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Unidade III
7 TENSÕES ENTRE DIREITOS E NORMAS: PERDAS E GANHOS
[...]
Mais uma parada em nosso roteiro. E consultando nosso mapa corporal, aguçamos a sensibilidade,
provocamos nossa cognição, abrindo nossas vias de apreensão e; desse modo, vamos nos aproximando
da realidade, procurando o que há de rural, de agrário (ou não); procurando também pelas cidades, com
objetos e relações rurais e agrários, mais ou menos presentes.
Metaforicamente, aproximando‑nos, agora, com auxílio dos olhos, ouvidos, nariz, com a memória da
situação do início do trajeto, em que estávamos com os pés no chão. É um momento de identificação
de forças contrárias àquelas apresentadas até então, procuramos rebeldia ao olhar. O enfoque passa a
ser crítico diante das relações sociais consolidadas, sejam econômicas ou culturais – crítica que parte
dos impactos reais das políticas de Estado na vida cotidiana, daí o foco na apreensão dos decretos e
diretivas que se materializam na comum unidade de pessoas, na percepção.
Dessa maneira, estamos procurando tanto os problemas inerentes aos aspectos da vida rural,
quanto falhas estruturais do Estado, em suas ações. Problemas nas associações privadas e/ou
mistas, falhas manifestadas nas formas de concentração de poder privado também em âmbitos
públicos, como os segmentos do aparato estatal, cuja instrumentalização precisa ser procurada em
sua composição e razões.
Nas malhas normativas que descrevemos, é o momento do corpo indócil, expressão de subversões,
alinhado ou não aos movimentos sociais:
• Nos campos: corpos rebeldes que já perceberam que a “diminuição das desigualdades”
promovidas pelas relações estritamente de mercado não leva a melhorias reais, integrais, mas à
homogeneização, a qual leva à questão rural‑agrária (sem‑terra, desemprego, tendência na queda
dos preços dos alimentos, queda nos preços vai de encontro às necessidades dos agricultores,
inseridos no mercado de bens agrários, como afirma Mazoyer, 2010), pois pelo mercado suas
condições de manutenção de “negócios sustentáveis”, economicamente, decrescem, conforme os
preços das corporações podem baixar, sem que seus insumos baixem;
• Nas cidades: trabalhadores despossuídos dos meios de produção assalariam‑se; emerge, assim,
uma questão urbana, como a rural, derivada da desigualdade, porém com problemas de acesso à
riqueza específicos, ligados à reprodução das condições de existência, diante de obstáculos como
trabalho indisponível, transporte com investimentos e diversificação insuficiente, portanto, com
este ineficiente; além de alimentação, habitação, saúde, educação, todos de alto custo. Percalços
ao modo de como os vê Castells, Lefebvre, Kowarick.
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SOCIOLOGIA RURAL E URBANA
Saiba mais
A expressão “corpo indócil”, para nós, faz sentido porque diante das
determinações redutoras do humano, o corpo‑sujeito rebela‑se, não em
busca de liberdades puras, absolutas ou naturais, mas de acordo com as
utopias de humanidade. E não se trata das reduções necessárias, como
aquelas de ímpeto, impulsos e paixões ameaçadoras e destrutivas do
próprio humano, como já nos ensinava Thomas Hobbes, para quem nossas
liberdades ilimitadas não são condizentes com a vida coletiva, requerendo
freios, no caso, de um Estado forte. Sobre o assunto, leia:
As reflexões de Han (2015) são convergentes às nossas quanto à inflexão histórica do cálculo econômico
marcado pela escassez, que se caracteriza agora pela abundância, isto é, momento cujas principais
questões sociais dão‑se em meio a excessos, diferentemente das equações convencionais baseadas em
condições de escassez e de carência, sociedade viral para a neural. Sua “sociologia do cansaço” põe‑se
em alerta diante dos excessos paradoxais das cada vez mais largas escalas e padronizações do fordismo e
do pós‑fordismo. Excessos relativos que, segundo Milton Santos, nos atam (proprietários ricos e classes
médias não mudam nada) aos arranjos sociais ou sociotécnicos elementares do capitalismo.
Daí o modo de vida de males sem defesas, sem alertas de perigos, que tomam os circuitos produtivos,
os quais seguindo o caminho dos circuitos produtivos, em suas múltiplas dimensões (culturais, espaciais,
históricas, biológicas, psicológicas, econômicas), tomam tanto as áreas rurais e atividades agrárias (ou
de poliatividades, como quer Graziano da Silva) quanto urbanas (em cidades ou “suas redes”).
Hoje concordamos que o rural não deveria ser somente caracterizado pelo “agro” (é lugar de
poliatividades), tampouco por atividades estritamente tecnológicas (comumente urbanas, das cidades).
A ideia é, exatamente, fugir dos extremismos, por meio de registros mais fieis dos modos de vida reais,
não de figuras metodológicas que falarão pelo modelo aplicado, do qual são deduzidas.
Nessa empreitada, a antropologia rural ilumina as relações que queremos entender e apresentar e Mellati
(2007) propõe instrumental conceitual elementar associado aos processos básicos às aproximações do
pesquisador; ao nos aproximarmos da sociedade estudada, devemos:
Entre a procura, até certo ponto fracassada, de fundamentos racionais das ciências nos moldes
clássicos, positivistas e o enfrentamento da complexidade, temos um compromisso com a didática ao
apresentar uma síntese de ambos. Assumimos que os modelos que se universalizam não nos trazem o
cerne da vida social, assim como o relativismo também não o poderá fazer. O desafio é encontrar o bom
termo das posições.
Bem, nossa hipótese é de que há perdas de sentido das práticas, em geral, e do trabalho, em particular,
com seu produto em território rural ou urbano.
Vejamos a entrevista concedida por David Harvey (2012b), estudioso da vida moderna nas cidades.
As cidades rebeldes
Acaba de sair, por enquanto, em inglês, um livro indispensável para quem quer debater
crise do capitalismo, degradação social e ambiental das cidades e busca de alternativas.
Numa obra curta (206 páginas), intitulada Cidades Rebeldes, o geógrafo, urbanista e
antropólogo David Harvey sustenta pelo menos três ideias polêmicas e indispensáveis, num
tempo de crise financeira, ataque aos direitos sociais, risco de desastre ambiental e rebeliões
contra o sistema. Elas estão expostas em detalhes em entrevista que Harvey concedeu a
John Brissenden e Ed Lewis, do excelente site britânico New Left Project.
Mas esta abertura ao novo não significa, diz Harvey (e aqui está sua terceira provocação
fundamental), aderir a modismos. O autor saúda o surgimento de uma cultura da
horizontalidade e da desierarquização, nas lutas sociais. Mas sugere: para enfrentar um
sistema altamente articulado, será preciso construir, também, visões de mundo e projetos
de transformação que não podem ser formulados no chão de uma assembleia local de
indignados. Harvey teme que o horizontalismo – grosso modo, a noção de que tudo deve vir
das bases e ser debatido em assembleias – acabe se transformando num fetiche. Seria, ele
adverte, refazer pelo avesso a obsessão dos antigos Partidos Comunistas pela autoridade e
centralização. A entrevista completa vem a seguir.
David Harvey: Um pouco dos dois. Se há um argumento central, ele está nos capítulos 2
(“As raízes urbanas das crises capitalistas”) e 5 (“Reivindicando a cidade para a luta
anticapitalista”). O capítulo 2 é essencialmente sobre as relações entre capital e urbanização;
o 5, sobre a oposição entre o capital e a urbanização. O conflito de classes está basicamente
nos capítulos 2 e 5.
David Harvey: Argumenta‑se que capitalismo tem a ver com competição, algo
muito repetido e valorizado. Mas basta falar com um capitalista para descobrir que ele
prefere o monopólio, se houver essa possibilidade. O que existe na verdade, por parte do
capital, é uma incessante tentativa de evitar situações competitivas por meio de algum
truque monopolista.
Por exemplo, o fato de dar nome e marcas produtos é uma tentativa de colocar neles um
selo do monopólio. É por isso temos o swoosh do Nike [a seta estilizada que caracteriza a
marca], ou ícones parecidos, que tornam certos produtos diferentes de qualquer outra coisa.
Esta tendência ao monopólio é permanente. Ao escrever A Arte da Renda, eu quis chamar
atenção sobre como os capitalistas gostam de chamar algo de original, autêntico, único.
Eles adoram o “marketing da arte”. Há, portanto, um fluxo enorme de capital em direção a
qualquer coisa que se possa facilmente monopolizar.
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David Harvey: Bem, num certo momento, aquilo que não era uma mercadoria de marca
transforma‑se em algo menos exclusivo, uma commodity. Esta tensão sempre existe. Veja,
por exemplo, a modernização dos portos urbanos. O primeiro processo foi muito bom,
todos diziam “que interessante”. Agora, quando você vai a muitas cidades do mundo e lhe
perguntam: “Viu o porto?”, você responde: “Vi um, vi todos”. E Barcelona não parece mais
tão única quanto antes, porque seu porto (modernizado) se parece com qualquer outro.
Rotterdam, Cardiff e, claro, Londres têm um. Não é mais uma coisa única, se tornou apenas
um tipo de taxa urbana comum.
David Harvey: Sim, acho, por exemplo, que a qualidade de vida em uma cidade
frequentemente é algo definido por seus habitantes, sua forma de vida, seu modo de ser.
Para que isso se torne único, o capital depende da inventividade de uma população para
fazer algo, para fazer algo diferente. O capital tende a ser homogenizante. As pessoas
frequentemente fazem o diferencial, produzem atrações únicas, existe um tipo de relação
aí. Isso significa que os movimentos populares podem ter espaço para florescer, para tentar
definir alguma coisa que é radicalmente diferente.
David Harvey: Sim. Em Hamburgo, existe uma área, o bairro St. Pauli, que era cheio
de squats (ocupações de prédios abandonados, em geral, feitas por jovens e imigrantes).
Eles criaram um ambiente único, muito diverso. Múltiplas etnias, classes, uma vida urbana
muito intensa. O setor imobiliário, muito presente em Hamburgo, havia transformado a
cidade em algo muito homogêneo. De repente, perceberam que existe esse bairro incrível,
e agora estão tentando apropriar‑se dele, comprando casas e alugando‑as por um preço
diferenciado, porque “não é interessante viver nesse bairro vibrante?”. Esse tipo de coisa
você vê nas cidades a toda hora: as pessoas criam um bairro único, ele se torna burguês
e entediante.
Tentei entender por quê. Quando os Giants venceram o Superbowl (campeonato nacional
de futebol americano), as pessoas tomaram as ruas, interromperam a atividade normal de
maneira ainda mais clara e a polícia não fez nada. “Ah, eles estão apenas comemorando”.
Mas o Occupy cria, por seu significado político, uma resposta violenta. E se você pergunta
por que, sinto que Wall Street enerva‑se muito com a possibilidade de esse movimento virar
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moda. Se isso ocorrer, haverá uma clara demanda para responsabilizar pessoas por muito
do que aconteceu à economia. E o pessoal de Wall Street sabe o que fez, sabe que tem
responsabilidade e que pode acabar preso. Penso que dizem ao prefeito e a todas as demais
autoridades: “acabe com esse movimento antes que vá longe demais”. Isole‑o, faça com que
pareça muito violento. Então você acaba com esse tipo de resposta política.
David Harvey: Eu estive fora ano passado inteiro, realmente não acompanhei o Occupy
em seu período mais ativo nos Estados Unidos. Mas algo que fizeram foi chamar muita
atenção para a questão da desigualdade social, para os bônus enormes pagos aos altos
executivos. Estes conceitos estão se espalhando. Antes do Occupy, nada disso era discutido.
Agora o Partido Democrata nos Estados Unidos, e até Obama, estão dispostos a tratar a
desigualdade social como um problema. Os acionistas das grandes empresas estão começando
a votar contra os grandes pacotes de bônus. Acho que tudo isso foi consequência da agenda
criada pelo movimento. Mas, como sempre acontece, os poderes políticos cooptam parte do
discurso contra o sistema e tentam diluí‑lo. Vivemos agora uma fase de certa cooptação, em
que os acionistas estão assumindo parte da retórica e Obama, outra parte.
Ed: Sobre isso, estamos interessados em suas discussões sobre estratégia. Como ponto de
partida, é claro que a concepção tradicional que a esquerda tinha, da classe operária industrial
como sujeito revolucionário e agente de mudança, não se encaixa mais no Ocidente. Você
pode contar como reconcebeu o sujeito revolucionário, quem pode constituí‑lo hoje e como
está relacionado às cidades e à identidade urbana?
David Harvey: Para tratar deste tema, faço uma pergunta: quem está produzindo e
reproduzindo a vida urbana? Se você olhar para o tipo de produção que prevalece hoje,
definirá o proletariado de maneira totalmente distinta da que se contentava em associá‑lo
ao trabalhador fabril.
Este é o passo necessário. A partir daí, é possível pensar em quais formas de organização
são possíveis hoje, entre as novas populações urbanas. Elas são mais difíceis de organizar,
precisamente porque não estão em fábricas. Por exemplo, a imensa quantidade de
trabalhadores que atuam no transporte de produtos e pessoas, de caminhoneiros a taxistas,
como organizá‑los?
urbana. Por isso, deveríamos nos preocupar em organizar politicamente estes trabalhadores,
para influir na qualidade e natureza da vida nas cidades. Em alguns casos, a organização
é muito difícil; em outros, pode ser muito vigorosa, mas assume frequentemente formas
muito distintas das tradicionais.
Ed: Você acha que a esquerda está mergulhada neste tema, em compreender os desafios
e oportunidades com que nos deparamos?
David Harvey: Penso que, historicamente, a esquerda sempre estabeleceu algum tipo de
separação entre o que você poderia chamar de organizações de trabalhadores, ou baseadas
em classes, e movimentos sociais. Uma de minhas batalhas nos últimos 30 ou 40 anos tem
sido dizer que é preciso enxergar estes movimentos como movimentos de classe. Penso que
houve uma relutância a aceitar isso, em muitos setores da esquerda.
Veja que esta relutância diminuiu, inclusive em razão da rapidez com que o trabalho fabril
desapareceu. Quando cheguei em Baltimore, em 1969, havia algo como 35 mil operários na
fábrica de aço. Quinze anos depois, eram 10 mil e na virada do século, apenas 2 mil. Se você
quisesse organizar algo politicamente em 1970, você abria um diálogo com o sindicato dos
metalúrgicos, porque eles tinham musculatura. Hoje, são irrelevantes. Mas, se o sindicato já
não conta, como organizar os trabalhadores? Diante desta questão, penso que a esquerda
passou a compreender e valorizar melhor os movimentos sociais.
Ed: Em relação às dificuldades na organização dos grupos de que estamos falando, você
investigou uma grande variedade de movimentos, em momentos diferentes. Existem lições
particulares que devam ser generalizadas?
David Harvey: A maioria dos grupos desse tipo aparece como de organizações por
direitos sociais. Sob esse guarda‑chuva, eles podem criar formas organizativas menos
restritas que as dos sindicatos convencionais. Agora, uma das coisas que vi em Baltimore foi
que um movimento de sindicatos convencionais pode ser hostil a essas novas organizações.
O movimento sindical convencional dividia‑se: algumas vezes eles apoiavam; mas era mais
comum considerarem essas formas de organização como uma ameaça a si próprio.
Penso que hoje, o movimento sindical convencional está preparado para enxergar essas
organizações como cruciais para apoiar suas lutas. Começa a surgir um tipo de coalizão. Na
marcha do Primeiro de Maio realizada em Nova York, há pouco, pessoas tradicionalmente
ligadas ao movimento sindical juntaram‑se aos movimentos sociais.
Sou muito a favor de uma forma diferente de organização sindical, de preferência local,
e não por setor. Acredito que os sindicatos convencionais devem prestar mais atenção
aos conselhos de comércio locais e aos conselhos municipais. Os sindicatos tendem a
se preocupar apenas com o bem‑estar de seus membros, e uma organização geográfica
precisa pensar no proletariado em geral, na cidade. Desse ponto de vista, uma forma de
organização diferente pode abranger uma cidade inteira, e unir pessoas envolvidas em
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Ed: No capítulo 5 do novo livro, você relaciona algumas de suas hipóteses sobre organização
urbana às dificuldades enfrentadas pelas formas tradicionais de organização da esquerda.
Não apenas no que diz respeito a diferente composição do proletariado, mas também nas
relações com organizações autônomas, como cooperativas; ou na dificuldade para atuar na
esfera estatal. Você parece sugerir que as cidades são locais de organização especialmente
poderosos e, se fosse possível organizar uma cidade inteira, então possivelmente estaríamos
muito empoderados. Por que você acha que as cidades são tão importantes? As cidades
radicalmente isoladas não sofreriam da mesma vulnerabilidade das cooperativas?
David Harvey: Gosto de pensar nas cidades porque são uma escala maior que uma simples
fábrica. Se você observar as fábricas recuperadas na Argentina, tomadas pelos trabalhadores
em 2001 – 2002, verá que uma das dificuldades que surgiriam desse movimento e das
associações de trabalhadores envolvidas é que, em certo ponto, como estão imersas num
sistema capitalista, veem‑se envolvidas na competição e, em consequência, em práticas de
auto exploração.
Marx tem uma série de passagens interessantes, onde se diz que o primeiro passo em
direção a uma transformação revolucionária é a tomada dos meios de produção pelos
trabalhadores; mas se ficarmos apenas nesse nível, não será suficiente. Se você começar a
pensar em organizar uma cidade inteira (e isso está começando a acontecer um pouco na
Argentina), as fábricas precisarão de matérias primas – se você está produzindo camisas,
precisa de tecido. Mas de onde vem o pano? Bem, você começa a criar uma rede; monta
uma rede de cooperativas produzindo coisas diferentes, interligadas.
Você pode imaginar que podem surgir, em uma área metropolitana, economias
interligadas dessa forma, o que nos levaria além das possibilidades de tomar apenas uma
fábrica específica. Outro fato interessante sobre as fábricas na Argentina é que quando
foram tomadas, não permaneceram simplesmente como fábricas. Tornaram‑se centros
comunitários, integraram realmente os bairros próximos, tinham programas educacionais e
culturais. Quando os donos voltaram, uns cinco anos depois, e disseram: “queremos nossa
fábrica de volta ou levaremos as máquinas”, a população saiu de suas casas para impedi‑los.
Assim, é muito mais fácil de defender as fábricas tomadas.
Claro que se você tentar criar uma cidade totalmente comunista no meio do capitalismo,
provavelmente irá sofrer uma repressão real e violenta. Estará numa situação como a da
Síria, em uma cidade como Homs onde há um movimento de oposição muito forte. De
certa forma, é uma cidade rebelde, cercada pelo exército e esmagada, com pessoas mortas
e outras submetidas.
Penso que há perigo real em ir muito longe e muito rápido. Quão longe uma cidade pode
ir, em relação a sua organização? Há exemplos disso: Porto Alegre construiu sua forma de
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David Harvey: É preciso sempre ter cuidado. Quando sou crítico, não estou desprezando.
Sustento que algumas estratégias são boas, que as pessoas poderiam adotá‑las, mas por
outro lado temos que considerar as limitações da realidade. Em que momento você passa
de uma “estratégia dos cupins” para outra? Uma das coisas em que realmente me empenhei,
no capítulo 5, foi tentar mostrar que há uma variedade de estratégias, para uma variedade
de situações e propósitos. Não devemos, portanto, nos restringir dizendo: “esta é a única
estratégia que vai funcionar”. Podemos adotar diversas, todas as que forem possíveis. Em
alguns casos, não há outra opção além de se envolver em estratégia de cupins; e é possível,
ainda assim, fazer um bom trabalho.
John: Você fala no livro sobre a cidade chinesa de Chongqing, onde Bo Xilai, líder
do Partido Comunista, liderou processos muito interessantes, até ser afastado. Seria um
exemplo dos riscos de ir “longe demais, rápido demais”?
David Harvey: Bem, eu não sou especialista em China, e me pergunto se ele era tão
brutal e tão corrupta como está sendo pintada; ou se o retratam dessa maneira porque
não gostam do modelo que estava desenvolvendo. Era maoísta na retórica; estava muito
preocupado com a redistribuição da riqueza. Estava muito claro que sua tentativa de se
tornar poderoso no Comitê Central baseava‑se no desenvolvimento deste modelo urbano
particular, radicalmente distinto do que se vê em Xangai, Shenzhen e lugares assim. Nesse
aspecto, eu o achava muito interessante.
Agora, tanto quanto sei, o Comitê Central tem adotado, como políticas nacionais, algumas
das práticas que Bo lançou em Chongqing. Isso é típico: como sabemos, há na China uma
necessidade de incentivar o mercado interno e alguma preocupação sobre redistribuição da
riqueza. Eles observaram um processo local bem‑sucedido e talvez tenham decidido enfrentar
estes problemas por meio de aumento salários ou construção de habitações, como Bo estava
fazendo. Pode ser o modelo chinês de urbanização, que tem sido, na minha opinião, bastante
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desastroso – ambiental e mesmo economicamente – mude nos próximos anos, nas mesmas
linhas que o dirigente afastado estabeleceu. Mas ressalto que são apenas especulações.
Ed: Quero voltar para o que você afirmou sobre abraçar uma pluralidade de estratégias, e
uma diversidade de formas organizacionais. Você tem participado de um debate permanente,
e às vezes ácido, opondo “horizontalistas” a “centralistas”, ou “verticalistas”. Pode falar mais
sobre isso, e como se relaciona a sua análise sobre capitalismo e cidade?
David Harvey: Acho que há hoje um grande apego pela horizontalidade. Tento dizer a
meus alunos que gosto de passar grande parte da minha vida no horizontal, mas também
gosto de ficar de pé de vez em quando e andar por aí! Porque acho que esta oposição não
é útil. Sou a favor de ser tão horizontal quanto você puder. Mas há o que chamo no livro de
uma espécie de fetichismo da forma de organização — o que foi terrível nas concepções
de centralismo democrático dos partidos leninistas e comunistas.
Repito: a questão é para mim, identificar que tipo de organização será capaz de enfrentar
e resolver cada tipo de problema. Acho que a horizontalidade pode ajudar a resolver alguns
problemas, em certas escalas, mas não funciona em outras situações. Vivemos num mundo
onde há sistemas muito estruturados, de maneira que você também precisa de estruturas de
comando e controle para lidar com eles. Por exemplo, uma estação de energia nuclear é um
sistema fortemente estruturado. Quando algo dá errado, você precisa reagir imediatamente,
caso contrário tudo acontece muito rápido e explode. A universidade não é um sistema
fortemente hierarquizado. Se algo der errado nela; se alguém não aparecer para uma
palestra, por exemplo, isso importa pouco: a instituição sobrevive perfeitamente bem. Mas
em sistemas fortemente hierarquizados, você precisa tomar decisões com rapidez.
Por isso, pergunto aos horizontalistas radicais: você quer organizar o controle de tráfego
aéreo por meio de princípios horizontalistas? Quer ter assembleias o tempo todo, na torre
de controle de tráfego aéreo? Será que funciona? Como você se sentiria se estivesse no
meio de um voo cruzando o Atlântico, e de repente dissessem: “bem, os controladores de
tráfego aéreo estão em assembleia, e eles vão nos informar amanhã o que decidiram”? Há
muitas atividades que precisam, como essa, de formas bem diferentes de organização. Acho
ótimos que as pessoas estejam debatendo horizontalidade, mas é ruim que digam algo
como: “ou é horizontal, ou não é nada”.
David Harvey: Sim, claro, acho que a autoridade tem seu papel. O problema importantíssimo
que se coloca é: como você controla uma autoridade? Quais são os mecanismos de revisão
de mandatos e de controle? Porque uma estrutura hierárquica pode, de fato, tornar‑se
autoritária. Mas há uma grande diferença entre autoritarismo e autoridade. Eu acho que em
certas situações, você precisa de alguém para exercer autoridade.
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O exemplo ilustre de que muitas pessoas lembrariam são os zapatistas. Mas eles,
militarmente, não são horizontais. Sobrevivem até hoje precisamente porque, se você tentar
mexer com os militares, eles têm um comando muito bom e estruturas de controle com
os quais podem resistir. Se você não tiver isso, será muito vulnerável. Uma das críticas
que sempre foram feitas à Comuna de Paris é que, devido a uma espécie de anarquismo
filosófico, não havia nenhuma autoridade central para defender a cidade inteira.
As pessoas defendiam seu distrito, mas não toda a cidade. Por isso as forças da reação puderam
atacar: não havia nenhuma estrutura de comando e controle para resistir militarmente à invasão.
John: Você fala, no novo livro, sobre Murray Bookchin, e sua abordagem sobre uma saída
para este problema de escala.
Ou seja, ele está disposto a pensar em uma estrutura hierárquica de algum tipo, tenta
falar sobre como os poderes foram atribuídos e como devem ser. Recorre a um pequeno
truque teórico de Saint‑Simon: diz que pode haver gerenciamento das coisas, não de
pessoas. Que se deve gerir, por exemplo, o abastecimento de água ou o saneamento de uma
região – mas não o que as pessoas fazem. É muito diferente da política real, mas a ideia, – e
o pensamento de Bookchin em geral – me parece muito interessante.
Participei, há duas semanas, de uma reunião em Nova York, com David Graeber. Murray
Bookchin compareceu ao debate. Sua filha estava na plateia, e nós conversamos sobre reunir,
num pequeno livro, uma seleção de escritos de Murray sobre o tema. Acho que é um momento
muito bom para reintroduzir a tradição anarquista, que pode contribuir para o debate sobre
algumas questões mais amplas. Por exemplo, como você realiza tantas assembleias municipais
e não coloca em questão o fato de algumas pessoas, com muitos recursos, converterem‑se em
ultraricos – enquanto muitos, sem recursos, reduzem‑se a ultrapobres?
Ed: Sua visão parece que, no fim das contas, será necessário um Estado. Parece que você
acha que Bookchin talvez aceite isso, mas não pode admitir.
David Harvey: Sim. Você sabe: o que se parece com um Estado, é visto como um
Estado, e se expressa como um Estado é um Estado! Há algo que se pode chamar de Estado
capitalista, que poderíamos querer esmagar. Mas há, também, uma forma de organização
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que diz respeito às relações entre diferentes assembleias e grupos. E no plano mundial, você
também tem que pensar sobre certas questões como o aquecimento global. Precisam ser
abordadas e compreendidas em plano global. Significa que certas ideias sobre o que fazer
têm de ser resultado de uma preocupação mundial.
John: Isso nos leva de volta a um ponto que abordamos antes, sobre as organizações
com base geográfica. Existe uma oposição entre o urbano e o não urbano?
David Harvey: Muitas pessoas me fazem essa pergunta. Elas dizem “a cidade não existe
realmente hoje. Você está falando sobre o direito a algo que não existe mais?” Ou: “você
está falando sobre a cidade, por que não sobre o campo. Por que você não fala sobre as áreas
rurais?”. Minha resposta é que, de fato, nos últimos cinquenta anos, nós nos tornamos um mundo
totalmente urbano, e o que pode ter sido verdade há algum tempo – a existência de uma vida
urbana e uma vida camponesa autossustentável, independente – desapareceu em grande parte.
O que você vê é um contínuo entre o campo e a cidade. Na América Latina, por exemplo, se você
está na área rural, as pessoas assistem aos mesmos canais na televisão, dirigem os mesmos
carros. Isso é o que chamo de desenvolvimento geográfico desigual no interior do processo
de urbanização.
E desse ponto de vista, você diz que as diferenças no interior das cidades são tão
significativas quanto as diferenças entre a cidade e subúrbio, e o subúrbio e as zonas não
urbanas. Há tantas diferenciações no interior do próprio processo de urbanização, que a
diferença entre áreas ricas e favela é dramática – na realidade, mais dramática que a que
existe entre o que acontece na cidade e fora dela.
David Harvey: Eu diria que sim. A única razão pela qual me atenho a palavra “cidade”
é que ela tem um significado icônico e é foco de sonhos e utopias. Ao mencioná‑la, você
está invocando o imaginário de uma cidade linda, uma cidade na colina etc. Continuo com
o termo “cidade”, mas entendo perfeitamente que, em um sentido estrito, diferenciado de
todo o resto, ela essencialmente desapareceu.
Fonte: Harvey (2012b).
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Dentre os problemas e as saídas anunciadas por Harvey para o estado de coisas de saber extrínseco
e abstrato, estão aquelas que pleiteiam novas formas (e novas leituras de antigas formas) de relações e
usos ambientais.
A essa altura saltam aos olhos (narizes, ouvidos) as formas diferenciadas e as maneiras em que
cada um toma para si o entorno imediato até os pontos mais distantes das cadeias de acontecimentos!
E nos indagamos sobre essa fenomenologia, ou seja, o modo como os fenômenos são conhecidos pelo
corpo‑sujeito.
Algo dessas questões desafiadoras estão presentes no trecho sobre a poesia nos usos que Marcovaldo
faz da capital, interiorano de vida rural, então em Roma. Italo Calvino (1994) em Marcovaldo ou As
estações na cidade mostra a fruição e os usos que a personagem Marcovaldo faz da cidade em geral,
e da praça, em particular, que é sempre possível ver além do texto imposto, da ordem imposta como
norma. Ele vê coisas em todos os lugares por onde passa, coisas que ninguém vê! É um belo exercício de
percepção e lirismo. Segue trecho do posfácio sobre o curioso personagem em sua busca incessante
de migrante no lugar atual (uma grande cidade) por elementos que ficaram para trás (as coisas do campo).
[…]
O volume foi publicado pela primeira vez em 1963, em Turim, pela editora Einaudi, com
ilustrações de Sergio Tofano. O texto de apresentação (escrito provavelmente pelo autor) dizia:
“Dentro da cidade de concreto e asfalto, Marcovaldo vai em busca da Natureza. Mas ainda
existe a Natureza? A que encontra é uma Natureza ardilosa, falsificada, comprometida com
a vida artificial. Personagem engraçada e melancólica, Marcovaldo é o protagonista de uma
série de fábulas modernas” que – dizia mais adiante a mesma apresentação – “se mantêm fiéis
a uma estrutura narrativa clássica: a das histórias em quadrinhos das revistas infantis”.
Os contos às vezes seguem esse esquema na forma mais simples, justamente como
histórias em quadrinhos (assim os mais breves: “Cogumelos na cidade”, “O pombo municipal”,
“O tratamento com vespas” etc.), com a surpresa no quadrinho final (aliás, surpresa ruim,
porque esses contos se parecem com aquelas historinhas cômicas “sem palavras” que
inevitavelmente acabam mal), às vezes como pequenos contos amargos, quase realísticos
(como “A marmita”, “Ar puro”, “Uma viagem com as vacas”), e finalmente como contos
em que estado de alma e paisagem prevalecem (como a solidão do animal em “O coelho
venenoso” ou o desnorteamento na neblina em “O ponto errado”).
Talvez para salientar o caráter de fábula, as personagens dessas pequenas cenas de vida
contemporânea – sejam elas varredores, guardas‑noturnos, desempregados, carregadores –
possuem nomes pomposos, medievais, quase de heróis de poemas de cavalaria, começando
pelo protagonista. Apenas as crianças têm nomes normais, talvez porque apenas elas são
mostradas como são, e não como caricaturas.
A cidade não é nomeada nunca; por alguns aspectos poderia ser Milão, por outros (o
rio, os morros) pode‑se reconhecer Turim (a cidade onde o autor passou grande parte da
sua vida). Sem dúvida, essa indeterminação é procurada pelo autor para significar que não
se trata de uma cidade, mas da cidade, uma metrópole industrial qualquer, abstrata e típica
como abstratas e típicas são as histórias contadas.
Podemos agora definir melhor a posição deste livro frente ao mundo que nos cerca. É a
nostalgia, a saudade de um idílico mundo perdido? Uma leitura nessa chave, comum a tanta
literatura contemporânea que condena a desumanização da “civilização industrial” em nome
de um sentimento nostálgico do passado, certamente é a mais fácil. Mas, observando com
maior atenção, vemos que aqui a crítica à “civilização industrial” é acompanhada de uma
crítica igualmente decidida a todo sonho de “paraíso perdido”. O idílio “industrial” é alvejado
tanto quanto o idílio “campestre”; não apenas uma “volta atrás” na história é impossível, mas
também aquele “atrás” nunca existiu, é uma ilusão. O amor de Marcovaldo pela natureza é
aquele que pode nascer apenas num homem da cidade; por isso não podemos saber nada
da sua origem extraurbana; esse estranho à cidade é o cidadão por excelência.
[…]
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SOCIOLOGIA RURAL E URBANA
Saiba mais
Se, por um lado, temos os processos homogeneizantes, por outro, há um apelo ou deveria
haver, aos retratos etnográficos dos povos que, mesmo sendo misturados, até mesmo nivelados na
base, estão fora da briga pelo topo. Sempre há especificidades, sempre devem ser resgatadas de
nossas profundezas tribais, comunais, ancestrais dos fios culturais de cada sociedade.
Desse modo, surge a questão das possibilidades em meio à tanta vigilância e punição (Michel
Foucault), elaborando racionalidades alternativas (Jürgen Habermas), entendendo o campo de forças
envolvidas (Pierre Bourdieu) e as cifração do social (Milton Santos). Então, a questão é: como se
apropriar dos aspectos que ora são requeridos pelo mercado, pelos agentes de mercado com poder
classificatório e normativo?
Saiba mais
173
Unidade III
Os movimentos e organizações sociais, além das manifestações de vários segmentos das sociedades
em várias partes do mundo, são o melhor do exercício político, expressando a multiplicidade de projetos
de sociedade. Aqui, é o trabalho de cada um, junto com as faces culturais do humano, que vão expor
suas particularidades ou a essência do ser social, que podem amparar a construção da cidadania com
bases públicas. O foco é a visão política.
A cidadania formal é aquela prometida no terreno normativo, enquanto a cidadania real é aquela
constituída nos afazeres dos habitantes em seus próprios meios: os espaços rural e urbano. Os direitos e
normas, quando necessários, segundo Hannah Arendt (2006) dificilmente garantirão justiça.
Aqui, o núcleo dinamizador dos eventos é o político. Experiências, práticas e percepções novas são
requeridas, com novas organizações e grupos, eventuais e permanentes. O foco político descobre movimentos
por ocupação de espaços (Occupy) da parte de diferentes grupos (identificados, agregados por idades, renda,
representações, procura por lazeres, entre outros motivos). Os grupos perseguem ideias que nascem das
possibilidades culturais, antes de a utopia constituir seu lugar político que garantirá sua reprodução.
A segurança, a violência real e a percebida em meio a esse jogo de forças são resultantes de idílios e
distorções nas causas da segregação socioespacial, e tal percepção advém do foco na dimensão política
da sociedade.
As soluções impostas, ao longo de nossa história, têm sido quase sempre privadas (mesmo quando
provenientes do Estado, em suas várias esferas, da União, dos estados federados e dos municípios),
normalmente parciais e dualistas; enquanto as públicas devem ser portadoras de legitimidade. É o que
define o âmbito público, a própria ideia de república trata do que é de todos.
O direito à terra, no campo e na cidade, do modo como discutimos nesse trabalho, envolve leis, novas ou
reformadas, planos reguladores das relações sociais com base nas noções de público (riqueza da vida social) e
privado (relações sociais degradadas em benefício próprio), evidenciando as razões dos grupos políticos.
Emerge o trabalho coletivo que em tese seria como o Estado republicano com o ser social privado,
corporativo; assim, a configuração econômica do Estado‑territorial é o mercado nacional, isto é, agente
das relações internacionais.
Mais adiante, traremos uma reflexão de Milton Santos sobre a seletividade do desenvolvimento pela
difusão de inovações, desqualificando e precarizando o acesso aos recursos e ao próprio trabalho.
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SOCIOLOGIA RURAL E URBANA
Os agentes sociais buscam melhores condições para si, em meio à arena em que todos querem mais
espaço para manobrar, portanto, é assim que surgem os agentes que cobram dívidas públicas, como aquelas
garantidas constitucionalmente, tais quais: terra, habitação, segurança, educação, entre outros direitos.
O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), no campo; ou sem-teto, na cidade, são
expressões desses projetos que não se satisfizeram com a partilha automática de riquezas; querem
participar ativamente. Vamos ilustrar o acesso seletivo à terra e o papel do Estado por meio de uma
música do grupo Skank.
Sem Terra
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Unidade III
Ainda segundo esse autor, embora tenham ocorrido melhorias sociais no Brasil, persistem graves
problemas no acesso à educação, moradia, justiça, segurança. Ele vê graves problemas nos padrões
dominantes de produção e de consumo que se apoiam na degradação ambiental muito mais vigorosa do
que o poder da legislação voltada à sua contenção. Haveria de promover inovação tecnológica “cada vez
mais orientada a colocar a ciência a serviço de sistemas produtivos altamente poupadores de materiais,
de energia, e capazes de contribuir para a regeneração da biodiversidade” (ABRAMOVAY, 2010, p. 98).
Indo direto ao ponto em sua análise da estrutura produtiva brasileira, o autor acrescenta que:
[…] os significativos progressos dos últimos anos são ameaçados pela ausência
do horizonte estratégico voltado ao desenvolvimento sustentável, tanto por
parte do governo como das direções empresariais: de um lado a redução no
desmatamento da Amazônia não é acompanhada por mudança no padrão
dominante de uso dos recursos. Assim, apesar da contenção da devastação
florestal, prevalece entre os agentes econômicos a ideia central de que a
produção de commodities (fundamentalmente carne, soja e madeira de
baixa qualidade), minérios e energia é a vocação decisiva da região. Além
disso, ao mesmo tempo em que se reduz o desmatamento na Amazônia,
amplia‑se de maneira alarmante a devastação do cerrado e da caatinga.
De outro lado, o segundo exemplo aqui apresentado mostra que o trunfo
representado pela matriz energética brasileira não tem sido aproveitado para
a construção de avanços industriais norteados pela preocupação explícita
em reduzir o uso de materiais e de energia nos processos produtivos.
A consequência e o risco é que o crescimento industrial brasileiro – ainda
que marcado por emissões relativamente baixas de gases de efeito estufa
– se distancie do padrão dominante da inovação contemporânea, cada vez
mais orientada pela descarbonização da economia (ABRAMOVAY, 2010, p. 98).
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SOCIOLOGIA RURAL E URBANA
Antes de mostrar processos agropecuários industriais com crescentes valores econômicos agregados
à produção, muito impactantes nas organizações dos grupos humanos, em seus estilos de vida e sistemas
ambientais, e nas alternativas mais sustentáveis; serão apresentadas, brevemente, formas de vida e
produção que têm melhores relações com os ambientes, usando‑as, mas mantendo‑as, como agriculturas
sustentáveis originais, com métodos vernaculares e que podem nos ensinar muito ainda hoje.
São formas de vida muito antigas, com aproximadamente 10.000 anos, (HAVILAND et al., 2011), que
praticavam atividades de coleta (extrativismo) e cultivo (agricultura, pecuária) similares àquelas que hoje
chamamos agroecologia: conjunto de conhecimentos e procedimentos inspirados nos baixos impactos
negativos dos velhos saberes e usos. A agroecologia soube aprender.
O território, que é nossa porta de entrada para essas questões, é moldado pelos usos dos grupos
sociais, suas ligações com a natureza, mais especificamente com aquilo que chamamos de ecossistemas
ou conjunto ambientais, e mais organismos, identificando‑os, classificando‑os, inventariando‑os,
aplicando conhecimento, e também pelo modo como esses grupos representam tais usos na cultura que
desenvolvem. Por usos, nos referimos a todo trabalho desenvolvido pelo ser humano sobre as coisas,
mudando‑as e também transformando a ele próprio.
Usar as coisas ao nosso redor é o que enraíza a história humana, portanto sigamos com uma
palavrinha sobre como nos relacionamos com o ambiente circundante baseados na necessidade
irrefletida de sobrevivência e no impulso de criar meios diferentes dos naturais que lhe antecedem.
Em busca dos sujeitos sociais, fazemos a mesma pergunta essencial que Maria José Carneiro (2000):
em que consiste o “familiar” da chamada “agricultura familiar”?
A autora lembra que Weber ensina que os modelos classificatórios, ou as tipologias, não se referem
à realidade empírica imediata; mas que nem por isso deixam de ser construídos em conformidade com
essa realidade, encontrando nas relações sociais a matéria‑prima para essas construções abstratas.
Ou seja, o modelo não pode jamais ser reduzido a um conjunto de relações sociais observáveis em uma
realidade dada. É necessário buscar, portanto, o significado dos fatos e das relações sociais (de trabalho,
por exemplo) no contexto em que se expressam e na sua relação com a totalidade que os envolve,
já que, em se tratando de sistemas, cada parte não pode ser entendida isoladamente da outra, daí a
importância do debate e de suas causas subjacentes.
O debate sobre a agricultura familiar no Brasil nos chama a atenção para, ao menos, dois problemas
que necessitam maiores investimentos dos estudiosos do assunto. Um deles diz respeito à dificuldade
em se articular o modelo construído como definidor da agricultura familiar e a realidade da qual se está
tratando. Aqui, encontramos duas alternativas: não é raro que se atribua a essa construção abstrata o
status de realidade ou, no caminho inverso, que se tome uma determinada realidade, normalmente aquela
que se está estudando, como modelo ou expressão do que se entende por agricultura familiar. Ambas as
abordagens acabam dificultando ainda mais a já complicada tarefa de se trabalhar comparativamente
e dar conta da heterogeneidade das formas através das quais a agricultura familiar se expressa no País
(CARNEIRO, 2000).
177
Unidade III
No que nos interessa particularmente nesta apresentação, caberia enfatizar que o significado das
atividades não agrícolas deverá ser buscado na posição que elas ocupam no conjunto das estratégias
familiares de reprodução social e, sobretudo, o contexto socioeconômico em que se mostre.
Nesse sentido, não podemos falar das atividades não agrícolas como um fenômeno único e
homogêneo, da mesma maneira como seria inadequado se referir ao pluriativo como uma nova
categoria social no meio rural (CARNEIRO, 2000).
Ela faz considerações teóricas e metodológicas sobre a pesquisa com os agentes e grupos em espaço
rural. Uma estruturação é tão verdadeira quanto outra, pois:
Para pormenores sobre a análise “agricultura familiar”, vamos ao seguinte trecho de Carneiro:
mercado e a ação da tecnologia sobre esse conjunto de fatores. É interessante observar que,
nessas análises, o adjetivo “familiar” só é acionado para caracterizar a equipe de trabalho.
O caráter familiar da chamada “agricultura familiar” se reduz, assim, ao “trabalho familiar”
em oposição ao que é entendido como “não familiar”, ou seja, o trabalho assalariado.
A expectativa de consumo ou acesso à riqueza social produzida, com um ideal de cidadania, está na
base das relações entre os agentes concretos; o envelhecimento direcionado dos objetos e das ideias.
A autora fala de seu apreço pela produção orgânica, discorrendo sobre a situação brasileira. Ela traça
um quadro evolutivo, que vai dos anos 1980 e 1990, com a multiplicação das organizações ligadas à
produção orgânica, crescimento da quantidade de produtores e aumento da produção, da diversidade
e da qualidade. Lembra‑nos que, em duas décadas, (seu texto de referência é de 2000), o mercado fica
restrito a poucas feiras e cestões ou sacolões com venda direta ao consumidor. Atualmente, essas feiras
fixaram‑se e algumas tornaram‑se minimercados e estão presentes em praticamente todas as capitais
do Centro‑Sul do país.
O autor aponta o aumento da demanda por produtos orgânicos, levando “as grandes redes de
supermercados a estabelecerem estandes específicos num número crescente de lojas no Centro‑Sul”
do país, requerendo “organização de um mercado atacadista”, sendo incorporados os produtos
orgânicos às vias construídas de distribuição. Ele fala em estimativas de crescimento desse mercado
em 30% ao ano (KHATOUNIAN, 2001, p. 32).
Khatounian faz importantes considerações sobre o que chama de “descompasso entre os anseios
da população consumidora por produtos limpos e a percepção pelos agricultores e distribuidores
das oportunidades de negócios que tais anseios representam” (p. 33). Acha que há “despreparo dos
técnicos e agricultores”, ainda muito dependentes dos produtos agroquímicos. Daí indica o treinamento
desses profissionais (técnicos e agricultores), já na primeira fase das iniciativas de produção orgânica, e
arremata: “a agricultura orgânica utiliza menos insumos materiais que a agroquímica, mas exige muito
mais de um produto intangível: o conhecimento” (KHATOUNIAN, 2001, p. 33).
A questão política dos interesses corporativos é fundamental e ajuda a entender por que não há
disseminação e por que o mercado não é formado integralmente por produtos saudáveis:
Khatounian continua explicando que, “do ponto de vista técnico, a agricultura ecológica tem sido
relativamente bem‑sucedida, apesar de o apoio da investigação científica e assistência técnica oficiais
terem sido quase nulos até muito recentemente” (KHATOUNIAN, 2001, p. 32‑33). As políticas públicas
voltadas para esse fim, seja no nível dos municípios ou dos estados, deveriam ser maciças, com vistas
ao desenvolvimento.
O autor ainda afirma que, do ponto de vista da tecnologia, os cultivos orgânicos “costumam
apresentar elementos recuperados de bons exemplos do passado, combinados com procedimentos de
ponta em termos de manejo de microrganismos, controle fitossanitário, variedades, máquinas e insumos
ecologicamente corretos” (KHATOUNIAN, 2001, p. 32‑33).
Lembre‑se de que há lacunas tecnológicas em algumas culturas, notadamente naquelas que também
são as mais problemáticas na agricultura convencional, tais como a batatinha, o tomate, o algodão e as
uvas europeias, dentre outras. Porém, afirma que há duas frentes:
Embora estratégico, não parece simpático ao cultivo da biodiversidade esse segundo caminho, o da
redução, sendo que o próprio autor acrescenta essa reflexão: “plantas bem adaptadas em ambientes
bem manejados, normalmente produzem bem, a despeito de pragas e doenças” (KHATOUNIAN, 2001,
p. 33‑34).
É muito importante entendermos o debate sobre a “agricultura sem agrotóxicos” que tem, de um
lado, aqueles de posição acadêmica cientificista com grande apelo aos avanços da química na nutrição
artificial e no combate aos desequilíbrios ecológicos por envenenamento; e, de outro, aqueles com
abertura tanto ao (re)aprendizado das tradições quanto para novas experiências com tecnologias
limpas, naturais. E, assim, para tanto, devemos recorrer ao corpo conceitual desse questionamento:
181
Unidade III
Saiba mais
Lembrete
A ecologia não pode nos salvar sem a economia. O que é preciso fazer é
submeter a economia aos ritmos e recursos ambientais, e não o contrário.
Observação
182
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA
Seja como for, depois das dezenas de entrevistas que fiz, livros que li, documentários
que vi e lugares que visitei para produzir este livro, uma coisa me parece certa: o
futuro da comida é uma volta ao passado (KEDOUK, 2013, p. 214).
O corpo intenciona, deseja soluções e, desse modo, cada um perfaz com sua vida‑projeto sua unidade
(ou Gestalt), nem sempre democrática, nem sempre inclusiva. Mas a vida‑projeto, como a vê Sartre,
tem um movimento que envolve a todos na própria busca, pois se é meu projeto, e este logicamente
é sempre bom, então será de igual modo bom para todos; é a ética do existencialismo sartreano, nos
caminhos da “unidade”: o humano inteiro no horizonte das possibilidades.
Tendo marcado mais esse ponto em nosso mapa corporal, damos um salto para alguns projetos
(de vida) de melhoria coletiva, que se propõem a irradiar benefícios nas relações próximas e pelos
encadeamentos que devem conduzir tais benefícios.
Nossas soluções, como acredita Sartre, devem ser boas para todos. E são multidimensionais; atendem
a todas as esferas da vida social, nas diversas escalas, desde o indivíduo motivado socialmente até as
instituições. Falemos do comércio justo como solução que transborda, como veremos, da economia
para as demais dimensões sociais. O objetivo político mais antigo é o da qualidade de vida; para tanto,
seguiremos por casos expressivos de alternativas.
Processos ubíquos, à conveniência e à revelia dos países historicamente periféricos, passam por onde
interessa, seguindo a “lógica do gerente de banco”: no discurso, todos interessam, entretanto, quem se
quer ver nas agências é o cliente (ou candidato a sê‑lo) cuja demanda seja solvável, aquele que pode
pagar pelos produtos e serviços.
Vimos o peso da norma para os habitantes dos espaços rural e urbano; agora vejamos as saídas pela
cultura, pelas tradições preteridas, articuladas criticamente.
Se a história fenomênica, daquilo que aparece, é uma história de usos sociais do ambiente, então usos
antropocêntricos geraram espaços sociais insustentáveis, pela simples ideia reinante de natureza infinita.
Percebemos num determinado momento que as atividades, agrárias e industriais, estabeleceram‑se
183
Unidade III
sob dinâmicas predatórias, tanto no que concerne às relações entre as pessoas quanto destas com os
ambientes que as circundam e suportam.
Desse modo, uma avaliação de impacto ambiental pode ser posta a favor da população‑alvo do
levantamento, sendo instrumento (e procedimentos) de política ambiental capaz de assegurar que se
faça um exame sistemático dos impactos ambientais de uma ação proposta (projeto, programa, plano
ou política) e de suas alternativas, e que os resultados sejam apresentados de forma adequada ao
público e aos responsáveis pela tomada de decisão, e por eles considerados em conjunto (BARBIERI,
2010; SEIFFERT, 2007).
• Informações gerais.
• Caracterização do empreendimento.
• Área de influência.
• Qualidade ambiental.
O Relatório de Impacto Ambiental (Rima) é o documento que apresenta resultados dos estudos
técnicos e científicos de avaliação de impacto ambiental.
O diagnóstico socioambiental é a descrição e análise dos recursos ambientais e suas interações, tal
como existem, de modo a caracterizar a situação ambiental da área, antes da implantação do projeto
(CONAMA, 1986). Mas deveria ser muito mais, do ponto de vista do das ciências humanas e sociais,
seria preciso enriquecer a definição com os atributos sociológicos, antropológicos e políticos das regiões
afetadas pelos empreendimentos. O mesmo vale para o prognóstico:
Precisamos ir além das tipologias de impactos predefinidos, mergulhando nos lugares estudados
para aferir sua qualidade “real”, seja no campo, seja na cidade.
• Captar o estado de degradação socioespacial dos lugares requer caracterização dos usos territoriais
(história do envolvimento do ser humano com o ambiente), do sentido socioespacial da ocupação
humana, considerando suas consequências nas áreas estudadas.
• Os aspectos físicos e biológicos do território, como relevo, cursos d’água, fauna e vegetação, em
linhas gerais, são os recursos às atividades; já os aspectos culturais do território são a história da
conformação das paisagens.
185
Unidade III
• Observar, sentir e perceber os lugares visitados como conjuntos, suas formas e funções dinâmicas
como ambientes naturais culturalmente transformados pelas atividades sociais.
• Observar que alguns dos aspectos geográficos são: topografia (formas de relevo e associações),
hidrografia (formações d’água), pedologia (solos), além da vegetação, e fauna eventual, entre
outros, bem como as interações entre o meio e os grupos sociais, baseados no conceito de
território (organização do espaço).
• Enfatizar a conexão, a interação entre todos os elementos, vistos ou apenas inferidos em sua
história como paisagens (seres vivos, objetos técnicos, obras de saneamento básico e ambiental,
por exemplo; qualquer coisa que pareça merecer atenção). Políticas, leis e decretos estão presentes
nas paisagens observadas; procurar sinais, indícios de sua presença na organização da ocupação.
Aspectos físicos
• Relevo, córregos, rios e canais (geomorfologia, topografia e relevo; e hidrografia, cursos d’água em
geral). Aqui, deve‑se definir, representar e descrever as características físicas básicas das áreas, de
modo a relacionar os planos de análise e percepção e os territórios no momento atual.
Aspectos biológicos
186
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA
Aspectos culturais
• Descrição geral da paisagem: a relação da sociedade com o ambiente, com ênfase na história
da ocupação da área (história da ocupação da região e problemas socioambientais provindos
dessa relação). Problemas da ocupação da região, na forma e no conteúdo, como distribuição de
resíduos sólidos, habitação, circulação de pessoas e coisas, sem‑teto etc.
• Projetos e programas públicos (e privados) para a área, com vistas à consecução de urbanização
sustentável. Aqui, deve‑se definir, representar e descrever alguns dados sobre programas
disciplinadores do uso do espaço; sobre a espacialização da legislação e diretrizes gerais e
atividades permitidas, zoneamento e equipamento.
Na elaboração do trabalho é dada ênfase à percepção e às vivências dos sujeitos envolvidos, alunos
pesquisadores e pesquisados, e atenção aos indícios históricos e de processos geoecológicos.
• Anotar tudo, para permitir contextualizar elementos e dados e não deixá‑los soltos.
• Associar os objetos e as ações percebidos com tudo aquilo que já for conhecido, referenciando‑os.
Pede‑se a cada grupo para confeccionar um “Caderno de Campo” com as seguintes características:
187
Unidade III
• variação escalar: ensaios sobre a escala ideal de análise e representação dos processos;
Exemplo de aplicação
Um exercício bastante didático por contrastar duas percepções: a do técnico, especialista e mesmo
a do cientista que estuda, planeja e gerencia os problemas; e aquela do morador, do habitante que as
vivencia. O principal aqui é a sensibilização, principalmente para o que é novo, para o que é desconhecido.
Os alunos são estimulados a observarem o quadro a seguir acompanhado por um excerto do texto.
É muito simples o que devemos fazer: na tabela a seguir, há duas colunas que nos interessam – a
primeira e a terceira –, que apresentam numerações discrepantes entre a hierarquização inicial das variáveis.
A primeira coluna foi estabelecida pelos técnicos e pesquisadores, e a segunda é resultante de discussão em
plenária (com os envolvidos, além dos técnicos e pesquisadores). Ou seja, as duas colunas são diferentes. Então,
com base na análise do quadro e na leitura do trecho do texto de Akerman, reflita sobre as asserções a seguir:
• a primeira coluna da tabela a seguir é prevista pela equipe técnica e tudo indica seu desconhecimento
e falta de experiência pessoal das carências das áreas estudadas;
• enquanto a segunda coluna apresenta a síntese das discussões entre os técnicos e os habitantes (senso
comum fundamental por levar vida à ciência), hierarquiza os números de modo que os valores das
variáveis mudam conforme se vivenciam os problemas e a carência não é apenas estudada, mas vivida.
Tabela 4
189
Unidade III
Lembrete
Abrimos uma seção para trazer experiências cujas motivações, as formas sociais e o pano de fundo
predominante são rurais, de acordo com conceituação que utilizamos neste livro‑texto. Sublinhamos
que de modo algum estamos seccionando, separando os âmbitos rural e urbano, pois perfazem a
unidade social, regional, com atributos mais ou menos, em outros, marcantes ou identitários. O próprio
município é uma entidade que vincula práticas urbanas e rurais, de formas variadas.
Saiba mais
Quais as alternativas econômicas, produtivas, que privilegiem a população como um todo? Quais
são as formas que não apenas beneficiem os grupos que controlem os setores econômicos? Como
atuar politicamente sobre as distorções proporcionadas por tais grupos controladores, reprodutores
responsáveis pelos movimentos concentradores próprios do capitalismo.
Existem algumas soluções simples, mas não menos engenhosas. Aliada às demais formas democráticas
de economia (mais ou menos democráticas dependendo dos interesses e composição dos agentes
propositores), como a economia social, a solidária, e até mesmo a criativa, temos uma proposta de
atividade econômica também em bases democráticas, e muito interessante é a do comércio justo ou
fair trade, cujo principal papel é permitir controle maior do produtor sobre seu trabalho, bem como
afastar do campo os atravessadores e exploradores dos trabalhadores. Portanto, ao encurtar os circuitos
econômicos cujos extremos são produtores e consumidores, os trabalhadores conseguem aumento do
retorno nesses momentos das relações de produção; valorizam trabalho e consumo, procurando afastar
os intermediários que aviltam as margens dos produtores e inflam os preços ao consumidor.
190
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA
Com todas as vantagens em diminuição dos custos para a população, ainda temos muitas mais: as
cadeias refeitas, reelaboradas pelos agentes envolvidos no comércio justo, alimentam a produção com
dinamismo político, participação nas decisões e realizações, sem o grande número de aproveitadores,
cuja intromissão daninha é quase naturalizada. Tal dinamismo envolve relações de vida comunitária e de
vizinhança crescentes nos espaços rurais com quaisquer que sejam os níveis de urbanização.
Antes de apresentar dois casos de êxito empreendedor viabilizado nos níveis individual e coletivo, no
campo e na cidade, precisamos estabelecer algumas condições para essa frente de projetos democráticos;
que coloquemos em pauta algumas discussões canônicas que, ao surgirem, aparecem como verdadeiras
profissões de fé de agentes corporativos, entrincheirados em suas disciplinas acadêmicas, institutos de
pesquisa e aparatos de Estado.
Assim, devemos procurar os significados expandidos de termos como mercado, por exemplo. E, ao
fazê‑lo, encontramos fios diversos que conectam os seres humanos e mais um imenso potencial de
sociabilidades convencionais (expressões de culturas locais) e de ajuda mútua (as experiências mais
diversas, retratadas pelos meios de comunicação do Fórum Social Mundial – FSM, e pelos veículos do
Conselho Latinoamericano de Ciências Sociais – Clacso, por exemplo).
Numa palavrinha sobre mercado como construção social, Karl Polanyi nos acode com a flexibilização
do termo:
Bem, explorando a margem de escolhas e decisões apontada por K. Polanyi, podemos estender o
raciocínio para a sociologia econômica
A sociologia criticaria, assim, a ciência econômica neoclássica por idealização formalista das
relações sociais, sobrelevando o papel das médias e normais estatísticas na explicação positivista
dos comportamentos individuais, atendo‑se aos neoclássicos, por exemplo, ao caráter mercantil
e individualista da dinâmica social. Nesse ramo da economia, o foco está nos agentes econômicos
(produtor, consumidor, atravessador etc.) como entes essencialmente racionais (e egoístas), ou melhor,
que priorizam seus ganhos individuais.
Saiba mais
Assim, a sociologia econômica tem origem no início do século XX, marcadamente “entre os anos
de 1890 a 1920, com os textos de Weber, Durkheim e Simmel, e após 1980, com emergência da Nova
Sociologia Econômica”. Ao citar Smelser e Swedberg em vários momentos de sua tese, Carvalho (2015)
afirma que “o objetivo das produções, grosso modo, era […] combinar a análise de interesses econômicos
com uma análise das relações sociais”.
Antônio Daniel Alves Carvalho (2015) estabelece a comparação entre as ideias da sociologia econômica
e o mainstream da Economia, ressaltando alguns aspectos que permitem evidenciar diferenças entre as
áreas, conforme demonstra o quadro a seguir:
192
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA
Os objetivos são a conquista da consciência social da importância histórica de comer, isto é, adequada
aos estilos de vida, e tanto por meio do (re)aprendizado criativo e coerente de formas tradicionais
quanto por modos totalmente novos. Em suma: construção da saúde pela qualidade de vida (qualidade
ambiental), na qual se tangencia na prática a noção de sustentabilidade.
Os meios para isso são o manejo correto dos ecossistemas, nos planos científico (física, química e
biologia) e sociológico (cultura em suas várias dimensões: base simbólica, percepção e memória, história
e técnica; cultura expressa nos usos territoriais dos lugares), seguido por práticas econômicas inovadoras
(mesmo quando milenares) diante da padronização das redes e sistemas em escala planetária: comércio
justo ou fair trade, economia social, solidária, colaborativa e criativa como instrumentos de inserção
social, consciência dos processos globais de produção (cadeias completas, contra o fracionamento do
processo produtivo).
193
Unidade III
Todas as facilidades tecnológicas, expressas nas intrincadas relações da vida cotidiana, apoiam‑se
na velocidade de transporte (levar produtos e serviços pelos circuitos mercantis e financeiros) e
comunicações (informações e propaganda a serviço do crescimento do consumo), explicam a miríade
de alimentos processados (BRAVERMAN, 1987); (SUSTENTÁVEL, 2016).
A questão da tecnologia não pode ser vista de modo isolado, pois temos que nos perguntar sempre
quem ganha e quem perde desde sua concepção, suas intenções, seu desenvolvimento e emprego. Uma
referência importante nessa questão é Laymert Garcia dos Santos (2003).
A principal pergunta está invertida, pois nosso foco, como civilização, é como produzir mais e com
maior lucro concentrado; quando deveria ser como produzir o que precisamos de fato, para a demanda
real de saúde, de modo adequado a nossa vida moderna, que exige balanço nutricional bem diferente
de outros tempos.
A produção concentrada de cunho corporativo não deixa espaço para a transformação dos processos
de modo a atender aos ideais, aos parâmetros (tradicionais e ou modernos) de saúde.
História e tradição se combinam nos movimentos que são às vezes contraditórios. Enquanto
tratarmos solo, folhas e água como sujeira, continuaremos descartando soluções integradas.
194
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA
Estamos tratando da perda de horizontes da unidade dos corpos humanos, dos micro e macro‑organismos
e os ambientes da Terra, sejam predominantemente rurais ou urbanos. Perda da totalidade nos significados e
nos sentidos das ações e das práticas sociais em geral, que adquire maior gravidade nas concepções sociais
fragmentárias dos Estados em seus vários níveis (união, unidades federadas e municípios) acerca da vida
individual e socioambiental, cada vez mais desintegrada de suas dimensões.
Depois, o raciocínio passa a ser intermediado por questões e exemplos destacados do extremamente
importante documentário Sustentável, que traz várias pessoas das cidades e dos campos que estão
ligadas, de algum modo, por pessoas que as conectam. É excelente a perspectiva porque todas
participam da qualificação de suas atividades: produtores rurais, chefes de cozinha e donos de
restaurantes, padeiros, pesquisadores.
Alternância de milho (com nitrogênio e outros fertilizantes minerais) e soja em Iowa, nos Estados
Unidos da América, é o tipo de cultivo no qual as ervas daninhas são erradicadas por agentes químicos.
Este é o sistema majoritário e perverso (SUSTENTÁVEL, 2016).
Então, o que fazer? Matt Liebman, pesquisador da Iowa State University, fala da experiência de redução
de 95% desses insumos. Ao trocar os cultivares para aveia e trevo ou aveia e alfafa, o trevo retira o nitrogênio
do ar e leva até suas raízes. Também fala sobre as razões presentes na diversificação de sistemas e diminuição
da dependência de agentes químicos industrializados. A principal delas: não sabemos o custo dos danos
ambientais, comprometimento da água, do solo, contaminação de outras culturas (SUSTENTÁVEL, 2016).
Se os custos externos fossem computados, a agricultura convencional seria muito mais cara do que
se propaga.
Deve‑se diversificar, diz ele, pois o solo absorverá mais água no período das chuvas e reterá mais
água no período de secas. Mas, e o mercado? O solo vivo e saudável é, portanto, mais resiliente. O modelo
de negócios vigente é concentrado e domina a lógica de investimentos e serviços financeiros.
Os mares de milho e soja obedecem à lógica dos papéis negociados nos mercados, em suas diversas
escalas. Os sistemas financeiros, técnicos e culturais são voltados para a manutenção dessa matriz.
Alteração radical de hábitos alimentares (e produtivos) tradicionais só vimos na América conquistada,
que tem suas matrizes alteradas pelo paladar e imposição europeus (CROSBY, 1993).
A percepção dos chefs de cozinha do ciclo produtivo inteiro é algo muito antigo que recomeça. É de
grande estímulo ao produtor com métodos sustentáveis.
195
Unidade III
O filho de Marty (SUSTENTÁVEL, 2016) aponta mais da perversidade a que somos levados (o
exemplo é estadunidense, mas serve para as regiões enredadas pela globalização): há um custo
enorme nos subsídios pagos pelo Estado aos agricultores convencionais, pois são muito dependentes
das cotações das bolsas de commodities; e, quando em baixa, precisam de aportes governamentais.
Ou seja, é mais lucrativo de modo privado e os prejuízos são públicos. Precisamos entender melhor
o capitalismo.
Mark Smallwood, do Rodale Institute, afirma que a agricultura convencional é baseada na química
(e quantidades), enquanto a orgânica é na biologia (e na qualidade).
O discurso diz que a produção orgânica não produz em larga escala para o comércio exterior; mas
Mark contradiz essa máxima, afirmando que se igualam.
Ele fala em agricultura orgânica regenerativa, que alimentaria o mundo para sempre e não por 50 anos.
John Ikerd, de University of Missouri, fala da lógica sedutora, da racionalidade da agroindústria; sua
fácil aceitação se deve tanto à lógica dos mercados quanto a cenários de fome e perdas da agricultura
tradicional (SUSTENTÁVEL, 2016).
Perversidade expressa, no limite, pelos suicídios “na crise da lavoura dos anos 80”, que obrigou
fazendeiros a venderem suas fazendas. John Ikerd diz que ficou intrigado com tais suicídios e descobriu
a ligação profunda desses fazendeiros com suas terras, “era como perderem a si mesmos! Não era só um
trabalho, era a vida dessas pessoas sendo destruídas”. A questão é ética (SUSTENTÁVEL, 2016).
Marty é fazendeiro e o importante pivô tomado pelo filme e criou um grupo de cooperação entre
produtores sob demanda, e se expande ano a ano. Criou a rede complementar entre colaboradores
interessados da região (produtores com operação ociosa), encurtou o circuito econômico (rural‑urbano)
com produtos diferenciados e até mesmo desprezados pelos fazendeiros convencionais (ervas
consideradas daninhas, o mato; algumas espécies de grãos já considerados extintos). Muda a forma de
produzir daqueles que o seguem em sua empreitada..., a Stwart’s Land, seu projeto. Promove um resgate
social e psíquico das famílias engajadas (SUSTENTÁVEL, 2016).
Marty fala em desenvolvimento endógeno e sustentável, mas do ponto de vista de uma vida boa,
saudável, sem privilegiar a fundamentação científica, mas sem desconsiderá-la (SUSTENTÁVEL, 2016).
Professor de marketing alimentar da Saint Joseph’s University, John Stanton fala, em entrevista aos
direitos, do apelo das embalagens, com foco no que falta nos produtos, fala das dificuldades de tratar
de uma produção local com cadeias fracionadas do capitalismo globalizado (produtos são compostos
ao longo de cadeias por vários países do mundo). Dá o exemplo da laranja (Brasil – Flórida e Geórgia),
para mostrar quanto as dietas locais têm sido supridas por produtos estrangeiros (SUSTENTÁVEL, 2016).
196
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA
Marion Nestre, autora de livro sobre políticas alimentares, fala do mercado e de seus investimentos
pesados em publicidade (SUSTENTÁVEL, 2016).
Marty fala de sua motivação em criar a rede complementar (complementaridade entre atividades
rural‑urbanas de vários tipos), de uma noção de interligação e interdependência entre as pessoas e com
suas fazendas (terras), com o objetivo de prover os seres humanos com bons produtos com boa comida!
Marty tem um manejo incrível, intenso, e ao criar porcos, preocupa‑se com a qualidade, tanto da carne
quanto da vida do porco, isto é, do ciclo todo até a compostagem (SUSTENTÁVEL, 2016).
O documentário trata da redescoberta pelos chefs de cozinha das origens de sua arte. Ao visitarem
a fazenda de Marty, eles codeterminam sua produção, aprendem (SUSTENTÁVEL, 2016). Isso é
revolucionário. Além disso, fala da importância dos grãos para a segurança alimentar mundial; grãos
representam 75% da produção agrícola (SUSTENTÁVEL, 2016).
O filme traz questões impensáveis para a produção em massa das grandes indústrias (como
o documentário Mondovino já havia feito). Separamos o agro (atividades do universo produtivo
primário) e a cultura, do modo como já fizemos com ars e techné; arte e técnica, que se referiam
ao mesmo objeto.
Como pensar em fazer pães com pasta madre ou fermentação natural, que é muito superior em
todos os sentidos, no mundo veloz de hoje? Como se dedicar à alimentação no mundo que não deixa
tempo para tanto?
As leis ajudam a manter o estado de coisas diante da pressão da produção... uma certa inércia das
práticas agronômicas/econômicas. É só observarmos a conivência de ambas as frentes, produtivas
e analíticas. Há forte tendência ao pragmatismo e ao atavismo, de técnicos, administradores e até
mesmo acadêmico.
Bill Nyman cria animais com a perspectiva da “bioenergética”, com serviço de nutróloga, alimentação
balanceada. É um espetáculo de se ver a visão unicista (SUSTENTÁVEL, 2016).
O filme mostra como o agronegócio pode ser reinventado por meio do investimento no manejo
de pastagens, vinculado à preservação do solo socavado pelas patas do gado e com a manutenção da
umidade pela vegetação. Tudo resolvido com o conhecimento da própria natureza (SUSTENTÁVEL, 2016).
Para os membros da cultura Amish, que o diretor entrevista, nossa cultura e costumes estariam
muito degenerados, para uma agricultura orgânica, sustentável. Seria, então, necessária uma agricultura
regenerativa, que cumpriria tal função, e na qual as plantas desenvolvessem enorme resiliência ante os
estresses a que as submetemos, de temperatura à pressão de outras espécies, sendo economicamente
197
Unidade III
mais viáveis as fazendas com “produção” sustentável; e isso é novo de se ouvir; mais rentáveis, opondo‑se
ao dito corrente de que são mais onerosas (SUSTENTÁVEL, 2016).
Os profissionais mostram como se deve cuidar dos cultivares, com análises da seiva das plantas, por
exemplo: os excessos (de minerais) é que estão causando problemas, trata‑se, basicamente, de nutrir
corretamente as plantas. Mostram, além disso, curiosos casos de pioneirismo com cerejas e batatas, que
podem servir de regulação ambiental (SUSTENTÁVEL, 2016).
Citamos breves estudos de casos rurais e urbanos para mostrar algo de bom, de qualificação da
produção e melhoria de nossa saúde, já feito no Brasil. Primeiramente, o caso da cooperativa dos
produtores de caju, como atividade rural‑urbana. Mais adiante, virá o caso urbano‑rural.
Saiba mais
198
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA
8.5 Algumas considerações sobre a cidade, o novo urbano que temos hoje
199
Unidade III
Tanto a taberna de Henri Lefebvre quanto o café de Ray Oldenburg citado nas epígrafes trazem dois
aspectos de uma questão maior: um dos aspectos é aquele da “destruição criativa” das cidades, e o outro
trata dos males de toda a destruição promovida em nome da modernização de lugares; oferece guarida
e oportunidades, além de estímulos ao convívio. Portanto, enquanto temos exemplos aos montes de
destruição com as frentes de investimento e lucro aniquilando a memória das paisagens, sem considerar
os aspectos culturais das cidades, os terceiros espaços de Oldenburg cumpririam o papel de reservas de
convivência e exercícios de vizinhança.
Junto com a busca dos elos perdidos de vizinhança e amizade nas finadas cidades, emergiriam mais
frentes da sustentabilidade, como é o caso do cuidado.
Donos do lugar
A maior parte das pessoas que moravam nas periferias, onde realizávamos os mutirões,
vinha de fora, pois quando a pessoa não vê futuro em sua cidade natal parte para a
metrópole. Contrapor‑se à sua história original é a primeira quebra de identidade. Quando
200
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA
a pessoa chega à cidade grande, vem a segunda. Quem era Zezinho ou Mariazinha lá no
interior vira um zé‑ninguém. Estranha à cidade, a tendência da pessoa é se voltar para
dentro. É muito comum a pessoa construir um barraco e, na parte interna, botar azulejos
da melhor marca, mas não se preocupar com o acabamento externo, pois não quer mostrar
nada de bom para fora, quer mais é se cercar. Daí vêm os cacos de vidro nos muros, as cercas.
Primeiro, porque as pessoas se sentem seguras, obviamente, mas também porque a rua, que
na cidade de origem era o lugar que agregava, na cidade grande, é o lugar que desagrega.
Sim. Não existe possibilidade de se construir uma identidade coletiva sem o reforço da
identidade individual. Você só forma a identidade coletiva quando se reconhece como um
ser importante dentro da comunidade, diferente e único. Na hora em que você resgata
sua história, mesmo com os erros e fracassos, você cria uma estrutura, que é você mesmo,
e passa a ser respeitado. A palavra respeito vem de re‑spectare: olhar muitas vezes para
trás. E a história do coletivo é formada por um grande número de histórias individuais,
a partir do momento em que você tem uma relação franca com o outro, em que você
respeita o outro porque conhece sua história. Você não está vinculado ao vizinho pelo
espaço físico simplesmente.
Quando você sente que o espaço é seu, você cuida e quer interferir, você limpa, não
deixa abandonado. Então, o limite entre o público e o privado é muito menos hostil, as
cercas são mais baixas, as pessoas convivem mais. Mas às vezes ocorre o contrário. Espaços
comuns são tratados como privados.
Teoricamente, o hall do apartamento, por exemplo, pertence tanto a você quanto ao seu
vizinho. Muitas vezes, entretanto, acabamos estabelecendo uma fração do hall como nosso
e, se a plantinha da vizinha cresceu demais e saiu dos limites, já nos sentimos agredidos.
201
Unidade III
Crie um projeto coletivo. Se você tem um projeto comum, que seja botar uma luminária
legal no hall, já vale. Pode ser que saia uma coisa horrível, que as pessoas queiram colocar
um lustre de cristal, mas é uma discussão saudável. Se há um salão de festas no prédio,
vamos fazer uma festa lá?
Projetos coletivos se contrapõem ao espaço que tenta ser o menos coletivo possível.
Agora, é difícil, você tem que enfrentar um monte de coisas chatas.
Mas, às vezes, é preciso passar pela chateação para resolver as questões da coletividade.
Quanto mais relações houver entre as pessoas, melhor. Mesmo que seja para criticar, para
xingar, pois isso é menos solitário do que a não convivência. Por que é tão encantador andar
nas ruas de Nápoles, de Veneza?
Não só porque são estreitas e cheias de história, mas porque sempre tem aquela gritaria,
o varal na janela. Cria‑se essa quase promiscuidade urbana que até certo ponto é saudável.
Fonte: Santos (2007).
Exemplo de aplicação
O texto anterior é uma entrevista com o arquiteto Roberto Pompéia. Este é um exercício de percepção
ambiental com base no fortalecimento dos vínculos com o outro cultural, e nosso objetivo é qualificar as
relações socioambientais em oposição ao massacre normativo da criatividade na vida cotidiana.
A entrevista torna‑se interessante para nós à medida que traz um conjunto de questões diferentes
daquelas feitas pelo comum dos profissionais, pois considera as dimensões da sociabilidade, da afetividade,
202
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA
Com base no texto anterior e nas propostas de qualificação ambiental, responda às questões a seguir:
• Quais são os principais problemas identificados pelo entrevistado e as soluções gerais por
ele apontadas?
• Qual é o foco dessas propostas e o que permite ao autor acreditar nesse caminho de enfrentamento
dos tais problemas?
Saiba mais
Ainda no que diz respeito às alternativas para as cidades, junto com a inovação do comércio justo
apontada para o campo, indicamos agora experiência equivalente ao caso da Coopercaju, dessa vez
ocorrida na cidade de Poços de Caldas, em Minas Gerais.
Poços de Caldas é primeira Fair Trade Town entre as regiões produtoras de café
do globo
203
Unidade III
[…] como: Primeira cidade de comércio justo na América Latina e em um país produtor.
O município brasileiro de Poços de Caldas, localizado na região sul de Minas Gerais, bem
como outros municípios vizinhos, possuíam associações de pequenos produtores e empresas
com certificação Fair Trade, voltadas principalmente à exportação de produtos para países
desenvolvidos. A novidade da notícia reside na iniciativa de promover o consumo de
produtos de comércio justo nos mercados locais dos países do sul.
[…]
[…]
204
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA
A maior bandeira do comércio justo é a melhoria da qualidade de vida e trabalho para os produtores
e para os consumidores, cujas atividades são sistematicamente aviltadas pelos atravessadores e
intermediários que auferem e concentram os lucros do processo produtivo, prejudicando todos os
outros cidadãos.
A partir do que foi apresentado, podemos concluir que as alternativas ao modelo atual de exploração
dos recursos ganham terreno quando alimentadas com cuidadoso e despojado estudo das práticas sociais
originais, em geral, e produtivas, em particular; isto é, as práticas nativas ou autóctones, vernáculas,
vistas anteriormente.
Vimos, também ajudados pela abordagem sobre as perdas de qualidade advindas das mudanças
culturais nas simbologias das necessidades do trabalho, que o próprio caráter da produção é deslocado
do suprimento básico à sobrevivência para os aumentos em escala que não compensam os riscos e
impactos negativos à integridade alimentar; há uma geração de insegurança alimentar.
Com os problemas ambientais e alimentares mais prementes, aprendemos que, se estamos nos
envenenando, também podemos limpar os ambientes e a produção em todas as suas etapas, fundindo os
conhecimentos das atividades agrárias aos ecológicos, agora com ética. Colocamos as bases da noção de
sustentabilidade, tratando‑se do potencial desdenhado de produzir em frentes que trazem experiências
de manejo novas e antigas coordenadas. Assim, ficamos conhecendo exemplos de atuação de agentes
envolvidos nessas novas formas de pensar, limpas, ecológicas, orgânicas, a partir da realidade, e não
fugindo dela, como querem os críticos.
Encerramos com a pesquisa de Kedouk (2013) sobre dinâmica social, que nos é muito cara: a produção
de sujeitos individuais, a mais antiga e útil que existe. Há, aqui, quando da inserção do assunto, um
debate entre duas concepções de crescimento econômico: uma, atrelada às demandas internacionais às
quais visa atender, assim fazendo caixa e patrocinando desenvolvimento; e a outra, que acredita que, se
todos que souberem fazer alguma coisa, o fizerem efetivamente em suas casas, com os equipamentos
que já possuem, um grande passo já terá sido dado para a cidadania por meio da integração social pela
economia. A primeira é baseada em grandes visões estruturais e sistêmicas, enquanto esta última tem
suas crenças na liberdade de exercer conhecimentos e com eles participar ativamente da vida social
local e regional, em princípio.
Prato sujo
A produção artesanal de comida também está voltando à tona. É o caso dos queijos
de regiões mineiras como Serro, uma cidade que foi colonizada pelos portugueses e se
desenvolveu por causa da mineração. As famílias por ali tinham o costume de fazer o
próprio queijo, principalmente quando queriam agradar as visitas que chegavam ou
presentear alguém que morava longe – os queijos eram despachados para o País inteiro,
na Serra da Canastra, também. Os tropeiros que passavam na cidade guiando animais de
uma região para outra davam uma parada na Canastra para se abastecer com o queijo
típico de lá. Quando as minas se esgotaram, os moradores começaram a produzir para
vender, e fizeram desse trabalho sua fonte de renda. Até que, em 1952, uma lei federal
que tem o objetivo de garantir a segurança alimentar tornou inviável a venda desses
queijos. É que eles são artesanais, feitos com leite cru – os industrializados levam leite
pasteurizado, o que aumenta o prazo de validade e reduz o risco de contaminação por
bactérias – e ficam prontos para o consumo depois de passar pelo processo de maturação
que dura entre 16 e 22 dias. A maturação é o tempo que o queijo fica descansando para
ficar com a consistência, o cheiro e o sabor característicos. Cada tipo tem um tempo
diferente. Quando a tal lei entrou em vigor, determinou que os queijos feitos com leite
cru só poderiam ser vendidos em outros Estados se passassem por um período mínimo de
maturação de 60 dias. Uma norma dessas só serve para os produtos cozidos, que seguram
bem o longo tempo no mercado. Em outras palavras, favorecem a indústria. As famílias,
que vivem do queijo há 200 anos, passaram a trabalhar na clandestinidade e a ver seus
lucros despencarem. Quando tentaram emplacar uma lei parecida na França, onde cem
dos cerca de 360 tipos de queijo são produzidos no sistema artesanal, teve quebradeira
geral. O roquefort francês, que foi proibido de entrar nos Estados Unidos e virou estopim
de uma gigantesca manifestação contra leis que favorecem os grandalhões do ramo e
empobrecem os pequenos produtores, é feito com leite de ovelha cru.
206
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA
uma certificação específica para esse mercado e pretende reduzir o tempo mínimo de
maturação para 16 dias, no caso do queijo de Serro, e de 22 dias para o da Canastra.
Gosto da ideia de comer queijo feito por uma família que tira sua renda disso. Gosto
mais ainda da ideia de ter uma horta em casa. Vivo tentando montar uma, mas preciso
deixar o romantismo de lado e assumir que nunca deu certo comigo. Nem meus vasinhos
de temperos frescos na janela vão para frente. É que ervas, alfaces e repolhos criados em
casa não são como cães. Você compra a melhor terra para alimentá‑los e o canteiro mais
bonito para servir de casinha. Mas eles preferem morrer secos a pedir água. Não perdoam
desatenção, nem mesmo se você teve uma semana dura. E acabam sendo comidos por
cochonilhas, aqueles insetos brancos, marrons ou amarelos que grudam nos caules para
se alimentar da seiva. Eles só aparecem quando há desequilíbrio na terra: muito ou pouco
nutriente, muita ou pouca água, muito ou pouco sol. Em minha defesa, devo dizer que
continuo tentando, com a melhor das intenções.
207
Unidade III
Resumo
208
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA
Exercícios
Figura 12
A) Alternativa correta.
Justificativa: a charge mostra um viaduto tombado pelo patrimônio histórico nacional, o que significa
que esse viaduto tem proteção especial do poder público, não podendo ser destruído ou alterado.
Ao mesmo tempo, a charge mostra moradores de rua debaixo desse mesmo viaduto, o que significa
209
Unidade III
pessoas excluídas e marginalizadas da sociedade sem nenhum suporte ou proteção do poder público.
Diante dessa situação, o cartunista nos leva a concluir que as políticas públicas, muitas vezes privilegiam
as coisas em detrimento das pessoas, que deveriam ter prioridade em qualquer Estado minimamente
preocupado com seus cidadãos.
B) Alternativa incorreta.
C) Alternativa incorreta.
Justificativa: pela charge não sabemos a procedência e a cor de pele das pessoas, em meio à fuligem, toda
espécie de material particulado (sujeira), procedente, principalmente das emissões de veículos automotores.
D) Alternativa incorreta.
E) Alternativa incorreta.
Figura 13
210
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA
I – Uma sociedade sustentável reconhece que depende de suas relações com a natureza, promovendo
sua evolução de forma a amenizar os impactos ambientais.
D) Somente I é verdadeira.
E) Somente II é verdadeira.
I – Afirmativa correta.
II – Afirmativa correta.
Justificativa: essa afirmação é uma variação sobre o tema da afirmação anterior; estão corretas e se
relacionam.
211
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Informações:
www.sepi.unip.br ou 0800 010 9000