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Exercer a Postura Crítica:


Desafios no Estágio em
Psicologia Escolar
Exercising Critical Stance: Challenges in a School
Psychology Internship

Ejercer la Postura Crítica: Desafíos en el Contrato de


Prácticas en Psicología Escolar

Adriana Marcondes Machado


Universidade de São Paulo

http://dx.doi.org/10.1590 / 1982 – 3703001112013

A
PSICOLOGIA:CIÊNCIA E PROFISSÃO,2014, 34(3), 760-773
developed to work with one of the challenges that
PSICOLOGIA: present themselves during the su pervision: to intervene
CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2014, 34(3), 761-773
762 at that point in which interns consider the school as
something foreign to themselves. The strategies
Adriana Marcondes Machado developed indicate that the deconstruction needed in the
training of psychology students to learn to intervene in
institutional processes experienced during the
Resumo: Os estudantes de graduação do curso de
internships also requires the deconstruction of a way of
Psicologia do Instituto de Psicologia da Uni versidade de
thinking that creates a pretended subject who is outside
São Paulo, ao cursarem as disciplinas relacionadas à
the force diagram in which the intern process is.
área da Psicologia Escolar, realizam estágios em
Keywords: Training Psychologist. School Psychology.
instituições educativas. Imbuídos de uma postura crítica,
College students (Psychology). Reports.
os estagiários entram em contato com demandas de
tratamento, prevenção e adaptação e compreendem a
Resumen: Los estudiantes de pregrado del Curso de
produção histórica destas. Todavia, em muitos
Psicología del Instituto de Psicología de la Universidad
momentos, os estagiários julgam essas demandas como
de São Paulo al asistir a los cursos relacionados al área
se fossem equivocadas e, dessa forma, não conseguem
de Psicología Escolar realizan prácticas
perceber a multiplicidade de elementos que as
pre-profesionales en instituciones educativas. Imbuidos
constituem e as formas para agir em sua produção. O
de una postura crítica los practicantes entran en
objetivo deste artigo é apresentar um percurso de
contacto con demandas de tratamiento, prevención y
trabalho enfatizando as estratégias criadas para dar
adaptación, y comprenden su producción histórica. Sin
conta de um dos desafios que se apresentam no grupo
embargo, en muchos momentos los practicantes juzgan
de supervisão: intervir nesse momento no qual os
esas demandas como si fueran equivocadas y, por tanto,
estagiários consideram o funcionamento da escola como
no consiguen percibir la multiplicidad de elementos que
algo exterior a eles. As estratégias criadas indicam que
las constituyen y las formas de actuar en su producción.
a desconstrução necessária na formação dos
El objetivo de este artículo es presentar el recorrido de
estudantes de Psicologia para que aprendam a intervir
un trabajo que enfatiza las estrategias creadas para
nos processos institucionais vividos durante os estágios
atender a uno de los retos que se presentan en el grupo
requer, também, a desconstrução de uma forma de
de supervisión: realizar in tervención en el momento en
pensar que cria um suposto sujeito fora do diagrama de
el que los practicantes consideran el funcionamiento de
forças em que o processo do estágio faz parte.
la escuela como algo exterior a ellos. Las estrategias
Palavras-chave: Formação do psicólogo. Psicologia
creadas señalan que la desconstrucción necesaria en la
Escolar. Estudantes universitários (Psicologia).
formación de los estudiantes de psicología para que
Relatórios.
aprendan a intervenir en procesos institucionales vividos
durante las prácticas requiere también la
Abstract: Undergraduate students of the Psychology
desconstrucción de una forma de pensar que crea un
Course at the Institute of Psychology of the University of
supuesto sujeto fuera del diagrama de fuerzas en el que
São Paulo, perform internships in educational institutions
el proceso de prácticas participa.
when attending the disciplines related to the area of
Palabras-clave: Formación del psicólogo.
School Psychology. Imbued with a critical stance interns
Psicología-escolar. Estudiantes universitarios
face demands for treatment, prevention and adaptation,
(Psicología). Informes.
and they comprehend the historical production of these
demands. But in many cases, interns believe these
claims are wrong, and thus fail to realize the multiplicity
of elements that constitutes them and the forms and to Exercer a Postura Crítica: Desafios no Estágio em Psicologia
act in its production. The objective of this paper is to Escolar
present a course of study emphasizing the strategies
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PSICOLOGIA:
CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2014, 34(3), 761-773 Adriana Marcondes Machado
Psicologia formulam é de que seria ne
cessário apresentar aos professores das
O problema: como exercer a escolas
postura crítica considerações que os ajudassem a
perceber a responsabilidade deles na
produção daquilo que é tomado como
Quando os estudantes do curso de
problema. Com isso, os estagiários têm
graduação em Psicologia do Instituto de
esperança de que os profes sores
Psicologia da Universidade de São Paulo
mudem suas atitudes.
(IPUSP) iniciam os estágios das
disciplinas da área da Psicologia Escolar,
contam-nos que sabem o que não é Essa situação nos mostra uma questão
para fazer, sabem que existem práticas que se revela fundamental para ser
que discriminam e rotulam, sabem que trabalhada durante o estágio: uma
existem ações que reduzem os sujeitos a posição dos estudantes de Psicologia
índices e números, sabem sobre o segundo a qual o outro é con siderado
perigo de interpre tações totalitárias, equivocado (como se o problema
sabem que a Psicologia e os psicólogos estivesse na ação do professor).
reproduzem relações de desi gualdade Pensando dessa forma, os estagiários
de poder, sabem do perigo presente nos sugerem que de veriam explicitar ao
encaminhamentos de alunos das escolas professor aquilo que está acontecendo e
para avaliação psicológica quando estes que não está sendo per cebido para,
isen tam o funcionamento social e assim, produzir mudanças nos gestos.
institucional da responsabilidade pela Essa posição dos estudantes de Psi
produção de fracasso escolar, e cologia é um dos desafios para a
perguntam: como agir diferente mente supervisão, pois eles tratam os
disso? Como exercer a postura crítica? professores das escolas públicas de uma
Até esse momento do curso, os alunos maneira muito parecida com a que,
de Psicologia estudaram a relação entre muitas vezes, os professores dessas
o fun cionamento do sistema capitalista e escolas tratam seus alunos.
as pro duções do fracasso escolar e da
intensa de sigualdade em nosso país O objetivo deste artigo é apresentar um
(Patto, 1984, 1990; Chauí, 1980; per curso de trabalho enfatizando a
Tanamachi, Proença & Rocha, 2000; busca de estratégias para dar conta de
Machado, 2003). Esses estudantes um dos desafios que se apresentam nos
cursam o 7º semestre do curso de grupos de supervisão: intervir nesse
Psicologia (a graduação em Psicologia momento no qual os estagiários
tem 10 semestres) e suas indagações consideram o funcionamento da escola
revelam que teria sido muito importante como algo exterior a eles. Portanto, esse
que as atividades de ex tensão trabalho faz parte de uma investigação
pudessem estar mais presentes desde o sobre os pro blemas e desafios que se
início da graduação. operam na formação de alunos do curso
de Psicologia. Para isso, discutiremos a
Ao chegarem às escolas públicas, onde forma como os estagiários de Psicologia
alguns dos estágios são realizados, têm analisado os problemas pro duzidos
estão abertos, disponíveis e curiosos no espaço escolar e apresentaremos as
para entender os acon tecimentos que lá estratégias criadas para problematizar
acontecem. As primeiras idas à essas análises utilizando relatórios
instituição escolar são, normalmente, escritos pelos estagiários durante a
impactantes. Experimentam situações experiência de estágio e reflexões
difíceis e uma das reações é crerem que realizadas nas supervisões.
deveria haver mudança de atitude por
parte dos professores que trabalham nas Essa busca de estratégias requer o
escolas. Muitas vezes defendem que os entendi mento de que a intervenção e a
professores poderiam agir de uma investigação caminham juntas. Para
maneira mais crítica se não in isso, temos como subsídio os aportes
dividualizassem as causas da produção teóricos da pesquisa-in tervenção
do fracasso escolar dos alunos com os (Aguiar & Rocha, 2007; Altoé, 2004), em
quais se preocupam. Nas primeiras que o profissional está envolvido no
supervisões do estágio, uma das próprio diagrama de forças que
hipóteses que os estudantes de investiga, buscando formas de agir
naquilo que se constitui nesse campo. de Psicologia, focalizaremos o formato
Para apresentarmos o desafio nesse do trabalho e os diferentes tempos
momento da formação dos estudantes

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Sabemos que a maioria das instituições
de ensino superior não tem equipes de
vividos em estágios realizados durante
trabalho (docentes e psicólogos) para
os anos de 2009, 2010 e 2011 em
formularem e organizarem os estágios
Escolas Pú blicas Municipais da cidade
dos alunos. As estratégias investi gadas
de São Paulo.
e experimentadas durante o trabalho de
supervisão a serem aqui apresentadas
vêm sendo gestadas há tempos e a
Formato do trabalho: entre a organiza ção atual é fruto de muitos
universidade e o campo de movimentos (Machado, 2003; Machado
& Souza, 1997).
estágio Muitos estágios são realizados em
escolas municipais de ensino infantil e
No curso de Psicologia do IPUSP, temos de ensino fundamental. As dificuldades
três disciplinas que se articulam são narradas pelos estagiários com
formando uma sequência de discussões muita angústia. Quando vamos às
da área de Psicolo gia Escolar. Duas são escolas públicas, os professores nos
obrigatórias, teóricas, e ministradas no pedem que ajudemos em situações
quinto e sexto semestres do curso. A muito difíceis, urgentes, que precisam de
terceira disciplina é optativa e mi nistrada in tervenções imediatas. Fomos
no sétimo semestre. Os estágios são aprendendo a demarcar diferentes
realizados nessa disciplina optativa, na tempos vividos no estágio e a intensificar
qual trabalham uma docente e três formas de trabalhar esses tempos com
psicólogas do Serviço de Psicologia os estagiários de Psicologia. Durante os
Escolar. As psicólogas estabelecem as quatro meses de trabalho, os es tagiários
relações com as escolas pú blicas e vão, em média, 15 vezes às escolas e,
outras instituições de caráter educa tivo como descrevemos acima, têm
para organização dos estágios. Os estu supervisões semanais. Tudo muito
dantes de Psicologia que se inscrevem intenso e rápido.
nessa disciplina optativa são divididos
em grupos – seis a oito estudantes por Cada dupla de estagiários se
grupo de super visão, que trabalharão compromete a estar na escola duas
em duplas. Cada grupo cumprirá duas horas por semana e é responsável por
horas semanais de su pervisão, duas trabalhar com uma situação escolar
horas semanais de estágio na instituição, durante o estágio que, como veremos,
duas horas semanais de aula teó rica e nos remete a vários temas que
tempo para escrita de relatórios sema atravessam o cotidiano escolar. Muitas
nais com descrição e análise dos vezes, essas situações que farão parte
aconteci mentos vividos no estágio. do trabalho de estágio foram definidas
antes de ele se iniciar, nos encontros que
Cada uma das três psicólogas do o psicólogo supervisor teve com os pro
Serviço de Psicologia Escolar do IPUSP fissionais que trabalham na escola. Comu
tem a responsa bilidade de supervisionar mente, essas situações estão
os estágios de in tervenção desses relacionadas a histórias singulares: uma
grupos de estagiários. Essa informação certa aluna tem com prometimentos
é fundamental, pois entendemos que as orgânicos, está no 6º ano (an tiga 5ª
estratégias que desenvolvemos foram série, isto é, primeiro ano do Ensino
fruto da possibilidade de um contrato de Fundamental II) e tem apresentado
trabalho (como psicólogo do IPUSP) no muitas atitudes agressivas que não eram
qual a função de extensão da comuns no ano anterior quando ainda
Universidade é priorizada e aprimorada. frequentava o En sino Fundamental I; um
outro aluno apresenta dificuldades campo de estágio e a
intensas e se recusa a fazer as coisas
que lhe pedem; uma sala de aula do 3º supervisão
ano vive muitas cenas de indisciplina. As
situações começam a aparecer dessa Os estagiários escrevem,
forma, por aquilo que inquieta, que semanalmente, para a supervisão,
preocupa, que tensiona. Sabemos que relatos sobre o que ocor reu no estágio,
esses acontecimentos (como todo contendo fatos e análises. Esses
acontecimento) são efeitos de relações escritos são denominados “relatos se
que precisarão ser habitadas e co
nhecidas para que o trabalho se realize.

Relatos semanais: entre o

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qual a estagiária também participou e,
nela, decidiram que haveria outro proce
manais” e são lidos pelo supervisor (e,
dimento, e os alunos não seriam
se possível, pelos outros estagiários do
revistados. No relato semanal, a
grupo) antes da supervisão. Pedimos
estagiária havia narrado mudanças na
que os estagiá rios os enviem mesmo se
postura da professora após essa
o estágio for reali zado um dia antes da
conversa, mas ao contar sobre esse fato
supervisão. Por exemplo, uma dupla que
na supervisão, ela se deteve bastante
realizava o estágio na segunda-feira e a
tempo na cena em que a professora
supervisão era na terça feira de manhã,
havia feito a ameaça, pois tinha ficado
enviava os relatos semanais até
muito aflita quanto à possibilidade de
segunda-feira, às 21 horas, para que fos
inspeção. Sabendo das mudanças
sem lidos no dia seguinte bem cedo.
ocorridas na postura da profes sora, foi
Enfati zamos esse procedimento, pois
possível ouvir a indignação da esta
tem sido importante para aproveitarmos
giária, considerando que ela estava
o tempo da supervisão, termos acesso a
narrando uma situação com movimento:
esse material es crito antes que os
a professora buscou o coordenador para
estagiários nos contem sobre os
conversar du rante o recreio e mudou de
acontecimentos no estágio. É comum
ideia, conver sando com seus alunos de
que situações muito mobilizadoras
outra forma. A possibilidade de ter um
demandem tempo da supervisão para
coordenador para conversar naquele
serem narradas e pensadas. Sabemos
momento nos indica que o gesto da
da importân cia dessas narrativas, mas
professora está articulado a um
ao termos as infor mações escritas nos
campo complexo e que faz diferença
relatos semanais, agilizamos a
uma escola em que há tempo e pessoas
ampliação do campo de análise daquilo
para pen sarem as situações do dia a
que está sendo apresentado pelo es
dia. A conversa com o coordenador foi
tagiário, sem ficarmos aprisionados nas
fundamental para analisar melhor a
sen sações e opiniões. Por exemplo, um
situação. Portanto, pensar que os alunos
dia uma estagiária havia escrito em seu
deveriam ser revistados ou que seria
relato semanal uma situação bastante
importante outro tipo de interven ção,
tensa que havia ocor rido entre a
dependerá de um campo de relações, de
professora do 3º ano e os alunos. Havia
uma multiplicidade de acontecimentos e
sumido os estojos de duas alunas e a
funcionamentos institucionais.
professora avisou que, se os estojos não
fos sem devolvidos, todos seriam
As sensações e interpretações dos
revistados antes de irem para casa. Os
estagiários nos servem como alavanca
alunos foram para o recreio e, durante
para conhecer mos o campo de
esse tempo, a pro fessora e o
relações. A supervisão tam bém faz
coordenador tiveram uma con versa da
parte desse campo, isto é, o que se
relata, como se relata e o que se analisa acontecimento é efeito de um com plexo
não são fatos apenas exteriores à campo de forças, e nossas ideias não
supervisão, mas também produzidos apenas falam desse campo, elas o consti
nela. O julgamento ne gativo feito pela tuem, são forças. Essa potência de
estagiária perante o gesto inicial da criação, de constituir força, precisará ser
professora revela indignação e in intensificada (Passos, Kastrup, &
terpreta a atitude da professora como Escóssia, 2009), agen ciada, durante o
equi vocada. Insistimos nessa diferença: estágio.
indignar-se e interpretar o outro como
equi vocado são direções diferentes. Portanto, o relato semanal serve de
Podemos discordar do gesto da apoio para a supervisão. Fomos
professora, ficarmos in dignados, mas percebendo que esses relatos semanais
ele é constituído historica mente, assim não apenas informavam o percurso e os
como nossos pensamentos. Não é um movimentos no estágio, mas também a
equívoco. Concluir a análise de um forma como os estagiários pensa vam os
acontecimento com julgamentos negati acontecimentos. Apresentaremos, a
vos em relação aos gestos dos outros é seguir, os diferentes momentos do
um pensamento reducionista que nos dá estágio: primeira visita, definição de um
a ilusão de estarmos fora do campo de território disparador, cartas-relatórios,
relações, como se não estivéssemos ampliação do campo de análise, tempos
produzindo aquilo que analisamos, como de fechamento.
se sempre hou vesse algo anterior às
relações. No entanto, cada

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para a escola uma planilha com o nome
de todos os esta giários e os horários em
A primeira ida dos que estarão na escola e, depois,
estagiários à instituição: acrescentamos os temas com que irão
trabalhar. Também entregamos, por
entre o contrato e o escrito, nosso objetivo com o estágio.
recontrato do trabalho
É importante que os estagiários
No primeiro dia de supervisão, são comecem o trabalho nas instituições
apresen tadas informações aos rapidamente. Logo depois da primeira
estagiários sobre a re lação estabelecida supervisão, eles vão à es cola. Às vezes,
com a escola e trazidos alguns temas o supervisor acompanha o grupo de
que foram indicados pelos pro fessores. estagiários na visita inicial, mas, na
Em algumas experiências, esses temas maioria das vezes, eles vão para a
são definidos em uma reunião na escola escola sem o supervisor, apresentam-se
em que os estagiários também estão para a equipe de coordenação da escola
presentes. Logo na primeira supervisão, e procuram o professor com o qual
o supervisor organiza uma tabela com os trabalharão alguma situação. Até esse
ho rários de estágio de cada dupla na momento, tudo dependeu muito da
instituição e, também, horários extras em relação entre o supervisor e o grupo de
comum por dupla, caso sejam professores da escola. Quando os
necessários. Essa tabela é fundamental estagiários vão à escola e se
para que todos saibam dos ho rários das apresentam aos professores com os
duplas, pois o que acontece com uma quais vão trabalhar, ocor rem mudanças
dupla de estagiários terá efeitos no tra na forma de as questões serem
balho das outras duplas. colocadas. É comum os professores
relatarem para os estagiários, de outras
Definidos o dia e o horário em que cada ma neiras, com outras intensidades,
dupla de estagiário estará na escola, aquilo que haviam narrado na reunião de
essa questão (cumprir tempos e ocupar professores. Por exemplo, a professora
espaços) será fundamental. Entregamos que havia contado
sobre uma sala do 3º ano muito estagiários todas as vezes em que
indisciplinada comentou com os precisam ser firmes com os alunos. A
estagiários o incômodo que ela sentia professora do 3º ano repreendeu um
naquela escola, pois gostava do trabalho aluno e logo disse para a estagiária que
que exercia na escola em que trabalhava sabia que psicólogos não eram a favor
anteriormente, mas, como tinha um de broncas, mas que era ne cessário
contrato de trabalho precário, perdeu sua agir dessa forma. Portanto, logo no
vaga para outra professora que era primeiro dia de estágio, essa professora
efetiva na Secretaria de Educação. nos indicou uma questão bastante
Entendemos que, a partir das relações importante: o cuidado que temos que ter
que os estagiários esta belecem com os devido a esta belecermos relações nas
profissionais da instituição, ocorre um quais parece que nós, psicólogos, somos
recontrato do trabalho. Recontrato no detentores da boa forma de agir.
sentido de que, agora, os estagiários e a
professora com quem trabalharão Em uma primeira conversa, essa
definirão preocupações, temas e ações professora havia comentado sobre sala
(que antes eram definidos entre o de aula como um todo e, quando os
supervisor e os edu cadores). Os estagiários perguntaram para quais
estagiários aprenderão a criar um campo questões e situações seria impor tante
comum de trabalho com as pro fessoras, eles estarem atentos, ela falou de três
precisarão conhecer as expectativas e alunos em relação aos quais tinha muita
as preocupações das pessoas com as di ficuldade para ensinar. Os nomes
quais trabalharão. desses alu nos não haviam sido citados
até então. Outra professora, que
Logo no início, os estagiários percebem trabalhava com alunos com deficiências
que o fato de serem da área da em salas de aula específicas (eles
Psicologia inten sifica a produção de estudavam durante a manhã em salas
queixas e a busca por explicações regulares e, durante a tarde, eram
individualizadas. Também há professores divididos em pe quenos grupos para
que parecem se desculpar aos terem aula com uma

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professora contratada para ensinar Definidos tempos, espaços e temas,


alunos vinculados à educação inclusiva), cada dupla de estagiário ocupará um
ressaltou para os estagiários a território que chamaremos de território
importância de eles participarem das disparador e, também, começará uma
salas regulares para terem acesso a relação com algum profissional da
como esses alunos estavam se de escola. Esse território disparador é, na
senvolvendo nessas salas. maioria das vezes, a sala de aula
(quando o estágio ocorre em Casas
As informações e os pedidos que os Abrigo, é a sala, a cozinha ou o quintal).
profes sores fazem aos estagiários são Os estagiários frequentarão esse
fundamentais e nos dão pistas de como território durante três ou quatro
nossos corpos ha bitam e constituem o semanas. Uma palavra se repete
campo de forças e re lações. Esse bastante nas primeiras semanas de
aprendizado – perceber-se pro duzindo supervisão: aliança.
aquilo que acontece e criar formas de
derivar – é um dos objetivos do estágio. Criar aliança com os professores implica
algo mais do que entender a história que
constitui certo tipo de demanda. Implica
percebermos isso – a produção da
Território disparador: informa demanda – se operando na relação que
ções, pedidos, aproximações estabelecemos com os edu cadores.
Quando um grupo de professores em
uma escola recusa algum tipo de trabalho fazia resistir e conven cê-la de alguma
que os psicólogos estão oferecendo, maneira. Convencer? A ques tão que se
temos que concordar com o fato de que colocava é que nem essa mãe afe tava a
aquilo que foi ofertado não estabeleceu forma como as professoras entendiam e
nada em comum com os professores. sentiam os fatos, nem as professoras
Isto é, eles entenderam que aquilo que afetavam o que essa mãe vivia. Depois
explicitaram como necessidade não foi de definido que seria interessante
escutado. Uma professora nos contou entender melhor como a mãe estava
graves problemas familiares pelos quais pensando, a conversa foi reali zada.
passava um aluno seu, com muitas Participaram dela: a coordenadora pe
dificuldades para aprender. A forma de dagógica, uma das estagiárias de
relatar, bastante indig nada, culpabilizava Psicologia e a mãe do aluno. Nessa
a família por muitas ques tões e foi conversa, a coorde nadora contou,
sugerido que, durante o estágio, novamente, sobre algumas dificuldades
entrássemos em contato com a família. que estavam acontecendo na escola e a
Se, para um professor, é importante que mãe falou dos entraves que invia
tenhamos bilizavam o atendimento fonoaudiológico
contato com a família, é necessário (al guns deles conhecemos muito bem:
conside rarmos que o pedido nos indica problemas de tempo e vaga para ser
uma abertura a várias questões: para que atendido, custo de transporte e outros).
serviria esse contato com a família, como Conhecer, indagar e pensar promovem
realizar um bom encontro, o que já foi direções diferentes do que orientar e
vivido em relação a essa família? Um cobrar. Surgiram as dificuldades em se
exemplo relacionado a esse tema: a priorizar esse atendimento em uma vida
coordenadora de uma escola de ensino na qual tantas dores não estão podendo
infantil trouxe a necessidade de falarmos ser atendidas. A coordenadora precisaria
com a mãe de um aluno porque ele tinha in tervir nos encaminhamentos de alunos
apresentado dificuldades na fala que que a escola fazia para a Unidade Básica
poderiam ser trabalhadas por um(a) de Saúde. Isso demandava telefonemas,
fonoaudiólogo(a), mas a mãe não levava encontros, con versas, criação de redes e
o filho ao especialista. Segunda a discussões. Nada fácil. A sensação dos
coordenadora, isso estava dificul tando o educadores de que essa mãe, em
processo de alfabetização desse aluno. especial, não se esforçava por con seguir
Havia uma indisposição com relação a o que era necessário para o filho era
essa mãe devido a situações anteriores. presente. Nossa preocupação era com a
Conversa mos muito sobre qual seria o rápida conexão que se fazia entre essa
objetivo desse encontro. Havia a ideia de sensação e a ideia de que essa mãe era,
que, por sermos psicólogos, poderíamos em sua essência, alguém displicente.
ter mais condições de desmontar o que a

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primeiro dia de estágio. As
informações precisam ser regis tradas
Aceitar ou recusar uma demanda impede
nos relatos semanais, por exemplo: o
que ela sirva para analisar a situação e,
incômodo da professora em relação à
com isso, torna-se difícil desconstruir e
escola atual (Quais diferenças entre a
dar visibi lidade ao campo de forças no
escola atual e a anterior? Como tem sido
qual foi cons tituída. A demanda permite
processada a discussão sobre atribuição
a imersão no campo, abre o campo. Ela
de salas para pro fessores?); o fato de
é formulada aos estagiários de
uma certa professora achar que
Psicologia e, ao mesmo tempo, a
psicólogos não gostam de broncas
Psicologia se constitui, historicamente,
(Quando são necessárias? Quando não
na existência dessas demandas.
fun cionam?); a necessidade de
acompanhar os alunos com deficiências
Portanto, criar alianças e perguntas para
nas salas regulares (Quais hipóteses
co nhecer as situações com as quais
temos para esse pedido? Quais são as
trabalharão, já estará acontecendo no
preocupações da professora da que define a vida por um estado e
educação inclusiva?). Essas são totaliza as existências.
algumas per guntas que surgiram logo
no primeiro dia de estágio. Durante Percebemos que havia um problema na
algumas poucas semanas – cerca de construção da escrita do relato semanal
três –, os estagiários frequentam esses e que, para intervir nisso, seria
territórios disparadores e as dúvidas necessário criar outro tipo de prática.
formuladas servirão de norte para suas Nos relatos semanais, os estagiários
ações. registram acontecimentos, aná lises e
informações para o supervisor e sobre a
escola. Passamos a pedir para que escre
Escrita ato: as cartas-relatórios vessem cartas-relatórios, que são,
desde o início, direcionadas aos
Os estagiários ficam indignados, tristes, profissionais das ins tituições em que
alguns choram na supervisão. É difícil estagiam e, portanto, são para os
conviver com tantas histórias de envolvidos nas situações do estágio.
abandono, medo, perdas, humilhação. Elas serão entregues aos professores ao
Entram em contato com situações de final do estágio e, até lá, terão muitas
vida muito difíceis e percebem a com variações antes da versão final, pois, a
plexidade e a precariedade do cada dia de es tágio, as análises mudam.
funcionamento institucional.
As perguntas que inspiram esses
Os relatos semanais, como dissemos, escritos são: Qual a função do estágio
são entregues para o supervisor e para o de Psicologia na escola (objetivo)? Quais
grupo de supervisão, mas percebemos situações vivenciaram (cenas)? O que
que eles criavam uma ilusão: parecia pensam sobre essas situações
que aquilo que estava escrito seria uma (reflexões)? O que propõem
descrição, uma ex plicação exterior que (pensamentos e ações)? Cada dupla de
não estaria criando aquilo que estava estagiários funciona de forma diferente
sendo descrito e explicado. Escreviam em relação a esse escrito: algumas
sobre alguns acontecimentos na escola escrevem juntas, outras duplas optam
sem se colocarem nas disputas e por um escrever primeiro e depois o
tensões em que estes se constituem. outro fazer sugestões; às vezes,
Darei como exemplo um trecho escrito escrevem um pouco sobre cada
em um dos relatos semanais: “O pergunta, outras vezes, desen volvem
coordenador da escola se mostra muito muito uma das perguntas e deixam as
indisponível para pensar sobre o outras para um momento posterior.
processo de aprendizado de Felipe
defendendo que a função da escola é, As cartas-relatórios têm sido um
nesses casos, apenas socializar. Dessa exercício importante para os estagiários
forma, a escola não tem ensinado aquilo se perceberem no interior dos fatos: por
que ele poderia aprender”. Esse texto serem palavras que visam a afetar um
defendia que Felipe teria maior campo relacional, a escolha destas exige
capacidade para aprender do que era reflexões sobre os efeitos que
desenvolvido e que o coordenador produzem. No início, ocorrem muitas
estava tendo menos disponibi lidade do generalizações, definições que fecham a
que deveria ter. Uma escrita es tagnada,

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a multiplicidade presente em uma
situação exige tempo. Os estagiários
existência ao colocar as pessoas como
relatam as dificuldades para realizar
sujeitos das frases, sujeitando-as aos
essas escolhas, pois vão percebendo
acontecimentos (“os professores não
que nenhuma palavra é suficiente. Eles
têm disposição”, “os alunos não prestam
têm de pensar na sequência de frases,
atenção”, “a mãe não foi ouvida”). A
no que pretendem dizer antes e depois,
escolha de palavras e frases que tragam
na forma como vão desen volver uma “Um dia, estava na sala de aula atenta
linha argumentativa. ao que Claudinei fazia. Percebi que ele
demonstrou interesse por um livro. Eu ti
Nesses escritos, acompanhamos as nha receio de, ao comentar sobre o livro,
transfor mações na forma de pensar dos desanimá-lo, pois era comum ele se
estagiários. No início, ao escreverem afastar daquilo que gerasse expectativa
sobre a necessidade de os professores nos outros. Cheguei perto dele e, ao
mudarem a forma de en tender seus invés de perguntar se ele gostaria que
alunos, revelam uma forma de eu lesse o livro para ele, perguntei se eu
compreender o mundo que impede poderia ler junto dele (talvez isso nem
criarem campos comuns, afetarem as fizesse diferença). Ele aceitou, vimos as
existências: ao supervisor, reclamam dos figuras juntos e fomos apontando coisas
professores (por tanto, queixam-se), interessantes, um para o outro”. Nesse
escrevem que estes de veriam mudar trecho, a estagiária explicita seus receios
(portanto, orientam), todavia, durante o e suas apos tas. Reconhece que o
estágio, vão conseguindo transfor mar a interesse de Claudinei em relação ao
forma de escrever e a maneira de agir. livro está interligado às ex pectativas que
Vejamos isso em um exemplo. se criam nas relações. Entende,
portanto, que a relação que tem com
Um aluno com deficiência, do 6º ano do Clau dinei pode gerar efeitos diversos. E
Ensino Fundamental, ficava parado, sem ela con segue escrever de uma maneira
fazer nada na sala de aula regular. A que passa isso ao leitor (a necessidade
professora tinha receio de pedir de cuidado, de não invadir, de insistir)
atividades mais com plexas a ele, sem orientações e queixas.
achava que era constrangedor porque
esse aluno apresentava muitas difi
culdades. Por isso, pedia tarefas muito Ampliação do campo de
simples: pintar um desenho já feito,
copiar uma letra etc. A estagiária, análise: surgem possíveis
percebendo que o aluno estava conexões
desanimado (afinal, ele podia mais) e
que a professora estava receosa (porque
Entre o segundo e terceiro mês de
des conhecia as forças dessa criança),
estágio, muitas ações são delimitadas:
perguntou para a professora se haveria
conversar sobre certo tema com uma
algum livro infantil pelo qual esse aluno
professora; visitar a Uni dade Básica de
poderia se inte ressar. A professora citou
Saúde na qual alguns alunos são
alguns livros de li teratura infantil que
atendidos (e um, em especial, estava fal
havia na biblioteca e que esse aluno
tando muito na escola); participar da
teria, inclusive, condições de ver
reunião de professores do Ensino
sozinho, pois eram histórias com
Fundamental II para discutir a presença
imagens, sem escrita. O foco, em uma
de alunos com deficiên cias;
situação como essa, não é criar
problematizar sobre como foram escolhi
estratégias de alfabetização e de
das as crianças que representariam a
interesse, mas intervir naquilo que im
escola em um evento literário; marcar
pede a professora de se aproximar
encontros com as professoras de alguns
desse aluno (ela nunca havia tido uma
alunos em relação aos quais os
experiência de ensinar alunos que
estagiários têm se aproximado; buscar a
requerem mudanças na proposta
inspetora de alunos que é vizinha de um
curricular). A ideia do livro
aluno que tem faltado etc. Muitas
surgiu porque essa estagiária estava à
iniciativas e conversas a serem
espreita, atenta às possibilidades que
realizadas. Durante esse tempo, é
ocorriam: um dia ela havia reparado que
comum que, como supervisoras dos
esse aluno pegou um livro de um colega
estágios, participemos sistematicamente
para folhear. Ficar à espreita, esse é
(quin zenalmente ou a cada três
mais um dos aprendizados do estágio.
semanas) de reu
Na carta-relatório, a estagiária escreveu:

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produzir inflexões importantes conforme
o funciona mento desse campo de forças
niões de professores. Em um dos
e circulam, falam com pessoas,
trabalhos em que eu era a supervisora,
investigam. Contudo, penso que a maior
participava quinze nalmente de reuniões
conquista nesse tempo é
dos professores do pe ríodo da manhã –
a capacidade que desenvolvem de afetar
Ensino Fundamental I. Em outra escola,
e serem afetados pelos acontecimentos.
eu ia duas vezes por mês nas reuniões,
Vão percebendo estratégias que
sendo uma na hora do almoço (com
potencializam aquilo que se apresenta
professores do Ensino Fundamental I do
cristalizado. Mas, vejam bem, não é que
pe ríodo da manhã) e outra no final da
desenvolvem formas de potencializar os
tarde (com professores do Ensino
outros, como se faltassem coisas aos
Fundamental II do período da tarde).
outros, mas desenvolvem a capaci dade
Nesses encontros com os professores,
de potencializar as relações que
discutimos sobre algumas refle xões
habitam.
formuladas durante os estágios. Foi
assim que, em uma dessas reuniões,
Se uma visita a uma Unidade Básica de
surgiu o assunto dos critérios utilizados
Saúde torna-se algo importante a ser
na escolha de 10 alu nos que poderiam
feito para discussão de uma história
participar de um evento li terário. Os
singular, isso não pode advir como uma
estagiários estavam próximos de um
orientação ou sugestão para a escola. A
aluno que havia dito: “eu nem quero
questão não é mostrar ou apontar aos
mesmo participar disso aí”. Disso o quê?
profissionais da escola a importância
De que falava? Os melhores alunos (por
dessa ação. Criar sentido é uma ação
nota e comportamento) eram indicados
totalmente diferente de verbalizar a
pelos profes sores. Pudemos trazer,
necessidade de que algo aconteça.
nessa reunião, as ten sões presentes em
Contagiar é uma ação diferente de
decisões como essa, enfatizando que a
orientar. Não que essas ações não
questão não é apenas pen sar a melhor
carreguem forças em comum, mas não
forma de escolher (também é, ela
podemos tomar umas pelas outras.
engendra processos de subjetivação),
mas, além disso, perceber que a revolta
da maioria dos alunos por não poder ir ao
evento tem re lação com o fato de não
haver transporte para que todos os
Tempos de fechamento
alunos de uma certa série pudes sem ir.
A reação “eu nem queria ir mesmo” exige As cartas-relatórios prontas têm cerca de
que consideremos todos esses elemen quatro páginas. Como dissemos, os
tos, pois, do contrário, não entenderemos estagiários escrevem sobre o objetivo do
do que esse menino se defende. estágio, as cenas vividas, as reflexões e
ações. Muitas vezes, inserem trechos
Nesse terceiro mês de estágio, os dos relatos semanais e retomam
estagiários já trazem situações para anotações em que pensavam di
serem discutidas, di ferentemente do ferentemente do que pensam ao final do
início, quando pedem orien tação sobre o trabalho. Buscam escrever movimentos
que fazer. Percebem mais cla ramente as do pensamento. Apresento um exemplo
relações de forças que habitam, de um trecho de uma carta-relatório
percebem que são forças nessas sobre o trabalho com um menino de oito
relações de forças e que, quanto mais anos que, às vezes, ficava nervoso a
avançam nas inter pretações, mais ponto de bater em quem estivesse perto
chegam a uma região em que o próprio dele: “Eu não sabia como me aproximar
intérprete desaparece, em que a de Diego. Ele tinha acabado de ter uma
interpretação e a compreensão produzem daquelas crises em que quer bater em
aquilo que interpretam e compreendem, todo mundo e estava muito bravo. O
como se a interpretação precedesse o inspetor de alunos havia ajudado, impe
símbolo a ser interpretado (Foucault, dindo-o de bater nos colegas. Resolvi
1987, 1980/2006). pegar duas raquetes de pingue-pongue e
convidá lo a jogar. Sabia que ele gostava
Os estagiários sabem que podem desse jogo. Fomos jogar. Depois do jogo
perguntei a ele se poderíamos conversar aproximar de Diego. Ele tinha acabado
sobre o que tinha acontecido”. de ter uma da quelas crises em que quer
bater em todo
Escrever “eu não sabia como me

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deve dialogar com o campo em que o
estágio foi realizado, não apenas
mundo e estava muito bravo” invoca a ne
informando o que foi feito, mas
cessidade de inventar formas de
possibilitando que o sentido das
aproximação e, portanto, as dificuldades
ações possa advir, na medida em que os
e desafios para que a aproximação se
es tagiários já conheceram o diagrama
desse. Em uma das primeiras versões
de forças e se reconhecem nele. As
dessa carta-relatório estava escrito “era
cartas-relatórios rompem com uma
difícil se aproximar de Diego, pois ele
escrita dominada pela representação -
tinha tido uma crise e estava bravo”.
uma escrita sobre o outro - e força os
Essa forma ressaltava a dificuldade de
estagiários a criarem pensamentos e
Diego.
palavras escritas com capacidade
conectiva, de contato, de fazer derivar -
As cartas-relatórios são lidas com as
a escrita para o outro, outro que se
professoras e, dependendo da situação,
constitui, também, com aquilo que se
com o aluno e com os pais. Nessa leitura
escolhe escrever.
com as professoras, pedimos que nos
indiquem questões que precisam de
Este trabalho visa a combater uma
mudanças na forma de escrever. Não é
pesada herança que nos impregna: a
raro que as professoras apontem trechos
filosofia da re presentação inaugurada
em que parece que o estagiário está em
por Platão (Fuganti, 2008), que busca a
uma posição de avaliador sobre o que
universalidade, o bom modelo, a ideia
acontece na escola. Em uma das vezes
imutável, a realidade acabada. As
em que isso aconteceu, no final da
interpretações conclusivas dos
carta-relatório estava escrito: “Ficamos
estudantes de Psicologia no início do
muito satisfeitos com as mudanças que
estágio revelam essa herança. O desafio
puderam se operar na relação entre a
explicitado no início do artigo – exercer a
professora da sala vinculada à educação
crítica – reconhece que a desconstrução
inclusiva e a professora da sala regular”.
necessária na formação dos estudantes
A professora nos apontou que essa frase
de Psicologia para que apren dam a
ressaltava a satisfação dos estagiários e
intervir nos processos institucionais
não os problemas referentes à
vividos durante os estágios requer,
concepção e implementação da política
também, a desconstrução de uma forma
de educação in clusiva e as dificuldades
de pensar que cria um suposto sujeito
enfrentadas no dia a dia para que essas
fora do diagrama de forças, que falaria
mudanças tivessem ocorrido, como se a
do outro. Os estagiários podem
satisfação dos estagiários fosse o mais
transformar as situações que habitam,
importante.
ampliando as conexões que possibilitem
criar diferenciação em processos
As cartas-relatórios exigem um trabalho
cristalizados. A palavra conexão é
bas tante intenso por parte do supervisor
importante, pois permite visualizar aquilo
e do grupo de alunos e têm substituído,
que Deleuze e Guattari (1972/2010)
em algumas situações, o relatório final
afirmaram como sendo o desejo – ele é
sobre o estágio. Entendemos que os
o fluxo, o próprio agenciamento, energia
relatos semanais entregues para a
conectiva – e dar relevo à necessidade
supervisão já têm, de maneira suficiente,
de criar derivações em situações que
as informações sobre os fatos e algumas
enten demos estarem aprisionando a
análises sobre o que foi feito. Em vez de
existência. A motivação crítica pretende
sistematizar as informações em um
transformar o campo social e isso se faz
relatório final para o supervisor, com
no campo relacional das forças, o que
preendemos que essa sistematização
exige aberturas e disposições para criar o campo produtor daquilo que
novas conexões de sentido, de afeto e analisamos para agenciar mudanças de
de maneiras de pensar, pois a postura sentidos no pró prio processo de
crítica exige criarmos formas de acessar produção.

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PSICOLOGIA:
CIÊNCIA E PROFISSÃO,
Adriana Marcondes Machado
2014, 34(3), 761-773
Adriana Marcondes Machado
Professora doutora, docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São
Paulo Email adrimarcon@uol.com.br

Endereço para envio de correspondência:


Universidade de São Paulo, Instituto de Psicologia, Departamento de Psicologia
da Aprendizagem do Desenvolvimento da Personalidade. Av. Prof. Mello Moraes
1721 Bloco A Cidade Universitária. CEP: 05508900. São Paulo - SP. Brasil

Recebido 02/03/2013, 1ª Reformulação 07/09/2013, Aprovado 16/10/2013.

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PSICOLOGIA:
CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2014, 34(3), 761-773
Adriana Marcondes Machado
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