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Poesia
Autoras: Profa. Ana Lúcia Machado da Silva
Profa. Janaína Arruda da Silva
Colaboradores: Profa. Cielo Festino
Profa. Joana Ormundo
Prof. Adilson Silva Oliveira
Professora conteudista: Ana Lúcia Machado da Silva / Janaína Arruda da Silva
Ana Lúcia Machado da Silva é mestre em Língua Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC). Foi professora do ensino básico em rede pública e privada da disciplina Língua Portuguesa durante quase vinte
anos. Ministra aulas de Análise do Discurso, Semântica e Pragmática, Literatura em língua portuguesa, entre outras,
no curso de graduação em Letras pela Universidade Paulista UNIP). Ministra também aulas em módulos para cursos de
lato sensu pela UNIP e Faculdade Atibaia (Faat).
Janaína Arruda da Silva é bacharel em Letras pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da
Universidade de São Paulo, mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC) e licenciada
em Língua Portuguesa e Literaturas de Língua Portuguesa. É doutoranda em Literatura Brasileira na FFLCH. Leciona no
ensino superior desde o ano 2000 e é professora de Literatura na UNIP, no curso presencial, desde 2003.
CDU 869.0
© Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou
quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem
permissão escrita da Universidade Paulista.
Prof. Dr. João Carlos Di Genio
Reitor
Comissão editorial:
Dra. Angélica L. Carlini (UNIP)
Dra. Divane Alves da Silva (UNIP)
Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR)
Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT)
Dra. Valéria de Carvalho (UNIP)
Apoio:
Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD
Profa. Betisa Malaman – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos
Projeto gráfico:
Prof. Alexandre Ponzetto
Revisão:
Michel Kahan Apt
Amanda Casale
Sumário
Literatura Portuguesa: Poesia
Apresentação.......................................................................................................................................................7
Introdução............................................................................................................................................................8
Unidade I
1 TROVADORISMO: CONTEXTO SOCIAL E HISTÓRICO............................................................................11
1.1 Cantigas de amor.................................................................................................................................. 21
1.2 Cantigas de amigo................................................................................................................................ 25
1.3 Cantigas satíricas: cantigas de escárnio e maldizer................................................................ 28
2 HUMANISMO: CONTEXTO SOCIAL E HISTÓRICO.................................................................................. 45
2.1 Poesia palaciana..................................................................................................................................... 49
2.2 O teatro de Gil Vicente........................................................................................................................ 51
2.3 Comicidade.............................................................................................................................................. 54
2.4 Auto da barca: inferno e crítica social.......................................................................................... 55
3 CLASSICISMO: CONTEXTO SOCIAL E HISTÓRICO DO RENASCIMENTO....................................... 57
3.1 Produção literária e características................................................................................................ 61
3.2 Sá de Miranda......................................................................................................................................... 61
3.3 Luís Vaz de Camões épico.................................................................................................................. 66
3.4 Luís Vaz de Camões lírico....................................................................................................................71
4 BARROCO E ARCADISMO.............................................................................................................................. 84
4.1 Barroco: contexto social e histórico ............................................................................................. 84
4.2 Produção e características................................................................................................................. 86
4.3 Arcadismo: contexto social e histórico........................................................................................ 88
4.4 Produção e característica................................................................................................................... 88
4.5 Manuel Maria Barbosa de Bocage ................................................................................................ 89
Unidade II
5 ROMANTISMO................................................................................................................................................... 97
5.1. Produção e características................................................................................................................ 98
5.2 Almeida Garrett...................................................................................................................................... 99
5.3 João de Deus.........................................................................................................................................101
6 REALISMO e SIMBOLISMO..........................................................................................................................103
6.1 Realismo: produção e características..........................................................................................104
6.2 Autores: Antero de Quental, Cesário Verde, Guerra Junqueiro........................................107
6.3 Simbolismo: produção e características.................................................................................... 113
6.4 Autores: Eugênio de Castro e Almeida, Florbela Espanca, Camilo Pessanha.............. 114
Unidade III
7 MODERNISMO.................................................................................................................................................122
7.1 Vanguardas europeias.......................................................................................................................122
7.2 Fernando Pessoa: ortônimo e heterônimo .............................................................................128
7.3 Mário de Sá-Carneiro .......................................................................................................................157
7.4 Presencismo e neorrealismo...........................................................................................................157
8 TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS...........................................................................................................160
8.1 José Gomes Ferreira............................................................................................................................164
8.2 Sophia de Melo Breyner Andresen...............................................................................................168
8.3 Herberto Helder...................................................................................................................................169
Apresentação
Seja bem-vindo ao ambiente virtual da disciplina Literatura Portuguesa: Poesia. Dois são os motivos
para maior aprofundamento em nossos conhecimentos sobre a literatura portuguesa: um deles é
óbvio, pois se relaciona à língua portuguesa, compartilhada entre portugueses e brasileiros. A matéria-
prima da literatura – seja qual for sua nacionalidade – é a língua, assim, a literatura portuguesa é uma
manifestação artística em língua: as combinações possíveis e imagináveis fonéticas, figuras verbais e
concepções de ideias. Conhecer mais a literatura de nossos irmãos de língua é conhecer mais um lado
da nossa língua e, por meio desta, a cultura e o pensamento de um povo.
Outro motivo – mais sutil – refere-se ao processo diferenciador verificado a partir da metade do
século passado: o início da europeização e universalização da literatura portuguesa. Não podemos deixar
de considerar a situação de Portugal em relação ao mundo, porque, como bem resume o sociólogo e
português Boaventura dos Santos (2006, p. 53): “Apesar de ser um país europeu e de os portugueses
serem tidos por um povo afável, aberto e sociável, é Portugal considerado um país relativamente
desconhecido”. Tal desconhecimento abrange, também, a produção literária. Assim, a partir de 1950,
as linhas filosóficas, ensaísticas e estéticas adotadas informaram e influíram na literatura portuguesa,
marcando intensamente o processo de conquista de leitores além da língua portuguesa. Várias obras
passaram a ser traduzidas para o espanhol e francês, por exemplo, além do tratamento às ideias que
ultrapassam o homem português, atingindo questionamentos que são transcendentais e de todos os
homens.
Assim, a disciplina Literatura Portuguesa: Poesia estuda – dentro de uma abordagem diacrônica e
com base em leituras – autores e obras decisivas para a formação da cultura literária em Portugal, desde
a Idade Média até a contemporaneidade, além de propor um panorama geral da cultura portuguesa.
No decorrer desse estudo, analisaremos e exercitaremos textos e práticas do ensino poético literário, a
fim de estabelecer correlações entre produções literárias de diferentes épocas e regiões, considerando o
contexto histórico e cultural, assim como as outras artes em geral.
Enfim, o que buscamos é mostrar a cultura portuguesa, suas obras e seus autores, como um
processo cultural contínuo e consolidado da consciência nacional e cultural do país — dentro e
fora das culturas de massa. Proporcionando uma boa reflexão sobre a relação entre a literatura e a
sociedade local e a situação destas no contexto em que se inserem os movimentos literários, podemos
fornecer-lhe, caro aluno, subsídios específicos para que, posteriormente, possa lecionar literatura no
ensino médio.
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Para formar um quadro sintético, este livro-texto se constitui de três unidades. Na unidade I é
apresentado o início da formação da literatura portuguesa desde o século XIII. Esse período ainda é
marcado pela fase da história chamada Idade Média, que influencia a arte. Assim, a literatura reflete,
por exemplo, a grande distinção entre as classes sociais e preceitos religiosos católicos. Enfim, nessa
unidade do livro-texto constam os dois primeiros movimentos literários portugueses: Trovadorismo e
Humanismo.
Há a apresentação de três estilos literários, sendo eles: Classicismo, marcado pelo mais escritor do
país, Luís Vaz de Camões; Barroco, movimento constituído do sofrimento humano, dividido entre a fé
e a razão, conhecimento; e, por fim, o Arcadismo, cuja característica maior é a valorização de uma vida
mais integrada à simplicidade.
Na unidade II, apresentam-se mais três estilos literários: Romantismo, Realismo e Simbolismo.
Sabemos muito sobre o Romantismo, cuja característica marcante é o subjetivismo, ou seja, a voz que
fala nos poemas centra-se no texto. Em contrapartida, o Realismo volta-se mais para a coletividade e
seus problemas sociais. O Simbolismo, em reação contrária à intenção mimética da arte, preocupa-se
com a arte em si e sua estética.
Introdução
Se alguém lhe perguntar, caro aluno, o motivo da existência da literatura na história passada e
atual da humanidade, o que você responderia? Ficaria indignado com a cegueira alheia quanto à
importância da literatura e daria exaltadas explanações? Ficaria minutos, dias, meses pensando em uma
resposta realmente viável? Afinal, é um questionamento que você próprio faz? Recorreria a uma dessas
explicações que muitos escritores/poetas dão em entrevista?
Isso mesmo! Quem não entende a literatura, entende música. Raramente encontramos uma pessoa
indiferente ou que odeia música, mas encontramos inúmeras pessoas, incluindo jovens alunos na escola
básica, que declaram explicitamente seu desgosto em relação à literatura.
Logo, se a música é tão fundamental às nossas vidas, chegando a ser visceral, por que não comparar
literatura a ela? Retomando a pergunta: por que existe literatura? ou: para que aprender literatura?,
existe uma resposta possível: a literatura é como a música: essencial a nós; não vivemos sem.
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• ambas têm história;
• são inúmeros autores/compositores;
• variam no decorrer do tempo e espaço, ou seja, elas têm estilo;
• há estilo que agrada uns e desagrada outros;
• causam preferências;
• emocionam, levando ao choro ou ao riso;
• levam a determinadas atitudes;
• são benfeitas, mas podem também ser malfeitas;
• são arte.
Não podemos nos esquecer da maior característica em comum entre elas: uma se relaciona com
a outra. No caso em especial da literatura portuguesa, as primeiras manifestações literárias foram em
forma de... música! No decorrer da história da literatura portuguesa, muitos autores relacionaram sua
obra à música. Por exemplo, Camões produziu, além de sonetos e redondilhas, as canções, as quais
são poemas destinados ao canto. Além disso, muitos poemas portugueses foram transformados em
música.
Temos o famoso poema camoniano Amor é fogo que arde sem se ver, transformado em música pelo
grupo brasileiro Legião Urbana (2010), na canção Monte Castelo. Mais recentemente, a cantora Maria
Bethania (2006) lançou o CD Mar de Sophia, baseado em poemas da portuguesa contemporânea Sophia
de Mello Breyner, em um trabalho musical esplêndido.
Com base nessa relação lítero-musical, lanço-lhe, caro aluno, uma situação-problema. A letra de
música a seguir foi lançada em 1981 no disco Traduzir-se, pelo cantor brasileiro Fagner (1999):
Fanatismo
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Literatura Portuguesa: Poesia
Unidade I
1 TROVADORISMO: CONTEXTO SOCIAL E HISTÓRICO
A história de Portugal antes de sua unificação como nação remete-nos ao notório Era uma
vez em um reino muito distante..., entretanto as terras hoje chamadas de Portugal não possuíam
apenas um reino, mas contavam com a presença de quatro reinos. Na Idade Média, a Península
Ibérica, região onde atualmente localizam-se Portugal e Espanha, era formada por diferentes
reinos cristãos: Leão, Castela, Aragão e Navarra, que disputavam incessantemente a hegemonia
daquele território.
Ao final do século XI, o rei de Leão, Afonso VI, havia conseguido certa harmonia entre esses
reinos. Doou à sua filha Tareja (ou Teresa) o Condado Portucalense, uma pequena faixa de terra
entre o Rio Tejo e o Rio Minho, como presente de seu casamento com o príncipe D. Henrique
de Borgonha, em 1094. Após a morte de Afonso VI, diversas disputas voltaram a ocorrer e o
pequeno Condado Portucalense corria o risco de ser incorporado a outros reinos. Com a morte de
D. Henrique, Dona Tareja assume o poder e estabelece estreitas relações com os galegos.
O infante, Afonso Henriques, rebelou-se contra a mãe e iniciou uma revolução que eclodiu em 24
de junho de 1128, quando foi declarado pelo povo como seu soberano. Contudo, somente em 1143, na
Conferência de Samora, Afonso VII, novo rei de Leão e Castela, reconhece Afonso Henriques como o
primeiro rei de Portugal.
O país tornou-se autônomo, mas demorou ainda muitos anos até consolidar seu território. Somente
em 1249 o novo rei, Afonso III, conseguiu expulsar os últimos mouros e estabelecer as fronteiras atuais
do país.
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Unidade I
O novo reino independente de Portugal, ao mesmo tempo em que se separava ao norte da Galícia,
estendia-se para o sul ao anexar as regiões reconquistadas aos mouros. Com a tomada de Faro, a nova
nação atingiu os limites que correspondem às fronteiras de hoje (TEYSSIER, 2004).
Saiba mais
1. Grupos iniciais pl-, cl-, e fi- > ch ([tš]). Houve palatização do l, uma vez que a consoante inicial
seguida de l palatal originou a africada [tš], transcrita em português por ch. Em decorrência, como se
vê na tabela a seguir:
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Literatura Portuguesa: Poesia
Latim Galego-português
PL plenu ~
cheo
planu chão
plicare chegar
CL clamare chamar
FL flagrare cheirar
3. Queda de n intervocálico e consequente nasalização da vogal precedente. Assim, vinu > v~i o;
manu > mão; luna > l~u a; bonu > bõo etc.
a) Alfabeto:
b) Fonética:
c) Morfologia:
• conjunção: et, ed (e), vel (ou pelo menos), mas porém, porém.
• advérbios; davante, dante (lugar), toste (cedo), cras (amanhã)
• interjeição: bofé, par Deus, guai.
d) Sintaxe:
Quanto ao vocabulário, a língua era constituída de vários arcaísmos, tais como: mi (mim), imigo
(inimigo), soidão, arruído, nado (nascido), ofeso (ofendido), trigança (pressa), asinha (depressa), grão
(grande), mor, peitar (subornar), garção (rapaz), comborço(a) (amante), coita (mágoa), solaz (consolo),
domaar (semana), trebelho (jogo, diversão).
O galego-português é, portanto, a fase arcaica da língua portuguesa, bem como a língua da primitiva
poesia lírica peninsular. Após tantas disputas e guerras, o novo clima de paz fez com que a literatura
portuguesa se firmasse, ou seja, com que a poesia medieval portuguesa encontrasse seu auge no século
XIII.
Aqui é Portugal1
Em Algarve uma prece
No azul e branco azulejo
São Lorenzo ora em solfejo
Exemplo de aplicação
1) Esse poema de Roberto Chaim é contemporâneo. Que elementos poéticos recuperam a história
inicial de Portugal como nação autônoma?
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2) Indique uma característica cultural e outra religiosa portuguesa com base no poema.
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Comentário: O poema é atual e brasileiro, mas uma homenagem a Portugal. Sobre esse país, o leitor
pode recuperar a história, como a Península Ibérica não ter a divisão atual Portugal/Espanha, devido
à presença do famoso rio Tejo, que começa em Toledo (Espanha) e passa pela capital portuguesa. A
expressão “Portus Cale” é referência a Portucalense. Sobre a cultura, há, por exemplo, a referência aos
famosos azulejos, nas cores azul e branca. O aspecto religioso conta com a presença de São Lorenzo.
II. Até que ponto você consegue entender o conteúdo do texto a seguir, escrito em galego-português
(a fase arcaica da língua portuguesa)? Pode-se fazer um resumo ou reescrever o texto segundo a língua
atual.
“Como el-rey manda aos seus almuxarifes que nom leuem nenhuma cousa d’aqueles a que acaeçe
prigoo no mar.
Stabeleçemos que nenhum nom leue aaqueles que acaeçer perigoo no mar, assy dos da terra come
dos das outras, se acaeçer por britamento de naue ou de nauio, alguma cousa que andasse na naue
ou no nauio que aportase na rribeyra ou en alguum porto, mais os ssenhores d’essas cousas ajam-nas
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Unidade I
todas em pax, assy que os nossos almuxarifes nom leuem d’eles cousa, nem aquelles que de nos as terras
teuerem, nem nenhuum outro. Ca ssem rrazom pareçe que aquel que he atromentaado dar-lhi homem
outro tormento. Se per uentura alguum contra esta nossa constetiçom quizer hir, reteendo-lhi o sseu
auer, leuando dos dauamdictos alguma cousa, fecta primeiramente entrega das cousas que lhi filharom
ou perderom, perça quanto ouver” (Lei dos almoxárifes de D. Afonso II, datada de 1211).
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Comentários: Hoje seríamos motivo de brincadeira se escrevêssemos uma palavra iniciada com rr
ou ss, tal como ocorre na grafia de determinadas palavras na lei citada. Outra situação é o uso da letra
u para representar o fonema /v/. Esse uso ocorria porque o latim, língua que deu origem ao português,
não tinha a letra v. Constam também arcaísmos no texto, tais como: acaeçer (acontecer); britamento
(naufrágio), filhar (tomar).
O início de Portugal como nação autônoma aconteceu no período histórico nomeado como
Idade Média, sendo o sistema socioeconômico o feudalismo. Predominavam grupos sociais fechados,
impossibilitando mobilidade entre as classes. Havia também profunda ligação de dependência entre os
senhores feudais e seus vassalos, à qual se denominava vassalagem.
Os senhores feudais eram nobres de alta linhagem, os fidalgos (cavaleiros e escudeiros) e o clero, mas
também havia na sociedade os servos e escravos. Os trabalhadores eram vassalos dos senhores (nobres
e eclesiásticos) e estes, por sua vez, eram vassalos do rei.
Para entender melhor a terminologia dos estratos sociais presente na poesia medieval portuguesa,
esboçamos a constituição social no noroeste da Península, no século XIII:
• Funcionários, homens de lei e de pena: boticários, físicos (médicos), escrivães, tabeliães, juízes,
corregedores, meirinhos etc.
• Clero: incluía todos os estratos sociais. Tinha importância socioeconômica e atuava na conservação
e difusão da cultura.
Na época, a organização social era pautada por uma visão teocêntrica de mundo, ou seja, Deus era
tido como o centro do universo, um ser absoluto. O homem nasceu para obedecer, ou mesmo para seguir
um caminho predeterminado, sem opções, sem livre-arbítrio. Todos os atos humanos eram explicados
por forças ocultas. Por conseguinte, a Igreja era uma rica senhora feudal, responsável por difundir e
manter os preceitos do catolicismo, assim como divulgar a educação.
Saiba mais
Quanto à educação formal, ela era restrita a um grupo pequeno, em geral o clero e poucos filhos dos
feudos, que sabiam ler e escrever. Como consequência, primeiro, a sociedade era predominantemente
oral e, segundo, a literatura da época era produzida por esses escassos indivíduos letrados.
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Unidade I
• Menestrel: designação que os músicos passam a assumir quando o termo jogral passa a ser
pejorativo e designar somente o vagabundo ou jogral que faz graça, conhecido hoje pela figura
do bobo da corte.
Era poesia feita para ser cantada nas cortes do rei e de magnatas portugueses, e a compunham
todos aqueles que se julgavam com talento para tal. Na verdade, essa poesia era produzida pelo
pequeno grupo que sabia ler e escrever: desde o rei e os príncipes, os bastardos dos reis, os ricos-
homens e cavaleiros, escudeiros, até a gente socialmente mais desqualificada, vilãos que viviam
de cantar e tocar nas casas ricas. O acesso ao conhecimento e às letras era privilégio das classes
dominantes: clero e nobreza, contudo, de um lado, a constituição social do clero, com a inclusão de
indivíduo de condições e origens diversas, contribuía para diluir os limites rígidos da distribuição de
cultura; de outro lado, o gosto pela vida social desenvolvida entre a nobreza atraía uma população
talentosa, mas de condição inferior, para as quais o modelo da corte era estímulo e fator de
ascensão social.
Por isso, não causa estranheza o fato de a literatura inicial de Portugal ser produzida, inclusive,
por rei. Em Portugal, Dom Dinis, rei de 1279 a 1325, foi autor de 72 cantigas de amor, 51 de amigo, 3
pastorelas e 11 cantigas de escárnio e maldizer. D. Afonso X, rei de Leão e Castela entre 1252 a 1284,
escreveu Cantigas de Santa Maria e 44 cantigas profanas, sendo estas 2 de amor, 2 de amigo, 34 de
escárnio e maldizer e 4 tenções com outros trovadores.
Quanto à posição social dos outros trovadores, exemplificam-se alguns casos, com base em Vieira
(1987):
• Paai (Paio) Soares de Taveirós: pertenceu à linhagem dos Velhos, família de antiga nobreza da
região do Lima.
• Martim Soares: sua família não era nobre, mas tinha posses. Era de Riba de Lima, atual Ponte de
Lima.
• Pedr’Amigo de Sevilha: foi clérigo, provavelmente da região de Betanzos, e frequentou a corte de
Afonso X.
Essa poesia, hoje conhecida como trovadoresca, surgiu em Provença, região sul da França conhecida
como Langue d´Oc ou Languedócio, no século XII (Baixa Idade Média), em torno de 1189/1198, e foi
finalizada em 1434.
A França desenvolveu primeiro uma literatura sentimental, cortês, elegante e refinada, que
transforma a mulher no santuário da inspiração lírica. A intensa influência romana, o clima mais ameno
e a prosperidade econômica deram azo a esse espírito mais lírico, já ao norte predominava o espírito
guerreiro, por isso cultivou mais o heroísmo das novelas de cavalaria.
A mensagem poética do trovador provençal é a de que o amor é fonte da poesia e é leal, inatingível
e sem recompensa – é o fin amors, ou o amor cortês, que traçou uma temática comum para as cantigas
de amor, a que conhecemos como convencionalismo amoroso, em que podemos ver:
18
Literatura Portuguesa: Poesia
O amor cortês está claramente ligado à vida palaciana e emula a estrutura de classes do mundo
medieval, que vemos reproduzida na poesia, como observaremos mais adiante.
Mais tarde, esse culto à mulher é substituído pelo culto à Virgem Maria, que a partir de 1209 foi
imposto como tema oficial, depois das sanguinárias cruzadas do Papa Inocêncio III. Por isso, a lírica
amorosa das cantigas de amor chega para nós evidenciando uma postura maior de idealização da
mulher amada, cujo erotismo é bastante sutil.
É do século XII o mais antigo documento literário escrito na língua galego-portuguesa: a cantiga
conhecida como A Ribeirinha (1198 ou 1189), escrita por Paio Soares de Taveirós para Maria Pais da
Ribeira, amante de D. Sancho I.
A literatura desse período a que nos referimos, o Trovadorismo, é predominantemente poética, feita
sob a forma de cantigas, canções ou cantares. A literatura em prosa é posterior e aparece definitivamente
no fim do século XIV.
Observação
A poesia medieval portuguesa chegou ao seu apogeu primeiramente na
corte de D. Afonso X, depois na de D. Afonso III, de Portugal, e na do neto
português do Rei Sábio, D. Dinis.
Em síntese, o primeiro momento literário de Portugal chama-se Trovadorismo, um termo que vem
do verbo trouver (achar). O termo “trovadorismo” é originário de “trova”, que também deu origem à
palavra trovador, que designa o criador dos textos literários. Trovador, troubadour em francês, é aquele
que “acha sua cantiga”.
Os poemas naquela época eram denominados de cantigas por serem acompanhados de música,
canto e instrumentos musicais. Tais cantigas eram escritas e cantadas em galego-português, idioma
formador de uma unidade linguística entre Portugal e a Galiza.
cancioneiros, cujos copistas registravam à mão as cantigas por ordem de reis, que faziam a vez de
um mecenas.
Os cancioneiros mais conhecidos das compilações peninsulares escritas em língua galego portuguesa são:
• Cancioneiro d´Ajuda: século XIII, portanto o único que remonta à época trovadoresca.
• Cancioneiro da Vaticana: na biblioteca do Vaticano.
• Cancioneiro da Biblioteca Nacional: inclui um tratado da poética trovadoresca.
Esses três cancioneiros contêm tudo que nos resta da lírica trovadoresca, desde os fins do século
XII até meados do XIV. A cópia do Cancioneiro d’Ajuda não foi completada em todos os seus detalhes e
não temos, por conseguinte, a pauta musical das cantigas. Foi achado pelo antiquário de Madri Pedro
Vindel apenas em 1914, de um cancioneirinho de Martim Codax, contendo sete cantigas de amigo, das
quais seis acompanhadas de notação musical. No ano seguinte, de acordo com Vieira (1987), Vindel
publicou pouquíssimos exemplares com reprodução fotográfica do manuscrito, propiciando edições
futuras, críticas e estudos das cantigas.
A leitura dos cancioneiros no seu estado original é difícil tanto para leigos quanto para especialistas,
devido aos estragos naturais causados pelo tempo e outros fatores, como uso indevido, causando páginas
arrancadas e margens cortadas. Além disso, dois dos cancioneiros foram copiados por amanuenses
italianos e ibéricos de origem e cultura diversas, em diferentes momentos da evolução da língua. Ainda
segundo Vieira:
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Literatura Portuguesa: Poesia
No que se refere aos gêneros, os poemas contidos nos cancioneiros são agrupados em:
1. Cantigas de amor
2. Cantigas de amigo
3. Cantigas de escárnio e maldizer.
O critério para distinguir as cantigas de amor das cantigas de amigo é o emissor em cada caso: se a
voz do texto é masculina, é de amor; se é feminina, então é de amigo. As cantigas de escárnio e maldizer
distinguem-se pela intenção ofensiva: se as palavras são encobertas, temos as cantigas de escárnio; se
ofendem abertamente, são cantigas de maldizer.
Cara aluna, imagine receber uma mensagem escrita ou cantada com os seguintes versos:
Apesar de a língua ser arcaica, nós – leitoras – com certeza suspiraríamos ao ler ou ouvir de um
homem que declara “morrer de amor” por nós. Trata-se da primeira estrofe de uma cantiga de amor,
criada por Paai Soares de Taveirós (apud VIEIRA, 1987, p. 41), completa a seguir:
21
Unidade I
Segundo o crítico literário Moisés (2008), o mais provável é que essa cantiga tenha suas raízes na
Provença, uma região da França que possuía intensa atividade cultural. Muitos jograis franceses (uma
espécie de artista saltimbanco) passavam por Lisboa trazendo a nova moda poética.
As cantigas de amor se caracterizam por apresentarem uma voz lírica masculina que, como um
vassalo, portanto subserviente, confessa seu amor a uma mulher inacessível, geralmente pela sua classe
social, muito diferente daquele, ou insensível aos apelos amorosos.
Reflete, portanto, uma forma platônica de amor, posto que a amada é idealizada, tida como
inatingível, forçando assim o impulso erótico a sublimar-se; é a chamada coita de amor, que reproduz
as relações da sociedade feudal de suserania e vassalagem.
Possui linguagem mais elaborada em relação às cantigas de amigo e faz menos uso do recurso
facilitador do refrão.
Didaticamente, utilizamos o ano de 1198 (ou 1189) para marcar o início da literatura portuguesa,
uma vez que é desta data o primeiro documento literário encontrado, A Ribeirinha ou Cantiga de
Garvaia, escrita por Paio Soares de Taveirós, endereçada a Maria Pais Ribeiro, a favorita de D. Sancho I,
filho de Afonso Henriques.
Vejamos a seguir a cantiga Ribeirinha ou Cantiga de Garvaia (Taveirós apud MOISÉS, 2006, pp. 16-
17).
Cantiga de Garvaia
Vocabulário:
Como podemos observar, há entre eles a “vassalagem amorosa”. Ele se coloca em uma posição
inferior, como um vassalo, e a mulher em uma posição superior, como sua senhora. O eu lírico
se mostra muito respeitoso, seu amor é cortês e convencional, ou seja, não há uma proximidade
física.
Lembrete
Vejamos outra cantiga de amor no exemplo a seguir (Dinis apud MOISÉS, 2006, p. 19):
Cantiga
Vocabulário:
Note como o eu lírico dessa cantiga, cujo autor é D. Dinis, sofre por sua amada, a ponto de declarar
que irá morrer de amor.
Agora, observe como a música Meu bem querer, de Djavan (1980), revela os mesmos moldes das
cantigas trovadorescas.
Meu bem-querer
É segredo, é sagrado
Está sacramentado
Em meu coração
Meu bem-querer
Tem um quê de pecado
Acariciado pela emoção
Amor
E o que é o sofrer
Para mim que estou
Jurado pra morrer de amor?
De forma geral, com base em Spina (1956), as cantigas de amor seguem estes temas:
24
Literatura Portuguesa: Poesia
As cantigas de amigo são originárias da própria Península Ibérica, não existiram na lírica provençal
e têm, portanto, origem popular, o que explica o vocabulário escasso, os arcaísmos e as repetições tanto
no recurso do refrão como nos paralelismos.
Caracteriza-se pelo uso de eu lírico feminino, que dirige seu apelo amoroso à natureza e não raro é
ambientada no meio rural ou marítimo.
Assim, o eu lírico feminino, de camada social inferior, se apresenta como uma pastora ou camponesa,
portanto distante da idealização da figura feminina das cantigas de amor. Essa moça, concebida de
modo mais realista, está à espera de seu amigo, amado ou amante, e não raro queixa-se à mãe, às
amigas ou à natureza o descaso de seu amigo, ou o fato de ele não chegar ao que combinaram.
Apesar de serem escritas por homens, o trovador coloca-se no lugar de uma mulher simples, do povo,
uma camponesa abandonada por seu amado. O motivo do abandono pode ser a guerra, as aventuras no
mar ou outra mulher. Temos aqui um amor não convencional, que insinua um contato físico.
25
Unidade I
As cantigas de amigo são mais simples que as de amor. O paralelismo e os refrões são usados em
abundância. A mulher nunca se dirige diretamente a seu amado, posto que este nunca se encontra, o
que configura a coita amorosa.
As cantigas de amigo recebem nomes específicos, dependendo da maneira como são ambientadas:
26
Literatura Portuguesa: Poesia
Vocabulário:
pino: pinheiro
u: onde
pôs: combinou
san’e vivo: são e vivo
e será vosc’ant’ o prazo saído/passado: e estará convosco quando for a hora certa
Note que, nas três primeiras estrofes, o eu lírico feminino se dirige à natureza, pedindo notícias de
seu namorado. Nas últimas, a natureza lhe responde, tranquilizando-a.
Como recurso estilístico, o trovador utiliza o paralelismo (repetição dos primeiros versos) e o
refrão (repetição dos últimos versos). Esses recursos davam maior musicalidade e enfatizavam sua
dor.
Agora, veja a seguir uma música de Chico Buarque (1967) que retoma as características de uma
cantiga de amigo:
27
Unidade I
As cantigas satíricas possuem apelo popular por seu caráter cômico e transgressivo. Têm o intuito
de satirizar os aspectos da vida feudal, sem poupar nenhuma camada social, atingindo nobreza, clero e
povo. Muitas vezes podemos distinguir o alvo dos ataques dos trovadores, como outro poeta e algumas
mulheres de moral duvidosa.
Essas cantigas cultuam valores associados ao riso, como o carnavalesco, a sátira e o cômico, o
grotesco e o obsceno. Apresentam pouco valor estético, mas são bons documentos históricos, pois
registram costumes da época.
A frequência com que foram cultivadas mostra que a produção dessas cantigas era muito comum
e que elas não sofriam censuras. Hoje sabemos que, de 154 trovadores portugueses, 93 dedicaram-se à
sátira.
Nas cantigas de escárnio, há uma crítica indireta e nas de maldizer, direta, inclusive com a citação
de nomes. Contudo, muitas vezes é difícil diferenciá-las. As cantigas de escárnio constroem, por meio
do humor e da ironia, uma crítica indireta, valendo-se da ambiguidade e do sarcasmo. Comumente
encobrem o nome da pessoa satirizada, a fim de que ela não seja identificada em uma leitura superficial.
Veja o exemplo a seguir (Guilhade apud MOISÉS, 2006, pp. 29-30).
Cantiga
28
Literatura Portuguesa: Poesia
Vocabulário:
loar: louvar
ora: agora
toda via: sempre, completamente
sandia: louca
que vos eu loe en esta razon: mereceis a justiça de eu louvá-la
loaçon: louvor
pero: todavia
Essa cantiga mostra o trovador fazendo troça com uma dama que lhe cobrou uma trova,
então ele justifica sua falta dizendo que não fez nenhuma trova a ela, mas que fará agora
chamando-a de feia, velha e louca. Assim, ele justifica o motivo por que nunca havia feito
trova alguma para ela, dizendo que não é merecedora de seu cantar, já que sua beleza não
está à altura de uma cantiga.
Consideradas mais ofensivas que as de escárnio, as cantigas de maldizer satirizam de maneira direta,
citando, muitas vezes, o nome do destinatário da cantiga.
Aqui costumam-se empregar expressões grosseiras e palavras de baixo calão, veiculando, não
raro, conteúdo obsceno. Veja a trova a seguir, dirigida a Maria Dominga (Ponte apud MOISÉS,
2006, p. 52):
Vocabulário:
Sa: sua
Mester: profissão
Sábia: saiba
Guarir: prosperar
Á-d’ir: há de ir
Mostrar: ensinar
Ambrar: andar com requebro e, por extensão, fornicar
Ca me lhi vej’ei ensinar: porque já a vejo ensinar
Nodrir: sustentar
Manhas: artes, maneiras
Cousir: considerar
Aquesto pode ben jurar: isto pode dizer
Atees: até
E quen d’aver ouver sabor: e quem tem o desejo de enriquecer
Mentr’esta meestr’aqui for: enquanto esta mestra aqui estiver
Por que: para que
Ergo se lhi minguar lavor: a não ser que lhe faltem homens
En: disso
De mais: além disso
E, pois tod’esto bem souber: e depois que aprender tudo isso
Guarrá: sustentar-se-á
Lavor: trabalho
Nesse texto o trovador, de maneira bastante grosseira, ataca essa mulher, Maria Dominga, dizendo
que aquele que quiser dar um ofício lucrativo a sua filha deve deixar que ela a instrua, insinuando que
Maria Dominga seja uma prostituta.
30
Literatura Portuguesa: Poesia
Saiba mais
Quanto à versificação, a grande maioria dos poemas trovadorescos possui três ou quatro estrofes –
ou cobras, na terminologia da época, sendo a minoria constituída de duas estrofes e, menos ainda, de
uma estrofe, podendo ser legitimamente levantada a hipótese de se tratarem de poemas incompletos
(VIEIRA, 1987).
O tipo de estrofe mais comum contém seis versos, unidos por três rimas, sendo elas ABBACC ou
ABABCC. Outra formação é a estrofe de sete versos, sendo os seis primeiros unidos por três rimas e o
último retomando uma das duas rimas iniciais. Um terceiro tipo compõe-se de dístico monorrimo mais
um verso com rima nova, o qual se estende sempre como refrão AAB.
O verso mais comum é o decassílabo; outra possibilidade são estrofes monométricas compostas de
versos de 5 a 16 sílabas e estrofes polimétricas em 113 combinações diversas.
Depois das três ou quatro estrofes, os trovadores podiam acrescentar alguns versos (de um a quatro)
para completar o tema desenvolvido. Esses versos finais – fiindas – devem rimar com a última estrofe
ou, no caso de a cantiga possuir um refrão, com este.
As cantigas possuidoras de refrão chamam-se “de refrão” e se opõem às de “mestria”, que não
têm refrão. A grande maioria das cantigas de amigo é de refrão, enquanto as de amor e de escárnio e
maldizer equilibram-se, mais inclinadas para as de mestria.
31
Unidade I
Verso 1 A # B
rima
2 C # D
sinonímia
3 A # B’ sinonímia
rima
4 C # D’
B e D, B’ e D’ relacionam-se por rima; B e B’, D e D’ por sinonímia. Vejamos como o esquema funciona
na barcarola de Joam Zorro:
A B
Verso 1 Per ribeira # do rio
C D
2 vi remar o navio
Refrão e sabor hei da ribeira.
A B’
3 Per ribeira # do alto
C D’
4 vi remar # o barco
e sabor hei da ribeira.
Para continuar o poema, o recurso empregado é a repetição, mas de uma nova maneira, como vemos
pelo esquema a seguir:
Verso 5 C # D
6 E # F
7 C # D’
8 E # F’
Portanto, em sequência de oito versos, dispostos em pares, apenas três versos apresentam novidade
no poema. A cantiga anterior iniciada continua assim:
32
Literatura Portuguesa: Poesia
A D
Verso 5 Vi remar # o navio:
E F
6 i vai # o meu amigo,
Refrão e sabor hei da ribeira.
C D’
7 Vi remar # o barco:
E F’
8 i vai # o meu amado,
e sabor hei da ribeira.
E F
Verso 9 I vai # o meu amigo,
G H
10 quer-me levar # consigo,
Refrão e sabor hei da ribeira.
E F’
11 I vai # o meu amado,
G H’
12 quer-me levar # de grado,
e sabor hei da ribeira.
A estrutura paralelística é característica das cantigas de amigo, mas não é exclusiva delas, uma
vez que nem todas as cantigas de amigo têm tal estrutura, e algumas de amor e satíricas recorrem
a ela.
Para ajudá-lo em suas futuras leituras de cantigas medievais, encerro esse período literário dispondo
um glossário (VIEIRA, 1987):
33
Unidade I
Acoomiar – recusar
Afam – trabalho, esforço
Aficado – apertado, perseguido
Aginha – depressa
Al – outra coisa
Alá – lá, então
Alacram – escorpião
Alfaia – presente, dom
Alfaraz – cavalo árabe muito veloz
Alhur – em outro lugar
Aló – lá, ali
Alto – ribeira, rio
Antejo – aborrecimento, tédio
Aqueste, a, o – este, esta, isto
Ar – de novo, também
Arçom – arção
Avem – acontece
B
Eixerdado – deserdado
Ementar – discorrer, falar
Empero – porém
En – ende
Ende – disso, daí
Enfenger – fingir
Er – também, além disso, outra vez
Escaecer – esquecer
Espedir – despedir
F
Ferido – expedição militar
Festinho – rápido
Fezo – 3ª p.s. perf. ind. de fazer
Filhar – tomar
Fontana – fonte
Frol – flor
G
Gaar ou gãar – ganhar
Galeom – galeão
Galiom – galo novo
Garvaia – manto real
Guarir – curar, curar-se
Guisa – forma, maneira
H
Ham – haver
Home – homem
I
I – aí, nisso
L
Lazerar – sofrer
Ledo – alegre
Ler – praia
Levado – levantado, alto
Lezer – consolação, prazer
Loaçom – elogio, louvar
35
Unidade I
Nado, a – nascido, a
Nembrar – lembrar
No – quem no
Nulho, a – nenhum, a
Q
Quebranto – prejuízo
Quedo – quieto
Quige – 1ª p. s. perf. ind. de querer
Quitar – tirar, livrar
R
Rafece – vil, ordinário
Rapaz – lacaio, servente de escudeiro
Razõar – falar
Reedor – cortador de cabelo
Rem – coisa
Retraer – retratar, descrever
Roussar – violar
S
Sabor – prazer
Sandece – loucura
Sanha – ira, raiva
Sazom – estação, tempo, ocasião
Sen – juízo, pensar
Senlheiro – sozinho, único
Sirgo – seda
Só – sob, debaixo
Soer – costumar
Sol – 3ª p. s. pres. ind. de soer
Sol – nem sequer
Sol que – assim que; logo que
Solaz – prazer, consolação
T
Talho – categoria
Temudo – temido
Tolher – tirar
Torto – erro
Trager – trazer
Trá-lo – atrás do, além do
Trobar – trovar, fazer trovas
U
U – onde, quando
37
Unidade I
Exemplo de aplicação
Nessa cantiga, uma regra é rompida na relação entre o trovador e sua amada. Qual?
__________________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________
Comentários: A cantiga de amor é marcada pela relação de vassalagem e o amor entre o vassalo e a
amada ou o amor do vassalo não correspondido é ocorrido em segredo. No entanto, na cantiga o nome
da amada é revelado, quando o trovador declara: “e vós, filha de don Paai / Moniz, e bem vos semelha”.
38
Literatura Portuguesa: Poesia
Se eu pudesse desamar
a quem me sempre desamou,
e podess’ algum mal buscar
a quem me sempre mal buscou!
Assi me vingaria eu,
se eu pudesse coita dar
a quem me sempre coita deu.
Exemplo de aplicação
A cantiga que acabou de ler é do segrel Pero da Ponte (apud MOISÉS, 2006):
a) Primeiramente, identifique o tipo de cantiga, comprovando sua resposta por meio do tema.
______________________________________________________________________________
b) Existem recursos interessantes na cantiga. Identifique exemplo de versos em que ocorre dobre
(repetição de palavras) e em que ocorre mordobre (repetição de formas verbais).
______________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________
39
Unidade I
Comentários: O trovador, ao falar de seu sofrimento amoroso (coita) e desejar vingança, ou seja,
causar sofrimento à pessoa amada, marca um exemplo de cantiga de amor. No fim da cantiga, temos
outra prova no uso do pronome “ela”, indicando que a voz que fala no texto é masculina.
Quanto ao recurso estético da cantiga, encontramos, além de rima cruzada (ABAB) e refrão, o dobre
e mordobre em todas as estrofes.
Exemplo de aplicação
O texto que acabou de ler é de Michel Pastoreau, professor de antropologia histórica na École des
Etudes en Sciences Sociales, em Paris, e um dos principais pesquisadores das populações europeias
medievais.
Comentários: Segundo estudiosos das cantigas de amor, a vassalagem amorosa, que consiste
no fato de o homem pôr-se inferior à amada, trata-se de uma inferioridade moral. Ou seja, a amada
é moralmente superior à voz masculina que declara seu amor. No entanto, verifica-se que o jogo
superioridade x inferioridade deve-se mais à condição social. Na verdade, a mulher faz parte de uma
classe acima da do homem.
I
Vi eu, mia madr’, andar
as barcas no mar:
e moiro-me d’amor.
Foi eu, madre, veer
as barcas eno ler:
e moiro-me d’amor.
As barcas eno mar
a foi-las aguardar:
e moiro-me d’amor
40
Literatura Portuguesa: Poesia
ler – praia
atender – esperar
não o pud’achar – não o pude achar
II
41
Unidade I
Exemplo de aplicação
__________________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________
b) No texto II, o eu lírico afirma “pero vos amo mais que a mim”. O que essa afirmação revela a
respeito da relação amorosa apresentada? Como essa relação pode ser ligada à sociedade da Idade
Média?
__________________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________
Comentários: A cantiga de Torneol é de amigo, devido à voz feminina que se dirige à mãe, como
ocorre logo no primeiro verso. É uma cantiga de barcarola por se tratar de um cenário em que o amado
da voz feminina está no mar, talvez a trabalho.
A cantiga de Dom Dinis, por sua vez, é de amor pelo fato de a voz dirigir-se a uma mulher, chamando
de “mia senhor” e declarar seu sofrimento amoroso. Nesse amor declarado há um desequilíbrio, porque
a voz masculina coloca-se em relação de inferioridade, representando a sociedade medieval.
42
Literatura Portuguesa: Poesia
Exemplo de aplicação
Retomamos a cantiga de amigo de Dom Dinis para uma leitura mais aprofundada:
__________________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________
b) Essa cantiga segue a estrutura paralelística. Como se estruturam os pares de estrofes a seguir?
Ai flores, ai, flores do verde pino,
se sabedes novas do meu amigo?
ai, Deus, e u é?
43
Unidade I
d) Agora, compare o paralelismo ocorrido entre o primeiro verso da terceira estrofe com a primeira
estrofe. O que há em comum?
Ai flores, ai, flores do verde pino,
se sabedes novas do meu amigo?
ai, Deus, e u é?
__________________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________
Comentários: Trata-se de uma cantiga de amigo, em que a voz é feminina e, geralmente, dirige-
se à natureza. No caso dessa cantiga, a mulher fala nas quatro primeiras estrofes e obtém resposta da
natureza, que assume o enunciado nas últimas estrofes. O mesmo refrão “ai, Deus, e u é?” é usado nas
falas da natureza, tornando-se apenas um recurso estético, sem relação com o tema da fala da natureza.
Essa cantiga segue o esquema paralelístico. Primeiro, as estrofes pares formam sinônimos, com
apenas a última palavra trocada (por um sinônimo), tal como acontece nas estrofes seguintes:
Nessas estrofes, os dois primeiros versos de cada estrofe são sinônimos, ocorrendo apenas a
substituição da palavra “pino” por “ramo” e “amigo” por “amado”. No caso da estrofe ímpar, há paralelismo
com a primeira estrofe par:
44
Literatura Portuguesa: Poesia
Verificamos que o primeiro verso da terceira estrofe é idêntico ao segundo verso da primeira estrofe
e assim por diante no decorrer da cantiga. Espero que você, caro aluno, tenha ampliado e entendido o
recurso paralelístico das cantigas.
A palavra Humanismo deriva do latim humanae litterae, em especial da expressão do latino Cícero
studia humanitatis, com que os humanistas batizaram suas pesquisas filológicas e redescobertas dos
textos clássicos. Por meio da análise de manuscritos antigos e sob uma perspectiva adequada, superaram
as falsificações feitas pelos intérpretes medievais, para quem o mundo antigo só devia ser conhecido e
estudado apenas como preparação da era cristã. A Antiguidade era vista por meio da ótica tipicamente
medieval, que consistia na interpretação alegórica, a partir da qual se procurava um ensinamento
profundo, moral e religioso, situado além do sentido literal das coisas.
Os estudos humanísticos consolidaram uma nova concepção da cultura e, por conseguinte, uma
atitude crítica, contrária do dogmatismo medieval, fundado na autoridade religiosa. Não havia mais
veneração à tradição, mas um exame livre.
A restauração dos textos clássicos feita pelos humanistas não constituiu um fim em si mesma. A
necessidade foi de reintegrar o homem à sua dignidade e potência terrenas. Em síntese, os escritores
antigos foram admirados, além da perfeição da língua e do estilo, também como modelos máximos de
humanidade. Desde então, estabeleceu-se a discussão sobre a doutrina da imitação dos antigos, que se
prolongou do século XIV até depois dos séculos XVI e XVII.
45
Unidade I
A palavra Humanismo põe em destaque o próprio homem, que, desprezado na Idade Média na sua
qualidade de criatura pecadora, passou a ocupar o centro de interesses, graças a uma nova valorização
que abre caminho para o antropocentrismo renascentista, em uma visão correspondente à nova
mentalidade burguesa, que fez crescer a economia monetária e mercantil.
Assim, concomitante ao pensamento humanista, teve início a era mercantilista, em que o comércio
passou a ser a base da nova classe em desenvolvimento, que é a burguesia. Juntamente, ocorreram o
declínio do feudalismo e o surgimento das cidades.
• Metalismo: teoria econômica pela qual se quantificava a riqueza de acordo com a quantidade de
metais preciosos adquiridos.
• Pacto colonial: as colônias europeias só podiam comercializar com suas metrópoles, o que
implicava alto valor na venda e baixo valor na compra.
• Protecionismo alfandegário: criação de altos impostos e taxas para evitar a entrada de produtos
estrangeiros.
Quanto a Portugal, o Humanismo ocorreu entre 1434 e 1527, momento em que os valores religiosos
ainda estavam muito arraigados à cultura, entretanto o homem e a forma humana assumiram uma
posição de maior destaque, dando início ao racionalismo.
O pensamento teocêntrico perdeu terreno para uma visão que começou a se formar, mais voltada
para a figura humana, mudança que contribuiu para uma grande renovação cultural, que abandonou a
temática religiosa, voltando-se para o homem e seus defeitos, sendo um estágio ainda embrionário do
antropocentrismo.
Com as navegações, houve amplo desenvolvimento do comércio e das cidades. Assim, o feudalismo
passou a dar lugar ao sistema mercantil. A noção de um destino sujeito a forças ocultas foi substituída
por uma visão mais prática, guiada pelo lucro. Não só o feudalismo entrou em decadência, mas também
o teocentrismo. Aos poucos, ele passa a conviver com o antropocentrismo, que valoriza o ser humano e
seus feitos, colocando o homem como centro do universo.
Em 1383, com receio de perder sua soberania para Espanha, a massa popular se apoderou do
trono e elegeu seu líder como herdeiro, Mestre de Avis, D. João I, filho bastardo de D.Pedro I (em
Portugal).
46
Literatura Portuguesa: Poesia
Observação
Iniciou-se assim a poderosa Dinastia de Avis (1385-1580), uma sucessão de reis empenhados no
desenvolvimento mercantil e cultural de Portugal. O caminho dos descobrimentos começou a ser
trilhado.
Além dos estudos voltados aos textos antigos, da mudança econômica, outro importante evento
marcou o Humanismo, principalmente para o mundo da literatura: a impressão de livros e de outros
suportes; enfim, a imprensa de Gutenberg.
Na verdade, a arte de imprimir, de acordo com Martins (2002), tem história imemorial, surgindo
espontaneamente onde quer que existisse ser humano. Ressalta-se, contudo, que essa arte é diferente
da tipografia, que se prende à história do livro e da imprensa.
A impressão em pele humana, nos tecidos, na madeira, nos metais é considerada por vários estudiosos
como técnicas precursoras da imprensa. Contudo, as técnicas tipográficas eram praticadas na China
desde o século II da nossa era e na Europa (mas com diferença da impressão oriental) desde o século
XIII, e a imprensa, tal como conhecemos, não consiste somente em um sinal sobre papiro, pergaminho
ou papel, mas, sobretudo, na reprodução rápida e ilimitada da escrita e da palavra.
47
Unidade I
Conhecida como a Bíblia de 42 linhas, por possuir 42 linhas em cada coluna, exceto nas primeiras
dez páginas, e também como a Bíblia Mazarina, por ter pertencido à biblioteca do cardeal Mazarino o
primeiro exemplar, trata-se da força e da beleza do velino, bem como do papel dos exemplares. Essa
beleza, junto com o brilho da tinta e a regularidade da tiragem, faz desse volume um monumento do
grau de perfeição a que a arte tipográfica atingiu. Na descrição de Svend Dahl:
Foram impressos cerca de 180 exemplares da Bíblia de 42 linhas. Daí, naturalmente, além da raridade
e valor histórico, os altos preços pelos exemplares sobreviventes. Uma página dela, com iniciais pintadas
e títulos manuscritos, foi comprada por 2.000 dólares em uma galeria de Nova York em 1967. Anos
depois, foi comprada por 150.000 por Arthur A. Houghton Jr., que revendeu por 1.800.000 dólares.
O curioso para nós hoje é que a tipografia em seus primeiros tempos foi uma verdadeira sociedade
secreta. Os iniciados faziam juramento de sigilo ao serem admitidos. Na verdade, a arte de imprimir
passou a ser uma obra sobrenatural, porque era a arte de escrever sem mão nem pena. Muitos pensavam
que os impressores trabalhavam por meio cabalísticos, sendo a imprensa uma espécie de pedra filosofal
de novo tipo. Os tipógrafos não eram considerados modestos operários, mas tidos como alquimistas
soturnos e terríveis, e as oficinas eram tidas como laboratórios de horrendas missas negras. A tipografia
e o livro dela originado passaram a ser frutos das íntimas relações com o diabo.
A censura contra o livro, inclusive a eclesiástica, encontra sua origem nessa profunda e inconsciente
hostilidade contra a palavra escrita. O livro impresso somente afirmou seu direito definitivo com a
Renascença, que foi a civilização da liberdade.
A tipografia seguiu na história e o que era milagre, fruto da alquimia, tornou-se algo banal e
cotidiano. O livro passou a invadir os domínios tradicionais dos manuscritos; o reprodutor mecânico
substituiu o copista eclesiástico e também rivalizou com este, disputando prerrogativas essenciais.
Os grandes nomes do Humanismo foram os italianos Dante Alighieri (1265-1321) e Petrarca (1304-
1374). Eles influenciaram não só os poetas portugueses, mas também artistas de outros lugares.
O início do Humanismo em Portugal deu-se em 1434, quando o rei D. Duarte nomeou Fernão Lopes
como guarda-mor da Torre do Tombo e o incumbiu de escrever crônicas sobre os reis portugueses.
As crônicas históricas, como o próprio nome já diz, constituem-se em excelentes registros dos
costumes e da história de Portugal. Contudo, Fernão Lopes distingue-se dos demais historiadores devido
à importância que dava às pessoas do povo, personagens coadjuvantes em relação aos reis.
A poesia do período humanista não tem tanto relevo quanto a do Trovadorismo, passando a ser mais
cultivada a partir de 1450, com a presença de D. Afonso V, grande amante das letras.
Os poemas dos séculos XV e XVI foram reunidos no Cancioneiro Geral, de Garcia Resende, em 1516.
Os poemas têm, como principais características, a autonomia em relação à música e o uso de temas
ligados à vida social da corte.
49
Unidade I
Apesar das inovações em relação ao ritmo e à musicalidade, posto que o poeta não podia mais
contar com o acompanhamento musical, a poesia dessa época é de pouca expressividade se comparada
aos outros gêneros desenvolvidos, como o teatro de Gil Vicente.
Um exemplo da poesia palaciana, atribuída a João Ruiz de Castelo Branco (apud MOISÉS, 2006, p.
57), é:
Desprovidos da música, os poetas desenvolveram novas técnicas e estruturas poéticas, entre as quais:
50
Literatura Portuguesa: Poesia
O ponto alto da poesia da época foi a lírica sobre amor-sofrimento. Os poetas mantiveram a tradição
trovadoresca no que concerne à súplica mortal, com acréscimo da espiritualidade e do platonismo a
exemplo de Petrarca. Porém, os poetas retiram a mulher de seu papel idealizado, adquirindo aspectos
físicos e sensoriais.
O teatro foi, sem dúvida, o maior destaque no Humanismo português. Seu gênero é o dramático ou
teatral; gênero, por excelência, representativo ou figurativo. Apresenta a combinação destes elementos:
Sobre as criações clássicas, todas as espécies teatrais clássicas foram criadas na Grécia. Em
relação à tragédia, a palavra significa, no sentido literal, “canto do bode” e, conforme Tavares
(2002), essa designação talvez tenha sido dada pelas figurações dos sátiros, que se vestiam com
peles de bodes.
O final da tragédia clássica é sempre sério, com o intuito de comover ou purgar (purificar) nos
espectadores sentimentos mais nobres, como o terror e a compaixão. Para alcançar seu objetivo,
a tragédia recorre a grandes feitos da virtude ou do crime, em que a primeira supera desgraças e
infortúnios, e o segundo sofre castigos implacáveis.
As tragédias clássicas quase sempre foram estilizadas em forma de verso, como aliás aconteceu
com todas as modalidades do gênero teatral. Foi a partir do Romantismo que as peças dramáticas
começaram a ser feitas preferencialmente em prosa.
51
Unidade I
A comédia, por sua vez, tem sua origem paralela às comemorações dionisíacas, em cujas festas
alternavam-se os momentos de tristeza com alegria desenfreada, nos quais as pessoas caíam em orgia,
saindo em procissão levando o phallus, símbolo do órgão genital viril, e entoando cantos fálicos. Por
conseguinte, o termo comédia significa “canto aldeão (comes: aldeia + ode: canto).
Por fim, o drama satiresco, cujo fim era cultuar a memória do deus Baco. Por isso, o tema relacionava-
se à vida desse deus.
Na Idade Média, uma das criações foi o mistério, que consistia na representação de episódios da vida
de Cristo. No milagre, diferentemente, figuravam episódios humanos e de santos.
O auto é uma obra representativa e dramática. A palavra procede de actum. De fundo eminentemente
popular, nascido no século XV, o auto versa sobre assuntos religiosos ou profanos, sendo sua origem
provável portuguesa, já que não encontramos na literatura ocidental nenhum auto anterior aos de Gil
Vicente.
Sobre a farsa, trata-se de uma forma dramática cômica. Tipo de peça surgida no século XIV, em geral
é curto, com poucas personagens, pretendendo provocar risos a partir de uma situação cômica e ridícula
da vida cotidiana. Não tem intenção didática ou moralizante.
Nas criações renascentistas, a tragicomédia é uma palavra usada a partir do século XVI em
compilação das obras de Gil Vicente, em 1642, em que há 44 peças, das quais 10 são classificadas como
tragicomédias. Nestas, há acontecimentos funestos, mas o desfecho é feliz, embora não seja cômico.
Nelas, o real e a imaginação se mesclam, podendo ainda acusar a presença do elemento maravilhoso,
como no gênero épico.
De criação romântica, o drama foi criado, podemos dizer, por Shakespeare no século XVI, mas
foi o Romantismo que deu relevo definitivo a essa espécie teatral. O drama pode ser considerado a
modernização da tragicomédia, pois funde elementos da tragédia e da comédia, sendo uma oscilação
intermitente entre o prazer e a dor.
O drama rompeu a estrutura inflexível do formalismo clássico ao misturar gêneros, desunir unidade
dramática, ganhar amplitude e variedade de cenário e ter liberdade de expressão com a eleição da prosa
como forma.
Nas criações populares, a revista ou variedade consiste em peça cômica sobre um fato do ano e
passou a ser popular na França, na época de Luís Felipe. A princípio eram sátiras, especialmente dirigidas
aos políticos; hoje, um pretexto para encenação de quadros movimentados, contando com o jogo de
luzes, cenários fantásticos e efeitos coreográficos.
A mágica é peça não existente hoje. Trata-se do conto infantil dramatizado, com personagens
como fadas, gigantes etc. e transformações prodigiosas de vestuários e cenários por meio de
maquinismos.
52
Literatura Portuguesa: Poesia
Por fim, nas criações poético-musicais, a ópera é de origem italiana, introduzida por Mazzarini na
França em 1645. É um drama trágico ou lírico cantado com acompanhamento de orquestra e com
intervalos de dança ou espetáculo vistosos. São várias as suas modalidades: ópera séria ou grande ópera,
ópera-bufa, ópera-cômica, ópera espiritual, entre outras.
A opereta é uma espécie secundária da ópera, sendo mais breve e de assunto mais leve, geralmente
cômico e alegre. O melodrama, por sua vez, consiste em dramas acompanhados de música instrumental
ou em diálogos interrompidos por tal música. Espécie de tragédia popular sobre tema histórico ou
romanesco é solta de regras, admitindo até a incoerência. O termo passou a ter certa significação
pejorativa. A expressão “herói de melodrama” refere-se ao indivíduo exagerado nos gestos e atitudes,
porque o melodrama tende para o patético e o sentimentalismo derramado e choroso.
Vaudeville é uma comédia entremeada de árias conhecidas. É a comédia musicada ou a zarzuela dos
espanhóis. Consiste na intriga e no quiproquó, que é o efeito provocado pelos equívocos, que consistem
em tomar uma coisa por outra.
No contexto dessas criações, Gil Vicente (1465-1536) é inserido na criação medieval. Durante trinta
e quatro anos, Gil Vicente fez com que mais de quarenta peças fossem representadas, nos dando um
amplo panorama da sociedade portuguesa da época.
Inicialmente, recebeu influências dos poemas pastoris do espanhol Juan Del Ensina. Contudo,
acabou utilizando elementos tipicamente populares desenvolvidos na Idade Média, como as narrativas
das novelas de cavalaria, os milagres e mistérios que eram provavelmente encenados nas igrejas e as
farsas com objetivos satíricos. A isso tudo acrescentou a comicidade, a religião, o mistério, o lirismo
trovadoresco e a crítica social. Essa última característica pode ser considerada seu traço mais humanista.
As peças de Gil Vicente são rudimentares, com poucas rubricas ou indicações de cenários. Isso não
quer dizer que sejam de pouco valor estético. Temos de levar em conta que o texto dramático só
está completo quando é encenado no palco. Segundo Moisés (2008), as peças vicentinas são apenas
indicações para a atuação. Cabia então ao ator improvisar sobre o texto-base, ampliando as falas e
incluindo mímicas.
Quando Gil Vicente encenava suas peças, o Renascimento já estava presente, entretanto, esse grande
dramaturgo tentava resgatar valores medievais esquecidos.
• Teatro alegórico: objetos e personagens representam abstrações ou ideias como o Bem e o Mal.
• Teatro cômico e satírico: a maioria das peças é comédia de costumes, seguindo o lema latino de
Plauto: “ridendo castigat mores” (pelo riso corrigem-se os costumes).
53
Unidade I
Lembrete
Deve-se ressaltar, entretanto, que, apesar de ser chamado de popular, o teatro vicentino não era
apresentado ao povo.
2.3 Comicidade
Veja um exemplo da crítica social construída por Gil Vicente e os recursos cômicos utilizados no
célebre diálogo entre Todo o Mundo e Ninguém (VICENTE, 1972, p. 301). A peça foi representada pela
primeira vez em 1532, como parte de uma peça maior, chamada Auto da Lusitânia. A ortografia do texto
foi atualizada.
Um rico mercador, chamado Todo o Mundo e um homem pobre, cujo nome é Ninguém, encontram-
se e põem-se a conversar sobre o que desejam neste mundo. Em torno dessa conversa, os dois demônios
Belzebu e Dinato tecem comentários espirituosos, fazem trocadilhos, procurando evidenciar temas
ligados à verdade, cobiça, vaidade, virtude e honra dos homens.
54
Literatura Portuguesa: Poesia
Entra Todo o Mundo, rico mercador, e faz como se andasse buscando alguma cousa que perdeu; e
logo após, um homem, vestido como pobre. Este se chama Ninguém.
Esse início da peça já mostra o recurso de comicidade empregado por Gil Vicente: o trocadilho.
Belzebu, contrário às virtudes, como consciência, verdade etc., transforma os nomes próprios
Todo o Mundo e Ninguém em termos genéricos. Assim, para o registro de Belzebu, todos os seres
humanos não se preocupam com virtudes, interessados apenas por dinheiro.
Saiba mais
As obras de Gil Vicente são de domínio público, ou seja, não têm mais
direitos autorais. Por isso, indico um site no qual suas obras poderão ser
encontradas na íntegra: <www.dominiopublico.gov.br>.
Das peças de Gil Vicente, Auto da barca do inferno, parte da trilogia das barcas – Barca do
inferno, Barca do purgatório e Barca da glória – é, seguramente, uma das obras mais conhecidas da
55
Unidade I
literatura portuguesa, sobretudo por se tratar de um texto crítico e bastante atual, ainda que tenha
aproximadamente quinhentos anos.
A obra teve sua primeira encenação no ano de 1517, período de prosperidade para Portugal em
função da expansão marítima e do comércio. A prosperidade acirrou no povo português o desejo pelo
enriquecimento fácil, e muitas vezes ilícito, e o cultivo por uma vida de aparências e de ostentação,
material humano largamente explorado por Gil Vicente nessa obra que, por ser um auto, possui finalidade
moralizante.
Gil Vicente fez parte do Humanismo e, como já sabemos, é o período entre o dogmatismo teocêntrico
da Idade Média e a revolução antropocêntrica do Renascimento, por isso o autor foi, ao mesmo tempo,
religioso e observador crítico da sociedade decadente. Ele evidencia seus vícios, fazendo-os desfilar,
ironicamente, numa galeria variada de tipos e personagens, como o fidalgo, o frade, o judeu, o procurador
ou a alcoviteira, entre outros.
A acuidade crítica e a ironia fina fizeram com que alguns críticos literários renomados, como Otto
Maria Carpeaux e Gianfranco Contini, considerassem Gil Vicente o melhor escritor desse período,
elevando seu nome acima até mesmo do de Camões.
Nessa peça, com o intuito maniqueísta de opor Bem e Mal, o autor se vale de um porto imaginário
em que há duas barcas, uma que leva ao Paraíso, capitaneada pelo Anjo, e outra que conduz ao Inferno
e é comandada pelo Diabo. Os passageiros que devem tomar uma dessas conduções são as almas que
serão julgadas por suas ações.
Tudo que o autor procura criticar na sociedade – a soberba, a luxúria, a ganância e a cobiça –
está alegoricamente representado nos pecados cometidos pelas personagens, que são trabalhadas com
exagero e linguagem ambígua, provocando comicidade e fazendo com que o texto seja um componente
imprescindível ao espetáculo teatral.
Exemplo de aplicação
I. Que elementos dos textos vicentinos justificam a afirmação de que Gil Vicente manifesta uma
visão medieval do mundo em transformação para o Renascimento?
II. Com base nas considerações de Massaud Moisés a seguir, infira como era o contexto teatral na
época de Gil Vicente e o motivo de o teatro ser considerado popular.
Começamos este tópico do livro-texto tornando nosso o questionamento de Ítalo Calvino: o que é
um clássico?
57
Unidade I
O que delimita um clássico? Calvino (1993) apresenta traços definidores, que podemos sintetizar:
1. São obras que ultrapassam o seu tempo, persistindo de alguma maneira na memória coletiva e
sendo atualizada por sucessivas leituras, no transcurso da história.
2. Apresentam paixões humanas de maneira intensa, original e múltipla. São paixões universais (ou
pelo menos “ocidentais”) e têm um grau de maior ou menor flexibilidade em relação à historicidade
concreta.
3. São obras que registram e simultaneamente inventam a complexidade de seu tempo. De maneira
explícita ou implícita, desvelam a historicidade concreta, as ideias e os sentimentos de uma época
determinada. Há uma tendência geral: quanto mais explícita for a revelação histórica, menor o resultado
estético. Na verdade, o espírito da época deve estar introjetado na experiência dos indivíduos.
4. São obras que criam formas de expressão inusitadas, originais e de grande repercussão na própria
história literária. Há clássicos que interessam em especial (ou talvez unicamente) ao mundo literário,
como, por exemplo, o Ulisses, de Joyce.
5. São obras de reconhecido valor histórico ou documental, mesmo não alcançando a universalidade
inconteste. Nessa linha, situam-se aquelas obras que são clássicas apenas na dimensão da história
58
Literatura Portuguesa: Poesia
literária de um país, como a obra de José de Alencar, ou apenas de uma região, como as obras de Cyro
Martins ou Aureliano de Figueiredo Pinto.
6. Talvez a característica fundamental de uma obra clássica seja a sua inesgotabilidade. Ou, como
diz Calvino (1993, p. 22): “Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para
dizer”.
7. Um clássico é fundamental também pelo efeito que deflagra na consciência do leitor. Sob essa
ótica, devemos considerar que ele é, simultaneamente:
• Um conjunto de revelações, ideias e sentimentos que têm a propriedade de durar na memória mais
do que outras manifestações artísticas (música, cinema etc.). Essas podem ter (e geralmente têm)
um impacto maior na hora da fruição, mas seu prolongamento emotivo – a sua duração – é mais
breve e inconsistente do que o proporcionado pela grande obra literária.
• Um não contra a morte. Por perdurar, a obra clássica ultrapassa o tempo e a finitude humana. De
certa forma, é um protesto contra o sem sentido da vida.
Frente a essa concepção de obra clássica, temos um movimento literário em Portugal, marcado em
um tempo – Classicismo (1527-1580) – também conhecido como quinhentismo. Teve início quando Sá
de Miranda trouxe da Itália o estil nuovo, isto é, o verso decassílabo na forma do soneto.
O Classicismo tem como proposta artística e cultural outra concepção de mundo e do homem. No
Renascimento, o homem se redescobre e descobre uma nova visão do mundo, cuja identificação se dá com
a cultura greco-latina, resgatando as noções de beleza, bem e verdade e, rompendo com a religiosidade
marcante da Idade das Trevas, resgata os deuses da mitologia grega, que possuem características
humanas, distantes da perfeição do deus cristão. Assim, é fácil perceber que o racionalismo passa a
imperar, em detrimento de uma visão mística do mundo. Esses aspectos, já cultuados na Antiguidade
Clássica, passam a ser copiados e tidos como modelo.
O homem renascentista procurou compreender o mundo sob a luz da razão, buscando o equilíbrio
entre razão e emoção, o que pode ser observado nas obras dos pintores renascentistas italianos, até
hoje bastante apreciados, como Rafael, Leonardo da Vinci, Michelangelo, Botticcelli, entre outros. Suas
obras apresentam novas técnicas que acentuam a valorização do homem, que passa a ser o centro dos
estudos, é o antropocentrismo, que se preocupa em exaltar a natureza humana; há também a busca
59
Unidade I
pelo equilíbrio, pela beleza e pela perfeição, por isso a época é marcada, nas artes, pelo aprimoramento
técnico, como o das obras da Antiguidade.
Observação
Por outro lado, do ponto de vista político, vivia-se o chamado absolutismo monárquico, com reis
fortes, independentes do clero, do Papa e de outros países. Economicamente, o mercantilismo se
estabelecia, como uma consequencia das grandes navegações, iniciadas no final do século XV. Devido a
elas e aos descobrimentos, Portugal encontra no século XVI seu período mais glorioso. Houve avanços nas
técnicas de navegação, na astronomia, na matemática e na medicina. Novas terras foram descobertas,
novos valores e costumes conhecidos. No reinado de D. João III (1521-1557), houve inclusive a reforma
das universidades, adaptando-as aos novos tempos.
Contudo, vários conflitos se estabeleceram: por um lado, uma burguesia mercante, com uma nova
visão de mundo; por outro, a tradicional e religiosa nobreza. Outro fator importante se deve ao fato de
que, economicamente, Portugal não tinha como investir em suas colônias. Era um grande império cheio
de dívidas com os países protestantes, especialmente a Inglaterra. Havia grande incentivo às artes, mas
forte repressão religiosa. Assim, podemos observar que o Renascimento português estava repleto de
contradições.
Saiba mais
60
Literatura Portuguesa: Poesia
• Preocupação com a forma: exigência quanto à métrica e à rima dos poemas; correção gramatical,
clareza na expressão do pensamento, sobriedade e lógica.
• Construção frasal: inversão dos termos na oração, influência latina.
Lembrete
3.2 Sá de Miranda
Somos frutos de uma educação escolar, cujo maior material é o manual didático. No Ensino Médio,
o manual da disciplina língua portuguesa é dividido em três: um para cada ano escolar. No primeiro
ano, aprendemos a história da literatura portuguesa e, quando chegamos ao conteúdo do Classicismo,
passamos a tomar conhecimento de Camões e de um certo Sá de Miranda, que nos parece ser importante
por ter levado a Portugal a medida atual de soneto.
Mais tarde, como professora, dificilmente encontrei um manual didático da nossa área que
explorasse de fato a produção de Sá de Miranda. O máximo encontrado é a informação biográfica,
tal como: Francisco Sá de Miranda nasceu em Coimbra, provavelmente em 1481, e faleceu em 1558.
Segundo Moisés (2008), seus poemas foram somente editados em 1595, com uma edição crítica em
61
Unidade I
1885. Assim, temos dupla missão: tirar o véu da indiferença em relação a esse poeta e conhecer um
pouco mais sobre ele.
Como dissemos anteriormente, o poeta levou a medida nova a Portugal, mas não deixou de lado a
medida velha, misturando a então atualidade renascentista às tradições medievais, como também fez
Camões. Em seus poemas, já podemos observar a dualidade do escritor clássico português, pelo uso
de muitos paradoxos e antíteses. Temas filosóficos sobre a efemeridade do tempo também lhe eram
comuns.
Vejamos, desse autor, uma redondilha maior (verso de 7 sílabas poéticas), caracterizando a medida
velha (Miranda apud MOISÉS, 2006, p. 93):
Comigo me desavim,
sou posto em todo perigo;
não posso viver comigo
nem posso fugir de mim.
Com dor, da gente fugia,
antes que esta assi crescesse;
agora já fugiria
de mim, se de mim pudesse.
Que meio espero ou que fim
do vão trabalho que sigo,
pois que trago a mim comigo,
tamanho imigo de mim?
Observe o paradoxo em “não posso viver comigo, nem posso fugir de mim” e como o eu lírico expõe
um conflito pessoal ao admitir-se como seu próprio inimigo. Observe também como a linguagem lírica
é mais clara aqui, diferentemente do Trovadorismo, pois aqui a língua portuguesa já estava de todo
separada do galego-português.
Lembrete
Agora veja um soneto (Miranda apud MOISÉS, 2006, p. 94), isto é, a medida nova ou versos
decassílabos:
Vocabulário:
coa: com a
sazão: estação
sói: costuma, é comum
mudáveis: que mudam
Na segunda estrofe, o leitor pode conferir a preocupação com a efemeridade do tempo, temática
comum aos poetas da Antiguidade e aos renascentistas: tudo passa, tudo é vão, os dias passam e o eu
lírico se mostra angustiado.
Trata-se de um soneto italiano ou petrarquiano, atribuído ao célebre poeta italiano Francesco Petrarca.
Sendo o mais usado em língua portuguesa, o soneto lírico é formado por dois quartetos (estrofes com 4
versos) e dois tercetos (estrofes com 3 versos), em versos decassílabos (10 sílabas poéticas).
Observação
Além dessa grande contribuição de Sá de Miranda, há um fato interessante sobre esse autor: trata-se
do desejo desse poeta em imortalizar as viagens marítimas portuguesas em uma epopeia.
Sabemos que uma epopeia (adjetivo épico) se caracteriza primordialmente por ser um gênero
narrativo, por meio do qual o poeta narra, descreve e exalta fatos históricos e personagens heróicos. É o
gênero mais próprio para traduzir os sentimentos coletivos, a grandiosidade dos cenários, dos heróis, dos
combates e dos sentimentos. A forma mais característica em que o épico se apresentou foi a epopeia,
mas também podemos destacar outras concepções do épico: as canções de gesta da Idade Média, curtas
63
Unidade I
narrativas em versos do século XVI, XVII e XVIII, as epopeias românticas como Jocelyn de Lamartine,
poemas narrativos como o Uruguai, de Basílio da Gama etc.
A epopeia, na concepção de Aristóteles (SAMUEL, 1990), é uma imitação da realidade de seres elevados
moral ou psiquicamente. Quanto à estrutura, na forma primitiva utilizava-se o hexâmetro dactílico, composto
por seis medidas semelhantes ao dedo: uma sílaba longa e duas breves. Por sua rigidez, o hexâmetro é um
metro difícil de ser moldado à língua. Por isso Homero, o primeiro a adotá-lo nos épicos Ilíada e Odisseia,
realizou várias adaptações linguísticas, criando a língua homérica. Posteriormente, essa métrica foi substituída
por decassílabo nas épocas medieval e renascentista. Etimologicamente, epopeia significa, afinal, epos + poiein:
criação em versos longos. O objetivo da epopeia é unir o lírico ao presente e à recordação; lembrar de novo.
Sobre os heróis épicos, são sempre excepcionais pela sua nobreza ou excelência em combates, bem
como pela astúcia, religiosidade ou beleza. Temos então:
• Nobreza: Agamenão.
• Excelência: Aquiles, Cid, Rolando.
• Bravura: Vasco da Gama, Aquiles etc.
• Astúcia: Ulisses e Vasco da Gama
• Beleza: Páris.
Por representarem nossos arquétipos, esses heróis épicos são idealizados e, por conseguinte, dotados
de força e virtude excepcionais.
Outra característica importante na epopeia é o elemento maravilhoso, que consiste na atuação dos
deuses e de fatos sobrenaturais que se interpõem na solução de um problema humano.
Saiba mais
Recentemente, foi lançada uma obra americana com criação aos dias
de hoje da epopeia Odisseia. O autor Riordan coloca seu herói, adolescente
americano, que usa jeans, é estudante, ou seja, como qualquer outro jovem,
em situação épica: (re)vive muitas situações passadas como vividas por
Ulisses, herói da Odisseia.
64
Literatura Portuguesa: Poesia
Voltando a Sá de Miranda, ele e outros quinhentistas viveram em uma época em que era muito
latente o desejo de ver as viagens portuguesas imortalizadas em uma narrativa épica. Essa ideia era
obsessivamente repetida entre os poetas.
Na obra Fábula do Mondego (MIRANDA, 1977, p. 75), Sá de Miranda introduz seu poema pastoril
com um exórdio típico da epopeia, fazendo referência à possibilidade de o gênero pastoril incluir assunto
alto ou épico:
A Fábula do Mondego não entrou como epopeia na história. A obra assinala apenas os símbolos
caracterizadores da região do Mondego, isto é, Coimbra, onde estão as ruínas da Torre de Hércules e o
túmulo de Afonso Henriques. A obra faz reflexão sobre a poesia e a loucura amorosa sofrida por muitos
pastores encontrados nos poemas de Sá de Miranda.
Sá de Miranda, como muitos outros da época, queria ver as grandes navegações em poemas
épicos, mas, assim como muitos outros também, não concordava em considerar a aventura
portuguesa como chance ilusória de enriquecimento rápido. Essa ilusão, que gera ganância, era
uma clara peçonha que entrava pelos portos (rimando com mortos) portugueses (MIRANDA, 1977,
p. 84):
65
Unidade I
Quanto à imortalidade das viagens marítimas portuguesas, só foi realizada por Luís de Camões, na
epopeia Os lusíadas (como veremos no próximo subcapítulo), mas abriu caminho para outros poetas
(MIRANDA, 1977, p. 223):
Já que fiz
aberta aos bons cantares peregrinos,
fiz o que pude, como por si diz
aquele, um só dos líricos Latinos;
provemos esta nossa linguagem,
e, ao dar da vela ao vento: Boa viagem.
Camões é de grande representatividade para a literatura portuguesa e brasileira. Sua obra tem sido
lida e apreciada há mais de 400 anos. Seus temas são atuais e seus poemas, de excelente qualidade
estética. Em Portugal considera-se que a Era camoniana tem início com Camões e só termina com
Fernando Pessoa, quando inicia a Era Pessoana.
Segundo Moisés (2008), as informações biográficas de Camões são incertas. Teria nascido em 1524
em Lisboa, Coimbra ou Santarém. Filho de família nobre, supostamente teve acesso à vida palaciana e
contato com as obras de Homero, Petrarca, Virgílio, entre outros. Culto e de boa aparência, desfrutou
de vários amores proibidos, inclusive a infanta D. Maria, filha do rei D. Manuel. Consta que sua vida
66
Literatura Portuguesa: Poesia
amorosa tenha-o levado ao exílio em Ceuta, como soldado raso. Lá perdeu um olho. Passou por diversas
aventuras em Macau (China), Moçambique (África) e Goa (Índia), colônias portuguesas. Era um homem
das letras e das armas.
Em 1572, publicou Os lusíadas e recebeu uma pensão anual de quinze mil réis, mas morreu pobre e
abandonado em 1580.
Os Lusíadas é um poema épico ou epopeia e segue os moldes clássicos do gênero, a saber: a Odisseia
e a Ilíada, de Homero, e a Eneida, de Virgílio. Nas epopeias clássicas, há um grande herói, cujos feitos são
exaltados, como os atos de Ulisses, por exemplo, na Odisseia. Na obra de Camões, no entanto, os heróis
são os “lusíadas”, os lusos, o povo português.
Devido à censura existente na época, aplicada pela Inquisição, a obra de Camões quase foi proibida.
Contudo, os censores consideraram que a alusão a termos gregos era mera ilustração e não havia um
culto ao paganismo.
Camões, como poeta renascentista, cultivava a arte como mimeses, como representação da realidade.
Várias características renascentistas citadas anteriormente podem ser observadas em seus versos, como
o racionalismo, universalismo, busca da perfeição formal, imitação dos clássicos, entre outras.
Enfim, o extenso poema Os lusíadas representa o espírito do novo, trazido pela Renascença, e é
formado por:
• 10 cantos.
• 1101 estrofes. Cada canto tem um número variável de estrofes (em média, 110). O canto mais
longo é o décimo, com 156 estrofes.
• 8816 versos decassílabos heroicos (com acentuação na sexta e décima sílabas poéticas) e sáficos
(acentuação na quarta, oitava e décima sílabas poéticas).
Os lusíadas, assim como todo poema épico, é dividido nas seguintes partes:
• Invocação: O poeta invoca as ninfas do rio Tejo, Tágides, como suas musas inspiradoras.
67
Unidade I
• Narração: A narração divide-se em dois planos, o mítico, que menciona deuses gregos
participando como coadjuvantes do enredo, e o histórico, que trata da viagem de Vasco da
Gama às Índias e de outros grandes feitos de Portugal.
• Epílogo: A obra se encerra de forma lamentosa e crítica, pois o país, que fora um grande império,
já se encontrava em momentos de decadência.
• Plano da viagem.
• Plano da história de Portugal.
• Plano do poeta.
• Plano da mitologia.
Os lusíadas é uma obra narrativa, mas os seus narradores são quase sempre oradores que fazem
discursos grandiloquentes: o narrador principal é Vasco da Gama, mas também aparecem como
narradores Paulo da Gama, a ninfa Tétis e a Sirena no canto X, que profetiza ao som de música.
Todo esse fervor religioso não impede a utilização pelo poeta do erotismo de cunho pagão, como no
episódio da Ilha dos Amores (Canto IX, estrofes 68 a 95), em que a Máquina do Mundo é apresentada
aos portugueses. Nessa passagem do final do poema, o plano mítico – dos deuses – e o histórico – dos
homens – encontram-se: os portugueses são elevados simbolicamente à condição de deuses, pois só aos
últimos é permitido contemplar a Máquina do Mundo.
Veja a seguir um trecho do Canto I, trecho bastante conhecido, que anuncia o Novo Reino, um
império cristão, cheio de fé e de feitos heroicos, o que enaltece a nação portuguesa. Para facilitar a
leitura, a ortografia das palavras foi atualizada (CAMÕES, 2004, p. 21).
Canto I – Proposição
Vocabulário
Veja a seguir como o Canto I termina com uma fala do poeta que reflete a fragilidade do ser humano.
É um momento de lirismo dentro do poema épico (CAMÕES, 2004, p. 47).
69
Unidade I
Outro episódio famoso é o de Inês de Castro, grande amor de Pedro I (Portugal), que foi morta
grávida pelo próprio pai de Pedro, D. Afonso, e coroada rainha depois de morta. Há nesse episódio
uma exceção quanto ao gênero, que é lírico, voltado para as emoções do sujeito poético, diferindo
do gênero épico que caracteriza o restante do poema. Vejamos um trecho (CAMÕES, 2004, pp.
106-107).
O episódio a seguir, do Velho do Restelo, é bastante significativo, pois critica a validade das grandes
navegações, que trouxeram a glória, mas também a morte (CAMÕES, 2004, p. 136).
No século XX, o personagem Velho do Restelo foi comparado a Sá de Miranda, defensor das tradições
ibéricas e crítico das aventuras indianas. O Velho de Restelo fustiga a ambição desmedida dos navegantes
portugueses, preanunciando, como fez Sá de Miranda antes, a ruína econômica de Portugal, de um país
já despovoado.
O discurso anti-indiano do Velho do Restelo pode ser depreendido pela leitura desse episódio
do canto épico. Algumas imagens e conceitos evocam certas passagens da obra mirandina, por
exemplo, os versos (CAMÕES, 2004, p. 137):
Camões emprega todo seu “engenho e arte” para compor belíssimos poemas líricos que
abarcam desde a tradição medieval até as novas técnicas renascentistas, tornando-se um dos
71
Unidade I
maiores sonetistas da língua portuguesa. Vemos em seus versos uma evolução estética, um
aprimoramento da literatura e da própria língua portuguesa. Até hoje, a lírica camoniana é uma
fonte de inspiração para diferentes gerações.
Exemplo de aplicação
Camões foi um grande criador poético. Imagine então que o soneto a seguir seja um labirinto. Lanço
a você o desafio para decifrá-lo. Encontre a frase que é formada a partir das letras iniciais do primeiro
hemistíquio de cada verso e, depois, as do segundo hemistíquio de cada verso, localizadas na sétima
sílaba métrica (Camões apud GOMES, 1994, p. 186).
Conseguiu encontrar a frase “Vosso como cativo, mui alta senhora”? Não? Vou ajudá-lo.
72
Literatura Portuguesa: Poesia
Percebeu? Não se esqueça de que, em língua portuguesa arcaica, a letra j era usada no lugar da
i; a letra v, no lugar da letra u. A frase remete ao amor vassalo, parecido com o das cantigas de amor
medievais.
Há uma variedade de temas abordados pelo poeta em seus poemas que, de tão universais, são atuais
e eternos. O poeta reflete sobre o amor e as questões filosóficas que ainda hoje nos angustiam, tais
como:
• o amor platônico;
• a perda da amada;
• o desconcerto do mundo;
• a própria atividade poética, com o uso da metalinguagem;
• a instabilidade dos sentimentos e da realidade;
• a busca pela perfeição física e moral.
Quanto às formas utilizadas por Camões em sua lírica, encontramos diversos tipos de poema:
1. redondilhas
2. sonetos
3. sextilhas
4. oitavas
5. éclogas
6. elegias
7. canções
8. odes
Didaticamente, dividimos poesia lírica em dois conjuntos: medida velha, composta geralmente por
versos redondilhos (cinco ou sete sílabas poéticas), resgatando estruturas e temas medievais; e medida
nova, composta pelos sonetos, feitos em versos decassílabos (10 sílabas poéticas) de inspiração clássica.
Em relação à medida velha, como exemplo citaremos um vilancete em versos redondilhos, no qual
temos inicialmente um mote – conjunto de versos que introduzem o tema – e duas voltas ou glosas –
estrofes nas quais o tema é desenvolvido. No poema a seguir (CAMÕES, 2003), o assunto é a beleza e a
perfeição formal de uma camponesa, Lianor, que evidencia traços de discreta sensualidade quando diz
que a touca descobre sua garganta. Naquela época, antever alguma parte do corpo feminino, como os
pés ou o pescoço, era de grande comoção para os homens.
73
Unidade I
Observe a sonoridade dos versos e a singeleza da descrição. Por que será que Lianor não está em
segurança? Haveria algum conquistador por perto?
Os poemas não apresentavam títulos. Assim, costumamos denominá-los pelo primeiro verso.
(mote)
(volta)
Vocabulário:
Le/va/na/ca/Be/ça o/PO/te
1 2 3 4 5 6 7
No vilancete, vemos a moça graciosa, mancha colorida de branco, ouro e vermelho, deslizando com
pés nus entre a verdura do prado. Ao talhe trovadoresco sobrepõe o poeta a nitidez da descrição e a
graça maliciosa do verso vai fermosa e não segura, que, evocando o antigo refrão, é repetido ao fim de
cada estrofe.
Chama-nos a atenção para a beleza da imagem criada com o verbo chover, que nos dá ideia de
abundância e, ao mesmo tempo, de origem celestial, na concepção de Rodrigues Lapa (GOMES, 1993).
Trata-se de um exemplo claro da mistura dos elementos medievais com as sutilezas alusivas e imagéticas
de Camões.
Camões continuou a tradição dos antigos trovadores, renovando-a pelo renascimento das ideias
clássicas. A presença dos índices das cantigas é inequívoca, vertidos em humorismo, trocadilhos e jogos
de conceitos.:
• elogio hiperbólico;
Não se trata apenas de temas, mas também de estruturas formais trovadorescas seguidos por
Camões.
A medida nova, já explorada pelo humanista Petrarca e levada por Sá de Miranda da Itália para
Portugal, constitui-se como uma inovação quanto ao estilo, com o uso do soneto em versos decassílabos.
Essa foi uma grande novidade para a poética portuguesa e revista por diversas gerações, graças ao
talentoso Camões. O soneto apresenta 14 versos, sendo divididos em duas estrofes de quatro versos e
duas estrofes de três versos.
No soneto a seguir (CAMÕES, 1990, p. 109) podemos observar várias características clássicas.
75
Unidade I
Vocabulário:
honesto: ingênuo
despejo: atitude
vergonhoso: tímido
Como no poema sobre Lianor, também temos a descrição de uma mulher, com o retrato de sua
perfeição moral e física. Observe a racionalidade na composição dos versos, simétricos e ordenados,
em que a última estrofe assume a função de conclusão. Há a busca do equilibrio formal, com o
uso de versos decassílabos, vocabulário culto e esquema de rimas fixo: interpoladas ABBA, ABBA
e cruzadas CDE,CDE.
O resgate da cultura greco-latina pode ser observado pela referência a Circe, feiticeira que aparece
na Odisseia.
O poeta descreve uma mulher que, apesar de sua aparência meiga e discreta, o enfeitiça. Há certa
ambiguidade entre sua pureza e sua sensualidade.
Até hoje, a lírica camoniana revela temas atuais e universais. O soneto de Camões (1990, p. 123) a
seguir é o mais famoso:
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Literatura Portuguesa: Poesia
Nele, o poeta procura definir algo que para ele é indefinível: o amor. Entretanto, como a razão não
consegue explicar o sentimento, o poeta se vale de contradições, paradoxos e oxímoros.
Além das redondilhas (medida velha) e dos sonetos, as canções atraem a atenção dos leitores e
estudiosos da literatura camoniana. Entre as canções, incluem:
1. A instabilidade da Fortuna
2. Com força desusada
3. Fermosa e gentil dama, quando vejo
4. Já a roxa manhã clara
5. Manda-me amor que cante docemente
6. Se este meu pensamento
7. Tomei a triste pena
8. Vão as serenas águas
9. Vinde cá, meu tão certo secretário
As canções não têm título e as indicações anteriores são o primeiro verso de cada uma. Elas podem
ser encontradas em livros diversos de Camões e em sites pela internet.
Segundo Décio (2003), a palavra canção designa toda composição poética destinada ao canto ou
que mostra nítida aliança com a música. A canção, conforme praticaram Petrarca, Camões e outros,
distribui-se em uma série de estrofes regular de versos, culminando em uma estrofe menor, chamada
ofertório, por meio do qual o poeta dedica o poema à bem amada ou condensa a matéria das estâncias
(estrofes). Veja a seguir (CAMÕES, 1990, p. 195):
77
Unidade I
se não se arrependesse
co a pena o engenho escurecendo.
Porém a mais me atrevo,
em virtude do gesto de qu’escrevo;
e se é mais o que canto que o qu’entendo,
invoco o lindo aspeito,
que pode mais que Amor em meu defeito.
A subjetividade penetra fundo nas canções, na presença constante de um “eu” que afirma o seu
Amor e os tormentos derivados deste. O amor é apresentado personificado e absoluto, configurando
mais que um sentimento do ser, uma quase entidade fora do sujeito e quem com ele trava mortal
batalha. O sentimento amor aparece nas canções como conhecimento sentimental e afetivo, seguido
do sensorial, predominantemente visual.
Algumas canções começam a invocação do Amor e definem diretamente a luta do ser com esse
terrível sentimento; outras começam com a descrição física dos atributos da mulher, na definição de
um retrato provocador dos desejos e dos sentimentos do ser; noutras surge uma descrição física do
ambiente em que se desenrola a confissão, lugar, aliás, que se organiza como um cenário propício à
confissão, pois é lugar solitário e abandonado.
Em relação à estrutura das canções de Camões, ocorre uma variedade na quantidade de versos como
na organização do envoi, a dedicatória apresentada no poema. Os versos variam entre decassílabo e
hexassílabo e, igualmente, o envoi final não se mantém constante, variando entre 3 versos e 7 versos.
O visual é um aspecto fundamental nas canções, seja explicitado nas águas plácidas dos rios, que
proporcionam serenidade ao espírito, seja no monte estéril que associa a um aspecto de secura e
pessimismo do ser. Enfim, o visual não se restringe a aspectos bucólicos e estáticos, associando-se ao
espírito e ao estado da alma. O visualismo estende-se a aspectos recorrentes nas cantigas de amor, em
que os olhos, aspecto físico das mulheres, aparecem mais.
Em síntese, a canção Manda-me Amor que cante docemente é a única em que se alternam momentos
de intenso conflito com outros de extrema felicidade. É a canção que se constitui no mais expressivo
momento antológico das canções camonianas.
Exemplo de aplicação
I. Faça uma leitura analítica da estrutura dos textos camonianos. Verifique verso, estrofe, rima, sílaba
poética; se é medida velha ou nova.
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Unidade I
Comentários: O texto 1 pertence à epopeia Os lusíadas e segue medida nova e rígida poética. Em
cada verso temos 10 sílabas, classificado como decassílabo. O sistema de rima é ABAB, ou seja, alternado.
No texto 2, temos um tipo específico de poema, a sextina, composta por 6 estrofes, sendo a última
a união das anteriores. Em cada estrofe, constam 6 versos.
Chamou sua atenção a palavra final de cada verso? Destaco-as com grifo:
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Literatura Portuguesa: Poesia
83
Unidade I
Vocabulário:
Crino: espécie de narciso; pelos compridos sobre o pescoço, cabelos (de crina)
Febeia: relativo a Febo Apolo
Dino: digno
Medeia: personagem da tragédia grega, mulher de Jasão, considerada feiticeira
Perlas: pérolas
Narciso: personagem da mitologia que se apaixona pelo próprio reflexo na água e atira-se no rio
Nesse soneto de Camões, podemos perceber características que representam a influência da poesia
trovadoresca. Explique essa influência evidenciando trechos do texto em que seja possível estabelecer
essa aproximação. Explique também, com elementos do texto, de que maneira podemos perceber que
esse poema pertence ao Renascimento.
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______________________________________________________________________________
Comentários: Há proximidade com a poesia trovadoresca por causa da temática. A voz dirige-
se à mulher, chamando-a de Senhora, tal como vemos nas cantigas medievais, em tom de respeito e
elevando-a na sua beleza. Quanto aos elementos renascentistas, o poema constitui-se da medida nova.
Trata-se de um soneto decassílabo.
4 BARROCO E ARCADISMO
O Barroco foi um movimento cultural e artístico marcado por uma visão pessimista da vida,
consequência da crise econômica e social vivida pela Europa e das desilusões acerca dos ideais
humanistas e renascentistas.
Por outro lado, o Arcadismo representa a retomada dos ideais classicistas, propondo um retorno à
simplicidade e ao equilíbrio, tão valorizados nas culturas gregas e romanas.
O período a que chamamos Barroco pode ser descrito como uma época em que a sociedade se vê
diante das consequências da Reforma Protestante, iniciada em 1517 por Martinho Lutero e que dividiu
a Igreja entre católicos e protestantes.
84
Literatura Portuguesa: Poesia
As ideias protestantes puseram em risco o poder da Igreja, ao que ela respondeu com um
movimento de reação conhecido como a Contrarreforma e que tinha intenção de impedir o avanço
do protestantismo. O estilo barroco floresce quando a Igreja Católica busca a consolidação de seu
poder.
1. A instituição do Tribunal do Santo Ofício ou Tribunal da Inquisição, que julgava os atos ditos
contra a fé, entre os quais figurava professar outro credo ou possuir outra fé que não a da Igreja
Católica.
2. A criação da Companhia de Jesus, que devia combater os infiéis e expandir a fé cristã nas colônias.
Essas contradições no âmbito religioso tiveram forte influência sobre a arte do período, produzindo o
desencanto do homem com o próprio homem, assumindo assim uma postura anticlássica, que instaura
um mundo ambíguo. É esse mundo dicotômico, dividido entre o catolicismo e o protestantismo, entre a fé e
a ciência, que dá espaço à estética barroca.
Em 1578, o rei de Portugal, D. Sebastião, com apenas quatorze anos, desapareceu na batalha de
Alcácer-Quibir na África, não deixando herdeiros diretos. Seu tio, Cardeal D. Henrique, assumiu o poder
por dois anos, mas, em 1580, o rei da Espanha Filipe II, herdeiro mais próximo da coroa portuguesa,
anexou Portugal a seu país. Foi um dos períodos mais negros para a história de Portugal e, culturalmente,
um período de grande estagnação. O grande império perdeu seu líder e caiu sob o domínio espanhol até
1756, momento denominado de Restauração.
O mito do sebastianismo é retomado por Fernando Pessoa em Mensagem, como veremos na unidade
sobre Modernismo.
Após a Reforma Protestante, a Contrarreforma da Igreja Católica acirra a perseguição aos “infiéis”,
procurando recuperar sua posição de destaque perdida com o Renascimento. A Inquisição torna-se uma
das instituições mais fortalecidas, que, além de comandar a censura, condenava à morte os traidores da
fé católica. A Companhia de Jesus toma frente no processo de catequização e reforça os ideais religiosos,
principalmente nas colônias, como o Brasil.
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Unidade I
Referências à cultura grega ainda aparecem, mas a ideia do pecado e do perdão torna-se uma
obsessão. O tema carpe diem (aproveite a vida, o momento), por exemplo, tão explorado pelos
gregos, volta à tona. Contudo, aproveitar a vida implica prazer, que por sua vez implica pecar.
Quantas dúvidas sofria o artista barroco! Como cultuar a vida e o prazer sem pecar? Como manter
os ideais renascentistas de valorização do ser humano sem ofender a Deus?
Como já dissemos, toda essa tensão e esse conflito acabam sendo expressos por meio da arte barroca,
na qual muitos tentavam conciliar as tendências opostas. Segundo o professor Massaud Moisés, “era
o empenho no sentido de conciliar o claro e o escuro, a matéria e o espírito, a luz e a sombra, visando
anular pela unificação a dualidade do ser humano, dividido entre os apelos do corpo e os da alma”
(MOISÉS, 2006, p. 73).
Podemos destacar ainda o dualismo entre a razão e a emoção, entre o medievalismo e o renascimento.
Por outro lado, a ambiguidade barroca faz aflorar outras temáticas na lírica, tais como:
86
Literatura Portuguesa: Poesia
Surgem nessa época, em Portugal, as Academias, nas quais os poetas se reuniam para discutirem
sobre a estética barroca. Outros autores que podemos citar são: D. Francisco Manuel de Melo, Frei Luís
de Sousa, Sóror Mariana Alcoforado e o dramaturgo Antônio José da Silva.
Vale ressaltar que a escrita ainda era um privilégio da nobreza e do clero, uma vez que a burguesia
iniciava-se nessa área. Ao povo, como havia de se esperar, era negado o acesso à escrita e aos bens
culturais das elites.
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Unidade I
O século das luzes, como foi denominado, contrário aos exageros do Barroco, combateu a
mentalidade religiosa imposta pela Contrarreforma e retomou a cultura renascentista, propondo uma
arte mais equilibrada, baseada na razão, e cuja temática voltava-se para a vida simples, cultivada longe
dos grandes centros urbanos.
O século XVIII foi marcado por mudanças bastante significativas, tanto no âmbito político quanto no
científico e cultural. É dessa época o movimento intelectual denominado iluminismo, que se iniciou na
Inglaterra, mas teve seu apogeu na Revolução Francesa. O lema “Igualdade, Liberdade e Fraternidade”
ficaria marcado para sempre na história da humanidade.
Os filósofos dessa época, como Diderot, Voltaire e Rousseau, acreditavam que a razão era a única
fonte de conhecimento da natureza e da sociedade. A igreja e a religião eram vistas como instrumentos
de ignorância.
Em 1755, Lisboa sofreu um grande terremoto, sendo metade da cidade reconstruída por Pombal com
uma visão mais racionalista e neoclássica.
Didaticamente, considera-se que o Arcadismo em Portugal inicia-se em 1756, quando foi fundada
a Arcádia Lusitana, uma sociedade literária na qual vários poetas se reuniam para recitarem poemas e
discutirem sobre a estética árcade.
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Literatura Portuguesa: Poesia
Por resgatar a imitação dos clássicos gregos e romanos, esse movimento é também denominado
de Neoclassicismo. Juntamente com o Classicismo e o Barroco, o Arcadismo compõe o período que
denominamos de Clássico.
A literatura árcade representa uma crítica da burguesia letrada e culta ao estilo de vida da nobreza
e do clero.
No período árcade, segue-se o conceito aristotélico de arte, isto é, a arte como imitação da natureza,
o racionalismo, expresso pela busca constante pelo equilíbrio e pela perfeição, vemos também a
presença de temas bucólicos, ligados à natureza e à tranquilidade rural.
Em Portugal, foram duas as principais academias árcades: a Arcádia Lusitana (1756) e a Nova Arcádia
(1790).
Essas características retomam os temas clássicos, considerados clichês árcades, tais como:
Podemos citar alguns poetas árcades relevantes, como Nicolau Tolentino de Almeida, poeta satírico,
e Filinto Elísio. Contudo, aquele que mais se destacou foi o grande sonetista Manuel Maria Barbosa du
Bocage.
Bocage (1765-1805) nasceu em Setúbal, Portugal. Teve uma vida cheia de aventuras e boemia,
entre bares e recitais poéticos. Pertenceu à Nova Arcádia, na qual era conhecido pelo pseudônimo
de Elmano Sadino. Contudo, era um rebelde e logo abandonou o grupo, cujo estilo atacou. Escreveu
poemas satíricos que chegaram a fazer com que o poeta fosse preso. Faleceu pobre e doente. As suas
obras tiveram várias edições ainda em vida: Rimas, tomo I (1791), Rimas, tomo II (1799) e Rimas, tomo
III (1804). Em 1811, foram publicadas as Obras Completas, no Rio de Janeiro. Ficaram famosos os seus
Sonetos, os seus Epigramas e os seus Apólogos.
Podemos notar a obra de Bocage distintamente em duas fases. Na primeira fase, o poeta mostra
obediência aos clichês árcades; em contrapartida, a segunda fase é marcada pela dissidência com o
Arcadismo e aproximação com o Romantismo, ao que os críticos chamam de Bocage pré-romântico.
Entre os temas mais explorados por Bocage, podemos destacar: o amor, a morte, o destino, a natureza
e o conflito entre a razão e o sentimento.
Há também um Bocage que se faz notório em sua produção de versos fesceninos e eróticos, de verve
mordaz e língua ferina. Entretanto, alguns poemas de cunho erótico e pornográfico que levam o nome
de Bocage não são de sua autoria.
Veja a seguir um exemplo de um poema satírico de Bocage (1994, p. 30), no qual o poeta faz um
autorretrato bem humorado.
Podemos observar nesses versos como o poeta confessa sua vida boêmia, cheia de prazeres, seu
espírito inquieto e certo repúdio à religião. Era considerado um homem bonito.
Aliás, nessa fase satírica, Bocage mostrou-se excelente artífice do verso, tal como neste outro poema
(BOCAGE, 1969, p. 140):
Bocage tem extraordinária habilidade no manejo dos recursos da forma soneto. No poema, são
versos decassílabos acentuados na sexta e décima sílabas; as rimas são todas graves, regularidade
que confere harmonia à matéria tratada. O autor aproveita a cisão entre quartetos e tercetos para
cumprir com a gradatio descritiva dos clássicos, conforme as normas de poetar difundidas no
século XVIII: nos oito primeiros versos, verbos, substantivos e adjetivos pertencentes a um mesmo
campo semântico de ingenuidade e pureza – “donzela”, “fé mais pura”, “alta ventura”, “cautela”,
“murmura”, “ternura, bela e casta” – mostram o retrato convencional de mulher, por quem o eu
lírico sente amor resguardado (“dentro do peito”) e a quem só pode ver a furto (“Depois da meia-
noite na janela”), no silêncio cúmplice da madrugada. É a dona inacessível dos tempos de outrora,
que Camões cantou com maestria.
O primeiro verso do terceiro terceto marca a transição, pois se os olhos são ainda vergonhosos, eles,
contudo, aceitam o beijo, desencadeando o que se segue, descendo gradativamente da boca para os
pimpolhos e folhos, hiperbolicamente temperados com “prazer mais fecundo, Amor fecundo e o maior
gosto”, plenos de erotismo.
Para Mongelli (CORRADIN e JACOTO, 2008), cheio de irreverência, mas com domínio da retórica,
o poeta deixa entrever que a conquista não foi fácil: ele teve de jurar, fazê-la vir abaixo, ir com
cautela para vê-la render. O advérbio “enfim” imprecisa o tempo despendido no processo, cuja
alegria do galanteio é sonoramente marcada nas rimas –undo.
Segundo a regra da áurea mediocritas, em que o poeta precisa dizer o mínimo para evitar insipidez,
bem como evitar a baixeza, construindo a regra do decoro, Bocage seguiu à risca na composição de seu
soneto e obteve o efeito de rir e debochar do outro com o máximo de finura.
91
Unidade I
Neste outro exemplo (BOCAGE, 1994, p. 33), temos um poema lírico da primeira fase:
Vocabulário:
• pastoralismo: a amada é uma pastora, cujo nome percebe-se pelo vocativo “Marília”;
• referências à mitologia greco-latina: “Vênus”, “Júpiter” e cupido, por meio do epíteto “menino alígero”;
• busca do equilíbrio e da perfeição por meio do uso do soneto e da descrição da bela mulher: “Ó
perfeições! Ó dons encantadores!”.
Vejamos agora um exemplo do lirismo da segunda fase, ou da fase pré-romântica (BOCAGE, 1994, p. 39):
Vocabulário:
Esse soneto, ainda de concepções clássicas, revela a lírica pessimista que exemplifica a fase madura
do poeta, cuja temática antecipa o ideário romântico do mal do século, marcado por religiosidade e
temas tristes.
Aqui, como em outros sonetos dessa fase de Bocage, o uso da razão e do universalismo dá lugar à
emoção e à subjetividade, como podemos ver nas expressões “meu ser”, “em mim”.
Resumo
De início, estudamos as primeiras manifestações literárias de Portugal,
que datam da Idade Média e se estendem até o período de transição da
literatura oral para a literatura escrita. Esses períodos são conhecidos como,
respectivamente, Trovadorismo e Humanismo.
Exercícios
Questão 1. A canção Atrás da porta, composição de Chico Buarque e Francis Hime, apesar de
contemporânea, segue moldes da poesia trovadoresca. Assim, poderia ser classificada como:
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Literatura Portuguesa: Poesia
A) Alternativa incorreta.
Justificativa: embora sejam Chico Buarque e Francis Hime os compositores, o eu lírico da música é
feminino: “Até provar que ainda sou tua”.
B) Alternativa incorreta.
C) Alternativa incorreta.
Justificativa: as cantigas de amor e as cantigas de amigo, embora falem de amor, são diferentes na
abordagem do tema e na perspectiva de quem fala nelas. Nas primeiras, o eu lírico é masculino; nas
segundas, o eu lírico é feminino.
D) Alternativa correta.
Justificativa: o uso do eu lírico feminino, “que ainda sou tua”, mostra a influência da cantiga de
amigo. Na canção, a mulher implora para que o amado não vá embora: “E o teu olhar era de adeus”.
E) Alternativa incorreta.
Justificativa: na música, o eu lírico não dialoga com a natureza. Embora essa seja uma característica
das cantigas de amigo, neste caso, o eu lírico sofre o término do seu romance, implorando ao amado
que não a deixe.
Questão 2. Leia os sonetos de Luís de Camões e assinale a alternativa correta quanto à lírica
camoniana:
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Unidade I
Amor é fogo que arde sem se ver, Eu cantarei de amor tão docemente,
é ferida que dói, e não se sente; por uns termos em si tão concertados,
é um contentamento descontente, que dous mil acidentes namorados
é dor que desatina sem doer. faça sentir ao peito que não sente.
É um não querer mais que bem querer; Farei que amor a todos avivente,
é um andar solitário entre a gente; pintando mil segredos delicados,
é nunca contentar-se de contente; brandas iras, suspiros namorados,
é um cuidar que ganha em se perder. temerosa ousadia e pena ausente.
Mas como causar pode seu favor Porém, para cantar de vosso gesto
nos corações humanos amizade, a composição alta e milagrosa,
se tão contrário a si é o mesmo Amor? aqui falta saber, engenho e arte.
Disponível em: <http://www.sonetos.com.br/sonetos.php?n=259>. Acesso em: 24 nov. 2011.
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