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c A p T u L o

DA CIDADe À
OCltDADe UBANA
\\ii
11

li Partiremos de uma hipótese: a urbanização completa da


'I
li sociedade. Hipótese que posteriormente será sustentada por
1;
,.
argumentos, apoiada em fatos. Esta hipótese implica lima defi­
i'
nição. Denominaremos "sociedade urbana" a sociedade que
1;

r
i\ resulta da urbanização completa, hoje virtual, amanhã real.

"\ Essa definição acaba com a ambigüidade no emprego dos

\1
termos. Com efeito, freqüentemente se designa por essas pala­
vras, "sociedade urbana", qualquer cidade Oll cité:\ a cité grega,
a cidade oriental Oll medieval, a cidade comercial ou industrial,
a pequena cidade ou a megalópolis. Numa extrema confusão,
esquece-se ou se coloca entre parênteses as relações sociais

\ (as relações de produção) das quais cada tipo urbano é soli­


dário. Comparase entre si "sociedades urbanas" que nada têm
I de comparáveis. Isso favorece as ideologias subjacentes: o

I organicismo (cada "sociedade urbana", em si mesma, seria um


"todo" ôrgânico), o contírzuísmo (haveria continuidade his.

:1\
tórica ou permanência da "wciedade urbana"), o evolucionismo
(os períodos, as transformações das relações sociãis, esfu­
mando-se ou desaparecendo).
i
- . Aqui, resclvaremos o tenuo "sociedade urbana" à sociedade
que nasce da industrialização. Essas palavras designam, por­
tanto, a sociedge constituída por esse processo que dOIlina e
absorve a produção agrícola. Essa sociedade urbana só pode
ser concebida aõ final de um processo no curso do qual explo­
'1 dem as antigas fonuas urbanas, herdadas de transformações
deSCOllffllllas. Um impoltante aspecto do problema teórico é o
de conseguir situar as descontinuidades cm relação às conti­
nuidades, e inversamente. Como cxistiri;lm descontinuidades
absolutas sem continuidades subjacentes, sem suporte e sem
,
Será preciso insistir demorada mente que a produção agrícola
,.

processo inerente? Reciprocamente, como existiria continui­ ': perdeu (Ccia auronornia nos grandes países industriais, bem como

dade sem crises, sem o aparecimento de elementos ou de à escala mundial? Que ela não mais representa nem o setor
principal, nem mesmo um selor dotado de características
relações novas?
distintivas (3 não ser no subdesenvolvimento)? Mesmo conside­
As ciências especializadas (ou s'eja, a sociologia, a econo­
rando que as panicularidades locais e regionais provenientes
mia política, a história, a geografia humana etc.) propuseram "

dos tempos em que a agricultura predominava nào desapare­


nUlnerosas "denominações para caracterizar a "nossa" socie­
ceram, que as diferenças daí emanadas acentuam-se aqui e ali,
dade, realidade e tendências profundas, atua!idade e virtuali­
nào é menos certo que a produção agrícola se converte num
dades. Pôde-se falar de sociedade industrial e, mais recente­
selar da produção industrial, subordinada aos seus imperati­
mente, de sociedade pós-industrial, de sociedade técnica, de
vos, submetida às suas exigências. Crescimenro econômico,
sociedade de abundância, de lazeres, de consumo etc. Cada
industrialização, tornados ao mesmo tempo causas e razões
uma dessas denominações comporta uma parcela de verdade
supremas, estendem suas conseqüências ao conjunto dos terri­
empírica ou conceituaI, de exagero e de extrapolação. Para
tórios, regiões, nações, continentes. Resultado: o agrupamento
denominar a sociedade pós-industrial, ou seja, aquela que
tradicional próprio à vida camponesa, a saber, a aldeia, [rans.
nasce da industrialização c a sucede, propomos aqui este con­
. I forma-se; unidades mais vastas o absorvem ou o recobrem;
ceito: sociedade urbana, que designa, mais que um faro con­
ele se integra à. indústria e ao consumo dos prodmos dessa
sumado, a tendência, a orientação, a virtualidade. Isso, por
indústria. A concentraçào da população acompanha a dos meios
conseguinte, nào tira o valor de outra caracterização crítica
de produção. O tecido urbano prolifera, estende-se, corró.i os
da realidade contemporânea como, por exemplo, a análise
resíduos de vida ngrária. Estas pâiavras, "o tecido urbano",
da "sociedade burocrática de consumo dirigido".
nào designam, dé maneira restrita, o domínio edificado nas
Trata-se de uma hipótese teórica que o pensamento científico cidades, mas o conjunto das manifestações do pred!!1Ínio d:l
tem o direito de formular e de tomar como ponto de partida. Tal cidade sobre o campo. Nessa acepção, .uma segunda residência,
procedimento não s6 é Corrente nas ciências, como é neces­ um;.rodovia, linl supermercado em pleno campo, fazem parte
sário. Não há ciência sem hipóteses teórics. Destaquemos .i do tecido urbano. Mais ou menos denso, mais ou menos espesso
I
desde logo que nossa hipótese, que concerne às ciências ditas I e ativo, e!. PS?upa sonl<;..nte as regiões estaga.as ou arrui­
"sociais", está vinculada a uma concepção epistemológica e nadas, devotadas à "natureza". Para os prodmores agrícolas,
metodológica. O conhecimento nào é necessariamente cópia os "camponeses", pro"jéta-se no horizonte a agrouila, desa­
ou reflexo, simulacro ou simulação, de um objeto já real. Em parecendo a velha aldeia. Prometida por N. Khroucluchev
contrapartida, ele não constrói necessariamente seu objeto em aos camponeses soviéticos, a agrovila concretiza-se aqui e
n0111e de uma teoria prévia do conhecimento, de uma teoria do ali no mundo. Nos Estados Unidos, exceto em algUlnas regiões
objeto' ou de "modelos". Para nós, aqui.....? objeto se inclui na do Sul, os camponeses virtualmente desapareceram; apenas

I
hipótese, ao meSlllD tempo em que a fiipótese refere-se ao persistcm ilhotas de pobreza camponesa ao bdo das ilhotas
ohjeto. Se esse "objeto" se situa além do constatável (empírico), de pobreza urbana. Enquanto esse aspecto do processo global
nem por isso ele é fictício. Enunciamos um objeto virtual, a (industrialização e/ou urbanização) segue seu curso, a grande
sociedade urbana, ou seja, um objetopossíve/, do qual tere;n's cidade explodiu, dando lugar a duvidosas excrescências: subúr­
que mostrar o nascinlento e o desenvolvimento relacionando-os I bios, conjuntos residenciais ou complexos industriais, peque­
a um processo e a uma práxis (uma ação prática). nos aglomerados satélites pouco diferentes de burgos urba­
fliz.1dos. As cidades pequenas e médias tomam-se dependências,
Que essa hipótese deva ser legitimada, nào deixaremos
de reiterar e tentar. Os argumentos e provas em seu favor
scmicolônias da 111cuórole. É assim que n05$.;1. hipótese impõe-se,
ao mesmo tempo como ponto de chegada dos conhecimentos
não faltam, das mais simples às mais sUlis.

16 17
ad'luiridos e como pomo de partida de um novo estudo e de Do mesmo modo, em seguida, Ulilizando.se as palavras
novos projetos: a urbanização completa. A hipótese a antecipa. "revolução urbana", designaremos o conjunto das transfor­
Ela prolonga a tendência fundamental do presente. Através e mações qlle a-sociedade contempor£l.nea atravessa para passar .:
no seio da "'sociedade burocrática de consumo dirigido" a do período cm que predominam as questões de crescimento
sociedade urbana está em gestação. e de industrialização (modelo, planificação, programação) ao

Argumento negativo, demonstração pelo absurdo: nenhuma período no qual a problemática urbana prevalecerá decisiva­

outra hipótese convém, nenhuma outra abarca o conjunto dos mente, em que a busca das soluções e das modalidades pró­
problemas. Sociedade pós-industrial? Coloca-se uma questão: prias à sociedade urbana passará ao primeiro plano. Entre as

o que vem depois da industrialização? Sociedade de lazeres? transformações, algumas serào bruscas. Outras graduais, pre-

Contenta-se com uma parte da questão; limita-se o exame das _ vistas, concertadas. Quais? Será preciso tentar responder esta
tendências e virtualidades aos "equipamentos", atitude realista questão legítima. De antemão, não é certo que, para o pensa­
que deixa intacta a demagogia dessa definição. Consumo mento, a resposta seja clara, satisfatória, sem ambigüidade.
maciço aumentando indefinidamente? Contenta-se em tomar As palavras "revolução urbana" não designam, por essência,
os índices atuais C extrapolá-los, arriscando-se assim a reduzir ações violentas. Elas não as excluem. Como separar anteci­
realidade e virtualidades a um único de seus aspectos. E assim padamente o que se pode alcançar pela ação violenta e o que
por diante. se pode produzir por um-a açào racional? Não seria próprio

A expressão "sociedade urbana" responde a uma necessi­ da violência desencadear-se? E próprio ao - pensamento reduzir
dade teórica. Nào se trata simplesmente de. uma apresentação a violência ao mínimo, começando por destruir os grilhões

literária ou pedagógica, nem de uma fonnalização do saber no pensamento?

adquirido, mas de uma elaboraçào, de uma pesquisa, e 111esmo No que concerne ao urbanismo, eis duas balizas no caminho
de lima fon11açào de conceitos. Um movimento do pensamento que será percorrido:
em direção a um celto concreto e talvez para o eonere/ose esboça a) muitas pessoas, desde alguns anos, têm visto no urba­
c se precisa. Esse movimento, caso se confirme, conduzirá a
nismo uma prática social com car.íter científico e técnico. Nesse
lima prática, a prática lu-bana, apreendida ou fe-apreendida. caso, a reflexão teórica poderia e dev-ri-a apoiar-se nessa
Sem dúvida, haverá um umbral a transpor antes de entrar no prática, elevando-a ao nível dos conceitos e, mais precisa­
concreto, isto é, na prática social apreendida teoricamente.
mente, ao nível epis.fe.mológico. Ora, a ausência de uma tal
Nào se trata, portanto, de buscar uma receita empírica para
epistemologia urbanística. é flagrante. Iremos aqui nos esforçar
fabricar este produto, a realidade urbana. Não é isso o que
para preencher tal lacuna? Não. Com efeito, essa lacuna tem
freqOememente se espera do "urbanismo" e ° que muitas
um sentido. Não seria porque o catiter ilzsti/!Icional e icf.eoló­
vezes os "urbanistas" prometem? Contra o empirismo que
gico disso a que se chama urbanismo prevalece, até nova or­
constata, contra as extrapolações que se aventuram, comra,
dem, sobre o caráter científico? Supondo que esse procedi­
enfim, o saber em migalhas pretensamente comestíveis, é uma
mento possa se generalizar, e que o conhecimento sempre
teoria que se anuncia a partir de uma hlpótese teórica. A essa passe pela epistemologia, o urbanismo contemporâneo parece
pesquisa, a essa elaboração, associam-se procedimentos de
distante disso. É preciso saber por que e dizê-lo;
método. Por exemplo, a pesquisa concernente a um objeto
vir/lIal, para defini-lo e realizá-lo a partir de um projeto, já b) tal como ele se apresenta, ou seja, como políJjça (com

tem um nome. Ao lado dos procedimentos e operações clássicas, esse duplo aspecto institucional e ideológico), o urbanismo

a dedução e a indução, há a transduçào (reflexão sobre o objeto condiciona-se a uma dupla crítica: uma crítica de direita e
possível). ' . lima crítica de esquerda.

O conceito de "sociedade urbana" apresentado anterionneme A crítica de direita, ninguém a ignora, é de bom grado

implica, penamo, simuhaneameme, UI11..'1 hipótese e uma definição. passadista, não raro humanista. Ela oculta e justifica, direta

18 19
--

ou indirctamente, uma ideologia neoliberal, ou seja, a "livre lentamente src[ado a realidade urbana, corresponde a lima
empresa". Ela abre o caminho a todas as iniciativas '''privadas'' ideologia. Ela generaliza o que se passou na Europa por oca­
dos capitalistas e de seus capitais. sião da decomposição da romanidacle (do Império Romano)
e da reconstituição das cidades na Idade Média. Pode-se muito
A crítica de esquerda, muitos ainda a ignoram, nào é aquela
bem sustentar o contrário. A agricultura somente superou a
pronunciada por esse ou aquele grupo, agremiaçào, partido,
coi era e se constituiu como tal sob o impulso (amoritário) de
aparelho, ou ideólogo classificados "ã esquerda". É aquela
centros urbanos, geralmente ocupados por conqll.tadores
que tenta abrir a via do possível, explorar e balizar um terreno
hábeis, que se tornaram protelares, exploradores e opressores,
que nào seja simplesmente aquele do "real", do realizado,
ocupado pelas forças econômicas, sociais e políticas existentes, isto é, adminis..ll..adores, fund,dores de um Estado oli de um
esboço de Estado. A cidade política acompanha, ou segue de
É, pOl1anto, uma clÍtica ti-tópica, pois toma distflncia em relação
perto, o estabelecimento de lima vida social organizada, d:l
ao "real", sem, por isso, perdê-lo de vista.
agricultura e da aldeia.
Diro isso, tracemos um eixo:
,
É evidente que essa tese nào tem sentido quando se trata
dos imensos espaços onde um seminomadismo, lima miserável
,

i o  1
agricultura itinerante sobreviveram inrenninavelmenre. É certo
I
I
I
,
que ela se apóia sobretudo nas análises c documentos relativos
que vai da ausência de urbanização (a "pura natureza", a terra ao "modo de produçào asiático", às antig:ls civilizações cria­
entregue aos "elementos") ã culminação do processo. Signifi­ doras, ao mesmo tempo, de vida urbana e de vida agrária
cante desse significado - o urballo (a realidade urbana) -, (Mesopotâmia, Egito etc.2). A questào geral das relações entre
esse eixo é ao mesmo tempo espacial e temporal: espaci..'11, a cidade e o campo está longe de ser resolvida.
porque o processo se estende no espaço que ele modifica; Arrisquemo-nos, então, a colocar a cidade polftica no eixo
temporal, Ulna vez que se desenvolve no tempo, aspecto de espaço-temporal perto da origem. Quem povoava essa cidade
início menor, depois predominante, ela prática e da história. política? Sacerdotes e guerreiros, príncipes, "nobres", chefes
Esse esquema apresenta apenas um aspecto dessa história, militares. Mas também administradores, escribas. A cidade
J um recorte do tempo até certo ponto abstrato e arbitrário, política não pode ser concebida sem a escrita: documentos,

]
dando lugar a operações (periodizações) entre outras, não ordens, inventários, cobrança de taxas. Ela é inteiramente:
implicando em nenhum privilégio absoluto, mas numa igual ordem e ordenação, poder. Todavia, ela também implica um:
necessidade (relativa) em relação a outros recortes. artesanato e trocas, no mínimo para proporcionar os materiais'
'i No caminho percorrido pelo "fenômeno urbano" (numa indispensáveis à guerra e ao poder (metais, couros etc.), para
palavra: o urbano), coloquemos algumas balizas. No início, o elaborá-los e conselvá-los. Conseqüentemente, ela compreende,
que hii? Populações destacadas pela etnologia, pela antropo­ de maneira subordinada, artesãos, c mesmo operários. A
logia. Em torno desse zero inicial, os printeiros glUpos humanos cidade politica administra, protege, explora um território fre­
(coletores, pescadores, caçadores, talvez pastores) marcaram e qlientemente vasto, aí dirigindo os grandes trabalhos agrícolas:

\
.i
nomearam o espaço; eles o exploraram balizando-o. Indicaram
os lugares nomeados, as topias fundamentai:;' Topologia e grade ­
drenagem, irrigação, construção de diques, arroteamentos etc.
Ela reina sobre um determinado número de aldeias. Aí, a pro­
espaCial que, mãiSt;rdê.,s'cajilponeses sdentarizados, aper­
\1
priedade do solo torna-se propriedade eminente do monarca,
feiçoaram e precisaram sem pCl1urbar sua trama. O que importa símbolo da ordem e da ação. Entretanto, os camponeses e as

I
é saber que em muitos lugares no mundo, e sem dúvida em comunidades conservam a posse efetiva mediante o pagamento
lodos os lugares onde a história parecc, a cidade acompanhou de tributos.
ou seguiu de peito a aldeia. A representação segundo a qual o

I
Nunca ausentes, a troca e o comércio devem aumentar. De
campo Cultivado, a aldeia e a civilizaçào camponesa, teriam início confiados a pessoas suspeitas, os "eslrangeiros", eles

20 21
se fortalecem fll1lCi01la/mellte. Os lugares destinados à troca do sudoeste, na França, primeiras cidades a se constituírem
e ao comércio são, de início, fortemente marcados por signos em torno da praça do mercado. Ironia da história. O fetichislllo

de heter%pia. Como as pessoas que se ocupam deles e os da mercadoria aparece com o reino da mercadoria, com Slla

ocupam, esses lugares são, antes de mais nada, excluídos da lógica e sua ideologia, com sua língua e seu mundo. No século
cidade política: caravançarás, praças de mercado, faubourgs'" XIV, acredita-se ser suficiente estabelccer um mercado e cons­

etc. O processo de integração do mercado e da mercadoria truir lojas, pórticos e galerias ao redor da praça central, para
(as pessoas e as coisas) à cidade dura séculos e séculos. A que os mercadores e compradores afluam. Senhores e bur­
troca e o comércio. indispensáveis à sobrevivência como à vida, gueses edificam, então, cidades mercantis naS regiões incultas,
suscitam a riqucza, o movimento. A cidade política resiste com quase desérticas,. ainda atravessadas por rebanhos c seminâ­
[Oda a sua força, com toda a sua coesão; ela sente-se, sabe-se mades trasumantcs.'Tais cidades do sudoeste francês perecenl,
ameaçada pelo mercado, pela merGldoria, pelos comerciantes, apes-;.de- terem os nomes de grandes e ricas cités (Barcelona,
por sua forma de propriedade (a propriedade mobiliária, Bolonha, Pia isa Hce, Florença, Granada etc.). De todo modo,!
movente por definição: o dinheiro). Inumeráveis fatos testemu­ a cidade mercantil tem seu lugar, no percurso, depois da cidade I
nham a existência, ao lado da Atenas política, tanto da cidade política. Nessa data (aproximadamente no século XIV, na
comercial, o Pireu, quanto as interdições em vào repetidas à Europa OcidentaD, a troca comercial torna-seflulção urbana;
disposição de mercadorias na ágora, espaço livre, espaço do essa função fez surgir uma forma (ou formas: arquiteturais e/ou
encontro político. Quando Cristo expulsa os mercadores do urbanísticas) e, em decorrência, uma nova es/nlfllra do espaço
templo, trata-se da mesma interdição, com o mesmo sentido. urbano. As transformações de Paris ilustram essa complexa
Na China, no Japão, os comerciantes permanecem durante interação entre os [rês aspectos e os (rês conceitos essenciais:
longo tempo na baixa classe urbana, relegada num bairro funçào, fOfl)la, estrutura. Os burgos e faubollrgs, inicialmente
"especializado" (heterotopia). Em verdade, é apenas no Ocidente com'crciais. e artesanais - Beaubollrg, Saint-Antoine, Saint­
europeu, no final da Idade Média, que a mercadoria, o mercado HOllo,-é -, tornam-se centrais, disputando a influência, ° pres­
e os mercadores penetram triunfalmente na cidade. Pode-se tígio e o espaço com os poderes propriamente políticos (as
conceber que outrora os rllercadores itinerantes, un pouco instituições), obrigando-os a compromissos, participando çom
guerreiros, um pouco saqueadores, escolheram deliberada­ eles da constituição de uma poderosa unidade urbana.
mente as ruínas fortificadas das cidades antigas (romanas)
Num determinado momento, no Ocidente europeu, tcm
para levar a cabo sua luta contra os senhores territoriais. Nesta
lugar um "acontecimento" imenso e, entretanto, latcnte, se
hip6tese, a cidade política, renovada, teria servido de quadro
se pode dizer, porque despercebido. O peso da cidade no con­
à ação que iria transformá-Ia. No curso dessa luta (de classes)
junto social torna-se tal que o próprio conjunto desequilibra-se.
contra os senhores, possuidores e dominadores do território,
A relação entre a cidade e o campo ainda conferia a primazia a
luta prodigiosamente fecunda no Ocidente, criadora de uma
eSle último: .à riqueza imobiliária, aos produtos do solo, às
história e mesmo de história toul cou11, a praça do mercado
pessoas estabelecidas territorialmente (possuidores de felldos
torna-se central. Ela sucede, suplanta, "}.praça da reunião (a
ou de títulos nobiliários). A cidade conservava, em relação aos
ágora, o' fórum). Em torno do mercado, tornado essencial,
campos, um caráter hetcrotópico marcado tanto pelas muralhas
agrupam-se a igreja e a prefeitura (ocupada por uma oligarquia
quanto pela transição dos faubourgs. Num dado momento,
de mercadores), com sua torre ou seu campanário, símbolo de
essas relações múltiplas se invertem, há uma reviravolta. No
, liberdade. Deve-se notar que a arqltile/ltra segue e traduz a
eixo deve ser indicado o momento privilegiado dessa revira­
.! nova concepção da cidade. O espaço urbano torna-se o lugar
volta, dessa inversào da hetcrotopia. Desde entào, a cidade
. do encontro das coisas e das pessoas, da troca. Ele se orna-
nào aparece mais, nem mesmo pam si mesma, como uma ilha
menta dos signos dessa liberdade conquistada, que parece a
Liberdade. Luta grandiosa e irris6ria. Nesse sentido, houve urbana num oceano camponês; ela nào aparece mais para si

razão em estudar, dando-lhes um valor simbólico, as "bastides" mesma como paradoxo, monstro, inferno ali paraíso opOSlO

22 23

I
I

0ez'" aldeã oU camponesa. Ela entra na consciência e
latlll
" ..
olhar, ao mesmo tempo ideal c realista - do pensamento, do
poder -, silua.se na dimensão vertical, a do conhecimento e
a I" nhecimeoto como um dos termos, igual ao outro, da
nO cO. ão "cidade-campo. " O campo.'N-ao e- 111alS
o - nao
- e- nac 1 a da razão, para dominar e constituir lima totalidade: a cidade.
opos,ç, o o o , "d o I d 'o Essa inflexão da realidade social para ° urbano, essa des­
. _ que a "ClfCUOVlzm lança a ClC a e, seu lonzonte,
continuidade (relativa) pode perfeitamente ser indicada' no
tll",s,o 0te As pessoas da aldeia? Segundo sua própria maneira
eu IInl . eixo espaço-temporal, cuja continuidade permite justamente
S ver, deixam de trabalhar para os senhores territoriais. Pro-
situar e datar cortes (relativos).' Bastará traçar uma mediana
,

de para a cidade. para o mercado urbano. E, se sabem que


,

\ duzetll o d o entre o zero inicial e o número final (por hipótese, cem).


cadores de trigo ou ma eira os exploram, encontram
i oS mer no
' mercado o cammo I10 d a ,ob Essa inversão de sentido n?lo pode ser dissociada do cres­
1 erdade.
porél" cimento do capital comercial, da existência do mercado. É a
O que se passa pr?ximo: esse momento crucial? As pessoas
fletcl11 nào mais se veem na natureza, mundo tenebroso cidade comercial, implantada na cidade política, mas prosse­
qUe re o o E I guindo sua marcha ascendente, que a explica. Ela precede
lentado por forças I11lstenosas. ntre e es e a natureza,
ator.n eU centro e núcleo (de pensamento, de existência) e o um pouco a emergência do capital industrial e, por canse.
enue s
do instala-se a me
dO -
laçao essencsa : a rea I
o , ,od I
ac e UI'
b
ana.
guinte, a da cidade i"dllstrial. Este -conceito merece um
",un , o d I - o o 1 o comentário. A indústria estaria vinculada à cidade? Ela estria,
desse momento, a socle ac e nao COIOCI( e maiS com o
Des e Não coinei d e mais
o com a cIte.
o , O E sta d o os su boluga, antes de mais nada, ligada à não-cidade, ausência ou ruptura
campoo o 0'0 d o lO I , da realidade urbana. Sabesc que inicialmente a indústria se
' , na sua hegemOnia, utl Izan o suas rtva I( 3( es. Para
OS reune < • • • implanta - como se diz - próxima às fontes de energia
"porâneos entretanto, a majestade que se anunCia
5 contei ' (carvão, água), das matérias-primas (metais, têxteis), das
o ece velada. A quem se confere a Razão por atributo?
lhes
, apar o
1"" Ao divlOO Sen I'
lor. Ao o10 doIVI'd uo? Cd' -
ontll o, e a razao reservas de mão-de-obra. Se ela se aproxima das cidades, é
A Rea ez"o para aproximar-se dos capitais e cios capitalistas, dos mercados
Ciléque se restabelece após a ruína de Atenas c de Roma,
da
6 obscureCimento
o d
e suas O
b
ras essenCiaiS, a
o o ló o
glca e
e de uma abundante mão-de-obra, mantida a baixo "p"l'eço.
ap so° Logo, ela pode se implantar em qualquer lugar, mas cedo ou
, 'o ,0(0 O Logos renasce; mas o seu renascimento não é
o (Irei '. .- tarde alcança as cidades preexistentes, ou constitui cidades
0b 'do ao renaSCI111ento do urbano, e Sim a uma razao
atO UI < novas, deixando-as em seguida, se para a empresa industrial
. scendente. O racionalismo que culmina com Descartes
[n
P'n113 '1 inversao que su
- b .. .
StltUI a pnmazla camponesa
. há algum interesse nesse afastamento. Assim como a cilé política
acoll1 " " _ 
I r 'ioridade urbana. Ele nao Se ve como tal. Durante esse resistiu durante longo tempo à açào conquistadora, meio pací­
pe;;l I
, do entreUlnto, naSce a itnagem da cidade. A cidade já fica, meio violenta, dos comerciantes, da troca e do dinheiro,
peflO , 
d tinha a escrita; possuta seus segredos e poderes. Ela já a cidade política e comercial se defendeu contra o domínio
e nl,o, a urbanidade (ilustrada) " rusticidade (ingênua e da indústria nascente, contra o capital industrial e o capita.
oru " lismo tout court. Por que meios? Pelo corporativismo, a imo­
bruwl). A pJrtir de um deerminado momento.. ela tem sua
nrórria escrita: ° plarloo Nao, eotendalft05 por ISSO a planifi­ bilização das relações. O continuísmo histórico e o evolucio­

cação - ;;linda que el::1 tambem se esboce - mas a planime­ nismo rnascaram esses efeitos e essas rupturJs. Estranho e
trifl. Nos séculos XVI e XVII, quando ocorre precisamente essa admirável movimento que renova o pensamento dialético: a

in\'crs:10 de sentido, aparecem, na Europa, os plan_"cida­ não-cidade e a a!i<;.!dade vão conquistar a cidade, penetrá-b,
des e, sobrclUdo, os primeiros planos de Paris. Ainda não fazê-Ia explodir, e com isso estendê-Ia desmesuradamente,
são'planos .lbstratos, projeção do espaço urbano num espa- levando à urbanização da sociedidê, ao tecido urbano reco­
. __ ." çó"dc c?Ordco;Jd:lS geométricas. Combinação enfre a visào e brindo as rernanescências da cidade anterior à indústria. Se
""i:.."i&-r:fr"r"1-"' _ a concepção, obras de arte e de ciência os planos mostram a esse extraordinário movirnento escapa à atenção, se ele foi
, ""v"0'.. ;:-.-.,",,". " " ' 
,,;,,:",,", '."cida"! a panir do alto e de longe, em perspectiva, ao mesino descrito apenas fragmentariamente, é porque os ideólogos
z /tel1rpá pintada. rcpresenrada, descrita geometricamente. Um quiseram eliminar o pensamento dia lético e a análise das
"-y.'"""q'.{n;'t
" ... ,,.,)'"
)('.f:-....; '-'-. 2S
:.l6{-(" :.
. (.'' .
•"l..'"w: 1...-
JP
, .

contradições cm favor do pensamento lógico, ou seja, da reagem sobre elas. Bcm entendido, se há uma realidade

constatação das coerências e tão-somente das coerências. urban3 que se afirma c se confirma como dominante, isso só se
Nesse movimento. a realidade urbana, ao mesmo tempo ampli­ dá através da problemática urba1Z.a. Que fazer? Como construir

ficada e estilhaçada, perde os traços que a época anterior lhe cidades ou "alguma coisa" que suceda o que outrora foi a

atribuía: totalidade orgânica, sentido de pcnencer, imagem Cidade? Como pensar O fenômeno urbano? Como formular, clas­
enaltecedora, espaço demarcado e dominado pelás 'esplen­ sificar, hierarquizar, para resolvê-las, as inumeráveis questàes

dores monumentais. Ela.se povoa com os signos do urbano na que ele coloca e que dificilmente passam, não sem múltiplas

dissolução da urbanidadcj torna.se estipulação, ordem repres­ resistências, ao primeiro plano? Quais os progressos deci­

siva, inscrição por sinais, códigos sumários de circulação (per­ sivos a serem realizados na teoria e na ação prática para que

cursos) c de referência. Ela se lê ora como um rascunho, ora a consciência alcance o nível do real que a ultrapassa e cio

como uma mensagem autoritária. Ela se decbra mais ou menos possível que lhe escapa?

imperiosamente. Nenhum desses termos descritivos dá conta Assim se baliza o eixo que descreve o pocesso:
completamente do processo histórico; a in.!.f'()i!º,.explosão
(metMora emprestada da física nuclear);-õu seja, a enorme
concentraçào (ele pessoas, de atividades, de riquezas, de coisas
e de objetos, de instrumcnros, de meios e de pensamento) na Cid:ldc ... Cid:ldc Cid<lde __..
_Zona

realidade urbana, e a imensa explosão, a projeçào de frag­ POlílic<l comerci:tl industri:ll crítica
i
mentos mülliplos c disjuntos (periferias, subúrbios, residências
,

o "l00Vo
secundárias, satélites etc.).

\ !
A cidade industrial (em geral uma cidade informe, ,uma innexilo

aglomeração parcamente urbana, um conglomerado, uma do agr.1rio


p:lrn o urbano
"conurbação", como o Ruiu) precede e anuncia a zona edUca.
, Nesse momento, a implosão-explosão produz todas as suas implosão-explosão

i conseqüências. O crescimento da produção industrial super­ (concenlrnção uro."lna,


\ ' põe-se ao crescimento das trocas comerciais e as multiplica.
êxodo rural, extens30
, '
do tecido um:lno, subordina.çào
li.,
" , Esse crescimento vai do escambo ao mercado mundial, da completa do agr.írio ao urb:mo)

I troca simples entre dois inc.livíduos até a troca dos pl:odutos,


tI das obras, dos pensamentos, dos seres humanos. A compra e

I' a venda, a mercadoria e o mercado, o dinheiro e o capital


". j
O que se passa durante a fase crítica? Esta obra tenta res­
parecem varrer os obstáculos. No cllrso dessa generalização,
ponder a esta interrogação, que situa a problemática urbana
por sua vez, a conseqüência desse processo - a saber: a reali-:
no processo geral. As hipóteses teóricas que permitem traçar
da de urbana - torna-se callsa e razã".' O induzido torna-se
Ulll eixo, apresentar um tempo orientado, transpor a zona
dominante Ondutor). A problemática Urballa impõe-se ã escala
crítica pelo pensamento, indo além dela, permitem apreender
mundial. Pode-se definir a realidade urbana como uma "superes­
o que se passa? Talvez. Já podemos formular algumas supo­
trutura", na superfície da estrutura econômica, capitalista ou
sições. Dá.se - salvo prova em contrário - lima segunda
socialista? Como um simples resultado do crescimento e das
inflexão, uma segunda inversão de sentido e de situação. A
forças produtivas? Como uma modesta realidade, marginal
industrialização, potência dominante e coativa, converte-se em
em relação ;'l produção? Não! A realidade urbana modifica as
realidrlde dominada no curso de uma crise profunda, às custas
relações de produção, sem, aliás, ser suficiente para transfor­
de lima enorme confusão, na qual o passado e o possível, o
má-Ias. Ela torna-se força produtiva, como a ciência. O espaço melhor e o pior se misturam.
e a política do espaço "exprimem" as relações sociais, mas

26
r'iíisÍiwTl;'õE"c\'i:;;;2'NCIAS "UF;Gl 27

,'",., ,- .. _.
Essa hipótese teórica concernente ao possível e à SLla do crescimento das trocas e da produçào industrial. Todavia, a
relação C0111 o atual (o "real") não poderia .levar a esquecer problemática urbana não pode absorver todos os problemas.

que a entrada na sociedade urbana e as modalidades da A agricultura e a indústria conservam os seus problemas pró­
urbanização dependem das características da sociedade prios, mesmo se a realidade urbana os modifica. Ademais, a
considerada no Cllrso da industrialização (neocapiralista ou problemática urbana nào permite ao pensamento lançar-se
socialista, em pleno crescimento económico ou já altamente na exploração do possível sem precaução. Cabe ao analista

técnica). As diferentes formas de entrada na sociedade urbana, descrever e discernir tipos de urbanização e dizer no que se
as implicações e conseqüências dessas diferenças iniciais, tornaram as formas, as funções, as estruturas urbanas transfor­
fazem parte da problemática concernente aofellômello urballo madas pela explosão da cidade antiga e pela urbanização gene­
ou "o urbano". Esses termos são preferíveis à palavra "ciebcle", ralizada. Até o presente, a fase crítica comporta-se como uma
que parece designar Ull). objeto defirlido e definitivo, objew "caix:.L2reta". Sabe-se o que nela entra; às vezes percebe-se
dado para a ciência e objedvó ii-i1ediato para a ação, enquanto o que dela sai. Não se sabe bem o que nela se passa. Isso
a abordagem teórica reclama inicialmente lima crítica desse condena os procedimentos habituais da prospectiva ou da
"objeto" e exige. a noçào mais complexa de um obicto virtual projeção, que extrapolam a partir do awal, ou seja, a partir
ou possível. NOutros termos, não há, nessa perspectiva, uma de uma constatação. Projeção e prospectiva têm uma base

ciência da cidade (sociologia urbana, economia urbana etc.) determinada apenas numa ciência parcelar: na demografia,
mas um conhecimento em formaçào do processo global, assim por exemplo, ou entào na economia política. Ora, o que está

como ele seu fiIn (objetivo e sentido). em questào, "objetivamenre", é uma totalidade.

\
/ O urbano (abreviação de "sociedade urbana") define-se Para mostrar a profundidade da crise, a incerteza e a per­

portanto não como realidade acabada, situada, em relação à plexidade que acompanham a "fase crítica", pode-se efetuar

realidade arual, de maneira recuada no tempo, mas, ao con­ uma confrontação. Exercício de estilo? Sim, mas um pouco mais

\ trário, como horizonte, como virtualidade iluminadora. O que isso. Eis alguns argumentos a favor e contra a rua, a favor e

urbano é o possível, definido por Ulna direção, no fim do per­ contra o monumento. Deixemos para depois as argumentações:

! curso qUe .vai em direçào a ele. Para atingi-lo, isto é, para a favor e contra a natureza, a favor e conEra a cidade, a favor e
:i
realizá-lo, é preciso em princípio contornar ou romper os obs- contra o urbanismo, a favor e contra o centro urbano ...

. " táculos que atualmente o tornam impossível. O conhecimento A favor da nta. Não se trata simplesmente de um lugar de
"  ..
teOllCO pode deixar esse objeto virtual, objetivo da açào, no passagem e circulação. A invasào dos automóveis e a pressão
abstrato? Nào. De agora em diante, o urbano é abstrato unica­ dessa indústria, isto é, do lobby do automóvel, fazem dele um
mente sob o título de abstração cientifica, isto é, legítima. O cbjeo-piloto, do estacionamento lima obsessão, da circulação
conhecirnento teórico pode e deve mostrar o terreno e a base um objetivo prioritário, sJrlliC!9!é:?_de._toda-.vida....social e
sobre os quais ele se funda: uma prática social 1 marcha, a .urbana. Aproxima-se o dia em que será preciso limitar os
Prálíca urba.,a - d ..  oe,;,. direitos e poderes do automóvel, nào sem dificuldades e des­
em Vla e constlt\J!::./apesar dos obstáculos
que a.ela se opõem n .. p- .'  • • I d truições. A rua? É o lugar (topia) do encontro, sem o qual não
d" ...•.'.- J.tualmente esta pratica esteja ve a a
e Issoclado • - - - . - l-d d existem outros' encontros possíveis nos lugares determinados
e rh : ", lJue hOJ eXlstam apenas fragmentos da l.ea 1 a e
(cafés, teatros, salas diversas). Esses lugares privilegiados
_••0 H:::ncia futuras, esse é um aspecto da fase cnUca. Que
animam a rua e são favorecidos por sua animação, Oll entào
nesta orientação exista uma saída, que existam soluções para
não existem. Na rua, teatro esponrâneo, torno-me espetá cu lo
a problenlática atual, é o que é preciso mosrrar. Em suma, o
e especrador, às vezes ator.--..!iÇ:.la ...efetua-se o movimento, a
objeto Virtual não é outra coisa que a sociedade planetária e
mistura, sem os quais não há vida urbana, mas separação,
a "cidade mundial", além de uma crise mundial e planetária

I
segregaçào estipulada e imobilizada. Quando se suprimiu a­
da realidade e do pensamento, além das velhas fronteiras
rua (desde Le Corbusier, nos "novos conjuntos"), viu-se as
traçadas desde o predomínio da agricultura, mantidas no curso

28 29

j
'1'

conseqüências: a extinção da vida, a redução da "cidade" a sobre O uso, até reduzi-lo a um resíduo. De lal macio que a
crítica da rua. deve ir mais longe: a.rua t9!:na-se o lugar privi­
dOrIllitÓriO, a aberrante funcionalização da existência. A rua
legiado de lima repressào, possibilitada pelo caráler "real"
contém as funções negligenciadas por LeCorbusi".r:- af\!nção
'1 informativa, a função simbólica, a função lúclicá: Nela joga-se, das rebções que aí se constituem, ou seja, ao mesmo tempo
débil e alienado-alienante. A passagem na rua, espaço de

':1' .
nela aprende-se. A rua é a desordem? Certamente. Todos os
c comunicação, é a uma só vez obrigatória e reprimida. Em caso
elementos da vida urbana, noutra parte congelados nllma
J.: \ de ameaça, a primeira imposição do poder é a interdição fI
ordem irnóvel e redundante, liberam-se e afluem às ruas e por
IJ ! elas em direção aos centros; aí se encontram, arrancdos de
permanência e à reunião na rua. Se a rua pôde ter esse sentido,
o encontro, ela o perdeu, e não põde senão perdê-lo, con­
seus lugares fixos: Essa desordem vive. Informa. Surpreende.
1 I vertendo-se numa redução indispensável à passagem solitária,
Além disso, essa desordem constrói lima ordem superior. Os
cindindo-se em lugar de passagem de pedestres (encurralados)

.'. I
\ trabalhos de Jane Jacob_ !}l0straram que nos Estados Unidos
a rua (movitllcot-a'dá," freqüentada) fornece a única segurança
e de automóveis (privilegiados). A rua converteu-se em rede
organizada pelo/para o consumo. A velocidade da circulação
possível contra a violência criminal (roubo, estupro, agressão).
de pedeslres, ainda tolerada, é aí determinada e demarcac!3
Onde quer que a rua desapareça, a criminalidade aumenta, se
pela possibilidade de perceber as vitrinas, de comprar os
organiza. Na rlla, e por esse espaço, um grupo (a própria
objetos expostos. O tempo torna-se O "tempo-mercadoria"
cidade) se manifesta, aparece, apropria-se dos lugares, realiza
(tempo de compra e venda, tempo comprado e vendido). A
um tempo-espaço apropriado. Uma tal apropriação mostra que rLla regula o tempo além do tempo de trabalho; ela o submete

\ o uso e o valor de uso podem dominar a troca e o valor ele


troca. QU:lnro ao ac:ot:!-tec!l1ento. revoluciqnrio, ele geralmente
ocorre na rua. Isso não mostra .também que sua . desordem
ao mesmo sistema, o do rendimento e do lucro. Ela não é
mais que a transição obrigatória entre o trabalho forçado, os
.iI lazeres programados e a habitação como lugar de consumo.
engendra uma oll_tra_Qrdem? O espaç urbano da rua-nã"õ"é -õ
A organização neocapitalista do consumo mostra sua força
lugar da -paiàvra, o Igãr da troca pelas palavras e signos,
na rua, que não é só a do poder (político), nem a da repressão
assim como pelas coisas? Não é O lugar privilegiado no qual se
(explícita ou velada). A rua, série de vitrinas, exposição de
escreve a palavra? Onde ela pôde tornar-se "selvagem" e inscre­
objetos à venda, moSlra como a lógica da mercadoria é acompa­
ver-se nos muros, escapando das prescrições e instituições?

:1
nhada ele lima contemplação (passiva) que adquire o aspecto e
Conlra a rua. Lug:ll" de encontro? Talvez, mas quais encon­ a fmportância de uma stética- e.de" urna. ética.! A acumulação
tros? Superficiais. Na rua, caminha-se lado a lado, não se do'sõ15jetosãcóil1p-jl; a da população e sucede a do capitalj .
encontra. É o "se" que prevalece. A rua não permite a consti­ ela se converte numa ideologia dissimulada sob as marca (/ .
tuição de um grupo, de um "sujeito", mas se povoa, de um do legível c do visível, que desde então parece ser evidente. E Ij .

1 I
amontoado de seres em busca. De quê? O mundo da merca assim que se pode falar de uma colollização do espaço urb:ino, \ .
daria desenvolve-se na rua. A mercadoria que não pôde que se cfetua na rua pela imagem, pela publicidade, pelo \,

\ confinar-se nos lugares especializos, os mercados (praças, ...),


ip.vadiu a cidade inteira. Na Antigüidade as ruas eram apenas
espetáculo dos objetos: pelo "sisrelllUQLQ.Qjftos" tornados
1'. . símbolos ,e. espe.ªçulo. A uniformização do cenáriiSiI-;
I anexos dos lugares privilegiados: o templo, o estádio, a ágora, . àlo"éle"rnização d:ls ruas antigas, reserva aos objetos (merca
,I o jardim. Mais tarde, na Idade Média, O artesanato ocupava as darias) os efeitos de cores e formas que os tornam atraentes.
L, I

ruas. O artesão era, ao mesmo tempo, produtor e vendedor. Em Trata-se de uma aparência caricata ele apropriação e de reapro­
seguida, os mercadores, que eram exclusivamenre mercadores, priação do espaço que o poder autoriza quando permite"
tornal.lm-se os mestres. A rua? Uma vitrina, um. desfile entre as realização de eventos nas rllas: carnaval, bailes, festivais fol­
clóricos. Quanto à verdadeira apropriaçào, a da "manifestação"
I.I!I; I
lojas. A mercadoria, (Ornada espetáculo (provocante, atraente),
transforma as pessoas em espetáculo umas para as outras. Nela, efetiva, é combatida pelas forças repressivas, que comandam o
: I mais que noulros lugares, a troca e o valor de troca prevalecem silêncio e o esquecimento. /
;: I

li I
UI 30 31

. I
'7
i ..

COlura o mOllUmel1/o. O monumento é essencialmente C A P 'I T u L o II


repressivo. Ele é a sede de uma instituição (a Igreja, o Estado,
a Universidade). Se ele organiza em torno de si um espaço, é
par:l colonizá-lo e oprimi-lo. Os grandes monumentos foram
erguidos à glória dos conquistadores. dos poderosos. Mais
rararnente à glória dos mortos c da beleza morta (o Tadj
Mallall ... ). Construíram-se palácios e t"mulos. A infelicidade
o CAMr0 CtGO
da arquitetura é que ela quis erguer monumentos, ao passo
que o "habitar" foi ora concebido à imagem dos monumentos,
ora negligenciado. A extensão do espaço monumental ao O método utilizado nesta exposição nào é histórico n:l
,

habitar é sempre uma catástrofe, aliás oculta aos olhos dos acepçào habitual desse termo. Apenas aparentemente tomamos

i que a suponam. Com efeito, o esplendor monumental é formal.


E se o monumento sempre esteve repleto de símbolos, ele os
o objeto "cidade" para descrever e analisar sua gênese, suas
modificações, suas transformações. Em verdade, colocamos

\
oferece à consciência social e à contemplação (passiva) no primeirameme o objeto virtual, o que nos permitiu traçar o
momento em que esses símbolos, já em desuso, perdem. seu eixo espaço.temporal. O futuro iluminou o passado, o virtual
sentido. Tal é o caso 'dos símbolos da revolução no Arco do permitiu examinar e situar o' realizado. É a ciebele industrial,

\ Triunfo napoleônico.

A favor do 7n01lllmento. É o único lugar de vida coletiva


ou melhor, o estilhaçamento da cidade pré-industrial e pré­
capitalista sob o impacto da indllstria e do capitalismo, que

\
(social) que se pode conceber e im"ginar. Se ele controla, é permite compreender suas condições, seus antecedentes, a

para reunir. Beleza e monumentalidade clIninh:lm juntas. Os saber, a cidade comercial; esta, por slIa vez, pellllite apreender
grandes monumentos foram trans-funcionais (as catedrais), e a cidade política à qual se superpôs. Como Marx pensav", o
mesmo trans-culturais (os túmulos). Daí seu poder ético e aduho compreende, como sujeito (consciência), e permite
estético. Os monumentos projetam uma conepçào de mundo conhecer, como objeto real, seu pomo de partida, seu esboço,
no terreno, enquanto a cidade projetava e ainda nele projeta talvez mais rico e complexo que ele próprio, a saber: a criança.

!j
.
I

I
a vida social (a globalidade). No próprio seio, às vezes no
próprio coração de um espaço no qual se reconhecem e se
Embora complexa e opaca, é a sociedade burguesa que permite
compreender as sociedldes mais transparentes, a sociedade
r
banalizam os traços da sociedade, os monumentos inscrevem antiga e a sociedade medieval. Não o contrário. Um duplo

I lima transcendência, um alhums. Eles sempre foram u-tópicos.


Eles proclamavam, em altura ou em profundidade, numa outra
movimento impõe-se ao conhecimento, desde que existem
tempo e historicidade: regressivo (do virtual ao atual, do alUai

\III1 \ dimensão que a dos percursos urbanos, seja o dever, seja o


poder, seja o saber, a alegria, a esperança.
ao passado) e progressivo (do superado e do fillilO ao movimento
que declara esse fim, que anuncia e faz nascer algo novo).

:11
O tempo histórico pode ser recoltado (periodiz"do) segundo
.

'.\ .
os modos de produção: asiático, escravista, feudal, capitalista,
socialista. Esse recorte tem certas vantagens e alguns incon­
,

! venientes. Quando é levado longe demais, quando se insiste

J\
nos cortes, nas características internas de caela modo de pro­
dução, na coesão de cada um como totalidade, a passagem
de um a outro torna-se ininteligível, no exato momento em

l'i ; que se destaca e se acentua a inteligibilidade de cada um

:'! ! tomado separadamente. Não há c!llvida que cada modo de


produção "produziu" (não como lima coisa qualquer, mas como

'I' ii
32

Ii

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