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Sociologia Rural e Urbana

Autor: Prof. Adilson Rodrigues Camacho


Colaboradoras: Profa. Maria José Dias
Profa. Tânia Sandroni
Professor conteudista: Adilson Rodrigues Camacho

É doutor em Ciências pelo programa de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo (FFLCH‑USP) desde 2008; mestre em Geografia pela Universidade Estadual Paulista Júlio
de Mesquita Filho (FCT‑Unesp) desde 1994; e graduou‑se em Geografia pela USP em 1990. Foi professor titular na
Universidade Paulista (UNIP) e na Fundação Armando Alvares Penteado (Faap), em cursos de graduação e pós‑graduação.
Tem experiência em estudos socioambientais municipais e regionais. Atua principalmente nas linhas de pesquisa ligadas
à epistemologia das ciências sociais, às metodologias de planejamento, qualificação territorial, econômica, política
e ecológica dos usos territoriais do ambiente (diagnóstico e prognóstico dos impactos socioambientais), associada à
adequação das políticas públicas às demandas locais.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

C172s Camacho, Adilson Rodrigues.

Sociologia Rural e Urbana. / Adilson Rodrigues Camacho - São


Paulo: Editora Sol, 2022.

232 p., il.

Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e


Pesquisas da UNIP, Série Didática, ISSN 1517-9230.

1. Sociologia rural. Sociologia urbana. 3. Agentes sociais. I.Título

CDU 301

U516.34 – 22

© Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou
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Vice-Reitora de Unidades do Interior

Unip Interativa

Profa. Elisabete Brihy


Prof. Marcelo Vannini
Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar
Prof. Ivan Daliberto Frugoli

Material Didático

Comissão editorial:
Profa. Dra. Christiane Mazur Doi
Profa. Dra. Angélica L. Carlini
Profa. Dra. Ronilda Ribeiro

Apoio:
Profa. Cláudia Regina Baptista
Profa. Deise Alcantara Carreiro

Projeto gráfico:
Prof. Alexandre Ponzetto

Revisão:
Giovanna Oliveira
Kleber Souza
Sumário
Sociologia Rural e Urbana

APRESENTAÇÃO.......................................................................................................................................................7
INTRODUÇÃO............................................................................................................................................................9

Unidade I
1 SITUAÇÕES: FAZERES E CONCEITOS SITUADOS............................................................................................. 13
1.1 O caminho do estudioso, da confecção teórica....................................................................... 14
1.2 O caminho que se volta para entender a si mesmo, estudando o
próprio pertencimento ao fazer parte da prática investigada................................................... 15
2 SOCIOLOGIA RURAL: DAS LOCALIZAÇÕES INCONFUNDÍVEIS AOS DEBATES
SOBRE SUA EXISTÊNCIA (ANIQUILAMENTO EPISTEMOLÓGICO)....................................................... 19
2.1 As críticas.................................................................................................................................................. 24
3 SOCIOLOGIA URBANA: DE LOCALIZAÇÕES INCONTESTES À UBIQUIDADE............................... 27
3.1 Movimento crítico................................................................................................................................ 36
3.2 Mais questões e conceitos................................................................................................................. 37
4 RURAL E URBANO PELAS EXPERIÊNCIAS ORIGINAIS........................................................................ 41
4.1 Experiências............................................................................................................................................. 50
4.1.1 Cidades e campos seguem diminuindo a evidência de suas marcas distintivas........... 58
4.1.2 A leitura antropológica da cidade..................................................................................................... 68

Unidade II
5 ESTRUTURAS SOCIAIS E FUNDIÁRIAS: ONDE ESTÁ O RURAL?...................................................... 75
5.1 O mapa do texto.................................................................................................................................... 75
5.2 Procurando as pessoas e seus modos de vida........................................................................... 76
5.3 Cultivando e criando o mundo: além da coleta....................................................................... 77
5.4 Cidades gigantes.................................................................................................................................... 81
5.5 Rural agrário e os horizontes do urbano..................................................................................... 84
5.6 Modelos agrários atuais de produção.......................................................................................... 87
5.7 Formas de exploração da terra........................................................................................................ 87
5.8 Tipos de lavouras................................................................................................................................... 89
5.9 Relações de trabalho............................................................................................................................ 89
5.10 Principais produtos agrícolas......................................................................................................... 90
5.10.1 Principais lavouras................................................................................................................................ 90
5.10.2 Culturas permanentes......................................................................................................................... 91
5.10.3 Cana‑de‑açúcar..................................................................................................................................... 92
5.10.4 Café............................................................................................................................................................. 93
5.10.5 Cacau.......................................................................................................................................................... 94
5.11 Atividade pecuária.............................................................................................................................. 96
5.12 Trabalho, institutos e instrumentos de controle social: estado e
demais agentes.............................................................................................................................................. 98
5.12.1 Criar e/ou produzir.............................................................................................................................100
5.12.2 Políticas de manutenção da força de trabalho.......................................................................102
5.12.3 Estado: figura de poder e política consolidada historicamente......................................102
6 CIDADANIA SELETIVA: DIVISÃO E DETERMINAÇÃO DO TRABALHO...........................................106
6.1 Alfabetização finalitária: atalhos da redução..........................................................................110
6.2 As mãos no trabalho esfacelado...................................................................................................115
6.3 Campos do capital, da urbanização disruptiva.......................................................................117
6.4 Cidades esfaceladas: bairros e distritos......................................................................................125
6.5 Problemas urbanos: a vida na cidade.........................................................................................127
6.5.1 Habitação................................................................................................................................................. 127
6.5.2 Especulação imobiliária...................................................................................................................... 128
6.5.3 Violência, insegurança e medo........................................................................................................ 129
6.5.4 Desemprego e precarização do trabalho..................................................................................... 129
6.5.5 Os circuitos da economia e a informalidade............................................................................. 130
6.5.6 Sistema viário..........................................................................................................................................131
6.5.7 Transporte coletivo, individual e o trânsito............................................................................... 134
6.5.8 Saneamento e saúde........................................................................................................................... 135
6.5.9 Educação.................................................................................................................................................. 135
6.5.10 Sistemas condutores de energia e alimentação das cidades........................................... 136
6.5.11 Fronteiras urbanas.............................................................................................................................. 136
6.6 A sociedade determinada: mensagem e vozes da normatização....................................138
6.6.1 Cidadania seletiva para os habitantes dos espaços rural e urbano:
o peso da norma.............................................................................................................................................. 143
6.6.2 Ações sobre o mundo rural............................................................................................................... 145
6.6.3 Ações sobre o meio urbano.............................................................................................................. 145
6.6.4 A fenomenologia do mercado......................................................................................................... 146
6.6.5 Sensação das perdas............................................................................................................................ 148

Unidade III
7 TENSÕES ENTRE DIREITOS E NORMAS: PERDAS E GANHOS........................................................157
7.1 Diferenças, contrariedades ao modelo único de inserção no
movimento global......................................................................................................................................170
7.2 Campos e cidades rebeldes, movimentos sociais urbanos.................................................173
8 SOLUÇÕES, APONTAMENTOS E PERSPECTIVAS..................................................................................182
8.1 Visão ou percepção intencionada................................................................................................183
8.2 Urbanização, modernização e ambiente como recurso......................................................183
8.2.1 Escopo dos estudos de impactos ambientais............................................................................ 185
8.3 Abordagem estrutural com registro cartográfico..................................................................186
8.4 Algumas considerações sobre o campo que queremos.......................................................190
8.5 Algumas considerações sobre a cidade, o novo urbano que temos hoje.....................199
8.6 Vida humana, que transforma necessidades e matéria em vida, em sentido............205
APRESENTAÇÃO

Este livro‑texto procura trazer a natureza da sociologia rural e urbana, seu alcance e
complementaridade às demais áreas do curso de sociologia. O objeto de interesse, a vida rural e urbana,
é caminhável, sensível, comestível, tomável, e dá‑se com o desenrolar da existência das pessoas que
compõem a sociedade, bem como de seus projetos. Somos moldados e moldamos o nosso entorno,
sendo dobrados pelas regras, quando de fora, incoerentes, com virtuais opções de liberdade.

A sociologia, no geral, dá conta dos fenômenos sociais, das associações humanas, tais quais
fossem, onde estivessem. Não havendo a necessidade de parcelar ainda mais o conhecimento; pelo
contrário, seria a sede de articulação disciplinar para apreender e estudar a vida social. A sociologia
rural e urbana apresenta‑se como referência positiva a esferas específicas da vida social; há modos
de vida marcantemente distintos, com usos ambientais correspondentes: há a vida no campo e há
a vida urbana, normalmente nas cidades.

O poder explicativo da sociologia está no diálogo com os demais saberes. A importância da


disciplina, sua principal pujança, é tanto a identificação do que é o rural e o urbano, hoje, quanto
o enfrentamento das crises (e obstáculos) à explicação nos temas sociais e, portanto, crises
responsáveis pelas distorções (inadequações e, até mesmo, depravações) de projetos sociotécnicos
(da arquitetura e engenharias até as políticas públicas); como decorrência óbvia da superficialidade
e do desconhecimento (e muitas outras perdas ligadas à “pressa” executiva) dos diagnósticos e
prognósticos coerentes ao fluxo da vida, considerada em sua plenitude. Precisamos resgatar o papel
do fazer, da execução, como desdobramento lógico da análise e da avaliação daquilo que encontramos
pronto sem que questionemos as histórias que o levaram até onde se põe para nossas experiências.

A proposta deste livro‑texto é procurar e apresentar as associações históricas de campo e


cidade, de cunho fortemente espacial ou geográfico, discorrendo sobre os principais aspectos
das profundas transformações culturais, políticas e econômicas dessa reflexão, aproximação
e exposição integradora, interdisciplinar, sediada na sociologia. Procura, interdisciplinar, de
conhecimentos sobre o habitar (ontológico, essencial) e a urbanização (manifestação metafísica do
“estado de natureza” humano), cujas formas, relações e configurações resultantes estão para além
das racionalidades parciais de sua realização social, o que abre espaço para a busca das dimensões
invisíveis da realidade (MERLEAU‑PONTY, 2005).

Ao denominarmos nossos objetivos, dos mais gerais aos mais específicos, temos, então que
os mais genéricos vão desde identificar e conceituar a realidade social, com suas especificidades
econômicas (organização e normalização do trabalho), políticas (poder, autonomia e emancipação),
culturais (expressão) que nos puderem auxiliar na empreitada de encontrar o que há de rural e onde;
bem como delinear o que é urbano nas cidades e o que há de urbano nas áreas tradicionalmente
tidas como rurais.

Essa busca sociológica dá‑se em meio às interfaces disciplinares com lida das questões rurais
e urbanas, além da antropologia e das ciências políticas: tais são as ciências humanas e sociais,
como a geografia, a história, a ecologia, o urbanismo; conhecer e refletir sobre os principais
7
processos sociais, direta ou indiretamente associados à vida social nos espaços rurais e urbanos,
suas particularidades e universalidades, organizações e conexões e diferenças; compreender
a urbanização em países dependentes (para alguns, emergentes); além de analisar concepções
teóricas de sociólogos mais afeitos às questões rurais e urbanas.

Ainda do ponto de vista dos objetivos gerais, apontamos as abordagens teóricas e metodológicas
das ciências sociais que definem espaços e sociedades rurais e urbanos, juntamente com o rol
de conceitos daí advindos, como: região, modo de vida (tipicamente rural e urbano), produção
(tipicamente agrária e urbana) e reprodução social (cultural e normativa), circuitos produtivos
e produtividade. É também fundamental relacionar as estruturas e organizações da vida social
no campo e na cidade, bem como as especificidades produtivas e interdependências mercantis
entre os espaços agrários (áreas de agricultura, extrativismos e de pecuária) e as cidades (áreas,
que, desde a Revolução Industrial, são associadas à industrialização e a serviços). A produção e o
consumo são atividades‑chave tanto agrárias como urbanas.

Dentre os objetivos mais específicos, temos o exercício de diferentes versões teóricas da sociologia
(sempre que possível consideradas em suas relações com as demais ciências sociais: antropologia,
geografia, ciências políticas), discutindo os modelos explicativos das tais realidades rurais e
urbanas estudadas. As disciplinas do curso de sociologia (sociologia do desenvolvimento, Estado
e sociedade, ciência política, geopolítica, teoria antropológica, entre outras) estão entrelaçadas
tanto pelo objeto de interesse de sociologia rural e urbana quanto pelo seu instrumental.

Caminharemos em meio a escopos positivistas, plenos de certezas no estabelecimento de


questões e respostas absolutas, e em meio às posições críticas, cujas dúvidas assumem papel
valorizado, pois indicam aprendizado.

E, por fim, aprender a reconhecer os interesses subjacentes à realidade social, urbana e rural;
interesses expressos em projetos, teorias, conceituações, experimentos, ações tanto privadas
quanto públicas. Aprendizagem que implica identificar o Estado (institucionalização do poder
social), nele reconhecendo sua composição e perfil; o papel estrutural do modelo de propriedade
da terra (estrutura fundiária emparelhada da própria sociedade); os agentes envolvidos em sua
manutenção; o cerne dos movimentos políticos, seja com ênfase econômico ou cultural, nas áreas
rurais e nas cidades, considerados com base nas referências às transformações das tradições.

Os objetivos contemplam a orientação do aluno no contato com padrões de fatos e processos


socioespaciais e na problematização de suas razões e desdobramentos, aventando alternativas de
organização social.

8
INTRODUÇÃO

Caminharemos juntos por palavras e realidades sociais que, por vezes, parecerão fundidas, outras
vezes, confundidas: estamos nos referindo aos universos comumente associados ao modo de vida rural
e ao modo de vida urbano, seus conteúdos e suas formas, procurando a lógica do baralhamento sofrido
pelas realidades do rural e do urbano até há pouco, aparentemente cristalizadas em suas localizações,
por análises clássicas e percepções da superfície.

Para falarmos desse assunto, seguiremos um plano! Cada parte do texto é um jeito de ser do corpo
humano, corpo‑sujeito. A metáfora de comunicação do percurso analítico é a do corpo, suas partes e
unidade; o método é baseado nas experiências, de pensamento e de percepção, recolhendo os pedaços
que encontrarmos pessoalmente, em estudos e pesquisas, juntando tanto quanto possível nesse trajeto;
indo, portanto, das questões concretas às alternativas.

O percurso segue em dois níveis: por uma trilha que leva pela percepção mais imediata e por outra, cujas
mediações a tornam mais teórica, ambas tornando‑se texto. Imediaticidade, e até concretude, conferidas
pelo caráter existencial do corpo que tem experiências de campo e cidade; uma história vivida. Trata‑se
de caminho ontológico, indo em direção ao que se fala e reflete, com as pessoas que encontramos nas
ocupações reais, muito além das noções e conceitos (sempre datados, atávicos) que também traremos, de
pessoas, supostamente, vivendo e trabalhando na agricultura e na pecuária de paisagens nitidamente rurais
e agrárias (vivendo em aldeias e povoados) ou na indústria e serviços (em vilas, cidades e metrópoles), com
suas paisagens características. Este, nosso segundo movimento delineado pela aproximação de inspiração
epistemológica, ocupado com as atribuições conceituais ao real.

Como anunciado, colocamo‑nos a percorrer tanto o rural e o urbano (objeto de nosso interesse)
quanto as sociologias do rural e do urbano (corpos teóricos que por eles se interessam). Passearemos
pelas coisas, nela pensaremos apoiados nos grandes estudiosos do assunto, as classificaremos, e o
faremos com crítica.

Em qualquer situação, ação localizada, em que estivermos, o que se movimenta é o corpo‑sujeito;


e enquanto andarmos por aí, metendo-nos com as coisas interessantes que nos couberam estudar,
coisas do rural e do urbano (ontologia), pensaremos sobre isso, pondo o próprio corpo, interessado, em
análise: ser humano é criatura‑criador/criador‑criatura, seguindo a versão clássica do Frankenstein,
de Mary Shelley.

Minha imaginação, porém, estava por demais exaltada diante do primeiro


êxito, para permitir‑me dúvidas quanto à possibilidade de dar vida a um
animal tão maravilhoso como o homem. Eu tinha a fórmula. Faltava‑me
a matéria‑prima. Onde e como obtê‑la? Sabia que iria enfrentar um
sem‑número de empecilhos que poderiam me pôr em risco de realizar
uma obra imperfeita. Mas face ao incessante progresso da ciência e
da mecânica, aos aperfeiçoamentos que surgem dia a dia, eu teria, pelo
menos, a possibilidade de assentar os alicerces para um êxito futuro.
A impraticabilidade da empresa estava, todavia, fora de minhas cogitações.
9
Tais eram as condições em que comecei a criação de um ser humano. Como
a complexidade dos órgãos constituía um obstáculo à rapidez do meu
empreendimento, resolvi, contrariando minha primeira intenção, construir
um ser de estatura gigantesca, partindo da ideia de que, trabalhando em
escala mais ampla, seria mais fácil manipular as partes para chegar ao
todo, tal como ocorre ao cartógrafo ao elaborar um mapa (SHELLEY,
2012, p. 52‑53).

Richard Sennett considera duas imagens de objetos simulacros do corpo humano, tão arquetípicos
e caros à contemporaneidade, propondo reflexão importante para o nosso trabalho, ao cotejar o antigo
desejo de imitar o ser humano e de reproduzi‑lo, mecanicamente; é aí que fala na categoria dos objetos
de imitação do humano (os replicantes, de Blade Runner, por exemplo) e aqueles que o superariam
(os robôs de todo tipo), Para ele, ambos seriam “ferramentas‑espelho” (2009, 101‑102).

O mapa de nosso “caminhar‑texto”

“O corpo humano” encobre um caleidoscópio de épocas, uma divisão


de sexos e raças, ocupando um espaço característico nas cidades do
passado e nas atuais. Em vez de elaborar um catálogo, procurei entender
como as suas imagens coletivas foram usadas no passado. Imagens
ideais do corpo humano levam à repressão mútua e à insensibilidade,
especialmente entre os que possuem corpos diferentes e fora do padrão.
Em uma sociedade ou ordem política que enaltece genericamente “o
corpo”, corre‑se o risco de negar as necessidades dos corpos que não se
adequam ao paradigma.

Porém, a conveniência da imagem idealizada está bem evidente na expressão


“corpo político”, como condição da ordem social. O filósofo João de Salisbury
talvez tenha formulado a definição mais simples e literal desse conceito,
ao declarar, em 1159, que “o estado (res publica) é um corpo”. Ele quis dizer
que um governante funciona como um cérebro humano; seus conselheiros,
como o coração; os comerciantes são o estômago da sociedade; os soldados,
suas mãos; camponeses e trabalhadores manuais, seus pés. Trata‑se de uma
imagem hierarquizada, segundo a qual a ordem social parte do cérebro,
órgão do governante.

João de Salisbury vinculou a forma do corpo humano à forma da cidade,


cuja cabeça situava‑se no palácio ou na catedral; o estômago, no mercado
central; pés e mãos, nas casas. Por conseguinte, as pessoas deveriam mover‑se
vagarosamente na catedral, posto que o cérebro é um órgão reflexivo, e mais
depressa no mercado, já que a digestão se processa como uma fagulha no
estômago (SENNETT, 2003).

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Os pés no chão marcam nosso início, pois toda existência é situada, partimos da situação deste observador,
autor, que segue por entradas disciplinares, mas ainda sediados na sociologia, com entrecruzamentos
necessários (interdisciplinares), obrigando que nos acerquemos dos fenômenos do habitar, tanto daqueles
tipicamente rurais quanto daqueles tipicamente urbanos. Seguimos tomando consciência de nós mesmos
e dos demais sujeitos e organizações estudados, enquanto deles estivermos tratando.

Os pés nos levam, assim, para um lugar primitivo do humano, do predomínio do labor e da dimensão
de nosso “organismo”, isto é, procuramos pelo labor do corpo como movimento independente do
organismo, das cadeias energéticas e de nossa realidade metabólica no centro de tudo. Com esse espírito,
o que tocamos foi o núcleo de nossos usos materiais e espirituais do mundo (da revolução neolítica,
ferramentas e mitos na sua base, aos voláteis dias de hoje). Esse ponto apresenta nossas experiências
sociais agrárias e “proto‑urbanas” mais elementares, construções comuns e respostas de inspiração mítica.
Maurice Merleau‑Ponty (2005; 2006) nos convida a não abandonar as dimensões que tragam ambiguidade
aos estudos; como desafios a serem considerados no combate às reduções excessivas do real.

Dando continuidade ao conteúdo, vamos aos problemas da existência, com as soluções reflexivas,
mais elaboradas do que os impulsos de base laborais das primeiras experiências, considerando as
primeiras soluções (técnicas) em medida humana, vitais (MERLEAU‑PONTY, 2006). Encaminhamento
político, próprio às preocupações sobre dominação, propriedade e a liberdade. Escolhemos a cabeça
para representar as soluções corporais (de corpo inteiro, o corpo‑sujeito da fenomenologia), portanto,
a um só tempo intelectuais e práticas, trata‑se da viabilização da vida social por meio das inteligências
práticas de criação e soluções imediatas de problemas da existência, como criar, cultivar, coletar etc.

Cabeças e pés constituem corpos coletivos, espécie de amarração das ações particulares às instituições
ou essas, como uma mente generalizada ou coletiva, várias mentes agindo e pensando, torna‑se síntese
(complexa) das relações vitais, estamos agora no plano das instituições sociais: abstrações concretas,
construções comuns e institucionais dos saberes, também das crenças e demais respostas religiosas
e míticas às científicas; das técnicas às tecnologias, ao controle/gestão social e da natureza (redução
sistêmica), nível que tende ao abstrato, político e econômico – circuitos econômicos com divisão do
trabalho Karl Marx e Max Weber. Aqui há lugar para o reconhecimento da unidade, das possibilidades
de sínteses.

As mãos aparecem em nossa jornada como símbolo do fazer, de um fazer já manipulado,


continuamente especializado. Trata‑se da domesticação do corpo, seleção das funções (habilidades e
movimentos) que interessam àqueles que controlam o fio condutor (estratégico) das acumulações de
riqueza na modernidade. As mãos, habilidosas, competentes, entretanto, de ações fragmentárias, aplicadas
à contínua expansão do capital, no trabalho (produção) dirigido de fora, com estrutura extravertida.

Costas ou estruturas de sustentação. Sujeição, com as costas dobradas. Práticas, normatizações do


“mundo determinado”, como se apropriar dos aspectos requeridos pelo mercado; instrumentalização
dos símbolos e discursos com vistas à sujeição. Modo como se vem apropriando. Educação diretiva, do
pensamento único (Foucault, Bourdieu e Milton Santos).

11
Olhos, ouvidos e narizes como instrumentos privilegiados nesse momento. Rebeldia no olhar;
ocupamos um ponto de vista crítico. Procurando as falhas, crescente concentração de poder privado;
Estado instrumentalizado, com suas razões. Lugar do corpo indócil, das subversões... É o espaço dos
movimentos sociais: nos campos ou áreas de vida rural, aplanamento das desigualdades promovidas
pelo capitalismo; questão rural‑agrária (sem‑terra, desemprego, paradoxo do “preço baixo demais” dos
alimentos em oposição ao alto custo da vida do pequeno produtor, determinado pela lógica contraditória
do mercado capitalista (no caso, de bens agrários, como afirma Mazoyer, 2010);

Agora, o privilégio é o da visão, intuição, intenção. Experiência inteira. Esperança em ver, enxergar,
voltando o olhar para o horizonte das utopias motoras da realidade, onde está principalmente o
humano que buscamos desde o alvorecer do sapiens sapiens, procurando alternativas e possibilidades
de melhoria da vida social.

Queremos que esse texto chegue até você, aluno, como uma conversa; então, esperamos que, ao
ler, pense a respeito e responda, por meio de exercícios, fóruns e provas, trazendo esses resultados
para nossa comunicação baseada na perspectiva sociológica da vida social rural‑urbana.

12
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA

Unidade I
1 SITUAÇÕES: FAZERES E CONCEITOS SITUADOS

Quando se admite a existência de uma multiplicidade de julgamentos


cognitivos correspondentes à multiplicidade dos quadros sociais, a
coexistência de diversos desses julgamentos e a reunião de diversas
hierarquias de valor, ainda que contraditórias, no interior de qualquer
sociedade, tornam‑se também admissíveis (QUEIROZ, 1972a, p. 63).

[a relação campo‑cidade, “ruralização” ou “urbanização” de uma sociedade


devem ser tomadas] como dois fatos que podem ter áreas que se
recobrem, enquanto outras permanecem distintas; que ora convergem
em seus processos internos, ora divergem; que às vezes se associam em
complementaridade, e outras vezes se opõem.

[…]

A sociologia rural precisa abandonar seus falsos problemas e admitir um


dado fundamental: o campo nunca pôde ser compreendido por si mesmo,
pois se ele existe, é porque existe a cidade – e vice‑versa. A cidade pertence
ao universo do campo, como o campo pertence ao universo da cidade.
Quando falamos numa Sociologia Rural diremos que é do ponto de vista
do rural que nos colocamos para compreender as relações entre o rural e
o urbano; e no ponto de vista urbano quando fizermos Sociologia Urbana.
Quando esta regra fundamental é esquecida, chegamos a explicações falsas,
ou ficamos girando em círculo diante de questões que parecem insolúveis
(QUEIROZ, 1978, p. 309).

O foco nas questões próprias à vida rural e à vida urbana nos levam às suas especificidades e, em
seguida, às suas ramificações (inter‑relações/interações) e interdisciplinaridade. De específico, temos as
práticas sociais: culturais, econômicas, políticas e territoriais.

A vida, com a relativa universalização técnica e simbólica, transborda os lugares, pois os núcleos de
convívio vão se mesclando e conectando lugares, por isso não podemos tratar apenas de loci como se as
ações estudadas fossem a eles circunscritas (atividades estritamente rurais ou urbanas); estas tendem a
ligações em diferentes combinações e escalas, por fios visíveis e invisíveis.

As tais conexões entre grupos e lugares nem sempre se traduzem em comunicação e comunidade;
o que tem havido está mais para costuras comerciais e informacionais de áreas, atravessadas por
13
Unidade I

circuitos econômicos que lhes impingirão a tônica dos conteúdos sociais por eles requeridos; essa é
parte importante de nossa temática.

Fazemos essa incursão a partir do lugar no qual nos situamos, autor e pessoas das quais estamos
falando. Assim, estamos com os pés no chão, no lugar (o corpo todo nos espaços que ocupa); a existência
situada nos lugares e regiões; nas cidades e nos campos.

A experiência de estar no mundo embasa as experiências da vida e permite que nos situemos como
seres sociais. O ser social espacializa‑se, isto é, as pessoas vivem nos diferentes âmbitos e formações
socioespaciais em inúmeras combinações específicas; daí decorrem as mais variadas estruturas sociais,
como familiares, burocráticas, recreativas, entre outras. Estamos falando de organizações sociais da
vida humana, compostas pelas dimensões econômicas, cujos movimentos requerem produzir, extrair,
criar, transformar, para satisfação das necessidades; dimensões políticas, sustentadas pelo exercício
do poder em diversas combinações e domínios; dimensões culturais, que contemplam a esfera das
idealizações e ideologias. Todas essas atividades podem nos parecer rurais, agrárias ou urbanas,
citadinas, estando, no entanto, conjugadas e impossíveis de serem consideradas separadamente.

Seguimos dois caminhos que levam à vida social. Nas trilhas de uma ontologia do ser vivente,
o pensamento científico procura pelas entradas, as mais diretas, da situação de quem vive e
trabalha; situação que, de outro modo, é buscada por aquele que fala sobre si mesmo, por fazer
parte do ser social, sempre da realidade estudada; o discurso como possibilidade de conhecimento,
epistemologia sobre o vivente. Se na primeira via a palavra é, ela própria, coisa do mundo, na
segunda é representação.

É assim que nossa condição de estar no mundo, com os pés firmados no chão, numa posição
no espaço geográfico e na estrutura social, supõe nossos atributos de seres percipientes‑percebidos
(percebemos e somos percebidos). A realidade que se abre nessas duas frentes (a do pesquisador
que conhece, como sujeito, e que é também o pesquisado, o objeto), leva‑nos por essas duas sendas
mencionadas: o caminho do estudioso sobre o mundo objetivo, num esforço para deixá‑lo “externo”,
e o caminho dos estudos sobre o mundo consigo, identificação entre sujeito e objeto, empreitada que
traz os maiores desafios.

1.1 O caminho do estudioso, da confecção teórica

Estabelecemos os fundamentos racionais clássicos da sociologia rural – como em José Arthur Rios –
e urbana – de acordo com a Escola de Chicago, Park, Wirths ou M. Delle Donne etc. –, apresentando‑as de
modo desde as origens, periodizações, contextos e organizações, além de correntes, classificações e conexões,
bem como suas rupturas – analisadas por J. J. Martins, J. E. Veiga, R. Abramovay, Otávio e Gilberto Velho,
R. Sennet, Henri Lefebvre, M. Castells. No primeiro caso, a epistemologia é a do sujeito que vê algo fora
de si, enquanto no segundo, as rupturas trariam objetos de estudo e sujeitos indissociados.

Aqui, a história por dentro das coisas é procurada nos processos sociais identificados (além daqueles
trazidos por terceiros), procurada nas intenções das ações dos sujeitos, constituindo‑se em corpo
14
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA

teórico e institucional (no caso, a sede disciplinar do pensamento sociológico) que se põe a elucidar
a realidade que lhe dá sentido. Tal corpo teórico supõe sua própria história (mudanças profundas no
objeto de interesse da disciplina e em seu corpo teórico e fundamentos) nas transformações internas
e externas das porções da realidade estudada; desse modo, a sociologia urbana e a sociologia rural
devem se transformar com os campos e as cidades, e o ser social deve ser o objeto de ambos; o que
torna, ao longo dos séculos, as áreas confinadas e estritamente reconhecidas por suas funções, uma
quimera acadêmica.

História e epistemologia teriam, assim, implicações (e negações) mútuas, pois as coisas se


transformam, e as teorias a reboque destas, o que também provoca avaliações mutáveis. Sempre
estaremos fazendo história das coisas e trazendo as coisas da história. Em suma, apesar das imagens
persistentes, não é mais possível, sem excessivas generalizações, identificar áreas como sendo
estritamente rurais ou urbanas.

1.2 O caminho que se volta para entender a si mesmo, estudando o próprio


pertencimento ao fazer parte da prática investigada

O que se procura é uma sociologia em pleno senso comum, emaranhada na própria vida, seu
objeto de interesse, sua vocação, aquém do plano disciplinar. Dessa maneira, procuramos pela
dinâmica social que demanda instrumentos conceituais e procedimentos de captura adequados,
tanto ao método quanto aos acontecimentos. Pensamento mais livre que o científico, entretanto,
nele ancorado – afinal, quanto pode o senso comum ser livre? –, traremos vida e lugares de que se
fala, campos e cidades, do modo como são percebidos, vividos e sentidos. Estamos no terreno da
ontologia, os sentidos das experiências dos contatos com a realidade buscada.

Observação

Tratar do objeto de interesse de qualquer ciência supõe ao menos


esses dois níveis de aproximação: na base dos estudos de sociologia rural,
dialogamos com M. Jollivet, que marca enfaticamente a importância da
interdisciplinaridade, falando em holismo, apontando para a ideia filosófica,
teórico‑metodológica da complexidade.

No caminho do estudioso, do sujeito situado em sua dimensão de conhecedor (estudantes, professores


e pesquisadores), aparecem as leituras do passado junto àquelas de hoje. É o caso do fundamental
Émile Durkheim, pai da sociologia. Seguem algumas breves considerações de seu trabalho, com sua
classificação dos campos da sociologia, que devem ser entendidas, debatidas e superadas.

Segue um esquema simplista do pensamento de Durkheim, para iniciarmos uma certa história
das classificações:

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Unidade I

Fisiologia social

Moral Religião
Sagrado
Representações
Consciência coletiva coletivas
Profano

tipo Direito
Mecânica repressivo
Solidariedade social

Sociedade
(complexo integrado de

Anomia
fatos sociais)
tipo

Orgânica Direito
restritivo

ão
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Co

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Co

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fu

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n

anô
çõ
es

Coerção
Indivíduo Grupos e instituições altruís
ta
Divisão do egoísta
trabalho Suicídio

Morfologia social

Figura 1

Fonte: Rodrigues (2000, p. 31).

O esquema apresentado por Rodrigues (2000) a fim de facilitar a visualização da teoria sociológica
de Durkheim, embora represente certa violência, é um esforço de simplificação didática dessa teoria.
Desse modo, o esquema é um roteiro de leitura da obra durkheimiana.

Podem‑se encontrar no esquema os elementos principais da teoria durkheimiana, sem seus


contextos e exposições de argumentos (seus porquês); para os quais devemos recorrer a seus textos.
Rodrigues (2000) segue apresentando os planos diacrônico e sincrônico da figura.

O esquema pretende ser tanto diacrônico como sincrônico, por se supor que ambas as diretivas possam
ser encontradas na teoria sociológica de Durkheim. A diacronia é representada horizontalmente, tendo a
solidariedade social – ponto de partida da teoria durkheimiana ao iniciar seus cursos em Bordeaux – como
ponto de partida também da organização social; e a anomia como fim, melhor dito, quando ela afrouxa seus
laços e permite a desorganização individual, ou ausência dos liames e normas da solidariedade. A sincronia
é simultaneamente representada na vertical – tal como uma estrutura –, a partir de um fundamento
concreto e objetivo, que é a morfologia social, até atingir a fisiologia social (2000).

Todas essas questões ou pedaços da realidade poderiam tornar‑se pontos de partida de muitas
pesquisas, desde que correspondam àquelas ideias associadas nos esquemas, que ajudam a ganhar
sentido, algo como um mapa para nos guiar em meio aos objetos do mundo.

O panorama intelectual da modernidade europeia é marcado pela fundação e pelo desenvolvimento


da Sociologia.

O positivismo representa um esforço intelectual e político evolucionista na esteira da visão


de progresso do Iluminismo, em perseguição impossível da harmonia como marca de equilíbrio no
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SOCIOLOGIA RURAL E URBANA

conjunto social, com um pensamento imbuído de um modelo organicista de sociedade e de cidade de


base biológica (nascimento, crescimento e morte das organizações), com lugar para um funcionalismo
de bases matemática e biológica (principalmente geométrico e anatômico).

As ciências sociais afirmam‑se de acordo com as ciências físicas ou da natureza: uma determinada
observação na raiz do conhecimento. De tanta ênfase na observação em meio ao pensamento positivista,
ao negá‑lo, passamos a viver em sociedades de abstração; de sentidos extrínsecos, isto é, não gerados
por toda coletividade, mas a ela atribuídos externamente. Os exemplos são abundantes da antropologia
(valores absolutos) à geografia (arranjos socioespaciais padronizados para localidades diferentes),
economia (desenvolvimento exógeno), entre outros.

O positivismo, desde sua fundação por Auguste Comte, mudou muito e foi se adaptando às críticas
que sofria. Porém, alguns aspectos são essenciais, tais como:

• Os objetos de estudo são dados inquestionáveis.


• Rejeição peremptória a qualquer ideia que não seja facilmente demonstrável em laboratório,
como metafísica e teologia.
• Ancora‑se num cientificismo, cabendo toda explicação à ciência, orientada metodologicamente
pela filosofia.
• O que a ciência não explica não tem explicação; deve permanecer sem resposta, afastado da
pauta de pesquisas, como veleidades e metafísicas.

Observação

O caráter evolucionista, bem como os traços funcionalistas e organicistas,


estão interligados e atravessam todas as formas e procedimentos de
indagação científicas, numa filosofia do “como” que afasta o “porquê” e é a
principal marca do positivismo, e estudá‑la é obrigatório para entendermos
o modo de desenvolvimento vigente.

Feitos tais adendos sobre as bases da sociologia, segue uma enumeração que se baseia em classificação
do campo de estudos da sociologia, elaborada por Florestan Fernandes (1972a), expandindo a de
Karl Mannheim, e indica seis áreas básicas:

• Sociologia sistemática: plano de ordenamento, nexos das relações, assim como nas frentes da
“sociologia sistemática estática” (estruturas e funções, como nas ações sociais, por exemplo), e da
“sociologia sistemática dinâmica” (processos de competição e de cooperação, por exemplo).
• Sociologia descritiva: afeita à observação da realidade a ser recomposta sensorial e
intelectualmente, portanto dependente de trabalhos de campo, que dá sua configuração
presumidamente acabada (pesquisa participante em comunidades, por exemplo).
17
Unidade I

• Sociologia comparada: procura tanto o que há em comum como o que há de particular nos
agrupamentos estudados, com objetivos prescritivos; além da evolução de determinados aspectos
ou comportamento de indivíduos e grupos, focalizando‑os como processos (comportamento e
adaptação simbólica de rituais aos diferentes contextos históricos, como aqueles do judaísmo
transformados pelo catolicismo, por exemplo).
• Sociologia diferencial: procura a individualidade de cada grupamento estudado; sua alma, ou
psique (carnaval brasileiro, os quilombos, por exemplo).
• Sociologia aplicada: prescritiva, normativa, estabelece as melhores condições para implantar e
planejar (pesquisa participante em comunidades, por exemplo).
• Sociologia geral ou teórica: encampa as demais, verificando sua facticidade e alcance (discussão
sobre a validade, consistência e coerência dos instrumentos de pesquisa, por exemplo).

Saiba mais

Como todo esquema é redutor, seu emprego é justificado apenas com


objetivos didáticos, como faz José Albertino Rodrigues. Para conhecer melhor
o autor, consulte uma de suas obras:

RODRIGUES, J. A. (org.). Durkheim. São Paulo: Ática, 2000. (Coleção


Grandes Cientistas Sociais).

Segue, nesse sentido, mais um registro, agora baseado em Fernando de Azevedo (apud LAKATOS,
1990, p. 26), na forma de esquema relacionado às regras de estudo da sociologia, ao modo de uma
abordagem sistemática ou taxonômica:

Sociologia geral 1. Conceitos fundamentais


2. Sociologia dos grupos
(teoria sociológica) que tem 3. Organização e estrutura social
pura ou teórica

por objeto 4. Dinâmica sociocultural


5. Métodos e técnicas de investigação social
Sociologia

Sociologia especial
1. Sociologia Antropológica
(estudo de categorias 2. Sociologia do Direito
específicas de fatos sociais) 3. Sociologia Econômica
Sociologia

4. Sociologia Política etc.


aplicação de suas teorias)

Geral ou especial: técnicas de 1. Descoberto o jogo das leis naturais, aplicar-se em


(técnica de ação como

ação social e política social


Sociologia aplicada

regular a conduta “segundo elas“, ou conduzir a


(ajustamentos, reajustamentos vida social pela corrente da lei natural
e reformas), em que a
aplicação das teorias é 2. Conhecido o jogo das leis naturais, que supõe a
oganizada de um destes dois ideia de mudança, regular a conduta não “segundo
pontos de vista elas“, mas “por meio delas“, ou fazendo-nos servir
por elas

Figura 2 – Áreas de estudo da Sociologia, de acordo com Fernando de Azevedo

Fonte: Lakatos (1990, p. 26).

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SOCIOLOGIA RURAL E URBANA

Agora, voltamos ao núcleo de nossa questão: as sociologias especiais, conforme Lakatos (1990).

A Sociologia da Comunidade, Sociologia Rural e Sociologia Urbana estudam, respectivamente, a


organização, os problemas sociais das comunidades e a diferenciação do espaço socioecológico; o modo
de vida rural e a natureza das diferenças rurais e urbanas; as alterações socioculturais que ocorrem no
contínuo rural‑urbano, origem e evolução das cidades e o urbanismo como modo de vida: mudanças
socioeconômica‑culturais determinadas pela concentração de uma elevada população, de composição
heterogênea, em limitada área geográfica (LAKATOS, 1990).

Para Lakatos, são exemplos dessas áreas de estudos específicos, “as relações de vizinhança; as
resistências às mudanças no meio rural; a desumanização do homem na grande cidade” (1990, p. 28). É claro
que a abordagem de tais temas tornou‑se extremamente complexa, o que veremos mais adiante.

Almejamos tratar dessas práticas a partir do que se convencionou chamar de campo ou espaço
rural em oposição ao espaço urbano, com suas formas típicas de cidade, lançando mão ora da
morfologia social de Durkheim, ora das interações sociais de Simmel, e até mesmo das regiões de Vidal
de La Blache (apud FEBVRE, 1954). Tais visões, como a de Rios (1979) não trarão as cidades e as áreas
rurais atuais, em sua complexidade, mas ajudarão a entender as transformações pelas quais passaram e
no que estão se tornando.

2 SOCIOLOGIA RURAL: DAS LOCALIZAÇÕES INCONFUNDÍVEIS AOS DEBATES


SOBRE SUA EXISTÊNCIA (ANIQUILAMENTO EPISTEMOLÓGICO)

A partir de Rios (1979) e Jollivet (1998), surgem questões como estas:

• Há uma ou várias sociologias?

• Onde estão e sob quais condições existem os objetos (as sociedades rurais e urbanas) de que
falamos e em meio aos quais andamos?

As pistas para enfrentá‑las estão na aproximação das relações reais entre sociologia e a vida rural
e urbana. Mesmo com suas falhas de contextualização (era seu ponto fraco a aproximação relacional,
interdisciplinar), a Escola de Chicago Nos Estados Unidos da América representa um certo tipo de reação,
resposta às transformações ou modernizações opressoras (capitalistas) das cidades que, no jargão do
planejamento e ciências sociais, passam a ser chamadas de metropolizações […].

Pomos os estudos rurais, primeiramente sob a ótica clássica, com foco mais rígido, fixo, no objeto de
interesse científico; então seguimos Rios (1979) em suas explanações sobre a sociologia rural em momento
de consolidação da disciplina nos Estados Unidos da América e na Europa, para tratar do Brasil. Para ele,
três são as fases mais importantes na evolução da sociologia rural nos Estados Unidos.

A primeira fase (1916‑1920) foi marcada pelo estudo de Charles J. Galpin (RIOS, 1979), “sobre a
anatomia social de uma comunidade agrícola” (p. 90). Esse estudo teve o mérito de revelar a importância
da comunidade e as linhas essenciais de sua estrutura.
19
Unidade I

Um grupo de educadores cria em 1917 a Comissão da Vida Rural, que se desdobra em Associação
Nacional de Vida Rural, cujas atividades de 1920 a 1930 também estão intimamente ligadas ao avanço
da disciplina. Nessa fase, são iniciados os primeiros cursos ministrados (junto com os de sociologia).
Desses cursos, ministrados em universidades, resultou o primeiro acervo de estudos oriundos de notas
de aulas, programas e bibliografias. Esses só foram sendo sistematizados depois de 1920; tal material
refere‑se ao estudo de comunidades rurais. Estudos e pesquisas em sociologia rural passam a motivar
eventos acadêmicos; além de surgirem os primeiros livros didáticos da disciplina (RIOS, 1979, p. 91‑92).

Em 1920, na segunda fase (1929‑1930), identifica‑se o apogeu da disciplina, com a definição de


seu conteúdo. Galpin, novamente, tem aí papel fundamental: utilizar parte do seu orçamento (de gestor
público) em projetos cooperativos nos quais participavam sociólogos de todo o país, com afinidade nos
diversos aspectos da vida rural. Foi um período profícuo, com muito trabalho acadêmico (universitário)
acompanhado de incremento produtivo por meio de atividades extensionistas “de suas respectivas estações
agrícolas experimentais, um grande acervo de monografias sobre a vida rural” (RIOS, 1979, p. 91‑92).

Foi essa ajuda financeira que alimentou a maior parte dos estudos realizados em universidades americanas
até 1932. Graças ainda aos esforços de Galpin introduziu‑se a categoria rural‑agrícola nas tabulações do
censo demográfico norte‑americano de 1930, permitindo análises posteriores (RIOS, 1979, p. 91‑92).

Para Rios (1979, p. 91‑92), nessa fase, além dos esforços de Galpin, tem reconhecida importância
Edmund S. Brunner (diretor do Instituto de Pesquisas Sociais e Religiosas, personagem fundamental nesse
período), que emprega recursos do Movimento Mundial de Igrejas para realizar estudos de sociologia
rural, orientados, principalmente, para 140 comunidades agrícolas. Em 1930, aproximadamente, esses
estudos já estavam quase todos concluídos e constituem, com a segunda análise efetuada em 1936, a
mais ampla pesquisa até hoje realizada sobre mudança social rural.

De 1925 é também a Lei Purnell, votada pelo Congresso Americano e que teve grande importância
no desenvolvimento dos estudos rurais. Reforçando os recursos distribuídos às estações agrícolas
experimentais, veio destiná‑los não só à sociologia rural como à economia agrícola, ao estudo de
mercado e à economia doméstica. A singularidade desse instrumento legal é que, pela primeira vez,
autorizava‑se a utilização desses recursos não só para a aplicação de técnicas agrícolas, mas para estudos
sociológicos. Por outro lado, isso tornou possível que as estações agrícolas empregassem sociólogos
rurais, o que representava o reconhecimento nacional da sociologia rural como instrumento importante
do desenvolvimento agrícola norte‑americano (RIOS, 1979, p. 92).

A Lei Purnell, entretanto, teve efeitos bastante desiguais, territorialmente. Rios constata que
“houve Estados em que os estudos da vida rural sofreram retrocesso, o que merece reflexão”,
pois havia despreparo na aplicação desses recursos, o que só melhorou em 1927, quando “o
Conselho de Pesquisas de Ciências Sociais iniciou um programa de bolsas destinadas à formação
de sociólogos rurais e economistas agrícolas para que ocupassem os postos criados nas estações
experimentais”. Rios afirma que “dessas bolsas surgiram os nomes mais significativos da sociologia
rural no período seguinte”; e segue denominando‑os (RIOS, 1979, p. 92).

20
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA

Surgem, então, as “tentativas de síntese”, como as publicações de Gillette, de Taylor e Simms, e da


famoso Principles of Rural‑urban Sociology, de Sorokin e Zimmerman (p. 91‑92).

Como se verifica, esse desenvolvimento da sociologia rural resultou de uma


estratégia consciente, na qual cabe ressaltar alguns fatores importantes:
(a) o aparecimento de uma problemática, que exige pronta resposta dos
administradores e provoca a reflexão dos intelectuais; (b) a criação de centros
de estudos importantes; (c) a disponibilidade de recursos que possibilitam
uma resposta intelectual a esses problemas e finalmente (d) o aparecimento
de personalidades decisivas (RIOS, 1979, p. 91‑92).

A terceira fase de Rios (1930‑1945) apresenta a “maturidade da disciplina e sua expansão universal,
que ocorre principalmente entre 1930 e 1945”. Maturidade, expansão e adensamento de trabalhos de
pesquisa, que contribui à rápida implantação do New Deal de Roosevelt no meio rural. Foram elaborados
programas de ajuda ao campo, confiados aos sociólogos de enfoque rural dos diversos Estados, aos quais
foram fornecidos amplos recursos. Almejava‑se, assim, duas linhas de pesquisa em escalas diferentes
de ação: “a execução, nas áreas escolhidas, dos planos traçados a nível nacional; e projetos locais
previamente aprovados”. Rios aponta a importância desses programas que se constituíram na espinha
dorsal dos estudos de sociologia rural de 1933 a 1936 (RIOS, 1979, p. 93).

Há, também, nesse período, disseminação do trabalho de profissionais estadunidenses em outros


países (RIOS, 1979, p. 93‑95).

Preparava‑se dessa forma a oportunidade para que a sociologia rural


de tipo americano se expandisse a outros países, fertilizando outros
métodos e alimentando novas experiências. É o que vai ocorrer de 1946
a 1956 […]. Houve também considerável refluxo depois de 1945 nas
atividades de pesquisa sociológica dos diversos organismos federais,
o que se explica principalmente pelos cortes orçamentários e pelos
desmembramentos administrativos que acarretaram a estagnação de
certos serviços (RIOS, 1979, p. 95).

Ao mesmo tempo, verifica‑se um deslocamento de interesses nos estudos sobre a Igreja e a família,
bem como os de níveis e padrões de vida para preocupações com a organização social rural, sobretudo
a comunidade de vizinhança, população, estratificação social, relações entre o homem e a terra,
participação social e mudança social (RIOS, 1979, p. 93).

Seguindo a explanação de Rios (1979), há “novos campos de estudo que se abrem depois da Segunda
Guerra”, como aqueles ligados

a aspectos de saúde e serviços médicos, difusão de técnicas agrícolas,


envelhecimento e aposentadoria, suburbanização e a sociedade rural em
outros países. Outro foco de interesses passou a ser a natureza dos processos
sociais de comunicação, filão, que segundo tudo indica, continuará a ser
21
Unidade I

explorado. O crescimento e expansão das cidades e a invasão de áreas


agrícolas, criando problemas de suburbanização, vêm, do mesmo modo,
atraindo cada vez mais a atenção dos sociólogos, principalmente no que
diz respeito a formas rurais e urbanas de povoamento que, ao que parece,
deverão predominar no futuro (p. 95‑96).

Segundo Rios (1979), é preciso que os grandes mestres da sociologia rural ofereçam novas sínteses
da realidade mutável. O autor passa a analisar a sociologia rural europeia da seguinte maneira:

Ao contrário da americana, a sociologia rural europeia procurou fugir


a fatalidade de tornar‑se uma mera sociologia da agricultura. Para isso,
diversos fatores contribuíram, a começar pelo próprio cenário rural europeu,
de passado secular, constituído de civilizações superpostas e de uma rica
arqueologia. Essa dimensão histórica é fundamental na compreensão da
maneira europeia de tratar a disciplina. Além disso, a Europa contava há
séculos com um tipo de povoamento concentrado, a aldeia, inexistente
na América, fora dos agrupamentos indígenas e onde, apesar de sua breve
aparição em certa fase da história colonial, não prevaleceu. Inexistente
na América portuguesa e espanhola, marca a forma da comunidade rural
europeia, dando‑lhe características intransferíveis para o Novo Mundo (RIOS,
1979, p. 96).

Rios (1979) pensa que, talvez motivados por essa singularidade, os sociólogos europeus integraram
a vida rural à sociedade mais ampla, além de promover visões interdisciplinares em conjunto com “a
economia agrária, o direito, a geografia, a psicologia, a demografia e a etnologia” (RIOS, 1979, p. 96).
O autor frisa que a citada interdisciplinaridade “é muito importante para a América Latina, onde a
introdução de uma sociologia agrícola especializada representa uma tentativa artificial e ‘importada’”
(RIOS, 1979, p. 96).

A referida artificialidade da redução do objeto de interesse da sociologia rural às atividades


agrárias, é aqui aludida na linha de raciocínio defendida por Henri Mendras (1969, p. 315‑316 apud
RIOS, 1979), diz:

Se não a limitarmos a uma sociologia agrícola especializada, a sociologia


rural terá de se definir por seu campo de estudo, as sociedades rurais, e
exigirá o concurso de todas as ciências sociais para chegar a uma integração
dos diversos aspectos da vida rural. Nessa perspectiva, ao sociólogo rural
se atribui uma dupla tarefa: de um lado, estudar os aspectos da sociedade
que se prendem a seu trabalho ou suas especialidades, e, por outro lado,
reinterpretar e integrar nesse ponto de vista os dados que lhe fornecem os
pesquisadores das outras disciplinas (RIOS, 1979, p. 96).

Ao que parece, aquilo que se apresenta como preocupação de Mendras já dá indícios da grande
abertura à interdisciplinaridade antevista por Jollivet (1998), como benéfica ou necessária. A indicação de
22
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA

uma dupla tarefa emerge como espécie de mínimo metodológico: a necessária atenção do pesquisador
ao plano de seu interesse imediato e à integração com os contextos pertinentes.

Rios (1979) tenta estabelecer as fronteiras entre o modo estadunidense e o europeu de trabalhar
sociologia rural, e ao analisar a produção de ambos como se fossem duas escolas homogêneas, divisa
aspectos essenciais de ambas as produções: atribui à sociologia estadunidense características de pesquisa
de fronteira do conhecimento (vertente normalmente associada à instrumentalização da história pela
premência da tecnologia), enquanto caberia aos europeus certa tradição em estudos monográficos,
com principado de estudos históricos. Tal constatação é verdadeira para as demais ciências sociais,
principalmente na França.

Rios (1979) oferece uma lista de temas da década de 1970, que é de onde ele fala:

Atualmente a sociologia rural europeia parece voltar‑se para os problemas do


desenvolvimento. Seus temas habituais são 1) as atitudes e comportamentos
face ao progresso, isto é, resistências culturais psicossociais e socioeconômicas,
motivações etc.; 2) as relações comunitárias de vizinhança, solidariedade e
cooperação, num contexto de estratificação social, abrangendo as mudanças
ocorridas na interação e desencadeadas pelos sistemas de modernização,
mobilidade socioprofissional e geográfica das populações rurais, intensificada
pela adoção de novas tecnologias e pelas relações entre a cidade e o campo,
bem como entre a agricultura e outras atividades econômicas; 3) o
associativismo no meio rural, tanto de caráter profissional, cultural, recreativo
como os movimentos de juventude; 4) os métodos e técnicas de divulgação na
agricultura, encarados sob o aspecto da integração das atividades econômicas
e das estruturas de produção e comercialização na lavoura; 5) a difusão
de inovações, novas técnicas e novos conhecimentos; 6) a sociopedagogia
da promoção rural, setor que também no Brasil, por necessidades próprias
e também por influência francesa, teve grande expansão no começo da
década de 60, quando foi encarado como necessária à formação de adultos
e à educação de base; e ainda a substituição dos autodidatas na agricultura
por profissionais especializados; 7) as ciências domésticas e a modernização
do habitat rural; 8) os estudos sobre os objetivos do planejamento local e
regional; 9) a influência na vida rural das transformações ocorridas nas zonas
suburbanas, industriais e turísticas; 10) a previdência social na agricultura e
seus efeitos, bem como ação social para a reestruturação das organizações
agrícolas – campo de estudos inexistentes no Brasil, dado o caráter recente
e restrito da previdência social mas que certamente representará importante
filão nas décadas futuras e, finalmente 11) as pesquisas tecno‑econômicas
que levam em conta a participação da estrutura agrícola no quadro geral do
desenvolvimento nacional (RIOS, 1979, p. 100).

Para Rios (1979), haveria dois problemas fundamentais no estabelecimento da sociologia rural: um
deles ligado à própria ideia de ciência, posto que estudos monográficos não se propõem a universalizar
23
Unidade I

seus estudos, instrumentos e conclusões; outro deles relacionado ao questionamento da própria


existência do universo rural; seria uma hipostasia, um objeto extemporâneo? Essa é a tese da urbanização
completa, como veremos mais adiante.

Este é um lugar importante do texto, no que diz respeito ao quadro em que estamos fazendo aparecer
figuras: se expusermos a vertente sob inspiração positivista da sociologia rural, há que complementá‑la
com alguma concepção crítica. Trazemos, com essa finalidade, José de Souza Martins e Margarida Maria
Moura, além de outros pensadores, como Regina Sader e Ariovaldo Umbelino de Oliveira, entre outros.

Ao reunir suas ideias, é preciso esclarecer alguns pontos teóricos importantes, elencados como
questões:

• O que nós vemos quando olhamos relações sociais diversas, em lugares e regiões diversas, é ainda
objeto de muitas discussões acaloradas; afinal, qual é a verdade?
• Se alguns veem camponeses trabalhando onde outros não veem nada ou veem feixes diferentes
de forças se exercendo, como elucidar aquilo que é visto?
• De que são feitas as lentes que nos permitem ver melhor quem trabalha a terra e de que maneira
o fazem; e, ainda, como poli‑las?

2.1 As críticas

A malha ou a trama das peneiras teóricas não são apenas recursos técnicos e neutros, não, pois são
essencialmente políticos. No que tange à verdade do que se declara visível, há debates sobre lentes boas
e ruins, adequadas e inadequadas; sobre peneiras que trazem, ou não, o que de fato existe, isto é, se
servem para algo.

Esse solilóquio quer afirmar o que todo cientista sabe: o quão movediças são a realidade (estudada,
pesquisada) e as imagens que dela fazemos para representá-la; as teorias! Não é por menos que
Adam Smith (em seu arrazoado metódico) afirmava que o principal papel das teorias era apaziguar
(psicologicamente) os investigadores ou estudiosos.

Decerto que em meio a estas questões, sabemos que o quadro será colorido, mas continuará como
esboço, em processo. A angústia de pesquisador não diminui ao assumirmos a precariedade de nossa
apropriação intelectual da realidade nos termos de “ruralidade” e de “urbanidade” (quer sejam precários
linguagens, concepções, instrumentos), procurando relações no mínimo polissêmicas.

O maior problema, encabeçando essa lista, é que estamos vivendo em meio à banalidade de tudo e
ao conhecimento tácito, agora, sem pudores, declarados nas redes. “Banal” porque tudo parece óbvio na
boca de todos; “tácito” porque não há mais dúvidas, apenas certezas. Esse sempre foi o sonho de poder
do empirismo, do positivismo ingênuos, puros. É assim que, para muitos, rural é rural e cidade é cidade,
como sempre foram.

Nunca foi fácil designar aspectos da realidade com nítido delineamento, os contornos sempre foram
sombreados e generalizamos porque é aceitável metodologicamente. O problema é aceitar o genérico e
24
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA

impreciso como verdadeiros, como já apontava Maurice Merleau‑Ponty, como parte de nossos problemas
com a fé perceptiva ou crença no conhecimento tácito, que não requer averiguação.

A sociologia (como de resto, as ciências que se pensam) descobre‑se em fins do século XX, nos limites
das explicações da realidade; tendo que se contentar, como pensamento maduro, com as interpretações
sobre raras constatações por evidências...

Se nas malhas e lentes de Rios (e mais um time imenso de intelectuais) o camponês não aparece,
ele está ao alcance dos olhos de muitos outros respeitáveis intelectuais. No primeiro grupo temos
desde positivistas que não aceitam o possível, somente o provável, até a nata do marxismo (Henri
Lefebvre, entre eles) que acredita na “realização plena da urbanização capitalista”, que se completaria
com a subsunção do modo de vida originário do campo e dos seus habitantes (o modo camponês, por
exemplo), todos rendidos, incorporados pela vida urbana. O camponês e seu trabalho familiar seriam,
quando muito, residuais, vestigiais, a expressão do velho que não se digna a perecer para se tornar outra
coisa, mais moderna!

O que querem ver aqueles se dedicam a olhar para o campo e que olham para as cidades? Essa deve
ser nossa pergunta, antes de saber o que veem!

Do ponto de vista crítico, José de Souza Martins traz sua contribuição sobre o papel não cumprido
da sociologia rural e de seu próprio desencantamento:

A sociologia rural tem um pesado débito para com as populações rurais


de todo o mundo. As gerações vitimadas por uma sociologia a serviço
da difusão de inovações, cuja prioridade era a própria inovação, ainda
estão aí, legando aos filhos que chegam à idade adulta os efeitos de
uma demolição cultural que nem sempre foi substituída por valores
sociais includentes, emancipadores e libertadores: ou legando aos
filhos o débito social do desenraizamento e da migração para as
cidades ou para as vilas pobres próximas das grandes fazendas de onde
saíram, deslocados que foram para cenários de poucas oportunidades
e de nenhuma qualidade de vida.

Porque essa é, certamente, uma preocupação de todos nós, especialmente


de minha geração, gostaria de colocar no centro desta reflexão o tema
do desencontro entre a sociologia rural e as populações rurais a cujo
estudo se dedica. E gostaria de fazê‑lo assinalando que, para a sociologia
rural, as últimas décadas foram décadas de seu próprio desencantamento
(MARTINS, 2001, p. 31).

José de Souza Martins é acompanhado por aquele time de antropólogos (Margarida Maria Moura),
geógrafos (Regina Sader, Ariovaldo Umbelino de Oliveira, Bernardo Mançano Fernandes) e economistas
(José Eli Veiga, Ricardo Abramovay).

25
Unidade I

Saiba mais

Os principais autores da temática camponeses e agricultura familiar são:

MARTINS, J. S. O futuro da Sociologia Rural e sua contribuição para a


qualidade de vida rural. Estudos Avançados, v. 15, n. 43, 2001. Disponível em:
https://bit.ly/3PArNnP. Acesso em: 23 maio 2019.

MOURA, M. M. Invasão, Expulsão e Sucessão: notas sobre três processos


sociais no campo. Anuário antropológico, v. 7, n. 1, 1983. Disponível em:
https://bit.ly/3RMhCia. Acesso em: 23 maio 2019.

MOURA, M. M. Camponeses. 2. ed. São Paulo: Ática, 1986.

MOURA, M. M. Os deserdados da terra. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988.

MOURA, M. M. Os herdeiros da terra. São Paulo: Hucitec, 1978.

José de Souza Martins terá seu trabalho e suas concepções criticados por Bertero (2007), não
quanto ao método, mas quanto ao objeto concebido, percebido. O lugar de observação de Bertero,
também com lentes marxistas, não parece ser o lugar do etnógrafo ou antropólogo, do pesquisador
de campo, cuja realidade lhe chega por todos os poros, a qual se vai tentando compreender enquanto
fluxo dos vividos.

Mas Martins apontará a modernização justamente como motor da desorganização camponesa, da


desestruturação das sociedades não assalariadas, não incorporadas ao mercado de trabalho capitalista.

Por muito tempo e para muitos, a sociologia rural foi mais uma sociologia da
ocupação agrícola e da produtividade do que uma sociologia propriamente
rural. Mais uma sociologia das perturbações do agrícola pelo rural do que
uma sociologia de um modo de ser e de um modo de viver mediados por uma
maneira singular de inserção nos processos sociais e no processo histórico.
Não raro, o mundo rural tornou‑se objeto de estudo e de interesse dos
sociólogos rurais pelo “lado negativo”, por aquilo que parecia incongruente
com as fantasias da modernidade. Não por aquilo que as populações rurais
eram e sim pelo que os sociólogos gostariam que elas fossem.

Quando assumiu o mundo rural como objeto, a sociologia rural o fez


mais como “adversária” do que como ciência isenta e neutra. Mais como
ciência da modernização do que como ciência aberta à compreensão dos
efeitos destrutivos e perversos que não raro a modernização acarreta.
A modernização é um valor dos sociólogos rurais e não necessariamente das

26
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA

populações rurais, porque, de fato, para estas não raro ela tem representado
desemprego, desenraizamento, desagregação da família e da comunidade,
dor e sofrimento (MARTINS, 2001).

O material trazido pelos pesquisadores de campo, que fizeram ou ainda fazem trabalho de campo, é
para nós o de maior valor, pois traz gente viva, que fala sobre o modo como vive, requerendo interpretação.

Observação

A ideia da fusão da socioantropologia confirma essa necessária parceria,


conforme podermos ver nos trabalhos de Antonio Candido.

Além dos questionamentos básicos que são feitos sobre a existência desse camponês e se a
modernização expropriou ou expropria o camponês, Jollivet (1998) encaminha sua reflexão por meio de
três referências básicas:

• A sociologia rural é uma aplicação da sociologia geral?

• Sociologia rural e ciências sociais da ruralidade supõem uma escola ruralista?

• Quais seriam as demarcações, as delimitações da sociologia rural e da sociedade? O que estaria


dentro e o que estaria fora?

O ponto mais relevante de seu trabalho é a conclamação à interdisciplinaridade.

Assim como caminhamos um pouco sobre o pensamento clássico ou classificatório sobre o corpo
teórico da sociologia rural e seu objeto de estudo; passaremos agora por preocupações semelhantes
sobre a sociologia urbana e seu objeto, as cidades, o espaço urbano e a urbanização.

3 SOCIOLOGIA URBANA: DE LOCALIZAÇÕES INCONTESTES À UBIQUIDADE

Se antes rural e urbano apareciam de modo nítido, com seus conteúdos, limites e fronteiras, tornaram‑se
objeto de disputas intermináveis já há algum tempo (a globalização do capital, dos anos 1970 para cá,
acentuou tais dificuldades classificatórias), passando a haver muita controvérsia entre os estudiosos e
pesquisadores do fenômeno urbano, de historiadores a geógrafos, politólogos, antropólogos e urbanistas.

Começaremos por aqueles que têm visão clara do objeto, passando para a conturbada
contemporaneidade. Faremos o mesmo painel para a sociologia urbana, trazendo‑a como objeto de
estudo e pesquisa nítido, plenamente visível e previsível, bem ao gosto dos modelos positivistas e
afins, assim como traremos a cidade e o espaço urbano como incerteza, como voláteis, de contornos
borrados e conteúdos que estão além da captação científica, sem as lentes da arte, as malhas da
reflexão de uma ciência mais comprometida com os erros e as dúvidas, como ensinava Descartes.

27
Unidade I

Sociologia urbana convencional, de Durkheim, Weber e Park e Wirth, da Escola de Chicago.


Apresentaremos essas visões da cidade e do urbano, generalizando suas semelhanças como vertente
convencional que, embora ofereça valiosas descobertas e concepções, chega até nós mais com seus
limites explicativos do que com sua heurística.

Apoiemo‑nos na obra Sociologia urbana, de Ângelo Silva (2009), para trazer os clássicos do
pensamento sociológico sobre a cidade. Faremos algumas considerações simplificadas dos autores
clássicos da disciplina conforme o manual de Ângelo.

Georg Simmel, sociólogo de grande interesse, trata da afetação mental das pessoas pelas metrópoles
(SILVA, 2009). Procura as soluções individuais entre a normalização, normatização e desejo de liberdade.
Preocupa‑se com as tensões, os desgastes das relações indivíduo‑sociedade

O que importa ao autor é destacar que o deslocamento do foco do pequeno


círculo para a incomensurável medida da grande cidade produz no indivíduo
uma espécie de amortecimento dos sentidos. Essa paralisia das capacidades
afetivas e a amplificação da racionalidade se mostram tanto no perfil
psicológico dos habitantes da metrópole quanto nas próprias formas de
vida desse espaço urbano. Um elemento articulador desse universo, segundo
Simmel, é o dinheiro (SILVA, 2009, p.48).

Georg Simmel relaciona liberdade individual, limites da cidade e população, categorias que estão na
base da vida urbana:

A característica mais significativa da metrópole é essa extensão funcional


para além de suas fronteiras físicas. Essa eficácia reage por seu turno e dá
peso, importância e responsabilidade à vida metropolitana. O homem não
termina com os limites de seu corpo ou a área que compreende sua atividade
imediata. O âmbito da pessoa é antes constituído pela soma de efeitos que
emana dela temporal e espacialmente. Da mesma maneira, uma cidade
consiste em seus efeitos totais, que se estendem para além de seus limites
imediatos. […] O ponto essencial é que a particularidade e incomparabilidade
que, em última análise, todo ser humano possui, sejam de alguma forma
expressas na elaboração de um modo de vida. O fato de estarmos seguindo
as leis de nossa própria natureza – e isto, afinal, é liberdade – só se torna
óbvio e convincente para nós mesmos e para os outros se as expressões
dessa natureza diferirem das expressões de outras. Apenas nosso caráter
inconfundível pode provar que nosso modo de vida não foi imposto por
outros (SIMMEL, 1973 apud SILVA, 2009, p. 49‑50).

Simmel toca nos pontos mais importantes das teorias dos conhecimentos, quais sejam, a tensão
constante entre a aceitação da complexidade (por vezes idiografia) e a nossa busca redutora por padrões
e regularidades (questão comumente envolta na quase mística singularidade (difíceis reflexões sobre
identidade individuais e coletivas) em face da experiência da teia da vida, na qual estaríamos indivisos);
28
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA

evoca a intersubjetividade e intermaterialidade das relações socioambientais, posto que estabeleçamos


redes e territórios ao agir nos espaços geográfico e social.

Toca no ponto nodal da sociedade capitalista do apego à propriedade (filosofia ou doutrina do ter,
do apego ao consumo e à propriedade dos bens):

Porém, uma série de mecanismos se articula para promover esse movimento


de recuperação. Por isso, o outro lado dessa mesma história é o fato de que
os indivíduos pautados pelo dinheiro, pela racionalidade, pela supressão do
contato afetivo com os outros e pela expansão do sentimento de liberdade
para o interior do próprio indivíduo estabelecem uma relação com as coisas
e não com o espírito. É construída, assim, uma alavanca para a autoestima
que se apoia na materialidade e não na afetividade. O indivíduo é o que ele
tem e não outra coisa qualquer que incorpore valores, personalidade etc.
Caminhamos para o mundo das aparências, da substituição do eu sou pelo
eu tenho (SILVA, 2009, p. 51).

Para que o habitante da grande metrópole consiga construir sua própria identidade ele necessita ver
e ser visto (SILVA, 2009, p. 52).

Muito oportuna é a conclusão de Simmel sobre a conduta necessária em tempos de hiperexposição


e hiperinformação, isto é, estamos mais para montes de dados em tráfego de informações quebradas,
defeituosas, sem efetivação de comunicação superior (diálogo), cujas consequências são uma espécie de
descomprometimento com as consequências das mensagens e atos, algo como uma leviandade coletiva.
Muitas pessoas expressam opiniões sem saber que as experiências, suas, na melhor das hipóteses, é que
falam por si. O inconsciente freudiano.

A metrópole se revela como uma daquelas grandes formações históricas


em que correntes opostas que encerram a vida se desdobram, bem como
se juntam às outras […]. Entretanto, neste processo, as correntes da vida,
quer seus fenômenos individuais nos toquem de forma simpática, quer
de forma antipática, transcendem inteiramente a esfera para a qual é
adequada a atitude de juiz. Uma vez que tais forças da vida se estenderam
para o interior das raízes e para o cume do todo da vida histórica a que
nós, em nossa efêmera existência, como uma célula, só pertencemos como
uma parte, não nos cabe acusar ou perdoar, senão compreender (SIMMEL,
1973 apud SILVA, 2009, p. 52).

Simmel nos deixa muitas questões; seu encaminhamento é aberto, portanto contribui, essencialmente,
para a reflexão!

Em primeiro lugar, temos uma aproximação intensa entre o pesquisador e


sua pesquisa. Nas palavras de Waizbort, podemos dizer que “para Simmel,
filosofia significa sempre abordar o campo de forças que se estabelece
29
Unidade I

entre sujeito e objeto” (WAIZBORT, 2000 apud SILVA, 2009, p. 52). Essa
relação sujeito/objeto pode ser compreendida, também, como uma relação
entre sujeitos e objetos sob o olhar do pesquisador. Para Simmel, muitas
vezes, a sutileza diz mais do que o explícito.

O segundo aspecto a ser destacado é que esse autor nos coloca diante de
questões e de respostas com uma naturalidade muito grande. Em várias
oportunidades temos a sensação de que chegaríamos àquelas conclusões
naturalmente, sem a ‘ajuda’ da leitura do texto. Em outros momentos
notamos certa lentidão do nosso raciocínio para acompanhá‑lo.

Mas não há dúvidas de que os conceitos de racionalização e calculabilidade


da vida, de autoproteção e de atitude blasé, bem como autoafirmação e
reconhecimento, apesar de facilmente encontrados em nossa vida cotidiana
adquirem outro aspecto a partir da forma como são utilizados por Simmel.
No final da história acabamos por olhar para nós mesmos, e também para
a cidade de outra maneira. Como se nós estivéssemos vagando pelas ruas e
identificando aqueles fenômenos, posturas individuais, sensações e, por que
não, cheiros das grandes metrópoles (SILVA, 2009, p. 52).

As cidades seriam tipos mistos e requereriam concepção interdisciplinar para reconhecê‑las como
conjunto de geografias complexas.

Vemos que existem diferentes origens e formas assumidas pelas cidades.


Essas diferenças articulam‑se no decorrer da história do lugar e fazem com
que a definição dessas “instituições” agregue diferentes elementos. Podemos
alinhar enfim, uma primeira definição para o nosso tema: Apenas cabe dizer
que as cidades representam, quase sempre, tipos mistos e que, portanto,
não podem ser classificadas em cada caso senão tendo‑se em conta seus
componentes predominantes. Neste caso, um dos elementos que se destaca
do conjunto para a apreciação da cidade é o econômico (WEBER, 1973 apud
SILVA, 2009, p. 60).

Tratemos um pouco da Escola de Chicago, que é muito importante, por suas forças e por
suas fragilidades.

Devemos valorizar tanto a pesquisa quanto o exercício prático das disciplinas; assim, sociologia deve
ser praticada, em âmbito acadêmico de experimentação e provas, além de sua expressão pública, que se
estende desde as concepções até as aplicações dos conceitos e de seus resultados na vida das pessoas.
A política deve chegar às raízes das iniciativas de políticas públicas. As experiências universitárias
são, a um só tempo, ricas de possibilidades e restritivas como bitolas, gabaritos, diretivas por meio de
regras e conceitos ordenadores da realidade. Assim, a ordem de nosso texto deverá ser prescrita pelas
aproximações ontológicas, alimentada pelo real circundante, que nos conduz imediata e diretamente às
próprias coisas.
30
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA

Passemos às bases sociológicas da análise do rural e do urbano, por Marcella Delle Donne, para
contextualizar essa espécie de estudo e, assim, prosseguirmos em nosso percurso por esses lugares.

Na figura a seguir, há um exemplo de visão geométrica, matemática e evolucionista (ecologia


e biologia), como concepções de fundo teórico para os modelos: vemos as áreas naturais de Park e
de Burgess.

No que diz respeito ao nascimento da sociologia urbana, Donne (1983) afirma a importância dos
Estados Unidos como modelo, seguido, aprimorado ou mesmo negado.

Segundo Eufrásio (1995), o desenvolvimento da sociologia nos Estados Unidos da América pode ser
dividido em cinco fases: surgimento, difusão, consolidação, funcionalista e diversificação:

• Surgimento: durante as duas últimas décadas do século XIX, introduziram‑se cursos de sociologia
em diversas universidades.

• Difusão: entre 1900 e 1920, a sociologia se difundiu entre as universidades e faculdades dirigidas
às humanidades e às letras e, em 1905, foi criada a American Sociological Society.

• Consolidação: entre 1920 e 1935, foram criadas linhas originais de trabalho nos mais importantes
centros de ensino e pesquisa de sociologia no país, que se firmaram em tradições próprias, e
paralelamente à ampliação do ensino de graduação e de pós‑graduação. Multiplicaram‑se as
revistas especializadas e os contatos internacionais, ocorreu o desenvolvimento de subdisciplinas
especializadas e a formação de equipes de pesquisa. Nesse período, predominou a orientação
que se desenvolveu em Chicago, caracterizada por uma ecologia humana e uma psicologia
social, ambas sociológicas e, secundariamente, a orientação surgida em Colúmbia, na década
de 1930. Pelo prestígio e pela importância que ganhou dentro e fora dos círculos acadêmicos,
a sociologia tornou‑se conhecida como “a ciência americana”, difundindo‑se e influenciando a
de outros países.

• Funcionalismo: período de maior diversificação inicial, mas no qual acabaria por vir a exercer
a influência mais importante, o funcionalismo de Harvard, secundado pelo interacionismo
simbólico, surgido em parte em Chicago. Na década de 1960, emergiu o movimento da chamada
“sociologia crítica”.

• Diversificação: etapa de grande diversidade de orientações teórico‑metodológicas e na qual se


consolida a proeminência internacional da sociologia americana.

A figura a seguir exemplifica boa parte desse desenvolvimento numa aplicação de Burgess, notável
da Escola de Chicago.

31
Unidade I

Área urbana

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Hab otéis re
H

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Má vida
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L II
Zona de III
Ghettos I transição Zona de
Deutschland Centro habitações
operárias

CHINA BAS-FONDS
TOWN
VIZIO
Casas com
apartamentos
Black belt

IV
Zona residencial
Hotéis iais
nc

Área dos locais


reside

nocturnos V
Zona dos
Bairros altos trabalhadores
pendulares
Área dos Bungalow

Figura 3 – Modelo de desenvolvimento da cidade elaborado por Burgess

Fonte: Donne (1983, p. 34).

Na figura anterior, temos o modelo de organização das cidades, de Burgess, segundo o qual estas
se desenvolvem por círculos concêntricos, muito presentes no imaginário urbanístico de sociólogos,
arquitetos e de geógrafos ao pensarem a cidade. Burgess é expoente da Escola de Chicago e assim se
expressa sobre a realidade urbana estudada.

Na expansão da cidade, verifica‑se frequentemente um processo de


distribuição que faz a triagem, classifica e ordena indivíduos e os grupos
de acordo com a residência e a ocupação. A diferenciação em áreas
cosmopolitas da cidade americana que daí resulta segue tipicamente um
único modelo, e apresenta apenas modificações de interesse menor. No
bairro comercial central ou numa rua adjacente, encontramos o “coração”
da hobohemia; a fervilhante Rialto dos nômadas do Middle West. […]. Na
zona deteriorada que circunda o bairro comercial, encontram‑se sempre os
bas fonds e as chamadas ”terras áridas” com as suas miseráveis regiões de
pobreza, degradação e doença, e com os delitos e os vícios da má vida. Na
área deteriorada, existem os bairros com quartos de aluguel, o purgatório
das “almas perdidas” (DONNE, 1983, p. 34).
32
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA

Saiba mais

A seguir, estão disponibilizadas leituras sobre a questão urbana, desde


aquelas positivistas ou funcionalistas às mais críticas e interdisciplinares.

Teoria crítica:

GOTTDIENER, M. A produção social do espaço urbano. São Paulo: Edusp, 1993.

Panorama geral de escolas, autores e textos sobre o urbano:

DONNE, M. D. Teorias sobre a cidade. Lisboa: Edições 70, 1983.

Leitura especificamente acerca da Escola de Chicago:

EUFRASIO, M. A. Estrutura urbana e ecologia humana: a Escola


Sociológica de Chicago (1915‑1940). São Paulo: Editora 34, 1999.

Lugar, território, paisagem e região constituída e instituída serão considerados na argumentação,


pois todos os acontecimentos e processos socioespaciais permeiam categorias morfológicas e, portanto,
ordenam‑se e localizam‑se; requerendo aportes geográficos à reflexão.

Saiba mais

Recomendamos para a continuidade desse debate, os textos de


David Harvey:

HARVEY, D. Ciudades rebeldes: del derecho de la ciudad a la revolución


urbana. Espanã: Ediciones Aka, 2013.

HARVEY, D. O direito à cidade. Tradução de Jair Pinheiro. Lutas Sociais.


São Paulo, n. 29, p. 73–89, jul./dez. 2012a.

Lembrete

Cidade e campo emergem nos estudos como síntese interdisciplinar


entre a sociologia, a antropologia, a geografia, a economia, a ecologia e a
biologia, a administração e as engenharias politécnicas.

33
Unidade I

Passemos a Robert Park, que coteja as formas físicas da cidade às condutas morais dos habitantes, o
que torna seu trabalho de grande interesse, apesar de esvaziar o valor dos sentimentos e das emoções
como motivadores das ações, embora sejam cofundantes da personalidade e do comportamento humanos,
reconhecer tal dimensão inviabilizaria a reflexão e o planejamento da ação racional (SILVA, 2009, p. 70).

Park desenvolve o conceito de regiões morais, conectada a regras e costumes, papéis e status quo.
Louis Wirth faz grandes esforços para colocar‑se no cenário acadêmico dos estudos urbanos, e embora
tenha pouco cuidado com os conceitos de urbanismo e urbanização, utiliza muito os termos; assim,
urbanismo parece ser uma urbanologia. Contudo, traz questões importantes, como as necessárias
camadas de códigos e máscaras para as interações sociais.

Raciocina por quantidades (que levariam a novas qualidades). Na verdade, parece confundir política
com burocracia, aproximando‑as, perigosamente; vê qualidade política onde as massas provocam
mediações normativas ou organizações burocráticas.

Para Wirth, tanto o tamanho como a densidade devem ser encarados como
relativos ao contexto cultural geral no qual as cidades surgem e existem, e somente
são sociologicamente relevantes até o ponto em que operam como fatores
condicionantes da vida social. O mesmo se aplica à profissão dos habitantes, às
instalações, instituições e formas de organização política (SILVA, 2009, p. 80).

Faz apologia do gigantismo e da diversificação das grandes cidades, tomadas por ele como âmbito
de promessas não cumpridas, a serem cumpridas; seu maior trunfo seria igualmente sua ruína, pois
ao tornar‑se lugar de excedentes progressivos, as cidades mal conseguem se alimentar como sistema;
também como sistema não dão conta de se manterem limpas, alocarem e reutilizarem os recursos (e seus
produtos) que importam.

Park incorpora boa parte dos ensinamentos de Weber e Simmel quanto aos problemas de degradação
do conhecimento interpessoal da aglomeração (perda das relações de vizinhança). De Simmel, o autor
traz as considerações de superestimulação das emoções e dos sentidos. Além de considerar a noção de
atitude blasé do homem metropolitano, teorizada por Simmel:

A reserva, a indiferença e o ar blasé que os habitantes urbanos manifestam


em suas relações são Instrumentos para se imunizarem contra exigências
pessoais e expectativas dos outros. O superficialismo, o anonimato, e
o caráter transitório das relações urbano‑sociais explicam, também, a
sofisticação e a racionalidade geralmente atribuídas ao habitante da
cidade. Nossos conhecidos têm a tendência de manter uma relação de
utilidade para nós, no sentido de que o papel que cada um desempenha em
nossa vida é sobejamente encarado como um meio para alcançar os fins
desejados. Embora, portanto, o Indivíduo ganhe, por um lado, certo grau
de emancipação ou liberdade de controles pessoais e emocionais de grupos
íntimos, perde, por outro lado, a espontânea autoexpressão, a moral, e o
senso de participação, implícitos na vida numa sociedade integrada. Isso
34
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA

constitui essencialmente o estado de anomia ou de vazio social a que se


refere Durkheim ao tentar explicar as várias formas de desorganização em
sociedade tecnológica (WIRTH, 1979 apud SILVA, p. 83‑86).

Quanto aos nós das polêmicas relações urbano‑rurais, sai do lugar‑comum de negá‑las, enfocando
sua interpenetração.

Percebe a invasão dos valores de mercado nas atividades sociais diversas:

Wirth identifica a transferência de funções históricas da família para outras


instituições fora do lar, o que significaria a ampliação da importância da
esfera pública na vida individual. Em contrapartida, percebe o predomínio
da família nuclear sobre o grupo de parentesco, o que reflete a ênfase no
indivíduo e maior divergência vocacional, religiosa, educacional, recreativa
e política no fenômeno urbano.

A economia de subsistência é desencorajada, e consequentemente, o custo


de vida torna‑se mais alto, as necessidades humanas passam a ser satisfeitas
necessariamente através do mecanismo de compra e o lazer surge como
forma de escapar do tédio e da rotina (SILVA, 2009, p. 86).

Assim, reconhece boa parte do esgarçamento do tecido social, pois a cidade explode, se
estilhaça, desafia:

Somente na medida em que o sociólogo tiver uma compreensão clara do


que seja a cidade como entidade social e possuir uma teoria razoável sobre
urbanismo, poderá ele desenvolver um corpo unificado de conhecimentos,
pois aquilo que passa por sociologia urbana certamente não o é atualmente.
Se se tomar como ponto de partida uma teoria sobre urbanismo […] a ser
elaborada, testada e revista à luz de mais análises e pesquisa empírica,
pode se esperar que seja determinado o critério de relevância e validade de
dados concretos. Esse sortimento heterogêneo de informações separadas
que foram incorporadas em tratados de Sociologia sobre a cidade poderá,
assim, ser filtrado e incorporado num corpo coerente de conhecimentos. A
propósito, somente por meio de uma teoria desse tipo, o sociólogo escapará
da fútil prática de enunciar em nome da ciência sociológica, uma variedade
de julgamentos, às vezes insuscitáveis, relativos a problemas tais como
pobreza, habitação, planejamento urbano, higiene, administração municipal,
policiamento, mercadologia, transporte e outros itens técnicos. Embora o
sociólogo não possa solucionar qualquer desses problemas práticos – pelo
menos não por si só – ele poderá, se descobrir sua função apropriada,
contribuir para a sua compreensão e solução. As perspectivas de fazê‑lo
são mais claras através de uma abordagem geral, teórica, do que por uma
abordagem ad hoc (WIRTH, 1979, p. 112 apud SILVA, 2009, p. 83‑86).
35
Unidade I

3.1 Movimento crítico

Complexidade assumida, mas não liquidada, posto que acabamos por amparar a análise nas ciências
ou nos saberes parcelares. Como superar, de fato, o perfil analítico que só sabe fragmentar? Muitas
construções teóricas puseram‑se à obra para resolver tal problema: desde a teoria crítica de Karl Marx
(David Harvey, Henri Lefebvre), até a fenomenologia (Maurice Merleau‑Ponty) e o niilismo nietzschiano.

Na esteira de Karl Marx, Paul Singer, fazendo uma economia política da cidade, e Henri Lefebvre,
refletindo sobre a produção e reprodução social do espaço, corroboram em suas análises o fim do
camponês, ou ao menos do rural agrícola. Nessa vertente de interpretações sobre o espaço urbano e a
cidade, a urbanização (como conjunto contraditório de projetos sociais diversos) se alastra, incorpora e
remodela todos os lugares segundo as formas e as medidas típicas das cidades; trata‑se do que chamam
de urbanização completa.

Como ficariam as relações dialéticas, dialógicas entre os modos de vida urbanos e rurais? Para Henri
Lefebvre não teria lugar uma ciência da cidade (sociologia urbana, economia urbana etc.), mas sim um
conhecimento em fase de elaboração do processo global, bem como de seu limite (objetivo e sentido).
Queremos dizer com isso que o autor posiciona‑se contra a denominação de sociologia urbana por
entender que não é possível uma ciência (sociologia) da cidade (urbana). Para ele O urbano não se
definiria como realidade consumada (embora incorporasse o campo), situada no tempo como reflexo
da realidade atual, mas pelo contrário, como horizonte e como virtualidade classificadora. Trata‑se do
possível, definido por uma direção que, ao término do trajeto, se chega até ele. Henri Lefebvre concebe
tal horizonte de possiblidades como projeto social.

Na discussão presente em A Revolução Urbana Lefebvre parte de uma


hipótese norteadora – a de que a urbanização completa da sociedade leva
à sociedade urbana e que esta sociedade urbana é uma virtualidade hoje.
Com essa hipótese propõe um rompimento das ambiguidades no estudo do
urbano, nos quais se colocava, sob um mesmo nome, tipos muito diferentes
de cidades.

Segundo ele, a categoria sociedade urbana é aplicada à sociedade que surge


com a industrialização, isto é, caracterizada por um processo de dominação
e assimilação da produção agrária. E concebida como culminação de um
processo em que, através de transformações descontínuas – ou seja, com
intervalos de tempo –, as antigas formas urbanas detonam [explodem]. Dito
de outra forma, para Lefebvre, a sociedade urbana só pode ser concebida ao
final de um processo, no curso do qual explodem as antigas formas urbanas,
herdadas de transformações descontínuas.

Concebe a sociedade pós‑industrial como aquela que nasce da industrialização e


a sucede. Pode ser conceituada como sociedade urbana que se refere mais
que a uma realidade palpável, a uma tendência, uma orientação e a uma
virtualidade (SILVA, 2009, p. 109).
36
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA

Manuel Castells define espaço urbano como “certa parte da força de trabalho, por um mercado de
emprego e por uma unidade relativa do seu cotidiano, ou seja, o urbano é a conotação do processo
de reprodução da força de trabalho” (apud SILVA, 2009, p. 122). Para ele, o avanço capitalista produziria
sociedades e a estruturação do espaço está fundada na “reprodução simples e ampliada da força de
trabalho”; e aponta que “o conjunto das práticas ditas urbanas conotam a articulação do processo
ao conjunto da estrutura social”, e no que concerne ao nosso enfoque dos estatutos, das expressões
históricas do campo e da cidade, Castells

dirá ser possível analisar a cidade, não como uma variável independente
como fizeram na Escola de Chicago, mas como resultante das relações entre
os elementos da estrutura social. Assim, o urbano conota uma unidade definida,
seja na instância ideológica, seja na jurídico‑político, seja na econômica.

Sua obra se centra na revisão da produção acadêmica sobre o tema e,


sinteticamente ele distingue dois sentidos, extremamente distintos, do
termo urbanização: concentração espacial de uma população, a partir de
certos limites de dimensão e densidade e; difusão do sistema de valores,
atitudes e comportamentos denominados “cultura urbana” (CASTELLS, 1983
apud SILVA, 2009, p. 122).

Precisamos de alguns critérios que acompanhem as transformações sociais em todas as dimensões;


critérios fundamentais na definição e no estabelecimento da cidade como expressão material urbana.
Aos critérios devem ser alinhados instrumentos tanto diacrônicos (modernização do espaço rural, do
campo) quanto sincrônicos (diferenciação de áreas), que prosseguirão no caminho deste livro‑texto; agora
nas órbitas disciplinares e os contatos interdisciplinares a partir do conhecimento sociológico. Seja com a
ajuda da história ou da geografia, especificamente na seara sociológica, encontramos frentes específicas de
sociabilidade, normatização, relações institucionais, comportamento, posição e mobilidade social.

Observação

O termo urbano refere‑se, de modo bem simplificado, à aglomeração de


coisas, pessoas e modos de vida correspondentes; bem como à qualificação
política, econômica e cultural da cidade.

Alguns autores, de maneiras diferentes, buscam a superação das dicotomias entre rural e urbano
que, convencionalmente, aparecem como em terras extremas, antípodas. É o caso de Ray Oldenburg,
Richard Sennett, Olivier Mongin, Peter Hall, James Holston e Marcelo Lopes de Souza.

3.2 Mais questões e conceitos

Sem perdermos de vista o mapa de nosso percurso, estamos situados, com os pés no chão,
perguntando‑nos e aos demais sobre o assunto, sobre o que é vida rural e vida urbana; é preciso dizer
de onde ele vem, como chegou até aqui e de que forma se espera que se comporte.
37
Unidade I

Estimulamos sua percepção – que deve atentar‑se de que uma parte da realidade está sendo
destacada para seus estudos: a sociedade, em sua clássica divisão (social e territorial), em rural e
urbana – e seus questionamentos, para que você se pergunte frequentemente:

• Que tipo de sociologia quero fazer?

• O que vejo?

• De que tenho experiência, exatamente?

• Onde ficam as relações sociais das quais estamos falando?

• Quais são os significados dos modos como os habitantes desse meio se casam, do tipo de música
que ouvem, das festas que frequentam, dos valores locais, dos valores de uso e de troca da terra
e dos imóveis, em geral?

E o mesmo pode ser dito para os hábitos, costumes, comportamentos urbanos, sobre os significados
da velocidade, do valor de uso de troca da terra e dos imóveis, do isolamento, das gangues e guetos, das
áreas de submoradia, entre outras questões.

Portanto, devemos questionar a todo tempo:

• O que é o campo e, por extensão, o rural e o agrário? E o que é a cidade, o urbano?

• Como as pessoas vivem no campo? Podemos chamá‑las de camponesas? São trabalhadoras rurais?
São empregadas? Podemos opô‑las ao homem da cidade, ao homem urbano?

Questões diretas e aparentemente simples. Valorizamos aqui a integração, e não a separação de


categorias e conceitos que, de fato, encontram‑se todos conectados; entretanto, a opção didática em
alguns momentos requer que façamos listas e decomposições para mostrar aspectos da realidade que,
em sua totalidade, não seriam visíveis.

Os conceitos fundamentais do tema são:

• sociedade;

• comunidade;

• Estado;

• urbanização;

• organizações e espaço rural, agrário;

• organizações e espaço urbano e da cidade.

38
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA

A seguir, faremos uma breve apresentação dos conceitos da lista antecedente, bem como das formas
sociais correspondentes.

Por ora, registremos que sociedade é tipo ideal weberiano com vínculos teóricos e concretos dos
mais diversos graus de coesão entre os agentes sociais, e cuja existência se manifesta na trama de ações
das diversas relações que despontam para os próprios agentes que as engendram.

Comunidade baseia‑se em laços e vizinhança; comunidade é “o que essa palavra evoca, é tudo
aquilo de que sentimos falta e de que precisamos para viver seguros e confiantes” (BAUMAN, 2003, p. 9).

O Estado, para Bobbio, era mais fácil de ser definido negativamente (como sociedade política em
oposição à sociedade civil) do que positivamente, isto é, mais fácil afirmar o que ele não é. Haveria,
assim, três variantes principais:

[…] o Estado como negação radical e, portanto, como eliminação e


inversão do estado de natureza, isto é, como renovação ou restauração ab
imis com relação à fase do desenvolvimento humano anterior ao Estado
(modelo Hobbes‑Rousseau); o Estado como conservação‑regulamentação
da sociedade natural e, portanto, não mais como alternativa, porém como
realização verdadeira ou aperfeiçoamento em relação à fase que o precede
(modelo Locke‑Kant); o Estado como conservação e superação da sociedade
pré‑estatal (Hegel), no sentido de que o Estado é um momento novo e não
apenas um aperfeiçoamento (diferentemente do modelo Locke‑Kant), sem,
porém, constituir uma negação absoluta e, portanto, uma alternativa (à
diferença do modelo Hobbes‑Rousseau) (BOBBIO, 1982, p. 20).

Armando Corrêa da Silva (1984) afirma que, para Ratzel, não só a sociedade e o Estado têm uma base
territorial, mas com estes se relacionam. Por isso, diz Ratzel: “A sociedade é o intermediário pelo qual o
Estado se une ao solo. Segue‑se que as relações da sociedade com o solo afetam a natureza do Estado em
qualquer fase do seu desenvolvimento que se considere” (RATZEL, 1983 apud SILVA, 1984, p. 105).

Urbanização é o processo totalizante que molda os espaços, adequando‑os à lógica do sistema


produtivo global (SANTOS, 1999).

As organizações rurais e agrárias englobam tanto os aspectos produtivos quanto os culturais e,


evidentemente, seu arranjo territorial. Procurando “sistematizar a cadeia de relações entre objetos,
atividades, elementos materiais, cristalizações e organizações espaciais específicas, que originam a
global capitalista” (CORRÊA, 2000, p. 52‑53).

As apresentações e as visões das cidades são muitas. Na figura a seguir, temos um quadro de
elementos distribuídos de acordo com a organização territorial do modo de produção capitalista. As
classes sociais, o regime de propriedade e a segregação derivada da concentração de capital e poder são
conceitos destacados dessa visão. Os expoentes dessa tradição, aqui trabalhados, são Karl Marx, Henri
Lefebvre e David Harvey.
39
Unidade I

O positivismo de Émile Durkheim, tanto o linear, o funcional e o orgânico, condicionou a visão


evolucionista do campo à cidade. Também é possível perceber as características do pensamento de Max
Weber: o cultural, o mercado e os motivos das ações sociais.

Nessa tradição cultural, porém com mais elementos do pensamento de Marx, Raymond Williams traz
o campo, a cidade e os fios que os unem e os misturam; muito além dos modelos eficazes até por volta
da década de 1970, como podemos verificar na figura a seguir, de Roberto Lobato Corrêa.

Organização espacial capitalista – um quadro conceitual


Objetivo Atividade Elemento Cristalização Organização espacial
material específica
Indústrias dispersas ou
Fábrica Ponto concentradas
Produção Mina
Campo Área Áreas rurais especializadas

Organização espacial global


Acumulação Terminal Ponto Centros de comunicações
de capital Depósitos
Circulação Canal
Dutos
Rodovias Linha Sistema viário
etc.
Banco
Controle e Escritório Centros administrativos
decisão Escola Centros universitários
Templo Centros religiosos
Quartel Ponto
Localidades centrais
Loja
Reprodução Consumo Hospital
social Cinema
Habitação Área Áreas sociais

Figura 4 – Quadro conceitual representando a organização espacial capitalista

Fonte: Corrêa (2003, p. 58).

Urbano e cidade são, respectivamente, conteúdo (modo de vida urbano) e forma‑cidade (conjunto
das construções, instituições municipais, ela própria, a cidade, conjunto de negócios). A legitimidade da
formação e dos vínculos de vizinhança e compartilhamento dos lugares, fortalecidos no dia a dia, vem,
ao longo das últimas décadas (pós‑anos 1970 com o acirramento da globalização capitalista), cedendo
lugar à crescente institucionalização e mercantilização das relações sociais.

Rural e agrário são, respectivamente, conteúdo (modos de vida) e formas agrárias (expressões
econômicas do trato com a terra, atividades agropecuárias, em geral).

Há um rol de conceitos implicados nessas definições, como:


• Território, propriedade, conflitos, recursos, mobilidade, inviabilidade.
• Imaginário rural, urbano, enraizamento e desenraizamento: mobilidade real e ilusões e
transformações das referências.
40
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA

• As especificidades do espaço rural e suas transformações produtivas, ambientais e culturais: o debate


acadêmico e político entre aqueles que acreditam em permanências de aspectos fundamentais do
modo de vida rural (os adeptos da reforma agrária e da Escola do Rurbano, isto é, formações como
unidade dos modos de vida rural e urbano, por exemplo) e aqueles que acreditam na urbanização
generalizada (de um capitalismo globalizado aniquilador da essência desse estilo de vida; ou seja, o
rural iria, assim, se esvanecendo na medida da modernização dos lugares).

4 RURAL E URBANO PELAS EXPERIÊNCIAS ORIGINAIS

Com a expressão vita ativa, pretendo designar três atividades humanas


fundamentais: labor, trabalho e ação. Trata‑se de atividades fundamentais
porque a cada uma delas corresponde uma das condições básicas mediante
as quais a vida foi dada ao homem na Terra.

O labor é a atividade que corresponde ao processo biológico do corpo


humano, cujos crescimento espontâneo, metabolismo e eventual declínio
têm a ver com as necessidades vitais produzidas e introduzidas pelo labor no
processo da vida. A condição humana do labor é a própria vida.

O trabalho é a atividade correspondente ao artificialismo da existência


humana, existência esta não necessariamente contida no eterno ciclo vital
da espécie, e cuja mortalidade não é compensada por este último. O trabalho
produz um mundo “artificial” de coisas, nitidamente diferente de qualquer
ambiente natural. Dentro de suas fronteiras habita cada vida individual,
embora esse mundo se destine a sobreviver e a transcender todas as vidas
individuais. A condição humana do trabalho é a mundanidade.

A ação, única atividade que se exerce diretamente entre os homens sem


a mediação das coisas ou da matéria, corresponde à condição humana
da pluralidade, ao fato de que homens, e não o Homem, vivem na Terra
e habitam o mundo. Todos os aspectos da condição humana têm alguma
relação com a política; mas esta pluralidade é especificamente a condição
– não apenas a conditio sine qua non, mas a conditio per quam – de toda
vida política. Assim, o idioma dos romanos – talvez o povo mais político que
conhecemos – empregava como sinônimas as expressões “viver” e “estar
entre os homens” (inter homines esse), ou “morrer” e “deixar de estar entre
os homens” (inter homines esse desinere) (ARENDT, 2007, p. 15).

Estamos caminhando e entramos, agora, nos lugares com o objetivo de observar neles a vida
acontecendo; pessoas trabalhando, comendo, dormindo, circulando. Nesse momento, nossa preocupação
é com o que há de primário, quase estritamente orgânico em nossas atividades garantidoras da existência;
ocupamo‑nos com essa ordem de necessidades e impulsos.

41
Unidade I

Vimos grande proveito e aceitamos fazer algumas paradas pela arqueologia, pela história e pela
antropologia (MAZOYER, 2010; PISKY, 2011; HAVILAND, 2011) em busca de relações originárias, assim
como de propostas de pesquisa em etnociências (CARVALHO; BERGAMASCO, 2010), além da menção ao
tema por um economista e ambientalista como José Eli Veiga (2004).

Observação

No fim do paleolítico – idade da pedra lascada –, há 12.000 anos, após


centenas de milhares de anos de evolução biológica e cultural, as sociedades
humanas haviam chegado a fabricar utensílios cada vez mais variados,
aperfeiçoados e especializados, graças aos quais tinham desenvolvido
modos de predação (caça, pesca, coleta) diferenciados, adaptados aos
meios mais diversos. Essa especialização foi acentuada no neolítico – idade
da pedra polida – e foi ao longo desse último período da Pré‑História,
menos de 10.000 anos depois, que várias dessas sociedades, entre as mais
avançadas do momento, iniciaram a transição da predação à agricultura
(MAZOYER, 2010).

Estamos trazendo a associação entre labor e autodeterminação do corpo‑sujeito, que evoca um Eu


difuso, além do cérebro (um Eu do tipo organísmico, que escolhe, de modo quase biológico, no reino do
labor), um Eu cujas ações estão estreitamente vinculadas ao metabolismo, ao movimento independente
do organismo em autorregulação. A ambientação desse labor do corpo processador de recursos está mais
para a Physis grega; agente nas cadeias e ciclos energéticos, com os imperativos de coletar, plantar e criar.

Os impulsos de sobrevivência instauram uma espécie de economia natural: satisfação das necessidades
pelo acesso e, no início, controle mínimo de recursos.

Também é preciso referir o labor impedido, afastado, os obstáculos ao labor; trata‑se do corpo
negado e do labor sem sentido, quando não, impossível, em decorrência da concentração dos meios,
de comer por comer – comer como ato desqualificado pelo deslocamento das comidas originais dos
povos (constituídas ao longo de milhares de anos em conjuntos de culturas e ecologias, que incluem
os corpos). Labor impedido pela fome, inconsciência e distorções nos hábitos alimentares e obesidade.
Autores como Mazoyer (2010, p. 25) falam da gravidade e do paradoxo da desnutrição e/ou subnutrição
no campo, problemas para os quais concorrem práticas culturais “excêntricas”, com perdas inconscientes
e descartes de saberes extrativos, produtivos e alimentares construídos nas relações ambientais.

O labor, reafirmando Hannah Arendt, está nas bases do estabelecimento dos fatos sociais, como
relações campo‑cidade; rural‑urbano. Assim como labor é a motivação de ocupações “originais” ou
vernáculas; territorialização em função dos recursos, com “pouca” margem para manobras, em virtude
de nossa dependência direta das fontes de alimentação ambiental de nosso ecossistema corporal.

Trata‑se de uma dimensão pré‑histórica, velha como o mundo, que vive para a busca de alimentos,
abrigo, fugindo de predadores. E se as conquistas “humanas” da Terra, de boa parte dos processos
42
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA

naturais, data de milhares de anos; boa parte disso tudo expresso nos casos de domesticação ambiental,
principalmente de plantas e animais. Para Jaime Pinsky:

Os animais herdam, individualmente, suas capacidades; cada rato nasce


sabendo roer, cada lhama nasce com seu casaco natural, cada peixe
nasce sabendo procurar seu alimento.

Nenhum homem nasce sabendo construir casas, fabricar armas ou utilizar o


pelo de outro animal. Só com o exemplo dos mais velhos, ou seja, por meio
da aprendizagem, é que ele chega a receber sua herança.

Por isso, especialistas como Gordon Childe costumam dizer que, na história
humana, roupas, ferramentas, armas e tradições tomam o lugar de pelos,
garras, presas e instintos na busca de alimentos e abrigos.

Essa diferença não é apenas quantitativa, mas também qualitativa, já


que estabelece uma distinção, um momento de ruptura entre a História
Natural e a Social, entre a história construída pela natureza e aquela em
que os seres humanos, além de pacientes, são também agentes. Sim, pois
enquanto o ser humano era apenas um dos integrantes do “reino animal”,
sua trajetória no planeta poderia ser contada pela História Natural, com
destaque pouco maior ou menor do que a dos outros animais da Terra.
Mas a partir do momento em que começa a criar cultura, a transmiti‑la
e, depois, a difundi‑la, ele passa a escrever sua própria história, não mais
apenas a da natureza (2011, p. 10‑11).

Por meio da história, o conhecimento sobre o ser humano chega até nós de maneira elaborada,
em formas que reduzem (racionalizam) essa experiência toda em compreensão. Queremos o vivido em
suas manifestações orgânicas, nos planos físico, biológico, procurando as razões culturais. Mais um
acréscimo de J. Pinsky quanto às interpretações acerca do ser humano em sua trajetória existencial, cujo
enunciado costuma se dar nesses termos: de caçador a criador, de coletor a agricultor:

Grupos humanos sofreram essa transformação em momentos diferentes,


com intensidade diversa e em diferentes locais do mundo.

Até pouco tempo, sob a influência do evolucionismo e de um marxismo mal


digerido, acreditava‑se que essas passagens fossem necessárias e positivas,
ou seja, tivessem acontecido em todas as sociedades, melhorando‑as sempre.
Hoje já se discute, em Antropologia, se a felicidade de um grupo depende do
gado confinado e da terra domada. Pensávamos, com alguma ingenuidade,
que o homem deveria ficar mais seguro e tranquilo quando chegasse a ter
uma plantação em sua propriedade, superando sua condição de “selvagem
coletor” que, para sobreviver, tem de sair “procurando” raízes ou frutos. O fato
é que as coisas não se passavam exatamente assim na cabeça do coletor (a
43
Unidade I

quem acabamos atribuindo inseguranças que são nossas e de hoje). Para ele,
raízes e frutas lá estão para serem colhidas e não como um acidente, uma
eventualidade. O domínio que os coletores tinham do seu ambiente lhes dava
um grau de segurança bastante grande para saberem, nas diferentes épocas
do ano, quais os locais que ofereciam determinados alimentos.

Autores como o antropólogo Pierre Clastres chamam a atenção para


mitos que tomaram corpo pela repetição e não pela evidência. Um deles
é o de que, necessariamente, a coleta e a caça seriam atividades primitivas
porque inseguras, enquanto a agricultura e a criação engendrariam forte
sentimento de segurança material. Como todas as falácias, essa é uma meia
verdade, uma vez que a agricultura, como atividade humana na busca de
submeter a natureza, corre riscos naturais como secas, pragas e enchentes.
Por se constituir em riqueza concentrada (muito alimento num só lugar), a
agricultura atraía a cobiça de vizinhos mais preocupados em atividades de
guerra do que em organização agrícola. Já um grupo de coletores, vivendo
em simbiose com a natureza, poderia ter uma certeza até maior de sua
sobrevivência, sem tanto temor das desgraças climáticas ou de grupos
invasores (PINSKY, 2011, p. 43).

Pinsky questiona as visões lineares desse percurso, de cunho positivista, apresentando algo da
complexidade que envolve os temas. E falando da Revolução Agrícola, faz considerações sobre as
dificuldades no estabelecimento das primeiras áreas de cultivo.

Pelos conhecimentos atuais supõe‑se que a primeira atividade agrícola


tenha ocorrido na região de Jericó, num grande oásis junto ao Mar Morto,
há cerca de 10 mil anos. A hipótese que atribuía ao Egito a condição de
berço da agricultura já não tem tantos seguidores. Estabelecer uma certeza
a esse respeito torna‑se difícil. Não há como levantar uma documentação
indiscutível: os trigais desapareceram com o tempo. Só por meio de
comprovações indiretas – ruínas arqueológicas dos silos em que os cereais
eram armazenados – é que se pode tentar datar o início de uma atividade
agrícola sistemática.

De qualquer forma, por meio de difusão ou de movimentos independentes,


supõe‑se que o fenômeno tenha se desenvolvido também na Índia (há 8 mil
anos), na China (7 mil), na Europa (6500), na África Tropical (5 mil) e nas
Américas (4500) (2011, p. 48).

A variedade de cultivares era regional, “com a natural predominância de espécies nativas, como
os cereais (trigo e cevada), o milho, raízes (batata‑doce e mandioca) e o arroz, principalmente”. O ser
humano submeteu espécies, domesticando‑as, “foi aprendendo a selecionar as melhores plantas para a
semeadura e a promover o enxerto de variedades, de modo a produzir grãos maiores e mais nutritivos
do que os selvagens” (PINSKY, 2011, p. 48).
44
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA

Por que se fala em Revolução Agrícola? Porque o impacto da nova atividade


na história do homem foi enorme. E não se trata apenas de questão
acadêmica, mas de algo real e palpável como o próprio número de seres
humanos sobre a face da Terra.

De fato, nos sistemas de caça e coleta estabelece‑se um controle demográfico


resultante da limitação da oferta de alimentos. Pouco alimento, pouca gente.
Não é por não existirem alimentos na natureza, mas porque sua obtenção
torna‑se extremamente mais complicada para grandes grupos (como já
vimos em capítulo anterior).

Além disso, o caçador e o coletor não podem chegar ao extremo de dizimar


suas reservas alimentares (animal ou vegetal) sob pena de prejudicar a
reposição ou reprodução; a técnica de caça, sendo levada para além de
certos limites, pode criar um desequilíbrio ambiental. Nós, “civilizados”,
sabemos disso, pois já conseguimos destruir raças e espécies inteiras de
animais graças a técnicas sofisticadas de caça. Viver em simbiose com a
natureza significa, exatamente, respeitá‑la.

Há outro fator que determinava o controle populacional: em grupos de


caçadores e coletores, crianças pequenas constituem empecilhos tanto
para a fácil locomoção da tribo (que precisa, como já vimos, ter grande
mobilidade) quanto para a própria obtenção do alimento. Elas não podiam
caçar e atrapalhavam as mães nas longas caminhadas que precisavam ser
feitas para a busca de raízes; caminhadas tanto maiores quanto maior
fosse o grupo (pois necessitava de mais alimento) e quanto mais tempo
estivesse o grupo acampado no mesmo local (pois o alimento mais próximo
ia se esgotando) (PINSKY, 2011, p. 48‑49).

Jaime Pinsky segue falando das frentes da coleta, de aprendizado da caça, da agropecuária. Apresenta
conjecturas sobre as descobertas e os manejos acidentais de recursos; “de todo modo, a transformação
da economia coletora em uma economia produtora (mesmo que uma economia simples, de produção
de alimentos) provocará grande transformação no grupo” (PINSKY, 2011, p. 54‑55).

Saiba mais

Recomendamos o livro de Tom Standage, que fala sobre o tema das


áreas originais dos alimentos e sua domesticação.

STANDAGE, T. Uma história comestível da humanidade. Rio de Janeiro:


Zahar, 2010.

45
Unidade I

Seguimos Hannah Arendt em sua elaboração de instrumental conceitual na aproximação dos


espaços estruturados, com formas modeladas pelas mãos que aprendem a satisfazer‑se em diferentes
ambientes, com sentido reflexivo (conferido pelas histórias, narrativas, mitos, lendas) e progressivo
significado histórico, documental (científico). É o caso de Arendt, em A condição humana; Durand, em
A fé do sapateiro; e Sennett, em O artífice; obras em que resgatam a importância da inteligência social
e ancestral das mãos.

Nosso objeto de interesse constitui‑se de modos de vida e atividades específicas sobre aquilo
que se convencionou chamar de campo e de cidade; contudo, aqui é o labor do organismo, diante
de suas necessidades (alimentação, energia; abrigo; sentido e significado). As conjecturas de Hannah
Arendt sobre o labor seguem o esteio linguístico, na qualidade de pista histórica, desembocando em
considerações consistentes:

A distinção que proponho entre labor e trabalho é inusitada. A evidência


fenomenológica a favor dessa distinção é demasiado marcante para
que se ignore; e, no entanto, é historicamente verdadeiro que, à parte
certas observações esporádicas – as quais por sinal nunca chegaram a
ser desenvolvidas nas teorias de seus autores –, quase nada existe para
corroborá‑la na tradição pré‑moderna do pensamento político ou no vasto
corpo das modernas teorias do trabalho. Contra essa carência de provas
históricas, porém, há uma testemunha muito eloquente e obstinada: a
simples circunstância de que todas as línguas europeias, antigas e modernas,
possuem duas palavras de etimologia diferente para designar o que para
nós, hoje, é a mesma atividade, e conservam ambas a despeito do fato de
serem repetidamente usadas como sinônimas (ARENDT, 2007, p. 90).

Hannah Arendt segue indagando sobre as razões históricas da subestima tecendo suas considerações
sobre o labor (lavor; trabalho; faina), as necessidades do corpo exigem o labor (ARENDT, 2007).
A autora evoca o percurso etimológico dos termos, demonstrando que as atividades rurais ou laborais
se organizam e se denominam em torno do significado de labor:

Assim, a língua grega diferencia entre ponein e ergazesthai, o latim entre


laborare e facere ou fabricari. que têm a mesma raiz etimológica; o francês,
entre travailler e ouvrer, o alemão entre arbeiten e werken. Em todos estes
casos, só os equivalentes de “labor” têm conotação de dor e atribulação. O
alemão Arbeit aplicava‑se originariamente ao trabalho agrícola executado
por servos, e não ao trabalho do artífice, que era chamado Werk. O francês
travailler substituiu a outra palavra mais antiga, labourer. e vem de tripalium,
que era uma espécie de tortura (ARENDT, 2007, p. 90).

Hannah Arendt persiste na inquirição dos porquês do discurso (e a prática) ter secundado o homo
laborans e adotado na plenitude o de homo faber (ou artífice, que será explorado por Richard Sennett
em livro homônimo):

46
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA

O motivo pelo qual esta distinção permaneceu ignorada e sua importância


nunca foi examinada nos tempos antigos parece‑nos bastante óbvio. O
desprezo pelo labor, originalmente resultante da acirrada luta do homem
contra a necessidade e de uma impaciência não menos forte em relação
a todo esforço que não deixasse qualquer vestígio, qualquer monumento,
qualquer grande obra digna de ser lembrada, generalizou‑se ã medida em
que as exigências da vida na polis consumiam cada vez mais o tempo dos
cidadãos e com a ênfase em sua abstenção (skhole) de qualquer atividade
que não fosse política, até estender‑se a tudo quanto exigisse esforço
(ARENDT, 2007, p. 91).

Mais uma questão fundamental, sobre o mundo agrário e a escravidão e a servidão:

Ao contrário do que ocorreu nos tempos modernos, a instituição da


escravidão na antiguidade não foi uma forma de obter mão‑de‑obra barata
nem instrumento de exploração para fins de lucro, mas sim a tentativa de
excluir o labor das condições da vida humana (ARENDT, 2007, p. 95).

Excluir, esconder o labor, assim como para as “peneiras de malhas modernas”, para as “lentes
progressistas” todo o universo rural não coexiste, não se lhe reconhece como contemporâneo; sendo‑lhe,
portanto, como já dissemos, negado, política ou metodologicamente, lugar histórico no presente.
E passamos décadas perguntando-nos e fazendo afirmações acerca da existência do camponês.

Trabalhar diretamente a terra, na lavoura, era tido pelo que havia de mais arcaico. Campo, interior,
bosques, matas e mesmo a vegetação na cidade era sinal de atraso! Tudo tem que parecer urbano,
cimentado, asfaltado, viabilizando a circulação moderna e veloz.

Tudo o que os homens tinham em comum com as outras formas de vida


animal era considerado inumano. (Esta era também, por sinal, a razão
da teoria grega, tão mal interpretada, da natureza inumana do escravo.
Aristóteles, que sustentou tão explicitamente a sua teoria para depois,
no leito de morte, alforriar seus escravos, talvez não fosse tão incoerente
como tendem a pensar os modernos. Não negava que os escravos pudessem
ser humanos; negava somente o emprego da palavra “homem” para
designar membros da espécie humana totalmente sujeitos à necessidade).
E a verdade é que o emprego da palavra “animal” no conceito de animal
laborans, ao contrário do outro uso, muito discutível, da mesma palavra na
expressão animal rationale’, é inteiramente justificado. O animal laborans
é, realmente, apenas uma das espécies animais que vivem na terra — na
melhor das hipóteses a mais desenvolvida. Não é surpreendente que a
distinção entre labor e trabalho tenha sido ignorada na antiguidade clássica.
A diferenciação entre a casa privada e a esfera política pública, entre o
doméstico que era um escravo e o chefe da casa que era um cidadão, entre
as atividades que deviam ser escondidas na privatividade do lar e aquelas
47
Unidade I

que eram dignas de vir a público, apagaram e predeterminaram todas as


outras distinções, até restar somente um critério: é na privatividade ou
em público que se gasta a maior parte do tempo e do esforço? (ARENDT,
2007, p. 95).

Chegamos ao que mais interessa quanto ao propósito deste livro‑texto: a aproximação das sociedades
rurais e urbanas; os nomes das coisas como decorrências das associações e soluções humanas, isto é, no
caso, as atividades rurais, as lavouras.

E ainda no quesito distância, labor, lavor, rural, foi sendo, estrategicamente, integrado ao mercado,
na frente das políticas econômicas com fins de convertê‑lo ao mercado de trabalho, o que lhe retirava
acesso aos meios de produção; ao passo que também não fazia parte dos planos políticos, era e é
ignorado por outros. Hannah Arendt continua, de modo crítico:

À primeira vista, porém, é surpreendente que a era moderna […] não tenha
produzido uma única teoria que distinguisse claramente entre o animal
laborans e o homo faber, entre ‘o labor do nosso corpo e o trabalho de
nossas mãos’. Ao invés disso, encontramos primeiro a distinção entre
trabalho produtivo e improdutivo […]. O próprio motivo da promoção do
labor como trabalho na era moderna foi a sua “produtividade”; e a noção
aparentemente blasfema de Marx de que o trabalho (e não Deus) criou o
homem, ou de que o trabalho (e não a razão) distingue o homem dos outros
animais, era apenas a formulação mais radical e coerente de algo com que
toda a era moderna concordava (ARENDT, 2007, p. 96).

Capitaneada por Adam Smith e Karl Marx, Arendt aponta que todos “menosprezavam o trabalho
improdutivo”, algo como certa “perversão do trabalho”, e comenta a ojeriza dirigida aos “criados
servis”, pois antes da modernidade trabalho era equiparado à escravidão, posto que o associassem
a “esses criados servis, esses caseiros, oiketai ou familiares cujo trabalho era exigido pela mera
subsistência e que eram necessários para o consumo isento de esforço, e não para a produção”
(ARENDT, 2007, p. 97).

Tais “serviçais” e “criados” trocaram a liberdade pelo acesso ao consumo

Em outras palavras, a distinção entre trabalho produtivo e improdutivo


contém, embora eivada de preconceito, a distinção mais fundamental
entre trabalho e labor. Realmente, é típico de todo labor nada deixar
atrás de si: o resultado do seu esforço é consumido quase tão depressa
quanto o esforço é despendido. E, no entanto, esse esforço, a despeito
de sua futilidade, decorre de enorme premência; motiva‑o um impulso
mais poderoso que qualquer outro, pois a própria vida depende dele. A
era moderna em geral e Karl Marx em particular, fascinados, por assim
dizer, pela produtividade real e sem precedentes da humanidade ocidental,
tendiam quase irresistivelmente a encarar todo o labor como trabalho e a
48
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA

falar do animal laborans em termos muito mais adequados ao homo faber,


como a esperar que restasse apenas um passo para eliminar totalmente o
labor e a necessidade.’’

Sem dúvida, a evolução histórica que tirou o labor de seu esconderijo e o


guindou à esfera pública, onde pôde ser organizado e “dividido”,” constituiu
poderoso argumento no desenvolvimento dessas teorias. Contudo, um fato
ainda mais importante neste particular, já pressentido pelos economistas
clássicos e claramente descoberto e expresso por Karl Marx, é que a própria
atividade do trabalho (labor), independentemente de circunstâncias
históricas e de sua localização na esfera privada ou na esfera pública, possui
realmente uma “produtividade” própria, por mais fúteis ou pouco duráveis
que sejam os seus produtos. Essa produtividade não reside em qualquer
um dos produtos do labor, mas na “força” humana, cuja intensidade não se
esgota depois que ela produz os meios de sua subsistência e sobrevivência,
mas ê capaz de produzir um “excedente”, isto é, mais que o necessário à
sua “reprodução”. Uma vez que não é o próprio trabalho, mas o excedente
da “força de trabalho” humana (Arbeitskraft), que explica a produtividade
do trabalho, a introdução deste termo por Marx, como Engels observou
corretamente, constitui o elemento mais original e mais revolucionário
de todo o seu sistema. Ao contrário da produtividade do trabalho, que
acrescenta novos objetos ao artifício humano, a produtividade do labor
só ocasionalmente produz objetos; sua preocupação fundamental são os
meios da própria reprodução; e, como a sua força não se extingue quando a
própria reprodução já está assegurada, pode ser utilizada para a reprodução
de mais de um processo vital, mas nunca “produz” outra coisa senão “vida”
(ARENDT, 2007, p. 98).

Deste ponto de vista puramente social, que é o ponto de vista de toda a


era moderna, mas que recebeu sua mais coerente e grandiosa expressão na
obra de Marx, todo trabalho é “produtivo”; e perde sua validade a distinção
anterior entre a realização de “tarefas servis”, que não deixam vestígios, e a
produção de coisas suficientemente duráveis para que sejam acumuladas.
Como vimos antes, o ponto de vista social é idêntico à interpretação que
nada leva em conta a não ser o processo vital da humanidade; e, dentro de
seu sistema de referência, todas as coisas tomam‑se objetos de consumo.
Numa sociedade completamente “socializada”, cuja única finalidade fosse
a sustentação do processo vital — e é este o ideal, infelizmente um tanto
utópico, que orienta as teorias de Marx‑’ — a distinção entre labor e trabalho
desapareceria completamente; todo trabalho tomar‑se‑ia labor, uma vez
que todas as coisas seriam concebidas, não em sua qualidade mundana
e objetiva, mas como resultados da força viva do labor, como funções do
processo vital (ARENDT, 2007, p. 99‑100).

49
Unidade I

4.1 Experiências

Pensamos haver qualidade tanto nas práticas sociais quanto nos estudos e pesquisas desde que
assumamos as “misturas” das experiências rurais e urbanas – espaços rurbanos, na síntese de Graziano
da Silva, Miller (2018); Carneiro (1998); Schneider (2003); Froehlich (2000) –, e reconheçamos os fluxos
(de migrantes) pelas redes de “fuga” e os “destinos”, tanto dos que encontram lugares para recriar
suas relações quanto dos que não conseguem refazer‑se, sendo apenas depositados em localidades nas
quais lhes são negados direitos de existência. As diversas figuras de uma demografia viva são: lugares
de nascimento, de saída, de chegada, posse, desposse, controle, descontrole dos meios de produção
e de sua própria identidade; controle dos lugares e de seus recursos simbólicos e materiais para a
manutenção da existência.

Então, olhemos para os espaços rural e urbano como âmbitos típicos, até mesmo estereotipados, para
facilitar a imaginação do desconhecido que temos como estrangeiros: no caso de citadinos nas áreas
rurais, e do pessoal do campo, na cidade. Reiteramos que as diferenças vão‑se desvanecendo, o que é
motivado por processos sociais internacionais de motor único; desvanecendo, mas não se apagando,
apenas vão‑se fundindo os elementos, antes únicos em cada âmbito.

Sauer (1956; 1992) também nos ajuda sobre a importância e a diversidade da vida e da produção do
homem na Terra.

Ao falar das formas de vida camponesa e pastoril, Sauer (1992) trata das sucessivas intervenções
revolucionárias do ser humano sobre a natureza, apontando como a principal delas a que veio quando
ele selecionou certas plantas e animais, tomando‑os sob seus cuidados para serem reproduzidos, criados e
domesticados cada vez mais de modo dependente dele para sobrevivência. A adaptação dessas formas para
servir às necessidades humanas é contrária, como regra, ao processo de seleção natural. Com isso, foram
introduzidas novas linhas e processos da evolução orgânica, ampliando o fosso entre as formas selvagens e
domésticas. A biota, a superfície e o solo natural foram deformados, gerando paisagens culturais instáveis.

Convencionalmente, as origens da agricultura estão localizadas no início da era neolítica, embora


seja óbvio que o registro arqueológico recente do neolítico apresente um quadro de domesticação
alcançado em plantas e em animais, da agricultura e da vida pastoral que se assemelha às condições que
ainda podem ser encontradas em algumas partes do Oriente Próximo.

Carl Sauer (1992) apresenta três premissas sobre a origem da agricultura:

• Esse novo estilo de vida era sedentário, surgiu a partir de uma sociedade sedentária anterior. Na
maior parte das condições, especialmente entre agricultores primitivos, a terra plantada deve ser
vigiada continuamente contra predadores dos cultivares.

• A atividade de plantio e domesticação não foi desenvolvida a partir de fome, mas de fartura e
de tempo livre. As pessoas vítimas de fome não têm oportunidade e incentivos para a seleção
lenta e contínua de formas domésticas. Comunidades aldeãs são as que oferecem circunstâncias
favoráveis a tais progressos.
50
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA

• A agricultura primitiva está localizada em terrenos arborizados. Mesmo o fazendeiro americano


pioneiro apenas invadiu pastos até meados do século passado. Seus campos foram clareiras
estabelecidas pela morte das árvores, geralmente através de corte. Quanto maior era a árvore,
mais fácil a tarefa; já o matagal requeria que se arrancasse e cortasse; as pradarias detiveram seu
avanço, enquanto não se dispusesse de arados capazes de cortar os tapetes de raízes. Os restos no
chão da floresta foram limpos com queima ocasional; troncos mortos quase não interferiram no seu
plantio. O pioneiro americano aprendia e aplicava práticas indígenas. Curiosamente, acadêmicos,
porque eles carregam em seus pensamentos as imagens nítidas de campos, arados criados pelo
agricultor europeu com o corte de árvores com um machado, terem pensado tantas vezes que as
florestas repelem a agricultura e que as terras abertas a convidam.

A mais antiga forma de agricultura envolve fazer furos, muitas vezes, chamado – geralmente, de
maneira imprópria – de “cultivo de enxada”. Esta era a única maneira conhecida no Novo Mundo, na
África Negra e nas ilhas do Pacífico. Em um nível avançado, levou aos jardins e horticultura de monções,
na Ásia e, talvez, no Mediterrâneo. Suas ferramentas modernas são a pá, o forcado e a enxada, todos
derivados de formas antigas. Na América tropical, este tipo de cultura é conhecida como conuco; no
México, como milharal, sendo esta última um plantio de sementes de milho, abóbora, feijão e talvez
outras espécies anuais. O conuco é composto principalmente por raízes e videiras, em um terreno de
jardim perene. Recentemente, foi proposto o renascimento da antiga palavra norueguesa swithe, ou
“roça” (SAUER, 1992).

Este horto começa detendo o crescimento das árvores, seguindo com a queima no final do período
seco, de modo que as cinzas sirvam como um fertilizante imediato. No espaço “clareado”, planta‑se
um conjunto diversificado de plantas úteis, cultivadas em linhas, se a fertilidade e a umidade forem
adequadas. No complexo de milho, feijão e abóbora, os caules e folhas desta última estendem‑se
pelo terreno; talos de milho crescem em altura e são enrodilhados por feijões. Assim, o solo está bem
protegido por um dossel, com uma boa intercepção de chuva. Cada conuco pode conter uma variedade
de plantas, a partir de gramíneas de arbustos como o algodão e mandioca, e as árvores cultivadas
cobertas de vinhas.

A aparente desordem, na verdade, corresponde a um uso completo de luz e umidade, um substituto


ecológico admirável manipulado pelo homem, talvez, equivalente à cobertura natural na proteção
oferecida à superfície do solo. No conuco tropical, um pedaço de solo adequado é escavado em locais
convenientes e a qualquer momento para extrair ou colher plantas diferentes, sem a necessidade de se
escavar toda a área plantada. A extração e o plantio de raízes podem ocorrer simultaneamente. Nossas
ideias sobre a época de colheita em que toda a produção é extraída do campo são inaplicáveis. Em
conucos, pode‑se colher algo quase em qualquer dia do ano. A mesma planta fornece verduras para
cozimento, saladas, flores ricas em pólen e para ornamento, além de frutos verdes e maduros; a mesma
lógica cabe à horticultura e ao cultivo de campos (culturas arbustivas), cada planta pode ter, assim,
vários usos domésticos. Essa ocupação múltipla do espaço cultivado permite maiores rendimentos por
unidade de área, adicionando‑se a observação de que, neste sistema, desenvolveram‑se plantas de alta
produtividade, como bananas, inhame e mandioca, cuja produção de alimentos não é de modo algum o
único uso de tais plantas (SAUER, 1992). Em suma, os conucos são os tipos de cultivo mais vantajosos.

51
Unidade I

Os sistemas agrícolas realmente não merecem os nomes degradantes que lhes forem impingidos,
tais como “corte e queima” ou “a agricultura itinerante”. O abandono dos cultivos depois de um tempo
antes dos novos rebentos de plantas selvagens lenhosas é uma forma de rotação através do qual o solo
é restaurado para nutrientes extraídos por árvores e arbustos com raízes profundas, a serem espalhados
sobre a superfície como resíduos. Tal uso da terra é livre das limitações do terreno ao campo arado. Poder
oferecer bons retornos em declives íngremes e ravinas não é um bom argumento contra o método,
que oferece uma melhor proteção contra a erosão do solo do que qualquer forma de recuperação.
Também, nesta cultura, são estabelecidos sistemas de terraceamento em encostas (SAUER, 1992).

Alguns dos problemas atribuídos ao sistema resultam do impacto tardio de nossos próprios métodos
de cultura, tais como o acesso a machadadas e facões, através da qual é possível eliminar focos de ervas
daninhas, em vez de deixar a terra descansar sob o novo crescimento das plantas; a substituição de
culturas de subsistência para as culturas de rendimento; o rápido crescimento da população mundial; e
a demanda por bens industriais, associado a melhores padrões de vida. Não argumentam que sob este
primitivo sistema de cultura, o homem poderia melhor satisfazer as suas necessidades, sem esgotar o
solo. Em vez disso, em seus procedimentos básicos e suas plantações, este sistema nos permite manter
um alto grau de fertilidade do solo, com altos níveis de desempenho. Sendo protetor e intensivo,
podemos considerar totalmente adequado às condições físicas e culturais das áreas onde ela existe.
O nosso conhecimento ocidental é orientado para o uso da terra para uma curta série de anos e não
equivalente à sabedoria do camponês primitivo enraizada em suas terras ancestrais (SAUER, 1992).

Nossas atitudes em relação ao cultivo vêm de outro tronco antigo, do qual brotam agricultores,
colheitadeiros e os ceifeiros; homens do arado, que dependem de criadores de gado leiteiro e pastores
de rebanhos. Este é o complexo que já está bem representado nos primeiros sítios neolíticos no Oriente
Próximo. O interesse dessa cultura é especificamente voltado para a produção de mudas anuais,
especialmente gramas de cereal. A semente é cuidadosamente preparada com antecedência para
minimizar o crescimento de plantas daninhas e fornecer uma luz na bem trabalhada superfície do
solo em que as pequenas sementes germinam. A superfície lisa e bem trabalhada contrasta com pilhas
dispersas de terra – “colinas” na fala do camponês americano – característica do conuco e do milharal.
Em vez de uma variedade de plantas, o solo é preparado para receber sementes de um único tipo.
O Oeste da Índia é uma exceção significativa. As plantas não recebem cultivo adicional, desenvolvendo‑se
até a maturidade, quando são colhidas uma vez. Após a colheita, o campo pode ficar em pousio até
a temporada seguinte. O instrumento do cultivo é em primeiro lugar o arado; em segundo lugar, as
grelhas, ambos usados para preparar o solo para o plantio. Este é tradicionalmente feito lançando‑a aos
punhados, e da colheita, utilizando lâminas afiadas (SAUER, 1992).

Rebanhos de animais, gado de corte, ovinos, caprinos, cavalos, jumentos e camelos são raros ou
têm uma presença recente neste sistema. Cuidar de animais pastando ou ruminando é básico. Eles
são ordenhados, ou eram no passado. Segundo Sauer (1992), a ordenha é uma atividade original e um
elemento qualitativo de domesticação e, em muitos casos, se manteve sua principal utilidade econômica,
enquanto a carne e couro foram apenas os produtos de origem animal.

Este complexo espalhou‑se de seu berço no Oriente Médio, especialmente em três direções, mudando
seu caráter diante das mudanças ambientais e devido ao crescimento populacional:
52
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA

• Difusão para as estepes da Eurásia: a cultura perdeu preparo e tornou‑se plenamente pastoral,
com o nomadismo real.

• Dispersão dos celtas, germânicos e eslavos para o oeste: parece ter tomado seus assentamentos
históricos principalmente como criadores de gado e cavalos.

• Dispersão das culturas de plantio e pastagem para o oeste ao longo de ambos os lados do
clima mediterrânico: não é necessário um ajuste significativo, o trigo e a cevada continuam os cereais
de colheita; ovinos e caprinos têm maior importância do que gado e cavalos (SAUER, 1992).

A descrição das transformações nas concepções e nas técnicas agropecuárias leva Sauer (1992)
à identificação de problemas, como os mais diversos tipos de erosões, de desertificação, alterações
climáticas, rupturas da biodiversidade, gerados por nossas atividades agrárias em larga escala para
o crescente mercado. Trata da importância de um saudoso manejo que promovia integração entre
plantas e animais, o que era comum nesses modelos antigos. Defende um aprofundamento dos estudos
arqueológicos para entender os papéis dos ambientes e das culturas no desenvolvimento das práticas
agrícolas menos impactantes e mais inteligentes do ponto de vista da ecologia.

A retomada histórica de nossos primórdios produtivos deve‑se à importância das origens da questão
ambiental, isto é, da problemática tão antiga quanto nosso manuseio da terra para plantar. Sempre há
impactos, de grande ou pequena extensão, diretos ou indiretos, mas sempre haverá.

Nossa jornada do neolítico para cá pode ser identificada por grandes transformações, que implicam
perdas e ganhos na qualidade de vida, de um modo geral. Essas transformações aparecem de muitas
maneiras como uma crescente desumanização da natureza do ser humano, conferindo uma ideia da
base subjetiva que compõe o assunto.

O caminho segue pelo tratamento da natureza, mesmo sem considerá‑la em toda a variedade cultural
de concepções, assumimos serem elas construídas como relações próprias aos povos; cada cultura
conforma sua própria ideia de natureza de acordo com suas influências e condições físico‑químicas e
biológicas. Reiteramos, desse modo, a dificuldade de trabalhar com tal conceito.

Se natureza é tudo, apresenta o presente e o passado, é interna e externa ao ser humano, sendo
condição da cultura e por esta também transformada. É o ponto de partida da Filosofia, dela continuamente
escapando em virtude de sua complexidade. Reiteramos que, por razões de método científico, não
nos deteremos nesse nível de complexidade. Prova de que esse plano está além de nossa percepção,
entendimento e cálculo, são as doenças, as cadeias energéticas e mesmo todas as ligações promovidas
pelos impactos e poluições, que indicam nosso desconhecimento dos demais seres (estruturas orgânicas
e inorgânicas), com os quais nos relacionamos em profunda ignorância. Esta parece ser a causa maior
dos tais desequilíbrios.

Registramos que é atribuição do método unir sujeito e objeto do conhecimento, no ambiente que é
a natureza conhecida, atribuindo sentido à prática, aproximando‑nos da realidade possível por meio de
roteiro e de instrumentos mais modestos.
53
Unidade I

Observação

A soluções da tensão entre direitos e normas, diante das perdas de


sentido do trabalho e de seu produto, afirmam que “A interrogação básica
deste estudo foi sugerida por um pressuposto – amplamente admitido
o de que as relações dos homens com a natureza são indissociáveis das
relações que os homens mantêm entre si” (LEONEL, 1998, p. XXVII).

Na linha de raciocínio que estamos empreendendo, Claval, em Espaço e Poder (1979), ensaia uma
gênese organizacional das associações e de suas racionalidades espaciais na configuração de paisagens
e de territórios, conforme a estrutura de poder dos grupos sociais.

A ocupação do espaço e os usos de recursos como fenômeno territorial estão na origem, razões
e características dos povoamentos, desenvolvimento, dinâmica demográfica (crescimento, migração,
envelhecimento etc.).

A qualidade e as dimensões da urbanização capitalista como processo de expansão das relações


e das localizações urbanas, antes próprias às cidades, encarregam‑se da organização do espaço nas
cidades, com suas racionalidades; daí que não se pode falar em cidades desordenadas. Na apropriação
de modelos de urbanização, as classes ou grupos sociais com seus projetos de sociedade (de cidade,
portanto) e ordenadores dos territórios farão sua racionalidade preponderar na distribuição de bens
e nas ligações entre os lugares. Ou alguém pergunta ao mendigo qual é o seu projeto de cidade? O
banqueiro não precisa pegar trânsito, exemplificaríamos; sorte dele, mas precisamos entender o porquê.

Desdobramentos das práticas socioespaciais, nas escalas locais (horizontais) e verticais (espaços
heterótopos ou hierárquicos) – a vida nos lugares, “rurais” e “urbanos” (rurbanos) e em fluxos pelas
redes (migrações).

O trabalho de Williams (1989) dá apoio às nossas considerações sobre a diversidade integrada de


urbano e rural pelas suas próprias experiências que emprega nas análises e como nexo entre os modos
de vida e trabalho caraterísticos. Fala de paisagens e períodos de extrema pobreza com base na literatura
e em documentos, comentando que:

Também isso é diferente agora, mas sempre que penso nas relações campo
e cidade, e entre berço e instrução, constato que se de uma história ativa e
contínua: as relações não são apenas ideias e experiências, mas também de
aluguéis e juros, situação e poder – um sistema mais amplo.

Assim, é este o lugar em que me encontro e, ao preparar‑me para o trabalho,


verifico que terei de resolver passo a passo experiências e questões que,
antes, moviam‑se à velocidade da luz. A vida do campo e da cidade é móvel
e presente: move‑se ao longo tempo, através da história de uma família

54
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA

e um povo; move‑se em sentimentos e ideias, através de uma rede de


relacionamentos e decisões (WILLIAMS, 1989, p. 19).

Williams (1989) expõe a trama que liga os espaços rural e urbano de modo multidimensional, provocando
muitas reflexões sobre as ligações entre a vida nos campos e a vida nas cidades, principalmente quando
aponta para “os fios da natureza” (WILLIAMS, 1989, p. 102‑103) persistentes, apesar da urbanização
devastadora. Seu intento é desmitificar as várias visões simplistas das relações entre a cidade e os campos,
a mais comum sendo aquelas que atrelam a vida rural à dinâmica das cidades.

As atividades agrárias (agropecuárias) estão ligadas ao que há de mais característico nas paisagens
rurais. Dito isso, Andrade (2004) mostra que a pecuária e a produção de alimentos no Período
Colonial seguem uma lógica que se movimenta entre as determinantes econômicas da empresa colonial
portuguesa na América.

O sentido da colonização,

[…] como já salientava Caio Prado Júnior, a colonização do Brasil foi


um empreendimento econômico típico de domínio do capitalismo
mercantil. Os portugueses fizeram a sua expansão pela costa africana,
pela Ásia Meridional e pela América Latina, visando a obter produtos
tropicais e minerais para o mercado europeu, obtendo lucros bastante
compensadores. Daí observar que no período colonial – 1500 a 1822 –,
a história econômica do Brasil foi marcada pelos produtos de exportação
de maior importância econômica – o pau‑brasil, o açúcar, o ouro e os
diamantes, o algodão etc. – a ponto de alguns historiadores admitirem
a sua periodização em “ciclos”, ciclos que, na realidade, não ocorreram,
uma vez que a exportação de um produto continuava no “ciclo” seguinte,
não mais como o principal, mas como um produto de menor importância,
menos expressivo (ANDRADE 2004, p. 43).

Andrade (2004) enumera as razões e reconstitui as condições socioambientais da evolução das


localizações da produção junto à própria expansão territorial brasileira.

Sendo inicialmente pequeno o número de portugueses no Brasil, não se


preocuparam eles com a produção dos alimentos necessários, preferindo
trazê‑los da metrópole, o que permitia maior utilização das embarcações em
suas viagens de ida e volta. Como a população nativa se alimentava da pesca,
da caça, da coleta florestal e de uma incipiente agricultura, os portugueses
procuraram adaptar‑se a este tipo de alimentação, substituindo produtos
tradicionais pelos da terra, como aconteceu com a farinha de trigo, que foi
substituída pela farinha “de pau” ou de mandioca. (p. 44).

55
Unidade I

A questão do território no Brasil

Passados os primeiros anos de mera exploração florestal, iniciaram os portugueses


a colonização e a ocupação do território por migrantes, desenvolvendo a cultura da
cana‑de‑açúcar; inicialmente, ela foi cultivada em quase todas as capitanias, só depois é
que foi se concentrando em Pernambuco e na Bahia. A sua cultura demandava um grande
emprego de mão‑de‑obra e um expressivo emprego de capitais, para a implantação dos
chamados engenhos, verdadeira plantation tropical.

Para isso, importaram em larga escala escravos negros, africanos, que eram aqui vendidos
aos senhores de engenho. A intensificação da escravidão e o crescimento populacional
decorrente da expansão dos canaviais provocaram sérios impactos e a necessidade de se
produzir, na área povoada, alimentos que se adaptassem ao clima e ao solo da colônia,
para esta população em crescimento. Daí a importação de animais e vegetais da própria
Europa, assim como da África, da Ásia e da Oceania, terras por onde se estendia a influência
comercial portuguesa.

Da Europa foram trazidos, desde a primeira metade do século XVI, os animais domésticos,
sobretudo bovinos, caprinos, suínos, equinos; da África, vieram vegetais como o sorgo, o
inhame, o cará; da Ásia, fruteiras como a bananeira, a mangueira, a jaqueira e o arroz; e
da Oceania, a fruta‑pão e o coqueiro. Muitos vegetais cultivados pelos indígenas, como o
algodão, a mandioca e o milho, passaram também a ser cultivados pelos colonizadores.
Este fato é comprovado pelo depoimento dos cronistas coloniais, no século XVII, que
testemunharam haver nos engenhos de açúcar áreas cultivadas como produtos alimentícios
que garantiam a fartura das casas‑grandes e a abundância de alimentos.

A cana‑de‑açúcar só era cultivada nas terras baixas de massapê e nas encostas de “barro
vermelho”, ao passo que os solos silicosos dos interflúvios eram utilizados para a plantação
de tubérculos e de fruteiras. Daí o desenvolvimento do chamado “sistema do Brasil”, no qual
o senhor de engenho permitia que escravos cultivassem lavouras de mantimentos em áreas
marginais aos engenhos, nos dias santos, feriados e domingos, a fim de que contribuíssem
para o seu próprio sustento.

No início do século XVII, os canaviais de Pernambuco se limitavam aos vales fluviais, às


famosas várzeas, enquanto os interflúvios arenosos eram destinados à pecuária extensiva
e à produção de alimentos; no Recôncavo Baiano, porém, a cana dominou as áreas de
massapê e deixou ao fumo as áreas silicosas; o fumo ganhou importância por ser usado na
África como artigo de troca por escravos.

A permanência da pecuária nas áreas próximas às de agricultura trouxe problemas de


convivência, [uma] vez que o gado era criado solto e destruía as plantações, fazendo com que
o Governo estabelecesse que os criadores de gado deviam interiorizar‑se, ficando as áreas de
criação distantes das áreas agrícolas. Isso contribuiu para a expansão do povoamento para o
interior e para a ocupação de grandes espaços, interligando as várias regiões do Brasil.
56
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA

A pecuária e a produção do território

A penetração dos criadores de gado para o interior foi determinada por uma série de
fatores, como a necessidade de manter o gado afastado das áreas agrícolas litorâneas; a
ocupação holandesa, que acelerou ainda mais a transferência de criadores de gado das áreas
próximas à costa para o Sertão, utilizando os rios, sobretudo o São Francisco, como condutos
da penetração. Com a expulsão dos holandeses, já era expressivo o povoamento do Sertão, e
grupos organizados já haviam derrotado indígenas e conquistado áreas de pastagem.

Esta expansão foi muito favorecida pelas condições naturais e econômicas. Do ponto
de vista natural, o clima semiárido dificultava a proliferação de verminoses e de epizootias;
além disso, havia uma pastagem natural boa para o gado, no período das chuvas, e “ilhas”
úmidas nas margens dos rios e nas serras para onde ele poderia ser levado no período
seco. Do ponto de vista econômico, contavam os pecuaristas com um mercado certo na
área agrícola, que seria abastecido de carne, de couro e de animais de trabalho; tinham
facilmente derrotado as tribos indígenas, depois de verdadeiro genocídio, e confinado os
vencidos em aldeamentos administrados por missionários que procuravam sedentarizá‑los.
Os índios sedentarizados tornavam‑se produtores de alimentos e formavam uma reserva de
força de trabalho que podia ser recrutada pelos sesmeiros nas ocasiões em que necessitavam
de braços para os trabalhos agrícolas ou de auxiliares para combater outras tribos.

As terras conquistadas aos índios eram doadas em sesmarias a pessoas influentes com o
governador‑geral da Bahia ou com o capitão‑mor de Pernambuco, fazendo com que algumas
famílias se apossassem de grandes extensões, verdadeiros latifúndios que compreendiam
dezenas de léguas, obrigando os verdadeiros povoadores, homens humildes que haviam
enfrentado os indígenas e implantado pequenos currais, a se tornarem seus foreiros.

[…]

Formou‑se, assim, no Sertão‑Nordeste‑semiárido, uma sociedade pecuarista, dominada


por grandes latifúndios cujos detentores quase sempre viviam em Olinda ou Salvador,
delegando a administração da propriedade a empregados, e nas quais havia sítios que
eram aforados a pequenos criadores que implantavam currais. Era uma economia
inteiramente voltada para um mercado distante, situado no litoral, para onde a mercadoria
se autotransportava, em boiadas conduzidas por vaqueiros e tangerinos, por centenas de
léguas. No percurso, havia pontos de repouso e de engorda, pois a caminhada provocava
uma queda de peso dos animais. Alguns núcleos urbanos hoje existentes, como Jacobina, se
desenvolveram em virtude deste sistema de repouso dos animais.

A descoberta do ouro nas Gerais e a formação de um grande adensamento populacional


em área distante do litoral trouxeram grandes vantagens para os criadores de gado do
Sertão que passaram a abastecer os centros de mineração; a corrida do ouro, gerando grande
riqueza, fez com que se concentrasse a população e se expandisse consideravelmente o
mercado. Daí as grandes ligações abertas entre o médio e o alto São Francisco, fazendo
57
Unidade I

com que se formassem não só caminhos de gado como que se conquistassem terras aos
índios com a finalidade de criar gado para a área mineradora. A demanda de alimentos
nas Minas foi bem superior à oferta, fazendo os preços se elevarem, tornando numerosos
migrantes agricultores de mantimentos, como mandioca, milho, cana‑de‑açúcar, frutas, ou
criadores de médios e pequenos animais que eram facilmente comercializados. A pecuária
foi acompanhando, nas áreas de caatingas e de cerrados, o trajeto dos mineradores,
aproximando‑se sempre dos arraiais de garimpagem.

Daí a continuidade dos currais nordestinos por territórios, hoje de Minas Gerais, de Goiás
e do próprio Mato Grosso.

A civilização pecuarista envolveu grandes capitais, e nela, embora em menores proporções


do que na área açucareira, foi utilizado o braço escravo negro ao lado do indígena.

Ao mesmo tempo em que a pecuária comandou a ocupação no Nordeste semiárido, ela


teve o mesmo papel na Campanha gaúcha [...], com o desenvolvimento da mineração, foi
grande fornecedora de animais de tração muares, sobretudo –, e de abate à zona mineradora.

Fonte: Andrade (2004, p. 44‑49).

4.1.1 Cidades e campos seguem diminuindo a evidência de suas marcas distintivas

Abramovay (2007) e Silva (1997) propõem que se olhe para as regiões rurais de outra maneira, diferente
do que se vinha fazendo, pois tendemos a ver nas transformações, progressões lineares, absolutas.
Abramovay conta que o intuito inicial no Projeto Rurbano “[…] era identificar a dispersão geográfica
das formas familiares e patronais, a maior ou menor incidência de certos produtos agropecuários, e com
isso subsidiar minimamente a definição de diretrizes de políticas públicas” (ABRAMOVAY, 2007, p. 13).

Essa pesquisa não só atingiu seu intento inicial como colocou uma hipótese bastante inovadora na
época: as melhores configurações territoriais encontradas eram aquelas que combinavam uma agricultura
de base familiar forte com um entorno socioeconômico diversificado e dotado de infraestrutura. Um
desenho que permitia aos espaços urbanos e rurais dessas regiões, de um lado, abrigar o trabalho
excedente que deixa a atividade agrícola e, de outro, inversamente, absorver nas unidades familiares
o trabalho que é descartado nas cidades em decorrência do avanço tecnológico e do correspondente
desemprego característico dos anos 1990.

Tal pesquisa mostrou um campo novo de preocupações que viria a se delinear melhor no Brasil na
virada para a década atual: a necessidade de se entender as articulações entre formas de produção,
características morfológicas dos tecidos sociais locais e dinâmicas territoriais de desenvolvimento; ou,
na mesma direção, as articulações entre os espaços considerados rurais e urbanos. Mais do que nas injunções
setoriais, o que se sugeria é que nas dinâmicas territoriais – ainda sem usar esta denominação – e
em suas estruturas sociais é que se poderiam encontrar as respostas para as causas do dinamismo e da
incidência de bons indicadores de desenvolvimento.

58
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA

Pouco depois de terminada essa pesquisa, iniciou‑se um outro programa de


grande repercussão: o Projeto Rurbano, coordenado por pesquisadores da
Unicamp (SILVA, 1999 apud ABRAMOVAY, 2007, p. 14).

E segue explicando quais foram as inovações:

O programa focalizou a formação das rendas entre as famílias não urbanas


para constatar um movimento relativamente generalizado de substituição
dos ingressos provenientes das atividades primárias por rendas não agrícolas.
Na base dessa constatação, estavam não somente a tendência de queda dos
preços de produtos primários, já conhecida, mas principalmente a crescente
interpenetração entre os mercados de trabalho tradicionalmente qualificados
como urbanos e rurais. Entre o primeiro e o terceiro dos seminários anuais
realizados pelo projeto houve, contudo, cerro deslizamento, da surpresa com
os resultados alcançados na análise dos dados que mostraram a magnitude
das rendas não agrícolas, à fragmentação de opiniões sobre seu real alcance
e sobre seus significados para a estrutura e dinâmica do rural brasileiro.
Ainda que em meio a tais incertezas, não há dúvida de que o projeto foi
uma forte demonstração de que, mesmo num país com as características do
Brasil, o rural nem de longe pode ser reduzido ao agrícola.

Mas os mesmos resultados obtidos como o Projeto Rurbano deram origem a


algumas inferências que, explicitamente, significam um questionamento da
relevância da ideia de agricultura familiar e, a fortiori, também da ideia de
ruralidade (SILVA, 2001a apud ABRAMOVAY, 2007, p. 14). A primeira delas
seria um suposto fim do caráter familiar desse tipo de unidade produtiva,
já que a maior parte da renda provém agora de atividades externas ao
estabelecimento familial. No entanto, sempre foi uma característica dessas
unidades a combinação de rendas internas e externas ao estabelecimento, o
qual, mesmo sob uma maior magnitude das rendas não agrícolas, continua
tendo a gestão, a posse da terra e o trabalho realizado em seu interior
organizados em base familiar. A segunda é a identificação das causas
explicativas da vitalidade do mundo rural na mera decorrência do dinamismo
emanado de economias urbanas. É verdade que a economia das áreas rurais
não pode ser compreendida isoladamente da economia das áreas urbanas
(ABRAMOVAY, 2007, p. 145).

E na linha que segue nosso próprio raciocínio, Abramovay afirma que:

A superação desta dicotomia é, aliás, uma das razões da emergência da


chamada abordagem territorial do desenvolvimento. Porém, é igualmente
inegável que o dinamismo emanado do mundo urbano ou as formas de
complementaridade que ele suscita são aproveitados de maneira bastante
heterogênea pelas áreas rurais. Elas podem se beneficiar ou se esterilizar
59
Unidade I

a partir das consequências que daí surgem. E isto dependerá, sempre,


dos caracteres fundamentais das estruturas sociais e das instituições que
respondem pela configuração das áreas rurais e das interações que dela
decorrem. Ponderações, enfim, que permitem reafirmar, mesmo no auge
da urbanização e da importância das rendas não agrícolas, a permanência da
relevância empírica e teórica da agricultura familiar e da ruralidade
(ABRAMOVAY, 2007, p. 15).

Segundo Silva (1997), é cada vez mais difícil a delimitação geográfica do que é rural e do que é
urbano, mas isso não é o mais importante. Na prática, o rural hoje só pode ser entendido como um
continuum do urbano do ponto de vista espacial, e do ponto de vista da economia, as cidades não
podem mais ser identificadas apenas com a atividade industrial, do mesmo modo que os campos
não podem sê‑lo com a agricultura e a pecuária. E, como segue:

Em poucas palavras, pode‑se dizer que o meio rural brasileiro se urbanizou


nas duas últimas décadas, como resultado do processo de industrialização
da agricultura, de um lado, e, de outro, do transbordamento do mundo
urbano naquele espaço que tradicionalmente era definido como rural.
Como resultado desse duplo processo de transformação, a agricultura –
que antes podia ser caracterizada como um setor produtivo relativamente
autárquico, com seu próprio mercado de trabalho e equilíbrio interno – se
integrou no restante da economia a ponto de não mais poder ser separada
dos setores que lhe fornecem insumos e/ou compram seus produtos.
Já tivemos oportunidade de mostrar que essa integração terminou por
se consolidar nos chamados “complexos agroindustriais” que passaram a
responder pela própria dinâmica das atividades agropecuárias aí vinculadas
(SILVA, 1997, p. 1).

Os conflitos de terras no Brasil foram acentuados pelas formações metropolitanas, devido às


megacidades e aos circuitos produtivos globalizados; produz‑se muita riqueza, pobreza e miséria na
demanda por recursos: recursos humanos para o trabalho, recursos ambientais como fontes de energia
e de capital, com produção territorial desigual de resíduos e impactos ambientais. Desigual, seletiva,
expondo nas paisagens as racionalidades convencionais a que estamos sujeitos, e a céu aberto, as
intenções em jogo no território; afinal não se pode esconder o porquê de se ter construído uma ponte
ou uma estrada. É o que vemos em áreas de maiores e menores impactos, cujos maiores riscos, como
regra, é que recaem sobre a população mais pobre e com menos recursos.

Alguns caminhos para enfrentar a desigualdade na base dos problemas a serem enfrentados por
qualquer projeto que se ponha como sustentável são:

• quanto à legitimidade da gestão empresarial do ambiente que utiliza como recurso, isto é, qual é
o papel do Estado regulador nessa questão;

• a própria ciência da gestão pretender‑se gestão ambiental;


60
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA

• quanto às perdas de qualidade alimentar (com inserção química não regulada ou mal gerenciada),
das condições de trabalho (com maquinário que não diminui universalmente o risco), entre outras
dimensões, quando confrontadas com modelos de integridade ou sustentabilidade;

• quanto às possibilidades reais de alternativas ao modo da racionalidade ambiental de Leff (2001), por
exemplo, rumo a um saber ambiental que aprenda com as formas ecologicamente mais inteligentes.

Saiba mais

Sobre uma análise profunda dessas questões do ponto de vista de


geografia econômica, leia:

SANTOS, M. O espaço dividido: os dois circuitos da economia urbana


dos países subdesenvolvidos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1979. (Coleção
Ciências Sociais).

SANTOS, M. Economia espacial: críticas e alternativas. São Paulo:


Hucitec, 1978a.

O extenso Projeto Rurbano do professor José Graziano da Silva (1997; 2001a), sobre o campo
contemporâneo, coloca muitas luzes diferentes ao longo dos anos; sua grande e variada equipe trazia
dados e informações novas sobre as transformações na estrutura agrária brasileira. Acaba por mostrar
que as visões sobre esse espaço agrário são carregadas de preconceitos, chamados de mitos, que
encobrem os significados reais das estruturas fundiária, familiar, produtiva, ocupacional (do trabalho),
comercial e logística dessas regiões. Os mitos são os seguintes (SILVA, 1997):

• O campo é atrasado/é próprio do campo, o atraso: sim e não, indica a pesquisa, pois tanto
há relações de trabalho escravo, além de péssimas condições sanitárias difusas, o que é inegável,
porém há amplas áreas com riqueza e excelentes condições de vida para a população local.

• A condição predominantemente agrícola do rural: há expansão de ocupações em atividades


não agrícolas, o que é curioso por subverter a imagem cristalizada do espaço rural. A mecanização
é responsável pela diminuição do emprego em atividades clássicas das regiões rurais.

• Êxodo rural como inerente ao trabalho no campo: a população volta a crescer, e as atividades
do espaço agrário não são somente agrícolas, mas também parte da cadeia produtiva que enreda
essas áreas, aumentando as chances de absorção de mão de obra e promoção de melhoria de vida.
Há o fenômeno muito interessante que é a migração de retorno, isto é, as pessoas que um dia
saíram do campo estão voltando para suas regiões; este é um processo de imensa importância
quando se considera o planejamento global do país. Por planejamento global entende‑se o conjunto
dos setores econômicos. Quanto ao planejamento, o autor observa que não são dispositivos de
mercado que estão fazendo as correções nos rumos.

61
Unidade I

• Outro mito é de que o desenvolvimento agrícola leva ao rural: o desenvolvimento social não
é só responsabilidade da esfera econômica, aliás, essa é inclusive a diferença entre crescimento
econômico e desenvolvimento.

• Acreditar que as pequenas e médias propriedades são de gestão familiar: há mudanças


culturais, na estrutura social como um todo e em particular na associação dos membros das
famílias, com alguns presentes e outros encaminhando‑se para outras atividades, agrárias ou
não. Para o autor, “o centro das atividades da família deixou de ser a agricultura porque a família
deixou de ser agrícola e se tornou pluriativa ou não agrícola, embora permaneça residindo no
campo” (SILVA, 1997, p. 43).

Os novos mitos, por sua vez, são os que seguem:

• Ocupações Rurais Não Agrícolas (Ornas): pode ser considerado o motor do desenvolvimento
nas regiões atrasadas: as novas atividades não rurais vêm se expandindo; enquanto aquelas
especificamente agrárias têm decrescida sua participação no total de empregos. Para Silva (1997),
as Ornas têm maiores condições de avançarem “justamente naquelas áreas rurais que têm uma
agricultura desenvolvida e/ou estão mais próximas de grandes concentrações urbanas” e “nas
regiões mais atrasadas, não há emprego agrícola e muito menos ocupações não agrícolas”.
E conclui que “a falta de desenvolvimento rural na maioria das regiões ‘atrasadas’ do país
se deve fundamentalmente à falta de desenvolvimento das atividades não agrícolas” (SILVA,
1997, p. 43).

• A reforma agrária não é mais viável: é preciso entender que uma reforma agrária deve
contemplar quaisquer atividades passíveis de inserir os contingentes de desempregados no
mercado de trabalho. “Assim, é possível, e cada vez mais necessária, uma reforma agrária que crie
novas formas de inserção produtiva para as famílias rurais, seja nas ‘novas atividades agrícolas’,
seja nas Ornas” (SILVA, 1997, p. 45).

• O novo rural não precisa de regulação pública: algo como uma institucionalização ou
governança, pois a diversidade de atividades é imensa e pode “envelhecer prematuramente”, se
não houver normatização (SILVA, 1997, 45‑46).

• O desenvolvimento local leva automaticamente ao desenvolvimento da região e do país:


o novo enfoque do desenvolvimento local sustentável tem o inegável mérito de permitir a
superação das já arcaicas dicotomias urbano/rural e agrícola/não agrícola. Como sabemos
hoje, o rural, longe de ser apenas um espaço diferenciado pela relação com a terra – e mais
amplamente com a natureza e o meio ambiente – está profundamente relacionado ao urbano
que lhe é contíguo.

A globalização requer organização para extrair mais recursos e, para isso, necessita que tanto a
configuração territorial quanto a estrutura social estejam aptas a remunerar e a receber os investimentos
dos agentes econômicos.

62
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA

Nesse sentido, podemos dizer que o desenvolvimento local sustentável precisa ser também
entendido como desenvolvimento político no sentido de permitir uma melhor representação dos
diversos atores, especialmente daqueles segmentos majoritários e que quase sempre são excluídos
do processo pelas elites locais. No caso brasileiro, por exemplo, as ações voltadas exclusivamente
para o desenvolvimento agrícola, se bem tivessem logrado invejável modernização da base
técnico‑produtiva em algumas regiões do Centro‑Sul do país, não se fizeram acompanhar pelo
tão esperado desenvolvimento rural. Uma das principais razões para tanto foi a de privilegiar as
dimensões tecnológicas e econômicas do processo de desenvolvimento rural, relegando ao segundo
plano as mudanças sociais e políticas, como a organização sindical dos trabalhadores rurais sem terra
e dos pequenos produtores. Com a globalização, as disparidades hoje existentes em nosso país, seja
em termos regionais, seja em relação à agricultura familiar vis‑à‑vis o agrobusiness, tendem a se
acentuar ainda mais.

Eram preocupações e objetivos do Projeto Rurbano, liderado por José Graziano da Silva:

• identificar os principais condicionantes de distribuição da renda das


pessoas e das famílias rurais e/ou agrícolas, tais como o grau e a
intensidade da pluriatividade na agropecuária brasileira, a distribuição
da terra segundo a posição da ocupação dos membros dos domicílios,
o efeito das diferentes formas de acesso à terra (proprietário, parceiro,
arrendatário e conta‑própria) sobre os rendimentos das famílias, as
diferentes formas de ocupação dos membros das famílias segundo
sexo, grau de escolaridade, as características dos domicílios e sua
disponibilidade de bens e serviços essenciais etc.;

• pesquisar a importância do trabalho doméstico como alternativa


de ocupação e renda das famílias rurais, isolando essa categoria de
trabalhadores como uma nova posição na ocupação e outro tipo
específico de atividade;

• pesquisar a importância da agroindústria e da indústria rural como


geradoras de emprego e renda no meio rural, em particular no estado
de São Paulo e em Minas Gerais, que têm um dos maiores parques
agroindustriais do país;

• caracterizar as famílias rurais e/ou agrícolas com aposentados e/ou


desocupados, com o objetivo de propor uma política previdenciária
ativa para as regiões desfavorecidas do meio rural brasileiro;

• caracterizar as famílias sem‑terra em relação à renda e ocupação de


seus membros em nível de grandes regiões e principais unidades da
Federação, visando delimitar o que se poderia chamar o “núcleo duro”
(core) da pobreza rural com o objetivo de subsidiar a política nacional
de assentamentos rurais.
63
Unidade I

Além de tais temas, que decorrem das conclusões e resultados preliminares


já obtidos, na Fase III do Projeto Rurbano pretende‑se realizar alguns estudos
de caso com vistas a:

• identificar as possíveis causas da subestimação das rendas variáveis


nas PNADs, em particular das rendas agrícolas;

• aprofundar as dinâmicas de geração de ocupações não agrícolas


identificadas no País para algumas regiões específicas que se
destacaram nas análises anteriores (turismo no Nordeste; chácaras de
recreio no Sudeste etc.);

• investigar a questão da identidade das famílias rurais pluriativas


e/ou não agrícolas frente aos novos sujeitos sociais do novo mundo
rural, entre eles caseiros, moradores de condomínios fechados,
aposentados etc.;

• aprofundar o tema das relações entre o desenvolvimento local e


poder local destacando a competência nos diferentes níveis de
ação do poder público (municipal, estadual e federal), bem como
quais seriam as principais formas de intervenção pública e privada
sobre as áreas;

• avaliar o impacto ambiental e socioeconômico das “novas”


atividades desenvolvidas no meio rural, introduzindo a questão da
legislação ambiental, trabalhista e a necessidade de um código do
uso do solo, da água e de outros recursos naturais para a gestão
do território rurbano;

• aprofundar o tema das políticas públicas para o novo rural


brasileiro, com ênfase na política de turismo rural como alternativa
de geração de novas oportunidades de negócios e ocupações no
meio rural.

Para cumprir os objetivos descritos foram delineados 20 subprojetos de


pesquisa, oito teses de doutoramento, sete dissertações de mestrado, além
de vários projetos de iniciação científica. O projeto envolve atualmente
45 pessoas entre professores universitários, profissionais liberais de várias
origens e estudantes de graduação e pós‑graduação, distribuídos por
20 instituições de pesquisa em 11 estados do país, 25 delas com título de
doutor ou superior (SILVA, 2001a, p. 47‑48).

64
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA

Saiba mais
Recomendamos os textos de José Graziano da Silva, que prefere ver as
novas dinâmicas rurais como uma espécie de fusão de atividades urbanas
e rurais, a falar de fim do modo de vida rural. Ele liderou por quase duas
décadas uma linha de pesquisa multidisciplinar e com múltiplas equipes,
chamada Rurbano.
SILVA, J. G. da. Quem precisa de uma estratégia de desenvolvimento?
In: SILVA. J. G.; WEID, J. M. Von der; BIANCHINI, V. José Graziano, Jean
Marc e Bianchini debatem: o Brasil rural precisa de uma estratégia de
desenvolvimento. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Agrário, 2001b.
p. 5‑52. (Série Textos para Discussão n. 2).
SILVA, J. G. da. O novo rural brasileiro. Nova economia, Belo Horizonte,
v. 1, n. 7, p. 43-81, maio 1997. Disponível em: https://bit.ly/3IK4mq6. Acesso
em: 21 maio 2019.

Lembrete

O sentido de Rurbano é oferecer uma oportunidade de desfazer


mal‑entendidos, auxiliando‑nos a enxergar a complexidade da vida social
nos espaços rurais, superando preconceitos de visões lineares que lhe
impingem a aura do atraso quando comparados às áreas urbanas.

A cidade como forma urbana: seus lugares e componentes

Passemos, agora, aos apontamentos sobre a cidade do texto de Sposito (1994), ao modo
de perguntas e considerações didáticas sobre a cidade.

Por que a cidade existe?

Para entendê‑la, é preciso considerar a geografia e a história a fim de compreender a dinâmica


urbana, expressa na produção, distribuição (comércio e serviços), circulação e consumo.

A urbanização é um processo social contraditório – aprofundamento da divisão


socioespacial do trabalho – que se formaliza na cidade; esta tem suas permanências
asseguradas nas formas e funções (atividades, objetos e contradições). A questão, aqui, é de
conteúdos e aparências.

Sociologia, geografia e economia urbanas abordam o espaço, com seus lugares, paisagens
e conflitos sociais, que adquirem sentido no território.
65
Unidade I

A história ocupa‑se das diferentes funções que atribuídas às formas. Trata‑se dos
diferentes conteúdos sociais destas ao longo do tempo, a exemplo do que chamamos
praça, hoje, e na Antiguidade clássica grega; ou mesmo os significados do próprio habitar,
historicamente e para os diferentes povos.

O governo na cidade

O poder público significa a delegação de poder pelos cidadãos às instâncias constituídas,


nas esferas municipal, estadual e federal. É fundamental a questão da arrecadação,
para explicar, inclusive, as ações desse poder como empreendedor, legislador, tributador,
repressor (polícia). Não há neutralidade. Ao poder público cabe o ordenamento territorial
da vida na cidade. As demarcações de público e privado são difíceis e, mais até que
jurídicas, são essencialmente culturais.

Funções regionalizadas (moradia e trabalho):

• infraestrutura;

• produção;

• construção;

• intensidade e densidade dos fluxos;

• disciplinamento do uso do solo urbano.

O poder público também é responsável por algumas medidas para melhorar as condições
de vida nas cidades e nas áreas sob sua influência

Como a cidade cresce?

As cidades apresentam diferentes dimensões e paisagens, com centros de decisões


e territorialização de mercados. Podem ser consideradas de acordo com os critérios de
crescimento populacional horizontal e vertical. Quanto aos estilos e escalas do traçado,
podem ser classificadas como espontâneas, regulares e planejadas.

Chama‑se segregação socioespacial a apropriação seletiva e desigual do solo.

Como a vida circula na cidade?

É preciso considerar, basicamente, valores como democracia e funcionalidade, para


tratar dos diversos modos de transporte. A circulação de veículos, pessoas e cargas envolve
a questão de direito público e privado, legislação de trânsito de mercadorias e pessoas. Modos
e usos ótimos são aqueles que atendem o máximo de pessoas, num ideal democrático de
planejamento e gestão.
66
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA

É preciso morar?

A questão da habitação na cidade é fundamental e multifacetada, apresentando um


imenso déficit e grandes disparidades na qualidade das moradias existentes; todas as áreas
das cidades modernas apresentam profundos problemas, de várias ordens e correspondentes
aos valores concentrados nos locais. É preciso pensar em soluções amplas e de baixo preço.

As atividades de transformação

A indústria é responsável pela produção de bens e da própria cidade, bem como pela
conurbação; apresenta‑se como fabricação, manufatura, meio de produção de diversos
portes e nos vários setores – o que implica outra questão fundamental: a do (des)emprego
e mercado de trabalho.

Os meios de consumo coletivo

São fundamentais para a produção e reprodução sociais; são as escolas, os hospitais, os


ambulatórios, o lazer, as infraestruturas urbanas (energia, esgoto, telefonia etc.), os meios
de comunicação (veículos).

De quem é a cidade?

Os proprietários das diversas formas de capital materializam territorialmente suas


ações, daí originando os conflitos entre os “donos e os não donos da cidade”, como causa
principal dos processos de marginalização e periferização de localizações. Os movimentos
sociais têm nesses processos suas raízes.

A modernidade na cidade

O tempo‑espaço no capitalismo globalizado, evidenciado na informatização e


normatização do tecido urbano, aliados à fluidez da circulação de valores monetários.

O território e o ambiente

O mau uso do solo acarreta impactos no meio, exigindo uma série de medidas e emprego
de recursos técnicos (saneamento, abastecimento de água e captação de esgotos etc.), em
correções de processos nocivos à sociedade e ao meio.

O futuro na cidade

Uma questão sombria sem a adoção de um desenvolvimento realmente sustentável.

Adaptado de: Sposito (1994).

67
Unidade I

4.1.2 A leitura antropológica da cidade

A leitura antropológica da cidade ocupa‑se dos modos culturais de apropriação dos espaços urbanos
com seus recursos simbólicos. Logo, no primeiro capítulo de seu livro, Gilberto Velho fala do antropólogo
pesquisando em sua cidade sobre conhecimento e heresia, abordando questão crucial nos estudos de
campo com observação e levantamento para pesquisa: a distância e a proximidade que o sujeito tem
daquilo que estuda. Segue trecho de seu livro sobre o assunto:

A história da Antropologia, como de qualquer área de conhecimento,


pode ser interpretada como um processo contínuo de confrontação entre
ortodoxos e heréticos. As posições individuais mudam continuamente em
função das trajetórias, das etapas de carreira e de diversas transformações
existenciais. Nem todos os jovens antropólogos são heréticos e nem os mais
velhos são necessariamente defensores da ortodoxia. Em certas situações,
aliás, a tendência pode ser exatamente a inversa (VELHO, 1980, p. 13).

[…]

Já discuti a questão da distância como possível variável propiciadora de maior


isenção e objetividade. O ponto básico é que distância, assim como proximidade
e familiaridade, são noções que devem ser relativizadas e colocadas no
contexto adequado de discussão. Familiaridade e proximidade física não são
sinônimos de conhecimento, assim como viajar milhares de quilômetros não
nos torna livres de nossa socialização com seus estereótipos e preconceitos.
Estes atuarão em outros contextos diante de novos objetos. Ou seja, ir para
outra sociedade e/ou cultura não nos transforma em tábulas rasas. É claro que
são níveis diferentes de envolvimento e, em princípio, poderemos estranhar
situações e fatos que são naturais para o nativo. Mas, se este estranhamente
não for elaborado, poderá ser apenas uma reação preconceituosa de espanto
diante do inusitado. Poderemos privilegiar dados que, dentro da cultura em
pauta, tenham outro peso e significado, pois são naturais. Dada a importância
de procurar’ perceber como os indivíduos da sociedade investigada constroem
e definem a sua realidade, como articulam e que peso relativo têm os fatos
que vivenciam. Ora, o ponto que enfatizei em “Observando o Familiar” é que,
dentro de nossa própria sociedade existe, constantemente, esta experiência de
estranhamento. Vivemos experiências restritas e particulares que tangenciam,
podem eventualmente se cruzar e constantemente correm paralelas a outras
tão plenas de significado quanto as nossas. A possibilidade de partilharmos
patrimônios culturais com os membros de nossa sociedade não nos deve
iludir a respeito das inúmeras descontinuidades e diferenças provindas de
trajetórias, experiências e vivências específicas. Isto fica particularmente
nítido quando fazemos pesquisa em grandes cidades e metrópoles onde a
heterogeneidade provinda da divisão social do trabalho, a complexidade
institucional e a coexistência de numerosas tradições culturais expressam‑se
68
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA

em visões de mundo diferenciadas e até contraditórias. Sob uma perspectiva


mais tradicional, poder‑se‑ia mesmo dizer que é exatamente isto que
permite ao antropólogo realizar investigações na sua própria cidade. Ou seja,
há distâncias culturais nítidas internas ao meio urbano em que vivemos,
permitindo ao “nativo” fazer pesquisas antropológicas com grupos diferentes
do seu, embora possam estar basicamente próximos. Não foi à toa que alguns
dos primeiros trabalhos de Antropologia Urbana foram estudos de minorias
étnicas, imigrantes e, mais tarde, de grupos desviantes, em se tratando de
trabalhos realizados na sociedade do investigador. Não é, no entanto, uma
questão pacífica, pois, ao lado das diferenças, existiriam para vários teóricos
certas características comuns que, definindo uma cultura, envolveriam todos
os seus membros em uma rede de significados específica, em contraste com
outras culturas. A ideia básica é que a sociedade é um sistema anterior, em
termos lógicos, pelo menos, às diferenças e divergências que só podem ser
entendidas em função da lógica do todo já dado. Assim, de alguma forma,
mesmo os comportamentos mais contraditórios seriam de alguma maneira
complementares, ao nível do funcionamento da totalidade. O problema do
antropólogo, neste caso, seria ir além da percepção das diferenças e mesmo
dos conflitos para captar a lógica que define a especificidade da experiência
de um sistema cultural particular (VELHO, 1980, p. 15‑17).

[…]

Neste sentido, sua tarefa consiste em captar o arbitrário cultural que define
toda e qualquer sociedade. O problema teórico com que nos defrontamos
é perceber a abrangência destes sistemas de classificação a representações.
Interpretar o arbitrário que caracteriza e distingue experiências culturais
é tarefa complexa em qualquer investigação antropológica, seja qual for
a distância envolvida. Mas com isso não nego a existência de problemas
metodológicos particulares de que deve estar consciente o antropólogo
de sua própria sociedade. De qualquer forma, ele partilha representações
com círculos mais amplos. Volta‑se à questão clássica mannheimiana
sobre as possibilidades do intelectual alçar‑se, desprender‑se de suas
determinações sociológicas mais imediatas, atingindo uma visão mais
globalizadora e abrangente. Talvez a posição do antropólogo seja muito
específica, mas é possível que, de certa maneira, constitua um caso limite
dentro da intelligentsia. Isto porque para realizar seu trabalho precisa
permanentemente manter uma atitude de estranhamento diante do que se
passa não só à sua volta como com ele mesmo (VELHO, 1980, p. 18).

É por isso que a questão ambiental, tornada acessível pela sua dimensão territorial, já está no nível
do conhecido (plano que nos permite a reprodução e a produção de artefatos), a partir da sistematização
da realidade visível e intervenção. Assumem‑se, portanto, os limites da razão para poder em seguida
expandir o conhecimento que se pode ter. Reduz‑se para, em seguida, expandir‑se.
69
Unidade I

Resumo

O caminho escolhido para desdobrar o conteúdo foi iniciar estabelecendo


o plano teórico, passando pelos usos, ou atividades, típicos dos espaços
rurais e urbanos.

As teorias sociológicas axiais sobre os espaços sociais rurais e urbanos


são aquelas ligadas aos desdobramentos do materialismo histórico de Marx,
do positivismo francês de Durkheim, dos trabalhos da Escola de Chicago, de
Park e Burgess.

As interfaces das ciências sociais são exploradas, com foco na sociologia,


geografa, antropologia, demografia e com as ciências políticas; bem como
foram apresentadas suas linhas de pesquisa das relações nas cidades, nos
campos de moradia e cultivo e de seus vínculos. Os conceitos fundamentais
do tema são: sociedade, comunidade, Estado, urbanização, organizações e
espaços rural, agrário, urbano e da cidade.

Os conceitos implicados nesse tratamento são: território, propriedade,


conflitos, recursos, mobilidade, inviabilidade; imaginário rural, imaginário
urbano, enraizamento e desenraizamento: mobilidade real e ilusões e
transformações das referências. Assim buscamos apoio em teorias, conceitos
e em casos imaginários ou de ficção, além das práticas concretas, que serão
destacados de relatos literários e de entrevistas.

Mais adiante, tratamos da ocupação do espaço e usos territoriais do


ambiente: origem, razões e características dos povoamentos, desenvolvimento,
dinâmica demográfica (crescimento, migração, envelhecimento etc.), usos
que reúnem o ser humano e o ambiente desde território colonial português.

Falamos das especificidades do espaço rural e suas transformações


produtivas, ambientais e culturais, tocando no debate acadêmico e político
entre aqueles que acreditam em permanências de aspectos fundamentais do
modo de vida rural (os adeptos da Reforma agrária e a Escola do Rurbano,
por exemplo) e aqueles que acreditam na urbanização generalizada, com
um capitalismo globalizado aniquilador da essência desse estilo de vida.

Surge a urbanização capitalista (sua qualidade e dimensões) como


processo de expansão das relações e das localizações urbanas antes próprias
às cidades: organização do espaço da cidade, suas racionalidades e
referências a outros modelos de urbanização. Aqui, o cuidado é o de não
recair no modo fácil de explicar as transformações, como um transcurso

70
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA

linear simples.

Aludimos, então, aos desdobramentos das práticas socioespaciais, nas


escalas locais (horizontais) e verticais (espaços não contíguos e hierárquicos),
localizando a vida nos lugares, “rurais” e “urbanos” (rurbanos) e em
movimento pelas regiões (fluxos pelas redes), considerando as migrações.

71
Unidade I

Exercícios

Questão 1. (Enade 2017, adaptada) O fato é que, dentro da grande metrópole, seja Nova York, Paris
ou Rio de Janeiro, há descontinuidades vigorosas entre o “mundo” do pesquisador e outros mundos,
fazendo com que ele, mesmo nova‑iorquino, parisiense, ou carioca, possa ter experiência de estranheza,
não reconhecimento ou até choque cultural.

VELHO, G. Observando o familiar. Um Antropólogo na Cidade: ensaios de antropologia urbana.


Seleção e apresentação: Hermano Vianna, Karina Kuschnir e Celso Castro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2013.

Com base no tema tratado no texto, avalie as afirmações a seguir.

I – Por estar familiarizado com a cidade, o pesquisador que deseja estudá‑la deve adotar
metodologias objetivas.

lI – A grande metrópole apresenta desvantagens no que diz respeito às experiências de estranhamento


de pesquisadores nativos.

IlI – O grau de familiaridade e de conhecimento de fenômenos sociais pelo pesquisador não


é homogêneo.

IV – A observação mais atenta de fenômenos urbanos faculta ao pesquisador estranhar o familiar.

É correto apenas o que se afirma em:

A) I e lI.

B) I e IV.

C) IlI e IV.

D) I, lI e III.

E) lI, IlI e IV.

Resposta correta: alternativa C.

Análise das afirmativas

I – Afirmativa incorreta.

Justificativa: a objetividade é sempre limitada, sempre relativa. O pesquisador estará em algum


momento diante do outro.
72
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA

II – Afirmativa incorreta.

Justificativa: quanto maior a cidade, mais intensos e frequentes serão os estranhamentos.

III – Afirmativa correta.

Justificativa: a familiaridade é sempre seletiva e decorrente dos processos de socialização e


treinamento do pesquisador.

IV – Afirmativa correta.

Justificativa: como diz o enunciado, sempre haverá descontinuidades entre os sujeitos, o que se
confirma com aqueles tornados objetos.

Questão 2. (Enade 2017, adaptada) Segundo o relatório da Organização das Nações Unidas para
a Alimentação e a Agricultura de 2014, a agricultura familiar produz cerca de 80% dos alimentos no
mundo e é guardiã de aproximadamente 75% de todos os recursos agrícolas do planeta. Nesse sentido,
a agricultura familiar é fundamental para a melhoria da sustentabilidade ecológica.

Considerando as informações apresentadas no texto, avalie as afirmações a seguir.

I – Os principais desafios da agricultura familiar estão relacionados à segurança alimentar, à


sustentabilidade ambiental e econômica, além da capacidade produtiva.

II – As políticas públicas para o desenvolvimento da agricultura familiar devem fomentar a inovação,


respeitando o tamanho das propriedades, as tecnologias utilizadas, a integração de mercados e as
configurações ecológicas.

III – A maioria das propriedades agrícolas no mundo tem caráter familiar, entretanto o trabalho
realizado nessas propriedades é majoritariamente resultante da contratação de mão de obra assalariada.

É correto o que se afirma em:

A) I, apenas.

B) III, apenas.

C) I e II, apenas.

D) II e IlI, apenas.

E) I, II e III.

73
Unidade I

Resposta correta: alternativa C.

Análise das afirmativas

I – Afirmativa correta.

Justificativa: a afirmação está correta, pois confirma tanto as informações do trecho


(sustentabilidade e produtividade) quanto no que diz respeito à sustentabilidade econômica
(manter‑se solvável no mercado).

II – Afirmativa correta.

Justificativa: está correta, pois são os princípios de quaisquer políticas e programas que aceitem as
condições originais, culturais e produtivas, das organizações de trabalho familiares; sem descaracterizá‑las.

III – Afirmativa incorreta.

Justificativa: a mão de obra não é predominantemente assalariada. Há, aqui, muito debate sobre o
estatuto desse trabalho, mas em sua maior parte, o trabalho é por conta da própria família, em diversos
graus de inserção na economia capitalista; assumindo as formas do camponês (o parceiro, meeiro) em
relações normalmente pré-capitalistas.

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