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A UNIVERSIDADE E A CRISE
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Universidade mal aparelhada, com labo- despreparado expõe idéias vagas, que o
ratórios ineficientes e bibliotecas paupér- professor comenta ao sabor de suas asso-
rimas. O recrutamento forçado entupiu- ciações. Não há dúvida de que se deve
a com professores incompetentes. O gran- dar ao estudante a oportunidade de trei-
de desafio é que não vejo tais defeitos nar sua capacidade de exposição; montar,
como vicissitudes passageiras, resultantes entretanto, todo um curso na base de
duma época de expansão, e que seriam seminários, é retirar da aula o caráter
sanadas pelo tempo. A crise é mais pro- dum trabalho que o professor prepara
funda e as contradições internas da Uni- em casa e encena no momento. Trabalho
versidade brasileira jogam-na num estado muito mais para o aluno do que para ele.
de paralisia crônica. Não é à toa que o jovem pula dum curso
A Universidade é coisa perigosa em para outro, havendo alguns que se trans-
países subdesenvolvidos. Só o fato de formam em verdadeiros campeões do
possuir hoje mais de 1.600.000 estudan- vestibular.
Faz de conta tes dá uma idéia da revolução intelectual Sem aula e sem biblioteca o estudante
que ensina, que haveria se a maioria deles fosse efi- tende a fazer de conta que estuda, e o
faz de conta que caz e inventiva. Daí a funcionalidade da professor a fazer de conta que ensina.
estuda: infra-estrutura precária e da incompe- Este último está, além do mais, enqua-
tência. drado numa carreira que valoriza seu
a comunidade Já o vestibular começa como máquina desempenho burocrático. Quantas vezes
dos sabidos. de triturar talentos. O treinamento para o físico é obrigado a parar de trabalhar
o teste homogêneo equaliza por baixo, para escrever sua tese de doutoramento?
beneficiando o aluno esforçado e punin- É sabido que o cientista de hoje, em ge-
do o inventivo. Alguns são eleitos numa ral, investiga de parceria, publicando um
massa de candidatos cuja formação toda trabalho curto de rápida divulgação. Que
ela foi tomada como parte para a Uni- outro sentido pode ter a exigência duma
versidade. É evidente que nessas condi- tese robusta a não ser a anestesia de seu
ções o próprio ensino secundário está vo- trabalho? Por hipótese, o sociólogo ou o
tado à falência, já que as tímidas tentati- filósofo devem escrever livros, mas eu
vas de lhe emprestar cunho profissionali- gostaria de saber qual é a proporção, no
zante não passaram duma farsa. domínio das humanidades, entre a tese
Transpostos os muros da Universidade, defendida e a tese publicada. Quantos
o estudante inicia seu martírio. Contam- titulares existem que não publicaram um
se nos dedos os cursos que oferecem uma único livro? Levando tudo isso em con-
formação adequada e oportunidades pa- ta, não se deve dizer que a Universidade
ra desenvolver um pensamento criador. funciona para não funcionar? Não é ela
Mesmo nas grandes universidades, há uma espécie de analgésico que se aplica
casos de cursos totalmente desarticula- a uma juventude irrequieta e a intelec-
dos, onde o professor durante anos ensi- tuais classe média, de parolagem radical,
na a mesma coisa ou o que está acabando a fim de que todos fiquem à margem dos
de aprender em suas próprias pesquisas; movimentos efetivos da sociedade brasi-
cada docente faz o que quer sem ter em leira? Não é sintomático que, com algu-
vista as necessidades gerais da formação mas exceções, principalmente dos econo-
do aluno. Este esgarçamento do ensino mistas, a Universidade esteja calada dian-
aparece dourado pela ideologia de vincu- te da enorme crise que nos assola. Na
lar docência e pesquisa, mas na realidade verdade a UNICAMP se manifestou a
expressa a impossibilidade do professor respeito, duma forma corajosa, mas duma
se distanciar de suas próprias angústias Universidade se espera mais do que ma-
intelectuais, a fim de apresentar ao aluno nifestos, dela se espera uma análise crí-
um trabalho, uma aula, que desperte o tica, todo um trabalho de compreensão
interesse dele e se integre no panorama da modernidade do qual ela tem se au-
de suas carências. O mesmo acontece sentado.
com os famosos seminários. Com o intui- Marca profundamente a vida da Uni-
to de evitar o autoritarismo da aula mag- versidade brasileira o fato dela ser dire-
na, o professor começa mentindo ao dizer tamente um órgão do Estado. Por certo
aos estudantes que todos ali estão para não existe hoje em dia uma Universidade
aprender juntos. Como se um não deves- inteiramente privada, pois mesmo nos
se saber muito mais do que o outro, sen- Estados Unidos, em virtude do volume
do pago justamente para isso. O resultado do financiamento estatal da pesquisa, ela
é uma aula chatíssima, em que um aluno é uma coisa pública gerida por corpora-
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qual dessas funções será enfatizada no desde seu início —, com maior empenho
interior duma universidade, que área da saliento a necessidade de fazer valer a
ciência receberá maiores recursos, que ti- todo o custo os critérios acadêmicos.
po de ensino será ministrado, qual o perfil Uma coisa é a Universidade discutir com
do profissional a ser formado, que forma os representantes políticos da sociedade
de serviços serão prestados à comunidade como um todo, desde os parlamentos até
e assim por diante. Por isso a questão os sindicatos, outra ficar à mercê da poli-
da democracia na Universidade precisa tiquice governamental interessada em en-
ser colocada em vários níveis. A simples caixar seus homens de partido na rede
eleição direta dum reitor ou dum chefe administrativa. Ela tem interesses e fins
de departamento significa hoje, na ver- próprios de que não pode abdicar, mas
dade, um passo importante na luta con- para cumpri-los cabe entabular um diá-
tra o autoritarismo que se infiltrou pelos logo intenso e profícuo com os represen-
poros de nossa sociedade. Não deve ser, tantes de todas as partes da sociedade.
porém, tomada como panacéia universal Por fim, a democratização da Univer-
nem serem diminuídos os riscos em que sidade implica o esforço a fim de que ela
ela incorre. De um lado, está o perigo se torne mais representativa das várias
de borrar a distinção entre o técnico e camadas da população. Por causa de sua
o político. Um departamento, por exem- evidência, gosto de testar um indicador
plo, é basicamente um órgão técnico. Se do caráter elitista dela: quantos negros
seu chefe deve ser eleito — e por quem, estão nesta sala? Quantos negros estu-
dam e trabalham nos campi?
é um tema a ser discutido — isto não
significa que a composição dos currícu- V
los, o recrutamento dos professores e a
Um programa orientação da pesquisa devam ser politi-
Aos poucos minha análise foi se trans-
para a formando num programa. É o momento
zados. De outro, reside ainda o risco de
de perguntar: há grupos interessados em
Universidade colocar um homem forte, com a autori-
realizá-lo? Não creio que se possa esperar
dade legitimada pela eleição, num posto
de mando que conserva mecanismos au- muito do movimento estudantil. É previ-
toritários. E como todos sabem, o uso do sível que ganhe importância nos próxi-
cachimbo faz a boca torta. mos anos, mas acredito que, como sem-
A democracia Desde que se coloque a questão da pre, terá uma orientação nitidamente po-
universitária democracia universitária ao nível da lítica, fazendo da Universidade apenas
é como qualquer discussão das prioridades, fica claro que seu lugar de passagem, deixando na
democracia: ela só poderá ser exercida por mecanis- margem as questões universitárias pro-
priamente ditas. Não é o caso, entretan-
representação. mos de representação. Trata-se duma lu-
to, de subestimar sua capacidade de pres-
ta constante que não pode ser decidida
numa única assembléia geral, mas depen- são no sentido de transformar a estrutu-
de do trabalho de formiga de represen- ra esclerosada. Se cada estudante, de seu
tantes fazendo a ponte entre suas bases ponto de vista particular, tende a per-
e os órgãos colegiados máximos. Daí mi- manecer conivente com essa Universida-
nha crença de que se precisa mudar ur- de que funciona para não funcionar, in-
gentemente a composição dos conselhos serido no movimento estudantil, deman-
universitários a fim de que eles se tor- da melhores cursos e melhores condições
nem mais representativos da comunidade de trabalho. Unicamente não possuem
como um todo, podendo ainda exercer sozinhos a capacidade de traçar o projeto
maior vigilância sobre o executivo. A duma nova Universidade. Por sua vez, o
luta contra a burocracia implica visibili- movimento docente como um todo dificil-
dade e já é tempo de terminar com o mente perderá seu caráter corporativista,
trabalho secreto das comissões. que pode ainda aumentar quando novas
No entanto, se a Universidade é ape- levas de professores e pesquisadores co-
nas parte da sociedade e não sociedade meçarem a disputar as vagas que hoje
em miniatura, não tem direito de decidir estão sendo ocupadas pelos incompeten-
por si só as questões de prioridades. O tes. Felizmente esta tendência poderá ser
conceito de autonomia universitária ne- contrabalançada pelos grupos na Univer-
cessita ser refeito. Longe de mim a idéia sidade que ainda têm interesse por um
de subordiná-la aos caprichos do Gover- trabalho efetivo.
no. Se defendo a tese de que ela deve se Toco num ponto que me parece essen-
distanciar das sinuosidades do movimen- cial para compreender os movimentos po-
to estudantil — sendo que este é político líticos das classes médias. Se, de fato, es-
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