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ISSN 1413-389X Temas em Psicologia da SBP—2004, Vol.

12, no 1, 18– 27

A Supervisão didática no contexto da formação psicoterapêutica


Eliana Rigotto Lazzarini e Terezinha de Camargo Viana
Universidade de Brasília

José Vanderlei dos Santos Rolim, Cássio Marcelo Batista Veludo


e Ludmila Diniz

Resumo
Destacamos neste artigo aspectos que consideramos fundamentais para o processo de ensino/aprendizagem
em psicologia clínica, baseados em nossa experiência como supervisores para alunos de graduação em Psi-
cologia na Universidade de Brasília. Enfocamos particularmente a formação do papel de terapeuta enfati-
zando nisto a relevância da supervisão. Destacamos o Psicodrama como método de trabalho e a utilização
do role playing como técnica. Nosso objetivo mais amplo é contribuir para a reflexão sobre as característi-
cas do ensino clínico, bem como sobre a qualidade da formação do psicólogo.
Palavras chave: Psicodrama, supervisão, role playing, clima terapêutico.

Supervision in the context of psychotherapy knowledge


Abstract
The authors emphasize, in the present article, some fundamental aspects of the teaching process in clinical
psychology based on their own experience as supervisors of psychology undergraduate students at the
University of Brasilia. The authors focused on the learning of a therapist’s role emphasizing the relevance
of supervision of the student by other therapist. The authors also emphasize Psychodrama as a
methodology for the training of clinical psychologists, as well as role playing as a teaching technique. Te
authors major aim was to contribute to the discussion of the necessary features of the training of clinical
psychologists learning and of the psychologist’s qualification.
Key words: Psychodrama, supervision, role playing, therapeutic environment.

Considerações iniciais
Este artigo se propõe a mostrar uma experiência de supervisão de estágio em grupo, com a utilização
do Psicodrama como método de trabalho, no Centro de Atendimento e Estudos Psicológicos – CAEP - a
Clínica/Escola do Departamento de Psicologia da Universidade de Brasília. Este estudo compreende o perí-
odo de 2000 a 2003, durante seis semestres consecutivos.
Pensamos, inicialmente, que alguns esclarecimentos sobre o funcionamento do CAEP se fazem perti-
nente. Trata-se de uma clínica-escola pública, que tem a função de proporcionar estágios para a formação
clínica dos alunos e de prestar serviços à comunidade, oferecendo, também, campo para a pesquisa científi-
ca. De acordo com o Regulamento Interno (2001) específico “o CAEP, unidade especial de ensino teórico-
prático, pesquisa e extensão do Instituto de Psicologia da UnB, tem por finalidade a prestação de serviços
psicológicos nas áreas de clínica, educação e trabalho1” (p. 7), compreendendo atividades de atendimento
clínico, ensino, pesquisa e extensão em psicologia, abrangendo as prestações de serviços no local ou fora
dele, para as comunidades interna e externa.
_________________________________________________________________________________

Endereço para correspondência: SHIN QL 05 conjunto 06 casa 15 Brasília DF – E-mail: elianarl@terra.com.br


1. Nas normas de funcionamento do CAEP está prevista a observação do atendimento, pelo estagiário, através do es-
pelho unidirecional. Os clientes são devidamente avisados e assinam termo de anuência junto ao CAEP na ocasião de
sua inscrição ao programa.
19 E. R. Lazzarini, T. C. Viana, J. V. S. Rolim, C. M. B. Veludo e L. Diniz

O CAEP destaca-se como unidade espe- coterápico com a utilização do Psicodrama,


cialmente configurada para a formação do alu- como método de trabalho, e participação nos
no de graduação em Psicologia. Utiliza equipa- grupos de supervisão. A modalidade de aten-
mentos e técnicas diferenciadas, sendo sua me- dimento clínico (grupo ou individual) é efetu-
ta principal a capacitação do aluno (estagiário e ada pelos alunos a pacientes adolescentes e
de disciplinas), a produção de conhecimento adultos.
especializado (pesquisas e atividades de exten- O programa de estágio é semestral. O
são) e sua divulgação, com o intuito básico de grupo de supervisão deve conter, preferencial-
promover a necessária e indispensável intera- mente, de oito a dez alunos. As sessões de
ção com a comunidade. supervisão se realizam semanalmente por du-
O Programa de Estágio Supervisionado é as horas o que possibilita que cada supervisio-
um programa que visa manter um espaço teóri- nando possa trabalhar seu material clínico
co-prático de estudo permanente oferecendo ao pelo menos a cada duas sessões.
aluno campo de aprendizagem e atuação e, aos Os alunos atuam, em seus atendimen-
docentes, pesquisa e prática. De acordo com o tos, geralmente, em duplas consagrando os
Manual de orientação dos estágios realizados papéis de Diretor em Psicodrama e de Ego
no CAEP (2001): Auxiliar. Além disto, para maior aproveita-
O Estágio Supervisionado Psicólogo mento do espaço disponível para a prática de
insere-se na estrutura curricular do curso atendimento, um grupo de alunos participa
de Psicologia da Universidade de Brasí- também da sessão psicoterápica através da
lia por meio de três disciplinas denomi- observação na sala de espelhos.
nadas Estágio Supervisionado 1, 2 e 3, O contrato de trabalho estabelecido en-
exigindo do aluno uma dedicação a 510 tre os participantes do grupo de supervisão,
horas de prática profissional específica, supervisores e alunos, é feito a cada semestre
sob supervisão sistemática dos e prevê aspectos relativos à participação dos
professores/supervisores dos quatro de- alunos no estágio, às normas de sigilo em re-
partamentos do Instituto de Psicologia. lação aos pacientes e ao próprio grupo e à ori-
O requisito geral para esse estágio é que entação sobre a elaboração do relatório de
o aluno tenha cumprido pelo menos 2/3 atendimento.
dos créditos do currículo dessa habilita- Durante as sessões de supervisão são
ção e que atenda aos critérios estabeleci- utilizadas vivências, jogos e técnicas psicodra-
dos pelo professor supervisor, em função máticas com o objetivo de ampliar o “como
da especificidade das atividades previs- fazer” próprio do papel que está em treina-
tas no estágio (p. 6). mento. O objetivo é que tais atividades e vi-
vências desenvolvidas durante o processo,
A supervisão ocorre através do acompa- bem como a interação do grupo através dos
nhamento, pelo supervisor, do trabalho de aten- comentários e do compartilhamento, possam
dimento clínico efetuado pelos alunos da gra- provocar no supervisionando uma ampliação
duação aos pacientes encaminhados pelo CA- do conhecimento de si mesmo, o que vai favo-
EP. A clientela para supervisão se caracteriza recer uma melhor compreensão de sua identi-
por alunos da graduação em fase de estágio que dade profissional.
estejam cursando as disciplinas Estágio Super- Além do trabalho prático de supervisão,
visionado Psicólogo 1, 2 e 3. Participam tam- os grupos ainda têm a oportunidade de partici-
bém do programa alunos recém formados que par de debates teóricos. Para tanto, são marca-
fazem parte do Programa de Extensão de Está- das sessões de supervisão, no decorrer do se-
gio para alunos recém formados pela Universi- mestre, com esta finalidade. Considera-se que
dade de Brasília. a tarefa teórica é tão essencial quanto a tarefa
O programa de Estágio Supervisionado prática de supervisão para o processo de a-
em Psicodrama é uma das modalidades de está- prendizagem do papel de terapeuta.
gio oferecida aos alunos, dentro das disciplinas Acreditamos que todos estes elementos
citadas. O estágio consiste no atendimento psi- relacionados acima possam favorecer a forma-
20 A supervisão na formação do psicoterapeuta

ção do papel profissional de psicólogo psicote- No que diz respeito aos alunos, a
rapeuta “o que possibilita tornar esse aprendi- supervisão se justifica nas situações em que o
zado uma experiência tão rica quanto comple- supervisionando identifica uma dificuldade
xa” (Aguirre e cols., 2000, p. 50). própria em manejar uma determinada situação
na relação com seu paciente e também quando
A supervisão didática deseja ver como um caso ou situação
A supervisão é um procedimento específica é trabalhado por outro profissional.
pedagógico, por isto o complemento ‘didática’ A este respeito, uma das condições mais
que normalmente segue o termo, que figura importantes na aprendizagem do papel de
como etapa acadêmica de um curso. É também, terapeuta clínico passa necessariamente pela
segundo Calvente (2002), uma aprendizagem capacidade crescente do terapeuta iniciante de
especial porque tem como finalidade articular estabelecer, o que consideramos chamar de
teoria e prática, constituindo-se uma matriz de clima terapêutico em relação ao seu paciente.
aprendizagem. De acordo com o autor, a Entendemos clima terapêutico como a
supervisão é um espaço de revisão conceitual, capacidade do terapeuta de poder acolher e
onde se permite aprofundar ou ampliar os aceitar seu paciente naquelas questões que são
conceitos à luz do material clínico que se está rechaçadas por ele mesmo ou pelo social. O
trabalhando; além disto é espaço de articulação clima terapêutico é um clima afetivo que
e instrumentação técnica e também de favorece o amadurecimento psicológico
treinamento do papel de terapeuta. Em suma é permitindo estabelecer uma relação de respeito
lugar de articulação da revisão conceitual, da entre o terapeuta e seu paciente.
técnica e do papel do terapeuta.
De acordo com Silva Dias (1994), “o
A supervisão pode ter como cenário de
estabelecimento do clima terapêutico é de
desenvolvimento a Instituição, com seus cursos
exclusiva responsabilidade do terapeuta e está
e currículos organizados de forma processual e
ligado ao seu grau de amadurecimento como
sistemática e visa fornecer ao estudante, em
profissional e como pessoa” (p.57). Desde este
vias de finalização do percurso acadêmico, a
ponto de vista podemos afirmar que três
formação necessária para o bom desempenho
aspectos são fundamentais para que o
do futuro papel profissional.
terapeuta, neste nosso caso específico o
Também na formação do psicólogo
terapeuta iniciante, possa conseguir estabelecer
clínico, a supervisão tem como finalidade dar
o clima terapêutico, base do processo
ao psicoterapeuta iniciante, de forma
psicoterápico. São eles: psicoterapia própria,
sistemática, o contexto relacional apropriado à
conhecimento teórico e supervisão.
reflexão sobre a situação psicoterápica. Além
Acreditamos ser a integração deste tripé
disto, a supervisão contextualiza o
condição necessária para o entendimento, por
desenvolvimento ou a experimentação de um
parte do terapeuta iniciante, da dinâmica do
estilo próprio no desempenho do papel
paciente possibilitando assim uma separação
profissional, que é a marca do profissional em
entre seus próprios conteúdos emocionais e os
atuação.
conteúdos de seu paciente.
Do ponto de vista da Instituição a
De acordo com Aguirre e cols. (2000)
supervisão em psicologia clínica se justifica
para poder empatizar com o paciente é
pela conscientização para uma melhor
necessário poder se colocar no lugar deste sem,
interação entre teoria e prática na universidade
porém, confundir-se com ele. Exemplos,
e pela necessidade de abertura de um campo de
retirados de relatórios finais dos alunos, podem
formação, de pesquisa e de prática para os
ilustrar este fato. A supervisionanda/terapeuta
alunos de graduação. Justifica-se ainda pela
PL com relação aos seus primeiros
contribuição, do ponto de vista institucional,
atendimentos com uma paciente diz:
para o aperfeiçoamento dos alunos de
graduação e por uma atenção à demanda Nas primeiras sessões, sentimos muita
crescente da comunidade para os serviços de dificuldade em entrar verdadeiramente
psicologia clínica. em contato com a paciente. Ela sempre
21 E. R. Lazzarini, T. C. Viana, J. V. S. Rolim, C. M. B. Veludo e L. Diniz

trouxe o material a ser trabalhado de Estes exemplos são ilustrativos no sen-


forma distante, teórica. Tínhamos a sen- tido de mostrar como o estabelecimento do
sação de que havia decorado um script. clima terapêutico, entre terapeuta e paciente, é
Trazia os temas já prontos e a seqüência relevante e como a supervisão pode auxiliar
da fala. Não ouvia ou dava importância neste quesito.
às nossas colocações, só queria seguir Outra das tarefas primordiais da super-
seu script. visão é a de procurar estabelecer um espaço
A mesma supervisionanda falando sobre de confiança através do contrato de sigilo en-
sua estratégia para lidar com o caso: tre os elementos do grupo de supervisão, tanto
em relação ao material dos pacientes quanto
Eu, seguindo meu script controlei os
ao que acontece dentro do grupo, no sentido
temas trazidos pela paciente e direcionei
deste ser um bom continente para as ansieda-
os questionamentos em função do que
des que emergem no trabalho. O aluno pode
acreditava ser o tema da sessão. Inter-
transportar para a situação de atendimento do
rompi a sessão quando o tempo acabou.
seu paciente um enquadramento similar ao
Ela ficou visivelmente irritada. Não fa-
vivenciado na supervisão, que garanta ao pa-
lou nada ao final da sessão.
ciente as condições de sigilo, respeito e conti-
PL, julgando a sua atuação acima relata- nência para com as dificuldades que este apre-
da, afirma: senta. Alguns exemplos podem ilustrar isso. A
Errei, confesso. Do ponto de vista da supervisionanda/terapeuta PL falando sobre a
direção da sessão fiz errado. Escolhi supervisão diz:
pela paciente o tema a ser tratado e fui O papel das sessões de supervisão foi
intransigente e até infantil. Mas, a ses- essencial na medida em que embasa o
são surtiu efeito em mim, de tal forma estagiário tanto teoricamente quanto
para que eu possa refletir. no aspecto prático. Nas supervisões
Em outro exemplo ilustrativo a pude ver como eu estava implicada nos
supervisionanda/terapeuta LS fala a respeito do atendimentos. Meus sentimentos, me-
encerramento abrupto do processo psicoterápi- dos, minhas semelhanças e diferenças
co de um paciente: com os pacientes e a interferência des-
Porém, além da defesa de não compare- sas semelhanças e diferenças na condu-
cer a algumas sessões, pude observar ção do processo. Pude compartilhar,
que essas faltas aconteceram, a partir nas sessões de supervisão muitas destas
do dia em que não fiz um acolhimento, coisas, pois me senti em espaço de aco-
escutando melhor as suas justificativas. lhimento e escuta, além de aprendiza-
Assim, tanto por suas defesas, quanto gem. Aprendi muito com a experiência
por falta de acolhimento, o processo e com as dúvidas de outros colegas e
terapêutico acabou. pude tirar o máximo proveito para a
A supervisionanda/terapeuta AF relata a minha prática. Percebi a evolução dos
necessidade da criação do clima terapêutico: atendimentos e a minha evolução como
terapeuta. Aprendi, acima de tudo, que
Nesse primeiro momento do processo é possível ser (bom) terapeuta, apesar
terapêutico, buscamos criar esse clima dos erros e medos enfrentados.
(o clima terapêutico) principalmente por
meio de jogos dramáticos (...). Ao longo Sobre este mesmo aspecto da supervi-
do atendimento tenho utilizado o jogo são a supervisionanda /terapeuta LS fala:
como um instrumento de trabalho e o Além disso, ao discutirmos os casos na
percebo como uma possibilidade real- supervisão, as pessoas expressavam o
mente rica e promotora de oportunida- que as havia mobilizado, e então, a su-
des de coleta de dados, criação e forta- pervisão ocorria não apenas para o
lecimento de vínculo e introdução da entendimento do processo terapêutico,
cliente às técnicas do Psicodrama. mas de tudo que poderia estar mobili-
22 A supervisão na formação do psicoterapeuta

zando a cena e o próprio diretor/ ficações teóricas são construídas e os


terapeuta para que isso não interferisse acertos, os erros e as propostas de enca-
no processo terapêutico do paciente. minhamento são pontuados.
O supervisionando/terapeuta JM também A teoria, enquanto conjunto de pressu-
afirma que: postos ou paradigmas, fundamenta a compre-
ensão da dinâmica do cliente e o trabalho do
O trabalho em grupo de supervisão foi
terapeuta. A supervisão neste sentido fala do
valioso pelo contexto de troca de im-
“como entender” o objeto de trabalho e tam-
pressões e experiências. Assim como os
bém do “porquê” da utilização das técnicas.
clientes são diferentes, os terapeutas
Um terceiro aspecto que diz respeito à
também o são. Pude na supervisão, per-
técnica é que, na prática, a supervisão pode ser
ceber dinâmicas diferentes de atuar e,
feita de duas maneiras: esporádica quando
pude também, aprender com isto.
corresponde a um episódio conclusivo em si
Aspectos da supervisão didática mesmo e processual quando há continuidade
Um dos aspectos da supervisão consiste através de diversos seguimentos. É individual
em compreender a relação terapeuta-paciente quando o supervisor trabalha com apenas um
pela relação supervisor-supervisionando. Cabe supervisionando ou grupal quando trabalha
ao supervisor o papel de levantar, junto com o com vários. Os fatores que definem a escolha
supervisionando, o momento de atuação em da atuação são o referencial teórico, o
que este se encontra com a finalidade de instrumental técnico, a experiência do
decidir pela intervenção que melhor se adapte a supervisor e a demanda dos supervisionandos.
situação. O espaço de supervisão não pode ser Teoria psicodramática e supervisão didática
confundido com o espaço terapêutico, por ser Concordamos com Calvente (2002)
um espaço didático em sua essência. quando diz que o psicodrama é um dos instru-
Um segundo aspecto é que, didaticamen- mentos mais adequados para integrar, na super-
te, a supervisão deve aprimorar a aplicação da visão, o aspecto vivencial. De fato, a aborda-
técnica, da teoria, do método. As intervenções gem psicodramática, considerada aqui como
do supervisor favorecem a elaboração das situ- método de trabalho, é um instrumento apropri-
ações vivenciadas no contexto da relação tera- ado nas intervenções didático-técnicas da su-
peuta-paciente cliente e são discutidas sob a pervisão uma vez que possibilita a recriação
luz da teoria e da técnica. No depoimento do das cenas e situações vivenciadas pelo terapeu-
supervisionando/terapeuta CM isto se expressa ta-aluno no contexto psicoterápico. O psicodra-
da seguinte maneira: ma se torna assim elemento poderoso, pois per-
É impressionante o quanto a experiência mite a elucidação da dinâmica do paciente para
clínica habitua a visão do profissional o supervisionando e para o grupo de supervi-
para a percepção de detalhes nas ses- são, possibilitando melhor elaboração e decisão
sões que passam despercebidos para quanto aos procedimentos a serem utilizados.
terapeutas inexperientes como é o meu Moreno (1975), criador do psicodrama,
caso. Por vezes a simples entonação de descreve como recursos inatos do homem os
voz, a repetição de palavras ou a omis- fatores espontaneidade e criatividade. Esses
são das mesmas indicavam caminhos fatores, durante a vida do indivíduo, vão per-
que eu não pude perceber, mas que em dendo sua capacidade de atuação em função de
supervisão, após o encadeamento da condições adversas ambientais e sociais repas-
teoria, feito pelas supervisoras, torna- sadas ao homem pelo seu átomo social (grupo
vam-se claros aos meus olhos. familiar e social de influência) e pelas conser-
E ainda, o mesmo supervisionando a- vas culturais (normas e valores de um grupo ou
crescenta: sociedade).
O que tem acontecido é que a sessão Moreno se refere à espontaneidade como
transcorre de maneira intuitiva e somen- a capacidade do homem agir de forma
te depois, em supervisão, é que as signi- adequada e criativa. Deve-se perceber nessa
23 E. R. Lazzarini, T. C. Viana, J. V. S. Rolim, C. M. B. Veludo e L. Diniz

adequação um sentimento reforçador da cam em cena a função mãe e conseqüente-


liberdade inata, onde o homem vai buscar a mente a de filho (a), a função de professor e
espontaneidade adequada em si mesmo, sua contrapartida a de aluno, falamos de pa-
permitindo a manifestação de seu potencial péis sociais que são correspondentes às fun-
criativo, possibilitando respostas novas a ções sociais assumidas pelo indivíduo na sua
situações novas ou antigas e tornando-se relação com o ambiente. Quando apresentam
agente de seu próprio destino. uma mãe específica, um filho específico ou
Moreno é o idealizador da sociometria e um professor específico, chamamos a este
mais especificamente do conceito de papel ou papel de papel psicodramático, isto é, que sur-
teoria dos papéis, um conceito indispensável gem da atividade criadora do indivíduo. É
para o entendimento da teoria psicodramática. através do papel psicodramático, segundo Mo-
A teoria dos papéis diz, sobretudo, do conjunto reno, que o indivíduo pode vir a treinar, modi-
de posições imaginárias assumidas pelo ficar ou ampliar seus papéis sociais. É o que
indivíduo desde seus primórdios, na relação podemos chamar de um processo de aprendi-
com os demais. zagem.
O conceito de papel é fundamental na É disto que trata a supervisão. Partindo
prática de supervisão. Segundo Moreno (1975) destes referenciais teóricos, a supervisão com
papel é considerado uma unidade cultural de abordagem psicodramática visa, através da
conduta. De acordo com ele: reconquista da espontaneidade e da criativida-
Cada papel aparece como uma fusão de de e ainda do treino de papéis, o autoconheci-
elementos individuais e coletivos; mento necessário ao supervisionando para o
resulta de duas classes de fatores: seus embasamento do processo de preparação do
denominadores coletivos e suas seu papel social profissional. Em outras pala-
diferenciações individuais. Pode ser útil vras, da mesma forma, ao se utilizar destes
distinguir a tomada ou aceitação do conceitos, a supervisão também confere ao
papel – quer dizer, o fato de aceitar um supervisionando uma função de aprendiza-
papel já feito e inteiramente constituído gem, uma vez que, ao levantar possibilidades,
que não permite ao sujeito a menor enseja a pesquisa das ações terapêuticas. O
fantasia com o texto estabelecido - o modelo de supervisão aqui adotado visa esta-
desempenho do papel – que tolera certo belecer o aprendizado, abrindo espaço para
grau de liberdade - e a criação do papel que o supervisionando possa desenvolver me-
- que deixa uma ampla margem à lhor seu papel.
iniciativa do ator, como é o caso do ator Ainda sobre o conceito de papel, Bustos
espontâneo. Os aspectos captáveis (2001) afirma que cada papel envolve um
daquilo que se chama “eu” aparecem contrapapel que se denomina papel comple-
nos papéis em que este atua. Os papéis e mentar, isto é, ao papel de mãe corresponde o
as relações entre os diversos papéis complementar filho, ao de professor, o de alu-
constituem a melhor revelação de uma no, e assim por diante. Para que haja comple-
determinada forma cultural..... O papel mentaridade, segundo o autor, deve-se ter
aparece antes de que surja o eu. Não são consciência do vínculo que une, mas que tam-
os papéis que emergem do eu, senão é o bém diferencia, separa cada papel. Na super-
eu que pode emergir dos papéis (p.69). visão falamos das categorias de papel de su-
P ara Moreno (1957) o recém nascido mui- pervisor e supervisionando. O que os une são
to antes de entrar no mundo da linguagem já de fato vínculos complementares, mas assimé-
desempenha seus primeiros papéis na forma de tricos caracterizados pela polaridade na qual o
papéis psicossomáticos, nos quais as funções grau de responsabilidade, para um e para ou-
fisiológicas dão a característica do desempenho tro, não é sempre o mesmo.
deste papel e portanto passam a ser os elemen- Role-playing – A construção do papel
tos principais. Falamos aqui “daquele que co-
Apoiada nas idéias de Moreno, a meto-
me”, “daquele que dorme”, “daquele que respi-
dologia da supervisão com técnicas psicodra-
ra” e assim por diante. Quando os papéis colo-
24 A supervisão na formação do psicoterapeuta

máticas enseja considerar a supervisão como apoio mútuo, acrescidos do uso constante de
parte integrante da construção do papel de tera- role-playing permitem o aperfeiçoamento das
peuta. capacidades do supervisionando.
Moreno (1954) coloca que na construção Segundo Kaufman (1993), o termo role
de um papel, em primeiro lugar temos a assun- playing deve ser diferenciado, segundo sua
ção ou tomada de papel (role taking), depois o utilização, em sentido lato ou estrito. De acor-
desempenho do papel (role playing), para che- do com o autor em sentido lato, a expressão
gar finalmente, à criação do papel (role crea- refere-se a jogo de papéis, representação teatral
ting). Calvente (2002), no que se refere à cons- e, portanto, está presente nas várias formas de
trução do papel de terapeuta, diz que: abordagem socionômica e, em sentido estrito,
relaciona-se a uma das etapas de estruturação
Quando o estudante se sente identificado
do papel e, também, ao jogo de um certo papel
com seu papel, pode representá-lo com
e seu contrapapel dentro de um vínculo especí-
espontaneidade e vivenciá-lo de modo
fico. No nosso caso abordamos, em supervi-
integrado com o restante de sua pessoa,
são, a relação que se estabelece entre o tera-
o que lhe permite desempenhá-lo com
peuta iniciante e seu cliente, isto é, abordando
estilo próprio e com uma quantidade
o papel e seu contrapapel.
cada vez menor de ansiedade. Seguindo
O role playing, como método do psico-
a idéia moreniana, quanto menor a ansie-
drama, vai usar a representação dramática em
dade, maior a espontaneidade e a criati-
substituição ao relato verbal, pela experiência
vidade e vice-versa (p.113).
compartilhada e vivenciada do processo atra-
Na supervisão com técnicas psicodramá- vés do jogo de papéis. Role playing é o “como
ticas trabalhamos especialmente com o desem- se” da sessão, no qual o supervisionando assu-
penho de papéis ou role playing e com a utili- me via de regra o seu próprio papel e o papel
zação do próprio grupo em supervisão como de seu paciente compondo assim as várias al-
matriz do aprendizado. Diz Naffah Neto: ternativas do processo psicoterápico que se
O método do role playing: desenrolam na sessão, in loco e in presentia,
"interpretação de papéis” – transforma- durante a supervisão. O “como se” também
dos posteriormente por uma certa prática oferece a possibilidade do supervisionando
ideológica em “treinamento de papéis” – testar previamente suas ações e atitudes frente
busca, como método, uma pesquisa, ex- ao comportamento de seus pacientes sem a so-
plicitação e transformação dos papéis, brecarga ansiógena que a situação real fatal-
tomando-os em sua dimensão dinâmica mente acarretaria.
ou interativa. A nosso ver ele representa Segundo Zimerman e Osório (1997), o
uma derivação do teatro espontâneo da role playing, em supervisão tem como função
mesma forma que o sociodrama e o psi- preencher as lacunas do material da sessão que
codrama foram derivações do teatro tera- já ocorreu bem como possibilitar uma visão
pêutico. Mas na verdade, é menos espe- estratégica do ocorrido. Desta forma, de acordo
cífico que os métodos sociátricos: visa à com os autores, o supervisionando ao estar nu-
educação e ao desenvolvimento da es- ma posição que implica um menor comprome-
pontaneidade de uma forma mais global, timento ele pode passar a dominar suas ansie-
enquanto o psicodrama e o sociodrama dades vez que a situação deixa de ser fonte de
especificavam-se no “tratamento” das paralisação por deixar de ser nova e desconhe-
patologias. Por isso o role playing tor- cida. O supervisionando/terapeuta JV sobre
nou-se o método central do psicodrama isto afirma que:
pedagógico ou educacional (1997, p. Na supervisão podemos abrir caminho,
197). através do role playing, para estarmos
O psicodrama, por ser uma abordagem explorando os vários desdobramentos e
essencialmente grupal e de ação, favorece o as conseqüências dos comportamentos
compartilhar através da interação do grupo. vivenciados pelo paciente. Desta forma,
Acreditamos que a troca de experiências e o quando vivenciamos isto na supervisão,
25 E. R. Lazzarini, T. C. Viana, J. V. S. Rolim, C. M. B. Veludo e L. Diniz

podemos estar mostrando ao paciente, relacionadas tanto ao desempenho do papel de


na sua sessão, o limite que ainda não terapeuta que se encontra ainda em formação,
tem e que delega a outrem. como com as questões teóricas relativas a di-
O role playing permite ao supervisio- nâmica psíquica do paciente, com as questões
nando revivenciar uma sessão já ocorrida expe- práticas de emprego das técnicas e também, e
rimentando os vários ângulos do papel desem- principalmente, com as questões relacionadas
penhado: o seu papel e o papel de seu cliente. às dinâmicas psíquicas do próprio supervisio-
Isto lhe dá a capacidade de ampliar seu espec- nando.
tro de observação e compreensão da dinâmica No nosso modelo de supervisão
de seu paciente através e principalmente de sua procuramos lidar com estas dificuldades
observação especular. O supervisionando se seguindo uma sistemática de supervisão
coloca como que diante de um espelho, obser- própria e ainda com a utilização, como dito
vando-se em ambos os papéis e assim amplian- anteriormente, do role playing como técnica
do seu espaço de visão. principal do trabalho. Seguimos, neste
Em nossa experiência com estudantes trabalho, o esquema das etapas da sessão de
vemos que grande parte de suas preocupações psicodrama: aquecimento, dramatização e
se refere a articulação entre teoria e prática. comentários ou elaboração.
Uma das razões para a utilização do role pla- Na primeira parte, o aquecimento, soli-
ying é a de atenuar esta passagem, ou melhor, citamos que o supervisionando faça um relato
fazer esta ponte entre o conhecimento teórico e verbal a respeito da psicoterapia de seu paci-
a experiência prática do desempenho do papel ente, procurando ser o mais explícito possível.
profissional. O supervisionando/terapeuta JV Tal procedimento, além de aquecer o supervi-
ilustra isto quando avalia no relatório final seus sionando para o desempenho dos papéis que
atendimentos: lhe serão requeridos, nos permite visualizar
em primeiro lugar quais fatos ou dinâmicas o
O que foi que aconteceu que durante o
supervisionando elegeu em sua leitura de seu
2o. semestre me senti capaz de estar as-
paciente. Não pedimos, via de regra, que nos
sumindo oito clientes? A resposta está
relate uma sessão específica, pois o que nos
certamente no trabalho de supervisão.
importa é observar como nosso supervisionan-
Primeiramente uma supervisão que teve
do internalizou seu cliente.
a ousadia de estar oferecendo um novo
Na etapa seguinte, da dramatização
enfoque teórico, de estar apresentando
propriamente dita, após o relato, pedimos que
para muitos uma nova perspectiva clíni-
o supervisionando adote o papel do paciente
ca, sobre a qual todo o trabalho se de-
para ser entrevistado por algum integrante do
senvolveu: o Psicodrama. Em segundo
grupo de supervisão de sua escolha.
lugar, o fato de estarmos semanalmente
Utilizamos muitas vezes algumas técnicas
discutindo e trabalhando os casos por
dramáticas, principalmente o espelho e a
nós conduzido no consultório, buscando
inversão de papéis, colocando o
aprofundar a compreensão da teoria
supervisionando para desempenhar o papel de
psicodramática, bem como desenvolven-
seu paciente e também o seu papel na sessão
do, através da utilização do role pla-
de supervisão e, eventualmente, colocamos o
ying, um novo papel, o papel de terapeu-
ego auxiliar no papel do supervisionando para
ta. Esta dobradinha semanal teórico-
que ele possa “se ver” no seu próprio papel.
prática, tenho certeza, nos deu seguran-
Este procedimento dura em média de 10 a 20
ça para estarmos ousando mais.
minutos, tempo suficiente para que a dinâmica
Um modelo de trabalho - A supervisão na prática toda possa ser observada.
A última etapa, de comentários, diz da
Observamos, em nossa experiência, que
elaboração e processamento da sessão.
geralmente o estudante aborda em supervisão
os casos de seus pacientes nos quais encontrou Levamos em consideração quatro itens que
algum tipo de dificuldade. De acordo com Sil- sistematizam o processo de supervisão.
va Dias (1996), tais dificuldades podem estar Resumidamente são eles:
26 A supervisão na formação do psicoterapeuta

(1) Angústia: porta de entrada da psicoterapia. seus participantes para poder lidar com aquele
Seu diagnóstico é fundamental como norteador que não está no grupo, mas que é a peça central
da conduta que deverá ser tomada pelo desta máquina: o paciente.
terapeuta frente ao paciente. Para o aluno, esta dupla vivência parece
(2) Discurso: a decodificação do discurso do proporcionar, ao longo do trabalho, o acúmulo
paciente vai informar o que ele realmente está necessário de experiências para o desempenho
nos comunicando do ponto de vista deste papel que por ora está em formação. No
diagnóstico. Este discurso pode vir de diversas caso do supervisor, introduzir o aluno e futuro
formas e é muito específico de cada paciente. colega de profissão neste contexto, proporcio-
Entretanto, em linhas gerais observamos que nar a este as experiências necessárias para que
este discurso pode vir de forma queixosa, aprenda a lidar com as complexas situações
vitimizada, impositiva, disfarçada, acusatória, e que se apresentam e também poder participar
assim por diante. na criação do estabelecimento do clima tera-
pêutico, parece constituir um fascinante desafi-
(3) Proposta de relação: é a forma implícita no
o. A tarefa do supervisor de acompanhar, ao
discurso do paciente que direciona o tipo de
longo do semestre os movimentos do supervisi-
relação que ele tenta estabelecer com o
onando e futuro terapeuta visando uma integra-
terapeuta. Geralmente, é um tipo de “relação
ção final fundamentada nas questões teóricas,
interna complementar patológica” (Silva Dias,
no raciocínio clínico, na compreensão da dinâ-
1996, p. 120) que o paciente pode assumir
mica do paciente, tudo isto constitui material
esperando uma complementaridade por parte
de trabalho para o supervisor. E também, poder
do terapeuta. A proposta de relação fala da
participar e contribuir para o crescimento pro-
dinâmica psicopatológica do paciente.
fissional de seu aluno é o que constitui, para o
(4) Estágio da psicoterapia: refere-se ao ponto supervisor motivo de satisfação profissional.
em que a psicoterapia está bloqueada ou ao Este artigo ao tentar sistematizar alguns
ponto em que o supervisionado está conceitos, procurou destacar aspectos que con-
trabalhando com seu paciente. É importante a sideramos relevantes para o processo de apren-
definição deste momento de terapia para que se dizagem do papel de terapeuta. Não procura-
possa melhor utilizar as técnicas dramáticas e mos com o mesmo esgotar a amplitude do tema
as condutas apropriadas. proposto, mas, ao contrário, abrir campo de
pesquisa que possa contribuir para a reflexão
Considerações finais sobre o ensino da prática clínica bem como
No decorrer deste artigo, ao nos referir- sobre a qualidade da formação do psicólogo
mos aos alunos que participam do programa de clínico.
supervisão, tivemos o cuidado de designá-los
por supervisionando/ terapeuta. Isto nos coloca Referências bibliográficas
frente a uma questão que gostaríamos de desta- Aguirre, A. M. B; Herzberg, E.; Pinto, E. B.;
car aqui. Ao cursar a disciplina Estágio Super- Becker, E.; Carmo, H. M. S. e Santiago, M.
visionado o aluno passa a ter a oportunidade, D. E. (2000). A formação da atitude clínica
ainda na graduação, de vivenciar o pressuposto no estagiário de psicologia. Psicologia
de um papel profissional que está se estabele- USP, 11 (1), 49-62.
cendo. Desta forma, o aluno sobrepõe dois pa- Bustos, D. M. (2001). Perigo... amor à vista.
péis: de aluno frente ao seu professor supervi- São Paulo: Aleph
sor e de profissional terapeuta frente ao seu Calvente, C. (2002). O personagem na
paciente. Por seu turno, o supervisor também psicoterapia – articulações
desempenha um duplo papel, de professor, que psicodramáticas. São Paulo: Editora Agora.
ensina e avalia e também de terapeuta, uma vez Kaufman, A. (1993). Role playing. Em R.
que dirige o grupo de supervisão procurando Monteiro (Org.), Técnicas fundamentais do
estabelecer o clima terapêutico de proteção e Psicodrama. São Paulo: Editora
continência neste grupo. Este quadro nos mos- Brasiliense.
tra a magnitude deste trabalho que envolve Moreno, J. L. (1954). Fundamentos de la so-
27 E. R. Lazzarini, T. C. Viana, J. V. S. Rolim, C. M. B. Veludo e L. Diniz

ciometria. Buenos Aires: Editorial Paidós Silva Dias, V. R. C. (1996). Sonhos e


Moreno, J. L. (1975). Psicodrama. São Paulo: Psicodrama interno. São Paulo: Ágora.
Cultrix Universidade de Brasília - CAEP. (2001). Ma-
Naffah Neto, A. (1997). Psicodrama: nual de orientação dos estágios realizados
descolonizando o imaginário. São Paulo: no CAEP. Brasília: Instituto de Psicologia.
Plexus Zimerman, D. E. e Osório, L. C. (1997).
Silva Dias, V. R. C. (1994). Análise Como trabalhamos com grupos. Porto
psicodramática - Teoria da programação Alegre: Artes Médicas.
cenestésica. São Paulo: Ágora.
Enviado em Dezembro / 2003
Aceite final Março / 2005

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