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PiresDE

ARTIGO L et al.
REVISÃO

Para quem serve a avaliação


psicopedagógica?
Luciana Pires; Isabele Candiotto Sacilotto; Ana Paula de Próspero

DOI: 10.51207/2179-4057.20210017

RESUMO - O presente estudo tem como objetivo compreender o


papel da avaliação psicopedagógica a partir da abordagem teórica da
Psicopedagogia Dinâmica, que amplia a compreensão do aprender para
além das concepções da reeducação e que extrapola os enquadramentos
fragmentados do sujeito diagnosticado. A motivação para a realização
desse trabalho é desvincular a visão reducionista dos diagnósticos e laudos
que fragmentam, enquadram e conferem ao sujeito da aprendizagem um
caráter patológico, caminhando desse modo em direção às experiências
que mobilizam a construção de sua autoria de pensamento. Nesse
cenário, são consideradas as relações do sujeito aprendente nos
diferentes sistemas nos quais se encontra, como se expressa, pensa
e revela seu potencial de aprendizagem. A metodologia estabelecida
é fundamentada em uma pesquisa bibliográfica, tratando-se de uma
revisão de literatura sobre o tema.

UNITERMOS: Psicopedagogia Dinâmica. Avaliação Psicopedagógica.


Sujeito Aprendente.

Luciana Pires - Psicóloga - Especialização em Ado­les­ Ana Paula de Próspero Pedagoga – Especialização em
cência para Equipe Multidisciplinar - Uni­versidade Psicopedagogia – Universidade Estadual de Campinas
Federal de São Paulo (UNIFESP); Especialização (UNICAMP); Mestre em Psicologia Educacional -
em Psicopedagogia Clínica e Institucional - Centro Uni­versidade Estadual de Campinas (UNICAMP),
Uni­v ersitário da Fundação Hermínio Ormetto Campinas, SP, Brasil. Atua como Psicopedagoga
(UNIARARAS), Araras, SP, Brasil. Clínica e Institucional; Professora Convidada dos cur­
Isabele Candiotto Sacilotto – Professora – Graduada sos de Psicopedagogia da UNIARARAS, Araras, SP,
em Pedagogia – Universidade Estadual Paulista Brasil, e Fundação Aprender - FAI, Santa Rita do
(UNESP), Rio Claro, SP, Brasil; Especialização em Sapucaí, MG, Brasil.
Psi­c opedagogia Clínica e Institucional - Centro Correspondência
Universitário da Fundação Hermínio Ormetto Ana Paula de Próspero
(UNIARARAS), Araras, SP, Brasil. Centro Universitário Hermínio Ometto/ UNIARARAS,
Departamento de Educação
Av. Dr. Maximiliano Baruto, 500 – Araras, SP, Brasil
– CEP 13607-339
E-mail: apdeprospero@gmail.com

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Avaliação psicopedagógica: para quem?

INTRODUÇÃO Dinâmica, compreendemos que a aprendiza-


O objetivo deste trabalho converge-se para gem está associada aos aspectos relacionais; por
compreender o papel da avaliação psicopeda- isso, buscamos a subjetividade do sujeito, que
gógica a partir da abordagem teórica da Psico­ vai além das concepções acerca da cognição.
pedagogia Dinâmica, fundamentada e articula- O psicopedagogo é, portanto, um detetive que
da a partir da psicanálise, da teoria piagetiana busca pistas, a fim de investigar todo o processo
e do materialismo histórico, que incide em de aprendizagem considerando a totalidade dos
extrapolar os enquadramentos fragmentados fatores envolvidos para entender a constituição
do sujeito diagnosticado. da dificuldade de aprendizagem.
Uma vez que não se visa intervir com o sujei-
Este artigo é fruto do enlace de uma psicó-
to que apresenta algum problema de aprendi-
loga social e de uma professora, que, cursando
zagem restringindo-o a apenas um aspecto – o
a especialização em Psicopedagogia Clínica e
orgânico –, o psicopedagogo busca a compre-
Institucional, partilharam experiências a res-
ensão acerca das duas instâncias que exercem
peito da referida temática. A primeira autora maiores influências sobre esse sujeito: a família
participava de reuniões em escolas que exigiam e a escola. Entendê-las faz parte da composição
o diagnóstico de crianças e adolescentes ditos da avaliação do profissional, pois também há
“problemas” para garantir o direito à Educação impresso no sujeito o contexto histórico.
e via que muitas, estando com o laudo em mãos, Nesse sentido, o rótulo deixa de ser um manto
não sabiam como diminuir a evasão escolar, res­ que transforma o desconhecido, instável e in-
ponsabilizando os sujeitos e suas famílias. certo, no reconhecível, controlável e linear, com
Situação semelhante ocorreu com a au­ começo, meio e fim. Tendo em vista a existência
to­r a-professora, que, estando nas escolas do sujeito aprendente, vinculada às relações
pú­­blicas, presenciava acontecimentos que re­ que estabelece com as instituições às quais
forçavam a exigência de um laudo médico para, pertence, um dos enfoques do psicopedagogo
ilusoriamente, ou trazer respostas sobre como torna-se a promoção da emancipação social
trabalhar com aquele aluno em sala de aula desse sujeito, rompendo o ciclo do solucionar
ou para confirmar não ser possível fazer nada pontualmente um sintoma e do reduzir o sujeito
para o aluno além do que lhe foi determinado, a uma perspectiva de si.
Portanto, para a Psicopedagogia Dinâmica, o
limitando assim suas oportunidades de apren-
rótulo, o diagnóstico, o código não restringem o
dizagem.
sujeito aprendente, reduzindo-o a apenas um pris-
Dessas experiências, entendemos que a
ma de si, mas ele mostra-nos uma parte do todo.
palavra diagnóstico traz consigo, além de seu
sentido denotativo, a alusão reducionista de um MÉTODO
catálogo com descrições fisiológicas, sintomas, A metodologia estabelecida foi fundamen-
posologias e diretrizes a serem abordadas para tada pela pesquisa bibliográfica que, de acordo
conter o evento. A praticidade de sumarizar o com Gil¹ (p. 69), “[…] se procede à pesquisa
que então destoa da curva de normalidade sob bibliográfica quando a solução de determinado
um único código ou descrição proporciona, problema já está decidida e pronta para ser
ainda, o estado seguro de que o problema foi procurada a partir de material já elaborado”.
localizado, é conhecido dentro da literatura Trata-se, desta forma, de uma revisão de litera-
científica e, o melhor, é solucionável. tura a partir de artigos científicos e livros dentro
No entanto, a Psicopedagogia não se baseia do escopo da Psicopedagogia Dinâmica.
apenas na patologia, mas observa o processo da
aprendizagem com os múltiplos fatores que nele EIXO TEÓRICO
interferem para que o sujeito seja protagonista Para elucidar a problemática e conhecer a
nesse processo. Sob a ótica da Psicopedagogia complexidade do sujeito aprendente e suas

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singularidades, apoiamo-nos nas quatro estru- Parafraseando Manoel de Barros, o “quintal”


turas que envolvem o aprender descritas por de onde falamos é o da Psicopedagogia que, tal
Sara Paín2 e nas influências internas e externas qual como é concebida hoje, é um campo do
sobre a aprendizagem, presentes também em conhecimento e atuação que pretende, de forma
Alícia Fernández3,4. Esta compõe o cenário de paradoxal, considerar seu campo de atuação e
influências da escola e da família exercidas no a aprendizagem do sujeito, conforme explica
sujeito aprendente. A teoria da complexidade Rubinstein8.
de Edgar Morin5 é o outro pilar da base teóri- As necessidades profissionais do psicope-
ca, que elucida quanto a tudo ser interligado e dagogo sofrem mudanças com o tempo, exa-
o todo assim sê-lo por causa das partes que o tamente porque na Psicopedagogia, além de
compõem. No mais, Morin contempla sobre o diferentes concepções de práxis, há também a
enfoque no problema e não na solução e na in- ampliação do campo profissional. Rubinstein8
certeza e infalibilidade como parte do processo (p. 315) destaca que “[...] não há como se pen-
da condição humana. sar numa identidade fixa e fechada, pois são
As discussões iniciais acerca da Psicopeda- as novas demandas da sociedade que desen-
gogia, seu campo atuação enquanto profissão cadeiam novas formas discursivas para o fazer
e o contexto escolar remetem, principalmente, psicopedagógico”.
a Edith Rubinstein6-8 e Maria Lucia Lemme
Essa pluralidade de linguagens que a Psi-
Weiss9. Ainda, discorremos sobre o pensamento
copedagogia promove não poderia ser outra
emancipatório de acordo com Paulo Freire10,11,
quando os campos dos conhecimentos exigem
propondo uma pedagogia humanizadora, liber-
ligações além das fragmentações. Nesse con-
tadora e transformadora do sujeito aprendente
texto, recorremos ao pensamento do sociólogo
enquanto sujeito social e histórico.
Edgar Morin, como explicita Ferrari5, que diz
Este trabalho está dividido em quatro partes.
Na primeira discute-se sobre o lugar de onde respeito sobre a construção das bases da Teoria
estamos falando, que é a Psicopedagogia; na se- da Complexidade. Fundamenta-se a ideia de
gunda parte refletimos sobre o sujeito; na terceira que os saberes e os conhecimentos estão inter-
discutimos sobre as instâncias que permeiam o ligados e extrapolam a definição de desordem
sujeito, sendo essas a escola e a família; e, por que as abordagens mais organicistas e reducio-
fim, abordamos os aspectos do diagnóstico clí- nistas tendem a desconsiderar.
nico e suas discussões atuais. Então assim também se reflete a Psicopeda-
gogia, como sendo uma área que se propõe a
DISCUSSÃO dialogar e a integrar diferentes áreas do conhe-
De onde falamos? cimento para dar conta da complexidade que
[...] é o aprender humano, superando a ideia de ter
que dividir o sujeito em vários compartimentos,
Dou respeito às coisas desimportantes
como explica Barbosa13. Portanto, ela não se
e aos seres desimportantes.
fecha em um único conceito, pois observa as
Prezo insetos mais que aviões.
ocorrências histórico-sociais para guiar tanto o
Prezo a velocidade das tartarugas mais sujeito quanto o objeto do conhecimento.
que a dos mísseis. No entanto, as concepções que hoje per-
Tenho em mim esse atraso de nascença. meiam o termo nem sempre foram as mesmas.
Eu fui aparelhado para gostar de passa- No início de sua trajetória, a Psicopedagogia
rinhos. dedicou-se a tratar das dificuldades de apren-
Tenho abundância de ser feliz por isso. dizagem a partir de um determinismo orgânico
Meu quintal é maior do que o mundo e de uma perspectiva médica para as causas do
[...] fracasso escolar. E, ainda que a Psicopedagogia
O apanhador de desperdícios12 tenha se constituído em meio à interlocução com

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Avaliação psicopedagógica: para quem?

outras áreas do conhecimento, historicamente É importante salientar que existem diferen-


Visca14 (p. 77) elucida o desprendimento dela de tes abordagens dentro da Psicopedagogia; no
tais áreas, assegurando-a como conhecimento entanto, ressaltaremos aqui as abordagens ree-
independente e complementar com objeto de ducativa e dinâmica. Rubinstein8 chama atenção
estudo e campo de atuação. para as diferenças entre elas. A reeducação tem
Ao considerar que a linguagem constrói como foco a prática e a exercitação para que
mundos, Rubinstein8 destaca a importância des- se eduque de novo e se possa, assim, resolver
sas diferentes áreas para a construção da identi- a questão através da mudança de comporta-
dade da Psicopedagogia. Porém, ressalta que o mento. A autora pontua que essa abordagem
tempo histórico promoveu seu desprendimento preocupava-se mais com as técnicas e o fazer.
e diferenciação frente às matrizes conceituais. Para Paín², esse modelo denomina-se como
Ao longo do caminho, a Psicopedagogia depa- Psicopedagogia Adaptativa, cuja abordagem é
rou-se com a compreensão da complexidade voltada para o desenvolvimento da dimensão
envolvida na aprendizagem humana em seg- cognitiva; ou seja, o treinamento e desenvol-
mentar o sujeito desta, olhando-o como inteiro vimento das funções cognitivas como atenção,
e indiviso um que é. Como explicita Barbosa13, concentração, memória, execução, controle e
é exatamente essa linguagem polifônica que coordenação da ação, entre outros, negligen-
caracteriza a práxis enriquecida desse campo
ciando as singularidades do sujeito.
do conhecimento.
Por outro lado, a Psicopedagogia Dinâmi-
Nesse contexto, a Psicopedagogia encontra
ca, modelo que compõe a base teórica deste
e desenvolve sua própria linguagem capaz de
referido trabalho, dedica-se à compreensão de
capturar a essência do seu dinamismo, surgindo
aspectos que extrapolem a cognição e o com-
como um campo de atuação. Suas pesquisas e
portamento do sujeito e ampliem o olhar para
empenho apresentam explicações que buscam
as questões relacionais, a subjetividade e para o
compreender e responder em qual momento o
contexto histórico. Nesse sentido, o psicopeda-
sujeito demonstra-se não hábil para aprender
gogo busca compreender, concomitantemente,
e o porquê dessa aprendizagem não ocorrer.
Segundo Weiss9, as expectativas dessa área o conflito e o sujeito em suas relações e propõe
encontram-se tanto em desvendar os motivos tanto “[...] novas formas de lidar com o apren-
da não aprendizagem quanto nos meios que der, como também pelo conteúdo das narrati-
potencializam o desenvolvimento do processo vas usadas para se descrever o modo como o
de aprender. aprendente se relaciona com o conhecimento
Logo, da mesma forma que a Psicopedago- e o saber”8 (p. 315).
gia não se restringe a uma única concepção, Ainda sobre esse conceito, Paín2 enfatiza que
assim também é o papel do psicopedagogo. dentro da Psicopedagogia Dinâmica permite-se
Rubinstein8 (p. 314) pontua que “A identidade “[...] ao sujeito que não aprende fazer-se cargo
do psicopedagogo é dinâmica no sentido de de sua marginalização e aprender, a partir da
que ela se constrói a partir do conjunto de ne- mesma, transformando-se para integrar-se na
cessidades, crenças, compreensões teóricas e sociedade, mas dentro da perspectiva da ne-
práticas.” A autora destaca ainda que não há cessidade de transformá-la” (p. 12).
uma identidade fechada, pois, a necessidade da Ao considerar esse aspecto, recorremos ao
Psicopedagogia desencadeia-se em diferentes pensamento emancipatório de Paulo Freire11
áreas de atuação (como hospitais, escritórios, de que “ninguém liberta ninguém, ninguém se
por exemplo), obrigando, portanto, que tanto a liberta sozinho: os homens se libertam em comu-
identidade quanto a linguagem moldem-se para nhão” (p. 33). Segundo ele, o objetivo maior da
adequarem-se às novas e diferentes demandas educação é habilitar o aluno para ler a realidade
da sociedade. e assim poder transformá-la, mas, para isso, ele

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precisa libertar-se e transformar-se em sujeito desconsiderando as demais estruturas do seu


cognoscente e autor de sua própria história processo de aprendizagem. Rubinstein8 (p.
através da unificação entre ação e reflexão11. 316) traz algumas perguntas quanto à questão
Dessa forma, através de uma educação dialó- para enfatizar a totalidade do sujeito em seus
gica, problematizante, participante e na certeza comportamentos:
da criação de um mundo onde cada homem seja Não seria míope a visão unicamente focada
valorizado pelo que é, o educador procura cons- na organicista na análise dos ditos Trans-
cientizar e preparar o sujeito para a transição tornos de Aprendizagem? O sujeito da
da consciência ingênua à consciência crítica. aprendizagem é apenas o resultado de seu
Por isso que esse movimento de transição se organismo? Onde está a singularidade? Onde
caracteriza como movimento de liberdade dos está o sujeito?
oprimidos, porque é realizado com o sujeito na Rubinstein8 pontua também que quando há
luta pela sua humanidade. a identificação de transtorno de aprendizagem
Nessa polifonia, e seguindo os preceitos de no âmbito escolar, não há apenas um desajus-
Paulo Freire, o psicopedagogo confronta-se com te desse sujeito em relação à sua escola ou a
o dilema da transformação do sujeito e de sua si mesmo, mas há o desequilíbrio das demais
consciência. A transição da consciência ingênua à instâncias – como família, escola, aprendente,
consciência crítica cria diferentes dialéticas, possi- sociedade.
bilitando construir o sujeito autor, cuja capacidade Por isso mesmo, torna-se insuficiente para
de mudança durante o processo amplia-se sobre o psicopedagogo restringir sua prática a ape-
si, sobre o ambiente e sobre quem se relaciona. nas uma ótica em relação ao comportamento
Dessa forma, para Paín2, o psicopedagogo apresentado pelo sujeito quando este, em si
possui papel fundamental na intervenção com próprio, não se dissocia das demais estruturas
o sujeito para que, juntos, possam identificar o e apresenta-se como o sujeito que é, por inteiro.
sintoma e construir um espaço para esse sujeito, A perspectiva de que fosse possível fragmentar
em que a apresentação de seu comportamento e isolar um aspecto do sujeito choca-se com uma
patológico não seja mais necessária. das bases da teoria da complexidade de Edgar
Ao considerar a compreensão do sujeito Morin5,15. Essa consiste quanto ao todo ser mais
da aprendizagem, Paín2 destaca que este não que a soma das partes e, simultaneamente, tam-
pode ser compreendido de forma fragmentada bém ser menos que a soma das partes. Ou seja,
ou restrita a apenas um aspecto de suas quatro o conjunto, o um, é resultado emergido da inte-
estruturas: organismo, corpo, estrutura simbó- ração e composição de cada aspecto, fazendo-se
lica e inteligência. necessário, portanto, conhecer as particularidades
Essa discussão sobre não reduzir o sujeito a de composição do todo, mas sem fragmentá-lo.
um componente de si é trazida, ao considerar o Assim refletir-se-á sobre o sujeito5, 15.
uso de diagnósticos dos transtornos de aprendi- Ainda no contexto do diagnóstico, é possível
zagem, como única lupa para as decisões quanto refletir acerca de uma conduta excessivamen-
às estratégias da atuação do psicopedagogo. O te racional sobre aspectos do comportamento
diagnóstico pode ser uma das ferramentas au- humano que sejam passíveis de serem solucio-
xiliadoras no processo de compreensão do todo, nados com linearidade e certezas. A teoria da
ajudando a completar o prisma multifacetado complexidade, por outro lado, ao contemplar a
que o sujeito é e se apresenta também quando desordem como parte de seu sistema, traz à luz
em suas dificuldades e transtornos2,8. a incerteza e a falibilidade, enfatizando o pro-
A problemática dessa discussão volta-se blema e não a solução em si. E esses aspectos
para quando o diagnóstico é usado para atar também interagem e influenciam o externo, o
o sujeito apenas à sua componente orgânica, ambiente que circunda o sujeito5,15.

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Avaliação psicopedagógica: para quem?

De quem falamos? a um sujeito ensinante, na relação com um


O futuro não é um lugar onde estamos objeto do conhecimento como uma terceira
indo, mas um lugar que estamos criando. parte nessa circulação. Esse espaço que você
chamou de espaço de intimidade é rico sob
O caminho para ele não é encontrado,
o ponto de vista da autoria de pensamento,
mas construído e o ato de fazê-lo muda
porque está ligado com a diferenciação.
tanto o realizador quanto o destino.16
Outro aspecto dos posicionamentos ensi-
O sujeito da epígrafe mostra-se capaz de nante e aprendente refere-se à sua simulta-
realizar duas ações em seu processo de cons- neidade, não se restringindo aos papéis sociais
trução de caminhos, a metáfora para o futuro. professor e aluno, pai e filho, que são impermu-
Enquanto modifica o que vem à frente, ele ne- táveis. Isso porque o sujeito é, ao mesmo tempo,
cessariamente altera a si mesmo e a direção para sujeito aprendente e sujeito ensinante, uma vez
qual segue. O eu e o norte de antes não podem que são duas posições subjetivas. Fernández3
mais existir como tais diante da construção do (p. 51) explicita que “[…] encontramo-nos ante
presente. Isso pode ser comparado ao que foi
uma cena em que há dois lugares: um onde está
descrito por Fernández4 (p. 55):
o sujeito que aprende e outro onde colocamos
Penso o sujeito aprendente como aquela ar-
o personagem que ensina”.
ticulação que vai armando o sujeito cognos-
A partir desta definição, poder-se-ia questio-
cente e o sujeito desejante sobre o organismo
nar como ter-se conhecimento acerca do sujeito
herdado, construindo um corpo sempre em
aprendente se ambos são simultâneos. Para Fer-
intersecção com outro (Conhecimento-Cul­
nández4 (p. 57), o sujeito aprendente “situa-se
tura…) e com outros (pais, professores, meios
na articulação da informação, do conhecer e do
de comunicação).
saber, mas particularmente entre o conhecer e
A autora reconhece que o sujeito aprendente
o saber”. Já o sujeito ensinante estabelece-se
está inserido em diversos “entres” – como, por
na intersecção do que já se conhece com o que
exemplo, a Certeza e a Dúvida, a Alegria e a
se precisa mostrar que conhece, uma forma de
Tristeza, o Sujeito Cognoscente e o Desejante, –
mas isso não é empecilho para que não consiga construir os saberes. A autora4 completa que “o
construir lugares de produção e transicionais. pensar é sempre um apelo ao outro, uma con-
Ou seja, ainda que esteja inserto em locais frontação com o pensamento do outro” (p. 59).
de intersecção, ele apropria-se destes para a A simultaneidade do sujeito aprendente e
construção de seus saberes. Rubinstein7 (p. 109) ensinante concede ao sujeito a oportunidade
afirma que “o conhecimento se transforma em de tornar-se sujeito autor. Esse estabelece-se
saber quando o sujeito dele se apropria”. na esfera da possibilidade de transformar os
No que se refere ao aprender, de acordo com conhecimentos incorporados e concomitante
Fernández3, necessitam-se de dois papéis na de transformarem o meio, a situação em que
relação dinâmica, o ensinante e o aprendente, aprende e quem ensinou-lhe. Fernández4 (p.
e um vínculo estabelecido entre ambos. Para 61) pontua que “o mais importante que o sujeito
que haja aprendizagem, o conhecimento não é autor produz não é conhecimento para si, mas a
diretamente transmitido em bloco; apenas sinais transformação nele e naquele que o circundam”.
dele para que o sujeito possa transformá-lo e Nesse contexto, reconhecemos que o pro-
apropriá-lo como seu. Em relação à questão cesso de aprendizagem de cada sujeito também
da autoria de pensamento, a autora4 (p. 192) se desdobra sobre seu contexto sócio-histórico.
ajuda-nos a entender que: Amaro17 enfatiza essa importância entre sujeito
O olhar psicopedagógico busca ver como se e seu contexto, tendo em vista que se reflete em
constrói um sujeito aprendente em relação todas as esferas de relações que ele venha a

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estabelecer, seja entre pessoas, meios, objetos, cenários aos quais pertence. Ao considerar o
operações cognitivas e funções psicológicas. processo de aprendizagem como resultado da
Mesmo que vários sujeitos estejam imersos no construção das relações do sujeito aprendente,
mesmo contexto histórico, torna-se possível não podemos deixar de pensar naquelas que o
compreender o porquê de como um não é igual sujeito estabelece com a escola e a família. De
ao outro ou, ainda, como um não apresenta as acordo com Fernández3, ao pensarmos “[...] no
mesmas características de um semelhante. Isso problema de aprendizagem como derivado só
devido ao modo como as relações que eles es- do organismo, ou só da inteligência para seu
tabeleceram com todos aqueles aspectos men- diagnóstico e cura, não haveria necessidade de
cionados diferem-se. Conclui-se, enfim, que o recorrer à família e à escola” (p. 49, grifo nosso).
sujeito é singular17. Fernández3 diferencia as características da
Faz-se necessário pontuar também que, apresentação do problema de aprendizagem de
ainda que falemos sobre um sujeito e suas par- acordo com a origem predominante. São elas:
ticularidades, o sujeito histórico reflete-se sobre a) os fatores internos ao grupo familiar e ao pa-
a unidade do coletivo, criando a semelhança e ciente; e b) fatores de ordem educativa, relacio-
então reconhecimento pelos seus pares. Mas nados a uma instituição educativa que rechace
isso não resulta de forma alguma na perda de ou desconheça a capacidade intelectual. Além
suas singularidades. O empenho, na verda- disso, é importante considerar que a autora3
de, é quanto a sua inclusão tornar passível a (p. 49) esclarece o problema de aprendizagem
criação de espaços, mobilizando o sujeito para como sendo:
emancipar-se. Esse prisma emancipatório do [...] resultante da articulação construtiva
sujeito baseia-se em Freire11, que discorre sobre do organismo, o corpo, a inteligência e a
a emancipação ser um sentimento social, uma estrutura do desejo no indivíduo incluí­do em
vez que o ser livre deve promover o mesmo um grupo familiar no qual seu sintoma tem
estado no outro através da transformação social. sentido e funcionalidade, e em um sistema
E porque se está ciente dessa singularidade
educacional que também o condiciona e sig-
do sujeito que o psicopedagogo, enxergando
nifica, não podemos diagnosticar e desnudar
esse ser não como amostra de um grupo social
o sintoma, prescindir do grupo familiar nem
e tampouco como um recorte de si mesmo,
da instituição educativa, mas tampouco pode-
deve buscar meios para a promoção e efetiva-
mos sufocar a originalidade e autonomia do
ção da singularidade em direção à autoria de
sujeito (criança ou adolescente), privando-o
pensamento.
de um espaço pessoal que lhe permita
recortar-se – diferenciar-se [...].
Com quem falamos?
No que concerne à família, Bassedas et al.19
Mire veja: o mais importante e bonito, do esclarecem que, como todo sistema, ela tam-
mundo, é isto: que as pessoas não estão bém possui uma estrutura determinada a partir
sempre iguais, ainda não foram termina- de demandas, interações e comunicações que
das – mas que elas vão sempre mudando. ocorrem em seu interior e no exterior, refletindo
Afinam ou desafinam. Verdade maior. É
no funcionamento vital. Quando há, por fato-
o que a vida me ensinou.
res externos ou internos, desvios nas normas
Grande Sertão: Veredas.18 regentes, a família põe resistência à mudança
É nesse processo de mudanças, de “afinação “por medo de romper o seu equilíbrio”19 (p.
e desafinação”, que reconhecemos que a Psico- 34). Essas resistências, frente às necessidades
pedagogia compreende a existência do sujeito de adaptação, manifestam-se em um de seus
vinculada às relações que estabelece com os membros através de um sintoma, impedindo

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Avaliação psicopedagógica: para quem?

a família dos avanços no desenvolvimento de “sintoma”, ou seja, a pedra que dificulta intei-
suas relações. Por outro lado, esse sintoma serve ramente o movimento do mecanismo.
como alerta para a elaboração e preparação de Na mesma proporção para a família, o sin-
uma mudança de forma gradual. toma surge frente à resistência dela para com
De acordo com o Pensamento Sistêmico, o enfrentamento dos momentos de transição.
instrumento que auxilia na leitura da realidade Esse sintoma então é geralmente entendido
familiar, os sistemas são vistos como estrutu- como dificuldade de aprendizagem – o filho
ras organizadas hierarquicamente20 (p. 381). não aprende porque é preguiçoso, desatento,
Conforme Garcia21, esse pensamento é uma etc., – mas, na perspectiva do psicopedagogo,
forma de abordagem da realidade que surgiu esse sujeito pode estar carregando toda a carga
no século XX em contraposição ao pensamento negativa desse grupo.
reducionista-mecanicista herdado dos filósofos Podemos observar o pensamento sistêmico
da Revolução Científica do século XVII, como no funcionamento familiar quando determinado
Descartes, Francis Bacon e Newton. comportamento afeta um membro e também os
Como esclarecem Gomes et al.22, tal com- demais. Ou seja, quando um dos membros da
preensão deu-se a partir do aprimoramento das família apresenta um “sintoma”, resultante do
ideias de Aristóteles, Goethe, Kant e Cuvier. desarranjo familiar, evidencia-se que esse sis-
Tem-se, portanto, que o todo é sempre mais tema não está funcionando de forma saudável
importante do que as partes que o compõem; há algum tempo.
ou seja, ainda que cada parte tenha suas ca- Para melhor compreender o cerne dessa
racterísticas, o que é levado em consideração questão, Macedo23 explica que à criança está
no primeiro momento é o todo. Dizer que algo atrelado o ponto inicial da construção do conhe-
é um sistema significa afirmar, segundo Gomes cimento, pois ela está inserida em um contexto
et al.22, que esse algo é constituído por um con- e em um permeio de relações de gerações e
junto de partes que se influenciam mutuamente. gerações. O autor23 discorre que, assim como
Essa abordagem sistêmica lança seu olhar não a criança depende do adulto, este também de-
somente para o indivíduo isoladamente, mas pende daquela, o que permite considerar “as
também para seu contexto e as relações aí relações num contexto de interdependência” (p.
estabelecidas. 92). As crianças, uma a uma, precisam recriar as
Imaginemos uma engrenagem para exem- invenções e descobertas feitas pela sociedade
plificar o que foi explicado acima. As rodas ou cultura e esse papel, junto dos seus desafios,
dentadas operam em pares. Os dentes de uma pertence ao adulto23 (p. 92). Por isso que, ao
engrenagem encaixam nos espaços entre os pensar na esfera familiar, o sintoma manifes­
dentes da outra engrenagem, e para que haja tado por um e que afeta os outros é a evidência
movimento as superfícies devem ser cuidado- dos ruídos das relações interdependentes ali
samente moldadas, de acordo com um perfil estabelecidas.
específico. Porém, se uma pedra for depositada Tendo em vista as contribuições do Pensa-
nessa engrenagem, seu movimento fica com- mento Sistêmico, podemos considerar que “as
prometido. O funcionamento da engrenagem famílias vão criando a sua identidade e forma
é uma metáfora para entender a origem das de agir, partindo das ideologias, crenças e his-
dificuldades de aprendizagem. tórias anteriores.”19 (p. 34). No que diz respeito
Pode-se dizer que a engrenagem é uma à identificação e à apropriação de imagens
das instituições na qual o sujeito está inserido determinantes, Rubinstein7 (p. 109) elucida que
e a pedra é o dito sintoma. Quando a engre- o conhecimento acerca da história de vida do
nagem começa a ranger – a trabalhar de uma sujeito da aprendizagem é componente neces-
forma diferente do habitual –, apresenta-se um sário dentro da intervenção psicopedagógica,

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como eventos simbólicos das ocorrências que como problema de aprendizagem, os pais po-
marcaram o aluno e, ainda mais, seus pais. dem posicionar-se excessivamente permissivos
Nesse sentindo, o nascimento de uma crian- ou super protetores6 (p. 65).
ça ocupa um lugar repleto de significações. De Pode-se concluir, portanto, que o papel do
acordo com Fernández3 (p. 41), a inserção desse psicopedagogo compreende duas instâncias:
novo sujeito nesse ambiente constitui o preen- uma para com esse sujeito aprendente que
chimento de ideais e imaginários feitos pelos apresenta problemas na aprendizagem e outra
pais, criando uma dualidade entre a realidade para com os pais. Para com aquele, Rubinstein6
e o imaginado. (p.113-4) afirma que:
Ao refletirmos sobre essas significações no [...] umas das atribuições do psicopedagogo/
contexto da família e na construção de narra- historiador é justamente poder olhar para
tivas, Rubinstein7 evidencia que a “história de o sujeito da aprendizagem e partir de uma
vida” pode tanto dar pistas dos fatos sobre a nova experiência vivida no presente, única,
dificuldade de aprendizagem do sujeito quan- singular e, dessa forma, poder oferecer uma
to das expectativas criadas pelos pais sobre o outra oportunidade para se reconhecer e
filho. Para tanto, ela7 recorre ao poeta Manoel possivelmente poder mudar o rumo histórico
de Barros quando ele “[...] retrata as lembran- impregnado de possíveis traços dos adultos
ças sobre a infância, como memória inventada, significativos presentes em sua memória
ressignificada”12 (p. 109). inventada.
Posto isso, tem-se contribuição para a com- E, ainda, quando diz respeito à escuta dos
preensão do presente a partir do passado do su- pais, Rubinstein6 enfatiza que o objetivo é con-
seguir desenvolver condições para a compre-
jeito aprendente e auxílio, ainda, para enxergar
ensão dos conflitos quanto à experiência como
outras possibilidades para o rumo pessoal dele.
pais de suas memórias inventadas.
Assim, compreendemos que os pais constroem
Como supracitado, a outra instância, além
“memórias inventadas”, ressignificando as
da familiar, que influencia o sujeito, é a escolar.
histórias vividas. Essas memórias promovem
Para entender esse cenário, o fracasso escolar
alterações nas expectativas dos adultos sobre
muitas vezes pode ser reconhecido como um
os filhos (ou até mesmo professores sobre os
ato de violência pela criança, além de um de-
alunos). Rubinstein7 (p. 110) explica:
sapontamento para com os seus genitores3 (p.
As expectativas dos adultos estão permeadas
31). Por isso, a necessidade de compreender
pelas suas próprias experiências, que, de essa instituição na qual está inserido o sujeito
forma inconsciente, vão sendo reatualizadas aprendente. A análise da instituição escolar
na medida em que esses adultos reconhe- coloca-se em dois âmbitos: aquele relacionado
cem nos filhos e nos alunos algo que em sua ao socioadministrativo e à figura do professor
memória está presente e os ameaça cons- para com o aluno.
tantemente. Não são os fatos em si mesmos A escola é outra instituição social que, como
que povoam os imaginários, mas é o valor explicitam Bassedas et al.19, pode ser conside-
simbólico que a eles cada qual atribui. rada, de forma mais ampla, como um sistema
Além disso, a referida autora sinaliza que há aberto que compartilha funções e se inter-re­
expectativa de que os filhos atinjam determi- laciona com outros sistemas que integram o
nados níveis e padrões para corresponderem a contexto social, além de “[...] preparar os alunos
uma performance normativa. Porém, inseguros para enfrentar as futuras exigências da sua
diante do que transmitir aos filhos e cientes à comunidade”19 (p. 28).
perpetuação das histórias anteriores e ao desvio Na mesma direção, a escola não é isolada do
da norma, que pode ser interpretado também sistema socioeconômico, mas um reflexo deste.

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Avaliação psicopedagógica: para quem?

Bassedas et al.19 complementam que a sociedade possibilidades no mercado de trabalho futuro,


concede à escola a missão de instruir seus ci- que lhe darão uma possível ascensão social pelo
dadãos, visando sua integração da forma mais conhecimento que possui”9 (p. 18).
plena possível. Paín2 (p. 13), então, nos conduz Isso posto, a autora afirma que a qualidade
a compreender que os problemas escolares do ensino pode se revelar como uma variável
revelam a resistência às normas disciplinares, interveniente para o desejo na busca pelo co-
presente no atrito dentro do grupo de pares, na nhecimento, e, nesse caso, a inibição do envol-
desqualificação do professor, na inibição mental vimento pode ser retratada como um problema
ou expressiva e afins. E, não surpreendente, exclusivamente do seu aluno.
eles são resultantes de uma má administração
Para Rubinstein6, a queixa escolar é a mani-
da transição do conhecido núcleo familiar para
festação de uma desarmonia que dá pistas para
o novo grupo social.
compreender o cenário no qual o protagonista
Além disso, Weiss9 traz um outro lado para a
está inserido. A referida instituição é suscetível
discussão. A escola pode ser parte constituinte
a vários discursos que definem as relações en-
para o fracasso escolar de seus alunos no que diz
respeito ao conteúdo, metodologia de ensino, tre o dizer e o fazer: a sociedade pede um tipo
processos avaliativos, visto que a construção de escola e ao mesmo tempo busca atender ao
dos conhecimentos depende de como as infor- pedido do grupo. Portanto, a queixa escolar
mações chegarão e serão ensinadas aos alunos. pode-se configurar como uma desarmonia do
Ainda relacionado aos desdobramentos na projeto pedagógico e também como uma forma
condução do ensino, Weiss9 destaca a qualidade de discurso, entendido como uma linguagem
e a dosagem da quantidade de informações a se- compartilhada por um grupo de sujeitos. A
rem transmitidas e da “cobrança” da aprendiza- partir disso, entende-se que a queixa escolar
gem. Se essas situações forem malconduzidas, “é uma maneira de dizer que a aprendizagem
podem resultar em ansiedade no aluno, “[...] organizada pelo projeto pedagógico educacio-
chegando à desorganização de sua conduta por nal não ocorreu como foi idealizado”6 (p. 53).
não aguentar o excesso de ansiedade”9 (p. 20). Fernández4 então defende que, dentro do
Quanto ao binômio qualidade-dosagem de ambiente escolar, o sujeito seja construtor de
informação, Bondía24 emerge uma discussão seu próprio pensamento. No entanto, o impasse
acerca do excesso e da necessidade quase encontra-se no fato de que ao professor não é
viciante de buscar por mais informações (pelo outorgada sua autoria; como promovê-la, então,
novo), provocando tanto o aumento da veloci-
ao aluno? Nessa perspectiva, a Psicopedagogia
dade dos instantes quanto a perda do tempo.
pode mobilizar o professor a se apropriar de
E a escola, enquanto instituição, perpetuaria o
suas singularidades reencontrando o prazer de
acúmulo e repetição de informação, moldando
ensinar para a promoção do desejo de apren-
o aluno em um sujeito que transformaria seu
der4 (p. 31).
tempo em mercadoria.
Em muitos contextos, a escola parece não A questão levantada é que as falhas das ins-
ter acompanhado o processo evolutivo da so- tituições podem repercutir direta e unicamente
ciedade na qual está inserida. Um exemplo que no sujeito e somente este é apontado como
possa refletir tal cenário é a resistência ao uso falho, ainda que ele possa ser o efeito de pila-
das tecnologias – o que no contexto atual tem res desestabilizados do sistema escolar. Sendo
sido completamente desafiador. De acordo com assim, Weiss9 (p. 19) aponta que
Weiss9, é através dos vídeos e computadores [...] a escola precisa ser organizada sempre
que o aluno pode estar no mundo, aprendendo em função da melhor possibilidade de en-
coisas modernas “[...] que lhe darão melhores sino e ser permanentemente questionada

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para que seus próprios conflitos, não resol- Em ambas as definições aparecem palavras
vidos, não apareçam nas salas de aulas sob relacionadas à doença, levando-nos a refletir
a forma de distorções do pró­prio ensino. sobre a discussão dar-se em torno de dois aspec-
Para tal, um meio de isentar quaisquer ins- tos. O primeiro é a ideia de que os problemas
tâncias dos problemas de aprendizagem seria de aprendizagem estão associados a doenças e,
apoiar-se na necessidade de uma explicação portanto, as estratégias e ações sobre esse sujeito
restrita ao orgânico, responsabilizando apenas debruçam-se apenas após um laudo médico.
a biologia do sujeito acerca de sua natureza O que nos conduz ao segundo aspecto em que
falha. O diagnóstico clínico apossa-se de uma Paín2, referindo-se à necessidade de amplitude
relevância dentro de um panorama que ele do olhar para o sujeito, discorre sobre o sujeito
deveria compor apenas mais um aspecto, e histórico, inserido em instituições como socie-
não ser tomado como única verdade cabível e dade, família, escola, que também contribuem
irrefutável. para a constituição desse sujeito.
Rubinstein8 reafirma a perspectiva de Paín2
Qual o significado do diagnóstico? quanto ao diagnóstico clínico retirar do sujeito
[...] sua singularidade quando restringe-se olhar
para apenas um aspecto de si, condicionando
Não há muito o que fazer dentro dos
toda a complexidade de seu ser exclusivamente
limites de uma gaiola, seja ela feita com
ao seu organismo.
arames de ferro ou de deveres. Os sonhos
Não somente em relação ao sujeito, mas
aparecem, mas logo morrem, por não
também à conduta profissional, Rubinstein8
haver espaço para baterem suas asas.
ressalta que o diagnóstico baseado em déficits
Só fica um grande buraco na alma, que
e transtornos pode ser interpretado como uma
cada um enche como pode. Assim, res-
das tantas lentes utilizadas para se olhar sobre
tava ao passarinho ficar pulando de um
os problemas de aprendizagem do sujeito. No
poleiro para outro, comer, beber, dormir
entanto, alerta que não deve ser a principal
e cantar. O seu canto era o aluguel que
pagava ao seu dono pelo gozo da segu- ferramenta para nortear a conduta do psico-
rança da gaiola. pedagogo.
[…] Esses códigos/dicionários [códigos inter-
[...] nacionais de doenças] identificam caracterís-
O passarinho engaiolado25 ticas gerais e específicas para as “doenças da
No decorrer desse trabalho, apresentamos aprendizagem”. Os códigos se fundamentam
o papel do diagnóstico e nos preocupamos em nas pesquisas científicas quantitativas feitas
pontuá-lo como uma parte do todo, mas que, pela categoria profissional da área da saúde
quando determina quem é aquele sujeito, ele […]. São importantes e podem complementar
aprisiona. Por isso que uma das discussões que análises feitas pelos especialistas na área da
acompanha o percurso da Psicopedagogia e aprendizagem. Como venho apontando, as
da escola é acerca desse diagnóstico clínico. várias lentes enquanto disciplinas co­laboram
Segundo o dicionário on-line Michaelis26, o para a compreensão e intervenção psicope-
termo é definido como “qualificação dada por dagógica da dificuldade de aprendizagem8
um médico a uma enfermidade ou estado fi- (p. 316, grifo nosso).
siológico, com base nos sintomas ou sinais que Dentro do cenário brasileiro, a discussão no
observa”. Já o dicionário Silveira Bueno27 (p. âmbito político acompanha a do psicopedagogo
256) refere-se ao substantivo como “conheci- quando diz respeito ao acordado em decisão
mento ou determinação de uma doença pelos executiva e a prática observada em algumas
seus sintomas; avaliação”. escolas públicas.

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Avaliação psicopedagógica: para quem?

Em 2014, a Ministério da Educação lançou a estruturação psíquica de uma criança. Quando


nota técnica nº 04/201428, deliberando que, em o CID de um laudo substitui ou se agrega ao
escolas regulares, não haveria mais o condicio- nome de uma criança (“o meu aluno autista”,
namento de laudo médico para a inserção do como não raro ou­vimos), corremos o grave risco
aluno nas propostas de intervenção da escola. de que a única forma de olhar para ela se dê
Neste liame não se pode considerar im­ a partir de um spoiler de destinos, de premo-
prescindível a apresentação de laudo médico nições pinelianas desde as quais se rouba o
(diagnóstico clínico) por parte do aluno com futuro porque, com um diagnóstico posto na
deficiência, transtornos globais do desenvol- condição de definir o ser, se inibe no presente
vimento ou altas habilidades/superdotação, da vida da criança qualquer esperança dos
uma vez que o AEE caracteriza-se por aten- pais e dos professores de aposta em sua
dimento pedagógico e não clínico. Durante constituição. Precisamos investir em apostas
o estudo de caso, primeira etapa da elabo- que incluam narrativas abertas e em perma-
ração do Plano de AEE, se for necessário, o nente construção sobre – e com – os sujeitos
professor do AEE, poderá articular-se com aprendentes que se farão progressivamente
profissionais da área da saúde, tornando-se mais presentes nas escolas. A decisão do
o laudo médico, neste caso, um documento MEC, em sua nota técnica, é mais um passo
anexo ao Plano de AEE. [...] O importante nessa direção.29
é que o direito das pessoas com deficiência Os autores, portanto, discorrem de opinião
à educação não poderá ser cerceado pela semelhante à de Paín2 quanto ao fato de que
exigência de laudo médico.28 (p. 3). diagnósticos realmente restringem o sujeito a
A nota técnica nº 04/2014 declara ainda que apenas uma condição de seu ser. Eles ainda
exigir o diagnóstico clínico dos estudantes com avançam na discussão para como o sujeito
deficiência, transtornos globais do desenvolvi- pode ter seu progresso e futuro reduzidos em
mento, altas habilidades/superdotação, apenas consequência disso.
para constar no Censo Escolar o público-alvo da Contudo, mesmo que a nota técnica tenha
educação especial e garantir-lhes o atendimen- retirado a obrigatoriedade de um laudo, Soa-
to de suas especificidades educacionais, “[...] res et al.30 pontuaram, na Revista Digital Nova
denotaria imposição de barreiras ao seu acesso Escola, que escolas da rede pública acabam
aos sistemas de ensino, configurando-se em dis- por exigir o laudo médico como meio para
criminação e cerceamento de direito.”28 (p. 3). conseguir recursos específicos e adaptações
Ao ter-se em vista essa mudança na legisla- de metodologias, para a participação nas salas
ção, Jerusalinsky & Lugon29, em 2016, discor- de Atendimento Educacional Especializados
reram sobre o impacto dessa mudança para a (AEE). A conduta, de acordo com o citado em
inclusão desses sujeitos no âmbito escolar, uma matéria30, é permitida por lei.
vez que o laudo, “denominação de doença”, Desse modo, o que pode desprender-se
pode acabar por “discriminar a criança no pró- sobre o diagnóstico é que, mesmo quando em
prio ato que seria para a sua inclusão!”. perspectiva de outras profissões, ele reduz o
Os diagnósticos classificatórios, o “nome da sujeito a esse aspecto orgânico e condiciona-o
doença”, têm lamentavelmente ocupado um a isso, desprezando sua singularidade, suas de-
lugar absurdamente central no processo de mais instâncias e estruturas. Quando trazemos
escolarização de uma infinidade de crianças essa questão para o sujeito e os problemas de
e adolescentes. Não passam, entretanto, de aprendizagem, Paín2 e Fernández3 reiteram a
meras redescrições em termos técnicos mais visão de que não existe somente uma causa e
ou menos rebuscados, sem qualquer valor não há meios de olhar para esse sujeito através
explicativo ou preditivo sobre como se dará a de uma única perspectiva.

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Portanto, o objetivo fundamental do diagnós­ para futuras discussões quanto à possibilidade


tico é investigar a amplitude do processo de de usufruir do diagnóstico clínico como meio
aprendizagem e construir caminhos para que o para retirar do sujeito a solitária responsabili-
sujeito se reconheça como autor de seu processo dade acerca do seu fracasso escolar.
de aprendizagem. Assim sendo, é a compreensão Logo, entendemos que a avaliação psicope-
global do psicopedagogo frente ao processo de dagógica serve primeiramente para o sujeito,
aprendizagem do sujeito que fornecerá indícios para que ele compreenda qual é a sua maneira
acerca das ações necessárias para que o sujeito de aprender e com isso se reconheça como um
consiga se reconhecer então como autor de suas sujeito singular, sujeito autor de sua aprendi-
produções e conquiste patamares evolutivos na zagem. Para que o sujeito possa se enxergar
construção de sua autonomia. como autor e se emancipar, os profissionais
que interagem com ele precisam conhecê-lo
CONSIDERAÇÕES FINAIS em sua totalidade para ajudá-lo a enxergar-se
Nesse trabalho, buscamos discorrer sobre o de outra maneira.
universo do diagnóstico como determinante das A compreensão acerca da maleabilidade
ações do sujeito e fazer-nos entender sobre o su- do campo de atuação da Psicopedagogia para
jeito ser muito mais do que uma nomenclatura. com a definição do objeto de estudo, o proces-
O interesse em contribuir com a sistematização so de aprendizagem, reflete diretamente no
da produção científica acerca da temática foi sujeito sobre quem o psicopedagogo intervém.
disparada pelas experiências inquietantes das Dizemos isso uma vez assimilado no decorrer
autoras em relação à exigência de um laudo desse trabalho que esse sujeito não apresenta
médico que reduz o sujeito a uma terminologia. apenas um aspecto de si diante da ocorrência
Mas, ao cursar a Psicopedagogia Clínica e Ins- de algum problema de aprendizagem ou fra-
titucional, deparamo-nos com uma abordagem casso escolar. Ele, mais do que em qualquer outro
que considera o sujeito em suas relações e em tempo-espaço, traz intricado em um dito sintoma
sua totalidade e propõe novas formas de lidar todas as relações resultantes de seu contexto
com o processo de aprendizagem. sócio-histórico e singularidades.
A temática trabalhada aqui ajudou-nos a Sabemos que, contemporaneamente, a escola
compreender que o diagnóstico clínico é uma ainda mantém um padrão rígido de aluno-pa-
das tantas vertentes que podem ser conside- drão, o que reflete na manutenção do funcio-
radas na avaliação psicopedagógica, mas de namento familiar. É comum que as expectativas
forma alguma deve ser a única e tão menos dos pais que recaem sobre seus filhos sejam de
deve ser a finalidade e condenação do processo performances intelectuais de sucesso, porém,
do sujeito, como foram as ocorrências testemu- a não correspondência dessa expectativa é um
nhadas pela autora-professora. Ainda, para o momento de difícil enfrentamento, gerando
âmbito da psicóloga social, pôde-se assimilar complicações ainda maiores que imobilizam
que as inserções nas quais o sujeito está são os padrões da relação familiar. Pensar sobre a
igualmente importantes para seus processos família e a escola requer considerar os diversos
relacionais e podem exercer igual influência e diferentes sistemas e suas relações, por isso,
em seus sintomas, pois o sujeito aprendente abordamos o pensamento sistêmico, que com-
apresenta-se como o todo que é, tanto como ser preende que cada sistema é um todo e que as
humano, indivíduo e ser histórico. partes estabelecem ligações entre si.
Mesmo diante do recorte teórico feito nesse À instância escolar pode ser atribuído o
trabalho, para fins de conhecimento científico, papel central para a inclusão e promoção da
faz-se importante salientar que a linha argu- criação de espaços para os sujeitos, promovendo
mentativa desse estudo é passível de ampliação um local de intersecção entre sujeito coletivo e

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Avaliação psicopedagógica: para quem?

social. No entanto, o que se tem encontrado é a como temor, mas como possibilidade, uma vez
tentativa de homogeneização dos alunos. Para que esse cenário possibilitaria o manejo da
melhor fomentar essa ideia, Amaro17 (p. 81) reinvenção desse sujeito31.
defende que a aprendizagem de conteúdo tam- Além das reflexões supracitadas e para fins
bém deve implicar um “processo de construção ilustrativos, a atual conjuntura de pandemia
cognitiva”. E este torna-se tão mais significativo causada pelo vírus SARS-CoV-2 proporciona es-
conforme estiver mais ligado aos interesses e paço para questionamentos quanto aos desafios
possibilidades de viver situações reais na vida enfrentados pelos profissionais da educação pe-
de cada sujeito. A premissa é aquela em que a rante à realidade das aulas remotas. Aqui cabe
escola que acolhe a coletividade (e, portanto, apenas a reflexão sobre os alunos da educação
a diversidade) empenha-se pela singularidade básica: como esses alunos estarão emocional e
de cada sujeito. cognitivamente no final desse período? A escola
Outro ponto que pode ser atribuído à esco- estará preparada para lidar com as defasagens
la nesse processo de emancipação do sujeito oriundas desse período? Como as dificuldades
seria a mudança de perspectiva de seu papel dos alunos serão interpretadas pelas escolas?
enquanto propagadora de informação e habi- Em suma, a Psicopedagogia é, pois, respaldo
lidades técnicas. Essa mudança nas matrizes de intervenção importante para o sujeito tanto
da aprendizagem, conforme Harari31 teoriza, para entendê-lo na íntegra quanto para, em seu
seria o meio pelo qual o sujeito desenvolve ha- processo de compreensão acerca de sua iden-
bilidades generalizadas para a vida e para um tidade e integralidade, promover meios para
futuro cheio de probabilidades. A instabilidade localizá-lo em seu próprio espaço e ocupá-lo,
do futuro não precisaria então ser interpretada integrando-o, dessa maneira, ao todo.

SUMMARY
Who is the psychopedagogical evaluation for?

This study aims to light up the role of Dynamic Psychopedagogy


approach psychopedagogy evaluation, leading the learning comprehension
to beyond the conceptions of reeducation, that goes beyond the fragmented
frameworks of the diagnosed subject. Furthermore, the study elucidates a
dissociation with the diagnostics and reports reductionist perspective which
break, define the leaning-subject to a pathological character, leading to
their experiences authorship of thoughts. In these circumstances, there are
considered the relationship of learner subject insert on various systems,
how they express, think, show their learning potential. The methodology
is based on a reviewed-focused bibliographic research.

KEYWORDS: Dynamic Psychopedagogy. Psychopedagogy Evaluation.


Learner Subject.

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Brasília: Ministério da Educação; 2014 século 21. Tradução Paulo Geiger. São Paulo:
[acesso 2020 Jun 4]. Disponível em: http:// Companhia das Letras; 2018. p. 319-30.

Trabalho realizado no Centro Universitário Hermínio Artigo recebido: 27/2/2021


Ometto/UNIARARAS, Departamento de Educação, Aprovado: 18/5/2021
Araras, SP, Brasil.
Conflito de interesses: As autoras declaram não haver.

Rev. Psicopedagogia 2021; 38(116): 224-39

239
Psicologia: Reflexão e Crítica, 2001, 14(1), pp. 35-43 35

Indicadores de Potencial de Aprendizagem Obtidos


através da Avaliação Assistida

Silvia Helena Tortul Ferriolli 1 2


Maria Beatriz Martins Linhares
Sonia Regina Loureiro
Edna Maria Marturano
Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto

Resumo
O objetivo deste trabalho foi detectar indicadores de potencial cognitivo de crianças com queixa de dificuldade de aprendizagem
escolar, utilizando procedimento combinado de avaliação psicométrica (Raven) e avaliação assistida (Jogo de Perguntas de
Busca com Figuras Diversas - PBFD). Foram avaliadas 20 crianças de oito a 11 anos, encaminhadas para atendimento
psicológico na área da Saúde com queixa de dificuldade de aprendizagem. O PBFD foi delineado em fases e realizado antes
(avaliação) e após (reavaliação) uma intervenção psicopedagógica de curta duração. Houve variações de desempenho na
avaliação psicométrica, com tendência à classificação “definidamente abaixo da média”. Na avaliação assistida, nos momentos
da avaliação e da reavaliação, houve variações nos perfis de desempenho cognitivo, indicando diferenças individuais quanto às
dificuldades e recursos cognitivos. Discriminou-se um subgrupo de crianças que precisaram de pouca ajuda e monitoramento,
daquele de crianças que precisaram de mais assistência para implementar estratégias eficientes na resolução de problemas.
Palavras-chave: Avaliação cognitiva; avaliação assistida; dificuldade de aprendizagem.

Indicators of Learning Potential Obtained through Assisted Assessment

Abstract
This research intended to detect indicators of cognitive potential of children with school learning disability complaints,
employing combined procedures of psychometric assessment (Raven) and assisted assessment (Constraint-seeking questions
game with several figures – PBFD). Twenty children with learning disability complaints, aged from eight to 11 years, were
assessed, all referred for psychological evaluation in Health Services. PBFD was delineated by phases and carried out before
(assessment) and after (re-assessment) a short duration psychopedagogic intervention. There was a variation in the performance
of children in the psychometric assessment, with a tendency of predominance of the classification “definitely below the
average”. In the assisted assessment, there was variation in the cognitive performance profile, showing individual differences in
cognitive difficulties and resources, both assessment and re-assessment moments. A subgroup of children needing few help and
monitoring was distinguished, in contrast with a group that needed more assistance to implement efficient strategies for
problem resolution.
Keywords: Cognitive assessment; assisted assessment; learning disability.

Tem sido constatada a existência de alta demanda para apresentados por essas crianças, para que se possa
atendimento psicológico em serviços públicos de saúde, fundamentar procedimentos de prevenção e intervenção.
referente a crianças com queixa de dificuldade de As crianças encaminhadas para atendimento
aprendizagem escolar, na faixa etária de sete a doze anos psicológico na área da Saúde, com queixa de dificuldade
(Graminha & Martins, 1997; Linhares, Parreira, Maturano de aprendizagem, constituem um grupo heterogêneo
& Sant’Anna, 1993; Lopez, 1983; Santos, 1990). O com variações quanto as suas reais dificuldades e
aumento da procura de atendimento para esses casos capacidades cognitivas (Marturano, Loureiro, Linhares &
indica a necessidade de um aprofundamento no estudo Machado, 1997). Sendo assim, a avaliação psicológica a
da natureza e das características dos problemas que são submetidas inclui a avaliação de aspectos
cognitivos, com o objetivo de identificar a possível
existência de dificuldades na área intelectual. Os testes
1
Endereço para correspondência: Av. 9 de Julho, 980, Ribeirão Preto, SP, psicométricos, que geralmente são empregados no estudo
14025-000. Fone: (16) 6250309. E-mail: linharesmbm@iname.com desses casos, oferecem uma compreensão parcial do
2
O texto consiste em parte da Dissertação de Mestrado da primeira
autora (bolsista da CAPES) sob a orientação da segunda, e do Projeto funcionamento cognitivo, devido à natureza genérica das
Integrado do CNPq (Processo no 5222343/95-3). informações que são por eles fornecidas. Esses se
36 Silvia Helena Tortul Ferriolli, Maria Beatriz Martins Linhares, Sonia Regina Loureiro & Edna Maria Marturano

concentram em habilidades e conhecimentos acumulados assistida (Barton, 1988; Courage, 1989; Gera & Linhares,
pela criança até o momento da avaliação. Em função 1998; Linhares, 1996; Linhares, Santa Maria, Escolano &
disso, torna-se cada vez mais recomendado e necessário Gera, 1998; Santa Maria & Linhares, 1999).
o uso de procedimentos de avaliação cognitiva que Estudos têm demonstrado que em situação de
contribuam não apenas para identificar dificuldades, mas avaliação, ao receber ajuda instrucional temporária e
também dimensionar recursos potenciais do seu ajustável às suas necessidades individuais, há crianças que
funcionamento cognitivo. Para esse dimensionamento tem conseguem melhorar o seu desempenho, enquanto outras
sido propostos procedimentos que permitam a análise necessitam de assistência mais intensiva e prolongada
de estratégias de resolução de problemas e que (Escolano, 2000; Feuerstein, Rand, Hoffman & Miller,
apreendam a sensibilidade da criança à instrução 1979; Linhares 1998a).
(Campione, 1989; Lunt 1994), no intuito de contribuir Segundo Feurstein, Rand, Hoffman e Miller (1980),
com informações que ajudem a traçar diretrizes de as experiências vividas durante o processo de mediação
mediação de aprendizagem adequadas às necessidades permitem à criança modificar as suas estruturas cognitivas,
individuais da criança. e, conseqüentemente, adaptar-se a novos modos de
Na área de avaliação cognitiva, portanto, tem havido, funcionamento. A plasticidade cognitiva varia em grau
recentemente, um interesse crescente em procedimentos de uma criança para outra, e está diretamente relacionada
processuais, dinâmicos e interativos, destacando-se entre à capacidade individual de se beneficiar da ajuda recebida
esses a avaliação assistida. Esta modalidade de avaliação durante o processo de mediação.
fundamenta-se nos conceitos de aprendizagem mediada A intervenção psicopedagógica dirigida à criança com
e zona de desenvolvimento proximal de Vygotsky (1978/ dificuldade de aprendizagem visa promover ajuda
1988). O examinador, utilizando um conjunto de continuada à criança, na medida em que representa uma
estratégias instrucionais, temporárias e ajustáveis ao situação protegida de ensino-aprendizagem, com objetivo
desempenho da criança, ajuda a revelar o seu desempenho de dessensibilizar a criança, diminuindo a ansiedade frente
potencial, fazendo-a alcançar um grau crescente de à tarefa de aprender e propiciar o desenvolvimento de
autonomia em situações de resolução de problemas habilidades e transmitir conhecimentos (Linhares, 1998b).
(Brown & Campione, 1986; Campione, 1989; Linhares, Dessa forma, a intervenção psicopedagógica combinada
1996). Dessa forma, é possível aumentar a compreensão com a avaliação assistida pode ampliar a possibilidade
sobre as estratégias cognitivas utilizadas pela criança de detectar recursos potenciais cognitivos da criança,
durante a realização de solução de tarefas, muitas vezes encobertos por situações aversivas de ensino
complementando informações que foram obtidas através experimentadas anteriormente.
de avaliação psicométrica tradicional, com informações Considerando-se o exposto, o presente trabalho teve
a respeito da sensibilidade à instrução e de indicadores por objetivo identificar indicadores de potencial cognitivo
do potencial cognitivo dos examinandos. Esses em um grupo de crianças encaminhadas para atendimento
indicadores referem-se à quantidade e tipo de ajuda psicológico apresentando queixa de dificuldade de
necessária para que a criança solucione efetivamente aprendizagem escolar, através de procedimento
determinada tarefa, à relevância das estratégias cognitivas combinado de avaliação, utilizando teste psicométrico de
utilizadas na sua execução e os tipos de tentativas de inteligência e situação estruturada de avaliação cognitiva
solução realizadas (Linhares, 1996). Através da avaliação assistida, sendo esta última realizada antes e após um
assistida, pode-se identificar variações individuais e período de intervenção psicopedagógica de curta
intragrupo em crianças com desvantagens, tais como duração.
deficiência mental, dificuldade de aprendizagem ou
desvantagem cultural (Brown & Ferrara, 1985; Santa Maria Método
& Linhares, 1999; Swanson, 1995).
Entre as tarefas que permitem a identificação dessas Participantes
variações e de indicadores de potencial de aprendizagem, Foram avaliadas 20 crianças (12 meninos e 8 meninas),
destacam-se, entre outras, aquelas que envolvem perguntas de oito a 11 anos (Md = 8 anos e 10 meses), alunas de
de busca de informação e restrição de alternativas. Os primeira à quarta série (Md = 3ª série) do ensino
jogos de perguntas de busca têm demonstrado ser um fundamental de escola pública, com queixa de dificuldade
procedimento sensível para revelar indicadores de de aprendizagem escolar, encaminhadas para atendimento
potencial para a aprendizagem em crianças com psicológico junto a um Ambulatório de Psicologia Infantil
dificuldade de aprendizagem em situação de avaliação do Hospital das Clínicas da FMRP. As crianças não
Psicologia: Reflexão e Crítica, 2001, 14(1), pp. 35-43
Indicadores de Potencial de Aprendizagem Obtidos através da Avaliação Assistida 37

apresentavam problemas neurológicos, genéticos ou ao desempenho da criança, com o objetivo de melhorar


psiquiátricos e não estavam recebendo atendimento as condições de avaliação e, conseqüentemente, favorecer
especializado para dificuldades de aprendizagem em outro a revelação de indicadores de desempenho potencial e
serviço. de autonomia em situações de resolução de problemas.
A mediação da aprendizagem era realizada através de
Material cinco níveis de ajuda crescentes, regulados de acordo com
Foram utilizados os seguintes materiais: Matrizes Pro– a necessidade da criança. Os cinco níveis de ajuda, em
gressivas Coloridas de Raven- Escala Especial (Angelini, Alves, ordem crescente de assistência da examinadora eram os
Custódio & Duarte, 1987); Jogo de Perguntas de Busca com seguintes: feedback informativo, análise comparativa,
Figuras Diversas (PBFD) (Gera & Linhares, 1998); gravador exemplo de pergunta relevante, retirada dos cartões e
e fitas cassetes. A descrição do Jogo de Perguntas de demonstração de um modelo de pergunta (Santa Maria
Busca com Figuras Diversas encontra-se no Anexo A. & Linhares, 1999). O avanço para um nível superior de
mediação não excluía a possibilidade de utilização de níveis
Procedimento anteriores, uma vez que esses podem ser cumulativos. As
O esquema de coleta de dados incluiu duas etapas definições e exemplos dos níveis de ajuda encontram-se
distintas. Na primeira etapa do procedimento, foram no Anexo B.
realizadas duas sessões de avaliação cognitiva: na primeira A fase de manutenção tem por objetivo avaliar o nível
sessão, aplicou-se o Raven segundo as normas de de desempenho da criança quanto à manutenção da
padronização brasileira. Na segunda sessão, que ao longo aprendizagem das estratégias de perguntas de busca de
deste trabalho será denominada avaliação, foi aplicado o informação. Nesta fase, a ajuda era suspensa e a criança
procedimento de avaliação cognitiva assistida em situação devia novamente resolver a tarefa sozinha, segundo as
de resolução de problemas, utilizando-se o Jogo de instruções padronizadas, sem intervenções adicionais da
Perguntas de Busca com Figuras Diversas (Gera & Linhares, examinadora.
1998). As sessões de avaliação assistida foram gravadas e as
A segunda etapa do procedimento de avaliação verbalizações da criança e da examinadora foram
cognitiva (denominada reavaliação), ocorreu após uma posteriormente transcritas para análise do desempenho
intervenção psicopedagógica de curta duração3 , quando da criança na tarefa.
as crianças foram reavaliadas através do mesmo
procedimento de avaliação assistida utilizado na primeira Análise dos Dados
etapa (avaliação). O desempenho no Raven foi avaliado de acordo com
O procedimento de avaliação assistida em situação as normas de padronização brasileira, em termos de
de resolução de problemas foi delineado segundo o percentil.
método estruturado (Campione & Brown, 1990; Linhares, Os indicadores de desempenho na tarefa de resolução
1998c; Tzuriel & Klein, 1987), incluindo as seguintes fases de problemas (PBFD), tanto na avaliação quanto na
durante a avaliação: Inicial sem Ajuda (SAJ), Assistência reavaliação, foram quantificados em termos de taxa ou
(ASS) e Manutenção (MAN). Na fase inicial sem ajuda, proporção, quanto a: número de perguntas de busca
foi avaliado o desempenho real da criança, uma vez que formuladas, relevância das estratégias de perguntar por
esta trabalhou sozinha de forma independente, segundo sua eficiência ou poder de restrição de alternativas e tipos
instruções padronizadas. de tentativas de solução (Linhares, 1996; Santa Maria &
A fase de assistência, por sua vez, tem por objetivo Linhares, 1999). Com base nesses dados, foi realizada
avaliar indicadores de desempenho potencial da criança, uma análise comparativa das estratégias de solução de
quando ela está trabalhando em conjunto com a cada sujeito, apresentadas na fase SAJ em relação às fases
examinadora. Nesta fase, era oferecido pela examinadora ASS e MAN, respectivamente. A significância das
um suporte instrucional adicional, temporário e ajustável comparações entre as diferentes fases foi verificada
através da prova não paramétrica de Wilcoxon para
amostras pareadas (p < 0,05). Foram identificados, tanto
3
O trabalho de intervenção psicopedagógica foi realizado no Ambulatório na avaliação quanto na reavaliação, perfis de desempenho
de Psicologia Infantil do HCFMRP, com grupos de no máximo quatro
crianças, que eram atendidos uma vez por semana, de acordo com a
cognitivo potencial individual de cada criança, podendo
“perspectiva desenvolvimentista”de intervenção psicopedagógica proposta ser: a) alto-escore, crianças que apresentavam bom
por Linhares (1998b). O número total de atendimentos variou de 11 a 15 desempenho logo na fase inicial sem ajuda, e que
sessões, com duração de noventa minutos cada uma.
mantinham o bom desempenho na fase de manutenção;
Psicologia: Reflexão e Crítica, 2001, 14(1), pp. 35-43
38 Silvia Helena Tortul Ferriolli, Maria Beatriz Martins Linhares, Sonia Regina Loureiro & Edna Maria Marturano

b) ganhador mantenedor, crianças que demonstravam perguntas relevantes do que não relevantes (repetidas,
melhora no desempenho cognitivo na fase de assistência irrelevantes e incorretas) e predominantemente tentativas
e mantinham essa melhora na fase de manutenção; c) incorretas.
ganhador dependente da assistência, crianças que melhoravam Comparando-se a fase SAJ com a fase ASS, verifica-
seu desempenho com a ajuda da examinadora mas não se nesta última um aumento significativo das proporções
mantinham a melhora após a suspensão da ajuda na fase medianas de perguntas relevantes e de tentativas corretas
de manutenção e d) não ganhador, crianças que não de solução e a conseqüente redução de tentativas
melhoravam ou apresentavam pouca melhora no seu incorretas e corretas ao acaso. A proporção de perguntas
desempenho, não a mantendo após a suspensão da ajuda incorretas apresentou aumento significativo da fase SAJ
da examinadora (Santa Maria & Linhares, 1999). Esses para a ASS; apesar deste aumento, as perguntas incorretas
perfis foram definidos operacionalmente por Escolano se mantiveram em proporção inferior à das perguntas
(2000). relevantes.
Os perfis de desempenho cognitivo de cada criança Na comparação entre as fases SAJ e MAN, por sua
obtidos na avaliação foram comparados com os obtidos vez, nota-se a mesma tendência. Na fase MAN (após a
na reavaliação através do teste não paramétrico de
suspensão da ajuda da examinadora), houve um aumento
Wilcoxon.
significativo na proporção de perguntas relevantes e de
A prova do Coeficiente de Correlação de Postos de
tentativas corretas e, em contrapartida, uma redução
Spearman permitiu analisar a correlação entre os perfis
significativa de tentativas incorretas.
de desempenho cognitivo na avaliação e na reavaliação,
respectivamente, e as seguintes variáveis: percentis no A Tabela 2 mostra os indicadores de desempenho
Raven e idade cronológica das crianças. das crianças na resolução do PBFD nas diferentes fases
(SAJ, ASS e MAN) e as comparações entre elas, na
Resultados reavaliação.
De acordo com a Tabela 2, na fase SAJ as crianças
A Tabela 1 reúne os indicadores de desempenho das realizaram quatro perguntas em média por arranjo,
crianças na resolução de problemas do PBFD nas formularam mais questões relevantes do que não
diferentes fases (SAJ, ASS e MAN) e as comparações relevantes (repetidas, irrelevantes e incorretas), com
entre elas, na avaliação. predomínio das tentativas incorretas de solução. Quando
Na Tabela 1, observa-se que na fase SAJ, as crianças se compara a fase ASS em relação à SAJ, verifica-se um
realizaram quatro perguntas em média por arranjo, mais aumento significativo das proporções mediana de

Tabela 1. Indicadores de Desempenho no PBFD – Mediana (Md) e Comparações entre Fases, na Avaliação (N = 20)
Indicadores de Desempenho PBFD Fases Comparações* (p)
SAJ ASS MAN SAJ ASS SAJ MAN
Md Md Md
Número médio de perguntas de
busca por arranjo de figuras 4 4 5 0,29 0,56
Proporção dos tipos de
pergunta de busca
Relevante 0,46 0,78 0,64 < 0,001* 0,009*
Irrelevante 0,08 0,06 0,13 0,66 0,12
Incorreta 0,09 0,12 0,13 0,02* 0,08
Repetida 0 0 0,04* 0,26 0,70

Proporção dos tipos de tentativas


Correta 0 0,70 0,29 < 0,001* 0,002*
Incorreta 0,73 0,30 0,42 < 0,001* 0,02*
Correta ao acaso 0,24 0 0,15 < 0,001* 0,12

* Prova de Wilcoxon (p ≤ 0,05); SAJ = fase inicial sem ajuda; ASS = fase de assistência; MAN = fase de manutenção

Psicologia: Reflexão e Crítica, 2001, 14(1), pp. 35-43


Indicadores de Potencial de Aprendizagem Obtidos através da Avaliação Assistida 39

Tabela 2. Indicadores de Desempenho no PBFD – Mediana (Md) e Comparações entre Fases, na Reavaliação
(N = 20)
Indicadores de Desempenho PBFD Fases Comparações* (p)
SAJ ASS MAN SAJ ASS SAJ MAN
Md Md Md
Número médio de perguntas de
busca por arranjo de figuras 4 4 4 0,82 0,04*
Proporção dos tipos de
pergunta de busca
Relevante 0,75 0,90 0,75 0,02* 0,11
Irrelevante 0,03 0,03 0,10 0,60 0,005*
Incorreta 0,14 0,06 0,10 0,05* 0,53
Repetida 0 0 0 0,79 0,31

Proporção dos tipos de tentativas


Correta 0,07 0,89 0,78 0,001* 0,06
Incorreta 0,50 0,11 0,11 0,003* 0,16
Correta ao acaso 0,29 0 0,12 0,001* 0,05*

* Prova de Wilcoxon (p ≤ 0,05); SAJ = fase inicial sem ajuda; ASS = fase de assistência; MAN = fase de manutenção

perguntas relevantes e de tentativas corretas de solução, 20


com correspondente redução significativa das proporções 18
de perguntas incorretas e das tentativas incorretas e
corretas ao acaso. 16
Número de Participantes

Comparando-se as fases SAJ e MAN, observa-se nesta 14


última um aumento significativo no número médio de 0,60
12
perguntas de busca por arranjo, enquanto que a alta
proporção mediana de perguntas relevantes permaneceu 10 0,45

inalterada. Houve um aumento significativo na proporção 8 0,35


mediana de perguntas irrelevantes, embora esta seja
pequena em relação à proporção de perguntas relevantes. 6 0,25
0,20
Verifica-se, ainda, uma tendência significativa de aumento 4
da proporção mediana das tentativas corretas e uma
0,10
2 0,05
diminuição significativa das tentativas corretas ao acaso. 0

Cabe salientar que, na avaliação, as proporções acima 0


Avaliação Reavaliação
de 0,70 de perguntas relevantes e acertos só foram Perfis de Desempenho Cognitivo
obser vadas na fase ASS, isto é, com a ajuda da Alto-escore
Ganhador mantenedor

examinadora presente. Na reavaliação, por sua vez as


Ganhador dependente da assistência
Não-ganhador

proporções de perguntas relevantes situaram-se acima Figura 1. Perfis de desempenho cognitivo obtidos através
de 0,75 nas três fases (SAJ, ASS e MAN), respectivamente, do Jogo de Perguntas de Busca com Figuras Diversas,
e as proporções de acertos foram expressivamente altas na Avaliação e na Reavaliação
(acima de 0,70) nas fases ASS e MAN.
A Figura 1 apresenta os perfis de desempenho
cognitivo das crianças na tarefa PBFD, durante a avaliação apresentando estratégias de formulação de perguntas
e reavaliação, segundo a classificação em: alto-escore, ganhador relevantes de busca de informação, enquanto que 0,60
mantenedor, ganhador dependente da assistência e não ganhador. das crianças alcançaram o perfil ganhador dependente da
Observa-se na Figura 1 que, na avaliação, cerca de 0,25 assistência, ou seja, melhoraram seu desempenho com
das crianças foram classificadas como ganhador mantenedor, assistência presente, mas não mantiveram essa melhora
Psicologia: Reflexão e Crítica, 2001, 14(1), pp. 35-43
40 Silvia Helena Tortul Ferriolli, Maria Beatriz Martins Linhares, Sonia Regina Loureiro & Edna Maria Marturano

após a suspensão da ajuda na fase MAN. Duas crianças assistida, tanto na avaliação quanto na reavaliação, foram
apresentaram o perfil alto-escore, tendo bom desempenho independentes dos valores de percentil no teste
logo na fase SAJ, e apenas uma criança apresentou perfil psicométrico de Raven. Porém, houve correlação
de não ganhador, isto é, não houve melhora no desempenho, significativa positiva entre a idade das crianças e o perfil
apesar da ajuda da examinadora. de desempenho cognitivo na avaliação, ou seja, as crianças
Comparados através do teste de Wilcoxon, os perfis mais velhas desempenharam-se melhor do que as crianças
de desempenho cognitivo na avaliação e na reavaliação mais jovens. Essa correlação não se repetiu na reavaliação,
apresentaram uma diferença significativa (p <0,05). Na podendo sugerir que, após a inter venção
reavaliação, o subgrupo de perfil cognitivo alto-escore psicopedagógica, as crianças mais jovens conseguiram
aumentou, representando 0,35 das crianças que melhorar o nível de seu desempenho, diminuindo a
conseguiram um bom desempenho logo na fase SAJ, diferença em relação ao desempenho apresentado pelas
independente da ajuda da examinadora. Conseqüen– crianças mais velhas.
temente, não houve crianças com perfil de desempenho
cognitivo de não ganhador e o subgrupo ganhador diminuiu, Discussão
especialmente o ganhador dependente da assistência.
Quando se comparam os perfis de desempenho A grande variação nos percentis obtidos no Raven
cognitivo tendo como referência o bom desempenho na confirmou a observação realizada anteriormente por
tarefa, observa-se que na avaliação, a proporção das Marturano e colaboradores (1997), de que crianças com
queixa de dificuldade de aprendizagem, encaminhadas
crianças que apresentaram bom desempenho, mantendo-
para atendimento psicológico na área da Saúde,
o após ter cessado a ajuda da examinadora, foi em torno
apresentam diversidade quanto ao desempenho
de 0,35 (0,10 das crianças com perfil alto-escore e 0,25 com
intelectual, medido por avaliação psicométrica. No
perfil ganhador mantenedor). Na reavaliação essa proporção
presente trabalho, a classificação intelectual das crianças
aumentou significativamente, representando cerca da
variou de deficiente até inteligência acima da média.
metade das crianças (0,55).
Por outro lado, mesmo tendo 60% das crianças
Em relação aos resultados obtidos na avaliação apresentado classificação definidamente abaixo da média
psicométrica através do Raven, constatou-se uma variação intelectual no Raven, pode ser observado indicadores de
quanto à classificação do nível intelectual das crianças. Uma recursos cognitivos nesse grupo. Na avaliação cognitiva
proporção maior de crianças (0,60) obteve classificação assistida, a maioria das crianças foi capaz de melhorar
intelectual definidamente abaixo da média (percentil 10 seu desempenho mediante à assistência da examinadora,
ou 25), enquanto que 0,25 das crianças obtiveram independentemente do nível intelectual alcançado na
classificação intelectual definidamente acima da média avaliação psicométrica.
(percentil 75) e 0,15 classificação de intelectualmente média Ao receber um suporte de ajuda adequado às suas
(percentil 50). necessidades, as crianças com problemas de aprendizagem
A Tabela 3 apresenta os índices de correlação de postos foram capazes de superar a dificuldade em diferenciar
de Spearman entre os perfis de desempenho cognitivo, aspectos relevantes dos irrelevantes, elevando o nível do
na avaliação e na reavaliação, respectivamente, e as variáveis seu desempenho durante a solução de um dado problema,
percentil no Raven e idade cronológica das crianças. conforme encontrado nos estudos de Barton (1988),
De acordo com a Tabela 3, verifica-se que os perfis Brown e Campione (1986) e de Swanson (1995).
de desempenho cognitivo alcançados na avaliação

Tabela 3. Índices de Correlação de Postos de Spearman (rs) entre os Perfis de Desempenho Cognitivo no PBFD, na
Avaliação e na Reavaliação, e o Percentil no Raven e Idade das Crianças

Perfil de Desempenho Cognitivo


Avaliação Reavaliação
Raven 0,39 0,30

Idade 0,49* 0,35


* p < 0,05
Psicologia: Reflexão e Crítica, 2001, 14(1), pp. 35-43
Indicadores de Potencial de Aprendizagem Obtidos através da Avaliação Assistida 41

A análise dos dados permitiu verificar diferenças seja, o potencial individual da criança para mudança e o
significativas intragrupo em relação ao desempenho quanto de ajuda é necessária para que essa mudança
cognitivo das crianças na avaliação assistida em situação ocorra. Com o mesmo nível de ajuda, uma criança pode
de resolução de problemas de perguntas de busca de experimentar melhora significativa no seu desempenho,
informação e restrição de alternativas. Embora uma enquanto outra pode não conseguir os mesmos resultados,
proporção considerável das crianças tenha necessitado conforme já foi observado por outros autores (Brown
de ajuda e melhorado com a assistência durante a avaliação, & Ferrara, 1985; Linhares, Santa Maria, Escolano & Gera,
a possibilidade de se beneficiar da assistência e reorganizar 1998; Santa Maria & Linhares, 1999; Swanson, 1995).
o padrão de funcionamento cognitivo na resolução da A melhora de desempenho na avaliação assistida, no
tarefa variou para cada criança, formando subgrupos momento da avaliação, foi mais evidente nas crianças de
diferenciados quanto a indicadores de eficiência e faixa etária maior, uma vez que as mais jovens
manutenção da aprendizagem, tanto no momento da apresentaram maior dificuldade na solução da tarefa,
avaliação quanto da reavaliação. necessitando de mais ajuda da examinadora para resolvê-
Os indicadores de desempenho cognitivo analisados la. Na reavaliação, no entanto, após a dessensibilização da
nos dois momentos da avaliação assistida revelaram criança para enfrentar situações de aprendizagem,
subgrupos com diferentes perfis de desempenho promovida através de um período de intervenção
cognitivo. Durante a avaliação, apesar da ajuda da psicopedagógica de curta duração, a relação entre faixa
examinadora, houve predomínio de crianças com perfil etária e melhora no desempenho não ficou evidenciada.
de desempenho cognitivo ganhador dependente da A relação entre idade e desempenho em tarefas que
assistência, que melhoraram o desempenho mas não envolvem a formulação de perguntas para a resolução
mantiveram a melhora na fase de manutenção, de problemas, tem sido investigada em estudos anteriores.
dependendo da ajuda da examinadora para obter sucesso Segundo pesquisa realizada por Mosher e Hornsby (1966,
na resolução de problemas. As crianças que conseguiram citado por Barton, 1988) com crianças normais, a idade
manter o bom desempenho após a suspensão da ajuda estaria relacionada ao desempenho em tarefas que exigem
da examinadora representam um grupo significativamente formulação de perguntas de busca com exclusão de
menor (alto-escore e ganhador mantenedor), e apenas alternativas. Os autores observaram que, enquanto as
uma criança obteve o perfil de não ganhador, indicando crianças de oito anos de idade mostravam pouca
uma dificuldade maior frente à tarefa proposta. habilidade em elaborar perguntas de busca e restrição de
Por outro lado, na reavaliação, cerca da metade das alternativas, aquelas com onze anos já apresentavam
crianças (0,55) conseguiu manter ou melhorar o bom
estratégias eficientes na formulação de perguntas
desempenho na resolução da tarefa (alto-escore e
relevantes de busca. Para Courage (1989), essas habilidades
ganhador mantenedor), após a suspensão da ajuda da
desenvolvem-se no decorrer dos primeiros anos
examinadora. O aumento na proporção de crianças com
escolares, mas a elaboração de perguntas relevantes de
perfil alto-escore e a ausência daquelas com perfil de não-
busca de informação com restrição de alternativas pode
ganhador sugere que, após receber assistência mais
ocorrer mais cedo se a criança for treinada.
intensiva e prolongada, representada pela intervenção
Por outro lado, Escolano e Linhares (2000) estudaram
psicopedagógica de curta duração, um número maior
aspectos do funcionamento cognitivo de crianças de sete
de crianças foi capaz de apresentar estratégias de busca
anos da primeira série do ensino fundamental através do
de informação mais eficientes. Embora o grupo de
Jogo de Perguntas de Busca com Figuras Geométricas e
crianças com perfil ganhador dependente da assistência
tenha diminuído, este continuou representando uma verificaram que, embora jovens, a maioria das crianças
parcela perto da metade das crianças (0,45). Para estas a da amostra apresentou bom desempenho na tarefa,
ajuda oferecida parece não ter sido suficiente para precisando de pouca ajuda para implementar estratégias
melhorar seu desempenho, havendo necessidade de eficientes de perguntas relevantes de busca e restrição de
monitoramento continuado. alternativas e resolver corretamente os problemas
Essa variação no desempenho pode ser entendida ao apresentados. Gera e Linhares (1998, citado por Linhares
considerar-se que o grupo classificado com queixa de e cols., 1998), por sua vez, ao avaliarem crianças de sete a
dificuldade de aprendizagem mostrou ser heterogêneo, dez anos de idade, com e sem dificuldade de
incluindo crianças com dificuldades ou recursos em níveis aprendizagem, através do Jogo de Perguntas de Busca
diferentes. Além disso, contribuem para essa variação com Figuras Diversas em situação de avaliação assistida,
intragrupo, a sensibilidade de cada criança à instrução, ou verificaram que o desempenho das crianças na tarefa
Psicologia: Reflexão e Crítica, 2001, 14(1), pp. 35-43
42 Silvia Helena Tortul Ferriolli, Maria Beatriz Martins Linhares, Sonia Regina Loureiro & Edna Maria Marturano

diferiu mais em função da presença de problemas de Referências


aprendizagem do que da idade.
Angelini, A L., Alves, I. C. B., Custódio, E. M. & Duarte, W. F. (1987). Matri–
Em relação à amostra do presente estudo, observou- zes Progressivas Coloridas – Escala Especial – Raven. (Padronização
se que as crianças mais velhas com queixa de dificuldade Brasileira). São Paulo: Casa do Psicólogo.
de aprendizagem mostraram ser mais sensíveis ao suporte Barton, J. A (1988). Problem-solving strategies in learning disabled and
normal boys: Developmental and instructional effects. Journal of
instrucional temporário oferecido pela examinadora
Educational Psychology, 80(2), 184–191.
durante o momento da avaliação, adotando prontamente Brown, A L. & Campione, J. C. (1986). Psychological theory and the study
estratégias eficientes para formular perguntas de busca of learning disabilities. American Psychologist, 14, 1059-1068.
visando a exclusão de alternativas e resolução correta do Brown, A L. & Ferrara, R. A (1985). Diagnosing zones of proximal deve–
lopment. Em J. V. Wertsch (Org.), Culture communication and cognition:
problema. As crianças mais jovens com dificuldade de Vygotskian perspectives (pp. 273-305). Cambridge University Press.
aprendizagem, por outro lado, apresentaram maior Campione, J. C. (1989). Assisted assessment: A taxonomy of approaches
dificuldade diante da tarefa durante a avaliação, apesar da and an outline of strengths and weaknesses. Journal of Learning
Disabilities, 22(3), 151-165.
assistência presente da examinadora. Provavelmente, a Campione, J. C. & Brown, A. L. (1990). Guided learning and transfer:
ajuda restrita à situação de avaliação assistida não foi Implications for approaches to assessment. Em N. Fredericksen, R.
suficiente para que essas crianças pudessem superar as Glasser, A. Lesgold & M. G. Shafto (Orgs.), Diagnostic monitoring of skill
and knowledge acquisition (pp. 141-172). Hillsdale: Lawrence Erlbaum.
dificuldades durante a resolução da tarefa e adotassem
Courage, M. L. (1989). Children’s inquiry strategies in referential commu–
estratégias de perguntas relevantes. Neste caso, foi nication in the game of twenty questions. Child Development, 60, 877-
necessário um período maior de assistência, representado 886.
pela intervenção psicopedagógica de curta duração, para Escolano, A. M. C. (2000). Avaliação cognitiva assistida em situação de resolução
de problema na predição do desempenho escolar de crianças de primeira série do
que a melhora no desempenho ocorresse. Posteriormente primeiro grau. Dissertação de Mestrado não-publicada, Curso de Pós-
a esse período, verificou-se a diluição da diferença no Graduação em Psicologia, Universidade de São Paulo. Ribeirão Preto,
desempenho entre crianças mais jovens ou mais velhas, SP.
Escolano, A. M. C. & Linhares, M. B. M. (2000). Avaliação cognitiva assistida
ou seja, houve equiparação do nível de desempenho de em situação de resolução de problemas na predição do desempenho
crianças de idades diferentes, dentro da faixa estudada. escolar de crianças de primeira série do primeiro grau. Em Z. M. M.
Concluindo, os achados do presente estudo B.Alves, M. Japur, M. A. Santos, F. C. R. Brunhara, E. F. Rasera, C. P.
Simon & D. J. Cremonezi (Orgs.), III Seminário de Pesquisa – Tomo II
demonstram que ao neutralizar condições adversas de
(pp.55-63). Ribeirão Preto: Programa de Pós-Graduação em Psicologia,
ensino, criando-se uma mini-situação de ensino- Universidade de São Paulo.
aprendizagem, torna-se possível a diferenciação de Feuerstein, R., Rand, Y., Hoffman, M. & Miller, R. (1979). Cognitive
crianças que precisam de ajuda intensiva e continuada para modifiability in retarded adolescents: Effects of instrumental
enrichment. American Journal of Mental Deficiency, 83(6), 539-550.
melhorar o desempenho estratégico para resolver Feuerstein, R., Rand, Y., Hoffman, M. & Miller, R. (1980). Instrumental
problema, daquelas que com pouca ajuda são capazes enrichment. An intervention program for cognitive modifiability. Illinois: Scott,
de revelar recursos eficientes, as quais podem ter tido sua Foresman.
Gera, A. & Linhares, M. B. M. (1998). Estratégias de perguntas de busca de
capacidade cognitiva subestimada por medida informação na resolução de problemas de crianças com e sem queixa
psicométrica. Estas últimas podem ser identificadas como de dificuldade de aprendizagem [Resumo]. Em Sociedade Brasileira
“pseudodeficientes” ou “deficientes mediacionais” de Psicologia (Org.), Resumos de comunicações científicas, XVIII Reunião
Anual de Psicologia (p. 126). Ribeirão Preto: SBP.
(Feuerstein e cols., 1980), ou seja, possuem recursos
Graminha, S. S. V. & Martins, M. A. O. (1997). Condições adversas na vida
cognitivos ou potencial de aprendizagem além daquele de crianças com atraso no desenvolvimento. Medicina, 30, 259 – 267.
estimado psicometricamente. Linhares, M. B. M. (1996). Avaliação assistida em crianças com queixa de
A partir do momento em que recursos cognitivos dificuldade de aprendizagem. Temas de Psicologia, 1, 17- 32.
Linhares, M. B. M. (1998a). Avaliação psicológica de aspectos cognitivos
são identificados e não apenas dificuldades, crianças com em crianças com queixa de dificuldade de aprendizagem. Em C. A
problemas de aprendizagem podem ser retiradas de Funayama (Org.), Problemas de aprendizagem: Enfoque multidisciplinar (pp.
categorias diagnósticas estabelecidas por testes 41-59). Ribeirão Preto: Legis Summa.
Linhares, M. B. M. (1998b). Atendimento psicopedagógico de crianças em
psicométricos. Reconhecer a sensibilidade das crianças à serviço especializado de psicologia infantil na área da Saúde: Uma
mediação ou assistência do outro, permite que seu perspectiva desenvolvimentista. Psicopedagogia, 17(46), 30 – 36.
processo de aprendizagem possa ser redefinido sob um Linhares, M. B. M. (1998c). Avaliação assistida de crianças com queixa de
dificuldade de aprendizagem: Indicadores de eficiência e
ponto de vista mais otimista, de acordo com a proposta
transferência de aprendizagem em situação de resolução de
de “experiência de aprendizagem mediada” formulada problemas. Em A. W. Zuardi, E. M. Marturano, M. A. C. Figueiredo &
por Feuerstein e colaboradores (1980). S. R. Loureiro (Orgs.), Estudos em Saúde Mental (pp.121-147). Ribeirão
Preto: Comissão de Pós-graduação em Saúde Mental/FMRP/USP.
Linhares, M. B. M., Parreira, V. L. C., Maturano, A C. & Sant’Anna, S. C.
(1993). Caracterização dos motivos da procura de atendimento infantil
em um serviço de psicopedagogia clínica. Medicina, 26(2), 148-160.
Psicologia: Reflexão e Crítica, 2001, 14(1), pp. 35-43
Indicadores de Potencial de Aprendizagem Obtidos através da Avaliação Assistida 43

Linhares, M. B. M., Santa Maria, M. R., Escolano, A C. M. & Gera, A. A. Santos, M. A (1990). Caracterização da clientela de uma clínica psicológica
(1998). Avaliação cognitiva assistida: Uma abordagem promissora na da prefeitura de São Paulo. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 42, 70-94.
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Santa Maria, M. R. & Linhares, M. B. M. (1999). Avaliação cognitiva assistida Aceito em 23/10/2000
de crianças com indicação de dificuldade de aprendizagem escolar e
deficiência mental. Psicologia: Reflexão e Crítica, 12, 5-27.

Sobre as autoras:
Silvia Helena Tortul Ferriolli – Psicóloga, mestre em Psicologia no Departamento de Psicologia
e Educação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo
e bolsista da CAPES.
Maria Beatriz Martins Linhares - Psicóloga, Especialista em Psicologia Clínica Infantil, Mestre em
Educação Especial, Doutora em Ciências (Psicologia Experimental), Professora Doutora do
Departamento de Neurologia, Psiquiatria e Psicologia Médica da Faculdade de Medicina de Ribeirão
Preto, Universidade de São Paulo, Orientadora nos Cursos de Pós-Graduação em Ciências Médicas
- Saúde Mental (FMRP/USP) e Psicologia (FFCLRP/USP) e Pesquisadora do CNPq.
Sonia Regina Loureiro - Psicóloga e Professora Doutora do Departamento de Neurologia,
Psiquiatria e Psicologia Médica da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São
Paulo, Orientadora nos Cursos de Pós-Graduação em Ciências Médicas - Saúde Mental (FMRP/
USP) e Psicologia (FFCLRP/USP) e Pesquisadora do CNPq, Coordenadora do Serviço de
Psicodiagnóstico (Psiquiatria/HCRP), onde mantém atividades de formação de recursos humanos
e de pesquisa com instrumentos e procedimentos de avaliação.
Edna Maria Marturano - Psicóloga e Professora Titular do Departamento de Neurologia, Psiquiatria
e Psicologia Médica da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo e
Pesquisadora do CNPq.

Psicologia: Reflexão e Crítica, 2001, 14(1), pp. 35-43


DIFICULDADES DE APRENDIZAGEM:
UMA ABORDAGEM COGNITIVA

ALINA GALVÁO SPINILLO *

INTRODUÇAO

o objetivo deste trabalho consiste na apresentação de duas


abordagens para o diagnóstico de problemas de aprendizagem,
procurando contribuir para uma reflexão sobre os modelos e
métodos utilizados pelos profissionais que, dentro de suas
especializações, atuam junto à criança que apresenta tais difi-
culdades. As duas abordagens tratadas - psicométrica e cogni-
tiva -. não esgotam o assunte, mas introduzem uma compa-
ração e discussão sobre o tipo de Informações obtido através
de seus métodos. Sobre este tema tomou-se pOI" base funda-
mental os trabalhos de Carraher e Brito (1979) e Carraher
(1983) que apresentam o contraste entre o método clínico e o
psicométrico quanto ao diagnóstico e estudo da inteligência.
Antes de discutirmos sobre essas duas abordagens, faz-se
necessário um referencial teórico acerca do desenvolvimento
coqnitivo com base na teoria dos estágios de Piaget e ainda
caracterizar o trabalho do psicólogo cognitivo que atua segundo
procedimentos clínicos para a investigação e estudo das bases
do conhecimento humano, e a contribuição de seu trabalho para
o exame e terapêutica das dificuldades de aprendizagem.

1. A TEORIA DE PIAGET

A obra de Jean Piaget exerceu considerável influência em


psicólogos e educadores, apesar de alguns estudiosos afirma-

* Universidade Católica de Pernambuco - Departamento de Psicologia (1985),

Rev. de Psicologia, Fortaleza, 4 (1): jan,/jun., 1986 89


rem que suas teorias são gerais e vagas e que não sã? c1ar~- ,.. Pa~a Piaget, O equilíbrio é um' mecanismo ativo de com-
mente testáveis. A contribuição de Piaget para a psícoloqia pensaçao .entre .0; conhecimento novo e o conhecimento antigo
contemporânea e especialmente à psicologia da criança. é por qu.e permite un:a ada~tação do organismo a novas situações
demais importante, sendo necessário conhecê-.la e atra~es dela Oriundas do meio ambiente. Portanto, o organismo é auto-requ-
desenvolvermos um respeito pela mente incomparável da íador. Quando novas informações são assimiladas às estrutu-
criança ' ... . . " , ras)á existentes, inicia-se o processo de equilibração que resul-
. Urna de suas prlncipals preocupações.Yesídia nas rnudan- t~ra n_umanova estr~tura cognitiva. Mas, na realidade, a equi-
cas qualitativas que ocorrem no desenvolvimento mental de Iibração nunca termina, porque assim que novas informações
um indivíduo desde o nascimento até a maturidade. Podemos são assimiladas, começa de novo o processo, resultando em
identificar três postulados fundamentais em sua teoria: representações progressivamente melhores do mundo .
I .., . A, partir desses mecanismos - adaptação e equilibração
1. O organismo humano, como toda entidade biológica, - e que as estruturas cognitivas mudam, auxiliando-nos a me-
apresenta uma organização interna característica; lhor sobreviver e melhor nos adaptarmos à realidade externa.
2. essa organização interna é responsável pelo modo Esse processo de desenvolvimento é marcado por uma série
único de funcionamento do organismo (inv~rlalnt~~ fun- de estágios cuja ordem de aquisição é invariante, embora a
cionais); , '", idade de início e término de cada um possa variar. Cada está-
3. em resultado da interação entre o organismo e o meio, gio .representa um diferente modo de lidar com os aspectos
através dos invariantes funcionais, o organismo adap- particulares do meio ambiente e, por conseguinte, é de se
ta as suas estruturas cognitivas. esperar que o pensamento de uma criança seja característico
do estágio por ela atingido.
Por invariantes funcionais entendemos o modo único de Piaget distingue quatro estágios que descreveremos a se-
funcionamento do organismo que está sempre presente e não guir:
muda com o passar do tempo, pelo que a criança pequena e o
adulto compartilham do mesmo modo de funcionamento c?~ni- 1. Sensório-motor (O a 2 anos)
tive. Os invariantes funcionais são independentes dos est~glo~
e estão relacionados à aquisição do conhecimento atraves da . Se a criança explica em parte o adulto, podemos dizer
interação do indivíduo com o meio. A própria palavra "inte~a- também que cada período do desenvolvimento anuncia e pre-
cão" chama atenção para o fato de o organismo ter uma relaçao para os períodos seguintes. Isto é particularmente claro no
ativa com o meio, o que resulta no desenvolvimento cognitivo. que,.concerne ao período anterior à linguagem, que é o 'chamado
Uma definicão essencial para a compreensão da teoria do penodo sensório-motor. A, razão para esta denominação é que
desenvolvimento cognitivo é o que significa adaptação. E:tfi durante este período a criança aprende a coordenar seus sen-
invariante funcional subdivide-se em assimilação e acomodaçao. tidos com o comportamento motor, adaptando, por exemplo, o
Assimilação é a incorporação dos dados da experiência dentro reflexo de sugar à procura da chupeta antes de sugar, coord .
das estruturas já construídas pelo organismo. Ao mesmo tem, nando o movimento da mão para a boca ou seguindo visu I
po o organismo "acomoda-se" ao que é "assimilado". Desta mente um objeto que se move no ambiente. O mundo r
forma os novos conhecimentos eos antigos, sofrem esta adap- presentado em termos de ações - chupar, sacudir, olhar, p _
tação 'que resultará em estrutura mental um_ pouqui~ho mai~ gar, deixar ~air =. -=-
e realiza manipulações sobre os ob]
sofisticada que a anterior, antes da adaptaçao. Assim, essas tos. O bebe, devido a falta de função simbólica, ainda n50
estruturas mentais ou cognitivas são variantes, visto que ~o apresenta pensamento no sentido amplo nem afetividad fig dn
longo dos desenvolvimentos dessas ~str~turas ~e tor~a~ mais a representações que permitam evocar pessoas ou ob] to n
çomp'lexas" e responsáveis por orqaruzaçoes mais soflstlcad~s. ausência deles.
Desta forma, a adaptação intelectual consiste em um mecanis- A despeito, porém, dessas lacunas, o des nv Ivlm nlo
mo assimilatório e uma acomodação complementar em progres- mental no decorrer desses dois anos da existênci n rtl lI-
sivo equilíbrio. larmente rápido e de grande importância, pois ri lei rt d

-Rev. de Psicologia, Fortaleza, 4 (I): jan.Zjun., 1986 Rev. de Psicologia, Fortaleza, 4 (I): jan.jjun., 1986
90 91
o precursor de todas as futuras aquisrçoes, onde a criança uma sistematização que ultrapassa o seu automatismo. Ouas
labora o conjunto das subestruturas coqnltlvas que servirão desde o nascimento há, urna "conduta", 'no sentido da reação
de ponto de partida para as, construções intelectuais posterio- total do, Jndivíduo e nãoapenas jogo de autcmatismos partlcu-
res. lares ou interligados apenas por dentro. Em outras palavras,
A maior parte da' pesquisa de Piàqet: sobre este período as manifestações sucessivas de um reflexo, como o da sucção,
proveio de diáriós de cuidadosas observações de seus três constituem um desenvolvimento de natureza tal que cada epi-
filhos - Laurent, Luclennee Jacqueline -'- desde as' primeiras sódio depende dos precedentes e formá os seguintes.
semanas de vida.
O foco inicial -dessas observações foram reflexos, mas só Estágio /I :- (até 5 meses)
alguns foram considerados por Piaget (sucção e preensãoJ, -en- ,': Constitue~-.se osprlmelros 'hâhltos e início das reações
qúanto outros não mereceram maior atenção devido ao fato de cjrcularesrprlmárlas que são tentativas da criánça em .obter
permanecerem' constantes (pupilar) ou desaparecerem do re- coordénação, sensórto-motorapela repetição .de movimentos tais
pertório do indivíduo (Babinsky). corno de mão paraa boca, sequir objetos com os olhos e assim
A este respeito, o problema que surge' é o seguinte: como P,OI" diante. 'Tais reações sãdcirculares porque' são 'repetidas
as reações sensório-motores 'preparam o' indivíduo para adap-
tar-se ao meio externo e para adquirir os comportamentos pos-
qiversas vezes, e.
S~9 prlmárlàs porque envolvem um único ato
~4~ fI~? ,~ iniRi~ç1i;l,p,efé:!'
c~iarlç'â,CQÓ1urna intenção: O' bebê '-sug?
teriores? O problema começa a existir logo que os reflexos são entre' 'as 'refélções.ctnasporque o ato em sl lhe dá prazer, pois
encarados não mais em suas relações com o mecanismo inter- nesse ato de sugar,' o objeto é o próprio sujeito' que busca pra-
no do organismo vivo, mas nas suas relações com o meio ex- zer em sugar parte de seu.corpo (suqar .a mão, por exemplo).' ,
terior. O que de fato ocorre é uma sucessão notavelmente con- '. I "I

tínua de estágios, cada um dos quais assinala um novo progres- Estágio 11I - Iiníclo entre 4 - 5 meses)
so parcial até o momento em que as condutas alcançadas
apresentam características que os psicólogos reconhecem Há coordenação entre a visão e a preensão: o bebê agarra
como sendo as de inteligência, .Asslrn é que dos movimentos e manipula tudo o que vê no seu espaço próximo, mas sem
espontâneos e do reflexo aos hábitos adquiridos e, destes i'I finalidade prévia. Repete uma série de vezes os mesmos ges-
inteligência, há progressão contínua, tos e movimentos, o que ainda é uma reação circular, mas é
O período sensório-motor podese'r subdividido em seis chamada de reação. circular secundária, visto que o objeto ma-
subestáqios que bem demonstram esse desenvolvimento har- nuseado não é mais partes do próprio corpo, mas objetos do
monioso: meio clrcundante. (brinquedo suspenso no berço, por' exem-
plo). Há experimentação e interesse sobre os objetos e' uma
Estágio I _. (recém-nascido) "quase" intencional idade, uma vez que a criança é capaz de
reencontrar os gestos que por acaso exercem uma ação' inte-
Existe, na realidade, uma progressiva capacidade de con- ressante sobre as coisas. Entretanto, as ações ainda não são
trolar e investigar o ambiente, Primeiro as crianças têm ape- típicas de um ato de' inteligência, pois' a criança apenas con-
nas reflexões como sugar e aqarrar. que acabam se adaptando segue reencontrar o que acaba de ser feito e não em inventar
ao ambiente, pois 'os reflexos não podem ser considerados ou aplicar o conhecimento às novas circunstâncias. As ações
puro automatlsmos. circularês tseclmdártas são repetidos esforços para controlar
No 'tocante aos reflexos do recém-nascido, resulta que o-ambiente: e fazer durar os acontecimentos interessantes que
aqueles que apresentam importância especial para o futuro ocorrem.
(sucção e preensão) dão lugar ao exercício reflexo. É através
desse exercício que o recém-nascido mama de maneira mais .Estéçio' IV ~ (início 'entre 8 - 9 .rneses)'
segura e volta a encontrar mais facilmente o bico do seio de-
pois de alguns dias do que por' ocasião das primeiras tenta- .Observarn-se atos' mais completos de inteligência pr ul , I
tlvas. O que impressiona, é que 'tais atividades dão lugar a surgindo' um caráter de intencional idade nos comportam 1110'

92 Rev, de Psicologia, Fortaleza, 4 (1): jan,/jun., 1986 Rev. de Psicologia, Fortaleza, 4 (1): jan.jjun., 1986 n
d criança independentemente dos meios que vai empregar. rias da ação que são os esquemas do objeto permanente, do
Caracteriza-se pelo surgimento da aplicação de' meios conhe- espaço, do tempo e da causalidade. O universo inicial está
cidos às novas situações. Marca o início da permanência das Inteiramente centrado no corpo e na ação própria num egocen-
coisas, início de uma noção de espaço e de causalidade es- trismo tão total quanto inconsciente de si mesmo (por falta de
pacial. consciência do eu). No curso dos dezoito primeiros meses efe-
tua-se, pelo contrário, uma descentração geral de tal natureza
Estágio V - (início entre 11 - 12 meses) que a criança acaba por situar-se como um objeto entre os
outros num universo formado de objetos permanentes, estru-
Surgem as reações circulares terciárias quê apresentam lurado espaço-temporalmente e com estruturação causal.
intencional idade e coordenação entre meios e fins. Há desco-
berta de novos meios para alcançar os objetivos através de
experimentação ativa, o que caracteriza as condutas instru- 2. Pré-operacional (2 - 7 anos)
mentais e o apogeu da inteligência prática. A criança inicia
ativamente uma série de manipulações ststêmlcas (deixar cair. No fim do período sensório-motor surge a função simbô-
objetos de diferentes alturas para verificar o que ocorre) atra- Iica, que é fundamental para a evolução das condutas ulterio-
vés de uma organização dos movimentos que buscam conhecer res, que consiste em poder representar algo (objeto, aconte~i-
e compreender o novo. Com efeito, pela primeira vez, a criança mento etc.l por meio de um slqnificante- diferenciado. A funçao
adapta-se verdadeiramente às situações desconhecldas, não simbólica alarga os horizontes da criança que torna-se capaz
só utilizando .os esquemas anteriores adquiridos, mas procuran- de realizar evocações representativas de um objeto ausente
do e descobrindo também novos meios. ou de um fato passado. Cinco condutas podem ser relacio-
nadas:
Estágio VI - (por volta dós 18 meses)
1. Imitacão diferida - imitar ou reconstruir uma cena
Assinala o fim do período sensório-motor e a transição presenciada. .
com o período sequlnte:: a criança torna-se capaz de encontrar 2. Jogo simbólico - representação de um fato (fingir
meios novos através de combinações mentais que redundam estar dormindo).
numa compreensão súbita. Este nO\7Otipo de conduta caracte- 3. Desenho - imagem gráfica de um objeto ou cena.
riza a inteligência sistêmica e o surgimento da representação 4. Imagem mental - imitação interior de um objeto. As
mental que é fundamental para a aquisição da permanência do imagens mentais são quase exclusivamente estáticas
objeto. não comportando movimentos ou transformações.
5. Linguagem - permite a evocação verbal de aconteci-
1. O universo inicial é um mundo sem objetos, que con- mentos não atuais e de objetos ausentes no campo
siste apenas em "quadros" móveis e inconsistentes que apa- sensorial.
recem e desaparecem; quando desaparecem é como se dei-
xassem de existir. A permanência do objeto permite à criança Neste período, o aspecto perceptual tem grande Influên
descobrir que um objeto continua existindo mesmo quando não cia sobre os julgamentos da criança, que apesar de po ulr
está fisicamente presente, ou seja, às vistas do bebê. A aquisi- 3 função simbólica. tem sua capacidade de representar 11m
ção desta noção é essencial para uma compreensão e organi- tada pelo perceptual e pelo imediato das situações, não r. I
zação estável do mundo que cerca a criança. A permanência zando abstrações.
do objeto (precursora das conservações posteriores) e a re- A crianca lida com imagens concretas, estático ( 11
presentação mental (precursora da função simbólica) são os pensamento 'é limitado pelos seis seguintes probl m
marcos do final deste período.
A inteligência sensório-motora conduz a um resultado im- . ':.......Concretude - só pode lidar com objetos !lei I) «111
portante .. pois organiza o real construindo as grandes catego- estão fisicamente presentes aqui e agora;

94 Rev, de Psicologia, Fortaleza, 4 (1): jan.fjun., 1986 Rev, de Psicologia, Fortaleza, 4 (1): jan.Zjun., 1986 U'.
_. Irreversibilidade -. é incapaz de arranjar mentalmente criança neste período, ainda que de posse das poderosas opera-
objetos ou concebê-Ios em alguma outra disposição; . ções de reversibilidade e descentralizaçãc, é incapaz de apli-
- Egocentrismo - é incapaz de se colocar na perspectiva cá-Ias a situações abstratas. A lógica não se faz presente, mas
de outra pessoa, acreditando que qualquer pessoa vê o mundo a reversibilidade prepara o período subseqüente.
Mravés, dos olhos dela e que aquilo que ela está experimen-
tando e o que qualquer pessoa também está;
- Centralização - dá ao pensamento um caráter unidire- 4. Operações formais _. (11 anos em diante)
cional e a criança não consegue considerar dois aspectos simul-
taneamente de uma mesma situação. Ela pode prestar atenção Surge com este período, uma capacidade progressivamen-
somente a uma característica do objeto de cada vez; te mais refinada de realizar operações mentais não só a respei-
- Estados versus Transformações - focaliza sua atenção to do objetos concretos, mas também com símbolos.
nos estados ou na maneira como as coisas perceptualmente se Como todos os demais estágios, possui uma fase de pre-
apr~sentam, .não conseguindo considerar as operações ou re- paração e de equilíbrio, mas neste período esta distinção é
laçoes que ligam tais estados; mais facilmente observada. A puberdade corresponde à fase
- Raciocínio transdutivo - raciona que se A causa B de preparação e a vida adulta corresponde à fase de equilíbrio.
então, B causa A. . Durante este período desenvolve-se a capacidade de pen-
sar abstratamente, em termos de possibilidades e probabilida-
Este estágio é denominado pré-operacional porque a crian- des e não apenas em função do real. O pensamento é lógico,
ça não_pode ai~da realizar operações mentais em suas repre- hipotético-dedutivo, já havendo a reversibilidade e a combina-
sentaçoes e nao pode mudar sua representação do mundo. tória. Este último aspecto permite ao sujeito, quando diante
Apesar disso, este período prepara o estágio seguinte. de uma situação-problema, considerar as variáveis (aspectos
ou condições relevantes à resolução do problema) simultanea-
mente, manipulando-as e testando-as exaustivamente, combi-
3. Operações Concretas (7· 11 anos) nando-as entre si. É capaz de formular e testar hipóteses, cujos
resultados servirão para orientar e coordenar o pensamento.
o mundo agora começa a ser representado não por um Assim, todas as alternativas possíveis são consideradas e o
conjunto de imagens estáticas perceptuais, mas como objetos raciocínio científico, em sua forma mais sistemática e refina-
concretos sobre os quais se pode atuar mentalmente. Conse- da, começa a emergir. O sujeito trabalha com os resultados
gue considerar simultaneamente dois ou mais aspectos da si- das ações sobre o mundo (operação sobre operação) e não
tuação, focaliza sua atenção nas transformações e começa a mais com o objeto ou com a ação diretamente.
perder seu egocentrismo e seu raciocínio transdutivo. A re- A diferença marcante entre este período e o anterior, en-
versibilidade é uma operação mental recém-adquirida que li- contra-se no fato de que o sujeito operacional concreto consi-
berta o pensamento do perceptual e de sua inconsistência an- dera todos os elementos simultaneamente, mas não os testa
terior. A conservação já se faz presente, bem como a capaci- exaustivamente, não utilizando a combinatória, nem tampouco
dade de classificar e seriar. é capaz de desligar-se do concreto e real, coisa que o faz o
No entanto, mesmo que liberto da imagem perceptual de sujeito operacional formal que abstrai-se do real, indo até o
como as coisas parecem, o pensamento da criança ainda está possível.
ata~o aos objetos concretos com os quais pensa e manipula O período das operações formais é acompanhado de mu-
aqu~ e agora. O r~al e o concreto constituem a base da orqani- danças sócio-emocionais, incluindo incertezas sobre o sentido
zaçao do conhecimento. Não trabalha mentalmente com os da vida. a crise de identidade e o idealismo da adolescência
resultados de sua ação sobre os objetos, mas com ação dire- Neste período surge um egocentrismo, mas que não se con-
tamente vinculada ao presente e ao concreto. funde com o egocentrismo pré-operacional. O egocentrismo d'·
O nome operações concretas origina-se desta capacidade pensamento adolescente caracteriza-se por um idealismo in-
de operar mentalmente dentro de uma situação concreta. A gênuo ou pensamento onipotente, julgando-se capaz de reall-

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96 ticv. de Psicologia, Fortaleza, 4 (I): jan,/jun., 1986
zar mudanças consideráveis sobre o curso dos fatos. Esta qualquer outro psicólogo e como qualquer outro cientista que
ausência de crítica evidencia-se no processo de socialização busca compreender os fenômenos de seu interesse.
do adolescente mais do que no desenvolvimento cognitivo pro- Observar, entretanto, é algo mais difícil do que se pensa.
priamente dito. Entretanto, sabemos que os aspectos cogniti· Em geral, tendemos a ver apenas aquilo em que acreditamos.
vos não se dissociam dos aspectos sociais e afetivos e o idea- Se achamos que uma criança é inteligente e se, num teste, ela
lismo ingênuo do adolescente é um dos exemplos disso. comete erros elementares, achamos que ela não deve ter pres-
tado atenção, que estava desmotivada, que não entendeu o que
lhe era solicitado etc. Quando descrevemos um acontecimento,
2. O TRABALHO DO PSICÓLOGO COGNITIVO o descrevemos em função de nossa perspectiva. Aprender a
observar em Psicologia constitui um esforço considerável para
A Psicologia é uma ciência que está presente em diver- um grande número de pessoas, porque é necessário que ten-
sas áreas: social, afetivo-emocional, patológica, educacional. temos abandonar nossa perspectiva particular e busquemos
nas relações de trabalho e na cognitiva. encontrar o significado do que o sujeito faz e diz. Mas buscar
A maioria das pessoas, principalmente aquelas que não o significado de sua fala não é procurar no dicionário ou enten-
estão diretamente ligadas a Psicologia, acreditam que os psi- der frases isoladas, o que interessa é descobrir sua perspec-
cólogos trabalham apenas como terapeutas, resolvendo os pro- tiva de mundo, seu modo de operar sobre o mundo, os signifi-
blemas pessoais de indivíduos. Como sabemos, entretanto, há cados que ele atribui às pessoas e às coisas. Estas não são
muitos outros tipos de psicólogos e o psicólogo cognitivo pa- observações diretas que fazemos de um sujeito, mas obser-
rece ser aquele que atua numa área pouco divulgada ou "ofi- vações refletidas sobre o sujeito. ~ necessário estabelecer uma
cialmente" pouco reconhecida. relação íntima entre observar, refletir e compreender.
Além da observação, outro aspecto essencial no trabalho
O psicólogo cognitivo estuda as bases do conhecimento
do psicólogo cognitivo é o registro. Este é fundamental na in-
humano. Ele está preocupado com assuntos como: aprendiza-
terpretação do significado das ações do sujeito para que haja
gem, linguagem, raciocínio, memória, percepção, pensamento,
fidedignidade na observação. Em vista disso, o uso do gravador
inteligência etc.
deixa de ser um recurso sofisticado para ser encarado como
A Psicologia Cognitiva refere-se ao desenvolvimento e um recurso necessário. Anotar e registrar o que o sujeito diz e
aquisição do conhecimento, envolvendo o estudo e a pesquisa faz - e não o que achamos que ele disse e fez quando a en-
sobre muitos assuntos relevantes para a educação, embora o trevista já acabou, algumas horas após o exame - é um tra-
seu papel não se confunda com o do psicólogo educacional. balho de valor insubstituível.
Como o homem aprende? Como funciona a memória? O O trabalho do psicólogo cognitivo se assemelha em muito
conhecimento da escola é diferente do conhecimento na vida ao trabalho do cientista no que se refere a investigação dos
diária? Ouantos tipos de aprendizes existem? A criança de 5 aspectos do conhecimento. A partir da observação, reflexão e
anos aprende da mesma forma que uma criança de 10 anos? O compreensão dos fenômenos que se propõe a estudar, o psi-
que diferencia o pensamento de uma criança de 5 anos daquele cólogo cognitivo levanta hipóteses, registra, transcrevendo de-
apresentado por uma de 10? A inteligência pode ser medida? talhadamente suas observações e utiliza um método de inves-
Como se desenvolve a linguagem? O que a linguagem tem a tigação - o método clínico.
ver com o pensamento? Como se; desenvolvem certas noções Em sua atuação prática ele está interessado em realizar
matemáticas? Como a criança adquire conceitos? etc. Estas exames e não testes. Isso não significa que não seja necessá-
são apenas algumas das questões sobre as quais o psicólogo rio avaliar os comportamentos e ações de indivíduos, mas que
cognitivo reflete. Seu interesse recai sobre a natureza do co- esta avaliação difere, por exemplo, da avaliação que se faz na
n.hecimento, sobre as estruturas e processos pelos quais ele psicometría.
é adquirido e como se desenvolve. Entretanto, não estuda as Para a observação dos processos do conhecimento a Psico-
bases do conhecimento partindo de especulações, mas atra- logia Cognitiva se utiliza do método clínico de investigação. O
vés do estudo empírico, da observação e da reflexão, como método clínico foi o método de estudo que Piaget utilizou para

98 ttev. de Psicologia, Fortaleza, 4 (1): jan,/jun., 1986 Rev. de Psicologia, Fortaleza, 4 (1): jan,/jun., 1986 99
observar cuidadosamente como as crianças se comportam em constitua um impecilho à compreensão das situações-proble-
várias situações de "mundo real" e, baseado nessas observa- mas. Podem ser utilizadas formas alternativas de apresentação
ções, desenvolveu suas teorias sobre o desenvolvimento cogni- do problema, quando for necessário reformular perguntas ou
tívo. Manteve detalhados diários sobre os primeiros meses de instruções durante o exame. Estes cuidados não implicam na
vida de seus três filhos, diários esses que serviram de base criação ou seleção de formas verbais a serem rigidamente se-
para a construção de algumas de suas principais obras. guidas. O importante é que o examinador saiba que tipos de
O método clínico-piagetiano constitui uma técnica com- pergunta deve usar para garantir ao mesmo tempo a compre-
plexa que não é facilmente apreendida e cujo uso deve re- ensão por parte do examinando sem, entretanto, dirigi-Io para
pousar sobre uma base teórica bem estabelecida e uma grande uma dada resposta. Para tomarmos um exemplo de Piaget quan-
prática. A transcrição de observações detalhadas auxilia em to a este problema. sabemos que a criança pequena tende ~
muito a leitura dos protocolos e a compreensão do comporta- atribuir sempre ao homem a origem das coisas. Não podemos,
mento dos examinados. entretanto, perguntar a criança "quem fez o sol?", por ser esta
Apesar de não haver uma "receita" para a aplicação do uma pergunta diretiva, que implica uma resposta artificial
método clínico e deste não poder ser transformado em uma "quem ... ? exige alguém" como resposta. Por outro lado, não
série de regras que, seguidas, assegurariam o seu bom uso, é podemos perguntar "qual a origem do sol?" ou "como se ori-
possível enfatizar alguns pontos importantes quanto a sua ginou o sol?" por serem perguntas complexas demais. Uma
aplicação que podem ser aqui apresentados: forma verbal mais semples e mais neutra seria: "como come-
çou o sol?"

A) O que fazer antes do exame


B) O que fazer durante o exame.
Apesar da flexibilidade do método clínico, qualquer exame
de investigação não é feito de modo totalmente livre, sendo A compreensão de cada situação deve ser verificada à
essencial o conhecimento do examinador tanto da solução do medida em que o exame prossegue, assim como o significado
problema específico e da evolução do conceito proposto pelo das respostas do sujeito, não sendo possível esquematizar de
exame, como o conhecimento das características dos estágios antemão procedimentos para tais fins. É necessário que o exa-
do desenvolvimento. minando compreenda o que está realmente sendo solicitado
A escolha prévia das situações a serem apresentadas ao dele, para que possamos atribuir suas dificuldades ao seu
examinando possibilita ao examinador a formulação de obje- modo de raciocínio e de perceber a situação-problema e não
tivos claros para o seu trabalho. orientando-o para que não se atribuí-Ias ao fato de uma não compreensão de instrução ou da
perca durante o exame e saiba utilizar tempo com questões forma verbal usada.
relevantes. Quando melhor o examinador conhecer a estrutu- É freqüente a confrontação do examinando com problema
ração do raciocínio nos diversos estágios de desenvolvimento concretos, que ele deve resolver ou explicar após uma demon -
do conceito que está a investigar, melhor orientará suas per- tração. Alguns exames incluem uma predição ("o que VOCl
guntas de modo a esclarecer o significado das respostas do acha que vai acontecer se ... ?"), uma verificação ("exp rim n
examinando. te para ver o que acontece") e a explicação do qu oe rr 11
A escolha prévia das situações-problema permite ao exa- ("'por que ... ?").
minado esquematizar a técnica que pretende usar, o que faci- O examinador precisa sempre acompanhar o rectociuk: cio
lita sua atuação durante o exame. O roteiro para a aplicação das examinando durante o exame, estando atento ao qu c II (11/ /
situações-tarefa. entretanto. não deve ser considerado como faz, sem corrigir automaticamente as suas respo I I • . I 11I
uma série de regras ou passos a serem cegamente obedecidos. completar o que ele diz.
servindo apenas como um modo de orientação. É necessário lembrar que o interesse princlp 11 do I tlldo
A linguagem a ser usada durante o exame deve ser previa- do conhecimento baseado na teoria de Plaget r d, 1111 pro
mente escolhida. sendo importante que seja simples e que não cesso pelo qual o sujeito chega a sua respo ta. O produto íln I

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(resposta dada pelo sujeito frente à situação-problema) é tão que possíveis significados tal resposta poderia ter e testar,
Importante quanto os processos (caminhos do raciocínio) que ao longo do exame, essas hipóteses. Não cabe ao examinador
o levarem a dar determinada resposta. Assim, é parte essen- escolher qual dos possíveis significados foi o significado real-
cial do exame clínico-piagetiano a obtenção de justificativas mente pretendido pelo sujeito. O examinador precisa apresen-
~~ra as =r=, dadas. As justificativas ou razões que o su- tar novas questões a fim de descobrir qual o significado ado-
tado por ele, eliminando, assim, as ambigüidades. Devemos
Jelt~..apresenta sao O?tidas através de perguntas como: "por
lembrar que o sujeito não se expressa com precisão científica
~ue: '"com~. descobrlu~ que era assim? "como sabe que é
assim? ou o que voce pensou quando disse ou fez assim?" e nem usa todas as palavras exatamente como nós as usamos.
etc. As justificativas auxiliam-nos na compreensão do modo Sempre que nos deparamos com uma resposta vaga ou obscura
pelo qual o sujeito chega às suas respostas e das relações que precisamos encontrar meios para esclarecer seu significado
ele vê entre as partes do problema. Em certos casos elas tam- (o que o sujeito realmente quis dizer com isso).
bém podem permitir que discriminemos respostas dadas com Finalmente, salientemos ainda que o examinador deve pro-
convicção de respostas dadas ao acaso. Respostas corretas se- curar, durante o próprio exame, lembrar-se dos níveis de desen-
volvimento relacionados ao estudo da tarefa em questão e eli-
guidas de justificativa coerente não podem ser atribuídas ao
minar hipóteses alternativas quanto ao nível em que o exami-
acaso. Quando a resposta é correta, mas a justificativa não é
coerente ou é incorreta, então poderemos atribuir o acerto ao nando se encontra. É importante sugerir ao sujeito uma res-
posta característica de um nível diferente daquele que no mo-
caso. A exigência de justificativas para as respostas leva o
mento, julgamos ser o que melhor caracteriza o raciocínio do
sujeito a refletir de fato sobre a questão, podendo demonstrar
sujeito, a fim de observarmos sua reação a esta sugestão.
melhor seu nível de compreensão do problema. Há casos em
Este recurso utilizado pelo examinador é denominado de
que observamos uma melhoria de suas respostas finais com
contra-sugestão e é de grande utilidade no esclarecimento das
relação às primeiras rospostas dadas, o que demonstra uma
justificativas que o sujeito apresenta para suas respostas, da
é1.ti.tud~refl~xiva adotada durante o exame. Só através das jus-
sua participação ou não em um sistema dedutivo e do grau de
tificativas e que pod mos, de fato, interpretar o raciocínio do
examinando. certeza de suas respostas.
Um outro ponto a mencionar é a importância de verificar-
mo~ a certeza ou s gurança com que o sujeito responde. Piaget
C) Como avaliar
salienta que uma re posta que está inserida em um sistema
dedutivo pode ser dada com certeza, enquanto que uma res-
posta dada na ausêncla d tal sistema é freqüentemente mu- Ao contrário do sistema de avaliação de respostas numa
dada diante das circunstâncias criadas pelo examinador (su- abordagem psicométrica, na avaliação das respostas no mé-
gestão de uma respo ta diferente daquela dada pelo sujeito, todo clínico-piagetiano não se faz uma contagem de acertos e
apresentação de contradições no raciocínio do sujeito etc.). A erros. A finalidade desta análise qualitativa é encontrar uma
oscilação das respostas e a insegurança ou inconsistência nas explicação que engloba todas as respostas dadas pelo sujeito,
justificativas são indicadores do tipo de pensamento que o su- certas ou erradas, em uma categoria ou nível. Esta explicação
jeito apresenta naquele momento do seu desenvolvimento. Há só se torna possível se formos capazes de descobrir a pers-
exames, como o de conservação e do realismo nominal, em pectiva a partir da qual o sujeito responde. Devemos, ao final
que tal oscilação indica um estágio intermediário na aquisição da avaliação, ser capazes de dizer "para que este sujeito res-
desses conceitos, tornando-se relevante a verificação da cer- pondesse desta forma ele só poderia estar pensando assim".
teza por parte do examinando. . Com o objetivo de descobrirmos a perspectiva do sujeito.
Outro a.~pecto é a importância de não deixarmos ambigüi- alguns dados devem ser considerados cuidadosamente. Como
dade.s. Frequentem.ente, o sujeito responde de modo que pode primeira análise podemos partir da questão da existência ou
ser Interpretado diferentemente do significado que realmente não de coerência entre as respostas dadas. Respostas incoe-
queria dar às suas respostas. O examinador precisa levantar rentes não devem surgir em sujeitos cujo raciocínio forma um

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slsterna dedutivo, embora, ao longo do exame, o sujeito possa de um dado fenômeno e a clareza de seus objetivos, o que não
mudar de critério quando verifica que o critério inicial não era é dirigido, entretanto, é a maneira como o sujeito tende a resol-
apropriado para a solução da situação-problema. Neste mo- ver o problema proposto. Concilia-se assim, a diretividade e a
mento é preciso diferenciar sujeitos oscilantes ou intermediá- espontaneidade, aspectos estes que bem caracterizam sua re-
rios de sujeitos que no decorrer da tarefa refletem sobre I) lacão com o examinando na situação de investigação.
próprio raciocínio e mudam de critério, apresentando no final . Como o interesse do psicólogo cognitivo recai sobre as-
da tarefa respostas mais elaboradas. suntos relacionados ao conhecimento e, portanto, à inteligência,
Além dessa consistência inicial das respostas entre si, torna-se evidente, como foi dito anteriormente, que seu traba-
deveremos também considerar a reação do sujeito diante de lho é relevante para a educação. A educação, por sua vez, está
contradições que lhe sejam apontadas: o sujeito percebe a con- interessada na aprendizagem e no conhecimento; e as dificul-
tradição e tenta eliminá-Ia ou ele nem a percebe? No caso do dades que a criança apresenta ao longo de sua exposição à
sujeito que percebe as contradições apontadas pelo examina- aprendizagem formal assumida pela escola podem ser conside-
dor, devemos estar atentos para o modo como busca resolver radas dentro de uma abordagem cognitiva. Podemos desta for-
as contradições. Um sujeito que não percebe a contradição ma, estabelecer uma interseção entre as dificuldades de apren-
entre suas respostas demonstra também ser incapaz de com- dizagem e o trabalho do psicólogo cognitivo.
preender relações de implicação ("aceitar isto implica em acei- Isso não significa, entretanto, que o psicólogo cognitivo
tar aquilo"). Um sujeito que percebe contradições, ainda que única e especificamente trabalhe com este tópico mas que a
não consiga resolvê-Ias, demonstra ter um raciocínio organi- abordagem cognitiva pode contribuir para um novo enfoque na
zado em sistema dedutivos, mesmo que estes não sejam com- investigação das dificuldades de aprendizagem e no diagnós-
plexos o suficiente para resolver todos os problemas que en- tico da inteligência, temas, por sua natureza, bastante relacío-
contrar na tarefa proposta. nados.
A sessão seguinte tratará dos modelos e métodos adota-
A análise dos resultados deve ser feita com base na rela-
dos para o diagnóstico da inteligência, apresentando-se o, con-
ção entre os elementos essenciais na resolução do problema
traste entre o método psicométrico tradicional e o metodo
e o raciocínio que o sujeito utiliza para resolvê-Ios. O exami- clínico-piagentiano quanto o estudo da inteligência (ver Car-
nador, portanto, precisa necessariamente conhecer o exame que
raher e Brito ~ 1979 e Carraher, 1983).
está aplicando, não apenas o modo como aplicá-Io, e descobrir
a relação dos elementos relevantes do fenômeno que está in-
vestigando com o raciocínio que o sujeito utiliza para resol- 3. MODELOS E MÉTODOS DE DIAGNÓSTICO DA
vê-Io. O estabelecimento de tal relação é essencial para ana- INTELlGí:NCIA
lsar e avaliar as respostas do sujeito.
Dentro desta perspectiva, o psicólogo cognitivo, no seu Carraher e Brito (1979) desenvolveram uma interessante
papel de examinador. considera os "erros" dos sujeitos como análise sobre este tópico, que será resumidamente apresen-
coisas preciosas que revelam, tanto quanto os acertos, algo tada.
sobre como o sujeito pensa. Por isso os acertos e "erros" de- Enquanto os diagnósticos infantis de dificuldades de
vem ser analisados qualitativamente, bem como os processos aprendizagem permaneceram obscuros, os clínicos deverão
(maneira de resolver e pensar sobre as situações-problema) esforçar-se para, em primeiro lugar, diagnosticar a causa de
Que o levaram a dar determinada resposta. A análise e reflexão seus próprios problemas ao realizar estudos de casos. Sug~e-
Acerca dos processos são tão fundamentais quanto os resul- re-se que a inutilidade dos diagnósticos infantis na orientaçao
tados (produto final) para a compreensão do pensamento do específica da terapêutica no campo das dificuldades de apren
sujeito. dizagem advém do uso tanto de conceitos de inteligência qu
Em função do exposto, observamos que a atuação do psi- pouco contribuem para a compreensão dos processos m n I
cólogo cognitivo é altamente dirigida, entendendo-se por "di- como de métodos que, por suas características, não NO pro
rigida" a proposta de situações-problema para a investigação priadas ao estudo do indivíduo, como requer a sltuaçã cl nlc I

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Na abordagem palccmétriea, um teste de inteligência cons- psicomotores etc.I, devemos lembrar que a natureza da infor-
titui um exame de sujeitos de uma situação padronizada, exame mação oferecida por todos esses testes é a mesma - estare-
que' é quase sempre aplicado quando a criança apresenta 'difi- mos sempre tentando formar uma imagem da criança a partir
culdades de aprendizagem. A mensuração da inteligência atra- de sua situação com relação ao grupo. Existem psicólogos, en-
vés de testes está baseada na concepção de que esta é uma tretanto; que, insatisfeitos com aquilo que os testes oferecem,
faculdade mental. É comum a proposição de que a inteligência começam a refletir e a acreditar que deve, existir uma outra
demonstrada pelos indivíduos representa o resultado tanto forma, melhor do que esta, para o estudo da inteligência e das
dos fatores genéticos deterrnlnantes de seu potencial intelec- dificuldades de aprendizagem.
tual como do ambiente em que vivem e se desenvolvem.
Tais afirmações estão tão' próximas do senso comum, tão Em contraste com esse modelo da inteligência como fa-
enraizadas na nossa cultura ("João é bem dotado", "Francisco culdade mental, a psicologia cognitiva contemporânea propõe
não dá para a matemática" etc.), são tão reforçadas pela cons- urna abordagem para o estudo da inteligência concebida em
tatàção diária das diferenças individuais e pela abordagem termos da operação de processos mentais. Ouando uma crian-
psicométrica que dificilmente ocorre ao psicólogo' a necessi- ça se envolve na resolução de determinada tarefa, ela precisa
dade de refletir sobre outro modo de se encarar a inteligência. saber buscar as informações necessárias à realização da ta-
Os testes de inteligência pressupõem que a inteligência é refa e saber processá-Ias de "modo apropriado". Esse modo
uma faculdade mental mensurável. sendo necessário obter um apropriado refere-se às mais diversas formas de funcionamen-
escore para o indivíduo e, por meio de uma tabela, verificar se to. Assim, um modelo de inteligência como operação de pro-
esse escore é alto ou baixo em relação a outros indivíduos da cessos mentais sugere que, para se compreender o sucesso
mesma população. Esta é, objetivamente, a única conclusão ou ou fracasso de um sujeito numa tarefa, é essencial conhecer-
informação que os testes de inteligência são capazes de for- mos o modo pelo qual o sujeito busca e processa informações
necer. A informação obtida pelo clínico quando aplica um teste ao realizar a tarefa. Conhecer como o sujeito resolve as situa-
de lnteligência é uma informação sobre diferenças individuais, ções, e não apenas computar os seus acertos e erros. O psi-
sobre posição de seu cliente com relação à população. Porém, cólogo cognitivo em seu trabalho com a criança está interes-
as perguntas que o clínico se propõe a responder continuam sado nos processos mais do que nos resultados, visto que
sem respostas: O que sabe ele sobre o modo de raciocínio de diferenças no nível de desenvolvimento cognitivo estão asso-
seu cliente? E sobre as razões de dificuldades específicas na ciados a diferentes e típicos modos de buscar e processar in-
aprendizagem de determinadas noções e conceitos? Como formações.
desenvolver um trabalho para a superação dessas dificuldades? , No caso das dificuldades da aprendizagem, o conhecimen-
Em geral, nos casos de dificuldades de aprendizagem, to das diferencas decorrentes do desenvolvimento é certamen-
quando a criança não tem comprometimentos graves, claros, te de grande útilidade. Para citar apenas o exemplo mais co-
quase óbvios, os estudos de caso tipicamente realizados pouco nhecido, sabemos que as noções de conservação, seriação e
definem sobre as razões do insucesso da criança na escola. Ao inclusão de classes são essenciais à compreensão de sistema
completá-los, o psicólogo, pouco havendo esclarecido através numéricos. Embora a criança possa aprender a contar, su
de seus exames, termina por usar seu bom senso, considerando aprendizagem dos mais elementares aspectos da matemáticn
as conseqüências do encaminhamento ou não a uma escola es- não progride na ausência desses conceitos.
pecializada e lembrando que uma' ludoterapia e exercícios de .!
línquaqern ou psicomotores só poderão beneficiar a criança. A utilização clínica dessa concepção de intellqêncln 111
É fácil reconhecermos que as informações necessárias plica, portanto, não na utilização de testes de inteligên 10, 111 ,
para uma compreensão profunda das dificuldades de aprendi- no exame de processos mentais necessários à ex eu lCl cI,
zagem apresentadas por uma criança não são oferecidas por .tarefa em questão, do modus operandi da criança <1I11I1HII1 '"
testes que, apenas estudam diferenças individuais. Ainda que volvida 'em tarefas que exigem dela os mesmo. pWf.l 11

se considere não' apenas o 01, como também os resultados es· envolvidos na área em que, ela' apresenta difi 1I1e1 111, I I
coiares e a oerforrnance em testes específicos (pedagógicos, exames ,buscam compreender as dificuldades [lI t: li, I 111

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a criança apresenta no seu processo de aprendizagem. Atrasos pende do processo que se quer estudar e das próprias respos-
n~ desenv.olvimento ou falhas em alguns dos processos men- tas do sujeito (suas justificativas).
tais da criança podem resultar em dificuldades na realização
de tarefas tanto na escola como em situações da vida diária. Nessa concepção de diagnóstico da inteligência, a situa-
Cabe ao_psicólogo cognitivo, dentro dessa concepção, avaliar ção apresentada à criança varia em função das dificuldades
a exten.sao do comprometimento que a criança apresenta e bus- específicas que ela apresenta. Por exemplo, uma criança de 8
car meros de desenvolver a função comprometida. anos com dificuldades na área de leitura, será tratada diferen-
A abordagem psicométrica está interessada apenas nos temente de uma outra criança também de oito anos, porém, com
resultados (acertos e erros) e assim, uma das questões que dificuldades na área de matemática: no 1.° caso o exame estará
perman~cem obscuras é a razão pela qual o sujeito acerta voltado especialmente para a investigação de aspectos rela-
alguns Itens e erra outros itens do mesmo teste. A atribuição cionados à leitura e escrita, compreensão de narrativas etc.;
do acerto ou do erro à dificuldade do item pouco esclarece no segundo caso serão investigados o raciocínio lógico e os
sobre. a questã? de como se poderia examinar os processos processos relacionados às operações matemáticas. Na pslco-
mentais envolvidos na resolução do item. Enquanto tais con- metria, não se considera a área de dificuldades que a criança
siderações não são feitas dentro da abordagem tradicional apresenta; o psicólogo em função da idade aplica o mesmo
psico~~trica, elas se tornam essenciais quando o diagnóstico teste às crianças com problemas diferentes, tratando-as igual
se apoia numa abordagem cognitiva. Na abordagem pslcorné- no tocante à forma de investigação.
trica perdem-se informações sobre as possíveis causas do erro Na abordagem cognitiva a padronização restrita dos exa-
quando o que é considerado ao final do exame é o escore do mes é desnecessária, pois, durante a aplicação dos exames I)
sujeito e a sua posição em relação ao grupo, e não os processos psicólogo procura acompanhar o raciocínio da criança em sua
~entais necessários à execução da tarefa. Um exemplo disso realização da tarefa. O examinador assume papel extremamen-
e o caso em que a criança dá a resposta certa a uma questão, te ativo (em contraste com o examinador na abordagem pslco-
mas utiliza um raciocínio inadequado. Na psicometria tal ques- métrica), apresentando perguntas, levantando hipóteses sobre
tão seria considerada correta independente do raciocínio que o raciocínio da criança, criando novos problemas para melhor
a criança utilizasse para resolvê-Ia e seria "tão correta" quan- investigar as bases e a forma de raciocínio do estudo, discor-
to a resposta de outra criança ao mesmo item que acertava dando do que ele diz e argumenta no sentido oposto, para cons-
tanto a resposta quanto o raciocínio para resolvê-Io. Na abor- tatar a certeza que o sujeito tem quanto às suas respostas e
dagem cognitiva considera-se o tipo de acerto e o tipo de erro justificativas. É evidente que tais confrontos, ainda que utili-
que a criança apresenta de forma qualitativa e os dois casos zados habitualmente, não podem ser totalmente padronizados,
exemplificados seriam considerados como indicadores de ní- pois o conteúdo do que o examinador deverá dizer depende
veis diferentes quanto aos processos mentais utilizados por essencialmente da resposta da criança.
cada uma das crianças. Em contraste com o exame psicomé-
trico, vemos que o diagnóstico da inteligência através do estu- No tocante à avaliação, podemos constatar diferenças mar-
do de processos cognitivos não se fundamenta na padronização cantes quanto à abordagem cognitiva e a psicométrica no diag-
das situações apresentadas ao sujeito ou na padronização da nóstico de dificuldades de aprendizagem. Quando o diagnóstico
correção e interpretação dos resultados do teste com referên- se baseia no estudo dos processos cognitivos, a avaliação das
cia a uma posição no grupo. Ainda que o psicólogo interessado respostas não constitui uma simples contagem de acertos e
no estudo de processos mentais possa incluir em seus traba- erros nos diversos itens. O examinador procura compreender a
lhos uma avaliação do desenvolvimento cognitivo como uma maneira de operar do sujeito de forma que a partir dos acertos
espécie de "exame de rotina", essa avaliação do desenvolvi- e erros possa inferir qual a perspectiva da criança. A informa-
~e~to c~gnitivo não será padronizada nem no que diz respeito ção que se deseja obter ao final do exame é a descrição dessa
a ~Itu~ça? apresen,tada a? s~jeito nem no que se refere à pró- perspectiva, desse modus operandi, e não um escore relacio-
pria técnica. O metodo e clínlco em contraste com o método nado ao número total de acertos (sob forma de percentagens,
psicométrico e a escolha dos exames e os procedimentos de- médias, medianas ou medidas de dispersão).
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o estudo cuidadoso dos processos utilizados pelo sujeito que estimulam níveis mais avançados de seu raciocínio. Podem
ao desempenhar a tarefa em que ele apresenta dificuldades re- ser realizadas retestagens cujos resultados são comparáveis e
p~esenta o prim.eiro. passo do próprio diagnóstico, gerando hl- novas hipóteses são lançadas, bem como surgem novos ca-
póteses _a resp~lto da problemática do sujeito, hipóteses essas minhos terapêuticos a seguir, com o objetivo de estimular o
que ~?rao avalla?as mediante outros exames dos processos desenvolvimento do raciocínio da criança e, em especial, pro-
coqnítlvos da criança. Ouando os exames realizados para o mover a superação das dificuldades de aprendizagem cons-
estudo dos processos cognitivos envolvidos permitem escla-
tatadas.
rec~r al~o ~obre as dificuldades que a criança apresenta, então
0. diagnostico dessas dificuldades torna-se não apenas mais
simples, torna-se possível. COMENT ARIOS FINAIS
Ao final do diagnóstico, podemos constatar que o psicó-
Os modelos e métodos nas abordagens psicométríca e
logo qu~ trabalh~ numa abordagem cognitiva possui em mãos
cognitiva quanto ao diagnóstico de inteligência são perspec-
u~ ~onJunto de informações bastante diferente daquele que o
tivas diferentes em relação ao estudo de um mesmo problema.
pSlc~logo, q~e adota o método psicornétrlco possui no tocante
O que precisamos questionar não é validade ou não validade
ao. dlag!,o~tlco de problemas de aprendizagem. A· abordagem
desta ou daquela abordagem, mas refletir sobre o tipo de infor-
pstcornetrlca permite ao clínico definir o cliente com relação
mação obtido através de seus métodos e sobre o tipo de con-
a _u~a população específica, obter um 01 quanto a sua inteli-
tribuições quanto às linhas terapêuticas a serem adotadas fren-
qencra sem, no entanto, esclarecer qual o nível requerido para
te às dificuldades apresentadas pelo cliente, a partir de cada
res~lver as ~arefa~ nas quais o cliente apresenta dificuldades.
uma dessas abordagens. Ao discutirmos a utilidade clínica
As mformaçoes nao especificam a área da dificuldade e nem
dessas duas abordagens no diagnóstico de problemas de
como ~ porque elas existem. Na abordagem cognitiva, entre-
aprendizagem, procuramos salientar que na psicometria perde-
tanto: e p.o~sível definir que processos cognitivos estão liga-
mos informações importantes quanto à compreensão do funcio-
dos as dificuldades de aprendizagem, caracterizar níveis de
namento intelectual do sujeito e que' ao lidarmos com os pro-
desenv?lyimento na forma de resolução da tarefa, tendo-se,
blemas de aprendizagem acreditamos ser mais útil a análise
sem du.vlda, um co~junto de informações de como e porque
dos processos cognitivos do que de escores. Na psicometria,
elas e~~stem. A maior diferença entre as duas abordagens, e
os testes nos revelam apenas o 01 do sujeito, o que vem a ser
consequentemente, a maior contribuição é a possibilidade de
uma informação vaga que em nada esclarece ou contribui para
na, ~e~ordem cognitiva, obter-se indicadores dos caminhos te~
é1 solução das dificuldades de aprendizagem. Através do mé-
rapêutícos e a seguir de acordo com a função lesada ou em
todo clínico o psicólogo pode obter informações específicas
atraso.
valiosas sobre o raciocínio do cliente, pertinentes aos proble-
De posse do diagnóstico e, a partir dele, estabelecidos mas que comprometem sua aprendizagem. As diferenças apre-
~a.m.inhos terapêuticos a seguir, o psicólogo cognitivo poderá sentadas entre essas duas abordagens evidenciam maneiras
mlcl~r um trabalho ~e terapia de problemas cognitivos que diferentes de conceber e estudar a inteligência, o que torna-se
bas.ela-se n~ co.nstruçao de atividades e situações que dão opor- o ponto básico e a origem das diferenças metodológicas apon-
tunidades a criança para que seu raciocínio lógico seja esti- tadas.
mula~o a _se desenvolver. Nessa terapia a criança é colocada Resumindo, podemos dizer que as medidas tradicionais
e~ slt.uaçoes nas quais é solicitada a manipular e explorar uma de habilidades mentais pressupõem que todos os indivíduos
diversidade de materiais concretos, observar acontecimentos são dotados com diferentes formas ou quantidades dessas ha-
formular .hipóteses, comprová-Ias, ser colocada em situaçõe~ bilidades e são tais diferenças que se quer colocar em relevo.
que permitam constatar as incoerências e contradições de seus O interesse pelas diferenças inidividuais em função da con-
argumentos na tentativa de explicar determinado fenômeno cepção de habilidades mentais como "dons" que os indivíduos
fazer estimativas e predições, extrair conclusões etc. A cad~ possuem em maior ou menor grau resulta na elaboração de
etapa superada são propostas novas situações e experiências vários testes com conteúdos diferentes que buscam evidenciar

Rev. de Psicologia, Fortaleza, 4 (1): jan.jjun., 1986 Rev, de Psicologia, Fortaleza, 4 (1): jan.jjun., 1986 111
110
MAYER. R. Cognição e Aprendizagem Humana. São Paulo, Ed. Cultrix, 1 81.
diferentes tipos de habilidades ou mesmo um fator geral de
PIAGET. J. & INHELDER, B. A Psicologia da Criança. Rio de Janeiro.
Inteligência. Sejam considerados o fator geral de inteligência
Zahar Editores, 1982.
ou as habilidades específicas, o que existe é um esforço em
----o Psicologia da Inteligência. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1983.
avaliar quantitativamente a inteligência, decorrendo daí o uso
~ . A Formação do Slmbolo na Criança. Rio de Janeiro, Zahar Edi-
de uma metodologia onde os resultados dos itens são soma-
tores, 1978.
dos, dando-se escore final. O escore é tomado como medida
----o A Construção do Real na Criança, Rio de Janeiro, Zahar Edi-
de valor de uma habilidade, faculdade ou aptidão, havendo ên-
tores, 1979.
fase nas correlações entre teste e reteste, indicando a expec-
rURNER, J. Desenvolvimento Cognitivo. Rio de Janeiro, Zahar Editores,
tativa de que tais diferenças permaneçam estáveis através do
tempo (Carraher, 1983). 1976.
A teoria piagetiana, por sua vez, procura estudar aspectos
universais e não características individuais. As respostas cor-
retas não são somadas, visto não existir uma noção de corres-
pondência entre escores e quantidade de inteligência. Todas
as respostas, corretas e incorretas, são interpretadas com a
finalidade de se compreender o processo que as gerou. As
diferenças não são consideradas como indicadoras da quanti-
dade de inteligência mas como indicadores do estágio no desen-
volvimento intelectual em que o examinando se encontra. Se
o mesmo indivíduo for reavaliado algum tempo depois, não
se espera que ele tenha resultados semelhantes aos da pri-
meira avaliação, pois, ele poderá ter passado para outro estágio
no desenvolvimento. Entretanto, a psicologia piagetiana não
nega a existência de diferenças individuais, mas as concebe
diferentemente da psicometria. As diferenças individuais sur-
gem como conseqüência das adaptações específicas que cada
um realiza durante sua história.
Existem. portanto, formas diferentes de se conceber e tra-
tar a inteligência: cabe-nos definir claramente nossas concep-
ções e orientar nossa atuação coerentemente com essas con-
cepções e com nossos objetivos.

REFER!;NCIAS BIBlIOGRAFICAS

CARRAHER, T. N. & BRITO, L. F. Modelos e Métodos do Diagnóstico da


Inteligência, in: Carraher, T. N. Psicologia Clínica e Psicoterapia, Belo
Horizonte, Interlívros, J (2): 13-26, 1979.
CARRAHER, T. N. O Método Clínico: usando os exames de Piaget. Petró-
polis. Ed. Vozes, 1983.
CARRAHER, D. W. Educação Tradicional e Educação Moderna, in: CAR-
RAHER, T. N. (org.). Aprender Pensando, Recife, Secretaria de Edu-
cação do Estado de Pernambuco, 1983.
Rev. de Psicologia, Fortaleza, 4 (1): jan,/jun., 1986 11
112 Rev. de Psicologia, Fortaleza, 4 (1): jan,/jun., 1986
Eliane Giachetto SARAVALI & Karina Perez GUIMARÃES

DIFICULDADES DE APRENDIZAGEM E CO-


NHECIMENTO: UM OLHAR À LUZ DA TEORIA
PIAGETIANA

LEARNING DIFFICULTIES AND KNOWLEDGE:


A LOOK FROM PIAGET´S THEORY

Eliane Giachetto SARAVALI*


Karina Perez GUIMARÃES**

Resumo: O artigo apresenta reflexões sobre conceitos


importantes da teoria de Jean Piaget e suas implicações
para as questões voltadas aos alunos que não aprendem.
Discute a rotulação que o termo dificuldade de aprendi-
zagem impõe ao estudante, abordando uma perspectiva
desenvolvimentista e construtivista do problema. São
apresentadas concepções teóricas a respeito das dificul-
dades de aprendizagem, bem como considerações sobre
olhares diferenciados para essa questão, à luz da teoria
piagetiana. Discute-se a importância do conhecimento
do psicopedagogo sobre a temática, a fim de que sua
atuação não se caracterize pela repetição de rótulos, mas
pela consideração dos reais processos percorridos pelos
alunos. Esse conhecimento deve ser conseqüência de uma
formação sólida que fundamente o futuro profissional,
sobretudo, nos momentos de avaliação e intervenção.

Palavras-chave: Dificuldades de aprendizagem. Teoria


piagetiana. Psicopedagogia.

* Doutora em Educação pela UNICAMP. Docente do Departamento de Psicologia da Educação da


UNESP, Campus de Marília-SP. E-mail: eliane.saravali@marilia.unesp.br
**Doutora em Educação pela UNICAMP, Docente da UniFAIMI, Mirassol-SP. E-mail:
pedagogia@faimi.edu.br

Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(2): 117-139, 2007.


Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor > 117
Dificuldades de aprendizagem e conhecimento...

Abstract: The article presents reflections about important


concepts of Jean Piaget´s theory and its implications to
issues related to students who do not learn. It discusses
the label that the term learning difficulty imposes on
students from a development and constructivist approach
to the problem. In the article theoretical conceptions
concerning learning difficulties are presented, as well as
considerations about different views about the issue in
the light of Piaget´s theory. It discusses the knowledge
that the psychopedagogue should have about the problem
so that his actions are not characterized by the repetition
of labels, but by the consideration of the actual processes
experienced by the learners. This knowledge should be
the consequence of a solid education that supports the
future professional during assessment and intervention
periods.

Keywords: Learning Difficulties. Piaget´s Theory.


Psychopedagogy.

INTRODUÇÃO

Na atualidade, é cada vez mais recorrente falar de dificuldades


de aprendizagem, quando o assunto é a aprendizagem de nossos alunos
em nossas escolas. Termos como distúrbios, déficits, desordens, bem
como explicações sobre incapacidades discentes e rotulações prévias
são usados para justificar problemas no rendimento escolar.
Ao mesmo tempo em que o uso dessa terminologia aumenta,
cresce também o número de encaminhamentos e de busca por apoio
proveniente da ação de outros profissionais que não os próprios
professores, tais como: psicólogos, fonoaudiólogos, psicopedagogos,
neurologistas, entre outros. Esses fatos são mostrados nos trabalhos
de Ciasca (2000) e de Saravali (2005). No primeiro, ao trabalhar
com crianças encaminhadas para o ambulatório de distúrbios de
aprendizagem da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, a au-
tora constatou que a grande maioria dos sujeitos encaminhados por

Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(2): 117-139, 2007.


118 Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor>
Eliane Giachetto SARAVALI & Karina Perez GUIMARÃES

suas escolas e famílias não apresentava comprometimento cognitivo,


perceptivo ou neurológico, ao ser avaliada pela equipe do hospital,
ou seja, não apresentava desordens intrínsecas, como sugerem mui-
tas vezes as queixas retratadas nos encaminhamentos. No segundo
trabalho referenciado, Saravali (2005) constatou que professores
indicam, facilmente, no mínimo 20% dos seus alunos como tendo
dificuldades de aprendizagem.
O papel do psicopedagogo em relação a essas questões cresceu
consideravelmente, haja vista que o objeto de estudo da psicopeda-
gogia é o processo de aprendizagem. É importante ressaltar que a
formação desse profissional não pode prescindir de estudos teóricos
e práticos que fundamentem as ações psicopedagógicas no trabalho
voltado para a aprendizagem, seja na escola, na clínica ou em hospi-
tais, tanto num nível remediativo como preventivo.
A qualidade dessa formação se faz mais necessária diante da
“epidemia latente” observada a partir dos inúmeros encaminhamentos
oriundos da escola e dos docentes. Pela própria especificidade da for-
mação psicopedagógica que deve singularizar a ação desse profissional,
é de se esperar que a atuação do psicopedagogo seja balizada por uma
visão e postura diferentes, a começar, por exemplo, pela avaliação de
um aluno que não aprende. Nesse sentido, vale destacar que o próprio
código de ética da psicopedagogia ressalta em seu artigo quinto que
é dever do psicopedagogo “promover a aprendizagem, garantindo o
bem-estar das pessoas...” Portanto, cabe a esse profissional a investi-
gação e busca constantes sobre razões e intervenções possíveis quando
a aprendizagem não caminha bem e isso necessariamente implica
uma formação diferenciada. Assim, é imprescindível à formação do
psicopedagogo o conhecimento sobre o processo de aprendizagem,
como ele ocorre, quais fatores o influenciam, quais as necessidades
do sujeito que aprende, bem como quais dificuldades podem ocorrer
durante esse processo. Obviamente que, seja sua atuação num nível
clínico ou institucional, esse profissional terá que lidar com as ques-
tões que envolvem a aprendizagem em situação escolar, incluindo aí
as ações didáticas dos docentes.
No presente artigo, buscamos colaborar para a reflexão desse
tema analisando as contribuições que a teoria epistemológica de Jean
Piaget traz para essas questões. Para isso, discutimos inicialmente um
panorama geral a respeito das dificuldades de aprendizagem, desta-
cando diferentes concepções teóricas. Em seguida, são abordados os

Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(2): 117-139, 2007.


Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor > 119
Dificuldades de aprendizagem e conhecimento...

processos cognitivos envolvidos na construção do conhecimento sob


a perspectiva piagetiana, fundamentação teórica do presente estudo.
A partir disso, discutimos as dificuldades de aprendizagem do ponto
de vista teórico escolhido, estabelecendo uma relação entre dificulda-
des de aprendizagem e psicopedagogia, concluindo que é importante
considerar os processos de construção do conhecimento, sendo a
teoria piagetiana um aporte a se considerar no trabalho pedagógico
e psicopedagógico.

DIFICULDADES DE APRENDIZAGEM – UM PANORAMA


GERAL

Estudar e pesquisar a respeito do termo dificuldades de


aprendizagem não é tarefa fácil nos tempos atuais. As caracteriza-
ções mais usuais trazem consigo uma série de atributos que acabam
ampliando o campo de definição. Assim, observa-se que a definição
de dificuldades de aprendizagem pode variar de país para país e de
autor para autor.
Dentro dessa variedade terminológica, há autores que buscam
uma separação entre o que seria denominado problema, dificuldade
ou distúrbio de aprendizagem. É o caso, por exemplo, dos trabalhos
de Passeri (2003) e Osti (2004). Neles, as autoras apontam que o
termo distúrbio de aprendizagem refere-se mais a comprometimentos
neurológicos e que o termo dificuldade de aprendizagem trataria mais
de problemas na área acadêmica, decorrentes de fatores internos ou
externos ao indivíduo. Segundo Passeri, “este segundo termo é mais
genérico, portanto, e envolve os termos ‘dificuldade escolar’ e ‘pro-
blemas de aprendizagem” (2003, p.29).
No entanto, essa perspectiva não se confirma em várias outras
obras nas quais, muitas vezes, esses termos são tratados como sinôni-
mos; é o caso, por exemplo, do trabalho de Smith e Strick (2001). Uma
das poucas certezas que podemos ter em relação a essas definições é
que as crianças com dificuldades de aprendizagem não apresentam
baixa inteligência, mas sim problemas específicos para aprender. Essa
caracterização foi apresentada à comunidade científica por Samuel
Kirk, considerado atualmente o pai dos estudos nesse campo. Todavia,
cumpre destacar que ao definir o termo, o autor apontava que tais
problemas eram provocados, especialmente, por desordens internas

Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(2): 117-139, 2007.


120 Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor>
Eliane Giachetto SARAVALI & Karina Perez GUIMARÃES

ou fatores intrínsecos aos indivíduos.


O termo dificuldade de aprendizagem não é recente e há uma
evolução histórica que caracteriza as múltiplas influências que os
estudos e pesquisas nessa área sofrem. Conforme apresentado em
Saravali (2005), essas diferentes perspectivas ora apontam para
tendências médicas e orgânicas, ora para tendências psicológicas e
pedagógicas, sem, no entanto, haver consenso sobre o que caracteriza
uma dificuldade de aprendizagem:

[...] as teorias das dificuldades de aprendizagem são controver-


sas, conceitualmente confusas e raramente apresentam dados de
aplicação educacional imediata. Mesmo com uma grande panorâ-
mica e com um grande potencial de investigação, as teorias das
DA continuam a ser muito complexas e muito pouco consistentes
(FONSECA, 1995, p.57-58).

Na atualidade, esse panorama não sofreu grandes transforma-


ções, mas podemos considerar uma definição datada de 1988, que
é muito aceita pelo National Joint Committee on Learning Disabili-
ties. Segundo Sisto (2001), essa definição caracteriza-se da seguinte
forma:
1)Problemas nas condutas auto-reguladoras da percepção ou
interação social, como por exemplo, déficits de atenção e hiperati-
vidade, (apesar de outros autores discordarem) não constituem uma
DA (dificuldade de aprendizagem), embora possam ser sintomas de
pessoas com DA.
2)Dificuldades de aprendizagem não se caracterizam por
problemas como deficiências sensoriais, retardo mental, transtorno
emocional, condições culturais, ensino inadequado ou insuficiente.
Entretanto, pode haver coocorrências desses problemas com as DA e
“também não se discute que essas condições produzem dificuldades
de aprendizagem” (SISTO, 2001, p.13).
3)Dificuldade de aprendizagem corresponde a dificuldades
intrínsecas ao indivíduo, supostamente devido a uma disfunção do
sistema nervoso central, e estão baseadas em estudos neuropsicoló-
gicos e genéticos.
4)Em qualquer idade é possível uma pessoa manifestar DA, o
que indica que esse problema pode ser um desafio vitalício.
Assim, poder-se-ia definir que o termo dificuldades de aprendi-

Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(2): 117-139, 2007.


Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor > 121
Dificuldades de aprendizagem e conhecimento...

zagem engloba um grupo heterogêneo de transtornos, manifestando-se


por meio de atrasos ou dificuldades em leitura, escrita, soletração
e cálculo, em pessoas com inteligência potencialmente normal ou
superior e sem deficiências visuais, auditivas, motoras ou desvanta-
gens culturais. Geralmente a DA não ocorre em todas essas áreas de
uma só vez e pode estar relacionada a problemas de comunicação,
atenção, memória, raciocínio, coordenação, adaptação social e pro-
blemas emocionais (SISTO, 2001). O indivíduo com DA não possui
rebaixamento de QI, indicando aquilo que muitos autores chamam de
conduta discrepante acentuada entre o potencial para a aprendizagem
e o desempenho acadêmico.
Embora muitos autores considerem essa definição como a
mais completa, não acreditamos que o uso abundante do termo em
nossas escolas e por nossos docentes esteja enquadrado nos aspectos
previstos pelo Comitê Internacional em questão. Se estivesse, isso
significaria o caos em relação à possibilidade de aprender dos nos-
sos estudantes, dada a enorme quantidade de queixas em relação às
dificuldades de aprendizagem discentes.
Nesse sentido, concordamos com a posição de Fonseca (1995):
para definirmos ou mesmo pensarmos em dificuldades de aprendi-
zagem devemos adotar uma postura interacional e dialética, ou seja,
procurar integrar os déficits no indivíduo, na escola, na família, pois
“... as condições internas (neurobiológicas) e as condições externas
(sócio-culturais) desempenham funções dialéticas (psicoemocionais)
que estão em jogo na aprendizagem humana.” (1995, p.12).
Dessa forma, o ambiente escolar também pode ser ou não
estimulante, oferecendo ou não as oportunidades apropriadas para
a aprendizagem:

A fim de obterem progresso intelectual, as crianças devem não


apenas estarem prontas e serem capazes de aprender, mas tam-
bém devem ter oportunidades apropriadas de aprendizagem. Se
o sistema educacional não oferece isso, os alunos talvez nunca
possam desenvolver sua faixa plena de capacidades, tornando-se
efetivamente ‘deficientes’, embora nada haja de fisicamente errado
com eles [...] A verdade é que muitos alunos fracos são vítimas
da incapacidade de suas escolas para ajustarem-se às diferenças
individuais e culturais (SMITH e STRICK., 2001, p. 33-34).

Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(2): 117-139, 2007.


122 Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor>
Eliane Giachetto SARAVALI & Karina Perez GUIMARÃES

É em relação a esses tópicos que gostaríamos de trazer elemen-


tos que contribuem para a reflexão. Em nossa experiência cotidiana
de formadores de professores e de psicopedagogos, e também na
prática clínica, ficamos preocupados com a quantidade de crianças
que são colocadas às margens do sistema de ensino, já definidas como
incapazes de aprender. Nesse sentido, gostaríamos de abordar o que
denominaremos aqui de contribuições da perspectiva construtivista
para as dificuldades de aprendizagem. Nosso intuito é mostrar como
o estudo e o conhecimento da teoria epistemológica piagetiana, ainda
que esse não fosse o objetivo do seu autor (mesmo tendo, em sua obra,
reconhecida a importância e a valiosa contribuição para compreensão
dos processos de ensino e de aprendizagem), pode trazer referências,
sustentabilidade e fundamentação para muitas interpretações, avalia-
ções e intervenções em relação aos problemas para aprender.

PROCESSOS COGNITIVOS ENVOLVIDOS NA CONSTRU-


ÇÃO DO CONHECIMENTO

A construção do conhecimento é explicada por Piaget (1976)


como resultado das interações do sujeito com o objeto de conheci-
mento. Trata-se, portanto, de um novo paradigma que contesta os
anteriores, que se limitavam a

indagar se toda a informação cognitiva emana dos objetos e vem


de fora informar o sujeito como o supunha o empirismo tradicio-
nal, ou se, pelo contrário, o sujeito está desde o início munido
de estruturas endógenas que ele imporia aos objetos, conforme
as diversas variedades de apriorismo ou de inatismo (PIAGET,
1971, p.13).

O desenvolvimento da criança é concebido por Piaget (1976)


a partir do sistema vivo, que é aberto e fechado simultaneamente.
Entende-se como sistema aberto as trocas que o organismo estabelece
com o meio físico e social; e como sistema fechado a própria consti-
tuição do sistema em ciclos. Tais sistemas tendem ao equilíbrio e essa
busca está permeada por desequilíbrios e reequilibrações.
Sendo a equilibração o processo central e fundamental na
construção do conhecimento, não poderemos deixar de tratar aqui da

Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(2): 117-139, 2007.


Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor > 123
Dificuldades de aprendizagem e conhecimento...

abstração reflexiva e da generalização, mecanismos fundamentais para


que a equilibração se dê, ocorrendo, portanto, o avanço de um patamar
de conhecimento menos elaborado para outro mais elaborado.

A EQUILIBRAÇÃO

Ao tratar do desenvolvimento intelectual, Piaget distingue


quatro fatores imprescindíveis: a maturação interna, a experiência
física, a transmissão social e a equilibração. Esta última é destacada
pelo autor como fator fundamental, responsável pelo equilíbrio entre
os três outros fatores do desenvolvimento: “a equilibração sendo a
compensação por reação do sujeito às perturbações exteriores ...”
(1976, p.31).
A construção do conhecimento é explicada por Piaget (1976)
pelo processo de equilibração, que consiste na passagem de estados
de menor equilíbrio para estados de maior equilíbrio, qualitativamente
diferentes. O desencadeamento desse processo ocorre por meio dos
desequilíbrios que provocarão reequilibrações, representando o pro-
gresso no desenvolvimento do conhecimento.
Os desequilíbrios podem ser resultantes de conflitos momentâ-
neos ou podem ser inerentes à constituição dos objetos ou das ações
do sujeito. Pode-se identificar o otimismo do autor (Piaget, 1976),
uma vez que o sujeito busca se reequilibrar e superar o desequilíbrio,
procurando, assim, uma equilibração majorante.
Nesse sentido, o processo de equilibração independe dos fins
almejados pela ação e pelo pensamento e faz com que o sujeito bus-
que novas formas de equilíbrio. Estas, por sua vez, são alcançadas
provisoriamente, pois surgem novos problemas, possibilitando ao
sujeito construir sobre as formas já existentes.
Desse modo, pode-se afirmar que a aprendizagem modifica a
estrutura já existente, como destacou Lima (1984):

não se ensina nada, inteiramente, novo: toda ‘aprendizagem’ é a


modificação de uma estrutura já existente e, por sua vez, modifica
a forma de perceber a experiência. Raro é o mestre que indaga o
que o aluno já sabe para, sobre esta subestrutura, propor a nova
aprendizagem. Nada se aprende a partir da estaca zero! (p.35-
36).

Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(2): 117-139, 2007.


124 Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor>
Eliane Giachetto SARAVALI & Karina Perez GUIMARÃES

Assim, os desequilíbrios têm papel fundamental na medida


em que provocam reequilibrações, fazendo com que o sujeito busque
sempre uma equilibração majorante, a qual, por sua vez, tem caráter
de construção e de maior coerência.
Piaget (1971) destacou o papel da experiência para a constru-
ção do conhecimento como estando relacionado ao desencadeamento
do processo de equilibração, quando afirma: “o papel da experiência
não consiste, em uma primeira fase, senão em desmentir as previsões
muito simples fundadas em operações de que dispunha o sujeito e o
forçar a procurar previsões mais adequadas” (p.85).
A equilibração majorante resulta de regulações novas, mais
ricas que as precedentes devido à abstração reflexiva, um dos motores
do desenvolvimento cognitivo. A cada nova realização surgem novas
possibilidades inexistentes nos níveis precedentes.
O caráter construtivo do conhecimento fica, assim, evidenciado
por Piaget, quando ressalta que:

a construção de estruturas novas parece caracterizar um processo


geral cujo poder seria constitutivo e não se reduziria a um método
de acessibilidade: dos fracassos do reducionismo causal, no terreno
das ciências do real, aos do reducionismo dedutivo quanto aos
limites da formalização e às relações das estruturas superiores com
as da lógica, assiste-se por toda parte a uma falência do ideal de
dedução integral que implica a pré-formação, e isto graças a um
construtivismo que aparece cada vez mais (1971, p.107-108).

Para Piaget (1976), os processos de equilibração majorante


e seus mecanismos, abstração reflexiva e generalização construtiva,
estão intrinsecamente relacionados ao processo de construção dos
conhecimentos.
O desenvolvimento cognitivo tem como propriedades as inva-
riantes funcionais: os processos de organização e adaptação, presen-
tes durante toda a vida. Essas propriedades consistem em funções
independentes de conteúdo, pois se aplicam a todas as situações. A
organização tem como função estruturar o sistema, possibilitando seu
funcionamento; a adaptação constitui o equilíbrio entre assimilação
e acomodação.
Desse modo, entende-se que a assimilação consiste na inte-
gração do elemento novo a um esquema do sujeito. Já a acomodação

Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(2): 117-139, 2007.


Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor > 125
Dificuldades de aprendizagem e conhecimento...

engloba a necessidade de a assimilação considerar as particularidades


dos elementos a assimilar, ou seja, é responsável pela modificação das
estruturas pré-existentes para ajustar-se ao que lhe é novo.
A atividade assimilativa possui quatro características comuns
e presentes em todos os períodos de desenvolvimento: repetição,
generalização, diferenciação e reciprocidade.
Para a teoria da equilibração, Piaget (1976) destaca a importân-
cia de dois postulados. Quanto ao primeiro, afirma que “todo esquema
de assimilação tende a se alimentar, ou seja, incorporar os elementos
que são exteriores e compatíveis com sua natureza (...)” (p. 52). Em
relação ao segundo postulado, o autor explica que “todo esquema de
assimilação é obrigado a acomodar os elementos que assimila, ou seja,
modificar-se de acordo com suas particularidades, sem perder a sua
continuidade e os poderes de assimilação anteriores” (p.52).
Para que os desequilíbrios possam ser superados e aconteça
a equilibração majorante, ocorrem as regulações. Segundo Piaget
(1976): “a regulação ocorre quando a repetição A’ de uma ação A é
modificada pelos resultados desta, logo quando um efeito contrário
dos resultados de A sobre seu novo desenvolvimento A’ ” (p.31). As
regulações são, portanto, reações a perturbações.
As regulações provocam as compensações, daí seu caráter cons-
trutivo. Como no caso da perturbação, nem toda regulação acarreta
uma compensação. Piaget (1976) define compensação como “ação
de sentido contrário a um efeito dado, que tende, portanto, para o
anular ou neutralizar” (p.40).
A equilibração cognitiva tem como ponto importante seu cará-
ter de ultrapassagem, ou seja, não existe um ponto final; à medida
que um conhecimento é alcançado, novos problemas surgem. Nesse
sentido, pode-se falar da necessidade de construção e ultrapassagem
na busca de um equilíbrio cada vez melhor.
Piaget (1976) ilustra esse caráter construtivo ao afirmar que
o mesmo “consiste na elaboração de operações que incidem nas
precedentes, de relações de regulações, de regulações de regulações
etc., numa palavra, de formas que incidem nas formas anteriores e
as englobam como conteúdo” (p.208).
Tal mecanismo, que permite ao sujeito reequilibrar-se por meio
de uma reorganização, é a abstração reflexiva. Essa abstração é um dos
processos por meio do qual o conhecimento se constrói, pois explica a
passagem de um patamar a outro de desenvolvimento. Discorreremos

Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(2): 117-139, 2007.


126 Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor>
Eliane Giachetto SARAVALI & Karina Perez GUIMARÃES

mais sobre esse importante conceito da obra piagetiana a seguir.

A ABSTRAÇÃO REFLEXIVA

Oriunda da coordenação das ações que o sujeito exerce sobre


os objetos, a abstração reflexiva centra-se nas operações ou ações
gerais do sujeito. Piaget et al. (1995) definem esse tipo de abstração
como aquela que se apóia

sobre as formas e sobre todas as atividades cognitivas do sujeito


(esquemas ou coordenações de ações, operações, estruturas etc.)
para delas retirar certos caracteres e utilizá-los para outras finali-
dades (novas adaptações, novos problemas etc.) (p.06).

Há dois aspectos inseparáveis envolvendo a abstração reflexi-


va. De um lado, o “reflexionamento”, como projeção (no sentido de
espelhar) num patamar superior a aquilo que foi tirado do patamar
inferior. De outro lado, a “reflexão”, enquanto ato mental de recons-
trução e reorganização sobre o patamar superior daquilo que foi
transferido do inferior.
No momento em que o sujeito consegue fazer coordenações,
sem, no entanto, vê-las nos objetos, tem-se a abstração refletida. É,
portanto, resultante de uma abstração reflexiva quando esta se torna
consciente, independente do nível em que está.
Os reflexionamentos, no sentido de projeção, diferenciam-se
conforme seu grau e natureza. Os patamares mais elementares dos
reflexionamentos partem das ações sucessivas em direção a sua
representação atual, isto é, do sensório-motor ao início da conceitu-
ação. Em um segundo patamar, as representações são reunidas num
todo coordenado; trata-se da “constituição (com ou sem narrativa)
da seqüência das ações, do ponto de partida ao término” (PIAGET et
al., 1995, p.275). O terceiro patamar corresponde ao das compara-
ções, podendo ser reconstituída a ação como um todo e comparada a
outras que podem ser análogas ou diferentes. Finalmente, no quarto
patamar, encontram-se as reflexões sobre as reflexões caminhando
para a meta-reflexão ou pensamento reflexivo.
A natureza dos reflexionamentos, inicialmente, consiste num
“deslocamento dos observáveis em função de sua conceituação pro-
gressiva pela tomada de consciência, isto é, pela interiorização das

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Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor > 127
Dificuldades de aprendizagem e conhecimento...

ações” (PIAGET et al., 1995, p. 276).


Patamares posteriores englobam, em sua maior parte, a abs-
tração como se fosse reflexão, já que a generalização possibilita o
reflexionamento dos observáveis de patamares anteriores sobre os
novos. Pode-se dizer, dessa forma, que existe uma diferença de grau e
também qualitativa em todo novo patamar, ficando à união da reflexão
e do reflexionamento não somente a responsabilidade da passagem
de patamares, mas também a própria formação dos mesmos.
Trata-se, portanto, de um processo espiral que busca formas
cada vez mais elaboradas, como afirmam Piaget et al. (1995):

Todo reflexionamento de conteúdos (observáveis) supõe a inter-


venção de uma forma (reflexão), e os conteúdos assim transferidos
exigem a construção de novas formas devido à reflexão. Há, assim,
pois, uma alternância ininterrupta de reflexionamentos → reflexões
→ reflexionamentos; e (ou) de conteúdos → formas → conteúdos
reelaborados → novas formas, etc., de domínios cada vez mais
amplos, sem fim e, sobretudo, sem começo absoluto (p.277).

A partir da tomada de consciência de uma certa ação ou ope-


ração concreta, o sujeito poderá refletir e projetar em um novo plano
decorrente do precedente, generalizando e superando as estruturas
anteriores. É nesse sentido que os processos de generalização cons-
trutiva intervêm na elaboração do conhecimento.
A evolução psicogenética das generalizações explica a cons-
trução do conhecimento exógeno por uma construção endógena, por
meio dos níveis de tomada de consciência. Num primeiro momento,
o sujeito, interagindo com os objetos, somente registra os observá-
veis dos mesmos como sendo resultados exteriores da ação, devido à
abstração reflexiva. Em seguida, ocorre o desenvolvimento material
da ação e das variações do objeto de forma mais numerosa, podendo
reunir-se entre elas. Por fim, a tomada de consciência das coordena-
ções internas das ações possibilita o conhecimento das propriedades
menos imediatas dos objetos, resultantes dos processos de abstração
reflexiva.
Falar em aprendizagem a partir dessa teoria é falar, portanto,
em algo que estruturalmente depende do desenvolvimento, mas que
ao mesmo tempo contribui para que ele ocorra. A aprendizagem se
insere nesse conceito de inteligência adaptativa e em construção.

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Se a escola, os professores e os psicopedagogos lidam, prio-


ritariamente, com a aprendizagem, não podem estar alheios a tais
conhecimentos. Será que no âmbito pedagógico e psicopedagógico
são discutidas as formas de atuação que privilegiam, respeitam e
caminham ao encontro dos processos percorridos pelos alunos du-
rante a aprendizagem? E quando um aluno apresenta dificuldades de
aprendizagem? Como as questões teóricas que tratamos anteriormente
podem contribuir para a compreensão dessa problemática? Qual seria,
a partir do exposto, a relação da teoria piagetiana com as questões
referentes às dificuldades de aprendizagem?

DIFICULDADES DE APRENDIZAGEM – UM OLHAR CONS-


TRUTIVISTA

Assumindo a perspectiva interacionista-construtivista de Jean


Piaget, diferentes autores identificam os problemas de aprendizagem
como resultantes de falhas no processo de relação do sujeito com o
meio, pressuposto básico do interacionismo-construtivista. Dessa for-
ma, a pergunta que esses autores querem responder, ao se depararem
com crianças que não aprendem, é “o que ocorre com as crianças que
não atuam sobre o meio, por serem impedidas, ou atuam pouco?”
(DOLLE e BELLANO, 1996, p.9). Ramozzi-Chiarottino, que realiza
pesquisas nesse enfoque, explica:

Depois de vários anos de observação do comportamento da criança


em situação natural, chegamos à conclusão de que os distúrbios
de aprendizagem são determinados por deficiências no aspecto
endógeno do processo da cognição e de que a natureza de tais
deficiências depende do meio no qual a criança vive e de suas
possibilidades de ação neste meio, ou seja, depende das trocas do
organismo com o meio, num período crítico de zero a sete anos
(1994, p.83).

Assim, para essa autora, há uma causa orgânica para as DA,


parcialmente determinada pelo ambiente e possível de remediação.
Nos estudos e pesquisas que realiza na USP, Ramozzi-Chiarottino
(1994) apresenta características e problemas específicos no processo
de interação com o meio e na estruturação do real, que as crianças

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Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor > 129
Dificuldades de aprendizagem e conhecimento...

com dificuldades de aprendizagem apresentam.


Os psicopedagogos e demais interessados na questão das
dificuldades de aprendizagem necessitam conhecer esse referen-
cial que, ao contrário do que Fonseca (1995) afirma sobre outras
perspectivas, possui aplicação educacional imediata. Nesse sentido,
Ramozzi-Chiarottino (1994) apresenta formas de intervenção con-
forme as características dos problemas apresentados pelas crianças.
Essas intervenções baseiam-se em: construção de esquemas motores
e ação/reflexão sobre o meio, observação e experimentação sobre a
natureza, construção de representação e construção de estruturas
do pensamento.
A respeito dessa última intervenção, é importante destacar que
diferentes pesquisas, baseadas em tal pressuposto, alcançaram bons
resultados com crianças que apresentavam dificuldades de apren-
dizagem. É o caso dos trabalhos de Brenelli (1996, 2002), Souza
(1996), Zaia, (1996), Guimarães (1998, 2004) e Fini (2002). Os
resultados dessas pesquisas apontam que alunos com queixa de di-
ficuldade de aprendizagem, quando têm a oportunidade de interagir
com um meio profícuo e solicitador, que os auxilie na construção
de suas estruturas da inteligência, apresentam significativa melhora
em seu desempenho escolar. Esse meio, que é profícuo e solicitador,
caracteriza-se pela elaboração de atividades, pela utilização de jogos
e pela criação de situações de trocas e cooperação que provocavam a
ação e a construção do conhecimento por parte dos sujeitos.
Os trabalhos sob essa perspectiva indicam que aqueles que
lidam com as crianças em situações de aprendizagem necessitam estar
atentos ao que está ocorrendo com seus alunos. Portanto, é preciso
investigar por que as crianças não aprendem, mas, sobretudo, é
preciso saber quais são os meios de que a escola pode se valer para
minimizar as condições de fracasso que são impostas a esses alunos.
Assim, é sempre bom refletir sobre as razões que levam a escola ao
encaminhamento, em comparação com as intervenções que conse-
guem resultados positivos em situações de pesquisa. Qual o papel
dos profissionais que lidam diretamente com essas crianças? Como
eles vêem essas questões e quais as formas de intervenção que julgam
necessárias e importantes de serem feitas?

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PSICOPEDAGOGIA E TEORIA PIAGETIANA

Em estudo recente, Guimarães e Saravali (2006) investigaram


as concepções de alunos do curso de psicopedagogia a respeito das
dificuldades de aprendizagem. As autoras trabalharam com 52 sujeitos
que estavam no início, no meio e no final do curso de especialização; a
maioria deles era docente da educação infantil e das séries iniciais do
ensino fundamental. Os principais resultados encontrados indicaram
que 56% dos futuros psicopedagogos acreditam que a dificuldade
de aprendizagem refere-se sempre e somente a uma incapacidade do
sujeito que não aprende; 46% deles sentem-se incapazes diante do
quadro de um aluno que não aprende e não sabem intervir, neces-
sitando recorrer a atendimentos especializados; e 33% descrevem
alunos com dificuldades de aprendizagem como aqueles que possuem
problemas relacionados aos conteúdos abordados em sala de aula,
principalmente matemática e leitura e escrita.
Dois aspectos chamam a atenção na fala desses futuros profis-
sionais: primeiramente, a quantidade de justificativas para o problema
no próprio aluno; e segundo, a incapacidade para a intervenção. Não
seria justamente a falta de uma formação mais sólida que traria esse
tipo de julgamento? Por que as razões para a não aprendizagem são
sempre depositadas nos alunos? Por que a necessidade de outros
profissionais é quase sempre lembrada, mesmo quando a criança
não está aprendendo, por exemplo, a ler e a escrever, conteúdos de
responsabilidade da escola? Ou será que vivemos mesmo uma epi-
demia escolar?
Acreditamos que o estudo e o aprofundamento numa teoria
como a piagetiana podem auxiliar e muito na formação do psicopeda-
gogo. Ao atuar na clínica ou na instituição, esse profissional precisa
refletir sobre as condições de construção do conhecimento que estão
sendo ofertadas aos alunos. Desse modo, partindo-se da concepção
construtivista piagetiana, o ensino deveria orientar-se para as poten-
cialidades, limitações, erros e ações dos alunos, pois o conhecimento
vai se construindo junto com e pelo sujeito.
O aluno é, portanto, considerado sujeito dos processos de
ensino e de aprendizagem, sendo totalmente ativo nessa construção.
Essa perspectiva construtivista vem opor-se à concepção empirista
do conhecimento, que considera a aprendizagem como aquisição do
conhecimento pronto, externo ao sujeito, sendo realizada basicamente

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pela repetição e memorização. Como ilustra Ferreiro (2001):

Piaget opõe uma concepção segundo a qual o objeto não está dado
no ponto de partida, mas se constrói a partir de um organismo
que não é criado pelo sujeito, mas que é a condição mesma de sua
existência; a evidência racional não é produto direto da experiência
nem uma forma a priori do espírito: é o resultado de processos
de reequilibração sucessivos, em virtude de um processo histórico
e dialético; a objetividade não está dada no ponto de partida: é
uma realização, uma conquista, não um impor-se do objeto sobre
o sujeito, mas um equilíbrio entre ambos, que envolve um máximo
de atividade da parte do sujeito, um sujeito que é sempre ator e
nunca mero espectador (p.138).

De acordo com essa perspectiva, os fundamentos de uma


avaliação e de uma intervenção - seja num nível clínico ou institu-
cional, de forma preventiva ou remediativa - terão que, necessaria-
mente, considerar as possibilidades de interação com os objetos de
conhecimento que o sujeito teve ou tem. De que forma a ação sobre
os objetos, a possibilidade de organização, de estabelecimento de
relações, de assimilações, acomodações e equilibrações vêm sendo
promovidas, solicitadas ou desencadeadas? Quantos desequilíbrios
o sistema cognitivo dessa criança que não aprende teve a chance de
responder? Ou somente lhe foi solicitado repetir, sem compreender?
Quantos desencadeamentos são feitos no sentido de se fornecer a
projeção e a reflexão?
Partindo dessa concepção teórica, o papel da escola - e vale a
pena frisar que o psicopedagogo tanto clínico como institucional tem
que lidar com as questões escolares também - deveria voltar-se ao
oferecimento de desafios à criança, a fim de provocar o desencade-
amento do processo de construção do conhecimento. Nesse sentido,
a escola precisa ter clara a concepção de conhecimento e a compre-
ensão dos processos de aprendizagem que possibilitam a produção
de novos conhecimentos.
Piaget (2000) definiu o conhecimento como sendo essencial-
mente construção, ao afirmar que:

O caráter próprio da vida é ultrapassar-se continuamente e, se pro-


curarmos o segredo da organização racional na organização vital,
inclusive em suas superações, o método consiste então em procu-

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rar compreender o conhecimento para sua própria construção, o


que nada tem de absurdo, pois o conhecimento é essencialmente
construção (p. 409).

O conhecimento, portanto, não deve ser entendido como ex-


terior ao sujeito, trazido pelo professor, mas sim como um processo
dialético que emerge do próprio sujeito, de acordo com suas diferentes
formas de agir sobre o mundo. Segundo essa concepção, a aprendiza-
gem passa a ter, além da capacidade de assimilar conteúdos, a capaci-
dade de transformar, ou seja, de construir novas formas possíveis de
assimilá-los. A aprendizagem ocorre em função do desenvolvimento,
de esquemas e estruturas construídas, que se generalizam conforme
se aplicam ativamente as novas formas.
Para que ocorra uma reorganização com novas combinações de
elementos retirados do nível anterior, o sujeito utiliza o mecanismo
de abstração reflexiva com seus aspectos inseparáveis de “reflexio-
namento”, como projeção (no sentido de espelhar) sobre um patamar
superior do que foi retirado do nível inferior, e de “reflexão” enquanto
ato mental de reorganização e reconstrução sobre o patamar superior.
O desenvolvimento da abstração reflexiva ocasiona a formação de
novas formas em relação aos conteúdos.
Juntamente com a abstração reflexiva, o mecanismo de genera-
lização tem papel fundamental na elaboração do conhecimento, uma
vez que a partir da tomada de consciência o sujeito poderá refletir
e projetar em um novo plano decorrente do anterior, generalizando
e superando as estruturas anteriores. Dessa forma, os processos de
generalização construtiva intervêm junto à abstração reflexiva na
elaboração do conhecimento.
Para que isso ocorra, as atuações didáticas precisam promover
a ação por parte do sujeito que aprende, solicitar a reorganização da
ação, a reflexão sobre a ação, as antecipações e a análise das conse-
qüências sobre as ações.
Uma das possibilidades à disposição do educador e do psico-
pedagogo pode ser encontrada na utilização de jogos de regras que,
além de favorecer a construção do pensamento, possibilita interven-
ções que maximizam a aprendizagem dos alunos. Brenelli (1999)
destaca que:

as crianças muitas vezes apresentam resistências às atividades,

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Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor > 133
Dificuldades de aprendizagem e conhecimento...

o jogo pode ser utilizado como meio de vencê-las, porque nele a


motivação e o interesse são intrínsecos. Entretanto, é necessário
que o educador conheça e saiba aproveitar as oportunidades que
um contexto lúdico tem (p.71).

Os jogos exercem papel fundamental no desenvolvimento da


criança. Macedo, Petty e Passos (2000) corroboram essa idéia, ao
explicitarem que:

Quando a criança joga e é acompanhada por um profissional que


propõe análises de sua ação, descobre a importância da anteci-
pação, do planejamento e do pensar antes de agir. Por sentir-se
desafiada a vencer, aprende a persistir, aprimora-se e melhora
seu desempenho, não mais apenas como uma solicitação externa,
mas principalmente como um desejo próprio de autosuperação
(p.25).

Os jogos de regras serviram de inspiração para muitos trabalhos


fundamentados na teoria psicogenética de Piaget. Esses trabalhos
identificaram os jogos como auxiliares na compreensão da estruturação
cognitiva das crianças e no favorecimento de processos construtivos
do pensamento e da aprendizagem (BRENELLI, 2002)
Os processos de equilibração, abstração reflexiva e generaliza-
ção construtiva podem estar presentes nas situações de jogo, sendo
que a abstração reflexiva conduz a generalizações construtivas, fun-
dadas nas operações dos sujeitos. Sua natureza, simultaneamente
extensiva e compreensiva, pode gerar novas formas, até mesmo novos
conteúdos. Desse modo, é via abstração reflexiva que os sujeitos
podem passar para um plano novo, no qual reorganizam o que foi
trazido do anterior.
As perturbações são fundamentais na medida em que há com-
pensação pelo sujeito como forma de regulação, ou seja, a reação à
perturbação é fundamental para o desenvolvimento. O jogo de regras
pode representar uma perturbação para a criança e contribuir assim
para seu desenvolvimento, como afirma Brenelli:

Quando a criança modifica sua maneira de jogar ou modifica seus


procedimentos nas atividades propostas durante o jogo significa que
as perturbações não foram anuladas, mas compensadas, na tentativa
de se acomodarem às situações exigidas pelo jogo (1996, p.161).

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A invenção de novos procedimentos para ter mais êxito no jogo


viabiliza a construção de possibilidades e necessidades. Esse aspecto
remete-nos à construção de novas possibilidades, o que depende da
equilibração e da relação entre a abstração reflexiva e a generalização
construtiva, uma vez que a abstração reflexiva conduz à generalização
construtiva, conforme discutimos anteriormente.
A partir do exposto, qual seria então o papel da psicopedago-
gia? Podemos afirmar que o principal foco deveria ser o de resgatar
a possibilidade de desencadeamento desses processos cognitivos
tratados até aqui, seja por meio de jogos, de atividades ou outros
procedimentos oportunos. Uma vez que a escola não está dando conta
desses aspectos, a psicopedagogia institucional ou clínica poderia
dedicar-se à criação desse meio solicitador.
Cabe aqui mais uma reflexão em relação ao papel ativo da
criança ao se deparar com situações de aprendizagem. A rotulação
prévia, que em larga escala vem ocorrendo em nossas escolas, a nos-
so ver caracteriza-se pela não compreensão do conhecimento como
processo de construção. Num extremo temos a rotulação, que define
a dificuldade de aprendizagem com algo inerente ao sujeito, intrínse-
co, normalmente definido como um transtorno ou uma incapacidade
duradoura. De outro, é bem verdade, pode-se cair no risco de sempre
culpar os docentes pela não aprendizagem discente, como se bastas-
sem as experiências provenientes do meio, o que se constituiria como
uma forma empirista de explicar o fenômeno. No entanto, percebe-se
que quando as explicações para uma não aprendizagem não recaem
somente sobre incapacidades cognitivas do aluno, recaem sobre sua
família ou sobre questões emocionais e afetivas (GUIMARÃES e
SARAVALI, 2006).
No campo de atuação psicopedagógica institucional escolar,
poderíamos nos perguntar: Em que medida as questões pedagógicas
relacionadas ao respeito pelos processos de aquisição do conhecimento
vêm sendo debatidas ou são de domínio dos responsáveis pela apren-
dizagem dos alunos? Num nível de atuação clínica, como as avaliações
e intervenções psicopedagógicas vêm conseguindo considerar esses
aspectos, buscando auxiliar aquele que não aprende a ter uma nova
chance de se relacionar com seu objeto de conhecimento de forma
construtiva?

Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(2): 117-139, 2007.


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Dificuldades de aprendizagem e conhecimento...

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O que se pretendeu neste artigo foi oferecer algumas ferra-


mentas para a reflexão daqueles que lidam com a aprendizagem e,
conseqüentemente, com as dificuldades de aprendizagem.
Como vimos, pesquisas que tomam por referência a teoria
piagetiana conseguem bons resultados em situação de intervenção
pedagógica e psicopedagógica junto a crianças que não aprendem.
Nessas pesquisas, aspectos essenciais ao desenvolvimento infantil
são resgatados e os alunos passam a ter uma nova relação com seus
objetos de conhecimento.
Diante do quadro crescente de crianças avaliadas como inca-
pazes de aprender e do grande aumento do número de encaminha-
mentos, a perspectiva abordada aqui nos traz um novo olhar para
uma situação de dificuldade de aprendizagem.
Os psicopedagogos, que estão sendo cada vez mais solicitados a
resolverem e a participarem dessas questões, precisam estar prepara-
dos para terem um novo olhar, muitas vezes diferente daquele que a
escola já lança sobre o aluno que tem dificuldades de aprendizagem.
Esse olhar psicopedagógico investigativo deve conhecer como o aluno
pensa e aprende, analisar esses processos ao longo da vida discente e
buscar reorganizá-los num novo momento e numa participação mais
ativa do discente.
Quando o psicopedagogo ou mesmo os docentes em sala de
aula não sabem intervir, isso pode significar o abandono daquele que
não aprende ou ainda a rotulação prévia, que também abandona e
exclui, além de isentar de responsabilidades os que podem ajudar na
promoção da aprendizagem.
Enfim, ao final deste trabalho, sabendo que muitas questões
continuam abertas à discussão e à pesquisa, concluímos que, como
educadores, psicopedagogos ou pesquisadores, necessitamos levar
em consideração os processos inerentes à construção do conheci-
mento. E a teoria piagetiana é, certamente, um aporte que precisa
ser considerado.
Queremos encerrar com uma fala de Castro (2001, p. 19),
que retrata a importância de repensarmos os processos de ensino e
de aprendizagem:

Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(2): 117-139, 2007.


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Devemos, pois, redefinir conceitos e pensar em termos novos, ou


melhor, em significações diferentes para os termos tradicionais da
didática – o aluno, o professor, o que se ensina, como se ensina,
por que e para que ensinar – formulando novos conceitos sobre
tais elementos didáticos. Tal redefinição poderá exigir um novo
conceito de “conteúdo”, que não será apenas matemática, história
ou geografia, ou dos objetivos atribuídos à escola. Dar-se-ia mais
importância a atividades que ensinem a pensar ou a incentivar o
uso do pensamento pelo aluno. O ensino não se confundiria com a
aquisição de informações, mas com a construção de conhecimento
e com o desafio ao pensamento. A teoria, que espero seja um dia
formulada, poderá ajudar o professor se conseguir deixar claros
os princípios nos quais se baseia: os mesmos do construtivismo
piagetiano. Deixamos a sugestão para quem se interessar por ela
(grifo nosso).

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Estadual de Campinas, Campinas, 1996.

Encaminhado em: 16/03/07


Aceito em: 24/05/07

Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(2): 117-139, 2007.


Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor > 139
Psicologia Histórico-Cultural e Avaliação Psicológica:
o processo ensino aprendizagem em questão
Psicologia Histórico-Cultural e Avaliação Psicológica
Marilda Gonçalves Dias Facci
Nilza Sanches Tessaro
Záira Fátima de Rezende Gonzalez Leal
Valéria Garcia da Silva
Cintia Godinho Roma

Resumo
Este estudo teve por objetivo verificar a forma como tem sido desenvolvida a avaliação psicológica de crianças que apresentam dificuldades no processo
de escolarização bem como analisar a contribuição dos pressupostos da Psicologia Histórico-Cultural nesse processo. Inicialmente, uma revisão
bibliográfica sobre o tema da avaliação psicológica e sobre os conceitos fundamentais da Psicologia Histórico-Cultural, fundamentada no marxismo, foi
realizada e, em seguida, entrevistas com doze profissionais de Psicologia que atuam na área escolar. Os principais resultados revelaram que os testes
psicológicos têm sido os instrumentos mais utilizados no processo de avaliação psicológica, quando se trata da literatura brasileira, mas não mantiveram
hegemonia entre os participantes deste estudo, o que se considera um avanço para a Psicologia escolar-educacional. Conclui-se, com esta pesquisa, que
são necessários processos de avaliação que analisem o potencial dos sujeitos considerando o que se encontra na zona de desenvolvimento próximo.
Palavras-chave: avaliação psicológica; aprendizagem; educação.

Historical-Cultural Psychology and Psychological Evaluation: the teaching


learning process in focus.
Abstract
This study aimed, firstly, verifying the way psychological evaluation assists children who present difficulties during the educational process, and secondly,
analyzing the contribution of Historical-cultural Psychology assumptions to that process. Initially, a bibliographical search on the theme ‘psychological
evaluation’ and on fundamental concepts, concerning Historical-cultural Psychology, was carried out and afterwards, twelve psychological professionals,
acting in schools, were interviewed. Regarding Brazilian specific literature on the subject, the main results revealed that psychological tests have been the
instruments mostly used in the process of psychological evaluation. But, on the other hand, that procedure has not maintained hegemony among the
participants during the investigation, what, in fact, is considered a progress for Psychology addressed to education. As a result, it was concluded that
evaluation processes are necessary to analyze the potential of individuals considering all that is found in the zone of proximal development.
Keywords: psychological assessment; learning; education.

Psicología Histórica-Cultural y Evaluación Psicológica: el proceso de


enseñanza-aprendizaje en cuestión
Resumen
Este estudio tuvo como objetivo verificar la forma como viene siendo desarrollada la evaluación psicológica de niños que presentan dificultades en el
proceso de escolarización, así como también analizar la contribución de los presupuestos de la Psicología Histórica-Cultural en ese proceso. Se realizó,
inicialmente, una revisión bibliográfica sobre el tema de la evaluación psicológica y sobre los conceptos fundamentales de la Psicología Histórica-Cultural
basada en el marxismo. En seguida fueron realizadas entrevistas con doce profesionales de Psicología que actúan en el área escolar. Los principales
resultados revelaron que los testes psicológicos han sido los instrumentos más utilizados en el proceso de evaluación psicológica cuando se trata de la
literatura brasileña, pero no mantuvieron una hegemonía entre los participantes de este estudio, lo que se considera un progreso para la Psicología escolar-
educacional. Con esta investigación se concluyó que son necesarios procesos de evaluación que analicen el potencial de los sujetos considerando lo que
se encuentra en la zona de desarrollo próximo.
Palabras clave: evaluación psicológica; aprendizaje; educación.

323
Introdução corresponde a uma etapa de desenvolvimento. Uma
dessas teorias, elaborada por Willian James (1842-
Uma questão rotineira que se apresenta ao psicó- 1910), baseia-se no conceito de reflexo. A terceira
logo escolar-educacional é a avaliação das queixas es- posição teórica, representada por Kurt Koffka (1846-
colar, compreendida, conforme estudos de Souza 1941), tenta conciliar as teorias anteriores. Entende o
(2000), como “problemas escolares” ou “distúrbios autor que elas coexistem e que o desenvolvimento se
de comportamento e aprendizagem”. Neste senti- baseia, de um lado, no processo de maturação, que
do, desenvolveu-se na Universidade Estadual de depende do desenvolvimento do sistema nervoso, e
Maringá, uma pesquisa intitulada Psicologia Histórico- de outro, no processo de aprendizado, que também é
Cultural e Avaliação Psicológica: o processo ensino apren- um processo de desenvolvimento. Aprendizagem é
dizagem em questão. Esse artigo versará sobre os re- desenvolvimento; desenvolvimento é aprendizagem, e
sultados desta pesquisa. o desenvolvimento segue, pari passu, a instrução.
O fracasso escolar defronta-se, ainda hoje, com Vigotski (2000) aponta essa relação de forma diferen-
elevado índice e, em muitos casos, os psicólogos são ciada, considerando que aprendizagem e desenvolvi-
convocados a explicar as causas da não-aprendizagem mento não constituem dois processos independentes,
das crianças. No Brasil, esse fracasso pode ser ob- existindo entre eles relações complexas.
servado conforme dados oficiais do MEC/INEP (Bra- Atualmente, os Parâmetros Curriculares Nacionais
sil, 2003), na taxa de repetência no Ensino Básico, (Brasil, 1997) trazem em sua fundamentação princi-
pois em 2001 somente 20,0% dos alunos do Ensino palmente pressupostos piagetianos, que dão alicerce
Fundamental foram aprovados. ao Construtivismo. No Construtivismo, além da
Entender o porquê de a criança não aprender Epistemologia Genética, aspectos da Aprendizagem
implica em analisar como se dá o processo inver- Significativa de Ausubel, a Teoria das Emoções de
so, ou seja, como ela aprende. Para essa compre- Wallon e, principalmente, a Zona de Desenvolvimen-
ensão, apoiar-se-á nas idéias de Vigotski1, autor rus- to Próximo de Vigotski são apresentados. Embora
so de fundamentação marxista, segundo o qual o não seja objetivo deste texto polemizar essa questão,
aprendizado é um aspecto necessário e fundamen- não se concorda com a defesa de que Vigotski e Piaget
tal para que as funções psicológicas superiores se possam ser colocados como interacionistas, como se
estabeleçam. Para Vigotski (2000), o indivíduo de- esses autores utilizassem o mesmo arcabouço teóri-
senvolve-se, em parte, graças à maturação do co. Vigotski (2000) deixa muito claro que não coadu-
organismo individual, mas é o aprendizado que pro- na com a forma que Piaget compreende a relação
voca a interiorização da função psíquica; no entan- desenvolvimento e aprendizagem. Facci (2004) des-
to, essa visão não é predominante na atualidade e taca que Vigotski analisa o desenvolvimento do
nem mesmo nos anos de 1920 e 1930. Nessa épo- psiquismo humano como atrelado às condições his-
ca, Vigotski (2000) considerava existirem pelo tóricas em que o homem se desenvolve enquanto
menos três grupos de teorias mais importantes Piaget parte de um modelo biológico para a compre-
referentes à relação entre desenvolvimento e ensão de desenvolvimento.
aprendizagem. Em suas pesquisas, Vigotski (2000) identificou dois
O primeiro grupo de teorias parte da premissa de níveis de desenvolvimento: o real ou efetivo, que cons-
que desenvolvimento e aprendizagem são independen- titui as funções psicológicas já efetivadas, formadas e
tes. Esta idéia é bem representada na teoria de Piaget, amadurecidas pelo indivíduo, como resultado de cer-
que esclarece que a aprendizagem segue o desenvolvi- tos ciclos de desenvolvimento, identificados por meio
mento. O segundo grupo afirma que aprendizagem é da solução individual do problema; e o nível de de-
desenvolvimento, e cada etapa de aprendizagem senvolvimento potencial, proximal ou próximo, defi-

1 A grafia do nome desse autor na literatura tem sido apresentada de diversas formas. Adotar-se-á como padrão Vigotski, mas no caso de fazer-se
referência a uma obra específica, será escrito da forma que aparece na obra.

324 Psicologia Histórico-Cultural e Avaliação Psicológica... • Marilda Facci, Nilza Tessaro, Záira de Rezende Gonzalez Leal, Valéria da Silva e Cintia Roma
nido como aquelas funções em vias de amadurecimen- ora a criança é culpabilizada por não aprender, ora a
to, identificadas pela solução de tarefas com o auxílio família é destacada como responsável pelo insucesso
de adultos e de outras crianças mais experientes. escolar; por vezes, ainda, fatores intra-escolares são
Enquanto aquele nível caracteriza o desenvolvimento arrolados e o professor entra em cena como vilão.
mental retrospectivamente, este o caracteriza Angelucci e cols., (2004) analisaram 71 teses e dis-
prospectivamente. Vygotski (1993, p. 239) esclare- sertações, defendidas entre 1991 e 2002, na Facul-
ce que “... a zona de desenvolvimento próximo tem dade de Educação e no Instituto de Psicologia da Uni-
um valor mais direto para a dinâmica da instrução que versidade de São Paulo e chegaram à conclusão de
o nível atual de seu desenvolvimento”. O processo que nesse período os estudos apresentam rupturas
de desenvolvimento segue o processo de aprendiza- teórico-metodológicas, compreendendo-se o fracas-
do e este é o responsável por criar a zona de desen- so escolar da seguinte forma: como um problema
volvimento proximal; portanto, o ensino deve incidir psíquico, sendo o insucesso escolar decorrente de
sobre a zona de desenvolvimento proximal. prejuízos da capacidade intelectual dos alunos, causa-
A escola tem como função trabalhar com os con- dos por problemas emocionais; como um problema
ceitos científicos, sistematizando e organizando os técnico, culpabilizando o professor por não utilizar
conteúdos, pois a apropriação destes conceitos, por metodologias adequadas à aprendizagem dos alunos;
parte dos alunos, concorre para a formação dos seus como questão institucional, entendendo a escola como
processos psicológicos superiores. Petroviski (1985) inserida em uma sociedade de classes regida pelos
assevera que a escola deveria ter como um de seus interesses do capital e, desta forma, as políticas pú-
objetivos desenvolver nos alunos as atividades men- blicas seriam responsáveis pelo fracasso escolar; como
tais necessárias para a apropriação do conhecimento. questão política, enfocando a cultura escolar, a cultu-
Ela, como esclarece Saviani (2003), deve socializar ra popular e relações de poder estabelecidas no inte-
os conteúdos já elaborados pela humanidade, de for- rior da escola que privilegiam a cultura dominante em
ma que os alunos possam participar do processo de detrimento da cultura popular. Essas autoras demons-
humanização. Nesse processo, conforme observa tram que um dos aspectos presentes nos estudos
Facci (2004), o professor tem papel destacado. Ele é sobre o fracasso escolar é o viés psicologizante, não
o mediador entre o aluno e o conhecimento, por isso contribuindo para o avanço do conhecimento acerca
lhe cabe intervir na zona de desenvolvimento proximal dessa problemática. As autoras constataram, ainda, a
dos alunos e conduzir a prática pedagógica conside- existência de uma outra vertente, com base materia-
rando a potencialidade de cada aluno. A mediação do lista histórica do fracasso, iniciada em 1980, cujos
professor implica, necessariamente, em ensinar. autores apresentam uma revisão bibliográfica pauta-
Vigotski destaca que todos os indivíduos têm ca- da em teorias críticas. No entanto, segundo as pes-
pacidade de se desenvolver desde que se elaborem quisadoras, na hora de coletar os dados e selecionar
mediações diferenciadas. Considera-se esse aspecto os procedimentos adotados, os autores dos traba-
primordial; no entanto, a forma como as dificuldades lhos analisados contradizem o que enfocaram na fun-
de aprendizagem são compreendidas e avaliadas pode damentação teórica das dissertações e teses, demons-
conduzir a estereotipias que nada fazem avançar na trando, em muitas situações, superficialidade de co-
compreensão do desenvolvimento das funções psi- nhecimento da teoria e métodos. As análises, de for-
cológicas superiores dos alunos que apresentam quei- ma geral, são particularizadas, pois os profissionais
xas escolares, dificuldades essas que podem ser re- têm realizado um processo de avaliação psicológica
metidas ao fracasso escolar. que contribui para a cristalização das explicações e,
Autores como Patto (1997, 2000), Moyses e localizam no indivíduo, a culpa do seu insucesso na
Collares (1997), Mazzotti (2003), Souza (2000), escola, patologizando um fenômeno que é social.
Machado (2000), Angelucci, Kalmus, Paparelli e Patto Considera-se, assim, que existe uma relação direta
(2004) têm pesquisado este tema e constatado que entre fracasso escolar e fracasso da sociedade capita-

Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional (ABRAPEE) • Volume 11 Número 2 Julho/Dezembro 2007 • 323-338 325
lista, pois se a escola não vai bem é porque a socieda- aborgadem psicométrica, a desenvolvimentista e a
de não vai bem. O fracasso escolar é apenas um dos cognitivista. Por outro lado, segundo pesquisas reali-
aspectos desta crise geral. Para compreender esse zadas por Facci e Silva (2006) e Facci e Roma (2005,
fenômeno, não se deve permanecer no limite do co- 2006), por meio de consultas a periódicos de Psico-
tidiano da escola, e sim, buscar analisar as relações de logia e Educação, a meta para localizar artigos que
determinação deste cotidiano, repleto de problemas, tratavam da avaliação das queixas escolares, quando
para compreender a totalidade do processo educaci- se trata desse tema, a visão psicométrica é a que mais
onal, porque com ele estão imbricadas todas as ques- tem se destacado. Em pesquisas em 2488 artigos de
tões da sociedade capitalista. Para se chegar à com- periódicos de Psicologia, Facci e Silva (2006) consta-
preensão das formas de superação do entendimento, taram que somente 6,43% dos trabalhos continham,
avaliação, encaminhamento e tratamento do fracasso em suas referências, Piaget, destacando principalmen-
escolar, identificado na escola como queixas escola- te conteúdos relacionados à Teoria da Moralidade,
res, é preciso estabelecer a relação entre escola e noções físicas e matemáticas e desenvolvimento
processo histórico. cognitivo, e não o processo de avaliação.
No que se refere à atuação da Psicologia, consta- Facci e Roma (2005) constataram que a partir de
ta-se que a introdução dessa ciência no processo 1980 foram poucas as produções que mencionaram
educativo se deu por meio da Psicometria na avalia- os autores russos. Dos 3092 artigos pesquisados,
ção psicológica, principalmente das queixas escola- apenas 122 continham em sua bibliografia pelo me-
res. Alchieri e Cruz (2003) afirmam que a Psicologia nos um ou mais de um ou os três autores russos
se desenvolveu associada à sistematização dos pro- Vigotski, Lúria e Leontiev. Assim, os artigos que apre-
cessos psíquicos básicos e ao uso experimental de sentavam pelo menos um desses três autores, cons-
formas de medidas psicológicas que tinham como tituíram apenas 3,5% do total de artigos pesquisados,
objetivo verificar os estágios de desenvolvimento e e apenas 0,11% estava relacionado à questão da ava-
aprendizagem humana. A avaliação psicológica, con- liação psicopedagógica. Em pesquisa posterior, as
forme definição de Alchieri e Cruz (2003, p. 24), se mesmas autoras (Facci & Roma, 2006), ao analisarem
refere ao “modo de conhecer fenômenos e proces- 1663 artigos, concluíram que apenas 4,87% conti-
sos psicológicos por meio de procedimentos e diag- nham em sua bibliografia pelo menos um ou mais de
nóstico e prognóstico e, ao mesmo tempo, aos pro- um ou os três autores russos. Os artigos que faziam
cedimentos de exame propriamente ditos para criar menção a Piaget totalizaram 43 (2,58%) e os que tra-
as condições de aferição ou dimensionamento dos tavam da avaliação psicológica foram apenas 15
fenômenos e processos psicológicos conhecidos”. Os (0,90%).
instrumentos de medida mais utilizados no processo Constatou-se, a partir das pesquisas mencionadas,
de avaliação psicológica têm sido os testes, principal- que as queixas escolares têm sido pouco investigadas
mente no que se refere à avaliação da inteligência. por psicólogos brasileiros e, quando analisadas, guar-
Segundo Dal Vesco, Mattos, Benicá e Tarasconi (1998) dam em seu arcabouço a visão psicometrista já pre-
e Noronha, Primi e Alchieri (2005), no Brasil, o WISC sente na origem da Psicologia na área educacional, que
é um dos instrumentos mais completos e conheci- tinha como grande preocupação procurar as causas
dos, disponíveis para avaliação global da inteligência. da não-aprendizagem utilizando recursos de testes
Gerk-Carneiro e Neves Ferreira (1992) fizeram psicológicos para medir inteligência. Partindo de uma
um estudo buscando identificar, na literatura brasilei- abordagem psicométrica, pode-se remeter a uma
ra, produzida na década de 1980, os métodos de ava- concepção inatista do desenvolvimento, a qual, con-
liação de inteligência mais utilizados nas pesquisas forme menciona Rego (1995), se caracteriza por com-
empíricas, publicados em 7 periódicos nacionais. Es- preender que os fatores maturacionais e hereditários
ses autores constataram que a inteligência foi avalia- são responsáveis pela constituição do ser humano e
da, nesse período, segundo três modelos teóricos: a do processo de conhecimento. Mesmo com a intro-

326 Psicologia Histórico-Cultural e Avaliação Psicológica... • Marilda Facci, Nilza Tessaro, Záira de Rezende Gonzalez Leal, Valéria da Silva e Cintia Roma
dução do Construtivismo no contexto educacional “[...] pensar com a criança e com o professor essa
brasileiro, principalmente a partir da década de 1990, relação estereotipada e produtora de repetência, da
que parte de um modelo interacionista piagetiano, repetição de práticas que estigmatizam, excluem,
analisando o desenvolvimento como decorrente da oprimem e rotulam”. Nesse sentido, Tanamachi e
inter-relação entre indivíduo e meio ambiente, esse Meira (2003, p. 27) destacam que o psicólogo, ao
quadro no processo de avaliação não se alterou. Fica lidar com as queixas escolares, deve fazer uma “análi-
bastante contraditório constatar-se que a psicometria, se da relação entre o processo de produção da quei-
e não o método clínico, tem servido de referência xa escolar e os processos de subjetivação/objetivação
para os psicólogos realizarem o processo de avalia- dos indivíduos nele envolvidos, como uma mediação
ção das queixas escolares. No caso da psicometria necessária à superação das histórias de fracasso es-
não é possível compreender a influência das condi- colar”, pois a “queixa” deve ser compreendida como
ções histórico-sociais no desenvolvimento da inteli- uma “síntese de múltiplas determinações”, dependen-
gência, questão defendida pela Psicologia Histórico- do da sua superação na ação conjunta de todos os
Cultural, destacando quanto a aprendizagem promo- aspectos envolvidos no processo de escolarização:
ve o desenvolvimento. relações familiares, grupos de amigos e contexto so-
Na realidade, segundo Machado (2000), tornou- cial e escolar.
se “natural” acreditar na possibilidade de medir a in- Em termos gerais, o desenvolvimento das fun-
teligência; no entanto, a padronização dos testes psi- ções psicológicas e a aprendizagem de conteúdos
cológicos tem desconsiderado as desigualdades são considerados como um fenômeno estanque, e
sociais e culturais existentes em nosso sistema capi- não como um processo que acontece na interação
talista, avaliando a capacidade individual das pessoas entre professor, aluno e conhecimento. Neste sen-
como se estas fossem construídas fora das relações tido, concorda-se com Meira (2000, p. 57), quando
sociais. Para essa autora, a queixa escolar é constituí- afirma que “[...] parece que cada vez mais se evi-
da de uma história coletiva e a avaliação implica em dencia a necessidade de se compreender a questão
buscar alterar a produção dessa queixa. Beatón do desempenho escolar, contextualizando-o no âm-
(2001), por sua vez, também critica a vulgarização e bito de um processo maior”, pois tal atitude ainda
a prática anticientífica do uso dos testes; a falta de está muito longe de ser hegemônica entre os psicó-
uma base teórica que fundamente os testes; a utiliza- logos. Não se pode, nesse aspecto, afirmar que to-
ção de seus resultados somente para fazer diagnósti- das as práticas psicológicas se desenvolvem dessa
co, e não para propor alternativas de trabalho; a pa- forma. Facci (1996), Souza (2000), Machado
dronização inadequada para determinadas classes so- (2000), entre outros pesquisadores, têm buscado
ciais; a utilização de testes somente para classificar e propor formas de avaliação psicológica que analisem
discriminar. as causas das queixas escolares como fruto das rela-
Geralmente, pode-se constatar na atualidade que ções instituídas na escola, necessitando, portanto,
o entendimento e atendimento das queixas escolares do envolvimento mais amplo possível de professo-
ainda são enviesados por uma visão tradicional da Psi- res, pais, equipe pedagógica e do próprio aluno na
cologia, tendo como encaminhamento final as unida- compreensão das problemáticas enfrentadas no pro-
des básicas de saúde para sanar esse problema. Sou- cesso de escolarização; no entanto, essa prática não
za (2000) enfatiza que o encaminhamento para aten- é hegemônica entre os psicólogos.
dimento médico e psicológico das dificuldades de A partir da década de 90, outra forma de avalia-
aprendizagem tem sido uma tônica presente nos mei- ção, denominada avaliação dinâmica (ou mediada, ou
os escolares, sem uma análise ampla dos processos assistida) começou, também, a ser discutida no Bra-
que produziram a queixa escolar. É com o processo sil. De acordo com Lunt (1994, p. 232), esse tipo de
que o psicólogo deve se preocupar, e sua interven- avaliação “[...] envolve uma interação dinâmica entre
ção, segundo Souza (2000, p. 127), deve primar por examinador e aluno (examinado) com mais ênfase so-

Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional (ABRAPEE) • Volume 11 Número 2 Julho/Dezembro 2007 • 323-338 327
bre o processo do que sobre o produto da aprendiza- do supera a concepção inatista, ambientalista e
gem” (grifos do autor). Interessa, nesse aspecto, com- interacionista do desenvolvimento humano, pois para
preender “como” a criança aprende, ao invés de avali- esses autores, as funções psicológicas superiores,
ar “o quê” ela já aprendeu. Linhares, Escolano e Enumo tipicamente humanas (tais como a atenção voluntá-
(2006, p. 16) propõem, também, esse tipo de avali- ria, memória, abstração, comportamento intencio-
ação assistida e afirmam: nal etc.), são produto da atividade cerebral e têm
uma base biológica, mas, fundamentalmente, são re-
“A idéia da avaliação assistida ou dinâmica, a qual sultantes da interação do indivíduo com o mundo,
defende a avaliação de ‘processos’ mais do que ‘pro- interação mediada pelos objetos construídos pelos
dutos’ de aprendizagem, surgiu com a introdução da homens.
teoria de Vygotski por Brown e Ferrara, e das idéias Para Vigotski, que parte da base filosófica marxis-
de Reuven Feuerstein por C. Haywood, na Psicolo- ta, o traço fundamental da atividade humana é a medi-
gia norte-americana atual. Originou-se de concep- ação, através de instrumentos que se interpõem en-
ções teóricas sobre a plasticidade da cognição huma- tre o sujeito e o objeto de sua atividade, instrumen-
na e da necessidade prática de encontrar novas me- tos esses desenvolvidos pelo processo de trabalho.
didas de diagnóstico para crianças que não se saiam Vigotski (2004) enfatiza que todo e qualquer com-
bem em testes convencionais. Os conceitos de ‘zona portamento se transforma em uma operação intelec-
de desenvolvimento proximal’ (ZDP), de Vygotski e tual, mediada por dois tipos de instrumento: instru-
a ‘teoria de aprendizagem mediada’ ou da ‘experi- mento psicológico e instrumento técnico. Uma dife-
ência da aprendizagem mediada’ (MLE), de rença muito importante entre o instrumento psicoló-
Feüerstein, formam a base conceitual para elabora- gico e o técnico é a orientação do primeiro para a
ção da avaliação assistida ou dinâmica [...]”. psique e o comportamento e do segundo para o
objeto externo, provocando modificações no objeto.
A avaliação dinâmica pode complementar, mas não O instrumento psicológico, ao contrário, é um meio
substituir os testes de QI e sua contribuição mais sig- de influir em si mesmo (ou em outro), mas não no
nificativa, de acordo com Linhares (1995), advém da objeto.
possibilidade de fazer a sondagem da sensibilidade do Vygotsky e Luria (1996, p. 183) afirmam que a
examinando à instrução e identificar as estratégias capacidade de fazer uso de ferramentas torna-se um
cognitivas que ele usa para a solução de tarefas, per- indicador do nível de desenvolvimento psicológico dos
mitindo verificar alterações no seu desempenho du- indivíduos, pois os “processos de aquisição de ferra-
rante a situação de avaliação assim como estimar o mentas, juntamente com o desenvolvimento específi-
potencial de transferência e generalização de apren- co dos métodos psicológicos internos e com a habi-
dizagem. Pode-se afirmar, quanto a esse aspecto, que lidade de organizar funcionalmente o próprio com-
a avaliação é mediada pelo examinador, que fornece portamento, é que caracterizam o desenvolvimento
pistas e orienta o sujeito na realização das atividades. cultural da mente da criança”.
O conceito de aprendizagem mediada, de acordo com De acordo com Vygotski (1995), o método ins-
Linhares (1995), teve implicações significativas na área trumental pode ser muito útil para o estudo das fun-
de avaliação do desempenho intelectual, buscando se ções psicológicas superiores. O importante é fazer
apropriar dos conceitos de mediação e de zona de uma análise do processo, e não do objeto, e uma aná-
desenvolvimento próximo, elaborados por Vigotski. lise explicativa, e não descritiva; e, finalmente, a análi-
No contexto de questionamentos dos testes pa- se genética. Nesse sentido, é fundamental, nesse mé-
dronizados de medida de desempenho e habilida- todo, investigar os momentos iniciais do desenvolvi-
des, os estudiosos soviéticos da escola de Vigotski mento das funções psicológicas superiores, numa
propuseram a avaliação do potencial de aprendiza- perspectiva histórica, pois essas funções foram cons-
gem por meio do método instrumental. Esse méto- tituídas por diversos processos elementares e pri-

328 Psicologia Histórico-Cultural e Avaliação Psicológica... • Marilda Facci, Nilza Tessaro, Záira de Rezende Gonzalez Leal, Valéria da Silva e Cintia Roma
mários do comportamento. O principal aspecto do graduação latto sensu e dois stricto sensu (um
método de análise psicológico, proposto por Vigotski, mestrado e um doutorado). O tempo de atuação pro-
é estudar o todo, as propriedades e funções das par- fissional varia de um a trinta e cinco anos (um partici-
tes que o integram, não como somatória das partes, pante); 33,3% deles estão entre a faixa de um a cinco
mas possuindo propriedades particulares que o de- anos de experiência profissional, 25% de onze a quin-
terminam. ze anos, 16,8% entre seis e dez anos; 8,3% possu-
A partir do método instrumental, a avaliação da- em experiência entre as faixas que vão de dezesseis a
queles conhecimentos que estão no nível de desen- vinte anos; também 8,3% de vinte e um a vinte cinco
volvimento próximo é fundamental, ultrapassando as anos e, ainda, 8,3% para os que possuem de vinte
avaliações estáticas por meio de testes psicológicos seis a trinta anos de experiência na profissão.
de inteligência, que têm tido a preocupação de ava-
liar apenas o que se encontra no nível de desenvolvi- Material
mento real do sujeito, desconsiderando, inclusive, o Durante a pesquisa, foram utilizados:
crescimento que este tem no próprio processo Termo de consentimento livre e esclarecido: en-
avaliativo. tregue aos participantes para que pudessem confir-
Nesta introdução buscou-se destacar algumas vi- mar o recebimento de informações sobre o objetivo
sões presentes em relação a uma concepção de de- do estudo e dar o seu consentimento para a partici-
senvolvimento e aprendizagem, passando por estu- pação na pesquisa;
dos sobre a queixa escolar e o processo de avaliação Ficha de identificação dos participantes: por meio
destas queixas e chegando a uma discussão de teorias da qual foi possível obter dados relativos à idade,
que tratam dessa problemática, enfatizando pressu- sexo, nível escolaridade etc;
postos da escola de Vigotski. Um questionário composto pelas seguintes
Na seqüência, dar-se-á continuidade ao texto, desta questões:
vez apresentando o resultado de entrevistas, realiza- Como você compreende o processo ensino-
das com psicólogos, cujo objetivo constituiu-se em aprendizagem? Do seu ponto de vista, quais são as
verificar a forma como os profissionais realizam a ava- causas das dificuldades no processo de escolarização?
liação psicológica de crianças que apresentam dificul- Quais são os autores contemplados nos seus estudos
dades no processo de escolarização. sobre o processo de avaliação psicológica na escola?
Que instrumentos, incluindo os testes psicológicos,
você tem utilizado para avaliar as dificuldades no pro-
Método cesso de escolarização? Após a avaliação, quais os
procedimentos adotados para o encaminhamento e
Participantes intervenção em relação às dificuldades no processo
Participaram desta pesquisa doze profissionais da de escolarização?
área de Psicologia, sendo duas psicólogas escolares
da rede particular de ensino; três supervisoras de Procedimentos
estágio em Psicologia Escolar; duas psicólogas do Inicialmente, realizou-se uma revisão bibliográfica
Núcleo Regional de Ensino de Maringá; quatro psicó- sobre o tema da avaliação psicológica e sobre os con-
logas escolares de Rede Municipal de Ensino; um psi- ceitos fundamentais da Psicologia Histórico-Cultural
cólogo de escola especial. Dos participantes, onze com o objetivo de subsidiar a análise dos dados le-
(91,7%) são do gênero feminino e um do masculino, vantados junto aos participantes.
com idades variando entre 26 a 60 anos (um partici- Em seguida, foram feitos os contatos com os
pante); 25% deles encontram-se na faixa etária de 26 profissionais por meio de telefone, pela coordena-
a 30 anos e 66,8% entre 31 e 50 anos. Quanto à dora do Projeto, convidando-os a participar da pes-
escolaridade, oito (66,7%) possuem curso de pós- quisa. Após, foi realizado um outro contato com

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os mesmos, para agendar o local e o horário para a A Tabela 1 apresenta os dados relativos à con-
aplicação do questionário. Na hora estabelecida, foi cepção do processo ensino-aprendizagem, presente
solicitado que os participantes preenchessem o entre os participantes. Os resultados mostram que
termo de consentimento, momento também em a concepção prevalente entre os participantes
que foram fornecidas as informações gerais do pro- (25%) foi a de que se trata de um processo que
jeto assim como endereço de contato. Vale ressal- envolve um sujeito que ensina (professor), o aluno
tar ainda que o projeto foi aprovado pelo Comitê e o conhecimento; seguida da concepção que se
Permanente de Ética em Pesquisa Envolvendo Se- refere a um processo que envolve planejamento,
res Humanos, da UEM, conforme Parecer no. 154/ organização e mediação, considerando o aluno como
2003 ativo (16,6%).
Posteriormente ao consentimento de cada um Destaca-se, entre as respostas fornecidas pelos
deles, o questionário foi aplicado, sendo que alguns profissionais, diversidade na compreensão do proces-
participantes optaram por respondê-lo oralmente e so ensino-aprendizagem, passando por aspectos que
outros preferiram responder por escrito. vão desde uma visão vigotskiana, uma visão piagetiana,
incluindo ainda uma visão comportamental. Esta di-
versidade foi também constatada por Vigotski (2000),
Resultados e Discussão que por volta de 1930, identificou algumas concep-
ções de desenvolvimento e aprendizagem presentes,
A organização dos dados foi feita com base nos as quais continuam até hoje norteando o trabalho do
questionários aplicados. Esses dados foram psicólogo na escola.
categorizados, apresentados em tabelas e discutidos/ Considera-se que uma questão fundamental para
analisados com base no referencial teórico, utilizado a atuação do psicólogo escolar-educacional é ter
no presente estudo. clareza acerca da concepção teórica sobre a rela-

Tabela 1 - Como você compreende o processo ensino-aprendizagem

330 Psicologia Histórico-Cultural e Avaliação Psicológica... • Marilda Facci, Nilza Tessaro, Záira de Rezende Gonzalez Leal, Valéria da Silva e Cintia Roma
ção desenvolvimento e aprendizagem, pois somente tam da questão da Psicologia e da Educação assim
desta forma empreenderá práticas consistentes já como recorrem, muitas vezes, a autores de outras
que sua ação reflete sua concepção e as escolhas linhas da Psicologia, como a psicanálise e a análise
quanto à metodologia a ser utilizada em seu traba- comportamental. Foram, ainda, arrolados autores
lho. Não obstante, a partir da análise desta questão que escrevem sobre educação em uma vertente crí-
e das respostas dos participantes como um todo, tica da Psicologia Escolar-Educacional sobre proble-
não se pode afirmar que estes tenham clareza quan- mas e distúrbios de aprendizagem.
to aos fundamentos teórico-metodológicos, utili- O que merece ser destacado é a grande indica-
zados em seu trabalho. Isso pode ser exemplificado ção de autores da psicologia da escola russa para a
pelos autores contemplados nos estudos empre- compreensão do processo de avaliação psicológica
endidos pelos participantes da pesquisa, que citam, na escola, o que se contrapõe às pesquisas realiza-
quando se trata da avaliação psicológica na escola, das por Facci e Silva (2006), Facci e Roma (2005,
autores de correntes teóricas bem diversas, colo- 2006), que constataram, nos artigos analisados em
cando-os lado a lado. periódicos de psicologia e educação, pouca utiliza-
Os dados apresentados na Tabela 2 revelam que ção, nas referências, de autores da Psicologia Histó-
os autores mais citados pelos participantes foram rico-Cultural e grande ênfase na psicometria.

Tabela 2 - Quais são os autores contemplados nos seus estudos sobre o processo de avaliação
psicológica na escola?

Luria, Leontiev, Vigotski, Davidov com 14,3% das Em relação às causas das dificuldades no processo
respostas. de escolarização, a Tabela 3 aponta maior consenso
O que se pode constatar é que Piaget e Vigotski entre os participantes. Das respostas, 43,6% refe-
foram os autores mais pesquisados ou lidos pelos rem-se às causas das dificuldades no processo de
participantes da pesquisa. Torna-se importante des- escolarização como oriundas de fatores intra-escola-
tacar, neste momento, que os Parâmetros res, como formação do professor, vínculo entre pro-
Curriculares Nacionais (Brasil, 1997), documento fessor e aluno, adequação e adaptação curricular,
que norteia o processo pedagógico na escola, tam- métodos e objetivos do ensino. Os fatores extrínsecos
bém trazem em sua fundamentação idéias desses - tais como falta de estimulação visual, condições só-
autores, o que sugere que os sujeitos estão se cio-econômicas e culturais desfavoráveis da família se
embasando, de forma geral, nesses autores que tra- refletindo no desempenho escolar dos alunos - apa-

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Tabela 3 - Do seu ponto de vista, quais são as causas das dificuldades no processo de escolarização?

recem com um percentual de 26,1%. Alguns partici- pesquisada na qual muito pouco se levam em con-
pantes atribuem as dificuldades a fatores sociais (8,7% sideração os determinantes histórico-sociais que
das respostas), outros consideram que o problema é produzem o fracasso escolar.
a falta de recursos (8,7%). Outras explicações Os dados, apresentados na Tabela 4, demons-
fornecidas pelos participantes remetem-se à falta de tram que dentre os instrumentos, incluindo os tes-
envolvimento do psicólogo no processo ensino-apren- tes psicológicos, utilizados para avaliar as dificul-
dizagem; causas vinculadas à totalidade histórico-so- dades no processo de escolarização, a entrevista
cial; à falta de condições da escola (professor auxiliar, com pais e a anamnese aparecem com a maior
contraturno); a fatores intrínsecos, que se referem a freqüência de respostas (14,1%), seguindo-se ob-
aspectos individuais, como deficiências, síndromes, servação do aluno na escola (12,5%) e análise do
dificuldades cognitivas, problemas do desenvolvimen- desempenho escolar por meio de materiais pro-
to socio-emocional, aspectos neuropsicológicos. duzidos pelos alunos (10,9%). Esses procedimen-
Reportando-se ao artigo de Angelucci e cols. tos foram os mais freqüentes na indicação dos par-
(2004), observa-se que as respostas dos partici- ticipantes, mas são citados, ainda, outros, confor-
pantes também refletem a presença de rupturas me a Tabela.
teórico-metodológicas, tal como a pesquisa reali- Recorrendo mais uma vez à pesquisa de Facci e
zada por aquelas autoras que apresentam as cau- Silva (2006) e Facci e Roma (2005, 2006), as autoras
sas do insucesso escolar como decorrentes de pro- constataram que existe predominância de uma visão
blemas psíquicos, extrínsecos aos alunos. Para tan- psicométrica na avaliação das queixas escolares. No
to, partem do princípio de que o insucesso esco- entanto, esse grupo de psicólogos parece, de certa
lar é decorrente de prejuízos da capacidade inte- forma, avançar em relação a este aspecto, buscando
lectual dos alunos oriundos de problemas emoci- outros procedimentos, como entrevistas com pais,
onais, ou resulta de fatores intra-escolares. Algu- com a criança e com o professor, observações em
mas consideram o fracasso escolar como questão sala de aula, análise do desempenho escolar, entre
institucional, decorrente de a escola estar inserida outros recursos, para analisar o potencial de aprendi-
em uma sociedade capitalista. O viés zagem dos alunos.
psicologizante, de que tratam Angelucci e cols. Os dados da Tabela 5 demonstram que os testes
(2004), parece estar presente na amostra mais utilizados pelos participantes são o teste de in-

332 Psicologia Histórico-Cultural e Avaliação Psicológica... • Marilda Facci, Nilza Tessaro, Záira de Rezende Gonzalez Leal, Valéria da Silva e Cintia Roma
Tabela 4 - Que instrumentos, incluindo os testes psicológicos, você tem utilizado para avaliar as
dificuldades no processo de escolarização?

teligência WISC (27,6%), o Teste Gestáltico psicólogos entrevistados utiliza mais de um teste, de
Visomotor – Bender (13,9%), o Colúmbia (13,9%), forma combinada.
seguidos pelos testes Raven (7%) e as Provas Entretanto, é importante destacar que, segun-
Piagetianas (7%). Outros testes também foram cita- do Gerk-Carneiro e Neves-Ferreira (1992), a
dos, porém com menor freqüência. A maioria dos psicometria constitui-se como um modelo teó-
Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional (ABRAPEE) • Volume 11 Número 2 Julho/Dezembro 2007 • 323-338 333
Tabela 5 - Testes Psicológicos

rico para avaliação de inteligência na literatura bra- (6,8%). Outros procedimentos são também utili-
sileira e não ocupa lugar de destaque entre os zados em menor freqüência, como se observa na
sujeitos entrevistados. Quando estes recorrem Tabela 6.
à aplicação de testes, constata-se que o Wisc é Neste aspecto vale recorrer aos estudos desen-
mais utilizado. Este fato demonstra haver uma volvidos por Souza (2000), pois concluiu que a maio-
certa hegemonia entre os brasileiros, conforme ria dos encaminhamentos feitos aos profissionais de
observam Dal Vesco e cols. (1998), Noronha e Psicologia em unidades básicas de saúde apresenta
cols. (2005). como queixa os problemas de aprendizagem das cri-
Em relação aos procedimentos adotados para o anças. Por esta amostra, pode-se dizer que boa parte
encaminhamento e intervenção relativos às dificul- dos psicólogos entrevistados continua, ainda, enca-
dades no processo de escolarização, os participan- minhando crianças com queixas escolares para essas
tes demonstraram utilizar mais de um procedimento unidades. Está certo que se deve ressaltar positiva-
de forma combinada. A Tabela 6 mostra que 20% mente a preocupação em envolver a escola na devo-
das respostas dos participantes dizem respeito ao lução do processo de avaliação, mas não se pode dei-
encaminhamento do aluno para a área de saúde. xar de questionar até que ponto se tem prestado um
Além desse procedimento, o que aparece em se- serviço de apoio a crianças no próprio espaço esco-
guida é a devolução à escola, envolvendo a profes- lar. Compreende-se que tal encaminhamento implica-
sora e a equipe pedagógica (13,4%). São utiliza- ria na utilização de recursos externos à possibilidade
dos, também, encaminhamentos para trabalho de intervenção da Psicologia, mas não se pode deixar
psicopedagógico (6,8%); entrega de relatório so- de mencionar quanto as escolas precisam se organi-
bre o aluno avaliado para a escola (6,8%); devolu- zar melhor para que todas as crianças se apropriem
ção em conjunto para a família, a escola e a criança do conhecimento.
334 Psicologia Histórico-Cultural e Avaliação Psicológica... • Marilda Facci, Nilza Tessaro, Záira de Rezende Gonzalez Leal, Valéria da Silva e Cintia Roma
Tabela 6 - Após a avaliação, quais os procedimentos adotados para o encaminhamento e intervenção
em relação às dificuldades no processo de escolarização?

Considerações Finais liação psicológica na escola: uma que defende o uso


dos testes psicológicos padronizados, sendo a
Durante a pesquisa bibliográfica foi possível não Psicometria o método adotado; outra que defende a
só conhecer práticas exercidas por psicólogos esco- utilização de testes psicológicos, mas utiliza o recur-
lares no Brasil como também procedimentos e ins- so da mediação, pautado nos pressupostos
trumentos utilizados para avaliação de queixas esco- vigotskianos, tratando-se, portanto de avaliação me-
lares, assim como ter acesso a aspectos teóricos re- diada ou assistida, e uma terceira que utiliza outros
lacionados à compreensão das queixas escolares e recursos como entrevistas com professores, com as
avaliação psicológica. Foi também possível analisar famílias e com as próprias crianças, atividades realiza-
várias produções teóricas que tinham como pressu- das pelos alunos, observações no contexto escolar,
posto a Psicologia Histórico-Cultural. análise dos fatores intra-escolares, assim como ou-
De forma geral, verifica-se na literatura estudada a tros aspectos. Entre os participantes deste estudo
presença de pelo menos três linhas de estudo da ava- não foi possível identificar nenhuma destas três ten-

Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional (ABRAPEE) • Volume 11 Número 2 Julho/Dezembro 2007 • 323-338 335
dências citadas, visto que se observou uma utilização perspectiva, a avaliação deve compreender como a
combinada de diversos instrumentos, ampliando o uso criança está mediando suas respostas. Faz-se neces-
de testes padronizados com outras atividades não- sário investigar o seu comportamento e desenvolvi-
formais para lidar com as queixas escolares encontra- mento por meio da descoberta dos instrumentos
das em seu cotidiano. psicológicos que ela mesma emprega.
Pode-se inferir que as críticas formuladas no de- Neste estudo, observou-se, ainda, que as causas
correr dos anos aos testes psicológicos provavelmen- das dificuldades no processo de escolarização devem-
te influenciaram os psicólogos entrevistados, provo- se, para muitos participantes, a fatores intra-escola-
cando a busca de outras estratégias para analisar as res, como formação do professor, vínculo entre pro-
queixas escolares de modo a fugirem do uso exclusi- fessor e aluno, adequação e adaptação curricular,
vo dos testes. Machado (2000) e Molyses e Collares métodos e objetivos do ensino. Apesar de considera-
(1997) e Beatón (2001), conforme abordou-se no rem estes fatores, os participantes continuam a bus-
decorrer deste artigo, têm questionado o uso exclu- car, na própria criança, as justificativas para suas difi-
sivo de teste. De acordo com os estudos realizados culdades uma vez que continuam a utilizar amplamen-
acerca da Psicologia Histórico-Cultural, utilizando o te testes e outros procedimentos do gênero. Neste
método instrumental, não interessa estudar uma fun- aspecto, podem-se retomar os estudos realizados por
ção psicológica isolada no processo de avaliação psi- Angelucci e cols. (2004) que destacam o quanto o
cológica, mas sim, o funcionamento conjunto dessas viés psicologizante ainda está presente nas explica-
funções, em atividades diversificadas. Não se trata de ções acerca do fracasso escolar influenciado, princi-
analisar o repertório de conhecimentos já adquiridos palmente, por uma visão ideológica pautada no libe-
pela criança, e sim os recursos que ela utiliza para ralismo que coloca no indivíduo a responsabilidade
responder a uma questão. No caso da avaliação atra- pelo seu sucesso ou fracasso, desconsiderando a di-
vés de testes psicológicos padronizados não é possí- visão de classes sociais, fruto do capitalismo, que pe-
vel compreender a influência das condições históri- las relações sociais estabelecidas diferenciam os indi-
co-sociais no desenvolvimento da inteligência, ques- víduos, não dando a todos as mesmas condições para
tão defendida pela Psicologia Histórico-Cultural, des- o desenvolvimento de todas suas potencialidades, in-
tacando quanto a aprendizagem promove o desen- clusive a de se apropriar do conhecimento.
volvimento. Constatou-se que, após a realização da avaliação da
Não se pode deixar de mencionar, aqui, a media- queixa escolar, o procedimento mais utilizado para o
ção do avaliador, pois quando esta é utilizada e pistas encaminhamento e intervenção, pelos participantes, foi
são fornecidas ao indivíduo, podem-se ter resultados o encaminhamento do aluno para a área da saúde, o
diferentes daqueles obtidos quando este realiza a que reforça a concepção de que as dificuldades encon-
atividade, sozinho. No entanto, não basta apenas tram-se na própria criança, o que estaria de acordo
mediar a aplicação dos testes psicológicos, tão ques- com uma concepção inatista de desenvolvimento, a qual,
tionados por diversos psicólogos. É importante estu- conforme menciona Rego (1995), se caracteriza por
dar a origem de determinado comportamento, como compreender que os fatores maturacionais e heredi-
se deu seu desenvolvimento e que fatores tários são responsáveis pela constituição do ser huma-
condicionaram sua manifestação. no e do processo de conhecimento.
Os resultados da pesquisa demonstram que os Destaca-se, neste momento, que aqui tem se de-
autores citados com mais freqüência pelos participan- fendido que a análise do desenvolvimento da criança,
tes são integrantes da Escola de Vigotski, ou Teoria das suas dificuldades e potencialidades, deve ser
Histórico-Cultural, porém a utilização de estratégias permeada por uma compreensão de que o sucesso
e instrumentos para realizar a avaliação das queixas escolar depende de mudanças estruturais que dêem
escolares não mostra serem considerados os pressu- destaque à educação e à escola, na transmissão dos
postos desta vertente teórica, uma vez que, nesta conhecimentos científicos. Partindo das idéias de

336 Psicologia Histórico-Cultural e Avaliação Psicológica... • Marilda Facci, Nilza Tessaro, Záira de Rezende Gonzalez Leal, Valéria da Silva e Cintia Roma
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res, é importante salientar como analisar a história da lho do professor? Um estudo crítico-comparativo da teoria do pro-
produção da queixa, o contexto em que ela foi produ- fessor reflexivo, do construtivismo e da psicologia vigotskiana.
zida, as medidas pedagógicas tomadas para a supera- Campinas: Autores Associados.
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Facci, M. G. D., & Roma, C. G. (2006). A avaliação psicológica
possam auxiliar na compreensão e na avaliação da
das queixas escolares. Relatório final de Projeto de Iniciação
potencialidade da criança; na utilização de testes psico-
Científica. Maringá, UEM. Mimeo.
lógicos como complemento da avaliação e não como
critério de classificação e discriminação. Facci, M. G. D., & Silva, V. G. (2006). Problemas de escolarização
e avaliação psicopedagógica: a visão de pesquisadores e psicólo-
Por fim, fazer uma avaliação analisando todos os
gos. Relatório final de Projeto de Iniciação Científica. Maringá,
aspectos que podem estar interferindo na apropria-
UEM. Mimeo.
ção do conhecimento pelo aluno, considerando as
condições histórico-sociais, fatores intra-escolares e Facci, M. G. D., Marchi, E. L., Bega, R. M. A. P., Brogim, R.,
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Recebido em: 04/04/2007


Revisado em: 26/12/2007
Aprovado em: 17/01/2008

Sobre as autoras

Marilda Gonçalves Dias Facci (marildafacci@wnet.com.b) – Doutora em Educação Escolar pela UNPES/Araraquara; professora do curso de Psicologia
da Universidade Estadual de Maringá-UEM e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia-PPI; coordenadora do Programa de Pós-Graduação em
Psicologia/UEM.

Nilza Sanches Tessaro Leonardo - Doutora em Psicologia pela PUC/Campinas; professora do curso de Psicologia da Universidade Estadual de Maringá
–UEM e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia-PPI

Záira Fátima de Rezende Gonzalez Leal - Mestre em Educação pela UNESP/Marília; doutoranda em Psicologia na USP/SP, professora do curso de
Psicologia da Universidade Estadual de Maringá-UEM

Valéria Garcia da Silva - Aluna do curso de Psicologia da Universidade Estadual de Maringá-UEM

Cintia Godinho Roma - Aluna do curso de Psicologia da Universidade Estadual de Maringá-UEM

Endereço para correspondência

Marilda Gonçalves Dias Facci


Rua Parque do Horto, 124, Jardim Parque do Horto
Fone: (44) 3261-4416 (UEM)
CEP: 87.060-285 – Maringá-PR
e-mail: marildafacci@wnet.com.br

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