

Quen a sa filha quiserdar


mester, con que sábia guarir
a Maria Doming’ á-d’ir,
que a saberá bem mostrar;
e direi-vos que lhi fará:
ante dun mês lh’ amostrará
como sábia mui ben ambrar.
Ca me lhi vej’ eu ensinar
ua sa filha e nodrir;

e quen sas manhas ben cousir


aquesto pode ben jurar:
que, des Paris atees acá,
molher de seus dias non á
que tan ben s’acorde d’ ambrar.

E quen d’aver ouver sabor


non ponha sa filh’a tecer
nen a cordas nen a coser,
mentr’esta meestr’aqui for,
que lhi mostrará tal mester,
29
Unidade I

por que seja rica molher,


ergo si lhi minguar lavor.

E será en mais sabedor,


por estas artes aprender;
de mais, quanto quiser saber
sabê-lo pode muui melhor;
e, pois tod’esto bem souber,
guarrá assi como poder;
de mais, guarrá per seu lavor.

Vocabulário:

Sa: sua
Mester: profissão
Sábia: saiba
Guarir: prosperar
Á-d’ir: há de ir
Mostrar: ensinar
Ambrar: andar com requebro e, por extensão, fornicar
Ca me lhi vej’ei ensinar: porque já a vejo ensinar
Nodrir: sustentar
Manhas: artes, maneiras
Cousir: considerar
Aquesto pode ben jurar: isto pode dizer
Atees: até
E quen d’aver ouver sabor: e quem tem o desejo de enriquecer
Mentr’esta meestr’aqui for: enquanto esta mestra aqui estiver
Por que: para que
Ergo se lhi minguar lavor: a não ser que lhe faltem homens
En: disso
De mais: além disso
E, pois tod’esto bem souber: e depois que aprender tudo isso
Guarrá: sustentar-se-á
Lavor: trabalho

Nesse texto o trovador, de maneira bastante grosseira, ataca essa mulher, Maria Dominga, dizendo
que aquele que quiser dar um ofício lucrativo a sua filha deve deixar que ela a instrua, insinuando que
Maria Dominga seja uma prostituta.

30
Literatura Portuguesa: Poesia

Saiba mais

Indico dois materiais para conhecer mais cantigas medievais. Um


deles é o site do Projecto Vercial. Outro é o livro de Yara Frateschi
Vieira, que consegue tratar dos três tipos de cantiga e apresentar uma
antologia de forma didática e gostosa. É um excelente livro de consulta,
principalmente para quem trabalha em sala de aula, com aluno do
ensino médio.

Projecto Vercial. Disponível em: <http://alfarrabio.di.uminho.pt/vercial/


trovador.htm>

VIEIRA, Y. F. Poesia medieval: literatura portuguesa. São Paulo: Global,


1987.

Quanto à versificação, a grande maioria dos poemas trovadorescos possui três ou quatro estrofes –
ou cobras, na terminologia da época, sendo a minoria constituída de duas estrofes e, menos ainda, de
uma estrofe, podendo ser legitimamente levantada a hipótese de se tratarem de poemas incompletos
(VIEIRA, 1987).

O tipo de estrofe mais comum contém seis versos, unidos por três rimas, sendo elas ABBACC ou
ABABCC. Outra formação é a estrofe de sete versos, sendo os seis primeiros unidos por três rimas e o
último retomando uma das duas rimas iniciais. Um terceiro tipo compõe-se de dístico monorrimo mais
um verso com rima nova, o qual se estende sempre como refrão AAB.

O verso mais comum é o decassílabo; outra possibilidade são estrofes monométricas compostas de
versos de 5 a 16 sílabas e estrofes polimétricas em 113 combinações diversas.

Depois das três ou quatro estrofes, os trovadores podiam acrescentar alguns versos (de um a quatro)
para completar o tema desenvolvido. Esses versos finais – fiindas – devem rimar com a última estrofe
ou, no caso de a cantiga possuir um refrão, com este.

As cantigas possuidoras de refrão chamam-se “de refrão” e se opõem às de “mestria”, que não
têm refrão. A grande maioria das cantigas de amigo é de refrão, enquanto as de amor e de escárnio e
maldizer equilibram-se, mais inclinadas para as de mestria.

A característica formal da cantiga de amigo é, contudo, a estrutura de repetição, de retorno ou


paralelismo. A estrutura básica paralelística, sujeita a variações, consiste em considerar cada verso como
composta de duas partes, uma invariável e outra variável. A unidade não é o verso, mas a sequência
constituída por dois pares de versos. O esquema seria o seguinte (VIEIRA, 1987, p. 19):

31
Unidade I

Verso 1 A # B
rima
2 C # D
sinonímia
3 A # B’ sinonímia
rima

4 C # D’

B e D, B’ e D’ relacionam-se por rima; B e B’, D e D’ por sinonímia. Vejamos como o esquema funciona
na barcarola de Joam Zorro:

A B
Verso 1 Per ribeira # do rio
C D
2 vi remar o navio
Refrão e sabor hei da ribeira.
A B’
3 Per ribeira # do alto
C D’
4 vi remar # o barco
e sabor hei da ribeira.

Para continuar o poema, o recurso empregado é a repetição, mas de uma nova maneira, como vemos
pelo esquema a seguir:

Verso 5 C # D

6 E # F

7 C # D’

8 E # F’

Portanto, em sequência de oito versos, dispostos em pares, apenas três versos apresentam novidade
no poema. A cantiga anterior iniciada continua assim:

32
Literatura Portuguesa: Poesia

A D
Verso 5 Vi remar # o navio:
E F
6 i vai # o meu amigo,
Refrão e sabor hei da ribeira.
C D’
7 Vi remar # o barco:
E F’
8 i vai # o meu amado,
e sabor hei da ribeira.

O processo pode parar nesse ponto ou continuar:

E F
Verso 9 I vai # o meu amigo,
G H
10 quer-me levar # consigo,
Refrão e sabor hei da ribeira.
E F’
11 I vai # o meu amado,
G H’
12 quer-me levar # de grado,
e sabor hei da ribeira.

A estrutura paralelística é característica das cantigas de amigo, mas não é exclusiva delas, uma
vez que nem todas as cantigas de amigo têm tal estrutura, e algumas de amor e satíricas recorrem
a ela.

Para ajudá-lo em suas futuras leituras de cantigas medievais, encerro esse período literário dispondo
um glossário (VIEIRA, 1987):

33
Unidade I

Acoomiar – recusar
Afam – trabalho, esforço
Aficado – apertado, perseguido
Aginha – depressa
Al – outra coisa
Alá – lá, então
Alacram – escorpião
Alfaia – presente, dom
Alfaraz – cavalo árabe muito veloz
Alhur – em outro lugar
Aló – lá, ali
Alto – ribeira, rio
Antejo – aborrecimento, tédio
Aqueste, a, o – este, esta, isto
Ar – de novo, também
Arçom – arção
Avem – acontece
B

Bafordar – praticar bafordo (exercício de armas como jogo ou esporte)


Baroncinho – varãozinho
Beeito – bento, bendito
Bragas – cuecas

Ca – pois, porque; que; ca non – e


Calheiro – cano de madeira
Carreira – caminho
Chanto – pranto
Cochõa – mulher de baixa condição social
Crerezia – clerezia, cultura

Delgada – blusa de tecido fino


Delgado – esbelto, formoso
Delho, a – dele,a
Departir – dizer, contar
Dõa – dom, presente
Dormom – barco pequeno
Drudo – amante
E
34
Literatura Portuguesa: Poesia

Eixerdado – deserdado
Ementar – discorrer, falar
Empero – porém
En – ende
Ende – disso, daí
Enfenger – fingir
Er – também, além disso, outra vez
Escaecer – esquecer
Espedir – despedir

F
Ferido – expedição militar
Festinho – rápido
Fezo – 3ª p.s. perf. ind. de fazer
Filhar – tomar
Fontana – fonte
Frol – flor

G
Gaar ou gãar – ganhar
Galeom – galeão
Galiom – galo novo
Garvaia – manto real
Guarir – curar, curar-se
Guisa – forma, maneira

H
Ham – haver
Home – homem

I
I – aí, nisso

L
Lazerar – sofrer
Ledo – alegre
Ler – praia
Levado – levantado, alto
Lezer – consolação, prazer
Loaçom – elogio, louvar

35
Unidade I

Mãer – pousar, dormir


Mais – mas
Maleza – maldade
Maninho – estéril
Manselinho – doce, harmonioso
Meezinha – remédio
Mente – mente, pensamento
Mentre – enquanto
Meselo – miserável
Miscrar – misturar
Mixom – esforço, trabalho, canseira
Moesteiro – mosteiro
Monteiro – caçador de monte

Nado, a – nascido, a
Nembrar – lembrar
No – quem no
Nulho, a – nenhum, a

Ogano – este ano


Oimais – de hoje em diante
Oir – ouvir
Ora – agora
Osmar – estimar, calcular a medida

Pagar-se – sentir prazer


Parelha – par
Pear – peidar
Pero – mas, contudo
Pois – depois
Preçar – apreciar
Preito – intenção, proposta
Prender – tomar, receber
Prez – dignidade, estima
Prol – proveito
Punhar – esforçar-se, procurar
36
Literatura Portuguesa: Poesia

Q
Quebranto – prejuízo
Quedo – quieto
Quige – 1ª p. s. perf. ind. de querer
Quitar – tirar, livrar

R
Rafece – vil, ordinário
Rapaz – lacaio, servente de escudeiro
Razõar – falar
Reedor – cortador de cabelo
Rem – coisa
Retraer – retratar, descrever
Roussar – violar

S
Sabor – prazer
Sandece – loucura
Sanha – ira, raiva
Sazom – estação, tempo, ocasião
Sen – juízo, pensar
Senlheiro – sozinho, único
Sirgo – seda
Só – sob, debaixo
Soer – costumar
Sol – 3ª p. s. pres. ind. de soer
Sol – nem sequer
Sol que – assim que; logo que
Solaz – prazer, consolação

T
Talho – categoria
Temudo – temido
Tolher – tirar
Torto – erro
Trager – trazer
Trá-lo – atrás do, além do
Trobar – trovar, fazer trovas

U
U – onde, quando
37
Unidade I

Varõa – de varom: barão, senhor; mulher nobre


Veiro, a – de cores variadas
Vel – pelo menos, sequer
Velido, a – formoso
Vençudo, a – vencido
Verão – a primavera
Vesso – verso
Vigo – cidade da Galiza
Viir – vir
Virgo – donzela
Volver – mexer, revolver

No mundo non me sei parelha,


mentre me for como me vai,
ca já moiro por vós – e ai!
mia senhor branca e vermelha,
queredes que vos retraia
quando vos eu vi em saia!
Mau dia me levantei
que vos enton non vi fea!

E, mia senhor, dês aquel dia´, ai!


me foi a mi mui mal,
e vós, filha de don Paai
Moniz, e bem vos semelha
d´haver eu por vós guarvaia,
pois eu, mia senhor, d´alfaia
nunca de vós houve nen hei
valia d´ua correa.
(Taveirós apud MOISÉS, 2006, pp. 16-17)

Exemplo de aplicação

Nessa cantiga, uma regra é rompida na relação entre o trovador e sua amada. Qual?
__________________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________

Comentários: A cantiga de amor é marcada pela relação de vassalagem e o amor entre o vassalo e a
amada ou o amor do vassalo não correspondido é ocorrido em segredo. No entanto, na cantiga o nome
da amada é revelado, quando o trovador declara: “e vós, filha de don Paai / Moniz, e bem vos semelha”.

38
Literatura Portuguesa: Poesia

Se eu pudesse desamar
a quem me sempre desamou,
e podess’ algum mal buscar
a quem me sempre mal buscou!
Assi me vingaria eu,
se eu pudesse coita dar
a quem me sempre coita deu.

Mais sol non posso eu enganar


meu coraçom, que m’enganou,
por quanto me faz desejar
a quem me nunca desejou.
E por esto nom dormio eu,
porque non posso coita dar
a quem me sempre coita deu.

Mais rog’a Deus que desempar


a quem m’assi desamparou,
ou que podess’eu destorvar
a quem me sempre destorvou.
E logo dormiria eu,
se eu pudesse coita dar
a quem me sempre coita deu.

Vel que ousass’em preguntar


a quem me nunca preguntou,
per que me fez em si cuidar,
pois ela nunca em mim cuidou.
E por estol azero eu:
porque non poss’eu coita dar
a quem mi sempre coita deu.

Exemplo de aplicação

A cantiga que acabou de ler é do segrel Pero da Ponte (apud MOISÉS, 2006):

a) Primeiramente, identifique o tipo de cantiga, comprovando sua resposta por meio do tema.
______________________________________________________________________________

b) Existem recursos interessantes na cantiga. Identifique exemplo de versos em que ocorre dobre
(repetição de palavras) e em que ocorre mordobre (repetição de formas verbais).
______________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________
39
Unidade I

Comentários: O trovador, ao falar de seu sofrimento amoroso (coita) e desejar vingança, ou seja,
causar sofrimento à pessoa amada, marca um exemplo de cantiga de amor. No fim da cantiga, temos
outra prova no uso do pronome “ela”, indicando que a voz que fala no texto é masculina.

Quanto ao recurso estético da cantiga, encontramos, além de rima cruzada (ABAB) e refrão, o dobre
e mordobre em todas as estrofes.

Aproximadamente de 1100 a 1280, seis gerações de trovadores cantam como o amor é


um princípio vivificador [...]. O amante, totalmente submisso à sua dama, deve-lhe um longo
e total serviço amoroso sem esperar recompensa (PASTOREAU, 1989, p. 144).

Exemplo de aplicação

O texto que acabou de ler é de Michel Pastoreau, professor de antropologia histórica na École des
Etudes en Sciences Sociales, em Paris, e um dos principais pesquisadores das populações europeias
medievais.

De que modo as cantigas lírico-amorosas do Trovadorismo ilustram a estratificação da sociedade


feudal? Reflita e comprove nas cantigas.
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______________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________

Comentários: Segundo estudiosos das cantigas de amor, a vassalagem amorosa, que consiste
no fato de o homem pôr-se inferior à amada, trata-se de uma inferioridade moral. Ou seja, a amada
é moralmente superior à voz masculina que declara seu amor. No entanto, verifica-se que o jogo
superioridade x inferioridade deve-se mais à condição social. Na verdade, a mulher faz parte de uma
classe acima da do homem.

I
Vi eu, mia madr’, andar 
as barcas no mar:
e moiro-me d’amor. 
Foi eu, madre, veer 
as barcas eno ler: 
e moiro-me d’amor. 
As barcas eno mar 
a foi-las aguardar: 
e moiro-me d’amor 
40
Literatura Portuguesa: Poesia

As barcas eno ler 


E foi-las atender  
e moiro-me d’amor 
E foi-las aguardar 
e non o pud’achar: 
e moiro-me d’amor.

(Torneol apud VIEIRA, 1987)

ler – praia
atender – esperar
não o pud’achar – não o pude achar

II

Que prazer tens, senhor,


de me fazerdes mal por bem
(eu) que vos quis e quero e por isso
peç´eu tant´a Nosso Senhor
que vos mud´êsse coração,
que mi tem tão sem razão.

Prazer tens do meu mal,


mas (eu) vos amo mais que a mim,
e por isso peç´a Deus assim,
que sabe quanto é meu mal,
que vos mud´êsse coração,
que mi tem tão sem razão.

Muito vos praz do mal que sofro,


luz d´estes olhos meus,
e por isto peç´eu a Deus,
que sabe a coita que sofro,
que vos mud´êsse coração,
que mi tem tão sem razão.
E, se o mudar, então
Possa eu viver, se não, não.
(Dinis apud MOISÉS, 2006, p. 52)

peç´eu tant´ – peço eu tanto


mud´êsse – mude esse

41
Unidade I

Exemplo de aplicação

Em relação às cantigas apresentadas:

a) Classifique-as, extraindo delas elementos que permitam tal classificação.

__________________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________

b) No texto II, o eu lírico afirma “pero vos amo mais que a mim”. O que essa afirmação revela a
respeito da relação amorosa apresentada? Como essa relação pode ser ligada à sociedade da Idade
Média?

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Comentários: A cantiga de Torneol é de amigo, devido à voz feminina que se dirige à mãe, como
ocorre logo no primeiro verso. É uma cantiga de barcarola por se tratar de um cenário em que o amado
da voz feminina está no mar, talvez a trabalho.

A cantiga de Dom Dinis, por sua vez, é de amor pelo fato de a voz dirigir-se a uma mulher, chamando
de “mia senhor” e declarar seu sofrimento amoroso. Nesse amor declarado há um desequilíbrio, porque
a voz masculina coloca-se em relação de inferioridade, representando a sociedade medieval.

Ai flores, ai, flores do verde pino,


se sabedes novas do meu amigo?
ai, Deus, e u é?

Ai flores, ai flores do verde ramo,


se sabedes novas do meu amado?
ai, Deus, e u é?

Se sabedes novas do meu amigo,


aquel que mentiu do que pôs comigo?
ai, Deus, e u é?

Se sabedes novas do meu amado,


aquel que mentiu do que mi á jurado?
ai, Deus, e u é?

42
Literatura Portuguesa: Poesia

Vós me preguntades polo voss’amigo?


E eu ben vos digo que é san’e vivo:
ai, Deus, e u é?

Vós me preguntades polo voss’amado?


E eu ben vos digo que é viv’e sano
ai, Deus, e u é?

E eu ben vos digo que é san’e vivo,


E seerá vosc’ant’o prazo saído:
ai, Deus, e u é?

E eu ben vos digo que é viv’esano.


E seerá vosc’ant’o prazo passado:
ai, Deus, e u é?
(DINIS apud MOISÉS, 2006, p. 25)

Exemplo de aplicação

Retomamos a cantiga de amigo de Dom Dinis para uma leitura mais aprofundada:

a) Comprove que a cantiga é de tenção, ou seja, é uma cantiga dialogada.

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b) Essa cantiga segue a estrutura paralelística. Como se estruturam os pares de estrofes a seguir?

Ai flores, ai, flores do verde pino,
se sabedes novas do meu amigo?
ai, Deus, e u é?

Ai flores, ai flores do verde ramo,


se sabedes novas do meu amado?
ai, Deus, e u é?

c) Como se estruturam os pares de estrofes a seguir?

Se sabedes novas do meu amigo,


aquel que mentiu do que pôs comigo?
ai, Deus, e u é?

43
Unidade I

Se sabedes novas do meu amado,


aquel que mentiu do que mi á jurado?
ai, Deus, e u é?

d) Agora, compare o paralelismo ocorrido entre o primeiro verso da terceira estrofe com a primeira
estrofe. O que há em comum?

Ai flores, ai, flores do verde pino,
se sabedes novas do meu amigo?
ai, Deus, e u é?

Ai flores, ai flores do verde ramo,


se sabedes novas do meu amado?
ai, Deus, e u é?

Se sabedes novas do meu amigo,


aquel que mentiu do que pôs comigo?
ai, Deus, e u é?

e) Com a análise feita, conseguiu entender a estrutura paralelística?

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______________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________

Comentários: Trata-se de uma cantiga de amigo, em que a voz é feminina e, geralmente, dirige-
se à natureza. No caso dessa cantiga, a mulher fala nas quatro primeiras estrofes e obtém resposta da
natureza, que assume o enunciado nas últimas estrofes. O mesmo refrão “ai, Deus, e u é?” é usado nas
falas da natureza, tornando-se apenas um recurso estético, sem relação com o tema da fala da natureza.

Essa cantiga segue o esquema paralelístico. Primeiro, as estrofes pares formam sinônimos, com
apenas a última palavra trocada (por um sinônimo), tal como acontece nas estrofes seguintes:

Ai flores, ai, flores do verde pino,


se sabedes novas do meu amigo?
ai, Deus, e u é?

Ai flores, ai flores do verde ramo,


se sabedes novas do meu amado?
ai, Deus, e u é?

Nessas estrofes, os dois primeiros versos de cada estrofe são sinônimos, ocorrendo apenas a
substituição da palavra “pino” por “ramo” e “amigo” por “amado”. No caso da estrofe ímpar, há paralelismo
com a primeira estrofe par:
44
Literatura Portuguesa: Poesia

Ai flores, ai, flores do verde pino,


se sabedes novas do meu amigo?
ai, Deus, e u é?

Ai flores, ai flores do verde ramo,


se sabedes novas do meu amado?
ai, Deus, e u é?

Se sabedes novas do meu amigo,


aquel que mentiu do que pôs comigo?
ai, Deus, e u é?

Verificamos que o primeiro verso da terceira estrofe é idêntico ao segundo verso da primeira estrofe
e assim por diante no decorrer da cantiga. Espero que você, caro aluno, tenha ampliado e entendido o
recurso paralelístico das cantigas.

2 HUMANISMO: CONTEXTO SOCIAL E HISTÓRICO

Humanismo é a denominação ao movimento literário e filosófico divulgado pela Europa e surgido


nos meados do século XIV na Itália, onde atingiu seu momento culminante no século XV, configurando-
se como momento central da cultura do Renascimento. Caracteriza-se por um reflorescimento dos
estudos da Antiguidade e um modo diverso de entender os escritores gregos e latinos, oferecendo
instrumentos para aprofundar e reviver uma civilização muito diferente da medieval e que foi mal
compreendida na Idade Média, segundo Samuel (1990).

A palavra Humanismo deriva do latim humanae litterae, em especial da expressão do latino Cícero
studia humanitatis, com que os humanistas batizaram suas pesquisas filológicas e redescobertas dos
textos clássicos. Por meio da análise de manuscritos antigos e sob uma perspectiva adequada, superaram
as falsificações feitas pelos intérpretes medievais, para quem o mundo antigo só devia ser conhecido e
estudado apenas como preparação da era cristã. A Antiguidade era vista por meio da ótica tipicamente
medieval, que consistia na interpretação alegórica, a partir da qual se procurava um ensinamento
profundo, moral e religioso, situado além do sentido literal das coisas.

Os estudos humanísticos consolidaram uma nova concepção da cultura e, por conseguinte, uma
atitude crítica, contrária do dogmatismo medieval, fundado na autoridade religiosa. Não havia mais
veneração à tradição, mas um exame livre.

A restauração dos textos clássicos feita pelos humanistas não constituiu um fim em si mesma. A
necessidade foi de reintegrar o homem à sua dignidade e potência terrenas. Em síntese, os escritores
antigos foram admirados, além da perfeição da língua e do estilo, também como modelos máximos de
humanidade. Desde então, estabeleceu-se a discussão sobre a doutrina da imitação dos antigos, que se
prolongou do século XIV até depois dos séculos XVI e XVII.

45
Unidade I

A palavra Humanismo põe em destaque o próprio homem, que, desprezado na Idade Média na sua
qualidade de criatura pecadora, passou a ocupar o centro de interesses, graças a uma nova valorização
que abre caminho para o antropocentrismo renascentista, em uma visão correspondente à nova
mentalidade burguesa, que fez crescer a economia monetária e mercantil.

Assim, concomitante ao pensamento humanista, teve início a era mercantilista, em que o comércio
passou a ser a base da nova classe em desenvolvimento, que é a burguesia. Juntamente, ocorreram o
declínio do feudalismo e o surgimento das cidades.

Em relação à economia, então, desenvolveu-se o mercantilismo, que é o conjunto de práticas


e ideias econômicas adotadas na Europa, entre os séculos XV e XVIII, com o intuito de fortalecer
o Estado e enriquecer a burguesia por meio do desenvolvimento econômico. São características
do mercantilismo:

• Metalismo: teoria econômica pela qual se quantificava a riqueza de acordo com a quantidade de
metais preciosos adquiridos.

• Pacto colonial: as colônias europeias só podiam comercializar com suas metrópoles, o que
implicava alto valor na venda e baixo valor na compra.

• Balança comercial favorável: maior estímulo dado à exportação que à importação.

• Protecionismo alfandegário: criação de altos impostos e taxas para evitar a entrada de produtos
estrangeiros.

Quanto a Portugal, o Humanismo ocorreu entre 1434 e 1527, momento em que os valores religiosos
ainda estavam muito arraigados à cultura, entretanto o homem e a forma humana assumiram uma
posição de maior destaque, dando início ao racionalismo.

O pensamento teocêntrico perdeu terreno para uma visão que começou a se formar, mais voltada
para a figura humana, mudança que contribuiu para uma grande renovação cultural, que abandonou a
temática religiosa, voltando-se para o homem e seus defeitos, sendo um estágio ainda embrionário do
antropocentrismo.

Com as navegações, houve amplo desenvolvimento do comércio e das cidades. Assim, o feudalismo
passou a dar lugar ao sistema mercantil. A noção de um destino sujeito a forças ocultas foi substituída
por uma visão mais prática, guiada pelo lucro. Não só o feudalismo entrou em decadência, mas também
o teocentrismo. Aos poucos, ele passa a conviver com o antropocentrismo, que valoriza o ser humano e
seus feitos, colocando o homem como centro do universo.

Em 1383, com receio de perder sua soberania para Espanha, a massa popular se apoderou do
trono e elegeu seu líder como herdeiro, Mestre de Avis, D. João I, filho bastardo de D.Pedro I (em
Portugal).

46
Literatura Portuguesa: Poesia

Observação

Os nomes dos reis diferem do Brasil para Portugal devido à sucessão


ao trono. Nosso D. Pedro I, em Portugal, é denominado D. Pedro IV.

Iniciou-se assim a poderosa Dinastia de Avis (1385-1580), uma sucessão de reis empenhados no
desenvolvimento mercantil e cultural de Portugal. O caminho dos descobrimentos começou a ser
trilhado.

Além dos estudos voltados aos textos antigos, da mudança econômica, outro importante evento
marcou o Humanismo, principalmente para o mundo da literatura: a impressão de livros e de outros
suportes; enfim, a imprensa de Gutenberg.

Na verdade, a arte de imprimir, de acordo com Martins (2002), tem história imemorial, surgindo
espontaneamente onde quer que existisse ser humano. Ressalta-se, contudo, que essa arte é diferente
da tipografia, que se prende à história do livro e da imprensa.

A impressão em pele humana, nos tecidos, na madeira, nos metais é considerada por vários estudiosos
como técnicas precursoras da imprensa. Contudo, as técnicas tipográficas eram praticadas na China
desde o século II da nossa era e na Europa (mas com diferença da impressão oriental) desde o século
XIII, e a imprensa, tal como conhecemos, não consiste somente em um sinal sobre papiro, pergaminho
ou papel, mas, sobretudo, na reprodução rápida e ilimitada da escrita e da palavra.

A invenção da imprensa é convencionalmente datada de 1455, ano em que Gutenberg imprimiu a


famosa Bíblia de 42 linhas.

Figura 3 - A Bíblia de 42 linhas.

47
Unidade I

Conhecida como a Bíblia de 42 linhas, por possuir 42 linhas em cada coluna, exceto nas primeiras
dez páginas, e também como a Bíblia Mazarina, por ter pertencido à biblioteca do cardeal Mazarino o
primeiro exemplar, trata-se da força e da beleza do velino, bem como do papel dos exemplares. Essa
beleza, junto com o brilho da tinta e a regularidade da tiragem, faz desse volume um monumento do
grau de perfeição a que a arte tipográfica atingiu. Na descrição de Svend Dahl:

Cada página (e são 1200) é dividida em duas colunas, sendo o tipo


exatamente o da escrita gótica do último período, tal como a conhecemos
pelos grandes manuscritos litúrgicos de luxo, com os seus caracteres
vigorosos e fortemente angulares. Para as subscrições, as iniciais, as rubricas
e os desenhos marginais, o impressor deixou espaço livre a fim de que
fossem traçados; mas, em alguns exemplares, há subscrições impressas a
tinta vermelha. Existem ainda 41 exemplares da Bíblia de Gutenberg, dos
quais doze impressos em pergaminho. É provável que a edição tenha sido de
apenas cem exemplares (Dahl apud MARTINS, 2002, p. 152).

Foram impressos cerca de 180 exemplares da Bíblia de 42 linhas. Daí, naturalmente, além da raridade
e valor histórico, os altos preços pelos exemplares sobreviventes. Uma página dela, com iniciais pintadas
e títulos manuscritos, foi comprada por 2.000 dólares em uma galeria de Nova York em 1967. Anos
depois, foi comprada por 150.000 por Arthur A. Houghton Jr., que revendeu por 1.800.000 dólares.

O curioso para nós hoje é que a tipografia em seus primeiros tempos foi uma verdadeira sociedade
secreta. Os iniciados faziam juramento de sigilo ao serem admitidos. Na verdade, a arte de imprimir
passou a ser uma obra sobrenatural, porque era a arte de escrever sem mão nem pena. Muitos pensavam
que os impressores trabalhavam por meio cabalísticos, sendo a imprensa uma espécie de pedra filosofal
de novo tipo. Os tipógrafos não eram considerados modestos operários, mas tidos como alquimistas
soturnos e terríveis, e as oficinas eram tidas como laboratórios de horrendas missas negras. A tipografia
e o livro dela originado passaram a ser frutos das íntimas relações com o diabo.

A censura contra o livro, inclusive a eclesiástica, encontra sua origem nessa profunda e inconsciente
hostilidade contra a palavra escrita. O livro impresso somente afirmou seu direito definitivo com a
Renascença, que foi a civilização da liberdade.

A tipografia seguiu na história e o que era milagre, fruto da alquimia, tornou-se algo banal e
cotidiano. O livro passou a invadir os domínios tradicionais dos manuscritos; o reprodutor mecânico
substituiu o copista eclesiástico e também rivalizou com este, disputando prerrogativas essenciais.

Com bem diz Martins:

Com efeito, o livro facilmente e abundantemente reproduzido significava a


possibilidade, desde então irrefreável e infinita, do livre exame, do espírito
científico e objetivo, da discussão inevitável de todos os problemas, da
vida individual então possível para cada um. O mundo moderno começava
(MARTINS, 2002, p. 167).
48
Literatura Portuguesa: Poesia

Com o surgimento da imprensa de Gutenberg, as notícias passaram a ser mais difundidas.


Intensificaram-se os conhecimentos, por exemplo, sobre a cultura greco-latina, na qual os feitos humanos
são valorizados. Assim, a cultura religiosa conviveu com a cultura clássica, o feudalismo conviveu com
o mercantilismo e o teocentrismo conviveu com o antropocentrismo, constituindo-se o Humanismo
como um momento de transição, que precede o Renascimento. Tal transição pode ser observada na
literatura, que mantém aspectos medievais, mas já vislumbra outros de cunho moderno.

Os grandes nomes do Humanismo foram os italianos Dante Alighieri (1265-1321) e Petrarca (1304-
1374). Eles influenciaram não só os poetas portugueses, mas também artistas de outros lugares.

O início do Humanismo em Portugal deu-se em 1434, quando o rei D. Duarte nomeou Fernão Lopes
como guarda-mor da Torre do Tombo e o incumbiu de escrever crônicas sobre os reis portugueses.

As crônicas históricas, como o próprio nome já diz, constituem-se em excelentes registros dos
costumes e da história de Portugal. Contudo, Fernão Lopes distingue-se dos demais historiadores devido
à importância que dava às pessoas do povo, personagens coadjuvantes em relação aos reis.

2.1 Poesia palaciana

A poesia do período humanista não tem tanto relevo quanto a do Trovadorismo, passando a ser mais
cultivada a partir de 1450, com a presença de D. Afonso V, grande amante das letras.

Os poemas dos séculos XV e XVI foram reunidos no Cancioneiro Geral, de Garcia Resende, em 1516.
Os poemas têm, como principais características, a autonomia em relação à música e o uso de temas
ligados à vida social da corte.

Figura 4 - Fotocópia da capa do Cancioneiro Geral, 1516.

49
Unidade I

Apesar das inovações em relação ao ritmo e à musicalidade, posto que o poeta não podia mais
contar com o acompanhamento musical, a poesia dessa época é de pouca expressividade se comparada
aos outros gêneros desenvolvidos, como o teatro de Gil Vicente.

Um exemplo da poesia palaciana, atribuída a João Ruiz de Castelo Branco (apud MOISÉS, 2006, p.
57), é:

Cantiga sua partindo-se

Senhora partem tam tristes


meus olhos por vós, meu bem,
que nunca tam tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.

Tam tristes, tam saudosos,


tam doentes da partida,
tam cansados, tam chorosos
da morte mais desejosos
cem mil vezes que da vida.
Partem tam tristes os tristes
tam fora d’esperar bem,
que nunca tam tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.

No texto poético, verificamos que, apesar da ausência do acompanhamento musical, a poesia


mantém a musicalidade no interior dos versos, valendo-se de rimas ABAB, CDCCD, ABAB e da métrica. A
repetição do advérbio “tão” marca o texto com uma tristeza pungente, e as aliterações das consoantes
nasais contribuem para alongar a tristeza do eu lírico.

Desprovidos da música, os poetas desenvolveram novas técnicas e estruturas poéticas, entre as quais:

• a esparsa, composta de uma única estrofe de 8 a 16 versos;


• a trova, composta de duas ou mais estrofes;
• o vilancete, formado por um mote composto de 2 ou 3 versos, seguido de voltas ou glosas, ou seja,
estrofes em que o poeta retomava e desenvolvia as ideias contidas no mote;
• a cantiga, formada de um mote de 4 ou 5 versos e de uma glosa de 8 a 10 versos.

Além dessas mudanças estruturais, houve novidades temáticas, pois, de um lado, a influência da
poesia clássica, em especial de Ovídio, e, de outro, dos contemporâneos dos quatrocentistas Dante
Alighieri e Petrarca, com todo o lirismo centrado no amor e suas contradições internas. A influência
espanhola é evidente no uso que alguns poetas fizeram da língua de Castela em substituição à galego-
portuguesa dos trovadores.

50
Literatura Portuguesa: Poesia

O ponto alto da poesia da época foi a lírica sobre amor-sofrimento. Os poetas mantiveram a tradição
trovadoresca no que concerne à súplica mortal, com acréscimo da espiritualidade e do platonismo a
exemplo de Petrarca. Porém, os poetas retiram a mulher de seu papel idealizado, adquirindo aspectos
físicos e sensoriais.

Outra mudança da poesia palaciana em relação ao Trovadorismo é a descoberta da natureza pelo


poeta, seguindo o exemplo de Petrarca. A natureza torna-se consolo, confidente e refúgio para os males
do amor.

2.2 O teatro de Gil Vicente

O teatro foi, sem dúvida, o maior destaque no Humanismo português. Seu gênero é o dramático ou
teatral; gênero, por excelência, representativo ou figurativo. Apresenta a combinação destes elementos:

• na forma: prosa ou verso.


• no conteúdo: objetivo ou objetivo-subjetivo.
• na composição: representativa, uma vez que é para encenação em palco (TAVARES, 2002).

Entre as espécies mais conhecidas, constam:

1. criações clássicas: tragédia, comédia, drama satiresco;


2. criações medievais: mistérios, milagres, auto, farsa;
3. criação renascentista: tragicomédia;
4. criação romântica: drama;
5. criações populares: variedades ou revista, mágica;
6. criações poético-musicais: ópera, opereta, melodrama, vaudeville.

Sobre as criações clássicas, todas as espécies teatrais clássicas foram criadas na Grécia. Em
relação à tragédia, a palavra significa, no sentido literal, “canto do bode” e, conforme Tavares
(2002), essa designação talvez tenha sido dada pelas figurações dos sátiros, que se vestiam com
peles de bodes.

O final da tragédia clássica é sempre sério, com o intuito de comover ou purgar (purificar) nos
espectadores sentimentos mais nobres, como o terror e a compaixão. Para alcançar seu objetivo,
a tragédia recorre a grandes feitos da virtude ou do crime, em que a primeira supera desgraças e
infortúnios, e o segundo sofre castigos implacáveis.

As tragédias clássicas quase sempre foram estilizadas em forma de verso, como aliás aconteceu
com todas as modalidades do gênero teatral. Foi a partir do Romantismo que as peças dramáticas
começaram a ser feitas preferencialmente em prosa.

51
Unidade I

A comédia, por sua vez, tem sua origem paralela às comemorações dionisíacas, em cujas festas
alternavam-se os momentos de tristeza com alegria desenfreada, nos quais as pessoas caíam em orgia,
saindo em procissão levando o phallus, símbolo do órgão genital viril, e entoando cantos fálicos. Por
conseguinte, o termo comédia significa “canto aldeão (comes: aldeia + ode: canto).

Por fim, o drama satiresco, cujo fim era cultuar a memória do deus Baco. Por isso, o tema relacionava-
se à vida desse deus.

Na Idade Média, uma das criações foi o mistério, que consistia na representação de episódios da vida
de Cristo. No milagre, diferentemente, figuravam episódios humanos e de santos.

O auto é uma obra representativa e dramática. A palavra procede de actum. De fundo eminentemente
popular, nascido no século XV, o auto versa sobre assuntos religiosos ou profanos, sendo sua origem
provável portuguesa, já que não encontramos na literatura ocidental nenhum auto anterior aos de Gil
Vicente.

Sobre a farsa, trata-se de uma forma dramática cômica. Tipo de peça surgida no século XIV, em geral
é curto, com poucas personagens, pretendendo provocar risos a partir de uma situação cômica e ridícula
da vida cotidiana. Não tem intenção didática ou moralizante.

Nas criações renascentistas, a tragicomédia é uma palavra usada a partir do século XVI em
compilação das obras de Gil Vicente, em 1642, em que há 44 peças, das quais 10 são classificadas como
tragicomédias. Nestas, há acontecimentos funestos, mas o desfecho é feliz, embora não seja cômico.
Nelas, o real e a imaginação se mesclam, podendo ainda acusar a presença do elemento maravilhoso,
como no gênero épico.

De criação romântica, o drama foi criado, podemos dizer, por Shakespeare no século XVI, mas
foi o Romantismo que deu relevo definitivo a essa espécie teatral. O drama pode ser considerado a
modernização da tragicomédia, pois funde elementos da tragédia e da comédia, sendo uma oscilação
intermitente entre o prazer e a dor.

O drama rompeu a estrutura inflexível do formalismo clássico ao misturar gêneros, desunir unidade
dramática, ganhar amplitude e variedade de cenário e ter liberdade de expressão com a eleição da prosa
como forma.

Nas criações populares, a revista ou variedade consiste em peça cômica sobre um fato do ano e
passou a ser popular na França, na época de Luís Felipe. A princípio eram sátiras, especialmente dirigidas
aos políticos; hoje, um pretexto para encenação de quadros movimentados, contando com o jogo de
luzes, cenários fantásticos e efeitos coreográficos.

A mágica é peça não existente hoje. Trata-se do conto infantil dramatizado, com personagens
como fadas, gigantes etc. e transformações prodigiosas de vestuários e cenários por meio de
maquinismos.

52
Literatura Portuguesa: Poesia

Por fim, nas criações poético-musicais, a ópera é de origem italiana, introduzida por Mazzarini na
França em 1645. É um drama trágico ou lírico cantado com acompanhamento de orquestra e com
intervalos de dança ou espetáculo vistosos. São várias as suas modalidades: ópera séria ou grande ópera,
ópera-bufa, ópera-cômica, ópera espiritual, entre outras.

A opereta é uma espécie secundária da ópera, sendo mais breve e de assunto mais leve, geralmente
cômico e alegre. O melodrama, por sua vez, consiste em dramas acompanhados de música instrumental
ou em diálogos interrompidos por tal música. Espécie de tragédia popular sobre tema histórico ou
romanesco é solta de regras, admitindo até a incoerência. O termo passou a ter certa significação
pejorativa. A expressão “herói de melodrama” refere-se ao indivíduo exagerado nos gestos e atitudes,
porque o melodrama tende para o patético e o sentimentalismo derramado e choroso.

Vaudeville é uma comédia entremeada de árias conhecidas. É a comédia musicada ou a zarzuela dos
espanhóis. Consiste na intriga e no quiproquó, que é o efeito provocado pelos equívocos, que consistem
em tomar uma coisa por outra.

No contexto dessas criações, Gil Vicente (1465-1536) é inserido na criação medieval. Durante trinta
e quatro anos, Gil Vicente fez com que mais de quarenta peças fossem representadas, nos dando um
amplo panorama da sociedade portuguesa da época.

Inicialmente, recebeu influências dos poemas pastoris do espanhol Juan Del Ensina. Contudo,
acabou utilizando elementos tipicamente populares desenvolvidos na Idade Média, como as narrativas
das novelas de cavalaria, os milagres e mistérios que eram provavelmente encenados nas igrejas e as
farsas com objetivos satíricos. A isso tudo acrescentou a comicidade, a religião, o mistério, o lirismo
trovadoresco e a crítica social. Essa última característica pode ser considerada seu traço mais humanista.

As peças de Gil Vicente são rudimentares, com poucas rubricas ou indicações de cenários. Isso não
quer dizer que sejam de pouco valor estético. Temos de levar em conta que o texto dramático só
está completo quando é encenado no palco. Segundo Moisés (2008), as peças vicentinas são apenas
indicações para a atuação. Cabia então ao ator improvisar sobre o texto-base, ampliando as falas e
incluindo mímicas.

Quando Gil Vicente encenava suas peças, o Renascimento já estava presente, entretanto, esse grande
dramaturgo tentava resgatar valores medievais esquecidos.

São características do teatro vicentino:

• Teatro alegórico: objetos e personagens representam abstrações ou ideias como o Bem e o Mal.

• Personagens-tipo: representam determinada classe social, profissão, sexo, idade.

• Teatro cômico e satírico: a maioria das peças é comédia de costumes, seguindo o lema latino de
Plauto: “ridendo castigat mores” (pelo riso corrigem-se os costumes).

53
Unidade I

Lembrete

Alegoria consiste em representações, por meio de personagens ou


objetos, de ideias abstratas, geralmente relacionadas aos vícios e às virtudes.

Veja a seguir algumas obras de Gil Vicente e sua classificação:

• Autos pastoris: Auto pastoril português e Auto pastoril da Serra da Estrela.


• Autos de moralidade: Auto da barca do inferno, Auto da barca do purgatório, Auto da barca da
glória, Auto da Lusitânia.
• Farsas: Farsa de Inês Pereira, O velho da horta, Quem tem farelos?

Outras características importantes e inovadoras para a linguagem dramática são as rupturas da


linearidade temporal e a despreocupação com a verossimilhança. Também as falas das personagens
são em versos, sendo Gil Vicente um verdadeiro poeta dramático. A linguagem utilizada em seus textos
apresenta aspectos arcaizantes e muitas de suas peças foram escritas em espanhol e/ou apresentam
bilinguismo.

Deve-se ressaltar, entretanto, que, apesar de ser chamado de popular, o teatro vicentino não era
apresentado ao povo.

2.3 Comicidade

Para provocar o riso, Gil Vicente utilizava inúmeros recursos:

• Comicidade de caráter: as características psicológicas das personagens levavam ao riso. Pero


Marques (Farsa de Inês Pereira) é tímido, simples e sem modos.
• Comicidade de situação: as atitudes das personagens eram cômicas. Pero Marques, ao pedir Inês
em casamento, comportou-se como um simplório, que mal sabe sentar-se em uma cadeira.
• Comicidade da linguagem: o autor utilizava vários recursos linguísticos, como ironia, trocadilhos,
ditos populares, gírias e palavrões.

Veja um exemplo da crítica social construída por Gil Vicente e os recursos cômicos utilizados no
célebre diálogo entre Todo o Mundo e Ninguém (VICENTE, 1972, p. 301). A peça foi representada pela
primeira vez em 1532, como parte de uma peça maior, chamada Auto da Lusitânia. A ortografia do texto
foi atualizada.

Um rico mercador, chamado Todo o Mundo e um homem pobre, cujo nome é Ninguém, encontram-
se e põem-se a conversar sobre o que desejam neste mundo. Em torno dessa conversa, os dois demônios
Belzebu e Dinato tecem comentários espirituosos, fazem trocadilhos, procurando evidenciar temas
ligados à verdade, cobiça, vaidade, virtude e honra dos homens.
54
Literatura Portuguesa: Poesia

Entra Todo o Mundo, rico mercador, e faz como se andasse buscando alguma cousa que perdeu; e
logo após, um homem, vestido como pobre. Este se chama Ninguém.

Ninguém: Que andas tu aí buscando?


Todo o Mundo: Mil cousas ando a buscar:
delas não posso achar,
porém ando porfiando
por quão bom é porfiar.
Ninguém: Como hás nome, cavaleiro?
Todo o Mundo: Eu hei nome Todo o Mundo
e meu tempo todo inteiro
sempre é buscar dinheiro
e sempre nisto me fundo.
Ninguém: Eu hei nome Ninguém,
e busco a consciência.
Belzebu: Esta é boa experiência:
Dinato, escreve isto bem.
Dinato: Que escreverei, companheiro?
Belzebu: Que ninguém busca consciência
e todo o mundo dinheiro.

Esse início da peça já mostra o recurso de comicidade empregado por Gil Vicente: o trocadilho.
Belzebu, contrário às virtudes, como consciência, verdade etc., transforma os nomes próprios
Todo o Mundo e Ninguém em termos genéricos. Assim, para o registro de Belzebu, todos os seres
humanos não se preocupam com virtudes, interessados apenas por dinheiro.

Saiba mais
As obras de Gil Vicente são de domínio público, ou seja, não têm mais
direitos autorais. Por isso, indico um site no qual suas obras poderão ser
encontradas na íntegra: <www.dominiopublico.gov.br>.

2.4 Auto da barca: inferno e crítica social

Das peças de Gil Vicente, Auto da barca do inferno, parte da trilogia das barcas – Barca do
inferno, Barca do purgatório e Barca da glória – é, seguramente, uma das obras mais conhecidas da

55
Unidade I

literatura portuguesa, sobretudo por se tratar de um texto crítico e bastante atual, ainda que tenha
aproximadamente quinhentos anos.

A obra teve sua primeira encenação no ano de 1517, período de prosperidade para Portugal em
função da expansão marítima e do comércio. A prosperidade acirrou no povo português o desejo pelo
enriquecimento fácil, e muitas vezes ilícito, e o cultivo por uma vida de aparências e de ostentação,
material humano largamente explorado por Gil Vicente nessa obra que, por ser um auto, possui finalidade
moralizante.

Gil Vicente fez parte do Humanismo e, como já sabemos, é o período entre o dogmatismo teocêntrico
da Idade Média e a revolução antropocêntrica do Renascimento, por isso o autor foi, ao mesmo tempo,
religioso e observador crítico da sociedade decadente. Ele evidencia seus vícios, fazendo-os desfilar,
ironicamente, numa galeria variada de tipos e personagens, como o fidalgo, o frade, o judeu, o procurador
ou a alcoviteira, entre outros.

A acuidade crítica e a ironia fina fizeram com que alguns críticos literários renomados, como Otto
Maria Carpeaux e Gianfranco Contini, considerassem Gil Vicente o melhor escritor desse período,
elevando seu nome acima até mesmo do de Camões.

Nessa peça, com o intuito maniqueísta de opor Bem e Mal, o autor se vale de um porto imaginário
em que há duas barcas, uma que leva ao Paraíso, capitaneada pelo Anjo, e outra que conduz ao Inferno
e é comandada pelo Diabo. Os passageiros que devem tomar uma dessas conduções são as almas que
serão julgadas por suas ações.

Tudo que o autor procura criticar na sociedade – a soberba, a luxúria, a ganância e a cobiça –
está alegoricamente representado nos pecados cometidos pelas personagens, que são trabalhadas com
exagero e linguagem ambígua, provocando comicidade e fazendo com que o texto seja um componente
imprescindível ao espetáculo teatral.    

Exemplo de aplicação

I. Que elementos dos textos vicentinos justificam a afirmação de que Gil Vicente manifesta uma
visão medieval do mundo em transformação para o Renascimento?

II. Com base nas considerações de Massaud Moisés a seguir, infira como era o contexto teatral na
época de Gil Vicente e o motivo de o teatro ser considerado popular.

Durante a Idade Média, despontou e vicejou um tipo de teatro que


recebeu o nome de popular por suas características fundamentais
(popular nos temas, na linguagem e nos atores). De remota origem
francesa (século XIII), iniciara-se com os mistérios e milagres, que
consistiam na representação de breves quadros religiosos alusivos
a cenas bíblicas e encenados em datas festivas, sobretudo no Natal
e na Páscoa. Inicialmente, eram falados em Latim, e mais adiante
56
Literatura Portuguesa: Poesia

em Francês. O local da encenação era a Igreja, o próprio altar, e de


lá se transferiu para o claustro e, ao fim, para o adro. No começo,
era reduzido o texto e escasso o tempo de representação, mas, três
séculos depois, o número de figurantes ascendia a centenas, o texto
a milhares de versos, e a encenação podia levar dias. É de crer que,
aos poucos, algumas pessoas do povo passassem a participar de tais
encenações e nelas introduzissem alterações cada vez maiores. Com
o tempo, o próprio povo entrou a representar suas peças, já agora
de caráter não-religioso, num tablado erguido no pátio defronte à
Igreja: daí o seu caráter profano, isto é, que fica fora, diante(pro) do
templo(fanu). Abandonado o pátio, o teatro popular se disseminou por
feiras, mercados, burgos e castelos da Europa e acabou tendo grande
acolhida nos reinos ibéricos (Castela, Leão, Navarra e Aragão). E foi por
influxo castelhando que o teatro popular penetrou em Portugal, pelas
mãos de Gil Vicente, seguindo o exemplo de Juan del Encina (1468-
1529) (MOISÉS, 2008, pp. 39-40).

3 CLASSICISMO: CONTEXTO SOCIAL E HISTÓRICO DO RENASCIMENTO

Começamos este tópico do livro-texto tornando nosso o questionamento de Ítalo Calvino: o que é
um clássico?

O termo clássico surgiu derivado do adjetivo latino classicus, que indicava o


cidadão pertencente às classes mais elevadas de Roma. No século II d.C. um
certo Aulo Gelio (Noctes Atticae) utilizou-o para designar o escritor que por
suas qualidades literárias poderia ser considerado modelar em seu ofício:
“Classicus scriptor, non proletarius.”

Durante o Renascimento, o termo clássico reapareceria, seja em textos


latinos, seja nas línguas vernáculas, referindo-se tanto a autores greco-
latinos quanto a autores modernos da própria época, considerados modelos
de linguagem literária na língua vernácula.

No século XVIII - o termo se estenderia aos autores que aceitavam os


cânones da retórica greco-latina: ordem - clareza - medida - equilíbrio -
decoro - harmonia e bom gosto.

Tornou-se, pois, a base de uma estética essencialmente normativa. Assim,


clássico indicando modelo exemplar cristalizou-se como tradição, como
cânone gramatical e semântico, como relicário do idioma e como um
conjunto de regras imutáveis, isto é, universais e a-históricas. No plano da
mensagem, o que valia para caracterizar um clássico era a sua dimensão

57
Unidade I

edificante, seus componentes morais e a sua capacidade de apresentar as


paixões humanas de forma decorosa. 

No século XIX, a grande rebelião romântica começou a destruir a rigidez


conservadora que envolvia a idéia de uma obra clássica. Victor Hugo
mandou as regras às favas, abrindo um caminho mais liberto para a
criação literária. Contudo, foram as vanguardas das primeiras décadas
do século XX - especialmente Futurismo e Dadaismo - que levaram
a ruptura com o classicismo às ultimas conseqüências, propondo, a
exemplo de Marinetti, a destruição de bibliotecas, museus e tudo aquilo
que representasse o “peso vetusto da tradição”. 

Passado o furor das vanguardas, o que ficou? No plano do senso comum,


clássico hoje indica uma obra artística superior, definitiva e que, por seus
vários elementos estético-ideológicos, aproxima-se daquilo que (de forma
mais ou menos nebulosa) chamaríamos de perfeição. Porém esta obra não
tem mais o sentido normativo que possuía no passado já que sua beleza lhe
é irredutivelmente própria.

 As sucessivas mudanças culturais, corridas no Ocidente, especialmente a


partir dos anos de 1960, quebraram toda e qualquer idéia de obra modelar
e instauraram um conceito mais amplo e flexível do que seria um clássico
(CALVINO, 1993, p. 8).

O que delimita um clássico? Calvino (1993) apresenta traços definidores, que podemos sintetizar:

1. São obras que ultrapassam o seu tempo, persistindo de alguma maneira na memória coletiva e
sendo atualizada por sucessivas leituras, no transcurso da história. 

2. Apresentam paixões humanas de maneira intensa, original e múltipla. São paixões universais (ou
pelo menos “ocidentais”) e têm um grau de maior ou menor flexibilidade em relação à historicidade
concreta.

3. São obras que registram e simultaneamente inventam a complexidade de seu tempo. De maneira
explícita ou implícita, desvelam a historicidade concreta, as ideias e os sentimentos de uma época
determinada. Há uma tendência geral: quanto mais explícita for a revelação histórica, menor o resultado
estético. Na verdade, o espírito da época deve estar introjetado na experiência dos indivíduos. 

4. São obras que criam formas de expressão inusitadas, originais e de grande repercussão na própria
história literária. Há clássicos que interessam em especial (ou talvez unicamente) ao mundo literário,
como, por exemplo, o Ulisses, de Joyce.

5. São obras de reconhecido valor histórico ou documental, mesmo não alcançando a universalidade
inconteste. Nessa linha, situam-se aquelas obras que são clássicas apenas na dimensão da história
58
Literatura Portuguesa: Poesia

literária de um país, como a obra de José de Alencar, ou apenas de uma região, como as obras de Cyro
Martins ou Aureliano de Figueiredo Pinto. 

6. Talvez a característica fundamental de uma obra clássica seja a sua inesgotabilidade. Ou, como
diz Calvino (1993, p. 22): “Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para
dizer”.

7. Um clássico é fundamental também pelo efeito que deflagra na consciência do leitor. Sob essa
ótica, devemos considerar que ele é, simultaneamente: 

• Forma única de conhecimento – transmite paixões humanas oriundas de um patrimônio universal


(que é a experiência do homem). 

• Utilização da linguagem de uma maneira exemplar, original e inesperada. 

• Um conjunto de revelações, ideias e sentimentos que têm a propriedade de durar na memória mais
do que outras manifestações artísticas (música, cinema etc.). Essas podem ter (e geralmente têm)
um impacto maior na hora da fruição, mas seu prolongamento emotivo – a sua duração – é mais
breve e inconsistente do que o proporcionado pela grande obra literária. 

• Um não contra a morte. Por perdurar, a obra clássica ultrapassa o tempo e a finitude humana. De
certa forma, é um protesto contra o sem sentido da vida. 

Frente a essa concepção de obra clássica, temos um movimento literário em Portugal, marcado em
um tempo – Classicismo (1527-1580) – também conhecido como quinhentismo. Teve início quando Sá
de Miranda trouxe da Itália o estil nuovo, isto é, o verso decassílabo na forma do soneto.

O Classicismo tem como proposta artística e cultural outra concepção de mundo e do homem. No
Renascimento, o homem se redescobre e descobre uma nova visão do mundo, cuja identificação se dá com
a cultura greco-latina, resgatando as noções de beleza, bem e verdade e, rompendo com a religiosidade
marcante da Idade das Trevas, resgata os deuses da mitologia grega, que possuem características
humanas, distantes da perfeição do deus cristão. Assim, é fácil perceber que o racionalismo passa a
imperar, em detrimento de uma visão mística do mundo. Esses aspectos, já cultuados na Antiguidade
Clássica, passam a ser copiados e tidos como modelo.

Ocorreram transformações nas artes plásticas, na arquitetura, na música e na literatura,


desencadeando várias mudanças econômicas e políticas. Foi uma sucessão natural ao Humanismo,
reflexo das transformações que já vinham ocorrendo em todo o Ocidente.

O homem renascentista procurou compreender o mundo sob a luz da razão, buscando o equilíbrio
entre razão e emoção, o que pode ser observado nas obras dos pintores renascentistas italianos, até
hoje bastante apreciados, como Rafael, Leonardo da Vinci, Michelangelo, Botticcelli, entre outros. Suas
obras apresentam novas técnicas que acentuam a valorização do homem, que passa a ser o centro dos
estudos, é o antropocentrismo, que se preocupa em exaltar a natureza humana; há também a busca
59
Unidade I

pelo equilíbrio, pela beleza e pela perfeição, por isso a época é marcada, nas artes, pelo aprimoramento
técnico, como o das obras da Antiguidade.

Observação

Os estudiosos dividiram a história da humanidade em fases ou períodos,


tais como Pré-História, Antiguidade etc. O termo Renascimento representa
os séculos XIV, XV, XVI e XVII. A palavra Classicismo representa período
literário ocorrido dentro do Renascimento.

No âmbito religioso, embora as motivações também fossem econômicas, podemos destacar a


Reforma Protestante em suas diversas vertentes: luteranismo, calvinismo e anglicismo. Tal reforma
provocou modificações também na própria Igreja Católica, culminado na Contrarreforma.

A Inquisição, uma das consequências da tentativa da Igreja de se consolidar novamente, foi


oficialmente instituída em 1540 e incumbia-se de censurar tudo aquilo que não estivesse de acordo
com os padrões católicos, impedindo, assim, o desenvolvimento científico e cultural. Um exemplo disso
ocorreu em Portugal, o que deixou o país aquém das outras nações europeias. Escritores como Gil
Vicente e Camões foram chamados de “agentes contra a fé e os costumes”.

Por outro lado, do ponto de vista político, vivia-se o chamado absolutismo monárquico, com reis
fortes, independentes do clero, do Papa e de outros países. Economicamente, o mercantilismo se
estabelecia, como uma consequencia das grandes navegações, iniciadas no final do século XV. Devido a
elas e aos descobrimentos, Portugal encontra no século XVI seu período mais glorioso. Houve avanços nas
técnicas de navegação, na astronomia, na matemática e na medicina. Novas terras foram descobertas,
novos valores e costumes conhecidos. No reinado de D. João III (1521-1557), houve inclusive a reforma
das universidades, adaptando-as aos novos tempos.

Contudo, vários conflitos se estabeleceram: por um lado, uma burguesia mercante, com uma nova
visão de mundo; por outro, a tradicional e religiosa nobreza. Outro fator importante se deve ao fato de
que, economicamente, Portugal não tinha como investir em suas colônias. Era um grande império cheio
de dívidas com os países protestantes, especialmente a Inglaterra. Havia grande incentivo às artes, mas
forte repressão religiosa. Assim, podemos observar que o Renascimento português estava repleto de
contradições.

Saiba mais

Para contextualizar esse período renascentista e das grandes


navegações, assista ao filme 1492: a conquista do paraíso (direção: Ridley
Scott. Estados Unidos, 1992).

60
Literatura Portuguesa: Poesia

3.1 Produção literária e características

Na época do Renascimento, às manifestações artísticas, incluindo a literatura, deu-se o nome de


Classicismo, devido à inspiração vinda dos gregos e romanos. Em 1527, o poeta Sá de Miranda regressa a
Portugal, depois de seis anos na Itália. Com ele, trouxe várias novidades com relação à poesia, bem como
formas poéticas já utilizadas pelos antigos gregos, contaminando a todos seus compatriotas, a destacar-
se o grande Luís de Camões. Considera-se então o início do Classicismo em 1527. Os ideais clássicos
predominam em Portugal até a morte de Camões em 1580, quando, coincidentemente, o país passa
para o domínio espanhol. Podemos observar a seguir algumas das características mais importantes do
Renascimento.

• Imitação dos autores greco-romanos: Homero, Aristóteles, Cícero, Virgílio e Horácio.

• Preocupação com a forma: exigência quanto à métrica e à rima dos poemas; correção gramatical,
clareza na expressão do pensamento, sobriedade e lógica.
• Construção frasal: inversão dos termos na oração, influência latina.

• Utilização da mitologia greco-latina: efeito mais artístico, os mitos simbolizam ações,


demonstram sentimentos e atitudes humanas.

• Universalidade e impessoalidade: preocupação com verdades universais.

Lembrete

São atribuídas ao grego Homero as epopeias Ilíada e Odisseia, que


tratam da guerra de Troia e do retorno do herói Ulisses para casa.

De acordo com as características mencionadas, a arte no período renascentista tinha a pretensão


de ser bela, e os artistas buscavam uma representação pautada na mimesis, segundo os preceitos de
Aristóteles.

3.2 Sá de Miranda

Somos frutos de uma educação escolar, cujo maior material é o manual didático. No Ensino Médio,
o manual da disciplina língua portuguesa é dividido em três: um para cada ano escolar. No primeiro
ano, aprendemos a história da literatura portuguesa e, quando chegamos ao conteúdo do Classicismo,
passamos a tomar conhecimento de Camões e de um certo Sá de Miranda, que nos parece ser importante
por ter levado a Portugal a medida atual de soneto.

Mais tarde, como professora, dificilmente encontrei um manual didático da nossa área que
explorasse de fato a produção de Sá de Miranda. O máximo encontrado é a informação biográfica,
tal como: Francisco Sá de Miranda nasceu em Coimbra, provavelmente em 1481, e faleceu em 1558.
Segundo Moisés (2008), seus poemas foram somente editados em 1595, com uma edição crítica em

61
Unidade I

1885. Assim, temos dupla missão: tirar o véu da indiferença em relação a esse poeta e conhecer um
pouco mais sobre ele.

Como dissemos anteriormente, o poeta levou a medida nova a Portugal, mas não deixou de lado a
medida velha, misturando a então atualidade renascentista às tradições medievais, como também fez
Camões. Em seus poemas, já podemos observar a dualidade do escritor clássico português, pelo uso
de muitos paradoxos e antíteses. Temas filosóficos sobre a efemeridade do tempo também lhe eram
comuns.

Vejamos, desse autor, uma redondilha maior (verso de 7 sílabas poéticas), caracterizando a medida
velha (Miranda apud MOISÉS, 2006, p. 93):

Comigo me desavim,
sou posto em todo perigo;
não posso viver comigo
nem posso fugir de mim.
Com dor, da gente fugia,
antes que esta assi crescesse;
agora já fugiria
de mim, se de mim pudesse.
Que meio espero ou que fim
do vão trabalho que sigo,
pois que trago a mim comigo,
tamanho imigo de mim?

Observe o paradoxo em “não posso viver comigo, nem posso fugir de mim” e como o eu lírico expõe
um conflito pessoal ao admitir-se como seu próprio inimigo. Observe também como a linguagem lírica
é mais clara aqui, diferentemente do Trovadorismo, pois aqui a língua portuguesa já estava de todo
separada do galego-português.

Lembrete

Medida velha é uma técnica tradicional caracterizada por estruturas


como a cantiga e o vilancete, em redondilha menor, ou seja, composição
poética com versos de cinco sílabas.

Agora veja um soneto (Miranda apud MOISÉS, 2006, p. 94), isto é, a medida nova ou versos
decassílabos:

O sol é grande: caem coa calma as aves,


Do tempo em tal sazão, que sói ser fria.
Esta água que de alto cai acordar-me-ia,
Do sono não, mas de cuidados graves.
62
Literatura Portuguesa: Poesia

Ó cousas, todas vãs, todas mudáveis,


Qual é tal coração que em vós confia?
Passam os tempos, vai dia trás dia,
Incertos muito mais que ao vento as naves.

Eu vira já aqui sombras, vira flores,


Vi tantas águas, vi tanta verdura,
As aves todas cantavam de amores.

Tudo é seco e mudo; e, de mistura,


Também mudando-me eu fiz doutras cores.
E tudo o mais renova: isto é sem cura!

Vocabulário:

coa: com a
sazão: estação
sói: costuma, é comum
mudáveis: que mudam

Na segunda estrofe, o leitor pode conferir a preocupação com a efemeridade do tempo, temática
comum aos poetas da Antiguidade e aos renascentistas: tudo passa, tudo é vão, os dias passam e o eu
lírico se mostra angustiado.

Trata-se de um soneto italiano ou petrarquiano, atribuído ao célebre poeta italiano Francesco Petrarca.
Sendo o mais usado em língua portuguesa, o soneto lírico é formado por dois quartetos (estrofes com 4
versos) e dois tercetos (estrofes com 3 versos), em versos decassílabos (10 sílabas poéticas).

Observação

O soneto inglês ou shakespeariano, atribuído a William Shakespeare,


embora mantenha o mesmo número de versos (14 versos), possui três
quartetos e um dístico.

Além dessa grande contribuição de Sá de Miranda, há um fato interessante sobre esse autor: trata-se
do desejo desse poeta em imortalizar as viagens marítimas portuguesas em uma epopeia.

Sabemos que uma epopeia (adjetivo épico) se caracteriza primordialmente por ser um gênero
narrativo, por meio do qual o poeta narra, descreve e exalta fatos históricos e personagens heróicos. É o
gênero mais próprio para traduzir os sentimentos coletivos, a grandiosidade dos cenários, dos heróis, dos
combates e dos sentimentos. A forma mais característica em que o épico se apresentou foi a epopeia,
mas também podemos destacar outras concepções do épico: as canções de gesta da Idade Média, curtas
63
Unidade I

narrativas em versos do século XVI, XVII e XVIII, as epopeias românticas como Jocelyn de Lamartine,
poemas narrativos como o Uruguai, de Basílio da Gama etc.

A epopeia, na concepção de Aristóteles (SAMUEL, 1990), é uma imitação da realidade de seres elevados
moral ou psiquicamente. Quanto à estrutura, na forma primitiva utilizava-se o hexâmetro dactílico, composto
por seis medidas semelhantes ao dedo: uma sílaba longa e duas breves. Por sua rigidez, o hexâmetro é um
metro difícil de ser moldado à língua. Por isso Homero, o primeiro a adotá-lo nos épicos Ilíada e Odisseia,
realizou várias adaptações linguísticas, criando a língua homérica. Posteriormente, essa métrica foi substituída
por decassílabo nas épocas medieval e renascentista. Etimologicamente, epopeia significa, afinal, epos + poiein:
criação em versos longos. O objetivo da epopeia é unir o lírico ao presente e à recordação; lembrar de novo.

Sobre os heróis épicos, são sempre excepcionais pela sua nobreza ou excelência em combates, bem
como pela astúcia, religiosidade ou beleza. Temos então:

• Nobreza: Agamenão.
• Excelência: Aquiles, Cid, Rolando.
• Bravura: Vasco da Gama, Aquiles etc.
• Astúcia: Ulisses e Vasco da Gama
• Beleza: Páris.

Por representarem nossos arquétipos, esses heróis épicos são idealizados e, por conseguinte, dotados
de força e virtude excepcionais.

Outra característica importante na epopeia é o elemento maravilhoso, que consiste na atuação dos
deuses e de fatos sobrenaturais que se interpõem na solução de um problema humano.

Saiba mais

As primeiras epopeias são gregas, atribuídas a Homero, séculos antes de


Cristo. São histórias de épocas posteriores, desveladas em forma de lenda
nacional. Os mitos são presentes e vivos nos textos. O que conhecemos hoje
sobre as sereias e seu canto que atrai os marinheiros à morte, o gigante de
um olho só, os deuses do mar, da beleza etc. têm basicamente origem nas
epopeias de Homero.

Recentemente, foi lançada uma obra americana com criação aos dias
de hoje da epopeia Odisseia. O autor Riordan coloca seu herói, adolescente
americano, que usa jeans, é estudante, ou seja, como qualquer outro jovem,
em situação épica: (re)vive muitas situações passadas como vividas por
Ulisses, herói da Odisseia.

64
Literatura Portuguesa: Poesia

Indico a leitura tanto da epopeia, que tem várias versões, adaptações


mais didáticas, quanto da obra americana.

HOMERO. Odisseia. Adaptação de Roberto Lacerda. São Paulo: Scipione, 2010.

HOMERO. Odisseia. Edição bilíngue. Tradução e notas de Trajano Vieira.


São Paulo: 34, 2011.

RIORDAN, Rick. O Mar de Monstros. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2009.

Voltando a Sá de Miranda, ele e outros quinhentistas viveram em uma época em que era muito
latente o desejo de ver as viagens portuguesas imortalizadas em uma narrativa épica. Essa ideia era
obsessivamente repetida entre os poetas.

Na obra Fábula do Mondego (MIRANDA, 1977, p. 75), Sá de Miranda introduz seu poema pastoril
com um exórdio típico da epopeia, fazendo referência à possibilidade de o gênero pastoril incluir assunto
alto ou épico:

Ínclito Rey, que d’este al otro Polo


enchistes de trofeos, abriendo al Nilo,
desd’el Tajo, luz nueva y nuevo día,
mudando en esto la natura estilo:
dándoos Neptuno el mar, dándoos Eolo
sus vientos, y armas Marte a la porfía.
Por la zona que ardía
en brava, continuamente,
vuestra animosa gente,
los Portugueses, a que nada espanta,
a vós, Señor, los ojos, y a la santa
empresa y lealtad propria y d’abuelos,
contra amenaza tanta
gran denuedo venció tantos recelos.

A Fábula do Mondego não entrou como epopeia na história. A obra assinala apenas os símbolos
caracterizadores da região do Mondego, isto é, Coimbra, onde estão as ruínas da Torre de Hércules e o
túmulo de Afonso Henriques. A obra faz reflexão sobre a poesia e a loucura amorosa sofrida por muitos
pastores encontrados nos poemas de Sá de Miranda.

Sá de Miranda, como muitos outros da época, queria ver as grandes navegações em poemas
épicos, mas, assim como muitos outros também, não concordava em considerar a aventura
portuguesa como chance ilusória de enriquecimento rápido. Essa ilusão, que gera ganância, era
uma clara peçonha que entrava pelos portos (rimando com mortos) portugueses (MIRANDA, 1977,
p. 84):

65
Unidade I

Entrou, dias há, peçonha


clara pelos nossos portos,
sem que remédio se ponha:
uns dormentes, outros mortos,
alguém polas ruas sonha.

Afinal, em Portugal estavam ocorrendo:

• mau uso do fogo (artilharia, arma);


• despovoamento do reino (devido às viagens dos descobridores e dos comerciantes);
• ambição desmedida etc.

Sá de Miranda posicionou-se criticamente em relação à aventura marítima e comercial dos


portugueses devido à ganância e outros aspectos negativos decorridos dela. No entanto, ele não
amaldiçoa o canto da gesta marítima; ao contrário, como poeta que era, passou a usar as imagens
náuticas para criar metáforas para o ato poético. Os signos da aventura marítima tornaram-se símbolos
de um novo metro e um novo conceito de poesia.

Sá de Miranda colocou-se como descobridor de um novo metro – o decassílabo – e de novas formas


e gêneros para o poético.

Quanto à imortalidade das viagens marítimas portuguesas, só foi realizada por Luís de Camões, na
epopeia Os lusíadas (como veremos no próximo subcapítulo), mas abriu caminho para outros poetas
(MIRANDA, 1977, p. 223):

Já que fiz
aberta aos bons cantares peregrinos,
fiz o que pude, como por si diz
aquele, um só dos líricos Latinos;
provemos esta nossa linguagem,
e, ao dar da vela ao vento: Boa viagem.

3.3 Luís Vaz de Camões épico

Camões é de grande representatividade para a literatura portuguesa e brasileira. Sua obra tem sido
lida e apreciada há mais de 400 anos. Seus temas são atuais e seus poemas, de excelente qualidade
estética. Em Portugal considera-se que a Era camoniana tem início com Camões e só termina com
Fernando Pessoa, quando inicia a Era Pessoana.

Segundo Moisés (2008), as informações biográficas de Camões são incertas. Teria nascido em 1524
em Lisboa, Coimbra ou Santarém. Filho de família nobre, supostamente teve acesso à vida palaciana e
contato com as obras de Homero, Petrarca, Virgílio, entre outros. Culto e de boa aparência, desfrutou
de vários amores proibidos, inclusive a infanta D. Maria, filha do rei D. Manuel. Consta que sua vida
66
Literatura Portuguesa: Poesia

amorosa tenha-o levado ao exílio em Ceuta, como soldado raso. Lá perdeu um olho. Passou por diversas
aventuras em Macau (China), Moçambique (África) e Goa (Índia), colônias portuguesas. Era um homem
das letras e das armas.

Um episódio famoso da vida de Camões é o do naufrágio, no qual toda a tripulação morreu, no


rio Mecon. Camões teria mantido consigo os manuscritos de Os lusíadas, enquanto sua companheira
Dinamene, celebrada no famoso soneto Alma minha que gentil partiste, se afogava.

Em 1572, publicou Os lusíadas e recebeu uma pensão anual de quinze mil réis, mas morreu pobre e
abandonado em 1580.

Os Lusíadas é um poema épico ou epopeia e segue os moldes clássicos do gênero, a saber: a Odisseia
e a Ilíada, de Homero, e a Eneida, de Virgílio. Nas epopeias clássicas, há um grande herói, cujos feitos são
exaltados, como os atos de Ulisses, por exemplo, na Odisseia. Na obra de Camões, no entanto, os heróis
são os “lusíadas”, os lusos, o povo português.

Devido à censura existente na época, aplicada pela Inquisição, a obra de Camões quase foi proibida.
Contudo, os censores consideraram que a alusão a termos gregos era mera ilustração e não havia um
culto ao paganismo.

Camões, como poeta renascentista, cultivava a arte como mimeses, como representação da realidade.
Várias características renascentistas citadas anteriormente podem ser observadas em seus versos, como
o racionalismo, universalismo, busca da perfeição formal, imitação dos clássicos, entre outras.

Enfim, o extenso poema Os lusíadas representa o espírito do novo, trazido pela Renascença, e é
formado por:

• 10 cantos.

• 1101 estrofes. Cada canto tem um número variável de estrofes (em média, 110). O canto mais
longo é o décimo, com 156 estrofes.

• Oitava rima (ABABABCC).

• 8816 versos decassílabos heroicos (com acentuação na sexta e décima sílabas poéticas) e sáficos
(acentuação na quarta, oitava e décima sílabas poéticas).

Os lusíadas, assim como todo poema épico, é dividido nas seguintes partes:

• Proposição: Camões exalta o heroísmo do povo português.

• Invocação: O poeta invoca as ninfas do rio Tejo, Tágides, como suas musas inspiradoras.

• Dedicatória: Os lusíadas é dedicado ao rei D. Sebastião.

67
Unidade I

• Narração: A narração divide-se em dois planos, o mítico, que menciona deuses gregos
participando como coadjuvantes do enredo, e o histórico, que trata da viagem de Vasco da
Gama às Índias e de outros grandes feitos de Portugal.
• Epílogo: A obra se encerra de forma lamentosa e crítica, pois o país, que fora um grande império,
já se encontrava em momentos de decadência.

Os planos temáticos da obra são quatro:

• Plano da viagem.
• Plano da história de Portugal.
• Plano do poeta.
• Plano da mitologia.

Os lusíadas é uma obra narrativa, mas os seus narradores são quase sempre oradores que fazem
discursos grandiloquentes: o narrador principal é Vasco da Gama, mas também aparecem como
narradores Paulo da Gama, a ninfa Tétis e a Sirena no canto X, que profetiza ao som de música.

Dessa forma, o poema apresenta um ecletismo religioso, evidenciado pela coexistência da


história com o maravilhoso, isto é, a mitologia greco-romana costura-se a um catolicismo
fervoroso. Protegidos pelos deuses, os portugueses procuram impor aos infiéis mouros sua fé
cristã; por outro lado, é perceptível a existência de inúmeros deus ex machina. Os lusitanos
são protegidos por uma deusa pagã: Vênus. Baco (o Dioniso dos gregos), amigo do vinho e do
desregramento, é o inimigo maior dos portugueses (com chifres e rabo, imagem que foi utilizada
pela Igreja Católica para representar o demônio), poderíamos dizer que o desregramento é o
grande vilão no Renascimento, posto que se opõe ao equilíbrio.

Todo esse fervor religioso não impede a utilização pelo poeta do erotismo de cunho pagão, como no
episódio da Ilha dos Amores (Canto IX, estrofes 68 a 95), em que a Máquina do Mundo é apresentada
aos portugueses. Nessa passagem do final do poema, o plano mítico – dos deuses – e o histórico – dos
homens – encontram-se: os portugueses são elevados simbolicamente à condição de deuses, pois só aos
últimos é permitido contemplar a Máquina do Mundo.

Veja a seguir um trecho do Canto I, trecho bastante conhecido, que anuncia o Novo Reino, um
império cristão, cheio de fé e de feitos heroicos, o que enaltece a nação portuguesa. Para facilitar a
leitura, a ortografia das palavras foi atualizada (CAMÕES, 2004, p. 21).

Canto I – Proposição

As armas e os barões assinalados,


Que da Ocidental praia Lusitana
Por mares nunca de antes navegados,
Passaram ainda além da Taprobana,
68
Literatura Portuguesa: Poesia

Em perigos e guerras esforçados,


Mais do que prometia a força humana,
E entre gente remota edificaram
Novo Reino, que tanto sublimaram;

E também as memórias gloriosas


Daqueles reis que foram dilatando
A Fé, o Império, e as terras viciosas
De África e de Ásia andaram devastando;
E aqueles, que por obras valerosas
Se vão da lei da Morte libertando,
Cantando espalharei por toda parte,
Se a tanto me ajudar o engenho e arte.

Cessem do sábio Grego e do Troiano


As navegações grandes que fizeram;
Cale-se de Alexandro e de Trajano
A fama das vitórias que tiveram;
Que eu canto o peito ilustre Lusitano,
A quem Netuno e Marte obedeceram.
Cesse tudo o que a Musa antiga canta,
Que outro valor mais alto se alevanta.

Vocabulário

barões: varões, homens


taprobana: antigo nome do Ceilão
Grego: refere-se a Ulisses, herói da Odisseia
Troiano: refere-se a Eneias, herói da Eneida
Alexandro: Alexandre Magno, rei da Macedônia
Trajano: imperador romano

Veja a seguir como o Canto I termina com uma fala do poeta que reflete a fragilidade do ser humano.
É um momento de lirismo dentro do poema épico (CAMÕES, 2004, p. 47).

No mar tanta tormenta, e tanto dano,


Tantas vezes a morte apercebida!
Na terra tanta guerra, tanto engano,
Tanta necessidade aborrecida!
Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá segura a curta vida,
Que não se arme e se indigne o céu sereno
Contra um bicho da terra tão pequeno?

69
Unidade I

Outro episódio famoso é o de Inês de Castro, grande amor de Pedro I (Portugal), que foi morta
grávida pelo próprio pai de Pedro, D. Afonso, e coroada rainha depois de morta. Há nesse episódio
uma exceção quanto ao gênero, que é lírico, voltado para as emoções do sujeito poético, diferindo
do gênero épico que caracteriza o restante do poema. Vejamos um trecho (CAMÕES, 2004, pp.
106-107).

Canto III - Inês de Castro

Passada esta tão prospera vitória,


Tornado Afonso à Lusitana terra,
A se lograr da paz com tanta glória
Quanta soube ganhar na dura guerra,
O caso triste, e digno da memória
Que do sepulcro os homens desenterra,
Aconteceu da mísera e mesquinha
Que depois de ser morta foi Rainha.
[...]
Estavas, linda lnês, posta em sossego,
De teus anos colhendo doce fruto,
Naquele engano da alma, ledo e cego,
Que a Fortuna não deixa durar muito;
Nos saudosos campos do Mondego,
De teus fermosos olhos nunca enxutos,
Aos montes ensinando e às ervinhas,
O nome que no peito escrito tinhas.
[...]
Tirar Inês ao mundo determina,
Por lhe tirar o filho que tem preso;
Crendo co sangue só da morte indigna,
Matar do firme amor o fogo aceso.
Que furor consentiu que a espada fina,
Que pôde sustentar o grande peso
Do furor Mauro, fosse alevantada
Contra üa fraca dama delicada?

O episódio a seguir, do Velho do Restelo, é bastante significativo, pois critica a validade das grandes
navegações, que trouxeram a glória, mas também a morte (CAMÕES, 2004, p. 136).

Canto IV - Velho do Restelo

Mas um velho, de aspecto venerando,


Que ficava nas praias, entre a gente,
Postos em nós os olhos, meneando
Três vezes a cabeça, descontente;
70
Literatura Portuguesa: Poesia

A voz pesada um pouco alevantando,


Que nós no mar ouvimos claramente,
Cum saber só d’experiências feito,
Tais palavras tirou do experto peito:

Ó glória de mandar! Ó vã cobiça


Desta vaidade, a quem chamamos Fama!
Ó fraudulento gosto, que se atiça
Cüa aura popular, que honra se chama!
Que castigo tamanho, e que justiça
Fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que crueldades neles experimentas!

No século XX, o personagem Velho do Restelo foi comparado a Sá de Miranda, defensor das tradições
ibéricas e crítico das aventuras indianas. O Velho de Restelo fustiga a ambição desmedida dos navegantes
portugueses, preanunciando, como fez Sá de Miranda antes, a ruína econômica de Portugal, de um país
já despovoado.

O discurso anti-indiano do Velho do Restelo pode ser depreendido pela leitura desse episódio
do canto épico. Algumas imagens e conceitos evocam certas passagens da obra mirandina, por
exemplo, os versos (CAMÕES, 2004, p. 137):

Deixas criar às portas o inimigo,


Por ires buscar outro de tão longe,
Por quem se despovoe o Reino antigo,
Se enfraqueça e se vá deitando a longe!

Ao contrário de Sá de Miranda, o Velho do Restelo amaldiçoa o canto da gesta marítima (CAMÕES,


2004, p. 13):

Oh! Maldito o primeiro que, no mundo,


Nas ondas vela pôs em seco lenho!
Dino da eterna pena do Profundo,
Se é justa a justa Lei que sigo e tenho!
Nunca juízo algum, alto e profundo,
Nem cítara sonora ou vivo engenho,
Te dê por isso fama nem memória,
Mas contigo se acabe o nome e glória!

3.4 Luís Vaz de Camões lírico

Camões emprega todo seu “engenho e arte” para compor belíssimos poemas líricos que
abarcam desde a tradição medieval até as novas técnicas renascentistas, tornando-se um dos
71
Unidade I

maiores sonetistas da língua portuguesa. Vemos em seus versos uma evolução estética, um
aprimoramento da literatura e da própria língua portuguesa. Até hoje, a lírica camoniana é uma
fonte de inspiração para diferentes gerações.

Exemplo de aplicação

Camões foi um grande criador poético. Imagine então que o soneto a seguir seja um labirinto. Lanço
a você o desafio para decifrá-lo. Encontre a frase que é formada a partir das letras iniciais do primeiro
hemistíquio de cada verso e, depois, as do segundo hemistíquio de cada verso, localizadas na sétima
sílaba métrica (Camões apud GOMES, 1994, p. 186).

Vencido está de Amor meu pensamento


o mais que pode ser vencida a vida,
sujeita a vos servir instituída,
oferecendo tudo a vosso intento.

Contente deste bem, louva o momento


ou hora em que se viu tão bem perdida;
mil vezes desejando a tal ferida
outra vez renovar seu perdimento.
Com essa pretensão está segura
a causa que me guia nesta empresa,
tão estranha, tão doce, honrosa e alta.

Jurando não seguir outra ventura,


votando só por vós rara firmeza,
ou ser no vosso amor achado em falta.

Conseguiu encontrar a frase “Vosso como cativo, mui alta senhora”? Não? Vou ajudá-lo.

Vencido está de Amor meu pensamento


o mais que pode ser vencida a vida,
sujeita a vos servir instituída,
oferecendo tudo a vosso intento.

Contente deste bem, louva o momento


ou hora em que se viu tão bem perdida;
mil vezes desejando a tal ferida
outra vez renovar seu perdimento.

Com essa pretensão está segura


a causa que me guia nesta empresa,
tão estranha, tão doce, honrosa e alta.

72
Literatura Portuguesa: Poesia

Jurando não seguir outra ventura,


votando só por vós rara firmeza,
ou ser no vosso amor achado em falta.

Percebeu? Não se esqueça de que, em língua portuguesa arcaica, a letra j era usada no lugar da
i; a letra v, no lugar da letra u. A frase remete ao amor vassalo, parecido com o das cantigas de amor
medievais.

Há uma variedade de temas abordados pelo poeta em seus poemas que, de tão universais, são atuais
e eternos. O poeta reflete sobre o amor e as questões filosóficas que ainda hoje nos angustiam, tais
como:

• o amor platônico;
• a perda da amada;
• o desconcerto do mundo;
• a própria atividade poética, com o uso da metalinguagem;
• a instabilidade dos sentimentos e da realidade;
• a busca pela perfeição física e moral.
Quanto às formas utilizadas por Camões em sua lírica, encontramos diversos tipos de poema:

1. redondilhas
2. sonetos
3. sextilhas
4. oitavas
5. éclogas
6. elegias
7. canções
8. odes

Didaticamente, dividimos poesia lírica em dois conjuntos: medida velha, composta geralmente por
versos redondilhos (cinco ou sete sílabas poéticas), resgatando estruturas e temas medievais; e medida
nova, composta pelos sonetos, feitos em versos decassílabos (10 sílabas poéticas) de inspiração clássica.

Em relação à medida velha, como exemplo citaremos um vilancete em versos redondilhos, no qual
temos inicialmente um mote – conjunto de versos que introduzem o tema – e duas voltas ou glosas –
estrofes nas quais o tema é desenvolvido. No poema a seguir (CAMÕES, 2003), o assunto é a beleza e a
perfeição formal de uma camponesa, Lianor, que evidencia traços de discreta sensualidade quando diz
que a touca descobre sua garganta. Naquela época, antever alguma parte do corpo feminino, como os
pés ou o pescoço, era de grande comoção para os homens.

73
Unidade I

Observe a sonoridade dos versos e a singeleza da descrição. Por que será que Lianor não está em
segurança? Haveria algum conquistador por perto?

Os poemas não apresentavam títulos. Assim, costumamos denominá-los pelo primeiro verso.

Descalça vai pera fonte

(mote)

Descalça vai pera fonte


Lianor, pela verdura;
Vai fermosa e não segura.

(volta)

Leva na cabeça o pote,


O testo nas mãos de prata,
cinta de fina escarlata,
Sainho de chamalote;
Traz a vasquinha de cote,
Mais branca que a neve pura;
Vai fermosa e não segura.

Descobre a touca a garganta,


Cabelos d’ouro o trançado,
Fita de cor d’encarnado...
Tão linda que o mundo espanta!
Chove nela graça tanta
Que dá graça à fermosura;
vai fermosa, e não segura.

Vocabulário:

testo: tampa de panela


pera: pela
fermosa: formosa
sainho de chamalote: espécie de casaco
vasquina de cote: saia de pregas

Veja a escansão do verso em redondilha maior, com 7 sílabas poéticas:

Le/va/na/ca/Be/ça o/PO/te
1 2 3 4 5 6 7

A última sílaba átona não é contada.


74
Literatura Portuguesa: Poesia

No vilancete, vemos a moça graciosa, mancha colorida de branco, ouro e vermelho, deslizando com
pés nus entre a verdura do prado. Ao talhe trovadoresco sobrepõe o poeta a nitidez da descrição e a
graça maliciosa do verso vai fermosa e não segura, que, evocando o antigo refrão, é repetido ao fim de
cada estrofe.

Chama-nos a atenção para a beleza da imagem criada com o verbo chover, que nos dá ideia de
abundância e, ao mesmo tempo, de origem celestial, na concepção de Rodrigues Lapa (GOMES, 1993).
Trata-se de um exemplo claro da mistura dos elementos medievais com as sutilezas alusivas e imagéticas
de Camões.

Camões continuou a tradição dos antigos trovadores, renovando-a pelo renascimento das ideias
clássicas. A presença dos índices das cantigas é inequívoca, vertidos em humorismo, trocadilhos e jogos
de conceitos.:

• cantigas de iniciativa feminina, que se assemelham a serranilhas, pastorelas, barcarolas;

• vassalagem e culto à mulher amada;

• delicadeza do retrato e do tratamento;

• elogio hiperbólico;

• leveza e descompromisso do estilo palaciano.

Não se trata apenas de temas, mas também de estruturas formais trovadorescas seguidos por
Camões.

A medida nova, já explorada pelo humanista Petrarca e levada por Sá de Miranda da Itália para
Portugal, constitui-se como uma inovação quanto ao estilo, com o uso do soneto em versos decassílabos.
Essa foi uma grande novidade para a poética portuguesa e revista por diversas gerações, graças ao
talentoso Camões. O soneto apresenta 14 versos, sendo divididos em duas estrofes de quatro versos e
duas estrofes de três versos.

No soneto a seguir (CAMÕES, 1990, p. 109) podemos observar várias características clássicas.

Um mover d’olhos, brando e piedoso,


sem ver de quê; um riso brando e honesto,
quase forçado; um doce e humilde gesto,
de qualquer alegria duvidoso;

um despejo quieto e vergonhoso;


um repouso gravíssimo e modesto;
uma pura bondade, manifesto
indício da alma, limpo e gracioso;

75
Unidade I

um encolhido ousar; uma brandura;


um medo sem ter culpa; um ar sereno;
um longo e obediente sofrimento;

esta foi a celeste formosura


da minha Circe, e o mágico veneno
que pôde transformar meu pensamento.

Vocabulário:

honesto: ingênuo
despejo: atitude
vergonhoso: tímido

Como no poema sobre Lianor, também temos a descrição de uma mulher, com o retrato de sua
perfeição moral e física. Observe a racionalidade na composição dos versos, simétricos e ordenados,
em que a última estrofe assume a função de conclusão. Há a busca do equilibrio formal, com o
uso de versos decassílabos, vocabulário culto e esquema de rimas fixo: interpoladas ABBA, ABBA
e cruzadas CDE,CDE.

O resgate da cultura greco-latina pode ser observado pela referência a Circe, feiticeira que aparece
na Odisseia.

O poeta descreve uma mulher que, apesar de sua aparência meiga e discreta, o enfeitiça. Há certa
ambiguidade entre sua pureza e sua sensualidade.

Veja a escansão de um verso decassílabo sáfico:

Um/ mo/ver/ d’o/lhos/, bran/do e /PI/e/DO/so,


1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

Até hoje, a lírica camoniana revela temas atuais e universais. O soneto de Camões (1990, p. 123) a
seguir é o mais famoso:

Amor é fogo que arde sem se ver,


é ferida que dói, e não se sente;
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;


é um andar solitário entre a gente;
é nunca contentar se de contente;
é um cuidar que ganha em se perder.

76
Literatura Portuguesa: Poesia

É querer estar preso por vontade;


é servir a quem vence, o vencedor;
é ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor


nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor?

Nele, o poeta procura definir algo que para ele é indefinível: o amor. Entretanto, como a razão não
consegue explicar o sentimento, o poeta se vale de contradições, paradoxos e oxímoros.

Além das redondilhas (medida velha) e dos sonetos, as canções atraem a atenção dos leitores e
estudiosos da literatura camoniana. Entre as canções, incluem:

1. A instabilidade da Fortuna
2. Com força desusada
3. Fermosa e gentil dama, quando vejo
4. Já a roxa manhã clara
5. Manda-me amor que cante docemente
6. Se este meu pensamento
7. Tomei a triste pena
8. Vão as serenas águas
9. Vinde cá, meu tão certo secretário

As canções não têm título e as indicações anteriores são o primeiro verso de cada uma. Elas podem
ser encontradas em livros diversos de Camões e em sites pela internet.

Segundo Décio (2003), a palavra canção designa toda composição poética destinada ao canto ou
que mostra nítida aliança com a música. A canção, conforme praticaram Petrarca, Camões e outros,
distribui-se em uma série de estrofes regular de versos, culminando em uma estrofe menor, chamada
ofertório, por meio do qual o poeta dedica o poema à bem amada ou condensa a matéria das estâncias
(estrofes). Veja a seguir (CAMÕES, 1990, p. 195):

Manda-me Amor que cante docemente


o que já em minh’alma tem impresso
com pressuposto de desabafar-me;
e porque com meu mal seja contente,
diz que ser de tão lindos olhos preso,
contá-lo bastaria a contentar-me.
Este excelente modo de enganar-me
tomara eu só de Amor por interesse,

77
Unidade I

se não se arrependesse
co a pena o engenho escurecendo.
Porém a mais me atrevo,
em virtude do gesto de qu’escrevo;
e se é mais o que canto que o qu’entendo,
invoco o lindo aspeito,
que pode mais que Amor em meu defeito.

Sem conhecer Amor viver soía,


seu arco e seus enganos desprezando,
quando vivendo deles me mantinha.
O Amor enganoso, que fingia
mil vontades alheias enganando,
me fazia zombar de quem o tinha.
No Touro entrava Febo, e Progne vinha;
o corno de Aquelôo Flora entornava,
quando o Amor soltava
os fios d’ouro, as tranças enerespadas,
ao doce vento esquivas,
dos olhos rutilando chamas
vivas, e as rosas entre a nove semeadas,
co riso tão galante
que um peito desfizera de diamante.
Um não sei quê, suave, respirando,
causava um admirado e novo espanto,

que as cousas insensíveis o sentiam.


E as gárrulas aves levantando
vozes desordenadas em seu canto,
como em meu desejo se incendiam.
As fontes cristalinas não corriam,
inflamadas na linda vista pura;
florescia a verdura

que, andando, cos divinos pés tocava;


os ramos se abaixavam,
ou de inveja das ervas que pisavam
(ou porque tudo ante ela se abaixava).
Não houve coisa, enfim,
que não pasmasse dela, e eu de mim.

Porque quando vi dar entendimento


às cousas que o não tinham, o temor
me fez cuidar que efeito em mim faria.
78
Literatura Portuguesa: Poesia

Conheci-me não ter conhecimento;


e nisto só o tive, porque Amor
mo deixou, porque visse o que podia.
Tanta vingança Amor de mim queria
que mudava a humana natureza:
os montes e a dureza
deles, em mim, por troca, traspassava.
O que gentil partido!
Trocar o ser do monte sem sentido,
pelo que num juízo humano estava!
Olhai que doce engano:
tirar comum proveito de meu dano!

Assi que, indo perdendo o sentimento


a parte racional, me entristecia
vê-la a um apetite sometida;
mas dentro n’alma o fim do pensamento
por tão sublime causa me dezia
que era razão ser vencida.
Assi que, quando a via ser perdida,
a mesma perdição a restaurava;
e em mansa paz estava
cada um com seu contrário num sujeito.
Ó grão concerto este!
Quem será que não julgue por celeste
a causa donde vem tamanho efeito
que faz num coração
que venha o apetite a ser razão?

Aqui senti de Amor a mor fineza,


como foi ver sentir o insensível,
e o ver a mim de mim mesmo perder-me;
enfim, senti negar-se a natureza;
por onde cri que tudo era possível
aos lindos olhos seus, senão querer-me.
Despois que já senti desfalecer-me,
em lugar do sentido que perdia,
não sei que m’escrevia
dentro n’alma co as letras da memória,
o mais deste processo
co claro gesto juntamente impresso
que foi a causa de tão longa história.
Se bem a declarei,
eu não a escrevo, d’alma a trasladei.
79
Unidade I

Canção, se quem te ler


não crer dos olhos lindos o que dizes,
pelo que em si se esconde,
os sentidos humanos, lhe responde,
não podem dos divinos ser juízes,
[sendo um pensamento
que a falta supra a fé do entendimento].

A subjetividade penetra fundo nas canções, na presença constante de um “eu” que afirma o seu
Amor e os tormentos derivados deste. O amor é apresentado personificado e absoluto, configurando
mais que um sentimento do ser, uma quase entidade fora do sujeito e quem com ele trava mortal
batalha. O sentimento amor aparece nas canções como conhecimento sentimental e afetivo, seguido
do sensorial, predominantemente visual.

Algumas canções começam a invocação do Amor e definem diretamente a luta do ser com esse
terrível sentimento; outras começam com a descrição física dos atributos da mulher, na definição de
um retrato provocador dos desejos e dos sentimentos do ser; noutras surge uma descrição física do
ambiente em que se desenrola a confissão, lugar, aliás, que se organiza como um cenário propício à
confissão, pois é lugar solitário e abandonado.

Em relação à estrutura das canções de Camões, ocorre uma variedade na quantidade de versos como
na organização do envoi, a dedicatória apresentada no poema. Os versos variam entre decassílabo e
hexassílabo e, igualmente, o envoi final não se mantém constante, variando entre 3 versos e 7 versos.

O visual é um aspecto fundamental nas canções, seja explicitado nas águas plácidas dos rios, que
proporcionam serenidade ao espírito, seja no monte estéril que associa a um aspecto de secura e
pessimismo do ser. Enfim, o visual não se restringe a aspectos bucólicos e estáticos, associando-se ao
espírito e ao estado da alma. O visualismo estende-se a aspectos recorrentes nas cantigas de amor, em
que os olhos, aspecto físico das mulheres, aparecem mais.

Em síntese, a canção Manda-me Amor que cante docemente é a única em que se alternam momentos
de intenso conflito com outros de extrema felicidade. É a canção que se constitui no mais expressivo
momento antológico das canções camonianas.

Exemplo de aplicação

I. Faça uma leitura analítica da estrutura dos textos camonianos. Verifique verso, estrofe, rima, sílaba
poética; se é medida velha ou nova.

Texto 1 (CAMÕES, 2004, p. 282):

Vês aqui a grande máquina do mundo,


Etérea e elemental, que fabricada
Assim foi do Saber alto e profundo,
80
Literatura Portuguesa: Poesia

Que é sem princípio e meta limitada.


Quem cerca em derredor este rotundo
Globo e sua superfície tão limada,
É Deus: mas o que é Deus ninguém o entende,
Que a tanto o engenho humano não se estende.”

Este orbe que, primeiro, vai cercando


Os outros mais pequenos que em si tem,
Que está com luz tão clara radiando,
Que a vista cega e a mente vil também,
Empíreo se nomeia, onde logrando
Puras almas estão daquele Bem
Tamanho, que Ele só entende e alcança,
De quem não há no mundo semelhança.

Texto 2 (CAMÕES, 1990, p. 161):

Foge-me pouco a pouco a curta vida


(se por caso é verdade que inda vivo);
vai-se-me o breve tempo d’ante os olhos;
choro pelo passado e, quando falo,
se me passam os dias passo e passo,
vai se me, enfim, a idade e fica a pena.

Que maneira tão áspera de pena!


Que nunca üa hora viu tão longa vida
em que possa do mal mover se um passo.
Que mais me monta ser morto que vivo?
Para que choro, enfim? Para que falo,
se lograr me não pude de meus olhos?

Ó fermosos, gentis e claros olhos,


cuia ausência me move a tanta pena
quanta se não comprende enquanto falo!
Se, no fim de tão longa e curta vida,
de vós m’inda inflamasse o raio vivo,
por bem teria tudo quanto passo.

Mas bem sei, que primeiro o extremo passo


me há de vir a cerrar os tristes olhos
que Amor me mostre aqueles por que vivo.
Testemunhas serão a tinta e pena,
que escreveram de tão molesta vida
o menos que passei, e o mais que falo.

81
Unidade I

Oh! que não sei que escrevo, nem que falo!


Que se de um pensamento n’outro passo,
vejo tão triste género de vida
que, se lhe não valerem tantos olhos,
não posso imaginar qual seja a pena
que traslade esta pena com que vivo.

N’alma tenho confino um fogo vivo,


que, se não respirasse no que falo,
estaria já feita cinza a pena;
mas, sobre a maior dor que sofro e passo,
me temperam as lágrimas dos olhos
com que, fugindo, não se acaba a vida.

Morrendo estou na vida, e em morte vivo;


vejo sem olhos, e sem língua falo;
e juntamente passo glória e pena.

Comentários: O texto 1 pertence à epopeia Os lusíadas e segue medida nova e rígida poética. Em
cada verso temos 10 sílabas, classificado como decassílabo. O sistema de rima é ABAB, ou seja, alternado.

No texto 2, temos um tipo específico de poema, a sextina, composta por 6 estrofes, sendo a última
a união das anteriores. Em cada estrofe, constam 6 versos.

Chamou sua atenção a palavra final de cada verso? Destaco-as com grifo:

Foge-me pouco a pouco a curta vida


(se por caso é verdade que inda vivo);
vai-se-me o breve tempo d’ante os olhos;
choro pelo passado e, quando falo,
se me passam os dias passo e passo,
vai se me, enfim, a idade e fica a pena.

Que maneira tão áspera de pena!


Que nunca üa hora viu tão longa vida
em que possa do mal mover se um passo.
Que mais me monta ser morto que vivo?
Para que choro, enfim? Para que falo,
se lograr me não pude de meus olhos?

Ó fermosos, gentis e claros olhos,


cuia ausência me move a tanta pena
quanta se não comprende enquanto falo!
Se, no fim de tão longa e curta vida,

82
Literatura Portuguesa: Poesia

de vós m’inda inflamasse o raio vivo,


por bem teria tudo quanto passo.

Mas bem sei, que primeiro o extremo passo


me há de vir a cerrar os tristes olhos
que Amor me mostre aqueles por que vivo.
Testemunhas serão a tinta e pena,
que escreveram de tão molesta vida
o menos que passei, e o mais que falo.

Oh! que não sei que escrevo, nem que falo!


Que se de um pensamento n’outro passo,
vejo tão triste género de vida
que, se lhe não valerem tantos olhos,
não posso imaginar qual seja a pena
que traslade esta pena com que vivo.

N’alma tenho confino um fogo vivo,


que, se não respirasse no que falo,
estaria já feita cinza a pena;
mas, sobre a maior dor que sofro e passo,
me temperam as lágrimas dos olhos
com que, fugindo, não se acaba a vida.

Morrendo estou na vida, e em morte vivo;


vejo sem olhos, e sem língua falo;
e juntamente passo glória e pena.

II. Leia o texto a seguir (CAMÕES, 1990):

Dizei, Senhora, da Beleza ideia:


Para fazerdes esse áureo crino,
Onde fostes buscar esse ouro fino?
De que escondida mina ou de que veia?

Dos vossos olhos essa luz febeia,


Esse respeito, de um império dino?
Se o alcançastes com saber divino,
Se com encantamentos de Medeia?

De que escondidas conchas escolhestes


As perlas preciosas orientais
Que, falando, mostrais no doce riso?

83
Unidade I

Pois vos formastes tal como quisestes,


Vigiai-vos de vós, não vos vejais;
Fugi das fontes: lembre-vos Narciso.

Vocabulário:

Crino: espécie de narciso; pelos compridos sobre o pescoço, cabelos (de crina)
Febeia: relativo a Febo Apolo
Dino: digno
Medeia: personagem da tragédia grega, mulher de Jasão, considerada feiticeira
Perlas: pérolas
Narciso: personagem da mitologia que se apaixona pelo próprio reflexo na água e atira-se no rio

Nesse soneto de Camões, podemos perceber características que representam a influência da poesia
trovadoresca. Explique essa influência evidenciando trechos do texto em que seja possível estabelecer
essa aproximação. Explique também, com elementos do texto, de que maneira podemos perceber que
esse poema pertence ao Renascimento.

__________________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________

Comentários: Há proximidade com a poesia trovadoresca por causa da temática. A voz dirige-
se à mulher, chamando-a de Senhora, tal como vemos nas cantigas medievais, em tom de respeito e
elevando-a na sua beleza. Quanto aos elementos renascentistas, o poema constitui-se da medida nova.
Trata-se de um soneto decassílabo.

4 BARROCO E ARCADISMO

O Barroco foi um movimento cultural e artístico marcado por uma visão pessimista da vida,
consequência da crise econômica e social vivida pela Europa e das desilusões acerca dos ideais
humanistas e renascentistas.

Por outro lado, o Arcadismo representa a retomada dos ideais classicistas, propondo um retorno à
simplicidade e ao equilíbrio, tão valorizados nas culturas gregas e romanas.

4.1 Barroco: contexto social e histórico

O período a que chamamos Barroco pode ser descrito como uma época em que a sociedade se vê
diante das consequências da Reforma Protestante, iniciada em 1517 por Martinho Lutero e que dividiu
a Igreja entre católicos e protestantes.

84
Literatura Portuguesa: Poesia

As ideias protestantes puseram em risco o poder da Igreja, ao que ela respondeu com um
movimento de reação conhecido como a Contrarreforma e que tinha intenção de impedir o avanço
do protestantismo. O estilo barroco floresce quando a Igreja Católica busca a consolidação de seu
poder.

Entre os atos mais importantes da Igreja Católica dessa época, temos:

1. A instituição do Tribunal do Santo Ofício ou Tribunal da Inquisição, que julgava os atos ditos
contra a fé, entre os quais figurava professar outro credo ou possuir outra fé que não a da Igreja
Católica.

2. A criação da Companhia de Jesus, que devia combater os infiéis e expandir a fé cristã nas colônias.

Essas contradições no âmbito religioso tiveram forte influência sobre a arte do período, produzindo o
desencanto do homem com o próprio homem, assumindo assim uma postura anticlássica, que instaura
um mundo ambíguo. É esse mundo dicotômico, dividido entre o catolicismo e o protestantismo, entre a fé e
a ciência, que dá espaço à estética barroca.

Em 1578, o rei de Portugal, D. Sebastião, com apenas quatorze anos, desapareceu na batalha de
Alcácer-Quibir na África, não deixando herdeiros diretos. Seu tio, Cardeal D. Henrique, assumiu o poder
por dois anos, mas, em 1580, o rei da Espanha Filipe II, herdeiro mais próximo da coroa portuguesa,
anexou Portugal a seu país. Foi um dos períodos mais negros para a história de Portugal e, culturalmente,
um período de grande estagnação. O grande império perdeu seu líder e caiu sob o domínio espanhol até
1756, momento denominado de Restauração.

O desaparecimento de D. Sebastião incitou o imaginário popular, dando origem a um posicionamento


místico denominado sebastianismo, no qual muitos acreditavam no retorno de D. Sebastião como um
salvador, um messias.

O mito do sebastianismo é retomado por Fernando Pessoa em Mensagem, como veremos na unidade
sobre Modernismo.

Após a Reforma Protestante, a Contrarreforma da Igreja Católica acirra a perseguição aos “infiéis”,
procurando recuperar sua posição de destaque perdida com o Renascimento. A Inquisição torna-se uma
das instituições mais fortalecidas, que, além de comandar a censura, condenava à morte os traidores da
fé católica. A Companhia de Jesus toma frente no processo de catequização e reforça os ideais religiosos,
principalmente nas colônias, como o Brasil.

Nessa época, há constante tensão entre o antropocentrismo e o teocentrismo. O homem se vê


dividido entre as novas concepções renascentistas e os valores medievais abandonados. Assim, o
Barroco surge como expressão desse conflito entre o humanismo renascentista e a tentativa de
restauração de uma religiosidade intensa, vivida na Idade Média; duelo entre a razão e a fé, entre
o material e o espiritual.

85
Unidade I

4.2 Produção e características

As raízes do Barroco se encontram no Renascimento. Como no Classicismo, os artistas também


buscavam a perfeição formal, mas de maneira exagerada. A literatura barroca é marcada pelo
rebuscamento da linguagem e pela sobrecarga de figuras de estilo como a metáfora, a alegoria, a
hipérbole e a antítese.

Referências à cultura grega ainda aparecem, mas a ideia do pecado e do perdão torna-se uma
obsessão. O tema carpe diem (aproveite a vida, o momento), por exemplo, tão explorado pelos
gregos, volta à tona. Contudo, aproveitar a vida implica prazer, que por sua vez implica pecar.
Quantas dúvidas sofria o artista barroco! Como cultuar a vida e o prazer sem pecar? Como manter
os ideais renascentistas de valorização do ser humano sem ofender a Deus?

Como já dissemos, toda essa tensão e esse conflito acabam sendo expressos por meio da arte barroca,
na qual muitos tentavam conciliar as tendências opostas. Segundo o professor Massaud Moisés, “era
o empenho no sentido de conciliar o claro e o escuro, a matéria e o espírito, a luz e a sombra, visando
anular pela unificação a dualidade do ser humano, dividido entre os apelos do corpo e os da alma”
(MOISÉS, 2006, p. 73).

Na literatura, há duas correntes na arte barroca:


• Conceptismo: mais comum na prosa, essa corrente segue as orientações do poeta espanhol
Quevedo. Valoriza o raciocínio lógico, os silogismos, pelo uso de jogos de ideias.
• Cultismo: mais comum na poesia, essa corrente segue as orientações de Gôngora, poeta espanhol,
por isso é também chamada de gongorismo. Nela são valorizados os jogos de palavras, a linguagem
rebuscada, com trocadilhos e sentidos ambíguos.

Podemos destacar ainda o dualismo entre a razão e a emoção, entre o medievalismo e o renascimento.

As tópicas clássicas, já vistas no Renascimento e advindas da retomada das características greco-


romanas, são frequentes na literatura barroca, a saber:

• fugacidade da vida e das coisas, tudo é efêmero;


• carpe diem;
• a morte, expressão máxima da efemeridade;
• erotismo.

Por outro lado, a ambiguidade barroca faz aflorar outras temáticas na lírica, tais como:

• castigo, como decorrência do pecado;


• arrependimento e busca do perdão;

86
Literatura Portuguesa: Poesia

• narração de cenas trágicas;


• sobrenaturalidade;
• misticismo.

A poesia barroca corresponde muito mais ao culto da forma do que do conteúdo, ou


mesmo do sentimento lírico. Com pouca representatividade, os poetas portugueses sofrem
grande influência espanhola. Podemos citar Francisco Rodrigues Lobo (1579-1621), um dos
mais importantes discípulos de Camões. Influenciado por Gôngora, é considerado o iniciador
do Barroco em Portugal. A seguir, leia um soneto barroco de Francisco Rodrigues Lobo ( apud
MOISÉS, 2006, p. 163) e observe:

• trocadilho: “te vejo e vi, me vês agora e viste”;


• antítese: triste/contente; contente/descontente; mal/bem.

Veja também as incertezas do eu lírico quanto ao seu futuro.

Fermoso Tejo meu, quão diferente


Te vejo e vi, me vês agora e viste:
Turvo te vejo a ti, tu a mim triste,
Claro te vi eu já, tu a mim contente.

A ti foi-te trocando a grossa enchente


A quem teu largo campo não resiste;
A mim trocou-me a vista em que consiste
O meu viver contente ou descontente!

Já que somos no mal participantes,


Sejamo-lo no bem. Oh, quem me dera
Que fôramos em tudo semelhantes!

Mas lá virá a fresca Primavera:


Tu tornarás a ser quem eras dantes,
Eu não sei se serei quem dantes era.

Surgem nessa época, em Portugal, as Academias, nas quais os poetas se reuniam para discutirem
sobre a estética barroca. Outros autores que podemos citar são: D. Francisco Manuel de Melo, Frei Luís
de Sousa, Sóror Mariana Alcoforado e o dramaturgo Antônio José da Silva.

Vale ressaltar que a escrita ainda era um privilégio da nobreza e do clero, uma vez que a burguesia
iniciava-se nessa área. Ao povo, como havia de se esperar, era negado o acesso à escrita e aos bens
culturais das elites.

87
Unidade I

4.3 Arcadismo: contexto social e histórico

O século das luzes, como foi denominado, contrário aos exageros do Barroco, combateu a
mentalidade religiosa imposta pela Contrarreforma e retomou a cultura renascentista, propondo uma
arte mais equilibrada, baseada na razão, e cuja temática voltava-se para a vida simples, cultivada longe
dos grandes centros urbanos.

O século XVIII foi marcado por mudanças bastante significativas, tanto no âmbito político quanto no
científico e cultural. É dessa época o movimento intelectual denominado iluminismo, que se iniciou na
Inglaterra, mas teve seu apogeu na Revolução Francesa. O lema “Igualdade, Liberdade e Fraternidade”
ficaria marcado para sempre na história da humanidade.

Os filósofos dessa época, como Diderot, Voltaire e Rousseau, acreditavam que a razão era a única
fonte de conhecimento da natureza e da sociedade. A igreja e a religião eram vistas como instrumentos
de ignorância.

O iluminismo respondia às ideologias da burguesia em ascensão que criticava o absolutismo do


Estado.

Portugal se encontrava muito aquém do desenvolvimento político, econômico e cultural do


restante da Europa. Havia no país um despotismo, com o rei interpretando as leis conforme seus
interesses. O monarca da época era D. José I (pai do futuro D.João VI), mas o grande articulador
político foi o Marquês de Pombal (Sebastião José de Carvalho), primeiro-ministro do rei, que
organizou a intervenção do Estado na educação, proibindo o ensino dos jesuítas e os expulsando
do país e das colônias. Ele efetuou diversas reformas políticas e culturais, imbuído dos ideais
iluministas.

Em 1755, Lisboa sofreu um grande terremoto, sendo metade da cidade reconstruída por Pombal com
uma visão mais racionalista e neoclássica.

4.4 Produção e característica

Didaticamente, considera-se que o Arcadismo em Portugal inicia-se em 1756, quando foi fundada
a Arcádia Lusitana, uma sociedade literária na qual vários poetas se reuniam para recitarem poemas e
discutirem sobre a estética árcade.

Segundo a definição do dicionário Houaiss (HOUAISS e VILAR, 2009):

arcádia: designação comum às sociedades literárias dos séculos XVII-XVIII que


cultivavam o classicismo e cujos membros adotavam nomes de pastores na
simbologia poética. A etimologia da palavra apresenta: Arkadìa,ae “província
do Peloponeso” adaptado do grego Arkadía “região do Peloponeso, região de
pastores dados à música e à poesia”.

88
Literatura Portuguesa: Poesia

Por resgatar a imitação dos clássicos gregos e romanos, esse movimento é também denominado
de Neoclassicismo. Juntamente com o Classicismo e o Barroco, o Arcadismo compõe o período que
denominamos de Clássico.

A literatura árcade representa uma crítica da burguesia letrada e culta ao estilo de vida da nobreza
e do clero.

No período árcade, segue-se o conceito aristotélico de arte, isto é, a arte como imitação da natureza,
o racionalismo, expresso pela busca constante pelo equilíbrio e pela perfeição, vemos também a
presença de temas bucólicos, ligados à natureza e à tranquilidade rural.

Em Portugal, foram duas as principais academias árcades: a Arcádia Lusitana (1756) e a Nova Arcádia
(1790).

Essas características retomam os temas clássicos, considerados clichês árcades, tais como:

• fugere urbem: “fuga da cidade”, pois a felicidade só existe no campo;


• aurea mediocritas: “lugar da mediocridade”, cultua-se uma vida simples e equilibrada;
• locus amoenus: “lugar ameno”, no campo, um lugar que propicie os encontros amorosos;
• inutilia truncat: “cortar o inútil”, acabando com os excessos barrocos na linguagem.

Somado a essas características, o convencionalismo amoroso aparece sob a forma de pastoralismo,


pois o eu lírico se coloca como pastor de ovelhas e suas amadas são pastoras. Para isso, usam pseudônimos
que remontam à antiguidade clássica: Marília, Elmano.

Podemos citar alguns poetas árcades relevantes, como Nicolau Tolentino de Almeida, poeta satírico,
e Filinto Elísio. Contudo, aquele que mais se destacou foi o grande sonetista Manuel Maria Barbosa du
Bocage.

4.5 Manuel Maria Barbosa de Bocage

Bocage (1765-1805) nasceu em Setúbal, Portugal. Teve uma vida cheia de aventuras e boemia,
entre bares e recitais poéticos. Pertenceu à Nova Arcádia, na qual era conhecido pelo pseudônimo
de Elmano Sadino. Contudo, era um rebelde e logo abandonou o grupo, cujo estilo atacou. Escreveu
poemas satíricos que chegaram a fazer com que o poeta fosse preso. Faleceu pobre e doente. As suas
obras tiveram várias edições ainda em vida: Rimas, tomo I (1791), Rimas, tomo II (1799) e Rimas, tomo
III (1804). Em 1811, foram publicadas as Obras Completas, no Rio de Janeiro. Ficaram famosos os seus
Sonetos, os seus Epigramas e os seus Apólogos.

Sua obra pode ser dividida da seguinte maneira:

• poesia erótico-satírica: linguagem obscena e agressiva;


• poesia lírica.
89
Unidade I

Podemos notar a obra de Bocage distintamente em duas fases. Na primeira fase, o poeta mostra
obediência aos clichês árcades; em contrapartida, a segunda fase é marcada pela dissidência com o
Arcadismo e aproximação com o Romantismo, ao que os críticos chamam de Bocage pré-romântico.
Entre os temas mais explorados por Bocage, podemos destacar: o amor, a morte, o destino, a natureza
e o conflito entre a razão e o sentimento.

Há também um Bocage que se faz notório em sua produção de versos fesceninos e eróticos, de verve
mordaz e língua ferina. Entretanto, alguns poemas de cunho erótico e pornográfico que levam o nome
de Bocage não são de sua autoria.

Veja a seguir um exemplo de um poema satírico de Bocage (1994, p. 30), no qual o poeta faz um
autorretrato bem humorado.

Magro, de olhos azuis, carão moreno,


Bem servido de pés, meão na altura,
Triste de facha, o mesmo de figura,
Nariz alto no meio, e não pequeno;

Incapaz de assistir num só terreno,


Mais propenso ao furor do que à ternura;
Bebendo em níveas mãos, por taça escura,
De zelos infernais letal veneno;

Devoto incensador de mil deidades


(Digo, de moças mil) num só momento,
E somente no altar amando os frades,

Eis Bocage em quem luz algum talento;


Saíram dele mesmo estas verdades,
Num dia em que se achou mais pachorrento.
Vocabulário:

assistir: no sentido de morar


pachorrento: cheio de pachorra, sem pressa, calmo

Podemos observar nesses versos como o poeta confessa sua vida boêmia, cheia de prazeres, seu
espírito inquieto e certo repúdio à religião. Era considerado um homem bonito.

Aliás, nessa fase satírica, Bocage mostrou-se excelente artífice do verso, tal como neste outro poema
(BOCAGE, 1969, p. 140):

Amar dentro do peito uma donzela;


Jurar-lhe pelos céus a fé mais pura;
Falar-lhe, conseguindo alta ventura,
Depois da meia-noite na janela:
90
Literatura Portuguesa: Poesia

Fazê-la vir abaixo, e com cautela


Sentir abrir a porta, que murmura;
Entrar pé ante pé, e com ternura
Apertá-la nos braços casta e bela:

Beijar-lhe os vergonhosos, lindos olhos,


E a boca, com prazer o mais jucundo,
Apalpar-lhe de neve os dois pimpolhos:

Vê-la rendida enfim a Amor fecundo;


Ditoso levantar-lhe os brancos folhos;
É este o maior gosto que há no mundo.

Bocage tem extraordinária habilidade no manejo dos recursos da forma soneto. No poema, são
versos decassílabos acentuados na sexta e décima sílabas; as rimas são todas graves, regularidade
que confere harmonia à matéria tratada. O autor aproveita a cisão entre quartetos e tercetos para
cumprir com a gradatio descritiva dos clássicos, conforme as normas de poetar difundidas no
século XVIII: nos oito primeiros versos, verbos, substantivos e adjetivos pertencentes a um mesmo
campo semântico de ingenuidade e pureza – “donzela”, “fé mais pura”, “alta ventura”, “cautela”,
“murmura”, “ternura, bela e casta” – mostram o retrato convencional de mulher, por quem o eu
lírico sente amor resguardado (“dentro do peito”) e a quem só pode ver a furto (“Depois da meia-
noite na janela”), no silêncio cúmplice da madrugada. É a dona inacessível dos tempos de outrora,
que Camões cantou com maestria.

O primeiro verso do terceiro terceto marca a transição, pois se os olhos são ainda vergonhosos, eles,
contudo, aceitam o beijo, desencadeando o que se segue, descendo gradativamente da boca para os
pimpolhos e folhos, hiperbolicamente temperados com “prazer mais fecundo, Amor fecundo e o maior
gosto”, plenos de erotismo.

A reviravolta no poema entre quartetos e tercetos mostra os impulsos carnais incontroláveis,


fazendo com que os vocábulos se mantenham no mesmo campo semântico: “vergonhosos/neve/
pimpolhos” (eufemismos para seio)/”ditoso/brancos”. Esse recurso à paronomásia é um dos trunfos
na criação da zombaria a que Bocage submete certos valores conturbados da época.

Para Mongelli (CORRADIN e JACOTO, 2008), cheio de irreverência, mas com domínio da retórica,
o poeta deixa entrever que a conquista não foi fácil: ele teve de jurar, fazê-la vir abaixo, ir com
cautela para vê-la render. O advérbio “enfim” imprecisa o tempo despendido no processo, cuja
alegria do galanteio é sonoramente marcada nas rimas –undo.

Segundo a regra da áurea mediocritas, em que o poeta precisa dizer o mínimo para evitar insipidez,
bem como evitar a baixeza, construindo a regra do decoro, Bocage seguiu à risca na composição de seu
soneto e obteve o efeito de rir e debochar do outro com o máximo de finura.

91
Unidade I

Neste outro exemplo (BOCAGE, 1994, p. 33), temos um poema lírico da primeira fase:

Ó tranças, de que Amor prisão me tece,


Ó mãos de neve, que regeis meu fado!
Ó Tesouro! ó mistério! ó par sagrado,
Onde o menino alígero adormece!

Ó ledos olhos, cuja luz parece


Tênue raio do sol! Ó gesto amado,
De rosas e açucenas semeado
Por quem morrera esta alma, se pudesse!

Ó lábios, cujo riso a paz me tira,


E por cujos dulcíssimos favores
Talvez o próprio Júpiter suspira!

Ó perfeições! Ó dons encantadores!


De quem sois?... Sois de Vênus? –
É mentira; Sóis de Marília, sois de meus amores.

Vocabulário:

alígero: que tem asas, é veloz


ledo: que revela ou sente felicidade, alegre
açucenas: flores

Nesse soneto, podemos observar as seguintes características árcades:

• pastoralismo: a amada é uma pastora, cujo nome percebe-se pelo vocativo “Marília”;

• referências à mitologia greco-latina: “Vênus”, “Júpiter” e cupido, por meio do epíteto “menino alígero”;

• busca do equilíbrio e da perfeição por meio do uso do soneto e da descrição da bela mulher: “Ó
perfeições! Ó dons encantadores!”.

Vejamos agora um exemplo do lirismo da segunda fase, ou da fase pré-romântica (BOCAGE, 1994, p. 39):

Meu ser evaporei na lida insana


Do tropel de paixões, que me arrastava;
Ah!, cego eu cria, ah!, mísero eu sonhava
Em mim quase imortal a essência humana.

De que inúmeros sóis a mente ufana


Existência falaz me não doirava!
92
Literatura Portuguesa: Poesia

Mas eis sucumbe a Natureza escrava


Ao mal que a vida em sua origem dana.
Prazeres, sócios meus e meus tiranos!
Esta alma, que sedenta em si não coube,
No abismo vos sumiu dos desenganos.

Deus, ó Deus!... Quando a morte à luz me roube,


Ganhe um momento o que perderam anos.
Saiba morrer o que viver não soube.

Vocabulário:

lida: labuta, trabalho, no sentido de vida


falaz: que ilude

Esse soneto, ainda de concepções clássicas, revela a lírica pessimista que exemplifica a fase madura
do poeta, cuja temática antecipa o ideário romântico do mal do século, marcado por religiosidade e
temas tristes.

Aqui, como em outros sonetos dessa fase de Bocage, o uso da razão e do universalismo dá lugar à
emoção e à subjetividade, como podemos ver nas expressões “meu ser”, “em mim”.

Resumo
De início, estudamos as primeiras manifestações literárias de Portugal,
que datam da Idade Média e se estendem até o período de transição da
literatura oral para a literatura escrita. Esses períodos são conhecidos como,
respectivamente, Trovadorismo e Humanismo.

No Trovadorismo, as manifestações literárias eram poemas acompanhados


com instrumentos musicais. Na verdade, eram cantigas que se distinguem em:

• Cantiga de amor: poemas em que o eu lírico é um homem e declara


seu amor à amada, cujo nome não pode ser revelado para manter
a honra dela. Na verdade, trata-se de um amor vassalo, em que o
homem se coloca a serviço da amada e por ela é capaz de morrer.
• Cantiga de amigo: os poemas têm como eu lírico uma voz feminina,
que sente a ausência do amado. Existe uma estrutura paralelística
muito rica na maior parte dos textos de amigo.
• Cantiga satírica: poemas em que, de forma direta ou indireta, critica-
se alguém da sociedade da época ou um comportamento. Distingue-
se em cantiga de escárnio e maldizer.
93
Unidade I

No Humanismo, a poesia perde seu acompanhamento musical e os


poetas criam técnicas para suprir tal falta. O teatro, em verso, supera em
inovação a poesia. O grande representante teatral é Gil Vicente, cujas peças
– autos e farsas – criticam a sociedade.

A literatura produzida entre os séculos XVI e XVIII abrange grandes


períodos literários como o Classicismo, o Barroco e o Arcadismo, suas
características específicas e como se dá essa passagem do período das
trevas para o período das luzes, ou seja, como o homem passa a se
valorizar como produtor de conhecimento e cultura.

O Classicismo é marcado pela presença universal e notória de


Camões, cuja produção abrange desde a criação de poemas com
estrutura na medida velha e medida nova até a criação da maior e
melhor epopeia escrita em língua portuguesa Os lusíadas. Camões
conseguiu, com sua criação, mudar o status da própria língua, porque
esta saiu da fase arcaica e passou para a fase moderna.

Exercícios
Questão 1. A canção Atrás da porta, composição de Chico Buarque e Francis Hime, apesar de
contemporânea, segue moldes da poesia trovadoresca. Assim, poderia ser classificada como:

Quando olhaste bem nos olhos meus


E o teu olhar era de adeus, juro que não acreditei
Eu te estranhei, me debrucei sobre o teu corpo e duvidei
E me arrastei, e te arranhei
E me agarrei nos teus cabelos
No teu peito, teu pijama
Nos teus pés, ao pé da cama
Sem carinho, sem coberta
No tapete atrás da porta
Reclamei baixinho
Dei prá maldizer o nosso lar
Pra sujar teu nome, te humilhar
E me vingar a qualquer preço
Te adorando pelo avesso
Pra mostrar que ainda sou tua
Até provar que ainda sou tua.
Disponível em: <http://letras.terra.com.br/elis-regina/80745/>. Acesso em: 24 nov. 2011.

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Literatura Portuguesa: Poesia

A) Cantiga de Amor, pelo eu lírico masculino.

B) Cantiga de escárnio, pela sátira.

C) Cantiga de Amor e de Amigo, por falar de amor.

D) Cantiga de Amigo, pelo eu lírico feminino.

E) Cantiga de Amigo, por dialogar com a natureza.

Resposta correta: alternativa D.

Análise das alternativas

A) Alternativa incorreta.

Justificativa: embora sejam Chico Buarque e Francis Hime os compositores, o eu lírico da música é
feminino: “Até provar que ainda sou tua”.

B) Alternativa incorreta.

Justificativa: a música não apresenta crítica irreverente e mordaz, características da cantiga de


escárnio.

C) Alternativa incorreta.

Justificativa: as cantigas de amor e as cantigas de amigo, embora falem de amor, são diferentes na
abordagem do tema e na perspectiva de quem fala nelas. Nas primeiras, o eu lírico é masculino; nas
segundas, o eu lírico é feminino.

D) Alternativa correta.

Justificativa: o uso do eu lírico feminino, “que ainda sou tua”, mostra a influência da cantiga de
amigo. Na canção, a mulher implora para que o amado não vá embora: “E o teu olhar era de adeus”.

E) Alternativa incorreta.

Justificativa: na música, o eu lírico não dialoga com a natureza. Embora essa seja uma característica
das cantigas de amigo, neste caso, o eu lírico sofre o término do seu romance, implorando ao amado
que não a deixe.

Questão 2. Leia os sonetos de Luís de Camões e assinale a alternativa correta quanto à lírica
camoniana:

95
Unidade I

Amor é fogo que arde sem se ver, Eu cantarei de amor tão docemente, 
é ferida que dói, e não se sente; por uns termos em si tão concertados, 
é um contentamento descontente, que dous mil acidentes namorados 
é dor que desatina sem doer. faça sentir ao peito que não sente. 

É um não querer mais que bem querer; Farei que amor a todos avivente, 
é um andar solitário entre a gente; pintando mil segredos delicados, 
é nunca contentar-se de contente; brandas iras, suspiros namorados,
é um cuidar que ganha em se perder. temerosa ousadia e pena ausente.

É querer estar preso por vontade; Também, Senhora, do desprezo honesto 


é servir a quem vence, o vencedor; de vossa vista branda e rigorosa, 
é ter com quem nos mata, lealdade. contentar me hei dizendo a menos parte.

Mas como causar pode seu favor Porém, para cantar de vosso gesto 
nos corações humanos amizade, a composição alta e milagrosa, 
se tão contrário a si é o mesmo Amor?  aqui falta saber, engenho e arte.
Disponível em: <http://www.sonetos.com.br/sonetos.php?n=259>. Acesso em: 24 nov. 2011.

A) O metro usado para a composição dos sonetos é a redondilha maior.

B) Cantar a pátria é o principal objetivo.

C) Encontra-se uma fonte de inspiração para os futuros poetas.

D) A mulher é vista em seus aspectos físicos, sem espiritualidade.

E) A emoção não é contida e supera a razão.

Resolução desta questão na plataforma.

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