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A UNIVERSIDADE

E A CRISE José Arthur Giannotti

I quais cada um se põe isoladamente, fas-


Foi-se o mundo de antigamente. A re- cinado pela máquina como se ela fosse
volução tecnológica alterou por completo uma tela de cinema que, no escuro, abole
nossas relações com a natureza e com o o pensamento próprio. Nada mais pró-
outro. Vivemos mergulhados numa se- ximo do que a voz que fala do outro lado
gunda natureza constituída de máquinas da linha, ouvimo-la como se estivesse ao
sábias, verdadeiros raciocínios ambulan- lado. Enquanto porém o outro visível fo-
tes dos quais pegamos o começo e o fim. ge de nosso arbítrio e resiste a nossos
O protótipo da máquina moderna, o caprichos, a voz alheia no aparelho de-
computador, não tem nada a ver com a pende duma ligação desejada e está sem-
ferramenta, que prolonga o gesto e pou- pre à mercê daquela ira que bate um
pa esforços; consiste na encarnação duma telefone na cara. Desse modo, a confissão
teoria, saber feito material volátil, que mais íntima vive sob a ameaça dum corte
por si só a verifica e abre um espaço abrupto, que empresta à individualidade
inédito que o conhecimento do indivíduo contemporânea o caráter duma mônada
nunca poderia desenhar. O computador sem janelas. A ilusão narcísica é contra-
é um cientista coletivo posto à disposição parte da cientificação da natureza.
do pesquisador ou da dona-de-casa. Por Insulado nas metrópoles populosas o
isso reúne, no seu pequeno intervalo, a homem nunca esteve tão só. A vizinhan-
teoria e a prática, sendo o exemplo mais ça, a comunidade de base e outras for-
extraordinário de como a ciência neste mas modernas de associações sociais são
século se transformou numa força pro- passageiras diante dos grandes aconteci-
dutiva. Se, na verdade, pode ser objeto mentos de massa. Pela manhã uma pon-
de consumo individual, jogo de salão derável parte da população de São Paulo
moderno, é quando se integra numa fá- acompanha um locutor de rádio que lhe
Nem só de brica ou numa instituição prestadora de conta as aventuras do mundo: aos do-
serviços que cumpre seu destino social. mingos ela se agarra num programa de
computador Mas nem só de computador vive o ho- televisão que dura o dia inteiro. Vale a
vive o homem. mem moderno. O telefone, a televisão, pena notar dois traços de programas co-
"Boa ou má o processador de palavras, o avião ultra- mo estes: de um lado, contêm de tudo,
nova"? rápido são peças de sistemas diante dos é como se passassem em revista o pró-

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prio universo; de outro, sua longa dura- II
ção que compete com qualquer peça ja- Tudo estaria no melhor dos mundos Liberdade na
ponesa. Não há dúvida de que as pessoas possíveis do lazer se o indivíduo não fos- alienação
não os assistem o tempo todo. O jardi- se obrigado a trabalhar, ou, como vere-
neiro continua sua faina enquanto carre- mos, ao menos a fazer de conta que tra-
ga de lá para cá seu rádio de pilha, e a balha. Livre na sua alienação ele traba-
moça no domingo se ocupa disto ou da- lha por um salário. Nunca houve uma
quilo enquanto espia continuadamente, sociedade em que existisse tal predomi-
com o rabo do olho, seu herói favorito. nância do assalariado. Este é um fato
Não imaginemos que tais fenômenos que não se pode perder de vista, pois
atinjam apenas as classes populares, eles aponta para um dos princípios básicos
se repetem, noutros termos, com outras de socialização do homem moderno. No
classes. O pebolim ou o videogame, o mercado de trabalho, sua primeira ativi-
disco ou o videocassete são, do mesmo dade consiste em negociar sua força. Daí
modo, acontecimentos que massificam in- a força de trabalho se constituir, ao me-
dividualidades esgarçadas. Sem os apoios nos em primeira instância, como valor,
das comunidades tradicionais, particular- a saber algo que se põe como comum a
mente da família que hoje em dia se es- todas as mercadorias. Já que elas preci-
patifa por todos os lados, a pessoa en- sam sistematicamente ser repostas, elas
contra sua individualidade nesses longos se dão como produto, donde o valor se
traços de humanidade que a máquina lhe apresentar como produto dum trabalho
traz, presentificando para todos os seus igualável a todos os outros trabalhos dos
sentidos os mais diversos fatos. Se nos mais diversos produtores, por conseguin-
tempos de Kant era possível pensar que te, trabalho abstrato sem qualquer outra
a imaginação transcendental era respon- determinação. Neste nível, o isolamento
sável pela constituição do eu concreto, dos trabalhadores enquanto assalariados
hoje em dia cabe mostrar como essa ta- é suprimido pela comunidade posta pelo
refa é cumprida pela presença da imagem trabalho abstrato: todos eles são mem-
e do som fornecida pela máquina. O tra- bros duma societas, sócios dum imenso
ço contínuo dos fatos diversos transfor- processo produtivo que os engrena como
mou-se numa medida da individualidade peças complementares duma enorme má-
contemporânea. quina automática.

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Acontece, porém, que o assalariado de do mercado de Adam Smith e o ardil da


hoje usufrui duma série de serviços pú- razão hegeliano são conceitos paralelos.
blicos que fogem às leis imediatas do A observação desse automatismo é res-
mercado. Fala no telefone ou toma ôni- ponsável pelo forjamento do conceito de
bus, pagando para isso uma quantia que sociedade civil e da concepção dum Esta-
nada tem a ver com o salário que recebe. do separado dela. Pois bem, a existência
O operário ou o médico pagam a mes- dum capital estatal, vale dizer, dum fun-
ma quantia por uma ficha de telefone, do público posto a serviço do processo
usando assim um serviço público cujo de acumulação capitalista, embaralha os
preço foge das flutuações do mercado. dois níveis, na medida em que a socie-
Acresce que os investimentos públicos, dade civil não logra repor-se sem a inter-
depois das políticas keynesianas, não são venção direta do Estado.
propriamente orientados no sentido de Diante de tais perguntas é possível to-
satisfazer as necessidades da população mar uma posição que somente na apa-
em geral, mesmo que tais necessidades rência é radical: sociedade civil, Estado
sejam criadas pelo capital, mas, antes de separado dela são conceitos do século
tudo, a fim de assegurar a continuidade XVIII e XIX e devem ser enterrados
do processo de acumulação capitalista. com eles. Não me parece frutífera essa
Em outras palavras, o transporte ou a postura, porquanto deixa de lado um
universidade, antes de responderem às instrumento afinado para compreender a
necessidades da população, servem de es- história do capitalismo competitivo e
coamento do capital estatal, forma de ipso facto o lado histórico da crise con-
controlar o andamento da economia temporânea. E por isso cai numa onto-
como um todo. Deste ponto de vista, a logia identitária do social: a sociedade é
universidade vale mais por seus gastos compreendida como coisa que se dá des-
do que pelos serviços que presta. Este de logo individualizada, quando, em ver-
fato salta aos olhos numa situação de dade, mais do que um dado é um movi-
mento de dar-se, de encontrar por seus
crise como aquela por que estamos pas-
próprios meios uma individualidade sem-
sando: o Estado não se acanha em suca-
pre posta em xeque e sempre refeita.
tear todo o parque universitário brasi-
Dessa ótica, as sociedades capitalistas
leiro, mandando para o brejo investi- do século XIX tinham como princípio de
mentos de longa duração no setor de individualização o movimento automáti-
pesquisa ou do ensino, desde que possa co do capital, esse processo individual de
cumprir os acordos com o FMI e tentar compra e venda da força de trabalho que
o controle da inflação. resultava na harmonia dum capital social
Necessidades Peço desculpas por ter metido o be- total. A despeito de cada unidade produ-
sociais ou delho num terreno que escapa de minha tiva buscar seu próprio lucro, o movi-
competência e que, além do mais, é ma-
necessidades do téria de grande controvérsia. É bem ver-
mento de cada uma delas acabava inte-
capital? grando-se no processo de conformação
dade que os filósofos têm o vício de ser duma única taxa de lucro. Por certo, o
intrometidos; não é, porém, por causa Estado sempre esteve presente nos mo-
dessa veneranda tradição que aludo a mentos de crise do capital e nas lutas
tais problemas. Trata-se a meu ver, du- constantes por sua expansão. Na Europa
ma questão que atinge o próprio cerne o capitalismo não teria se instalado e li-
da crise moderna, desta crise de legiti- quidado o Antigo Regime sem o auxílio
midade que afeta tanto o Estado quanto constante do Estado. No entanto, o que
qualquer outra forma de legalidade so- me interessa não é tanto constatar a con-
cial. Desde o século XVIII os sábios tinuidade dessa presença, mas a radical
têm se espantado com o estranho fenô- diferença de forma pela qual o Estado
meno de que o encadeamento da mais passa a intervir depois da Grande De-
acirrada luta pelos interesses individuais pressão. Daí a necessidade de salientar o
resulta numa harmonia da produção, dis- caráter de capital que o fundo público
tribuição, troca e consumo. Por certo, assume quando chega a constituir-se co-
sempre houve crises neste processo de mo massa de valor posta a serviço do
reposição social. Mas, a longo prazo, a so- processo de valorização. Por que o Esta-
ciedade parece dotada dum movimento do passa então a cumprir a antiga função
automático, como se o interesse indivi- do capital social total, por que passa ele
dual já tivesse sido integrado num todo a ser responsável pela identificação da
pela providência divina. A mão invisível sociedade como um todo? Simplesmente

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porque o avanço tecnológico, a transfor- diador da lei estatal; se mantemos a lei
mação da ciência em força produtiva, im- é para transformá-la casuisticamente ao
pedem a constituição duma taxa de lucro. sabor dos privilégios daqueles que assal-
As grandes empresas, auxiliadas pelo Es- taram o poder. No sentido mais legítimo
tado, mantêm hoje o monopólio da capa- da palavra, trata-se dum estado bárbaro
cidade de gerar novas tecnologias. O sa- em que um poder anônimo, de cunho es-
ber, enquanto saber novo que se faz tatal, se exerce sem lei.
máquina, tornou-se monopólio de alguns A crise de legitimidade do Estado con-
capitais que, desse modo, contam com a temporâneo não nasce, pois, como que-
vantagem de produzir valores extras, ga- rem alguns, da desfunção de nosso siste-
nhando sempre na margem duma produ- ma comunicativo, do embaralhamento da
tividade do trabalho que nunca consegue razão tecnológica com a razão lingüística,
se espraiar para o resto do sistema pro- mas da ausência de razão, de medida, pe-
dutivo. No que respeita à produção de la qual a sociedade pudesse articular-se e
valores, a grande empresa está diante das individualizar-se no processo produtivo.
empresas de porte concorrencial na si- A desmedida da sociedade civil pede a
tuação inversa daquela em que Aquiles intervenção dum Estado desmedido, de
se defronta com a tartaruga. Cada passo sorte que não há fundamento duma lega- A tartaruga
que ele dá na direção dela, a tartaruga lidade permanente, toda legalidade é sa- e a bicicleta
dá um salto para a frente porque está pada. É como se os homens se reunissem eletrônica:
montada numa bicicleta eletrônica. em assembléia para estabelecer um pacto a crise
Vejo, pois, a crise da sociedade con- social, impossível, contudo, pois cada um da medida e do
temporânea como a explosão do processo trata de burlar até mesmo as regras for-
de individualização do capital. O movi- mais que permitem a constituição duma valor.
mento para a geração de valores começa vontade coletiva. Não valem nem mesmo
pela troca de mercadorias e, substancial- as regras para uma votação. Como, po-
mente, pela negociação requerida na com- rém, os homens esqueceram o caminho
pra e venda da força de trabalho. Mas o da floresta, estão confinados na sala de
empuxo para a formação dum circuito de reunião, tendo em frente a mesa que
valores, duma produção de mercadorias obedece a todas as aparências do regi-
por meio de mercadorias, é inibido pela mento interno a fim de permitir que os
impossibilidade duma equalização dos ricos fiquem mais ricos e os pobres mais
trabalhos que desse ao sistema a medida pobres. Os buracos
dum trabalho homogêneo. Sem o movi- Compreende-se que, diante da ilegiti- comuns na falta
mento real de homogeneização dos tra- midade do Estado, as pessoas tratem de da legitimidade
balhos, obstadado pelo monopólio da ca- encontrar suas próprias identidades nou-
pacidade de gerar nova tecnologia, o capi- tras paragens. Sem fortes laços de famí-
tal perde sua medida objetiva, requeren- lia, convivendo cotidianamente com ros-
do assim a constante intervenção do Es- tos anônimos, cada um agarra a primeira
tado para sanar suas vicissitudes. O Esta- coisa de caráter comum a qual lhe surja
do unifica a sociedade moderna, só ele pela frente. O mesmo buraco na rua que
lhe empresta um perfil permanente. Qual atrapalha os vizinhos, a mesma falta de
é, todavia, o caráter desse perfil? Não escola, a mesma carestia, e assim por
possui outra medida além daquela neces- diante, servem de ponto de referência,
sidade de apagar o fogo da crise, perde de padrão de medida, para a socialização
aquele ponto de referência antigo consti- de sua desgarrada individualidade pres-
tuído pelo movimento de constituição suposta. Cada um se identifica assim co-
duma única taxa de lucro que assegurava mo membro dum mesmo movimento
a autonomia da sociedade civil, para se social. No entanto, inevitavelmente esse
colocar como um juiz sem código que movimento precisa bater nas portas do
mascara pelo ritual do julgamento o arbí- Estado a fim de fazer valer a sua reivin-
trio de sua ação. Não estou afirmando dicação, obter o recurso para tapar o bu-
que a intervenção do Estado não tenha raco, prover a escola ou diminuir os pre-
seus limites, mas tão somente que dentro ços — o que resulta no fortalecimento
deles age em resposta ao jogo de inte- desse Estado em sua função de tapar ad
resses privados, sem lei maior que repre- hoc as crises. Desde o início o movimen-
sentasse os interesses nem mesmo do ca- to social é político, orientando-se direta-
pital coletivo. Nesse sentido, a lei é ad mente na direção do Estado; desde o
hoc. Não retrocedemos à situação dos início, porém, esse movimento é incapaz
selvagens que desconhecem o papel me- de fazer política, pois não possui outra

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saída do que reforçar o poder estatal. namento do atual mercado da força de


Poucos são os processos que escapam trabalho. Em vista dos progressos da au-
desse impasse, desde logo firmando-se tomação do sistema produtivo e da vida
como políticos em virtude de começar cotidiana, o saber, a qualificação do tra-
desenhando o perfil duma nova socieda- balho, se tornam trunfo essencial na ne-
de. Daí a importância dos processos de gociação pelo salário. Ao contrário do
socialização que desde o princípio se co- que se pensou no século XIX, o trabalho
locam como totalizantes. Se o movimen- não se homogeneiza em contato com a
to social vai do particular, da base para máquina automática, mas se diferencia
o Estado, os meios de comunicação de em múltiplas qualificações, cujo monopó-
massa e a propaganda política começam lio serve para cada um encontrar seu lu-
por se apresentar como a integralização gar ao sol. Não há dúvida de que este
dos fatos diversos ou como a discussão saber é muito mais prático do que teó-
da própria identidade do País. São gerais rico, sendo gerado muito mais pelo cami-
pela base, de sorte que essa universalida- nhar através da cidade moderna e pela
de permite uma socialização do indivíduo freqüentação da fábrica do que pela ida
solto que o movimento social nunca há à escola. Além disso, um trabalhador po-
de gerar. Por certo os partidos políticos de, a partir de certo nível de educação
carecem duma transformação a fim de formal, ser reciclado em curto prazo nu-
que se ajustem às condições hodiernas da ma nova qualificação. Isto vale tanto
conquista do poder; também eles tratam para o operário quanto para o professor
de fazer de conta que mudam para nada universitário. No entanto, a dura compe-
mudar. Por certo os meios de comunica- tição do mercado de trabalho tende a
ção de massa anestesiam a capacidade crí- negar essa realidade social, fazendo com
tica do indivíduo e impõem uma fala, que cada um se aferre às excelências de
uma opinião e um gosto homogêneos. No
sua profissão, mistifique as dificuldades
entanto, em vez de lamentar as tradições
do acesso a um saber determinado, valo-
perdidas, prefiro salientar o caráter ge-
rizando no imaginário aquilo que é ne-
neralizante tanto do partido quanto da-
queles meios, pois só eles se põem desde gado pelo moderno processo de sociali-
logo num terreno em que a política pode zação. A sociedade, contudo, também é
medrar. O basismo me parece uma ilu- formada por suas imagens e representa-
são de classe média, que teme os proces- ções, existindo na travessia espetacular
sos universais de socialização. que vai do esforço representativo de cada
um até a conformação e reposição das
estruturas objetivas. No seu domínio não
III
existe primordialmente nem sujeito nem
O saber e a Se se perde de vista a função peculia- objeto, mas tão somente processo de
barbárie: onde ríssima que o saber assume no cerne da objetivação dum sujeito que se identifica
barbárie contemporânea, corre-se o risco
está a de se tomar a Universidade pelo que ela
por ele.
Universidade. Nessas condições, o sujeito vive numa
pensa de si mesma. Não estou negando crise que nega mas repõe a peculiaridade
a validade do ideal daquela comunidade de seu saber individual. Este é um fator
de sábios que se reúnem para preservar a mais que vem emperrar o funciona-
os conhecimentos do passado, investigar mento da lei do valor trabalho. No en-
as condições do presente e preparar os tanto, não pode ser compreendido sem
sábios do futuro. Apenas vejo que esse ela. Principalmente porque se cruza com
ideal se integra num movimento de so- outra característica, do capitalismo con-
cialização que resulta na conversão da temporâneo; a cada emprego gerado nos
Ciência em força produtiva e fonte dum setores propriamente produtivos corres-
monopólio em que o capital contempo- pondem dois ou mais empregos nos seto-
râneo haure sua força. O intelectual não res de serviço. Assiste-se assim o fenô-
trabalha para a humanidade, mas para o meno inédito de que grande parte do
Estado, não só porque em grande parte esforço produtivo duma sociedade é di-
é funcionário público, mas ainda porque rigido para a produção de objetos, quer
é o Estado o grande responsável pelo fi- sob a forma de mercadoria, como a con-
nanciamento da pesquisa básica e aplica- sulta do médico particular, quer sob a
da. Isto no Brasil, como em qualquer forma de valor de uso, como a segurança
país estrangeiro. da polícia, objetos que são consumidos
Acresce que o próprio intelectual é no ato, constituem quase performing
monopolizador. Isto advém do funcio- objects. Daí o monopólio deles não po-

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der residir na propriedade reservada da dum saber imaginário cujos efeitos po-
coisa mas na capacidade de gerá-la. Como dem passar desapercebidos. Ao sábio se
medir sua eficácia? contrapõe o sabido. Onde estão os filó-
Quando se produz uma peça de auto- sofos de hoje?
móveis, sua qualidade encontra sua veri- O corporativismo encontra aqui seu ali- A transformação
ficação no bom funcionamento do carro mento e sua justificativa. Este é o segun- do saber em
por inteiro. Não acontece o mesmo com do fenômeno que pretendo salientar. Em
a consulta do médico ou a batida do po- defesa do nível qualitativo de cada saber,
astúcia:
licial, o primeiro gerando saúde e o se- os profissionais se associam numa cate- o nascimento do
gundo uma cidade ordeira? A saúde e a goria. Essa defesa implica reforçar o mo- corporativismo
ordem, entretanto, dependem muito mais nopólio do grupo, criando barreiras de
da reação do organismo e da cidade do acesso à profissão e regras para o exer-
que da intervenção direta dos dois ope- cício dela. Com isso se abrem as portas
radores. É de notar que igualmente o para os sabidos que tomam de assalto
operário ultraqualificado vê seu trabalho tais associações em defesa de suas malan-
perder aquele caráter de intervenção di- dragens. A sociedade contemporânea é
reta na coisa para transformar-se num corporativista pela raiz. Isto se torna
ato propiciatório diante dum painel. ainda mais evidente nos momentos de
Grande parte do trabalho contemporâneo crise como aquele por que estamos pas-
consiste no ato de chamar um efeito útil sando. A pauperização de todos esses
num automatismo cuja finalidade já está profissionais qualificados não os conduz
inscrita em seu próprio seio. Foi-se o à proletarização, à homogeneização de
tempo daquele trabalho artesão que pos- todos eles sob a rubrica geral de trabalha-
suía como telos ofertar aos deuses a taça dores. Muito pelo contrário, cada um se
fabricada; hoje em dia ele é consumido aferra às suas diferenças reais e a seus
por uma medida, uma ratio, de metais e símbolos, a tal ponto que deixa de ter
plástico. E quando ele perde até mesmo importância a distinção entre o saber real
essa medida, como no caso dos serviços, e o saber imaginário. E como não há uma
fica sem qualquer terreno de verdade. medida socialmente efetiva para a eficá-
A extraordinária produtividade do traba- cia dos serviços uma medida que objeti-
lho ligado à produção de bens de capital vamente comprovasse sua validade, de-
permite uma expansão inédita dos servi- saparece a fronteira entre o trabalho efe-
ços e, com ela, a avalanche de trabalhos tivo e o trabalho imaginário. Nos órgãos
cuja eficácia dificilmente pode ser compu- de administração pública e até mesmo
tada. Mas um operário duma fábrica au- privada, nos hospitais e nas escolas, tra-
tomática já não está muito próximo dum balhasse assim como se faz de conta que
prestador de serviços? Ao invés da pro- se trabalha. Já que a Universidade é uma
letarização das classes médias não esta- instituição de classe média, compreende-
mos assistindo a um pequeno aburgue- se como pode vir a ser o paraíso dos
samento do proletariado? sábios e dos sabidos, onde se torna difí-
Seguem-se dois fenômenos sociais de cil distinguir o trabalho efetivo daquele
suma importância. Primeiro, uma forma que faz de conta. Cabe uma análise dela,
peculiaríssima de negação do saber. não como espécie de conseqüência do
Quando ele nasce no Ocidente sob a for- que foi dito acima, mas como de um
ma de teoria, de contemplação da ativi- caso onde isto aparece concretizado, re-
dade do logos, sua negação consiste no posto em novas circunstâncias.
falar sem medida, no tagarelar sem ratio
que afirma igualmente o verdadeiro e o IV
falso. Ao sábio (sofos) se contrapõe o A Universidade de hoje cumpre ao
sofista. É por isso que se torna neces- menos quatro funções: abriga o saber A Universidade
sária a atividade dos filósofos, amigos erudito, treina profissionais, presta servi- de hoje: real
da sabedoria autêntica, como são amigos ços à comunidade e forma ideólogos das e imaginário,
dos animais aqueles que os protegem con- classes médias e dominantes. Mas o faz efetivo e "faz de
tra a maldade dos homens. Mas já nessa como instituição corporativista que tem, conta".
época, a autêntica sabedoria se constitui além do mais, dificuldades em distinguir
da sofia e de seu reverso, pois uma se o saber real do saber imaginário. Estes
identifica no combate da outra. Agora traços se tornam mais agudos no Brasil,
que o saber se transforma no uso duma em virtude do crescimento rápido e ata-
qualificação monopolizada, sua negação balhoado que ela sofreu principalmente
consiste no abuso dela, no monopólio a partir de 1968. Em geral, trata-se duma

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Universidade mal aparelhada, com labo- despreparado expõe idéias vagas, que o
ratórios ineficientes e bibliotecas paupér- professor comenta ao sabor de suas asso-
rimas. O recrutamento forçado entupiu- ciações. Não há dúvida de que se deve
a com professores incompetentes. O gran- dar ao estudante a oportunidade de trei-
de desafio é que não vejo tais defeitos nar sua capacidade de exposição; montar,
como vicissitudes passageiras, resultantes entretanto, todo um curso na base de
duma época de expansão, e que seriam seminários, é retirar da aula o caráter
sanadas pelo tempo. A crise é mais pro- dum trabalho que o professor prepara
funda e as contradições internas da Uni- em casa e encena no momento. Trabalho
versidade brasileira jogam-na num estado muito mais para o aluno do que para ele.
de paralisia crônica. Não é à toa que o jovem pula dum curso
A Universidade é coisa perigosa em para outro, havendo alguns que se trans-
países subdesenvolvidos. Só o fato de formam em verdadeiros campeões do
possuir hoje mais de 1.600.000 estudan- vestibular.
Faz de conta tes dá uma idéia da revolução intelectual Sem aula e sem biblioteca o estudante
que ensina, que haveria se a maioria deles fosse efi- tende a fazer de conta que estuda, e o
faz de conta que caz e inventiva. Daí a funcionalidade da professor a fazer de conta que ensina.
estuda: infra-estrutura precária e da incompe- Este último está, além do mais, enqua-
tência. drado numa carreira que valoriza seu
a comunidade Já o vestibular começa como máquina desempenho burocrático. Quantas vezes
dos sabidos. de triturar talentos. O treinamento para o físico é obrigado a parar de trabalhar
o teste homogêneo equaliza por baixo, para escrever sua tese de doutoramento?
beneficiando o aluno esforçado e punin- É sabido que o cientista de hoje, em ge-
do o inventivo. Alguns são eleitos numa ral, investiga de parceria, publicando um
massa de candidatos cuja formação toda trabalho curto de rápida divulgação. Que
ela foi tomada como parte para a Uni- outro sentido pode ter a exigência duma
versidade. É evidente que nessas condi- tese robusta a não ser a anestesia de seu
ções o próprio ensino secundário está vo- trabalho? Por hipótese, o sociólogo ou o
tado à falência, já que as tímidas tentati- filósofo devem escrever livros, mas eu
vas de lhe emprestar cunho profissionali- gostaria de saber qual é a proporção, no
zante não passaram duma farsa. domínio das humanidades, entre a tese
Transpostos os muros da Universidade, defendida e a tese publicada. Quantos
o estudante inicia seu martírio. Contam- titulares existem que não publicaram um
se nos dedos os cursos que oferecem uma único livro? Levando tudo isso em con-
formação adequada e oportunidades pa- ta, não se deve dizer que a Universidade
ra desenvolver um pensamento criador. funciona para não funcionar? Não é ela
Mesmo nas grandes universidades, há uma espécie de analgésico que se aplica
casos de cursos totalmente desarticula- a uma juventude irrequieta e a intelec-
dos, onde o professor durante anos ensi- tuais classe média, de parolagem radical,
na a mesma coisa ou o que está acabando a fim de que todos fiquem à margem dos
de aprender em suas próprias pesquisas; movimentos efetivos da sociedade brasi-
cada docente faz o que quer sem ter em leira? Não é sintomático que, com algu-
vista as necessidades gerais da formação mas exceções, principalmente dos econo-
do aluno. Este esgarçamento do ensino mistas, a Universidade esteja calada dian-
aparece dourado pela ideologia de vincu- te da enorme crise que nos assola. Na
lar docência e pesquisa, mas na realidade verdade a UNICAMP se manifestou a
expressa a impossibilidade do professor respeito, duma forma corajosa, mas duma
se distanciar de suas próprias angústias Universidade se espera mais do que ma-
intelectuais, a fim de apresentar ao aluno nifestos, dela se espera uma análise crí-
um trabalho, uma aula, que desperte o tica, todo um trabalho de compreensão
interesse dele e se integre no panorama da modernidade do qual ela tem se au-
de suas carências. O mesmo acontece sentado.
com os famosos seminários. Com o intui- Marca profundamente a vida da Uni-
to de evitar o autoritarismo da aula mag- versidade brasileira o fato dela ser dire-
na, o professor começa mentindo ao dizer tamente um órgão do Estado. Por certo
aos estudantes que todos ali estão para não existe hoje em dia uma Universidade
aprender juntos. Como se um não deves- inteiramente privada, pois mesmo nos
se saber muito mais do que o outro, sen- Estados Unidos, em virtude do volume
do pago justamente para isso. O resultado do financiamento estatal da pesquisa, ela
é uma aula chatíssima, em que um aluno é uma coisa pública gerida por corpora-

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ções isoladas. Entre nós, o professor é sem que contudo se inicie pela base uma
uma espécie de funcionário público man- nova divisão do trabalho intelectual.
darim que tende a usar privadamente a Como outros movimentos sociais, espera
coisa pública. Há reitores que se perpe- do Estado a palavra salvadora. É de notar
tuam no poder como se ali estivessem que todo esse reboliço por que tem pas-
para perpetuar uma dinastia; há casos sado a Universidade nos últimos tempos
em que uma gang se apropria do Conse- não produziu até hoje um projeto váli-
lho Universitário para estabelecer um po- do para ela própria. O projeto da
der oligárquico; e o próprio departamen- ANDES exprime unicamente as deman-
to tende a enfeudar-se de modo que seus das dum baixo clero que teme um pro-
membros se protegem mutuamente de cesso efetivo de seleção de cérebros e cai
qualquer ingerência interna. Disso tudo na proposta escandalosa duma carreira
resulta uma distância entre a Universida- por tempo de serviço.
de do estatuto, do papel, e a Universi- Como um movimento social, o movi-
dade real. O reitor imperial aplica a lei mento dos docentes se processa por con-
a seus inimigos e destina favores a seus vulsões. Durante a campanha salarial ou
amigos. Os grupos oligárquicos mandam pela eleição do reitor se move toda a
e desmandam quando não passam a exer- comunidade acadêmica; depois disso é o
cer verdadeira patrulha ideológica. E por refluxo, sem deixar traços duma organi-
todos os lados se assiste ao aparecimento zação propriamente política, vale dizer
duma elite burocrática, em geral formada representativa. Por mais estranho que pa-
por docentes de carreira rápida, que se reça o movimento que demanda uma
reveza nas comissões e nos lugares de politização da Universidade é social e
mando. Tece-se um ritual a fim de obri- não político. Este traço ainda mais é re-
gar o docente a uma carreira por mérito forçado por uma visão basista da políti-
e a passar por concursos públicos perió- ca, pelo mito da sociedade transparente
dicos. Mas por trás do rito está o favori- onde não haja delegação de poder. Daí o
tismo que transforma cada concurso num risco desse movimento implantar na Uni-
jogo de cartas marcadas. Quanto maior o versidade uma espécie de burocratização
poder e o grau de coerência interna dos anônima vinda de baixo, pois a eterna
grupos, menor a prestação de contas de discussão nas assembléias pode emperrar
seus membros. Há casos em que o fun- as decisões, impedir a divisão das respon-
cionamento duma unidade fica emperra- sabilidades e a cobrança das tarefas. Está
do porque ninguém presta contas a nin- na hora de se perceber que a Universi-
guém; a docência mesmo em tempo in- dade não é uma sociedade em miniatura
tegral aparecendo como sinecura a fim e que nela a democracia não pode ter o
de que o professor, depois de se livrar mesmo sentido que a democracia como
do ônus da aula, possa dedicar-se intei- forma de governo duma nação. Para fun-
ramente a seu ócio. Nessas condições, em cionar com mínimo de eficácia as dife-
que a qualificação é trunfo no mercado renças de mérito precisam ser salientadas,
de trabalho mas tão somente símbolo a competência valorizada e se deve em-
numa administração sem mercado, não é prestar à carreira pública aquilo que ela
de estranhar que reputações se formem ganhou de mais lícito no mundo moder-
pela graça do Espírito Santo. E nada mais no: o fato dos cargos serem disputados
perigoso para o intelectual sabido do que por concursos. De outro modo, é o im-
testar seu saber num diálogo ou numa pério da patronagem e o enfeudamento
discussão. A Universidade assim se fecha das instituições.
em copas. Isto não significa, entretanto, que não
Tanto quanto outros setores do País, existam decisões políticas na Universida- O movimento
a Universidade tem sido atravessada por de, tudo se resumindo a questões técni- social dos
movimentos sociais. Os docentes se orga- cas. Quem afirma que tudo é político universitários:
nizam em associações de classe e trazem acaba dizendo que nada é político, quan- faz de conta...
à luz suas reivindicações. O maior esfor- do a primeira tarefa duma política, que
ço tem sido consumido em diminuir os não se pretenda autoritária, é circunscre-
efeitos do arrocho salarial. Logo em se- ver seu próprio domínio. Onde reside a
guida vem a reivindicação por melhores parte política da Universidade? Creio que
condições de trabalho. Mas estas são mui- ela está, antes de tudo, na discussão das
to mais verbais do que efetivas, resumin- prioridades da pesquisa, do ensino, da
do-se burocraticamente em levar ao rei- prestação de serviços, da formação ideo-
tor ou ao Governo um monte de idéias, lógica. É uma questão política decidir

OUTUBRO DE 1984 39
A UNIVERSIDADE E A CRISE

qual dessas funções será enfatizada no desde seu início —, com maior empenho
interior duma universidade, que área da saliento a necessidade de fazer valer a
ciência receberá maiores recursos, que ti- todo o custo os critérios acadêmicos.
po de ensino será ministrado, qual o perfil Uma coisa é a Universidade discutir com
do profissional a ser formado, que forma os representantes políticos da sociedade
de serviços serão prestados à comunidade como um todo, desde os parlamentos até
e assim por diante. Por isso a questão os sindicatos, outra ficar à mercê da poli-
da democracia na Universidade precisa tiquice governamental interessada em en-
ser colocada em vários níveis. A simples caixar seus homens de partido na rede
eleição direta dum reitor ou dum chefe administrativa. Ela tem interesses e fins
de departamento significa hoje, na ver- próprios de que não pode abdicar, mas
dade, um passo importante na luta con- para cumpri-los cabe entabular um diá-
tra o autoritarismo que se infiltrou pelos logo intenso e profícuo com os represen-
poros de nossa sociedade. Não deve ser, tantes de todas as partes da sociedade.
porém, tomada como panacéia universal Por fim, a democratização da Univer-
nem serem diminuídos os riscos em que sidade implica o esforço a fim de que ela
ela incorre. De um lado, está o perigo se torne mais representativa das várias
de borrar a distinção entre o técnico e camadas da população. Por causa de sua
o político. Um departamento, por exem- evidência, gosto de testar um indicador
plo, é basicamente um órgão técnico. Se do caráter elitista dela: quantos negros
seu chefe deve ser eleito — e por quem, estão nesta sala? Quantos negros estu-
dam e trabalham nos campi?
é um tema a ser discutido — isto não
significa que a composição dos currícu- V
los, o recrutamento dos professores e a
Um programa orientação da pesquisa devam ser politi-
Aos poucos minha análise foi se trans-
para a formando num programa. É o momento
zados. De outro, reside ainda o risco de
de perguntar: há grupos interessados em
Universidade colocar um homem forte, com a autori-
realizá-lo? Não creio que se possa esperar
dade legitimada pela eleição, num posto
de mando que conserva mecanismos au- muito do movimento estudantil. É previ-
toritários. E como todos sabem, o uso do sível que ganhe importância nos próxi-
cachimbo faz a boca torta. mos anos, mas acredito que, como sem-
A democracia Desde que se coloque a questão da pre, terá uma orientação nitidamente po-
universitária democracia universitária ao nível da lítica, fazendo da Universidade apenas
é como qualquer discussão das prioridades, fica claro que seu lugar de passagem, deixando na
democracia: ela só poderá ser exercida por mecanis- margem as questões universitárias pro-
priamente ditas. Não é o caso, entretan-
representação. mos de representação. Trata-se duma lu-
to, de subestimar sua capacidade de pres-
ta constante que não pode ser decidida
numa única assembléia geral, mas depen- são no sentido de transformar a estrutu-
de do trabalho de formiga de represen- ra esclerosada. Se cada estudante, de seu
tantes fazendo a ponte entre suas bases ponto de vista particular, tende a per-
e os órgãos colegiados máximos. Daí mi- manecer conivente com essa Universida-
nha crença de que se precisa mudar ur- de que funciona para não funcionar, in-
gentemente a composição dos conselhos serido no movimento estudantil, deman-
universitários a fim de que eles se tor- da melhores cursos e melhores condições
nem mais representativos da comunidade de trabalho. Unicamente não possuem
como um todo, podendo ainda exercer sozinhos a capacidade de traçar o projeto
maior vigilância sobre o executivo. A duma nova Universidade. Por sua vez, o
luta contra a burocracia implica visibili- movimento docente como um todo dificil-
dade e já é tempo de terminar com o mente perderá seu caráter corporativista,
trabalho secreto das comissões. que pode ainda aumentar quando novas
No entanto, se a Universidade é ape- levas de professores e pesquisadores co-
nas parte da sociedade e não sociedade meçarem a disputar as vagas que hoje
em miniatura, não tem direito de decidir estão sendo ocupadas pelos incompeten-
por si só as questões de prioridades. O tes. Felizmente esta tendência poderá ser
conceito de autonomia universitária ne- contrabalançada pelos grupos na Univer-
cessita ser refeito. Longe de mim a idéia sidade que ainda têm interesse por um
de subordiná-la aos caprichos do Gover- trabalho efetivo.
no. Se defendo a tese de que ela deve se Toco num ponto que me parece essen-
distanciar das sinuosidades do movimen- cial para compreender os movimentos po-
to estudantil — sendo que este é político líticos das classes médias. Se, de fato, es-

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tão mergulhadas no fazer de conta que patível com as exigências de nosso de-
trabalham e num consumismo que repete senvolvimento. Percebendo a impossibi-
em miniatura o exercício duma vontade lidade de reformar a Universidade de
geral (a compra dum automóvel, por cabo a rabo, o Governo monta órgãos
exemplo, representa menos o simples de financiamento que passam a incenti-
prazer do consumo e mais a oportunida- var diretamente, saltando por cima da
de de exercer uma liberdade limitada); organização burocrática, grupos mais in-
se, de fato, mantêm uma relação imaginá-
ventivos. As próprias empresas batem às
ria com o trabalho e com o poder, esta
mesma relação as situa na má consciên- portas dos departamentos pedindo-lhes
cia. Deixa o gosto amargo duma vida serviços, propiciando a criação de fun-
sem sentido, duma contradição que não dações. Muitos, orientados por uma
se resolve e dilacera a pessoa em múlti- ideologia estatizante e muito ciosos da
plas regiões. Alguns se submetem mais isonomia salarial, reagem violentamente.
cinicamente a essa situação impossível, Acredito que todas essas questões, assim
outros resistem com mais vigor e talen- como aquela da abertura do tempo inte-
to, mas todos se precipitam para a fren- gral, estão mal postas. Não se trata de
te quando uma nova esperança se levanta separar uma Universidade que o Estado
de combinar a vida cotidiana com a ação organiza como uma comunidade de sá-
produtiva concreta. Quem não espera bios, de outra que se identifique com
trabalhar direito? Daí essas vagas de re- uma empresa capitalista. Nem uma nem
novação por que passa a política moder- outra são viáveis em sua pureza. A ques-
na, daí essas convulsões que refluem tão crucial é saber como se vai controlar
diante da primeira derrota. Uma delas, a relação da Universidade com a comu-
porém, pode dar certo, principalmente se
nidade e quem vai desempenhar essa
for orientada por uma teoria política cor-
reta, que, a meu ver, deve abandonar o função. O departamento estatal isonômi-
mito da sociedade transparente e enfren- co pode converter-se num ninho de bu-
tar, de vez, os problemas da representa- rocratas, aquele intimamente ligado ao
ção. Se os grupos dinâmicos da Universi- Governo ou à empresa privada, num in-
dade, interessados em ensinar e pesquisar ferno competitivo. O primeiro perigo a
bem e prestar bons serviços à comuni- evitar é que ambos se julguem a si mes-
dade, se organizarem desde logo como mos. Só me parece sair do impasse se a
um grupo político, propondo-se um pro- Universidade aprofundar seu processo de
jeto de Universidade nova e tendo em democratização, obviamente evitando o
vista o objetivo claro de chegar ao poder, assembleísmo dum lado, e a farsa parla-
ela passará por um período de profunda mentar de outro. Criar um sistema efe-
reformulação. É preciso, porém, desde tivo e eficaz de representação, eis a ta-
logo, que tais grupos compreendam que refa mais urgente.
sem chegar ao poder da Universidade
Sabemos que nossas possibilidades
nada poderão fazer. Vamos acabar com são limitadas, não nos moveremos inde- Vocação de
essa mistificação de dizer que os cargos pendentemente dos rumos em que o professor e dever
significam apenas ônus ou sacerdócio.
Muito bom intelectual tem interesse em
Brasil vai se mover. É impossível separar de cidadão:
nossa vocação de professor de nosso de- para deixar de
exercê-los e não há vergonha nisso. A ver de cidadão. Mas no fundo de nossos
vontade de saber pode aliar-se à vontade corações, de muitos e muitos dentre nós, "faz de conta".
de poder, mas na Universidade esta não o simples ideal do conhecimento não é
pode excluir a outra. Mas convém desde palavra. No imaginário das sociedades
logo ter em mente que se os grupos co- ocidentais reside o impulso para o co-
meçarem por declarar suas intenções po- nhecimento racional. Por isso, estamos
líticas, estão propondo uma política da mal acomodados neste conhecer que se
negociação, onde o poder deixa de ser resolve num fazer de conta de conheci-
a encarnação dum bem comum abstrato mento. Para a tarefa de começar a re-
para o exercício dum acordo feito ad hoc. compor nossa individualidade fendida
Duma coisa podemos estar certos: es- encontraremos muitos aliados dispostos
ta Universidade que funciona para não a instaurar na Universidade uma nova
funcionar não está cumprindo nem mes- divisão do trabalho intelectual.
mo os padrões dum funcionamento mí-
nimo. A sociedade pressiona para que José Arthur Giannotti é professor de Filosofia e atual
ela atinja um patamar de eficácia com- presidente do CEBRAP.

Novos Estudos Cebrap, São Paulo


n.° 10, pp. 32-41,out. 84

OUTUBRO DE 1984 41

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